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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CAVERNA DO MEDO / Emily Rodda
A CAVERNA DO MEDO / Emily Rodda

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Série Deltora Quest

A CAVERNA DO MEDO

 

DELTORA É UMA TERRA DE MONSTROS E MAGIA...

A perversa tirania do Senhor das Sombras sobre Deltora terminou. Ele e as criaturas nascidas de sua feitiçaria foram expulsos para o outro lado das montanhas. Mas milhares de deltoranos ainda são mantidos escravos nas Terras das Sombras, o domínio assustador e misterioso do inimigo. A fim de resgatá-los, Lief, Barda e Jasmine, heróis da busca pelo Cinturão de Deltora, precisam encontrar uma arma poderosa o bastante para combater a magia do Senhor das Sombras em seu próprio território. Segundo a lenda, a única coisa temida pelo Senhor das Sombras é a célebre Flauta de Pirra. Mas a misteriosa flauta ainda existe? E, se existir, que perigos os companheiros terão de enfrentar para encontrá-la?

 

O lampião Bruxuleante formou uma ilha de luz na escuridão. A mão enrugada moveu-se lentamente pela página.

Lá fora, a cidade de Del estava mergulhada no silêncio, envolta em sono. Mesmo aqueles que haviam permanecido acordados por longo tempo, sofrendo pela perda de entes queridos, acabaram finalmente caindo num sono intranqüilo. O lampião do escritor estava bem escondido. As únicas luzes visíveis em Del brilhavam no palácio, no alto da colina. Luzes para confortar os guardas parados, vigilantes, diante das escadarias. Luzes que guiavam duas sombras que deslizavam pelo palácio e se esgueiravam para o interior de suas portas mais secretas.

Em breve amanheceria, mas o escritor prosseguia em seu trabalho. Ele perdera totalmente a noção do tempo. Ficara só por tanto tempo que, para ele, dia e noite quase haviam perdido o significado.

Ele comia apenas quando tinha fome e dormia quando a exaustão o dominava. E nos longos períodos entre uma e outra ele escrevia, a mão experiente raramente vacilava, o seu mundo resumido à sua secreta ilha de luz...

 

A tirania do Senhor das Sombras sobre nosso reino teve fim graças à magia e ao poder do Cinturão de Deltora. Estamos livres, mais uma vez, e o nosso rei é o mesmo jovem herói que, com seus dois bravos companheiros, recolocou as pedras roubadas no Cinturão e o trouxe para casa, em Del.

Pode-se bem imaginar a felicidade do povo. A minha própria alegria não é menor. Contudo, após tudo o que vi durante os dezesseis anos de domínio do Senhor das Sombras e muito antes disso, continuo atento.

O Inimigo foi derrotado, mas não destruído. Ele e as criaturas nascidas de sua feitiçaria foram expulsos e retornaram para além das montanhas das Terras das Sombras, mas temo que ele também tenha servos humanos que ainda estão entre nós.

Assim, devo permanecer oculto até ter certeza de que o tesouro que protegi por tanto tempo possa ser levado em segurança ao palácio. Tento esperar pacientemente e continuar a trabalhar como sempre, mas confesso que é difícil.

Como tenho estado só, pude fazer somente visitas rápidas ao mercado para saber das novidades. Sinto falta do sol e estou me cansando desse longo e solitário período de espera.

Mas o tesouro deve ser protegido. Isso é o mais importante. Ainda haverá tempo suficiente para o sol e as novidades quando o tesouro estiver nas mãos do rei Lief.

Receio ter-me desviado do assunto. Isso tem acontecido com freqüência cada vez maior, ultimamente, e não pode continuar. Os meus sentimentos não importam. Preciso me dedicar ao meu objetivo principal, que é descrever um panorama de Deltora neste momento de agitação.

O Senhor das Sombras foi banido, mas outra batalha teve início — a batalha contra a fome, a miséria e a devastação que deixou atrás de si. De todos os males que enfrentamos, o mais terrível é a crescente constatação de quantos dos nossos foram levados para as Terras das Sombras na condição de escravos.

As fazendas do nordeste e do oeste foram esvaziadas. Os melhores lutadores de Mere e das Planícies foram levados. Com apenas uma exceção, o mesmo ocorreu com todos os membros da tribo das Jalis que não foram massacradas durante a invasão. Milhares foram levados da própria Del.

A terra pode ser curada e os rios purificados. As plantações podem ser novamente semeadas. Casas e locais de trabalho podem ser reparados. O trabalho já começou em toda a Deltora. Mas os prisioneiros nas Terras das Sombras estão fora de nosso alcance, e as suas famílias e amigos não podem ser consolados.

O mercado fervilha de rumores. Há um clamor crescente de que haverá uma tentativa de resgate. Ultimamente, ele tem se tornado tão forte que, com certeza, está sendo estimulado por espiões do Senhor das Sombras. Conviria muito ao inimigo se Lief liderasse um exército através da fronteira. Que melhor forma de pôr as mãos nele?

Até o momento, estou satisfeito em dizer que Lief se recusou a considerar uma invasão às Terras das Sombras. Assim como eu, ele deve estar ciente de que sem uma arma poderosa para combater a magia do Senhor das Sombras, tal tentativa vai ser uma inútil perda de vidas.

No entanto, o coração dele se confrange quando o povo lhe pede ajuda aos prantos e ele tem de lançar por terra a esperança de seus súditos.

Se ao menos ele soubesse que posso ajudá-lo... Se ao menos soubesse de minha existência...

Dizem que ele começou a se afastar das multidões e que está deixando as tarefas cotidianas do reino para a mãe, Sharn. Passa muito tempo sozinho — trancado, dizem, na biblioteca do palácio. Evita até mesmo os leais companheiros de busca — Barda, chefe da guarda do palácio, e Jasmine, a garota rebelde das Florestas do Silêncio. O único com quem ele passa algum tempo é o líder da Resistência — o carrancudo homem que todos ainda chamam de Perdição.

Talvez ele esteja procurando alguma pista de como salvar os prisioneiros. Ou talvez se refugie na biblioteca por ser um local seguro e por ter percebido que se encontra em constante perigo.

Lembre, caro leitor: o Cinturão de Deltora foi criado por Adin, o primeiro rei de Deltora, muito tempo atrás. Adin uniu as sete tribos de Deltora para enfrentar o Senhor das Sombras, convencendo cada uma a acrescentar seu talismã, uma pedra preciosa de grande poder, ao Cinturão.

E, desde então, os herdeiros de sangue de Adin têm sido os únicos para quem o Cinturão revela o seu brilho.

Lief é herdeiro de Adin. Ele mesmo, pouco mais do que um garoto, ainda não tem um filho que possa usar o Cinturão em seu lugar, caso algum acidente ou traição o atinja. Tampouco tem irmãos ou irmãs, e sua morte deixaria Deltora à mercê do inimigo.

Tenho certeza de que neste exato momento o Senhor das Sombras está planejando como dominar o nosso reino mais uma vez. Os escravos nas Terras das Sombras são a isca para uma de suas armadilhas. Mas ele nunca conta com apenas um ardil. Uma manobra simples pode ter sucesso onde outra mais elaborada falha — e o que poderia ser mais simples ou rápido do que o golpe de uma adaga?

Não devo pensar nisso. Devo manter o otimismo, como espero que o rei Lief esteja fazendo. É essencial que ele não seja levado a agir tolamente devido à frustração. Muita coisa depende de sua segurança.

Agora estou cansado e preciso dormir. A luz do lampião está vacilando e os meus velhos olhos também. Talvez eu acorde e constate que a longa espera terminou.

Rezo para que seja assim, para o bem de todos nós. Preciso mostrar ao rei o que tenho antes que seja tarde demais.

Preciso contar-lhe, finalmente, da existência da Flauta de Pirra.

 

Assim que entrou em seus aposentos, Lief pressentiu o perigo que o espreitava. Ele olhou para o cinturão de Deltora. A luz da vela que tinha nas mãos cintilou nas pedras incrustadas nos medalhões de aço.

O vermelho vivo do grande rubi e o verde cintilante da esmeralda estavam desbotados. O Cinturão o advertia de um perigo.

Lief sentiu um aperto no peito. Empunhou a espada e seus olhos cansados perscrutaram as sombras.

Ele nada viu. O quarto parecia exatamente como quando o deixara pela manhã. As janelas com barras não trazia cortinas e tampouco havia cortinado sobre a cama. Tudo o que poderia ocultar um inimigo havia sido removido semanas atrás.

No entanto, o perigo estava lá, ele podia senti-lo.

Ele se moveu com cautela, os ouvidos atentos ao menor som. A Lua, mergulhando no céu à medida que a manhã se aproximava, lançava a sua luz no quarto. As sombras das barras da janela se projetavam escuras sobre a cama.

Lief pousou a vela sobre a mesa de cabeceira. Estendeu a mão e, com um movimento rápido, arrancou a coberta da cama. O travesseiro e os lençóis brancos brilharam sob a luz do luar.

— Apareça! — ele murmurou.

Nenhum movimento. Olhou ao redor do aposento mais uma vez, os pensamentos acelerados. De que servia um rei que era prisioneiro dos próprios medos? Que não conseguia fazer o que o seu povo mais desejava que fizesse?

O rapaz sentiu-se congelar quando um leve som sibilante, uma nota apenas, penetrante e doce, encheu-lhe a mente. O som durou apenas um momento e se calou.

Lief balançou a cabeça como que para desanuviá-la. Ele já ouvira o som antes. Uma vez na biblioteca e outra em seus aposentos, uma ou duas semanas antes.

Não mencionou o fato a ninguém, pois a mãe e os amigos já estavam bastante preocupados com ele. Se ouvia sons, era porque precisava de descanso. E ele não podia descansar. Não até...

Mas ele não poderia se esconder das pessoas por muito mais tempo. Os apelos para resgatar os escravos das Terras das Sombras tornavam-se mais insistentes. Em breve, o povo começaria a achar que o seu rei não se importava nem um pouco com os seus. Lentamente, a confiança que nutriam por ele diminuiria e acabaria desaparecendo por completo.

Lief sabia disso como sabia o próprio nome. Também seu pai, mantido afastado do povo, havia perdido a confiança deles. Fora por essa estratégia que as pedras haviam sido roubadas do Cinturão, e o Senhor das Sombras conseguira triunfar.

Ele agarrou a espada com mais força. “Isso não vai acontecer comigo”, disse a si mesmo. “Por que outro motivo tenho trabalhado dia e noite, a não ser o de encontrar uma saída para esta armadilha? Amanhã...”

E, ao pensar no dia seguinte, olhou desejosamente para a cama. Talvez, afinal, os seus nervos estivessem lhe pregando uma peça.

Naquele exato momento, ouviu um leve arranhar, tão tênue que não tinha certeza de que fosse real. O ruído parecia ter vindo exatamente do seu lado.

Devagar, ele deslizou a ponta da espada até a borda do travesseiro branco e macio e, com delicadeza, ergueu-o.

E ali, encolhido, encontrava-se um escorpião-das-planícies, vermelho com listras pretas e tão grande quanto o punho de um homem. Alertado pelo movimento súbito, o escorpião se ergueu, a cauda mortal pronta para atacar.

Com um grito, Lief atirou o travesseiro para longe. Penas escaparam do tecido rasgado quando ele atingiu a cama com a espada. O escorpião, semi-esmagado, ainda procurava atacar. Ofegante e trêmulo, Lief atingiu-o repetidas vezes, até que ele finalmente ficasse imóvel.

A porta foi aberta com um movimento súbito, e Perdição, de espada em punho, invadiu o aposento. Ele parou, fitando a massa avermelhada e pegajosa que manchava o lençol.

Lief se sentou pesadamente na beirada da cama. Penas flutuavam ao seu redor e aterrissavam em sua cabeça e ombros. Ele tentou sorrir.

— Tive um visitante — ele disse.

— O que está acontecendo? — indagou Jasmine parada na soleira da porta. Kree, o pássaro preto que sempre a acompanhava, esvoaçava atrás dela. A pequena criatura peluda que ela chamava de Filli piscou sonolenta em seu ombro.

Os olhos verdes de Jasmine brilhavam tanto quanto a adaga que tinha na mão. Ela entrou no quarto, examinando a situação com um rápido olhar.

— Um escorpião-das-planícies — constatou ela, a expressão sombria. — Ele com certeza não chegou aqui sozinho. Mas como...

— Volte para a cama, Jasmine — Lief interrompeu. — Sinto tê-la acordado. Está tudo bem.

— Está tudo bem? — ela protestou. — Lief, se você tivesse posto a cabeça nesse travesseiro...

— Felizmente, eu não pus — retrucou Lief, dando de ombros, sem contar o quanto estivera perto de fazê-lo.

Jasmine foi até a janela e sacudiu as barras. Elas saíram em suas mãos.

— As barras foram serradas e depois substituídas! — ela constatou.

— Então foi assim que o assassino entrou. — Ela olhou para o céu e os seus olhos se estreitaram.

Lief trocou um olhar com Perdição. Ambos sabiam o que Jasmine estava pensando, agora que o susto passara. O que Lief estivera fazendo a noite toda para ir ao quarto de dormir somente ao amanhecer?

— Eu estava com insônia, mas agora estou cansado — Lief contou. “Pelo menos isso era verdade”, ele pensou tristemente. Queria muito dormir. Puxou o lençol manchado da cama. Ele se deitaria diretamente sobre o colchão e ficaria muito satisfeito.

— Então vamos deixá-lo sozinho — concordou Perdição, caminhando até a porta.

Jasmine sabia que as palavras também eram destinadas a ela. O homem que todos ainda chamavam de Perdição era seu pai, mas nas últimas semanas era tão difícil conversar com ele como com o próprio Lief. Durante o dia, ele estava cercado de pessoas. À noite, desaparecia para tratar de negócios misteriosos dos quais Jasmine nada sabia.

Perdição deixou o quarto, mas Jasmine não fez nenhum movimento para segui-lo. Aquela era a primeira vez que via Lief sozinho em semanas e estava determinada a conversar com ele.

Ele, contudo, não olhou para ela e começou a desamarrar as botas.

— Preciso de algumas horas de descanso, Jasmine — disse ele com determinação. — Vamos para Tora pela manhã.

— Tora?! — Jasmine repetiu perplexa. — Lief, você não pode sair de Del agora! As pessoas estão exigindo vê-lo. Você não pode fugir!

— Faço apenas o que preciso — Lief murmurou. — Se você prefere pensar que estou fugindo, não posso impedi-la.

Tomada por uma raiva intensa, Jasmine disparou para fora do quarto. Ela escutou a porta se fechar atrás dela e a chave virar na fechadura.

O corredor estava deserto. Perdição havia voltado ao seu quarto e ninguém se levantara ainda.

De repente, Jasmine sentiu-se sufocada e desejou respirar ar fresco.

Dirigiu-se apressada para as amplas escadarias e desceu correndo, os pés descalços silenciosos no mármore frio. Se ao menos tivesse alguém com quem conversar... Mas estava só.

Barda levara algumas tropas para a cidade de Noradz a fim de libertar os habitantes de seus líderes cruéis, os Ra-Kacharz, e buscar alimentos para os famintos de Del. Jasmine teria ido com ele, mas o povo de Noradz tinha medo de Filli e ela não podia deixá-lo para trás. Assim, decidiu ficar.

Sharn e Perdição estavam sempre ocupados, e Lief parecia ter perdido toda a confiança nela. Ele guardava segredos que não queria partilhar e agora estava fugindo de vez para Tora, a grande cidade do Oeste.

Certamente, ali ele ficaria em segurança. Nenhum mal conseguia sobreviver em Tora, que era protegida por uma magia própria. Mas será que ele acreditava que podia se esconder para sempre?

Talvez sim. Lief havia mudado. O velho Lief, o Lief que Jasmine conhecera, era corajoso e ávido por ação. Ela não tinha certeza de que gostava do novo Lief — misterioso, prudente, majestoso.

Ela chegou ao andar térreo. Os corpulentos guardas ao pé da escada afastaram-se para deixá-la passar. Se estranharam o fato de ela ter acordado tão cedo, nada disseram. “Na verdade”, Jasmine pensou tristemente, “eles provavelmente esperam que eu aja de modo estranho.”

Muitas histórias se contavam a seu respeito. Como ela era uma lutadora destemida que havia crescido sozinha nas ameaçadoras Florestas do Silêncio e podia falar com as árvores e os pássaros. Como sua mãe havia morrido nas Terras das Sombras. Como seu pai fora gravemente ferido a ponto de perder a memória, mas escapara para voltar a Deltora e se transformar em Perdição, o temido líder da Resistência.

Desagradavelmente ciente dos olhares curiosos dos guardas sobre ela, Jasmine abriu caminho entre os corpos aglomerados de centenas de pessoas que dormiam no chão do amplo saguão de entrada.

As pessoas vinham em busca de ajuda e, acima de tudo, de esperança. Todos os dias elas se enfileiravam pacientemente para ver Sharn e seus ajudantes. Quando a noite chegava, elas dormiam onde se encontravam a fim de não perder os seus lugares. Muitas estavam ali há semanas.

Jasmine se movia cautelosamente, esperando não acordar ninguém. Ela temia encontrar o olhar daqueles cujos entes queridos se encontravam nas Terras das Sombras. O que podia dizer a eles?

Sinto muito. O rei diz que não podemos fazer nada.

A lembrança dos escravos encheu Jasmine de um intenso terror. Para ela, a perda da liberdade era pior do que a morte.

Com alívio, chegou às enormes portas da entrada e saiu para o dia que estava amanhecendo. Um cavaleiro solitário se dirigia ao palácio a galope. À medida que ele se aproximava, Jasmine constatou, para sua surpresa e alegria, que se tratava de Barda.

Ela correu para cumprimentá-lo quando ele fez o cavalo estacar, mas parou ao perceber as linhas sombrias que lhe marcavam o rosto cansado.

— Barda, o que aconteceu? — ela exclamou.

— Trago más notícias — ele disse depressa. — Noradz está vazia. Os alimentos foram destruídos e todas as pessoas foram levadas... para as Terras das Sombras.

 

Lief estava sentado à grande mesa, numa das cozinhas do palácio, tentando dominar a raiva que sentia ao ouvir o relato de Barda. Perdição, sentado à sua frente, não demonstrava nenhuma emoção. como sempre. Ao lado de Perdição, estava Jasmine, a cabeça baixa.

Barda soubera do destino do povo de Noradz por Tom, o estranho comerciante que ele, Lief e Jasmine haviam conhecido em sua jornada pelo Norte.

— Quando encontrei a cidade deserta, fui procurar Tom. Sabia que, se alguém podia nos dizer o que aconteceu, esse alguém era ele. Tom disse que os Ra-Kacharz foram vistos conduzindo o povo na direção da fronteira apenas alguns dias antes da derrota do Senhor das Sombras.

— Aquelas pessoas eram indefesas — disse Jasmine com amargura. — Entre elas estava Tira, a garota que salvou nossas vidas. E mesmo assim não fazemos nada! Ficamos aqui sentados e conversamos! Enquanto milhares de almas em toda a Deltora estão dispostas e capazes de...

— Jasmine! — Lief interrompeu zangado. — Não podemos ir às Terras das Sombras. A feitiçaria do Senhor das Sombras é poderosa demais para ser derrotada no próprio território.

— Mas o Cinturão... — Jasmine começou.

— O Cinturão foi feito visando à defesa, não ao ataque — Perdição interrompeu. — As pedras não podem ser levadas para além das fronteiras de Deltora. Você se esqueceu disso, Jasmine?

Ela tinha mesmo esquecido, mas depois de uma pequena pausa prosseguiu teimosa:

— Então, precisamos invadir as Terras das Sombras sem o Cinturão. O povo de Deltora está lá escravizado, sofrendo, talvez sendo torturado...

— Sei disso, Jasmine! Não se passa uma hora sem que eu pense nisso! — gritou Lief, erguendo-se de um salto. — Mas para salvá-lo não posso enviar milhares de deltoranos para a morte, numa missão impossível. Não posso fazer nada até encontrar uma arma que possamos usar contra o Senhor das Sombras. Não posso e não o farei! Entendeu bem?

— Entendo bem demais, Lief — Jasmine tornou com frieza, a expressão dura. — Devemos desistir dos prisioneiros enquanto você vai se esconder em Tora. Pois bem, não vou fazer parte disso!

Ela se virou e saiu do aposento quase correndo. Praguejando, Barda a seguiu.

Lief deixou-se cair na cadeira outra vez.

— Ela não compreende. Perdição, eu preciso dizer a ela...

— Não, não precisa! — Perdição se inclinou para a frente, preocupado e agarrou o braço de Lief. — Você deve seguir o plano em segredo absoluto. Isso é muito importante. Aliás, é a coisa mais importante de todas. Você sabe disso!

Lief cerrou os dentes e então assentiu lentamente.

Enquanto isso, Jasmine já não conseguia ouvir os chamados de Barda. Ele deixara o edifício, na certeza de que ela tinha saído em busca de ar fresco. Jasmine ficou satisfeita de não ser encontrada, pois não queria ouvir palavras de consolo. Ela queria continuar zangada. Pelo menos, a raiva era um sentimento que compreendia bem.

Jasmine se dirigiu ao grande salão de refeições, pois tinha certeza de que àquela hora estaria vazio.

Ficou aborrecida ao constatar que se enganara. Curvada num dos lados da enorme mesa estava a figura desajeitada e selvagem de seu velho inimigo, Glock. Fitando-o, do outro lado, estava uma pessoa de quem ela gostava ainda menos — Jinks, o maldoso homenzinho que antigamente fora acrobata do palácio.

Ambos os homens usavam uma pesada luva em uma das mãos. Cada um tinha diante de si uma pequena gaiola de madeira, uma caneca de cerveja e uma pilha de moedas.

Entre os dois, lutando sobre a madeira polida, encontravam-se duas aranhas imensas. Uma delas tinha manchas marrons e a outra era mais escura, com uma mancha amarela no dorso.

Ao som da porta que se abria, Glock e Jinks viraram-se depressa, mas relaxaram ao ver quem entrava.

— Ora, é a amiguinha rebelde do rei, herói da busca pelo Cinturão de Deltora — Jinks zombou. — A que devemos a honra de sua visita, senhorita?

Enquanto ele falava, a aranha com as costas amarelas derrubou a oponente e saltou sobre ela, pinças a postos.

— Vitória para Flash? — berrou Glock entusiasmado.

— Vitória para Flash — Jinks confirmou ressentido e empurrou a sua pilha de moedas na direção de Glock.

Glock apanhou a aranha vencedora com a mão enluvada e atirou-a na gaiola.

A aranha que acabara de escapar à morte ergueu-se de um salto e jogou-se contra as barras da gaiola.

— Quieta, Fury — ordenou Jinks, empurrando-a para longe com rudeza. — Você vai poder se vingar em breve.

— Vocês não têm nada melhor a fazer do que apostar em aranhas-de-briga? — indagou Jasmine enojada.

— Parece que você não tem nada melhor a fazer do que nos observar, fracote — resmungou Glock. — Por que não sai daqui?

— Ouvi dizer que o rei vai para Tora — Jinks comentou, pigarreando, com o olhar travesso. — Você vai acompanhá-lo, senhorita?

— Não vou, não! — Jasmine disparou.

Sorrindo, Jinks tirou um rolo de papel-pergaminho do casaco e fingiu examiná-lo.

— Nessas circunstâncias, isso não me surpreende — ele murmurou.

Jasmine ardia de curiosidade para saber do que ele estava falando, mas estava determinada a não perguntar.

— Lief não deveria ir a Tora — Glock murmurou, enchendo a caneca com mais cerveja. — Ele deveria estar formando um exército para invadir as Terras das Sombras e fazendo planos para resgatar o meu povo.

— Ah, bem, você é o último dos Jalis, meu amigo desajeitado, e os Jalis sempre foram loucos por uma luta — Jinks acrescentou pensativo.

— Mas você quer mesmo juntar-se ao resto de sua tribo e virar um escravo do outro lado das montanhas?

— Eu não seria capturado — Glock resmungou. — Eu sou Glock, o maior lutador da tribo. Estou protegido por um talismã poderoso que está com minha família há gerações.

— Ah, está certo — zombou Jinks.

Glock remexeu sob a camisa manchada e retirou uma pequena bolsa de pano desbotado pendurada num cordão ao redor do pescoço.

— Olhe aqui! — ele gritou, abrindo a bolsa e derramando na mão enorme um pedaço de madeira esculpida, três pedras, alguns galhos minúsculos e um pedaço de material roxo enrugado. — O talismã de um duende morto por um de meus ancestrais. Uma pedra tirada do ventre de uma serpente-diamante, e outras duas do ninho de um dragão. Ervas de grande poder e a flor de uma planta carnívora.

— Ah, entendi! — Os pequenos olhos de Jinks brilhavam divertidos.

— Então você estaria a salvo nas Terras das Sombras, não é mesmo? Você poderia conduzir nosso exército à vitória?

— Mas claro! — afirmou Glock num tom mais calmo, colocando a pilha de objetos de volta na bolsa, com cuidado. — E foi o que eu disse a Lief, várias vezes. Mas ele não quer ouvir.

— Ah, ele tem coisas mais importantes em que pensar no momento

— Jinks retrucou, com um ar de quem sabe tudo.

— Você não sabe nada do que se passa na mente de Lief, Jinks!

— disparou Jasmine muito irritada.

— Pois você se engana, senhorita — o homenzinho devolveu, lançando-me um olhar rancoroso. — Eu sei o que ouço.

— Você fala como um bobo! E pare de me chamar de “senhorita”!

Jinks apertou os lábios e voltou a examinar o rolo de papel-pergaminho.

O silêncio se prolongou e, finalmente, a curiosidade de Jasmine superou o seu orgulho.

— E então? O que você ouviu? — ela indagou.

— Ora, todo mundo sabe que Lief está indo para Tora a fim de encontrar uma esposa — disse ele, sorrindo com malícia.

Jasmine sentiu o rosto corar.

— Isso é ridículo! — ela gritou. — Lief é novo demais para se casar. Jinks fitou-a de cima a baixo, dos cabelos negros desgrenhados aos escuros pés descalços.

— Sem dúvida, tal ignorância era de se esperar em alguém que, como você, cresceu numa floresta, e não num palácio — disse ele zombeteiro. — Mas pensei que você sabia, já que é tão amiga do rei. Ora, os boatos dizem que o seu pai tem ajudado Lief a escolher a melhor das jóias reais para a noiva.

Glock resmungou algo em voz baixa e tomou um grande gole, embora já tivesse bebido cerveja em excesso.

— Os reis e rainhas de Deltora sempre se casam jovens — Jinks continuou em tom professoral. — É o seu dever. Lief precisa ter um herdeiro o mais rápido possível, uma criança que ocupe o seu lugar, caso ele morra.

Jasmine não respondeu. O que Jinks dizia fazia sentido. Uma vida era algo frágil para se colocar entre Deltora e o Senhor das Sombras. Mas casar? Por que Lief não lhe contara?

Ciente do olhar astuto de Jinks, ela lutou para que a sua expressão não revelasse os seus sentimentos.

Jinks empurrou o papel-pergaminho na direção dela.

— Veja aqui, se não me acredita — ele disse. — Esse é um dos antigos documentos que o seu rei vem estudando. Dei um jeito de... hã... pegá-lo emprestado da biblioteca nesta manhã. Gosto de estar a par dos negócios de Estado.

— Das fofocas, você quer dizer — grunhiu Glock, enterrando o nariz na cerveja mais uma vez.

Jasmine deu uma olhada no papel. Ele estava coberto de nomes, linhas e símbolos. No alto, havia um título escrito com caligrafia delicada.

As Principais Famílias de Tora

— Está vendo? — Jinks perguntou. — Lief vai escolher a sua rainha entre uma das melhores famílias de Tora.

— Por que ir até Tora em busca de uma esposa? — Glock se espantou.

— Há muitas garotas bonitas em Del.

— Lief está obedecendo a costumes antigos — Jinks respondeu com desdém. — O próprio Adin casou-se com uma torana e os seus filhos fizeram o mesmo. Adin era um cara ardiloso. Ele sabia a importância de conservar laços fortes entre o Leste e o Oeste.

— Os toranos dizem que Adin se casou por amor — Jasmine retrucou.

— Não há dúvidas de que a mulher torana em questão era bem-nascida, instruída e muito bonita — Jinks devolveu abafando um riso.

— Ouso afirmar que Adin ficou muito satisfeito com sua escolha. Assim como Lief ficará, quando chegar a sua vez.

Glock riu dentro da caneca, molhando a mesa com respingos de espuma.

Jasmine não conseguia mais suportar a companhia deles. Ela deixou o aposento e dirigiu-se à cozinha.

Mas, antes de lá chegar, foi interrompida pelo som da voz de Sharn.

— Jasmine! Barda estava à sua procura — avisou Sharn, andando apressada em sua direção. — Agora ele foi descansar, pois viajou a noite inteira. E Lief e Perdição pediram para dizer adeus. Eles acabaram de partir para Tora.

Vendo a expressão carregada de Jasmine e presumindo o motivo, ela sorriu gentilmente.

— Eles estarão a salvo, Jasmine. A magia torana fará com que a viagem deles seja mais rápida. Talvez eles até já tenham chegado. Eles voltarão em um ou dois dias.

— Trazendo alguém com eles, imagino — Jasmine respondeu com frieza. — Uma jovem bem-nascida.

— Quem lhe disse isso? — Sharn indagou, arregalando os olhos.

— Não me lembro. Mas é verdade, não é mesmo?

— Eu não posso lhe dizer nada — disse Sharn, depois de hesitar por um momento. — Sinto muito.

Tal resposta bastou para Jasmine. Ela assentiu levemente e virou-se para sair.

— Não se zangue com Lief, Jasmine — Sharn pediu, mordendo o lábio. — Ele só está fazendo o que é preciso, o que é seu dever.

— Ah, eu entendo — Jasmine tornou com calma. — Eu entendo muito bem.

 

Quando Jasmine atingiu a grande escadaria, já tinha tomado uma decisão. Ela não poderia mais permanecer no palácio.

— Vamos voltar às Florestas do Silêncio, que é nosso lugar — ela murmurou para Filli e Kree. — Estou cansada de palácios, normas... e reis.

Sentia o peito apertado e dolorido quando começou a subir os degraus.

Algo a deteve e, ao olhar para baixo, viu uma grossa corda prateada esticada de um lado a outro da escada. Ela estava de tal modo perdida em seus pensamentos que ultrapassara o segundo andar onde ficavam os quartos de dormir.

Mais adiante se encontrava a biblioteca, proibida a todos, com exceção de Lief, Perdição e Sharn.

A simples visão da corda aborreceu Jasmine. Seguindo um impulso repentino e desafiador, esgueirou-se por baixo dela. Se Jinks podia desobedecer à regra, ela podia fazer o mesmo.

No alto dos degraus, havia um grande hall. Dois corpulentos guardas do palácio encontravam-se sentados contra a parede dos fundos. Canecas de cerveja pela metade estavam na mesa entre eles.

Jasmine deu meia-volta, pronta para se retirar, mas os homens não se moviam nem falavam. Eles estavam dormindo.

A moça sorriu com ironia. Sem dúvida, a cerveja tinha sido um presente de Jinks. Foi assim que ele conseguiu “emprestar” o pergaminho de Lief.

Ela olhou à sua volta. À esquerda, havia uma alta porta em arco onde se lia BIBLIOTECA. Mas, à direita, um corredor largo que conduzia aos fundos do palácio estava bloqueado por outra corda prateada.

Então aquele andar encerrava mais segredos além da biblioteca. Quais seriam?

Kree esvoaçava ansiosamente quando Jasmine passou pelos guardas, esgueirando-se sob a corda e penetrou rapidamente na escuridão do corredor. Ele nunca confiara naquele palácio sombrio onde não cresciam árvores e o céu podia ser visto somente através das janelas. Ali se sentia especialmente apreensivo.

A princípio, Jasmine ficou desapontada com o corredor. Havia alguns depósitos do lado direito, todos repletos de livros e documentos, exceto o último, que estava vazio e tinha as paredes enegrecidas. Estava claro que ali, há muito tempo, havia ocorrido um incêndio.

“Tenho certeza de que não houve prejuízo”, Jasmine pensou com amargura. “Ainda há livros velhos em quantidade mais do que suficiente neste lugar.”

A parede à esquerda parecia totalmente vazia, e no final ela encontrou algo estranho.

Uma passagem em arco se abria para um curto corredor, e este terminava em uma parede rústica de tijolos sobre a qual havia um aviso. Jasmine sentiu um estranho formigamento de excitação. Ela correu até a parede e lentamente leu as palavras do aviso.

FECHADO POR ORDEM DO REI

Pois então ali se encontrava outro dos segredos reais de Lief.

Obedecendo a um impulso irresistível que não conseguia explicar, Jasmine colou o ouvido aos tijolos.

Tomp! Tomp!

O som vinha do outro lado da parede! Jasmine fechou os olhos e ouviu com atenção.

O pulsar abafado se intensificou mais e mais, batendo como um coração acelerado. Os tijolos ásperos ficaram quentes sob a face de Jasmine. O som encheu-lhe a mente e vibrou por todo o seu corpo.

Tomp! Tomp! Tomp!

O aviso caiu. Pequenos pedaços de argamassa começaram a se soltar de entre os tijolos, tamborilando no chão como granizo. Os tijolos estavam cada vez mais quentes.

De repente, a necessidade de Jasmine de chegar à fonte do som tornou-se insuportável. Esquecendo totalmente os guardas adormecidos e a necessidade de ficar em silêncio, ela bateu na parede com os punhos.

Os tijolos pareceram tremer. A argamassa caía deles sobre os pés de Jasmine.

Kree grasnava, advertindo-a. Filli guinchava assustado.

— Está tudo bem — Jasmine os tranqüilizou. Mas ela tremia ao empunhar a adaga e raspar a argamassa, que se desfazia.

Tomp! Tomp! Tomp!

Os tijolos estremeceram e se moveram em seus lugares com sons fortes e agudos. Jasmine pulou para trás quando um deles se soltou e caiu no chão. Por trás do buraco aberto, havia uma pesada maçaneta de bronze.

Lief e o Cinturão se foram. Agora é a nossa chance. Venha até mim...

O pensamento foi muito claro, como uma voz. A intimação era insistente e não podia ser ignorada.

Mais pedaços de argamassa caíam a todo momento. Jasmine guardou a adaga e começou a puxar os tijolos, um a um. Agora podia ver a madeira entalhada que circundava a maçaneta. O espaço aberto na parede era grande o bastante para que ela passasse.

Venha até mim...

Jasmine girou a maçaneta. A porta abriu-se com suavidade. Ignorando o grito de Kree, ela deslizou pelo buraco e penetrou no aposento.

Jasmine parou, olhando ao redor.

Que lugar era aquele? Era totalmente diferente de tudo o que vira no palácio. As paredes eram lisas, brancas e brilhantes, assim como o piso. Não havia janelas e, mesmo assim, havia luz — uma luz forte e clara que lhe feria os olhos.

De repente, teve certeza de que não deveria estar ali. Filli choramingava. Kree grasnava avisos do corredor. Jasmine se voltou, mas a porta já se fechava atrás dela. Antes que pudesse alcançá-la, ela se trancou com um leve clique.

Tomp! Tomp!

Jasmine ficou paralisada. O som era forte e repetitivo, tão alto que expulsava todos os pensamentos. Devagar, ela se virou e se afastou da porta.

O som vinha do centro do aposento, de algo que estava envolto num tecido negro e pesado. Atraída por uma força à qual não conseguia resistir, Jasmine dirigiu-se aos tropeços na direção da forma escura, estendeu a mão e puxou o tecido.

Tomp! Tomp! Tomp!

Debaixo do tecido, havia uma pequena mesa cuja superfície era de um vidro grosso, ondulado como água. Jasmine olhou fixamente. O som apossou-se de seu corpo e de sua mente. A superfície em movimento parecia chamá-la. Jasmine se inclinou sobre ela, observando as suas profundezas transparentes.

Lentamente, o som pulsante desapareceu. As ondas começaram a girar e a ficar cinzentas como fumaça, com bordas vermelhas. No centro das ondas, havia um círculo negro.

— Jasmine! É você!

A voz erguia-se da escuridão: jovial, doce e quente.

Jasmine prendeu a respiração.

— Quem é você? — sussurrou ela. — Como sabe o meu nome?

— Eu sabia que você me ouviria, Jasmine — suspirou a voz. — Eu a chamei tantas vezes.

— Quem é você? Onde está você? — Jasmine se curvou sobre a mesa, esforçando-se para enxergar além da escuridão.

— Estou onde eu nasci — a voz respondeu. — Os outros escravos sofrem por Deltora, mas eu não conheci nenhum outro lar além deste.

Jasmine agarrou a borda da mesa para firmar o corpo.

— As Terras das Sombras — Jasmine murmurou.

— Sim, é verdade, mas eu preciso me apressar. Se eu for descoberta usando o cristal...

Houve um som sufocado e então a voz recomeçou, embora mais insegura do que antes.

— Não devo chorar. Preciso ser corajosa como você, Jasmine. Nossa mãe nos disse isso. Ela disse que nas Florestas você não tinha medo de nada. Você...

O coração de Jasmine pareceu parar.

— O que você disse? — ela perguntou atônita. — Nossa mãe?

A voz jovem prosseguiu, as palavras se misturando umas às outras.

— Mamãe disse que você nos ajudaria. Antes de morrer, ela me disse que, de algum modo, eu deveria chegar ao cristal e chamar você. Ela disse que eu saberia quando a hora tivesse chegado. E foi o que eu fiz, Jasmine!

Jasmine estava ofegante como se tivesse corrido.

— E como você soube? — ela perguntou baixinho.

— Nuvens vermelhas formaram um turbilhão sobre as montanhas. Houve trovões e uma ira terrível. As criaturas gemeram e rangeram os dentes.

— Espere... — Jasmine implorou impaciente. — Conte-me... Mas a voz agora estava alvoroçada.

— Eu sabia o que a ira significava. Você derrotou o Senhor das Sombras, não é, Jasmine? — Você... e o outro, o filho do amigo de seu pai. O que não me escuta. O que guardou o cristal para que você não pudesse me ouvir...

— Lief — Jasmine murmurou com dificuldade.

— Sim. Ele não quer que você me conheça. Ele teme o Senhor das Sombras. Mas eu não perdi as esperanças. Nossa mãe disse que você não sabe que tem uma irmã, pois eu ainda me encontrava em seu ventre quando ela foi levada das Florestas, mas eu deveria lhe contar...

Jasmine obrigou-se a recuar, a cabeça girando. Ela não conseguia assimilar essas informações.

— Jasmine, você ainda está aí? — A voz jovem estava tomada pelo pânico.

Jasmine respirou fundo, trêmula. Inclinou-se para a frente e olhou com mais atenção a superfície enfumaçada e tumultuada da mesa.

Ela se concentrou com todas as suas forças, procurou e, então, nas profundezas do centro negro, viu um rosto: o rosto de uma menina cercado por uma massa de cabelos negros emaranhados. Queixo afilado, olhos verdes arregalados e assustados... Era como olhar para um espelho, mas um espelho que refletia a sua imagem de alguns anos atrás.

— Estou aqui — Jasmine respondeu, com voz rouca.

— Você precisa se apressar — a menina sussurrou. — Vamos ser mortos muito em breve, todos nós, por ordem do Senhor das Sombras. Essa é a vingança pelo que você e os que chama de Lief e Barda fizeram a ele. Por favor... aaah!

A imagem na escuridão ondulou e enfraqueceu.

— Preciso ir — disse a voz apressada. — Posso ouvi-los.

— Espere! Como você se chama? — Jasmine indagou.

— Faith. O meu nome é Faith. — A voz era muito fraca agora. A imagem havia desaparecido, coberta por uma nuvem cinzenta e em movimento que também sumia.

— Eu vou encontrá-la, Faith! — Jasmine gritou desesperada. — Não perca as esperanças. Eu vou encontrá-la.

Jasmine ainda tremia ao correr escadas abaixo até o andar térreo e forçar passagem entre a multidão.

As pessoas a olhavam fixamente ao passar. Algumas a chamaram, mas ela não ouviu. Um homem moreno de expressão inteligente segurou-a pelo braço. Ela se livrou de sua mão e continuou a correr.

Jasmine alcançou as portas e viu que a multidão havia se espalhado pelos degraus e pelo jardim. Correu na direção dos portões e para a estrada adiante.

Ela tinha de encontrar um local tranqüilo onde pudesse pensar com clareza. Mas, para onde poderia ir?

Então, uma idéia lhe veio à mente. A antiga casa de Lief... a ferraria. Não ficava longe do palácio e lhe ofereceria a paz de que precisava.

Ela se pôs a caminho, movimentando-se com rapidez sobre a grama alta da beira da estrada. Sua mente atordoada fervilhava com planos loucos e, por esse motivo, não ouviu os passos furtivos atrás dela, tampouco sentiu o olhar de quem a seguia.

 

Em um maravilhoso aposento bem iluminado da cidade de mármore de Tora, Lief tomou a mão da delicada jovem cujos grandes olhos negros estavam fixos nos dele. Havia três outras pessoas no aposento, mas Lief falava com a moça como se estivessem a sós.

— Está disposta, Marilen? — ele perguntou com suavidade. Mostrando ansiedade e um certo receio, a garota olhou para o homem alto cuja mão repousava protetoramente sobre seu ombro. Eram tão parecidos que certamente se tratava de pai e filha. O homem hesitou.

— A magia torana não vai proteger Marilen num local distante como Del — ele disse finalmente. — Ela é minha única filha e me é muito preciosa.

Perdição, que estivera ao lado de Lief, deu um passo à frente.

— Marilen é agora preciosa para toda a Deltora — ele disse com firmeza. — Ela será bem protegida.

— Tudo que tenho será dela — Lief acrescentou, com mais calma. — E minha mãe a tratará com se fosse filha dela.

— A mãe dela teria ficado muito orgulhosa deste dia — o homem acrescentou, curvando a cabeça.

— Estou disposta — Marilen disse, voltando-se para Lief. — É uma grande honra. Vou tentar ser merecedora dela.

— Você não precisa tentar, Marilen.

Uma mulher de cabelos grisalhos postara-se ao lado da garota. Era Zeean, a líder de Tora que quase perdera a vida no conflito final com o Senhor das Sombras, em Del. A sua túnica escarlate brilhava como uma jóia sob a luz do sol refletida das paredes brancas do aposento.

— Este dia é muito importante para desfazer parte dos males do passado — ela afirmou. E, com um gesto, indicou os rolos de papel-pergaminho espalhados numa mesa próxima.

— Guardar velhos documentos não é costume dos toranos. Deixamos isso para os bibliotecários de Del. Um erro, talvez. Mas estudaremos estes com cuidado, agora.

— É verdade — o pai de Marilen concordou com ardor.

— Obrigado — tornou Lief. — E há algo mais que...

— Talvez devamos permitir que Marilen se prepare para a viagem — Perdição interrompeu com delicadeza.

Zeean sorriu. Curvando-se para Marilen e seu pai, ela se dirigiu para fora da casa e para um pátio cercado de videiras, onde uma fonte cintilante jorrava água para o alto.

— E então, Lief? — ela perguntou depois de se ajeitar na beirada da fonte. — O que você queria me perguntar que nem mesmo Marilen deve saber?

Lief inclinou-se para a frente.

— Os prisioneiros nas Terras das Sombras, Zeean. Há alguma chance, por menor que seja, de a magia de Tora nos ajudar a libertá-los?

A expressão de Zeean ficou séria quando ela sacudiu a cabeça.

— Sinto muito. Nosso poder dentro de Tora é grande, mas fora de nossas fronteiras é muito limitado. Nossa magia não poderia ajudá-lo numa jornada até as Terras das Sombras.

Ela suspirou ao ver o rosto desanimado de Lief.

— Receio que você deva aceitar o fato de que não existe nada que possa fazer, Lief. Segundo a lenda, a única coisa que o Senhor das Sombras teme em seus próprios domínios é a música da Flauta de Pirra.

A mente de Lief foi repentinamente atingida por um som. Uma única nota aguda, quase insuportavelmente doce. Lágrimas saltaram-lhe aos olhos. Boquiaberto e incapaz de se mover ou fala, ele fitou Zeean.

O som desapareceu e ele se deu conta de que Perdição estava sacudindo o seu braço e chamando-o pelo nome.

— Estou bem — conseguiu dizer. Ele fitou Zeean. — Essa Flauta de Pirra... conte-me...

— Acho que a magia da Flauta não é uma história real, mas sim uma lenda e sei pouco sobre ela — disse a velha mulher, a face perturbada.

— Mesmo assim, conte-me, por favor! — Lief implorou. Zeean fitou Perdição e então assentiu indecisa.

— A Flauta de Pirra é, ou foi, um objeto dotado de grande magia e poder. Dizem que ela existiu nas terras além das montanhas, há muito, muito tempo. Antes de elas se transformarem nas Terras das Sombras.

— Então, essa Flauta de Pirra existiu antes do surgimento do Senhor das Sombras? — Perdição indagou.

— Sim. Ouvi falar dela quando era criança por um viajante de Jalis que conheci no rio. Era parte de uma história que ele me contou enquanto pescava um peixe para o seu jantar. Mas a história era...

— Zeean ponderou com cuidado e finalmente balançou a cabeça.

— Sinto muito. Foi há muito tempo. Lembro-me apenas do que lhe contei e da aparência estranha e rústica do homem e do seu modo de falar. Além disso, ele disse... — ela sorriu — ele disse que a história foi contada pela primeira vez a uma menina de minha idade por um pássaro preto.

— Então foi uma das histórias dos Cantos de Pássaros de Tenna!

— Perdição exclamou. — Antigas histórias folclóricas. Ouvi Glock falar delas.

— Eu não consideraria Glock uma fonte de informações confiável

— Zeean retrucou secamente. — Mas, se essas histórias de pássaros vêm dos Jalis, você logo pode descobrir algo sobre a Flauta de Pirra. Os contos folclóricos de todas as sete tribos se encontram no primeiro volume de Os Anais de Deltora. Adin insistiu em que...

Ela se interrompeu quando Lief grunhiu frustrado.

— O que foi? — ela perguntou.

— Todos os volumes dos Anais de Deltora se queimaram na época do rei Alton, o meu avô.

— Queimados? — O rosto de Zeean, geralmente calmo, se encheu de um horror atônito. — Mas os Anais continham toda a história de Deltora! Eram o único registro...

— De fato — Lief concordou — só que eles foram queimados por ordem do conselheiro-chefe do rei Alton, Prandine. — O seu rosto se retorceu ao pronunciar o nome odiado. — O bibliotecário do palácio que foi obrigado a obedecer à ordem chamava-se Josef. Ele se atirou às chamas por não querer viver sabendo o que tinha feito.

— Isso é terrível! — Zeean murmurou. — Por que queimar Os Anais?

— Porque um reino que não se lembra de sua história não pode aprender as lições de seu passado — Perdição afirmou com seriedade.

— Acredito que aqueles velhos livros continham fatos que o Senhor das Sombras queria ver esquecidos. Entre eles, talvez, estivessem as histórias dos Cantos dos Pássaros de Tenna. Uma em especial...

— A história da Flauta de Pirra? — perguntou Lief, erguendo os olhos.

— Por que não? Há quem alegue que muitos dos velhos contos folclóricos são baseados em fatos verídicos — Perdição continuou. A sua face magra e bronzeada estava tomada pelo entusiasmo.

— Vocês certamente não estão pensando em tentar encontrar a Flauta de Pirra, não é mesmo? — Zeean balançou a cabeça incrédula.

— Isso seria loucura. Se a Flauta é mesmo verdadeira, provavelmente não existe mais. Seu país de origem se transformou nas Terras das Sombras! E, seja lá o que for o que o Senhor das Sombras temia, não o derrotou.

— Não sabemos de toda a história ainda — disse Lief. — Talvez tenha havido uma razão...

— É mesmo — Perdição interrompeu. — Precisamos voltar a Del o mais rápido possível, assim que Marilen estiver pronta. Precisamos falar com Glock. Talvez ele não seja o contador de histórias mais confiável que existe, mas é o único membro da tribo dos Jalis vivo em Deltora. O único que pode contar o que precisamos saber.

Muito longe, na ferraria de Del, as sombras da manhã ainda se estendiam sobre o chalé e o jardim de ervas coberto de vegetação.

Jasmine começou a sentir os músculos tensos relaxarem à medida que a paz do lugar a envolvia.

Quando Lief foi coroado rei, ele havia declarado que não viveria no palácio, mas, sim, que voltaria à ferraria onde passara a infância.

A mudança fora postergada repetidas vezes. E agora... bem, agora Lief ia se casar com uma jovem de Tora e aquilo nunca aconteceria.

Jasmine vira o mármore, as fontes e os finos objetos de Tora. Ela não conseguia imaginar uma moça daquele lugar vivendo numa casa humilde.

Portanto, a mudança para a ferraria fora um sonho e uma mentira. Assim como a fé que tinha em Lief.

Jasmine olhou sem ver a pintura da porta, já meio descascada. Como Lief estava determinado a não invadir as Terras das Sombras, decidiu que ela não devia saber da existência da irmã e trancou o aposento. Como ousara tomar tal decisão?

“Não é de surpreender que ele venha me evitando”, Jasmine pensou. “Não é de surpreender que ele não consiga me olhar nos olhos.”

Por ordem do rei...

Sentindo a raiva invadi-la novamente, Jasmine voltou as costas para o chalé e atravessou o quintal até a ferraria.

A moça espiou o local onde o grande fogo queimava antigamente. Os pesados martelos, tenazes e foles encontravam-se ali, como que à espera da volta dos donos. Era estranho pensar que Lief trabalhara ali um dia, ajudando o pai a fazer ferraduras e lâminas de arado para o povo da cidade.

Mas havia outra coisa estranha e, finalmente, Jasmine se deu conta do que era.

A ferraria ficara inativa por quase um ano. As ferramentas deveriam estar cobertas de pó, mas não foi o que ela viu. E... seria a sua imaginação ou o metal da forja estava mais quente do que seria de esperar?

Jasmine olhou ao redor. Ali perto havia uma velha cadeira. O encosto estava empoeirado, mas o assento estava parcialmente limpo, como se, talvez, uma jaqueta ou um casaco tivesse sido jogado sobre ela há pouco tempo.

No chão, atrás de uma das pernas da cadeira, havia um pedaço de papel dobrado que não exibia a cor amarelada do envelhecimento. Isso indicava que caíra ali há pouco tempo. Talvez tivesse escorregado do bolso da vestimenta que fora jogada sobre a cadeira.

Jasmine o apanhou e leu:

 

As letras e números não faziam nenhum sentido para Jasmine, mas ela tinha certeza de uma coisa: fora Lief quem escrevera o bilhete. Ela vira a caligrafia dele muitas vezes para estar enganada agora. Aquele era algum tipo de código. Mais um segredo.

Ela atirou o bilhete no chão irritada.

— Parece que você está aborrecida — disse uma voz divertida atrás dela.

 

Tirando a adaga do cinto, Jasmine virou-se. De pé, um homem a fitava. Era o homem moreno de expressão inteligente que tentara falar com ela na entrada do corredor do palácio. “Ele deve ter se movido silenciosamente como um gato”, pensou Jasmine, pois nem ela nem Kree sentiram a sua aproximação.

O homem sorriu, os dentes brancos contrastando com a pele escura.

O sorriso fazia com que parecesse mais jovem do que Jasmine imaginara a princípio. Na verdade, era difícil determinar a sua idade. O corpo era magro, mas forte. O rosto não mostrava rugas, e os olhos castanhos eram claros e divertidos. Os cabelos negros e lisos eram longos, amarrados com um elástico.

Ele deu um passo na direção dela.

— Afaste-se — advertiu Jasmine, segurando a adaga que rebrilhava sob um raio de sol.

O homem parou e abriu os braços a fim de mostrar que estava desarmado.

— Não quero lhe fazer mal — ele garantiu sem o menor sinal de medo. — Quero lhe pedir um favor.

— Então, fale — Jasmine respondeu, admirando-lhe a calma.

— Tenho um amigo que possui algo de grande valor para dar ao rei — o homem contou. — Estou esperando para falar com ele há muitos dias. Eu a segui na esperança de que você pudesse nos ajudar.

— Se acha que eu tenho alguma influência sobre Lief, está muito enganado — Jasmine replicou, rindo com amargura. — Seria melhor você voltar ao palácio e ficar na fila novamente.

— Estou cansado de ficar na fila — o homem retrucou, erguendo uma sobrancelha.

Jasmine assentiu devagar. Ela reconheceu naquele homem uma alma gêmea. Alguém a quem desagradavam as regras e que seguia o próprio caminho. Contudo, a última coisa de que precisava naquele momento era se enredar em outro problema ligado ao palácio. Ela tinha de planejar, preparar...

— Por favor, deixe-me levá-la para ver o meu amigo — o homem pediu. — O tesouro que ele vem guardando não tem preço. Acredite em mim, o rei vai ficar agradecido.

Jasmine não tinha vontade de obter a gratidão de Lief. Ela não queria vê-lo outra vez. No entanto... se aquele homem dizia a verdade e o tesouro do amigo era realmente valioso, ela causaria uma grande sensação no palácio.

E uma sensação era o que ela precisava nesse momento. Ela era conhecida demais para viajar até a fronteira das Terras das Sombras sem ser reconhecida. Se Sharn soubesse o que ela pretendia fazer, tentaria impedi-la. Mas se a atenção de Sharn fosse desviada, mesmo que por um ou dois dias...

— Que tesouro é esse? — ela perguntou bruscamente.

— Isso o meu amigo vai contar — o estranho retrucou, balançando a cabeça. — Ele sofreu muito para guardá-lo.

Jasmine observou-o atentamente. Estaria ele tentando atraí-la para uma armadilha?

— Você não tem motivos para confiar em mim — o homem disse, como se tivesse lido os pensamentos dela. — E não lhe peço para fazê-lo.

Se preferir, ande atrás de mim com a adaga em minhas costas.

Jasmine tomou uma decisão e assentiu com um gesto enérgico.

— Vá na frente, então — ela ordenou. — Mas estou avisando. Um movimento em falso e não vou hesitar em matá-lo. E, seja lá o que for esse tesouro, é melhor que valha a pena.

À medida que o estranho conduzia Jasmine para o coração de Del, ela dizia a si mesma que tinha agido bem em confiar nele. Quando, porém, ele parou numa velha olaria incendiada, ela balançou a cabeça.

— Você acha mesmo que eu vou entrar nesse lugar com você? — ela exclamou. — Não sou tão boba.

— Realmente, você tem razão em ficar desconfiada — o homem concordou, suspirando. — Mas eu sou a última pessoa que poderia representar uma ameaça para você. Lutas e armas não me atraem nem um pouco. O meu amigo mora ali dentro.

— Diga-lhe para trazer o tesouro até aqui — Jasmine ordenou bruscamente.

— Ele não vai fazer isso — o estranho afirmou. — Ele não acredita que Del seja um lugar seguro.

Cansado da discussão, Kree soltou um grasnado forte, deixou o ombro de Jasmine e voou para o alto.

— Kree vai seguir você — Jasmine declarou. — Eu vou esperar até que ele venha me avisar que está tudo bem.

O homem olhou para o pássaro que voava em círculos e assobiou baixinho.

— Então, as histórias são verdadeiras — ele murmurou. — Você fala com os pássaros.

Jasmine não respondeu. O estranho deu de ombros e entrou por um buraco na parede destruída. Kree voejou atrás dele e rapidamente ambos desapareceram da vista de Jasmine.

Os minutos se arrastaram. Repentinamente inquieta, Jasmine olhou atrás de si, mas a rua estava deserta.

Então ela ouviu um grito agudo e viu um vulto negro voando apressado em sua direção.

Filli chiou agitado e saiu correndo de debaixo da gola do casado de Jasmine.

— Sim, Filli, parece que vamos mesmo ver esse tal tesouro — disse Jasmine. Apesar de tudo, ela se sentiu um tanto alvoroçada.

Ela entrou na olaria e começou a andar sobre o entulho.

O estranho a esperava ao lado de um buraco no chão, perto do final do edifício. Junto dele, sentado sobre um grande baú feito de bambu trançado, encontrava-se um homem velho e frágil, de cabelos brancos. Ao perceber a aproximação de Jasmine, ele se ergueu com esforço.

Quando Jasmine chegou perto dele e ele pôde vê-la com nitidez, pareceu bastante surpreso.

— Tem certeza de que essa é a moça do palácio, meu rapaz? — ele indagou com uma voz que era pouco mais que um sussurro.

O seu companheiro sorriu.

— Certeza absoluta. Essa é Jasmine, que ajudou o rei Lief a recuperar o Cinturão de Deltora. Estamos muito honrados com a presença dela.

Jasmine demonstrou embaraço e lançou-lhe um olhar furioso, mas o sorriso dele não desapareceu.

— Claro, os tempos mudaram — o homem respondeu, assentindo com um leve gesto. — Não temos tempo para nos preocuparmos em trançar o cabelo, vestir roupas finas e usar jóias agora. Tanto melhor, talvez.

Com grande dignidade, ele se curvou para Jasmine.

— Obrigado por concordar em me ver, madame — ele agradeceu. — Eu saí para recebê-la, pois acho que os degraus de nossa casa são muito íngremes.

Ele acenou com a mão para o buraco no chão, e Jasmine percebeu que se tratava, na verdade, de um alçapão que conduzia a um porão.

Ela mal assimilara o que o homem dissera quando ele tornou a falar.

— Esperei muito tempo por este momento. Posso me apresentar? Sou Josef, antigo bibliotecário do palácio na época do rei Alton. Quero... dar-lhe isto.

A mão dele tremia quando ergueu a tampa do baú sobre o qual estivera sentado.

Jasmine olhou para o seu interior e sentiu o desalento tomar conta dela. Ela imaginou várias coisas que poderiam compor o tesouro, mas não pensara naquilo!

O baú estava cheio até a borda de velhos livros, todos encadernados com o mesmo tecido azul-claro, todos do mesmo tamanho e com a mesma inscrição em letras douradas na capa.

 

Ela ergueu a cabeça para fitar Josef. Ele se empertigara, claramente aguardando uma reação.

— Os Anais de Deltora? — Jasmine indagou estupidamente.

Um sorriso transfigurou o rosto enrugado do velho homem, fazendo-o brilhar.

— Entendo que esteja chocada — disse ele animadamente. — Você achava que os Anais haviam sido queimados há muitos anos no depósito. E eu com eles. Mas, como você pode ver, eu consegui enganar Prandine. Ah, sim, eu consegui.

O velho riu.

— Eu não podia desobedecer às ordens dele abertamente, mas tampouco suportava a idéia de queimar a história de Deltora. Então, incendiei o depósito e deixei um bilhete dizendo que tinha dado fim à minha vida. Em seguida, fugi do palácio levando os Anais, me escondi e esperei por tempos mais felizes.

Os olhos dele brilhavam.

— E nós sobrevivemos, como pode ver, durante muitos anos com a ajuda de Ranesh, meu aprendiz, que a trouxe até aqui. Não é maravilhoso? Não acha que o jovem rei vai ficar exultante?

Jasmine forçou-se a sorrir e assentiu. Ela não queria desapontar o amável e entusiasmado homem. Ela ajudaria Ranesh e ele a levar os velhos livros para o palácio.

Mas ela tinha certeza absoluta de que ninguém daria importância a eles. Principalmente Lief.

 

Jasmine afirmara com freqüência que jamais entenderia os hábitos do palácio. Ela ficou ainda mais certa disso quando viu como Josef foi recebido.

Ao ver o que havia no baú de bambu, Sharn gritou assombrada e feliz. E ela não foi a única. Em instantes, o grande saguão de entrada foi tomado pelo som de vozes de pessoas alegres.

Jasmine ficou em silêncio, balançando a cabeça aturdida, esperando uma oportunidade para escapar.

— Obrigado por nos ajudar — uma voz disse em seu ouvido. O homem que agora sabia chamar-se Ranesh encontrava-se ao lado dela.

— Não foi nada — Jasmine respondeu, dando de ombros.

— Você não entendeu a importância dos Anais, não é mesmo? — Ranesh insistiu. — Eu vi a surpresa em seu rosto quando Josef abriu o baú.

— É verdade que livros velhos não são o que eu chamaria de tesouro

— Jasmine explicou brevemente.

— Quando conheci Josef, anos atrás, eu teria concordado com você — o rapaz tornou rindo. — Na época, eu era apenas um órfão maltrapilho que vivia de roubos nas ruas de Del. Pensei que Josef era um velho tolo por ter abandonado a vida do palácio por causa de alguns livros velhos. Agora eu penso diferente.

Os seus atentos olhos castanhos suavizaram-se ao olhar para o velho homem que se curvava diante dos admiradores aglomerados ao seu redor.

— É bom ver Josef recebendo as honras que merece — ele murmurou. — Eu devo muito a ele. Ele me ensinou a ler e a escrever, deu-me um lar e me ensinou a viver sem roubar... bem, quase!

Os seus dentes brancos mostraram-se em mais um sorriso.

— Depois que a olaria foi atacada pelos Guardas Cinzentos, e as pessoas bondosas que nos alimentavam foram levadas, passamos muita fome. Então, convenci-me de que o que Josef não sabia não poderia magoá-lo e, ocasionalmente, admito, voltei aos meus velhos hábitos para conseguir comida para nós dois.

— Você teve sorte de sobreviver à batida — Jasmine disse. O sorriso de Ranesh desapareceu.

— Os Guardas Cinzentos não encontraram o porão e tampouco o fogo o atingiu. Mas ficou muito quente lá. Por um momento, pensei que Josef e eu seríamos assados como patos no forno, e Os Anais de Deltora conosco.

— Teria mesmo feito diferença? — Jasmine suspirou. — Quanto aos livros, quero dizer — ela acrescentou depressa, ao notar a expressão de surpresa do rapaz.

— Acho que sim — ele respondeu. — Eles não são apenas livros de história, mas um relato diário dos acontecimentos do reino por vários séculos. Cada volume está repleto de contos, esboços, mapas...

— Mapas? — Jasmine indagou subitamente atenta.

— Claro — Ranesh confirmou, olhando-a com curiosidade. — Você está interessada em mapas?

— Se eles mostrarem como chegar a lugares a que quero ir... — Jasmine respondeu com cautela — ... e se eu puder entendê-los.

— Então você pode dar uma olhada nos meus preferidos, no volume 5. São apenas esboços simples, mas eu apostaria a minha vida neles. Eles foram feitos por Doran, o amigo dos dragões.

Ele olhou para Jasmine para ver se o nome lhe dizia alguma coisa e, ao perceber que nada significava, continuou:

— Doran foi um famoso viajante que explorou Deltora desde as costas das Terras das Sombras. Ele escrevia nos Anais de próprio punho. Ele disse que não podia confiar nos bibliotecários, pois eles introduziam erros ao dar um cunho educado demais às palavras e caprichar demais no traçado dos mapas. Doran era um tipo especial e um homem de muitos talentos que...

Jasmine não estava mais escutando. Ela começou a pensar depressa, calculando a melhor forma de ficar algum tempo sozinha com os Anais. Os mapas de Doran pareciam exatamente o que precisava, se quisesse encontrar o caminho mais rápido e secreto para as Terras das Sombras.

— Jasmine? — Era a voz de Sharn. Jasmine olhou para ela.

— Jasmine, você faria a gentileza de levar os Anais à biblioteca e ficar com eles por algum tempo? — Sharn pediu com delicadeza. — Eu gostaria que nossos amigos comessem alguma coisa, mas Josef não quer descansar enquanto os livros não estiverem em segurança sob os cuidados de alguém em quem ele confia.

Um tanto surpresa por seu desejo ter sido satisfeito com tanta rapidez, Jasmine concordou de boa vontade. Momentos depois, ela corria degraus acima enquanto um guarda do palácio a seguia carregando o baú com os livros.

Sharn levou Josef e Ranesh à cozinha onde uma refeição havia sido preparada para ambos. Ela voltou aos seus afazeres com o coração muito mais leve do que quando os começara pela manhã. Lief ficaria muito feliz por saber da volta inesperada dos Anais!

Também era maravilhoso ver Jasmine contente. Pelo menos naquele momento, a garota parecia livre do sofrimento que pensar no destino dos prisioneiros das Terras das Sombras lhe causava.

“E isso significa”, Sharn pensou com gratidão, “que eu também posso ficar livre, pelo menos por alguns momentos, do receio de que ela faça alguma tolice.”

Assim que o guarda do palácio pousou o baú no chão e deixou a biblioteca, Jasmine procurou rapidamente entres os livros até encontrar o volume de número cinco.

Assim que o apanhou, ele se abriu numa página sem linhas e coberta de uma escrita desordenada. Jasmine deduziu que ele tinha sido aberto ali várias vezes antes. A página estava assinada por Doran.

 

Minha recente viagem às Colinas Os-Mine foi desastrosa. Fui até lá na esperança de encontrar a cova de um dragão, depois que li o conto (a lenda) da Garota dos Cabelos Dourados, que faz parte dos Cantos de pássaros de Tenna no volume 1 dos Anais. A minha (tola) busca resultou apenas em um nariz machucado, uma dor de cabeça e uma febre causada por uma noite dormida com as roupas encharcadas.

Não me recordo do que causou essas calamidades. Não posso ter caído presa de um dragão, pois ainda estou vivo. Não deparei com um granous, pois ainda tenho todos os dedos das mãos e dos pés. Certamente, apenas escorreguei e caí em algum riacho imundo e rachei o meu crânio idiota.

Os versos abaixo estavam dançando em minha cabeça quando despertei de meu atordoamento. Eles podem oferecer um indício ou ser meramente (são claramente) o produto de uma mente abalada. Preciso descobrir.

 

CANÇÃO DOS MORTOS

“Acima de nossa terra (nossas cabeças), reina a desordem

As lutas ecoam através dos tempos

E assim a discórdia nunca cessará

Mas aqui embaixo vivemos (repousamos) em paz

Onde as eternas marés (marés dos tempos) inundam as lembranças

Nossa prisão sem sol nos liberta.

As luzes cintilantes como pedras preciosas

iluminam nossas paredes rochosas (terrenas)

E dragões vigiam nossos corredores cintilantes.”

 

NOTA: AGORA ESTOU CONVENCIDO DE QUE AS COLINAS OS-MINE SÃO ALTAMENTE PERIGOSAS E NÃO INTERESSAM AO VIAJANTE.

DORAN

 

“Doran, o amigo dos dragões, deve ter sido um homem de muitos talentos”, Jasmine pensou, “mas não era muito chegado ao capricho”. Ele havia rabiscado suas descobertas e um poema, corrigindo-os numa data posterior com uma pena diferente e uma tinta mais escura.

Lágrimas queimavam os olhos de Jasmine ao ler as últimas palavras do poema e pensar na mãe, morta nas Terras das Sombras. No entanto... pareceu-lhe que algo naqueles versos não era totalmente verdadeiro.

Franzindo o cenho, ela leu toda a página novamente. Quanto mais observava as correções apressadas e as linhas acrescentadas por Doran, mais se convencia de que elas tinham a intenção de ocultar algo. A curiosidade dançava-lhe na mente como um inseto importuno.

Rapidamente, ela verificou os livros que havia colocado sobre a mesa da biblioteca e procurou o volume 1.

Uma hora depois, Josef entrou mancando na biblioteca apoiado no braço de Ranesh. Ele não conteve uma exclamação de prazer ao rever o seu antigo local de trabalho.

Josef ficou encantado em ver Jasmine sentada a uma mesa em que se encontravam espalhados vários volumes dos Anais. Um volume estava aberto diante dela e era evidente que ela copiara trechos dele.

— Posso ajudá-la, querida? — ele ofereceu, aproximando-se depressa.

— Obrigada, mas não é necessário — ela agradeceu, fechando o livro apressadamente e enfiando no bolso o papel em que estivera escrevendo.

Jasmine empurrou a cadeira para trás e se levantou.

— Preciso deixar vocês — ela se desculpou. — Tenho umas coisas a fazer.

— Mas claro! — Josef exclamou, dando-lhe tapinhas no braço. — Vá em frente. Ranesh e eu também temos muito a fazer. Fomos convidados a ficar no palácio e cuidar dos Anais e dos outros livros. Isso não é maravilhoso?

— Claro que é — Jasmine respondeu calorosa. Ela estava muito feliz de ver a dedicação do velho homem sendo recompensada. Além do mais, tinha uma grande dívida para com ele. Mal conseguia conter o entusiasmo ao pensar no papel que guardara no bolso do casaco.

Ela se dirigiu apressada para a porta e, então, se voltou. Tinha quase certeza de que o que havia planejado era o melhor a fazer, mas não custava se certificar.

— Josef — ela começou, com toda a naturalidade de que era capaz -, se os escritores dos Anais tivessem mudado de idéia sobre o que escreveram, eles teriam permissão de arrancar a página?

— Ah, claro que não! — tornou Josef, chocado. — Era possível fazer pequenas correções supervisionadas. Mas isso era tudo. Por que pergunta?

— Ah, nenhum motivo em especial — Jasmine respondeu, aparentando indiferença. O seu coração, contudo, batia acelerado no peito quando ela deixou a biblioteca. Acenando animada para os guardas que substituíam aqueles pelos quais passara pela manhã, ela desceu as escadas correndo e se dirigiu ao seu quarto.

Não levaria mais que alguns instantes para reunir os seus pertences. A trepadeira que crescia na parede do lado de fora da janela era resistente e a sustentou facilmente quando saiu por ali e começou a descida.

Ela quase alcançara o solo quando Kree a advertiu com um grasnado. Jasmine olhou para baixo e viu Glock, observando-a.

— O que pensa que está fazendo, senhorita? — ele rosnou.

 

Era noite escura quando Lief e Perdição voltaram a Del com Marilen. Como ladrões, os três deslizaram para o interior do silencioso palácio pela porta dos fundos.

Sharn esperava-os sentada à mesa da cozinha e ergueu-se de um salto, o rosto coberto de sorrisos de alívio.

— Vocês chegaram! Mal pude acreditar na mensagem que dizia que voltariam em breve.

Ela se apressou a instalar Marilen perto do fogão com uma caneca de sopa quente. Em seguida, puxou Lief para o lado.

— Tenho muitas coisas para lhe contar! — ela sussurrou. — Há boas e más notícias.

A voz de Perdição os interrompeu.

— Vou acordar Glock — ele avisou da porta. — Devemos falar com ele imediatamente.

— Por que Glock? — Sharn indagou. — O que ele tem a ver com...

— Vou lhe contar mais tarde, mãe — Lief disse em voz baixa, depois que Perdição deixou o aposento. — Conte-me as novidades. As más, primeiro, enquanto não podemos ser ouvidos.

Ele acenou com a cabeça na direção de Marilen, que se inclinava sobre o fogão para aquecer as mãos enregeladas. A garota parecia frágil, indefesa e muito cansada. Se ela ficasse assustada em sua primeira noite no palácio, poderia pedir para voltar a Tora. Como tal pedido não podia ser recusado, era essencial que ele nunca fosse feito.

— Os guardas que se apresentaram para o turno desta tarde, no 3.° andar, descobriram que os dois homens que deveriam substituir estavam dormindo e não puderam ser acordados — Sharn sussurrou. — Achamos que lhes deram cerveja com um forte sonífero.

Lief sentiu o estremecimento que sempre o dominava quando pensava no 3.° andar.

— O quarto trancado! — ele sussurrou. — A parede foi...

Sharn assentiu como relutância ao ver as linhas de preocupação se aprofundarem no rosto do filho.

— A argamassa se desfez e alguns dos tijolos caíram. Mas o buraco era pequeno, e a porta além dela estava bem fechada. Talvez o intruso tenha sido interrompido antes de conseguir entrar.

— Devemos esperar que seja assim — Lief murmurou. — A parede foi restaurada?

— Claro que sim — a mãe respondeu.

Sharn olhou para a garota desanimada, sentada na cadeira.

— Pobre criança. Em que lugar ela veio parar! E é tão jovem... Lief sorriu com tristeza.

— Ela não é mais jovem do que eu — ele lembrou. — Ou Jasmine.

— Ah, isso me faz lembrar! As boas notícias! Os Anais de Deltora nos foram devolvidos. E foi Jasmine que os descobriu.

Ela havia esperado que o filho ficasse satisfeito. Mas até mesmo ela ficou surpresa com a repentina e inacreditável alegria que lhe iluminou o rosto. Antes que pudesse lhe pedir explicações, porém, Perdição voltou para a cozinha, a expressão furiosa.

— Glock não está na cama dele! — ele murmurou. — Com certeza está roncando debaixo de uma mesa em alguma taverna da cidade.

— Deixe-o roncar! — Lief sorriu. — Não precisamos mais dele.

Logo depois, Lief e Perdição foram animadamente recebidos por Josef. Com os cabelos brancos desgrenhados, as dobras do roupão emprestado balançando ao redor das pernas finas, ele apanhou um dos livros que se encontravam sobre a mesa.

— Eu não tinha idéia de que sua majestade voltaria tão cedo!

— exclamou ele, virando páginas rapidamente. — Há algo que preciso lhe mostrar. Algo muito importante.

— Gostaria de ver tudo em seu devido tempo, Josef— Lief respondeu apressado. — Mas agora há uma pesquisa que gostaria de...

Ele ouviu um leve som atrás dele, virou-se e encontrou o olhar de um homem moreno com uma expressão divertida no rosto.

Aquele, Lief imaginou, devia ser Ranesh, o aprendiz de Josef. Como ele se aproximara silenciosamente! Ao contrário de Josef, ele tivera a preocupação de se vestir antes de deixar o quarto nos fundos da biblioteca. Talvez esse detalhe esclarecesse algo sobre a diferença das duas personalidades.

Ranesh não se apressava em atender a qualquer pessoa. Ele era um homem que ponderava suas decisões com cuidado e cujo verdadeiro caráter seria difícil de conhecer.

“Um homem como Perdição”, Lief pensou, fitando o amigo.

Perdição estava observando o recém-chegado. Lief sabia que ele tentava descobrir se Ranesh era uma pessoa confiável.

— Sei que deveríamos ter arrumado esta mesa antes de ir dormir

— Josef tagarelava, ainda procurando o livro -, mas eu quis limpar as prateleiras antes de organizar os Anais. Receio que a biblioteca tenha sido tristemente negligenciada. Então fiquei muito cansado e...

— Claro! — Lief disse ansioso para ficar sozinho com os preciosos livros. — Sinto que tenhamos acordado vocês com nossa chegada. Por favor, voltem a dormir. Somos perfeitamente capazes de...

— Ah, aqui está! — Josef gritou. Ele colocou o livro aberto sobre a mesa e puxou uma cadeira. — Leia, majestade — ele pediu. — E aqui... — disse, entregando-lhe papel e lápis -... o senhor pode tomar nota com isto, se desejar, assim como Jasmine fez esta tarde.

— Jasmine? — Lief exclamou. — Ela estava lendo?

— Ah, sim — Josef assentiu. — Ela estava anotando trechos dos Anais.

— Do volume 1 — Ranesh acrescentou. — Pude perceber isso antes que ela o fechasse.

“Ah, sim, você perceberia mesmo, Ranesh”, pensou Lief. “Imagino que esses olhos atentos não percam muita coisa.” Ele fitou o rosto inexpressivo de Perdição sabendo que o amigo estava se perguntando, assim como ele, se Jasmine também tinha ouvido falar da Flauta de Pirra.

— Então, majestade — Josef insistiu, acenando para o livro. — O senhor vai ler...?

— Claro que sim, mas somente se você e Ranesh nos deixarem

— Lief retrucou, tentando com todas as forças falar devagar e de modo descontraído. — Não vou conseguir me concentrar se continuar mantendo vocês acordados.

Josef hesitou, o olhar passando do livro aberto para o rosto de Lief.

— Prometo que nos falaremos em breve — Lief acrescentou, forçando-se por sorrir.

Finalmente, Josef assentiu. Puxando a manga de Ranesh, a fim de se certificar de que o assistente o acompanharia, ele fez uma reverência e se afastou, arrastando os pés.

Não demorou para que Lief e Perdição ouvissem os cumprimentos de boa-noite e portas se fechando no fundo da biblioteca.

— Finalmente! — disse Lief em voz baixa. -Agora... vamos procurar a história.

Ele deu a volta à mesa. O livro estava aberto na página que o bibliotecário estava tão ansioso por lhe mostrar.

Lief deu uma olhada impaciente nas páginas amareladas, na escrita miúda, elegante e caprichada. Um nome chamou-lhe a atenção. Ele abafou um grito e olhou com atenção.

— Perdição! — ele sussurrou. — Veja!

 

O CONTO DA FLAUTA DE PIRRA

Há muito, muito tempo, além das Montanhas, havia um pais verdejante chamado Pirra, onde a brisa espalhava magia. Sombras da inveja espreitaram as suas fronteiras, mas o país estava protegido por uma flauta misteriosa que tocava notas de tal beleza que nenhum mal conseguia se instalar até onde seu som alcançava.

A flauta era tocada pela manhã, ao meio-dia e a noite pela flautista-chefe do povoado, a melhor flautista da região.

Numa noite escura de inverno, a flautista faleceu durante o sono. No dia seguinte, três excelentes musicistas ofereceram-se para substituí-la. Elas eram Plume, a Corajosa; Auron, a justa; e Keras, a desconhecida.

As três se revezaram para tocar para o povo, como era costume. A música de Plume era tão estimulante que as pessoas aplaudiam. A música de Auron era tão maravilhosa que o seu público chorava. Keras criava sons tão envolventes que todos que a ouviam ficavam maravilhados.

Quando o povo votou para escolher a sua favorita, as três receberam igual número de votos. As três tocaram, repetidas vezes, mas o resultado era sempre o mesmo.

A noite caiu, e o teste continuou. O povo, agora separado em três grupos de acordo com suas preferências, ficou cansado e zangado. Contudo, cada pessoa queria que a sua candidata se tornasse a nova flautista e recusava-se a votar em outra candidata.

Finalmente, muito depois da meia-noite, quando a votação apresentou resultados iguais pela décima terceira vez, os três grupos voltaram-se furiosamente uns contra os outros usando a magia para insultar e ferir.

Um homem com uma capa e capuz adiantou-se. Ele era alto, mas curvado pela fraqueza, como se o longo dia e noite de música quase tivessem ultrapassado as suas forças. Cada seção da multidão pensou que ele era integrante do próprio grupo, pois ele passara algum tempo com todos, insistindo para que se mantivessem firmes em sua escolha.

— Tenho a solução, meus amigos! — ele gritou. — deixem as concorrentes dividir a honra de ser a Flautista. A flauta é feita de três partes que se encaixam. Deixem Plume, Auron e Keras ficar com uma parte cada uma.

E assim, cansado e zangado, o povo concordou. Eles deram a Plume o bocal da Flauta; a Auron, a haste central; e a Keras, a ponta. Então, como ainda nutriam mágoa uns pelos outros, os grupos seguiram caminhos separados, cada qual acompanhando a sua favorita.

O homem encapuzado esfregou as mãos, muito satisfeito, e desapareceu como uma sombra antes do nascer do sol.

O dia rompeu sem música e as longas horas passaram em silêncio, pois os três grupos rivais estavam separados e nenhuma das partes da Flauta de Pirra podia ser tocada sozinha.

Sombras instalaram-se furtivamente em Pirra. As árvores murcharam e as flores definharam. Pouco a pouco, as sombras engoliram os campos verdejantes e as agradáveis vilas, enquanto, a cada momento, aumentava o medo oculto em seu interior.

Os três grupos perceberam tarde demais o perigo em que se encontravam. As sombras agora se moviam escuras entre eles e os impediam de aproximar-se um do outro a fim de restaurar a flauta mágica. Finalmente, ao constatar que as suas terras estavam perdidas, eles foram forçados a usar a magia que lhes restava para escapar e se salvar.

E foi assim que Pirra se transformou nas Terras das Sombras. Os seus habitantes, ainda culpando uns aos outros por essa perda tão antiga, vivem até hoje em três ilhas separadas, em um mar estranho e secreto.

E a Flauta de Pirra, dividida para sempre, nunca mais foi ouvida.

 

Perdição afastou-se da mesa.

— Então, o senhor das sombras usou em Pirra o mesmo truque que usou em Deltora. Ele dividiu as pessoas, inutilizou a proteção do reino e então a invadiu.

— O povo de Pirra permitiu que ele fizesse isso — Lief murmurou, esfregando os olhos com a mão. — Assim como nós também fizemos em Deltora. Ele usou a raiva deles, a teimosia, a ambição, a fraqueza...

— Majestade!

Um vulto branco aproximava-se devagar, vindo do fundo da biblioteca. Era Josef.

— Perdoe-me, majestade — o velho homem murmurou ao se aproximar. — Mas eu esqueci...

Lief ergueu-se e estendeu a mão.

— Eu é que devo pedir perdão, Josef. — Você estava tentando me contar a história da Flauta de Pirra e eu não lhe dei atenção.

O rosto de Josef iluminou-se com um sorriso ansioso ao segurar a mão que lhe era oferecida.

— Então, o senhor leu o conto? — ele sussurrou. — O senhor acredita que ele tenha um fundo de verdade?

Quando Lief assentiu, ele prosseguiu depressa.

— Tenho certeza de que cada uma das tribos de Pirra guardou e manteve a sua parte da Flauta em segurança. Assim, se esse povo ainda vive, as três partes da Flauta também devem existir.

— Tenho tanta certeza disso quanto você — Lief retrucou. — E eu sei que a Flauta pode nos ajudar, pois tenho ouvido o seu som.

Josef o fitou aturdido.

— O senhor deve entender, majestade — ele arriscou, afinal -, que o poder que o inimigo tem sobre as Terras das Sombras agora é tão forte que nem mesmo a Flauta de Pirra pode libertá-las. Acho que ela só conseguiria enfraquecê-lo.

— Eu compreendo — tornou Lief com firmeza. — Não tenha medo, Josef. Tudo o que esperamos é ter tempo para resgatar os nossos prisioneiros. Mas primeiros precisamos encontrar as ilhas de Pirra.

— Sim! — Josef exclamou. — Foi isso que me esqueci de lhe contar. — Rapidamente, ele apanhou o volume 5 dos Anais e com habilidade folheou as últimas páginas. Não demorou muito para que encontrasse o que estava procurando: uma série de mapas.

Ele apontou para um pequeno desenho sobre outro mapa, muito maior, do mar do oeste.

 

— Não há assinatura, mas tenho quase certeza de que esse desenho foi feito por Doran, nosso maior explorador — Josef afirmou. — Certamente, foi ele quem desenhou o mapa maior abaixo. Reconheço a caligrafia dele.

— Obrigado, Josef. — Lief estava por demais perturbado para dizer qualquer outra coisa. O mapa era tão simples que era praticamente inútil, porém provava pelo menos um fato: as ilhas de Pirra não eram uma lenda. Elas existiam e isso significava que poderiam ser encontradas.

Josef parecia radiante.

— É um prazer poder ser útil — ele disse. Josef curvou-se e voltou mancando para o seu quarto.

Lief apanhou o papel e o lápis.

— Vou copiar o mapa — ele decidiu. — Talvez encontremos outros com os quais possamos compará-lo.

Ele observou a folha de papel à sua frente. Agora, sob uma luz melhor, ele podia ver que a página de cima apresentava marcas deixadas pelas anotações de Jasmine.

Ele passou levemente a ponta do lápis sobre a superfície branca. Como esperava, os sulcos na superfície começaram a revelar as palavras.

 

— O que será que isso significa? — ele murmurou.

— Você pode perguntar a Jasmine — Perdição retrucou, mal olhando a página. — Vou acordá-la e a Barda também. Se eles quiserem me acompanhar nesta viagem...

— Nos acompanhar, você quer dizer — Lief acrescentou depressa.

— Eu vou com você. Você acha mesmo que o povo de Pirra vai entregar o seu maior tesouro a alguém que não seja o rei de Deltora?

— Você tem razão — Perdição concordou, enfim, a expressão grave.

— Deve ser o rei a pedir esse favor. Mas você deve concordar com uma coisa, Lief: Barda e Jasmine e eu seremos os que correrão riscos, se eles existirem.

Lief assentiu com relutância. Perdição tocou levemente o seu ombro e deixou-o.

Sozinho, Lief analisou outra vez as estranhas palavras escritas por Jasmine. Elas o deixavam intranqüilo. “Colinas O-M” deveriam se referir às perigosas Colinas Os-Mine, ao norte de Del. Mas ele não fazia idéia do que as demais poderiam significar.

Ranesh disse que Jasmine estivera lendo o volume 1 dos Anais, exatamente o livro que se encontrava à sua frente naquele momento. Lief começou a folheá-lo e encontrou mais contos de Cantos de Pássaros de Tenna. O conto dos três cavaleiros, Os sete duendes, O ovo do dragão...

Então, Lief encontrou algo diferente. Entre duas páginas, havia uma pequena pena preta.

Kree! Lief imaginou o grande pássaro preto sentado no livro enquanto Jasmine lia. Ele o imaginou voando para trás quando Jasmine fechou o livro apressada, ao notar a aproximação de Josef, e uma pena caindo e sendo presa entre as páginas.

Ele leu a história nas duas páginas abertas com uma crescente sensação de pavor.

 

A GAROTA DE CABELOS DOURADOS

Houve, certa vez, uma donzela chamada Alyss, cuja única beleza eram os longos cabelos dourados, brilhantes como o sol. Embora os seus olhos fossem pequenos, o nariz muito comprido e as orelhas grandes como asas de morcego, as suas tranças douradas eram tão lindas que ela tinha muitos admiradores. Ela encorajava a todos, exceto um jovem chamado Rosnan, que era tão comum quanto ela.

Um dia, Alyss penteava os cabelos para o deleite de todos que a observavam, quando um imenso dragão dourado surgiu do céu e a levou embora.

Todos os bonitos admiradores choraram e a deram como perdida, mas Rosnan apanhou uma espada e seguiu o dragão até a sua caverna em um vale das colinas Os-Mine. Ao vê-lo, o dragão rosnou e cuspiu fogo, mas o jovem manteve-se firme.

— Liberte Alyss, grande dragão! — ele ordenou. — Fique comigo em seu lugar.

O dragão riu. Um som realmente terrível que fez silenciar até os pássaros que se encontravam nas árvores que os rodeavam.

— Não farei isso! — o monstro respondeu. — Você tem cabelos dourados para revestir o meu ninho? Eu acho que não.

Assim, ele desferiu um golpe com a cauda e atingiu Rosnan, cuja espada caiu inútil no chão.

— Corra, Alyss! — Rosnan gritou preparado para morrer. — Salve-se! Mas Alyss apanhou, a espada e com um só golpe cortou os cabelos.

— Tome! — ela gritou para o dragão, estendendo os cabelos sedosos tão longos e espessos que lhe enchiam os braços. — Mas deixe-o viver!

O dragão desviou a atenção de Rosnan e os seus olhos brilharam de prazer ao apanhar os cabelos,.

— Obrigado — ele respondeu. — Vou deixá-lo viver.

E então Alyss viu-se no espelho dos olhos do dragão e ficou de tai modo horrorizada diante da própria feiúra que gritou e correu para o fundo da caverna do dragão, embrenhando-se nas profundezas da terra onde vivem os duendes. Chamando seu nome, Rosnan a seguiu, mas Alyss não parou, pois uma luz dourada brilhava nas paredes da caverna, atormentando-a e lembrando-a do que tinha perdido.

Eles fugiram, Alyss na frente, Rosnan logo atrás, pelo mundo sem sol debaixo da terra, onde fervilham os mares do esquecimento. Eles fugiram, para tão longe que esqueceram por que estavam fugindo, mas nenhum mal lhes aconteceu, pois eram tão feios que os duendes os confundiram com alguém de seu povo.

A luz dourada ficou vermelha e brilhava como o sol quando se põe. Em seguida, vieram os arco-íris cintilantes e o verde das florestas após a chuva. E ainda assim a fuga continuou.

Entretanto, quando a cor esmaeceu e ficou cinzenta como o pó, e a escuridão da mais escura das noites os esperava, Alyss teve medo de seguir adiante e parou. Então Rosnan a alcançou e a tomou nos braços, dizendo que para ele ela era a mais linda moça do mundo, o que não era nada além da verdade, pois ele a amava de todo o coração.

Alyss o olhou e viu uma alma honesta, corajosa e sincera. E dentro dela o seu coração se enterneceu.

Os duendes viram o amor dos dois e ficaram maravilhados diante de sua força. Alguns viajaram para o mundo exterior à procura da mesma felicidade para si, embora nunca a encontrassem. Os amantes, contudo, nunca foram vistos sob o sol novamente, e apenas os pássaros sabem que, nas profundezas do mundo subterrâneo, eles viveram felizes para sempre.

 

Lief sentou-se por alguns instantes mergulhado em pensamentos. Então, ouviu um barulho vindo da porta. Perdição e Barda caminhavam em sua direção, a expressão sombria. Ele sabia o que vinham lhe contar antes mesmo que falassem.

— Jasmine se foi, não é mesmo? — ele indagou.

Eles pareceram surpresos, mas não perguntaram como adivinhara.

— A cama dela não foi desfeita. — Barda esfregou a testa zangado. — Ela escapou ontem, com certeza, enquanto eu dormia. Eu devia ter adivinhado. Agora, ela já deve estar nas Florestas. E sozinha!

Lief sacudiu a cabeça.

— Sozinha, não — ele retrucou. — Se eu não estiver errado, Glock está com ela. E eles não foram às Florestas, mas às Colinas Os-Mine. Eu tenho certeza de que Jasmine acredita ter encontrado um caminho secreto para as Terras das Sombras. Um caminho subterrâneo.

 

Arilen estremeceu e ajeitou melhor o casaco em volta do corpo. Ainda não amanhecera, mas Lief sabia que ela tremia, não de frio, porém da ansiedade que tentava desesperadamente disfarçar.

— Não tenha medo, Marilen — ele disse com suavidade. — Você só precisa esperar. Perdição vai ficar aqui e se preparar para a jornada. Ele vai tomar conta de você. Barda e eu voltaremos em breve.

Ele desejou que ela não lhe perguntasse para onde ia. Mesmo em Tora, ela pode ter ouvido histórias assustadoras sobre as Colinas Os-Mine. Ele ocultou um suspiro de alívio quando ela assentiu em silêncio.

— Eu não planejava partir tão cedo — prosseguiu Lief, com cautela. — Mas não acho que Jasmine voltaria com outra pessoa, mesmo porque fui eu quem a magoou.

— Eu entendo, Lief — Marilen garantiu em voz baixa. — E não pense que sou covarde e que sempre entro em pânico quando você não está perto de mim.

Dividido entre a fúria pela teimosia de Jasmine e um terrível temor por sua segurança, Lief estava impaciente para partir. Contudo, restava ainda uma pergunta a fazer.

— Marilen, muito poucas pessoas sabem que voltamos na noite passada com Perdição. — A maioria pensa que ainda estamos em Tora. É mais seguro que continuem a pensar assim, por enquanto. Você concorda em ficar escondida enquanto eu estiver fora? Minha mãe vai cuidar de suas refeições.

Marilen ergueu os olhos e encontrou a expressão ansiosa de Lief.

— Não se preocupe comigo, Lief — ela respondeu com calma. — Vou me ocupar na biblioteca.

Lief sorriu, ocultando as suas preocupações. Ele não se lembrara da biblioteca, porém não teve coragem de proibi-la a Marilen.

Quando a deixou, disse a si mesmo que tudo ficaria bem. Os guardas não permitiriam que Marilen chegasse ao saguão proibido. E certamente poderia confiar em Josef para manter a presença dela em segredo.

E, quanto a Ranesh? Novas dúvidas o invadiram, mas Lief se obrigou a expulsá-las e desceu apressadamente as escadas.

Ele se aproximava da cozinha onde combinara encontrar Barda, quando ouviu um grito abafado. Apressou o passo e, quando abriu a porta, uma visão atordoante o esperava.

Barda segurava Jinks pelo colarinho e o sacudia. O homenzinho, vestindo uma camisola vermelha, a boca lambuzada de geléia, uivava e tentava chutar as pernas do homenzarrão.

— Você sabia que eles haviam partido, seu verme miserável! — Barda trovejava. — E mesmo assim não disse nada!

— Por acaso, sou o vigia de Glock? — guinchou Jinks. — Ele é velho e feio o suficiente para cuidar de si mesmo. E quanto à criatura de olhos verdes com quem ele saiu...

O tom de sua voz transformou-se num grito agudo quando Barda o ergueu com um gesto violento, quase o estrangulando.

— Barda, ponha-o no chão! — Lief implorou. — Ele vai acordar todo o palácio!

Barda virou-se com um movimento súbito, carregando Jinks com ele. Os olhos de Jinks se arregalaram.

— Eu não sabia que estava em casa, majestade! — o homenzinho disparou. — Mande esse monstro parar, eu lhe imploro! Ele enlouqueceu!

— Posso ficar ainda mais louco que isso, Jinks! — Barda grunhiu. — Não me tente. Você gostaria de explicar “a sua majestade” por que estava roubando comida enquanto o restante de nós apertamos os cintos e comemos somente a nossa justa porção?

— A minha saúde está numa situação delicada — Jinks choramingou. — Preciso de refeições freqüentes e saborosas para manter o corpo e a alma em ordem.

— É mesmo? — Lief indagou com frieza.

— Eu o encontrei roubando geléia — contou Barda, fitando Jinks com desprezo. — Para se livrar dos problemas, ele acusou Glock e Jasmine de traidores.

— Foi um grande erro da parte deles partirem para as Terras das Sombras depois que sua majestade proibiu — Jinks choramingou para Lief. — Ora, dividido como eu estava entre a lealdade para com eles e para com o senhor, não é de surpreender que eu tenha ficado tonto e precisasse de um pouco de doce.

Barda resmungou. Lief aproximou-se de Jinks.

— Glock e Jasmine têm liberdade de ir para onde desejarem — ele afirmou. — Só estamos preocupados com a segurança deles. Você sabe que caminho eles tomaram?

— Eles não se preocuparam em me informar — Jinks tornou irônico, esquecendo que deveria parecer doente.

O rosto dele se encrespou numa zombaria furiosa.

— Glock, aquele animal, não se importa com os outros! A minha aranha-de-briga perdeu para a dele em nossa última competição e está doida por uma revanche. Ela me manteve acordado a noite toda batendo na gaiola. Isso é mesmo tudo de que preciso...

— Jinks! — Lief começou exasperado. Mas a voz de Barda, tensa de ansiedade, o interrompeu.

— Glock levou a aranha com ele? — ele indagou.

— Sim. E se ele ficar fora durante semanas ou se nem voltar? O que eu...

Ele soltou um grito agudo quando Barda começou a empurrá-lo na direção da porta.

— Para onde estamos indo? — ele gritou apavorado. — Não é para as masmorras, certo? Foram só algumas Colheres de geléia! Majestade! Faça-o parar! Tenha piedade!

— Fique quieto! — Barda grunhiu. — Não vou levá-lo para as masmorras, seu idiota. Você vai se vestir e colocar a corrente em sua aranha. Depois, vai nos acompanhar.

A jornada para as Colinas Os-Mine foi a mais estranha de que Lief participou.

Barda segurava o lamuriento Jinks à sua frente, na sela. Jinks segurava a ponta de uma longa e fina corrente. Na outra extremidade, correndo adiante dos cavalos, estava a imensa aranha de manchas marrons chamada Fury.

— Aranhas-de-briga não suportam derrotas — Barda explicou a Lief enquanto cavalgavam. — Uma aranha derrotada não descansa enquanto não encontrar seu oponente e o obrigar a lutar novamente. Se puder, Fury vai seguir o cheiro da aranha de Glock até o fim do mundo. Ela é a nossa melhor chance de rapidamente encontrar Glock... e Jasmine.

Logo ficou claro que Lief estava certo ao julgar que Jasmine se dirigia às Colinas Os-Mine. Sem hesitação, Fury os conduzia para os picos recortados que todos em Del temiam.

Ela caminhava tão depressa que os cavalos mal conseguiam acompanhar-lhe o ritmo. Quando foi obrigada a parar, lutou furiosamente para prosseguir.

Durante a noite, ela batia incessantemente nas laterais da gaiola na qual Jinks a mantinha presa enquanto dormia. Não que ele ou os companheiros conseguissem dormir. Era realmente espantoso como uma aranha apenas, mesmo daquele tamanho, era capaz de fazer tanto barulho.

O segundo dia levou-os às primeiras colinas baixas e rochosas. O caminho ficou ainda mais difícil para os cavalos, e Fury puxava a corrente quando o passo dos que a seguiam desacelerava.

— Acho melhor continuarmos a pé — sugeriu Barda quando o seu cavalo tropeçou pela terceira vez.

— Não! — protestou Jinks. Ele se retorceu na sela, uma expressão de temor no rosto. — Estamos em território dos Granous. Vocês não ouviram as histórias?

— Claro! — tornou Barda sombrio. — Assim como todo mundo. É por isso que não há trilhas nessas matas. A pé, poderemos seguir Fury com mais segurança.

Jinks abriu a boca para protestar, mas as palavras não chegaram a ser proferidas. Repentinamente, um vulto cinzento com dentes pontiagudos e amarelos à mostra surgiu de entre os arbustos diante deles, e os cavalos recuaram, guinchando de dor e medo, lançando os atônitos cavaleiros ao chão.

Quando, lentamente, Lief voltou a si, viu que estava sentado no chão, amarrado a uma árvore à beira de uma clareira. Algo arfava em seu rosto, o hálito quente e malcheiroso.

Lief abriu os olhos e viu as mandíbulas sorridentes, o pêlo cinzento manchado e o nariz negro e úmido. Desalentado, percebeu que aquele devia ser um Granous. E havia mais deles, muitos mais, pelos sussurros e risos que ouvia ao fundo.

A criatura que lhe enchia a visão recuou e raspou o chão. Agora, Lief podia ver os demais, quatro deles. Todos exibiam os mesmos sorrisos malvados. De tempos em tempos, um deles mostrava os dentes de modo desagradável.

Lief lutou para se libertar, porém logo percebeu que seria impossível. Seus tornozelos estavam amarrados a pinos fincados no chão. Seus pulsos estavam presos a dois pesados troncos de madeira, um de cada lado. Sua espada ainda se encontrava na cintura, mas ele não podia alcançá-la.

Ao virar a cabeça, ele viu que Barda e Jinks estavam amarrados exatamente da mesma maneira. Barda ainda gritava furioso. A boca de Jinks se encontrava aberta, os olhos com uma expressão de pavor, e o que restava da corrente de Fury pendia de seu pulso.

“A corrente da aranha certamente quebrou quando Jinks caiu”, pensou Lief. “Ela vai alcançar Jasmine e Glock sem nós. Talvez já tenha conseguido”. Mais uma vez, ele lutou em vão para se soltar das amarras. Eram apenas cipós, mas tão fortes quanto uma boa corda.

— Libertem-nos, Granous, ou vai ser pior para vocês — Barda rugiu.

Os captores riram ruidosamente.

— Vai ser pior para vocês! — imitou um deles. — Ah, estou com tanto medo!

— Esse é o rei de Deltora! — Barda avisou, fazendo um gesto de cabeça na direção de Lief. — Não ousem feri-lo.

— Não ligamos para reis — resmungou o primeiro Granous, que parecia ser o líder. — Os dragões se foram. Essas colinas agora são nossas!

Ele sorriu para Lief e curvou-se zombeteiro.

— Mas, se você é um rei, você pode jogar o jogo das Vinte Perguntas conosco. Nunca comparamos nossa inteligência com a de um rei antes.

Seus companheiros peludos sorriram, ressonaram e mostraram os dentes. Um calafrio percorreu o corpo de Lief.

O primeiro Granous se aproximou esfregando as mãos, cujo dorso era coberto por tufos de pêlos cinzentos. Os dedos eram finos como arame e em suas pontas havia unhas longas, amarelas e sujas.

Lief olhava fixamente para ele com um horror fascinado. Os próprios dedos formigavam ao imaginar aquelas mãos a agarrá-lo, os dentes pontiagudos se aproximando...

— As regras são simples, caro rei — disse o chefe com um sorriso horrível. — Nós fazemos a pergunta, você responde. Se a resposta estiver errada, você paga o preço. Um dedo seu e um de cada um dos seus amigos. Certo?

Jinks começou a choramingar de modo lamentável.

Esforçando-se para manter a calma, Lief se concentrou nos pássaros que chilreavam nas árvores que circundavam a clareira. Sem dúvida, aqueles eram os pássaros tecelões de Os-Mine, de que ouvira falar quando criança. Os seus famosos ninhos em forma de rede enfeitavam a copa de várias árvores.

Ele respirou fundo e sentiu o olhar de Barda sobre ele. Lief sabia que o amigo esperava, apesar de todas as chances em contrário, que as pedras de Deltora pudessem ajudá-los naquele momento. O topázio que aguçava a mente, a ametista que acalmava, o diamante que conferia força...

Ele procurava desesperadamente uma saída.

— E se eu não jogar? — Lief perguntou.

— Se você não responder depois de eu contar até vinte, você perde — respondeu o Granous, dando de ombros — e cada um de vocês perde um dedo. Depois, fazemos outra pergunta e assim por diante. Entendeu?

Lief entendia bem demais.

— E se eu acertar?

— Então, nenhum dedo será cortado — o monstro replicou. — E faremos outra pergunta. Ao final de vinte questões, vocês estarão livres para partir. — O rosto dele se abriu em outro sorriso terrível. — Se vocês puderem — acrescentou -, pois, quando os dedos da mão acabam, passamos para os dos pés.

Os uivos de Jinks tornaram-se ainda mais altos.

 

O chefe dos Granous colocou uma pequena tábua de madeira no colo de Lief. A tábua era muito antiga e maravilhosamente trabalhada. Vários quadrados de madeira, cada qual exibindo uma letra pintada, haviam sido arrumados em fileiras.

— Onde você conseguiu isso? — Lief perguntou espantado.

 

— Tivemos vários visitantes antes de você, rei — o Granous riu. — Agora, a sua primeira pergunta: quais são as únicas coisas úteis em você? A resposta está oculta na tábua. Ela pode estar na vertical, na horizontal, da direita para a esquerda ou vice-versa. Comece!

No mesmo instante, os demais Granous começaram a bater palmas e a cantar.

— Vinte, dezenove, dezoito...

Lief examinou a tábua. As letras pareciam nadar ante seus olhos. Ele piscou, numa tentativa de aclarar a mente, à procura desesperada de um ponto de partida.

As palavras pareciam saltar em sua direção. GÁS, DEUS, MULA, BEM. Mas elas não conduziam a lugar algum.

Para cima, para baixo, para os lados ou todos os três...

— ...quatorze, treze, doze... — As vozes dos Granous ficavam cada vez mais fortes.

Lief olhou para Barda desesperado. Barda, que observava a tábua e tentava enxergar as letras a distância, balançou a cabeça. Atrás dele, Jinks, a expressão concentrada e o rosto brilhante de suor, estava olhando algum ponto à frente dele. Então, Lief notou uma das mãos do acrobata que se abria e fechava rapidamente.

Jinks tentava fazer um de seus velhos truques. E, dessa vez, não era para entreter estranhos ou para ganhar uma aposta, mas para salvar a própria vida. Ele tentava libertar-se do que o prendia enquanto os Granous não o observavam. Lief voltou depressa a atenção para a tábua, o coração batendo forte.

O chefe das criaturas fingiu esconder um bocejo, tapando a boca aberta com a mão. Os dentes de aspecto maligno eram afiados como uma navalha... afiados o bastante para cortar carne e esmigalhar ossos.

As únicas coisas úteis em você...

Uma idéia surgiu na mente de Lief. Ansiosamente, ele procurou no quadro.

— Seis, cinco, quatro...

E, de repente, lá estava a resposta, oculta entre o grupo de letras, enroscada como uma serpente.

 

— Os dez dedos das mãos e dos pés! — Lief gritou.

A cantoria parou, transformando-se num coro de grunhidos de desapontamento.

Lief arriscou outra olhadela para Jinks. O homenzinho conseguira libertar a mão e, com cautela, procurava a adaga presa ao cinto.

— Você certamente se acha muito esperto, rei — disse o primeiro Granous mal-humorado. — Veremos. Aqui está a segunda pergunta. Ouça com atenção.

Ele cruzou as mãos sobre a barriga e recitou:

Um rei jantou com a irmã,

Um amigo e a esposa desse amigo.

Todos eram bestas ávidas

Que amavam mais a comida do que a vida.

No final restaram somente três tortas.

E nenhuma faca.

Como eles as dividiram em partes iguais

Sem brigar?

A cantoria dos números recomeçou. Lief tentou esquecer Jinks e se concentrar nos versos.

Três tortas. Nenhuma faca. Partes iguais para quatro pessoas. Parecia impossível! Mas ele sabia que charadas aparentemente insolúveis sempre encerravam uma resposta simples.

A cantoria dos Granous ficou mais intensa.

— ...DOZE, ONZE, DEZ...

— Lief! — Barda sussurrou ansioso. — Talvez um dos quatro tenha sido morto pelos outros. O verso diz que eles gostavam de comida mais do que da vida.

Lief sacudiu a cabeça.

— E diz também que todos receberam partes iguais — ele sussurrou em resposta. — Todos eles. O rei, a irmã, o amigo e...

Um pensamento se formava no fundo de sua mente.

— ...CINCO, QUATRO... Barda praguejou baixinho. -...TRÈS! DOIS...

— A irmã do rei era casada com o amigo dele! — Lief gritou. — Assim as três tortas foram distribuídas igualmente. Havia só três pessoas à mesa o tempo todo!

Dessa vez, a cantoria foi interrompida com uivos de frustração. O chefe dos Granous fechou a carranca quando os demais começaram a gritar para ele, criticando a sua escolha de perguntas.

Lief deixou-se cair sentado para trás, fingindo alívio e espiou Jinks entre as pálpebras semicerradas.

O acrobata havia sumido! Os cipós com os quais ele tinha sido amarrado encontravam-se soltos no chão. Ele, certamente, estava rastejando entre os arbustos atrás de Lief e Barda, a adaga pronta para cortar-lhes as cordas.

“Depressa, Jinks!”, Lief pensou. Os Granous ainda discutiam, sem prestar atenção aos prisioneiros. Jinks nunca teria melhor oportunidade do que aquela.

Barda respirou fundo e emitiu um som agudo. O seu olhar estava fixo numa colina rochosa que mal podia ser vista acima das árvores do outro lado da clareira. Lief acompanhou-lhe o olhar.

Um pequeno vulto subia a colina com esforço. Jinks!

Longe de ficar para salvar os companheiros, o acrobata fugia o mais depressa que podia.

De repente, um dos Granous berrou e apontou.

— Prisioneiro escapou! — ele uivou. No mesmo instante, todo o grupo pulou para dentro dos arbustos, seguindo o cheiro do acrobata.

— Espero que o apanhem, aquele vermezinho maldito! — Barda balbuciou, lutando com todas as forças para se livrar das cordas que o amarravam. — Como ele pôde nos deixar aqui?

Um pássaro tecelão desceu voando da árvore sobre Barda e pousou no tronco ao qual sua mão direita estava presa. Ele inclinou a cabeça para o lado e olhou-o com os olhinhos negros brilhantes.

O pássaro fez um movimento com a cabeça, parecendo satisfeito, então pulou no pulso de Barda e começou a bicar o cipó.

— Lief! — Barda sussurrou atônito. — Olhe!

Os nós estavam se soltando! O bico comprido e hábil do pássaro fazia tudo o que Barda, com toda a sua força, não conseguira.

Em instantes, a mão direita do homem estava livre. O pássaro começou a bicar os nós que prendiam Barda à árvore enquanto este cortava as demais cordas com a espada.

Ele se ergueu com o corpo dolorido e cambaleou até onde Lief se encontrava a fim de libertá-lo. Em seguida, com o tecelão esvoaçando sobre eles, ambos deixaram a clareira aos tropeções e se embrenharam entre os arbustos.

O pássaro continuou a voar depressa, claramente esperando que os homens o seguissem. Mesmo quando o caminho se transformou numa subida íngreme, ele não diminuiu o ritmo e assobiava impaciente sempre que os companheiros paravam para respirar melhor.

Finalmente, eles chegaram ao topo da colina e desabaram no chão ofegantes. O ar estava tomado pelo canto dos pássaros e, quando Lief ergueu a cabeça, deu-se conta do motivo.

Mais abaixo, não muito longe, havia um espesso grupo de copas de árvores cercadas pelos picos de outras colinas cinzentas. Milhares de pássaros teciam ativamente seus ninhos ou alimentavam-se das frutas silvestres amarelas que cobriam as árvores.

O guia de Lief e Barda disparou ao redor de suas cabeças, chamando-os com insistência.

“É tolice pensar que o pássaro está nos guiando até Jasmine”, Lief disse a si mesmo quando o acompanharam para o outro lado da colina. “Jasmine está à procura de um vale, não de uma floresta no alto de uma montanha.”

Mas a esperança ainda estava viva quando ele seguiu Barda por entre as árvores, os pés mergulhando fundo no espesso tapete formado pelas folhas em decomposição que cobriam o solo.

Então ele viu, imediatamente à frente, dúzias de pássaros esvoaçando ao redor de um pequeno arbusto que balançava com violência de um lado a outro sem razão aparente. O tecelão voou rapidamente para o local.

E ali, a corrente presa aos galhos, estava Fury.

A aranha furiosa se retorcia e puxava, enquanto tentava picar quem se aproximasse. A corrente que a prendia enredara-se no arbusto e prendia-lhe os movimentos.

Lief disfarçou o seu desapontamento. Parecia que o tecelão acreditava que uma boa ação merecia outra. Ele os havia libertado e agora queria que eles livrassem a sua floresta do visitante indesejado.

Em pouco tempo, Barda conseguiu soltar a corrente. No instante em que Fury sentiu-a afrouxar, fez um movimento violento para a frente e quase o derrubou. Lief sentiu a esperança renascer.

— Ela ainda está seguindo o cheiro! — berrou Lief, para ser ouvido apesar dos gritos animados dos pássaros. — A aranha de Glock deve ter passado por aqui.

Com palavras de agradecimento para o feliz tecelão, eles mergulharam na floresta atrás de Fury.

À medida que se embrenhavam entre as árvores, a floresta ficava mais escura e silenciosa. As únicas criaturas vivas que encontravam eram mariposas gordas e douradas que esvoaçavam às cegas na luz difusa, como raios de sol perdidos.

Durante um longo tempo, Fury correu sem vacilar e, então, parou bruscamente. Ergueu-se nas patas traseiras, as pinças batendo uma contra a outra, as patas dianteiras paradas no ar.

— O que ela está fazendo? — sussurrou Lief.

Ele e Barda avançaram cautelosamente. Muitas das imensas mariposas amarelas esvoaçavam junto do chão imediatamente à frente de Fury.

— Ela deve estar com fome — Barda arriscou.

Fury pousou as patas dianteiras e começou a rastejar na direção dos insetos. Ela quase as alcançara quando Lief notou algo estranho.

Havia mais mariposas do que antes e, no entanto, nenhuma das recém-chegadas pousara para reunir-se às demais.

Então, ele se deu conta do que estava acontecendo. As mariposas flutuavam ao redor de um buraco no chão. Mais mariposas saíam dele a cada instante.

— Elas devem estar pondo ovos ali — Barda murmurou. Logo em seguida, ele gritou aborrecido quando Fury repentinamente deu um salto para a frente e entrou no buraco, desaparecendo em suas profundezas.

As mariposas se espalharam, saindo do caminho. Barda puxou a corrente da aranha em vão, praguejando e ordenando que voltasse. Mas o coração de Lief saltava acelerado, quando ele se jogou no chão, afastou as pilhas de folhas que se encontravam ao redor do buraco e espiou para dentro.

Quando ergueu a cabeça, os seus olhos brilhavam.

— Barda! — ele exclamou. — Barda, você não vai acreditar nisso! E, sem mais palavras, ele atirou as pernas no buraco e seguiu

Fury.

 

Barda se inclinou sobre o buraco, resmungando furioso. Mas Lief, que desaparecia rapidamente na escuridão, mal teve tempo de gritar para que o seguisse. Estava claro que Fury não tinha a intenção de voltar para a superfície, e a corrente presa no pulso de Barda era puxada com violência.

Havia somente uma coisa a fazer. Barda entrou no buraco, praguejando. O que o garoto estava fazendo? O que ele vira naquela cova malcheirosa?

Terra e folhas em estado de decomposição cobriam o rosto de Barda enquanto ele se embrenhava no buraco, segurando-se às raízes das árvores que formavam uma rede nas paredes da cavidade. As suas mãos doíam e, ao olhar para cima, pôde ver somente uma leve réstia de luz.

— Cuidado! — Barda ouviu a voz abafada de Lief.

— Até parece que você tem condições de me dar conselhos — Barda replicou.

Logo em seguida, um dos pés de Barda atingiu o espaço vazio e ele esperneou à procura de apoio. Algo lhe agarrou os tornozelos, e ele gritou.

— Eu peguei você! — Lief avisou. — Espere!

Com alívio, Barda sentiu os pés sendo guiados para uma superfície firme. Lentamente, ele se abaixou e saiu do túnel.

A primeira coisa que viu foi o rosto de Lief tomado pelo entusiasmo e sujo de terra. Em seguida, olhou para baixo e o que viu o espantou.

Diante dele, abria-se um amplo espaço cheio de milhares de enormes troncos cinzentos que se estendiam do chão ao teto. Um riacho gorgolejante cercado de samambaias claras abria caminho entre eles e desaparecia na escuridão.

Quando se deu conta do que via, o seu espanto foi ainda maior.

— Ora, são árvores gigantes! — ele murmurou. — Estamos numa floresta. Uma floresta debaixo de outra floresta. Como pode ser?

— Acho que isso é culpa dos pássaros tecelões — Lief conjeturou, tocando a rede entrelaçada de galhos e trepadeiras acima de sua cabeça.

— Antes eles viviam nas copas destas árvores, tecendo seus ninhos e se alimentando de frutas silvestres. Com o passar do tempo, a cobertura ficou tão espessa e emaranhada que ficou quase compacta. As frutas que os pássaros deixavam cair não chegavam até o chão e ficavam presas nos velhos ninhos e nos galhos.

— E então as sementes brotaram regadas pela chuva, e novas árvores cresceram em cima das antigas — Barda concluiu. — E depois de centenas de anos...

— Depois de centenas de anos... — Lief terminou por ele — ... não restou mais sinal da velha floresta. Nenhum sinal do vale em que crescera. Somente as árvores, as mariposas e os pássaros lá fora conheciam o segredo.

Barda sentiu que Fury puxava novamente a corrente. Ela desceu por uma árvore até onde pôde e agora estava agitada e frustrada por não poder prosseguir.

— Ainda não sabemos se Jasmine e Glock estão aqui ou se é somente a aranha de Glock.

— O que pássaros e árvores sabem Jasmine descobre bem depressa — tornou Lief sorrindo. — Ela e Glock encontraram este lugar, não tenho dúvidas. Venha!

Ele apontou e ali, amarrada ao tronco de uma árvore e pendendo quase até o chão, estava uma corda.

Não demorou muito para que Lief e Barda chegassem ao chão com a ajuda da corda, mas até mesmo essa pequena demora fez com que se distraíssem, e Fury, assim que sentiu que estava livre, correu ao longo do córrego.

Dessa vez, Lief e Barda mal precisaram que ela lhes mostrasse o caminho. O chão estava quase que totalmente coberto por frágeis cogumelos brancos e samambaias quebradiças. Os rastros de duas pessoas eram bem visíveis: um par de pegadas grandes e pesadas e outro de pegadas menores e mais leves.

O ar estava dominado pelo cheiro de terra e húmus. Não se ouvia nenhum som exceto o gorgolejar do córrego. As árvores se erguiam silenciosas e assustadoras ao redor deles, os troncos cobertos de línguas de cogumelos amarelos dos quais pendiam amontoados de gordas lagartas que se contorciam. Era evidente que as mariposas da floresta acima usavam o vale oculto como um lugar seguro para a reprodução.

Vez ou outra, Lief ou Barda chamava o nome de Jasmine, mas nenhum grito de resposta chegou aos ouvidos deles. Lentamente, uma sensação de pavor começou a se formar dentro de Lief. Teriam chegado tarde demais? Palavras da A garota dos cabelos dourados ecoavam-lhe na mente.

Ela correu para o fundo da caverna do dragão e para as profundezas da terra, para as cavernas onde viviam os duendes...

— Os dragões foram extintos em Deltora há centenas de anos — Barda afirmou, como que lendo a mente de Lief. — Se existe uma toca de dragão neste vale, está vazia. De outro modo, a floresta nunca teria sido coberta. O dragão teria mantido a cobertura aberta ao sair voando todos os dias para caçar.

— E os duendes? — Lief balbuciou. — Eles também foram extintos?

— Se é que existiram — Barda retrucou. — Minha mãe costumava contar a história de sete duendes que viviam nos campos ao norte de Del. Mas ela sempre começava com “Era uma vez”, como nos contos de fadas.

— Ouvi Glock dizer que um de seus ancestrais lutou e matou um duende — Lief contou.

— Glock diz muitas coisas — Barda replicou.

Eles contornaram uma curva do riacho e viram adiante um penhasco que se erguia entre as árvores, como uma parede. O riacho terminava num pequeno lago profundo aos seus pés.

— Chegamos à borda da floresta — Barda sussurrou. — Esta deve ser a base de uma das colinas que vimos quando olhamos para baixo pelo outro lado.

Lief assentiu, a pele formigando quando viu que as pegadas se afastavam do córrego e conduziam para dentro de uma caverna ampla e escura no penhasco.

Fury disparou adiante deles enquanto eles se esgueiraram para a entrada da caverna rodeada por muitas samambaias, o que a fazia parecer uma enorme boca aberta e sem dentes. Em seu interior, estava escuro como a noite e silencioso como um túmulo.

— Lief — Barda sussurrou. — O rubi...

Com relutância, Lief puxou a capa para o lado e descobriu o cinturão com as pedras preciosas. O vermelho-vivo do rubi parecia só um pouco mais fraco.

— Se houver perigo, não é grande — Barda disse visivelmente relaxado.

— Mesmo assim, acho que devemos tomar cuidado — Lief retrucou, molhando os lábios. — Talvez o cinturão não seja tão poderoso aqui quanto na superfície. E olhe para Fury.

Barda olhou para baixo. A imensa aranha estava parada, imóvel e desconfiada a seus pés.

Eles acenderam uma tocha. Então, lado a lado, segurando as espadas, eles entraram na caverna.

A tocha iluminava o chão à frente deles, mas uma espessa escuridão cercava a chama quente e bruxuleante. Era como se eles flutuassem num mar negro dentro de uma pequena bolha de luz.

Lief teve a impressão de que se movimentava num sonho. O ar era pesado e morno. E, muito lentamente, um cheiro almiscarado se fazia sentir com maior intensidade.

— Há algo vivo aqui dentro — ele sussurrou.

Quando ele falou, a luz iluminou algo acima deles. Algo muito grande.

Escamas de um brilho dourado em meio às sombras dançantes... dentes e garras brancos... cauda espessa enrolada e coberta de espinhos afiados como agulhas... asas fechadas que pareciam de couro, cobertas de teias de aranha, arrastando-se na poeira.

Um dragão!

Um pavor profundo e antigo tomou conta de Lief, fazendo as suas pernas tremerem. Ele ouviu Barda respirar fundo.

O dragão ficou imóvel. Apenas a tocha que bruxuleava sobre o seu corpo enorme se movia.

— Os olhos dele estão fechados. Ele está dormindo... ou está morto — Barda sussurrou.

— Não acho que esteja morto — Lief retrucou, lutando para se acalmar. — Mas também não está dormindo ou teria percebido a nossa presença e acordado. Acho que ele está sob algum tipo de feitiço.

Fury começou a se esgueirar para a esquerda. Quando Lief e Barda a seguiram, a luz da tocha começou a tremeluzir na parede rochosa da caverna. Logo, eles puderam ver que havia um espaço estreito entre a parede e a cabeça do dragão.

Então, aquele era o caminho que deveriam seguir. Fury já rastejava obstinadamente pela passagem. Barda respirou fundo e a seguiu, olhando sempre para a frente.

Lief começou a acompanhá-lo. Ele sabia que também deveria manter os olhos voltados para a frente, mas não conseguiu. Ele se virou e olhou fascinado para a cabeça terrível tão próxima que bastaria estender a mão para tocá-la. E, enquanto os seus olhos se encontravam pregados no monstro, um grande olho dourado se abriu.

Lief sentiu-se paralisar e a sua mente ficou vazia. Não havia medo, esperança ou pensamentos. Havia somente o olho do dragão e a própria face refletida na superfície espelhada — pálida, fraca e pequena, flutuando em um mar frio e plano, dourado como o topázio do Cinturão de Deltora, repleto de lembranças antigas.

Por um longo momento, o olho pareceu prendê-lo. Então, lentamente, ele se fechou outra vez.

Libertado e quase desfalecendo de susto, Lief prosseguiu com dificuldade até onde Barda esperava por ele.

— Por que parou? — Barda indagou em voz baixa. — Você está louco, Lief, a ponto de arriscar...

Lief passou por Barda como se não o visse. A escuridão o esperava adiante, mas era melhor do que o que havia atrás dele. Um ar frio lhe soprava no rosto, enregelando o suor que cobria a sua testa. Tudo em que conseguia pensar era numa forma de sair dali e de se esconder.

Ele ouviu Barda correndo atrás dele, sentiu o amigo tentando puxá-lo para trás. Houve outra lufada de ar frio. A tocha estremeceu e se apagou.

Lief tropeçou, endireitou o corpo e... caiu no vazio. Houve um momento de incredulidade, seguido pela percepção de que estava caindo e que arrastava Barda com ele, mergulhando cada vez mais fundo na escuridão.

 

Água fria e funda puxando-o para baixo. Suba! Suba! Respira! Com os pulmões quase explodindo, Lief lutou para voltar à superfície. Ali, ele se debateu, enchendo o pulmão de ar e olhando cegamente ao redor através de uma cortina de água turva.

— Barda! — ele gritou desesperado.

Barda... Barda... Barda... Ecos lhe respondiam, milhares de ecos chamando e sussurrando de todos os lados.

Ele sentiu um espadanar perto dele. Tonto e aliviado, Lief ouviu Barda ofegar e tossir.

— Barda! Estou aqui! — ele chamou, lutando para se aproximar do som.

Aqui... aqui... aqui...

Quando a vista começou a se aclarar, Lief percebeu o contorno da cabeça de Barda, uma forma escura contra a água que se movia, como um claro líquido dourado. Ele viu o suave brilho amarelado ao seu redor, reverberando nas paredes de uma ampla caverna que parecia não ter começo nem fim.

Dourado, como o olho do dragão e as suas escamas. Dourado, como o grande topázio.

Aquela era a caverna pela qual Alyss fugira séculos antes. Aquele era o lugar que Jasmine procurava. O começo do caminho subterrâneo para as Terras das Sombras.

Mas o velho conto não mencionou um detalhe importante. A caverna estava inundada e... Lief foi tomado pelo desânimo.

Jasmine não sabia nadar.

Através da confusão provocada pelo sofrimento, ele viu o braço de Barda se estender e apanhar algo que flutuava na água ao lado dele. Por um momento assustador, Lief imaginou ser um corpo, mas logo percebeu não passar de um tronco de madeira.

Ele olhou para cima. O teto cintilante da caverna curvava-se bem acima dele como um céu dourado. O buraco pelo qual ele e Barda haviam caído era somente uma mancha escura pequena e embaçada que ele mal conseguia divisar. Não havia como ele e Barda pudessem alcançá-la.

Barda aproximava-se dele nadando, apoiando parte do corpo no tronco.

— Isso vai nos manter flutuando pelo menos por algum tempo

— disse ele ofegante. — Até que encontremos outra saída ou...

“Ou o quê?”, Lief pensou, quando a voz do companheiro hesitou. “Até que finalmente a madeira fique encharcada e afunde? Até que fiquemos exaustos demais para nos segurarmos nela?”

— Talvez seja mais raso ali adiante — ele sugeriu com voz rouca.

— Vamos tentar.

Enquanto falava, Lief percebeu um movimento com o canto do olho. Algo pequeno e escuro serpeava na direção deles na água agitada. Ele mal pôde acreditar em seus olhos quando reconheceu o emaranhado de pernas que se agitavam violentamente e os olhos vermelhos e zangados.

— Fury! — ele exclamou, quando a aranha alcançou o tronco. Fury saiu da água com dificuldade, ainda carregando um pequeno pedaço de corrente. Ela atingiu o topo da madeira e ali ficou agachada, cintilante, o retrato fiel da ira.

Barda sacudiu a cabeça sem acreditar.

— Pensei que pelo menos tivesse me livrado de você, aranha — ele resmungou.

Ao mesmo tempo, o aparecimento de Fury os tinha animado. Apoiados no tronco, eles começaram a avançar lentamente.

Primeiro, eles conversaram maravilhados diante da misteriosa beleza do lugar e até brincaram sobre o constante mau humor de Fury. Contudo, à medida que as horas passavam, as palavras foram diminuindo até que ficaram em total silêncio.

Era o silêncio provocado pelo frio, pela exaustão e pelo gradativo desaparecimento da esperança. As pernas de Lief estavam dormentes. Ele não tinha mais forças para nadar e pousou a cabeça no tronco, sentindo uma estranha maciez esponjosa sob o rosto.

— Lief, agüente firme! Você não pode morrer...

A voz de Barda parecia vir de muito longe. Lief não conseguiu responder. A sua mente vagava, flutuava... assim como ele flutuava naquela água cintilante. Como o seu reflexo havia flutuado na superfície do olho do dragão...

Aos poucos, Lief saiu das profundezas de um estado de semiconsciência, sem ter idéia de quanto tempo se passara. Ele abriu os olhos e piscou.

A luz dourada agora estava escarlate. Até o ar parecia tingido de vermelho. Ele podia ouvir o espadanar de água e teve a sensação de estar se movendo rapidamente.

Então, ele se deu conta de que se encontrava no fundo de um barco. Barda estava deitado ao lado dele. E, sentadas no centro do bote, mergulhando remos na água num ritmo acelerado, estavam duas criaturas de aspecto estranho.

Seus corpos eram pequenos, mas humanos. Provavelmente, quando se levantassem, não seriam mais altos do que gnomos, embora fossem bem menos atarracados. Pareciam não ter cabelos, e as cabeças e rostos eram semelhantes aos de cães, com longos focinhos e grandes orelhas pontudas.

A princípio, Lief imaginou que estivessem vestindo trajes vermelhos e que a pele também fosse vermelha. Depois, percebeu que era somente uma ilusão provocada pelo brilho escarlate. Na verdade, a pele das criaturas tinha uma palidez mortal e uma maciez comum às criaturas rastejantes que vivem debaixo da terra.

Lief estremeceu. Esses devem ser os duendes, as feias e maldosas criaturas dos velhos contos, embora não tivessem a aparência que ele imaginara.

Relutante em revelar que tinha acordado, Lief observava por entre pálpebras semicerradas, enquanto os duendes remavam em silêncio, os olhos claros atentos à frente.

Ocorreu-lhe que eles estavam com pressa. Havia urgência em seus movimentos e nos rostos graves. Devem ter levado algum tempo para colocar Lief e Barda no barco. Parecia que agora eles estavam atrasados ou em algum tipo de perigo.

Ele sempre ouvira que duendes eram criaturas malignas e, no entanto, aqueles dois os haviam salvado de morrer afogados, mesmo que a demora viesse a causar-lhes problemas.

Talvez a reputação dos duendes fosse falsa. Talvez os poucos deltoranos que os tinham visto no passado tivessem ficado com medo simplesmente por causa de sua aparência estranha.

Mas, enquanto esses pensamentos lhe invadiam a mente, Lief procurou a espada. Ela lhe fora tomada. Virou a cabeça e constatou que a arma de Barda também não estava na cintura dele. Esforçando-se para enxergar através da luz avermelhada, ele percebeu o cintilar de metal aos pés das criaturas.

Ele e Barda haviam sido desarmados. Seria somente uma precaução dos duendes? Ou isso significava algo mais sinistro?

Um som baixo e irritante, como o de pedra raspando sobre pedra, ecoou na caverna. Os dois duendes pararam, as orelhas estremecendo, o olhar atento.

Um deles murmurou algo para o outro e, então, os dois recomeçaram a remar ainda mais depressa. O bater da água contra o barco ficava mais forte à medida que a velocidade da embarcação aumentava.

O som irritante se fez ouvir novamente, seguido de um forte estrondo a distância e, de repente, para o pavor de todos, o nariz do bote ergueu-se violentamente e tornou a cair na água. Lief sufocou um grito quando a água fria ergueu-se sobre as bordas e se derramou sobre ele. Barda se mexeu e gemeu.

Os duendes lançaram um olhar para eles, mas não pararam de remar um segundo sequer. O barco subiu e caiu assustadoramente mais uma vez. E agora Lief conseguiu ver enormes ondas de água vermelha erguendo-se ao redor deles, claramente visíveis nos lados da embarcação e maiores a cada momento.

Era como se eles tivessem sido apanhados por uma tormenta, apesar de não haver vento. Havia somente o som irritante e ameaçador e o ribombar surdo cuja intensidade aumentava e que Lief agora reconhecia como sendo o som de ondas batendo em terra firme.

Terra firme!

Ele tentou sentar-se, mas caiu para trás outra vez no momento exato em que o barco passou por outra onda e escorregou para o outro lado. Debatendo-se na água fria e espumante, ele se esforçou para levantar-se.

— Não se mexa! — gritou um dos duendes zangado.

Ele e o companheiro já estavam com água quase pelos joelhos, mas ainda remavam com a mesma ferrenha concentração de antes. Enormes ondas vermelhas elevavam-se sobre o bote por todos os lados, mas os duendes só olhavam adiante, os longos narizes se contorcendo, os olhos claros esforçando-se por enxergar.

Então, quase de repente, seguiram-se um som e uma sensação que fizeram Lief gritar de alívio. O fundo do barco raspava em terra firme.

Os duendes largaram os remos, saltaram na água e começaram a arrastar a embarcação para longe das ondas, enquanto chamavam por ajuda.

Machucados, atordoados e trêmulos, Lief e Barda arrastaram-se e ficaram de joelhos. Os duendes puxavam o barco para o solo enlameado, longe da água agitada. Outros botes estavam próximos, amarrados ao que pareceram, a princípio, árvores de formas estranhas, mas que Lief logo percebeu serem imensos cogumelos vermelhos.

Aturdido, o rapaz olhou ao redor tentando assimilar o que via. Colinas formadas por cogumelos vermelhos e marrons, alguns mais perto da água quebrados ou com as raízes arrancadas pela força das ondas. Campos bem arrumados, em que fileiras de algum tipo de plantação surgiam mais ao longe. E, além da lama da praia, uma vila. Ondas haviam quebrado por cima do muro baixo que a cercava, e as ruas estavam inundadas.

Vários duendes acorreram da vila, gritando aliviados e felizes. Era evidente que os salvadores de Lief e Barda, cujos nomes pareciam ser Clef e Azan, haviam sido ansiosamente aguardados.

Contudo, ao verem Lief e Barda, a alegria foi ainda maior, e mãos ávidas ajudaram-nos a sair do barco.

— Levem-nos para um lugar seguro, depressa — recomendou Azan, curvando-se para apanhar as espadas de detrás do banco.

Apertados no centro do grupo, Lief e Barda foram rapidamente levados em direção ao vilarejo. Ao se aproximarem do muro, o som estridente se fez ouvir novamente. Dessa vez, atingindo uma nota alta e irritante que feria os ouvidos.

Para surpresa de Lief, os duendes desaceleraram e os seus rostos tensos relaxaram um pouco. Após um momento, ele percebeu que as ondas não batiam mais contra os muros. A crise, ao que tudo indicava, havia passado. Pelo menos, por enquanto.

Eles entraram na vila e começaram a chapinhar pelas ruas vazias e inundadas cercadas de moradias.

As casas eram todas vermelho-escuras ou marrons. Muitas tinham sido danificadas pela tormenta. Em alguns casos, as portas tinham sido abertas com violência, permitindo que a água invadisse os aposentos.

Tigelas e potes pintados de cores vivas, pequenos móveis, até camas e roupas flutuavam na água.

Clef espiava com expressão zangada de um lado e de outro, enquanto percorriam as ruas.

— Isso é pior do que jamais vi! — ele grunhiu afinal. — Por que Worron não deu início à Oferenda?

— Não houve tempo — o duende ao seu lado respondeu nervosamente. — Tínhamos de recomeçar a cerimônia de preparação para o novo Presente e ela ainda não foi completada.

— O que isso importa? — retrucou Azan. — Aquele último chamado foi o aviso final. Cerimônias são mais importantes do que nossas vidas?

Barda soltou uma exclamação abafada e Lief olhou para ele rapidamente.

Mas Barda não estivera ouvindo. Ele estava olhando acima das cabeças dos demais duendes para um espaço aberto na extremidade da vila, onde uma multidão havia se reunido.

No centro do espaço, claramente visível quando a multidão se adiantou para cumprimentar os recém-chegados, havia uma jaula sustentada por uma parede alta e cercada por um complicado arranjo de pedras vermelhas.

E, presos em seu interior, as mãos amarradas nas costas, estavam Glock e Jasmine.

 

Com um rugido, Barda derrubou os duendes próximos a ele e se virou bruscamente, com a intenção de abrir caminho na direção de Azan e as espadas. Lief saltou a fim de ajudá-lo, mas antes que tivesse dado dois passos, viu-se um clarão brilhante e ele ficou paralisado onde estava.

No mesmo instante, a caverna ficou mergulhada na escuridão. Trêmulo e sem enxergar, braços e pernas recusando-se a obedecer ao seu comando, Lief ficou indefeso enquanto a confusão reinava ao seu redor. O ambiente foi tomado por gritos e gemidos.

Devagar, muito devagar, uma luz suave se acendeu, um leve cintilar rubro, como a promessa do nascer do sol.

Lief começou a perceber formas e movimentos. Barda encontrava-se rigidamente parado ao seu lado, tão imóvel quanto ele. Os duendes que haviam sido derrubados ao chão esforçavam-se para levantar, ajudados pelos companheiros.

— Amarrem as criaturas depressa! — ordenou uma nova voz. — Não posso imobilizá-los e manter a luz ao mesmo tempo.

Desalentado, Lief sentiu os braços serem puxados para trás e os pulsos, amarrados. Os seus tornozelos também foram atados, mas frouxamente, para que pudesse andar. Ele viu que Barda recebia o mesmo tratamento.

— Por que eles não foram amarrados antes, Clef? — indagou a nova voz irritada. — Vocês deveriam ter imaginado que os Cabelos Longos lutariam ao ver o Presente.

— Como eles puderam vê-lo a uma distância tão grande? — Clef resmungou. — Eles têm olhos mágicos?

— Se você tivesse ouvido quando as velhas histórias foram contadas, garoto, saberia que Cabelos Longos possui uma visão excelente — respondeu o outro zangado. — Você colocou a todos nós em perigo com o seu descuido.

— E você, Worron, nos colocou em perigo com o seu atraso! — Clef retorquiu furioso. — A Oferenda deveria ter ocorrido há muito tempo. Azan e eu lutamos por nossas vidas no mar enquanto você ficou aqui sem fazer nada, desafiando a ira do Medo e permitindo que a vila fosse...

— Não tente desviar a atenção de sua falha! — interrompeu o duende de nome Worron. — E se você não me respeita, Clef, pelo menos respeite minha posição e meu título.

Clef manteve-se num silêncio mal-humorado, mas na escuridão Lief viu os lábios dele se retorcerem numa expressão de desprezo.

Worron aguardou um momento e, então, ergueu a voz novamente.

— Agora vou libertar os Cabelos Compridos para que possamos ter mais luz — ele avisou. — Segurem-nos com firmeza.

Lentamente, a caverna se iluminou e Lief sentiu os braços e pernas formigarem à medida que recuperava os movimentos. Alguém o agarrou por trás pelos ombros e o virou. Barda foi colocado ao seu lado.

Parado diante deles, encontrava-se um duende muito enrugado, que vestia uma longa túnica escarlate e um chapéu alto cravejado de pedras vermelhas. Ao que tudo indicava, aquele era Worron.

Worron inclinou-se para a frente a fim de ver melhor os prisioneiros e, então, se retraiu de repente, tremendo levemente e franzindo o nariz. Estava claro que ele tinha achado Lief e Barda extremamente feios e de cheiro desagradável.

— Traga-os para a Baía das Oferendas — ele ordenou. -A cerimônia deve continuar imediatamente. O Medo está ficando impaciente.

Com um farfalhar da túnica, ele se virou e começou a voltar mancando para o espaço aberto.

Empurrados pelas costas, os braços agarrados com força, Lief e Barda caminharam atrás dele com dificuldade.

Parecendo minúscula ao lado da imensa figura de Glock, que se encontrava atrás dela, Jasmine pressionou o rosto contra as barras da jaula. O coração de Lief pareceu dar voltas em seu peito.

Kree estava pousado no ombro de Jasmine, enquanto Filli gemia escondido em sua gola. Os cabelos de Jasmine estavam úmidos e emaranhados. A sua aparência era a mesma de quando Lief a vira pela primeira vez nas Florestas do Silêncio.

Mas naquela época ela era livre. Era doloroso vê-la aprisionada.

Jasmine lançou-lhes um olhar exasperado quando eles alcançaram a jaula. Era evidente que ela mal conseguia acreditar no que via.

— Lief! Barda! O que estão fazendo aqui? — ela disparou. -Como...

— Silêncio! — berrou Worron. Ele abriu a porta da jaula e acenou com impaciência para que Lief e Barda fossem empurrados para dentro.

— O que está fazendo? — gritou Clef zangado quando a ordem foi obedecida. — Certamente, você não pretende usar todos os Cabelos Compridos em uma Oferenda!

— Mas claro que sim — Worron respondeu. Ele olhou para baixo, estalou a língua numa demonstração de aborrecimento e curvou-se para substituir algumas das pedras vermelhas que haviam saído do lugar.

— Mas isso é loucura! — Azan grunhiu, abrindo caminho entre a multidão a fim de ficar ao lado de Clef. — O Medo exige apenas um Presente por ano. Se guardarmos três dessas criaturas para o futuro, o nosso povo não vai ter de tirar a sorte por mais três oferendas.

Muitos duendes assentiram e murmuraram em concordância. Worron balançou a cabeça com desdém.

— Não podemos manter Cabelos Compridos com segurança. Eles são tão malvados quanto feios. Além disso, se o Medo ficar satisfeito, talvez ele não exija outra Oferenda por um bom tempo.

— É mais provável que no futuro ele queira quatro presentes em vez de um! — Clef gritou.

Murmúrios de descontentamento começaram, enquanto Worron continuava a ajeitar as pedras, sem se incomodar em responder.

— Do que eles estão falando? — Lief sussurrou. — O que é o Medo?

— É a morte — Glock grunhiu.

Sem nada dizer, Jasmine se virou e acenou com a cabeça na direção de um painel na parede que se divisava por trás da jaula. Lief sentiu um calafrio quando viu o que estava entalhado ali.

Era a imagem de um terrível monstro do mar, com dez tentáculos retorcidos. A besta agarrava um duende aos gritos e rasgava-o em pedaços.

— O Medo está numa caverna perto daqui, chamada A Luz — Jasmine murmurou. — Todos os anos, ele exige um sacrifício vivo. Se os duendes se atrasam, ele agita a água e cria enormes ondas que inundam a ilha e destroem a vila. Eles não ousam desafiá-lo.

Lief virou-se e horrorizado observou a multidão que murmurava reunida em torno da jaula. Ele viu Worron endireitar o corpo, erguer as mãos e depois pressioná-las contra os lábios. O povo fez silêncio imediatamente.

Movendo as mãos lentamente para a frente, para que as pontas dos dedos se tocassem, Worron iniciou em voz alta uma cantoria curiosa e sem palavras. Não demorou para que os demais duendes o acompanhassem. O som se intensificou e ganhou força, estranhamente poderoso e vibrante.

— O mais velho tira a sorte para ver quem vai ser o Presente — Glock murmurou. — Este ano foi aquela mulher ali.

Ele apontou para uma mulher velha, curvada e enrugada que agarrava o braço de Clef, incentivando-o a participar da cantoria. Clef franziu o cenho, afastou-se dela e se aproximou da jaula. Balançando a cabeça, ela o seguiu.

— Ela se chama Nols. Eles a estavam preparando para a Oferenda quando Glock e eu chegamos aqui — Jasmine acrescentou desanimada.

— Quase afogados, fomos tirados da água por um dos barcos de pesca deles. Se Glock não tivesse arriscado a própria vida para me manter à tona, há muito que eu teria morrido.

— Arriscar minha vida? — ele zombou. — Ora, eu poderia ter segurado vinte iguais a você, fracote! O meu talismã não deixa que eu me afogue.

— É claro! — Jasmine retrucou secamente. — Ele vai proteger você do Medo também?

Glock molhou os lábios e ficou em silêncio.

— Eles ficaram felizes quando nos viram — Jasmine continuou, observando a multidão. — Pensamos que éramos bem-vindos, mas eles só estavam animados porque Nols é muito amada e eles encontraram dois intrusos para tomar o lugar dela.

Ela soltou um gemido.

— Tentamos assustá-los para que nos libertassem dizendo que não estávamos sozinhos. Não tínhamos idéia de que era verdade! Ah, por que vocês nos seguiram?

— O que mais poderíamos fazer? — Lief respondeu bruscamente, a fim de ocultar a dor que sentia no peito. — Você correu direto para o perigo e arrastou Glock com você!

— Glock me obrigou a trazê-lo! — Jasmine se defendeu. — Ele ameaçou impedir a viagem se eu não o trouxesse.

— Pensei que você sabia o que estava fazendo — Glock disparou.

— Esse foi o meu erro. Eu caí na água, a minha aranha-de-briga, que custou cinco moedas de ouro, escapou. E agora estou para ser oferecido em sacrifício para um monstro.

— Por que quis correr esse risco, Jasmine? — Lief suspirou. — A garota dos cabelos dourados falava de duendes nos subterrâneos e deixou claro que eles devem ser temidos.

Jasmine balançou a cabeça com teimosia.

— Um homem chamado Doran, o amigo dos dragões, veio até aqui pelo menos duas vezes e para ele este era um lugar tranqüilo e maravilhoso.

— Como você pode saber disso? — Lief indagou.

— Eu li as histórias nos Anais — Jasmine esclareceu. — Depois da primeira visita, Doran escreveu um poema sobre este povo. Depois da segunda, ele mudou os versos para disfarçar o significado do que tinha escrito.

— Por quê? — Barda perguntou secamente.

— Você não percebe? — Jasmine exclamou. — Doran queria que o lugar ficasse em segredo. Ele achava que nós somos uma ameaça para os duendes, e não o contrário.

— Então Doran era um idiota — Barda resmungou.

— Você não pode dizer isso!

Os companheiros viram a velha mulher, Nols, olhando para eles através das barras da jaula.

— Você não deve falar mal de Doran neste lugar — ela repetiu em voz mais baixa. — Ele foi nosso amigo em tempos passados. Antes de o Medo aparecer.

— Saia daí, vovó — Clef murmurou, puxando-a para trás.

— Eles falaram mal de Doran — Nols reclamou. — Eu não podia deixar isso passar.

— Doran não passa de um personagem de uma lenda — Clef disse com impaciência. — Não importa o que eles dizem dele.

— Doran não foi uma lenda! — Nols exclamou. — Não foi Doran quem nos disse para termos cuidado com os Cabelos Compridos e outras criaturas da superfície? Não foi Doran quem disse que alguns deles eram servos do Senhor das Sombras? Como soubemos disso?

— Doran era bastante real e estava certo em avisar vocês — Jasmine disparou depressa. — Mas nós somos inimigos do Senhor das Sombras, e não seus amigos.

Surpresos, o jovem e a velha viraram-se para olhar para ela.

— Estamos aqui somente para encontrar o caminho secreto para as Terras das Sombras — Jasmine continuou apressada. — Muitos de nosso povo, nossos entes queridos, foram aprisionados pelo Senhor das Sombras. Precisamos chegar até eles e salvá-los. Precisamos! Antes que seja tarde demais. — A voz de Jasmine tremeu quando ela disse as últimas palavras.

Lief e Barda olharam para ela, rapidamente, surpresos pelo desespero em sua voz. Jasmine sempre fora determinada em libertar escravos, mas esse forte sentimento parecia muito mais pessoal. E por que ela tinha dito “antes que seja tarde demais”?

A expressão no rosto enrugado de Nols havia mudado de raiva para algo semelhante à compaixão.

— Se isso for verdade, a sua jornada foi totalmente em vão — ela disse, balançando a cabeça com tristeza. — A Luz é a única saída para os mares distantes e ela foi fechada pelo Medo.

Jasmine curvou a cabeça e mordeu o lábio. Nesse mesmo instante, a cantoria ao fundo atingiu o seu ponto culminante e em seguida desapareceu aos poucos.

— Clef! Nols! — Worron chamou com rispidez. -Voltem! A Oferenda já vai começar.

 

Clef tomou o braço da avó e puxou-a com delicadeza. No mesmo instante, o painel entalhado atrás da jaula começou a deslizar para o lado, sem fazer ruído.

Pela fresta, os prisioneiros puderam ver uma estreita faixa de areia e um trecho de água escarlate. Do outro lado da água, a caverna terminava numa parede natural de rocha alta e inclinada que exibia um brilho avermelhado. Na rocha, exatamente na direção da jaula, abria-se a entrada para uma gruta.

Cordas presas ao topo da gruta estendiam-se ao longo da água e levavam diretamente à jaula. Lief viu horrorizado que vários integrantes da multidão seguravam uma das cordas. A jaula balançou e começou a se mover na água.

— Parem! — Lief gritou. — Podemos ajudar vocês! Usem-nos para destruir o Medo, e não para alimentá-lo.

Os duendes que puxavam a corda hesitaram.

— Não dêem ouvidos ao que Cabelos Compridos está dizendo! — Worron vociferou. — A cerimônia precisa continuar!

A jaula deu um solavanco e começou a deslizar outra vez.

— Somos guerreiros! — Lief gritou. — Juntos derrotamos muitos monstros, alguns deles, servos do Senhor das Sombras. Libertem-nos, devolvam as nossas armas e livraremos vocês do Medo para sempre!

A jaula parou novamente de se mover. Os duendes que a estavam puxando começaram a discutir em voz baixa.

— Acho que devemos deixá-los tentar! — opinou Azan em meio à multidão. — Eles são Cabelos Compridos... altos, fortes e habilidosos lutadores. As armas deles são de aço. Se eles puderem destruir o Medo... pensem no que isso significaria para nós.

— Não! — O rosto de Worron estava retorcido pela raiva. — Você está louco? Se libertarmos os Cabelos Compridos, eles vão se voltar contra nós, e o poder não é forte o bastante para imobilizar todos eles.

— Não vamos ferir vocês, nós prometemos! — Barda garantiu e apontou para Lief. — Este é o rei de Deltora. O cinturão mágico que ele usa é a prova disso. Doran não lhes contou histórias sobre o seu poder?

Muitos na multidão adiantaram-se curiosos quando Lief afastou a capa a fim de mostrar o cinturão. Era evidente que eles tinham ouvido falar do Cinturão de Deltora.

Os olhos de Worron se estreitaram com desconfiança quando ele também espiou pelas barras da jaula.

— Parece com o cinturão das histórias — ele disse devagar. — Mas não vejo nenhuma magia nele.

— Talvez os seus olhos fracos não mereçam ver, duende! — Glock grunhiu, ignorando os esforços de Barda para fazer com que ficasse quieto.

Lief foi invadido pelo desânimo ao ver Worron se afastar com a expressão dura.

— Vocês viram? — Worron gritou, voltando-se para a multidão. — Cabelos Compridos mentem e enganam com a mesma facilidade com que respiram. Vocês ouviram o que um deles disse a meu respeito? Isso não lembra a vocês quando Cabelos Compridos mataram os traidores que vieram em busca do sol há muito tempo, chamando-os de “duendes” para justificar a matança?

— Se vocês não são duendes, o que são então? — Glock retrucou em tom zombeteiro.

— Não somos mentirosos, Worron! — Jasmine bradou desesperada para desfazer os danos causados por Glock. — Vamos cumprir a nossa palavra. Temos um bom motivo para fazer isso. Precisamos passar pela Luz. Precisamos chegar ao outro lado. E, para isso, precisamos enfrentar o Medo de qualquer maneira.

— Acho que ela está falando a verdade — argumentou Nols. Quando as cabeças se voltaram em sua direção, ela ergueu o queixo e continuou com mais veemência. — Não importa o que você diga, Worron, não podemos dar as costas à oportunidade de nos livrar do Medo. Talvez nunca mais tenhamos essa chance.

— E se os Cabelos Compridos nos traírem? — resmungou Worron.

— Se eles correrem, roubarem nossos barcos e partirem para o mar? E a Oferenda? Já recebemos o aviso final.

Nols olhou para ele com orgulho.

— Eu fui o Presente escolhido antes de os estranhos chegarem. Se eles nos falharem, tomarei o lugar deles na jaula.

— Se Nols está disposta a confiar neles, eu vou fazer o mesmo! — bradou uma voz aguda na multidão. Muitas outras vozes a seguiram.

Mas Worron balançou a cabeça, a expressão preocupada.

— O Medo não pode ser destruído — ele afirmou, cruzando as mãos.

— O sacrifício que ele exige é injusto, mas o sofrimento faz parte da vida. E, se A Luz está fechada, tanto melhor. Não queremos saber quem vive do outro lado.

— Agora chegamos ao ponto! — gritou Clef de modo apaixonado.

— Uma morte ou uma centena não faz diferença para você, Worron. Contanto que nada mude.

Ele correu para a jaula e começou a abrir a tranca.

— Pare! — Worron bradou irado. — Ele ergueu a mão. Houve um clarão, a luz diminuiu e Clef foi imobilizado.

Seguiu-se um momento de silêncio tenso. Então, Nols caminhou devagar para o lado do neto.

— Liberte-o, Worron — ela pediu com calma. — Ou vamos tirar o poder que demos a você.

— Vocês não podem... — Worron retrucou furioso.

— Podemos — Nols retrucou. — Podemos e é o que vamos fazer. Emudecido pela raiva, os olhos de Worron percorreram a multidão.

Ele não notou ali nenhum sinal de apoio. Ao contrário, ele viu raiva, determinação e... esperança.

Zangado, ergueu a mão novamente. A luz voltou ao normal, Clef cambaleou um pouco, mexeu o corpo e sem dizer palavra começou a dar atenção à fechadura da porta da jaula.

Momentos depois a porta estava aberta. Um por um, Lief, Barda, Jasmine e Glock saíram para a liberdade. Eles estenderam as mãos e as pernas aliviados, quando Clef e Azan cortaram as cordas que os prendiam. Outros duendes lhes trouxeram as armas.

— Agora, veremos — resmungou Worron bem afastado.

— Acho que vou aquecer a minha espada nele antes de partirmos — Glock murmurou, flexionando as mãos enrijecidas.

— Guarde a espada para a besta! — Jasmine disparou. Ela avaliou a distância para a gruta com um golpe de vista. — Como podemos chegar lá?

— Tenho um plano — Lief começou. — A jaula...

— Sei o que está pensando e concordo — Barda interrompeu. — Mas você não vai participar, Lief. Você vai ter de esperar.

— Não posso e não vou fazer isso — Lief replicou. O pensamento de Marilen esperando ansiosamente em casa invadiu a sua mente, mas ele o afastou.

— Faça o que Barda disse, Lief — Jasmine ajuntou. — Você não tem escolha.

— Ou você fica em lugar seguro, ou vamos levá-lo para lá — Glock grunhiu. — Você precisa ficar protegido.

— É tarde demais para isso! — Lief exclamou. — Agora, ninguém está seguro aqui. Se não conseguirmos matar o Medo, ele vai destruir a vila. E não há como sair desta caverna.

Clef, Nols e Azan os fitavam ansiosos e se aproximaram.

— Por favor, não esperem mais — Clef murmurou. — O Medo vai se cansar de esperar a qualquer momento.

Ainda assim, os companheiros hesitaram. Lief os olhava desafiador.

Kree grasnou e bateu as asas. Jasmine olhou para cima atenta.

— A coisa na caverna está se mexendo — ela avisou.

Os duendes, porém, já tinham percebido o movimento. Eles estavam todos tremendo e se afastando. Algumas das crianças haviam começado a chorar.

Lief saltou à frente de Barda e se atirou sobre o alto da jaula.

— Vamos, depressa! — ele ordenou.

Ao perceber que ele resolvera assumir o controle da situação, Glock, Jasmine e Barda o seguiram.

— Peguem as cordas! — Lief gritou para Clef e Azan. — Puxem-nos até a gruta.

Enquanto Clef e Azan corriam para cumprir sua tarefa, um som irritante e forte se fez ouvir acima da água. Era um som baixo e cheio de ameaças. Ondas pintalgadas de espuma começaram a surgir, vindas da gruta. A água batia contra o muro, entrava pelo painel aberto e atravessava a jaula.

— Estão vendo? — Worron sussurrou para Clef. — A sua rebeldia e a insensatez de sua mãe vão ser a nossa morte.

Clef não respondeu. Com Azan, ele puxava a corda. A jaula deslizou pela praia e atingiu a água. Alguns duendes deram vivas.

— Perdemos as nossas tochas e a gruta está às escuras — Lief gritou. — Você pode iluminá-la?

— Worron pode — Clef informou. — Se ele quiser. Ele tem todo o nosso poder nas mãos dele. — O duende voltou a cabeça na direção de Worron, que estava imóvel e com um olhar furioso. — Você vai iluminar a gruta, Worron? Se for isso o que o povo quiser?

— Não, não vou! — ele bradou com voz aguda numa demonstração de raiva. — Como ousa me pedir isso? Vocês decidiram contrariar as minhas ordens. Todos vocês vão morrer por causa de sua loucura. E eu não vou mexer um dedo para ajudar vocês!

Outro grito assustador veio da gruta. A multidão se afastou aterrorizada. Até Clef e Azan tropeçaram para trás, deixando a corda afrouxar.

— Continuem a puxar! — Nols ordenou determinada.

Clef e Azan agarraram a corda e puxaram com força. A jaula que balançava com violência, carregando os quatro companheiros que se seguravam às barras foi erguida acima das ondas e começou a se afastar da praia.

Lief olhou para trás. A espuma se agitava ao redor dos tornozelos de Nols enquanto ela olhava para Worron com desprezo. A voz dela flutuou claramente sobre a água.

— Eu o obedeci fielmente desde que foi escolhido, Worron, apesar de minhas dúvidas. Mas agora você está mostrando quem realmente é. Você é um tirano e um covarde! Você...

— A língua da velha senhora é tão afiada quanto a sua, fracote — Glock brincou com Jasmine.

— Cale a boca, Glock, ou eu vou cortá-la e jogá-la aos peixes! — Jasmine disparou. Satisfeito por ter conseguido despertar a raiva dela, Glock soltou uma risada e se calou.

E assim, as palavras finais de Nols chegaram aos seus ouvidos claramente. Palavras que atingiram Lief e Barda como raios.

— Não confio mais em você, Worron — Nols bradou. — Você não serve para liderar os Plumes. Você não tem condição de ser o Flautista.

 

Perplexo, Lief olhou em direção à praia e para a multidão reunida ali. De repente, ele viu o local como era realmente: uma ilha.

— O mar secreto! — ele murmurou. — Nós o encontramos e não sabíamos! E a ilha, o povo...

— Duendes — resmungou Glock.

— Não! — Lief exclamou com a voz rouca. — O povo de Pirra. Os descendentes dos pirranos que seguiram Plume. Os proprietários do bocal da Flauta de Pirra!

— Nunca imaginei que as ilhas ficassem em outro lugar que não o mar aberto — Barda comentou.

— Nenhum de nós imaginou — Lief concordou. — Doran disfarçou bem o mapa quando desenhou outro, do mar do oeste, debaixo dele. No entanto, se tivéssemos refletido com cuidado sobre a história, poderíamos ter descoberto a verdade.

— Do que vocês estão falando? Que verdade? — Jasmine indagou. Mas, para seu desapontamento, nem Lief, nem Barda pareceram ouvi-la.

— Os pirranos não tinham tempo para pensar — Lief murmurou. — O Senhor das Sombras os perseguia. Eles tinham de se esconder, desaparecer de suas vistas, imediatamente! Assim, eles simplesmente ordenaram à terra que os engolisse. E, no subsolo, eles encontraram outro mundo. Um mundo de que até mesmo o Senhor das Sombras nada sabia.

Segurando-se com uma das mãos à jaula, Lief tirou a sua cópia do mapa e a abriu.

 

— As linhas não marcam as correntes marítimas, mas sim os muros das cavernas!

— E, se isso for verdade, nós estamos... aqui — Barda mostrou um ponto entre a ilha de Plume e um espaço no traçado que a cercava. — E o espaço é A Luz. Se bem que não sei por que tem esse nome, já que é escuro como a noite.

Lief enfiou o mapa de novo no bolso.

— Se tivermos êxito aqui, uma parte da Flauta de Pirra será nossa. O povo de Plume não vai poder nos recusar isso. E o caminho estará aberto para chegarmos às outras ilhas.

— Eu não tenho idéia do que você está falando — Jasmine interferiu com irritação. — Mas sei que, se não tivermos êxito, vamos todos morrer.

Ela se virou para olhar a gruta que se abria diante deles. A água estava mais calma e agora batia pacificamente contra a parede de pedra.

— O Medo ouviu ou sentiu a aproximação da jaula — ela disse. — Ele está esperando calmamente por seu Presente.

— Pois então vai ter uma surpresa desagradável — Glock ameaçou, sorrindo de modo selvagem e empunhando a pesada espada.

— Talvez nós tenhamos uma surpresa — retorquiu Jasmine.

— Esse monstro pode assustar esses duendes insignificantes, mas não vai ser páreo para um guerreiro Jalis — Glock se gabou, enchendo o peito. — Vou cortá-lo ao meio com uma só mão.

— Acho melhor planejarmos alguma coisa, no caso de você precisar de ajuda — Jasmine sugeriu secamente. — Barda?

— O Medo espera que o Presente venha na jaula e vai se aproximar sem receio — Barda conjeturou. — Podemos pegá-lo de surpresa. Glock, Lief e eu temos espadas, portanto, vamos atacar os tentáculos. Enquanto a besta estiver distraída, você, Jasmine, vai atacar o corpo dele por trás, entendeu?

Lief e Jasmine olharam um para o outro e assentiram. Glock resmungou impaciente.

— O Medo vive no subsolo, por isso, deve caçar com o tato, a audição ou até com o faro, e não com a visão — Jasmine afirmou. — Mas nós precisamos enxergar. Nós precisamos de luz.

Lief olhou para a praia por sobre o ombro. Nols e Worron ainda discutiam. A multidão hesitava e olhava nervosamente para a gruta.

— Se Nols não conseguir convencer o povo a apoiá-la, não haverá luz — ele disse. — Não podemos depender disso.

A gruta já se abria à frente deles. Quando a jaula entrou devagar pela abertura, Lief sentiu uma corrente de ar no rosto: uma brisa fria e desagradável que fez a sua pele arrepiar.

Em instantes, a luz do exterior era apenas um leve brilho. E, finalmente, se apagou de vez. A jaula parou com um rangido na escuridão espessa e de cheiro acre. A água rasa batia suavemente no fundo.

O local estava muito quieto, muito calmo, muito escuro. E, na escuridão, algo se mexeu.

— Preparar! — Barda sussurrou.

Lief prendeu a respiração. A espada em sua mão estava escorregadia de suor.

Ouviu-se um som deslizante, como o de uma grande serpente arrastando-se sobre as pedras, e um delicado ondular, como o de uma enguia gigante deslizando pela água.

Mas os sons pareciam vir de todos os lados. Eles ecoavam nas paredes e no teto da caverna, de modo que era impossível dizer de onde tinham se originado. A escuridão estava viva com ruídos de algo que deslizava e espadanava.

Os companheiros viraram-se para a direita e depois para a esquerda, chocando-se uns contra os outros confusos.

— Onde está a coisa? — Glock sussurrou. — Maldita escuridão!

A jaula deu um solavanco quando algo atingiu as barras em um dos lados.

— Ali! — Barda sussurrou. Quase que imediatamente, houve uma segunda colisão, dessa vez do outro lado.

— Ele se move depressa — grunhiu Glock. — Vamos ter de nos separar. Eu vou...

— Não! — A voz de Jasmine parecia muito calma, mas algo em seu tom fez com que Lief sentisse um calafrio. Ele a escutou respirar fundo.

— Acho... — ela começou.

Mas ela não conseguiu terminar o que pretendia dizer, pois nesse instante uma luz vermelha começou a brilhar nas paredes da caverna. E, à medida que a luz ficava mais forte, os companheiros viram o Medo.

Lief escutou Glock praguejando baixinho, viu os olhos de Jasmine mostrando preocupação, sentiu o corpo de Barda enrijecer e lutou contra o próprio terror.

O Medo não estava em um dos lados da jaula. Ele não estava em cima, nem embaixo.

Ele estava em todas as partes.

Tentáculos gigantescos, como troncos retorcidos de enormes árvores, enchiam a caverna de uma parede a outra, do chão ao teto. De repente, a jaula pareceu minúscula ao lado dos tentáculos manchados que se enroscavam acima e ao redor dela.

Na ponta de cada tentáculo, viam-se montes sinuosos de fios brancos e pegajosos armados de ganchos terríveis. Alguns deles já deslizavam suavemente pela barras da jaula. Outros escorregavam, como vermes, sobre as paredes gotejantes da caverna, enquanto os tentáculos dos quais saíam se retorciam e procuravam uma posição.

E, na parede mais afastada da caverna, visível somente em lampejos, quando os tentáculos se moviam, estava o centro do terror. Uma montanha inchada de carne encrespada e limosa agigantava-se ali, derramando-se de uma concha tão antiga, grossa e coberta de crostas que parecia fazer parte da própria rocha.

Os pequenos olhos da criatura eram invisíveis. O seu hediondo bico curvo abria-se ávido enquanto os tentáculos exploravam seus domínios. Talvez ela já tivesse percebido que a jaula estava vazia, mas sentia que a presa estava próxima.

Ela não tinha pressa, pois sabia que não havia como escapar.

— O plano! — Glock murmurou. — O que vamos...?

Lief sentiu uma incontrolável vontade de rir. Plano? O plano era uma piada. O plano havia sido baseado em informações tão inadequadas que era totalmente inútil.

A gravura no painel... há quanto tempo tinha sido feita? Há duzentos anos? Quinhentos? Mais?

Como não tinham previsto isso? Durante séculos, o Medo nunca fora desafiado. Ele não fora visto, nem mesmo por suas vítimas. Ele tinha sido conhecido somente por seus gritos assustadores e as ondas com que inundava a terra firme.

E, na escuridão, ele cresceu.

Lief se deu conta de que Glock estava de pé e ia com dificuldade até o tentáculo mais próximo, a espada erguida bem acima da cabeça.

— Glock, não! — Barda bradou.

Mas era tarde demais. Com um grito selvagem, Glock desceu a espada com toda a força. A lâmina poderosa atingiu o tentáculo com o som de uma enxada sobre a pedra e partiu-se em dois.

 

Glock olhou para a espada quebrada perplexo. Ele parecia incapaz de acreditar no que havia acontecido e não reagiu ao rugido tenebroso que ecoou na caverna, tampouco se moveu.

— Glock! Cuidado! — Jasmine gritou.

A ponta do tentáculo subiu feito um raio, contorcendo-se como uma serpente. Fios brancos pegajosos agarraram Glock pelo pescoço, os ganchos enterrando-se profundamente em sua carne. Ele caiu de joelhos, gritando de dor. Em questão de segundos, o tentáculo enrolou-se em seu corpo e ergueu-o no ar.

Jasmine disparou para a frente.

— Não, Jasmine! — Lief gritou.

Mas Jasmine não ouviu ou não quis ouvir. Com Kree grasnando sobre sua cabeça, ela saltou para o tentáculo que se erguia, como costumava saltar de uma árvore para outra nas Florestas do Silêncio. Imóvel, agarrou-se ao monstro por um instante, mas logo começou a escalar, a adaga entre os dentes, os dedos mergulhando na superfície dura e pegajosa.

— A sua adaga vai ser inútil contra ele, Jasmine! — Barda gritou. — Glock está perdido. Salve-se!

Mas Jasmine já passava por cima do corpo inerte de Glock e se dirigia à ponta do tentáculo que estava curvada, os fios brancos esticados enquanto continuava a apertar a garganta de sua presa.

Jasmine apanhou a adaga da boca e investiu contra as raízes dos fios brancos. Um a um, eles caíram espessos, enquanto um líquido esverdeado borbulhava dos ferimentos.

O Medo urrou furioso. O tentáculo ferido se encrespou e Glock caiu como uma pedra. Jasmine saltou depois dele, gritando para Kree.

Apavorados, Lief e Barda olharam para baixo e viram Jasmine surgir na água e em seguida cambalear entre os tentáculos agitados do monstro. Ela arrastava Glock pelo ombro, mantendo a cabeça dele fora da água.

Grasnando, Kree voou sobre a ponta do tentáculo ferido, bicando-o e disparando para o lado quando o monstro tentava agarrá-lo. Ele não podia ter esperanças de salvar Jasmine. Tudo o que podia fazer era tentar distrair a besta e dar à sua dona tempo para se salvar.

Glock ainda estaria vivo? Lief não sabia dizer, mas sentiu o coração subir-lhe à boca quando viu um pedaço de metal recortado na água agitada.

A enorme mão de Glock ainda segurava a espada, como se, vivo ou morto, ele nunca quisesse soltá-la.

Os terríveis rugidos do Medo ecoavam pela caverna. O monstro bateu na água, e Glock e Jasmine desapareceram num redemoinho de espuma. Ondas enormes se ergueram e rolaram para a entrada da caverna, o que fez Lief lembrar-se dos Plumes aguardando na praia.

Os tentáculos que cercavam a jaula apertaram-na com firmeza e as barras se quebraram como se fossem galhos. Os que se encontravam acima de Lief e Barda começaram a se desenrolar e deslizar para baixo, a parte interna riscada como a barriga de uma serpente.

A luz tremeluziu e se apagou.

— Salte! — Barda ordenou.

Lief pulou para salvar a vida enquanto a jaula se desfazia debaixo dele. Ele atingiu a água espumante, afundou e se debateu inutilmente na água gelada, a boca e o nariz tomados pelo gosto e pelo cheiro da besta. Pedaços da jaula estraçalhada e os ossos de vítimas mortas há muito tempo giravam com ele na espuma mal-cheirosa.

O ombro direito de Lief bateu contra um objeto sólido e uma dor lancinante percorreu o seu braço. Cegamente, ele estendeu a outra mão, sentiu uma rocha sob os dedos e conseguiu erguer-se.

Ele tinha sido atirado contra a parede da caverna. Trêmulo e ofegante, a água chegando-lhe à cintura, ele se segurou na rocha. Os seus olhos estavam bem fechados, mas lentamente ele percebeu uma luz inconstante brilhando contra as suas pálpebras. De alguma forma, enquanto as ondas atingiam a sua ilha, um pequeno grupo de Plumes havia conseguido reunir seu poder mais uma vez.

Lief obrigou-se a abrir os olhos doloridos e, através de uma névoa vermelha tremeluzente, viu uma cena de pesadelo.

Imensos tentáculos agitados enchiam a caverna. A água se erguia e parecia ferver. Um dos tentáculos, o que Jasmine havia atingido, torcia-se mais violentamente que os demais, a ponta ferida movendo-se aos solavancos, salpicando as paredes e o teto com grossas gotas de um lodo esverdeado.

Lief se retraiu e somente então percebeu que estava agarrado a uma saliência na rocha que se projetava da parede ao nível da água.

Devagar, sentindo muita dor, ele deslizou para a saliência, levantou-se, encostou-se à parede e começou a procurar desesperadamente algum sinal de Jasmine, Barda ou Kree.

Lief não conseguiu ver nada além dos tentáculos furiosos que agora se aquietavam, começando a tatear com mais paciência, mais atenção. Os fios nas pontas dos nove braços feridos se retorciam, esticavam e pulsavam como vermes assustadores enquanto examinavam as paredes rochosas, vasculhavam a água vermelho-escura. Procurando, procurando...

Quantos corpos esmagados estariam flutuando debaixo daquela superfície coberta de espuma, esperando para ser encontrados? Glock estaria ali? E Jasmine e Barda?

Lief fechou os olhos, lutando contra o desespero que ameaçava tomar conta dele. Tentou afastar da mente todos os pensamentos, exceto o da necessidade de sobreviver. Com cautela, estremecendo de dor, ele moveu o braço ferido.

Nesse momento apenas, ele percebeu que a sua mão não estava só adormecida, mas vazia também. Ele perdera a espada.

Tentando afastar o pânico, ele se obrigou a pensar. Estava certo de que segurava a espada quando caiu na água. Ele conseguiu lembrar a sensação do cabo em sua mão quando rolava na espuma.

Mas então ele se chocou contra a rocha, contra a saliência na qual estava descansando naquele momento. Espiou a água escura manchada de espuma que batia a seus pés. Foi tomado por náuseas quando viu a carne pálida e estriada que girava lentamente.

Um dos tentáculos do monstro estava se retorcendo exatamente abaixo da saliência. Se ele ainda estivesse ali...

A ponta do tentáculo subiu à superfície da água. Lief o observou com um pavor fascinado enquanto os dedos semelhantes a vermes se esticaram na direção da saliência, tocaram-na e começaram a deslizar para a frente.

Lief se manteve imóvel, mal ousando respirar. Se tentasse recuar, os dedos sentiriam o movimento e atacariam, como haviam feito com Glock. No entanto, se ele ficasse onde estava, eles logo alcançariam os seus pés, subiriam por seus tornozelos e, assim que sentisse a carne quente...

— Fique totalmente imóvel.

A voz era só um sussurro. Rígido, Lief virou a cabeça para a direita e viu Barda saindo de um buraco raso na parede a somente meio metro de distância.

Barda estava molhado e enlameado. O rosto e os cabelos dele estavam cobertos de sangue, mas a sua espada brilhou quando ele a ergueu para o alto.

Lief olhou para baixo outra vez. As pontas de suas botas estavam cobertas por uma massa de fios que se retorciam. Um suor frio cobriu-lhe a testa. Seu estômago revirava repugnado.

Os fios continuavam a avançar. A ponta do tentáculo de onde eles saíam ergueu-se mais ainda da água, movendo-se ameaçadoramente...

— Vá! — Barda ordenou e atacou, a lâmina cortando os fios brancos perto de suas raízes.

Lief arrastou-se para o lado, escorregando e deslizando na base irregular na parede. A água debaixo da saliência começou a subir e a borbulhar como se estivesse fervendo.

— Vá para trás da concha! — Barda gritou.

Lief olhou por sobre o ombro. Imensos rolos do tentáculo ferido estavam se levantando, saltando da água violentamente. Aponta ferida e agitada, espalhando limo se atirava contra a saliência onde ele estivera de pé.

Barda voltou apressado para o seu esconderijo na parede, mas ele não estaria seguro ali por muito tempo. Nenhum lugar seria seguro dali em diante.

O monstro urrava ferozmente, seus tentáculos batendo na água mais uma vez. A luz voltou a tremeluzir. Uma onda bateu contra Lief, fazendo-o cair de joelhos, sacudindo o seu braço ferido, que latejava de um modo insuportável. Ofegante, ele continuou a rastejar, metade do corpo coberto pela água.

Ele não podia voltar. Ele não podia ficar onde estava. Ele só podia seguir em frente.

Durante longos e agonizantes minutos ele rastejou, esperando a cada momento ser erguido no ar. Contudo, finalmente ele percebeu que a água debaixo de seus pés se aquietava. A saliência na rocha se alargara. Descorados, ossos brancos formavam pilhas ao redor dele. Finalmente, ele teve coragem de olhar para cima.

Ele chegara ao fim da caverna, o coração do Medo.

Agora ele podia ver claramente o que havia atrás da imensa massa de tentáculos. Ele podia ver o bico cruel e cortante. Ele até podia ver os pequenos olhos claros olhando vagamente para a frente. Ele podia ver o corpo feio e a imensa concha semelhante a uma pedra que se erguia até perto do teto da caverna, de um azul-claro, margeada com matéria acumulada durante séculos.

A concha havia se tornado parte da parede da caverna. O Medo não podia se mover, mas tampouco precisava. Os seus braços poderosos eram mais do que suficientemente compridos para alcançar todos os cantos de seu domínio. Nenhuma presa podia escapar.

Um leve movimento na concha chamou a atenção de Lief. Ele olhou e mal conteve um grito.

Quem fez o movimento foi Jasmine! Ela escalava os sulcos azulados de pedra com a adaga na mão.

Como que sentindo o olhar de Lief, ela olhou para baixo. Os olhos de ambos se encontraram e o rosto dela se iluminou num amplo sorriso.

Talvez ela tenha visto a alegria do companheiro ao constatar que estava viva. Talvez ela tenha ficado contente por ver que ele estava bem. Mas ela não falou: simplesmente apontou para baixo, ergueu a mão para Lief e continuou a subir.

Com o coração aos pulos, Lief olhou para onde ela tinha apontado. Ele viu Glock caído na concha, a espada quebrada ainda em sua mão.

Glock respirava com dificuldade, e grandes equimoses vermelhas marcavam o seu pescoço e o rosto. Kree encontrava-se imóvel ao lado dele, como que a vigiá-lo.

Quando Lief ergueu os olhos outra vez, notou que Jasmine chegara ao topo da concha. Enquanto ele observava aterrorizado, ela saltou com leveza sobre a carne serpeante que saía dela, virou o corpo para baixo e começou a rastejar para a frente.

Os pequenos olhos do Medo não deram sinal de que tinham percebido a presença dela. Talvez a criatura imaginasse que ela não passava de um simples inseto rastejando sobre seu corpo.

Às vezes deslizando, outras rastejando, Jasmine continuou até ficar imediatamente atrás dos olhos do monstro. Com cautela, ela ergueu a adaga. Lief ergueu-se paralisado, indefeso, incapaz de fazer qualquer coisa além de assistir à cena.

O coração dele pareceu falhar quando Jasmine investiu com todas as suas forças e enterrou a arma até o cabo entre os olhos da criatura. Entretanto, com um estremecimento de pavor, ele viu os olhos vagos e claros rolarem para trás e se fixarem no rosto de Jasmine. Ele viu a amiga olhar o monstro fixamente, sem acreditar, quando a adaga saltou de volta à sua mão, rejeitada pela carne borrachenta que deveria perfurar.

Então, com um movimento rápido como um raio, um tentáculo saltou para trás, enrolou-se ao redor do corpo de Jasmine e a ergueu no ar, aos gritos.

 

Um vulto negro riscou o ar. Era Kree, os olhos dourados determinados e selvagens. Ele não tentou atacar a imensa espiral que agarrava Jasmine, mas voou corajosamente até a ponta do tentáculo, investindo e rasgando os dedos brancos munidos de ganchos que ali se retorciam.

Dessa vez, porém, o Medo não diminuiu a pressão e mais tentáculos viraram-se, as pontas batendo como chicotes no ar, investindo contra o pássaro veloz e tentando agarrar os pés pendentes de Jasmine.

Num gesto impetuoso, Lief mergulhou para a frente ciente apenas do perigo que a amiga corria. Ele apanhou um osso da pilha sobre a rocha e, com a mão esquerda, atirou-o com toda a força na confusão de tentáculos acima de sua cabeça.

O osso atingiu a ponta de um dos tentáculos. Este se retorceu e se retraiu. Com um grito selvagem, Lief atirou outro osso e mais outro.

Com o canto dos olhos, ele percebeu um vulto se movendo perto dele no chão. Ele não podia parar para verificar quem era, pois um tentáculo dirigia-se sinuoso, diretamente para ele. Lief jogou um osso que o atingiu na ponta. Alguns dos fios brancos se enrolaram para trás, retorcendo-se e soltando limo.

Lief gritou triunfante. Mas o som morreu em seus lábios quando outro tentáculo se ergueu da água agitada e o atacou com tal rapidez que ele mal o viu antes de ser agarrado. A cabeça de Lief girou ao ser erguido para o alto, lutando e chutando.

A ponta do tentáculo ferido que o segurava pendia ao lado de seu ombro. Pontas brancas agitavam-se na extremidade e soltavam um líquido viscoso. Apesar do ferimento, conseguia segurar Lief com força. Ele podia sentir a pressão aumentando ao redor do peito, esmagando as suas costelas, apertando e extraindo a vida de dentro dele.

Lutando para respirar, Lief foi erguido para o centro da massa contorcida de tentáculos e foi então que ele ouviu um grito vindo de baixo.

Lief viu, em meio ao lugar em que os tentáculos começavam, diretamente na frente da boca aberta do monstro, a figura imensa e oscilante de Glock.

Glock arrastara-se para fora do esconderijo, ignorando a dor e o medo e fora para o centro do terror.

Agora, curvado e cambaleando, ele erguia a espada partida.

— Então você nos faz em pedaços e joga fora os ossos! — ele rugiu. — Você gosta de carne macia, não é mesmo? Pois, então, vamos ver o que acha disto!

E tombou para a frente, mergulhando o braço e o que restava de sua grande lâmina diretamente na garganta do monstro.

Um rugido borbulhante e assustador ecoou por toda a caverna. O tentáculo que prendia Lief pareceu congelar no ar e logo começou a estremecer e a se contorcer. Lief ouviu Kree grasnar, sentiu a pressão sobre seu corpo afrouxar e escorregou. Seus dedos rasparam na pele enrugada e pegajosa da parte inferior do tentáculo enquanto ele mergulhava em direção à água.

Lief voltou à superfície se debatendo e virou-se, freneticamente, tentando ver Jasmine entre a espuma e as espirais retorcidas da besta.

— Lief, aqui! Depressa!

Barda nadava em sua direção, segurou-o pela cintura e o puxou descuidadamente sobre os tentáculos em direção à rocha. Lief enfraquecido mal conseguia se mover.

— Jasmine! — ele chamou, asfixiando.

— Ela está bem! Ali, está vendo? Perto da concha.

Lief voltou a cabeça, piscando através da névoa formada pela água. Ele viu Jasmine ajoelhada ao lado do corpo agonizante do monstro.

Os cabelos de Jasmine estavam molhados de água e sangue, mas ela estava viva!

Filli estava encolhido em seus braços, e Kree pousado em seu ombro. Enquanto Lief a observava, ela levantou a cabeça, fitou-o e depois olhou para cima.

A expressão dela mudou. Ela se ergueu cambaleante.

— Lief! — ela gritou. Lief olhou para cima e, de repente, compreendeu.

Acima de sua cabeça, grandes tentáculos se curvavam para dentro e oscilavam como grandes árvores prestes a cair.

Os tentáculos iam cair sobre eles!

Lief libertou-se de Barda com um movimento brusco e começou a nadar pela água, apesar da dor no braço. Juntos, ele e Barda lutaram para se afastar. Juntos, alcançaram a rocha e rastejaram para um local seguro no exato momento em que os gigantescos tentáculos começaram a despencar, abrindo grandes sulcos na água que batia no teto e descia novamente, atingindo a rocha e o corpo agonizante e trêmulo do Medo.

Então, de repente, tudo ficou em silêncio.

Lief, Barda e Jasmine levantaram-se com dificuldade. Na caverna, só a água se movia batendo de encontro às pedras. Uma luz vermelha tremeluzia fracamente. Os tentáculos, assumindo um tom cinza-claro, estavam semi-submersos, como os troncos de uma imensa árvore.

Glock estava imóvel, de olhos fechados, esmagado sob a massa de carne manchada do peito do monstro. Apenas a cabeça e os ombros estavam livres.

Os companheiros foram até ele e se ajoelharam ao seu lado.

— Glock — Lief chamou com suavidade.

Os olhos de Glock se abriram. Eles estavam enevoados, mas uma leve chama brilhava em seu interior.

— Então ele morreu? — ele perguntou.

— Sim — Barda tornou devagar. — Você o derrotou, Glock. Com uma só mão. Como você sempre disse que faria.

Glock assentiu lentamente.

— Isso é bom — ele respondeu. — Eu pensei... há um lugar em que a besta não tem proteção. Um lugar. Se você puder atingi-lo... se você...

A luz da caverna aumentou lentamente. Um brilho cintilante caiu sobre o rosto de Glock.

— Estou morrendo — ele murmurou quase admirado. — Mas isso também é bom. Afinal, para que serve um Jalis sem o braço com que segura a espada?

— Você vai lutar outra vez, Glock — Lief garantiu.

— Não nesta vida — ele retrucou com um sorriso zombeteiro. O olhar dele passou para o rosto de Jasmine. — A garota sabe. Ela não mente para mim ou para si mesma. Ela sabe que estou acabado.

Jasmine olhou para Glock. Os olhos dela queimavam com lágrimas não derramadas, mas ela assentiu levemente com a cabeça.

— Eu a chamei de fracote mais de uma vez, garota. Mas isso... foi só brincadeira — disse o homem agonizante com voz rouca. — Você tem o coração de um Jalis. Pegue o talismã do meu pescoço. Agora ele é seu. Talvez ele ajude você.

Os olhos de Jasmine se arregalaram, mas ela não se moveu. Uma chama de impaciência cruzou a expressão de Glock.

— Pegue! — ele balbuciou. — Pegue agora, para que eu possa vê-lo em suas mãos.

Jasmine estendeu a mão e obedeceu.

Glock olhou para a pequena bolsa desbotada e mais uma vez a sua boca se retorceu num sorriso.

— Talvez você pense que ele não me ajudou nem um pouco... mas lembre-se disto: o maior desejo de um Jalis é morrer lutando por uma grande causa. E foi o que aconteceu.

A luz na caverna ficou cada vez mais brilhante e, de repente, pareceu a Lief que vários arco-íris começavam a dançar no interior dela. Piscando, atordoado, ele olhou para cima.

Os seus olhos não o enganavam. Finalmente visível, atrás do corpo do Medo, que caía lentamente, estava a boca de um túnel. Nele brilhava a luz de um arco-íris que se misturava ao vermelho da caverna e fazia com que o próprio ar parecesse cintilar.

— A Luz — Jasmine murmurou.

Um som fraco chegou aos ouvidos dos companheiros. O som dos Plumes festejando animados na praia. Eles haviam visto a luz.

— Lief! — A voz de Glock estava muito baixa, e Lief se inclinou sobre ele.

Arco-íris brincavam no rosto abatido de Glock.

— O caminho para as Terras das Sombras está aberto — ele murmurou. — Agora... você pode encontrar o meu povo. Você pode trazê-los para casa.

Lief assentiu. O coração dele estava tão apertado que ele não foi capaz de falar.

— Quando os encontrar — disse o homem agonizante -, eu gostaria que você lhes contasse a meu respeito.

— Vou contar, Glock — Lief conseguiu dizer finalmente. — Pode ter certeza.

Glock assentiu de leve satisfeito. Então os seus olhos se fecharam e ele se calou.

 

A ilha tinha sido impiedosamente assolada pela ira do medo, mas os plumes cantavam ao levar Lief, Barda, Jasmine e Glock em seus barcos até a praia, flutuando sobre a água como folhas secas varridas pelo vento.

E, quando os barcos aportaram, a canção ficou mais forte até que pareceu dominar toda a caverna. As palavras ecoavam das paredes cintilantes e rolavam em ondas de beleza sobre o mar escarlate.

Nossa terra é assolada pela desordem

Lutas ecoam através dos tempos

E as guerras podem nunca terminar

Mas aqui embaixo vivemos em paz.

Onde marés intermináveis inundam as lembranças,

A nossa prisão sem sol nos liberta.

As luzes cintilantes iluminam nossas paredes rochosas.

E dragões guardam nossos brilhantes saguões.

— Não é uma canção de morte, mas de vida — disse Jasmine com suavidade quando as últimas notas desapareceram no ar. — Eu sabia que seria assim.

Lief e Barda a olharam com curiosidade, mas nada disseram. O olhar dela estava fixo no barco que a própria Nols havia dirigido, o barco em que jazia o corpo de Glock, envolto num tecido escarlate.

— Então, Glock vai ficar aqui — Jasmine suspirou. — Parece estranho...

— O seu amigo será reverenciado por nós — Nols garantiu, dando um passo à frente e pousando a pequena mão no braço de Jasmine. — Ele vai ficar com os Flautistas de Plume e nunca será esquecido.

Jasmine refletiu por um instante e então sorriu levemente.

— Glock gostaria disso — ela disse. — Ele gostaria de repousar junto dos líderes.

— Nunca poderemos pagar a dívida que temos com ele e com vocês. Não temos muito para oferecer, mas o que tivermos é de vocês. Barcos para a sua jornada, comida, luz, até onde pudermos fornecê-la... — Ela parou e esperou.

Lief respirou fundo. Aquela era a oportunidade pela qual ele esperara, mas, agora que ela se apresentava, quase temia tocar no assunto.

— Há uma coisa que somente vocês podem nos dar — ele começou devagar. — É um tesouro de que precisamos muito... embora apenas por algum tempo. O bocal da Flauta de Pirra.

Nols deu um passo para trás, um olhar espantado no rosto. As pessoas atrás dela murmuraram e sussurraram.

Desalentado, Lief olhou rapidamente para Barda e Jasmine. Barda fechara o semblante numa atitude de irada incredulidade. Jasmine, que ainda nada sabia sobre a Flauta de Pirra, estava confusa.

— Sei que estamos pedindo muito — Lief disse, mantendo a voz firme com dificuldade -, mas eu lhe imploro para que considerem o nosso pedido. Se quisermos salvar o nosso povo do Senhor das Sombras, precisamos montar a Flauta outra vez. É a única coisa que o Senhor das Sombras teme. A única coisa que poderá nos dar tempo para...

Nols ergueu a mão para que ele parasse de falar.

— Você não entende — ela começou, a voz trêmula. — Não é que não queiramos lhes dar o bocal da Flauta. É que não podemos. Ele se perdeu há muito tempo.

A explicação teve o efeito de um soco no estômago de Lief. Incapaz de falar, ele olhou para Nols.

— Ela não se perdeu, mas foi roubada! — Worron interferiu com voz aguda. Ele se adiantou, uma figura imponente na longa túnica vermelha e com o chapéu escarlate que ainda não tirara. — O símbolo da liderança do Flautista foi roubado do povo pelos Sete Traidores... os malvados que deixaram a segurança de nossos mares pelo mundo exterior.

— Isso foi há muito tempo, quando os Plumes estavam há pouco tempo no mundo subterrâneo — contou Nols, mais calma. — O povo naquele tempo não estava acostumado às cavernas, como nós. Está escrito que os rebeldes planejaram encontrar um local seguro para depois retornar e conduzir os Plumes de volta ao sol. Mas eles nunca retornaram.

Ela suspirou.

— Doran, o amigo dos dragões, disse aos nossos ancestrais que todos eles tinham morrido. Ele conhecia uma história antiga muitas vezes contada, segundo ele, pelos membros de uma tribo selvagem de Cabelos Compridos chamados Jalis, cujos ancestrais foram responsáveis pelas mortes.

— Sim. — Os olhos de Worron se estreitaram com hostilidade. — Não há dúvidas de que os Sete Traidores foram destruídos e, com eles, o bocal da Flauta. Assim, se a Flauta é o que vocês vieram procurar, Cabelos Compridos, a sua jornada, o seu tempo e a vida de seu amigo foram desperdiçados.

A imagem de Glock sorrindo diante de uma caneca de cerveja veio à mente de Lief. Glock, o último dos Jalis. De repente, os seus olhos arderam marejados de lágrimas, e ele rapidamente desviou o olhar.

Ele viu que Jasmine havia retirado a pequena bolsa de tecido do pescoço e a abria. Era evidente que ela também pensava em Glock.

Lief virou-se para Worron.

— Certamente, é uma grande perda para nós que as três peças da Flauta não possam mais ser reunidas — disse ele, esforçando-se para manter a voz firme. — Mas o Medo está morto, Worron. Os Plumes estão livres dele. Portanto, nada foi desperdiçado.

— É mesmo, não foi — Clef ajuntou em voz alta. — Nós...

Ele parou, olhando fixamente para algum lugar. Lief percebeu que Nols, Worron e todos os Plumes reunidos atrás deles também não conseguiam desviar o olhar.

Eles, porém, não estavam olhando para ele, mas, sim, para Jasmine. Ou melhor, para o pedaço de madeira empoeirada de formato estranho que ela segurava na palma da mão estendida.

Houve um momento de silêncio eletrizante. Então, Nols estendeu a mão e apanhou o objeto de madeira com respeito. Devagar, ela se agachou e mergulhou-o na água. A poeira de séculos se soltou formando uma pequena nuvem e, quando ela se levantou, a peça em sua mão parecia brilhar: um pequeno milagre de madeira brilhante e com estranhos desenhos entalhados.

— O bocal da Flauta de Pirra! — ela sussurrou.

A boca de Worron se abria e se fechava, como a de um peixe.

— Onde... onde...? — ele gaguejou.

— Estava com Glock o tempo todo — Jasmine afirmou com calma. — Era parte de um talismã passado para ele pela família. Ele não tinha idéia de que era algo mais do que um amuleto da sorte. Eu também não, até alguns momentos atrás. E, mesmo assim, eu só suspeitava da verdade.

Sabiamente, ela se calou. Ela queria que Glock fosse enterrado junto dos Flautistas de Plume. Ela sabia que era melhor não admitir como os ancestrais dele haviam se apoderado do objeto que a multidão estava ansiosa para ver.

O rosto de Nols era o retrato da alegria.

— É um milagre! — ela gritou. — O nosso tesouro nos foi devolvido. Agora podemos pagar a nossa dívida com vocês.

Lief, observando o rosto radiante de Nols e as expressões alegres que o rodeavam, perguntou-se como conseguira achar esse povo feio. Ele pensou também no acaso que havia devolvido o bocal da Flauta de Pirra aos seus verdadeiros donos.

E, finalmente, ele se perguntou se tinha sido mesmo um acaso, e não algo diferente.

Ele se voltou para Barda, que perplexo ainda olhava fixamente para o bocal reluzente.

— Alcançamos a nossa primeira meta, Barda — ele murmurou. — E o caminho está aberto para a segunda. De acordo com o mapa, a ilha de Auron é nosso próximo desafio.

Barda balançou a cabeça devagar.

— Primeiro, precisamos voltar a Del. Perdição está à nossa espera com suprimentos, lutadores...

— Não! — Jasmine gritou furiosa. — Não podemos nos demorar mais! O tempo está se acabando! Precisamos...

Ela se interrompeu quando Lief e Barda se voltaram para ela.

— Por que está dizendo isso, Jasmine? — Barda quis saber. Jasmine molhou os lábios.

— Eu ouvi... eu ouvi dizer que o Senhor das Sombras vai matar os prisioneiros. Logo.

— Foram os pássaros que lhe contaram isso? — Lief perguntou ansioso.

Jasmine hesitou. Não gostava de mentir, mas ela não queria que Lief soubesse que havia entrado no aposento proibido, que tinha falado com a irmã que ele procurara manter afastada dela.

Ela sabia que não conseguiria suportar a expressão do rosto dele quando tentasse negar ou explicar a sua manobra e a traição da confiança. Ela preferia esquecer esse fato para poder se concentrar na tarefa que a esperava; preferia afastar esses pensamentos agindo.

Assim, ela apertou os lábios e assentiu.

— Então, precisamos continuar... todos os três — Lief disse de imediato.

— Não! — Barda protestou. — Você, pelo menos, não pode...

— Posso, sim — Lief retrucou com firmeza. — E acho que sempre esteve escrito que eu deveria.

— Mas você é o rei de Deltora! — Jasmine gritou. Lief estava apenas dizendo o que ela queria que dissesse. No entanto, de repente, ela se viu tomada pela dúvida.

Lief encontrou o olhar ansioso de Jasmine.

— Tenho pensado muito nisso — ele disse. — Eu sou o rei, mas ainda sou Lief. Tenho de fazer o que é preciso.

— Não! — Barda discordou, mas Lief negou com a cabeça.

— Não posso ser um prisioneiro — ele justificou. — Foi isso que aconteceu com reis e rainhas do passado, e foi a ruína deles. Não foi isso que Adin pretendia quando criou o Cinturão de Deltora. Ele...

Ao sentir um leve toque no braço, ele se virou e viu Nols, que o fitava.

— Pedi a Azan para arrumar acomodações para vocês dormirem nas terras altas, onde ainda está seco — Nols avisou. — O seu ferimento precisa de cuidados e você precisa descansar. Ah, Azan! — o sorriso dela recebeu o jovem Plume que corria ofegante na direção dela. — Está tudo bem?

Azan balançou a cabeça, a expressão dominada pela ansiedade.

— Não! Receio que não esteja tudo bem — ele disparou. — Os únicos aposentos secos foram tomados por dois monstros terríveis, de um tipo que nunca vi antes.

Nols pareceu alarmada. Azan olhou tristemente para Lief, Barda e Jasmine.

— Eles são assustadores... têm o tamanho de minha cabeça, presas enormes, oito pernas e olhos vermelhos. E estão lutando ferozmente, como se não quisessem parar!

Os companheiros se entreolharam.

— Acho que conhecemos esses monstros — Barda disse com relutância. — Deixe-os conosco.

O rosto de Azan abriu-se num sorriso de alívio.

— Vou levar vocês até a casa — disse ele ansioso, partindo em disparada.

— Ah, como é bom ter heróis em nosso meio! — Nols comentou radiante.

— De fato — Lief retrucou mal-humorado, enquanto ele, Barda e Jasmine, com Kree esvoaçando sobre sua cabeça, seguiam Azan. — E, se podemos derrotar o Medo, certamente podemos controlar Fury e Flash.

— Eu não teria tanta certeza — Barda balbuciou.

— O que você estava nos dizendo quando Nols nos interrompeu? — Jasmine indagou, voltando-se para Lief.

Lief hesitou. Ele pensara novamente no que, em meio ao seu entusiasmo, estivera prestes a dizer.

— Seja lá o que for, não importa mais — ele mentiu. — Se nós três sobrevivemos à busca das pedras para recuperar o Cinturão de Deltora, por que não iríamos sobreviver a isto?

— Isto vai terminar nas Terras das Sombras — Barda tornou com seriedade. — E tudo depende da Flauta de Pirra. Conseguimos a primeira peça por milagre. E a segunda, e a terceira?

Lief virou-se para observar A Luz, que lançava o seu brilho sobre o mar escarlate. Que perigos existiriam além daquela misteriosa entrada? Essa era uma pergunta que ele não sabia responder. Mas, enquanto olhava, ouviu novamente o chamado daquela música suave e doce.

— Elas estão esperando por nós — ele disse simplesmente. — Eu sei. Tudo que precisamos fazer é encontrá-las.

 

                                                                                            Emily Rodda

 

 

                      

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