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O QUARTO K - P.2 / Mario Puzo
O QUARTO K - P.2 / Mario Puzo

 

 

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O QUARTO K

Parte II

 

O IMPEACHMENT DO PRESIDENTE dos Estados Unidos em 24 horas parecia quase impossível. Mas quatro horas depois do ultimato de Kennedy a Sherhaben, o Congresso e o Clube Sócrates tinham a vitória ao seu alcance.

Depois que Christian Klee deixou a reunião, a seção de vigilância de computador de sua divisão especial do FBI forneceu-lhe um relatório completo sobre as atividades dos líderes do Congresso e os membros do Clube Sócrates. Três mil ligações telefônicas estavam relacionadas. Todos os encontros também constavam do relatório. Os indícios eram claros e incontestáveis. Dentro de 24 horas, a Câmara e o Senado dos Estados Unidos tentariam aprovar o impeachment do presidente.

Furioso, Christian meteu os relatórios numa pasta e seguiu apressado para a Casa Branca. Antes de partir, porém, determinou a Peter Cloot que transferisse dez mil agentes de seus postos normais para Washington.

Nessa mesma ocasião, tarde da quarta-feira, o Senador Thomas Lambertino, o homem forte do Senado, com sua assessora Elizabeth Stone e o Deputado Alfred Jintz, o presidente democrata da Câmara, reuniram-se no gabinete do senador. Sal Troyca, o chefe da assessoria de Jintz, também estava presente, a fim de dar cobertura a seu chefe, que era considerado um idiota rematado. Não havia a menor dúvida sobre a astúcia de Troyca, não apenas em sua própria mente, mas também em todo o Capitólio.

Sal Troyca era também famoso por sua habilidade de conquistador, um defensor de amplas relações entre os sexos. Troyca já percebera que a principal assessora do senador era uma beleza, mas ainda precisava descobrir até que ponto ela era devotada. E naquele momento ele tinha de se concentrar no problema imediato.

Troyca leu em voz alta as frases pertinentes da 25ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos, suprimindo frases e palavras aqui e ali. Lia devagar e com todo cuidado, numa voz de tenor bem controlada:

— "Sempre que o Vice-Presidente e uma maioria dos principais diretores dos departamentos executivos"... — Num aparte para Jintz, ele sussurrou: — É o Gabinete.

Sua voz se tornou mais enfática, enquanto ele continuava:

— ...”ou qualquer outro corpo que o Congresso pode determinar por lei, transmitirem... ao Senado e... Câmara de Representantes sua declaração por escrito de que o Presidente é incapaz de exercer os poderes e cumprir os deveres de seu cargo, o Vice-Presidente assumirá imediatamente os poderes e deveres do cargo como o Presidente em Exercício.”

— Oh, merda! — exclamou Jintz. — Não pode ser tão fácil assim afastar um presidente.

— E não é — declarou o Senador Lambertino, em voz suave. — Continue a ler, Sal.

Sal Troyca refletiu amargurado que era típico de seu chefe não conhecer a Constituição, por mais sagrada que fosse. E desistiu. Foda-se a Constituição, Jintz nunca seria capaz de entender. Teria de explicar nos termos mais simples.

— Em suma, a vice-presidente e os membros do Gabinete devem assinar uma declaração de incompetência para afastar Kennedy do cargo. Depois, a vice-presidente torna-se presidente. Um segundo depois, Kennedy entra com sua contradeclaração, dizendo que está bem. E volta a ser presidente. Depois, o Congresso decide. Durante esse período Kennedy pode fazer o que bem quiser.

— E lá se vai Dak — murmurou Jintz.

— A maioria dos membros do Gabinete assinará a declaração — informou Lambertino. — Teremos de esperar por uma resposta da vice-presidente... não podemos fazer nada sem a sua assinatura. O Congresso terá de se reunir no máximo até dez horas da noite de quinta-feira para decidir a questão, a tempo de evitar a destruição de Dak. E para ganhar, precisamos de dois terços dos votos da Câmara e do Senado. Podemos vencer na Câmara? O Senado eu garanto.

— Claro que ganharemos — assegurou Jintz. — Recebi um telefonema do Clube Sócrates. Eles vão pressionar todos os deputados.

Troyca interveio, respeitoso:

— A Constituição diz qualquer outro corpo que o Congresso possa determinar por lei. Por que não evitar a necessidade de assinatura dos membros do Gabinete e da vice-presidente, convertendo o Congresso nesse corpo? Nesse caso, a decisão seria imediata.

— Não daria certo, Sal — respondeu Jintz, em tom paciente. — Não pode parecer uma vendeta. Os eleitores ficariam do lado dele, teríamos de pagar por isso mais tarde. Lembre-se de que Kennedy é popular... um demagogo sempre leva vantagem sobre os legisladores responsáveis.

— Não teríamos qualquer dificuldade no procedimento — declarou o Senador Lambertino. — O ultimato do presidente a Sherhaben é radical demais, revela uma mente temporariamente desequilibrada por sua tragédia pessoal. Pela qual sinto a mais profunda simpatia e pesar. Como acontece com todos nós.

— Meu pessoal na Câmara disputa a reeleição de dois em dois anos — disse Jintz. — Kennedy poderia derrubar muitos, se for declarado competente depois do período de trinta dias. Precisamos afastá-lo em caráter permanente.

Lambertino acenou com a cabeça em concordância. Sabia que o mandato de senador de seis anos sempre irritava os deputados.

— É verdade, mas lembre-se de que a conclusão será a de que ele tem graves problemas psicológicos, o que pode ser usado para mantê-lo longe do cargo pelo simples expediente do Partido Democrata recusar a sua indicação.

Troyca notara uma coisa. Elizabeth Stone não dissera coisa alguma desde o início da reunião. Mas também ela tinha um chefe inteligente; não precisava proteger Lambertino de sua própria estupidez. Troyca disse agora:

— Gostaria de fazer um sumário da situação. Se a vice-presidente e a maioria do gabinete votar pelo impeachment do presidente, assinarão a declaração esta tarde. A assessoria pessoal do presidente se recusará a assinar. Seria uma grande ajuda se assinassem, mas isso não vai acontecer. De acordo com o procedimento constitucional, a única assinatura essencial é da vice-presidente. Por tradição, o vice-presidente endossa todas as decisões políticas do presidente. Temos certeza absoluta de que ela vai assinar? Ou que ela não vai protelar sua assinatura? O tempo é fundamental.

Jintz soltou uma risada.

— Qual é o vice-presidente que não quer se tornar presidente? Há três anos que ela vem torcendo para que Kennedy tenha um infarto.

Elizabeth Stone falou pela primeira vez, friamente:

— A vice-presidente não pensa dessa maneira. É absolutamente leal ao presidente. É verdade que é quase certo que ela assinará a declaração, mas por todos os motivos certos.

Jintz fitou-a com uma resignação paciente e fez um gesto apaziguador. Lambertino franziu o rosto. Troyca manteve um rosto impassível, mas no íntimo sentia a maior satisfação.

— Ainda acho que se deve contornar isso — insistiu ele. — O Congresso pode tomar a iniciativa e dar a palavra final.

Jintz levantou-se de sua confortável poltrona.

— Não se preocupe, Sal. A vice-presidente não quer dar a impressão de que está ansiosa em derrubar Kennedy, mas vai assinar. Apenas ela não quer parecer uma usurpadora.

“Usurpador” era uma palavra usada com freqüência na Câmara dos Representantes em referência ao Presidente Kennedy. Lambertino lançou um olhar contrariado para Troyca. Não gostava de uma certa familiaridade na atitude do homem, de seu questionamento dos planos dos superiores.

— Esta ação para afastar o presidente é sem dúvida legal, embora sem precedentes — disse ele. — A 25ª Emenda à Constituição não especifica as provas médicas. Mas sua decisão de destruir Dak é uma prova.

Troyca não pôde resistir:

— Depois que isso acontecer, haverá um precedente. Uma votação de dois terços do Congresso poderá derrubar qualquer presidente. Pelo menos em teoria. — Ele percebeu satisfeito que conquistara a atenção de Elizabeth Sto¬ne, pelo menos, e continuou: — Viraríamos mais uma república das bananas... só que ao contrário, tendo o legislativo como ditador.

O Senador Lambertino protestou, em tom ríspido:

— Em princípio, isso não pode acontecer. O legislativo é eleito diretamente pelo povo, não pode ser ditador como um único homem.

Troyca pensou, desdenhoso: Não, a menos que o Clube Sócrates o controle. E depois ele compreendeu o que deixara o senador furioso, Lambertino considerava-se um possível candidato presidencial e não gostava que alguém dissesse que o Congresso seria capaz de se livrar de um presidente no momento em que quisesse.

— Vamos acabar logo com isso, pois temos muito trabalho a fazer — disse Jintz. — Esta é uma iniciativa de fato para uma democracia mais genuína.

Troyca ainda não se acostumara à simplicidade direta de grandes homens como o senador e o presidente da Câmara, a sinceridade com que punham seus interesses pessoais acima de tudo. Percebeu uma certa expressão no rosto de Elizabeth Stone e compreendeu que ela estava pensando exatamente a mesma coisa. Tentaria conquistá-la, não importava o custo. E ele comentou, com evidente sinceridade e humildade:

— É bem possível que o presidente declare que o Congresso está rejeitando uma ordem executiva de que discorda, não é mesmo? E não poderia desafiar o Congresso a votar sua decisão? Não poderia falar à nação esta noite pela televisão, antes de o Congresso se reunir? E não vai parecer ao público que Kennedy está bem, já que sua assessoria pessoal se recusa a assinar a declaração? E pode haver problemas ainda maiores. Em particular se os reféns forem mortos depois do impedimento de Kennedy. As repercussões no Congresso podem ser terríveis.

Nem o senador nem o deputado pareciam impressionados por essa análise. Jintz afagou o ombro de Troyca e disse:

— Ora, Sal, já previmos tudo. Você só precisa providenciar a documentação.

O telefone tocou nesse momento e Elizabeth Stone atendeu. Ela escutou por um momento e depois informou:

— Senador, é a vice-presidente.

Antes de tomar sua decisão, a Vice-Presidente Helen Du Pray resolveu fazer a sua corrida diária.

A primeira mulher a assumir a vice-presidência dos Estados Unidos tinha 55 anos e por qualquer padrão possuía uma inteligência extraordinária. Ainda era bonita, talvez porque, quando estava na casa dos vinte anos, uma esposa grávida e assistente do promotor distrital, tornara-se uma adepta da alimentação natural. Também se tornara uma corredora na adolescência, antes mesmo do casamento. Um namorado a levara para correr, oito quilômetros por dia, e acelerado. Ele citara a expressão latina “Mens sana in corpore sano” e traduzira para ela:

— Se o corpo é saudável, a mente é saudável.

Por sua indulgência ao traduzir e porque aceitava literalmente a verdade da situação — afinal, muitas mentes saudáveis haviam sido destruídas por um corpo saudável demais —, ela rompera o namoro.

Mas também importante era a sua disciplina dietética, que dissolvia os venenos no organismo, gerava um alto nível de energia e proporcionava como bonificação um corpo espetacular. Seus adversários políticos diziam que ela não tinha paladar, mas isso não era verdade. Podia saborear um bom pêssego, uma pêra suculenta, o gosto picante de legumes frescos, e nos dias tenebrosos da alma, a que ninguém conseguia escapar, era capaz também de se deleitar com um pote cheio de biscoitos de chocolate.

Tornara-se adepta da alimentação natural por acaso. No começo da carreira, como assistente do promotor distrital, processara o autor de um Livro de dietas por alegações fraudulentas e injuriosas. Preparando-se para o julgamento, pesquisara o assunto, lera tudo no campo da nutrição, sob a premissa de que para determinar o falso precisava conhecer o que era verdadeiro. Condenara o autor, obrigara-o a pagar uma vultosa multa, mas sempre achara que tinha uma dívida com o homem.

E mesmo como vice-presidente dos Estados Unidos, Helen Du Pray ainda comia frugalmente, e sempre corria pelo menos oito quilômetros por dia — dezesseis quilômetros nos fins de semana. Agora, no que podia ser o dia mais importante de sua vida, com a declaração para o impedimento do presidente aguardando sua assinatura, ela decidiu fazer uma corrida para clarear a mente.

Sua guarda do Serviço Secreto tinha de pagar o preço. No começo, o chefe de sua segurança pensara que a corrida matutina não seria problema. Afinal, seus homens eram excelentes espécimes físicos. Mas a Vice-Presidente Du Pray não apenas corria bem cedo, através de bosques onde os guardas não podiam segui-la, mas também sua corrida de dezesseis quilômetros, uma vez por semana, deixava os agentes dispersos muito atrás, incapazes de acompanhar seu ritmo. O chefe se espantava pelo fato de que aquela mulher, casa dos cinqüenta anos, fosse capaz de correr tão depressa. E por tanto tempo.

A vice-presidente não queria que sua corrida fosse incomodada; afinal, era uma coisa sagrada em sua vida. Substituíra a “diversão”, significando que substituíra a satisfação da comida, bebida e sexo, cujo prazer e ternura haviam desaparecido de sua vida quando o marido morrera, seis anos antes.

Ampliara as corridas e pusera de lado todos os pensamentos de um novo casamento; subira demais na escada política para se arriscar à aliança com um homem que poderia ser uma armadilha, com segredos ocultos para arrastá-la ao abismo. As duas filhas e uma vida social ativa eram suficientes, e tinha muitos amigos, homens e mulheres.

Conquistara o apoio dos grupos feministas do país não com as lisonjas políticas vazias habituais, mas com uma inteligência objetiva e uma integridade rigorosa. Desfechara um ataque implacável contra os antiabortocionistas e crucificara em debates os porcos chauvinistas que sem risco pessoal tentavam legislar sobre o que as mulheres podiam fazer com seus corpos. Vencera essa luta e no processo subira ainda mais na escada política.

Pela experiência de toda a sua vida, desdenhava as teorias de que homens e mulheres deviam ser iguais; celebrava suas diferenças. A diferença era valiosa num sentido moral, como uma variação na música é valiosa, como uma variação em deuses é valiosa. Claro que havia uma diferença. Ela aprendera de sua vida política, de seus anos como promotora, que as mulheres eram melhores do que os homens nas coisas mais importantes. E tinha estatísticas para provar. Os homens cometiam muito mais assassinatos, assaltavam mais bancos, eram mais perjuros, traíam mais os amigos e pessoas amadas. Como autoridades públicas, eram mais corruptos, como crentes em Deus eram muito mais cruéis, como amantes eram muito mais egoístas, em todos os campos exerciam o poder de forma mais implacável. Era muito mais provável que os homens destruíssem o mundo com a guerra porque temiam a morte muito mais do que as mulheres. Mas pondo tudo isso.de lado, ela nada tinha contra os homens.

Naquela quarta-feira, Helen Du Pray começou a correr assim que seu carro com motorista deixou-a à beira o um bosque, numa comunidade suburbana de Washington. Corria do documento fatídico que aguardava em sua mesa. Os agentes do Serviço Secreto espalharam-se um na frente, outro atrás, dois nos flancos, todos pelo menos a vinte passos de distância. Houvera um tempo em que ela se deliciava em obrigá-los a suar para acompanhar seu ritmo. Afinal, estavam todos vestidos por completo, enquanto ela usava apenas um traje de corrida, e eles ainda carregavam armas, munição e equipamentos de comunicação. Os agentes sofreram bastante, até que o chefe de sua segurança, perdendo a paciência, recrutara campeões de corrida de pequenas universidades, o que arrefecera um pouco o ânimo de Helen Du Pray.

Quanto mais ela subia na escada política, mais cedo se levantava pela manhã para correr. Seu maior prazer era quando uma das filhas corria em sua companhia. O que também proporcionava fotografias sensacionais nos jornais e revistas. Tudo contava.

A Vice-Presidente Helen Dy Pray superara muitos obstáculos para alcançar um cargo tão alto. Obviamente, o primeiro era o fato de ser mulher, e depois, não tão óbvio, o de ser bonita. A beleza muitas vezes despertava hostilidade em ambos os sexos. Superara essa hostilidade com sua inteligência, modéstia e um profundo senso moral. E também recorrera a uma boa parcela de astúcia. Era um lugar-comum na política americana que o eleitorado preferia homens bonitos a mulheres feias como candidatos aos cargos. Por isso, Helen Du Pray transformara uma beleza sedutora numa beleza austera, ao melhor estilo de Joana d'Arc. Usava os cabelos louro-prateados bem curtos, mantinha o corpo esguio e infantil, camuflava os seios com costumes sob medida. Como ornamentos, usava uma fieira de pérolas e nos dedos apenas uma aliança de ouro. Uma echarpe, uma blusa rendada, às vezes luvas eram seus símbolos de feminilidade. Projetava uma imagem de mulher sóbria até que sorria ou ria, quando então sua sexualidade faiscava brilhante como um relâmpago. Era feminina sem ser provocante; era forte sem qualquer insinuação de masculinidade. Em suma, era o modelo ideal para ser a primeira mulher a assumir a presidência dos Estados Unidos. O que devia acontecer se assinasse a declaração em sua mesa.

Agora ela se encontrava no estágio final da corrida, saindo do bosque e entrando numa estrada em que outro carro a esperava. Os agentes do Serviço Secreto se aproximaram, ela entrou no carro e seguiu para a mansão da vice-presidência. Tomou um banho de chuveiro e vestiu as roupas de “trabalho”, uma saia austera e casaco, e partiu para seu escritório... e para a declaração à espera.

Era estranho, pensou ela. Lutara durante toda a sua vida para escapar à armadilha de uma vida canalizada para um único propósito. Fora uma advogada brilhante enquanto criava duas crianças; empenhara-se numa carreira política, enquanto era feliz e fiel no casamento. Fora sócia de uma importante firma de advocacia, depois deputada, senadora, ao mesmo tempo em que se mantivera uma mãe devotada. Conduzira sua vida de maneira impecável, só para terminar como outra espécie de dona de casa, a Vice-Presidente dos Estados Unidos.

Como vice-presidente, tinha de arrumar a casa para seu “marido” político, o presidente, e desempenhar tarefas subalternas. Recebia líderes de pequenas nações, integrava comitês imperantes de títulos pomposos, aceitava informações condescendentes, dava conselhos que eram aceitos com cortesia, mas que não mereciam uma consideração respeitosa. Tinha de repetir as opiniões e apoiar as decisões de seu marido político.

Admirava o Presidente Francis Xavier Kennedy e sentia-se grata por tê-la escolhido como companheira de chapa, mas divergia dele em muitas coisas. Às vezes achava graça porque, como uma mulher casada, escapara à armadilha de uma parceria desigual, mas agora, no mais alto cargo político já alcançado por uma americana, as leis políticas tornavam-na subserviente a seu marido político.

Mas hoje ela podia se tornar uma viúva política e sem dúvida não teria do que se queixar do seguro que receberia, a presidência dos Estados Unidos. Afinal, aquele “casamento” se tornara bastante infeliz. Francis Kennedy avançara depressa demais, com uma agressividade exagerada. E Helen Du Pray começara a fantasiar sua “morte” como muitas esposas infelizes.

Assinando aquela declaração, ela poderia ficar com todos os despojos. Poderia ficar com o lugar de Kennedy. Para uma mulher inferior, isso seria uma satisfação milagrosa.

Ela sabia que era impossível controlar as atividades do cérebro, por isso não se sentia culpada pelas fantasias; mas poderia se sentir culpada por uma realidade que ajudara a consumar. Quando circularam os rumores de que Kennedy não concorreria a um segundo mandato, ela alertara sua rede política. Kennedy concedera então a sua bênção. Agora, porém, tudo isso mudara.

E precisava pensar com absoluta lucidez. A declaração, a petição, já fora assinada pela maioria do Gabinete, os secretários de estado, defesa, tesouro e outros. Faltava a CIA, aquele miserável e inescrupuloso Tappey. E também Christian Klee, um homem que ela detestava. Mas devia chegar a uma conclusão de acordo com seu julgamento e sua consciência. Devia agir pelo bem público, não por sua ambição pessoal.

Podia assinar, cometer um ato de traição pessoal, e ainda assim manter seu auto-respeito? Mas era irrelevante todo o aspecto pessoal. Considere apenas os fatos.

Como Christian Klee e muitos outros, ela notara a mudança em Kennedy depois da morte da esposa, pouco antes de sua eleição para a presidência. A perda de energia. Helen Du Pray sabia, como todos sabiam, que só se podia fazer a presidência funcionar através de um consenso com o poder legislativo. Era preciso adular e lisonjear, talvez fazer algumas concessões. Era preciso controlar o Gabinete, a assessoria pessoal deveria ser um bando de Átilas e Salomões. Era preciso barganhar, era preciso recompensar e lançar uns poucos raios. De certa forma, era preciso fazer todos dizerem: “Está certo, pelo bem do país e pelo meu próprio bem.”

O fato de não fazer essas coisas fora um defeito em Kennedy como Presidente; além disso, ele se encontrava muito à frente de seu tempo. Sua assessoria pessoal deveria saber melhor. Um homem tão inteligente quanto Kennedy deveria saber melhor. E, no entanto, ela sentia nas iniciativas de Kennedy uma espécie de desespero moral, um jogo de tudo-ou-nada do bem contra o mal.

Helen Du Pray acreditava que não estava regredindo para um superado sentimentalismo feminino, que a morte da esposa de Kennedy fora de fato a causa de sua mudança. Mas homens extraordinários como Kennedy desmoronavam apenas por causa de alguma tragédia pessoal? A resposta a isso era sim.

Ela própria nascera para a política, mas sempre achara que Kennedy não tinha o temperamento. Ele era mais um estudioso, um cientista, um professor. Tinha idealismo demais; era, no melhor sentido da palavra, ingênuo. Isto é, era confiante.

O Congresso, as duas casas, desfechara uma guerra brutal contra o executivo, e geralmente ganhava. Pois isso não aconteceria com ela.

Ela pegou a declaração na mesa e analisou-a. O argumento era de que Francis Xavier Kennedy não era mais capaz de exercer os deveres da presidência, por causa de um colapso mental temporário. Em decorrência do assassinato da filha. O que agora afetava seu julgamento, a tal ponto que sua decisão de destruir a cidade de Dak e a ameaça de destruição de uma nação soberana tornavam-se um ato irracional, desproporcional ao grau de provocação, um precedente perigoso que deveria virar a opinião mundial contra os Estados Unidos.

Mas havia também o argumento de Kennedy, que ele apresentara na reunião com o Gabinete e sua assessoria pessoal. Aquela era uma conspiração internacional, em que o Papa fora assassinado, assim como a filha do Presidente dos Estados Unidos. Muitos reféns ainda eram mantidos pelos seqüestradores, e a conspiração podia prolongar a situação por semanas ou até meses. É os Estados Unidos teriam de libertar o assassino do Papa. Seria uma tremenda perda de autoridade para a nação mais poderosa do mundo, líder da democracia e, é claro, do capitalismo democrático.

Sendo assim, quem podia dizer que a reação draconiana proposta pelo presidente não era a resposta correta? Não restava a menor dúvida de que, se Kennedy não estivesse blefando, as medidas dariam certo. O sultão de Sherhaben ficaria de joelhos. Quais eram os verdadeiros valores neste caso?

Item: Kennedy tomara sua decisão sem a discussão apropriada com seu Gabinete, assessoria pessoal e líderes do Congresso. O que era muito grave. Indicava perigo. Um chefe de quadrilha ordenando uma vendeta.

Sabia que todos ficariam contra ele. Estava convencido de que sua decisão era correta. O tempo era escasso. Aquela era a determinação que Francis Kennedy demonstrara mesmo nos anos antes de se tornar presidente.

Item: Ele agira dentro da competência do poder executivo. Sua decisão era legal. A declaração para impedir o presidente não fora assinada por qualquer membro de sua assessoria pessoal, as pessoas mais ligadas a ele. Portanto, a acusação de desajustamento e instabilidade mental era uma questão de opinião, baseada apenas em sua decisão. Portanto, aquela declaração era uma tentativa ilegal de passar por cima da competência do poder executivo do governo. O Congresso discordava da decisão presidencial e por isso tentava revogar essa decisão, afastando o presidente do cargo. Era uma violação óbvia da Constituição.

Essas eram as questões morais e legais. Agora, ela tinha de decidir o que era melhor para seus próprios interesses. O que nada tinha de absurdo numa política.

Conhecia a mecânica. O Gabinete assinara; portanto, se ela assinasse agora a declaração, iria se tornar Presidente dos Estados Unidos. Depois, Kennedy assinaria a sua própria declaração, e ela voltaria a ser vice-presidente. Em seguida o Congresso se reuniria, numa votação de dois terços aprovaria o impedimento, e ela seria presidente pelo menos por trinta dias, até que passasse a crise.

O fator adicional: Ela seria a primeira mulher a ocupar a presidência dos Estados Unidos, por alguns momentos, no mínimo. Talvez pelo resto do mandato de Kennedy, que terminaria no próximo mês de janeiro. Mas não devia ter ilusões. Nunca conseguiria a indicação para disputar a presidência em um novo mandato.

Alcançaria a presidência pelo que alguns considerariam como um ato de traição — Por uma mulher. Já era suficiente que a literatura da civilização sempre apresentasse as mulheres como causando a queda de grandes homens, que existisse o mito persistente de que os homens nunca podiam confiar nas mulheres. Ela seria considerada como “infiel”: esse grande pecado das mulheres que os homens nunca perdoavam. E estaria traindo o grande mito nacional dos Kennedys. Seria outra Modred.

E de repente lhe ocorreu. Sorriu ao compreender que não se encontrava numa situação em que perderia de qualquer maneira. Bastava se recusar a assinar a declaração.

O Congresso não desistiria.

Possivelmente agindo de forma ilegal, sem a sua assinatura, o Congresso votaria de qualquer maneira o impedimento de Kennedy, e a Constituição determinava que ela o sucederia na presidência. Mas teria de provar sua “fidelidade”; e se e quando Francis Kennedy retornasse à presidência, depois de trinta dias, ela ainda contaria com o seu apoio. Ainda teria o grupo de Kennedy por trás de sua indicação para disputar a presidência. Quanto ao Congresso, eles eram seus inimigos, não importava o que fizesse. Então, por que ser a Jezebel política deles? Sua Dalila?

Foi se tornando cada vez mais claro para ela. Se assinasse a declaração, o eleitorado nunca a perdoaria, e os políticos a desprezariam. E depois, quando e se alcançasse a presidência, era bem provável que eles tentassem humilhá-la também. Provavelmente atribuiriam suas deficiências ao fluxo menstrual, pensou ela, a cruel expressão masculina inspiraria caricaturas em todo o país.

Helen Du Pray tomou sua decisão. Não assinaria a declaração. Isso demonstraria que não era uma ambiciosa inescrupulosa, que era leal.

Ela começou a escrever a declaração que entregaria a sua assessoria administrativa para aprontar. Ressaltou que não podia assinar, em sã consciência, um documento que a elevaria a um cargo tão alto. Permaneceria neutra naquela luta. Mas mesmo isso podia ser perigoso. Ela amarrote o papel. Apenas se recusaria a assinar; o Congresso poderia agir por sua própria iniciativa. Ela ligou para o senador Lambertino. Depois, falaria com outros legislador explicando sua posição. Mas nada por escrito.

Dois dias depois de assassinar a efígie em papelão de Kennedy, David Jatney foi expulso da Universidade Brigham Young. Jatney não voltou para casa, para os rigorosos pais mórmons, que possuíam uma rede de lavanderias a seco. Conhecia seu destino ali, já o sofrera antes. O pai acreditava em começar por baixo, carregando trouxas de roupa suja, calças, vestidos, ternos, que pareciam pesar uma tonelada. Todas aquelas roupas de lã e algodão, impregnadas de suor da carne humana, eram angustiantes ao contato.

E, como muitos jovens, ele não agüentava mais os pais. Eram bons, trabalhadores, pessoas que apreciavam os amigos, adoravam a empresa que haviam construído, desfrutavam a camaradagem da Igreja Mórmon. E eram para o filho as duas pessoas mais chatas do mundo.

E ainda por cima levavam uma vida feliz, o que irritava David. Os pais haviam-no amado quando ele era criança, mas ele se tornara tão difícil ao crescer que agora gracejavam que tinham recebido o bebê errado no hospital. Tinham filmes de David em cada estágio: o bebê engatinhando pelo chão, o menino dando os primeiros passos pela sala, levado à escola pela primeira vez, a formatura no curso primário, recebendo um prêmio pela composição na escola secundária, pescando com o pai, caçando com o tio.

Depois do décimo quinto aniversário, ele não mais permitira que o fotografassem. Sentia-se horrorizado pelas banalidades de sua vida registradas em filme; sentia-se como um inseto programado para levar uma vida numa eternidade de mesmice. Estava determinado a nunca ser como os pais, sem compreender que isso também era outra banalidade.

Fisicamente, ele era o pólo oposto. Enquanto os pais eram louros e altos, corpulentos na meia-idade, David tinha uma pele morena, era magro e rijo. Os pais gracejavam sobre a diferença, mas previam que com a idade ele se tornaria mais parecido com eles, o que o enchia de horror. Aos quinze anos, demonstrava uma frieza em relação aos pais que era impossível ignorar. A afeição dos pais não diminuíra de jeito nenhum, mas ficaram aliviados quando ele fora para a Brigham Young.

Tornou-se bonito, com cabelos escuros que brilhavam de tão pretos. As feições eram tipicamente americanas: nariz reto, a boca forte, mas não muito generosa, o queixo saliente, mas não de uma forma intimidativa. No começo quando alguém o conhecia há pouco tempo apenas, ele parecia meramente animado. As mãos se agitavam quando falava. Depois, em outras ocasiões, mergulhava numa indolência que até parecia uma crise de mau humor.

Na universidade, sua animação e inteligência tornaram-no atraente para os outros estudantes. Mas era um pouco bizarro demais em suas reações, quase sempre se mostrava condescendente, às vezes brutalmente insultuoso.

A verdade era que David vivia uma agonia de impaciência em ser famoso, ser um herói, fazer o mundo saber que era especial.

Com as mulheres, exibia uma confiança tímida que as conquistava de início. Achavam-no interessante, e por isso ele teve suas pequenas ligações amorosas. Mas nunca duravam. Ele se mostrava arredio, distante; depois das primeiras semanas de vivacidade e bom humor, absorvia-se em si mesmo. Mesmo no sexo parecia desligado, como se não quisesse perder o controle de seu corpo. Sua maior falha na área do amor era o fato de se recusar a idolatrar a amada, mesmo na fase da corte; e quando se esforçava para ficar profundamente apaixonado, tinha a aura de um valete empenhando-se por uma gorjeta generosa.

Sempre se interessara por política e ordem social. Como a maioria dos jovens, desprezava a autoridade em qualquer forma; o estudo da história revelava-lhe que o curso da humanidade sempre fora o da guerra interminável entre a elite poderosa e as massas impotentes. Desejava a fama para se juntar aos poderosos.

Era natural que fosse escolhido para Caçador-Chefe no jogo de assassinato realizado todos os anos na Brigham Young. E fora seu eficiente planejamento que levara a vitória. Também supervisionara a fabricação da efígie que parecia tanto com Kennedy.

Com os disparos contra a efígie e o banquete da vitória em seguida, David Jatney experimentara uma repulsa por sua vida estudantil. Estava na hora de iniciar uma carreira. Sempre escrevera poesia, mantinha um diário em que achava poderia demonstrar seu espírito e inteligência. Como tinha certeza absoluta de que seria famoso, a manutenção de um diário, com um olho na posteridade, não era necessariamente imodesta. E, assim, ele registrou: “Estou deixando a universidade, já aprendi tudo o que eles podem me ensinar. Amanhã seguirei de carro para a Califórnia, para descobrir se posso me lançar no mundo do cinema.”

Ao chegar a Los Angeles, David Jatney não conhecia uma única pessoa. Isso lhe convinha, gostava do sentimento. Sem responsabilidade, podia se concentrar em seus pensamentos, podia decifrar o mundo. Dormiu num pequeno quarto de motel na primeira noite, depois encontrou um apartamento conjugado em Santa Monica que era mais barato do que esperava. Descobriu o apartamento por intermédio de uma mulher matronal, garçonete no café em que comeu seu primeiro desjejum na Califórnia. David comeu frugalmente — um copo de suco de laranja, torrada e café —, e a garçonete notou que ele lia a seção de aluguéis do Los Angeles Times. Perguntou-lhe se ele procurava um lugar para morar, e David respondeu que sim. Ela escreveu um telefone num pedaço de papel, informou que era apenas um apartamento conjugado, mas com um aluguel razoável, porque as pessoas em Santa Monica haviam travado uma longa batalha com as grandes empresas imobiliárias e havia um rígido controle das locações. E Santa Monica era um lugar lindo, ficava a poucos minutos da praia de Venice, com seu passeio de madeira e muita diversão.

David a princípio ficou desconfiado. Por que aquela estranha se interessava por seu bem-estar? Parecia maternal, mas também tinha um ar sensual. Claro que era muito velha — devia ter pelo menos quarenta anos. Mas ela não fez menção de acompanhá-lo. E despediu-se jovialmente quando ele foi embora. David aprenderia que as pessoas na Califórnia fazem coisas assim. O sol constante parecia abrandá-las. Deixá-las afáveis. Era isso. Não custara nada à mulher prestar-lhe um favor.

David viera de Utah no carro que os pais haviam lhe dado quando ingressara na universidade. Era o seu único bem material, além de uma guitarra que outrora tentara aprender a tocar, mas que deixara em Utah. E tinha uma coisa ainda mais importante, uma máquina de escrever portátil, que usava para escrever seu diário, contos e romances. Agora que se encontrava na Califórnia, tentaria o seu primeiro roteiro para o cinema.

Tudo se ajustava com a maior facilidade. Conseguiu o apartamento pequeno, com um chuveiro, mas sem banheira. Parecia uma casa de boneca, com uma cortina de babados na única janela, reproduções de quadros famosos nas paredes. O apartamento ficava numa rua de casas geminadas de dois andares, por trás da Montana Avenue, e ele podia até estacionar o carro na viela. Estava com muita sorte.

Passou os quatorze dias seguintes circulando pela praia e calçadão de Venice, viajando até Malibu para verificar como viviam os ricos e famosos. Encostava-se na cerca de aço que isolava a colônia de Malibu da praia pública e espiava. Havia uma longa fileira de casas de praia, estendendo-se para o norte. Cada uma valia três milhões de dólares ou mais, mas pareciam cabanas comuns. Não custariam mais que vinte mil dólares em Utah. Mas contavam com a areia, o oceano púrpura, o céu brilhante, as montanhas por trás, no outro lado da estrada da Costa do Pacífico. Algum dia ele sentaria na varanda de uma daquelas casas para contemplar o Pacífico.

À noite, em seu apartamento, ele se lançava em longos sonhos do que faria quando fosse rico e famoso. Permanecia acordado pela madrugada, desenrolando suas fantasias. Foi um período solitário e estranhamente feliz.

Ligou para a família, a fim de fornecer seu novo endereço, e o pai deu-lhe o telefone de um produtor, num estúdio cinematográfico, um amigo de infância, chamado Dean Hocken. David esperou uma semana. Finalmente, ligou e conseguiu falar com a secretária de Hocken. Ela pediu-lhe que esperasse. Voltou à linha momentos depois, comunicou que o Sr. Hocken não estava. David sabia que era mentira, estava sendo descartado, sentiu raiva do pai por ser tão estúpido. Mas deu seu telefone à secretária quando ela pediu. Ainda se encontrava na cama, remoendo, furioso, quando o telefone tocou, uma hora depois. Era a secretária de Dean Hocken. Perguntou-lhe se podia comparecer ao escritório do Sr. Hocken na manhã seguinte, às onze horas. David respondeu que podia, ela informou que deixaria um passe no portão, a fim de que ele pudesse levar o carro para o estacionamento do estúdio.

Ao desligar, David ficou surpreso com a alegria que dominava. Um homem que ele nunca vira antes honrava uma amizade dos tempos de estudante. E depois David sentiu-se envergonhado de sua gratidão degradante. Claro que o homem era importante, seu tempo era valioso... mas onze horas da manhã? Isso significava que ele não seria convidado para almoçar. Seria uma daquelas entrevistas rápidas de cortesia, a fim de que o cara não se sentisse culpado. A fim de que seus parentes em Utah pudessem dizer que o sucesso não lhe subira à cabeça. Uma polidez mesquinha, basicamente sem valor.

Mas o dia seguinte foi diferente do que ele previra. O escritório de Dean Hocken ficava num prédio baixo e comprido, dentro do estúdio, e era impressionante. Havia uma recepcionista numa sala de espera enorme, as paredes cobertas por cartazes de filmes antigos. Duas salas além continham duas secretárias, depois uma sala maior e mais espetacular. Era mobiliada com sofás e poltronas, havia tapetes no chão; nas paredes estavam pendurados quadros originais, havia um bar com uma geladeira grande. Num canto estava uma escrivaninha com tampo de couro. Na parede, por cima dessa escrivaninha via-se uma imensa fotografia de Dean Hocken, apertando a mão do Presidente Francis Xavier Kennedy. E havia ainda uma mesinha baixa, com revistas e originais encapados. A sala estava vazia. A secretária que o levara até ali informou:

— O Sr. Hocken virá encontrá-lo dentro de dez minutos. Deseja um drinque ou um café?

David foi polido em sua recusa. Percebeu que a jovem secretária lançava-lhe um olhar avaliador, por isso usou sua voz verdadeira, sem enfeites. Sabia que causara uma boa impressão. As mulheres sempre gostavam dele a princípio; só quando passavam a conhecê-lo melhor é que deixavam de gostar, pensou David. Mas talvez isso acontecesse porque não gostava delas quando as conhecia melhor.

Teve de esperar quinze minutos até que Dean Hocken entrou na sala, por uma porta nos fundos, quase invisível. Pela primeira vez em sua vida, David ficou realmente impressionado. Ali estava um homem que parecia de fato bem-sucedido e poderoso; irradiava confiança e cordialidade ao apertar a mão de David.

Dean Hocken era alto e David amaldiçoou ser tão baixo. Hocken tinha mais de um metro e noventa e parecia espantosamente jovem, embora devesse ter a mesma idade do pai de David, 55 anos. Usava roupas informais, mas a camisa branca era mais branca do que qualquer outra que David já vira. O paletó era de alguma espécie de linho e caía com perfeição no corpo. A calça era também de linho, absolutamente branca. O rosto de Hocken parecia não ter qualquer ruga e ser pintado com tinta bronze pelo sol.

Hocken era tão gentil quanto juvenil. Diplomaticamente, revelou uma saudade das montanhas de Utah, a vida mórmon, o silêncio e a paz da existência rural, as tranqüilas cidades, com seus tabernáculos. E também revelou que fora um pretendente à mão da mãe de David.

— Sua mãe foi minha namorada — disse Dean Hocken. — Seu pai roubou-a de mim. Mas foi melhor assim, aqueles dois se amavam de verdade, fizeram a felicidade um do outro.

E David pensou que era isso mesmo, era a pura verdade, sua mãe e seu pai se amavam de verdade, e com seu perfeito amor haviam-no excluído. Nas longas noites de inverno, procuravam o aconchego no leito conjugal, enquanto ele assistia à TV. Mas isso fora há muito tempo,

Ele observava Dean Hocken falar e exibir todo o seu charme, percebeu a idade por trás daquela armadura externa preservada com tanto cuidado, a pele bronzeada por demais esticada para ser natural. O homem não tinha carne por baixo do queixo, nenhum sinal da papada que se pai desenvolvera. E David se perguntou por que o homem tratava-o com tanta gentileza.

— Tive quatro esposas desde que saí de Utah, mas teria sido muito mais feliz com sua mãe — comentou Hocken.

David procurou os sinais usuais de egoísmo, a sugestão de que sua mãe também seria mais feliz se tivesse casado com o vitorioso Dean Hocken. Mas não percebeu nenhuma. O homem ainda era um garoto do interior por baixo do verniz da Califórnia.

David escutou polidamente e riu das piadas. Tratou Dean Hocken de “senhor”, até que o homem lhe pediu, por favor, que o chamasse apenas de “Hock”, quando então passou a não chamá-lo por qualquer coisa. Hocken falou durante uma hora, depois olhou para o relógio e disse abruptamente:

— Foi bom ver alguém lá da terra, mas acho que não veio aqui para conversar sobre o Utah. O que você quer?

— Sou escritor. As coisas de sempre, um romance que joguei fora, alguns roteiros de cinema. Ainda estou aprendendo.

Ele nunca escrevera um romance. Hocken balançou a cabeça em aprovação de sua modéstia.

— Tem de conquistar o seu lugar. Eis o que posso fazer por você neste momento: arrumar-lhe um lugar no departamento de leitura do estúdio. Lê roteiros, escreve um sumário e sua opinião. Apenas meia página para cada roteiro lido. Foi assim que comecei. Conhecerá pessoas e aprenderá o básico. É verdade que ninguém presta muita atenção aos relatórios, mas faça o melhor possível. É apenas um ponto de partida. Providenciarei tudo e uma de minhas secretárias entrará em contato com você dentro de poucos dias. E muito em breve jantaremos juntos. Dê minhas lembranças à sua mãe e pai.

E depois Hock acompanhou David até a porta. Não iam almoçar, pensou David, e a promessa de um jantar se prolongaria por toda a eternidade. Mas pelo menos ele obteria um emprego, enfiaria um pé na porta, e tudo mudaria quando começasse a escrever seus roteiros.

A recusa da Vice-Presidente Helen Du Pray em assinar a declaração foi um tremendo golpe para o Deputado Jintz e o Senador Lambertino. Só uma mulher poderia ser tão teimosa, tão cega à necessidade política, tão obtusa a ponto de não aproveitar a oportunidade de se tornar Presidente dos Estados Unidos. Mas teriam de resolver a questão sem ela. Repassaram as opções — era preciso encontrar a solução. Sal Troyca indicara o caminho certo; todas as medidas preliminares deviam ser eliminadas. O próprio Congresso tinha de se designar como o corpo decisivo desde o início. Mas Lambertino e Jintz ainda tentavam encontrar uma maneira de fazer o Congresso parecer imparcial. E não perceberam que naquele momento Sal Troyca apaixonara-se por Elizabeth Stone.

“Jamais coma uma mulher com mais de trinta anos”, esse sempre fora o lema de Sal Troyca. Mas, pela primeira vez, ele estava pensando que poderia abrir uma exceção para a assessora do Senador Lambertino. Ela era alta e esguia, com olhos cinza enormes e um rosto meigo em repouso. Era obviamente inteligente, mas sabia ficar de boca fechada. O que o deixou apaixonado, porém, foi o que aconteceu quando souberam que a Vice-Presidente Helen Du Pray recusava-se a assinar a declaração: ela ofereceu a Sal um sorriso que o reconhecia como profeta — só ele propusera a solução correta.

Para Troyca, havia muitos bons motivos para a sua posição. Primeiro, as mulheres realmente não gostavam tanto de foder quanto os homens, corriam mais riscos, sob diferentes aspectos. Antes dos trinta anos, no entanto, tinham mais tesão e menos cérebro. Acima dos trinta anos, seus olhos começavam a se contrair, tornavam-se astutas demais, passavam a pensar que os homens levavam muita vantagem, ficavam com o melhor da natureza e da barganha social. E o homem nunca sabia se estava comendo um bom pedaço de carne ou assinando alguma espécie de nota promissória. Mas Elizabeth Stone parecia recatadamente tesuda, naquele jeito virginal que algumas mulheres exibem e, além disso, tinha mais poder do que ele. Sal não precisava se preocupar com a possibilidade de um embuste. E não tinha importância que ela beirasse os quarenta anos.

Planejando a estratégia com o Deputado Jintz, o Senador Lambertino notou que Troyca estava interessado em sua assessora. O que não o incomodava. Pessoalmente, Lambertino era um dos homens mais virtuosos do Congresso. Era sexualmente limpo, com uma esposa há trinta anos e quatro filhos crescidos. Também era limpo em termos financeiros, com uma fortuna pessoal. E em termos políticos era tão limpo quanto qualquer político nos Estados Unidos podia ser, mas além disso defendia sinceramente os interesses do povo e do país. Era ambicioso, sem dúvida, mas isso era a própria essência da vida política. A virtude não o tornava indiferente às maquinações do mundo. A recusa da vice-presidente em assinar a declaração espantara o Deputado Jintz, mas o senador não se surpreendia com tanta facilidade. Sempre achara que a vice-presidente era uma mulher esperta. Lambertino desejava o melhor para ela, especialmente porque acreditava que nenhuma mulher tinha as ligações políticas sólidas ou o apoio financeiro para conquistar a presidência. Ela seria uma adversária bastante vulnerável numa disputa pela indicação partidária.

— Precisamos agir depressa — disse o Senador Lambertino. — O Congresso deve designar algum corpo ou a si mesmo para declarar o presidente incapacitado.

— O que acha de dez senadores e uma comissão de notáveis? — sugeriu Jintz, com um sorriso insinuante.

O Senador Lambertino respondeu com um arroubo de irritação:

— E o que acha de um comitê de cinqüenta deputados dizendo besteiras?

Jintz procurou apaziguá-lo:

— Tenho uma boa surpresa para você, senador. Acho que posso persuadir alguém da assessoria pessoal a assinar a declaração para o impedimento.

Isso resolvia o problema, pensou Troyca. Mas quem poderia ser? Jamais Klee. Nem Dazzy. Só podia ser Odd-blood Gray ou o assessor de segurança nacional, Wix, Não. Wix não, ele pensou, pois Wix estava em Sherhaben.

— Temos um dever muito difícil a cumprir hoje — disse Lambertino, incisivo. — Um dever histórico. É melhor começarmos logo.

Troyca ficou surpreso por Lambertino não perguntar o nome do membro da assessoria pessoal do presidente, mas depois compreendeu que o senador não queria saber.

— Tem a minha mão a respeito — declarou Jintz, estendendo-a para o aperto que era famoso como um compromisso inviolável.

Albert Jintz alcançara sua eminência como um grande presidente da Câmara por ser um homem que cumpria a palavra empenhada. Os jornais muitas vezes publicavam matérias a respeito. Um aperto de mão de Jintz era melhor do que qualquer documento legal. Embora parecesse uma caricatura de bancário alcoólatra que dava um desfalque, baixo e gordo, nariz vermelho e a cabeça branca pendendo como uma árvore de Natal sob uma nevasca, era considerado o homem mais honrado do Congresso, em termos políticos. Quando prometia um naco do barril sem fundo do orçamento, nunca deixava de entregá-lo. Quando um colega queria que um projeto fosse bloqueado, e Jintz tinha com ele uma dívida política, o projeto era bloqueado. Quando um colega queria que um projeto pessoal fosse aprovado, oferecendo uma compensação, o acordo era fechado. Era verdade que, com freqüência, ele vazava assuntos secretos para a imprensa, mas talvez fosse por isso que a imprensa publicava tantos artigos sobre o seu impecável aperto de mão.

E agora, naquela tarde, Jintz tinha de providenciar que a Câmara aprovasse o impedimento do Presidente Kennedy. Houve necessidade de centenas de telefonemas e dezenas de promessas para garantir a maioria de dois terços. Não que o Congresso não estivesse disposto a aprovar o impedimento, mas era preciso um preço. E tudo tinha de ser feito em menos de 24 horas.

Sal Troyca atravessou o conjunto de salas de seu deputado, o cérebro organizando todos os telefonemas que precisava dar, todos os documentos que devia preparar. Sabia que estava envolvido num grande momento da história, e também sabia que sua carreira podia ser destruída se ocorresse algum revés catastrófico. Sentia-se espantado ao verificar que homens como Jintz e Lambertino, aos quais desprezara, podiam ser tão corajosos a ponto de se postarem na linha de frente da batalha. Era um passo muito perigoso o que eles se propunham dar. Sob uma interpretação duvidosa da Constituição, preparavam-se para converter o Congresso no corpo que poderia decidir o impedimento do Presidente dos Estados Unidos.

Ele passou pela claridade verde espectral de uma dúzia de computadores sendo operados pelo pessoal do gabinete do deputado. Graças a Deus pelos computadores, como será que conseguiam fazer as coisas antes? Passando por uma operadora de computador, ele tocou em seu ombro, num gesto de camaradagem que não poderia ser considerado como importunação sexual.

— Não marque nenhum compromisso... ficaremos aqui até de manhã.

The New York Times Magazine publicara recentemente uma reportagem sobre os costumes sexuais no Capitólio, onde estavam instalados o Senado, a Câmara e suas assessorias. A reportagem ressaltava que entre os 100 senadores e 435 deputados eleitos, e mais suas enormes assessorias, a população elevava-se a muitos milhares, mais da metade de mulheres.

Sugeria que havia muita atividade sexual entre aqueles cidadãos. Dizia que os assessores, por causa das longas horas e da tensão de trabalhar com prazos políticos fatais, quase não tinham vida social e por isso precisavam procurar um pouco de recreação no emprego. E ressaltava que os gabinetes dos deputados e senadores eram equipados com sofás. A reportagem informava que o governo tinha clínicas e médicos especiais para o tratamento discreto de infecções venéreas. As fichas médicas, como não podia deixar de ser, eram confidenciais, mas o repórter afirmava que dera uma olhada e podia garantir que a porcentagem de infecções era superior à média nacional. Atribuía isso não tanto à promiscuidade, mas sim ao ambiente social incestuoso. O repórter especulava se toda essa fornicação não afetava a qualidade do trabalho no Capitólio, a que se referia como Viveiro de Coelhos.

Sal Troyca encarara a reportagem em termos pessoais. Trabalhava em média dezesseis horas por dia, seis dias por semana, mantinha-se à disposição até no domingo. Não tinha direito a uma vida sexual normal, como qualquer outro cidadão? Não dispunha de tempo para ir a festas cortejar mulheres, empenhar-se num relacionamento. Tudo tinha de acontecer ali mesmo, nas incontáveis suítes e corredores, sob a luz esverdeada dos computadores e as campainhas militares dos telefones. Era preciso se ajustar a uns poucos minutos de gracejos, um sorriso insinuante, a estratégia do trabalho. A porra do repórter comparecia a todas as festas do editor, levava pessoas para longos almoços à vontade com colegas, podia sair com vigaristas sem que uma reportagem de jornal divulgasse os detalhes escusos.

Troyca entrou em sua sala, foi para o banheiro, deixou escapar um suspiro de alívio ao sentar no vaso, com a caneta na mão. Anotou todas as coisas que tinha de fazer. Lavou as mãos, fazendo malabarismos com o bloco e a caneta, que tinha o logotipo do Congresso gravado em dourado. Sentindo-se muito melhor (a tensão de promover o impedimento de um presidente deixara-o com o estômago embrulhado), foi até um carrinho com bebidas no canto, pegou gelo na pequena geladeira, serviu-se de um gim com tônica. Pensou em Elizabeth Stone. Tinha certeza de que não havia nada entre ela e o senador que era seu chefe. E a mulher era esperta, mais esperta do que ele, soubera se manter de boca fechada.

A porta da sala foi aberta e a moça cujo ombro ele afagara antes entrou. Trazia um punhado de impressos de computador e Sal sentou à sua mesa para examinar. Ela ficou parada ao seu lado. Ele podia sentir o calor do corpo da moça, um calor gerado pelas longas horas que ela passara ao computador naquele dia.

Troyca entrevistara-a quando ela se candidatara ao emprego. Ele costumava comentar que se as moças que trabalhavam no escritório mantivessem uma aparência tão boa quanto no dia da primeira entrevista, poderia lançar a todas em Playboy. E se continuassem tão recatadas e meigas, casaria com elas. O nome daquela moça era Janet Wyngale, e era mesmo bonita. No primeiro dia em que a vira, uma frase de Dante aflorara à mente de Troyca: “Eis a deusa vai me subjugar.” Mas ela fora linda naquele primeiro dia. E nunca mais tornara a ser tão bela. Seus cabelos ainda eram louros, mas não dourados; os olhos ainda tinham um azul espantoso, mas usava óculos e era um pouco feia sem a maquilagem impecável do primeiro dia. E os lábios também não eram vermelhos como cereja. O corpo não era tão sensual quanto no primeiro dia, o que era natural, já que trabalhava muito e agora se vestia de uma maneira confortável, a fim de aumentar sua eficiência. Em tudo e por tudo, pensou Troyca, ele tomara uma boa decisão; Janet ainda não era vesga.

Janet Wyngale, um nome espetacular. Ela se inclinava sobre o ombro de Sal, para apontar coisas nas folhas de computador. Ele estava consciente de que a moça mudara a posição dos pés, encontrava-se agora mais ao seu lado do que por trás. Os cabelos louros roçaram em seu rosto, sedosos, macios, recendendo a flores.

— Seu perfume é maravilhoso — murmurou Sal Troyca.

Ele estava quase tremendo quando o calor daquele corpo o envolveu. Janet não se mexeu, não disse nada. Mas seus cabelos eram como um contador Geiger sobre o rosto dele, captando o desejo que se irradiava do corpo. Era um desejo cordial, dois companheiros retidos juntos num engarrafamento. Teriam de repassar as listas de computador durante a noite inteira, atender aos telefonemas, convocar reuniões de emergência. Lutariam lado a lado.

Segurando os impressos de computador com a mão esquerda, Troyca estendeu a mão direita para a parte posterior da coxa de Janet, por baixo da saia. Deixou a mão ali, absolutamente imóvel, deixou-a arder na pele macia, que eletrificava seu saco. Não percebeu que as folhas de computador tinham caído na mesa. Os cabelos recendendo a flores cobriram o rosto de Sal, que virou-se e enfiou a outra mão também por baixo da saia, deslizando-as pela superfície acetinada, sob a calcinha de náilon. Sentiu os pêlos públicos, a doce e angustiante umidade da carne. Troyca levitou ¬de sua cadeira, teve a impressão de que ficou imóvel em pleno ar, o corpo formando um ninho sobrenatural acolhedor, em que Janet Wyngale se aninhou, com um esvoaçar de asas, sentando em seu colo. Milagrosamente ela se acomodara bem em cima do pau, que misteriosamente emergira, estavam de frente um para o outro, beijando-se; ele se afogava na fragrância de flores, gemendo de paixão, Janet Wyngale repetia sem parar o mesmo murmúrio ardente, até que Troyca entendeu.

— Tranque a porta — sussurrava ela.

Troyca libertou sua mão molhada e acionou o botão eletrônico que os isolava naquele breve e perfeito momento de êxtase. Os dois despencaram para o chão, num mergulho gracioso, as pernas compridas de Janet envolveram-no pelo pescoço, ele podia contemplar aquelas coxas leitosas, alcançaram o orgasmo juntos, Troyca murmurando, extasiado:

— Ah, céus, céus...

E depois, como se fosse um milagre, os dois estavam de pé, as faces coradas, os olhos faiscando de satisfação, renovados, exultantes, preparados para enfrentar as longas e extenuantes horas de trabalho juntos. Galante, Troyca estendeu o gim com tônica, retinindo os cubos de gelo num som alegre. Graciosa e agradecida, ela umedeceu a boca ressequida. Sincero e grato, Troyca murmurou:

— Foi maravilhoso.

Afetuosa, ela acariciou seu pescoço, beijou-o.

— Foi lindo...

Momentos depois, os dois estavam de volta à mesa, estudando as listas de computador, compenetrados, concentrando-se na linguagem e dados. Janet era uma editora extraordinária. Sal sentiu uma enorme gratidão, e murmurou com uma cortesia genuína:

— Janet, estou louco por você. Assim que terminar esta crise, vamos sair juntos, combinado?

— Hum, hum... — Ela ofereceu-lhe um sorriso afetuoso. Um sorriso cordial. — Adoro trabalhar com você

 

A TELEVISÃO NUNCA TIVERA uma semana tão gloriosa. No domingo, a cena do assassinato do Papa foi repetida dezenas de vezes nas redes, nos canais a cabo, em reportagens especiais. Na terça-feira, o assassinato de Theresa Kennedy foi repetido com uma insistência ainda maior, flutuando interminavelmente pelas ondas aéreas do universo.

O rosto de Yabril, como o de um falcão no deserto, pairando sobre os reféns, entrou em todas as casas dos Estados Unidos. Ele tornou-se o monstro mítico nos jornais da noite, como um pesadelo recorrente para atormentar o sono dos americanos. Mensagens de condolências de milhões de pessoas inundaram a Casa Branca. Em todas as grandes cidades, os cidadãos americanos saíram às ruas com braçadeiras pretas. E assim, quando as emissoras de televisão chegaram a um clímax com a notícia vazada do ultimato do presidente Francis Kennedy ao sultão de Sherhaben, enormes multidões reuniram-se em todos os Estados Unidos, num incontrolável frenesi de júbilo. Não podia haver a menor dúvida de que apoiavam a decisão do presidente. Os repórteres de TV que entrevistaram cidadãos nas ruas ficaram impressionados com a violência dos comentários. O clamor geral era “Vamos jogar uma bomba atômica nos filhos da puta”. Finalmente, partiram ordens da direção das redes de TV para suspender a cobertura das manifestações de rua e interromper as entrevistas. As ordens partiram de Lawrence Salentine, que formara um conselho com os outros proprietários de veículos de comunicação.

Na Casa Branca, o Presidente Francis Kennedy não tinha tempo para lamentar a filha. Usava a linha vermelha para falar com outros chefes de estado, assegurando que não haveria conquistas territoriais no Oriente Médio, solicitando cooperação, e asseverando que sua posição era irrevogável: que o Presidente dos Estados Unidos não estava blefando, a cidade de Dak seria destruída, assim como o sultanato de Sherhaben, se o ultimato não fosse obedecido.

Arthur Wix e Bert Audick, em companhia do Embaixador Waleeb, já se encontravam a caminho de Sherhaben, num veloz jato de passageiros, que a indústria aeronáutica ainda não pusera à disposição da aviação civil. Oddblood Gray tentava freneticamente obter o apoio do Congresso ao presidente, mas ao final do dia compreendeu que fracassara. Eugene Dazzy despachava calmamente todos os memorandos dos membros do gabinete e dos comandantes das forças armadas, o walkman ajustado nos ouvidos para desencorajar qualquer conversa desnecessária de seus assistentes. Christian Klee aparecia e desaparecia a todo instante, em misteriosas missões.

O Senador Thomas Lambertino e o Deputado Alfred Jintz promoveram constantes reuniões ao longo da quarta-feira, com colegas na Câmara e Senado, empenhados na ação para o impedimento do presidente. O Clube Sócrates lançou mão de todos os seus recursos. Não se podia deixar de admitir que a interpretação da Constituição era um tanto duvidosa, ao se afirmar que o Congresso podia se designar como o corpo decisivo, mas a situação justificava uma ação drástica — afinal, o ultimato de Kennedy a Sherhaben baseava-se obviamente em emoções pessoais, não em razões de estado.

Ao final da quarta-feira, a coalizão estava pronta. As duas casas do Congresso, com dois terços dos votos assegurados, se reuniriam na noite de quinta-feira, poucas horas antes do término do prazo fatal de Kennedy para despir a cidade de Dak.

Lambertino e Jintz mantinham Oddblood Gray plenamente informado, na esperança de que ele pudesse persuadir Francis Kennedy a revogar seu ultimato a Sherhaben. Oddblood Gray comunicou-lhes que o presidente não faria isso. E depois transmitiu as informações a Francis Kennedy, que lhe disse:

— Otto, acho que você, Chris e Dazzy devem jantar comigo esta noite. Por volta das onze horas. E não planeje voltar para casa logo em seguida.

O presidente e seus assessores jantaram na Sala Amarela, que era a predileta de Kennedy, embora acarretasse muito trabalho extra para a cozinha e os garçons. Como sempre, a refeição foi bastante simples para Kennedy, um pequeno bife grelhado, fatias finas de tomate, encerrando com café e uma variedade de tortas de frutas e creme. Christian e os outros tiveram a opção de peixe. Nenhum deles comeu muito.

Kennedy parecia inteiramente à vontade, os outros se mostravam contrafeitos. Todos usavam braçadeiras pretas, assim como Kennedy. Todos na Casa Branca, inclusive os criados, usavam braçadeiras similares, que pareciam arcaicas para Christian. Ele sabia que Eugene Dazzy assinara uma circular com essa determinação.

— Christian — disse Kennedy —, acho que está na hora de partilharmos nosso problema. Mas não pode sair desta sala. Sem memorandos.

— A situação é grave.

Christian relatou o que acontecera, a ameaça de bom-ba atômica. Informou que os dois jovens, a conselho de seu advogado, recusavam-se a falar. Oddblood Gray disse, incrédulo:

— Há um artefato nuclear plantado na cidade de Nova York? Não posso acreditar. Toda essa merda não pode estar acontecendo ao mesmo tempo.

— Tem certeza de que eles plantaram mesmo um artefato nuclear? — indagou Dazzy.

— Acho que há uma possibilidade de apenas dez por cento — respondeu Christian.

Em sua opinião, a possibilidade era superior a noventa por cento, mas não diria isso aos outros.

— O que pretende fazer? — perguntou Dazzy.

— Temos equipes de busca nuclear procurando por toda parte. Mas há o problema de tempo. — Christian virou-se para Kennedy. — Ainda preciso de sua assinatura para acionar a equipe de interrogatório médico no teste de PVT.

Ele explicou o Artigo IX da Lei de Controle de Armas Atômicas.

— Não — respondeu Francis Kennedy.

Todos ficaram atônitos com a recusa do presidente.

— Não podemos correr o risco — insistiu Dazzy. — Assine a ordem.

Kennedy sorriu e explicou:

— A invasão do cérebro de um indivíduo por autoridades do governo é uma ação perigosa. — Ele fez uma pausa. — Não podemos sacrificar os direitos individuais de um cidadão só por causa de suspeitas. Ainda mais quando se trata de cidadãos valiosos como esses dois rapazes. Quando tiver mais provas, Chris, torne a me pedir.

Virando-se agora para Oddblood Gray, o presidente determinou:

— Otto, informe Christian e Dazzy sobre a situação no Congresso.

— O plano deles é simples — disse Gray. — Sabem agora que a vice-presidente não assinará a declaração para o impedimento, nos termos da 25ª Emenda. Mas houve assinaturas de uma quantidade suficiente de membros do Gabinete para que eles possam entrar em ação. Vão designar o Congresso como o outro corpo para determinar sua capacidade. O Congresso se reunirá no final da quinta-feira e depois votará o impedimento. Apenas para afastá-lo das negociações pela libertação dos reféns. O argumento é o de que você se encontra sob enorme tensão por causa da morte de sua filha. Depois que for afastado, o secretário de defesa revogará a ordem para o bombardeio de Dak. Esta contando com Bert Audick para convencer o sultão a libertar os reféns, durante esse período de trinta dias. O sultão, é quase certo, vai concordar.

Kennedy virou-se para Dazzy.

— Quero que emita uma diretiva. Nenhum membro deste governo fará contato com Sherhaben. Fazer isso será considerado traição.

— Com a maioria do Gabinete contra você, não há possibilidade de suas ordens serem cumpridas — comentou Dazzy, suavemente. — Neste momento, você não tem qualquer poder.

Kennedy virou-se para Christian Klee.

— Chris, eles precisam de uma maioria de dois terços para me afastar do cargo, não é mesmo?

— É, sim — confirmou Christian. — Mas sem a assinatura da vice-presidente, é basicamente ilegal.

Kennedy fitou-o nos olhos.

— Não há qualquer coisa que você possa fazer?

Nesse momento, a mente de Christian Klee deu outro salto. Francis achava que ele podia fazer alguma coisa, mas o que era? Christian disse, especulativo:

— Podemos recorrer ao Supremo Tribunal e alegar que o Congresso está agindo contra a Constituição. A linguagem da 25ª Emenda é vaga. Ou podemos argumentar que o Congresso está agindo de forma contrária ao espírito da emenda, assumindo o papel de parte instigadora, depois que a vice-presidente recusou-se a assinar. Posso entrar em contato com o Supremo, a fim de que eles decidam logo depois da votação do Congresso.

Ele percebeu a expressão de desapontamento nos olhos de Kennedy e vasculhou o cérebro furiosamente. Alguma coisa lhe escapava.

— O Congresso vai atacar sua capacidade mental — Oddblood Gray, preocupado, — Estão sempre lembrando a semana em que desapareceu. Pouco antes da posse.

— Isso não é da conta de ninguém — declarou Kennedy.

Christian compreendeu que os outros esperavam que ele falasse. Sabiam que ele estivera com o presidente naquela semana misteriosa.

— O que aconteceu naquela semana não vai nos prejudicar — garantiu ele.

Francis Kennedy disse:

— Euge, prepare os documentos para dispensar todo o Gabinete, à exceção de Theodore Tappey. Prepare-os o mais depressa possível e assinarei imediatamente. Mande o secretário de imprensa distribuir as cópias antes da reunião do Congresso.

Eugene Dazzy escreveu algumas anotações, e depois perguntou:

— O que me diz do comandante do estado-maior das forças armadas? Vai dispensá-lo também?

— Não. Basicamente, ele está conosco, os outros decidiram contra a sua vontade. E o Congresso nada conseguiria se não fosse por aqueles miseráveis do Clube Sócrates.

Christian abordou outro assunto:

— Venho supervisionando o interrogatório daqueles dois garotos. Eles optaram por ficar em silêncio. E se o advogado conseguir o que quer, serão libertados sob fiança amanhã.

Dazzy interveio, em tom brusco:

— Há um artigo na Lei de Segurança Atômica que permite que eles continuem detidos. Suspende o direito de habeas corpus, as liberdades civis. Deve saber disso, Christian.

— Em primeiro lugar — disse Christian —, de que adianta detê-los se Francis se recusa a assinar a ordem de interrogatório médico? O advogado deles pede a fixação da fiança, e se recusarmos ainda precisamos da assinatura do presidente para suspender o habeas corpus neste caso. Francis, está disposto a assinar uma ordem para a suspensão do habeas corpus?

Kennedy sorriu.

— Não. O Congresso usará isso contra mim.

Christian sentia-se confiante agora. Ainda assim, por um momento, foi dominado por uma pequena náusea, a bílis subiu à boca. Logo passou, ele entendeu o que Kennedy queria, sabia o que tinha de fazer.

Kennedy tomou um gole do café; haviam terminado a refeição, mas nenhum deles comera mais que uns poucos bocados.

— Vamos discutir a verdadeira crise — disse Kennedy. Ainda serei presidente dentro de 48 horas?

— Revogue a ordem para bombardear Dak, entregue as negociações a uma equipe especial, e nenhuma ação será adotada pelo Congresso — assegurou Oddblood Gray.

— Quem lhe ofereceu esse acordo? — indagou Kennedy.

— O Senador Lambertino e o Deputado Jintz — informou Otto Gray. — Lambertino é de fato um bom sujeito e Jintz é responsável numa questão política assim. Eles não nos trairiam.

— Muito bem, essa é outra opção — disse Kennedy. — Isso e recorrer ao Supremo Tribunal. O que mais?

— Apareça na TV amanhã, antes da reunião do Congresso, e faça um apelo à nação — sugeriu Dazzy. — O povo ficará do seu lado, o que levará o Congresso a pensar duas vezes.

— Está certo — concordou Kennedy. — Euge, acerte tudo com o pessoal da TV. Quero falar em todas as redes. E só precisamos de quinze minutos.

— Francis, é um passo muito grande o que estamos dando — disse Dazzy. — O presidente e o Congresso numa confrontação direta, e você pedindo às massas para entrarem em ação. As conseqüências podem ser terríveis.

— O tal de Yabril vai nos cozinhar por semanas e fazer com que este país pareça um monte de merda — disse Gray.

Christian disse:

— Há um rumor de que um membro da assessoria pessoal nesta sala ou Arthur Wix vai assinar a declaração para afastar o presidente. Quem quer que seja, deve falar agora.

— Esse rumor é absurdo — declarou Kennedy, impaciente. — Se um de vocês pretendesse fazer isso, teria renunciado antes. Conheço a todos muito bem... nenhum de vocês me trairia.

Depois do jantar, foram todos da Sala Amarela para o pequeno cinema, no outro lado da Casa Branca. Kennedy dissera a Dazzy que queria que todos vissem a cena do assassinato de sua filha. No escuro, a voz nervosa de Eugene Dazzy anunciou:

— A cobertura da TV começa agora.

Por alguns segundos, a tela de cinema ficou riscada por linhas pretas, que pareciam se deslocar de cima para baixo.

Depois a tela foi iluminada por cortes brilhantes, as câmeras de TV focalizando o enorme avião, parado no meio das areias do deserto. Em seguida, as câmeras fizeram um zoom na figura de Yabril, apresentando Theresa Kennedy na porta. Kennedy observou mais uma vez como a filha sorria e acenava para a câmera. Era um aceno estranho, um aceno de segurança, mas também de submissão. Yabril se encontrava a seu lado, depois ficou um pouco atrás. E em seguida houve o movimento do braço direito, a arma não visível, o estampido do tiro, a espectral névoa rosa se projetando, o corpo de Theresa Kennedy caindo. Kennedy ouviu o gemido da multidão, reconheceu que era de pesar, não de triunfo. O vulto de Yabril tornou a aparecer na porta. Levantou a arma, um tubo de metal preto brilhando. Empunhava-a como um gladiador empunha uma espada, mas não houve aclamações. O filme terminou. Eugene Dazzy editara-o com todo cuidado.

As luzes se acenderam, mas Kennedy permaneceu imóvel. Sentia um enfraquecimento familiar do corpo. Não podia mexer as pernas, nem o tronco. Mas a mente mantinha-se lúcida, não havia choque nem distúrbio em seu cérebro. Não sentia a impotência da vítima da tragédia. Não teria de lutar contra o destino ou Deus. Tinha de lutar apenas contra seus inimigos neste mundo e haveria de vencê-los.

Não permitiria que o homem mortal o derrotasse. Quando a esposa morrera, não tivera recurso contra a mão de Deus, as falhas da natureza. Curvara todo o seu ser em aceitação. Mas a morte da filha causada pelo homem, engendrada por maldade — essa ele podia punir, aplicar uma reparação. Desta vez não curvaria a cabeça. Ai do mundo, ai de seus inimigos, ai dos iníquos deste mundo.

Quando finalmente pôde levantar o corpo da cadeira. Kennedy sorriu tranqüilizador para os homens ao redor. Realizara seu propósito. Fizera com que seus amigos mais íntimos e mais poderosos sofressem com ele. Agora não se oporiam tão facilmente às ações que ele deveria executar.

Kennedy se retirou e sua assessoria pessoal continuou sentada, em silêncio. Quase parecia que o ar do poder, queimado pelo mau uso, espalhara um cheiro de enxofre pela sala. O terror que se projetara do deserto de Sherhaben invadira aquela sala, de uma forma ainda mais assustadora. O que ficou por dizer era o fato de que agora talvez estivessem mais preocupados com Francis Kennedy do que com Yabril. Oddblood Gray acabou rompendo o silêncio:

— Acham que o presidente enlouqueceu um pouco?

Eugene Dazzy balançou a cabeça.

— Não importa. Talvez estejamos todos um pouco enlouquecidos. Mas temos de apoiá-lo agora. Precisamos vencer.

O Dr. Zed Annaccone era um desses homens magros e baixos, mas com um peito enorme. Parecia extraordinariamente alerta, e o que dava a impressão de arrogância em sua expressão facial era na verdade apenas a confiança de um homem convencido de que sabia mais sobre as coisas importantes deste mundo do que qualquer outro. O que era verdade.

O Dr. Annaccone era o assessor de ciência médica do Presidente dos Estados Unidos. Era também o diretor do Instituto Nacional de Pesquisa do Cérebro e ainda o chefe de administração da Junta de Assessoria Médica da Comissão de Segurança Atômica. Uma ocasião, num jantar na Casa Branca, Klee ouvira-o dizer que o cérebro era um órgão tão sofisticado que podia produzir quaisquer substâncias químicas de que o corpo precisasse. E Klee pensara: E daí? Lendo o seu pensamento, o Dr. Annaccone batera de leve em seu ombro e comentara:

— Esse fato é mais importante para a civilização do que qualquer coisa que vocês podem fazer aqui, na Casa Branca. E só precisamos de um bilhão de dólares para provar. E o que o que isso representa, no final das contas? Um porta-aviões?

E depois ele sorrira para Klee, a fim de mostrar que não tivera a menor intenção de ofendê-lo.

E agora ele sorriu também quando Klee entrou em sua sala.

— Então, até os advogados acabam me procurando — comentou o Dr. Annaccone. — Sabia que as nossas filosofias são diametralmente opostas?

Klee sabia que o Dr. Annaccone estava prestes a fazer uma piada sobre a advocacia, o que o deixou um pouco irritado. Por que as pessoas sempre faziam comentários irônicos sobre os advogados?

— É verdade — continuou o Dr. Annaccone. — Os advogados sempre procuram obscurecer os fatos, enquanto os cientistas tentam esclarecê-los.

Ele tornou a sorrir.

— Não é o caso agora. — Klee sorriu, para mostrar que também tinha senso de humor. — Estou aqui em busca de informações. Temos uma situação para aquele estudo PET especial, de acordo com a Lei de Controle de Armas Atômicas.

— Sabe que precisa da assinatura do presidente para isso. Pessoalmente, aplicaria o procedimento em muitas outras situações, mas os libertários civis cairiam de porrada em cima de mim.

— Sei disso. — Klee explicou a situação da bomba atômica e a captura de Gresse e Tibbot, acrescentando: — Ninguém acha que existe uma bomba de fato, mas se houver, o fator tempo é de importância crucial. E o presidente se recusa a assinar a ordem.

— Por quê?

— Por causa do possível dano cerebral que poderia ocorrer durante o procedimento.

Isso pareceu surpreender Annaccone. Ele pensou por um momento, antes de dizer: .

— A possibilidade de dano cerebral significativo é mínima. Talvez dez por cento. O maior perigo é a incidência rara de parada cardíaca, e o efeito colateral ainda mais raro de perda completa e total da memória. Mas nem mesmo isso deveria dissuadi-lo neste caso. Enviei estudos a respeito ao presidente. Espero que ele os tenha lido.

— Ele lê tudo — assegurou Christian. — Mas acho que não o fará mudar de idéia.

— É uma pena que não disponhamos de mais tempo. Estamos concluindo testes que resultarão num detector de mentiras infalível, baseado na medição por computador das mudanças químicas no cérebro. O novo teste é muito parecido com o PET, mas sem os dez por cento de risco de dano. Será absolutamente seguro. Mas não podemos usá-lo agora; haveria muitos elementos de dúvida, até que sejam compilados dados adicionais para satisfazer as exigências legais.

Christian sentiu uma pontada de excitamento.

— Um detector de mentiras seguro e infalível, cujas descobertas seriam aceitas no tribunal?

— Não sei sobre a aceitação no tribunal, mas em termos científicos, depois que nossos testes forem meticulosamente analisados e compilados pelos computadores, o novo sistema de detector de mentiras cerebral será tão infalível quanto o DNA e as impressões digitais. Isso é uma coisa. Mas a aceitação legal é outra. Os grupos de liberdades civis vão combatê-lo até a morte. Estão convencidos de que um homem não deve ser usado para testemunhar contra si mesmo. E como as pessoas no Congresso encarariam a idéia de serem obrigadas a se submeter a um teste assim pelas leis penais?

— Eu não gostaria de me submeter — comentou Klee.

Annaccone soltou uma risada:

— O Congresso assinaria a sua própria sentença de morte política. E, no entanto, onde está a verdadeira lógica? Nossas leis foram feitas para impedir confissões obtidas por meios escusos. Só que isto é ciência. — Ele fez uma pausa. — E o que me diz de líderes empresariais ou mesmo maridos e esposas infiéis?

— Acho um pouco assustador — admitiu Klee.

— E aqueles antigos ditados, como “A verdade o libertará”? Ou “A verdade é a própria essência da vida”. A luta do homem para descobrir a verdade não é o seu maior ideal? — O Dr. Annaccone riu. — Depois que nossos testes forem confirmados, aposto que o orçamento do meu instituto será cortado.

— Essa é a minha área de competência. Providenciamos a lei. Determinamos que o teste só pode ser usado nos casos criminais mais importantes. Restringimos o uso ao governo. Instituímos um controle rigoroso, como acontece com as substâncias narcóticas e a fabricação de armas. Ou seja se puder comprovar o teste cientificamente, eu posso providenciar a legislação. Mas como funciona?

— O novo PET? É muito simples. Não há nenhuma invasão física. Nada de cirurgião com um bisturi na mão Nada de cicatrizes óbvias. Apenas uma pequena injeção de substâncias químicas no cérebro, através dos vasos sangüíneos. A auto-sabotagem química, com psicofarmacêuticos.

— É como vodu para mim — comentou Christian. — Você deveria estar na cadeia com aqueles dois físicos.

O Dr. Annaccone riu.

— Não há a menor ligação. Aqueles dois trabalham para explodir o mundo, enquanto eu trabalho para descobrir as verdades interiores... como o homem realmente pensa, o que realmente sente.

Mas até o Dr. Annaccone sabia que um teste de detector de mentiras cerebral acarretava problemas jurídicos.

— Esta talvez seja a mais importante descoberta na história médica de nosso tempo — disse ele. — Imagine se pudéssemos ler o próprio cérebro, Todos vocês, advogados, ficariam desempregados.

— Acha possível saber como o cérebro funciona de fato?

O Dr, Annaccone deu de ombros.

— Não. Se o cérebro fosse tão simples assim, seríamos simples demais para esclarecer como funciona. — Ele ofereceu outro sorriso a Christian. — Ardil 22. Nosso cérebro nunca vai alcançar a complexidade do cérebro. Por causa disso, não importa o que aconteça, a humanidade nunca poderá ser mais do que uma forma superior de animal.

Ele parecia exultante por esse fato. Tornou-se absorto por um momento, depois acrescentou:

— Sabe que existe “um fantasma na máquina , para usar a expressão de Koestler. O homem tem dois cérebros na verdade, o cérebro primitivo e o cérebro civilizado superposto. Nunca notou que há uma certa maldade inexplicável nos seres humanos... uma maldade inútil?

— Procure o presidente para falar sobre o PET — pediu Christian. — Tente persuadi-lo.

— Está certo. Acho que ele assumiu uma posição muito tímida. O procedimento não vai prejudicar os garotos nem um pouco.

O rumor de que um membro da assessoria pessoal da Casa Branca assinaria a petição para afastar Kennedy da presidência acionara sinais de alarme na cabeça de Christian Klee.

Eugene Dazzy sentava à sua mesa, cercado por três secretárias, tomando anotações para ações que deveriam ser realizadas por seus assistentes. Ele usava o walkman nos ouvidos, mas o som estava desligado. E seu rosto geralmente jovial tinha agora uma expressão sombria. Levantou os olhos para o visitante não convidado e disse:

— Chris, este é o pior momento possível para você bisbilhotar.

— Não enche, Eugene. Acho muito estranho que ninguém se mostre curioso em relação ao suposto traidor na assessoria pessoal. Isso significa que todo mundo sabe, menos eu. E sou quem deveria saber.

Dazzy dispensou as secretárias. Ficaram sozinhos na sala. Dazzy sorriu para Christian.

— Nunca me ocorreu que você não sabia. Afinal, vigia tudo, com o FBI e o Serviço Secreto, suas informações furtivas e aparelhos de escuta. E aqueles milhares de agentes que o Congresso nem sabe que mantém na folha de pagamento. Como pode ser tão ignorante?

Christian disse friamente:

— Sei que você anda comendo uma bailarina duas vezes por semana, num daqueles apartamentos que pertencem ao restaurante de Jeralyn.

Dazzy suspirou.

— É justamente isso. O tal lobista que empresta o apartamento veio me procurar. Pediu-me para assinar o documento de remoção do presidente. Não foi grosseiro, não houve ameaças diretas, , mas a implicação era evidente. Assine ou seus pecadilhos serão divulgados pelos jornais e televisão. — Dazzy soltou uma risada. — Nem pude acreditar. Como eles conseguem ser tão estúpidos?

— E qual foi a sua resposta?

Dazzy sorriu.

— Risquei o nome dele da minha lista de “amigos”. Proibi seu acesso. E disse-lhe que indicaria seu nome ao meu velho companheiro Christian Klee como uma ameaça à segurança do presidente. E depois contei a Francis. Ele me disse para esquecer o assunto.

— Quem mandou o cara?

— O único que se atreveria a fazer isso é um membro do Clube Sócrates. E só podia ser nosso velho amigo Mar¬tin “Em Particular” Mutford.

— Ele é esperto demais para uma tentativa assim.

— Claro que é. Todos são espertos até o dia em que ficam desesperados. Quando a vice-presidente se recusou a assinar o memorando de impedimento, eles ficaram desesperados. Além do mais, nunca se sabe quando alguém vai ceder.

Christian ainda não aceitava a situação.

— Mas eles o conhecem. Sabem que é um camarada duro, por baixo de toda essa aparência débil. Já o vi em ação. Dirigiu uma das maiores companhias dos Estados Unidos, deu um tremendo golpe na IBM há cinco anos. Como podiam pensar que você cederia?

Dazzy deu de ombros.

— Todo mundo sempre pensa que é mais duro do que os outros. — Ele fez uma pausa. — Até você pensa assim, embora não apregoe. Eu também penso. E o mesmo acontece com Wix e Gray. Francis não pensa desse modo. Não pode. E precisamos tomar cuidado com Francis. Precisamos evitar que ele se torne duro demais.

Christian Klee fez uma visita a Jeralyn Albanese, que possuía o mais famoso restaurante de Washington, D.C. naturalmente chamado Jera's. Tinha três enormes salões, separados por um suntuoso bar. Os republicanos se concentravam num dos salões, os democratas em outro, os membros do poder executivo e altos funcionários da Casa Branca comiam no terceiro. A única coisa em que todos concordavam era que a comida era magnífica, o serviço, impecável, e a anfitriã, uma das mulheres mais encantadoras do mundo.

Vinte anos antes, Jeralyn, então uma mulher de trinta anos fora contratada por um lobista dos bancos. Ele a apresentara a Martin Mutford, que ainda não ganhara o apelido “Em Particular”, mas já se encontrava em ascensão. Martin Mutford ficara encantado com o espírito, ousadia e senso de aventura de Jeralyn. Durante cinco anos mantiveram uma ligação, que não interferira com suas vidas públicas. Jeralyn Albanese prosseguira em sua carreira como lobista, uma carreira muito mais complexa e refinada do que a maioria das pessoas pensava, exigindo muita capacidade de pesquisa e gênio administrativo. Por mais estranho que pudesse parecer, um dos seus trunfos mais valiosos era o de ter sido campeã de tênis na universidade.

Como assistente do principal lobista de bancos, ela passava grande parte da semana acumulando dados financeiros para persuadir os peritos nos comitês financeiros do Congresso a aprovarem uma legislação favorável. Era também anfitriã em jantares para deputados e senadores. E se espantava com o tesão daqueles serenos legisladores. Em particular, eram como garimpeiros de ouro desenfreados, bebiam demais, cantavam com o maior entusiasmo, passavam a mão em sua bunda, no velho espírito popular americano. Jeralyn sentia-se espantada e deliciada com a sensualidade daqueles homens. E com a maior naturalidade fora para as Bahamas e Las Vegas com os mais jovens e atraentes congressistas, sempre sob a cobertura de conferências, uma ocasião fora até Londres, para uma convenção de economistas do mundo inteiro. Não para influenciar o voto num projeto, não para prometer uma fraude, mas se o voto num projeto era indefinido, quando uma mulher bonita como Jeralyn Albanese apresentava as volumosas avaliações habituais, escritas por eminentes economistas, havia uma boa possibilidade de se conquistar o voto hesitante. Martin Mutford comentara um dia:

— Em última análise, é muito difícil votar contra um mulher que chupou seu pau na noite anterior.

Mutford é que ensinara Jeralyn a apreciar as melhores coisas da vida. Ele a levara a museus em Nova York; a Hamptons para conhecer os ricos e os artistas, o dinheiro antigo e o dinheiro novo, os jornalistas famosos e os âncoras de TV, os escritores que faziam os romances sérios e os roteiros importantes para os grandes filmes. Mais um rosto bonito não era grande vantagem ali, mas ser uma boa tenista lhe proporcionava um trunfo.

Mais homens haviam se apaixonado por Jeralyn por causa de sua competência no tênis do que por sua beleza. E era um esporte que os homens que eram meros oportunistas, como em geral acontecia com os políticos e artistas, adoravam jogar com mulheres bonitas. Em duplas mistas, Jeralyn podia estabelecer um relacionamento esportivo com os parceiros, exibindo suas lindas pernas na luta comum pela vitória.

Mas chegara o momento em que Jeralyn começara a pensar em seu futuro. Aos quarenta anos de idade, não era casada, e os congressistas que teria de persuadir já estavam na casa dos sessenta ou setenta anos, nada tinham de atraentes.

Martin Mutford estava ansioso em promovê-la aos altos círculos financeiros, mas depois do excitamento de Washington, a atividade bancária parecia insípida. Os legisladores americanos eram fascinantes em sua hipocrisia afrontosa nos assuntos públicos, em sua encantadora inocência nas relações sexuais. E fora Mutford quem encontrara a solução. Ele também não queria que Jeralyn se perdesse num labirinto de relatórios de computador. Em Washington, o apartamento de Jeralyn, muito bem decorado, era um refúgio para suas pesadas responsabilidades. Mutford sugerira a idéia de que ela podia possuir e dirigir um restaurante, que seria um centro de atividade política.

Os recursos foram fornecidos pelo American Sterling Trustess, um grupo lobista que representava os interesses dos bancos, sob a forma de um empréstimo de cinco milhões de dólares. Jeralyn mandara construir o restaurante de acordo com suas especificações. Seria um clube exclusivo, um segundo lar para os políticos de Washington. Muitos congressistas permaneciam separados de suas famílias durante as sessões do Congresso, e o restaurante Jera's era um lugar em que podiam passar suas noites solitárias. Além dos três salões e do bar, havia uma sala com TV e uma sala de leitura com exemplares de todas as grandes revistas publicadas nos Estados Unidos e Inglaterra. Havia outra sala para se jogar xadrez, damas ou cartas. Mas a maior atração era a área residencial por cima do restaurante. Tinha três andares, com vinte apartamentos, alugados pelos lobistas, que os emprestavam a congressistas e burocratas importantes, para encontros furtivos. O Jera's era conhecido como a própria alma da discrição nesses assuntos. E as chaves ficavam com Jeralyn.

Espantava Jeralyn que aqueles homens tão trabalhadores ainda encontrassem tempo para tanta libertinagem. Eram infatigáveis. E eram os mais velhos, com sólidas famílias, alguns com netos, os mais ativos. Jeralyn adorava ver aqueles mesmos deputados e senadores na TV, austeros e distintos, fazendo sermões sobre a moral, condenando as drogas e a vida desregrada, enfatizando a importância dos valores antigos. Ela nunca achava que eles eram de fato hipócritas. Afinal, os homens que consumiam tanto de suas vidas, tempo e energia pelo país, mereciam uma consideração extra.

Ela não gostava da arrogância, da excessiva presunção dos congressistas mais jovens, mas adorava os velhos, como o senador sisudo e irado que nunca sorria em público, mas se divertia pelo menos duas vezes por semana com jovens “modelos” — e o velho Deputado Jintz, com o corpo que parecia um zepelim cheio de cicatrizes, um rosto tão feio que todo o país acreditava que era honesto. Todos pareciam absolutamente horríveis, ao tirarem as roupas. Mas eles a fascinavam.

Raramente as mulheres no Congresso freqüentavam o restaurante e nunca usavam os apartamentos de cima. O feminismo ainda não avançara até esse ponto. Para compensar isso, Jeralyn oferecia pequenos almoços no restaurante a algumas de suas amigas nas artes, lindas atrizes, cantoras e bailarinas.

Não era da sua conta se essas mulheres jovens e bonitas faziam amizade com os mais altos servidores do povo dos Estados Unidos. Mas ficara surpresa quando Eugene Dazzy, o enorme e desajeitado chefe da assessoria pessoal do Presidente dos Estados Unidos, iniciara uma ligação com uma jovem e promissora bailarina e providenciara para que Jeralyn lhe entregasse a chave de um dos apartamentos por cima do restaurante. E se sentira ainda mais atônita quando a ligação adquirira a categoria de um “relacionamento”. Não que Dazzy tivesse tanto tempo assim à sua disposição — o máximo que ele passava no apartamento eram umas poucas horas depois do almoço. E Jeralyn não tinha ilusões sobre o que poderia conseguir o lobista que pagava o aluguel. As decisões de Dazzy não seriam influenciadas, mas pelo menos, em raras ocasiões, ele aceitaria as ligações do lobista para a Casa Branca; assim, os clientes do lobista ficariam impressionados com o acesso.

Jeralyn transmitia todas as informações a Martin Mutford, quando se encontravam. Era um acordo tácito entre os dois que as informações não seriam usadas por qualquer forma, muito menos como um instrumento de chantagem. Isso poderia ser desastroso e destruir o propósito principal do restaurante, que era o de promover um clima de camaradagem e garantir um ouvido simpático aos lobistas que pagavam a conta. Além do fato de que o restaurante era a principal fonte de subsistência de Jeralyn, e ela não permitiria que fosse exposto a qualquer risco.

Por isso, Jeralyn ficou bastante surpresa quando Christian Klee a procurou, num momento em que o restaurante se encontrava quase vazio, entre o almoço e o jantar. Recebeu-o no escritório. Gostava de Klee, embora ele só comesse no Jera's raramente e nunca tentasse usar os apartamentos de cima. Mas não teve qualquer sentimento de apreensão; sabia que não havia nada por que ele pudesse censurá-la. Se algum escândalo fermentava, não importava o que os repórteres pudessem procurar, ou o que uma das garotas fosse capaz de dizer, ela estava a salvo.

Ela murmurou algumas palavras de comiseração pelos tempos terríveis que ele devia estar enfrentando, com o assassinato e o seqüestro, mas teve o cuidado de não dar a impressão de que sondava em busca de informações internas. Klee agradeceu, e depois disse:

— Jeralyn, nós nos conhecemos há muito tempo e quero alertá-la, para sua própria proteção. Sei que vai chocá-la o que vou dizer, tanto quanto chocou a mim.

Oh, merda!, pensou Jeralyn. Alguém está criando problemas para mim. Christian Klee continuou:

— Um lobista de interesses financeiros é um grande amigo de Eugene Dazzy e tentou impingir-lhe uma grande merda. Insistiu que Dazzy assinasse um documento que seria bastante prejudicial ao Presidente Kennedy. E advertiu Dazzy de que o uso de um dos seus apartamentos poderia ser tornado público, arruinando sua carreira e casamento. — Klee soltou uma risada. — Quem poderia imaginar que Eugene fosse capaz de algo assim... Mas, afinal, acho que todos somos humanos.

Jeralyn não se deixava enganar pelo bom humor de Christian. Sabia que tinha de ser muito cuidadosa ou sua própria vida poderia ser arruinada. Klee era o procurador-geral dos Estados Unidos, adquirira a reputação de ser um homem muito perigoso. Podia lhe criar mais problemas do que ela seria capaz de agüentar, mesmo com a ajuda de Mar¬tin Mutford.

— Não tive nada a ver com isso. É verdade que entreguei a Dazzy a chave de um dos apartamentos lá em cima, mas isso foi apenas uma cortesia da casa. Não há registros de qualquer tipo. Ninguém pode atribuir qualquer coisa a Dazzy ou a mim.

— Sei disso, Jeralyn. Mas será que não percebe que aquele lobista nunca seria capaz de fazer uma coisa dessas por sua própria iniciativa? Alguém mais alto lhe disse o que devia fazer.

Jeralyn respondeu, apreensiva:

— Juro, Christian, que nunca contei a ninguém. Jamais submeteria meu restaurante a esse risco. Não sou tão estúpida assim.

— Sei disso — murmurou Christian, tranqüilizador — Mas você e Martin são bons amigos há muito tempo E você pode ter contado a ele, apenas como uma fofoca

Agora Jeralyn sentia-se profundamente horrorizada Encontrava-se entre dois homens poderosos, prestes a travarem uma batalha. Mais do que qualquer outra coisa no mundo, ela queria sair daquela arena. E também sabia que a pior coisa a fazer agora era mentir.

— Martin nunca tentaria algo tão estúpido, Christian. Não esse tipo de chantagem idiota.

Ao dizer isso, ela admitia que contara a Martin, mas ao mesmo tempo poderia negar que confessara expressamente.

Christian ainda se mantinha tranqüilizador. Percebia que Jeralyn não adivinhara o verdadeiro motivo de sua visita.

— Eugene Dazzy mandou o lobista à merda. Depois me contou a história, e eu prometi que cuidaria do assunto. Sei que eles não podem denunciar Dazzy. Por um lado, porque eu cairia em cima de você e deste lugar com tanta força que até pensaria ter sido atropelada por um tanque. Seria obrigada a identificar todas as pessoas no Congresso que usaram aqueles apartamentos. Haveria um tremendo escândalo. Seu amigo apenas esperava que Dazzy perdesse a coragem. Mas Eugene previu tudo.

Jeralyn ainda não conseguia acreditar.

— Martin nunca tentaria algo tão perigoso. É um banqueiro.

Ela sorriu para Christian, que suspirou e decidiu que chegara o momento de se mostrar duro.

— Preciso lembrá-la, Jeralyn, de que o velho Martin não é o tipo habitual de banqueiro impassível e conservador? Ele já teve alguns problemas ao longo de sua vida. E não ganhou seus bilhões por só jogar na certa. Já fez coisas escusas antes. — Christian fez uma pausa. — E agora está se metendo numa coisa muito perigosa para você e para ele.

Jeralyn acenou com a mão, num gesto desdenhoso-

— Você mesmo disse que eu nada tive a ver com o que está acontecendo.

— Tem razão, sei disso. Mas Martin é um homem que tenho de vigiar agora. E quero que você me ajude a vigiá-lo.

Jeralyn reagiu com firmeza:

— De jeito nenhum! Martin sempre me tratou com toda decência. É um amigo de verdade.

— Não quero que você se torne uma espiã. Não quero qualquer informação sobre as transações financeiras ou a vida pessoal de Martin. Só quero que você me avise se souber alguma coisa ou descobrir qualquer iniciativa dele contra o presidente.

— Ora, vá se foder! — exclamou Jeralyn. — E saia logo daqui, pois tenho de preparar as coisas para o jantar!

— Está bem, já vou sair — disse Christian, amavelmente. — Mas não se esqueça de que sou o procurador-geral dos Estados Unidos. Passamos por momentos difíceis e não custa nada me ter como amigo. Portanto, use o seu julgamento na ocasião oportuna. Se me der um aviso, ninguém jamais saberá. Use o seu bom senso.

Ele se retirou. Realizara o seu propósito. Jeralyn podia falar a Martin sobre o encontro, o que seria ótimo, pois isso tornaria Mutford mais cauteloso. Ou podia não falar nada, e daria a informação quando chegasse o momento. De qualquer forma, ele não podia perder.

O motorista desligou a sirene quando passaram pelo portão da propriedade do Oráculo. Christian viu três limusines estacionadas no caminho circular. E era curioso que os motoristas permanecessem sentados ao volante, em vez de saírem para fumar um cigarro. Ao lado de cada carro havia um homem alto e bem-vestido. Christian reconheceu o que eram no mesmo instante. Seguranças. Portanto, o Oráculo tinha visitantes importantes. E devia ser por isso que o velho o convocara com tanta urgência.

Christian foi recebido pelo mordomo, que o conduziu à sala de estar, arrumada para uma reunião. O Oráculo se encontrava em sua cadeira de rodas, esperando. Ao redor da mesa sentavam quatro membros do Clube Sócrates. Christian ficou surpreso ao vê-los. Sua última informação era a de que todos os quatro estavam na Califórnia.

O Oráculo levou sua cadeira de rodas para a cabeceira da mesa e disse:

— Deve me perdoar, Christian, pelo pequeno embuste. Achei que era importante que você se encontrasse com meus amigos neste momento crítico. Eles estão ansiosos em conversar com você.

Os criados haviam posto café e sanduíches na mesa. Também foram servidos drinques, os criados chamados por uma campainha sob a mesa acionada pelo Oráculo. Os quatro membros do Clube Sócrates já estavam bebendo. Martin Mutford acendeu um enorme charuto e afrouxou a gravata, desabotoou o colarinho. Parecia um pouco sombrio, mas Christian sabia que a expressão era uma decorrência da contração dos músculos para ocultar o medo.

— Martin — disse Christian —, Eugene Dazzy me contou que um de seus lobistas lhe deu um mau conselho hoje. Espero que você não tenha nada a ver com isso.

— Dazzy pode separar o joio do trigo — respondeu Mutford. — Se não fosse assim, ele não seria o chefe da assessoria do presidente.

— Claro que pode, Martin. E não precisa de conselhos de minha parte sobre a melhor maneira de sacanear alguém. Mas sempre posso lhe dar uma ajuda.

Christian percebeu que o Oráculo e George Greenwell não sabiam do que ele estava falando. Mas Lawrence Salentine e Louis Inch exibiram um pequeno sorriso. Inch disse, impaciente:

— Isso não tem importância, não é relevante para nossa reunião aqui esta noite.

— E qual é o propósito? — indagou Christian.

Foi Salentine quem respondeu, a voz suave e tranqüilizadora, de um homem acostumado a manipular confrontações:

— Este é um momento muito difícil. E acho até bastante perigoso. Todas as pessoas responsáveis devem trabalhar junto, em busca de uma solução. Todos os presentes são favoráveis ao afastamento do Presidente Kennedy por trinta dias. O Congresso votará amanhã à noite, em sessão especial. A recusa da Vice-Presidente Du Pray em assinar torna a situação difícil, mas não impossível. Seria muito útil se um membro da assessoria pessoal do presidente assinasse. E é justamente o que estamos lhe pedindo para fazer.

Christian ficou tão atônito que não pôde responder. O Oráculo interveio:

— Concordo. Será melhor para Kennedy não tratar desta questão específica. Sua atitude hoje foi completamente irracional e deriva de um desejo de vingança. Pode levar a eventos terríveis. Christian, eu lhe suplico que escute estes homens.

— Não há a menor possibilidade! — exclamou Christian, incisivo, dirigindo-se diretamente ao Oráculo. — Como pode participar disso? Como logo você, entre todas as pessoas, pode se voltar contra mim?

O Oráculo sacudiu a cabeça.

— Não estou contra você.

Salentine acrescentou:

— Ele não pode destruir cinqüenta bilhões de dólares só porque sofreu uma tragédia pessoal. Isso não é democracia.

Christian recuperara o controle. E disse, num tom de voz razoável:

— Não é essa a verdade. Francis Kennedy refletiu muito sobre a situação, Não quer que os seqüestradores nos cozinhem por semanas, ganhando tempo em suas redes de TV, Sr. Salentine, enquanto os Estados Unidos são cada vez mais ridicularizados. Não podemos esquecer que eles assassinaram o Papa, mataram a filha do Presidente dos Estados Unidos. Querem negociar com eles agora? Querem libertar o assassino do Papa? E se consideram patriotas? Dizem que se preocupam com este país? Não passam de um bando de hipócritas!

George Greenwell falou pela primeira vez:

— E o que me diz dos outros reféns? Está disposto a sacrificá-los?

E Christian respondeu sem pensar:

— Estou! — Ele fez uma pausa, e depois acrescentou: — Acho que o plano do presidente é a melhor chance possível de tirá-los de lá com vida.

— Bert Audick está neste momento em Sherhaben como sabe — disse Greenwell. — Ele nos assegurou que pode persuadir os seqüestradores e o sultão a libertarem os reféns restantes.

Christian comentou, desdenhoso:

— Ouvi-o assegurar ao Presidente dos Estados Unidos que nenhum mal aconteceria a Theresa Kennedy. E agora ela está morta.

— Sr. Klee, poderíamos discutir sobre esses problemas menores até o final dos tempos — disse Salentine. — Só que não há tempo. Esperávamos que se juntasse a nós, o que tornaria tudo mais fácil. O que deve ser feito será feito, quer concorde ou não. Isso eu lhe asseguro. Mas por que tornar esta luta divisiva? Por que não servir ao presidente trabalhando conosco?

Christian fitou-o friamente.

— Não me venha com essa merda. E deixe-me dizer uma coisa: sei que vocês têm muita influência neste país, uma influência inconstitucional. Assim que passar esta crise, começarei a investigá-los.

Greenwell deixou escapar um suspiro. A ira violenta e insensata dos jovens era maçante para um homem de sua experiência e idade.

— Sr. Klee, agradecemos por ter vindo — disse ele. — E espero que não haja qualquer hostilidade pessoal. Estamos agindo para ajudar nosso país.

— Estão agindo para salvar os cinqüenta bilhões de dólares de Audick.

Christian teve um relance de percepção. Aqueles homens, na verdade, não tinham a menor esperança de recrutá-lo. O encontro era apenas uma intimidação. Uma tentativa para que ele permanecesse neutro. E depois ele sentiu o medo deles. Era isso, eles temiam-no. Pois ele tinha o poder e, mais importante, a vontade. E o único que poderia tê-los alertado a seu respeito era o Oráculo.

Todos permaneceram em silêncio, que acabou sendo rompido pelo Oráculo:

— Pode ir agora. Sei que precisa voltar. Ligue-me para contar o que está acontecendo. Mantenha-me informado.

Magoado pela traição do Oráculo, Christian disse:

— Poderia ter me avisado.

O Oráculo sacudiu a cabeça.

— Você não viria. E eu não poderia convencer meus amigos de que você não assinaria. Tinha de lhes dar uma chance de tentar. — Ele fez uma pausa. — Eu o acompanho até a porta.

O Oráculo rolou sua cadeira para fora da sala. Christian foi atrás. Antes de se retirar, virou-se para o Clube Sócrates e declarou:

— Senhores, eu lhes suplico, não deixem o Congresso fazer isso.

O tom de voz era tão ameaçador que ninguém falou.

Quando se encontravam a sós, no alto da rampa que levava ao vestíbulo, o Oráculo parou a cadeira de rodas. Levantou a cabeça, sardenta do escurecimento da pele envelhecida, e disse:

— Você é meu afilhado e meu herdeiro. Nada disso altera minha afeição por você. Mas fique avisado. Amo meu país e considero que seu Francis Kennedy é um grande perigo.

Pela primeira vez, Christian Klee sentiu uma pontada de amargura contra aquele velho que sempre amara.

— Você e seu Clube Sócrates estão pressionando Francis. Vocês é que constituem o perigo.

O Oráculo estudava-o.

— Mas você não parece muito preocupado. Eu lhe suplico, Christian, para não ser precipitado. Não faça algo irremediável. Sei que tem muito poder e, mais importante ainda, muita astúcia. É um homem de talento, sei disso. Mas não tente se sobrepor à história.

— Não sei do que está falando.

Christian tinha pressa agora. Ainda precisava fazer uma ultima parada, antes de retornar à Casa Branca. O Oráculo suspirou.

— Não se esqueça de que você ainda tem minha afeição, independentemente do que possa acontecer. É a única pessoa viva que eu amo. E se estiver ao meu alcance, nunca permitirei que nada de mau lhe aconteça. Ligue para mim. Mantenha-me informado.

Mesmo em sua raiva, Christian sentiu de novo a antiga afeição pelo Oráculo. Apertou o ombro do velho e disse:

— Ora, é apenas uma divergência política, já as tivemos antes. É não se preocupe... eu ligarei.

O Oráculo lançou-lhe um sorriso malicioso.

— E não se esqueça de minha festa de aniversário. Quando tudo isso acabar. Se ambos estivermos vivos.

E Christian, espantado, viu lágrimas escorrerem pelas faces murchas. Inclinou-se para beijar aquele rosto ressequido, frio como vidro.

Christian Klee voltava tarde para a Casa Branca. Sua última parada fora para interrogar secretamente Gresse e Tibbot.

Seguiu direto para a sala de Oddblood Gray, mas a secretária informou-o que Gray se encontrava reunido com o Deputado Jintz e o Senador Lambertino. A secretária parecia assustada. Ouvira rumores de que o Congresso tentava afastar o Presidente Kennedy do cargo.

— Ligue para ele — determinou Christian. — Diga-lhe que é urgente, e deixe-me usar sua mesa e telefone. Enquanto isso, dê um pulo ao banheiro.

Gray atendeu o telefone, pensando que era a secretária, e foi, logo dizendo:

— É melhor que seja importante.

— Otto, sou eu, Chris. Alguns sujeitos do Clube Sócrates acabam de me pedir para assinar o memorando de remoção. Dazzy também foi convidado a assinar, tentaram uma chantagem com ele pelo caso com a bailarina. Sei que Wix se encontra a caminho de Sherhaben, por isso não pode assinar a petição. Você está assinando?

A voz de Oddblood Gray soou muito suave:

— É engraçado... acabo de ser convidado a fazer isso por dois cavalheiros que estão aqui, em minha sala. Já lhes disse que não assinarei. E garanti que ninguém na assessoria pessoal assinaria. Nem precisei perguntar a você.

Havia sarcasmo em sua voz. Christian disse, impaciente:

— Eu sabia que você não assinaria, Otto, mas tinha de perguntar. Lance alguns raios. Diga a esses caras que o procurador-geral vai iniciar uma investigação da ameaça de chantagem contra Dazzy. E também que tenho muitas coisas sobre alguns deputados e senadores que não vão parecer muito agradáveis nos jornais, e pretendo vazar tudo. Em particular as ligações financeiras com membros do Clube Sócrates. Este não é um momento para delicadezas.

— Obrigado pelo conselho, companheiro. Mas por que não cuida dos seus problemas e deixa que eu cuide dos meus? E não peça a outros para brandirem sua espada por aí. Faça-o você mesmo.

Sempre houvera um sutil antagonismo entre Oddblood Gray e Christian Klee. Pessoalmente, gostavam um do outro, respeitavam-se. Fisicamente, ambos eram impressionantes. Gray possuía uma grande bravura social, alcançara tudo por sua própria conta. Christian Klee nascera rico, mas se recusara a levar a vida de um rico. Ambos eram respeitados pelo mundo. Ambos eram devotados a Francis Kennedy. E ambos eram advogados competentes.

E, no entanto, eram cautelosos um com o outro. Gray tinha a mais profunda fé no progresso social através da lei, por isso era tão valioso como o homem de ligação do presidente com o Congresso. E sempre desconfiara da acumulação de poder que Klee conquistara. Era demais que num país como os Estados Unidos qualquer homem devesse ser ao mesmo tempo diretor do FBI, chefe do Serviço Secreto e procurador-geral. Era verdade que Francis Kennedy explicara o motivo para essa concentração de poder — o objetivo era ajudar a proteger o presidente contra a ameaça de assassinato. Apesar disso, Gray não gostava.

Klee sempre fora um pouco impaciente com a atenção escrupulosa de Gray a cada aspecto legal. Gray podia se dar ao luxo de ser um estadista meticuloso, pois lidava com políticos e problemas políticos. Mas Christian achava que tinha de lidar com o que havia de pior na vida cotidiana. A eleição de Francis Kennedy fizera aflorar todos os vermes da América. Só Klee tinha conhecimento das milhares de ameaças de morte que o presidente já recebera. Só Klee podia destruir os vermes. E nem sempre podia respeitar as sutilezas legais para realizar seu trabalho. Ou pelo menos era o que Klee pensava.

O caso que enfrentavam agora era típico. Klee queria usar a força, Gray, a luva de pelica.

— Está certo — disse Christian. — Farei o que tenho de fazer.

— Ótimo, E podemos ir juntos para falar com o presidente. Ele nos quer na Sala do Gabinete, assim que eu acabar aqui.

Gray fora deliberadamente indiscreto ao falar pelo telefone com Klee. Fitou agora o Deputado Jintz e o Senador Lambertino, ofereceu-lhes um sorriso pesaroso, e disse:

— Lamento que tivessem de escutar isso. Christian não gosta dessa história de impedimento, mas encara como uma coisa pessoal, quando é uma questão do bem-estar do país.

— Fui contra o contato com Klee — comentou o Senador Lambertino. — Mas pensei que teríamos uma chance com você, Otto. Quando o presidente o designou para servir de ligação com o Congresso, achei que era uma temeridade, com todos os nossos colegas sulistas que ainda não superaram plenamente seus preconceitos. Mas devo dizer que você conquistou a todos, durante os três últimos anos. Se o presidente o escutasse, muitos dos seus programas não teriam sido rejeitados pelo Congresso.

Gray manteve-se impassível.

— Fico contente que tenham vindo me procurar, mas acho que o Congresso está cometendo um grande erro com esse processo de impedimento. A vice-presidente não assinou. É verdade que vocês têm quase todo o Gabinete, mas ninguém da assessoria pessoal. Assim, o Congresso terá de designar a si mesmo como o corpo que aprovará o impedimento. O que é um passo muito grande. Significará que Congresso pode prevalecer sobre o voto expresso do povo deste país.

Gray levantou-se e começou a andar de um lado para outro da sala. Não costumava fazer isso quando estava negociando, porque conhecia a impressão que causava. Era impressivo demais, fisicamente, e parecia um gesto ofensivo de dominação. Tinha mais de um metro e noventa de altura, o corpo de um atleta olímpico. As roupas eram impecáveis e tinha um pouco de sotaque britânico. Parecia exatamente com os poderosos executivos apresentados nos comerciais de TV, só que sua pele era cor de café, em vez de branca. Mas desta vez ele queria mesmo usar alguma intimidação.

— Vocês dois são homens que sempre admirei no Congresso — disse ele. — E sempre nos entendemos. Sabem que aconselhei Kennedy a não insistir em seus programas sociais, até dispor de uma base melhor. Não há maior abertura para a tragédia do que o insensato exercício do poder. É um dos erros mais comuns na política. Mas é exatamente o que o Congresso está fazendo ao tentar afastar o presidente. Se conseguirem, abrirão um precedente muito perigoso em nosso governo, que pode levar a repercussões fatais quando algum presidente adquirir poder excessivo, no futuro. Ele pode então exigir a castração do Congresso. E o que vocês ganham neste caso é a curto prazo. Evitam a destruição de Dak e o investimento de cinqüenta bilhões de dólares de Bert Audick. E o povo deste país os desprezará; nesse ponto, não devem se iludir, pois o povo apóia a ação de Kennedy. Talvez pelas razões erradas... todos sabemos que o eleitorado é influenciado com muita facilidade por emoções óbvias, emoções que os líderes devem controlar e orientar. Kennedy poderia ordenar neste momento o lançamento de bombas atômicas em Sherhaben, e o povo deste país aprovaria. Uma estupidez, não é mesmo? Mas é assim que as massas sentem. Vocês sabem disso. Portanto, o melhor que o Congresso pode fazer agora é esperar, verificar se as ações de Kennedy trarão os reféns de volta e os seqüestradores para nossas prisões. E todos ficarão felizes. Se o plano fracassar, se os seqüestradores massacrarem os reféns, então vocês poderão afastar o presidente e parecerão heróis.

Gray esforçara-se ao máximo, mas sabia que sua argumentação não tinha a menor possibilidade de prevalecer. Pela longa experiência, aprendera que a partir do momento em que as pessoas desejam fazer alguma coisa, até as mais sábias acabam fazendo. Nenhuma persuasão é capaz de fazê-las mudar de idéia. E o Deputado Jintz não o desapontou:

— Está argumentando contra a vontade do Congresso, Otto.

O Senador Lambertino acrescentou:

— Luta por uma causa perdida, Otto. Conheço sua lealdade ao presidente. Sei que se tudo corresse bem para o presidente, você seria promovido a membro do Gabinete. E posso lhe assegurar que o Senado aprovaria. Isso ainda pode acontecer, mas não com Kennedy.

Gray balançou a cabeça em agradecimento.

— Sinto-me grato por isso, senador, mas não posso atender a seu pedido. Acho que o presidente tem todas as justificativas para sua decisão. E estou convencido de que a ação será eficaz. Creio que os reféns serão libertados e os criminosos entregues à nossa guarda.

Jintz disse abruptamente:

— Não é esse o problema. Não podemos permitir que ele destrua a cidade de Dak.

E o Senador Lambertino acrescentou, em tom mais suave:

— Não é apenas pelo dinheiro. Esse ato brutal prejudicaria nossas relações com todos os outros países do mundo. Deve compreender isso, Otto.

— Pois vou lhes dizer uma coisa: a menos que o Congresso cancele a sessão especial de amanhã, a menos que retire o pedido de impedimento, o presidente apelará diretamente ao povo dos Estados Unidos, pela televisão. Por favor, transmitam isso a seus colegas.

Otto Gray resistiu ao desejo de arrematar “E ao Clube Sócrates”. Eles se despediram com protestos de boa vontade e afeição, os bons modos políticos, antes mesmo do assassinato de Júlio César. Depois, Gray foi pegar Klee para a reunião com o presidente.

Seu discurso final abalara o Deputado Jintz. Jintz acumulara uma riqueza considerável durante os seus muitos anos no Congresso. A mulher era sócia destacada ou acionista em muitas companhias de televisão a cabo em seu estado natal; a firma de advocacia do filho era uma das maiores do Sul. Ele não tinha preocupações materiais. Mas adorava sua vida como deputado; proporcionava-lhe prazeres que não poderiam ser comprados apenas com dinheiro. O maravilhoso em ser um político bem-sucedido era o fato de que sua velhice podia ser tão feliz quanto a juventude. Mesmo quando se tornava um velho decrépito, o cérebro perdido numa inundação de células senis, todos ainda o respeitavam, escutavam e puxavam seu saco. Tinha-se os comitês e subcomitês do Congresso para participar, podia-se distribuir verbas do orçamento. E ainda se podia ajudar a conduzir o maior país do mundo. Mesmo que seu corpo fosse velho e fraco, jovens viris ainda tremiam na sua presença. Em algum momento, Jintz sabia, seu apetite por comida, bebida e mulheres haveria de se desvanecer, mas se ainda restasse uma única célula viva em seu cérebro poderia desfrutar o poder. E como se pode temer a iminência da morte quando seus semelhantes ainda lhe obedecem?

E por isso Jintz sentia-se preocupado. Seria possível que, por alguma catástrofe, perdesse seu lugar no Congresso? Não havia saída. Sua própria vida dependia do afastamento de Francis Kennedy do cargo. E ele disse ao Senador Lambertino:

— Não podemos permitir que o presidente fale pela televisão amanhã.

 

David Jatney passou um mês lendo roteiros de filmes que lhe pareciam totalmente imprestáveis. Escrevia menos de meia página de sumário, depois acrescentava seu parecer, na mesma página. Sua opinião deveria se limitar a umas poucas frases, mas em geral acabava usando o resto do espaço da página. Ao final do mês, o supervisor foi até sua mesa e disse:

— David, não precisamos saber como você é espirituoso. Bastam duas frases de opinião. E não precisa ser tão desdenhoso com essas pessoas. Não estão mijando em sua mesa, apenas tentam escrever filmes.

— Mas são horríveis! — protestou Jatney.

— Claro que são. Acha mesmo que o deixaríamos ler os bons? Temos pessoas mais experientes para isso. Além do mais, esses roteiros que você chama de horríveis foram encaminhados por um agente. E um agente espera ganhar dinheiro com eles. Portanto, já passaram por um teste rigoroso. Não aceitamos qualquer roteiro por causa de ações judiciais, não somos como os editore de livros. Por isso, não nos importa quão horríveis sejam, temos de ler os roteiros encaminhados por agentes. Se não lermos os roteiros ruins, os agentes não nos mandarão os bons.

— Eu poderia escrever roteiros melhores.

O supervisor riu.

— Todos nós podemos. — Ele fez uma pausa, depois acrescentou: — Quando escrever um roteiro, eu quero lê-lo.

Foi o que David fez, um mês depois. O supervisor leu, em sua sala particular. E foi muito gentil:

— David, não vai funcionar. O que não significa que você não é capaz de escrever. Mas não sabe realmente como os filmes funcionam. É evidente em seus sumários e críticas, mas também aparece no roteiro. Quero que saiba que estou tentando ajudar. Sinceramente. Por isso, a partir da próxima semana, você passará a ler os romances publicados e considerados como possíveis de serem convertidos em filmes.

David agradeceu polidamente, mas sentiu a raiva familiar. Era outra vez a voz do mais velho, supostamente mais sensato, aqueles que tinham o poder.

Poucos dias depois a secretária de Dean Hocken telefonou, indagando se ele estava livre para jantar com o Sr. Hocken naquela noite. Ele ficou tão surpreso que demorou um momento para dizer sim. Ela avisou que o jantar seria no restaurante Michael’s, em Santa Monica, às oito horas. Ela começou a explicar como chegar ao restaurante, mas David disse que morava em Santa Monica e conhecia o lugar, o que não era rigorosamente verdadeiro.

Mas já ouvira falar do Michael’s. David Jatney lia todos os jornais e revistas, escutava as conversas no escritório. O Michael’s era o restaurante preferido pelo pessoal do cinema e música que vivia em Malibu. Depois de desligar, ele perguntou ao supervisor se sabia exatamente onde ficava o Michael’s, comentando que jantaria lá naquela noite. Percebeu que o supervisor ficou impressionado. E refletiu que deveria ter esperado para submeter seu roteiro depois do jantar. Seria então lido num contexto diferente.

Naquela noite, ao entrar no restaurante Michael’s, David ficou surpreso ao descobrir que só a parte da frente tinha telhado — o resto do restaurante ficava num jardim, embelezado por flores, com enormes barracas brancas proporcionando uma proteção segura contra a chuva. Toda área faiscava com luzes. Era um beleza, o ar fragrante de abril, as flores de abril exalando seu perfume, até mesmo uma lua dourada por cima. Que diferença do inverno em Utah! Foi naquele momento que David Jatney decidiu que nunca mais voltaria para casa.

Deu seu nome à recepcionista e ficou surpreso ao ser levado diretamente para uma das mesas no jardim. Planejara chegar antes de Hocken; conhecia o seu papel e tencionava desempenhá-lo com perfeição. Seria absolutamente respeitoso, esperaria no restaurante pela chegada do velho Hock, reconhecendo o poder dele. Ainda não entendia Hocken. O homem era genuinamente gentil ou apenas um impostor de Hollywood, sendo condescendente com o filho de uma mulher que outrora o rejeitara e agora, é claro, se arrependia por isso?

Ele avistou Dean Hocken à mesa para a qual era conduzido, em companhia de um homem e uma mulher. A primeira reação de David foi a de que Hocken deliberadamente marcara para ele uma hora posterior, a fim de não fazê-lo esperar — uma gentileza extraordinária, que quase o levou às lágrimas. Pois além de ser paranóico e atribuir misteriosos motivos malignos ao comportamento dos outros, David também era capaz de atribuir razões incrivelmente benevolentes.

Hocken levantou-se para abraçá-lo cordialmente, depois apresentou-o ao homem e à mulher. David reconheceu o homem no mesmo instante. Era Gibson Grange, um dos atores mais famosos de Hollywood. A mulher era Rosemary Belair, um nome que David ficou surpreso por não reconhecer, já que ela era bastante bonita para ser estrela de cinema. Tinha cabelos pretos lustrosos, compridos, o rosto perfeito em sua simetria. A maquilagem era profissional, vestia-se com elegância, um vestido longo, com um casaco por cima.

Estavam bebendo vinho, a garrafa dentro de um balde de prata. Hocken serviu um copo para David.

A comida era deliciosa, o ar, fragrante, o jardim, tranqüilo, nenhuma das preocupações do mundo podia entrar ali, pensou David. Os homens e mulheres às mesas ao redor irradiavam confiança; aquelas eram as pessoas que controlavam a vida. Algum dia ele seria assim.

David escutou durante todo o jantar, falando muito pouco. Estudava as pessoas à sua mesa. Dean Hocken, ele concluiu, era legítimo, tão simpático quanto parecia ser. O que não significava necessariamente que era uma boa pessoa pensou David. Não demorou a perceber que a ocasião podia ser ostensivamente social, mas Rosemary e Hock tentavam persuadir Gibson Grange a fazer um filme com eles.

Parecia que Rosemary Belair era também uma produtora — na verdade, a mulher mais importante nessa função em Hollywood.

David escutava e observava. Não participava da conversa, e quando ficava imóvel seu rosto era tão bonito quanto nas fotografias. As outras pessoas à mesa registravam isso, mas ele não as interessava, o que David não ignorava.

E era o que lhe convinha naquele momento. Invisível, podia estudar aquele mundo poderoso que esperava conquistar. Hocken promovera aquele jantar para proporcionar à sua amiga Rosemary uma oportunidade de persuadir Gibson Grange a fazer um filme com ela. Mas por quê? Havia uma certa descontração em Hocken e Rosemary que não poderia existir se eles não tivessem passado por um período sexual. Era a maneira como Hocken acalmava Rosemary quando ela se tornava muito excitada em sua insistência com Gibson Grange. Em determinado momento, ela disse a Gibson:

— É muito mais divertido fazer um filme comigo do que com Hock.

Hocken riu e comentou:

— Nós nos divertimos muito, hem, Gib?

E o ator declarou:

— Ora, o relacionamento era todo profissional.

Ele falou isso sem qualquer insinuação de sorriso. Gibson Grange era um astro “bancável” na indústria cinematográfica. Ou seja, se concordasse em fazer um filme, qualquer estúdio o financiaria imediatamente. Era por isso que Rosemary insistia com tanta ansiedade. E ele também possuía a aparência absolutamente certa. Tinha o velho estilo americano de Gary Cooper, alto e esguio, com um rosto franco; parecia como Lincoln deveria ser se fosse bonito. O sorriso era cordial, escutava atentamente quando os outros falavam. Contou algumas anedotas divertidas a seu próprio respeito, de fato engraçadas. O que era bastante cativante. Vestia-se num estilo mais despretensioso do que era comum em Hollywood, a calça larga, uma suéter velha, mas obviamente cara, um velho paletó por cima. E, no entanto, atraía a atenção de todos no jardim. Seria porque seu rosto fora visto por milhões de pessoas, mostrado de maneira tão íntima pelas câmeras? Seriam as misteriosas camadas de ozônio, em que seu rosto permanecia para sempre? Seria alguma espécie de manifestação física, que a ciência ainda não deslindara? O homem era inteligente, David podia percebê-lo. Seus olhos, enquanto escutava Rosemary, eram divertidos, mas não condescendentes; e embora parecesse sempre concordar com o que ela dizia, nunca se comprometia a qualquer coisa. Era o homem que David sonhava se tornar.

Continuaram a conversar, tomando vinho. Hocken pediu sobremesa — maravilhosos doces franceses, David jamais provara algo tão gostoso. Gibson Grange e Rosemary Belair recusaram a tocar em suas sobremesas, ela com um estremecimento de horror, ele com um ligeiro sorriso. Mas era Rosemary quem certamente se deixaria tentar no futuro; Grange estava seguro, pensou David. Grange nunca mais tocaria numa sobremesa pelo resto de sua vida, mas a queda de Rosemary era inevitável.

Por instância de Hocken, David comeu as outras sobremesas, e depois ainda continuaram sentados, conversando. Hocken pediu outra garrafa de vinho, mas só ele e Rosemary beberam. David logo notou outra tendência oculta na conversa — Rosemary empenhava-se na conquista de Gibson Grange.

Rosemary mal falara com David durante toda a noite, agora ignorava-o de forma tão absoluta que ele foi forçado a conversar com Hocken sobre os velhos tempos em Utah. Mas os dois acabaram tão fascinados pela competição entre Rosemary e Gibson que ficaram em silêncio.

Pois enquanto a noite avançava e mais vinho era servido, Rosemary desfiou todo o jogo de sedução. Era de uma intensidade alarmante, uma demonstração impressionante de pura determinação. Ela apresentou suas virtudes. Primeiro, foram os movimentos do rosto e corpo — de alguma forma, a frente do vestido se entreabriu, mostrando mais dos seios. Houve os movimentos das pernas, cruzadas e descruzadas, o vestido subindo para oferecer um vislumbre das coxas. As mãos não paravam, tocando no rosto de Gibson quando ela se deixava arrebatar pelo que dizia. Rosemary demonstrou todo o seu espírito, contou anedotas engraçadas, revelou sua sensibilidade. O rosto bonito se animava para exibir cada emoção, sua afeição pelas pessoas com que trabalhava, as preocupações com as pessoas da família imediata, o interesse pelo sucesso dos amigos. Confessou sua profunda afeição por Dean Hocken, como o velho Hock a ajudara na carreira, recompensara-a com conselhos e influência. Neste ponto o velho Hock interrompeu para dizer o quanto ela merecera tal ajuda, por causa de seu trabalho árduo nos filmes e lealdade a ele; e enquanto ele falava isso, Rosemary lançou-lhe um longo olhar de reconhecimento agradecido. Nesse momento, David, completamente encantado, comentou que devia ter sido uma grande experiência para os dois. Mas Rosemary interrompeu-o no meio da frase, ansiosa em recomeçar o envolvimento de Gibson.

David sentiu um pequeno choque pela grosseria dela, mas surpreendentemente não houve ressentimento. Ela era bonita demais, empenhava-se a fundo em obter o que desejava, e o que desejava estava se tornando cada vez mais evidente. Precisava ter Gibson Grange em sua cama naquela noite. E seu desejo tinha a pureza e franqueza de uma criança, o que tornava sua grosseria quase cativante.

Mas o que David mais admirava, acima de tudo, era comportamento de Gibson Grange. O ator mantinha-se alheio ao que estava acontecendo. Notou a grosseria com David e tentou compensá-la, comentando:

— Algum dia você terá a sua chance de falar, David

Era como se pedisse desculpas pelo egocentrismo dos famosos, que não sentem o menor interesse pelos que ainda não conquistaram a fama. Mas Rosemary interrompeu-o também. E Gibson, polidamente, escutou-a. Mas era mais do que polidez. Era um charme inato, que fazia parte de seu ser. Ele olhava para Rosemary com um genuíno interesse. Seus olhos faiscavam, nunca se desviavam dos olhos de Rosemary. Quando ela o tocava com as mãos, se entreabria num sorriso que indicava uma ternura natural, atenuando o rosto rude para uma máscara afável.

Mas era evidente que ele não reagia da maneira apropriada para Rosemary. Ela malhava em ferro frio. Bebeu mais vinho e depois jogou seu trunfo final. Revelou os seus sentimentos mais íntimos.

Falou diretamente a Gibson, ignorando os outros dois homens à mesa. Manobrou o corpo de tal maneira que ficou muito perto de Gibson, isolando-o de David e Hocken.

Ninguém podia duvidar da sinceridade apaixonada em sua voz. Havia até lágrimas em seus olhos. Expunha sua alma a Gibson.

— Quero ser uma pessoa de verdade. Gostaria de renunciar a toda essa merda de faz-de-conta, esse negócio do cinema. Não me satisfaz. Quero sair por aí para tornar o mundo melhor. Como Madre Teresa. Ou Martin Luther King. Não estou fazendo coisa alguma para ajudar o mundo a melhorar. Poderia ser uma médica ou enfermeira, poderia ser uma assistente social. Detesto esta vida, as festas, viver num avião para me encontrar com pessoas importantes. Tomar decisões sobre alguma droga de filme que em nada ajudará a humanidade. Quero fazer algo real.

E ela se inclinou e pegou a mão de Gibson Grange.

Foi maravilhoso para David ver por que Grange se tornara um astro tão poderoso no cinema, por que dominava os filmes em que aparecia. Pois de alguma forma Gibson Grange pôs sua mão sobre a de Rosemary, de alguma forma afastou sua cadeira, de alguma forma obteve a posição central na cena. Rosemary ainda o fitava com uma expressão apaixonada, esperando sua reação. Grange sorriu para ela, afetuosamente, depois inclinou a cabeça para baixo e para o lado, fitando David e Hocken, e dizendo com um tom de aprovação:

— Ela é sensacional.

Dean Hocken desatou a rir, David não pôde reprimir um sorriso. Rosemary parecia aturdida, mas logo disse, num tom irônico de censura:

— Gib, você nunca leva nada a sério, a não ser os seus horríveis filmes.

E para demonstrar que não estava ofendida, ela estendeu a mão, que Gibson Grange beijou gentilmente.

David contemplava a todos com admiração. Eram tão sofisticados, tão sutis... Acima de tudo, admirava Gibson Grange. O fato de ele rejeitar uma mulher tão bonita como Rosemary Belair inspirava respeito, era incrível a maneira como conseguira prevalecer sobre ela com tanta facilidade.

David fora ignorado por Rosemary durante toda a noite, mas reconhecera o direito que ela tinha de agir assim. Afinal, ela era a mulher mais poderosa na mais fascinante indústria do país. Tinha acesso a homens muito mais valorosos do que ele. David admitia que ela não se comportara assim por maldade. Apenas considerava-o inexistente.

E todos ficaram espantados ao constatarem que já era quase meia-noite; eram os últimos no restaurante. Hocken levantou-se e Gibson Grange ajudou Rosemary a vestir o casaco, que ela tirara no meio de seu discurso apaixonado. Quando se levantou, Rosemary estava um pouco trôpega, um pouco embriagada.

— Oh, Deus, não vou poder guiar assim, pois a polícia desta cidade é horrível! — balbuciou ela. — Gib, você quer me levar ao hotel?

Gibson sorriu-lhe.

— Fica em Beverly Hills. Hock e eu vamos para a minha casa em Malibu. David lhe dará uma carona... certo, David?

— Claro — disse Dean Hocken. — Não se importa, não é mesmo, David?

— De jeito nenhum — respondeu David Jatney.

Mas sua mente girava depressa. O que ia acontecer? O velho Hock parecia embaraçado. Era evidente que Gibson Grange mentira, não queria levar Rosemary ao hotel para não ter de continuar a se esquivar. E Hock sentia-se contrafeito por ter confirmado a mentira, caso contrário poderia criar hostilidade com um astro, algo que um produtor de cinema evitava a qualquer custo. E depois ele viu Gibson oferecer-lhe um pequeno sorriso, percebeu o que o astro pensava. E era por isso que Gibson Grange era um grande ator. Podia fazer o público ler seus pensamentos, bastava franzir as sobrancelhas, inclinar a cabeça, sorrir. E apenas com aquele olhar, sem maldade, mas com extremo bom humor, ele estava dizendo a David Jatney: “A sacana ignorou-o durante toda a noite, foi grosseira com você, agora eu a deixo lhe devendo um favor.” David olhou para Hocken e descobriu que ele agora sorria, sem o menor embaraço. Na verdade, parecia até satisfeito, como se também tivesse lido os pensamentos do ator. Rosemary disse abruptamente:

— Podem deixar que eu mesma guio.

Ela não olhou para David ao falar. Hocken disse, suavemente:

— Não posso permitir, Rosemary. É minha convidada e lhe dei vinho demais. Se não gosta da idéia de David levá-la, então eu a conduzirei até o hotel. E depois pedirei uma limusine para ir a Malibu.

Era um ato magnífico, pensou David. Pela primeira vez, percebeu um tom de insinceridade na voz de Hocken. Claro que Rosemary não podia aceitar a oferta de Hocken. Se aceitasse, seria um tremendo insulto ao jovem amigo de seu mentor. E causaria a maior inconveniência a Hocken e Gibson Grange. E, de qualquer forma, seu principal objetivo ao pedir que Gibson a levasse em casa não seria alcançado. Ela se encontrava numa situação impossível. E foi nesse instante que Gibson desfechou o golpe final:

— Não se preocupe, Hock, irei com você. Tirarei um cochilo no banco de trás, depois lhe farei companhia na viagem até Malibu.

Rosemary ofereceu um sorriso jovial a David e disse:

— Espero que não seja muito incômodo para você.

— Claro que não será — respondeu David.

Hocken deu um tapinha em seu ombro, Gibson Grange ofereceu-lhe um sorriso radiante e uma piscadela. E o sorriso transmitiu outra mensagem a David. Aqueles dois homens postavam-se ao seu lado como machos. Uma fêmea solitária e poderosa envergonhara um macho e agora eles a puniam. Além disso, ela atacara Gibson com uma insistência exagerada, uma mulher não podia fazer isso com um macho que era mais do que igual em poder. Haviam acabado de aplicar um golpe magistral no ego de Rosemary, a fim de mantê-la em seu lugar. E tudo fora feito com um maravilhoso bom humor, uma excepcional polidez. E havia ainda outro fator. Aqueles homens lembravam quando eram jovens e impotentes, como acontecia com David agora; convidaram-no a jantar para mostrar que o sucesso não os deixava infiéis com seus companheiros machos, uma prática consagrada pelo tempo, desenvolvida ao longo dos séculos, para prevenir qualquer vingança invejosa. Rosemary não respeitara essa prática, não se lembrara de seu tempo de impotência, e naquela noite eles obrigaram-na a recordar. E, no entanto, David estava do lado de Rosemary; ela era bonita demais para ser magoada.

Foram juntos para o estacionamento. Enquanto os outros dois homens partiam no Porsche de Hocken, David levou Rosemary para seu velho Toyota.

— Oh, merda! — exclamou Rosemary. — Não posso saltar de um carro assim no Beverly Hills Hotel.

Ela olhou ao redor e acrescentou:

— Agora tenho de descobrir meu carro. Escute, David, você se importa de guiar meu Mercedes? Está em algum lugar por aqui. Depois, mandarei uma limusine do hotel trazê-lo de volta. Assim não precisarei que alguém venha buscar meu carro pela manhã. Podemos fazer isso?

Ela sorriu ternamente, depois abriu a bolsa, tirou e pôs os óculos. Apontou para um dos poucos carros restantes no estacionamento. Ali está.

David, que avistara o carro assim que entraram no estacionamento, ficou perplexo. Depois compreendeu que ela devia ser míope. Talvez fosse a miopia que a levara a ignorá-lo durante o jantar.

Rosemary entregou-lhe as chaves do Mercedes, ele abriu a porta do lado do passageiro, ajudou-a a embarcar. Podia sentir o cheiro de vinho e perfume misturados, sentiu que o calor do corpo de Rosemary era como carvão em brasa. Foi para o outro lado do carro, mas antes que pudesse abrir a porta, Rosemary destrancou-a por dentro, empurrando-a para ele. David ficou surpreso por isso, pensava que ela não seria capaz de uma gentileza assim.

Ele levou alguns minutos para perceber como o Mercedes funcionava. Mas adorou a sensação do banco, o cheiro do couro avermelhado... seria um cheiro natural ou Rosemary usava algum perfume especial para couro? E o carro reagia aos comandos de uma maneira sensacional; pela primeira vez, David compreendeu o prazer intenso que algumas pessoas sentiam ao guiar.

O Mercedes parecia deslizar pelas ruas escuras. Ele gostou tanto de guiar que a meia hora até o Beverly Hills Hotel pareceu passar num instante. Durante todo esse tempo, Rosemary não falou uma só palavra. Tirou os óculos, tornou a guardá-los na bolsa, ficou sentada em silêncio. Houve um momento em que ela contemplou seu perfil, como se o avaliasse. E depois ficou olhando fixamente para a frente. David não a fitou uma só vez, também não falou. Desfrutava o sonho de conduzir uma linda mulher num lindo carro, no coração da cidade mais fascinante do mundo.

Quando parou, diante do toldo na entrada do Beverly Hills Hotel, tirou as chaves da ignição e estendeu-as para Rosemary. Depois saltou, deu a volta para abrir a outra porta. Nesse momento, um dos manobreiros aproximou-se correndo pela rampa com um carpete vermelho. Rosemary entregou-lhe as chaves do carro, e David compreendeu que deveria tê-las deixado na ignição.

Rosemary começou a subir pela rampa para a entrada do hotel. David compreendeu que ela o esquecera por completo. Era orgulhoso demais para lembrá-la do oferecimento de uma limusine para levá-lo de volta ao estacionamento. Ficou observando-a. Sob o toldo verde, o ar fragrante, as luzes douradas, ela era como uma princesa perdida. E de repente Rosemary parou, virou-se; ele podia contemplar seu rosto,, e parecia tão belo que o coração de David Jatney parou.

Pensou que ela se lembrara de sua presença, que esperava que ele a acompanhasse. Mas ela tornou a se virar e tentou subir os três degraus que a levariam à porta. Tropeçou nesse instante, a bolsa escapuliu de sua mão, todo o conteúdo espalhou-se pelo chão. A esta altura, David já avançara correndo pelo carpete vermelho, a fim de ajudá-la.

O conteúdo da bolsa parecia interminável — era mágica na medida em que continuava a derramar o que havia dentro. Havia batons, um estojo de maquilagem que se abriu e despejou seus próprios mistérios, uma argola de chaves que partiu e despejou no mínimo vinte chaves pelo carpete. Havia um vidro de aspirinas e frascos com diferentes drogas. E uma enorme escova de cabelos rosa. Havia também um isqueiro, mas nenhum maço de cigarros, um tubo de Binaca e um pequeno saco plástico, contendo uma calcinha azul e algum artefato de aparência sinistra. Havia inúmeras moedas, algumas notas, um lenço branco de linho sujo. Havia óculos de aros de ouro, típicos de uma solteirona, que não combinavam com o rosto clássico de Rosemary.

Ela olhou para tudo isso com horror, depois desatou em lágrimas. David ajoelhou-se no carpete vermelho e começou a recolher tudo para dentro da bolsa. Rosemary não o ajudou. Um dos empregados saiu do hotel, David mandou que ele segurasse a bolsa aberta, enquanto metia as coisas lá dentro.

Finalmente ele conseguiu recolher tudo, pegou a bolsa agora cheia e entregou-a a Rosemary. Percebeu a humilhação dela e estranhou. Rosemary enxugou as lágrimas e lhe disse:

— Suba até minha suíte para um drinque, enquanto espera a limusine. Não tive nenhuma oportunidade de conversar com você durante toda a noite.

David sorriu, ao lembrar que Gibson Grange comentara que ela era “sensacional”. Mas sentia-se curioso sobre o famoso Beverly Hills Hotel e queria continuar perto de Rosemary.

Achou que as paredes pintadas de verde eram esquisitas para um hotel de alta classe — fazia o ambiente parecer um tanto sombrio. Mas ficou impressionado quando entrou na enorme suíte. A decoração era suntuosa, tinha uma ampla varanda, um bar num canto. Rosemary foi até lá, serviu-se de um drinque, indagou o que ele queria, preparou também. David pedira apenas um scotch puro; raramente bebia, mas estava se sentindo um pouco nervoso. Rosemary abriu as portas de vidro corrediças para a varanda e levou-o para fora. Havia uma mesa branca, com tampo de vidro, e quatro cadeiras, também brancas.

— Sente aqui, enquanto vou ao banheiro — disse Rosemary. — E depois poderemos conversar um pouco.

Ela tornou a entrar na suíte. David sentou numa das cadeiras e ficou tomando o scotch. Lá embaixo, estavam os jardins internos do hotel. Ele podia ver a piscina e as quadras de tênis, os caminhos que levavam aos bangalôs. Havia árvores e gramados individuais, a relva mais verde sob o luar, o brilho das paredes pintadas de rosa proporcionava a tudo uma claridade surrealista.

Rosemary voltou em menos de dez minutos. Sentou também, tomou um gole de seu drinque. Usava agora uma calça branca larga e um pulôver branco de casimira. Levantara as mangas acima dos cotovelos. Sorriu para David, um sorriso deslumbrante. Removera a maquilagem do rosto e ele gostou mais dela assim. Os lábios não eram sensuais agora, os olhos não eram tão imperiosos. Parecia mais jovem e mais vulnerável. A voz, quando falou, parecia mais descontraída, mais suave, menos autoritária.

— Hock me disse que você é roteirista. Tem alguma coisa que gostaria de me mostrar? Pode mandar para meu escritório.

— Não tenho nada no momento.

David retribuiu o sorriso. Nunca se deixaria rejeitar por Rosemary.

— Mas Hock disse que você acabou um roteiro. Estou sempre à procura de novos escritores. É muito difícil encontrar bons trabalhos.

— Escrevi quatro ou cinco, mas eram tão ruins que rasguei todos.

Permaneceram calados por algum tempo. Era fácil para David ficar em silêncio; sentia-se mais à vontade do que falando. Rosemary acabou indagando:

— Qual é a sua idade?

— Tenho 26 anos — mentiu David.

Rosemary sorriu.

— Oh, Deus, como eu gostaria de ser jovem assim outra vez! Eu tinha dezoito anos quando cheguei aqui. Queria ser uma atriz, era meio idiota. Conhece esses papéis de uma só fala na TV, a vendedora com quem a heroína compra alguma coisa? Foi só o que consegui. Depois conheci Hock, ele me fez assistente-executiva, ensinou-me tudo o que sei. Ajudou-me a articular meu primeiro filme, ajudou-me durante todos esses anos. Amo Hock, sempre amarei. Mas ele é muito duro, como foi esta noite. Jogou Gibson contra mim. — Rosemary sacudiu a cabeça. — Sempre desejei ser dura como Hock. E tenho me modelado por ele.

— Acho que ele é um ótimo sujeito.

— Porque ele gosta de você. É verdade, foi o próprio Hock quem me disse. Comentou que você parece muito com sua mãe, age como ela. Disse que você é muito sincero, não é um impostor. — Rosemary fez uma pausa. — Também percebo isso. Não pode imaginar como me senti humilhada quando todas aquelas coisas caíram de minha bolsa. E depois vi você recolhendo tudo, sem olhar para mim. Foi muito gentil.

Ela inclinou-se e beijou-lhe no rosto. David sentiu uma fragrância mais suave exalando de seu corpo agora.

Abruptamente, Rosemary levantou-se e tornou a entrar na suíte; David seguiu-a. Ela fechou e trancou as portas de vidro, depois murmurou:

— Vou chamar a limusine.

Rosemary tirou o fone do gancho. Mas em vez de apertar os botões, ficou olhando para David. Ele manteve-se imóvel, a uma distância suficiente para não se intrometer no espaço dela.

— David, vou lhe pedir uma coisa que pode parecer estranha. Quer passar a noite comigo? Estou angustiada e preciso de companhia, mas quero que prometa que não tentará coisa alguma. Não poderíamos apenas dormir juntos, como amigos?

David sentiu-se aturdido. Nunca sonhara que aquela linda mulher pudesse querer alguém como ele. Ficou deslumbrado com sua sorte. Mas Rosemary logo acrescentou, em tom brusco:

— Falo sério. Quero apenas alguém gentil como você para passar esta noite comigo. Mas tem de prometer que não tentará coisa alguma. Se tentar, ficarei muito zangada.

Era tão desconcertante que David sorriu, como se não compreendesse.

— Ficarei sentado na varanda ou dormirei no sofá aqui na sala.

— Nada disso. Quero alguém que me abrace e durma comigo. Não quero ficar sozinha. Pode me prometer?

David ouviu-se dizer:

— Não tenho nada para vestir... na cama.

— Tome um banho de chuveiro e durma nu. Isso não vai me incomodar.

Havia um vestíbulo que levava da sala de estar da suíte para o quarto. Ali ficava a porta de um banheiro extra, e Rosemary mandou que David o usasse para tomar o banho de chuveiro. Não queria que ele usasse o seu banheiro. David tomou o banho, limpou os dentes com sabonete e lenços de papel. Havia um roupão pendurado atrás da porta, com o nome “Beverly Hills Hotel” bordado elegantemente em azul. Ele foi para o quarto, descobriu que Rosemary ainda se encontrava no outro banheiro. Ele ficou parado ali, contrafeito, sem querer ir para a cama, que a criada já arrumara para a noite. Rosemary finalmente saiu do banheiro, usando uma camisola de flanela de corte e estampa tão elegantes que parecia uma boneca numa loja de brinquedos.

— Venha para a cama, David. Precisa de um Valium ou um pílula para dormir?

Ele percebeu que Rosemary já tomara sua pílula. Ela sentou na beira da cama por um instante, depois deitou-se. David foi se deitar ao seu lado, mas não tirou o roupão. Rosemary apagou o abajur na mesinha-de-cabeceira, ficaram no escuro.

— Abrace-me, David.

Ficaram abraçados por um longo momento, depois ela afastou para o seu lado da cama e murmurou:

— Tenha bons sonhos.

David ficou estendido de costas, olhando para o teto. Não se atrevia a tirar o roupão, não queria que ela pensasse que preferia ficar nu em sua cama. Especulou se deveria contar a Hock o que acontecera na próxima vez em que se encontrassem, mas concluiu que viraria piada se os outros soubessem que passara a noite na cama com uma mulher tão bonita sem que nada tivesse ocorrido. E talvez Hock pensasse que ele mentia. Desejou agora ter tomado a pílula para dormir que Rosemary lhe oferecera. Ela já estava dormindo, roncando baixo, de forma quase inaudível.

David resolveu voltar à sala de estar e saiu da cama. Rosemary despertou e balbuciou, sonolenta:

— Podia me trazer um copo com água de Evian?

David foi até a sala, serviu dois copos, acrescentou gelo. Esvaziou seu copo, tornou a enchê-lo. E voltou ao quarto. À luz do vestíbulo, avistou Rosemary sentada na cama, os lençóis em torno do corpo. No quarto escuro, ele tocou na parte superior do corpo de Rosemary, quando ela estendeu o braço nu, à procura de sua mão. Compreendeu que Rosemary estava nua. Tornou a deitar, enquanto Rosemary tomava a água, mas deixou o roupão escorregar para o chão.

Ouviu-a pôr o copo na mesinha-de-cabeceira, e nesse instante estendeu a mão, tocou na carne nua de Rosemary. Deslizou a mão pelas costas macias, as nádegas redondas. Rosemary virou-se e foi para seus braços, o peito de David comprimiu-se contra os seios nus. Os braços dela envolveram-no, o calor de seus corpos fez com que empurrassem as cobertas com os pés, enquanto se beijavam. E beijaram-se por um longo tempo, a língua de Rosemary dentro da boca de David. Ele não podia esperar por mais tempo e montou-a. A mão de Rosemary, suave como cetim, permissiva, guiou-o para dentro. Fizeram amor quase em silêncio, como se fossem espionados, até que os corpos se arquearam ao mesmo tempo, a caminho do orgasmo, depois se separaram, deitados de costas. Só depois de um prolongado silêncio é que ela murmurou:

— Trate de dormir agora.

E Rosemary beijou-o gentilmente no lado da boca.

— Quero ver você — disse David.

— Não.

David estendeu a mão e acendeu o abajur. Rosemary fechou os olhos. Ela ainda era bela. Mesmo com o desejo saciado, mesmo despojada de todos os artifícios da beleza, os realces da sedução, os recursos da iluminação especial. Mas era uma beleza diferente.

Ele fizera amor por necessidade animal e proximidade, uma manifestação física natural de seu corpo. Ela fizera amor por uma necessidade em seu coração, ou necessidade vertiginosa em seu cérebro. E agora, à claridade da luz única, o corpo nu de Rosemary não era mais espetacular. Os seios eram pequenos, com mamilos mínimos, o corpo menor, as pernas não pareciam tão compridas, os quadris não eram tão largos, as coxas um pouco finas. Ela abriu os olhos, fitou-o nos olhos, e David murmurou:

— Você é muito bonita...

Ele beijou-lhe os seios, enquanto Rosemary estendia o braço e tornava a apagar a luz. Tornaram a fazer amor e dormiram.

Quando David acordou e estendeu a mão, descobriu que ela não estava mais ali. Ele vestiu-se, pôs o relógio no pulso. Eram sete horas da manhã. Encontrou-a na varanda, num macacão vermelho, fazendo com que os cabelos pretos parecessem ainda mais escuros. Havia ali uma mesa de rodinhas, com um bule de café de prata, uma leiteira e diversas travessas de metal com tampas, a fim de manter a comida quente. Rosemary sorriu-lhe e disse:

— Pedi por você. Eu ia mesmo acordá-lo. Preciso fazer minha corrida, antes de começar a trabalhar.

David sentou à mesa e ela serviu-lhe café, destampou uma travessa com ovos, outra com uma salada de frutas. Rosemary tomou seu suco de laranja, levantou-se e disse:

— Não precisa se apressar. E obrigada por passar a noite comigo.

David queria que ela comesse o desjejum em sua companhia, queria mostrar que realmente gostava dela, falar de sua vida, dizer alguma coisa que a levasse a se interessar por ele. Mas agora Rosemary ajeitava uma faixa branca sobre os cabelos, dava os laços nos sapatos de corrida. Ela se empertigou, enquanto David dizia, sem saber que seu rosto se contraía de emoção:

— Quando tornarei a vê-la?

E no instante mesmo em que falou, ele compreendeu que cometera um erro terrível. Rosemary já se encaminhava para a porta, mas parou.

— Estarei muito ocupada nas próximas semanas. Preciso ir a Nova York. Ligarei para você quando voltar.

Ela não perguntou o número. E de repente outro pensamento lhe ocorreu. Pegou o telefone e pediu uma limusine para levar David a Santa Monica. Depois, disse a ele: — Vão incluir a despesa na minha conta... precisa de algum dinheiro para dar a gorjeta do motorista?

David fitou-a em silêncio por um longo momento. Ela pegou a bolsa, abriu-a e indagou:

— De quanto vai precisar para a gorjeta?

David não pôde mais se conter. Não sabia que seu rosto tremia de rancor, um ódio que era assustador. E falou, insultuoso:

— Você sabe dessas coisas melhor do que eu.

Rosemary fechou a bolsa ruidosamente e deixou a suíte. David nunca mais teve qualquer contato com ela. Esperou dois meses, até que um dia viu-a sair do gabinete de Hocken, em companhia de Gibson Grange e do próprio Dean. Aguardou perto do carro de Hocken, a fim de que tivessem de cumprimentá-lo, ao passar. Hocken abraçou-o, disse que precisavam se encontrar para jantar um dia desses, perguntou como estava o trabalho. Gibson Grange apertou-lhe a mão, ofereceu um sorriso rápido, mas cordial, o rosto bonito irradiando bom humor. Rosemary fitou-o sem sorrir. O que de fato magoou foi que por um momento David teve a impressão de que ela o esquecera por completo.

 

Quinta-Feira

Washington

MATTHEW GLADYCE, o secretário de imprensa do presidente, sabia que nas próximas 24 horas tomaria a decisão mais importante de sua vida profissional. Sua função era controlar as reações dos meios de comunicação aos trágicos e chocantes acontecimentos dos últimos três dias. E devia comunicar ao povo dos Estados Unidos o que o presidente estava fazendo para enfrentar esses eventos, além de justificar todas as ações. Gladyce tinha de ser muito cuidadoso.

Agora, naquela manhã de quinta-feira depois da Páscoa, no meio da crise explosiva, Matthew Gladyce isolou-se de qualquer contato com os jornalistas. Seus assistentes cuidavam das reuniões na sala de imprensa da Casa Branca, mas limitavam-se a distribuir comunicados elaborados com todo cuidado, esquivando-se às perguntas gritadas.

Matthew não atendia aos telefones que tocavam sem parar em sua sala; as secretárias recebiam todas as ligações e repeliam os insistentes repórteres e os poderosos comentaristas de TV tentando cobrar os favores que ele lhes devia. Sua função era resguardar o Presidente dos Estados Unidos.

Matthew Gladyce sabia, por sua longa experiência como jornalista, que não havia ritual mais reverenciado no país do que a tradicional insolência da imprensa e da TV em relação aos membros mais importantes do sistema. Arrogantes âncoras de televisão gritavam com afáveis membros do Gabinete, eram agressivos até com o presidente, criticavam os candidatos aos cargos mais destacados como implacáveis promotores. Os jornais publicavam matérias injuriosas, em nome da liberdade de imprensa. Houvera um tempo em que ele fora parte de tudo isso, e até admirava. Gostava do ódio inevitável que todas as autoridades públicas sentiam pelos jornalistas. Mas três anos como secretário de imprensa mudaram sua perspectiva. Como o resto da administração — mais do que isso, como todos os integrantes do governo ao longo da história —, passara a desconfiar e depreciar essa grande instituição da democracia que é a liberdade de imprensa. Como todas as figuras de autoridade, passara a considerá-la como um agressão. Os meios de comunicação eram os criminosos consagrados que roubavam as instituições e os cidadãos de sua boa reputação. Só para vender seus jornais e seus comerciais a trezentos milhões de pessoas.

E hoje ele não cederia um palmo sequer aos desgraçados. Ia fazê-los sofrer.

Ele recordou os quatro últimos dias, todas as perguntas dos repórteres que tivera de escorar. O presidente esquivara-se a qualquer comunicação direta, Matthew Gladyce tivera de enfrentar tudo sozinho. Na segunda-feira fora: “Por que os seqüestradores não fizeram exigências? O seqüestro da filha do presidente está ligado ao assassinato do Papa?” Essas perguntas acabaram se respondendo por si mesmas, graças a Deus. Agora não havia a menor duvida. Os dois fatos estavam ligados. Os seqüestradores haviam apresentado suas exigências.

Gladyce aprontara os comunicados à imprensa sob a supervisão direta do próprio presidente. Os eventos eram um ataque coordenado ao prestígio e à autoridade internacional dos Estados Unidos. Em seguida, o assassinato da filha do presidente e as perguntas idiotas:

— Como o presidente reagiu quando soube do assassinato?

A essa altura, Gladyce perdera o controle e dissera ao âncora:

— Porra, seu puto imbecil, como acha que ele poderia reagir?

E depois outra pergunta idiota:

— Isso traz recordações da ocasião em que os tios do presidente foram assassinados?

Gladyce decidira então que deixaria aqueles encontros com a imprensa aos cuidados de seus assistentes.

Mas agora tinha de assumir o palco. Precisava defender o ultimato do presidente ao sultão de Sherhaben. Omitiria a ameaça de destruir o sultanato de Sherhaben. Diria que se os reféns fossem libertados e Yabril preso, a cidade de Dak não seria destruída... de tal modo que lhe proporcionasse uma saída quando Dak fosse destruída. O mais importante de tudo, porém, era que o Presidente dos Estados Unidos apareceria na televisão naquela tarde para fazer um comunicado à nação.

Gladyce olhou pela janela de sua sala. A Casa Branca se encontrava cercada por caminhões de TV e correspondentes do mundo inteiro. Fodam-se todos, pensou o secretário de imprensa. Só saberiam o que ele quisesse que soubessem.

 

Quinta-Feira

Sherhaben

Os enviados Dos Estados Unidos chegaram a Sherhaben. O avião pousou numa pista distante daquela em que se encontravam os reféns, dominada por Yabril e ainda cercada pelos soldados de Sherhaben. Por trás dos soldados estavam as hordas de caminhões de TV, jornalistas do mundo inteiro e uma vasta multidão de espectadores, provenientes da cidade de Dak.

O embaixador de Sherhaben, Sharif Waleeb, tomara pílulas para dormir durante a maior parte da viagem. Bert Audick e Arthur Wix haviam conversado, Audick tentando persuadir Wix a modificar as exigências do presidente, a fim de que pudessem obter a libertação dos reféns sem qualquer ação drástica. Ao final, Wix declarara a Audick:

— Não tenho qualquer margem para negociar. As instruções do presidente são rígidas... eles já se divertiram e agora terão de pagar.

— Você é o assessor de segurança nacional... pelo amor de Deus, aconselhe-o a mudar de idéia!

Wix mantivera-se impassível:

— Não há a menor possibilidade. O presidente já tomou sua decisão.

Ao chegarem ao palácio do sultão, Wix e Audick foram escoltados à suíte do soberano por guardas armados. O palácio parecia todo ocupado por formações militares. O Embaixador Waleeb já fora levado à presença do sultão, a quem apresentara os documentos do ultimato. O sultão não acreditou na ameaça, pensando que qualquer um poderia aterrorizar aquele homenzinho.

— Como Kennedy parecia quando lhe disse isso? — indagou o sultão. — É um homem que costuma fazer essas ameaças desvairadas só para assustar? Seu governo o apoiaria numa ação assim? Ele estaria apostando toda a sua carreira política nesse único lançamento dos dados. Não é apenas um recurso de negociação?

Waleeb levantou-se da cadeira de brocado dourado. Subitamente, sua figura pequena, como uma marionete, parecia impressionante. Tinha uma boa voz, registrou o sultão.

— Alteza, Kennedy sabia exatamente qual seria sua reação, palavra por palavra. Vinte e quatro horas depois da destruição de Dak, se todas as suas exigências não forem atendidas, Sherhaben também será destruído. E é por isso que não se pode salvar Dak. É a única maneira pela qual ele pode convencê-lo de que suas intenções são as mais sérias. Ele disse também que Sua Alteza concordaria com as exigências depois da destruição de Dak, mas não antes. Ele manteve-se calmo durante todo o tempo, até sorriu. Não é mais o homem que era. É Azazel.

Mais tarde, os dois enviados do Presidente dos Estados Unidos foram levados a uma agradável sala de recepção, que incluía varandas envidraçadas com ar-condicionado e uma piscina. Foram atendidos por criados em trajes árabes, que serviram comida e refrescos. Cercado por conselheiros e guardas, o sultão recebeu-os.

O Embaixador Waleeb fez as apresentações. O sultão já conhecia Bert Audick. Haviam mantido vários contatos nas últimas negociações petrolíferas, E Audick fora seu anfitrião nas diversas ocasiões em que visitara a América, um anfitrião discreto e atencioso. O sultão cumprimentou-o calorosamente,

O segundo homem foi uma surpresa, e por sua mera presença ali o sultão reconheceu o perigo e passou a acreditar na realidade da ameaça de Kennedy, Pois o segundo dos tribunos, como o sultão os considerava, era nada menos que Arthur Wix, o assessor de segurança nacional do presidente, e um judeu ainda por cima. Era por reputação a mais poderosa figura militar dos Estados Unidos e o supremo inimigo dos estados árabes em sua luta contra Israel. O sultão notou que Arthur Wix não estendeu a mão, limitou-se a uma reverência fria.

O próximo pensamento do sultão foi o de que se a ameaça do presidente era real, então por que ele mandaria um dos seus principais assessores para tamanho perigo? E se ele capturasse aqueles tribunos como reféns, os dois não morreriam em qualquer ataque a Sherhaben? E Bert Audick assumiria o risco de uma possível morte? Pelo que conhecia de Audick, certamente não. Portanto, isso significava que havia margem para negociação, a ameaça de Kennedy não passava de um blefe. Ou então Kennedy era um louco, não se importava com o que pudesse acontecer a seus enviados, cumpriria a ameaça de qualquer maneira. O sultão correu os olhos pela sala de recepção, que funcionava como uma câmara de audiências. Era muito mais luxuosa do que qualquer coisa na Casa Branca. As paredes eram pintadas a ouro, os tapetes eram os mais caros do mundo, com padrões refinados que nunca poderiam ser reproduzidos, o mármore, o mais puro e mais intrincadamente esculpido. Como tudo aquilo podia ser destruído? E o sultão disse, com uma suave dignidade:

— Meu embaixador transmitiu a mensagem do seu presidente. Acho muito difícil acreditar que o líder do mundo livre ousaria fazer uma ameaça assim, muito menos executá-la. E me sinto desorientado. Que influência posso ter sobre esse bandido Yabril? Seu presidente é outro Átila o Huno? Imagina que reina sobre a antiga Roma, não na América?

Foi Audick quem falou primeiro:

— Sultão Maurobi, vim até aqui como seu amigo, para ajudá-lo e a seu país. O presidente falava sério quando fez as ameaças. Parece que não têm alternativa, devem mesmo entregar Yabril.

O sultão permaneceu em silêncio por um longo momento, depois virou-se para Arthur Wix e disse, em tom irônico:

— E o que veio fazer aqui? A América pode dispensar um homem importante como você, se eu me recusar a atender às exigências do seu presidente?

— O fato de que poderia nos manter como reféns, se se recusasse a atender as exigências, foi muito discutido. — Arthur Wix mantinha-se absolutamente impassível. Não deixava transparecer a raiva e o ódio que sentia contra o sultão. — Como chefe de um estado independente, é plenamente justificado em sua ira e na contra-ameaça. Mas esse é o próprio motivo para minha presença aqui. Para assegurar-lhe que as ordens militares necessárias Já foram dadas. Como o supremo-comandante das forças militares americanas, o presidente tem esse poder. A cidade de Dak será destruída muito em breve. Em 24 horas depois, se não atender às exigências, todo o sultanato de Sherhaben também será destruído. Tudo isso deixará de existir...

Wix fez uma pausa, acenando com o braço ao redor da sala, antes de acrescentar:

— ...e o sultão passará a viver da caridade dos países vizinhos. Continuará a ser um sultão, mas um sultão de nada.

O sultão não demonstrou sua raiva. Virou-se para o outro americano e indagou:

— Tem alguma coisa a acrescentar?

Bert Audick respondeu num tom quase insinuante:

— Não resta a menor dúvida de que Kennedy pretende cumprir sua ameaça. Mas há outras pessoas em nosso governo que discordam. Essa ação pode acabar com a presidência dele. — Ele fez um aparte para Wix, quase como se pedisse desculpas: — Acho que temos de abordar essa possibilidade.

Wix fitou-o com uma expressão sombria. Receava isso. Estrategicamente, era sempre possível que Audick tentasse encontrar uma saída. O filho da mãe seria capaz de qualquer coisa para salvar os seus cinqüenta bilhões. Arthur Wix lançou um olhar venenoso para Audick e depois declarou ao sultão:

— Não há margem para qualquer negociação.

Audick lançou um olhar de desafio para Wix e depois voltou a se dirigir ao sultão:

— Acho que é justo, por nosso longo relacionamento, informar que há uma esperança. E creio que devo dizer isso agora, na presença de meu compatriota, em vez de numa audiência particular, como poderia facilmente fazer. O Congresso dos Estados Unidos está realizando uma sessão especial para aprovar o impedimento do Presidente Kennedy. Se pudermos anunciar que você vai libertar os reféns, garanto que Dak não será destruída.

— E não terei de entregar Yabril? — perguntou o sultão.

— Não, não terá — respondeu Audick. — Mas não deve insistir na libertação do assassino do Papa.

O sultão, apesar de todo o seu controle, não pôde disfarçar completamente o júbilo quando disse:

— Sr. Wix, não acha que é uma solução das mais razoáveis?

— Meu presidente afastado do cargo porque um terrorista assassinou sua filha? E o criminoso ainda fica livre? Não, não é.

— Sempre podemos pegar o homem depois — disse Audick.

Wix lançou-lhe um olhar de tanto desprezo e ódio que Audick compreendeu que aquele homem seria seu inimigo pelo resto da vida.

— Dentro de duas horas todos nos reuniremos com meu amigo Yabril — disse o sultão. — Jantaremos juntos, e chegaremos a um acordo. Eu o persuadirei com palavras doces ou pela força. Mas os reféns serão libertados assim que soubermos que a cidade de Dak está segura. Senhores, têm a minha palavra, como um muçulmano e como o soberano de Sherhaben.

Logo em seguida, o sultão deu ordens para que seu centro de comunicações o avisasse assim que fosse conhecido o resultado da votação no Congresso dos Estados Unidos. Os enviados americanos foram escoltados a seus aposentos para tomarem um banho e trocarem de roupa.

O sultão ordenara que Yabril fosse tirado do avião às escondidas e conduzido ao palácio. Yabril ficou esperando na enorme sala de recepção, e notou que estava cheia dos seguranças uniformizados do sultão. Já percebera outros sinais de que o palácio se encontrava em alerta. Yabril sentiu que se encontrava em perigo, mas não havia nada que pudesse fazer.

Quando foi levado à presença do sultão, ficou aliviado ao ser abraçado pelo soberano. Depois, o sultão informou-o rapidamente da reunião com os tribunos americanos.

— Garanti a eles que você libertaria os reféns sem mais negociações — acrescentou o sultão. — E agora temos de aguardar a decisão do Congresso americano.

— Mas isso significa que meu amigo Romeu será abandonado por mim — protestou Yabril. — É um golpe para a minha reputação.

O sultão sorriu.

— Quando o julgarem pelo assassinato do Papa, sua causa terá muito mais publicidade. E o fato de você escapar livre depois desse golpe e do assassinato da filha do Presidente dos Estados Unidos é a glória. Mas foi uma surpresa das mais desagradáveis a que você me fez. Matar uma jovem a sangue-frio. Não me agradou e não foi muito esperto de sua parte.

— Serviu para marcar uma posição. Nunca tive a intenção de permitir que ela saísse viva daquele avião.

— E agora deve estar satisfeito. Para todos os efeitos, conseguiu tirar do cargo o Presidente dos Estados Unidos. O que está além de seus sonhos mais delirantes.

O sultão deu uma ordem a um de seus assistentes:

— Vá até o aposento do americano, Sr. Audick, e traga-o para cá.

Ao chegar, Bert Audick não estendeu a mão para Yabril, não teve qualquer gesto de cordialidade. Limitou-se a fitá-lo atentamente. Yabril inclinou a cabeça e sorriu. Conhecia aqueles tipos, os sanguessugas do sangue árabe, que faziam contratos com sultões e reis para enriquecer a América e outros países.

— Sr. Audick — disse o sultão —, explique por favor a meu amigo como o seu Congresso vai afastar o presidente.

Audick relatou todo o processo. Foi convincente. Yabril acreditou, mas perguntou:

— Mas o que acontece se alguma coisa sair errada e não conseguirem a maioria de dois terços?

Audick respondeu com uma expressão sombria:

— Nesse caso, você, eu e o sultão estamos perdidos.

O Presidente Francis Xavier Kennedy verificou os papéis que Matthew Gladyce lhe entregara e depois rubricou-os. Percebeu a expressão de satisfação no rosto de Gladyce, sabia exatamente o que significava. Que os dois, juntos, estavam enganando o público americano. Em outra ocasião, em outras circunstâncias, ele teria condenado aquela expressão presunçosa, mas Francis Kennedy sabia que aquele era o momento mais perigoso de sua carreira política e tinha de recorrer a todas as armas disponíveis.

Naquela noite o Congresso tentaria aprovar seu impedimento; usariam a formulação vaga da 25ª Emenda à Constituição nessa tentativa. Talvez ele pudesse vencer a batalha a longo prazo, mas a esta altura já seria tarde demais. Bert Audick teria providenciado a libertação dos reféns, em troca da fuga de Yabril. A morte de sua filha não seria vingada; o assassino do Papa escaparia impune. Mas Kennedy contava que seu apelo à nação pela TV promoveria uma onda de telegramas de protesto tão grande que o Congresso hesitaria. Sabia que o povo apoiaria sua ação; estava indignado com o assassinato do Papa e de sua filha. Todos sentiam seu desespero. E naquele momento ele experimentava uma profunda comunhão com o povo. Os cidadãos americanos eram seus aliados contra o Congresso corrupto, contra os empresários pragmáticos e implacáveis como Bert Audick.

Durante toda a sua vida ele sentira as tragédias dos desafortunados, a massa das pessoas lutando ao longo da vida. No início de sua carreira, jurara que nunca se deixaria corromper por esse amor ao dinheiro que parecia orientar as ações dos homens mais talentosos. Passara a desprezar o poder dos ricos, o dinheiro usado como uma espada. Mas sempre sentira, compreendia agora, que era uma espécie de campeão, que era invulnerável, acima dos sofrimentos de seus semelhantes. Nunca apreendera antes o ódio que as classes desprivilegiadas deviam sentir. Mas percebia-o agora. E nesse instante, os ricos, os poderosos queriam derrubá-lo; precisava vencê-los, para o seu próprio bem.

Mas recusava-se a ser distraído pelo ódio. Sua mente” deveria permanecer lúcida para a crise iminente. Mesmo que fosse impedido, precisava garantir seu retorno ao poder. E então seus planos seriam ainda mais amplos. O Congresso e os ricos podiam vencer aquela batalha, mas ele compreendia claramente que deviam perder a guerra. O povo dos Estados Unidos não sofreria a humilhação de bom grado, haveria outra eleição em novembro. Toda aquela crise poderia resultar em seu favor, mesmo que perdesse; a tragédia pessoal seria uma de suas armas. Mas precisava ter cuidado, ocultar seus planos a longo prazo até mesmo de sua assessoria pessoal.

Kennedy sabia que se preparava para o supremo poder. Não havia outro curso, exceto o de submeter-se à derrota e toda a sua angústia, algo a que nunca poderia sobreviver.

Na tarde de quinta-feira, nove horas antes da sessão especial do Congresso que votaria o impedimento do Presidente dos Estados Unidos, Francis Kennedy reuniu-se com seus assessores e com a Vice-Presidente Helen Du Pray.

Era a última reunião de estratégia antes da votação no Congresso, e todos sabiam que o inimigo dispunha dos dois terços necessários. Kennedy percebeu prontamente que o ânimo na sala era de depressão e derrota.

Ofereceu a todos um sorriso animado e abriu a reunião com um agradecimento ao diretor da CIA, Theodore Tappey, por não ter assinado a proposta de impedimento. Depois, virou-se para a Vice-Presidente Du Pray e riu, uma risada genuinamente jovial.

— Helen, eu não gostaria de estar em seu lugar por nada neste mundo. Compreende quantos inimigos fez ao se recusar a assinar o pedido de impedimento? Poderia ser a primeira mulher a se tornar Presidente dos Estados Unidos. O Congresso a odeia porque não pode escapar impune sem a sua assinatura. Os homens a odiarão por ser tão magnânima. As feministas vão considerá-la como uma traidora. Como uma veterana profissional como você pôde se meter em tal situação? Por falar nisso, quero agradecer por sua lealdade.

— Eles estão errados, Senhor Presidente — disse Du Pray. — E mais errados ainda por insistirem. Há possibilidade de alguma negociação com o Congresso?

— Eu não posso negociar. E eles não querem. — Kennedy virou-se para Dazzy. — Minhas ordens foram cumpridas... a esquadra aeronaval está a caminho de Dak?

— Está, sim, senhor. — Dazzy remexeu-se na cadeira, contrafeito. — Mas os chefes do estado-maior ainda não deram a autorização final. Esperarão até a votação do Congresso esta noite. Se o impeachment for aprovado, os aviões voltarão. — Ele fez uma pausa. — Não estão desobedecendo a ele Seguiram suas ordens. Apenas querem ter condições de revogar tudo, se perdermos esta noite.

Kennedy virou-se para Du Pray, com uma solene expressão.

— Se for aprovado o impedimento, você será Presidente. Pode ordenar que os chefes do estado-maior prossigam na operação para a destruição da cidade de Dak. Dará essa ordem?

— Não.

Houve um silêncio constrangido e prolongado na sala. Ela manteve o rosto sob controle e, ao falar, dirigiu-se diretamente a Kennedy:

— Tenho demonstrado minha lealdade. Como sua vice-presidente, apoiei a decisão sobre Dak, como era meu dever. Resisti à pressão para assinar os documentos de seu impedimento. Mas se me tornar presidente... e torço com toda a força de meu coração para que isso não aconteça... então terei de seguir minha própria consciência, tomar minha própria decisão.

Kennedy balançou a cabeça. Sorriu para ela, um sorriso tão gentil que a deixou comovida.

— Tem toda razão, Helen. Perguntei apenas por informação, não para persuadi-la. — Ele acrescentou para os outros na sala: — Agora, o mais importante é aprontar um roteiro básico para meu discurso na televisão. Eugene, já acertou tudo com as redes? Os noticiários estão informando que falarei esta noite?

Eugene Dazzy comunicou, cauteloso:

— Lawrence Salentine está aqui para lhe falar a respeito. A situação parece um tanto suspeita. Devo mandar chamá-lo? Ele aguarda em minha sala.

— Eles não se atreveriam. Não ousariam me desafiar para uma confrontação às claras. — Kennedy ficou pensativo por um longo momento. — Muito bem, pode chamá-lo.

Enquanto esperavam, eles discutiram a duração do discurso.

— Não mais de meia hora — disse Kennedy. — A esta altura, já terei dito tudo o que quero, realizado o trabalho.

E todos entenderam o que ele queria dizer. Francis Kennedy na televisão podia dominar qualquer audiência. Era a voz mágica, com a poesia dos grandes poetas irlandeses. Não prejudicava em nada o fato de que seu pensamento, o progresso de sua lógica, era sempre absolutamente claro.

Quando Lawrence Salentine foi introduzido na sala, Kennedy falou-lhe diretamente, sem qualquer cumprimento:

— Espero que não vá me dizer o que estou pensando que vai dizer.

Salentine respondeu friamente:

— Não tenho meio de saber o que está pensando. Fui escolhido pelas outras redes para comunicar nossa decisão de não lhe dar tempo no ar esta noite. Em nossa opinião, fazer isso seria interferir com o processo de impedimento.

Kennedy sorriu.

— Sr. Salentine, o impedimento, mesmo que seja aprovado, será apenas por trinta dias. E o que acontecerá depois?

Não era do estilo de Francis Kennedy ser ameaçador. Ocorreu a Salentine que ele e os outros dirigentes de redes haviam se lançado num jogo muito perigoso. A justificativa legal do governo federal para conceder e revisar canais de TV tornara-se arcaica em termos práticos, mas um presidente determinado podia revigorá-la. Salentine sabia que precisava ter muito cuidado.

— Senhor Presidente, porque achamos que nossa responsabilidade é tão importante que devemos lhe recusar tempo no ar. Está sofrendo um processo de impedimento, para meu grande pesar e lamento de todos os americanos. E uma grande tragédia, pode estar certo de que conta com a minha simpatia. Mas as redes concordam que deixá-lo falar neste momento não atenderá aos melhores interesses da nação e do processo democrático. — Ele fez uma breve pausa. — Mas depois da votação do Congresso, ganhando ou perdendo, nós lhe daremos o tempo que quiser.

Francis Kennedy riu, furioso, e disse:

— Pode se retirar.

Lawrence Salentine foi acompanhado pela porta afora por um dos agentes do Serviço Secreto. Assim que ele saiu, Kennedy virou-se para os outros.

— Senhores, devem acreditar no que vou lhes dizer. — O rosto do presidente era sisudo, o azul dos olhos parecia ter passado de uma tonalidade clara para um tom mais forte, quase roxo. — Eles exageraram. Violaram o espírito da Constituição.

Por quilômetros ao redor da Casa Branca, o tráfego se encontrava congestionado, havendo apenas estreitos corredores para a passagem dos veículos oficiais. Câmeras de TV e os caminhões de apoio dominavam toda a área. Os congressistas a caminho do Capitólio eram agarrados sem a menor cerimônia por repórteres de TV e interrogados sobre a sessão especial do Congresso. Ao final, as redes de televisão transmitiram um comunicado oficial, dizendo que o Congresso se reuniria às onze horas da noite para votar uma moção para afastar o Presidente Kennedy do cargo.

Na Casa Branca, Kennedy e seus assessores já haviam feito tudo o que podiam para evitar o ataque. Õddblood Gray telefonara para senadores e deputados. Eugene Dazzy fizera incontáveis ligações para diferentes membros do Clube Sócrates, tentando conquistar o apoio de alguns segmentos das grandes corporações. Christian Klee enviara pareceres jurídicos aos líderes do Congresso, ressaltando que o impedimento seria ilegal sem a assinatura da vice-presidente.

Pouco antes das onze horas, Kennedy e seus assessores reuniram-se na Sala Amarela para assistir à transmissão pelo telão de TV instalado ali. A sessão especial do Congresso não seria transmitida pelas redes comerciais, mas seria gravada para uso posterior, e um cabo especial mandaria tudo para a Casa Branca.

O Deputado Jintz e o Senador Lambertino haviam feito um bom trabalho. Tudo fora sincronizado com perfeição. Sal Troyca e Elizabeth Stone tinham trabalhado juntos para ajustar os detalhes administrativos. Todos os documentos legais para a transmissão do governo estavam prontos.

Na Sala Amarela, Francis Kennedy e seus assessores acompanhariam tudo pela televisão. O Congresso levaria algum tempo para cumprir todas as formalidades dos discursos e das chamadas, antes da votação. Mas todos já sabiam qual seria o resultado. O Congresso e o Clube Sócrates haviam montado um rolo compressor para a ocasião. Kennedy disse a Oddblood Gray:

— Otto, você fez o melhor que podia.

Nesse momento, um dos funcionários de plantão na Casa Branca entrou na sala e entregou a Dazzy uma folha de memorando. Dazzy olhou para o papel, depois leu-o atentamente. O choque em seu rosto era evidente. Ele entregou o memorando a Kennedy.

Na tela da TV, por uma margem que superava em muito os dois terços necessários, o Congresso acabara de aprovar o impedimento do Presidente Francis Xavier Kennedy.

 

Sexta-Feira

Sherhaben

ERAM ONZE HORAS DA NOITE, quinta-feira, pelo horário de Washington, mas seis horas da manhã em Sherhaben, quando o sultão convocou a todos para a sala de recepção com varanda, onde teriam um desjejum antes do tempo. Os americanos — Bert Audick e Arthur Wix — chegaram logo depois. Yabril entrou em companhia do sultão. Havia uma mesa enorme, com incontáveis frutas e bebidas, quentes e geladas.

O Sultão Maurobi exibia um sorriso de satisfação. Não apresentou Yabril aos americanos, não houve qualquer pretensão de cortesia. O sultão foi logo dizendo:

— Sinto-me feliz em anunciar... mais do que isso, meu coração transborda de alegria... que meu amigo Yabril concordou em libertar seus reféns. Não haverá exigências adicionais de sua parte, e espero que também não haja exigências adicionais de seu país.

Arthur Wix, o rosto coberto de gotas de suor, declarou:

— Não posso negociar ou mudar por qualquer forma as exigências de meu presidente. Deve entregar esse assassino.

O sultão sorriu.

— Ele não é mais seu presidente. O Congresso americano aprovou o impeachment. Fui informado de que as ordens para bombardear a cidade de Dak já foram canceladas. Os reféns serão libertados, terá sua vitória. E não há mais nada que possa pedir.

Yabril sentiu um tremendo fluxo de energia percorrer seu corpo — provocara o impeachment do Presidente dos Estados Unidos. Ele fitou Wix nos olhos e deparou com o ódio. Aquele era o homem mais importante no exército mais poderoso do mundo e ele, Yabril, derrotara-o. Por um momento, sua mente fixou-se na imagem dele próprio comprimindo a arma contra os cabelos sedosos de Theresa Kennedy. Lembrou outra vez a sensação de perda, de pesar, quando puxou o gatilho, a pequena pontada de angústia enquanto o corpo da jovem caía pelo ar do deserto. Ele inclinou a cabeça para Wix e os outros homens na sala.

O Sultão Maurobi gesticulou para que os criados oferecessem as travessas com frutas e refrescos para seus hóspedes. Arthur Wix pegou um copo, tomou um gole, baixou-o e indagou:

— Tem certeza de que é absolutamente correta a informação sobre o impedimento do presidente?

— Providenciarei para que fale diretamente com seu gabinete nos Estados Unidos. — O sultão fez uma pausa. — Mas, primeiro, tenho de cumprir meu dever como anfitrião.

O sultão determinou que fizessem uma última refeição juntos, e insistiu que os acertos finais para a libertação dos reféns fossem decididos enquanto comiam. Yabril sentou à direita do sultão, Arthur Wix, à esquerda.

Estavam todos acomodados nos divãs ao longo da mesa baixa quando o primeiro-ministro entrou afobado e pediu ao sultão que o acompanhasse à outra sala por um momento. O sultão mostrou-se impaciente, não queria ir, até que o Primeiro-ministro sussurrou alguma coisa em seu ouvido. O sultão franziu as sobrancelhas em surpresa e depois disse a seus convidados:

— Aconteceu algo totalmente imprevisto. Todas as comunicações dos Estados Unidos foram interrompidas, não apenas para o nosso país, mas para o mundo inteiro. Por favor, continuem a comer, enquanto conferencio com meus ministros.

Depois que o sultão se retirou, os homens à mesa não falaram nada; e só Yabril serviu-se de comida.

Os americanos deixaram a mesa e foram para o terraço. Os criados levaram refrescos gelados para os dois. Yabril continuou a comer. Bert Audick disse a Wix:

— Espero que Kennedy não tenha feito nenhuma besteira. Espero que não tenha tentado se opor à Constituição.

— Primeiro a filha, agora ele perde também seu país — murmurou Wix. — E tudo por causa daquele desgraçado ali, comendo como um mendigo faminto.

— Tudo isso é mesmo terrível.

Audick tornou a entrar na sala e disse a Yabril:

— Espero que tenha um bom lugar para se esconder nos próximos anos, pois haverá muitas pessoas à sua procura.

Yabril riu. Acabou de comer e acendeu um cigarro.

— Claro. Serei um mendigo em Jerusalém.

O Sultão Maurobi voltou nesse momento. Foi seguido por cinqüenta homens armados, no mínimo, que se espalharam para dominar toda a sala. Quatro guardas postaram-se atrás de Yabril. Quatro outros ficaram por trás dos americanos no terraço. Havia surpresa e choque no rosto do sultão. A pele parecia amarelada, os olhos estavam arregalados, as pálpebras davam a impressão de estarem mais pesadas.

— Senhores — disse ele, hesitante —, a informação vai lhes parecer tão incrível quanto é para mim. O Congresso revogou a aprovação do impeachment de Kennedy, e declarou a lei marcial. ..

Ele fez uma pausa, pôs a mão no ombro de Yabril.

— E neste momento os aviões da Sexta Esquadra americana estão destruindo minha cidade de Dak.

Arthur Wix, quase exultante, indagou:

— A cidade de Dak está sendo bombardeada?

— Isso mesmo. Um ato bárbaro, mas convincente.

Todos olharam para Yabril, agora cercado por quatro guardas armados. Yabril comentou, pensativo:

— Finalmente conhecerei a América. Sempre foi meu sonho. — Ele olhou para os americanos, mas falou para o sultão: — Acho que eu seria um grande sucesso na América.

— Sem a menor dúvida — concordou o sultão. — Parte da exigência é que eu o entregue vivo. Infelizmente, devo dar as ordens necessárias para que não se mate.

— A América é um país civilizado — disse Yabril. — Serei submetido a um processo legal, que será longo e complicado, pois terei os melhores advogados. Por que eu tentaria me matar? Será uma experiência nova, e quem sabe o que pode acontecer? O mundo sempre muda. A América é civilizada demais para a tortura, e além do mais já sofri a tortura sob os israelenses. Assim, nada me surpreenderá.

Ele sorriu para Wix, que disse suavemente:

— Como você mesmo ressaltou, o mundo muda. Não teve êxito. Não será um herói.

Yabril riu, na maior satisfação, levantou os braços, num gesto exuberante.

— Eu consegui! — ele quase gritou. — Arranquei seu mundo do eixo. Acha que seu idealismo hipócrita será ouvido depois que os aviões destruíram a cidade de Dak? Quando o mundo esquecerá meu nome? E acha que sairei de cena agora, quando o melhor ainda está para acontecer?

O sultão bateu palmas e gritou uma ordem para os soldados. Eles seguraram Yabril, puseram algemas em seus pulsos, uma corda no pescoço.

— Devagar, devagar... — murmurou o sultão. Depois que Yabril estava manietado, ele tocou de leve em sua testa e acrescentou: — Desculpe, mas não tenho opção. Tenho petróleo para vender e uma cidade a reconstruir. Mas lhe desejo tudo de bom, velho amigo. Boa sorte na América.

 

Noite de Quinta-Feira

Cidade de Nova York

ENQUANTO O CONGRESSO VOTAVA o impedimento do Presidente Francis Xavier Kennedy, enquanto o mundo aguardava a solução da crise terrorista, havia muitas centenas de milhares de pessoas na cidade de Nova York que não estavam preocupadas com esses problemas. Tinham suas próprias vidas para cuidar, seus próprios problemas para resolver. Naquela noite amena de primavera, muitos desses milhares convergiram para a área de Times Square, um lugar que fora outrora o coração da maior cidade do mundo. Era ali que desembocava o caminho das ilusões, a Broadway, estendendo-se do Central Park à Times Square.

Aquelas pessoas tinham os interesses mais variados. Su¬burbanos de classe média, cheios de tesão, procuravam as livrarias pornográficas para adultos. Cineastas assistiam a quilômetros de filmes com homens e mulheres nus, entregando-se aos atos sexuais mais íntimos com diversos animais. Quadrilhas de adolescentes, com chaves de parafuso no bolso, armas legais, embora letais, circulavam bravamente, como os cavaleiros da antiguidade, empenhados em destruir o dragão da prosperidade, com a animação incontida dos jovens, querendo se divertir um pouco. Cafetões, prostitutas, assaltantes, assassinos, todos começavam a trabalhar depois do anoitecer. Os turistas iam a Times Square, onde Nova York se concentrava na véspera do Ano-Novo, a fim de saudar a alegre chegada de mais um ano. Na maioria dos prédios na área, assim como nas ruas de cortiços que levavam até lá, havia cartazes com um imenso coração vermelho, com a inscrição EU AMO NOVA YORK. Cortesia de Louis Inch.

Naquela quinta-feira, perto de meia-noite, Blade Booker pai¬rava nas proximidades do Times Square Bar and Cinema Club, à procura de um cliente. Booker era um jovem negro notório por sua capacidade como traficante. Podia arrumar cocaína, heroína, as pílulas mais variadas. Também podia providenciar uma arma, mas nada muito grande. Pistolas, revólveres, um pequeno 22, mas depois que arrumou uma para si mesmo, não se meteu mais nesse ramo. Não era cafetão, mas era muito eficiente com as mulheres. Podia persuadi-las a qualquer coisa, e era um grande ouvinte. Passara muitas noites a escutar os sonhos de uma ou outra mulher. Até mesmo a vigarista mais miserável, que fazia coisas com os homens que os deixavam sem fôlego, tinha sonhos a contar. Booker escutava, gostava de escutar, sentia-se bem quando as mulheres lhe contavam seus sonhos. Adorava a conversa mole delas. Ora iam acertar na cabeça no jogo dos números, a carta astrológica indicava que no próximo ano surgiria um homem que as amaria, teriam filhos que cresceriam para se tornarem médicos, advogados, professores universitários, astros da TV; as crianças saberiam cantar, dançar, representar ou fazer comédia tão bem quanto Richard Pryor, talvez até se tornassem outro Eddie Murphy.

Blade Booker esperava que o Swedish Cinema Palace esvaziasse, depois do término de seu filme proibido para menores. Muitos amantes do cinema parariam ali para uma cerveja e um hambúrguer, e na esperança de encontrar alguma mulher. Apareceriam sozinhos, mas podia-se reconhecê-los pela expressão absorta dos olhos, como se ponderassem sobre um problema científico insolúvel. Além disso, a maioria exibia um rosto melancólico. Eram pessoas solitárias.

Havia vigaristas por toda parte, mas Booker tinha a sua postada num canto estratégico. Os homens no bar podiam vê-la a uma mesinha que sua enorme bolsa vermelha quase cobria por completo. Era uma loura de Duluth, Min¬nesota, grandalhona, os olhos azuis gelados pela heroína. Booker a salvara de um destino pior do que a morte, ou seja, uma vida numa fazenda, onde o inverno frio congelaria seus peitos, deixando-os duros como pedra. Mas sempre era cuidadoso com ela. A garota tinha uma reputação e tanto, e ele era um dos poucos que trabalhavam com ela.

Seu nome era Kimberly Ansley, e apenas seis anos antes retalhara seu cafetão com um machado, enquanto ele dormia. Cuidado com as mulheres que se chamam Kimberly e Tiffany, Booker sempre dizia. Ela fora presa e processada, julgada e condenada, mas condenada apenas por homicídio culposo, a defesa provando que tinha inúmeras equimoses e “não fora responsável”, por causa do vício em heroína. Fora internada num hospital judiciário, curada, declarada sã e solta nas ruas de Nova York. Fixara residência nos cortiços em torno de Greenwich Village, obtendo um apartamento num dos conjuntos habitacionais construídos pela prefeitura, dos quais até os pobres fugiam.

Blade Booker e Kimberly eram parceiros. Ele era meio cafetão, meio assaltante; e se orgulhava dessa distinção. Kimberly pegava um cineasta no Times Square Bar, levava o freguês para um cortiço perto da Nona Avenida, para atos sexuais rápidos. Depois, Blade saía das sombras e acertava o homem na cabeça com um cassetete pequeno da polícia de Nova York. Rachavam o dinheiro da carteira do homem, mas Blade ficava com os cartões de crédito e as jóias. Não por ganância, mas porque não confiava no julgamento de Kimberly.

O melhor de tudo era o fato de que o homem geralmente era um marido transviado, relutante em comunicar o incidente à polícia e ter de responder a perguntas sobre o que fazia num corredor escuro na Nona Avenida, enquanto a esposa o aguardava em Merrick, Long Island, ou Trenton, Nova Jersey. Por uma questão de segurança, Blade e Kim evitavam o Times Square Bar por uma semana. E a Nona Avenida. Transferiam-se para a Segunda Avenida. Numa cidade como Nova York, isso era como entrar em outro buraco negro na galáxia. E era por esse motivo que Blade amava Nova York. Ele era invisível, como O Som¬bra, O Homem de Mil Caras. E era como aqueles insetos e passarinhos que via nos programas dos canais de TV públicos, mudando de cor para sumir na paisagem, os insetos que podiam se enfiar dentro da terra para escapar aos predadores. Em suma, ao contrário da maioria dos cidadãos, Blade Booker sentia-se seguro em Nova York.

Na noite de quinta-feira a colheita estava fraca. Mas Kimberly parecia linda naquela claridade, os cabelos louros brilhando como um halo, os seios esbranquiçados pelo

talco, como luas, projetando-se sem qualquer inibição do decote do vestido verde. Um cavalheiro com um charme jovial e insinuante, apenas com uma leve indicação de lascívia, foi com seu copo até a mesa de Kimberly e indagou polídamente se podia sentar. Blade observou-os, especulando sobre as ironias do mundo. Ali estava aquele homem bem-vestido, sem dúvida algum figurão, talvez um advogado ou professor, quem sabe até um político de segunda categoria, como um vereador de uma cidade pequena, até mesmo um senador estadual, sentado com uma assassina de machado, e como sobremesa receberia uma porrada na cabeça. E só por causa de seu pau. Era esse o problema. Um homem seguindo pela vida apenas com metade do cérebro, por causa do pau. Era mesmo lamentável. Talvez, antes de derrubar o cara, ele o deixasse descarregar o tesão em Kimberly, só depois daria a porrada. Parecia um bom sujeito, estava bancando o cavalheiro, acendendo o cigarro de Kimberly, pedindo um drinque para ela, sem apressá-la, embora estivesse obviamente ansioso em se mandar dali.

Blade terminava seu drinque quando Kim lhe deu o sinal. Viu Kim começar a levantar, mexendo na bolsa vermelha, vasculhando à procura só Deus sabia do quê. Blade saiu para a rua. Era uma noite clara, no início da primavera, e o cheiro de cachorro-quente, hambúrguer e cebola fritando nas grelhas dos estandes ao ar livre deixou-o com fome, mas podia esperar até que o trabalho estivesse concluído. Ele foi subindo pela Rua 42. Havia ainda multidões, embora já fosse quase meia-noite, os rostos das pessoas eram coloridos pelas incontáveis luzes de néon nos cinemas, cartazes gigantescos e refletores dos hotéis. Blade adorava caminhar da Sétima para a Nona Avenida. Entrou no corredor do cortiço e postou-se no poço da escada. Poderia avançar quando Kim abraçasse o freguês. Acendeu um cigarro e tirou o cassetete do coldre por baixo do paletó.

Ouviu-os entrar, a porta fechando com um estalido, o barulho da bolsa de Kim. E depois ouviu a voz de Kim dizendo a frase de código:

— É apenas um lance de escada.

Blade esperou dois minutos antes de sair do poço da

escada, hesitou ao deparar com uma cena linda. Lá estava Kim, no primeiro degrau, as pernas separadas, as coxas brancas, roliças e adoráveis descobertas, o homem tão bem-vestido com o pau de fora, enfiando nela. Kim pareceu subir pelo ar por um instante, e depois Blade viu horrorizado que ela continuava a subir, os degraus subiam junto, e depois viu o céu claro por cima, como se todo o topo do prédio tivesse sido arrancado. Ele levantou o cassetete para suplicar, orar, dar testemunho, sua vida não podia estar encerrada. Tudo isso aconteceu numa fração de segundo.

Cecil Clarkson e Isabel Domaine haviam saído de um teatro na Broadway depois de assistirem a um musical encantador; seguiam para a Rua 42 e a Times Square. Eram negros, como a maioria das pessoas que se encontravam nas ruas por ali, mas não eram de jeito nenhum parecidos com Blade Booker. Cecil Clarkson tinha dezenove anos e fazia um curso de redação na Nova Escola de Pesquisa Social. Isabel tinha dezoito anos e assistia a todas as peças na Broad¬way e fora da Broadway, porque adorava o teatro e esperava se tornar uma atriz. Estavam apaixonados, como só os adolescentes podem ficar, absolutamente convencidos de que eram as duas únicas pessoas no mundo. E enquanto subiam pela Sétima para a Oitava Avenida, os cartazes de néon ofuscantes banhavam-nos com uma claridade benevolente; a beleza luminosa criava uma magia em torno deles, que os protegia dos mendigos bêbados, viciados em drogas meio enlouquecidos, vigaristas, cafetões e assaltantes em potencial. E Cecil era grande, obviamente forte, dava a impressão de que seria capaz de matar qualquer pessoa que sequer tocasse no corpo de Isabel.

Pararam num enorme estande de salsicha e hambúrguer, comeram junto do balcão; não se arriscaram a entrar, pois o chão lá dentro estava imundo, com guardanapos e pratos de papel espalhados por toda parte. Cecil tomou uma cerveja, e Isabel, uma Pepsi, acompanhando os cachorros-quentes e hambúrgueres. Contemplaram a humanidade fervilhante que lotava as calçadas, mesmo tão tarde da noite. Observaram com absoluta tranqüilidade a onda de destroços humanos, a escória da cidade, passando para um lado e outro, nunca lhes ocorreu que havia qualquer perigo Sentiam compaixão por aquelas pessoas que não tinham a mesma promessa que eles, seu futuro, seu presente, sua felicidade eterna. Quando a onda diminuiu um pouco, voltaram à rua e encaminharam-se da Sétima para a Oitava. Isabel sentia o ar da primavera no rosto e encostou a cabeça no ombro de Cecil, uma das mãos no peito do namorado, a outra acariciando seu pescoço. Cecil sentiu uma profunda ternura. Ambos eram extremamente felizes, os jovens apaixonados, como bilhões e bilhões de seres humanos antes deles, vivendo um dos poucos momentos perfeitos na vida. E de repente, para espanto de Cecil, todas as vistosas luzes vermelhas e verdes se apagaram, e tudo o que ele podia ver agora era a abóbada do céu, antes que os dois, em absoluta felicidade, se dissolvessem no nada.

Um grupo de oito turistas, visitando a cidade de Nova York no fim de semana da Páscoa, desceu da Catedral de São Patrício, na Quinta Avenida, entrou na Rua 42 e encaminhou-se para a floresta de néon. Ficaram desapontados quando alcançaram a Times Square. Haviam visto o lugar pela TV, na véspera de Ano Novo, quando centenas de milhares de pessoas reuniam-se ali para aparecer na televisão e saudar a chegada de mais um ano.

Era sujo demais, havia um carpete de lixo cobrindo as ruas. A multidão parecia ameaçadora, bêbada, drogada, ou levada à loucura por se encontrar encerrada entre as torres de aço, através das quais tinha de se deslocar. As mulheres vestiam-se de forma espalhafatosa, como as mulheres paradas nas proximidades dos cinemas pornográficos. Pareciam se mover em diferentes níveis do inferno, o vazio de um céu sem estrelas, os lampiões da rua projetando um esguicho amarelo que parecia pus.

Os turistas, quatro casais, de uma pequena cidade em Ohio, os filhos crescidos, haviam decidido fazer a viagem a Nova York como uma espécie de celebração. Haviam completado um certo estágio em suas vidas, realizado um destino necessário. Haviam casado, criado os filhos, alcançado um sucesso relativo em suas carreiras. Agora haveria um novo começo para eles, o início de uma vida nova. A principal batalha fora vencida.

Os cinemas não os interessavam, pois havia muitos em Ohio. O que os interessava e assustava em Times Square era o fato de ser tão feia, as pessoas que povoavam as ruas parecerem tão malignas. Todos os turistas usavam enormes botões vermelhos de Eu Amo Nova York, comprados no primeiro dia. Agora, uma das mulheres tirou seu botão, jogou-o na sarjeta e disse:

— Vamos sair daqui.

O grupo começou a voltar na direção da Sexta Avenida, afastando-se do corredor de néon. Estavam quase virando a esquina quando ouviram uma explosão distante, e depois um sussurro de vento. Logo em seguida, pelas longas avenidas, da Sexta à Nona, veio um tornado, cheio de latas de refrigerantes, latas de lixo e uns poucos carros, que pareciam estar voando. Com um instinto animal, os turistas viraram a esquina da Sexta Avenida, escapando do caminho do vento impetuoso. Mesmo assim, foram derrubados pelo impacto do ar. A distância, ouviram o estrondo de prédios desabando, os gritos de milhares de agonizantes. E ficaram agachados, ao abrigo da esquina, sem saber o que acontecera.

Tinham deixado por pouco o raio da destruição causada pela explosão da bomba nuclear. Eram oito sobreviventes da maior calamidade que se abatera sobre os Estados Unidos em tempo de paz. Um dos homens se levantou e ajudou os outros.

— Que se foda Nova York! — exclamou ele. — Espero que todos os motoristas de táxi tenham morrido!

O carro da polícia avançava lentamente pelo tráfego, entre a Sétima e a Oitava Avenida, levando dois jovens guardas, um italiano, o outro negro. Não se importavam de ficar engarrafados no tráfego, era o lugar mais seguro no distrito. Sabiam que nas ruas transversais mais escuras poderiam encontrar ladrões arrancando rádios de carros, cafetões e assaltantes fazendo movimentos ameaçadores para os pacíficos pedestres de Nova York, mas não queriam se envolver com esses crimes. Além do mais, era agora uma política do departamento de polícia de Nova York permitir os crimes menores. Prevalecia na cidade uma espécie de licença para que os desprivilegiados atacassem os cidadãos bem-sucedidos e respeitadores da lei. Afinal, era certo que houvesse homens e mulheres que podiam ter carros de cinqüenta mil dólares, com rádios e sistemas de som que valiam pelo menos mil dólares, enquanto havia milhares de desabrigados que não tinham dinheiro para uma refeição, ou o suficiente para comprar uma seringa esterilizada para um pico? Era certo que aqueles prósperos cidadãos, mentalmente gordos e plácidos, tivessem a ousadia de andar pelas ruas de Nova York sem um revólver, sem levarem ao menos uma chave de fenda letal no bolso, achando que podiam desfrutar as paisagens fabulosas da maior cidade do mundo sem pagarem um certo preço? Afinal, ainda persistia na América uma centelha daquele antigo espírito revolucionário, que não podia resistir a determinadas tentações. E os tribunais, os mais altos escalões da polícia e os editoriais dos jornais mais respeitáveis endossavam dissimuladamente o espírito republicano de roubo, assalto, estupro e até assassinato nas ruas de Nova York. Os pobres da cidade não tinham outro recurso; suas vidas haviam sido estioladas pela miséria, por uma vida familiar embotada, pela própria arquitetura da cidade. Um colunista até alegara que todos esses crimes podiam ser atribuídos a Louis Inch, o magnata imobiliário, que estava reestruturando a cidade com edifícios de um quilômetro de altura, que obstruíam o sol com chapas de aço.

Os dois guardas obervaram Blade Booker deixar o Ti¬mes Square Bar. Conheciam-no muito bem. Um guarda perguntou ao outro:

— Devemos segui-lo?

— Seria perda de tempo — respondeu o outro. — Poderíamos pegá-lo em flagrante, mas ele logo seria solto.

Eles viram a loura grande e seu otário saírem também, subirem pela Nona Avenida.

— Pobre coitado — comentou um dos guardas. —Pensa que vai dar uma trepada, e no final será apenas assaltado.

— Ficará com um galo na cabeça tão grande quanto seu pau duro.

Os dois riram. O carro ainda avançava devagar, os guardas sempre observando o movimento na rua. Era meia-noite, o turno deles terminaria em breve, não queriam se envolver em qualquer coisa que os mantivesse de serviço por mais tempo. Observaram as inúmeras prostitutas se postarem na frente dos pedestres, os traficantes de tóxicos negros apregoando suas mercadorias com a mesma desfaçatez de um vendedor de TV, assaltantes e punguistas acompanhando vítimas em perspectiva, tentando puxar conversa com turistas. Sentados na escuridão da radiopatrulha e contemplando as ruas iluminadas pelos cartazes luminosos, viam toda a escória de Nova York resvalando para seus infernos particulares.

Os dois guardas mantinham-se em alerta permanente, com medo de que algum maníaco estendesse um revólver pela janela e começasse a atirar. Avistaram dois traficantes flanquearem um homem bem-vestido, que tentou se afastar apressado, mas foi contido por quatro mãos. O motorista do carro da polícia apertou o acelerador e se aproximou. Os traficantes baixaram as mãos; o homem bem-vestido sorriu aliviado. Nesse momento os dois lados da rua desabaram, sepultando por completo a Rua 42, da Nona à Sétima Avenida.

Todos os cartazes luminosos da fabulosa Broadway apagaram. A escuridão era iluminada pelo fogo, prédios ardendo, corpos em chamas. Carros incendiados deslocavam-se como tochas pela noite. E havia um intenso clamor de sirenes estridentes, enquanto carros da polícia, ambulâncias e caminhões dos bombeiros avançavam para o coração arrasado da cidade de Nova York.

Dez mil pessoas morreram e outras vinte mil ficaram feridas com a explosão da bomba nuclear colocada por Gresse e Tibbot no prédio da esquina da Oitava Avenida com a Rua 42.

A explosão foi um grande estrondo, seguindo-se um vento uivante e o ranger de cimento e aço desmoronando. Causou seus danos com uma precisão matemática. A área da Sétima Avenida ao Rio Hudson e da Rua 42 à Rua 45 foi completamente destruída. Fora dessa área, os danos foram relativamente mínimos. Era pela misericórdia e gênio de Gresse e Tibbot que a radiação só fosse letal dentro dessa área.

Por todo o distrito de Manhattan, janelas de vidro foram espatifadas, e os carros nas ruas, esmagados pelos detritos caindo. E uma hora depois da explosão, as pontes de Manhattan estavam atravancadas de veículos fugindo da cidade, a caminho de Nova Jersey e Long Island.

Dos mortos, mais de setenta por cento eram negros ou hispânicos; os outros trinta por cento eram nova-iorquinos brancos e turistas. Na Nona e na Décima Avenida, que se tornaram uma área de acampamento para os desabrigados, assim como no terminal portuário, em que muitos passageiros em trânsito dormiam, os corpos foram carbonizados em pequenos troncos enegrecidos.

 

O CENTRO DE COMUNICAÇÕES da Casa Branca recebeu a notícia da explosão da bomba atômica na cidade de Nova York exatamente seis minutos depois da meia-noite. O oficial de plantão comunicou no mesmo instante ao presidente. Vinte minutos depois o Presidente Francis Kennedy falava ao Congresso. Estava acompanhado pela Vice-Presidente Du Pray, Oddblood Gray e Christian Klee.

Kennedy assumiu uma atitude solene e grave. No momento mais crucial de sua vida, não havia tempo para qualquer outra coisa que não um diálogo franco. Oficialmente, não era mais Presidente dos Estados Unidos. Mas falou como se ainda tivesse a plena autoridade como chefe de estado.

— Vim procurá-los esta noite sem rancor. Esta grande tragédia, este golpe terrível contra a nossa nação, deve nos unir. Vocês devem saber agora que eu adotei o curso certo. Este é o último golpe no plano do terrorista Yabril, o que ele pensa que fará os Estados Unidos da América caírem de joelhos, capitularem às suas exigências. Devemos agora chegar à conclusão de que há uma extensa conspiração contra os Estados Unidos. Somos compelidos agora a unir nossas forças e agir de comum acordo.

 “Por isso, eu lhes peço que revoguem o meu impedimento. Mas quero ser franco: se não o fizerem, ainda assim devo tentar salvar este país. Rejeitarei o ato de impedimento, declararei que é ilegal e proclamarei a lei marcial para impedir quaisquer atos adicionais de terror. Quero também informá-los de que este Congresso, este corpo glorioso que sempre protegeu a liberdade da América ao longo de sua existência, está sendo agora protegido por seis divisões do Serviço Secreto e um regimento das Forças Especiais do Exército. Este é o maior perigo que o nosso país já enfrentou, não posso permitir que fique sem uma resposta. Quando esta crise terminar, vocês podem votar de novo o meu impedimento, mas não até lá. Eu lhes peço que não deixem o nosso grande país ser dividido por divergências políticas. Não deixem que nosso país descambe para a guerra civil, deliberadamente provocada por nossos inimigos. Vamos nos unir contra eles. Revoguem a votação do impedimento.”

Houve um grande murmúrio no plenário. O Congresso compreendia que Kennedy lhes dissera não apenas que estavam seguros, mas também que se encontravam à sua mercê.

O Senador Lambertino foi o primeiro a falar depois de Kennedy. Propôs que a votação fosse anulada e que as duas casas do Congresso concedessem um apoio total ao Presidente dos Estados Unidos, Francis Xavier Kennedy. O Deputado Jintz levantou-se para apoiar a moção. Declarou que os acontecimentos haviam comprovado que Kennedy estava certo, que fora uma divergência honesta. Afirmou que o presidente e o Congresso seguiriam em frente unidos, a fim de preservar a América contra seus inimigos. Deu sua palavra quanto a isso.

Houve uma nova votação. A votação anterior para afastar o presidente do cargo foi revogada.

Por unanimidade.

Christian não pôde deixar de admirar o brilhante desempenho de Francis Kennedy. Não podia haver dúvidas sobre sua sinceridade. Mas pela primeira vez, em todos aqueles anos, Christian vira Kennedy dizer uma mentira inequívoca e consciente. Declarara ao Congresso dos Estados Unidos que Yabril estava implicado na explosão da bomba atômica. E Christian Klee sabia que não havia nenhuma prova disso. E Kennedy sabia que não era verdade.

Portanto, acertara em cheio, pensou Christian Klee, adivinhara o que Francis queria que ele fizesse.

 

O PRESIDENTE FRANCIS KENNEDY, seguro no poder e no cargo, seus inimigos derrotados, contemplava seu destino. Havia um último passo a dar, uma decisão final a tomar. Perdera a esposa e a filha, sua vida pessoal não tinha mais qualquer sentido. Só dispunha agora de uma vida entrela¬çada com a do povo dos Estados Unidos. Até que ponto queria se empenhar nesse compromisso?

Ele anunciou que concorreria à reeleição em novem-bro, organizou sua campanha. Christian Klee recebeu or-dens para aplicar uma pressão legal às grandes corporações, em particular as grandes empresas de comunicações, a fim de evitar que interferissem com o processo eleitoral. A Vice-Presídente Helen Du Pray estava mobilizando as mulheres da América. Arthur Wix, que tinha grande influência nos círculos liberais do Leste, e Eugene Dazzy, que era muito prestigiado entre os líderes empresariais esclarecidos do país, mobilizavam o dinheiro. Mas Francis Kennedy sabia que, em última análise, tudo isso era periférico. Ao final, tudo dependeria dele próprio, do quanto o povo americano es-taria disposto a acompanhá-lo pessoalmente.

Havia um ponto crucial: desta vez o povo deveria eleger um Congresso que apoiasse integralmente o Presidente dos Estados Unidos. Ele queria um Congresso que fizesse exatamente tudo o que pedisse.

Por isso, Francis Kennedy precisava perceber agora os sentimentos mais profundos da América. Era uma nação em choque.

Por sugestão de Oddblood Gray, eles foram juntos a Nova York. Percorreram a Quinta Avenida, à frente de um desfile memorial, até a enorme cratera deixada pela explosão da bomba atômica. Fizeram isso para mostrar à nação que não havia mais nenhum perigo de radiação, que não havia nenhum perigo de outra bomba escondida. Kennedy desempenhou seu papel na cerimônia memorial para os mortos e na dedicação da área à construção de um parque, a fim de que todos se lembrassem. Parte do seu discurso foi devotado aos perigos da liberdade irrestrita para o indivíduo, nesta perigosa era tecnocrática. E sua convicção de que a liberdade individual devia ser subordinada ao aprofundamento do contrato social, que o indivíduo devia ceder alguma coisa para melhorar a vida da massa social. Ele disse isso de passagem, mas foi ressaltado pelos meios de comunicação.

Oddblood Gray foi dominado por um senso de ironia repulsiva ao ouvir as aclamações ensurdecedoras da multidão. Um ato de destruição tão terrível podia ser tão afortunado para um homem?

Nas cidades menores e nas áreas rurais, depois que o choque e o horror passaram, houve uma sombria satisfação. Nova York recebera o que merecia. Era uma pena que a bomba não fosse maior e explodisse a cidade inteira, com seus ricos hedonistas, semitas coniventes, negros criminosos. No final das contas, havia um Deus justo no céu. Ele escolhera o lugar certo para aquela terrível punição. Mas por todo o país houve medo também — que o destino de todos, seu próprio mundo e sua posteridade fossem reféns de seres humanos tão aberrantes. Kennedy sentiu tudo isso.

Toda noite de sexta-feira, Francis Kennedy apresentava um relatório ao povo pela TV. Eram na verdade discursos de campanha maldisfarcados, só que agora ele não tinha a menor dificuldade para conseguir tempo no ar.

Usava certas frases insinuantes e pequenos discursos que penetravam fundo no coração do povo:

— Estamos declarando guerra às tragédias cotidianas da existência humana, não a outras nações.

Repetiu a famosa indagação que fizera em sua primeira campanha:

— Como é possível que depois de cada grande guerra, quando trilhões de dólares foram gastos e desperdiçados para promover a morte, haja prosperidade no mundo? E se esses trilhões fossem investidos para melhorar as condições da humanidade?

Revelou que, pelo custo de um submarino nuclear, o governo podia financiar mil casas para os pobres. Pelo custo de uma esquadra de bombardeiros Stealth, poderia financiar um milhão de casas.

— Basta fingirmos que se perderam em manobras. Afinal, já aconteceu antes, ainda por cima com a perda de vidas valiosas. Faremos de conta que tornou a acontecer.

E quando os críticos ressaltaram que a defesa dos Estados Unidos seria afetada, Kennedy respondeu que os relatórios estatísticos do Departamento de Defesa eram secretos e que ninguém tomaria conhecimento da redução no orçamento militar.

Anunciou que em seu segundo mandato seria ainda mais rigoroso com o crime. Continuaria a lutar para proporcionar a todos os americanos a oportunidade de comprar uma casa nova, dispor de recursos para a assistência médica e providenciar para que pudessem obter uma educação superior. Enfatizou que não se tratava de socialismo. Os custos desses programas seriam pagos pelo expediente simples de tirar um pouco das ricas corporações dos Estados Unidos. Declarou que não defendia o socialismo, queria apenas proteger o povo americano dos ricos “reais”. E disse isso muitas e muitas vezes.

Para o Congresso e os membros do Clube Sócrates, o Presidente dos Estados Unidos lhes declarara guerra.

 

O Clube Sócrates resolveu realizar um seminário na Califórnia para discutir como derrotar Kennedy na eleição de novembro. Lawrence Salentine estava muito preocupado. Sabia que o procurador-geral preparava graves indiciamentos em decorrência das ações de Bert Audick e efetuava uma investigação sobre as operações financeiras de Martin Mutford. Greenwell era limpo demais para sofrer ameaças, Sa¬lentine não se preocupava com ele. Mas Salentine sabia que seu próprio império de comunicações era bastante vulnerável. Haviam escapado impunes com o crime por tantos anos que acabaram se tornando descuidados. Não haveria problemas com a editora de livros e revistas. Ninguém poderia prejudicar a mídia impressa, pois a proteção constitucional era muito forte. Mas é verdade que um sacana como Klee poderia aumentar as tarifas postais.

Mas Salentine sentia uma preocupação profunda por seu império de TV. Afinal, as ondas aéreas pertenciam ao governo, que distribuía os canais. As emissoras de televisão só operavam por permissão do governo. E sempre fora uma fonte de espanto para Salentine que o governo permitisse que a iniciativa privada ganhasse tanto dinheiro dessas ondas aéreas sem cobrar as taxas apropriadas. Ele estremecia só de pensar num comissário federal de comunicações forte, sob o comando de Kennedy. Poderia representar o fim das redes comerciais e das companhias de TV a cabo como existiam agora.

Louis Inch, sempre o patriota, acalentava uma admiração um tanto desleal pelo Presidente Kennedy. Ainda aclamado como o homem mais odiado em Nova York, ele se ofereceu para restaurar a área da cidade destruída pela bomba. Os quarteirões arrasados seriam purificados com monumentos em mármore, cercados por bosques. Ele faria isso pelo preço de custo, sem qualquer lucro, concluiria os trabalhos em seis meses. Graças a Deus que a radiação fora mínima.

Todos sabiam que Inch conseguia fazer as coisas muito melhor do que qualquer agência do governo. Claro que ele sabia que ainda ganharia muito dinheiro, através de suas companhias subsidiárias de construção, comissões de planejamento e comitês de consultoria. E a publicidade seria valiosa. . .

Inch era um dos homens mais ricos da América. Seu pai fora o típico senhorio da cidade grande, implacável, deixando de manter o aquecimento nos prédios de apartamentos, reduzindo os serviços ao mínimo, forçando os inquilinos a saírem, a fim de construir apartamentos mais luxuosos. O suborno de fiscais da prefeitura era uma habilidade que Louis Inch aprendera ainda no colo do pai. Mais tarde, armado com seus cursos universitários, de administração e direito, ele subornara vereadores, altos funcionários públicos, até mesmo prefeitos.

Fora Louis Inch quem lutara contra as leis do controle de locações em Nova York, fora Louis Inch quem promovera as grandes transações imobiliárias para a construção de enormes edifícios ao longo do Central Park. Agora, o parque tinha um toldo de monstruosos edifícios de aço para abrigar corretores de Wall Street, professores das mais importantes universidades, escritores famosos, artistas chiques, chefs dos restaurantes mais caros.

Os ativistas da comunidade acusavam Inch de ser responsável pelos horríveis cortiços no Upper West Side e no Bronx, Harlem e Coney Island, por causa da quantidade de habitações razoáveis que ele destruíra em sua reconstrução de Nova York. Acusavam-no também de obstruir a recuperação do distrito de Times Square, ao mesmo tempo em que comprava secretamente prédios, e até quarteirões inteiros. Inch respondia sempre que aquelas pessoas gostavam de criar caso, eram do tipo que exigiam a metade de um saco de merda.

Outra estratégia de Inch era apoiar as leis municipais que exigiam que os locadores alugassem seus imóveis a qualquer pessoa, independentemente de raça, cor ou credo. Ele fizera vários discursos em defesa dessas leis, porque ajudavam a afastar o pequeno senhorio do mercado. Alguém que tivesse apenas o segundo andar e/ou o porão de sua casa para alugar era obrigado a aceitar bêbados, esquizofrênicos, traficantes de tóxicos, estupradores, assaltantes. Esses pequenos senhorios acabavam se sentindo desanimados, vendiam suas casas e mudavam-se para os subúrbios.

Mas Inch se encontrava além de tudo isso agora — estava subindo de classe. Havia milionários incontáveis no país; Louis Inch fazia parte da centena ou por aí de bilionários da América. Possuía companhias de ônibus, hotéis e até uma empresa aérea. Possuía um dos maiores hotéis-cassinos de Atlantic City e muitos prédios de apartamentos em Santa Monica, na Califórnia. Eram as propriedades em Santa Monica que lhe causavam mais problemas.

Louis Inch ingressara no Clube Sócrates porque acreditava que seus poderosos associados poderiam ajudá-lo a resolver os problemas imobiliários que enfrentava em San¬ta Monica. O golfe era um esporte perfeito para tramar conspirações. Havia as piadas, o bom exercício, e os acordos eram fechados. E o que poderia ser mais inocente? Nem mesmo os investigadores mais virulentos dos comitês do Congresso ou os implacáveis juizes da imprensa podiam acusar os golfistas de intenções criminosas.

O Clube Sócrates acabara sendo muito melhor do que Inch esperava. Tornara-se amigo dos cem homens que controlavam o sistema econômico e as engrenagens políticas do país. Foi através do Clube Sócrates que Louis Inch tornou-se um membro da Guilda do Dinheiro, que podia comprar toda a delegação de um estado no Congresso, em uma única operação. Claro que não se podia comprar os representantes do povo de corpo e alma — não se falava aqui de abstrações, como Deus e o Diabo, o bem e o mal, virtude e pecado. Nada disso. Falava-se de política, do que era possível. Havia ocasiões em que um congressista tinha de se opor a seus desejos para garantir a reeleição. Era verdade que 98 por cento dos congressistas sempre acabavam sendo reeleitos, mas sempre havia os dois por cento que precisavam dar atenção a seus eleitores.

Louis Inch acalentava o sonho impossível. Não, não era o de se tornar Presidente dos Estados Unidos, pois ele sabia que sua mácula como senhorio nunca poderia ser apagada. A mudança que impusera à paisagem de Nova York era um crime arquitetônico. Havia um milhão de moradores de cortiços em Nova York, Chicago e especialmente San¬ta Monica que sairiam às ruas, dispostos a espetarem sua cabeça na ponta de um chuço. Na verdade, seu sonho era ser o primeiro trilionário no moderno mundo civilizado. Um trilionário plebeu, a fortuna conquistada com as mãos ca¬lejadas de um trabalhador.

Inch vivia para o dia em que poderia dizer a Bert Au-dick: “Tenho mil unidades.” Sempre o irritara o fato de os homens do petróleo do Texas só falarem em unidades — uma “unidade” no Texas era cem milhões de dólares. Audick comentara, a respeito da destruição de Dak:

— Oh, Deus, perdi quinhentas unidades!

E Inch jurara que um dia ainda diria a Audick: “Tenho cerca de mil unidades investidas em propriedades.” Au¬dick assoviaria e diria: “Cem bilhões de dólares!” Ao que Inch explicaria: “Não, um trilhão de dólares. Lá em Nova York uma unidade vale um bilhão de dólares,” O que acabaria de uma vez por todas com a presunção daqueles texanos.

Para converter esse sonho em realidade, Louis Inch capitalizava o conceito de espaço aéreo. Isto é, comprava o espaço aéreo por cima dos prédios existentes nas grandes cidades e construía sobre eles. O espaço aéreo podia ser comprado por uma ninharia; era um conceito novo, como as terras pantanosas quando seu avô as comprara, sabendo que a tecnologia resolveria o problema de drená-las e transformá-las em áreas lucrativas para a construção. O problema era impedir que as pessoas e seus legisladores o detivessem. Isso exigiria tempo e um enorme investimento, mas ele estava convencido de que podia ser feito. É verdade que cidades como Chicago, Nova York, Dálias e Miami seriam gigantescas prisões de aço e concreto, mas as pessoas não precisavam viver lá, a não ser a elite, que adorava os museus, cinemas, teatros, música. E é claro que haveria também pequenos bairros-butiques para os artistas.

E quando Louis Inch conseguisse finalmente realizar o que queria, não haveria mais cortiços na cidade de Nova York. Simplesmente não haveria mais aluguéis disponíveis para os pequenos criminosos e as classes trabalhadoras. Todos viriam de comunidades suburbanas, em trens especiais, em ônibus especiais, voltariam ao anoitecer. Os locatários e compradores dos apartamentos da Inch Corporation poderiam ir ao teatro, discotecas e restaurantes de luxo, sem se preocuparem com as ruas escuras lá fora. Poderiam passear pelas avenidas, até mesmo se arriscarem pelas ruas transversais, poderiam andar pelos parques, em relativa segurança. E o que pagariam por esse paraíso? Fortunas.

Convocado à reunião do Clube Sócrates, na Califórnia, Louis Inch iniciou uma excursão através dos Estados Unidos, reunindo-se com os dirigentes das maiores corporações imobiliárias das grandes cidades. Arrancou deles a promessa de contribuições em dinheiro para derrotar Kennedy. Chegando a Los Angeles, poucos dias depois, resolveu fazer uma visita a Santa Monica, antes de começar o seminário.

Santa Monica é uma das mais belas cidades dos Estados Unidos, principalmente porque seus cidadãos resistiram com êxito aos esforços dos interesses imobiliários em construir enormes edifícios, aprovaram leis para manter os aluguéis estáveis e controlar os gabaritos dos prédios. Um bom apartamento na Ocean Avenue, dando para o Pacífico, custa apenas um sexto da renda de um cidadão médio. Era uma situação que levava Inch à loucura há vinte anos.

Inch considerava que Santa Monica era uma afronta, um insulto ao espírito americano da livre iniciativa; aquelas unidades, nas condições atuais, podiam ser alugadas por dez vezes mais. Ele comprara muitos dos prédios de apartamentos. Eram conjuntos encantadores, ao estilo espanhol, um desperdício no aproveitamento de terrenos valiosos, com seus pátios internos e jardins, sua altura escandalosamente baixa de dois andares. E ele não podia, por lei, aumentar os aluguéis naquele paraíso. E o espaço aéreo por cima de Santa Monica valia bilhões, a vista do Oceano Pacífico valia alguns bilhões a mais. Às vezes Inch tinha idéias malucas de construir verticalmente no próprio oceano. E isso o deixava tonto.

Claro que ele não tentou subornar diretamente os três vereadores que convidou para almoçar no Michael's, mas falou de seus planos, mostrou como todos poderiam se tornar multimilionários, se certas leis fossem mudadas. Ficou consternado quando eles não demonstraram o menor interesse Mas o pior ainda estava para acontecer. No momento em que Inch entrou em sua limusine, houve uma explosão ensurdecedora. Cacos de vidro voaram por todo o interior, a janela de trás se desintegrou, um buraco enorme surgiu de repente no pára-brisa, com teias de aranha espalhando-se pelo resto do vidro.

Quando a polícia chegou, Inch foi informado de que uma bala de rifle causara os danos. Quando lhe perguntaram se tinha algum inimigo, Louis Inch assegurou com toda sinceridade que não.

O seminário especial do Clube Sócrates sobre “Demagogia na Democracia” começou no dia seguinte.

Entre os presentes estavam Bert Audick, agora sendo processado pelo governo federal; George Greenwell, que parecia com o trigo antigo armazenado em seus gigantescos silos no Meio-Oeste; Louis Inch, o rosto bonito um tanto pálido por causa de sua quase morte no dia anterior; Mar¬tin Mutford, num terno Armam que não podia esconder o fato de que estava engordando; e Lawrence Salentine. Bert Audick foi o primeiro a falar:

— Alguém pode me explicar como é possível que Kennedy não seja um comunista? Kennedy quer socializar a medicina e a construção de casas. Está me processando pelas leis de formação de quadrilha e não sou sequer italiano. — Ninguém riu de sua piada e ele continuou: — Podemos tentar contornar o problema, mas temos de encarar um fato fundamental. Ele é um tremendo perigo para tudo o que nós defendemos. Precisamos adotar uma ação drástica.

George Greenwell interveio, num tom suave:

— Ele pode processá-lo, mas não conseguirá condená-lo... ainda temos o processo devido neste país. Sei que você está sofrendo uma terrível provocação. Mas se eu ouvir qualquer conversa perigosa nesta sala, vou me retirar imediatamente. Não admitirei nenhuma proposta traiçoeira ou sediciosa.

Audick sentiu-se ofendido e respondeu:

— Amo meu país mais do que qualquer outro nesta sala. E é isso o que me aflige. O indiciamento diz que eu estava agindo de forma traiçoeira. Logo eu! Meus ancestrais já se encontravam neste país quando os sacanas dos Kennedys ainda comiam batatas na Irlanda. Eu já era rico quando eles contrabandeavam bebidas em Boston. Aqueles mercenários dispararam contra os aviões americanos que sobrevoavam Dak, mas não por ordem minha. É verdade que propus um acordo ao sultão de Sherhaben, mas agi assim no interesse dos Estados Unidos.

Salentine comentou secamente:

— Sabemos que Kennedy é o problema. Estamos aqui para discutir uma solução. O que é nosso direito e nosso dever.

Mutford interveio:

— O que Kennedy está dizendo ao país é mentira. De onde sairá o capital para financiar todos os seus programas? Ele propõe uma forma modificada de comunismo. Se pudermos repisar isso nos meios de comunicação, o povo vai acabar se afastando dele. Cada homem e mulher neste país acha que um dia se tornará milionário e já se preocupa com os impostos que terá de pagar.

— Então por que todas as pesquisas indicam que Francis Kennedy ganhará em novembro? — indagou Salentine, irritado.

Como em tantas outras ocasiões anteriores, ele sentia-se um pouco espantado com a obtusidade dos poderosos. Pareciam não ter a menor noção do intenso charme pessoal de Kennedy, seu carisma para as massas, só porque eram imunes a esse charme. Houve um silêncio prolongado, que foi rompido por Martin Mutford:

— Dei uma olhada na legislação que está sendo preparada para regulamentar o mercado de ações e os bancos. Se Kennedy for reeleito, os lucros vão diminuir. E se seus fiscais trabalharem direito, as cadeias ficarão lotadas com os muitos ricos.

— Estarei à espera deles — comentou Audick, sorrindo. Por algum motivo, ele parecia estar de excelente humor, apesar do processo. — E a esta altura já serei um preso de confiança, providenciarei para que todos vocês tenham flores em suas celas.

Inch disse, impaciente:

— Ficará numa dessas prisões de luxo, brincando com os computadores que controlam seus petroleiros.

Audick jamais gostara de Louis Inch. Não podia gostar de um homem que empilhava seres humanos do fundo da terra às estrelas e cobrava um milhão de dólares por apartamentos que não eram maiores do que escarradeiras.

— Tenho certeza de que minha cela terá mais espaço que um de seus apartamentos de luxo — respondeu Audick. — E depois que eu estiver lá dentro, não tenha tanta certeza se poderá obter o petróleo necessário para aquecer os seus edifícios. E outra coisa: terei mais chance jogando na cadeia do que em seus cassinos em Atlantic City.

Greenwell, como o mais velho e o mais experiente no trato com o governo, sentiu que devia assumir o comando da conversa.

— Acho que devemos, através de nossas companhias e de outros representantes, empenhar muito dinheiro na campanha do adversário de Kennedy. Martin, acho que você deve se oferecer para ser o gerente da campanha.

— Primeiro, vamos decidir sobre de quanto dinheiro estamos falando e como será a contribuição — disse Mar¬tin Mutford.

— Poderia ser uma soma redonda de quinhentos milhões de dólares — propôs Greenwell.

— Espere um instante! — protestou Audick. — Acabei de perder cinqüenta bilhões e vocês querem que eu contribua com mais uma unidade?

— O que significa uma unidade, Bert? — indagou Inch, malicioso. — A indústria do petróleo vai querer nos sacanear? Os texanos não podem mais dispensar uns míseros cem milhões?

— O tempo na TV custa muito dinheiro — disse Sa-lentine. — Se pretendemos saturar as transmissões até novembro, serão cinco meses. Vai sair muito caro.

— E sua rede de TV ficará com uma grande parcela — comentou Inch, agressivo. Ele se orgulhava de sua reputação como um negociador inflexível. — O pessoal da TV tira a sua parte de um bolso, mas num passe de mágica logo aparece no outro bolso. Esse é um fator que deve ser levado em consideração quando discutirmos as contribuições.

— Ora, estamos discutindo ninharias — protestou Mutford, deixando os outros indignados.

Ele era famoso pelo tratamento desdenhoso que dispensava ao dinheiro. Para ele, não passava de um telex transportando alguma espécie de substância espiritual de um corpo etéreo para outro. Não tinha realidade. Costumava dar a namoradas casuais um Mercedes novinho, uma excentricidade que aprendera com texanos ricos. Se tinha uma amante por um ano, comprava-lhe um prédio de apartamentos, para garanti-la na velhice. Outra amante tinha uma casa em Malibu, outra um castelo na Itália e um apartamento em Roma. Comprara para um filho ilegítimo a sociedade num cassino na Inglaterra. Nada lhe custava, apenas pedaços de papel assinados. E sempre tinha um lugar em que ficar, aonde quer que fosse. A mulher Albanese conseguira seu famoso restaurante e todo o prédio dessa maneira. E havia muitas outras. O dinheiro nada significava para Mutford.

— Paguei minha parte com Dak — declarou Audick, em tom agressivo.

— Bert, você não está diante de um comitê do Congresso discutindo as cotas de produção de petróleo — disse Mutford.

— E não tem opção — acrescentou Inch. — Se Kennedy for reeleito e eleger o seu Congresso, você irá para a cadeia.

George Greenwell especulava mais uma vez se não deveria se desligar oficialmente daqueles homens. Afinal, estava velho demais para essas aventuras. Seu império de cereais corria menos perigo do que os negócios daqueles outros homens. A indústria petrolífera, de uma forma óbvia demais, chantageara o governo para obter lucros exorbitantes. Sua atividade empresarial era mais discreta; de um modo geral, as pessoas não sabiam que apenas cinco ou seis pessoas possuíam as companhias que controlavam todo o pão do mundo. Greenwell temia que um homem impetuoso e beligerante como Bert Audick pudesse criar problemas graves para todos eles. Mas gostava da vida no Clube Sócrates, os seminários que se prolongavam por uma semana inteira, com as mais interessantes discussões sobre os problemas do mundo, as sessões de gamão, os torneios de bridge. Mas já perdera o desejo intenso de levar a melhor sobre seus semelhantes.

— Ora, Bert, o que é uma mísera unidade para a indústria petrolífera? — disse Inch. — Afinal, vocês vêm sugando o público com seus subsídios pela redução das reservas de petróleo durante os últimos cem anos.

Martin Mutford soltou uma risada.

— Vamos parar com essa merda. O fato é que estamos todos juntos nisso. E todos seremos enforcados juntos, se Kennedy vencer. Vamos esquecer o dinheiro e tratar dos negócios mais importantes. Precisamos decidir como atacar Kennedy nesta campanha. O que acham de seu fracasso em agir no caso da ameaça de bomba atômica a tempo de evitar a explosão? O que acham de ele nunca mais ter uma mulher em sua vida desde que a esposa morreu? Não estaria comendo secretamente algumas mulheres na Casa Branca, como seu tio Jack fazia? O que acham de um milhão de outras coisas? De sua assessoria pessoal, por exemplo? Temos muito trabalho a fazer.

Isso os distraiu. Audick comentou, pensativo:

— Ele não tem nenhuma mulher. Já confirmei isso. Talvez seja bicha.

— E daí? — indagou Salentine.

Alguns dos principais astros de sua rede de televisão eram homossexuais, e ele era muito sensível ao assunto. A linguagem de Audick o ofendia. Mas Louis Inch, inesperadamente, endossou o ponto levantado por Audick, dizendo a Salentine:

— O público não se importa se um dos seus comediantes idiotas for bicha, mas como acha que reagiria se soubesse que o Presidente dos Estados Unidos também é?

— Este dia ainda chegará — murmurou Salentine.

— Não podemos esperar — interveio Mutford. — E, alem do mais, o presidente não é bicha. Encontra-se no momento em alguma espécie de hibernação sexual. Creio que a nossa melhor possibilidade é atacá-lo através de sua assessoria pessoal.

Mutford fez uma pausa, pensou por um momento, e depois acrescentou:

— O procurador-geral, Christian Klee... mandei algumas pessoas investigarem-no. Ele é um tanto misterioso para uma personalidade pública. Muito rico, muito mais rico do que as pessoas pensam, dei uma olhada extra-oflcial em suas contas bancárias. Não gasta muito, não sustenta mulheres, nem é viciado em tóxicos, a um ponto que se torne evidente em suas despesas. Um advogado brilhante que não demonstra muito interesse pelo direito. Sabemos que é devotado a Kennedy. A proteção que montou para o presidente é uma maravilha de eficiência. Mas essa eficiência prejudica a campanha de Kennedy, porque Klee não lhe permite o contato físico. Em tudo e por tudo, eu me concentraria em Klee.

— Klee foi da CIA, dos altos escalões de operações — disse Audick. — Ouvi algumas histórias estranhas a seu respeito.

— Talvez essas histórias possam ser nossa munição — sugeriu Mutford.

— São apenas histórias — comentou Audick. — E não será possível extrair coisa alguma dos arquivos da CIA, não com o tal de Tappey no comando.

Greenwell disse, em tom de indiferença:

— Por acaso tenho informações de que o chefe da assessoria do presidente, o tal de Dazzy, tem uma vida pessoal bastante complicada. Brigou com a mulher e anda se encontrando com outra.

Mas que merda!, pensou Mutford. Preciso afastá-los desse rumo. Jeralyn Albanese lhe falara sobre a ameaça de Christian Klee.

— Isso é coisa de importância menor — disse ele. — O que ganharíamos, mesmo que forçássemos Dazzy a cair fora? O público nunca vai se virar contra o presidente porque um dos seus assessores anda trepando com uma garota, a menos que seja estupro ou algo parecido.

— Podemos procurar a garota e lhe dar um milhão de dólares para berrar que houve estupro — sugeriu Audick.

— Ela teria de dizer que houve estupro depois de três anos de cama e de ter todas as suas contas pagas — objetou Mutford. — Ninguém acreditaria.

Foi George Greenwell quem deu a contribuição mais valiosa:

— Devemos nos concentrar na explosão da bomba atômica em Nova York. Acho que o Deputado Jintz e o Sena¬dor Lambertino devem criar comitês de investigações na Câmara e no Senado, e intimar todas as autoridades do governo. Mesmo que não descubram nada de concreto, haverá bastantes coincidências para os meios de comunicação se divertirem. É nesse ponto que você precisará usar toda a sua influência, Larry. Essa é a nossa maior esperança. E agora sugiro que todos nós comecemos a trabalhar. — Uma pausa e ele acrescentou para Mutford: — Pode instalar seus comitês de campanha. Garanto que receberá meus cem milhões. É um investimento dos mais prudentes.

Quando a reunião foi suspensa, era apenas Bert Au-dick quem cogitava de providências mais radicais.

Logo depois dessa reunião, Lawrence Salentine foi chamado pelo Presidente Francis Kennedy. Quando entrou no Gabinete Oval, Salentine constatou que o Procurador-Geral Christian Klee também se encontrava ali, o que o deixou ainda mais cauteloso. Não houve troca de cortesias; aquele não era mais o Kennedy sempre simpático, mas sim, refletiu Salentine, um homem à procura de vingança. Kennedy foi logo dizendo:

— Sr. Salentine, não quero fazer rodeios. Serei franco e objetivo. Meu procurador-geral, o Sr. Klee, e eu discutimos a possibilidade de processar criminalmente sua rede de televisão e também as outras. Ele me persuadiu que pode ser uma punição rigorosa demais. Em termos específicos, você e os outros gigantes das comunicações participaram de uma conspiração para me afastar da presidência. Apoiaram o Congresso na tentativa de impeachment.

— Era nossa função, como uma empresa de comunicações, relatar os acontecimentos políticos — protestou Salentine.

— Pare com essa merda, Lawrence — interveio Klee, friamente. — Vocês se uniram contra nós.

— Mas isso é coisa do passado — declarou Kennedy. — Vamos continuar. As empresas de comunicações vêm fazendo o que bem querem há anos, há décadas. Não vou mais permitir que umas poucas corporações dominem todos os meios de comunicação neste país. A propriedade das emissoras de TV será limitada à TV. Não poderão mais possuir editoras de livros. Nem revistas. Nem jornais. Nem companhias de TV a cabo. Nem estúdios cinematográficos. É poder demais. Vocês contam com publicidade demais. Tudo isso será limitado. Quero que transmita esse recado a seus amigos. Durante o processo de impedimento, vocês impediram ilegalmente que o Presidente dos Estados Unidos falasse ao povo pelo televisão. Isso nunca mais tornará a acontecer.

Salentine declarou ao presidente que não acreditava que o Congresso lhe permitisse fazer o que pretendia. Kennedy sorriu e respondeu:

— Não este Congresso, mas teremos uma eleição em novembro. E estarei concorrendo à reeleição. E farei campanha por pessoas no Congresso que apóiem minhas posições.

Lawrence Salentine procurou os outros proprietários de emissoras de TV e transmitiu-lhes as más notícias, acrescentando:

— Temos dois cursos de ação. Podemos começar a ajudar o presidente, apoiando-o ao noticiarmos suas ações e propostas políticas. Ou podemos permanecer livres e independentes, criticando-o quando julgarmos necessário. — Ele fez uma pausa. — Este pode ser um momento muito perigoso para nós. Não apenas pela perda de receita, não apenas pelos regulamentos restritivos, mas se Kennedy for longe demais podemos perder até nossas licenças.

O que seria demais. Era inconcebível que as redes pudessem perder suas licenças. Seria a mesma coisa que os colonos nos tempos antigos da fronteira verem suas terras devolvidas ao governo. A concessão de licenças de emissoras de TV, o acesso gratuito às ondas aéreas, sempre pertencera a pessoas como Salentine. Parecia-lhes agora um direito natural. E por isso os proprietários tomaram a decisão de não se submeterem ao Presidente dos Estados Unidos, de permanecerem livres e independentes. E denunciariam Kennedy como a ameaça ao capitalismo democrático americano que ele de fato era. Salentine comunicaria essa decisão aos membros mais importantes do Clube Sócrates.

Salentine remoeu por dias como poderia desfechar uma campanha contra o presidente por sua rede de TV sem parecer óbvio demais. Afinal, o público americano acreditava num jogo limpo; ficaria ressentido com uma evidente campanha insidiosa. Os americanos acreditavam no devido processo legal, embora constituíssem a população mais criminosa do mundo.

Ele agiu com todo cuidado. O primeiro passo era recrutar Cassandra Chutt, que tinha o noticioso com o maior índice nacional de audiência. Claro que não poderia ser direto demais; as pessoas que se destacavam como âncoras não admitiam a interferência aberta. Mas não haviam alcançado sua eminência sem fazerem concessões à cúpula administrativa. E Cassandra Chutt sabia como agir.

Salentine apoiara sua carreira durante os últimos vinte anos. Conhecera-a quando ela trabalhava nos programas do início da manhã, passando depois para os noticiosos noturnos. Cassandra sempre fora desavergonhada na busca de promoção. Todos sabiam que ela abordara um secretário de estado em lágrimas, lamentando que perderia o emprego se ele não lhe concedesse uma entrevista de dois minutos. Adulava, lisonjeava e chantageava os famosos a aparecerem em seu programa de entrevistas no horário nobre, depois os fulminava com perguntas pessoais e vulgares. Salentine achava que Cassandra Chutt era a pessoa mais grosseira que já conhecera na televisão.

Convidou-a para jantar em seu apartamento. Gostava da companhia de pessoas grosseiras.

Quando Cassandra chegou, na noite seguinte, Salentine estava editando um vídeo-teipe. Levou-a para sua sala de trabalho, onde havia os mais modernos equipamentos de TV, cada um equipado com seu pequeno computador. Cassandra sentou num banco e disse:

— Mas que merda, Lawrence! Tenho de assistir você editar mais uma vez ...E o Vento Levou!

À guisa de resposta, Salentine serviu para ela um drinque, no pequeno bar num canto da sala.

Salentine tinha um hobby. Pegava um vídeo-teipe de um filme (possuía uma coleção do que considerava os cem melhores filmes de todos os tempos) e editava-o, para torná-lo ainda melhor. Mesmo em seus filmes prediletos, sempre havia uma cena ou um diálogo que ele julgava desnecessário ou que não fora bem-feito, e tratava de eliminá-lo com seus equipamentos de edição. Agora, na estante de sua sala de estar, havia cem vídeo-teipes dos melhores filmes, um pouco mais curtos, mas perfeitos. Havia até alguns filmes com os finais insatisfatórios cortados.

Enquanto ele e Cassandra jantaram, servidos por um mordomo, conversaram sobre os futuros programas dela. O que sempre deixava Cassandra Chutt de bom humor. Ela revelou a Salentine seus planos de visitar os chefes dos estados árabes e reuni-los no mesmo programa, junto com o presidente de Israel. Depois, um programa com três primeiros-ministros europeus conversando com ela. E ela ainda se mostrou entusiasmada com a idéia de ir ao Japão e entrevistar o imperador. Salentine escutou pacientemente. Cassandra Chutt tinha ilusões de grandeza, mas de vez em quando alcançava um sucesso espetacular. Mas, finalmente, ele interrompeu-a para sugerir, jocosamente:

— Por que não leva o Presidente Kennedy a seu programa?

Cassandra Chutt perdeu o bom humor.

— Ele nunca aceitaria, depois do que fizemos com ele.

— Tem razão, as coisas não saíram tão bem quanto esperávamos. Mas, se não pode ter Kennedy, então por que não procurar o outro lado da cerca? Por que não chamar o Deputado Jintz e o Senador Lambertino para contarem o seu lado da história?

Cassandra Chutt sorriu.

— Ah, seu filho da puta insinuante... Acontece que eles perderam. São os perdedores, e Kennedy vai massacrá-los na próxima eleição. Por que eu deveria convidar perdedores? Quem quer assistir a perdedores pela televisão?

— Jintz me contou que eles têm informações muito importantes sobre a explosão da bomba atômica, que é possível que o governo tenha vacilado. Que não utilizaram da forma devida as equipes de busca nuclear, que poderiam localizai a bomba antes de sua explosão. É dirão isso em seu programa. Você seria manchete no mundo inteiro.

Cassandra Chutt ficou aturdida por um instante, depois desatou a rir.

— Mas é sensacional! E depois do que você falou, pensei em fazer a seguinte pergunta a esses dois perdedores: “Acredita sinceramente que o Presidente dos Estados Unidos é responsável pelas dez mil mortes na explosão da bomba nuclear em Nova York?”

— É uma ótima pergunta — comentou Salentine.

No mês de junho, Bert Audick viajou em seu avião particular para Sherhaben, a fim de discutir com o sultão a reconstrução de Dak. O sultão recebeu-o com toda pompa. Houve dançarinas, a melhor comida e um consórcio internacional de financistas, convocados pelo sultão, todos dispostos a investir seu dinheiro em uma nova Dak. Audick passou uma semana maravilhosa de trabalho árduo, enchendo os bolsos com uma “unidade” de cem milhões de dólares aqui, outra “unidade” ali, mas a maior parte do dinheiro sairia de sua própria empresa petrolífera e do sultão.

Na última noite de sua visita, ele e o sultão encontraram-se a sós no palácio. Ao final da refeição, o sultão mandou que os criados e os guarda-costas deixassem a sala. Depois, sorriu para Audick e disse:

— Acho que devemos tratar agora do negócio que realmente interessa. — Ele fez uma pausa. — Trouxe o que eu pedi?

— Quero que compreenda uma coisa — declarou Bert Audick. — Não estou agindo contra meu país. Apenas preciso me livrar daquele filho da puta do Kennedy ou acabarei na cadeia. E ele tenciona investigar todos os detalhes de nossas operações durante os últimos dez anos. Portanto, o que estou fazendo é também do seu interesse.

— Claro que compreendo — respondeu o sultão, gentilmente. — E estamos muito distantes dos eventos que ocorrerão. Providenciou para que ninguém possa ligar os documentos a você?

— Claro.

Bert Audick entregou ao sultão a pasta de couro que estava ao seu lado. O sultão tirou uma pasta de arquivo que continha fotografias e plantas. Examinou tudo. As fotografias eram do interior da Casa Branca, as plantas indicavam os postos de controle em diferentes partes do prédio.

— Tudo isso está atualizado? — indagou o sultão.

— Não — respondeu Audick. — Depois que Kennedy assumiu o cargo, há três anos, Christian Klee, que é o chefe do FBI e do Serviço Secreto, mudou muita coisa. Acrescentou outro andar à Casa Branca, para a residência presidencial. Sei que o quarto andar é como um cofre de aço. Ninguém sabe exatamente como é a planta. Nada jamais foi publicado a respeito, eles cuidam para que as pessoas ignorem. É tudo segredo, exceto para os assessores e amigos mais íntimos do presidente.

— Isso pode ajudar.

Audick deu de ombros.

— Eu posso ajudar com dinheiro. Precisamos de uma ação rápida, de preferência antes que Kennedy seja reeleito.

— Os Cem sempre podem aproveitar o dinheiro — comentou o sultão. — Providenciarei para que recebam. Mas você precisa entender que essas pessoas agem por sua fé sincera. Não são assassinos de aluguel. Por isso, terão de acreditar que o dinheiro é meu, como chefe de um pequeno país oprimido. — Ele sorriu. — Depois da destruição de Dak, creio que Sherhaben se qualifica.

— Essa é outra questão que precisamos discutir. Minha companhia perdeu cinqüenta bilhões de dólares com a destruição de Dak. Acho que devemos reformular nosso acordo sobre o seu petróleo. Foi exigente demais na última vez.

O sultão soltou uma risada afável.

— Ora, Sr. Audick, durante mais de cinqüenta anos as companhias petrolíferas americanas e inglesas arrancaram o petróleo das terras árabes. Deram migalhas a xeques nômades ignorantes, enquanto ganhavam bilhões. E agora seus compatriotas ficam indignados quando queremos cobrar o que o petróleo vale. Como se tivéssemos alguma responsabilidade pelo preço de seu equipamento pesado e tecnologia, pelos quais cobram tão caro. Agora é a vez de vocês pagarem direito, é a vez até de serem explorados, se quiserem fazer essa alegação. Por favor, não fique ofendido, mas eu estava até pensando em lhe pedir que melhorasse o nosso acordo.

Eles reconheciam um no outro uma alma afim, que nunca perdia a oportunidade de fazer um bom negócio; e sorriram de maneira afável.

— Acho que o consumidor americano terá de pagar a conta pelo presidente maluco que elegeram — disse Audick. — E detesto fazer isso com eles.

— Mas fará, Sr. Audick. Afinal, é um homem de negócios, não um político.

— A caminho de me tornar um presidiário — comentou Audick, com uma risada. — A menos que eu tenha sorte e Kennedy desapareça. Não quero que me entenda mal. Eu faria qualquer coisa por meu país, mas não posso permitir que os políticos me intimidem.

O sultão sorriu em concordância.

— Assim como eu não deixaria que meu parlamento o fizesse. — Ele bateu palmas para chamar os criados, e depois acrescentou para Audick: — Creio que chegou o momento de nos divertirmos. Já chega desse negócio sujo de governo e poder. Vamos aproveitar a vida, enquanto ainda a temos.

Não demorou muito para que lhes fosse servido um requintado jantar. Audick adorava a comida árabe, não era escrupuloso como outros americanos; cabeças e olhos de ovelha eram como o leite materno para ele. Enquanto co-miam, Audick disse ao sultão:

— Se precisar de dinheiro para alguma causa digna, posso providenciar sua transferência de uma fonte iniden-tificável. É muito importante para mim que façamos alguma coisa em relação a Kennedy.

— Compreendo perfeitamente, Sr, Audick. E agora chega de falar de negócios. Tenho um dever a cumprir como seu anfitrião.

Annee, que estivera escondida com sua família na Sicília, ficou surpresa quando foi convocada para uma reunião com companheiros dos Cem.

Encontrou-se com eles em Palermo. Eram dois jovens que ela conhecera quando todos eram estudantes universitários em Roma. Ela sempre gostara muito do mais velho, agora com cerca de trinta anos. Ele era alto, mas encurvado, usava óculos com aros de ouro. Fora um aluno brilhante, destinado a uma carreira eminente como professor de estudos etruscos. Nos relacionamentos pessoais, era gentil e afável. Sua violência política derivava de uma mente que detestava a ilógica cruel de uma sociedade capitalista. Seu nome era Giancarlo.

O outro membro dos Primeiros Cem ela conhecera como o agitador dos partidos de esquerda na universidade. Falava demais, mas era um orador excepcional, que gostava de incitar as multidões à violência, embora ele próprio fosse essencialmente inepto na ação. Seu caráter mudara depois que fora preso pela polícia especial antiterrorista e interrogado com o maior rigor. Em outras palavras, pensou Annee, haviam arrancado tudo dele, deixando-o no hospital por um mês. Sallu, era esse o seu nome, passara a falar menos e agir mais. Finalmente fora reconhecido como um dos Cristos da Violência, um dos Primeiros Cem.

Os dois homens, Giancarlo e Sallu, agora viviam na clandestinidade, a fim de se esquivarem à polícia antiterro¬rista. E haviam promovido aquela reunião com todo cuidado. Annee fora convocada à cidade de Palermo e instruída a vaguear de um lado para outro, visitando os pontos de atração turística, até que fizessem contato. No segundo dia ela encontrou-se com uma mulher chamada Livia, numa butique, e foi levada a um encontro num pequeno restaurante, onde eram as únicas freguesas. O restaurante em seguida fechara as portas para o público; os donos e o único garçom eram obviamente membros do grupo. Depois, Gian¬carlo e Sallu vieram da cozinha. Giancarlo usava o uniforme de cozinheiro e seus olhos faiscavam com um brilho divertido. Tinha nas mãos uma enorme tigela, com espaguete pintado de preto pela tinta de uma lula picada. Sallu, por trás dele, carregava uma cesta de madeira com pão dourado com sementes de gergelim e uma garrafa de vinho.

Os quatro — Annee, Livia, Giancarlo e Sallu — sentaram para almoçar. Giancarlo serviu porções de espaguete da tigela, e o garçom trouxe salada, um prato com presunto rosado e um queijo granulado preto e branco,

— Só porque estamos lutando por um mundo melhor, não devemos passar fome — comentou Giancarlo.

Ele estava sorrindo, parecia inteiramente à vontade.

— Nem morrer de sede — acrescentou Sallu, enquanto servia o vinho.

Só que ele estava bastante nervoso.

As mulheres se deixaram servir; como uma questão de protocolo revolucionário, não assumiam o papel feminino estereotipado. Mas divertiam-se com a situação: afinal, estavam ali para receber ordens de homens. Começaram a comer e Giancarlo abriu a conferência:

— Vocês duas foram muito espertas. Parece que não estão sob qualquer suspeita de participação na operação da Páscoa. Portanto, foi decidido que podemos usá-las em nossa próxima missão. Ambas são extremamente qualificadas. Possuem a experiência, mas também, o que é ainda mais importante, possuem a vontade. Por isso, estão sendo convocadas. Mas devo adverti-las de que esta missão é mais perigosa que a da Páscoa.

— Devemos nos oferecer como voluntárias antes de conhecermos os detalhes? — indagou Livia.

Foi Sallu quem respondeu, de forma brusca:

— Claro.

Annee interveio, impaciente:

— Vocês sempre passam por essa rotina e perguntam: São voluntárias?” Acham que viemos até aqui para comer este espaguete horrível? Se viemos, foi porque somos voluntárias. Portanto, vamos logo seguir em frente.

Giancarlo acenou com a cabeça; achava-a divertida.

— Está bem, está bem...

Ele ficou em silêncio por um longo tempo, comendo, antes de comentar, pensativo:

— O espaguete não é tão ruim assim. — Todos riram, e ao final das risadas Giancarlo acrescentou: — A operação é dirigida contra o Presidente dos Estados Unidos. Ele deve ser liquidado. O Sr. Kennedy está vinculando nossa organização à explosão da bomba atômica em seu país. Seu governo planeja criar equipes especiais de operações para nos caçar, em escala global. Participei de uma reunião em que nossos amigos do mundo inteiro decidiram cooperar nesta operação.

— Na América, isso é impossível para nós — disse Livia. — Onde conseguiríamos o dinheiro, as linhas de comunicações, como poderíamos instalar casas seguras e recrutar pessoal? E, acima de tudo, as informações necessárias. Não temos nenhuma base na América.

— Dinheiro não é problema — anunciou Sallu. — Estamos sendo financiados. O pessoal será infiltrado e só terá um conhecimento limitado.

Giancarlo acrescentou:

— Livia, você irá primeiro. Contamos com um apoio secreto na América. Gente muito poderosa. Eles a ajudarão a instalar casas seguras e estabelecer as linhas de comunicações. Você terá recursos disponíveis em determinados bancos. E você, Annee, irá mais tarde, como chefe de operações. Ficará com a parte mais difícil.

Annee sentiu um frêmito de satisfação. Finalmente assumiria o comando de uma operação. Finalmente seria igual a Romeu e Yabril. A voz de Livia interrompeu seus pensamentos:

— Quais são as nossas possibilidades?

— As suas são muito boas, Livia — respondeu Sallu, tranqüilizador. — Se nos descobrirem, deixarão que você escape livre, a fim de levantarem toda a operação. E quando Annee entrar em operação, você já terá retornado à Itália.

— É isso mesmo — confirmou Giancarlo. — Annee, o seu risco será o maior.

— Aceito isso — murmurou Annee.

— Eu também aceito — acrescentou Livia. — O que eu queria saber era quais as nossas possibilidades de sucesso.

— Muito poucas — respondeu Giancarlo. — Mas ainda que fracassemos, sairemos ganhando. Proclamaremos nossa inocência.

Eles passaram o resto da tarde discutindo os planos operacionais, os códigos a serem usados, os planos para o desenvolvimento das redes especiais.

Já era crepúsculo quando terminaram, e Annee formulou então a pergunta que ficara por fazer durante toda a tarde:

— Quer dizer que a pior perspectiva é de que esta seja uma missão suicida?

Sallu baixou a cabeça. Os olhos gentis de Giancarlo fixaram-se nos de Annee e ele balançou a cabeça.

— É possível. Mas essa decisão será sua, não nossa. Romeu e Yabril ainda estão vivos, e esperamos libertá-los. E prometo a mesma coisa se vocês forem capturadas.

 

A DIVISÃO ESPECIAL de Christian Klee no FBI mantinha uma vigilância de computador sobre o Clube Sócrates e membros do Congresso. Klee sempre iniciava a manhã dando uma olhada em seus relatórios. Operava pessoalmente o computador em sua mesa, que continha dossiês pessoais, com seus próprios códigos secretos.

Naquela manhã em particular ele acionou a ficha de David Jatney e Cryder Cole. Klee sentia uma afeição especial por seus pressentimentos, e alguma coisa lhe dizia que Jatney poderia criar problemas. Não precisava mais se preocupar com Cole; o jovem tornara-se um motociclista entusiasmado e arrebentara a cabeça contra um penhasco rochoso, em Provo, Utah. Ele estudou a imagem de vídeo que apareceu em seu monitor, o rosto sensível, os olhos escuros e fundos. Como aquele rosto mudava da beleza em repouso para uma intensidade assustadora, quando ele se tornava emocional! Seriam as emoções tão terríveis ou era apenas a estrutura do rosto? Jatney se encontrava sob vigilância pouco rigorosa, era apenas um palpite. Mas quando leu os relatórios escritos no computador, Klee experimentou um senso de satisfação. O terrível inseto no ovo que era David Jatney começava a romper a casca.

David Jatney disparara seu rifle contra Louis Inch por causa de uma moça chamada Irene Fletcher. Irene ficou feliz ao saber que alguém tentara matar Inch, mas nunca soube que fora seu amante o autor do disparo. E isso apesar de lhe suplicar todos os dias que revelasse os seus pensamentos mais íntimos.

Haviam se conhecido na Montana Avenue, onde ela era uma das vendedoras na famosa Fioma Bake Shop, uma padaria em que se vendiam os melhores pães dos Estados Unidos. David sempre ia até lá para comprar pão e biscoito, conversava com Irene quando ela o servia. Até que um dia ela lhe perguntou:

— Não gostaria de sair comigo esta noite? Podemos rachar a despesa.

David sorriu. Ela não era uma das típicas louras da Califórnia. Tinha um rosto redondo e bonito, com uma expressão determinada, o corpo era um pouco rechonchudo, dava a impressão de que poderia ser velha demais para ele. Devia ter em torno de 25 anos. Mas os olhos cinza possuíam um brilho animado e ela sempre parecia inteligente nas conversas, por isso David aceitou. E, para dizer a verdade, ele sentia-se um tanto solitário.

Iniciaram um romance superficial e amigável; Irene Fletcher não dispunha de tempo para algo mais sério, nem a propensão. Tinha um filho de cinco anos, morava na casa da mãe. Era muito ativa na política local e se encontrava profundamente envolvida com religiões orientais, o que nada tinha de excepcional entre os jovens no sul da Califórnia. Para Jatney, era uma experiência revigorante. Irene muitas vezes levava o filho pequeno, Campbell, para os encontros, que com freqüência prolongavam-se pela madrugada; quando isso acontecia, ela enrolava o menino com uma manta índia e o punha para dormir no chão, enquanto ressaltava com veemência os méritos de um candidato a um cargo público ou do último vidente que viera do Extremo Oriente. Havia ocasiões em que David também dormia no chão, ao lado do menino.

Para Jatney, era uma combinação perfeita — nada tinham em comum. Ele detestava a religião e desprezava a política. Irene detestava cinema e só se interessava por livros sobre religiões exóticas e estudos sociais de esquerda. Mas faziam companhia um ao outro, cada um preenchia um buraco na existência do outro. Quando faziam sexo, era de uma forma um pouco precipitada, mas amigável invariavelmente. Às vezes Irene sucumbia a uma profunda ternura durante o ato sexual, que tratava de minimizar no instante seguinte.

Era bastante salutar que Irene adorasse falar e David gostasse de ficar calado. Deitavam na cama e Irene falava por horas a fio, enquanto David se limitava a escutar. Às vezes ela era interessante, em outras, não. Era interessante ouvir as histórias da luta incessante entre os grandes interesses imobiliários e os pequenos proprietários e locatários em Santa Monica. Jatney podia entender a situação. Adorava Santa Monica, adorava a paisagem de casas de dois andares e lojas de um andar, as residências de aparência espanhola, o ambiente geral de serenidade, a total ausência de prédios religiosos assustadores, como os tabernáculos mórmons em seu estado natal de Utah. Adorava a vasta extensão do Pacífico, cuja vista não era obstruída por enormes edifícios de vidro e pedra. E considerava Irene uma heroína por lutar para preservar tudo isso contra os ogros da indústria imobiliária.

Ela discorria sobre seus atuais gurus indianos e tocava as gravações de seus sermões. Esses gurus eram muito mais alegres e agradáveis do que os austeros anciãos da Igreja Mórmon que David escutara enquanto crescia, e suas convicções pareciam mais poéticas, os milagres, mais puros, mais espirituais, mais etéreos do que as famosas tábuas de ouro mórmons e o anjo Moroni. Ao final, no entanto, eram igualmente chatos, com sua rejeição dos prazeres do mundo e dos frutos do sucesso, pelos quais David Jatney ansiava.

E Irene nunca parava de falar, alcançava uma espécie de êxtase até quando discorria sobre as coisas mais banais. Ao contrário de Jatney, ela achava a vida, por mais banal que fosse, repleta de sentido.

Às vezes, quando Irene se deixava arrebatar e dissecava suas emoções por uma hora inteira, sem nenhuma interrupção, David sentia que ela era uma estrela no firmamento tornando-se cada vez maior e mais brilhante, enquanto ele despencava por um buraco negro sem fundo que era o universo, caindo e caindo sem que a mulher jamais percebesse.

Ele também apreciava o fato de Irene ser generosa nas coisas materiais, mas parcimoniosa com as emoções pessoais. Ela nunca mergulhava de fato no pesar, jamais caía nessas trevas universais. Sua estrela sempre se expandiria, nunca perderia o brilho. E ele sentia-se grato por ser assim. Não queria a companhia de Irene nas trevas.

Uma noite saíram para um passeio na praia, perto de Malibu. Pareceu estranho a David que houvesse aquele vasto oceano de um lado, depois uma fileira de casas e as montanhas no outro lado. Não era natural que houvesse montanhas quase beirando um oceano. Irene levara mantas, um travesseiro e o filho. Deitaram na areia e o menino, envolto por mantas, logo adormeceu.

Irene e David ficaram sentados numa manta, dominados pela beleza da noite. Naquele breve momento, estiveram apaixonados um pelo outro. Contemplaram o mar, que era azul-preto ao luar, os pequenos pássaros que pulavam à frente das ondas.

— David — disse Irene —, você nunca me contou nada a seu respeito. Quero amar você, mas não me deixa conhecê-lo.

David sentiu-se comovido. Riu, um pouco nervoso, depois disse:

— A primeira coisa que deve saber a meu respeito é que sou um Mórmon de Dez Quilômetros.

— Nem mesmo sabia que era um mórmon.

— Quando se é criado como um mórmon, aprende-se que não se deve beber, fumar ou cometer adultério — continuou David. — Assim, quando faz qualquer uma dessas coisas, é preciso cuidar para que se esteja a pelo menos dez quilômetros de distância de alguém que o conheça.

E depois ele falou de sua infância. E como odiava a Igreja Mórmon.

— Ensinam que não há problema em mentir se isso ajudar a Igreja — explicou David. — E os sacanas hipócritas ainda falam toda aquela merda sobre o anjo Moroni e uma bíblia de ouro. E usam calças de anjo. Reconheço que meu pai e minha mãe nunca acreditaram nessas coisas, mas podia-se ver as tais calças penduradas no varal. Não podia haver nada mais ridículo.

— O que é uma calça de anjo?

Irene segurava a mão de David, para encorajá-lo a continuar a falar.

— É uma espécie de túnica que eles usam para não gostar de trepar — explicou David. — E eles são tão ignorantes que não sabem que os católicos no século XVI tinham o mesmo tipo de traje, uma túnica que cobre o corpo inteiro, deixando apenas um buraco para se poder foder, supostamente sem gostar. Quando eu era garoto, podia ver as calças de anjo penduradas nos varais. Uma coisa devo dizer em defesa de meus pais: eles não aceitavam essa merda, mas tinham de mostrar a calça de anjo porque ele era um ancião na igreja. — David soltou uma risada, antes de acrescentar: — Por Deus, que religião!

— É fascinante, mas parece bastante primitiva — comentou Irene.

David pensou: E o que há de tão civilizado nesses gurus de merda que lhes dizem que as vacas são sagradas, que vocês são reencarnados, que esta vida nada significa, toda essa porra de carma? Irene sentiu que ele ficava tenso, queria que continuasse a falar. Enfiou as mãos por dentro da camisa de David, sentiu que seu coração batia descompassado.

— Você os odeia? — indagou ela.

— Nunca odiei meus pais. Eles sempre foram bons para mim.

— Estava me referindo à Igreja Mórmon.

— Odiei a Igreja desde que posso me lembrar. Odiava quando era garoto. Odiava as caras dos anciãos, odiava a maneira como minha mãe e meu pai os adulavam. Odiava a hipocrisia deles. Se você discordava das determinações da Igreja, eles podiam até mandar matá-lo. É uma religião comercial, eles sempre se mantêm unidos. Foi assim que meu pai enriqueceu. Mas vou lhe contar o que mais me repugnava. Eles têm unções especiais e os anciãos principais são ungidos secretamente, a fim de entrarem no céu antes das outras pessoas. Como alguém furando a fila, enquanto você espera por um táxi ou por uma mesa num restaurante popular.

— A maioria das religiões é assim, exceto as religiões indianas — comentou Irene. — É preciso apenas cuidar de seu carma.

Ela fez uma breve pausa, antes de acrescentar:

— É por isso que tento me manter alheia à ganância por dinheiro, é por isso que não posso brigar com meus semelhantes pelos bens materiais deste mundo. Tenho de manter meu espírito puro. Temos realizado reuniões especiais, há uma terrível crise em Santa Monica neste momento. Se não nos mantivermos alerta, os especuladores imobiliários vão destruir tudo por que lutamos e esta cidade ficará cheia de enormes edifícios. E aumentarão os aluguéis, você e eu seremos obrigados a deixar nossos apartamentos.

Ela continuou a falar, David escutava com uma sensação de paz. Podia ficar deitado naquela praia para sempre, perdido no tempo, perdido na beleza, perdido na inocência daquela moça, que era tão destemida pelo que poderia lhe acontecer neste mundo. Ela estava lhe falando de um homem chamado Louis Inch, que vinha tentando subornar o conselho municipal, a fim de que mudasse as leis de construção e locação. Ela parecia saber muita coisa a respeito do tal Inch, até pesquisara sua vida. O homem poderia ter sido um ancião da Igreja Mórmon. Ao final, Irene disse:

— Se não fosse tão ruim para meu carma, acho que eu mataria o miserável.

David riu.

— Atirei no Presidente dos Estados Unidos uma vez.

E ele contou a história do jogo de assassinato, conhecido como A Caçada, quando fora herói por um dia na Universidade Brigham Young, arrematando:

— E os anciãos mórmons que dirigem a universidade acabaram me expulsando.

Mas Irene se encontrava agora ocupada com o filho, que tivera um pesadelo e despertara gritando. Tratou de aquietá-lo, e depois disse a David:

— O tal de Inch vai jantar amanhã com alguns vereadores. Pretende levá-los ao Michael's e você sabe o que isso significa. Tentará suborná-los. Eu gostaria sinceramente de dar um tiro no desgraçado.

— Não estou preocupado com meu carma e posso dar um tiro nele por você — sugeriu David.

Os dois desataram a rir.

E na noite seguinte David limpou o rifle que trouxera de Utah e disparou o tiro que espatifara o vidro da limusine de Louis Inch. Na verdade, não mirou para acertar em alguém; o tiro até acertou muito mais perto da vítima do que ele tencionava. Estava apenas curioso em descobrir se seria capaz de fazê-lo.

 

FOI SAL TROYCA quem decidiu desmascarar Christian Klee. Repassando os depoimentos nos comitês do Congresso que investigavam a explosão da bomba atômica, ele notou que no depoimento de Klee a grande crise internacional do seqüestro tinha precedência. E havia também algumas contradições; Troyca constatou que havia um lapso de tempo. Christian Klee desaparecera da cena na Casa Branca. Para onde teria ido?

Não descobririam por intermédio de Klee, isso era mais do que certo. Mas a única coisa que podia fazer Klee desaparecer durante aquela crise era algo excepcionalmente importante. E se Klee tivesse ido interrogar Gresse e Tibbot?

Troyca não consultou seu chefe, o Deputado Jintz; em vez disso, ligou para Elizabeth Stone, a assessora administrativa do Senador Lambertino, combinou encontrá-la para jantar num obscuro restaurante. No mês desde a crise da bomba atômica, os dois haviam formado uma espécie de sociedade, tanto na vida pública quanto na particular.

No primeiro encontro, proposto por Troyca, chegaram a um acordo. Elizabeth Stone, sob sua beleza fria e impessoal, tinha um temperamento sexual ardente, mas sua mente era como o aço frio. A primeira coisa que ela dissera fora a seguinte:

— Nossos chefes perderão o emprego em novembro. Acho que você e eu devemos fazer planos para o nosso futuro.

Sal Troyca ficara espantado. Elizabeth Stone era famosa por ser uma daquelas assessoras que eram o braço direito leal de seus chefes congressistas.

— A luta ainda não acabou — comentara ele.

— Claro que já terminou. Nossos chefes tentaram tirar o presidente do cargo. Agora Kennedy é o maior herói que este país já conheceu, desde Washington. E vai tentar liquidar os dois.

Troyca era instintivamente uma pessoa mais leal a seu chefe. Não por um senso de honra, mas porque era competitivo, não queria pensar em si mesmo como integrante do lado perdedor.

— Claro que devemos continuar — acrescentara Eli-zabeth Stone. — Não vamos querer dar a impressão de que somos do tipo de pessoas que abandonam o navio afundando. Tiraremos o melhor proveito da situação. Mas posso arrumar para nós dois um emprego melhor.

Ela sorrira, maliciosa, e Troyca apaixonara-se por aquele sorriso. Era um sorriso de alegre tentação, um sorriso cheio de astúcia, ao mesmo tempo com uma admissão dessa astúcia, um sorriso que dizia que se ele não ficasse satisfeito com ela, então era um idiota. E Troyca retribuíra ao sorriso.

Sal Troyca tinha, até mesmo em sua opinião, uma espécie de charme untuoso, que só funcionava com certas mulheres, o que sempre surpreendia aos outros homens e a ele próprio. Os homens respeitavam Troyca por causa de sua astúcia, seu elevado nível de energia, sua capacidade na execução. Mas o fato de que ele podia atrair as mulheres de maneira tão misteriosa despertava a admiração deles. E naquele instante ele perguntara a Elizabeth Stone:

— Se nos tornarmos parceiros, isso significa que vou trepar com você?

— Apenas se assumir um compromisso — respondera Elizabeth Stone.

Havia duas palavras que Sal Troyca detestava mais do e quaisquer outras na língua inglesa. Uma era “compromisso”, e a outra era “relacionamento”.

— Está querendo dizer que devemos ter um relacionamento autêntico, um compromisso um com o outro, como amor? Como o compromisso que os negros da casa costumavam assumir com seus amos no velho Sul?

Ela suspirara.

— Seu machismo idiota pode virar um problema. —E, depois, explicara: — Posso fazer um acordo para nós. Tenho prestado uma grande ajuda na carreira política da vice-presidente. Ela me deve muito. Agora, você tem de aceitar a realidade. Jintz e Lambertino serão massacrados na eleição de novembro. Helen Du Pray está reorganizando sua equipe e serei uma de suas principais assessoras. Tenho um lugar para você como meu assistente.

Sal respondera, sorrindo:

— É um rebaixamento para mim. Mas se você é tão boa na cama quanto penso que é, vou pensar a respeito.

Elizabeth Stone mostrara-se impaciente.

— Não será um rebaixamento, já que você estará desempregado. E quando eu subir, você também subirá. Acabará com sua própria equipe, como assessor da vice-presi¬dente.

Ela fizera uma pausa.

— A verdade é que sentimos atração um pelo outro no gabinete do senador, talvez não amor, mas com certeza desejo à primeira vista. E soube que você costuma trepar com suas assistentes. Mas compreendo isso. Ambos trabalhamos demais, não temos tempo para uma vida social genuína, ou para uma vida amorosa autêntica. E estou cansada de trepar com caras só porque me sinto solitária uma ou outra vez por mês. Quero um relacionamento de verdade.

— Está avançando depressa demais — comentara Troyca. — Mas se estivesse na assessoria do presidente...

Ele dera de ombros e sorrira, para indicar que era brincadeira. Elizabeth Stone tornara a lhe oferecer aquele sorriso. Era de fato o tipo de sorriso insinuante que Troyca achava irresistível.

— Os Kennedys sempre foram infortunados — continuara ela. — A vice-presidente pode se tornar presidente. Mas, por favor, seja sério. Por que não podemos ter uma parceria, se é assim que você prefere chamar? Nenhum dos dois quer casar. Nenhum dos dois quer filhos. Por que não podemos levar meia vida um com o outro, mantendo nossas respectivas casas, é claro, mas de certa forma vivendo juntos? Podemos ter companhia e sexo, e podemos trabalhar juntos, como uma equipe. Podemos satisfazer nossas necessidades humanas e operar no mais alto ponto de eficiência. Se der certo, pode se tornar um grande arranjo. Se não der, podemos simplesmente encerrar a ligação. Temos até novembro para decidir.

Eles foram para a cama naquela noite e Elizabeth Stone fora uma revelação para Troyca. Como muitas pessoas tímidas, reservadas, homem ou mulher, ela era genuinamente ardente e terna na cama. E ajudara que o ato de consumação ocorresse na casa de Elizabeth Stone. Troyca não sabia que ela era rica. Como uma autêntica aristocrata, pensara Troyca, ela ocultara o fato, enquanto ele o teria alardeado. Troyca percebera imediatamente que a casa seria um lugar perfeito para os dois viverem, muito melhor do que o seu apartamento, apenas adequado. Ali, junto com Elizabeth Stone, ele poderia montar um escritório. A casa contava com três criados, e com isso ele seria poupado de detalhes que preocupavam e consumiam tempo, como mandar roupas para a lavanderia, comprar comida e bebida. E Elizabeth Stone, embora uma ardorosa feminista, desempenhava-se como alguma cortesã lendária na cama. Ora, era apenas na primeira vez que as mulheres agiam assim, pensara Troyca. Como a apresentação na primeira entrevista para um emprego; nunca mais eram tão atraentes. No mês subseqüente, porém, Elizabeth demonstrara que ele estava enganado.

Desenvolveram um relacionamento quase perfeito. Era maravilhoso para ambos, depois das longas horas com Jintz e Lambertino, irem para casa, saírem para jantar fora e depois dormirem juntos e fazerem amor. E pela manhã seguiam juntos para o trabalho. Ele pensara em casamento, pela primeira vez na vida. Mas sabia instintivamente que isso era uma coisa que Elizabeth não queria.

Levavam vidas contidas, um casulo de trabalho, companheirismo e amor, pois passaram a se amar. Mas a parte melhor e mais agradável do tempo em que passavam juntos era o planejamento sobre a maneira de mudar os acontecimentos em seu mundo. Ambos concordavam que Kennedy seria reeleito para a presidência em novembro. Elizabeth tinha certeza absoluta de que a campanha que estava sendo desfechada contra o presidente pelo Congresso e o Clube Sócrates estava fadada ao fracasso. Troyca não tinha tanta certeza assim. Ainda havia muitos trunfos para jogar.

Elizabeth odiava Kennedy. Não era um ódio pessoal; era a oposição inflexível de alguém que o considerava um tirano.

— O mais importante é impedir que Kennedy eleja o seu próprio Congresso em novembro — dissera ela. — Esse deve ser o campo de batalha. É evidente, pelas declarações de Kennedy na campanha, que ele mudará a estrutura da democracia americana. E isso criaria uma situação histórica muito perigosa.

— Se você se opõe a ele agora, como pode aceitar um cargo na equipe da vice-presidente depois da eleição? — indagara Sal.

— Não fazemos a política — respondera Elizabeth. — Somos administradores. E podemos trabalhar para qualquer pessoa.

Assim, depois de um mês de intimidade, Elizabeth ficou surpresa quando Sal convidou-a a se encontrarem num restaurante, em vez de irem para o conforto da casa que agora partilhavam. Mas ele insistiu. E no restaurante, enquanto tomavam o primeiro drinque, Elizabeth perguntou:

— Por que não podíamos conversar em casa?

Sal disse, pensativo:

— Venho estudando muitos documentos, alguns bastante antigos. Nosso procurador-geral, Christian Klee, é um homem muito perigoso.

— E daí?

— Ele pode ter instalado microfones em sua casa.

Elizabeth riu.

— Você está sendo paranóico.

— É possível, mas pense em algumas coisinhas. Christian Klee tinha aqueles dois garotos, Gresse e Tibbot, sob custódia, não os interrogou imediatamente. Mas houve um lapso de tempo. Os garotos foram aconselhados a ficar de boca fechada, até que suas famílias providenciassem advogados. E o que me diz de Yabril? Klee continua a mantê-lo escondido, ninguém consegue vê-lo ou falar com ele. Klee o cerca de tudo que é jeito, e conta com o apoio de Kennedy. Acho que Klee é capaz de qualquer coisa.

Elizabeth Stone sugeriu, pensativa:

— Você pode convencer Jintz a intimar Klee a comparecer perante um comitê da Câmara. E eu posso pedir ao Senador Lambertino para fazer a mesma coisa. Podemos desmascarar Klee.

— Kennedy recorrerá ao privilégio do executivo para impedi-lo de depor — disse Sal. — E podemos nos foder com essas intimações.

Elizabeth geralmente achava graça de suas vulgaridades, em particular na cama, mas agora não esboçara sequer um sorriso.

— Ele sairá prejudicado se usar esse recurso. Os jornais e a TV vão crucificá-lo.

— Está bem, podemos fazer isso. Mas que tal se apenas você e eu procurássemos Oddblood Gray e tentássemos persuadi-lo? Não podemos forçá-lo a falar, mas talvez ele revele alguma coisa. No fundo é um idealista, e talvez esteja psicologicamente horrorizado pela maneira como Klee meteu os pés pelas mãos no incidente da bomba atômica. Talvez ele até saiba algo concreto.

Foi lamentável que eles escolhessem Oddblood Gray para interrogar. Gray mostrou-se relutante em recebê-los, mas a amizade de Elizabeth com a Vice-Presidente Helen Du Pray foi o fator decisivo em favor deles. Gray tinha o maior respeito por Du Pray. Sal Troyca iniciou a conversa com uma pergunta:

— Não acha estranho que o procurador-geral, Chris-tian Klee, mantivesse aqueles dois jovens sob custódia antes da explosão, e não conseguisse lhes arrancar nenhuma informação?

— Eles recorreram a seus direitos constitucionais —respondeu Gray, cauteloso.

Troyca insistiu, secamente:

— Klee tem a reputação de ser um homem um tanto enérgico e engenhoso. Dois garotos como Gresse e Tibbot poderiam resistir a ele?

Gray deu de ombros.

— Nunca se sabe o que pode acontecer com Klee.

Foi Elizabeth Stone quem formulou a pergunta de forma direta:

— Sr. Gray, tem algum conhecimento ou mesmo qualquer motivo para acreditar que o procurador-geral interrogou secretamente aqueles dois rapazes?

Gray sentiu um súbito ímpeto de raiva à pergunta. Mas espere um pouco, pensou ele, por que deveria proteger Klee? Afinal, a maioria das pessoas mortas em Nova York era negra.

— Isto é confidencial, e negarei sob juramento. Klee conduziu um interrogatório secreto, com todos os aparelhos de escuta desligados. Não há qualquer registro. E possível acreditar no pior. Mas se o fizerem, devem acreditar também que o presidente não teve qualquer participação.

 

NAQUELA MANHÃ no início de maio, antes da reunião com o presidente, Helen Du Pray saiu para uma corrida de oito quilômetros, a fim de desanuviar a cabeça. Sabia que não apenas a administração, mas também ela própria, encontravam-se numa encruzilhada perigosa.

Era agradável saber que naquele momento ela era uma heroína para Kennedy e sua assessoria pessoal, porque se recusara a assinar a petição para removê-lo — embora esse sentimento derivasse de um conceito de honra masculina que ela desprezava.

Havia muitos problemas perigosos. O que Klee realmente fizera? Seria possível que ele pudesse ter evitado a explosão da bomba atômica? E deixara que explodisse porque sabia que isso salvaria o presidente? Ela podia acreditar que Klee fosse capaz de tal coisa, mas não Francis Kennedy. E não era certo que ele só poderia fazer algo assim com o consentimento de Kennedy?

E, no entanto... Havia agora uma aura de perigo na personalidade de Kennedy. Era evidente que ele tentaria eleger um Congresso subserviente para acatar sua vontade. E o que obrigaria esse Congresso a fazer? Era óbvio que Kennedy pretendia processar todos os membros importantes do Clube Sócrates. O que constituiria um uso do poder extremamente perigoso. Descartaria todos os princípios democráticos e éticos para promover sua visão de uma América melhor? Kennedy estava tentando proteger Klee, e Oddblood Gray rebelava-se contra isso. Helen Du Pray temia essa discórdia. Uma assessoria presidencial existia para servir ao presidente. A vice-presidente devia apoiar o presidente. Devia. A menos que renunciasse. E isso seria um golpe terrível para Kennedy. E o fim da carreira política dela. Iria se tornar a suprema traidora. E o pobre Francis... o que ele faria com Yabril?

Pois ela reconhecia que Kennedy podia se tornar tão implacável quanto seus oponentes: o Congresso, o Clube Sócrates, Yabril. Isso mesmo, Francis podia destruir todos eles — as tragédias de sua vida haviam deformado o cérebro de maneira irreversível.

Ela sentia o suor nas costas, os músculos das coxas doíam, sonhou em correr para sempre, nunca mais voltar à Casa Branca.

O Dr. Zed Annaccone temia aquela reunião com o Presidente Kennedy e sua assessoria. Sentia-se um pouco contrafeito em falar de ciência e misturá-la com alvos políticos e sociológicos. Nunca teria aceitado ser o assessor de ciência médica do presidente se não fosse pelo fato de ser a única maneira de garantir o financiamento apropriado para o seu amado Instituto Nacional de Pesquisa do Cérebro.

Não era tão ruim assim quando tratava diretamente com Francis Kennedy. O homem era brilhante; possuía um instinto para a ciência, embora fossem simplesmente absurdas as matérias dos jornais que alegavam que o presidente teria dado um grande cientista. Mas Kennedy compreendia com certeza o sutil valor da pesquisa, e como até mesmo as teorias científicas mais complexas podiam ter resultados quase milagrosos. Kennedy não era o problema. Era a assessoria pessoal e o Congresso, e todos os dragões burocráticos. E mais a CIA e o FBI, que estavam sempre olhando por cima de seu ombro.

Até começar a trabalhar em Washington, o Dr, An-naccone não compreendia de fato o tremendo abismo entre a ciência e a sociedade em geral. Era escandaloso que enquanto o cérebro humano dera um grande salto para a frente nas ciências, a política e a sociologia permanecessem quase estacionárias.

Ele achava incrível que a humanidade ainda travasse guerras, a um custo enorme e sem qualquer proveito. Que homens e mulheres individuais ainda se matassem uns aos outros, quando havia tratamentos que podiam dissipar as tendências assassinas nos seres humanos. Achava desprezível que a ciência da engenharia genética fosse atacada pelos políticos e meios de comunicação, como se a interferência com a biologia representasse a corrupção de algum espírito sagrado. Ainda mais quando era óbvio que a raça humana, com a sua constituição genética atual, estava condenada.

O Dr. Annaccone fora informado sobre o teor da reunião. Ainda havia alguma dúvida se a explosão da bomba atômica fora parte do plano terrorista para desestabilizar a influência da América no mundo — isto é, se havia uma ligação entre os dois jovens professores de física, Gresse e Tibbot, e o líder terrorista Yabril. Iriam lhe perguntar se deveriam usar o exame cerebral PET para interrogar os prisioneiros e determinar a verdade.

O que deixava o Dr. Annaccone na maior irritação. Por que não lhe haviam pedido para efetuar o PET antes da explosão da bomba atômica? Christian Klee alegava que ficara muito absorvido na crise do seqüestro e que a ameaça da bomba não parecera tão séria assim. O raciocínio do idiota típico. E o Presidente Kennedy recusara o pedido de Klee para a realização do teste cerebral PET por razões humanitárias. Era verdade, se os dois jovens fossem inocentes e os danos causados a seus cérebros durante o teste fossem irreversíveis, seria um ato inumano. Mas Annaccone sabia que esta era a atitude de um político para se proteger. Informara o presidente sobre o teste PET, de forma meticulosa, e Kennedy compreendia que o procedimento era quase que completamente seguro, e obrigaria o alvo a responder com a verdade. Poderiam ter localizado e desarmado a bomba. Haveria tempo suficiente.

Era lamentável, para dizer o mínimo, que tantas pessoas fossem mortas ou feridas. Mas Annaccone não podia deixar de sentir uma admiração furtiva pelos dois jovens cientistas. Gostaria de ter a coragem deles, pois haviam definido uma posição concreta, lunática, era verdade, mas uma posição objetiva. A de que à medida que o homem em geral adquiria mais conhecimento, aumentava a probabilidade de que indivíduos pudessem causar um desastre atômico. Era também verdade que a ganância do empresário individual ou a megalomania de um líder político podiam fazer a mesma coisa. Mas aqueles dois garotos estavam obviamente pensando em controles sociológicos, não científicos. Pensavam em reprimir a ciência, deter sua marcha para a frente. A verdadeira solução, é claro, era mudar a estrutura genética do homem, a fim de que a violência se tornasse um ato impossível. Pôr freios nos genes e no cérebro, assim como se põem freios numa locomotiva. Era simples assim.

Enquanto esperava na Sala do Gabinete da Casa Branca pela chegada do presidente, Annaccone desligou-se do resto das pessoas ali, através da leitura de sua pilha de memorandos e artigos. Sempre sentira uma resistência pessoal à assessoria do presidente. Christian Klee vigiava o Instituto Nacional de Pesquisa do Cérebro e as vezes impunha uma ordem de sigilo às suas pesquisas. Annaccone não gostava e usava táticas diversionárias sempre que podia. E com freqüência ficava surpreso ao descobrir que Klee podia ser mais esperto do que ele nessas questões. Os outros membros da assessoria, Eugene Dazzy, Oddblood Gray e Arthur Wix, eram primitivos, sem qualquer compreensão da ciência, concentrando-se nas questões relativamente insignificantes da sociologia e política.

Ele notou que a Vice-Presidente Helen Du Pray estava presente, assim como Theodore Tappey, o diretor da CIA. Sempre se sentia surpreso pelo fato de uma mulher ser vice-presidente dos Estados Unidos. Achava que a ciência se manifestava contra algo assim. Em suas pesquisas do cérebro, sempre pensara que algum dia encontraria uma diferença fundamental entre os cérebros masculino e feminino, divertia-se porque ainda não descobrira. E divertia-se porque haveria uma briga sensacional se constatasse alguma discrepância.

Ele sempre considerara Theodore Tappey como um Neanderthal. Entregar-se àquelas fúteis maquinações para obter um grau mínimo de vantagem nas relações exteriores, contra companheiros da raça humana. Era um esforço inútil, a longo prazo.

O Dr. Annaccone tirou alguns papéis de sua pasta. Havia um artigo interessante sobre a partícula hipotética chamada taquion. Nenhuma pessoa naquela sala jamais ouvira falar daquela palavra, pensou ele. Embora seu campo de estudos fosse o cérebro, o Dr. Annaccone possuía um vasto conhecimento de todas as ciências.

Por isso, ele absorveu-se agora no ensaio sobre os taquions. Os taquions realmente existiam? Os físicos vinham discutindo a respeito durante os últimos vinte anos. Os taquions, se existiam, destruiriam as teorias de Einstein; os taquions viajariam mais depressa do que a velocidade da luz, o que Einstein dissera ser impossível. É verdade que havia a alegação de que os taquions já estavam se deslocando mais depressa do que a luz desde o início, mas o que significava isso? Além do mais, a massa de um ta¬quion é um número negativo. O que supostamente era impossível. Mas o impossível na vida real podia ser possível no mundo fantástico da matemática. E então o que poderia acontecer? Quem sabia? Quem se importava? Certamente ninguém naquela sala, onde se encontravam alguns dos homens mais poderosos do planeta. Uma ironia por si mesma. Os taquions podiam mudar a vida humana mais do que qualquer coisa que aqueles homens fossem capazes de conceber.

O presidente finalmente entrou na sala e todos se levantaram. O Dr. Annaccone guardou seus papéis. Poderia apreciar aquela reunião se permanecesse alerta e contasse as piscadelas na sala. As pesquisas indicavam que as piscadelas podiam revelar se uma pessoa estava ou não mentindo. E com certeza haveria muitas piscadelas.

 

Francis Kennedy compareceu à reunião vestido à vontade, com uma calça esporte, uma camisa branca e uma suéter azul de casimira sem mangas, com um bom humor extraordinário num homem assediado por tantas dificuldades. Depois de cumprimentar a todos, ele disse:

— Temos o Dr. Annaccone aqui conosco hoje, a fim de podermos resolver o problema sobre se o terrorista Ya-bril estava de alguma forma ligado à explosão da bomba atômica. E também para esclarecer as acusações formuladas pelos jornais e televisão de que nós, na administração, poderíamos ter encontrado a bomba antes da explosão.

Helen Du Pray achou que devia fazer a pergunta:

— Senhor Presidente, declarou em seu discurso no Congresso que Yabril era parte da conspiração da bomba atômica. Foi enfático nesse ponto. Essa declaração foi baseada em provas concretas?

Kennedy estava preparado para essa pergunta e respondeu com uma precisão serena:

— Eu acreditava que era verdade na ocasião, acredito que é verdade agora.

— Mas quais eram as provas concretas? — insistiu Oddblood Gray.

Os olhos de Kennedy encontraram-se com os de Klee por um momento, antes de ele virar-se para Annaccone e seu rosto se desmanchar num sorriso amistoso.

— É por isso que estamos aqui. Para descobrir. Dr. Annaccone, quais são seus pensamentos a respeito? Talvez possa nos ajudar. E como um favor pessoal, pare de calcular os segredos do universo nesse seu bloco. Já descobriu o suficiente para nos meter nas maiores encrencas.

O Dr. Annaccone estivera escrevendo equações matemáticas no bloco à sua frente. Compreendeu que o comentário era uma censura disfarçada como elogio, e disse:

— Ainda não compreendo por que não assinou a ordem para o exame PET antes da explosão do artefato nuclear. Já tinha os dois jovens sob custódia. E tinha a autoridade para isso, pela Lei de Controle de Armas Atômicas.

Christian apressou-se em interferir:

— Estávamos no meio do que julgávamos ser uma crise muito mais importante, se bem se lembra. Achei que esse assunto poderia esperar por mais um dia. Gresse e Tibbot alegavam que eram inocentes, e já dispúnhamos de provas suficientes para detê-los. Não tínhamos o suficiente para indiciá-los. E depois o pai de Tibbot entrou em cena, passamos a enfrentar um bando de advogados de luxo nos ameaçando com todos os processos. Por isso, achamos que poderíamos esperar até que a outra crise acabasse, pois talvez então tivéssemos mais algumas provas.

A Vice-Presidente Du Pray indagou:

— Christian, tem alguma idéia de como Tibbot Sênior foi avisado sobre a prisão do filho?

— Estamos verificando todos os registros da companhia telefônica de Boston para descobrir a origem das ligações recebidas por Tibbot Sênior. Até agora, ainda não tivemos sorte.

O diretor da CIA, Theodore Tappey, comentou:

— Com todos os seus equipamentos de alta tecnologia, já deveriam ter descoberto.

— Helen, você os desviou para uma tangente — interrompeu Kennedy. — Vamos nos ater à questão principal. Dr. Annaccone, deixe-me responder à sua pergunta, Christian está tentando remover um pouco da pressão sobre mim, e é justamente para isso que um presidente tem uma assessoria pessoal. Mas eu tomei a decisão de não autorizar a sondagem cerebral. Segundo os protocolos, há algum perigo de danificar o cérebro e eu não queria correr esse risco. Os dois jovens negaram tudo, e não havia provas de que existia mesmo um bomba, a não ser a carta de advertência. O que temos aqui é um ataque insidioso dos meios de comunicação, com o apoio de alguns membros do Congresso. Quero fazer uma pergunta específica. Poderíamos eliminar a possibilidade de algum conluio entre Yabril e os Professores Tibbot e Gresse se efetuássemos o teste cerebral PET em todos eles? Isso resolveria o problema?

O Dr. Annaccone respondeu em tom incisivo:

— Claro. Mas há agora uma circunstância diferente. Está usando a Lei de Controle de Armas Atômicas para obter provas num processo criminal, não para descobrir o paradeiro de um artefato nuclear. A lei não autoriza o teste PET nessas circunstâncias.

— Além do mais — acrescentou Dazzy —, os advogados contratados nunca nos deixarão chegar perto daqueles garotos.

O Presidente Kennedy lançou um sorriso frio para Dazzy.

— Doutor, ainda temos Yabril. Quero que Yabril seja submetido a uma sondagem cerebral. A pergunta que será formulada é a seguinte: Havia uma conspiração? E a explosão da bomba atômica era parte de seu plano? Se a resposta for afirmativa, as implicações serão enormes. É possível que ainda haja uma conspiração em andamento. E pode envolver muito mais do que a cidade de Nova York. Outros membros do grupo terrorista Primeiros Cem poderiam plantar outros artefatos nucleares. Compreende agora?

— Senhor Presidente, acha que essa possibilidade realmente existe? — indagou o Dr, Annaccone.

— Precisamos eliminar qualquer dúvida a respeito — respondeu Kennedy. — Minha decisão é de que esse interrogatório médico do cérebro está justificado nos termos da Lei de Controle de Armas Atômicas.

— Haverá uma tremenda repercussão — disse Arthur Wix. — Eles vão alegar que estamos efetuando uma lobotomia.

Eugene Dazzy comentou, secamente:

— E não estamos?

O Dr. Annaccone ficou de repente tão irritado quanto alguém podia se mostrar na presença do Presidente dos Estados Unidos.

— Não é uma lobotomia — declarou ele. — É um teste cerebral com interferência química. O paciente continua completamente o mesmo depois que o interrogatório é concluído.

— A menos que ocorra algum pequeno deslize — insistiu Dazzy.

O secretário de imprensa, Matthew Gladyce, interveio:

— Senhor Presidente, o resultado do teste determinará que tipo de comunicado faremos. Precisamos ter muito cuidado. Se o teste comprovar que houve uma conspiração, ligando Yabril, Gresse e Tibbot, estaremos inocentados. Se o teste comprovar que não houve conluio, terá de apresentar muitas explicações.

— Vamos seguir adiante e tratar de outras coisas — determinou Kennedy, bruscamente.

Eugene Dazzy leu do memorando à sua frente:

— O Congresso quer levar Christian a um de seus comitês de investigação. O Senador Lambertino e o Deputado Jintz querem interrogá-lo. Estão alegando, e insinuaram isso por todos os meios de comunicação, que o Procurador-Geral Christian Klee é a chave para qualquer coisa estranha que tenha ocorrido.

— Posso invocar o privilégio do executivo — disse Kennedy. — Como presidente, eu lhe ordeno que não compareça a qualquer comitê do Congresso.

O Dr. Annaccone, entediado com as discussões políticas, disse em tom de gracejo:

— Christian, por que não se oferece para fazer o nosso teste PET? Pode determinar sua inocência de maneira inequívoca. E endossar a moralidade do procedimento.

— Doutor — disse Christian —, não estou interessado em determinar minha inocência, como falou. A inocência é uma coisa que a ciência nunca será capaz de determinar. E não estou interessado na moralidade de uma sondagem cerebral que determinará a veracidade de outro ser humano. Não estamos aqui discutindo a inocência ou a moral. Discutimos o uso do poder para permitir que a sociedade funcione. Outra área em que sua ciência é inútil. Como me disse muitas vezes, não se meta em algo que não entende. Por isso, vá se foder.

Era raro que naquelas reuniões as emoções se manifestassem de forma tão incontida. Era ainda mais raro que se usasse uma linguagem chula quando a Vice-Presidente Du Pray comparecia às reuniões da assessoria — não que a vice-presidente fosse uma mulher pudica. As pessoas na Sala do Gabinete ficaram surpresas com a explosão de Chris¬tian Klee.

O Dr. Annaccone ficou desconcertado. Apenas dissera uma piadinha. Gostava de Klee, como a maioria das pessoas. O homem era cortês e civilizado, parecia mais inteligente do que a maioria dos advogados. O Dr. Annaccone, como um grande cientista, orgulhava-se de compreender praticamente tudo no universo. Agora sofria a lamentável e mesquinha vulnerabilidade humana de ter seus sentimentos magoados. Por isso, sem pensar, ele disse:

— Já trabalhou na CIA, Sr. Klee. E no quartel-general da CIA tem uma placa de mármore que diz: “Conheça a verdade, e a verdade o libertará.”

Christian recuperara seu bom humor.

— Não escrevi isso. E duvido muito.

O Dr. Annaccone também se recuperara. E começara a analisar. Por que a reação furiosa à sua sugestão jocosa? O procurador-geral, a mais alta autoridade legal no poder executivo do país, tinha realmente alguma coisa a esconder? Annaccone adoraria ter o homem em seu consultório para o teste PET.

Francis Kennedy observara esse diálogo com uma expressão solene, embora um pouco divertida. E, agora, ele interveio, gentilmente:

— Zed, quando você aperfeiçoar o teste cerebral do detector de mentiras, a tal ponto que poderá ser realizado sem efeitos colaterais, talvez tenhamos de sepultá-los. Não há um único político neste país que poderia conviver com isso.

O Dr. Annaccone declarou:

— Todas essas questões são irrelevantes. O processo foi descoberto. A ciência iniciou sua exploração do cérebro humano. Nunca se pode deter um processo depois de iniciado. Os luditas provaram isso quando tentaram deter a Revolução Industrial. Não se pôde proibir o uso da pólvora, como os japoneses aprenderam ao banirem as armas de fogo por centenas de anos, para depois serem dominados pelo mundo ocidental. A partir do momento em que o átomo foi descoberto, não se podia mais impedir a bomba. O detector de mentiras cerebral está aqui para ficar, é o que posso assegurar a todos.

— Viola a Constituição — protestou Klee.

O Presidente Kennedy comentou, bruscamente:

— Talvez tenhamos de mudar a Constituição.

Matthew Gladyce interveio, com uma expressão horrorizada:

— Se os repórteres ouvissem esta conversa, talvez acabássemos expulsos da cidade.

— Sua função é comunicar ao público o que falamos numa linguagem apropriada, e no momento oportuno — comentou Kennedy. — E lembre-se de uma coisa: o povo americano é que vai decidir. Sob a Constituição. E agora vamos seguir adiante. Creio que a solução para todos os nossos problemas é desfechar um contra-ataque. Christian, acelere o processo contra Bert Audick. Sua companhia será acusada de conspiração criminosa com o sultanato de Sherhaben para fraudar o público americano, através da criação ilegal de uma escassez de petróleo para aumentar os preços. Esse é o primeiro ponto.

O presidente virou-se para Oddblood Gray.

— Esfregue o nariz do Congresso na notícia de que a nova Comissão Federal de Comunicações negará as licenças das emissoras das grandes redes de TV, quando solicitarem a renovação. E que novas leis controlarão as transações de Wall Street e dos grandes bancos. Vamos lhes dar alguma coisa com que se preocuparem, Otto.

Helen Du Pray sabia que tinha todo o direito de discordar nas reuniões privadas, embora fosse compulsório, como vice-presidente, concordar com o presidente publicamente. Apesar disso, ela hesitou, antes de dizer, cautelosa:

— Não acha que estaremos fazendo inimigos demais ao mesmo tempo? Não seria melhor esperarmos até sermos eleitos para um segundo mandato? Se de fato conseguirmos um Congresso mais simpático a nossas propostas, por que lutar contra o atual Congresso? Por que atiçar desnecessariamente todos os interesses empresariais contra nós, quando ainda não nos encontramos numa posição de força maior?

— Não podemos esperar — disse Kennedy. — Eles vão nos atacar, não importa o que façamos. Continuarão a tentar impedir minha reeleição e meu Congresso, por mais conciliadores que sejamos. Atacando-os, podemos forçá-los a considerar. Não podemos permitir que sigam em frente como se não tivessem a menor preocupação no mundo.

Todos permaneceram em silêncio. Kennedy levantou-se e acrescentou para seus assessores:

__Vocês podem definir os detalhes e preparar os documentos necessários.

Foi nesse momento que Arthur Wix falou sobre a campanha dos meios de comunicação, inspirada pelo Congresso, para atacar o Presidente Kennedy, destacando quantos homens e quanto dinheiro eram usados para proteger o presidente.

— O objetivo da campanha é apresentá-lo como uma espécie de César e o Serviço Secreto como uma espécie de guarda imperial do palácio — disse Wix. — Para o público, dez mil homens e um milhão de dólares para proteger um único homem, mesmo sendo o Presidente dos Estados Unidos, parece excessivo. E representa uma péssima imagem em matéria de relações públicas.

Houve silêncio de novo. A lembrança do assassinato de outros Kennedys tornava aquela questão bastante delicada. Além disso, todos eles, mantendo-se tão próximos do presidente, sabiam que Kennedy sentia alguma espécie de medo físico. Por isso, ficaram surpresos quando Kennedy virou-se para o procurador-geral e declarou:

— Neste caso, acho que os nossos críticos estão certos. Christian, sei que vetei qualquer alteração na proteção, mas o que acha de anunciarmos que a divisão do Serviço Secreto da Casa Branca será reduzida à metade? E o orçamento também será cortado. E eu gostaria que não usasse o seu veto para impedir isso, Christian.

Christian sorriu.

— Talvez eu tenha exagerado um pouco, Senhor Presidente. Não usarei meu veto, que sempre poderia ser anulado pelo seu veto.

Todos riram. Mas Gladyce estava um pouco preocupado com essa vitória aparentemente fácil.

— Senhor Procurador-Geral, não pode simplesmente dizer que fará isso e depois não fazer. O Congresso vai fiscalizar nosso orçamento e examinar todas as dotações.

— Está certo — disse Christian. — Mais uma coisa: quando preparar seu comunicado à imprensa, não esqueça de enfatizar que protestei com vigor contra essa medida. Procure dar a impressão de que o presidente está se curvando à pressão do Congresso.

— Agradeço a todos — disse Kennedy. — A reunião está encerrada.

O diretor do Gabinete Militar da Casa Branca, Coronel Henry Canoo, oficial reformado do exército americano, era o homem mais jovial e descontraído na administração. Era jovial porque tinha o que considerava o melhor emprego no país. Só era responsável diretamente ao Presidente dos Estados Unidos, e controlava os fundos secretos presidenciais creditados ao Pentágono, que não estavam sujeitos a nenhuma fiscalização, a não ser a sua e do presidente. Além disso, ele era rigorosamente um administrador; não decidia as questões de política, nem mesmo precisava oferecer sugestões. Era ele quem providenciava todos os aviões, helicópteros e limusines para o presidente e seus assessores pessoais. Era ele quem liberava os recursos para a construção e manutenção dos prédios usados pela Casa Branca que eram considerados secretos. Cuidava da administração do “Futebol”, o suboficial que sempre carregava a pasta com os códigos da bomba atômica para o presidente usar. Sempre que o presidente queria fazer alguma coisa que custasse dinheiro, mas não quisesse que o Congresso ou os meios de comunicação soubessem, Henry Canoo desembolsava o dinheiro do fundo secreto e carimbava nas notas a mais alta classificação de segurança.

Assim, naquela tarde no fim de maio, quando o Procurador-Geral Klee entrou em sua sala, Henry Canoo cumprimentou-o calorosamente. Já haviam feito outras operações juntos, e no início de sua administração o presidente dera instruções a Canoo para conceder ao procurador-geral qualquer coisa que ele pedisse do fundo secreto. Nas primeiras vezes, Canoo ainda confirmara com o presidente, mas agora já não fazia mais isso.

— Christian — disse ele, jovialmente —, está procurando por informações ou dinheiro?

— As duas coisas — respondeu Christian. — Primeiro o dinheiro. Vamos prometer publicamente uma redução em cinqüenta por cento da divisão do Serviço Secreto e um corte substancial no orçamento de segurança. Terei de providenciar isso, mas será apenas uma transferência no papel, nada vai mudar. Só que não quero que o Congresso possa descobrir o esquema financeiro. Por isso, seu gabinete militar terá de tirar o dinheiro do orçamento do Pentágono. E depois deverá aplicar sua classificação de segurança máxima.

— Santo Deus! — exclamou Canoo. — É um bocado de dinheiro. Posso dar um jeito, mas não por muito tempo.

— Só até a eleição de novembro — informou Christian. — Nessa ocasião estaremos fora daqui ou tão fortes que o Congresso não fará a menor diferença. Mas neste momento precisamos dar a impressão de que é tudo correto.

— Está certo.

— Agora, a informação. Algum dos comitês do Congresso esteve farejando por aqui ultimamente?

— Claro, Christian. E mais do que o habitual. Continuam a tentar descobrir quantos helicópteros estão à disposição do presidente, quantas limusines, quantos aviões, essas merdas. Tentam descobrir o que o poder executivo está fazendo. Se soubessem quantos realmente temos, acho que teriam um ataque.

— Que congressista em particular?

— Jintz. Ele tem um assistente-administrativo, Sal Troyca, que é um filho da puta bastante esperto. Diz que só quer saber quantos helicópteros temos, e eu respondo três. Ele diz que soube que são quinze, e eu insisto: “Mas o que a Casa Branca faria com quinze helicópteros?” Mas o sacana chegou perto, pois temos dezesseis.

Klee ficou surpreso.

— E o que fazemos com dezesseis helicópteros?

— Helicópteros sempre quebram. Se o presidente pede um helicóptero, vou dizer-lhe que não, porque estão todos na oficina? Além do mais, as pessoas na assessoria estão sempre pedindo um helicóptero. Você até que não é dos piores, Christian, mas Tappey da CIA e Wix consomem muito tempo de helicóptero. E Dazzy também, embora eu não tenha a menor idéia de como ele usa.

— E também não quero saber — disse Christian. — Quero que me informe sobre qualquer bisbilhoteiro do Congresso que tentar descobrir qual a logística de apoio à missão presidencial. Tem uma relação com a segurança. Ponha-me a par de tudo, com a classificação ultra-secreta.

— Está bem — respondeu Canoo, jovialmente. — E sempre que precisar de alguma reforma em sua casa particular, podemos recorrer também ao fundo secreto.

— Obrigado, mas tenho meu próprio dinheiro.

Ao final da tarde, nesse mesmo dia, o Presidente Kennedy sentou no Gabinete Oval e fumou seu charuto Havana, bem fino. Revisou os acontecimentos do dia. Tudo transcorrera exatamente como ele planejara. Mostrara a sua mão apenas o suficiente para ganhar o apoio da assessoria pessoal.

Klee reagira como era de se esperar, como se lesse os pensamentos do presidente. Canoo o consultara para confirmar. Annaccone era maleável. Helen Du Pray poderia se tornar um problema se ele não tomasse cuidado, mas precisava de sua inteligência e de sua base política das organizações femininas.

Francis Kennedy ficou surpreso ao constatar como se sentia bem. Não havia mais qualquer depressão, e seu nível de energia era mais alto do que em qualquer outra ocasião desde a morte da esposa. Seria porque finalmente assumira o controle da vasta e complexa engrenagem política dos Estados Unidos?

 

O Presidente Kennedy convidou Christian Klee a fazer o desjejum em sua suíte na Casa Branca. Era raro haver reuniões nos aposentos particulares de Kennedy.

Jefferson, o mordomo particular do presidente e agente do Serviço Secreto, serviu o lauto desjejum e depois retirou-se discretamente para a copa; só tornaria a aparecer quando fosse chamado pela campainha. Kennedy comentou, casualmente:

— Sabia que Jefferson foi um estudante excepcional, um grande atleta? Jefferson nunca se submeteu a ninguém. — Ele fez uma pausa. — Como ele se tornou um mordomo, Christian?

Klee sabia que tinha de contar a verdade.

— Ele é também o melhor agente do Serviço Secreto. Recrutei-o pessoalmente para essa função.

— A mesma indagação continua a se aplicar... por que ele aceitaria um emprego no Serviço Secreto? E ainda por cima como mordomo?

— Ele ocupa um posto bastante alto no Serviço Secreto.

— Ainda assim — insistiu Kennedy.

— Organizar um procedimento de filtragem dos mais elaborados para essas funções. Jefferson era o melhor de todos, e é na verdade o chefe da equipe na Casa Branca.

— Ainda assim.

— Prometi-lhe que arrumaria, antes de sua saída da Casa Branca, um cargo influente no Departamento de Saúde, Educação e Assistência Social.

— Ah, foi muito esperto... como vai parecer em seu currículo passar de mordomo a um cargo importante?

— Seu currículo dirá que ele era meu assistente executivo — explicou Christian.

Kennedy levantou a caneca de café, a porcelana branca com águias gravadas.

— Não me leve a mal, Christian, mas notei que todos os meus empregados imediatos na Casa Branca são muito eficientes em suas funções. Todos pertencem ao Serviço Secreto? Isso seria incrível.

— Uma escola especial e uma doutrinação especial, apelando para o orgulho profissional de todos — disse Christian. — Não é tão incrível assim.

Kennedy soltou uma risada.

— Até mesmo os cozinheiros?

— Especialmente os cozinheiros — respondeu Christian, sorrindo. — Todos os cozinheiros são malucos.

Como muitos homens, Christian sempre usava uma piada a fim de obter tempo para pensar. Conhecia o método de Kennedy de se preparar para entrar em terreno perigoso, demonstrando bom humor e mais um fragmento de informação que não deveria ter.

Continuaram a comer, Kennedy bancando o que chamava de “mãe”, passando os pratos e servindo. A porcelana, à exceção da caneca especial de café de Kennedy, era uma beleza, com o símbolo presidencial azul, tão frágil quanto uma casca de ovo. Ao final, Kennedy anunciou, em tom quase de indiferença:

— Eu gostaria de passar uma hora com Yabril. Espero que você cuide disso pessoalmente. — Ele percebeu a expressão de ansiedade no rosto de Christian e acrescentou: — Apenas por uma hora e só uma vez.

— O que pode ganhar com isso, Francis? E pode ser angustiante demais para você. Talvez não conseguisse suportar.

Havia sulcos no rosto de Kennedy que Christian nunca notara antes.

— Claro que posso suportar.

— Se o encontro vazar, haverá muitas indagações — insistiu Christian.

— Pois então cuide para que não vaze. Não haverá registros escritos do encontro, não constará da pauta da Casa Branca. Quando poderá ser?

— Precisarei de alguns dias para tomar as providências necessárias. E Jefferson terá de saber.

— Mais alguém deve saber?

— Talvez seis outros homens da minha divisão especial — informou Christian. — Terão de saber que Yabril se encontra na Casa Branca, mas não necessariamente para se encontrar com você. Vão adivinhar, mas não saberão com certeza.

— Se for necessário — sugeriu Kennedy —, posso ir até o lugar em que você o mantém.

— De jeito nenhum. A Casa Branca é o melhor lugar. E deve ser depois de meia-noite. Sugiro uma hora da madrugada.

— Está certo. Depois de amanhã.

— Combinado, Francis. Você terá de assinar alguns papéis, que serão vagos, mas me protegerão se alguma coisa sair errada.

Kennedy suspirou, como se estivesse aliviado, depois ressaltou, em tom firme:

— Ele não é um super-homem. Não se preocupe. Quero conversar com ele livremente, quero que ele responda de forma lúcida e por sua livre e espontânea vontade. Não o quero drogado nem coagido por qualquer meio. Quero entender como sua mente funciona e talvez assim deixe de odiá-lo tanto. Quero descobrir como as pessoas iguais a ele realmente sentem.

— Devo estar fisicamente presente nessa reunião — avisou Christian, constrangido. — Sou o responsável.

— Não pode esperar do lado de fora da porta, junto com Jefferson? — indagou Kennedy.

Christian, em pânico pelas implicações desse pedido, bateu com a frágil xícara de café e disse, angustiado:

— Por favor, Francis, não posso fazer isso. É verdade que ele estará contido, fisicamente impotente, mas ainda assim devo servir como intermediário entre os dois. Esta é uma ocasião em que tenho de usar o poder de veto que me concedeu.

Ele tentou esconder seu medo pelo que Kennedy poderia fazer. Ambos sorriram. Fora parte do acordo, quando Christian garantira a segurança do presidente. Como chefe do Serviço Secreto, Christian poderia vetar qualquer exposição presidencial ao público.

— Nunca abusei desse poder — acrescentou Christian.

Kennedy fez uma careta.

— Mas o tem exercido com bastante vigor. Muito bem, você pode ficar na sala, mas tente desaparecer na decoração colonial. E Jefferson fica no outro lado da porta.

— Providenciarei tudo. Mas devo lhe dizer, Francis, que isso não poderá ajudá-lo.

Christian Klee preparou Yabril para o encontro com o Presidente Kennedy. Já houvera, é claro, muitos interrogatórios, mas Yabrii, sorridente, recusara-se a responder a qualquer pergunta. Mostrara-se muito frio, muito confiante, disposto a conversar em termos gerais — discutir política, teoria marxista, o problema palestino, que ele chamava de problema israelense —, mas recusava-se a falar sobre seus antecedentes ou suas operações terroristas. Recusava-se a falar sobre Romeu, seu parceiro, ou sobre Theresa Kennedy e seu assassinato, ou sobre o seu relacionamento com o sultão de Sherhaben.

A prisão de Yabril era um pequeno hospital de dez leitos, construído pelo FBI para manter os prisioneiros perigosos e os informantes valiosos. Aquele hospital era guarnecido por pessoal médico do Serviço Secreto e guardado pela divisão especial de agentes sob o comando direto de Klee. Havia cinco desses hospitais de detenção nos Estados Unidos: um na área de Washington, D.C., outro em Chicago, um em Los Angeles, um em Nevada, e outro em Long Island.

Esses hospitais eram usados às vezes para experiências médicas secretas com prisioneiros voluntários. Mas Klee esvaziara o hospital em Washington para manter Yabril no isolamento. Também esvaziara o hospital em Long Island para colocar ali os dois jovens cientistas que haviam planejado a bomba atômica.

No hospital em Washington, Yabril vivia numa suíte médica completamente equipada para abortar qualquer tentativa de suicídio pela violência ou jejum. Havia restrições físicas e equipamentos para alimentação intravenosa.

Cada centímetro do corpo de Yabril, inclusive os dentes, havia sido radiografado, e ele era sempre contido por um casaco frouxo de fabricação especial, que lhe permitia um uso apenas parcial dos braços e pernas. Ele podia ler e escrever, andar em passos miúdos, mas não podia fazer movimentos mais violentos. Era também mantido sob vigilância 24 horas por dia, através de um espelho de face dupla, por equipes de agentes do Serviço Secreto, da divisão especial de Klee.

Depois da conversa com o Presidente Kennedy, Christian foi visitar Yabril, sabendo que tinha um problema. Entrou na suíte de Yabril em companhia de dois agentes do Serviço Secreto. Sentou num dos sofás confortáveis e ordenou que Yabril fosse trazido do quarto. Empurrou Yabril para uma das poltronas, gentilmente, e depois ordenou que os agentes verificassem as correias que o restringiam. Yabril comentou, em tom desdenhoso:

— É um homem muito cuidadoso, com todo o seu poder.

— Acredito em ser cuidadoso — respondeu Christian, muito solene. — Sou como aqueles engenheiros que constroem pontes e prédios para resistirem a uma pressão cem vezes maior do que é possível. É assim que cuido do meu trabalho.

— Não é a mesma coisa — contestou Yabril. — Não se pode prever a pressão do Destino.

— Sei disso, mas alivia minhas ansiedades e é sempre útil. Agora, o motivo para a minha visita: vim lhe pedir um favor.

Ao ouvir isso, Yabril desatou a rir, uma risada estridente e escarninha, mas de genuíno divertimento. Christian sorriu, fitando-o fixamente.

— Não, falo sério. Trata-se de um favor que está ao seu alcance conceder ou recusar. E peço que escute com toda atenção. Tem sido bem tratado... é uma decisão minha e também as leis deste país. Sei que é inútil fazer ameaças. Sei que você tem seu orgulho, mas é uma coisa pequena o que vou lhe pedir, algo que não vai comprometê-lo por qualquer forma. E, em troca, prometo fazer tudo o que estiver ao meu alcance para que nada de lamentável aconteça. Sei que você ainda tem esperança. Pensa que seus camaradas dos famosos Primeiros Cem encontrarão alguma manobra hábil para nos obrigar a libertá-lo.

O rosto fino e moreno de Yabril perdeu o humor sombrio, e ele comentou:

— Já tentamos várias vezes efetuar uma ação contra o seu Presidente Kennedy, operações bastante complexas e hábeis. Todas foram desmanteladas neste país. Conduzi pessoalmente uma investigação sobre esses fracassos e a destruição de nosso pessoal. E a trilha sempre levava a você. Por isso, sei que temos a mesma linha de trabalho. Sei que você não é um desses políticos cautelosos. Portanto, basta me dizer qual é a cortesia que deseja. Presuma que tenho inteligência suficiente para considerá-la com todo cuidado.

Christian recostou-se no sofá. Parte de seu cérebro registrou que Yabril, por ter descoberto a sua trilha, era perigoso demais para ser libertado, sob quaisquer circunstâncias. Yabril fora tolo ao deixar escapar essa informação. Um momento depois, porém, Christian voltou a se concentrar no problema que o levara até ali.

— O Presidente Kennedy é um homem bastante complexo, sempre tenta compreender os acontecimentos e as pessoas. E por isso quer se encontrar com você, pessoalmente, interrogá-lo, conversar. Quer entender o que o levou a matar sua filha; talvez queira se absolver de seus próprios sentimentos de culpa. Agora, tudo o que lhe peço é que converse com ele, responda a suas perguntas. Peço que não o rejeite totalmente. Acha que pode fazer isso?

Yabril, trancafiado em seu casaco folgado, tentou levantar os braços num gesto de rejeição. Carecia absolutamente de medo físico; e, no entanto, a perspectiva de encontrar com o pai da moça que assassinara em Sherhaben despertava-lhe uma agitação que o surpreendia. Afinal, fora um ato político, e um presidente dos Estados Unidos deveria compreender isso melhor do que ninguém. Ainda assim, seria interessante fitar nos olhos o homem mais poderoso do mundo e dizer: “Matei sua filha. Eu o feri de forma mais terrível do que jamais conseguirá me ferir, com seus milhares de navios de guerra, suas dezenas de milhares de aviões de combate.”

— Está certo, eu lhe prestarei esse pequeno favor — disse Yabril. — Mas, ao final, é possível que não me agradeça.

Klee levantou-se e pôs a mão de leve no ombro de Yabril, mas o terrorista desvencilhou-se com desdém.

— Não tem importância — murmurou Klee. — E eu ficarei agradecido.

Dois dias mais tarde, uma hora depois de meia-noite, o Presidente Kennedy entrou na Sala Oval Amarela da Casa Branca para encontrar Yabril já sentado numa cadeira ao lado da lareira. Christian Klee estava de pé ao seu lado. Numa mesinha oval, incrustada com um escudo da bandeira americana, havia uma travessa de prata com pequenos sanduíches, um bule de prata com café, xícaras e pires com frisos dourados. Jefferson serviu café nas três xícaras, depois retirou-se para o outro lado da sala, encostou os ombros largos na porta. Kennedy percebeu que Yabril, que inclinou a cabeça à sua chegada, estava imobilizado na cadeira.

— Você não o drogou, não é mesmo? — perguntou ele, bruscamente.

— Claro que não, Senhor Presidente — respondeu Christian. — Ele está com correias nos braços e pernas.

— Não pode deixá-lo mais à vontade?

— Não, senhor.

Kennedy dirigiu-se diretamente a Yabril:

— Lamento muito, mas não tenho a última palavra nessas questões. Não vou mantê-lo aqui por muito tempo. Gostaria apenas de lhe fazer algumas perguntas.

Yabril acenou com a cabeça. Por causa das correias, foi com alguma dificuldade que se serviu de um dos sanduíches, que estava delicioso. E ajudou seu orgulho, de certa forma, que o inimigo pudesse constatar que ele não se encontrava completamente desamparado. Estudou o rosto de Kennedy, e ficou aturdido ao concluir que ali estava um homem que, em outras circunstâncias, teria instintivamente respeitado e confiado, até certo ponto. O rosto revelava sofrimento, mas também um tremendo controle desse sofrimento. Também demonstrava uma preocupação genuína por seu desconforto; não havia condescendência ou falsa compaixão. Apesar de tudo isso, porém, havia ali uma solene força.

Yabril disse baixinho, de forma mais polida e talvez mais humilde do que tencionara:

— Sr. Kennedy, antes de começarmos, deve me responder a uma pergunta. Acredita sinceramente que sou o responsável pela explosão da bomba atômica em seu país?

— Não — respondeu Kennedy.

E Christian ficou aliviado porque o presidente não deu qualquer informação adicional.

— Obrigado. Como poderia alguém pensar que sou tão estúpido assim? E eu ficaria ressentido se tentasse usar essa acusação como uma arma. Pode me perguntar qualquer coisa que quiser.

Kennedy gesticulou para que Jefferson deixasse a sala e observou-o sair. E depois falou baixinho para Yabril. Christian baixou a cabeça, como se não quisesse ouvir. E, na verdade, não queria mesmo ouvir. Kennedy disse:

— Sabemos que organizou toda a série de acontecimentos. O assassinato do Papa, a farsa de permitir que seu cúmplice fosse capturado, a fim de poder exigir sua libertação. O seqüestro do avião. E a morte de minha filha, que foi planejada desde o início. Sabemos de tudo isso com certeza, mas gostaria que me confirmasse se é mesmo verdade. Por falar nisso, posso perceber a lógica de seu plano.

Yabril fitou Kennedy nos olhos.

— É tudo verdade. Mas estou espantado que tenha percebido tudo tão depressa. Eu pensava que o plano era muito esperto.

— Infelizmente, não é uma coisa de que eu possa me orgulhar. Significa que, basicamente, tenho o mesmo tipo de mente que você. Ou que não há muita diferença na mente humana quando se trata de insídia.

— Ainda assim, talvez o plano tenha sido astuto demais. O senhor violou as regras do jogo. Mas é claro que não era xadrez, as regras não eram tão rigorosas. O senhor deveria ser um peão, dispondo apenas dos movimentos de um peão.

Kennedy sentou e tomou um gole de café, um gesto de polidez social. Christian podia perceber que ele estava muito tenso; para Yabril, é claro, a aparente descontração do presidente era transparente. Yabril especulou quais seriam as verdadeiras intenções do homem. Era óbvio que não eram maldosas; não havia qualquer intenção de usar o poder para assustá-lo ou feri-lo.

— Eu sabia desde o início — continuou Kennedy. — Com o seqüestro do avião, compreendi que mataria minha filha. Quando seu cúmplice foi capturado, compreendi que era parte do plano. Nada me surpreendeu. Meus assessores só concordaram mais tarde sobre o seu plano. Portanto, o que me preocupa é que minha mente deve ser parecida com a sua. E, no entanto, a conclusão é a seguinte: não posso me imaginar a realizar uma operação dessas. Quero evitar dar esse próximo passo, e foi por isso que pedi para conversar com você. Para aprender e prever, para me precaver contra mim mesmo.

Yabril estava impressionado com a atitude cortês de Kennedy, a tranqüilidade de seu discurso, o desejo aparente de encontrar uma verdade. O presidente continuou.

— O que você ganhou com tudo isso? O Papa será substituído; a morte de minha filha não alterará a estrutura internacional do poder. Qual o seu proveito?

Yabril pensou: A velha questão do capitalismo, tudo se reduz a isso. Ele sentiu as mãos de Christian pousarem de leve em seus ombros, por um momento. Hesitou um pouco, antes de responder:

— A América é o colosso a que o estado israelense deve sua existência. E este é essencialmente o que oprime meu povo. Seu sistema capitalista oprime os pobres do mundo, até mesmo em seu país. É necessário acabar com o medo de sua força. O Papa é parte dessa autoridade, a Igreja Católica aterrorizou os pobres do mundo por incontáveis séculos, com o inferno e até mesmo o paraíso, uma atitude vergonhosa. E isso vem se prolongando há dois mil anos. Promover a morte do Papa foi mais do que uma satisfação política.

Christian afastara-se da cadeira de Yabril, mas ainda se mantinha alerta, pronto para interferir. Abriu a porta da Sala Oval Amarela e sussurrou alguma coisa para Jefferson por um instante. Yabril observou tudo isso em silêncio, depois continuou:

— Mas todas as minhas ações contra o senhor fracassaram. Organizei duas operações bastante meticulosas para assassiná-lo, e ambas fracassaram. Podia um dia perguntar os detalhes ao Sr. Klee. Talvez o deixem espantado. O procurador-geral, um título inócuo... e devo confessar que no início me enganou. Ele destruiu minhas operações de uma forma tão implacável que não pude deixar de admirá-lo. Mas também ele dispunha de muitos homens, de toda a tecnologia possível. Fiquei impotente. Mas sua própria invulnerabilidade acarretou a morte de sua filha. Sei como isso deve perturbá-lo, mas tenho de falar com franqueza, pois foi esse o seu desejo.

Christian voltou a se postar atrás da cadeira e tentou evitar o olhar de Kennedy. Yabril experimentou uma estranha pontada de medo, mas seguiu em frente:

— Pense um pouco. — Ele ergueu os braços pela metade, na tentativa de fazer um gesto enfático. — Se eu seqüestro um avião, sou um monstro. Se os israelenses bombardeiam uma pequena cidade árabe indefesa e matam centenas de pessoas, estão defendendo a liberdade; mais do isso, estão vingando o famoso holocausto, pelo qual os árabes não tiveram a menor responsabilidade. Mas quais são as nossas opções? Não temos o poder militar, não temos a tecnologia. Quem é o mais heróico? Em ambos os casos, os inocentes morrem. E onde está a justiça? O estado de Israel foi criado por potências estrangeiras, meu povo expulso para o deserto. Somos os novos expatriados, os novos judeus, uma tremenda ironia. O mundo espera que não lutemos? O que podemos usar, exceto o terror? O que os judeus usaram quando lutavam contra os britânicos pela criação de seu estado? Aprendemos tudo sobre o terror com os judeus daquele tempo. E aqueles terroristas são agora heróis, aqueles assassinos de inocentes. Um deles até se tornou primeiro-ministro de Israel e foi aceito pelos chefes de estado como se nunca tivessem sentido o cheiro de sangue em suas mãos. Por acaso sou mais terrível?

Yabril fez uma pausa, tentou levantar, mas Christian tornou a empurrá-lo para a cadeira. Kennedy fez um gesto para que ele continuasse a falar, e Yabril disse:

— Pergunta o que eu realizei. Num certo sentido, fracassei, e a prova disso é que estou aqui como prisioneiro. Mas desfechei um tremendo golpe contra a autoridade americana no mundo. A América não é tão grande assim, no final das contas. Poderia ter acabado melhor para mim, mas ainda assim não é uma perda total. Denunciei ao mundo como é brutal a sua democracia supostamente humana. Destruíram uma grande cidade, subjugaram implacavelmente uma nação estrangeira. Obriguei-o a lançar seus raios para assustar o mundo inteiro, e com isso alienou uma parte do mundo. A sua América já não é mais tão amada. E em seu próprio país conseguiu polarizar as facções políticas. Sua imagem pessoal mudou e converteu-se no terrível Mr. Hyde, em vez do santo Dr. Jekyll.

Yabril fez uma pausa para controlar a violenta energia das emoções que passavam por seu rosto. Tornou-se mais respeitoso, mais sombrio.

— Chego agora ao que deseja ouvir e o que é angustiante para mim relatar. A morte de sua filha era necessária. Ela era um símbolo da América, por ser a filha do homem mais poderoso do mundo. Sabe o que isso proporciona às pessoas que temem a autoridade? Dá-lhes esperança, não importa que algumas até amem a América, que algumas possam considerá-la com benfeitora ou amiga. A longo prazo, as pessoas odeiam seus benfeitores. As pessoas percebem que vocês não são mais poderosos do que elas, não precisam temê-los. É claro que seria mais eficaz se eu escapasse livre. Como acha que seria? O Papa morto, sua filha assassinada, e depois você obrigado a me libertar! A América e seu presidente pareceriam completamente impotentes aos olhos do mundo.

Yabril recostou-se na cadeira para atenuar a pressão das correias e sorriu para Kennedy.

— Só cometi um erro. Julguei-o de uma maneira totalmente equivocada. Não havia nada em sua história que prenunciasse as ações que efetuou. Era o grande liberal, o homem ético moderno. Pensei que libertaria meu amigo. Pensei que não seria capaz de perceber todo o plano tão depressa, nunca sonhei que poderia cometer um crime tão grande.

— Houve bem poucas baixas quando a cidade de Dak foi bombardeada... lançamos avisos de aviões horas antes — disse Kennedy.

— Compreendo isso. Foi uma resposta terrorista perfeita. Eu teria feito a mesma coisa. Mas nunca seria capaz de fazer o que você fez para se salvar, explodir uma bomba atômica em uma de suas próprias cidades.

— Está enganado — disse Kennedy.

E Christian ficou outra vez aliviado por ele não oferecer mais informações. E também se sentiu aliviado ao constatar que Kennedy não levava a sério a acusação. Ao contrário, Kennedy passou no mesmo instante a outro assunto, perguntando a Yabril:

— Como pode justificar em seu coração todas as coisas que fez, as traições da confiança humana? Li seu dossiê. Como pode qualquer ser humano dizer a si mesmo que vai melhorar o mundo matando homens, mulheres e crianças inocentes, que vai tirar a humanidade do desespero pela traição de seu melhor amigo... e tudo isso sem qualquer autoridade concedida por Deus ou por seus semelhantes. Pondo de lado a compaixão, como sequer ousa assumir esse poder?

Yabril esperou cortesmente, como se aguardasse outra pergunta, antes de dizer:

— Os atos que eu cometi não são tão monstruosos quanto a imprensa e os moralistas alegam. O que me diz de seus pilotos de bombardeiros, que despejam a destruição como se as pessoas lá embaixo fossem meras formigas? Esses rapazes de bom coração, com todas as virtudes viris. Mas ele foram ensinados a cumprir seu dever. Acho que eu não sou diferente. Só não conto com os recursos para lançar a morte do ar, de milhares de metros de altura. Ou os canhões navais que arrasam tudo a trinta quilômetros de distância. Devo sujar as mãos com sangue. Devo ter a força moral, a pureza mental para derramar sangue diretamente, pela causa em que acredito. Tudo isso é óbvio demais, uma discussão antiga, parece covardia até travá-la. Mas quer saber como tenho a coragem de assumir essa autoridade sem contar com a aprovação de uma fonte superior? Isso é mais complicado. Deixe-me acreditar que o sofrimento que testemunhei em meu mundo me concedeu essa autoridade. Deixe-me dizer que os livros que li, a música que ouvi, o exemplo de homens muito maiores do que eu, tudo isso me proporcionou a força para agir de acordo com os meus princípios. É mais difícil para mim do que para você mobilizar o apoio de centenas de milhões de pessoas, e assim cometer seu terror como um dever para com essas pessoas, como seu instrumento.

Neste ponto Yabril fez outra pausa, tomou um gole de café. E depois continuou, com uma serena dignidade:

— Devotei minha vida à revolução contra a ordem estabelecida, contra a autoridade que desprezo. E morrerei acreditando que é certo tudo o que fiz. E, como sabe muito bem, não há lei moral que exista para sempre.

Ao final, Yabril estava exausto, estendeu-se na cadeira, os braços dando a impressão de que se achavam quebrados, por causa das correias. Kennedy escutara tudo sem qualquer sinal de desaprovação. E não apresentou nenhum contra-argumento. Houve um silêncio prolongado, que o presidente finalmente rompeu:

— Não posso argumentar em termos de moral... basicamente, fiz a mesma coisa que você. E, como disse, é mais fácil fazer quando não se fica com as mãos diretamente ensangüentadas. Mas, outra vez como você disse, agi com base numa autoridade social, não movido pela hostilidade pessoal.

Yabril interrompeu-o:

— Isso não é correto. O Congresso não aprovou suas ações; nem os membros de seu Gabinete. Essencialmente, agiu como eu, por sua autoridade pessoal. É meu companheiro no terrorismo.

— Mas o povo do meu país, o eleitorado, aprova o que eu fiz — insistiu Kennedy.

— A turba — murmurou Yabril. — Eles sempre aprovam. Recusam-se a prever os perigos de tais ações. O que você fez foi errado, em termos políticos e morais. Agiu por um desejo de vingança pessoal. — Yabril sorriu. — E sempre pensei que estaria acima de tal ação. Não se pode contar com a moral.

Kennedy ficou em silêncio por um momento, como se avaliasse sua resposta com todo cuidado,

— Espero que você esteja enganado, mas só o tempo dirá. Quero agradecer por me falar com tanta franqueza, ainda mais porque sei que se recusou a cooperar em interrogatórios anteriores. Já deve saber, é claro, que a melhor firma de advocacia dos Estados Unidos foi contratada pelo sultão de Sherhaben para defendê-la Muito em breve eles terão permissão para encontrá-lo e começar a preparar sua defesa.

Kennedy sorriu e levantou-se para sair da sala. Já estava quase alcançando a porta quando esta foi aberta. Um instante depois, quando já ia passar pela porta, ouviu a voz de Yabril. O terrorista fizera um tremendo esforço para se levantar, apesar das correias que o restringiam, tinha a maior dificuldade para manter o equilíbrio. Mas estava empertigado quando disse:

— Senhor Presidente...

Kennedy virou-se para fitá-lo. Yabril levantou os braços devagar e acrescentou:

— Senhor Presidente, quero que saiba que não me engana. Sei que nunca verei nem falarei com meus advogados.

Christian postara-se entre os dois homens e Jefferson se encontrava ao lado de Kennedy. O presidente ofereceu um sorriso frio a Yabril e declarou:

— Tem a minha garantia pessoal de que verá e falará com seus advogados.

Kennedy saiu da sala. Nesse momento, Christian Klee sentiu uma angústia próxima da náusea. Sempre acreditara que conhecia Francis Kennedy, mas agora descobria que isso não era verdade. Por um instante nítido, avistara uma expressão de puro ódio no rosto de Kennedy, algo estranho a tudo em seu caráter.

 

QUANDO FRANCO SEBBEDICCIO era um menino na Sicília, escolhera o lado da lei e da ordem, não apenas porque parecia o mais forte, mas também porque adorava o doce conforto de viver sob as regras rigorosas da autoridade. A Máfia era assustadora demais, o mundo do comércio, muito perigoso, e por isso ele se tornara um policial. Trinta anos depois, era o chefe da divisão antiterrorista de toda a Itália.

Agora tinha sob prisão o assassino do Papa, um jovem italiano de boa família, chamado Armando Giangi, codinome Romeu. O codinome provocava a mais profunda irritação em Sebbediccio. Ele encarcerara Romeu nas celas mais profundas de sua prisão romana.

Sob vigilância estava Rita Fallicia, cujo codinome era Annee. Fora fácil descobri-la, porque ela era uma perturbadora da ordem desde a adolescência, uma agitadora na universidade, uma líder belicosa em manifestações, além de estar ligada ao seqüestro de um eminente banqueiro em Milão.

As provas haviam surgido em quantidade. Os terroristas tinham abandonado as casas seguras, mas os pobres coitados não tinham como saber dos recursos científicos de uma organização policial nacional. Havia uma toalha com vestígios de sêmen, o suficiente para identificar Romeu. Um dos homens capturados fornecera informações, sob um severo interrogatório. Mas Sebbediccio não prendera Annee. Ela deveria permanecer em liberdade.

Franco Sebbediccio preocupava-se com a possibilidade de o julgamento dos culpados servir para glorificar o assassinato do Papa e eles se tornarem heróis, passarem suas sentenças de prisão sem muito desconforto. A Itália não tinha pena de morte, por isso eles seriam condenados no máximo à prisão perpétua, o que era uma piada. Com toda a redução da pena por bom comportamento, e as diferentes condições para anistias, seriam libertados ainda relativamente jovens.

Seria diferente se Sebbediccio pudesse ter conduzido o interrogatório de Romeu de uma maneira mais séria. Mas porque o desgraçado matara um Papa, seus direitos haviam se tornado uma causa no mundo ocidental. Havia manifestantes e grupos que defendiam os direitos humanos da Escandinávia e Inglaterra, até mesmo cartas dos Estados Unidos. Todos proclamavam que os dois assassinos deviam ser cuidados de uma maneira humana, sem serem submetidos a tortura, nem maltratados por qualquer meio. E as ordens haviam partido de cima: Não desgrace a justiça italiana com qualquer coisa que possa ofender os partidos de esquerda na Itália. Luvas de pelica.

Mas ele, Franco Sebbediccio, ignoraria todos esses absurdos e mandaria um recado para os terroristas. Franco Sebbediccio estava determinado a fazer com que Romeu, o tal de Armando Giangi, cometesse suicídio.

Romeu passara seus meses na prisão acalentando um sonho romântico. Sozinho em sua cela, resolvera se apaixonar pela moça americana, Dorothea. Lembrava-se de Dorothea a esperá-lo no aeroporto, a suave cicatriz em seu queixo. Em seus devaneios, ela parecia muito bela, extremamente gentil. Tentava recordar toda a conversa na última noite que passara com ela, em Hamptons. Agora, em sua memória, parecia-lhe que Dorothea o amara. Que cada gesto seu o desafiava a declarar seu desejo, a fim de que ela pudesse demonstrar seu amor. Romeu lembrava como ela sentava, tão graciosa, tão sedutora. Como os olhos de Dorothea o fitavam, poços profundos e escuros de azul, a nele branca se colorindo no rubor. E agora ele se censurava por sua timidez. Jamais tocara naquela pele. Lembrava as pernas compridas e esguias, colocava-as em torno de seu pescoço. Imaginava os beijos que daria nos cabelos de Do¬rothea, nos olhos, em toda a extensão de seu corpo esbelto.

E depois Romeu sonhava com Dorothea ao sol, envolta por correntes, olhando para ele em censura e desespero. Acalentava fantasias sobre o futuro. Ela cumpriria apenas uma curta sentença de prisão. Ficaria à sua espera. E ele seria libertado. Por uma anistia ou por uma troca de reféns, talvez por pura misericórdia cristã. E, quando isso acontecesse, haveria de encontrá-la.

Havia noites em que Romeu se desesperava e pensava na traição de Yabril. O assassinato de Theresa Kennedy nunca fora aventado no planejamento, e Romeu estava convencido, no fundo de seu coração, que jamais teria consentido em tal ato. Sentia uma profunda repulsa por Yabril, por suas próprias convicções, por sua própria vida. Às vezes chorava em silêncio, no escuro. E depois tratava de se consolar, perdia-se nas fantasias de Dorothea. Era falso, ele sabia. Era uma fraqueza, ele sabia, mas não podia se conter.

Romeu, em sua cela vazia, recebeu Franco Sebbediccio com um sorriso sardônico. Podia perceber o ódio nos olhos de camponês do velho, podia sentir sua perplexidade pelo fato de uma pessoa de boa família, que levava uma vida agradável, luxuosa, pudesse se tornar um revolucionário. Também estava consciente de que Sebbediccio sentia-se frustrado porque a vigilância do público internacional impedia-o de tratar o prisioneiro com a brutalidade que gostaria.

Sebbediccio trancara-se com o prisioneiro, os dois a sós na cela, com dois guardas e um observador do gabinete do diretor observando do lado de fora da porta, mas incapazes de ouvirem qualquer coisa que se dissesse. Era quase como se o corpulento homem mais velho estivesse convidando a algum ataque. Mas Romeu sabia que era outra coisa, que o homem mais velho simplesmente tinha confiança na autoridade de sua posição. Romeu sentia o maior desprezo por esse tipo de homem, enraizado na lei e na ordem, algemado por suas convicções e pelos padrões morais burgueses. Por tudo isso, ficou extremamente surpreso quando Sebbediccio lhe disse, de forma casual, mas em voz muito baixa:

— Giangi, você vai tornar a vida mais fácil para todo mundo. Vai cometer suicídio.

Romeu riu.

— Não vou, não. E sairei da cadeia antes que você morra de pressão alta e úlcera. Estarei andando pelas ruas de Roma quando você for levado para o cemitério. E irei cantar para os anjos em seu túmulo. E assoviarei ao me afastar.

Sebbediccio disse, paciente:

— Eu queria apenas avisá-lo que você e seus companheiros vão cometer suicídio. Dois de meus homens foram mortos por seus amigos para intimidar a mim e a meus colegas. O suicídio de vocês será a minha resposta.

— Não posso atendê-lo — declarou Romeu. — Gosto demais da vida. E com o mundo inteiro observando, você não se atreverá nem mesmo a me dar um bom chute no rabo.

Sebbediccio ofereceu-lhe um sorriso benevolente. Tinha um trunfo na manga.

O pai de Romeu, que durante toda a sua vida nada fizera pela humanidade, acabara fazendo alguma coisa pelo filho. Matara-se com um tiro. Um Cavaleiro de Malta, pai do assassino do Papa, um homem que sempre vivera apenas por seu prazer egoísta, decidira inexplicavelmente assumir o manto da culpa.

Quando a mãe de Romeu, uma viúva recente, pediu para visitar o filho em sua cela na prisão e foi recusada, os jornais resolveram endossar sua causa. O golpe decisivo foi desfechado pelo advogado de Romeu, ao ser entrevistado na televisão:

— Pelo amor de Deus, ele quer apenas ver a mãe!

O que provocou reações favoráveis não apenas na Itália, mas em todo o mundo ocidental. Muitos jornais reproduziram a frase, literalmente, em manchetes na primeira página: “Pelo amor de Deus, ele quer apenas ver a mãe!”

O que não era a verdade rigorosa: a mãe de Romeu queria vê-lo, mas ele não queria vê-la.

Com uma pressão tão intensa, o governo fora obrigado a permitir que Mamãe Giangi visitasse o filho. O que irritara Franco Sebbediccio, que se opunha a essa visita; ele queria manter Romeu em isolamento, impedir qualquer contato com o mundo exterior. Que tipo de mundo era aquele que se atrevia a dispensar tanta gentileza ao assassino de um Papa? Mas o diretor da prisão passara por cima dele.

O diretor tinha um escritório suntuoso e convocou Seb¬bediccio para uma reunião. Foi logo dizendo:

— Meu caro senhor, tenho minhas instruções, a visita será permitida. E não na cela, onde a conversa poderia ser gravada, mas aqui mesmo, nesta sala. Sem ninguém para ouvir, mas gravada por câmeras nos últimos cinco minutos... afinal, os meios de comunicação precisam obter seus lucros.

— E qual é a razão para a permissão? — perguntou Sebbediccio.

O diretor ofereceu-lhe o sorriso que em geral reservava aos presos ou a seus subordinados que haviam se tornado quase como os próprios presos.

— Um filho ver sua mãe viúva. O que pode haver de mais sagrado?

— Um homem que assassina o Papa? — disse Sebbe¬diccio, em tom ríspido. — Ele tem de ver sua mãe?

O diretor deu de ombros.

— Os que estão por cima de nós assim decidiram. Trate de aceitar. Além disso, o advogado de defesa insiste em que esta sala seja vasculhada à procura de microfones. Por isso, não pense em esconder aqui qualquer equipamento eletrônico.

— E como o advogado vai efetuar essa verificação?

— Ele trará seus próprios técnicos em eletrônica — explicou o diretor. — Farão o trabalho na presença do advogado, imediatamente antes da reunião.

— É essencial, é vital que escutemos a conversa entre os dois.

— Não diga bobagem — protestou o diretor. — A mãe dele é a típica matrona romana rica. Não sabe de nada e ele nunca lhe confiaria nada de importante. Isso é apenas mais um episódio insensato no drama ridículo de nossos tempos. Não o leve a sério.

Mas Sebbediccio levou muito a sério. Considerou que era outro escárnio da justiça, outro exemplo do desprezo pela autoridade. E torceu para que Romeu deixasse escapar alguma coisa durante a conversa com a mãe.

Como chefe da divisão antiterrorista para toda a Itália, Sebbediccio tinha muito poder. O advogado de Romeu já constava da lista secreta de radicais de esquerda que eram submetidos a vigilância. Seu telefone estava grampeado, sua correspondência era interceptada e lida antes de ser entregue. E por isso foi fácil descobrir a companhia eletrônica que o advogado planejava usar para a verificação no gabinete do diretor. Sebbediccio recorreu a um amigo para promover um encontro “casual” num restaurante com o proprietário da companhia eletrônica.

Mesmo sem a ajuda da força, Franco Sebbediccio podia ser bastante persuasivo. Era uma companhia eletrônica pequena, ganhando algum dinheiro, mas sem alcançar, por quaisquer padrões, um sucesso espetacular. Sebbediccio ressaltou que a divisão antiterrorista tinha grande necessidade de equipamento e pessoal de varredura eletrônica, que podia aplicar vetos de segurança às companhias selecionadas. Em suma, ele, Sebbediccio, podia enriquecer a companhia.

Mas devia haver confiança e proveito para as duas partes. Naquele caso em particular, por que a companhia eletrônica deveria se importar com os assassinos do Papa, por que deveria arriscar sua prosperidade futura por causa de uma questão tão irrelevante quanto a gravação de um encontro entre mãe e filho? Por que a companhia eletrônica não podia instalar um microfone, enquanto estivesse supostamente removendo todos os microfones no gabinete do diretor? E quem poderia saber? O próprio Sebbediccio providenciaria que o referido microfone fosse removido logo em seguida.

Toda a conversa transcorreu em termos cordiais, mas em determinado momento do jantar Sebbediccio deu a entender que se o seu pedido fosse recusado, a companhia eletrônica encontraria muitas dificuldades nos próximos anos. Embora ele próprio não sentisse qualquer hostilidade pessoal, como o seu governo poderia confiar em pessoas que protegiam o assassino do Papa?

Ficou tudo combinado e Sebbediccio deixou que o outro homem pagasse a conta. Não pagaria de jeito nenhum de seus recursos pessoais, e ser reembolsado pela verba de despesas poderia deixar uma pista de papel que talvez fosse descoberta anos depois. Além do mais, ele ia enriquecer o homem.

O encontro entre Armando “Romeu” Giangi e sua mãe, portanto, foi todo gravado e ouvido apenas por Seb¬bediccio, que ficou na maior satisfação. Ele demorou a remover o microfone, apenas por uma questão de curiosidade, querendo saber como era de fato o desprezível diretor da prisão, mas nesse ponto não descobriu coisa alguma.

Sebbediccio tomou a precaução de só tocar a fita em sua casa, enquanto a esposa dormia. Nenhum de seus colegas devia saber a respeito. Ele não era um homem ruim e quase chorou quando Mamãe Giangi soluçou em presença do filho, implorou que lhe contasse a verdade, que ele realmente não matara o Papa, que estava apenas querendo proteger um mau companheiro. Sebbediccio pôde ouvir os beijos que a mulher despejou sobre o rosto do filho assassino. E depois que os beijos e as lamúrias cessaram, a conversa tornou-se muito interessante para Sebbediccio. Ele ouviu a voz de Romeu, tentando acalmar a mãe.

— Não compreendo por que seu marido se matou — disse Romeu — Ele sentia tanto desprezo pelo homem que não podia reconhecê-lo como seu pai. — Ele não se importava com seu país ou com o mundo, e, perdoe-me por falar isso, nem mesmo amava sua família. Levava uma vida absolutamente egoísta e egocêntrica. Por que achou que era necessário se matar com um tiro?

A voz da mãe saiu sibilante da gravação:

— Por uma questão de vaidade. Durante toda a vida, seu pai foi um homem vaidoso. Todos os dias para seu barbeiro, uma vez por semana para o alfaiate. Aos quarenta anos de idade, resolveu tomar aulas de canto. Para cantar onde? E gastou uma fortuna para se tornar Cavaleiro de Malta, e nunca houve um homem tão desprovido do Espírito Santo. Tinha um terno branco para a Páscoa, com a cruz entrelaçada especialmente no tecido. E que grande figura na sociedade romana! As festas, os bailes, sua designação para comitês culturais, a cujas reuniões jamais comparecia. E o pai de um filho formado na universidade, ele sentia muito orgulho de sua inteligência. E como se pavoneava pelas ruas de Roma! Nunca vi um homem tão feliz e tão vazio.

Houve uma pausa na gravação, depois da qual Mamãe Giangi acrescentou:

— Depois do que você fez, seu pai nunca mais poderia tornar a aparecer na sociedade romana. Aquela vida vazia estava acabada, e por essa perda ele se matou. Mas pode descansar em paz. Parecia muito bonito no caixão, com seu novo terno da Páscoa.

A voz de Romeu saiu em seguida da gravação, dizendo uma coisa que proporcionou alegria a Sebbediccio:

— Meu pai nunca me deu qualquer coisa na vida, e com seu suicídio roubou minha opção. E a morte era a minha única escapatória.

Sebbediccio escutou o resto da gravação, em que Romeu deixava a mãe persuadi-lo a receber um padre. Quando as câmeras de TV e os repórteres tiveram permissão para entrar na sala, Sebbediccio desligou a gravação. Já assistira ao resto pela TV. Mas tinha o que queria.

Em sua próxima visita a Romeu, Sebbediccio sentia-se tão satisfeito que, depois que o carcereiro destrancou a porta, entrou na cela com um pequeno passo de dança e cumprimentou o terrorista com a maior jovialidade.

— Giangi — disse ele —, você está se tornando cada vez mais famoso. Corre o rumor de que quando tivermos um novo Papa, ele pode pedir misericórdia a você. Demonstre sua gratidão, dê-me algumas das informações de que preciso.

— Como você é idiota! — disse Romeu.

Sebbediccio fez-lhe uma mesura.

— Quer dizer que essa é sua última palavra?

Era perfeito. Ele tinha uma gravação em que Romeu insinuava que estava pensando em se matar.

Uma semana depois a notícia foi divulgada para o mundo: o assassino do Papa, Armando “Romeu” Giangi, cometera suicídio, enforcando-se em sua cela.

Em Nova York, Annee organizara a missão. Estava bastante consciente de que era a primeira mulher a chefiar uma manobra operacional dos Primeiros Cem. E estava determinada a não fracassar.

As duas casas seguras, apartamentos no East Side de Nova York, estavam abastecidas com comida, armas e outros materiais necessários. As equipes de assalto chegariam uma semana antes da data marcada para o ataque, e ela ordenaria que permanecessem nos apartamentos, até o dia final. As rotas de fuga para quaisquer sobreviventes haviam sido determinadas, através do México e Canadá. Ela planejava permanecer na América por alguns meses, em outra casa segura.

Apesar de seus deveres, Annee tinha muito tempo de folga e aproveitava-o para vaguear pela cidade. Ficou consternada com os cortiços, em particular o Harlem; pensou que nunca vira uma cidade tão suja, tão malcuidada, com distritos inteiros dando a impressão de que haviam sido atingidos por fogo de artilharia. Sentiu repulsa pela massa de desabrigados, a grosseria agressiva das pessoas que serviam, a fria hostilidade dos funcionários públicos. Nunca estivera num lugar tão mesquinho.

O perigo sempre presente era outro problema. A cidade era uma zona de guerra, mais perigosa do que a Sicília, pois na Sicília a violência tinha leis rigorosas do interesse pessoal, concebidas de uma forma lógica, enquanto em Nova York a violência derivava da doença fétida de algum rebanho animal.

E houve um dia particularmente agitado que levou Annee a tomar a decisão de permanecer em seu apartamento o máximo possível. Ela foi assistir a um filme americano no final da tarde, um filme que a irritou, com seu machismo idiota. Adoraria encontrar o musculoso herói, só para lhe mostrar como seria fácil arrancar seus colhões com um tiro.

Saindo do cinema, ela foi andando pela Lexington Avenue, a fim de fazer algumas ligações, necessárias para a missão, de cabines telefônicas públicas. Entrou num restaurante famoso para se presentear com uma pequena iguaria, foi afrontada pela grosseria dos empregados, ficou enfurecida pela pálida imitação da cozinha romana que lhe ofereceram. Como ousavam? Na França, o proprietário do restaurante seria linchado. Na Itália, a Máfia incendiaria o restaurante, como um serviço público.

Por tudo isso, na verdade, foi como um tônico quando a cidade de Nova York tentou obrigá-la a se submeter às indignidades supremas que impunha a seus milhares de habitantes e visitantes.

Durante o seu passeio, ao final da tarde, o exercício necessário que lhe permitia dormir, ela sofreu dois atentados separados para estuprá-la ou roubá-la.

O primeiro ataque, ao começo do crepúsculo, deixou-a profundamente espantada. Aconteceu em plena Quinta Avenida, enquanto ela olhava a vitrine da Tiffany's. Um homem e uma mulher, muito jovens, não mais do que vinte anos, comprimiram-na pelos lados. O rapaz tinha o rosto de lince do viciado em drogas irrecuperável. Era extremamente feio, e Annee, que admirava a beleza física, detestou-o no mesmo instante. A moça era bonita, mas tinha a petulância da adolescente americana mimada que Annee já observara nas ruas. Vestia-se na moda de prostituta que as estrelas do cinema haviam tornado elegante. Os dois eram brancos.

O rapaz comprimiu-se contra ela com toda força, e An¬nee sentiu o metal duro através do casaco fino que usava. Não ficou alarmada.

— Tenho um revólver — sussurrou o rapaz. — Entregue sua bolsa à garota. Devagar, sem confusão. Não resista e não sairá machucada.

— Você vota? — perguntou Annee.

O rapaz ficou surpreso e balbuciou:

— Como?

Sua namorada estendeu a mão para pegar a bolsa. Annee segurou a mão da moça, virou-a como um escudo, ao mesmo tempo em que usava a outra mão, com um anel, para golpeá-la em cheio no rosto. Uma quantidade incrível de sangue espirrou na elegante vitrine da Tiffany's, fazendo com que os transeuntes parassem, espantados. E Annee disse ao rapaz, friamente:

— Você tem um revólver, pode atirar.

A esta altura, ele já virara o corpo, passando para o outro lado o bolso em que tinha a arma. O idiota vira esse movimento em filmes de gangster. Não sabia que era uma postura completamente inútil, a menos que a vítima se mantivesse imóvel. Mas, como medida de segurança, Annee agarrou o outro braço do homem e arrancou-o do encaixe. Enquanto o rapaz berrava em agonia, sua mão saiu do bolso e uma chave de fenda caiu ruidosamente na calçada. É isso aí, pensou Annee, uma estúpida astúcia adolescente. E ela tratou de se afastar.

A esta altura, seria mais prudente voltar a seu apartamento, mas por uma questão de imperativo territorial Annee resolveu continuar o passeio. Mas pouco depois, no Central Park South, margeado pelos hotéis de luxo, guardados por porteiros uniformizados, as limusines estacionadas ao longo do meio-fio, com seus corpulentos motoristas, ela foi cercada por quatro jovens negros.

Eram jovens bonitos e decididos, ela apreciou-os à primeira vista. Eram bem parecidos com os jovens patifes de Roma, que se achavam na obrigação de abordar as mulheres nas ruas. Um dos rapazes lhe disse, jovialmente:

— Ei, boneca, não quer dar um passeio no parque com a gente? Garanto que vai se divertir.

Eles barravam sua passagem, Annee não podia seguir em frente. Estava achando graça da situação, não tinha a menor dúvida de que iria se divertir. Não eram os jovens que a irritavam, mas sim os porteiros e motoristas, que ignoravam deliberadamente o seu apuro.

— Vão embora ou gritarei e aqueles porteiros chamarão a polícia — disse ela.

Annee sabia, no entanto, que não podia gritar, não podia recorrer a isso, por causa de sua missão. Um dos rapazes sorriu e disse:

— Está bem, dona, pode gritar.

Mas Annee percebeu que eles se erguiam na ponta dos pés, prontos para a fuga. Como ela não gritasse de imediato, outro rapaz compreendeu que não o faria nunca e anunciou:

— Ei, ela não vai mesmo gritar! E estão percebendo seu sotaque? Aposto que ela tem drogas na bolsa. Ei, dona, dê um pouquinho para a gente!

Todos riram, na maior alegria. Um deles acrescentou:

— Ou então chamaremos a polícia.

E riram de novo.

Antes de deixar a Itália, Annee fora instruída sobre os perigos de Nova York. Mas era uma agente operacional muito bem-treinada, e tinha uma confiança absoluta nesse treinamento. Por isso, recusara-se a carregar um revólver, temendo que isso pudesse comprometer sua missão. Mas usava um anel de zirconita especialmente desenhado que podia causar grandes danos. E tinha na bolsa uma tesoura mais letal do que uma adaga veneziana. Por isso, não se sentia em perigo. Apenas se preocupava com a possibilidade de envolvimento da polícia, de os guardas interrogarem-na. Mas tinha certeza de que poderia escapar sem maiores confusões.

Só que não levara em consideração seu nervosismo e agressividade natural. Um dos rapazes estendeu a mão para tocar em seus cabelos, e Annee murmurou, em tom sibilante:

— Saia da minha frente, seu filho da puta negro, ou vou matá-lo.

Todos os quatro ficaram quietos, o bom humor desaparecendo. Ela percebeu a expressão de mágoa aflorando em seus olhos, e sentiu uma pontada de culpa. Compreendeu que cometera um erro. Não os chamara de filhos da puta negros por preconceito racial. Era simplesmente uma forma de insulto siciliana; lá, quando se discutia com um corcunda, ele era chamado de filho da puta corcunda, quando se discutia com um aleijado, dizia-se filho da puta aleijado. Mas como aqueles rapazes podiam saber disso? Ela quase pediu desculpas. Mas já era tarde demais.

— Vou encher de porrada a cara dessa puta branca — disse um dos rapazes.

E nesse instante Annee perdeu o controle por completo. Acertou a mão com o anel no rosto do rapaz. Apareceu um corte terrível, que dava a impressão de desligar a pálpebra do rosto. Os outros rapazes ficaram olhando, horrorizados, enquanto Annee calmamente virava a esquina e depois desatava a correr.

Isso era demais até para Annee. De volta ao apartamento, ela sentiu o maior remorso por ter sido tão brutal, por arriscar a missão com sua teimosia. A verdade é que procurara a encrenca para aliviar seu próprio ataque nervoso.

Não devia correr mais riscos, não devia deixar o apartamento, a não ser para os deveres necessários na realização da missão. Devia parar de invocar as recordações de Romeu, controlar sua raiva pelo assassinato dele. E o mais importante de tudo, precisava tomar uma decisão final. Se tudo o mais fracassasse, deveria converter aquela operação numa missão suicida?

Christian Klee voou para Roma, a fim de jantar com Sebbediccio. Notou que Sebbediccio estava acompanhado por quase vinte seguranças, o que não parecia afetar seu apetite. O italiano exibia a maior animação, e disse a Klee:

— Não foi uma sorte que o nosso assassino do Papa tenha resolvido acabar com a própria vida? O julgamento seria um tremendo circo, com todos os nossos esquerdistas desfilando em apoio a ele. É uma pena que o tal Yabril não faça o mesmo favor a vocês.

Klee não pôde deixar de rir.

— Sistemas de governo diferentes. Vejo que você está bem protegido.

Sebbediccio deu de ombros.

— Acho que eles estão atrás de caça maior. Tenho algumas informações para você. Aquela mulher, Annee, a que resolvemos deixar em liberdade. De alguma forma, perdemos a sua pista. Mas desconfiamos que ela foi para a América.

Klee sentiu um frêmito de excitamento.

— Sabe qual foi o ponto de embarque? E que nome ela está usando?

— Não, não sabemos — respondeu Sebbediccio. — Mas achamos que ela está agora operacional.

— Por que não a prenderam?

— Temos grandes esperanças para ela — explicou Seb¬bediccio. — É uma jovem muito determinada e irá longe no movimento terrorista. Quero usar uma rede grande quando a pegarmos. Mas você tem um problema, meu amigo. Ouvimos rumores de que há uma operação em andamento nos Estados Unidos. Só pode ser contra Kennedy. Annee, por mais decidida que seja, não pode realizá-la sozinha. Portanto, deve haver outras pessoas envolvidas. Conhecendo a segurança com que cerca seu presidente, eles terão de montar uma operação que exigirá muitas pessoas, com todos os materiais necessários e casas seguras. Sobre isso, não tenho informações. Acho melhor você começar a trabalhar no caso.

Klee não precisava perguntar por que o chefe da segurança italiana não enviara aquela informação para Washington através dos canais competentes. Sabia que Sebbediccio não queria que sua vigilância sobre Annee constasse de algum registro nos Estados Unidos; ele não confiava na Lei da Liberdade de Informações que prevalecia no outro país. Além disso, queria que Christian Klee ficasse lhe devendo um favor pessoal.

Em Sherhaben, o Sultão Maurobi recebeu Christian Klee com a maior cordialidade, como se jamais tivesse ocorrido a crise entre os dois países, poucos meses antes. O sultão mostrou-se afável, mas parecia cauteloso, um pouco perplexo.

— Espero que me traga boa notícias — disse ele a Klee. — Depois de todos aqueles incidentes desagradáveis e lamentáveis, estou ansioso em restabelecer as melhores relações com os Estados Unidos... e com o seu Presidente Kennedv é claro. Para ser franco, espero que sua visita tenha esse objetivo.

Klee sorriu.

— Vim até aqui justamente com esse propósito. Creio que você se encontra numa posição de nos prestar um serviço que pode curar todas as divergências.

— Fico feliz em saber disso — declarou o sultão. — Já sabe, é claro, que eu não estava a par das intenções de Yabril. Não tive conhecimento prévio do que Yabril faria com a filha do presidente. Já manifestei isso oficialmente, mas gostaria que dissesse ao presidente, pessoalmente, que tenho lamentado muito o que aconteceu durante os últimos meses. Fui impotente para evitar a tragédia.

Klee acreditava nele, acreditava que o assassinato não constava dos planos originais. E pensou como homens todo-poderosos, como o Sultão Maurobi e Francis Kennedy, tornavam-se impotentes diante de acontecimentos incontroláveis, da vontade de outros homens. Mas agora ele disse ao sultão:

— O fato de entregar Yabril tranqüilizou o presidente sob esse aspecto.

Ambos sabiam que isso não passava de mera polidez. Klee ficou em silêncio por um momento, depois continuou:

— Mas estou aqui para lhe pedir que me preste um serviço pessoal. Sabe que sou o responsável pela segurança do meu presidente. Tenho informações de que há uma conspiração para assassiná-lo. Que terroristas já se infiltraram nos Estados Unidos. Mas seria muito útil se eu pudesse obter informações sobre seus planos, identidades e localizações. Pensei que, com seus contatos, poderia ter sabido de alguma coisa, através de suas agências de informações. Que poderia me contar alguma coisa a respeito. E quero ressaltar que tudo ficará apenas entre nós dois. Você e eu. Não haverá conexão oficial.

O sultão parecia atônito. O rosto inteligente contraiu-se numa expressão de divertida incredulidade.

— Como pode pensar tal coisa? — indagou ele. — Depois de toda a sua destruição, depois de todas as nossas tragédias, acha que eu ainda me envolveria em atividades tão perigosas? Sou o soberano de um país pequeno e rico, que é impotente para permanecer independente sem a amizade das grandes potências. Não posso fazer nada por vocês ou contra vocês.

Klee balançou a cabeça em concordância.

— Claro que isso é verdade. Mas Bert Audick veio visitá-lo e sei que a conversa estava relacionada com a indústria do petróleo. Gostaria que soubesse que o Sr. Audick enfrenta problemas muito sérios nos Estados Unidos. Ele seria um péssimo aliado para se ter nos próximos anos.

— E você seria um ótimo aliado? — perguntou o sultão, sorrindo.

— Exatamente. Sou o aliado que pode salvá-lo. Se cooperar comigo agora.

— Explique.

Era evidente que o sultão estava irritado com a ameaça implícita. Klee falou com todo cuidado:

— Bert Audick está sendo processado por conspiração contra o governo dos Estados Unidos, porque seus mercenários ou de sua companhia depararam contra os nossos aviões que bombardeavam a sua cidade de Dak. E há também outras acusações. Seu império petrolífero pode ser destruído, nos termos de algumas de nossas leis. Ele não é um aliado forte neste momento.

O sultão comentou, insinuante:

— Ser processado não é ser condenado. Pelo que sei, isso será mais difícil.

— Tem razão. Mas dentro de poucos meses Francis Kennedy será reeleito. Sua popularidade elegerá também um Congresso que ratificará seus programas. Ele será o mais poderoso presidente da história dos Estados Unidos. E então, posso lhe garantir, Bert Audick estará liquidado. A estrutura de poder de que ele é parte será destruída.

— Ainda não percebi como eu poderia ajudá-lo. — Uma pausa e o sultão acrescentou, em tom mais incisivo: — Ou como você poderia me ajudar. Sei que se encontra pessoalmente numa situação bastante delicada em seu país.

— Isso pode ou não ser verdade — respondeu Klee. — Quanto à minha posição, que é delicada, como você diz, o problema será resolvido quando Kennedy for reeleito. Sou seu maior amigo e assessor mais íntimo, e Kennedy é famoso por sua lealdade. Quanto à maneira pela qual poderia poderíamos ajudar um ao outro, gostaria de ser franco, sem qualquer intenção de desrespeito. Permite-me?

O sultão parecia impressionado e até divertido por aquela demonstração de cortesia.

— Claro que sim.

— Em primeiro lugar, e o mais importante, aqui está como posso ajudá-lo. Posso me tornar seu aliado. Tenho à minha disposição o ouvido do Presidente dos Estados Unidos, conto com a sua confiança. Vivemos em tempos difíceis.

O sultão interrompeu-o, sorridente:

— Eu sempre vivi em tempos difíceis.

— E por isso mesmo pode avaliar o que estou dizendo melhor do que a maioria.

— E o que acontece se Kennedy não atingir seus objetivos? Acidentes acontecem, os céus nem sempre são generosos.

Christian Klee mantinha agora uma frieza absoluta, ao responder:

— O que está querendo dizer é que a conspiração para matar Kennedy pode ser bem-sucedida, não é mesmo? Estou aqui para lhe assegurar que isso não ocorrerá. Não importa quão espertos e ousados os assassinos possam ser. E se tentarem e fracassarem, e se houver qualquer pista que leve a você, então será destruído. Mas não precisamos chegar a esse ponto. Sou um homem razoável, compreendo a sua posição. Minha proposta é uma troca de informações entre você e eu, numa base pessoal. Não sei o que Audick lhe propôs, mas tenho certeza de que sou uma aposta melhor. Se Audick e sua turma vencerem, você ainda sai ganhando. Ele nada sabe a nosso respeito. Se Kennedy vencer, você me tem como o seu aliado. Sou o seu seguro.

O sultão acenou com a cabeça, e depois levou-o paia um suntuoso banquete. Enquanto comiam, o sultão fez inúmeras perguntas a Klee sobre Kennedy. Ao final, quase hesitante, ele indagou por Yabril. Klee fitou-o nos olhos.

— Não há a menor possibilidade de Yabril escapar a seu destino. Se seus companheiros de terrorismo pensam que podem conseguir sua libertação pela captura até dos reféns mais importantes, diga-lhes que esqueçam. Kennedy nunca o soltará.

O sultão suspirou.

— Seu Kennedy mudou. Parece agora com um homem que enlouqueceu. — Klee não respondeu e o sultão acrescentou, falando bem devagar: — Acho que você me convenceu. Acho que você e eu devemos nos tornar aliados.

Voltando aos Estados Unidos, a primeira pessoa que Christian Klee procurou foi o Oráculo. O velho recebeu-o em sua suíte na mansão, sentado na cadeira de rodas motorizada, um serviço de chá inglês na mesa à sua frente, uma poltrona confortável à espera de Christian no outro lado.

O Oráculo saudou-o com um pequeno aceno da mão, indicando que ele devia sentar. Christian serviu-lhe o chá, um pedaço de bolo e um sanduíche pequeno, depois serviu a si mesmo. O Oráculo tomou um gole do chá, pôs na boca uma parte do bolo. Ficaram sentados em silêncio por um longo momento.

Depois, o Oráculo tentou sorrir, uma ligeira contração dos lábios, a pele tão morta que mal se mexia.

— Você se meteu numa tremenda enrascada por causa da porra do seu amigo Kennedy — disse ele.

A palavra chula, falada como se saísse da boca de uma criança inocente, fez Christian sorrir. Mais uma vez ele especulou se não seria um sinal de senilidade, de deterioração do cérebro, o fato de que o Oráculo, que nunca dizia palavrões, passasse a pronunciá-los agora tão profusamente. Ele esperou até acabar de comer um dos sanduíches, tomou um gole de chá, e só depois respondeu:

— Que enrascada? Estou metido em uma porção.

— Estou falando sobre aquela história da bomba atômica — respondeu o Oráculo. — O resto da merda não tem menor importância. Mas estão acusando-o de ser o responsável pelo assassinato de milhares de cidadãos deste país. Eles têm provas contra você, ao que parece, mas eu me recuso a acreditar que pudesse ser tão estúpido. Inumano, sim... afinal, está metido na política. Você é realmente responsável?

O velho não perguntava para passar um julgamento, apenas por curiosidade. E quem mais havia no mundo para contar? Quem mais no mundo poderia compreender?

— O que me espanta nessa história é a rapidez com que chegaram a mim — comentou Klee.

— A mente humana salta para uma compreensão do mal — explicou o Oráculo. — Sente-se surpreso porque há uma certa inocência no autor de um malfeito. Ele pensa que o feito é tão terrível que se torna inconcebível para outro ser humano. Mas essa é a primeira coisa para a qual todos saltam. O mal não é absolutamente um mistério, o amor é que é um mistério.

Ele fez uma pausa, recomeçou a falar, depois relaxou na cadeira, os olhos meio fechados, cochilando.

— Deve compreender que deixar uma coisa acontecer é muito mais fácil do que fazer algo concreto — comentou Christian. — Havia a crise, Francis Kennedy seria afastado do cargo pelo Congresso. E eu pensei, apenas por um segundo, que se ao menos a bomba atômica explodisse, a situação seria invertida. Foi nesse instante que eu disse a Peter Cloot para não interrogar Gresse e Tibbot. Eu tinha tempo para cuidar disso. Toda a coisa aflorou num relance naquele único segundo e logo desapareceu.

— Sirva-me de mais chá quente e outro pedaço de bolo. — o Oráculo pôs o bolo na boca, migalhas espalharam-se pelos lábios que pareciam cicatrizes. — Sim ou não: Você interrogou Gresse e Tibbot antes de a bomba explodir? Arrancou a informação deles e depois não agiu com base no que lhe disseram?

Christian suspirou.

— Eles não passavam de garotos. Arranquei-lhes tudo em apenas cinco minutos. Por isso é que eu não podia permitir que Cloot testemunhasse o interrogatório. Mas não queria que a bomba explodisse. Só que tudo aconteceu muito depressa.

O Oráculo começou a rir. Era uma risada curiosa, mesmo num homem tão idoso, uma sucessão de grunhidos, ri, ri, ri.

— Você está se cagando todo. Já tomara a decisão de deixar a bomba explodir. Antes mesmo de dizer a Cloot para não interrogá-los. Não surgiu num relance, você planejou tudo com o maior cuidado.

Christian Klee ficou um pouco surpreso. Era verdade o que o Oráculo dizia.

— E tudo isso para salvar seu herói, Francis Kennedy — continuou o Oráculo. — O homem que não pode fazer nada errado, a não ser quando ateia fogo ao mundo.

O Oráculo pusera uma caixa de charutos havana finos na mesa; Christian pegou um e acendeu-o.

— Você teve sorte — acrescentou o Oráculo. — Aquelas pessoas que morreram eram em sua maioria completamente imprestáveis. Os bêbados, os desabrigados, os criminosos. E não é um crime tão grande assim. Não na história de nossa raça humana.

— Para dizer a verdade, Francis me deu autorização — disse Klee.

E isso fez com que o Oráculo apertasse um botão em sua cadeira, a fim de que o encosto levantasse, para tornar seu corpo ereto e alerta.

— Seu santo presidente? — murmurou o Oráculo. — Ele é por demais uma vítima de sua própria hipocrisia, como aconteceu com todos os Kennedys. Nunca poderia ser um cúmplice de tal ato.

— Talvez eu esteja apenas tentando inventar desculpas — admitiu Christian. — Não foi nada explícito. Mas conheço Francis intimamente, somos quase como irmãos. Pedi-lhe que assinasse a ordem para que a equipe de interrogatório médico pudesse efetuar uma sondagem cerebral. Isso resolveria imediatamente o problema da bomba atômica. Mas Francis recusou-se a assinar a autorização. É verdade que ele fez suas alegações, motivos humanitários, os direitos civis. O que era típico de Francis. Mas isso era típico antes da morte da filha. Não era mais parte de seu caráter depois. E o incidente ocorreu depois. Não se esqueça de que, àquela altura, ele já ordenara a destruição de Dak. E fez a ameaça de destruir todo o sultanato de Sherhaben se os reféns não fossem libertados. Portanto, seu caráter mudara. Esse novo caráter teria assinado a ordem de interrogatório médico. E quando ele se recusou a assinar, lançou-me um olhar diferente, não dá para descrevê-lo, mas era quase como se me dissesse para deixar acontecer.

O Oráculo estava plenamente alerta agora. Quando falou, a voz saiu incisiva:

— Tudo isso não tem a menor importância. A única coisa que importa agora é salvar sua pele. Se Kennedy não for reeleito, você pode passar anos na cadeia. E mesmo que Kennedy seja reeleito, ainda pode haver algum perigo.

— Kennedy vencerá a eleição. E, depois disso, estarei seguro. — Christian fez uma pausa. — Eu o conheço bem.

— Conhece o velho Kennedy. — Depois, como se perdesse o interesse, o Oráculo acrescentou: — E o que me diz de minha festa de aniversário? Tenho cem anos, mas todo mundo caga e anda.

Christian soltou uma risada.

— Eu não. Mas não se preocupe. Depois da eleição, você terá uma festa de aniversário no Jardim das Rosas da Casa Branca. Uma festa de aniversário para um rei.

O Oráculo sorriu de satisfação, e depois comentou, insidioso:

— E seu Francis Kennedy será o rei. Sabe, não é mesmo, que se ele for reeleito e levar junto os seus candidatos ao Congresso, vai se tornar, na prática, um ditador?

— Isso é altamente improvável — declarou Christian Klee. — Nunca houve um ditador neste país. Temos salvaguardas — salvaguardas até demais, eu penso às vezes.

— Acontece que este país ainda é jovem. Temos tempo. E o Diabo assume muitas formas sedutoras.

Eles ficaram em silêncio por um longo momento, e depois Christian levantou para se despedir. Sempre se tocavam as mãos quando se separavam; o Oráculo era frágil demais para um genuíno aperto de mão.

— Tome cuidado — disse o Oráculo. — Quando um homem ascende ao poder absoluto, ele geralmente se livra daqueles que lhe são mais chegados, aqueles que conhecem seus segredos.

 

 

UM JUIZ FEDERAL LIBERTOU Henry Tibbot e Adam Gresse.

O governo não contestou que a prisão fora ilegal. O governo não contestou que não houvesse mandatos de prisão. Os advogados de Gresse e Tibbot exploraram todas as escapatórias legais.

O povo dos Estados Unidos ficou furioso. Atribuiu toda a culpa à administração Kennedy, criticou o sistema judiciário. Turbas se reuniram nas ruas das grandes cidades, clamando pela morte de Gresse e Tibbot. Formaram-se grupos de vigilantes por toda parte para executar a justiça do povo.

Gresse e Tibbot fugiram para um esconderijo na América do Sul, desapareceram por completo num santuário financiado por seus pais ricos.

Dois meses antes da eleição presidencial, as pesquisas indi¬cavam que a margem de vitória de Francis Kennedy não seria suficiente para eleger também seus candidatos ao Congresso. Havia mais problemas: um escândalo envolvendo a amante de Eugene Dazzy; as acusações persistentes de que o Procurador-Geral Christian Klee deliberadamente permitira a explosão da bomba atômica; o escândalo de Canoo e Klee utilizarem os recursos do gabinete militar da presidência para engordar o Serviço Secreto.

E talvez o próprio Francis Kennedy estivesse indo longe demais. Os Estados Unidos ainda não se encontravam preparados para o seu tipo de socialismo. Não estavam prontos para rejeitar a estrutura empresarial que prevalecia no país. Os americanos não queriam ser iguais, queriam ser ricos. Quase todos os estados possuíam a sua própria loteria, com prêmios que se elevavam a milhões. Mais pessoas compravam bilhetes de loteria do que votavam nas eleições nacionais.

O poder dos deputados e senadores já cumprindo seus mandatos também era tremendo. Tinham suas assessorias pagas pelo governo. Dispunham de vastas quantias de dinheiro, contribuições da estrutura empresarial, que usavam para dominar a TV, com comerciais executados de forma brilhante. Ocupando seus cargos, podiam aparecer em programas políticos especiais na TV e em entrevistas nos jornais, aumentando seu fator de reconhecimento do nome.

Com a precisão meticulosa de um envenenador da Renascença, Lawrence Salentine organizara a campanha global contra Kennedy de forma tão extraordinária que era agora o líder do Clube Sócrates.

O Presidente Kennedy estudou o relatório de sua assessoria, que previa que seus candidatos ao Congresso, escolhidos com o maior cuidado, provavelmente não seriam eleitos. O pensamento de que poderia se tornar outra vez um líder impotente teve um efeito físico sobre Kennedy. Sentiu-se doente. E, além disso, sentiu uma estranha raiva, em que predominava uma maldade repulsiva. Envergonhou-se por essa emoção, e concentrou-se nos planos operacionais secretos, preparados por Christian Klee.

Ele notou que Christian remetera o relatório diretamente ao presidente. E era melhor assim. As informações eram terríveis, mas ainda mais extraordinário era o plano de Klee para superar o problema.

Haveria um sacrifício de princípio moral envolvido, pensou Kennedy, e depois, conhecendo conscientemente o custo, escreveu seu consentimento nos memorandos.

No terceiro dia de setembro, Christian Klee foi ao gabinete da vice-presidente sem se anunciar. Como uma precaução extra deu instruções especiais ao chefe da equipe do Serviço Secreto que protegia Helen Du Pray, depois apresentou-se à secretária e comunicou que seu assunto era urgente.

A vice-presidente ficou atônita ao vê-lo; era contra todos os protocolos que ele a visitasse sem aviso prévio ou mesmo sem permissão. Por um momento, Christian receou que ela pudesse se sentir ofendida, mas Du Pray era inteligente demais para isso. Compreendeu no mesmo instante que Christian Klee só quebraria o protocolo se o problema fosse muito grave. Na verdade, o que ela sentiu foi apreensão. Que nova coisa terrível poderia ter acontecido agora, depois de todos aqueles meses? Klee percebeu sua apreensão e foi logo dizendo:

— Não há nada com que se preocupar. Apenas temos um problema de segurança envolvendo o presidente. Como parte de nossa cobertura, estamos acrescentando uma proteção extra ao seu gabinete. Será melhor se não atender o telefone e tratar apenas com sua assessoria imediata. E permanecerei com você durante o dia inteiro, pessoalmente.

Du Pray compreendeu imediatamente que, independentemente do que acontecesse, ela não deveria assumir o comando do país; era por isso que Klee estava ali.

— Se o presidente tem um problema de segurança, por que vai ficar comigo? — Sem esperar que Klee respondesse, ela acrescentou: — Terei de confirmar isso com o presidente, pessoalmente.

— Ele está participando de um almoço político em Nova York — informou Klee.

— Sei disso.

Klee olhou para o relógio.

— O presidente telefonará para você dentro de meia hora, mais ou menos.

Quando a ligação foi feita, Klee observou o rosto de Helen Du Pray. Ela não deixou transparecer qualquer espanto; e só fez perguntas em duas ocasiões. Ótimo, pensou Klee, ela não vai criar problemas, não preciso me preocupar com esse lado. E depois ela fez uma coisa que despertou a admiração de Klee; não pensava que ela seria capaz — afinal, vice-presidentes são notórios por sua timidez. Du Pray perguntou a Kennedy se podia falar com Eugene Dazzy, o chefe da assessoria presidencial. Quando Dazzy atendeu, ela fez uma pergunta simples sobre a agenda de trabalho para a semana seguinte. Desligou em seguida. Conferira se a pessoa ao telefone fora mesmo Kennedy, apesar de ter reconhecido sua voz. E fizera perguntas que só Dazzy poderia responder. Estava se certificando de que não havia qualquer imitação de voz.

Depois, ela se dirigiu a Klee em voz gelada; sabia que havia algo suspeito, pensou Klee.

— O presidente informou-me que você usará meu gabinete como um posto de comando, que ficarei sob suas ordens. Acho isso extraordinário. Talvez queira me dar uma explicação.

— Peço desculpas por todo esse incômodo — disse Klee. — Se puder me pedir um café, eu lhe darei todas as informações. Saberá tanto quanto o presidente sobre o problema.

O que era verdade, mas um pouco forçado. Ela não saberia tanto quanto Klee.

Helen Du Pray estudava-o atentamente. Não confiava nele, Klee sabia. Mas as mulheres não compreendiam o poder, não compreendiam a eficiência absoluta da violência. Christian recorreu a toda a sua energia para convencê-la de sua sinceridade. Quando ele acabou, quase uma hora depois, Helen Du Pray parecia conquistada. Era uma mulher muito bonita e inteligente, pensou Christian. Era uma pena que jamais fosse se tornar Presidente dos Estados Unidos.

Naquele glorioso dia de verão, o Presidente Francis Kennedy deveria falar num banquete político no centro de convenções do Sheraton Hotel, na cidade de Nova York, que seria seguido por uma monumental passeata de carros pela Quinta Avenida. Depois, ele faria um discurso nas proximidades da área destruída pela bomba atômica. O evento fora programado três meses antes e amplamente divulgado. Era o tipo de situação que Christian Klee detestava, o presidente ficava exposto demais. Havia pessoas perturbadas e até a polícia era um perigo, na opinião de Klee, porque os homens estavam armados, e também porque se achavam completamente desmoralizados pelo crime incontrolável na cidade.

Klee tomou as precauções mais elaboradas. Só a sua assessoria operacional no Serviço Secreto tinha conhecimento da impressionante quantidade de homens que era usada para proteger o presidente em seus raros aparecimentos públicos.

Equipes da vanguarda especiais foram despachadas para Nova York. Patrulhariam e revistariam a área de visita 24 horas por dia. Dois dias antes da visita, mais mil homens seriam enviados, a fim de se misturarem com as multidões que saudariam o presidente. Esses homens formariam uma linha nos lados e na frente do cortejo de carros, agiriam como se fossem parte da multidão, mas na verdade constituiriam uma espécie de linha Maginot. Mais quinhentos homens guarneceriam os telhados, esquadrinhando constantemente as janelas que davam para o cortejo de carros. Esses homens estariam fortemente armados. Além disso, havia ainda o próprio grupo especial e pessoal de proteção ao presidente, contando com cem homens. E ainda havia, é claro, os homens do Serviço Secreto sob cobertura profunda, trabalhando para jornais e emissoras de TV, carregando máquinas fotográficas e operando as unidades móveis de televisão.

E Christian Klee tinha outros trunfos na manga. Nos quase quatro anos da administração Kennedy, houvera cinco tentativas de assassinato. Nenhuma delas sequer chegara perto. Os assassinos em potencial eram todos loucos, agora se encontravam por trás das grades, nas mais rigorosas penitenciárias federais. E Klee cuidava de encontrar um motivo para prendê-los de novo, se por acaso conseguissem sair. Era impossível encarcerar todos os lunáticos dos Estados Unidos que faziam ameaças ao presidente — por carta, pelo telefone, por alguma conspiração, aos gritos nas ruas —, mas Christian Klee tornava a vida difícil para eles, a tal ponto que passavam a se preocupar tanto em preservar a própria segurança que não tinham mais tempo para acalentarem idéias grandiosas. Ele submetia essas pessoas a uma vigilância total, da correspondência, telefone, pessoal, uma vigilância por computador. Se cuspissem na calçada, estariam se metendo num encrenca.

Todas essas precauções, todas essas providências estavam em vigor naquele terceiro dia de setembro, quando o Presidente Francis Xavier Kennedy fez seu discurso no banquete político do centro de convenções do Sheraton, em Nova York. Centenas de agentes do Serviço Secreto espalhavam-se pela audiência e o prédio se encontrava absolutamente seguro, a partir da entrada.

Nesse mesmo dia 3 de setembro, Annee foi fazer compras na Quinta Avenida. Em suas três semanas nos Estados Unidos, ela ajudara a encaixar tudo nos lugares apropriados. Dera seus telefonemas, realizara uma reunião com as duas equipes designadas para o assassinato, que haviam chegado a Nova York como tripulantes de um dos petroleiros de Bert Audick. Eles foram para dois apartamentos preparados com antecedência para abrigá-los. Esses apartamentos já se achavam abastecidos com armas, obtidas por uma equipe clandestina especial de logística, que não tinha qualquer participação no plano central.

Annee não podia saber que o FBI de Christian Klee estava captando todas as suas ligações em pleno ar, que cada movimento seu era vigiado. E que os telefonemas para ela das equipes, de cabines públicas, haviam sido interceptados e transmitidos a Christian Klee.

O que ela não confessara a ninguém fora a sua decisão de transformar aquela operação numa missão suicida.

Annee refletiu que era muito estranho que saísse para fazer compras apenas quatro horas antes do momento que seria o fim de sua vida.

 

Sal Troyca e Elizabeth Stone trabalhavam com afinco no escritório, recolhendo informações que poderiam provar que Christian Klee teria sido capaz de evitar a explosão da bomba atômica.

A casa de Elizabeth Stone ficava a apenas dez minutos de carro do escritório. Por isso, eles aproveitaram a hora do almoço para passar umas duas horas na cama.

E assim que deitaram, esqueceram todo o estresse do dia. Depois de uma hora, Elizabeth foi ao banheiro para tomar um banho de chuveiro, enquanto Sal encaminhava-se para a sala de estar, ainda nu, a fim de ligar a TV. E ficou imóvel, espantado pelo que estava assistindo. Observou por mais alguns momentos, depois correu para o banheiro, tirou Elizabeth do chuveiro. Ela ficou um pouco assustada pela rudeza com que ele a arrastou, nua e pingando, até a sala de estar.

Ali, olhando para a tela da TV, ela começou a chorar. Sal abraçou-a e murmurou:

— Pense da seguinte maneira: nossos problemas terminaram.

O discurso em Nova York, no dia 3 de setembro, deveria ser um dos mais importantes da campanha do Presidente Francis Kennedy pela reeleição. E fora planejado para causar um tremendo impacto psicológico na nação.

Primeiro, haveria um banquete no centro de convenções do Sheraton, na Rua 58. Ali, o presidente falaria aos homens mais importantes e influentes da cidade. O banquete levantaria recursos adicionais para a reconstrução da área de Nova York que fora arrasada pela explosão da bomba atômica. Um arquiteto, sem cobrar honorários, projetara um grande memorial para a área devastada, e o resto do terreno seria ocupado por um pequeno parque, com um laguinho. A cidade iria comprar e doar os terrenos.

Depois do banquete, a comitiva de Kennedy lideraria um cortejo de carros, que começaria na Rua 125 e desceria pela Sétima e Quinta Avenida, a fim de colocar a primeira coroa de mármore simbólica sobre a pilha de escombros que permanecia em Times Square.

Como um dos patrocinadores do banquete, Louis Inch estava sentado no palanque, junto com o Presidente Kennedy, e esperava acompanhá-lo até o carro à espera, obtendo assim uma boa cobertura dos jornais e emissoras de televisão. Para sua surpresa, no entanto, ele foi obstruído por agentes do Serviço Secreto, que isolaram Kennedy no meio de uma rede humana. E o presidente foi escoltado por uma porta por trás do palanque.

Lá fora, nas ruas, havia uma enorme multidão. O Serviço Secreto limpara a área, a fim de que houvesse um espaço de pelo menos trinta metros em torno da limusine presidencial. Havia ali agentes do Serviço Secreto em quantidade suficiente para proteger esse perímetro de trinta metros como uma falange sólida. Além disso, a multidão era controlada pela polícia. À beira do perímetro, havia fotógrafos e cinegrafistas de TV, que avançaram no instante mesmo em que os primeiros homens do Serviço Secreto saíram do hotel. E depois, inexplicavelmente, houve uma espera de quinze minutos.

O presidente finalmente deixou o hotel, resguardado das câmeras de TV, enquanto seguia apressado para o carro à espera. E nesse exato momento a avenida explodiu, num bale sangrento com uma coreografia espetacular.

Seis homens romperam o cordão de isolamento da polícia, derrubando parte do destacamento policial, correram para a limusine blindada do presidente. Um segundo depois, outro grupo de seis homens irrompeu pelo lado oposto do perímetro, metralhando os cinqüenta agentes do Serviço Secreto em torno da limusine blindada com suas armas automáticas.

No instante seguinte, oito carros entraram na área aberta, desembarcando agentes do Serviço Secreto, com equipamento de combate e coletes à prova de balas que os faziam parecer enormes balões. Empunhando espingardas e pistolas-metralhadoras, investiram contra os atacantes pela retaguarda. Atiraram com precisão, em rajadas curtas. Em menos de trinta segundos, todos os doze atacantes estavam caídos na avenida, mortos. A limusine presidencial afastou-se ruidosamente do meio-fio, acompanhada por outros carros do Serviço Secreto.

Nesse momento, Annee, com um supremo esforço de vontade, foi se postar no caminho da limusine presidencial, levando nas mãos duas bolsas de compras da Bloomingdale's. As bolsas estavam cheias de gelatina explosiva, duas potentes bombas que ela detonou, no instante em que o carro, tarde demais, tentou se desviar para não atropelá-la. A limusine presidencial voou pelo ar, subindo pelo menos três metros, antes de cair como uma massa em chamas. O impacto da explosão arrebentou em fragmentos todos os que se encontravam em seu interior. E não restou absolutamente nada de Annee, exceto pedacinhos de papel, em cores alegres, das bolsas de compras.

Um cinegrafista de TV teve a presença de espírito de virar sua câmera para uma panorâmica de tudo o que era visível. Milhares de pessoas haviam se jogado no chão quando o tiroteio começara, e ainda se encontravam assim, como se suplicassem por misericórdia a algum Deus implacável. Daquela massa estendida no chão corriam rios de sangue, das pessoas atingidas pelo fogo cerrado das equipes de assassinato ou mortas pela explosão das duas potentes bombas. Muitos na multidão sofreram concussões e, quando o terror cessou, levantaram-se e saíram cambaleando, na mais total confusão. A câmera registrou tudo isso, a televisão exibindo ao vivo para horrorizar a nação.

No gabinete da Vice-Presidente Du Pray, Christian Klee levantou-se de um pulo e gritou:

— Mas que merda está acontecendo?

Helen Du Pray olhava fixamente para a tela da TV, e perguntou abruptamente a Klee:

— Quem era o pobre coitado que tomou o lugar do Presidente?

— Um dos meus homens do Serviço Secreto — respondeu Christian Klee. — Eles não deveriam chegar tão perto.

Du Pray olhava friamente para Klee. E de repente tornou-se mais furiosa do que ele jamais a vira.

— Por que você não cancelou toda a coisa? — gritou ela. — Por que não evitou essa tragédia? Há cidadãos mortos ali, pessoas comuns que saíram à rua para ver seu presidente. E você ainda por cima desperdiçou as vidas de seus próprios homens. Uma coisa eu lhe prometo: suas ações serão questionadas por mim junto ao presidente e aos comitês apropriados do Congresso.

— Você não sabe do que está falando — protestou Klee. — Tem idéia de quantas ameaças são feitas contra o presidente todos os dias? Se déssemos atenção a todas elas, o presidente seria um prisioneiro na Casa Branca.

Helen Du Pray estudava o rosto de Klee, enquanto ele falava.

— Por que você usou um duble desta vez? — perguntou ela. — É uma medida extrema. E se a ameaça era tão séria assim, por que não impediu que o presidente fosse até lá?

— Quando você for presidente, poderá me fazer essas perguntas — respondeu Klee, bruscamente.

— Onde Francis está agora?

Klee fitou-a em silêncio por um momento, como se não pretendesse responder.

— A caminho de Washington. Não sabemos até onde vai a conspiração, e por isso o queremos aqui. Ele está absolutamente seguro.

Du Pray disse, em tom sardônico:

— Muito bem, agora eu sei que ele está seguro. Presumo que informou aos outros membros da assessoria, eles sabem que o presidente está são e salvo. Mas o que me diz do povo americano? Quando eles saberão que nada aconteceu com o presidente?

— Dazzy já providenciou tudo — disse Klee. — O presidente vai aparecer na televisão e falará à nação assim que chegar à Casa Branca.

— É uma demora um tanto longa — disse a vice-presidente. — Por que não pode avisar aos meios de comunicação e tranqüilizar o povo imediatamente?

— Porque não sabemos o que está acontecendo lá fora — explicou Klee, suavemente. — E talvez não seja tão ruim assim se o povo americano se preocupar um pouco.

Nesse instante, Helen Du Pray teve a impressão de que compreendia tudo. Concluiu que Klee poderia ter interrompido o atentado antes de chegar ao ponto culminante. E sentiu um desprezo profundo por aquele homem; e depois, lembrando as acusações de que ele poderia ter evitado a explosão da bomba atômica, mas não o fizera, ficou convencida de que isso também era verdade.

Mas, acima de tudo, Helen Du Pray sentiu desespero: compreendeu que Klee nunca poderia ter feito aquilo sem o consentimento do Presidente Francis Kennedy.

 

O ATENTADO FEZ COM QUE Kennedy disparasse nas pesquisas. Em novembro, Francis Xavier Kennedy foi reeleito para a presidência dos Estados Unidos. Foi uma vitória tão esmagadora que ele conseguiu eleger também quase todos os seus candidatos à Câmara e Senado. Finalmente, o presidente controlava as duas casas do Congresso.

No período anterior à posse, de novembro a janeiro, Francis Kennedy pôs sua administração para trabalhar na elaboração de novos projetos, que seriam encaminhados ao novo e cooperativo Congresso. Reforçando o apoio a suas propostas, ele contou com a ajuda dos jornais e emissoras de televisão, que teceram fantasias sobre a ligação de Gresse e Tibbot com Yabril e o atentado contra o presidente, numa gigantesca conspiração. As revistas noticiosas semanais deram uma cobertura de primeira página ao assunto.

Quando o Presidente Kennedy submeteu à sua assessoria os planos revolucionários para transformar o governo dos Estados Unidos, todos ficaram secretamente horrorizados. Os grandes negócios seriam mutilados por agências reguladoras rigorosas. As corporações se tornariam sujeitas a penalidades criminais, não mais à intervenção das leis civis. Era evidente que o resultado final seria o de processos criminais por conspiração. E Kennedy até anotara os nomes de Inch, Salentine, Audick e Greenwell para serem processados.

Kennedy ressaltou que o meio mais seguro de se conquistar o apoio público para suas propostas era erradicar o crime na sociedade americana. Para isso, propunha emendas à Constituição que imporiam penalidades draconianas aos criminosos. Não apenas as regras das provas seriam mudadas, mas também o teste de sondagem cerebral para se determinar a verdade se tornaria compulsório em casos criminais.

O mais surpreendente de tudo, porém, era a proposta de criação de colônias penais nas regiões desertas do Alasca, para os criminosos que reincidissem pela terceira vez. Para todos os efeitos, equivalia à prisão perpétua. Francis Kennedy disse a seus assessores:

— Quero que estudem estas propostas. Se não forem capazes de concordar, estou pronto para aceitar o pedido de demissão de cada um, mesmo que isso me cause o maior sofrimento. Espero suas respostas em três dias.

Foi durante esses três dias que Oddblood Gray solicitou uma reunião particular com o presidente. Reuniram-se no almoço, na Sala Oval Amarela.

Gray mostrou-se bastante formal, esquecendo deliberadamente o seu relacionamento com Kennedy no passado.

— Senhor Presidente, devo declarar que me oponho a seu programa para controlar o crime neste país.

Kennedy disse, solene:

— Esses programas são necessários. E finalmente temos um Congresso que aprovará as leis indispensáveis.

— Não posso aceitar os campos de trabalhos forçados no Alasca — insistiu Gray.

—Por que não? Só os criminosos contumazes irão para lá. Há algumas centenas de anos a Inglaterra resolveu o mesmo problema enviando seus criminosos para a Austrália. E foi bastante proveitoso para os dois lados.

Kennedy falara em tom incisivo, mas Oddblood Gray não se deixou intimidar. E comentou, amargurado:

— Sabe muito bem que a maioria desses criminosos será de negros.

— Pois então que eles parem de cometer atos criminosos. Que se juntem ao processo político.

Gray retrucou:

— Pois então que as suas grandes corporações parem de usar os negros como trabalho escravo...

— Pare com isso, Otto. Não se trata de uma questão racial. Trabalhamos juntos durante todos esses anos. Provei-lhe que não sou racista, muitas vezes. Agora, você pode confiar em mim ou confiar no Clube Sócrates.

— Neste caso, não confiamos em ninguém.

— Pois eu lhe direi qual é a realidade! — exclamou Kennedy, quase irritado. — Os criminosos negros serão removidos da população negra. O que há de errado com isso? Os próprios negros são as maiores vítimas. Por que as vítimas deveriam proteger seus predadores? Tenho de ser franco, Otto. Os brancos neste país, certo ou errado, sentem um medo mortal da classe criminosa negra. O que há de errado em integrar a maioria da população negra na classe média?

— O que está propondo é o extermínio de uma grande parcela da geração jovem de negros. Esse é o resultado final. E eu digo não. — Gray fez uma pausa, depois acrescentou: — Digamos que eu confie em você, Francis. Mas como será com o próximo presidente? Ele pode usar os campos para aprisionar revolucionários políticos.

— Essa não é a minha intenção. — Kennedy sorriu. — E posso continuar aqui por muito mais tempo do que você imagina.

Essa declaração deixou Gray apavorado. Kennedy estaria pensando em emendar a Constituição para poder concorrer a um terceiro mandato? Sirenes de alarme explodiram no cérebro de Gray.

— Não é tão simples assim. — Ele hesitou, mas acabou dizendo, ousado: — E você pode mudar.

E nesse momento ele pôde sentir a mudança de Kennedy. Subitamente, tornaram-se inimigos.

— Ou você está comigo ou não está — disse Kennedy. Acusa-me de exterminar toda uma geração de negros. Isso não é verdade. Eles irão para um campo de trabalho, onde serão educados e disciplinados para apoiar o contrato social. Serei muito mais drástico com o Clube Sócrates. Eles não querem essa opção. Eu vou destruí-los.

Gray percebeu que Kennedy não tinha dúvidas. Nunca vira o presidente tão resoluto e tão frio. Sentiu que ele próprio começava a enfraquecer. Kennedy pôs a mão em seu ombro neste momento e acrescentou:

— Não me abandone agora, Otto. Construiremos uma grande América.

— Eu lhe darei minha resposta depois da posse — respondeu Gray. — Mas isto é uma agonia para mim, Francis, não me traia. Se minha gente for congelar o rabo no Alasca, quero ver muito branco congelando em sua companhia.

O Presidente Kennedy reuniu-se com sua assessoria na Sala do Gabinete. Também estavam presentes, a convite especial, a Vice-Presidente Du Pray e o Dr. Annaccone. Kennedy sabia que precisava ser muito cuidadoso — aquelas eram as pessoas que o conheciam melhor, não devia deixá-las adivinhar sua verdadeira agenda. Ele anunciou para todos:

— O Dr. Annaccone tem uma coisa a dizer que pode surpreender a todos.

Kennedy escutou distraído, enquanto Annaccone explicava que o teste PET fora aperfeiçoado de tal forma que o risco de dez por cento de parada cardíaca e completa perda de memória fora reduzido a um décimo de um por cento. Ele sorriu quando Helen Du Pray manifestou sua indignação pela possibilidade de qualquer cidadão livre ser obrigado por lei a efetuar o teste. Esperava isso de Helen. Sorriu também quando o Dr. Annaccone deixou transparecer seus sentimentos melindrados — Zed era instruído demais para ser tão sensível.

Escutou menos divertido quando Gray, Wix e Dazzy concordaram com a vice-presidente. Previra corretamente que Christian Klee não se manifestaria.

Todos observavam Kennedy agora, esperando que ele falasse, tentando descobrir que rumo seguiria. Teria de convencê-los que estava certo. E começou falando devagar:

— Sei de todas as dificuldades, mas estou determinado a fazer com que este teste se torne parte de nosso sistema legal. Não totalmente... ainda resta algum grau de perigo, por menor que seja. Mas o Dr. Annaccone garantiu-me que pesquisas adicionais reduzirão até esse risco mínimo a zero. Mas é um teste científico que revolucionará nossa sociedade. Não importam as dificuldades, haveremos de superá-las.

Annaccone comentou:

— O Congresso jamais aprovará uma lei assim.

— Nós faremos com que aprove — declarou Kennedy, sombrio. — Outros países usarão o teste. Outras agências de informações o usarão. Nós temos de usá-lo.

Ele fez uma pausa, riu, e depois acrescentou para An¬naccone:

— Terei de cortar seu orçamento. Suas descobertas causam muitos problemas, e agora deixarão todos os advogados desempregados. Mas com este teste nenhum homem inocente jamais será considerado culpado.

Determinado, ele se levantou e foi até as portas de vidro que davam para o Jardim das Rosas.

— Mostrarei o quanto acredito no teste. Nossos inimigos não param de me acusar de ser o responsável pela explosão da bomba atômica. Dizem que eu poderia tê-la evitado. Euge, quero que ajude o Dr. Annaccone a aprontar tudo para mim. Quero ser o primeiro a me submeter ao teste PET. Imediatamente. Providencie as testemunhas, todas as formalidades legais.

Kennedy sorriu para Klee.

— Vão me fazer uma pergunta: “É responsável de alguma forma pela explosão da bomba atômica?” E eu responderei. — Ele fez uma pausa, e depois acrescentou: — Farei o teste, e meu procurador-geral também. Certo, Chris?

— Certo — respondeu Klee, apreensivo. — Mas você primeiro.

 

No Walter Reed Hospital, a suíte reservada para o Presidente Kennedy tinha uma sala de reunião especial. Ali estavam o presidente e sua assessoria pessoal, Wix, Gray, Dazzy e Du Pray, o Deputado Jintz e o Senador Lambertino, além de uma comissão de três médicos eminentes, que fiscalizariam e confirmariam os resultados do teste cerebral PET Agora, todos escutavam o Dr. Annaccone explicar o procedimento.

O Dr. Annaccone arrumou seus slides e ligou o projetor. Depois, iniciou sua preleção:

— Este teste, como alguns de vocês já sabem, funciona como um detector de mentiras infalível, a verdade avaliada pela medição do nível de atividade de determinadas substâncias químicas no cérebro. Isso tornou-se possível pelo refinamento da tomografia de emissão de pósitron, conhecido como PET. O procedimento foi efetuado pela primeira vez, em escala limitada, na Faculdade de Medicina da Universidade de Washington, em St. Louis. E foram feitos slides de cérebros humanos em ação.

Um slide grande apareceu na enorme tela branca. Depois outro, e mais outro. Cores brilhantes surgiram, iluminando as diferentes partes do cérebro, enquanto os pacientes liam, escutavam ou falavam. Ou simplesmente pensavam sobre o significado de uma palavra.

— Em suma, sob o teste PET — explicou o Dr. An-naccone —, o cérebro fala em cores vivas. Um ponto na parte posterior do cérebro fica iluminado durante a leitura. No meio do cérebro, contra esse fundo azul-escuro, podem ver uma mancha branca aparecer, meio irregular, com um ponto rosa e um vazamento de azul. Isso aparece durante a fala. Na frente do cérebro, uma mancha similar se ilumina durante o processo de pensamento. Sobre essas imagens, pusemos uma imagem de ressonância magnética da anatomia do cérebro. O cérebro inteiro é agora uma lanterna mágica.

O Dr. Annaccone correu os olhos pela sala, a fim de verificar se todos o estavam acompanhando.

— Estão vendo esta mancha no meio do cérebro mudando? Quando um paciente mente, há um aumento na quantidade de sangue fluindo pelo cérebro, que então projeta outra imagem.

Surpreendentemente, no meio da mancha branca havia agora um círculo vermelho, dentro de um campo amarelo irregular maior.

— O paciente está mentindo — declarou o Dr. Annac¬cone. — Quando testarmos o presidente, o que devemos procurar é essa mancha vermelha dentro do amarelo.

Ele acenou com a cabeça para Kennedy e acrescentou:

— Vamos passar agora para a sala de exame.

Na outra sala, com as paredes revestidas de chumbo, Francis Xavier Kennedy deitou na mesa fria. Havia por trás dele um grosso e comprido cilindro de metal. Enquanto o Dr. Annaccone ajustava a máscara de plástico sobre sua testa e queixo, Kennedy sentiu um momentâneo calafrio de medo. Detestava qualquer coisa sobre seu rosto. Os braços foram amarrados nos lados do corpo. E depois ele sentiu o Dr. Annaccone deslizar a mesa para junto do cilindro. O interior do cilindro era mais estreito do que ele imaginara. Mais escuro. Silencioso. E agora estava cercado por uma rede de cristais radiativos de detecção.

Kennedy ouviu o eco da voz do Dr. Annaccone, instruindo-o a olhar para a cruz branca, na frente de seus olhos.

— Deve manter os olhos na cruz — repetiu Annaccone.

Numa sala cinco andares abaixo, no porão do hospital, um tubo pneumático continha uma seringa com oxigênio radiativo, um ciclotron de água pesada.

Quando veio a ordem da sala de exames lá em cima, esse tubo foi acionado, um foguete de chumbo percorrendo túneis ocultos por trás das paredes do hospital, até alcançar seu objetivo.

O Dr. Annaccone abriu o tubo pneumático e pegou a seringa. Foi até o pé da mesa e chamou Kennedy, que ouviu a voz oca, um eco:

— A injeção.

O presidente sentiu o médico estender a mão pelo escuro e espetar a agulha em seu braço.

Do outro lado da parede de vidro, na extremidade da sala, as pessoas podiam avistar apenas os pés de Kennedy. O Dr. Annaccone foi se juntar a eles e ligou o computador no alto da parede, a fim de que todos pudessem observar as reações do cérebro de Kennedy. Observaram o rastreador circular pelo sangue de Kennedy, emitindo pósitrons, partículas de antimatéria que colidiam com elétrons e produziam explosões de energia de raios gama.

Observaram quando o sangue radiativo alcançou o córtex visual de Kennedy, criando fluxos de raios gama, imediatamente captados pelo círculo de detectores radiativos. Durante todo o tempo, Kennedy mantinha os olhos fixados na cruz branca, de acordo com a instrução.

Depois, através do microfone ligado diretamente ao aparelho, Kennedy ouviu as perguntas do Dr. Annaccone.

— Qual é o seu nome completo?

— Francis Xavier Kennedy.

— Qual é a sua ocupação?

— Presidente dos Estados Unidos.

— Conspirou de alguma forma para a explosão da bomba atômica em Nova York?

— Não.

— Tinha algum conhecimento que poderia ter evitado a explosão?

— Não, não tinha.

Dentro do cilindro preto, as palavras pareciam se lançar como o vento contra seu rosto.

O Dr. Annaccone observava a tela do computador por cima de sua cabeça.

O computador mostrou os padrões se formando na massa azul do cérebro, delineado com a maior elegância no crânio curvo de Kennedy.

Os assessores também observavam, apreensivos.

Mas não apareceu nenhum ponto amarelo denunciador, nenhum círculo vermelho.

— O presidente está dizendo a verdade — anunciou o Dr. Annaccone.

Christian Klee sentiu seus joelhos vergarem. Sabia que não poderia passar por aquele teste.

 

— NÃO POSSO ENTENDER COMO ele conseguiu passar —comentou Christian Klee.

O Oráculo disse, com um desdém que mal conseguia aparecer, por causa da fragilidade de sua idade:

— Com que então nossa civilização possui agora um teste infalível, um teste científico, ressalte-se, para determinar se um homem está dizendo a verdade. E a primeira pessoa que se submete a esse teste mente e escapa impune. “Podemos agora resolver os mais tenebrosos enigmas de inocência e culpa!” Dá vontade de rir. Os homens e mulheres vivem enganando a si próprios. Tenho cem anos de idade e ainda não sei se minha vida foi uma verdade ou uma mentira. Sinceramente não sei.

Christian pegara um charuto do Oráculo e agora o acendeu; o pequeno círculo de fogo fez com que o rosto do Oráculo parecesse uma máscara num museu.

— Deixei que a bomba atômica explodisse — disse Christian. — Sou responsável por isso. E quando fizer o teste PET, saberei a verdade e o aparelho também. Mas pensei que compreendia Kennedy melhor do que qualquer outra pessoa. Sempre pude ler seus pensamentos. E ele não queria que eu interrogasse Gresse e Tibbot. Ele queria que a explosão ocorresse. Então como é possível que ele tenha passado no teste?

— Se o cérebro fosse tão simples, nós seríamos simples demais para compreendê-lo — disse o Oráculo. — Este é um dito do Dr. Annaccone e eu sugiro que aí está sua resposta. O cérebro de Kennedy recusou-se a reconhecer sua culpa. Portanto, o computador no aparelho diz que ele é inocente. Você e eu sabemos que não é bem assim, pois acredito no que me disse. Mas ele será para sempre um homem inocente, mesmo no fundo de seu coração.

— Ao contrário de Kennedy, sou eternamente culpado.

— Anime-se, meu caro. Você só matou dez mil... ou foram vinte mil pessoas? Sua única esperança é se recusar a fazer o teste.

— Prometi a Francis. E os meios de comunicação vão me crucificar se recusar.

— Então por que concordou em fazer?

— Pensei que Francis estivesse blefando — explicou Christian. — Achei que ele não tinha condições de fazer o teste e recuaria. Foi por isso que insisti que ele fizesse o teste primeiro.

O Oráculo demonstrou sua impaciência ao ligar o motor da cadeira de rodas.

— Suba na Estátua da Liberdade — disse ele. — Alegue seus direitos civis e sua dignidade humana. E conseguirá escapar. Ninguém quer que essa ciência infernal se transforme num instrumento legal.

— Tem razão, é isso o que devo fazer. Mas Francis saberá que sou culpado.

— Se esse teste perguntasse se você era um vilão, Christian, o que responderia, com toda sinceridade?

Christian riu, riu de verdade.

— Responderia que não, que não sou um vilão. E passaria no teste. O que é muito engraçado. — Agradecido, ele apertou o ombro do Oráculo. — Não esquecerei sua festa de aniversário.

 

Foi a Vice-Presidente Du Pray quem reagiu mais depressa e com maior irritação à decisão de Klee.

— Compreende que se recusar deve pedir demissão e que sua posição causará grandes prejuízos à presidência?

— Não é absolutamente assim que eu penso — respondeu Klee. — Tenho de concordar que homens como Annaccone vasculhem meu cérebro só para manter o emprego? Ou acha que sou realmente culpado?

Ele podia ver a resposta nos olhos da vice-presidente e pensou que jamais conhecera uma juíza implacável tão bonita. Defensivo, Klee acrescentou:

— Há a Constituição dos Estados Unidos. Tenho a liberdade individual de me recusar a fazer esse teste.

Otto Gray interveio, em tom ríspido:

— Mas não se lembra da Constituição quando se trata de criminosos. Está ansioso em despachá-los para o Alasca.

— Ora, Otto, você não acredita nisso, não é mesmo?

Klee ficou aliviado quando Otto respondeu:

— Claro que não acredito, mas você deve fazer o teste. — Uma pausa e ele arrematou: — Ou pedir demissão.

Klee virou-se para Wix e Dazzy e perguntou-lhes, sorrindo:

— O que vocês acham?

Foi Wix quem respondeu primeiro:

— Não tenho a menor dúvida de que você é inocente, as acusações que lhe fazem não passam de besteira. Mas se se recusar a fazer o teste cerebral, passará a ser culpado aos olhos do público. E terá que se retirar desta administração.

Klee virou-se para Dazzy.

— E você, Eugene?

Dazzy não quis olhar para ele e Dazzy lhe devia um favor, pensou Klee. Só depois de algum tempo é que Dazzy disse, com uma expressão ponderada:

— Você tem de fazer o teste, Christian. Nem mesmo a sua saída da administração poderia nos ajudar. Já anunciamos que se submeteria ao teste, como concordou que faria. Por que essa mudança de idéia? Não está com medo, não é mesmo?

— Prometi demonstrar minha lealdade a Francis Kennedy. Mas agora pensei melhor e concluí que o risco é grande demais.

Dazzy suspirou.

— Eu gostaria que você tivesse pensado nisso mais cedo. Quanto à sua renúncia, acho que depende do presidente.

Todos olharam para Francis Kennedy. Seu rosto estava muito branco, os olhos, geralmente tão claros, pareciam ter assumido um azul mais escuro e mais profundo. Mas sua voz soou surpreendentemente gentil quando disse a Klee:

— Christian, posso persuadi-lo com base na nossa longa e profunda amizade? Fiz o teste, assumi o risco, porque achei que era importante para o país e a presidência. E porque eu era inocente. Nunca me faltou, Christian. Conto com você.

Por um momento, Klee sentiu ódio de Francis Kennedy. Como aquele homem era capaz de esconder sua culpa até de si mesmo? E por que aquele seu melhor amigo tinha de pô-lo na cruz da verdade? Mas ele disse com uma calma absoluta:

— Não posso fazer isso, Francis.

Kennedy declarou, muito solene:

— Então está resolvido. Não quero que você renuncie, não permitirei que sofra essa indignidade. E, agora, vamos continuar.

— Vamos fazer um comunicado à imprensa? — indagou Dazzy.

— Não — respondeu Kennedy, —- Se perguntarem, digam que o procurador-geral está gripado e fará o teste assim que se recuperar. Isso nos dará um mês.

— E daqui a um mês? — insistiu Dazzy.

— Tornaremos a pensar na situação — disse Kennedy.

O Presidente Kennedy convocou Theodore Tappey, o diretor da CIA, para uma reunião particular na Sala Oval Amarela. Mais ninguém foi chamado, ele não queria testemunhas, não queria gravações.

Kennedy não perdeu tempo em cortesias. Não houve a amenidade de um chá demorado. Ele falou bruscamente a Tappey:

— Theo, temos um grande problema que só você e eu compreendemos. E só você e eu podemos resolver.

— Farei o melhor que puder, Senhor Presidente.

Kennedy percebeu a expressão implacável nos olhos de Tappey. Ele farejava sangue.

— Tudo o que dissermos aqui tem a mais alta classificação de segurança, fica protegido pelo privilégio do executivo — declarou o presidente. — Você não deve repetir para ninguém, nem mesmo para os membros de minha assessoria pessoal.

Foi nesse momento que Tappey compreendeu que o problema era da maior gravidade, porque Kennedy sempre incluía sua assessoria em tudo.

— O problema é Yabril. Tenho certeza... — Kennedy sorriu. — ...tenho certeza absoluta de que você já pensou em tudo isso. Yabril será levado a julgamento. Isso vai atiçar todos os ressentimentos contra os Estados Unidos. Ele será condenado à prisão perpétua. Mas em algum lugar, no futuro, haverá uma ação terrorista que vai capturar reféns importantes. Uma das exigências será a libertação de Yabril. A esta altura, eu não serei mais o presidente e, assim, Yabril escapará livre. É ainda um homem perigoso.

Kennedy já vira a expressão de ceticismo em Tappey. O sinal era a ausência de sinal, pois Tappey era muito experiente na simulação. O rosto simplesmente perdia toda e qualquer expressão, desaparecia qualquer animação nos olhos, no contorno dos lábios. Ele se tornava vazio, para não ser interpretado. Agora, porém, Tappey sorriu.

— Deve ter lido os memorandos internos que meu chefe de contra-espionagem tem me enviado. É exatamente o que ele diz.

— E o que podemos fazer para impedir tudo isso? — indagou Kennedy,

Era uma pergunta retórica e Tappey não respondeu. Kennedy decidiu que chegara o momento.

— Eu lhe asseguro que posso persuadir Yabril a fazer o teste cerebral. Cuidarei dele. O público precisa saber que os resultados do teste ligarão a bomba atômica a Yabril, provando de uma vez por todas que houve uma conspiração global. Podemos inocentar Christian e partir no encalço daqueles garotos... organizar uma caçada humana e levá-los a julgamento, no mínimo.

Pela primeira vez no relacionamento entre os dois, Kennedy viu Tappey fitando-o com a expressão avaliadora astuta de um companheiro de conspiração. Sabia que Tappey percebia as coisas muito à frente,

— Não precisamos realmente das respostas de Yabril, não é mesmo?

— Não, não precisamos — confirmou Kennedy.

— Christian está a par?

Era uma pergunta difícil para Kennedy. E ainda não era a parte mais difícil.

— Esqueça Christian.

Tappey acenou com a cabeça. Tappey estava com ele. Tappey compreendia. E Tappey agora fitava Kennedy como um servo poderia olhar seu amo que estava prestes a lhe pedir um serviço que os uniria para sempre.

— Acho que não vou receber nenhuma instrução por escrito — comentou Tappey.

— Não, não vai. E lhe darei agora, oralmente, as instruções específicas.

— Seja bastante específico, se assim desejar, Senhor Presidente.

Kennedy sorriu à frieza da resposta.

— O Dr. Annaccone nunca faria isso. Há um ano, eu próprio nunca sonharia em fazê-lo.

— Eu compreendo, Senhor Presidente.

Kennedy sabia que não podia mais haver hesitação.

— Depois que Yabril concordar em se submeter ao teste, eu o transferirei para a seção médica da CIA. Sua equipe médica aplica o teste. Cuida de tudo.

O presidente notou a expressão de Tappey, a hesitação da dúvida, não por indignação moral, mas a dúvida da viabilidade.

— Não estamos falando de assassinato neste caso — declarou Kennedy, impaciente. — Não sou tão estúpido ou imoral. E se eu quisesse isso, estaria falando com Christian.

Tappey ficou esperando. Kennedy sabia que precisava dizer agora as palavras fatais.

— Juro que lhe peço isso para a proteção de nosso país. Quer continue na prisão ou seja libertado, Yabril não deve mais ser um perigo. Quero que sua equipe médica leve o teste a seu limite extremo. Segundo o Dr. Annaccone, foi nessas condições que surgiram os efeitos colaterais. E houve um apagamento total da memória. Um homem sem memória, sem crenças e convicções, é inofensivo. Levará uma vida pacífica.

Kennedy reconheceu a expressão nos olhos de Tappey — era a expressão de um predador que descobrira outra espécie estranha que o igualava em ferocidade.

— Pode providenciar uma equipe médica que cuide disso? — perguntou Kennedy.

— Não haverá problemas, quando eu lhes explicar a situação — garantiu Tappey. — Nunca teriam sido recrutados se não fossem devotados a seu país.

Na calada daquela noite, Theodore Tappey escoltou Yabril aos aposentos de Kennedy. Outra vez a reunião foi breve e Kennedy manteve-se objetivo. Não houve chá, não houve cortesia. Kennedy começou imediatamente, apresentou sua proposta a Yabril:

— É muito importante para os Estados Unidos saber se você participou da conspiração da bomba atômica. Para extinguir seus medos. E importante para você que seu nome seja inocentado nesta questão em particular. É verdade que ainda será levado a julgamento por outros crimes, e será condenado à prisão perpétua. Mas eu lhe prometo que permitirei que se comunique com seus amigos no mundo exterior. Vamos presumir que eles sejam bastante leais para criar um situação de reféns e exigir sua libertação. Eu estaria propenso a concordar com essa exigência. Mas só poderia fazer isso se você estivesse eximido de qualquer culpa na explosão da bomba atômica... Percebo que tem algumas dúvidas.

Yabril deu de ombros.

— Acho que sua oferta é muito generosa.

Kennedy recorreu a toda a sua força para fazer o que era preciso. Lembrou Yabril fazendo charme com sua filha Theresa, antes de encostar um revólver em sua nuca. O mesmo charme não funcionaria com Yabril. Só conseguiria persuadir aquele homem se o convencesse de sua absoluta moralidade.

— Estou fazendo isso para acabar com o medo na mente do meu país — declarou Kennedy. — Esta é a minha maior preocupação. Meu prazer seria a sua permanência na prisão para sempre. Portanto, eu lhe faço a proposta por um senso de dever.

— Então por que está se esforçando tanto para me convencer? — perguntou Yabril.

— Não é da minha natureza cumprir o meu dever como uma questão meramente formal.

Kennedy pôde perceber que Yabril também começava a acreditar nisso, acreditar que ele era um homem de moral, em quem se podia confiar, dentro dessa moral. Outra vez ele invocou a imagem de Theresa e a convicção da filha na bondade de Yabril. E depois ele acrescentou para Yabril:

— Você ficou indignado com a sugestão de que sua gente planejou a explosão de uma bomba atômica. Pois aqui está uma oportunidade de limpar o seu nome e os nomes de seus camaradas. Por que não aproveitá-la? Receia que não passará no teste? Isso é sempre uma possibilidade... ocorre-me agora, embora eu não acredite realmente.

Yabril fitou Kennedy nos olhos.

— Não acredito que nenhum homem possa perdoar o que eu lhe fiz.

Ele ficou em silêncio. Parecia cansado. Mas não se deixara enganar. Era a própria essência da corrupção americana fazer uma proposta assim, a fim de alcançar um objetivo político imoral.

Ele não tinha a menor idéia de tudo o que acontecera nos últimos seis meses. Permanecera isolado, submetido a constantes interrogatórios. Kennedy pressionou mais um pouco:

— Fazer esse teste é a sua única esperança de liberdade. Desde que passe, é claro.

Kennedy suspirou, antes de acrescentar:

— Não o perdôo, mas compreendo suas ações. Compreendo que sente que fez o que fez para ajudar nosso mundo. Como eu faço o que faço agora. E está dentro da minha competência. Somos diferentes, eu não posso fazer o que você faz, e você, não vai desrespeito nisso, não pode fazer o que estou fazendo agora... deixá-lo sair livre.

Quase com pesar, Kennedy constatou que persuadira Yabril. E prosseguiu na persuasão, usando todo o seu espírito, todo o seu charme, toda a sua aparência de integridade. Projetou todas as imagens do que fora outrora, antes de renunciar a todo o seu eu, a fim de convencer Yabril. E compreendeu que finalmente tivera êxito quando viu que o sorriso de Yabril era de compaixão e desprezo. Teve certeza nesse momento de que conquistara a confiança de Yabril.

Quatro dias mais tarde, depois de Yabril ser submetido ao interrogatório médico, com o teste PET, depois que o terrorista fora devolvido à custódia do FBI, ele recebeu dois visitantes. Eram Francis Kennedy e Theodore Tappey.

Yabril se achava completamente solto, sem algemas.

Os três homens passaram uma hora tranqüila, tomando chá e comendo pequenos sanduíches. Kennedy estudou Yabril. O rosto do homem parecia ter mudado. Era um rosto sensível, os olhos com um pouco de melancolia, mas joviais. Ele falou pouco, mas observou Kennedy e Tappey como se tentasse esclarecer algum mistério.

Parecia contente. Parecia saber quem era. E parecia irradiar tanta pureza de alma que Kennedy não foi capaz de suportar fitá-lo por muito tempo e foi embora.

A decisão sobre Christian Klee foi ainda mais dolorosa para Francis Kennedy. E uma surpresa inesperada para Christian. Kennedy chamou-o à Sala Amarela para uma reunião particular; e iniciou a conversa dizendo calmamente:

— Christian, tenho sido mais ligado a você do que a qualquer outra pessoa, fora da minha família. Creio que conhecemos um ao outro melhor do que qualquer outra pessoa nos conhece. Por isso, estou certo de que você vai compreender que preciso pedir sua renúncia, a entrar em vigor depois da posse, no momento em que eu decidir aceitá-la.

Klee contemplou aquele rosto bonito, com o sorriso gentil. Não podia acreditar que Kennedy o estivesse dispensando sem qualquer explicação.

— Sei que fiz algumas coisas escusas aqui e ali, mas meu objetivo supremo sempre foi o de resguardá-lo.

— Você deixou que aquele artefato nuclear explodisse. Poderia ter evitado.

Christian Klee analisou friamente a situação com que se deparava. Nunca mais tornaria a sentir sua antiga afeição por Kennedy. Nunca mais acreditaria em sua própria humanidade, na justiça do que fizera. E, subitamente, ele compreendeu que nunca poderia suportar aquele fardo. Que Francis Kennedy deveria partilhar a responsabilidade pelo que ele fizera. Mesmo em particular.

Klee fitou os olhos azuis-claros do presidente, que tão bem conhecia, procurou alguma misericórdia ali.

— Francis, você queria que eu fizesse o que fiz. Ambos sabíamos que era a única coisa que podia salvá-lo... e eu sabia que você não poderia tomar essa decisão. Haveria de destruí-lo, Francis, não me julgue. Eles o afastariam do poder e você nunca poderia suportá-lo. Estava à beira do desespero, e eu era o único que podia percebê-lo. Eles deixariam sua filha sem vingança. Permitiriam que Yabril escapasse impune, desgraçariam a América.

Klee fez uma pausa, surpreso ao descobrir que Francis Kennedy o fitava com absoluta impassibilidade.

— Portanto, você pensa que eu queria vingança — comentou Kennedy.

— Não contra Yabril. Talvez contra o Destino.

— Pode permanecer no cargo até a posse — repetiu Kennedy. — Merece isso. Mas é um ponto de perigo, um alvo. E preciso fazê-lo desaparecer, a fim de poder varrer toda a sujeira.

O presidente fez uma pausa.

— Está equivocado ao pensar que eu queria que fizesse o que fez, Chris. E estava enganado ao pensar que eu agia por um desejo de vingança.

Christian Klee sentiu uma vaga dissociação de seu mundo, uma angústia que não podia sequer definir.

— Francis, eu o conheço, eu o compreendo. Sempre fomos como irmãos. Sempre senti isso, que éramos de fato irmãos. E salvei-o como um irmão deveria fazer. Tomei a decisão, assumi a culpa. Posso deixar o mundo me condenar, mas não você.

Ele hesitou por um momento.

— Precisa de mim, Francis. Ainda mais agora, no curso de ação em que está se lançando. Deixe-me ficar.

Francis Kennedy suspirou.

— Não questiono sua lealdade, Christian. Mas depois da posse, você terá de se afastar. E nunca mais tornaremos a discutir esse assunto.

— Fiz tudo para salvá-lo — insistiu Christian.

— E me salvou.

Christian pensou naquele dia, quatro anos antes, no início de dezembro, em que Francis Kennedy, o presidente eleito dos Estados Unidos, aguardava-o diante do mosteiro, em Vermont. Kennedy desaparecera por uma semana. Os jornais e seus adversários políticos especularam que ele se encontrava sob cuidados psiquiátricos, que sofrera um colapso, tinha um romance secreto. Mas só duas pessoas — o superior do mosteiro e Christian Klee — conheciam a verdade: que Francis Kennedy resolvera fazer um retiro para lamentar de forma profunda e completa a morte da esposa.

Fora uma semana depois da eleição que Christian levara Kennedy de carro ao mosteiro católico, nos arredores de White River Junction, em Vermont. Foram recebidos pelo abade, que era o único que conhecia a identidade de Kennedy.

Os monges residentes viviam apartados do mundo, isolados de todos os meios de comunicação, até mesmo da própria cidade. Aqueles monges comunicavam-se apenas com Deus e a terra da qual tiravam a sua subsistência. Todos haviam feito um voto de silêncio e não falavam, exceto em orações ou gritos de dor, quando ficavam doentes ou se feriam em algum acidente doméstico.

Só a abade tinha um aparelho de televisão e acesso a jornais. Os programas noticiosos da TV eram uma constante fonte de diversão para ele. Apreciava em particular o conceito do âncora nos noticiários noturnos, e muitas vezes pensava em si mesmo, ironicamente, como um dos âncoras de Deus. Usava essa idéia para lembrar a si mesmo da necessidade de humildade.

Quando o carro parara, o abade os esperava no portão do mosteiro, flanqueado por dois monges, em hábitos marrons esfarrapados, os pés metidos em sandálias. Christian tirara a bagagem de Kennedy da mala do carro e observara o abade apertar a mão do presidente eleito. O abade mais parecia um estalajadeiro do que um santo homem. Exibia um sorriso jovial ao lhes dar as boas-vindas. E dissera alegremente, quando fora apresentado a Christian:

— Por que não fica também? Uma semana de silêncio não lhe faria mal algum. Já o vi na televisão e você deve estar cansado de tanto falar.

Christian sorrira em agradecimento, mas não dissera nada. Observara Francis Kennedy ao trocarem um aperto de mão. O rosto bonito estava absolutamente controlado, o aperto de mão não era emocionado — Kennedy não era um homem expansivo. Não parecia estar lamentando a morte da esposa. Tinha mais a expressão preocupada de um homem obrigado a se internar num hospital para uma pequena intervenção cirúrgica.

— Vamos torcer para que consigamos manter isto em segredo — comentara Christian. — As pessoas não gostam desses retiros religiosos. Podem pensar que você ficou maluco.

O rosto de Kennedy contraíra-se num pequeno sorriso. Uma cortesia controlada, mas natural.

— Não vão descobrir, Christian. E sei que você me dará toda cobertura. Venha me buscar dentro de uma semana. Deve ser tempo suficiente.

Christian se perguntara o que aconteceria a Francis durante aqueles dias. E sentira-se à beira das lágrimas. Pusera as mãos nos ombros de Francis Kennedy e dissera:

— Quer que eu fique com você?

Kennedy sacudira a cabeça e se afastara pelo portão do mosteiro. Naquele dia Christian pensara que ele parecia bem.

O dia seguinte ao Natal fora claro e brilhante, tão purificado pelo frio que até parecia que o mundo inteiro se encontrava encerrado em vidro, o céu era um espelho, a terra, de aço marrom. E quando Christian parara diante do portão do mosteiro, Francis Kennedy se encontrava sozinho, esperando-o sem qualquer bagagem, as mãos estendidas por cima da cabeça, o corpo retesado, esticando-se para o alto. Parecia exultante com sua liberdade.

Quando Christian saltara do carro para cumprimentá-lo, Kennedy lhe dera um rápido abraço, gritara uma alegre recepção. Dava a impressão de estar rejuvenescido por sua permanência no mosteiro. Sorrira para Christian, um dos seus sorrisos excepcionalmente exuberantes, que encantavam as multidões. O sorriso que assegurara ao mundo que a felicidade podia ser conquistada, que o mundo seguiria sempre em frente para coisas cada vez melhores. Era um sorriso que levava as pessoas a amarem-no, por causa da satisfação que se experimentava ao vê-lo. Christian experimentara o maior alívio ao contemplar aquele sorriso. Francis estaria bem. Seria tão forte quanto sempre fora. Seria a esperança do mundo, o vigoroso guardião de seu país e de seus semelhantes. Agora, passariam a fazer grandes coisas juntos.

E depois, com aquele mesmo sorriso brilhante, Kennedy pegara Christian pelo braço, fitara-o nos olhos e dissera, com toda simplicidade, mas também divertido, como se realmente não falasse a sério, como se estivesse apenas transmitindo alguma informação sem maior importância:

— Deus não ajudou.

E no mundo frio de uma manhã de inverno, Christian compreendera que finalmente alguma coisa se rompera dentro de Kennedy. Que ele nunca mais voltaria a ser o mesmo homem. Que parte de sua mente fora decepada. Ele seria quase o mesmo, mas agora havia um núcleo mínimo de falsidade, que nunca existira antes. Ele compreendera que o próprio Kennedy não sabia disso, e que ninguém mais saberia. E que ele, Christian, só sabia porque era a pessoa que se encontrava ali, naquele exato momento, para ver o sorriso exuberante e ouvir as palavras jocosas, “Deus não ajudou”.

— Também era muito difícil, pois você só lhe deu sete dias — comentara Christian.

Kennedy rira.

— E ele é um homem ocupado.

Os dois entraram no carro. E tiveram um dia maravilhoso. Kennedy nunca se mostrara mais espirituoso, nunca se mostrara tão animado. Transbordava com planos, estava ansioso em organizar sua administração e fazer coisas maravilhosas acontecerem nos quatro anos seguintes. Parecia um homem que se reconciliara com seu infortúnio, renovara suas energias. E isso quase convencera Christian...

Christian Klee começou a tomar as providências para se retirar da administração. Uma das coisas mais importantes era apagar todos os vestígios da maneira como se esquivara à lei na proteção ao presidente. Precisava também suspender todas as vigilâncias ilegais de computador dos membros do Clube Sócrates,

Sentado à sua enorme escrivaninha, no gabinete do procurador-geral, Klee usou o seu computador pessoal para apagar os arquivos incriminadores. Finalmente, pôs na tela o arquivo sobre David Jatney. Acertara em cheio sobre o rapaz, pensou Christian, ele era mesmo o curinga no baralho. Aquele rosto moreno e bonito tinha a expressão insólita de uma mente desequilibrada. Os olhos de Jatney brilhavam com a eletricidade dispersa de um sistema neural em guerra consigo mesmo. E a última informação indicava que ele estava a caminho de Washington.

Aquele sujeito poderia criar problemas. E foi nesse instante que Christian Klee lembrou-se da predição do Oráculo. Quando um homem conquista o poder absoluto, geralmente se livra daqueles que lhe estão mais próximos, aqueles que conhecem os seus segredos. Ele amara Francis por suas virtudes. Muito antes dos segredos terríveis. Pensou a respeito durante muito tempo. E depois chegou a uma conclusão: deixaria o destino decidir. E o que quer que acontecesse, ele, Christian Klee, não poderia ser culpado.

Christian apertou a tecla de apagar no computador, e David Jatney desapareceu por completo de todos os arquivos do governo, sem deixar o menor vestígio.

 

APENAS DUAS SEMANAS antes da posse em um novo mandato do Presidente Francis Kennedy, David Jatney tornara-se irrequieto. Queria escapar ao sol eterno da Califórnia, às vozes exuberantes e alegres por toda parte, ao luar, às praias deslumbrantes. Sentia que se afogava na calda doce daquela sociedade, mas não queria voltar para casa, em Utah, e se tornar a testemunha cotidiana da felicidade de seu pai e mãe.

Irene fora morar com ele. Ela queria poupar o dinheiro do aluguel, a fim de realizar uma viagem à Índia e estudar com um guru que existia ali. Um grupo de amigos seus estava reunindo seus recursos para fretar um avião, e Irene queria acompanhá-los, levando seu filho pequeno, Campbell.

David ficou aturdido quando ela lhe contou seus planos. Irene não lhe perguntou se podia ir morar com ele, simplesmente se mudou, proclamando o seu direito de fazê-lo. Esse direito baseava-se no fato de que agora se encontravam três vezes por semana, para ir ao cinema e fazer sexo. Ela anunciara a decisão como se fosse uma ação entre amigos, como se David fosse um de seus amigos da Califórnia, que rotineiramente iam morar uns com os outros, por períodos de uma semana ou mais. Não foi feito como uma preliminar astuciosa para o casamento, mas sim como um ato espontâneo de camaradagem. Ela não tinha o menor senso de invasão, de imposição, não imaginava que a vida de David seria afetada por uma mulher e uma criança fazendo parte de sua existência cotidiana.

O que mais horrorizava David, acima de todo o resto, era o fato de que Irene planejava levar o filho pequeno para a Índia. Irene era uma mulher que sentia uma confiança absoluta em sua capacidade de abrir caminho em qualquer mundo; ela tinha certeza de que o destino lhe seria favorável. David tinha visões do garotinho dormindo nas ruas de Calcutá, com os milhares de pobres doentes daquela cidade. Num momento de raiva, dissera outrora a Irene que não podia entender que alguém acreditasse numa religião que produzia as centenas de milhões de pessoas que eram as mais desesperadamente pobres do mundo. Ela respondera que não tinha a menor importância o que acontecia neste mundo, já que o que aconteceria na próxima vida seria muito mais compensador.

Jatney sentia-se fascinado por Irene, pela maneira como ela tratava o filho. Muitas vezes ela levava o pequeno Campbell a suas reuniões políticas, porque nem sempre conseguia persuadir a mãe a tomar conta dele e era orgulhosa demais para pedir com freqüência. Havia ocasiões em que o levava até para o trabalho, quando o jardim-de-infância em que o menino ficava era fechado por algum motivo.

Não podia haver a menor dúvida de que ela era uma mãe devotada. Para David, no entanto, sua atitude em relação à maternidade era desconcertante. Ela não demonstrava a preocupação usual em proteger o menino, nem se importava com as influências psicológicas que poderiam prejudicá-lo. Tratava-o como alguém trataria um bicho de estimação amado, um cachorro ou um gato. Estava determinada a não permitir que o fato de ser mãe de uma criança pequena limitasse sua vida por qualquer forma, em não deixar que a maternidade se convertesse em escravidão, em manter a sua liberdade. David achava que ela era um pouco maluca.

Mas Irene era uma mulher bonita, e podia ser ardente quando se concentrava no sexo. David apreciava a sua companhia. Ela era competente nos detalhes da vida cotidiana e não criava maiores problemas. E, por isso, deixou que Irene fosse viver com ele.

Houve duas conseqüências completamente imprevisíveis para David. Primeiro, ele se tornou impotente. E, depois, tornou-se afeiçoado a Campbell.

Preparou-se para a mudança dos dois pela aquisição de um enorme baú para guardar suas armas, os materiais de limpeza e a munição. Não queria que um garoto de cinco anos pusesse as mãos acidentalmente nas armas. E, àquela altura, de algum modo, David Jatney já acumulara armas suficientes para equipar um super-herói bandido: dois rifles, uma pistola-metralhadora e uma grande coleção de pequenas armas. Uma delas era uma pistola muito pequena, de calibre 22, que ele carregava no bolso do paletó, dentro de um pequeno invólucro de couro, que mais parecia uma luva. À noite, em geral, guardava essa arma debaixo de sua cama. Quando Irene e Campbell foram morar com ele, David passou a guardar a 22 no baú, junto com as outras armas. E pôs um cadeado no baú. Mesmo que o garotinho encontrasse o baú aberto, não havia a menor possibilidade de saber como carregar uma das armas. Já Irene era outra história. Não que não confiasse nela, mas Irene era um pouco esquisita, meio excêntrica, o que não combinava com armas de fogo.

No dia em que eles se mudaram, Jatney comprou alguns brinquedos para Campbell, a fim de que o garoto não ficasse desorientado demais. Na primeira noite, quando Irene estava pronta para deitar, arrumou travesseiros e uma manta no sofá para o filho, despiu-o no banheiro, pôs um pijama. Jatney percebeu que o garoto o observava. Havia naquele olhar uma cautela antiga, uma insinuação de medo, e o que parecia ser, muito fraco, uma perplexidade habitual. Num relance, Jatney transferiu aquele olhar para si mesmo. Quando pequeno, sabia que o pai e a mãe o abandonariam para fazerem amor no quarto conjugal. E foi nesse instante que ele disse a Irene:

— É melhor eu dormir no sofá. O garoto pode dormir na cama com você.

— Não precisa — protestou Irene. — Ele não se importa... não é mesmo, Campbell?

O garoto sacudiu a cabeça. Raramente falava. Irene acrescentou, orgulhosa:

— Ele é um menino muito corajoso... não é mesmo, Campbell?

David Jatney experimentou então um momento de ódio profundo a Irene. Tratou de reprimi-lo e disse:

— Preciso escrever uma coisa e ficarei acordado até tarde. Acho que ele deve dormir com você nas primeiras noites.

— Se você precisa trabalhar, está bem — concordou Irene, jovialmente.

Ela estendeu a mão para Campbell, que saltou do sofá e correu para seus braços. O menino comprimiu a cabeça contra os seios da mãe, que lhe disse:

— Não vai dizer boa noite para seu tio Jat?

E ela sorriu para David, um sorriso exuberante, que a tornava bonita. E ele compreendeu que era a piadinha particular de Irene, uma piada honesta, uma maneira de lhe explicar que esse era o seu modo de tratamento e apresentação para o filho quando vivera com outros amantes, momentos delicados e assustadores em sua vida, e que ela sentia-se grata agora por sua consideração, que sua fé no universo era confirmada. O garoto manteve a cabeça comprimida contra os seios da mãe. David afagou-o gentilmente e disse:

— Boa noite, Campbell.

O garoto virou o rosto e fitou Jatney nos olhos. Era a expressão inquisitiva peculiar das crianças pequenas, a contemplação de um objeto que é absolutamente desconhecido para seu universo,

David ficou abalado com esse olhar. Como se pudesse se constituir uma fonte de perigo. Percebeu que o garoto possuía um rosto excepcionalmente refinado para alguém tão pequeno. Uma testa larga, olhos cinza luminosos, uma boca firme, quase dura.

Campbell sorriu para Jatney e o efeito foi milagroso. Todo o seu rosto parecia radiante com confiança. Estendeu a mão e tocou no rosto de David. E, depois, Irene levou-o para o quarto. Poucos minutos depois ela tornou a sair e deu um beijo em David.

— Obrigada por ser tão atencioso. E podemos dar uma trepada rápida, antes de eu voltar ao quarto.

Irene não fez qualquer movimento sedutor enquanto falava. Era apenas uma oferta amigável. David pensou no garoto por trás da porta do quarto, esperando a mãe.

— Não.

— Está bem — disse Irene, sempre jovial, e voltou no mesmo instante ao quarto.

Durante as semanas subseqüentes, Irene esteve intensamente ocupada. Aceitara um emprego adicional por um salário bem pequeno e longas horas à noite, a fim de ajudar na campanha da reeleição — ela era uma fervorosa partidária de Francis Kennedy. Falava sempre sobre os programas sociais que ele propunha, sua luta contra os ricos dos Estados Unidos, seu empenho para reformar todo o sistema legal americano. David pensava que ela estava apaixonada pela aparência física de Kennedy, a magia de sua voz. Estava convencido de que Irene trabalhava no quartel-general da campanha por causa de sua paixão, não por alguma convicção política.

Três dias depois de ir morar com David, ela se encontrava no quartel-general da campanha em Santa Monica, trabalhando num computador, com o pequeno Campbell a seus pés, quando ele apareceu para visitá-la. O menino estava metido num saco de dormir, mas acordado. David viu seus olhos abertos.

— Vou levá-lo para casa e pô-lo na cama — sugeriu David.

— Ele está bem — respondeu Irene. — E não quero me aproveitar de você.

David tirou o pequeno Campbell do saco de dormir; o menino estava inteiramente vestido, apenas sem os sapatos. Ele pegou o menino pela mão, sentiu a pele quente, macia, foi um momento de felicidade.

— Vou levá-lo antes para comer uma pizza e tomar um sorvete, está certo? — disse David a Irene.

Ela estava absorvida no computador.

— Não o mime demais. Depois que você for embora ele pode pegar um iogurte natural na geladeira.

Irene fez uma pausa no trabalho, sorriu para David deu um beijo em Campbell.

— Devo esperar por você? — perguntou David.

— Para quê? — indagou ela prontamente, apressando-se em acrescentar: — Chegarei tarde.

David saiu, levando o menino pela mão. Entrou no carro e seguiu para a Montana Avenue, parou num pequeno restaurante italiano que vendia pizzas no lado. Observou Campbell comer. Uma fatia e ele sujou as roupas mais do que comeu. Mas mostrou-se interessado em comer, o que deixou David feliz.

Chegando ao apartamento, ele pôs Campbell na cama, deixou-o se lavar e vestir o pijama sozinho. Arrumou sua cama no sofá, ligou a TV bem baixo, ficou assistindo.

Havia muita conversa política no ar, entrevistas nos programas noticiosos. Francis Kennedy parecia se projetar de todas as galáxias de cabos. E David não podia deixar de reconhecer que o homem era irresistível na TV. Ele sonhou em ser um herói vitorioso como Kennedy. Podia-se ver os agentes do Serviço Secreto, com suas caras impassíveis, pairando ao fundo. Como ele estava seguro, como era rico, como era amado! David sonhara muitas vezes em ser Francis Kennedy. Rosemary ficaria então apaixonada por ele. E David pensou em Hock e Gibson Grange. E todos estariam comendo na Casa Branca, todos falariam com ele, Rosemary falaria à sua maneira excitada, pondo a mão em seu joelho, revelando-lhe os seus sentimentos mais íntimos.

Ele pensou em Irene e no que sentia por ela. E compreendeu que se sentia mais perplexo do que fascinado. Parecia-lhe que Irene, apesar de toda a sua franqueza, era na verdade uma pessoa completamente fechada para ele. Nunca poderia amá-la de fato. Pensou em Campbell, que recebera esse nome em homenagem ao escritor Joseph Campbell, famoso por seus livros sobre mitos, o garoto tão aberto e inocente, com um semblante tão ingênuo.

Campbell agora o chamava de tio Jat e sempre segurava na sua mão. David aceitava. Adorava os contatos inocentes de afeição que o garoto lhe dispensava, o que nunca acontecia com Irene. E durante aquelas duas semanas foi essa projeção de sentimento por outro ser humano que o sustentou.

Quando perdeu o emprego no estúdio, ficaria numa situação crítica se não fosse por Hock, seu “tio” Hock. Ao ser despedido, recebeu um recado para ir ao gabinete de Hock. Achou que Campbell gostaria de conhecer um estúdio de cinema e resolveu levá-lo.

Quando Hock o cumprimentou, David Jatney sentiu um amor profundo pelo homem, ele era afetuoso demais. Hock mandou imediatamente uma de suas secretárias buscar sorvete para Campbell, mostrou ao menino alguns dos adereços em sua mesa que seriam usados no filme que estava produzindo no momento.

Campbell ficou encantado com tudo aquilo e Jatney sentiu uma pontada de ciúme. Mas depois compreendeu que era a maneira de Hock para remover um obstáculo no encontro dos dois. Com Campbell ocupado, brincando com os adereços, Hock apertou a mão de Jatney e disse:

— Lamento que tenha sido despedido. Eles estão reduzindo o departamento de leitura de originais e os outros tinham mais tempo de casa. Mas fique em contato, acabarei arrumando alguma coisa para você.

— Não precisa se preocupar — respondeu David Jatney.

Hock estudava-o atentamente.

— Está magro demais, David. Talvez seja melhor voltar para casa, passar algum tempo lá. O revigorante ar de Utah, a relaxante vida mórmon... E o filho de sua namorada?

— É, sim. Ela não chega a ser exatamente minha namorada, é mais minha amiga. Vivemos juntos, porque ela está tentando economizar o dinheiro do aluguel para fazer uma viagem à Índia.

Hock franziu o rosto por um momento.

— Se você financiar cada garota da Califórnia que quer ir à Índia, vai ficar completamente quebrado. E parece que todas elas têm filhos.

Ele sentou à sua mesa, pegou um enorme talão de cheques na gaveta, preencheu um cheque. Tirou-o do talão e estendeu para Jatney.

— Isto é para todos os presentes de aniversário e presentes de formatura que nunca tive tempo para lhe mandar.

Ele sorriu para Jatney, que deu uma olhada no cheque. Ele ficou atônito ao descobrir que era de cinco mil dólares.

— Ora, Hock, não posso aceitar...

David sentiu lágrimas aflorando a seus olhos, lágrimas de gratidão, humilhação e ódio.

— Claro que pode — disse Hock. — Quero que você descanse um pouco, divirta-se. Talvez até queira pagar a passagem de avião para a Índia da tal garota, a fim de que ela possa conseguir o que quer, deixando-o livre para fazer o que quiser.

Ele sorriu e depois acrescentou, enfático:

— O problema em ser amigo de uma garota é que você tem todas as dificuldades de um amante e nenhuma das vantagens de um amigo. Mas o filho dela é muito simpático. Talvez eu tenha alguma coisa para ele um dia desses, se tiver coragem suficiente para produzir um filme com crianças.

Jatney embolsou o cheque. Compreendia tudo o que Hock lhe dissera.

— Tem razão, ele é um garoto bonito.

— É mais do que isso — assegurou Hock. — Repare no seu rosto refinado, próprio para a tragédia. Basta olhar para ele e a gente sente vontade de chorar.

E Jatney pensou que seu amigo Hock era mesmo muito esperto. “Refinado” era a palavra certa para descrever o rosto de Campbell, embora soasse tão estranha. Irene era uma força primitiva — como Deus, ela construíra uma futura tragédia. Hock abraçou-o agora e disse:

— Mantenha-se em contato, David. Falo sério. E não perca o controle, pois as coisas sempre melhoram quando se é jovem.

Ele deu a Campbell um dos objetos, um lindo avião futurista em miniatura. O menino comprimiu o avião contra o peito e perguntou:

— Tio Jat, posso ficar?

E Jatney percebeu um sorriso no rosto de Hock.

— Mande minhas lembranças para Rosemary — pediu David Jatney, que vinha tentando dizer isso desde o início da reunião.

Hock lançou-lhe um olhar surpreso.

— Está bem. Fomos convidados para a posse de Kennedy, em janeiro, eu, Gibson e Rosemary. Direi a ela nessa ocasião.

E subitamente David Jatney sentiu que fora expelido de um mundo a girar.

Agora, deitado no sofá, esperando Irene chegar em casa, o amanhecer projetando sua claridade difusa pela janela da sala, Jatney pensou em Rosemary Belair. Como ela se virara para ele na cama e perdera-se em seu corpo. Lembrou do cheiro do perfume, a estranha corpulência, talvez causada pelas pílulas para dormir, traumatizando os músculos de sua carne. Pensou em Rosemary pela manhã, no macacão de corrida, sua segurança e presunção do poder, como ela o descartara. Reviveu o momento em que ela oferecera dinheiro para dar a gorjeta ao motorista da limusine, como ele se recusara a aceitar o dinheiro. Mas por que a insultara, por que dissera que ela deveria saber melhor o quanto era necessário, insinuando que ela também já fora despachada daquela maneira, nas mesmas circunstâncias? David descobriu-se a cochilar, em pequenos intervalos, prestando atenção a Campbell, prestando atenção a Irene. Pensou em seus pais em Utah; sabia que eles o haviam esquecido, seguros em sua própria felicidade, a calça de anjo hipócrita tremulando lá, enquanto fornicavam nus, na maior alegria, incessantemente. Se os chamasse, eles teriam de se separar.

David Jatney preocupava-se com a maneira com que se encontraria com Rosemary Belair. Como lhe diria que a amava. Escute, diria ele, imagine que você estivesse com câncer. Eu transferiria o câncer para meu próprio corpo. Escute, diria ele, se alguma estrela imensa caísse do céu, eu cobriria seu corpo. Escute, diria ele, se alguém tentasse matá-la, eu deteria a lâmina com meu coração, a bala com meu corpo. Escute, diria ele, se eu tivesse uma única gota da fonte da juventude que me manteria jovem para sempre, enquanto você envelhecia, eu lhe daria essa gota, para que nunca envelhecesse.

E talvez ele compreendesse que sua recordação de Rosemary Belair tinha a aura do poder que ela possuía. Que ele estava orando a um deus para que o convertesse em algo mais do que um pedaço comum do barro. Que suplicava por poder, riquezas ilimitadas, por beleza, por qualquer uma e todas as conquistas, a fim de que seus semelhantes notassem sua presença neste mundo, a fim de não se afogar silenciosamente no vasto oceano da humanidade.

Quando mostrou o cheque de Hock a Irene, foi para impressioná-la, provar que alguém se importava o suficiente com ele para lhe dar tanto dinheiro como um presente casual. Ela não ficou impressionada; em sua experiência, era comum os amigos partilharem o que tinham, e até comentou que um homem com a fortuna de Hock poderia facilmente ter dado uma quantia muito maior. Quando David propôs lhe dar a metade do valor do cheque para que pudesse viajar à Índia imediatamente, ela recusou, dizendo:

— Sempre uso meu próprio dinheiro, trabalho para viver. Se eu aceitasse seu dinheiro, você pensaria que tinha direitos sobre mim. Além do mais, no fundo você quer fazer isso por Campbell, não por mim.

David ficou aturdido com a recusa de Irene, por ela enunciar o seu interesse por Campbell. Ele queria apenas livrar-se dos dois. Queria voltar a morar sozinho, com seus sonhos do futuro.

Depois, Irene perguntou o que ele faria se ela aceitasse a metade do dinheiro e fosse para a Índia, o que ele faria com a sua metade. David notou que ela não sugeriu que ele viajasse para a Índia, em sua companhia,

E foi nesse instante que ele cometeu o erro de dizer a ela o que faria com seus dois mil e quinhentos dólares.

— Quero conhecer o país e quero assistir à possse de Kennedy — declarou ele. — Pensei que pode ser divertido, algo diferente. Sabe como é, pegar meu carro e guiar por todo o país. Conhecer os Estados Unidos. Quero ver neve e gelo, sentir um frio de verdade.

Irene pareceu ficar imersa em seus pensamentos por um momento. E depois ela percorreu determinada o apartamento, como se efetuasse um levantamento dos bens que tinha ali.

— É uma grande idéia — ela anunciou ao final. —Também quero ver Kennedy. Quero vê-lo pessoalmente, ou nunca poderei conhecer o seu carma. Pedirei minhas férias, eles me devem toneladas de dias. E será bom para Campbell conhecer o país, todos os diferentes estados. Viajaremos no meu furgão e assim pouparemos as contas de motel.

Irene possuía um pequeno furgão, no qual instalara prateleiras para seus livros e uma pequena cama para Campbell. O furgão era muito valioso para ela, pois sempre lhe permitira, mesmo quando Campbell era bebê, realizar viagens de um lado para outro do estado da Califórnia, a fim de comparecer a reuniões e seminários sobre religiões orientais.

David sentia-se acuado ao iniciarem a viagem. Irene estava guiando — ela gostava de guiar. Campbell sentava entre os dois, uma das mãozinhas na mão de David. Ele depositara metade do cheque na conta bancária de Irene, para sua viagem à Índia, e agora seus dois mil e quinhentos dólares teriam de ser usados para os três, em vez de apenas uma pessoa. A única coisa que o confortava era a pequena pistola 22, aninhada em sua luva de couro, no bolso de seu casaco. O leste dos Estados Unidos tinha muitos bandidos, muitos assaltantes, ele precisava proteger Irene e Campbell.

Para surpresa de Jatney, eles se divertiram muito nos primeiros quatro dias da viagem sem pressa. Campbell e Irene dormiam no furgão, ele dormia lá fora, a céu aberto, até que alcançaram o tempo frio em Arkansas; e resolveram desviar para o sul, a fim de evitarem o frio pelo máximo de tempo possível. Depois, por duas noites consecutivas, eles dormiram num quarto de motel, qualquer motel no caminho servia. Foi em Kentucky que tiveram problemas pela primeira vez.

O tempo esfriara bastante e resolveram ir logo para um motel, onde passariam a noite. Na manhã seguinte entraram na cidadezinha, a fim de comerem o desjejum num café que também vendia jornais.

O homem do balcão tinha mais ou menos a idade de Jatney e era muito alerta. À sua maneira igualitária da Califórnia, Irene puxou conversa com ele. Fez isso porque ficara impressionada com a rapidez e eficiência do homem. Comentava com freqüência que era um prazer observar pessoas que eram de fato competentes no que faziam, por mais subalterno que fosse o trabalho. Dizia que isso era um sinal de bom carma. Jatney jamais entendera muito bem a palavra “carma”.

Mas o homem no café entendia. Também era um seguidor das religiões orientais, e ele e Irene se lançaram numa longa e apaixonada discussão a respeito. Campbell se tornou irrequieto, por isso Jatney pagou a conta e levou-o para esperar lá fora. Passaram-se pelo menos quinze minutos antes que Irene saísse.

— Ele é realmente um cara sensacional — comentou ela. — Seu nome é Christopher, mas assumiu o nome de Krish.

Jatney estava irritado com a espera, mas não disse nada. Na volta para o motel, Irene sugeriu:

— Acho que deveríamos passar um dia aqui. Campbell precisa descansar.

Eles passaram o resto da manhã e a tarde fazendo compras, embora Irene quase nada comprasse. Jantaram cedo, num restaurante chinês. O plano era deitarem cedo, a fim de partirem o mais cedo possível na manhã seguinte.

Pouco depois de chegarem ao quarto do motel, no entanto, Irene disse subitamente que ia dar uma volta pela cidade, talvez comprar alguma coisa para comerem mais tarde. Ela saiu, deixando David a jogar damas com o menino, que o vencia em todas as partidas. O menino era um jogador de damas excepcional. Irene lhe ensinara o jogo quando ele tinha dois anos apenas. Em determinado momento, Campbell levantou o rosto com a testa larga e perguntou:

— Tio Jat, não gosta de jogar damas?

Já era quase meia-noite quando Irene voltou. O motel ficava numa elevação, e Jatney e Campbell olhavam pela janela no momento em que o furgão familiar entrou no estacionamento, seguido por outro carro.

Jatney ficou surpreso ao ver Irene desembarcar pelo lado do passageiro, já que ela sempre insistia em guiar. Do lado do motorista saltou o jovem que se chamava Krish, e entregou as chaves do carro a Irene. Ela deu-lhe um beijo fraternal em retribuição. Dois rapazes saltaram do outro carro, e ela também deu-lhes beijos fraternais. Irene começou a se encaminhar para a entrada do motel, os três rapazes se abraçaram e começaram a fazer uma serenata para ela, entoando:

— Boa noite, Irene... Boa noite, Irene...

Ao entrar no quarto do motel, ainda os ouvindo a cantar, Irene ofereceu um sorriso exuberante a David.

— A conversa deles era tão interessante que acabei esquecendo a hora — disse ela, indo até a janela, a fim de acenar para os rapazes.

— Acho que terei de ir até lá para obrigá-los a parar de cantar — murmurou David.

Por sua mente, passaram imagens da pistola saindo de seu bolso, disparando contra os rapazes. Podia até ver as balas voando pela noite, penetrando nos cérebros.

— Aqueles caras não são tão interessantes assim quando cantam — acrescentou ele.

— Ora, você não seria capaz de detê-los — disse Irene.

Ela pegou Campbell no colo, levou-o até a janela. Inclinou a cabeça para agradecer à homenagem, depois apontou para o filho. A cantoria cessou no mesmo instante. E um momento depois David pôde ouvir o carro deixando o estacionamento.

Irene nunca bebia. Mas às vezes tomava drogas. Jatney sempre percebia quando. Ela exibia um sorriso exuberante e adorável sob o efeito das drogas. Sorrira assim uma noite, quando ele ficara à sua áspera em Santa Monica. E naquele dia, ao amanhecer, ele a acusara de ter passado pela cama de outro homem. Ao que ela respondera calmamente:

— Alguém tem de me foder, já que você não o faz.

Na véspera do Natal eles ainda estavam viajando e dormiram em outro motel. Fazia bastante frio agora. Não celebrariam o Natal; Irene dizia que o Natal era falso para o verdadeiro espírito da religião. David não queria ressuscitar as lembranças de uma vida anterior, mais inocente. Mas comprou para Campbell uma bola de cristal com flocos de neve dentro, apesar dos protestos de Irene. No início da manhã de Natal ele se levantou e ficou observando os dois dormirem. Sempre mantinha a pistola no bolso do casaco agora, e tateou o couro macio da luva. Como seria fácil matar os dois!, pensou ele.

Três dias depois chegaram à capital da nação. Dispunham de bastante tempo até o dia da posse. David elaborou o itinerário de todos os lugares que conheceriam. E depois fez um mapa do percurso do cortejo da posse. Todos iriam assistir a Francis Kennedy prestar juramento como Presidente dos Estados Unidos.

 

NO DIA DA POSSE, o Presidente dos Estados Unidos, Francis Xavier Kennedy, foi acordado ao amanhecer por Jefferson, a fim de ser arrumado e vestido. A claridade cinzenta da aurora parecia na verdade animadora, porque uma nevasca começara a cair. Enormes flocos brancos cobriam a cidade de Washington, e entre as janelas escuras, à prova de balas, de seu quarto de vestir, Francis Kennedy sentiu-se como um prisioneiro naqueles flocos de neve, como se estivesse encarcerado numa bola de cristal. Ele perguntou a Jefferson:

— Você estará presente nas cerimônias?

— Não, Senhor Presidente. Preciso guardar o forte aqui, na Casa Branca. — Jefferson tornou a ajeitar a gravata de Kennedy. — Todos estão à sua espera lá embaixo, na Sala Vermelha.

Quando ficou pronto, Kennedy apertou a mão de Jefferson e murmurou:

— Deseje-me sorte.

Jefferson acompanhou-o até o elevador. Dois agentes do Serviço Secreto desceram juntos com o presidente, até o térreo.

Todos o aguardavam na Sala Vermelha. A vice-presidente, Helen Du Pray, estava deslumbrante num vestido branco de cetim. Os assessores presidenciais eram reflexos de Kennedy, todos em trajes formais. Arthur Wix, Oddblood Gray, Eugene Dazzy e Christian Klee formavam o círculo interno, solene e tenso com a importância do dia. Francis Kennedy sorriu para eles. A vice-presidente e aqueles quatro homens eram sua família.

Ao sair da Casa Branca, o Presidente Francis Xavier Kennedy ficou atônito ao deparar com um vasto mar de humanidade, ocupando cada rua, dando a impressão de que cobria todos os prédios imponentes, submergindo os caminhões de TV e os jornalistas, por trás de cordas de isolamento, nos espaços reservados. Ele nunca vira nada parecido e gritou para Eugene Dazzy:

— Quantas pessoas há aqui?

— Muito mais do que prevíamos — respondeu Dazzy. — Talvez precisemos de um batalhão de fuzileiros da base naval para nos ajudar a controlar o tráfego.

— Nada disso — declarou o presidente.

Ele sentia-se surpreso com a reação de Dazzy à sua pergunta, como se a multidão constituísse um perigo. Considerava-a um triunfo, uma justificativa de tudo o que fizera desde as tragédias do último Domingo de Páscoa.

Francis Kennedy nunca se sentira tão seguro de si. Previra tudo o que aconteceria, as tragédias e os triunfos. Tomara as decisões certas e conquistara sua vitória. Derrotara seus inimigos. Contemplou a imensa multidão e sentiu um amor profundo pelo povo dos Estados Unidos. Iria livrá-lo de seus sofrimentos, purificaria a própria Terra.

Nunca Francis Xavier Kennedy sentira sua mente tão lúcida, seus instintos tão genuínos. Dominara seu sofrimento pela morte da esposa, o assassinato da filha. A bruma de pesar que dominara seu cérebro já se dissipara. Era quase feliz agora.

Parecia-lhe que prevalecera sobre o destino, e por sua perseverança e julgamento tornara possível aquele presente e o futuro glorioso. Ele avançou pelo ar impregnado de neve, a fim de prestar juramento e depois liderar o cortejo de posse pela Pennsylvania Avenue, iniciando sua caminhada para a glória.

David Jatney registrara-se, junto com Irene e o pequeno Campbell, num motel a pouco mais de trinta quilômetros de Washington, D.C., porque não restava mais nenhum lugar vago na capital. No dia anterior à posse, eles foram até a capital para ver os monumentos, a Casa Branca, o Me¬morial Lincoln e todos os outros pontos de atração da capital. David também fez um reconhecimento do itinerário do cortejo da posse, a fim de descobrir o melhor lugar para ficarem.

No grande dia, eles se levantaram ao amanhecer, comeram o desjejum numa lanchonete à beira da estrada. Depois, voltaram ao motel, a fim de vestirem suas melhores roupas. Irene teve um cuidado inesperado ao se arrumar, passou muito tempo escovando os cabelos. Vestiu a sua melhor jeans desbotada, uma camisa vermelha e uma suéter verde pendente, que David nunca vira antes. Ela a mantivera escondida ou a comprara em Washington?, especulou ele. Irene ausentara-se por algumas horas sozinha, deixando Campbell com ele.

Nevara durante a noite inteira e tudo estava coberto de branco. Enormes flocos flutuavam indolentes pelo ar. Na Califórnia, não havia necessidade de roupas de inverno, mas naquela viagem ao leste eles haviam trazido blusões, um vermelho brilhante para Campbell, porque ela dizia que assim poderia encontrá-lo com maior facilidade se o menino se perdesse, o de Jatney azul e o de Irene branco, fazendo-a parecer muito bonita. Ela comprara ainda um gorro de tricô de lã branca e um quepe vermelho com uma borla para Campbell. Jatney preferia ficar com a cabeça descoberta — detestava qualquer tipo de cobertura.

Naquela manhã da posse, eles tinham tempo de sobra, Por isso foram até o campo por trás do motel, a fim de construir um boneco de neve para Campbell. Irene teve um acesso de felicidade inebriante e jogou bolas de neve em Campbell e Jatney.

Os dois receberam seus mísseis com a maior seriedade, mas não lhe atiraram nenhum em resposta. Jatney estranhou aquela felicidade de Irene. Poderia ter sido causada pela perspectiva de ver Kennedy no cortejo? Ou seria por causa da neve, tão estranha e mágica para os seus sentidos da Califórnia?

Campbell estava fascinado pela neve. Deixava-a escorrer entre os dedos, observando-a desaparecer, derreter ao sol. Depois, cautelosamente, ele começou a destruir o boneco de neve com os punhos, abrindo pequenos buracos, derrubando a cabeça. Jatney e Irene mantiveram-se a alguma distância, observando-o. Irene pegou a mão de Jatney entre as suas, um ato excepcional de intimidade física de sua parte.

— Tenho de lhe dizer uma coisa — anunciou ela. — Visitei algumas pessoas aqui em Washington... meus amigos na Califórnia me recomendaram que as procurasse. E essas pessoas vão para a índia, e vou junto, eu e Campbell. Já acertei a venda do furgão, mas lhe darei uma parte do dinheiro, a fim de que você possa voar de volta à Califórnia.

David retirou sua mão, meteu as duas nos bolsos do blusão. A mão direita encostou na luva de couro que continha a pistola 22, e por um momento ele pôde ver Irene caída no chão, seu sangue espalhando-se pela neve.

Depois que a raiva passou, ele ficou perplexo por tê-la sentido. Afinal, resolvera vir a Washington na deplorável esperança de se encontrar com Rosemary, com Hock e com Gibson Grange. Sonhara naqueles últimos dias que poderia até ser convidado a jantar com eles. Que sua vida poderia mudar, que enfiaria um pé na porta que se abria para o poder e a glória. Portanto, não era natural que Irene desejasse ir à Índia, a fim de abrir a porta para um mundo pelo qual ansiava, a fim de se tornar algo mais do que uma mulher comum, com um filho pequeno, trabalhando em empregos que nunca poderiam levá-la a parte alguma? Pois que ela vá, pensou David Jatney.

— Não fique zangado — acrescentou Irene. — Você nem mesmo gosta mais de mim. Já teria se livrado de mim, se não fosse por Campbell.

Ela sorria, um pouco zombeteira, mas com uma insinuação de tristeza.

— Tem razão — confirmou Jatney. — Mas acho que você não deveria levar o menino para qualquer lugar que vá, qualquer lugar que lhe dê na veneta. Mal consegue cuidar dele aqui.

Irene ficou irritada.

— Campbell é meu filho, eu o levarei para onde quiser. Até para o Pólo Norte, se assim desejar.

Ela fez uma pausa, e depois disse:

— Você não sabe de nada sobre essas coisas. E acho que está começando a ficar um pouco esquisito em relação a Campbell.

Ele tornou a ver a neve manchada com o sangue de Irene, pequenos regatos faiscantes, uma porção de pontos vermelhos. Mas mantinha um controle absoluto ao dizer:

— O que exatamente significa isso?

— Você anda um pouco estranho... Foi o que me agradou em você no começo. Mas não sei exatamente como você é esquisito. Às vezes me preocupo em deixar Campbell com você.

— Pensava desse modo, mas mesmo assim o deixava comigo? — indagou Jatney.

— Eu tinha certeza de que você não lhe faria nenhum mal. Mas acabei chegando à conclusão que Campbell e eu devemos nos separar de você de e viajar para a índia.

— Tudo bem.

Eles deixaram Campbell acabar de destruir o boneco de neve, depois embarcaram no furgão e iniciaram a viagem de trinta quilômetros até Washington. Quando alcançaram a rodovia interestadual, ficaram surpresos ao descobrir que estava repleta de ônibus e carros, até onde a vista podia alcançar. Foram avançando lentamente pelo tráfego, mas levaram quatro horas até que a interminável e monstruosa lagarta de aço os lançou na capital.

O cortejo de posse desfilava pelas largas avenidas de Washington, liderado pelas limusines presidenciais. Progredia devagar, a enorme multidão transbordando às vezes pelas barricadas de polícia e interrompendo o avanço. O paredão de guardas uniformizados começou a ruir, sob a pressão de milhões de pessoas se comprimindo.

Três carros com agentes do Serviço Secreto precediam a limusine de Kennedy, com sua bolha de vidro à prova de balas. Kennedy estava de pé dentro dessa bolha de vidro, a fim de poder agradecer às aclamações da multidão, enquanto percorria Washington. Pequenas ondas de pessoas arremetiam até a própria limusine, depois eram obrigadas a recuar pelo círculo interior de agentes do Serviço Secreto, no lado de fora do carro. Mas cada nova onda de fiéis frenéticos parecia chegar mais e mais perto. O círculo interior de guardas estava sendo comprimido contra a limusine presidencial.

O carro diretamente atrás de Kennedy continha mais agentes do Serviço Secreto, com armas automáticas de grosso calibre, enquanto outros homens do Serviço Secreto seguiam a pé pelos lados. A limusine seguinte transportava Christian Klee, Oddblood Gray, Arthur Wix e Eugene Dazzy. As limusines mal se moviam, a Pennsylvania Avenue era inundada pela multidão, detendo o avanço do cortejo. Enormes flocos de neve caíam, formando um manto branco e imponente sobre a multidão.

A limusine levando a assessoria presidencial parou por completo, e Oddblood Gray olhou pela janela.

— Mas que merda! — exclamou ele. — O presidente está saltando e seguindo a pé!

— Se ele está andando, devemos andar também — disse Eugene Dazzy.

Gray olhou para Christian Klee e acrescentou:

— Helen está saltando também de seu carro. Isso é perigoso. Chris, você tem de impedi-lo. Use aquele seu veto.

— Não o tenho mais — informou Klee.

Arthur Wix sugeriu:

— Acho melhor você chamar mais homens do Serviço Secreto para cá.

Todos saltaram do carro e formaram uma parede para marchar por trás de seu presidente.

Os enormes flocos de neve ainda turbilhonavam no ar, mas não pareciam mais substanciais sobre o corpo de Francis Kennedy do que a hóstia da comunhão que ele sentia na boca quando era menino. Pela primeira vez, ele queria ter um contato físico com as pessoas que o amavam. Foi andando pela avenida, apertando as mãos dessas pessoas, que conseguiam se infiltrar pelas barricadas da polícia e depois pelo círculo de agentes do Serviço Secreto ao seu redor. De vez em quando uma pequena onda de espectadores conseguia alcançá-lo, pressionada pela massa de um milhão de pessoas por trás. E passava pelos homens do Serviço Secreto, que tentavam formar um círculo mais amplo em torno do presidente. Francis Kennedy apertava as mãos de homens e mulheres, e seguia em frente. Podia sentir que seus cabelos se tornavam tímidos da neve, mas o ar frio deixava-o exultante, assim como a adulação da multidão. Não estava consciente de qualquer cansaço ou desconforto, embora houvesse uma alarmante dormência no braço direito, com a mão inchada de ser apertada com tanta freqüência e com tanta força; os agentes do Serviço Secreto estavam literalmente afastando à força os devotados partidários de seu presidente. Uma linda moça, num blusão branco, tentara manter sua mão, e ele teve de puxá-la bruscamente, de volta à segurança.

David Jatney abriu um espaço na multidão para abrigar a ele e a Irene, que segurava Campbell no colo, caso contrário ele seria pisoteado — pois a multidão não parava de se agitar em ondas, como um mar.

Não estavam a mais de quatrocentos metros dos palanques quando a limusine presidencial surgiu em seu campo de visão. Era acompanhada por carros oficiais, transportando outras autoridades. Mais atrás vinha o cortejo interminável, que passaria pela frente dos palanques, no desfile da posse. David calculou que a limusine presidencial se encontrava à distância de um campo de futebol americano, talvez um pouco mais, do lugar em que ele observava. E depois notou que partes da multidão nos lados da avenida haviam rompido as barreiras policiais, obrigando o cortejo a parar. Irene gritou:

— Ele está saltando! Está andando! Oh, Deus, tenho de tocar nele!

Ela largou Campbell nos braços de Jatney e tentou passar por baixo do cordão de isolamento, mas um dos guardas a impediu. Ela correu pelo meio-fio e mais adiante conseguiu passar pelo piquete inicial de guardas uniformizados, apenas para ser detida pela barreira interna de agentes do Serviço Secreto. Jatney observava-a, pensando: Se Irene fosse um pouco mais esperta, teria ficado com Campbell no colo. Os homens do Serviço Secreto reconheceriam assim que ela não constituía uma ameaça, e Irene seria capaz de passar, enquanto eles empurravam os outros. Pôde vê-la ser empurrada de volta ao meio-fio, até que outra onda arrastou-a para a frente. Irene foi uma das poucas pessoas que conseguiram passar pelo círculo interno e apertar a mão do presidente, depois beijá-lo no rosto, antes de ser rudemente empurrada.

David compreendeu que Irene nunca conseguiria retornar ao lugar em que ele esperava, com Campbell. Ela era apenas um ponto mínimo na massa de pessoas que ameaçavam agora engolfar toda a larga extensão da avenida. Mais e mais pessoas se comprimiam contra o perímetro externo de segurança de guardas uniformizados; mais e mais pessoas arremetiam contra o perímetro interno de agentes do Serviço Secreto. Os dois perímetros começavam a se romper. Campbell desatou a chorar, por isso Jatney enfiou a mão no bolso do blusão para pegar uma das barras de chocolate que costumava levar para o menino.

E nesse instante David Jatney sentiu um calor espalhar-se por seu corpo. Pensou nos últimos dias em Washington, na visão dos muitos prédios construídos para estabelecer a autoridade do estado: as colunas de mármore do Supremo Tribunal e os memoriais, o esplendor imponente das fachadas — indestrutíveis, irremovíveis. Pensou no escritório de Hock em seu esplendor, guardado pelas secretárias, pensou na Igreja Mórmon em Utah, com seus templos abençoados por anjos especiais e particularmente descobertos. Todas essas coisas para designar certos homens como superiores a seus semelhantes. Para manter os homens comuns, como ele, em seu lugar. E para orientar todo o amor para si mesmos. Presidentes, gurus, anciãos mórmons, todos construíam seus edifícios intimidativos para se isolarem do resto da humanidade, e conhecendo bem a inveja do mundo, protegiam-se contra o ódio. Jatney recordou sua vitória gloriosa nas “caçadas” da universidade; fora um herói naquele tempo, a única ocasião em sua vida. Agora ele afagou Campbell suavemente, a fim de fazê-lo parar de chorar. Em seu bolso, por baixo do aço frio da 22, encontrou uma barra de chocolate e deu-a a Campbell. Depois, ainda com o menino no colo, deixou o meio-fio e passou por baixo das barreiras.

David Jatney foi dominado pelo espanto e depois por uma intensa exultação. Seria fácil. Mais da multidão transbordava pelo perímetro extenso da polícia uniformizada; mais dessas pessoas se infiltravam pelo perímetro interno dos agentes do Serviço Secreto e conseguiam apertar a mão do presidente. Aquelas duas barreiras estavam desmoronando, os invasores marchavam ao lado do presidente e sacudiam os braços levantados para demonstrar sua devoção. Jatney correu para o presidente que se aproximava, uma onda de espectadores passando pelos cavaletes de madeira e levando-o de roldão. Agora ele se encontrava na beira do círculo de homens do Serviço Secreto que tentavam manter a todos longe do presidente. Mas não havia mais agentes em quantidade suficiente. E com um sentimento de júbilo, David Jatney compreendeu que os agentes o descartavam. Ajeitando Campbell no braço esquerdo, ele enfiou a mão direita no bolso do blusão, tateou a luva de couro; o dedo procurou o gatilho. Nesse momento a barreira de agentes foi rompida por completo, e ele estava dentro do círculo mágico. Avistou Francis Kennedy, a apenas três metros de distância, apertando a mão de uma extasiada adolescente, com um olhar desvairado. Kennedy parecia muito magro, muito alto, e mais velho do que parecia na televisão. Ainda com Campbell no colo, Jatney deu um passo na direção de Kennedy.

Foi nesse instante que um negro muito bonito bloqueou sua passagem. Com a mão estendida. Por um momento frenético, Jatney pensou que ele vira a arma em seu bolso e estava pedindo-a. Depois percebeu que o homem parecia familiar e que apenas oferecia um aperto de mão. Fitaram-se por um longo momento; Jatney olhou para a mão preta estendida, o rosto preto sorrindo por cima. E depois viu que os olhos do homem brilhavam em desconfiança, a mão era subitamente retirada. Jatney, com um movimento convulsivo de todos os músculos do corpo, jogou Campbell para o negro e tirou a arma do bolso do blusão.

Oddblood Gray compreendeu, no instante em que Jatney fitou-o no rosto, fixamente, que algo terrível estava para acontecer. Deixou o menino cair no chão, e depois, com um movimento rápido dos pés, deslocou seu corpo para a frente de Francis Kennedy, que avançava lentamente. E avistou a arma.

Christian Klee, andando à direita e um pouco atrás de Francis Kennedy, estava usando o telefone celular para chamar mais agentes do Serviço Secreto, a fim de ajudarem a abrir um caminho na multidão para a passagem do presidente. Viu o homem com a criança no colo aproximar-se da falange que guardava Kennedy. E de repente, por apenas um segundo, divisou claramente o rosto do homem.

Era algum pesadelo vago que adquiria realidade. O rosto que ele invocara em sua tela de computador durante os últimos nove meses, a vida que ele controlara através do computador e equipes de vigilância, subitamente saltava da mitologia obscura para o mundo real.

Via o rosto agora não no repouso das fotografias da vigilância, mas na angústia das emoções exaltadas. E ficou aturdido ao constatar como o rosto bonito se tornara feio, como se visto através de algum vidro distorcido.

Klee já estava avançando depressa na direção de Jatney, ainda não acreditando na imagem, tentando confirmar seu pesadelo, quando viu Gray estender a mão. E Christian experimentou um profundo sentimento de alívio. O homem não podia ser Jatney, era apenas um garoto qualquer, segurando o filho no colo e tentando tocar numa parte da história.

Mas depois ele viu o menino de blusão vermelho e gorro de lã ser arremessado pelo ar. E viu a arma na mão de Jatney. E viu Oddblood Gray cair.

Subitamente, Christian Klee, no terror total de seu crime, correu para cima de Jatney e recebeu a segunda bala no rosto. A bala passou pelo céu da boca, deixando-o engasgado com o próprio sangue, e depois ele sentiu uma dor terrível no olho esquerdo. Ainda se achava consciente quando caiu. Tentou gritar, mas tinha a boca cheia de dentes fragmentados e carne dilacerada. E experimentou um senso intenso de perda e desamparo. Em seu cérebro destroçado, os últimos neurônios faiscaram com pensamentos de Francis Kennedy, ele quis adverti-lo para a morte, pedir seu perdão. O cérebro de Christian apagou-se em seguida, a cabeça com a cavidade ocular vazia foi repousar no travesseiro de neve.

Nesse mesmo momento, Francis Kennedy virou-se plenamente na direção de David Jatney. Viu Oddblood cair. E depois Christian. E nesse instante, todos os seus pesadelos, todas as suas lembranças de outras mortes, todos os seus terrores de um destino maligno cristalizaram-se num espanto e resignação paralisada. E foi então que sentiu uma tremenda vibração no mundo, sentiu por uma fração de segundo apenas a explosão de aço em seu cérebro. E caiu. David Jatney não podia acreditar em tudo que acontecera. O negro continuava estendido no lugar em que caíra. O branco ao seu lado. O Presidente dos Estados Unidos desabava diante de seus olhos, as pernas entortadas para fora, os braços voando para cima, quando os joelhos finalmente bateram no chão. David Jatney continuou a atirar. Mãos agarraram a arma, agarraram seu corpo. Ele tentou correr, mas quando se virou para fugir viu a multidão se erguer e avançar em sua direção como uma enorme onda, incontáveis mãos se estendendo para agarrá-lo. O rosto coberto de sangue, ele sentiu a orelha ser arrancada do lado da cabeça, viu-a em uma das mãos. E de repente aconteceu alguma coisa com seus olhos, não podia mais ver. O corpo foi sacudido pela dor apenas por um instante, e depois ele não sentiu mais nada.

O cinegrafista de TV, com seu olho que tudo via no ombro, registrara tudo para os espectadores do mundo. Quando a pistola surgiu, ele recuara apenas os passos suficientes para que todos pudessem ser incluídos na cena. Pegou David Jatney levantando a arma, pegou Oddblood Gray dando o seu pulo espantoso para a frente do presidente e depois caindo, pegou Klee sendo atingido por uma bala no rosto e caindo. Pegou Francis Kennedy se virando para fitar o assassino e o assassino disparando, a bala torcendo a cabeça do presidente, como se fosse uma chave de braço. Pegou a expressão de absoluta determinação de Jatney, enquanto Francis Kennedy caía, os agentes do Serviço Secreto paralisados naquele terrível momento, todo o seu treinamento para uma reação imediata suspenso pelo choque. E depois ele viu Jatney tentando fugir, sendo alcançado pela multidão. Mas o cinegrafista não registrou a cena final, o que o faria se lamentar pelo resto da vida. A multidão dilacerando David Jatney em pedaços.

Por toda a cidade, envolvendo os prédios de mármore e os monumentos do poder, elevou-se o lamento imenso de milhões de fiéis que haviam perdido seus sonhos.

 

A PRESIDENTE HELEN DU PRAY ofereceu uma festa de aniversário pelos cem anos do Oráculo, na Casa Branca, no Domingo de Ramos, três meses depois da morte de Francis Kennedy.

Vestida para atenuar sua beleza, ela postava-se no Jardim das Rosas, contemplando os convidados. Entre eles estavam os antigos membros da assessoria de Francis Kennedy. Eugene Dazzy conversava com Elizabeth Stone e Sal Troyca.

Eugene Dazzy já fora informado que sua dispensa entraria em vigor no próximo mês. Helen Du Pray jamais gostara dele. E a decisão nada tinha a ver com o fato de Dazzy ter jovens amantes, e até já se mostrar extremamente charmoso com Elizabeth Stone.

A Presidente Du Pray designara Elizabeth Stone para sua assessoria; Sal Troyca entrara como contrapeso. Mas Elizabeth era exatamente o que ela precisava. Uma mulher com uma energia extraordinária, uma administradora brilhante, e uma feminista que compreendia as realidades políticas. E Sal Troyca não era tão ruim assim; na verdade, ele era um elemento revigorante, com seu conhecimento dos labirintos do Congresso e sua astúcia de baixa classe, que às vezes podia ser muito valiosa para inteligências mais sofisticadas, como a de Elizabeth Stone ou a sua, pensou Du Pray.

Depois de assumir a presidência, Du Pray recebera as informações da assessoria pessoal de Kennedy e de outros dirigentes da administração. Estudara toda a legislação proposta que o novo Congresso deveria discutir. Ordenara que todos os memorandos secretos lhe fossem encaminhados, todos os planos detalhados, inclusive dos novos e infames campos de trabalhos forçados no Alasca.

Depois de um mês de estudos, ficara horrivelmente claro para ela que Francis Kennedy, com o mais puro dos motivos, o de melhorar o destino do povo dos Estados Unidos, teria se tornado o primeiro ditador da história americana.

Do lugar em que estava no Jardim das Rosas, as árvores ainda não cobertas completamente pelas folhas, a Presidente Du Pray podia avistar o distante Memorial Lincoln e o branco em arcada do Monumento a Washington, os nobres símbolos da cidade que era a capital dos Estados Unidos. Ali, no jardim, encontravam-se todos os representantes da América, a seu convite especial. Ela fizera as pazes com os inimigos da administração Kennedy.

Lá estavam Louis Inch, um homem a quem ela desprezava, mas de cuja ajuda precisaria. E George Grenwell, Martin Mutford, Bert Audick e Lawrence Salentine. O infame Clube Sócrates. Teria de chegar a um acordo com todos eles, e fora por isso que os convidara à Casa Branca, para a festa de aniversário do Oráculo. Pelo menos ela lhes daria a opção de ajudarem a construir uma nova América, o que Kennedy não fizera.

Mas Helen Du Pray sabia que a América não poderia ser reconstruída sem concessões de todos os lados. E sabia também que, dentro de poucos anos, um Congresso mais conservador seria eleito. Ela não podia acalentar a esperança de persuadir a nação, como Kennedy fizera, com seu carisma e sua romântica história pessoal.

Ela avistou o Dr. Zed Annaccone sentado ao lado da cadeira de rodas do Oráculo. O doutor provavelmente estava tentando convencer o velho a doar seu cérebro à ciência. E o Dr. Annaccone era outro problema. Seu teste cerebral PET já estava sendo discutido em vários estudos científicos. Du Pray sempre percebera suas virtudes e perigos. Achava que era um problema que deveria ser analisado com o maior cuidado, ao longo de um período considerável. Um governo com a capacidade de descobrir a verdade infalível podia ser extremamente perigoso. Não se podia deixar de reconhecer que um teste assim acabaria com o crime e a corrupção política; poderia reformar toda a estrutura jurídica da sociedade. Mas havia verdades complexas, havia verdades apenas atuais, e também não era certo que em determinados momentos da história a verdade podia acarretar uma paralisação em determinadas mudanças evolucionárias? E o que dizer da psique de um povo que soubesse que as várias verdades a seu respeito poderiam ser desmascaradas?

Ela olhou para o canto do Jardim das Rosas em que Oddblood Gray e Arthur Wix sentavam em cadeiras de vime, conversando na maior animação. Gray estava agora consultando um psiquiatra todos os dias, para tratar de sua depressão. O psiquiatra dissera a Gray que era perfeitamente normal, depois dos acontecimentos do ano anterior, que ele sofresse de depressão. Então por que consultar um psiquiatra?

O Oráculo era agora o centro de atração no Jardim das Rosas. O bolo de aniversário estava lhe sendo apresentado, um bolo enorme, cobrindo toda a mesa no jardim. Por cima, destacava-se a bandeira americana, em açúcar, vermelha, azul e branca. As câmeras de TV se adiantaram; mostraram para a nação o Oráculo se inclinando para soprar as cem velas. E soprando junto com ele estavam a Presidente Du Pray, Oddblood Gray, Eugene Dazzy, Arthur Wix e os membros do Clube Sócrates.

O Oráculo aceitou uma fatia do bolo e depois permitiu ser entrevistado por Cassandra Chutt, que conseguira a façanha com a ajuda de Lawrence Salentine. Cassandra Chutt já fizera seus comentários de introdução, enquanto as velas eram sopradas. Agora, ela perguntou:

— Qual é a sensação de fazer cem anos?

O Oráculo lançou-lhe um olhar furioso, e naquele momento parecia tão maligno que Cassandra Chutt sentiu-se feliz em pensar que a entrevista não era ao vivo, estava sendo gravada para o jornal daquela noite. Por Deus, como o homem era feio, a cabeça uma massa de manchas de fígado, a pele escamosa tão lustrosa quanto tecido cicatrizado, a boca quase inexistente. Por um momento, Cassandra receou que ele fosse surdo, por isso repetiu a pergunta.

— Qual é a sensação de ter um século?

O Oráculo sorriu, a pele do rosto rachando-se em rugas incontáveis.

— Você é uma sacana idiota? — disse ele.

O Oráculo avistou seu rosto em um dos monitores de TV e sentiu um aperto no coração. Subitamente, passou a odiar sua festa de aniversário. Olhou direto para a câmera e perguntou:

— Onde está Christian?

A Presidente Helen Du Pray sentou ao lado da cadeira de rodas do Oráculo e pegou sua mão. O Oráculo estava dormindo, o sono muito leve dos velhos esperando pela morte. A festa no Jardim das Rosas continuava, sem a sua participação.

Helen recordou o tempo em que era jovem, uma das protegidas do Oráculo. Admirava-o muito. Ele possuía uma graça intelectual, um espírito atilado, uma vivacidade natural e uma alegria pela vida, tudo o que ela queria ter.

Tinha alguma importância que ele sempre tentasse obter uma ligação sexual? Ela recordou os anos anteriores e como ficara magoada quando a amizade dele se convertera em devassidão. Ela passou os dedos sobre a pele escamada daquela mão murcha. Seguira o destino do poder, enquanto a maioria das mulheres seguia o destino do amor. As vitórias do amor seriam mais doces?

Helen Du Pray pensou em seu próprio destino, no destino dos Estados Unidos. Ela ainda se espantava ao constatar que o país, mesmo depois de todos os terríveis acontecimentos do ano passado, tivesse assentado de maneira tão pacífica. Era verdade que ela fora em parte responsável por isso; sua habilidade e inteligência haviam apagado o incêndio no país. Mas ainda assim...

Ela chorara pela morte de Kennedy; de certa forma, amara-o também. Amara a tragédia estampada nos ossos de seu rosto de contornos tão bonitos. Amara seu idealismo, sua visão do que a América poderia se tornar. Amara a sua integridade pessoal, sua pureza e altruísmo, sua falta de interesse pelas coisas materiais. E, no entanto, apesar de tudo isso, ela acabara compreendendo que ele era um homem perigoso.

Helen Du Pray sabia que agora precisava se precaver contra a crença em sua própria infalibilidade. Estava convencida de que, num mundo de tantos perigos, a humanidade não poderia resolver seus problemas pela luta, mas apenas através de uma paciência interminável. Faria o melhor que pudesse, e no fundo de seu coração tentaria não sentir ódio pelos inimigos.

Nesse momento o Oráculo abriu os olhos e sorriu. Apertou a mão de Du Pray e começou a falar. A voz soava muito baixa e ela inclinou a cabeça para perto da boca murcha.

— Não se preocupe — disse o Oráculo. — Você será uma grande presidente.

Por um breve instante, Helen Du Pray sentiu vontade de chorar, como uma criança fazia ao ser elogiada, por medo do fracasso. Correu os olhos pelo Jardim das Rosas, ocupado pelos homens e mulheres mais poderosos da América. Teria a ajuda deles, da maioria; e teria de se precaver contra alguns. Mas, acima de tudo, teria de se precaver contra si mesma.

Pensou outra vez em Francis Kennedy. Ele estava sepultado agora com os dois tios famosos, tão amado quanto eles. E com sua filha. Muito bem, pensou Helen Du Pray, serei o melhor do que Francis foi, farei o melhor do que ele esperava realizar. E depois, segurando com firmeza a mão do Oráculo, ela ponderou sobre as simplicidades do mal e os tortuosos e perigosos caminhos do bem.

 

                                                                                            Mario Puzo

 

 

                      

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