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O EGIPCIO 2 / Mika Waltari
O EGIPCIO 2 / Mika Waltari

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O EGIPCIO

Segunda Parte

 

A CAUDA DO CROCODILO

Eis como atingi a maturidade quando regressei a Esmirna, já não era mais um moço.  Estivera ausente dessa cidade pelo espaço de três anos durante os quais adquiri conhecimentos através de muitas terras e que  me fizeram bem e mal. Os ventos marítimos  sopraram da minha cabeça os fumos do vinho,  clarearam meus olhos e restauraram as forças  dos meus membros. Comia, bebia e agia como as  demais pessoas; apenas falava menos do que  elas e me sentia mais solitário ainda do que  antes. A solidão é o destino de certos homens,  destino esse que se torna mais adequado ao  período da maturidade não obstante eu haver  sido criatura arredia desde a infância, ter  sido sempre um estrangeiro no mundo desde quando aquele barco de verga me carregou para  o litoral tebano. Não foi preciso, pois, que  me adaptasse à solidão, como muita gente se vê  obrigada a fazer; desde o dealbar da vida ela  me era companheira e refúgio de sombra.

Estava perto do rosto da proa, diante das  ondulantes águas verdes, enquanto o vento  levava para longe as tristezas do meu  espírito, quando vi bem ao longe dois olhos  verdes como o luar nas ondas; e palavra de  honra que cheguei mesmo a ouvir a risada  espontânea de Minéia e a revi dançar numa eira  à margem de uma estrada da terra de Babilônia  com seu peplo delicado e juvenil tão leve como  um caniço tenro. E para mim a sua imagem não  foi aflitiva visão e sim a bem dizer um doce  tormento como quando um homem se sente acordar  de um sonho que foi mais inefável do que a  vida real.

Pensando nela me rejubilava por a  haver conhecido e não haver renunciado uma  única hora à sua companhia, ciente de que sem  ela nada teria significação para mim. A figura  de proa do navio era uma imagem de madeira  fria, pintada, e com rosto feminino.  Permanecendo ali junto dela, com o rosto  exposto ao vento, sentia minha condição de  homem se robustecer dentro de mim, e tive a  certeza de que ainda haveria muitas mulheres  na minha vida pois mesmo para um homem solitário é desagradável passar sozinho noite  após noite.

Pareceu-me, contudo que tais futuras mulheres  não passariam de imagens pintadas e que sempre  que na treva eu as tomasse entre os braços  procuraria nelas apenas e sempre Minéia,  apenas e sempre o refulgir de um luar, o calor  de um corpo esbelto, mesmo a fragrância de um  cipreste a evocando. Assim, ali perto do rosto  da proa, foi como se me despedisse dela,  momentaneamente.

A minha residência em Esmirna ainda se  achava em pé embora as portadas houvessem sido  arrancadas pelos ladrões. Estes tinham carregado tudo quanto valia  alguma coisa, restando-me por conseguinte  apenas os bens que eu deixara sob a guarda de  mercadores. Como a minha ausência perdurara,  os vizinhos se utilizaram do terreno na frente  e dos lados da minha casa como escoadouro,  depósito de lixo e privada, de forma que o mau  cheiro era nauseante. Ratos corriam pelo assoalho quando entrei nos cômodos tive que  arrancar dos cantos e dos caixilhos enormes  teias de aranha. Os vizinhos não gostaram de  me rever. Afastavam os olhos e comentavam:

- É um egípcio e todos os males nos vem do  Egito.

Tive, portanto que ir primeiro para uma  estalagem, depois de dar ordem a Kaptah que  pusesse a casa em condições de ser habitada.  Em seguida fui visitar as casas comerciais  onde colocara meus fundos monetários. Após  aqueles três anos de viagens, eu regressara  inteiramente pobre, pois além do que possuía  comigo perdera ou gastara também o que  Horemheb me havia dado e tudo por causa dos  sacerdotes de Babilônia ou por causa de  Minéia.

Os armadores ricos ficaram pasmos quando me  apresentei diante deles. Cada qual pareceu  ficar com o nariz ainda mais comprido.  Cofiavam as longas barbas com ar de muito  raciocínio pois a minha demasiada ausência os  encorajara a pensar que a minha fortuna já era  deles. Ainda assim me prestaram conta  escrupulosamente de tudo e, não obstante o  naufrágio de alguns navios e a perda da minha  parte correspondente, a navegação e o comércio  dos demais tinham sido bastante prósperos.  Depois de tudo bem averiguado resultou estar  eu mais rico do que quando partira, sem  precisar, por conseguinte me preocupar com a  minha existência em Esmirna.

Contudo tais senhores me convidaram a  aparecer em suas salas, ofereceram-me vinho,  pão de mel e, esticando as carautonhas, me  disseram:

- Sinuhe, o médico: és nosso amigo e, por  mais que nos convenha negociar com o Egito,  não gostamos de ver os egípcios forçando  caminho por entre nós. O povo murmura e está profundamente exaltado  por causa do tributo que é obrigado a pagar ao  faraó. Ultimamente tem havido motins, alguns  egípcios foram apedrejados pelas ruas, porcos  mortos foram arremessados aos templos deles e  os nossos cidadãos não querem se apresentar em público  acompanhados ou acompanhando egípcios. Tu,  Sinuhe, és nosso amigo, e te respeitamos  sobremaneira devido à tua perícia médica da  qual não nos esquecemos. Assim pois nos cumpre  te esclarecer que ajas com prudência e que  tomes boa nota do que te explicamos. Tais  declarações me deixaram perplexo porque antes  da minha partida as pessoas de Esmirna  rivalizavam umas contra as outras nos meios e  processos tendentes ao merecimento do favor  dos egípcios e os convidavam a freqüentar suas  casas. Assim como os costumes sírios tinham sido adotados em Tebas, da mesma forma aqui em  Esmirna os homens acompanhavam as maneiras  egípcias. Aliás, Kaptah de certo modo  confirmou tais declarações quando, tomado de  furor, se queixou na estalagem:

- Sem dúvida um espírito mau se apossou  desta gente, pois se portam todos aqui como  cães danados, fingindo ignorar o idioma  egípcio. Atiraram-me para fora da taverna onde  eu me achava refrescando a garganta  ressequida, e vi que fizeram isso porque  descobriram que eu era egípcio. Perseguiram-me  com palavrões, e os garotos atiraram-me  esterco.

Dirigi-me então para uma outra taverna porque  minha garganta estava seca que nem restolho e  eu já não podia mais de tanta vontade de  emborcar a forte cerveja síria. Nessa  taverna, porém, tratei de ficar mudo que nem  defunto... O patrão há de avaliar quanto isso  me custou: não dizer palavra!  Mas era o que a prudência determinava; enfiei  pois o tubo de caniço na cerveja junto com os  demais e, moita!  Enquanto isso fui prestando atenção no que  diziam.

Queixavam-se de que Esmirna  antigamente fora uma cidade livre, que não  pagava tributo a ninguém, e que não desejava que seus filhos nascessem vassalos do faraó;  que outras cidades sírias tinham sido outrora  livres também e que, nas atuais  circunstâncias, todos os egípcios deviam ser  mortos a cacetadas, expulsos do país... Que  tal e o dever de todos os homens que amam a  liberdade e que não aturam mais a condição de  servos do faraó. Quanta estupidez!

Pois não sabem que a proteção do Egito os  garante mais do que a proteção dos governos  sírios? Se as cidades sírias fossem deixadas  autônomas se transformariam em gatos bravos  dentro de um saco arranhando-se e dilacerando-se uns aos outros  com grande desvantagem para a lavoura e o comércio.  Falam entusiasticamente do poder que tem e  proclamam a aliança de suas cidades. Eu, como  egípcio que sou, fiquei tão furioso com  tamanha besteira que, assim que o dono da taverna foi lá para longe um pouco, saí sem  pagar e amarfanhei meu tubo de caniço de  sorver bebida.

Quanto a mim não me foi necessário andar  muito pela cidade para averiguar a exatidão das palavras  de Kaptah. Ninguém me molestou porque tive a sagacidade  de vestir trajes sírios, mas os meus antigos conhecidos  agora voltavam a cara quando me encontravam;  vi que os demais egípcios se locomoviam  defendidos por guardas; mas mesmo assim os  homens os insultavam com zombarias e lhes  atiravam frutas podres e peixes estragados. No  entanto, não fiquei preocupado.

Decerto a  população síria estava exaltada por causa de  novas taxas e tumulto de tal jaez tenderia a  arrefecer já que a Síria colhia tanto proveito  do Egito quanto este colhia da Síria. E  pareceu-me também que as cidades do litoral sírio não se poderiam manter longo tempo sem cereais  egípcios.

Aparelhada que foi a minha casa, passei a  receber clientes e a tratá-los como  antigamente. Acorreram como,outrora porque  doença e dor não perguntam qual a raça do  médico e sim se tem capacidade.

Todavia, em conversa comigo, discutiam:

- Dizei-nos, egípcio se não é uma injustiça  que o Egito viva nos extorquindo tributos, nos explorando  e se cevando na nossa pobreza como uma enorme  sanguessuga? E não é uma injustiça também que  não possamos consertar nossas muralhas e  nossas torres já que tal é a nossa vontade  e que e que pagará tais consertos seremos nós  mesmos? Os nossos próprios conselheiros são  competentes , podem governar-nos direito sem que seja  necessária interferência egípcia na coroação e investidura de nossos soberanos ou na  administração da nossa justiça. Por Baal! Se  não fossem os egípcios, como estaríamos  adiantados e prósperos! Mas caem sobre nós  como gafanhotos  e o vosso novo faraó está exigindo que veneremos um novo deus, fato que decerto redundará em perdermos  o favor dos nossos.

Não desejei travar discussão com eles e  apenas redargüi:

- Contra quem senão contra o Egito quereis  fortificar vossas muralhas e torres? É incontestável que  esta vossa cidade foi livre e rodeada de muralhas no  tempo de vossos bisavós; mas derramastes sangue e vos  empobrecestes em incontáveis guerras com  vizinhos que ainda o os vossos príncipes não passavam de déspotas que  espezinhavam ricos e pobres.

Já agora estais protegidos dos vossos  inimigos pelos escudos e espadas do Egito, e  as egípcias asseguravam igualmente os direitos  dos ricos e dos pobres. Mas isso os irritou; foi com olhos  congestionados e com narinas tremulas que retorquiram:

- As leis egípcias são asquerosas e os seus  deuses abomináveis. Que importa que os nossos  príncipes antigos tenham sido déspotas e  injustos?...De mais a mais não acreditamos  que eles fossem assim! Pelo menos eram nossos  príncipes, e nossos corações nos dizem que a  injustiça numa terra livre é melhor do que a  justiça numa terra escravizada.

Disse-lhes:

- Não vejo entre vós quaisquer sinais de  escravidão; pelo contrário: cada vez engordais  mais e arrotais riquezas ;ganhas às expensas  da estupidez egípcia. Se fosseis livres,  afundaríeis os navios uns dos outros e  abateríeis as árvores frutíferas em contendas  mútuas. E nas estradas de vossas províncias  internas vossas vidas desde muito correriam  perigo.   Mas fizeram ouvidos moucos. Arremessaram  seus  donativos de pagamento de consulta e se  retiraram, declarando:

- Intimamente sois um egípcio embora useis  trajes sírios. Todos os egípcios são opressores e malfeitores  e o único egípcio bom nasceu morto.

A vista de tal estado de ânimos passei a me  sentir mal em Esmirna. Comecei a juntar todos  os meus bens preparando-me para partir. Precisava voltar ao  Egito para, de acordo com a minha promessa,  procurar Horemheb e relatar-lhe tudo quanto  observara em minhas viagens. Mas não me  ,apressei muito porque só a idéia de me  dessedentar nas águas do Nilo aquietou meu  ânimo; e assim o tempo se passou.

Certa noite eu voltava no escuro do templo  de Ishtar - após ligeira visita - como um homem sedento  que devido à sede, bebe na primeira fonte que depara.  Nisto dei com alguns homens vindo em direção a  mim e os ouvi dizer:

- Este homem não é um egípcio? Como  permitimos que um homem circuncidado se deite com as nossas  virgens e denigra o nosso templo?

Respondi-lhes:

- As vossas virgens, para as quais eu proporia um nome mais adequado, importam-se lá com raças ou  pessoas! Elas pesam o prazer pelo ouro que o homem traz na  bolsa. Não discuto com elas por causa disso já que me  habituei a pagar meus prazeres e estou  decidido a continuar sempre que tiver vontade.

Nisto, eles cobriram a cara com a capa,  atiraram-se contra mim, derrubaram-me no chão  e bateram a minha cabeça de encontro à parede.  Pensei que fosse morrer. Depois, enquanto me  roubavam, despojando meu corpo antes de me  arremessar no porto, um deles viu meu rosto e  exclamou:

- Este homem não é Sinuhe, o médico egípcio  amigo do rei Aziru?

Disse-lhes que sim e jurei que os mataria e  que lhes jogaria aos cães. Minha cabeça doía  excessivamente e eu estava furioso demais para ter medo.  Soltaram-me, devolveram-me a roupagem e  fugiram, cada qual escondendo o rosto atrás da capa. Não sei por que fizeram isto, pois me  havendo subjugado já não tinham nenhum  motivo para temer a minha ameaça.

Alguns dias mais tarde irrompeu a cavalo  diante da minha porta um mensageiro. Ora, isso  constituía uma raridade, pois um egípcio  nunca viaja a cavalo, quase se podendo dizer o  mesmo de um sírio. Restringe-se tal hábito aos viajantes do deserto, porque o cavalo é um  bicho grandalhão, indócil, que dá coices e  dentadas quando alguém tenta montá-lo,  comportando-se de modo muito diferente do  burro que se afaz a todos os usos. Tal homem irrompeu diante da minha porta num  animal resfolegante, coberto de escuma e de cuja  boca pingava sangue. As vestes do viajante  me esclareceram que vinha das serras onde  abundam rebanhos; seu rosto evidenciava  intensa agitação.

Embarafustou portal adentro, nem articulou  direito uma saudação e já exclamava com nervosismo:

- Manda vir imediatamente a tua liteira de  viagem, Sinuhe, e segue-me sem demora. Venho da terra  de Amurru cujo rei, Aziru, mandou te buscar. Está com o  filho doente e ninguém acertou ainda o  tratamento. O rei  acha-se em fúria como um leão nas brenhas e  quebra os ossos de quem quer que se aproxime.  Portanto, pega em tua mala de remédios e  segue-me depressa, do contrário te arrancarei  com um golpe a cabeça para fora dos ombros e a  farei rolar rua abaixo a pontapés.

- A minha cabeça separadamente seria de  pouco uso para o rei. Todavia perdôo a tua impetuosidade e te  seguirei...não por causa das ameaças mas  porque Aziru é meu amigo e quero ajudá-lo.

Ordenei a Kaptah que fosse buscar uma  liteira, e acompanhei o mensageiro tomando-me  de contentamento. Sentia tamanha solidão que  me empolgou até mesmo a perspectiva de um  encontro com Aziru cujos dentes eu outrora  obturara a ouro. Mas assim que chegamos à  entrada de um desfiladeiro meu estado de ânimo  se sombreou de novo porque eu e o meu grande estojo de remédios fomos içados para dentro de  um carro militar puxado por cavalos selvagens.  Corríamos por entre pedras e rochas que me  davam a impressão de a todo momento ir me  fraturar todo; instintivamente soltava gritos  de terror. Meu companheiro ficou muito para  trás em seu cavalo exausto e meu desejo era  que ele quebrasse o pescoço.

Ao cabo de longo percurso me transferiram do  carro para um outro atrelado a cavalos novos. Eu nem  sabia em que posição estava, e apenas gritava para os  condutores: "Imundos! Carniça! Varejeiras!",  golpeando-lhes as costas com socos quando  chegamos a regiões mais planas que me  possibilitaram soltar as mãos da orla do  carro. Os condutores não se preocupavam  comigo, agitavam as rédeas e estalavam os  chicotes de tal forma que saltávamos por entre  lajes e eu cuidava que as rodas iam se  desprender a qualquer momento.

Desta forma nossa viagem para Amurru não foi  longa; antes do poente entramos numa cidade rodeada  por  muralhas recentemente construídas e que eram  patrulhadas por soldados munidos de escudos;  mas as portas nos foram franquiadas.

Embarafustamos pela cidade adentro em meio ao  zurrar de jumentos e o goelar de mulheres e  crianças enquanto cestos de frutas voavam  pelos ares e inúmeros potes eram esmagados  pelas rodas pois os condutores não se  importavam com o que lhes embaraçava o  caminho.

Quando me soergueram e me retiraram do  veículo, eu nem podia andar, de tal modo meu corpo vacilava  como o de um bêbado. Os condutores, agarrando-me pelos  braços, fizeram-me entrar no palácio seguido por  escravos que carregavam minha arca de  remédios. Mal transpuséramos o primeiro  pórtico colgado de escudos, peitorais e  espadas, quando Aziru veio ao nosso encontro  barrindo como um elefante ferido. Rasgara as  vestes, cobrira de cinza os cabelos e  arranhara a cara com as unhas,  ensangüentando aquela e estas.

Aziru abraçou-me calorosamente, em pranto, e  disse:

-Salva o meu filho, Sinuhe!...Cura-o e tudo  que me pertence será teu!

Respondi:

- Mostra-mo primeiro para que eu veja se o  posso curar.

Conduziu-me imediatamente para um grande  aposento aquecido por um braseiro apesar de ser verão.  Ali dentro a atmosfera sufocava. No centro do assoalho  se achava um berço onde jazia um infante de menos de um ano  de idade enrolado em roupas de lã. Gritava tão alto que  seu rostinho até ficava de cor azul intensa e o  suor lhe porejava pela testa abaixo. Apesar  de tão novinho tinha um cabelo tão espesso  quanto o do pai. Não consegui ver que era  que o afligia tanto; se estivesse morrendo não  haveria de gritar tão fortemente assim.  Prostrada no assoalho, ao lado do berço,  jazia Keftitu, a mulher que eu outrora  entregara a Aziru. Estava mais gorda e mais  branca do que antes e seu corpo  desmesurado balançava sempre que a testa  batia no chão em sinal de desgosto, lamento e  desespero. Dos cantos do amplo aposento  vinham os gritos das escravas e das amas cujos rostos estavam inchados por causa dos  golpes desferido por Aziru por não lhe  curarem o filho.

- Reanima-te, Aziru - disse eu. - Teu  filho não está morrendo. Mas preciso me lavar antes de  examiná-lo. Manda retirar daqui este maldito braseiro  antes que torremos!

- Keftiu ergueu logo do chão a cabeça e  disse, amedrontada:

- A criança se resfriará!...

Nisto seus  olhos deram  comigo. Então se ergueu, sorriu, compôs os  cabelos e as vestes e disse:

- Sinuhe sois  vós?!...

Mas Aziru juntou as mãos e grunhiu:

- O menino não consegue comer nada. Vomita  tudo, e tem o corpo muito quente. Há já três dias que  não toma nada, propriamente... Só faz chorar e a tal  ponto que  estraçalha meu coração.

Disse-lhe que mandasse sair as escravas e as  amas. Obedeceu-me humildemente, esquecido de  vez de sua dignidade.

Depois que fiz minha  ablução, soltei as roupas do menino e mas  retirei. Em seguida escancarei as janelas  e logo o aposento se refrescou com o ar  fresco do cair da noite. A criança  instantaneamente serenou. Os gritos cessaram,  as perninhas gordas começaram a se  agitar apalpei-lhe o corpo, detendo-me mais  sobre o ventre, até que de repente me acudiu  uma idéia: enfiei o dedo em sua boquinha.  Minha suposição fora acertada irrompia da  gengiva o primeiro dente parecendo uma  pérola. Exclamei então, zangado:

- Aziru, Aziru! Foi para isto que os teus  cavalos arrastaram até aqui o médico mais  célebre de Esmirna? Teu filho não tem doença  nenhuma... Ele é apenas tão impaciente e  irritável quanto o pai. Pode ser que tenha tido um pouco de febre,  mas agora já passou. Se vomitava era porque  tinha o bom-senso de salvar a própria vida, já  que o empanturravam com muito leite; já é  tempo de Keftiu desmamá-lo acostumando-o a  alimentos adequados, do contrário ele acabará  mordendo os bicos dos seios maternos.  Sim, pois cumpre que saibas que teu filho chorava por petulância, por causa da  aresta do primeiro dentinho...Caso não  acredites, examina e vê.

Abri a boca da criança e mostrei o dente a  Aziru que se tomou de júbilo selvagem, bateu palmas,  dançou pelo aposento fazendo o assoalho  estremecer. Mostrei o dente a Keftiu também  que jurou jamais haver visto dente tão lindo na boca de uma criança. Como quisesse enrolar  o filho outra vez em peças de lã proibi e o  envolvi apenas em linho fresco para que o ar  da noite não o resfriasse.    Aziru continuava a dançar, a sapatear e a  cantar em voz estentórica, inteiramente alheio à trabalheira  que me dera de vir de tão longe. Insistiu em  mostrar o dente do filho aos membros da sua  corte e aos seus oficiais. Até mesmo os guardas das muralhas foram chamados para  examinar o incipiente incisivo. Todos rodearam  afoitamente o berço, em meio ao ressoar de  escudos e espadas, admirando a criança e  querendo enfiar os dedos sujos na boca do  infante para ver e sentir o dente. Foi  preciso que eu os mandasse sair  intempestivamente e dissesse a Aziru que se  dominasse pelo menos em nome de sua dignidade  pessoal.

Aziru ficou apatetado e considerou:

- De fato esqueci tudo isso e fiz um  escarcéu  desnecessário. É que passei muitas noites  acordado junto deste berço, com o coração  aflito. Mas deves compreender que se trata de  meu filho, sim, do meu primogênito, do meu  príncipe, da minha jóia, da pupila dos meus  olhos, do meu leãozinho que um dia usará a  coroa de Amurru e governará muitas terras. Pois é deveras meu intento tornar grande esta  nação, válida como herança, para que ele louve  o nome paterno. Sinuhe, Sinuhe, nem sabes  quanto te estou grato por me haveres tirado  tamanha dilema de cima do coração. Hás de  reconhecer que jamais viste um garoto mais  bonito durante todas as tuas viagens. Olha  para o cabelo dele - parece a juba de um leão  - e dize-me se por ventura já viste cabelo  assim numa criança desta idade! Tu próprio  reparaste que o dente parece uma pérola sem  mácula, refulgente... Olha para os braços, as  pernas!...

Fiquei tão cansado da sua lengalenga que  redargüi que ele mais o filho fossem para o mais profundo  dos subterrâneos; declarei-lhe que me achava  com os membros tolhidos por causa da tremenda  abalada desde Esmirna até ali e ignorava se  estava com os pés ou com a cabeça no chão. Mas Aziru acalmou-me com maneiras e  palavras, passou o braço em torno dos meus  ombros, ofereceu-me lauto jantar em rica  baixela, carneiro assado, arroz com fatias de  lombo, bem como vinho em gomis de ouro.  Retemperei-me, perdoei-lhe tudo.

Permaneci como seu hóspede durante alguns  dias.  Deu-me opulentos presentes e bastante ouro e  prata; sua fortuna crescera muito depois do  nosso último encontro. De que modo o seu pobre  país se enriquecera não me contou, mas riu por sob a barba e declarou que a esposa que eu lhe  dera lhe acarretara boa sorte. Keftiu também  se mostrou cordial, testemunhando alto  respeito, decerto por se lembrar das  bastonadas com que muitas vezes eu provara a  consistência da sua pele. Acompanhava-me por  toda parte, saracoteando com a maior  opulência, olhando-me ternamente e acariciando-me com o  sorriso. Tão ardente era o amor de Aziru por  Keftiu que raramente visitava as demais  esposas, e isso mesmo fazendo por mera  cortesia, pois eram filhas dos chefes tribais  cuja aliança sabia manter prudentemente.

Eu viajara tanto e vira tal quantidade de  nações que Aziru sentiu impelido a se jactar  do seu poderio. Falou demais, razoavelmente no  futuro imediato se tendo arrependido.

Foi assim que vim a saber que os homens que  me atacaram em Esmirna e quase me jogaram no porto eram  agitadores remetidos por ele e que, por intermédio dos  mesmos, viera a se retificar do meu regresso. Deplorou o que me sucedera mas acrescentou:

- Evidentemente tem que haver muitos  egípcios de  cabeças quebradas, e muito soldado egípcio tem  que ser atirado nas águas do porto até que  Esmirna, Biblos, Gaza e Sido se dêem conta de  que os egípcios não são invulneráveis, que uma vez sangrados a vida lhes foge com o sangue  uma vez o couro lhes sendo aberto. Os  mercadores da Síria são cautelosos demais, os  príncipes muito tímidos e o povo tão inerte  como bois. Cabe-me alertar toda essa gente,  guiá-la, mostrar-lhe as vantagens.

Perguntei-lhe:

- Mas por que motivo, Aziru? E por que  razão tens tanto ódio dos egípcios?

Cofiou a barba anelada e disse com um  sorriso:

- Quem disse que eu os odeio, Sinuhe? Acaso  te odeio? Cresci no palácio dourado do faraó, como meu  pai antes de mim e todos os outros  príncipes egípcios. Aprendi acolá que perante os olhos das  pessoas cultas todos os povos não passam de um  todo; que nenhuma nação é mais valorosa ou  mais covarde do que a outra, ou mais cruel ou  mais generosa; ou então mais ímpia ou mais  distinta. Que entre todas as raças existem  heróis e pusilânimes, homens direitos e  tratantes E isso é verdade tanto na Síria  como no Egito. Por isso os governos não odeiam  ninguém e reconhecem não haver diferença entre as nações... Mas o ódio é uma grande força na mão de quem governa! É mais poderoso  do que quantidades e quantidades de armas porque sem  o ódio nenhum braço é suficientemente forte para  manobrar uma arma. Ora aí está por que motivo estou  fazendo quanto posso para semear ódio entre a Síria e o  Egito. Todas as cidades, todas as raças da Síria devem  aprender que os egípcios são mais covardes,  mais cruéis, mais corruptos, mais ambiciosos,  mais ingratos e mais desprezíveis do que os  sírios.  Tem que aprender a cuspir sempre que ouvirem  falar em tal povo e devem considerá-lo como bandos de  usurpadores, opressores, violadores de crianças, até que  tal ódio consiga remover montanhas.

- Mas nada disso é verdade conforme tu mesmo  asseveraste ainda agora.

Encolheu os ombros, agitou as mãos, e disse:

- Que é a verdade, Sinuhe? Quando o sangue  sírio houver absorvido suficientemente a verdade  que lhes ofereço jurarão por todos os seus  deuses que essa é a única verdade, e não  acreditarão em ninguém que afirme o contrário. Persuadir-se-ão que são um povo mais forte,  mais bravo e mais correto do que qualquer  outro povo do mundo. Imaginarão que amam a liberdade bem mais do  que temem a morte a fome e as vicissitudes. E estarão  dispostos a pagar qualquer preço para obte-la.  Ensinar-lhes-ei isso; muitos acreditam e cada  crente irá convertendo outros até que a nova verdade se alastre como um fogo de sarça  através da Síria inteira. É ou não é verdade  que o Egito outrora invadiu a Síria com fogo e  sangue? Portanto com fogo e sangue daqui deve  ser expulso.

- Mas a que liberdade te referes quando lhes  falas? - perguntei-lhe, apreensivo com as suas  considerações concernentes ao Egito.

Tornou a erguer as mãos e disse com novo  sorriso  perspicaz:

- Liberdade é uma palavra que tem muitos  significados. Alguns a trocam por uma coisa, outros por  outra; mas isso não tem nenhuma importância  enquanto a liberdade total não for atingida. Muitos homens são necessários para que a liberdade seja alcançada. Uma vez ganha, o mais garantido é não dividí-la pelos demais e sim rete-la. Creio que a terra de Amurru será chamada um dia o berço da liberdade. Uma nação que acredita em tudo quanto lhe é dito é como um gado que transpõe uma passagem guiado por um bordão ou como um rebanho que acompanha o chocalho sem refletir para onde é levado. Parece-me que serei eu quem conduzirá o gado e guiará o rebanho.

- Deves de fato ter uns miolos de carneiro  para falares assim tão perigosamente. Quando o  faraó estiver ciente disso enviará seus carros  e suas espadas conta ti. Derrubará tuas muralhas e te dependurará junto  com filho de cabeça para baixo na amurada do  seu navio de guerra quando regressar a Tebas.

Aziru apenas sorriu. ..Não me parece que corra algum perigo da  parte do faraó, pois recebi de suas mãos o símbolo da vida e  ergui um templo ao seu deus. Acredita em mim  mais do que em qualquer outra pessoa da  Síria...Mais até do que em seus em seus  emissários ou nos oficiais de guarnição e que  veneram Ammon. Vou agora mostrar-te uma coisa  bem interessante.

Levou-me até às muralhas e mostrou-me um  corpo nu e ressequido que pendia da muralha  preso pelos tornozelos; estava recoberto de  moscas.

- Chega mais perto e verás que se trata de  um homem circuncidado; realmente, é um  egípcio. Era cobrador de impostos do faraó;  teve a ousadia de vir examinar minuciosamente  tudo a ponto de descobrir que eu me achava  atrasado um ano ou dois com o meu tributo em  dinheiro. Meus soldados divertiram-se muito  com ele antes de dependurá-lo na muralha por tamanha desfaçatez. Com isto consegui  especificadamente que os egípcios não viajem  de bom grado pela terra de Amurru, mesmo ele  grandes bandos; e os mercadores preferem pagar  suas taxas a mim e não a eles. Apreenderás o  sentido disso quando eu te disser que Megido  se acha sob o meu domínio, obedecendo às  minhas ordens e não à guarnição egípcia que se aboletou na fortaleza e não ousa se aventurar  pelas ruas da cidade.

Estarrecido, disse-lhe:

- O sangue deste pobre homem cairá sobre a  tua cabeça. Tua punição será terrível quando o fato for  conhecido, pois se há uma coisa em que não se  bole no Egito é num cobrador de impostos.

Procurei explicar-lhe que tinha uma noção  errada da riqueza e da majestade do Egito e o  adverti quanto ao seus despautérios.

Fiz-lhe ver que até mesmo um saco de couro  incha quando cheio de ar mas que uma vez  perfurado se amarfanha. No entanto Aziru  apenas ria fazendo cintilar seu dente de ouro;  e encomendou mais carneiro assado que foi  trazido em pratos de prata de modo a exibir  sua riqueza.

Seu gabinete estava cheio de lousas de  argila porque os mensageiros lhe traziam combinações e acordos  de todas as cidades da Síria. Recebia  comunicados também do rei dos hititas e até  mesmo de Babilônia, fato que não deixou de se jactar muito embora não me deixasse ver o  conteúdo. Mostrou muita curiosidade em me  ouvir falar sobre a terra dos hititas; mas  percebi que sabia tanto quanto eu a tal  respeito.

Os emissários hititas visitavam-no e falavam  com seus guerreiros e chefes de tribos. Quando  averigüei isso disse:

- O leão e o chacal podem fazer aliança para  caçar a mesma presa... mas acaso já viste os  pedaços que acabam constituindo a parte do  chacal?

Novo sorriso.

- Grande é a minha sede de conhecimento e,  como tu, gostaria de aprender novas coisas;  mas os negócios de Estado me impedem de viajar  como tu que não tens responsabilidades e és  livre como os pássaros do ar. Que dano há,  por conseguinte, se os oficiais hititas  aperfeiçoam os meus chefes de tribo nas artes  da guerra? Dispõem de armas novas e da  experiência que nos falta. Isso só pode  redundar em vantagem do faraó, pois caso venha  alguma guerra... Ora, não tem a Síria sido um  escudo do faraó e muitas vezes ficando bem  ensangüentado? Eis uma coisa que devemos  lembrar quando tivermos que computar nossas  contas.

Ouvindo-o falar em guerra me lembrei de  Horemheb e disse:

- Estou abusando da tua hospitalidade; devo  agora voltar para a Síria. Poderás por à minha  disposição uma liteira? Nunca mais subirei num desses carros  medonhos. Prefiro ser abatido imediatamente.  Esmirna se tornou um deserto para mim e sem  dúvida já suguei bastante, senão  demasiadamente, o sangue da pobre e exânime  Síria. Minha idéia é embarcar para o Egito.  Talvez não nos tornemos a ver durante muito  tempo... Talvez não nos vejamos nunca mais  porque a lembrança da água do Nilo deleita a  minha boca. Quem sabe se agora não me restringirei a bebe- la para sempre, já que vi suficientemente os  males do mundo, boa parte dos quais me foi  relatada por tua boca?

Aziru replicou:

- Que homem há que saiba o dia de amanhã?  Seixos rolados não juntam musgo, e a inquietação que  fulgura em teus olhos não permitirá que te  detenhas longo tempo num único lugar.

Despedimo-nos amistosamente. Deu-me uma  liteira e muitos presentes, e seus guerreiros  me escoltaram no meu regresso a Esmirna para  que eu não sofresse violência da parte de  ninguém pelo fato de ser egípcio.

Ao transpor as portas de Esmirna uma  andorinha passou que nem uma seta rente à minha cabeça; meu  espírito alvoroçou-se; a rua queimava meus pés. Assim  que atingi minha casa disse a Kaptah:

- Reúne nossos pertences e vende a casa.  Vamos para o Egito. Não é necessário descrever a nossa viagem que  para mim é agora como uma sombra ou um sono  inquieto. Quando por fim subi para bordo do  navio que devia me levar de volta para Tebas,  a cidade da minha infância, uma saudade tão  intensa e ilimitada se apossou da minha alma  que eu não podia ficar sentado, em pé ou  deitado; tive pois que andar incessantemente  pelo convés atulhado de esteiras enroladas e  de fardos de mercadoria. O cheiro da Síria  perdurava em minhas narinas, e cada dia que  passava fazia aumentar a minha ânsia de  rever, em lugar da costa rochosa, certa ourela  baixa e verde com alcatifas de caniços.  Sempre que o navio se detinha durante dias na  extremidade de um cais das cidades litorâneas,  eu não tinha serenidade bastante para baixar à terra, ir percorrer as ruas e obter  informações. O zurrar dos jumentos na praia  misturado com os pregões dos peixeiros e o  zumbido de línguas estrangeiras, tudo isso  formava em meus ouvidos uma zoeira inseparável  da que ocasionam as ondas. A volta da  primavera se entremostrava nos vales da Síria. Vistas da banda do mar as colinas eram  vermelhas como vinho, e ao cair das tardes o  espadanar das vagas nas praias formava uma  faixa esverdeada. Os sacerdotes de Baal provocavam retumbante movimento nas alamedas  estreitas; produziam golpes no rosto com  facas de cristal até o sangue jorrar  enquanto mulheres de olhos ardentes e  cabeleiras soltas os seguiam carregando  padiolas de madeira. Mas tudo isso eu já vira  muitas vezes, antes. Essas maneiras esdrúxulas  e esse paroxismo brutal revoltavam-me porque  diante dos meus olhos já flutuava uma  discreta imagem da minha pátria.

Cuidara que meu coração se empedernira, que  já agora me afeiçoara a todos os costumes e  crenças, que compreendia os povos de todas as  cores e a todos acatava, e .que meu único  intento tinha sido e ainda era acumular  conhecimento. No entanto a averiguação de  que me achava de regresso à Terra Negra  irrompeu como uma chama viva através de minha alma.

Pus de lado meus pensamentos do mundo como  roupagens estrangeiras, e mais uma vez me  tornei egípcio. Que vontade de sentir de novo  o cheiro de peixe frito na hora do crepúsculo  nas ruas de Tebas quando as mulheres acendem  seus fogões diante das choupanas! Que saudade  do gosto do vinho egípcio e das águas do Nilo  com seu travo de lama fértin Que ânsia de  poder ouvir novamente o sussurrar dos caniços  de papiro na brisa vespertina, de rever o  cálice da flor de lótus se entreabrir nas  vargens, de contemplar a escrita em imagens  nos templos, de fitar os pilares coloridos,  cheios de imagens eternas, e de surpreender o  aroma do incenso entre os mesmos pilares! A  tanto subira o alvoroço em meu coração.

Regressava à pátria, conquanto não tivesse  pátria e fosse um estrangeiro na face da  terra. Estava de volta à pátria e a memória  não me pungia mais. O tempo e o conhecimento  adquirido se tinham acamado como areia em cima  daquela amargura; já não sentia mais opróbrio  nem mágoa; apenas uma ânsia inquieta contraía  meu coração.

Da banda da ré a terra síria ia esmaecendo,  assim  próspera, fértil, fervilhando de ódio e  desassossego. Nossa nave, impelida agora pelos  remadores, deslizou ao rés das praias do  Sinai, e os ventos do deserto sopravam quentes  e secos por sobre nossas faces, conquanto  estivéssemos na primavera. Certa manhã porém, aquela banda esquerda do  mar se apresentou amarelenta e, além dela a terra era  como uma estreita fita verde. Os marinheiros  mergulharam num cântaro que foi recolhido  cheio de uma água que não era salgada: era a  água do Nilo, tinha gosto de terra do Egito.  Nem mesmo o vinho jamais me foi mais saboroso  do que essa água barrenta colhida tão longe  ainda em alto mar.

Kaptah observou:

- Água é sempre água, mesmo quando do Nilo.  Tenha paciência, meu senhor, até que desçamos a uma  boa taverna onde haja cerveja clara e  espumosa, dessa que a gente não precisa sorver  por meio de um canudo de caniço para evitar os grumos de levedo. Então, sim, então somente é  que me darei conta de que cheguei à pátria.

Seu ímpio tagarelar me irritou; retruquei- lhe:

- Uma vez escravo eternamente escravo, mesmo  quando envolto em lã fina. Tem paciência mais  um pouco, Kaptah, até que eu arranje um junco  flexível... um desses que a gente só consegue  cortar nos manais do Nilo... Então, sim é que  sem dúvida te darás conta de que chegaste à  pátria.

Não se mostrou ofendido; pelo contrário,  com os olhos cheios de lágrimas e com o  queixo a tremer, se inclinou diante de mim  estendendo as mãos ao nível dos joelhos.

- Na verdade o meu senhor tem o dom de  proferir a  palavra certa no momento adequado, pois eu já  havia esquecido quão doce é a carícia de um  junco flexuoso nas pernas e nos lombos. Ah!  Sinuhe, meu senhor, trata-se de uma experiência da qual eu desejaria que o patrão  também participas. E melhor do que a água  ou a cerveja, do que o incenso ou o pato bravo  por entre os caniços... Muito mais  eloqüentemente do que tudo isso ela fala da  vida no Egito onde cada um reencontra seu  lugar apropriado e onde tudo é imutável. Não  se admire se me ponho a chorar de emoção porque somente agora é que estou sentindo que  regresso depois de haver visto apenas coisas  exóticas, espantosas e desprezíveis. Ó  abençoado junco, que repões cada um em seu  respectivo lugar e solucionas todos os  problemas! Não há nada como tu!

Choramingou ainda algum tempo e depois foi  ungir o escaravelho; mas descobri que já não empregava  óleo fino, como antes. É que a terra estava  perto e ele considerou decerto que, uma vez no  Egito, lhe bastaria sua própria astúcia.

Quando ancoramos no grande porto do Baixo  Reino  verifiquei pela primeira vez quão cansado eu  estava de vestuários coloridos e volumosos, de  barbas onduladas e de corpos gordalhufos. As  ilhargas estreitas dos carregadores, suas sungas ou tangas, seus queixos raspados, seu  idioma que era o do Baixo Reino, o cheiro do  seu suor e do barro do rio, do porto e dos  caniços - tudo era diferente da Síria, tudo me  era conhecido e íntimo.    O traje sírio que eu trazia começou a me  sufocar e pesar. Assim que ultimei meus  negócios com. os funcionários do porto e  escrevi meu numa porção de papéis, saí  imediatamente a comprar roupagens novas. Após  tanto exagero de lã, o linho leve era suave em  cima da pele. Mas Kaptah resolveu prosseguir  vestido como um sírio porque receava que o seu nome pudesse constar ainda da lista de  escravos fugidos, muito embora houvesse  arranjado das autoridades da Síria uma lousa  de argila certificando que nascera escravo na  Síria onde fora legalmente comprado por mim.

Depois disso embarcamos com as nossas  bagagens numa embarcação fluvial para  continuar nossa viagem Nilo acima. Os dias iam passando, aproximando-nos cada vez  mais do âmago do Egito. Em ambas as margens  estendiam-se campos enxutos onde bois  vagarosos arrastavam arados de madeira e  lavradores seguiam os sulcos, de cabeça baixa,  semeando o grão.

Andorinhas ondulavam com  chilreios ansiosos por sobre as águas lentas e  o barro dentro do qual em breve sumiriam durante o calor do ano. Palmeiras ondulantes  ladeavam as margens e, à sombra de altos  sicomoros, se aglomeravam choupanas de  aldeias. A embarcação tocava no cais de  cidades pequenas ou grandes e não havia uma  única taverna ao longo das margens de acesso  para onde Kaptah não corresse a fim de molhar  a garganta com cerveja egípcia, para se gabar  e contar episódios fantásticos de suas viagens  e do meu talento e engenho enquanto uma  assistência de estivadores ouvia, dava  risadas, gracejava e invocava os deuses.

Assim vi outra vez os cumes das três colinas  de encontro ao céu oriental, as três colinas  guardiãs eternas de Tebas.

Os edifícios agora pareciam mais  conglomerados; pobres aldeias tinham sido  substituídas por subúrbios ricos em torno das  muralhas da cidade que se erguiam altas como  montes.

Vi a cobertura do grande templo, e seus  pilares, os incontáveis prédios que o cercavam  e o lago sagrado. Para a banda ocidental a  Cidade dos Mortos se estendia até aos montes.  O templo da morte dos faraós reluzia muito  alvo entre as vertentes verdejantes, e os  renques de colunas no templo da grande rainha  ainda pareciam um mar de árvores em flor.

Além das colinas se encravava o vale  proibido com suas serpentes e seus escorpiões  e onde, na areia da entrada da tumba do grande  faraó, os corpos mumificados de meus pais  Senmut e Kipa jaziam em repouso eterno. Mais  para o sul, ao longo da praia fluvial, se  erguia a casa dourada e majestosa do faraó  quase etérea entre as muralhas e os jardins.

Estaria residindo acolá o meu amigo Horemheb?

A embarcação aproximou-se de um cais de  pedra bem meu conhecido. Nada havia mudado, e não muito  longe dali, em certa rua, estava o lugar onde  eu passara a minha infância sem supor sequer  que mais tarde daria cabo da vida de meus  pais.

A areia do tempo, que se acamara por  sobre essas amargas recordações, se deslocou  um pouco. Tinha vontade aguda de me esconder,  de cobrir a cabeça, e não senti alegria  nenhuma, não obstante o marulhar da grande  cidade atingir novamente os meus ouvidos e a  pressa e a movimentação das pessoas  transmitirem aos meus sentidos o pulsar  febril de Tebas.

Eu não fizera planos com referencia ao meu  regresso, deixando que tudo dependesse do meu  encontro com Horemheb e da sua situação na  corte. Mas quando meus pés tocaram as pedras  do cais um projeto se aninhou em minha cabeça,  plano esse que não prometia fortuna nem  fama... e nem donativos pródigos em recompensa  de todos os conhecimentos adquiridos, conforme eu sonhara primitivamente, mas tão  somente uma vida obscura e simples entre  clientela pobre   Todavia meu espírito se encheu com uma  estranha serenidade quando vi meu futuro revelado  assim. Essa  solução, esse fruto secreto da experiência,  amadurecera dentro de mim, discretamente.  Quando ouvi o bulício de Tebas em redor de mim e meus pés tocaram as pedras cálidas do  desembarcadouro, foi como se me transformasse  outra vez em criança a contemplar com olhos  solenes e curiosos meu pai Senmut atender à  sua clientela.

Afastei os carregadores que me molestavam  ruidosamente altercando uns com os outros e  disse a Kaptah:

- Deixa a nossa bagagem na embarcação e vai  depressa comprar uma casa... uma casa  qualquer, contanto que esteja situada perto  do porto no bairro pobre e do lugar onde  existiu a casa de meus pais antes de ser  derrubada. Arranja isso hoje mesmo para que  eu possa me instalar logo e principiar amanhã  mesmo a minha tarefa profissional.

Kaptah encarou-me com a mandíbula caída e a  cara  transformada numa verdadeira máscara de  assombro. Estava certo de que nos dirigiríamos  para o melhor hotel, e ali estávamos esperados  apenas por escravos. Ainda assim ao menos uma  vez não proferiu palavra alguma de protesto e,  fitando bem a minha fisionomia, fechou a boca  e lá se foi de cabeça baixa.

Naquela mesma noite me transferi para uma  casa no bairro pobre, casa essa que tinha  pertencido a um fundidor. Minha bagagem foi  transportada até lá e estendi minha esteira no  chão de terra batida. Fogões acesos diante das  choupanas dos pobres cintilavam na treva, e o  cheiro de peixe frito flutuava através da  atmosfera de todo aquele bairro sujo, devastado e doentio. Depois, lâmpadas foram  acesas diante das portas das casas de  divertimentos, e música síria começou a vibrar  nas tavernas fundindo-se com a celeuma de  marujos bêbados; e o céu por cima de Tebas  tinha um fulgor vermelho proveniente das  inúmeras luzes do centro da cidade.

Eu viajara pelas mais recuadas estradas  estrangeiras acumulando sabedoria e fugindo de  mim próprio; e agora regressava.

Na manhã seguinte ordenei a Kaptah:

- Arranja-me uma insígnia de médico para ser  colocada em cima da minha porta; quero que  seja bem simples, sem ornamentos nem  pinturas.E caso alguém procure se informar a  meu respeito a meu respeito não fales da minha  fama nem da minha habilidade; responde apenas  que sou o médico Sinuhe, que recebo pacientes  quer pobres quer ricos e que aceito os  donativos que lhes permitam as posses.

- Pacientes pobres? - considerou Kaptah com  surpresa e assombro. - O meu senhor estará em  seu juízo certo? Não terá bebido água  pantanosa? Não terá sido atacado por um  escorpião?

- Trata de obedecer-me se é que desejas  ficar comigo. Se esta casa simples não serve  para a tua mentalidade, se o cheiro da pobreza  ofende teu delicado nariz sírio, então tens  licença de escolher o que melhor te aprouver.  Decerto me roubaste bastante e estás apto,  portanto, a comprar uma casa e arranjar uma  mulher, caso queiras. Não te molestarei.

- Uma mulher? - exclamou Kaptah com espanto  ainda maior. - Não resta dúvida de que o meu senhor  está doente e acometido de febre mental. Para  que hei de eu arranjar uma mulher que me  maltratará, que cheirará meu hálito quando eu voltar da cidade e que quando eu acordar de  manhã com dor de cabeça se plantará ao lado da  cama com um porrete na mão e com  descomposturas na boca? Para que arranjar uma  mulher se a escrava mais comum satisfará meus  interesses? Já debati esta questão com o meu  senhor. Ora, quem manda, aqui? É o meu amo, cujos  acertos e erros também me tocam, não obstante  minha determinação de paz e de sossego ao cabo  de tantas aventuras em que o patrão me meteu.  Portanto se caniços servem de leito para o meu  senhor por que motivo não servirão para mim?  Apesar da miséria que nos rodeia neste bairro,  ainda assim há alguma vantagem: por exemplo,  tavernas e alcouces situados a pouca  distância. A taverna chamada O Rabo do  Crocodilo, da qual já lhe falei, é perto  daqui. Espero que o patrão consinta que eu vá  até lá e me embebede. Tudo o quanto se passou  hoje me abalou profundamente, e urge que eu  esqueça. Jamais acreditaria em tamanho disparate! Somente um louco esconderia uma  jóia dentro de um monte de esterco; e é o que  faz o meu senhor enterrando aqui neste bairro  a sua ciência e perícia.

Disse-lhe:

- Kaptah, todos nós nascemos nus, e na  doença não existe diferença entre ricos e  pobres, entre egípcios e sírios.

- Pode ser, mas nos donativos que trazem ao  médico existem grandes diferenças - sentenciou  Kaptah. - O pensamento do patrão não deixa de  ser bonito e nada teria eu a opor se outra  fosse a pessoa encarregada de efetuá-lo. Mesmo  porque já agora, depois de tantas  vicissitudes, chegou nossa vez de balançar no  galho dourado. A sua idéia se adapta mais a uma pessoa nascida escrava; eu mesmo quando  era bem mais jovem tinha pensamentos desses,  mas algumas bastonadas me restituíram o juízo.

- Para que possas apreender bem o meu  intento geral digo até que se encontrar uma  criança abandonada a adotarei e educarei como  se fosse minha.

- E para que? - perguntou Kaptah, admirado.  - No  templo há um asilo para os enjeitados. Alguns  deles chegam a ser sacerdotes menores, ao  passo que outros, reduzidos a eunucos, levam  vida faustosa nos haréns do faraó e dos  nobres; vida que as mães deles jamais  sonhariam. Se o meu senhor deseja um filho - o  que aliás é mais do que compreensível - não há  desejo de realização mais fácil. Se não quer  comprar uma escrava, pode a qualquer momento  seduzir qualquer moça pobre que se mostrará  feliz e grata pelo fato do meu senhor tomar  conta da criança e livrá-la da vergonha. Mas as crianças incomodam, e a alegria que  dizemos que produzem é sem dúvida um exagero  de expressão. Verdade é que não posso falar  muito a tal respeito porque nunca vi um filho  meu, muito embora deva ter deixado alguns por  esse mundo além. Seria muito mais razoável que  o meu senhor adquirisse hoje mesmo uma escrava  bem jovem. Ela me serviria de auxílio também  pois já estou com os braços e as pernas bem  cansados e minhas mãos tremem em conseqüência  de tantas aventuras; de manhã ainda tremem  mais.  Tomar conta da casa e preparar a comida é  tarefa demasiada para mim principalmente se  considerarmos que tenho que administrar suas  rendas.

- Não tinha pensado nisso, Kaptah. Contudo,  não  comprarei uma escrava. Podes alugar um criado,  se quiseres, pois aí está uma providencia que  mereces. Se ficares em minha casa terás  liberdade total de locomoção, e isso por causa  de tua fidelidade, e acredito que, com a ajuda  da tua sede me obterás informações  valiosíssimas. Age portanto conforme te disse  e não me perguntes mais nada, pois a minha  resolução adveio de uma inspiração mais forte  do que eu e que não pode ser contrariada.  Isto posto, saí a me informar dos antigos  amigos.

Na Botilha Síria perguntei por Thothmes; mas  o dono era outro e não soube me dizer do  paradeiro de certo pintor pobre que vivia de  desenhar gatos em livros ilustrados para os  filhos dos ricaços. Em seguida fui até às  tendas inquirir sobre Horemheb; mas as  barracas se achavam vazias. No pátio não havia  lutadores, nem lanceiros investindo contra sacos atulhados de caniços; e muito menos  ferviam enormes caldeirões nos telheiros, como  outrora. Tudo estava deserto.

Um sargento taciturno sardanita contemplava- me  enquanto esfregava os artelhos na areia.  Tinha o rosto muito adunco e seco e me fez uma  mesura quando perguntei por Horemheb, o  comandante do faraó que alguns anos antes  guerreara os cabírios na Síria. Falando mal o  idioma egípcio, o homem me informou que  Horemheb ainda era comandante mas que se achava ausente havia alguns meses na terra de  Kush onde fora licenciar as guarnições e  desobrigar do serviço as respectivas tropas.  Ignorava-se quando ele voltaria. Dei ao homem  uma moeda de prata por causa do seu feitio desanimado; ele então esqueceu sua dignidade  de sardanita, sorriu e tomado de gratidão  invocou o nome de um deus desconhecido. Quando  pretendi me retirar ele ainda me deteve um  pouco, apontando com mão negligente para o  pátio e dizendo:

- Horemheb é um grande oficial que entende  os soldados e que por sua vez intrépido.  Horemheb é um leão, o faraó é um bode sem  chifres. As barracas estão vazias; não há  comida, não há pagamento de soldo. Meus  camaradas esmolam por aí. O que será de nós,  não sei. Que Ammon vos abençoe pela moeda de  prata; sois um homem bom. Há meses que não  bebo, e meu ventre está cheio de receios. Se  deixei a minha terra foi por causa das muitas  promessas. Os oficiais egípcios encarregados  do recrutamento iam de tenda em tenda e  prometiam muita prata, muitas mulheres e muita  bebida. E agora? Nem prata, nem bebida, nem  mulheres!

Cuspiu para demonstrar seu desgosto e  esfregou o pé caloso no chão. Era um sardanita  cheio de mágoas e queixas, e fiquei preocupado  com o que deduzi de suas palavras, isto é, que  o faraó desengajara os seus soldados e  licenciara as tropas que haviam sido  levadas para o estrangeiro nos dias de seu  pai. Meus pensamentos voltaram-se para o velho Ptahor; onde poderia encontrá-lo? Muni-me de  coragem e dirigi-me à Casa da Vida no templo  de Ammon a fim de procurar seu nome entre as  papeletas. Mas o homem do arquivo me disse  que o trepanador real jazia na Cidade dos  Mortos cerca de um ano ou mais. Assim, não  reencontrei um único amigo em Tebas.

Como estivesse ali no templo fui para o  grande vestíbulo de colunas, à hora do sagrado  dilúculo de Ammon. O aroma do incenso pairava  por entre as colunas de pedra colorida com  suas diferentíssimas inscrições sacras; bem no  alto as andorinhas entravam e saíam como setas  por entre as rendas de pedra das janelas. Mas  o templo estava quase vazio, e o adro também;  e notei que nas incontáveis barracas e lojas  havia menos negócio e regateio do que  antigamente.

Sacerdotes de crânios raspados e  untados de óleo, com túnicas brancas,  olhavam-me desconfiados; as pessoas diante da fachada conversavam em voz baixa e olhando  para os lados como se temessem espiões.

O zumbido fervilhante do pátio que me era  tão familiar nos meus tempos de estudante  parecendo o clamor do vento por entre os  juncais, reduzia-se agora quase a silencio.  Conquanto não venerasse absolutamente Ammon,  ainda assim fui tomado de melancolia como  acontece a. um homem que pensa na sua  mocidade, tenha ela sido boa ou má    Quando saí e me encaminhei por entre os  pilonos e as estátuas gigantescas dos faraós,  observei que um novo templo crescera ao lado  do velho; era de proporções maciças e  completamente esquisito como desenho. Dentro  não havia divisões, e ao penetrar  verifiquei que a colunata rodeava um pátio  central onde se achava o altar coberto de oferendas de cereais, flores e frutos. Um  grande alto-relevo mostrava Aton dardejando  seus raios sobre o faraó que oficiava o  sacrifício; cada raio terminava em forma de  mão abençoadora segurando a cruz da vida. As  cabeças dos sacerdotes paramentados de branco  não eram raspadas; e quase todos eram muito  moços Seus semblantes cintilavam de êxtase  enquanto cantavam o hino cujas palavras me  lembro haver escutado na longínqua Jerusalém  Mais impressionantes, porém, do que os sacerdotes ou as imagens eram os  quarenta gigantescos pilares. Em cada qual  estava esculpido em tamanho proporcional o  novo faraó olhando para o observador com os  braços firmemente cruzados no peito e  segurando nas mãos o cajado e o azorrague da  majestade.

Que aqueles pilares esculpidos eram  representações do faraó compreendi logo, pois  reconheci seu semblante apaixonado e  extático, suas ilhargas robustas, seus braços  e pernas esguios. Tomei-me de admiração e  assombro pelo artista que ousara e conseguira  esculpir aquelas estátuas, pois a arte livre  com que outrora sonhara meu amigo Thothmes  estava visível ali, em sinistra perversão.

Todas as deformidades do corpo do faraó  tinham sido conservadas até mesmo com exagero  - as coxas retesadas, os tornozelos finos, o  pescoço esguio e fanático - como se possuíssem  alguma significação especial. O mais  assombroso de tudo era o rosto do faraó -  aquele rosto esquisitamente comprido, com as  sobrancelhas oblíquas, os malares salientes, o  sorriso secreto e irônico de blasfemador e de sonhador pairando nos labós grossos. No  templo de Ammon os faraós de pedra jaziam de  cada lado dos pilonos como gigantes majestosos  e divinais. Aqui, todavia, as esculturas  tumefatas e nodosas que me olhavam de cada um  dos quarenta pilares em torno do altar de  Aton, representavam um homem em nada diferente  dos demais homens.Aquele todo humano  aprisionado na pedra manifestava ao mesmo tempo instinto, nervosismo e fanatismo.

Tremi até às profundidades do meu ser ao  contemplar aqueles pilares porque pela  primeira vez estava vendo o quarto Amenhotep  conforme ele próprio se veria ao natural.

Vira-o uma vez, quando ainda um mancebo  frágil sacudido pelo mal sagrado. Examinando-o  com olhos de médico - conquanto ainda novato -  eu tomara suas palavras como rasgos de  delírio. E agora eu o via como o escultor o  vira, numa fusão de ódio e de amor devido à  coragem desse escultor egípcio diferente de  todos os mais. Sim, pois se um seu precursor  ousasse uma escultura do faraó com tamanha  veracidade teria sido mutilado e dependurado  de cabeça para baixo, por crime de traição.

Mas havia poucas pessoas naquele templo.  Algumas delas, a julgar pelos linhos reais,  pelos colares pesados e jóias diversas, deviam  ser nobres e membros da corte real. As pessoas  comuns ouviam com fisionomias estupefatas e  hirtas o cântico dos sacerdotes porque as  palavras eram novas e diferiam completamente  das antigas invocações utilizadas durante dois  mil anos - desde a construção mesmo das  pirâmides. Os ouvintes estavam acostumados  desde a infância a ouvir aquelas antiqüíssimas  orações, e as compreendiam pelo coração mesmo  que não refletissem quase no sentido.

Contudo, quando o hino acabou, um velhote  que a deduzir pelo traje parecia da província  deu uns passos à frente, respeitosamente, a  fim de falar com os sacerdotes e comprar um  talismã, um olho protetor, uma tira de papel  com um texto mágico se era que havia tais  coisas ali e o preço fosse  moderado,Os sacerdotes responderam-lhe que não  vendiam tais objetos naquele templo visto como  Aton não precisava de mágicas, donativos nem  sacrifícios, descendo voluntariamente a  quantos acreditavam nele.

O velho, ofendido, retirou-se murmurando  ápodos contra tais mentiras e tolices; e vi  quando penetrou no pórtico antigo e tão seu  conhecido do templo de Ammon.

Aproximou-se então dos sacerdotes uma velha  peixeira, olhou-os com benevolente respeito e  perguntou:

- Ninguém oferece carneiros ou bois a Aton  de modo a que vós outros, pobres rapazes  magricelas, possais obter de vez em quando um  bom pedaço de carne?! Se vosso deus é forte e  poderoso, conforme dizem, mais forte e mais  poderoso até do que Ammon - coisa que todavia  não chego a acreditar - por que motivo seus  sacerdotes não hão de ser gordos e luzidios  devido ao bom trato? Não passo de uma simples  mulher ignorante, mas de coração profundo a  vos desejar boas carne e rijas gorduras.

Os sacerdotes riram e sussurraram como  garotos maldosos. O mais velho dentre eles se empertigou  gravemente e disse à mulher:

- Aton não deseja sacrifícios sangrentos e  não convém que neste templo se mencione o nome  de Ammon porque Ammon é um falso deus cujo  trono cairá em breve e cujo templo se desfará  em ruínas.

A mulher recuou instantaneamente, deu uma  cusparada no chão e fazendo o santo sinal de  Ammon, exclamou:

- Vós o dissestes, e não eu. Que a maldição  caia sobre vós.    A mulher embarafustou para a saída  acompanhada por outras pessoas olhando de esguelha para os  sacerdotes. Mas estes riram alto e gritaram em  uníssono:

- Pois ide, homens de pouca fé; mas sabei  que Ammon é um falso deus! Ammon é um ídolo e  seu domínio cairá como a erva cortada pela  foice.

Então um dos que se retiravam agarrou uma  pedra e a arremessou. A pedra colheu um dos  sacerdotes ferindo-o na cara que ficou  ensangüentada. O sacerdote cobriu o rosto com  as mãos, lamentando-se amargamente, enquanto  os outros sacerdotes começaram a chamar os  guardas; mas o agressor já rodopiara nos  calcanhares fundindo-se com o grupo diante dos  pilonos de Ammon.    Tudo isso me deu muito que pensar.  Dirigindo-me aos sacerdotes disse-lhes:

- Na verdade sou um egípcio, mas residi muito  tempo na Síria e não conheço esse novo deus a  quem chamais Aton.  Não poderíeis em vossa caridade esclarecer a  minha ignorância e explicar-me quem ele é, o  que exige e de que forma deve ser venerado?

Hesitaram, analisando meu rosto,  desconfiados de que se tratasse de zombaria, e  por fim responderam:

- Aton é o deus único. Criou a terra e os  rios, a humanidade e os animais e tudo quanto  existe sobre a face da terra. E eterno, foi  venerado como Ra em suas primitivas  manifestações, mas em nosso tempo se revelou  como Aton a seu filho faraó que vive para a  verdade. E o único deus, os demais são ídolos.  Atende a quem quer que se volva para ele. Ricos e pobres são iguais perante o seu olhar,  e todas as manhãs o saudamos no disco do sol.  Abençoa a terra com seus raios; brilha por sobre os bons  e os maus e oferece a cada um a cruz da vida.  Se o receberdes sereis seu servo pois seu ser  é o amor. É imortal, eterno e onipresente;  nada pode acontecer sem a sua vontade. Por  obra e graça de Aton o faraó pode ver dentro  do coração de todos os homens e perscrutar  mesmo os seus pensamentos mais secretos.

Protestei, então:

- Neste caso ele não é humano, pois homem  algum tem o poder de olhar para dentro do  coração dos outros.

Reuniram-se em concílio provisório e  instantâneo ali mesmo e replicaram:

- Conquanto o faraó pessoalmente deseje ser  apenas humano, não duvidamos que a sua  essência seja divina. E isso se tem patenteado  em suas visões durante as quais pode viver  muitas vidas em um curto espaço de tempo. Mas  isso só pode ser conhecido por aqueles que são  amados por ele; eis a razão pela qual o  artista o modelou nestes pilares ao mesmo tempo como homem e mulher pois Aton e a força  viva que anima a semente do homem e faz a  criança emergir da matriz materna.

Então ergui as mãos em gesto de desespero e  segurando a cabeça, exclamei:

- Não passo de um homem simples, tão simples  quanto a mulher de ainda agora, e não posso  absolutamente apreender essa vossa sabedoria.  Aliás, tudo isso parece obscuro mesmo para vós  outros, tanto que tendes que vos consultar  antes de responder.

Retrucaram a uma voz:

- Aton é tão perfeito quão perfeito é o  disco do sol e tudo quanto existe, vive e  respira nele é  perfeito. O pensamento humano é imperfeito e  parece trévoa; devido a isso não vos podemos  esclarecer perfeitamente, pois nós próprios  não sabemos tudo e somos obrigados a aprender  sua vontade dia após dia. Sua vontade só é revelada plenamente ao faraó, seu filho, que vive para a verdade.

Tais palavras me impressionaram, pois me  mostraram que aqueles sacerdotes eram  resolutos de coração embora se vestissem com  linhos finos, ungissem a cabeça, se  deliciassem com a admiração das mulheres e  achassem graça nos simples.

O elemento que dentro de mim chegara à  maturação independentemente da minha vontade e  conhecimento, correspondia àquelas palavras.  Pela primeira vez refleti que o pensamento  humano era deveras imperfeito e que para além  dele existiam coisas que os olhos não podiam  ver, que os ouvidos não podiam ouvir nem as mãos agarrar. Dar-se- ia o caso faraó e de seus sacerdotes terem  encontrado a verdade ultima dando-lhe o nome de  Aton.

Foi ao crepúsculo que voltei para casa. Por  cima da porta pendia uma simples tabuleta, e  no pórtico se achavam agachados alguns  clientes que me esperavam pacientemente.  Kaptah, com ar descontente, estava sentado no  pátio abanando com uma folha de palmeira as  moscas que insistiam em lhe pousar na cara e  nas pernas. As moscas tinham vindo com os  pacientes. Para consolar-se Kaptah tinha a seu  lado um pichel com cerveja colhida  recentemente. Ordenei-lhe que me mandasse primeiro uma  mulher que segurava ao colo uma criança edemaciada Dei- lhe o remédio de que necessitava: algumas  moedas de cobre com que comprar alimento  adequado para poder amamentar o filhinho.

Em  seguida atendi a um escravo que esmagara uns  dedos num moinho; coaptei-lhe as fraturas e as  luxações, ministrei-lhe uma droga calmamente para amortecer a dor. Depois veio um velho escriba com um tumor no  pescoço do tamanho da cabeça de uma criança;  em conseqüência disso tinha os olhos saltados,  andava com a cabeça torta e sofria falta de  ar. Dei-lhe um extrato de sargaço - remédio  que me ensinaram em Esmirna - apesar de me  parecer tarde demais para curá-lo. O escriba desembrulhou de um trapo duas moedas de cobre  e mas ofereceu com olhar solícito,  envergonhado da sua pobreza. Não aceitei, dizendo-lhe que me valeria de seus serviços  assim que precisasse de qualquer trabalho de  escrita. Partiu satisfeito por haver poupado  seu dinheiro. Uma rapariga de um alcouce próximo procurou  meu auxílio porque seus olhos estavam tão  cheios de crostas que lhe dificultavam a  profissão. Limpei-os bem e preparei-lhe um  colírio cuja aplicação acabaria curando o mal.  Ela então, contrafeita, se despiu para me  oferecer o único dom que me podia conceder...

Não querendo melindrá-la com uma recusa disse-lhe que devia me abster de mulheres  devido a um importante tratamento que ia  iniciar. Acreditou e louvou minha força de  disciplina. Eu então, para que a sua boa  vontade adquirisse mérito, lhe removi de cima  do fanco e do ventre algumas verrugas  desgraciosas tendo antes esfregado um ungüento  entorpecedor a fim de tornar a operação  insensível; e a rapariga se retirou, radiante.

Está certo que a minha primeira tarde de  trabalho me rendeu menos do que o necessário  para comprar sal para o meu pão; e Kaptah  zombou disso enquanto me servia um ganso gordo  preparado à moda tebana, prato esse sem rival  no mundo.

Trouxera-o pronto de uma taverna de  luxo da cidade e o conservara no forno para  não esfriar. Encheu um copo colorido com o  vinho mais caro dos vinhedos de Ammon, sem  cessar de escarnecer o lucro do meu trabalho  durante aquele dia. Mas tal trabalho me  deixara em melhor disposição de ânimo do que  se houvesse tratado um rico mercador e este me recompensasse com uma  corrente de ouro. E devo acrescentar que o  escravo do moinho voltou daí a alguns dias  para mostrar que seus dedos estavam sarando  bem e para me oferecer uma bateria inteira de  cozinha que roubara. Desta forma o meu  primeiro dia de trabalho não decorreu assim  desvantajosamente. Mas Kaptah disse:

- Acho que já hoje mesmo a sua fama se  espalhará pelo bairro todo e que amanhã de  madrugada o pórtico e o pátio estarão cheios  de doentes. Parece-me até já estar ouvindo as  vozes recíprocas dos mendigos:  "Depressa, toquemos para a antiga casa do  fundidor da esquina, pois chegou um médico que  trata os doentes muito bem, sem dor nem  pagamento, e que ainda oferece moedas de cobre às mães  necessitadas e pratica operações embelezadoras  nas raparigas pobre dos alcouces, tudo isso  sem aceitar donativos. Vamos para lá,  depressa! Os que chegarem primeiro terão mais  vantagens, pois o homenzinho acabará precisando vender a casa e decerto não  demorará muito nestas bandas." Mas tais  bestalhões estão enganados. Mercê da boa  sorte, o meu senhor possui muito ouro que  habilidosamente vou por a render. Jamais em  toda a vida há de o meu patrão passar  necessidade; comerá ganso diariamente se  quiser, beberá do melhor vinho, e ainda por  cima prosperará, contanto que se contente em  permanecer nesta casa modesta. No entanto,  como o meu senhor não se comporta nunca pelo padrão dos demais, não me surpreenderei se  acordar certa amanhã com cinzas nos cabelos  pelo fato do meu senhor haver vendido esta  casa e o seu pobre escravo Kaptah... Sim, pois índoles há que nunca estão  quietas... Para ser franco, isso não me  surpreenderá. Por conseguinte, patrão, será  melhor declarar num documento escrito que  tenho liberdade de ir e vir conforme me  aprouver; será bom também se registrar tal  documento nos arquivos reais. A palavra falada  é esquecida e se esvai, ao passo que a palavra  escrita permanece para sempre uma vez o patrão  lhe apondo seu sinete e oferecendo presentes  adequados aos escribas do rei. Tenho razões  especiais para esta minha exigência; mas não  quero agora incomodar seus pensamentos nem  atrapalhar suas horas.

Era uma noite suave de primavera. Fogos de  restolho crepitavam diante das choupanas, e o  vento que vinha do porto trazia o odor de  cedro e de perfumes da Síria. A fragrância  das acácias se misturava com o cheiro de peixe  frito.

Eu comera ganso preparado à moda tebana,  bebera vinho e sentia boa disposição.

Disse a Kaptah que enchesse um púcaro com  aquele mesmo vinho e que o fosse bebendo, enquanto  lhe falei assim:

- És livre, Kaptah, e sempre o foste,  conforme sabes muito bem, pois, não obstante a  tua desfaçatez, te tenho tratado mais como um  amigo do que como escravo; e isso desde o dia  em que me cedeste prata e cobre cuidando que  não reverias nunca mais esse teu dinheiro.  Concedo-te a liberdade, Kaptah. Se feliz!  Amanhã o escriba do rei lavrará o termo legal  a que a porei  os meus dois sinetes, o egípcio e  o sírio. Diz-me, porém agora, de que forma aplicaste  os meus bens para que me rendam sem que eu,  aliás, veja vantagem específica! Guardaste o  meu ouro nos cofres do templo conforme te  ordenei?

- Absolutamente, patrão! - respondeu Kaptah  fitando bem o meu rosto com o seu olho único.  - Não cumpri sua ordem por ser uma ordem  idiota; bem sabe que jamais cumpri suas ordens  tolas, tendo agido sempre, a tal respeito,  segundo o meu bom-senso. Posso agora lhe  dar isso com segurança porque já não sou mais escravo,  o meu ex-amo bebeu com moderação e portanto  não se enfurecerá desordenadamente. Mesmo  porque, conhecedor que sou do seu temperamento  impulsivo - que a idade ainda não conseguiu  abrandar - tomei a precaução de esconder o  junco! Esta última declaração visa apenas o meu amigo  não perder tempo em procurá-lo quando eu  começar a fazer o meu relato. Apenas os  bestalhões encerram seu dinheiro no templo  para aí ficar bem guardado; o templo não paga  nada por isso, pelo contrário extorque  pagamento para tal depósito e garantia; e isso  é estúpido ainda por mais uma razão: o  departamento de impostos se põe assim a par da  quantidade de ouro, o resultado sendo que este  some rapidamente, sem sobrar nada. O único intuito razoável que há em juntar  ouro está na possibilidade de po-lo a render  de modo ao dono ficar sentado de braços  cruzados, mastigando sementes de lótus assadas  com sal para que produzam sede inefável.  Percorri a cidade o dia inteiro orientando-me  quanto à melhor forma de aplicar seus fundos  monetários; foi o que fiz enquanto o meu ex- amo batia pernas por aí. E graças à minha sede  aprendi muita coisa; entre outras, que Ammon  está  vendendo terras.

- Deixa de mentiras! - exclamei, porque tal  enunciado era absurdo. - Ammon nunca vende  nada! Sempre compra tudo! Sempre comprou e  atualmente é dono de um quarto de toda a terra  da nação. E, uma vez adquirindo uma coisa,  jamais a larga!

- Naturalmente, naturalmente! - disse  Kaptah, romã brandura, derramando mais vinho  em meu copo de vidro colorido e - com menos  ostentação - em seu pícaro de barro.

- Qualquer pessoa de senso sabe que a terra  é a única propriedade eterna e que conserva  seu valor uma vez que o dono se entenda bem  com os administradores e tenha a sagacidade de  recompensá-los após cada cheia do Nilo. Pois  bem. Apesar de tudo isso, Ammon está vendendo terra  apressadamente e em segredo a todos os seus  fiéis que dispõem de dinheiro. Eu também  fiquei perplexo ao ouvir isso e tratei de ir  me informar direito. A verdade é que Ammon  está vendendo terras, de fato, e a preço  barato. Sabe-se que Ammon é proprietário das  áreas mais férteis, e se as coisas continuarem  no pé de antigamente não existirá nada mais  tentador do que tais compras, pois o lucro é  certo e imediato. Ammon vendeu áreas muito extensas de terras e  está acumulando em suas abóbadas subterrâneas  todo o ouro viável do Egito, de forma que o  preço das propriedades reais caiu em grau  sensível. Mas todo esse negócio é segredo e eu  não teria ficado a par de nada disso se a  minha sede propiciatória não me houvesse  levado à presença de homens conhecedores do caso.

- Não me digas que compraste terras, Kaptah!  - gritei, apavorado. Mas ele se encarregou de  me aliviar.

- Louco demais não sou, patrão. Lembre-se  que, apesar de escravo, não nasci com esterco  grudado nos calcanhares e sim em rua  pavimentada, com casas de ambos os lados. E  casas bem altas e grandes. Não conheço nada a  respeito de terras. A oferta de Ammon é tão tentadora que um  chacal deve estar escondido de alguma forma  dentro dela e tais terras devem estar  limitadas por suspeitas de homens ricos  desconfiados da proteção do templo. Acho que  toda essa historiada é um resultado da reação  referente ao novo deus do faraó. Eu, no entanto, encarando apenas a  vantagem do patrão, comprei em seu nome um número  razoável de prédios na cidade: armazéns e residências,  pois isso é o que dá renda substancial, cada  ano. As escrituras esperam apenas a sua assinatura e o seu sinete para serem válidas.  Pode crer que comprei barato; e caso os  vendedores me dêem presentes depois isso, não é da sua conta, tratando-se  apenas de uma questão decorrente da minha  esperteza e da estupidez deles. Nesta transação não o lesei em nada. O que  aliás não quer dizer que eu proteste caso o  patrão me ofereça um presente ou coisa  parecida por lhe haver arranjado negócio tão  favorável.

Refleti um pouco e repliquei:

- Não, Kaptah; não te darei presentes, pois  farto estou de saber que tencionas puxar para  teu lado boa parte das rendas cada ano e  combinar trapaças com os construtores sempre  que forem necessários quaisquer consertos.

Kaptah, envergonhado, concordou  imediatamente com as minhas palavras.

- Esse foi exatamente o modo pelo qual  encarei a questão, pois já que a sua riqueza é  a minha, o mesmo se deve dar quanto à  vantagem. Todavia devo confessar que quando  ouvi tais referencias às transações de Ammon  comecei a tomar um grande interesse pela  agricultura. Fui até ao mercado de trigo, e lá  andei de taverna em taverna, sempre com o ouvido apurado. Ouvi e aprendi. Com a  sua  permissão, meu amo, e com o seu ouro tenciono  comprar reservas de trigo da safra do próximo  verão. Este é o processo melhor, mesmo porque  os preços assim serão bem mais razoáveis.  Pretendo conservar o trigo armazená-lo e  cuidadosamente garantido, pois algo me diz  que não tardará a subir o preço dos cereais.  Agora que Ammon está vendendo e que tudo  quanto é maluco está se transformando em  agricultor, as colheitas não poderão vir a ser  altas e abundantes como antigamente. Portanto  comprarei paióis para guardar o trigo;  depósitos bem secos e de rija construção. Mais tarde,quando precisarmos mais deles, os  revenderemos a comerciantes de cereais em  condições vantajosas.

Cautelosamente escondendo sua satisfação,  continuou, fingindo ar irritado:

- Havia também um outro negócio muito  lucrativo como empreendimento que eu desejava  fechar com o seu consentimento. Acha-se à venda uma das maiores casas de  tráfico de escravos; acho que sou pessoa  suficientemente classificada para debater tal  questão visto que fui escravo a vida toda. Poderia pela certa transformá-lo num homem  opulento dentro de curto prazo. Sei como  esconder faltas e defeitos de um escravo e  posso me utilizar de um bastão para vantagens  mais imediatas, coisa esta que ao meu amo não  ficaria bem. Cuido não fazer mal em lhe dizer tal  observação agora que o junco está escondido...  Oprime-me, todavia, o pressentimento de que  esta excelente oportunidade será perdida  porque desconfio que o meu amo não concorda  com tal projeto. Não é mesmo?

- Teu pressentimento é bem fundamentado,  Kaptah. Isso de comércio de escravos é uma transação  na qual não nos meteremos porque se trata de  um comércio sujo e degradante... Por que  motivo assim é, ignoro, já que toda gente compra escravos, serve-se deles, precisa  deles. Eu jamais seria mercador de escravos  nem consentiria que o fosses.

Kaptah suspirou aliviado e declarou:

- Leio acertadamente em seu coração, meu  amo; assim pois estamos livres de tal  malefício...Pensando em assunto já posto de  lado suspeito que eu poderia vir a dar atenção indevida às mulheres ao lhes fixar o valor, e  assim esbodegar minhas forças. Ora, não posso  mais me permitir tais coisas pois estou  envelhecendo; tenho os braços e as pernas demasiado hirtos, as minhas mãos apresentam um  tremor excessivo, principalmente de manhã  quando acordo e enquanto não tenho tempo de  agarrar o pichel de cerveja. Tendo desta forma  sucinta examinado bem o meu coração, deixe  que me apresse em lhe garantir que todas as  casas que lhe comprei são respeitáveis,  proporcionando lucro modesto mas certo. Não  comprei nenhuma onde estivesse instalado um  alcouce nem cortiços, embora seja verdade que  tais cômodos dão mais proventos do que as  casas confortáveis dos sujeitos de bem. Tenho,  contudo, um favor a lhe pedir.

E imediatamente Kaptah se tornou manhoso de  fisionomia e modos e me esquadrinhou bem com o  seu único olho a fim de avaliar a disposição  da minha generosidade. Eu próprio lhe enchi de  vinho o púcaro e o encorajei a falar, porque jamais vira Kaptah embaraçado e isso despertou  minha curiosidade. Por fim ele disse:

- Meu pedido é desavergonhado e presunçoso;  mas como, conforme sua própria declaração, sou  um homem livre, ouso pronunciá-lo, na  esperança de que não se zangue. Quero que vá comigo até ao porto, à taverna  chamada O rabo do Crocodilo, da qual já lhe  falei tantas vezes. E faço tal convite para  que possamos provar juntos um quartilho de  vinho e para que o patrão possa ver que  espécie de lugar é esse com o qual tanto sonhei ao tempo em que sorvia  por um canudo a cerveja grosseira da Síria e  da Babilônia.

Desandei a rir, não me dei por  ofendido, porque o vinho que eu tomara me  pusera de bom humor. De mais a mais aquele  crepúsculo primaveril era melancólico e eu me  sentia solitário demais. Por mais impróprio e  esquisito que pudesse parecer um patrão ir com  o criado a uma miserável taverna de porto e  provar uma bebida que devido à sua potencialidade era cognominada "rabo de  crocodilo", todavia me lembrei que Kaptah,  certa ocasião, me acompanhara por vontade  própria a certa mansão escura apesar de saber  que de lá jamais alguém voltara com vida.  Coloquei a mão em seu ombro e disse:

- Diz-me o coração que esse "rabo de  crocodilo" é única coisa acertada para o  remate do dia. Vamos até lá.

Kaptah deu saltos de alegria, conforme o  hábito de escravos, esquecendo a dureza de  suas articulações. Correu a buscar o meu  bordão onde estava escondido e cobriu bem os  meus ombros. Depois nos dirigimos para O Rabo  do Crocodilo enquanto por sobre as águas o  vento trazia o calor da madeira de cedro e da  terra verdejante.

O Rabo do Crocodilo estava situado no centro  do bairro portuário, abafado por enormes  armazéns atacadistas numa rua escura. Suas  paredes de adobe eram de uma grossura invulgar  de modo que no verão a peça era fresca e no  inverno o calor central não se irradiava. Por  cima da porta, ladeado por uma jarra de  cerveja e por um pichel de vinho, pendia um enorme crocodilo mumificado, com  cintilantes olhos de vidro, as mandíbulas  agudas rodeadas de rijas dentaduras.

Kaptah empurrou-me para dentro, afoitamente,  chamou o dono da casa e encaminhou-se para  uns assentos amolfadados. Era pessoa muito conhecida ali - apesar da  ausência - e parecia se sentir tão à vontade  como em casa. Os demais fregueses, lançando-me  olhadelas desconfiadas, baixaram o tom de suas  conversas. Foi com certo espanto que vi que o  chão era assoalhado e as paredes apaineladas.  E delas pendiam troféus de muitas e longínquas  viagens: espadas e plumas de negros; conchas de arquipélagos; cântaros  cretenses pintados.

Kaptah acompanhava com orgulho o meu olhar,  dizendo:

- Naturalmente o patrão está admirado das  paredes terem altos rodapés como as casas dos  ricos. Pois lhe digo que as tábuas pertenceram  a velhos navios que foram desmanchados. Muito embora não queira de bom grado me  referir mais a viagens marítimas, devo declarar  que esta tábua amarelenta, carcomida pela  salsugem, navegou até ao ponto e que estou, pardacenta, riscou a orla de arquipélagos  distantes. Mas, se o patrão concorda, provemos o "rabo de  crocodilo” que o próprio dono da casa misturou  para nós.

Uma linda taça foi colocada na minha mão; um  copo modelado como uma concha dessas que se  equilibram em cima da palma da mão. Nem olhei  para a taça, tendo olhos apenas para admirar a  mulher que ma trouxera.Já não era mais,  talvez, tão jovem como as raparigas que soem  servir em tavernas, e nem andava seminua para  atrair os olhares e os sentidos dos fregueses.  Estava vestida decentemente, trazia uma argola  noturna numa das orelhas e braceletes de prata  nos punhos delicados. Aturou o meu olhar sem  nenhum receio, sem baixar as pálpebras, como  fazia bem logo quase todas as mulheres.

Tinha  lindas sobrancelhas e em seus olhos pairavam  ao mesmo tempo um sorriso e uma seriedade.  Eram olhos castanhos, cálidos, vivazes, e  fazia bem a uma pessoa olhá-los. Estendi a  palma da mão para que ela depusesse a taça em  forma de concha, e o mesmo fez Kaptah.  Olhando-a sempre, disse, não sei como:

- Como te chamas, beleza?

Foi em voz baixa que me respondeu.

- Meu nome é Mérito e não se coaduna bem com  o epíteto de "beleza" que os garotos  estouvados dão a uma criada tão logo a vêem e  ousam acariciar-lhe as ilhargas. Espero que  vos lembreis disso, caso queirais sempre  honrar esta casa com a vossa presença, Sinuhe,  o médico, vós Que Estais Sozinho.

Mortificado, respondi:

- Não tenho a menor intenção de te acariciar  os flancos,linda Mérito. Mas, como sabes o meu  nome?

Sorriu e o sorriso era lindo em seu rosto  quando disse com ar zombeteiro:

- Vosso renome vos precedeu aqui, ó Filho do  Burro Bravo; e ao ver-vos verifico que a fama  não mentiu; pelo contrário, foi verídica,  ponto por ponto.

No fundo de seus olhos pairava, como uma  miragem, qualquer mágoa remota, que veio até  ao meu coração, por intermédio do seu sorriso;  e não a censurei por isso.

- Se, falando em fama, te queres referir  aqui a Kaptah - este meu antigo escravo a quem  hoje tornei homem livre - deves saber muito  bem que não se pode acreditar na palavra dele.  Por motivo de nascença a sua língua é incapaz  de distinguir a verdade da mentira, amando  igualmente uma e outra... Ou melhor, tem uma  tendência mais marcada para a mentira... Não  consegui curá-lo disso nem com remédio nem com  bastonadas.

Ela falou:

- A mentira pode ser mais doce do que a  verdade quando uma pessoa se acha muito  sozinha e já ultrapassou a primavera da vida.  Gosto de acreditar em vossas palavras quando  me chamais de linda Mérito", e acredito em  tudo quanto a vossa face me diz. Mas não  quereis provar o "rabo de crocodilo" que eu  vos trouxe? Estou curiosa por saber se pode  ser comparado a qualquer das bebidas que  provastes nas terras estrangeiras que  visitastes.

Ainda com os olhos voltados para ela, ergui  a concha e bebi. Mas logo deixei de a olhar. O  sangue me subiu à cabeça, comecei a me sentir  sufocado, e minha garganta parecia estar em  fogo.

Só depois que consegui cobrar fôlego foi que  arquejei:

- Retiro minhas expressões a respeito de  Kaptah porque pelo menos nesta questão ele não  mentiu. A tua bebida é muito mais forte do que  qualquer outra que já provei e muito mais  ardente do que o óleo que os babilônicos  queimam em suas lâmpadas. Não duvido até que  um homem forte, ao bebê-la, pense que levou  uma rabanada de um crocodilo.

Meu corpo estava abrasado e em minha boca  perdurava um travo de especiarias. Com o  coração alado como uma andorinha, disse:

- Em nome de Set e de todos os demônios!  Não faço a menor idéia de como esta bebida foi  misturada, e nem sei se foi ela que me  enfeitiçou ou se fora os teus olhos, Mérito.  Sortilégios atravessam o meu corpo e meu  coração rejuvenesce mais uma vez. Não te  surpreendas portanto se passo a mão em tuas  ilhargas, porque a censura cabe a esta taça e  não a mim.

Afastou-se com ar compassivo e ergueu as  mãos graciosamente. Era esguia, tinha braços e  pernas compridos. Sorriu ao dizer:

- Não tem propósito vosso juramento em vão.  Esta é uma taverna decente e ainda não estou  tão velha. Posso até ser uma donzela, mesmo que  não acrediteis. Quanto a essa  bebida, trata-se do único dote que meu pai  me proporcionou, pela qual razão esse vosso  escravo começou a me namorar o mais depressa  possível tentando obter por meu intermédio a  fórmula e de graça. Mas é caolho, velho e  gordo, e não me parece que uma mulher normal  goste de criatura em tais condições. Assim  teve, pelo contrário, que comprar a taverna; e  deseja comprar também a fórmula; a verdade é,  todavia, que muito ouro tem que ser pesado  antes que concordemos com isso.

Kaptah fazia trejeitos desesperados para  obrigá-la a se calar.

Tornei a provar a bebida e enquanto seu fogo  me endemoninhava o corpo, observei:

- Acredito mesmo que Kaptah esteja querendo  quebrar um cântaro contigo por causa desta  bebida, muito embora saiba que logo depois do  casamento comeces a lhe atirar água quente nos  pés. Mesmo afastando a idéia da bebida, posso compreender muito bem os sentimentos dele  sempre que olho para teus olhos... Convém que  te lembres que neste momento quem fala por mim  é o efeito da rabanada do crocodilo; já amanhã  não me responsabilizo por minhas palavras. É  verdade então que esta taverna é propriedade  de Kaptah?

- Fora daqui, insolente mexeriqueira! -  exclamou Kaptah, acrescentando uma fileira de  nomes de deuses que aprendera na Síria. Depois  se voltou para mim e disse em tom de súplica:

- Patrão, a coisa veio a lume repentinamente  demais. Pretendia prepará-lo vagarosamente  para isso e pedir sua aprovação, já que ainda  era seu criado. Sim, é verdade que comprei ao  antigo dono esta casa e que pretendo também arrancar da filha dele o segredo desta bebida.  Foi tal bebida que tornou este lugar famoso  rio abaixo e acima, onde quer que se junte  gente alegre, e eu me lembrava disto aqui,  diàriamente, quando me achava tão longe.  Conforme sabe, sempre roubei o meu patrão  todos estes anos tão bem e tão habilidosamente  quanto sou capaz, e tive dificuldades em aplicar o meu ouro e a minha prata, tanto  mais que já é tempo de pensar na velhice.  Mesmo na mocidade eu já considerava o comércio  de estalagem e taverna o mais invejável e  tentador - prosseguiu ele, visto como a  rabanada do crocodilo o estava tornando  sentimental. - Naquele tempo eu cuidava que se  podia beber quanta cerveja se quisesse, sem dano nenhum. Mas agora sei que cumpre haver  moderação e que um dono de taverna não deve se  embebedar nunca, sendo tal condição essencial;  demasiada cerveja muitas vezes me afeta de modo esquisito, a ponto de  chegar a ver hipopótamos e objetos hediondos.  Um estalajadeiro se dá sempre com pessoas que  lhe podem ser úteis e vai ficando a par de  tudo quanto se passa. Ora, isso me tenta sobremaneira porque desde meus tempos de rapaz  sempre fui muito curioso. Minha língua me  renderá bastante serviço e creio que com  minhas histórias entreterei muito a minha  freguesia que, sem reparar, irá esvaziando  copo atrás de copo, ficando espantada na hora  de ajustar as contas. Após madura reflexão,  acho que os deuses me selecionaram para estalajadeiro, não obstante - devido a  qualquer erro - eu haver nascido escravo.  Todavia mesmo agora isso constitui uma  vantagem, pois na verdade não existe  estratagema ou embuste que um freguês possa me  passar para se esgueirar sem pagamento;  conheço-os a todos e experimentei-os no meu  tempo.

Esvaziando sua taça, Kaptah pousou o queixo  nas mãos, sorrindo. E prosseguiu:

- Além do mais, tal negócio é o mais  garantido e firme que existe, porque, aconteça  o que acontecer, isso de sede é coisa que não  acaba nunca. Pode cair o poderio do faraó;  podem cair de seus tronos todos os deuses. Mas  as tavernas e botequins jamais perderão  patronos e fregueses. O homem bebe vinho  quando tem motivos de júbilo e quando o  acomete a tristeza. Bebe à medida que  prospera, e afoga no vinho os seus malogros.  Esta casa já é minha e o antigo proprietário a  dirige com a ajuda desta feiticeira Mérito;  dividiremos os lucros até que eu me estabeleça  aqui para descansar na velhice. Fizemos um  contrato para tal fim, referendando-o com  juramentos a todos os deuses do Egito. Não  espero que o antigo dono venha a me roubar  porque ele é um homem piedoso e em todos os  festivais vai ao templo oferecer sacrifícios... Parece-me, aliás, que ele faz  isso em parte porque diversos sacerdotes vem  aqui. Mas não duvido que é um homem  às direitas; além do mais, não há  impossibilidade de uma acomodação entre os  negócios espirituais e comerciais e nem ...  ... e nem ... Ora bolas, nem sei mais o que  estava dizendo!... Seja como for,este é para  mim um dia de grande satisfação e me rejubilo  acima de tudo porque o patrão não se sentiu  ultrajado ainda me considera como o servo de  sempre e não como um reles dono de taverna...  profissão esta que nem toda gente julga  respeitável...

Após esta alocução, Kaptah começou a babar e  a chorar abaixando a cabeça em meu colo e  abraçando meus joelhos, no marasmo da  bebedeira.

Agarrei-o pelos ombros e atirei-o de novo em  seu banco, dizendo:

- Acho na verdade que não poderias achar uma  ocupação mais apropriada e um ofício mais  garantido para a tua velhice; todavia há um  ponto que não compreendo. Se o antigo dono  sabia que esta taverna rendia tanto, e se é  dele o segredo da fórmula do "rabo de  crocodilo", por que motivo concordou em ta  vender em lugar de conservá-la?

Kaptah olhou-me com ar de censura e com  lágrimas nos olhos, exclamando:

- Já não tenho dito milhares de vezes que o  patrão tem o dom singular de envenenar com o  seu senso comum toda e qualquer alegria minha?  Que mania essa, pior do que o efeito amargo do  fel! E dizer-se - como é a verdade - que temos sido amigos desde a sua mocidade, e que nos  estimamos como irmãos, desejando um para o  outro felicidade e boa sorte! Bem vejo pelo  olhar do patrão que ele perscruta bem mais  além, e confesso que também eu agora desconfio  que neste negócio jaz escondido um chacal.  Correm rumores por aí que haverá grandes  arruaças quando Ammon e o deus do faraó disputarem o poder um ao outro. Claro está que  em tais ocasiões as tavernas são as primeiras  vítimas; arrebentam-lhe as portas, esbordoam e  jogam no rio seus proprietários, entornam os  tonéis, quebram o mobiliário e chegam até, nos casos piores, a tocar fogo depois de liquidada  toda a bebida. Isto é o mais certo acontecer,  se o proprietário se acha do lado antipático.  Ora, o antigo dono é partidário de Ammon, e  toda gente sabe disso. Dificilmente mudará de  pele a esta altura do dia. Começou a duvidar de Ammon desde que começou a ouvir dizer que  Ammon estava vendendo terras. Claro que eu fiz  o mais que consegui para lhe aumentar essas  dúvidas. Mas, patrão, esquece-se de que temos  o escaravelho? Acaso ele não outorgará uma  pequenina proteção a O Rabo do Crocodilo, por  mais que esteja ocupado com os múltiplos interesses de Sinuhe, o médico?

Refleti durante algum tempo, dizendo por  fim:

- Seja como for, Kaptah, tenho que  reconhecer que realizaste uma porção de coisas  num dia só.

Afastou com um gesto o meu elogio e  declarou:

- Esquece-se, patrão, que desembarcamos  ontem. Mas não resta dúvida de que não deixei que  crescesse relva debaixo de meus pés. E, por  mais incrível que lhe possa parecer, até a  minha língua se acha atrapalhada visto como  uma única dose desta rabanada de crocodilo a  deixou perra.

Levantamo-nos então, despedindo-nos do  gerente, e Mérito acompanhou-nos até à porta;  argolas de prata retiniam em seus punhos e  tornozelos. Ali no portal escuro palpei suas  ilhargas, aproveitando bem sua contigüidade.  Ela afastou minha mão com ar decidido,  fazendo-me saber:

- Não digo que vosso contacto me desagrade.  Mas não o consentirei enquanto for determinado apenas pela ação da bebida que age como  rabanada de crocodilo...

Humilhado, examinei minhas mãos que me  pareceram deveras pés de crocodilo vivaz.  Seguimos para casa pelo caminho mais curto,  estendemos nossas esteiras e dormimos  profundamente, aquela noite.

Assim começou a minha existência no bairro  pobre de Tebas.

Conforme a previsão de Kaptah,  tive muitos pacientes, e perdi mais dinheiro  do que lucrei. Tinha que proporcionar-lhes  remédios caríssimos, e de que valia curar  pessoas esfomeadas incapazes de adquirir  alimentação e gordura com que recuperar  energias!? Os presentes recebidos eram ordinários, embora me satisfizessem, tendo  sido maior ainda a satisfação quando vim a  saber que os pobres  começavam a bendizer o meu nome. Todas as  noites o firmamento refulgia avermelhado por  cima de Tebas por causa das luzes centrais da  cidade. Após a trabalheira de cada dia, eu me  sentia exausto à noite que ainda assim enchia  com pensamentos sobre os casos graves da minha  clientela. E pensava também em Aton, o deus do  faraó.

Kaptah contratou uma velha para tomar conta  da casa.Tal criatura não me importunava,  sentia-se cansada da vida e dos homens  conforme dava prova sua fisionomia. Cozinhava  bem, era sossegada, nunca vinha ao pórtico  insultar os pobres por causa do mau cheiro e  nem os enxotava com imprecações. Não tardei a  me acostumar ao seu feitio e ela sabia a arte da discrição: era uma sombra plácida e  recuada. Chamava-se Muti.

Assim, os meses foram passando. A  febricitação de Tebas aumentou, e não se ouvia  falar no regresso de Horemheb.O sol amarelava  as plantas dos jardins pois se estava na parte  mais tórrida do verão. De vez em quando eu  ansiava por uma mudança, e então ia com Kaptah  a O Rabo do Crocodilo para gracejar com Mérito  e fitar seus olhos, não obstante seu ar remoto  que melindrava meu coração.

Eu escutava a conversa dos outros fregueses  e não demorei a verificar que não era qualquer  pessoa que ali naquela casa tinha um banco e  um copo às ordens. Os fregueses eram  examinados e escolhidos, e mesmo que alguns  deles pudessem ser violadores de tumbas ou  contrabandistas, esqueciam seus negócios  quando se achavam ali na taverna onde se portavam como gente de bem. Acreditei nas palavras de  Kaptah quando me disse que aquela casa era  ponto de reunião de amigos e de interesses.  Até mesmo ali eu era um estranho, embora fosse  tolerado e me tratassem bem por causa de  Kaptah.

E naquele recinto ouvi muita coisa. Ouvi  injúrias ao faraó, assim como louvores; mas  quase todos zombavam do seu novo deus. Certa  noite, porém, um negociante de incenso entrou  na taverna com o traje dilacerado e com cinza  nos cabelos. Procurou acalmar suas mágoas com  um trago de "rabo de crocodilo", mas logo em  seguida vociferou:

- Amaldiçoado seja por toda a eternidade  esse falso faraó... esse bastardo... esse  usurpador, que age de acordo com seus  caprichos, em detrimento da minha sagrada  profissão. Até agora tenho tirado meus  proventos de substâncias que obtenho das  terras do Ponto; as viagens pelo mar Oriental  não são absolutamente arriscadas. Cada verão  partem navios para as rotas comerciais e durante o ano  seguinte pelo menos dois de cada dez navios  regressam com o atraso, no máximo de horas.  Isso me habilita a fixar compromissos, preços  e lucros. Mas, quereis saber o que aconteceu  agora? Loucura maior, nunca vi! No último  apresto, o faraó compareceu pessoalmente ao  porto a fim de inspecionar a armada. Viu as equipagens lamentando-se a bordo, e as  mulheres com os filhos chorando na praia e  dilacerando a pele com pedras rombudas, coisa  plausível só em ocasiões assim, conhecido como  é que muitos partem e poucos regressam. Assim  tinha sido desde os tempos da grande rainha. Pois,  por mais incrível que pareça, esse moço  amalucado, esse maldito faraó, proibiu que os  navios velejassem e decretou que não mais se  aprestassem embarcações para o Ponto. Que  Ammon os salve!

Qualquer mercador honesto sabe  o que isso representa. Significa a ruína para  uma porção de homens, pobreza e fome para as  mulheres e os filhos dos marinheiros. Pensai na fortuna aplicada em navios e em  entrepostos, em vasilhame de vidro e de  porcelana! Pensai nos agentes egípcios que  perecerão acolá nas choças das terras do  Ponto, abandonados pelos deuses!    Foi somente depois que o negociante de  incenso virou o terceiro trago de "rabo de  crocodilo" que conseguiu se aquietar um pouco.

Apressou-se então em pedir desculpas pelo fato de, durante sua indignação, haver  proferido impropérios contra o faraó.

- Espero, todavia, que a rainha Taia, que é  uma mulher prudente e esclarecida, governe  melhor seu filho. Acredito também que o  sacerdote Eie seja um homem sensato; mas todos  eles pensam em derrubar Ammon e permitem que o  faraó de livre curso à sua loucura. Pobre  Ammom Geralmente um homem logo depois de  casado recupera logo o juízo; mas essa Nefertiti, a consorte real, só pensa em  vestidos e em modas indecentes. Por incrível  que pareça, as mulheres da corte agora pintam  as pálpebras de verde com malaquita e  perambulam diante dos homens com as roupas  abertas do umbigo para baixo.

Kaptah tomou-se de curiosidade e disse:

- Nunca vi tais modas em nenhuma outra  terra. E curiosidades esquisitas vi eu,  especialmente nessa questão de roupagens  femininas. Queres dizer que presentemente as  mulheres saem com suas partes pudentas  expostas? A rainha, também?

O negociante de incenso irritou-se e  replicou:

- Sou um homem de decoro, tenho mulher e  filhos. Jamais volvi meus olhos abaixo do  umbigo das mulheres, e nem te aconselho a  fazer coisa tão inconveniente.

Mérito aparteou, zangada:

- A vossa boca é que é desavergonhada, e não  estas novas modas de verão, que são excelentes  devido ao frescor e à justiça que proporcionam  à beleza da mulher contanto que ela tenha um  ventre bonito e que o seu umbigo não haja sido desfigurado por uma parteira estúpida. Podeis  sem receio deixar que vossos olhares se volvam  para baixo pois tais mulheres usam uma tanga  estreita do linho melhor para que os olhares  dos pudicos não se escandalizem.

Vontade teve o negociante de incenso de  responder a isto; mas a terceira taça de "rabo  de crocodilo" foi mais forte do que a sua  língua. Tanto que apoiou a cabeça nas mãos e  chorou amargamente por causa dos trajes das  mulheres da corte e por causa da sorte dos  egípcios abandonados nas terras do Ponto.

Quando Kaptah e eu saímos, falei a Mérito,  quando chegamos à porta:

- Sabes que sou sozinho; teus olhos me dizem  que também és sozinha. Estive refletindo sobre  as palavras que me disseste no outro dia, e  acredito que às vezes uma mentira possa ser  mais doce do que a verdade para uma pessoa solitária cujas primaveras  já são muitas. Gostaria que usasses um desses trajes de  verão a que te referiste, pois teu corpo é bem  modelado, tens pernas longas, e não me parece  que te tenhas de envergonhar de teu ventre  quando caminharmos juntos pela Avenida dos Carneiros...

Desta vez ela não afastou a minha mão; pelo  contrário, segurou-a cordialmente e disse:

- Talvez eu venha a concordar com o que  sugeris. Contudo a sua promessa não me alvoroçou  quando atravessei o tépido ar noturno;  assaltou-me, ao invés, profunda melancolia.  Longe, das bandas do rio, vinham as notas  tristes de uma avena dupla.

No dia seguinte Horemheb regressou a Tebas,  e com ele uma força armada. Mas para falar a  respeito disso e do mais que aconteceu devo  começar um outro livro. Antes, porém, quero  mencionar que no decorrer da minha clínica  tive ensejo de proceder a duas trepanações; um  dos pacientes era um homem poderoso; o outro  era uma pobre mulher que tinha a mania de se  cuidar a grande rainha Hatshepsut. Ambos se restabeleceram e se curaram; mas acho  que a velha era mais feliz ao tempo em que  pensava que era rainha do que depois, quando  recuperou o juízo.

 

A CIDADE CELESTIAL

O verão estava abrasador quando Horemheb  voltou da terra de Kush. Desde muito as andorinhas já  haviam sumido na lama do rio; os poços e  fontes que circundavam a cidade tinham  estagnado, ao passo que os gafanhotos e os  pulgões atacavam as searas. Mas em Tebas os  jardins dos ricos vicejavam, verdejantes e  coloridos, e de ambos os lados da Avenida dos Carneiros desabrochavam flores com todas as  cores do arco-íris. Somente os pobres não  tinham água e somente seus víveres eram  poluídos pela poeira que caía de todas as  partes cobrindo com uma película as folhas das  acácias e dos sicomoros no bairro pobre da  cidade. Ao sul, na praia mais afastada, a casa  dourada do faraó, com suas muralhas e jardins,  se levantava por entre a poalha cintilante e  azulada como um revérbero de sonho.Embora a  canícula estivesse no auge, o faraó não se  transferira desse palácio para os outros, de  verão, no Baixo Reino, permanecendo assim em Tebas. Toda gente depreendia disso que alguma  coisa estava para acontecer. E assim como o  céu se sombreia ante uma tempestade de areia,  da mesma forma os corações se anuviavam com  pressentimentos.

Ninguém ficou surpreendido de ver guerreiros  marchando e entrando em Tebas ao amanhecer e  vindo de todas as estradas do sul. Com os  escudos empoeirados, com refulgentes punhos de  espadas e lanças, e com arcos retesados, as  tropas negras marchavam ao longo das ruas e  olhavam em torno, com admiração, com o branco dos olhos  fulgurando nos semblantes suarentos. Seguiam  seus estandartes bárbaros rumo às barracas  vazias onde não tardaram a arder fogos de  cozinha entre pedras para suportar os  caldeirões de pedra.Enquanto isso, navios da  frota ancoravam ao longo do cais, e carros e cavalos ajaezados eram desembarcados dos  transportes. Não se viam egípcios entre tais  tropas, que eram constituídas em sua maior  parte de núbios do sul e de sardanitas dos  desertos do noroeste. Ocuparam a cidade.

Fogueiras de vigília foram acesas nas  encruzilhadas e o tráfego do rio foi fechado.  Aos poucos, durante o dia, o trabalho foi  cessando nas oficinas e moinhos, nos  escritórios e lojas. Os mercadores recolheram das calçadas as suas mercadorias e puseram trancas nas janelas e  portas; os encarregados das tavernas e  alcouces correram a contratar sujeitos  dispostos, armados com porretes, a fim de  proteger seus estabelecimentos. O povo vestiu- se de branco e começou a fluir de todos os  bairros da cidade para o grande templo de  Ammon cujos pátios ficaram apinhados, sobrando muita  gente do lado de fora das muralhas.

Enquanto isso se propagou a notícia de que  durante a noite o templo de Aton fora  profanado e conspurcado, que a carcaça podre  de um cão havia sido arremessada ao altar, e  que o vigia fora encontrado com a garganta  aberta de orelha a orelha. Ao ouvir isso, as  pessoas lançavam olhares apavorados, de  relance, não faltando contudo quem deixasse de  externar júbilo. Kaptah advertiu-me, com ar  grave:

- Limpe e prepare seus instrumentos, patrão.  Creio que lhe está destinado muito trabalho  antes do anoitecer. Quer me parecer até que o  patrão terá que trepanar alguns casos.

Ainda assim nada sucedeu de maior  importância antes da noite; alguns núbios  embriagados assaltaram lojas e agrediram mulheres. Os guardas prenderam-nos e  açoitaram-nos à vista do povo, o que aliás não  serviu de grande consolo nem para os tais  lojistas nem para as tais mulheres Tendo  ouvido dizer que Horemheb se achava a bordo da  nave capitânia, dirigi-me ao porto, embora sem  grande esperança de poder falar com ele. A sentinela ouviu-me com  indiferença e foi anunciar a minha presença;  e, com grande surpresa para mim, voltou para  me conduzir ao beliche do capitão. Assim, entrei a bordo de um navio de guerra  pela primeira vez e o examinei com grande  curiosidade; todavia, apenas o armamento e a  equipagem mais densa o distinguiam das outras  naves, pois também os navios comerciais  possuíam rostros dourados e velame colorido.

Desta forma me encontrei mais uma vez com  Horemheb.Pareceu-me mais alto e com dignidade  ainda maior do que antes. As espáduas eram  amplas, a musculatura dos braços, vigorosa.  Mas tinha o rosto vincado de sulcos, e os  olhos estavam congestionados e denunciavam  cansaço. Inclinei-me diante dele numa saudação  profunda. Assim que me viu exclamou com uma  risada amarga:

- Oh! É Sinuhe, o Filho do Burro Bravo!  Chegas na verdade numa hora auspiciosa!

Não me abraçou por causa da dignidade de que  se achava investido, mas se voltou para um  pequeno oficial de olhos saltados que estava  em pé a seu lado, zonzo de calor, e lhe  entregou o chicote dourado de oficial,  dizendo:

- Ora, aí o tens, portanto. Guarda-o. -  Retirou a pala bordada a ouro, enfiou-a pelo  pescoço abaixo do homem ventrudo, e  acrescentou: - Assume o comando. Que o sangue  do povo empape tuas mãos imundas. - Depois se  voltou abruptamente para mim e declarou: -  Sinuhe, agora estou livre, posso ir contigo  onde quiseres. Espero que tenhas uma esteira  em tua casa onde eu possa estirar os ossos,  pois, por Set e todos os demônios, estou  mortalmente cansado de tanto discutir com maníacos.

Em seguida pousou as mãos nos ombros do  oficial baixote, que lhe dava pelas  clavículas, e disse:

- Olha bem para ele, Sinuhe amigo, e imprime  na  memória esta cena, pois este homem que aqui  vês terá por hoje, nas mãos, o destino de  Tebas. O faraó o colocou em meu lugar quando  eu chamei o faraó de louco. Que tal o achas? Não te parece que o faraó se verá obrigado sem  demora a mandar me buscar de novo?

Riu e deu socos nos joelhos; mas não havia  alegria em sua risada; pelo contrário, ela me  atemorizou. O oficialzinho olhou-o, com  humildade; seus olhos ainda pareciam mais  saltados com o calor; o suor lhe escorria pelo  rosto, descendo pelo pescoço e sumindo no  peito gordalhufo. Disse em tom alto:

- Não fiqueis zangado comigo, Horemheb, Bem  sabeis que jamais cobicei o vosso chicote de chefe.  Prefiro meus gatos e a paz do meu jardim à  responsabilidade da guerra. Mas quem sou eu para me opor às ordens do  faraó? De mais a mais ele declara que não  haverá guerra, que o falso deus cairá sem  derramamento de sangue.

- Ele declara o que muito bem lhe apetece -  respondeu Horemheb. - Seu coração corre muito  na frente do seu critério, como um pássaro que  escapa de uma gaiola; de modo, que suas  palavras não tem peso. Tens que pensar tu  próprio, derramar sangue moderadamente, com a  devida consideração, mesmo que seja sangue de  egípcios. Juro-te pelo meu falcão que te  flagelarei pessoalmente se vir que deixaste  teu bom-senso nos caixotes com os teus gatos  de raça, pois no tempo do falecido faraó foste  um eminente guerreiro, segundo ouvi falar,  fato que sem dúvida fez o atual faraó te encarregar desta tediosa tarefa.

Cutucou o novo comandante nas costas fazendo  o pobre indivíduo sentir cócegas e falta de ar  a ponto da resposta ficar abafada na garganta.  Horemheb transpôs o convés em dois arremessos;  os soldados perfilaram-se e saudaram-no erguendo as espadas. Acenou para eles,  gritando:

- Passai bem, canalha miúda! Obedecei a esse  bichano de raça que é com quem está agora o chicote de  comando. Obedecei como se recebêsseis ordens de uma  criança; não o deixeis cair do carro nem se  ferir com a própria arma.

Os soldados riram e ovacionaram-no; mostrou- se iracundo, porém, sacudiu os punhos para  eles e vociferou:   

- Não estou me despedindo! Sei que voltarei  sem demora porque já leio vossas manhas em  vossos próprios olhos. Mas uma coisa vos digo: portai-vos direito  tendo sempre em mente as minhas palavras; do  contrário quando voltar dilacerarei vossos  lombos em tiras! Perguntou onde eu morava e informou ao oficial  de guarda, proibindo porém que lhe mandasse a  bagagem para a minha casa por achar que estava  mais garantida a bordo.

Depois, como  antigamente, passou o braço em torno do meu  pescoço e suspirou:

- Francamente, Sinuhe. Se há alguém que  mereça  deveras embebedar-se esta noite, sou eu.

Falei-lhe de O Rabo do Crocodilo; mostrou-se  tão interessado que me aventurei a rogar que  uma guarda especial fosse postada na taverna  de Kaptah. Horemheb deu para isso as  necessárias ordens ao oficial da guarda que  prometeu destacar alguns veteranos capacitados  para tal fim. Consegui desta forma prestar a  Kaptah um favor que não me custou nada.

Por essa ocasião eu já sabia que existia na  taverna O Rabo do Crocodilo uma série de  compartimentos reservados onde profanadores de  tumbas e receptores de bens furtados  costumavam regularizar suas contas; cômodos  que também eram utilizados às vezes por  distintas damas em encontros marcados com  musculosos estivadores. Levei Horemheb para  uma dessas peças; Mérito trouxe-lhe um "rabo  de crocodilo" numa concha engoliu-o de um só  trago, tossiu um pouco, fez "Oh... Oh!", pediu  outro, e quando Mérito foi buscar, Horemheb  observou que se tratava de uma bonita mulher e perguntou que era que havia entre nós.  Assegurei-lhe que não havia nada. Ainda assim  fiquei satisfeito por Mérito ainda não usar a  falada roupa aberta na frente... Contudo,  Horemheb não tomou confiança; ofereceu-lhe  apenas palavras de agradecimento pela bebida, que  tomou entre as mãos e provou marcialmente.  Depois, com um profundo suspiro, me disse:

- Sinuhe, amanhã correrá sangue pelas ruas  de Tebas, e não posso fazer nada para evitar  isso. O faraó é meu amigo, e eu gosto dele a  despeito de sua maluqueira; naquela ocasião  cobri-o com o meu manto, e foi em tais  circunstâncias que o meu falcão uniu nossos  destinos. Talvez goste dele por causa da sua  loucura, mas não me envolverei nessa luta,  pois tenho que pensar no meu próprio destino e  não quero que o povo venha a me execrar. Ah,  Sinuhe, meu amigo! Muita água correu Nilo abaixo depois  daquele nosso encontro na mal cheirosa Síria.  Acabo de chegar da terra de Kush onde por ordem do faraó, fui licenciar guarnições;  regressando a Tebas, trouxe comigo tropas  negras; desta forma, no sul, o país se acha  desguarnecido, militarmente. Se as coisas  continuarem neste pé, será apenas uma questão  de tempo para que irrompam motins na Síria. Pode  ser que tais revoltas façam o faraó voltar ao  uso da razão; por enquanto, porém, o país se  acha empobrecido. Já desde a sua coroação que  as minas funcionam com pouquíssima gente e sem  vantagem ou lucro qualquer. Castigar os  preguiçosos com bastonadas é agora coisa  proibida; no máximo os sujeitam a diminuição  de rações. Devo confessar que o meu coração  treme por causa do faraó, do Egito e do seu  novo deus... muito embora, como sou guerreiro,  nada entenda a respeito de deuses. Só sei de  uma coisa: que muitas pessoas... muitíssimas  mesmo, perecerão por causa desse tal deus.  Ora, isso é uma loucura, pois evidentemente os  deuses existem para a paz do povo e não para  semear discórdia  entre ele.

Depois de uma pausa, continuou:

- Amanhã Ammon será deposto. E eu, por um  motivo, não lamento isso, pois ele se tornou  tão poderoso que manda no Egito tanto ou mais  do que o faraó. É um golpe político e de  estadista o gesto do faraó em derrubá-lo, pois  assim poderá confiscar-lhe as vastas  possessões, o que talvez equivalha a salvar- nos do desbarato. Os sacerdotes dos demais deuses ficaram obscurecidos pelos de Ammon dos  quais tem inveja...Mas nem por isso amam Aton.  Ora, são os sacerdotes que dirigem o coração  do povo. Aí estão os motivos que prognosticam  uma calamidade.

Retorqui:

- Mas Ammon é um deus odiado, seus  sacerdotes  mantiveram o povo demasiado tempo nas trevas e  sufocaram todo e qualquer pensamento de vida,  a tal ponto que ninguém ousa dizer uma palavra  sem licença de Ammon. Já agora Aton oferece luz e uma vida de  liberdade, uma vida sem medo: ora, isso é uma  grande coisa, meu amigo Horemheb.

- Não sei o que queres dizer. Medo, de que?  Queres dizer temor. Bem. O povo deve ser  dominado pelo temor. Se os deuses o governam, então o trono não  precisa de armas para se agüentar. Se Ammon se  satisfizesse em ser servo do faraó faria jus  inteiramente à sua situação, pois nenhuma  nação pode ser governada sem o temor. Eis por  que motivo Aton, com sua gordura e com sua  cruz de amor, é um deus perigosíssimo.

-Trata-se de um deus bem maior do que supões  - disse eu com serenidade, embora sem saber  que era que me levava a falar assim. - Bem  provável é que ele esteja em mim e em ti, sem  o nosso conhecimento... Se o povo o entender  poderá se salvar de todo medo e de toda treva.  Mas é mais provável que muitos morram por sua causa,  conforme disseste, pois coisas assim eternas  só podem ser impostas aos homens medianos  através da força.

Horemheb encarou-me sem paciência como se olha  para uma criança tagarela.

- Pelo menos estamos de acordo que já é  tempo de sofrear Ammon; e se isso tem que ser  feito, que seja realizado já, de noite, às  escondidas, e no país inteiro ao mesmo tempo. Os sacerdotes de categoria mais alta deveriam  ser executados imediatamente, e os outros  mandados para as minas e pedreiras. Mas o  faraó, em sua loucura, quer que tudo seja  feito às darás, com o conhecimento do povo e à  claridade do seu deus... pois o disco do sol é  o seu deus; aliás, isso não é doutrina nova. O  projeto é lunático e custará a perda de muito  sangue. Não concordo com a execução desse plano, mesmo porque não me participaram  previamente. Por Set e todos os demônios! Se me tivessem  dado a conhecer esse caso eu planejaria tudo  tão bem que Ammon seria derrubado com tamanha  ligeireza que nem teria tempo de perguntar do que se estava tratando. No entanto agora  todo garoto de rua conhece o plano; os  sacerdotes estão aliciando gente nos pátios do  templo, os homens puseram-se a lascar ramos e  galhos em seus jardins para transformá-los em armas, e as mulheres se dirigem para o  templo com tábuas de lavar escondidas debaixo  das roupas e para o mesmo efeito. Por meu falcão! A loucura do faraó chega a dar ganas  de chorar.

Inclinou a cabeça sobre as mãos e derramou  lágrimas sobre os acontecimentos que iriam  abalar Tebas. Mérito trouxe-lhe o terceiro  "rabo de crocodilo" e se pos a observar com  admiração tão evidente os ombros largos e a musculatura vigorosa de Horemheb que tive que mandar que  se retirasse logo pois conversávamos coisas  particulares.

Tentei contar a Horemheb o que eu vira na  Babilônia, na terra de Hati e em Creta, mas  verifiquei que a bebida agira sobre sua  cabeça como uma verdadeira rabanada de  crocodilo. Dormiu aquela noite toda ali junto  de mim e me conservei em vigília, tomando  conta do seu sono, ouvindo até de madrugada a  algazarra da soldadesca na taverna.

Kaptah e o antigo dono faziam tudo para entreter os  soldados a fim de que estes lhe protegessem  melhor a casa na hora em que principiassem os  distúrbios. Mas eu estava apreensivo porque  imaginava que em cada casa de Tebas os  habitantes afiavam punhais,  aguçavam estacas e preparavam armas de cobre.  Decerto poucos dormiam, àquelas horas da  noite... Entre eles, sem dúvida, o faraó. Mas  Horemheb, guerreiro nato, dormia  profundamente.

Durante a noite toda o ajuntamento  permaneceu diante do templo. Os pobres  estiraram-se nos gramados frescos do jardim,  ao passo que os sacerdotes ofereciam contínuos  e pródigos sacrifícios a Ammon e distribuíam  carne dos sacrifícios, pão e vinho ao povo.  Invocavam Ammon em altas vozes e prometiam  vida eterna aos que acreditassem nele e dessem  suas vidas por sua causa.

Os sacerdotes bem podiam ter evitado o  derramamento de sangue; bastaria que se  submetessem ao faraó que os deixaria em paz e  não os perseguiria, visto como o seu deus  abominava a perseguição e o ódio. Mas estavam  com as idéias tomadas pela mania de poderio e riqueza a tal  ponto que nem a morte os demovia. Sabiam que  nem o povo nem os poucos guardas de Ammon  poderiam opor resistência a uma força armada  com experiência de guerra que os varreria como  a enxurrada varre a palha. Mas os sacerdotes  queriam que houvesse derramamento de sangue  entre Ammon e Aton somente para que o faraó ficasse com a pecha de  assassino e criminoso que permitira que negros  imundos vertessem o puro sangue egípcio.  Queriam sacrificar perante Ammon para que este  perdurasse por toda a eternidade, mesmo que  sua imagem fosse derrubada e seu templo  fechado.

Ao cabo daquela longa noite, o disco de Aton  se levantou finalmente por cima das três  colinas orientais, e a escuridão amena foi  substituída pelo calor escaldante do dia.

Trombetas soaram em todas as ruas e praças  públicas, e arautos leram alto uma  proclamação, na qual o faraó afirmava que  Ammon era um deus falso que acabara de ser  deposto, ficando amaldiçoado por toda a  eternidade, devendo o seu nome ser apagado de  todas as inscrições, monumentos e tumbas.  Todos os templos de Ammon nos dois Reinos,  suas terras, gado, escravos, edifícios, ouro,  prata e cobre foram confiscados em prol do  faraó e do seu deus. O faraó prometia transformar os templos e os jardins em  recintos e em parques públicos, e o lago  sagrado em piscina pública onde os pobres  pudessem tomar banho e se utilizar das águas à vontade. Prometia dividir as terras de Ammon  entre os que não possuíam terras para que as  pudessem cultivar em nome de Aton. O povo ouviu em silencio - conforme o hábito  requeria - essa proclamação; depois irrompeu  de todas as partes, nas ruas, praças e  defronte dos templos, um cavernoso brado:

-“Ammon! Ammon!"

Um brado tão tremendo que era  como se as paredes e as lajes o houvessem  proferido. E então as tropas negras vacilaram.  Com os semblantes lívidos por baixo do ocre e  do zarcão das máscaras pintadas, com os olhos alvacentos rolando nas órbitas, repararam que  não obstante seu grande número formavam uma  reduzida minoria ali dentro daquela cidade que  viam pela primeira vez prevido à grande  celeuma, foram poucos os habitantes que ouviram  na proclamação que o faraó, a fim de dissociar  o seu nome do de Ammon, passava a se chamar  daquele dia em diante Akhnaton, o favorecido  de Aton.

O vozerio acordou até mesmo Horemheb, que se  espreguiçou e murmurou, sorrindo, com os olhos  ainda fechados:

- És tu, Baket, princesa minha, amada de  Ammon? Chamaste-me?

Mas quando lhe fiz cócegas do lado, abriu os  olhos; e o sorriso caiu de seu rosto como um  véu roto. Apalpou a cabeça e comentou:

- Em nome de Set e de todos os demônios! Que  bebida forte a que me fizeste tomar, Sinuhe!  Creio que estava sonhando.

Disse-lhe:

- O povo está invocando Ammon.

Ele então se lembrou de tudo e se apressou,  saindo logo depois. Atravessamos a taverna,  tropeçando em pernas nuas de raparigas e  soldados. Horemheb apanhou um pão da  prateleira e esvaziou um pichel de cerveja; a  seguir fomos juntos depressa para o templo ao  longo das ruas que estavam ermas como nunca.  Durante o percurso ele se lavou numa fonte, enfiando a cabeça debaixo da água, bufando e  resfolegando, porque o "rabo de crocodilo"  ainda atuava em sua cabeça.

O oficial Pepitamon, que parecia um nédio  gatão, estava dispondo suas tropas e seus  carros diante do templo. Quando se certificou  de que tudo se achava pronto e que todos  haviam compreendido suas ordens, então se  levantou da sua cadeira dourada e gritou com  voz estridente:

- Soldados do Egito! Homens valentes de  Kush! Intrépidos sardanitas! Avançai e  escangalhai, de acordo com a ordem do faraó, a  imagem do amaldiçoado Ammom E grandes  recompensas vos serão outorgadas!

Dito isto, achou que fizera tudo quanto lhe  competia e tornou a se sentar nas macias  almofadas da sua cadeira e ordenou aos  escravos que o abanassem pois o calor já  estava excessivo.

Contudo, na frente do templo estacionava uma  incontável multidão vestida de branco; homens,  mulheres, velhos e crianças não debandaram  ante o avanço de tropas e carros.Com grandes  brados se atiraram no chão, para serem pisados pelos cavalos e ficarem com os corpos  esmagados sob as rodas.

Os oficiais viram que não podiam avançar sem  derramamento de sangue e obrigaram seus homens  a retroceder até lhes ser dada nova ordem,  porque o faraó proibira derramamento de  sangue. Mas já havia sangue correndo pelas  pedras da praça onde os feridos gemiam e  gritavam; o povo ficou excitadíssimo na hora  em que as tropas recuaram, cuidando ter vencido por causa da resistência oferecida.

Nisto Pepitamon se lembrou que o faraó, em  sua proclamação, mudara o próprio nome para  Akhnaton, e então resolveu repentinamente  mudar de nome também, para agradar ao faraó.  Assim que os oficiais voltaram a se aconselhar com ele, suarentos e perplexos, fingiu não  ouvi-los, arregalou os olhos, e declarou:

- Sei lá quem é Pepitamon! Chamo-me  Pepitaton, Pepi, o abençoado por Aton.

Os oficiais empunhavam um chicote de cabo de  ouro, cada um tendo sob seu comando mil  homens, e mostravam profunda irritação; e  deles o que comandava os carros, gritou:

- Ide para os vórtices profundos com esse  Atom Que besteira é essa, agora? Queremos  ordens de ataque, isso sim!

Então Pepitaton zombou, dizendo:

- Sois guerreiros, ou mulheres? Dispersai o  povo sem derramar sangue porque o faraó o  proibiu, terminantemente.

Ao ouvir isso os oficiais se entreolharam e  cuspiram para o chão. E já que não havia outra  coisa a fazer, voltaram para junto dos nossos  homens.

Enquanto tais conciliáulos se processavam,  o povo foi avançando sobre os negros em  retirada, arrancando pedras da rua e  arremessando-as, girando clavas e galhos  quebrados, e gritando alto. A multidão era  numerosa e os homens se exortavam uns aos  outros com berros. Muitos negros, derrubados  pelo apedrejamento, jaziam no chão em cima do  próprio sangue. Os cavalos ficaram nervosos  com a celeuma do povaréu, e recuavam e  empinavam, de modo que os homens dos carros se  viram em apuros. Quando o comandante dos  carros voltou a se unir às suas tropas  verificou que muitos de seus animais  caríssimos estavam com um olho vazado ou com  uma perna quebrada, por efeito das pedradas.

Isso o enraiveceu tanto que começou a bradar  fora de si:

- Coitado do Arco de Ouro! Pobrezinho do meu  Cabrito Montes! Ah! O meu Raio de Sol! Vazaram  teu olho! Aleijaram-te uma perna! Feriram-te a  anca! E eu que gosto mais de vós três do que  do povo inteiro e de todos os deuses juntos! Vingar-me-ei. Olá, se me vingarei... Mas, não derramemos sangue, porque o faraó proibiu,  taxativamente...

À frente de seus carros, arremeteu contra a  multidão; e cada condutor de veículo procurava  colher os rebeldes mais assanhados, enquanto  os cavalos pisavam velhos e crianças e os  gritos se iam transformando em gemidos. Mas  aqueles que os soldados colhiam ao passar de  carro eram estrangulados com as rédeas, assim  se cumprindo a ordem de não derramamento de  sangue; em seguida viravam de direção,  arrastando atrás dos carros os cadáveres a fim  de disseminar horror entre o povo. Os núbios  arrebentavam os arcos, arremetiam e  estrangulavam as vítimas com as cordas aproveitadas. Estrangulavam até mesmo  crianças, e se defendiam das pedradas  manobrando os escudos. Mas cada negro pintado  que se separasse um pouco dos camaradas era  pisado pela gentalha e dilacerado em pedaços.  O povo conseguiu mesmo puxar para fora de um  dos carros o respectivo condutor, e lhe  arrebentou o crânio de encontro às lajes por entre vociferações tumultuosas. O real comandante supremo do ataque,  Pepitaton, foi ficando preocupado com o  decorrer da refrega; o relógio de água, a seu  lado, gorgolejava, e o bramir da multidão  chegava aos seus ouvidos como o ímpeto rouco  de uma torrente. Chamou seus oficiais, invectivou-os por causa  da demora, e disse:

- A minha gata sudanesa, Mimo, vai ter  filhotes, hoje. Ora, em que estado de ânimo  posso eu estar se vejo que não posso ir  ajudá-la?! Conjuro-vos em nome de Aton que  avanceis! Derrubai logo essa estátua  amaldiçoada, para que possamos voltar para  casa, todos. Do contrário arrancarei as  correntes de ouro de vossos pescoços e  quebrarei vossos chicotes. Juro!...    Ao ouvir isto, os oficiais viram que estavam  em apuros e assim, sucedesse o que sucedesse,  resolveram pelo menos salvar suas honras como  soldados. Reorganizaram seus homens e deram o  ataque jogando o povo para o lado, como aparas e restolhos sob o efeito da enxurrada; as  espadas dos negros se tingiram de vermelho,  correu sangue pela praça e em cada uma das cem  arremetidas pereceram naquela manhã cem  pessoas - mulheres, homens e crianças - e isso  em nome de Aton. E isso porque quando os  sacerdotes viram que os soldados estavam  atacando deveras, fecharam as portas dos pilonos, e o povo começou a correr de uma  banda para outra como rebanho espezinhado.  Negros, embriagados por sangue, perseguiam  tais bandos, atingindo-os com os arcos e  lanças, enquanto os condutores de carros  investiam pelas ruas atravessando os fugitivos  com suas espadas. Mas, na fuga, o povo forçou  a entrada do templo de Aton, revirou o altar e liquidou os sacerdotes que encontrou. Os  carros, em perseguição, transpuseram o  recinto. Assim os lajedos do templo de Aton  ficaram coalhados de sangue e cheios de moribundos.

Mas as muralhas do templo de Ammon  bloquearam a passagem das tropas negras de  Pepitaton que não estavam acostumadas a  transpor tais defesas e suas catapultas não  tinham força para derrubar portas de cobre. O  mais que os soldados puderam fazer foi cercar  o templo, de cujas muralhas os sacerdotes lhes  bradavam imprecações e os guardas deixavam cair setas e chuços, de modo que muito negro  foi atingido sem poder revidar. Escorria da  praça aberta diante do templo um arroio  espesso de sangue que atraiu as moscas da cidade inteira em vagas ondulantes de poeira.  Pepitaton surgiu em sua liteira dourada e  ficou com a fisionomia lívida ante aquele  cheiro nauseante; mandou que escravos  queimassem incenso à sua volta, e chorou e  rasgou as vestes à vista de tantos mortos.

Além disso seu coração esta;a aflito por  causa de Mimo, a gata sudanesa; de forma que  disse aos seus oficiais:

- Temo que a cólera do faraó será tremenda,  porque não derrubastes a imagem de Ammon, e  apenas conseguistes verter sangue em torrentes  ao longo das sarjetas. Vou depressa comunicar ao faraó o que se  passou e farei tudo para interceder por vós.  Assim, terei ensejo de passar por casa, ver a  gata e mudar de roupa, porque este cheiro aqui  é hediondo e me entra até pela pele. Não  podemos transpor as muralhas do templo, hoje.  O faraó em pessoa que decida, já agora, o que  deva ser feito. nada mais aconteceu naquele dia. Os oficiais  retiraram seus homens do assédio às muralhas  do templo e de junto dos mortos e ordenaram  que as carroças de abastecimento subissem pois  era hora de dar ração aos núbios.

Durante as noites que se seguiram, incêndios  se alastraram pela cidade,casas foram  saqueadas, negros tatuados beberam vinho em  taças de ouro, sardanitas deitaram em macias  camas com dosséis. Toda a escumalha da cidade irrompeu: ladrões, profanadores de tumbas,  salteadores de estradas, que não temiam aos  deuses, nem mesmo a Ammon. Com ademãs piedosos louvaram o nome de Aton,  transpuseram o templo que fora limpo à pressa,  e receberam a cruz da vida dos sacerdotes  sobreviventes. Penduraram-nas ao pescoço como  talismã protetor que assim os habilitou a  roubar, assassinar e saquear à vontade sob a  proteção da noite. Muitos anos se passariam  antes que Tebas voltasse ao que tinha sido porque durante tais dias foram drenados para fora dela poder e riqueza, como sangue de  um corpo pletórico.

Horemheb permanecia em minha casa, sem  dormir, alvoroçado, com os olhos cada vez mais  sinistros e seu estomago recusava tudo quanto  era refeição que Muti repetidamente punha na  sua frente. Muti, como muitas outras mulheres, se sentiu empolgada por Horemheb,  dedicando-lhe mais consideração do que a mim  que, culto ou letrado, não passava todavia de  um sujeito de musculatura flácida.

Horemheb mostrou-se explícito:

- Estou ligando para Ammon, ou Atom Mas a  verdade é que ambos fizeram os meus soldados  se comportarem barbaramente... Assim, muitos  lombos se vergarão ao meu chicote e muitas  cabeças terão que cair antes que eu consiga que recuperem juízo. E lastimo muitíssimo,  porque quando disciplinados são ótimos  combatentes.

Kaptah enriquecia cada vez mais, e seu  semblante luzia de ungüentos. Passava agora as noites em O Rabo do  Crocodilo porque os oficiais e os sargentos  sardanitas pagavam com ouro, e nos cômodos  reservados aos fundos da taverna jaziam montes  cada vez maiores de tesouros roubados, jóias, cofres, enxovais, que os fregueses cediam em  troca de vinho, sem indagar o preço. O  estabelecimento permaneceu intacto, livre de ataques, e os gatunos passavam de longe  porque a casa estava guardada pelos homens de  Horemheb.

Já no terceiro dia o meu abastecimento de  remédios se esgotara e era impossível adquirir  mais, mesmo a peso de ouro.

Minha perícia era  vã em face da doença que se espalhava pelo  bairro dos pobres, por causa dos cadáveres e  da água conspurcada. Sentia-me- cansado, meu  coração parecia uma ferida em meu peito, meus  olhos estavam congestionados por falta de sono  suficiente. Vivia aflito por causa de tudo,  dos pobres, dos feridos, de Aton, e fui para O  Rabo do Crocodilo onde bebi vinho misturado  até cair em pesado sono.

De manhã, fui acordado por Mérito; eu estava  deitado em sua esteira, e ela jazia a meu  lado. Profundamente envergonhado, disse-lhe:

- A vida é como uma noite fria; mas na  verdade pode se tornar suave quando dois  mortais solitários se aquecem mutuamente, a  despeito das mentiras de seus olhos e de suas mãos.

Ela bocejou, estremunhada.

- Como sabeis que minhas mãos e meus olhos  estão mentindo? Estou cansada de bater nas  mãos de soldados e de lhes dar pontapés nos  queixos; o único lugar garantido nesta cidade  é a teu lado, Sinuhe... Aqui ninguém ousará  por a mão sobre mim. A razão disso ser assim,  nem eu posso dizer, e me sinto um pouco  ofendida, pois sou tida na conta de bonita e a  curva de meu ventre é perfeita, embora não vos tenhais dignado olhar para ele.

Bebi a cerveja que me ofereceu para aliviar  minha dor de cabeça, e não encontrei palavra  para uma resposta. Ela fitou meus olhos com um  sorriso, sem que todavia desaparecesse aquela  névoa de mágoa que pairava ao fundo dos seus olhos castanhos como um lençol de água  profunda no fundo de um poço. Disse-me:

- Gostaria de ajudar-vos, se pudesse, e sei  que nesta cidade há uma mulher que te deve uma  dívida incomensurável.

Nestes dias os tetos  são assoalhos, as portas se abrem para o lado  de fora, e o pagamento de muitas dívidas é  exigido em plena rua. Talvez vos conviesse também agir deveras  para assim perderdes a impressão de que todas  as mulheres são áridos desertos.

Disse-lhe que esta não era a minha impressão  a respeito dela, mas saí levando suas palavras  comigo, pois eu era humano, apesar de tudo.  Meu coração confrangeu-se à vista da  carnificina, e provei o paroxismo do ódio,  ficando com medo de mim mesmo. Lembrei-me do  templo do gato e da respectiva casa anexa, não  obstante o tempo haver se acumulado como areia  em cima de tais recordações. Mas durante os  dias de terror os mortos se levantam de suas  tumbas, e me lembrei de meu pai tão cordato e  de minha mãe tão solícita; e ao pensar neles  senti ,gosto de sangue na boca. Em tal ocasião  ninguém em Tebas era demasiado rico ou  demasiado eminente para não se sentir em  perigo ao sair à rua.

Bastar-me-ia portanto  contratar alguns soldados para efetivar meu intento. Mas por enquanto eu ignorava qual  fosse o meu intento.

No quinto dia reinou apreensão entre os  oficiais sob o comando de Pepitaton, porque os  soldados deixaram de obedecer aos toques das  cornetas e insultavam os chefes pelas ruas,  arrancando-lhes os chicotes dourados e  quebrando-os nos joelhos. Os oficiais  procuraram Pepitaton que já estava farto da  vida de guerreiro e sentia saudades de seus  gatos; persuadiram-no a solicitar audiência ao  faraó e dizer-lhe a verdade, devolvendo-lhe  sua pala de comando supremo. E assim, no  quinto dia apareceram em minha casa  mensageiros do faraó dizendo a Horemheb que se  apresentasse ao faraó.

Horemheb levantou-se como um leão da sua  toca, lavou-se, vestiu-se e saiu com os homens  resmungando consigo mesmo as palavras que  pretendia dizer ao faraó. Aquela altura até mesmo a autoridade do faraó estava  cambaleante, e ninguém sabia o que o dia  seguinte poderia trazer.

Quando se viu diante do rei, disse:

- Akhnaton, não há um momento a perder, e não tenho tempo para vos relembrar quanto vos  aconselhei que fizésseis. Se desejais que tudo  se normalize, outorgai-me a vossa autoridade  por três dias, ao cabo os quais vo-la  devolverei. E nem precisareis saber nunca o que se  passou.

O faraó perguntou-lhe:

- Derrubarás Ammom?    Horemheb respondeu:

- Não resta dúvida que sois um possesso! A  despeito de tudo quanto aconteceu, Ammon deve  cair para que a majestade do faraó sobreviva!  Não é isso? Está bem. Derrubá-lo-ei. Mas não  me pergunteis de que modo o farei.

O faraó recomendou:

- Não façais mãos seus sacerdotes pois  estes não sabem o que fazem.

Após resposta anuindo, Horemheb comentou:

- Está parecendo que precisais de uma  trepanação do crânio, pois somente isso vos  curará. Ainda assim vos obedecerei em  consideração àquela hora em que cobri vossa fraqueza com a minha túnica.

Então o faraó chorou e lhe entregou por três  dias o seu azorrague e o seu bordão. Como este  caso veio a termo sei apenas pelo que Horemheb  me contou; conforme é hábito dos guerreiros,  exagerou decerto, com a sua imaginação. Fosse como fosse, voltou para a cidade na  carruagem dourada do faraó e passou por tudo  quanto foi rua chamando os soldados pelos  nomes. Tomou consigo os de mais confiança,  mandou tocar as trombetas conclamando os  homens a se reunirem sob os seus respectivos  Estandartes com insígnias de falcões e caudas  de leões. A busca durou a noite toda. Brados e gritos eram ouvidos nos  aquartelamentos onde dormiam os homens, e  bastões foram usados às dúzias nas mãos dos punidores cujos braços ficaram cansados,  pois jamais tinham exercido tal tarefa com  tamanha veemência. Horemheb mandou seus homens patrulharem as  ruas a fim de prender os soldados que não  obedecessem aos toques das trombetas para em  local adrede serem flagelados. Todos quantos  estavam com as mãos ou as vestes  ensangüentados foram decapitados à vista dos camaradas. Ao raiar a manhã a escumalha de  Tebas voltara aos seus buracos, que nem ratos,  pois todos que eram apanhados roubando ou  depredando eram passados à espada no próprio  local, imediatamente.

Horemheb convocou também à sua presença  todos os construtores da cidade e lhes ordenou  que tirassem materiais dos atacadistas ricos e  desmontassem navios por causa da madeira; e  fez artífices construírem catapultas e torres  de assédio, de modo que a barulheira de  marteladas encheu a noite toda. Mas acima de  todos os ruídos se erguiam os berros dos  núbios e dos sardanitas sob vergastas, som  este, aliás, agradabilíssimo aos ouvidos dos  cidadãos de Tebas.

Horemheb não perdeu tempo à toa em  negociações com os sacerdotes; assim que  começou a clarear deu ordens aos seus oficiais. Torres de assédio foram colocadas em  cinco pontos em redor das muralhas do templo  ao mesmo tempo em que arietes e catapultas  começaram a arrombar as portas.

Nenhum dos soldados foi ferido, porque  faziam teto com os escudos. Os sacerdotes e os  guardas não puderam opor resistência a um  ataque tão decidido e bem praticado.  Dispersaram suas forças e começaram a correr  de uma banda para outra, em pânico, ao redor  das muralhas enquanto dos pátios, em baixo,  subiam os gritos aterrorizados do povo que se acolhera a eles. Quando os sacerdotes  principais viram que as portas estavam cedendo  e que os negros escalavam as muralhas,  mandaram tocar cornetas pedindo trégua para que a vida do povo fosse poupada. Convenceram- se de que Ammon tivera sacrifícios  suficientes, e desejavam poupar os fiéis  remanescentes para futuros serviços. Assim  pois as portas foram abertas e os soldados  deixaram que a multidão aglomerada lá dentro  escapasse segundo o consentimento de Horemheb.  O povo fugiu, invocando Amnon, indo à pressa para casa, pois a excitação já se abatera e  toda aquela gente estava exausta deveras de  haver ficado de pé tanto tempo nos pátios sob  o sol abrasador.

Pode Horemheb tomar os adros, os depósitos, as  cocheiras e as oficinas do templo sem grandes  perdas de qualquer dos lados. As Casas da Vida  e da Morte ficaram sob sua jurisdição; mandou  que os médicos da Casa da Vida fossem para a cidade tratar dos doentes, mas não  interferiu na Casa da Morte porque os que  trabalham acolá se acham separados como num santuário, aconteça o que acontecer  cá fora no mundo. Os sacerdotes e os guardas  fizeram uma última tentativa no templo para  proteger o santo dos santos; para tanto os sacerdotes exerceram mágicas sobre os  guardas e lhes deram drogas sob cujo efeito  lutaram até à morte sem sentir dor.

A batalha no grande templo continuou até ao  crepúsculo quando então os guardas  enfeitiçados foram todos mortos junto com os  sacerdotes que ofereceram resistência. Restaram apenas os sacerdotes de alta  categoria que se reuniram em torno do deus, no  santuário. Horemheb deu ordem para que a luta  cessasse e imediatamente mandou fazer a  remoção dos mortos - que foram atirados no  rio.

Em seguida, aproximando-se dos sacerdotes de  Ammon, falou:

- Não movo guerra contra Ammon, porque sirvo  a Horus, o meu falcão. No entanto devo  obedecer às ordens do faraó e depor o vosso  deus. Não seria mais agradável para nós que  nenhuma imagem fosse encontrada no santo dos santos, evitando-se assim que os soldados a  profanassem? Sim, pois não desejo cometer sacrilégio, muito  embora, devido ao meu juramento, deva servir  ao faraó. Refleti sobre as minhas palavras; para tal  fim vos concederei o prazo de uma medida de  água. Depois disso podeis partir em paz, e  ninguém erguerá as mãos contra vós, porque não  faço questão de vossas vidas.

Estas palavras agradaram aos sacerdotes que  se tinham decidido a morrer por causa de  Ammon. Permaneceram no santuário até decorrer  o prazo de uma medida de água. Depois Horemheb  com a sua própria mão arrebentou o véu do templo e deixou partir os sacerdotes. Assim o  santuário ficou vazio, não se vendo nenhuma  imagem de Ammon. Os sacerdotes mais que  depressa a desmontaram, e levaram os pedaços debaixo de suas túnicas, para que mais  tarde pudessem proclamar um milagre e afirmar  que Ammon ainda vivia. Horemheb mandou selar  todos os compartimentos, inclusive os porões,  sendo que o fez com as suas próprias mãos onde estavam guardados o ouro e a prata. 

Naquela mesma noite, ao clarão de tochas, pedreiros começaram a apagar o nome de Ammon  de tudo quanto era estátua ou inscrição. Noite adentro Horemheb mandou limpar a praça  de cadáveres e fragmentos, e ordenou que  fossem extintos os incendios ,que ainda  lavravam em algumas partes da cidade.

Quando os tebanos mais ricos e mais  aristocratas souberam que Ammon fora deposto e  que a calma e a boa ordem se achavam  restabelecidas então se vestiram com os mais  luxuosos trajes, acenderam lâmpadas diante de  suas casas e saíram para as ruas a fim de  celebrar a vitória de Aton.

Membros da corte, que se haviam refugiado na  casa dourada do faraó, atravessaram novamente  o rio, de volta à cidade.

Em breve o firmamento por cima de Tebas se  avermelhou por causa das tochas e lâmpadas  festivas. O povo recamou de flores as ruas,  gritando, rindo e se abraçando. Horemheb não pode evitar que eles se divertissem com os  sardanitas atochando-os de vinho, nem que  damas da nobreza abraçassem os núbios que  carregavam na ponta das lanças as cabeças escanhoadas dos sacerdotes que tinham matado. Tebas rejabilou-se aquela noite em nome de  Aton. Em nome de Aton tudo foi permitido, e  não houve diferenciação entre egípcios e  negros. Em testemunho disso as damas da corte admitiram núbios em suas casas,  espojaram-se de seus novos trajes de verão,  provaram a virilidade dos negros e  experimentaram o acre cheiro de sangue de seus  corpos.

E como um guarda do templo, ferido, se  arrastasse para o centro da praça, vindo da  sombra das muralhas e em seu delírio chamasse  Ammon, esborracharam-lhe a cabeça de encontro  às pedras da rua; e as damas dançaram em sinal  de júbilo ao redor desse corpo.

Tais coisas vi com os meus próprios olhos, e as tendo visto escondi a cabeça entre as mãos, indiferente já então a tudo quanto acontecera. Raciocinei que deus nenhum podia curar o homem da sua loucura. Corri para o Rabo do Crocodilo e, com as palavras de Mérito fulgurando em meu coração, chamei os soldados que montavam guarda à taverna. Obedeceram-me porque me haviam visto na companhia de Horemheb, e os levei através daquela noite de delírio, por entre orgias e danças em plena rua, à casa de Nefernefernefer. Acolá também ardiam tochas e lâmpadas, e o barulho de bêbados em baderna que vinha da casa - que não sofrera ataque nenhum - atingia o quarteirão. Assim que me aproximei, meus joelhos começaram a tiritar e meu estomago se contraiu. Disse aos soldados:

- Estas são as ordens de Horemheb, meu amigo e comandante supremo do faraó. Entrai naquela casa. Lá encontrareis a dona, uma mulher de cabeça empertigada e de olhos tão verdes que parecem pedras de jade. Trazei-a aqui; caso resista, desacordai-a com uma pancada de espada na cabeça, mas não lhe façais nenhum outro mal.

Os soldados lá se foram, alegremente. Não tardou que convivas saíssem cambaleando, espantados, e que criados se pusessem a chamar hipotéticos guardas. Os meus homens logo voltaram comendo pão-de-mel, trazendo frutas e pichéis de vinho e... transportando Nefernefernefer.

Lutara. Tiveram que machucá-la com uma espada, e a sua cabeça macia estava ensangüentada e com a cabeleira fora do lugar. Palpei-lhe o peito; a pele era fina como vidro aquecido; mas a sensação que tive foi de ter posto a mão na pele de uma serpente. Verifiquei que seu coração batia, que o ferimento não tinha gravidade; e a envolvi num pano preto como se faz com os cadáveres, e a depus numa liteira. Vendo que eu estava acompanhado por soldados, a guarda não interferiu. Aqueles foram me aguardar à entrada da Casa da Morte; segui na liteira balouçante com o corpo inanimado de Nefernefernefer em meus braços.

Ainda era linda; mas, para mim, bem mais repulsiva do que uma serpente. Assim, ao longo da noite agitada, chegamos à Casa da Morte onde dei ouro aos soldados e os licenciei, mandando embora, também, a liteira.

Entrei na Casa da Morte com Nefernefernefer em meus braços e disse aos lavadores de cadáveres que vieram ao meu encontro:

- Trago-vos o corpo de uma mulher que encontrei na rua. Não sei seu nome nem o de sua família; mas quer me parecer que as jóias que ela traz consigo serão pagamento suficiente ao trabalho que tereis em lhe preservar o corpo para sempre.

Os homens blasfemaram, dizendo-me:

- Cuidas, ó maluco, que já não temos carniça bastante com que trabalhar todos estes dias? E quem é que nos paga mais esta trabalheira?

Mas quando retiraram a mortalha negra verificaram que o corpo da mulher ainda estava quente: e como lhe tirassem o vestido e as jóias, viram que era bonita - mais bonita do que qualquer mulher que ali já dera entrada. Não disseram mais nada, palparam-lhe o busto, perceberam que o coração ainda batia. Trataram de cobri-la depressa outra vez com a mortalha, piscando e fazendo trejeitos uns para os outros, por entre risadas. Depois me disseram:

- Vai-te embora, desconhecido e abençoado seja esse teu gesto. Vamos embalsamá-la com o maior capricho e, caso isso dependa apenas de nós, a reteremos setenta vezes setenta dias para que seu corpo fique bem preservado para todo o sempre.

Assim cobrei pagamento exato a Nefernefernefer pela dívida em que ela se achava para comigo, com referencia a meus pais. Perguntava-me qual seria sua impressão ao acordar nos recessos da Casa da Morte, saqueada em seus bens e nas garras de lavadores de cadáveres e embalsamadores. Se é que eu os conhecia bem, podia ter a certeza de que jamais a deixariam voltar para a luz do dia. Sim, tratava-se de vingança minha, pois tinha sido por sua causa que eu chegara a conhecer a Casa da Morte. Mais a minha vingança foi pueril, conforme vim a descobrir mais tarde.

Procurei Mérito na taverna de Kaptah e lhe disse:

- Realizei minha vontade e da maneira mais terrível que alguém já se lembrou de fazer. Mas a minha vingança não me proporcionou alívio nenhum, meu coração se sente mais vazio do que antes, e a despeito do calor da noite sinto o corpo frio.

Bebi vinho, que teve gosto de terra em minha boca. Queixei- me:

- Que o meu corpo pereça se eu tornar a tocar em outra mulher, pois quanto mais penso nelas mais me acovardo; o corpo e o coração das mulheres constituem uma armadilha mortal.

Mérito acariciou minhas mãos, e seus olhos castanhos fixaram os meus, enquanto sua voz dizia:

- Sinuhe, nunca chegastes a conhecer uma mulher que vos quisesse bem.

Bebi vinho e redargüi por entre lágrimas:

- Mérito, que todos os deuses do Egito consigam me salvar de uma mulher que me queira bem. Também o faraó só quer o bem alheio, e o rio está cheio de cadáveres por causa desse seu bem-querer. Mérito, tuas faces são macias e lisas como vidro, e tuas mãos são cálidas. Deixa que toque tuas faces esta noite com meus lábios e que aqueça as  minhas mãos frias nas tuas para que consiga dormir sem sonhos. Consente, e então te darei quanto desejares. Sorriu tristemente e sentenciou:

- Fala por vossa boca o efeito da bebida que age em vós como uma rabanada de crocodilo. Mas estou acostumada a isso e não me zango. Bom é que saibais, Sinuhe, que não exijo nada de vós, e que nunca em minha vida exigi coisa alguma de nenhum homem; jamais pedi quaisquer valores a alguém. O que dou, dou de coração, e vos darei também o que me pedirdes, pois me sinto tão sozinha quanto vós vos sentis solitário.

Tirou da minha mão tremula a taça de vinho e, estirando a esteira no chão, para mim, se deitou a meu lado, aquecendo minhas mãos nas suas. Rocei suas faces macias com os meus lábios e sorvi o aroma de cedro de sua pele, acabando por gozar o seu amplexo. Para mim ela era ao mesmo tempo meu pai e minha mãe, um braseiro numa noite de inverno, um fanal na praia guiando o navegante através da noite impetuosa. Depois que dormi, ela ficou sendo para mim Minéia - Minéia que eu perdera para sempre - e eu permanecia deitado junto daquele corpo como no fundo do mar com Minéia.

Não tive pesadelos, dormi profundamente, enquanto ela sussurrava em meus ouvidos aquelas mesmíssimas palavras que as mães dizem aos filhos que sentem medo da escuridão. Desde aquela noite ela se tornou minha amiga, porque em seus braços acreditava outra vez que existia algo maior do que eu e acima da minha compreensão, só isso bastando como valor para a vida.

Disse-lhe na manhã seguinte:

- Mérito, quebrei um cântaro com uma mulher que já morreu e guardo comigo a fita de prata que apertava seus longos cabelos. Contudo, por causa da nossa amizade, estou pronto a quebrar um cântaro contigo, se quiseres.

Bocejando, ela tapou a boca com o dorso da mão e respondeu:

- Não deveis beber mais "rabos de crocodilo", Sinuhe, porque vos fazem falar coisas insensatas no dia seguinte. Lembrai-vos de que eu cresci numa taverna e que já não sou mais uma rapariga inocente que deva me prender à vossa palavra.... e depois ficar desapontada, deveras.

- Quando olho bem dentro de teus olhos, Mérito, creio então que há mulheres boas neste mundo - disse eu, roçando suas faces macias com a minha boca. - Foi por isso que falei assim; para que saibas em que conceito te tenho.

Sorriu.

- Reparai que proibi que bebêsseis "rabos de crocodilo' pois uma mulher sempre começa mostrando que quer bem a um homem proibindo-lhe que faça qualquer coisa para, com isso, experimentar se tem domínio sobre ele. Não falemos de cântaros, Sinuhe. Sabeis que o meu leito é vosso sempre que sentirdes solidão e tristeza. Mas não vos ofendais se acho que existem outros homens solitários e tristes, além de vós, porque, como ser humano, eu também sou livre de escolher companhia, e não quero de modo algum vos prender. Isto posto, apesar dos pesares, vou vos dar um "rabo de crocodilo" que eu mesma vou buscar.

Tão estranha é a alma do homem e tão pouco conhece de seu próprio coração que meu espírito naquele momento se sentiu leve como um pássaro, e esqueci completamente todo o mal que acontecera durante aqueles dias. Fiquei contente, e pelo resto do dia não tomei mais nenhuma bebida.

Na manhã seguinte levei Mérito para assistir ao cortejo do festival do faraó. Apesar de tanta trabalheira tida na taverna, ela estava muito bonita em seu vestido de verão cortado pelo feitio moderno, e não me envergonhei absolutamente de ficar a seu lado nos lugares reservados aos favorecidos do faraó.

A Avenida dos Carneiros refulgia de galhardetes, e extensas multidões a ladeavam, tendo acorrido para a passagem do faraó. Meninos estavam encarapitados nas árvores dos jardins de ambos os lados, e Pepitaton ordenara que um número incontável de cestas com flores fossem colocadas ao longo do percurso para que, de acordo com o costume, os espectadores alcatifassem o caminho do faraó. Eu sentia ótima disposição esperando lobrigar liberdade e luz para a terra do Egito.

Recebera uma taça de ouro da casa do faraó e fora nomeado cirurgião real da corte. Sentia a meu lado uma mulher agradável e nédia, que era minha amiga. E à nossa volta, nos lugares reservados, via somente gente feliz e sorridente.

No entanto reinava profundo silencio; o crocitar dos corvos podia ser ouvido lá na cúpula do templo, pois corvos e abutres tinham agora escolhido Tebas como seu recinto e se haviam empanzinado tanto que não podiam levantar vôo e voltar para as suas montanhas.

O faraó errou tremendamente em consentir que negros pintados marchassem atrás da sua cadeira. Ao ve-los, a multidão se levantou em fúria. Pouquíssimas eram as pessoas que não tinham sofrido algum dano nos dias precedentes. Muitas haviam perdido suas casas por incêndio; as lágrimas das viúvas ainda não haviam secado, os ferimentos dos homens ainda doíam debaixo dos curativos, e suas bocas contundidas e quebradas não podiam sorrir. Mas o faraó Akhnaton apareceu, oscilando bem alto sua cadeira por cima das cabeças do povo, e visível de todo. Trazia na cabeça a dupla coroa dos Dois Reinos, de lírios e de papiros. Tinha os braços cruzados no peito e suas mãos seguravam convulsivamente o bordão e o azorrague da realeza. Estava hirto como uma imagem, tal qual apareciam em público os faraós de todos os tempos, e havia um silencio mortal à medida que a cadeira prosseguia, como se a presença real tornasse muda toda aquela gente.

Os soldados que guarneciam o percurso erguiam suas espadas com um brado de saudação, e os assistentes mais conspícuos começaram também a ovacionar e a atirar flores na frente da cadeira real. Mas em comparação com o silencio ameaçador da turba, tais aclamações soavam esganiçadas e lastimáveis, como o zumbir de um mosquito solitário numa noite de inverno; por isso tais entusiastas em breve se reduziram a silencio, olhando uns para os outros, espantados.

Desta vez, contra toda a tradição, o faraó se moveu, erguendo o bastão e o azorrague em saudação hirta. A multidão reagiu, e de repente de milhares de gargantas irrompeu um grito tão terrível como o rebentar do oceano de encontro a penhas. '  

- Ammon! Ammon! Restituí-nos Ammon, o rei de todos os deuses!

E como a multidão ondulasse e se dilatasse, e o clamor se tornasse cada vez mais audível, os corvos e os abutres levantaram vôo do teto do templo e abriram suas asas negrejantes por sobre a cadeira do faraó. E a turba gritava:

- Vai-te embora, falso faraó! Some da nossa vista!

Os brados alvoroçaram os homens que carregavam a cadeira que interrompeu alguns segundos sua passagem. Mas quando ela se locomoveu para a frente, outra vez, impelida pelas instâncias dos oficiais nervosos da guarda, o povo irrompeu em irresistível correnteza através da Avenida dos Carneiros, cindindo o isolamento estabelecido pelos guardas e se arrojando confusamente diante da cadeira a fim de obrigá-la a retroceder.

Já não era mais possível seguir o que estava acontecendo. Os soldados começaram a zurzir o povo com seus bastões para desimpedir o caminho, logo tendo que recorrer às espadas e às adagas para se defender. Paus e pedras cantavam no ar, sangue escorria, e o grito dos que morriam atravessava a celeuma. Mas nenhuma pedra foi atirada no faraó, que era filho do sol como os demais faraós, seus predecessores. A sua pessoa era sagrada e ninguém da multidão ousaria, sequer em sonhos, erguer a mão contra ele, por mais que no íntimo todos ali o odiassem. Não creio que os próprios sacerdotes fizessem coisa assim tão incrível.

O faraó continuava imperturbável, até que, mais além, esquecido da sua dignidade, gritou aos soldados que parassem. Mas em meio àquela confusão ninguém escutou sua voz. A multidão jogava pedras na guarda que para se defender teve que matar muitas pessoas que exclamavam incessantemente:

- Ammon, Ammon! Queremos outra vez Ammon! Vai-te embora, falso faraó! Some-te! Tebas não quer saber de ti!

Pedras foram arremessadas contra pessoas importantes, e o povo irrompeu ameaçadoramente junto dos recintos reservados obrigando mulheres a fugir jogando fora flores e frascos de perfume. Por ordem de Horemheb trombetas soaram. Dos pátios e ruas laterais vieram carros que até então estacionavam fora da vista do povo para evitar provocações. Muita gente foi apanhada pelos cascos dos cavalos e pelas rodas dos carros; mas Horemheb mandara antes tirar os alfanjes laterais para evitar derramamento desnecessário de sangue. Rodaram vagarosamente e em ordem preestabelecida rodeando a cadeira do faraó e também protegendo mais pessoas, entre elas a família real, escoltando assim o desfile até ao fim. Contudo, os bandos só dispersaram depois que as embarcações governamentais atravessaram a remo a correnteza do rio.

Dispersaram-se aos gritos de júbilo que foi mais terrível do que a cólera. Os rufiões saqueavam as casas dos ricos até que os soldados restaurassem a ordem e o povo fosse compelido a se retirar para suas casas. A noite desceu e os corvos principiaram a descer em círculos para dilacerar os corpos que ainda jaziam na Avenida dos Carneiros.

Foi desta forma que o faraó Akhnaton se viu face a face pela primeira vez com seu povo enraivecido e assistiu correr sangue por causa do seu deus. Jamais se esqueceu de tal cena. O ódio destilou veneno em seu amor, e seu fanatismo cresceu tanto que ele decretou que quem quer que dissesse alto o nome de Ammon ou o conservasse escondido em imagens ou vasos fosse mandado para as minas.

Cito estes acontecimentos antes do tempo em que ocorreram só para expor a situação. Naquela mesma noite fui chamado apressadamente à casa dourada, porque o faraó estava com um ataque do seu mal sagrado. Os médicos receavam que morresse e trataram logo de dividir o peso da responsabilidade, escolhendo-me porque o faraó pouco antes falara em mim. Achei- o estirado que nem um corpo morto, com os membros gelados, sendo quase impossível surpreender o batimento do seu pulso.

Após um período de delírio, durante o qual mordeu a língua e os beiços até sangrarem, voltou a si. Mandou então que se retirassem todos os outros médicos, pois não os tolerava.

E logo me disse:

- Chama a minha equipagem. Manda-a içar as velas vermelhas da minha nave. Que os meus amigos venham comigo, pois vou fazer uma viagem deixando que a minha visão me conduza até a uma terra que não pertença a deuses nem a homens. E a consagrarei a Aton e lá edificarei uma cidade que será a cidade de Aton. Nunca mais voltarei a Tebas. O comportamento destes tebanos me é mais odiento do que tudo quanto se passou antes... mais repelente, mais desprezível do que tudo que meus antecessores viram, mesmo no estrangeiro. Portanto, desdenho Tebas e a deixo entregue às suas próprias trevas.

Tão intensa era a sua agitação que pediu que o levassem para bordo apesar de ainda estar com aflições; e eu, a despeito de ser médico, não consegui adiar tal decisão.

Horemheb considerou:

- É melhor assim. O povo de Tebas ficará à vontade aqui, é Akhnaton ficará à vontade acolá para onde quer ir. Ambos ficarão satisfeitos e desta maneira haverá sossego na nação, outra vez.

Atendi ao faraó em sua viagem rio abaixo. Tão grande era a sua impaciência que não quis esperar a família real, seguindo primeiro. Horemheb ordenou que uma escolta de navios armados acompanhasse a nave para que não sucedesse mal nenhum.

Assim, com suas velas rubras, a nave do faraó deslizou rio abaixo.

E Tebas foi ficando para trás. Muralhas, cúpulas de templos, as extremidades douradas dos obeliscos iam se abatendo ao fundo do horizonte; e por último as três colinas, as guardiãs eternas de Tebas, sumiram também.

Mas a lembrança de Tebas permaneceu conosco por muitos dias porque o rio se achava cheio de crocodilos bem alimentados cujas caudas espadanavam nas águas remansosas, e cem vezes cem cadáveres tumefatos perpassaram com a correnteza. Não havia moita de caniços sem um corpo, nem baixio sem um cadáver preso pelas roupas ou pelos cabelos; e tudo por causa do deus do faraó Akhnaton. Ele porém não assistiu a nenhuma destas cenas porque jazia estirado em seu beliche, em cima de macias almofadas enquanto criados o ungiam com óleos perfumosos e acendiam incenso em caçoilas próximas, para que o faraó não sentisse o cheiro do seu deus.

Depois de havermos velejado durante dez dias, o rio se mostrava já intacto e o faraó subiu ao convés para olhar a paisagem. A terra apresentava o tom amarelo do verão; os lavradores em bandos entregavam-se aos aprestos da colheita; ao fim das tardes o gado descia à beira da água para beber e zagais tocavam suas avenas duplas. Quando o povo verificava que era a nave do faraó, logo se vestia de branco e corria para as margens bradando saudações e agitando palmas verdes.

Ver o povo ribeirinho assim satisfeito produziu no faraó efeito melhor do que qualquer remédio. De vez em quando mandava que a nave acostasse numa das margens, desembarcava e falava com o povo, tocava-o e abençoava as mulheres e ás crianças.

Até mesmo ovelhas vinham despreocupadamente cheirá-lo e mordiscar a orla do seu manto, o que o fazia rir de alegria.  Na escuridão da noite ele se detinha na amurada olhando para as estrelas refulgentes, e me dizia coisas assim:

- Dividirei a terra toda do falso deus por entre aqueles que se contentam com pouco e que queiram lavrá-la com suas mãos; sentir-se-ão felizes e louvarão o nome de Aton. Dividirei as terras todas por entre eles porque o meu coração se alegra ante a vista de crianças nédias e de mulheres risonhas cujos maridos trabalham em nome de Aton sem medo nem ódio de nada.

Ou então, raciocinava:

- O coração do homem é treva. Eu nem acreditaria se não tivesse visto. Tão radiosa é a minha lucidez que não compreendo as trevas, e quando a luz jorra em meu coração esqueço todos os corações nevoentos e opacos. Deve haver muitos que não compreendem Aton, embora o vejam e sintam seu amor; e isso porque viveram suas existências nas trevas, e seus olhos não vêem direito quando expostos à luz. Então acham a luz má e dizem que ela lhes fere os olhos. O melhor portanto é deixá-los sozinhos e não incomodá-los; mas não coabitarei com eles. Reunirei em torno de mim os que me são mais diletos, jamais os deixarei; assim, não sofrerei em minha mente essas dores daninhas resultantes de ver as coisas que oprimem o meu espírito e que são hediondas à face de Aton.

Firmando os olhos nos astros, prosseguia:

- Para mim a noite é abominação. Não gosto das trevas. Causam-me pavor. Não gosto das estrelas porque quando brilham os chacais se esgueiram para fora de suas tocas, os leões deixam seus antros e rugem sedentos de sangue. Para mim Tebas é a noite; e portanto a desdenho... Na verdade desdenho tudo quanto é velho e tortuoso, e ponho minhas esperanças na mocidade e na infância. Dos jovens é que nascerá a primavera do mundo. Os que desde a infância se dedicam aos ensinamentos de Aton estão purificados, e assim o mundo inteiro acabará se purificando. As escolas devem ser transformadas, os velhos professores precisam ser afastados, e textos novos devem ser escritos para que as crianças os copiem. Além disso quero simplificar a escrita, aperfeiçoá-la bem mais do que está, mas sem desenhos e imagens de interpretação; ordenarei o uso de uma escrita que mesmo os mais humildes aprenderão depressa. Não deverá haver mais um abismo entre os escribas e o povo; o povo tem que aprender a escrever, de maneira a não haver em nenhuma aldeia - mesmo nas menores - quem não saiba ler o que lhes escreverei. Sim, pois lhes escreverei freqüentemente a respeito de muitas coisas que necessitam saber.

Tal assunto me alvoroçou. Eu sabia que essa nova escrita era fácil a aprender e a ser lida; não se tratava da escrita sagrada e não era bonita nem abundante em conteúdo como a antiga; e todos os escribas que se prezavam a desdenhavam. Por isso, aparteei:

- A escrita popular é feia e bárbara, e não é uma escrita sagrada. Que será do Egito se toda gente for letrada? Tal coisa jamais se deu. Não haverá mais quem queira trabalhar manualmente; a terra ficará inculta e o povo achará prazer em sua capacidade de escrever, ficando reduzido à mingua.

Fiz mal em por tal reparo, pois o faraó bradou, altamente indignado:

- Assim pois tão perto de mim se açoita a treva?! Sim, planta-se perto de mim, através da tua pessoa, Sinuhe. Jogas dúvidas e obstáculos em meu caminho... Mas a verdade arde como fogo dentro de mim. Meus olhos transpõem todas as barreiras se é que são barreiras de simples águas; e contemplo já o mundo que virá depois de mim. Nesse mundo não haverá medo nem ódio; os homens dividirão uns com os outros as suas tarefas e entre eles não haverá ricos nem pobres... todos serão iguais... todos poderão ler o que lhes escreverei. Homem algum dirá ao outro: "Sírio imundo!" ou "Negro miserável" Todos serão .irmãos e a guerra será banida do mundo. E antevendo isso sinto crescer minha fortaleza; tamanho é meu contentamento que meu coração está a ponto de rebentar.

Mais uma vez me persuadi da sua loucura. Conduzi-o ao beliche, ajudei-o a deitar e ministrei-lhe um calmante. Todavia suas palavras eram um suplício cujos acicates dei em sentir, pois havia em mim qualquer coisa que amadurecera e estava apta a receber a sua mensagem.

Disse ao meu coração: "Sua mente está grandemente alterada por causa da doença, mas tal desordem é ao mesmo tempo benéfica e contaminadora. Bem desejaria que suas visões se realizassem por mais que a minha razão me diga que um mundo assim não existe em parte alguma a não ser na Terra do Poente. E meu coração clama, ainda, que sua verdade é mais alta do que todas as verdades que foram proclamadas, e que nenhuma verdade maior será proferida depois :dele, não obstante brotar de suas pegadas sangue e ruínas. Se viver tempo longo, fará ruir seu próprio reino.”

E como ele contemplasse as estrelas por entre a escuridão, refleti: "Eu, Sinuhe, sou um estrangeiro no mundo e ignoro até quem me pos nele. Por deliberação pessoal me tornei o médico dos pobres de Tebas, e o ouro para mim pouco significa, muito embora eu prefira ganso assado a pão seco e vinho à água. Nada disso é assim tão importante que seja difícil me abster de tais espécies. Se o mais que tenho a perder é a minha vida, por que não hei de propender para ele, ajudá-lo, permanecer a seu lado e encorajá-lo sem titubear? Pois não é ele o faraó? Não tem o poder em suas mãos? Acaso existe no mundo alguma nação mais rica e mais fértil do que o Egito? Quem sabe se o Egito não sobreviverá a essa provação? Se tal coisa se der, então o mundo se renovará; os homens serão irmãos e não haverá mais ricos nem pobres.

Nunca jamais um homem ofereceu uma oportunidade assim para efetivar em realidade a sua verdade, pois tal homem nasceu faraó, e ensejo de tal jaez não voltará.

Este é o único momento, em todos os séculos do mundo, em que uma verdade deste teor pode ser realizada." Assim sonhava eu acordado a bordo da nave balouçante enquanto o vento trazia às minhas narinas o odor do trigo maduro e das eiras. Mas o vento me resfriou, o sonho se desfez, e disse comigo mesmo. com tristeza: "Se ao menos Kaptah estivesse aqui, para ouvir suas palavras!" Pois embora um médico seja um homem avisado e possa curar muitas moléstias, todavia os males e a miséria do mundo são tão grandes que nem todos os médicos do mundo juntos a curariam por mais competentes que fossem...e males existem diante dos quais os médicos nada podem. Assim, Akhnaton pode ser um médico para o coração humano, mas não pode ser ubíquo, estar em toda parte. Há corações tão duros e tenebrosos que nem mesmo a verdade de Akhnaton lhes poderá valer de nada. O próprio Kaptah redargüiria: "Mesmo que chegasse um tempo em que deixassem de existir ricos e pobres, ainda assim os homens se dividiriam em sábios e estúpidos, em sagazes e em simplórios, pois assim sempre foi e assim sempre será. O homem forte põe o pé na cerviz do homem fraco; o homem matreiro foge com a bolsa do homem tolo e põe o cretino a trabalhar para ele. O homem é uma criatura tortuosa, e até mesmo a sua virtude é imperfeita. Apenas o que jaz por baixo sem nunca se levantar é que é inteiramente bom. Já de sobra o patrão viu os frutos dessa bondade, e os que tem mais motivos para abençoá-la são os crocodilos empanzinados do rio e os abutres refestelados pesadamente nos tetos do templo.”

Assim como o faraó falou comigo, da mesma forma falei com o meu fraco e vacilante coração: No décimo quinto dia atingimos uma região que não pertencia a nenhum deus nem a nenhum homem eminente. Numa das margens suas colinas avultavam em cor amarela dourada de encontro ao azul do espaço. O chão não era cultivado e apenas alguns pastores guardavam por ali os seus rebanhos e viviam em cabanas de choupos ao longo da margem. E foi onde o faraó desembarcou e consagrou a terra a Aton, de modo a fundar nela uma nova cidade. Chamou a essa futura cidade Akhetaton, a Cidade Celestial.

As embarcações chegaram umas após as outras; e ele reuniu seus arquitetos-chefes e lhes mostrou onde deviam ser as ruas principais, onde devia ser localizada a casa dourada e onde conviria levantar o templo de Aton. Como seus prosélitos o rodeassem, mostrou-lhes o local do seu palácio. Os construtores removeram os pastores com os rebanhos, puseram abaixo as choupanas e ergueram o cais ao longo da praia.

O faraó distribuiu espaço suficiente para que os mastrutores edificassem suas residências fora do centro da cidade antes do início das obras gerais, permitindo-lhes que construíssem casas de barro revestido. Cinco ruas foram traçadas de norte a sul e outras cinco de leste a oeste; as casas que as alinhavam eram todas de igual altura e cada qual continha duas peças idênticas. Em cada casa o forno era em lugar igual e adrede, e semelhantes eram os leitos e o vasilhame. O faraó demonstrou a melhor boa vontade para com os seus operários e quis que recebessem os mesmos benefícios e lucros, que residissem felizes em local apropriado fora da cidade do faraó e bendissessem o nome de Aton.

Depois veio o inverno e a estação das cheias. O faraó não regressou a Tebas conforme seu costume, ficando porém a bordo da sua nave, que era agora a sede do governo.

E a medida que pedra era colocada em cima de pedra e coluna ao lado de coluna, ele se rejubilava enormemente. Não raro desferia boas risadas ao contemplar os andaimes delicados das casas que se erguiam ao longo das ruas, pois a idéia ou o mero pensamento de Tebas toldava sua mente que nem veneno. Nessa cidade de Akhetaton gastou todo o dinheiro que tinha ganho de Ammon cuja terra também dividiu entre os mais pobres da população.

O meu trabalho era muito grande porque embora a saúde do faraó melhorasse, bem como a sua disposição, decerto de tanto contemplar a cidade que florescia do solo com seus pilares pintados, ainda assim as doenças lavraram entre os operários porque o terreno precisava ser drenado; havia também muitos acidentes de trabalho devido à pressa imposta ao serviço.

Assim que as águas do rio baixaram, Horemheb desembarcou em Akhetaton com outros membros da corte, não pretendendo aliás permanecer mais tempo do que o necessário para persuadir o faraó a mudar de opinião quanto ao licenciamento das tropas. O faraó ordenara-lhe que desengajasse do serviço os núbios e os sardanitas e os mandasse para as suas terras, mas Horemheb fora adiando o cumprimento de tal ordem com todas as maneiras de pretextos, temendo, com fundamentados inotivos, que irrompessem revoltas na Síria, e tencionando conduzir tais tropas a esse país.

Mas o faraó Akhnaton ficou inabalável em sua solução e Horemheb não fez mais do que perder seu tempo em Akhetaton. As conversações diárias de ambos eram as mesmas.

Horemheb dizia:

- É sério o estado de ânimos na Síria, e as colônias de egípcios existentes la são fracas. O rei Aziru está fomentando ódio contra nós. Tenho certeza que em tempo adequado ele iniciará uma revolta franca.

O faraó Akhnaton redargüia:

- Viste os andares do meu palácio onde os artistas estão criando lagos com caniços e patos mergulhadores à maneira cretense? Quanto a uma revolta na Síria, considero-a improvável por que mandei a todos os seus príncipes a cruz da vida. O rei Aziru, notadamente, é meu amigo; recebeu de mim a cruz da vida e ergueu um templo a Aton na terra de Amurru. Decerto já viste o átrio rodeado de colunas do templo de Aton, ao lado do meu palácio. Vale a pena ver, não obstante os pilares serem só de tijolo, por causa da pressa da construção e também porque me repugna pensar que haja escravos trabalhando em pedreiras. Mas, voltando a Aziru, em que te podes basear para duvidar de sua lealdade? Remeteu-me uma porção de cartas nas quais procura com sofreguidão aprender novas coisas sobre Aton. Se quiseres, os meus escribas te mostrarão tudo isso assim que os , nossos arquivos estiverem em ordem.

Horemheb respondia:

- Pois eu cuspo em cima de tal correspondência que é tão manhosa e falsa quanto esse Aziru que vo-la remete. Mas se é inabalável a vossa resolução de dissolver o exército, deixai-me apenas reforçar as tropas da fronteira porque as tribos do sul já estão tocando seus rebanhos para dentro das demarcações, para as pastagens existentes na terra de Kush e na Síria. Estão incendiando as aldeias dos nossos aliados negros, o que é empresa fácil visto que as aldeias são de palha.

E Akhnaton considerava:

- Não creio que seja má intenção que os impele, e sim a pobreza. Os nossos aliados devem consentir que as tribos do sul se sirvam das pastagens, e então lhes mandarei também a cruz da vida. Tampouco acredito que incendeiem as aldeias com propósito deliberado. Conforme dizes, pegam fogo facilmente, e não havemos de condenar tribos inteiras por causa de umas poucas aldeias. Mas já que insistes em reforçar por todos os meios a fronteira, guarnece-a então de guardas na terra de Kush e na Síria, posto que és responsável pela segurança do reino... Guarnece-a porém apenas com guardas e não com um exército efetivo.

A isso Horemheb aparteava:

- Akhnaton, meu amigo aloucado, deixai-me reformar as tropas de guarnição pelo país todo, porque os homens desengajados, reduzidos à pobreza, estão roubando a torto e a direito e saqueando os lavradores que atacam a pauladas.

E o faraó Akhnaton, como tirando uma conclusão moral, deduzia:

- Vês o resultado da tua recusa em me ouvir? Se tivesse falado mais intensamente a essa gente sobre Aton, agora não estariam agindo assim. Conseqüência: tem toda essa gente o coração enegrecido, as cicatrizes de teu chicote lhes queimam os dorsos e eles não sabem o que fazem. E, mudando de assunto, já reparaste que as minhas duas filhas começaram a andar? Meritaton toma conta da mais novinha, e ambas tem como companheira de folguedos uma encantadora gazela. Bem, não há nada que proíba que contrates esses homens desengajados. Contrata-os como guardas através do país, contanto que sejam apenas guardas e não se congreguem num exército em pé de guerra.

E a meu ver seria boa medida inutilizar, quebrando-os, todos os carros de guerra, pois a desconfiança gera suspeitas maiores, e temos que convencer os nossos vizinhos que, aconteça o que acontecer, o Egito jamais recorrerá à guerra.

- Não seria mais simples vender os carros a Aziru ou aos hititas? Dão bom preço por veículos militares e cavalos - disse Horemheb, em tom de zombaria. - Vejo que não vos interessa conservar um exército regular, e nem o poderíeis manter já que enterrais toda a fortuna do Egito num charco e fazeis tijolos com o pouco que resta.

Tais eram os debates de ambos, dia após dia, até que mercê de arguta tenacidade Horemheb ganhou o posto de comandante supremo das tropas da fronteira e de todas as guarnições. Foi o faraó quem decidiu de que forma elas deveriam ser armadas....Nem mais nem menos do que com espadas de madeira. Horemheb ficou com o direito de decidir o número. Que fez então Horemheb? Convocou todos os comandantes provincianos em Menfis porque tal cidade se acha no meio do país nos limites dos Dois Reinos. Achava-se ele prestes a embarcar para essa cidade quando chegou por via fluvial um correio com uma pilha de cartas e lousas de greda, provenientes da Síria e contendo notícias alarmantes. Suas esperanças se reacenderam. Essas comunicações mostravam irrefutavelmente que o rei Aziru, tendo sabido dos distúrbios de Tebas, considerou o momento oportuno para a anexação de certas cidades. Megido, a chave da Síria, revoltara-se também, e as forças de Aziru estavam sitiando a fortaleza para onde a guarnição egípcia se recolhera e de lá pedia urgente socorro ao faraó.

Mas a opinião de Akhnaton foi a seguinte:

- Talvez o rei Aziru esteja agindo assim por motivos fundamentados. É um homem altivo e pode ser que os meus mensageiros o tenham ofendido. Não o julgarei antes de lhe dar ensejo a se defender. Mas posso fazer uma coisa e lamento não a haver feito antes. Agora que uma cidade ,de Aton está se erguendo na Terra Negra, devo edificar outra na Terra Vermelha - na Síria... e em Kush. Megido .é uma junção de estradas de caravanas e portanto o local mais apropriado, mas desconfio que presentemente as condições de distúrbio sejam desfavoráveis à construção. Mas me falaste de Jerusalém, onde levantaste um templo a Aton durante a tua campanha contra os cabírios - campanha essa e até hoje me dá remorsos... Não é tão central como Megido, achando-se mais ao sul; contudo darei os passos imediatos para a construção de uma cidade de Aton em Jerusalém para que no futuro venha a ser o centro da Síria, apesar de presentemente não passar de uma aldeia desbrugada.

Ao ouvir isso, Horemheb lascou o cabo do chicote de encontro ao joelho atirou-o aos pés do faraó e foi para bordo do seu navio. E assim velejou para Menfis com o fito de reorganizar as tropas de guarnição através do país. No entanto sua estadia em Akhetaton tivera esta vantagem: eu lhe pudera contar com a maior calma e sem pressa tudo quanto eu vira e ouvira em Babilônia, em Mitani, na terra de Hati e em Creta. Escutou sempre em silencio, anuindo várias vezes com movimentos de cabeça, como se o que eu dizia não lhe fossem novidades absolutas; e apalpou e examinou também a faca que o mestre do porto me dera. Tudo quanto lhe contei a respeito de estradas, pontes e rios, ordenou que fosse escrito, bem como alguns nomes que mencionei. Disse-lhe finalmente que consultasse Kaptah relativamente a tais assuntos, porque Kaptah tinha uma memória de criança para reter todas as qualidades de coisas. Horemheb partiu portanto zangado, da cidade recentíssima de Akhetaton, e o faraó folgou em se ver livre dele. Conversar com Horemheb era coisa que lhe dava dor de cabeça, de tal modo suas insistências o embaraçavam. A mim, foi com ar de meditação que disse:

- Talvez seja da vontade de Aton que percamos a Síria. Se assim for, quem sou eu para me opor a isso que, aliás, redundará em benefício do Egito? Sim, pois as riquezas da Síria roeram o coração do Egito. Todas as superfluidades, todos os vícios, todos os amolecimentos, todas as práticas ruins nos vieram de lá.  Viéssemos a perder a Síria, então o Egito voltaria a adotar suas maneiras mais simples, os modos e caminhos da verdade; e isso é a melhor coisa que lhe conviria. A boa nova deve começar aqui e se espalhar por todas as nações

Insurgi-me contra suas palavras e obtemperei:

- O comandante da guarnição de Esmirna tem um filho chamado Rameses, um garoto vivaz, com grandes olhos castanhos, que aprecia brincar com pedras vistosas. Tratei-o uma vez de catapora. E em Megido mora uma mulher egípcia que tendo ouvido falar na minha fama de médico me procurou certa ocasião em Esmirna. Tinha o ventre inchado; abri-o, e ela ficou boa. Sua pele era macia como lã; caminhava com o donaire das mulheres egípcias mesmo quando tinha o ventre inchado e os olhos abrasados de febre.

- Não compreendo por que motivo me dizes essas coisas - atalhou Akhnaton, e começou a desenhar um templo que tinha em mente. Constantemente vexava os arquitetos e os construtores com desenhos e explicações, a despeito dos mesmos compreenderem melhor suas atribuições do que ele.

- Quero dizer que já vejo o pequeno Rameses com a boca cortada e esmagada, com os cachos do cabelo grudados de sangue nas têmporas. E que vejo a mulher de Megido estirada nua e ensangüentada no pátio da fortaleza enquanto os homens de Amurru a violam. Todavia reconheço que os meus pensamentos são triviais em face dos vossos e que um soberano não pode recordar todos os Rameses e todas as mulheres de peles veludosas entre tantos súditos.

O faraó cerrou os punhos, e seus olhos se anuviaram, quando exclamou:

- Sinuhe, pois não compreendes que se devo optar pela morte mais do que pela vida, em tal caso me cumpre escolher a morte de cem egípcios do que a de mil sírios? Se para libertar cada egípcio aprisionado na Síria eu devesse travar batalha, então muitas pessoas tanto sírias como egípcias perderiam suas vidas em guerra. Se eu tiver que sanar o mal com outro mal, apenas resultará malefício. Mas se eu sanar o mal com o bem, o mal que restará será pequeno. Não posso preferir a morte à guerra, e por conseguinte não darei ouvidos às tuas palavras. Se me consideras e se minha vida te é cara, não me fales mais da Síria. Quando penso em tais coisas meu coração sente todos os sofrimentos que devem padecer todos aqueles que morrerão por minha causa...e homem algum existe capaz de aturar em si os sofrimentos de muitos. Preciso de paz por causa de Aton e da minha verdade.

Inclinou a cabeça; estava com os olhos congestionados, tamanha era a sua aflição; e seus lábios grossos tremiam.

Deixei-o em paz, mas em meus próprios ouvidos ouvi o barulho dos arietes e catapultas de encontro ás muralhas de Megido, e também ouvi os gritos das mulheres ultrajadas nas tendas dos amorreus. Fiz meu coração opor resistência a tais sons bélicos, porque eu gostava de Akhnaton e porque estava a par da sua loucura. Talvez gostasse dele exatamente por causa dessa loucura, pois era mais bela do que a sabedoria de outros homens.

A fundação da nova cidade ocasionou dissídio entre a família real. A Rainha-Mãe recusou-se a seguir seu filho até pleno deserto. Tebas era a sua cidade, e a casa dourada do faraó, que refulgia em poalha azulada e reverberante entre suas muralhas e jardins junto do rio, tinha sido construída pelo faraó Amenhotep para a sua Amada. 'Taia, a Rainha-Mãe, começara sua existência como pobre moça caçadora nos brejos de caniços do Baixo Reino. Não quis deixar Tebas, e a princesa Baketamon permaneceu a seu lado. Eie. o sacerdote, que segurava o cajado à mão direita do rei, governava e distribuía justiça no trono real com o pergaminho na sua frente.

A vida em Tebas continuava como sempre; apenas o falso faraó estava ausente - e sem despertar saudades.

A rainha Nefertiti voltou à Tebas para o nascimento do seu próximo filho, pois não tinha coragem de ir para a cama dar à luz sem a ajuda dos médicos de Tebas e dos feiticeiros negros. E lá teve a terceira filha, que se chamou Ankhsenaton e que futuramente seria rainha. A fim de facilitar o nascimento os feiticeiros estreitaram e encompridaram a cabeça da criança, conforme já haviam feito com as outras princesas. Quando a menina cresceu, todas as damas da corte e outras mulheres que queriam se manter na moda e imitar os estilos da corte, começaram a usar fundos falsos em suas cabeças. As princesas, porém, conservaram as cabeças raspadas para mostrar o formato elegante de seus crânios. Os artistas também admiravam isso e fizeram muitas esculturas e pinturas das princesas assim, sem suspeitar que tal diferença tão distinta não passava de uma aberração resultante da arte de mágicos.

Depois que Nefertiti deu à luz a criança voltou a Akhetaton e fixou residência no palácio que nesse ínterim já se tornara habitável.

Deixou as outras mulheres em Tebas, ficando vexada de haver dado nascimento a três filhas, e não querendo que o faraó gastasse a virilidade no leito de outras mulheres. Akhnaton ficou satisfeito com isso, pois estava cansado de ter que cumprir seu dever no harém quando apenas desejava uma única mulher, Nefertiti: e todos quantos contemplaram sua beleza hão de compreender bem tal preferência; mesmo o seu terceiro parto não prejudicou em nada suas perfeições. Parecia mais jovem e mais radiosa do que antes, mas não saberei dizer se essa mudança era conseqüência da nova moradia na cidade de Akhetaton ou feitiçaria dos negros.

Assim, num ano só Akhetaton surgiu das brechas e desertos; palmeiras ondulavam garbosamente ao longo de suas esplendidas ruas, romãs amadureciam muito rubras em jardins, e nos lagos coalhados de peixes flutuavam flores de lótus.

A cidade inteira era um jardim florido, pois as casas de madeira eram lindas e frágeis como pavilhões, e suas colunas coloridas alegremente com vergas e palmeiras. Os jardins invadiam até as próprias casas, pois as pinturas das paredes representavam palmeiras e sicomoros agitados por brisas de eternas primaveras. Nos assoalhos havia cenas pictóricas de caniços acamados, de peixes multicores nadando e de patos erguendo vôo. Na cidade não faltava nada para rejubilar o coração humano. Gazelas mansas vagueavam pelos jardins enquanto nas ruas as carruagens mais leves eram puxadas por soberbos cavalos adornados com plumas de avestruz. As cozinhas eram olorosas por causa das especiarias trazidas de todas as partes do mundo.

Assim a Cidade Celestial foi terminada, e quando o outono voltou e as andorinhas emergiram do barro para dardejar em bandos imensos por cima das águas que já começavam a subir, o faraó Akhnaton consagrou a cidade e a região à divindade Aton. Consagrou as pedras demarcadoras do norte e do sul, do oriente e do ocidente, e em cada um desses marcos havia a representação de Aton lançando a benção de seus raios sobre o faraó e a sua casa. Inscrições nas pedras recordavam a afirmação do faraó de nunca mais por os pés fora daqueles limites. Para esta cerimônia os operários tiveram que abrir estradas pavimentadas nas quatro direções da região de modo a que o faraó pudesse percorrer os limites em sua carruagem de ouro e a família e os membros da corte o acompanhassem em carros e liteiras. E flores juncavam tal percurso enquanto flautas e instrumentos de corda tocavam em louvor a Aton.

Nem mesmo depois de morto pretendia o faraó deixar a cidade de Aton. Quando a construção urbana acabou, mandou seus operários para as colinas orientais dentro da área consagrada para talhar lugares de eterno repouso. E os operários acharam trabalho bastante para ai passar a '' existência inteira, jamais podendo voltar às suas localidades de nascimento.

No inicio não tiveram muita vontade, mas logo se habituaram a residir em cidade própria e à sombra do faraó, pois o trigo lhes era medido abundantemente, seus cântaros de óleo nunca se esvaziavam e suas esposas lhes geravam filhos sadios.

Tendo o faraó decidido construir tumbas para si e para os nobres e presentear com sepulturas cada um dos seus prosélitos que morassem com ele na Cidade Celestial, acreditando em Aton, resolveu também mandar construir fora da área urbana uma Cidade da Morte para que os corpos dos mortos fossem preservados para sempre. Para tal fim mandou chamar os embalsamadores e lavadores de cadáveres que em Tebas ocupavam os melhores postos em tal especialização. Estes desceram o rio num navio preto e o cheiro, deles chegou antes trazido pelo vento, e isso fez a população se esconder em casa, de cabeça baixa, recitando orações a Aton. Muitos rezaram até aos antigos deuses e fizeram o santo sinal de Ammon, porque ao sentir o cheiro dos corpos dos lavadores de cadáveres, esqueciam-se de Aton e seus pensamentos se voltavam para as antigas divindades.

Os embalsamadores desembarcaram com todo o material de sua negrejada profissão, piscando ante tamanha claridade porque seus olhos estavam acostumados aos desvões lôbregos. E lá se foram blasfemando contra a luz que lhes feria os olhos.

Entraram depressa na nova Casa da Morte, levando lá para dentro seu cheiro específico, de forma que não estranharam o edifício que jamais tornaram a deixar. Entre eles se achava o velho Ramose, o perito das pinças cuja tarefa era extrair miolos através de narinas. Encontrei-o na Casa da Morte que foi posta sob minha jurisdição porque os sacerdotes de Aton tinham horror de tal recinto. Depois de me fitar por algum tempo, me reconheceu e ficou perplexo e radiante. Aliás me dei a conhecer exatamente para ganhar sua confiança, pois a incerteza corroia meu coração como um verme e eu desejava saber de que forma a minha vingança se operara acolá na Casa da Morte, em Tebas.

Após ligeira conversa sobre os trabalhos lhe perguntei:

- Ramose, meu amigo, acaso te chegou às mãos uma linda mulher que foi levada à Casa da Morte durante aquela noite de terror e cujo nome, se não me engano, era Nefennefenefer?..

Ele me olhou, inclinou-se para trás, piscando como uma tartaruga, e disse:

- Na verdade, Sinuhe, és o primeiro homem de categoria social que se atreve a chamar de amigo um simples lavador de cadáveres. Isso emociona profundamente o meu coração e o informe que me solicitas deve te interessar sobremodo já que assim te diriges a mim. Certamente não foste tu que a trouxeste naquela negrejada noite envolta numa mortalha, ora não?!... Pois se foste tu não és amigo e sim inimigo acérrimo de nós, pobres lavadores de cadáveres. E se outro que não eu vier a saber que foste tu, te dilacerará com uma faca envenenada de modo a teres a mais hedionda das mortes.

Suas palavras me deram calafrios e declarei:

- Pouco importa quem a transportou, pois a verdade é que ela merecia tal fado. Contudo, se bem depreendo de tuas palavras, ela não estava morta e acordou ao contato das mãos dos lavadores.

Ramose respondeu:

- O mais provável é que essa mulher temível não estivesse morta deveras quando para lá foi levada. Mas eu próprio ignoro como tu mesmo tiveste tal pressentimento. Nem quero saber... Ela acordou, pois tais mulheres nunca morrem e se morrem a solução é a gente as queimar para que jamais ressuscitem. Depois que a conhecemos seu nome entre nós ficou sendo Setnefer, isto é Beleza Diabólica.

Medonha suspeita me empolgou e indaguei:

- Por que motivo te referes a ela como algo que se foi?.  Então não se acha mais na Casa da Morte? Os lavadores juraram que a reteriam acolá durante setenta vezes setenta dias...

Ramose remexeu nas facas e nas pinças, furiosamente, e creio que me daria uma cutilada se eu não lhe houvesse levado um pichel do melhor vinho da adega do faraó. Restringiu-se a apalpar seu sinete poeirento e disse:

- Não te queremos mal, Sinuhe; naquele tempo te considerei como um filho e quis até te conservar comigo na Casa da Morte e te ensinar a minha arte. Embalsamamos os corpos de teus pais com o capricho com que só são embalsamados os corpos das pessoas eminentes, e não poupamos os mais finos óleos e bálsamos. Por que então nos quiseste tamanho mal a ponto de nos trazer viva aquela terrível mulher? Fica sabendo que antes disso levávamos uma vida simples e árdua, reconfortando nossas vísceras com cerveja e nos enriquecendo sobejamente com roubos de jóias dos mortos, sem reparar em sexo nem condição, e também vendendo aos feiticeiros os órgãos de que necessitassem para suas magias. Mas depois da chegada daquela mulher a casa se transformou num abismo dos mundos subterrâneo. Os homens se esfaqueavam e lutavam como cães hidrófobos. Ela nos roubou tudo quanto guardávamos, todo ouro e prata que juntamos durante anos e anos e que escondíamos na Casa da Morte. Não escaparam nem mesmo as moedas de cobre. Tirou até nossas roupas, pois tendo despojado os jovens de tudo quanto tinham os pos a roubar dos velhos como eu cujo instinto já não podia ser reaceso. Passaram-se não mais de trinta vezes trinta dias e ela já nos deixara, ficando nós apenas com a pele do corpo. Então foi embora levando tudo consigo, coisa que não pudemos evitar porque se um se colocava no seu carninho vinha outro e lutava com o companheiro... e isso só por causa de um sorriso ou de um gesto dela. Assim, tirou nossas posses e nossa paz. Levou nada menos de trezentos debens de ouro, sem falar em prata, cobre, peças de linho e ungüentos que durante anos roubáramos dos mortos. Jurou que voltaria dentro de um ano para ver quanto conseguiríamos roubar e por de lado. Há mais roubo na Casa da Morte do que havia antes; além disso os embalsamadores aprenderam a surripiar coisas uns dos outros e não somente dos cadáveres, de modo que o nosso sossego foi-se de vez. A vista disso compreenderás por que motivo demos a essa mulher o nome de Setnefer, pois é deveras bonita embora seja uma beleza demoníaca.

Foi assim que vim a saber quanto a minha vingança tinha sido pueril. De fato Nefernefemefer voltara viva da Casa da Morte; mais rica do que era antes e, a meu ver, não sofrera más conseqüências da sua estadia, a não ser o cheiro que, impregnado em seu corpo, a atrapalharia durante algum tempo em exercer a profissão. Minha vingança corroera o meu coração, ao passo que não a molestara. Averiguando isso reparei outrossim que a vingança não causa satisfação. Seu dulçor é fugidio, ela se volta contra quem ,a comete e lhe devora o coração como um fogo.

 

MÉRITO

Não há quem não tenha visto a água correr num relógio de água. Assim também goteja a vida humana, embora não seja medida pela água e sim pelos acontecimentos. Trata-se de uma verdade profunda que é averiguada apenas na velhice quando a existência de uma pessoa se esvai em nada rumo à monotonia. Um dia que seja; pertencente a um período denso de acontecimentos, deixa a sua marca e pode parecer mais longo do que um ano ou mais de trabalho monótono e que torna o coração apático.

Aprendi esta verdade na cidade de Akhetaton onde minha existência fluiu placidamente como a correnteza do Nilo e a minha vida se tornou um breve sonho, uma canção curta e inefável. Os dez anos que passei à sombra do faraó Akhnaton na casa dourada da nova cidade foram mais breves do que qualquer um dos anos da minha mocidade, apesar de tanta viagem e alteração.

Em Akhetaton não acrescentei nada à minha sabedoria nem à minha ciência; pelo contrário, fui gastando o que juntara em tantos países, como uma abelha sobrevive no inverno servindo-se do mel que armazenou na colméia. No entanto, como a água modifica o formato de uma pedra, assim o tempo deve ter mudado meu coração, sem que, aliás, eu percebesse. Vivi menos solitário do que antigamente. Tornei- me mais sossegado, menos orgulhoso de mim e de meu talento, embora não exija crédito quanto a isto. Conseqüência, decerto, de Kaptah não viver mais comigo, tendo ficado longe, em Tebas, onde administrava minhas propriedades e a taverna O Rabo do Crocodilo.

A cidade de Akhetaton cingiu-se aos sonhos e visões do faraó, desinteressando-se do mundo exterior. Tudo quanto acontecia para fora dos marcos de delimitação de Aton era tão remoto e irreal como o luar em cima das águas. Só existia uma realidade: o que sucedia dentro da cidade de Akhetaton.

Todavia, considerando bem agora, se pode inferir que o contrário é que era verdade; isto é, Akhetaton não era senão sombra e ilusão, ao passo que a realidade se encontrava entre os esfomeados, os sofredores e os mortos para além de sua área. Sim, pois tudo quanto pudesse desagradar a Akhnaton era escondido dele, e quando surgia um caso no qual era necessária a sua decisão, lhe era apresentado sob aspecto velado e suavizado, com bastante cautela e jeito, para que não lhe voltassem os acessos da doença.

Durante esse tempo Eie, o sacerdote, governava em Tebas, segurando o cajado do rei em sua mão direita. O faraó deixara longe de sua alçada todos os deveres administrativos que lhe eram monótonos ou desagradáveis, depositando plena confiança em Eie que era seu sogro e um homem de grandes ambições. Eie era o verdadeiro soberano dos Dois Reinos, visto como tudo quanto dizia respeito à vida do povo em comum, gente das províncias ou das cidades, jazia em suas mãos. Uma vez Ammon tendo sido destronado, não -ficara nenhum poder rivalizando com o do faraó - que era o de Eie - e este esperava que os distúrbios em breve deveriam se acalmar. Nada mais conveniente para ele do que a cidade de Akhetaton que mantinha o faraó longe de Tebas. Fizera o possível para coletar fundos para a sua construção e embelezamento, e não cessava de remeter pródigos presentes para tornar tal cidade cada vez mais aprazível ao faraó. A paz volveria de novo e tudo ficaria como antigamente, excluindo-se apenas Ammon, só restando o faraó que não deixava de ser um tropeço aos desígnios de Eie.

Participava do governo de Eie Horemheb instalado em Menfis, sendo até responsável pela segurança e pela boa ordem no país inteiro. Uma de suas últimas atribuições dizia respeito à viabilidade dos cobradores de impostos e dos pedreiros encarregados de apagar o nome de Ammon de todas as imagens e inscrições, penetrando até mesmo nas tumbas para tal fim.

O faraó Akhnaton permitiu que a sepultura de seu pai fosse aberta para que o nome de Ammon fosse riscada de suas insaciações. E nem se opunha Eie a isso, contanto que o soberano se contentasse com tão inocentes exigências. Preferia que os pensamentos do faraó se voltassem para questões religiosas que não afetavam a vida diária da população.

Após aqueles dias de terror, a vida do Egito permaneceu calma durante algum tempo. Eie delegou o recebimento de rendas a seus oficiais e funcionários principais, poupando-se assim de muitos incômodos. Estes lesaram os direitos e comissões dos cobradores das cidades e aldeias e desta forma se tornaram substancialmente ricos.

Se os pobres se lamentavam e cobriam a cabeça com cinza quando os cobradores os visitavam isso não era mais do que o que já haviam feito sempre.

Em Akhetaton o nascimento de uma quarta filha foi uma desgraça pior do que a queda de Esmirna. A rainha Nefertiti começou a desconfiar que estava sendo vítima de feitiçarias e foi a Tebas em busca de ajuda dos feiticeiros negros de sua mãe. Era de fato esquisito que uma mulher desse à luz quatro filhas e nenhum menino. No entanto seria seu fado dar ao faraó Akhnaton seis filhas e nenhum filho, e seu destino estava ligado ao dele.

Com o decorrer do tempo, os distúrbios na Síria se tornavam cada vez mais alarmantes. Sempre que ancorava um navio- correio eu ia aos arquivos do rei para estudar as últimas tábuas cheias de renovados apelos de socorro. E enquanto lia, tinha a impressão de ouvir o sibilar de dardos passando rente aos mesmos ouvidos e de sentir o cheiro de fumaça de casas incendiadas. Através das frases respeitosas eu ouvia os gritos dos moribundos e das crianças mutiladas. Os homens de Amurru eram brutais e tinham sido instruídos na arte da guerra por oficiais hititas. Nenhuma guarnição da Síria se achava em condições de lhes opor resistência. Li mensagens do rei de Biblos e do príncipe de Jerusalém. Faziam referencias à sua idade e fidelidade; invocavam a memória do falecido faraó e relembravam sua boa vontade para com Akhetaton, enquanto solicitavam imediata ajuda. O faraó acabou ficando cansado de suas súplicas e remetia tais cartas para os arquivos, sem le-las.

Quando Jerusalém caiu, a última das cidades fiéis capitulou, e Jopa também, e formaram alianças com o rei Aziru. Então Horemheb viajou de Menfis para ter uma audiência com o faraó e lhe pedir um exército com o qual organizar resistência na Síria. Até então realizara uma guerra secreta com cartas e dinheiro, de forma a ver se salvava pelo menos um posto avançado naquelas regiões.

Disse ao faraó Akhnaton:

- Deixai-me contratar pelo menos cem vezes cem lanceiros e arqueiros, e cem carros, e vos devolverei a Síria. Agora que até mesmo Jopa se rendeu, o domínio egípcio na Síria está perdido.

O faraó Akhnaton ficou profundamente chocado ao saber que Jerusalém tinha sido destruída, pois já dera providencias para transformá-la numa cidade de Aton e assim pacificar a Síria. Disse:

- Esse ancião de Jerusalém... já não consigo recordar seu nome... era um amigo de meu pai. Quando eu era criança o vi na casa dourada em Tebas; tinha uma barba muito comprida. A guisa de compensação vou lhe dar uma pensão extraída das rendas egípcias muito embora estas tenham decaído muito desde que cessou o comércio com a Síria.

- Não creio que ele se ache em condições de usufruir essa pensão - retrucou Horemheb. - Um cântaro esquisito, ornamentado com ouro, foi fabricado com o seu crânio, por ordem de Aziru que mandou tão extravagante objeto de presente ao rei Shubiluliuma, em Hatushash... a não ser que os meus espiões se tenham equivocado.

O semblante do faraó se tornou lívido, e seus olhos ficaram congestionados; mas, dominando sua emoção, disse em tom calmo:

- Bem difícil me é acreditar numa tal coisa da parte do rei Aziru, que eu considerava meu amigo e que nestas condições recebeu das minhas mãos, de tão bom grado, a cruz da vida. Decerto me enganei a seu respeito e seu coração é mais tenebroso do que eu supunha. Contudo, Horemheb, o que solicitas de mim é impossível. Dar-te carros e espadas, como, se o povo já está se queixando dos impostos e se as colheitas foram menores do que eu esperava!

- Em nome do vosso deus Aton, dai-me ao menos autorização para dez carros e dez vezes cem espadas, para que eu possa levá-los para a Síria e salvar o que ainda for possível.

Mas o faraó Akhnaton replicou:

- Não posso consentir que haja guerra por causa de Aton, pois ele abomina derramamento de sangue. Prefiro deixar livre a Síria. Que a Síria seja livre e forme seu próprio Estado federal, e comerciemos com ela como outrora... pois tal país nada pode sem o trigo egípcio.

- Supondes que eles se contentarão com isso, Akhnaton? - exclamou Horemheb, perplexo. - Cada egípcio que matarem, cada muralha que fenderem, cada cidade que capturarem lhes aumentará o orgulho e a violência e os impelirá a exigências e desatinos maiores. Depois da Síria irão as minas de cobre do Sinai, sem as quais não poderemos mais forjar espadas nem arcos.

- Já disse que espadas de madeira chegam para os guardas - retorquiu o faraó, irritando-se. - Por que motivo me atormentas com essa história de espadas e arcos a tal ponto que tais palavras rodeiam meus pensamentos quando me esforço para compor hinos a Aton?

- Depois de Sinai virá a vez do Reino Inferior - prosseguiu Horemheb, amargamente.

- Conforme vós mesmo dissestes a Síria não poderá fazer nada sem o trigo egípcio, embora eu saiba que atualmente o estão obtendo da Babilônia. Mas se não temeis a Síria, temei então pelo menos os hititas para cuja sede de domínio não há limites.

O rei Akhnaton riu de modo grotesco como qualquer egípcio normal riria ao escutar tal asserção, e disse:

- Tanto quanto nos podemos lembrar, jamais um único inimigo pos os pés dentro de nossas fronteiras, e nenhum ousará faze- lo. De todos os reinos da terra o Egito é o mais rico e o mais poderoso. Mandei a cruz da vida ao rei Shubiluliuma também, e - a seu pedido expresso - ouro também, para que pudesse erigir um imagem minha em tamanho natural em seu templo. Não perturbará a paz do Egito já que poderá obter ouro sempre que mo pedir.

As veias das têmporas de Horemheb ficaram salientes; mas como sempre acabara aprendendo a dominar seus sentimentos, não disse nada. Eu por minha vez lhe disse que, como médico, não permitia que cansasse mais o faraó. Ouvindo isto ele se voltou e me seguiu para fora.

Quando chegamos à minha casa, ele deu uma chicotada na própria coxa com estardalhaço, exclamando:

- Em nome de Set e de todos os demônios! Uma rodela de esterco na estrada vale mais do que essa tal cruz da vida! Mas isso não é nada. Há uma outra coisa ainda mais aloucada: quando ele me fita nos olhos pondo as mãos em meus ombros e me chamando de amigo, acredito na sua doutrina, na sua verdade, embora saiba perfeitamente que ele está errado e que eu estou com a razão! Essa sua estranha força saturou esta cidade que é tão deslumbrante como uma cortesã, e cheira a isso. Se pudesse trazer diante dele cada ser humano existente no mundo para que falasse e o tocasse com seus dedos afáveis, destilando nele sua força, creio que conseguiria transformar o mundo. Mas isso não é possível. Arre! Se fico mais tempo nesta cidade começarei a ficar com os peitos crescidos como as damas da corte e a dar de mamar!

Quando Hocemheb voltou para Menfis, suas palavras não me deixaram; perseguiam-me, e me censurei por ser mau amigo seu e péssimo conselheiro do faraó.

No entanto minha cama era macia debaixo do dossel, meus cozinheiros me serviam pássaros preparados em mel, não havia falta de antílope assado e a água corria depressa no meu relógio.

A segunda das filhas do faraó, Meketaton foi acometida de consumpção; seu pequenino semblante ficou devastado pela febre e suas clavículas e seus omoplatas começaram a se mostrar através da pele. Pensei em tonificá-la, dando-lhe a beber uma solução de ouro, e lamentei meu fado, pois mal os ataques do faraó tinham cessado já a sua filha caía doente, não tendo eu paz nem de dia nem de noite.

O faraó também se mostrou apreensivo, porque idolatrava as filhas. As duas mais velhas, Meritaton e Meketaton, acompanhavam-no ao seu estrado nos dias de audiência e atiravam correntes de ouro e outras insígnias aos que o faraó desejava honrar.

Como sucede a todos os pais, o faraó demonstrava mais carinhos para a filha doente do que para as outras três. Dava- lhe bolas de marfim e de prata, tendo-a presenteado mesmo com um cãozinho que a acompanhava por toda parte e que dormia aos pés da sua cama. O faraó emagreceu e perdeu o sono, tomado de ansiedade, levantando-se diversas vezes por noite para escutar a respiração da filha; sempre que ela tossia, ficava aflito.

De idêntico modo essa menina valia para mim mais do que as minhas propriedades em Tebas, mais do que Kaptah, bem mais do que o ano de carestia e do que toda gente que estava morrendo de fome na Síria por causa de Aton. Reservei-lhe todos os meus cuidados e engenhos, negligenciando os meus demais pacientes importantes que sofriam de indigestão e apatia e, acima de tudo, de enxaqueca, visto ser disto que o faraó se queixava. Tratando das dores de cabeça da corte eu adquiria muito ouro; mas estava farto de ouro e de salamaleques.

Acabei me tornando tão lacônico com os meus pacientes que estes diziam:

- Está orgulhoso por causa da sua dignidade de médico da corte! E como pensa que o faraó lhe dá atenção, desdenha o que os demais tem a lhe dizer...

No entanto quando pensava em Tebas, em Kaptah e em O Rabo do Crocodilo, eu me enchia de tristeza, e meu coração se tomava de uma fome da qual impossível me era aliviá-lo. Dei em ficar calvo; coisa que procurava esconder com a minha cabeleira falsa, e havia dias em que, esquecendo os meus deveres, me punha a sonhar, acordado, caminhando pelas estradas de Babilônia novamente, sentindo o cheiro do grão sazonado e das eiras. Reparei que pesava mais, que tinha o sono pesado e que precisava de uma liteira, por mais curto que fosse o percurso a fazer, pois do contrário sentia falta de ar.

E antigamente as mais longas distâncias não me alquebravam. Mas quando o outono volveu, o rio subiu e as andorinhas emergiram da vasa, a saúde da filha do faraó melhorou sobremaneira. Sorria, já não sentia pontadas no peito.

Meu coração acompanhava as andorinhas em seu vôo, e, com licença do faraó, embarquei num navio para Tebas. Pediu-me que saudasse em seu nome os lavradores ribeirinhos por entre os quais dividira às terras do falso deus, e mandou saudações também às escolas que fundara, dizendo-me que esperava ouvir noticias quando eu regressasse.

Toquei em muitas aldeias e chamei os aldeões para que viessem conversar comigo. A viagem foi mais confortável do que eu imaginara, e isso porque a flâmula do faraó tremulava no mastro, o meu leito era macio e não havia insetos pelas margens do rio. O meu cozinheiro acompanhava-me numa embarcação amaneirada em cozinha e presentes lhe eram trazidos de todas as localidades, de forma que nunca me faltou alimentação fresca. Mas quando os colonos me visitaram vi que mais pareciam esqueletos; as mulheres olhavam em torno com feitio apavorado, temendo os menores ruídos, e as crianças eram famélicas e raquíticas. Essa gente me mostrou suas espigas de trigo quase ralas de grão, grão esse que irrompia avermelhado como se as espigas tivessem sido expostas a uma chuva de sangue.

Disseram-me:

- No princípio pensamos que nossos malogros fossem resultado da nossa ignorância, já que nunca tínhamos amanhado a terra. Mas agora sabemos que a terra que o faraó dividiu entre nós é amaldiçoada e que quem a cultiva amaldiçoado é. De noite pés invisíveis pisam nossos cereais; mãos invisíveis lascam as árvores frutíferas plantadas por nós. O nosso gado perece sem motivo, os nossos poços de irrigação se entopem, e encontramos carniça dentro de nossas cisternas e fontes, de modo que até falta de água passamos. Muitos já abandonaram suas terras e voltaram para as cidade mais pobres do que eram antes, amaldiçoando o nome do faraó e do seu deus. Mas nós perseveramos, confiando na cruz da vida e nas cartas que o faraó nos remete. Dependuramo-las em postes em nossas terras como proteção contra os gafanhotos. Mas a magia de Ammon é mais poderosa do que a do faraó.  A nossa fé está sumindo e tencionamos deixar esta terra ingrata antes que morramos todos, como já aconteceu às mulheres e aos filhos de muitos. Visitei-lhes também as escolas; e assim que os professores viram a cruz de Aton em minha roupa, esconderam seus bastões e fizeram o sinal de Aton enquanto as crianças permaneceram sentadas nas eiras, de pernas cruzadas olhando para mim tão atentamente que esqueciam de limpar o nariz. Os mestres queixaram-se:

- Boa conta nos damos de que não existe loucura maior do que a idéia fixa de que todas as crianças devem aprender a ler e a escrever... Mas o que não faremos pelo faraó a quem amamos e que é ao mesmo  tempo nosso pai e nossa mãe e a quem  veneramos como o filho de deus?! Mas  somos homens cultos e fere a nossa  dignidade termos que nos sentar no chão de terreiros, que limpar o nariz de crianças  sujas e desenhar sinais na areia, pois nem  lousas nem penas temos. ... Além disso os  novos caracteres de hoje em dia não podem  jamais reproduzir toda a sabedoria e  conhecimento que com enorme custo  adquirimos. Os nossos salários são pagos  irregularmente e os pais nos recompensam  com miséria; a cerveja que nos dão é  grosseira e amarga, o azeite que nos  propiciam é rançoso. Todavia persistimos,  para mostrar ao faraó que é impossível  ensinar todas as crianças a ler e a escrever,  pois apenas os alunos cujas cabeças são  macias e porosas podem aprender.

Tirei prova da proficiência deles, que  achei longe de ser satisfatória. Menos  ainda me agradaram suas fisionomias flácidas e seus olhares preocupados, pois  esses  professores eram antigos escribas falhados,  aos quais ninguém dava emprego. Tinham  aceitado a cruz de Aton por causa de  dificuldades de vida.

Os colonos e velhos das aldeias  queixavam-se amargamente, imprecando  contra Aton, e me disseram:

- Sinuhe, nosso bom senhor, falai a nosso  respeito com o faraó e pedi-lhe que ao  menos nos livre do peso destas escolas, do  contrário não sobreviveremos. Nossos  filhos voltam com vergões, de tanto  apanhar e com os cabelos arrancados.  Esses professores são insaciáveis como  crocodilos. Comem quanto temos em casa,  estoquem nossas últimas moedas de cobre,  tiram os couros do gado para comprar  vinho. Quando estamos fora, nos campos,  eles entram em nossas casas e fornicam  com nossas mulheres dizendo ser isso da  vontade de Aton perante cujos olhos não  há diferença de um homem para outro  homem, ou de uma mulher para outra  mulher. Realmente não adiantou nada esta  mudança em nossas vidas, pois se éramos  pobres nas cidades todavia éramos felizes  também. Aqui não vemos nada, a não ser poços de  irrigação e gado abatido. Bem razão  tinham os que os avisavam: "Cautela, muita cautela, pois nisso de mudança, para  o pobre· só pode ser para pior. Quaisquer  que sejam as mudanças no mundo, ficai  certos que com elas a medida de trigo para  o pobre diminuirá e o azeite mal existirá  no fundo do púcaro...

Meu coração me disse que tinham razão  no que me contavam. Não discuti com eles,  tratei mas foi de prosseguir viagem.

Enchi- me de tristeza por causa do faraó,  admirando-me de que tudo quanto ele  tocava ficasse crestado, a ponto do diligente se tornar preguiçoso por causa de  seus donativos e apenas os que não tinham  valor nenhum se aglomerarem em torno de  Aton como moscas em redor de uma  carcaça. Por fim meu coração foi assaltado  por uma terrível suspeita: Não seria o  faraó, não teriam os nobres indolentes que  o cercavam, não seria eu próprio nestes  últimos anos...enfim, não seríamos todos  nada mais do que meros parasitas, vermes,  insetos em cima do pelo de um cão? As  moscas varejeiras podem pensar que o cão  existe apenas em benefício das varejeiras  que não fazem bem nenhum e apenas.  incomodam... Sim, pois que os cães outra  coisa não desejam senão se ver livres de  insetos! Foi desta forma que o meu coração  acordou após demorado sono, e desdenhei  a cidade de Akhetaton. Olhei em redor de  mim com nova visão das coisas e nada do  que vi era bom. Mas podia ser que meus  olhos tivessem sido alterados por magia de  Ammon, que às escondidas governava o Egito inteiro, sendo a Cidade Celestial o  único lugar do Egito sobre a qual ele não  exercia domínio. Onde estava a verdade  não sei dizer, pois embora haja gente que  pense sempre da mesma maneira e encolha  a cabeça como faz a tartaruga ao  pressentir a menor novidade, todavia meus  pensamentos se tinham modificado com o  que eu vira e escutara.

Verdade é que  muitíssimas coisas influenciaram meu,  raciocínio, não obstante em não as haver  compreendido em sua totalidade. Vi mais  uma vez as três colinas no horizonte, as  guardiãs, eternas  de Tebas. A cúpula do templo e suas muralhas erguiam-se diante dos meus  olhos, mas as pontas dos obeliscos já não  refulgiam ao sol porque sua pintura não fora mais renovada. Ver tudo aquilo,  porém, rejubilou meu coração, e derramei  vinho nas águas do  Nilo como fazem os marinheiros que  regressam de longa viagem.

A diferença é que a libação deles é feita  com cerveja, pois preferem guardar o  vinho,  quando o tem, para o tomar depois. Vi de  novo as grandes pedras dos molhes de  Tebas e senti o cheiro do porto: cheiro de  trigo no forno; da água parada; de  especiarias, ervas e alcatrão.    Quando contemplei no bairro pobre a  casa do fundidor, a achei muito estreita e  torta; e a rua, defronte, me .pareceu suja,  cheia de moscas e monturos. Nem mesmo  me deu  prazer o sicomoros do pátio, apesar de ter  sido plantado por mim e haver crescido  tanto durante a minha ausência. Como eu  estava estragado pela opulência e  abundância de Akhetaton!

Fiquei triste e  envergonhado por não sentir nenhuma  alegria diante de minha antiga residência.  Kaptah não estava, e sim apenas minha  cozinheira, Muti, que exclamou,  ressentida:

- Abençoado seja este dia que traz de  novo à casa o meu senhor... Mas os  cômodos não estão limpos, a roupa de  cama e mesa está sendo lavada, e a vossa  chegada me causa portanto vexame e  preocupação, mesmo porque pouca é a  felicidade que ainda espero da vida. Não  que eu esteja perplexa por causa da vossa  chegada repentina. Os homens são assim  mesmo estouvados e deles não se pode  esperar bem algum.

Acalmei-a, dizendo-lhe que dormiria a  bordo aquela noite. Depois de perguntar  por Kaptah, a deixei e fui transportado  para O Rabo do Crocodilo.

Encontrei  Mérito à porta; não me reconheceu por  causa do meu vestuário rico  e da liteira. Foi dizendo logo:

- Mandou reservar cômodos aqui para  esta noite? Não? Então não posso permitir  que entre.

Estava um pouco mais cheia de  corpo, seus malares proeminavam menos,  mas os olhos ainda eram os mesmos, apesar  de algumas rugas junto às pálpebras. Meu  coração abrasou-se. Pondo a mão em sua  ilharga, declarei:

- Natural é que me hajas esquecido pois  muitos devem ter sido os homens solitários  e taciturnos que deves ter aquecido em teu  leito... Ainda assim imagino que posso  obter um banco em tua casa e beber uma  taça de vinho fresco, sem a menor intenção  de me referir depois ao teu leito...

Ela  exclamou, admirada:

- Sinuhe, sois vós? Abençoado  seja este dia que traz à casa o meu senhor!

Apoiou as mãos fortes e bonitas em meus  ombros e, examinando o meu rosto bem de  perto, continuou:

- Sinuhe, que foi que estivestes fazendo?  Se antes a vossa solidão foi a de um leão,  agora  parece ter sido a de um cão doméstico  atrelado a um regaço. - Arrancou a minha  cabeleira, acariciou meu crânio calvo, e  concluiu: - Sentai-vos, Sinuhe. Vou buscar  vinho bem fresco, pois estais suando e  esfoliando do cansaço da viagem. 

Redargüi, sofregamente:   

- Antes de mais nada: traze-me tudo  menos um "rabo de crocodilo" porque o  meu estomago já não é mais igual ao que era... sem falar em minha cabeça.

Acariciando meu joelho, ela disse com ar  de motejo:

- Acaso fiquei assim velha, gorda e feia  que, mal me encontrais pela primeira vez  depois de tantos anos, pensais somente em  vosso estomago? Antigamente não éreis dado a sentir enxaquecas junto de mim...  Pelo  contrário, procuráveis sempre com avidez  bebidas como o "rabo de crocodilo"! Eu  tinha até que vos negar novas doses...

Fiquei vexado ante suas palavras, pois  diziam verdade, e a verdade muitas vezes  produz este efeito.    Respondi-lhe, então:

- Oh! Mérito minha amiga! Já estou velho  e liquidado!

Retorquiu, porém:

- Isso pensais. Mas vossos olhos, quando  os fixais em mim, longe estão da velhice, e  folgo muito com isso.   

- Mérito, em nome de nossa  camaradagem! Traze-me depressa um  "rabo de crocodilo! ante que meus modos  para contigo se tornem ultrajantes, o que  não pode condizer com a minha dignidade  de cirurgião da corte real, principalmente  aqui numa taverna do porto.

Trouxe a  bebida numa concha que colocou na palma  da minha mão.  O líquido queimou minha garganta que se  acostumara já a vinhos leves; mas o  abrasamento que senti era gostoso porque  a minha outra mão estava apoiada na  cintura  de Mérito. Disse-lhe:   

- Mérito, disseste-me certa vez que a  mentira  era mais doce do que a verdade para uma  pessoa que se sente sozinha e cujas  primaveras já se tenham ido. Assim pois te  declaro que o meu coração ainda floresce e  remoça ao te rever. Longos são os anos que  nos prejudicaram, e não se passou  um único dia que eu não tivesse sussurrado  teu nome ao vento; mandei-te minhas  saudações pelas andorinhas por cima da  correnteza do Nilo, e todas as manhãs  tenho acordado com o teu nome nos lábios. 

Olhou-me. Achei-a esbelta ainda. E bonita.  No fundo de seus olhos pairava um reflexo  de alegria e de mágoa, como nas águas de  um poço profundo.

Afagou o meu rosto e disse:

- Falais lindamente, Sinuhe... Por que não  vos confessar também que meu coração  sentiu saudades de vós, e que as minhas  mãos procuravam as vossas sempre que me  via  deitada, à noite, em meu leito? Sempre que  qualquer homem, empolgado pela bebida  desta taverna, me dizia coisas frenéticas,  eu me recordava de vós, com amargura.  Mas na casa dourada do faraó decerto  havia sempre lindas mulheres, e sem  dúvida um médico como vós soube utilizar conscienciosamente as horas de lazer na  companhia delas...

Era verdade que eu tivera ligações  amorosas com algumas das damas da corte  que, assaltadas de monotonia, vinham solicitar meus conselhos profissionais.  Tinham a  pele macia como uma fruta e tenra como  penugem; e no inverno, principalmente,  era mais cálido permanecer no leito  acompanhado do que sozinho. Mas isso era  coisa trivial que nem cheguei a registrar  em meu livro. Respondi:

- Mérito, se nem sempre dormi sozinho, a  verdade é que tu és a minha única amiga.

A tal bebida "rabo de crocodilo" agia  dentro de mim. Meu corpo tornara-se  jovem como jovem se tornara o meu coração, e um calor agradável percorria  minhas veias enquanto eu falava:

- Pela certa muitos homens  comparticiparam de teu leito durante todo  este tempo. Bom será, contudo, avisá-los da minha presença aqui em Tebas, porque  quando me enfureço sou um homem  violentíssimo. Quando lutei contra os  cabírios, os soldados de Horemheb me  deram o nome de O Filho do Burro Bravo.

Ela ergueu as mãos com fingido e  gracioso terror, e disse:

- Foi isso que me  fez temer por vossa vida todo este tempo  porque Kaptah me contou tantas rixas e  contendas em que vos metestes por causa  de vosso temperamento afogueado! Ainda  bem que o destemor e a fidelidade dele vos  salvaram dos piores apuros.

Ao ouvir o nome de Kaptah e imaginar  todas as desavergonhadas mentiras que ele  lhe deveria ter contado de mm e de minha  vida em terras estrangeiras, meu coração  se enterneceu dentro de mim e lágrimas  irromperam de meus olhos, enquanto eu  dizia:

- Onde está Kaptah, meu antigo escravo e  fâmulo, para que eu o abrace! Meu  coração sentiu profunda falta dele. Sim, confesso, por mais despropositado que seja  falar assim de um escravo.

Mérito fez tudo para que eu me calasse.

- Verifico que de fato perdestes o hábito  de beber "rabos de crocodilo", e meu pai  está olhando furioso na nossa direção por  causa do barulho que fazeis. Só vereis  Kaptah de noite, porque a estas horas está  às voltas com importantes negócios de  trigo, e visitando tavernas. Ficareis  assombrado quando o encontrardes.  Dificilmente se acreditará que foi vosso  escravo e carregou vossas sandálias  enfiadas numa vara em cima do ombro.  Vamos dar uma volta aí fora, apanhar ar  fresco, enquanto ele não chega. Decerto  quereis ver Tebas que mudou tanto depois  de vossa partida. E assim ficaremos  sozinhos, um pouco.

Foi mudar o vestido,  passar óleo no rosto, enfeitar-se com ouro e prata. Apenas os pés e as mãos provavam  que ela não era uma mulher da  aristocracia, pois no mais  poucas mulheres tinham uma noção tão  clara de saber olhar, e um semblante tão  altivo.

Pedi aos escravos da liteira que nos  levassem ao longo da Avenida dos  Carneiros; íamos bem juntos na liteira, e  eu respirava o odor de seus ungüentos, que  era o odor de Tebas, bem mais pungente e  estonteador do que o dos raros cosméticos  de Akhetaton.  Segurava a sua mão na minha, e não ficara  sequer um mau pensamento em meu  coração. Após uma longa viagem, eu me  sentia em casa.

Aproximamo-nos do templo onde aves  negras faziam círculos e crocitavam por  cima daquele recinto vazio; jamais tinham regressado aos montes, havendo se  instalado  nas cercanias. Aquilo tudo por ali era  terreno amaldiçoado e que repugnava ao  povo freqüentar. Saltamos da liteira e  passeamos pelos pátios desertos. Apenas  vimos gente nas proximidades das Casas  da vida e da Morte. Transferir aquelas  instituições custaria muito caro e seria  empreitada dificílima. Mérito disse-me  também que o povo evitava até mesmo a  Casa da Vida, e que por essa razão quase  todos os médicos se tinham transferido  para a cidade a fim de prosseguir em suas  profissões.  Andamos pelo jardim do templo, mas as  ervas haviam invadido os passeios, e as  árvores tinham caído ou sido roubadas. As  únicas pessoas que encontramos nos  jardins  que o faraó transformara em parque  público foram dois ou três vagabundos  sujos e esquivos que nos olharam de  esguelha. Mérito disse:

- Congelais meu coração, trazendo-me a  este lugar sinistro. Decerto a cruz de Aton  nos protegerá. Mas, com franqueza,  preferiria que a removesses da pala,  porque por causa dela nos poderão atirar  pedras. O ódio ainda ferve em Tebas.

Tinha razão. Quando voltamos para o  adro fronteiro ao templo, pessoas cuspiram  no chão quando viram a cruz na minha roupa. fiquei admirado de ver um dos  sacerdotes de Ammon passeando  ousadamente entre a multidão, com a  cabeça raspada não obstante as ordens do  faraó, e paramentado  de branco. Tinha um rosto reluzente, sua  roupagem era do mais fino linho, e não  parecia apreensivo, absolutamente. O povo lhe dava passagem, reverentemente.  A prudência fez que eu pusesse a mão no  peito para tapar a cruz de Aton, pois era  tolice querer provocar tumulto.    Paramos junto da muralha onde se  achava um narrador de histórias, sentado  em cima da sua esteira, com o pires  vazio ao lado. Os ouvintes permaneciam  em círculo, e os mais pobres estavam  sentados no chão já que não precisavam se incomodar com as roupas. A história que o  homem estava contando eu nunca tinha  escutado antes. Falava de um falso faraó  que vivera havia muitos e muitos anos e  cuja mãe fora uma  feiticeira negra. Por vontade de Set essa  megera ganhara as boas graças do bom  faraó e dera nascimento ao falso que  procurou arruinar o Egito e reduzir a  população a escravos dos núbios e dos  selvagens. Derrubara a estátua de Ra o  que obrigou Ra a amaldiçoar a terra, que  se tornou estéril. O ovo foi morrendo  afogado em enchentes, os gafanhotos  devoraram as colheitas antes do termo, e os  poços se transformaram em sangue  pútrido. Mas os dias do falso faraó  foram contados, porque o poder de Ra era  maior do que o de Set. O falso faraó  morreu de uma morte miserável, o mesmo  tendo acontecido à sua mãe, e Ra derrubou  todos os  que o negaram e lhes dividiu as casas, os  bens e as terras entre os que haviam  permanecido fiéis durante tal provação e que tinham confiado em sua volta. Esta  história era muito  comprida e muito excitante, e o povo batia  com os pés e erguia as mãos, cheio de  impaciência para ouvir qual seria  o remate. Eu também fiquei de boca aberta  enquanto escutava. Quando a história  acabou  e o falso faraó recebeu sua punição sendo  precipitado nos abismos sem fim, quando o  seu nome foi amaldiçoado e Rá  recompensou seus. fiéis crentes, então os  ouvintes deram  saltos e brados de contentamento, atirando  moedas de cobre no pires do contador de  histórias.    Fiquei profundamente intrigado, e disse a  Mérito:

- Trata-se de uma história nova, que  nunca ouvi antes, embora creia haver  escutado todas as que existem porque quando eu era criança minha mãe Kipa  gostava extraordinariamente de fábulas e  ajudava muito os contadores de histórias. Tanto, que muitas vezes meu pai Senmut  os ameaçava com o bastão quando dava com  eles comendo na nossa cozinha. Sim, trata- se de uma história nova. E se não fosse  impossível, eu diria que se refere ao faraó  Akhnaton e ao seu falso deus cujo nome  não ousamos falar alto aqui. Esta história  devia ser proibida.

Mérito sorriu

- Quem pode proibir uma história? Esta é  contada em ambos os Reinos, em cada  pórtico, debaixo de cada muralha de não importa qual aldeia, e é muito apreciada  pelo  povo. Sempre que os guardas invectivam  os narradores, estes respondem que se  trata de uma história antiqüíssima... E  podem provar que de fato é, pois os  sacerdotes a encontraram em escritos que  datam de séculos. Portanto os guardas não  podem proibir, embora eu tenha ouvido  dizer que Horemheb, que é um homem  prepotente que não se importa com provas  nem documentos, mandou dependurar nas  muralhas alguns narradores e ordenou que  seus corpos fossem atirados depois aos  crocodilos.

Mérito segurou minha mão, sorriu, e  continuou:

- Correm muitas profecias em Tebas.  Onde quer que dois homens se encontrem  contam um ao outro as profecias que escutaram, e os augúrios que se cumprirão.  Conforme sabeis, os abastecimentos de  trigo estão escasseando, os pobres vivem à  míngua, e os impostos caem pesadamente  sobre os pobres e ricos. Coisas piores  foram preditas e tremo quando penso em  todos os males com que tais profecias nos  ameaçam.

Retirei dela a minha mão e o meu  coração, também. O "rabo de crocodilo"  já desde muito não atuava em minha  cabeça, que estava doendo agora. Fiquei  taciturno e não valeu de nada sua teimosia  pertinaz em querer me tornar alegre.

Assim, voltamos enfarados para a taverna,  e me dei , conta de que aquilo que o faraó  Akhnaton dissera era verdade: “Aton  separará da mãe o filho e, da irmã de seu  coração, o homem. E isso até que o seu  reino prevaleça na face da terra." Mas não  tive nenhum desejo de me separar de  Mérito por causa de Aton; e portanto fiquei até de noite marasmado em péssimo humor, até que Kaptah voltasse.

Quem poderia permanecer zangado ao dar com Kaptah rodando através da porta da taverna, imenso e lerdo como uma porca machorra, tão gordo que teve de virar de lado para poder entrar?

Estava com o rosto redondo como a lua cheia e reluzente de suor e de ungüentos caros. Usava uma vistosa cabeleira azul e tapara a órbita vazia com um disco de ouro. Deixara de usar roupas sírias, estava vestido à maneira egípcia, com os melhores tecidos que os alfaiates de Tebas podiam cortar e coser, e seus punhos  e tornozelos tintilavam com pesadas argolas de ouro.

Quando me viu deu um grito erguendo os braços, tamanha foi a sua surpresa;  depois se inclinou profundamente, estirou bem para diante as mãos, posição esta  que sua barriga o deixava dificilmente realizar.

- Abençoado seja o dia que traz de volta a casa o meu senhor!

A emoção dominou-o. Pos-se a chorar, arremessando-se de joelhos para abraçar as  minhas pernas e fazendo clamor que reconheci o meu velho Kaptah a despeito do  linho real e dos braceletes, do ungüento caro e da cabeleira azul. Ergui-o pelos  braços e abracei-o, tendo a impressão de estar cingindo um boi nédio que  cheirasse a pão recente, de tal forma o cheiro dos celeiros estava impregnado  nele. Ele cheirou meus ombros também, delicadamente, enxugou as lágrimas, e riu.

- Este é para mim um dia de tamanha satisfação que ofereço aos fregueses que  se acham aqui dentro do meu estabelecimento, um "rabo de crocodilo! Se, porém,  quiserem mais um, que o paguem Levou-me para os compartimentos internos, aos  fundos, e me ofereceu fofas almofadas onde me reclinar. Consentiu que Mérito  permanecesse a meu lado.

Escravos e criados me traziam o melhor que a casa podia  oferecer. Seus vinhos eram comparáveis aos do faraó, e o seu ganso assado era um  prato tebano sem paralelo no Egito inteiro, pois se tratava de ganso que tinha  sido alimentado com peixe podre que dá à carne o mais fino e delicado sabor.  Enquanto comíamos e bebíamos, ele disse:

- Sinuhe; meu senhor e meu patrão, confio que haja examinado detidamente todos  os relatórios e contas que mandei os escribas tirarem e que tem sido despachados  para a sua casa em Akhetaton todos estes anos. Talvez consinta que eu mande por na rubrica "Despesas" a conta deste jantar bem como a dos "rabos de crocodilo"  que, em minha grande alegria, ofereci aos fregueses presentes. Será tudo em sua  vantagem, pois tenho as maiores dificuldades em enganar o departamento de  impostos do faraó, e isso em consideração ao meu senhor.

Disse-lhe:   

- Isso para mim é pura charada. Não entendo uma palavra. Faze o que achares  melhor, pois sabes que deposito inteira confiança em ti. Tenho lido os  relatórios e as contas; todavia devo confessar que entendo pouco, pois contem  tamanha quantidade de números e figuras que a minha cabeça começa a estalar  antes mesmo que eu chegue ao fim das somas.

Kaptah riu, radiante, e a risada  subia de seu ventre como flexuosidades através de almofadas. Mérito riu também  porque bebera vinho comigo e estava estirada agora, com as  mãos atrás da  cabeça, de modo que eu podia observar quão bonita ainda era a curva dos seus  seios por baixo do vestido. Kaptah gabou-se:

- Oh Sinuhe, meu senhor e meu patrão! alegra-me ver que conserva sua  inocência de quando criança e que compreende tão pouco das coisas materiais  quanto um porco compreende de pérolas... conquanto esteja longe da minha  intenção compará-lo a um bácoro. Pelo contrário: rendo graças a todos os deuses  do Egito e os louvo no que lhe diz respeito porque eles poderiam lhe ter dado  como fâmulo um ladrão ou um tratante que o espoliasse, ao passo que eu o tornei rico!

Fiz-lhe ver que não necessitava agradecer aos deuses por isso e sim, antes ao  meu bom descortino, visto como eu o comprara num mercado de escravos... e bem  barato por se ' tratar de indivíduo que perdera um olho numa briga de botequim. Ao recordar tais coisas exaltei-me e disse:

- Na verdade jamais esquecerei a primeira impressão que tive de ti. Estavas  ligado pelo tornozelo ao cepo de escravos e proferias palavras desavergonhadas  às mulheres que passavam ou pedias cerveja aos homens. Todavia fiz bem em te comprar, não obstante, em tal ocasião, ter vacilado muito.

A cara de Kaptah se sombreou, vincada  de muitos sulcos, ao replicar:

- Não gosto que evoquem um caso assim tão antigo e , aborrecido e que não se  coaduna com a minha dignidade...- Pos-se a elogiar alto e com muito ardor o escaravelho, declarando: - O  patrão foi muito sagaz em deixar comigo 0 escaravelho. Assim ele zelou pelos  seus negócios e o tornou rico... mais do que o patrão jamais poderia sonhar... E isso não obstante os cobradores de impostos que enxameiam em cima de mim que nem  moscas.

Tive que contratar dois guarda-livros sírios para lidar com livros especiais  em benefício deles, pois ninguém, nem mesmo Set, é capaz de entender patavina de  contabilidade síria... E já que falo de Set, meus pensamentos se volvem para o  nosso velho amigo Horemheb a quem emprestei dinheiro em nome do patrão, conforme  mandei contar. Não quero falar dele agora, e sim da riqueza do patrão, por menos  que este entenda de tais trapalhadas... Mas, graças a mim, está mais rico do que  muitos nobres egípcios. Riqueza não significa a posse de ouro, mas sim de casas,  armazéns, navios, cais, terras, gado, pomares e escravos. O patrão possui tudo  isso, embora não o saiba porque fui compelido a abrir contas em nome de criados  e escribas para evitar impostos. As taxas do faraó pesam sobremaneira sobre as  pessoas produtoras que tem que pagar mais do que os pobres, pois ao passo que um  homem pobre entrega um quinto do seu trigo, um homem rico é obrigado a entregar  um terço ou a metade. Isto é uma iniqüidade... a iniqüidade mais ímpia de  quantas o faraó tem perpetrado. Isso e a perda da Síria reduziram à miséria o  país. E o mais esquisito de tudo é que enquanto a fortuna nacional diminui, o  pobre se torna mais pobre do que antes e 'o rico se torna mais rico. Nem mesmo o  faraó pode alterar esta lei.

E tendo bebido mais, Kaptah começou a se gabar dos seus negócios com o trigo.

- É notável e esquisito, meu patrão, que logo no primeiro dia em que voltamos de  nossas viagens, o nosso escaravelho me houvesse levado para tavernas . e  botequins que mercadores de trigo freqüentam.  Consegui assim começar logo a comprar trigo em nossa conta, sendo que ao cabo do  primeiro ano já os lucros eram grandes .porque as terras de Am... quero dizer,  determinadas áreas extensas de terras deixaram de ser semeadas, conforme o  patrão sabe. O trigo é um negócio formidável porque pode ser vendido e comprado  antes mesmo de ser semeado, e também porque seu ; preço aumenta de ano para  ano, como por efeito de feitiçaria; de modo que o açambarca dor, queira ou não  queira, sempre tem lucro. Por esse motivo não pretendo vender e sim apenas  comprar e armazenar em minhas tulhas até que o preço seja pago por medida em ouro, como deverá acontecer se as coisas prosseguirem no rumo em que estão.

E tendo examinado minha fisionomia, Kaptah serviu mais vinho para nós três, e  continuou, majestosamente:

- Contudo, nenhum homem aventura tudo quanto tem num único lance; de modo que  espalhei nossos lucros constantes em muitos empreendimentos, querendo assim, por  sua causa, jogar com diversos dados, meu caro patrão.

E não o furtei em mais do que costumava fazer em tempos idos. Não cheguei a  ficar com a metade do lucro que lhe proporcionei com a minha sagacidade; talvez  nem mesmo com um terço, embora não conheça pessoa mais fácil de ser roubada e de  se deixar roubar do que o meu dileto patrão Sinuhe.

Mérito, reclinada em sua esteira, sorria. Mas ao ouvir isso deu uma gargalhada  ante a minha expressão assombrada pelo que Kaptah ia declarando. E ele não se  interrompeu.

- Cumpre que entenda, patrão, que quando falo em lucros me refiro a lucros  líquidos, a tudo quanto ficou depois das taxas e dízimos. Tive também que  deduzir certos donativos para os funcionários do fisco, por causa da minha contabilidade à maneira síria. E grande quantidade de vinho também, coisa  necessária para atordoá-los enquanto examinam as contas e números. Só isso vai  longe como dinheiro, pois são sujeitos astutos e com poderes incríveis de resistência; engordam à custa dos contribuintes. De vez em quando distribuí  trigo entre os pobres, para que abençoassem o meu nome... Quando os tempos são  inseguros convém viver em harmonia com os pobres. Esta distribuição de trigo  também é um excelente golpe comercial, visto como o faraó em sua loucura permite  que se abata nos impostos o trigo assim distribuído. Sempre que dou uma medida  de trigo a um pobre, obrigo-o a certificar com a sua impressão digital que recebeu cinco medidas, pois os pobres não sabem ler... E mesmo que soubessem não  se negariam, pois ficam tão gratos por uma medida que abençoam o meu nome e  a põem a impressão digital em não importa qual documento eu lhes apresente.

Depois que Kaptah vomitou toda essa historiada, cruzou os braços em ar de  empáfia, estufou o peito e ficou à espera dos meus elogios. Mas suas declarações  espicaçaram meu raciocínio, de modo que refleti bastante durante algum tempo. E por fim, disse:

- Com que então dispomos de grande cópia de trigo armazenado?...

Kaptah fez que sim com a cabeça, vigorosamente, sempre à espera dos meus  encômios; mas eu ordenei:

- Já que assim é, procura depressa os colonos que estão cultivando a terra  amaldiçoada e distribuí o grão entre eles, pois não dispõem de nenhum. O pouco  trigo que tem espigou avermelhado como se tivesse sido regado com sangue. O rio  já baixou, o tempo de arar e semear está aí. Trata disso o mais depressa  possível.

Kaptah olhou-me piedosamente, meneando a cabeça e sentenciou:

- Meu dileto patrão, deixe de afligir sua cabeça tão  valiosa ,com assuntos que não entende; encarrego-me de pensar em seu lugar. O  caso está no seguinte pé: Nós, comerciantes, primeiro lucramos dos colonos  emprestando-lhes trigo, pois eles, devido à pobreza, são compelidos a pagar duas  medidas por uma que lhes emprestamos. Se acontece não poderem pagar, então os  obrigamos a abater o gado que possuem e ficamos com os couros, à guisa de  pagamento da divida. Quando o trigo aumenta de preço tal processo não nos  interessa, pois deixa de haver lucro, e a nossa vantagem é deixar nesta primavera bastantes áreas de terra sem semear para que assim o preço do trigo  aumente e suba ainda mais. Portanto, não façamos como esses maníacos que  emprestam trigo aos colonos para que estes semeiem, pois tal gesto estragaria  nossos interesses e nos acarretaria inimizades entre os comerciantes de trigo.

Mas a minha resolução era inabalável e respondi com veemência:   

- Trata de fazer segundo estou ordenando, Kaptah, pois o trigo é meu, e não  estou pensando agora em lucros e sim em homens cujas costelas aparecem por  baixo da pele, homens mais esqueléticos do que os que trabalham em minas... Em mulheres cujos seios pendem flácidos como sacos vazios... Em crianças de  perninhas em arco andando na margem do rio, com os olhos rodeados de moscas. Quero e exijo que dividas o trigo entre eles para semeaduras e que os  ajudes de todas as formas a semeá-lo mando que faças isso em nome de Aton e por  causa do faraó, a quem de fato quero bem. Não lho dês de graça, pois farto estou  de verificar que doações e presentes alimentam a preguiça, a má vontade, o  desleixo e a cobiça. Não lhes foi dado gado de graça? E terra? E mesmo assim não  malograram? Usa contra eles teu bastão, Kaptah, se necessário for. Verifica se  realmente o grão é semeado s se mais tarde vem a sazonar. Quando fores reclamar  o que é teu, não permitirei que colhas a mais para ti. Tomarás deles uma medida  por medida emprestada.   

Então Kaptah fez menção de se estraçalhar e se lamentou:

- Medida por medida, patrão? Loucura, pois de onde hei de eu roubar senão do  lucro que acaso o patrão tenha! E não é apenas nisso que a sua ordem é estulta e  ímpia. Além dos mercadores de trigo, terei contra mim os sacerdotes de Ammon...E  posso agora proferir alto o nome de Ammon já que estamos fechados numa sala e  que ninguém escuta para nos delatar. E se digo alto o nome dele, patrão, é  porque ainda está vivo, e seu poder é mais formidável do que antes, mesmo. Ele  amaldiçoa nossas casas, nossos navios, nossos armazéns, nossas tulhas...  Amaldiçoa também esta taverna, de modo que até será prudente transferi-la para o  nome de Mérito, caso ela concorde... E dou graças até que muitas de nossas  propriedades se achem registradas sob outros nomes para que os sacerdotes não  saibam quais os verdadeiros donos e não as amaldiçoem.

Kaptah ia tagarelando assim para ganhar tempo, na esperança de que eu me  arrependesse de minha resolução. Mas quando viu que essa era inabalável,  praguejou amargamente e perguntou:

- Acaso o mordeu um cão danado, patrão? Ou o aguilhoou um escorpião? Pensei no  começo que se tratasse de mero gracejo. Tal plano nos deixará na miséria. Talvez  nem mesmo o escaravelho então nos pudesse valer. Quer saber de uma coisa? Eu  também não gosto de ver essa gente esquelética. E que faço, então? Viro os olhos  para o outro lado. Por que não faz a mesma coisa? Ora, o que um homem não vê,  ignora para sempre. Aliviei a minha consciência distribuindo trigo entre os  pobres, visto como isso acabava não redundando em prejuízo. E o que mais me  desagrada no seu plano é que o patrão quer que eu me aventure a fazer viagens  medonhas, pisando na lama, escorregando, caindo mesmo, decerto, nalgum poço de  irrigação... Não terá remorso, depois, patrão? Sim,, levarei a breca, pois sou  um velho cansado e já não tenho as pernas rijas... a não ser de velhice. Então  vou deixar minha cama gostosa, as sopas e as costelas que Muti me faz? Andar  como, se só com alguns passos já fico sem ar?... Mas fui inamovível.

- Cada vez mentes mais, Kaptah, pois nesta longa temporada, em lugar de  envelhecer, ficaste bem mais remoçado. As tuas mãos já não tremem como tremiam,  e se tens o olho avermelhado foi de haveres bebido agora, pois quando entraste não o tinhas assim. É exatamente como médico que te receito esta viagem sem  comodidades. Faço isso em benefício teu, por causa do bem que te dedico. Espero  que percas essas banhas no decorrer de tal viagem e que te tornes um homem de físico respeitável, de modo a eu não ter que enrubescer à vista da obesidade  grotesca do meu fâmulo. Não te lembras com que satisfação andávamos pelas  estradas de Babilônia? Com que efusão atravessaste no dorso de um jumento as  montanhas do Líbano, e com que entusiasmo ainda maior desceste do animal às  portas de Kadesh? Na verdade, se eu fosse mais moço... isto é, se não tivesse tantas missões a  realizar a mando do faraó, iria contigo, sim, pois muitos hão de abençoar teu  nome por causa dessa viagem. Não altercamos mais.

Kaptah resignou-se ao projeto.

Permanecemos bebendo pela  noite adentro. Mérito também bebeu, e descobriu a pele morena para que eu a  pudesse roçar com meus lábios. Kaptah recitou suas memórias pelas estradas e  eiras da Babilônia. Se na verdade houvesse acontecido comigo tudo quanto ele  contou, então o meu amor por Minéia me teria tornado cego e surdo,  simultaneamente. Sim, não me esqueci de Minéia aquela noite embora tivesse  deitada com Mérito, possuído seu corpo e aquecido nela o meu coração até se  esvair toda a minha solitude. A verdade é que não a chamei de "minha irmã",  tendo dormido com ela porque era minha amiga e estava sempre pronta a me  outorgar a prova mais amistosa que uma mulher pode conceder a um homem. Cheguei  a insistir que quebrássemos juntos um cântaro; mas não quis, dizendo que se  criara numa taverna e que eu era muito rico e importante para ela. Mas creio que  a verdadeira razão foi querer a sua liberdade e a minha contínua camaradagem.

Eu tinha que visitar no dia seguinte a casa dourada, por causa de uma  audiência marcada com a Rainha-Mãe, que Tebas inteira agora chamava a bruxa  preta. Acho que, a despeito de sua habilidade e sabedoria, bem merecia tal nome.  Era uma velha intrigante que não conhecia dó nem piedade. A sede de poder que a  extremava anulara quaisquer boas qualidades.

Voltei ao navio, mudei minha roupa cingindo-me de linho real, coloquei os  símbolos da minha dignidade, encontrei minha cozinheira Muti que saía da casa do  fundidor em grande fúria para me interpelar:

- Abençoado seja o dia que vos traz à casa, meu amo. Mas não está direito,  absolutamente, que levásseis a noite entregue à devassidão em alcouces, sem  sequer vir almoçar, sabendo como deveis saber que tive tanta trabalheira para arranjar. comida que tanto gostais! Além disso, não me deitei a noite inteira,  às voltas com o forno, os assados e as frituras, a toda hora atiçando os  escravos preguiçosos para que a limpeza da casa ficasse pronta.  Estou com estes braços que não posso mais... Não passo de uma pobre velha,  perdi minha fé nos homens, e não fizestes nada, absolutamente nada, para que eu  modificasse essa minha opinião sobre os homens todos, todos! Entrai ao menos agora e almoçai. Sé quiserdes podeis trazer a gaja se é que não vos podeis  separar dela nem mesmo de dia.   

Foi como me recebeu, embora tivesse Mérito em grande conceito e admiração. Sua  acrimonia chegou até a me fazer bem, pois me fez perceber deveras que me achava  em minha casa. Tendo mandado chamar Mérito na taverna O Rabo do Crocodilo, entrei com Muti, muito satisfeito. Ia e vinha perto da minha cadeira, arrastando  os pés e resmungando:

- Esperava que tivésseis criado juízo e prendido a vos comportar direito  durante tão longa estadia em ambiente real, mas estou a ver, sobejamente visto,  que nada disso aconteceu e que sois o mesmo estouvado de antigamente. E dizer-se que ontem cheguei a pensar que havia compostura e serenidade em vossa  fisionomia... Alegrou-me, contudo, verificar que tínheis ganho umas bochechas  mais gordas. Está bem, está bem... Um homem quando engorda fica mais sossegado. Evidentemente não foi culpa minha se perdestes peso aqui em Tebas, como com  certeza vai acontecer de novo. Culpa só de vossas correrias tontas... Todos os  homens são iguais e todo o mal do mundo advém do instrumentozinho que os homens escondem debaixo da tanga envergonhados disso, por melhor munidos que estejam...   

Tão incessantes eram seus ralhos que me lembrei de minha mãe Kipa. E decerto o  pranto me venceria se eu não tratasse logo de redargüir:

- Cale essa boca, mulher! Sua tagarelice incomoda meus pensamentos, embora eu  ligue tanto para o que me diz como para o zumbir de moscas.

Calou-se imediatamente, radiante de me haver azucrinado tanto a ponto de me  irritar, sentindo assim a exata impressão de que o dono da casa voltara e que  naquela casa imperava a sua autoridade, outra vez.

Preparara lindamente a casa, para me receber. Ramalhetes pendiam dos pilares  da entrada. O jardim fora varrido. A carcaça de um gato, que antes estava diante  da minha porta, achava-se agora diante da casa do vizinho. Contratara crianças  para ficarem paradas na rua e cantarem: "Abençoado seja o dia que traz o meu amo  à casa!" E fizera isso, indignada por eu não ter filhos meus. Gostaria que eu  tivesse alguns, contanto que os tivesse obtido sem precisar me casar.

Dei moedas de cobres às crianças, e Muti os presenteou com bolos de mel;  dispersaram, contentes da vida. Depois chegou Mérito, lindamente vestida, com flores nos cabelos que luziam  tanto com óleos perfumados que Muti fungou e limpou o nariz enquanto derramava  água para que lavássemos as mãos. O almoço que Muti preparara me soube magnificamente, porque era comida tebana. Em Akhetaton eu esquecera que não  existe parte alguma no mundo onde se encontre comida igual à de Tebas.

Agradeci a Muti, elogiei muito os pratos, o que a envaideceu apesar de fazer  carranca e torcer o nariz; Mérito cumprimentou-a, também. Se essa refeição na  antiga casa onde antes morara um fundidor, foi memorável sob qualquer aspecto ou  se me valeu de alguma coisa, não saberei dizer. Menciono-a por minha própria  conta, porque foi naqueles momentos que me senti feliz e disse:

- Detém tua marcha, relógio de água, pois esta é uma grande hora. Tomara que  perdurasse sempre, assim!    Enquanto comíamos, juntou gente no pórtico; gente do bairro pobre que se  vestem melhor para vir me cumprimentar e falar de suas dores e pontadas. E tais  pessoas me disseram:

- Que falta temos sentido de vós, Sinuhe! Enquanto residíeis aqui entre nós,  não percebemos quanto valíeis. Só depois que partistes averiguamos o bem que nos  fazíeis, e quanto perdemos com vossa ausência.

Trouxeram-me presentes, coisa muito modesta, porque haviam ficado mais pobres  do que nunca, por causa do deus do faraó Akhnaton. Entre eles se achava o velho  escriba, sempre com a cabeça entortada por causa do tumor no pescoço, fiquei  admirado de achá-lo vivo ainda. Vi também o escravo cujos dedos eu tratara;  erguia a mão diante de mim, todo orgulhoso, mexendo com os dedos. Certa mãe me  mostrou o filho que crescera bonito e estouvado; estava até com uma contusão na  órbita, sem falar nos arranhões pelas pernas; a mãe ficou séria quando o garoto  me disse que era capaz de estraçalhar qualquer menino do seu tamanho ali pela  vizinhança. E veio também a rapariga cujos olhos eu tratara e que me pagou de  boa vontade mandando-me todas as outras mulheres do alcouce para que eu lhes  removesse sinais de nascença e verrugas. Prosperara, tendo ganho com que  adquirir um banho público perto do mercado onde também vendia perfumes e dava  aos mercadores endereços de moças alegres e vistosas...E à medida que me entregavam os presentes diziam coisas assim:

- Não zombeis de nossos presentes, Sinuhe, médico real residente no palácio do  faraó, pois nossos corações rejubilam em vos ver, contanto que não nos faleis de  Aton.    Não falei. Recebi-os um por um, de acordo com seus males. Prestei atenção em  suas queixas, receitei-lhes, tratei-os.

Mérito tirou o vestido bonito a fim de  me ajudar. Lavou-lhes as feridas, purificou minha faca no fogo, misturou bebidas narcóticas para aqueles que tinham dentes a arrancar. Sempre que olhava para ela  me sentia bem, e olhei-a uma porção de vezes enquanto trabalhávamos, pois era  bonita e flexuosa. Seu corpo era gracioso, não se envergonhou de retirar o vestido como fazem as mulheres pobres, e nenhum dos meus clientes  estranhou isso, pois estavam todos às voltas com a consulta.    Passei o dia recebendo doentes, conversando com eles como outrora, alegrando- me com os meus conhecimentos quando o diagnóstico era fácil. E uma porção de  vezes respirei profundamente e disse:

- Detém teu curso, relógio de água! Água, detém o teu curso, pois outras horas  tão belas quanto estas raramente terei.   

Esqueci-me da visita que devia fazer à Rainha-Mãe, e que já fora informada da  minha chegada. Acho que esqueci porque, sentindo-me feliz, não quis me lembrar  dos outros deveres.   

À hora em que as sombras se alongaram, o último dos meus pacientes deixou o  pórtico. Mérito derramou água em minhas mãos e ajudou a me preparar. Com  satisfação a ajudei também, e nos vestimos. Quando quis lhe acariciar o rosto e beijar-lhe a boca, ela me empurrou, dizendo:

- Ide depressa visitar vossa feiticeira, Sinuhe; não percais tempo para que  possais voltar antes do cair da noite. Meu ,leito vos espera com impaciência. Sim, pressinto que o meu leito, no meu  aposento, vos espera ansiosamente...Por que motivo? Não sei! Tendes os membros  fofos, Sinuhe, vossa carne é flácida, e vossas carícias não são de modo alguns notáveis. Todavia, para mim sois diferente de todos os outros homens, de maneira  que percebo perfeitamente o estado de alvoroço em que se acha o meu leito.

Cingiu meu pescoço com os símbolos da minha dignidade e pos a cabeleira de  médico em minha cabeça, afagando minhas faces enquanto isso, de forma que,  apesar do meu medo da raiva da Rainha-Mãe, não sentia a menor vontade de deixar Mérito e de ir à casa dourada.  Mas apressei os carregadores e os remadores até que chegamos rente às muralhas  do palácio. O meu bote tocou no desembarcadouro exatamente quando o sol  descambava por trás das colinas ocidentais e as primeiras estrelas apareciam.

Antes de falar da minha conversa com a Rainha-Mãe devo mencionar que apenas  duas vezes ela visitou ò filho na cidade de Akhetaton. Em ambas as vezes o  admoestou por sua maluqueira, com isso o afligindo muito porque amava muito sua  mãe obedecendo-a cegamente, obediência essa que nos homens só se modifica depois  que tal cegueira é curada pelo casamento.

Mas Nefertiti não abriu os olhos do  faraó Akhnaton, por causa do pai. A rainha Taia e Eie viviam livremente juntos a esta altura, e já não tentavam mais esconder tal situação; ignoro se a corte  acaso já assistira antes a tamanha desfaçatez. Todavia não ponho nenhuma  suspeita quanto às origens do faraó, pois acredito que estas sejam divinas. Se não tiver nenhum sangue do falecido faraó em suas veias então carece de modo  absoluto de sangue real. Então será um falso faraó, conforme os sacerdotes  assoalham, e tudo quanto aconteceu foi ainda mais iníquo e insensato. Mas  prefiro acreditar no que me dizem o meu coração e o meu espírito.

A Rainha-Mãe recebeu-me numa sala reservada onde muitos pássaros com asas  cortadas arquejavam e gorjeavam em suas gaiolas. Jamais esqueceu a profissão da  sua gente é da sua infância, gostando ainda de caçar passarinhos no jardim do palácio, armando alçapões e redes nas árvores e no chão. Quando entrei, ela  estava tecendo uma esteira com vergas coloridas. Recebeu-me com uma  descompostura por causa do meu atraso. Depois foi perguntando:

- Meu filho já ficou bom da maluqueira, ou já é tempo de lhe trepanarmos o  crânio? Que mixórdia que ele faz com essa divindade Aton, alvoroçando toda gente  sem nenhuma necessidade, já que o falso deus foi derrubado não existindo mais nada para competir com o faraó no poder!

Falei-lhe da condição do filho, das princesinhas, de seus brinquedos, gazelas  e cães, de como remavam no lago sagrado de Akhetaton. Enterneceu-se, pediu-me  que sentasse aos seus pés, ofereceu-me cerveja. Não fez isso por parcimonia, e sim porque preferia a cerveja ao vinho.

Enquanto bebia, conversava comigo com a maior naturalidade e confiança, o que,  aliás, era natural visto eu ser médico. As mulheres contam aos médicos muita  coisa que nem por sonho confiariam a outras pessoas.

A tal respeito a rainha Taia não era diferente das demais mulheres. Como a sua  língua se fosse soltando com a cerveja, falou assim:

- Sinuhe, por que estranho capricho te deu o meu filho o nome de O Que Está  Sozinho? Absolutamente não me dás tal impressão. Pareces um homem sossegado e,  sem dúvida, no íntimo és um homem bom. Falar nisso, que adianta a um homem ser bom? Só as pessoas estúpidas são boas, pois são incapazes de algo mais, conforme  estou farta de verificar. Seja como for, tua presença me acalma, esquisitamente.  Esse Aton, que em minha insensatez deixei que atingisse o poder, agora me aborrece sobremaneira. Jamais foi minha intenção que esse caso fosse levado tão  longe. Inventei Ato tão somente para depor Ammon, afim de que o meu poder e o do  meu filho crescessem. Para ser mais fiel, foi Eie quem pensou nisso. Sim, Eie,  meu esposo, conforme deves saber... se é que em tua simplicidade ainda não  percebeste nem sequer isso. Bem, Eie é meu esposo, muito embora não nos tenha  sido possível quebrar juntos um cântaro. Foi por conseguinte esse Eie, que atualmente tem em si tanta virilidade quanto a que existe na teta de uma vaca,  quem trouxe a idéia de Aton lá de Heliópolis, e encheu com isso a cabeça do meu  rapaz... Não tenho a menor noção do que o meu filho cuida ver em Aton. Já em  criança foi dado a alucinações, e só me resta supor que seja louco varrido e que  seu crânio precisa ser trepanado... E Por que motivo se aflige ele tanto pelo  fato de sua mulher, a filha de Eive, lhe dar uma filha após outra, embora todos  os meus feiticeiros tenham feito o possível para modificar tal estado de  coisas?!... Por que será que o povo odeia os feiticeiros? Valem verdadeiros  tesouros, mesmo sendo pretos e usando argolas de marfim nas narinas, esticando  os beiços com  lâminas e encompridando os crânios das crianças. Bem sei que o povo os detesta,  de modo que os guardo escondido nos recessos da casa dourada. Não posso passar  sem eles, pois ninguém sabe fazer cócegas nas solas dos meus pés como eles nem  preparar poções que me possibilitam gozar a vida ainda e usufruir prazeres. Mas  se cuidas que ainda colho prazer nos braços de Eie te equivocas de todo. Chego  até a não compreender por que motivo me agarro a ele, ainda, em lugar de o  deixar cair de vez. Melhor para mim. Ora, aí está... Atualmente os meus queridos  negros são a minha única distração.

A grande Rainha-Mãe caçoou de si mesma como as lavadeiras no rio caçoam umas  das outras a respeito de bebidas e coisas; depois, continuou:

- Esses meus negros são médicos de grande valor, Sinuhe, embora o povo por  ignorância os chame de feiticeiros. Até mesmo tu aprenderias muita coisa deles.  Como és médico e não contarás a ninguém, vou te contar um segredo: lá uma vez ou  outra gozo com eles...Receitam-me isso em bem da minha saúde... mesmo porque uma  mulher da minha idade precisa se distrair um pouco. E se consinto nisso não é  com o fito de experimentar qualquer novidade, como fazem as mulheres da corte  que, por depravação, se servem de negros à maneira de prostitutas que, tendo  experimentado de tudo e não se satisfazendo nunca, resolvem afirmar que carne  podre é mais saborosa. Não é assim que eu aprecio os meus negros; tenho o sangue  ainda moço e bem rubro, não precisando de nenhum estimulante. É que para mim os  negros são um segredo que me aproxima das fontes cálidas da vida... pondo-me  mais perto do sol, da terra e dos bichos.   

Seu feitio agora era quase sombrio. Deixou de beber cerveja, pondo-se a tecer  vergas claras. Não ousando fitar seus olhos, baixei os meus para os seus dedos  escuros e velozes. E como eu permanecesse calado, ela prosseguiu:

- Nada é obtido pela bondade. A única coisa que tem significação no mundo é o  poder. Os que nascem com ele não percebem o seu valo; só o avaliam direito  aqueles que, como eu, nasceram com esterco grudado nos calcanhares. Palavra de  honra, Sinuhe; eu posso calcular o valor do poder. Fiz tudo com esse intento;  para preservá-lo para meu, filho e para o filho do meu filho, pois assim o  meu sangue se eternizará no trono dos faraós. Não titubeei diante de nada para realizar isso. Ao olhar dos deuses os meus feitos podem parecer maus, mas para  falar verdade não acho que tenha agido ilicitamente, já que os faraós pairam  acima deles. Quando tudo está dito e feito, não existem ações boas ou más. Bom é aquilo que vence, e mal é tudo quanto falha e vem a ser descoberto. Ainda assim  o meu coração estremece às vezes, e minhas entranhas quase se liquefazem quando  penso em minhas ações Não passo de uma mulher, e todas as mulheres são supersticiosas. Mas espero que a tal respeito os meus negros hão de me  socorrer... Confrange meu coração ver Nefertiti gerando uma filha após outra.    Todas as vezes tenho a impressão de haver arremessado uma pedra para trás de  mm, somente para encontrá-la depois no meu caminho como uma maldição que me  espera.

Sussurrou invocações com os lábios grossos e remexeu violentamente com os pés  no assoalho, sem que porém seus dedos parassem de dar nós nas vergas coloridas  com que formava uma esteira. E como observasse mais detidamente tais nós, meu coração se congelou. Porque os nós que ela dava eram nós de caçadores, e eu os  conhecia. Sim, eu os reconhecia. Eram muito empregados no Baixo Reino. Quando  criança eu os vira num barco de verga, carunchosa que pendia por cima do leito de minha mãe.

Ao me lembrar disto, minha língua ficou rija e meu corpo se entorpeceu. Na  noite do meu nascimento soprou um leve vento da banda do ocidente, empurrando o  bote rio abaixo e fazendo-o deter-se na praia, perto da casa de meu pai. O pensamento que fulgurou dentro de mim enquanto eu observava os dedos da Rainha-Mãe foi tão ultrajante e terrível que fiz tudo para arredá-lo de mim,  considerando que qualquer pessoa podia empregar nós de caçador na feitura de  barcos de verga. Contudo, os caçadores exercem seu mister no Baixo Reino e  nunca vi ninguém dar nós assim em Tebas. Quando garoto eu examinara muitas vezes  o bote carunchoso com seus bordos quebrados e me assombrara com os nós que o mantinham apertado, muito embora naquele tempo não desconfiasse absolutamente de  sua conexão com o meu destino.

Mas a Rainha-Mãe não chegou a perceber que eu me alterara repentinamente. Não  esperou por nenhuma resposta ao que dizia, e continuou a mergulhar em seus  pensamentos  e recordações.   

- Posso te parecer uma mulher infame e repulsiva, Sinuhe, agora que conversei  contigo com a maior franqueza. Não me julgues muito severamente por causa dos  meus atos, mas procura compreender. Não é nada fácil uma jovem caçadora penetrar  no harém do faraó onde todos a desprezam por causa da sua tez escura e dos seus  pés grandes. No harém ela é espetada por milhares de agulhas e não tem nenhum  refúgio a não ser o capricho do faraó e a beleza e a mocidade do próprio corpo.,  Podes imaginar que voltas dei à imaginação, que meios e processos empreguei para  prendera mim o coração do faraó... acostumando-o, noite após noite, às estranhas  práticas dos negros até que ele não pudesse viver mais sem as minhas carícias e  até que, através dele, eu acabasse governando o Egito!...Com tal intento desfiz  todas as intrigas na casa dourada, evitei todas as armadilhas e estraçalhei  todas as redes jogadas no meu caminho; e nem vacilei ante vinganças quando tinha  razão para isso. Calei pelo medo todas as línguas, e dirigi a casa dourada de acordo com a minha vontade...  E a minha vontade era que nenhuma mulher concebesse um filho do faraó enquanto  eu não houvesse concebido antes. Assim, nenhuma outra mulher lhe gerou um filho,  e as mulheres que nasceram as casei desde o nascimento com homens eminentes, tão  forte foi a minha vontade. Todavia não ousei ter filhos logo no começo a fim de  não me tornar feia aos seus olhos, porque no princípio meu domínio sobre  provinha do meu corpo, apenas, e eu ainda não enredara seu coração em milhares  de outros laços. Além disso, ele ia envelhecendo e os amplexos mercê dos quais  eu o dominava, o iam enfraquecendo; de modo que quando julguei propícia a  ocasião para conceber, gerei dele, para horror meu, uma filha!

Essa filha é  Baketaton, que ainda não casei; - continuou ela -  conservo-a como um arco a mais na minha aljava.  Os prudentes conservam muitos arcos em sua aljava, não confiando jamais num  único. O tempo se passou e atravessei grandes agonias de preocupação até que  concebi um filho. Trouxe-me menos alegria do que esperava, porque se trata de um  louco, razão pela qual deponho todas as esperanças e complacências num filho  delta, conquanto ainda não nascido. Tamanho é o meu poder que nenhuma mulher do  harém do faraó lhe deu ainda um filho durante todos estes anos, mas apenas  filhas. Como médico, não reconheces, Sinuhe, que esta minha arte mágica é  notável?

Tremendo, fitei-lhe os olhos e disse:

- A vossa arte é de ordem simples e repugnante, grande Rainha·Mãe: vossos  dedos a tecem em vergas coloridas para que todos a vejam.

Largou o trabalho, como se eu a tivesse queimado, e seus olhos avermelhados  pela cerveja rolaram nas órbitas, em movimento de pasmo, enquanto ela exclamava:

- Tu também és mágico, Sinuhe, ou tal caso é de ciência do povo?...

Falei-lhe:

- Tudo acaba sendo desvendado pelo povo. Embora ninguém haja testemunhado  vossas ações, todavia a noite vos viu... e o vento noturno ciciou vossas ações a  muitos ouvidos. Por mais que possais silenciar as línguas dos homens, não podeis abafar os cicios do vento noturno. Mas resta declarar que o tapete mágico que  tendes entre os dedos é sobremaneira bonito, e eu ficaria extremamente grato se  o obtivesse como presente. Conservá-lo-ia com grande empenho... Certamente com  um empenho maior do que qualquer outra pessoa a quem o désseis de presente.

Enquanto eu falava ela se tornou mais calma. Continuou a trabalhar com os  dedos; mas estes tremiam; então, bebeu mais cerveja. Quando me calei ela me  deitou um olhar manhoso e disse:

- Talvez te de esta esteira, Sinuhe, se vier a terminá-la. Trata-se de uma  esteira bonita e preciosa, pois a fiz com as minhas próprias mãos... uma esteira  real. Mas um presente atrai outro. Que é que me oferecerás, Sinuhe?

Ri e respondi, aparentando indiferença:

- Como presente de retribuição, Rainha-Mãe, vos darei a minha língua, embora  vos fique muito grato se a deixardes ficar onde se acha. Minha língua não lucra  nada em falar contra vós; por conseguinte vo-la dou.

Sussurrou qualquer coisa para si própria, dardejou-me um olhar de soslaio, e  depois disse alto:

- Por que hei de aceitar um presente que já me pertence?... Ninguém se oporia  a que eu te tirasse a língua. Poderia também te tirar as mãos para que não  escrevesses aquilo que te fosse impossível pronunciar. Ou melhor ainda: poderia levar-te para os meus subterrâneos para saudares os meus negros; de lá não  voltarias porque eles gostam de empregar seres humanos em seus sacrifícios.

Mas eu obtemperei:

- Está-se a ver que bebestes cerveja demais, Rainha-Mãe. Convém que não  continueis a beber esta noite do contrário sonhareis com hipopótamos. Minha  língua é vossa, e espero receber vossa esteira quando a acabardes.

Levantei-me para sair e ela riu à socapa como fazem as velhas quando estão  bêbadas.

- Divertes-me enormemente, Sinuhe... Divertes-me enormemente...

Deixei-a e voltei intacto para a cidade. Mérito e eu dormimos juntos. Mas eu  não era mais completamente feliz. Meus pensamentos corriam através do barco de  verga carunchoso e enegrecido que pendia antigamente por cima da cama de minha mãe. Meus pensamentos acompanhavam os dedos escuros que teciam uma esteira com  nós de caçador.    Meus pensamentos corriam atrás dos ventos que impeliam frágeis barcos  correnteza abaixo, desde as muralhas da casa dourada até à praia tebana. Eu já  não era mais feliz de todo, porque tudo que aumenta o conhecimento aumenta os dissabores. E este era um dissabor que bem poderia me ter sido poupado, já que  eu não era mais uma pessoa na flor da idade.

O pretexto oficial para a minha viagem a Tebas era uma visita à Casa da Vida.  Havia muitos anos que eu não entrava nela, embora a minha situação de cirurgião  trepanador do faraó incluísse essa obrigação. Temia também haver perdido um pouco da minha desteridade durante toda a minha estadia em Akhetaton onde não  abrira um único crânio. Assim, entrei na Casa da Vida onde dei aulas e  instruções aos alunos que tinham sido escolhidos para seguir essa especialidade.  Como já não se exigia que os estudantes se qualificassem mediante o recebimento  de ordens menores de sacerdócio para admissão à Casa da Vida; imaginava também  que os estudos científicos, livres dos laços convencionais, houvessem adiantado bastante, pois já então os alunos não eram proibidos de perguntar o "por que"  das asserções.

Mas a tal respeito fiquei profundamente desapontado. Os alunos eram chucros e  não tinham a menor vontade de abrir debates. Sua maior ambição era angariar  conhecimento apressado, ter os nomes registrados no Livro da Vida e assim poderem iniciar a clínica e arrancar dinheiro sem demora. Havia agora tão poucos  pacientes que se passaram semanas até que eu tivesse ensejo de abrir três  crânios para experimentar minha perícia. Essas operações me granjearam alta consideração. Tanto os médicos como os estudantes louvaram a firmeza e a  desteridade de que dei provas. No entanto fiquei apreensivo com a  desconfiança de que minhas mãos estavam com menos habilidade do que  anteriormente. Minha vista diminuíra tanto que quase não conseguia desvendar  doenças com a antiga facilidade e segurança, vendo-me obrigado à fazer uma  porção de perguntas e efetuar exames prolongados até conseguir chegar a  quaisquer conclusões. Por esta razão dei consultas diárias em minha casa, e  tratei doentes sem cobrar nada, com o único propósito de restabelecer minha anterior proficiência. .

Quantos aos três crânios com que tive que me haver na Casa da Vida, abri um  por compaixão, porque o homem não podia mais tolerar as dores e os sofrimentos e  se achava completamente desenganado. Os outros dois casos eram interessantes e exigiram toda a minha sagacidade técnica.

Um era um homem que um ano antes, mais ou menos, caíra do teto com a cabeça  para baixo, estando no telhado a se divertir com a mulher de um outro homem.  Caíra ao querer fugir do marido ultrajado, mas recuperara os sentidos, bem depois, sem mal aparente.

Mas após certo tempo passou a ser acometido do mal sagrado, e sofreu  sucessivos ataques que se seguiam invariavelmente a doses maiores de vinho. Não  tinha visões; apenas soltava gritos com voz furibunda, esperneava, mordia a  língua e não podia reter a urina. Acabou tendo tal pavor dos ataques que instou  para ser submetido à operação. Expus a superfície toda de seu cérebro que em  muitos lugares se achava enegrecido com sangue velho. O processo de limpeza me tomou muito tempo e não pode ser realizado direito sem certo choque. O homem não  veio a sofrer outros ataques porque morreu ao cabo do terceiro dia, como é usual  em tais circunstâncias. Não obstante isso, a operação foi considerada altamente  eficaz; elogiaram-me a forma pela qual a pratiquei, e os estudantes tomaram  cuidadosas notas de tudo quanto fiz.

O outro caso era simples. Tratava-se de um paciente jovem que os guardas  haviam encontrado estendido na rua, sem sentidos, despojado de seus bens. A  cabeça apresentava um golpe reentrante, e o jovem estava em coma. Aconteceu eu  me achar na Casa da Vida quando ele entrou carregado, e vi que havia  conveniência em operá-lo, pois os médicos se haviam recusado a atendê-lo,  convencidos de que morreria. Abri o crânio onde havia a fratura cominutiva,  tratando de o fazer o mais depressa possível. Removi as esquírolas do osso de  cima e de dentro do cérebro, e cobri o orifício com uma placa de prata  purificada. ,Ele recobrou os sentidos e ainda estava vivo quando deixei Tebas  duas semanas mais tarde, embora ainda encontrasse dificuldade em mover os braços  e não sentisse quando lhe passávamos uma pena pelas palmas das mãos e pelas  solas dos pés. Creio que com o tempo ficará bom de todo. O caso foi interessante  ainda porque, dada a urgência, eu não tivera tempo de lhe raspar a cabeça antes  da operação, e depois que lhe puxei os bordos do couro cabeludo, outra vez, por  cima da placa de prata, o cabelo continuou a crescer tapando assim inteiramente  o lugar da operação.

Por melhor que me tratassem na Casa da Vida, dispensando-me grande respeito,  os médicos mais antigos me evitavam e retiravam a confiança que tinham em mim,  porque eu era de Akhetaton, ao passo que eles eram dirigidos pelo temor ao falso  deus. Discutia com eles apenas assuntos profissionais, nunca lhes falando sobre  Aton. Não cessavam de procurar ler no meu pensamento, farejando-me como cães ao  longo de uma pista; e eu estranhava muitíssimo tal procedimento.

Por fim, depois da terceira operação craniana, certo médico de excepcional  sabedoria e proficiência, se aproximou de mim e disse:

- Sinuhe, cirurgião real! Deveis ter reparado que a Casa da Vida não tem mais  o movimento de antigamente e que a nossa ciência é bem menos procurada do que  era antes, embora haja tantos doentes em Tebas como sempre, ou mais ainda. Viajastes por muitos países, Sinuhe, e assististes a muitas curas... Ainda assim  duvido que tenhais visto curas da qualidade das que vem sendo realizadas  secretamente em Tebas. E que não requerem faca nem fogo, remédio nem curativos. Fui encarregado de comunicar-vos isso e de convidar-vos para testemunhar alguns  exemplos. Deveis prometer não falar sobre o que virdes e consentir que vossos  olhos sejam vendados durante o trajeto para o sagrado local das curas, para que assim ignoreis onde isso se passa.

Repeli seu convite  porque temia complicações com o faraó; mais fiquei com muita curiosidade.  Redargüi:

- De fato já ouvi dizer que muitas coisas estranhas estão sucedendo em Tebas.  Homens narram histórias e mulheres explicam visões... Mas, quanto a curas, ainda  não ouvi falar. Como médico, sou profundamente cético no que se refere a curas  efetuadas sem utilização de faca ou fogo, remédio ou curativos, e prefiro não me  envolver em decepções, pois não quero que o meu nome seja aproveitado em vão  para testificar coisas que não existem e que não podem ocorrer.

Ele protestou impetuosamente.

- Cuidávamos que fosseis homem sem preconceitos, real cirurgião Sinuhe, já que  viajastes tanto e que aprendestes tanta coisa que o Egito ignora. Ora, se uma  hemorragia pode ser estancada sem o uso de arames incandescentes ou de pinças,  por que motivo então não se efetuarem curas sem o emprego de facas ou de fogo? O  vosso nome não aparecerá em todo esse caso, podeis estar certo disso. É que  temos razões especiais para desejar que exatamente uma pessoa como vós veja tais  coisas e verifique pessoalmente que não se trata de embuste. Sereis a testemunha  única e imparcial, Sinuhe. Eis o que desejamos.

Suas palavras me intrigaram, aumentando minha curiosidade. Como médico, a  minha sede de conhecimentos era constante. Acabei concordando que iria.

Já noite  descida, ele passou em minha casa numa liteira, para a qual subi. Vendou meus olhos com um pano, para que eu não visse a direção que tomávamos.

Quando descemos, fui levado através de passagens acima e abaixo, subindo e  descendo uma infinidade de degraus, até ficar exausto e dizer-lhe que não  aturava mais tamanhas tolices. Acalmou-me, tirou a venda dos meus olhos e me conduziu a uma sala de pedra onde ardiam muitas lâmpadas. No pavimento jaziam três padiolas, cada uma com um doente. E eis que veio ao meu  encontro um sacerdote de cabeça raspada e reluzente de óleo. Disse meu nome e  convidou-me a examinar minuciosamente os doentes e verificar se havia  preparativos para qualquer embuste ou estratagema. Sua voz era ponderada e  afável, e o seu ademã circunspecto. Fiz como ele disse, assistido pelo cirurgião  da Casa da Vida.

Verifiquei que aquelas pessoas eram doentes autênticos que nem  se podiam erguer das padiolas. Uma era uma mulher moça mas de corpo caquético e  esgrouvinhado, quase exânime; apenas havia vida em seus olhos pretos,  assustados. A segunda pessoa era um rapaz cujo corpo estava totalmente coberto  por uma erupção medonha, além de feridas sangrentas. A terceira era um velho,  paralítico das pernas, incapacitado de andar; ó mal era somático: enfiei-lhe  alfinetes, não sentiu a menor dor. Ao fim de tais exames, disse ao sacerdote:

- Examinei estes doentes com o maior cuidado. Se fosse o médico encarregado  destes casos, restringia- me a remete-los para a Casa da Vida. A mulher e o velho dificilmente virão a  ficar bons. Já o rapaz, porém, ficaria aliviado um pouco com banhos sulfurosos  diários.

O sacerdote sorriu e rogou que nos sentássemos em bancos dispostos ao fundo da  sala, na semi-obscuridade, e que tivéssemos um pouco de paciência. A seguir  mandou que escravos levantassem as padiolas com os doentes e as dispusessem em  cima do altar. Isto feito, ele acendeu  um incenso abrasador: De um corredor veio a nós o som de cânticos, e entrou um grupo de sacerdotes entoando hinos a Ammon. Colocaram-se em redor  dos doentes, e principiaram a rezar, a saltar e a gritar. E o fizeram até o suor  lhes banhar os semblantes; despojados das estolas, sacudiam sinos e feriam os  bustos com pedras cortantes.

Eu vira ritos similares na Síria, lá e aqui contemplando seus transportes com  o olhar frio de médico. Os brados aumentavam, punhos cerrados esmurravam as  paredes da sala. E eis que a parede se abriu e a imagem sagrada de Ammon fulgurou por sobre eles ao clarão das lâmpadas. Instantaneamente os sacerdotes  ficaram calados, seu silencio se seguindo à celeuma com um poder estupendo.

A efígie de Ammon reluzia sobre nós, lá do seu recesso escuro, fulgindo com  deslumbramento celestial.

De repente o sumo-sacerdote se encaminhou para os doentes, chamou-os pelos  nomes e disse bem alto:

- Erguei-vos e andai; pois o grande Ammon vos abençoou por causa da fé que  depositastes nele!

E vi com meus olhos as três pessoas doentes se erguerem das padiolas, meio  vacilantes, com os olhos postos na imagem de Ammon. Tremendo, se ajoelharam,  depois e levantaram, palpando o corpo, como se não acreditassem; até que  romperam em pranto e em bênçãos ao nome de Ammon. As paredes de pedra fecharam- se; os sacerdotes foram embora, enquanto os escravos removiam as caçoilas de  incenso e acendiam uma porção de lâmpadas bem claras para que examinássemos os doentes uma segunda vez. Agora a mulher ainda moça podia se mover e caminhar; de  fato, apoiada, deu alguns passos. O velho pode andar sozinho; e a erupção sumiu  da pele do rapaz, cujo corpo se apresentava limpo e tenro. Tudo isso ocorreu  dentro do lapso de poucas medidas do relógio de água. Jamais acreditaria se não  houvesse visto com os meus próprios olhos.

O sacerdote que nos recebera antes voltou, com um sorriso triunfante, e disse:

- Que dizeis agora, real cirurgião Sinuhe?

Olhei-o sem temor nos olhos e  respondi:

- Percebo que a mulher e o velho estavam sob o efeito de qualquer ação  tenebrosa que anulava suas vontades, e a magia se trata com a magia, caso a  vontade do mágico seja maior do que a do enfeitiçado. Mas uma erupção cutânea é uma erupção, não podendo ser curada por feitiçarias e sim por meses e meses de  tratamento e de banhos medicinais. Por conseguinte, devo confessar que nunca vi  nada comparável ao que assisti.

Seu olhar fulgurante não me largava enquanto indagava:

- Reconheceis então,  Sinuhe, que Ammon ainda é o rei de todos os deuses?

Atalhei logo:

- Gostaria que não pronunciásseis alto o nome do falso deus, porque isso foi  proibido pelo faraó, de quem sou servo.

Percebi que se irritou com as minhas  palavras; todavia era um sacerdote da mais alta categoria, e a sua vontade conquistou meu coração. Dominando seus sentimentos, disse, sorrindo:

- Meu nome é Hrihor. Podeis denunciar-me aos guardas, citando meu nome. Mas eu não temo os guardas do falso faraó, nem o seu azorrague e muito menos  as suas minas. Curo todos quantos me procuram em nome de Ammon. Não alterquemos  por causa de tais fatos; preferível é que conversemos como homens cultos. Permiti que vos convide a entrar para a minha cela onde tomaremos um pouco de  vinho. Decerto estais cansado, pois estivestes sentado em bancos duros durante  muitas medidas do relógio de água.

Levou-me ao longo de corredores de pedra para a sua cela. Percebi pela mudança  da pressão atmosférica que nos achávamos em sítio subterrâneo, deduzindo que ali  fossem as abóbadas de Ammon, das quais corriam tantas lendas mas que nenhum  leigo ainda conseguira ver. Hrihor despediu-se do médico da Casa da Vida, e  apenas nós dois entramos na cela, um aposento onde não faltava nenhum conforto  para satisfazer o coração de um homem. Seu leito estava sob um dossel, suas  arcas e cofres eram de ébano e marfim, suas almofadas pareciam macias e o  aposento todo se achava impregnado com o odor de especiarias raras. Cortesmente  derramou água perfumada nas minhas mãos, depois pediu que eu me sentasse e me ofereceu bolos de mel, frutas e um generoso vinho muito encorpado, dos vinhedos  de Ammon, condimentado com mirra.

Bebemos juntos, ele disse:

- Sinuhe, nós vos conhecemos; temos seguido vossos passos e estamos cientes de  que dedicais grande estima ao falso faraó e também que o seu falso deus vos é  menos estranho do que seria de desejar. Posso afirmar-vos, todavia, que nesse deus não se acha compreendido nada que já não exista em Ammon. O ódio e a  perseguição do faraó não fizeram mais do que purificar Ammon e torná-lo mais  forte do que antes. No entanto não quero aludir a questões divinas, querendo  apenas apelar para um homem que tem curado doentes sem exigir donativos e para  um egípcio que ama as Terras Negras bem mais do que as Terras Vermelhas. O faraó  Akhnaton é a desgraça dos pobres e a ruína do Egito e precisa ser derrubado  antes que o mal que engendrou fique tão grande que se torne irremissível mesmo  com derramamento de sangue.

Bebi uns goles de vinho e falei:

- Já estou saturado de deuses; não me incomodo mais com eles. Mas o deus do  faraó Akhnaton é diferente de quaisquer outros já existentes. Não se corporifica  em nenhuma imagem, e todos os homens são iguais perante ele. Todos, sejam pobres, escravos e até mesmo estrangeiros, tem o mesmo valor à sua face. Acho que um período, um ciclo se rematou; e que um outro, novo, vai começar:  Em tais ocasiões acontecem até mesmo as coisas mais incríveis e desarrazoadas.  Jamais, em tempo algum, ocorreu oportunidade igual para a renovação do mundo e a confraternização de todos os homens.

Hrihor ergueu a mão em sinal de protesto, sorrindo, e observou:

- Vejo que tendes alucinações, Sinuhe, embora cuidasse que fosseis um homem  sensato. Meu intento é menos ambicioso. Desejo apenas que tudo volte a ser como  era antes, que os pobres reconheçam sua condição e que as leis sejam cumpridas. Desejo apenas que se deixe que cada homem siga a profissão e a crença que quiser  escolher. Desejo que haja distinção entre o amo e o escravo, entre o servo e o  patrão; que volva e prossiga a supremacia do Egito como uma nação honrada, cujos  filhos nasçam conforme sua casta e a continuem até ao fim da existência, sem que  desassossegos vãos corroam a alma humana. Desejo todas estas coisas... Logo,  Akhnaton tem que cair.

Tocou no meu braço, instando, inclinou-se para a frente e prosseguiu:

- Sinuhe, sois um homem de paz e moderação, e não quereis mal a ninguém.  Vivemos numa época em que cada qual tem que optar. Quem não é por nós é contra  nós, e deve sofrer um dia por causa disso. Acaso sereis tão parvo que cuideis  que o faraó governe ilimitadamente? A mim me é de todo indiferente a qual deus  servis; Ammon sobreviverá sem necessitar de vossa crença. Mas está em vosso  poder, Sinuhe, remover do Egito a desgraça que o corrói. Está em vossas mãos  restaurar a antiga majestade do Egito.   

Suas palavras perturbaram-me. Bebi mais uns goles de vinho, e a minha boca e  as minhas narinas se encheram com o rico odor da mirra. Disse-lhe então, com uma  risada forçada:

- Deveis ter sido mordido por um cão danado ou  por um escorpião, para assim falardes sem  propósito no suposto poder de qualquer espécie que eu absolutamente não  tenho...Pois se não posso sequer curar doentes tão acertadamente quanto vós...

Ergueu-se, dizendo:

- Vou mostrar-vos uma coisa.

Tomando uma lâmpada, levou-me para o corredor onde abriu uma porta fechada por  muitos ferrolhos. Ergueu a lâmpada e iluminou uma cela que refulgia cheia de  ouro, prata e pedras preciosas, dizendo:

- Não tenhais medo. Não vou tentar-vos com ouro. Não sou assim tão ingênuo.  Mas bom será que vejais que Ammon ainda é mais rico do que o faraó. Vou agora  mostrar-vos alguma coisa mais.

Abrindo outra porta de cobre maciço, clareou uma célula onde, em cima de uma  prateleira de pedra, jazia uma imagem de cera coroada com a coroa dupla e cujos  peitos e têmporas estavam traspassados por pregos agudos de ossos.

Involuntariamente ergui as mãos e recitei as orações que protegem contra as  feitiçarias e que aprendera ao tempo da minha iniciação como sacerdote de ordens  menores. Hrihor olhou-me com um sorriso, e a lâmpada, não tremia em sua mão.

- Acreditais agora que os dias do faraó estão contados para breve? Lançamos  feitiço sobre a sua imagem, em nome de Ammon, e traspassamos sua cabeça e seu  coração com os cravos sagrados. Todavia o efeito da feitiçaria é vagaroso, e muitos males sucederão ainda. Além disso, o deus dele o deve proteger um pouco  contra a nossa magia. Agora que já vos mostrei isso, quero dizer-vos mais  algumas coisas.

Aferrolhou novamente as portas, com cuidado, e me levou outra vez para o seu  quarto onde tornou a encher de vinho a minha taça. O vinho molhou o meu queixo e  a borda da taça batia de encontro aos meus dentes, porque eu me lembrava que vira com meus próprios olhos a maior de todas as feitiçarias, aquela a que  ninguém até então conseguira, resistir. E Hrihor disse:

- Pelo que presenciastes podeis deduzir que o poder de Ammon se estende até  por cima de Akhetaton. Não me pergunteis como foi que adquirimos cabelos da  cabeça do faraó e lascas das suas unhas para inclusão em cera.  Apenas vos direi que não os compramos com ouro e sim que os recebemos sem  despesas em nome de Ammon.

Encarando-me por entre as pálpebras quase cerradas e medindo com cuidado as  palavras, continuou:

- O poder de Ammon aumenta diariamente, conforme pudestes ver quando curei os  doentes em nome dele. A sua maldição sobre o Egito se torna cada dia mais  terrível; quanto mais tempo o faraó viver, tanto mais sofrerá o povo por tal motivo... Sim, pois a feitiçaria age vagarosamente... Que diríeis, Sinuhe, se eu  vos desse um remédio para curar as enxaquecas do faraó de modo a ele nunca mais  sofrer dores?...

Respondi:

- Os homens estão sempre sujeitos a dores. Somente os mortos não as sentem  mais.

Seus olhos em brasa fixavam-me e a sua vontade me aferrolhava à cadeira. Não  consegui sequer erguer a cabeça quando ele disse:

- Lá isso é verdade. Mas o meu remédio não deixa vestígios. Ninguém vos  denunciará, e nem mesmo os embalsamadores encontrarão algo a mais nas entranhas  do faraó. Não vos imiscuireis em nada; apenas dareis ao faraó uma poção que lhe alivie a enxaqueca. Quando a tomar cairá em sono profundo e nunca mais sofrerá  dores ou incômodos.

Ergueu a mão para que eu não falasse, e prosseguiu:

- Não o quero peitar com ouro; mas se anuirdes em fazer isso vosso nome será  abençoado por toda a eternidade, vosso corpo jamais será destruído, eternizando- se. Mãos invisíveis vos protegerão pelo resto de vossos dias, e não tereis um único desejo humano que não seja realizado instantaneamente. Isso vos prometo  com a autoridade que tenho para o fazer.

Levantou as mãos. Seus olhos em brasa fixavam-me e eu não podia evitar aquela  fixidez! Não podia mexer o corpo, levantar-me, mover ao menos as mãos. E o  sacerdote disse:

- Se eu vos disser: "Levantai-vos!", vós vos levantareis. Se eu disser:  "Erguei as mãos!", vós as erguereis. Mas não vos quero compelir a uma profunda  reverencia diante de Ammon e nem vos induzir, contra a vontade, a qualquer ação  a que a vossa alma se oponha. Isso limita o meu poder sobre vós. Conjuro-vos,  Sinuhe pelo bem do Egito! Ministrai-lhe este remédio, curai-o das enxaquecas,  para sempre.

Deixou cair as mãos. Fiquei de novo com os movimentos livres, ergui aos lábios a  taça de vinho, e minhas mãos não tremiam mais. Respirei, sorvendo a fragrância  da mirra, e disse:

- Hrihor, não prometo nada. Dai-me, porém, a droga. Dai-me esse remédio  misericordioso, pois talvez seja melhor do que suco de papoulas, e pode chegar  um tempo em que o próprio faraó queira dormir para não mais acordar.

Deu-me a poção num frasco de cristal colorido e declarou:

- O futuro do Egito jaz em vossas mãos, Sinuhe. Não é lícito que mão alguma se  levante contra o faraó, mas tão amarga é a miséria entre o povo que pode chegar  um dia em que ele, o povo, se lembre de que o faraó é um ser mortal. e que uma faca pode esvazia-lo de sangue. Ora, isso não convém, absolutamente, porque  destruiria a autoridade dos faraós. A sorte do Egito se acha em vossas mãos,  Sinuhe.

Fechei o frasco dentro do meu cinturão e disse com ar zombeteiro:

- Desde o dia do meu nascimento que a sorte do Egito  se acha em certos dedos escuros que tecem esteiras dando nós em vergas. Há coisas que ignorais, Hrihor, embora vos cuideis onisciente. Levo comigo o  remédio, mas lembrai-vos que não prometo nada.

Ele sorriu, ergueu as mãos, despedindo-se, e disse, de acordo com o costume:

- Grande será a vossa recompensa.

Acompanhou-me depois ao longo dos corredores, sem me vendar os olhos. Os dele  penetravam no coração dos homens. O sacerdote tinha certeza de que eu não o  atraiçoaria. Posso afirmar que os subterrâneos de Ammon jazem por baixo do grande templo; mas não divulgarei de que modo se penetra neles, porque o segredo  não é meu.

Alguns dias depois ocorreu a morte de Taia, a Rainha- Mãe. Morreu da mordedura  de uma áspide enquanto  estendia redes no jardim do palácio para apanhar passarinhos. Seu médico  particular estava ausente, como acontece sempre com os médicos quando mais  necessidade se tem deles; então mandaram-me chamar. Mas quando cheguei à casa  dourada mais que pude fazer foi certificar o óbito. Ninguém poderia me censurar  porque a dentada de uma áspide sempre é fatal a não ser que a ferida seja  esvaziada antes do pulso bater cem vezes e as veias em cima sejam ligadas. O  costume exigia que eu ficasse na casa dourada até à hora do corpo ser  transferido para a Casa da Morte. Foi assim que encontrei o taciturno sacerdote,  Eie, ao lado do féretro.    Ele tocou as faces inchadas da Rainha-Mãe e disse:

- Já era tempo que morresse. Era uma mulher repulsiva, que fazia intrigas  contra mim. Seus próprios atos a condenaram. Espero, agora que ela morreu, que  desapareça a intranqüilidade entre o povo. Não creio que Eie a tenha assassinado, pois dificilmente ousaria fazer isso. Crimes conjuntos e segredos em  comum formam laços mais poderosos do que os do amor.

A notícia da morte se espalhou através de Tebas.Os cidadãos vestiram os  melhores trajes e se reuniram alegremente nas ruas e praças .Para lhes ganhar as  simpatias, Eie ordenou que os feiticeiros negros da rainha Taia fossem enxotados  a chicote para fora dos porões da casa dourada. Eram quatro; havia também uma  feiticeira balofa e hedionda como um hipopótamo.

Os guardas soltaram-nos na rua pela Porta dos Papiros, onde a multidão se  jogou sobre eles e os estraçalhou. De nada lhes valeu a sua enorme feitiçaria.  Eie mandou queimar o material todo existente onde eles moravam, as drogas, as cascas sagradas das árvores das florestas, e tudo o mais; senti muito, porque  bem gostaria de examinar essas coisas.

Ninguém no palácio lamentou a morte da rainha ou ,a sorte dos feiticeiros.  Apenas a princesa Baketaton se aproximou do corpo materno e ao depor as mãos tão  bonitas em cima das mãos escuras da morta, disse:

- Teu marido fez mal, mãe, em deixar o povo estraçalhar os teus feiticeiros  negros.

Voltando-se para mim, disse, depois:

- Esses feiticeiros não eram ruins, absolutamente; moravam aqui a contragosto.  Tinham uma vontade de voltar para as suas selvas e as suas cubatas. Não deviam  ser punidos pelos atos de minha mãe.

Foi desta forma que ocorreu o meu encontro com a princesa Baketaton. Conversou  comigo, e fiquei impressionado com o seu ademã majestoso e a sua linda cabeça.  Perguntou-me por Horemheb a quem se referiu com ar desdenhoso.

- É de baixa extração, sua fala é grosseira, mas se casar poderá gerar uma  grande raça. Podes dizer-me, Sinuhe, por que motivo ele ainda não fez isso?...

Respondi-lhe:

- Não sois a primeira pessoa a me fazer tal pergunta, infanta Baketaton, e em  consideração à vossa beleza vou contar-vos o que nunca ousei contar a ninguém.  Quando rapazola, aconteceu Horemheb vir a palácio onde por acaso viu a lua. Desde então não pode mais olhar para nenhuma mulher razão pela qual não se casou. E vós, afinal, Baketaton?!  Árvore nenhuma pode florescer eternamente; tem que frutificar, também. Como  médico, rejubilaria em ver vosso ventre proeminar, concebendo.

Agitou a mão, orgulhosamente, e disse:

- Sabes muito bem, Sinuhe, que meu sangue é sagrado demais para ser misturado  mesmo com o sangue mais puro do Egito. Melhor teria feito meu irmão tomando-me  como esposa, de acordo com a tradição; e eu lhe teria sem dúvida, desde muito, gerado um filho. Dispusesse eu de poder, mandaria arrancar os olhos de Horemheb,  tão degradante é pensar que ele ousou ergue-los para a lua. Francamente, Sinuhe,  a só lembrança dos homens me repugna, pois o contacto deles é rude e, seus membros hirtos contundem uma frágil mulher. Creio que o prazer que proporcionam é grandemente exagerado.

Mas seus olhos começaram a faiscar de excitação; e resfolegava enquanto  falava. Percebendo que tal assunto lhe incutia intenso prazer, disse:

- Tenho visto meu amigo Horemheb arrebentar no braço uma argola forte de cobre  apenas contraindo os músculos. Tem braços e pernas compridos e bem feitos; seu  peito ressoa como um tambor quando os fere com os punhos, zangado. As damas da  corte o perseguem como gatas, e ele pode fazer o que quiser com qualquer delas.

A princesa Baketaton olhou-me. Seus lábios pintados se contraíram e seus olhos  faiscaram, quando exclamou, tomada de fúria:

- Sinuhe, tuas palavras me causam efeito sobremaneira repugnante e desconheço  por que motivos insistes em te referir a esse Horemheb. Nasceu com esterco nos  calcanhares, e o seu simples nome me revolta. Por que ousas falar assim na presença dos mortos?

Não me dei ao trabalho de lhe lembrar quem primeiro guiara a conversa para  Horemheb. Fingi arrependimento e disse:

- Oh! Baketaton, permanecei assim, qual árvore em flor, pois vosso corpo  jamais sairá da mocidade e florescerá por muitos anos, ainda. Vossa mãe não  determinou que camareiras carpissem junto de seu corpo até que a Casa da Morte mandasse buscá-lo? Eu próprio a choraria, mas é que sou médico e desde muito  minhas lágrimas já secaram ante a continua presença da morte. A vida é um dia de  claridade, e a morte, talvez, uma noite gélida. A vida é uma enseada rasa, Baketaton, e a morte a clara água profunda.

Redargüiu:

- Não fales sobre a morte, Sinuhe, pois ainda considero doce a  vida. Uma vergonha que não haja ninguém para lamentar e carpir a morte de minha  mãe.  Não posso chorar, porque isso não condiz com a minha dignidade, mas vou mandar  alguma dama da corte para chorar junto contigo, Sinuhe.

Gracejei com ela:

- Divina Baketaton, vossa beleza me deslumbrou e vossa voz nutriu de azeite a  minha lâmpada. Mandai-me uma velha megera para que eu não seja tentado a seduzi- la, comprometendo assim uma casa enlutada.

Meneou a cabeça, como resposta.

- Sinuhe! Sinuhe! És assim desavergonhado? Se não respeitas os deuses, o que  te é consentido, com responsabilidade e tudo, ao menos mostra respeito para com  a morte.

Sendo mulher, não se escandalizou com as minhas palavras; e saiu para arranjar  uma dama da corte que chorasse perto do féretro até que chegassem os serventes  da Casa da Morte.

Minha conversa ímpia tivera fundamentos, e agora eu esperava impacientemente a  chegada de uma carpideira. Esta veio, e era mais velha e mais feia do que eu  ousara esperar. As outras mulheres do falecido esposo de Taia ainda viviam no harém, assim como as mulheres do faraó Akhnaton com as amas de leite e as  camareiras.

A velha que veio chamava-se Mehunefer, e sua cara mostrava quanto gostava de  homens e de vinho. Conforme sua obrigação exigia, começou a chorar, a soluçar e  a arrancar os cabelos diante da rainha morta.

Fui buscar vinho e depois que ela carpiu durante algum tempo, consentiu e  concordou em prová-lo e tomá-lo. Com minha autoridade de médico lhe assegurei  que isso lhe daria forças durante aquele seu grande desgosto. Depois comecei a assediá-la e a louvar sua antiga beleza. Falei também de crianças e das  filhinhas do faraó Akhnaton. Depois de tudo isso, com fingida simplicidade, perguntei:

- É verdade que a Rainha-Mãe foi a única das mulheres do imortal faraó a lhe  gerar um filho?

Mehunefer deitou um terrível olhar para a morta e sacudiu a cabeça para que eu  me calasse. Voltei à carga com palavras bonitas e desvanecedoras, gabei-lhe os  cabelos, as roupas e as jóias, bem como os olhos e os lábios. Acabou esquecendo  o pranto, fitou-me, fascinada.

Uma mulher aceitará sempre um tal diálogo, por mais que saiba que se baseia em  falsos enunciados. Quanto mais velha e feia for, mais se aplicará em mante-lo,  porque seu desejo é acreditar na mentira. Assim, nos tornamos bons amigos.

Quando os serventes da Casa da Morte vieram e transportaram o corpo, ela me  convidou a ir aos seus aposentos, tratou-me com muita solicitude, ofereceu-me  mais vinho, servindo-se também. Pouco a pouco a sua língua se foi soltando.

Acariciava meu rosto, chamava-me de lindo mancebo, contava-me uma porção de  intrigas e boatos da corte, de ordem obscena, para me inflamar.

Fungava junto a meus ouvidos e ombros; mas a detive com as mãos e perguntei:

- A grande rainha Taia, era muito hábil em amarrar vergas, não era? Não formava com elas pequenos barcos soltando-os rio abaixo durante a noite?

Estas minha palavras a espantaram. Perguntou como era que eu sabia disso. Mas  o vinho já alterara seu raciocínio, de modo que, desejosa de me desvendar seus  conhecimentos, disse:

- Sei mais do que tu! Sei que pelo menos meninos recém-nascidos foram levados  correnteza abaixo, como os filhos dos pobres miseráveis. Antes do aparecimento  de Eie a bruxa velha temia aos deuses e não tinha coragem de sujar as mãos com sangue. Foi Eie quem á ensinou a ministrar veneno. Foi por isso que a princesa  Tadukhipa, de Mitani, morreu enquanto chorava e chamava pelo filho querendo  fugir do palácio para procurá-lo.

- Ó bela Mehunefer! - disse eu, acariciando-lhe as pesadas bochechas pintadas. -  Abusas da minha mocidade e inexperiência e me atulhas de histórias que são pura  invenção. A princesa de Mitani não deu à luz nenhum filho. Achas que deu? Então  quando ocorreu o nascimento?

- Moço?... Inexperiente? Tu, Sinuhe, o médico? Ora, ora!... - disse ela por  entre um riso sufocado. - Pelo contrário. Tens as mãos ágeis e falsas... E o que  tens mais falso de tudo é a língua que cospe mentiras descabeladas na minha cara. Mas essas mentiras são agradáveis aos ouvidos de uma velha; de modo que  tenho que acabar mesmo falando da princesa de Mitani, que deveria se tornar a  consorte real. Fica sabendo, inicialmente, que a princesa Tadukhipa não passava  de uma menina quando chegou ao harém do faraó Amenhotep. Brincava com bonecas e  cresceu na casa das mulheres como a outra princesinha que era casada com  Akhnaton e que morreu também. O faraó Amenhotep não a possuiu, amava-a como uma  filha, brincava com ela e lhe dava brinquedos de ouro. Mas Tadukhipa entrou na  puberdade aos quatorze anos, tendo os membros muito delicados e esguios, a pele  acinzentada, bonita como a pele de todas as mulheres mitanianas; e havia um  olhar distante em seus olhos negros. Então o faraó cumpriu o seu dever para com  ela, conforme já cumprira alegremente com outras mulheres a despeito das  intrigas de Taia. Sim, pois em tais assuntos um homem é difícil de ser contido  enquanto as raízes da sua árvore não secam. Começou portanto uma semente a se  desenvolver em Tadukhipa e, daí a pouco, outra em Taia, também, que ficou  radiante porque já dera ao faraó uma filha - que vem a ser essa emproada Baketaton.

Molhou a língua com vinho e continuou garrulamente:

- É notório que a semente que cresceu em Taia provinha Heliópolis... Mas não  convém falar nisso, agora. Sofreu muita angústias durante o período de gravidez  de Tadukhipa e procurou por todos os modos um mau sucesso, conforme já fizera com muitas outras mulheres do harém, servindo-se para isso da feitiçaria dos  seus negros. Nos últimos anos deitara rio abaixo dois meninos recém-nascidos.  Aliás, fatos de menor importância porque se tratava dos filhos de duas mulheres que tinham muito medo de Taia que lhes deu muitos presentes e as aconselhou a  arranjarem meninas em lugar de meninos. Mas a princesa de Mitani era uma rival  bem mais perigosa, pois tinha sangue real, possuía amigos poderosos, e esperava se tornar a consorte real em lugar de Taia, para tanto bastando dar à luz um  menino. Pois bem: tamanha era a influencia de Taia e tão firmemente se dispôs a  lutar à medida que a semente amadurecia dentro dela, que ninguém ousava contrariá-la. Além disso Eie, que ela trouxera consigo lá de Heliópolis,  permanecia a seu lado. Quando chegou a hora da princesa dar à luz, suas amigas  foram mandadas embora e os feiticeiros negros a rodearam a fim de "lhe aliviar  as dores", conforme foi explicado. Quando ela, depois, pediu para ver a criança,  mostraram-lhe uma menina natimorta. Mas Tadukhipa não acreditou no que Taia lhe  disse, e eu, Mehunefer, sei que a criança que ela deu à luz foi um menino robusto que durante a mesma noite foi lançado rio abaixo num barco de verga.

Ri alto e perguntei:

- Como é que logo tu, no meio de tanta gente, sabias disso, linda Mehunefer?

Inflamou-se, a taça tremeu-lhe nos beiços molhando-lhe o queixo.

- Ora essa! Todos os deuses me sejam testemunhas! Pois se fui eu quem apanhou,  quem colheu a verga, com estas mãos, visto como Taia relutava em entrar no rio  com a criança no colo!

Assombrado com tais palavras, dei um salto, esvaziei a taça no chão, esfreguei  com o pé o vinho derramado no tapete de verga; tudo isso para mostrar o meu  horror.

Mehunefer segurou minhas mãos, puxou-me de novo para junto dela, e declarou:

- Não sei como fui contar isto, Sinuhe! Arrependo-me sumamente, pois sei que  com isto me prejudiquei. Mas a verdade é que tua presença atua em mim  irresistivelmente, de forma que meu coração não guarda segredos. Confesso-te que  eu própria cortei as vergas e que Taia fez um barquinho com elas, pois não podia  encarregar de coisa tão secreta as criadas. Já comigo a coisa era diferente: estávamos ligadas por efeito de feitiçaria e  por meus próprios atos, também. Entrei nas águas, cortei as vergas que ela teceu  e amarrou com nós, em plena escuridão, rindo sozinha e proferindo obscenidades,  radiante por assim haver vencido a princesa de Mítani. Meu coração se aliviava  ante o pensamento de que alguém decerto encontraria a criança. Mas, no íntimo,  sabia que isso era impossível...As criancinhas que descem rio abaixo ou perecem  ao calor do sol ou são agarradas pelos crocodilos ou pelas aves de rapina. Mas  não conseguiram calar a princesa de Mitani. A cor da tez da criança morta  diferia da sua. Não acreditou que houvesse dado à luz aquela criança. As  mulheres de Mìtani tem uma pele macia como a casca de uma fruta, com a cor da  fumaça ou da cinza pálida; e suas cabeças são pequenas e bonitas. Começou a  chorar e a lamentar-se, arrancou os cabelos, descompôs Taia e os feiticeiros,  até que Taía mandou que lhe dessem um narcótico, fazendo constar que Tadukhipa  perdera a razão porque sua filha nascera morta. Como sucede a todos os homens, o  faraó deu mais crédito a Taia do que a Tadukhipa. Daí por diante Tadukhipa  começou a definhar até que acabou morrendo.    Antes de morrer tentou por diversas vezes fugir da casa dourada para procurar  o filho. Mas já então isso ainda serviu mais para generalizar a asserção de que  sua razão se achava transtornada.

Olhei para minhas mãos; eram pálidas, comparadas com as mãos de macaca de  Mehunefer. A tez tinha a coloração da fumaça. Tão intensa foi a minha agitação  que com voz estrangulada perguntei:

- Linda Mehunefer, podes me dizer quando foi que tal caso aconteceu?

Ela acariciou minha nuca com os dedos escuros e disse com voz ronronante:

- Oh! Inefável mancebo! Por que perdes preciosos momentos com essas coisas  arcaicas, quando poderias empregar muito melhor teu radioso tempo! Mas como não  te posso recusar nada, digo-te que isso aconteceu quando o faraó completou vinte e dois anos de reinado, no outono, quando as águas estavam na cheia. E caso te  espantes da segurança da minha resposta, já te esclareço o motivo: é que o faraó  Akhnaton nasceu naquele mesmo ano, porém na primavera seguintes, na estação das semeaduras. Eis por que me lembro tão bem.

Ante suas palavras me arrepiei de horror e não pude fazer nenhum movimento de  defesa ao sentir seus lábios molhados de vinho se colarem em minha face.

Abraçou-me, apertou-me de encontro ao seu corpo, chamando-me de seu touro novo  e de seu pombo. Procurei entrete-la, apesar dos meus pensamentos se acharem em  alvoroço; todo o meu ser se revoltava contra tão terrível conhecimento. Se o que  ela disse era verdade, então o sangue do grande faraó corria em minhas veias. Eu  era meio irmão do faraó Akhnaton e podia ter sido faraó antes dele se o  estratagema de Taia não houvesse vencido o amor de minha falecida mãe. A seguir Mehunefer se tornou abominável e me vi obrigado a derramar sumo de papoula em  seu vinho para que ela dormisse e eu escapasse da sua presença.

Quando por fim deixei seu quarto no harém, a noite já havia caído, e os  guardas do palácio, mais os criados, apontavam para mim e davam risadas. Acho  que era porque eu cambaleava para todos os lados e estava com a roupa manchada de bebida. Mérito aguardava-me em minha casa, estando preocupada com a minha  demora e querendo saber pormenores da morte da Rainha-Mãe. Ao me ver, pos as  mãos na boca; e Muti fez o mesmo; e ambas se entreolharam. Por fim Muti disse a Mérito com voz amarga:

- Já não tenho dito milhares de vezes que os homens são todos iguais, e que  não se pode confiar neles?

Mas eu me sentia perdido, desejava estar a sós com os meus pensamentos e lhes  disse, zangado:

- Tive um dia trabalhoso e não aturo vossas tagarelices...

Então os olhos de  Mérito lampejaram e sua face se sombreou de raiva. Erguendo um espelho de prata  diante da minha cara, ordenou:

- Olhai para vosso rosto, Sinuhe! Nunca proibi que deitásseis com outras  mulheres, mas sempre julguei que me escondêsseis as provas para não ferir meu  coração. Nem podeis aduzir, em defesa vossa, que quando deixastes a casa, hoje,  estivéreis, antes, sozinho e abandonado...

Olhei para o meu rosto e fiquei profundamente desapontado conservava as marcas  dos ósculos dos beiços pintados de Mehunefer. Sim, seus beiços tinham deixado  manchas rubras em minhas faces, em minhas têmporas e em meu pescoço. Eu parecia  uma vitima de praga. Envergonhado, fui depressa lavar a cara enquanto Mérito  impiedosamente mantinha erguido diante de mim o espelho. Depois que lavei meu rosto com azeite, disse, com ar compungido:

- Deduziste erroneamente, caríssima Mérito. Deixa que te explique.

Ela olhou-me friamente:

- Não há necessidade de explicações, Sinuhe, e não quero que, por minha causa,  sujeis vossa boca com mentiras.  Vossa cara não admite equívocos...

Tive trabalheira enorme para acalmá-la. Muti rompeu em pranto, com pena de  Mérito. Cobrindo o rosto, retirou-se para a cozinha, cuspindo seu desprezo pelos  homens em geral. Tive mais dificuldade em pacificar Mérito do que tivera para livrar-me de Mehunefer. Por fim amaldiçoei todas as mulheres e disse:

- Mérito, conheces-me melhor do que ninguém e, por conseguinte, estás em  condições de confiar em mim. Acredita que, se dependesse de mim, eu poderia  explicar o fato com satisfação total para ti; mas se trata de um segredo ligado  à casa real. Em consideração a ti mesma melhor será que o ignores.

Foi com língua mais comprida do que a de uma áspide que ela retorquiu:

- Pensei que vos conhecia, Sinuhe; mas parece que há abismos em vosso coração,  dos quais nunca suspeitei. Fazeis bem em proteger a honra da mulher. Longe estou  eu de querer soiapar vosso segredo. Tendes inteira liberdade de vida, e agradeço  a todos os deuses haver eu tido o senso de preservar a minha liberdade  recusando-me a quebrar um cântaro convosco... se é que vossa proposta de  então não foi fingida... Ah! Sinuhe, quão tola fui em acreditar em vossas palavras falazes... as mesmas que estivestes balbuciando esta noite toda a uns  lindos ouvidos... Ah! Por que é que não morro!?...

Quis acariciá-la mansamente. Empurrou-me.

- Tirai vossas mãos daí, Sinuhe! Deveis estar cansado de haver rolado em  almofadas macias lá no palácio. Não tenho dúvida de que sejam mais macias do que  a minha esteira, e que acolá achareis companheiras mais jovens e mais bonitas do que eu.

E assim continuou transpassando o meu coração com ferimentos pequenos acerbos,  a ponto de eu cuidar que ia enlouquecer. Só depois disso foi que me deixou,  proibindo-me mesmo de acompanhá-la até a O Rabo do Crocodilo. Eu teria sofrido  mais agudamente ainda com a sua partida se os meus pensamentos não se  encapelassem dentro de mim como oceanos tempestuosos e se eu não ansiasse por me  ver a sós com eles. Deixei-a ir; pareceu-me que ficou perplexa por eu não fazer  nenhum protesto.

Permaneci acordado a noite inteira, e com o decorrer das horas os meus  pensamentos se foram clareando e libertando das névoas do vinho; e meus membros  tremiam de algidez porque não se achava ninguém comigo para aquece-los.

Escutava o ruído igual do relógio de água esta não cessava de fluir, e o tempo  - passando, desmedido, a ponto de eu me distanciar até mesmo de mim próprio.  Disse ao meu coração:    "Eu, Sinuhe, sou o que os meus atos pessoais me tornaram como indivíduo. Nada  mais possui qualquer significação. Eu, Sinuhe, levei meus supostos pais a uma  morte prematura por causa de uma mulher cruel. Eu, Sinuhe, guardo ainda comigo a fita de prata dos cabelos de Minéia, minha irmã. Eu, Sinuhe, vi um monstro  marinho flutuando nas águas, e a cabeça da minha amada deslizar enquanto  caranguejos dilaceravam sua carne. que importância tem o meu sangue? Tudo já se  achava escrito nas estrelas antes que eu fosse nascido, e fui predestinado a ser  um estrangeiro no mundo.A paz de Akhetaton era uma falsidade dourada, e esta  averiguação terribilíssima no fundo é salutar; acordou o meu coração do marasmo  e me convenceu de que sempre devo estar sozinho."   

Quando o sol se ergueu todo de ouro atrás das colinas orientais, as sombras  fugiram; e tão esquisito é o coração do homem que ri amargamente para os  fantasmas do meu próprio cérebro. Todas as noites crianças enjeitadas devem ter descido a correnteza em botes de verga amarrada com nós de caçador... E nem a  cor de cinza da minha pele evidenciava coisa alguma já que um médico passa a sua  vida debaixo de tetos e toldos, ficando assim com a tez pálida. Não. A luz do dia eu não achava nenhuma prova conclusiva da minha origem.    Lavei-me, vesti-me, e Muti serviu-me cerveja e peixe salgado. ''Seus olhos  ainda estavam vermelhos de chorar, e ela me menosprezou porque eu era um homem.  Tomei a direção da Casa da Vida, indo numa liteira. Lá, examinei doentes, passando depois pelo templo deserto e percorrendo os pilonos exteriores, seguido  sempre pelo crocitar dos corvos bem tratados.    Uma andorinha passou veloz por mim na direção do templo de Aton. Segui-a.  Aquela hora o templo não se achava vazio.

Havia muita gente lá dentro, ouvindo  os hinos a Aton e erguendo as mãos em oração, enquanto os sacerdotes instruíam o povo na verdade do faraó Isso, em si, não tinha importância. Tebas era uma grande metrópole, e a curiosidade fazia gente se reunir em qualquer parte da cidade. Vi uma vez mais as esculturas nas paredes do templo, e reparei que dos quarenta pilares o faraó Akhnaton me observava com aquele seu semblante tão perturbador em sua paixão.

Vi também o grande faraó Amenhotep, sentado em seu trono, assim velho e caquético, com a cabeça um pouco inclinada ao peso da coroa dupla. A rainha Taia achava-se a seu lado. Parei um pouco, antes de prestar atenção na imagem da princesa Tadukhipa, de Mitani, oferecendo sacrifício aos deuses do Egito. A  inscrição original fora apagada, e a nova declarava que ela estava fazendo  oferendas a Aton, embora Aton não fosse venerado ainda em Tebas ao tempo da sua existência.

A imagem estava esculpida segundo a antiga convenção e a mostrava como uma  mulher jovem e bonita, pouco mais do que uma moça. A pequena cabeça por sobre e  por detrás das roupagens reais era linda. E delicados eram seus membros; delicados e esguios. Fiquei olhando demoradamente para a estátua, enquanto a  andorinha revoluteava por cima da minha cabeça chilreando festivamente. E então  chorei sobre o destino dessa rapariga solitária, de um país estrangeiro. Por seu  amor desejei ser ainda tão belo quanto ela, mas meu corpo estava pesado e  flácido e minha cabeça se tornara calva desde muito sob a cabeleira de médico. O  demasiado raciocínio enchera de rugas a minha testa, e meu semblante estava nédio com o alto teor de vida de Akhetaton.

Não consegui me imaginar filho daquela mulher. Todavia fiquei profundamente comovido e chorei lembrando-me de sua solidão na casa dourada do faraó. E sempre  aquela andorinha a revolutear em redor de minha cabeça. Procurei me lembrar das  bonitas casas e do povo tão cheio de queixas de Mitani. Lembrei-me também das estradas poeirentas e das eiras de Babilônia. E averigüei que a mocidade me  deixava para sempre e que minha existência de homem feito mergulhara em  estagnação acolá em Akhetaton.

Assim passei o dia ali, e quando a tarde caiu fui a O Rabo do Crocodilo a fim  de jantar e de me reconciliar com Mérito.

Recebeu-me friamente e tratou-me como um estrangeiro enquanto me servia.  Quando acabei, perguntou:

- Encontrastes vossa amada?   

Respondi, irritado, que não andara atrás de mulheres e sim que estivera  trabalhando na Casa da Vida e visitando o templo de Aton. Com o intuito de  esclarecer bem meu desejo de insulto, descrevi minuciosamente todos os passos  que tinha dado naquele dia. Olhava-me de alto a baixo, com um sorriso  escarnecedor.

- Nem por um momento me passou pela cabeça que  tivésseis ido visitar mulheres, pois na noite passado estáveis exausto e incapaz  de qualquer gesto, assim gordo  e calvo como sois. Quero dizer-vos apenas que a vossa amada esteve aqui hoje perguntando por vós e que lhe dirigi os passos para a Casa da Vida.

Dei um passo tão violento que quase derrubei o prato, e gritei:

- Que queres dizer com isso, mulher idiota?

- Veio procurar-vos aqui; vestida como uma noiva; enfeitou-se com jóias refulgentes e pintou-se como uma macaca; e o cheiro dos  seus ungüentos tresandou até ao rio. Deixou-vos saudações e uma carta também -  para o caso de não vos encontrar... E enternecidamente vos peço que lhe digais  que se mantenha afastada, pois esta é uma casa respeitável, e ela tem o ar de  uma dona de bordel.

Entregou-me uma carta sem sinete; abri-a com mãos  tremulas. Ao le-la o sangue afluiu à minha cabeça e meu coração disparou do meu  peito. Eis o que Mehunefer me escreveu:

"Saudações a Sinuhe, o médico, da parte de Mehunefer, sua irmã pelo coração e também Guardiã da Sala de Costuras da casa dourada do  Faraó. Meu touro novo, meu pombo, Sinuhe! Acordei sozinha em meu leito com dores  na cabeça e ainda mais no coração, pois me vi sozinha em meu tálamo, já que  partiras. Apenas o odor de teus ungüentos ficara em minhas mãos. Ah! Pudesse eu  ser o tecido que te reveste as ilhargas e a essência que amacia os teus cabelos,  ou o vinho que delicia a tua boca, Sinuhe! Tenho andado de casa em casa à tua  procura, e não interromperei tal labor enquanto não te descobrir pois meu corpo  está cheio de formigas por causa de tua lembrança, e teus olhos são a minha  delícia. Vem depressa assim que receberes esta carta... Vem nas asas de um pássaro, pois o meu coração anseia por ti. Se não vieres voarei ao teu encontro mais veloz do que qualquer ave. Sauda-te  Mehunefer, a tua irmã pelo coração.”

Reli diversas vezes essa carta demonstradora de terrível efusão; e não ousava olhar para Mérito. Mas esta, por fim, arrancou a carta da minha mão, quebrou a vara na qual o papel estava enrolado, rasgou a carta, atirou no chão os pedaços, pisou-os, dizendo enrairecida:

- Eu entenderia, Sinuhe, se ela fosse moça e bonita. Mas é velha, enrugada e feia como um saco, embora reboque o rosto de pintura como um muro. Não posso imaginar onde tendes a cabeça, Sinuhe! Vossa conduta vos torna ridículo aos olhos de Tebas  inteira, e me compromete exatamente por isso!

Dei puxões na roupa e arranhei o peito, exclamando:

- Mérito, cometi um disparate medonho, mas tive minhas razões! E nunca imaginei que, como resultado, sucedesse uma trapalhada destas.  Manda chamar os meus barqueiros! Urge que icem as velas! Preciso fugir, do contrário essa megera chegará,  quererá deitar comigo à força, e não conseguirei me livrar dela. Diz na carta  que virá ao meu encalce mais depressa do que um pássaro... Acredito que o fará!

Mérito percebeu meu medo e minha angústia, e pareceu, finalmente, compreender, pois rompeu em inesperada gargalhada. E acabou dizendo  com uma voz alterada ainda pelo acesso de riso:

- Isso vos ensinará a ter mais cautela no que se refere a mulheres, Sinuhe. Assim o espero. Nós, mulheres, somos vasos frágeis, e eu sei que mágico vós sóis, Sinuhe, meu amado!

Zombava de mim desapiedadamente. Fingiu voz humilde ao dizer:

- Sem dúvida essa admirável dama vos sabe agradar mais do que eu. Pelo menos teve o dobro do tempo para se aperfeiçoar nas artes do  amor, e longe de mim está a presunção de querer competir com ela. Receio até que  por causa disso me mandeis embora.

Tão lancinante era a minha aflição que levei Mérito para minha casa e lhe contei tudo. Falei-lhe do segredo do meu nascimento, contei-lhe tudo quanto pudera arrancar de Mehunefer. Disse-lhe  também que desejava acreditar que o meu nascimento não tinha nada que ver com a  casa dourada nem com a princesa de Mitani. Deixou de rir, pos-se a escutar calada, com os olhos perdidos na distância. Certa mágoa existente em seus olhos  se toldou ainda mais; terminou dizendo, com a mão em cima do meu ombro:

- Agora compreendo muita coisa que antes era enigma. Compreendo por que motivo a vossa solitude clamava por mim, sem que precisásseis falar, e por que motivo meu coração se enternecia quando olháveis para mim. Eu também tenho um segredo, e  ultimamente vinha sendo tentada a contar-vos; mas agora agradeço aos deuses não  o haver feito.É incomodo e perigoso repartir segredos, sendo preferível guardá- los. Ainda assim estou contente por me haverdes confiado tudo. Concordo convosco: será melhor não atanazardes os pensamentos com suposições e  desconfianças. Esquecei isso, como se houvesse sido um sonho; e eu também  esquecerei.

Fiquei com curiosidade de conhecer o seu segredo; não quis contar; tocou apenas meu rosto com os lábios, pos o braço em redor do meu pescoço e chorou um pouco. Depois me aconselhou:

- Se ficardes em Tebas, essa Mehunefer vos incomodará muito, perseguindo-vos com a sua paixão até tornar vossa vida intolerável. Tenho visto essa classe de mulheres, sei quão terríveis se podem tornar. A  culpa é em parte vossa  que fizestes que ela acreditasse numa porção de tolices. De fato o mais prudente  é regressardes para Akhetaton. Escrevei antes a essa criatura, conjurando-a a  deixar-vos em paz. Do contrário vos perseguirá obrigando-vos até ao casamento.  Ora, jamais quereria tal sorte para vós.

Achei ótimo o seu conselho, ordenei a Muti que reunisse todas as minhas coisas, enfardando-as. Depois mandei escravos procurarem nas  tavernas e alcouces da cidade os meus barqueiro Enquanto isso escrevi uma carta  a Mehunefer; mas, não querendo melindrá-la, empreguei a maior cortesia, assim:

"Sinuhe, o cirurgião-trepanador real; saúda Mehunefer, Guardiã da Sala de Costuras da casa dourada de Tebas. Minha amiga: arrependo-me sinceramente dos meus modos desenvoltos porque sei que foram eles que vos levaram a uma errônea compreensão da minha alma. Não posso encontrar-me convosco outra vez,  pois tal encontro poderia me induzir a pecar, visto como o meu coração já estava comprometido antes. Por esta razão vou-me embora, esperando que vos recordeis de mim apenas  como amigo. Junto com esta carta vos remeto uma botija de uma bebida chamada  "rabo de crocodilo" que, segundo espero, aliviará um tanto qualquer mágoa que  porventura venhais a sentir. Asseguro-vos que não perdeis nada no meu caso porque não passo de um velho com o qual uma criatura como vós não poderia sentir  nenhum prazer. Rejubilo-me por não havermos ambos incidido em pecado. Que não vos torne a ver, eis o sincero desejo de vosso amigo Sinuhe, médico da Corte.”

Mérito meneou a cabeça ao ler esta carta, objetando que o tom era demasiado gentil. Na sua opinião, eu devia exprimir-me mais laconicamente, ou dizer de uma vez a Mehunefer que ela era uma  megera medonha de quem neste momento em abalava em fuga apressada para não ser  perseguido. Mas eu era incapaz de escrever uma coisa assim a qualquer mulher.

Após certo debate Mérito permitiu que eu enrolasse a carta e lhe aplicasse o sinete, fechando-a; mas continuou a menear a cabeça, com ar de reflexão. Mandei um escravo à casa dourada levar a carta com a botija, para desta forma. me garantir pelo menos durante a tarde e a noite, por meio do "rabo de crocodilo". Só a idéia de me ver livre dela me fez suspirar, aliviado.

Enquanto a carta seguia para o seu destino e Muti enfardava minhas arcas e  cofres para a viagem, fiquei a olhar para Mérito, sobrevindo-me uma indizível tristeza ante o  pensamento de que a ia perder por causa da minha própria estupidez.

Se não fosse isso eu poderia permanecer em Tebas durante algum tempo ainda. Mérito também parecia estar absorta em pensamentos. Perguntou-me, de repente:

- Gostais de crianças, Sinuhe?

Estranhei sua pergunta. Fitando os meus olhos, ela sorriu com certa tristeza e  disse:

- Não tenhais medo. Não vou dar à luz nenhuma criança...Tenho uma amiga com um  filhinho de quatro anos. .Já várias vezes a mãe tem considerado como o garoto gostaria de navegar  pelo rio abaixo vendo campinas verdes, terras aradas, caça ribeirinha e gado, em  lugar de só ver gatos e cachorros pelas ruas poeirentas de Tebas!

Não gostei da idéia.

- Acaso cuidas que vou levar para bordo uma criança buliçosa que tirará a minha tranqüilidade e que me pregará sustos a cada  instante podendo cair da amurada ou enfiar o braço nas mandíbulas de um  crocodilo?  

 Mérito sorriu, mas certo vexame pairava em seu olhar quando replicou:

- Não quero absolutamente vos dar trabalho; mas a viagem faria muito bem ao  menino. Levei-o pessoalmente a circuncidar e tenho portanto certas obrigações  para com ele. É claro que eu pretendia ir com o menino, para vigiá-lo. Desta  forma teria um motivo suficiente e categórico para vos acompanhar. Longe de mim, porém, fazer qualquer coisa sem a vossa vontade; não falemos mais  nisso.

Ao ouvir isso dei um grito de alegria e bati palmas erguendo as mãos acima da  minha cabeça.

- Realmente hoje é um dia de júbilo para mim! Na minha estupidez nunca pensei que pudesses me acompanhar até Akhetaton... E tua  reputação não sofrerá nada se levares uma criança contigo como pretexto para a  viagem.

- Perfeitamente, Sinuhe - disse ela com um sorriso irritado, bem próprio das mulheres quando discutem assuntos que os homens não  compreendem. - Minha reputação não sofrerá se eu levar uma criança... Oh! Que  idiotas que os homens são! Ainda assim, eu vos perdôo.

Nossa partida foi imediata por causa do meu pavor de Mehunefer. A embarcação sairia de madrugada. Mérito trouxe a criança para bordo enrolada em cobertores e dormindo. A mãe não veio, não obstante eu querer de bom grado conhecer tal mulher que ousara dar ao filho o nome de Thoth, pois raramente os pais se inclinam a dar aos filhos nomes de deuses.

Thoth é o deus da escrita e de todas as ciências humanas e divinas; portanto a temeridade dessa mulher ainda fora maior.

O menino dormia sossegadamente nos braços de Mérito, protegido pelo nome, e não acordou enquanto as colinas, eternas guardiãs de Tebas, sumiam no horizonte, até o sol brilhar quente e dourado por sobre o rio. Era um menino bonito, moreno e esbelto; tinha os cabelos negros e macios como seda; não sentiu medo de mim; pela contrário: subiu por meu corpo acima. Eu gostava de segurá-lo, porque não era turbulento. Olhava-me com os seus olhos negros, meditativos, como se desde muito perscrutasse os enigmas da existência. Gostei muito dele; fiz-lhe barquinhos de caniço, deixei-o brincar com os meus utensílios de médico e cheirar os diferentes remédios. Gostava de sorver o aroma e enfiava,n. nariz em todos os boiões. Não nos incomodou a bordo, absolutamente; não caiu no rio, nem enfiou o braço entre as mandíbulas de nenhum crocodilo; tampouco lascou as minhas penas de verga. Durante a viagem t8da tivemos bom tempo e boa sorte. Mérito trouxera felicidade; deitava-se junto de mim todas as noites, e o garotinho dormia placidamente perto de nós. Foi uma viagem sem acidentes, e até menteao dia da minha morte hei de me lembrar do sussurro dos caniços ao vento e das tardes quando o gado era conduzido até à beira do rio para beber. Havia horas em que o meu coração intumescia de felicidade como um fruto maduro que se fende com a abundância do sumo. Disse a Mérito: Mérito minha querida: quebremos juntos um cântaro para que possamos viver juntos para sempre. Talvez um dia venhas a dar à luz um filho igual ao pequenino Thoth.

- Quem senão tu poderia me dar uma criaturinha assim quieta e morena como ele é? Se na verdade antes nunca pensei em ter filhos, agora a mocidade já passou e meu sangue está liberto de paixões estouvadas. Sempre que olho para o pequenino Thoth, fico com vontade de ter um filho contigo, Mérito.

Pondo a mão nos meus lábios e voltando para o outro lado a cabeça, Mérto disse, mansamente:

- Sinuhe, não digais tolices... Pois não sabeis que cresci numa taverna? Sei lá se não sou estéril?... Vós, que carregais vosso destino em vosso coração, até aqui achastes mais avisado viver sozinho sem que mulher e filhos prejudicassem ações e movimentos... Foi o que li em vossos olhos quando vos conheci. Não, Sinuhe. Não me faleis nisso... Vossas palavras me tornam fraca. Por que derramar lágrimas, se tanta felicidade me envolve?... Outros amoldam seus destinos ligando-os a milhares de amarras. Mas vós o trazeis isolado dentro do coração... E é um destino tão maior do que o meu! Amo este garotinho, temos diante de nós, neste rio, tantos dias ,cálidos e claros! Finjamos que quebramos juntos um cântaro, que somos marido e mulher, e que Thoth é nosso filhinho. Ensinarei Thoth a nos chamar de pai e mãe, pois é pequenino, cedo esquecerá, e  isto não o prejudicará em nada. Roubaremos aos deuses um lance de vida durante  estes poucos dias. Que nenhum temor do futuro anuvie nossa felicidade.

Foi assim que afugentei todos os maus pensamentos Fechei os olhos à miséria do  Egito, ao aspecto do povo esfomeado nas aldeias ao longo das margens, vivendo  cada dia conforme ele se apresentava. O pequeno Thoth punha os braços em redor  do meu pescoço, chamava-me de "pai". Seu corpo tenro dava prazer aos meus  braços. Todas as noites sentia o cabelo de Mérito rente ao meu pescoço; ela  segurava minhas mãos nas suas e respirava em cima do meu rosto. Era minha amiga.  Pesadelos já não me atormentavam mais. Os dias iam passando; ligeiros como  favonios, passavam e sumiam. Não tornarei a falar deles porque tal lembrança  constringe minha garganta e faz o pranto dos meus olhos manchar o que escrevo. O  homem não devia ser feliz demais, nunca, pois que coisa existe tão fugaz como a  felicidade?

Assim regressei a Akhetaton; mas agora eu era outro homem e vi a Cidade Celestial com outros olhos. Com suas casas frágeis, reluzentes de  sol, sob o azul denso do céu, a cidade me apareceu como uma ilusão ou como uma  miragem. A verdade não morava ali dentro, mas sim ao redor, longe e perto. A  realidade era a fome, o sofrimento, a miséria e o crime.

Mérito e Thoth voltaram para Tebas levando meu coração. Fiquei apto, assim, a  contemplar as coisas conforme eram, com olhar frio; e tudo quanto vi me  desagradou. Antes que se passassem muitos dias a realidade veio ter a Akhetaton,  e o faraó foi compelido a ve-la face a face, do terraço da casa dourada.  Horemheb mandou de Menfis um grupo de fugitivos da Síria, grupo esse que se  apresentou com todo o seu infortúnio para falar com o faraó. Horemheb pagou-lhes  as passagens e creio mesmo que os aconselhou a exagerar seus apuros. Tais  fugitivos constituíram um espetáculo medonho para a Cidade Celestial. Os nobres  mais chegados à corte se deram por doentes e se fecharam em suas casas e a  guarda real fechou os portões e as portas da casa dourada. Os fugitivos da Síria  começaram a gritar bem alto e a atirar pedras nas muralhas e paredes até que o  faraó escutou e mandou que os deixassem entrar no primeiro pátio. Clamaram:

- Escuta de nossas bocas laceradas o grito de todas as populações! Na terra de Kan o poder se transformou numa sombra, pois é sob o embate  ruidoso dos arietes e das cacapultas por entre labaredas que corre o sangue dos  que confiaram em ti e puseram suas esperanças em tuas palavras.

Erguiam os cotos dos braços para o balcão dourado do faraó e vociferavam:   

- Vê se enxergas as nossas mãos, faraó Akhnaton! Onde estão as nossas mãos?!

Empurravam para a frente homens cujos olhos tinham sido arrancados e que  caminhavam tateando, e velhos cujas línguas haviam sido arrancadas e que  tartamudeavam sons ocos.  Mostravam-nos, gritando para o faraó:    - E não, perguntes por nossas mulheres e nossas, filhas, pois a sorte delas  ainda é mais terrível do que a morte entre as mãos dos amorreus e dos hititas.E  eles cortaram nossas mãos e arrancaram nossos olhos porque confiamos em ti, faraó Akhnaton!    O faraó escondeu o rosto entre as mãos, e lhes falou de Aton.Então aqueles  homens riram de modo terrível e o humilharam, dizendo:

- Sabemos que mandaste a cruz da vida aos nossos inimigos; também. Eles a  dependuraram no pescoço dos seus cavalos!E em Jerusalém cortaram os pés dos  sacerdotes ordenando-lhes que saltassem de alegria em honra ao teu deus.

Então o  faraó Akhnaton soltou um grito medonho; apoderou-se dele um acesso do mal  sagrado, e caiu sem sentidos no chão do terraço. Os guardas quiseram enxotar  para fora dali o bando sinistro que, tomado de desespero, resistiu. O sangue  daquela gente correu por entre as lajes do pátio, e por fim seus corpos foram  atirados ao rio.

Nefertiti, Meritaton, a doente Meketaton e a jovem Ankhsenaton  assistiram a tudo isso lá do balcão, e jamais viriam a esquecer tal cena. Foi  então que viram pela primeira vez o infortúnio e a morte, que são os frutos da  guerra.

Fiz envolverem o faraó em lençóis molhados e quando ele voltou a si lhe  dei sedativos porque o ataque fora tão severo que receei por sua vida. Ele dormiu, mas ao acordar seu semblante estava lívido e seus olhos congestionados  por causa das dores de cabeça.   

- Sinuhe, meu amigo, temos que por um fim a isso.  Horemheb disse-me que  conheces Aziru.  Vai procurá-lo e compra a paz. Compra a paz para o Egito mesmo  que ela custe todo ouro que tenho e que o país fique paupérrimo.

Protestei vigorosamente.

- Faraó Akhnaton, remetei vosso ouro a Horembeb, isso sim...E ele depressa  comprará a paz com espadas e carros, sem que seja preciso que o Egito sofra na  sua dignidade!

O faraó apertou a cabeça com as mãos:

- Em nome de Aton, Sinuhe! Pois não vês que o ódio engendra o ódio, que a  vingança semeia vinganças, que o sangue gera mais sangue até nos afogarmos nele?  Em que servimos nós as vítimas se seus sofrimentos são vingados com a inflexão de sofrimento aos outros?! Essa asserção de dignidade não passa de preconceito.  Ordeno-te: Vai procurar Aziru e negocia a paz a qualquer preço.

Fiquei apavorado.

- Faraó Akhnaton! Eles arrancarão os meus olhos e cortarão a minha língua  antes que eu consiga me aproximar de Aziru para me entender sobre a minha  missão. A sua amizade não me valerá de nada porque pela certa já a esqueceu presentemente. Não estou habituado à guerra que é coisa que me acobarda. Tenho  as articulações perras, meus movimentos são mais lentos do que antigamente, sou  incapaz de concatenar frases amaneiradas como os outros que praticaram em mentir  desde a infância e que vos servem nas cortes dos reis estrangeiros. Se é que  quereis negociar a paz mandai um outro.

Insistiu, de modo inabalável.

- Vai, conforme te estou mandando. Quem fala é o faraó. Mas eu vira os  fugitivos da Síria ali no pátio do palácio. Vira suas bocas laceradas, suas  órbitas vazias, os cotos de seus braços.

Não senti de modo algum inclinação para realizar tal viagem e fui para casa com a intenção de me enfiar na cama e de me  fingir de doente até que o faraó se esquecesse do seu capricho. Mas a caminho  encontrei o meu criado que me disse com um feitio espantado:

- Bom é que volteis à casa, meu amo Sinuhe, pois acaba de chegar de Tebas um  navio trazendo uma mulher que se chama Mehunefer; diz ela que é vossa amiga e  vos aguarda em vossa casa, vestida de noiva. A casa inteira tresanda a cosméticos.

Virei o corpo e corri para a casa dourada.

- Seja conforme dizeis, Faraó. Irei à Síria, e que o meu sangue corra sobre a  vossa cabeça. E já que tenho que ir, que seja imediatamente. Mandai que os  vossos escribas preparem os necessários documentos atestando a minha missão e a minha autoridade, porque o rei Aziru respeita muito lousas e tábuas.

Enquanto os escribas se atarefavam em tal desempenho, fui depressa a oficina  de meu amigo Thothmes. Eu descobrira que ele era um dos escultores de Akhetaton.  Sendo meu amigo não deixaria de me acolher numa hora de necessidade.

Tinha acabado uma estátua de Horemheb a ser erigida em Hetnetsut, a localidade  de nascimento do guerreiro. Era de pedra arenosa escura esculpida de acordo com  as novas regras, com muita semelhança, não obstante, a meu ver, Thothmes haver  exagerado a musculatura dos braços e a largura do tórax, de modo que Horemheb  parecia mais um atleta do que o comandante supremo das forças do faraó. Mas  nessa arte nova o costume era exagerar tudo, contanto que a realidade não fosse  desprezada. Thothmes molhou a estátua com um pano úmido a fim de me mostrar como  era bonito o reluzir da musculatura e como a cor da pedra condizia com a pele de  Horemheb.

Disse-me:

- Acho que viajarei contigo até Hetnetsut, acompanhando esta estátua e  assistindo à sua colocação no templo em local de acordo com a situação de  Horemheb e minha. Sim, irei contigo, Sinuhe, e que o vento do rio arranque da  minha cabeça os fumos do vinho de Akhetaton. Minhas mãos tremem ainda por causa  do peso do malho e do cinzel, e a febre alquebra meu coração.

Os escribas entregaram-me as tábuas e as lousas, com as despedidas e bênçãos  do faraó. Depois que a estátua de Horemheb foi transportada para bordo,  velejamos rio abaixo. O meu criado teve ordem de dizer a Mehunefer que eu tinha ido para a guerra na Síria e que lá perecera. Aliás isso não me pareceu mentira  e sim mera notícia um tanto prematura, pois o meu pressentimento era de que o  remate de tal viagem seria a minha morte de maneira horripilante. Ordenei, além disso, que o meu criado levasse Mehunefer para bordo do primeiro navio que  largasse para Tebas, tratando-a com a devida consideração bem como, se  necessário, com eventual violência. E expliquei bem:

- Sim, pois caso contra todas as expectativas eu regresse, se encontrar essa  Mehunefer em minha casa, ou mesmo na cidade, mandarei esbordoar todos os meus  escravos e servos, ordenarei que lhes sejam cortados os narizes e as orelhas, e  os remeterei para as minas pelo resto de suas existências.

O meu criado me fitou bem nos olhos, viu que eu falava verdade, ficou com um  medo mortal e prometeu obedecer literalmente às minhas ordens. Assim, com o  espírito aliviado, velejei rio abaixo, com Thothmes. E como estivesse convencido  de que ia ter morte certa entre as mãos dos homens de Aziru e dos hititas, não  poupamos vinho. Thothmes declarou que não era costume se poupar vinho quando se  ia para a guerra. E devia ter autoridade para dizer isso, pois nascera nas  barracas.

 

O RELÓGIO DE ÁGUA MEDE O TEMPO

Devido à minha missão oficial fui recebido em Menfis com todas as honras por  Horemheb; mas logo que ficamos juntos ele começou a bater com o chicote na perna  e me perguntou, impacientemente:

- Que maus ventos te trouxeram até aqui como mensageiro do faraó e que larvas  novas foram desovadas em seu cérebro?

Contei-lhe que a minha missão era viajar até à Síria e negociar com Aziru a  paz a qualquer preço. Ao ouvir isso, Horemheb praguejou de modo furibundo.

- Eu já pressentia que ele arruinaria todos os planos que eu organizei com  tanto cuidado e custo. Sabes que graças a mim Gaza ainda se acha em nossas mãos,  de modo que o Egito possui assim uma cabeça de ponte na Síria para operações militares? Mais ainda: por meio de presentes e ameaças consegui que a frota de  guerra de Creta guardasse as nossas comunicações marítimas com Gaza. Verdade é  que isso em parte é do interesse de Creta visto como uma confederação Síria forte e independente ameaçaria a supremacia naval de Creta. Digo-te também que o  rei Aziru tem tido muito trabalho para manejar os seus próprios aliados, e que  muitas cidades sírias estão em guerra umas com as outras depois da retirada dos egípcios. E dos próprios sírios muitos dos que perderam suas casas e bens se  juntaram em bandos de guerrilheiros que dominam o deserto desde Gaza até Tânis e  estão agora em conflito com as tropas de Aziru. Armei-os com armas egípcias, e muitos antigos soldados, saqueadores e fugitivos das minas, se juntaram a eles.  O mais importante de tudo é que os hititas afinal sempre invadiram Mitani com  todo o seu poderio; liquidaram com a população, e o reino de Mitani não existe  mais. As forças hititas acham-se retidas acolá em conseqüência da vitória;  Babilônia está atemorizada e começou a equipar forças para defender seus  limites, e os hititas agora não dispõem de tempo para prestar a Aziru auxílio adequado. Se for prudente, Aziru deve teme-los depois dessa conquista de Mitani que era  o escudo da Síria.contra eles. A paz que o faraó oferece será recebida com  júbilo, pois isso lhe concederá tempo para consolidar sua posição e verificar o estado de coisas à sua volta. Deem-me seis meses, ou menos ainda, e eu  conseguirei uma paz honrosa para o Egito. Com arcos sibilantes e carros ruidosos  forçarei Aziru a temer os deuses do Egito.   

Objetei, prontamente:

- Não podes guerrear, Horemheb, porque o faraó proibiu, e não te entregará  ouro para tal fim.

- Cuspo no ouro dele! Arranjei ouro emprestado a torto e a direito... Acabei  na indigência, pessoalmente, para poder equipar um exército destinado a Tânis.  Por meu falcão, Sinuhe! Não podes pretender arruinar tudo, viajando para, a Síria como pacificador. Disse-lhe que o faraó já me entregara credenciais e me fornecera toda a  documentação necessária para a conclusão da paz. Conviria saber se Aziru a  desejava, porque em tal caso a concederia a baixo preço.   

Ao ouvir isto Horemheb teve um acesso de raiva; jogou longe o banco, com um  pontapé e gritou:

- Pois fica sabendo que se negociares a paz com ele para vergonha do Egito te  mandarei esfolar vivo e te jogarei aos crocodilos assim que voltares. Importa-me  lá que sejas meu amigo! Juro-te! Pois vai, e fala com Aziru a respeito de Aton.  Se simples. Dize-lhe que o faraó em sua infinita bondade usará de misericórdia  para com ele! Mesmo que Aziru não chegue a acreditar, pois é um homem ladino,  estudará todas as possibilidades antes de te deixar partir. Quererá pechinchar,  ganhar tempo, trapacear, encher-te até aos dentes com mentiras. Mas em hipótese  alguma entregarás Gaza. Dize-lhe também que o faraó não pode responder pelos  guerrilheiros e respectivos ataques. Sim, pois essas forças livres não abaixarão  as armas em circunstância alguma, não levarão no menor apreço as tábuas do  faraó... Encarregar-me-ei disso! É claro que não precisarás dizer esta última  parte ao rei Aziru. Dize-lhe, pelo contrario, que se trata de homens bons,  pacientes, aos quais os dissabores cegaram, que acabarão de bom grado trocando  as lanças por bordões e cajados de pastores assim que a paz for assinada. Mas  não entregues Gaza, ou te esfolarei com as minhas mãos. Sim, pois não avalias  quanta angustia tenho sofrido, quanto ouro tenho espalhado na areia, quantos dos  meus melhores espiões tenho sacrificado, só para abrir as portas de Gaza para o  Egito.

Permaneci em Menfis durante diversos dias, discutindo com Horemheb os termos de paz e brigando com ele. Encontrei emissários de Creta e de  Babilônia, e também pessoas eminentes fugidas de Mitani. E pelas conversas  depreendi de modo geral tudo quanto acontecera e me enchi de ambição, desejoso  pela primeira vez de ser um fator importante num grande jogo cujas paradas eram  os destinos de homens e cidades.

Horemheb tinha razão: naquele momento a paz era um dom mais valioso para Aziru  do que para o Egito, embora os acontecimentos do mundo num plano geral não  prometessem mais do que um mero armistício. As condições se estabilizando na  Síria, Aziru poderia se voltar uma vez mais contra o Egito. O futuro agora  dependia dos hititas. Uma vez assegurada a sua soberania em Mitani, marchariam eles sobre a Babilônia, ou  sobre o Egito? O raciocínio vaticinava que visariam primeiramente o ponto mais  fraco; ora, Babilônia estava se armando, ao passo que o Egito permanecia sem  defesas.

A nação de Hati era um aliado desagradável para qualquer país; ainda  assim, para Aziru, convinha; sim, pois se Aziru se juntasse com o Egito contra  os hititas, ficava ameaçado com uma derrota certa, visto reinar o faraó  Akhnaton, e Aziru dispor, assim, apenas de areias nas suas costas.

Disse-me Horemheb que o seu encontro com Aziru se daria em dado trecho entre  Tânis e Gaza, onde os carros de Aziru estavam travando guerrilhas. Descreveu-me  as condições em Esmirna, enumerando as casas que haviam sido incendiadas durante  o assédio, e citando os nomes das pessoas importantes que tinham sido mortas.  Fiquei perplexo vendo-o sabedor de tanta coisa. Deu-me depois uma relação oral  dos espiões que tinham visitado as cidades sírias e seguido as tropas de Aziru  disfarçados em mercadores de azeite, negociantes de escravos, prestidigitadores  e quiromantes.

Tanto os oficiais de Horemheb como os fugitivos me contaram fatos tão  horripilantes dos amorreus e das forças livres egípcias que o meu coração  baqueou e os meus joelhos tremeram, principalmente ao chegar a hora da minha  partida.

Horemheb disse-me:

- Podes escolher. Queres ir por terra ou por mar?

- Talvez seja mais seguro ir por terra - respondi, incerto. Ele concordou.

- De Tânis em diante terás uma escolta de algumas espadas e carros. Caso se  vejam na iminência de um choque com as tropas de Aziru, te abandonarão no  deserto e recuarão a toda pressa. É possível que os homens de Aziru, vendo que és um egípcio de alta categoria  te impalem numa lança à maneira dos hititas, e urinem em teus documentos e  tábuas de credenciais.  possível também que, a despeito da tua escolta, caias nas mãos dos guerrilheiros  que te despirão e te porão a lhes girar as mós até chegar ocasião em que eu te  possa resgatar com ouro... Mas não acredito que durasses até lá pois os chicotes  deles são feitos com couro de hipopótamo. Ou talvez prefiram te sangrar de  pronto largando-te aos corvos, o que aliás não constitui um modo tão ruim de  terminar os dias, sendo, no conjunto das circunstâncias, uma morte  magnanimamente fácil.

O meu coração baqueou ainda mais, e apesar do calor do verão, senti calafrios.  Declarei:

- Arrependo-me amargamente de haver deixado o escaravelho com Kaptah, pois  talvez estivesse mais apto a me socorrer do que o deus Aton do faraó, cujo poder  parece não se ampliar muito por essas regiões ímpias. Rogo-te em nome da nossa amizade, Horemheb! Se por acaso vieres a saber que  estou girando atafonas como.prisioneiro em alguma localidade, trata imediatamente de comprar a minha libertação. Não poupes ouro, pois sou um homem  rico... mais rico do que pensas... Embora eu não te possa fornecer uma relação  completa dos meus bens, coisa que eu próprio conheço apenas em parte.

Respondeu-me:

- Estou a par da tua fortuna e arranjei emprestado de ti, por  intermédio de Kaptah uma grande importância, conforme fiz de outros indivíduos.  Boa foi a minha intenção, não quis te privar do privilégio de seres credor. Dada  a nossa camaradagem, espero que não me venhas a importunar com cobrança, pois  isso é coisa que acaba prejudicando a amizade ou rompendo-a. Pois vai, Sinuhe,  meu amigo. Vai para Tânis e lá pega uma escolta para a tua viagem através do  deserto. Que o meu falcão te proteja, pois eu não posso. A minha autoridade não  chega a tanto. Caso sejas aprisionado negociarei a tua liberdade a qualquer  preço. Caso morras, te vingarei. Possa tal certeza te confortar quando alguma  adaga estiver traspassando a tua barriga.

- Caso venhas a saber que morri não percas tempo querendo me vingar - disse  eu, amargamente. - Não servirá de alívio nenhum ao meu crânio bicado por abutres  ser banhado no sangue de tuas vítimas. Basta que saúdes a princesa Baketaton em meu nome, pois se trata de uma mulher bonita e desejável, embora altaneira.  Falar nisso, junto ao leito de morte da mãe, ela me perguntou por ti.

Depois de lhe haver arremessado esta seta por cima do meu ombro, deixei-o, um  tanto aliviado, e fui encarregar escribas de escrever sob ditado o meu  testamento e legalizá-lo com os necessários sinetes. Depositei esse documento, pelo qual eu legava todos os meus bens a Kaptah, Mérito e Horemheb, nos arquivos  de Menfis. Depois tomei um navio para Tânis onde, numa fortaleza tostada pelo  sol à margem do deserto, me encontrei com as guardas de Horemheb na fronteira.

Esses homens bebiam cerveja, amaldiçoavam o dia em que tinham nascido, caçavam  antílope no deserto e tornavam a beber cerveja. Suas cabanas eram imundas,  fediam a urina; e as mulheres eram da mais baixa escala. Numa palavra, viviam a vida usual das tropas de fronteira e ansiavam pelo dia em que Horemheb os  levaria a combater dentro da Síria.

Qualquer sorte, inclusive mesmo a morte, era preferível à insuportável  monotonia de tal existência naqueles quartéis parecidos com tocas entre enxames  de mosquitos. E eram homens cheios de vigor; juravam que formariam a vanguarda  das forças livres e procuravam se aproximar de Jerusalém e até mesmo de Megido,  varrendo diante deles os imundos sírios assim como o Nilo leva de enxurrada  palhas e caniços. A minha escolta se preparou para a jornada. Odres foram cheios; cavalos foram  trazidos das pastagens; ferreiros reforçaram as rodas dos carros.

Por ordem de  Horemheb dez carros foram postos à minha disposição, puxado cada um por dois  cavalos e conduzindo um sobre excelente. Em cima de cada carro, além do condutor,  um infante e um arqueiro. Quando o chefe da tropa se pos às minhas ordens,  tratei de observá-lo cuidadosamente porque ia confiar-lhe a minha vida. Suas  calças estavam tão rasgadas e sujas como as dos seus homens, e o sol do deserto  o tisnara; apenas o chicote de cabo de prata o distinguia dos, demais. Tive a  maior confiança nele - mais do que se usasse roupagem vistosa e possuísse um  ajudante para cobri-lo do sol com um escudo.

Como me atrevesse a falar em liteira, ele esqueceu o respeito que me devia e  soltou uma gargalhada. Acreditei quando explicou que a nossa única salvaguarda  era a velocidade e que, portanto, eu devia ir com ele no seu carro, deixando de pensar em liteiras e outros confortos caseiros... Prometeu que deixaria que eu  me sentasse num saco de forragem, caso quisesse, mas garantiu que eu me sentiria  melhor em pé procurando equilibrar-me com o movimento, do contrário o deserto tiraria o fôlego dos meus pulmões e eu quebraria os . ossos de encontro ao rebordo do carro.

Subi, contei-lhe que aquele não era absolutamente o meu primeiro percurso dentro de um carro militar, que já correra de Esmirna até Amurru num prazo de tempo tão curto que o próprio Aziru e seus homens se tinham admirado da rapidez, embora nessa ocasião eu fosse bem mais moço do que atualmente. O oficial, que se chamava Juju, ouviu cortesmente, depois encomendou a minha vida a todos os deuses do Egito e subiu para o carro atrás de mim. Desfraldou o estandarte, gritou com os cavalos, e embarafustamos por uma estrada de caravanas adentro, rumo ao deserto. Eu saltava por entre os  sacos de forragem, agarrava-me aos rebordos com ambas as mãos, fungava e  amaldiçoava o meu fado. Meus berros eram engolidos pelo estardalhaço das rodas  e os outros condutores, atrás do meu carro, soltavam brados de alegria louca  dirigindo através do deserto, afastando-se do inferno escaldante das cabanas.

Assim rodamos o dia inteiro, e passei uma noite em cima de sacos de forragem,  mais morto do que vivo, amarguradamente excomungando o dia do meu nascimento. Na  manhã seguinte fiz tudo para ficar, de pé em cima do carro, segurando-me ao cinturão de Juju, mas em dado trecho uma das rodas bateu numa pedra e eu voei  para fora do carro, em parábola, indo bater com a cabeça na areia onde plantas  espinhosas me feriram a cara. Mas pouco me incomodei com isso. Quando a noite chegou, Juju pareceu se preocupar com a minha situação. Conquanto estivesse  submetendo seus homens a curta ração de água, jogou alguma em cima da minha  cabeça. Segurou minhas mãos, confortou-me, dizendo que o dia fora afortunado, apesar de tudo e que, se as forças livres não nos surpreendessem no dia  seguinte, no quarto dia tomaríamos contacto com a vanguarda de Aziru.

De madrugada acordei sentindo Juju rolar-me depressa para fora do carro. Caí  em cima da areia. Ele arremessou para junto de mim as tábuas e o cofre, depois  voltou ao contrário os cavalos, recomendou-me a proteção dos deuses, e abalou a  todo galope, seguido pelo resto dos carros cujas rodas arrancavam fagulhas das  pedras.

Depois que esfreguei os olhos para tirar a areia, vi um grupo de carros sírios  avançando para mim, descendo uma vertente e abrindo. em leque em ordem de  batalha. Levantei-me e comecei a agitar uma folha de palmeira por cima da minha  cabeça, em sinal de paz, apesar da folha estar meio rota por causa da viagem. Os  carros passaram sem parar e apenas senti um dardo sibilar rente à minha cabeça  indo se cravar na areia atrás de mim, e continuaram em perseguição de Juju e  seus homens. Notei porém que os nossos já iam distanciados.

Vendo que a perseguição era inútil, os carros de Aziru voltaram, vindo rodear- me e os chefes saltaram. Declarei minha missão e mostrei-lhes as tábuas do  faraó. Não deram a menor atenção, roubaram-me. abriram minha arca de viagem, tiraram o ouro arrancaram a roupa que me cobria, e me amarraram pelos pulsos aos  varais traseiros  do carro. E como recomeçassem a rodar, tive que correr. E corri tanto que logo  fiquei sufocado enquanto a areia lanhava a pele dos meus joelhos.

Com certeza eu morreria naquela viagem se o acampamento de Aziru não fosse  logo depois do grupo de colinas. Com os olhos quase cegos lobriguei um  acampamento bem grande, cheio de tendas, por entre as quais pastavam cavalos.  Uma muralha de carros e carroças rodeava o campo. Depois disso não sei mais nada  até que acordei e vi escravos jogando água em cima de mim e esfregando meu corpo  com ungüentos. Um oficial que sabia ler vira que minhas tábuas de argila eram documentos de importância e eu agora estava sendo tratado com todo o respeito;  depois devolveram minhas roupas.

Assim que pude andar fui levado à tenda de Aziru toda impregnada de incenso,  lã e sebo. Aziru avançou vindo ao meu encontro rugindo como um leão; correntes  de ouro tintilavam em seu pescoço, e a sua barba anelada estava dentro de uma rede de prata. Abraçou-me, dizendo:

- Lamento que os meus homens te tenham tratado mal. Devias ter dito a eles o  teu nome, explicar que eras meu amigo e emissário do faraó. Devias também ter  agitado uma folha de palmeira no ar como sinal de paz, e conforme o bom costume aconselha. Os meus homens disseram-me que investiste contra eles brandindo o teu  punhal de modo que em defesa própria foram compelidos a te agarrar.

Meus joelhos ardiam como brasas, e meus punhos doíam. Consumido pelo  infortúnio extremo, repliquei:

- Olha-me e vê se teus homens correram perigo diante de mim. Arrebentaram a  folha de palmeira, roubaram o que eu trazia comigo, pisaram em cima das tábuas  do faraó. Deves mandar flagelá-los para que aprendam a respeitar o emissário do  faraó.

Mas Aziru entreabriu afoitamente o casaco, num gesto de desprezo e escárnio e  ergueu as mãos.

- Com certeza dormiste mal, Sinuhe! Esta é muito boa! Que culpa tenho eu que  hajas ferido os joelhos nas pedras durante tua exaustiva viagem? Nem por sonho  flagelarei os meus melhores homens por causa de um miserável egípcio. E as palavras do emissário do faraó não passam de zumbido de moscas nos meus  ouvidos.

- Aziru, rei de muitos reis, ordena então, pelo menos, que seja flagelado o  homem que vergonhosamente espetou minhas nádegas numa porção de lugares enquanto  eu corria acompanhando os carros. Manda flagelar esse e me contentarei com isso.  Declaro-te que trago a paz como um presente para ti e a Síria toda!

Aziru riu alto e deu socos no peito.

- Importa-me lá que esse infeliz faraó rasteja diante de mim na areia  esmolando paz! Contudo, tuas queixas são razoáveis. Visto seres meu amigo, e  amigo da minha consorte e de meu filho, vou mandar açoitar o tal homem que te espetou o traseiro para te apressar, pois reconheço que isso destoa dos  protocolos. Conforme sabes, luto com armas limpas e por finalidades justas.

Foi só assim que tive o prazer de ver o meu pior atormentador ser açoitado  diante das tropas reunidas na frente da tenda de Aziru. Seus camaradas não  tiveram a menor piedade; zombavam, apupavam-no com gargalhadas quando ele  gritava.

E isso porque eram guerreiros e sentiam satisfação em romper de  qualquer forma aquele interregno  de tédio. Decerto Aziru consentiu que açoitassem o homem até a morte; mas quando  vi correr sangue e se destacar carne das costelas, ergui as mãos e o salvei.  Mandei então que o transportassem para a tenda que Aziru mandara instalar para  mim - com indignação dos oficiais que dela foram removidos e seus companheiros  principiaram a me aclamar com entusiasmo, cuidando que eu pretendia prosseguir o  açoitamento com torturas mais engenhosas. Eu, porém, passei bálsamos nas suas  costas - os mesmos  que esfregara em meus joelhos e nádegas, cerzi seus ferimentos, dei-lhe de beber  bastante cerveja. O homem pensou que eu fosse maluco e perdeu todo o respeito  por mim. 

Ao anoitecer Aziru convidou-me a comer carneiro assado e arroz com fatias de  toucinho. Jantei na sua tenda, com ele e os seus oficiais e com os instrutores  hititas que se achavam no acampamento. Suas capas e seus peitorais eram adornados com desenhos de machados com duas cabeças e sóis com asas. Bebemos  vinho juntos, e todos me trataram com respeito e consideração, como um simplório  que viera oferecer paz exatamente quando mais precisavam dela. Falaram em altas  vozes da libertação da Síria, do futuro poder, e do jugo da opressão que haviam  tirado de cima dos ombros.

Mas depois que beberam suficientemente começaram a altercar, e por fim um homem  de Jopa arremessou a sua taça e atingiu no pescoço um homem de Amurru. O dano  não foi grande porque a artéria não chegou a ser atingida e eu consegui tratar com eficiência o ferimento. Em sinal de reconhecimento ele me deu uma porção de  esplendidos presentes. Por esse ato fui também considerado por todos como um  débil de intelecto.

Quando a refeição terminou, Aziru mandou que os seus oficiais e os instrutores  hititas fossem continuar as rixas em suas tendas. E como ficássemos a sós,  mostrou-me seu filho, que o acompanhava em suas campanhas apesar de ter apenas sete anos e que era um bonito rapaz com faces veludosas como pêssegos e  brilhantes olhos negros. Seu cabelo era preto e anelado como a barba do pai e a  sua tez lembrava a de sua mãe Keftiu. Aziru disse-me, enquanto acariciava o  cabelo do filho:

- Já viste um menino mais bonito? Foi para ele que conquistei muitas coroas;  será um grande soberano. A sua soberania se espalhará por tantas regiões que nem  me aventuro a imaginar. Nesta idade já traspassou a barriga de um escravo  que se atreveu a insultá-lo. Sabe ler e escrever, e não tem medo de  batalhas. Sim, pois também o tenho levado a batalhas. Verdade que apenas em casos  de rebeliões em aldeias onde sua pequenina existência não corria perigo.

Keftiu permanecia em Amurru enquanto Aziru andava nas guerras.  E Aziru tinha muitas saudades dela e me contou que tentara em vão aplacar seus  desejos servindo-se de mulheres prisioneiras e de virgens do templo que  acompanhavam o exército.

Desde que experimentara o amor de Keftiu jamais podia  esquece-la. Disse-me que ela se tornara ainda mais bonita com o decorrer dos  anos; tão luxuriante que, se eu a visse, não acreditaria. E explicou que trazia  sempre o filho consigo, não ousando deixá-lo em Amurru porque um dia o filho  deveria cingir as coroas unidas da Síria.

Durante a conversa chegou aos nossos ouvidos o som de gritos. Aziru  ficou extremamente zangado e me explicou:   

- Lá estão os oficiais hititas torturando outra vez suas mulheres! Não posso  fazer nada para impedir  isso, pois dependo da maestria deles no campo de batalha. Mas não gostaria  absolutamente que os meus homens aprendessem essas práticas  ruins.

Eu conhecia os hititas. Sabia o que se podia esperar deles. Aproveitei o ensejo para dizer:

- Aziru, rei dos reis, rompe com esses hititas enquanto é tempo, antes que  eles te achatem a coroa bem como... a tua cabeça! É impossível confiar nessa  gente. Faze as pazes com o faraó enquanto os hititas ainda se acham ocupados com  a anexação de Mitani. Babilônia está se armando contra eles conforme sabes, e  não te mandará mais trigo se permaneceres aliado deles. Quando o inverno chegar  a fome farejará a tua terra como um lobo esfaimado a não ser que faças a paz com o faraó e este te mande trigo para as tuas cidades, como antes.

Respondeu:

- Não digas idiotices! Os hititas são maus apenas para os seus adversários;  para os amigos são leais. Ainda assim não estou ligado a eles por nenhum  tratado, embora me remetam formidáveis presentes e reluzentes armaduras. Posso  fazer a paz em separado à hora que quiser. Amo a paz mais do que a guerra, e  luto apenas para obter condições honrosas. Reconcilio-me com o faraó se ele me  restituir Gaza que me foi tomada traiçoeiramente, e se desarmar as hordas de bandidos do deserto. Exijo também reparações em trigo, azeite e ouro por causa  da devastação que as cidades sírias sofreram durante o conflito. A culpa desta  guerra cabe ao Egito, conforme bem sabes.

Fixou-me com ar cínico, sorrindo por detrás da mão. Mas lhe respondi com  ardor:

- Aziru, bandido, ladrão de gado, algoz de inocentes! Pois não sabes que em tudo  quanto é oficina no Baixo Reino inteiro estão sendo forjadas espadas e que o número dos carros de Horemheb já é maior do que o número de mosquitos que  rodeiam teu leito de campanha? E que tais mosquitos metálicos te morderão sem  piedade assim que as safras tiverem sido colhidas? Esse Horemheb, cuja fama te é conhecida, cuspiu nos meus pés quando lhe falei em paz. É apenas por questão  religiosa que o faraó deseja a paz e não o derramamento de sangue. Dou-te uma  única saída, o único ensejo que te resta, Aziru. O Egito conservará Gaza e tens  que dissolver as hordas tu mesmo, porque o Egito não tem absolutamente nada que  ver com elas. Foi a tua crueldade que forçou esses sírios a fugir para o deserto  e tomar armas contra ti. E outra coisa, ainda: tens que soltar todos os egípcios  prisioneiros e pagar indenização pelas perdas que os comerciantes egípcios  sofreram nas cidades sírias e restaurar-lhes as propriedades.

Aziru arrancou fios  da barba e deu puxões na roupa, gritando, ressentido:

- Mordeu-te algum cão danado, para assim espumares, Sinuhe! Gaza tem que ser  cedida a Síria, os comerciantes egípcios que se arranjem, e os prisioneiros  serão vendidos como escravos, conforme requer o costume; o faraó que compre a liberdade dos mesmos, se é que tem ouro bastante ara tanto!...

Disse-lhe:

- Se assinares a paz, poderás construir torres maciças, sólidas,  nas tuas cidades, de ordem a não temeres mais os hititas; e o Egito te  auxiliará. Comerciando com o Egito, e livres de tributo, os mercadores dessas  mesmas cidades ficarão ricos e prósperos. E como os hititas não tem frota de  guerra, não poderão restringir teu comércio. Se fizeres a paz, Aziru, todas as vantagens ficarão .do teu lado. Os termos do faraó são  moderados. Mais concessões, não posso fazer...

Dia após dia debatemos a questão, e muitas vezes Aziru achava repelões na  roupa e cobria os cabelos com cinza, chamando-me de ladrão desavergonhado,  chorando pelo destino de seu filho que com certeza morreria num fosso reduzido a mendigo por causa do Egito. Certa ocasião cheguei a deixar a sua tenda e a pedir  liteira e escolta para Gaza. Teria subido para a liteira se lhe não me tivesse  chamado outra vez. Todavia, creio que se deleitava com esses regateios, pois era um sírio, e  decerto me levaria de vencida se eu cedesse em quaisquer pontos. Jamais supôs  que o faraó me mandara negociar a paz a qualquer preço, mesmo que isso  importasse na ruína do Egito.

Portanto, não tergiversei e em meio às negociações fui ganhando termos que  redundavam em vantagens para o faraó. Até as circunstâncias me favoreceram  temporalmente, porque os conflitos, dentro do acampamento de Aziru cada vez aumentavam. Cada dia mais homens voltavam para as suas cidades, sem que Aziru  pudesse se opor porque a sua autoridade não chegara a se consolidar.   

Certa noite dois assassinos penetraram em sua tenda e o feriram com punhais;  ainda bem que não o mataram. O próprio rei matou um. O filho acordou e  arremessou a espada, nas costas do outro que veio assim a morrer também. No dia seguinte Aziru chamou-me à sua tenda e, com palavras terríveis, acusou-me.  Fiquei apavorado. Depois chegamos a um acordo. Em nome do faraó assinei a paz  com ele e com todas as cidades da Síria. O Egito ficaria com Gaza e a dispersão das forças livres caberia a Aziru. O faraó reservava-se o direito de comprar a  libertação dos egípcios prisioneiros e dos escravos presos.

Nestas condições estabelecemos um tratado de eterna amizade entre o Egito e a  Síria. Tal tratado foi registrado em tábuas de argila e confirmado em nome dos  mil deuses da Síria e dos mil deuses do Egito, inclusive Aton. Aziru dizia palavrões medonhos enquanto rolava o seu sinete em cima da argila; e eu também  chorei e estraçalhei as abas da roupa enquanto firmava o sinete egípcio em cima  das tábuas. Intimamente estávamos  radiantes, os dois. Aziru deu-me muitos presentes, e eu prometi mandar uma  porção, também.para ele, a mulher e o filho pelo primeiro navio que velejasse do Egito para a Síria sob as condições da paz.    Despedimo-nos de pleno acordo. Aziru chegou a abraçar-me,chamando-me de seu  amigo. Ergui do chão seu lindo filho, elogiei sua coragem, rocei meus lábios em  suas bochechas coradas. E contudo  tanto Aziru como eu sabíamos que o, tratado que fizéramos em prazo perpétuo não  valia a argila sobre que fora escrito. Ele assinara a paz porque se vira forçado  a isso; e o Egito a assinara por ser vontade expressa do faraó. A nossa paz  flutuava no ar,  como uma presa exposta a todos os ventos, porque tudo dependia do modo com que  os hititas agiriam depois da anexação de Mitani, da maneira pela qual Babilônia  reagisse, e da atitude da frota cretense que protegia o comércio marítimo.

Sem demora Aziru foi desmobilizando as suas forças. Forneceu-me uma escolta  para Gaza, mandando ao mesmo tempo uma ordem para as suas tropas acolá  levantarem o assédio inútil àquela cidade. Ainda assim estive perto da morte  quando cheguei a Gaza. Quando nos aproximamos de suas portas e a minha escolta agitou ramos de palmeiras e gritou  que a paz tinha sido firmada, os defensores egípcios começaram a desferir dardos  contra nós e a arremessar lanças.

Pensei que a minha última hora tivesse soado. O  soldado desarmado que empunhava o escudo cobrindo-me recebeu um dardo na  garganta e caiu em sangue, enquanto seus companheiros fugiam. O terror paralisou  as minhas pernas. Encolhi-me para dentro do escudo, como uma tartaruga,  chorando, e gritando, lancinantemente. Vendo que, devido ao escudo, não podiam  me traspassar, os egípcios, lá de cima das muralhas, principiaram a derramar  breu fervendo, virando enormes caldeirões. E o breu escorria fumarento e grosso  pelo chão, perto de mim. Por sorte, umas pedras grandes me protegeram, e apenas tive ligeiras queimaduras nas mãos e nos joelhos. Assistindo de longe a tal  espetáculo, os homens de Aziru riam-se até cair no chão.

Por fim o comandante deles fez soar uma trombeta, e os egípcios consentiram  que eu penetrasse na cidade. Mas não abriram as portas; baixaram um cesto de vime amarrado na ponta de uma  corda e para dentro do qual tive que entrar com as tábuas de argila e o ramo de  palmeira. E assim me içaram por cima da muralha.

Censurei veementemente o comandante da guarnição, por causa disto. Mas era um  homem tenaz, obstinado. Disse-me que se vira às voltas com tamanhas traições dos  sírios que não abriria as portas da cidade a não ser com ordem expressa de Horemheb. Não quis acreditar que a paz fora assinada, embora eu lhe mostrasse as  tábuas de argila e lhe falasse em nome do faraó. Era um indivíduo simples,  teimoso. Mas se não fossem essas suas qualidades com certeza o Egito teria  perdido Gaza desde muito; não tenho muito direito, portanto, para repreende-lo.   

De Gaza naveguei para o Egito. Por causa da hipótese de sermos surpreendidos  por frotas inimigas, ordenei que a flâmula do faraó fosse içada no mastro  principal com todos os sinais de paz. Devido a isso os marinheiros me davam mostra de menosprezo, dizendo que a nave assim enfeitada parecia mais uma  cortesã do que um navio. Quando alcançamos o rio, a população se foi reunindo ao  longo das margens, agitando palmas e me aplaudindo porque eu era emissário do faraó e trouxera a paz. Finalmente os próprios marujos resolveram me respeitar e  cheguei a esquecer que tinha sido içado dentro de uma cesta para cima das  muralhas de Gaza.    Depois que me vi novamente em Menfis e que Horemheb leu as minhas tábuas de  argila, recebi cálidos elogios como mediador sagaz. E isso com grande espanto  meu, pois Horemheb não era dado, absolutamente, a aplaudir feitos de ninguém; muito menos os meus. Fiquei  sem entender. E só entendi depois que soube que a frota cretense recebera ordem  de se recolher à ilha.

Ahn!... Em tal caso, Gaza não tardaria em cair nas mãos  de Aziru caso a guerra continuasse, porque sem comunicações marítimas tal cidade  não se agüentaria. Esta era a razão dos louvores de Horemheb que logo remeteu  muitos navios para Gaza carregados de tropas, armas e provisões.    Durante a minha estadia junto do rei Aziru, o rei Burnaburiash, de Babilônia,  enviara um emissário a Menfis, com uma delegação carregada de muitos presentes. Ao passar por Menfis recebi esse  emissário a bordo do navio do faraó para onde baldeei, e assim viajamos juntos,  pelo rio acima. Foi uma viagem agradável porque o emissário era um velho venerável, de profundos conhecimentos, com uma barba branca e sedosa que lhe  vinha até ao peito.

Conversamos sobre astros e entranhas de carneiro; e por conseguinte não faltou  assunto para debates porque se pode conversar a vida inteira sobre astros e  fígados de carneiro sem jamais se exaurir o tema.    Discutimos negócios de Estado, também, e percebi que ele estava  preocupadíssimo com o poderio crescente dos hititas.

Os sacerdotes de Marduk  prediziam que o poder dos hititas seria limitado e que duraria menos de cem  anos; depois de tal prazo seriam aniquilados por uma raça branca, selvagem, do  Ocidente. Isso pouco me adiantava já que eu nascera a para viver durante o  período da supremacia dos hititas. Perguntei a mim mesmo como era que poderia  vir qualquer povo do Ocidente, se nessa banda não havia continentes e sim apenas  ilhas no alto mar? Contudo, já que os astros tinham falado fiquei persuadido  dessa verdade.

Assistira em Babilônia a tantas maravilhas que mais fácil me era acreditar nos  astros do que na minha pobre ciência.    Esse emissário trazia consigo um pouco do ótimo vinho montanhês. Enquanto  rejubilávamos nossos corações com essa bebida, o velho me disse que os signos e  os augúrios pressagiavam, em número cada vez mais crescente o fim de uma era.

Concordamos ambos que estávamos vivendo o crepúsculo do mundo e que a noite  universal se aproximava. Muitos cataclismos deveriam acontecer; muitos povos  deveriam ser varridos da face da terra, como os mitanianos já haviam sido  varridos, muitos deuses antigos deveriam morrer antes do nascimento de novos  deuses e do princípio de um novo ciclo. Indagou sofregamente sobre Aton, e  meneou a cabeça e cofiou a barba branca enquanto me ouvia. Reconheceu que nenhum  outro deus igual a Aton se revelara ao mundo e achou que seu aparecimento agora  podia significar o começo do fim, porque ensinamentos e doutrinas assim tão  perigosos jamais tinham ocorrido antes.    Após uma viagem agradável chegamos a Akhetaton. E tive a impressão de estar  muitíssimo mais douto do que quando partira.

Durante a minha ausência as cefaléias do faraó tinham voltado, e a ansiedade  aguilhoava seu coração porque sabia que todos os seus empreendimentos goravam.  Seu corpo ardia ao fogo das alucinações, e o depauperamento físico era notório.

A fim de reanimá-lo, Eie, o sacerdote, decidira arranjar uma comemoração de  trinta anos de reinado, no outono, depois da colheita, quando as águas  começassem a subir.

Isso não significava absolutamente que o faraó já houvesse reinado por trinta  anos. Ir que desde muito imperava o costume dos faraós comemorarem tal  aniversário quando muito bem queriam.

Grande número de gente chegou a Akhetaton para a festa, e certa manhã, quando  o faraó passeava junto ao lago sagrado, dois assassinos se arrojaram sobre ele  com punhais. Um jovem aluno de Thothmes achava-se sentado na orla do lago desenhando patos, porque Thothmes obrigava que seus discípulos copiassem da vida  e não de moldes Esse jovem desviou os punhais dos bandidos atirando seu estojo  em cima deles, de modo que os guardas vieram a tempo de dominar os atacantes.

E  o faraó sofreu apenas  um ferimento no ombro. Mas o jovem morreu e seu sangue molhou as mãos do faraó.  Foi assim que a morte se apresentou diante de Akhnaton. Em meio a glória outonal  do jardim; o sangue caiu em cima das. mãos reais. E o faraó viu a morte  escurecer os olhos do rapaz cuja mandíbula pendeu sobre o pescoço...

Fui chamado à pressa para tratar do ferimento do faraó. Tal ferimento não  tinha importância. Consegui, por isso, ver os dois assassinos. Um tinha a cabeça  raspada e seu rosto reluzia de óleo sagrado. O outro era um homem de orelhas cortadas como castigo de algum crime repelente. Enquanto os guardas os  acorrentavam eles forçavam as cadeias aos ímpetos, gritando imprecações medonhas  em nome de Ammon. E não se calavam mesmo enquanto os guardas lhes batiam nas bocas ensangüentando-as. Decerto os sacerdotes lhes tinham dado bebidas mágicas  para que não sentissem dores.

Tal fato foi alarmante, porque até então ninguém ousara erguer publicamente as  mãos contra o faraó. Provavelmente alguns devem ter morrido prematuramente e de  morte não natural; mas não se tratava de atentados realizados abertamente.

Se  isso foi feito, decerto o foi secretamente, com veneno, talvez, ou com uma  corda; ou então com uma almofada, tudo sem deixar vestígio. Uma vez ou outra,  também, o crânio de algum faraó deve ter sido aberto contra a sua vontade. Mas atentado assim público,  este foi o primeiro, e não pode ser silenciado.

Os prisioneiros foram interrogados na frente do faraó, mas se recusaram a  falar. Só abriram as bocas para invocar o auxílio de Ammon e amaldiçoar o faraó,  não obstante os guardas os ferirem nos beiços com golpes de espada. E ao ouvir o nome daquele deus o próprio faraó se enraiveceu tanto que deixou que os guardas  continuassem a bater até os rostos dos homens ficarem ensangüentados e os dentes  lhes caírem.

Mas os prisioneiros não cessavam de invocar o nome de Ammon; e por fim o faraó  proibiu que a violência continuasse. Mas os presos bradaram, em ar de desafio:

- Deixa que eles nos torturem, falso faraó. Deixa que nos esmaguem, que queimem  nossa pele, que arranquem nossa carne, pois não sentimos dores.

Tão decididos se mostravam, que o faraó se voltou de lado, para cobrar ânimo.  E, recuperando domínio, se envergonhou amargamente de haver consentido que os  guardas  ferissem os homens no rosto. Disse:

- Soltai-os. Eles não sabem o que fazem.

Quando os guardas abriram as algemas, os cativos começaram a imprecar mais  violentamente do que antes. Suas bocas espumavam; e diziam em uníssono:

- Mata-nos, faraó amaldiçoado. Mata-nos em nome de Ammon, falso faraó, para que  obtenhamos a vida eterna.

Quando perceberam que o faraó decidiu mandá-los embora sem mais castigo, soltaram-se das mãos dos guardas e se arremessaram de cabeça  de encontro às muralhas do pórtico, fraturando assim os crânios e morrendo logo  a seguir.

Todos na casa dourada reconheceram que doravante a vida do faraó corria  perigo. Seus parentes redobraram o corpo da guarda e não permitiam que se  afastasse de suas vistas, embora, em sua taciturnidade, ele desejasse andar  sempre sozinho no jardim ou junto da margem. Os que acreditavam em Aton  tornaram-se ainda mais devoto, ao passo que aqueles que apenas professavam tal  crença visando riquezas e posições, começaram a temer a perda dos cargos e  aumentaram de zelo no serviço.  Assim nos dois reinos o fanatismo aumentou e a população ficou alvoroçada tanto  por causa de Aton como de Ammon.

Também em Tebas cerimônias e desfiles foram arranjados em comemoração ao  trigésimo aniversário. Cestas de filigrana foram remetidas para lá; penas de  avestruz; panteras em gaiolas; girafas, macacos de porte pequeno, e papagaios de plumagens vistosas. Tudo isso era trazido rio abaixo e acima, para que a  população visse a variedade  da riqueza dos domínios do faraó, e louvasse o seu nome. Mas o povo de Tebas  assistiu em silencio ao desfile comemorativo. Houve lutas nas ruas, e a cruz de  Aton foi arrancada da roupa dos homens. Dois sacerdotes de Aton foram  mortalmente esbordoados quando se aventuraram a atravessar a multidão sem  acompanhamento de guardas.

E o pior de tudo foi que os emissários estrangeiros assistiram a tais coisas e  souberam também do atentado à vida do faraó. O embaixador de Aziru teria  histórias agradáveis a contar a seu senhor quando voltasse à Síria.

E ao voltar levou presentes caríssimos do faraó; eu também mandei presentes a  Aziru e família por intermédio do seu emissário.  Mandei ao garoto um exercitozinho completo esculpido em madeira, com infantes,  arqueiros, cavalos e carros vistosamente pintados. Mandei que metade fosse feita  com o uniforme hitita e a outra metade com o uniforme sírio, na esperança de  que, quando brincasse, o garoto pusesse as duas facções em luta. As figuras  tinham sido feitas por carpinteiros muito habilidosos, de Ammon, que se achavam  agora sem trabalho porque os templos e as oficinas do templo haviam sido  fechados. Paguei mais por esse exercitozinho do que pelos demais presentes que  remeti a Aziru.

Por esse tempo o faraó não estava passando bem; acometiam-no muitas dúvidas;  sua fé ficara muito abalada, tanto que às vezes chorava amargamente porque as  suas visões tinham desaparecido e Aton o abandonara. Contudo, por fim, levou em apreço o atentado sofrido, derivando daí nova fortaleza, considerando que a sua  missão  era mais nobre ainda do que antes e seus trabalhos de importância bem maior  porque reinava ainda muita treva na terra do Egito. Provaram o pão amargo e a  água salgada do ódio, e tal pão não satisfizera sua fome e tal água não aplacara  sua sede. Ainda assim cuidou que estava agindo com acendrada bondade quando  redobrou a perseguição  aos sacerdotes de Ammon e deu em mandar para as minas os que diziam alto o nome  de Ammon. Os que mais sofreram foram por conseguinte os ingênuos e os pobres, porque o poder secreto dos sacerdotes de Ammon era formidável e os guardas do  faraó não ousavam intervir em suas vidas.

Desta forma o ódio nutriu mais ódio e  o desassossego foi aumentando.

Não tendo filho, o faraó procurou assegurar o trono casando as filhas mais velhas, Meritaton e Ankhsenaton, com os filhos de dois nobres seus fiéis prosélitos da corte. Meritaton quebrou o cântaro com um jovem chamado Sekenre  que exercia o cargo de pagem da taça do faraó e que acreditava em Aton. Era um  rapaz afoito, de quinze anos, dado a ter alucinações e de quem o faraó Akhnaton  gostava.

O faraó permitiu-lhe que usasse o adereço frontal da realeza e o escolheu para seu sucessor, pois não esperava mais vir a ter um filho. Mas Ankhsenaton quebrou o cântaro com um menino de dez anos de idade, chamado  Tut, a quem foram confiadas as dignidades de Escudeiro-Mor e Inspetor das  Construções e Pedreiras Reais. Era um menino magricela e doentio, que brincava  com bonecas e gostava de confeitos e era muito obediente e dócil. Não era mau e nem apresentava grandes qualidades, acreditando em tudo quanto lhe diziam e repetindo tudo como um eco.

Estes jovens eram do sangue mais nobre do Egito, e o faraó casando suas filhas  com eles pensou assegurar para si e para Aton a aliança de duas das mais  ilustres famílias. Simpatizou com os genros porque estes não tinham vontade  própria, e o faraó, em seu fanatismo, não tolerava diferença de opinião nem ouvia conselheiros.

Exteriormente tudo continuava como antes; mas o atentado contra a vida do  faraó foi um péssimo sinal.  E isso porque ele deixou de dar ouvidos a vozes humanas e a escutar apenas as  que ressoavam dentro de seu espírito. A vida tornou-se opressiva em Akhetaton as  ruas foram ficando mais quietas, as pessoas riam menos do que tempos antes e  falavam baixo como se um pânico secreto lavrasse pela Cidade Celestial. Muitas  vezes eu era despertado dos meus pensamentos enquanto trabalhava: era o ruído do  relógio de água; então olhava para fora e me dava conta de um  Silencio súbito, mortal pela cidade; som nenhum chegava a mim. a não ser o do  meu relógio, como se este estivesse medindo um tempo incomensurável.

Em certos  momentos o seu murmúrio me parecia sinistro como se um prazo concedido estivesse  chegando ao fim. A seguir, carruagens rolavam outra vez pela frente da minha  casa e eu via as plumas coloridas se agitarem nas cabeças dos cavalos. Ao  ressoar seco das rodas se misturavam as vozes dos fâmulos depenando caça no  pátio da cozinha. Então eu serenava outra vez, cuidando que tudo não passara de  um pequeno pesadelo.

No entanto havia momentos lúcidos, frios, em que eu via a cidade de  Akhetaton apenas como a casca lisa e bonita de um fruto corroído de todo por  dentro por chusmas de vermes. O afã do tempo sugava a substância da sua vida  afável, de modo que a alegria se extinguiu e a risada morreu em Akhetaton. 

Comecei a sentir saudades de  Tebas e não precisei procurar pretextos para a viagem. O meu coração me supria  abundantemente com motivos. O mesmo se deu com muitos que imaginavam devotar  interesse pelo faraó. Foram deixando Akhetaton; alguns, para ver suas herdades;  outros por causa de casamentos dos parentes. Muitos regressaram, mas alguns não,  indiferentes já agora ao favor do faraó e confiando mais no poder secreto de  Ammon. Fiz que Kaptah me remetesse numerosos papéis testificando a necessidade  da minha presença em Tebas. Agi assim para que o faraó me deixasse partir.

Logo que me vi a bordo e a caminho da viagem fluvial, senti a alma como que  libertada de um sortilégio. A primavera tornara a voltar, as águas tinham  baixado e por sobre elas revoluteavam bandos ligeiros de andorinhas. A lama  fértil espalhara-se por sobre os campos, e os pomares estavam em flor. Tomei-me  de pressa, invadido pelo doce alvoroço da primavera, como um noivo afoito em  busca da amada. De tal forma é o homem escravo do seu coração que fecha os olhos  ao que não o agradar, passando a acreditar apenas no que confia. Libertado do  sortilégio e do medo de Akhetaton, meu coração se mostrava jubiloso como um  pássaro que se tivesse soltado da gaiola. ruim se estar ligado à vontade alheia, como toda gente em Akhetaton estava ligada á vontade febril, crispante e  opressiva do faraó. Para mim, seu médico, ele era apenas um homem, e tal  escravidão era pior para mim do que para aqueles que o cuidavam um deus.

Que bom tornar a ver as coisas com os meus olhos e ouvir com os meus ouvidos,  falar com a minha língua e viver de acordo com a minha vontade! Tal liberdade  não me foi danosa; pelo contrário, tornou-me humilde, e derreteu a amargura consolidada dentro de meu coração. Quanto mais distanciado do faraó mais  claramente o podia ver e mais sinceramente lhe queria bem. Quando mais perto ia  ficando de Tebas mais imediatas e vivazes se tornavam as lembranças em minha  alma e maior ficava o faraó e mais puro o seu deus.

Portanto minha esperança e minha fé eram as mesmas, e rejubilei ao sentir que  era uma criatura boa e melhor do que muitas outras. Já que devo ser correto  comigo mesmo e viver pela verdade, cumpre confessar que me considerei um homem melhor do que o faraó, porque não fazia mal a ninguém, deliberadamente, não  exigia que ninguém adotasse a minha crença, e ao tempo da minha mocidade atendia  aos doentes sem exigir donativos.

Enquanto prosseguia a viagem pelo rio, ia  vendo por toda parte vestígios do deus do faraó Akhnaton. Embora estivéssemos no  auge da estação das semeaduras, metade dos campos do Egito permanecia sem arar,  completamente desnudos esses campos, apenas apresentando caniços e dardos; além disso as águas da cheia haviam entupido os poços e fossos com lama que ninguém  procurava remover.

Ammon ia exercendo seu poder sobre os corações dos homens, enxotando das  terras que tinham sido suas todos os colonos, e amaldiçoando também os campos do  faraó; de maneira que lavradores e agricultores fugiam e iam se acoitar nas cidades. Poucos colonos permaneciam em suas cabanas, e isso mesmo apreensivos e  desanimados.

Falei com alguns deles.

- Loucos! Por que não arais e não semeais? Quando o inverno chegar morrereis  de fome.

Olhavam-me com inimizade porque meus trajes eram do melhor linho e  respondiam:

- Semear para que, se o pão dos nossos campos é maldito e mata os que o comem  conforme o trigo mosqueado já matou nossos filhos?

Tão remota jazia a cidade de Akhetaton da vida real que só agora é que eu  ficara sabendo que o trigo mosqueado causava a morte de crianças. Antes, jamais  ouvira falar em tal doença, que passava de uma criança para outra; elas ficavam  com os ventres inchados e morriam lancinantes. Nem médicos, nem feiticeiros  podiam dar um jeito. Pareceu-me que a doença não seria originada pelo trigo e  sim pelas águas da cheia de onde promanavam todas as doenças infecciosas do  inverno. Verdade é que a citada. doença matava apenas as crianças; mas ao  observar os adultos, que não ousavam semear seus campos preferindo sujeitar-se à  morte pela fome, vi que a doença matara pelo menos seus corações. Não censurei o  faraó por tudo isso que vi, e sim a Ammon que envenenara a tal ponto a vida  daquela gente do campo que esta acabara preferindo a morte à vida.

A impaciência de rever Tebas me levou ao convés. O suor pingava do rosto dos  remadores. Aborrecidos, mostraram-me as mãos calosas e inchadas porque eu lhes  exigira pressa. Prometi curar-lhes as feridas com prata e lhes matei a sede com cerveja, querendo ser bondoso. Mas enquanto se arqueavam, seus bustos indo e  vindo, ouvi murmúrios assim:

- Por que motivo havemos de remar para  esse suíno gordalhufo, se todos os homens são iguais perante o deus dele? Façamo-lo experimentar, para que sinta e, então, cure as mãos com prata, se  puder!...

A vara, a meu lado rangeu como a querer me atiçar; mas minha alma estava  repleta de bondade porque eu ia a  caminho de Tebas. Tendo refletido nas palavras dos remadores, dei-lhes razão.    Aproximei-me e disse:

- Remadores, dai-me um remo.

Instalei-me e remei com eles até que a madeira grossa  do remo esfolou a palma das minhas mãos e as bolhas se tornaram feridas. Minhas costas doíam tanto que pensei estar com a espinha fraturada; até a  respiração me era difícil. Mas disse ao meu coração: "Queres desistir do trabalho que ostentosamente procuraste? Não vês que os  escravos zombarão de ti? Isto e muito mais é o que eles suportam diariamente.  Experimenta a trabalheira, sente o suor, os calos das mãos, para reconheceres  que espécie de vida é a vida deles! Pois outrora, Sinuhe, não dizias que querias  provar a taça até ao fundo?”

Assim, remei até quase cair esfalecido; e os criados tiveram que me levar para  a cama.

No dia seguinte me pus a remar com as mãos esfoladas, e os remadores não  caçoaram mais de mim; pelo contrário, pediam que eu parasse de remar, dizendo:

- Sois o nosso amo e nós somos vossos escravos. Não remeis mais, pois assim  veremos tudo às avessas. Não remeis mais. Há que haver ordem nas coisas; cada  homem tem a sua situação conforme os deuses ordenaram, e a vossa não é a de remador.

Mas remei com eles durante todo o tempo rumo a Tebas. O meu alimento era o pão  que eles comiam, e minha bebida a cerveja amarga dos escravos. Cada dia eu  conseguia remar um pouco mais; cada dia meus membros se tornavam mais rijos como  aço; cada dia sentia mais prazer em viver, e notava que não tinha mais falta de  fôlego.

Os meus criados estavam preocupados por minha causa e diziam lá entre eles:

- Alguma vespa o mordeu... Ou então é loucura, já que em Akhetaton isso de  miolo mole. É  doença que se vai alastrando. Mas não precisamos ter medo dele  porque estamos com o chifre de Ammon escondido debaixo da roupa.

Mas eu não estava louco, não! Nem pretendia remar senão até Tebas.

Aproximamo-nos da cidade cujo cheiro nos atingiu ainda no rio, um cheiro que,  para quem nascera naquelas bandas, se diferenciava de todos os mais. Pedi aos  criados que esfregassem ungüento em minhas mãos, me lavassem e me vestissem com a melhor roupa. A tanga ficara muito larga porque o meu ventre emagrecera com o  exercício de remo; foi preciso apertá-la, coisa que fizeram com alfinetes,  lamentando. Ri, mandei-os que fossem avisar Muti da minha chegada, não ousando  me apresentar sem ser anunciado.

Distribuí prata entre os remadores; e ouro, também, dizendo-lhes: Louvado seja Aton! Ide encher os bandulhos! Alegrar os corações com boa  cerveja!

E dormir com raparigas bonitas de Tebas, porque Aton é o doador da alegria,  gosta dos prazeres simples e prefere os pobres aos ricos, pois seus prazeres são  naturais.    Com fisionomias sombrias agarraram a prata e o ouro, declarando:

- Não queremos ofender-vos, mas dizei-nos: não é esta prata  amaldiçoada? E este ouro não é maldito? Sim, indagamos porque nos falaste em  Aton! Em caso afirmativo, não podemos receber, pois tal dinheiro queimará nossos  dedos e virará pó.   

Não gostei que me falassem assim porque eu remara com eles e os tratara  afavelmente. Tranqüilizei-os. Pois se tendes medo deste dinheiro ide trocá-lo depressa por cerveja. Mas  se quereis uma garantia, afirmo que não se trata de ouro nem de prata  amaldiçoados. Podeis examinar a marca estampada neles; trata-se de metal antigo,  puro, sem liga com cobre de Akhetaton. Ó cretinos, se desdenhais Aton ignorais  vossas próprias vantagens e conveniências.    Responderam:

- Temermos Aton? Nós? Como, se trata de um deus impotente?! Deveis saber  muito bem qual é o deus que tememos, patrão. Só não dizemos alto o nome dele  porque o faraó proibiu.

Irritei-me, não quis prolongar a conversa. Mandei-os embora. Foram aos saltos,  rindo e cantando, como é o feitio dos remadores. Tive vontade também eu, de rir,  saltar e cantar; mas isso não condizia com a minha dignidade.

Dirigi-me diretamente para O Rabo do Crocodilo sem esperar sequer por uma liteira. Após  longa separação, revi Mérito e a achei mais adorável do que antes. Não quero  dizer com isto que não reconheça que o amor, como todas as paixões, aviva a visão.   

Já agora Mérito não era mais jovem; todavia, na maturação do seu verão, era  minha amiga e se achava mais perto de mim com aquele seu feitio, do que qualquer  outra mulher já estivera.   

Ao me ver, curvou-se profundamente e ergueu as mãos; depois se aproximou para  tocar meus ombros e minhas faces, o que fez sorrindo e dizendo:

- Sinuhe! Sinuhe! Que aconteceu para estardes com os olhos tão claros e o ventre  tão diminuído?!   

- Mérito, diletissíma! O que tornou meus olhos claros foi a saudade. Foi a febre  do amor! E o meu ventre se fundiu em melancolia à medida que eu me apressava  para te rever, ó minha irmã!   

Enxugando os olhos, disse:

- Oh! Quanto não vale mais do que a verdade a mentira com sua doçura quando uma  pessoa sofre de solidão vendo que sua primavera floriu inutilmente? Sempre  que voltais vem convosco de novo a primavera, e acredito em todas as histórias antigas.

Não direi mais nada quanto a este encontro, porque preciso falar também de  Kaptah. Ah! Evidentemente sua barriga não diminuíra de modo algum: Kaptah estava  mais corpulento do que nunca, e tintilavam em seus pulsos e tornozelos mais argolas, ao passo que o disco que lhe cobria a órbita vazada apresentava agora  pedras preciosas. Vendo-me, chorou e deu brados de alegria.

- Abençoado seja o dia que traz à casa o meu amo!

Levou-me para uma sala  reservada, fez-me sentar em almofadas macias enquanto Mérito nos servia os  melhores pratos que a taverna O Rabo de Crocodilo podia oferecer. E rejubilamo-nos juntos.  Mais uma vez Kaptah prestou contas da minha riqueza, declarando:

- Sinuhe, meu patrão, é o homem mais inteligente que conheço... mais astuto do  que os negociantes de trigo que são uns sabidões incomparáveis! Na primavera fui  enganado por seu ardil. Pela certa o escaravelho tomou parte nisso. O patrão se  lembra que me mandou distribuir todo o seu trigo entre os colonos para que estes  semeassem, exigindo deles apenas medida por medida, razão pela qual o chamei de  louco? E pela média do senso comum tal idéia era mesmo de louco. Pois lhe devo  dizer que graças a esse estratagema a sua riqueza duplicou. Não posso mais reter  de cor o vulto da sua fortuna! E os cobradores de impostos do faraó, tão  conhecidos por sua impudência e rapacidade, não me largam um instante. Deu-se o  seguinte: assim que os negociantes souberam que os colonos tinham recebido  semente o preço do trigo caiu imediatamente; e caiu ainda mais quando chegaram  as notícias da paz porque toda gente então vendeu para ficar livre de seus  compromissos, com o que os mercadores tiveram muitos prejuízos. Mas nesse ponto  comprei a preço baixo trigo que ainda não tinha sido segado. No outono reuni  medida por medida conforme o patrão ordenara de modo que assim fiquei novamente  com o meu antigo abastecimento. Confidencialmente lhe digo, patrão, que o trigo  dos colonos é tão bom como qualquer outro e não faz mal a ninguém. Creio que os  sacerdotes e os seus sequazes tinham secretamente borrifado sangue sobre o trigo  dentro das caixas de modo que ele mosqueou e adquiriu mau cheiro. Quando chegou o inverno o preço do trigo subiu outra vez porque Eie, em nome  do faraó, expediu algum para a Síria depois que a paz foi assinada, com o  intuito de anular o trigo babilônico dos mercados sírios. Por isso o preço nunca esteve tão alto como agora. Nossos lucros são enormes e aumentarão se retivermos  nossos estoques. No próximo outono a carestia se alastrará pela nação porque os  campos dos colonos não estão arados nem semeados; os escravos fogem dos campos  do faraó e os lavradores estão escondendo seu trigo para que não seja tomado  e remetido para a Síria. Por tudo isso, que hei de eu fazer senão entoar aos  seus louvores porque o patrão foi mais astuto do que eu embora naquela ocasião o  considerasse um louco!...

Com enorme entusiasmo, continuou:

- Louvados sejam estes tempos que acabam tornando o rico ainda mais rico, quer  ele queira, quer não. São na verdade tempos bem esquisitos, pois agora ouro e  prata escorrem não sei de onde para dentro de minhas arcas e cofres. Vendendo cântaros vazios fiz quase tanto lucro como com o trigo. Pelo Egito inteiro há  homens comprando cântaros vazios de toda espécie e, ao ouvir isso, tratei de  contratar escravos às centenas para a compra de cântaros. Toda gente; lhes dá quase de mão beijada os cântaros que tem só para assim se ver livre de vasilhame  rançoso que lhe enche os pátios. Se eu lhe disser que neste inverno vendi mil  vezes mil cântaros, exagerarei um tanto, mas não muito. 

- Que maluco é esse que anda comprando cântaros vazios? - perguntei.

Kaptah de uma piscadela rápida com o olho bom e disse:   

- Os compradores afirmam que no Baixo Reino foi descoberto um novo processo de  preservar o peixe em salmoura.    Interessei-me pelo assunto e vim a saber que esse cântaros estão sendo  remetidos para a Síria. Navios abarrotados deles tem sido descarregados em  Tânis... e em Gaza também de onde são comboiados em caravanas para dentro da  Síria. O que os sírios fazem com eles é um mistério. Ninguém pode entender que  lucro possam ter em comprar cântaros usados pelo preço dos novos.   

Essa história de cântaros contada por Kaptah era notável, mas não queimei os  miolos a querer desvendá-la porque o negócio do trigo era de mais importância  para mim. Depois que ouvi seu relato até ao fim, disse:

- Vende tudo quanto tens, se necessário for, e compra trigo! Compra todos os  estoques que puderes, seja lá qual for o preço. Não compres nenhum que ainda não tenha sido colhido, mas apenas o que puderes  ver com teus olhos e esfarelar com teus dedos.    Verifica também se podes comprar outra vez o que já foi expedido para a Síria,  porque embora o faraó pelos termos do tratado de paz deva remete-lo, ainda assim  a Síria poderá sempre adquiri-lo da Babilônia. Realmente a carestia deve assolar  a terra de Kan; portanto, que seja amaldiçoado o homem que vende trigo das  reservas do  faraó só para fazer concorrência ao trigo da Babilônia!

Ao ouvir isso Kaptah elogiou ainda mais a minha  sabedoria.

- Concordo com o meu amo que, aliás, quando estes negócios forem concluídos,  será o homem mais rico do Egito. Acho que ainda posso comprar trigo, embora esteja  a preço de usurário. Mas o homem que o patrão amaldiçoou é simplesmente o  sacerdote Eie, que vendeu grão à Síria no começo enquanto o preço ainda estava  baixo. Em sua insensatez vendeu tal quantidade que dá para suprir a Síria  durante muitos anos, e o fez só porque a Síria  pagou imediatamente e em ouro, e ele, Eie, precisava de ouro para o festival do  faraó. Os sírios não no-lo revenderão porque são negociantes astuciosos e  imagino que hão de querer esperar até chegarmos a medir um grão de trigo por  outro de ouro. Só então é que no-lo  revenderão, drenando todo o ouro do Egito para as  suas arcas.   

Mas logo esqueci o trigo e a carestia que ameaçava o Egito, e o futuro que  jazia escondido nas trevas desde que o poente arremessara seu fulgor rubro de  sangue por sobre Akhetaton. Olhei para os olhos de Mérito e meu coração se embeveceu com a beleza dela que era vinho na minha boca e bálsamo nos meus  cabelos. Kaptah despediu-se, e ela estendeu a esteira para que eu me deitasse.  Não hesitei mais em chamá-la de minha irmã, embora houvesse julgado, tempos  antes, que jamais tornaria a chamar uma outra mulher assim.

Segurava minhas mãos  durante a treva da noite, respirava em cima do meu rosto, e meu coração não  tinha segredos para ela que me falava sem falsidade nem mágoa. Sua alma reteve  aquele seu segredo, que jamais vim a deduzir qual fosse. A seu lado eu não me  sentia estrangeiro no mundo, porque o seu corpo era a minha pátria, os beijos da  sua boca enxotavam a solidão... E todavia isso não era senão uma ilusão fugaz  pela qual eu precisava passar para que a medida da minha experiência ficasse  repleta.

Na taverna O Rabo do Crocodilo revi o pequenino Thoth cujo aspecto  aqueceu meu coração. Atirou os braços ao meu pescoço, chamou-me de "pai" o que me fez admirar sua  memória. Mérito disse-me que a mãe de Thoth tinha morrido e que ela então o  trouxera para casa porque desde que o levara a circuncidar se comprometera, segundo o costume, a criá-lo caso os pais não o pudessem fazer. Thoth se achava  a bem dizer em casa ali na taverna O Rabo do Crocodilo onde os fregueses  gostavam muito dele e lhe traziam presentes e brinquedos para agradar a Mérito.

Fiquei encantado com ele e durante a minha estadia em Tebas o trouxe para  morar na casa do fundidor. Muti ficou radiante com isso. Vendo-o brincar ao pé  do sicomoros, e ouvindo-o discutir e brincar com os outros meninos, lembrei-me da  minha infância e tive inveja dele. Gostava tanto dali que passava as noites  comigo também; por vontade e prazer comecei a lhe dar aulas embora ele ainda não  estivesse na idade de ir à escola. Achei-o inteligente; aprendeu logo os sinais  e os caracteres da escrita e resolvi matriculá-lo à minha custa na melhor escola  de Tebas freqüentada pelas crianças de alta extração. Isso tornou Mérito muito  feliz. Muti não se cansava de assar ao forno bolos de mel para ele e de contar-lhe histórias. Ela agora estava como queria: havia uma criança em casa mas sem a  mãe para aborrecer uma criada e lhe jogar água quente nos pés, conforme faziam  as esposas que se vingavam dos maridos brigados, maltratando a criadagem.

Minha felicidade poderia ter sido total; mas naquela ocasião havia distúrbios  em Tebas, distúrbios esses aos quais eu não podia fechar os olhos. Não se  passava um dia sem rixas nas ruas, e as intermináveis disputas sobre Ammon e  Aton acabavam em derramamento de sangue e cabeças quebradas. Os guardas e os  magistrados do faraó tinham muito que fazer porque todos os dias homens,  mulheres e crianças eram amarrados com cordas e levados para o cais a fim de  seguir para os campos e até mesmo para as minas do,faraó por causa de Ammon. Mas  suas partidas não eram degradantes porque o povo se aglomerava no cais para  saudá-los e jogar-lhes flores. Os prisioneiros erguiam as mãos algemadas e  diziam:

- Voltaremos em breve. Sim, voltaremos em breve para provar o sangue de Ammon.

Por causa do povo os guardas não ousavam silenciar os prisioneiros e não os  esbordoavam senão depois que os navios desatracavam das docas. Desta forma a população de Tebas estava dividida entre ai. O pai contra o  filho, a mulher contra o marido, e tudo por causa de Aton.

Assim como os prosélitos de Aton usavam cruzes da vida no pescoço ou nas  vestes, assim o chifre era a marca dos crentes de Ammon que também o usavam à  mostra. Ninguém podia proibir tal uso porque desde séculos aquele chifre vinha sendo aceito como adorno em vestidos e como variação em jóias.

Para surpresa minha o poder de Aton aumentara sensivelmente em Tebas de um ano  para cá, e no princípio dei tratos ao raciocínio para descobrir o motivo. Muitos  colonos tinham voltado para a cidade e, como tinham perdido tudo, traziam Aton  envolto em suas amarguras e queixas e acusavam os sacerdotes de lhes haver  envenenado  o trigo, mandado entupir os fossos de irrigação e obrigado o gado a pisar na  lavoura. Muitos tinham aprendido a nova .maneira de escrever e freqüentado as  escolas de Aton, e lhe eram favoráveis de modo acérrimo como sói acontecer com a  juventude e a mocidade por ocasião de competições e rivalidades. Os estivadores  e escravos das docas falavam assim:

- O nosso trato diminuiu para a metade do que era e não  temos mais nada a perder. Aos olhos de Aton não há senhor nem escravo, patrão nem criado, ao passo que  Ammon nos cobra preços altos pelo que precisamos dele.

Os mais ardorosos campeões de Aton eram os ladrões, os violadores de tumbas e  os traidores que tinham enriquecido bastante com delações e que receavam  vinganças caso as coisas mudassem. Todos aqueles que de uma maneira ou de outra ganhavam seu pão como funcionário desejavam continuar nas boas graças do faraó e  da divindade  oficial. Além disso havia ainda as pessoas que mais não queriam ser senão  cidadãos pacíficos e honestos, pois estavam cansadas de tudo isso e, tendo  perdido a crença  em qualquer deus, se lamentavam amargamente:

- Reine Ammon ou Aton tanto se nos dá. Desejam:os apenas viver em paz e  trabalhar. Mas nos reviram deste lado e daquele outro, de modo que já nem sabemos  se estamos  de cabeça para baixo ou vice-versa...

Mas quem mais sofria era quem procurava manter seu espírito livre, achando que  cada homem tinha o direito de escolher a própria crença. Mas logo todos  simultaneamente  caíam sobre esse pobre diabo, humilhando-o, acusando-o de indiferença e incúria,  de estupidez e de relaxamento, de apostasia e atraso e tatíto o atormentavam que  ele acabava aceitando uma cruz ou um chifre, optando por um compromisso que, dos  dois, fosse o menos capaz de aborrece-lo.

Muitas casas expunham um dos dois emblemas; botequins, cervejarias, casas de  divertimentos os expunham, de modo que partidários do chifre bebiam num lugar e partidários da cruz em outro.

As raparigas que exerciam a vida junto às muralhas, dependuravam cruzes ou  chifres no pescoço, conforme cuidavam que fosse mais conveniente para o aumento  de clientes. Todas as noites elementos das duas facções percorriam as ruas em bebedeiras e quebravam  lâmpadas, destruíam tochas, "ralavam" janelas e portas e se empenhavam em luta  uns com os outros. Não saberei dizer qual facção era a pior, pois ambas me  aterrorizavam.

A taverna O Rabo do Crocodilo também se viu compelida a expor a sua insígnia,  embora a contragosto de Kaptah que preferia concordar com todo aquele de quem pudesse  extrair dinheiro. Mas não pode sequer optar pessoalmente já que todas as noites  a cruz da vida era garatujada nas paredes da taverna e rodeada por figuras  indecentes.Isso era muito natural porque os negociantes de trigo nutriam ódio  profundo por Kaptah que os empobrecera distribuindo trigo aos colonos; não  adiantava nada haver declarado na nova licença a taverna em nome de Mérito. Foi  alegado depois, que determinado sacerdote de Ammon fora recebido com violência em sua casa. Os habituais fregueses de Kaptah pertenciam ao grupo duvidoso dos  ricaços do porto que não vacilavam diante de nenhum meio para adquirir riqueza e  que se tinham declarado todos favoráveis a Aton, já que fora através dele que  haviam prosperado.

Ninguém teve a ousadia de perseguir-me, porque eu era médico da corte e os  habitantes do bairro pobre não se esqueciam de mim nem de meus trabalhos. Por  isso nem  cruzes nem pinturas obscenas apareciam nas minhas paredes e nem eram atiradas  carcaças no meu pórtico. Mesmo os desordeiros bêbados respeitavam minha casa  quando  perambulavam nela ruas. de noite berrando o nome de Ammon só para enfezar os  guardas. O respeito para com aqueles que traziam o emblema do faraó estava na  massa  do sangue do povo, não obstante os sacerdotes fazerem tudo para convence-lo de  que Akhnaton era um falso faraó. Mas certo dia de calor Thoth entrou em casa, largando os brinquedos; e estava  todo machucado, com sangue a lhe escorrer do nariz e com um dente quebrado.  Entrou  soluçando, embora fizesse tudo para se mostrar um garoto valente. E Muti ficou  furjosa. Chorou enquanto lhe lavava a cara; mas depois, agarrando num pau,  exclamou, agitando os punhos ossudos:

- Ammon, ou Aton, tanto se me dá. Mas desta vez os fedelhos do tecelão me  pagam!

Enveredou rua afora antes que eu a pudesse reter, e logo veio da esquina uma  gritaria de meninos, berros pedindo socorro e vociferações de um homem. Thoth e  eu espiamos  medrosamente por um vão da porta e vimos Muti malhando em nome de Aton os cinco  filhos do tecelão, mais ele próprio e a respectiva mulher. E daí a pouco voltou,  ainda ofegando, furiosa. E quando tentei ralhar com ela e explicar-lhe que o  ódio gerava ódios e a vingança nutria vinganças, ela quase me esbordoou também.  Mas no decorrer do dia a consciência começou a atanazá-la. Então tirou do forno  alguns bolos de mel e de uma prateleira um pichel de cerveja; enfiou tudo numa  cesta e embarafustou para a casa do tecelão a fim de fazer as pazes com ele, a  mulher e criançada. Depois desse incidente, o homem tomou-se de veneração por  Muti, e  seus filhos se tornaram amigos de Thoth. Surrupiavam bolos de mel da nossa  cozinha e juntos lutavam tanto com partidários do chifre como da cruz, bastando  que jovens  prosélitos invadissem a rua para promover desordem.

Pouco resta a dizer desta temporada em Tebas. Até que um dia o faraó Akhnaton  mandou-me chamar porque suas cefaléias haviam piorado e não me foi possível  adiar  por mais tempo a minha partida. Despedi-me de Mérito e do pequeno Thoth, pois  por infelicidade não pude levá-los comigo, o que senti sobremaneira; mas o faraó  recomendara  que eu voltasse com a maior urgência.

Disse a Mérito:

- Vem ver-me. E traz o pequeno Thoth. Morarás comigo em minha casa lá em  Akhetaton e seremos felizes juntos.

Mérito respondeu:

- Arrancai uma flor de seu lugar no oásis que o deserto abrasa, plantai-a num  solo fértil, regai-a todos os dias, e ela murchará e morrerá. Assim acontecerá  comigo  em Akhetaton; da mesma forma a vossa amizade por mim murchará e morrerá quando  me comparardes com as mulheres da corte. Encarregar-se-ão de acentuar cada ponto  em que eu e elas diferirmos. Conheço-as, e creio que conheço os homens também.  Não se coadunaria com a vossa condição social manter em vossa casa uma mulher  criada numa taverna que desde tanto tempo é freqüentada por beberrões.

Retruquei:

- Mérito, minha amada! Voltarei assim que puder, porque longe de ti tenho  sempre fome e sede. Muitos tem deixado Akhetaton, para nunca mais voltar ainda  acabarei  fazendo o mesmo.

- Responsabilizai-vos, Sinuhe, pelo que está acima de vossas forças. Conheço- vos. Sei que não está em vosso temperamento abandonar o faraó quando os outros o  abandonam.  Nos tempos normais talvez fizésseis isso, mas atualmente não o fareis. Assim é o  vosso coração, Sinuhe, e decerto é por esse motivo que vos aprecio tanto.

Suas palavras comoveram-me e senti um aperto na garganta ao pensar que a poderia  perder um dia. Disse-lhe com muita seriedade:

- Mérito, o Egito não é o único país que existe no mundo. Estou farto de  batalhas entre deuses e não aturo mais a loucura do faraó. Fujamos para algum  lugar bem  distante onde viveremos juntos, tu, Thoth e eu, sem receio do dia de amanhã.

Mas Mérito sorriu. Aquela névoa esquisita no fundo dos seus olhos aumentou.  Disse-me:

- Falais por falar e bem sabeis disso. Em todo caso vossas palavras me  comprazem porque provam que me amais. Mas não acho que possais viver feliz fora  do Egito, assim como eu não sei viver senão em Tebas. Não, Sinuhe, ninguém pode viver ao léu. Futuramente, quando eu ficasse velha, gorda e feia, vos  aborreceríeis de mim e teríeis saudades do que vos faltou por minha causa.  Prefiro ficar longe a ver acontecer uma coisa assim.

- És a minha pátria e o meu lar, Mérito. És o pão nos meus dedos e o vinho na  minha boca. Bem sabes disso. És o único ser no mundo em cuja companhia não me  sinto isolado e por isso te amo.

- Sim, realmente! - concordou Mérito com um modo '' um tanto amargurado.” -  Sou a esteira forrada que amacia vossa solidão... Ou sou apenas a esteira que se  vai gastando... Mas tem que ser assim, e nada mais desejo senão isso. Eis o motivo pelo qual não vos conto o segredo que corrói o meu coração... segredo  esse que talvez devêsseis saber. Guardá-lo-ei comigo, não obstante, em horas de  fraqueza, haver querido vos contar para o vosso bem, Sinuhe, apenas para o  vosso bem que o escondo de vós.

Não me confiava seu segredo porque ainda era mais altiva do que eu e talvez  mais solitária; verdade que naquela ocasião não depreendi isso, pois pensava  apenas em mim.

Tenho impressão de que todos os homens são assim quando amam; nem por isso me  quero desculpar. Os homens que julgam não pensam a não ser neles próprio, quando  amam, estão iludidos, como o estão em muitas outras coisas.

Assim pois, mais uma vez deixei Tebas e voltei para Akhetaton. E do que dai  por diante aconteceu só há males a relatar.

 

O REINO DE ATON NA FACE DA TERRA

Assim que cheguei a Akhetaton encontrei o faraó muito mal, precisando deveras  do meu auxílio. Estava com o rosto mais magro, com os malares salientes e o  pescoço parecia mais comprido. Era-lhe impossível suportar o peso da coroa dupla que forçava sua cabeça para trás quando era obrigado a usá-la em cerimônias  oficiais.  Suas coxas tinham inchado e todavia as pernas, do joelho para baixo, eram quase  ossos apenas de tão finas. As órbitas também tinham olheiras violáceas e bolsas  de edema, devido as constantes dores de cabeça. Os olhos não fixavam ninguém,  diretamente; pareciam vagar em outros paramos. O faraó chegava a esquecer que  falava com alguém, tão distante ficando em seus pensamentos. As cefaléias  pioraram por causa do seu costume de andar com a cabeça descoberta na hora do  sol a pino para receber a benção dos raios bem em cima da cabeça. Mas os raios  de Aton não dardejavam bênçãos; pelo contrário, envenenavam-no, fazendo-o  delirar e ter visões ruins.  Talvez o deus e ele se assemelhassem, demasiado liberais em sua generosidade de amar, demasiado opressivos e profusos em suas bênçãos estando tudo quanto  tocassem. Em seus momentos lúcidos, quando eu lhe aplicava toalhas molhadas na cabeça e  lhe ministrava sedativos para suavizar a dor, os olhos escuros e aflitos do faraó pousavam em mim com uma desilusão tão inenarrável que meu coração se  comovia por causa dele... E eu o amava.

Quanto eu não sacrificaria para lhe  poupar essa angústia!

Dizia-me:

- Sinuhe, quem sabe se as minhas visões são mentiras, uma conseqüência do meu  mal físico? Se assim é, então a vida é inconcebivelmente hedionda e o mundo não  é governado pela bondade mas sim pelo mal ilimitado. Impossível! Impossível! Minhas visões são verdadeiras. Ouves, Sinuhe, o persistente? Minhas visões devem ser verdadeiras, apesar do sol não iluminar mais a minha  alma e os meus amigos cuspirem no meu leito. Não sou cego. Penetro com o meu  olhar o coração dos homens. Perscruto o teu, também, Sinuhe... O teu fraco e vacilante coração... E sei que me consideras louco. Todavia te perdôo por causa  da luz que outrora fulgia dentro do teu coração.

Quando as dores o assaltavam, gemia e exclamava:

- Os homens tem pena de um animal doente, Sinuhe, e o liquidam com um pau...Há  sempre uma espada bondosa para aliviar a agonia de um leão ferido... Mas para um  homem ninguém usa de misericórdia! A minha desilusão me é mais amarga do que a  morte porque a sua luz jorra dentro da minha alma. Sei que meu corpo morre...  mas meu espírito vive eternamente. Promano do sol, Sinuhe, e ao sol voltarei...  E anseio por essa volta por causa da amargura da minha desolação.

Quando o outono chegou, o faraó começou a melhorar bem, embora tivesse sido  preferível que eu o houvesse deixado morrer. Mas um médico não pode deixar que o  paciente morra se dispõe de meios para restabelece-lo... E nisso reside muitas  vezes ser ele amaldiçoado. A saúde do faraó melhorou; tornou-se então mais  taciturno.    Deixou de conversar comigo ou com quaisquer outras pessoas. Seu olhar agora  era sinistro,  profunda a sua solidão.

Não errara ao dizer que os amigos cuspiam em seu leito, pois a rainha  Nefertiti, tendo lhe dado cinco filhas, enjoou do esposo, desgostando-o e  afligindo-o de todas as maneiras. Quando pela sexta vez engravidou, a criança só  era do faraó nominalmente. Ela perdera toda compostura e se entregava a qualquer um; até mesmo o meu amigo Thothmes a possuiu.

Sua beleza ainda era  viçosa, não obstante sua primavera já haver florido e passado; mas em seus olhos  e em seu sorriso permaneciam atrativos a que os homens não podiam resistir.  Soube disseminar suas intrigas por entre parentes e íncimos do faraó, de modo a  afastá-los. Assim o circulo de amizade protetora em torno dele foi se rompendo  até se desfazer.

Era voluntariosa, de uma clarividência perturbadoramente aguda. Quando numa  mulher a malícia combina com a inteligência e a beleza tal mulher se torna  perigosa deveras.  Mais perigosa ainda, se aliar a tudo isso o poder de consorte real. Durante  bastantes anos Nefertiti se contentou em governar só com a sua beleza, sentindo  prazer em jóias, vinho, versos e adulação. Agora, bem depois do nascimento da  quinta filha, algo pareceu se quebrar.

Passou a acreditar que jamais teria um filho e lançou a culpa disso sobre  Akhnaton. Cumpre lembrar que em suas veias corria o sangue escuro e misterioso  de Eie, o sacerdote, o sangue da injustiça, da traição e da voracidade. Diga-se  em sua defesa que nunca até então alguém ousara falar mal dela; nenhum escândalo  a seu respeito se propalou; sempre fora fiel, cercara sempre o faraó Akhnaton  com a ternura de uma esposa afável, defendendo sua loucura e acreditando nas suas visões. Muita gente ficou abismada com a sua transformação repentina, vendo  nisso um sinal da maldição que pairava como uma nuvem sufocante sobre  Akhetaton.Tamanha foi a sua queda que chegou a ter a fama de se entregar a criados, sardanitas e  talhadores de jazigo, embora eu não acredite nisso. Sempre que as pessoas tem  margem para falar  de alguém gostam de exagerar afirmando coisas não baseadas na realidade.

Fosse como fosse, o faraó se fechou em sua solidão.  Seu alimento era o pão e a aveia dos pobres, e a sua bebida era a água do Nilo,  pois desejava obter de novo a clarividência pela purificação do  corpo, e cuidava que a carne e o vinho haviam obscurecido seu olhar.   

Do mundo exterior deixaram de chegar boas novas a Akhetaton. Aziru mandava da  Síria uma infinidade de tábuas de argila cheias de queixas e reclamações. Os  seus homens desejavam voltar para seus lares, dizia e1e, para cuidar do gado e  dos rebanhos, para lavrar o campos e rever as mulheres, pois eram amantes da  paz. Mas bandos de salteadores, munidos de armas egípcias e dirigidos por  oficiais egípcios, faziam continuas incursões pela Síria adentro, vinda do  deserto de Sinai e constituíam um permaziénte perigo para a nação.  Ora, isso o impedia de deixar, que seus homens regressassem aos lares. Queixava- se também de que o comandante de Gaza se comportava de modo inconveniente,  desrespeitando o tratado de paz quer na interpretação quer no texto, fechava as  portas da cidade a mercadores pacíficos, permitindo a entrada apenas aos que lhe  convinham. Aziru fazia outras queixas e dizia que qualquer outro que não ele já  teria perdido a paciência; que suportava ainda só porque era amante da paz; mas  que ainda assim, caso não fosse posto um paradeiro  nesse estado de coisas, não se responsabilizava pelas conseqüências.

Babilônia também se sentia melindrada com o Egito  por causa da concorrência que este estava fazendo nos mercados sírios com o  trigo. O rei Burnaburiash não se satisfizera de a modo algum com os presentes  recebidos do faraó e apresentara diversas considerações.

O embaixador da Babilônia em Akhetaton puxou, a barba, encolheu os ombros,  abriu os braços e declarou:

- O meu soberano é como um leão que se levanta preocupado em sua toca e fareja  o vento para saber as novidades. O meu soberano põe suas esperanças no Egito;  mas se o Egito ficar pobre demais e não lhe puder mandar ouro que de para que contratemos homens sadios e fabriquemos bons carros militares, não sei o que  acontecera.  Embora o meu soberano prove sempre ser amigo de um Egito poderoso e rico, de que  lhe poderá valer a amizade de um país fraco e impotente? Será um mero peso  morto. Devo dizer que o meu soberano ficou profundamente chocado e surpreendido  quando o Egito, em sua fraqueza, concedeu liberdade à Síria. Quem mais próximo  de cada um de nós senão nós. mesmos? Logo, a Babilônia tem que levar em consideração a Babilônia!...

Pouco depois, uma delegação hitita constituída por chefes eminentes, chegou a  Akhetaton. Tais emissários declararam que tinham vindo para confirmar a amizade  hereditária  entre o Egito e da terra de Hati, e ao mesmo tempo para travar relações com os  costumes do Egito, do qual só tinham ouvido sempre elogios e conhecer bem o exército egípcio de cujas armas e  disciplina acreditavam que muito teriam que aprender. Suas maneiras eram  cordiais e corretas; trouxeram magníficos presentes para os oficiais e  dignitários da corte. Entre os presentes que ofereceram a Tut, genro do faraó, havia uma faca de metal azul, mais fina e mais forte do que todas as outras  facas. Eu era a única outra pessoa em Akhetaton que possuía uma lâmina assim -  presente, aliás, de um mestre de porto, hitita, conforme já contei. Aconselhei Tut dar-lhe um banho de prata e por-lhe um cabo de ouro à maneira da Síria, como  eu fizera com a minha. Tut ficou tão radiante com essa arma que declarou que a  queria ter consigo em sua tumba. Era um rapazola delicado, doentio, que pensava  na morte com uma freqüência que não era comum  às crianças da sua idade.

Aqueles chefes hititas eram realmente homens agradáveis e cultos. Lembravam,  assim com narinas grandes, queixos resolutos e olhos perspicazes, criaturas  selvagens.  E logo fascinaram as mulheres da corte. De manhã até de noite, e desde de noite  até de manhã eles eram brilhantemente festejados nos palácios dos grandes.  Diziam, sorrindo:

- Sabemos que muitas coisas terríveis são ditas da nossa terra. Invenção de  vizinhos invejosos. Por isso temos o satisfatório intuito de comparecer perante  vós para  que vejais que somos uma nação culta e que muitos dentre nós sabem ler e  escrever. Somos uma população pacífica e de testamos a guerra. Buscamos apenas um  conhecimento que possa ser útil às nossas pesquisas e métodos de instrução do  povo. Não acrediteis nas invencionices que os fugitivos de Mitani assoalham a nosso respeito. Excedem-se em sua amargura porque, tomados de medo, abandonaram  sua terra, e suas posses. Podemos garantir que nenhum mal lhes sucederia se  tivessem permanecido. Ora, deveis compreender que a terra de Hati está superlotada, devido à muita natalidade porque o grande Shubiluliuma se empenha  numa administração fecunda. Por conseguinte temos falta de espaço para a  população, bem como de pastagens para nossos rebanhos. De mais a mais, não podíamos assistir impassíveis opressão e aos erros que prevaleciam na terra de  Mitani. Mesmo porque o próprio povo apelou para nós, solicitando auxílio,  e assim marchamos para suas fronteiras não como conquistadores e sim como libertadores. Já agora em Mitani  há áreas bastantes para grandes populações e rebanhos, estando longe de nossas  idéias quaisquer outras anexações, pois somos um povo que ama a paz.   

Esticaram os braços soerguendo as taças e brindaram o Egito, enquanto as  mulheres contemplavam suas robustas nucas e seus olhos rapaces. E eles nos  elogiavam:

- O Egito é uma terra gloriosa e que muito prezamos. Em nossa pátria também  está à disposição dos egípcios  muita coisa que queiram aprender. Estamos às ordens dos egípcios que nos dedicam  amizade e que acaso desejem se familiarizar com os nossos costumes.    Gabaram muito as pessoas eminentes de Akhetaton que. os  trataram com muita fidalguia mostrando-lhes tudo por quanto se interessavam. Mas  a meu sentir, esses estrangeiros traziam em suas armaduras e uniformes o ranço  de cadáveres.

Lembrei-me de seu país árido e dos feiticeiros que vi suspensos em  postes ao longo das estradas. De modo que não me deixaram saudades quando  partiram de Akhetaton.

Aliás, esta cidade mudara muito. Seus habitantes haviam sido contaminados por  não sei qual frenesi, e jamais vi tanta gente beber, comer e divertir-se tão  febrilmente  como nessa ocasião. Tratava-se, porém, de uma alegria fictícia, pois tal gente  procurava apenas não pensar no futuro.

As vezes um silencio mortal cata sobre Akhetaton, como se os risos se transformassem em esgares; as pessoas olhavam  umas para as outras com desconfiança e temor, esquecidas do que estavam a  conversar. Os artistas também foram atingidos por essa febre singular.  Desenhavam, pintavam e esculpiam mais diligentemente do que nunca como se  pressentissem  que o tempo escorria por entre seus dedos.

Exageravam a verdade em grau fantástico; seus pincéis e escopros achavam só  distorções. Emulavam-se na produção de formas cada vez mais estranhas e  extravagantes, chegando a jurar que podiam representar uma fisionomia ou um  movimento com poucas linhas ou golpes. Comentei com Thothmes:

- O faraó Akhnaton ergueu-te do pó e fez-te seu amigo. Por que motivo esculpis  suas feições como se odiasses? Por que motivo cuspiste no seu leito e ultrajaste  sua amizade?

Respondeu-me:

- Não te intrometas em coisas que não podes compreender, Sinuhe. Sei lá se o  odeio!... Em todo o caso odeio mais a mim mesmo. O fogo da criação arde dentro  de mim, e as minhas mãos jamais estiveram tão hábeis do que atualmente. É possível que quando o artista se acha insatisfeito e tem raiva de si próprio  consiga criar melhor... Melhor do que quando se sente satisfeito e cheio de  egolatria. Tudo quanto exculpo nasce de mim, e em cada pedaço ou bloco de escultura me  escavo em pedra, para sobreviver eternamente. Não conheço rivais; ultrapasso  todos, e não sei o que sejam regras a infringir porque a minha arte paira acima  de quaisquer regras, e porque sou mais deus do que homem. Ao criar formas e  cores estou competindo com Aton e excedendo-o, porque tudo quanto Aton cria é  perecível ao passo que minhas criações são eternas.

Sempre que falava assim estava bêbado e eu o perdoava, bem como ao que dizia,  porque o tormento queimava sua face e eu percebia, fitando seus olhos, que ele  era profundamente infeliz.

O tempo passou, a colheita foi realizada, o rio transbordou e baixou, e chegou  o inverno. E com ele se alastrou a carestia pela terra do Egito, e impossível  era se prognosticar os infortúnios próximos. Vieram notícias de que Aziru abrira  um número maior de cidades sírias para os hititas e que os carros destes tinham  atravessado o deserto de Sinai atacando Tânis e saqueando as cercanias.

Tais notícias fizeram Eie vir à pressa de Tebas e Horemheb de Menfis a fim de  se aconselharem com o faraó Akhnaton e salvar o que fosse possível. Dada a minha  condição de médico estive presente a essas conferencias, temendo que o faraó se  excitasse demais e adoecesse por causa das calamidades que iria ouvir. Mas o faraó se mostrou reservado e frio, e permaneceu senhor de si  completamente.

Eie, o sacerdote; disse-lhe:

- Os depósitos do império estão vazios, e a terra de Kush não pagou tributo  este ano, exatamente quando pus minhas esperanças na entrada desse dinheiro.  Grande carestia  assola a nação, e o povo esta arrancando as plantas aquáticas da vasa para comer  as raízes; e se alimenta também de gafanhotos, escaravelhos e rãs. Muita gente  pereceu  e muita gente perecerá. Mesmo com a mais estrita distribuição, o trigo do faraó  é insuficiente, ao passo que o dos negociantes é caro.demais para a bolsa do  povo.  Todos os espíritos estão possuídos de grande pavor. Os camponeses fogem para as cidades, e os moradores das cidades fogem para os campos. E todos dizem que isso  é resultado da maldição de Ammon, e que foi o novo deus do faraó quem trouxe  todo esse sofrimento, Isto posto e considerado, faraó Akhnaton, reconciliai-vos  com os sacerdotes e restaurai Ammon em seu poder para que o povo o venere e os  espíritos se pacifiquem. Devolvei a Ammon as suas terras para que ele as mande  semear, pois o povo sem isso não lavra as terras, A vossa terra também permanece  sem lavoura porque o povo crê que seja terra amaldiçoada. Reconciliai-vos com  Ammon enquanto ainda é tempo, do contrário lavo as mãos quanto conseqüências.

Mas Horemheb disse:

- Burnaburiash comprou a paz aos hititas, e Aziru, rendendo-se à pressão  destes, se fez aliado dos mesmos. O número de suas tropas na Síria iguala às  areias do mar,  e o número de seus carros é como o das estrelas no céu. Farejam a desgraça do  Egito, porque, astutos como são, os hititas estão transportando água para o  deserto levando-a em cântaros. Como não dispõem de frota, conduziram até ao  deserto infinitas porções de água, de maneira que quando a primavera vier um  poderosíssimo exército poderá atravessar o deserto sem sucumbir de sede.  Compraram no Egito número incalculável de cântaros, e os mercadores que lhos  venderam cavaram sem saber suas próprias tumbas. Os carros de Aziru e dos  hititas estiveram fazendo reconhecimentos e incursões até Tânis e pelo  território do Egito adentro, rompendo assim o tratado de paz. O dano que  causaram é quase nenhum, evidentemente, mas mandei espalhar boatos de terrível  devastação e de medonha crueldade dos . hititas para que desta forma o povo se  inflame e fique apto a batalhar com energia. Ainda é tempo, faraó Akhnaton!  Mandai soar as trombetas, mandai reunir as bandeiras... e declarai guerra! Convocai quantos estiverem aptos a pegar, em armas, mandai exercitá-los, requisitai todo o cobre da nação para que se façam espadas e arcos, e a vossa soberania estará salva. Eu em pessoa a salvarei mediante uma guerra incomparável; derrotarei os hititas e reconquistarei a Síria para vós. Poderei fazer isso se todos os recursos do Egito forem colocados à disposição do exército. A fome faz guerreiros até mesmo dos covardes. Nem Ammon nem Aton me interessam; o povo esquecerá Ammon tão logo estejamos em guerra. O nervosismo da população achará saída na luta contra o inimigo, e um conflito vitorioso reforçará ainda mais o vosso poder. Prometo-vos uma guerra de conquista, faraó Akhnaton, pois eu sou Horemheb, o Filho do Falcão. Nasci para grandes feitos, e chegada é a hora que estive esperando a vida toda.

Assim que ouviu isso, Eie atalhou:

- Não acrediteis em Horemheb, faraó Akhnaton, meu querido filho! Sua língua só fala falsidades, e o que há nele é ambição de poder. Reconciliai-vos com os sacerdotes de Ammon e declarai guerra, mas não entregueis o comando a Horemheb. Entregai o comando a um veterano experimentado que tenha estudado nas escrituras antigas as artes da guerra conforme eram praticadas ao tempo dos grandes faraós. Entregai o comando a um homem em que possais confiar plenamente.

E Horemheb redargüiu:

- Se não estivéssemos na presença do faraó, eu te esborracharia o nariz imundo, Eie, sacerdote. Medes-me pelo que és, e a traição fala por tua língua porque já negociaste em segredo com os sacerdotes de Ammon e fizeste combinações com eles por detrás do faraó; não faltarei com o meu auxílio ao mancebo cuja fraqueza protegi outrora com a minha capa perto das colinas de Tebas; o meu intuito é a grandeza do Egito, e só eu o posso salvar.

E o faraó perguntou:

- Concluístes, ambos?...

E os dois responderam em uníssono:

- Dissemos o que tínhamos a falar.

Então falou o faraó:

- Preciso orar e vigiar, antes de decidir. Reuni amanhã o povo todo, todos aqueles que me amam, grandes e pequenos, senhores e servos. Chamai também lá da cidade os pedreiros e educadores. Através deles falarei a todo o meu povo e lhe revelarei o meu propósito.

Fizeram conforme ele recomendou e ordenaram ao povo que se reunisse no dia seguinte.

Fizeram conforme ele recomendou e que se reunisse no dia seguinte; Ele, na crença de que ele se reconciliaria com Ammon; Horemheb na esperança de que ele declararia guerra a Aziru e aos hititas. Durante a noite toda o faraó esteve em vigília e em oração e andou sem parar pelos seus aposentos, sem comer nem falar com ninguém, a ponto de eu, que era seu médico, ficar preocupadíssimo. No dia seguinte transportaram-no perante o povo. Sentado no trono, foi com um semblante claro e radioso que ergueu as mãos e falou:

- Devido à minha fraqueza há fome agora na terra do Egito; devido à minha fraqueza o inimigo ameaça as nossas fronteiras. Os hititas estão agora preparando uma invasão do Egito através da Síria, e brevemente os seus pés pisarão a Terra Negra. Tudo isso está na iminência de acontecer  devido à minha fraqueza... porque não ouvi com a suficiente clareza a voz do meu deus e não realizei a sua vontade. Mas  agora o meu deus se revelou a mim. Aton apareceu-me e a sua verdade arde dentro do meu coração, de modo que já não  sou mais fraco nem vacilante. Derrubei o falso deus mas, devido a um propósito infundado, permiti que os demais  deuses reinassem ao lado de Aton. E a sombra desses deuses escureceu o Egito. Mas hoje todos os velhos deuses devem  cair para que a luz de Aton prevaleça como a única luz por sobre toda a terra de Kan. Hoje todos os deuses devem  sumir. Hoje começa o reinado de Aton sobre a face da terra!

Quando a multidão ouviu isto, uma onda de horror enrugou  toda aquela superfície humana. E muitos se prostraram diante do faraó. Mas Akhnaton ergueu a voz e continuou com firmeza:

- Vós que me amais ide agora derrubar os antigos deuses  pela terra de Kan! Derrubai-lhes os altares! Destruí suas imagens! Derramai no chão suas águas lustrais!  Abatei seus templos! Expungi seus nomes de todas as  inscrições... entrai mesmo nas tumbas para fazer isso... para  que o Egito seja salvo. Funcionários, agarrai clavas com as  vossas mãos! Escultores, trocai vossos escopros por  machados! Operários, empunhai vossos malhos e ide através  das províncias, de cidade em cidade, de aldeia em aldeia,  derrubar os deuses antigos e apagar seus nomes! ... Assim eu  libertarei o Egito da servidão do mal.

Muitos fugiram de diante dele, apavorados, mas o faraó desferiu um profundo suspiro, e sua face fulgurou ante a exaltação com que falou:

- Possa o reinado de Aton descer à terra! Que de hoje em  diante não haja mais escravo nem senhor, e muito menos patrão e servo; que todos sejam iguais e livres aos olhos de  Aton! Que ninguém seja obrigado a lavrar a terra de outro ou  girar a atafona alheia... Mas que cada homem escolha o  trabalho que quiser e tenha liberdade de locomoção. Eis o que diz o Faraó!

Não houve mais o menor movimento na multidão. Todos  permaneceram mudos e imóveis com os olhos cravados no  faraó. que cresceu diante deles; e o resplendor do êxtase  que alterou o seu semblante os assombrou de tal forma que  de súbito um clamor se levantou. E depois, uns começaram a  comentar com os outros:

- Coisa assim jamais foi vista... Na verdade o deus fala por  sua boca e devemos obedecer.

O povo dispersou-se excitado, aos encontrões, e houve  lutas nas ruas, tendo os prosélitos mais exaltados do faraó deixado mortos, no chão, alguns velhos que imprecavam  contra o soberano. Mas depois que o povo se dispersou, Eie disse a faraó:

- Akhnaton, jogai fora a coroa e quebrai o cetro-cajado,  porque as palavras que proferistes já derrubaram o vosso trono.

E esta foi a resposta do faraó:

- O que eu proferi trouxe imortalidade ao meu nome, e me  firmou no coração dos homens por todos os séculos dos séculos.

Então Eie esfregou as mãos uma na outra, cuspiu no chão  diante do faraó, desfez a saliva no chão com o pé e disse:

- Se assim é, lavo as minhas mãos e passo a agir conforme me parecer melhor. Perante um louco não presto juramento  das minhas ações.

E fez menção de sair; mas Horemheb agarrou-o pelo braço  e pela nuca e reteve com facilidade, apesar de Eie ser um homem corpulento e forte. E Horemheb declarou:

- Ele é o teu faraó! Tens que obedecer às suas ordens, Eie, e  não atraiçoá-la. Se o traíres, mandarei traspassar tua barriga  embora tenha que chamar um regimento para te caçar! Sem  dúvida a loucura do faraó é profunda e perigosa, mas eu o  amo e permanecerei firme a seu lado porque lhe jurei  sujeição! Existem centelhas de juízo em seus delírios. Se ele  se restringisse a derrubar os antigos deuses, seguir-se-ia a  guerra civil. Libertando os escravos dos moinhos e das  terras, ele estraga o jogo dos sacerdotes e ganha o povo que  ficará todo do seu lado, mesmo que o resultado venha ser  uma confusão maior do que a de antes. Para mim isso dá no  mesmo... Mas, faraó Akhnaton, que é que vamos fazer com os hititas?

Akhnaton permaneceu com as mãos paradas em cima dos  joelhos e não disse nada. Horemheb não desistiu:

- Dai-me ouro e trigo, armas e carros, cavalos e direito  absoluto a contratar guerreiros e reunir guardas para a Terra  Baixa, e acho que poderei resistir à investida dos hititas. 

Então o faraó ergueu para ele os olhos congestionados, e o  fulgor sumiu de seu semblante quando disse:

- Proibo-te que declares guerra, Horemheb. Se o povo  deseja defender a Terra Negra, não posso impedir. Trigo e ouro... e em armas nem falo... são coisas que não tenho para  e dar. E se as tivesse não tas daria porque não quero opor mal ao mal. Podes tomar providencias para a defesa de  Tânis, mas não derrames sangue e reage apenas se fores  atacado.

- Seja conforme dizeis - falou Horemheb. - Que a insânia  prevaleça! Morrerei em Tânis, ao vosso comando, porque  sem trigo e sem ouro não pode sobreviver nem mesmo o  exército mais valente. Não haverá titubeações nem meias  medidas. Defender-me-ei de acordo com o meu próprio  bom-senso. Adeus!

Saiu. E Eie também se despediu do faraó, com quem  permaneci sozinho. E o faraó me fixou com uns olhos cheios  de inenarrável cansaço e disse:

- Foi-se-me o ânimo, com as minhas palavras, Sinuhe. Mas  apesar da minha fraqueza me sinto feliz. Que pensas fazer?

Olhei-o com ar aturdido. Então, com leve sorriso, me  perguntou:

- Amas-me, Sinuhe?

Como confessasse que o amava  apesar mesmo da sua loucura, ele declarou:

- Se me queres bem, sabes o que tens a fazer.

Meu espírito  reagiu contra a sua vontade, porque intimamente eu sabia que era que ele queria de mim. Disse-lhe por fim, irritado:

- Cuidei que precisásseis de mim como médico. Mas já que  não é isso, então irei. Verdade é que minha cooperação na derrubada das imagens dos deuses será de pouco valor.  Tenho braços frágeis demais para empunhar um malho...  Mas a vossa vontade será feita. O povo me esfolará vivo,  achatará eu crânio nas lajes e penderá o meu corpo de cabeça  para baixo no alto da muralha... Mas isso não vos diz  respeito. Vou para Tebas, portanto, onde há muitos templos  e onde o povo me conhece.   

Não respondeu. Retirei-me cheio de cólera.

No dia seguinte Horemheb embarcou na sua nave para  Menfis, de onde viajaria para Tânis. Antes que ele fosse  prometi emprestar-lhe a maior quantidade de ouro que  minhas mãos pudessem arrecadar em Tebas e mandar-lhe  metade do trigo que eu possuía. Quanto à outra metade era  intenção minha utilizar-me dela para uso próprio.  É possível que tenha sido este meu erro que determinou a  minha vida restante. Dei metade a Akhnaton e metade a  Horemheb. A um só deveria eu ter entregue tudo.

Thothmes e eu viajamos para Tebas e ainda estávamos longe dela e cadáveres já deslizavam pela correnteza abaixo  em direção a nós. Tumefatos e balouçantes vinham eles. E  víamos que eram de sacerdotes de cabeças raspadas, de  homens de condição elevada e humilde, de guardas e  escravos. Os crocodilos não precisavam nadar, rio acima,  porque nas cidades e aldeias ao longo do rio muitas pessoas  perdiam suas vidas e eram arremessadas dentro do rio. Quando chegamos a Tebas diversas partes da cidade ardiam.  Mesmo da Cidade dos Mortos se erguiam labaredas, porque  o povo estava roubando as tumbas e queimando corpos  embalsamados de sacerdotes. Frenéticos adeptos da cruz  jogavam na água partidários do chifre e os malhavam com  paus até que morressem afogados, pelo que deduzimos  que os antigos deuses já haviam sido derrubados e que Aton  vencera.

Fomos diretamente a O Rabo do Crocodilo onde  encontramos Kaptah. Este retirara suas roupas luxuosas,  sujara de terra o cabelo, vestia agora o traje cinzento dos  pobres. Retirara também da órbita a placa de ouro, e estava  zelosamente servindo bebidas a escravos andrajosos e a  estivadores armados. Dizia-lhes:

- Isso, rejubilai-vos, irmãos, pois hoje é um dia de suma  felicidade! Agora já não há mais nem senhores nem escravos, e muito menos eminentes nem humildes, todos tem  liberdade absoluta. Hoje podeis beber vinho à minha custa. Espero que vos lembreis da minha taverna caso a boa sorte  vos favoreça e vos habilite a arrancar ouro e prata dos templos dos falsos deuses ou das casas dos maus patrões.  Sou um escravo como vós, e escravo nasci; como prova do  que vos digo, observai o meu olho que um senhor cruel  vazou com um estilete ao ficar zangado comigo por eu haver  bebido um pichel de cerveja que substituí por água. Tais ruindades não se repetirão nunca mais. Ninguém mais  tornará a trabalhar com as suas mãos nem sentirá a dor causada pelas varadas por ser escravo. Tudo será alegria e  contentamento, saltos e jogos, interminavelmente.

Só depois que acabou de tagarelar assim foi que deu pela  nossa presença. Ficou um tanto atarantado e nos levou para um cômodo particular. E disse:

- Será mais prudente que vistam roupas bem baratas e que  sujem a cara e as mãos, porque há aí fora percorrendo as ruas  uma chusma de escravos e carregadores entoando louvores a  Aton. E em nome de Aton esbordoam todas as pessoas que acham demasiado gordas e com mãos delicadas.  Esqueceram-se da minha pança porque outrora fui um  escravo e distribuí trigo entre eles e atualmente os deixo  beber e não cobro. Digam-me que má fortuna os trouxe a  Tebas exatamente nesta hora. Tebas é nestes dias o lugar  menos propício para gente de alta categoria. Mostramos-lhe nossos machados e malhos e dissemos que  viéramos derrubar as imagens dos falsos deuses e arrancar  seus nomes de todas as inscrições.

Kaptah sacudiu a cabeça, prudentemente e disse:

- Bem hábil é o plano... O povo o aceitará...enquanto não  descobrir de que pessoas se trata... Muitas alterações estão  iminentes, e os partidários do chifre vingar-se-ão do que lhes  fizerdes tão logo reassumam o poder. Não posso acreditar  que esta situação perdure. Sim, pois onde os escravos hão de  arranjar trigo? De mais a mais, tomados, de violência  incontida, cometeram tais barbaridades que levaram muitos  partidários da cruz a vacilar e virar partidários do chifre só  para que a ordem possa ser restabelecida.

Disse-lhe:

- Já que falaste em trigo, Kaptah, informo-te que prometi  metade do nosso grão a Horemheb para que ele mova guerra contra os hititas. Tratarás pois de aguardar minhas  ordens, pois deverás remeter essa metade para Tânis. Quanto  à outra metade, mandarás moer, e com a farinha farás pães a  ser distribuído ao povo faminto em todas as cidades e aldeias onde houver trigo nosso armazenado. E teus criados  distribuirão esse pão sem nenhum pagamento, devendo  apenas dizer: “Este é o pão de Aton; tomai é comei-o em seu  nome, e louvai o faraó e seu deus.”

Ao ouvir isto Kaptah rasgou deveras a frente da roupa visto  esta já agora ser de escravo e exclamou, ressentido:

- Senhor, isso o empobrecerá... E onde e como hei de arranjar um lucrozinho? Ah!  contaminou-o a loucura do faraó. Na verdade o patrão está  andando com as pernas para o ar e com a cabeça no chão. Ai  de mim, pobre desgraçado!  Para que vim a ver a luz deste dia?... Nem mesmo o  escaravelho nos salvará, e ninguém, absolutamente ninguém  abençoará o seu... o nosso pão! Além do mais, esse  furibundo Horemheb manda respostas ousadas às minhas  reclamações, dizendo que eu vá pessoalmente buscar o ouro que lhe emprestei em nome do patrão. É sujeito pior do que  um ladrão, esse seu amigo, porque um ladrão leva e pronto... ao passo que Horemheb promete juros sobre o que recebe  emprestado, atormentando assim os credores com esperanças  vãs. E cada credor acaba queimando o próprio fígado de  desespero. Vejo pelos olhos do patrão que está me dizendo  todas essas coisas em tom sério e que não adianta eu  lamentar e que devo cumprir suas ordens embora elas o  venham a tornar pobre.

Deixamos Kaptah a bajular escravos e a regatear o preço de  vasos sagrados e outros valores que os carregadores tinham roubado de templos. Todas as pessoas direitas se tinham  retirado para suas casas e trancado as portas. As ruas achavam-se desertas, e alguns templos onde os sacerdotes se  haviam acoitado tinham sido incendiados e ainda estavam ardendo. Entramos nos templos saqueados onde nos  pusemos a quebrar os nomes dos deuses; e neles  encontramos outros íntimos adeptos do faraó entregues à  mesma tarefa. Manobrávamos os nossos machados e malhos  com tamanho vigor que até saltavam centelhas. Todos os  dias o nosso zelo aumentava. Trabalhávamos assim para não  ver nada de quanto acontecia.

O povo passava fome e necessidade, e depois que os  escravos e trabalhadores portuários se fartaram durante  algum tempo de festejar a liberdade, formaram bandos e  irromperam pelas casas dos ricos decididos assim a distribuir  o trigo, o azeite e os bens dos mesmos com os pobres.  Kaptah contratou homens para moer trigo e cozer a farinha;  mas o povo roubava o pão das mãos dos seus empregados,  gritando:

- Este pão foi subtraído dos pobres e é mais do que direito  que seja distribuído entre eles. E assim ninguém louvou o meu nome e nem se mostrou  grato, embora eu em menos de um mês ficasse literalmente  pobre.

Desta forma se passaram quarenta dias e quarenta noites,  com os tumultos de Tebas piorando cada vez mais. Homens que antigamente tinham pesado ouro esmolavam agora  nas ruas enquanto as esposas vendiam as jóias a escravos  para comprar pão para os filhos.

Ao fim desse período Kaptah veio à minha casa  esgueirando-se pela escuridão e me disse:

- Meu senhor, é tempo de fugir. O reinado de Aton não  tarda a derrocar e creio que nenhum homem direito venha a lamentar isso. A lei e a ordem serão restauradas... mas antes  os crocodilos se nutrirão e bem mais copiosamente do que até aqui, porque os sacerdotes deliberaram livrar o Egito de  todo sangue ruim.

Perguntei-lhe como era que sabia disso; respondeu-me  logo, inocentemente:

- Pois não fui sempre um fiel partidário do chifre e não  venerei Ammon em segredo? Fiz grandes empréstimos aos sacerdotes que pagam bons juros e que hipotecam suas  terras a troco de ouro. Eie fez um acordo com eles de modo a preservar antes de tudo a própria vida; e assim os sacerdotes  dispõem da guarda ao seu lado. Os homens que governam o Egito ligaram-se mais uma vez a Ammon; os sacerdotes  mandaram buscar negros na terra de Kush e sardanitas  também. Estes estiveram saqueando as províncias  e se acham agora a seu soldo. A verdade é, Sinuhe, que os  moinhos voltarão a funcionar brevemente, mas o pão que  será cozido com essa farinha será o pão de Ammon  e não o de Aton. Os deuses estão voltando, a antiga ordem  está voltando, e tudo volverá a ser como antes, louvado seja  Ammon! Já estou cansado desta confusão, não obstante as  riquezas que ela me deu.

Fiquei profundamente apreensivo com as suas palavras e  considerei em voz alta:

- O faraó Akhnato jamais concordará com isso.

Mas Kaptah riu de esguelha, esfregou o olho cego com o  dedo indicador e redargüiu:

- Ele não será consultado! A cidade de Akhetaton já está  sentenciada, e todos que se acham lá perecerão. Uma vez os rebeldes tendo o poder nas mãos, bloquearão todas  as estradas de lá para que os habitantes morram à míngua.  Exigem que o faraó volte a Tebas e se prosterne diante de  Ammon.

Então os meus pensamentos se clarearam e vi diante de  mim o semblante do faraó, aqueles seus olhos que refletiam uma desilusão mais amarga do que a morte. Disse:

- Kaptah, tal iniqüidade não se dará. Nós dois caminhamos  juntos por muitas estradas. Caminhemos juntos também por esta, até ao fim. Embora eu presentemente esteja  pobre, tu ainda és rico. Compra armas; compra espadas e  arcos; compra todas as clavas que puderes descobrir por aí. Com o teu ouro compra os guardas e põe-os a teu serviço. Distribuí as armas entre os escravos e os portuários. Não  sei o que advirá disso, Kaptah, mas no mundo até agora nunca se viu oportunidade igual a esta para renovar todas as  coisas. Se a terra e a riqueza rural forem distribuídas, se as  casas dos importantes forem habitadas pelos pobres e seus  jardins se transformarem em parques para os filhos dos escravos, então, sem dúvida alguma o povo se pacificará.  Então cada um tratará de si, cada um trabalhará como melhor lhe aprouver, e todas as coisas ficarão melhores do que  antes.

Mas Kaptah redargüiu, tremendo:

- Patrão, não pretendo trabalhar manualmente, na velhice.  Já puseram homens eminentes a girar atafonas, e as respectivas mulheres e filhas servem escravos e estivadores  em casas de divertimentos. Não vejo nada de bom nisso, e sim apenas ruindade. Sinuhe, meu senhor, não me peça que  trilhe tal caminho. Ao pensar nisso penso também na mansão escura em que outrora penetrei em sua companhia. Jurei  nunca mais me referir a isso, mas falo agora porque se faz necessário. Mais uma vez resolveu o patrão entrar numa  mansão escura, ignorando o que o espera dentro. E pode  muito bem ser que um monstro podre e uma morte  nauseabunda o esperem nesse recinto. A julgar pelo que  vimos, podemos considerar o deus do faraó Akhnaton tão  terrível como o deus de Creta, pois que força os homens  melhores e mais bem dotados do Egito a dançar diante de  touros, e leva esses mesmos homens para dentro da mansão  escura de onde não há retorno. Não, meu senhor!... Eu não o  sigo uma segunda vez para dentro da  casa do Minotauro.

E nem chorou nem protestou como antes, mas falou  solenemente, implorando que eu desistisse de tal propósito.  E rematou assim:

- Se não pensa em si nem em mim, pense então em Mérito e  no pequeno Thoth, que o amam. Leve-os daqui e esconda-os  em lugar seguro. Tão logo os moinhos de Ammon  principiem  a funcionar, a vida de ninguém estará garantida.

Mas o fervor me cegara e as advertências de Kaptah me  pareceram idiotas; tanto que repliquei, ostensivamente:

- Ora! Quem vai perseguir uma mulher e um menino?! Em  minha casa os dois morarão livres de qualquer perigo. Aton vencerá e tem que vencer do contrário não valerá a pena  existir. O povo tem critério, e sabe que o faraó quer o seu bem. Como pode ser possível que o povo volte  voluntariamente à tirania da treva e do medo? A casa  de Ammon é que é a mansão escura de que falaste, e não a  de Aton. Que adiantarão alguns guardas e uns nobres  aparvalhados querendo derrubá-lo se ele dispuser do povo  todo para garanti-lo?

Kaptah restringiu-se a declarar:

- Já disse o que tinha a dizer e não repetirei. Estou em  brasas para lhe contar um pequeno segredo; mas como não  se refere a mim, não ouso, mesmo porque decerto não o  afetará  por causa da obsessão em que o meu senhor se acha encravado. Mas não me censure depois, patrãozinho, se mais  tarde vier a bater com a cara e os joelhos nas pedras por causa do seu possível desespero... Não me censure se o  monstro o devorar. A mim tudo isso tanto se me dá, já que  não passo mesmo de um escravo veterano, sem filhos que  lamentem a minha morte. Portanto, patrão, eu o seguirei por  essa estrada incrível, embora saiba que tudo é em vão.  Penetremos na casa escura, juntos, como daquela outra vez.  Se me permitir, levarei comigo uma botija de vinho, desta  vez também...

Naquele mesmo dia Kaptah começou a beber; e bebeu  desde  de manhã até de noite. Ainda assim, em sua bebedeira, me obedecia e distribuía armas pelo porto, reunindo os oficiais  da guarda, às escondidas, em O Rabo do Crocodilo, subornando-os para que tomassem o partido dos pobres  contra os ricos.

Fome e tumulto prevaleceram em Tebas com a vinda do  reino de Aton sobre a terra, e o delírio empolgou o espírito  do povo que vivia bêbado sem beber. Já não havia mais  diferença  entre os que usavam o emblema da cruz e os que não usavam, e as únicas coisas que valiam eram uma arma, um  bom punho fechado e uma voz potente. Se algum homem na  rua via um pão na mão de outro homem, arrancava-o,  dizendo: "Dá-me esse pão. Pois não somos irmãos aos olhos  de Aton?" E se algum outro homem encontrava mais um  outro vestido com bom linho, dizia: "Passa para cá essa  roupa, pois somos irmãos em nome de Aton, e ninguém!  pode andar mais bem vestido do que o seu irmão." Se um  chifre era descoberto no pescoço de um homem ou em suas  roupas, tal homem era posto a girar mós de triturar trigo ou a  derrubar casas incendiadas... Isso, caso não fosse morto e  atirado aos crocodilos que jaziam à espreita rente aos  molhes. A anarquia imperava, e atos de violência se multiplicavam diariamente.  Passaram-se duas vezes trinta dias; e não menos do que isso perdurou o reinado de Aton sobre a face da terra até  derrocar. As tropas negras da terra de Kush e os sardanitas, contratados por Eie, cercaram a cidade de modo a ninguém  poder  escapulir.

A facção do chifre reajuntou-se em cada bairro e foi  rearmada pelos sacerdotes com material de guerra tirado a cripta do templo de Ammon. Os que não possuíam armas  avivaram as extremidades de seus porretes,  reforçaram-nos com aplicações de cobre, e também  construíram arcos com os ornamentos domésticos.

Os partidários do chifre reuniram-se e foram engrossados  por todos quantos desejavam o bem do Egito. O quieto, paciente e pacífico povo disse também:

- Desejamos a volta da antiga ordem, pois estamos  empanzinados com a nova, e Aton nos saqueou quanto quis.

Mas eu, Sinuhe, disse ao povo:

- Pode muito bem ser que os maus tenham pisado em cima  dos bons durante estes dias e que muito homem inocente  haja sofrido pelos culpados. Mas seja como for, Ammon  ainda é o deus das trevas e do terror, e governa os homens aproveitando-se da loucura deles. Aton é o único deus, mora  e vive dentro e fora de nós e não existem outros deuses. Lutai por Aton todos vós, pobres e escravos, carregadores e  criados, pois não tendes mais o que perder, ao passo que caso Ammon venha a vencer provareis a escravidão e a  morte. Lutai em prol do faraó Akhnaton, pois homem igual a  ele jamais houve no mundo e um deus autentico fala por sua  boca. Nunca houve uma tal oportunidade para renovar a  terra; e jamais vos será oferecida outra vez!

Mas os escravos e estivadores riram alto e disseram:

- Não nos azucrines com Aton, Sinuhe; todos os deuses  são iguais e todos os faraós são igualíssimos, mas tu és um homem bom, apesar de simples; trataste nossos  braços esmagados, encanaste nossos ossos quebrados, e  sempre sem cobrar nada. Joga no chão esse porrete, mesmo  porque não tens força para manobrá-lo. Não dás  absolutamente para guerreiro, e os adeptos do chifre te  liquidarão se te virem com ele. A nós tanto se nos dá que  morramos agora; já sujamos as mãos com sangue e tiramos o  ventre da miséria por uns dias refestelando-nos em camas  formidáveis e bebendo em taças de ouro. O nosso festim está  acabando. Pretendemos morrer com armas nas mãos.  Provamos a liberdade, experimentamos a boa vida! Como  suportar de novo a escravidão?!

Tais palavras me incutiram critério. Joguei fora o porrete e  fui à minha casa buscar o cofre dos remédios.

Durante três dias e três noites a luta não parou em Tebas.  Muitos trocaram a cruz pelo chifre e muitos outros largaram  as armas e foram se esconder em residências, adegas, tulhas  e canastras vazias no porto. Mas os escravos e os estivadores  continuaram lutando bravamente; tocavam fogo nas casas de  noite a fim de continuar lutando ao reflexo das labaredas. Os  negros e os sardanitas também incendiavam edifícios, e  roubavam e prostravam todas as pessoas que encontravam,  fossem da facção da cruz ou do grupo do chifre. O  comandante deles era o mesmo Pepitaton que permitira aquela já citada carnificina na Avenida dos Carneiros e que  adotava agora, outra vez, o nome de Pepitamon. Fora escolhido por Eie por causa de sua alta patente e por ser o  oficial mais culto do exército.

Curei as feridas dos escravos, tratei suas cabeças  quebradas, trabalhando sem cessar na taverna O Rabo do  Crocodilo; Mérito rasgava roupas suas, minhas e de Kaptah  para fazer ataduras para os feridos; e o pequenino Thoth  trazia vinho para aqueles cujas dores precisavam ser  acalmadas. No último dia a luta ficou confinada ao  porto e ao bairro pobre onde os negros e os sardanitas,  veteranos de guerras, malhavam o povo como quem malha  trigais em pé; e corria sangue pelas vielas e pelo  cais, até ao rio. A morte jamais colhera messe tão abundante  na terra de Kan como naquele dia.

Os chefes dos escravos vieram a O Rabo do Crocodilo  beber um pouco enquanto a refrega estava no apogeu. Aliás  já entraram bêbados de sangue e de furor bélico. Batendo  em meus ombros com os punhos formidandos,  comunicaram-me:

- Preparamos-te uma confortável canastra no porto, Sinuhe,  onde te poderás esconder. Decerto não hás de querer ficar dependurado conosco nas muralhas, esta noite, com a cabeça  para baixo... Sinuhe; trata de te esconder já. Não adianta fechar feridas que se reabrirão daqui a pouco.

Retorqui:

- Sou médico da corte e ninguém ousará erguer a mão  contra mim.

Riram de mim, beberam copiosamente e voltaram para a  luta. Depois disso Kaptah se aproximou para me contar:   

- Patrão, sua casa está em chamas, e os partidários do chifre deram uma facada em Muti porque ela os enfrentou  com uma tábua de lavar roupa. Convém que o patrão se vista  direito e coloque todos os emblemas de sua dignidade.  Deixe os feridos, esse bando de escravos e salteadores,  venha comigo para a sala dos fundos. Urge que nos  preparemos para receber os sacerdotes e os oficiais.

Mérito também instou, passando os braços em redor do  meu pescoço.

- Salvai-nos, Sinuhe. Se não tendes apreço a vida, salvai- vos ao menos por mim e pelo pequenino Thoth.

Mas a mágoa, a falta de dormir, a morte e a confusão da  batalha me haviam atordoado a tal ponto que eu já não conhecia meu coração; e repliquei:

- Importo-me lá comigo, contigo, com a casa ou com  Thoth! O sangue que está correndo é o dos meus irmãos em  nome de Aton. E se o reinado de Aton cair não quero mais  viver!

Por que motivo teria eu falado assim tão grosseiramente?  Não sei. Seria outrem dentro de mim? Seria mesmo o meu coração? E nem sei dizer se teria deveras tempo para  fugir, pois imediatamente os sardanitas e os negros embarafustaram pela taverna adentro forçando passagem,  guiados por um sacerdote de crânio raspado e de rosto  untado de óleo votivo. E começaram a matar os feridos. O  sacerdote vazava-lhes os olhos com a ponta do chifre  sagrado enquanto os negros tatuados pulavam em cima  deles com os pés juntos para que o sangue esguichasse das  feridas. E o sacerdote goleava:

- Esta é uma das cavernas de Aton. Purifiquemo-la com  fogo!

Perante meus olhos mesmo esmagaram a cabeça do  pequenino Thoth e mataram Mérito que se jogara para salvar  o filho. E não consegui evitar uma coisa nem outra porque  simultaneamente o sacerdote me prostrou com um golpe  furibundo em cima da cabeça, meu grito de horror  estancando na garganta enquanto eu tombava desacordado.

Quando recuperei os sentidos me vi na ruazinha do lado de  fora. No princípio fiquei sem saber onde me achava. Parecia- me haver sonhado. Ou estaria morto? O sacerdote  fora embora, mas os soldados, largando de lado as espadas, bebiam diante do balcão; Kaptah os servia, enquanto os  oficiais,do lado de fora, erguendo os chicotes,  conclamavam a soldadesca a continuar a luta. Não tardou  que O Rabo do Crocodilo pegasse fogo, pois tinha painéis de  madeira que arderam como palha ao vento. Nisto  me lembrei de tudo e procurei me levantar; mas não tive  forças. Comecei a me arrastar com as mãos e os joelhos para  a porta em chamas, a fim de ir ao encontro de Mérito e de  Thoth.

Meu cabelo ficou logo chamuscado e de repente  minha roupa pegou fogo. Kaptah correu para mim gritando.  Arrancou-me das labaredas, rolou-me pelo pó até se  extinguir o fogo de minhas vestes.

Ante tal espetáculo a soldadesca deu gargalhadas sonoras.  Kaptah disse-lhes:

- De fato, de fato. Ele é um pouco aloucado... O sacerdote  deu-lhe uma porrada na cabeça e não quis castigá-lo na exata  medida. Este homem é médico do faraó e não está direito  que alguém levante a mão contra ele. Além disso tem ordens  menores de sacerdote. Se está vestido assim pobremente e  escondeu os símbolos da sua dignidade, o fez para evitar a  fúria do povo.

Eu jazia na poeira da rua, segurando a cabeça com as  minhas mãos queimadas. Lágrimas desciam de meus olhos inflamados enquanto minha lamentação se misturava aos  soluços:

- Mérito! Mérito!

Mas Kaptah sacudiu-me furiosamente, dizendo, zangado:

- Silencio, louco! Ou acha que nos desgraçou pouco com  suas insânias?

Depois que me calei, ele aproximou bem o rosto do meu e  disse, amarguradamente:

- Que isto tudo o faça cobrar juízo, patrão, pois agora sua  conta foi fechada com saldo, e com saldo bem maior do que supõe... Sim, digo-lhe, embora tarde demais, que Thoth era  seu filho; foi concebido logo na primeira temporada em que o patrão esteve com Mérito. Digo-lhe isto só para que o  patrão volte ao seu juízo. Ela não lhe quis contar porque era briosa e calada e porque o patrão a põe de lado preferindo o  faraó e Akhetaton. Sim, o pequenino Thoth tinha o seu sangue, e se o patrão não percebeu isso foi porque às voltas  com entusiasmos e delírios, não teve tempo de o olhar bem nos olhos e nos lábios que eram a cópia exata dos seus. Eu  teria  dado a minha vida para salvar Thoth; mas não me foi possível por causa da sua loucura, patrão; e Mérito não  deixou. E por causa da sua loucura, patrão, os dois  morreram. Espero que cobreis juízo, agora.

Fitei-o, aparvalhado.

- O que dizes é verdade?

E nem precisei da sua resposta. Permaneci no pó da rua,  com os olhos secos, sem sentir dor nenhuma nas minhas feridas. Todo o meu ser por dentro estava frio e crispado;  e o meu coração contraído; de forma que fiquei indiferente a quanto se passava em redor de mim. A taverna, O Rabo do Crocodilo continuava em chamas, e  dentro dela ardiam ao mesmo tempo o corpinho de Thoth e a  beleza de Mérito. Seus corpos ardiam entre os dos escravos,  me seria impossível preservá-los para a vida eterna. Thoth  era meu filho e, se era verdadeira a minha suposição, o  sangue dos faraós correra em suas veias como corria nas  minhas. Tivesse eu sabido isso e tudo seria diferente, pois um  homem pode fazer por seu filho o que não faz para si  sozinho. Mas agora era tarde demais. E ali permanecia  eu, no pó da rua, em meio à fumaça e as centelhas. E as  labaredas que crestavam seus corpos abrasavam meu rosto.

Kaptah carregou-me para junto de Eie e Pepitamon, porque  a luta havia terminado. O bairro dos pobres ainda se achava em chamas, mas o sacerdote e o comandante proferiam  julgamentos sentados em tronos de ouro instalados na pedra  das docas, enquanto soldados e partidários do chifre traziam  prisioneiros para serem sentenciados. Todos os que tinham sido presos com armas nas mãos foram dependurados nas  muralhas de cabeça para baixo; e quantos foram  surpreendidos com imagens roubadas e bens furtados  foram arremessados ao rio como alimento para os  crocodilos. E os que usavam o emblema da cruz sofreram  flagelações e foram remetidos para as minas; as mulheres  foram entregues aos soldados para que as gozassem, e as  crianças levadas para o templo de Ammon em cujas  dependências ficaram  instaladas. Assim a morte assolou a zona portuária de Tebas  e Eie não mostrou a menor complacência porque precisava  ganhar a simpatia dos sacerdotes. Dizia:

- Estou limpando a terra do Egito do seu sangue mau!

Pepitamon estava furioso porque os escravos lhe haviam  saqueado a casa, aberto as caixas dos gatos, tirado o  leite destinado aos mesmos levando-o para os filhos; e em  conseqüência disso os bichos tinham passado fome e ficado  bravos outra vez. Portou-se, portanto, sem piedade, ele  também. E durante dois dias as muralhas da cidade ficaram  cheias de corpos de homens dependurados pelos tornozelos.

Com grande gáudio, os sacerdotes tornaram a entronizar a  imagem de Ammon no templo oferecendo-lhe muitos sacrifícios.

Eie designou Pepitamon como governador de Tebas e  seguiu depressa para Akhetaton no intuito de compelir o  faraó Akhnaton a abdicar. Disse-me:

- Vem comigo, Sinuhe, porque poderei precisar de teu  auxílio para dobrar o faraó ao meu intento.

Respondi:

- Irei de bom grado, Eie, porque desejo que o meu prazer  seja completo.

Mas ele não compreendeu o que eu quis dizer.

Velejei portanto para Akhetaton, com Eie. Lá longe, em Tânis, Horemheb teve notícia também destes acontecimentos e tratou mais que depressa de equipar as naves de guerra, logo depois subindo para Akhetaton.

Tudo estava quieto nas cidades e aldeias quando ele chegou; os templos achavam-se reabertos e as imagens dos deuses haviam sido recolocadas em seus lugares. Fazia o  possível para chegar a Akhetaton ao mesmo tempo que Eie,  decidido a competir com este no poder. E por isso foi  perdoando todos os escravos que depuseram as armas e não  puiu ninguém que de vontade própria trocasse a cruz de  Aton pelo chifre de Ammon. O povo soube dar valor à sua  clemência, embora a vinda de Horemheb não significasse  generosidade conciliadora e sim desejo de poupar gente apta  para a luta.

Akhetaton tornara-se um domínio amaldiçoado. Sacerdotes  e partidários do chifre guardavam todas as estradas que lá iam ter e matavam todos os fugitivos que se recusassem a  oferecer sacrifício a Ammon. Fecharam também o rio com correntes de ferro para que ninguém pudesse fugir por essa  via. Quase não reconheci a cidade ao reve-la, porque reinava um silencio mortal pelas ruas. As flores dos parques haviam  murchado e a relva se tornara amarelenta porque não se regavam mais os jardins. Os pássaros não cantavam nas árvores  batidas de sol e por toda a cidade flutuava o odor da morte.

As principais famílias tinham abandonado suas casas; os  criados tinham sido os primeiros a fugir, deixando tudo atrás de si porque ninguém ousava carregar coisa alguma de uma  cidade amaldiçoada. Os cães pereceram em quintais, os  cavalos morreram de fome nas cocheiras porque os  estribeiros antes de fugir lhes haviam cortado os jarretes. A  moderna Akhetaton tornara-se tão cedo uma cidade morta,  cheirando a carne corrupta, quando cheguei.

Mas o faraó permanecia na casa dourada com a família. Os  criados mais fiéis ficaram com ele; e também os membros mais antigos da corte que não concebiam a vida em outro  lugar que não fosse ao lado do faraó. Ignoravam o que se passara em Tebas porque havia um mês que não chegava  correio a Akhetaton. As provisões acabavam, e o único  alimento do faraó, por ordem do mesmo, era pão seco e papa  dos pobres. As pessoas mais sagazes arpoavam peixe no rio  ou matavam pássaros, comendo às escondidas.Eie, o  sacerdote, me mandou falar primeiro com o faraó, contar-lhe  tudo quanto acontecera, porque eu era amigo de confiança  do soberano. Fui, portanto, mas cheio de algidez. Sentia-me  distante de qualquer aflição ou júbilo, e meu coração se  mostrava insensível até mesmo para com Akhnaton. Ele  ergueu a face lívida, desfigurada, com aqueles olhos  mortiços, e disse:

- Sinuhe, és o único a voltar? Onde estão os que confiavam  em mim? Onde estão os que me amavam e que eu amava?...

Disse-lhe:

- Os antigos deuses governam outra vez o Egito e em  Tebas os sacerdotes sacrificam novamente a Ammon por  entre efusões de júbilo do povo. Amaldiçoaram-vos, faraó  Akhnaton, amaldiçoaram vossa cidade e amaldiçoaram o  vosso nome por toda a eternidade. Já o estão expungindo das  inscrições.

Moveu a mão, impacientemente, e o sofrimento abrasou de  novo seu semblante, ao me apartear:

- Não pergunto o que aconteceu em Tebas. Onde estão os  que me eram fiéis e todos os que eu amava?

Respondi:

- Tendes ainda vossa linda esposa Nefertiti.Vossas filhas ainda se acham convosco. O jovem Sekenre  está arpoando peixe no rio, e Tut brinca de exéquias  com seus bonecos, como sempre. Por que vos incomodardes  com os outros?

Indagou:

- Onde se acha meu amigo Thothmes, que era teu amigo  também e a quem eu amava? Onde está ele, o artista, cujas  mãos inflamavam de vida eterna os blocos de granito?

- Morreu por vossa causa, faraó Akhnaton. Os negros o  atravessaram com uma espada e atiraram o corpo ao rio para  ser devorado pelos crocodilos... E isso porque Thothmes vos  foi fiel. Apesar de ter cuspido em vosso leito, pensai apenas que os chacais agora ululam na sua oficina vazia...

O faraó ergueu a mão como para espantar do rosto um  zumbido de vespa. Depois proferiu os nomes dos que amava.

E de muitos desses eu ia dizendo:

- ...Morreu por vossa causa, faraó Akhnaton. O poder de  Aton foi derrocado. Terminou o reinado de Aton sobre a  face da terra e Ammon reina outra vez.

Ele olhava fixamente para determinado ponto junto de  mim, até que com um movimento de suas mãos sem sangue, considerou:

- Eu sei... Sim, eu sei. Minhas visões reproduziram tudo  isso. O reino eterno não pode ser contido dentro de limites terrestres. Tudo volverá ao que era, e o medo, a cólera e o  mal governarão o mundo. Melhor fora que eu tivesse morrido, e melhor ainda que não fosse nada, pois não veria  todo o mal que é feito sobre a terra.

Sua cegueira enraiveceu-me tanto que retorqui,  fogueadamente.

- Não presenciastes a mínima parte do dano que  sobreveio por vossa causa, faraó Akhnaton! Não vistes  correr o sangue de um vosso filho por sobre as vossas mãos  e nem  se crispou o vosso coração ante o grito de morte da vossa  Amada! Por conseguinte o que falais não tem consistência.

Faraó Akhnaton retrucou, com desânimo:

- Deixa-me então, Sinuhe, já que sou o mal. Deixa-me, e não  sofras mais por minha causa. Deixa-me, porque estou cansado  do teu rosto... Cansado do rosto de todos os homens, pois  atrás da pele o que vejo é o rosto de feras e mais feras.

Mas permaneci sentado no chão, diante dele, e disse:

- Oh! Não, faraó Akhnaton. Não irei embora, porque quero encher a taça até às bordas e sorver tudo, tudo! Eie, o sacerdote, está a chegar, e ouço da banda norte da vossa  cidade o som das cornetas de Horemheb; e as correntes de ferro que vedam o rio está sendo serrada para que ele chegue  até vós.

Sorriu de leve, atirou para os lados as mãos, dizendo:

- Eie e Horemheb... O crime e a violência... São esses,  então, os meus únicos seguidores, agora?

E todo o resto do tempo não falamos mais nada, prestando atenção no gotejar  ameno da água no relógio hidráulico, até que Eie, o sacerdote, e Horemheb, o guerreiro, entrassem na sala real.  Tinham disputado veementemente um com o outro e suas fisionomias estavam deformadas convulsivamente.  Resfolegavam com dificuldade e ambos foram logo se  dirigindo ao faraó sem o menor respeito. Eie disse:

- Abdicai, faraó Akhnaton, se quereis preservar vossa vida! Sekenre governará em vosso lugar. Fazei-o voltar a Tebas e  sacrificar a Ammon. Os sacerdotes o ungirão e colocarão a  coroa vermelha e branca em sua fronte.

E logo atalhou Horemheb:

- A minha espada manterá a coroa em vossa cabeça, faraó  Akhnaton, bastando para tanto que regresseis a Tebas e sacrifiqueis a Ammon. Os sacerdotes resmungarão um  pouco, mas eu os aquietarei com o meu chicote e eles  esquecerão comentários assim que declarardes uma guerra  santa para reconquistarmos a Síria para o Egito!

O faraó encarou-os com um sorriso sem vida.

- Viverei e morrerei como faraó. Não me submeterei nunca  a um falso deus! Jamais declararei guerra e não há de ser com sangue que hei de preservar o poder. Eis o que vos diz o  faraó.

Dito isto cobriu o rosto com a orla da túnica e saiu,  deixando-nos sozinhos, os três, na sala com o odor na morte nas narinas.

Eie estendeu os braços para os lados abatendo-os depois  sobre as coxas, em sinal de desânimo e olhou para  Horemheb. Este fez o mesmo, e olhou para Eie. Continuei  sentado no chão porque os meus joelhos pesavam que nem  chumbo; e olhava para os dois. De repente Eie sorriu  matreiramente e disse:

- Horemheb, fica com a espada e o trono! Coloca na tua cabeça as duas coroas. Queres?

Mas Horemheb deu uma gargalhada de ironia e retrucou:

- Não sou o tolo que julgas. Fica tu com essas imundas  coroas, se é que as queres. Sabes muito bem que não  podemos voltar, aos antigos tempos, porque o Egito se acha  ameaçado pela guerra e pela carestia. Se eu cingisse a coroa agora, o povo acabaria pondo a culpa do mal vindouro sobre  mim; e então acharias bom pretexto nisso para me depores assim que te conviesse.

Eie, considerou:

- Sekenre, então, contanto que concorde em ir para Tebas.  Senão, Tut. Este anuirá, decerto. As consortes dos dois são de sangue real e sagrado. Que um deles agüente com o ódio  do povo até que os tempos melhorem.

Horemheb atalhou logo:

- Enquanto isso governarás na sombra...

Ao que Eie  retrucou:

- Esqueces que dispõe do exército e que tens que defrontar  os hititas? Se conseguires vence-los, não existirá na terra de  Kan pessoa mais poderosa do que tu.

Discorreram assim, interminavelmente quase, até que  perceberam que estavam ligados um ao outro e que não  podiam chegar a conclusão nenhuma exceto esta única: uma  aliança. Eie disse, portanto:

- Confesso com a maior sinceridade que me esforcei para te  depor, Horemheb. Mas agora avultaste, Filho do Falcão, e não posso mais te dispensar. Se os hititas invadirem  a nação, como hei de ter alegria no poder? Confiar em  Pepitamon para guerreá-los? Como, sabendo quanto eles são  sedentos de sangue e cheios de artimanhas! Façamos  hoje a nossa aliança. Juntos, podemos governar a nação, ao  passo que, divididos, malograremos. Sem mim o teu exército  não terá a mesma eficiência; sem ti, sem o teu exército, o  Egito está perdido. Juremos por todos os deuses do Egito  que de hoje em diante manteremos um ao outro. Eu já sou  um homem velho, Horemheb, e desejo provar o gosto do  poder; e tu és moço e contas com tempo diante de ti.

- Não desejo as coroas e sim uma boa guerra para os  pândegos dos meus soldados - disse Horemheb.- Mas preciso de um penhor teu, Eie, do contrário me  trairás na primeira oportunidade. Conheço-te!

-  Que penhor desejas  de mim? Pois o exército já não é um penhor formidável?..   

O rosto de Horemheb se obscureceu enquanto ele olhava para as paredes, tomado de hesitação e esfregava o lajedo  com a sandália como a querer escavá-lo com os artelhos.

Acabou falando:

- Quero casar com a princesa Baketaton. Sério. Pretendo  quebrar o cântaro com ela nem que o céu e a terra caiam. E tens que concordar.

Eie exclamou:

- Ahahn!... Agora percebo o que buscavas. És mais astuto  do que eu pensava e mereces meu respeito. Ela já mudou o nome para Baketamon e os sacerdotes não tem nada contra  ela. O sangue sagrado do Grande Faraó corre em suas veias. Casando-te com ela ganhas direito legal à coroa e  um direito mesmo maior do que os maridos das filhas de  Akhnaton que contam apenas com o sangue do falso faraó.  Urdiste o plano com muita sagacidade, Horemheb; mas não  o posso aprovar... ou pelo menos por enquanto, porque em  tal caso ficaria inteiramente à tua mercê e sem nenhuma  autoridade perante ti.

Horemheb redargüiu:

- Ora! Fica com as coroas, essas imundas coroas, Eie! Eu  prefiro a princesa às coroas. Desejei-a desde a primeira vez que lhe contemplei a beleza, na casa dourada. Meu propósito é misturar meu sangue com o do Grande Faraó, para que os futuros reis do Egito sejam fruto dos meus flancos. Ao  passo que tu, que é que desejas tu senão as coroas?! Toma-as assim que achares a ocasião propícia, e minha espada te  sustentará  no trono. Dá-me a princesa, e não reinarei enquanto viveres... nem mesmo que vivas muito tempo... porque ainda  sou moço e, conforme dizes, tenho diante de mim a  vantagem do tempo.

Eie esfregou a boca, meditando. E, enquanto meditava, seu rosto clareou porque se deu conta de que dispunha de  um engodo mercê do qual podia conduzir Horemheb pela  trilha que muito bem lhe conviesse. E enquanto eu  permanecia sentado no chão, escutando a conversa de  ambos, me assombrava do coração humano que permitia que  aqueles  dois indivíduos ali dispusessem das coroas enquanto o faraó  estava vivo e respirando na sala contígua. Por fim Eie  declarou:

- Esperaste bastante pela princesa e terás que esperar ainda  um pouco mais, pois tens, primeiramente, que mover uma guerra desesperada. Assim sobrará tempo para que se obtenha o consentimento  da princesa; deves saber que ela te despreza sobremaneira porque és de extração humilde. Mas eu, somente eu, tenho  meios de obte-la para ti; e juro, Horemheb, por todos os deuses do Egito, que no dia em que cingir minha fronte com  a coroa vermelha e branca quebrarei com a minha própria  mão o cântaro entre ti e a princesa. Mais do que isso não  posso fazer. E mesmo assim estou me entregando nas tuas  mãos.

Horemheb não teve paciência para angariar maiores  vantagens e disse:

- Pois seja. Levemos a bom termo essas frivolidades. Não  creio que te tenhas prejudicado em nada e nem que atrapalhes o plano porque sei que desejas avidamente essas  coroas... esses brinquedos grotescos!...

Em seu alvoroço quase esqueceu que eu me achava  presente. Mas ao dar com os olhos em mim disse,  desconcertado:

- Ainda estas aí, Sinuhe? Ouviste coisas que não se  coadunam com teus ouvidos ordinários e receio ser  obrigado a te matar embora sem vontade de o fazer já que és  meu amigo.

Tais palavras me espicaçaram. Refleti quão  longe  estavam aqueles dois intrusos do direito de dividir as coroas,  já que eu, que me achava sentado no chão era talvez o único herdeiro masculino do Grande Faraó cujo sangue sagrado  corria em minhas veias e portanto valia mais do que eles.

Assim pois, pus a mão na boca e comecei a rir. A rir mais do  que uma velha. Eie ficou profundamente irritado e disse:

- Tua risada é inconvenientíssima, Sinuhe, já que pareces  estar zombando de um assunto grave. Mas Horemheb não te matará, embora o mereças. E até é bom que tenhas escutado.  Assim, és a nossa testemunha. Não podes nunca falar do que escutaste aqui hoje; precisamos de ti e te ligaremos a nós.  Compreendes também que já é tempo do faraó morrer.  Como seu médico lhe deves abrir o crânio hoje mesmo e  fazer de modo que a tua faca penetre suficientemente para  que e ele se vá da maneira mais decente e tradicional.

Horemheb disse logo:

- Não quero me envolver nisso, pois  minhas mãos já ficaram bastante sujas tocando nas de Eie. Ainda assim, o que ele diz é certo. O faraó Akhnaton deve  morrer para que o Egito seja salvo; não há outro modo.

Ri à socapa outra vez; depois me contive e disse:

- Como médico não lhe abrirei o crânio visto como não  vejo razão para isso. E estou ligado ao código da minha profissão. Não vos enfureçais. Como amigo dele preparar- lhe-ei  um bom remédio. Depois que beber dormirá para não acordar nunca mais. Desta maneira fico ligado a vós, de  modo que não tereis nunca receio de que eu vos atraiçoe.

Tirei do cinturão o frasco de cristal que Hrihor me dera  certa vez e virei o conteúdo no vinho com que enchi antes uma taça de ouro. O cheiro não era desagradável.

Segurei a taça, e nós três entramos na sala do faraó. Este  removera as coroas. Descansava em seu leito, com o rosto lívido e os olhos mortiços. A seu lado jaziam o azorrague e o  cetro-bordão.

Eie aproximou-se, tomou as coroas e o azorrague e,  pesando estas nas mãos, disse:

- Faraó Akhnaton! Vosso amigo Sinuhe preparou-vos uma  boa poção. Bebei para ficardes mais forte. E amanhã então conversaremos de novo sobre coisas de responsabilidade.

O faraó sentou-se na beira do leito, ficou segurando a taça  nas mãos e olhando para cada um de nós, sucessivamente. Quando me olhou o seu olhar me traspassou de tal forma que  senti um calafrio pela espinha. E ele disse:

- Os homens mostram ter pena de um animal ferido  liquidando-o com um pau. E tu, Sinuhe, tens pena de mim?  Se tens, então, obrigado, pois a minha desilusão é mais  amarga na minha língua do que a morte. Hoje a morte é mais  suave do que o olor da mirra.

- Bebei, faraó Akhnaton. Bebei, por amor a Aton.

E  Horemheb disse:

- Bebei, Akhnaton, meu amigo. Bebei, para que o Egito  seja salvo. Certa ocasião vos protegi do frio com a minha túnica, no deserto, fora de Tebas. E o mesmo farei agora.

O faraó Akhnaton bebeu, aproximando dos beiços a orla da taça. Mas sua mão tremeu e o vinho lhe molhou o queixo.  Então segurou bem a taça e a esvaziou. Depois se  estendeu outra vez apoiando o pescoço no espaldar. Não  disse uma palavra. Ficou fitando suas visões com aqueles  olhos mortiços, raiados de sangue. Daí a pouco começou a  tremer um pouco, como se sentisse frio. Então Horemheb  tirou a capa e a estendeu sobre ele. Mas Eie tornou a agarrar  as coroas com as duas mãos e experimentou colocá-las na  cabeça.

Assim se finou o faraó Akhnaton; dei-lhe de beber a morte.  Bebeu-a das minhas mãos. Todavia, por que motivo fiz isso, não sei.

Que homem há que conheça o próprio coração? Creio que  o fiz menos por causa do Egito do que por Mérito e por meu filho Thoth. Fiz isso menos por amor ao faraó do que por  amargura e ódio a todo o dano que ele acarretara. Mas acima de tudo o fiz porque estava escrito nos astros que eu devia  encher a minha taça e virá-la até à lia. Vendo-o morto, cuidei  que enchera deveras a minha taça e que a sorvera até ao  fundo... Mas que homem há que conheça seu coração que é instrumento insaciável... mais insaciável do que um  crocodilo do rio.

Quando vimos que o faraó tinha morrido deixamos a casa  dourada, tendo antes proibido os criados de o molestarem porque se achava dormindo.

Foi só no dia seguinte que encontraram seu corpo frio e  inane, e ergueram brados de lamentação. A casa dourada  ficou cheia de prantos embora me pareça que o espírito  de muitos ficasse mais aliviado depois de tal morte. Mas a  rainha Nefertiti permaneceu ao lado dele sem derramar uma  lágrima; e a expressão de seu semblante era indecifrável.  Quando cheguei ao palácio para, conforme era do meu  dever, acompanhar o corpo até à Casa da Morte, dei com a  rainha Nefertiti acariciando com suas mãos delgadas as faces  do faraó.. Acompanhei o corpo até ao recinto do  embalsamamento e confiei o cadáver aos lavadores e  embalsamadores a fim de que o preservassem para a vida  eterna.

De acordo com a lei e a tradição, o jovem Sekenre era  agora o faraó; ficou porém totalmente atordoado com a sua sincera mágoa e olhava em torno, incapaz de proferir uma  palavra que tivesse nexo, acostumado como estava a receber  do faraó Akhnaton toda a inspiração para as suas idéias. Eie  e Horemheb falaram com ele; disseram que precisava se dirigir imediatamente a Tebas para fazer oferendas a  Ammon, pois só assim conservaria a coroa na cabeça. Mas  não lhes deu crédito, menino que era acostumado a ter  alucinações. Declarou:

- Darei conhecimento da luz de Aton a todo o povo...  Edificarei um templo a meu pai, Akhnaton e o venerarei  como um deus, porque não era um homem igual aos outros.

Quando Eie e Horemheb viram quanto ele era estúpido  trataram de o deixar. No dia seguinte, quando ele foi fisgar  peixes no rio, sucedeu seu barco virar. E o corpo  foi devorado pelos crocodilos. Assim diz a História; mas a  maneira exata pela qual o caso se deu, ignoro de todo.  Acredito que não tenha sido Horemheb quem o mandou  matar; propendo mais a pensar que foi Eie que tinha pressa  em voltar a Tebas para segurar as rédeas do governo.

Então, Eie e Horemheb foram depois procurar o jovem Tut,  que estava brincando no chão do seu aposento. Brincava de funerais, conforme seu costume, e sua consorte  Akhsenaton o imitava. Horemheb disse:

- Vem cá, Tut, já é tempo de te levantares desse chão sujo,  porque és o faraó, agora.

Tut levantou-se obedientemente e, indo sentar-se no trono de  ouro, perguntou:

- Sou faraó? Isso não me surpreende porque sempre me  senti superior a toda gente. Por que então não hei de ser o faraó? Nada mais direito e certo. Com o meu azorrague  castigarei todos os malfeitores, e com o meu cajado vigiarei como um pastor os que forem bons e piedosos como um  rebanho.

Eie disse:

- Deixa de bobagens, Tut. Farás tudo quanto eu mandar,  isso sim; e sem discussão. Antes de mais nada arranjaremos  um bonito desfile para a entrada em Tebas onde  te inclinarás diante de Ammon, no templo grande, e lhe farás  ofertas. Depois os sacerdotes te ungirão e te porão na cabeça  a coroa vermelha e branca. Compreendeste?

Tut refletiu um pouco e depois disse:

- Se eu for para Tebas eles me construirão uma grande  sepultura, como as sepulturas de todos os outros faraós? E os sacerdotes a encherão com brinquedos, cadeiras  de ouro e leitos bonitos? Acho as tumbas de Akhetaton tão  estreitas e escuras! Não quero apenas pinturas nas paredes  mas brinquedos de reis e a minha bonita faca  azul também, que os hititas me deram...

- Pois então? - disse Eie. - Os sacerdotes te construirão uma  bonita sepultura. És um garoto inteligente, Tut, pois pensas  primeiro em tua sepultura antes de mais nada, exatamente na hora em que vais ser faraó... És mais inteligente do que  pensas Tutankhamon não é um nome apropriado para o  usares diante dos sacerdotes; de hoje por diante, portanto, te chamarás Tutankhamon.

Tut não opôs a menor objeção a isso, querendo apenas  aprender logo a escrever o seu novo nome já que não sabia  os caracteres com que era representado o nome de Ammon.  Assim, pela primeira vez, o nome de Ammon foi escrito em Akhetaton.

Quando Nefertiti veio a saber que Tutankhamon  ia ser faraó e que ela fora completamente posta de lado, vestiu o seu melhor traje, depois de ungir o corpo e os  cabelos com ungüentos raros, a despeito da viuvez. E foi procurar Horemheb a bordo do seu navio. Disse-lhe:

- É um disparate e uma monstruosidade se transformar um menino num faraó. Eie, meu miserável pai, tirou-o das minhas mãos e governa  o Egito em nome dele, embora eu seja a rainha consorte  e mãe. Além disso, homens me tem contemplado com  admiração e dito que sou bela; fui chamada mesmo a mulher  mais bonita do Egito, o que, aliás, acho exagero. Contempla-me, Horemheb, como sou, embora o desgosto é o luto  tenham posto olheiras em minhas órbitas e vergado  minha cabeça. Tu dispões do poder militar. Juntos, tu e eu,  podemos arquitetar muitas coisas em prol do Egito. Falo  contigo assim com tamanha franqueza porque penso acima  de tudo no bem do Egito, e porque sei que meu pai, esse  maldito Eie, é um homem ambicioso e grosseiro, que causará  muitos danos a esta nação.

Horemheb contemplou-a. Nefertiti entreabriu o vestido  dizendo que o beliche era demasiado quente, procurando tentá-lo com muitas seduções. Ignorava por completo pacto  secreto de Horemheb com Eie, e mesmo que tivesse  suspeitado alguma coisa do desejo de Horemheb por  Baketamon cuidava - porque era mulher - que podia  suplantar facilmente aquela princesa inexperiente e altiva  perante os sentidos daquele guerreiro. Mas sua beleza não conseguiu absolutamente impressioná-lo. Olhando-a  friamente disse:

- Tenho escorregado demais pela lama nesta cidade  amaldiçoada, e não estou disposto a me aviltar ainda mais,  linda Nefertiti. Tenho cartas a ditar relativas à guerra e não  disponho de tempo para me distrair convosco.

Tal cena Horemheb me relatou depois e, muito embora  deva ter enfeitado muito os fatos, todavia a história, na parte essencial, foi verdadeira. Desde esse dia em diante Nefertiti  odiou Horemheb com uma cólera corrosiva e fez tudo para solapar e enegrecer sua reputação. Em Tebas tornou-se  amiga de Baketamon e, devido a isso, Horemheb veio a  sofrer anos, conforme contarei mais tarde. Teria sido mais  prudente da parte dele não a insultar procurando  preferivelmente manter amizade com ela e mostrar  compreensão por sua natureza e solitude. Mas Horemheb  não quis de modo algum cuspir na cama do falecido faraó.  Por mais esquisito que possa parecer, Horemheb ainda  amava Akhnaton embora houvesse ordenado que o nome do  faraó fosse expungindo de todas as inscrições e houvesse  mandado destruir o templo de Aton em Tebas.

Como prova  do que assevero,direi que Horemheb ordenou a pessoas de  confiança que removessem secretamente o corpo de  Akhnaton, para junto do de sua mãe, na tumba existente em  Tebas, para que não viesse a cair nas mãos dos sacerdotes  que desejavam queimá-lo e atirar as cinzas no rio. Mas tais  fatos sucederam mais tarde.

Tão logo Eie teve o consentimento de Tutankhamon se  apressou em reunir uma porção de navios nos quais  embarcou os membros todos da corte. Akhnaton ficou  abandonado,  entregue apenas aos embalsamadores da Casa da Morte que  preparavam seu corpo para a eternidade. Os últimos  habitantes fugiram desabaladamente, não ousando olhar  para trás. Na casa dourada as baixelas e cristais foram  deixados em cima das mesas, ao passo que os brinquedos de  Tut ficaram largados no chão, num arremedo eterno  de funeral.

Ventos do deserto estraçalharam portas e janelas; areias amontoaram-se em cima dos lajedos onde patos fulgurantes voavam por entre caniços verdes e peixes  dourados  nadavam em águas esverdeadas, as areias cobrindo assim tais  lavore de arte. O deserto voltou a se apossar da área onde  tinham sido os jardins de Akhetaton; os lagos secaram, os  fossos de irrigação ficaram entupidos, as árvores frutíferas  secaram. A argila dos estuques das casas ruiu, os tetos abateram, e a cidade inteira se foi transformando em ruínas.  Chacais uivavam pelas salas e pórticos, instalando seus ninhos não mais em tocas e sim, por enquanto, em leitos com  dosséis.

Assim pereceu a cidade de Akhetaton, e tão rapidamente quanto o faraó Akhnaton a erguera. O povo de Tebas rejubilou-se grandemente com o regresso  de Ammon e a entronização do novo faraó. Tão insensata é a  alma do homem que jamais põe sua esperança no futuro, não  aprendendo nada dos seus passados erros e imaginando que  o dia de amanhã será melhor do que foi o da antevéspera. O  povo postou-se ao longo da Avenida dos Carneiros para  saudar o novo faraó com gritos de alegria e juncar de flores o  seu caminho.

Mas no porto e no bairro pobre as ruínas ainda fumegavam;  acre fumaça se erguia dos escombros, e do rio subia ainda o fétido de carniça. Em cima da cúpula do templo corvos e  abutres estendiam o pescoço, sentindo-se demasiado gordos  para ensaiar vôo. Aqui e acolá, por entre as ruínas, mulheres  amedrontadas e crianças magras vasculhavam, procurando  seus cacarecos .onde havia sido o lugar de suas residências. 

Caminhei pelas docas que ainda tresandavam a sangue,  olhando para canastras, e pensando em Mérito e em Thoth,  que tinham perecido por causa de Aton e da minha loucura. Meus passos levaram-me para as ruínas de O Rabo do  Crocodilo e pensei em Mérito que me dissera: "Sou a esteira forrada que amacia a vossa solidão... Ou sou apenas a esteira que se vai gastando.”

Pensei em  Thoth e foi como se o visse. Suas faces e seus braços eram tenros; abraçou-me, pousou o rosto no meu. Com a fumaça  acre me entrando pelas narinas, caminhei pela poeira do  porto, vendo diante de mim o corpo de Mérito transpassado,  e vendo o narizinho ensangüentado do pequenino Thoth,  bem como o seu cabelo grudado na têmpora. Refleti que a  morte do faraó Akhnaton fora sem dores. Refleti também  que nada no mundo é mais terrível do que os sonhos dos  faraós, porque a semente que semeiam é sangue e morte.

Os brados jubilosos da multidão chegavam aos meus  ouvidos; eram saudações ao faraó Tutankhamon. Em sua parvoíce, o povo cuidava que aquele rapazola deslumbrado,  cujos pensamentos se confinavam à vontade de ganhar uma  tumba bonita, acabaria com a injustiça e restauraria a paz e a  prosperidade na terra de Kan.

Vagueei assim por onde meus pés me levaram, ciente da  minha solidão e de que o meu sangue fora derramado esterilmente através de Thoth. Não nutri nenhum desejo de  imortalidade; a morte me seria mais um descanso, um sono,  o calor de um braseiro numa noite de inverno. O deus de  Akhnaton me despojara, levando minha alegria e minha  esperança; e eu estava a par de que os deuses moram em  mansões escuras de onde não há regresso. O faraó Akhnaton  bebera a norte pelas minhas mãos, mas isso não constituía  consolo para mim; com a morte ele bebera  misericordiosíssimo alívio, inefável esquecimento. Eu,  porém, vivia e não conseguia esquecer. Meu coração estava  consumido pela amargura, e nutria ressentimento contra o  povo que estava agora bramindo diante do templo como  gado, sem nada haver aprendido do infortúnio recente.

Meus pés levaram-me para a ruína da casa do fundidor;  crianças esconderam-se assim que me viram, e mulheres que raspavam panelas e cântaros ficaram de costas, com  medo:

Lances trêmulos de paredes enegrecidas de fuligem; a  cisterna ressequida onde fora o jardim; o sicomoros com o  tronco carcomido e os galhos sem folhas...Mas um  abrigo, debaixo do qual vi um pichel com água, se erguia  entre as ruínas. E Muti veio ao meu encontro com terra nos  cabelos grisalhos, e mancando por causa do antigo  ferimento. Inclinou-se diante de mim, com os joelhos  tremendo, e disse com amargura que naquelas condições até  era irônica:

- Abençoado seja o dia que traz à casa o meu amo!

E mais não pode dizer. Ficou com a voz estrangulada pela  emoção. Acocorada no solo, escondeu o rosto nas mãos; seu corpo  magricela tinha sido ferido em muitos lugares pelas pancadas; mas agora tudo já estava cicatrizado e nem eu  podia fazer nada. Perguntei-lhe:

- Onde está Kaptah?

- Kaptah?... Morreu! Dizem que os escravos o assassinaram  quando viram que os traía vendendo vinho aos soldados de Pepitamon.

Não acreditei, absolutamente. Tinha certeza quase de que  ele não tinha morrido. Acontecesse o que acontecesse, Kaptah continuaria a se esgueirar da morte.

Irritada com o meu ceticismo, Muti exclamou:

- Quereis rir, agora? É fácil e agradável, Sinuhe. Estais  vendo o triunfo? Eis a vitória do vosso Aton!... Vós outros,  os homens, sois todos iguais. Todo o mal do mundo advém  dos homens, que são uns eternos meninos. Não crescem nunca, jogam pedra uns nos outros, ferem-se... E o prazer  principal deles é dar desgosto aos que os amam. Sempre não vos quis bem, Sinuhe? E de que forma fui recompensada?  Fiquei aleijada de uma perna, com o corpo todo ferido, e  com um punhado de trigo mofado!  E se vos acuso não é por mim, é por causa de Mérito que foi  tão boa para vós e a quem, voluntariamente,  propositalmente, matastes... Chorei todas as minhas lágrimas  também por causa do pequenino Thoth, que era como um  filho meu!... Gostava tanto dos meus bolos de mel!... Mas  estais lá vos importando com isso! Ora, sempre voltastes,  com as mãos abanando, com vossas riquezas dispersadas,  disposto a um descansozinho debaixo do abrigo que construí  com tanto trabalho e dificuldade. E, para que mais? Para que eu vos alimente. Aposto como antes de amanhecer  já estareis choramingando por causa de cerveja e que, mal nasça o sol, me esbordoareis só porque não vos sirvo como  desejais ser servido. Sim, me poreis a trabalhar para vós, ó amigo da indolência. Não fosse assim a natureza dos  homens!

Com tais palavras me recebeu, e suas admoestações eram  tão familiares que me lembrei de Kipa e de Mérito, e meu coração foi invadido por tamanha tristeza que não consegui  reter as lágrimas.

Ela então ficou muito desconcertada e disse:

- Bem sabeis Sinuhe, o criatura de coração terno, que o que  falei não foi por mal e sim apenas para vos esclarecer. Disponho ainda de um punhado de trigo que vou moer para  vos fazer uma boa papa. Depois vos prepararei uma cama  com palha. Decerto dentro de pouco tempo estareis em  condições de prosseguir em vossa profissão para que  possamos viver. Não vos preocupeis quanto a isso, porque já arranjei para  lavar roupa em casa de gente rica onde há uma porção de peças manchadas de sangue. Assim ganharei algum dinheiro.  Acho também que arranjarei emprestado um pichel de cerveja... Vou ver se consigo no bordel onde os soldados  estiveram aboletados. Sempre vos reanimará um  pouquinho...

Suas palavras fizeram que eu tivesse vergonha de minhas  lágrimas. Limpei o rosto e disse:

- Não vim para te incomodar ainda mais, Muti. Em breve  terei que viajar e talvez me demore. Foi por isto que desejei rever a casa onde fui feliz, passar a mão no tronco rugoso do  sicomoros, tocar o chão que foi pisado pelos pés de Mérito e  do pequenino Thoth. Não te dês trabalho algum por minha  causa, Muti. Vou te mandar umas moedas de prata, se puder, para ires vivendo enquanto eu estiver ausente. Mas te  abençôo por tuas palavras, como se fosses minha mãe. És  uma boa criatura, embora muitas vezes a tua língua aguilhoe  como um moscardo.

Muti soluçava e limpava o nariz com as costas da mão. Não  deixou que eu saísse, acendeu um fogo e preparou comida servindo-se da sua reles economia. Vi-me obrigado  a comer para não melindrá-la, embora cada vez que  mastigasse sentisse náuseas. Muti observava-me e com  movimentos de cabeça me encorajava:

- Comei, Sinuhe! Comei, teimoso! Que mal faz que o trigo  esteja mofado e vos repugne? Espero bem que doravante não enfiareis mais vossa cabeça pateta em todas as malhas e  armadilhas que achardes pelo caminho, pois então nos vos poderei salvar por causa da distância. Isso, comei. Precisais  ganhar resistência, Sinuhe. E voltai. Voltai sim, pois ficarei  fielmente à vossa espera. Não vos incomodeis comigo.  Apesar  de velha e aleijada, sou bastante rija. Ganharei bem o meu  pão lavando e cozinhando enquanto houver pão em Tebas.  Prometei que voltareis a Tebas, meu amo!

Assim, fiquei sentado até ao cair da noite ali entre as ruínas  de minha casa; e o fogo que Muti acendera formava um fulgor isolado naquela escuridão compacta. Considerei  que talvez tivesse sido melhor não ter voltado.... Que talvez viesse a ser melhor não voltar mais já que eu sempre trazia  apenas mágoa e desgosto aos que me queriam bem... Seria melhor viver e morrer sozinho, tal como sozinho eu descera  rio abaixo na noite do meu nascimento.

Quando as estrelas nasceram e os guardas começaram a bater nos escudos com as  espadas para afugentar o povo das ruínas das ruas do porto, disse adeus a Muti e segui mais uma vez para a casa  dourada do faraó. Enquanto caminhava na direção da margem do rio, o céu noturno  mais uma vez recebia o reflexo rubro das luzes das grandes ruas de Tebas; e do centro da cidade vinha o som de qualquer música. que aquela era a noite da  coroação de Tutankhamon, e Tebas se achava em festa.

E nessa mesmíssima noite os sacerdotes trabalhavam com enorme empenho no  templo de Sekhmet, arrancando a erva que crescera por entre as lajes, recompondo  e recolocando no lugar a imagem de cabeça de leão, vestindo-a com linho vermelho, adornando-a  com emblemas de guerra e de devastação.

Logo depois que Eie pos na cabeça de Tutankhamon as coroas dos dois reinos, a  coroa vermelha e a coroa branca, de papiro e de lírio, disse a Horemheb:

- Chegou a hora, Filho do Falcão! Que as trombetas toquem a declaração de  guerra! Que o sangue corra como uma onda purificadora sobre a terra de Kan para  que tudo volte ao que foi antes e que o povo se esqueça do falso faraó.

No dia seguinte, enquanto Tutankhamon brincava na casa dourada, enfileirando  seus bonecos em funerais, acompanhado pela consorte real, enquanto os sacerdotes  de   Ammon, embriagados pelo poder, queimavam incenso no grande templo e  amaldiçoavam o nome do faraó Akhnaton para todo o sempre, então Horemheb ordenou  que as trombetas soassem nos cantos das ruas. As portas de bronze do templo de  Sekhmet foram escancaradas e, à frente das tropas mais selecionadas, Horemheb  abriu a marcha triunfal ao longo da Avenida dos Carneiros a fim de oferecer sacrifícios à deusa. Eie  vira satisfeito o seu desejo, pois à destra do faraó governava a terra de Kan. E  agora era a vez de Horemheb cuja vontade também se realizou. Segui-o ao templo de  Sekhmet porque fez questão que eu contemplasse a grandiosidade do seu poder.

Diga-se porém em sua honra que na hora do triunfo renunciou a quaisquer  exterioridades procurando impressionar o povo com a simplicidade do seu  comportamento. Por essa razão seguiu para o templo num carro pesado e comum. Não havia plumagens se  agitando nas cabeças dos cavalos; nem ouro reluzindo nos raios das rodas. Em  lugar disso, agudos alfanjes de cobre fendiam o ar de ambos os lados do carro.

Atrás dele seguiam filas de atiradores de chuços e de arqueiros. O ressoar de  seus pés sobre as pedras da Avenida dos Carneiros era tão profundo e firme como  o bramir do mar. Negros tocavam tambores feitos com pele humana:

Calado e pasmo, o povo contemplava a figura majestosa em pé no carro e que se  alteava por cima das cabeças de todos; contemplava as tropas que cintilavam de  saúde enquanto a nação inteira passava necessidade. E o povo assistia o desfile em  silencio, como pressentindo que seus sofrimentos apenas tinham começado agora. 

Horemheb parou diante do Templo de Sekhmet, desceu do carro e entrou, seguido por seus  oficiais. Os sacerdotes vieram ao seu encontro com as mãos e as vestes manchadas  de sangue fresco e o conduziram até diante da imagem de Sekhmet. A deusa estava  vestida com uma roupa escarlate umedecida com o sangue do sacrifício e que por  isso lhe aderia ao corpo; e os seios de pedra proeminavam opulentamente. Na  relativa escuridão do templo sua cabeça de leão selvagem parecia se mover, e os  olhos feitos de jóias olhavam como olhos vivos para Horemheb enquanto este  contraía com os dedos os corações quentes da oferenda e orava pela vitória.

Os sacerdotes saltavam em redor dele, em sinal de júbilo, acutilando-se uns  aos outros, e gritando em uníssono:

- Volta como vencedor, Horemheb, Filho do Falcão! Volta como vencedor! E que a  deusa então desça sobre ti, viva, e te abrace com a sua nudez!

Mas Horemheb não deixou que os saltos e os brados dos sacerdotes embargassem  sua compostura; efetuou os ritos designados, fazendo isso com fria dignidade, e  deixou o templo. Diante da fachada, ergueu as mãos tintas de sangue e falou a multidão  em expectativa.

- Atenção, povo da terra de Kan!... Ouvi-me, pois sou Horemheb o filho do  Falcão. Estas minhas mãos outorgam vitória e glória eterna a todos os que me  seguirem nesta guerra santa. A esta hora os carros dos hititas correm com  estrépito pelo deserto de Sinai; suas vanguardas devastam o Baixo Reino, e o  nosso país nunca foi ameaçado por um tão, grande perigo. Os hititas estão  avançando em número incalculável e com aquela crueldade deles que é a abominação  de todos os homens. Querem saquear vossas casas, vazar vossos olhos, violar  vossas mulheres, escravizar vossos filhos. Por isso a guerra que lhes declaro é  uma guerra santa. Guerreamos por nossas vidas e por nossos deuses. Se tudo for  bem, recuperaremos a Síria depois da derrota dos hititas. Voltaremos a ter prosperidade, e cada homem receberá uma medida cheia de trigo e terá comparticipação plena nos despojos. Desde muito que  estrangeiros vem desrespeitando a nossa pátria, zombando do que chamam a nossa  fraqueza e escarnecendo da impotência das nossas armas! É chegada a hora de restaurarmos  a glória militar neste país. Apenas congregando nossa força total podemos  recuperá-la. Por conseguinte, mulheres do Egito, torcei vossos cabelos em cordas de arcos e  mandai para esta guerra santa, com júbilo, os vossos maridos e os vossos filhos!  Homens do Egito, forjai vossos arcos com os antigos ornamentos, segui-me e vos  darei uma guerra inigualável no mundo todo! Os espíritos dos grandes faraós e  todos os deuses do Egito, e acima de todos Ammon excelso, lutam ao nosso lado.  Escutai-me povo! É Horemheb, o Filho do Falcão, quem vos promete!

Calou-se, deixando cair ao longo do corpo as mãos ensangüentadas. Ofegava,  porque fora obrigado a gritar bem alto.

Então as trombetas tocaram; os soldados  bateram nos escudos com as espadas e fizeram barulho com os pés. Aqui e acolá, brados ressoaram pela multidão; gritos esses que logo se unificaram numa  tempestade de vozes, porque todos gritavam juntos, exultando. Horemheb sorriu e  voltou para o carro enquanto os guerreiros lhe abriam caminho através da  multidão vociferante.

Seguiu para o porto, trasladou-se para o seu navio; devia navegar diretamente  para Menfis, pois já se detivera demasiado tempo em Tebas. De acordo com os  últimos comunicados, os cavalos dos hititas já estavam pastando em Tânis.

Entrei a bordo  e ninguém opôs a menor resistência aos meus passos. Subi e lhe disse:

- Horemheb, o faraó Akhnaton morreu; portanto estou exonerado do meu posto de  trepanador real e com liberdade de locomoção. Pretendo seguir contigo para a  guerra, porque para mim todas as coisas são indiferentes e em parte alguma sou  feliz. Quero ver que espécie de vantagem pode decorrer dessa guerra sobre a qual  falaste tanto a vida inteira! Quero ver se governas melhor do que Akhnaton, ou  se a ferra é governada por espíritos subterrâneos.

Horemheb entusiasmou-se e  declarou:

- Ora aí está um bom agouro... Jamais supus que tu, Sinuhe, fosses o primeiro  voluntário a se apresentar para esta guerra! Jamais acreditaria nisto, pois sei  que preferes o conforto e o bem-estar às peripécias e surpresas da campanha. Cuidei até em te por a tomar conta dos meus interesses na casa dourada... Mas  talvez seja melhor que venhas comigo, pois és daqueles homens simples que a  gente conduz pelo nariz. Deste modo pelo menos terei um bom médico que me possa valer.  Estou a ver, Sinuhe, que os meus homens tiveram razão em te chamar de O Filho  do Burro Bravo quando combatemos juntos os cabírios, pois decerto tens a coragem  desse animal, já que os hititas não te inspiram medo.

E enquanto ele falava, os remadores enfiaram os remos na água e a embarcação  se insinuou na correnteza, com suas flâmulas ondulantes. O cais estava branco de  gente cujos brados era como rajada do vento em nossos ouvidos. Horemheb deu um  profundo suspiro e disse sorrindo:

- Conforme vês, a minha oração causou profunda impressão no povo.

Segui-o até ao beliche de onde ele fez sair os escribas. Então lavou as mãos,  cheirou-as e disse com certa repulsa:

- Por Set e todos os demônios! Não supunha que os sacerdotes de Sekhmet  realizassem sacrifícios humanos, ainda! Mas decerto os mandriões se excitaram  porque as portas do templo não se abriam havia pelo menos quarenta anos. Fiquei sem saber para que seria que requisitaram prisioneiros hititas e  sírios para as cerimônias. Mandei-lhos para que assim agissem à vontade...

Tão pasmo e horrorizado fiquei com estas palavras, que meus joelhos cederam e  tive que me arrimar; mas Horemheb continuou, distraidamente:

- Se soubesse para que era, dificilmente consentiria. Podes crer, Sinuhe, que  fiquei boquiaberto ao dar com um coração humano ainda quente, sangrando na minha  mão, diante do altar. Devolvendo aos sacerdotes a liberdade de culto, eles não  nos importunarão.

Perguntei-lhe:

- Horemheb, então não consideras nada sagrado?...

Refletiu um pouco e  replicou:

- Quando eu era jovem, acreditava na amizade. Cheguei a acreditar mesmo que  amava uma certa mulher cujo desdém quase me tornou louco. Agora sei que nenhum  ser humano constitui um fim e sim um meio. Sou o centro de todas as coisas. Todas elas  procedem de mim e a mim regressam. Eu sou o Egito. Eu sou o povo. Tornando o  Egito grande e poderoso, faço-me grande e poderoso. Ora, isso convém a todo preço, Sinuhe,  conforme fácil é depreender.

Suas palavras me causaram pouca impressão porque eu o conhecera um rapaz  jactancioso, e visitara seus pais que cheiravam a queijo e gado, embora Horemheb  depois os pusesse num bom meio.

Portanto, não podia tomá-lo muito a sério, por mais que se tornasse claro que  a vontade dele era endeusar-se perante mim. Não lhe dei a entender esta minha  idéia crítica, e principiei a falar da princesa Baketamon que se melindrara mortalmente porque não lhe haviam dado um lugar condizente com a sua dignidade  na procissão de Tutankhamon. Horemheb prestou atenção voraz às minhas palavras e ofereceu-me vinho no intuito de me excitar para que eu falasse mais ainda a respeito de Baketamon. Assim, o tempo passou enquanto descíamos navegando para  Menfis. e os carros hititas devastavam o Baixo Reino.

 

A GUERRA SANTA

Enquanto se achava em Menfis, reunindo tropas e equipamento, Horemheb mandou  chamar os homens ricos do Egito e lhes disse:

- Vós sois homens influentes, enquanto que eu não passo de um homem que em  menino foi pastor com pés sujos de esterco. Aconteceu, todavia, que Ammon me  abençoou,  e o faraó me confiou o comando desta campanha. O inimigo que ameaça a nossa  terra é formidável e de selvageria medonha, conforme sabeis. Deu-me grande  satisfação  saber que tomastes providencias ousadas reconhecendo que a guerra exige  sacrifícios de todos, e que por esta razão racionastes a medida de trigo dos  vossos escravos  e empregados e erguestes os preços dos viveres no Egito inteiro. Percebi por vossas palavras e ações que também estais preparados para grandes sacrifícios.  De maneira a sustentar o custo da guerra será necessário que cada um de vós me  empreste - e imediatamente - metade de seus bens, seja em ouro, prata, trigo, rebanhos, cavalos ou carros. A mim tanto se me dá; o essencial é que entregueis  prontamente.

Ouvindo isso os homens romperam em grande expostulação; e, gesticulando muito,  disseram:

- O falso faraó já nos reduziu a mendigos. Estamos na penúria! Que segurança  nos ofereceis pelo empréstimo da metade das nossas posses, e que juros  tencionais pagar?

Horemheb fitou-os benignamente.

- A segurança é a vitória para meramente como um empréstimo, meus caros amigos. No fim de quatro meses emprestar-me-eis ainda metade do que vos ficou; e dai a um ano metade ainda do  que vos sobrou. Vós próprios estais mais capacitados do que eu para computar a  soma finalmente restante em vosso poder; tenho, no entretanto, certeza plena de que será quantidade bem mais do que adequada. para suprir vossas mesas pelo  resto de vossas vidas e que não estou, de modo algum, vos roubando.

Então os  ricaços atiraram-se diante dele, chorando amargamente e batendo no chão com as frontes até feri-las. Mas Horemheb procurou consolá-los:

- Chamei-vos porque sei que amais o Egito e quereis de bom grado vos  sacrificar por ele. Sois ricos, e cada um de vós fez a própria- fortuna mediante  esforço próprio. Tenho certeza de que refareis logo essas fortunas. Os ricos se  tornam sempre cada vez mais ricos mesmo quando um sumo supérfluo lhes é  espremido de vez em quando. Vós, excelentíssimos senhores, constituís para mim  um precioso pomar. Embora vos esprema como posso espremer uma romã de modo a que  os caroços saltem por entre os meus dedos, todavia, como um bom jardineiro, não  lesarei as árvores, apenas me servindo da safra de vez em quando. Lembrai-vos  também que vos proporciono uma grande guerra - bem maior do que sonhais - e que  em tempo de guerra o homem capacitado só pode prosperar. Quanto mais demorada a  guerra, maior a sua prosperidade. Nenhum poder no mundo pode impedir isso, nem  mesmo o departamento de impostos do faraó. Tereis muita gratidão por mim. Podeis. agora vos retirar, com minhas bênçãos. Ide em paz, tornai-vos  diligentes, engordai como carrapatos, pois ninguém vos impedirá isso.

Com estas palavras os mandou embora. Partiram grunhindo, lamentando-se e dando  repelões nas roupas. Mas assim que atravessaram as portas cessaram de fazer  bulha, principiando atarefadamente a calcular suas perdas e a planejar meios de  repará-las.

Horemheb disse-me:

- Esta guerra é um presente para eles. Doravante, quando roubarem o povo,  censurarão os hititas por todas as calamidades, assim como o faraó os poderá  censurar pela carestia e miséria que a guerra trouxer à nação. No fim é o povo  quem paga; os ricos o roubarão tantas vezes quantas forem necessárias para  perfazer a soma que me emprestam...    E poderei espreme-los outras tantas vezes. Este processo me convém mais do que um imposto de guerra. Se eu impusesse um  tal imposto sobre o povo este amaldiçoaria o meu nome. Roubando os ricos para as  despesas da guerra, ganharei as bênçãos do povo bem como o seu favor, como um  homem justo.

A esta altura a região do delta se achava em chamas. Bandos de hititas faziam  incursões incendiando as aldeias e fazendo seus cavalos pastar sobre o trigo  nascente. Fugitivos vinham aos grupos para Menfis contando episódios medonhos da  destruição hitita; meu coração baqueava, e eu instava com Horemheb para que não  perdesse tempo. Mas ele sorria, sem se incomodar, explicando:

- Os egípcios precisam provar as crueldades dos hititas  para que assim acabem se persuadindo que sorte pior e mais sinistra não lhes  podia acontecer se caíssem prisioneiros de um tal inimigo. Eu seria louco se  avançasse com tropas de recrutas e sem carros. Não te preocupes, Sinuhe. Gaza  ainda é nossa... Gaza é a bigorna onde esta guerra será conformada. Enquanto  esta cidade estiver em nossas mãos os hititas não ousarão enviar suas forças  principais pelo deserto adentro. Não dispõem absolutamente do domínio do mar.  Mandei patrulhas ao deserto atiçarem os bandidos e os guerrilheiros;  não sou assim tão indolente quanto pensas. O Egito só estaria ameaçado de um  perigo excepcional se os hititas estivessem em condições de trazer sua  infantaria até a Terra Negra através do deserto.

Homens afluíam para Menfis, chegando de todas as partes o Egito. Homens  esfomeados, homens que por causa de Aton haviam perdido seus lares e suas  famílias e que já não davam mais valor à vida; homens sequiosos de aventuras e  de despojos de guerra. Sem dar atenção aos sacerdotes, Horemheb ia perdoando os que  haviam tomado parte na fundação do reino de Aton, e libertou todos os  prisioneiros das pedreiras para obrigá-los a entrar a seu serviço. Menfis em  breve ficou parecendo um vasto acampamento. A vida da cidade tornou-se  turbulenta. Lutas se sucediam todas as noites nas tavernas e bordéis; a  população pacífica se fechava em casa, tomada de medo e susto. Vinha das  oficinas e ferrarias o ressoar de malhos. O pavor pelos hititas era tamanho que  até mesmo mulheres pobres colaboraram fornecendo seus objetos de metal para que  se forjassem arcos.

Navios recolhiam incessantemente aos portos do Egito vindos das ilhas  distantes e de Creta. Horemheb passou a comandá-los, para isso lotando-os com  oficiais e equipagens  a seu serviço. Capturou até galeras de guerra cretenses e forçou suas tripulações a servir o Egito.

Essas naves estavam agora espalhadas pelo mar e cruzando de porto a porto não  querendo voltar à pátria. Dizia-se que irrompera uma insurreição entre os  escravos de Creta e que a cidade dos nobres no alto da colina levara ardendo  como uma tocha durante semanas, espetáculo que se podia ver do alto mar.  Contudo, não se tinha nenhum informe certo do que estava acontecendo, pois, de  hábito, os cretenses mentiam muito. Alguns chegavam a afirmar que os hititas  haviam invadido a ilha, coisa aliás impossível de se acreditar já que estes não  dispunham de frota para tal invasão. Outros afirmavam que uma raça estranha, de  cabelos louros, do Norte, saltara na ilha e a saqueara. Mas os cretenses eram acordes em declarar que todas essas calamidades tinham sucedido porque o deus  deles morrera. Por tal motivo estavam contentes de se por a serviço dos  egípcios. Ainda assim outros compatriotas seus, que navegavam antes na carreira  para a Síria, se tinham aliado a Aziru e aos hititas.

Tudo isso foi sumamente vantajoso para Horemheb, porque uma confusão medonha  prevalecia no mar onde todos. se degladiavam pela apreensão de navios.  Declarara-se uma rebelião em Tiro contra Aziru, e rebeldes sobreviventes escaparam para o Egito onde se alistaram nas forças que Horemheb. Desta forma  este ficou habilitado a equipar uma frota e se aparelhar para a batalha com o  concurso de equipagem: adestradas.

Gaza ainda resistia. Quando as colheitas acabaram e o rio começou a subir,  Horemheb saiu de Menfis com suas tropas.

Mandou adiante mensageiros por via  marítima e terrestre para que penetrassem nas linhas dos invasores; um navio que penetrou no porto de Gaza aproveitando a escuridão da noite e levando  carregamento de trigo, levava também a mensagem: “Gaza deve resistir. Urge  manter Gaza a todo preço!" Enquanto catapultas martelavam as portas e as  muralhas da cidade em fogo, porque ninguém tivera tempo de extinguir os  incendios, caíam dardos aqui e acolá com a mensagem: "Horemheb vos ordena que  agüenteis em Gaza!" E quando os hititas arremessaram dentro da cidade potes  contendo serpentes venenosas, um desses potes estava cheio de trigo e continha  esta mensagem de Horemheb: "Urge manter Gaza!" Desta maneira Gaza cobrou ânimo  para resistir ao assalto combinado dos homens de Aziru e dos hititas; como  resistiu mesmo, lá isso é coisa que ignoro; mas o irascível comandante de praça  que me fizera içar para as muralhas dentro de uma cesta mereceu bem a fama que  obteve mantendo Gaza para Egito.

Horemheb marchou com suas. forças rapidamente para Tânis onde paralisou e envolveu um esquadrão de carros hititas na margem do rio.  Com a ajuda da noite pos seus homens a escavar os canais secos de irrigação que  fez ligar com a água do rio. De manhã os hititas descobriram que estavam  cercados numa ilha e então começaram a. matar os cavalos e a destruir os carros.  Isso enraiveceu Horemheb que pretendia capturar tudo intacto. Mandou tocar as  cornetas e atacou. As tropas frescas egípcias obtiveram uma vitória fácil e  retalharam o inimigo que teve que lutar a pé. Desta forma Horemheb capturou cem  carros, ou mais, e cerca de duzentos cavalos. A vitória era mais importante do  que a captura, porque depois disso os egípcios não consideraram mais o inimigo  invencível.

Dispondo a bel-prazer de tais carros e cavalos, Horemheb rodou para Tânis na  frente deixando que as tropas de infantaria e os carros de suprimento o  acompanhassem  com a indispensável distância. Foi com fervor fulgurante que me disse:

- Se há que ferir, urge ferir primeiro e sem remissão!

- E com estas palavras decisivas foi furiosamente a caminho de Tânis, não se  importando com as hordas hititas que percorriam e saqueavam o Baixo Reino. De  Tânis  continuou o avanço diretamente para o deserto, desbaratou os destacamentos  hititas que haviam sido colocados guardando os suprimentos de água, e capturou  depósito após depósito.    Os hititas tinham empilhado centenas de milhares de cântaros com água a  intervalos certos através do deserto para o uso de sua infantaria, porque não  sendo marinheiros  longe estavam de tentar a invasão do Egito por mar. Sem poupar seus cavalos,  Horemheb fez seus homens penetrar depressa. Muitos animais caíram exaustos  durante este  avanço medonho.

E olhos que o assistiram declaram que cem carros em disparada  erguiam uma coluna de poeira até aos céus e que o efeito era de um redemoinho.  Todas  as noites fogueiras eram acesas nas faldas dos montes de Sinai, facilitando a  saída das forças livres dos seus esconderijos para irem destruir as guardas  hititas e seus abastecimentos pelo deserto inteiro.

Daí nasceu a lenda de que  Horemheb rasgou a superfície do deserto do Sinai com uma coluna de poeira  durante o dia e com uma coluna de fogo durante a noite. Depois desta campanha a  sua fama se tornou tão legendária que o povo contava histórias a seu respeito  iguais às dos deuses.

Horemheb surpreendeu deveras o inimigo, agindo assim inesperadamente.

Conhecedores da fraqueza militar atual do Egito, os hititas não podiam  conceber como era que ele ousara aquele ataque através do deserto enquanto as  tropas invasoras assolavam o Baixo Reino. As principais forças hititas estavam  ainda disseminadas pelas cidades e aldeias da Síria na expectativa da rendição  de Gaza, porque as regiões circunvizinhas não podiam suportar o colossal  exército hitita reunido na Síria para conquistar o Egito. Eram muito cautelosos  em sua arte bélica e só atacavam quando tinham certeza de sua superioridade.  Os comandantes haviam anotado em suas tábuas de argila todas as pastagens,  mananciais e aldeias da área que pretendiam atacar. Devido a tais preparativos  tinham  adiado a época da invasão e ficaram aparvalhados ante os movimentos de Horemheb;  em parte porque jamais ninguém ousara atacá-los primeiro, e em parte porque não  acreditavam que o Egito possuísse carros suficientes para tão grande  empreendimento.

O propósito máximo de Horemheb era destruir as reservas de água dos hititas e  ganhar tempo para o treino e o equipamento dos seus homens. Mas esse êxito  espetacular  empolgou-o; girou como vento na direção de Gaza, caiu sobre os invasores na  retaguarda, espalhou-os, destruiu-lhes os engenhos de guerra e incendiou-lhes os  acampamentos.  Todavia não entrou na cidade. Quando os hititas viram que os carros dele eram  poucos reajuntaram-se e contra-atacaram. Horemheb estaria perdido se tais tropas  tivessem  carros, também elas. Só devido a isso pode se retirar bem para dentro do deserto, tratando de destruir mais depósitos de água na orla da região antes que  os hititas enraivecidos pudessem reunir carros suficientes para persegui-lo.

Acertadamente Horemheb deduziu disso que o seu falcão o estava protegendo.  Lembrando-se da sarça ardente que vira certa vez entre as montanhas do Sinai,  mandou uma  ordem aos seus arqueiros que avançassem em marchas forçadas através do deserto  por uma das estradas construídas pelos hititas e onde estavam depositados  centenas  de milhares de cântaros contendo água suficiente para suprir uma grande  quantidade de soldados. Seu intuito agora era brigar no deserto, muito embora o  terreno ali fosse mais adequado para a luta com o emprego de carros. Parece-me  que se viu obrigado a isso, porque depois da sua fuga dos hititas seus homens e  seus cavalos estavam tão exaustos que dificilmente chegariam vivos ao Baixo  Reino. Reuniu portanto todo o seu exército em pleno deserto, o que era um ato  sem precedentes.

Este relato do primeiro ataque de Horemheb aos hititas colhi dele próprio e dos seus homens; não estive presente. Se estivesse estado, certamente não teria sobrevivido para narrá-lo. Coube-me  assistir aos traços da luta observando-a da minha liteira enquanto seguia os  regimentos de infantaria em suas marchas forçadas através da poeira escaldante e sob o fulgor desapiedado do sol.    Depois de nos cansarmos pelo ermo adentro durante duas semanas, coisa que,  conquanto houvesse bastantes reservas de, água, nos deixava em petição de  miséria, vimos certa noite um pilar de fogo se erguendo da montanha ao fundo do deserto; e soubemos então que acolá Horemheb nos aguardava com os seus carros.  Aquela noite ficou gravada na minha memória porque a passei acordado. A  escuridão  esfriara o deserto depois do dia escaldante, e homens que tinham marchado  descalços pela areia esmagando plantas espinhosas gritavam e grunhiam enquanto  dormiam como se demônios os atormentassem. Era por esse motivo, com certeza, que  os homens acreditavam que o deserto estava cheio de tais seres. Ao amanhecer, as trombetas tocaram. E a marcha continuou, embora muita gente não  tivesse podido se levantar. --A fogueira de Horemheb nos chamava como um fanal;  e de todas as bandas do deserto pequenos grupos de salteadores e guerrilheiros andrajosos e queimados pelo sol irromperam dirigindo-se depressa para o ponto  luminoso.

Se as nossas tropas cuidavam que teriam tempo para descansar quando chegassem  ao acampamento de Horemheb, enganaram-se tremendamente. E se cuidavam que ele as  ia elogiar pela marcha rápida e pelas feridas na pele e na sola dos pés,  iludiram-se de todo. Recebeu-nos com furor no rosto  e nos olhos congestionados. Girando o chicote de ouro manchado de sangue e  areia, disse-nos:    - Onde estivestes vadiando, moscas de esterco! Onde estivestes alapados, ovas  do demônio? Muito me hei de alegrar de ver vossos crânios branquejando na areia,  amanhã.  Tenho até vergonha de olhai-vos! Pareceis tartarugas me rodeando!

Tresandais  tanto a suor e sujeira que até tenho que apertar o nariz. E enquanto isso os  meus melhores homens sangrando aqui e os meus nobres cavalos ofegando  mortalmente. Cavai trincheiras, homens do Egito! Cavai vossos abrigos! Este sim, é que é trabalho que vos calha bem, pois tendes passado a vida cavando na lama.

Os recrutas do Egito não ficaram ressentidos em absoluto com as palavras dele;  acharam graça e repetiam-nas rindo uns para os outros. A simples presença de Horemheb lhes levantava o moral  naqueles ermos medonhos.

Esqueceram as solas esfoladas, as línguas gretadas e, dirigidos por ele,  principiaram a cavar trincheiras fundas, a fincar estacas entre pedras, a  estender cordas de fibras  entre as estacas, a soltar e rolar grandes pedras das abas das colinas.

Os cocheiros esfalfados dos carros de Horemheb arrastaram-se para fora de suas  tendas e esconderijos e; mancando, vieram mostrar os ferimentos e gabar suas  proezas; dos dois mil quinhentos que eram, tinham ficado reduzidos a menos de quinhentos em condições de lutar ainda.

A maior parte do exército chegou ao acampamento de Horemheb durante o dia,  numa torrente ininterrupta. Todos os homens foram postos a cavar trincheiras e  construir  barricadas para barrar o acesso dos hititas. Horemheb mandou avisar às tropas  exaustas que ainda não tinham chegado que elas todas deviam alcançar a posição  fortificada no decurso da noite. Os que permanecessem no deserto teriam morte  terrível logo de manhã às mãos do inimigo caso os carros destes irrompessem.

A coragem dos egípcios ficou notavelmente reforçada ante a averiguação  numérica de sua quantidade reunida naquelas paragens ermas; todos confiavam  cegamente em Horemheb,  certos de que os salvaria dos hititas. E estavam construindo as barricadas,  estendendo as cordas e deslocando as penhas quando viram o inimigo se aproximar  numa nuvem de poeira. Com faces lívidas e olhares vacilantes olharam em redor  com medo dos carros munidos de foices tremendas.

A noite se prenunciava, e os hititas não atacariam antes de examinar o terreno  e avaliar a força do adversário. Armaram o acampamento, trataram dos cavalos,  acenderam  fogos. Quando a noite caia, a orla do deserto estava salpicada de fogueiras em  toda a extensão que a vista podia abranger. Pela noite adiante suas escoltas  percorreram as barricadas em carros leves e ligeiros, matando sentinelas e  travando escaramuças ao longo da frente do acampamento. Mas em ambos os flancos  onde não tinham sido construídas barricadas, membros afoitos das forças livres  surpreenderam os hititas capturando-lhes carros e cavalos.

A noite encheu-se com o ruído de rodas, gritos de moribundos, dardejar de  arcos e entrechocar de armas. Os recrutas ficaram seriamente alarmados e não se  atreveram  a pegar no sono. Mas Horemheb consolou-os dizendo:

- Dormi, cambada de ratos! Dormi! Descansai e esfregai azeite nos pés  maltratados, pois estou vigilante e atento aos vossos pesadelos!

Eu não dormi; andei pelo acampamento a, noite inteira curando os ferimentos  dos homens condutores de carros, enquanto o próprio Horemheb me encorajava  dizendo:

- Isso, Sinuhe, cura-os com a tua arte. Guerreiros mais valentes o mundo  jamais viu; cada um deles vale mais do que cem ou mesmo mil desses cavadores de  terra. Trata-os,  pois gosto deveras dessa ralé, e não disponho de homens experimentados que os  substituam.

Eu me sentia indisposto por causa da jornada cansativa pelo deserto, embora a  houvesse realizado numa liteira. A poeira acre ressecara minha garganta. Pensar  na obstinação aloucada de Horemheb cujas conseqüências me levariam a morrer nas  mãos dos hititas era coisa que me irritava sobremaneira por mais que para mim a  morte não oferecesse terrores, mais. Disse-lhe, com raiva:

- Se me empenho em tratar toda essa tua escumalha, fica sabendo que o faço  apenas por minha causa, visto como os considero os únicos homens do teu exército  capazes de combater. Os que vieram comigo fugirão assim que virem as fisionomias dos soldados inimigos. Bom será que separes os cavalos melhores e  que me envies ao Baixo Reino para recrutar um exército. novo e melhor.

Horemheb esfregou o nariz e redargüiu:

- Teu conselho honra a tua sabedoria. Mas só temos uma salvação: derrotar os  hititas aqui no deserto. Não há alternativa. Temos que derrotá-los. Vou agora  descansar  um pouco e bebericar. Depois de beber me sinto irritado com tudo e combato  melhor.

Deixou-me. E logo escutei o gorgolejar da sua botija de vinho que também  oferecia a quantos passassem perto dele, batendo-lhes no ombro e chamando cada  um pelo próprio  nome.

Assim a noite se passou, e a manhã se levantou como um espectro do fundo do  deserto. Diante das barricadas jaziam soldados mortos e carros virados; corvos  bicavam os olhos dos hititas que tinham morrido por ali. Trombetas tocaram as ordens de Horemheb. E ele fez formar suas tropas ao rés da vertente.

Enquanto os hititas apagavam com areia as suas fogueiras ajaezavam os cavalos e amolavam suas espadas, Horemheb dirigia a palavra aos  seus homens, mordendo um pedaço de pão duro e uma cebola, enquanto isso.

- Olhai diante de vós. Vede que maravilha! Ammon entregou os hititas em nossas  mãos, e hoje realizaremos grandes coisas. A infantaria inimiga ainda não  compareceu; acha-se na orla do deserto porque lhe falta água. Para que o exército hitita prossiga em seu ataque ao Egito será preciso que os  seus carros rompam as nossas linhas e capturem os depósitos de água na nossa  retaguarda. Os  cavalos deles já estão com sede e com falta de forragem porque lhes queimei os  abastecimentos e esmaguei os cântaros de água colocados da Síria até aqui. Tem  portanto que romper nossas forças ou se retirar, a não ser que resolvam  fortificar o acampamento e esperar novos abastecimentos, em tal caso não podendo  tão cedo se empenhar em batalha conosco. Lembrai-vos porém que eles são homens  ambiciosos e que aplicaram todo o ouro e prata da Síria nesses cântaros que  jazem enterrados atrás de nós, cheios de água,  na direção do Egito. Não desistirão, por conseguinte, de travar luta para  alcançá-los. Ora muito bem. Ammon entregou-os nas nossas mãos. Quando atacarem,  cavalos tropeçarão e ficarão presos nos obstáculos que lhes armamos. Não podem  jogar suas forças todas contra nós. porque as trincheiras que abrimos quase  instantaneamente e as cordas que estendemos quebrarão o ímpeto de seu assalto.

Horemheb cuspiu fora uma pele de cebola e continuou a mastigar pão enquanto as  tropas começaram a bater com os pés e a soltar brados como crianças aflitas  querendo  mais outra história. Então Horemheb disse:

- Meu único pavor é que vós outros num momento de vacilação deixeis os hititas  deslizar por entre vossos dedos. Essas armas que tendes nas mãos são espadas  destinadas  a furar os ventres dos hititas. A vós, arqueiros, recomendo: Se sois verdadeiros  guerreiros e bons atiradores, deveis ferí-los nos olhos. Mas tais conselhos são  inúteis. Visai os cavalos, são alvos maiores, pois jamais ferireis os homens que  os dirigem. Quanto mais próximo estiverem, mais certa será vossa pontaria, mesmo  a menos exata; aconselho-vos que deixeis que se aproximem bem. Açoitarei  pessoalmente cada homem que perder à toa uma arma; não as podemos esperdiçar. E  vós, arremessadores de setas e chuços! Quando os cavalos estiverem perto então  firmai os punhos das espadas contra o chão com ambas as mãos e voltai as pontas  para as barrigas dos animais.    Desta forma não vos expondes a perigo nenhum e podeis saltar para o lado antes  que o cavalo caia sobre vós. Uma vez lançados no chão, cortai-lhes os jarretes,  pois somente deste modo evitareis que as rodas vós venham a esmagar. Eis qual é  a vossa tarefa, ratos do Egito.

Erguendo um púcaro com água aos beiços engoliu uma grande dose a fim de  clarear as idéias, e continuou:

- Mas... lamento estar aqui perdendo tempo, gastando minha respiração com estes  conselhos, porque já prevejo que assim que ouvirdes o grito dos hititas e o  estrépito de seus carros  escondereis chorando a cabeça na areia por falta de saias onde a esconderdes.    Mas sabei que se os hititas romperem vossa massa e atingirem as reservas de  água na retaguarda, estareis perdidos um por um e sem vida antes do anoitecer,  porque seremos cercados e ficaremos com a retirada cortada. Se tal acontecer, impossível a retirada. Se abandonarmos as defesas que construímos, os carros  inimigos nos dispersarão como palha ao vento. Estou explicando isto para o caso  em que algum de vós tenha a intenção de se perder pelo deserto. Isto aqui é como  no alto mar. Estamos todos na mesma embarcação e não temos escolha a fazer e sim  apenas uma solução única: derrotar o inimigo. Estarei convosco, lutando ao vosso  lado. Caso o meu chicote zurza algum de vós ao invés dos hititas, não será culpa  minha mas tão somente vossa, meus valentes ratos.

Os homens o ouviam sem resfolegar. Confesso que já estava me sentindo mal  porque os carros inimigos tinham começado a rodar e estavam se aproximando como  distantes nuvens de poeira. Acho porém que Horemheb fazia tempo demorando assim  de propósito para que os homens se empolgassem com o seu feitio e para os  distrair durante o tempo lancinante da espera.

Por fim ele relanceou o olhar pelo deserto, ali do seu rebordo situado a certa  altura, ergueu as mãos e disse:

- Os nossos amigos hititas estão a caminho, fato este que me az enviar  agradecimentos a todos os deuses do Egito. Ide, pois, ratos do Nilo! Que cada  homem permaneça em seu lugar que ninguém se mexa enquanto não for lançada a  ordem. E vós outros, meus valentaços veteranos, não largueis  um momento esta ralé...Atirai sobre eles, cercai-os...castrai-os, se necessário  for, caso procurem fugir. Uma coisa vos digo: lutai pelos deuses do Egito, lutai  pela Terra Negra, lutai por vossas mulheres e vossos filhos. Avançai agora,  rapazes! Avançai correndo, senão os carros chegarão às barricada.

Seus estandartes coloridos, o fulgor dos sóis alados na orla de seus carros,  as mantas brilhantes de pano que protegiam dos arcos os cavalos, constituíam um  espetáculo magnífico e brilhante. Os carros operavam em grupos de seis, cada  grupo constituindo um esquadrão. Creio que ao todo havia sessenta esquadrões.  Mas os pesados carros puxados por três cavalos e equipados por três homens,  formavam o centro dessa vanguarda. Eu não podia conceber como era que a força de  Horemheb podia resistir a tal assalto que se movia vagarosa e tenazmente, como  naves, demolindo tudo quanto se lhes antolhava.

Ao som de trombetas os capitães do inimigo ergueram seus estandartes e os  carros começaram gradualmente a aumentar a velocidade. Quando se aproximaram das  barricadas, vi cavalos isolados avançando na frente deles, cada qual com um cavaleiro agarrado à crina e esporeando os flancos do animal, instigando-o a uma  velocidade ainda maior. Não consegui imaginar por que motivo enviavam na frente  seus cavalos sobre excelentes. Foi então que percebi que os cavaleiros se abaixavam e cortavam as cordas que tinham sido estendidas entre as estacas.  Outros cavalos galopavam por entre as brechas assim abertas. Seus cavaleiros.  erguiam-se e arremessavam suas espadas de tal modo que elas se fixavam bem retas  no chão, e do punho de cada uma flutuava um claro pendão. Isso tudo ocorreu com  a pressa de um relâmpago. Não consegui compreender qual fosse a intenção deles,  pois logo os cavaleiros viraram suas montadas e abriram em grande galope para  desaparecer atrás dos carros, embora  alguns caíssem traspassados por setas enquanto muitos cavalos davam cambalhotas  e ficavam esperneando medonhamente no chão.

Assim que os carros ligeiros começaram seu assalto, vi Horemheb avançar para  as barricadas sozinho onde arrancou uma das espadas e a atirou longe com tanta  força que ela ficou fincada mais a prumo ainda na areia. Apenas ele percebera instantaneamente que aquelas espadas e pendões tinham sido colocados para marcar  os pontos mais fracos das defesas onde brechas podiam ser feitas. Outros homens  que seguiram seu exemplo voltaram com os pendões como troféus. Creio que foi somente a pronta inteligência de Horemheb que salvou o Egito naquele dia, pois  se o inimigo houvesse jogado o peso concentrado do seu primeiro assalto contra  aqueles pontos que os cavaleiros haviam marcado o certo é que os egípcios não  teriam conseguido repeli-los.

Tão logo Horemheb voltou a se abrigar entre as suas tropas já os carros  ligeiros dos hititas vinham à toda contra as barreiras, rodando por entre elas  como cunhas. Este primeiro entrechoque provocou tal estardalhaço e ocasionou tão densas  nuvens de poeira que não pude mais seguir da aba da colina o desenvolvimento da  batalha. Vi apenas que os nossos dardos derrubaram alguns cavalos diante das  barricadas, mas que os demais condutores destramente evitavam bater nos carros  revirados e prosseguiam. Mais tarde se tornou evidente que em um ou dois pontos  os carros ligeiros haviam penetrado nas nossas linhas, mas à custa de severas  perdas. E em lugar de prosseguir a carreira pararam em grupos enquanto os homens  sobre excelentes saltavam e procuravam remover as pedras e limpar o caminho para  a força mais pesada que parara pouco atrás aguardando o seu turno.

Um soldado veterano, assistindo a esse êxito do inimigo, cuidaria perdido o  dia; mas os recrutas de Horemheb apenas viam os cavalos esperneando em luta com  a morte diante da barricada e dos fossos. Viam que o inimigo apresentava pesadas  perdas, e cuidavam que tinha sido sua bravura que paralisara a investida.  Vociferando, excitados e lépidos, arremessaram-se com quanta força tinham sobre  os carros parados para ferir com as espadas os condutores e derrubá-los ou então  se estendiam no chão para cortar os jarretes dos cavalos, enquanto os arqueiros  atacaram os homens que estavam deslocando as pedras. Horemheb aconselhou-os a  rastejar e, como eram numerosos, tal processo teve eficiência imediata. Capturaram muitos carros que entregaram, tomados de frenético  entusiasmo, aos veteranos, à "escumalha" de Horemheb. Este não lhes disse que o  pior ia ser quando os carros pesados irrompessem; confiou na sua sorte e nos vastos fossos que mandara cavar através do vale na retaguarda das tropas, fossos  esses que estavam escondidos por moitas e ramos. Os carros leves não os tinham  alcançado, acreditando haver transposto todos os obstáculos.

Tendo limpado um trecho suficiente para o avanço das forças pesadas, os  hititas sobreviventes pularam para os seus carros e voltaram apressadamente,  despertando assim grande alegria entre os homens de Horemheb que cuidavam já  haver ganho a vitória. Mas Horemheb deu ordens rápidas fazendo soar as  trombetas, e logo as pedras foram recolocadas, assim como espadas foram fincadas  no chão pelos cabos com as pontas viradas para os assaltantes. E para evitar a  perda inútil de homens Horemheb se viu obrigado a dispo-los de  ambos os lados da passagem; do contrário as foices dos carros pesados e que  rodavam junto com as rodas teria ceifado as tropas como trigo maduro.

Isso ele fez no último momento. A nuvem de poeira ainda não se dispersara de  cima do vale, quando os carros pesados, a flor e o orgulho do exército hitita,  arremeteram, esmagando todos os obstáculos do caminho. Eram puxados por vigorosos cavalos, um palmo mais alto do que os do Egito, e que tinham as  cabeças protegidas por viseiras de metal e os flancos cobertos por coxins de lã  grossa. Tão maciças eram as rodas dos carros que podiam revirar até mesmo pedras grandes; e os cavalos com seus peitorais fortes quebravam as espadas fincadas no  chão. Gritos e brados por entre golfadas de sangue se levantavam enquanto os  defensores eram esmagados debaixo das rodas ou cortados em dois pelas foices.

E à medida que os grandes veículos irrompiam por entre a nuvem de poeira e os  cavalos! trotavam avançando com suas mantas coloridas e com suas viseiras  reforçadas por cravos de bronze, aqueles conjuntos lembravam desconhecidos monstros fantásticos. Intrometiam-se em coluna, e me parecia que nenhum poder  terrestre os podia conter e que quantidade nenhuma de egípcios conseguiria  bloquear o caminho para os depósitos de água no deserto.

Por ordem de Horemheb  seus homens se retiraram do vale para as duas vertentes. Os hititas proferiam  grandes clamores e faziam grande estrépito, quanto a poeira se 1evantava em  torvelinhos atrás deles. Inclinei profundamente o rosto para o chão e comecei a chorar por causa da perdição do  Egito, por causa do inerme Baixo Reino que não tinha defesas, e por quantos deveriam morrer por causa da teimosia de Horemheb.

O inimigo trotava impetuosamente avançando numa grande coluna, quando de  repente lhe faltou chão. Cavalos, homens e carros caíram e se enrolaram em massa  giratória engolfando-se nos largos fossos que os cavadores de lama do Nilo haviam aberto e disfarçado com ramos e touceiras. Esse fosso se estendia por  toda a largura do vale, de vertente a vertente, à direita e à esquerda. Dúzias  de carros pesados mergulhavam dentro dele antes que os que vinham atrás pudessem  ser desviados e dirigidos paralelamente à borda. Desta maneira a força ficou  dividida. quando ouvi a gritaria de pânico dos assaltantes ergui do chão a  cabeça e enquanto a nuvem de poeira não velou tudo, o espetáculo a que assisti  foi deveras terrível.

Se os hititas tivessem sido mais circunspectos, se tivessem encarado um  possível reverso, poderiam ainda ter salvo metade de seus carros e infligido uma pesada derrota aos egípcios.

Podiam ter virado os carros na direção oposta, aproveitando a brecha das  barricadas é assim regressar para as suas bases; mas não podiam compreender que  eram eles que estavam sendo derrotados, já que não estavam habituados a tal condição. Não fugiram da nossa infantaria, mas conduziram os carros até a rampa  ao sopé das colinas a fim de parar os mesmos. Voltando-se para inspecionar o  campo, saltaram dos veículos para averiguar o que seria mais conveniente: atravessar o fosso ou salvar os camaradas que tinham caído dentro dele; e  ficaram à espera de que a nuvem de poeira clareasse para então planejarem o  próximo golpe.

Mas Horemheb não tinha intenção de lhes dar folga. Com um toque de trombeta  fez conhecer a seus homens que a sua mágica obrigara os carros a parar, estando  agora inertes. Mandou arqueiros para as vertentes se empenhar em luta com os hititas, ao passo que fez outros varrer o chão com ramos para levantar poeira; e  isso em parte para confundir o inimigo e em parte para que os próprios egípcios  não pudessem ver que enorme quantidade de carros hititas ainda se achava intacta  e pronta para a batalha. Ao mesmo tempo mandou rolar mais pedras para fechar as  brechas e assim, retendo aqueles carros que se achavam do lado de cá, completar  a sua vitória.

Enquanto isso os esquadrões de carros leves estavam parados nas vertentes para  dar água. aos cavalos, consertar os arreios e reparar os raios quebrados das  rodas.    - Viram a poeira redemoinhando entre as faldas das colinas. Ouvindo gritos e  entrechoque de armas pensaram que as forças pesadas estavam desbaratando os  egípcios  e matando-os como ratos.

Aproveitando a poeira, Horemheb mandou seus infantes mais destemidos para  junto do fosso, assim evitando que os hititas ajudassem seus camaradas caídos lá  do fundo.    E atirou as tropas remanescentes contra os carros. Estas rolaram grandes  rochas diante delas, rodeando assim os veículos, não lhes deixando espaço para  manobras e também, acidentalmente, para interceptar os carros uns dos outros.

Ao  longo da aba das colinas, grandes penedos logo se foram e locando. Os egípcios  sempre tinham sido muito hábeis nesse mister, e entre as tropas de Horemheb não  faltava gente com prática de trabalho em pedreiras.

Os hititas ficaram atordoados ante a perene nuvem de poeira que os impedia de  ver o que estava acontecendo ali na frente; e muitos foram traspassados pelos  arqueiros no lugar mesmo onde se achavam.

Por fim os seus oficiais fizeram soar cornetas ordenando que os carros  tornassem a se reunir e descessem de vez para a planície onde se reconstituiriam  em novos esquadrões. Mas quando impeliram os cavalos, estes tropeçaram em cordas  e armadilhas e os carros pesados viravam entre as penhas.  Viram-se assim compelidos a saltar e lutar a pé, o que só lhes foi desvantajoso,  pois estavam acostumados a brigar de situação mais alta do que o adversário, de  modo que logo foram vencidas pelos homens de Horemheb, embora a batalha  prosseguisse durante o dia inteiro.

Com o aproximar da noite o vento do deserto levou para longe a nuvem de  poeira, deixando a nu o campo de batalha e a esmagadora derrota dos hititas.  Perderam o maior número de seus carros pesados, dos quais muitos, com os cavalos  e o equipamento, caíram intactos nas mãos dos egípcios. Os seus homens, cansados  e febris por causa do furor da batalha, feridos e sangrentos, ficaram apavorados  ante o espetáculo de suas perdas. Ainda assim os egípcios mortos no vale não estavam longe de ser em número igual ao do inimigo.

Os sobreviventes atônitos diziam uns para os outros:

- Que dia medonho! Ainda bem que durante a batalha quase não vimos nada. Se  tivéssemos contemplado a multidão  dos hititas e dos nossos enquanto morriam, pela certa nossos corações nos  saltariam pelas gargantas. E não teríamos lutado como leões, conforme lutamos.

Os hititas restantes, esses se renderam erguendo as mãos para o ar. Horemheb  mandou amarrá-los enquanto os vivazes ratos do Nilo se aglomeravam para examiná- los, tocar-lhes nos ferimentos e lhes arrancar das roupas as imagem dos machados  de duas cabeças e dos sóis com asas. Horemheb distribuiu vinho e cerveja entre  os seus homens e deixou que saqueassem os que tinham tombado, fossem hititas ou  egípcios, para que assim se certificassem de que tinham direito a comparticipar  dos despojos.    Mas os ganhos mais preciosos foram os carros pesados e, dos cavalos, os que  tinham ficado intactos. Naquela mesma noite Horemheb mandou avisar às forças  livres que operavam em ambos os flancos o resultado da batalha e exortá-las a fazer parte da sua "escumalha" com seus carros, porque a gente do deserto lidava  melhor com cavalos do que os egípcios  que os temiam.

Todos os cavaleiros  anuíram ao convite, radiantes, principalmente quando viram os carros majestosos  e os insofridos cavalos.

Tive muito que fazer com os feridos, consertando cutiladas, encanando braços e  pernas, trepanando crânios que haviam sido esmagados com clavas. Embora  dispusesse de muitos ajudantes só depois de três dias e três noites foi que  todos receberam curativos; e durante esse tempo muitos dos gravemente  contundidos vieram a morrer.

No dia seguinte os hititas tentaram um novo ataque com forças intactas  empregando carros leves no intuito de recapturar os que haviam perdido. No  terceiro procuraram  ainda romper as barricadas, não querendo se juntar às tropas que estavam na  Síria onde deveriam comunicar ao comando supremo que haviam sido derrotados.

Mas nesse terceiro dia Horemheb já não se satisfez em ficar na defensiva.  Arranjando uma aberta por entre os seus próprios obstáculos, fez avançar a sua  "ralé" nos carros capturados a fim de dar caça aos veículos leves dos hititas e dispersá-los. Sofremos grandes perdas porque o inimigo era mais rápido e mais  afeito à guerra com veículos. Mais uma vez me coube enorme trabalheira. Todavia  estas perdas, explicou Horemheb, eram inevitáveis porque somente em batalha os seus "pândegos" podiam aprender a manobrar cavalos e carros, sendo tal exercício  melhor quando o inimigo acabava de ser derrotado e estava humilhado do que  quando dele partia a ofensiva com equipamento e condições normais.

- Sem carros para fazer face a carros, jamais conquistaremos a Síria. Isso de  luta por detrás de barricadas é pueril e inútil, muito embora esteja provado que  evitou a invasão do Egito.

Desejou ardentemente que os hititas mandassem sua infantaria para o deserto,  porque esta, sem água suficiente, viria a ser fácil presa de guerra. Mas o  inimigo foi  prudente e se mostrou hábil conhecedor da situação. Manteve suas tropas na  Síria, na esperança de que Horemheb, fuscado pela vitória, fizesse seus homens  penetrar nesse país onde facilmente seriam aniquilados pelas forças poupadas e  veteranas.

Contudo, esta derrota causou profunda consternação na Síria. Muitas cidades se  revoltaram contra Aziru e lhe fecharam as portas, cansadas da sua ambição e da  rapacidade  dos hititas. Esperavam assim ganhar a simpatia do Egito e fazer parte de uma  imediata ação de conquista. Ora, as cidades da Síria andavam sempre em  escaramuças umas com as outras, e os espiões de Horemheb atiçavam o  descontentamento delas, espalhando relatos exagerados e alarmantes da grande  derrota no deserto.

Enquanto Horemheb fazia descansar suas tropas entre aquelas colinas vitoriosas, ia conferenciando com os espiões e formando novos projetos, sem parar de remeter a permanente mensagem à cidade sitiada: "Urge manter Gaza!" Sabia que ela não podia resistir por muito tempo; todavia, para ganhar  apoio na Síria, precisava dispor de uma base na costa.

Espalhou entre os seus  homens lendas e exageros sobre a riqueza do país e as sacerdotisas do templo  de Ishtar que, com artes consumadas, davam gozo aos homens intrépidos. Não  se sabia por que motivo ele se detinha tanto naquelas paragens.

Ora, sucedeu  que certa noite um homem esfaimado e sedento se arrastou por entre as  trincheiras, entregou-se como prisioneiro e pediu para ser levado diante de  Horemheb. Os soldados zombaram da sua petulância, mas Horemheb o recebeu. E tal homem se inclinou profundamente diante dele à maneira egípcia,  não obstante seus trajes sírios. Em seguida ergueu uma das mãos a um dos  olhos, como se sentisse dor. Horemheb disse:

- Que é? Teria alguma vaiejeira ferido o teu olho?

Por mero acaso eu me  achava na tenda quando isto foi dito e considerei tal expressão um gracejo fútil  já que a varejeira é um inseto inofensivo e não maltrata ninguém. Mas o homem sedento disse:

- Na verdade uma varejeira me machucou a vista, porque na Síria há dez  vezes dez delas e todas muitíssimo venenosas.   

Horemheb retorquiu:

- Põe-te à vontade, homem. Bem vês que te estou recebendo bem. Fala com a  maior franqueza, pois este médico que se acha aqui na minha tenda é simplório  e não entende nada disso.

E nisto o espião disse:

- Meu senhor Horemheb, o feno chegou!

Não disse mais do que isso, mas foi o suficiente para eu o tomar como um dos espiões de Horemheb. Este deixou logo a tenda e deu ordem para que se  acendesse uma fogueira, imediatamente, no alto da colina. Logo a seguir, uma  cadeia de fogueiras, como em resposta, se acendeu ao longe, talvez já em terras  do Baixo Reino. Foi por esta forma que ele deu ordem a Tânis para que a frota  saísse ao mar e travasse batalha com os vasos sírios ao largo de Gaza caso o  conflito não pudesse ser evitado.

Na manhã seguinte as trombetas soaram, e o exército marchou para a Síria  através do deserto. Os carros rodavam adiante, numa vanguarda bem avançada  para limpar de inimigos a estrada e para escolher lugares onde as tropas  pudessem ir acampando.

Mas de que forma Horemheb daria batalha aos hititas em campo aberto era  coisa que eu não podia compreender. Os homens seguiram-no, porém,  alegremente, sonhando com a riqueza da Síria que lhes cabia conquistar. Entrei  para a minha liteira e os segui; deixamos atrás de nós as colinas da vitória onde  os ossos dos hititas e dos egípcios jaziam juntos, pacificamente, para  futuramente se tornarem alvacentas manchas na areia do vale esburacado.

Chego agora ao relato da guerra na Síria, embora pouco possa falar sobre ela  visto ser um leigo em assuntos militares. Todas as batalhas me parecem iguais,  não sendo senão incêndio de cidades, saque de casas, lamentações de mulheres, corpos mutilados, o que se encontra na reçaga dos exércitos. Meu  relato seria deveras monótono se eu falasse de tudo quanto vi. A guerra na Síria  durou três anos. Foi uma guerra cruel, sem misericórdia, na qual pereceram  grande número de homens, mulheres e crianças. Aldeias ficaram devastadas, as  terras perderam suas árvores e as cidades se despovoaram.

Mas devo falar primeiramente dos ardis de Horemheb. Conduziu  destemerosamente as suas tropas pela Síria adentro, removendo as pedras de  demarcação erguidas por Aziru e consentindo que os seus homens saqueassem  as aldeias, e se servissem das mulheres como um ante gosto dos frutos da  conquista. Marchou diretamente para Gaza, e assim que os hititas deduziram  seu propósito reuniram suas forças na planície, perto da cidade, para interceptá-lo e destruí-lo, pois a região se prestava bem a combates com o emprego de  carros. Confiavam no êxito.

Mas o inverno já estava tão adiantado que tiveram que nutrir os cavalos com  forragem comprada aos comerciantes sírios. Antes mesmo que a batalha  começasse, os cavalos caíram doentes e cambaleavam entre os varais;  evacuavam diarréia verde e muitos vieram a morrer. Assim Horemheb pode se  empenhar em batalha com o inimigo no mesmo pé de igualdade. E, tendo  batido os carros, derrotou com facilidade a infantaria desmoralizada. Infantes e  arqueiros logo completaram o trabalho iniciado com os carros. Os hititas  sofreram derrota pior do que antes e deixaram tantos mortos no campo quanto  os egípcios. Tal lugar ficou conhecido depois como o Campo das Ossadas.  Assim que Horemheb entrou em seu acampamento tocou fogo nas reservas de  feno, queimando tudo. Essa forragem achava-se misturada com certas ervas venenosas que fizeram adoecer os cavalos dos hititas, embora eu não  conhecesse então de que maneira Horemheb ideou e realizou isso.

Assim Horemheb alcançou Gaza, enquanto os hititas e os sírios na banda bem  ao sul se refugiaram em cidades fortificadas, já que a derrota ocasionara a  debandada.Nesse ínterim a frota egípcia velejava para Gaza, onde entrou quase  desarvorada; muitos navios ainda ardiam após uma batalha indecisa travada  durante dois dias no mar alto.Essa frota levava provisões e reforços para Gaza  e transportou depois para o Egito os nossos homens feridos e inválidos.

O dia em que foram abertas as portas de Gaza, a inacessível para a entrada  das tropas de Horemheb ainda hoje é celebrado no Egito como um feriado.Esse  dia de inverno é conhecido como o Dia de Sekmet, e neles garotos com  espadas de pau e clavas leves representam uma imitação do assédio de Gaza.  Nenhuma cidade jamais foi defendida tão valentemente, e seu comandante  mereceu bem o louvor e a aclamação que lhe foram feitos. Vou citar seu nome,  não obstante a indigna maneira com que ele me tratou içando-me para a  muralha dentro de uma cesta. Chamava-se Roju.

Mas os seus soldados o chamavam por Cachaço de Touro que bem descrevia  sua aparência e sua índole, pois homem assim tão desconfiado e pertinaz  jamais encontrei.

Depois, da vitória, as trombetas de Horemheb tocaram em vão  o dia inteiro sem que Roju acreditasse que podia abrir com segurança as portas  da cidade. Mesmo então só quis deixar entrar Horemheb para verificar antes se  era mesmo o homem que parecia ser e não um sírio disfarçado.

O assédio de Aziru não passou de uma brincadeira de criança comparado com  o ataque violento e contínuo dos hititas.

Dia e noite estes haviam atirado lá para  dentro , tochas flamejantes, e quando chegamos viviam ainda apenas  algumas centenas de habitantes. Umas poucas mulheres e alguns velhos se  arrastaram do fundo de casas em escombros, como lívidas sombras de terrível  aspecto.Todas as crianças tinham perecido, e os homens se tinham esfalfado  até à morte, sob o chicote de Roju, reparando as brechas das muralhas. Os  sobreviventes não mostravam alegria nenhuma à vista do exército egípcio  marchando através do largo portal desmantelado. As mulheres sacudiam os  punhos esquálidos e os velhos amaldiçoavam-nos. Horemheb distribuiu trigo e  cerveja entre eles, e muitos morreram naquela noite, agoniados. Era a primeira  noite que comiam à vontade, depois de meses e meses, e seus estômagos  enfraquecidos reagiram estranhamente.

Se pudesse, eu reproduziria Gaza conforme a vi no dia da vitória. Descreveria  as peles humanas secas dependuradas nas muralhas e os crânios tisnados  expostos à sanha das aves de rapina. Falaria das ruínas fibrosas e dos ossos  carcomidos dos animais largados pelas vielas entupidas.Procuraria explicar, se  fosse possível, o cheiro hediondo da cidade sitiada - um cheiro de pestilência e  morte que fazia os homens de Horemheb apertar as narinas.Tudo isso eu  quisera descrever para dar alguma noção da grande hora de vitória e para  deixar testemunhado por que motivo não rejubilei diante de tal dia desde tanto  sonhado e aguardado.

A cada soldado sobrevivente da guarnição de Gaza Horemheb deu de  presente uma corrente de ouro; isso lhe custou ouço, pois restavam apenas  duzentos homens válidos, e foi um assombro terem resistido. Mas a Roju,  Cachaço de Touro, ele deu uma corrente com pedras preciosas verdes  montadas em ouro e esmalte, e também um chicote de ouro, e fez seus homens  o saudarem com brados que sacudiram paredes e muralhas.Todos o aclamaram  com profunda e cordial admiração, pois tal homem mantivera Gaza sob a égide  egípcia. Depois que as aclamações deixaram de ecoar, Roju palpou a corrente,  com ar desconfiado e disse:

- Tomas-me por um cavalo, Horemheb, para me enfeitares com um arnês  dourado? E este chicote? É ele trançado com ouro puro ou com ouro feito com  liga de metais "amarelos sírios?

E disse mais ainda:

- Leva teus homens para fora da cidade, porque a quantidade deles me  incomoda. Não posso dormir na minha torre de noite com a barulheira que  fazem, embora tenha sempre dormido profundamente quando os arietes  martelavam estrepitosamente as portas e os incendios produziam quedas de  escombros de todos os lados.Leva os teus homens daqui para fora, porque em  Gaza sou faraó e ordenarei aos meus que ataquem os teus e os liquidem caso  não parem com esse estardalhaço e não me deixem dormir.   

E a verdade é que Roju Cachaço de Touro não conseguia dormir, agora que o  assédio terminara. Nem mesmo drogas ou vinho lhe puderam restituir o  sono. Jazia deitado na, cama, ruminando de que forma as provisões podiam ter  sido consumidas.   

Certo dia aproximou-se humildemente de Horemheb e disse:

- És meu chefe e mandas mais do que eu. Pune-me, portanto, pois sou  responsável perante o faraó por todas as coisas que ele me confiou...E agora como é que vou lhe prestar contas? Todos os meus documentos foram  queimados quando os hititas arremessaram pichéis com fogo dentro da minha  sala... e a minha memória se esvaiu por falta de suficiente sono reparador.  Parece que me lembro bem de tudo... mas nos depósitos deviam estar  quatrocentos rabichos de couro para jumentos, e não há meio de achá-los em  parte alguma. Os meus escribas encarregados dos depósitos também não  conseguem descobrí-los por mais que eu os chicoteie, e agora nem podem  sentar nem andar, só conseguindo rastejar com os joelhos e as mãos.  Horemheb, onde raio estarão esses quatrocentos rabichos que jamais foram  empregados visto como desde muito já comemos os jumentos? Em nome de Set  e de todos os demônios! Manda-me açoitar à vista de todos, pois a cólera do  faraó me enche de pavor. Não ousarei me apresentar diante dele conforme meu  cargo requer se eu não encontrar esses malditos rabichos...

Horemheb procurou acalmá-lo dizendo que de bom grado lhe daria outros  quatrocentos. Mas a proposta de Horemheb lançou Roju numa agitação ainda  maior. Disse:

- É evidente que procuras me engodar com embustes, pois se aceito esses,  ainda assim são outros e não os que me foram confiados. Fazes isso para me  degradar e depois me acusar perante o faraó. Estás com inveja e queres  arrebanhar o posto que tanto cobiças de comandante de Gaza! Não consinto  que me faças propostas falazes... Hei de achar esses quatrocentos rabichos nem  que tenha que revirar Gaza pedra por pedra!

E sem o conhecimento de Horemheb, Roju ordenou a execução do  superintendente dos depósitos que agüentara todas as vicissitudes do assédio  ao seu lado, e pos homens a revirar o chão da sua torre com picaretas a fim de  achar os rabichos. Quando Horemheb viu isso, mandou trancá-lo no seu  aposento com guarda permanente, e em seguida me consultou.

Fui visitar Roju  e com a ajuda de diversos homens corpulentos o amarrei na cama e em seguida  lhe administrei um calmante cavalar. Mas seus olhos fulguravam como os de  uma fera; retorcia-se na cama e espumava, com fúria. Dizia-me:

- Sou ou não sou o comandante de Gaza, ó chacal a soldo de Horemheb?  Ah!... Lembro-me agora que está no cárcere da fortaleza um espião sírio que  capturei antes da chegada de teu amo. Devido aos meus muitos deveres esqueci  de enforcá-lo na muralha. Trata-se de um espião que é um sujeito muito astuto, e agora compreendo que  foi ele quem deu sumiço aos quatrocentos rabichos. Traze-mo aqui de pressa  para que eu o faça confessar. Só assim dormirei em paz outra vez.

Delirava tanto a respeito desse espião que fiquei farto dessa lengalenga e,  tomando uma tocha, desci à masmorra, onde alguns corpos roídos por bandos de ratos jaziam acorrentados à parede. O  melhantes e gozar a minha riqueza. Deve-me dois milhões de debens até  agora... Em ouro, sim, como pagamento de pão e água que lhe forneci; e eu não contei a ele que o assédio terminou e nem que Horemheb entrou na cidade para  que assim a dívida vá aumentando dia a dia. Ele jura que Horemheb o soltará e  lhe dará correntes de ouro. E acredito, não posso deixar de acreditar, porque ele fala que parece uma melodia... e ninguém resiste! E quereis saber de uma  coisa? Pois sim que o levo à presença de Horemheb! Levar... levo! Lá isso,  levo, mas só depois que ele ficar me devendo três milhões de debens de ouro.  É uma soma redonda, fácil de guardar na memória.

Meus joelhos começaram a tremer e meu coração a baquear dentro do peito  porque me pareceu que eu sabia quem era essa pessoa... Dominei-me, porém, e  lhe disse:   

- Ó velhote! Não existe tal quantidade de ouro no Egito em na Síria, juntando  os dois países. Pelo que estás contando, vejo muito bem que esse homem não  passa de um grande embusteiro e que merece castigo exemplar. Traze-mo imediatamente aqui, e roga a todos os deuses que nenhum mal lhe  tenha sucedido pois responderás por isso com tua cabeça de cego!

Chorando amarguradamente e invocando Ammon em seu socorro, o velho não  me trouxe o homem, mas me levou, isso sim, diante de uma célula ao fundo de  muitas outras, e cujo vão de entrada estava tapado com lajes para que os  homens de Roju não viessem a descobri-lo. Quando enfiei a tocha dentro do  vão vi acorrentado à parede um homem com trajes sírios em frangalhos, cujas  costas estavam nuas e cujo ventre lívido pendia em dobras. Uma das órbitas era  boca e, à luz da tocha, ele piscou as pálpebras da outra e se voltou para me ver,  dizendo logo:

- Pois não é o meu patrãozinho Sinuhe?... Abençoado seja o dia que o traz a  mim! Chama depressa o ferreiro para me livrar destas algemas. Traga-me um  púcaro de vinho para que eu esqueça meus sofrimentos. Mande que os escravos  me esfreguem os mais finos ungüentos... Sim, oh, sim, meu patrãozinho, pois  estou acostumado ao conforto e a uma vida de abundância, e estas pedras  malditas esfolaram a pele das minhas costas. E bem que calhava agora uma  cama bem macia na companhia de umas virgens de Ishtar, pois reparo que este  meu ventre já não me atrapalha nas delícias do amor.    Todavia, quer acredite quer não, nestes poucos dias comi pão no valor de  mais de dois milhões de debens.

- Kaptah! Kaptah! - exclamei, caindo de joelhos e atirando meus braços em  redor dos seus ombros que ratos tinham mordiscado. - És incorrigível!  Disseram-me em Tebas que tinhas morrido; mas não acreditei porque acho que  não podes morrer nunca. E a prova é que te encontro aqui na cela aos mortos,  vivo e sadio entre cadáveres... E isso apesar de que os que pereceram  algemados aqui perto de ti eram pessoas mais respeitáveis e mais agradáveis  aos deuses do que tu. Ah! Que prazer em te reencontrar vivo!

Kaptah disse:

- O meu amo ainda continua sendo o mesmo tagarela. Não me fale em deuses,  pois na minha desdita invoquei todos os que conheço... até mesmo os dos  babilônicos e dos hititas... E nenhum deles me ajudou. Fiquei reduzido à  miséria por causa desse guarda incontentável... Só o escaravelho me ajudou  trazendo aqui o patrãozinho, pois o comandante desta fortaleza é louco e não  acredita em nenhuma afirmação. Deixou que os seus homens me saqueassem e martirizassem de maneira  terrível; tanto que urrei como um touro no ecúleo em que me estenderam. Ainda  bem que consegui conservar comigo o escaravelho; quando vi o que ia  acontecer, tratei de esconde-lo numa parte do meu corpo que é uma habitação  indigna para um deus...Parece, porém, que o escaravelho não se zangou, e a  verdade é que me trouxe o patrãozinho. Sim, pois a quem senão a ele poderia  eu atribuir um tão notável reencontro?   

Mostrou-me o escaravelho que ainda estava imundo por causa do  desagradável esconderijo onde estivera. Ordenei ao ferreiro que o soltasse das  algemas e depois o conduzi aos meus cômodos em cima, na fortaleza, porque  Kaptah estava fraco e sua vista reagia à claridade. Por ordem minha escravos o  lavaram, untaram e vestiram com linho novo; arranjei-lhe uma corrente de ouro,  braceletes e outros ornamentos que lhe dessem uma aparência condizente com  a sua dignidade. Mandei também que o barbeassem e penteassem; enquanto  isso ele comia, bebia e arrotava a vontade. Mas o carcereiro chorava e se  lamentava atrás da porta, gritando que Kaptah lhe devia dois milhões, trezentos  e sessenta e cinco debens de ouro por lhe haver preservado a vida ali mentado  na masmorra. E que não abateria um debem na soma, dizendo que arriscara a  vida ao preservar a de Kaptah e roubara comida para ele. Tal berreiro me  enfezou; disse a Kaptah:

- Horemheb acha-se em Gaza faz mais de uma semana e esse velho te  trapaceou. Não lhe deves nada. Vou ordenar aos soldados que o açoitem e, se  for necessário, que lhe cortem a cabeça. É um embusteiro e causou muitas  mortes.   

Mas Kaptah se chocou com as minhas palavras.

- Sou um homem honrado. Um negociante tem que cumprir seus  compromissos se quiser conservar nome e crédito. Se eu desconfiasse que não  morreria teria pechinchado com ele, naturalmente! Sempre que cheirava o pão  na mão dele prometia lhe dar a importância que ele exigia.

- Será possível? Não! Não posso acreditar. Qualquer maldição se impregnou  nas pedras desta fortaleza porque todos que permanecem um pouco dentro dela  acabam ficando malucos. Estás maluco também. Tencionas pagar-lhe o débito  todo? Mas vais pagar com que? Desde que o reinado de Aton levou a breca  suponho que ficaste tão pobre quanto eu.

Mas agora Kaptah já estava bêbado.

- Sou um homem às direitas.Um homem piedoso.Venero os deuses e cumpro  com a minha palavra. Pretendo pagar a minha dívida até ao último debem, contanto que para isso ele  me conceda um prazo. Em sua simplicidade ele sem dúvida se contentaria com  alguns debens porque durante a vida inteira nunca palpou ouro em pó. Ficaria  radiante em receber apenas um debem de ouro...Mas isso não me desobriga do  meu compromisso. Não sei onde vou achar tamanha quantidade; perdi tanto nos  motins de Tebas de onde fui obrigado a fugir de maneira ignóbil, largando tudo!  Os escravos persuadiram-se de que eu os denunciara a Ammon e quiseram me  liquidar. Depois disso prestei grande serviço a Horemheb em Menfis; mas o  ódio dos escravos me perseguiu até lá.Vim então prestar-lhe serviço ainda  maior na Síria onde me disfarcei de mercador e vendi trigo e forragem aos  hititas.Acho mesmo que Horemheb me deve já meio milhão de debens de  ouro... Ou mais porque fui forçado a escapar para Gaza em perigo de vida. Vim  num bote insignificante e corri grande risco no mar. O patrão há de  compreender: os hititas ficaram furiosos porque seus cavalos adoeceram por causa do feno que vendi.Mas aqui em Gaza ainda corri risco pior. O louco do  comandante me aprisionou como espião sírio e me torturou no ecúleo. Ah! Não  resta dúvida de que o meu couro estaria dependurado na muralha se não tivesse  sido este velhote caduco. Escondeu-me e jurou que eu havia morrido na  masmorra. Portanto, tenho que pagar o que lhe devo.

Foi só então que os meus olhos se abriram: compreendi que Kaptah tinha sido  o melhor agente de Horemheb na Síria e o seu espião principal... Pois aquele  desgraçado sedento que visitara a tenda de Horemheb aquela noite não levara a  mão à órbita como sinal de que fora mandado por um caolho? Percebi que  nenhum outro poderia ter realizado tais proezas, pois em ardis ninguém levava  a palma a Kaptah.

Disse-lhe:

- E que tem isso, que Horemheb te deva muito ouro? Sabes muito bem que ele  nunca paga as dívidas.

- Isso mesmo. É um homem ingrato e de coração duro; mais ingrato ainda do  que esse comandante louco a quem remeti trigo em potes lacrados. Os hititas  cuidavam que eram potes cheios de serpentes venenosas, pois para provar isso quebrei um dos potes e as serpentes que saíram de dentro morderam três hititas  que morreram. Claro que depois disso não quiseram mais abrir os potes. Se não  puder me recompensar em ouro, Horemheb deve me nomear recebedor de taxas  do porto e de similares contribuições nas cidades capturadas. Deve entregar-me todo o negócio do sal da Síria, e muito mais, para desta  forma me indenizar.

Havia senso no que dizia; ainda assim redargüi, admirado:

- Então pretendes trabalhar a vida inteira para pagar esse velho caduco que  está fazendo tamanho berreiro aí atrás da porta?

Kaptah bebeu vinho e lambeu  os beiços, dizendo:   

- Realmente vale a pena mofar durante uma semana ou duas num buraco  escuro tapado por pedras, com água imunda como bebida... Só assim, depois, é  que se sente deveras a delicia que é sentar em almofadas macias, estar num  lugar bem claro, provar um bom vinho... Não, Sinuhe, não sou tão louco quanto  supõe. Contudo a minha palavra foi dada, e por isso o patrão deve restaurar a  vista desse homem, conforme a minha promessa. E, para que?!... Para que ele  jogue aos dados comigo: Antes de ficar cego foi um jogador inveterado... Ora,  se ele perder para mim; que culpa terei eu?  O patrão compreende, naturalmente que eu cá vou apostar grosso!

Concordei  intimamente que este era o único processo honroso de Kaptah solver o  compromisso da sua dívida colossal, pois era um jogador admirável...com  dados da sua escolha. Prometi devotar todo o meu engenho em fazer a vista  voltar ao velhote, pelo menos o suficiente para que ele visse os pontos. Em paga, Kaptah se comprometeu que remeteria a Muti prata bastante para a  reconstrução da antiga casa do fundidor em Tebas e para seu sustento durante a  minha ausência. Fiz entrar o velho carcereiro e Kaptah lhe assegurou que  pagaria a dívida toda contanto que lhe fosse dado um pequeno prazo. Examinei  os olhos do velho, verifiquei que a cegueira não era resultado de viver nas  trevas e sim uma antiga doença negligenciada. No dia seguinte operei-o por  meio de agulha, de acordo com o método que eu aperfeiçoara em Mitani.  Quanto tempo a vista duraria não pude dizer porque os olhos tratados assim  acabam criando uma cicatriz proliferante em curto espaço de tempo,  sobrevindo novamente uma cegueira que, essa então não pode ser evitada nem  curada. Levei Kaptah à presença de Horemheb que se alegrou muito em ve-lo;  abraçou-o, chamou-o de grande homem, afirmando que o Egito inteiro lhe era  grato por suas grandes proezas. Mas Kaptah deixou pender a cabeça e  principiou a chorar, dizendo:

- Olhai para esta minha barriga que acabou virando um saco vazio por causa  da trabalheira que me obrigastes a ter. Baixai os olhos sobre as minhas costas e  as minhas orelhas laceradas que os ratos da masmorra de Gaza deixaram em frangalhos! Falais-me em gratidão, que é coisa que não põe um grão na minha  boca nem uma gota na minha garganta. Onde é que estão os fardos de ouro que  me prometestes? Ah, não, Horemheb. Não peço gratidão. Peço é que me  pagueis o que me é devido. Pagai-me como homem de honra porque eu também  tenho dívidas a satisfazer. Palavra de honra que estou endividadíssimo... muito  mais do que podereis imaginar.

Horemheb chasqueou e batendo com o chicote na perna impacientemente,  respondeu:

- Tuas palavras são de demente, Kaptah. Sabes muito bem que não disponho  de despojos para dividir contigo e que estou empregando todo o ouro de que  posso lançar mão para prosseguir na guerra contra os hititas. Pessoalmente não  passo de um pobretão. Disponho de que? No máximo, de glória. O mais que  posso fazer por ti é o seguinte: meter na cadeia todos os teus credores, acusá- los de muitos crimes, dependurá-los nas muralhas, e assim quitar tuas dívidas.

Mas Kaptah não quis concordar com isso, Horemheb deu uma risada  estentórica e indagou:

- Como foi que chegasse a ser estendido no ecúleo como espião sírio e  arremessado na masmorra? Por mais que Roju seja louco, é um guerreiro  decente. Deve ter havido algum motivo para que ele te fizesse isso.

Kaptah deu um puxão na roupa nova, como sinal de inocência, deu socos no  peito, e exclamou:

- Horemheb! Horemheb! Falastes-me então ainda agora mesmo em gratidão só  para logo a seguir me insultardes com indícios de desconfiança? Não envenenei  os cavalos dos hititas? Não atirei trigo dentro de Gaza? Quando estáveis acampado nos ermos não contratei homens destemidos para vos dar  pormenores das disposições do inimigo? Não contratei escravos para furar os  odres com água nos carros com que os hititas vos atacaram? Tudo isso fiz por  vós e pelo Egito, sem pensar em lucro. Era pois natural e necessário que eu  realizasse certos serviços inócuos aos hititas e a Aziru. Por essa razão, quando  fugi para Gaza levava comigo uma tábua de argila que era um salvo-conduto  assinado por Aziru. Um homem prudente procura se proteger por todos os  lados e trazer muitas flechas na aljava. Nem para vós nem para o Egito poderia  eu vir a ser eficiente se a minha carcaça estivesse dependurada agora. na  muralha. Trazia tal salvo-conduto comigo porque estava à vossa espera havia muito  tempo e Gaza poderia cair. Mas Roju é um homem desconfiado, e foi em vão  que cobri meu olho cego e falei em varejeiras venenosas, conforme tínhamos  combinado. Não acreditou em senhas, estendeu-me em cima do ecúleo e foi  esticando, esticando o meu corpo até que urrei que nem um touro e tive que  dizer que era espião de Aziru.

Horemheb deu uma gargalhada e disse:

- Escapaste, não escapaste? Pois então! Isso já é uma recompensa, meu bom  Kaptah. Conheço-te e tu me conheces. Não me enfezes mais com essa joça de  ouro, pois tais assuntos me aborrecem e me fazem ficar furioso.

Mas Kaptah insistiu tanto que acabou arrancando de Horemheb o privilégio  de ser o único comprador e vendedor dos despojos de guerra na Síria. Podia  adquirir, jogar, permutar por vinho, cerveja e mulheres quaisquer despojos que tivessem sido repartidos entre os soldados. Ficou autorizado também a vender a  parte do faraó relativa à pilhagem, ou a de Horemheb, ou permutá-las por  coisas de que o exército estivesse carecendo. Só esse direito o tornaria um  homem rico; ainda assim solicitou as mesmas condições para todos os despojos  sírios para onde quer que os exércitos de Horemheb fossem no futuro.  Horemheb concordou porque isso não lhe custava nada; e em compensação  Kaptah lhe prometeu presentes magníficos.

Depois que Horemheb reparou todos os carros, chamou forças auxiliares do  Egito, reuniu em Gaza todos os cavalos do sul da terra de Kan, lançou uma  proclamação declarando que viera como libertador da Síria e não como  conquistador. Sob a proteção generosa do Egito, disse ele, todas as cidades da  Síria tinham gozado liberdade e comerciado sem restrições, cada qual com seu  próprio soberano. Mas que, por vil traição de Aziru, tais cidades se tinham  visto forçadas a se render à tirania dele, Aziru, que despojara os reis de suas  coroas herdadas e oprimira a cidade com impostos pesadíssimos. Tomado de  ambição voraz, vendera a Síria aos hititas cuja crueldade os sírios tinham  sofrido e verificado dia a dia. Portanto ele, Horemheb, o Invencível, o Filho do  Falcão, viera para libertar a Síria do jugo da escravidão, encorajar o comércio,  repor os antigos reis, de maneira que,sob a proteção do Egito, a terra pudesse florescer e prosperar como antes.

Prometia a sua ajuda a cada cidade que expulsasse os hititas e fechasse as  portas a Azíru. E que, quanto às cidades,que continuassem a resistir depois  desta sua proclamação, seriam queimadas, saqueadas e destruídas, suas muralhas seriam arrasadas para sempre e as populações levadas para a  escravidão.   Finalmente Horemheb marchou sobre Jopa e mandou sua frota fechar o porto.  Com a ajuda dos espiões fez espalhar sensacionalmente a sua proclamação que  despertou desassossego e indecisão entre as cidades. Assim, disputas surgiram entre cidades, o que, aliás, era o seu intuito. Mas Kaptah, cauteloso como era,  permaneceu dentro das muralhas de Gaza, não fosse Horemheb sofrer alguma  derrota visto como Aziru e os hititas estavam reunindo poderosas forças no  interior do país. Roju Cachaço de Touro reconciliou-se com Kaptah que o  curou da sua mania e escrúpulo explicando-lhe que a soldadesca, aturdida com  o assédio, devia ter roubado os quatrocentos rabichos e comido todos eles  porque eram de couro macio e podiam ser mastigados para mitigar o suplício  da fome. Ao ouvir e entender isso, Roju ficou quieto, seu furor sumiu de vez,  pode ser desamarrado da cama, e acabou perdoando tal furto porque  reconheceu que seus camaradas tinham lutado com grande valor.

Quando Horemheb partiu com os seus homens, Roju fechou as, portas da  cidade, jurando que nunca mais daria acesso a quaisquer tropas. Vivia bebendo  vinho e assistindo ao jogo de Horemheb com o guarda carcereiro. Ao tempo da  partida de Horemheb, Kaptah já havia ganho outra vez do velho nada menos do  que meio milhão de debens de ouro da dívida global.

Bebiam e jogavam aos  dados de manhã até de noite; brigavam, atiravam os dados na cara um do outro;  cuspiam nas palmas das mãos e viravam o copo de couro com tamanho ímpeto  que os dados caíam no chão. O velhote, sendo miserável, no começo queria  jogar fazendo apostas baixas, e choramingava e lamentava o prejuízo crescente.  Quando Horemheb sitiou Jopa, Kaptah obrigou o parceiro a levantar a  importância das apostas. E quando um mensageiro trouxe a notícia de que Horemheb abrira uma brecha na muralha, Kaptah deu uma "virada" tão  espetacular derrotando seu adversário que a situação se inverteu: o guarda é  que ficou devendo alguns cem mil debens de ouro a Kaptah. Este, porém, foi  magnânimo e perdoou a divida.Presenteou-o mesmo com algumas roupas  novas e com um punhado ou mais de moedas de prata, o que fez o velho chorar  de alegria e abençoá-lo como seu benfeitor.

Ignoro se Kaptah roubou ou não nesse jogo, empregando dados viciados. Só  sei que jogou com muita habilidade e com uma sorte incrível. A fama dessa  partida com apostas de milhões - jogo que levou semanas - se espalhou pela.  Síria inteira. E o velho, cuja cegueira não tardou a voltar, viveu o resto de seus  dias numa pequena choupana perto das muralhas de Gaza. Viajantes mesmo de  outras cidades iam visitá-lo para ouvir a história empolgante desse jogo. Anos e anos passados ele ainda repetia peripécias e apostas de cada jogada, pois os  cegos tem boa memória. Mas seu orgulho maior era na hora em que contava a  última aposta. Naquela jogada final da partida perdera cento e cinqüenta mil  debens de ouro. Jamais houvera apostas tão altas numa partida jogada aos  dados. Pessoas traziam-lhe presentes para o forçarem a repetir a história  legendária; assim acabou não passando necessidade, vivendo mesmo com  maiores comodidades do que se Kaptah lhe houvesse concedido uma pensão  vitalícia.

Quando Jopa caiu, Kaptah se dirigiu para lá, apressadamente. Fui com ele.  Vimos pela primeira vez aquela cidade opulenta, já agora em mãos dos  conquistadores. E, embora os mais ousados de seus habitantes se tivessem  erguido em revolta contra Aziru e os hititas assim que Horemheb a sitiara,  agora, porém, ele não a poupou. Consentiu que seus soldados durante duas  semanas a pilhassem e despojassem. Kaptah acumulou uma enorme fortuna  nessa cidade, porque os soldados permutavam por vinho e prata inestimáveis  tapetes, móveis e estátuas, bem como demais .coisas que não podiam carregar.  Podia-se arranjar uma mulher síria bonita e airosa, ali em Jopa, por duas  argolas de cobre.

Foi nessa cidade que me dei conta deveras da brutalidade dos homens para  com os seus semelhantes. Durante o tempo da bebedeira, pilhagem e incêndio,  todas as sortes de abominações foram cometidas. Os soldados tocavam fogo  nas casas só por distração, para que à noite pudessem enxergar e cometer  saques, violências e torturas, e forçar negociantes a confessar onde haviam  escondido tesouros. Havia soldados que se divertiam ficando parados numa  esquina e que, com uma clava ou uma espada, tiravam a vida dos sírios que  passassem, fossem homens, mulheres, crianças ou velhos. Meu coração confrangia-se à vista da iniqüidade humana. Tudo quanto aconteceu em Tebas  por causa de Aton foi trivial em comparação com o que foi feito em Jopa por  causa de Horemheb.

Deu plena liberdade aos soldados, só para que estes ficassem mais ligados a  ele.Para evitar a mesma sorte de Jopa, muitas cidades ao longo da costa  expulsaram os hititas.

Não quero mais falar daqueles dias porque só em recordá-los o meu coração  vira pedra em meu peito e a minhas mãos suam frio. Direi apenas que por  ocasião do ataque de Horemheb havia na cidade, além da guarnição de Aziru e  da soldadesca hitita, aproximadamente vinte mil habitantes. Quando ele partiu  não ficaram trezentas pessoas vivas.    Desta forma Horemheb foi levando a guerra pela Síria adentro, e eu o  acompanhava, tratando dos ferimentos dos seus homens e assistindo ao mal que  um ser humano pode ocasionar a outro.A guerra continuou três anos durante os  quais Horemheb derrotou as tropas de Aziru e dos hititas  numa porção de batalhas. Duas vezes as suas forças foram surpreendidas pelos esquadrões de carros dos hititas que causaram grande  destruição e o forçaram a se retirar para trás das muralhas das cidades  capturadas. Conseguiu manter comunicação marítima com o Egito, e a frota  síria nunca  pode fazer nada contra a dele que com a guerra ficou uma  excelente armada.Podia sempre mandar vir reforços do  Egito no caso de derrotas suas, e recuperar força para novos embates. As  cidades da Síria permaneciam em ruínas, e os  homens se escondiam como feras no recesso das montanhas. A região inteira  estava devastada, e hordas talavam as lavouras e os pomares para que o  inimigo não pudesse se servir da terra conquistada. Assim a riqueza e os  homens válidos do Egito foram sendo drenados para lá, e o Egito parecia uma  pobre mãe dilacerando as vestes e cobrindo os cabelos de cinza ante a morte  dos filhos. Ao longo do rio, desde o delta até ao fundo, não havia uma cidade,  uma aldeia, uma choça, onde elas não tivessem perdido esposos e filhos na  Síria e In prol da grandeza do Egito.

Durante esses três anos envelheci mais rapidamente do que em todos os  outros anos. O meu cabelo caiu; fiquei de dorso inclinado e meu rosto se  enrugou como um fruto seco. Irritava-me e falava asperamente com os doentes  como fazem muitos médicos depois que envelhecem e por mais bondosos que  sejam. A tal respeito eu não era diferente dos outros médicos embora houvesse  visto mais coisas do que a maioria deles.

No terceiro ano veio a peste pois esta vem sempre na reçaga da guerra, sendo  engendrada nos lugares onde são amontoados muitos cadáveres em decomposição.

A Síria inteira acabou virando uma enorme fossa. Raças inteiras morreram, a  ponto de seus idiomas e costumes desaparecerem e caírem no esquecimento. A  peste matou os que tinham sido poupados pela guerra. Causou tantas vítimas dentro dos dois exércitos que as pelejas cessaram e todas as tropas fugiram  para o deserto ou as montanhas onde o flagelo não ia ter. E a peste não  respeitava pessoas: gente importante ou humilde, ricos e pobres eram suas  vítimas; tampouco havia remédio eficiente. Os que caíam doente ficavam de  cama, luxavam o cobertor para cima da cabeça e a maior parte morria dentro de  três dias. Os que sobreviviam ficavam marcados com cicatrizes nas axilas e  virilhas por onde os humores pestilentos forçavam saída durante a  convalescença.

O mal era caprichoso tanto em poupar como em dizimar. Não eram sempre os  mais robustos e sadios que escapavam e sim muitas vezes os fracos e franzinos,  como se nestes a peste não achasse grande coisa com que se nutrir. Atendendo  aos doentes cheguei finalmente a tirar-lhes a maior quantidade de sangue  possíveis e a proibir-lhes que se alimentassem o tempo todo. Curei muitos com  este processo, mas número idêntico faleceu nas minhas mãos, de modo que  fiquei sem saber se tal tratamento teve alguma valia. De qualquer forma me via  compelido a fazer qualquer coisa para não desmoralizar a fé que depositassem  na minha ciência. Um doente que perde a confiança na cura e na capacidade do  médico morre mais facilmente do que os outros que acreditam nele. O meu  tratamento era melhor do que outros muitos, pois pelo menos saía mais barato  para o paciente.

Os navios transportaram a peste para o Egito onde, contudo, poucos  faleceram. A peste acolá perdeu a sua virulência, e o número dos que ficaram  bons excedeu ao dos que morreram. E o mal desapareceu  i. Vendo então os hititas que haviam perdido de vez a devastada terra da Síria,  fizeram ofertas de paz, pois eram guerreiros prudentes e cautelosos, não querendo aventurar seus carros a uma glória oca quando precisavam deles para  repelir e conter os babilônicos.

Horemheb aceitou a paz de muito bom grado. Suas forças tinham decrescido e  a guerra empobrecera o Egito. Desejava reconstruir a Síria, refazer seu  comércio e tirar proveito do país. Concordou em assinar a paz sob a condição  dos hititas entregarem Megido que Aziru tornara sua capital e fortificara com  muralhas e torres inexpugnáveis. A vista disso, os hititas prenderam Aziru e,  tendo confiscado a imensa fortuna que ele acumulara extraindo-a da Síria  inteira, o entregaram algemado com a mulher e os dois filhos a Horemheb. Em  seguida saquearam Megido e tangeram o gado e os rebanhos de Amurru para  fora do país, pela parte norte que, pelos termos da paz, ficava doravante sob o  domínio do Egito.

Horemheb não chicanou por causa disso. Uma vez terminada a luta, ofereceu  um banquete aos príncipes e chefes hititas, e bebeu vinho com eles a noite toda  jactando-se de suas proezas. Iria executar no dia seguinte Aziru com a família diante das tropas reunidas em parada como prova da paz eterna que devia de  então por diante prevalecer entre o Egito e a terra de Hati.

Não tomei parte no banquete mas me encaminhei nas trevas para a tenda onde Aziru jazia algemado. Fui procurar Aziru porque ele agora não tinha um único amigo na Síria inteira. Um homem que perdeu todos os bens e que se acha condenado a uma ignominiosa morte não tem mais amigos. Eu sabia quanto ele amava extremadamente a vida e desejava persuadi-lo, baseado em tudo quanto  eu vira, que não valia a pena viver. Desejava garantir-lhe como médico que a  morte é fácil, mais fácil do que os tormentos da vida, as desditas e os  sofrimentos. Desejava dizer-lhe tudo isso porque ele ia morrer no dia seguinte e  essa última noite não dormiria porque amava a vida tão acendradamente.  Queria dizer-lhe que a vida é uma chama sufocante ao passo que a morte é uma  água profunda de esquecimento. Se ele não quisesse me escutar, meu intento  era ficar sentado silenciosamente a seu lado, para que não ficasse sozinho. Um  homem pode viver sem amigos, talvez; mas morrer sem um amigo é duro,  deveras... E mais duro ainda depois de uma vida de realeza.

Ele e a família tinham sido trazidos para o acampamento de Horemheb de uma  forma vergonhosa; a soldadesca zombava dele e lhe atirava barro e  excrementos.

Eu evitara ir ao seu encontro então e cobrira meu rosto com a túnica. Aziru  era um homem excessivamente orgulhoso e não gostaria que eu visse sua  degradação já que o contemplara nos dias da sua majestade e poder. Mas  agora, no escuro, eu podia ir à sua tenda; e os guardas diziam uns para os  outros:

- Deixemo-lo ir. É Sinuhe, o médico e decerto leva alguma missão. Se  proibirmos, nos descomporá ou, por vias de magia, nos deixará impotentes. É  malvado e tem uma língua que fere mais atrevidamente do que um escorpião.

Diante da tenda, em plena treva, eu disse:   

- Aziru, rei de Amurru, queres receber um amigo na véspera da tua morte? 

Aziru respirou profundamente, suas cadeias fizeram ruído, e ouvi a resposta:   

- Já não sou mais rei e não tenho amigos... Mas, na verdade, és tu, Sinuhe?  Conheço a tua voz, mesmo no escuro.   

- Sim, sou eu.   

- Por Marduk e todos os demônios das profundezas da terra! Se és mesmo  Sinuhe, então traze uma luz. Estou cansado de estar no escuro. De amanhã por  diante terei treva demais à minha volta... Os malditos hititas rasgaram minhas  roupas, quase estraçalharam meus membros em aparelho de suplício, de modo  que o espetáculo humano que verás não é muito edificante, não... Aliás, como  médico, deves estar acostumado a aspectos piores. Não me envergonho porque  em face da morte isso não vale nada e ninguém tem tempo de enrubescer pelo  opróbrio alheio. Traze uma luz para que eu possa ver teu rosto e pegar na tua  mão. O meu fígado dói e o pranto corre dos meus olhos por causa de minha  mulher e meus filhos. Se também puderes arranjar uma cerveja bem forte para  molhar minha garganta, contarei todos os teus bons feitos amanhã no reino da  morte. Não posso pagar um gole sequer porque os hititas roubaram até mesmo  a minha última moeda de cobre.   

Mandei que os guardas trouxessem uma lâmpada de sebo e a acendessem  porque a fumaça ardida das tochas incomodava meus olhos. E que trouxessem  também um pichel de cerveja. Aziru ergueu-se, gemendo, para se sentar, e eu o  ajudei a por a palha na boca para que pudesse sugar a cerveja síria que tem  corpúsculos de cevada. O cabelo de Aziru estava grisalho e hirto os hititas ao  torturá-lo lhe tinham arrancado fios e fios da esplendida barba, com pedaços de  pele. Tinha os dedos esmagados, as unhas enegrecidas com coágulos, e as  costelas quebradas, de modo que gemia quando respirava, e cuspia sangue.

Depois que bebeu e cuspiu bastante, fitou a chama da lâmpada e disse:

- Como é clara e afável esta luz para os meus olhos cansados depois de tão  prolongada escuridão! A chama crepita e acabará se estinguindo... De idêntica  forma a vida do homem crepita e se extingue. Agradeço-te Sinuhe, pela  lâmpada e pela cerveja. De boa vontade quereria te agradecer condignamente.  Mas sabes que não disponho mais de presentes a dar, pois os hititas em sua  rapacidade me quebraram até os dentes que incrustaste com blocos de ouro. É fácil uma pessoa se arrepender depois dos fatos passados. Não quis lhe  lembrar quanto eu o avisara a respeito dos hititas.

Segurei na minha a sua mão  contundida; ele inclinou a cabeça e se pos a chorar; as lágrimas caíam em cima  dos meus dedos, gotejando dos seus olhos inchados e pisados. Ele disse:

- Insensatamente folguei e ri diante de ti, nos meus dias de glória. Por que  então me envergonhar agora destas minhas lágrimas em hora de desdita? Digo- te, Sinuhe, que não choro por mim nem pelas riquezas e coroas que perdi. E  isso por mais que eu me haja agarrado ao poder e aos bens do mundo. Choro  por minha mulher Keftiu... por meu filho maior, tão bonito... e pelo meu filho  menor, ainda pequenino... porque também eles deverão morrer amanhã.   

Disse-lhe:

- Aziru, rei de Amurru! Lembra-te que a Síria inteira virou uma sepultura  aberta e fétida por causa da tua ambição. Inúmeros foram os que morreram por  tua causa... E está certo que devas morrer amanhã, já que perdeste a guerra.  Talvez esteja certo que a tua família deva morrer contigo. Quero que saibas,  porém, que pedi a Horemheb que poupasse as vidas de tua mulher e de teus  filhos. Não consentiu, porque tenciona varrer tua geração, teu nome e até  mesmo a tua memória da face da Síria. Por isso não te concederá sequer  sepultura, Aziru, e os animais selvagens se espojarão em cima de teus  despojos. Não quer que os homens da Síria se reúnam em redor do teu túmulo  em tempo futuro e profiram iníquos juramentos em teu nome.

Aziru ouviu isto, atônito, e disse:

- Peço-te em nome do meu deus Baal que ofereças sacrifício de carne e vinho  diante de Baal de Amurru depois que eu morrer, Sinuhe, do contrário serei  condenado a vagar esfaimado e sedento pelas escuras paragens da morte.  Rende tal serviço a Keftiu também. Outrora a amaste e, por amizade, ma  cedeste...E faze também o mesmo por meus filhos, para que eu possa morrer com o  espírito calmo... Não censuro Horemheb por sua decisão, porque sem dúvida  eu o trataria assim bem como à sua família, se caíssem em minhas mãos. Para  falar verdade, Sinuhe, embora esteja chorando, contenta-me saber que minha  família perecerá comigo e que nossos sangues se misturarão na hora da morte  em comum. Do contrário, nas paragens da morte quanto eu não sofreria em  saber Keftiu nos braços de um outro?! Ela tem muitos admiradores, e poetas- músicos entoaram cânticos e tangeram cordas em louvor da sua beleza. Bom é também que meus filhos pereçam, porque nasceram príncipes e usaram coroas  até mesmo no berço. Não quereria que fossem levados como escravos para o  Egito.

Aspirou ainda um pouco de cerveja e, por cúmulo de miséria, ficou um pouco  embriagado. Arrancou com os dedos quebrados a sujeira que a soldadesca lhe  atirara em cima, e disse:   

- Sinuhe, meu amigo! Acusas-me falsamente dizendo que, devido ao que fiz, a  Síria se tornou uma vala de mortos. Só posso ser censurado por haver perdido a  guerra e haver deixado que os hititas me ludibriassem. Se eu tivesse ganho, todo o mal que sobreveio seria varrido para a soleira do Egito, e o meu nome  seria aclamado. Mas como perdi; a censura é atirada em cima de mim, e o meu  nome se tornou um anátema pela Síria inteira.

A cerveja forte lhe subiu à  cabeça. Arrancando os cabelos grisalhos, exclamou bem alto:

- Ó Síria, Síria! Meu tormento, minha esperança, meu amor! Fiz tudo por tua  grandeza, e foi por tua liberdade que me levantei em revolta... Mas agora, no  dia de minha morte, me expulsas. Formosa Biblos, florescente Esmirna,  soberba Sido, majestosa Jopa! Vós todas, cidades que cintilastes como pérolas  na minha coroa! Por que me abandonastes?! Todavia vos amo demais para vos  odiar por vossa deserção. Amo a Síria porque é a Síria: falsa, brutal,  caprichosa, e sempre pronta a trair. As raças morrem... As nações se erguem  apenas para cair...Os reinos se desfazem...A fama e a glória se esgueiram como  sombras... Mas, oh! Vós perdurais, sim, perdurais, minhas briosas cidades! Que  vossas muralhas brancas brilhem de encontro às colinas rubras do litoral...  brilhem por todos os séculos dos séculos... E que o meu pó, levado pelos  ventos do deserto voe até vós para vos acariciar!   

Meu coração encheu-se de tristeza ao ve-lo ainda enclausurado em sonhos;  mas não censurei Aziru visto como tais sonhos lhe davam conforto na véspera  de morrer. Segurei bem suas mãos mutiladas e ele apertou as minhas, gemendo.

Ficamos conversando a noite toda, recordando nossos encontros no tempo em que eu morava em Esmirna e ambos tínhamos orgulho da nossa mocidade e  força. De madrugada os escravos trouxeram-nos alimento que haviam  preparado; os guardas não se opuseram porque também lhes foi dada uma  parte. E o que os escravos trouxeram foi carneiro gordo bem quente e arroz  cozido com toucinho; e em nossas taças derramaram vinho forte de Sido,  condimentado com mirra. Ordenei aos escravos que lavassem Aziru tirando  toda aquela sujeira que lhe fora jogada em cima, que o penteassem e que lhe enfiassem a barba numa rede feita com trama de ouro bem fino. Escondi-lhe as  roupas rasgadas e as algemas por baixo de um manto real. Como as algemas  não podiam ser removidas, sendo de ferro e soldadas nele, não o pude vestir  com trajes limpos e novos. Os meus escravos prestaram o mesmo serviço a  Keftiu e aos seus dois filhos; mas Horemheb não consentira que Aziru visse a  mulher e os filhos; deveriam se reencontrar no local da execução.

Quando a hora chegou e Horemheb, rindo estentoricamente saiu de sua tenda  com os príncipes hititas bêbados, me dirigi a ele e lhe falei assim:

- Não há negar, Horemheb, que te prestei muitos serviços, e creio mesmo que  salvei tua vida quando em Tiro arranquei da tua coxa a seta envenenada e  pensei a ferida. Faze-me um favor: deixa que Aziru morra com dignidade, pois  é o rei da Síria e lutou valentemente. Tua própria honra se valorizará com isso.  Os teus amigos hititas já o torturaram bastante, estraçalhando-lhe os membros  quando o forçaram a contar onde escondera a fortuna.

Horemheb não gostou nada das minhas palavras porque pensara em prolongar  por diversos modos a agonia do adversário. Tudo estava preparado e agora ao  amanhecer o exército já formara no sopé da colina onde as execuções iriam ser  efetuadas. Os homens estavam disputando uns com os outros os melhores  lugares para assistir ao espetáculo máximo de um dia divertidíssimo. Horemheb preparara isso assim não porque sentisse prazer em torturar alguém, mas  porque queria distrair seus homens e espalhar o terror através da Síria inteira,  de modo que, após tão terrível morte, ninguém ousasse mais sequer sonhar com  uma revolta. Devo dizer isto em honra de Horemheb, porque ele não era cruel  por natureza, conforme assoalhavam.

Era um guerreiro, e para ele a morte não passava de uma arma que manobrava  a seu talante. Deixava que boatos exagerassem a sua brutalidade, só para criar  pavor no coração dos inimigos e ganhar veneração global. Cuidava que os homens tinham mais respeito por um chefe cruel do que por um chefe generoso  e que consideravam a bondade uma fraqueza.

Fez uma carranca, e tirando o braço do ombro do príncipe Shubatu, parou  diante de mim, oscilando e batendo na perna com o chicote de ouro. Disse-me:

- Tu, Sinuhe, és um perpétuo espinho na minha ilharga. Ao contrário de todos  os homens de senso, esgalhas tortuosamente, assim!... Atrapalhas todos que  prosperam e que atingem por amor próprio a honorabilidade e a eminência, ao  passo que és terno e dado a consolar os que caem e foram vencidos. Sabes  muito bem com que trabalheira e custo consegui trazer até cá os carrascos mais  habilidosos de todas as partes do mundo civilizado só por causa de Aziru. Mesmo a instalação dos engenhos de suplício e caldeirões custou grande  quantidade de dinheiro em prata. Não posso no último momento privar os meus  ratos assanhados do prazer prometido, pois todos eles sofreram coisas  medonhas e perderam sangue através de muitas feridas por causa de Aziru. 

Shubatu, o príncipe hitita, bateu-lhe nas costas e disse por entre uma risada:

- Falas acertadamente, Horemheb! Não vais agora nos privar de tamanho  prazer! A fim de conservá-lo para esta hora não lhe arrancamos a carne dos  ossos, apenas o torturamos cuidadosamente com tenazes e cravos de madeira... 

Horemheb, que era vaidoso, não gostou do aparte assim como estranhou aquela  pancada nas costas. Franziu a testa e disse:

- Estás bêbado, hein, Shubatu!?... Quanto a Aziru, não tenho outro propósito  senão mostrar ao mundo a sorte que aguarda todo aquele que confiar nos  hititas! Visto como no decorrer da noite nos tornamos amigos e bebemos fraternalmente muitas taças, juntos, pouparei esse vosso aliado e, somente por  camaradagem, consentirei que tenha uma morte fácil.

O rosto de Shubatu crispou-se de raiva, pois os hititas são ciosos da sua honra  muito embora, conforme toda gente sabe, atraiçoem e vendam seus aliados  havendo uma razão adequada. Na verdade todas as nações fazem assim e todos  os soberanos e governos. Os hititas são mais cínicos em seu comportamento do  que os outros e nem se esforçam em arranjar pretextos e desculpas para  disfarçar o caso e lhe dar uma aparência de justiça acima de tudo...

Assim pois, Shubatu ficou furioso. Mas seus companheiros lhe taparam a  boca e o arrastaram para longe de Horemheb, segurando-o com força até que  ele, em sua fúria inútil, vomitou o vinho que bebera e ficou mais quieto.

Horemheb mandou Aziru sair da tenda e ficou deveras perplexo ao ve-lo se  apresentar com o porte majestoso de um rei trazendo um manto real em cima  dos ombros. É que ainda não havia muito tempo Aziru comera carne gorda e  vinho forte Aprumou a cabeça e riu alto ao se encaminhar para o local da  execução; e vociferava insultos contra os oficiais e guardas. Seu cabelo estava  penteado, sua  o que o fedor sírio que emanas mexe com o meu estomago apesar desse manto que roubaste não sei onde para tapar tua carcaça nojenta. Mas não nego que  sejas um homem valente, Aziru, já que ris diante da morte. Vou te conceder  uma morte fácil, em consideração à minha benignidade.

Mandou a sua própria guarda escoltar Aziru e impedir que a soldadesca lhe  atirasse lama. Os valentes veteranos de Horemheb rodearam Aziru e feriram  com suas espadas todo aquele que ousou abusar. É que não sentiam mais ódio  por Aziru, não obstante os sofrimentos que este lhes causara; agora, admiravam  a sua coragem. Escoltaram a rainha Keftiu, também, e os príncipes até ao local  da execução. Keftiu adornara-se e pintara o semblante; e os garotos encaminharam-se para o local fatídico com atitude de príncipes, o mais velho  levando o outro pela mão.

Quando Aziru viu a família, fraquejou e disse:

- Keftiu! Keftiu, minha consorte alvíssima, meu amor, pupila dos meus olhos!  Lamento deveras que tenhas que me acompanhar na morte porque a vida ainda  te seria suave espetáculo...

Keftiu respondeu:

- Não sofras por minha causa, ó meu rei, pois é da minha vontade te acompanhar. És meu esposo e tua força é a força de um touro. Homem algum me  interessaria depois que te fosses. Durante a nossa vida em comum sempre  desdenhaste as outras mulheres por minha causa. Não permitirei que entres  sozinho na terra da morte onde todas as mulheres lindas que morreram antes de  mim sem dúvida te estão esperando. Acompanhar-te-ia mesmo que á minha  vida fosse poupada... Estrangular-me-ia com os meus cabelos, ó meu soberano,  pois eu era apenas uma escrava e me fizeste rainha e de ti concebi dois lindos  filhos.

Aziru cobrou ainda mais ânimo com estas palavras e disse a seus filhos:

- Meus lindos filhos! Viestes a este mundo como filhos de um rei. Morrei  portanto como príncipes para que eu não me envergonhe de vós. Acreditai-me:  morrer não dói mais do que arrancar um dente. Sede valentes, meus diletos  filhos!

Dito isto, ajoelhou no chão diante do carrasco. Voltou-se logo para Keftiu e  disse:

- Estou cansado de ver estes egípcios imundos à minha volta com suas  espadas manchadas de sangue. Descobre teu, doce seio, Keftiu, para que eu  contemple tua beleza enquanto morro. Quero morrer tão feliz quanto o fui  vivendo contigo.

Keftiu desnudou os opulentos seios, o carrasco levantou a grande espada e  com um golpe só arrancou a cabeça de Aziru para fora dos ombros. Ela foi cair  aos pés de Keftiu. O sangue se pos a jorrar violentamente do grande corpo e borrifou os meninos que ficaram tomados de terror. E o mais novo principiou a  tremer. Mas Keftiu levantou do chão a cabeça de Aziru, beijou os lábios  tumefatos e acariciou as faces lívidas. E, apertando-a de encontro ao seio, disse aos filhos:

- Depressa, meus valentes filhos! Ide para junto de vosso pai, sem medo,  meus filhinhos, pois vossa mãe também está impaciente para segui-lo.

As duas crianças ajoelharam, obedientemente, o mais velho segurando ainda o  outro pela mão; e o carrasco arrancou com facilidade as duas cabeças,  soltando-as das jovens nucas. Em seguida, tendo empurrado os corpos para o  lado, com o pé, feriu o pescoço nédio e branco de Keftiu, com um golpe.  Assim, todos três receberam uma morte fácil. Mas por ordem de Horemheb  seus corpos foram arremessados a um fosso para serem devorados por feras.

Assim o meu amigo Aziru pereceu sem procurar trapacear com a morte, e  Horemheb fez a paz com os hititas. Sabia muito bem que essa paz não era  senão um armistício, visto como Sido, Esmirna, Biblos e Kadesh ainda se  achavam sob o domínio deles. Os hititas haviam feito uma base poderosamente  fortificada em Kadesh para o domínio do norte da Síria. Mas agora os dois  adversários estavam cansados da guerra, e Horemheb se satisfez com essa paz,  pois tinha interesses em Tebas que requeriam sua presença e resolução. Precisava também restaurar a ordem na terra de Kush e entre os núbios que, aproveitando a ocasional liberdade, se tinham tornado selvagens e recusavam  pagar o tributo ao Egito.    Tutankhamon reinou no Egito durante esses anos embora não passasse de um  rapazola e só pensasse numa idéia fixa: construir a sua própria tumba. O povo  atirava para cima dele a responsabilidade de todas as perdas e misérias resultantes da guerra. Tinha-lhe ódio amargo e comentava: Que se pode esperar  de um soberano cuja consorte é do sangue do falso faraó?!...

Eie, longe de estancar tais comentários, espalhava, pelo contrário, novas  histórias entre o povo sobre a estupidez e ambição de Tutankhamon propalando  que ele só ambicionava acumular todos os tesouros do Egito dentro da sua  tumba.    Durante todo esse tempo não estive em Tebas porque sempre viajei com o  exército devido à minha profissão e tomei parte em suas vicissitudes e  alternativas. Todavia vim a saber pelos homens de Tebas que o faraó  Tutankhamon era fraco e doentio e que qualquer doença secreta consumia o  seu corpo. Parece que a guerra da Síria consumia suas energias.

Sempre que  chegava a notícia de uma vitória de Horemheb, o faraó caía doente. Após uma  derrota, convalescia e deixava o leito. Isso, comentavam, tinha todos os  aspectos de uma feitiçaria, e quem quer que prestasse atenção verificava que a  saúde do faraó oscilava de acordo com a guerra na Síria.    Com o correr do tempo Eie se ia tornando cada vez mais impaciente e de  quando em quando remetia esta mensagem, a Horemheb: "Não podes cessar essa luta e conceder paz ao Egito? Já estou velho e  cansado de esperar. Vence, Horemheb e traze-nos a paz para que eu possa ter a  minha combinada recompensa. Tratarei de fazer que também recebas a tua.”

Por esta razão não fiquei absolutamente surpreendido quando, depois que a  guerra terminou, ao subirmos o rio em naves de guerra colgadas de bandeiras,  recebemos notícia de que o faraó Tutankhamon embarcara na nave dourada de  seu pai Ammon rumo à Terra do Poente. Dizia-se que Tutankhamon tivera um  grave ataque no dia em que chegara notícia a Tebas de que Megido caíra e a  paz fora assinada. A natureza da doença fatal foi assunto que motivou debates  entre os médicos da Casa da Vida. Constava que seu estomago apresentava  manchas negras de veneno; mas a causa certa ninguém sabia qual pudesse ter  sido. O povo acabou se convencendo de que o faraó morrera de um acesso de  malignidade toda própria quando a guerra acabou, porque o maior prazer de  Tutankhamon fora ver o sofrimento do Egito.

Eu sabia que ao firmar seu sinete em cima do tratado de paz, Horemheb  estava matando o faraó da mesma forma que se lhe atirasse um punhal no  coração. A paz era tudo quanto Eie esperava para varrer Tutankhamon do seu  caminho e subir ao trono como o "Rei da Paz".

Tal notícia nos compeliu a sujar as faces e a arriar os vistosos galhardetes dos  navios. E Horemheb, em seu ressentimento acre, desprendeu e jogou no rio os  corpos dos comandantes sírio e hitita que ele, à maneira dos grandes faraós,  prendera de cabeça para baixo no costado do seu navio. deixara seus ratos  assanhados na Síria para a pacificação desse país e para se empanturrarem com  a gordura da terra depois de tantas tribulações. Mas trouxera consigo para o  Egito os seus valentes, a sua "escumalha", para a celebração da paz em Tebas.  E também estes ficaram com raiva de Tutankhamon e o amaldiçoavam porque,  morrendo, lhes estragara o prazer.

Assim voltei a Tebas resolvido a nunca mais deixá-la. Os meus olhos se  tinham fartado de ver os malefícios humanos, e não havia nada de novo  debaixo do velho sol. Resolvi passar todos os meus dias em teor de pobreza na  casa do fundidor.

Os bens que adquiri na Síria gastei em mandar oferecer  sacrifícios por intenção de Aziru; de mais a mais não queria absolutamente  conservar quaisquer bens porque, a meu sentir, cheiravam a sangue e não  podiam me causar alegria nenhuma.

Ainda assim a minha medida longe estava de haver chegado às bordas. Foi-me  conferida uma tarefa que eu não desejava e que me incutiu medo. Mas era  impossível recusar, e logo alguns dias depois parti de Tebas. Eie e Horemheb  tinham estendido suas malhas e realizado seus planos com grande sagacidade  para que o poder lhes viesse às mãos de forma categórica. Mas tudo começou a  lhes escorrer pelos dedos abaixo, sem que percebessem, e o destino do Egito  ficou suspenso, de repente, no capricho de uma mulher.

 

HOREMHEB

De acordo com a combinação feita com Horemheb, Eie seria coroado faraó  logo depois que terminassem as cerimônias dos funerais de Tutankhamon. Por conseguinte, Eie mandou  apressar o embalsamamento e parar quaisquer trabalhos na tumba que assim  ficou pequena e insignificante em comparação com as dos grandes faraós. Pelo  mesmo acordo ele se comprometera a forçar a princesa Baketamon a se casar  com Horemheb que assim ficaria habilitado, não obstante sua origem modesta,  a pretender o trono, com base legal, depois da morte de Eie. Este combinou  com os sacerdotes que, terminado o período de luto, quando Horemheb viesse  celebrar o festival da vitória, a princesa Baketamon viesse ao seu encontro no  templo de Sekmet onde, vestida como a deusa, se entregaria a ele para que tal  união fosse abençoada pelos deuses e o próprio Horemheb se tornasse divino. 

Este era o plano de Eie; mas a princesa, com muito cuidado e antecedência,  refletira bem e formara um plano seu para o qual sei que a rainha Nefertiti  concorreu com encorajamentos e conselhos. A rainha Nefertiti odiava  Horemheb e desejava se tornar também - mesmo junto de Baketamon - a  mulher mais poderosa do Egito.

Tão ímpio e tão iníquo era esse plano que só mesmo o ardil de uma mulher  maligna poderia concebe-lo. E tão incrível era que pouco faltou para que não se  efetivasse. Só depois que as minúcias foram descobertas é que se compreendeu  o motivo da magnanimidade dos hititas fazendo logo ofertas de paz, entregando  Megido e a terra de Amurru e fazendo outras concessões.

Desde a morte do marido e a sua submissão forçada a Ammon, Nefertiti não  podia suportar o pensamento de haver sido posta de lado, longe do trono,  tornando-se uma criatura sem maior significação do que qualquer outra mulher  da corte. Ainda estava bonita; embora sua beleza exigisse meticulosos cuidados  para ser preservada.

Valeu-lhe ser muito cortejada pelos nobres do Egito que revoluteavam como  zangões em redor da corte e do inconsistente faraó. Por sua inteligência e  astúcia, ela ganhou também a amizade da princesa Baketamon cuja inata altivez  soube alimentar a ponto de o que fora orgulho acabar se tornando mania. A  princesa tornou-se tão arrogante que não podia tolerar o contacto de qualquer  simples mortal, não permitindo sequer a passagem da sombra de um deles perto dela. Mantivera-se virgem na crença de que não existia nenhum homem no  Egito que a merecesse; e assim já estava saindo da idade normal para o  consórcio.

Deu em prezar sobremaneira sua condição de donzela, mas creio que  um bom casamento a curaria.    Nefertiti persuadia Baketamon que esta nascera para realizar grandes coisas e  para livrar o Egito das mãos de usurpadores plebeus. Falava-lhe da grande  Rainha Hatsheput que prendera uma barba real ao queixo, rodeara a cintura com a cauda de um leão e governara o Egito do alto do trono dos faraós. E  garantia que a beleza de Baketamon se assemelhava a da grande rainha.   

E também não cessava de falar mal de Horemheb; de forma que a princesa,  em seu orgulho virginal, começou a teme-lo como um homem de baixa extração  que com sua rudeza de guerreiro a quisesse possuir aviltando assim seu sangue  sagrado.

Parece-me, contudo; que ela estava empolgada secretamente por sua  força rude...Olhava-o muito, inflamava- se com o olhar dele, por mais que não  acreditasse nem admitisse isso nem mesmo em seus solilóquios.    Nefertiti não teve dificuldade em exercer sua influencia sobre a princesa  quando, ao se esboçar o fim da guerra na Síria, os planos de Eie e de  Horemheb se lhe tornaram mais evidentes. Não acho que Eie procurasse  esconder da filha, o seu propósito. Ela, no entretanto, execrava o pai porque  este, se tendo utilizado o mais possível dela para suas vantagens, a jogara para  um lado e a bem dizer a escondia na casa dourada por se tratar da viúva do  faraó amaldiçoado.

Beleza e inteligência unidas numa mulher cujo coração o  tempo endureceu são qualidades perigosas... mais perigosas do que punhais  fora das bainhas, mais destruidoras do que as foices dos carros de guerra. A  melhor prova desta asserção reside no estratagema que Nefertiti urdiu  conseguindo tornar Baketamon sua cúmplice e instrumento.    A conjura veio à luz quando Horemheb, que acabara de chegar a Tebas,  começou, tomado de impaciência, a rondar os aposentos da princesa  Baketamon de modo a ve-la e falar com ela, por mais que a princesa se recusasse a recebe-lo.

Como acontecesse ver numa das salas um emissário hitita aguardando  audiência com a princesa, Horemheb perguntou a si mesmo por que motivo ela  receberia tal homem e o retinha em tão longa entrevista. Por deliberação  própria, portanto, sem se aconselhar com ninguém, deu voz de prisão a esse  hitita que se portou de maneira altiva e se dirigiu a ele em termos usados  apenas pelos que se sentem seguros em sua autoridade.

Horemheb então comunicou isso a Eie. E, à noite, ambos forçaram a entrada  nos aposentos de Baketamon, mataram os escravos que a guardavam, e  descobriram certa correspondência escondida entre as cinzas de uma braseiro.  Profundamente surpreendidos, não podendo entender o conteúdo de tais tábuas  de argila, aprisionaram Baketamon em seu quarto pondo guardas tanto aí como  nos cômodos de Nefertiti. Naquela mesma noite dirigiram-se à casa do fundidor  que Muti reconstruíra com o dinheiro de Kaptah; chegaram numa liteira  comum, escondendo os rostos. Muti recebeu-os, resmungando zangada quando  lhe ordenaram que me acordasse. Ora, eu não estava dormindo; desde que  assistira aos horrores da Síria, dormia muito mal. Levantei-me enquanto ela  ainda altercava e, acendendo lâmpadas, recebi aqueles desconhecidos .na crença de que buscavam socorro médico.

Ao ver quem eram, fiquei perplexo. E depois que Muti, por ordem minha,  trouxe vinho, logo a mandei embora. Em seu grande medo, Horemheb queria  matá-la pelo fato de lhes haver visto as fisionomias e poder escutar nossa  conversa.

Jamais vira Horemheb tão assustado e isso me causou a maior  satisfação. Disse-lhe:

- Não permito que mates Muti; deves estar doente dos miolos para propores  coisa tão insensata. Muti é uma pobre velha surda que dorme e ronca como um  hipopótamo. Se queres, presta atenção: ouvirás logo seus roncos. Trata de  beber vinho, isso sim. E fica certo que não precisas tremer por causa de uma  mulher velha.

Horemheb disse para que eu as lesse; e exibiu também cópias das cartas que a princesa, Baketamon lhe remetera antes do fim da guerra.

Li tudo aquilo e não tive mais  a mínima vontade de rir; o vinho chegou a perder o sabor dentro de minha  boca. Numa das cartas a princesa Baketamon escrevera assim: "Sou a filha do Faraó, e em minhas veias corre sangue sagrado. Não há no  Egito inteiro um homem que me mereça. Sei que tendes muitos filhos. Mandai-me um dos vossos filhos para que eu rompa um cântaro com ele que passará a  governar a terra de Kan a meu lado.”

Tão incrível era o teor desta carta que o cauteloso Shubiluliuma não acreditou  e, pela mão de um emissário secreto, mandou pedir confirmação. Em carta  seguinte Baketamon repetia a proposta, assegurando que tanto os nobres do  Egito como os sacerdotes de Ammon se achavam a seu lado. Ante isso,  Shubiluliuma ficou persuadido da sua sinceridade e se apressou em fazer paz  com Horemheb, estando mesmo agora preparando a vinda de seu filho Shubatu  ao Egito. E declarava que Shubatu sairia de Kadesh num dia auspicioso com  grande quantidade de presentes para Baketamon. De acordo com a última tábua  de argila recebida, já se achava a caminho do Egito com sua comitiva.

- Por todos os deuses nacionais! - exclamei, atônito. - Como é que vos posso  ajudar? Não passo de um pobre médico, e como é que vou fazer para que o  coração de uma louca se volte para Horemheb?

Horemheb replicou:

- Já uma vez nos ajudaste antes. E todo aquele que empunha um remo tem que  remar quer queira quer não queira. Tens que viajar, que ir ao encontro do  príncipe Shubatu e fazer de modo que ele não chegue nunca ao Egito. Não sei  como o conseguirás, e nem quero saber. Digo apenas que não podemos  assassiná-lo abertamente, porque isso causaria uma outra guerra com os hititas.  Quanto a isso prefiro eu próprio escolher a ocasião adequada.

Suas palavras me alarmaram e meus joelhos começaram a tremer. Foi com o coração baqueado e com a língua tremula que consegui  dizer:

- É verdade que uma vez vos ajudei; mas o fiz mais por mim do que por  causa do Egito. Esse príncipe nunca me fez mal e apenas o vi uma vez do lado  de fora da tua tenda, Horemheb, na madrugada em que Aziru morreu. Não, Horemheb, não farás de mim um assassino. Prefiro morrer, pois não há  crime mais vergonhoso do que o que me é proposto. Quando dei veneno ao  faraó Akhnaton, agi em bem dele: estava doente, e eu era seu amigo.

Horemheb franziu a testa, deu uma lambada na perna com o chicote, e então  Eie falou:

- Sinuhe, és um homem sensato e vês muito bem que não podemos perder  uma nação debaixo da cama de uma mulher caprichosa. Não há outro meio,  podes crer. O príncipe deve morrer a caminho do Egito... Seja por acidente,  seja por doença, não importa. Deves viajar, ir ao encontro dele no deserto do  Sinai. Irás por ordem da princesa Baketamon, como médico, para examiná-lo e  averiguar se é homem em condições de ser o esposo que convém a uma  princesa egípcia... que deseja ter prole... Ele acreditará prontamente, receber-te-á de modo cordial, far-te-a uma porção de perguntas a respeito de  Baketamon. Mesmo os príncipes são seres humanos, e creio que Shubatu deve  estar curioso para saber de que maneira mágica o Egito deseja ligá-lo. Sinuhe,  conversarás com naturalidade... Tua tarefa, depois, será fácil, e não menosprezarás os presentes a que farás jus realizando-a... Podes mesmo te  considerar desde já um homem rico...

E Horemheb interveio:

- Escolhe imediatamente, Sinuhe, entre a vida e a morte. Se recusares esta  missão não podemos consentir que vivas, agora que estás a par desse segredo  de Estado. Não importa que sejas o meu amigo devotado que és. O nome que  tua mãe te deu foi um mau agouro; já aprendeste muita coisa dos segredos dos  faraós... Ou concordas, ou te rasgo a boca de orelha a orelha... mesmo  lamentando muito... És o nosso melhor agente e não podemos confiar esta  missão a ninguém mais. Estás ligado a nós por um crime conjunto, e nos  tornaremos agora teu cúmplice neste outro crime necessário... se é que se pode  considerar crime libertar o Egito do poder dos hititas e da loucura de uma  mulher.

Assim me achei colhido dentro de uma rede que meus próprios feitos haviam  tecido, e da qual eu não podia romper uma só malha. Eu ligara para sempre  meu destino aos de Eie e Horemheb. Respondi, numa tentativa vã de coragem:

- Ora, Horemheb! Sabes muito bem que não tenho medo da morte.

Estou escrevendo estas coisas para mim mesmo, sem procurar parecer o que  não sou.

E para vergonha minha devo confessar que o pensamento da morte me encheu  de pavor naquela noite, principalmente por se tratar de uma surpresa. Pensei  nas andorinhas revoluteando por cima do rio... Pensei no vinho das belas  videiras ribeirinhas... Pensei no ganso que Muti assava para mim à moda  tebana... E a vida me pareceu bela, de repente. Pensei também no Egito, e  refleti que o faraó Akhnaton também tivera que morrer para que o Egito  pudesse viver, e que Horemheb repelira pelas armas o ataque hitita. Todavia  Akhnaton era meu amigo, ao passo que este príncipe de uma terra estrangeira  me era desconhecido completamente e sem dúvida cometer tais ações no  decorrer da guerra que bem merecia mil mortes... Por que devia eu hesitar em  assassiná-lo para salvar o Egito mais uma vez. se eu já matara Akhnaton?...

Respondi, portanto:

- Tira essa faca daí, Horemheb, porque ver uma faca nua me irrita. Eu  concordo. Salvarei o Egito do poder dos hititas, embora não saiba ainda de que  forma farei isso. Com certeza perderei minha vida porque os hititas provavelmente me liquidarão se o príncipe morrer. Mas dou pouca importância  à vida e não quero que os hititas governem o Egito. Tomo tal tarefa a meu  cargo não por causa de presentes nem de lindas promessas, mas porque este  meu ato estava escrito nos astros antes do meu nascimento e não pode deixar  de ser cumprido. Recebei as coroas das minhas mãos, Horemheb e Eie. Recebei as coroas e abençoai o meu nome porque eu, um médico insignificante,  vos fiz faraós!

Senti um grande desejo de rir ao dizer isto. Refleti que o sangue sagrado  corria em minhas veias, muito provavelmente, e que eu era o único herdeiro  legal ao trono dos faraós, ao passo que Eie era, por origem, um sacerdote de  ordens menores da divindade o Sol e que os parentes de Horemheb fediam à  gado e a queijo. Naquele momento vi bem o que eles eram: ladrões despojando  o corpo morto do Egito; crianças brincando com coroas e emblemas de  poderio, e tão algemados e chumbados à cobiça que jamais usufruiriam o que  se chama felicidade.

Disse a Horemheb:

- Horemheb, meu amigo. A coroa é pesada. Certificar-te-ás disso em certo dia  de calor quando, ao fim da tarde, vires o gado descer para a beira da água a fim  de beber e em torno de ti se espraiar lancinante silencio...

Mas Horemheb disse:

- Depressa! Depressa! Precisas partir. Um navio te aguarda. Tens que ir ao  encontro de Shubatu ainda no deserto de Sinai antes que ele chegue a Tânis  com a comitiva.

Assim, parti mais uma vez de Tebas. Inopinadamente e a noite. Embarquei no  navio mais rápido de Horemheb, levando o meu cofre de remédios, algum  vinho, e o resto do ganso assado que Muti me servira ao jantar. Mais uma vez me vi sozinho, numa solidão ainda maior do que a de quaisquer  outros homens; pois não dispunha de ninguém para expor meus pensamentos  mais reconditos e revelar o segredo que, se propalado, causaria a morte a  muitos milhares de seres humanos. Eu tinha, por conseguinte, que ser mais  astuto do que uma serpente; e ia obsecado pela certeza de que se fosse  surpreendido com o meu intento padeceria morte horripilante nas mãos dos  hititas.

Senti tenaz tentação de abandonar a tarefa e procurar refúgio em algum lugar  remoto, como o meu homonimo legendário, Sinuhe, e deixar que o destino  irrompesse pelo Egito adentro. Se tivesse agido assim, o curso dos  acontecimentos se modificaria em muito e o mundo de hoje seria bem outro.  Contudo agora, na velhice, percebo que em essência todos os soberanos e  governos são iguais; e todas as nações, também. Pouco adianta ,saber quem  governa ou qual a nação que está oprimindo a outra, já que, no fundo, quem  sofre é o povo.

Mas fui fraco; não fugi. Quando um mortal é fraco, se deixa levar mais  facilmente a obediência de uma ordem temível do que pela opção da sua  própria vontade.

Portanto, o príncipe Shubatu devia morrer. Sentado debaixo do toldo dourado,  com um pichel de vinho perto de mim, pensava em dada forma de matar que  jamais fosse descoberta depois, de modo a nem eu nem o Egito sermos responsabilizados. Tal empreendimento não era fácil, porque decerto o príncipe  viajaria com uma comitiva compatível com a sua situação. Os hititas, sendo  desconfiados por índole, sem dúvida tomariam conta rigorosa da sua segurança.  Mesmo que eu o encontrasse a sós no deserto, não poderia liquidá-lo me  utilizando dos meios comuns que se oferecem, pois a espada, a lança e o dardo  deixam traços, e o crime se tornaria patente. Refletia se daria certo induzi-lo a  procurar comigo o basilisco do deserto cujos olhos são pedras verdes e o  empurrá-lo então por uma fenda de abismo, indo contar depois que ele  escorregara, quebrando o pescoço lá no fundo, haste plano era pueril, pois  certamente eu nunca seria deixado a sós com ele.

Quanto a veneno, os príncipes hititas se sentavam à mesa rodeados por  "provadores" que experimentavam antes sempre tanto a comida como a  bebida... Por conseguinte, este plano também era impraticável.    Lembrei-me então de histórias de venenos secretos dos sacerdotes e do  palácio imperial... Ouvira contar que havia meios de introduzir veneno dentro  de frutos dependurados e ainda verdes nas árvores, de modo que quem os  colhia e mastigava, quando maduros, acabava morrendo. Havia também certos  rolos que produziam a morte em quem os abria, e flores cujo odor - quando  sacerdotes as preparavam - se tornava mortal. Mas esses eram segredos de  sacerdotes, e me pareceu que muitas histórias dessas no fundo não seriam  senão lendas. Mas mesmo que fossem verdadeiras e eu estivesse ciente do manejo a efetuar, como era que eu ia cultivar pomares e jardins no deserto?!  Príncipe hitita nenhum abriria um rolo de pergaminho: entregá-lo-ia ao seu  escriba. E nem tinham os hititas o hábito frívolo de cheirar flores; pelo  contrário, despetalavam-nas com seus chicotes e esmagavam nas debaixo dos  pés.   

Desejei dispor da esperteza de Kaptah para me valer; mas eu não podia  envolve-lo neste caso. Além disso, ele. ainda se achava na Síria tratando dos  seus interesses. Convoquei todas as minhas faculdades inventivas, e toda a  minha ciência médica, pois um médico tem familiaridade com a morte e dispõe  de material com que pode prontamente encurtar a vida ou apressar a morte dos  seus clientes. Se o príncipe Shubatu caísse doente e eu pudesse tratá-lo,  conseguiria ministrar-lhe a morte com facilidade para mim, de acordo com  todas as leis da medicina; e nenhum médico correto condenaria meu tratamento  visto como através dos séculos a faculdade médica dava direito a que nós  outros tratássemos os nossos doentes e enterrássemos os nossos mortos. Mas  Shubatu gozava de esplendida saúde, e caso viesse a adoecer chamaria um  médico hitita preferivelmente a um médico egípcio.

Levei as minhas reflexões a pormenorizados escaninhos, e se nas linhas acima  as expus, foi para mostrar exatamente quão difícil era a tarefa de que  Horemheb me encarregara. Mas agora contarei apenas que foi que fiz. Na Casa  da Vida, em Menfis, enchi bem o meu suprimento de drogas, e ninguém se  espantou das receitas que escrevi porque aquilo que para um leigo é veneno  letal nas mãos de um médico pode ser ótimo remédio.

Em seguida, sem maior demora, continuei minha viagem para Tânis onde  contratei uma liteira e entrei em contacto com a guarnição que pos às minhas  ordens uma escolta de carros que me acompanharia ao longo da grande estrada  militar do deserto.

A informação de Horemheb era literalmente certa. Encontrei Shubatu e sua  comitiva a três dias de distância de Tânis, num acampamento perto de uma  fonte. Shubatu também viajava numa liteira para não se cansar, e trazia consigo  muitos burros de carga com presentes para a princesa Baketamon. Carros  pesados garantiam a segurança da sua viagem e carros leves faziam  reconhecimentos no caminho, indo bem na vanguarda, pois o rei Shubiluliuma  recomendara que todos se premunissem contra eventuais ataques, estando bem  cientes que tal expedição não deveria ser muito agradável a Horemheb.

Mas os hititas me trataram bem como aos oficiais da minha modesta escolta  com muita cordialidade e cortesia, conforme faziam sempre que recebiam como  um presente o que não podiam arrancar com a força das armas. Receberam-nos  no acampamento que tinham armado para a noite e, depois de ajudar os oficiais  egípcios a abrir as tendas, nos rodearam com muitos guardas explicando que  desejavam nos defender contra salteadores e leões para que descansássemos e  dormíssemos bem. Ao saber que eu era emissário da princesa Baketamon, o  príncipe Shubatu se tomou de insopitável curiosidade e me chamou à sua  presença.

Era um moço de fascinante aspecto, cujos olhos - agora que não estava  bêbado como da primeira vez que eu o vira - eram grandes e límpidos. A  felicidade e o interesse avivavam cores em seu rosto moreno. Tinha um nariz  nobre como o bico adunco de uma ave de rapina, os dentes reluzentes de um  animal selvagem, e riu com prazer ao meu olhar.

Estendi-lhe uma carta da  princesa Baketamon forjada por Eie e fiz profunda saudação na sua frente  procurando evidenciar profundo respeito como se já fosse o meu soberano.  Achei muita graça no seguinte: antes de me receber se vestiu à maneira egípcia,  mostrando-se agora embaraçado com esses trajes a que não estava acostumado.  Disse-me:

- Já que a minha futura consorte confiou em vós e que sois o médico da corte,  estou às vossas ordens como... paciente! Quando um príncipe se casa fica  dependendo de sua companheira. A pátria da minha consorte será a minha pátria. Os costumes do Egito, os meus costumes. Tenho até me esforçado o  mais que posso em os ir adotando já, para que não chegue a Tebas como um  estrangeiro. Estou impaciente por ver as maravilhas do Egito de que tanto tenho ouvido  falar; e de me familiarizar com os seus poderosos deuses que doravante serão  as minhas divindades também. Muito mais ansioso, porém, estou por ver a  minha real consorte, pois por vontade dela fundarei no Egito uma nova raça.  que o governará. Falai-me a respeito dela, portanto. Dizei-me se é alta, se é  opulenta de corpo. Considerai-me um egípcio, já não me escondais nenhum  predicado ou defeito, confiai em mim como um irmão tal qual eu confio em  vós.   

Essa confiança se exteriorizava diante de um grupo de oficiais que  permaneciam atrás dele com espadas desembainhadas, e de soldados que  montavam guarda na porta da tenda com as lanças dirigidas para as minhas  costas. Mas fingi não reparar em nada disso. Inclinando-me até ao chão, diante  dele, falei assim:

- Minha dama real, a princesa Baketamon, é uma das mais belas mulheres do  Egito. Por causa do seu sangue sagrado preservou até aqui a sua virgindade, e  deve ser um pouco mais velha do que vós. Sua beleza é imanente, sua fa.

O príncipe abriu a roupa, expôs o peito, estendeu os braços e depois os dobrou,  de modo a exibir a musculatura do tórax e dos membros; e declarou:

- Meus braços podem curvar o arco mais rijo! E com um golpe de joelho  arrebento o peito de um jumento. Meu semblante é perfeito e não me lembro  da última vez que estive doente.

Redargüi:

- Sois de fato um mancebo inexperiente e desconhecedor  dos costumes do Egito se cuidais que uma princesa egípcia é um arco a ser  vergado ou um jumento a ser contido com o joelho. Longe está isso de ser  assim. claro que tenho que vos dar umas tantas explicações sobre a arte egípcia  do amor para que não vos cubrais de ignomínia aos olhos da princesa. Bem avisada andou ela em me mandar até aqui para que, como médico, eu vos inicie  nos hábitos do Egito.

Minhas palavras melindraram sobremaneira o príncipe Shubatu que era um  moço presunçoso e, como todos os hititas, muito orgulhoso da sua virilidade.  Seus oficiais desandaram a rir, coisa que ainda mais o irritou. Ficou lívido de fúria e arreganhou os dentes. Mas diante de mim procurou manter a suave  maneira egípcia e replicou tão delicadamente quanto lhe foi possível:

- Não sou o mancebo inexperiente que cuidais, pois a minha lança já  traspassou muita pele esplendida. Não creio que a vossa princesa se  decepcionará com os hábitos e maneiras da terra de Hati.

Respondi:

- Acredito sinceramente em vossa força, meu soberano, mas deveis vos  enganar dizendo que não vos lembrais da última vez que estivestes doente. Sou  médico e posso ver em vossos olhos e em vossas faces que estais doente agora  sofrendo conseqüências de uma diarréia.

Não existe nenhum ser humano que não acabe acreditando que está doente  quando alguém insiste e garante demoradamente que tal se dá. Intimamente  todos nós desejamos ser bem tratados e examinados. Os médicos em todos os  séculos sempre se certificaram disto e tal averiguação os tem enriquecido. E eu  tinha, ainda por cima, a vantagem de saber que durante a primavera os brotos  dos oásis contem pólens que relaxam os intestinos dos que não estão  acostumados.    O príncipe Shubatu ficou admirado das minhas palavras e exclamou:

- Certamente estais enganado, Sinuhe, o egípcio. Não me sinto absolutamente  doente, embora não possa negar que estou com um desarranjo intestinal que me  obrigou a me agachar a toda hora à margem da estrada durante esta viagem.  Mas como é que adivinhastes isso? Deveis ser muito mais capacitado do que o  meu médico que não ligou a menor importância para este meu desarranjo.

Palpou-se, tocou nas pálpebras e na testa, e disse:

- Na verdade sinto ardor nos olhos... Mas isso é de tanto fitar o dia inteiro a  areia abrasada do deserto. A minha testa também está quente... Enfim, não me  sinto tão bem quanto desejaria.

Observei-lhe:

- Seria bom que o vosso médico vos desse um remédio que limpasse vosso  estomago e vos fizesse dormir um bom sono. As desordens gástricas produzidas pelo deserto são severas. Posso falar  porque sei quantos egípcios morreram disso a caminho da Síria. Aliás, a origem de tal doença nos é desconhecida... Há quem diga que provém  de ventos contaminados do deserto; outros culpam a água; e outros, ainda, os  gafanhotos.Tenho certeza de que amanhã estareis bom de novo e em condições  de continuar a viagem caso o vosso médico vos prepare uma boa poção esta  noite.

Começou a refletir. Entrefechou as pálpebras; depois, fitou os oficiais, e me  disse sorrindo como um rapaz caprichoso:

- Preparai-me vós essa poção, Sinuhe. Sem dúvida conheceis melhor essas  estranhas doenças peculiares ao deserto. Melhor, pelo menos, do que o meu  médico assistente.

Mas não quis praticar tal insensatez.Ergui as mãos,  protestando:

- Absolutamente! Longe de mim a idéia de vos preparar um remédio...E se  piorásseis? Ah! Não me censuraríeis declarando que eu, como egípcio, vos  quero mal? O vosso próprio médico vos pode servir tão bem quanto eu e até  melhor. Conhece bem a vossa constituição...Está, a par de vossas anteriores  desordens de saúde. Basta, aliás, que ele vos ministre um simples remédio  constritor.

Sorriu, concordando:

- Talvez o vosso conselho seja bom. Pretendo comer e beber convosco, para  que me faleis da minha real consorte e dos costumes egípcios, e não desejo de  modo algum ter que sair correndo e me agachar atrás da tenda durante a  conversa.   

Mandou chamar seu médico, que era um hitita irritável e desconfiado;  conferenciamos juntos. Assim que se certificou de que eu não queria competir  com ele se tomou de simpatia por mim e fez conforme aconselhei. Preparou um  remédio contritor de eficiência excepcional e que eu por motivos bem meus,  prescrevera. Pronto que foi o remédio, o médico bebeu um gole da taça antes  de a estender ao príncipe.

Eu sabia que o príncipe não se achava doente; mas queria que a sua comitiva  pensasse que sim, que o príncipe estava adoentado. Desejava também "fechar"  seu estomago para que a droga que me propunha lhe ministrar não fosse  eliminada muito depressa. Antes do jantar em minha honra, fui para a tenda e  bebi azeite até encher o estomago, por mais que o azeite me causasse náusea. E  fiz isso para preservar a minha vida. Em seguida agarrei um pequeno pichel de  vinho ao qual eu misturara veneno.Esse pichel, que tornei a lacrar, era tão  pequeno que só dava para encher duas taças.

Voltei para a tenda do príncipe, levando o vinho, sentei-me na esteira, comi os  pratos que os escravos colocaram diante de mim, bebi o vinho que os criados  derramaram em nossas taças. Não obstante a náusea quase insuportável, comecei a contar histórias gaiatas de costumes egípcios para distrair o príncipe  e sua comitiva. O príncipe ria estrepitosamente mostrando os dentes brilhantes.  Bateu nas minhas costas e comentou:

- Sois um camarada divertidíssimo, Sinuhe, apesar de serdes egípcio; quando  me instalar no Egito vos nomearei meu médico. Palavra de honra que esqueço  que estou adoentado, e não posso conter as risadas ante vossas histórias  jocosas de práticas matrimoniais egípcias. Quereis saber de uma coisa? Acho  que os egípcios as adotam apenas para evitar filhos. Tenciono ensinar ao Egito  muitas práticas hititas... Nomearei os meus oficiais governadores regionais...  coisa que julgo que convirá ao Egito. Mas isso só depois que haver outorgado à  princesa o que lhe é... devido! Ah! Ah! Ah!

Bateu com as mãos aconcavadas em cima dos joelhos e riu alto,  demoradamente, sob o efeito do vinho. E desmandou-se:

- Para ser franco, bem desejaria que a princesa já estivesse em cima do meu  leito, porque vossas histórias, Sinuhe, me inflamaram. Palavra de honra que a  vou fazer urrar de êxtase! Pelos céus sagrados e pela Terra Mãe! Quando a  terra de Hati e o Egito estiverem unidos, nenhum reino na face da terra poderá  resistir ao nosso poderio; reuniremos sob a nossa égide os quatro cantos do  mundo. Mas é preciso, antes, que o Egito se impregne de experiência a ferro e  fogo até que cada homem seu chegue a considerar a morte melhor do que a  vida. Tudo há de vir; e não demorará.

Ergueu a taça e bebeu, começando a fazer libações à Terra Mãe e aos céus até  esvaziar a taça. Já agora todos os hititas estavam um tanto embriagados, e os  meus casos fesceninos os tinham posto à vontade e sem cerimônia. Aproveitei a  ocasião e disse:

- Não quero insultar-vos nem ao vosso vinho, Shubatu; mas é evidente que  jamais provastes o vinho do Egito. Se o houvésseis provado, todos os outros  vinhos vos pareceriam insípidos como água. Perdoai-me portanto se bebo o  vinho da minha terra, pois só com ele é que me embriago, razão pela qual o  trago comigo nos banquetes em que tomo parte.   

Sacudi meu pichel e quebrei o lacre diante deles e, fingindo embriaguez,  derramei o vinho na minha taça com certo ímpeto; saltaram gotas pelo chão.  Bebi e exclamei:

- Ah! este é o vinho de Menfis... Vinho das pirâmides, pago a peso de ouro... Forte, doce, capitoso, sem  paralelo no mundo inteiro.

O vinho era de fato forte e bom e eu lhe pusera mirra, de modo que a tenda  inteira ficou perfumada quando abri o pichel. Mesmo apesar da mirra e do  vinho, senti o travo da morte. Enquanto bebia deixava cair muito vinho pelo  queixo, mas os hititas atribuíram isso ao meu estado de embriaguez.

O príncipe Shubatu ficou curioso e estendendo-me sua taça, exigiu:

- Sou um estrangeiro, mas amanhã serei vosso faraó e senhor. Deixai-me  provar esse vinho para verificar se é deveras excelente como dizeis. Mas eu apertei o pichel de encontro ao peito e recusei obstinadamente.

- Este vinho não dá para nós dois, e não tenho mais comigo. Ora, eu quero me  embriagar esta noite porque hoje é dia festivo para o Egito e para a terra de  Hati. Ah! Oh! Ih!...

E minha risada parecia o zurrar de um burro, enquanto eu continuava a apertar  ainda mais o pichel. Os hititas acompanharam minha risada, batendo nos joelhos. Todavia Shubatu se  acostumara a ver cada desejo seu satisfeito. Pediu e instou para provar o vinho  até que por fim, fingindo pouca vontade, enchi sua taça até o pichel ficar vazio.  E eu chorava, muito sentido de ser prejudicado; e nem era difícil chorar naquele  momento terrível...   

Com a taça cheia, Shubatu olhou, fez um ar esquisito de ponderação e, em  seguida, segundo a praxe hitita, estendeu para mim a mão com a taça e disse:

- Consagrai a minha taça, bebendo um gole, pois sois meu amigo, e eu vos  farei o mesmo favor.

Disse isso porque não quis mostrar desconfiança fazendo o seu "provador"  experimentar o vinho. Tomei um bom gole da sua taça, depois do que ele a  esvaziou, procurou sentir o gosto, ficando com a cabeça obliquada enquanto  apurava o paladar.

- Realmente, Sinuhe. Realmente. Vosso vinho é forte! Mas deixa um travo  amargo na boa embora suba à cabeça como fumaça e queime o estomago como  fogo. Vou bochechar com o meu vinho das montanhas.

Tornou a encher a taça com o seu vinho que bebeu e que, depois de  bochechar, jogou fora. Eu sabia que o efeito do veneno só começaria a atuar de  manhã, porque seu intestino estava em constrição. O príncipe comera  copiosamente.

Engoliu vinho o mais que pude, e fingi estar muito embriagado. Ainda assim  esperei algum tempo antes de pedir que me levassem para a minha tenda; fiz  isso para não despertar nenhuma suspeita na mente dos hititas. Não soltei o  pichel vazio, pois não me convinha deixá-lo; poderiam mais tarde, depois do  "caso", examiná-lo...

Logo que os hititas me colocaram no leito, com gracejos  pesados, e me deixaram sozinho, então me levantei depressa, enfiei o dedo na  garganta e vomitei o veneno e o óleo protetor. Tamanho era o meu pavor que  comecei a suar frio e a tremer; talvez o veneno tivesse sido absorvido um  pouco. Depois lavei o estomago uma porção de vezes, bebi drogas e vomitei  repetidamente até que por fim as náuseas vieram violentas, por medo, bem mais  do que por efeito de eméticos.

Foi só depois que fiquei mais frouxo do que um esfregão torcido, que lavei o  pichel, esmaguei-o em pedacinhos e enterrei os cacos na areia. Depois, quem  diz que eu pegava no sono? Tremia não só de medo como em conseqüência do efeito do veneno. Pela noite adiante os grandes olhos de Shubatu não paravam  de me fitar; eu via seu rosto diante de mim, na escuridão, e não podia esquecer  seu orgulho, sua risada sem propósito e seus dentes brilhantes.

O orgulho hitita veio em meu socorro. Na manhã seguinte, quando o príncipe  Shubatu se sentiu indisposto, não quis dar parte de doente nem adiar a viagem  por causa da gastralgia. Subiu para a liteira, sem confessar que se sentia mal, embora isso requeresse grande força de vontade: A viagem durou o dia inteiro,  portanto. E quando passei por sua liteira ele me acenou e procurou sorrir. Seu  médico lhe ministrou duas vezes poções constritoras e remédios analgésicos, agravando assim o estado, em conseqüência do que o veneno foi exercendo  efeito cabal. Um purgante poderoso ainda teria podido salvar sua vida.

De tarde, ele caiu em profundo coma. Rolava os olhos, seu rosto tomou um  livor amarelento, produzindo pânico no médico que mandou me chamar em seu  auxílio. Quando vi seu estado desesperador, não tive necessidade de fingir  grande susto porque o senti deveras e comecei a tremer, não obstante o calor  do dia. Examinei-o e senti que o veneno já se apossara de todo o seu ser. Disse  que a meu ver tais sintomas eram típicos da doença do deserto, e lembrei que já  na véspera eu advertira Shubatu reconhecendo indícios do mal em sua  fisionomia, apesar do pouco caso com que ele e os demais ouviram minha  observação.

A caravana parou, e começamos a tratar do príncipe ali mesmo na liteira onde  se achava, dando-lhe estimulantes e drogas desintoxicantes, e pondo-lhe pedras  aquecidas na boca do estomago. Deixei sempre, de forma bem nítida, que o seu médico lhe preparasse os remédios e lhos desse pessoalmente; o médico lhos  fazia tomar por entre os dentes que mal se descerravam. Percebi que o príncipe  ia morrer e desejei sinceramente que a morte lhe sobreviesse sem dores e da  forma mais plácida possível, já que eu não podia fazer outra coisa.

Ao anoitecer levamo-lo para a sua tenda que fora armada. Os hititas ficaram reunidos do lado de fora; pranteando-o, já,. carpindo alto,  dilacerando as roupas, esfregando cinza nos cabelos e ferindo-se com facas.  Estavam com um pavor medonho porque sabiam que o rei Shubiluliuma não  teria misericórdia deles caso o príncipe, que estava aos seus cuidados, viesse a  morrer. Permaneci junto do leito, ao lado do médico hitita. .E via como aquele  bonito rapaz, que ainda na véspera era robusto e feliz, ia ficando com a  fisionomia devastada pelo livor e pela desfiguração.

O médico hitita, tomado de desespero e com medo de não haver acertado o  diagnóstico, fazia reiterados exames; mas os sintomas cada vez se  assemelhavam mais aos de um grave a embaraço gástrico. Ninguém chegou a desconfiar de veneno, porque eu  bebera o mesmo vinho da sua taça. Sim, eu desempenhara a minha tarefa com  prudente sagacidade e com grande proveito para o Egito. Ainda assim não me  senti orgulhoso disso enquanto assistia à morte do príncipe Shubatu.

No dia seguinte ele tornou a ficar lúcido. E como a morte se aproximasse,  começou a chamar, brandamente, a mãe, como fazem as crianças doentes. Com  voz baixa e comovedora, gemia:   

- Mãe... ó mãe... Mãe!

As dores foram amainando. Sua face iluminou-se. Com um sorriso de criança  se lembrou que era de sangue real.  Chamou os oficiais e declarou:

- Não deixeis que ninguém seja censurado por causa da minha morte: Adquiri  no deserto a doença que me matou. Fui tratado muito bem pelo melhor médico  da terra de Hati e pelo médico mais eminente do Egito. A ciência deles não conseguiu me curar, porque é da vontade da Terra Mãe e dos céus que eu  morra... E, evidentemente, o deserto não obedece à Terra Mãe e sim aos deuses do  Egito... E o deserto existe para que, senão para proteger o Egito? Não! Os  hititas não devem procurar atravessar o deserto. A minha morte é um sinal que  prova o que estou dizendo. Já a nossa derrota no deserto com os nossos carros  de guerra foi um sinal a que não demos a necessária atenção. Dai aos médicos  presentes consentâneos com a minha pessoa, depois que eu morrer. E vós,  Sinuhe, saudai a princesa Baketamon e dizei-lhe que a desobrigo da sua  promessa e que lamento muitíssimo não poder levá-la para o tálamo nupcial  para alegria minha e dela. Dizei-lhe estas palavras de despedida minha... Dizei- lhe que enquanto morro a vejo flutuando em meus sonhos como uma princesa  de lendas... E que morro com a sua fulgurante beleza diante dos meus olhos,  embora nunca a tenha visto...

Morreu com um sorriso nos lábios, porque a morte vem às vezes como  felicidade depois de uma grande agonia. E os olhos, enquanto escurecem, vêem  estranhas vi  orrupto para a tumba real onde águias e lobos vigiam o sono eterno dos reis.  Ficaram comovidíssimos e, a pedido meu, certificaram sem nenhuma relutância,  numa tábua de argila, que eu não podia ser censurado absolutamente pela morte  do príncipe Shubatu, pois me esforçara com o maior empenho para salvá-lo.

Atestaram isso com seus sinetes e com o do príncipe Shubatu, a fim de que  nenhuma sombra pudesse pairar sobre mim no Egito por causa da morte em  questão. Fizeram isso porque julgavam as autoridades egípcias pelo molde das  suas, e temiam que quando eu dissesse à princesa Baketamon qual fora o fado  do príncipe Shubatu ela me condenaria à morte.

Assim salvei o Egito do domínio dos hititas; e devia estar radiante. Mas não  fiquei. Oprimia-me a percepção de que a morte andara sempre me  acompanhando rente às minhas pegadas.

Eu me fizera médico para curar e dar vida; mas meu pai e minha mãe haviam  morrido por causa da minha maldade; Mérito e o pequenino Thoth haviam  morrido por causa da minha cegueira; o faraó Akhnaton havia morrido por  causa tanto do meu ódio como do meu amor, e por causa do Egito. Todos  quantos eu amara tinham tido morte violenta... O príncipe Shubatu também... E  eu chegara a gostar dele durante sua agonia... Por toda a parte me  acompanhava não sei qual maldição.

Voltei a Tebas, via Tânis e Menfis. Dei ordem que atracassem depressa o  navio no cais da casa dourada e, indo à presença de Eie e Horemheb, lhes  disse.

- Vossa vontade foi feita. O príncipe Shubatu pereceu. no deserto de Sinai e  sombra alguma paira sobre o Egito por causa da sua morte.

Rejubilaram-se grandemente com esta minha declaração. Eie tirou a corrente  de ouro imperial de seu pescoço e a prendeu em redor do meu; e Horemheb  disse:

- Vai comunicar isso também à princesa Baketamon. Ela não acreditará se lhe  dissermos, acreditando que o mandei assassinar por ciúme.

A princesa Baketamon recebeu-me. Pintara as faces e os lábios, mas em seus  olhos escuros e amendoados se emboscava tétrico pressentimento. Disse-lhe:

- O vosso prometido, o príncipe Shubatu, vos desobriga do compromisso  tomado... Disse-me isso antes de morrer pois, princesa, ele morreu nas  paragens de Sinai, acometido pelo doença do deserto. Nem toda a minha  ciência conseguiu salvá-lo. E nem a do seu médico hitita.

Tirando os braceletes de ouro dos punhos e colocando-os nos meus, ela disse:

- Boas novas trazes, Sinuhe e as te agradeço. Já fui iniciada no rito e  consagrada sacerdotisa de Sekmet. Minhas roupagens vermelhas estão, sendo  preparadas para o festival. Devo considerar, no entretanto, que essa doença do deserto está se alastrando demais. Sei que meu irmão Akhnaton, que eu  prezava com amor de irmã, morreu disso. Amaldiçoado sejas tu, portanto,  Sinuhe... Amaldiçoado sejas por toda a eternidade! Que o teu túmulo também  seja amaldiçoado e que teu nome caia em perpétuo esquecimento. Tornaste o  trono do Egito um recreio para salteadores, e profanaste no meu sangue o  sangue dos faraós.

Inclinando-me profundamente diante dela e estendendo minhas mãos,  respondi:

- Seja conforme dizeis.

Deixei-a. E ela ordenou aos seus escravos que lavassem o assoalho que eu pisara. E  eles o fizeram desde os seus aposentos até à soleira da casa real.

Durante esse tempo o corpo de Tutankhamon foi preparado para resistir à  morte e Eie fez os sacerdotes transportarem-no depressa rumo à banda  ocidental para o sítio do seu eterno descanso que fora cavado na rocha no Vale dos Túmulos dos Reis. Lá ficou; rodeado de muitas riquezas, não obstante Eie  haver retido muita coisa do tesouro que Tutankhamon apartara. Assim que a  entrada da tumba foi selada Eie declarou terminado o período de luto, e  Horemheb mandou seus carros ocuparem as ruas de Tebas.

Ninguém se rebelou quando Eie foi coroado faraó porque o povo estava tão  cansado como um animal que é aguilhoado por um caminho sem fim e acaba  caindo em marasmo.    Ninguém debateu o caso sob o ponto de vista de direito ou de usurpação. E  assim Eie foi coroado faraó. Os sacerdotes, que ele subornara com inúmeros  presentes, ungiram-no com óleo sagrado no grande templo; e o povo o aclamou  porque ele distribuíra pão e cerveja, e o povo tinha ficado tão pobre que isso  agora constituía presente régio.

Mas muita gente percebeu que doravante o  verdadeiro dirigente do Egito seria Horemheb, e perguntava a si própria porque  era que então ele não assumia logo o poder em lugar de permitir que o velho e  detestado Eie ascendesse ao trono dos faraós.

Mas Horemheb sabia muito bem o que estava fazendo, pois a taça de  amargura do povo ainda não fora esgotada até à lia.

Mas notícias da terra de  Kush o chamavam à guerra contra os negros; e depois disto teria ele ainda que  renovar o conflito contra os hititas para a conquista da Síria. Por tais motivos  queria que o povo jogasse a culpa de seus sofrimentos e privações para cima de  Eie, de modo a mais tarde o louvar - a ele Horemheb - como o vencedor e restaurador da paz.

Eie estava longe de supor tais coisas, porque o poder ofuscara seu  discernimento e o reluzir das coroas cegara seu raciocínio. Apenas cumpriu a  sua parte no acordo feito com Horemheb no dia da morte de Akhnaton. De  fato; os sacerdotes levaram a princesa Baketamon em desfile ritual ao templo  de Sekhmet onde a vestiram com a túnica escarlate e a ergueram ao altar de  Sekhmet.

Horemheb chegou ao templo acompanhado por seus homens para a  celebração da sua vitória sobre os hititas. Tebas inteira o aclamava. Após  distribuir correntes de ouro e insígnias de honra por entre os seus homens, os  despediu e entrou no templo. E os sacerdotes fecharam as portas de bronze.  Sekhmet lhe apareceu na pessoa da princesa Baketamon.

Possuiu-a. Horemheb  era um guerreiro e não podia esperar mais.

Naquela noite Tebas inteira celebrou o festival de Sekhmet, e o céu reluzia  avermelhado por causa da luz das lâmpadas e das tochas. A "escumalha" de  Horemheb bebeu pelas tavernas até acabar com as bebidas, e arrombou as  portas dos alcouces. De madrugada, quando alvorecia, a sua soldadesca tornou  a se aglomerar diante do templo de Horemheb esperando o seu reaparecimento.  Quando as portas de bronze se reabriram e ele saiu, a soldadesca soltou brados  frementes, em diversos idiomas, porque Sekhmet se portara deveras como  deusa de cabeça de leão. A cara, os braços e os ombros de Horemheb estavam  arranhados e ensangüentados como se um leão o houvesse unhado. Isso  divertiu bastante os homens que ficaram radiantes ao ver tal aspecto. Nesse  ínterim a princesa Baketamon foi levada pelos sacerdotes para a casa dourada,  sem ser vista pelo povo.

Assim fora a noite de núpcias de meu amigo Horemheb e ignoro que prazer  pode ele sentir. Não muito tempo depois, reuniu as suas tropas e mobilizou seu  exército, seguindo para a Primeira Catarata, no sul, de onde marcharia para a terra de Kush.

Eie exultava no poder, fulgurado pelo júbilo. Dizia-me:

- Em toda a terra do  Egito ninguém paira na altitude em que me acho, e pouco importa se estou vivo  ou se vou morrer. Um faraó não morre... vive eternamente! Dia virá em que embarcarei na nave dourada de meu pai Ammon e atravessarei o céu rumo ao  ocidente. Já estou velho e meus atos me obsecam emergindo da escuridão da  noite. Ainda bem que não receio mais a morte...

Eu porém o interpelei em tom irônica:

- Cuidei que fosseis mais criterioso, principalmente agora que estais velho.  Acreditais então que o óleo fétido dos sacerdotes tem o dom de vos tornar  imortal num piscar de olhos? Com o diadema real ou sem ele, sois o  mesmíssimo homem que a morte em breve arrastará para seus domínios.

Sua boca principiou a tremer e o medo se espraiou em seus olhos enquanto  me dizia em tom queixoso:

- Não foi então em proveito meu que cometi todos aqueles crimes? Que semeei em redor de mim a morte durante toda a minha existência?! Não,  não! Estás enganado, Sinuhe! Não pode ser. Os sacerdotes me salvarão dos  abismos da morte e reservarão meu corpo por toda a eternidade. Como é que  meu corpo não é imortal se eu sou um faraó?! Como é que posso ser culpado,  se sou um faraó? Pois não tenho direito a fazer o que me aprouver, já que sou  isso?!

Não tardou, no entanto, que a sua razão se fosse obscurecendo. E já não  sentia prazer nenhum em reinar. Com horror da morte, via perigos por toda  parte e não ousava mais beber vinho. Seu regime era pão seco e leite fervido.  Com o decorrer do tempo foi sentindo medo crescente de assassinos, e  passavam-se dias e dias sem que provasse alimento, pensando em veneno. Em  plena velhice se emaranhou nos laços que urdira para os outros, e se tornou tão  desconfiado e cruel que todos o evitavam.

Um rebento humano se desenvolveu nas entranhas de Baketamon. Cheia de  raiva se machucou tentando destruir a criança antes mesmo que esta nascesse.  Mas a vida foi mais resistente do que a morte, e no prazo certo ela deu à luz um  filho de Horemheb, num parto laborioso porque seus flancos eram estreitos.

Os  médicos e as escravas se viram compelidos a esconder dela a criança para que  não ocorresse algum dano. Muitas lendas se espalharam depois a respeito dessa criança, dizendo-se que nascera com cabeça de leão, ou com um capacete.  Posso dar o meu testemunho de que o menino não apresentava nada de  anormal: era sadio e robusto.

Horemheb deu-lhe o nome de Ramsés.

Horemheb achava-se ainda lutando na terra de Kush, e seus carros  disseminavam grande destruição entre os negros. Fez queimar suas cubatas,  remeteu as mulheres e as crianças para o Egito, em escravidão; quanto aos  homens, alistou-os em suas tropas onde dariam futuramente ótimos guerreiros  não tendo mais família que os embaraçasse. Desta forma Horemheb refez um  novo exército destinado a atacar os hititas, pois seus componentes eram homem  fortes que uma vez tomados de entusiasmo não. tinham mais medo da morte e o  som de seus tambores sagrados os empolgava.

Horemheb mandou também da terra de Kush grande quantidade de gado para  o Egito. Isso facilitou a lavoura, e assim em breve o trigo tornou a crescer  luxuriante na terra de Kan, as crianças não tiveram mais fome, por causa da  abundância de leite, e não faltaram animais para os sacrifícios.  Tribos inteiras das aldeolas de Kush se internaram nas selvas repletas de  elefantes e girafas, bem para longe das pedras de demarcação.

Durante anos e anos a terra de Kush ficou despovoada. Dois anos depois  Horemheb voltou a Tebas, trazendo consigo imensa pilhagem. Distribuiu  presentes e fez comemorações da vitória durante dez dias e dez noite. O  trabalho paralisou, soldados bêbados faziam arruaças, balindo como bodes...E  nove meses depois mulheres da ralé de Tebas deram à luz crianças escuras. 

Horemheb equilibrava o filho nos braços ensinava-o a andar e dizia-me,  orgulhosamente:   

- Estás vendo, Sinuhe? Uma nova raça de reis irrompeu do meu sangue! E nas  veias de meu filho corre sangue sagrado embora eu tenha nascido com esterco  na planta dos pés.   

Procurava também Ei mas este, apavorado, se fechava, punha verdadeiras  barricadas na porta, e berrava com a voz estridente da velhice:

- Vai-te daqui para fora! Eu sou o faraó e sei que queres me matar e por a  coroa na tua cabeça...

Mas Horemheb ria sem se molestar, abria a porta a pontapés e sacudia Eie  pelo braço, dizendo:

- Querer matar-te, eu?! Ora, velha raposa!...Não, velho obsceno e torpe, não  quero te tirar a vida porque és para mim bem mais do que um simples sogro e a  tua vida me é preciosa...É verdade que teus pulmões sibilam, que a tua boca se franze, que teus joelhos se curvam...Mas precisas te prumar,Eie. Tens que viver  durante mais uma outra guerra, para que assim o Egito possa ter um faraó sobre  o qual jogar todo o seu ódio enquanto eu estiver ausente.

Para a sua consorte Baketamon, Horemheb trouxe muito a presentes: ouro em  pó em caixas lavradas, cabeças de leões que ele matara, penas de avestruz e  macacos vivos. Ela nem sequer olhou para tais presentes e disse:

- Perante os homens sou tua mulher e te dei um filho. Contenta-te com isso, e  fica sabendo que se ousares alguma vez me tocar, cuspirei em teu leito e te  enganarei por um processo que mulher nenhuma ainda empregou para enganar  o para te cobrir de opróbrio me entregarei a escravos e estivadores, e me  deitarei com almocreves pelas feiras de Tebas. Tuas mãos e teu corpo cheiram  a sangue e me causam náuseas.

Sua repulsa inflamava ainda mais o desejo de Horemheb. Procurou-me,  queixando-se amarguradamente.

- Sinuhe, arranja-me um filtro que eu possa dar à minha mulher. Só mesmo dormindo é que ela consentirá que eu a usufrua.

Recusei-me a isso: Procurou então outros médicos que lhe deram remédios  perigosos. Ele ministrava-os secretamente a Baketamon. E ao erguer-se de  cima dela, Baketamon execrava-o ainda mais ferozmente do que antes,  vociferando:

- Lembra-te do que eu te disse... Lembra-te da minha advertência!

Não tardou  que Horemheb partisse para a Síria onde prepararia a sua campanha contra os  hititas já que, ergundo me ,disse, "os grandes faraós estenderam as fronteiras  até Kadesh e enquanto os meus carros não tiverem entrado em Kadesh de novo  não ficarei satisfeito." MARILIA  

Quando a princesa Baketamon percebeu que novo fruto bolia em suas  entranhas, então se fechou em seus aposentos querendo ficar a sós com a sua  degradação. A criadagem era obrigada a deixar as refeições do lado de fora da  porta, e assim que o tempo de dar à luz se aproximou os médicos principiaram  a vigiá-la às escondidas. Temiam que ela parisse sem a assistência de qualquer  pessoa e fizesse a criança descer rio abaixo num barco de verga, conforme  faziam as mães que incorriam em opróbrio dando à luz filhos espúrios. Mas a  princesa não fez isso. No momento certo mandou chamar os médicos. As dores  do parto a faziam sorrir. E ao filho que nasceu deu o nome, sem consultar  Horemheb, de Setos. Odiava tão amargamente a criança que a chamou assim,  isto é, O Que Nasceu de Set.

Depois que ficou boa e que se levantou, mandou que as escravas a lavassem,  ungissem e vestissem com trajes reais. E tendo feito uma embarcação a levar  para a margem oposta, se dirigiu sozinha para o mercado de peixe de Tebas  onde procurou almocreves, carregadores de água e extirpadores de peixe. E  disse a cada um deles:

- Eu sou a princesa Baketamon, a consorte do grande general do Egito,  Horemheb. Já tive dois filhos, dele. Mas é um homem estúpido, repelente e que  cheira a sangue. Não consigo ter prazer com ele. Vinde deitar comigo.  Gozemos juntos, pois vossas mãos calosas e vosso cheiro de excrementos me  agradam... E gosto também desse cheiro de peixe...   

Os homens do mercado de peixe ficaram admiradíssimos. Apavoraram-se,  procuraram fugir dela. Seguiu-os, porém, com persistência e, desnudando sua  beleza, tentava-os:

- Não sou bela? Por que hesitais? Sabeis que mesmo que me achásseis velha e  feia, eu não vos pediria em paga a senão uma coisa: uma pedra! E uma pedra cujo tamanho correspondesse à intensidade do vosso prazer.

Coisa assim jamais acontecera aos homens do mercado de peixe. Seus olhos fulguravam ante tamanha beleza. O linho real das vestes deixava-os perplexos. E o perfume dos bálsamos tonteava-os...Diziam uns aos outros:

- ...E o mais extraordinário é que não temos que pagar nada pelo nosso prazer, ao passo que mesmo as negras exigem pelo menos moedas de cobre. Não ser  ela uma deusa que se revela a nós e que baixou … terra para nos abençoar de modo tão esquisito?... Fazemos mal em não aceitar o prazer que ela nos oferece... e que ‚ divino... Deve ser alguma sacerdotisa que está  ajuntando pedras para edificar um novo templo a Bast. Cometeremos uma ação propicia aos deuses se anuirmos ao seu pedido.. .

Seguiam-na até as touceiras de caniços, nas barrancas do rio para onde ela os conduzia longe da vista de pessoas. E acolá, o dia todo, Baketamon deu prazer aos homens do mercado de peixe, não trapaceando, pelo contrário, concedendo-lhes todas as delícias. Muitos lhe trouxeram grandes pedras como as que são vendidas a alto preço pelos pedreiros, tamanha era a proporção do gozo que lhes concedera..

Comentavam uns com os outros:

- Qual de nós já teve em vida uma mulher assim?... Sua boca parece mel. Seus seios são maçãs maduras. Seu sexo é quente como o braseiro onde assamos peixe...

Muitos pediam que voltasse sem falta e prometiam ajuntar uma porção de pedras bem grandes. Sorria-lhes modestamente, agradecendo, chamando-os de generosos, dizendo que grande era a alegria que lhe davam.

Quando, ao anoitecer, voltou para a casa dourada, foi obrigada a contratar uma embarcação bem forte e resistente para transportar para a margem oposta as pedras que acumulara durante o dia.

Na manhã seguinte tomou um bote amplo e depois que as escravas a levavam a remo para o lado de Tebas, obrigou-as a esperarem-na no cais, e encaminhou- se para o mercado de legumes. Aí falou com os lavradores que tinham vindo para a cidade de madrugada com bois e jumentos, homens cujas mãos o  trabalho calejara, e cuja pele era grossa e tanada de sol.

Falou também com os  varredores de ruas, com os esvaziadores de latrinas, com guardas negros,  tentando-os, exibindo suas partes belas. E então eles largaram seus produtos de  lavoura, os bois, os jumentos. Deixaram de varrer as ruas e a seguiram até às  touceiras de caniços, dizendo:   

- Manjar assim não aparece sempre na mesa dos pobres... Sua pele não é igual à das outras mulheres. E como cheira bem! Que rico  cheiro o que emana das nobres!... Somos idiotas? Tratemos de gozar tão  deslumbrante corpo!

Fornicaram com ela e lhe trouxeram pedras. Os lavradores trouxeram soleiras  de tavernas rurais. Os guardas, fustes de pedra roubados das construções do  faraó. Ao anoitecer a princesa Baketamon agradeceu a bondade de todos  aqueles homens da feira de legumes; eles a ajudaram, carregando as pedras  para dentro do bote que de tão pesado parecia que ia afundar. E as escravas  quase não tinham forças para remar, levando a embarcação vagarosamente para  o outro lado onde estava o cais da casa dourada.

Noite após noite se foi propalando em Tebas que a deusa com cara de gata se  revelava ao povo e se entregava a ele. Os mais estranhos rumores corriam pela  cidade, até que aqueles que já não acreditavam mais em deuses descobriram  outra explicação...

E no outro dia a princesa Baketamon procurou os homens do mercado de  carvão... E de noite, no marnel junto do rio, os caniços estavam derrubados e  pisados, como se gente houvesse deitado ali... Sacerdotes de muitos templos  pequenos queixaram-se que os carvoeiros eram sujeitos ímpios que se atreviam  a arrancar pedras das paredes de seus templos, pedras essas com as quais  pagavam o preço de horas breves de amor. E os carvoeiros lambiam os beiços  e se jactavam mutuamente, confessando:

- Realmente provamos iguarias do paraíso... Seus lábios se desfazem em  nossas bocas, seus peitos são tições brancos em nossas mãos... Não sabíamos  que existia delícia assim na face da terra.

Quando se soube em Tebas que a deusa aparecera pela terceira vez, a cidade  se encheu de apreensão. Até mesmo os homens mais respeitáveis de Tebas  deixaram suas esposas e foram para as tavernas... E de noite tiraram pedras dos edifícios do faraó, e na manhã seguinte andavam de mercado em mercado com  uma pedra debaixo do braço, esperando o aparecimento da deusa de cara de  gata. Os sacerdotes tomaram providencias e fizeram sair guardas para que estes prendessem a mulher que era a causa de tal ultraje e escândalo.

Nesse dia a princesa Baketamon ficou na casa dourada, descansando. Sorria  para quantos lhe dirigiam a palavra, comportando-se de maneira notavelmente distinta. A corte estranhou muito o seu feitio de agora, e ninguém sonhava nem por alto que ela fosse a mulher misteriosa que aparecia aos trabalhadores de Tebas que se entregava a carvoeiros e extirpadores de peixe.

A princesa Baketamon, depois de examinar por alto as pedras de diferentes tamanhos que conseguira juntar, chamou ao seu jardim o construtor dos currais do império e lhe disse:

- Ajuntei estas pedras na beira do rio e elas para mim são sagradas. A cada uma delas se acha ligada uma lembrança agradável; quanto maior a pedra, mais agradável a lembrança. Construí-me um pavilhão com estas pedras para que eu possa dispor de um teto onde me abrigar, pois o meu consorte me negligencia, conforme decerto já ouvistes falar. Quero que seja um pavilhão espaçoso e alto; ajuntarei mais pedras se for preciso.

O construtor era um homem simples e disse:

- Alta Princesa Baketamonl, temo não ter competência para edificar um pavilhão adequado à vossa suprema categoria. Estas pedras são de tamanhos e cores diferentes, de modo que me será sumamente difícil juntá-las direito. Encarregai esta tarefa a algum construtor de templo ou a algum artista, porque receio que a minha falta de competência estrague a beleza do pavilhão que tendes em mente.

Mas a princesa tocou no ombro do homem, vivazmente, e disse:

- Não passo de uma pobre mulher; meu marido me menospreza, e não estou em condições de chamar um construtor de fama para este trabalho. Chego até mesmo a não poder vos pagar como desejaria por este trabalho. Quando o pavilhão estiver acabado eu o examinarei junto convosco e caso o ache bem feito então me entregarei a vós, como pagamento. Eis a minha promessa! Que mais vos posso eu dar senão esse prazer.

O construtor ficou deveras inflamado com aquelas palavras incríveis e, vendo quanto a princesa era bela, se lembrou das histórias que ouvira... Histórias em que princesas se apaixonavam por homens humildes e se entregavam a eles. Tinha grande pavor de Horemheb, mas seu desejo era maior do que o pavor, e as palavras de Baketamon o envaideceram sobremaneira.

Começou a construir o pavilhão muito depressa, caprichando o mais que podia na sua arte, e sonhando enquanto trabalhava. E assim eram como os seus sonhos os lances que estava construindo no pavilhão. O desejo e o amor fizeram dele um grande artista, porque via a princesa Baketamon diariamente. Com o coração radiante, trabalhava como um louco, tornando-se cada vez mais pálido de cansaço e efusão. Com aquelas pedras de diferentes tamanhos e cores edificou um pavilhão tal que nada de comparável fora visto até então.

As pedras que Baketamon ajuntara logo acabaram, e ela saiu outra vez em direção a Tebas, onde reuniu pedras obtidas em todos os mercados, na Avenida dos Carneiros e nos jardins do templo. Por fim não houve parte de Tebas onde ela não arranjasse pedra.

A essa altura seu procedimento já era conhecido de todos, e os membros da corte reuniram-se no jardim para uma olhadela rápida ao pavilhão. Quando as mulheres da corte viram a altura das paredes e a quantidade de pedras existentes em cada lado - pedras grandes e pequenas - cobriram a boca com a mão para evitar um grito uníssono. Mas ninguém ousou dizer uma palavra à princesa. E Eie, que com a sua autoridade de faraó poderia castigá-la, ficou louco de alegria ao descobrir tamanha loucura. Acreditava que isso causaria a Horemheb furioso vexame.

E Horemheb dirigia a guerra na Síria; capturou Sido, Esmirna e Biblos das mãos dos hititas, remeteu muitos escravos e copiosos despojos para o Egito. E, à esposa, enviou magníficos presentes. Todos em Tebas sabiam o que se estava passando no recinto do palácio dourado; mas não houve homem de coragem suficiente para contar a Horemheb o procedimento da esposa. Seus próprios amigos, aos quais ele dera altos cargos e posições, fecharam os olhos, dizendo:

- Trata-se de um assunto de família e vale mais a pena enfiar a mão entre as mós de uma atafona do que interferir na vida de marido e mulher.

Por esse motivo Horemheb não chegou a saber de nada e creio que isto foi melhor para o Egito, pois tal conhecimento decerto tiraria sua atenção da marcha da campanha.

Falei muito do que aconteceu aos outros durante o reinado de Eie, e quase nada disse a meu respeito. Aliás, pouco há a relatar. O rio da minha vida já não era impetuoso, correndo então vagaroso e raso por um leito quase à flor da terra.

Vivi todos aqueles anos sob os cuidados de Muti. Meus pés estavam cansados de haver pisado estradas poerentas meus olhos cansados estavam de assistir à intranqüilidade do mundo.

Quanto ao meu coração, esse estava exausto de ver a vaidade do mundo. Fechei-me em casa, deixei de receber clientes, salvo uma vez ou outra algum vizinho muito pobre que não dispunha de presentes para dar aos outros médicos.

Fiz abrir um outro lago no pátio e tinha agora peixes de cor dentro dele; e passava o dia sentado perto do sicomoros.

Burros zurravam na rua, diante da minha casa; crianças brincavam na poeira. . . E eu contemplava os peixes que nadavam preguiçosamente na água fresca. O velho sicomoros deitou folhas outra vez;

Muti tratava-me bem preparando-me bons pratos, consentindo que eu bebesse vinho com         moderação quando me dava vontade. Instava para que eu dormisse regaladamente e poupasse minhas energias. Mas o meu paladar não se alvoroçava com bons pratos e o vinho não me dava prazer. Quando entardecia, então, com a mudança da temperatura, o vinho trazia para diante de mim todas as minhas más ações... Via o rosto do faraó         Akhnaton morrendo... Via o semblante do príncipe Shubatu.

O desejo de tratar a humanidade me deixara porque as minhas mãos, que quisera que fossem boas, eram amaldiçoadas e só lembravam a morte. Visto isso, eu contemplava os peixes do lago e os invejava.Tinham sangue frio, tiravam divertimento em meio frio, conseguiam viver sem precisar respirar o ar quente da terra.

Enquanto permanecia sentado no jardim, falava com o meu coração: "Sossega, coração louco! A culpa não é tua. Tudo é loucura. O bem e o mal não tem sentido; só a ambição, com o ódio e o desejo governam o mundo. A culpa não é tua, Sinuhe, pois o homem é homem e nunca mudará. Não adianta nada a experiência da guerra e da privação, da peste e do incêndio, dos deuses e das espadas. Tais provações só o induzem a uma selvageria -maior do que a do crocodilo, e o único homem bom é o homem que está morto.”

Mas o meu coração retrucava: "Podes ficar sentado aí, Sinuhe, contemplando os peixes, mas não te darei paz. Milhares e milhares de pessoas morreram por tua causa, Sinuhe. Morreram de fome, peste e ferimentos. Morreram debaixo das rodas dos carros e pereceram em marchas pelo deserto. Por tua causa crianças morreram nas entranhas maternas; por tua causa dorsos se inclinaram debaixo de açoites; por tua causa a injustiça espezinha a justiça; por tua causa a cobiça triunfa da modéstia; por tua causa os ladrões governam o mundo. Na verdade, Sinuhe, por tua causa milhares e milhares de pessoas morreram. E todos os que morreram e todos os que ainda estão morrendo são teus irmãos e morreram e morrem por tua causa. É por isso que em teus sonhos os ouves chorar, e o pranto deles tira o gosto do teu alimento e destrói toda a tua felicidade.”

 Não me deixei comover e disse: "Os peixes são meus irmãos porque não podem pronunciar palavras vãs. Os lobos do deserto são meus irmãos, assim como o são os leões dos ermos; mas o homem não e meu irmão porque sabe o que faz.”

Meu coração zombou e disse: "O homem sabe lá o que faças! Aprendeste, e por isso te farei sofrer até ao dia da tua morte; mas os outros não sabem. Só tu és culpado, Sinuhe.”

Então dilacerei minhas roupas e gritei: "Amaldiçoada seja a minha ciência! Amaldiçoadas sejam as minhas mãos! Malditos sejam os meus olhos! Mas mais maldito ainda seja o meu coração louco, que não me dá paz, que me atormenta com falsas acusações. Onde está a balança de Osíris, para que meu coração possa ser pesado?”

Muti veio da cozinha, a correr, e molhando um pano no lago o passou na minha cabeça. Com repreensões severas me levou para a cama e me deu um remédio amargo.

Foi só depois disso que fiquei mais quieto. Durante muito tempo estive doente. E delirei chamando Muti, falando da balança de Osíris, de Mérito, do pequenino Thoth. Muti tratou-me cuidadosamente, e acho que até gostou que eu tivesse que permanecer deitado porque assim pode me sujeitar a regime. Proibiu que me sentasse no jardim, nas horas de calor, porque eu já não tinha cabelos e meu crânio calvo não podia suportar os efeitos venenosos do sol. Todavia eu jamais me sentara ao sol e sim à sombra do sicomoros, observando os peixes que eram meus irmãos.

Depois da convalescença fiquei mais tranqüilo e cheguei mesmo a me reconciliar com o meu coração que não me atormentou mais. Deixei de falar em Mérito e no pequenino Thoth, mas os guardei em meu coração, sabendo que suas mortes tinham sido necessárias para que a minha taça de amargura ficasse cheia e eu permanecesse sozinho. Se ainda morassem comigo, eu seria feliz e tranqüilo, e meu coração não me atormentaria. Mas eu devia viver sozinho, de acordo com o destino que me fora outorgado; como prova disso descera pelo rio abaixo na própria noite do meu nascimento.

Certa noite me disfarcei com roupas grossas de pobre, tirei dos pés as sandálias e saí de casa. Fui para o cais onde carreguei fardos pesados em promiscuidade com os estivadores, até ficar com as costas doendo e os ombros esfolados.

Dirigi-me ao mercado de legumes e frutas e ajuntei restos e bagaços para me alimentar. Dirigi-me ao mercado de carvão e transportei sacos pesados para as oficinas dos ferreiros.

Trabalhei junto com escravos e estivadores, comendo o pão que eles comiam e bebendo a cerveja com que se embriagavam e dizia-lhes:

- Não há diferença entre um homem e outro, pois todos vem nus ao mundo. Um homem não pode ser avaliado pela cor da sua pele, nem pela língua que fala, nem pelas roupas que veste ou pelas jóias que usa. E sim apenas por seu coração. O mais que sabemos todos nós é que um homem bom é melhor do que um homem ruim; e a justiça vale mais do que a injustiça.

Palavras assim lhes dizia eu, de noite, diante de seus casebres, enquanto suas mulheres acendiam fogo na rua e o ar se enchia com o cheiro de peixe frito. Riam de mim.

- És louco, Sinuhe. Para que fazes o trabalho de escravos quando sabes ler e escrever? Sem dúvida estás atrapalhado por causa de algum crime e vieste te esconder entre nós. Em tua conversa há qualquer coisa dos ensinamentos de Aton, cujo nome não devemos proferir. Não te denunciaremos aos guardas, não. Conservar-te-emos entre nós para que nos divirtas com tuas conversas. Mas não nos compares com os imundos sírios nem com os miseráveis negros porque, embora não passemos de escravos e estivadores, pelo menos somos egípcios, orgulhamo-nos da nossa cor e do nosso idioma, do nosso passado e do nosso futuro.

Reagi:

- Isso é insensato. Enquanto houver um homem orgulhoso de si próprio, cuidando-se melhor do que os outros, a humanidade será perseguida por algemas e açoites, por espadas e aves de rapina. Um homem só pode ser julgado por seu coração.

Riam estrepitosamente.

- Que és doido, nem há dúvida. Pela certa cresceste dentro de um saco. Um homem só pode viver se acreditar que é melhor do que os outros, e não existe ninguém, por mais desgraçado que seja, que não se cuide melhor do que o seu vizinho. Ora, ainda bem que somos mais espertos do que tu, e mais ajuizados, embora não passemos de pobretões e de escravos, ao passo que tu sabes ler e escrever.

Respondia-lhes:

- Um homem bom é melhor do que um homem ruim e a justiça vale mais do que a injustiça.

Discordavam de chofre.

- Que é que é ser bom? Que é que é ser mau? Se matas um patrão mau que te açoita e que te priva de comida e deixa tua mulher e teus filhos morrerem, cometes uma ação boa; mas os guardas te levarão diante dos juízes do faraó e eles te mandarão cortar as orelhas e o nariz e te dependurarão na muralha com a cabeça para baixo.

Davam-me do peixe que suas mulheres fritavam e da cerveja que bebiam; e eu declarava:

- Matar é o crime mais baixo de que um homem possa ser culpado, e tanto é maldade matar por uma boa causa como por uma causa má. Nenhum homem devia ser morto e sim tratado dos motivos da sua maldade.

Taparam a boca com a mão, entreolharam-se e disseram:     

- Não desejamos matar ninguém. Mas se pensas em curar a maldade dos homens e colocar a justiça no lugar do erro, começa então pelos nobres, pelos ricos e pelos juizes dos tribunais do faraó. Encontrarás mais maldade e injustiça entre eles do que entre nós. Não nos culpes se por causa de tuas palavras eles te cortarem as orelhas e te mandarem para as minas ou te dependurarem de cabeça para baixo nas muralhas, porque as palavras que pronuncias são de fato perigosas. Horemheb, o nosso grande comandante, pela certa te mandaria matar se te ouvisse dizer tais coisas ao povo; sim, porque matar durante a guerra é uma glória.

Ouvi seus conselhos e os deixei. Descalço e metido em roupa cinzenta de pobretão, vaguei pelas ruas de Tebas. Conversei com negociantes que misturavam areia no trigo, com donos de moinhos que amordaçavam os escravos para que não comessem o trigo que moíam, e falei com juízes que roubavam heranças de órfãos e julgavam segundo os donativos que recebiam. Falei com eles e os acusei a todos por agirem assim mal; ouviram com ar espantado, disseram uns para os outros:

- Quem é esse Sinuhe que nos fala assim atrevidamente, apesar dos seus andrajos de escravo? Acautelemo-nos! Acautelemo-nos! Pode ser um espião do faraó... Sim, pois do contrário como se atreveria a nos falar desta forma?!

Prestaram atenção no que eu dizia, convidaram-me a entrar em suas salas, ofereceram-me presentes, deram-me vinho. Os juízes refletiram sobre as minhas palavras e despachavam a favor dos pobres contra os ricos, de modo que houve grandes descontentamentos em Tebas. Comentavam:

- Nesta época não se pode mais confiar nem mesmo nos juizes dos tribunais do faraó. São mais desonestos do que os ladrões que eles julgam.

Quando me dirigi aos nobres, eles me insultaram, açularam os cachorros contra mim e me expulsaram com chicotes , de modo que minha humilhação foi enorme e corri pelas  ruas de Tebas com a roupa dilacerada e sangue escorrendo pelas pernas. Os mercadores e os juízes viram minha degradação e não deram mais apreço às minhas palavras. Enxotaram-me, dizendo:

- Se nos procurares de novo com falsas acusações, nós te condenaremos como difamador e agitador.

Então voltei para casa, percebendo que todo o meu trabalho fora em vão; minha morte não renderia serviço nenhum a ninguém. Sentei-me mais uma vez debaixo do sicomoros, e fiquei a contemplar os peixes silenciosos, no jardim; e assim encontrei paz, enquanto os burros zurravam na rua e as crianças brincavam na poeira, fingindo de guerra e         atirando sujeira, umas nas outras.

Kaptah veio me visitar; finalmente sempre se encorajara a voltar a Tebas.

Chegou pomposamente, numa liteira especialmente e conduzida por dezoito escravos pretos: Estava sentado em fofos coxins, e garbosos escravos lhe abanavam o rosto para que não sentisse o mau cheiro do bairro pobre.

Ficara demasiadamente obeso, e um ourives sírio lhe fizera um novo olho de ouro com pedras preciosas, do qual ele estava orgulhosíssimo embora o incomodasse tanto que logo o tirou da órbita assim que se sentou ao meu lado debaixo do sicomoros.

Primeiro me abraçou e chorou de alegria por me rever. Ao por os braços em redor dos meus ombros pesou em cima de mim que nem uma montanha; e ao se sentar na cadeira que Muti lhe trouxe a quebrou em pedaços. Revirando ás abas da túnica, sentou-se no chão.

Disse-me que a guerra na Síria estava prestes a terminar, pois Horemheb já estava sitiando Kadesh. Gabou-se dos grandes negócios que fizera na Síria e contou que comprara um grande palácio no bairro rico e que contratara centenas de trabalhadores para reconstruí-lo, para assim valorizá-lo de acordo com a sua importância. Disse-me:

- Ouvi más notícias a seu respeito, meu amo Sinuhe. Disseram-me que estava atiçando o povo contra Horemheb e que juízes e outras personalidades importantes ficaram furiosos porque o meu patrão os acusara de muitas injustiças. Aconselho-o a ser cauteloso. Decerto não ousarão condená-lo porque é amigo de Horemheb; mas podem numa noite escura mandar matá-lo e queimar-lhe a casa se o patrão continuar com essas conversas, atiçando os pobres contra eles. Diga-me que é que lhe aconteceu e que foi que lhe pos essas formigas a passear nos miolos. Assim o ajudarei como um bom servo pode e deve ajudar seu amo.

Inclinei a cabeça e lhe disse tudo quanto eu havia pensado e feito. Ouviu-me e meneou a cabeça tanto que suas bochechas flácidas tremeram. Quando acabei ele me disse:

- Sei que o patrão é um homem louco, solitário. Mas sempre cuidei que tal loucura iria diminuindo com o decorrer do tempo até acabar. Mas parece que se exacerbou. Aliás, com seus próprios olhos o patrão viu que foi que aconteceu em nome de Aton. Acho que tais caprichos e disparates o atacam por falta de trabalho ou distração. Seria melhor que praticasse a medicina outra vez; tratando dos doentes faz maior caridade do que dizendo essas coisas que apenas o prejudicam e a todos que o patrão assim está a desorientar. Caso não queira mais praticar a medicina poderia se entreter com qualquer outra ocupação útil, como fazem os outros homens ricos. Poderia colecionar jóias e outros objetos feitos durante o período das pirâmides. A verdade é, Sinuhe, que há diversas maneiras de entreter o tempo, afastando da mente, assim, fantasias vãs. Mulheres e vinho facilitam razoavelmente tal propósito. Procure se distrair jogando dados; gaste dinheiro com mulheres; beba até ficar tonto; faça qualquer coisa, enfim! Mas não se prejudique destruindo-se com solilóquios e conversas inúteis... Faça isso, peço-lhe, pois o amo muito, meu dileto patrão Sinuhe, e não quero que lhe aconteça nenhum mal.

E disse ainda:

- Nada no mundo é perfeito. A casca de todos os pães é queimada; todas as frutas tem verme na polpa; e se um homem se embriaga hoje, amanhã estará se sentindo mal. Por esta razão não existe justiça perfeita; mesmo as boas ações tem más conseqüências, e os melhores motivos e intenções podem conduzir à morte e ao malogro, conforme lhe pode mostrar o exemplo de Akhnaton. Olhe para mim, meu patrão Sinuhe! Contentei-me com a minha exígua cota, e continuo a engordar, vivendo em boa harmonia com os deuses e os homens. Os juízes do faraó se inclinam diante de mim, e pessoas e mais pessoas gabam e aclamam o meu nome, ao passo que até mesmo os cães lhe rasgam a roupa. Leve a vida na maciota. Não é por culpa sua que o mundo é o que tem sido e que sempre será!

Contemplei sua corpulencia e seu fausto, invejei deveras a sua paz de espírito; e lhe disse:

- Pois seja como dizes, Kaptah. Vou praticar medicina mais uma vez. Dize-me uma coisa: o nome de Aton ainda é relembrado? Ainda é amaldiçoado? Pergunto porque proferiste seu nome embora isso seja proibido.

Kaptah respondeu:

- Na verdade o nome de Aton foi esquecido tão depressa quanto os pilares de Akhnaton foram derrubados. Ainda assim tenho visto artistas desenharem segundo a maneira de Aton e há contadores de histórias que contam lendas perigosas. Ve-se uma vez ou outra a cruz de Aton desenhada na areia e nas paredes das latrinas. . . Parece, portanto, que Aton ainda não morreu completamente.

- Pois seja como dizes. Vou reiniciar a minha clínica e, como recreação vou me dedicar a coleções, conforme me aconselhaste. E como não tenho nenhuma vontade de imitar e de macaquear os outros, vou colecionar todos os que ainda se lembram de Aton.

Mas Kaptah pensou que eu estava gracejando, pois sabia tão bem quanto eu o enorme mal que Aton ocasionara ao Egito e a mim mesmo.

Depois disto ainda conversamos agradàvelmente sobre muitas coisas. Muti trouxe vinho e bebemos juntos demoradamente, até que escravos vieram e o ajudaram a levantar-se. Por causa do seu grande peso tinha dificuldade em ficar de pé.

Deixou-me. Mas no dia seguinte mandou presentes magníficos que me asseguraram tamanho conforto e abundância que nada me ficou faltando para ser feliz... se eu pudesse ser feliz.

Assim, instalei a insígnia de médico em cima da minha porta e recomecei a trabalhar, aceitando donativos de acordo com os meios e posses dos clientes. Mas dos pobres não aceitava nada; e uma porção de gente enferma se amontoava no meu pátio, desde de manhã até de noite. Fazia-lhes perguntas cautelosas a respeito de Aton, procurando não assustá- -los nem dar margem a maus comentários, visto como a minha reputação em Tebas já era suficientemente má. E vim a verificar que Aton havia sido esquecido e que ninguém mais o compreendia.

Apenas os agitadores e aqueles que tinham sofrido injustiça se recordavam dele; e a cruz de Aton era empregada como símbolo funesto. Quando as águas do Nilo baixaram, Eie morreu. Diziam que morrera de fome, porque tinha tamanho receio de ser envenenado que não comia. Então Horemheb pos um remate na guerra da Síria, deixando que os hititas ficassem com Kadesh que ele não conseguira lhes tomar. Subiu em triunfo pelo rio até Tebas, onde celebrou todas as suas vitórias. Não ,guardou período nenhum de luto pela morte de Eie; pelo contrário, publicamente o declarou um falso faraó ! que com incessantes operações de guerra e impostos extorsivos apenas trouxera sofrimentos ao Egito. Tendo posto                 fim à guerra e fechado as portas do templo de Sekhmet,         persuadiu o povo de que jamais desejara a guerra mas que fora obrigado a obedecer ao falso faraó. Por isso a população ficou radiante com o seu regresso.

Logo que chegou a Tebas, Horemheb mandou me chamar.

- Sinuhe, meu amigo, estou mais velho do que na última vez que nos despedimos, e meu espírito ficou seriamente perturbado com as tuas palavras; chamaste-me de sanguinário, de homem que só causava mal ao Egito. Agora estou senhor da minha vontade, estabeleci o poder do Egito e nenhum perigo ameaça a nação; despedacei as pontas das espadas hititas e vou deixar a conquista de Kadesh para meu filho Ramsés. Estou farto de guerra e tenciono construir um poderoso reino. O Egito está imundo como um estábulo de péssima condição; mas breve me verás lavando as cocheiras, endireitando tudo, dando a cada um seu encargo certo. Não há dúvida, meu amigo Sinuhe, que vou fazer que voltem os bons tempos antigos. Por este motivo pretendo expungir da relação dos reis os nomes miseráveis de Eie e de Tutankhamon... pois o de Akhnaton já foi expungindo. Ter-se-á assim a impressão de que não existiu o período em que reinaram. Vou mandar contar o tempo do meu reinado logo depois da morte do Grande Faraó, isto é, quando vim para Tebas segurando uma espada e com o falcão voando por cima da minha cabeça.

Apoiou a cabeça na mão, com ar circunspecto. A guerra         sulcara um tanto o seu semblante e não havia contentamento em seus olhos quando disse:

- O mundo tornou-se de fato diferente do tempo em que éramos rapazes quando o pobre não passava privações, havendo em sua cabana azeite e gordura. Mas o Egito se         tornará próspero e rico outra vez. Mandarei navios ao Ponto; farei funcionar outra vez as pedreiras e as minas atualmente despovoadas, podendo assim construir templos maiores e recolher ouro, prata e cobre ao tesouro real. Em dez anos não reconhecerás o Egito, Sinuhe, pois não verás mais mendigos nem aleijados pelo país. Os fracos darão lugar aos fortes; expelirei do Egito todo o seu sangue doentio e farei dele uma nação forte que meus filhos guiarão através de batalhas para a conquista do mundo.

Não me entusiasmei com as suas palavras; nem sequer sorri, permanecendo aparentemente inalterável. Na verdade nova decepção prostrou meu ser enchendo-o de um frio mortal. Minha atitude o irritou; fez uma carranca, como         antigamente, e disse:

- Continuas o mesmo casmurrão de sempre, Sinuhe. És como um argueiro na minha vista e não sei como ansiava tanto te rever. Mandei-te chamar antes mesmo de erguer meus filhos nos braços e de abraçar minha consorte Baketamon, pois a guerra e o poder me tornaram solitário. Lá na Síria eu não contava com um único homem para dividir minhas alegrias ou minhas preocupações, sendo obrigado a medir e pesar minhas palavras. Sempre confiei na tua amizade Sinuhe; no entretanto parece que ela se extinguiu, que não sentes alegria nenhuma com o meu regresso.

Inclinei-me diante dele, depois deixei que a minha alma                                         solitária lhe falasse.

- Horemheb, de todos os amigos da nossa mocidade somos os únicos que sobrevivem. Sempre gostarei de ti. Dispões agora do poder e em breve colocarás em tua cabeça as coroas dos dois reinos. E não haverá ninguém capaz de te usurpar o poder. Peço-te pois uma coisa: ressuscita Aton, outra vez! Pela memória de nosso amigo Akhnaton, ressurge Aton! Pensa no nosso crime terribilíssimo, exalta Aton de novo, para que todos os homens se tornem irmãos e para que não haja mais guerra!

Ao ouvir isto, Horemheb meneou a cabeça com ar de lástima e disse:

- És o mesmo louco de antes, Sinuhe. Não percebes que Akhnaton atirou uma pedra dentro d'água com grande estardalhaço e que o que quero é exatamente alisar a superfície para que fique quieta e sem rugas? Não percebes que o meu falcão me trouxe à casa dourada na noite da morte do Grande Faraó para que o Egito não caísse? Vou instaurar o antigo ritmo de vida porque os homens não estão satisfeitos com o que vai por aí. Criticam sempre o presente, acham que só o passado foi bom ou, quando muito, confiam no futuro. Unirei o passado com o futuro. Sangrarei um pouco a abundância dos ricos; sangrarei um pouco os deuses que se tornaram demasiado nédios. Durante o meu reinado os ricos não serão demasiado ricos e nem os pobres demasiado pobres. E não deixarei que deuses ou homens possam competir comigo. Aliás, que adianta te dizer estas coisas, se não as entendes!? Não podes entender o meu pensamento, porque tens os teus, que são de um homem fraco. Ora, os fracos não tem direito a viver no mundo, tendo sido feitos apenas para que os fortes os espezinhem. O mesmo se dá com as nações. Sempre foi e sempre será assim.

Dito isto, separamo-nos. Ao nos despedirmos já a nossa amizade diminuíra muito. Assim que o deixei, Horemheb foi ver os filhos, ergue-los em seus braços fortes. Depois disso se dirigiu aos aposentos da princesa Baketamon.

- Minha consorte real; durante estes anos brilhaste nos meus pensamentos como a lua e senti enorme saudade de ti. Agora que o meu trabalho terminou, em breve te sentarás a meu lado no trono conforme te dá direito o sangue sagrado que corre em tuas veias. Por tua causa, Baketamon, derramei muito sangue e incendiei muitas cidades. Fiz jus, não é verdade, a uma recompensa!

Baketamon sorriu suavemente, acariciou-lhe o ombro e respondeu:

- De fato mereces uma recompensa, meu esposo Horemheb, grande guerreiro do Egito! Mandei construir no meu jardim um pavilhão sem igual no mundo, só para te receber dentro dele conforme mereces. Todas as pedras das paredes foram colhidas por mim durante todo este tempo de saudade... Vamos até ao pavilhão para que tenhas a recompensa entre os meus braços e recebas o meu júbilo...

Horemheb exultou ante tais palavras.

Baketamon conduziu-o através do jardim.

Os membros da corte esconderam-se , retiveram a respiração ante o que se ia passar. Escravas e serventes sumiram, enquanto Baketamon levava Horemheb para o pavilhão. Logo que ele, tomado de impaciência, a quis agarrar, Baketamon se defendeu gentilmente.

- Refreia um pouco teus desejos, Horemheb, até que te conte o grande trabalho que tive para construir este pavilhão. Decerto te lembras do que te disse quando me tomaste à força. Observa cuidadosamente estas pedras. Cada uma delas, e olha que não são poucas, recorda e testemunha o meu prazer nos braços de um homem diferente. Construí este pavilhão com o produto do meu gozo e em tua honra, Horemheb. Esta grande pedra branca me foi trazida por um estripador de peixe que ficou encantado comigo; aquela verde me foi dada por um limpador de latrinas do mercado de carvão; e aquelas oito escuras, colocadas juntas, me foram trazidas por um vendedor de hortaliças. . . Sujeito insaciável e que elogiou muito o meu feitio. Tem paciência, Horemheb e então te contarei a história de cada pedra. Tempo é coisa que não nos faltará. Temos diante de nós muito tempo e acredito que a história destas pedras durará até à minha velhice, se eu continuar a contá-la cada vez que tentares ter relação carnal comigo.

No começo Horemheb não quis acreditar nas palavras de Baketamon, tomando-as por uma brincadeira grotesca; e isso porque o feitio modesto da princesa o iludiu. Mas quando olhou para os olhos dela e viu neles um ódio mais terrível do que a morte, então acreditou que era verdade o que estava ouvindo.

Louco de cólera, empunhou o punhal hitita para matar a mulher que o desonrara tão hediondamente.

Ela desnudou o peito e o desafiou:

- Golpeia, Horemheb! Cairei eu e cairão as coroas da tua cabeça, pois sou sacerdotisa de Sekhmet... e tenho sangue sagrado. Se me matares não terás direito ao trono dos faraós!

Esta advertência o fez dominar a fúria. Horemheb se viu atado às circunstâncias. A vingança de Baketamon foi completa. Ele não ousou mandar derrubar o pavilhão que via na sua frente sempre que de qualquer parte dos seus aposentos olhava para o jardim. Raciocinou bastante: o único recurso era simular que ignorava o comportamento de Baketamon. Se derrubasse o pavilhão demonstraria a toda gente que sabia que Baketamon o traira com Tebas inteira; achou preferível saber que riam por detrás mas que se calavam na sua frente.

De então em diante não tocou em Baketamon, vivendo sozinho. Diga-se a favor de Baketamon que ela não continuou a construir...

Assim foi o regresso de Horemheh. Suponho que pouca ou nenhuma alegria sentiu quando os sacerdotes o ungiram e lhe puseram a coroa vermelha e branca na cabeça. E em meio a tanta majestade se tornou desconfiado, supondo que todos o ridicularizavam às escondidas por causa de Baketamon.

Devido a isso tinha sempre um espinho cravado no coração e não sabia o que era paz. Procurou se evadir do infortúnio trabalhando muito, e começou a limpar o Egito restaurando o ritmo antigo e endireitando o que estava errado.

Para ser justo devo falar também das virtudes de Horemheb, pois o povo louvou o seu nome e o considerou um bom soberano.

Poucos anos após o seu reinado já era tido na conta de um dos grandes faraós do Egito. Sofreou os ricos e preeminentes para que ninguém competisse com ele no poder, e isso satisfez muito a população. Punia os juízes injustos, concedia aos pobres os seus direitos; reformou os impostos e fez os cobradores do fisco receberem diretamente do tesouro para que não extorquissem o povo enriquecendo à custa dele.

Viajava incessantemente, de província em província, de aldeia em aldeia, sanando abusos. Suas jornadas podiam ser computadas pelo número de orelhas e narinas cortadas dos cobradores venais. O estalar de chicotes e os gritos de lamentações podiam ser ouvidos longe dos lugares onde ele instalava seu tribunal. Mesmo as pessoas mais pobres podiam se aproximar dele; ministrava justiça absoluta.

Remeteu navios ao Ponto, e novamente mulheres e crianças choravam no cais e feriam o rosto com pedras conforme hábito antigo, e o Egito prosperou deveras. De cada dez navios que partiam três voltavam por ano carregados de tesouros.

Construiu novos templos também e devolveu aos deuses o que lhes era devido, não favorecendo nenhum deus salvo Horus e nenhum templo salvo o de Hetnetsut, onde a sua imagem era venerada como um deus ao qual o povo oferecia bois como sacrifício. Por todas essas coisas o povo o louvava e contava histórias fabulosas a seu respeito.

Kaptah também prosperou de maneira incrível a ponto de homem algum competir com ele em fortuna no Egito inteiro. Não tendo mulher nem filhos nomeou Horemheb seu herdeiro para poder viver em paz o resto da vida e acumular fortunas cada vez maiores. Por tal motivo Horemheb extorquia menos dele do que dos outros ricos.

Kaptah convidou-me muitas vezes a ir à sua casa que, rodeada de jardim, formava todo um quarteirão; não tinha vizinhos que lhe perturbassem o sossego. Comia em pratos de ouro, e a água corria em tubos de prata em todos os seus aposentos, à maneira de Creta. A banheira era de prata e o assento da privada era de ébano, sendo as paredes do conjunto forradas por mosaicos que formavam figuras jocosas.

Oferecia-me refeições de esquisitas iguarias e vinho das Pirâmides. Durante as refeições distraíam-no cantores e cômicos; enquanto as dançarinas mais belas e melhores de Tebas efetuavam maravilhas. E Kaptah dizia-me:

- Meu amigo Sinuhe, uma vez um homem atingindo uma certa fortuna, não consegue empobrecer de novo; pelo contrário, torna-se cada vez mais rico sem precisar levantar um dedo para que isso aconteça, tão estranhamente é este mundo uma incógnita. A minha fortuna teve origem em sua casa Sinuhe, ao seu lado, de modo que sempre o reconhecerei como meu senhor e não lhe faltará nada durante todos os dias de sua vida. É uma vantagem o meu amo Sinuhe não ser rico. A fortuna em suas mãos nunca lhe daria proveito algum, só espalharia intranqüilidade e conseqüências calamitosas.

Favorecia os artistas, também escultores esculpiram sua imagem em pedra, dando-lhe um ademã nobre e distinto, tornando seus membros esbeltos, as mãos e os pés pequenos, os malares altos. Nessas esculturas ele aparecia tendo dois olhos, e não caolho como era realmente; e estava sentado com um pergaminho aberto, imerso em reflexão, com uma pena entre os dedos, muito embora jamais se tivesse dado ao trabalho de aprender a ler e a escrever. Seus escribas liam, escreviam e faziam lançamento de imensas importâncias diante dele. Gostava muito de tais estátuas, ria, contemplando-as, e os sacerdotes de Ammon - a quem dera vastos presentes a fim de viver em amizade com os deuses - lhe ergueram uma estátua no grande templo; Kaptah custeou as despesas dessa estátua também.

Isso de Kaptah ser rico e feliz me alegrava. Com efeito eu me alegrava com o contentamento de todos e desisti para sempre de privar os homens de suas respectivas ilusões, já que elas os tornavam felizes. A realidade é muitas vezes amarga.

Não raro será maior bondade matar um homem do que anular seus sonhos. Mas sonho algum refrescava minha fronte, e nem o meu trabalho me trazia paz embora eu tratasse de muitos doentes. Dentre aqueles cujos crânios trepanei apenas três morreram, de forma que a minha fama de cirurgião não decaiu. Mas eu vivia em contínua irritação e achava defeitos em toda gente. Zangava-me com Kaptah por causa da sua voracidade de glutão; enfurecia-me com os pobres por causa de sua incúria; com os ricos por causa de seus egoísmos; e com os juízes por causa de suas indiferenças; e não vivia satisfeito com ninguém. Não passava descomposturas nunca nos doentes nem nas crianças; tratava os que me procuravam procurando não lhes causar dor que pudesse evitar; deixava que Muti distribuísse seus bolos de mel entre os meninos da rua cujos olhos me lembravam os de Thoth.

Os homens diziam de mim:

- Esse Sinuhe é um indivíduo amargo e intratável. Tem o fígado crescido e a bile se mistura com as suas palavras. Como há de ele achar prazer na vida? ... Suas más ações o perseguem; por isso não dorme direito de noite. Não prestemos atenção ao que diz; sua língua fere mais a ele próprio do que a nós.

E era verdade. Sempre que eu entornava a minha amargura sofria por isso e chorava. Eu atacava Horemheb acremente, também, e todas as suas ações eram más aos meus olhos; não poupava principalmente a sua "escumalhá" que ele sustentava à custa dos depósitos reais e que levavam vida preguiçosa nas tavernas e bordéis gabando-se de suas proezas e violando as filhas dos pobres, a ponto de nenhuma mulher poder andar sem perigo pelas ruas de Tebas. Horemheb perdoava aos seus veteranos tudo quanto eles faziam. Quando os pobres iam procurá-lo e faziam queixa do que sucedia às suas filhas, ele lhes redargüia que deviam ficar orgulhosos de se tornarem futuros avós de raças sadias e fortes.. . Horemheb tornava-se cada dia mais desconfiado por índole.

Certo dia os seus guardas irromperam em minha casa, enxotaram no pátio os doentes e me levaram à sua presença. A primavera voltara, o rio tinha diminuído seu volume de água, as andorinhas revoluteavam por cima da correnteza enlameada e pastosa. Horemheb parecia haver envelhecido; a cabeça lhe pendia um pouco e os músculos se desenhavam em seu corpo magro como cordas e fibras.

Olhou-me bem nos olhos e disse:

- Sinuhe, adverti-te uma porção de vezes, mas não deste atenção aos meus avisos. Continuas a dizer ao povo que a profissão de guerreiro é a mais degradada e desprezível de todas. Dizes que melhor será que as crianças morram nas entranhas maternas do que se tornarem soldados. Dizes que dois ou três filhos bastam para uma mulher e que é melhor serem felizes com três filhos do que desgraçadas e pobres com nove ou dez. Afirmas também que o deus do falso faraó era maior do que todos os deuses. Tens espalhado que homem algum deve vender ou comprar seu semelhante como escravo e que quem ara e semeia devia ficar dono da terra, mesmo que ela pertença ao faraó ou a algum deus. Declaras por aí que o meu modo de governar pouca diferença faz do dos hititas. E mais outras coisas tens dito que reputo muito ultrajosas. Tenho sido paciente contigo, Sinuhe, porque outrora foste meu amigo. Qualquer um outro homem já teria sido mandado para as pedreiras desde muito tempo. Enquanto Eie, o sacerdote, estava vivo eu precisava de ti porque eras a minha única testemunha contra ele. Agora não preciso mais de ti; pelo contrário, até me podes prejudicar com o que sabes. Se fosses prudente terias contido a língua, levando vida plácida. Poderias ter usufruído vantajosamente a tua cota... pois na verdade nada te faltou. Mas em lugar disso, me difamas com tuas aleivosias, e não tolero mais isso!

Enquanto falava sua cólera ia aumentando; bateu na perna com o chicote, franziu a testa, continuou:

- Tens sido um mosquito mordendo minhas canelas... uma varejeira zumbindo em cima do meu ombro. Não quero mais árvore estéril em meu jardim. . . árvore que tenha apenas espinhos venenosos. Devo banir-te do Egito, Sinuhe, e não consentir que revejas a terra de Kan. Se te deixasse ficar aqui, me veria obrigado, mais dia menos dia, a te condenar à morte. Ora, não quero fazer uma coisa destas com um antigo amigo meu. Se ficares, sucederá o que? Tuas palavras acabarão, extravagantes que são, virando faíscas dessas que incendeiam palhas. Uma vez pegando fogo a palha arde até virar cinza. Não consinto que o Egito seja devorado outra vez por labaredas... por causa de homens ou de deuses. Vou te banir, Sinuhe, porque é impossível que sejas realmente um egípcio! Não passas de um estranho aborto de conúbio mestiço. Tua cabeça só produz pensamentos mórbidos.

Quem sabe se ele não tinha razão? Se o tormento do meu coração não decorria da mistura nas minhas veias do sangue sagrado do faraó com o sangue aguado e frio da princesa de Mitani? Ainda assim só pude rir ante suas palavras, embora me houvessem aturdido, pois Tebas era a minha cidade. Eu nascera e crescera ali e não desejava viver em nenhum outro lugar.

Minha risada enfureceu Horemheb que cuidara que eu me prostraria diante dele implorando misericórdia. Fez estalar no chão o seu chicote de faraó e gritou:

- Está bezril, pois estás banido do Egito para sempre! E quando morreres não consinto que teu corpo seja trazido outra vez; apenas consentirei que seja embalsamado de acordo com o costume, e sepultado numa das praias do mar Oriental, lá de onde os navios zarpam para a terra do Ponto e que será o local do teu exílio. Não te mando para a Síria porque as fogueiras lá ainda estão com as cinzas quentes e não precisam quem as sopre. Não te mando para a terra de Kush porque afirmas que a cor da pele não tem importância e que os egípcios e os negros valem a mesma coisa. Instilarias idéias atrevidas na cabeça dos negros. Já o litoral para onde te vou mandar é despovoado. Serás bem recebido acolá; farás discursos ao vento espesso do deserto, e do alto das dunas poderás falar quanto queiras aos chacais, abutres e serpentes. Guardas delimitarão a área do teu domínio e se transpuseres tais limites eles te matarão. Quanto ao mais, não passarás privação nenhuma. Terás cama macia, viverá em abundância, e qualquer pedido razoável será atendido. Na verdade a solidão já será castigo suficiente. Como foste meu amigo outrora não desejo te oprimir além destas restrições.

Como havia eu de temer a solidão se a vida toda fora um solitário e para isso nascera? Meu coração se encheu de tristeza quando refleti que não mais veria Tebas nem sentiria mais o chão fofo da Terra Negra sob os meus pés, nem tornaria a beber a água do Nilo.

Disse a Horemheb:

- Poucos são os amigos que tenho. Os homens me evitam por causa do meu trato amargo e da minha língua cortante. Mas certamente permitirás que me despeça desses poucos amigos. Gostaria também de lhe pedir que me deixes me despedir de Tebas passeando uma vez ainda pela Avenida dos Carneiros, respirando o perfume da fumaça votiva dos altares entre os pilares do grande templo e sentindo o cheiro do peixe frito, de noite, no bairro pobre da cidade.

Horemheb decerto concordaria com a minha solicitação se eu, chorando, me prostrasse a seus pés, pois era homem muito vaidoso. Mas por mais comovido que me sentisse não me humilharia diante dele, porque a ciência não se inclina diante do poder. Pus a mão defronte da boca e simulei esperar a resposta, bocejando; mesmo porque qualquer espécie de desgosto me tornava sonolento. Nisto, acho que sou diferente dos outros homens.

E Horemheb respondeu:

- Não dou licença para despedidas desnecessárias. Sou um guerreiro e implico com manifestações de fraqueza. Facilitarei tua viagem. Mandar-te-ei imediatamente sem despertar excitação pública ou demonstrações. És conhecido em Tebas - mais conhecido talvez do que pensas. Partirás numa liteira fechada; se alguém quiser te acompanhar para o lugar de banimento, eu consinto; mas terá que ficar lá para sempre, mesmo que morras primeiro. Qualquer pessoa que te acompanhe terá que viver lá até à morte. Pensamentos subversivos são pestilências, transmitem-se de uma pessoa à outra, e não quero que tuas idéias mórbidas regressem ao Egito trazidas por qualquer outra pessoa. Se, falando em amigos, te queres referir a algum escravo de moinho cuja fratura de dedo consertaste, a algum artista bêbado que desenha um deus sentado na beira da estrada ou alguns negros que freqüentaram a tua casa... se é essa gente que chamas de amigos, então não precisas te despedir. Já partiram para a grande viagem de onde não voltarão mais.

Naquele instante fiquei com ódio de Horemheb e com mais ódio ainda de mim. Mais uma vez as minhas mãos tinham semeado a morte, e meus amigos haviam sofrido por minha causa. Não disse nada. Estendi as mãos ao nível dos joelhos, inclinando-me e o deixei; na sala seguinte os guardas me aguardavam. Por duas vezes ele abriu a boca para me falar antes que eu saísse, e deu um passo adiante. Depois parou e disse:     

- O Faraó falou.

Os guardas fecharam-me numa liteira, conduziram-me para fora de Tebas; passaram as três colinas e rumaram para o oriente através do deserto por uma estrada pavimentada de pedra que tinha sido construída por ordem de Horemheb.

Viajamos durante vinte dias até que chegamos a um porto onde navios recebiam carga para a terra do Ponto. Ali morava gente. Os guardas levaram-me ainda durante três dias ao longo da costa para uma aldeia abandonada onde antigamente tinham habitado pescadores. Então mediram uma área que passou a ser os meus domínios e construíram uma casa na qual tenho vivido todos estes anos. Nada me tem faltado.

Levo uma vida de homem rico. Aqui tenho material para escrever e papel do melhor, caixas de madeira preta onde guardo os livros que escrevi e todas as coisas necessárias à minha categoria de médico. Mas o livro que estou escrevendo agora é o último, e não tenho mais nada a contar. Já estou velho e cansado, minha vista se obscureceu tanto que mal distingo os caracteres em cima do papiro. Acho que vivi até agora por ter sido necessário registrar a minha vida toda . . . e assim revive-la aqui nestas paragens.

Escrevi para esclarecer perante mim mesmo a razão da minha existência; todavia, agora que estou terminando o meu último livro, ignoro quanto vivi; e ignoro bem mais do que quando comecei a escrever. No entretanto fez bem à minha alma ter escrito tudo isto. Durante todos os dias eu tive o mar diante de mim e o vi ficar vermelho. E o vi todo preto. E o vi verde durante o dia, sendo que de noite o vi como uma sombra clara. Nos dias de calor intenso o vi mais verde do que as pedras verdes. Agora, basta, pois é terrível para um homem ter para sempre diante do olhar essa enormidade que é o mar...

E contemplei também as colinas rubras das cercanias. Examinei os insetos das areias; escorpiões e serpentes tem sido meus confidentes; já não fogem de mim, mas param e escutam quando lhes falo; contudo, os considero maus amigos para o homem e já me fartei deles tanto quanto do interminável rugir do mar arfante.

Devo mencionar que no decorrer do meu primeiro ano aqui nesta aldeia de esqueletos alvacentos e de choupanas abandonadas, quando os navios passaram mais uma vez para o Ponto, Muti veio morar comigo, chegando numa das caravanas do faraó. Chorou amargamente ao me ver. De fato meu aspecto era miserável; meu rosto estava encovado, meu ventre afundara e meu espírito se marasmara. Não tardou, porém, que daí a dias começasse a me repreender:

- Não vos avisei milhares de vezes, Sinuhe, que não enfiásseis a cabeça em laços e armadilhas durante o vosso caminho insensato de homem? Todos vós sois mais surdos do que pedras... Os homens todos não passam de crianças em correria batendo com a cabeça pelos muros. E que fizestes, meu caro patrão, senão bater com a cabeça de encontro a tudo quanto foi pedra do caminho? Já é tempo que fiqueis quieto a um canto, como homem de juízo.

Repreendi-a dizendo que não devia ter deixado Tebas, pois doravante nem esperança podia ter de conseguir voltar. Vindo, ligara para sempre sua vida ao destino de um homem banido.

Em resposta, ela não parou mais de fazer considerações:

- Pelo contrário. O que vos aconteceu foi a melhor coisa que vos podia ter acontecido. E creio que Horemheb se mostrou vosso verdadeiro amigo mandando-vos para um lugar tranqüilo, agora na velhice. Eu também já não agüentava a zoeira de Tebas e o desaforo dos vizinhos que me pediam panelas emprestadas e não mas devolviam nunca e varriam o lixo para o meu pátio. E já que falo nisso tenho que declarar que a casa do fundidor nunca mais ficou a mesma depois do incêndio. O forno queimava a carne. O azeite ficava rançoso na botija. Havia fendas pelo assoalho e as janelas batiam incessantemente. Agora aqui podemos fazer tudo a nosso gosto, começando tudo de novo. Já escolhi um lugar excelente para o jardim. Cultivarei legumes e agriões... Então não sei quanto o meu amo gosta de legumes?... Hei de dar trabalho bastante a esses malandros que o faraó botou aqui para proteger-vos de salteadores e malfeitores. Hão de vos arranjar caça fresca todos os dias, de pescar peixe bons, de apanhar ostras e caranguejos na praia... embora me pareça que o peixe do mar não se compara  ao do rio. Alem disso penso em escolher um sitio adequado para uma sepultura, caso permitais, meu amo. Ah! Como vim parar longe, e num lugar de onde nunca sairei! Também, basta de vaguear de um lugar para outro … vossa procura... As viagens me assustam, visto como nunca, a não ser agora, pus os pés fora de Tebas.

Desta forma procurou Muti me consolar; e creio que foi graças a ela, … sua bondade e rabujice que estendi a mão … vida outra vez e comecei a escrever: Incentivou-me, apesar de não saber ler e, no íntimo, considerar tolices o que eu devia estar escrevendo. Alegrava-a, por me ter assim uma ocupação. Providenciava tudo, inclusive que eu descansasse  de vez em quando; e fazia questão que apreciasse os bons pratos que preparava para mim.

Conforme jurara no começo, fiz os guardas do faraó trabalhar; dava-lhes tais encargos que a amaldiçoavam por detrás, chamando-a de feiticeira e de crocodilo velho; mas obedeciam aos seus caprichos,  porque do contrário ela os repreenderia com aquela língua mais aguda do que um aguilho.

Parece-me que a influência de Muti foi valiosíssima. Mantinha  os homens em trabalho continuo, e assim não viam o tempo passar. Recompensava-os assando-lhes um pão gostoso  e preparando-lhes cerveja forte em cântaros. Dava-lhes muitas hortaliças, ensinava-os a variar de regime.

Todos os anos, quando os navios zarpavam para o ponto, Kaptah nos mandava de Tebas burros carregados de viveres; mandava seus escribas nos escreverem sobre tudo que acontecia na cidade para que eu não vivesse tão banido do mundo.

Tudo isso redundou em beneficio dos guardas. Aprenderam com Muti a viver menos obtusamente; eu lhes dava presentes úteis, e assim não se ralavam muito com saudades de Tebas.

Agora estou cansado de escrever e tenho dores na vista. Os gatos de Muti saltam para cima dos meus joelhos e roçam a cabeça em minha mão. A minha alma está  cansada de tudo quanto escrevi, e meu corpo deseja veementemente o eterno repouso. Conquanto não seja feliz, não posso me considerar  infeliz aqui nestes ermos.

Abençôo o meu papel e a minha pena, pois graças a eles consegui ser membro outra vez em casa de meu pai Seumut, consegui andar de novo pelas estradas de Babilônia com Minia; e tornei a sentir os braços de Mérito em redor do meu pescoço. Chorei com os que se lamentavam, e distribui meu triso por entre os pobres. E agora não quero me lembrar das minhas ações mais nem sentir a amargura decorrente  da saudade do que perdi.

Isto tudo eu, Sinuhe, o egípcio, escrevi e apenas para mim. Não escrevi para os deuses nem para os homens; e nem para imortalizar o meu nome. Apenas para dar paz ao meu coração cuja cota esta  agora servida de vez. Sei que logo depois da minha morte os guardas destruiriam, se pudessem, tudo quanto escrevi. Sim, pois por ordem de Horemheb  porão abaixo as paredes da minha casa. 

Seja como for, a verdade‚ que estou conservando cuidadosamente estes livros que escrevi e Muti trançou uma rija cobertura de fibra para cada um deles. Guardo estes livros assim protegidos dentro de uma caixa de prata, e a caixa de prata esta  dentro de uma caixa de madeira grossa que por sua vez se acha dentro de uma outra, de cobre tal qual foram protegidos outrora os livros divinos de Toth e depois descidos ao leito do rio.

Se os meus livros não caírem em poder dos guardas e se Muti os esconder  na minha sepultura, não sei. E nem me importo muito com isso. Sim, pois eu, Sinuhe, sou um ser humano. Vivi em todos aqueles que viveram antes de mim, e viverei nos que vierem depois de mim. Viverei nas lagrimas e nos risos humanos , no modo e na magoa humana, na bondade e na torpeza humana, na justiça e no erro, na fraqueza e na força.. Não desejo oferendas na minha sepultura e nem imortalidade para meu nome.

Isto foi escrito por Sinuhe, o egípcio, que viveu sozinho todos os dias de sua vida.

 

                                                                                            Mika Waltari

 

 

                      

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