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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O FLAGELO DO ESQUECIMENTO / Clark Darlton
O FLAGELO DO ESQUECIMENTO / Clark Darlton

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O FLAGELO DO ESQUECIMENTO

 

Foi no ano de 1971 que Perry Rhodan, antigo oficial da Força Espacial Americana, atingiu a Lua com a nave Stardust e, com a tecnologia que adquiriu da nave espacial dos arcônidas encalhada, fundou sua Terceira Potência.

Conflitos na Terra, invasões de fora, batalhas no espaço, lutas em planetas longínquos — por tudo isto passou gloriosamente a Terceira Potência no curto espaço de sua existência.

No momento, são ainda os saltadores — aqueles comerciantes da galáxia que há milênios conseguem defender seu monopólio comercial com determinação contra qualquer concorrente que apareça — que representam o perigo mortal para toda a Terra.

Perry Rhodan, até hoje, tem feito tudo que está a seu alcance para impedir que os saltadores façam da Terra um mundo de escravos. Levtan, o traidor, desempenhou um papel importante no jogo de Rhodan, pois somente através dele é que foi possível fazer com que um grupo de agentes conseguisse penetrar na Grande Conferência dos Patriarcas dos Saltadores.

Estes homens, lutadores experimentados do Exército de Mutantes de Rhodan, cumpriram seu dever. E agora eles ainda vão mais longe: Libertam um planeta inteiro do jugo estrangeiro.

O Flagelo do Esquecimento serve-lhes de instrumento para a libertação.

 

                                    

 

Água no porto estava lisa como um espelho. Não soprava a menor brisa e se podia ver, atrás da quilha do grande barco a vela, nitidamente, o terreno cultivado com plantas variadas. Cardumes de peixes das formas mais esquisitas se moviam de um canto para o outro, desviando-se apenas das barcaças de carga vazias, cuja missão era descarregar as mercadorias do barco a vela.

As casas da cidade se alinhavam ao longo da enseada do porto, numa quase meia-lua. Subiam o suave aclive das colinas, que logo se transformavam num planalto uniforme a se estender até o horizonte. Assim, o interior do território não diferia muito do oceano, pois formava também com o céu uma linha reta, sem interrupção.

O veleiro era, sem dúvida alguma, um navio de guerra, pois nos dois costados podiam-se ver as bocas dos canhões. No entanto, conduzia uma carga que neste momento estava sendo recebida pelos empregados do cais.

A tripulação trabalhava arduamente e sem parar, enquanto os homens morenos de basta cabeleira também cochichavam entre si e lançavam olhares tímidos na direção da popa. Depois continuavam arrastando obedientemente seus fardos até o parapeito, onde eram recebidos pelos proprietários das barcaças que estavam esperando.

No tombadilho do veleiro estavam sentados quatro homens, que observavam o movimento a bordo do barco com mais ou menos alguma atenção. Embora se pudesse supor à primeira vista que o descarregamento da mercadoria fosse negócio de seu interesse, isto não era verdade. Era-lhes completamente indiferente a carga que se encontrava nos porões do barco e também não lhes interessava que chegasse às mãos dos destinatários ou fosse jogada na água.

Um deles lamuriava, olhando para cima, para o sol causticante, que podia estar brilhando tão bem em Trípoli como em Buenos Aires, se realmente se tratasse do sol da Terra. Mas não era ele.

— Este calor me deixa louco — resmungou ele, passando a mão pela barba desgrenhada. — Ficarei contente quando me livrar desta barba horrível. Não posso compreender que sentido tem a gente andar mascarado.

— No momento, nenhum — respondeu seu colega, um rapaz de pequena estatura, de olhos vivos e pequenos. — Mas quando um saltador aparecer a bordo do navio, a coisa ficará diferente.

— Que nada — continuou o primeiro, com um movimento de mão indicando desprezo. — Meu caro Tako, qualquer saltador notará imediatamente que nós não passamos de imitação, basta dar-lhe um pouquinho de tempo.

— Mas nós não lhes deixaremos tempo para isto, John — disse o japonês sorrindo. — Além disso, não creio que eles venham a bordo. Para isso, têm sua gente, os goszuls.

Os goszuls eram os nativos da terra, que tinha sido transformada em colônia pelos saltadores, uma raça inteligente de navegadores do espaço. Ao mesmo tempo, os saltadores utilizavam este planeta como base militar e como ponto de apoio para operações comuns contra eventuais inimigos.

E um desses inimigos era exatamente Perry Rhodan, administrador do planeta Terra, contra o qual se dirigiam os planos dos saltadores no momento. Daí, a presença dos quatro terranos camuflados no tombadilho do barco, que estava parado tão pacificamente no porto do pequeno continente, a que os nativos davam o nome de Terra dos Deuses.

Sua missão secreta era expulsar os saltadores do planeta de goszul, sendo que Rhodan queria continuar incógnito. Assim, os quatro homens do barco só podiam contar consigo mesmo, pois a frota de Perry Rhodan estava esperando no espaço, a oito dias-luz de distância.

John Marshall, competente telepata do Exército de Mutantes, olhava pensativo para seus três colegas. Seu olhar ficou longo tempo parado sobre Tako Kakuta, o teleportador.

— É isso mesmo — disse finalmente. — Os goszuls me preocupam. É verdade que Kitai Ishibashi lhes fez um bloqueio mental. Mas ninguém sabe por quanto tempo a situação continuará assim. Quando começarem a pensar independentemente, haverão de desconfiar e nos entregarão às criaturas dos saltadores, os chamados goszuls inteligentes. Não se esqueçam, amigos, de que estes nativos primitivos consideram os saltadores como deuses.

Kitai esfregou um pouco a barba postiça.

— A duração de um bloqueio mental depende da força de vontade do paciente — disse ele, bem objetivamente. — Não posso, portanto, prever quando estes corajosos marinheiros começarão a pensar independentemente.

O quarto homem sorriu para o telepata. Chamava-se Tama Yokida, era também japonês e membro do Exército de Mutantes de Rhodan. Sua especialidade era a telecinésia. Podia movimentar a matéria no espaço infinito, apenas com as emanações energéticas do pensamento.

— Nós podemos nos defender deles, caso seja necessário, meu caro Kitai. Mas espero que não seja necessário. Quanto mais tempo ficarmos despercebidos, tanto melhor para nossa missão. Quando tivermos em mãos os armamentos necessários, tudo sai bem.

John Marshall pigarreou.

— As coisas estão no fundo de um rio, bem perto do espaçoporto dos saltadores, alguns quilômetros daqui. Gucky teve que afundá-las naquele local para não caírem nas mãos do inimigo. Estou feliz porque ele conseguiu escapar vivo.

Olhou em volta.

— Onde é que ele está, realmente?

— Estou aqui, meu amigo — falou uma voz clara e estridulante, bem atrás de John.

O telepata virou-se para trás e fixou os olhos, admirado, para o alto da amarra que estava bem perto do parapeito. A roldana da amarra se moveu um pouco. Em sua extremidade superior surgiram duas orelhas pontudas, cobertas de pêlo, depois dois olhos de brilho astuto, e finalmente um focinho comprido e fino onde tremulavam uns fios de cabelo.

— As barbas compridas dão a vocês uma aparência de grande bondade — cochichou a mesma voz, enquanto os olhos rápidos observavam tudo em volta. — Todos os homens deviam usar barbas compridas, para darem a impressão de bondosos e adultos.

Depois deste conselho, Gucky arrastou-se de seu esconderijo e parou no chão, no meio dos quatro homens. Parecia sentir-se aí seguro de olhares indiscretos.

Gucky era realmente uma visão deslumbrante. Parecia um misto de castor e de rato, mais ou menos um metro de altura, com um pêlo marrom-ferrugem. Além disso, uma longa cauda que lhe servia de apoio ao caminhar. De uma distância maior, podia-se tomá-lo por uma espécie de Mickey Mouse fugido de Hollywood, mas olhando mais de perto, percebia-se logo o engano. Gucky era muito mais poderoso do que um Mickey Mouse. Habitante de um longínquo e solitário planeta, era telecineta, telepata e teleportador ao mesmo tempo. Gucky era de fato mais do que um valoroso membro do Exército de Mutantes. E, em nome de Perry Rhodan, defendia a Terra no infinito do cosmos contra todos os ataques das forças extraterrenas.

— Obrigado pelo conselho — confirmou Kitai, sério, e começou a coçar o rato-castor atrás da orelha direita, o que muito lhe agradava. — Mas, quando eu imagino você de barba comprida...

Não terminou o quadro da horrenda visão, sorriu a contragosto, enquanto John ria calmamente.

— Gucky de barba comprida? Santo Deus, o planeta inteiro aqui extrapolaria os limites do espaço-tempo de tanta alegria. Eu também.

Gucky assobiou como sinal de aviso. John percebeu que uma mão invisível o erguia, e não fosse a situação tão séria para permitir uma brincadeira, Gucky o teria feito flutuar até o parapeito e depois o teria deixado cair n’água.

Por este motivo, Gucky se satisfez com o aviso.

— Gostaria de saber por que razão uma barba em mim seria mais ridícula que em vocês.

John Marshall estava para responder, quando seu cérebro bem adestrado sentiu impulsos estranhos. Piscou ligeiramente para seus três companheiros e comprimiu Gucky contra o chão. Ali ninguém o podia ver, se ele não aparecesse no convés. Durante quase dois minutos ele ficou escutando, de olhos semicerrados, até que acenou com a cabeça e olhou brevemente para Kitai. Enquanto os outros permaneciam quase estarrecidos em seus lugares, de respiração presa, ele anunciou, quase sussurrando:

— São os nossos goszuls, pelo menos alguns deles. Libertaram-se do bloqueio hipnótico, Kitai. Estão pensando agora quem somos nós. Estamos a bordo de um navio deles e eles não atinam como chegamos aqui. Já perceberam, naturalmente, que não somos goszuls inteligentes, isto é, os nativos que receberam doutrinação hipnótica dos saltadores. Nossa semelhança com os saltadores não representa muita coisa para eles, já que nunca os viram pessoalmente. Portanto, consideram-nos simplesmente estrangeiros, o que realmente somos. Pretendem nos dominar e “nos entregar aos deuses”.

Tako, o teleportador, viu lá embaixo os primeiros servos dos deuses — assim eram chamados pelos nativos os seus irmãos de raça que se tornaram repentinamente inteligentes — que começavam a entrar no navio, para vigiar o descarregamento das mercadorias de seus senhores. Estavam acompanhados de robôs de combate dos saltadores.

— Como devemos entrar em ação? — perguntou o japonês, quase sussurrando. — Quando os condicionados notarem, lançarão sobre nós os robôs de combate. Não vamos tirar as máscaras, não é ou...?

— De maneira alguma — concordou John Marshall e continuou se concentrando febrilmente. — Kitai, o que você diz a isso? — Não pode daqui...?

— Pessimamente — disse o sugestor abanando a cabeça. — O método mais seguro de manter os revoltados novamente sob controle é a confrontação direta. Daqui, a minha influência sobre eles seria deficiente, sem considerar ainda que poderá surgir qualquer complicação e eu não possa então me concentrar para exercer minha influência.

— Com outras palavras — interrompeu o telecineta Tama Yokida — quer dizer que não é muito provável que desta distância possa isolar alguém dentro da multidão e influenciá-lo hipnoticamente; não é isto que queria dizer, Kitai?

O sugestor fez sinal afirmativo com a cabeça e nada falou. John Marshall levantou-se.

— Devemos fazer alguma coisa, se quisermos manter o bando todo sob bloqueio hipnótico. As emanações mentais se tornam cada vez mais intensas. Daqui a pouco, os homens abandonam o trabalho e se precipitam sobre nós. Um deles já está com a faca na mão.

Os goszuls viviam numa civilização que podia ser comparada com a do século XVIII na Terra. As facas eram, portanto, muito eficientes nas mãos dos nativos.

— Maldito robô — resmungou Kitai furioso. — Nunca experimentei em minha vida colocar um robô sob meu controle mental.

John sorriu levemente.

— Tenho medo de não termos sorte com isso. Mas os robôs haveriam de notar, caso acontecesse algo com seus subordinados. Estamos, portanto, num beco sem saída.

— Perguntemos a Rhodan — propôs Gucky, que ainda estava agachado no meio dos homens, evitando ser visto. — Ele pode, talvez, nos dar um conselho.

— Poder, pode — continuou John — resta saber se quer. Vocês sabem que os saltadores não podem nunca saber quem é que está se intrometendo em seus assuntos particulares. É claro que o nosso micro-comunicador tem um raio de ação de três meses-luz, enquanto que Rhodan está apenas a uma distância de oito dias-luz. Mas acho que não temos mais tempo de entrar em contato com Rhodan. Olhem só lá para baixo.

As cabeças dos homens viraram todas para o mesmo lado. Lá embaixo no convés, um dos carregadores tinha deixado cair seu fardo e estava de pé perto de um dos servos dos deuses, gesticulando muito e falando com ele. Dois dos cinco robôs de combate que entraram no navio se aproximaram. Essas máquinas, de construção completamente positrônica, tinham um cérebro de funcionamento normal e podiam tomar decisões próprias e transformá-las em realidade, enquanto estivessem em contato com o controle central. Suas radiações energéticas embutidas faziam deles máquinas de combate invencíveis. Naturalmente, para os primitivos goszuls estes robôs tinham que ser criaturas semelhantes a um deus, pois não conheciam nem ainda a navegação espacial. Para eles, os deuses desciam do céu e voltavam para ele de novo.

O mais inteligente dos servos dos saltadores — não havia normalmente mais do que vinte deles no planeta dos goszuls — ouviu atentamente o que o nativo lhe tinha para comunicar. Seu olhar percorreu o convés do navio e se deteve finalmente na escada para o tombadilho.

Acenou com a cabeça, deixou de lado seu interlocutor e se dirigiu para a escada que dava para o tombadilho. Como estava parecendo, era uma visita que ele tencionava fazer aos quatro indivíduos misteriosos do tombadilho. Por felicidade, não lhe passou pela cabeça a idéia de levar como acompanhante um dos robôs de combate.

John Marshall auscultava o cérebro do goszul. Tinham-lhe falado da presença a bordo de pessoas estranhas e de aparência misteriosa, que talvez fossem interessantes para os deuses. Além disso, podia John reconhecer o nome do homem. Chamava-se Geragk.

Marshall fez um sinal rápido para Kitai. Trabalhavam muito bem juntos. Geragk sairia depois do navio, sem se lembrar de nada.

O servo dos deuses subiu os degraus de madeira para o tombadilho e de repente ficou parado junto ao parapeito, como se seus pés estivessem colados ao assoalho. Com os olhos arregalados, fixava os quatro homens que, no primeiro instante, tinha de supor serem saltadores. Seu cérebro ainda pensava normalmente e podia compreender a situação.

“Saltadores? Aqui, no barco a vela dos primitivos? Que significava tudo isto?”

Inclinou-se profundamente, nos seus olhos, porém, havia dúvidas. John constatou que Geragk procurava febrilmente uma explicação. Os saltadores dominavam certamente este planeta, mas eram demasiadamente orgulhosos para se preocuparem com os problemas dos nativos, muito menos ainda para se misturarem com eles desta maneira.

— Perdoai-me, ilustres senhores — começou vagarosamente, fixando os olhos nervosamente nas pranchas de madeira a seus pés, como se delas pudesse tirar as palavras para se desculpar. — Mas o capitão deste barco está tão constrangido por ter a honra de abrigar neste navio pequeno hóspedes tão eminentes. Posso perguntar se vos posso ser útil em alguma coisa?

Era realmente uma boa pergunta. John sorriu.

— Ótimo, Geragk, obrigado. Estamos empreendendo uma viagem de inspeção, mas como o senhor sabe, os primitivos não nos conhecem. Não queremos empregar violência, por esta razão os robôs que aqui estão garantirão a nossa saída.

John reconheceu que suas palavras não chegaram a tranqüilizar o goszul. Geragk estava mesmo decidido a comunicar o inexplicável acontecimento. Não havia, portanto, nenhum outro expediente, a não ser lhe tolher a memória e lhe sugestionar um outro quadro mental. Foi Kitai quem se incumbiu do caso.

O japonês não modificou sua postura, permaneceu sentado e dirigiu seu olhar simplesmente para Geragk, que, por sua vez, não se sentiu à vontade com o olhar fixo do outro. Mas durou pouco. Seus traços se iluminaram de repente, sorriu obsequioso, inclinou-se mais profundamente ainda, quase tocando o chão. Retirou-se sem dizer uma palavra e desceu para o convés inferior, onde ouvira o goszul que lhe chamara a atenção sobre os estranhos a bordo.

John Marshall comprimiu os olhos.

— Só uma pequena folga, Kitai. Você não pode botar todos na fila e sugestionar um por um. Acho que só nos interessa uma sugestão em massa, se nós não quisermos ser atacados, e eu não gostaria principalmente por causa dos robôs de combate. À menor suspeita, eles se transformam em fortalezas a vomitar fogo.

— E eu os faço voar para dentro da água — avisou Gucky chiando.

John botou os dedos nos lábios fechados.

— Psiu, mais baixo, Gucky. Se alguém o vê, vai haver barulho. Ninguém poderá realmente confundi-lo com um patriarca saltador. Kitai, notou alguma coisa de esquisito neste Geragk? Naturalmente, não, pois não sabe ler pensamentos. Antes de você lhe ter impregnado a nova memória e de lhe ter ordenado que esquecesse o acontecido, eu peguei uns pedaços de pensamento. Nenhum pensamento claro e com muita coordenação, infelizmente, mas mesmo assim com detalhes interessantes.

— O quê, então? — sussurrou Kitai e não perdeu de vista o convés, onde o capitão do navio conversava com alguns dos seus.

— Geragk queria realmente nos denunciar a seus superiores, porque suspeitava de alguma coisa. Não o fez para prestar um serviço aos saltadores. Tinha outros motivos.

— Quais?

— Queria convencê-los de sua lealdade, que realmente não possui. Não sei bem exatamente, mas me parece que por alguns momentos ele pensou numa organização secreta que podia causar muitos danos aos saltadores e tornar novamente livre e independente o planeta Goszul.

— Um movimento de resistência? — disse Kitai admirado. — Haverá um movimento de resistência de fato no planeta Goszul? Não acredito. Quem se atreveria a lutar contra os deuses?

— Aqueles que os conhecem melhor, seus servidores. Geralmente é assim.

— Eles estão atacando agora — silvou Gucky, interrompendo a conversa e se teleportou como um raio para a roldana da amarra. Os quatro homens permaneceram sentados, indecisos em seus lugares, até que Kitai falou:

— Eu vou dominar todos eles de uma só vez. Nosso único esconderijo é o navio. Ninguém nos pode ver em terra, isto traria complicações desagradáveis.

Com um rápido olhar ele se certificou que os robôs continuavam rígidos nos lugares que haviam assumido. O episódio num navio dos nativos não lhes representava nada, enquanto os interesses de seus senhores não fossem atingidos.

— Fiquem sentados calmamente, até que acabe tudo. Os rapazes vão descarregar o navio como se nada tivesse acontecido.

Embora John, Tako e Tama conhecessem as qualidades assustadoras de seu colega, ficavam sempre atônitos quando presenciavam as inconcebíveis alterações dos atingidos.

O capitão do navio parecia haver convencido a tripulação ou ao menos uma parte dela, de que alguma coisa não estava certa a bordo. Talvez ele se preocupasse com o fato de não saber como os estranhos entraram no barco. De qualquer maneira, não deu fé às palavras apaziguadoras de Geragk, mas gritou para sua tripulação alguma coisa. Nem todos, mas alguns abandonaram o trabalho e desembainharam as facas. Ameaçadores, dirigiram-se ao tombadilho.

Os robôs permaneciam passivos. Kitai se concentrou, lançou sua corrente de pensamento contra a tripulação.

O capitão estancou de repente, passou a mão pela cabeça, como se lembrasse de alguma coisa. Com a esquerda, guardou novamente a faca na cintura. Vagarosamente os outros seguiram seu exemplo. O primeiro deu meia-volta e caminhou para seu local de trabalho. Como se nada tivesse acontecido, pegou o fardo e o atirou para a barcaça que estava atracada embaixo. As emanações mentais de Kitai não tinham ainda atingido os servos dos saltadores. Apesar de sua inteligência relativa, não podiam compreender o que se passava a bordo do veleiro. Antes que pudessem suspeitar de alguma coisa, caíram sob a influência dos dons de Kitai. Não aconteceu muita coisa, simplesmente esqueceram. Isto foi tudo.

Estava salva a situação, pelo menos no momento. A experiência ensinava que a capacidade de Kitai tinha seus limites. Passado algum tempo, a consciência das pessoas bloqueadas neutralizava a força mental que lhes fora imposta.

O importante, porém, foi que os robôs não perceberam nada do incidente. Estavam imóveis em seus postos e cuidavam de que ninguém atacasse os servos de seus senhores.

Horas depois, terminava o desembarque da mercadoria.

— Que foi que descarregamos mesmo? — perguntava Tama que, como telecineta, não podia ler os pensamentos. Antes que John pudesse responder, disse Gucky, que entrementes já havia descido da roldana da amarra:

— Cânhamo ou coisa semelhante. Os saltadores pagam bem por isso, porque extraem daí um famoso entorpecente que já colocou muitos planetas sob seu jugo.

— De onde é que você sabe disso?— perguntou Kitai admirado.

Gucky virou para frente as orelhas pontudas e disse chiando:

— Gucky sabe tudo.

John Marshall olhou para o céu.

— Está ficando escuro e eu ainda estou pensando se ficamos no navio ou se vamos para terra. Os saltadores ficam somente neste continente, o resto do planeta não lhes interessa. Se quisermos, pois, atacar, tem que ser aqui.

— Ah, se Rhodan desse ao menos uma indicação — lamentou Tako.

John olhou rapidamente para o franzino japonês.

— Se não me engano, ele nos mandou Gucky para estarmos a par de suas intenções. Até agora, porém, Gucky está calado. Quem sabe não chegou ainda a hora...

O rato-castor compreendeu aquela fina indireta. Desde que tinha recebido a incumbência de acompanhar o grupo dos quatro mutantes, ainda não tinha conversado nada sobre seus planos, claro que principalmente devido aos fatos que se precipitaram, não lhe permitindo tempo para isto. Inclinou a cabeça e murmurou alegre:

— Chegará logo a hora, meu caro colega telepata, como você sabe tão bem como eu. Pense apenas neste Geragk, que no momento está abandonando o navio com os seus robôs. Ele é apenas um entre muitos.

— Que está dizendo com isto? — queria saber John, pois Gucky guardava bem seus pensamentos.

— Existem realmente alguns goszuls que se preocupam com a idéia de sacudir o jugo dos saltadores e de tocar pelo universo afora estes comerciantes da galáxia. Poderiam se tornar nossos aliados.

— Certo — confirmou John, não demonstrando nenhum entusiasmo. — E como faremos contato com estas forças da resistência? Isso não é tão fácil assim, ou...?

— É sim — silvou Gucky feliz e ficou olhando como os marinheiros, depois de terminar o trabalho, saíam para descansar fora do navio. — É muito simples. Você se lembra daquela voz mental que percebeu há pouco? Alguém se intrometeu em nossa conversa telepática, mais ou menos como uma terceira emissora interrompe o diálogo de dois interlocutores. Neste planeta deve existir, portanto, pelo menos um telepata.

John concordou.

— Eu tinha o mesmo pressentimento — disse ele. — Mas como é que sabe que ele nos vai ajudar?

— Porque é uma das figuras mais importantes do movimento de resistência — disse Gucky com tal naturalidade que surpreendeu John e os três japoneses. — Faça contato com ele, quando se apresentar, vai ser muito simples.

John se recuperou de sua grande surpresa.

— De onde você sabe tudo isto?

— Eu sei ainda mais — disse Gucky fugindo da pergunta. — O telepata dos goszuls se chama Enzally.

Tako fechou a boca, quando John o olhou fixamente. Kitai apenas meneou a cabeça, murmurando qualquer coisa como “segredos traiçoeiros”, enquanto Tama, sem maior interesse na conversa, contemplava o céu que já estava ficando escuro, onde se delineavam constelações estranhas. Era astrônomo e este mundo distava da terra 1.012 anos-luz. Motivo suficiente para se interessar pelo céu.

— E isso você somente diz agora? — falou John Marshall com ares de repreensão.

Gucky concordou conscientemente.

— Você nunca me perguntou nada a respeito — e sem mais nem menos acrescentou: — Quando pegaremos as coisas que eu trouxe de Rhodan?

John já havia quase esquecido. Sim, as coisas. Em sua viagem repleta de aventuras, Gucky tinha trazido toda espécie de bagagem que, no entanto, teve de abandonar em virtude de acontecimentos imprevistos. Estava bem acondicionada no fundo de um rio, bem longe da região povoada.

— Durante o dia — continuou John — pois de noite precisaríamos de luz e isto chamaria a atenção dos robôs de vigia postados nas proximidades do espaçoporto. Com a claridade do dia, nossas chances serão melhores. Amanhã, pois, proponho eu. Aliás, Gucky, apenas uma pergunta: Que é que você trouxe?

Gucky mostrou seu dente de roedor, pois sempre que sorria este dente isolado ficava à vista. O rato-castor, de alguma maneira, sorria com o dente por mais paradoxal que isto possa parecer. E quando mostrava o dente, não se conseguia entender bem suas palavras.

— Bombas — sussurrou ele com voz extraordinariamente clara. — Uma mochila inteira cheia de bombas, bombas comicamente pequenas.

— Bombas? — suspirou John, fixando Gucky com olhos arregalados. — Que vamos fazer com bombas? Não temos nem um avião para lançá-las. Além disso, os saltadores nos prendem imediatamente, se começarmos a jogar bombas.

Gucky balançou a cabeça compassivamente.

— Os homens são criaturas de compreensão difícil — observou muito pensativo. — Quando ouvem a palavra bomba, pensam logo em explosivos. Não, colega John, não se trata desta vez de bombas que explodem, mas simplesmente de bombas que se devoram antes de produzirem efeito. É tudo tão simples.

John concordou, sem compreender.

— É, é tudo tão simples — murmurou, contemplando o rato-castor, como se lhe quisesse arrancar o pêlo. — Proponho que você agora nos diga o que vai acontecer, do contrário vai mesmo acontecer alguma coisa...

O dente de roedor de Gucky desapareceu de repente.

— Pois bem, meus amigos, então ouçam com atenção.

 

Sete planetas giram em volta do sol 221-Tatlira, que percorre sua órbita em torno da Via Láctea a uma distância da Terra de 1.012 anos-luz. Só o segundo planeta tem vida inteligente, a raça dos goszuls, semelhante à dos homens, no momento dividida em duas metades pelos saltadores. Um patriarca desta raça de comerciantes da galáxia, de nome Goszul, descobriu o planeta e lhe deu seu nome. A partir deste tempo, o planeta de Goszul passou a pertencer ao império dos saltadores.

Os saltadores, ou também chamados comerciantes, não tinham propriamente pátria. Com suas grandes naves, percorriam as galáxias e faziam comércio. Não davam muita importância à solidariedade, a menos que seus interesses estivessem em jogo. Aí então mostravam uma grande união e esqueciam suas rixas, que freqüentemente separavam as famílias.

Um caso assim estava se passando no momento. Os saltadores haviam descoberto a Terra e tentavam transformá-la num entreposto comercial, quando foram repelidos energicamente por Perry Rhodan. Aqui, no planeta de Goszul, estavam pois reunidos os mais poderosos chefes dos clãs, a fim de estabelecerem um plano de como se libertarem do incômodo e misterioso Rhodan, que tenazmente resistia às “bem intencionadas” invasões.

Os primeiros ataques dos mutantes tinha reduzido consideravelmente o número dos patriarcas presentes, mas ninguém cedia. Aliás, ninguém supunha, nem podia supor, que era exatamente Perry Rhodan, o homem que estava a 1.012 anos-luz, o autor destes ataques.

A história de 1.012 anos-luz não era verdade. A frota de Rhodan estava realmente a oito dias-luz distante do sistema de Tatlira, esperando no espaço.

O coração da frota de Rhodan era a poderosa belonave Stardust-III, uma nave esférica com diâmetro de 800 metros. Era comandada e dirigida pelo próprio Rhodan. Trazia no seu interior armas dos tipos mais modernos e em grande parte de origem arcônida. Dois transmissores que transportavam a matéria a qualquer distância imaginável e no ponto de chegada desejado a rematerializavam — inclusive bombas atômicas — formavam uma arma irresistível.

Três cruzadores, igualmente esféricos, com diâmetro de apenas 200 metros, acompanhavam a Stardust. Seus comandantes eram o capitão McClears, o major Nyssen e o major Deringhouse.

Sem serem atingidos pelos rastreadores estruturais dos saltadores e por isso despercebidos, percorriam estes quatro gigantes do espaço o longínquo sistema solar. Rhodan não tinha intenção de intervir diretamente nos acontecimentos, embora fosse indiretamente o responsável. Não tinha pressa. Na Terra, tudo corria normalmente. O Governo Mundial era entrementes uma realidade. Rhodan fora nomeado por seis anos para Administrador do planeta. Durante sua ausência, era o coronel Freyt, seu substituto permanente, quem dirigia os negócios.

Mas nem todo mundo tinha a mesma calma que Rhodan.

Muito menos Reginald Bell, seu íntimo amigo e cooperador. Os cabelos vermelhos de Reginald Bell, que era chamado simplesmente de Bell, estavam penteados à escovinha e aquelas cerdas verticais não contribuíam exatamente para embelezar seus traços já rígidos. Nos olhos de um azul-claro, cintilava uma ira contida. Com exceção de alguns oficiais de serviço e técnicos de radiotransmissão, a sala estava vazia, mas Bell não era homem que se preocupava com a ausência de alguns subordinados, quando se tratava de dar expansão a sua ira.

— Quem sabe você pode ter a gentileza — rosnou rispidamente — de me dizer para que esta demora toda.

Perry Rhodan olhava constantemente o fraco cintilar da tela, onde Tatlira parecia tão pequena como uma estrela insignificante. A luz fraca da central fazia desaparecer um pouco seu corpo magro, mas com o reflexo da tela seus traços fisionômicos eram realçados. Os lábios contraídos formavam uma linha reta. Nos olhos, o fogo tranqüilo da expectativa. Os cabelos escuros e lisos formavam um contraste benéfico com a cabeleira hirsuta de Bell.

— Você ouviu o que eu disse? — perguntou Bell impaciente, quando não recebeu nenhuma resposta. Rhodan virou-lhe rapidamente a cabeça e continuou fixando a tela. — Há necessidade disso? — perguntou objetivamente.

O rosto de Bell ficou mais sombrio. As pontas do cabelo tremiam, mas sua voz abrandou um pouco. Isso, porém, não queria dizer que seu nervosismo acabara. Pelo contrário.

— Para que falar, se ninguém me escuta? — disse para si mesmo. — Perguntei por que estamos aqui dependurados no infinito e esperando o quê?

Rhodan continuou olhando para a tela.

— Tanto tempo, meu amigo, até que possamos descer lá do outro lado, daqui a oito dias-luz. Naturalmente ninguém pode prever quanto ainda ficaremos aqui. Isto depende primeiramente de John Marshall, seus mutantes e de Gucky.

— Sempre este rato desgraçado — gritou Bell, esfregando o queixo. — Quer dizer que tudo depende deste camundongo.

— E depende mesmo — concordou Rhodan, esforçando-se para permanecer sério. — Estou curioso para saber o que Gucky vai dizer quando souber o que seu melhor amigo pensa dele.

— Não, por todos os deuses do Universo — gritou Bell, como se alguém lhe enfiasse uma agulha através de toda a espinha dorsal. — Tudo menos isso, não provoque desnecessariamente o maldito rato. Eu não poderia revidar. Acha que eu gostaria de ficar de novo três horas dependurado sob o teto, até que o espantalho se dignasse me deixar descer? Afinal, não sou nenhum mutante, sou um homem normal.

Rhodan tirou os olhos da tela e olhou pensativo para ele. Um esboço de sorriso apareceu nos seus lábios. Parecia que, apesar de sua relativa imortalidade, tinha envelhecido nas últimas semanas.

— Muito bem — respondeu ele, nada mais.

— Talvez não? — Bell fez uma contra-pergunta, mas não esperava resposta, pois logo acrescentou: — Já teve confirmação se Gucky encontrou os mutantes?

— Conseguiu, mas não sem dificuldades. No momento nossa tropa de ataque está num barco a vela, ancorado no porto de terra dos deuses. O nome me escapou. Desde ontem, porém, Marshall não se manifesta.

— Quem sabe foram presos — disse Bell triste.

— Esperamos que não, Bell. Isto escangalharia todo meu plano.

— Que plano, Santo Deus.

— O de conquistar pacificamente o planeta de Goszul.

— Conquistar pacificamente?... Você é muito otimista, Perry. Conquista pacífica, e os comerciantes matam os nossos onde os encontram.

— No planeta de Goszul não vivem apenas comerciantes — disse Rhodan com ar sério. — Os aborígines primitivos são totalmente inofensivos, os servos que se tornaram inteligentes na Ilha da Terra dos Deuses não representam maior perigo se compreenderem que se trata de sua própria liberdade. A Terra dos Deuses é uma colônia dos saltadores. Deste ponto aí é que dominam o planeta. Normalmente, porém, permanecem na Terra dos Deuses, quando muito, duas dúzias de saltadores. A aglomeração atual é uma exceção, com a qual temos que contar. A tudo isso acrescente ainda os milhares de robôs de trabalho e de combate, que temos que ter em conta de inimigos sérios. Não obstante tudo isto, ainda aspiro a uma conquista pacífica.

— Muito prazer em sabê-lo — resmungou Bell, que ainda não compreendia onde Rhodan queria chegar. — E como você vai conseguir isto? Ficando aqui, esperando até estarmos perdidos?

Rhodan apontou para uma caixinha quadrada à sua frente, em cima da mesa de controle. Ao lado dela havia alguns botões, enquanto que a parte superior apresentava um conjunto de lâmpadas de controle.

— Olhe lá. Com isso posso entrar em contato com Marshall ou com Gucky. Aguardo notícias e antes que cheguem não podemos tomar nenhuma iniciativa.

— Com os transmissores fictícios podemos mandar tantas bombas...

— Já recusei uma vez tal proposta, Bell — lembrou-o Rhodan. — Não quero que nossa posição seja descoberta. Se deixarmos o serviço para Marshall e seu grupo, nenhum dos saltadores chegará a imaginar que nós é que estamos atrás desta ação, se é que algum dia cheguem a perceber que isto foi uma ação. Pelo contrário, atribuirão sua derrota muito mais a uma doença normal.

A cara de Bell parecia um ponto de interrogação.

De repente seus olhos se iluminaram.

— Minha inteligência é a mesma que a sua, mas eu nunca entendi bem de palavras cruzadas e charadas. Por favor, tenha a gentileza de...

Rhodan teve realmente a gentileza.

— Gucky levou consigo uma multidão de coisas utilíssimas, a mais útil delas são as bombas do esquecimento.

— As bombas do quê?

— As bombas do esquecimento. Foram desenvolvidas na Terra e simultaneamente com elas também o anti-soro. Resumindo: trata-se de uma arma bacteriológica que após algum tempo ataca o invólucro plástico das bombas e se espalha rapidamente. Todo homem que entrar em contato com a bomba, manifesta logo sintomas de uma doença desconhecida. Placas vermelhas no rosto, dores na nuca, sensação de cansaço, etc. Mas o pior vem ainda: o cérebro da pessoa atingida não funciona mais direito. Não poderá mais se lembrar de nada. Esquece tudo. Numa palavra, os atingidos ficam doidos.

— E a isto você dá o nome de conquista pacífica? — protestou Bell espantado. — Quer, pois, deixar os goszuls doidos? Que tem isso a ver com humanidade?

— Não se esqueça do anti-soro. Atua no sentido contrário. Os doentes se curam imediatamente e a doença não deixa absolutamente nenhuma conseqüência. É como se nunca tivessem ficado doentes.

Bell parecia indeciso.

— Não estou compreendendo nada. Para que então toda esta palhaçada?

— Os saltadores provêm da mesma raça que os goszuls, isto é, dos arcônidas. Portanto não são imunes a nossa doença.

O rosto de Bell se iluminou como um sol resplandecente.

— Ah... quer dizer então que têm de chegar até nós, se quiserem obter o antídoto.

Rhodan abanou a cabeça.

— Não havia pensado diretamente nesta hipótese. Para mim o essencial é que daí em diante eles evitem o planeta dos goszuls, como a própria peste. Se chegarem à conclusão de que o planeta está perdidamente contaminado, nunca mais voltarão. Você tem outra idéia melhor?

Bell tinha que conceder que não podia haver uma idéia melhor. Seus cabelos já pareciam mais deitados um pouco, pois sua incerteza não existia mais. Sabia agora por que Rhodan estava esperando.

 

Quando o dia amanheceu, John Marshall acordou seus companheiros. Os japoneses abriram os olhos e viram os primeiros raios de luz penetrando pela pequena clarabóia em sua cabina.

— Já é dia — acrescentou Tako, e pulou para fora do beliche.

— Como vai Gucky?

O rato-castor se materializou no meio da cabina, como se tivesse ouvido a pergunta, o que, na verdade era um fato.

— Estou aqui — disse chiando e alisando seu pêlo. — Dei uma olhada em volta, os marinheiros ainda estão dormindo. Parece que trabalharam demais ontem, estão cansados. Tudo calmo, como que preparado para nossa operação.

— Estou feliz de não ser teleportador — murmurou Kitai, permanecendo tranqüilo na cama. — Acham que dão conta de tudo sozinhos?

Tako abotoava seu casaco.

— Acho que sim, Gucky e eu. Juntos conseguiremos tudo, mesmo que não seja de uma só vez. Perto do lugar em que Gucky afundou as coisas no rio, há um banco de areia. Lá colocaremos o negócio.

— E de lá traremos caixa por caixa para o navio — acrescentou o rato-castor. — Esperamos que os robôs não nos atrapalhem os cálculos. Os homens de aço estão equipados com instrumentos de rastreamento de alta sensibilidade.

— E além disso, com raios energéticos — ponderou John. — Vocês devem agir com muita cautela.

— É claro — chiou Gucky, e alegre pegou a mão de Tako para o guiar. — Você está pronto?

O teleportador abanou a cabeça afirmativamente, procurando esboçar um sorriso.

— Pegar pela mão não adianta muito, mas dá a qualquer um pouco mais de coragem. As coordenadas do salto, eu já conheço.

— Pousaremos no banco de areia, Tako. Se houver perigo, não pular cegamente, mas voltar para cá.

Gucky concordou, dizendo:

— Tudo pronto?

John e seus dois companheiros presenciaram como o japonês e o rato-castor se desmaterializaram. Era sempre o mesmo quadro. Primeiro parecia que os dois estavam atrás de uma muralha de água transparente, que aos poucos se punha em movimento. Depois, não restava mais nada.

John, Kitai e Tama ficaram sozinhos na cabina.

 

Vagarosamente o rio caracolava na direção do mar. Percorria quase a metade do continente que os aborígines chamavam de Terra dos Deuses, mas não via muita coisa da civilização ali existente. Em contraste com os outros continentes, a Terra dos Deuses tinha atingido um alto grau de civilização, em virtude das grandes instalações dos saltadores aqui construídas. Principalmente no litoral, surgiram instalações portuárias de alto nível técnico que pareciam modernas demais para os barcos a vela e não tinham, portanto uma utilização adequada.

O mais notável era o espaçoporto, que devia ser considerado o centro da administração colonial. As naves dos saltadores eram aí revisadas e consertadas. Era um traço característico desta raça que eles não tinham propriamente um planeta-pátria. Possuíam, no entanto, muitos planetas-colônia como pontos de apoio, que se tornaram, aliás, necessários para uma existência pacífica no espaço.

Naturalmente, todas as instalações tinham que ser protegidas contra possíveis sabotagens por parte dos nativos, pois os saltadores não se preocupavam em lutar com raças subdesenvolvidas. Para isso eles tinham os robôs, máquinas aperfeiçoadas, comandadas positronicamente e de aparência humanóide. Tinham tudo que uma fortaleza em miniatura devia ter, para se defenderem contra forças superiores. Sua semelhança com as máquinas de combate dos arcônidas não era mera coincidência. Os saltadores pertenceram igualmente ao grande reino estelar dos poderosos arcônidas, ficando mais tarde independentes e fundando seu próprio império, sem, porém, dar maior importância a limites fixos. Faziam comércio onde podiam. E comerciavam com tudo que pudesse trazer dinheiro, bem-estar e poder.

A Terra dos Deuses era, pois, menos controlada pelos saltadores do que propriamente pelos robôs. Apoiavam-se assim nos colaboradores voluntários, isto é, nos goszuls submetidos a um doutrinamento hipnótico, nos nativos desprezados, mas também temidos, chamados servos dos deuses. Eram tidos como traidores de sua ruça.

O banco de areia mal tinha um metro de altura na sua parte mais elevada, acima do nível da água calma do rio. As margens estavam longe, mas não longe demais para comprometer a segurança de cem por cento. O rio, aliás, não constituía nenhum impedimento para os pesados robôs.

Gucky se materializou do nada e viu como também Tako surgia do ar vazio. Um simples relance de olhos mostrou aos dois que estavam sozinhos. Aliás, quem é que viria procurar alguma coisa no banco de areia a estas horas da manhã?

— Um pouco frio, acho eu — disse o japonês desconfiado. — E com esta temperatura temos que tomar um banho?

— Não tem importância — disse Gucky. Eu dou um pulo de experiência e lhe dou então as coordenadas exatas. Depois saltaremos juntos. Materializamo-nos no fundo do rio, que em nenhum lugar tem mais de cinco metros de fundura. Pegaremos uma caixa e voltaremos para cá. Não ficaremos mais de dez segundos debaixo d’água.

— Dez segundos é muito tempo, quando não se pode respirar.

— Isto tem menos importância que o frio, e o medo de que alguém perceba nossa operação secreta.

Tako examinou o ambiente em volta. A margem norte era plana e não oferecia nenhum esconderijo. Deste lado ninguém podia surgir despercebido, muito menos um robô. A margem sul estava coberta de florestas e era muito irregular. Havia pequenas enseadas e pontas de terra que avançavam para dentro do rio. Se tivesse que haver um ataque, teria que começar por estes lados.

— Enquanto os robôs de vigilância não nos perceberem, não haverá nenhum ataque — disse o japonês tentando encorajar o rato-castor e a si mesmo. — Comecemos logo para não perdermos tempo.

Gucky concordou e imediatamente desapareceu.

Tako ficou esperando.

Dez segundos mais tarde, materializou-se a seu lado uma caixa metálica reluzente e pingando água e junto dela Gucky.

— Já trouxe uma comigo — guinchou o rato-castor ofegante. — Que sorte que a correnteza não está forte, do contrário não encontraríamos nem a metade das coisas. O negócio está espalhado num raio de 50 metros, direção exata leste. Vamos tentar mais?

O japonês concordou e pularam na água. Meia hora depois, já tinham recolhido quase tudo. Nem tudo foi tão fácil como no início, pois algumas caixas tinham sido encobertas pela sedimentação da areia do rio. De qualquer maneira, foi-lhes possível, depois de muitos mergulhos, libertar as caixas da areia e finalmente trazê-las para cima. Lá estavam elas empilhadas propositalmente em forma de pirâmide.

Tako estava com os olhos bem comprimidos, quando falou:

— Gostaria de sugerir que primeiro ponhamos a salvo estas aqui, antes de continuarmos com a procura no fundo do rio. O que estiver lá, está em segurança, o que não se pode dizer das que estão no banco de areia.

— Combinado — disse Gucky. — Uma sugestão muito lógica, eu carrego a caixa com as bombas e você a com os gêneros alimentícios. Vamos embora depressa.

John quase teve um colapso quando, no meio da cabina, surgiu uma caixa, empurrando-o para o lado, de modo que checou a tropeçar no beliche próximo, continuando deitado. Gucky materializou-se em cima da caixa, com ares de um herói.

— Mercadoria expressa acaba de chegar — disse ele, dando um pulo para o beliche superior, pois na mesma hora se materializou a segunda caixa. Tako passou raspando nela e acabou deitado no úmido chão de madeira.

— É só isso — perguntou John de cima da cama, contente de que Kitai e Tama estavam no momento dando um giro pelo barco para se convencerem do estado de espírito pacífico da tripulação. — Aqui não cabe mais muita coisa.

— Vocês podem ir ajudando um pouco — disse Tako — colocando as caixas num lugar seguro, que possa ser fechado, enquanto nós vamos buscar as outras. São ao todo talvez vinte caixas.

— Vinte! — suspirou John saindo da cama. — Vinte destas caixas?

— A maioria delas é de tamanho pequeno e está bem empacotada. Infelizmente sofreram um pouco com o transporte, mas continuam impermeáveis. Gucky confirmou as palavras de Tako com um aceno de cabeça, dizendo:

— Precisamos continuar o trabalho, vamos embora.

Deram um pulo para fora. Infelizmente estavam pulando numa cilada que lhes fora preparada.

 

RK-071 era um dos robôs de combate que tinham a incumbência de controlar uma determinada região. Geralmente estes robôs ficavam em seus abrigos aguardando o sinal de entrar em ação. Este sinal era transmitido, através do rádio pelos robôs de vigilância, que existiam em grande número e cuja missão era controlar permanentemente o território de sua jurisdição. Em geral, era um serviço apenas de rotina, pois ninguém contava com uma revolta dos inofensivos goszuls, nem mesmo por parte dos desconfiados governadores da Terra dos Deuses. Consideravam os nativos como súditos dóceis, que ainda deveriam estar gratos pela tutela de uma raça superior.

Os robôs não se deixavam levar por sentimentos nem por suposições. Estavam programados e cumpriam seu dever, que lhes era ditado pelo cérebro positrônico. Só se baseavam em fatos e nada mais.

A operação no banco de areia era um fato.

O robô de vigilância RW-895 registrara esta alteração e a transmitira ao cérebro central do seu posto de comando. Ali, a mensagem foi explorada e tomadas as providências cabíveis. O robô de combate responsável pela região era o já mencionado RK-071. Recebeu a ordem de ativamento e se pôs em marcha na direção do rio.

Mas a central de comando do posto de vigilância devia se lembrar ainda dos acontecimentos anteriores, pois não se baseavam apenas nas informações de um só robô. Sabia-se que se tratava de um adversário misterioso, que não devia ser menosprezado, e com toda certeza não era nenhum habitante deste planeta atrasado.

Tais eram as conclusões lógicas do cérebro positrônico que tudo dirigia, embora silenciasse sempre que se perguntava sobre a identidade do inimigo misterioso. Ninguém devia saber quem era, ao menos no começo.

Vindos de diversas direções, seis robôs de combate marchavam em direção ao banco de areia, para se colocarem sob o comando do RK-071. Na margem sul do rio, estava de prontidão um pelotão de goszuls de quociente intelectual mais elevado, equipado com armamento leve, com a incumbência de não permitir a passagem de ninguém e de prender qualquer pessoa suspeita.

Tudo isto aconteceu exatamente enquanto Gucky e Tako mergulhavam à procura das caixas caídas no fundo do rio, para empilhá-las no banco de areia. Das duas margens, não se podia ver bem o que se passava. De vez em quando, os observadores notavam uma figura humana, que podia ser tão bem um goszul como também um saltador. De qualquer maneira, aquele pequeno vulto estava causando muita dor de cabeça ao cérebro positrônico do posto de comando.

E, de repente, desapareceram as duas figuras, como se tivessem sido dissolvidas, juntamente com duas caixas, em pleno ar.

Isto foi para eles, os robôs de combate, o motivo de ocuparem o banco de areia. Caminharam simplesmente para frente e desapareceram dentro do rio. Assim não perdiam sua possibilidade de locomoção no espaço, a água também não lhes apresentava dificuldades. Com a maior naturalidade, caminhavam no fundo do rio e, quando a água começou a ficar rosa, subiram para o banco de areia. Aí, procuraram um esconderijo, para surpreenderem os dois seres estranhos quando estivessem de volta. A ordem que haviam recebido era de não matarem, mas sim de pegar vivos os dois desconhecidos.

E exatamente aí é que estava a sorte de Gucky.

 

Mais ou menos a cinco metros da pilha de caixas, Gucky e Tako se materializaram simultaneamente. Este estranho fenômeno não provocou nenhuma reação nos robôs, pois estes monstros mecânicos não se admiram de nada, nem mesmo de acontecimentos quase impossíveis. Mas o fenômeno foi realmente tão rápido, que Tako já havia pegado a caixa e iniciado a volta, quando os quatro robôs se puseram a caminho, abandonando seu esconderijo.

Gucky estava exatamente escolhendo uma determinada caixa.

O barulho que ouviu às suas costas o obrigou a virar para trás. Os quatro monstros marchavam resolutos e ameaçadores na areia solta, contra ele. Dois deles se desviaram para os lados, para lhe cortar a retirada — aliás, uma coisa muito difícil, no caso de um teleportador, como veriam logo a seguir.

Gucky deixou a caixa onde estava e se teleportou a uma altura de duzentos metros, onde de novo se materializou. Suas propriedades telecinéticas lhe permitiam pairar normalmente no ar e, de lá de cima, contemplar calmamente o desenrolar dos acontecimentos.

Não era difícil perceber o que estava acontecendo.

Lá no fundo, na margem norte estavam três outros robôs de combate em posição de sentido, aguardando ordens para entrar em ação. Os goszuls na margem sul do rio estavam um pouco mais camuflados, mas Gucky os descobriu imediatamente. Devia, porém, admitir que a automatização do sistema de vigilância dos saltadores era perfeita e funcionava instantaneamente. No espaço de meia hora, tinham eles percebido sua atividade na ilha e tomado as providências cabíveis.

E Tako, que não estava a par de nada, podia voltar a qualquer momento. Gucky resolveu então tomar as contramedidas. Em vez de se desmaterializar, deixou-se simplesmente cair. Despencou como uma pedra em cima dos robôs e com um pequeno desvio caiu a quase cinqüenta metros deles, na parte leste do banco de areia. Agora ele poderia se concentrar bastante e pôr em atividade suas forças telecinéticas.

Um dos robôs de combate se ergueu no ar, sem maior esforço, antes que Gucky tivesse tempo para se virar e tomar conhecimento da situação. Subiu até uma altura de cem metros, atirando loucamente em volta e foi de tal maneira para o lado até que parou sobre a margem sul, no trecho cheio de florestas e de rochedos, onde os goszuls tinham tomado posição. Gucky não tinha propriamente tempo, mas não conseguiu vencer a tentação.

E assim, o robô não caiu imediatamente, mas executou no ar dois loopings completos, descreveu uma curva maravilhosa em cima dos goszuls, perplexos, e foi bater com extrema velocidade de encontro a uma rocha na margem, espatifando sua cabeça metálica. O resto rolou como sucata nas águas tranqüilas do rio, desaparecendo para sempre.

Chegou a vez do segundo robô.

Depois de um passeio artístico no ar, terminou também de encontro ao rochedo, apenas com a grande diferença de que ele conseguiu transformar um pedaço da rocha em lava incandescente. Isto, porém, apressou seu fim. Sibilando se precipitou nas águas do rio juntamente com um bloco de pedra em brasa.

Gucky ia se concentrar no terceiro robô exatamente quando Tako voltou. E o japonês se materializou diretamente entre os dois monstros que estavam atacando Gucky. Estava tão perplexo que nem se mexeu. Felizmente os robôs não deram muita atenção a Tako. Sua preocupação era, com toda razão, o pequeno rato-castor, o adversário mais perigoso que era necessário botar fora de combate.

A ordem recebida tinha que ser cumprida. Ainda não tinha sido transmitido o comando de matar. Os robôs em geral têm muito pouca consideração consigo mesmo, embora os robôs de combate formem uma certa exceção. Quando eles estavam em perigo de serem aniquilados pelo adversário, fundia-se automaticamente o relê de travamento e passavam então a fazer uso de suas armas mortíferas.

— De volta para o navio — guinchou Gucky, que julgava ter ainda uns segundos livres. — Eu volto também, quando tudo estiver normalizado.

Tako obedeceu, desaparecendo no ar.

Gucky pensou na opinião de John a respeito da humanidade e optou por um espetáculo muito impressionante. Esperava também assim poder influenciar beneficamente os goszuls, que futuramente seriam seus aliados.

Os dois robôs de combate que ainda restavam foram transformados em dois aviões. Exatamente em cima dos goszuls, que naturalmente não compreendiam o que estava se passando e acreditavam que os deuses metálicos estavam loucos, exatamente em cima deles é que os tais aviões começaram a executar loopings, folhas-secas e os vôos rasantes assustadores. Finalmente, como ponto alto da exibição, os dois se distanciaram, fizeram uma curva de volta e se precipitaram, com velocidade extrema, um contra o outro, até se chocarem, sob enorme explosão. Enganchados um no outro, caíram os dois “aviões”, semi-fundidos, nas águas do rio, onde desapareceram.

Os goszuls acompanhavam o espetáculo com toda atenção, embora não pudessem explicar a razão de tudo. Haveriam de imaginar que os dois deuses estavam brigando e assim se destruíram. Ninguém deles chegaria à conclusão de que o animalzinho peludo no banco de areia era o responsável por tudo.

Somente o RK-071 é que chegou à conclusão tão absurda e deu a ordem de ataque e de destruição a seus colegas de aço. A partir daí, não haveria mais consideração. O mini-adversário era demasiadamente perigoso para poder ser preso.

Os monstros marcharam na direção da margem norte e não hesitaram em mergulhar no rio. Gucky percebeu o perigo. Sabia que a água não podia prejudicar o mecanismo dos robôs. Apanhou uma caixa e a teleportou para o navio.

Tako estava exatamente descrevendo para John a situação no banco de areia, quando surgiu na cabina o rato-castor. Estava bem apertado, pois Kitai e Tama já estavam de volta.

— Olha ele aí — exclamou Tako com fisionomia de aliviado. — Que se passou por lá? Você fugiu?

Apesar da seriedade do momento, Gucky teve tempo de se sentir ofendido.

— Fugiu...? — repetiu perplexo e encolerizado ao mesmo tempo. — Como poderia imaginar isto? Só tive um pensamento. Kitai, uma companhia inteira de goszuls está lá no rio esperando por um tratamento seu. Quem sabe você vai transformá-los em nossos bons aliados.

— Uma companhia inteira? — disse Kitai arregalando os olhos. — Que podemos fazer com eles?

— Muita coisa. Você vai sugerir na mente deles que devem esquecer todas as outras ordens e se dirigirem para o porto. Aqui, eles serão recebidos por nós. Tenho uma missão vital para estes irmãos.

Kitai queria perguntar ainda alguma coisa, mas um gesto de John o deixou calado. O telepata já tinha compreendido o plano de Gucky.

— Kitai fará o que você disse — falou dirigindo-se a Gucky. — E os armamentos, estão garantidos?

Gucky se preparou para saltar. Fixou os olhos em Kitai que ele tinha que levar consigo e o pegou pela mão, dizendo:

— Ainda não. Três robôs de combate estão lá tentando se apoderar deles. Mas eu vou botar muita pimenta nesta sopa.

— Robôs de combate? — disse John horrorizado. — Como vai se desvencilhar deles?

— Não se preocupe, amigo. Quatro deles eu já destruí, servindo-me de seus poucos conhecimentos de pilotagem. Mais três ou menos três, não tem maior importância.

Com esta explicação sumária e mais ou menos misteriosa, ele desapareceu; Kitai também não estava mais na cabina. Tako, julgando-se preterido, perguntou a John:

— E eu? Posso também...?

— Espera um pouco — resolveu Marshall. — Gucky vem buscá-lo quando precisar. A única coisa que podemos fazer é esperar.

Gucky se materializou. Não se via ainda nada dos robôs. Deviam estar ainda debaixo d’água, podendo aparecer a qualquer momento na praia do banco de areia.

— Do lado de lá, na margem sul, Kitai. Os goszuls ainda estão em posição de sentido e não sabem o que pensar das maravilhas que estão presenciando. Tome conta deles e não se preocupe com o que vai acontecer aqui. É melhor você se esconder para que os robôs não o vejam.

— Que robôs?

— Estão brincando de submarino, mas devem emergir logo — explicou Gucky, continuando a olhar para a praia do banco de areia. — Mas, vamos embora, não temos muito tempo.

Notou a uns metros de distância da praia um redemoinho na superfície da água. O primeiro dos robôs, com sua cabeça metálica apontou fora d’água.

Gucky gostava de variar. Nada lhe era tão desagradável como a monotonia. E se ele destruísse estes três robôs do mesmo modo como os quatro primeiros, seria terrivelmente monótono.

De um momento para o outro arquitetou um plano e o pôs em execução. Lá na margem sul, havia muitas rochas separadas, que poderia facilmente comandar telecineticamente. Até que enfim o rato-castor podia brincar à vontade, como sua raça lá no Planeta Vagabundo chama a movimentação da matéria por telecinésia.

Os goszuls, que ainda não se tinham recuperado da primeira surpresa, presenciavam uma outra. Ao invés de robôs voando, havia agora rochedos flutuando no ar, em grande fila. Erguiam-se da água, na parte rasa da margem, velejavam num vôo tranqüilo ao longo do rio e se chocavam de repente contra o espelho das águas, para afundar borbulhantemente. Naturalmente, os goszuls não podiam saber que sob estes rochedos voadores havia três robôs, cujas armas poderosíssimas de nada valiam sob a água.

Finalmente surgiu uma ilha nova de pedra, bem rente ao banco de areia, completando assim o plano de Gucky. Debaixo desta ilha, sabia ele, os robôs estariam bem guardados, embora mais tarde eles conseguissem se libertar, ou talvez não. De qualquer maneira, não era preciso se preocupar com eles no momento. O fato de que os robôs soterrados pudessem transmitir à central o que acontecera com eles, também não preocupava Gucky. Foi de encontro a Kitai no esconderijo do banco de areia e perguntou:

— Está tudo pronto?

— Sim, penso que está. Ainda vai levar uns minutos. Tenho que percorrer toda a margem, para não escapar ninguém.

— Ótimo, então continue. Vou recomeçar o transporte das caixas e apanhar Tako. Em meia hora estará tudo terminado.

Voltou às pilhas de caixas e desapareceu com uma delas. Depois que Tako voltou, incumbiu-o de transportar o resto do armamento para o navio, enquanto ele próprio tiraria do fundo do rio as últimas caixas.

Kitai, entrementes, conseguira tudo. Isto se podia ver agora, como os goszuls abandonavam sossegados seus abrigos e se punham em forma para marchar. Um deles assumiu o comando. Sem se incomodarem mais com os dois homens e com o rato-castor na ilha, tomaram a direção do litoral e começaram a caminhar. Antes da desembocadura do rio, havia uma ponte, sabia Kitai. De lá não era muito longe para o porto.

Gucky chegou.

— Chegarão ao porto amanhã, ao meio-dia, e se apresentarão aos nossos — sorriu o sugestor. — Estão agindo de livre vontade e ainda levam alguns amigos, de maneira que amanhã nós temos que contar com uma bela multidão de auxiliares voluntários.

— Poderemos nos utilizar deles — sorriu Gucky, pegando Kitai pela mão. — Feche os olhos, irmão, eu o levo para o navio.

Duas horas depois, todo o equipamento estava bem estocado numa das grandes cabinas da proa, para onde John e seus mutantes tinham mudado, para não deixarem largadas as preciosas caixas. Com toda calma, podiam agora examinar o conteúdo das caixas impermeáveis.

Gucky os ajudou. Apontou para a pilha de pacotes compridos e relativamente chatos, envoltos em chapas metálicas e disse:

— O conteúdo é o mesmo, basta abrir uma delas.

E assim o fizeram. Quando a tampa pulou fora, os quatro olharam estupefatos para a fila dupla de bombas pequenas, do tamanho talvez de uma granada de mão. O invólucro não era de metal, mas de um material plástico de várias cores. Gucky apontando para as vermelhas:

— Estas atuam muito depressa. O período de incubação da infecção é de apenas alguns dias. Dentro de uma semana, a doença irrompe. Nas outras demora um pouco mais. Aí dentro há uma lista exata.

— Guerra bacteriológica — disse John, baixo, sem muito entusiasmo.

— Não se preocupem — disse Gucky, demonstrando muita alegria. — Nas caixas verdes, lá do outro lado, está o anti-soro. Aliás, estamos diante da deflagração de uma guerra que vai ser muito interessante.

— Uma guerra interessante? — continuou Kitai, num tom de reprovação.

Gucky sorriu feliz:

— Esta será de fato interessante.

 

O bloqueio hipnótico feito por Kitai na mente de Geragk não durou muito tempo. Ele havia voltado para seu alojamento depois de terminada a descarga do navio, após haver comunicado ao robô de vigilância competente a execução do serviço. Este providenciou imediatamente a remoção da carga do barco para a rampa do espaçoporto.

Sentou-se na cama de seu alojamento, apoiou a cabeça com as mãos. Os nervos tremiam-lhe debaixo da pele bronzeada. Nos olhos mongolóides havia um piscar nervoso. Não teria esquecido alguma coisa, que lhe parecia muito importante? Alguma coisa que poderia melhorar sua situação perante os deuses?

Por mais que refletisse, não conseguia se livrar do trauma que envolvia sua cabeça como um cinturão de aço. Quando alguém bateu à porta, tremeu todo como um criminoso surpreendido em flagrante. Exatamente hoje, Ralv queria conversar alguma coisa com ele — quase se esquecera disso. Mandou o tardio visitante entrar e fechou de novo a porta. Ralv era o cabeça da organização que pretendia pôr fim no fantasma dos deuses, e aliás, com violência. Sua estatura ultrapassava a de Geragk por uns vinte centímetros. A pele, de um vermelho-escuro, exibia pêlos pretos e fortes tendões. Ralv devia dispor de uma força física descomunal.

— Não se sente bem? — perguntou depois de ter sentado.

Geragk alçou os ombros.

— Não sei direito como me sinto. Quem sabe é apenas o trabalho e o calor de hoje. É como se tivesse um peso amarrado na cabeça.

Ralv olhou para ele com atenção, depois acrescentou:

— Acontece o mesmo com Rendex, hoje. Estive em sua casa agora, aliás ele pertencia ao seu pelotão de estivadores. Será uma casualidade?

— Como?

— O fato de ele estar em condições idênticas a você.

Geragk fitou Ralv.

— Alguma coisa aconteceu no navio, mas eu não me lembro o que foi. Como é que a gente pode esquecer uma coisa assim? Certamente me lembrarei depois, mas por enquanto, não me lembro de nada. Que coisa esquisita.

Ralv mudou de assunto.

— Nossos elementos de ligação conseguiram capturar um robô de vigilância e estrangulá-lo...

— Vocês assassinaram um deus de metal?

— Não diga besteira. Você sabe tão bem como eu que toda esta história de deuses e de deuses de metal é bobagem. Os tais deuses são seres humanos como nós, possuem naves espaciais com as quais podem voar de estrela para estrela. É apenas isso. São aventureiros que exploram a nossa ignorância. Com sua superioridade tecnológica conseguiram escravizar nosso mundo. Haveremos de expulsá-los do planeta de Goszul, como chamam nosso mundo.

— Mas capturar um deus de metal, um robô... O prejuízo não vai provocar a ira dos deuses? Haverão de nos perseguir com estas máquinas de combate.

Ralv dava a impressão de ser dono de um grande segredo.

— Talvez você não saiba ainda, mas nós conseguimos aliados inesperados. Há algum tempo, estão aqui no nosso mundo estranhos que também combatem os deuses e lhes infligem pesados danos.

— Estranhos? — perguntou Geragk, ficando de um momento para o outro muito pensativo. — Como pode acontecer que esta palavra me faz sentir algo diferente? Não estive ocupado hoje com estranhos?

Meneou a cabeça e cerrou os punhos.

— Então? — perguntou Ralv. — Não se lembra de nada ainda?

— Preciso dormir, Ralv. Quem sabe amanhã minha cabeça ficará mais clara. Tenho pressentimento de que é coisa muito importante mesmo. Fora disso, que é que aconteceu mesmo com o robô que vocês pegaram?

— Que aconteceu com ele? Examinamos seu interior e constatamos que se trata de uma simples máquina. Em caso de necessidade poderemos também construir tais artefatos, se tivermos as máquinas para isso, o que não levará muito tempo. Se quisermos expulsar os deuses, temos que tomar suas fábricas e fazer nossas espaçonaves, com as quais atingiremos as estrelas.

— Temos as bases indispensáveis para tais empreendimentos?

— Está tudo preparado. Já podíamos ter começado esta noite, se Enzally não nos tivesse chamado a atenção.

— Enzally? Que quer o vidente?

— Devíamos chamá-lo propriamente de o receptor, pois ele pode ler o pensamento de outros homens, mas não apenas o pensamento dos homens, mas o dos chamados deuses, também. E o dos estranhos.

— Dos estranhos? Terá ele ligação com os estranhos?

— Pequena e por poucos momentos. Ele interceptou uma conversa telepática. Os estranhos devem ser também leitores do pensamento. Mas quando ele interveio, as correntes de pensamento se dissolveram e não ouviu mais nada. Uma coisa, no entanto, ele ficou sabendo: Os deuses são também os adversários dos estranhos. Ocuparam seu planeta natal, mas foram expulsos. Vieram para cá para destruírem uma assembléia geral dos deuses, que chamam, aliás, de saltadores. Nós mesmos já presenciamos como eles foram em parte bem sucedidos.

— Aliados — raciocinou Geragk. — Nunca poderíamos ter contado com amigos e agora de repente os temos. Mas por que não se apresentam? Por que se escondem e não nos procuram?

— Terão seus motivos. Enzally tenta entrar em contato com eles, até agora sem resultado. Ele me avisará quando souber de alguma coisa. Você compreende, nossa situação não é desesperadora, mas é mais prudente que aguardemos um pouco.

— Se os deuses já não estiverem cientes de tudo, em virtude do desaparecimento de um de seus robôs.

— Temos que contar com isto — disse Ralv levantando-se. — E procure se lembrar do que aconteceu hoje no barco. É muito singular que todos que estiveram sob seu comando hoje, estão sofrendo de perda da memória. Há alguma lebre escondida por aí.

Geragk abriu-lhe a porta.

— Mas que será? — disse ele, sem esperar nem receber resposta.

 

A notícia da extraordinária batalha entre um animalzinho e sete robôs de combate penetrou também nos ouvidos dos rebelados clandestinos. Em toda parte, nos centros da administração, estavam os goszuls que davam apoio ao trabalho dos cérebros positrônicos e da multi-ramificada automatização, graças aos ensinamentos hipnóticos que haviam recebido. Alguns deles tinham tomado conhecimento da ordem de ataque repentina dada antes do meio-dia e da destruição dos sete robôs de combate.

E um pouco mais tarde, uma outra notícia provocou enorme perplexidade — mas não somente entre os goszuls, mas principalmente nos círculos governamentais dos saltadores. A companhia dos goszuls destacada para o rio, não estava mais dando nenhuma atenção à missão recebida, ao invés, após a destruição dos robôs, se retirara e se encontrava agora a caminho do porto marítimo. O que iria fazer lá e quem lhe dera ordem para isto, ninguém conseguia saber.

De qualquer maneira, assim que Ralv soube da novidade, procurou imediatamente seu colega Geragk, que não tendo recebido neste dia nenhum comando, ainda estava em casa.

— Não sei o que aconteceu, mas acho absolutamente necessário que nos preocupemos com os nossos. Não quero acreditar que alguns dos nossos subordinados resolvam agir sozinhos. Não vão ter nenhuma chance com os robôs de combate.

Geragk, que ouviu calado o relato, disse pensativo:

— Como era este indivíduo que lutou com os robôs e os venceu. Não era nenhum ser humano?

— Nem goszul, nem saltador, nada. Era um animal.

— Um animal jamais poderá destruir robôs — disse Geragk, sem compreender nada. — Ou será um destes estranhos de quem falou Enzally?

— É possível — continuou Ralv. — Você me acompanha?

Os dois homens saíram apressadamente da casa e pegaram o primeiro carro para levá-los à região do porto. A companhia ainda estava a caminho, não tinha, porém, alterado a direção. Se mantivessem o mesmo ritmo de marcha, chegariam ao porto somente ao raiar do dia seguinte. Portanto, se não quisessem levantar suspeitas, deviam esperar pelo menos até este momento.

A tarde e a noite já tinham passado. Haviam se escondido na casa de um amigo, que também pertencia à organização secreta. Um mensageiro estava a caminho para pôr Enzally a par de tudo. Ele poderia estar de volta em três horas, se não o detivessem.

O tempo passava lentamente.

Não percebiam nada da atividade febril que, entrementes, tomara conta das Centrais de Vigilância. Rádios cruzavam a Terra dos Deuses, em todas as direções e davam conta às esferas governamentais dos saltadores dos inexplicáveis acontecimentos. No momento, uma recém-fabricada unidade de robôs de combate estava deixando a fábrica e marchando em direção ao porto. Chamar forças que mantinham o controle do espaço, parecia muito arriscado para os dirigentes dos saltadores.

Quando o dia clareou, o porto parecia um acampamento militar. Em toda parte, nos entroncamentos mais importantes, havia robôs de combate controlando todo o trânsito de viaturas. Os goszuls, já acostumados, suportavam pacientemente o controle dos saltadores e se comportavam com muita disciplina.

O telepata Enzally conseguiu penetrar na cidade quase despercebido, sem causar suspeita a ninguém. Sua mente perscrutadora localizou Ralv e Geragk. Momentos depois, batia ele à sua porta.

Os dois amigos respiraram tranqüilos quando reconheceram o homem tão importante. Encheram-no de perguntas, mas o velho telepata levantou suplicante as duas mãos e sorriu. Sentou-se na cabeceira de uma cama e disse:

— Dêem-me um momento para descansar, meus amigos, tenho atrás de mim uma longa caminhada, e não foi fácil chegar até aqui. Os saltadores estão irrequietos; estão vendo que não os chamo mais de deuses. O motivo é simples de se explicar: Tive um novo contato com os estranhos. Estão bem perto daqui, talvez mesmo na cidade.

— Aqui na cidade? — irrompeu Ralv e tinha dificuldade de dominar sua surpresa. — Onde?

— Saberemos logo, pois me pediram para hoje cedo entrar de novo em contato com eles. Não sei quantos são, mas pelo menos dois deles são telepatas como eu.

Geragk estava sentado num canto e fixava um ponto na parede, parecendo fazer um esforço muito grande de concentração. Enzally lançou-lhe um olhar rápido e fez um gesto para deter Ralv, que parecia querer falar alguma coisa. O telepata inclinou um pouco a cabeça e fitou Geragk com insistência.

De repente falou:

— Vou ajudá-lo, Geragk, para refrescar sua memória; talvez consigamos saber mais alguma coisa. Que aconteceu ontem no navio?

Ralv compreendeu imediatamente e ficou esperando. Sabia que Enzally estava penetrando nos pensamentos de Geragk e quem sabe conseguiria o telepata ativar a memória apagada.

— Esquisito — murmurou Enzally subitamente. — É como se houvesse um véu diante dos seus pensamentos, posso até percebê-lo fisicamente. Não é de origem corporal. Unicamente um outro telepata, ou força semelhante, talvez um sugestor, poderia tê-lo colocado para amarrar sua memória. Ontem você esteve no barco que estava no porto? E lá aconteceu alguma coisa? Que foi? Não, não precisa falar, isto cansa muito. Basta somente pensar, pensar. Sim, está melhor. Estranhos estavam a bordo? O capitão disse a você? Quatro homens estranhos, que se pareciam com os deuses? E você se dirigiu a eles; e acabou tudo? Você não se lembra de mais nada?

Enzally respirou profundamente e apoiou as costas na parede, sem tirar os olhos de Geragk.

— Olhe para mim. Geragk. Estes quatro homens, você os viu bem? Que disseram a você? Sim, pode se lembrar se quiser. Isto, isto, agora está se lembrando. Foram eles que lhe deram a ordem de esquecer tudo, a você e a todos do comando. Vocês todos esqueceram o que viram. Estes quatro homens são os estranhos que procuramos, são nossos aliados.

Geragk parecia como que saído de um sonho. Os olhos arregalados fixavam o vazio. Depois, abanou a cabeça.

— Tem razão, Enzally. Os quatro estranhos estão no navio. Lembro-me agora, deram a mim e aos meus a ordem de esquecer tudo. Por que isto, se eles são nossos amigos?

Enzally sorriu.

— Você se esquece que no barco havia também robôs. Que aconteceria se desconfiassem? São somente quatro homens, contra um mundo todo. Devem ser precavidos. Mas tenho a impressão que procuram amigos. Havemos de descobrir isso logo.

— Quando? — perguntou Ralv que até então se mantivera calado.

Enzally ergueu a mão direita.

— Agora — murmurou, dando a entender aos dois homens que deviam ficar calados no momento. Sentado na cama, completamente calmo e imóvel, ouvia seu próprio íntimo.

Demorou quase uns dez minutos. Nem Geragk, nem Ralv podiam imaginar o que estava acontecendo naqueles dez minutos. Sabiam que seu telepata estava conversando com alguém, mas não podiam entender nenhuma palavra deste diálogo.

Finalmente Enzally abanou a cabeça muitas vezes para frente, olhou em redor e disse:

— Preparem-se, amigos, vocês vão me acompanhar. Acho que a batalha vai começar.

Geragk sabia a resposta, mas assim mesmo perguntou:

— Para onde vamos?

— Para o porto, um navio nos espera lá.

 

O capitão do veleiro estava convencido firmemente de ter agido por sua própria vontade, quando permaneceu no porto, ao invés de ir embora, como prescrevem as normas. Não podia saber por que agira assim. Kitai tinha arranjado tudo para que suas ordens fossem executadas e o efeito de seu sugestionamento durasse um pouco mais.

A figura do japonês, levemente recurvada, se encostava na balaustrada. Fazia a guarda, enquanto John Marshall e os dois outros mutantes revistavam com toda calma o armamento que Gucky trouxera. Na cabina havia lugar suficiente para colocar tudo em ordem.

O próprio Gucky estava ajudando Kitai em sua missão de aguardar a chegada dos três goszuls. Estava lá sentado, com seus sensores telepáticos à espera. Não demorou muito para que, entre os milhares de impulsos que fluíam em sua direção, pudesse selecionar os certos e isolá-los. Com muita dedicação, ouviu a conversa de Enzally, Ralv e Geragk, quando estes se dirigiam para o porto e com muito jeito evitavam o controle dos robôs de vigilância, o que nem sempre era fácil. Pois, nem mesmo um telepata como Enzally conseguia captar os pensamentos dos robôs.

A lealdade dos três goszuls era inconteste. O simples diálogo, quase à surdina, que Gucky estava captando, era uma prova suficiente. O rato-castor se teleportou para junto de Kitai, que levou um susto quando Gucky se materializou ao lado dele.

— Já estão chegando.

Kitai suspirou.

— É absolutamente necessário que você ainda sobrecarregue mais meus pobres nervos já em pandarecos? Não pode andar meia dúzia de passos, como um homem ajuizado?

— Não sou homem — respondeu Gucky triunfante. Seu orgulho neste ponto era um fato. — Por que devo fazer força, quando tudo pode ser mais fácil?

Kitai sorriu.

— Quando houver oportunidade, vou sugestioná-lo de que é uma galinha. Talvez cheguemos então a ter um ovo fresco.

Gucky contraiu a fisionomia, murmurou algo ininteligível e apontou para o porto.

— Lá vêm os três, está vendo? O mais velho deles é o telepata Enzally, com quem John já manteve muitas conversas. O da direita deve ser Ralv, o chefe dos rebeldes. Logicamente, o da esquerda deve ser o nosso amigo Geragk, que você já teve em tratamento.

Kitai reparou como os três homens, com muita habilidade, se esquivaram de um robô de vigilância e depois simularam ter um trabalho muito importante para realizar no porto. Passando pelos depósitos, aproximaram-se do cais, onde estava o veleiro. Enquanto caminhavam, cumprimentavam naturalmente alguns goszuls que os olhavam com curiosidade.

Gucky, excitado de contentamento, escondeu seu dente de roedor e chiou:

— Vou avisar os outros. Não é exatamente necessário que os três negociadores vejam imediatamente todo o nosso arsenal de munição. Com este tempo bonito, podemos conversar no tombadilho. Que pensa você?

— Procure saber primeiro o que John pensa a respeito. Ele é o nosso chefe.

— Também o meu? — disse Gucky admirado — e desapareceu.

Preferiu de novo poupar suas forças corporais.

Kitai concentrou toda a sua atenção nos rebeldes, que, meio indecisos, estavam parados diante do portão de entrada, que ligava o navio com o cais. Levantou-se e acenou para eles.

Enzally correspondeu à saudação e caminhou para frente.

John Marshall e seus companheiros aguardavam os hóspedes no convés superior. Com auxílio dos meios que possuíam, conseguiram alterar finalmente sua fisionomia. Pareciam agora goszuls normais e não mais se assemelhavam aos saltadores. Já era chegada a hora em que não precisavam mais andar incógnitos entre os comerciantes das galáxias, pelo contrário, queriam passar por nativos, pelo menos perante os saltadores.

Gucky se manteve um pouco nos fundos. Devia aparecer somente mais tarde — e o rato-castor planejava fazer isto de uma maneira muito marcante.

Enzally e John se mediram com olhares perscrutadores. Invisivelmente, seus pensamentos iam e voltavam, pesquisando, perguntando e dando respostas, após o que Enzally estendeu ambas as mãos e caminhou de encontro a John.

— Bem-vindo, filho de um mundo estranho — disse ele no mais puro Intercosmo, língua de comunicação dos saltadores e também do Império Arcônida. — Vieste para nos ajudar, vejo que não mentes.

— Estamos felizes por não estarmos mais sozinhos — afirmou Marshall, cumprimentando também os dois companheiros do telepata. Apresentou depois os três japoneses. — Sentemo-nos aqui, ninguém nos perturbará e podemos, além disso, supervisionar todo o porto. Suponho, Enzally, que temos muitas coisas a debater mutuamente.

Sentaram-se nos rolos das amarras e em esteiras. No céu brilhava um sol quente, no porto havia pouco movimento. O aparecimento súbito dos muitos robôs de vigilância era coisa comum, mas o fato de haver robôs de combates em todos os pontos estratégicos provocava um ar de desconfiança.

— Quereis saber, certamente, alguma coisa sobre a nossa organização — disse Enzally objetivamente. — Ralv é a pessoa indicada para explicar isto, é seu fundador e chefe.

Ralv abanou a cabeça orgulhoso e disse:

— Faça perguntas, senhor, e eu responderei.

John fez sinal que concordava.

— Permaneçamos no tom confidencial, como convém aos conspiradores e seus aliados, Ralv. Minha primeira pergunta a você é: Qual é a força do seu grupo de resistência? Com quantos elementos conta?

Ralv fez uma cara de surpresa.

— Honestamente falando, não sei exatamente. O conjunto das circunstâncias exige, em benefício da segurança própria, que não tenhamos uma organização como deveria ser. Só posso dizer que temos aliados em toda parte, que gostariam que os deuses desaparecessem hoje e não amanhã. Nem todo mundo está pronto para lutar por estes ideais e abdicar desta vida relativamente cômoda e segura ou até mesmo para correr o risco. Eles... você compreende, como estou pensando?

John fez que sim, mas não disse nada. Ralv continuou:

— Temos nossa senha. “Queremos caminhar com segurança”, assim dizemos. Se recebermos a resposta correspondente, sabemos que estamos lidando com um membro de nossa organização.

— Isto não é um pouco perigoso?

— De maneira alguma, não há traidores no meio dos goszuls, há no máximo covardes.

— O senhor poderia, por favor, me explicar qual é neste caso a diferença?

Enzally se intrometeu:

— Eu posso explicar? Nenhum goszul irá para os saltadores, por motivos egoísticos, para lhes dizer que existe um grupo de resistência. Independente do fato de que a ira de seu próprio povo o haveria de atingir, pois os saltadores não os protegeriam. Mas nós temos muita gente a quem agrada a vida que levam; estes jamais se revoltarão contra os saltadores, mas também não trairão os lutadores da resistência. Estes são os tais que chamamos de covardes.

— E se alguém os obrigar a trair seus patrícios?

Enzally sorriu friamente.

— Estamos acostumados a suportar qualquer sofrimento e, em caso de necessidade, suportamos até a morte, mas não abrimos a boca.

Quem ria agora era John, mas era um sorriso de reconhecimento.

— Neste caso, eu não os chamaria de covardes, Enzally. São corajosos, mas não conseguem tomar uma decisão. É só isso. Não os condenemos. De qualquer maneira, não representam um empecilho. É isto que eu queria saber.

— E sua segunda pergunta? — perguntou Ralv.

— Existem rebeldes só aqui nesta cidade ou também em outras?

— Toda a Terra dos Deuses está cheia de rebeldes, esperando apenas por um comando para caírem em cima dos, assim chamados, seus senhores. Possuem até ferramentas com que atacam e deixam fora de combate os robôs.

— Mesmo robôs de combate?

Ralv fez uma cara triste.

— Ainda não, infelizmente. Mas quando ocuparmos as máquinas e as fábricas haveremos de...

— As fábricas estão guardadas pelos robôs de combate — interrompeu John seriamente. — Você vê que não se pode contar este ponto como realizável. Temos que proceder de outra maneira se quisermos liquidar os saltadores e seus robôs.

— Como? — perguntou Ralv perplexo.

— Por que estamos aqui reunidos? Vejam bem, os robôs são seus senhores, porém são ao mesmo tempo servos dos saltadores, que vocês chamam de deuses. Expulsemos, pois, os saltadores deste mundo, que eles então deixam para trás seus robôs, que em virtude de sua programação continuam nossos inimigos figadais. Mas isto não é problema insolúvel, pois, sob certas condições, os robôs podem ser desprogramados. Se os saltadores desaparecerem, a maior batalha já está ganha.

Ralv sorria incrédulo, do mesmo modo como Geragk. Enzally, porém, parecia compenetrado em seu íntimo, demonstrando na fisionomia traços de preocupação.

— Temos os meios e um plano para realizarmos o incrível — continuou John e, olhando para Ralv: — Para execução deste plano, preciso de seu apoio e de sua confiança ilimitada.

— Se Enzally confiar em você, nós também confiaremos — disse Ralv simplesmente. — Ele pode ler seus pensamentos e sabe que você não está mentindo.

— Eu também sou telepata e posso proteger meus pensamentos — avisou John. — Posso mesmo lhe impingir pensamentos falsos. Meu amigo Kitai é um sugestor, pode impor a vocês todos a vontade dele e vocês pensarão que é a vontade de vocês mesmos. Estão vendo que a sua confiança tem que ser muito maior do que supõem. Você tem realmente a certeza de encontrar em nós seus legítimos aliados?

Ralv abanou a cabeça afirmativamente, sem pestanejar.

— Certamente, pois você não nos contaria tudo isto, se pretendesse fazer um jogo sujo. Diga-nos, pois, o que devemos fazer.

John Marshall não precisava pesquisar os pensamentos de seu interlocutor para perceber a veracidade de suas palavras. Mas devia agir com muita prudência, pois se Ralv soubesse o que se iria exigir dele e de sua gente, talvez ficaria indeciso.

— Pode ser — disse ele, transmitindo ao mesmo tempo a Enzally o seguinte comando mental: “Você deve calar a boca agora, pois não quero proteger meus pensamentos. Você poderá lê-los abertamente. Não se espante, quando souber da verdade. Mais tarde conversaremos mais.” Mais alto, disse ele a Ralv: — Pode ser que minhas ordens lhe pareçam desumanas e cruéis, principalmente porque atingem seus próprios amigos. Muitos deles terão que se declarar prontos para adoecer espontaneamente.

— Para ficar doente? — disse Ralv perplexo.

— Você já deve ter compreendido há muito tempo, que é meramente impossível expulsar os saltadores para fora daqui à força. Minha raça, que está em estado de beligerância com os saltadores, não pode oficialmente se intrometer nestes assuntos dos comerciantes, portanto, temos que permanecer incógnitos. Por outro lado, vocês são demasiadamente fracos para se lançarem abertamente contra eles. Temos, portanto que usar de astúcia.

— Até aqui, só posso concordar — disse Ralv.

Também Geragk fez sinal que sim. Enzally continuava de cócoras, imóvel, concentrado em si mesmo.

— Uma astúcia, portanto — continuou John, escolhendo palavras para expor seu intento aos goszuls, o mais suavemente possível. — Os saltadores só conhecem a violência, quando se trata de atingirem seu objetivo. Haveriam, pois, de defender este planeta com violência, se tivessem que defendê-lo de um ataque. Que fariam, porém, se fossem atacados por algo completamente desconhecido a eles? Digamos, por exemplo, por uma doença, por uma terrível epidemia?

— Uma epidemia? — Ralv se assustou, apesar de tudo. — Você supõe que uma epidemia poderia expulsá-los? E quando isto acontecesse, de que nos serviria um planeta devastado pela epidemia? Morreríamos todos juntos.

— Trata-se de uma epidemia sem desfecho mortal — consolou John. — Mais ainda, possuímos um antídoto que produz efeito imediato. Uma única injeção é suficiente para deixar o doente, quase que imediatamente após, completamente curado.

O chefe dos rebeldes concordou lentamente.

— Se estou compreendendo bem, vocês querem travar uma guerra bacteriológica com os saltadores.

— Não apenas com os saltadores; em certo sentido, também com os goszuls.

Um manto de sombra encobriu a fisionomia do interlocutor. Abanou a cabeça confuso.

— Não estou compreendendo. Por que também contra nós, se a questão toda é expulsar os saltadores?

— Aí está a astúcia. Se os saltadores apenas suspeitarem de que se trata de uma epidemia artificial, que tem unicamente a finalidade de expulsá-los daqui, haverão de procurar antídotos e não sairão deste planeta. Não, no nosso plano de ação, temos que dar a impressão, em quaisquer circunstâncias, de que se trata realmente de uma verdadeira epidemia, surgida de repente neste planeta, para a qual não há cura. Somente assim é que conseguiremos que eles fujam do planeta dos goszuls, para nunca mais voltarem. Sua fuga deve se desenrolar com tanto pânico e afobação que deixem aqui simplesmente suas instalações técnicas e seus robôs, para não levarem também para o espaço a terrível doença.

Ralv e Geragk cruzaram seus olhares. Finalmente, falou Ralv:

— Mas não morrerá ninguém e mais tarde todos ficarão curados?

— Naturalmente, a epidemia é extremamente contagiosa e devemos contar com que quase a metade da população seja atingida por ela, porém ninguém morrerá, pelo contrário. No meu planeta natal, comprovou-se, com a experiência que lá fizemos, que depois da cura surgiram efeitos benéficos. É como o soro antídoto, que no fundo não é outra coisa senão uma doença que faz bem. Primeiramente fica-se com febre, para depois cair num sono de convalescença, para acordar depois completamente são. Assim será também com a nossa epidemia artificial. Assim que os doentes tomarem mais tarde a injeção, dormirão e acordarão com saúde. Com um detalhe: após este tratamento, sua inteligência aumentará em pelo menos 20%. É uma vantagem que virá em benefício de toda a sua raça.

Enzally ergueu de repente os olhos.

— John Marshall, você não quer dizer a Ralv e Geragk em que consiste propriamente esta epidemia? Acho que eles têm o direito de saber isso.

— É claro que tenho a intenção de lhes contar tudo. Seria, porém, taticamente muito importante que, fora de nós, ninguém soubesse que esta epidemia realmente não prejudica a ninguém. Somente o medo sincero dos nativos pode convencer os saltadores de que a epidemia é de origem natural — fez um sinal para Enzally e depois continuou, virando-se para os dois outros goszuls, usando um timbre de voz diferente: — Aparecem primeiramente no rosto da pessoa atingida pela doença placas vermelhas, que depois se espalham por todo o corpo. Após uma semana, mais ou menos, a memória começa a enfraquecer, até desaparecer completamente. Outros sintomas não existem. Assim que a injeção, com o soro, for aplicada, começa a doença a desaparecer e em três dias está tudo normal. A memória volta novamente, as placas vermelhas somem, e a inteligência começa a trabalhar melhor que antes.

Ralv ficou olhando por muito tempo para seu companheiro, antes de falar:

— É, pois um estado passageiro, mais ou menos como um resfriado.

— Sim, pode-se comparar com um resfriado, embora os sintomas externos sejam muito mais assustadores. Mas tem que ser assim para atingir seu objetivo. Agora, eu pergunto se está preparado para transmitir a doença entre seu povo. A companhia que está marchando para cá vai ajudar você. Ralv estarreceu e ficou pálido.

— O quê? Quer que eu infeccione meu povo?

— É o único modo de convencer os saltadores de que eles têm que deixar o planeta, antes que a epidemia os atinja.

Ralv ficou por uns momentos fitando a água turva do porto.

Finalmente, virou-se para seu interlocutor e disse:

— Está bem. Explique-me o que tenho que fazer.

 

Demorou quatro semanas, mas aí estava o grupo de resistência de Ralv, como uma unidade bem camuflada e excelentemente organizada. Seus agentes estavam distribuídos por toda parte, nas Centrais de Administração, em todas as instalações dos saltadores e de seus robôs.

A Terra dos Deuses era um pequeno continente de, talvez, 120.000 quilômetros quadrados. Seu comprimento tinha uns 500 quilômetros, com uma largura em geral de 250. Os líderes dos saltadores residiam em diversos lugares e mantinham contato entre si através do rádio. Contatos com outros continentes do planeta eram muito raros. Os saltadores não tinham realmente a intenção de se estabelecer aí. Interessava a eles, primeiramente, um ponto de apoio, embora ninguém tivesse nada contra os lucros que obtinham dos nativos.

John Marshall mantinha diariamente contato com Enzally, por via telepática, para estar a par dos acontecimentos. Um dos objetivos destes contatos era o “Navio dos Mortos”, uma operação importante que daria início ao movimento contra os saltadores.

Do sucesso dessa operação “Navio dos Mortos” dependia o fato de os saltadores se deixarem contaminar — contaminar de pânico, para abandonarem de uma vez por todas este planeta que não lhes pertencia.

 

Dos lados do oeste, se aproximava da Terra dos Deuses um veleiro de porte médio. Dos dois mastros pendiam as velas frouxas e em desordem, pois a brisa era muito fraca, vinda do oeste, mal dando para mover o barco. Navegava lentamente a uma distância de duzentos quilômetros do litoral da Terra dos Deuses, aproximando-se do continente.

Algumas figuras se moviam pelo convés, vagando de um lado para o outro, sem nada fazer, embora até um cego pudesse ver que havia muita coisa para fazer. Por todo canto havia sujeira. Nas escadas reinava desordem e confusão. Peças de roupas, dependuradas sem sentido, balançavam num vento fraco que não refrescava nada. Debaixo do convés, as coisas não estavam melhores. Alguns marinheiros deitados nos beliches primitivos de suas cabinas despertavam abobalhados e ninguém se preocupava com eles e mesmo o capitão do quase abandonado navio não ligava a nada, indiferente mesmo ao rumo que o barco tomava. Estava de pé no tombadilho, atrás do timão, mantendo-o relaxadamente com uma mão, enquanto seu piloto dormia lá embaixo. Mas mesmo sem o leme, o barco se encaminhava para o leste. Que pretendia ele na Terra dos Deuses?

O capitão passou a mão pela testa, abandonando o timão. Sim, que queria ele na Terra dos Deuses? Não sabia mais. Lembrava-se vagamente apenas do irrompimento da peste há duas semanas atrás, quando deixavam o porto do Continente do Oeste — com que objetivo, mesmo?

O primeiro a ser atingido foi o cozinheiro, exatamente o cozinheiro. Apareceram-lhe placas vermelhas no rosto e principalmente na nuca. Isolaram-no imediatamente, mas já era tarde demais. Dois dias depois, as misteriosas placas vermelhas se manifestavam, sem exceção, em todos os membros da tripulação. Não havia propriamente dores, mas uma febre baixa constante.

Somente uma semana depois é que o cozinheiro perdeu a memória. Por mais que os outros se esforçassem, não conseguia mais se lembrar quem ele era. Sabia apenas que estava num veleiro e adoecera. A partir deste ponto, sua memória funcionava de novo. Tudo que havia acontecido antes simplesmente não existia.

Então, também dois dias depois, todos os outros perderam a memória. Cada um no navio tinha a impressão de ter nascido há uma semana atrás. Exatamente há oito dias viera ele ao mundo, com uma inteligência funcionando, porém, sem memória. Era esta a situação. Ou seria talvez loucura?

O capitão encolheu os ombros. Era-lhe mais ou menos indiferente o que estava se passando. Não sabia por que se dirigia para o leste. Os porões de carga estavam vazios, como se tivesse que apanhar alguma coisa na Terra dos Deuses. Mas onde e o quê? Não sabia nem mais de que porto havia partido. Nenhuma resposta.

Olhou lá para baixo, para o convés, observando aquelas figuras que se moviam atônitas e que representavam sua tripulação. Que poderia fazer com eles? Uma pessoa sem memória é como uma criança, apenas com muito menos inteligência. Podia censurá-los? Que iria acontecer com eles?

Quando chegassem a um porto, todo mundo não fugiria deles, como se foge da peste? Não seriam presos ou mesmo liquidados, para que a peste não contaminasse os outros? Peste que não tinha cura... para a qual não havia remédio.

Pelos lados do leste, bem distante no horizonte, surgiu um ponto que se aproximava rapidamente. O capitão do veleiro comprimiu os olhos, tentando distinguir quem vinha ao seu encontro. Um veleiro não podia ser, de modo algum, seria então um destes barcos dos saltadores que viajavam sem vento. E era exatamente isto.

Se descobrissem o que se passava aqui no navio, haveriam de chegar à idéia de afundar aqui mesmo o veleiro, para evitar a propagação da epidemia.

Mas, apesar de ter perdido a memória, a inteligência do capitão trabalhava muito mais firme do que antes. O primeiro efeito positivo da epidemia já estava se manifestando. A quota de inteligência do capitão tinha aumentado. Mais tarde, quando recebesse o soro de regeneração, este efeito ficaria para sempre.

Como é que sabia da existência da Terra dos Deuses e dos próprios deuses?

Quando o esguio contratorpedeiro se aproximou e se encostou a bombordo, o capitão já sabia como iria salvar a si e a sua tripulação. Mas seu temor foi sem fundamento.

O saltador que se encontrava a bordo do contratorpedeiro não pensava em afundar o veleiro com sua tripulação contaminada. Ele estava é muito curioso e queria saber exatamente tudo. As informações que recebera da Central de Vigilância aumentavam seu interesse. Não podia supor o que o estava esperando mas tinha a certeza de que se tratava de algo muito importante.

Um grande perigo se aproxima do oeste, era a comunicação da rádio dos robôs. Este perigo estava a bordo de um veleiro cuja posição era conhecida. Era indispensável uma severa investigação. Mais do que isto, não sabiam os robôs.

O governador, seu nome era Gorlap, não perdeu um minuto, mandando preparar um contratorpedeiro. Ele, pessoalmente, iria ao encontro do misterioso veleiro, para descobrir o que realmente era tão perigoso nele. Puxa, um barco a vela, ser perigoso para os invencíveis saltadores? Ridículo.

Não sabia que haveria de mudar de opinião, em breve.

Deu ordem a dez robôs de combate, para que, como vanguarda, entrassem no veleiro, que aliás não dava o mínimo sinal de resistência. Pelo contrário, os marinheiros que estavam na balaustrada assistiam a tudo indiferentemente e nem se mexeram.

Os dez robôs entraram a bordo, sem encontrar nenhuma resistência. Gorlap não queria se arriscar, mandou também dez robôs de vigilância, cuja inteligência era mais desenvolvida, embora não possuíssem armas. Se houvesse alguma coisa errada em toda esta história, eles haveriam de notar.

E notaram realmente alguma coisa. Um deles transmitiu a mensagem:

— Todos aqui a bordo estão doentes.

Gorlap não podia esconder sua surpresa.

— Doentes? — transmitiu ele de volta, fixando os olhos nos marinheiros lá do outro lado, debruçados na balaustrada. — Que quer dizer isto, doentes?

— Não podemos identificar a doença — respondeu o robô.

Ninguém podia dizer que Gorlap era covarde. Armou-se com um aparelho de raio mortífero e saltou pela balaustrada, entrando no esquisito veleiro. Sua barba avermelhada, característico de sua raça, tremia de excitação. Os robôs de combate estavam imóveis em suas posições. Não encontraram nenhuma resistência e se mantinham passivos.

Quando Gorlap viu as caras imundas dos marinheiros, levou um susto. Os saltadores não podiam se queixar do progresso de suas ciências médicas, mas o medo de doenças desconhecidas ainda calava fundo em seu subconsciente. Quantas vezes já acontecera que desciam num planeta estranho e eram atacados por um bacilo, contra o qual não tinham defesa. Quantas famílias já tinham sido dizimadas, antes que os médicos tivessem desenvolvido um antídoto correspondente. Aqui nos planetas dos goszuls não havia doenças desconhecidas, pelo menos até então.

O homem que estava atrás do timão, soltou a roda e se encaminhou para Gorlap, que permanecia imóvel no parapeito, como se não fosse mais dono dos próprios movimentos.

— Que aconteceu — perguntou o saltador sufocado, fixando os olhos nas placas vermelhas que ocupavam quase toda a pele. — Vocês estão doentes?

O capitão, por uns segundos, ainda ficou pensando como era possível que ele ainda entendesse a língua dos deuses, se tinha perdido toda a memória. Não achou resposta a nem quis quebrar mais a cabeça com isso.

— Uma epidemia — disse ele arrastando-se — irrompeu há duas semanas. Ninguém neste veleiro está com saúde.

— Há mortos?

— Nenhum. A doença parece não ser mortal.

Gorlap parecia mais aliviado. Quem sabe seria uma simples infecção e nada mais?

— Qual é o porto de destino do navio? O capitão encolheu os ombros.

— Não sei.

— Não sabe? Deve saber qual é a incumbência que recebeu.

— Talvez eu soubesse antes, mas agora esqueci. Esquecemos tudo. A epidemia nos tirou a memória e eu sei apenas que sou comandante deste navio e acordei há oito dias atrás.

— Acordou?

— Sim, como de um sonho. Tudo que havia antes desapareceu no nada. Pouca coisa ficou. Eu nem sei mais meu nome. Ninguém neste navio sabe o seu nome.

Gorlap deu um passo para trás e levantou os braços, como que se protegendo do comandante. Não longe dali, um robô de combate se pôs em estado de prontidão.

— Todos vocês perderam o juízo? — suspirou Gorlap, horrorizado.

— Não o juízo — defendeu-se o capitão. — Somente a memória, mas é igualmente desagradável. A epidemia é contagiosa. O senhor não deve permanecer muito tempo aqui.

Gorlap se afastou mais ainda.

— Nós temos antídoto — disse, procurando dar coragem a si mesmo. — Seu navio não deve, porém, ir para o porto da Terra dos Deuses. Volte para trás.

— Para trás, onde? Não sei de onde venho.

Gorlap mordeu os lábios.

— Você vai de volta para o oeste ou os meus robôs matarão todos vocês e incendiarão o navio. Só assim posso ficar tranqüilo de que a epidemia não atingirá a Terra dos Deuses.

Vagarosamente, o capitão abaixou a cabeça. Um sorriso frio percorria seu semblante.

— O senhor se engana — disse ele. — Se quer proteger a Terra dos Deuses do flagelo do esquecimento, deve destruir não somente meu navio, mas também seus robôs e a si mesmo. Todos vocês já estão com o germe da doença inoculado.

O saltador pulou por cima da balaustrada e voltou para bordo de seu contratorpedeiro. Teve um momento de hesitação, mas depois, sem dizer uma palavra, desapareceu sob o convés. Segundos após, o barco fez uma curva e disparou com toda velocidade rumo ao leste.

Gorlap não destruíra o terrível veleiro, mas deixara lá seus vinte robôs. Talvez tivessem eles realmente o germe provocador da doença desconhecida.

E ele, Gorlap?

O saltador tentou espantar o terrível pensamento. Não esteve em contato direto com o capitão doente.

Contato?

Sim, as solas de seus sapatos tocaram as pranchas de madeira do veleiro e suas mãos também tocaram a balaustrada.

Desgraçado, deveria ter afundado o veleiro. Se o vento continuasse assim, alcançaria o porto em uma semana. Até lá, teriam que ser tomadas todas as providências. Nada estava ainda perdido. Qualquer Central de Comando podia ainda transmitir a ordem aos robôs do navio contaminado, para que afundassem o barco. Os robôs obedeceriam imediatamente, mesmo que com isso fossem parar no fundo domar. Estando não muito distante do litoral, conseguiriam se salvar, caso a pressão da água não os destruísse antes.

Gorlap olhou para suas mãos. A pele estava bem morena e sadia.

Quanto tempo levaria até que começassem a aparecer as horríveis placas vermelhas? Será que iriam aparecer?

 

Em órbitas diferentes estavam ainda muitas naves dos saltadores circunvoando o planeta Goszul. Tratava-se dos patriarcas de cada um dos clãs que estavam se reunindo neste ponto de apoio situado um pouco para fora das linhas comerciais, a fim de planejarem o ataque contra a longínqua Terra.

Assustados com as fantasticamente rápidas ações dos mutantes e horrorizados com os prejuízos sofridos, abandonaram o planeta com suas naves, e no momento se mantinham no espaço, que não tinha nenhum segredo para eles. Aguardavam lá em cima que os governadores conseguissem em pouco tempo restabelecer a normalidade.

Não sabiam quem era seu inimigo e, algumas semanas depois, quando a Terra dos Deuses já estava mais calma, começaram a se sentir mais seguros. Os primeiros patriarcas desceram no gigantesco espaçoporto da Terra dos Deuses, sem abandonarem suas naves. As discussões deviam ser retomadas brevemente.

Neste meio tempo, o veleiro com os marinheiros doentes foi afundado na entrada do porto da cidade. Os robôs receberam a ordem respectiva de Gorlap, ainda antes de ele perder a memória. Foi sua última ação consciente, porque depois disso o passado desapareceu para ele. Desesperado e sem nenhum interesse pelo que se passava em torno dele, vegetava em cismas infrutíferas, até que o governador da região vizinha o veio visitar.

Assim a epidemia se abateu sobre a segunda vítima entre os saltadores.

Entrementes chegavam as primeiras notícias de catástrofes nos continentes primitivos. Ralv e sua organização cuidava para que estas novidades inquietadoras chegassem aos ouvidos dos saltadores também através das Centrais de Vigilância.

Com isto se conseguiram duas coisas. Primeiramente, saiu um decreto que declarava o porto fechado para todo tipo de navios, interrompendo assim as ligações com outros continentes. Segundo, fazia com que os saltadores se sentissem cada vez mais inseguros.

Levaram Gorlap para uma instalação hospitalar controlada por robôs, onde se tentou descobrir a causa da epidemia. Mas não chegaram aos agentes provocadores e por isso não puderam fabricar nenhum anti-soro. Quando uns dias depois, o governador da região vizinha também adoecia e, quando depois das placas vermelhas, começou a fase do esquecimento, um grande pânico se apoderou dos outros dezoito saltadores. Doenças e morte não lhes eram conceitos desconhecidos, pois não eram imortais, mas em pleno uso da razão, perder de repente a memória, parecia-lhes pior do que a morte.

Os saltadores que estavam nas naves pensavam naturalmente bem diferente. Julgavam-se bem seguros e distantes dos acontecimentos. O planeta Goszul não lhes significava nada, a não ser um ponto de encontro passageiro. Se havia aí alguma coisa a perder, eram no máximo, as preciosas instalações técnicas e os fantásticos robôs, cada um deles valendo uma verdadeira fortuna.

O patriarca Ralgor, ao ouvir as notícias alarmantes, pensou diretamente nesses robôs. Mentalmente ele já estava vendo como os primitivos nativos caíam em cima dos robôs de vigilância desarmados e os destruíam, antes de chegarem os robôs de combate com seus raios mortíferos.

Talvez não fosse preciso ir tão longe. Se viessem em auxílio dos governadores, podiam conseguir ainda um ótimo negócio. Ralgor sempre tivera o desejo de possuir um robô de combate novinho em folha, mas nunca teve dinheiro para isto.

Pensando assim, tomou a direção de sua nave Ral II, saiu de órbita e desceu no espaçoporto da Terra dos Deuses, onde já haviam pousado várias naves dos clãs, permanecendo em espera.

Ralgor não tinha absolutamente vontade de ficar esperando parado até que o flagelo atingisse todo o planeta e com isso também a Terra dos Deuses. Queria bancar o pioneiro, dar o primeiro exemplo, para depois poder ser recompensado como o homem da iniciativa. Assim que pousou em terra, pôs-se em contato com as outras naves.

Contactou primeiramente Etztak, um dos mais idosos patriarcas dos mercadores reunidos. O desconfiado barba cinzenta não lhe quis dar ouvidos, até que o muito mais jovem Ralgor lhe fez uma certa proposta, passando daí a ouvi-lo com crescente interesse.

— ...é claro que, sob estas condições, não podemos mais perder tempo. Se não quisermos nos prejudicar, não podemos mais ficar parados aqui. Está na hora de tomarmos nossa decisão. Por que nos reunimos aqui? Para elaborar um plano de como podemos transformar o planeta Terra numa colônia comercial. Pacificamente, parece que não é mais possível, resta-nos então apenas o caminho da luta, onde teremos de contar, aliás, com destruições.

— Para mim, não se trata de uma colônia comercial, o que me interessa é me vingar de Rhodan. Ele causou grandes prejuízos ao nosso clã.

— Por que, pois, ficamos aqui esperando, enquanto os goszuls causam mais danos? Quantos dos nossos eles já mataram?

— Foram os goszuls? — perguntou Etztak espantado. — O método parece mais de uma outra raça, que eu conheci a mil anos-luz daqui.

— Os terranos não sabem onde os saltadores realizam seu encontro.

— Está bem — disse Etztak, aceitando a ponderação de Ralgor. — O que você propõe?

— Que convoquemos imediatamente uma reunião e tomemos uma decisão de como e quando atacaremos a Terra.

Etztak abanou a cabeça lentamente.

— Bem, eu estou de acordo e apoio seu plano. Mas, e a respeito do planeta Goszul? Ainda não ouviu falar da terrível epidemia que devasta os continentes primitivos e que já está penetrando na Terra dos Deuses?

Dois dos governadores já foram atingidos e perderam a memória. Não conhecemos nenhum antídoto.

Ralgor percebeu que estava chegando perto de seu objetivo.

— Por isso, recomendo uma decisão rápida por causa da Terra. E depois abandonamos o planeta Goszul, antes que a peste nos atinja. Queremos ao menos salvar os preciosos robôs. Podem ser reprogramados a qualquer momento pelos nossos cérebros positrônicos de bordo.

O barba cinzenta sorriu compreensivo.

— Começo a entender, Ralgor, mas não sei se posso aderir a suas conclusões. As instalações no planeta Goszul pertencem a todos os clãs coletivamente. Não estaríamos nos enriquecendo ilicitamente?

Ralgor achou melhor mudar de assunto.

— Vai convocar a reunião, Etztak, você é o mais velho.

— Vou perguntar aos outros se querem se reunir — prometeu o patriarca, sem se comprometer.

Ralgor interrompeu o diálogo e ficou sentado sozinho, muito tempo em sua central. Depois resolveu dar uma volta pela vizinhança. Certamente não podia prejudicar. Junto com seu navegador, deixou a Ral II e tomou o primeiro carro-robô para a cidade.

 

John julgou conveniente deixar seu quartel-general no veleiro. Já há muito tempo que ele e seus mutantes haviam tomado a dose de injeção que os imunizaria da epidemia do esquecimento, embora Gucky afirmasse constantemente que o aumento do quociente intelectual proveniente da doença não prejudicaria a ninguém. Também os chefes dos rebeldes estavam vacinados contra a aparentemente terrível doença, que na realidade não tinha a gravidade nem de uma gripe normal. “O que representa a perda da memória”, explicava John sempre que se tratava do assunto, “se podemos recuperá-la a qualquer momento e muito mais vigorosa que antes? É como uma anestesia sem dor”, dizia ele, “da qual se acorda com saúde.”

O veleiro estava mais ou menos a cem metros do cais, no ancoradouro. Tako acabava de voltar de uma operação. Como de hábito, materializou-se no meio dos mutantes, sentados no convés superior, combinando com Ralv as próximas providências. Gucky estava deitado de costas, ao lado de Tama e cocava a barriga.

Apenas Ralv se assustou; não havia se acostumado ainda com as extraordinárias faculdades de seus novos amigos.

John olhou para cima.

— Conseguiu alguma coisa, Tako?

O japonês fez sinal afirmativo e sentou-se junto deles.

— Tenho que confessar que a Organização do Movimento de Resistência, nas últimas semanas, fez enormes progressos. O nome de Ralv se tornou uma palavra mágica. Obedecem a ele incondicionalmente, com toda confiança e seguem suas ordens. Levei a caixa com as bombas provocadoras da epidemia para o Continente do Leste. Lá é que o conteúdo vai ser distribuído.

— Você esteve muito tempo fora, talvez horas.

— O grupo de rebeldes lá vive muito isolado. Tinha que responder a algumas perguntas; embora se confie muito em Ralv, não se pode desconhecer completamente a curiosidade, você compreende, não é, Ralv.

O revolucionário de pele bronzeada fez sinal afirmativo.

— Minhas instruções são sucintas e não explicam muita coisa. O povo aproveita naturalmente a oportunidade para olhar um pouco atrás dos bastidores. Que foi que você contou a eles?

— Nada mais do que a verdade.

John franziu as sobrancelhas.

— Você disse o que lhes vai acontecer? Eles sabem, portanto, que vão se contaminar a si e aos outros, que haverão de perder a memória?

— Sim, e lhes expliquei ainda por que tem que ser assim. Se desejam que os saltadores abandonem sua terra, sem guerra e em debandada de pânico, devem fazer o que se exige deles. Talvez os goszuls não cheguem a penetrar completamente nosso plano, mas sentem que não há outro caminho. As bombas ainda hoje à noite vão explodir em diversas cidades do Continente Leste e espalhar as bactérias.

— Podemos esperar, portanto, que dentro de uma semana os sintomas externos da epidemia já se manifestem por lá. Com isso termina a primeira parte de nossa atividade.

John parecia mais aliviado.

— Não é fácil fazer um país todo ficar doente, mesmo que se tenha já preparado o remédio para a cura. Mas quando este país ficar livre e seus filhos recuperarem a saúde, sua inteligência vai crescer tanto que saberão o que fazer com sua força mental. A curva de crescimento futuro vai ser vertiginosa.

Por uns momentos houve silêncio. O sol queimava num céu sem nuvens e fazia com que a água quase parada do porto cintilasse como chumbo líquido. Alguns goszuls desocupados vagavam pela beira do cais à espera de um biscate. A Central de Robôs desde muito tempo não transmitia nenhuma ordem.

Os goszuls não sabiam que o germe da epidemia neles já incubado continuava agindo e que, talvez no dia seguinte, provocasse o aparecimento das placas vermelhas em suas faces.

Tako suspirou:

— Gostaria de dar uma cochilada, John. Qual será a próxima missão?

— Não posso dizer nada ainda. Hoje de noite é que Enzally vai entrar em contato comigo. Vai depender dele quando e onde atacaremos. Os saltadores se mantém em expectativa. Depois que dois governadores adoeceram, estão com mais precaução. Estão evitando todo contato com os nativos. Além disso, os robôs afundaram o nosso navio dos mortos. Felizmente, toda a tripulação se salvou a nado.

— Quer dizer que não esqueceram a natação? — admirou-se Tako.

John sorriu displicentemente.

— A memória desaparece, mas não a faculdade de realizar ações adquiridas pelo hábito. Além disso, a memória não foi dissolvida. Como seria isto possível, se mais tarde tudo tem que voltar a funcionar. Em algum lugar tem que estar esta memória. Nadaram, pois, para a praia e transmitiram a doença aos outros.

Ralv se levantou.

— Tenho que liquidar uns assuntos, se souber de alguma novidade, lhe mandarei uma comunicação.

Dirigiu-se à balaustrada do convés médio e desceu pela escada de corda para o barco que estava esperando ao lado do veleiro. Com remadas tranqüilas, o barco afastou-se em direção ao cais. Deu ainda um abano de mão e depois sumiu entre os silos dos armazéns.

Kitai suspirou.

— É um rapaz legal — disse. — Deve confiar de fato em nós plenamente, do contrário não faria tudo isto para nós. Afinal de contas, ele é quem carrega toda responsabilidade perante seu povo.

— Sem nós, os pobres goszuls ficariam uma eternidade sendo dominados e explorados pelos saltadores. Ralv sabe disso.

— Tem razão, John, mas nem por isso eu deixo de admirar a coragem cega deste rapaz. Sua influência é enorme. Nos últimos dias, não é mais necessário impor nossa vontade a ninguém.

John queria exatamente responder, quando levantou de repente a mão, fazendo sinal ao japonês para que parasse de falar Também Gucky endireitou-se repentinamente e pôs-se a escutar com os olhos fechados. Os três japoneses se mantiveram em silêncio, pois sabiam que os dois telepatas estavam recebendo uma mensagem mental. Só podia vir de Enzally, pois de acordo com o que sabiam, não havia nenhum outro telepata neste planeta.

Era um fenômeno de aspecto interessante e ao mesmo tempo inquietante. Um homem e um rato-castor, sentados imóveis no chão de madeira, ao sol causticante, ouvindo calados o que uma voz muda lhes tinha para dizer. No rosto de John, lia-se uma grande tensão, como se ouvisse algo sombrio, mas logo depois esboçou-se um leve sorriso. As reações de Gucky corriam admiravelmente sincronizadas. O seu dente roedor estava indicando que a quase monotonia das semanas anteriores parecia que ia acabar. Apesar de que o pêlo da nuca se eriçava de vez em quando, sinal de que a variação que estava se aproximando, trazia também muita dificuldade. Mas não se podia perceber em que consistia esta variação.

Enzally devia ter muita coisa para comunicar, porque o silêncio artificial durou mais de quinze minutos.

Finalmente John terminou aquela postura rígida e respirou profundamente. Depois de um olhar rápido para Gucky, disse ele:

— Foi Enzally. Virá nos procurar hoje à noite, depois de conseguir mais detalhes. Aconteceu alguma coisa lá no espaçoporto. Você devia dar uma chegada lá para ver, Tako. Os saltadores estão descendo. E nós acreditávamos que eles desapareceriam correndo, quando soubessem da epidemia. Ainda estão em contato com os governadores, sabendo assim o que se passa no planeta de Goszul. Não estou compreendendo bem.

— Que aconteceu, propriamente? — indagou Kitai.

John ergueu os olhos para o céu, pensativo, como se a resposta viesse de lá, mas Rhodan estava muito longe.

— Os saltadores estão descendo — repetiu ele. — Sabemos que há ainda uns trinta deles no espaço, dando voltas em torno do planeta. Esperávamos que iam fugir. Fizeram exatamente o contrário do que pensávamos. Estão descendo numa terra que eles sabem estar contaminada.

— Isto eu não posso entender — afirmou o sugestor. — Ninguém vai por livre vontade de encontro ao perigo de perder a memória. Devem ter um motivo muito importante para descerem.

— E eles têm mesmo — confirmou John com seriedade. — Enzally conseguiu ouvir alguns deles telepaticamente. Já abdicaram há muito tempo do planeta e dos governadores que aqui mandavam, mas não querem se desfazer das instalações técnicas e dos robôs. Neles é que está todo o seu interesse.

Kitai fez cara de quem não entendia.

— Falando honestamente, não estou entendendo. Devem estar cientes de que o germe da doença está em toda parte, até nos metais. Entregam-se voluntariamente ao perigo da infecção...

— Naturalmente subestimam o perigo — explicou John. — Sua ambição é maior do que sua prudência. Um robô de combate vale tanto como uma nave espacial de porte pequeno. O planeta de Goszul faz lembrar no momento uma cidade em retirada, sendo entregue à pilhagem. Cada um tenta, como pode, se enriquecer mais. Os saltadores são comerciantes.

— Infelizmente são também lutadores — murmurou Tama, muito compenetrado.

— Sabemos disso muito bem — confirmou John. — E por isso não acredito que Enzally já esteja a par de tudo. Posso apostar que há muito mais coisa escondida atrás de tudo isto, coisa muito mais importante do que roubar robôs e máquinas uns dos outros.

— Mas então, o quê?

— Esperemos até que Enzally volte. Talvez aí saberemos mais coisas. Estará aqui em poucas horas.

Gucky, que até aqui estava calado, perguntou chiando, pois era muito preguiçoso para retirar o dente de roedor:

— Alguém tem alguma coisa contra, que eu dê uma volta por aí?

Meio desprevenido, John fez uma contra pergunta:

— Onde é que quer dar uma volta?

— Ora, onde então? No espaçoporto, naturalmente. É apenas um pulo de rato até lá.

— Somente para teleportador — disse, John, e refletindo um pouco. — Quatro olhos enxergam mais do que dois... e dois cérebros telepatas percebem mais do que um. Está bem, mas cuidado para não ser visto pelos saltadores, alguns deles já conhecem você e sabem que você está ligado com Perry Rhodan. Qualquer imprudência prejudicaria muito nossos planos.

— Ninguém me verá — prometeu, não escondendo a alegria antecipada da aventura. — Voltarei logo para lhes dizer o que os saltadores tencionam fazer, além de roubar robôs.

Falou e desapareceu. John ficou fitando o lugar onde Gucky estava sentado. Finalmente falou:

— Estou muito feliz por ser um homem, mas as vezes gostaria de ser um rato-castor. Estes seres pequenos são formidáveis.

— Também em relação à sua raça, Gucky é um exemplar extraordinário — lembrou Kitai. — A raça dos ratos-castores é um grupo de animais de reduzida inteligência. Gucky se diferencia deles, como um telepata desenvolvido do resto da humanidade.

— Muito bem — interferiu John. — Então ficaria realmente feliz de poder ser, às vezes, o Gucky. Está correto?

Kitai sorriu.

— Independente do fato de que não se pode em geral falar de desejos corretos, posso entender seu desejo. Eu preferia, além de sugestionar, poder também ler pensamento. O homem tem uma conformação tal, que nunca está realmente contente.

— E exatamente isto é a mola propulsora de sua ambição — filosofou Tako, olhando para seus pés descalços. — Eu estou com fome.

Todos riram da brusca mudança de assunto e olharam para John. O telepata concordou, levantando-se.

— Vamos lá para baixo, lá existe uma geladeira. Eu também estou com fome. Tomara que Gucky venha logo.

Infelizmente, esta esperança não se concretizou.

 

Gucky não foi realmente imprudente, apenas sua curiosidade foi maior que toda sua cautela. Seu primeiro pulo de teleportador o transportou para a beira do imenso espaço-porto, onde se escondeu entre alguns barracões que não tinham nada em comum com os grandiosos edifícios da administração em que se guardavam os robôs. Bem perto dele patrulhava um robô de vigilância, com sua monótona marcha de vaivém. Gucky sabia que entre ele e o próximo robô de vigilância havia uma ligação sem fio. Evitou cautelosamente cair sob as lentes do monstro de aço.

O que lhe chamou primeiro a atenção foram as numerosas naves espaciais dos saltadores que haviam descido e ali estavam apoiadas na parte traseira da fuselagem. Eram, pelo menos, vinte destas espaçonaves de mais de duzentos metros de envergadura, cujas carcaças metálicas cintilavam ao sol; eram o símbolo marcante do poderio dos saltadores. Cada uma delas era suficiente para transformar o planeta Goszul num inferno incandescente, sem possibilidade de vida futura.

Gucky sabia que era a epidemia e a ganância dos saltadores que estava impedindo isto, portanto, enquanto existisse neste mundo um robô em funcionamento, este perigo estaria afastado.

Agachou-se mais ainda à sombra do barracão, numa reentrância do terreno. A margem do campo de aterissagem estava a uns cinqüenta metros dele, mas lá não havia possibilidade de se esconder. Seria então melhor operar daí mesmo.

O rato-castor chegou à conclusão de que o robô de vigilância, em sua ronda repetida, se afastava cada vez mais do barracão. Dependia dele, portanto, escolher a espaçonave certa, embora precisasse de muita sorte para não se materializar exatamente na frente dos olhos de Etztak, que já o conhecia.

Para agir com mais segurança, resolveu realizar primeiro telepaticamente um salto de inspeção, para estudar o ambiente. Por quase dois minutos ficou tentando identificar os pensamentos de Enzally, dentre o confuso fluxo de impulsos que chegavam até ele. Depois desistiu. Quem sabe estava o goszul automática e instintivamente protegendo seu cérebro, quando estava trabalhando. Ele, Gucky, também fazia isto, às vezes. O único jeito que havia era enfrentar diretamente os saltadores que tinham descido. Os saltadores, felizmente, não eram robôs. Não era, pois, difícil para Gucky pôr em ordem e ler seus pensamentos. A única dificuldade da operação era que em cada espaçonave havia pelo menos vinte pessoas, entre as quais só interessavam a Gucky o comandante e o respectivo patriarca do clã. Devia, pois, pular cegamente, com seus pensamentos, na primeira nave e sondar até descobrir o patriarca.

Seu corpo ficaria, entrementes, com a capacidade de reação muito reduzida, um fato que realmente diminuía a alegria dele. Mas não podia fazer nada contra isto. Além disso, aqui nesta reentrância, julgava-se relativamente seguro.

Depois de isolar os pensamentos que fluíam para ele, e fazer com que apenas um fosse ouvido, percebeu que era testemunha de uma conversa, pois eram dois pensamentos que falavam na mesma freqüência.

— ...admito realmente que estão exagerando. Não nos concedem nem licença para desembarcarmos e descansarmos um pouco, enquanto eles pretendem deixar a nave esta noite.

— Trata-se, porém, de uma conferência, não é?

— E que seja, isto não altera nada. É interessante que a tal epidemia é perigosa para nós, enquanto para eles não faz mal nenhum. Eu quero é ficar livre de tudo isso.

— Você sabe qual é o castigo que eles aplicam neste caso, Holflersy. Não o aconselho a abandonar sua cozinha.

Gucky sorriu e mudou de freqüência. Fazia isto com a mesma naturalidade com que um homem do século XX usava um receptor de rádio.

De qualquer maneira, ele sabia que os comandantes das espaçonaves planejavam  uma reunião para esse mesmo dia. Seria de grande vantagem ler os pensamentos de um comandante, para não haver nenhuma surpresa. O próprio Enzally não sabia o que os saltadores planejavam desta vez com a nova conferência.

Ah, sim. Isto já era uma outra voz muda. Alguém tentava transmitir um pensamento, mas ninguém respondia. Devia, pois, estar sozinho. Gucky continuou escutando e teve sorte. Foi por mero acaso que foi dar com o avarento e ambicioso Ralgor.

Estava sentado em sua cabina particular e imaginando o que iria falar hoje na reunião dos patriarcas dos saltadores. Estava elaborando o discurso, como se costuma dizer. Fazia-o sem palavras, em pensamento, o que porém, não impedia que fosse ouvido. Às vezes chegava a pronunciar nitidamente as palavras.

— Se eu conseguisse ao menos convencer Etztak — murmurou desconfiado, continuando a pensar. — Quero desviar toda a atenção dele para a Terra, deixando de lado a questão com o planeta dos goszuls. Os governadores sozinhos não terão mais força para se dirigirem aos pontos de apoio para pedir auxílio. Em poucas semanas, a epidemia os levará. Aliás, este flagelo do esquecimento é propriamente uma bênção para os que se servem deles no setor dos negócios.

“Posso mandar vir, por hiperirradiação, minhas duas outras espaçonaves — continuou ele murmurando, como se o simples pensamento não bastasse mais. — Seus porões de carga podem abrigar, pelo menos, duzentos robôs de combate e de vigilância. Independentemente dos aparelhos das instalações técnicas da usina das espaçonaves, vou fazer agora o negócio da minha vida, se...”

Para desgraça de Gucky, a sucessão de pensamentos do honrado patriarca foi bruscamente interrompida, neste ponto. Alguém deveria ter penetrado na cabina.

— Senhor, aqui está o mapa sideral que o senhor desejava — devia ser o navegador, supunha Gucky. — As coordenadas dos saltos já estão calculadas. E o senhor acha que conseguiremos?

— Com toda certeza — respondeu Ralgor, porém, não estava pensando no que devia ser feito nem no hipersalto. — Por favor, entregue este bilhete ao telegrafista. Ele deve mandar um rádio sigiloso às duas espaçonaves do clã. Assim que tiver resposta, quero ser cientificado.

Depois voltou a ficar sozinho, mas as esperanças de Gucky não se realizaram, pois Ralgor não voltou novamente aos seus pensamentos secretos. Mas Gucky estava convencido de uma coisa: A pilhagem bem planejada de Ralgor contra o planeta de Goszul estava em íntima ligação com seus planos de conquistar a Terra e com os mapas siderais recém-trazidos. Também o fato de haver requisitado as duas espaçonaves de seu clã fazia parte do grande plano. Os detalhes deste plano, porém, Gucky não conhecia ainda. E ele tinha que ficar a par disso.

Este Ralgor não o conhecia ainda e nunca o tinha visto antes. Portanto, se por acaso os dois se encontrassem, não seria tão perigoso assim. Além disso, Ralgor tinha que ter muita cautela para não permitir que seus irmãos de raça chegassem a saber de seus planos. Caso suspeitasse que Gucky tinha alguma coisa em comum com Perry Rhodan e a Terra seria o primeiro a ter que silenciar tal encontro.

Gucky respirou profundamente e se teleportou. Desceu exatamente na Central de Ralgor, mas teve sorte. O saltador estava de costas para ele, estudando os mapas siderais recém-trazidos pelo navegador. Estava sentado numa poltrona e não suspeitava que, no máximo, a um metro atrás dele, surgira do nada algo pequeno, de aparência desagradável, que rapidamente se escondera atrás da porta aberta de um armário de parede.

Daí Gucky podia ver bem e estava ao mesmo tempo protegido. Tinha que constatar urgentemente em que setor da galáxia estavam os interesses de Ralgor.

Ralgor raciocinava com conceitos diferentes e Gucky não conseguia atinar com que nomes os saltadores se referiam aos astros e aos sistemas solares e assim não pôde prontamente descobrir com que sistema solar ele se preocupava. De repente, Gucky percebeu a aproximação de outros pensamentos. Lá fora, atrás da porta, havia alguém parado, que entrou depois de bater. Devia ser novamente o navegador.

— O telegrama foi recebido normalmente e a resposta chegou neste instante, senhor. A Ral III e a Ral V chegam ainda esta noite aqui. De acordo com as instruções ficarão circulando a uma altura de dois dias-luz do sistema de Goszul.

Ralgor levantou os olhos e sorriu com malícia.

— Foi por muito tempo o sistema de Goszul — disse ele traindo uma parte do seu plano secreto. — Talvez, um dia, terá o nome de sistema de Ralgor.

O navegador sorriu também.

— Um bom negócio?

— Naturalmente, do contrário, não estaria me preocupando com isto.

O semblante do navegador se anuviou.

— Que é que nosso clã vai fazer com um planeta pestilento?

Ralgor reagiu bruscamente.

— Estou contente de que nem você acha resposta para tal pergunta. Este fato me prova, de fato, que os outros patriarcas não estão a par dos meus planos. Pode ir, Gromsk. Aí pelo pôr do sol vou deixar a nave. Cuide do necessário revezamento da guarda. Quero que a Ral II aguarde, preparada para partir, até que eu esteja de volta a bordo.

O navegador se retirou, sem dar resposta.

Mais dez minutos ficou Ralgor sentado à mesa, debruçado sobre os mapas siderais, examinando as coordenadas do salto ali desenhadas; levantou-se de repente, olhou para o cronômetro dependurado na parede e deixou a cabina. Nem fechou a porta, deixou-a apenas encostada.

Gucky ainda esperou uns momentos, depois saiu de seu esconderijo e correu para a mesa do escritório. Era tão pequeno que teve de ficar de pé em cima da cadeira para poder ver os mapas.

Mapas siderais são documentos difíceis de ler. Tem-se que estudá-los a fundo, para se concluir alguma coisa, principalmente quando os sinais são incompreensíveis.

Gucky viu uma confusão de pontos minúsculos, ligados entre si por linhas pontilhadas. Havia números e mais abaixo nomes que para ele não tinham nenhuma importância.

Um outro mapa mostrava uma ampliação. Os poucos sistemas solares consistiam não de pontos minúsculos, mas de fato de sóis e planetas a eles pertencentes. Não foi muito difícil identificar um destes sistemas. Principalmente porque estava assinalado com uma cruz vermelha. Com um simples olhar, Gucky percebeu que Ralgor se interessava pelo Sol e seu planeta Terra.

Atrás de Gucky, ouviu-se um ruído. Antes que pudesse se virar, Gucky se conscientizou de que, nos últimos segundos, esquecera de ficar atento às coisas em volta dele. Ralgor estava de volta.

O saltador soltou um grito de pavor, quando viu o animal esquisito debruçado sobre seus mapas. Demorou pelo menos dois segundos até que conseguisse dominar a estupefação. Sua mão direita correu para a cintura e saiu com a arma energética, já com o cano apontado para o rato-castor.

Gucky podia ter se teleportado, mas isto seria para ele uma fuga covarde. Além disso, levaria pelo menos um segundo para se desmaterializar. O saltador teria tempo para desfechar o tiro de morte.

Havia também outro meio e muito melhor.

— Bom dia — disse Gucky, em puro Intercosmo, mostrando com ar de amizade o dente de roedor. — Como vai você, Ralgor?

A estupefação foi tão grande, que seu queixo caiu por alguns centímetros, deixando a boca aberta.

— Você fala? Quem é você?

— Você também fala, não é verdade? — disse Gucky em tom de conciliação e concentrando toda a sua atenção na pistola. Seus fluxos mentais telecinéticos se descarregaram na arma e de repente seu cano estava apontado para o teto. O saltador, surpreendido ao ver um objeto inanimado executar por si mesmo um movimento daquele, ficou totalmente tolhido em seus movimentos. Perplexo, viu como a arma energética escapou de seus dedos petrificados e estava flutuando no teto, como se fosse um balão. Encostada no teto, a arma dirigiu seu cano na direção da cabeça de Ralgor.

— Bem, agora você está bonzinho, não é? — perguntou Gucky e chiou como um passarinho da Terra. — Feche a porta.

Ralgor não quis obedecer à ordem, soltou um segundo grito, mas desta vez com uma fúria diabólica e se atirou contra o intruso. Gucky refletiu sobre os sérios conselhos de John e desistiu de outras experiências. Desmaterializou-se, estragando assim a parte mais atraente da aventura.

Ralgor foi atirado para frente, pela violência de seu pulo, quando seus punhos possantes atingiram o vazio. Bateu com a cabeça contra o intercomunicador de bordo, formando um terrível galo avermelhado na testa, cuja origem ele nunca soube explicar a seus irmãos de clã, que se apiedavam do ferimento.

E aí estava ele, perplexo, fitando os mapas. Com a cabeça doendo e com um movimento involuntário das mãos, os jogou fora da mesa. Caiu depois pesadamente na poltrona, em cima da qual Gucky estivera de pé, três segundos antes.

Desgraçado... Existem de fato assombrações.

 

— Estão tramando alguma coisa contra a Terra.

John parecia não acreditar.

— Acho que já desistiram há muito tempo, Gucky, não posso acreditar que tentem novamente. A primeira lição deve ter sido suficiente para eles.

— O sujeito tinha mapas, nos quais a Terra estava assinalada com uma cruz vermelha. Aposto como vão tratar deste assunto hoje à noite. Não podemos deixar de mandar um observador para a conferência.

— Enzally vai nos informar.

— Isto não basta, independente do fato de que, com a nossa visita, atingiremos um objetivo muito importante.

— E qual seria este objetivo? — perguntou John, muito interessado.

— Nós vamos espalhar os germes da doença na reunião dos patriarcas — disse Gucky.

O telepata estava querendo fazer um sinal de recusa, quando, de repente, parou. Seus traços fisionômicos davam mostra de preocupação. Acabou abanando a cabeça afirmativamente.

— Uma idéia verdadeiramente maluca, Gucky, mas creio que para isso preciso da autorização de Rhodan. Sem qualquer ordem, não podemos contaminar com uma epidemia saltadores que não residem no planeta de Goszul. A doença é contagiosa e eles poderiam levá-la pelo espaço afora. E a mim repugna contaminar propositalmente o universo.

— Pergunte então a Rhodan — propôs Tako. — Ele naturalmente saberá pelo que pode e pelo que não pode se responsabilizar.

John também achava que este era o caminho certo. Tirou do esconderijo o aparelho com o qual se podia obter uma ligação simultânea até uma distância de três meses-luz. Exatamente após trinta segundos se estabeleceu contato com a Stardust-III.

— Há uma oportunidade única de encontrar reunidos aqui, em assembléia, os saltadores, Rhodan, devemos contaminá-los com a epidemia ou não?

— Uma pergunta direta, John. Responderei também diretamente, se você me puder dar uma outra informação: O que vai ser debatido nesta assembléia dos saltadores?

— Ninguém sabe ao certo. Gucky acha que é o ataque à Terra.

— Quer dizer então que ainda não estão curados — murmurou Rhodan, refletindo por uns segundos. — Bem, terá sua resposta: Bem, se os saltadores hoje à noite resolverem que atacarão a Terra, então devem ser contaminados. Será que me exprimi bem claramente?

— Perfeitamente. E o que acontece se espalharem a epidemia pelo universo?

Incrível, reconhecer-se através da distância de oito dias-luz a risada de Rhodan.

— Quase nada — respondeu ele, interrompendo a ligação.

A fisionomia de John não estava exuberante, quando ele guardou o aparelho e olhou indeciso para seus companheiros.

— Vocês ouviram? Quase nada, foi a resposta de Rhodan. Alguém compreendeu isso?

— É necessário compreender? — acrescentou Gucky e continuou apressadamente: — Atenção, eu sinto que Enzally está chegando. Tomara que não perceba nossa dúvida, seria muito desagradável.

Mas Enzally estava muito calmo. Cumprimentou os quatro homens com a mesma inclinação, com a qual também se dirigiu a Gucky, sentou-se e disse meio sorrindo:

— A reunião dos saltadores começa a qualquer momento. Vim com um carro oficial da Administração do Espaçoporto até aqui, para colocá-los a par de tudo. Estão admirados por causa do carro? Pois é, temos nossos amigos agora por toda parte. Mas, voltando aos saltadores, qual é a sua intenção? Querem mesmo acabar com a reunião deles?

— Queremos contaminar os saltadores — disse John asperamente.

Um sorriso frio percorreu o semblante do velho goszul.

— Excelente. Os deuses comerciantes já viram o que acontece com uma raça atacada com esta epidemia do esquecimento. Ao notarem a mesma doença em si mesmos, fugirão para o universo em pânico, para lá procurarem cura. E nos deixarão futuramente em paz.

Tako abriu uma caixa comprida e tirou dela cinco bombas pequenas. Tentou medir-lhes o peso, colocando uma em cada mão.

John percebeu.

— Gucky vai acompanhar você. É melhor que dois teleportadores executem a missão. Joguem as bombas e desapareçam imediatamente. Talvez seja possível, Gucky, saber alguma coisa sobre o objetivo da reunião, antes. Rhodan deu a ordem de jogar as bombas somente se os saltadores manifestarem a intenção de atacar a Terra.

— Pode confiar em nós — disse Gucky, tranqüilizando o telepata.

Tirou de Tako duas das cinco bombas e o pegou pela mão, fazendo-lhe um sinal.

Um segundo depois, já tinham desaparecido.

 

Os dois teleportadores se materializaram não longe do edifício, à beira do espaçoporto, que já lhes era conhecido. Lá se realizaria hoje a grande assembléia. Enzally lhes descreveu bem detalhadamente a situação. Pela redondeza não se via ninguém, nem mesmo robôs de vigilância. Em frente à entrada do edifício, porém, lá estavam dois importantes robôs de combate, com armas de raios energéticos, de prontidão. Não havia possibilidade de querer passar por eles.

— Portanto, diretamente para a caverna do leão — disse Tako pouco entusiasmado. Parecia um legítimo goszul e ninguém o diferenciaria de um aborígine deste mundo. — Não sabemos onde desceremos e se descermos no meio do salão de reunião, vai dar alguma complicação.

— Principalmente quando me virem — acrescentou Gucky com toda simplicidade.

— Mas de outro lado, eu tenho mais recursos que você. Afinal de contas, sou também telecineta. Vou torcer o nariz deles...

Tako sorriu levemente.

— Pois bem, então pule você primeiro e volte logo para dar informações. Depois pulamos juntos.

Gucky olhou em volta.

— Fique aqui, atrás do ponto de táxi, e esconda-se o melhor que puder. Mas quem é que passaria por aqui? Um goszul não o atraiçoará e os robôs de vigilância não estão à vista. Não creio que corra perigo.

— Além disso, você voltará logo, não é? — tranqüilizou-se Tako.

Gucky fez sinal que sim e desmaterializou-se.

O japonês ficou para trás sozinho e preparou tudo para poder fugir, quando fosse preciso. Mas tudo estava calmo. O espaçoporto com suas enormes naves parecia morto. Lá ao longe, patrulhava um robô. O sol já tinha desaparecido no horizonte e estava escurecendo. Demorou uns cinco minutos até Gucky reaparecer.

— Descobri um ótimo lugar — disse ele com sua voz incrivelmente estridulante. — Uma espécie de galeria, em cima do salão de reunião. Ninguém nos vê e gozamos de uma bela vista. Podemos até ouvir tudo que falarem, pois já que os saltadores falam diversos dialetos, vão discutir em intercosmo.

— Leve-me pela mão, é mais garantido. Pularam e numa fração de segundo desceram num local escuro, que mal recebia um raio de luz vinda de baixo. Ouvia-se um vozerio abafado.

— A galeria — sussurrou Gucky. — Mova-se com muito cuidado, quando chegarmos ao corredor. Acho que antigamente, o pessoal sentava aqui em cima também, mas agora que os saltadores estão dizimados, a sala de baixo lhes é plenamente suficiente.

Deixaram o local, onde se armazenava objetos velhos, entre eles um robô colocado fora de serviço. Na galeria mesmo, estava mais claro e havia pouca possibilidade de se esconder. Tinham que confiar que ninguém passaria por lá. Arrastaram-se cautelosamente com as mãos e os pés e depois se levantaram um pouco.

O que viram então fez seu coração disparar.

Mais ou menos vinte saltadores estavam sentados ou de pé, em grupos, falando com alguma excitação. Como parecia, as conversações tinham sido interrompidas, para dar liberdade a cada saltador de discutir individualmente seus assuntos.

Lá na frente estavam sentados Etztak e Ralgor, este último numa mesa comprida; Gucky o reconheceu logo pelo estupendo galo vermelho na testa. O patriarca de barba cinzenta falava muito com Ralgor, mas os dois escutadores não conseguiam entender uma palavra. Gucky então passou para a via telepática e percebeu que Etztak mencionava a possibilidade de invadir a Terra. Falou de um plano que iria levar a debate. Dos pedaços de pensamento de Ralgor, entremeados no diálogo, percebeu que se tratava mesmo daquele plano que Ralgor queria impor ao velho patriarca.

— Acho que está na hora de ficarmos livres destas bombas — chiou Gucky para seu companheiro impaciente. — Ainda não perderam este planeta e já pensam em conquistar outro. Vamos estragar a festa deles.

Lá embaixo, no salão, o quadro tinha mudado. Etztak pediu aos patriarcas presentes que tomassem seus lugares. Esperou até que houvesse silêncio total e começou a falar:

— Vimos inicialmente para o planeta de Goszul, a fim de discutirmos a possibilidade de enfrentarmos em conjunto a crescente ameaça de um certo Perry Rhodan, que representa a Terra. Infelizmente nossa intenção foi um pouco adiada por acontecimentos imprevistos. Agora mesmo, surge um outro fato, com que não contávamos. Irrompeu no planeta de Goszul uma epidemia, de natureza completamente ignorada. Para nosso desapontamento, temos que confessar que não somos imunes a ela. Conforme os últimos comunicados, sete dos vinte e um governadores já estão doentes e perderam a memória. Nós, que ainda não estivemos em contato com os goszuls, não ficaremos doentes, mas é evidente que devemos sair daqui o mais breve possível, para não nos expormos ao perigo de contágio.

Etztak aguardou até que a inquietação geral se acalmasse e com voz diferente continuou:

— Neste momento, quero lembrar aos senhores o objetivo específico de nossa reunião aqui, pois desta vez não se trata de assuntos técnico-comerciais. Ao tentar estabelecer contato com o planeta Terra, meu clã foi derrotado por um poderoso inimigo. Falo de Perry Rhodan, administrador ou presidente deste planeta. Parece trabalhar com a cooperação dos arcônidas, cuja atividade repentina parece incrível. Rhodan conseguiu destruir um grande número de nossas naves, com armas desconhecidas. Além disso, este Rhodan conhece com toda certeza o segredo do mundo da vida eterna, daquele mundo encantado onde se pode conseguir a imortalidade.

Novamente um murmúrio surdo entre os presentes. Os patriarcas chegavam-se uns aos outros e começavam a cochichar.

Mais do que qualquer outra riqueza, a vida eterna os fascinava. Uma simples lenda parecia ter se transformado numa realidade.

Mas Etztak não permitiu muito falatório.

— Temos que abandonar este planeta, meus irmãos, ninguém duvida disso. E assim como estão as coisas, vou propor, no Conselho dos Saltadores, uma quarentena de cinqüenta anos. Infelizmente temos que perder as preciosas instalações técnicas, mas isso é irremediável. E agora, minha proposta, que encontra apoio na opinião de Ralgor: Partiremos unidos com nossas espaçonaves e armamentos correspondentes para o planeta Terra e destruímos a frota de Rhodan. Tenho a certeza de que encontraremos na Terra mais riquezas do que em todos os outros mundos que conhecemos. Lembro apenas o planeta da imortalidade.

Alguém, nos fundos, se levantou e gritou:

— E a escolta de proteção?

Parece que Etztak esperava a pergunta.

— Topthor, o superpesado. Receio que não podemos confiar nele. Enquanto eu parlamentava com Rhodan, tentou atacar a Terra independentemente, sofrendo uma derrota tremenda. Sua frota foi destruída quase toda. Quando, mais tarde, eu lhe pedi reforço, já estava em fuga. Acho que não terá mais vontade de atacar a Terra.

— Por que não fazemos um acordo com Rhodan, se ele é tão forte assim?

— É realmente forte. Alguém, aqui neste salão, acredita que podemos contar com vantagens de um adversário poderoso? Ele é quem dita as condições, não nós. Que é que ganharíamos com isso? Portanto, só temos uma opção: Temos de atacar de surpresa este planeta Terra e enfraquecer de tal maneira sua força de resistência, que o possamos tomar de assalto.

Três ou quatro dos patriarcas gritaram excitados:

— Por que ainda estamos discutindo? Deixemos o planeta de Goszul, do qual nada mais podemos esperar, vamos depressa para a Terra aproveitar a riqueza dos arcônidas. Investiguemos a posição do planeta da vida eterna e obtenhamos a imortalidade.

Etztak concordou, fazendo um sinal.

— Nossa decisão deve ser unânime, para que ninguém saiba do plano. Quem tem argumentos contrários?

Um saltador, ainda jovem, da primeira fila, levantou a mão.

— Vamos abandonar os robôs de combate no planeta de Goszul?

Ralgor, que estava ao lado de Etztak, ficou nervoso, mas se dominou maravilhosamente, deixando a resposta para o mais idoso.

— Temos outra opção? — perguntou Etztak, com as sobrancelhas levantadas.

— Nossos recursos de desinfecção são inoperantes. Não podemos, de maneira alguma, espalhar esta doença pelo universo. Conseqüências inimagináveis pesariam sob nossa responsabilidade. As raças inteligentes do universo sem memória... uma visão horripilante.

Para Ralgor, este assunto era muito desagradável. Interrompeu Eztak.

— Mais alguma objeção? Se ninguém tem mais nada a dizer, proporia que Etztak procedesse à votação.

O velho de barba cinzenta concordou.

— Há alguém aqui, que não concorda com uma operação comum dos comerciantes das galáxias para transformar a Terra em colônia e tirar das mãos de Perry Rhodan o segredo da vida eterna?

A pergunta foi feita de tal maneira que ninguém se atreveu a dar opinião contrária. A proposta de conquistar a Terra foi, pois, aprovada por unanimidade.

Etztak gesticulava contente.

— Vamos, portanto, aos detalhes. Proponho que por mais três semanas, fiquemos em órbita em torno do sistema de Goszul e lá nos encontremos. Para que escolher um outro lugar?...

Gucky já tinha ouvido bastante. Virou-se para Tako.

— As bombas estão prontas, vamos explodi-las.

O japonês meteu a mão no bolso e tirou dele os três invólucros de plástico.

— Regular o detonador para cinco segundos — mandou Gucky.

Enquanto preparavam o seu atentado, discutiam-se grandes problemas embaixo. Não tinham mais nenhum interesse para os dois espiões, pois os patriarcas não conseguiriam mais executar os planos concebidos.

Tako colocou o terceiro detonador e olhou para baixo. Gucky já estava pronto.

— Depois de atiradas, levam ainda cinco segundos para explodir. A detonação é inofensiva, tem apenas a finalidade de espalhar as bactérias. Além disso, a pequena explosão dá uma impressão de bomba de dinamite. Portanto, vamos lá... um, dois, três...

As cinco bombas descreveram uma grande curva no ar e caíram no chão ou sobre as mesas por entre as pessoas reunidas. Por um segundo houve pleno silêncio, depois, ouviu-se um berro de Ralgor, que foi o primeiro a se dominar:

— Protejam-se.

Era fácil falar, mas como se proteger, se ninguém sabia quanto tempo levariam as bombas para explodir? Todos se atiraram no chão automaticamente, como que para evitar os estilhaços. Quando, porém, reboaram as cinco detonações e nada aconteceu, todos se sentiam aliviados, mas aos poucos foi surgindo a dúvida de algum truque — o que realmente se aproximava da verdade. Ninguém, porém, chegou a manifestar a suspeita de que se tratava de bombas bacteriológicas.

Etztak já estava de volta a seu lugar, tendo na mão uma pequena pistola energética e examinando com os olhos a galeria vazia. As bombas vieram lá de cima. Mas Gucky e Tako tinham sumido há muito tempo.

 

Perry Rhodan empurrou para trás a pequena alavanca que estabelecera o contato simultâneo com John Marshall.

Desapareceu o leve chiado da estática cósmica. Virou-se vagarosamente, olhando para Reginald Bell. Os dois estavam sozinhos na central de comando do gigante do espaço Stardust, a oito dias-luz do sistema de Goszul.

— Então, que é que você acha?

Bell fez cara de dúvida.

— Por que todo este teatro no planeta de Goszul, se queríamos apenas expulsar vinte saltadores? Acho que seria suficiente contaminar apenas os vinte.

— Exatamente, não — contradisse Rhodan. — Se ficassem contaminados somente os patriarcas e suas tripulações, não poderiam saber de onde é que veio a epidemia. É claro que ainda agora, eles não sabem. Mas têm que saber que no planeta de Goszul, até mesmo os robôs e as instalações estão contaminados. Além disso, presenciaram o horrível espetáculo dos goszuls que perderam a memória e tinham de começar tudo de novo. Não, sem este exemplo, o resultado não podia ser tão eficaz. Conseguimos cem isto duas coisas ao mesmo tempo: Vão pôr o planeta de Goszul cinqüenta anos de quarentena e seu plano de conquistar a Terra será logo desfeito.

— Tomara que você tenha razão, Perry. Eu não sinto nenhum prazer em ficar a eternidade toda lutando contra estes saltadores pelo espaço afora. Afinal de contas, temos outros assuntos para tratar.

— A assembléia se realizou, faz oito dias. Já devem estar aparecendo os primeiros sintomas nas espaçonaves dos saltadores. Até agora os nossos instrumentos mostram apenas que circulam em torno do sistema a uma distância de dois dias-luz, recebendo sempre mais reforços. O major Nyssen informa do sistema solar que já contou ao todo sessenta e nove espaçonaves.

Bell assobiou por entre os dentes e alisou com a palma da mão as pontas dos cabelos eriçados.

— É um belo número. Gostaria de saber como é que vamos dar conta disso.

— Não é preciso. As bactérias dão conta disso. Nyssen informa que nos últimos dias tem havido muita discussão. Os patriarcas visitam os comandantes das naves que vêm se ajuntando a eles. Podemos, pois, calcular que todos ficarão contaminados. Mais um ou dois dias e o diabo estará solto no meio dos saltadores, pode estar certo disso.

Bell olhava ansiosamente para a longa fila das válvulas de controle. Sabia que cada uma delas representava o contato invisível com as naves dos saltadores. O enfoque do ponto se processava mais veloz do que a luz através do rastreador de estrutura e do cérebro positrônico. Assim que qualquer nave dos saltadores alterasse sua posição no espaço, uma das válvulas acendia. Cálculos que se desenvolviam automaticamente davam em apenas alguns segundos a direção exata e o distanciamento do salto. Um sistema especial registrava todos os impulsos. Logo após, se podia constatar num mapa exatamente para onde iam os diversos clãs.

— Deve começar a qualquer momento — resmungou Bell. — Quando perceberem que estão todos contaminados com a peste, tentarão procurar o primeiro médico.

Rhodan sorriu maliciosamente.

— Não sei onde reside seu médico mais próximo, mas seu cuidado não tem fundamento. Acha que eu iria contaminar toda a galáxia com uma epidemia diabólica? Não se preocupe, Bell. É verdade que os saltadores ficarão com a pele cheia de placas vermelhas no rosto, perderão por algumas semanas a memória, mas aos poucos estes sintomas vão enfraquecendo e finalmente desaparecem por completo. Também, depois de seis dias, as bactérias perdem o poder de infecção. Não há, portanto, nenhuma possibilidade de contaminar outras raças.

Bell ouviu com muito interesse.

— Por que então você não tranqüilizou Marshall quando ele falou do receio de contaminar outros povos?

— Porque todo mundo, até mesmo ele, devia ficar acreditando que se tratava realmente de uma doença verdadeira. Alguém podia se trair, mesmo contra sua vontade. Está, pois, notando que usamos um simples truque.

— E como é este negócio de aumento da inteligência?

— Isto não é truque, funciona realmente. Os convalescentes da breve epidemia se tornam realmente mais ajuizados.

— Até mesmo os saltadores?

— Espero que sim. Pois, se ficarem mais ajuizados, vão certamente desistir de querer incorporar a Terra ao seu império.

Bell sorriu satisfeito.

— Estou então moralmente tranqüilo e Marshall ficará feliz quando souber da verdade.

— Ainda é um pouco cedo para isto — disse Rhodan, silenciando de repente. Na fila das válvulas, acendeu uma lampadazinha vermelha. Quase que ao mesmo tempo saiu de uma fenda estreita uma tira de papel dobrada. Rhodan apanhou-a e leu:

“Mudança de direção Setor XP-578-H. Distância 389,057 anos-luz.”

Bell apanhara, entrementes, um mapa sideral e o estava consultando. Parecia muito assustado.

— Exatamente em direção oposta à Terra — deu um sorriso largo. — Talvez isto significa que resolveram outra coisa e...

Uma outra lâmpada acendeu, logo após uma terceira. E começou um verdadeiro jogo de luz na central da Stardust, como nunca antes acontecera. As lâmpadas acendiam uma após a outra e da fenda estreita, que estava em ligação com o cérebro positrônico, saía uma mensagem escrita após a outra.

Bell já havia desistido de comparar as mensagens positrônicas com o grande mapa sideral. Bastaram-lhe algumas provas avulsas.

— Nem um único dos aparelhos espaciais se dirige para a Terra — em menos de vinte minutos, as sessenta e nove lampadazinhas estavam acesas no painel de controle. A frota inteira dos saltadores havia abandonado o sistema de Goszul em debandada, sem opção e comandada apenas pelo pânico, disparada em todos os sentidos.

Rhodan olhou para a fila das lampadazinhas e para a pilha de mensagens escritas. Sua fisionomia estava carregada e não mostrava muita satisfação. Nos olhos brilhava uma luz fria, mas lhes faltava a habitual rigidez.

— Só lamento uma coisa — disse ele sem olhar para Bell — mas não se pode conseguir tudo ao mesmo tempo.

— Mas que coisa é esta?

— Que não conseguimos falar com os saltadores. Gostaria muito que se tornassem nossos amigos.

 

Seguindo as instruções de Rhodan, transmitidas pelo rádio, Marshall começou a enviar para os continentes contaminados o soro de cura. Este antídoto era recebido pelos adeptos de Ralv e distribuídos. Eram agulhas muito pequenas embebidas no soro, colocadas num esparadrapo de tal maneira que, ao contato com a pele, provocava uma espécie de injeção. Já dois dias após, desapareciam as placas vermelhas e no terceiro dia, começava também a aparecer a memória. Além disso, o quociente intelectual do ex-portador da doença, subia cerca de 20 por cento.

No mesmo dia em que a frota dos saltadores entrou em pânico e debandou, John e seus mutantes se transferiram do veleiro para as imediações do espaçoporto, para aí estabelecer seu novo quartel-general. Era a residência oficial do Supremo Governador dos saltadores, que no momento estava no hospital, tentando inutilmente se lembrar quem era ele.

O edifício não muito grande, estava equipado com extraordinárias instalações de segurança. O simples toque de um botão de alarme era suficiente para colocar toda a casa sob a proteção de um envoltório energético. Mesmo os robôs de combate não podiam então entrar. John se sentiria mais seguro aí, pois, desde que quase a metade dos governadores tinha caído doente, os robôs estavam começando a ficar irrequietos. Sabia que a batalha ainda não estava terminada.

Chegou então Ralv para dar conta dos acontecimentos. Enquanto Gucky estava sentado no terraço do último andar do edifício, olhando para todos os lados, John e os três japoneses aguardavam a chegada de seu aliado. O chefe dos revolucionários tinha se transformado nestes últimos dias.

De um combatente da resistência, obrigado a viver sempre na clandestinidade, passara a um estadista consciente de sua responsabilidade. Formou-se nele uma personalidade de grande serenidade e senso de responsabilidade, considerando seus amigos de um outro mundo como parceiros, jamais se esquecendo de lhes demonstrar gratidão.

— Conseguimos, na noite passada, ocupar uma sucursal da Central Automática de Controle. Dez robôs de vigilância que eram controlados por ela, destruíram a si mesmos.

John, que ouvia com muita atenção, interveio:

— Destruíram a si mesmos? Mas como? Parece impossível, pois os robôs de vigilância não possuem armas. Como pode ser isso?

— Não tenho a menor idéia. Ocupamos a central, situada fora da cidade, depois que destruímos seu robô de combate. E isto não foi lá muito difícil. Um dos nossos o atropelou com um carro. Infelizmente, ele morreu no acidente, mas o robô foi atirado com tanta força contra a parede que se transformou num monte de sucata. Quando penetramos na central ficamos entendendo alguma coisa das ligações e controles, En-zally estava nos orientando, demos aos dez robôs a ordem de matar os treze governadores reunidos no Edifício de Administração.

— Idéia maluca — interrompeu John, começando a entender o que se passara.

Ralv não se deixou interromper e continuou:

— Os dez robôs ficaram parados, sem se mexer. Começaram então, de repente, a ficar incandescentes de dentro para fora e derreteram. Não sobrou nada deles a não ser pedaços de metal disformes.

— Curto-circuito — confirmou John. — É o fator de segurança com que estão construídos. Não podem jamais atacar um saltador, a não ser que sejam antes reprogramados. Mas isso só pode ser feito através do posto de comando, que está resguardado na mão dos robôs de combate e dos outros governadores. Que farão os últimos saltadores? — perguntou a Ralv. — A frota debandou e o planeta de Goszul está sob quarentena, com outras palavras: ninguém pode mais descer.

— Também aí os nossos estão trabalhando muito bem — continuou Ralv, orgulhoso. — Enzally ouviu uma das últimas reuniões. Os governadores sabem que estão numa terra contaminada pela epidemia, de onde ninguém os virá buscar, para ficarem também contaminados. Assim sendo, não têm mais nenhuma vontade de passar aqui, isolados, o resto de sua vida. Precisam, então, de uma nave espacial para fugirem deste mundo e com isso da epidemia do esquecimento, antes de perderem a memória.

— Muito compreensível. Resta apenas saber de onde pretendem arranjar uma nave espacial. Enquanto eu sei, não dispõem de nenhuma nave intergaláctica, possuem apenas naves pequenas, com as quais, por muito favor, poderão chegar aos planetas vizinhos. Isto, porém, não vai ajudá-los.

— Em algum lugar, eles têm que ter uma nave espacial, uma grande nave, ao menos estavam falando disso. Infelizmente Enzally não conseguiu pegar mais nada porque mudaram de assunto.

— Uma grande nave dos saltadores...?! — continuou John, refletindo com muita intensidade a respeito.

Rhodan não tinha expressado o desejo, já há tempo, de poder estudar com calma as particularidades técnicas de uma nave dos saltadores? Não estava havendo uma possibilidade para isto agora?

— Temos de investigar o que planejam os governadores.

Ralv abanou a cabeça confirmando.

— Os robôs me causam muita preocupação. Como podemos nos tornar donos do nosso próprio planeta, se os robôs não nos permitem? Já temos um governo provisório e já estamos preparados para começar o trabalho de reconstrução, mas surgem novas complicações. Os robôs devem ter recebido a ordem de nos expulsar em qualquer lugar que nos encontrem.

— Como é que explica isto? — perguntou John, curioso.

— Antigamente nós éramos os servos dos deuses. Trabalhávamos com os robôs e recebíamos ordem deles. Agora nem podemos mais nos aproximar deles, que nos atacam imediatamente, mesmo que não tenhamos nenhuma intenção agressiva contra eles.

— Devem ser os governadores. Para evitar outra infecção, devem ter dado ordem aos robôs de não permitirem a aproximação dos nativos. Acho muito natural. Tudo tem sua explicação natural, Ralv.

O revolucionário queria dizer alguma coisa, mas foi interrompido.

Em cima da única mesa do salão, havia uma caixa metálica de tamanho reduzido, que de repente começou zumbir, acendendo simultaneamente uma luz vermelha. John deu um pulo e correu para a mesa, apertando alguns botões, dizendo:

— Comando de ataque, Marshall.

— Aqui fala Rhodan — foi a resposta imediata. — Desceremos em dez minutos — por uns dois segundos John pareceu que perdeu a fala. Depois respondeu afobado: — O planeta ainda está sob o controle dos saltadores, senhor. A Central dos Robôs está em mãos dos governadores que deram a ordem aos robôs de combate para que...

— Estamos descendo exatamente para paralisar a Central de Controle — respondeu a voz tranqüila de Rhodan. — Onde está você com seu pessoal?

— Aqui no lado do espaçoporto, na margem oeste. O senhor reconhecerá facilmente o edifício pelo seu teto chato.

— Não desligue o aparelho, assim posso me manter em contato com você, depois de descer. Que poderão fazer os robôs contra as nossas quatro naves?

— Eu também não sei — concordou John. Mas sabia que Rhodan nunca se expunha a perigos sem necessidade. Gostava tanto da vida como todo mundo, talvez mais, pois era quase imortal. Mesmo assim, uma punhalada o podia matar.

— Espere-nos, portanto — disse Rhodan, concluindo a mensagem.

Ralv ouvira tudo com interesse. Entendeu o diálogo mantido na linguagem dos ex-deuses, ouvida nitidamente pelo aparelho. John pretendia dar uma explicação:

— São nossos amigos, somos do mesmo mundo, vieram para libertar definitivamente seu planeta.

Ralv perdeu um pouco a segurança.

— Libertar? Como poderia alguém querer nos libertar sem segundas intenções? Por que vocês o fizeram? Eu ainda não me havia perguntado por quê.

— Rhodan haverá de explicar tudo a você — disse John, tentando consolá-lo. — Porém, não temos tempo para planos futuros, temos que agir. Dentro de poucos minutos, os saltadores vão saber com quem estão lidando, se é que eles já ouviram falar da Terra.

Oito minutos mais tarde, o céu se escurecia na região do espaçoporto, quando a gigantesca esfera da Stardust descia lentamente e tocava o solo do planeta de Goszul pela primeira vez. Desceram também os três cruzadores Terra, Solar System e Centauro de tal forma que a Stardust ficou entre eles e assim estava protegida.

Um pequeno planador a jato transportou Rhodan e Bell para a casa onde John o esperava. O pequeno veículo pousou no terraço, onde Gucky os esperava.

— Como vai, Gucky — perguntou Rhodan, abaixando-se para acariciar o pêlo do rato-castor. — Tempos difíceis, não é?

— Foi maravilhoso — disse Gucky abanando a cabeça, para surpresa de Rhodan. — Ao menos, por umas duas semanas não me foi preciso olhar para a cara deste monstro.

O monstro estava saindo naquele instante do planador a jato e ouviu as últimas palavras. Os fios do cabelo vermelho se levantaram, mas a boca de Bell, para surpresa de todos, não se abriu. Com toda seriedade passou ele diante de Gucky, como se não fosse realmente o Gucky, mas um simples cachorro da rua, indigno de qualquer atenção. Com a firmeza de um sonâmbulo, achou Bell a descida para a casa, desaparecendo segundos após.

Gucky, decepcionado, o acompanhou com o olhar. Rhodan sorriu e o tentou consolar:

— Não se preocupe com isso, Gucky. Ele se irritou com a sua frase. Você é telepata e devia saber disso.

— É isso mesmo — lamuriou Gucky, ainda meio perplexo. — Ele nem se lembrou de mim, ou me xingou mentalmente. Nem olhou para mim.

— Alguma coisa ele deve ter pensado, Gucky.

— Sim, sempre a mesma coisa. Só besteira. Bolo, chocolate com pudim, bombons, geléia disso ou daquilo... Ninguém pensa nessas coisas.

— Pensa, sim — afirmou Rhodan, continuando a sorrir. — É um espertalhão. Pensou só bobagens para despistar você, para você não saber o que ele realmente pensa. Fora disso, há alguma novidade? — Gucky se concentrou logo.

— A Central de Controle dos robôs de combate está a dois quilômetros daqui. Nós temos que ocupá-la ou destruir todos os robôs. Seria um grande prejuízo.

— É a minha opinião também — concordou Rhodan. — Espero você lá embaixo com Marshall, dentro de dez minutos. Até lá, fique vigiando e mantenha contato telepático com os saltadores. Avise-me de qualquer mudança na situação.

Seguiu o mesmo caminho de Bell, que acabou encontrando na sala de Marshall. Cumprimentou os mutantes e foi apresentado a Ralv, que apesar de sua nova posição de chefe do governo, sentia de repente um inexplicável acanhamento quando olhou para os olhos de Rhodan. Só então que ele compreendeu que não estava diante de um superior, mas de um amigo. Pegou impulsivamente as mãos de Rhodan e as apertou fortemente.

Nem tiveram tempo de trocar algumas palavras, quando Gucky se materializou entre eles.

— Os robôs estão marchando — estridulou ele, quase ofegante. — Em quinze minutos estão aqui. Duzentos ao todo.

Rhodan empalideceu um pouco. Sabia que somente a Stardust era suficiente para reduzir os duzentos robôs a um montão de ferro velho, mas não era isto que ele queria. Os goszuls precisariam destes robôs, para reconstruir seu mundo, ou teriam de perder a oportunidade única de se aproveitarem das instalações técnicas ali existentes.

— Os governadores — disse John, que estava interpretando mal a preocupação de Rhodan. — Eles são os responsáveis. Uma só bomba bastaria...

— Não — interveio Rhodan. — Eu gostaria de parlamentar com os saltadores. Mas antes, liquidemos os robôs. Gucky, Tako, vocês são teleportadores, pulem para a Central de Controle e desliguem os instrumentos de centralização de impulsos. Gucky, leia meus pensamentos que você sabe o que estou pensando. Quero salvar os robôs. Quando forem desativados, se tornarão inofensivos e mais tarde poderão ser reprogramados à vontade. Compreendido, Gucky?

O rato-castor confirmou.

— Estamos logo de volta. Vamos, Tako, dê cá a mão.

Ainda pensando constantemente em bolos e pudins, Bell estava fixando o local onde, há alguns segundos, estivera Gucky. A este endiabrado rato-castor queria ele mostrar de que valia um telepata, quando o outro não queria que lhe lessem o pensamento. John Marshall estava olhando para Bell, fez um sinal para Rhodan e perguntou:

— Você não está se sentindo bem, Bell?

— Como assim?

— Por que você constantemente está... Bell amaldiçoou todos os telepatas, vivos ou ainda por nascer. Era da conta de Marshall saber o que ele estava pensando? Teria dado uma resposta à altura, quando Tako se materializou. O raquítico teleportador tentou dominar a respiração antes de falar:

— Robôs de combate, na estação. Atacaram-nos. Não é tão fácil como nós pensávamos.

— Que aconteceu com Gucky? — foi a pergunta de Bell.

— Está mantendo a posição. Tenho que lhes dizer que vai demorar pelo menos três minutos... se ele conseguir.

Rhodan ligou seu transmissor de pulso e entrou em contato com a Stardust.

— Fischer, ligar o envoltório energético. Se robôs de combate atacarem, não abrir fogo. Dê ordens idênticas aos três cruzadores. Fim — virando-se para Tako, disse: — Vá ajudar Gucky, leve aqui minha pistola energética. Um robô só não vai fazer falta.

O japonês apanhou a pistola e desapareceu.

Rhodan correu com os outros para o terraço do edifício. Daí se podia ver tudo, até mesmo o edifício da administração, onde se encontravam os governadores. Mais ao lado e um pouco isolado das casas, estava o prédio da Central de Controle dos Robôs. Uma gigantesca antena esférica transmitia em todos os sentidos os impulsos de comando.

Numa faixa bem larga, aproximavam-se os robôs de combate, com as pistolas energéticas em posição de fogo. Era realmente uma força de combate incalculável. Poderia, no entanto, acontecer que os saltadores lhes dessem outra ordem, quando percebessem que não conseguiriam fazer nada contra as quatro espaçonaves.

— Tomara que Gucky tenha sorte — disse Bell para Rhodan. Podia-se notar sua grande apreensão não apenas com o ataque maciço dos robôs, mas principalmente com seu amigo Gucky. — Devemos ajudá-lo.

— É tarde para isto, Bell. Gucky tem que ver como ele sozinho dá conta das máquinas.

Os primeiros robôs atingiram a linha invisível da campânula energética, que se havia formado em torno das quatro naves. Pararam subitamente e começaram logo em seguida a atirar com todas as armas disponíveis. Feixes de raios multicores se chocavam contra a muralha invisível, ricocheteavam para todos os lados, sem produzir nenhum efeito. Alguns robôs foram atingidos pelos próprios raios de suas armas e ligaram seu envoltório de proteção.

E então, quando os robôs começaram sistematicamente a dar voltas em torno das espaçonaves, mantendo o fogo cerrado, o exército de metal parou repentinamente, como que petrificado.

Quase no mesmo segundo, Gucky e Tako se materializaram na beira do terraço, olharam primeiro para os robôs de combate completamente imóveis e vieram depois para o grupo dos seus. Gucky olhou com ares de triunfo para Bell e se dirigiu a Rhodan:

— Tive que destruir a fiação coletora da antena, não havia outro jeito. Mas é fácil consertá-la depois. Os robôs estão agora sem impulso e não sabem o que fazer. Suponho que voltem agora para seus quartéis, esperando novas ordens. Assim que a antena ficar pronta, podemos mudar sua programação.

— Ótimo serviço, Gucky — elogiou Rhodan, acariciando os pêlos da cabeça de seu pequeno amigo. — Você também, Tako. Aliás, tenho que expressar minha gratidão e meu reconhecimento ao comando de John Marshall. Sem ele, levaria muito mais tempo e não teria sido tão simples assim.

— Mas e a epidemia... — começou John, sendo então interrompido pelo sorriso aberto de Rhodan.

— É mais ou menos como uma gripezinha ou um sarampo. Temos anti-soro, mas mesmo que não tivéssemos, não teria nenhum perigo. Os saltadores que fugiram daqui, haverão de saber, no máximo dentro de dois meses, que perderam inutilmente este planeta. Mas então já será muito tarde para pensarem em voltar, pois tomaremos nossas providências.

— E o que acontecerá com os treze saltadores que estão lá na Central de Comando, tramando planos contra nós? — perguntou Bell.

— Com eles, nós vamos parlamentar. Sempre foi minha intenção manter um diálogo com os representantes deste povo poderoso. Acho que existem agora as condições ideais para um diálogo. Falta-lhes o apoio que sempre tiveram e nós temos tudo. Pode crer, Bell, os resultados dos entendimentos serão ótimos. O ponto de partida dos entendimentos é sempre mais importante do que os próprios entendimentos. Gucky saiu de seu lugar, passou por Rhodan e se dirigiu diretamente a Bell. Com uma voz quase sentimental, pegou-lhe a mão, dizendo:

— Desculpe-me, Bell, se eu o magoei há pouco. Não foi minha intenção. E muito obrigado pelo fato de não estar pensando obstinadamente só em bolos e pudins. Assim, eu sei pelo menos em que você está pensando.

— Está certo — murmurou Bell comovido, olhando para o céu, como se lá houvesse algo importante. — Está certo, meu velho companheiro, nós já sabemos como tratar um ao outro.

— Velho companheiro? — continuou Gucky. — Se você me chama de velho, está enganado, mas redondamente. Se eu sou velho, você é uma criancinha de colo...

Bell olhou suplicante para Rhodan e respirou profundamente, mas Gucky não lhe deu tempo para falar:

— Eu tenho apenas cento e cinqüenta anos, para que você saiba, seu neném de colo, mas isto não é idade para mim. Eu viverei... bobagem, ninguém sabe quanto tempo ainda viverá. Você, porém, com seus quarenta anos, ainda está no jardim da infância, principalmente quando se sabe que sua inteligência agora é que está se desenvolvendo. Finalmente alguém lhe devia dizer que...

— Gucky — interrompeu Rhodan, muito calmo — você quer fazer o favor de ir até os saltadores e convocá-los para uma reunião?

— O rato-castor abanou a cabeça afirmativamente e com seus olhos castanhos e suaves fitou por um instante Bell:

— Sim, já vou, mas quando voltar, quero mostrar a este, a este... — e não achando a palavra certa, desapareceu.

Bell olhou espantado para o local, repentinamente vazio.

— É realmente um companheiro fantástico — murmurou meio envergonhado, enfiando as mãos no bolso e passando para o outro lado do terraço, onde começou a observar o exército dos robôs paralisados.

Rhodan estava ao lado de John. Ambos observavam Bell.

— Chama-se isto de retirada estratégica — disse o telepata.

Rhodan concordou.

— Esperamos que os saltadores também conheçam a retirada estratégica — disse ele, colocando a palma da mão acima dos olhos, para poder ver melhor o edifício que ficava a dois quilômetros, no qual, neste momento, os saltadores estariam presenciando a maior surpresa de sua vida.

Não é muito comum, encontrar-se, subitamente, cara a cara com um rato gigantesco, surgido do nada... Principalmente quando não se acredita em assombrações.

E os saltadores certamente não acreditavam.

 

                                                                                            Clark Darlton

 

 

                      

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