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NOS DESFILADEIROS DOS BALCÃS / Karl May
NOS DESFILADEIROS DOS BALCÃS / Karl May

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

NOS DESFILADEIROS DOS BALCÃS

 

    Chimin, o Ferreiro

     Depois de ter partido de Adrianópolis, com Halef, Omar e Osco, acompanhados pelos três khawass, não tínhamos ainda andado muito, quando ouvimos o tropel de um cavalo no nosso encalço. Voltamo-nos e vimos um cavaleiro, que a galope, procurava alcançar-nos. Refreamos os animais, para deixar que se aproximasse, e não tardou reconhecermos Malhen, o guarda-portão de Hulam. Trazia um cavalo muito carregado, e apeou-se de um salto, logo que nos alcançou.

     — Salam — foi a lacônica saudação que nos fêz.

     Retribuímos esse cumprimento e esperamos que o recém-chegado respondesse à interrogação muda dos nossos olhares.

     — Perdoai, efêndi (1), se interrompo a vossa viagem apressada. Meu amo ordenou-me que vos seguisse.

     — Por quê? — perguntei.

     — Para voz trazer este cavalo.

     — De que é o carregamento?

     — De víveres e outras utilidades, de que talvez ireis precisar.

     — Temos já provisões para muitos dias.

     — Meu senhor crê na possibilidade de que aqueles que perseguis se desviem da estrada. E se se embrenharem nas montanhas, podereis achar ali somente pasto para os cavalos, mas nada para vós mesmos.

     — Teu amo é muito bondoso. Mas um cavalo, tão carregado como esse, só serve para demorar a nossa viagem.

     — Trouxe-o para vós. Tenho de obedecer, e nada mais. Warin saghlik il Allah jol atjliklighi. — Desejo-vos saúde. Que Alá vos conceda uma boa viagem.

     Com essas palavras, puxou as rédeas, rumou de volta para a cidade e partiu a toda a brida.

     Num instante, Halef virou o cavalo, na mesma direção, e me perguntou:

     — Devo ir atrás dele, efêndi?

     — Para quê?

     — Para prendê-lo e obrigá-lo a voltar, a fim de que conheça a tua vontade.

     — Deixa-o. Não temos tempo a perder.

     — Que carga estará entrouxada nesses cobertores e esteiras?

     — Não precisamos sabê-lo, por enquanto. Quando anoitecer e não pudermos continuar, haveremos de verificar isso. Leva o cavalo a cabresto. Avante!

     _________________

     (1) Literalmente, esta palavra significa — mestre e senhor; título que se dá, na Turquia, aos paisanos, por oposição ao de agha e bei, que se aplica de preferência aos militares; designa especialmente os homens de letras, os magistrados, os funcionários civis, os ministros religiosos e os sábios. Coloca-se depois dos nomes próprios; exemplo: Rechif efêndi. Dá-se também este título às senhoras. (N. do T.).

    

     Prosseguimos a cavalgada interrompida. Eu ia na frente, seguido pelos outros, para que se me tornasse fácil procurar rastros, muito embora não se pudesse pensar seriamente na possibilidade de os encontrar.

     Conquanto não se pudesse dar ao caminho que percorríamos a denominação de estrada real, o trânsito era sofrível. O pequeno hadji (2) tinha razão quando afirmara que, nesta região, não era tão fácil achar as pegadas de um fugitivo, como no Saara. Por isso mesmo, a minha atenção não estava presa ao caminho propriamente, mas sim à beira dele, do lado que marginava com o rio. Enquanto não tivesse descoberto rastros de três cavalos, desviando da rota que seguíamos, podia contar com relativa certeza de que os perseguidos ainda estavam na nossa frente.

     Cruzamo-nos com cavaleiros, carroças e pedestres ronceiros, mas não interroguei quem quer que fosse. Dentre os que nos encontravam, ninguém podia ter avistado os fugitivos, pois estes tinham passado pelo mesmo caminho já uma noite antes.

     Não me detive, também, nos pequenos grupos de casas, por onde passávamos, porque não havia encruzilhadas que Barud el Amasat pudesse ter tomado. Quando, porém, alcançamos uma dessas localidades chamada Bu-kiõj, de onde partiam diversos caminhos, parei e me dirigi à primeira pessoa que encontrei:

     — Salam! Que Alá cubra de bênçãos esta povoação. Haverá aqui um bekdji? (3)

     O interrogado trazia uma gigantesca cimitarra à cintura, na destra um cacete enorme, sobre o fêz tinha atado um pano, que certamente em eras remotas tivera alguma côr, mas atualmente só se via que estava duro de sujeira — e andava descalço. Olhou-me contemplativamente por algum tempo e dispunha-se, em seguida, a submeter os demais igualmente à sua meticulosa observação.

     — E então? — observei, com impaciência.

     — Sabr, sabr! — Paciência, paciência! — foi a resposta.

     O homem apoiou-se no seu porrete e começou a examinar detidamente a figura do pequeno hadji. Halef Omar retirou o relho, que trazia escondido sob o serigote, mostrando-o, ao mesmo tempo que perguntava:

     — Conheces, porventura, isto aqui?

     O homem, a quem a pergunta fora dirigida, empertigou-se, empunhou o alfange e retrucou:

     — E tu conheces isto, menino?

     Menino! Nenhum outro tratamento podia insultar tanto a Halef Omar como esse. Ia chicotear o ofensor e tomou impulso para um golpe violento. Rapidamente, esporeando o cavalo, interpus-me e contemporizei:

     — Nada de precipitações, Halef. Esse homem vai responder às minhas perguntas.

     Tirei uma moedinha do bolso, mostrei-a ao homem do alfange e repeti:

     — Então, há aqui um bekdji?

     — Tu me dás esse dinheiro? — perguntou.

     ___________________

     (2) Muçulmano que fêz o hadj, isto é, a peregrinação de Meca a Medicina. (N. do T.).

     (3) Guarda-noturno.

 

     — Dou.

     — Passa-o para cá.

     E estendeu a mão.

     — Primeiro, a resposta.

     — Pois, sim. Há um bekdji. Mas, agora, me dá o dinheiro.

     Eram apenas alguns paras de cobre.

     — Toma-o — disse-lhe. — Onde mora o bekdji?

     — Pagas também essa pergunta?

     — Já estás pago.

     — Pela primeira, já; mas pela segunda, não.

     — Bem. Aqui tens mais duas moedas de cinco paras. Então, onde mora o bekdji?

     — Lá, na última casa — respondeu o homem, mostrando uma construção, a que chamava de casa, mas que não merecia sequer o apelido de casebre e sim o de chiqueiro.

     Tomamos a direção indicada. Ao chegarmos àquela habitação desmantelada, apeei-me para chegar ao buraco que representava a única entrada e saída. Nesse momento, ia saindo uma mulher, que fora sem dúvida atraída pelo ruído de nossa chegada.

     — O jazik! Atch gozuenue. — Ai de ti! Toma cuidado! — exclamou e retrocedeu precipitadamente.

     É que ela não estava com o rosto velado, do que, aliás, não podíamos ser culpados. Também estava descalça. Tinha o corpo envolto num pedaço de pano velho e roto, e o cabelo dava a impressão perfeita de que na sua cabeça se estabelecera uma fábrica de maçarocas, em pequena escala. Era certo, também, que há meses o rosto não entrava em contato com a água.

     Cheguei a acreditar que não voltaria. Contudo, surgiu outra vez, depois de algumas exclamações impacientes que proferi. Trazia diante da cara o fundo de um cesto despedaçado. Por entre as frestas do trançado de vime, podia enxergar-nos, sendo de nossa parte impossível cevar os olhos na contemplação da sua beleza.

     — Que desejais? — perguntou.

     — O bekdji mora aqui? — tive de interrogar novamente.

     — Mora.

     — És mulher dele?

     — Sou a única mulher dele — respondeu com orgulho, para significar que o coração do paxá da meia noite era da sua exclusiva propriedade.

— Ele está em casa?

— Não.

     — Onde se encontra?

     — Saiu.

     — Para onde?

     — Anda a serviço do seu cargo.

     — Mas não é noite, ainda.

— Não só de noite, como também de dia, ele é o guarda dos súditos do padixá (4).

__________________________

     (4) Sultão, imperador dos turcos.

 

Não é somente bekdji, mas também servo do kiaja, cujas ordens executa.

     Kiaja é o chefe da povoação. Acudiu-me à lembrança o homem com quem há pouco faláramos. Virei-me e, de fato, ele se aproximava lentamente, caminhando com arrogância.

     Isso também era demais. Assumi atitude ameaçadora e dei alguns passos ao seu encontro.

     — És tu mesmo o bekdji? — perguntei-lhe.

     — Sou — respondeu todo cheio de si.

     Hadji Halef Omar notou que eu já não estava de bom humor. Bruscamente aproximou o seu cavalo do guarda noturno e diurno. Sabia quais eram as intenções dele e concordei, fazendo-lhe um sinal afirmativo.

     — Por que me não disseste isso logo, quando falei contigo há pouco? — perguntei.

     — Não tinha obrigação de fazê-lo. Ainda tens dinheiro?

     — Bastante para ti. Quero pagar-te adiantadamente por todas as perguntas ulteriores. Toma!

     A um aceno meu, o rêlho do pequeno hadji estalava nas costas do guarda dos súditos do padixá. Ele tentou subtrair-se, de um salto, mas o pequeno hadji dominava o cavalo com tanta segurança que apertava o homem, cada vez mais, contra a parede, enquanto lhe desferia chicotaços, sem cessar.

     A vítima nem sequer pensava em fazer uso do alfange ou do cacete.

     Gritava em todos os tons da escala cromática, enquanto a sua “única” mulher começava a fazer-lhe coro. Assim, esta esqueceu de conservar o fundo do cesto diante da cara. Antes, pelo contrário, jogou longe de si esse anteparo da sua dignidade feminina, saltou para perto do cavalo do hadji e, segurando o rabo do animal, dava tirões desesperados, berrando:

     — Vai bachina, vai bachina! — Ai de ti, ai de ti! Como podes ofender o servo e favorito do padixá? Para trás! Para trás! Bre, bre, bre, he, he, — Socorro, socorro!

     Esses brados esganiçados trouxeram vida às portas das casas e dos ranchos. Homens, mulheres e crianças saíram e chegaram a correr, para informar-se do motivo da gritaria.

     Fiz sinal a Halef para que parasse, sendo obedecido. O guarda noturno devia ter apanhado de dez a doze violentas chibatadas. Deixou cair o porrete, desembainhou a cimitarra, e, enquanto esfregava as costas com a mão esquerda, exclamou:

     — Homem! A quanto te atreveste. Queres que eu te encurte de uma cabeça? Hei de atiçar toda a povoação contra ti e deixar que te estraçalhem.

     Halef sacudia a cabeça, rindo. Ia responder alguma cousa, mas não chegou a falar, porque um homem forçou passagem por entre o povo e se dirigiu a mim, perguntando asperamente:

     — Que é isso? Quem são?

     Com toda a certeza, tinha diante de mim a alta personalidade do administrador da aldeia. Não obstante, perguntei.

     — Quem és tu?

     — Sou o kiaja desta aldeia. Quem lhes dá o direito de pôr a mão no meu khawass?

     — O comportamento dele nos dá esse direito.

     — Como assim?

     — Pedi-lhe informações e ele as negou. Quer que eu lhe pague as respostas, uma a uma.

     — Ele pode vender as respostas, pelo preço que entender.

     — E eu as posso pagar pelo preço que me agradar. Agora ele está pago por antecipação e, pois, será obrigado a me responder.

     — Nenhuma palavra! — bradou o guarda.

     — Ele não responderá nenhuma palavra — confirmou o kiaja. — Atentaram contra o meu servo. Sigam-me imediatamente. Examinarei o caso e receberão o seu castigo.

     A essas palavras, o pequeno hadji mostrou o chicote e perguntou:

     — Efêndi, devo dar esta linda pele de hipopótamo ao kiaja de Bukiõj, para que ele também a experimente?

     — Agora, não. Mais tarde, talvez — respondi.

     — Hein, cão, a mim tu queres mandar surrar? — berrou o chefe da aldeia.

     — Pode ser que sim — respondi calmamente. — Tu és o kiaja desta povoação. Mas, sabes tu quem sou eu?

     Não respondeu. A minha pergunta parecia tornar-se-lhe importuna. Continuei:

     — Chamaste esse homem de teu khawass?

     — Sim, ele o é.

     — Não, não é. Onde é que ele nasceu?

     — Aqui.

     — Ah! Quem o destacou, então, para o teu serviço? Ele é morador desta localidade e tu fizeste dele o teu servo, mas não é um soldado da polícia. Olha, observa estes três cavalarianos, que envergam o uniforme do Grão Senhor. Tens um guarda noturno. A mim, porém, acompanham três khawass autênticos. Compreendes, agora, que sou uma personalidade bem mais distinta do que tu?

     Para acentuar melhor as minhas palavras, Halef bracejava diante do homem, a tal ponto, que ele retrocedeu, amedrontado. Também as pessoas que se encontravam por detrás dele foram recuando. Observei naquelas numerosas fisionomias, que todos começavam a tomar-me por um grande homem.

     — Agora, responde! — ordenei.

— Senhor, dize antes quem és tu?

Nisso, Halef apostrofou-o:

     — Homem! Verme! Como podes pedir que um senhor de tal posição te diga quem é? Como obra de graça, vou levar ao teu conhecimento que estás diante do grande e nobre hadji efêndi Kara Ben Nemsi Bei (5), a quem Alá queira conceder ainda muitos milhares de verões, sem contar os invernos. Espero que tenhas ouvido falar nele?

     — Não, nunca — protestou o homem, acovardado, muito fiel à verdade.

     _______________________

     (5) Título turco dado aos oficiais superiores do exército otomano, bem como aos altos funcionários. Era usado antigamente pelos governadores de província e pelos soberanos vassalos do sultão, como o bei da Tunísia.

    

     — Como? Nunca? — trovejou o pequeno Halef. — Devo apertar-te o crânio até que a memória te saia daí de dentro? Pensa bem.

     — Sim, ouvi falar nele — confessou o kiaja, com muito medo.

     — Quem sabe se só uma vez?

     — Não. Muitas, muitas vezes.

     — Isso é a tua sorte, kiaja. Eu te prenderia e mandaria para Istambul, a fim de ter afogar no Bósforo. Agora, porém, ouve o que esse eminente efêndi e emir (6) tem para te dizer.

     Com essas palavras, afastou o cavalo. Os seus olhos chispavam ainda numa ira aparente, mas uma leve contração dos músculos faciais tornava-se denunciadora. O bom Halef precisava fazer todo o esforço para não explodir numa gargalhada.

     Todos os olhares, agora, estavam presos aos meus lábios. Dirigi-me ao kiaja em tom tranquilizador:

     — Não vim para lhes fazer mal. Mas estou acostumado a ver respondidas as minhas perguntas, com prontidão e obediência. Esse homem negou-se a me dar voluntariamente esclarecimentos; queria extorquir dinheiro; por isso mandei castigá-lo. Depende dele mesmo livrar-se de apanhar ainda mais bastonadas.

     Enquanto me voltava para o guarda noturno, o administrador da aldeia fêz-lhe precipitadamente um sinal e cochichou:

     — Pelo amor de Alá, responde depressa.

     O protetor noturno dos vassalos do padixá perfilou-se com tanto garbos como se estivesse vendo em mim o soberano dos crentes.

     — Efêndi, interrogue-me — disse.

     — Deste guarda durante a última noite? — perguntei.

     — Dei.

     — Quanto tempo?

     — Desde o anoitecer até de manhã.

     — Chegaram à aldeia pessoas estranhas?

     — Não.

     — Nenhum estranho atravessou o povoado a cavalo?

     — Não.

     Antes de dar essa resposta, lançou furtivamente um olhar interrogativo para o kiaja, cuja fisionomia não me era possível observar. Mas eu tinha visto o bastante pura não dar crédito a essa resposta. Por isso, declarei em tom enérgico:

     — Mentes!

     — Senhor, falo verdade.

     Nesse momento, virei-me rapidamente para o kiaja e vi que este tinha o indicador sobre os lábios, num gesto premonitório. Antes, ele cochichara ao guarda, mandando que respondesse depressa e, agora, determinava-lhe que calasse. Isso naturalmente causava suspeitas. Perguntei ao guarda:

     _______________________

(6) Título dos descendentes de Maomé, dos grandes oficiais, governadores de província,etc.(N.do T.).

    

     — Também não falaste com algum estranho?

     — Não.

     — Bem, kiaja, onde é a tua casa?

     — Aquela, lá em cima, — respondeu o interrogado.

     — Tu e o bekdji irão comigo até lá; somente os dois. Tenho de falar-lhes.

     Sem olhar para eles, dirigi-me ao ponto indicado e entrei pela porta da casa.

     Era construída inteiramente à moda búlgara, consistindo num único compartimento, subdividido por entrançados de vime. No primeiro cômodo encontrei uma espécie de cadeira, na qual me sentei.

     Nenhum dos dois tinha ousado opor-se a mim. Por isso, entraram imediatamente depois. Por uma brecha, que servia de janela, observei que a população ainda se conservava reunida, mas guardando uma distância respeitosa dos meus companheiros.

     O kiaja e o seu subordinado encontravam-se visivelmente numa situação nada invejável. Ambos tinham medo e isso eu precisava aproveitar.

     — Bekdji, ainda persistes irredutível nas declarações que me fizeste, há pouco? — perguntei.

     — Sim — respondeu.

     — Apesar de me teres mentido?

     — Não menti.

     — Mentiste, aliás, somente por que o kiaja assim o queria.

     A maior autoridade da aldeia teve um sobressalto:

     — Efêndi!

     — Como? Que queres dizer?

     — Eu não disse palavra alguma a esse homem.

     — Não, mas lhe fizeste sinal.

     — Não fiz.

     — Eu lhes digo: ambos mentem. Conhecem o provérbio do judeu, que se afogou, por ter ido dormir num poço?

     — Sim.

     — O mesmo que sucedeu ao judeu, lhes sucederá. Estão envolvidos por um perigo, que, como a água do poço, jorrará sobre vocês e os afogará. No entanto, não quero a sua desgraça e desejo preveni-los. Falo aqui, para que os seus jurisdicionados não saibam que me mentiram. Estão vendo quanto sou condescendente e bondoso? Agora, porém, quero saber a verdade.

     — Já a dissemos — protestou o kiaja.

     — Com que então, durante a última noite, pessoas estranhas não passaram pela localidade?

     — Não.

     — Três cavaleiros?

     — Não.

     — Montando dois tordilhos e um zaino?

     — Não.

     — Eles não falaram com vocês?

     — Como poderiam eles falar conosco, se nem sequer estiveram aqui Não vimos nenhum desconhecido.

     — Bem. Tive boa vontade com vocês. Desejam, porém, o seu próprio mal. Já que me querem mentir, mandarei levá-los para Edreneh e aí à presença do próprio veli (7). Por isso mesmo, trouxe os três khawass. Lá o processo será sumário. Façam as despedidas.

     Notei que ambos se assustaram vivamente.

     — Efêndi, estás caçoando — disse o chefe da aldeia.

     — Que pensas? — respondi, levantando-me. — Não tenho nada mais a dizer-lhes. Agora, vou chamar os khawass.

     — Mas, nós somos inocentes.

     — Provar-se-á que são culpados. Então, estarão perdidos. Quis salvar-los. Mas não o quiseram. Irão agora, sofrer as conseqüências da sua obstinação.

     Encaminhei-me para a porta, como se fosse chamar os policiais. Nesse momento, o kiaja embargou-me os passos e perguntou:

     — Efêndi, é verdade que nos querias salvar?

     — É.

     — Queres ainda?

     — Hum! Não sei. Faltaram à verdade.

     — Entretanto, se confessarmos agora?

     — Talvez seja em tempo.

     — Serás indulgente e não nos prenderás?

     — Nada têm que perguntar, e sim que responder. Compreendem? O que eu resolver, saberão a seu turno. Não sou, porém, desumano.

     Entreolharam-se, e o guarda noturno, numa solicitação muda, levantou-um pouco a mão.

     — Ninguém terá, aqui, conhecimento do que te dissermos, efêndi? — perguntou o kiaja.

     — Dificilmente.

     — Pois bem, então ouvirás a verdade. Não saias; fica e pergunta-nos o que queres saber. Responderemos em seguida.

     Retomei o lugar ocupado anteriormente, e me dirigi ao guarda noturno.

     — Com que então, durante a noite, passaram forasteiros pela aldeia?

     — Passaram.

     — Quem?

     — Depois da meia noite, uma carreta de bois. Mais tarde, todavia, aqueles que são alvo das tuas investigações, ao que parece.

     — Três cavaleiros?

     — De fato.

     — Qual era o pêlo dos cavalos?

     — Dois toidilhos e um zaino.

     _________________

     (7) Vice rei.

    

     — Falaram contigo?

     — Falaram. Estava no meio da estrada, quando se dirigiram a mim.

     — Todos os três falaram contigo?

     — Não. Somente um deles.

     — Que te disse?

     — Pediu-me que guardasse sigilo, se alguém me perguntasse por eles. E me deu um bakchich.

     — Quanto?

     — Duas piastras.

     — Ah! Isso é muito, realmente muito — declarei, rindo. — E por causa dessas duas piastras transgrediste os mandamentos do Profeta e me pregaste petas?

     — Efêndi, a culpa não é só das duas piastras.

     — Que mais?

     — Perguntaram-me pelo nome do kiaja e, quando o enunciei, suplicaram-me que os levasse à sua presença.

     — Conhecias a todos ou algum deles?

     — Não.

     — Por conseguinte, levaste-os para que conhecessem o kiaja, pois desejavam falar com ele. Atendeste ao pedido?

     — Atendi.

     Diante disso, interpelei o chefe da povoação, que estava visivelmente muito mais preocupado do que o seu subordinado. O olhar vacilante, que lhe surpreendi, revelava claramente que não tinha a consciência limpa.

     — Reafirmas, agora, que ninguém passou pela aldeia? — perguntei-lhe.

     — Efêndi, eu estava com medo — respondeu.

     — Quem medo tem, mal procedeu. Passas um mau atestado da tua conduta.

     — Senhor, ignoro se procedi mal.

     — Por que, então, ter medo? Minha aparência inspirará receio aos inocentes?

     — Oh! Não é a ti que temo.

     — A quem é?

     — A Manach el Barcha.

     — Ah! Então o conheces?

     — Conheço.

     — Onde o conheceste?

     — Em Mastanly e Ismilan.

     — Como e onde o encontraste?

     — Ele é arrecadador do imposto “per capita” em Uskub e fora a Seres, a fim de entender-se com a população da localidade. Dali foi em visita à feira anual de Menlik.

     — Quando foi isso?

     — Há dois anos. Naquele tempo, ele tinha serviço em Ismilan e Mastanly e em ambas as localidades o encontrei.

     — Falaste-lhe também?

     — Não. Recentemente, porém, ouvi dizer que ele levantara tributações maiores do que as devidas e que por isso fugira. Foi para as montanhas.

     Como já esclareci, “ir para as montanhas” significa tornar-se bandido, salteador, confundindo-se com estes. Por isso, declarei energicamente:

     — Era, portanto, teu dever prendê-lo, logo que o encontraste!

     — Oh, efêndi, isso eu não podia arriscar!

     — Por que não?

     — Seria a minha morte. Tantos homens já se foram para as montanhas! Eles estão em todos os desfiladeiros, e os seus aliados contam-se às centenas. Conhecem-se mutuamente e vingam os companheiros. Se o prendesse, os seus amigos viriam matar-me.

     — És um covarde e temes cumprir com o teu dever. Não devias permanecer, nem por um instante, na chefia da aldeia.

     — Ó, senhor, enganas-te! Não foi só por mim! Eles teriam arrasado a nossa alderazinha.

     Nesse momento, abriu-se a porta e apareceu a cabeça do pequeno hadji.

     — Sídi, (8) — falou — quero dizer-te duas palavras.

     Isso foi dito em árabe, no dialeto do Saara oriental, falado na pátria de Halef. Este com certeza empregou tal idioma, para não ser entendido pelo kiaja e pelo guarda noturno.

     — Que é? — perguntei.

     — Vem cá, depressa — respondeu, sem dar maiores esclarecimentos. Fui ter com ele. Em qualquer hipótese, não seria sem importância o que ia comunicar-me.

     — Vamos, fala — murmurei-lhe.

     — Sídi. — disse-me baixinho, de modo que não pudesse ser ouvido pelos outros — um dos moradores fêz-me sorrateiramente um sinal e desapareceu por detrás da casa. Segui-o tão disfarçadamente quanto possível e ele me disse que nos comunicaria algo, se lhe déssemos dez piastras.

     — Onde o encontrarei agora?

     — Ainda detrás da casa. — Não te disse nada?

     — Não, nenhuma palavra.

     — Irei ter com ele. Permanece, entretanto, aqui, para que estes dois indivíduos não tramem contra nós.

     Dez piastras, cerca de dois marcos, não era muito para saber alguma coisa de interesse. Não saí pela estrada fronteira e sim diretamente pelo corredor, que dava para os fundos. Vi ali uma área quadrangular, aramada, onde pastavam diversos cavalos. Nas proximidades, encontrava-se um homem, que, pelo visto, esperava por mim. Quando me viu, aproximou-se rapidamente e disse em voz baixa:

     — Queres pagar, efêndi?

     — Quero.

     — Então, dá cá.

     — Toma.

     Desembolsei a pequena importância, que passou para o bolso dele.

     Depois, murmurou apressadamente:

     — Eles estiveram aqui.

     — Eu sei.

     — Trocaram um cavalo.

     — Qual?

     — Um zaino. Queriam três tordilhos e por isso trocaram o zaino por um tordilho. Vê, o animal está lá no canto.

     Olhei na direção indicada. O pêlo do cavalo combinava com a descrição que me fora feita.

     — É tudo quanto me querias dizer? — perguntei.

     — Não. Pouco depois do meio dia, chegou mais um, que perguntou pelos três cavaleiros, dos quais dois montados em tordilhos. De nada sabia e por isso conduzi-o ao guarda, que, por sua vez, o levou ao kiaja.

     — Demorou-se?

     — Não. Parecia que tinha muita pressa.

     — Podes descrevê-lo?

     — Posso. Montava um velho zebruno, lavado de suor. Tinha na cabeça um fez escarlate e como estivesse envolvido numa comprida binich (9) parda, só lhe pude distinguir os kundura (10) vermelhos.

     — Usava barba?

     — Afora um minúsculo byjik (11) claro, era totalmente imberbe, segundo o que consegui observar.

     — Para onde se dirigiu?

     — A Mastanly. Mas o principal não ouviste ainda, isto é, que o kiaja tem uma irmã em Ismilan, cujo marido é irmão da Chut-a.

     Isso era tão grave que, surpreendido, recuei um passo.

     Na península dos Bálcãs, jamais se pôde reprimir o banditismo. Ainda atualmente, os jornais informam com freqüência sobre levantes, assaltos, morticínios e outros acontecimentos criminosos, que podem ser levados à conta da situação de insegurança e desorganização que prevalece naquela região. Pois lá nas alturas das montanhas do Char-Dagh, entre Prisrendi e Kadandalas tornou-se famoso um skipetar, que fazia as suas correrias desde as culminâncias das cordilheiras Kurbescka-Planina até o vale do Babuna, acompanhado pelos revoltados e descontentes, que se lhe reuniram. Dizia-se que até nas gargantas do Perin-Dagh ele fora visto, e possuía adeptos até na solidão da Despoto-Planina.

     O seu verdadeiro nome ninguém sabia. El Assfar, Sayrik Chut — assim era chamado, conforme o idioma de que a gente se servisse. Essas três palavras significam “o amarelo”. Tal coloração talvez lhe tivesse advindo de iterícia. Chut-a, na língua servia, é o

 

___________________

     8) Meu senhor, no árabe da Ãfrica. Palavra que se emprega antes dos nomes próprios das pessoas a quem se quer testemunhar consideração. Na linguagem corrente, emprega-se no sentido de senhor, quando se aplica a um estrangeiro. (N. do T.).

     (9) Capa.

     (10) Sapatos turcos.

     (11) Bigode.

 

feminino de Chut e quer dizer naturalmente “a amarela”.

     Logo, Chut-a, a mulher desse skipetar, era uma parenta do kiaja. Isso me dava muito que pensar. Contudo, não me passou pela mente, deixar perceber o que é que eu resolvera e concluíra.

     — Ainda tens alguma coisa para dizer? — perguntei ao homem.

     — Não. Estás satisfeito?

     — Estou. Mas, dize lá, por que trais o teu chefe, revelando-me esses fatos?

     — Efêndi, ele não é bom homem. Ninguém gosta dele e todos sofrem debaixo da sua prepotência.

     — Há mais alguém que saiba desta palestra?

     — Não, e te peço que não o digas a ninguém.

     — Calarei.

     Depois dessa afirmação, ia me afastar, quando me ocorreu que, por pouco, esquecia algo muito importante.

     — És conhecido em Ismilan? — perguntei, reatando a conversa.

     — Sou.

     — Então conheces também, decerto, o cunhado do kiaja, aquele que afirmas ser o irmão da mulher do skipetar?

     — Sim, conheço-o.

     — Que é ele?

     — É silahdji (12) e possui ao mesmo tempo um khavehane (13) onde expõe à venda as armas.

     — Onde mora?

     — Na rua que vai à aldeia de Tjatak.

     — Agradeço-te. Guarda segredo, como também eu o saberei guardar.

     Voltei ao interior da casa. Nas fisionomias do kiaja e do guarda noturno não se podia perceber se suspeitavam que o meu afastamento tivera uma finalidade inamistosa em relação a eles. Halef retirou-se em seguida.

     — Agora, — prossegui na palestra interrompida — quero saber que desejava de ti esse antigo cobrador de impostos?

     — Informou-se sobre a estrada — respondeu o kiaja.

     — De que estrada?

     — De Sofala.

     Sofala ficava justamente rumo sul, enquanto que eu estava convencido de que os fugitivos tinham tomado a direção leste. O bom kiaja queria, portanto, desviar-me da verdadeira rota. Não dei a perceber que as suas palavras não me mereciam crédito e continuei.

     — É verdade que Manach el Barcha vinha de Edreneh?

     — E.

     — Nesse caso, passou por Samanka, Tjingerli e Ortakiõj, em direção a oeste,

     _____________

     (12) Armeiro.

     (13) Café.

 

mudando aqui bruscamente de rumo para o sul. Querendo ir a Sofala, podia ter seguido logo para o sul, atravessando Tatar, Ada, Chahandja, Demotika e Mandra. Por que se teria desviado para aqui, fazendo um percurso, em excesso, de mais de 16 horas a cavalo.

     — Não lhe perguntei.

     — E eu não posso compreender!

     — Ele não pode deixar-se avistar. Querem prendê-lo. Com certeza, quis despistar a zabtie (14).

     — Isso é impossível.

     — Também o procuras? Queres prendê-lo?

     — Quero.

     — Deves, portanto, seguir a direção que te indiquei.

     — Na região meridional, mora algum parente ou conhecido teu, a quem pudesse me dirigir, em caso de necessidade?

     — Não.

     — Mas, tens parentes?

     — Não.

     — Pais?

     — Não.

     — Um irmão ou irmã?

     — Também não.

     Isso era mentira. E o guarda que, por certo, conhecia as relações de parentesco do seu chefe, não fazia a menor menção de me denunciar à verdade. Ambos me tomavam por uma grande personalidade. Contudo, me ludibriavam. Eu, que nada mais era do que forasteiro, não possuía a menor soma de autoridade sobre eles. A única coisa que podia empregar era a astúcia, e, em tais circunstâncias, aparentei acreditar no que me dizia o kiaja. Tomei o meu caderninho e folheei como se procurasse alguma anotação, e, depois, como se a tivesse encontrado, disse:

     — É isso mesmo: o starechin de Bu-kiõj, um funcionário violento, injusto e prepotente. Além disso, deixa escapar os foragidos, ao invés de os prender. Serás...

     — Violento? Injusto? Prepotente? — interrompeu-me — Efêndi, é impossível que isso se refira a mim.

     — A quem, então? Presentemente não sobra tempo para ocupar-me contigo. Podes, porém, estar certo de que cada injustiça terá o seu castigo merecido. Sabes quais foram as palavras do Profeta sobre os Ujuhn Allah? (15)

     — Sim, emir — respondeu timidamente.

     — São mais agudos do que o fio de uma faca, que entra no coração e mata. Rasgam mais fundo, penetram na alma, e a mentira sucumbe diante da verdade. Não te olvides jamais dos olhos do Onisciente, porque senão sofrerás mais do que um abid elassnam (16), apesar das ssalavat (17), que fazes religiosamente. Partirei. Que Alá guie os impulsos

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      (14) Polícia.

     (15) Olhos de Deus.

     (16) Pagão.

     (17) Orações.

 

do teu coração e os pensamentos do teu cérebro. Allah jusellimak — Deus te guarde.

     Curvou-se até o chão e respondeu:

     — Nesinin sa'id — benditos sejam os dias da tua vida.

     O guarda noturno curvou-se tanto, que a cara quase batia no chão e disse, em turco:

     — Akibetiniz chajir ola sultanum — Sede feliz até o fim da vida, senhor.

     Tratou-me por vós, o que constitui uma grande distinção. Todavia, quando ia saindo, ouvi o kiaja, que há momentos me desejara tantas bênçãos, murmurar com mal contida raiva:

     — Ingali 'min hon!

     Isso quer dizer, mais ou menos, a mesma coisa que a expressão usual dos árabes — ruh lildchehennum — Diabo que te carregue! Era de supor, em conseqüência, que as minhas piedosas advertências não lhe seriam de grande proveito.

     Montei novamente e retiramo-nos do povoado, mas não em direção ao poente e sim para o sul. Somente quando não podíamos mais ser avistados, tomamos o caminho que nos levaria a Geren, um povoado distante cerca de uma hora e meia dali.

     Só então observei que éramos acompanhados apenas por dois khawass.

     — Onde está o teu subalterno? — perguntei ao bachi dos khawass.

     — Voltou para Edreneh.

     Respondeu isso com tanta indiferença, como se se tratasse da coisa mais natural deste mundo.

     — Por quê?

     — Não podia mais acompanhar.

     — Por que motivo?

     — Ele estava bach dõmnesi gõlin. (18) Não suportava mais.

     — Como pôde ficar enjoado?

     — Porque o cavalo galopou — respondeu seriamente.

     — Mas me disseste que sabia cavalgar tão bem!

     — Sim. Entretanto, é preciso que o cavalo esteja parado. Quando galopa, sacode, vascoleja e bamboleia, que apavora. Só o estômago de um kassak russialy (19) suporta uma coisa dessas. Os meus badchirsak (20) desapareceram, desfizeram-se, escorregaram para baixo até se misturar com os do cavalo. Não os sinto mais. Só sinto as chalvar (21), que grudam no corpo, em lugar do couro arrancado pelos arreios. Fosse eu encarregado de sentenciar o diabo, certamente o condenaria a acompanhar-te, cavalgando até Menlik. O demônio preferiria ficar no mais ardente fogo do inferno, do que no lombo deste cavalo e, se te acompanhasse, chegaria ao fim da jornada sem couro e sem ossos.

     Era uma lamúria, que, na verdade, nos fazia rir. Contudo, o homem nos causava dó. Fazia uma cara lamentável. De fato, em certas partes do corpo, apesar de montar há pouco tempo, o couro estava em ferida. Não era mais feliz o seu companheiro, o qual murmurava quase num monólogo:

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     (18) Enjôo do mar. Mareado.

     (19) Cossaco.

     (20) Intestinos.

     (21) Calças.

 

     — Vallahi, õjle a ti — Por Alá, isso é verdade.

     Foi esse o seu único lamento. Mas, via-se que passava pelas mesmas torturas físicas de seu superior hierárquico. Perguntei ao último:

     — Quem deu licença ao outro khawass para retroceder?

     — Eu — contestou, surpreendido pela pergunta.

     — Creio, entretanto, que era a mim que devia pedir licença,

     — A ti, efêndi? É tu o bachi de khawass ou sou eu?

     — Naturalmente és tu. Sabes, no entanto, quais as ordens que tens de executar.

     — As ordens do kadi. Mas ele não mandou que eu andasse até me encravar no lombo do cavalo, a ponto de ficar só com a cabeça de fora. Entoarei hosanas e me gloriarei como um anjo, quando estiver de regresso à caserna de Edreneh.

     Nisso, o pequeno hadji obtemperou:

     — Pedaço de gente, como te atreves a faltar com o respeito ao meu efêndi? Ele é teu senhor, enquanto lhe aprouver. Quando te ordenar que cavalgues, terás de cavalgar, ainda que todo o teu fardamento fique pregado ao couro. Por que garganteaste que sabias montar perfeitamente?

     — Que diz esse homenzinho? — retrucou o sub-oficial, irado. — Como me trata? Trata-me de pedaço de gente? E, sem embargo, sou cabo do soberano de todos os crentes. Direi isso ao kadi, no meu regresso.

     O pequeno hadji queria responder, mas Osco se antecipou, pegando a rédea do cavalo montado pelo khawass, ao mesmo tempo que lhe dizia, rindo, na sua língua materna (servia):

     — Vamos, wacsche prewaszchodsztwo (22). Segure-se bem nos arreios, wiszoko blagorodni gospodine (23). Daremos início ao campeonato de corrida.

     Em seguida, desandou a galopar velozmente, levando o bachi dos khawass. Omar Ben Sadok segurou, no mesmo instante, as rédeas do cavalo que era montado pelo outro khavass, e voou atrás dos dois.

     — Coriscos e trovões! Patife! Infame! Filho do demônio! Anjo do inferno! Raios e trovoadas! Cunhado da maldade!

     Essas e outras imprecações eram proferidas pelos dois agentes de segurança, enquanto se agarravam desesperadamente aos arreios e as crinar dos cavalos. Seguimo-los depressa. Tive pena dos dois pobres diabos, pois estavam já sem fôlego quando os alcancei.

     Nesse momento, eles esgotavam o repertório de pragas e impropérios de todos os vocabulários, turco, árabe, persa, romeno e sérvio. Desse gênero é o homem oriental, principalmente o soldado levantino, hábil no manejo de várias línguas. Tive muito trabalho para acalmá-los e, assim, decorreu um bom lapso de tempo, até que pudéssemos continuar a jornada em boa paz.

     Tínhamos ocasião, portanto, para trocar idéias sobre os acontecimentos de Bu-kiõj.

     Tanto ao perspicaz Halef, como a mim, causou estranheza a circunstância de terem

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     (22) Ilustríssimo e excelentíssimo senhor.

     (23) Ilustríssimo e augusto senhor.

 

sido os fugitivos procurados, naquela povoação, hoje depois do meio dia.

     — O homem que os procurou — disse Halef — deve conhecê-los e saber da fuga. Sendo assim, por que não saiu junto com eles?

     — Forçosamente porque não era intenção dele acompanhá-los.

     — Nesse caso por que os segue?

     — Suponho que vai informá-los dos últimos acontecimentos.

     — A tua libertação?

     — Com certeza.

     — A prisão de Ali Manach, o dançarino, feita por ti?

     — Sim e provavelmente da morte deste último.

     — Que dirá a isso Barud el Amasat?

     — Ficará cheio de pavor e ódio, supondo que o cavaleiro consiga alcançá-lo para lhe dar essas notícias.

     — Por que não o conseguirá? Ia com tanta pressa, que o cavalo suava.

     — É um animal velho. E justamente porque suava, não agüentará muito. Além disso, tenho a intenção de impedir que esse homem atinja o objetivo visado.

     — Por quê?

     — Os fugitivos viriam a saber, por ele, que estou em liberdade e que os persigo. Isso, porém, não me agrada. Quanto mais seguros eles se sentirem, tanto mais devagar andarão e, por isso, mais depressa os alcançaremos. Eis por que resolvi pôr-me no encalço do cavaleiro de quem falamos e frustrar os seus planos.

     — Leva uma grande dianteira.

     — Pensas, acaso, que Rih não corre mais?

     — O morzelo, sídi? Oh, Rih significa vento e como o vento o cavalo voa. Há muito que não tem oportunidade de mostrar que os seus garrões são de aço. Qual não seria a sua alegria em correr à vontade, estrada afora! Mas nós não podemos te acompanhar.

     — Isso nem é preciso. Irei só.

     — Só, sídi? E que faremos nós?

     — Seguir-me-ão tão depressa quanto possível.

     — Para onde?

     — Continuarão no caminho de Mastanly. Também irei lá, mas procurarei um atalho que encurte a distância. Como não sei ainda onde encontrarei o perseguido, não posso dizer em que ponto poderei esperá-los.

     — Sabes, porventura, se ele também tomou um atalho?

     — Com certeza, não. Seria penoso para o seu velho zebruno.

     — E, que farás, se tomares a dianteira?

     — Esperarei por ele.

     — Como poderás saber se estás atrás ou adiante dele?

     — Penso que saberei.

     — Não conheces esta região. Facilmente poderás perder-te. Pode ocorrer um desastre. Leva-me contigo, sídi.

     — Não tenhas cuidados, meu caro Halef. Estou bem montado e bem armado. É impossível levar-te comigo, pois serás o guia dos outros.

     Isso o lisonjeou. Consentiu, por isso, no meu plano. Dei-lhe, e a Osco e Omar, diversas instruções. Durante esse tempo, como tivéssemos de cuidar de todos os detalhes, prevendo os fatos e combinando as medidas a tomar, nos esquecêramos dos dois khawass. Assim, quando os procurei, vi somente o cabo, que tão exímio se revelara na arte de equitação. O outro desaparecera.

     — Onde está o teu companheiro? — perguntei admirado. O interrogado virou-se e, em seguida, exclamou perplexo:

     — Efêndi, ele cavalgava atrás de mim!

     A sua consternação não era fingida. Vi que, de fato, estava crente de ter sido seguido pelo companheiro.

     — Mas, onde está ele? — prossegui.

     — Desapareceu, evaporou-se, perdeu-se, aniquilou-se, apagou-se, digeriu-se! — respondeu o policial, na sua indescritível estupefação.

     — É impossível não teres observado que ele se atrasara.

     — Como podia observá-lo? Observaste-o por acaso? Voltarei imediatamente, para buscá-lo.

     Fêz um gesto tendente a executar o que dissera. Desse modo, também ele conseguiria vantajosamente colocar-se na retaguarda.

     — Alto! — exclamei, interceptando-lhe a marcha. — Fica. Não temos tempo para procurar esse fujão ou esperar que o encontres.

     — Mas ele tem de ir junto.

     — Quanto a isso, entender-te-ás mais tarde com o colega em Edreneh. Agora, nos seguirás. Hadji Halef Omar, toma cuidado para que esse Onbachi cumpra com o seu dever, durante a minha ausência.

     Depois disso, dei de rédea e esporeei o garanhão. Em pouco tempo, afastara-me, a perder de vista.

     Naquela região, as povoações são erigidas à maneira búlgara. Uma aldeia búlgara ou celo, quase sempre fica distante da estrada ou daquilo a que se dá essa denominação e consequentemente invisível para a maioria dos viajantes. Comumente um celo estende-se sobre pradarias, às margens dos rios, que servem de defesa natural.

     Cada uma dessas aldeias, aliás bem numerosas, conta poucas quintas, separadas por prados. Uma quinta é constituída de seis a dez casebres. Estes ou são cavados no solo, com cobertura cônica de galhos e palha, ou são feitos de vime trançado. Nesse caso a sua aparência é a de grandes cestos. Cada qual tem sua habitação. Existem, assim, choupanas para gente, para cavalos, vacas, porcos, ovelhas e galinhas. Os animais deixam as habitações a seu bel prazer e passeiam entre as quintas.

     Não existem chaussées, como na Europa ocidental. A própria designação de estrada é exagerada. Se se quiser ir de um celo a outro, procurar-se-á baldadamente uma picada ou caminho, que estabeleça a comunicação. O forasteiro, que se destine a um ponto relativamente afastado, terá de possuir o instinto e o faro das aves de arribação. Se quiser afastar-se dos trilhos feitos pelas carretas de bois e que constituem o indício da problemática existência de uma estrada, mesmo assim, a sua situação não será de todo favorável, porque, se as aves dispõem do espaço ilimitado e podem cortá-lo em todas as direções, ao homem se lhe deparam mil obstáculos de toda a sorte.

     Cometi realmente uma temeridade, quando me afastei do caminho de Adatchaly. Sabia somente que Mastanly estava situada ao sudoeste, e podia contar que iria encontrar rios desprovidos de pontes, vales áridos e extensos matagais.

     Passei por diversas aldeias, atravessando alguns campos e roseirais, e cavalgando sobre pastagens crestadas pelo sol, até que, finalmente, tive necessidade de me orientar.

     Nisso, avistei, por detrás de uma original cerca de varas de vime, um ancião, que se ocupava em recolher folhas de rosas. Aproximei-me da sebe e o cumprimentei. O velho não se apercebera da minha chegada e por isso assustou-se no ouvir a minha voz. Verifiquei que consultava-se a si mesmo se devia aproximar-se ou ocultar-se por detrás das roseiras e, por isso, apressei-me a lhe inspirar confiança, dizendo algumas palavras amáveis. Assim, consegui, pelo menos, que ele começasse a andar vagarosamente ao meu encontro.

     — Que queres? — perguntou.

     Enquanto assim dizia, observava-me desconfiado.

     — Sou dilentji (24) — respondi. — Não me darás uma gul es semawat? (25) O teu jardim está cheio dessas rosas incomparáveis.

     O ancião sorriu bondosamente e disse:

     — Pode um mendigo montar um cavalo desses? Nunca te vi. Ês forasteiro?

     — Sou.

     — E aprecias as rosas?

     — Muito.

     — Um homem de mau caráter não é amigo das flores. Terás a mais linda das minhas rosas celestes, recém a desabrochar. É quando o seu aroma, dulcíssimo e encantador, parece provir diretamente do trono de Alá.

     Depois de uma escolha demorada, colheu duas flores que me entregou por cima da cerca.

     — Toma, forasteiro, — disse, e acrescentou: só há um perfume que supera em maravilha ao destas rosas.

     — Qual é?

     — O do tuetuen djebeli. (26)

     — Conheces esse aroma?

     — Não, mas ouvi falar. É o mais sublime dos perfumes. Alá não nos permitiu que o conhecêssemos. Fumamos somente tuetuen myrs bughdajy, (27).

     — Hacha! Cheni! — Pelo amor de Deus! É horrível!

     O velho confirmou, meneando a cabeça, e explicou:

     — Sim. Somos pobres, mui pobres. Sou um velho guarda do roseiral e tenho o

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     (24) Mendigo.

     (25) Rosa do céu.

     (26) Fumo de djebeli.

     (27) Fumo de milho.

 

trabalho de cortar folhas de milho para misturá-las com o fumo.

     — Não obstante, o vosso óleo de rosas é tão caro.

     — Sus ol — cala-te. Não seríamos tão pobres, se não fosse a Babi Humajun (28). Ela está sempre escancarada para receber os tributos. Os paxás e os ministros podem fumar djebeli. Ah, se eu o pudesse cheirar uma vez só! Somente cheirar!

     — Tens um cachimbo?

     — O' Alá! Um tjibuk eu possuo.

     — Então, vem cá.

     Tirei o meu estojo de cortiça do alforge e o abri. O ancião se mostrara tão comunicativo que resolvi dar-lhe motivo para uma grande alegria.

     Com viva curiosidade, cravou os olhos no estojo.

     — Uma djeb tuetuonuen! (29) — disse. — Isso contém fumo, não é verdade?

     — Realmente. Deste-me duas rosas das mais preciosas e eu quero retribuir, oferecendo-te, em troca, um pouco do meu fumo.

     — O', efêndi, como és bondoso!

     Levava comigo, ainda dois ou três envelopes. Enchi um de fumo e lhe entreguei. O ancião cheirou, arregalou os olhos e sentenciou:

     — Isso não é fumo de milho.

     — Não. Isso é djebeli.

     — Djebeli! — exclamou. — Efêndi, estás me dizendo a verdade?

     — Estou. Não te engano.

     — Então, não és um efêndi, mas, sim, um paxá, ou talvez um ministro. Não é verdade?

     — Não, meu amigo. Não é só na Sublime Porta que se fuma djebeli. Estive na terra que o produz.

     — Oh! venturoso. Em todo o caso, és um cavalheiro nobre.

     — Não. Sou um pobre escritor. Todavia, a Sublime Porta deixou-me com um pouco de djebeli.

     — E desse pouco queres repartir comigo! Que Alá te abençoe. De que terra és?

     — De Nemtche memleketi...................

     — É a mesma a que também chamamos Alemanja?

     — É.

     — Nunca tinha visto um nemtche. São todos eles bons como tu?

     — Creio que são iguais a ti e a mim.

     — Que fazes aqui em Osmanly nemleketi? Para onde vais?

     — Sigo para Mastanly.

     — Mas, então, te desviaste do caminho. Deves ir a Geren, e de lá primeiramente a Derekiõj.

     — Intencionalmente tomei este atalho. Quero ir a Mastanly pelo caminho mais curto.

     _______________

      (28) Sublime Porta.

      (29) Fumeira.

 

     — Isso é difícil para um estranho. Muito difícil.

     — Podes, por acaso, indicar-me o caminho?

     — Farei o possível. Bem. Olha em direção sudoeste. Onde o sol toca os picos mais elevados, encontrarás as montanhas de Mastanly. Ficas, assim, pelo menos, conhecendo o rumo a tomar. Passarás por muitas aldeias e também por Kochikawak. Atravessarás ali o rio Burgas e então terás Mastanly, justamente, em direção leste. Mais esclarecimentos não posso dar. Amanhã, à noite, chegarás ao destino.

     Essa afirmativa era engraçada. Por isso perguntei, sorrindo:

     — Com certeza, não és cavaleiro?

     — Não.

     — Então te direi que, em qualquer hipótese, estarei hoje ainda, com certeza, em Kochikawak.

     — Impossível! És um mágico?

     — Não. Entretanto, o meu cavalo corre como o vento.

     — De fato, ouvi dizer que existem cavalos assim. Então, queres chegar hoje de noite a Kochikawak?

     — Provavelmente.

     — Muito me alegro. Não irás a nenhuma hospedaria, porque na entrada da aldeia mora o meu irmão Chimin, o ferreiro, que te receberá com satisfação.

     Esse oferecimento poderia tornar-se de utilidade para mim. Por isso, respondi:

     — Agradeço-te. Pelo menos, ao passar, levarei ao teu irmão as saudações que lhe mandas.

     — Não, não é assim. Quero que fiques na casa dele. Deste-me do teu... w'Allah — que perfume! Como se fora da Caaba da sagrada cidade de Meca!

     Com efeito, durante a palestra, ele enchera um cachimbo e, no momento, dava a primeira tragada, proferindo, então, tais exclamações de entusiasmo.

     — O fumo te sabe bem? — perguntei.

     — Se me sabe? Se me sabe? Ele passa pelas ventas, como os raios da alvorada no céu do dia nascente. É assim que a alma dos justos deslisa suavemente no Sétimo Céu. Efêndi, espera, irei buscar algo para ti.

     O ancião parecia estar não só estasiado, como até desvairado. Correu, com a rapidez que lhe permitiam as pernas senis, afastando-se, para voltar em breve.

     — Efêndi, adivinha que é que trago na mão? — disse antes mesmo de chegar à sebe.

     — Nada vejo.

     — Oh! É minúsculo, mas vale quase tanto com o teu djebeli. Queres ver?

     — Mostra-me.

     — Olha. Que é?

     Apresentava uma garrafinha, hermeticamente fechada. Tornou a perguntar:

     — Que é que contém esta garrafinha? Dize-o, efêndi.

     — Será água de rosas?

     Ao velho guarda, não me parecia possível atribuir a propriedade de coisa mais valiosa. No entanto, ele respondeu, maguado:

     — Água de rosas? Oh! efêndi, queres insultar-me? Isto é óleo de rosas, legítimo óleo de rosas, como igual jamais encontraste em toda a tua vida.

     — De quem é?

     — De quem? Meu!

     — Mas és somente o guarda deste jardim.

     — Sim, efetivamente. Sou o guarda. Tens razão. Mas o meu patrão permitiu-me plantar um canto do jardim. Escolhi a melhor qualidade de rosas e venho economizando avaramente há muito, muito tempo. Cheguei a encher duas dessas garrafinhas. Uma quis vender hoje e fui logrado. A outra é tua. Dou-a de presente.

     — Homem, que dizes!

     — É tua.

     — Escuta: como te chamas?

     — Jafiz, é o meu nome.

     — Pois bem, Jafiz, estás doido.

     — Por que?

     — Porque queres esse óleo de rosas.

     — Óleo? Óleo? Oh! Não me digas essas palavras! Isso é essência, mas nunca óleo comum. Nessa garrafinha moram as almas de dez mil rosas. Queres menosprezar este presente, efêndi?

     — Não posso aceitá-lo.

     — Por que não?

     — És pobre. Não devo roubar-te.

     — Como podes roubar-me, se te ofereço? O teu djebeli é tão precioso quanto a essência.

     Para se fazer uma onça de óleo, precisam-se seiscentas libras das melhores pétalas de rosas. Eu sabia disso. Portanto, insisti:

     — Ainda assim, não devo aceitar essa dádiva.

     — Queres enganar-me, efêndi?

     — Não.

     — Ou insultar-me?

     — Também não.

     — Bem. Digo eu, agora: se não aceitares esta oferta, derramarei o óleo aqui na terra.

     Vi que a ameaça seria efetivada.

     — Pára! — pedi. — Destilaste o óleo para vendê-lo, não?

     — De fato.

     — Ainda bem. Eu o compro.

     O ancião sorriu meio acanhado e depois consultou:

     — Quanto oferecerias?

     Puxei tanto dinheiro quanto era possível relativamente às minhas posses e lho estendi:

     — Dar-te-ei isto.

     Tomando o dinheiro, Jafiz contou-o e disse, fazendo um gesto significativo com a cabeça:

     — Efêndi, a tua bondade é maior do que a tua carteira.

     — Peço-te, por isso, que guardes o óleo. És muito pobre para me oferecer e eu não sou bastante rico para poder comprá-lo.

     Riu-se e retrucou:

     — Sou bastante rico para poder dá-lo, porque tenho o teu fumo, e tu és tão pobre que o podes aceitar. Toma o teu dinheiro.

     Essa generosidade era demasiada, para que eu a pudesse aproveitar. Considerei que a pequena quantia, que lhe oferecera, não seria de todo inútil para ele. Por outro lado, estava convicto de que o ancião não aceitaria mais a devolução da garrafinha. Por conseguinte, recusei o dinheiro, dizendo-lhe firmemente:

     — Queremos presentear-nos, sem sermos ricos. É melhor, portanto, que cada um fique com aquilo que recebeu do outro. Quando regressar à minha pátria, direi às lindas mulheres, que se extasiarem com o perfume deste óleo, quem era Jafiz, o jardineiro das rosas, o homem magnânimo e bondoso que me acolheu.

     Isso pareceu agradar-lhe. Os olhos brilharam e ele meneou a cabeça, satisfeito, perguntando:

     — As mulheres da tua pátria são amigas dos perfumes, efêndi?

     — Sim; amam as flores, que são suas irmãs.

     — Tens de cavalgar muito até que chegues lá?

     — Talvez muitas semanas. E, depois de apear-me do cavalo, terei de andar muitos dias em navios e trens de ferro.

     — Isso é longe, muito longe. Passarás, por acaso, em zonas perigosas, por entre povos maus?

     — É bem possível. Terei de atravessar a terra dos que foram para as montanhas.

     O ancião abismou-se em pensamentos, depois me encarou atentamente, para, enfim, dizer:

     — Efêndi. A fisionomia do homem é como a superfície das águas. Umas são claras, límpidas, transparentes e cristalinas e nelas a gente se espelha com prazer; outras, porém, são turvas, espessas e sujas: quem delas se aproxima, vislumbra perigo e se afasta depressa. As primeiras são iguais aos rostos dos homens bons; as segundas assemelham-se aos maus, dos bandidos e malfeitores. Tua alma é límpida e transparente; teus olhos são claros e o teu coração não abriga ódios e rancores, nem perigos e traições. Vou te confiar um segredo, que mui poucas vezes confiei a outrem. Todavia, és um desconhecido.

     Alegrei-me com essas palavras, não obstante não poder imaginar sequer a natureza daquilo que me ia ser revelado. Respondi:

     — Tuas palavras têm tanto carinho e são tão calorosas como os raios do sol, que aquecem os regatos. Prossegue.

     — Em que direção seguirás, depois de Mastanly?

     — Primeiramente, para Menlik. Aí decidirei qual o rumo a tomar. Talvez precise ir a Uskub e de lá às montanhas de Kostendil.

     — Wullak — Ai de ti! — bradou o ancião.

     — Consideras ruim esse caminho?

     — Considero-o muito ruim. Estando em Kostendil e querendo seguir para o mar, terás de cruzar por Char-Dach até Perserin, e é aí que os skipetars e foragidos tem o seu esconderijo. Eles são pobres; têm só as armas e vivem do roubo e do assalto.

     E acrescentou, num desalento:

     — Eles te roubarão tudo, tudo, e até — quem sabe? — a própria vida.

     — Saberei defender-me.

     O ancião meneou a cabeça e murmurou:

     — Bir gendch kan war on bin kuestachlueck — Sangue juvenil vale por dez mil. E tu és moço. Tens, na verdade, muitas armas. Mas, de que te valem contra dez ou vinte ou cinqüenta inimigos?

     — O meu cavalo é veloz.

     — Não sou conhecedor de animais, mas vejo que tens um belo morzelo. Entretanto, os que vão para as montanhas também têm somente cavalos velozes. Pegar-te-ão facilmente.

     — O meu cavalo é puro sangue. Chama-se Vento e é veloz como o vento.

     — Então, eles te apanharão à bala, porque uma bala voa mais depressa do que o mais veloz dos cavalos. Os skipetars são conhecedores de cavalos. Reconhecerão logo que possuis um animal melhor do que os deles, e, por isso, não te atacarão de frente e sim de emboscada. Como poderás te defender, então?

     — Tomando precauções.

     — Nem assim te salvarás. O provérbio diz: Sakinma dir kawl kabahatun (30). És um homem de bem; eles serão dez vezes mais cautelosos do que tu. Permite-me que te previna e aconselhe.

     — Essa advertência tem relação com o que me ias dizer, há pouco?

     — Tem.

     — Nesse caso, estou curioso para saber o que me vais dizer.

     — Pois bem. Conhecerás o segredo. Existe um salvo-conduto, que todos os amigos, conhecidos e aliados dos renegados possuem.

     — Como sabes disso?

     — Aqui todos sabem. Mas muitos poucos conhecem os meios e modos de obtê-lo.

     — No entanto, tu os conheces?

     — Não. Permaneço sempre no meu jardim e nunca viajo. Entretanto, o meu irmão Chimin é um dos que sabem. Posso dizer-te isso, porque tenho confiança em ti e porque, breve, deixarás este país.

     — Nessas circunstâncias, gostaria que teu irmão me honrasse com a mesma confiança.

     — Ele terá confiança, se eu te recomendar.

     — Não poderias escrever-lhe duas ou três palavras?

     — Não sei escrever. Mostra-lhe, porém, o óleo de rosas. Chimin conhece muito bem essa garrafinha; sabe que eu não a daria nem venderia a quem fosse indigno dela. E quando a tiveres mostrado, dize-lhe que vais recomendado pelos õje-kardach (31) ou pelo jary-kardach (32). Ninguém sabe que somos filhos de duas mães. Quando lhe envio uma mensagem confidencial, as palavras õje e jary provam a sua autenticidade.

     — Agradeço-te. Estás certo de que ele me poderá dar esclarecimentos sobre o salvo-conduto?

     — Espero que sim. Nesta região...

     Interrompeu-se e escutou. Ouvia-se um assobio, partido dos fundos do jardim.

     — Meu patrão chama — disse o ancião. — Vou atendê-lo. Tomaste nota de tudo quanto te disse?

     — Sim, de tudo.

     — Então não esqueças. Que Alá esteja contigo e que te permita levar os perfumes do meu jardim às belas mulheres da tua pátria.

     Antes mesmo que eu pudesse responder, o bom velho desaparecera por detrás da sebe e, em pouco, não mais se lhe ouviam os passos.

     ________________________

     (30) Precaução é a alma do crime.

     (31) Irmãos de matrimônios diferentes.

     (32) Meio-irmão.

 

     Teria sido auspicioso esse encontro? Certo é que não podia ser prenuncio de desgraça. Seria verdadeira a história do salvo-conduto? O velho, entretanto, não parecia mentir. Em qualquer hipótese, porém, convinha procurar o seu irmão, pois a ferraria certamente ficava à margem da estrada, que, tanto os meus companheiros como o cavaleiro, cuja viagem pretendia embargar, deviam trilhar.

     Continuei a jornada. Durante a parada, o cavalo descansara e podia, portanto, desenvolver maior velocidade. Querendo conservar uma reta, era preciso subir a grandes altitudes, o que oferecia enormes dificuldades. Por isso, resolvi permanecer no sopé das montanhas, sempre que isso era possível, sem perder a orientação.

     Vindo do planalto Tokatjik, o rio Burgas corre em direção ao norte até alcançar Ada, onde se lança no rio Arda. À margem desse rio, encontra-se Kochikawak. O ângulo agudo, formado pela confluência dos dois rios, encerra uma planície, que se vai elevando para o sul, até converter-se no planalto de Tachlyk. Era meu intuito evitar essa elevação.

     Consegui-o, embora não conhecesse a região, nem encontrasse estradas delineadas. Passei a vau, ou melhor a nado, diversos riachos, afluentes da margem esquerda do Arda.

     O sol aproximava-se cada vez mais do poente, e, finalmente, desapareceu por detrás das montanhas. Sabia que o crepúsculo não seria longo, e, por isso, galopei até chegar novamente à beira de uma volumosa corrente de águas. Observei aí que, um pouco abaixo do ponto em que me encontrava, havia uma ponte.

     Dirigi-me a essa ponte e, assim, encontrei a estrada. Depois de passar para o outro lado, vi — pela primeira vez na Turquia — um marco itinerário ou indicador de caminhos. Tratava-se de um pedaço de rocha, saliente da terra, no qual se havia escrito, a cal, duas palavras.

     Não tivesse eu adivinhado a significação dessa pedra ou, melhor, a sua finalidade, a primeira das palavras ali escritas me teria dado o esclarecimento preciso, pois era kylawnz, e quer dizer exatamente indicador de caminhos.

     A outra palavra era Kerekiõj. Sabia que esse era o nome de uma aldeia. Mas, onde ficava? O indicador de caminhos estava ali; nele estava escrito o nome da aldeia. Infelizmente, porém, a parte superior da pedra era chata c nessa face horizontal estavam escritas as duas palavras.

     A “coisa” a que, acima, dei a denominação de estrada, partia dali em linha reta; ao longo do rio havia outra “coisa” semelhante. Qual dessas duas coisas, porém, levava a Kerekiõj? De que me servia, portanto, esse primeiro indicador de caminhos?

     Calculei que a corrente d'água, junto da qual me achava, não podia ser o rio Burgas e que, se a acompanhasse, iria muito para o norte. Por isso, resolvi continuar pela estrada que estava na minha frente.

     Entretanto, escureceu de todo. Nem sequer via se a “coisa” ainda estava sob as patas do cavalo. Sabia, porém, que podia confiar no cavalo.

     Assim, andei, a trote, cerca de meia hora. Subitamente, o cavalo começou a bufar, sacudindo a cabeça.

     Procurei ver do que se tratava e notei que à minha direita havia uma sombra negra e larga, da qual partia para o alto um prolongamento comprido. Tratava-se de uma casa e de uma chaminé.

     Seria isso a ferraria? Se fosse realmente, eu estaria nas proximidades ile Kochikawak, fim da minha jornada.

     Aproximei-me da casa e bradei:

     — Bana bak — Ó de casa!

     Ninguém respondeu.

     — Sawul, alargha — alô, abra a porta!

     Continuou o silêncio. Não vi luz. A casa estaria desabitada, ou seriam ruínas de um prédio?

     Apeei e levei o cavalo até o muro. Rih começou novamente a bufar. Isso me pareceu suspeito. Muito embora se tratasse de um cavalo árabe, fora ensinado pelo sistema indiano. Assim, quando bufava, aspirando fortemente pelas ventas dilatadas, para expelir o ar aos poucos, levemente e com pequenos intervalos, era certo que “alguma coisa estava fora dos eixos no reino da Dinamarca”.

     Puxei, por isso, os dois revólveres e comecei a examinar a casa. Tinha só um pavimento e ocupava uma grande área. A porta estava fechada. Bati por diversas vezes, baldadamente. À esquerda, encontrei três janelas, igualmente fechadas. À direita, achei outra porta, maior do que a primeira. Estava, porém, fechada com um cadeado. Junto dela pude distinguir diversos instrumentos agrícolas e outras ferramentas, que me deram a convicção de que a casa era realmente uma ferraria.

     Continuei, contornando-a. Encontrei montões de lenha, destinados evidentemente à queima. Atrás da casa havia um quadrado, cercado por moirões enterrados, fazendo um curral como os que existem em certas aldeias alemãs para criações de porcos. O cercado parecia estar vazio, porque não se observava ali o mínimo movimento.

     Não obstante, era justamente nesse lugar que o cavalo soltava os bufidos mais assustados. Parecia ter medo de aproximar-se do cercado.

     Não quero dizer que isso fosse muito suspeito. Contudo, resolvi redobrar as precauções. A casa estava fechada e, consequentemente, era habitada. Seria, entretanto, possível que os proprietários tivessem deixado abandonada a sua habitação, durante a noite, numa região como aquela? Era plausível que ali tivesse acontecido alguma coisa de extraordinário e por isso resolvi continuar a inspeção.

     O cavalo, no entanto, tornava-se um estorvo nas investigações e podia ser arrastado a um perigo imprevisto. Coloquei-o, por isso, em lugar seguro. Para o amarrar, não era necessário estaca nem laço, muito menos cordas ou cabrestos. Fazia simplesmente pisar nos freios com as patas dianteiras. Assim estava maneado de tal modo que não andaria longe, mesmo que, contra todo o costume, quisesse disparar. E se por acaso, durante a minha ausência, o animal se visse em perigo estava certo de que se defenderia heroicamente com as patas trazeiras.

     Só então aproximei-me do curral e acendi um fósforo, dos que havia comprado em Edreneh. Iluminei o quadrado por sobre os moirões.

     Dentro estava estendido um animal gigantesco, comprido e cabeludo como um urso. O fósforo apagou-se, reinando novamente escuridão completa. Que animal seria esse? Estava vivo ou morto? Empunhei a carabina e toquei o bicho. Não se mexeu. Bati com mais força e, ainda assim, não se moveu. Aquilo não era sono, era morte.

     Como a coisa me parecesse, de fato, suspeita, entrei no curral, passando sobre os moirões de quatro pés de altura, mais ou menos. Inclinei-me e examinei o animal. Estava frio e rijo: morto. Em muitas partes, o pêlo era pegajoso. Seria sangue?

     Apalpei o corpo. Não era urso, porque tinha rabo comprido e peludo. É verdade que se diz existirem alguns ursos isolados e raros nas montanhas do Despodo-Dagh, do Char-Dagh, Kara-Dagh e Perin-Dagh. Não quero contestar essas afirmativas. Mas como poderia um desses animais surgir justamente nesta região, para morrer naquele curral? Tivesse sido morto nas imediações, certamente não teria sido jogado dentro daquele quadrado, sem primeiro tirar-lhe o couro — para não falar na carne, que é boa.

     Para saber que espécie de animal era aquele, tateei em procura das orelhas. Caramba! A cabeça do animal estava espatifada de tal modo, que só o podia ter sido com um instrumento de grande peso.

     Acendi mais um fósforo e verifiquei que se tratava de um cachorro, e de fato gigantesco, tão grande como jamais tinha visto.

     Quem o matara e por quê? O dono, naturalmente, não foi e um estranho, decerto, não o fez senão por maldade. Comecei a suspeitar de um crime. Na verdade, eu considerava se isso me podia interessar e por que devia arrostar um perigo desconhecido. Entretanto, havia motivos para supor que a ferraria pertencesse ao irmão do jardineiro das rosas e daí me advinha como que a obrigação de investigar o caso.

     O sentimento do perigo decorria de uma razão inteiramente justificada. Os malfeitores podiam encontrar-se, ainda, dentro da casa. Talvez estivessem quietos, por terem ouvido o tropel do cavalo, sabendo, portanto, da minha chegada.

     Como, porém, ir ao encontro deles? Devia esperar pelos meus companheiros? Que aconteceria até então no interior da casa? Não. Era preciso agir.

     Não tinha examinado ainda a outra face da casa, onde ficava o espião do telhado.

     Rastejei até lá e encontrei uma janela, com um dos batentes fechados por dentro. O outro, porém, abria-se.

     Refleti.

     Se entrasse, podia ser alvejado instantaneamente. A circunstância, porém, de se achar aberto o referido batente, enquanto as outras janelas estavam fechadas, fêz-me supor que não devia haver ninguém no interior. Para retardar a constatação do crime, os seus autores, decerto, teriam fechado todas as janelas e aberturas, principalmente na parte fronteira, saindo pelos fundos, sem que aí pudessem fechar a janela, pela qual saltaram.

     Contudo, a minha situação era melindrosa.

     Abri tanto a janela que me foi possível introduzir o braço. São muito raras as janelas nesta região e por isso o que encontrei era uma abertura somente parecida com janela. Não tinha vidraças ou outro qualquer característico.

     Espreitei atentamente. Parecia-me ouvir, no interior, um ruído surdo, abafado. Haveria alguém dentro de casa? Devia chamar? Não!

     Fui novamente ao outro lado da casa e de lá trouxe uma braçada de galhos. Fiz um monte e incendiei. Depois joguei o fardo em chamas para dentro da casa. Conservando-me cautelosamente de lado, perscrutei o interior.

     A casa era baixa e a janela ficava a pouca altura do solo. O fogo produzido pelos cavacos e galhos era vivo. Pude distinguir um pavimento quadrado, com chão batido, havendo ali dentro os objetos que existem comumente nas habitações pobres dos romenos. Não havia o mínimo sinal de ente humano.

     Joguei mais gravetos sobre o fogo e, tomando o meu fêz, coloquei-o no cano da carabina, introduzindo esta pela abertura da janela. De dentro, deveria ter-se a impressão de que eu ia entrar.

     Quis induzir aqueles, que porventura se encontrassem dentro da casa, a tomarem uma atitude defensiva. Mas ninguém se moveu.

     Retirei a carabina, encostando-a à parede — pois ela se me tornava um estorvo — e de um salto galguei a janela. Estava pronto para retroceder no mesmo instante. Mas, ao primeiro olhar, convenci-me de que, dentro daquele compartimento, não havia ninguém.

     Entrei, então, e depois tomei das minhas armas, olhando em derredor. Nesse momento, ouvi distintamente outra vez o ruído a que há pouco me referi. Isso era tanto mais inquietador, agora, que o fogo começava a apagar-se, sem contudo deixar de espalhar um calor sufocante. Alegrei-me por isso ao encontrar um monte de aparas de madeira, material de iluminação certamente aproveitável.

     Peguei uma dessas fitas de madeira e prendi-lhe fogo, colocando-a num buraco da parede, certamente destinado a esse mesmo fim, como me foi possível verificar pelas suas bordas enfumaçadas. Depois puxei o batente da janela, amarrando-o por dentro com um cordel que nele havia, a fim de estar garantido contra o que pudesse vir de fora. Com uma segunda apara de madeira comecei a examinar o aposento. Três das paredes eram de barro socado, enquanto a quarta era um trançado de palha, que continha uma abertura para pasagem. Aproximando-me desta última, passei pela abertura, achando-me, então, num compartimento menor, cujo chão era formado em parte por um alçapão entrançado de vime. Haveria aí um porão? Seria uma coisa singular numa casa semelhante.

     Ouvi novamente o barulho anterior. Amordaçado e surdo, parecia proceder do interior do alçapão.

     Trouxe mais fitas de madeira e depois levantei o alçapão. O trançado de vime podia suportar o peso de um homem, porque fora feito sobre caibros grossos. Iluminei o porão. A claridade era tão pouca que só consegui observar que o porão era de profundidade tal que um homem podia permanecer de pé, ali dentro. Não havia escada. Mas logo que o clarão do fogo inundou o porão, fêz-se ouvir um gemido.

     — Kuen achaghda — Quem está lá? — perguntei alto.

     Um gemido mais forte foi a resposta. Isso prenunciava perigo. Quisesse eu procurar uma escada, perderia um tempo enorme. Segurei, portanto, a apara que queimava numa mão, as restantes na outra e saltei para dentro do porão.

     Caí sobre um objeto qualquer. A luz apagou-se. Num segundo, porém, tinha acendido outra vez a luz.

     Encontrava-me num poço semelhante a um porão e reconheci o objeto sobre o qual cairá. Era uma escada. Havia no chão carvão e cavacos de macieira. Tanto o carvão como os cavacos moviam-se. Encontrei um buraco destinado às aparas de madeira, que serviam de material iluminante, e comecei a afastar o carvão. Não tardou encontrar um corpo humano, Era um homem, amarrado de pés e mãos. A cabeça envolvida num pano.

     Rapidamente, desamarrei o pano e apareceu uma cara azulada, quase negra — coloração que, dada à deficiência de luz, eu não sabia se atribuir ao carvão ou a morte próxima. O homem tomou fôlego com sofreguidão, cravou-me um olhar espantado, arregalando os olhos vermelhos, e depois gemeu:

     — Ai, socorro! Tende piedade, piedade!

     — Cala-te. Sou teu amigo — respondi. — Venho salvar-te.

     — Salva, primeiro, a minha mulher.

     O bom homem pensava mais na mulher do que em si mesmo.

     — Onde está ela?

     — Lá.

     Não podia fazer movimentos, porque as mãos estavam amarradas. Mas o olhar angustiado estava cravado num segundo monte de carvão, sobrecarregado de cavacos e gravetos.

     Afastei todo o cisco e tirei dali a mulher, igualmente amordaçada. Ao tirar o pano, que estava amarrado à cabeça, a boca da infeliz espumava, listava sufocada.

     — Socorro, socorro! — pôde ela, entretanto, articular num estertor. O corpo tremia nervosamente. Cortei as cordas. Ela sacudiu os braços, como se estivesse a afogar-se; batia com os pés e aspirava desesperadamente.

     Esses movimentos eram necessários para a respiração. Finalmente, escapou-se-lhe um gemido rouco, aspirou fundamente, enchendo de ar os pulmões ressequidos.

     Cortei, então, as cordas que amarravam o marido. Não tinha sofrido tanto como a mulher. Por isso, levantou-se imediatamente. Enquanto eu acendia mais uma apara de madeira, o homem exclamou:

     — O' Deus! Andamos, perto da morte! Eu te agradeço. Eu te agradeço.

     Curvou-se, então, sobre a mulher, que soluçava a dar pena.

     — Fica quieta. Não chores — pediu. — Estamos salvos.

     Tomou-a nos braços e a beijou, enxugando as lágrimas. Ela abraçou-o e continuou soluçando. Sem me dar atenção, o homem consolou a esposa, até que os soluços foram diminuindo, diminuindo cada vez mais, e, finalmente, cessaram de todo. Levantou-se, então, e veio ter comigo, próximo da luz, que eu ia mantendo por meio de novas aparas de madeira, acendidas umas após outras.

     — Senhor, — disse — tu és o nosso libertador. Como poderemos agradecer-te? Quem és e como conseguiste encontrar-nos?

     — São muitas perguntas — respondi — que responderei depois. A tua mulher já pode andar?

     — Com certeza, poderá.

     — Vamos, então, para cima. Não posso ficar aqui muito tempo.

     — Tens companheiros?

     — Não. Mas espero um cavaleiro, que não devo deixar passar.

     — Vamos subir, nesse caso. Poderemos conversar depois. Encostei a escada na borda do porão e subimos. Contudo, a mulher precisava fazer um grande esforço. Eu observara que, no compartimento maior, havia uma cama. Aconselhei-a, portanto, a deitar-se e descansar.

     Ela estava tão abatida, que se deitou, sem me responder.

     O marido disse-lhe algumas palavras de encorajamento e depois estendeu-me a mão:

     — Sê bem-vindo — disse. — Fôste enviado por Alá. Posso saber quem tu és?

     — Não tenho tempo para muitas palavras. Dize-me, porém, como te chamas?

     — Chamo-me Chimin.

     — Então és irmão de Jafiz, o jardineiro?

     — Sou.

     — Muito bem. Eu te procurava. Faze fogo depressa, na ferraria.

     Olhou-me surpreendido e perguntou-me:

     — Tens algum serviço urgente para mim?

     — Não. Mas é preciso que o fogo ilumine a estrada.

     — Por quê?

     — Para que o cavaleiro de quem te falei não possa passar sem que o vejamos.

     — Quem é ele?

     — Depois, depois. Apressa-te.

     Do aposento, onde se encontrava o alçapão, saía-se para fora. A porta estava fechada somente com um trinco. Abrimo-la e saímos.

     Chimin tirou uma chave do bolso e abriu o cadeado que estava à porta da ferraria. Em pouco tempo, havia um fogo tão vivo, que iluminava um grande trecho da estrada. Era o que eu queria.

     Enquanto o ferreiro acendia o fogo, fui aos fundos da casa, procurar o cavalo. Este estava no mesmo lugar e por isso voltei tranqüilizado.

     — Aí está o fogo — disse Chimin. — Que mais ordenas?

     — Saiamos da claridade e sentemo-nos aqui ao lado da porta, no escuro.

     Ao fazer o reconhecimento da casa, tinha observado um cepo, que, por certo, servia de banco. Encaminhamo-nos para esse banco. Sentamo-nos e depois falei:

     — Tratemos, antes de tudo, do principal. Deverá passar — talvez muito em breve — um cavaleiro, com quem preciso falar, sem que ele suspeite, antecipadamente, da minha presença. Estou certo de que chegará aqui, a fim de interrogar-te. Quero que consigas fazê-lo apear e entrar na casa.

     — És o meu salvador. Farei o que mandares, sem mesmo saber por que. Sabes, por acaso, quais as perguntas que ele fará?

     — Sim. Perguntará se não passaram por aqui três cavaleiros.

     — Três cavaleiros? — perguntou surpreso o ferreiro — Quando?

     — Provavelmente hoje pela manhã.

     — Quem são?

     — Perguntará por pessoas que montam dois tordilhos e um zaino. Mas, como eles trocaram  um dos cavalos, os três animais são tordilhos.

     — Três  tordilhos?

     — Sim.

     — Hacha — Por Deus! Tu te referes, por acaso, ao Manach el Barcha de Uskub?

     Com essas palavras, ele saltou do banco, agitado. Também eu levantei-me, vivamente tocado pela curiosidade, depois das últimas palavras que ele proferira.

     — Tu o conheces?

     — Tchokden, tchokden! — Há muito, muito tempo! E ainda hoje ele esteve aqui.

     — Ah! Esteve aqui?

     — Sim. Foi ele e os companheiros que me agrediram, amarraram e jogaram naquele porão, de onde me salvaste, juntamente com a minha mulher. Teríamos morrido ali, se não chegasses a tempo.

     — Com que então foram eles! Eles mesmo? Bem, nesse caso, vou dizer-te que aquele a quem eu procuro é aliado deles.

     — Mato-o! Estrangulo! — murmurou entre os dentes.

     — Quero prendê-lo.

     — Senhor, efêndi... como devo chamar-te? Não me disseste ainda quem és?

     — Chama-me efêndi.

     — Pois bem, efêndi. Auxiliar-te-ei, se quiseres dominá-lo ou prendê-lo.

     — Bem. Todavia, não sei se ainda o veremos passar. É possível que já tenha passado. Com certeza não pudeste observar... — Ah! desde quando estiveram no porão?

     — Desde pouco antes do meio dia.

     — Então não poderias ter visto, mesmo que ele tivesse passado e...

     — Queres que me informe a respeito? — interrompeu-me bruscamente.

     — Onde? Com quem?

     — Corro à aldeia e falo com o velho Jemichdji, que está sentado, sempre, até o pôr do sol, na frente da casa, fazendo balaios e cestos.

     — Quanto tempo precisas para isso?

     — Dez minutos apenas. A aldeia é ali pertinho.

     — Então, apressa-te. Peço-te, porém, que silencies sobre o que te aconteceu hoje.

     — Se o desejas, não falarei a respeito.

     — Pois vai.

     Em poucas palavras, descrevi o cavaleiro tal como me fora descrito antes. O ferreiro saiu depressa. Antes dos dez minutos, estava de volta.

     — Não passou ainda — informou Chimin.

     Entrou na ferraria, a fim de alimentar o fogo e, depois, sentou-se, novamente, ao meu lado.

     — Dize-me, agora, o que te aconteceu hoje? — exigi.

     — É triste, muito triste — começou o ferreiro. — Estava trabalhando na ferraria, quando pararam três cavaleiros e se dirigiram a mim. Um dos que eu não conhecia, disse-me que o cavalo tinha perdido uma nal (33). Saibas que não sou somente demirdj (34), mas também nalband (35). Efêndi, afirmo-te que me prontifiquei logo a fazer uma nova nal. Tinha observado somente esse homem. Enquanto trabalhava, porém, olhei para os outros ___________________

     (33) Ferradura.

     (34) Ferreiro.

     (35) Ferrador.

 

e reconheci, num deles, o cobrador de impostos Manach el Barscha, de Uskub.

     — Ele também te conhecia?

     — Conhecia.

     — Onde se conheceram?

     — Há quatro anos, em Raslug. É preciso que saibas que conheço toda e qualquer doença dos animais, bem como todos os medicamentos necessários. Em Raslug, grassava uma peste, que exterminava as cavalhadas, e, como ninguém pudesse encontrar remédio, mandaram chamar-me. Hospedei-me na casa de um rico mercador de cavalos, o qual possuía para mais de cem animais. Nessa casa, esteve Manach el Barcha, procurando comprar um cavalo. Mostraram-lhe diversos animais, um dos quais apanhara um resfriado, apresentando forte e abundante esputação. O arrecadador de impostos disse que aquilo não era constipação e sim a peste do môrmo e que, por isso, iria dar parte à polícia sanitária. Era evidente que ele queria extorquir um cavalo, em paga do silêncio. Fui chamado e disse o meu diagnóstico. Brigamos e ele chegou a me bater com o chicote. Esmurrei-o e dei-lhe taponas como nunca levara, porque a mão de um ferreiro é como um casco, dura como osso. Manach ficou furioso, retirando-se para dar queixa contra mim. Ele era arrecadador de impostos; eu um simples e pobre ferreiro. Fui condenado a vinte chibatadas na sola dos pés, além de cinqüenta piastras de multa. Antes de poder voltar para casa, tive de guardar o leito, durante muitas semanas, até ficar restabelecido. Hás de acreditar que eu não posso estimá-lo.

     — Sim, isso é de se acreditar.

     — Hoje, ferrei o cavalo silenciosamente. Manach observava com olhar sinistro. Depois perguntou-me se ainda o conhecia. Disse que sim, porque não pensei que isso me pudesse sair tão caro. Conversaram, então, em voz baixa, entre si, entrando, em seguida, na minha casa. Encontrava-me sozinho, porque a minha mulher tinha saído para a horta, a fim de trazer espinafre para o almoço. Que procurariam eles na minha casa? Fechei a ferraria, não obstante estar ainda aceso o fogo no foles, e os segui. Mal tinha pisado sobre a soleira da porta, fui agarrado violentamente. A luta foi tremenda, efêndi. Um ferreiro tem músculos de ferro e nervos fortes. Contudo, conseguiram me derrubar e me ataram solidamente com as cordas, que havia dentro de casa. Berrei de raiva, como um touro. Amarraram-me, depois, um pano na cabeça, e me jogaram no porão. Quando eu era atirado pelo alçapão, chegou a minha mulher. Aconteceu-lhe o mesmo que a mim. Fomos cobertos com carvão, para que naturalmente, de fora nada se pudesse ouvir. Nem tive tempo de pensar no Ajy, senão o teria soltado antes de entrar na casa, seguindo-os.

     — Quem é Ajy?

     — O meu cachorro. É esse o nome dele, porque é tão grande como urso. Ouvi-o latir, enquanto lutava. Mas o cão estava amarrado. Estivesse ele comigo, os três ficariam despedaçados.

     — Não procuraste ainda o cachorro?

     — Não. Sabes que não fui ainda aos fundos da casa.

     — Lastimo ter de te dar uma notícia desagradável.

     — Desagradável? Aconteceu alguma coisa ao cão?

     — Aconteceu.

     — Que? Dize-o, depressa.

     — Está morto.

     O ferreiro ergueu-se de um salto.

     — Morto?

     — Realmente.

     — Entretanto, estava bom e disposto. Aqueles três tê-lo-iam maltratado?

     — Despedaçaram-lhe a cabeça.

     Chimin ficou estarrecido, dizendo, finalmente, num murmúrio sibilante:

     — É verdade?

     — Sim, infelizmente.

     — Mil mortes a esses cães excomungados!

     Com essas exclamações, afastou-se desvairado, entrando na ferraria. Trouxe um archote e correu para os fundos da casa, para certificar-se do que eu afirmara. De onde me encontrava podia ouvir as exclamações de raiva que proferia. As suas esperadas imprecações não eram do meu agrado e preferi evitar de ouvi-las. Fiquei onde estava. Chimin se achava tão furioso, que ainda na volta ouvi umas expressões violentas, daquelas que as línguas orientais possuem em superabundância.

     Enquanto o ferreiro esgotava as interjeições conhecidas e desconhecidas, eu só tinha olhos e ouvidos para a direção de onde esperava o cavaleiro desconhecido. Nada se via, contudo, nem ouvia. Ou eu ficara muito adiante dele, pelo atalho, ou ele se retardara por qualquer circunstância.

     A pouco e pouco, Chimin foi-se acalmando. Agora, queria saber algo também a meu respeito.

     — Terás tempo, efêndi, de me dizer o teu nome?

     — Chamam-me Kara Ben (36) Nemsi.

     — Então és nemtche germanly?

     — Sou.

     — Talvez austrialy ou frussialy?

     — Não.

     — Ou bawarialy?

     — Também não. Sou saxaly.

     — Nunca vi um saxaly. Mas, ontem, esteve aqui um homem de Trieste, na Áustria, com o qual conversei muito.

     — Austríaco? Isso me causa surpresa. Quem era?

     — Um negociante. Procura fumo, sedas e outros artigos. Quebrara-lhe uma espora, que consertei.

     — Falava turco?

     — Somente o bastante para que me pudesse dizer o que queria.

     — Disseste, entretanto, que conversaste muito.

     — Entendemo-nos por mímicas.

     ________________

      (36) Palavra árabe, que significa filho, habitante. Entra na composição dos nomes das tribos da África setentrional. Plural: Beni. (N. do T.)

 

     — Disse-te como se chamava?

     — Chamava-se Madi Arnaud. Era um grande cantor, porque cantou uma porção de canções e modinhas, que encheram de alegria o coração e a alma da minha mulher.

     — De onde vinha?

     — De Tchirmen, onde fêz grandes compras.

     — Para onde vai?

     — À grande feira anual de Menlik. Lá existem famosos armeiros, e ele lhes quer comprar.

     — É possível, assim, que eu o encontre no caminho.

     — Também vais a Menlik, efêndi?

     — Sim.

     — Também és negociante?

     — Não. Vou a Menlik, porque suponho encontrar lá os três patifes que persigo.

     — Que farás, se os encontrares?

     — Prendê-los-ei para entregar à polícia. Assim serão castigados.

     — Graças a Alá! Eu ia dar queixa, amanhã, cedo.

     — Podes dar. Mas, antes de conseguires qualquer resultado, os três bandidos estarão nas minhas mãos. Nas barras dos tribunais, darei meu testemunho também sobre o crime de hoje.

     — Fazes muito bem, efêndi. Eles não devem fugir ao castigo merecido. Quem eram os dois companheiros do arrecadador de impostos?

     — Isso é uma história longa, que te vou narrar em poucas palavras.

     Dei-lhe ciência de todos os acontecimentos, tanto quanto podia interessá-lo. Ouviu-me com atenção e depois disse:

     — Soubesse eu disso! Tê-los-ia atraído para o porão, e deixaria o cachorro de sentinela até que chegasses.

     — Porventura, trocaram eles algumas palavras, pelas quais pudesses deduzir qual o caminho que seguiram?

     — Nenhuma palavra. Somente ouvi dizer, por aquele que chamas de Darud el Amasat, que era preciso reduzir-me ao silêncio, para não denunciá-los, caso fossem perseguidos.

     — Pensei nisso. Manach el Barcha agrediu-te não só por espírito de vingança, como também por precaução. Não tencionaram matar-te, mas sim dar sumiço de ti, porque reconheceste o arrecadador de impostos.

     — Contudo, íamos sufocando.

     — Isso não aconteceu, graças a Deus. O cavaleiro, que espero aqui, foi mandado em busca deles, a fim de informá-los de que estou em liberdade e que estão sendo perseguidos. Ficariam assim prevenidos e isso quero evitar.

     — Ajudar-te-ei, efêndi. Que faremos com esse cavaleiro?

     — Metê-lo-emos no teu porão e o entregaremos, depois, à polícia.

     — Como o meterás no porão?

     — Nós somos dois, e Ele um só.

     — Não penses que o temo. Queria só saber se devíamos empregar astúcia ou violência.

     — Creio que não poderemos dispensar a violência.

     — Isso me alegra. Não dispensarei carinhos. Mas, efêndi... ocorre-me, neste instante, que me perguntaste se eu era o irmão de Jafiz.

     — É verdade.

     — Conheces meu irmão?

     — Passei, hoje, pelo seu jardim, falei-lhe e troquei uma garrafinha de Guel jaghy por djebeli.

     — Allah ia Allah! Com que, então, meu irmão possui o melhor de todos os fumos?

     — Oh! Não é muito.

     — Fôste tu quem lhe deste?

     — Fui.

     — Tinhas desse fumo?

     — Naturalmente, pois se lhe dei.

     Calou-se um pouco. Eu sabia qual era a pergunta que bailava nos icus lábios. Finalmente, deixou-a explodir:

     — Acabou-se?

     — Ainda não.

     E para facilitar-lhe, prosseguiu:

     — Fumas?

     — Oh! sim. Gosto muito!

     — Djebeli?

     — Nunca cheirei esse fumo, quanto menos fumá-lo!

     — Então, vai buscar o teu cachimbo.

     Ainda não tinha acabado de fazer esse convite e já ele desaparecera, para voltar, com a rapidez do relâmpago, trazendo o cachimbo.

     — Como vai tua mulher? — perguntei-lhe.

     Falando com esses operários rústicos, pode-se fazer exceção, perguntando pela mulher, o que em geral é rigorosamente vedado em todo o Oriente. Com efeito, nos campos, por vezes, encontram-se mulheres que nem sequer usam véu.

     — Não sei — contestou. — Decerto, está dormindo.

     O fumo apossara-se, pelo visto, de todos os seus sentidos, apagando-lhe a lembrança da mulher, que ele demonstrara amar, pouco antes.

     — Dá-me o teu cachimbo. Quero preparar-te uma pitada.

     Nas primeiras tragadas, tomadas com indizível prazer, Chimin comentou arrebatado:

     — Efêndi, esse é o perfume do paraíso! Nem o próprio Profeta, decerto, tragou tão bom fumo!

     — Não. Ao tempo dele, realmente, não havia djebeli.

     — E se houvesse, ele teria levado as sementes para o Além, para plantá-las nos campos do sétimo céu. Que farei, se o cavaleiro chegar? Continuarei fumando ou devo me levantar?

     — Creio que te levantarás...

     — Devo renunciar ao prazer infinito desta pitada?

     — Poderás acender o cachimbo novamente e também te darei mais um pouco de fumo.

     — Efêndi, tua alma é cheia de bondade, como cheio está o mar de gotas d'água. Confiou-te o meu irmão algum recado?

     — Com efeito, é para eu dizer-te que ele vai bem e deseja que o mesmo aconteça contigo. E devo saudar-te, por parte daquele que é o teu õje-kardach e jary-kardach.

     Chimin aguçou os ouvidos e disse:

     — Que ouço? Foram essas as suas palavras?

     — Foram.

     — Falaste, então, sobre coisas muitos importantes?

     — Falamos a respeito dos skipetars e daqueles que foram para as montanhas.

     — E nessa ocasião meu irmão prometeu-te alguma coisa?

     — Sim. Prometeu-me uma coisa que, segundo pensa, poderás fazer.

     — Quanto tempo falaste com ele?

     — A quarta parte de uma hora.

     — Isso foi um milagre, efêndi. Jafiz é um andrófobo. Não fala e, quando é levado a tanto, fala pouco. É retraído e arisco. Conquistaste-lhe a amizade e a confiança, com muita rapidez.

     — Eu lhe disse que talvez tivesse de viajar até as montanhas do Char-Dagh.

     — Falou-te, então, do perigo que enfrentarás?

     — Preveniu-me e aconselhou-me prudência.

     — E na certa falou do salvo-conduto?

     — Sim. Falou disso.

     — E disse que eu poderia conseguir um desses kiaghad eminliquen?

     — É verdade.

     — Enganou-se.

     — Realmente?

     — De fato.

     — Não te é possível obter-me desses documentos protetores?

     — Não.

     — Mas ele assegurou que o conseguirias.

     — Pensava decerto que o costume fosse o mesmo dos tempos passados.

     — Não estás mais informado a respeito?

     — Eis uma pergunta que só respondo a um amigo dedicado e fiel. Entretanto, nos salvaste e conquistaste a amizade do meu irmão e tens a essência que ele te deu. Por isso, vou te dizer a verdade. Com efeito, eu sabia e ainda sei tudo.

     — Sabes, portanto, se ainda existem salvo-condutos?

     — Não existem mais. Nenhum skipetar ou foragido expede esses documentos.

     — Por que motivo?

     — Porque não preenchem mais a finalidade. Não oferecem mais a garantia e a segurança que deviam representar.

     — Então, não são respeitados?

     — Não é isso. Nenhum transviado desrespeitará um salvo-conduto expedido por outro transviado. Mas quem é que vê o papel? Quem leva letreiro na testa?

     — Pode-se mostrar o documento, não é?

     — Em muitos casos, é possível. Mas noutros, não. Viajas pelo mato; dois ou três foragidos te vêem; estás melhor armado do que eles; deliberam, portanto, não se entregar a um combate frente a frente; assaltam-te de emboscada; escoram-te e atiram por “detrás do pau”; não sabem que levas um salvo-conduto; este está no teu bolso; confias na proteção que ele te dará e mesmo assim serás atingido pelas balas homicidas daqueles que dariam a vida por ti, se soubessem que és um seu protegido.

     — Isso é fácil de compreender. Mas os transviados não podem deixar de ter amigos, e, quando os tiverem, é necessário que os protejam. Suponho, por isso, que o kiaghad eminlikuen foi substituído por outro documento de melhor efeito.

     — Tua suposição é acertada. Reconheces que não te posso conseguir um salvo-conduto?

     — Claro que não me podes dar o que não existe. Podes, talvez, me dizer qual a senha que se usa atualmente?

     — Vou arriscar. Sabes guardar segredo?

     — Tanto, como qualquer outro.

     — Sabes, então, que todos os protetores e protegidos se identificam pela koptcha. (37)

     Ocorreu-me uma idéia.

     — A koptcha é de prata? — inquiri.

     — É, sim.

     — Tem a forma de um anel, no qual se vê o desenho de czakan. (38)

     — Sim. Mas de onde sabes isso?

     — Não sei, apenas suponho, porque já vi o tal koptcha, usado por pessoas que sei ou suspeito serem transviados ou, pelo menos, aliados deles.

     — Posso saber o nome dessas pessoas?

     — Podes. Manach el Barcha tem um koptcha no fêz. Alguns homens que assistiram ao julgamento de Barud el Amasat, em Edreneh, também o levaram. E finalmente, hoje, quando atravessei a cidade a cavalo juntamente com o ex-dervixe, (39) encontrei um homem que me olhou de um modo singular, informando, depois, ao que suponho, os aliados dos foragidos, para que tivessem origem aqueles dois tiros disparados contra mim e Ali Manach Ben Barud el Amasat. Também esse homem usava um koptcha.

     — Também observei hoje que o antigo arrecadador de impostos de Uskub levava desses distintivos.

     — Talvez não tivessem maltratado tanto a ti, se te ocorresse dizer-lhes que possuis uma presilha daquelas.

     ________________

      (37) Fivela, presilha.

      (38) “Czakan” — machado, com cabo de madeira, revestido de couro de peixe. Era usado pelos heiduques, que o levavam à cintura, do lado direito. Podia-se arrojá-los e também golpear. A mira era sempre feita contra a cabeça.

      (39) Dervixe — Monge muçulmano. Diz-se também derviz ou daruês. Do persa darvish — pobre. (N. do T.).

    

     — É possível. Desgraçadamente, não me lembrei disso.

     — Com certeza, nem todos podem receber uma igual?

     — Não.

     — Quais são as exigências para merecê-la?

     — Aquele que a desejar terá de ser um homem, de quem eles possam esperar favores. E ainda assim, essa pessoa terá de provar que não condenará aqueles que foram para as montanhas.

     — Não te parece que todos têm de condená-los? Eles se colocaram fora da sociedade, que a lei ampara e defende.

     — Tens razão. Mas é preciso que compares a lei com a sociedade. A lei é boa e de fato quer o bem de todos os que estão debaixo dela; mas a sociedade, de que falas, não presta. Alá nos deu boas leis e sanções piedosas, mas os seus representantes as aplicam mal. Já não ouviste a queixa de que o islamismo impede que os seus adeptos façam progressos culturais?

     — Muitas vezes.

     — Essa censura não é feita, na maioria dos casos, pelos adeptos de outras crenças?

     — Realmente, assim é.

     — Pois eles não conhecem o islã, o verdadeiro turco. O islã não tolhe o progresso e o desenvolvimento da cultura. Mas o poder que dá, de uns sobre os outros, está em mãos injustas, infiéis. Também o turco é bom. Era e é probo, sincero, honrado, fiel, amigo da verdade e leal. E fosse ele diferente, quem lhe teria modificado os sentimentos?

     Fiquei surpreendido ao ouvir desse homem simples, desse ferreiro de aldeia, palavras assim. De onde colhera essas impressões ou como teria chegado a tais apreciações? Seriam estas fruto da sua meditação ou teria ele estado em contacto com homens que o tivessem elevado até o seu nível?

     Preferi não responder e, assim, ele continuou:

     — O turco conquistou esta terra. É isso motivo para expulsá-lo-daqui? Responde-me, efêndi?

     — Continua.

     — O inglês, o alemão, o russo, o francês, não conquistaram todos as suas terras? Há pouco tempo, a Prússia não era tão pequena como um areeiro e agora se tornou tão grande, que abriga milhões de pessoas? Como se tornou tão grande? Pela pólvora, pela baioneta, pela espada, bem como pela pena dos diplomatas. Todos eles não possuíam antigamente as terras que hoje dominam. Que diria o amerikaly se, hoje, o turco fosse ter com ele e lhe dissesse: — Tens de sair daqui, porque esta terra pertence aos peles-vermelhas. Ele se riria do turco. Por que é, então, que este terá de ser expulso?

     — O nemtche não o quer expulsar.

     — Sim, ouvi dizer isso. Mas o nemtche é o único justiceiro. Havia, na nossa terra um povo pertencente ao catolicismo de Moscou. Era um grande povo no saber, mas maior ainda no pecar. Veio o turco e o castigou, como Josué castigou os povos da terra de Canaan. Era essa a vontade de Deus. Com o turco, vieram os vencidos: ele era e continuou sendo, em número, o mais fraco nesta terra. Vencera por bravura e, agora era vencido, a pouco e pouco, pela esperteza e pela perfídia. Olha em torno de ti! Conta os crimes, que se cometem; reúne os traidores, embusteiros e todos os que vivem fora da lei, mas que são muito astutos para se deixarem pilhar; entra nas casas sinistras, onde cheira a maldição, — que são e de onde vêm os que ali contarás? Quantos turcos de verdade encontrarás entre eles? Não é toda a Ásia um vasto campo de roubos e saques, praticados pelos inguiliz e pelos moskow? Não encontras, continuamente, a derrubada tremenda, a opressão, o aniquilamento e a chacina de todas as raças que caem entre esses dois gigantes? Isso fazem os cristãos. O turco, porém, é feliz se o deixam em paz.

     Chimin estava tão empolgado pelo assunto, que até deixara apagar-se o cachimbo. Acendi um fósforo e lhe estendi.

     — Fuma — disse eu.

     Acendeu o cachimbo e depois comentou:

     — Vês que chego a me esquecer do djebeli. Tenho razão ou não?

     — Poderia contraditar muitas coisas.

     — Faze-o.

     — Não temos tempo para isso.

     — Assim são os cristãos. Condenam-nos e não nos querem ensinar. Do mesmo modo apoderam-se das coisas, sem perguntar. Quem possui os melhores pedaços da terra? Quem possui a influência? Quem é que enriquece, sempre e sempre mais? O armênio, o judeu, o grego esperto, o inglês sem coração e o russo arrogante! Quem é que devora as nossas carnes? Quem é que suga o alento e o suco das nossas vidas, quem rói os nossos ossos? Quem é que incentiva e aguilhoa, sempre e sempre, o desânimo, o desgosto, a desconfiança, a insatisfação e a insubordinação dos súditos? Quem é que atiça, sem tréguas, uns contra os outros? Quem foi que nos contaminou? Quem foi que nos fêz enfermos?

     — Chimin, tens razão em muitas coisas. Mas é o mesmo que colocar tranca de ferro, depois da porta arrombada. Onde colheste essas apreciações?

     — Colhi com os próprios olhos e com os próprios ouvidos. Fiz como se faz nas vossas terras, onde os aprendizes de ofícios saem para correr o mundo e aprender aquilo que, em casa, não puderam, com os mestres. Trabalhei em Viena, Budapest e Belgrado. Nessas cidades eu vi e ouvi o suficiente para aprender e pensar. Podes contestar-me?

     — Sim, posso. Confundes religião com política. Procuras as causas da enfermidade fora da organização do Estado, dentro da qual, efetivamente, se encontra, desde o começo, o germe gerador da doença.

     — Podes provar isso?

     — Posso.

     — Pois então, faze-o.

     Nisso, ouviu-se, ao longe, o tropel de um cavalo.

     — Ouves? — perguntou-me Chimin.

     — Ouço.

     — Decerto é ele.

     — Muito possível.

     — É pena. Queria ouvir-te falar.

     — Provarei o que pedes, quando tivermos liquidado o assunto do homem que aí vem.

     — Que faremos agora?

     — Antes de tudo, é necessário que ele não me veja, porque suponho que me conheça. Deves procurar atraí-lo para dentro de casa.

     — Isso será fácil, desde que não passe sem chegar.

     — Em nenhuma hipótese isso poderá acontecer. Já está muito escuro. Irei ao meio da estrada. Se quiser passar, segurarei o cavalo. Se apear, entrarei imediatamente depois em casa.

     — E se não fôr o homem que esperamos?

     — Nesse caso, nada lhe faremos.

     O ruído dos cascos do cavalo estava cada vez mais próximo. Ouvia-se perfeitamente que se tratava de um só animal. Passei rapidamente para o meio da estrada, onde me abaixei.

     Chegava o cavaleiro. Parou justamente na réstea de luz que vinha da ferraria. Não podia, contudo, ver-lhe muito bem a cara.

     — Bak sawul! — Alô, atenção! — bradou o recém-chegado.

     E como ninguém aparecesse imediatamente, repetiu o chamado. Agora, surgiu o ferreiro na porta, perguntando:

     — Quem é?

     — Sou desconhecido. Quem é que mora aqui?

     — Eu — respondeu Chimin, sem muito espírito.

     — Quem és?

     — Sou o dono desta casa.

     — Posso supor isso, imbecil. Quero saber teu nome.

     — Chamo-me Chimin.

     — Que és?

     — Ferreiro. Não tens olhos para reconhecer isso pelo fogo, cujas labaredas te iluminam?

     — Não vejo nada, a não ser que és imbecil e grosseiro. Aproxima-te. Quero te fazer uma pergunta.

     — Sou, quem sabe, teu escravo ou teu criado, para que tenha de ir no teu encontro? Quem quiser falar comigo, que me procure.

     — Estou a cavalo.

     — Apeia, portanto, e entra.

     — Não é preciso.

     — Estou resfriado e tenho tosse. Pensas que por tua causa apanharei frio para ficar doente e não poder trabalhar? — disse Chimin e entrou porta a dentro. O recém-chegado soltou algumas exclamações pouco delicadas, mas se aproximou, esporeando o cavalo.

     Até aí eu não sabia se era a pessoa que esperava. No momento, porém, em que ele se aproximava da ferraria, para apear, pude verificar que o cavalo era zebruno. O homem usava um fêz escarlate, uma capa cinzenta e tinha um bigodinho claro. Quando apeou, vi os sapatos turcos vermelhos. Era ele, portanto.

     Apeado, amarrou o cavalo à porta da ferraria e desapareceu pela porta da casa.

     Rastejei, seguindo-o. O ferreiro se tinha dirigido ao compartimento maior da casa, onde a mulher estava deitada. Como o desconhecido o tivesse seguido para ali, pude ocultar-me por trás da parede divisória de vime, ouvindo tudo quanto se falava. O desconhecido estava de costas para mim, o ferreiro diante dele, com o archote na mão. A mulher parecia ter-se restabelecido um pouco: estava de olhos abertos, apoiando a cabeça na mão e ouvia a palestra dos dois.

     O ferreiro estava sendo repreendido por ter feito uma recepção tão pouco amável ao forasteiro. Isso o desgostou. E de raiva, esqueceu-se da prudência, deixando-se arrastar a afirmações perigosas.

     — Somente sou amável para com gente honesta.

     — Pensas talvez que não sou honesto?

     — Sim, penso isso.

     — És um grosseirão estúpido, como não existirá segundo. Como poderás saber se sou um homem honesto ou não? Acaso me conheces?

     — Conheço-te, sim.

     — Onde me viste?

     — Nunca te vi, mas ouvi falar a teu respeito.

     — Onde e quem falou?

     — Aqui, um efêndi estranho, que sabe perfeitamente seres um gatuno.

     — Quando foi isso?

     — Hoje, há bem pouco tempo.

     — Mentes.

     — Não minto; falo a verdade. Posso prová-lo. Aliás, sei perfeitamente que queres saber de mim.

     — É impossível que o saibas.

     — Sei muito bem.

     — Então, dize-o.

     — Queres informar-te a respeito de Manach el Barcha e Barud el Amasat.

     O outro fêz um gesto de susto e perguntou:

     — De onde sabes isso?

     — Exatamente daquele efêndi.

     — Quem é ele?

     — Não precisas saber disso. Se quiseres, entretanto, saberás.

     — Onde está ele?

     — Não preciso dizer.

     — É o que pensas. E se eu te obrigar a isso?

     — Não tenho medo.

     — Também deste aqui não tens medo? Puxou um punhal e mostrou-o ao ferreiro.

     — Também não temo essa faca. Na verdade, não estou sozinho.

     Eu havia chegado à abertura feita no trançado de vime, a qual servia de porta. Dizendo as últimas palavras, o ferreiro apontou para mim. O desconhecido virou-se, viu-me e bradou:

     — Isso é do demônio!

     Estava enormemente surpreendido. Também eu estava, pois reconheci nele o homem que me observara de um modo tão estranho, em Edreneh, quando eu passara pelas ruas acompanhado do “dançarino”. A sua expressão fora feita em língua valáquia. Seria ele um valáquio? Nos momentos inesperados, o homem perplexo usa comumente a língua materna.

     Era preciso que eu procurasse corrigir aquilo que o ferreiro havia estragado. Ele não deveria ter revelado o que sabia a respeito do desconhecido. Devia ter esperado as perguntas, para depois, sim, pronunciar-se.

     — Isso é bem verdade — respondi, também em romaico. — És do diabo.

     O homem dominou-se, guardou a faca, com a qual ameaçara o ferreiro, e depois disse:

     — Que queres? Não te conheço.

     — Também não é preciso. O mais importante, porém, é que eu te conheço, meu lambote.

     Fêz uma cara de grande pasmo, sacudiu a cabeça e depois afirmou em tom de absoluta convicção:

     — Não te conheço. Deus é testemunha!

     — Não blasfemes. Deus é testemunha de que me viste.

     — Onde?

     — Em Edreneh.

     — Quando?

     — Ah! Falas turco?

     — Falo.

     — Então deixa o romaico. Este bom ferreiro também deve ouvir e entender o que falamos. Confessas que estiveste presente, quando Barud el Amasat foi condenado em Edreneh, por ter transgredido as leis?

     — Não estive presente e de nada sei.

     Realmente, não o vira entre os assistentes. Por isso, tive de aceitar essa afirmativa, sem contrariar. Entretanto, continuei a interrogação:

     — Conheces, porém, Barud el Amasat?

     — Não.

     — Também não conheces o filho dele, Ali Manach?

     — Não.

     — Por que te assustaste tanto quando o viste como meu prisioneiro?

     — Não vi nem a ti, nem a ele.

     — Ah, sim! Com certeza também não conheces o Handchia Doxati, em Edreneh?

     — Não.

     — E decerto, também, não te apressaste a ir avisar os teus aliados e os do Ali Manach, quando me viste com ele?

     — Não compreendo como me podes fazer essas perguntas. Digo-te que de nada sei a respeito de tudo isso.

     — Responde que sabes da fuga do prisioneiro, que és culpado da morte do Ali Manach, mas que não és culpado de que a outra bala tenha acertado no khawass e não em mim, que estás a caminho para prevenir Manach el Barcha e Barud el Amasat. Tudo isso sei com absoluta segurança.

     — Contudo enganas-te. Confundes-me. Onde aconteceu isso de que falas? Em Edreneh, ao que deduzo das tuas palavras, não?

     — É exato.

     — E isso há pouco tempo? Saibas, então, que há mais de um ano não vou a Edreneh.

     — És um grande mentiroso. Onde estiveste nos últimos dias?

     — Em Mandra.

     — De onde vens hoje?

     — De Boldchibak.

     — Estiveste em Mandra, sobre o Maritza? Hein? De fato, estiveste sobre o Maritza, mas a um bom pedaço acima de Mandra, isto é, em Edreneh.

     — Queres que eu jure que te enganas?

     — O teu juramento seria falso. Quem sabe Bu-kiõj fica no caminho de Mandra e Boldchibak para aqui?

     — Bu-kiõj? Não conheço essa localidade.

     — Não estiveste lá?

     — Não.

     — Não perguntaste a nenhum dos moradores de lá sobre três homens, dos quais dois montavam tordilhos e um, um zaino?

     — Não.

     — O homem que interrogaste levou-te ao guarda e este te conduziu à presença do kiaja, não é verdade?

     — Não.

     — Admirável! Todos nos enganamos. Só tu não te equívocas. Com certeza, és muito mais inteligente do que nós. Queres dizer, porventura, quem és?

     — Sou agente.

     — De que?

     — Agente geral.

     — E como te chamas?

     — Meu nome é Pimosa.

     — Nome singular! Não o conheço em nenhuma língua. Quem sabe tu mesmo o inventaste?

     Franziu o sobrolho ameaçadoramente e inquiriu:

     — Quem te dá o direito de me falar dessa maneira?

     — Eu mesmo.

     O ferreiro ajuntou:

     — Esse é o efêndi de quem te falei ainda há pouco.

     — Já percebi — respondeu o homem. — Mas por mim ele pode ser o efêndi de todos os efêndis e nem assim lhe darei o direito de me tratar indelicadamente. Conheço meios e modos de fazer com que gente desse estofo se torne delicada.

     — Então, como é que se faz isso? — perguntei.

     — Assim!

     Levou a mão à cintura, onde estavam as suas armas, e puxou o cabo do revólver.

     — Bem, isso é uma linguagem tão convincente, que lhe tenho todo o respeito. Serei, portanto, mais delicado. Queres ter a bondade de me dizer onde nasceste?

     — Sou sérvio, nascido em Lopaticza, sobre o Ibar.

     — Serei tão delicado que finjo acreditar. Entretanto, cá para mim, considerar-te-ei um romeno ou valáquio, o que é a mesma coisa. Para onde vais?

     — Para Ismilan.

     — Maravilhoso! És um homem tão inteligente e fazes uma volta tão grande! Por que vens a Kochikawak, se era tua intenção ir de Mandra a Ismilan? Teu caminho ficaria muito mais para o sul.

     — Fiz isso, porque tinha negócios a tratar, nas localidades onde escalei. Mas, de agora em diante, proíbo que continues. És, porventura, funcionário da polícia, para que me interrogues como a um criminoso?

     — Far-te-ei também essa vontade. Dize-me, porém, somente ainda por que apeaste aqui?

     — Queria eu, por acaso, apear? Esse ferreiro foi quem me obrigou, pois não quis responder lá fora.

     — Já lhe fizeste as perguntas que querias?

     — Não.

     — Pois, faze-o, a fim de que saibas o que desejavas.

     Embaraçou-se um pouco o homem, recobrando, em seguida, a presença de espírito, para responder:

     — Perdi a vontade de perguntar. Quando se é tratado dessa maneira, a gente “desinfeta”!

     Com isso, fêz um gesto expressivo e ia se afastar.

     — Chama-se a isso delicadeza? — disse eu, rindo.

     — Amor com amor se paga! — foi a resposta irônica.

     Isso foi dito novamente em valáquio. Era já bastante para me convencer de que ele não era sérvio.

     — Gostas dos provérbios, a qualquer momento — observei-lhe, enquanto por uma manobra rápida embargava os seus passos. Esse provérbio, porém, não encerra muita filosofia. Melhor dirias: Quem tem boca vai a Roma. Resolvi ser delicado contigo e peço-te, por isso, que fiques mais um pouco comigo.

     — Contigo? Onde é que moras?

     — Aqui.

     — Esta casa pertence ao ferreiro. Ele mesmo disse que eras um efêndi desconhecido.

     — Ele não se opõe, se te convido para ficar.

     — Que farei aqui? Não tenho tempo. Preciso ir-me.

     — Deves esperar os outros hóspedes, que chegarão prontamente. Querem encontrar-te aqui.

     — Quem são eles?       

     — Khawass de Edreneh.

     — O diabo que te carregue!

     — Não lhe darei licença para isso! Ficarei aqui contigo. Olha, ali há lugar. Senta-te, por favor.

     — Estás doido? Sai da frente!

     E com isso queria passar por mim. Segurei-o pelo braço, sem contudo o machucar.

     — Realmente, eu te convido para que fiques — disse-lhe. — Os khawass, de que falei, de fato querem conversar contigo.

     — Que é que tenho com eles?

     — Nada tens com eles. Eles é que têm contigo.

     Os seus olhos chisparam furiosamente.

     — Larga-me! — ordenou.

     — Ora essa! Teremos o cuidado de não deixar que alcances Manach el Barcha.

     Nesse momento, eu estava em frente dele e o ferreiro, que havia metido a apara de madeira iluminante no buraco a isso destinado, conservava-se por trás. Esta última circunstância, ele não observara. Reconheceu, todavia, que estava descoberto e, melhor ainda, que era preciso escapulir-se. De minha parte estava convencido de que ele faria o possível para atingir esse objetivo, embora tivesse de empregar a força. Mostrando muito embora uma fisionomia despreocupada, observava atentamente as duas mãos do homem. Este gritou com raiva:

     — Não conheço a pessoa de que falas. Mas preciso ir-me. Sai, portanto, da frente.

     Fêz um gesto para passar por mim. Fui, porém, mais ligeiro, colocando-me entre ele e a saída.

     — Excomungados!

     Dizendo isso, retrocedeu um passo. A faca reluziu nas suas mãos; ia desferir-me uma punhalada, mas o ferreiro segurara rapidamente a mão dele, por detrás.

     — Cão! — gritou o homem, virando-se para Chimin.

     Com isso, voltou-me as costas. Segurei-lhe ambos os braços fortemente contra o corpo, impedindo-lhe de fazer qualquer movimento.

     — Uma corda, correias ou barbantes! — gritei ao ferreiro.

     — Não conseguirás! — grunhiu o pseudo agente.

     Fêz todo o esforço possível, para libertar-se. Debalde. Batia com os pés violentamente. Isso, entretanto, não durou muito, pois o ferreiro apressava-se para executar a minha ordem, trazendo o que lhe pedira. Poucos minutos depois, o homem estava amarrado, atirado ao solo.

     — Isso! — disse Chimin, com um tom da mais absoluta satisfação. — O mesmo acontecerá com os teus aliados, que amarraram deste jeito a mim e à minha mulher.

     — Não tenho aliados! — bufou o prisioneiro.

     — Sabemos disso melhor do que tu.

     — Exijo a minha liberdade imediata.

 

     — Não há pressa.

     — Estão fazendo confusão. Sou um homem honesto.

     — Prova-o.

     — Peçam informações a meu respeito.

     — Onde as obteríamos?

     — Em Dchnibachlue.

     — Ah, isso realmente não é muito longe! Quem dará informações?

     — O tintureiro Bochak.

     — Conheço-o, efetivamente.

     — E ele me conhece. O tintureiro dirá que não sou aquele que pensam.

     O ferreiro olhou-me interrogativamente. Respondi:

     — Não temos muita pressa. Antes de tudo, veremos o que levas nos bolsos.

     Revistamo-lo, não sem ouvir umas tantas imprecações do prisioneiro. Achamos uma importância nada desprezível em dinheiro, e muitas miudezas, das que sempre se costumam conduzir. Metemos-lhe tudo de novo nos bolsos. O ferreiro, que era dado a sentimentalismo, perguntou-me:

     — Não terias te enganado, efêndi?

     — Não. Estou certo do que faço. Mesmo que nada encontremos, seguramos o homem. Agora, iremos revistar também o cavalo.

     A mulher estava quieta até esse momento. Quando viu que íamos sair, perguntou:

     — Devo ficar de guarda?

     — Sim — respondeu-lhe o marido.

     Ela levantou-se, acendeu umas hastilhas de madeira e disse:

     — Podem ir descançados. Basta que ele se mexa, para que eu o incendeie. Não fiquei, pelo menos, impunemente, metida naquele porão.

     — Mulherzinha valente! — disse, faceiro, Chimin. — Não é verdade, efêndi?

     O cavalo ainda estava amarrado à porta da ferraria. O alforge continha provisões de boca e foi só o que encontramos.

     — Que ordenas, agora? — indagou Chimin.

     — Primeiro, levaremos o cavalo para o lugar onde se encontra o meu.

     — E depois?

     — E depois, meteremos o prisioneiro no mesmo buraco em que estiveste com tua mulher.

     — E depois?

     — E depois, esperaremos que os meus companheiros cheguem.

     — Que acontecerá, então, com o prisioneiro?

     — Mandarei levá-lo para Edreneh.

     Depois de termos guardado o cavalo, entramos novamente. Quando a mulher do ferreiro soube o que deveria acontecer ao preso, mostrou-se muito satisfeita. Chegou a ajudar, e assim o prisioneiro, não obstante a resistência oposta e que consistia principalmente em exclamações de raiva e ameaças, foi metido no porão, onde estava em segurança. A boa mulher não se deixou demover de preparar uma refeição frugal.

     Sentamo-nos, enquanto isso, novamente defronte à porta, onde o ferreiro fumou mais uma cachimbada.

     — Uma aventura rara! — comentou. — Nunca estive preso no porão e também nunca prendi ninguém ali. Era desígnio de Alá.

     Enquanto nos entretinhamos, o tempo corria. Comemos e eu continuava esperando por Halef e os outros. A mulher deitou-se novamente. Ficamos na porta. Bateu meia-noite, passou-se mais uma hora e continuávamos esperando baldamente.

     Chimin procurou justificar a demora dos meus companheiros, dizendo:

     — Decerto, eles acharam um abrigo para a noite.

     — Não. Têm ordem de passar aqui. Foram com certeza retidos por qualquer acontecimento imprevisto. Mas eles não fararão pouso, enquanto não chegarem aqui.

     — Quem sabe se perderam o caminho?

     — Não creio que eles falhem dessa maneira, principalmentenão acredito por causa do fiel Hadji Halef Omar.

     — Então, teremos de esperar. Em todo o caso, não nos será tão difícil quanto ao prisioneiro do porão. Como será que ele mata o tempo?

     — Do mesmo modo que tu o fizeste, quando há pouco estiveste metido lá dentro.

     — Não acreditas, realmente que ele seja sérvio?

     — Não. Ele mente.

     — Também não crês que se chama Pimosa?

     — Também duvido disso.

     — Contudo, podes enganar-te.

     — Ora! Ele puxou da faca. Teria dado o golpe. Por que não me pediu para ser levado à presença do kiaja. Qualquer um, que tivesse a consciência tranqüila, pediria. E tu conheces o tintureiro de que falou?

     — Sim, conheço-o.

     — Que tipo de homem é ele?

     — É um mandrião gordo, redondo.

     Era uma resposta curiosa. O tintureiro fora chamado Bochak, o que quer dizer preguiçoso, indolente, mole. Indaguei mais:

     — É abastado?

     — Não, justamente por ser preguiçoso. De resto, ele não é só tintureiro, mas também é padeiro.

     — Como padeiro é mais trabalhador?

     — Não. A sua casa ameaça ruir, porque ele é muito preguiçoso para fazer alguns melhoramentos. A mulher foi quem construiu o forno, fez a amassadeira e também é ela quem leva os pastéis e pães à freguesia.

     Com certeza é ela quem faz o pão?

     — Com efeito.

     — E decerto também tinge?

     — Naturalmente.

     — Que faz, então, o homem?

     — Ele come, bebe, fuma e faz o kief (40).

     — Não é de admirar, portanto, que esteja pobre. Mora em Dchnibachlue?

     — Sim, efêndi.

     — Uma aldeia?

     — Sim, uma aldeia bem desenvolvida.

     — A que distância daqui?

     — A duas horas a pé. Depois de ter atravessado Kochikawak, passa-se a ponte. Dali o caminho vai diretamente para Dchnibachlue, ao sul.

     — Tem esse padeiro e tintureiro má fama por qualquer outra razão?

     — Hum! Não sei.

     — Fala com clareza.

     — Há algum tempo, rasgaram-lhe as orelhas.

     — Por quê?

     — Não sabes a quem atinge esse castigo?

     — Decerto, ele fêz os pães demasiadamente pequenos?

     ________________

      (40) Kief ou kjef — Repouso absoluto, entre os povos do Oriente; uma espécie de sesta, usada especialmente na Turquia. (N. do T.).

 

     — Não, pelo contrário, muito grandes. O padeiro que faz os pães muito pequenos é pregado pelas orelhas à porta ou à janela de sua casa. Mas a orelha não lhe é rasgada.

     — Mas sendo tão pobre, admira-me que tenha feito pães demasiadamente grandes.

     — Contudo, ele não gastou farinha demais. Os pães atravessaram as fronteiras. Achou-se, então, que eram muito pesados. Abriram-se os pãezinhos e se verificou, assim, que continham uma porção de coisas que eram tributadas na fronteira.

     — Ah! Sim. Nesse caso, ele é contrabandista?

     — Ao que parece. Pelo menos, foi isso que aconteceu.

     — Hum! Desejaria falar-lhe.

     — Por quê? Pensei que quisesses continuar, logo que teus companheiros chegassem.

     — Realmente era esse o meu intento. Entretanto, o nosso prisioneiro referiu-se ao padeiro e, daí, entrevejo a possibilidade de ouvir desse homem alguma coisa de interesse para mim.

     — Terias de esperar, então, até amanhã de manhã.

     — Certamente. Os meus companheiros poderiam, entretanto, ir na frente, porque os alcançaria logo.

     — Por que os esperas aqui? Poderias dormir descansadamente aqui dentro de casa.

     — Nesse caso, eles passariam sem chegar, pois não sabem que me encontro aqui.

     — Ficarei acordado, efêndi.

     — Não posso pedir isso.

     — Por que não? Não nos tiraste, a mim e à minha mulher, do porão? Sem ti, teríamos morrido à míngua ou sufocados. Poderia recusar-me a fazer guarda por ti algumas horas? Precisas viajar amanhã e, portanto, não poderás dormir. Porém, eu posso recuperar o descanso perdido.

     Não podia dizer que ele estava enganado e, como insistisse, correspondi ao seu desejo. A mulher preparou um leito e, depois de ele me ter prometido que não deixaria apagar-se o fogo, deitei-me para descansar.

    

Entre Contrabandistas

     Ainda estava escuro quando acordei. Não obstante, achava-me bem dormido. Esta charada, entretanto, ficou decifrada, logo que percebi estarem todas as janelas fechadas

     Abri uma delas e vi que já era alto dia. Pela hora do ocidente, deveriam ser oito ou nove da manhã.

     Lá fora, ouvia-se o ruído de um operário diligente. O martelo e a lima trabalhavam estridentemente. Saí. O ferreiro trabalhava, enquanto a mulher puxava o foles.

     — Bom dia — cumprimentou-me sorridente. — Dormiste muito bem, efêndi.

     — Infelizmente. Como tu também.

     — Eu? Como assim?

     — Não vejo os meus companheiros.

     — Também não os vi.

     — Eles passaram.

     — Quando?

     — Durante a noite.

     — Oh! Pensas que dormi?

     — Acho que sim.

     — Não preguei um olho. Pergunta à minha mulher. Quando dormias, ela veio ter comigo. Estivemos sentados juntos, esperando baldadamente.

     — O fogo esteve permanentemente aceso?

     — Até agora. Efêndi, eu digo a verdade.

     — Isso me deixa preocupado pela sorte dos meus companheiros. Irei ao encontro deles.

     — Não querias ir a Dchnibachlue?

     — Queria, sim. Mas...

     — Não tenhas cuidado, efêndi. Eles virão. Naturalmente, tiveram a inteligência de não viajar de noite através de uma região desconhecida.

     — Não, não foi isso que retardou a sua marcha. Ou eles toparam com um obstáculo imprevisto ou erraram o caminho.

     — Em qualquer caso, é preferível que vás a Dchnibachlue. Eles removerão o obstáculo e virão em seguida. Se estão no caminho errado, acharão o certo e virão também. Quais as localidades por onde deveriam passar

     — Ordenei-lhe que viajassem de Dere-kiõj para Mastanly.

     — Então, na certa, passarão por aqui. Se alguém deve ir ao encontro deles, eu irei. Montarei o cavalo do prisioneiro.

     — Muito bem. Mas, a propósito, falaste com o prisioneiro?

     — Fui vê-lo.

     — Que disse?

     — Chinga que dá pena. Quer ser posto imediatamente em liberdade e, quando lhe disse que não me era possível libertá-lo, pediu-me para falar contigo.

     — Far-lhe-ei essa vontade, com muito gosto.

     — Não o faças, efêndi.

     — Por que não?

     — Ele é traiçoeiro. Quer se libertar, pela força ou pela astúcia, se aquela não surtir efeito.

     — Não receio nem a sua força física, nem a sua esperteza. Está dentro do buraco e amarrado. Que me poderá fazer? Nem sequer pode me pôr a mão.

     — Mas, com boa lábia, é possível que te convença de soltá-lo.

     — Não conseguirá. Não pertenço aos fracos, que se deixam convencer facilmente. Também não sou homem para pensar agora assim e daqui a cinco minutos assado. De resto, poderás estar presente. Vamos.

     Íamos abrir a porta, que dava para o compartimento onde ficava o porão, quando a mulher do ferreiro se aproximou, dizendo em tom de mistério, ao marido:

     — Achei, achei.

     — Quê? — perguntei, largando a porta.

     — A cara dele, a cicatriz.

     — Referes-te à cara e à cicatriz do prisoneiro?

     — Sim, efêndi. Eu me tinha esquecido de ambas.

     — Viste-o, então, alguma vez?

     — Sim. Mas me tinha esquecido. Pensei toda a noite sobre isso. Maltratei o miolo, sem conseguir recordar-me. Mas, repentinamente, lembrei-me outra vez.

     — Vamos à outra peça da casa. Poderá ouvir-nos — disse.

     Ambos me acompanharem à parte principal da casa e ali o ferreiro disse, admirado, à sua mulher:

     — Viste-o? Esqueceste e estiveste toda a noite ao meu lado pensando nisso? Por que não me falaste a respeito?

     — Não quis embaralhar os meus pensamentos. Tivesse falado, com certeza, não me ocorreria o que procurava recordar. Foi assim que pensei.

     — Talvez tenhas razão — disse eu. — Ainda bem que lembraste. Onde foi que o viste?

     — Em Topoklu.

     — Quando?

     — Na última primavera. Em casa da minha amiga.

     — Quando estiveste em visita em Topoklu? — perguntou o marido, pasmo.

     — Sim, naquela ocasião.

     — Que é que ele fêz em casa da tua amiga?

     — Comprou pólvora e espoletas.

     Ela continuou, voltando-se para mim:

     — Na verdade, é preciso que saibas que o marido da minha amiga tem uma mercearia, onde vende de tudo quanto se precisa na ocasião. Eu fora convidada, porque ela estava doente e não tinha quem a cuidasse. Estava sentada com ela, quando chegou alguém na mercearia, pedindo munição. Quis experimentá-la no mesmo instante. O merceeiro pediu-lhe que não fizesse isso, porque a mulher estava doente e não podia ouvir tiros. Não obstante, o homem carregou a arma e atirou na direção da cabeça do cavalo da casa fronteira.

     Os búlgaros gostam — devo esclarecer — de afixar cabeças de cavalos ou de outros animais, como vacas, bois e burros, na cumieira das casas.

     A mulher prosseguiu:

     — A minha amiga deu um grito, no momento da detonação. Ele riu e deu mais tiros. E quando o merceeiro proibiu energicamente que continuasse, o homem ameaçou atirar contra o próprio dono da casa. Afinal, pagou e saiu. Antes, porém, disse que realmente precisava pagar, pois pertencia aos conjurados.

     — Que gente é essa? — indaguei.

     — Não sabes? — estranhou o ferreiro.

     — Nunca ouvi falar neles.

     — Conjurado é um homem que não obedece ao Grão Senhor, mas quer um reino búlgaro, com um rei próprio e independente.

     — Pode alguém aventurar-se a confessar publicamente ser conjurado?

     — Por que não? O Grão Senhor mora em Istambul e quanto mais te afastas dessa cidade, menor é o poder dele. E se um homem desses se sente em perigo, vai para as montanhas. Continua, mulher.

     — Eu espiara pelas frestas da parede de vime e vira o homem. Levava uma grande atadura na bochecha direita e quando, depois, perguntamos ao merceeiro quem era aquele homem, ele nos disse que pertencia à liga dos descontentes e morava em Palatza. Chamava-se Mosklan e era negociante de cavalos, mas abandonara esse negócio para se dedicar exclusivamente ao serviço da união secreta. Entretanto, o merceeiro nos pediu que nada disséssemos, a quem quer que fosse, sobre o assunto. Soubemos também que esse corretor de cavalos raramente estava em casa, porém, sempre em viagem.

      — Acreditas tê-lo reconhecido no prisioneiro?

     — Sim. Ele não tem mais a atadura, o que me confundiu. Senti que o vira em qualquer parte, mas não me podia recordar. A cicatriz, porém, justamente na bochecha direita, fêz me lembrar e eu tenho certeza de que é ele.

     — Não te enganas?

     — Oh, não. Juro que é ele.

     — Ele disse, entretanto, que era sérvio, chamava-se Pimosa e era agente de Lopaticza, sobre o Ibar.

     — Isso é mentira.

     — Também não acreditei. Falava valáquio e, na verdade, parece-me que falava essa língua como eu a ouvi na região de Slatina.

     — Slatina? Sim, sim! O merceeiro parecia conhecê-lo melhor do que nos queria deixar perceber. Estava furioso e chamava-o de valáquio, djaur, um russialy katolik, um hereje de Slatina.

     — Daí se conclui que ele conhece muito bem o homem e sabe que é de Slatina.

     — Agora me lembro também de que o merceeiro, furioso, o chingava de mensageiro dos amotinados e estafeta dos revolucionários.

     — Isso tudo é muitíssimo interessante. Quem sabe se o gordo padeiro de Dchnibachlue não poderá dar outros esclarecimentos.

     — De fato, queres ir lá, efêndi?

     — Sim. Agora, quero realmente.

     — E o prisioneiro poderá saber?

     — Naturalmente. Ele mesmo me incitou a isso.

     — Dir-lhe-ás também, que soubeste quem ele é?

     — Não. Isso seria uma imprudência, de que não quero me tornar responsável. Tens ainda alguma coisa a observar?

     — Não —- disse a mulher. — Disse tudo quanto sabia. Mas, gostaria de perguntar sobre uma coisa que me está preocupando.

     — Pergunta à vontade. Talvez a tua preocupação não tenha razão de ser.

     — Oh, não. Se esse homem pertence aos descontentes, estamos em perigo. Prendemo-lo e ele se vingará ou os seus aliados virão vingá-lo.

     — Essa é uma preocupação de que não se poderão libertar. É possível, entretanto, que possamos achar um meio de sair muito bem desta questão. Os seus aliados os maltrataram e tiveram, portanto, todo o direito de agir da mesma forma. Antes de tudo, porém, quero falar-lhe novamente, visto que assim o pediu.

     Acendemos uma apara de madeira, abrimos o porão, colocamos a escada e desci. O prisioneiro estava deitado sobre o monte de carvão e me recebeu com invectivas.

     — Esperas melhorar, dessa maneira, a tua situação? — perguntei-lhe.

     — Solta-me — respondeu. — Dá-me a liberdade. Não tens o direito de prender-me aqui.

     — Até agora, porém, estou convencido de ter esse direito.

     — O tintureiro Bochak já não te convenceu do contrário?

     — Ainda não falei com ele.

     — Por que não? Por que vacilas? Já deve ser muito mais de meio-dia. Tiveste tempo de sobra para ir a Dchnibachlue.

     — Enganas-te. Ainda não é tão tarde como pensas. Irei, porém, em seguida. Afirmas que ele te conhece?

     — Sim. Pergunta só pelo agente Pimosa.

     — Saberá ele que não estiveste, há pouco, em Edreneh?

     — Sabe. Se lhe perguntares, dará testemunho de que estive, nos últimos dias, em Mandia e Boldchibak.

     — Como é que sabe disso?

     O prisioneiro hesitou, antes de responder. Depois de uma pausa, disse:

     — Saberás por ele mesmo.

     — Gostaria de saber já.

     — Para quê?

     — Porque é essa a melhor maneira que tens para combater a minha desconfiança.

     — Não sei por que.

     — Devo, quem sabe, apresentar-te, antes, uma justificação da minha atitude? Tu te conservas calado, porque tens receio de que as tuas declarações contradigam as que ele me fizer. Portanto, dize-me se, por acaso, ele esteve contigo naquelas duas localidades?

     — Não preciso dizer. Vai a ele e indaga pessoalmente.

     — Parece-me que realmente não queres melhorar a tua situação. Por que razão irei eu a esse Bochak? Não há motivo para isso.

     — Exijo, para que te convenças da minha inocência.

     — Fosses inocente e tu mesmo me darias os esclarecimentos pedidos.

     — Deves dizer-lhe que estou aqui.

     — Para que te tire deste porão? Pensas que a minha estupidez é maior do que a tua inteligência? Para evitar, porém, quaisquer dúvidas futuras, irei ao tintureiro. Talvez venha a saber dele justamente o contrário do que desejarias que me dissesse. Tens fome?

     — Não.

     — Ou talvez queres beber?

     — Não. Prefiro morrer miseravelmente a aceitar de gente como vocês uma gota d'água sequer.

     — Faça-se a tua vontade.

     Fiz menção de subir. Nisso, o prisioneiro disse bruscamente:

     — Exijo que me desamarrem.

     — Não podes pedir isso a gente que não merece sequer oferecer-te um copo d'água.

     — As cordas me pisam.

     — Isso não faz mal. A sede também doi e, todavia, queres suportá-la, só para nada aceitar do que te oferecemos. De resto, sei positivamente que as cordas com que estás amarrado não te causam dores. O Profeta disse: Quando tiveres sofrimentos, lembra-te de que não é por vontade de Alá e, sim, por tua própria. Pensa nessas palavras até que eu volte.

     O preso preferiu conservar-se calado.

     O ferreiro aproveitara o tempo para trazer o meu cavalo. Trouxe também o do prisioneiro.

     — Queres realmente ir ao encontro dos meus companheiros? — perguntei-lhe.

     — Se permites, efêndi, quero.

     — Pensas que a tua presença aqui não terá utilidade?

     — Minha mulher está aqui. Ela cuidará do preso.

     — Não se sabe o que poderá acontecer, durante a nossa ausência.

     — Que poderá acontecer? Julgo necessário que os teus amigos saibam onde estás e que os esperas. Irei só até Dere-kiõj. Se não os encontrar aí, voltarei.

     — É possível que se verifique um desencontro.

     — Minha mulher cuidará para que eles não passem, sem chegar.

     — Bem, como quiseres. Entretanto, ela terá de cuidar também para que ninguém venha a saber que temos um homem preso no porão.

     A mulher estava junto de nós e ouvira a conversa.

     — Efêndi, podes ir sem cuidado — disse. — Aqui tudo ficará, como se estivesses presente.

     Diante dessa afirmativa, montei. Veio-me à idéia deixar as armas, para ter menos peso a carregar. Contudo, elas eram muito preciosas para que as deixasse em perigo. Nessa casa, não havia um único lugar que oferecesse segurança bastante. Preferi, por isso, levá-las comigo.

     A povoação não era muito distante da ferraria. Não era grande e, por isso, atravessei-a depressa. Depois, passava-se a ponte e seguia-se, à esquerda, em direção ao sudoeste e não ao sul, como dissera o ferreiro.

     Passei por algumas plantações de milho, depois terras de salgueiros e finalmente cheguei a um trecho de terras sem cultura. Um caminho propriamente dito não havia. Cada qual tomava a direção que lhe aprouvesse. Por isso, não me admirei ao avistar, à minha direita, à regular distância, um homem a cavalo, seguindo a mesma direção. Também ele me viu e rumou para o meu lado.

     Quando se aproximava observou-me e parecia não se sentir bem seguro da situação. Depois, tomando uma resolução rápida, aproximou-se a troce.

     — Ssabahhak bilcheer — bom dia! — saudou-me, em árabe correto, surpreendendo-me vivamente.

     — Allah juszabbkhbak bilcheer — Que Deus te dê um bom dia — respondi delicadamente.

     O cavaleiro, na verdade, agradava-me. Não pertencia, seguramente, à classe da gente rica. Estava vestido pobremente e o cavalo que montava não valia duzentos e cinqüenta marcos. Esse vestuário, contudo, dava um atestado de limpeza pouco comum nessa região e o cavalo, conquanto não se pudesse dizer que era exuberantemente alimentado, estava bem tratado. A almofaça e o cardador substituíam a fartura da aveia. Isso sempre causa boa impressão aos amigos de cavalos. De resto, o jovem era bem posto, belamente desenvolvido e o rosto, emoldurado por um bigode bem cuidado, tinha uma expressão de sinceridade e honradez, que de modo algum me incomodei por ver interrompido o curso dos meus pensamentos, pela sua chegada.

     — O senhor fala árabe? — acrescentou o jovem, demonstrando por um aceno de cabeça que se alegrava por não ter se enganado a meu respeito.

     — Certamente, e com muito prazer.

     — Quer ter a bondade de me dizer de onde vem?

     — De Kochikawak.

     — Muito agredecido.

     — Quer vir comigo, porventura?

     — Ficar-lhe-ei muito obrigado.

     Isso era uma delicadeza insinuante. Perguntei-lhe como lhe tinha ocorrido dirigir-se a mim em árabe. Indicou o meu cavalo e respondeu, com os olhos brilhantes.

     — Um nedji assim só pode ser montado por um árabe. Esse é um legítimo filho do deserto. Por Alá! Ventas vermelhas! A mãe de certo é uma égua koheli?

     — Tens bons olhos. O cavalo realmente indica que tens razão.

     — O senhor é um homem feliz, um homem rico. Os cascos e os garrões mostram que esse animal não nasceu no deserto de areia e sim no de pedra.

     — Também isso é exato. Esta região é a tua pátria?

     — É, sim.

     — Nesse caso, como conheces tão bem os cavalos árabes?

     — Sou hadji. Depois de ter concluído o meu curso de orações em Meca, fui para Taif, onde entrei para a cavalaria do Grão Senhor.

     Eu conhecia essa cavalaria de elite e sabia quão bem montada era. O Grão Senhor possui realmente uma magnífica cavalariça. Não era de admirar, portanto, que esse moço tivesse um olho tão experimentado.

     Era interessante, ter junto de mim um antigo cavalariano do Grão Xerife de Meca.

     — Por que não ficaste na cavalariça? — indaguei.

     O rapaz corou, olhando para o chão, levantou depois os olhos grandes e leais, pregando-os em mim e respondeu com uma palavra:

     — Mahabbe — o amor!

     — Welak — Que desgraça!

     — Na'am, haksassa — Sim, senhor; é assim!

     A minha exclamação fora proferida em tom jocoso. Ele, porém, fazia uma cara séria e olhava tão pensativamente diante de si, que facilmente eu podia adivinhar o estado em que ele estava. Naturalmente, não me ocorreu crivá-lo de perguntas, sobre um assunto tão delicado. Pelo contrário, desviei a palestra, dizendo:

     — Em relação ao cavalo, acertaste muito bem. Quanto ao cavaleiro, no entanto, te enganaste.

     — Como? Todavia, és um beduíno?

     — Monto, por acaso, como um bedawi?

     — Naturalmente, não. Isso me chamou a atenção logo que o vi.

     — E te admiraste?

     — Sim.

     — És sincero.

     — Não devo ser?

     — Em nome de Alá! Fala sempre livre e sinceramente.

     — Não podia compreender como é que o dono de um cavalo desses monta tão mal.

     — A vida é assim.

     Olhou-me preocupado e indagou:

     — Levas-me a mal?

     — Oh, não!

     — Oh, sim!

     — Não tenhas cuidado. O que disseste muitos outros já disseram também, sem que eu tenha levado a mal.

     — Por que não te esforças por aprender a andar a cavalo?

     — Oh! Dei-me muito trabalho para isso, muito.

     — Jumkin — Pode ser — disse o rapaz num sorriso incrédulo.

     — Não acreditas?

     — Não.

     — Pois, então, te direi que, durante muitos anos, só apeei para dormir.

     — Allah akbar — Deus é grande! Ele fêz os homens e deu a cada um dotes especiais, mas também defeitos especiais. Conheci um que não podia assobiar. Fazia o maior esforço possível, mas não conseguia. Outros assobiam, ainda no berço. A ti acontece, em relação ao montar, o mesmo que se dava com aquele para assobiar. Por isso, naturalmente, Alá lhe deu outra habilidade ou talento?

     — Isso é verdade.

     — Posso saber que talento é esse?

     — Pois não: o de beber.

     — Beber? — inquiriu o rapaz perplexo.

     — Sim. Desde o berço, eu bebo.

     — Trocista!

     — Também não queres acreditar nisso?

     — Oh! Como não. Essa habilidade todos nós tivemos bem cedo. Só não vejo por que orgulhar-se disso. Cavalgar é mais difícil.

     — Já notei.

     A expressão com que o rapaz me olhava era de compaixão. Depois disse:

     — A tua espinha dorsal vai bem?

     — Sim.

     — O teu peito também?

     — Muito bem.

     — Por que, então, curva tanto a primeira e comprime o segundo?

     — Vi muitos milhares de cavaleiros fazerem assim.

     — Eram maus cavalheiros.

     — Pelo contrário, muito bons. Um cavaleiro que estima o seu cavalo, poupa-o. Por isso, naturalmente, diminui o peso, tanto quanto possível. Como se deve fazer isso, nem o turco, nem o árabe podem imaginar.

     — Não compreendo.

     — Acredito.

     — Mas não és árabe?

     — Não.

     — Que és, então?

     — Um nemtche.

     O rapaz quedou-se pensativo, e depois disse:

     — Em Istambul vi muito gente de Alemanja. Vendia roupa de linho, panos, sacarias e facas. Aquela gente bebia cerveja e cantava lieder.

     — Mas não vi nenhum cavalo. Existem muitos soldados na Alemanja?

     — Mais do que em Oszmanly nemleketi.

     — Mas, quanto à cavalaria, decerto vai mal.

     — Os soldados montam todos como eu.

     — Não me digas!

     — É verdade.

     — Triste, realmente triste!

     Falava honestamente. Não me ocorreu desgostar-me por isso. Em todo o caso, ele supunha ter avançado demais. Por isso, indagou:

     — És um desconhecido. Posso perguntar aonde vais? Talvez te possa ser útil.

     Talvez não fosse aconselhável responder com toda a sinceridade. Por isso, declarei:

     — Agora, vou a Dchnibachlue.

     — Andaremos juntos mais um quarto de hora. Depois, o meu caminho me levará, à direita, para Kabatch.

     — Moras lá?

     — Moro. Advinhas o que sou?

     — Não. Admiro-me, porém, de ter entrado tão moço para o serviço do Grão Xerife e já ter deixado.

     — Porque aconteceu isso, já sabes. Antigamente, eu era relojoeiro e hoje sou negociante de livros.

     — Tens uma loja?

     — Não. Meu sortimento vai comigo na bolsa. Vendo estas coisas. Metendo a mão no bolso, tirou um folheto. Este continha a fathha, primeira sure do Alcorão, escrita com junco partido, em letra neskhi, mediante borracha derretida e, finalmente, dourada. Por conseguinte, o rapaz era vendedor ambulante de livros e levava um grande sortimento desses folhetos.

     — Isso foi escrito em Meca?

     — Foi.

     — Pelos guardiões da Caaba?

     O jovem fêz uma cara de finório e sacudiu os ombros.

     — Compreendo. Os compradores acreditam isso.

     — De fato. És um nemtche, portanto, cristão. A ti direi que fui eu mesmo quem escreveu estes folhetos, realmente em Meca. Trouxe um grande, muito grande sortimento e faço bons negócios.

     — Quanto custa um exemplar?

     — Conforme as posses do comprador. O pobre dá uma piastra, talvez o receba até de graça, enquanto que o rico paga dez e mais piastras. Meu velho pai, que é paralítico, e eu vivemos do lucro, que dá também para comprar o material para o meu relógio.

     — Então, trabalhas ainda pelo ofício antigo?

     — Sim. Trabalho num relógio, que quero vender ao Grão Senhor. Não haverá em toda a nação relógio igual. Se ele o comprar, serei um homem feito.

     — Trata-se, portanto, de uma obra de arte?

     — Com efeito.

     — Conseguirás aprontá-lo?

     — Certamente. Antes, eu mesmo tinha dúvidas. Mas, agora, estou convencido de que conseguirei. E então... então... então... irei conversar com esse Bochak.

     As últimas palavras foram proferidas quase numa ameaça. O nome pronunciado impressionou-me. Era assim que se chamava o padeiro, aonde eu ia.

     — Bochak? Quem é? — perguntei.

     — O pai dela.

     — Por que não fala, antes, com ele?

     — Se eu fôr, agora, põe-me na rua. Sou muito pobre, demasiadamente pobre.

     — E ele é rico?

     — Não. Porém ela é a moça mais bonita de Rumili.

     — Está quente hoje — disse eu, fazendo um movimento com o braço, em direção ao sol.

     — Aqui está quente — respondeu o rapaz. Fechava a mão, ameaçadoramente, levantando-a na direção onde supunha ficar a aldeia de Dchnibachlue. — Falei com o pai dela e ele me mostrou a porta.

     — Mas a mais linda de Rumili também te indicaria a porta?

     — Não. Nós nos vemos à noite e falamos.

     — Secretamente?

     — Sim, porque de outro modo não é possível.

     — Que é o pai dela?

     — Padeiro e tintureiro. Ela se chama Ikbala (1).

     — Que bonito nome! Desejo que ele se converta em realidade para ti.

     — Isso acontecerá, porque é vontade de Alá e minha também. A sua mãe é nossa aliada.

     — Graças a Deus.

     — Sim. Ela vigia, quando nos encontramos, e o padeiro dorme. Que Alá lhe dê, por isso, uma longa vida e netos em quantidade. O velho, porém, que mastigue alho e engula tinta, até que se resolva a ser meu sogro.

     — Então, poderás utilizar-te dele como tintureiro, quando o sortimento atual estiver esgotado e tiveres de escrever novos amuletos. Onde mora esse pai furioso de uma filha tão louvada?

     — Em Dchnibachlue.

     — Isso eu sei. Mas em que casa?

     — Entrando poi esse lado na aldeia, é a quinta casa, à mão direita. Defronte à porta, estão dependuradas uma cuca de maçãs, uma luva amarela e uma meia vermelha, para assinalar que Bochak é padeiro e tintuteiro. Mas por que perguntas?

     — Desejaria conhecer esse tirano.

     — Isso é muito fácil.

     — Como assim?

     — Manda tingir alguma coisa.

     — Não sei o que. Só se mandasse tingir o garanhão de azul. Mesmo assim, não teria tempo para esperar que a tinta secasse.

     — Então, compra doces.

     — Ele também é confeiteiro?

     — Sim. Ele faz tudo que é de forno.

     — Naturalmente, não as meias e as luvas. Uma troca das duas indústrias poderia ocorrer... Alto! Ouviu alguma coisa?

     ________________

         (1) A que dá felicidade.

 

     Refreei o cavalo e escutei.

     — Não — respondeu o rapaz.

     — Pareceu-me ouvir um brado longínquo.

     Também ele parou e escutou. O ruído singular, que ouvira, repetiu-se.

     — Isso parece a voz de um homem soterrado.

     — Não — respondeu o moço. — Isso é um sapo, que coaxa.

     — Nunca ouvi um sapo com essa voz.

     — Então é uma rã. Muitas vezes, ouvi batráquios darem esse grito. O ruído vem daquele espinheiral, que é tão baixo, que teríamos de ver se alguém estivesse metido ali. É um bicho, nada mais. E agora, aqui o meu caminho quebra para a direita. Preciso despedir-me.

     — Posso saber, antes, o teu nome?

     — Chamam-me, em toda a parte, de Ali, o negociante de livros.

     — Obrigado. Que distância separa Dchnibachlue de Kabatch?

     — Faço o caminho, a cavalo, em três quartos de hora. Queres ir a Kabatch?

     — É possível.

     — Então, peço-te que me visites e aprecies o relógio. Talvez eu possa, também, fazer, nessa ocasião, as perguntas que ora deixo de formular.

     — Por que não perguntaste?

     — Pode-se ser indelicado?

     — Mas também eu informei-me sobre a tua situação.

     — Tu podes fazer isso, porque és outro homem. És um incógnito.v Isso é certo.

     Com essas palavras, o moço olhou-me tão confiadamente, que tive de rir-me alto.

     — Enganas-te.

     — Oh, não! É verdade que não sabes montar, mas isso não quer dizer nada. Talvez sejas um grande sábio ou outro efêndi da corte imperial, não obstante seres cristão. Se fosses moslemita, terias honrado o meu folheto, contendo a fathha, com a saudação usual. Eu sei que o Grão Senhor também tem cristãos a seu lado e, como não és cavaleiro, o cavalo deve ser emprestado da cavalariça do padixá. Tenho razão?

     — Não.

     — Bem. Calar-me-ei.

     — Esse procedimento é inteligente. Podes descrever-me a sua residência?

     — É fácil. Casualmente, é bem como aqui. Vindo de Dchnibachlue para Kabatch, é a quinta casa à mão direita, na qual eu moro. É um casebre. Meu pai era um pastor muito pobre. Minha mãe ainda vivia, quando peregrinei para Meca. Ela morreu e pouco depois meu pai sofreu o ataque. Agora, ele não pode mover um músculo e também não fala. Só gagueja. Contudo, reza constantemente para que Alá o liberte e ele não mais seja um encargo para mim. Mas eu rezo secretamente ao grande Amor Divino, para que o conserve por muito, muito tempo. Pai e mãe a gente só tem uma vez. Quando eles morrem, o cemitério recebe o que de melhor a gente tem e nenhuma alma na terra será jamais tão bondosa e tão fiel como aqueles que a morte levou. Certa vez, quando eu era ainda pequeno, chegou um homem velho e pediu pousada na minha casa. Ele teve cama, leite e pão. Nós mesmos não tínhamos mais. Fiz alguma coisa que desgostou minha mãe. O velho hóspede tomou, então, de um pedaço de papel e lápis. Era um católico romano e, embora não entendesse a língua turca, escreveu um versículo da Bíblia, que é a escritura sagrada do cristão, e me disse que eu devia decorar aquelas palavras, sempre observá-las e jamais esquecê-las. Trouxe esse bilhete comigo, a título de amuleto, até que ficou completamente despedaçado. Rasgou-se e desapareceu; mas as palavras ficaram gravadas na minha memória e no meu coração até o dia de hoje e aí elas ficarão, até que o anjo da morte me chame para a suprema despedida.

     Eu estava profundamente sensibilizado e perguntei ao sahaf, cujos olhos ficaram marejados:

     — Quais eram as palavras?

     — São estas: Bir goez zewklen-ar babaji, bir goez itaatetmez, kargalar onu kazar-lar yrmak jakinda, gendsch kartalar onu jutar-lar.

     Eram as palavras bíblicas: “Os olhos que zombam do pai, ou desprezam a obediência da mãe, corvos do ribeiro os arrancarão e os pintãos da águia os comerão”(2).

     Era mais uma prova do poder irresistível da palavra divina, cujos efeitos são como o “malho que despedaça a rocha”. Onde é que o Alcorão, onde é que os Vedas e onde é que a revelação dos “últimos santos” (perdoem-me a referência!) isto é, a obra de fancaria desse Joe Smith, que ele mesmo denominou de “book of the Mormons”, onde é que apresentam uma passagem de tão imediata e poderosa significação? Leia-se o livro de ouro, que encerra os ensinamentos de Buda sobre si mesmo, sobre penitência, sobre o dever e sobre o fim de todas as coisas; aprofunde-se, por meio de um estudo espantoso, nos livros sagrados da Índia, nos Papiros do Egito, com as suas reminiscências de Ptah, Ré e Amon — contudo existe só uma palavra de Deus, que nos fala com tanto amor: “Tocha resplandescente para os meus pés é tua palavra e luz para os meus caminhos” (3), e cujo poder de punição e destruição não pode ser descrito de modo mais impressionante do que na terrível sentença: “Tornem-se imóveis como uma pedra!” (4).

     Estendi a mão ao relojoeiro vendedor de livros e lhe perguntei:

     — Amas a teus pais?

     — Por que perguntas? Poderá existir um filho que não ame a seu pai? Pode uma criança esquecer seus pais, a quem deve agradecer tudo, tudo?

     — Tem razão. A minha pergunta era de todo supérflua. Talvez eu venha a conhecer teu pai e, então, escreverei também um versículo, como o velho católico romano o fêz. E se o desejo, que alimento em segredo, fôr convertido em realidade, então certamente me será possível dar-te, além disso, uma grande alegria. Permanece em tua casa, para que eu te encontre, quando fôr lá. Allah jusellimak — Deus te guarde.

     — Fi aman Allah — Vai com Deus — respondeu o rapaz, apertando a minha mão de encontro à sua testa.

     Puxou o cavalo al el meimene — paia a direita e partiu a trote.

     _______________________

     (2) Provérbios de Salomão, cap. 30, versículo 17, “Bíblia Sagrada”, tradução de João Ferreira d'Almeida. — N. do T.

     (3) Salmos, capítulo 118, versículo 105 — “Bíblia Sagrada” — Tradução de Antônio Pereira de Figueiredo.

     (4) Êxodo, capítulo 15, versículo 16 — id. id. — N. do T.

 

     Segui-o com o olhar até que ele desapareceu por detrás de umas moitas, e depois continuei o meu caminho. Não andei muito. Vi, então, sobre o solo, algo que nunca me ocorreria encontrar nesse lugar. Com efeito, tratava-se de pão de trigo, realmente pão de verdade, disposto numa fileira de oito pãezinhos torrados e bem tostados — digo oito pãezinhos!

     Essa espécie de pão foi introduzida por nós na Turquia, razão por que é preferentemente denominada de frandchela, “francônio”.

     Apeei-me e recolhi o pão. Era uma reminiscência fresquinha da pátria. Que fazer com a fila toda? Sem me ter esclarecido ainda a respeito, quebrei um pedaço e dei-o ao garanhão. Este nunca tinha visto coisa semelhante. Contudo, isso não lhe era motivo para escrúpulo. Se isso se chamava chass etmek ou frandchela, ou semmel em alemão, ou roll em inglês, ou em francês pain blanc, ou piccoli pani em italiano, ou em polaco bulka e pszema, ou em sérvio pletenitza, ou em valáquio pune albeh, ou em russo bulka, igual como na Polônia ocidental — o garanhão poucas considerações fêz de ordem lingüística ou qualquer outra. Cheirou, abocanhou o pedaço que lhe estendi e, em seguida, toda a fileira de pãezinhos.

     — Ma li hadche fih, sufra daime, tajib heiwan — Não preciso. Abençoada seja a tua refeição, bom amigo.

     Após ter ingerido a rara gulodice, o cavalo esfregou a cabeça inteligente no meu ombro. Depois, montei e... nem vinte passos adiante, estava outra fileira de pães.

     — Que é isso? Qual seria a significação disso? Essa espécie de maná não cai do céu e também não nasce nos freixos de maná (fraxinus ornus) nem se estende pelo chão como erva de maná (spaerothallia esculenta).

     Apeei-me pela segunda vez, juntei o achado e meti-o no alforge.

     Mal montado outra vez, avistei ao longe mais uma fila de pães. Apear de novo? Não. Esporeei o cavalo. Este espichou-se, “ventre à terre”, apanhei, na corrida, os pães e avistei outras qualidades de massas e pães, que deixávamos à margem do caminho.

     Teria passado por aí um roll-boy americano, com a carroça de padeiro quebrada? Esses gentlemen gostam de fazer negócios, mas tão longe do baker's oven com certeza eles não se iriam perder.

     Fiz o cavalo andar a passo e verifiquei, então, que o caminho mais adiante também estava interpontuado, a intervalos diversos, de pães de diversas qualidades. Que terra abençoada, esta da Rumelia!

     Deixei o que estava no chão e procurei encontrar o dadivoso anfitrião dessa substanciosa semeadura. Uma pequena ilha de arbustos no meio da planície descampada — dobrei-a e ali estava o munificente, na verdade, representado por uma figura bem terreno. Era um desses seres que os árabes chamam de baghl, os turcos de katyr, a que os sábios ocidentais denominam de equus hinnus e que os brasileiros, desrespeitosamente, chamam de burro.

     Sim, ali estava ele e... comia. Mas que comia o jumento? Não eram pães, que, aliás, tanto tinham satisfeito o paladar do meu excelente cavalo, mas sim doces, doces caros e finos, como os que são comidos pelas damas do ocidente à sobremesa e pelas damas do oriente durante todo o dia, para distração dos lábios rosados e dos dentes pretos. Maliciosamente se diz também que esses confeitos são vivamente apreciados no ocidente fora das horas de sobremesa.

     Apeei-me pela terceira vez. O burrico olhou-me, depois ao garanhão e, em seguida, virou-se para o lado, sem acanhamento algum, de modo tão inocente como se não tivesse nenhum entendimento para o fato de que uma subtração e conseqüente uso em proveito próprio está sujeita à punição imperdoável do juiz criminal. Ou quem sabe confiava, desde já, nas famigeradas circunstâncias atenuantes? Era-me, porém, indiferente tudo isso, porque mesmo o mais absoluto desconhecimento das leis, não excusa de pena. Comecei — para empregar uma expressão diplomática — a estudar o problema dos confeitos.

     O burro estava selado com uma coisa singular, meio alforge, meio selim para senhoras. De cada lado, estava preso um cesto, cujo conteúdo tinha sido os pães e confeitos. Por qualquer circunstância, o animal se tinha assustado, tomando os freios. Os cestos tinham ficado soltos e uma parte do conteúdo se perdera. O burro de certo tivera a idéia nada admirável de disparar por entre as vassouras, ficando com as rédeas dependuradas e, em conseqüência, presas aos arbustos.

     E ainda estavam presas, o que constituía uma figura reveladora do delito. Eu representava a furiosa Erinia, a vingadora Eumenida. O malfeitor, porém, mastigava confeitos. Será que ele estava convencido da ausência do dolo específico do crime? Eu estava esperançado firmemente de meter-lhe na cachola uma melhor compreensão do fato.

     Os cestos tinham caído do lombo do animal e estavam nas proximidades do conteúdo esparramado. Dei uma chicotada sobre a consciência adormecida do digno sir asno, de modo que saltou perplexo para o lado, dirigindo-me um olhar repreensivo e interrogador, ao mesmo tempo que me saudava com um voltear de orelhas parecido com o do catavento.

     Desprendi-o, então, dos arbustos e o levei para outra parte, a fim de amarrá-lo melhor.

     Desse modo, pelo menos, as massas restantes estavam salvas. Naturalmente ocorreu-me a interrogação sobre se o jumento estava só ou se tinha saído de casa acompanhado por alguém. Tive uma propensão íntima para aceitar a última hipótese como verdadeira. Depois, outra pergunta: teria essa pessoa montado ou iria a pé? Pedestre ou cavaleiro, feminino ou masculino?

     Nem no selim e nem em outra parte do animal se podia encontrar algo que servisse de base para responder a tal pergunta. Uma coisa, porém, era certa: se o burro fora montado, naturalmente tinha atirado o cavaleiro da sela. Onde estaria este?

     Tive de retroceder para procurar um rastro. Fi-lo sem vacilar. Antes, não havia prestado atenção. Agora, porém, via distintamente os rastros do meu cavalo e os do burro. Este último, depois de um certo trecho afastava-se para a direita, em direção ao espinheiral, onde eu ouvira, quando ainda acompanhado pelo sahaf, o abafado ruído sobre o qual se manifestara.

     Comecei a ouvir novamente esse ruído. Parecia, como já disse, o brado de uma pessoa soterrada. Apressei-me para chegar perto e apeei junto ao espinheiral. Era uma ramagem de amoras silvestres e parecia impenetrável.

     — Jardym, jardym, imdad! — Socorro, socorro, socorro! — ouvi com muita clareza.

     — Quem está aí? — indaguei.

     — Tjileka — foi a resposta.

     Era uma voz de mulher. Também o nome, que significa “moranguinho” (5) me dizia que se tratava de mulher.

     — Já vou — respondi.

     Corri até a beira da macega e encontrei o lugar onde se verificara o “arrombamento”. Ali havia por assim dizer uma picada. Atravessei esse caminho, utilizando-me da minha faca e achei-me, então, junto de uma depressão do solo, de forma funicular, semelhante a um vale cercado de rochas. Esse vale, contudo, não estava cheio de ramos de espinhos, como supunha, mas sim atapetado, com tapetes de verdade, e outras coitas semelhantes.

     Deste lado o burro entrara, saindo pelo outro. No fundo, estava deitada uma mulher, sobre o leito macio. Tão gorda como nunca vi em toda a minha vida.

     — Socorro, socorro! — bradava continuamente.

     Mal, porém, me vira, escondeu a cara num canto de tapete, gritando esganiçadamente.

     — Que te aconteceu? — perguntei.

     — Hacha! Geri tjek! Jachmak-uem, jachmak-uem — Deus nos guarde! Vai-te embora! Meu véu! Meu véu!

     Ela clamava por socorro e contudo me mandava embora, porque não tinha véu, para cobrir o rosto. Olhando melhor em torno de mim, vi o mesmo, despedaçado, espalhado pelas macegas.

     — Burada; al mendil-im — aqui, toma o meu lenço — disse-lhe.

     Tomei o lenço, amarrei-o numa pedrinha, para fazer um pouco de peso, e joguei-o à mulher.

     — Tchewir, bues, bueetuen, tamam buetuen — vira-te, de todo, completamente.

     Obedeci a essa ordem.

     — Tekrar etrafynda — Vira-te outra vez — comandou ela pouco depois.

     Quando me virei para ela, já cobrira a cara com o lenço, desnecessaroamente, porquanto eu já vira as feições vermelho-escuras, com as bochechas enormes, como alforges.

     Fosse ela um homem e tivesse aparecido na última competição ginástica  de Leipzig, já pela sua simples presença bateria todos os concorrentes e rivais na chamada “secção gorda”. Como se tratasse de uma dama e gosto de me fazer passar por genteel, deixemos passar este trecho sem uma descrição individual.

     Os orientais medem a beleza das mulheres pela seguinte fórmula: raio vezes raio vezes π multiplicado pelo quadrado do diâmetro, dá, em milímetros, a raiz cúbica do grau

     __________________

     (5) O autor emprega a palavra alemã “Erdbeere”, que é do gênero feminino. N. do T.

 

de formosura. Por esse teorema, a que estava metida no buraco, cercada de espinhos, encerrava um valor formidável.

     Tjileka vestia uma manta azul de mangas curtas, rasgada pelos espinhos. As mangas permitiam ver umas luvas compridas, escarlates, perfeitas, pois estavam ligadas ao braço e à mão, sem uma ruga sequer.

     Ela conseguira, não sei como, abrir um orifício no lenço, olhando-me, durante algum tempo, por esse monóculo improvisado.

     Depois, disse, com uma voz forte, que muito se assemelhava ao ruído do trovão:

     — Desconhecido, queres salvar-me?

     — Quero — redargui galantemente.

     — Podes carregar-me?

     Assustei-me profundamente. Todavia, procurei encorajar-me e me orientei:

     — Será preciso carregar-te?

     — É, sim.

     — Não podes caminhar?

     — Não.

     — Estás ferida?

     — Estou.

     — Onde?

     — Não sei.

     — Mas deves senti-lo.

     — Sinto em toda a parte.

     — Experimentaste levantar?

     — Não.

     — Por que não?

     — Não posso.

     — Experimenta-o confiadamente. Ajudar-te-ei.

     Até os tapetes, a profundidade era de apenas três pés. Desci e quis estender-lhe a mão. Nisso, porém, ela gritou alto:

     — Muessibet, muessibet — Desgraça, desgraça. Não me toques. Não estou velada.

     — Onde?

     — Nos braços.

     — Mas, estás de luvas.

     — Luvas? Desconhecido, estás cego? Isso é só el pane, a tinta vermelha da granza.

     De fato! Essa Tjileka — em português moranguinho — que estava sob as amoras silvestres, não estava enluvada. Os braços achavam-se pintados de vermelho pela granza. Bem, agora eu também compreendia por que as luvas assentavam com tanta perfeição, sem rugas.

     Mas também verifiquei outra coisa: a senhora Moranguinho era padeira. Tinha braços tintos de granza. Era, portanto, igualmente tintureira. Tinha, portanto, diante de mim, a mulher de Bojadji Bochak, a quem tn ia visitar, a boa mulher que vigiava pela filha, enquanto esta conversava com o namorado.

     Oh! boa senhora Moranguinho. Aquele que tu escondes debaixo de tuas asas tutelares, para ajudar-lhe no amor, considerou-te, há um quarto de hora, quando muito, como um sapo ou como uma rã, suja e pegajosa de limo. Não terá o amor melhor instinto? Não poderá o amor sentir a presença do seu protetor?

     — Como posso erguer-te, se não me permites que te toques? — informei-me.

     — Segura-me por detrás.

     Fiz uns passos em meia lua e, desse modo, cheguei às costas dela e meti-lhe as mãos por debaixo dos braços.

     — Chajyr, chajyr! Sen tjapuk hydchylelanyr — Não, não. Sinto cócegas — berrou a mulher tão alto, que, de susto, saltei alguns centímetros para trás.

     — Onde devo segurar-te?! — indaguei.

     — Não sei.

     — Então temos de experimentar de outro modo.

     — Mas, como?

     — Ali está uma corda. Aqueles que trouxeram estas mercadorias, deixaram-na aqui. Levantar-te-ei com ela.

     — Naturalmente, não pelo pescoço?

     — Não. Mas, sim, pelas cadeiras.

     — Experimenta-o.

     Trouxe a corda, amarrei-a ao redor da cintura da Moranguinho e virei-me de modo a ficarmos de costas um para o outro. Abaixando-me, puxei a corda sobre o meu ombro e comandei:

     — Goezet! Bir-iki-aetch! Atenção. Um... dois... três!

     Ao contar três, levantei-me vagarosamente. A corda esticou e puxei com força. Não ia.

     — Suer, suer, suer — Empurra, empurra, empurra — bradei resfolegando.

     — Muemkinsiz, muemkinsiz; kejar-im — Impossível, impossível; escorrego! — respondeu, resfolegando ainda mais do que eu.

     Tirei a corda e tomei fôlego. — Que mulher desajeitada! Realmente o leito de tapetes, sobre o qual cairá esse “morango” mamutiano, era escorregadio. Além disso, tratava-se de uma superfície inclinada. Um fardo desses, sem mobilidade alguma, não é fácil de se levantar num lugar semelhante, e confesso que, ao olhar os galhos cheios de espinhos, tive uma idéia criminosa, que, no entanto, abandonei imediatamente.

     — Não notaste, pelo menos agora, se estás ferida? — perguntei.

     — Estou ferida — respondeu.

     — Onde?

     — Não sei, em toda a parte. Oh! Alá! Que dirão os que souberem que estive aqui sozinha contigo?

     — Não tenhas cuidados. Nada se saberá.

     — Não dirás nada?

     — Não. Além disso sou um forasteiro.

     — Forasteiro? Então não és desta região?

     — Não.

     — De onde, pois?

     — De longe, das teiras do ocidente.

     — Neste caso, não és molesmita?

     — Não. Sou cristão.

     — É verdade que as mulheres dos cristãos não usam véus? — perguntou.

     — Não.

     — Portanto, eu também não preciso de véu. Não serei insultada pelos olhos de um cristão, que vê milhares de mulheres. Dá-me a mão.

     Estendi-lhe a mão à qual ela se segurou. Puxei e... já ela estava de pé, diante de mim. É verdade que bufando, mas, sempre e felizmente, de pé!

     O fato de ela pensar que não precisava constranger-se diante de mim, seria uma honra ou uma vergonha?

     — Há quanto tempo já estás aqui? — interroguei.

     — Oh! Há muito, muito tempo.

     — Como caiste aí dentro?

     O burro assustou-se. Os espinhos picavam-lhe as pernas.

     — Tu o montavas?

     — Sim.

     Coitado, coitado do burro! Agora, eu tinha pena de ter interrompido o banquete. Fizera jus, sobejamente, aos doces.

     — Mas por que entraste, montada, neste espinheiral? — informei-me.

     — Queria... queria...

     Ficou mais vermelha do que já era e... calou-se. Olhei em redoi. Com efeito, eu estava diante de um magazin em pequena escala.

     — A quem pertence isso? — perguntei.

     — Eu... eu... não sei.

     — Entretanto, sabias que isso estava aqui?

     — Não.

     — Sou discreto e, além disso, desconhecido. Não precisas temer-me. Mas, que sorte não te ter observado, quando ainda estava acompanhado!

     — Não estavas só?

     — Não. Um jovem de Kabatch estava comigo.

     — Onde está agora?

     — Foi para casa.

     — Sabes o nome dele?

     — Sei. É o sabaf Ali.

     — Ali? Ah! ele! Não, ele não deve saber o que viste aqui. Tu o-conheces bem?

     — Vi-o, hoje, pela primeira vez, mas me simpatizei com ele.

     — Como me achaste?

     — Encontrei os pães e confeitos espalhados pelo campo e depois vi o burro, que ficara preso às macegas. Amarrei-o e segui o teu rasto. Assim cheguei aqui.

     — Esse burro é uma criatura muito estúpida. Agora, tenho de juntar os pães por todo o campo. Entretanto, quase não posso abaixar-me. Me ajudarás?

     — Com muito gosto.

     — Então, vamos.

     — Será possível? Podes subir o barranco?

     — Não. Mas tu me puxarás ou empurrarás.

     — Mas sentes muita cócega!

     — Agora não sinto mais, pois és um cristão.

     Hum! Essa dama possuía realmente nervos muito singulares e curiosos.

     Caminhei sobre o depósito de tapetes, examinando-o detidamente Depois indaguei:

     — Este território ainda pertence à jurisdição de Kochikawak ou já faz parte da circunscrição de Dchnibachlue?

     — Pertence a Dchnibachlue.

     — Que qualidade de homem é o kiaja dessa aldeia?

     — Não sou amiga dele — respondeu ela francamente.

     Era o bastante. O acaso me tinha distribuído um triunfo, que resolvi jogar em benefício do vendedor ambulante de livros.

     — Vais junto? — perguntou a mulher.

     — Vou.

     — Então vem. Guia-me.

     Conduzi-a, descendo do atapetado até chegar ao ponto em que começavam as ramagens espinhentas.

     — Mas os meus vestidos ficarão presos aos espinhos — disse ela.

     — Farei uma passagem. Cortarei os espinhos com a minha faca.

     — Não, não — contestou assustada. — Não podes fazer isso.

     — Por que não?

     — É proibido.

     — Quem proibiu?

     — Justamente o tal kiaja detestável.

     Compreendi muito bem os seus intentos. Esse lugar era muito apropriado para esconderijo das mercadorias do comércio ilícito do marido dela. Supunha-se que a macega fosse impenetrável; contudo devia haver um determinado lugar, por onde se pudesse passar facilmente. Abrisse eu porém, um caminho e a toca estaria sujeita a ser descoberta.

     Isso, evidentemente, ela queria evitar.

     — Para onde levavas os pães e confeitos? — perguntei.

     — Para Goeldchik. Foi no caminho que o burro disparou.

     Ah! Ela sabia que, talvez, durante a última noite tais mercadorias tinham sido escondidas ali é, levada pela curiosidade, desviara-se do caminho. Aproximara demasiadamente o burro dos espinhos, fazendo-o tomar os freios, infelizmente, porém, disparando por dentro da macega e por sobre a baixada.

     — De onde vens? — perguntou-me.

     — De Kochikawak.

     — E para onde vais?

     — Vou a Duchnibachlue e Kabatch.

     — Que vais fazer em Kabatch?

     — Vou visitar Ali, o sahaf.

     — De fato? Dize, forasteiro, queres fazer-me um favor?

     — Com muito prazer.

     — Dar-te-ei uma encomenda para ele.

     — Muito bem.

     — Mas não tenho aqui. Terias de ir comigo até em casa.

     Era isso o que eu queria. Não obstante, observei:

     — Ao que me parece, entretanto, pretendias ir a Goeldchik?

     — Agora, não. Hoje, não se pode mais confiar no burro. Mas é preciso que eu te diga que o meu marido não deve saber que mando um recado a Ali.

     — Guardarei segredo. Quem é o teu marido?

     — Chama-se Bochak e é bojadji e etmektji. Não lhe participarei, absolutamente, que estivemos juntos aqui e tu não falarás mais sobre isso.

     Essa mulher contava com a minha discrição, como se fosse a coisa mais natural e lógica. Ela continuou:

     — Direi ao meu marido que o burro disparou e me jogou ao chão. Tu o pegaste e me achaste na estrada. Depois me acompanhaste até em casa.

     — Que é que devo levar ao sahaf?

     — Dir-te-ei mais tarde. Agora, vamos embora daqui.

     Não era coisa fácil subir a rampa e atravessar a macega com essa singularíssima “moranguinho”. Todavia, passamos.

     — Agora, fecha a passagem que fizemos entre as amoras — ordenou ela perentoriamente. — Ninguém deve saber que se pode passar através dos espinhos.

     — És previdente. Tens razão.

     Depois de proferir essas palavras, comecei a fazer o que mandou, espetando-me muitos espinhos na pele.

     — Assim está bem — disse me ela, depois de eu ter resolvido satisfatoriamente o tema. És muito jeitoso para essas coisas. Agradeço-te. Agora, darás licença de montar o teu cavalo.

     — Não preferes ir a pé?

     — Por quê?

     — Meu cavalo nunca foi montado por uma mulher.

     — Oh! não lhe farei nada.

     — Acredito. Mas, olha para a sela. Não foi feita para o corpo macio de um ente feminino. É tão pequena que nem acharias jeito de te acomodar nela.

     — Então, tira-a. Montarei em pêlo. Assim se dará jeito.

     — Isso demandaria muito tempo. Teria de levar o cavalo a cabresto e além disso não poderíamos juntar os pães, que o teu burro espalhou pelo chão. Amarrei-o bem perto daqui.

     — Amarraste-o? Foi muito bom. Nesse caso, já que achas melhor, irei a pé, não obstante a caminhada poder fazer-me mal. Quando caminho, costumo perder o fôlego e preciso esperar muito até que ele volte. O caminhar sempre me origina fortes pulsações e ameaça apoplexia, e, além, disso, tusso e espirro, até ficar quase morta.

     Puxei garanhão pela rédea. Ela apoiou-se no meu braço e nos pusemos em movimento. Mal tínhamos dado trinta passos, ela começou a bufar e a soprar. Parou, tomou fôlego profundamente e disse:

     — Vês? Agora começa. Tenho que me apoiar melhor em ti. Iremos mais devagar.

     Marchamos daí por diante com a metade da velocidade de um enterro. Quando chegamos ao lugar onde se encontrava o primeiro pãozinho, disse a mulher:

     — Aqui está uma frandchela. Junta-a.

     Apanhei-a. Pouco adiante, repetiu:

     — Aqui está outra frandcbela. Junta-a.

     Obedeci novamente.

     Depois de pouco tempo, estava com o braço cheio de produtos de padaria, pães, doces, biscoitos e confeitos. Puxava o cavalo e amparava a boa dama. Mais um trecho, e aí ela se desprendeu de mim, levantou os braços, bateu as palmas das mãos e bradou:

     — Oh! Alá! Cá está um montão de pães feitos com manteiga. Esse burro deve ter uma quantidade enorme de ratos na cabeça para disperdiçar assim esse precioso manjar! Junta-os todos.

     — Com prazer, com muito prazer! Mas, dize-me primeiro, onde devo meter estes saj jaghyla? Não tenho mais onde guardá-los.

     — Mete-os na tua capa.

     — Allah 1'Allah! Não vês a côr da minha capa?

     — É branca. É tão branca como a neve das montanhas. Suponho que é nova.

     — Naturalmente. É nova e custou-me nada menos de duzentas piastrás bem contadas.

     — Muito bom, assim. Nem eu permitiria que essas cucas de manteiga fossem colocadas numa capa suja.

     — Alá concedeu-te o maravilhoso instinto do asseio. Deves render-lhe graças toda a vida por isso, porque a limpeza é o mais belo ornamento e virtude da mulher. Mas, digo-te que também eu tive a ventura de receber o mesmo favor divino. A minha alma ficaria dolorida e o meu coração encher-se-ia de tristeza, se eu tivesse de manchar de manteiga a minha capa nova.

     — Oh! A manteiga é boa. Uma mancha dela não é vergonha. Manteiga não é azeite de peixe, nem sebo de cavalo.

     — Mas ninguém reconhecerá que as manchas foram feitas pela tua manteiga.

     — Meu caro, és um homem distinto e nobre. Para ti é indiferente o que se possa pensar; tanto dá serem manchas de manteiga, como azeite de peixe. Despe a capa, vira-a do avesso e talvez nem se notem as manchas gordurosas.

     — Não sabes que é proibido tirar-se uma peça do vestuário, na presença de uma mulher?

     — Oh! tu és meu amigo, meu salvador, e usas, também, casaco e colete, sob a capa.

     — Contudo, eu não queria transgredir os postulados da delicadeza e da civilidade. Permite que eu ponha estes gêneros alimentícios na minha gualdrapa.

     — Está limpa?

     — Sim. Bato-a todos os dias.

     — Preciso certificar-me disso. Bate-a.

     Esse incidente proporcionou-me grande divertimento. Não me ocorrera limpar o xairel. Este estava afivelado por detrás da sela e mostrava evidentes sinais de pó, apanhado durante a cavalgada de ontem. Desafivelei-o e o abri.

     — Sacode essa gualdrapa — ordenou “Moranguinho”, amável. Obedeci, levantando uma nuvem de pó, perfeitamente visível. Mesmo assim, a mulher sentenciou:

     — De fato, está limpa. Apanha as massas de manteiga e põe-nas ai dentro.

     Fiz um saco, dobrando o teliz, e guardando nele todos os produtos panificados, que, a pouco e pouco, íamos juntando.

     Assim, atingimos a touceira, onde havia amarrado o burro. Ao avistar os balaios atirados ao solo, ela levantou os braços, num gesto de desespero, e bradou:

     — Oh! Alá! Oh! Ayecha! Oh! Fathme! Que desgraça fêz este animal!

     — Aí estão os cestos no chão e todas as gulodices. Mas não, nem tudo está aí. Falta muito. Onde está?

     Lançou-me um olhar inquiridor e continuou:

     — Essas coisas são muito gostosas e muito doces.

     — Acredito.

     — Gostas de doces e guloseimas?

     — De vez em quando.

     — Talvez comeste aquilo que falta?

     — Não.

     — Dize a verdade. Não me zangarei contigo, desde que me pagues os confeitos que faltam.

     — Não os comi, graciosa Tjileka.

     — Mas onde estão, nesse caso? Onde foram parar? Preciso prestar contas ao meu marido de um por um.

     — Digo-te que não serviram de comida e sim de forragem.

     — Quê?

     — Forragem.

     — Forragem? Como assim?

     — Este teu burro se serviu regaladamente.

     — Oh! desgraça! Oh! atrevimento! Acreditas realmente que um burro possa comer confeitos?

     — Apanhei-o justamente quando se banqueteava.

     — Viste-o com os teus próprios olhos?

     — Com estes dois olhos.

     — E a mim nunca deixou perceber que gostava de gulodices. Esse hipócrita! Esse santarrão! Efêndi, queres fazer-me um favor?

     — Só um? Por acaso já não te demonstrei que gosto de ser amável para contigo?

     — Sim, fizeste tudo quanto te pedi. Agora, toma o teu relho e dá uma sova nesse animal, até que as orelhas saltem da cabeça.

     — Não farei isso.

     — Não? Por quê?

     — Seria maltratar o animal.

     — Que tens com isso? O burro é teu?

     — Não.

     — É meu, não é?

     — Claro que é teu.

     — Pois bem. É meu e, portanto, eu posso maltratar quanto quiser.

     — Perdoa-me, mas não o farei. Disseste ao burro que ele não devia comer essas coisas?

     — Não.

     — Então cometeste um grande erro. Naturalmente, ele pensou que podia comer os confeitos, pois eram da sua dona. Quando fizeres outra excursão dessas, não te esqueças de explicar bem claro ao burro quais os limites das suas atribuições.

     — Oh! isso eu farei agora já e estou certa de que ele me entenderá perfeitamente.

     A mulher tomou o meu relho, que estava preso ao serigote e aproximou-se do burro. Este olhou-a desconfiadamente, sacudindo as orelhas em sinal de grave preocupação defensiva.

     — Que fizeste? — gritou ela ao animal. — Não te enxergas? És um gatuno, um grande ladrão. Toma o teu castigo!

     Um chicotaço valente estalou na cabeça do burro.

     — Guloso! Novo chicotaço.

     — Pérfido, tratante!

     Um terceiro relhaço zuniu pelos ares. O burro, porém, não era lá muito educado e respeitava a dona num grau muito diminuto. Fêz um movimento brusco, rápido como um relâmpago, e soltou um coice com ambas as patas traseiras. Isso foi tão rápido, que mal tive tempo de puxar violentamente a mulher para o lado.

     Toda a raiva se apagara, instantaneamente. Ela tremia de medo.

     — Efêndi, — disse, trêmula — que é que ele fêz? Deu-me um coice?

     — Deu, sim.

     — Este miserável! Animal ingrato! Sabes se me acertou, com as patas?

     — Penso que não fôste atingida. Sentes alguma dor?

     — Naturalmente que sinto. Todo o meu corpo parece uma só massa.

     — Ai de ti! Um “galo” desses será difícil de se curar.

     — É mesmo. Mas, contudo, acredito que as patas apenas passaram rente de mim. Não é?

     — Creio ter notado a mesma coisa.

     — Graças a Alá! Se ele me coiceasse no peito, agora eu seria um cadáver, e se fosse na cara!.. Quebrar-me-ia um dente e quem sabe até todos. Nunca mais baterei nesse monstro.

     — Fazes muito bem. Disse-te que eu não daria nele. Entretanto, não quiseste seguir o meu conselho.

     — Mas o burro é de minha propriedade. Como é que ele se pode atrever a dar coices contra mim. Assustei-me tanto que todo o meu corpo treme. Vês como estou tremendo?

     — Sim, vejo.

     — Segura-me.

     — Será isso realmente necessário? Estás tão mal assim?

     — Realmente estou muito mal. Estou tão mal que preciso me sentar para recuperar as forças.

     Uma dama corporeamente mais etérea sentar-se-ia, inclinando-se de um modo poeticamente estético. Tjileka experimentou fazê-lo também, mas o peso do corpo era demasiado. Perdeu o equilíbrio e aterrissou com uma rapidez tão vertiginosa que mal tive tempo de afastar um cesto, no qual ela iria cair, esmagando-o.

     — Ah! muito obrigado — disse. — Agora, preciso tomar fôlego. Estou pescando ar.

     Realmente, era isso que ela fazia, abrindo a boca e fechando-a rapidamente, ao mesmo tempo que avançava com a cabeça alguns centímetros para a frente. Se quiser caçar moscas com a boca, ninguém precisa proceder com maior perfeição, para alcançar o maior êxito cinegético.

     Quando ela começou a respirar regularmente, disse-me:

     — Agora, colocarás tudo quanto sobra nos balaios, ensilharás o burro, e porás tudo em ordem. Depois, vamos embora.

     Cumpri essa ordem, intimamente curioso para ver como ela conseguiria montar. Já era muito trabalho, levantá-la do chão. Quando conseguimos, com grande esforço, ela olhou desconsoladamente em torno de si.

     — Que procuras? — perguntei.

     — Uma escada Uma escadinha.

     — Uma escada? Como poderia encontrar-se uma escada aqui no campo?

     — Mas eu preciso de uma, para poder montar.

     Também olhei em redor, desconsoladamente.

     — Lá, — disse ela — lá está um toco de pau. Leva-me lá.

     Com algum esforço, pôde, auxiliada por mim, subir ao toco e dali ao lombo do burro. O pobre do animal quase desmoronava ao peso dela. Parecia, porém, redobrar de forças, desde o momento em que percebeu que o rumo era o da casa. Depois de pouco tempo, vi casas espalhadas à distância.

     — É ali Dchníbachlue?

     — Não. Isso é Dchnibachlue-Menor. Mas nós moramos aí mesmo — respondeu a mulher.

     Chegamos àquele ponto e passamos por algumas casas miseráveis, até chegarmos a uma habitação maior, onde a minha companheira dirigiu-se para a parte dos fundos.

     Havia ali diversos tanques, onde tinham colocado barricas. Estas estavam cheias de líquidos corantes. Estávamos, portanto, na residência do tintureiro e padeiro Bochak.

     A amazona proferiu um grito estridente, repetindo-o mais algumas vezes. Nisso, abriu-se a porta de uma casinha de madeira, existente ali perto, e dela saiu uma figura masculina, com cara de ave, a qual se aproximou de nós.

     A roupa desse homem consistia numa espécie de calção de banho, Mas não foi essa a circunstância que me chamou a atenção e sim a coloração da pele. O corpo brilhava de todas as nuances, desde o castanho mais escuro até o vermelho berrante. E, com tudo isso, o homem fazia uma cara tão séria, sem constrangimento, como se essa borralhada toda fosse uma coisa perfeitamente natural.

     Tinha apeado e esperava os acontecimentos, com vivo interesse e curiosidade.

     — Sydjyrda, minha escada — ordenou ela.

     Portanto, era Sydjyrda, isto é, “estorninho”, o nome desse homem. Hum! De fato existem exemplares magníficos de estorninhos, como qualquer ornitólogo sabe. A pessoa chamada caminhou gravemente, entrando pela porta dos fundos da casa, para trazer, efetivamente, uma escada de vários degraus. Esta foi colocada ao lado do burro. A dama apeou-se.

     — Que faz meu marido? — perguntou.

     — Não sei — foi a resposta.

     — Uê! alguma coisa ele deve estar fazendo.

     — Não.

     — Imbecil! Onde está ele?

     — Não sei.

     — Naturalmente, no quarto?

     — Não.

     — Na sala?

     — Não.

     — Onde, então?

     — Não sei.

     — Mas, ele está em casa?

     — Não.

     — Portanto, saiu?

     — Saiu.

     — Por que não disseste logo? Leva o burro daí.

     O homem soberbamente colorido dera as respostas solenemente, com uma seriedade tal, que parecia tratar-se da coisa mais importante. Diante da voz de comando recebida, pegou as rédeas do burro e fêz menção de afastar-se.

     — Descarrega, primeiro, naturalmente! — berrou ela.

     Abaixou a cabeça, em sinal de entendimento, e começou a tirar os cestos da garupa do burro.

     — Entra, efêndi — convidou-me Tjileka.

     Amarrei o cavalo num toco enterrado a um canto e segui-a. Veio ao meu encontro um forte cheiro de barrela de soda e manteiga. À esquerda, vi uma instalação, que estive inclinado a supor que fosse o forno, pois não se justificava uma construção com telhado dentro da casa. À direita, encontrava-se a entrada para a habitação.

     Quando entramos, vi-me defronte a uma segunda edição renovada da minha companheira “Moranguinho”. Não podia duvidar que fosse a sua filha.

     Não tinha traços muito desinteressantes e era possuidora da maior beleza das mulheres levantinas: a gordura. Era quase tão corpulenta quanto sua mãe.

     Estava diante de umas bacias e se preparava para levar à boca, largamente aberta, a nata do leite, segura com dois dedos.

     — Ikbala, que fazes aí? — perguntou-lhe a mãe.

     — Deresini thykar-im — Desnato — respondeu a interrogada.

     — Nereje — Para onde?

     — Aghyz itjini — Para dentro da boca.

     — Mas, tens de pôr essa nata num prato ou num boião, não na boca.

     — É gostosa.

     O motivo que apresentava como excusa era realmente muito convincente. E a mãe naturalmente deixou-o prevalecer, porque, aproximando-se da filha, bateu-lhe meigamente nas faces redondas e disse numa carícia:

     — Benim tjuestlueka — Minha gulozinha!

     A tal gulozinha dirigiu-me um olhar espantado. A mãe explicou:

     — Esse efêmedi quer descançar um pouco aqui conosco.

     — Por quê?

     — Está cançado.

     — Que se deite lá fora no capim. Como podes conversar com um desconhecido, estando sem véu e ainda mais trazê-lo para aqui, quando sabes que não estou com o rosto velado.

     — Oh! ele é meu amigo, meu salvador.

     — Estiveste em perigo?

     — Em grande perigo de vida.

     Com isso, a filha dirigiu-me novo olhar mais abrandado. Depois disse:

     — Não podias estar de volta ainda. Com certeza te aconteceu alguma coisa em caminho?

     — Naturalmente, aconteceu-me alguma coisa.

     — Que foi?

     — Um desastre.

     — Já o supunha evidentemente. Mas que desastre foi esse?

     — Não me tinha ocorrido que hoje era um dos cinqüenta dias infelizes do ano. Senão, não teria saído. Apenas tinha andado uma meia hora quando vi abrir-se a terra diante de mim...

     — Oh! Alá! — disse a filha, assustada.

     — Elevou-se do solo uma fumaça azul — prosseguiu a mãe.

     — Wai sana — ai de ti!

     — E da fumaça emergiu um espírito, um fantasma, que estendeu cento e quarenta e quatro braços para me pegar...

     — Alá te ajude! Existem muitos e perigosos fantasmas na terra.

     — Naturalmente, minha filha. O meu burro assustou-se, é claro, tanto como eu e fugiu tão depressa quanto pôde. Sou boa cavaleira, como sabes; mas, mesmo assim, levei uma queda, enquanto o burro disparava.

     — Que desgraça! Não o pegaste mais?

     — Não. Este efêndi vinha a cavalo, pegou o burro e levantou-me do chão, acompanhando-me até aqui. Onde está teu pai?

     — Foi à aldeia.

     — Que foi fazer?

     — Quer comprar passas e avelãs.

     — Disse-te quando voltava?

     — Só me disse que não se demoraria.

     — Então, serve esse afêndi, até que eu volte. Tenho de mudar o vestido.

     Ia afastar-se por uma segunda porta, mas a filha segurou-a pelo braço e interrogou:

     — Dize-me, antes, que foi que aconteceu com o fantasma?

     — Não tenho tempo. Pergunta ao efêndi, que te contará a história.

     Com isso, a velha esperta desapareceu, transferindo-me a incumbência de levar a termo a sua patranha descabelada sobre os fantasmas.

     Quanto ao que me diz respeito, desde as primeiras palavras trocadas entre mãe e filha, tinha-me sentado numa rede junto à parede.

     A jovem “moranguinho” viu-se sozinha comigo e ficou visivelmente embaraçada. Depois de um pequeno silêncio, perguntou-me:

     — Estás cançado, efêndi?

     — Não.

     — Ou tens fome?

     — Também não, minha filha.

     — Mas tens sede?

     — Faz calor. Poderias dar-me um gole d'água, ó filha da graciosidade!

     Tomou de uma das bacias, de cujo conteúdo, há pouco, tinha tirado o “couro grosso”, com o delicado dedo indicadar. Apresentou-ma e disse:

     — Aqui tens leite de vaca. Está fresco e irás gostar. Ou preferes, talvez, leite de cabra?

     — Deste último, também já tiraste a nata?

     — Sim, eu mesma tirei.

     — Então, dá-me água. Somente tomo leite, quando ainda tem a nata. Saiu e me trouxe um púcaro de barro cheio de água, o qual, pelo cheiro e pelo aspecto, parecia ter servido para lavar a uma tabaqueira velha ou um cachorrinho sujo.

     — De onde recolheste esta água? — perguntei.

     — Tirei-a da artesã — respondeu-me.

     — Não tens outra?

     — Sim, temos água corrente, não muito longe da casa.

     — Não me podes dar dela?

     — Podia, sim; mas, não a beberás.

     — Por que não?

     — Tem sapos e tartarugas, tão grandes como um mastim ou um ouriço-cacheiro, quando está bem gordo.

     — Não há uma fonte, aqui por perto?

     — Temos. Lá existem, porém, lagartixas tão grandes e fortes como um muçum.

     — Ai de mim! Nesse caso, prefiro não beber.

     — Senhor, poderia dar-te bom mosto.

     — É realmente bom?

     — É tão doce como açúcar e mel.

     — Peço-te, então, que me dês.

     Ela se afastou novamente. Ao voltar, trouxe a casca de meia abóbora cheia de um líquido, que, pelo aspecto, era de pôr a gente em risco de vida. Cheirei-o e, com isso, mais me aferrei à deliberação de permanecer extremamente reservado.

     — De que frutas é tirado esse mosto? — procurei informar-me.

     — Das amoras, sorva brava e limões. É temperado com fungos amarelos e adocicado com melaço. Será, para ti, um refresco e um tônico, brotando em torrentes do paraíso.

     Que mistura! Amoras, que têm um gosto nojento; sorva brava, que constitui a seva habitual dos fradinhos e outros pássaros, e limões! Tudo temperado com cogumelos de cor amarela e adoçado com açúcar! Era de se supor o gosto disso e imaginar os seus efeitos. O resultado teria de vir com cólicas ou coisa parecida. Mas, eu tinha muita sede e, por isso, levei a meia abóbora à boca, fechei os olhos e tomei alguns goles. Nisso, a moça segurou-me precipitadamente, pelo braço.

     — Dur, dur — pára, pára! — gritou. — Salt bir itchimi, salt bir itchimi — só um gole, só um gole.

     — Por quê? — perguntei.

     E, ao largar a tal vasilha, é que senti o gosto repugnante daquela bebida traiçoeira.

     — Sandchy, korkulu sandchy — dor de barriga, terrível dor de barriga! — respondeu-me.

     — Por que, então, me dás essa coisa?

     — Oh! o mosto é muito bom; mas, só se pode tomar um único gole. Presta atenção. Assim!

     Pegou a casca de abóbora para tomar um trago, longo, vagaroso, chuchurreante. Ao beber, fazia, uma cara, como se estivesse tomando o extrato do néctar celestial.

     Lembrei-me, nesse momento, do pavoroso kumis, que me foi dado beber, nas estepes de Quirguise. Às primeiras tentativas, vi-me a pique de desmaiar. Aconselharam-me a fechar o nariz, ao beber, e, seguindo esse bom conselho, consegui realmente provar, mais tarde, sem medo, essa bebida mefítica.

     O mosto, em Dchnibachlue, positivamente era um produto muito pior. Como, porém, sempre me orgulhei de possuir um estômago excelente, a tentativa de homicídio feita pela linda filha do padeiro e tintureiro resultou completamente frustrada.

     Quando ela depôs a abóbora no chão, aproximou-se um gato velho, oveiro, que, até então, estava deitado a um canto, e meteu os bigodes no mosto como patrulhas avançadas de reconhecimento, sacudiu pensativamente a cabeça, mas, não obstante, começou a lamber, primeiro devagar e desconfiadamente, e, depois, com visível deleite.

     — Kaetchuek, kedi-im itch; achyk-uem, tatlylyk-uem, benim, djanym-lyk, itch, itch, itch — bebe, meu gatinho; bebe, bebe, bebe, meu doce, meu querido! — disse a turca, acariciando o bichano.

     — Pára, pára! — exclamei, tão alto, que ela se ergueu, de um salto, assustada.

     — Que é? Por que gritaste assim? — perguntou-me.

     — Não deixes o teu gatinho querido beber desse mosto.

     — Por que não?

     — Apanhará a dor de barriga, de que me falaste.

     — Oh, não! Ele está acostumado.

     — Ah, bebe isso freqüentemente?

     — Como não?

     — Dessa casca de abóbora?

     — Naturalmente. Até gosta muito. Há pouco, ainda bebeu, coitadinho, meu amor.

     Ainda mais essa! Primeiro bebera o “queridinho”, depois eu, depois ela. E, além de tudo, a incomparável naturalidade com que ela me dizia isso. Ó, Ikbala, quão poucas foram as tinturas que recebeste da civilização da Europa ocidental!

     Estive a ponto de enfurecer-me, mas, dando quitação ao meu desejo de vingança, desviei a conversa para um assunto, que certamente era o mais caro para a turca.

     — Ali, o sahaf, também bebe, às vezes, desse mosto?

     Quando fiz essa pergunta, em tom absolutamente despreocupado, ela olhou-me surpreendida.

     — Senhor, conheces o sahaf? — perguntou.

     — De fato, eu o conheço.

     — Onde fôste conhecê-lo?

     — No caminho de Kochikawak para cá e isto hoje, há, mais ou menos, duas horas.

     — Falou-te ele a meu respeito?

     — Sim. É para eu dar-te lembranças dele.

     — Então também te disse que me ama?

     — Isso ele me disse e mais alguma coisa.

     — Que foi?

     — Que tu também o amas.

     — Sim, isso é verdade. Nós nos amamos de todo o coração. Ele voltou da Arábia, por minha causa.

     — E, contudo, não pode falar contigo.

     — Infelizmente! Papai não quer.

     — Mas, a tua mãe é o anjo da guarda, que vela por vocês.

     — Ah, sim! Se não a tivéssemos, a nossa dor seria tão grande como o mais alto dos minaretes em todo o reino do Senhor de todos os Crentes. Nós nos mataríamos, ou com veneno para ratos ou por afogamento, onde a água é mais funda.

     — Tu te referes à água corrente que há aí fora?

     — Sim, é isso mesmo.

     — Mas, disseste que ali existiam sapos e tartarugas, tão grandes como um ouriço-cacheiro gordo. Não é verdade?

     — É verdade. Nós, porém, escolheríamos um lugar, onde não houvesse sapo algum.

     — E onde iriam buscar o veneno?

     — Ali iria a Mastanly. Lá existem dois farmacêuticos que têm todas as qualidades de venenos.

     — Talvez não seja preciso procurarem a água ou os farmacêuticos. Teu pai, certamente, se tornará mais amável para com Ali.

     — Oh, não. Mosklan não permitirá.

     — Quem é Mosklan?

     — Ele negocia com cavalos e faz uma porção de outras coisas. Tu, de certo, não o conheces. Serei obrigada a casar-me com ele.

     — Sei disso.

     — Ali contou-te tudo?

     — Contou. Maklan não se apresenta, também, com outros nomes? Ela vacilou em dar resposta.

     — Podes usar de franqueza comigo. Sou teu amigo — expliquei.

     — Não, ele não usa outro nome — disse finalmente.

     — Dizes isso de medo dele e do teu pai.

     — Oh, não. Nada sei a respeito de outro nome.

     — Então, nunca viste um homem chamado Pimosa, de Lopaticza? A moça ficou embaraçada e perguntou, irresoluta:

     — Onde é que eu podia tê-lo visto?

     — Aqui, na tua própria casa.

     — Não. Tu te enganas.

     — Pois bem, enganei-me e isso absolutamente não é vantajoso para ti.

     — Não é vantajoso? Por quê?

     — Se soubesses quem é esse Pimosa e o que faz, eu poderia induzir teu pai a dar-te, por esposa, a Ali.

     — Como seria isso possível?

     — Bem. Dir-te-ei que vim aqui somente para te ver. Tinha resolvido, caso fosses condescendente para comigo, ir em busca de Ali para apresentá-lo a teu pai, como seu genro.

     — Isso é impossível.

     — Oh, não. Pelo contrário, até é muito possível.

     — Como procederias, nesse caso?

     — Não te posso dizer, porque também não és sincera. Queria forçar teu pai a dar, hoje, o seu consentimento; hoje, entendes?

     — E acreditas que ele consentiria?

     — Sim, com toda a certeza. Mas, não tens confiança em mim e, portanto, a minha presença aqui é supérflua. Nessas condições, vou-me embora, em seguida.

     Fiz um movimento para me levantar, mas a turca já estava a meu lado, segurando-me, ao mesmo tempo que dizia:

     — Senhor, fica sentado. Quem és tu, que pretendes ter uma tal autoridade sobre meu pai?

     — Sou um efêndi das terras do pôr do sol; estou à sombra do padixá e posso, se quiser, obrigar teu pai a permitir o casamento com Ali. Mas não tenho tempo; preciso ir-me.

     — Fica mais um pouco. Quero ser franca para contigo.

     — Assim procedes com inteligência. É para o teu bem. Então, dize-me se conheces o tal Pimosa.

     — Sim, conheço-o. Perdoa-me por ter afirmado o contrário, há pouco.

     — Perdôo-te. Sei, com efeito, que tinhas de falar daquele modo, em atenção a teu pai.

     — Podes prometer-me que não trarás prejuízos a meu pai?

     — Sim, prometo.

     — Aperta-me a mão.

     — Aqui a tens. Quando prometo alguma coisa, cumpro a palavra. Mas, agora, dize-me quem é Pimosa.

     — Ele não se chama Pimosa. É o tal Mosklan, de quem deverei ser mulher.

     — Já sabia. Que é que ele faz, além do negócio de cavalos?

     — É contrabandista e também mensageiro do Chut.

     — O Chut já o enviou alguma vez a teu pai?

     — Já.

     — Para tratar de quê?

     — Não sei.

     — Teu pai é contrabandista?

     — Não.

     — Dize a verdade.

     — Não é contrabandista; mas os contrabandistas vêm ter com ele e...

     Engasgou.

     — E então? E?...

     — E então ele sempre recebe muitas mercadorias.

     — Onde? Aqui em casa?

     — Não. Lá fora, no campo.

     — Em que lugar?

     — Não devo dizer. Eu e mamãe tivemos de jurar que nada diríamos.

     — Não tens necessidade de dizer, porque conheço o lugar tão bem como tu e tua mãe.

     — É absolutamente impossível. Nada conheces aqui.

     — Contudo, sei onde é o esconderijo. É lá no buraco, dentro do espinheiral.

     Perplexa, ela bateu com as mãos, bradando:

     — Oh, Alá! Tu sabes realmente.

     — Estás vendo? Justamente hoje, encontram-se lá muitas mercadorias.

     — Viste-as?

     — Vi. São só tapetes.

     — Realmente, realmente, tu sabes. Quem foi que te denunciou esse lugar?

     — Ninguém. De onde vêm os tapetes?

     — Vieram, pelo mar, com um navio. Depois de desembarcados em Makri, são levados pelos nossos carregadores para Guemuerdjina e depois trazidos para aqui.

     — Para onde são destinados?

     — Devem ir para Sofia e dali para mais adiante. Não sei para onde.

     — Participa o Chut desse contrabando?

     — Não. O chefe principal é um silahdji de Ismilan.

     — Ah, sim. Esse homem também possui um kabvehane?

     — Possui.

     — Mora na rua que conduz para Tjatak?

     — Efêndi tu o conheces?

     — Ouvi falar nele. Sabes o seu nome?

     — Chama-se Deselim.

     — Esteve alguna vez aqui?

     — Seguidamente. Deverá vir, também, hoje ou amanhã.

     — Com certeza, por causa dos tapetes, que se encontram lá no campo, não?

     — Realmente. Precisam ser levados daqui.

     — Ele também traz os carregadores?

     — Alguns. Os outros moram aqui pelas proximidades.

     — Em Dchnibachlue?

     — Aqui e nas localidades próximas.

     — Quem é que os reúne?

     — Meu pai.

     — Mas ele, de certo, não os chama pessoalmente?

     — Não. Manda o nosso empregado, que conhece todos.

     — É aquele que ajuda tua mãe a apear do burro?

     — É. Tem todas as cores na cara. É um homem muito esperto e muito corajoso. Calado! Vem gente!

     Lá fora, na entrada, fazia-se ouvir um bufar e gemer:

     — A buh! A buh!

     — É o meu pai — disse a moça. — Não o deixes perceber que estivemos conversando.

     Em seguida, ela desaparecia pelo mesmo lugar por onde saíra sua mãe.

     Encontrava-me, portanto, completamente só naquele compartimento, execeção feita do gato, que novamente se recolhera para o canto. Era-me isso desagradável, mas não se podia corrigir. Ouvi umas passadas chuchurreantes, pesadas, alguns “a buh” repetidos e o homem entrou.

     Quase me assustei, quando o vi. Era de uma grossura quase igual à altura e tinha de forçar a passagem pela porta. Vestia inteiramente à búlgara. As suas calças, a túnica e a capa de mangas eram de lã, enquanto que o otomano usa, para as épocas estivais, tecido de algodão leve ou linho, com muitas pregas. As pernas do padeiro também estavam, segundo o costume búlgaro, envoltas em tiras de pano, que cobriam igualmente os pés. O velho búlgaro, tártaro já incorporado à raça eslava, não gosta de outros sapatos para os pés.

     Compreende-se que esse traje ainda mais deformava o padeiro. A capa curta, as pernas enroladas em pano, o cinto de um e meio pés de largura, tornavam-no bem mais gordo e disforme, do que ele era realmente. Acrescia a circunstância de ter a cabeça raspada à navalha. Somente em cima, no meio da cabeça, havia um monte de cabelos, que estavam trançados e caíam para trás. Não levava fez ou qualquer coisa semelhante. Trazia na mão um lenço, amarrado a nós, no qual se encontravam alguns cartuchos.

     Se me perguntassem qual era a côr da sua roupa, não poderia dizer. Originalmente, com toda a certeza, havia alguma côr. Mas, sobre ela, havia riscos de todas as cores, de modo que não se podia ver o fundo. Via-se somente que o homem costumava limpar os dedos na roupa, estivessem eles sujos de massa, ao fazer pão, ou de tinta, ao tingir.

     As mãos davam a aparência de que tivessem sido pintadas com a mistura proveniente de diversos pós de tinta, moídos e misturados a óleo. Não podia ver-lhe os braços. Deviam, porém, assemelhar-se aos da graciosa “Moranguinho”, cuja pintura eu tomara por luvas.

     E agora, além de tudo, a cara! Podia-se qualificá-la de grandiosa. Era certo que ele tinha dois costumes ou até três, que não condiziam com o seu negócio: tomava rape; gostava de esfregar os olhos e, com certeza, também tinha prazer em coçar-se atrás da orelha, porque, tanto o nariz como as circunvizinhanças dos olhos e as orelhas pareciam ter sido submetidos a massagens com tinta preta, papa de ameixas, gema de ôvo, suco de amora e giz.

     Quando uma mulher do oriente pinta as pestanas com khol (6), o olhar toma uma

     ______________

     (6) “Khol”, “kohol” ou “koheul” é uma substância de cor, que poderemos dizer morena ou trigueira, com a qual, no Oriente, se untam as sobrancelhas e as pestanas. (N. do T.)

 

expressão original, melancólica e de uma dureza interessante. O padeiro parecia ser de opinião que a sua fisionomia ganhava, em beleza, com aquela camada de tintas. Por essa razão ou em razão do seu comodismo, ele deixava há muito tempo, de insultar a sua cara com uma gota d'água. Uma coisa dessas, dificilmente pode acontecer no Oriente. A polícia seria obrigada a intervir, porque um homem assim provocaria protestos públicos.

     Tornou-se grotesco o pasmo com que ele me olhou, sentado ainda junto da porta. A testa levantou-se-lhe, a boca abriu-se largamente e as orelhas parecia que se retiravam precavidamente para trás.

     — Oelum jyidyrym — Morte e raio!

     Ele não conseguiu articular mais nada. Bufava, não sei se por falta de ar ou de surpresa.

     — Sabahiniz chajir ola — Bom dia! cumprimentei-o, enquanto me levantava vagarosamente.

     — Ne is ter sen bunda? Ne ararsen bunda? — Quem queres aqui? Que procuras aqui?

     — Seni — A ti — respondi simplesmente.

     — Beni — A mim?! — interrogou, meneando a cabeça.

     — Evvet, seni — Sim, a ti.

     — Tu não me conheces.

     — Dificilmente. A ti a gente reconhece facilmente.

     Parecia não perceber o insulto que se continha nas minhas últimas palavras. Disse, sempre cabeceando:

     — Estás enganado e confundiste a casa.

     — Não. Estou na casa certa.

     — Mas, não te conheço.

     — Aprenderás a me conhecer.

     — A quem procuras?

     — Um bojadji, que é, ao mesmo tempo, etmektji e se chama Bochak.

     — De fato, sou ei.

     — Vês que não me engano?

     — Disseste, porém, que me tinhas reconhecido imediatamente. Já me viste alguma vez?

     — Não, nunca e em nenhuma parte.

     — Como então pudeste reconhecer-me?

     — Pelos brilhantes distintivos de tua profissão os quais são visíveis no teu rosto.

     O sentido verdadeiro dessas palavras, ele também não compreendeu, porque repuxou a cara num sorriso condescendente e disse:

     — És um homem muito delicado e tens razão. Minha profissão é muito importante. Sem nós, o povo morreria de fome e somos nós também que damos a beleza a todos os vestidos. Qual é o teu desejo?

     — Queria falar contigo sobre um negócio.

     — És um negociante de farinha?

     — Não.

     — Ou vendedor de tintas?

     — Também não. É outro negócio, ao qual me refiro.

     — Fala, então.

     — Somente quando tiveres ficado à vontade. Tira a capa e senta-te junto de mim.

     — Sim, farei isso. Espera-me aqui.

     Dirigiu-se para a mesma porta, por onde haviam saído a mulher e a filha. Seguramente, havia ali dois compartimentos a seguir e, pelo ruído abafado das vozes de três pessoas, depreendi que todos se encontravam no “gabinete” bem dos fundos.

     Quando voltou, o padeiro colocou-se na minha frente e disse:

     — Im bunda. Ichtahnyz warmy? — Cá estou. Tens apetite?

     — Para que?

     — Para comer alguma coisa?

     — Não — respondi, pensando no rasto que o dedo cheio de massa deixava nas suas calças, onde fora limpado.

     — Ou para bebei?

     — Agradeço muito.

     Tinha perdido todo o apetite, com a água da amassadeira e o prodigioso mosto.

     — Então, vamos tratar do nosso negócio.

     É verdadeiramente indescritível a cena que constituiu o esforço por ele desenvolvido, abaixo de gemidos, para sentar-se defronte a mim. Quando essa prova de ginástica estava terminada, apesar de todos os pesares, o homem tomou ares enérgicos e autoritários, batendo palmas fortemente.

     Por pouco ria-me na cara dele, ao vê-lo tomar atitudes de um grande homem, acostumado a mandar. As batidas de palmas, contudo, foram ouvidas, porque o ajudante de tintureiro — há pouco qualificado pela filha de homem esperto e valente — compareceu solícito.

     Como se achava nos fundos da casa, naturalmente tinha sido instruído, por uma das janelas, sobre como devia portar-se. Inclinou-se, com os braços cruzados sobre o peito e olhou para o seu Senhor e Mestre, numa atitude humilde de expectatitva.

     — Getir benim luelejue — traz-me o meu cachimbo! — ordenou o padeiro, como se fora um paxá, com três estandartes turcos.

     O escravo daquele momento obedeceu a ordem. Trouxe um cachimbo, que parecia ter estado no lodo de um viveiro de carpas. O criado afastou-se e o Senhor meteu a mão no bolso das calças e dali tirou um punhado de fumo, que botou no cachimbo. Depois perguntou:

     — Sen mi tuttuen itchen? — Fumas?

     — Evvet — Sim — respondi.

     Tive medo de que ele me oferecesse um cachimbo igual ao seu e o enchesse do mesmo fumo. Fiquei satisfeito ao constatar que me enganava, pois o padeiro perguntou novamente:

     — Kibritler onun itchuen melik o-sen? — Consequentemente, tens fósforos?

     — Bre kaw zabt etmez-sen — Não tens isca? — informei-me.

     O homem, ao fazer a pergunta, tomara ares de espertalhão, ou melhor, de um estúpido, que se quer fazer inteligente. Fósforos não são usados geralmente, naquela região. Pode-se procurar por toda uma aldeia, para não encontrar um único pauzinho. Quem possui fósforos, é homem de posses. O padeiro, naturalmente, queria saber se eu pertencia a essa gente privilegiada. Por isso, a minha resposta fora evasiva.

     — Teria de me levantar — disse ele. — Deduzo, porém, que tens kibritler.

     — De que deduzes isso?

     — Vejo pela tua roupa. És rico.

     Se ele dissesse: “És mais asseado do que eu”, dar-lhe-ia razão. Meti a mão do bolso e tirei uma caixinha de fósforos de cera e lhe dei um. Examinou-o atentamente e depois disse, surpreendido:

     — Isto não é de pau?

     — Não. Não gosto dos fósforos feitos de odun.

     — Será isso cera?        

     — É. Adivinhaste.

     — E, aí dentro, há um pavio?

     — Naturalmente.

     — Muechuepatly, tchok adchaib! — Maravilhoso, maravilhoso! Uma vela para acender o fumo! Isso eu ainda não tinha visto. Não me queres dar toda a caixinha?

     Não se pode imaginar, por vezes, a impressão que uma miudeza dessas pode causar. Nesses casos, é aconselhável aproveitar a oportunidade. Por isso, respondi:

     — Estas velinhas de acender são de muito valor para mim. Talvez te dê a caixinha, se ficar satisfeito com a nossa conversação.

     — Então, vamos começar. Antes, porém, quero acender o meu cachimbo.

     Quando tinha feito isso, notei que ele não fumava uma má qualidade de tabaco. Era possível que o tivesse conseguido, por alguma maneira não muito legal.

     — Bem, agora podemos conversar — disse. — Dir-me-ás inicialmente quem és.

     — Naturalmente. Tens de saber com quem estás falando. Mas, talvez seja melhor dizer o meu nome mais tarde.

     — Por quê?

     — O negócio, de que te quero falar, não é comum. Precisa-se, para isso, de esperteza e discrição, e não sei ainda se possuis essas duas qualidades.

     — Ah, agora sei o que és.

     — Bem, que sou, então?

     — Fazes negócios secretos.

     — Hum! Talvez não estejas enganado de todo. Tenho uma mercadoria para vender, na verdade de muito valor, mas que entregarei por preço bem barato.

     — Que é?

     — Tapetes.

     — Ah, tapetes! É uma boa mercadoria. Que espécie de tapetes são os que tens?

     — Legítimo produto de Esmirna.

     — Alá! Quantos?

     — Cerca de cem.

     — Qual é o preço?

     — Tudo por tudo. Peço trinta piastras, vendendo peça por peça. Tirou o cachimbo da boca, colocou-o no chão, a seu lado, bateu as mãos e perguntou:

     — Trinta piastras? Realmente trinta?

     — Nada mais!

     — Legítimos tapetes de Esmirna?

     — Naturalmente.

     — Pode-se vê-los?

     — Naturalmente, o comprador tem de vê-los.

     — Onde os tens?

     — Ah! Pensas que vou dizer, antes que saiba ser o comprador um homem de confiança?

     — És muito precavido. Dize-me, pelo menos, se o lugar, onde estão os tapetes, é perto daqui.

     — Nada distante.

     — Dize-me mais, por que é que te dirigiste justamente a mim?

     — És um tintureiro famoso. És, portanto, um conhecedor do negócio e podes julgar seguramente se a mercadoria é de cor firme.

     — Isto é verdade — concordou o homem, lisonjeado.

     — Por isso, venho ter contigo. Não alimento, na verdade, a esperança de que tu mesmo vás comprar os tapetes, mas acreditei que me pudesses indicar alguma pessoa, disposta a fazer um negócio tão vantajoso.

     — Realmente, fizeste uma suposição bem acertada.

     — Conheces, portanto, um comprador?

     — Sim, conheço um.

     — Poderá pagar à vista?

     — Esses negócios são feitos a crédito, na maior parte dos casos.

     — Não concordo. Mercadoria boa, barata; mas, a dinheiro. Assim os dois ficam satisfeitos, o comprador e o vendedor.

     — Bem. O homem pode pagar.

     — Isso me agrada. Quem é ele?

     — É um armeiro.

     — Ai de mim!

     — Como assim?

     — Um armeiro não pode comprar tão grande quantidade de tapetes.

     — Mas, esse compra. É também proprietário de um café e sabe colocar a mercadoria.

     — Onde é que mora?

     — Em Ismilan.

     — Isso é desagradável, porque se trata de uma localidade muito distante daqui.

     — Não quer dizer nada. Hoje ou amanhã, ele estará aqui.

     — Não posso esperar até amanhã.

     — Por que não?

     — Podes supô-lo.

     — Não, absolutamente.

     — Se vendo uma mercadoria tão cara por tão pouco preço, é que alguma coisa existe em torno dela.

     — Hum! Claro que sim.

     — Tenho de vendê-la urgentemente, do contrário corro o risco de perdê-la.

     — Há alguém no teu rasto?

     Ao dizer isso, apertou as pálpebras, piscando os olhos, e fêz com as mãos um movimento de segurar, agarrar, isto é, de prender.

     — Não, isso não se dá. Ninguém sonha com os meus projetos. Mas a mercadoria está num lugar absolutamente inseguro.

     — Tira-a desse lugar.

     — O comprador que o faça.

     — Então a pessoa, a quem a entregaste, não merece confiança?

     — Não a entreguei a ninguém.

     — Não? Então, onde está?

     — No campo aberto.

     — Alá é grande! Que idéia foi essa?

     — Não é minha, mas, de outros.

     — Deste, naturalmente, o teu consentimento.

     — Também não. Nunca me ocorreria guardar uma coisa tão valiosa, com tamanha leviandade.

     — Não entendo isso e nem te compreendo.

     — Dar-te-ei esclarecimentos, em caráter confidencial. Causas-me a impressão de ser um homem, que nada denunciará a outro.

     — Nunca, jamais eu faço isso.

     — Bem, bem! Acredito. Concordas que trinta piastras é pouco, muito pouco?

     — Hum! Ainda nada posso afirmar, pois não vi os tapetes.

     — Digo-te, porém, que é pouco, muito pouco. Ninguém venderá tão barato.

     — Conseguiste-os, naturalmente, por preço ainda mais baixo.

     — Claro! É intuitivo.

     — Quanto pagaste?

     — Escuta, essa pergunta não é muito inteligente. Nenhum vendedor dirá qual é o seu verdadeiro lucro. Contudo, como já disse, serei franco para contigo.

     — Bem, então quanto ganhas?

     — Trinta piastras, só trinta piastras.

     Olhou-me espantado e, depois, perguntou:

     — Em todo o sortimento?

     — Que estás pensando? Não serei tão tolo que me vá contentar com uma quantiazinha assim. Não, ganho isso em cada tapete.

     — Mas, isso nem é possível!

     — Por que não?

     — Vendes a peça por trinta piastras e ganhas em cada uma a mesma importância?

     — Assim é.

     — Só se alguém te deu a mercadoria.

     — Ninguém faria isso.

     — A minha inteligência não chega para compreender isso.

     — Não deixes que te contradigam! A minha inteligência, porém, suprirá a falta da tua. Não comprei os tapetes e nem os recebi de presente: achei-os.

     — Achaste? — articulou.

     — De fato.

     — Quando?

     — Isso não tem importância.

     — Mas, onde?

     — Aqui, nas proximidades.

     O homem assustou-se fortemente. Engulia e engulia. Custou-lhe grande esforço perguntar:

     — Aqui perto? Senhor, é possível?

     — Naturalmente! Estou dizendo!

     — Posso saber qual o lugar?

     — Conheces o caminho daqui para Kochikawak?

     — Naturalmente, que conheço.

     — Passa por umas macegas. Logo que se atravessam estas, encontra-se uma depressão no solo, que parece inatingível, por estar circundada por um expêsso espinheiral. É aí o lugar. Lá estão os tapetes.

     Ficou estarrecido, sem fazer um movimento. Só o seu peito arfava fortemente. Parecia faltar-lhe ar. Finalmente, ouviu-se um gemido, quase agônico:

     — Senhor, isso seria milagroso.

     — De fato, é inacreditável encontrar-se, lá no campo aberto, um tão precioso sortimento de tapetes. Mas, aqui chove tão raramente! Justamente, agora estamos no período de secas, e a mercadoria nada sofreu com o tempo.

     — Mas, pode ser prejudicado pelos homens.

     — Como assim?

     — É tão fácil descobri-la.

     — Oh, não. Vocês todos, aqui, são verdadeiras crianças. Fazem hoje, somente aquilo que já faziam ontem e sempre. Não desejam saber hoje, senão o mesmo que já conheciam antes. A baixada sempre foi tida como inatingível e por isso dificilmente alguém terá a idéia de ir averiguar se isso é bem exato. Os espinhos doem.

     — Como, porém, chegaste até lá?

     — A cavalo. Sabes que nem sempre se domina o animal. Uma criatura dessas dispara e a gente é arrastado para dentro dos espinhos.

     — Latetli! Latetli wakaa — Maldita! Maldita coincidência! — bradou o homem.

     — Como? — perguntei, em tom admirado. — Enraiveces por ter eu feito essa descoberta?

     — Não! Oh, não! Pensei somente quão desagradável seria isso, para aquele que escondeu tais coisas.

     — Deveria ter escondido melhor.

     — Mas, senhor, como podes ter a idéia de vender os tapetes?

     — Não é isso a coisa mais vantajosa que poderei fazer?

     — Para ti, sim; mas... são teus?

     — Naturalmente! Eu os achei.

     — Não é motivo para considerá-los de tua propriedade. Tens de os entregar ao dono.

     — Ele que se acuse! Evitará, certamente, de fazê-lo.

     — Irá buscar a mercadoria.

     — Ele ou outro. Quão fácil é apresentar-se um terceiro, que será mais inteligente do que eu! Não, eu os venderei!

     O padeiro recuperara o sangue frio e, aos poucos, tornava-se agitado.

     — Aconselho-te que não o faças! — disse. — O legítimo dono terá cuidado para não perder o que lhe pertence. Serias um gatuno e não me parece que tenhas inclinação para isso.

     — Não? Hum! Podes ter razão. Pronunciaste essa palavra justamente no momento oportuno. Evidentemente não quero tornar-me ladrão.

     — Deixarás, portanto, os tapetes onde estão?

     — Sim.

     — Prometes?

     — Prometer? Quem sabe se os tapetes são teus?

     — Não. Mas, não queria que maculasses a tua alma com um crime semelhante.

     — És um bom homem. És muito amável para comigo.

     — De fato. Portanto, prometes; aperta-me a mão, para garantir que não mexerás nos tapetes.

     — Bem! Farei a tua vontade. Cá está a minha mão. Apertou-me a mão, suspirou aliviado e depois disse, agarrando novamente o cachimbo:

     — Alá seja louvado! Alegra-me ter-te arrancado do caminho do pecado. Com isso, apagou-se o seu cachimbo. Dá-me mais um dos teus fósforos de cera.

     — Aqui tens. Fico satisfeito por me teres conservado na senda da virtude. A tentação era muito grande. Façamos, portanto, tudo por evitar que outro a ela venha sucumbir.

     — Como farás isso?

     — Comunicarei o achado.

     — Allah 1'Allah! Para quem?

     — Para as autoridades.

     Largou imediatamente o cachimbo já aceso, sacudiu as mãos, num gesto de desaprovação e disse:

     — Isso não é preciso, absolutamente não.

     — Oh, se é! Irei ao kiaja, que poderá apreender os tapetes.

     — Que é que pensas! O dono já irá buscá-los!

     — Não modificará a minha resolução. É meu dever fazer a comunicação.

     — De modo nenhum! Trata-se de um assunto que não te interessa.

     — Até interessa muito. Quem descobre um crime, tem de levá-lo ao conhecimento da autoridade.

     — Mas, no caso, não se verifica nenhum crime.

     — Um homem honesto não esconde o que é seu, lá no campo. Podes estar certo disso. De resto, tenho a convicção de que sei para quem são destinados os tapetes.

     — Enganas-te.

     — Oh, não! Estou certo do que digo.

     — Quem será essa pessoa?

     — A mesma a que te referiste, há pouco, como sendo um comprador provável.

     —Referes-te ao armeiro?

     — Naturalmente.

     — Oh, ele nada tem que ver com isso. Tu o conheces, por acaso?

     — Não, ainda não o vi.

     — Como podes fazer recair uma tal suspeita sobre ele? Nem sequer disse-te o seu nome.

     — Mas eu sei. Chama-se Deselim.

     — Deselim? Não falei nessa pessoa. Não conheço ninguém que use semelhante nome.

     — Então, de certo, também não conheces uma pessoa, que se chama Pimosa?

     — Pimosa? Oh, este eu conheço!

     — De onde é?

     — É um sérvio de Lopaticza, sobre o Ibar. Onde o conheceste?

     — Dir-te-ei mais tarde. Ele te visita freqüentemente?

     — Como não?

     — Nos últimos tempos, esteve aqui?

     — Não.

     — Sabes onde esteve?

     — Não.

     — Hum! Não estiveste, há bem pouco tempo, em Mandra e Boldchiabak?

     A sua expressão fisionômica mudou por completo. Era a cara da raposa, sem tirar nem pôr. Esse gorducho era um homem perigoso. Um relâmpago de inteligência brilhava nos seus olhos. Disse:

     — Dir-te-ei a verdade. Estive nessas localidades e Pimosa também.

     O olhar, que me dirigiu, podia ser considerado de um triunfador. Coloquei-lhe, entretanto, a mão sobre o ombro, com toda a indiferença, e disse, rindo:

     — Bochak, não representaste nada mal o teu papel, velho espertalhão!

     — Nada mal? Que queres dizer?

     — Bem. Adivinhaste que falei com Pimosa e isso há bem pouco tempo.

     — Foi o que imaginei.

     — Isto agora, porém, não foi dito com esperteza. Não devias confessar.

     — Posso dizer a verdade.

     — Por mim! Adivinhaste, ademais, que Pimosa disse ter estado em Mandra e Boldchiback, e imediatamente te apresentas como testemunha. E como farias, se te provasse que nem sequer saíste daqui?

     — Não poderás provar.

     — Basta-me fazer algumas indagações por aqui. Certamente que todos te viram. Mas, não o farei; não terei esse trabalho. Irei à aldeia de Palatza. Lá saberei quem é, verdadeiramente, esse Pimosa.

     O gordo parecia empalidecer, debaixo da côr que lhe cobria a cara. Disse, contudo, no tom mais convencido que pôde:

     — Nada saberás a mais do que aquilo, que ouviste de mim.

     — Oh, o negociante de cavalos Mosklan certamente me dará melhores esclarecimentos. Acho que a minha visita está finda. Irei, portanto, ao kiaja.

     Levantei-me. O padeiro fêz o mesmo, e, na verdade, com tamanha rapidez que, desde logo, me convenci de que o medo era a mola que lhe dava tal agilidade.

     — Senhor, — disse — não irás antes de nos termos entendido.

     — Entendido? Sobre o quê?

     — Sobre os tapetes.

     — É a respeito do Chut, não é verdade?

     — Allahy sewersin — Pelo amor de Deus! Por que falas do Chut?

     — Por que te assustas, ouvindo-me falar nele? Por que dizes que nos devemos entender, no tocante aos tapetes? São teus, por ventura?

     — Não, não!

     — Ou sabes, por acaso, quem os escondeu?

     — Também não.

     — Então, podes estar perfeitamente tranqüilo. Mas, eu tenho de ir ao kiaja, para comunicar-lhe o meu achado.

     — Não terás vantagem nenhuma com isso.

     — Deve-se cumprir com o seu dever, sem tirar proveito.

     Estava na maior entaladela. Chegara a colocar-se, diante da porta, para evitar que eu saísse.

     — Quem és, afinal de contas, — perguntou ele — que te arrogas, apesar de estranho, o direito de te meter em nossas questões?

     — Sabes ler?

     — Sei.

     — Então, vou mostrar-te uma coisa.

     Peguei o meu passaporte, apresentei-lhe, de modo, porém, a que pudesse ver somente o selo, em evidência.

     — Conheces isto?

     — Conheço; é o mõhuer do Grão Senhor.

     — Pois bem, digo-te que possuo o mõhuer e prendi o agente Pimosa.

     — Senhor! Efêndi! És um polícia? — Balbuciou, assustado.

     — Não te devo resposta. Mas, vou prender igualmente a ti e a Deselim, de Ismilan, logo que chegue aqui.

     — Prender-me?!

     — Sim.

     — Por que razão, afinal?

     — Por causa dos tapetes e de diversas outras coisas.

     — Efêndi, sou um homem honesto.

     — E, não obstante, estás me mentindo.

     — Disse a verdade.

     — Ousas, realmente, afirmar isso? Procuras, apressadamente, a tua própria ruína. Será satisfeita a tua vontade. Far-se-á uma grande investigação a teu respeito; estarás perdido. Não obstante, quis te salvar. Vim à tua procura, para te indicar, confidencialmente, o caminho que conduziria à salvação.

     Tinha-se encostado à parede divisória e não sabia o que dizer.

     — Queria que tu te visses, agora — disse eu. — A culpa e o medo estão estampados na tua face. Agarra a tua capa e vem comigo ao kiaja.

     Nisso apareceram a sua mulher e a sua filha. Ambas estavam escutando tudo; do quarto vizinho. Desfizeram-se em queixumes e recriminações de toda a sorte contra mim. O padeiro mantinha-se bem tranqüilo e parecia refletir sobre como melhor proceder. Ouvi em silêncio as queixas das duas mulheres e depois procurei tranqüilizá-las:

     — Fiquem quietas! Quis salvá-lo; mas ele não aceitou. Ainda agora, estaria disposto a desistir da comunicação e da queixa. Vejam, porém, que não diz uma palavra.

     Isso restituiu-lhe a fala.

     — Efêndi, — disse — que sabes a meu respeito?

     — Tudo! Não preciso dar-te os pormenores; isso é com o juiz.

     — Afirmas que desistirias da queixa?

     — Sim. Não te considero um malfeitor. Penso que fôste enganado. Por isso, desejava ser clemente para contigo.

     — Que deveria eu fazer?

     — Desligar-te daqueles que te corromperam.

     — Farei isso com prazer!

     — Dizes isso, apenas; mas, quando eu tiver partido, não cumprirás o que prometeste.

     — Cumprirei. Posso jurar.

     — Peço, então, que cortes as relações de amizade com o negociante de cavalos Mosklan.

     — Vou dizer-lhe isso.

     — Bem! Querias dar-lhe tua filha por esposa?

     — É verdade.

     — Ela perderá, portanto, o seu noivo. Escolhe outro para ela.

     Aguçou os ouvidos. Olhou para as duas mulheres e depois para mim, perscrutadoramente, e depois interrogou:

     — Conversaste, antes de eu chegar?

     — Conversamos — respondi, conservando-me fiel à verdade.

     — Achas que devo dar-lhe, para marido, o sahaf Ali?

     — Seguramente, aconselhar-te-ia isso.

     — Wallahi! Então, falaste a respeito dele?

     — Sim e também já falei com ele mesmo. É um bom homem; não é criminoso, como o tal Mosklan. Fará ma filha feliz. Não tenho tempo, para perder com muitas palavras. Quero dizer-te ainda o seguinte: irei lá fora, por alguns minutos e, durante esse tempo, poderás falar com tua mulher e tua filha. Voltando e ouvindo de ti a declaração de que o sahaf será bem-vindo, partirei para buscá-lo. Poderás, então, dar-lhe a tua assinatura e tudo estará resolvido. Se te recusares, porém, irei ao kiaja e te levarei logo comigo.

     O suor inundava-lhe a testa, e, mesmo assim, me parecia que estava mais tranqüilo do que antes. Mulher e filha queriam cair sobre ele, com pedidos. Fêz, porém, um gesto evasivo e me perguntou:

     — Então, queres ir buscar o sahaf?

     — De fato.

     — Irás até Kabatch?

     — Naturalmente, pois quero ir buscá-lo.

     — E se eu, então, der a minha assinatura, guardarás sigilo sobre tudo quanto se passou?

     — Como se fora um túmulo!

     — Sobre o Chut e sobre o negociante de cavalos?

     — Também.

     — Igualmente, nada dirás sobre os tapetes?

     — Direi, apenas, o que sei a esse respeito, a uma pessoa.

     — A quem?

     — Ao sahaf. Fará o que lhe aprouver.

     — Guardará segredo, se eu lhe der a minha filha. Dize-me, quando queres ir a Kabatch?

     — Logo que te tiveres decidido. Não tenho tempo a perder. Dou-te, portanto, alguns minutos de prazo. Resolve o caso.

     Saí para ir até onde estava o meu cavalo. Ao retirar-me, ouvi que mãe e filha começaram a insistir com pedidos; sentia-me, portanto, com confiança na solução do assunto. Na minha opinião, nada mais lhe restava, senão ceder e alegrava-me regiamente por poder levar ao sahaf, com tanta brevidade, uma tão boa notícia.

     É verdade que, a mim mesmo, eu perguntava se não era dever meu, fazer a queixa; contudo, havia boas razões para deixar de fazê-lo. De fato, não sabia ao certo se os tapetes já eram mercadoria de contrabando. Talvez fossem contrabandeados somente na fronteira sérvia. De resto, considerava o sahaf pessoa honesta e acreditei que agiria, de acordo com a sua consciência logo que lhe tivesse participado tudo.

     Afastei-me um pouco da casa. Pareceu-me ouvir um chamado. Ao me virar, vi que o ajudante dirigia-se a uma das janelas e falava com o padeiro.

     Que tinha eu com isso? Com certeza estava dando ao empregado algumas instruções sobre negócios. Minutos depois, ouvi o tropel de um cavalo. Não vi, porém, o cavaleiro. Não me ocorreu suspeitar disso. Infelizmente, estava-me reservado uma lição, em conseqüência do meu descuido. O padeiro tinha mandado o seu ajudante preparar-me uma

cilada. A moça dissera que aquele abibe era esperto. Realmente o era. Tinha-se afastado de modo tal, que a casa ficou entre ele e eu e, assim, não pude vê-lo.

     Esperei, mais ou menos, meia hora, depois entrei novamente na casa. A mulher me pediu então que desse mais um pequeno prazo ao marido. Era-lhe difícil tomar uma resolução, pois não sabia como livrar-se de Mosklan, sem perigo.

     Satisfiz o seu pedido e me retirei outra vez. Esperei até que me chamaram. O padeiro veio ao meu encontro e declarou:

     — Efêndi, tens razão. Farei o que me aconselhaste. Queres ir buscar o sahaf?

     — Sim, irei já.

     — E, depois, queres ser nosso hóspede, hoje e nos próximos dias?

     — Agradeço. É impossível. Tenho de ir-me.

     — Para onde vais?

     — Para muito longe, para as terras do poente, onde está a minha pátria.

     Dizendo isso, cometi um grande erro, conforme verifiquei mais tarde.

     — Pelo menos, vem comigo ao meharrem. Isso aqui é só o selamluek. Quero mostrar-te uma coisa.

     Estava muito condescendente e as mulheres sorriam de alegria. Não pude recusar o pedido e entrei no segundo compartimento, que, aliás, no mobiliário, não se distinguia do anterior. A filha afastou-se por alguns momentos para trazer um objeto, que estava metido em estôpa e amarrado com cordões.

     — Adivinha o que é isto, efêndi — disse o padeiro.

     — Quem é que poderá adivinhar? Dize o que é.

     Tirou a estôpa. Apareceu, então, uma garrafa.

     — É o suco da uva — disse. — Podes bebê-lo?

     — Posso; mas, deixa-o na garrafa. Bebam vocês mesmos.

     — É-nos proibido. Este vinho é da Grécia. Recebi-o de um negociante e guardei até que aparecesse alguém, a quem não fosse vedado bebê-lo.

     Obstinei-me na recusa. Isso parecia maguá-lo. Pensou um pouco e depois disse.

     — Se o desprezas, não quero guardá-lo por mais tempo. Tjileka vamos dá-lo ao pobre Saban?

     A mulher concordou imediatamente e indagou se podia juntar alguns pães. O marido deu licença para isso e depois me disse:

     — Mas, efêndi, se vamos dar este presente ao pobre, é preciso que nos faças um favor.

     — Com gosto, se puder. Quem é esse tal Saban?

     — Foi outrora vassoureiro, mas agora chegou a ser mendigo, pois está doente e não pode mais trabalhar. Vive da caridade daqueles que Alá abençoou com a alimentação.

     — Sim, é um mendigo e, de vez em quando, nós lhe damos um presente — repetiu a filha. — Mora numa choupana, no meio do caminho daqui para Kabatch.

     Só a repetição bastava para me causar estranheza, mas, mais ainda, o tom em que foram ditas essas palavras. Interrompera bruscamente o pai, para repetir o que ele dissera. Notei que ela queria chamar-me a atenção para qualquer coisa. Estava atrás do padeiro, um pouco para o lado e, quando olhei para ela, levantou o indicador da mão direita, num gesto premonitório, sem que o pai o visse.

     — Que mato é esse? — perguntei, sem mostrar suspeita.

     — É só de carvalhos e faias — respondeu o padeiro. — São raros os pinheiros ou os ciprestes. Devo descrever exatamente o caminho?

     — Peço-te que o faças.

     — Ao partir daqui, rumarás para sudoeste, seguindo sempre pelos trilhos das carroças, em direção à planície mais elevada. Ali, os trilhos se desviam para o sul, em direção a Terzi Oren e Ireck. Acharás, porém, rastos que te levarão à direita até um arroio, que se lança, abaixo de Kabatch, no rio Sõuedlue. Não longe desse arroio, encontra-se um descampado, à margem do qual está a choupana do Saban.

     — Ele mora ali, sozinho?

     — Mora.

     Um mendigo, assim sozinho, no mato, era curioso. Ainda mais, o procedimento da filha. Em todo o caso, eu tinha motivos para me precaver.

     — E acreditas que vou encontrá-lo? — informei-me.

     — Acredito. Ele não pode sair, segundo me disseram. Está doente. Por isso, mando-lhe estes presentes.

     — E qual seria o favor que, pensas, poderia eu fazer?

     — Levarias estas coisas para entregar-lhe?

     — Com prazer; embrulha-as.

     O padeiro fêz o pacote. Entrementes, a filha saiu e me fêz furtivamente um sinal. Segui e a encontrei atrás da casa.

     — Queres dizer-me alguma coisa? — perguntei.

     — Sim, efêndi. Toma precaução.

     — Contra quem e por quê?

     — Esse mendigo não é boa pessoa. Cuida-te com ele.

     — Acreditas que teu pai tem maus propósitos, a meu respeito?

     — Não sei da nada. Digo-te, porém, que não gosto do esmoleiro, porque ele é inimigo do sahaf.

     — Hum! A tua mãe queria dar-me um recado para Ali. A esse respeito, teu pai nada devia saber.

     — Isso ficou liquidado, efêndi. Ela não quis te dizer logo que se tratava de uma mensagem. Era para ele...

     Interrompeu-se, corando, e olhou para o chão.

     — Então, que é que ele devia fazer, graciosa Ikbala?

     — Era para ele vir hoje de noite, falar... com... com mamãe.

     — Com tua mãe? Mas não na tua casa?

     — Não, efêndi.

     — Onde, então? — perguntei realmente com insistência, falando seriamente.

     — Devia esperar lá fora, junto à água.

     — Bem, bem. Então a tua querida mãe costuma dar entrevistas ao sahaf?

     — De fato — respondeu com tanta seriedade ingênua, que tive de me rir.

     — E tu, com certeza, és a protetora desses encontros românticos? — perguntei.

     — Oh, efêndi, sabes muito bem que ele não vem falar com mamãe; mas, sim, comigo.

     — Sim, sei. Mas, como pretendo trazê-lo, hoje, para aqui, tua mãe não precisa mandar o recado, que a ele se destinava, não é?

     — Assim é, efêndi. As tuas intenções são tão boas, que o meu coração se enche de alegria. Alá permita que tudo consigas!

     — Também o sahaf ficará contente. Quando falei com ele, disse-me que eras a mais bela de Rumili, e assim...

     — É isso verdade? — interrompeu-me precipitadamente.

     — Foi assim que ele disse.

     — É um grande adulador e exagerado.

     — Não, ele não exagerou. És mais doce do que o mosto, que preparas. Disseste que Alá permita o êxito da minha iniciativa. Ainda podes duvidar? O teu pai não deu o seu consentimento?

     — Prometeu-o a ti. Mas acho que não estava falando sério. Oh, efêndi, pressinto perigo! Protege o meu sahaf!

     — Que poderia ameaçá-lo?

     — Não sei; mas, tu e ele, precisam tomar todas as cautelas e eu derramaria muitas, muitas lágrimas, se lhe acontecesse qualquer coisa.

     — A ele! Por minha causa nada derramarias?

     — És desconhecido!

     Disse-o com tanta sinceridade e isso era tão engraçado, que tive de rir.

     — Bem, — respondi — se tu choras somente por ele, dize à tua anajab que, se nos acontecer qualquer acidente, chore duas ou três gotas de lágrimas por mim. Agora, porém, volta para dentro, para que teu pai não note que estivemos conversando em segredo. Também não tenho confiança nele.

     — Efêndi, te protegerei de longe!

     Saiu. As suas palavras pareceram-me sem sentido. Soube, contudo, mais tarde, que lhe fora possível cumprir o prometido.

     Desatei o cavalo e esperei. Pouco depois, chegou o padeiro e trouxe os presentes destinados ao mendigo.

     — Onde está tua mulher e tua filha? — interroguei-o indiferente, observando-o, porém, furtivamente. — Não devo despedir-me delas?

     — Mas vais voltar, senhor — respondeu-me.

     A cara gorda se aclarou de um ar velhaco e malicioso, levando-me a botar a mão sobre o seu ombro, para dizer, seriamente:

     — Penso que tuas palavras não contém uma ironia?

     Imediatamente a sua fisionomia tomou a expressão de sincera surpresa. Olhou-me, cabeceando, e disse:

     — Não te compreendo. Não acredito que me tomes por mentiroso.

     — Hum! Na minha terra existe um provérbio, segundo o qual não se deve confiar nas pessoas que tem as orelhas rasgadas.

     — Fazes referência a mim? — perguntou em tom amuado.

     — Vejo que tens um rasgo em cada orelha.

     — Isso não mostra que te engano. Antigamente as minhas orelhas estavam íntegras. Professo a religião do Profeta e juro, pelas barbas de Maomé que nós nos veremos, se tu mesmo não desistires disso.

     — Não desisto e espero que esse encontro seja amistoso. Acontecesse o contrário, seria possível que viesse a ocorrer alguma coisa nada do teu agrado.

     Durante essa palestra amistosa, amarrei o pacote aos arreios, montei e puxei então as rédeas e parti.

    

    Em Perigo

     Depois de poucos minutos, alcancei a aldeia de Dchnibachlue, propriamente dita, atravessei-a e novamente me encontrei no meio de campos e plantações de milho, seguidos de uma várzea coberta de pastagens, que delimitava com o mato, sobre o qual falara, há pouco.

     Os trilhos, feitos pelas desajeitadas carretas de bois, eram perfeitamente visíveis. Acompanhei-os, na direção de sudoeste, como me fora indicado, e já me achava quase junto ao mato, quando notei um cavaleiro, que se aproximava a trote, através da várzea, à minha esquerda. Como eu andasse mais devagar, em seguida me alcançou.

     — Allah bilindche — Deus seja contigo! — saudou.

     — Muetechekkueruem — Agradeço-te! — saudei.

     Examinou-me com o olhar, e eu fiz o mesmo com ele, isso, porém, de modo menos ostensivo do que o recém-chegado. Nada se lhe observava de extraordinário. O seu cavalo era ruim, as suas roupas eram ruins e a sua cara não dava impressão melhor. Somente as pistolas e a faca, que levava à cintura, pareciam ser boas.

     — De onde vens? — perguntou-me.

     — De Dchnibachlue — respondi atenciosamente.

     — E para onde vais?

     — A Kabatch.

     — Eu também. Conheces o caminho?

     — Espero encontrá-lo.

     — Esperas encontrar? Então, és estranho?

     — Sou.

     — Permites que te acompanhe? Se me dás licença, não poderás per--der-te.

     O homem não causava boa impressão; mas, isso não era motivo para ofendê-lo. Não obstante, podia ser boa pessoa. E mesmo que se verificasse o contrário, nada me adiantaria, porquanto não me era possível mandá-lo embora. No máximo, conseguiria provocar a sua cólera ou vingança. E ele me parecia bem capaz de, em tais circunstâncias, procurar convencer-me da boa qualidade das suas armas. Por isso, respondi:

     — És muito amável. Sigamos juntos.

     Fez um gesto de satisfação e guiou o seu cavalo para o lado do meu.

     Cavalgamos silenciosamente, durante algum tempo. Com interesse visível, observava as minhas armas e o meu garanhão. Parecia-me também, que, de quando em quando, examinava preocupadamente as redondezas. Haveria alguma coisa para recear? Achei prudente não fazer perguntas. Somente mais tarde, vim a saber a razão daqueles olhares preocupados.

     — De Kabatch, seguirás para diante? —- perguntou-me, agora, com amabilidade.

     — Não.

     — Vais visitar alguém?

     — Vou.

     — Posso saber a quem? És forasteiro e, talvez, possa mostrar-te a casa dessa pessoa.

     — Vou em procura de Ali, o sahaf.

     — Oh, conheço-o! Passaremos pela sua casa. Chamar-te-ei a atenção.

     A conversa ficou novamente interrompida. Não tive vontade de me entregar a uma palestra e ele parecia estar na mesma disposição. Assim, percorremos um trecho longo, sem que fosse pronunciada mais uma palavra.

     Por entre as árvores do mato, o caminho se estendia, cada vez mais, para o alto. Alcançamos a planície mais elevada, a que se referira o padeiro, e também o lugar, onde os trilhos se afastavam para o sul. Podia-se observar, contudo, que muitos viajantes seguiam para o oeste. Seguimos nesta última direção e, em breve, alcançávamos o arroio, referido na conversa com o padeiro.

     Pouco depois, chegamos a uma clareira e à sua margem notei uma choupana baixa, alongada.

     Fora feita de pedras e estava coberta de pedaços de madeira, parecidos com ripas. Observei uma porta baixa e a abertura de uma janela. No telhado havia uma abertura, que seguramente servia para deixar sair a fumaça. Gigantescos carvalhos estendiam os seus galhos nodosos sobre essa construção original, que dava uma impressão de abandono desolador.

     Assim como que por um demais, o meu companheiro indicou a choupana e disse:

     — Ali mora um mendigo.

     Não fêz, porém, menção alguma de sofrear o cavalo. Essa circunstância fêz apagar-se a desconfiança, que já nascia em mim. Parei o garanhão e indaguei:

     — Como se chama esse mendigo?

     — Saban.

     — Já foi vassoureiro?

     — De fato.

     — Então, tenho de ir ter com ele, por um instante. Preciso entregar-lhe um presente.

     — Vai. Ele, decerto, precisa. Enquanto isso, vou andando para lá, sempre junto ao arroio. Se me seguires, não poderás deixar de me alcançar.

     E, realmente, se afastou. Tivesse se apeado, haveria motivo para eu redobrar de precauções. Agora, sentia-me tranqüilizado. Dirigi-me à choupana e cavalguei em torno dela, para verificar se alguém, porventura, se encontrava nas proximidades.

     Os carvalhos e as faias estavam tão afastados uns dos outros, não obstante se unirem as seus galhos, que se podia ver, através dos troncos, até o fundo do mato. Não encontrei nem o rasto de um ser humano.

     Quase me envergonhava de ter tido desconfianças. Um pobre mendigo doente, que poderia fazer contra mim?

     Não havia esconderijo, pelo menos nas proximidades da choupana. Disso eu pensava poder estar convencido. Tivesse eu motivos para receios, eles somente podiam existir no interior daquela miserável construção e ali não seria difícil fugir ao perigo.

     Apeei-me, defronte à abertura maior, na qual não havia sequer uma porta, mas não amairei o cavalo, para, em caso de necessidade, montar e sair dali.

     Entrei, vagarosamente, com o revólver engatilhado na mão.

     Parecia não ser possível tomar maior cautela e, de fato, não era preciso, como me convenci, ao primeiro golpe de vista.

     O interior da choupana era constituído de um único compartimento, tão baixo que quase batia com a cabeça no teto. Vi uma pedra preteada, que certamente servia de fogão, diversas cabeças de cavalos e bois, destinados, por certo, a servir de cadeiras, e no canto esquerdo, ao fundo, um leito de capim, sobre o qual se encontrava um corpo humano, imóvel. Ao lado, no chão, havia um vaso, uma garrafa quebrada, uma faca e algumas outras miudezas insignificantes. Era tudo quanto continha a choupana. Que poderia eu temer?

     Trouxe o pacote e aproximei-me do leito. O homem ainda não se mexia.

     — Gueniz chajir ola — Bom dia! — saudei, em voz alta.

     O homem virou-se lentamente, cravou os olhos em mim, como se tivesse acordado naquele instante, e indagou:

     — Ne istersiz sultanum — Que ordena, meu senhor?

     — Ad-in Saban — O teu nome é Saban?

     — Bach uestuene sultanum — A's suas ordens, meu senhor.

     — Bojadji Bochk tanimar-sen — Conhece o tintureiro Bochak? Ergueu-se até ficar sentado na cama e disse, com alegria.

     — Pek ei sultanum — Muito bem, meu senhor.

     Esse homem parecia realmente estar muito doente. Vestia somente trapos e se assemelhava a um esqueleto, sem carnes. Os seus olhos cravaram-se, cobiçosos, no pacote, que estava na minha mão.

     — Ele te manda vinho e pão.

     Ao dizer isso, ajoelhei-me compadecido ao lado da cama, para abrir o pacote, enrolado em estôpa.

     — Oh, senhor. Oh, senhor, como és bondoso! Tenho fome!

     O seu olhar chamejante estava cravado em mim. Seria isso realmente fome, ou qualquer outra coisa, perigosa para mim. Não tive tempo de pensar muito sobre isso. Atrás de mim, verificou-se um ruído. Voltei a cabeça. Dois, quatro, cinco homens entravam violentamente pela porta. O da frente segurava a espingarda ao contrário, como para dar um coronhaço. Saltou sobre mim.

     Puxei rapidamente o revólver e — levantei-me? — Não, quis levantar-me; mas os longos braços esqueléticos do mendigo me envolveram, como os tentáculos de um polvo, e me puxaram para baixo. Sei, apenas, que apontei o cano do revólver para a cabeça do velho traidor e apertei o gatilho; mas, eu não podia mirar. Nesse momento, uma terrível pancada na cabeça prostrou-me por terra.

     Eu morrera; não possuía mais corpo; era somente alma, espírito. Voei através do fogo, cujo calor me devorava, e depois por entre ondas, que me enregelavam de frio, e por dentro de um mar de nuvens e cerração, muito alto sobre a terra, desenvolvendo uma velocidade vertiginosa, aterradora. “A seguir, experimentei a sensação de estar voando, num rodopio igual ao da luz em redor da terra, sem ter um pensamento, sem ter uma vontade. Em torno e dentro de mim, havia um vácuo indescritível. A pouco e pouco, a velocidade diminuía. Comecei não só a sentir, como também a pensar. Mas, que pensava eu? Coisas infinitamente tolas, de todo em todo impossíveis. Não podia, porém, falar, por mais que me esforçasse para articular um som.

     Pouco a pouco, o meu pensamento começou a se organizar. Ocorreu-me o meu nome, o meu estado, a minha idade, com a qual falecera. Entretanto, não tinha conhecimento do lugar e do modo por que encontrara a morte.

     Afundava-me mais e mais. Já não redemoinhava em torno da terra, mas dela me aproximava como uma pena leve, que cai de uma torre e balenceia para lá e para cá. E quanto mais fundo caía, tanto mais aumentava a lembrança da minha vida, então terminada. Lembrei-me de pessoas e aventuras, sempre mais e mais. Começava a fazer-se claridade dentro do meu ser, cada vez mais claridade. Recordei-me de ter empreendido ultimamente uma longa viagem; lentamente, ocorreu-me o nome das terras por onde viajei; por último, estivera em Istambul, em Edreneh, e estava no propósito de voltar para casa, quando fui abatido, no caminho, dentro de um casebre de pedra, no sopé das montanhas do Plania. Os assassinos, apesar de eu já ser um cadáver, amordaçaram-me e me jogaram sobre o leito, onde estivera deitado o mendigo, sentando-se, a seguir, em torno do fogo, que foi acendido, para assar alguma coisa.

     Eu tinha morrido e contudo sabia disso. Ouvira até as vozes dos assassinos; sim, ainda as ouvia, ao descer para a terra, que se divisava cada vez melhor, quanto mais dela me aproximava.

     E que maravilha! Caí, através do telhado da choupana, sobre os capins do fétido leito, e ali ainda estavam os assassinos. Ouvi-os falar; senti o cheiro da carne, que assavam sobre o fogo. Quis vê-los, mas não podia abrir os olhos e nem me podia mover.

     Seria eu realmente só uma alma, um espírito? No alto, onde outrora estava a minha cabeça, eu sentia, no lugar que devera ter sido a nuca, uma dor terrível, um fogo que me dava a impressão de ser aquilo o próprio inferno. Agora, já me parecia possuir, ainda, a cabeça; mas ela era dez vezes, cem vezes, mil vezes maior do que antigamente e abrangia o oceano de fogo, que se encontra no fundo da terra, e em cujas ilhas trabalham, martelam poderosamente Vulcano e milhões de ciclopes.

     A princípio senti só essa desmedida cabeça; depois notei que ainda tinha o tórax, as pernas, os braços. Mas não podia mexer uma articulação Em compensação ouvia, distintamente, cada palavra pronunciada, ali, junto ao fogo. Ouvi até as batidas de cascos de cavalos. Dois cavaleiros apearam, lá fora.

     — Kalyndji gelir — Vem chegando o gordo! — disse alguém.

     Não era essa a voz do homem, com quem eu fora até a choupana? Como teria ele vindo aqui? Pois, tinha continuado, andando!

     — We bir ikindji — E mais alguém! — acrescentou outra voz.

     — Kim-dir — Quem é?

     — Jahu, bre silahdji Deselim Ismilandan — Olá, o armeiro Deselim, de Ismilan.

     Ouvi saírem os dois homens que estavam dentro da choupana, para receber os recém-chegados com grandes demonstrações de alegria.

     — Achmaki tut-diniz — Pegaste o idiota? — perguntou uma voz gorda.

     Reconheci-a; era a do gordo padeiro de Dchnibachlue. Como assim? Referir-se-ia essa palavra idiota a mim? Pudesse agarrar um pouquinho esse homem, eu o... ah, repentinamente pude fechar a mão! Quanto pode a raiva!

     — Ewwet, aldat-dik onu — Sim, nós o enganamos.

     Essas palavras foram ditas pelo mendigo. Portanto, a minha bala não o acertara.

     — Gene nerde dir — Que é desse piolho de burro?

     Era forte! Se quisermos nos referir, no correr da palestra, a uma pessoa realmente estúpida, diremos que é um burro. O turco utiliza-se de uma expressão parecida, empregando a palavra kojundji. O homem que estava com a palavra, porém, considerava-me tão infinitamente néscio, que essa palavra teria constituído uma distinção imerecida. Por isso me chamou gene, o que quer dizer, mais ou menos, piolho de burro.

     As mãos formigavam-me e era de se ver: consegui fechar, em forma de dar soco, as duas mãos e não apenas uma, como há pouco. Parecia-me de fato que eu ainda vivia, não tendo estado morto. Pelo menos, o desejo que eu tinha era bem terreno; referia-se à atividade, nada sobre-humana, que o turco costumava designar com as palavras doejmek, wurmak e dajak jedirmek e que se traduz para o alemão com a palavra amável “prue-geln”. (1)

     Como seria que a minha cabeça já não queimava e doía tanto? Também o desenvolvimento que ela tomara, conforme descrevi, parecia ter se reduzido extraordinariamente.

     — Kulibede dir — Está na choupana — respondeu o mendigo.

     — Zindjirde-a — Naturalmente, amarrado? — perguntou o homem que me chamara de piolho de burro e cuja voz eu não conhecia.

     — Ewwet, andjak dejil la ildch — Sim, mas, sem necessidade.

     — Nitchuen — Por quê?

     — Tjuenki dir mueteweffa — Porque está morto.

     As vozes tornararn-se um murmúrio confuso. Somente, depois de algum tempo, ouvi novamente a ordem:

     — Onu bana giõsteryn — Mostra-me ele. Entraram no casebre e o mendigo disse:

     — Bunda jatar — Aqui está ele.

     Uma mão foi colocada sobre o meu rosto e aí ficou, em inspeção, por algum tempo; cheirava a pez de sapateiro e leite azedo.

     Portanto, eu não perdera o olfato. Afinal, não estava morto! O dono da mão disse:

     — Sowuk óluemin gibi — Frio como a morte!

     — Ona namzuna bak — Examina o pulso! — ouvi o gordo padeiro dizer.

     A mão de pez e leite escorregou do meu rosto para o pulso. O polegar apertou-se à parte anterior da articulação, onde dificilmente se pode sentir alguma coisa da artéria. Depois de alguns momentos de grande expectativa, o homem disse:

     — Onun jok damar woruchu — Não tem pulso.

     — El ile dokan juereksijy — Examina o coração.

     Um instante depois, senti a mão sobre o meu peito. Parecia não ter sido preciso abrir nenhum botão. Já estariam abertos o casaco e o colete? Ou teriam essas belas pessoas me livrado de tais peças do vestuário?

     Com satisfação, ter-me-ia certificado disso; mas, não podia abrir os olhos e, mesmo que o pudesse, certamente não me ocorria fazê-lo, agora.

     Durante um momento, a mão esteve sobre o meu coração; depois escorregou para a região abdominal, onde ficou descançando. A seguir, o oráculo declarou:

     — Gõnnuelue sessini tchikarmar — O coração está calado, em silêncio.

     — Dir õlmuech onun itchuen — Consequentemente, está morto! — soou, em coro.

     — Kim onu õlduermich — Quem o matou? — perguntou o homem, cuja voz eu não conhecia.

     — Ben — Eu! — foi a resposta lacônica.

     — Nassyl — Como?

     — Tepelemich onu — Abati-o, com um pranchaço.

     ____________________

     (1) Em português: espancar, sovar, surrar.

    

     O homem disse essas palavras com um acento de satisfação, que me trouxe a convicção tranquilizadora de que o meu sangue estava em movimento. Senti-o subir para a cabeça. Quem ainda tem sangue, a correr nas veias, não pode estar morto. Portanto, eu ainda estava vivo; em realidade, estava deitado sobre o monte de capim e perdera, somente, os sentidos.

     O gorducho do padeiro, contudo, parecia ter ainda alguns receios. Não queria deixar sem experiência, todos os meios que o pudessem convencer da minha morte. Por isso, perguntou:

     — Soluk malik olmar — Ele tem respiração?

     — Kulak asar-im — Vou experimentar.

     Senti que alguém se inclinava sobre mim. Depois, um nariz esfregou-se no meu. Percebi um cheiro de alho, fumo e ovos podres. O indivíduo declarou, então:

     — Onun jok nefes — Não tem ar.

     — Sabucha-lum — Vamos embora!

     Esta ordem livrou-me de uma grande preocupação, a de que ainda viessem a descobrir vida em mim. Não teria sido, porém, melhor se descobrissem que ainda estava vivo? Não dispunha do uso dos meus membros; por isso, encontrava-me diante do pavoroso risco de ser enterrado vivo.

     Assaltou-me o medo. Senti enregelar-me o corpo todo e, depois, experimentei um calor abrazador. Comecei a suar. Os homens tinham se sentado junto ao fogo. Conservavam-se calados. Talvez estivessem ocupados, presentemente, com a carne, cujo cheiro eu sentia.

     A minha situação era desesperadora. A pancada com a coronha da espingarda atingira-me a cabeça, pela parte de trás. Não sou anatomista, nem patologista; não posso enumerar as conseqüências possíveis de uma tal pancada. Tinha audição e olfato; talvez também fala e paladar; mas a ausência de movimento nos músculos, eu atribuía àquela batida. Retornariam esses músculos à atividade, com tanta rapidez, como eu precisava?

     E mesmo que isso acontecesse, para o que, aliás, contava com a minha robusta constituição física, restavam poucas perspetivas de subtrair-me ao destino que me aguardava. Sim, se os meus companheiro estivessem pelas proximidades! Se, pelo menos, o meu bom Halef pudesse ter uma idéia do grave perigo que me ameaçava! Mas, isso não acontecia.

     Sobreveio-me um sentimento, a que não sei se deva chamar de ódio ou desespero. Talvez fosse o primeiro, porquanto eu sei que Deus pode ajudar, ainda mesmo que a mola do relógio tenha se desprendido para bater a hora suprema. Cerrei os punhos; comprimi o ar nos pulmões, como se quisesse asfixiar a mim mesmo; retesei todos os músculos, que ainda estavam sob o meu domínio e então — nesse momento, o meu corpo sofreu um tirão e eu pude mover os braços, as pernas, a cabeça e — graças a Deus — também as pálpebras.

     É verdade que tomava todo o cuidado, para não deixar perceber isso. Pouco a pouco, examinei um a um todos os músculos e articulações. Não era fácil; a cabeça parecia quebrada. Tinha de esforçar-me bastante, para pensar com lógica e nas extremidades dos membros sentia um peso, como se estivessem cheios de chumbo; contudo, tinha a esperança de poder levantar-me e me defender, se necessário. E demais, confiava na sugestão do momento e nos efeitos de uma vontade firme sobre um corpo desobediente. Era certo, até aí, que eu não me deixaria enterrar vivo.

     Conservei-me deitado ao comprido, olhando, com o rabo dos olhos, para o fogo, que queimava sobre a pedra. Estavam sentados lá oito homens, que cortavam a carne dos ossos de uma ovelha, para levar grandes pedaços à boca. Entre eles, encontrava-se o gordo padeiro, o mendigo amável e aquele demônio honrado, que se oferecera para me servir de guia até Kabatch.

     Era isso que o padeiro pensara, ao jurar que nos havíamos de ver novamente! É certo que ele não contara que me matassem. Espera, montanha de carne, eu te provarei à evidência palpável, que ainda estou vivo.

     E o meu notável guia soubera fingir maravilhosamente! Por que olhara, tão preocupado, através do mato? Ah, agora começava a clarear! Quando estive esperando, atrás da casa do tintureiro, o empregado se afastara. Fora enviado pelo seu senhor, para reunir, a toque de caixa, os gentlemen aqui presentes. O meu guia me encontrara no campo e depois receara viéssemos a dar com outros daqueles distintos cavalheiros, caso em que eu poderia, facilmente, suspeitar. O tintureiro-padeiro tinha-me confiado a missão junto ao mendigo, somente por esperteza. Era isso e não outra coisa.

     E, agora, ele estava aqui com o armeiro e dono de café Deselim, de Ismilan. Esperara este para hoje ou amanhã, e esse bom homem, cunhado do Chut, chegava justamente no minuto exato para se livrar, pela minha prisão, do perigo que o ameaçava.

     Como poderia eu fugir? Oito contra um! E este um estava amordaçado e ferido! O buraco da janela era muito pequeno; e ninguém podia sair por ele.

     Na frente, a um canto, estavam as minhas armas. Tinham-mas tirado, como tudo o mais que trazia comigo, naturalmente. Estava deitado sobre o monte de capim, em camisa e calça.

     Examinei então cuidadosamente as cordas que me amarravam. Eram de couro e estavam bem apertadas. Nada havia a fazer. Se fizesse força, elas me cortariam a pele. Pensei e meditei, para achar uma idéia salvadora, mas debalde. Havia somente uma esperança, e esta não valia muito: devia fingir-me de morto. Certamente, levar-me-iam para o mato, para me enterrar. Talvez tivessem, então, a idéia de tirar-me as cordas, para guardá-las, pois deviam valer qualquer coisa, embora, pouco. Assim, retornaria à posse livre dos meus músculos.

     Talvez não quisessem dar à sepultura as duas peças de roupa que ainda vestia. Quisessem tirá-las, teriam de tirar primeiro as cordas. Também nesse caso, tinha a esperança de, embora não pudesse livrar-me, não ser enterrado vivo sem resistência, terminando a peregrinação terrestre neste lugar. Restava-me esperar pacientemente o que viesse. Certamente, esses homens não ficariam eternamente calados. Uma conversa deles, poderia dar-me a indicação do caminho a seguir.

     E justamente nesse momento, aquele homem, cuja voz eu não conhecia e de quem suspeitava fosse o armeiro de Ismilan, largou o último osso. Limpou a faca nas calças, meteu-a na cintura e disse:

     — Bem! Já comemos e agora podemos conversar. Pagarei o carneiro. Quanto custou?

     — Nada — respondeu o mendigo. — Eu o roubei.

     — Tanto melhor. O dia começa, portanto, bem barato. Venho, para dar a vocês trabalho lucrativo, e, entrementes, fizeram outro serviço que, talvez, ainda seja mais rendoso. Não sei, até agora, como se deu isso exatamente. Cheguei à casa do Bochak, no momento em que ia sair e, depois, andamos com tanta rapidez que ele não pôde falar, durante o trajeto.

     — Allah 'l Allah! Nunca cavalguei dessa maneira! — queixou-se o gordo. — Chego a não sentir se ainda estou vivo.

     — Vives, amigo! Mas, não pudeste sair mais cedo?

     — Não. Tenho só uma montaria e o mensageiro, que a levara, demorou-se muito.

     — E agora quem é esse estrangeiro?

     — Um cristão da terra dos francônios.

     — Que Alá destrua a sua alma, como vocês mataram o seu corpo. Como foi que ele te procurou?

     — Encontrou a minha mulher no caminho e perguntou por mim. Sabia todos os nossos segredos e queria mandar-me castigar, se eu não desse a minha filha, por esposa, ao sahaf.

     — Ela pertence a Mosklan, nosso aliado. Quem foi, porém, que revelou tudo a esse forasteiro?

     — Não sei; calou-se a respeito disso. Falou de Mosklan, do Chut, de todos; conhecia o nosso espinheiral no campo e obrigou-me, sob ameaça, a dar o meu consentimento.

     — Mas tu não darás!

     — Sustento a palavra dada a um crente; ele, porém, é cristão. Vai a Istambul e fala com os descrentes. Existem lá muitos cristãos russos, que dizem não ser preciso cumprir a palavra, quando se fêz a promessa, dizendo para consigo mesmo que a ia quebrar. Por que não farei isso para com ele, quando é o que ensinam e praticam entre si?

     — Tens razão.

     — Mandei, então, secretamente o meu peão, entender-se com Saban e com os amigos aqui, para dizer-lhes o que deveriam fazer. Saban devia fingir de doente: Murad esperaria o forasteiro, para trazê-lo com segurança para aqui e os outros esconderam-se por trás dos troncos grossos das árvores do mato, para entrar no rancho, depois dele. É o que sei; o resto os outros poderão contar.

     — Então, Saban, que foi que aconteceu depois? — perguntou o armeiro.

     — Foi tudo muito bem e muito mal — respondeu o mendigo. O estrangeiro chegou acompanhado de Murad, que aparentou prosseguir, sozinho, a viagem, e se apeou. Observei-o pela janela e, em seguida, me deitei rapidamente. O desconhecido entrou e me deu aquilo que o padeiro me mandara.

     — Tu me restituirás o vinho! — interveio este. — Mandei-o, apenas, por pretexto, e possuo só essa garrafa. Podes ficar com os pães.

     — O que! Tu lhe mandaste vinho? — perguntou o ismilanense.

     — De fato.

     — Não o receberás mais.

     — Por quê?

     — Porque vamos bebê-lo.

     — Como podem beber? São filhos crentes do Islam, e o Profeta proibiu o vinho.

     — Não, ele não o proibiu. Disse somente. “Seja maldito tudo quanto embebeda”. Essa garrafa de vinho não nos embriagará.

     — É propriedade minha!

     A sua inflexão de voz demonstrava a intenção firme de salvar o vinho. Agora, porém, interveio o mendigo, rindo:

     — Não briguem em torno dos mandamentos do Profeta. O vinho não poderá ser bebido.

     — Por quê? — perguntou o antigo proprietário do objeto em discussão.

     — Porque já foi bebido.

     — Homem, que é que tens!? Quem te deu o direito para isso? — bradou o padeiro.

     — Tu mesmo. Mandaste-o a mim, de modo bem claro. Tomei-o com os companheiros. Se chegasses antes, poderias ter bebido conosco. Lá está a garrafa; agarra-a e cheira, caso a tua alma tenha saudades dela.

     — Quero que sejas herdeiro do inferno, ladrão! Nunca mais, na vida, receberás um presente meu.

     — Não preciso, também, embora seja tido como esmoleiro. Sabes disso, tão bem como eu.

     — Agora, acabem com a briga! — ordenou o armeiro. — Continua a narrativa, Saban.

     Este obedeceu a ordem. Disse:

     — O desconhecido pensou, talvez, que eu dormia. Aproximou-se de mim e cumprimentou em voz tão alta, que fingi ter acordado. Perguntou-me se o meu nome era Saban e se conhecia o tintureiro Bochak, que me mandava um presente. Ajoelhou-se a meu lado para abrir o pacote, que continha o presente mandado. Vi, então, os companheiros, que vinham entrando sorrateiramente. Segurei-o rapidamente e puxei para o chão e ele levou a pancada, que o matou imediatamente. Tiramo-lhe as roupas, e agora podemos repartir tudo quanto levava consigo.

     — Se vamos repartir o que era dele, é coisa para ser resolvida. Que objetos trazia?

     Tudo foi relacionado. Não se esqueceram da mais insignificante miudeza. Até os alfinetes, de que possuía um pacotinho, foram contados. Nesta região, os alfinetes eram uma raridade e representavam, por conseguinte, uma aquisição valiosa.

     Pelas pálpebras semiabertas vi que o armeiro de Ismilan examinava a minha espingarda.

     — Esta arma não vale dez paras — disse. — Quem poderá usá-la? É mais pesada do que cinco armas turcas compridas e aqui não existem cartuchos tão grandes para carregá-la. É um lança-chamas de duzentos anos.

     O bom homem decerto nunca tivera nas mãos uma dessas armas, que se usam na caça de ursos. Mas, ao lhe ser mostrada a minha espingarda curta, tipo Henri, mais ainda ele sacudiu a cabeça. Revirou e examinou a arma por todos os lados, mexeu e experimentou em diversos lugares e depois deu a sua opinião, com um sorriso de desprezo.

     — Esse estrangeiro deve ter tido ratos na cabeça. Essa arma é um brinquedo para crianças, que vão receber instrução militar. Não se pode carregá-la; não se pode sequer dar tiro. Aqui está o cano e aqui a coronha e, no meio, uma bala de ferro, com uma porção de buracos. Para que serve a bala? Será para receber os cartuchos? Não se pode movê-la. Onde está o gatilho? Não se pode mover com a mola que devia disparar o tiro. Se esse homem ainda vivesse, iria desafiá-lo a dar um tiro. Não poderia e teria de se envergonhar.

     Assim foi examinado cada um dos objetos e surgiram opiniões, que me teriam feito rir, se isso fosse compatível com a minha situação. Justamente, quando o ismilanense pretendia levantar-se para ir examinar o meu cavalo, ouvi o ruído das ferraduras de um cavalo, que se aproximava. Também os homens o ouviram, e o mendigo postou-se na porta:

     — Quem vem lá? — perguntou o ismilanense.

     — Um desconhecido — respondeu o interrogado. — Um sujeito pequeno, que nunca vi.

     E já eu ouvira a saudação:

     — Nebarak mu barak — Bendito seja este dia.

     — Neharak sai'd — Seja bendito o teu dia! Quem és?

     — Um viajante de longínquas terras.

     — De onde vens?

     — De Assemnat.

     — E para onde vais?

     — Vou a Guemuerdjina, se me dás licença.

     — És muito delicado, porque nem precisas da minha licença.

     — Sou delicado, porque desejo que tu também o sejas. Queria fazer-te um pedido.

     — Faze-o, então.

     — Estou cançado e com muita fome. Dás-me licença de tomar a minha refeição aqui e descansar um pouco nesta choupana?

     — Não tenho comida para ti; sou pobre.

     — Tenho pão e carne, de que também te darei. Dá para nós dois.

     Impacientemente, esperei a resposta que, agora, devia dar o mendigo. Pode-se avaliar a minha excitação: reconhecera imediatamente a voz do desconhecido; era a do meu pequeno e bom hadji Halef Omar.

     Onde estivera ele, durante a noite? Como teria vindo aqui? De que modo soubera que eu devia ser encontrado nesta direção? Essas e outras perguntas cruzavam o meu cérebro. Em todo o caso, tinha de supor que eu apeara aqui, porquanto via o meu cavalo, amarrado lá fora. E da mesma forma, tinha de verificar que eu fora recebido mal, porquanto o mendigo estava com a minha faca bowie na mão. Era fácil de supor que ela me tivesse sido tirada.

     Tive cuidados pelo amigo, mas, ao mesmo tempo, senti uma impressão de segurança. Halef arriscaria, certamente, a sua vida, sem hesitar, para me libertar.

     O ismilanense se levantara; afastou o mendigo com um empurrão e chegou à porta; olhou para o hadji e disse, muito admirado:

     — Que vejo, forasteiro! Tens a koptcha.

     — Ah! Conheces este distintivo? — perguntou Halef.

     — Não vês que também o uso?

     — Vejo-o. Somos, portanto, amigos.

     — Quem te deu essa presilha?

     — Pensas que se revela um segredo com tanta facilidade?

     — Tens razão. Apeia e sejas bem-vindo não obstante chegares a uma casa enlutada.

     — Por quem é o luto?

     — Por um parente do dono desta casa. Morreu na noite passada, de um ataque do coração. O cadáver está ali no canto e nós estamos reunidos para fazer as orações.

     — Que Alá lhe conceda as alegrias do paraíso.

     Com essas palavras, parecia que Halef apeiava. Depois, ouvi-o interrogar:

     — Que lindo cavalo! De quem é esse garanhão?

     — Meu — respondeu o armeiro.

     — És digno de inveja. Este cavalo, decerto, é filho da égua do Profeta, a qual foi testemunha, todas as vezes quando, à noite, chegavam os mensageiros de Alá.

     Entrou e dirigiu o olhar para os outros e depois para o meu canto. Vi que a sua mão foi levada à cintura; mas, felizmente, teve tanto poder sobre si mesmo, que não se deixou trair.

     — Este é o morto? — perguntou, apontando para mim.

     — É.

     — Deixem que lhe preste as minhas homenagens.

     Quis aproximar-se. Nisso, o mendigo disse:

     — Deixa-o descansar! Já fizemos as orações fúnebres para ele.

     — Mas, eu ainda não. Sou ortodoxo e costumo obedecer aos mandamentos do Alcorão.

     Aproximou-se, sem ser impedido e ajoelhou a meu lado, como para rezar, voltando as costas para os outros. Ouvi o ranger dos seus dentes. Era de imaginar, que os olhos de todos estavam, nesse momento, voltados para ele e para mim, e, por isso, conservei os meus rigorosamente fechados, mas balbuciei, de modo a ser ouvido somente pelo meu companheiro:

     — Halef, estou vvo.

     Tomou fôlego, respirando fundamente, como se o tivessem livrado de um grande peso, ficou ajoelhado durante mais algum tempo e depois se levantou, ficando, entretanto, perto de mim. E, então, disse:

     — Este morto está amarrado!

     — Admiras-te disso? — perguntou o armeiro.

     — Naturalmente! Não se amarra nem mesmo o cadáver de um inimigo. Um homem morto não pode fazer mal a ninguém.

     — É verdade. Mas, tivemos de amarrar este homem, porque, durante o ataque, esbravejou como um doido. Corria furioso, de um lado para outro; batia e dava pontadas para todos os lados, pondo a nossa vida em perigo.

     — Agora, porém, está morto. Por que não lhe tiram as cordas?

     — Ainda não pensamos nisso.

     — Isso é a profanação de um cadáver. A sua alma não pode sair daqui. São parentes do desencarnado?

     — Não.

     — Então devem cruzar as suas mãos e voltar-lhe a cara na direção de Meca.

     — Não sabes que a gente se torna impuro, quando pega num cadáver?

     — Já estão impuros, porquanto estiveram aqui, no mesmo quarto, com o defunto. Não precisam tocar no cadáver. Cortem as cordas com uma faca e agarrem-no com um lenço. Aqui está o meu lenço de bolso. Devo eu mesmo fazer isso?

     — Estás muito preocupado pela alma dele.

     — Somente pela minha. Sou discípulo dos ensinamentos e da Ordem de Merdifah e faço aquilo que o dever manda a todo o verdadeiro crente.

     — Faze o que quiseres.

     Puxou da faca. Dois talhos — as minhas mãos e os meus pés estavam livres. Depois, amarrou a sua mão direita com o lenço, para não tocar no cadáver, junto as minhas mãos e me virou para o lado, de modo que fiquei com o rosto voltado para o leste.

     Como essa era a direção, onde se encontravam os presentes, tornava-se mais fácil observá-los.

     — Assim! — disse, jogando longe de si o lenço, agora impuro. — minha alma está tranqüila e posso fazer a minha refeição.

     Saiu para ir até onde estava o seu cavalo. Os homens cochicharam até ele voltar, para sentar-se junto deles, com a carne e pão.

     — Não tenho muito — disse, — mas vamos repartir.

     — Come sozinho. Estamos satisfeitos — disse o ismilanense. — Ao mesmo tempo, podes nos ir dizendo quem és e o que te leva a Guermuesdjina.

     — Saberão. Mas, eu sou o hóspede e estavam antes de mim aqui. Deverei saber primeiro, em casa de quem estou.

     — Em casa de bons amigos; acreditas isso, certamente, pois o vês pela fivela.

     — Não quero duvidar; não seria bom para vocês.

     — Por quê?

     — Porque é perigoso ter-me por inimigo.

     — Realmente? — disse, rindo, o armeiro. — És um homem tão perigoso e terrível?

     — Sou — respondeu Halef seriamente.

     — Pensas que és um gigante?

     — Não; mas, nunca tive medo de um inimigo. Como, porém, são amigos, não precisam ter medo de mim.

     A resposta foi uma gargalhada sonora, e alguém disse:

     — Oh, nós não teríamos medo de ti, em nenhuma circunstância.

     — Então, digam-me quem são.

     — Sou um sertanejo de Kabatch e os outros aqui também o são. E tu?

     — A minha pátria é o Curdistão; sou caçador de ursos.

     Houve um pequeno silêncio; depois todos romperam numa gargalhada enorme.

     — Por que riem? — perguntou no tom mais sério. — Já é a segunda vez que riem dessa maneira. Não se ajusta a um verdadeiro crente, senão uma atitude de seriedade e respeito, diante de um cadáver.

     — Será isso possível, agora? Tu, um caçador de ursos?!

     — Por que não? — perguntou.

     — És um anão. O urso te enguliria logo que te visse. Mas não ficaria satisfeito. Seriam precisos dez homens do teu tamanho, para matar-lhe a fome.

     — A minha bala o comeria, antes que ele me comesse.

     — A caça de ursos, então, é a tua profissão?

     — De fato. Tive duas tias, a quem muito amei. Uma era irmã do meu pai e outra da minha mãe. Um urso comeu as duas. Então, jurei vingar-me dos ursos e saí, para matá-los, sempre e onde os encontrar.

     — Já mataste algum?

     — Sim, muitos!

     — À bala?

     — Sim. A minha bala não erra nunca!

     — Então, és tão bom atirador?

     — Dizem que sim. Conheço todas as espécies de armas e, com todas, acerto o alvo.

     Ah, agora comecei a perceber por que o astuto Halef queria fazer-se passar por caçador. Procurava um motivo, para apanhar as minhas armas. Talvez fosse sua intenção também, provocá-los a exigir dele um tiro de prova. Neste caso, teriam de segui-lo para fora e eu achava oportunidade de me levantar.

     — Que dizes? — perguntou o armeiro. — Pretendes conhecer todas as espécies de armas?

     — Conheço.

     — Então, conheces esta aqui?

     Apontou, ao mesmo tempo, para a minha espingarda Henri. Halef pegou a arma, examinou-a e depois disse:

     — Muito bem. É uma arma americana de repetição.

     — Nunca vimos uma arma dessas. Pensamos que fosse um brinquedo. Acreditas, porém, que se possa atirar muitas vezes, sem carregar?

     — Vinte e cinco vezes.

     — Oejuen-sen — Estás te excedendo! — bradou o armeiro.

     — Digo a verdade. Na terra, que citei, havia um grande artista de armas. Inventou esta espingarda. Era um homem esquisito. Pensou que, em pouco tempo, todos os bichos de caça estariam exterminados, se houvesse muitas dessas armas. Por isso não tirou patente da sua invenção. Conservou o segredo para si mesmo e fabricou, somente, algumas destas armas. Pouco depois, morreu. Outros quiseram descobrir esta arma; mas, quem desmontava, não mais conseguia reunir as suas peças. A arma tornara-se inútil. Os poucos, que possuíam uma delas, morreram nas florestas, e as espingardas ficaram perdidas. Esta aqui, talvez seja a única que ainda existe. Chama-se espingarda de repetição sistema Henri e eu gostaria de saber, como veio parar nas tuas mãos.

     — Comprei de um amerikaly em Istambul — esclareceu o armeiro.

     — Não foi procedimento inteligente desse homem vendê-la. Esta bala, atrás do cano, recebe os cartuchos. Move-se por si mesma, quando dispara o tiro, de modo que o buraco seguinte, com outro cartucho, vai para o cano. Devo mostrar-lhes como funciona isso?

     — Sim, mostra-nos.

     — Como foi que o amerikaly te vendeu esta arma sem explicar o seu funcionamento?

     — Esqueci-me de perguntar-lhe.

     — Então, és um homem que não posso entender. Nasceste, quem sabe, em Arkilik, onde as botas não têm sola, as carroças não têm rodas e os vasos não têm fundo? Vamos para fora! Quero mostrar-lhes como se atira com esta arma.

     — Está carregada?

     — Está. Devem indicar-me um alvo e o acertarei dez vezes seguidas. Saiu da choupana e os outros o seguiram. Estavam tão preocupados com a experiência, que nem sequer pensaram em mim. De resto, estavam convencidos da minha morte; não precisavam, portanto, preocupar-se comigo.

     — E agora, em que é que devo atirar? — ouvi Halef perguntar, lá fora.

     — Atira na gralha, que está naquele galho.

     — Não; ela cairia morta e eu quero dar diversos tiros no mesmo alvo. Vou atirar sobre a choupana. Vêem aquela ripa, que o vento quase desprendeu? Sobressai do telhado e constitui um bom alvo. Acertarei dez vezes nela.

     Ouvi que os seus passos se afastavam. Halef os atraía para tão distante quanto possível, para facilitar que eu acordasse do sono da morte.

     Lá estavam as minhas roupas, a faca, que o mendigo tinha deixado, os cartuchos, o relógio, a carteira, tudo, tudo junto e, ao lado, tinha sido; encostada à parede a minha espingarda.

     Saltei de pé e me espichei. Parecia que as minhas articulações estavam cheias de chumbo; estavam pesadas e não me obedeciam; mas, podia mover-me. A cabeça doía-me terrivelmente quando toquei no lugar, onde maior era a dor; senti uma inchação enorme.

     Não tinha tempo para dar atenção a isso. Vesti-me o mais depressa que pude, agarrei tudo que era meu e peguei a espingarda.

     Para isso, precisei mais tempo do que habitualmente; mas Halef dava os tiros com tanto intervalo, que, já ao quinto disparo, eu estava pronto.

     Todas as vezes que disparava, ouvia os gritos de aplausos dos assistentes admirados. Coloquei-me no meio da casa e daí podia observar Halef. Justamente, dava o sexto tiro. Vi, claramente, que ele não olhava para a ripa do telhado e sim para a janela. Esperaria ele que lhe desse um sinal? Rapidamente, cheguei à janela e levantei a mão, somente por dois segundos; mas isso fora o bastante. Halef fêz um sinal afirmativo com a cabeça e se virou para os assistentes.

     Não podia ouvir o que disse, mas vi que colocou a arma sobre o ombro e se aproximou do rancho.

     — Dez tiros, dez! — ouvi o armeiro bradar. — Deste apenas seis.

     — É o bastante — respondeu Halef, que já se tinha aproximado tanto que pude ouvir as suas palavras. — Viram que acerto o alvo, a cada tiro. Não quero desperdiçar as balas, porque, talvez, venha a precisar mais delas.

     — Para quê?

     — Para varar, com elas, a cabeça de todos vocês, patifes!

     Com essas palavras, estacou e voltou-se contra os outros. O momento de agir tinha chegado. Nós dois contra tantos? Mas o valente homenzinho não denunciou um sinal de preocupação ou medo. Eles tinham deixado as suas armas na choupana e só podiam resistir com as suas facas.

     Estavam perplexos, tanto pelas palavras do hadji, como pela atitude por ele assumida contra o grupo. Acreditaram, na verdade, que se tratasse de uma brincadeira, porquanto o ismilanense perguntou, rindo:

     — Como? Queres matar-nos, pequeno? Se queres fazer uma caçoada, escolhe coisa melhor. És um bom atirador; mas, não nos acertarias, não obstante ser pequena a distância que nos separa.

     Halef meteu um dedo na boca e assobiou forte e estridentemente. Depois respondeu:

     — Caçoada? Quem disse que estou caçoando? Olhem para lá! São dois que estão dispostos a mostrar-lhes que estou falando sério.

     Mostrou para um ponto oposto àquele em que se achava o rancho, junto à margem da clareira. Segui a direção indicada com o olhar. Lá estavam, à pequena distância um do outro, Osko, o montenegrino, e Omar Ben Sadek, o filho do guia, ambos com as armas apontadas. Tinham estado, portanto, escondidos e o assobio de Halef fora feito para que se apresentassem.

     — Dchuemle buetaen chejtanlar — Com todos os diabos! — berrou o armeiro. — Quem são esses homens? Que querem de nós?

     — Querem o cadáver, que está lá dentro do rancho.

     — Que é que eles têm com o defunto?

     — Muita coisa. O morto não é parente deste mendigo, mas, sim, o nosso chefe e amigo. Vocês o mataram e nós viemos para lhes dar a recompensa merecida.

     Todos pegaram as suas facas. Halef, porém, disse:

     — Deixem as facas na bainha; não lhes adiantarão nada. Tenho ainda dezoito tiros nesta arma e, ao primeiro disparo, os dois outros também atirarão. Serão cadáveres, antes de se aproximarem de mim.

     Disse isso em tom de tal modo resoluto, que eles tinham de se convencer da sua seriedade. Estavam, apenas, a dez ou quinze passos dele. Halef mantinha o cano da arma apontado contra eles. Se se jogassem, rapidamente, sobre ele, poderia acertar só num. Mas, ninguém queria ser este um.

     Entreolharam-se com raiva e embaraçados. Depois, o ismilanense perguntou:

     — Quem é o homem a quem chamas teu chefe e amigo?

     — É um atirador e caçador muito melhor do que eu. É invulnerável e, mesmo que o matassem, a sua alma voltaria para o cadáver. Se não acreditarem nisso, olhem para a choupana.

     Voltaram-se para a direção indicada. Lá estava eu, debaixo da entrada, com a arma na mão. Assustaram-se. Osko e Omar, porém, deixaram escapar um brado de alegria.

     — Vêem agora, que estariam perdidos, se quisessem oferecer resistência? — prosseguiu Halef.

     — Vaj! Bizim tuefenkler war isa idik — Ah! Tivéssemos as nossas armas! — gritou o armeiro.

     — Não as têm, porém. E se as tivessem, de nada lhes serviriam. Estão em nosso poder. Se se entregarem voluntariamente, seremos bondosos com vocês.

     — Como podes tomar atitude de inimigo, se possuis a presilha?

     — Procuraram matar o meu companheiro. Mas, o fato de eu possuir a koptcha deve convencer-lhes de que poderão contar com a minha condescendência se se entregarem. Entrem na choupana. Lá conversaremos mais.

     O ismilanense deixou escorregar o olhar para o rancho. Pareceu-me ver o seu rosto aclarar-se, por um instante, como um relâmpago.

     — Sim, disse ele. Entremos no casebre. Lá haveremos de esclarecer tudo. Quando cheguei, o estrangeiro já estava morto, segundo pensávamos. Entrem! Vamos, vamos!

     Empurrou os outros diante de si. Halef depôs a arma e eu me retirei, imediatamente, para tomar conta das armas daquela gente. Ajuntei-as e levei-as para um canto. Pretendia não deixar ninguém aproximar-se dali.

     Ainda estava ocupado com as armas, quando vi os homens entrarem, vindo na frente o tintureiro-padeiro, com uma verdadeira cara de pobre pecador. Ia justamente tirar a espoleta da última arma, quando ouvi um grito. Lá fora, foram disparados dois tiros; as balas bateram na parede, e, ao mesmo tempo, ouvi Halef chamar:

     — Sídi, sídi, para fora, para fora!

     Naturalmente, obedeci a esse chamado; nesse momento, porém, o homem que fora o meu guia, bradou:

     — Alto! Não o deixem sair!

     Puseram-se todos na minha frente. Meti o cano da espingarda na barriga de um deles, de modo que caiu para trás, com um grito de dor; dei um murro no seguinte e já estava fora. Isso fora obra de três segundos; mas, já o armeiro disparava pela clareira — montando o meu garanhão e levando na mão a espingarda Henri.

     Inesperadamente, arrancara a arma das mãos do meu Halef, batera-lhe com a coronha na cabeça e, depois, montara, rápido como o relâmpago, sobre o meu Rih. Osko e Omar viram isso e atiraram contra ele, sem acertar.

     — Fiquem aqui — disse-lhes. — Não deixem ninguém sair pela porta. Atirem naquele que quiser fugir.

     O burro do padeiro e os cavalos de Halef e do ismilanense estavam ali. O cavalo do último parecia ser o que estava mais descançado. Montei-o, meti-lhe as esporas, a ponto de obrigá-lo a saltar, com as quatro patas, para o ar, virei-o e parti à toda brida, atrás do gatuno.

     O que acontecia atrás de mim, era-me indiferente. Tinha de reaver o meu cavalo. Levava a espingarda na mão e estava disposto a raquele indivíduo do cavalo, a tiros, se outra coisa não me fosse possível.

     Tomara a direção de Kabatch. Não o podia ver. O rasto conduzia pelo mato. Se lhe desse uma luz, logo no começo, Rih estaria perdido para mim. Obriguei o matungo que montava, a correr o mais que podia.

     Parecia-me ouvir batidas de casco, diante de mim; não podia, porém, ver nada, devido às árvores. Assim decorreram uns bons cinco minutos, sempre por entre as árvores. Tinha a impressão de ter percorrido, nesse tempo, nada menos de três milhas inglesas. E agora — não era engano — ouvi realmente batidas de casco de cavalo. Diante de mim? Não, só podia ser atrás de mim. Voltei-me e avistei Halef, que me seguia, à toda velocidade. Estava curvado muito para a frente e maltratava o cavalo, com o relho de couro de hipopótamo, de modo que eu chegava a ouvir as pancadas.

     — Kudam! Khawam, bil' aghel! ' sa Rih chatirak — Avante! Depressa, veloz! Senão Rih, adeus — bradou.

     Falava árabe e isso era sinal de que se achava em grande agitação.

     — Por que abandonaste o rancho? — perguntei, voltando-me para trás. — Agora, eles fugirão.

     — Osko wa Omar hunak — Osko e Omar estão lá! — respondeu, desculpando-se.

     Não podíamos conversar mais do que isso.

     Agora, o mato se tornava menos cerrado. As árvores eram cada vez mais raras e, finalmente, corríamos pelo campo raso, que nos permitia ampla visão.

     Achavamo-nos sobre a elevação. Lá abaixo, havia uma aldeia, certamente Kabatch, cerca de meia hora distante. Da esquerda, vinha um arroio grande, que se unia, atrás da aldeia, ao riozinho Sõuedlue. Acima dessa confluência, havia uma ponte de madeira.

     Naturalmente, vimos também o ismilanense. Estava muito adiante de nós. Era impossível alcançá-lo à bala. Rih era um corredor excelente. Estava, porém, só brincando. Se o armeiro fosse melhor cavaleiro, teria atingido uma distância três, cinco vezes maior.

     Não tomara a direção da aldeia. Receava, decerto, deixar-se ver ali. Incompreensivelmente, dirigia-se para o arroio. Confiaria em poder atravessá-lo? Não acreditei nisso. O arroio era largo e tinha barrancas muito altas.

     — Atrás dele! — gritei a Halef. — Enxota-o para a ponte.

     Eu mesmo me dirigi para a aldeia. Era o caminho reto para a ponte. Talvez fosse possível, apesar do mau cavalo, chegar lá, antes do larápio.

     O meu cavalo era muito ronceiro. Procurei tornar-me o mais leve que pude — debalde. Tive de recorrer a uma crueldade: puxei a faca e enterrei a ponta, cerca de uma polegada, no pescoço do animal.

     Este gemeu alto e fêz tudo quanto era possível. Voava em direção à aldeia; também o animal parecia estar completamente fora de si. Não obedecia mais. Corria cegamente para a frente, sempre direto para diante e como ali nem sequer se pudesse pensar na existência de uma estrada, tive necessidade de evitar uma queda, que poderia tornar-se perigosa.

     Bem longe, à esquerda, corria o ismilanense. Olhara para trás e vira Halef, mas não a mim. Levantou-se nos arreios e ergueu a mão com a arma roubada. Imaginei o riso irônico que, naturalmente, deixou escapar nesse momento. A luz que levava diante de Halef aumentava. Para felicidade minha, o cavalo, quase enlouquecido, que montava, corria vertiginosamente em direção à aldeia. Corria mais, agora, do que o meu garanhão.

     Da aldeia, já nos haviam avistado. Diversas pessoas, estavam nas portas das casas. Na proximidade das primeiras casas, havia um monte de pedra, comprido e alto: não tive tempo de contorná-lo e, assim, saltei sobre ele. O cavalo deixou escapar um grito, num tom de baixo profundo. Parecia não enxergar mais; correria com a cabeça contra a primeira parede que aparecesse na frente. É verdade que eu não perdera o domínio sobre o animal; mas, contudo, não podia guiá-lo com segurança; tinha de me limitar a evitar desastres.

     Voei pela frente da primeira casa. Ali se achava uma carroça de duas rodas, carregada de frutas, não sei de que espécie. Desviar, não era possível. Um aperto, um salto, tínhamos passado por cima. Os assistentes gritaram de susto.

     Seguiu-se uma curva, que eu precisava fazer. Dobrando, com dificuldade, a esquina, avistei um homem, que trazia uma vaca. Ao me ver, deu um grito de medo, soltou a vaca e disparou. O animal virou-se para o dono, de modo que ficou atravessado na minha frente. Um instante depois, tínhamos saltado sobre a vaca.

     — Tjelebi, efêndi, efêndi! — ouvi alguém chamar.

     Olhei, na corrida, para o homem que me dizia isso. Era Ali, o sahaf, que estava diante da sua casa. Mantinha a boca aberta e batia com as mãos. Ele me tomara por um mau cavaleiro e, decerto, acreditava que o cavalo tivesse disparado comigo.

     Assim continuei, sempre, saindo pelo outro lado da povoação. Encontrei a ponte; o ismilanense ainda não tinha chegado. Voltei e o vi aproximar-se, ao longo do arroio, e Halef, a uma regular distância, atrás dele.

     Consegui sofrear o cavalo e tomei a espingarda. O meu cavalo valia mais para mim do que a vida do cavaleiro. Não devolvesse ele o animal, voluntariamente, era certo que levava uma bala. Era preciso somente que se aproximasse.

     Mas, já ele me avistara também. Estacou. Não podia compreender, como eu viesse a me encontrar diante dele. Depois, puxou a rédea levando o cavalo, rapidamente, para a direita. Tendo eu pela frente, Halef atrás e o arroio à esquerda, não lhe restava outra coisa senão fugir, através da povoação.

     Voltei imediatamente, apliquei mais uma pontada com a faca no meu cavalo e corri de volta. O homem tinha a intenção de passar pela casa que ficava fronteira. Quatro ou cinco saltos do meu “Rih” e já teriam desaparecido cavalo e cavaleiro. Ergui-me nos estribos, levantei a espingarda e fiz pontaria, em meio da corrida. Larguei, porém, logo a arma. Efetivamente, vira que se antepunha um obstáculo ao fugitivo, que não o avistara antes ou lhe dera pouca importância.

     Junto à casa, por onde devia passar, havia um cerca alta, tecida de vime. Estivesse eu no seu lugar, o obstáculo não me teria impedido a corrida; não pudesse passar por cima, passaria por dentro. Mas o homem teve medo e guiou o cavalo em direção à entrada da aldeia, por onde eu passara.

     Não o segui. Precisava evitar que ele tomasse o caminho para a planície e enxotá-lo para a água. Estava tão perto, que poderia atingi-lo com um tiro. Tratava-se, porém, de um homem e eu precisava, pelo menos, fazer a tentativa de obter a devolução do que era meu, sem derramamento de sangue humano.

     Em virtude disso, conduzi o meu cavalo contra a mesma cerca, que assustara o perseguido. Para Rih o salto não seria difícil; para o sendeiro, porém, era impraticável. Fi-lo saltar tão alto quanto pôde e atravessei a cerca, quebrando-a. Naquele lugar, havia um poço. Passei sobre este e continuei, além da cerca.

     O meu cavalo corria furiosamente, como se estivesse possuído pelo demônio. Andei pelos fundos da aldeia e quando me encontrei paralelamente à primeira casa, avistei o ismilanense. Este viu que o caminho estava impedido e puxou o cavalo para a direita, em direção ao arroio, que antes quisera evitar. Mais abaixo, surgia Halef, que não tivera outra coisa a fazer, senão voltar também.

     Agora, seguia o fugitivo, bem de perto. Este estava talvez a uma distância igual ao comprimento de uma fila de cinqüenta cavalos e esporeava o cavalo, o que Rih não suportava. Rih empinou-se e não quis obedecer.

     — Rih, waggif, twaggif, ugaf — Rih, pára, pára, pára. — bradei, na esperança de que a minha voz levasse o bom cavalo a continuar a resistência.

     Mas, o ismilanense bateu-lhe com a coronha da arma na cabeça, de tal modo que o animal, relichando, partiu novamente como uma bala. E eu atrás.

     O garanhão corria poderosamente. A distância entre nós começava a crescer. Parecia que o cavaleiro assustado pretendia atravessar o arroio, como medida extrema de salvação. Conseguisse o salto, o meu cavalo estaria perdido, se eu não me utilizasse ainda da espingarda. Tomei-a, portanto, outra vez e preparei-me para fazer fogo.

     Assim, zuníamos para a frente. No momento em que o ismilanense chegasse ao outro lado, sem acidente, eu atiraria. Estávamos a uma distância da margem, igual a três, quatro, dois cavalos. Rih meteu as patas trazeiras diante das mãos e se projetou para o outro lado, num salto de grande elegância; o cavaleiro perdeu os estribos e os arreios, batendo com uma violência medonha no solo, onde ficou estirado, imóvel.

     Não tive mais tempo de refrear o meu cavalo; estava numa corrida louco. Tinha má escola, estava agitado e certamente dispararia para dentro do arroio, quebrando-me pescoço e pernas. Um vibrante grito de estímulo da minha parte — e o cavalo saltou, atingindo, na verdade, a outra margem, porém ali tropicou e rodou.

     O selim, sobre o qual eu montava, era um sedj árabe, com encosto alto na frente e outro, mais alto ainda, atrás. O assento, realmente, é mais cômodo, do que o dos selins ingleses, mas, também, mais perigoso, se o cavalo chega a cair. Ao saltar sobre o arroio, arrisquei a vida; disso eu sabia. Por isso, ao gritar para o animal saltar, tirei os pés dos estribos, que eram em forma de sapato, apoiei-me com as duas mãos no encosto dianteiro, sempre segurando as rédeas, e me ergui sobre o encosto detrás, de modo que fiquei com o joelho direito sobre o lombo do animal e, quando este tropicou, me joguei para o chão.

     Esta manobra era dificultada pela espingarda; não foi tão simples, como teria sido se o selim fosse outro, e cheguei a cair, de modo a ficar imóvel, por alguns instantes.

     — Allah il Allah! — bradou o pequeno Halef, atrás de mim. — Sídi, ainda estás vivo ou estás morto?

     Estava deitado, de modo que pude vê-lo. O hadji estava já a pouca distância do arroio e pretendia levar o seu cavalo a dar o salto. Poderia quebrar o pescoço. Isso restitui-me, momentaneamente, a faculdade de me movimentar. Levantei o braço, prevenindo-o, e exclamei:

     — Fica lá, Halef! Não sejas tolo!!

     — Graças ao Profeta! — respondeu. — Ele acha que sou tolo; logo, ainda não está morto.

     — Não; somente bati, fortemente, aqui no chão.

     — Quebraste alguma coisa?

     — Creio que não. Vamos ver!

     Ergui-me como pude e me espichei. As articulações estavam íntegras, mas a cabeça roncava como um rabecão. Halef apeou, desceu pela barranca do arroio e pulou por cima da água. O curso desta não era largo; era somente porque se encontrava muito abaixo das barrancas que o salto, a cavalo, se tornava tão perigoso.

     — Alá é grande! — disse Halef. — Isso foi uma correria! Nunca pensei que pudéssemos alcançar o teu Rih, com os nossos cavalos.

     — O cavaleiro era mau.

     — De fato, esse homem estava sentado sobre o cavalo, como um macaco sobre o camelo, segundo me foi dado ver em Istambul, pela homem que exibia um urso. Lá está Rih. Irei buscá-lo.

     O garanhão estava quieto e saboreava os capins apetitosos. Não se lhe via cansaço, enquanto que o cavalo do ismilanense, no qual eu montara, estava ao nosso lado, bufando e batendo com os flancos. Tinha se levantado outra vez e não sofrerá nada. Somente os encostos do selim tinham-se quebrado, durante a queda.

     — Deixa-o! — atalhei. — Antes de tudo, devemos olhar pelo cavaleiro.

     — Queria que tivesse quebrado o espinhaço!

     — Não vamos desejar isso.

     — Por que não? Era um salteador e ladrão de cavalos.

     — Mas, não obstante, um ser humano. Não se mexe. Certamente perdeu os sentidos.

     — Talvez não tivesse perdido só os sentidos, mas também toda a alma. Que esta vá para a Djehenna, para beber um brinde de fraternidade com o diabo.

     Ajoelhei-me ao lado de Deselim e o examinei.

     — Então? Vês onde está metida a sua alma? — perguntou Halef.

     — Não está mais com ele. Realmente, quebrou o espinhaço.

     — Ele mesmo é o culpado e nunca mais roubará cavalo algum, muito menos o teu garanhão. Que Alá deixe a sua alma entrar num velho rocim, que seja roubado dez vezes por dia, para que experimente o que sente um cavalo, quando tem de carregar um ladrão.

     Com isso, aproximou-se, mostrando a cabeça do armeiro.

     — Tira-a dali! — disse.

     — Quê?

     — A koptcha.

     — Ah! Tens razão. Não teria pensado nisso.

     — E contudo é tão preciosa. Quem sabe se te poderia salvar, se não possuísses a fivela.

     — De quem a obtiveste?

     — Do prisioneiro do ferreiro.

     — Então, estiveste em casa de Chimin?

     — Estive. Mas isso contarei mais tarde. Agora, temos outra coisa que fazer. Olha, vê essa gente!

     Toda a população da aldeia, parecia ter chegado ao arroio. Homens, mulheres, crianças, em grande número, estavam parados à margem e mantinham uma conversação, em voz alta, berrando.

     Dois deles desceram a barranca e saltaram para o nosso lado. O primeiro era Ali, o sahaf.

     — Senhor, que aconteceu? — perguntou. — Por que perseguiste esse cavaleiro?

     — Não adivinhaste?

     — Não. Como posso saber?

     — Não viste de quem era o cavalo que montava?

     — Era o teu. Fizeste uma aposta com ele ou estavas experimentando o animal, na velocidade, para o comprar depois?

     — Nem uma, nem outra coisa. Ele roubou o cavalo.

     — E tu o perseguiste?

     — Sim, como viste.

     — Mas, senhor, não sei o que deva pensar! Não sabias montar!

     — Ainda agora, não sei fazê-lo de modo diferente do que antes.

     — Oh, sim! Montas como o estribeiro do Grão Senhor, e até melhor. Ninguém arriscaria esse salto, com tal cavalo.

     — Bem, talvez tivesse aprendido desde então.

     — Não. Tu me enganaste; caçoaste comigo. Antes, montavas como uma criança de escola e, quando te vi quebrar a cerca e saltar o arroio, pensei que fosses quebrar o pescoço.

     — Isto é coisa que cedo aos outros, como, por exemplo, a este homem. Ao mesmo tempo, indiquei o ismilanense.

     — Alá! Quebrou o pescoço?

     — É verdade.

     — Então, está morto?

     — Naturalmente

     — Por conseguinte, pagou caro o roubo feito. Quem é? Aproximou-se do cadáver, virou a cara para vê-lo, e exclamou, pasmado:

     — Deus faz milagres! Este é o armeiro Deselim, de Ismilan.

     — Conheces?

     — Conheço. É também dono de uma casa de café, onde tomei muitas taças de café e fumei muitos cachimbos.

     — Nesse caso, era teu amigo?

     — Não, somente era meu conhecido.

     Nisso, aproximou-se o outro homem, que também saltara o arroio. Também ele examinou a fisionomia do defunto.

     — Perseguiste este homem? — perguntou-me o desconhecido.

     — Sim.

     — E, assim, ele perdeu a vida?

     — Infelizmente.

     — Então, és o assassino. Tenho que te prender.

     — Não farás tal coisa! — interveio imediatamente o sahaf. — Este homem não está debaixo da tua jurisdição.

     O outro tomou uma atitude de grande dignidade e respondeu, em tom sério:

     — És Ali, o sahaf, e tens que calar. Eu, porém, sou o kiaja desta aldeia e tenho que falar. Portanto, quem és?

     Esta pergunta era dirigida a mim.

     — Um forasteiro — respondi.

     — De onde?

     — De Nemtche memleketi.

     — Isso é longe daqui?

     — Muito longe.

     — Estás, também, debaixo das ordens de um kiaja?

     — Obedeço a um rei poderoso.

     — É a mesma coisa. Sou o rei de Kabatch; sou, portanto, igual a ele. Anda, segue-me!

     — Como prisioneiro?

     — Naturalmente! És um homicida.

     — Não queres indagar, primeiro por que foi que persegui este homem?

     — Será feito amanhã, logo que tenha tempo e vontade.

     — Hoje, eu tenho tempo e vontade; mas, amanhã, não.

     — Não tenho nada com isso. Para diante!!

     Com um gesto autoritário, mostrou a direção do arroio. Mas, nesse momento, o pequeno Halef chegou para perto dele, mostrou-lhe, como era de seu hábito, o relho de couro de hipopótamo, dependurado à cintura, e perguntou:

     — Com que então, és o kiaja desta aldeia?

     — Sou.

     — Já viste, alguma vez, um chicote igual a este?

     — Muitas vezes.

     — Também, já provaste algum?

     — Que queres dizer?

     — Oh, quero dizer o seguinte: se disseres mais uma única palavra indelicada a este sídi, efêndi e emir, que é meu amigo e companheiro, castigar-te-ei a cara com este chicote, de tal modo que ficarás pensando que teu nariz intrometido é a mesquita do sultão Murad, que Deus guarde. Acreditas que viemos a Kabatch para nos deleitar na contemplação da tua grandeza? Acreditas que nós pensamos ser um kiaja o homem soberbo do globo? Já vimos moços de cocheira bexigosos e vigaristas, com o nariz cortado, os quais eram mais bonitos e mais dignos do que tu. Por que foi que Alá te deu pernas tortas e uma verruga vermelha no nariz? Teria sido para te distinguir dos outros crentes? Evita o meu rancor e toma cuidado com a minha ira. Com este chicote, já fiz muita gente, melhor do que tu, tornar-se delicada.

     O kiaja estava mais admirado, do que assustado. Mirou o pequeno, de alto a baixo, e depois indagou:

     — Homem, porventura, ficaste doido?

     — Não; mas, se queres ver um maluco, olha aqui para esta água; verás a tua própria cara. Só um louco pode arriscar-se a tratar com brutalidade ao meu efêndi, o poderoso emir hadji Kara Ben Nemsi.

     — E quem és tu?

     — Sou hadji Halef Omar Bei, o protetor dos inocentes, e vingador de todas as injustiças e o senhor e mestre de todos os kiajas, até onde se conhece a luz do sol.

     Agora, o bom funcionário não sabia de fato, como proceder. A fanfarronada do pequeno hadji causara, realmente, forte impressão. Dirigiu-se, então, a mim.

     — Senhor, és realmente um homem tão nobre?

     — Porventura, não me pareço assim? — perguntei, em tom enérgico.

     — Oh, tens a aparência de um emir; mas, perseguiste este homem até a morte.

     — Ele mesmo é o culpado.

     — Por quê?

     — Roubou-me o cavalo e o persegui, para retomá-lo.

     — Deselim, de Ismilan, teria roubado um cavalo?

     — Não acreditas, quem sabe, no que diz o meu efêndi? — perguntou Halef, aproximando-se do homem e fazendo um gesto muito expressivo com a mão na cintura.

     — Oh, eu não duvido — afirmou apressadamente o kiaja. — Mas, pode o efêndi provar que o garanhão, de fato, era seu?

     — Aqui está a prova.

     Com estas palavras, Halef pegou no chicote. Entretanto, indiquei o sahaj e disse:

     — Pergunta a ele. Sabe que o cavalo é de minha propriedade.

     — De onde poderá saber? Não te conhece, pois és um forasteiro.

     — Conhece-me e me viu montando o garanhão.

     — É verdade?

     — É — respondeu o sahaf, a quem a pergunta fora dirigida. O kiaja, então, inclinou-se diante de mim e declarou:

     — Acredito. Contudo, efêndi, acompanhar-me-ás até a minha casa.

     — Preso?

     — Não, de todo; mas, sim, meio preso.

     — Bem. Qual a metade que queres prender? A outra não tem tempo e vai embora.

     Olhou-me boquiaberto. Os moradores de Kabatch, reunidos à beira do arroio, no entanto, soltaram enorme gargalhada. Em face disso, o kiaja bradou encolerizado, dirigindo-se aos que estavam do outro lado.

     — De que riem? Homens, súditos, escravos que são! Não sabem que sou o procurador e o representante do sultão? Mandarei encarcerai todos e submeter à pena de bastonadas!

     E, voltando-se para mim, prosseguiu:

     — Por que me tornas ridículo, diante do meu povo?

     — Porque te fazes ridículo perante mim? Não é ridículo dizer que sou meio prisioneiro?

     — A tua inocência está provada só pela metade.

     — Então, prová-la-ei inteiramente.

     — Faze-o.

     — Com prazer e já. Vês esta arma e esta faca? Todo aquele que tentar se opor a que eu parta, será derrubado a tiros ou a facadas. E aqui está a outra prova. Sabes ler?

     — Sei.

     — Então, lê o meu passaporte, que leva o selo do Grão Senhor. Apresentei-lhe o documento. Quando viu o selo, apertou-o contra a testa, a boca e o peito e disse:

     — Efêndi, tens razão; és inocente e podes continuar a tua viagem.

     — Bem. Que será feito com o cadáver?

     — Jogá-lo-emos dentro d'água. Que os carangueijos o devorem, porque te insultou.

     — Não faças isso. Comunica a sua morte aos parentes, para que eles venham, a fim de enterrá-lo. Deverá ser reunido aos seus antepassados, de uma maneira honrosa. Se ouvir dizer que fizeste o contrário, darei conhecimento do caso ao supremo magistrado de Rumili.

     — És amigo dele?

     — Que perguntas? — respondeu Halef, por mim. — O kaseri askeri de Rumili é nosso amigo e parente. A minha mulher favorita é filha da favorita dele. Ai de vocês, se não obedecerem!

     Afastou-se, para trazer Rih. O kiaja, no entanto, curvou-se diante de mim e exclamou:

     — Que Alá conceda à favorita do teu companheiro cem anos de vida e milhares de filhos, netos e bisnetos. Farei o que me ordenaste.

     — Conto com isso. Também entregarás aos parentes, o cavalo e tudo quanto o morto tiver.

     — Entregarei tudo, oh, efêndi!

     Estava convencido do contrário. O que viesse a suceder, porém, não me interessava. Podia estar contente por poder continuar o meu caminho, sem estorvos e, assim, montei novamente o meu cavalo, que, por pouco, tinha perdido de uma maneira tão ignominiosa.

     Um assobio — o cavalo se precipitou, num salto, para a outra margem do arroio. O povo se esparramou, gritando de medo. Halef seguiu-me a pé e montou o seu cavalo, ao chegar do outro lado.

     — Senhor, não querias visitar-me? — perguntou o sahaf,

     — Quero. Guia-nos. Desejo ver teu pai.

     Cavalgávamos na frente e o povo nos seguia, depois de o kiaja ter deixado um guarda, junto ao cadáver. Diante da pequena casa do sahaf, apeamo-nos. O interior era dividido em duas partes desiguais. Na parte maior, notei, sobre o leito, um homem velho, que nos dava as boas-vindas com os olhos, sem poder falar, nem se mexer.

     — Pai, este é o senhor, de quem te falei, — disse o sahaf.

     Aproximei-me do velho, agarrei a sua mão e pronunciei uma saudação amistosa. Agradeceu-me, por meio de um olhar, igualmente amistoso. O leito estava limpo e o velho mostrava um asseio pouco comum, nesta região. Isso alegrou-me. Perguntei-lhe:

     — Podes entender as minhas palavras?

     Fêz um sinal afirmativo, com os olhos.

     — Vim para ver o honrado pai de um bom filho e para fazer a felicidade de Ali.

     O seu olhar tornou-se inquiridor e, por isso, continuei, esclarecendo:

     — Ele ama Ikbala, a mais linda das filhas de Rumili. O pai dela não a quer dar; mas, obrigá-lo-ei a consentir. Ali irá comigo, para junto da sua amada.

     — Senhor, é verdade, é verdade? — interrogou, afobado, Ali.

     — É.

     — Falaste com ela?

     — Também com a sua mãe e o seu pai.

     — Que disseram ela e ele?

     — Ambos disseram “sim”, mas o padeiro pensava no engano e na traição. Contar-te-ei isso mais tarde. Agora, mostra-me o teu relógio.

     — Não queres, antes, comer alguma coisa?

     — Agradeço. Não temos tempo. Tenho de voltar imediatamente.

     — Então, vamos lá fora.

     Conduziu-me para uma subdivisão menor da casa, onde se encontrava uma mesa, coisa rara lá. Sobre esta, notei a obra de arte.

     — É isto aqui — disse Ali. — Observa bem.

     Faltava ainda o mostrador do relógio. As rodas eram recortadas de madeira, serviço feio a mão, certamente muito trabalhoso.

     — Sabes onde está a arte?

     — Sei — respondi, indicando a colocação dos ponteiros. — É aqui.

     — Adivinhaste. Este relógio não mostrará somente as horas, mas também os minutos. Já viste um relógio igual?

     Ai de ti meu bom sahaf! Não vais muito longe com a tua arte! — pensei.

     Em voz alta, porém, respondi:

     — Já. Olha aqui o meu relógio. Mostra os anos, meses, dias, horas, minutos e segundos.

     Tomou-me o relógio da mão e observou, atentamente, o mostrador.

     — Senhor, — disse — caminha direito?

     — Como não? Bem certo.

     — Mas, eu não posso ler o mostrador.

     — Porque as palavras e os números estão escritos com uma letra que não conheces. Mas, podes ouvir.

     Fiz o relógio tocar a campainha. Ali assustou-se com o ruído claro e estridente.

     — Allah akbar! — exclamou. — Este relógio foi feito, ou por Alá, ou pelo diabo.

     — Oh, não! Aquele que o fêz, era um relojoeiro muito devoto, em Germany. Este relógio foi a sua obra prima, mas nunca o vendeu. Quando morreu, o seu herdeiro recebeu-o e, depois da morte deste, veio para as minhas mãos.

     — Pode-se abri-lo?

     — Sim.

     — Abre-o, abre-o, para que eu veja como foi construído.

     — Agora, não; em Dchnibachlue poderás examiná-lo. Lá teremos tempo, mas aqui não.

     — Então, queres partir já?

     — Sim. Antes, porém, quero cumprir a minha palavra e escrever um versículo, que seja um consolo para teu pai, no seu sofrimento.

     — Um versículo da Bíblia cristã?

     — Sim.

     — Então vem! Lerei para ele ouvir e lhe causarei uma grande alegria.

     Voltei, com o rapaz, para o compartimento da frente e, então, Ali disse:

     — Meu pai, lembra-se daquele velho católico romano, que me deu aquele bonito versículo?

     O interrogado confirmou, com os olhos.

     — Este efêndi também é um cristão e escreverá um versículo para ti. Eu o lerei.

     Arranquei uma folha do meu caderno de apontamentos, escrevi e a entreguei ao sahaf. Este leu:

     — Jachar-sam jachar-im Allaha, õlar-sam õlar-im Allaha, jachar-im jagod õlar-im alyr-im Allaha!

     Isto quer dizer:

     “Porque, se vivemos, para o Senhor vivemos; se morremos, para o Senhor morremos. De sorte que, ou vivamos ou morramos, somos do Senhor” (2).

     Os olhos do velho ficaram marejados. Olhou para as mãos, que não podia mover.

     — Efêndi, ele te pede que lhe dês a mão — esclareceu o filho.

     Atendi a esse pedido e enxuguei as lágrimas dos olhos do paralítico.

     — Alá é bondoso, sábio e justo — disse. — Amarrou os teus membros, para que tua alma se comunique com Ele, na maior assiduidade. Quando chegar o momento, em que o teu espírito se desprender da carne e chegar à ponte que leva à eternidade, onde encontrarás os dois anjos, que vão examinar a vida do que morreu, então o peso dos teus sofrimentos será maior, nas suas mãos, do que tudo quanto pecaste. Que as maravilhas do céu iluminem o teu caminho!

     O ancião fechou os olhos e, sobre as rugas da sua face, estendeu-se a tranqüilidade, que revela o termo feliz das dúvidas do espírito. Não abriu também os olhos, quando saímos.

     — Senhor, — disse, lá fora, o sahaf, — por que não escreveste o versículo, na língua que falamos hoje.

     — O Alcorão, também, não foi escrito no árabe moderno. Um versículo deve ser

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     (2) Epístola aos Romanos, cap. 14, vers. 8 — Trad. de João Ferreira d'Almeida. (N. do T.).

 

escrito, com palavras dignas da sua grandiloqüência. Mas, por que me falas, agora, de modo diferente do que antes?

     — Eu? — indagou, um tanto ou quanto embaraçado.

     Depois de um breve silêncio, declarou:

     — Porque te quero bem. Estás zangado comigo?

     — Não. Traze o teu cavalo. Iremos a Dchnibachlue.

     Enquanto Ali foi aos fundos da casa e nós o esperávamos, tive vontade de interrogar o pequeno hadji sobre as suas aventuras; mas, cercava-nos um monte de gente, que comentava, em altos gritos, os acontecimentos recentes, dedicando-nos um interesse tão insistente, que não se podia pensar sequer numa palestra ali.

     Chegou, afinal, o sahaf, com o seu cavalo e começamos o regresso, a trote largo, pois estávamos na dúvida sobre o que podia ter acontecido a Omar e Osko.

     Durante a cavalgada, dirigi-me a Halef, pedindo-lhe informações.

     — Esperei tanto tempo e, não obstante, não pude ficar até que chegassem. Enganaram-se de caminho?

     — Não, efêndi. Permanecemos no caminho que nos indicaste; mas...

     Estacou, olhando-me de lado, para se certificar se eu estava de veia, de modo a que pudesse arriscar-se a fazer uma comunicação desagradável.

     Entretanto, eu não estava mal disposto. Aliás, sempre me esforcei por não deixar apoderar-se de mim um caprichoso estado de ânimo qualquer; tenho pavor de um homem que se deixe escravizar por um capricho ou uma fantasia, moldando a sua disposição de vontade por aquele ou por esta. Cada um tem o dever de dominar os seus momentâneos sentimentos íntimo, diante dos seus semelhantes. Só por esse meio, consegue impôr-se aos outros. De resto, eu fora salvo de uma situação difícil, pelo aparecimento do meu denodado Halef. Devia-lhe realmente grande gratidão. Ademais, reconquistara o meu cavalo; não havia, portanto, nenhuma razão para me indispor. Ainda assim, fiz uma cara bem carrancuda, para depois poder causar ao pequeno hadji uma alegria ainda maior, com uma resposta atenciosa.

     Como não respondesse e, sim, procurasse conservar ares bem sombrios, Halef ajeitou-se no selim e indagou:

     — Kejfi jerinde sen — Estás de bom humor?

     — Chajyr, hadji — Não, hadji.

     Isso era tão estranho, que ele se assustou.

     — Aj hai — Ai de mim!

     — Por que te queixas?

     — Porque sou obrigado a te encolerizar.

     — Com quê?

     — Aconteceu um desastre.

     — Que foi?

     — Ele foi embora.

     — Quem?

     — O último.

     — Que último? Então, fala!

     — O último khawass.

     Essas palavras foram pronunciadas num suspiro, que, apesar da batida dos cascos dos cavalos, podia ser ouvido à distância.

     — Lilla elhamd — Graças a Deus!

     Disse isso com tanta alegria, que Halef ficou perplexo e me encarou:

     — S'lon — Como? — perguntou visivelmente aliviado.

     — Hada jisslah li; haja ja'dchizni — Agrada-me isso; estou satisfeito.

     — Efêndi, estou te entendendo direito?

     — Penso que sim.

     — Não estás zangado, com a fuga dele?

     — Não. Pelo contrário, sou muito grato a ti e a ele, por isso.

     — Mas, por quê?

     — Porque esse homem somente nos aborrecia e atrazava injustificadamente a nossa jornada.

     — Por que, então, trouxeste os khawass contigo?

     — Alguns khawass certamente nos seriam de utilidade; mas, como esses indivíduos não sabiam andar a cavalo e o seu chefe preferisse dar ordens a obedecer, é melhor que não tenhamos mais que nos incomodar com eles.

     — Sarif, tajib — Lindo! Bem! Tiras-me um grande peso do coração. Realmente, tive medo.

     — De mim, Halef?

     — Sim, sídi, de ti.

     — Conheces-me tão pouco assim? Durante tanto tempo, prestaste-me tão bons serviços e ainda hoje me salvaste de uma morte quase certa. És o meu amigo e protetor, e tens medo de mim? Ora, meu caro Halef! Isso não é inteligente.

     — Oh! muito menos inteligente foi ter deixado aquele indivíduo escapar.

     — Então, ele fugiu?

     — Exatamente, fugiu.

     — Ah, já o suponho; levou o cavalo de carga, naturalmente?

     — De fato, levou o cavalo que carregava os presentes que recebemos por intermédio de Malhelm, o bom guarda-portão.

     — Deixa-o ir-se.

     Agora, fêz uma cara admirada, quase zangada.

     — Que? Deixá-lo ir? — perguntou. — Não fiz isso. Perseguimo-lo, num grande trecho do caminho percorrido. Queríamos pegá-lo. Mas, era noite e não pudemos encontrar os seus rastos.

     — Andaram, portanto, às cegas. Ai de vocês! Com isso, perderam um tempo precioso.

     — Infelizmente! Fomos de volta até perto de Geren. Podes imaginar quanto tempo perdemos. Chinguei e blasfemei tanto, que Alá sacudiu a cabeça, porque, ordinariamente, sou um homem devoto. Esta noite, porém, estava tão furioso e cheio de raiva, que teria matado mil gigantes, se algum deles se tivesse metido no meu caminho.

     — Consolemo-nos! Temos de pensar noutra coisa.

     — Consolar-nos? Efêndi, não te conheço, não te compreendo mais. Sabes, porventura, quais eram os presentes que nos mandou o nosso hospedeiro?

     — Não deixei abrir. Naturalmente, eram vitualhas.

     — Mas eu abri.

     — Ah, tiveste curiosidade?

     — Curiosidade? É sempre de vantagem saber-se o que se recebe de presente e o que se leva consigo. Havia uma excelente cuca, tão grossa como uma mó, com milhares de amêndoas e passas. Infelizmente, porém, estava amassada. Ademais, havia dois xabraques, de grande valor, certamente um para ti e outro para mim. E, finalmente, achei uma quantidade de lenços de seda, excelentes para ornamento de cabeça. Quanta vontade, tinha eu de levar um deles à minha Hanneh. Agora, ela perdeu isso. Ja chema’ dan el mahabe, ia chems el amel, ia warde el benat. — Ó luz do amor; ó sol da esperança; ó rosa das filhas!

     De repente, surgia assim o seu amor pela boa Hanneh. Procurei consolá-lo.

     — Não te queixes, hadji. Estava escrito no livro da vida, que deveríamos perder a cuca, os xabraques e os lenços. Também, em outras partes, existem lenços de seda e tomarei cuidado para que não voltes, para junto da mais linda de todas as filhas, com as mãos vazias

     — Queira Alá! Alegro-me somente por ter podido salvar a bolsa.

     — Que bolsa?

     — Quando abri, achei uma bolsa de pele de gato. O cordão estava amarrado e selado; mas, era tão pesada e o som era tão metálico, que me convenci haver dinheiro ali dentro.

     — Esta tu guardaste?

     — Sim, tenho-a aqui no bolso. Nela está presa uma fita de pergaminho; nesta está escrito: Dostima hadji Kara Ben Nemsi efendi. A bolsa, portanto, é para ti; aqui está, toma-a.

     Tirou-a do bolso e me entregou. Pesei-a com a mão. Sim, havia dinheiro dentro dela. Dostima quer dizer: ao meu amigo. Tratar-se-ia de um presente de amizade? Para mim? Dinheiro? Talvez, dinheiro para a viagem? Hum! Guardei a bolsa e disse:

     — Abriremos mais tarde. Em todo o caso, procedeste com inteligência, ao guardá-la. Agora, precisamos conversar sobre outra coisa, porquanto já percorremos quase a metade do caminho. Vejamos: como pôde o khawass fugir?

     — Estava escuro. Apeamos ao chegar a uma casa, perto da qual havia um poço. Queríamos dar de beber aos animais. O khawass puxou a água. Entrei na casa, para me informar, com o dono dela, sobre o caminho. Osko e Omar não ficaram lá fora; entraram também e quando voltamos ao poço, o khawass tinha desaparecido, com o seu cavalo e o nosso de carga.

     — Ouviram o tropel dos dois animais?

     — Não; mas, mesmo assim, corremos atrás dele.

     — Oh, não! Isso não fizeram — respondi, rindo.

     — Não? Tocamos a galope, para trás, mas não o alcançamos.

     — Sabes se ele voltou? Naturalmente, foi tão inteligente que escolheu outro caminho.

     — Ah! Esse embusteiro! Esse hipócrita!

     — Talvez tivesse somente conduzido os cavalos para um local mais escondido, para esperar os acontecimentos.

     — Oh! Não pensei nisso. Teria sido tão inteligente assim? Mas, tinha uma cara tão idiota! Queria que o tivesse aqui na minha frente. E, mesmo que ele tivesse numerado todos os seus ossos, não conseguiria reuni-los mais. Enganar-me a mim, a mim, hadji Halef Omar Ben hadji Abdul Abbas Ibn hadji Dawud ai Gossarah!

     Tirou o relho da cintura e começou a bater no ar, como se tivesse o malfeitor diante de si.

     — Consola-te! — declarei. — Quando chegaram finalmente, a Kochikawk?

     — Uma hora depois de teres partido. Tu nos descreveste para o ferreiro e, assim, ele nos reconheceu, em seguida, detendo-nos. Soubemos, então, o que tinha acontecido. Mostrou-nos o prisioneiro. Esperamos. Como não viesses, fiquei preocupado. Resolvi, então, seguir-te para Dchnibachlue. Tive uma idéia, que certamente te alegrará também.

     — Qual?

     — O ferreiro falou-me sobre a koptcha. O preso tinha uma. A fivela é um sinal de reconhecimento; podia prestar-me bons serviços. Tirei-a daquele homem, que se dizia agente Pimosa, e a prendi no meu fêz.

     — Esplêndido! Vi o resultado que teve a tua apresentação com a presilha.

     — Dirás ainda que não sou inteligente?

     — Não, és um portento de sabedoria.

     — Sim; contudo, de quando em vez, deixo escapar alguns khawas. Chegando a Dchnibachlue, fomos direito à casa do padeiro. Encontramos só a sua mulher e a filha. Efêndi, quando vi a velha, quase caí em todos os desmaios. Já observaste atentamente uma colmeia?

     — Já.

     — Há uma rainha, com o corpo inchado, como um balão. Dizem que a rainha põe, num dia, alguns milhares de ovos. Sídi, a velha me pareceu igual a uma dessas rainhas.

     — Mas, tem um bom caráter!

     — De fato; ela e sua filha preveniram-me. O ajudante fora mandado a um serviço. Depois, chegara o dono de um café de Ismilan e falara com o padeiro a teu respeito, em conseqüência do que ambos saíram apressadamente. Isso nos foi dito por Ikbala, a filha. Ela tinha cuidados por Ali, que agora vem atrás de nós. Pediu-me que te seguisse. Faria isso mesmo que não me pedisse.

     — Chegaste a tempo, caro Halef!

     — Realmente. Tinha pressa; mas, não obstante, fui cauteloso. Ouvi o relinchar de um cavalo. Por isso, andei devagar e sozinho. Vi a clareira com a choupana; enxerguei o teu Rih e alguns outros cavalos; estavas, portanto, dentro do casebre, no meio dos inimigos; talvez tivessem até te prendido. Três cavaleiros teriam dado motivo a que os teus adversários tomassem precauções, enquanto um só não lhes poderia parecer perigoso. Por isso, escondi Osko e Omar, por entre as árvores, e lhes disse o que deviam fazer; depois, fui sozinho à choupana.

     — Procedeste com muita cautela e com muita coragem. Demonstraste que posso confiar em ti.

     — Oh, efêndi, és o meu mestre e o meu amigo! O que aconteceu, então, já sabes.

     — De fato. Mas, por que não permaneceste na choupana, Halef, ao invés de me seguir?

     — Deveria deixar que roubassem o teu Rih?

     — Nada poderias fazer contra isso; o teu cavalo não servia para alcançar o meu, que é muito mais veloz.

     — O teu também não. Poderias ter enganado o larápio, sem mim? Poderias tê-lo atacado por todos os lados, como fizemos? Viu a mim, somente, e pensou que era o seu único perseguidor. Por isso, assustou-se quando verificou que lhe interceptavas a fuga. Teve de voltar e, assim, Rih caiu outra vez nas nossas mãos. Conseguirias isso, sem mim?

     — Não. Tens toda a razão. Preocupa-me, porém, a sorte dos nossos dois companheiros.

     — Não há motivo. Eles são valentes.

     — Mas, estão contra um grupo numericamente muito superior; os seus inimigos estão protegidos pelo casebre.

     — A choupana não só os protege, como também os retém prisioneiros.

     — Por quanto tempo? Através da janela ou da porta podem atirar contra Omar e Osko e as balas poderão acertar.

     — Não. Deste instruções a ambos. E também eu lhes gritei, antes de te acompanhar, que se escondessem por trás das árvores e atirassem em todo aquele que tivesse a idéia de sair do rancho. Que farás com essa gente?

     — Isso depende do modo por que se portarem. Esporeia o teu cavalo!

     O sahaf conservara-se respeitosamente atrás de nós. Ao observar que a minha palestra com Halef estava terminada, veio para o meu lado e perguntou:

     — Senhor, posso saber o que aconteceu e por que devo acompanhar-te?

     — Depois. Espero que, ainda hoje, poderás cumprimentar Ikbala, a mais linda virgem de Rumili, na presença do seu pai. Agora, apressemo-nos, mas não conversemos.

     Entrementes, chegáramos ao mato e, em pouco tempo, estávamos diante da clareira. Refreamos os cavalos, para que a nossa chegada não fosse notada, com facilidade. Ao chegar quase à margem da clareira, apeei e dei o cavalo para Halef segurar.

     — Permaneçam aqui — disse. — Irei, primeiro, fazer um reconhecimento. Dá-me a espingarda curta, Halef.

     — W’ Allah! Muito bem! Ainda bem que a temos. Aqui, sídi. Devemos esperar até que voltes?

     — Sim; a menos que eu chame.

     Rastejei de um tronco a outro, sempre para diante, até poder divisar inteiramente o prado. Os cavalos ainda estavam diante da choupana. Da janela, saíam dois canos de carabins. Os ocupantes do casebre se tinham colocado em atitude de defesa. De fato, não me tinha sido possível, infelizmente, tirar as suas armas.

     As forças sitiantes, compostas de Osko e Omar, não se deixavam avistar. Ambos, com certeza, estavam escondidos atrás de grossos troncos. Fiz, portanto, uma curva, até chegar à parte do mato, fronteira ao rancho, e ali encontrei os dois homens, que procurava. Aproximei-me tanto quanto era possível, sem ser pressentido, pelos de lá da choupana. Viram-me e demonstraram a sua alegria, com exclamações abafadas.

     — Algum deles fugiu? — interroguei-os.

     — Não — respondeu Osko.

     — Deste algum tiro?

     — Cinco.

     — E os homens de lá?

     — Também, três; mas, não acertaram. Não podem sair e nós não podemos entrar. Que é que se pode fazer?

     — Fiquem aqui, até eu chegar perto da choupana...

     — Quê?! Queres ir lá?

     — Quero.

     — Eles te matam!

     — Não. Aproximar-me-ei, rastejando, pelos fundos. Ali não existe janela; portanto, não me poderão ver. Halef está comigo. Quando estivermos lá, venham também, naturalmente rastejando pelos fundos. O que faremos então, resolverei depois. Onde estão os cavalos de vocês?

     — Amarrados, um pouco mais no fundo do mato.

     — Deixem onde estão, até terminar o sítio.

     Voltei para junto de Halef e lhe comuniquei a minha resolução. Estava de acordo. Fêz um gesto ladino e indagou:

     — Vês os canos das carabinas, saindo da janela, sídi?

     — É claro que sim.

     — Essas armas não serão tão curiosas, por muito tempo.

     — Ah! Acreditas? É certo; também já pensei nisso.

     — Rastejemos até ali, agarremos rapidamente os canos e puxemos as carabinas para fora.

     — Vamos experimentar.

     — Que devo fazer? — perguntou o sahaf.

     — Quando estivermos perto do rancho, trarás os nossos cavalos; mas, também, pelos fundos. Atrás da choupana, deves amarrá-los nas árvores e, depois, podes ir ter conosco.

     Demo-lhes as rédeas dos animais e dirigimo-nos, fazendo uma curva, para os fundos da choupana. Alcançamo-la sem qualquer transtorno e ficamos, primeiramente, escutando um pouco. Tudo estava quieto.

     — Agora, sídi! — murmurou Halef.

     — Mas, tem cautela. As duas armas podem disparar com facilidade. Devemos nos precaver, para não sermos atingidos. Quando tivermos as armas, correremos para os dois cantos da frente do casebre. Estaremos escondidos e poderemos mandar uma bala ao primeiro que ousar sair. Vamos!

     Espiei do canto onde estava. Os dois canos de carabina encontravam-se cerca de oito ou nove polegadas para fora da janela. Abaixei-me — passos abafados, Halef ao meu lado — um salto, um puxão e um pulo para trás: estávamos outra vez atrás do canto da choupana e tínhamos as duas carabinas turcas, compridas.

     Lá dentro, o silêncio ainda durou alguns instantes, certamente em virtude da surpresa. Entretanto, Osko e Omar gritaram, em voz alta, para nós:

     — Aserim, aserim — Bravo, bravo!

    

     E agora, também, fizeram-se ouvir os que estavam no interior do rancho. Ouvimos as mais diversas imprecações, exclamações de susto, de admiração, interrogações desesperadas; não respondemos, porém.

     — Vai, pelos fundos, para o outro canto — murmurei ao ouvido de Halef. — Teremos, assim, a porta entre nós dois.

     Fazendo um gesto de assentimento, Halef afastou-se.

     Ouvi então um leve murmúrio no interior do rancho. Esforcei-me para escutar e acreditei ter ouvido qualquer coisa como “escondido debaixo da janela”. Pressupus o que se iria dar, então, e observei a janela, adiantando só a metade da face.

     Exatamente! Apareceram os dois canos de uma pistola. Certamente, queriam atirar da janela para baixo e isso era impossível com uma carabina; era a razão de usarem uma pistola. Segurei o cano da minha espingarda e levantei a coronha.

     Primeiro, vi os canos da pistola; depois o ferrolho e, finalmente, também a mão que segurava a arma. O dono dessa mão ou era muito corajoso ou muito irrefletido; poderia arrebentar-lhe a mão com uma bala. Ao invés disso, porém, preparei-me para aplicar-lhe um golpe; quando atingi a mão, ressoou, lá dentro, um grito horrível! A mão tinha desaparecido; a arma caíra no chão, debaixo da janela.

     Halef observara o sucedido, do canto onde estava. Exclamou, em voz alta:

     — Eji, pek eji. — Bem, muito bem, efêndi! Esse sujeito idiota, no futuro, certamente, preferirá guardar a sua mão no bolso. Já conquistamos três armas!

     — Ibhu, ajy awdchy — Alô, o caçador de ursos! — ouvi alguém dizer, lá dentro.

     Halef fora, por conseguinte, reconhecido pela voz.

     — Sim, sou eu — respondeu. — Venham para fora. Como aqui não existem ursos, quero caçar uma vez ouriços-cacheiros fedorentos.

     Fêz-se silêncio. Dentro da choupana, conferenciava-se. Depois, ouvimos a perguntar:

     — Estás sozinho?

     — Não.

     — Quem está contigo?

     — O efêndi, que estava preso, e, além dele, mais três outros. Víamos, agora, com efeito, Osko e Omar, que se aproximavam e o sahaf, que estava amarrando os três cavalos. Depois de alguns momentos informaram-se:

     — Onde está o ismilanense?

     — Morto.

     — Mentes!

     — Dize essa palavra outra vez, jogarei fogo sobre o telhado e morrerão queimados. Com gente da laia de vocês, não costumo brincar!

     — Como, então, teria morrido?

     — Quebrou o pescoço.

     — Onde?

     — Quis saltar o arroio perto de Kabatch, com o cavalo roubado; mas, caiu e partiu o espinhaço em dois pedaços.

     — Onde está o cavalo?

     — Está conosco.

     — Se isso é verdade, que o efêndi deixe ouvir a sua voz.

     — Isso é possível — respondi, agora.

     — Por Alá, é ele!

     Aquele que pronunciou essas palavras, em tom assustado, era o padeiro gordo. Reconheci-lhe a voz gorda.

     — Sim, sou eu — continuei. — Pergunto-lhes se querem se entregar a nós?

     — Vai para o diabo!

     — Não farei isso, mas, sim, outra coisa, de que não gostarão.

     — Que?

     — Quiseram assassinar-me e, agora estão nas minhas mãos. Não sou moslemita: sou cristão e não quero me vingar. Mandem para fora o bojadji Bochak. Será o intermediário. Dir-lhe-ei quais as condições que faço para desistir de vingança. Se não me obedecerem, mandarei um dos meus homens ao starechim de Dchnibachlue. Este os prenderá e podem supor o que acontecerá depois.

     Lá dentro, fêz-se ouvir um cochicho.

     — Vai para fora — ouvi, então, alguém dizer.

     — Oh, Alá! Ele me matará!! — defendia-se o gorducho.

     — Pensem também nos tapetes, que esconderam! — adverti-lhes. — Também esses estarão perdidos, se não fizerem o que peço.

     — Que farás com o bojadji? — perguntou um deles.

     — Dir-lhe-ei, apenas, em que condições lhes darei liberdade.

     — Não lhe farás mal?

     — Não.

     — Poderá voltar para aqui, depois do entendimento contigo?

     — Sim.

     — Queres assegurar-nos isso, por Alá e pelo Profeta?

     — Já disse que sou cristão. Não juro por nenhum Profeta.

     — Como se chama o teu Alá?

     — Taary — Deus!

     — Então jura, pelo teu Taary!

     — Também não faço isso. O nosso Redentor Jesus Cristo proibiu os juramentos. Nós, cristãos, dizemos sim ou não e sustentamos a palavra.

     — Não nos enganar ás?

     — Não.

     — Então, dá-nos a tua palavra.

     — Está bem. Prometo-lhes o seguinte: se me mandarem o bojadji cá para fora e se conservarem quietos, enquanto conversar com ele, não lhe tocarei num fio de cabelo e poderá voltar para junto de vocês, sem males e sem avarias.

     — E se não chegares a acordo com ele?

     — Nesse caso, comunicar-lhes-á o que pretendo fazer. De resto, se ficarem silenciosos e quietos, poderão ouvir, palavra por palavra, a nossa palestra. Verão, assim, quanto sou condescendente e até farão com alegria aquilo que vou pedir.

     — Deste a tua palavra; mas, os teus companheiros não lhe farão mal?

     — Não; prometo.

     — Então, ele poderá ir para fora.

     Parecia que o gordo não queria; travou-se uma discussão longa, a meia voz. Entrementes, coloquei Osko e Omar nos dois cantos, antes ocupados por mim e Halef. Dei-lhes instruções para utilizar as suas armas, ao primeiro sinal de hostilidade.

     — Que Alá os perdoe! — ouvi o padeiro dizer. — Tenho que me sacrificar por vocês. Se ele me matar, cuidem da minha esposa e da minha filha.

     Isso era tão tragicômico, que tive de me esforçar para não rir alto.

     O padeiro então saiu da choupana. Por mais de uma vez, vi pessoas, que personificavam a vergonha, a confusão e o medo, mas uma fisionomia, como a do gorducho, nunca estivera diante dos meus olhos. Não tinha ânimo de levantar o olhar e ficou parado, trêmulo, na porta.

     — Aproxima-te, chega-te cá para o lado da casa — ordenei-lhe. — Estes dois homens valentes vigiarão, por enquanto, para que os teus companheiros não procedam hostilmente contra nós.

     — Ficarão quietos, dentro da choupana — garantiu.

     — Espero que isso aconteça, para teu próprio bem! Nada te acontecerá, mas, ao menor gesto deles, meto-te esta faca entre as costelas.

     Disse-o em tom ameaçador e, ao mesmo tempo, mostrei a faca.

     Incontinenti, o tintureiro segurou a barriga, com ambas as mãos, e bradou:

     — Senhor, considera que sou pai de família!

     — Quando me entregaste aos assassinos, perguntaste, acaso, pela minha família? Vem!

     Segurei-o pela mão e puxei-o para trás do canto. Estávamos junto de Halef e Ali, o sahaf.

     — Oh, milagre de Alá! — exclamou o hadji. — Que montão de carne é esse homem! Ele também bota alguns milhares de ovos, por hora?

     O tintureiro não achou tempo para atender a essa pergunta, que, decerto, lhe era incompreensível. Avistou o outro e bradou, assustado:

     — Ali, o sahaf!

     — Sim, o teu genro, a quem certamente esperas com alegria — respondi. — Dá-lhe a mão, como convém a parentes tão chegados.

     Acreditei que se recusasse, mas ele estendeu a mão ao sahaf, sem hesitação. O cumprimento foi feito sem palavras; depois, determinei, mostrando para o chão:

     — Senta-te Bochak! As nossas negociações podem começar.

     Olhou, enleado, para o chão, diante de si, e disse:

     — Como me levantarei depois?

     Ouvindo isso, Halef pôs a mão no seu chicote de couro de hipopótamo e declarou:

     — Aqui, ó rei de todos os gordos, encontra-se o remédio eficaz para fazer sentar e levantar rapidamente. Não trouxemos nenhum divã para ti.

     No mesmo instante, o padeiro estourou no chão, como um saco, e pediu, com voz chorosa:

     — Deixa o teu chicote na cintura; já estou sentado.

     — Bem. Viste como foi rápido! Espero que levantes com a mesma rapidez. Efêndi, dize-lhe o que lhe pedes.

     — Sim, dize-me! — repetiu o padeiro, gemendo de medo.

     — Peço, antes de tudo, uma confissão sincera! — declarei-lhe. A primeira mentira, que me pregares, far-te-ei voltar para a choupana e mandarei vir o starechin. Sou um emir de Germanistan; não é brincadeira tentar contra a vida de um homem desses. Sabes o que te aconteceria, se eu desse queixa?

     — Não.

     — Serias arrastado para frente do juiz e condenado à morte.

     — Sim — interveio ameaçadoramente Halef. — Serias dependurado no cadafalso, ao contrário, de cabeça para baixo; depois, terias de engulir três garrafas grandes cheias de veneno e, afinal, te cortariam a cabeça, também ao contrário, isto é, dos pés para cima.

     Nem sequer ocorreu ao homem amedrontado observar a tolice inventada pelo hadji; levantou as mãos e gemeu:

     — W’Allah! Não façam isso!

     — Com certeza farei, se me negares o teu acordo — contestei. — Pois bem, responde-me agora. Deste o teu consentimento para a união do sahaf e Ikbala, apenas aparentemente?

     — Não... sim, sim — acrescentou rapidamente, notando o meu gesto ameaçador.

     — Depois, mandaste o teu ajudante reunir os homens, que agora estão dentro da choupana?

     — É verdade.

     — Era para eles me matarem?

     — Não mandei dizer isso!

     — Mas, eu devia ser reduzido ao silêncio, não?

     — É... é!

     — Bem. Isso é a mesma coisa que matar! Adiante: os tapetes, que estão no espinheiral, encontram-se ali contra a vontade das autoridades?

     — Não... é, é, senhor!

     — Bem, então ouve. Eu devia denunciar a tentativa de morte; devia também comunicar ao kiaja o lugar onde estão os tapetes. A primeira dessas coisas vou perdoar; a segunda não preciso fazer, porquanto sou forasteiro. Mas, direi ao sahaf o que sei sobre os tapetes; fará o que fôr do seu dever, como súdito do padixá.

     — Oh, senhor, não lhe contes nada!

     — Saberá de tudo, seguramente! Agora, depende de ti, o procedimento que adotará, como inimigo ou amigo teu. Destinaste tua filha a Mosklan, de Palatza?

     — É verdade.

     — Bem, Mosklan está preso. Eu mesmo o prendi. Ikbala ama o sahaf e este também a ama. Espero que sustentes, neste momento, a promessa que me fizeste.

     Coçou-se atrás das orelhas, refletindo.

     — E então? — perguntei.

     — Sim, sustentarei.

     — Juras pelas barbas do Profeta?

     — Não é permitido.

     — Por quê?

     — Pois és um cristão.

     — Mas ele é moslemita. Deves jurar para o sahaf, e não para mim. Decide-te!

     — Senhor, se Mosklan fôr posto em liberdade, então...

     — Cala-te! — berrou-lhe o pequeno hadji. — Não queremos saber desse patife! Não faças discursos compridos, mas, pelo contrário, decide-te logo, senão vou espichar-te, a relho, de modo que ficarás mais longo do que dois meios séculos. Queres dar a tua filha ao sahaf ou não? Sim ou não?

     — Sim... sim!

     — Juras?

     — Juro.

     — Pelas barbas do Profeta e pelas de todos os santos califas e crentes?

     — Juro.

     — É a tua sorte. Não esperaria nenhum momento mais.

     — Senhor, está tudo bem, agora? — interrogou-me o homem, assustado. — Restituir-nos-ás à liberdade?

     — Não. Ainda não chegamos ao fim.

     — Que pedes ainda?

     — Já me deste a tua palavra, uma vez, e não a quiseste cumprir. Agora, quero garantias. Darás o teu consentimento ao sahaf, não só verbalmente, como também por escrito.

     — Como assim?

     — Faremos um isbat, que assinarás.

     — Sim, vamos prepará-lo, na minha casa. Mas, agora, dá-nos a liberdade.

     — Não, não o soltes! — disse, então, o sahaf, que se mantivera calado, até aquele momento. — Eu o conheço. Sabes que vendo livros sagrados. Sempre carrego papel, pena e tinta, no alforge. Que se faça o isbat agora já.

     — Também penso assim.

     — Mas não posso! — esquivou-se o tintureiro. — Não posso escrever; estou muito nervoso; tenho tremuras. O meu corpo está como uma montanha cheia de fogo e terremotos.

     — Queres que acalme esses terremotos? — perguntou o hadji, fazendo um gesto significativo, com a mão no chicote.

     — Oh, Alá! Oh, Alá! — gemeu o gordo. — Sou como um arbusto, que se esmaga entre duas rochas.

     — Ou como uma ovelha, que dois leões estraçalham! — acrescentou, rindo, Halef. — O meu efêndi vai dar-te um único minuto de prazo para pensar.

     — É verdade, senhor? — perguntou ele.

     — É. Quando esse minuto tiver passado, poderás voltar para a choupana. Mandarei chamar, então, o kiaja.

     — Pois seja! Mosklan que se zangue comigo; não posso fazer outra coisa! Assinarei.

     — Mas isso ainda não chega.

     — Não? Que queres, então, a mais?

     — Os teus companheiros pecaram juntamente contigo. Devem, portanto, comprometer-se a fazer cumprir a tua palavra. Quero que assinem e jurem, como tu. Irão conosco à tua casa e, quando chegarmos lá, darás a mão da tua filha ao sahaf, diante dos olhos de todos.

     — Não farão isso.

     — Por que não?

     — Não sabem escrever.

     — Talvez tanto como tu. E se, realmente, não souberem escrever, que ponham o seu sinal, debaixo do documento. Peço somente isso; depois estarão livres.

     — E, contudo, não farão isso, pois...

     — Alto, Bochak! — interrompeu-o uma voz, vinda de dentro da choupana. — Será que devemos arrostar um perigo por tua causa? Efêndi, é isso tudo quanto pedes?

     — É.

     — Nesse caso, não falarás sobre o que aconteceu aqui?

     — Não.

     Reconheci a voz do mendigo; era o principal malfeitor e, por isso, procurava, com maior ansiedade, fugir ao perigo. Mal tinha ouvido o meu não e já declarava:

     — Então, que o bojadji assine o isbat. Também assinaremos.

     — Que dirá Mosklan? — interveio o gordo.

     — Não pode dizer nada. Sabes que ele tem motivo para me recear. Não poderá opor-se!

     — Bem — declarei. — Estamos entendidos. Podes entrar no rancho, bojadji.

     — Sem assinar? — perguntou, alegre.

     — Faremos o isbat lá dentro. Vou junto.

     — Pelo amor de Alá, fica! — pediu Halef, segurando-me pela mão.

     — Ora essa! Aquela gente não me fará mais nada. Entrarei junto. Se ouvirem acontecer alguma coisa comigo, prendam fogo no telhado e guardem as portas, com as armas. Assim, não fugirá ninguém.

     — Sim, entra, efêndi, estás garantido! — chamou o mendigo, lá de dentro.

     — Sídi, vou contigo! — disse Halef.

     — Bem, convence-te de que não precisamos ter preocupações. Levanta-te Bochak.

     O gordo levactou-se gemendo e entrou, cambaleando, na choupana. Nós o seguimos. Halef tinha puxado o revólver; meteu-o, porém, logo no coldre, ao verificar que os homens estavam todos no canto oposto ao em que tinha encostado e deposto as suas armas. Fiz, então, um sinal a Omar, Osko e ao sahaf e também eles entraram.

     O tintureiro ainda não queria submeter-se; tinha medo de Mosklan; mas os outros insistiram de tal modo que acabou cedendo.

     O sahaf retirou-se, então, cheio de alegria, para trazer os requisitos necessários para a feitura do documento.

     — Queres escrever, senhor? — perguntou-me.

     — Não. És o noivo; zela para que a noiva não te possa escapar.

     Começou, depois disso, a sua obra prima de literatura. Demorou muito até terminar; depois, entregou-me o seu trabalho. Li as linhas escritas e verifiquei que tinha posto tantas cláusulas, que não restava nenhuma brecha, por onde se pudesse escapar ao compromisso assumido. Mas, quando se devia seguir a assinatura do padeiro, este começou novamente as suas lamentações.

     — Sídi, vamos enforcá-lo agora já? — perguntou-me Halef. — Enforcado ele será em todo o caso. Pois, se não assinar neste instante, sairei para trazer o kiaja. Segurarão este sujeito, até que eu volte.

     — Assino... assino! — assegurou o padeiro.

     Escreveu então o seu nome, debaixo do documento. O sahaf dirigiu-se aos outros, dos quais obteve não só o sinal, que substituía a assinatura, como também o seu compromisso verbal. Logo que tudo estava em ordem, o sahaf disse:

     — Iremos, em seguida, a Dchnibachlue. Serão testemunhas de que ele porá a mão da Ikbala na minha.

     — Deixem-me descansar! — gemeu o padeiro. — Estou extenuado de...

     — Escuta! — interrompeu-o Halef, mostrando para a porta de entrada.

     Também eu ouvira o galope de um cavalo. Era claro que o cavaleiro devia estar muito perto, pois, dada à constituição do solo naquele lugar, só se podia ouvir o tropel de um animal, quando este estivesse muito próximo.

     Ainda não tínhamos tido tempo de nos levantar do chão, onde estávamos sentados, quando vimos o cavaleiro entrar. Imagine-se o meu pasmo, quando reconheci... Mosklan; Mosklan, aquele que se apresentara como agente Pimosa.

     Como teria escapado ao ferreiro? Teria ele... mas, para esses pensamentos, não me sobrava tempo, visto que imediatamente fora notado.

     — Lanetli chowarda, burada — Maldito patife, aqui!

     Berrou essas palavras ao meu encontro; vi uma pistola na sua mão. O tiro relampejou; atirei-me para o lado; não sei como isso podia acontecer com tamanha rapidez. Um instante depois, bati-lhe com a coronha da espingarda na cabeça, com tanta violência, que deixou cair a pistola, e com as duas mãos segurou a cara, num grito de dor; pois, não atingira  cabeça e sim a cara, por ele a ter virado no instante.

     Quase no mesmo momento, Halef segurava-o, jogando-o ao chão, e se ajoelhava sobre ele. Tudo isso fora tão rápido, que nenhum dos outros teve tempo de se levantar.

     É claro que, depois disso, todos se ergueram num salto. Halef segurava o homem e Osko amarrava-lhe os braços. Mosklan não oferecia resistência; mantinha as mãos na cara e soltava gritos lancinantes — o golpe com a coronha da arma tinha-lhe quebrado a dentadura e, possivelmente, também o maxilar.

     Mas, ainda outro soltava gritos de dor — ou melhor — berrava, como se estivesse amarrado em um palanque: era o gordo padeiro.

     Quando Mosklan deu o tiro e eu me afastei, rapidamente, para um lado, ele fora levado, pelo susto, a fazer um movimento involuntário com o braço; assim, a sua mão se colocara na linha do tiro e a bala acertara o dedo mínimo.

     — Parmak-im, el-im, fakir-im, wuejud-in-ten-im. — Meu dedo, minha mão, meu braço, minha barriga, meu corpo! — berrava. — Bul-mich-um, beni wur-di, beni, beni. — Estou baleado, ele me matou, a mim, a mim!

     Dizendo isso, saltava de um lado para outro, como um doido, apesar do seu corpo pesado.

     — Mostra! — ordenei-lhe.

     — Aqui, aqui! Está correndo sangue; por aí está saindo a vida, aos borbotões! Estou morto; sou um cadáver!

     Vi que a bala só acertara levemente de raspão, no dedo; faltava só um pouco de pele e carne.

     — Cala-te, homem! — disse. — Isso nem é ferimento! Não dói; mal podes sentir isso.

     — Isto? Não sentir? — perguntou, admirado.

     Examinou melhor o dedo, escutou para saber se, realmente, doía e respondeu, depois:

     — Alá é misericordioso! Desta vez, escapei-me felizmente da morte. Mas, um pouco mais para a direita, e eu tinha chegado ao fim!

     — Sim, dois pés mais para a direita.

     — Só dois pés! Efêndi, a bala era destinada a ti! Por que tiraste a tua cabeça tão depressa da frente?

     — Para não ser atingido, naturalmente!

     — Em compensação, fui eu o atingido. Esse desgraçado podia me ter tirado a vida! Tinha-lhe prometido a minha filha e ele atira contra mim! Não podia mirar melhor? Não se podia cuidar mais para não ser, depois, abatido? Acabou-se tudo entre nós dois. Saban, vem cá e amarra e. minha ferida.

     Mas, Saban, o mendigo, estava abaixo junto de Mosklan, para examinar-lhe o ferimento. O ferido queria falar, mas não podia. Conseguia, apenas, fazer ouvir uns sons confusos, pela garganta. Tanto mais expressivos eram os seus olhares, que nos teriam apunhalado, se possível fosse. Via que não estávamos reunidos inamistosamente.

     — Como vai? — perguntei.

     — Ainda não sei — foi a resposta. — O maxilar também está ferido. Teremos de mandar chamar um médico de verdade. O ferido terá de ficar deitado aqui.

     Compreendi perfeitamente a intenção do meu interlocutor; contudo, respondi:

     — Assim, não poderás ir a Dchnibachlue, pois terás de ficar aqui. Nós, porém, teremos de partir imediatamente.

     — Como?! — disse Halef. — Queres deixar este homem aqui?

     — Realmente.

     — Considera que ele fugiu! Como teria conseguido isso? Quem sabe se matou o ferreiro!

     — Saberemos. Não nos poderá fugir. Saban que cuide dele, até mandarmos notícia.

     — E eu irei buscar um médico — acrescentou Murad, que, na vinda para cá, fora o meu guia.

     — Faze-o! — respondi. — Os outros virão conosco, já. Nenhum se opôs. Adivinhei o que pensavam. Não queriam faltar à palavra, mas, também, não queriam abandonar o seu aliado. Osko e Omar trouxeram os cavalos. Montamos. Para admirar era o fato de ser o padeiro o mais apressado de todos.

     Os outros vinham pouco atrás de nós, devagar, cada vez mais devagar. Quando tínhamos atravessado o mato, não os víamos mais.

     — Sídi, esperemos por eles! — pediu Halef.

     — Não. Estou contente por estar livre deles!

     — Mas, terão de ir conosco à casa do Bochak.

     — Não preciso deles! — disse este. — Aliás, não preciso de amigos, que atiram contra mim. Lá vem mais um cavaleiro.

     Já vira o homem, que montava um cavalo desensilhado. Vi que reduzira a marcha, ao nos avistar.

     — Ah, então nada lhe aconteceu! — suspirei, aliviado.

     — Quem é? — perguntou Osko.

     — O ferreiro. Durante o dia de hoje, sempre um anda atrás do outro, numa verdadeira correria.

     Esporeamos os cavalos. Quando Chimin me reconheceu, bradou, de longe:

     — Hamdulillah! — Louvado seja Deus, estás vivo! Tive grandes preocupações pela tua sorte.

     — E eu pela tua. Aconteceu-te alguma coisa?

     — Não.

     — E à tua mulher?

     — Ele lhe deu um soco, na cabeça; mas, isso tem menos importância, do que pensei, a princípio.

     Estávamos agora reunidos. O ferreiro estava sem fôlego.

     — Vocês o viram? — perguntou.

     — Vimos. Atirou contra mim, mas não acertou.

     — Onde teria conseguido a arma?

     — Como foi, então, que fugiu?

     — Primeiro, vieram os teus amigos, — contou o ferreiro — e eu os mandei à casa do Bochak, que se encontra a teu lado. Depois, fiquei na ferraria para trabalhar. De repente, vi o prisioneiro fugir velozmente. Corri para junto de minha mulher. Estava deitada na casa, segurando a cabeça com as mãos. Não tinha recuperado inteiramente os sentidos. Ele a tinha assaltado e agredido.

     — Como foi possível? Como pôde ele sair do porão?

     — Cometi um grande erro. Este hadji Halef Omar queria ver o prisioneiro. Quando isso tinha acontecido, deixei a escada no lugar. Livrou-se das cordas e saiu do porão por essa escada.

     — Então, podia abrir a porta?

     — É só um trançado de vime. Arrombou-a. O ruído originado por isso não pôde ser ouvido, porquanto eu estava trabalhando. Atrás da casa, estava o seu cavalo. Viu naturalmente o animal e com ele fugiu.

     — Como é que ele pôde seguir-nos? Podia saber onde estávamos?

     — Naturalmente, ouviu o que falei com os teus companheiros.

     — Então, procedeste com muito descuido.

     — Tens razão. Quis corrigir o mal. Por isso, dei água à minha mulher, para refrescar a cabeça e corri à aldeia, tomei o primeiro cavalo encontrado e me dirigi, rapidamente, a Dchnibachlue. Ali chegado, ouvi da  mulher do padeiro que tinhas ido a Kabatch, seguido pelo seu marido e Deselim e, depois, pelos teus amigos. Após, chegara o fugitivo, soubera do ocorrido e os seguira. Prossegui imediatamente e estou satisfeito, de todo o coração, por ver que estão de regresso. Agora, também poderei saber o que aconteceu.

     Narrei-lhe em poucas palavras o que tinha acontecido. Ao terminar, disse o ferreiro pensativo:

     — Isso foi obra de Alá. Mosklan foi castigado e estou livre dele. Como o terias tirado de meu poder, efêndi?

     — Teria sido difícil, mas agora já não é mais preciso — respondi.

     Confesso honestamente que me teria encontrado em embaraço. Mosklan não podia ficar metido, eternamente, no porão da casa do ferreiro.

     Como, portanto, deixá-lo em liberdade, sem que lhe fosse possível vingar-se?

     Dessa vingança, que era de temer, fiz uma pequena referência; mas, o ferreiro tranquilizou-me:

     — Não te preocupes com isso! Aprendi tanto contigo, que não preciso ter medo desse  negociante de cavalos. Por enquanto, ele não pode falar e, consequentemente, não te causará embaraços. Eu já me entenderei com ele.

     — Eu também! — rosnou o padeiro. — Atirou contra mim. Isso ele me pagará! A minha vida esteve por um único fio de cabelo!

     — Não, esteve, pelo contrário, dependendo de uma cabeça toda!

     — Quem sabe se quis matar nós dois com uma bala só?! Mas, efêndi, estamos na aldeia. Vamos mais devagar. Quero fazer ainda algumas perguntas.

     Retardamos a marcha e ficamos para trás. Depois, o padeiro perguntou:

     — Contarás a história dos tapetes ao sahaf?

     — Realmente.

     — Ele ficará sabendo, também, o lugar onde estão?

     — Até irei mostrar-lhe os tapetes.

     — Não queres abandonar essa idéia?

     — Não. Quero que ele dê queixa contra ti.

     — És cruel. Queres que o rapaz faça isso de fato?

     — Quero.

     — Irás obrigá-lo, se desistir da queixa?

     — Tenho de ir-me; portanto, não posso obrigá-lo. Mas, ele o fará seguramente, se não cumprires a tua palavra. Procede, portanto, tendo em vista esse fato.

     — Sustentarei a minha palavra.

     — Então, manda chamar, agora já, o kiaja e três vizinhos, para testemunhas. Aconselho-te que faças isso.

     — Achas que devo fazê-lo?

     — Acho. Tens de mostrar ao sahaf que estás procedendo com seriedade.

     — Obedecer-te-ei e — ó Alá! — quão alegres ficarão a minha mulher e a minha filha.

     Finalmente, a bondade inata naquela gente rompia todas as fronteiras. A sua cara tomava visivelmente uma expressão alegre e quando chegamos à frente da sua casa e apeamos, o padeiro, naturalmente, rolando como um saco enorme, vimo-lo correr para a porta, abri-la precipitadamente e gritar:

     — Tjileka, Ikbala, gelyn, gelyn, ewetlemyn, burda iz. — Venham, venham depressa, estamos aqui!

     E ambas acorreram. O dono da casa foi o primeiro que avistaram e depois eu.

     — Senhor, estás aí! — exclamou a mais querida de RumilL — Nada te aconteceu? Graças a Alá! Mandei prevenir-te. Cumpriste a tua palavra?

     — Sim, trago-te o eleito do teu coração.

     — Onde? Onde?

     — Aqui!

     Dizendo isso, indiquei o pequeno hadji, que entrara depois de mim. Não se podia ver, ainda, os demais.

     — Inkali' min hon. — Vai para o diabo! — interrompeu-me Halef, felizmente, no seu dialeto árabe, que a moça não entendia.

     Ela, porém, interrogou, perplexa:

     — Este aqui?

     — Sim, ó linda filha das cores escarlates.

     — Mas, este eu nem conheço.

     — Ele, entretanto, quer dedicar-te toda a sua vida. Mas... aí vem mais um. Escolhe entre os dois!

     O sahaf entrara depois de Halef. A rapariga olhou para o pai, embaraçada e indecisa.

     — Hangy bil-ir-sen — Qual dos dois conheces? — perguntou o padeiro, rindo.

     — Bonu. — Este! — respondeu ela, mostrando o sahaf.

     — Sana elwerh dir. — Ele te agrada?

     — Ewwet, tamam buetuen — Sim, inteiramente!

     — Onu al. — É teu.

     Ouvindo essas palavras, Ikbala pôs as mãos diante dos olhos, prorrompeu num soluço, impossível dizer se de vergonha ou de emoção, e depois fugiu, pela mesma porta por onde entrara.

     — Senhor, vês que desastre vieste provocar! — disse o padeiro, meio preocupado, meio rindo.

     — Manda-lhe a felicidade!

     — Onde está?

     — Aqui. Mostrei o sahaf.

     — Não pode ser — respondeu-me, sacudindo a cabeça. — Nenhum jovem pode estar só com uma virgem, antes do dia do casamento.

     O bom padeiro não imaginava que Ikbala já se encontrara muitas vezes, a sós, com o seu fiel Ali, lá nos fundos da casa, sob a proteção da discreta Tjileka e à luz do luar, mais discreto ainda.

     — Então, vai com ele — aconselhei.

     — Não tenho tempo.

     — Tjileka não pode acompanhá-lo?

     — Também não. Vocês são nossos hóspedes e terão de ser tratados. Temos muito que fazer.

     Tratados? Quereria dar-nos algo para comer ou beber? Que? As preciosidades do seu forno, que já conhecia de sobra? Ai de mim! Apressei-me, portanto, a fazer uma observação rápida:

     — Permite que nos contentemos com a tua amizade. O meu tempo está medido para tudo e já me atrazei. Tenho de partir.

     — Senhor, não farás isso para mim! Olha, o dia já chega ao fim. Para onde queres ir, ainda hoje?

     — Tinha razão, Já era tarde. Também Halef perguntou-me em voz baixa:

     — Queres ir embora, de fato, ainda hoje, sídi?

     — É quase imprescindível.

     — Sozinho? Sem nós?

     — Não queria arriscar isto outra vez.

     — Considera, então, que estivemos constantemente montados e que os cavalos precisam descansar.

     — Pois bem, fiquemos mais algum tempo aqui e, à noite, dormiremos em casa de Chimin, o meu amigo.

     O bravo ferreiro soltou um grito de alegria e disse, estendendo-me a mão:

     — Oh, efêndi, não imaginas quanta alegria vais causar-me.

     — Sei disso.

     — Disseste que eu era teu amigo!

     — Tu o és realmente. Provaste-o. Quando regressar à minha terra, serás um daqueles a quem sempre dedicarei um pensamento de gratidão e estima.

     — Tenho que dizer isso à minha mulher! Ah, se soubesses como ela está!

     — Tomaste um cavalo emprestado e tens de devolvê-lo. Monta o meu e vai ver como está tua companheira; depois, volta.

     — Longe de mim fazer tal coisa! Um cavalo como esse só pode ser montado por quem é digno dele. Conseguirei facilmente outro e voltarei em seguida.

     Saiu.

     Concordei, pois precisava muito do meu garanhão. Para nossa segurança, necessitava saber o que tinha acontecido, durante esse tempo, na choupana do mendigo. Quando todos estavam sentados e o tintureiro, juntamente com os da sua família, estava iniciando o trabalho de hospedeiro, disse eu a Halef:

     — Não tenhas cuidado, se me retirar agora. Quero ver o que aconteceu a Mosklan.

     — Estás doido, sídi? Queres voltar à choupana?

     — Quero.

     — Matar-te-ão.

     — Ora! Agora, não me poderão surpreender novamente. De resto, estou convencido de que a choupana está vazia. Terão levado Mosklan dali, para que, eventualmente, não o possamos encontrar.

     — Ele não precisa ter medo de ti. Não tinhas direito de prendê-lo.

     — É verdade. Contudo, tem receio de mim. Atirou contra mim e também não está com a consciência tranqüila, noutros sentidos. Não deixes o tintureiro saber para onde fui.

     — Mas, se não voltares em seguida, irei procurar-te.

     — Bem, está combinado.

     Saí e me afastei, silenciosamente. Evitei de percorrer o caminho andado antes. Poderia ter um encontro desagradável. Por isso, ao invés de ir para o sul, segui para o oeste, para aproximar-me da choupana, pelo caminho que vem de Kabatch.

     Tendo a beira norte do mato à esquerda, galopei pelos campos de pastagens e, dada à velocidade do meu Rih, alcancei, em pouco tempo, o lugar onde o mato se estende, para o sul, em direção a Kabatch. Avistei, então, bem ao longe, um grupo de cavaleiros, que se afastavam vagarosamente, ao lado daquela aldeia. Essa gente tinha estado junto de uma casa isolada e, agora, prosseguia a cavalgada.

     Supus que fossem as pessoas que procurava. A distância seria, aproximadamente, de uma milha inglesa.

     — Kawam, kawam. — Depressa, depressa! — gritei para o cavalo.

     Rih compreendia perfeitamente essa palavra; não precisava de outra coisa, para fazê-lo andar mais depressa. Era um prazer, voar, assim, através do campo. Apesar da grande velocidade, poderia encher uma taça de champanha e beber, sem perder um pingo que fosse.

     Em poucos minutos tinha alcançado a casa. Conservara-me de tal modo que ela ficara entre eu e o grupo de cavaleiros e, assim, não fora visto.

     Uma mulher de meia idade estava sentada à porta, cortando melancias.

     — Mesalcheer — Boa noite! — cumprimentei em árabe.

     Olhou-me interrogativamente. Repeti a saudação em turco e, então, ela compreendeu. Agradeceu com amabilidade.

     — Queres deixar-me provar um pedaço das tuas melancias? — Tenho sede — pedi.

     — Com muito gosto, senhor.

     Cortou um bom pedaço que me deu. Ao observar a satisfação com que mordi naquela fruta, observou, satisfeita:

     — Fui eu mesma quem as plantou. Há poucos minutos, tive de cortar uma inteira para outros. Eles não pediram com tanta delicadeza com tu.

     — Mas, deram-te uma gratificação?

     — Não cobro, apesar de ser muito pobre e ter colhido poucas melancias. Mas, além de tudo, eles me roubaram.

     — Ingratos! Que foi que te tiraram?

     — O meu lenço de cabeça. Um deles estava ferido. Amarraram-no com o lenço.

     — Então, não os conhecias?

     — Saban, o mendigo, que mora no mato, estava junto e também Murad, seu companheiro.

     — Não sabes para onde foram?

     — Queriam ir a Usu-Dere. Mora lá um parente de Saban, o qual é cirurgião e benzedeio. Na sua casa deverá ficar o ferido.

     — Não falaran sobre a maneira por que foi ferido o homem?

     — Caiu de urra árvore, batendo com a cara numa pedra. Quebrou todos os dentes.

     — Coitado dele!

     — Oh, não é digno de compaixão! Conheço-o, mas não sei o seu nome. É ele que põe a perder os nossos homens.

     — Também o teu?

     — Não. Sou viúva; o meu marido morreu.

     — Tens filhos?

     — Três. O menor está de cama, com escarlatina. Os dois maiores foram aos banhados, para pegar sanguessugas, que vendo ao curandeiro. Este paga um pára por dez sanguessugas.

     Pobre mulher! Que remuneração miserável! Tomei cinco piastras e lhas dei.

     — Toma, compra uma bebida refrigerante para o teu filhinho.

     Era uma insignificância, mas, para ela, uma soma apreciável. Olhou-me, incrédula, e perguntou:

     — Queres dar-me isso?

     — Quero.

     — Senhor, és tão rico assim?

     — Sou.

     — Então a bondade do teu coração é tão grande como a tua fortuna. Queira Alá que te...

     Não ouvi mais nada, pois já montara e me afastava rapidamente, de volta. Quanta miséria podia ser aplacada, quanta necessidade satisfeita ou só aliviada, se... ah, quem dera que eu pudesse dar, dar à vontade.

     Sabia o bastante para estar certo de que nada tinha a recear.

     Quando, ao chegar a Dchnibachlue, apeei-me nos fundos da casa do nosso hospedeiro e pai da noiva, vi um couro, sangrando, dependurado num moirão, e, ao mesmo tempo, um cheiro de assado invadiu o meu nariz. Até há poucos minutos, o couro fora o traje de gala de um bode. Brrr!

     A um lado da casa, onde menos perceptível era a correnteza de ar, encontrei o tintureiro e a sua cara metade, ocupados — em que?

     No chão, havia uma vasilha, a que poderíamos chamar de gamela, bacia ou panela de madeira. Sobre as bordas, tinham sido estendidos três fios de arame. No do meio, estava preso o bode mandado para um repouso eterno, mas não igual ao dos seus antepassados. Ainda tinha os chifres. Sobre o corpo do animal e sobre os dois outros fios, tinham sido colocadas achas de lenha e sobre estas esterco, a que os mongóis chamam de “arcol”, depois novamente lenha e estrume e, em seguida, havia sido incendiada a fogueira. O cabrito queimava, na parte superior, até ficar preto como carvão; pouco abaixo, assava e, finalmente, na parte inferior, o calor não tocava nem a sua carne, nem os seus sentimentos. Da camada que estava fritando, gotejava graxa, em intervalos espaçados, pavorosamente devagar, a cansar os nervos mais resistentes, caindo sobre o fundo da vasilha, onde havia uma camada de arroz. As paredes dessa maravilhosa fritadeira estavam pintadas de vermelho, como as calças dos soldados franceses, e, apesar da minha melhor boa vontade, não pude deixar de pensar nas mãos vermelhas da gorda Tjileka, na capa de seu marido, reclame de porta de tinturaria e, então, tive a suspeita de que a panela ali presente, em outras horas, servia de cuba para tintas.

     — Onde estiveste, senhor? — perguntou o gordo. — Ainda bem que voltaste. Para tua honra, matei uma cabrita nova e apetitosa. O vizinho me vendeu.

     — Não te parece que essa cabrita está muito masculinizada? — observei.

     — Oh, não! Que estás pensando, senhor?!

     — Experimenta cheirar. O teu vizinho se enganou e te deu um bode.

     — O meu vizinho não seria capaz disso.

     — A carne vai queimar. Não queres virar o assado?

     — Ah, senhor, logo se vê que és um estrangeiro! Tiraria o melhor gosto da carne.

     — O arroz amolece com as gotas de graxa?

     — Mas nem deve amolecer. Não conheces o ditado: “O pilaw (3) tem de estalar, crepitar”. Não ficará amolecido.

     — Não te parece que alguma coisa do combustível vai cair no arroz?

     — Não faz mal. Vê, tiro tudo novamente.

     Meteu os dedos no arroz e se esforçou para tirar os sinais de estéreo. Lembrei-me involuntariamente da minha graciosa Mersiná de Amadija, que limpava os olhos remelosos com cebolas. De quem seria a melhor comida, dela ou deste casal de baleias vermelho-ruivas de Dchnibachlue?

     Desisti de penetrar ainda mais nos segredos culinários desses tintureiros e me recolhi, apavorado, para dentro da casa.

     Sob a porta de entrada, encontrei-me com Halef, que vinha saindo.

     — Cá estás, sídi! — disse, contente. — Pareceu-me que estavas demorando. Agora mesmo, ia montar.

     — Vês que nada me aconteceu. Com que se distraíram até agora?

     — Oh, não nos enfadamos. Fui comprar cabra, com o tintureiro, e houve muita coisa engraçada. Queria que a cabrita fosse de presente, por se destinar a uma pessoa de tanta distinção, que toda a localidade devia considerar como hóspede. A propósito disso, houve uma tal encrenca, que até se precisou chamar o kiaja.

     — Quem é essa pessoa distinta?

     — Naturalmente, és tu; quem poderia ser, então? Porventura, eu?

     — Ah, sim! Nesse caso, a cabra é destinada a mim?

     — Certamente.

     — Com certeza não te referes à cabra, que é um bode?

     — Cabrita ou bode, é indiferente, sídi. O assado, em qualquer hipótese, vai ser um gosto.

     — Desejo-te bom apetite! Entremos na sala!

     Ia sentar-me, quando ouvi um ruído estranho, procedente do compartimento vizinho, destinado, ao que parecia, às mulheres. Parecia que alguém apanhava violentas taponas e, ao mesmo tempo, se ouvia um gemido e suspiros, que me deixaram preocupado pela sorte da pessoa ou das pessoas, que se encontravam lá.

     — Quem está aí dentro? — perguntei ao sahaf.

     ____________________

     (3) Pilaw, pilaf ou pilau. — Palavra turca, que significa arroz engordurado ou encebado, com pimenta vermelha e, freqüentemente, carne assada, comida muito apreciada no Oriente. (N. do T.).

 

     — Ikbala, a estréia dos meus olhos — respondeu.

     — E quem mais?

     — Não sei.

     — Que é que fazem?

     — Como posso saber? Ouço gemidos. Tenho medo de que lhe aconteça alguma desgraça. Queria socorrê-la; mas sou o noivo e não posso ir ter com ela.

     — Achas que eu possa entrar?

     — Sim. És um cristão. Não podes casar com uma filha desta terra. Também já lhe viste o rosto. Não a envergonharás, se fores ter com aquele tesouro.

     — Então, irei ver o que ocorre.

     — Vai! Mas não lhe toques, efêndi. Será minha esposa e aquela que deverá morar no meu coração não poderá ter o menor contato com um outro.

     — Não tenhas cuidados! A mais bela de Rumili nada tem a recear de mim.

     Dirigi-me ao compartimento ao lado. Ali estava sentada Ikbala, “a que dá felicidade”, diretamente sobre o chão. À sua direita havia uma vasilha semelhante a um alguidar, no qual havia uma massa original. Os seus dois braços estavam cobertos até o cotovelo com aquele pirão. Naquele momento, tirara um pedaço dessa massa do alguidar e procurava dar-lhe uma forma arredondada. Fazia isso, girando com a massa numa mão, enquanto batia em cima, com a outra, espalmada. Eram essas as taponas, que ouvira.

     Dedicava-se a esse serviço com tamanha devoção, que o suor lhe escorria por todos os poros. Toda a sua cara estava bem vermelha e banhada de suor.

     — Que fazes aqui? — perguntei-lhe.

     — Faço uma massa — respondeu, com gravidade.

     — De quê?

     — Balas de canhão.

     — Para quem?

     — Para vocês, naturalmente, pois são nossos hóspedes.

     — Qual e o gosto dessas balas?

     — De um manjar do paraíso.

     — Quais as substâncias empregadas nisso?

     — Diversas: farinha, água, passas, amêndoas, azeite de oliva, sal, pimentas turcas e toda a sorte de ervas aromáticas.

     — Quanto tempo levará até que isso esteja pronto?

     — Quando a cabrita estiver assada, estas balas serão cozidas na graxa e no arroz, que sobrar.

     — O gosto será como que um prenúncio do sétimo céu.

     — É verdade. Prova esta massa. Nunca terás comido coisa igual.

     Meteu os dedos na bacia, trouxe-os cheios de massa e estendeu os com um sorriso gracioso.

     — Agradeço-te, ó flor da hospitalidade. Se provasse agora, estragaria, o prazer com que, depois, comerei essas balas de canhão.

     — Não faças cerimônia! És o criador da minha felicidade. Só a ti devo gratidão por ter meu pai mudado de idéia com tanta rapidez.

     Fêz um gesto insistente. Obstinei-me tão decididamente na recusa, que, finalmente, ela desistiu, levando, então, os dedos à própria boca, para tirar-lhes a massa, dando estalos com a língua.

     Passas, amêndoas, azeite de mesa, pimentas turcas! Certamente o gosto disso era horrível. Ainda mais a água, diante da qual eu me apavorara. E toda a sorte de ervas! Ai de ti, sahaf, nobre sahaf! Como estará arranjado o teu estômago daqui a alguns meses!

     Ele ficou muito contente, ao ouvir que a eleita do seu coração não estava em perigo. Ademais, o ferreiro acabara de chegar e, no mesmo instante, apeara-se, lá fora, um homem, no qual reconheci um daqueles que prendêramos na choupana do mendigo. Ouvi-o perguntar por mim e saí. Conduziu-me à parte e disse:

     — Senhor, fôste generoso para conosco e também és rico. Tenho algo para te comunicar.

     — Então, fala!

     — Quanto pagas?

     — Não sei se o que me vais dizer tem algum valor para mim.

     — Oh, muito valor.

     — Em que sentido?

     — Estás em perigo de vida.

     — Não acredito.

     — Se te digo, é verdade.

     — Juntamente porque dizes, é mentira.

     Olhou-me espantado e perguntou:

     — Acreditas realmente que estou te mentindo?

     — Acredito. Quiseram matar-me e me roubar. Assassinos e ladrões certamente também são capazes de mentir.

     — Mas, agora, procedo como teu amigo e te digo a verdade.

     — Não. Se eu, realmente, estivesse em perigo de vida, não me dirias.

     — Por quê?

     — Porque, com isso, tu mesmo te arriscas grandemente. Mandar-te-ia prender imediatamente e terias de confessar, sem receber um pára.

     Assustou-se e buscou o seu cavalo, com os olhos. Puxei o revólver e disse:

     — Antes de mais nada, advirto-te que te mandarei uma bala, se fizeres a menor menção de fugir.

     — Senhor, quero salvar-te e, por isso, pretendes matar-me!

     — Não te devo nenhuma gratidão. Se tens, de fato, a intenção de me prestar um favor, relembra o que, há pouco, planejavas contra mim. Se eu quiser proceder com muita generosidade, dir-te-ei que estaremos quites, depois de me teres dito qual o perigo que me ameaça.

     — Então, não queres pagar nada?

     — Estou pronto a gratificar-te. Mas, primeiro, preciso saber qual o valor da tua comunicação.

     — Muito grande. Dás mil piastras?

     — Não.

     — A minha informação vale muito mais do que isso.

     — Não acredito.

     — Dá, ao menos, novecentas piastras.

     — Não.

     — Oitocentas.

     — Também não.

     — Reflete bem, porque se trata da tua vida.

     — Não dou nenhuma única piastra pela minha vida.

     — Como? A vida não tem valor para ti?

     — Tem e muito; mas está nas mãos de Deus. O Alcorão não diz que Alá determinou, desde o princípio, a duração da vida de cada pessoa?

     Isso deixou-o visivelmente embaraçado. Não sabia o que responder. Por isso, prossegui:

     — Vês, portanto, que seria quase um pecado, pagar dinheiro pela minha vida. A hora extrema que me estiver designada será alcançada, embora eu pague ou não.

     Vislumbrei um sinal de contentamento no seu rosto. Ocorrera-lhe certamente uma idéia salvadora:

     — Senhor, és um cristão?

     — Sou.

     — Então, podes prolongar a tua vida.

     — Como assim?

     — Alá somente marcou a duração da vida dos seus verdadeiros e fiéis adeptos.

     — É verdade?

     — É.

     — Nós, os cristãos, podemos, portanto, prolongar a nossa vida?

     — Sim, com toda a certeza.

     — Nesse caso, Alá foi muito mais bondoso para conosco, cristãos, do que para com vocês. Conseqüentemente, quer-nos mais do que a vocês; somos os seus filhos favoritos. A vida é a maior e a mais preciosa dádiva que recebemos da mão de Deus. Quem recebeu, ao mesmo tempo, do poder divino a faculdade de aumentar essa dádiva, pode alegrar-se de merecer maior graça do Criador do que aqueles que, sem piedade, estão condenados a morrer a uma determinada hora. Não reconheces isto?

     O homem coçou, embaraçado, a barba. Nesta parecia que se concentravam os seus pensamentos, pois dali tirou uma idéia não de todo ruim.

     — Concordas, entretanto, em que a bem-aventurança vale mais do que a vida?

     — Concordo.

     — Pois bem. Se o verdadeiro crente tem de morrer a uma hora determinada, sem poder prolongar a sua vida, isto acontece em seu próprio benefício. Alcança muito mais cedo a bem-aventurança.

     — Achas?

     — Sim.

     — Mas, quando a sua alma vacila e cambaleia sobre a ponte de Es Esireth? Esta é mais estreita que o fio de uma navalha. A alma, que tiver cometido mais pecados do que atos bons, perde o equilíbrio, ao chegar ali, e cai lá no fundo do inferno. Estará perdida, na eternidade, muito mais cedo. E, certamente, reconheces que a vida terrena é muito melhor do que o inferno?

     — Senhor, as tuas respostas são tão agudas como um punhal.

     — Enganas-te, também, se pensas que o Profeta falou somente sobre o moslemita. Reza a quinta sure do Alcorão, a que é chamada “sure da mesa”, que as horas de todas as pessoas, crentes e descrentes, são contadas de antemão. Conheces essa sure?

     — Conheço todas as sures.

     — Dar-me-ás, portanto, razão. Não posso e não devo prolongar a minha vida. Que dirias, se eu pretendesse pagar um cavalo, que não devo comprar. Seria, naturalmente, uma tolice!

     Remexeu novamente nas barbas. Mas, desta vez, dali não saía nenhuma idéia boa.

     — Senhor, preciso, porém, de dinheiro — disse, finalmente, num tom, que não era muito convicto.

     — Eu também.

     — Tens dinheiro, mas eu não.

     — Bem, verás que não tenho o coração empedernido. Não me deixo extorquir coisa alguma, mas, aos necessitados, dou de boa vontade um presente, quando vejo que não é imerecido. Não podes salvar a minha vida; é impossível, portanto, pedir pagamento pela salvação. Se, entretanto, quiseres dizer qual o perigo que me ameaça, estou pronto a te dar um bakchich.

     — Bakchich? Esmola? Senhor, não sou mendigo.

     — Então, não será um bakchich, mas sim um presente.

     — Quanto ofereces, assim?

     — Oferecer? A gente só oferece, quando se trata de um preço e já te disse que não podemos falar em pagamento. Prometo-te um presente; o montante desse presente, porém, será fixado pelo doador, não por aquele que o recebe.

     — Mas contudo queria saber quanto pretendes dar-me.

     — Não te darei coisa alguma ou tanto quanto me aprouver. Digo-te, também, que não tenho tempo para perder muitas palavras. Portanto, que tens para me dizer?

     — Nada.

     Queria afastar-se; segurei-o, porém, pelo braço e lhe disse, em tom sério:

     — Disseste que eu estava em perigo de vida; existe, conseqüentemente, quem pretenda atentar contra mim; sabes disso, e, portanto, és cúmplice; mandar-te-ei prender incontinenti, se não falares.

     — Apenas caçoei contigo.

     — É mentira!

     — Senhor! — replicou, ameaçadoramente.

     — Ora! Quiseste dinheiro, em qualquer hipótese, contivesse a informação que me pretendias dar uma mentira ou a verdade. Sabes como é castigada uma extorsão?

     — Não se pode falar em extorsão.

     — Bem! Não quero incomodar-me contigo; não tenho vontade, nem tempo, para isso. Podes ir.

     Deixei-o parado e me dirigi para a porta da casa. Não alcançara essa ainda, quando ele chamou:

     — Efêndi, espera!

     — Que mais?

     Aproximou-se de mim e interrogou:

     — Dás quinhentas?

     — Não.

     — Trezentas?

     — Não.

     — Cem.

     — Nem uma única.

     — Arrepender-te-ás disso.

     — É o que pensas. Ademais, consideras-me mais tolo do que sou. Já sei, há muito, o que me queres dizer.

     — É impossível.

     — Ora essa! Um mensageiro está em viagem. Vi que tinha adivinhado o certo.

     — De onde sabes? — perguntou-me.

     — Isso é segredo meu.

     — Então, o mendigo contou adiante.

     Sacudi os ombros e mostrei um sorriso de superioridade. Não me podia passar pela idéia pagar um segredo, que já conhecia pela metade e, com astúcia, pretendia conhecer todo.

     — E não tens preocupações? — indagou.

     Precisava saber, agora, quem era o mensageiro; por isso, contestei, rindo:

     — Pensas que tenho medo desse indivíduo?

     — Não conheces Saban! Uma vez, conseguiste ludibriá-lo, mas não o conseguirás novamente.

     Portanto, era Saban, o mendigo. Levara o ferido a Usu-Dere; era de supor facilmente que dele mesmo recebera a incumbência de ir, primeiro, a Palatza, onde o ferido morava e talvez tinha parentes, e, depois, a Ismilan, em busca dos parentes do armeiro e dono de café, que quebrara o pescoço.

     Aqueles que domináramos, pela astúcia, tinham firmado paz conosco; sustentariam a palavra, quanto ao que lhes dizia respeito pessoalmente — sabia disso positiva e exatamente. Mas, podiam vingar-se por intermédio de outros. A precaução mandava que não me deixassem escapar. E como tinham sabido, pelo gordo padeiro, qual a direção que pretendíamos tomar, fácil era adivinhar o resto.

     Respondi ao homem, em tom seco:

     — Não quero, em caso algum, iludi-lo.

     — Que farás?

     — Nada quero ter com ele. Deu-me a palavra de que não mais me importunaria.

     — Cumprirá a palavra. Ele mesmo não te incomodará mais; mas, atiçará outros contra ti. A união é grande.

     — Não tenho medo. Quem quer que seja, que demonstrar animosidade contra mim, entregarei ao juiz.

     — Podes dar queixa contra uma bala?

     — Não te faças ridículo! Dize-me, de preferência, como é que estás traindo Saban, que era teu amigo.

     — Meu amigo? Não te darei resposta. Queres fechar o teu coração e a tua bolsa. Foi baldada a minha vinda aqui.

     Dirigiu-se para o seu cavalo, mas, com tanta indecisão, que vi que estava esperando uma oferta minha. Mas somente acrescentei:

     — Queres ir? Não desejas entrar? Sabes que se vai realizar uma festa aqui.

     — Não tenho tempo para essas festas. Então, não dás nada? Os seus olhos estavam fixos em mim, quase ameaçadoramente.

     — Não.

     — Partirás ainda hoje daqui?

     A enunciação dessa pergunta foi uma grande parvoice. Revelou-me, com isso, somente as suas intenções criminosas. Queria ganhar dinheiro; nada recebera e, agora, seria capaz de praticar qualquer vingança.

     — Acreditas que renuncie à preciosidade culinária que nos espera? — respondi. — Também os nossos cavalos precisam descansar, antes de continuar.

     — Que Alá te abençoe, então, do mesmo modo por que tu me abençoaste.

     Por detrás da porta de entrada, topei-me com Halef, verificando logo que ele ali se havia escondido. A chama que provinha de uma hastilha de madeira, metida na parede e pintada com pixe, deixava-me ver que estava irado.

     — Sídi, por que o deixas ir embora? — perguntou.

     — Não me serve de nada.

     — Mas depois pode te fazer mal.

     — Ouviste as suas últimas palavras?

     — Infelizmente, só as últimas. Parei-me aqui, para fazer guarda à tua pessoa. Podia ver os dois, mas não ouvir. Mas, afinal, vim a saber, contudo, que ele queria dinheiro. Para quê?

     — Vem para fora. Ninguém mais precisa ouvir o que falamos. Contei-lhe o que tinha ouvido e o que supunha.

     — Querem assaltar-nos — disse.

     — Talvez não, caro Halef.

     — Que então? Por que vai esse mendigo, que não é mendigo, na nossa frente?

     — Talvez ou certamente vai atiçar contra nós os parentes de Mosklan e Deselim. Se formos a Palatza ou talvez a Ismilan, temos de contar com uma recepção, que não será de todo agradável.

     — Então, tomaremos outro caminho.

     — Não queria isso. Em primeiro lugar, quero ficar no encalço dos fugitivos e, depois, acredito que justamente em Ismilan e na casa de Deselim ouviremos muita coisa que nos será útil.

     — Se nos receberem como inimigos, nada saberemos. É possível até que sejamos presos como assassinos.

     — Por isso, quero chegar antes desse mendigo.

     — Tu? Como assim?

     — Estarei lá, antes dele.

     — Sídi, que te ocorre! Queres, por acaso, também nesta noite, adiantar-te de nós?!

     — É exatamente o que quero.

     — Não pode ser.

     — Ora, pode!

     — Não te deixo sair! Reflete sobre o perigo em que estiveste hoje, por eu não estar ao teu lado.

     — Contudo me salvaste e me salvarias outra vez, se necessário fosse.

     Isso lisonjeou ao bom hadji.

     — Achas? — interrogou, com certa vaidade.

     — Sim, certamente. Quero dizer-te o que resolvi. Vocês dormirão na casa do ferreiro e sairão de madrugada. Tomarão uma rota diferente daquela que já escolhêramos. De Kochikawak, irão a Mastanly, Stajanowa e Toploku e, depois, a Ismilan; irão, de minha parte, pelo sul, por Gõldchik, Maden e Palatza.

     — Por que pássaras por essas localidades?

     — Porque é esse o rumo que o mendigo tomou, ao sair de Usu-Dere.

     — É uma noite escura como breu. Perderás o caminho.

     — Espero não me afastar da estrada.

     — O mendigo, porém, leva uma grande dianteira.

     — Rih é veloz. Alcançá-lo-ei.

     — Mas, não sem quebrar o pescoço, nessa escuridão.

     — Vamos ver! Ao chegarem a Ismilan, irão à casa de café do armeiro Deselim. Está situada na rua, que conduz ao povoado de Tjatak. Lá me encontrarão.

     — E, não estando lá... ?

     — Então, esperarão.

     — E se não chegares?

     — Irás, na manhã seguinte, ao meu encontro, até Palatza. É possível que fique retido ali, por causa de Mosklan.

     — Onde te encontrarei?

     — Não sei, no momento. Mas a localidade é pequena e uma pergunta, apenas, a meu respeito, bastará.

     O fiel hadji fêz o que pôde para me demover; permaneci irredutível.

     Quando os demais souberam que eu queria deixá-los, encontrei um obstáculo, que me pareceu intransponível. Ikbala e sua mãe Tjileka bracejavam, batendo as mãos sobre a cabeça, desesperadas porque eu não provaria as balas de canhão e o assado de cabra. Também o sahaf pediu-me que ficasse.

     A este, levei à parte e lhe contei tudo quanto sabia sobre os tapetes.

     — Efêndi — disse — fazes muito bem em me contar isso. Os outros sabem que estamos de noivado e, enquanto isso, tirarão os tapetes do lugar. Impedirei isso.

     — Darás queixa contra teu sogro?

     — Sim; ele será dependurado — comentou, rindo.

     — O que fizeres, não me interessa. Leva as minhas saudações ao teu velho pai e sê imensamente feliz com Ikbala, a mais bela de Rumili.

     Quando Chimin, o bom ferreiro, notou que era impossível convencer-me para ficar, perguntou-me qual o caminho que pretendia tomar. Não confiava ainda bem no gordo padeiro e por isso dei o nome de várias aldeias, por onde não sonhava em passar. O ferreiro, porém, seguiu-me até fora da casa e, ali, contei-lhe qual a verdadeira rota que pretendia tomar. Refletiu um instante e depois disse:

     — O mendigo terá chegado, agora, a Usu-Dere. Demorar-se-á um pouco e depois partirá. Seguramente, irá a Maden e Palatza. Daqui a Maden são dez aghtch (4) e terás de passar por Mastanly e Gõldchik; mas, conheço esse trecho e farei o possível para que chegues o mais depressa possível ao destino. Iremos em linha reta.

     — Quê? Queres ir comigo?

     — Sim. Acompanhar-te-ei até onde for preciso, para que tenhas a certeza de que não te perderás.

     — É uma grande gentileza tua...

     — Caluda! — interrompeu-me. — Sabes o que te devo.

     — Terei de ir, entretanto, com muita rapidez.

     O meu cavalo não é ruim; é o melhor que tinha o homem, que me emprestou. Terá de se esforçar. Logo que me tiver despedido de ti, poderei poupá-lo. Lamento só que a minha mulher não possa ter a ventura de te ver mais uma vez. Mas, podes estar certo de que a lembrança de ti permanecerá, para sempre, na nossa memória.

     Halef aproximara-se a fim de chamar a minha atenção para uma coisa de que já não me lembrava, isto é, para a bolsa, sobre a qual faláramos, na vinda da aldeia de Kabatch para a choupana do mendigo. Tomamo-la e a examinamos, à luz da apara de madeira.

     Havia dentro dela duzentos ducados austríacos. Um ducado desses, em quase toda a Turquia, não tem essa denominação, mas sim é conhecido pela palavra alemã Muenze (5). Como uma delas vale, segundo a região, de 53 a 58 piastras, o seu valor total se elevava a mil ou mil e cem piastras, mais ou menos.

     Além disso, havia cinqüenta bechliks. São moedas de cinco piastras. Junto, havia um bilhete, que declarava serem os ducados para mim e os bechliks para Halef. Conforme ouvi mais tarde, Omar Ben Sadek já recebera, em Edreneh, um presente em dinheiro do nosso bondoso hospedeiro.

     A muita gente parecerá que um semelhante presente em dinheiro não é delicado. Também a mim ocorreu um pensamento de desgosto, que, no entanto, não prevaleceu por muito tempo. Em primeiro lugar, o doador não tivera senão boa intenção. Sabia que eu não era milionário. Em segundo lugar, o principal presente era constituído de outros objetos, que nos tinham sido subtraídos, juntamente com o cavalo de carga, pelo amável khawass. Em terceiro lugar, havia dentro da bolsa um anel para mim, precioso lavor de

     _______________

     (4) Milha turca, das quais cabem 25 num grau de latitude.

     (5) Moeda.

 

ourivesaria, com um brilhante de regular grandeza. É verdade que não suporto um anel no

dedo — o adorno do homem deve ser de outra espécie; mas, esse anel faz parte daqueles objetos, que guardo como uma boa e amável recordação.

     Subentende-se, logicamente, que Halef recebeu imediatamente os seus cinqüenta bechliks. Meteu-os no bolso, com um sorriso de contentamento.

     — Sídi, este benfeitor é um homem de grande inteligência. Em seu lugar, porém, creio que seria ainda mais inteligente. Um kaf é melhor do que um nun e também está antes deste no alfabeto.

     É que no alfabeto árabe, cada letra tem, igualmente, uma significação numérica. O kaf (K) quer dizer cem e o nun (N), que, entretanto, na linguagem mais polida, é usado, diante de B, como M, significa apenas cinqüenta. O pequeno hadji estava realmente descontente. É verdade que cinqüenta marcos não é muita coisa para “um amigo e protetor do seu efêndi”; mas, como gorgeta para um criado, não deixa de ser generosamente calculada.

     Salto por sobre a despedida, que ofereceu ainda algumas cenas admiráveis. O tintureiro apertou-me a mão direita e a sua filha estendeu-me a esquerda. A boa Tjileka chegou a chorar algumas lágrimas de profundo sentimento. Quando já estava montado, aproximou-se também o ajudante, estendendo-me a mão. Quereria dar-me um aperto de mão ou esperaria um bakchich? O meu chicote, de costume, estava mais bem preso ao se-ligote do que o do bravo hadji Halef Omar; mas, agora, estava na minha mão, com a rapidez de um relâmpago, e já zunia, em fortes chicotaços, no lombo daquele patife, que, de um salto, fêz uma retirada para trás da sua gorda patroa.

     — O jazik! Bu biberlemer — Ai de mim! Isto arde como pimenta! — exclamou, levando a mão para a parte traseira.

     — Tuz daha, arzussundcha — Queres sal, também? — perguntei.

     Imediatamente, o hadji estava detrás dele, de chicote em punho, e indagou:

     — Devo salgar? Bem que ele merece!

     — Boghul-dim — Eu me raspo! — bradou o indivíduo ameaçado, desaparecendo, célere, no canto da casa.

     Em seguida, partimos.

 

    Velho Conhecido

     Era uma noite escura, tão escura como a anterior. Bem poucas estrelas reluziam, amortecidas, no firmamento. Só agora, convenci-me de quanto era ousado viajar numa noite dessas, numa região desconhecida, e isso com a rapidez, que fosse precisa, para alcançar o mendigo e, talvez tomar-lhe a dianteira.

     Cerca de um quarto de hora viajamos silenciosamente, lado a lado. Cada um dava audiência, em sigilo, aos seus próprios pensamentos. Não tínhamos estrada; pelo contrário, andávamos sobre o campo aberto. Rih não se importava; os seus olhos estavam acostumados a uma escuridão semelhante.

     — Senhor, lembra-te da nossa palestra, que, infelizmente, foi interrompida com a chegada de Mosklan? — perguntou finalmente Chimin. — Estávamos sentados à porta da minha casa.

     — Lembro-me muito bem.

     — Querias provar-me que vocês cristãos, são melhores do que eu pensava.

     Existem homens bons e maus, em toda a parte, conseqüentemente também entre os cristãos e os moslemitas. Não era sobre os cristãos que eu queria falar, mas sim sobre o cristianismo.

     — Pensas que é melhor do que o nosso culto?

     — Creio.

     — Ser-te-á difícil provar isso.

     — Oh, não! Toma o Alcorão e a Bíblia e os compara! As revelações mais maravilhosas foram tiradas pelo Profeta do nosso Livro. Ele colheu os ensinamentos do Velho e do Novo Testamento e os preparou para as circunstâncias e o ambiente do seu povo, naquele tempo. Essas circunstâncias modificaram-se. O árabe selvagem não é mais o único adepto do islamismo; por isso, o islã tornou-se uma camisa de força para todos vocês, que sofrem impiedosamente sob o seu império. O nosso Redentor trouxe-nos o culto do amor e do perdão; este não proveio dos costumes de um pequeno povo do deserto; emana de Deus, que é o amor; é eterno e onipresente; abrange todos os povos, todas as terras e todos os sóis; jamais exerce pressão e só distribui bênçãos. O nosso culto não luta com a espada, mas com o perdão; não reúne os povos com um chicote, e sim, pelo contrário, conclama-os com a voz de uma mãe carinhosa, que reúne os filhos, no seu coração.

     — Falas de amor e, contudo, este lhes falta.

     — Pões fora toda a colheita, porque algumas sementes estão bichadas?

     — Então, por que é que, entre nós, só nasce o joio e não o trigo do cristianismo?

     — Realmente é assim? Tão grave? Então, deves saber que a erva daninha cria-se melhor no chão ruim. Dás, assim, um mau testemunho sobre o islamismo, porque este seria o terreno ruim. Estamos sós e temos tempo. Queres que te conte a história de Cristo, dos Profetas que anunciaram a sua vinda e dos milagres que Ele fêz?

     — Conta! Prova que Ele é maior do que Maomé. Posso ouvir-te, sem ferir a minha consciência. Não és um formador de prosélitos, que me queria iludir. Conheces o Islã e o cristianismo: não me atrairás, mas dirás a verdade.

     “De agora em diante serás pescador de homens”(1). Pensei nessas palavras do Redentor, ao começar a minha narração. O ferreiro tinha razão: as minhas intenções eram sinceras, a seu respeito. Era uma alma de Nataniel; não tinha falsidades. Era um desses homens simples, que, com poucos dotes, procuram a verdade, enquanto outros, possuindo grandes bênçãos de espírito, empregam a sua inteligência em sutilezas infrutíferas.

     Fizemos uma cavalgada original. Eu, narrando, e ele, ouvindo, em silêncio. De vez em quando, o ferreiro interrompia-me com uma pergunta ou uma palavra de admiração. Andávamos a trote largo e ele tinha de se esforçar muito para conservar se a meu lado. Contudo, prestava mais atenção às minhas palavras do que ao cavalo e ao caminho e, assim, acontecia que, ao tropicar o seu cavalo ou dar um salto, perdia as rédeas e soltava uma imprecação, que não constituía interjeição adequada ao conteúdo da minha narrativa. Mas, fisicamente fazíamos progressos rápidos, adiantando-nos no caminho e, como observei, progredíamos, também, espiritualmente, ou melhor, religiosamente, no caminho da verdade.

     Passaram-se horas. Tínhamos galgado um monte bem apreciável — nada fácil, sem caminho, em tal escuridão. Do outro lado, descemos, através de um matagal espesso, pelas ladeiras íngremes. Por isso, avançamos, mais devagar do que antes.

     — E acreditas que Ele, realmente, ressuscitou e ascendeu aos céus?  — perguntou-me Chimin.

     — Acredito, firmemente.

     — Como é que um corpo, de existência terrena, pode entrar no céu? Pois o corpo do nosso Profeta ficou na terra!

     — Não te contei o episódio sagrado da transfiguração de Jesus no Tabor? E não declara o vosso Profeta que Cristo subiu ao céu, diante dos olhos dos seus discípulos?

     — Sim, é um grande milagre. E Ele voltará outra vez?

     — Para julgar os vivos e os mortos. Maomé também o diz. Ele dará bem-aventurança e castigo. Não é, assim, Deus? Então, não é maior, mais glorioso e poderoso do que Maomé, que não diz, uma única vez, sobre si mesmo, ser juiz?

     — Quase estou acreditando!

     — Quase? Só quase? As palavras de Cristo são verdade, como Ele próprio é a Verdade. Ele diz de si mesmo: Benim-war hepsi kuwwet gõkda toprak uezerinde — “Tem-se-me dado todo o poder no céu e na terra!” (2) . Falou o vosso Maomé alguma vez, assim?

     — Não, efêndi. Contarei à minha mulher e aos meus amigos o que tu me narraste. Queria que tivesse a Escritura Sagrada; então, poderia ler e aprender, e, assim, talvez, aquele Espírito Santo, de que falaste, viria sobre mim, como sobre aqueles que participaram da Primeira festa de Pentecostes. Quando o homem tem sede, deve-se-lhe

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     (1) S. Lucas, cap. 5, versículo 10, da Bíblia Sagrada, traduzida por João Ferreira d'Almeida.

     (2) São Mateus, cap. 28, versículo 18, da Biblia Sagrada. N. do T.

 

dar de beber. Também a alma tem sede. Senti-a, e acreditei beber água, quando fazia as minhas orações e visitava a mesquita. Agora, porém, parece-me que á água que bebi não era limpa, porque as tuas palavras são mais claras e confortadoras do que as do nosso pregador. Lamento seres um forasteiro e não poder eu te rever jamais.

     — Ficarei contigo. Não fisicamente, é verdade, mas as minhas palavras não se afastarão de ti. Elas descansam no teu coração, como a semente descansa na terra, e brotarão e crescerão e darão frutos. E porque eu te quero bem e te devo tanta gratidão, vou deixar-te um presente, que te fará recordar esta noite, sempre que o tomares na mão. Sabes ler. É um livro. Comprei-o em Damasco, como lembrança da cidade dos jardins e das águas límpidas. Ouvirás jorrar água refrigerante e também a beberás, quando o leres. Aqui está!

     Abri o alforge, tirei o livro e lhe entreguei.

     — Que está escrito aí? — perguntou. — É um livro de lendas?

     — Não. Não lerás uma lenda, mas a Verdade, de todos os séculos e séculos. A tua alma anseia por ela e tu a terás. Este livro é o Novo Testamento, que contém tudo quanto te contei e muito mais ainda.

     Chimin proferiu um alto brado de contentamento, gritos de alegria, que bem traduziam a felicidade que lhe causava o presente.

     — Efêndi, — disse — este presente é tão grande, que nem posso aceitá-lo.

     — Guarda-o, em nome de Deus! Não sou rico. O livro não me custa muito dinheiro, mas contém a maior riqueza que a terra pode oferecer, isto é, o caminho da salvação. O santo Apóstolo disse que, nesta Escritura, se devia inquirir e procurar, porque Ela contém a vida eterna. Que, nela, encontres esta vida! Desejo-te isso de todo o coração.

     Tive positivamente muito trabalho, para finalizar os agradecimentos do ferreiro. Teria prosseguido, não obstante, se não fosse interrompido, ainda, por outra circunstância.

     Alcançáramos, novamente, a planície e observamos que nos encontrávamos numa rota, mais ou menos, trilhada, pelo menos tanto quanto era possível naquela região.

     — Este é o caminho de Usu-Dere a Maden — esclareceu Chimin, interrompendo o seu discurso de agradecimento.

     Ao mesmo tempo, segurei-lhe as rédeas.

     — Pára! Caluda! Pareceu-me ouvir, diante de nós, o bufido de um cavalo.

     — Nada ouvi e ainda não ouço coisa alguma.

     — O chão é macio e abafa as batidas dos cascos do animal. Mas o meu cavalo aguça as orelhas e aspira o ar, desconfiado. Isto é sinal positivo de que há alguém na nossa frente. Escuta!

     — Sim, agora ouvi. Um cavalo pisou numa pedra e escorregou Quem andará, a estas horas, nesta região?

     — Quem sabe se é o mendigo?

     — É pouco provável que seja ele.

     — Por quê?

     — Nesse caso, teria partido muito tarde.

     — Por que não se poderia acreditar nesse retardamento?

     — Naturalmente, ele quer chegar antes de ti!

     — É provável que pensasse que, em qualquer caso, eu só partiria de manhã e, por isso, não teve pressa. Poderemos contornar, de modo a não deixar perceber que ficamos na frente dele?

     — Facilmente; mas não te aconselho isso.

     — É claro! Se fizermos uma volta, de modo a deixá-lo atrás de nós, não saberemos, sequer, se é ele realmente.

     — Por isso, precisamos aproximar-nos.

     — Que farei, entretanto, com ele? Posso impedi-lo de prosseguir no caminho? Só à força. Não queria, porém, derramar sangue.

     — Não é preciso. Deixa-o por minha conta.

     — De que forma?

     — Obrigá-lo-ás a voltar e eu também. Ficarei a seu lado e o levarei para Kochikawak. Não me escapará.

     — Se ele te perguntar, então, qual o direito com que te interpões no seu caminho.

     — Não tenho esse direito, talvez? Ele não te quis assassinar, efêndi?

     — É verdade que isso dá a razão. Mas, conquistarás um inimigo, que procurará, sempre, vingar-se de ti.

     — Não o temo. Já é meu inimigo. Ele é o inimigo de toda a gente honesta. Tens que me dar licença para te ser agradável e não precisas preocupar-te comigo. Se fôr ele; de fato, prendê-lo-emos e nos despedimos, sem que precise ouvir para onde vais.

     — Qual é o caminho daqui para Maden?

     — Conserva-te sempre neste trilho e, em meia hora, estarás lá. Daqui para diante não podes errar. Queria falar-te ainda sobre a koptcha, mas o teu pequeno hadji tem uma e tu tomaste aquela do ismilanense. As duas bastam. Agora vem, efêndi.

     Pôs o seu cavalo em marcha, para demonstrar que não queria ouvir nenhuma objeção. Podia estar de acordo, efetivamente, pois, desse modo, o mendigo seria impedido de levar o seu recado, sem qualquer prejuízo para mim.

     Não tardou chegarmos tão perto do cavaleiro noturno, que ele nos poderia ouvir. Notamos que começou a andar mais depressa, para não podermos alcançá-lo.

     — Sempre depressa atrás! — disse o ferreiro. — Saban não é bom cavaleiro. Alcançá-lo-emos facilmente, se fôr ele realmente e não outro.

     — Mas, se ele se afastar do caminho?

     — Terá cuidado de não o fazer. Aqui ninguém se arriscaria a isso, numa noite tão escura. Também eu não viria até aqui, se não fosse para te acompanhar.

     Chimin tinha feito uma suposição exata. O cavaleiro notou que andávamos mais depressa do que ele. Não teve coragem de se afastar do caminho e, por isso, achou melhor parar e nos esperar.

     O ferreiro ia na frente e eu me conservei um pouco atrás, de modo que o meu vulto não pudesse ser visto imediatamente. O cavaleiro tinha se colocado um pouco ao lado, para nos dar passagem. Mas o ferreiro parou diante dele e cumprimentou:

     — Sabahiniz chachir ola — Boa noite.

     — Sabahiniz — respondeu o outro, breve.

     — Nereden gelir my sin — De onde vens?

     — Deridereden — De Deridere.

     Era mentira, pois reconheci o homem pela voz. Era o mendigo.

     — Nereje gidejorsun — Para onde vais?

     — Her jerde hitch bir jerde — Para toda a parte e para nenhuma parte.

     Era quase um desafio; mas, de nada lhe valeu, porquanto o ferreiro disse, com um acento, que bem revelava a intenção de não se deixar desviar do objetivo:

     — Creio que serás obrigado a me dizer o teu destino!

     — Obrigado?

     — Sim. Tu me conheces?

     — E tu, talvez, conheces a mim?

     — És Saban, o mendigo.

     — Ah, e tu?

     — A noite está escura como a tua alma. Não podes reconhecer a minha fisionomia. Sou Chimin, o ferreiro de Kochikawak.

     — Por isso, a tua voz pareceu-me tão conhecida. Continua andando! Nada tenho que vêr contigo!

     — Mas, eu tenho contigo. Conheces este homem, que está a meu lado?

     — Não. Vai-te embora.

     — Não o farei, sem primeiro trocar uma palavra contigo, Saban. Com essas palavras, aproximei-me e pús o meu cavalo ao lado do dele, de modo a que me pudesse ver. Estávamos colocados, em tal posição, que a cabeça de um cavalo ficava junto à cauda do outro.

     — Com todos os diabos! O estrangeiro! — exclamou o mendigo.

     — Sim, o estrangeiro! Agora, acreditas que tenho de falar contigo?

     — Mas, não eu contigo.

     Observei que levou a mão à cintura. Estava tão escuro, que não podia ver o que procurava ali. Tomei a minha carabina curta, segurando-a pelo meio, de modo a ter a coronha encostada ao pescoço do cavalo, pronto para dar um golpe, da esquerda para a direita.

     — Dize, portanto, aonde queres ir? — perguntei, conservando-o firmemente sob os olhos.

     — Que tens com isso, assassino? — respondeu.

     — Assassino?

     — Sim. Quem foi que quebrou o pescoço por tua causa e a quem quebraste a cara?

     — E a quem atraíste a uma choupana, para matar? Sei onde queres ir. Mas, farás o favor de voltar.

     — Quem me obrigará?

     — Eu. Apeia!

     — Olá! Queres assassinar também a mim? Defender-me-ei. Vai para o inferno!

     Levantou o braço. Vibrei o golpe preparado, instantaneamente e, ao mesmo tempo, o mendigo puxou o gatilho. O tiro relampejou — a bala não acertou, porque a minha pancada lhe tinha destroncado o braço. Ainda não baixara a mão e já eu adiantara o cavalo um passo e lhe metia a coronha da carabina na axila, de maneira que perdeu a rédea e caiu do outro lado do animal.

     Quis apear-me depressa, mas não tinha posto o pé no chão ainda quando ouvi o ferreiro bradar:

     — Alto, patife, fica aí, senão te atropelo e te esmago!

     Procurei contornar o cavalo do mendigo— quando vi disparar mais um tiro. O cavalo do ferreiro deu um salto para a frente e Chimin estava no chão, com a rapidez de um relâmpago.

     Teria sido atingido? Atirei-me para junto dele.

     Dois homens estavam no chão; um sobre o outro. A escuridão era tamanha que não pude reconhecê-los, assim. Segurei, o que estava em cima, pelo braço.

     — Pára, efêndi! — disse o homem. — Sou eu!

     — Ah, és tu, Chimin! Fôste atingido?

     — Não. Vi que ele ia fugir e o proibi; nisso, deu o tiro e eu o atropelei. O homem se defendia, mas só com um braço. O casco do cavalo, de certo, pisou-lhe o outro.

     — Não, fui eu que o feri com a coronha da carabina.

     — Ele está mordendo. O patife parece uma marta. Terei que tapar-lhe a boca!

     Não podia ver o que o ferreiro fazia; mas, depois de alguns momentos, durante os quais ouvi um rosnar gargarejante, ele se levantou e disse:

     — Assim, agora está quieto.

     — Que fizeste? Decerto não o mataste?

     — Não. Põe a mão aqui e verifica como esperneia. Só lhe apertei um pouco o lenço do pescoço.

     — Então, vamos amarrar os seus braços.

     — Com quê?

     — Com a cinta.

     — Muito bem. Ah, ele tem cinta e também suspensórios. Isso chega até para amarrá-lo em cima do cavalo.

     Ajudei o ferreiro. Quase tinha estrangulado Saban. Antes de poder respirar bem, já estava montado. A cinta prendia-o aos arreios, pois estava amarrado nos seus dois pés, por debaixo da barriga do cavalo. Os braços estavam amarrados com os suspensórios. Verificamos que ele tinha duas pistolas: a primeira, eu lhe tinha tirado, com a pancada, e a segunda caira-lhe da mão ao ser atropelado por Chimin. Eram de um cano só e ambas estavam deflagradas, sem carga. Felizmente, nenhuma das balas tinha acertado o alvo.

     O mendigo começou então a invectivar contra nós. Queria que o soltássemos e ameaçava com a autoridade. O ferreiro riu-se dele e disse:

     — Aquilo que fizeste antes, não me interessa em absoluto; mas, quiseste me catar e, por isso, levo-te comigo para te provar que tu é que deves ter medo da autoridade. Pode ser que te perdoe, se te portares bem, durante a viagem. Continuas, no entanto, a dizer injúrias, e não precisas esperar nada de bom.

     — Vocês interromperam a minha viagem; só me defendi. Tenho que ir adiante.

    

     — Sim, para toda a parte e para nenhuma parte! Para isso, terás tempo mais tarde. E agora, cala-te! Depois, também poderemos conversar, quando já me tiver despedido deste efêndi.

     O mendigo conservou-se, realmente, quieto. Talvez, acreditasse ser possível ouvir alguma coisa da nossa palestra. Mas Chimin era inteligente. Iludiu-o, dizendo-me:

     — Agora, efêndi, poderás encontrar facilmente o caminho, daqui para diante. Volta e nos espera. Tomarei o caminho de Gõldchik, pois não será fácil entender-me com este homem. Dirás aos teus companheiros, que já o temos em nosso poder, para que eles não o procurem, inutilmente. Ver-nos-emos, novamente, em minha casa.

     Enquanto dizia isso, tinha montado. Segurou também as rédeas do outro cavalo e se afastou, atravessando o campo. Durante algum tempo, ainda, ouvi a voz alta, furiosa, do mendigo; depois, fêz-se, outra vez, silêncio.

     Não podia pensar que Saban tomasse por verdadeiras as palavras de Chimin; mas estava livre dele. Isso era o principal para mim. Ao mesmo tempo, Chimin poupara-me a despedida e nunca é agradável despedir-se, a menos que o seja de pessoas a quem não se dedica a menor simpatia.

     Continuei, portanto, na direção em que vínhamos antes e alcancei Maden, precisamente no tempo que fora calculado por Chimin.

     Ao chegar nessa localidade, começava a clarear o dia. Não havia a menor necessidade de eu ir a Palatza, para informar-me sobre parentes eventuais de Mosklan. O mensageiro que este mandara, tinha sido obrigado a voltar e, agora, estava sob os cuidados do valente ferreiro. Em conseqüência, também não se saberia, ainda hoje, nada a

respeito de Deselim, em Ismilan. Por que, então, sacrificar o cavalo, depois de duas noites de viagem forçada? Resolvi ir a Topoklu e esperar ali por Halef e pelos dois outros companheiros.

     Todos dormiam, ainda, em Maden. Sabia que Topoklu estava situada, mais ou menos, em direção norte e, por isso, continuei. O caminho levava ao longo de um curso de água, que acreditei ser um afluente do Arda e lançar-se neste perto de Topoklu. Conseqüentemente, não me era possível errar.

     Depois de algum tempo, cheguei a uma aldeia, onde havia uma hospedaria. Aí todos já estavam acordados e resolvi conceder um pouco de descanso ao meu garanhão. A  hospedaria ficava um pouco afastada da estrada, cercada por um grande lodaçal. Sobre este, tinha sido colocado um tronco de carvalho grosso, nodoso, redondo, que não estava falquejado. Depois havia um buraco fundo e largo, no qual se rolavam alguns porcos e, ao sair desse buraco, chegava-se a um portão largo. O que se encontrava por trás desse portão, não podia ver, por causa de uma alta parede de barro, que parecia cercar um pátio.

     Na verdade, era preciso que a gente fosse um esquilo para passar por sobre o tronco; mas, não obstante, o meu Rih conseguiu realizar a façanha, com relativa facilidade. Rih saltou por cima do tronco e para dentro do portão. Fui recebido com grandes exclamações de medo e atropelei um homem, que, no momento, pretendia passar pelo portão.

     Encontrei-me num pátio de regular tamanho, o qual se parecia com um depósito de estêrco. A um canto estavam as pessoas que tinham gritado. Dois sujeitos, parecia que seguravam uma moça já de regular idade. Ao que depreendi, estavam, justamente no propósito de amarrá-la a uma escada que se encontrava ali, encostada à parede. Um homem de estatura alta, tendo um relho na mão, dirigiu-se a mim, em atitude arrogante. O seu peito largo, a sua cara comprida, com um horrível nariz de gavião, deixavam concluir que se tratava de um armênio.

     — Estás cego? — vociferou o homem. — Não podes tomar cuidado ao passar pelo portão?

     — Tira a sujeira dali e fecha os buracos, depois se poderá passar para aqui, sem quebrar o pescoço da gente mesmo ou de outros.

     — Quê? Queres te tornar grosseiro contra mim?

     — Quem sabe, és gentil e delicado?

     — Queres que te abrace e te beije, depois de quase teres matado o meu peão?

     — Matado? Lá está ele e limpa o estêrco que tem nos cabelos. Aqui se cai num chão tão mole que quase é um prazer deixar-se atropelar. És o dono da estalagem?

     — Sou. E tu quem és?

     — Um estrangeiro.

     — Já se vê. Tens um passaporte?

     — Tenho.

     — Mostra.

     — Lava as mãos primeiro, senão vais sujá-lo. Que é que tens para beber?

     — Leite coalhado.

     — Agradeço. Não tens mais nada?

     — Aguardente de ameixas.

     — E pasto para o cavalo?

     — Milho socado.

     — Bem! Manda dar ao animal, tanto quanto puder comer. Darme-ás um copo de aguardente de ameixas.

     — Não tenho copos. Receberás um púcaro. Entra para a sala.

     O homem tinha a língua dura. Amarrei o cavalo a um moirão e depois entrei na sala. Era um buraco sujo, com um banco tosco e uma mesa igual. Tive de quebrar a cabeça para adivinhar o que significavam alguns cavaletes de madeira de feitio originalíssimo. Eram compostos de um caixilho de ripas em forma triangular, com três pernas. A minha argúcia invejável permitiu-me adivinhar que eram cadeiras.

     Estava sentada ali uma mulher, que mexia num grande panelão, contendo leite coalhado. O instrumento de que se servia, não era, porventura, uma colher ou um batedor, mas sim a metade de um descalçador, partido ao comprido. A prova de que eu não me enganava, estava na outra metade deste utensílio doméstico, atirado a um canto. A mulher certamente tinha lançado mão do primeiro objeto encontrado, para mexer o leite. Se não tivesse achado a metade do descalçador, creio que teria tirado uma das suas tamancas, para empregar naquele serviço.

     Cumprimentei. Encarou-me estupidamente, arregalando os olhos, e não respondeu. Também o homem ia entrando. Tirou um púcaro pequeno de um prego na parede e despejou nele algumas gotas de um líquido que havia numa bilha, apresentando-me isso como sendo a aguardente de ameixas.

     — Isso realmente é aguardente de ameixas? — perguntei, cheirando o pote.

     — É.

     — É? Não tens outra coisa?

     — Não. Isso não é bom que chega para ti?

     — Não presta.

     — Então vai embora, se não te agrada o que ofereço. Não mandei chegares aqui. És, porventura, um paxá que fazes tantas exigências?

     — Não. Quanto custa esta aguardente?

     — Duas piastras.

     Provei a bebida. O púcaro teria uma capacidade cúbica de meio litro. Mas continha, talvez, só dois dedais de aguardente. Em compensação, porém, havia, na beira, uma sujeira parecida com breu, proveniente dos bigodes de milhares de bebedores, que ali tinham metido a boca. A bebida era certamente a aguardente ordinária das mais infames que jamais cheirei ou experimentei. E devia custar duas piastras! Trinta e oito a quarenta pfennige! (3). Era uma roubalheira, nesta terra das ameixeiras. Mas, não obstante, deixei de fazer qualquer observação.

     — Então, é gostosa? — perguntou o homem.

     — É. Que gosto!

     — Entendeu-me mal e disse:

     — Se quiseres mais, pede à mulher. Ela te dará. Não tenho tempo. Preciso sair, para castigar uma pessoa.

     Saiu e eu fiquei observando a sala. Algumas figuras esfarrapadas penduradas na parede, comprovavam que eu me encontrava na casa de um cristão armênio. Era um desses cristãos que Chimin designou, há pouco, como sendo o “joio”. São eles, realmente, que dão motivo ao errôneo julgamento do cristianismo, pelos adeptos de outras religiões, naquela região. Pode causar admiração, portanto, quando se ouve, onde quer que se fale de um cristão, as palavras desprezíveis do árabe: “Hacha nassrani — Deus nos livre, um cristão”?

     A mulher continuava mexendo. O beiço inferior estava caído e dele escorria a baba, que ia direitinho no panelão do leite. Virei-me e olhei para fora, por um dos buracos, que aqui eram denominados janelas. Lá fora, o sol começava a sua tarefa aquecedora de todos os dias. Aqui dentro, entretanto, estava escuro e enfumaçado. Os meus pensamentos dirigiram-se para o poeta persa Hafiz:

    

     “Quando dos teus cabelos o extrato

     Vier um dia o meu túmulo perfumar,

     Flores, aos milhares, muitas desabrocharão

     Da terra, que os meus ossos vai guardar.”

    

     Será que aquele ente feminino, que inspirou esses versos, parecia-se com esta mulher do leite remexido? Cabelos perfumados? Brrr...

     Levantei-me para sair e apanhar ar fresco, tão fresco quanto era possível encontrar no pátio. A minha permanência naquela sala não podia ser muito longa. Isso era tão certo como a morte.

     Dava o primeiro passo para sair, quando ouvi lá fora um grito estridente e prolongado. Num instante, estava diante da porta. Um segundo grito, igualmente pavoroso, e eu já tinha atravessado o pátio, em direção ao canto, onde realmente tinham amarrado a moça à escada.

     Ela estava só com o vestido. Com a parte da frente do corpo encostada à escada, dava as costas nuas ao relho, que um daqueles indivíduos ia vibrar, pela terceira vez. Antes de poder bater, eu lhe tinha tirado o instrumento de suplício da mão.

     As costas da vítima estavam marcadas com dois vergões largos, sangrentos, que, com toda a certeza, arrebentariam bem depressa. O hospedeiro estava junto, com a cara de um manda-chuva, que se orgulha da obediência com que são cumpridas as suas ordens. Dirigiu-se logo a mim e estendeu a mão para o relho, ao mesmo tempo que vociferou:

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     (3) Moeda de cobre pequena usada na Alemanha. Vale alguns réis.

 

     — Homem, que estás pensando? Para cá com o relho! Pertence-me e não a ti!

     Encontrava-me furioso por ver maltratar dessa forma a uma mulher. Por mim, podia ela ter feito o que quer que fosse; dessa maneira, porém, não seria maltratada, na minha presença. Senti que a minha cara estava em brasa e perguntei ao hospedeiro, com voz alterada:

     — Que fêz essa moça?

     — Nada tens que ver com isso! — respondeu, arrogante.

     — Olá! Ela é tua filha?

     — Nada tens que perguntar. Dá-me o relho, senão tu mesmo vais experimentá-lo.

     — Que? Eu, moleque? Eu experimentá-lo? Toma — a minha resposta!

     Dei-lhe uma relhada, que, no momento, fêz com que ele se encolhesse; mas imediatamente jogou-se contra mim e isso com tanta violência, que se projetou no chão, porque saí fora.

     — Não te mexas, senão apanhas na cara! — ameacei.

     Apesar disso, porém, atirou-se novamente contra mim, logo que se levantou. Não me esquivei; pelo contrário, levantei o pé e lhe dei um golpe na região abdominal. Ao fazer isso, é preciso que se esteja bem seguro, com o corpo inclinado para a frente, senão a gente mesmo cai. Novamente, o homem precipitou-se na sujeira do pátio, mas, agora, estava satisfeito, porquanto só pôde levantar-se com dificuldade. Queria falar, mas conseguiu apenas deixar escapar um gemido rouco e saiu, manquejando, em direção à sala, sem me dirigir um único olhar.

     Era bastante para mim. Pior do que se ele tivesse feito as maiores ameaças. Fui para junto do cavalo e apanhei a carabina de repetição, voltando depois à escada. Examinei, ali, antes de tudo, se um tiro, disparado de qualquer parte, podia me atingir. Não era possível. Coloquei-me, então, de modo a ter sempre um homem entre mim e a porta da casa.

     — Desamarrem-na! — ordenei aos peães.

     Já me havia causado admiração o fato de eles não terem levantado a mão, para defender o seu patrão. Obdeceram imediatamente.

     — Vistam-na!

     A vítima mal podia mexer os braços, tão forte eram os nós que a amarravam e tanto lhe do iam os vergões nas costas.

     — Por que foi castigada? — perguntei.

     Estavam ali três mulheres e quatro homens, cada qual mais mal encarado.

     — O patrão mandou — respondeu um deles.

     — Por quê?

     — Porque ela caçoou.

     — Com quem?

     — Com um forasteiro.

     — Ela é parente do patrão?

     — Não; é criada.

     — De onde?

     — De uma aldeia próxima.

     — Tem parentes?

     — A mãe.

     — E ele se atreve a mandar bater-lhe, só porque caçoou com um forasteiro?

     Esse tema seria delicado em qualquer outra região, mas aqui não tinha nada de agradável. A moça, de resto, já se tinha retirado para uma porta, ali perto.

     — Sim, ela não fêz outra coisa — respondeu o interrogado. — O patrão é muito enérgico, e já hoje de manhã estava, desde cedo, muito irado.

     Neste momento, o hospedeiro voltou ao pátio. Tinha nas mãos uma comprida espingarda turca. Parecia ter se restabelecido sofrivelmente do ponta-pé que lhe dera. Podia falar novamente, tanto que, de longe mesmo, gritou com voz aguda:

     — Filho de cão, agora vamos ajustar as contas!

     Engatilhou a arma e apontou para mim. A sua mulher tinha saído da casa, logo depois dele. Gritou, alto, de medo, e segurou a espingarda, que estava na mão do marido.

     — Que vais fazer? — disse, num lamento. — Não quererás matá-lo?

     — Cala-te! Vai-te embora! — respondeu o homem, dando-lhe um ponta-pé que a jogou por terra.

     O cano da espingarda sairá da mira. Também apontei e mirei com a precisão que era possível, na pressa. Não queria feri-lo, não obstante saber que estava no firme propósito de me mandar uma bala. O meu tiro estourou antes do dele. Tinha mirado bem, conforme, então, verifiquei. A bala, batendo fortemente pouco abaixo do nariz do armênio, quebrara-lhe o fecho da espingarda. Ao homem mesmo, nada de maior acontecera, pois só a coronha da sua espingarda lhe batera violentamente na cara e as mãos lhe doíam em conseqüência do choque. Agitava-as no ar, esbravejando e blasfemando.

     — Viram que ele atirou contra mim? É um assassino. Segurem esse monstro, agarrem, prendam!

     Pegou a espingarda destruída e saltou contra mim, tomando impulso para um golpe.

     — Para trás! — adverti. — Senão atiro novamente!

     — Atira duas vezes? Experimenta! — zombou.

     A sua espingarda era de um cano só. Em qualquer hipótese, não poderia ter dado dois tiros e pensava que eu estava na mesma situação. Apontei novamente para o cano da espingarda e, pela segunda vez, ela lhe foi arrancada das mãos, com a bala. Dei mais dois tiros, naturalmente para o ar. Nos lábios do homem havia mais uma expressão de raiva, mas não conseguiu soltá-la. Aterrado, ficara parado, de boca aberta.

     — Bir tijenk chejtani — Uma arma do diabo! — articulou finalmente.

     — Sihirbaz-dir; sihir-bu — É um mágico; isto é bruxaria! — manifestaram-se os outros.

     Conservei a arma pronta para atirar, mas não disse palavra. O armênio juntou a sua arma e a examinou, dizendo:

     — Ajyb-dir, bozulmucb-dir — Que desastre! Está estragada!

     — Até agora, só está estragada a tua arma — respondi. — Propositadamente, não apontei contra ti e sim só contra a espingarda. Se deres mais um passo para a frente, não te pouparei mais e também tu ficarás estragado; porque, então, atirarei contra ti.

     — Não te arrisques! — disse em tom ameaçador.

     — Não arrisco coisa nenhuma, fazendo isso! Vieste contra mim, de arma na mão, e apontaste, para me matar. Encontrava-me em estado de legítima defesa e podia matar-te, com todo o direito.

     — Querias matar-me e, só por acaso, é que acertaste na espingarda. Ninguém poderá dizer que vai acertar o fecho da espingarda, quando a minha cara está bem junto, procurando a mira.

     — Decerto ainda não viste um bom atirador?

     — E, antes disso, me bateste. Sabes que significa isso? Ninguém pode levar a mal, se eu te matar, em conseqüência da tua atitude. Uma vergonha dessas, só se lava com sangue.

     — Mas, quem é que vai lavar a honra da moça, a quem mandaste bater?

     — Uma criada tem honra? — contestou, zombeteiro. — E que tens tu com os meus assuntos? Posso castigar os meus criados, como bem me aprouver.

     Pelos costumes daquela terra, ele tinha razão. Mas eu não podia deixar-me vencer por palavras. Tinha começado e precisava sair-me bem. Por isso, respondi:

     — Na minha presença, não permito que se pratique uma desumanidade dessas. E usei o relho contra ti, porque faltaste com os deveres de delicadeza e hospitalidade que me devias. Insultos dessa natureza são respondidos a chicotes. Estou acostumado a isso.

     — Que grande personalidade és, finalmente? Quantas caudas de cavalo te deu, então, o Grão Senhor? Mandarei examinar isso, em seguida.

     Voltando-se para os peães, prosseguiu:

     — Não deixem esse bandido escapar. Volto já!

     — Vais chamar o kiaja? — perguntei.

     — Sim. Vou entregar-te às mãos do juiz criminal. Ele que te mostre quanto são bonitas as moradias da cadeia.

     — Então, traze o kiaja! Espero-o com prazer e não precisas deixar esses homens de guarda. Se quisesse ir-me, não seria retido por eles. Mas, ficarei, para te provar que tu mesmo é que te encontras no caminho da cadeia.

     Apressou-se a sair por entre o estêrco e o barro. Entretanto, dirigi-me para a porta, onde tinha desaparecido a moça. Vi um depósito de instrumentos agrários e outros semelhantes. A moça estava sentada, num monte de feno, chorando de dor, encolhida, amedrontada. Queria fazer-lhe algumas perguntas, mas senti que me seguravam por trás. Quando me virei, vi a mulher que pretendia arrancar-me dali. Parecia ter medo das declarações da moça.

     — Que procuras neste lugar? — disse. — Sai daqui!

     — Não, tu é que sai! — berrei-lhe, em tom irritado.

     Recuou, assustada, e bradou:

     — Bir tamam insan-jejidji — Um verdadeiro antropófago!

     — É verdade — respondi. — Já comi muitos homens e mulheres; mas tu não me despertas o apetite.

     Estava assustada e não mais tentou impedir-me a entrada, naquele depósito.

     — Vês que desejo ajudar-te — declarei à moça. — Mas é preciso que me digas por que teu amo te puniu tão severamente.

     — Se eu te disser, mandará bater-me ainda mais — respondeu.

     — Cuidarei para que ele nada te possa fazer. Quem era o forasteiro que foi tão amável para contigo?

     — Era um senhor de... de... esqueci-me o lugar, que me disse. Ficou aqui durante a noite.

     — Que era ele? Como se chamava?

     — Chamava-se Madi Arnaud e queria voltar outra vez.

     Era o nome do homem, sobre o qual me falara Chimin.

     — Por que é que o teu amo se incomodou tanto com as amabilidades desse homem?

     — Oh, não foi por isso! Ficou furioso por causa da carteira, que achei.

     — A quem pertencia?

     — Ao forasteiro. Ele a perdera e procurara inutilmente. Achei-a no quarto de dormir do meu amo e queria devolvê-la ao forasteiro; mas o patrão prendeu-me, até que o outro fosse embora e, quando eu disse que a carteira não lhe pertencia, ele me mandou surrar.

     — Então, é um ladrão. Que continha a carteira?

     Não pude verificar, porque o meu amo chegou, no momento.

     — Sabes onde está; agora, a carteira?

     — Sim, eu cuidei. Deu-a à mulher, que a colocou atrás da lenha, no fogão.

     Nesse momento ouvi lá fora uma voz viva indagar:

     — Onde está o assassino?

     Saí e enxerguei um homem pequeno, magro como um caniço, que trazia um monstruoso gorro de peles na cabeça e gigantescos sapatos de cortiça nos pés. Estava vestido com umas calças escarlates e colete da mesma côr e com um djiuppeh azul, de mangas curtas. Este último complemento do traje estava inteiramente despedaçado e as calças e o colete não tinham mais botões; estavam amarrados com um simples fio de cânhamo.

     No nariz desse homem havia um gigantesco par de óculos, com lentes muito grossas, e nas mãos trazia um tinteiro, uma pena de ganso e alguns pedaços de papel, sujos de graxa.

     — Aí está ele — disse o estalajadeiro, apontando para mim.

     Esse homenzinho admirável era, portanto, o mandão da aldeia! A impressão que me dava a pessoa era a mesma que podia colher das insígnias do seu cargo. Ao primeiro golpe de vista, vi que a pena de ganso tinha um bico escancarado e o tinteiro parecia conter uma lama preta, irremediavelmente seca.

     — Então, és tu o assassino? — dirigiu-se ele a mim, com altiva dignidade oficial.

     — Não.

     — Mas, este aqui o declara!

     — Se eu fosse assassino, certamente teria matado alguém.

     — Quiseste matar; é bastante. Entrem todos na sala. Procederei a um rigoroso inquérito e o culpado que não pense poder escapar ao círculo de ferro das minhas perguntas. Levem-no guardado.

     — Proibo-o! — declarei. — Não sabemos ainda quem é o culpado. Irei na frente.

     Chegados à sala, sentei-me na cadeira mais confortável que achei.

     — Sai daí — ordenou o kiaja. — Esse é o meu lugar.

     — Não vês que é o meu? Já estou sentado.

     — Então, levanta-te!

     — Não vejo, entre vocês, nenhuma pessoa diante de quem eu tenha que me levantar.

     — Não me estás vendo? Se não obedeceres por bem, terei que mostrar-te o teu lugar, à força.

     — Se alguém se arriscar a mexer em mim, levará estes seis tiros na barriga.

     Apontei-lhe o revólver. O homem deu um salto para trás, com tanta agilidade, que faria inveja ao melhor atleta. Depois, disse:

     — Este homem é, de fato, perigoso. Vamos deixá-lo sentado, por enquanto.

     Procurou um outro lugar, colocou o papel diante de si, o tinteiro ao lado, enrugou a testa, cheio de imponência, levantou a pena contra a luz e examinou a ponta. O resultado desse exame foi a ordem:

     — Tragam-me uma faca!

     O estalajadeiro estendeu-lhe um canivete, com o qual se poderia cortar lenha. O kiaja começou a cortar o canhão da pena com aquele instrumento, para ficar mais a jeito; depois, ordenou:

     — Tragam-me água!

     O tinteiro foi enchido e, então, a autoridade começou a socar a lama com a pena, como se pretendesse fazer uma massa; mas a lama não queria amolecer.

     Essa situação divertia-me sobremodo. Empurrei o púcaro de aguardente para o lado do kiaja e disse:

     — É um trabalho pesado. Bebe.

     Aconteceu justamente o que eu esperava. Ele indagou;

     — Que é que contém?

     — Aguardente de ameixas.

     — É boa?

     — Muito.

     Tomou o púcaro, olhou para dentro, cheirou e bebeu.

     — Queres mais? — perguntei.

     — Tens dinheiro?

     — Tenho. Eu pago.

     — Manda-o encher. Todos nós beberemos.

     O púcaro foi enchido e correu de boca em boca. Quando chegou a minha vez, o kiaja manifestou-se:

     — Este é o criminoso; não beberá.

     Era-me isso muito agradável, não obstante ter notado que os peães, de bom grado, teriam concordado que eu tomasse um gole. Ademais, pareceu-me que todos eles estavam a meu lado. O último gole foi bebido pelo funcionário, digníssimo. Depois disse, ajeitando os óculos:

     — Bem, agora vamos começar o interrogatório. Atiraste contra este homem. Não é verdade?

     — Não atirei contra ele, mas só na espingarda.

     — É a mesma coisa. Atiraste; confessaste-o. O interrogatório, portanto, está terminado. Nem preciso escrever. Paga a aguardente e depois serás conduzido, preso.

     — Para onde?

     — Já saberás. Agora, terás que obedecer, sem perguntar.

     — Muito bem! Mas, se eu não devo perguntar, quero pelo menos, que me faças algumas perguntas.

     — Que te iria perguntar? Estou satisfeito.

     — Como quiseres! Então, também me dou por satisfeito e continuarei o meu caminho.

     — Não farás isso, porquanto és meu prisioneiro.

     — Escuta, se queres fazer um gracejo, procura fazer um, que preste. Queria saber quem me seguraria! Porventura, tu? O homem bateu no peito e respondeu:

     — Sim, eu!

     — Então, vem cá e experimenta. Se te agarro, estarás, num momento, quebrado como um junco. E, se outra pessoa quiser me segurar, derrubo-a a tiros.

     — Estão ouvindo? — bradou. — Teremos que amordaçá-lo.

     — Não é preciso. Não lhes farei coisa alguma, porque sei que nada me farão, também. Terminaste o teu interrogatório, sem perguntar quem sou eu. Não terás que dizer o meu nome aos teus superiores?

     — É verdade. Quem és e como te chamas?

     — Ora veja, agora, de repente, sabes fazer perguntas!

     — Não queria começar, só para não causar toda a tua desgraça. Porque, se começo a perguntar, descubro todos os crimes cometidos em tua vida.

     — Em nome de Alá, continua a perguntar! Contar-te-ei todos os meus pecados e poderás ir escrevendo. Sabes escrever?

     Com essa pergunta não contava. Só depois de refletir um pouco é que respondeu:

     — Realmente, esta tinta é muito grossa. Também a pena esta muito romba. Terei que cozinhar tinta nova. Ouvi dizer que és um estrangeiro?

     — Sou, de fato.

     — Tens, então, um teskereh de nove piastras?

     Um teskereh é o passaporte comum, que todos viajantes precisam ter. Em todas as localidades, deve ser visado.

     — Sim, tenho um — respondi.

     — Mostra-me, aqui!

     Entreguei-lhe o documento; mal, porém, tinha lançado um olhar sobre o papel, exclamou:

     — Não foi visado nenhuma vez! Por que não?

     — Porque não mostrei o teskereh a ninguém.

     — Então, és um vagabundo como não existe igual. O teu castigo será cada vez maior.

     — Não queres perguntar por que ainda não mostrei o teskereh a ninguém?

     — Então, por que não?

     — Porque posso mostrar outra coisa; quero dizer, isto aqui! Estendi-lhe o meu buyuruldi. É uma carta de recomendação do paxá às autoridades do seu território. O homenzinho fêz uma cara muito embaraçada.

     — Então, não queres cumprimentar o selo e a assinatura do teu superior? — perguntei.

     Curvou-se e depois disse:

     — Por que não falaste neste buyuruldi, antes?

     — Terminaste muito depressa o interrogatório. O cumprimento que fizeste, agora, não te custou muito esforço. Levanta-te do teu lugar e fira os sapatos, porque te vou mostrar outro passaporte.

     — Pelo amor de Alá! Quem sabe tens um ferman?

     — Sim, aqui está!

     Abri a grande folha de papel. O ferman é o mais valioso passaporte. Contém, ao alto, entre arabescos caligráficos, os títulos do padixá. Nele, é recomendado às autoridades que respeitem e cumpram rigorosamente todos os desejos do viajante. Também se podem ler, neste documento, instruções de toda a sorte, de utilidade para o seu possuidor, como, por exemplo, o preço por que pode contratar cavalos, companheiros e guias, e outras coisas.

     O ferman produziu o resultado que esperava. O kiaja exclamou:

     — Senhores, cumprimentem a dignidade, o selo e a assinatura do Senhor de todos os crentes. Dos seus lábios jorra verdade e bênçãos e o que ele manda tem de se fazer, em todas as partes da terra.

     As curvaturas não queriam ter fim. Entrementes, meti os três passaportes no estojo de couro e, em seguida, perguntei ao kiaja:

     — Que dirá o padixá se lhe escrever que fui injuriado aqui e que me chamaste de assassino?

     — Sê piedoso, Hazreti. Eu não sabia de nada.

     Hazreti quer dizer Alteza. Podia dar-me por satisfeito e tomei ares de grande dignidade.

     — Vou perdoá-lo, embora tivesse sido um grande erro chamar-me de criminoso, quando vim para descobrir um crime. Vai ao fogão e tira a lenha para um lado. Encontrarás ali uma coisa que não pertence ao dono desta casa.

     Obedeceu imediatamente. O estalajadeiro não pôde ocultar o susto; a sua mulher achou melhor desaparecer. Safou-se pela porta.

     O kiaja, de fato, fêz aparecer a carteira e me entregou. Era velha e surrada. Quando a abri, verifiquei que também continha um caderno de apontamentos. Havia ali uma quantidade de coisas rimadas e não rimadas — escritas em alemão.

     O conteúdo do caderno não tinha valor. Talvez contivessem as subdivisões da carteira algo de importância. Procurei e achei um cartão velho, com duas mãos entrelaçadas e, debaixo, as palavras: “Nem a morte nos pode separar”, uma passagem de estrada de ferro, picotada, de São Pedro a Nebresina; duas folhas de um dicionário; uma folha de carvalho, perfumada, contendo a pintura de uma rosa e a legenda: “quanto és linda”; um caderninho em miniatura, intitulado “Cálculos exatos dos preços de todas as partidas possíveis de scat (4), com e sem naipes”; o catálogo de preços de um estabelecimento comercial de vinhos de Pest e, finalmente, alguma coisa para agradar, isto é, cerca de oitenta florins austríacos, em moeda papel.

     A última coisa fora, com certeza, a razão que levara o estalajadeiro a reter a carteira, que, no restante, nada continha de valor, nem para ele, nem para qualquer outra pessoa.

     — De onde tens este djizdan? — perguntei-lhe.

     — Pertence-me — respondeu.

     — Quem escreveu, nestas folhas?

     — Eu.

     — Que língua é esta?

     — É... é... é.

     — Persa, não é verdade?

     — É.

     — Digo-te que esta letra só se escreve na Alemanja. Aqui, lê o que está escrito, nesta página.

     O homem estava no maior embaraço.

     — Oh, não podes ler! Este djizdan pertence a um homem que se chama Madi Arnaud. Cuidarei para que ele o receba novamente. Quanto ao que te diz respeito, mereceste castigo; mas, depende de ti, induzir-me a conceder-te perdão. Confessas francamente que te apossaste desta carteira, ilegalmente, e serás perdoado. Agora, fala! Ela é, realmente, tua?

     A resposta custou-lhe muito; mas o ferman tinha produzido grande efeito. O hospedeiro tomava-me por uma grande personalidade, a quem tinha de temer; por isso, balbuciou, finalmente, meio indeciso:

     — Não; pertence a ele.

     — Sabes para onde foi?

     — Para Ismilan.

     — Bem. Estás perdoado; mas com a condição de dares a cada um dos presentes um púcaro cheio de aguardente de ameixas. Serias castigado a bastonadas e ficarias preso uma porção de semanas. Queres?

     — Sim — murmurou, com raiva.

     Ao ouvir isso, o pequeno kiaja agarrou-me a mão, com tanta precipitação, que derrubou o tinteiro, e disse:

     — Senhor, a tua bondade é grande, mas a tua sabedoria ainda é maior. Tu o castigas, ao mesmo tempo que praticas a caridade para conosco. A tua lembrança jamais se apagará da nossa memória.

     — Procurem, então, ser dignos da minha bondade e bebam, para a alegria e saúde de todos.

     A criada maltratada não tinha entrado na sala. Saí em procura dela. Estava sentada, ainda, sobre o monte de feno. Comuniquei-lhe que o seu amo havia confessado o furto;

     ______________________

     (4) Jogo de cartas.

    

isso aumentou a sua preocupação.

     — Senhor, agora sofrerei muito — disse.

     — Ele não sabe que me disseste. Mas, por que ficas aqui, se ele é um amo tão mau?

     — Sou obrigada. Pagou-me trinta piastras de ordenado, adiantadamente; precisei de dinheiro para minha mãe e não posso ir servir a outro patrão, senão quando tiver servido o bastante para pagar o que recebi.

     — Dar-te-ei o dinheiro. Procurarás, então, imediatamente, outro serviço?

     — Oh, em seguida! Mas, ele não me deixará sair já.

     — Deixará, porquanto eu o mandarei.

     — Senhor, como posso agradecer-te?

     — Fica quieta! Cuidaste de tua mãe; isso me causou alegria. Honra-a também daqui por diante, porque quem ama e estima a seus pais, recebe a graça de Alá.

     Dei-lhe a pequena quantia e mais um pouco. Fêz uma cara muito diferente da do estalajadeiro, a quem encontrei, na porta da casa. Saía para encher a bilha e disse:

     — Senhor, não era preciso dar aguardente a toda essa gente. Era bastante que se desse ao kiaja.

     — Acreditas? Digo-te que nenhum de vocês vale um pára. Mas a tua aguardente de ameixas ainda é pior do que tu. Obrigando-os a bebê-la, castigo a todos e pensarei com satisfação nas suas conseqüências. Agora, porém, quero dizer-te mais uma palavra, a respeito da tua criada. Aconselho-te que a despeças.

     — Está me devendo dinheiro.

     — Ela te pagará o que deve.

     — Deste-lhe o necessário?

     — Dei.

     — Que vá, então. Não a quero ver mais, pois ela é a culpada de tudo quanto aconteceu.

     — Dize-lhe isso, lá dentro, na presença de todos.

     — Não é preciso.

     — Oh, pelo contrário, acho muito necessário, porquanto não tenho confiança em ti. Não sairei daqui, enquanto ela também não tiver saído.

     — Disse que ela podia ir embora. Pensas que sou mentiroso?

     — Penso. És um gatuno e um homem violento. Estou convencido de que também sabes mentir.

     — Que me dissesse isso outra pessoa! Entretanto, vou tolerar a injúria. Sofro, na verdade, um grande prejuízo, mas estou certo de que me pagarás a minha boa espingarda, que estragaste.

     — Acreditas? És um moslemita?

     — Sou cristão armênio.

     — Envergonha-te, então, do teu ato. Aquele a quem roubaste também era um cristão. Isso torna a tua atitude ainda mais indigna. Vocês, cristãos, deviam constituir para os moslemitas o exemplo de todas as virtudes; mas, que são, para eles, em verdade? Não te farei um sermão, porque seria inútil; mas, digo-te uma coisa: não pago nem a arma e nem tampouco o raki, que encomendei e não bebi. Receberás cinco piastras pela forragem do cavalo. Aqui estão elas e, com isso, estamos quites.

     Tomou o dinheiro, sem dizer uma palavra, e se afastou. Sentei-me numa pedra, que havia perto da porta, e esperei. Não tardou surgir a criada, com um embrulho na mão. Disse-me que tinha pago ao seu amo e, em seguida, recebera o seu atestado, para poder ir-se, e se despediu de mim, com palavras sinceras de agradecimento.

     Em seguida, também saí da localidade, que, por pouco, se me tinha tornado perigosa. Nos últimos momentos, ninguém mais se preocupava comigo. Ao partir, sem me despedir, pensei, com satisfação, que o espírito da aguardente de ameixas compreendesse a minha intenção. Uma pancadaria íntima entre esse povo, absolutamente não podia fazer mal ao honesto estalajadeiro e seus amigos.

     Em Topoklu encontrei outra hospedaria, cujo proprietário era um turco. Nessa havia limpeza e um bom café e, como o caminho de Stajanowa passava pelo local, demorei-me, para esperar os meus companheiros.

     Acreditei que só à noitinha passassem por Topoklu; mas, era ainda meia tarde, quando os vi passar. Paguei a despesa feita e fui ao seu encalço. Não se admiraram pouco ao me ver, pois pensavam que tivesse ido a Palatza. Quando, então, lhes contei o que tinha acontecido, Halef ficou pesaroso por não ter podido estar junto.

     Nem tinham dormido e, já ao alvorecer, partiram. Os seus cavalos estavam cansados da longa viagem; mas podiam agüentar até Ismilan; lá devia haver um descanso mais prolongado para a gente e para os animais.

     Chegando ao destino, informamo-nos acerca da casa de café de Deselim, o armeiro. Soubemos que não se tratava apenas de café, mas também de uma estalagem e que muitos viajantes ali ficavam durante a noite.

     Certamente não era sem perigo pernoitar na casa do homem, que, por minha causa, tinha quebrado o pescoço; mas, esse desastre ainda não era conhecido aqui e como Deselim era o cunhado do Chut acreditei que os fugitivos tivessem chegado em sua casa. Quem sabe, poderíamos colher alguma coisa de interesse para nós.

     A casa estava situada na estrada já mencionada. Tinha um pátio grande, com cocheiras e uma casa baixa, na qual se encontravam os quartos para os hóspedes. Eram pequenos compartimentos, com leitos bem originais. Cobertores e outras coisas preciosas tinham de ser trazidas pelo viajante.

     Quando apeamos, veio a nosso encontro um homem de má catadura e perguntou se queríamos pernoitar. A minha resposta afirmativa, informou:

     — Então, terão de dormir no pátio. Todos os quartos estão ocupados. Não há mais lugar.

     — Também não há lugar para gente desta qualidade?

     Ao fazer esta pergunta, mostrei a koptcha. Estava curioso para ver se isso produzia algum efeito.

     — Ah, são confrades — respondeu depressa. — É outra coisa; arranjaremos lugar. Mas terão de dormir dois num quarto, pois só posso obter dois cômodos.

     Naturalmente, estávamos de acordo e o seguimos para o pátio, a fim de dar um bom abrigo aos animais. Durante esse trabalho, pareceu-me ouvir uma cantiga estranha; mas não prestei atenção. Fomos levados, em seguida, ao salão do café, onde tivemos a surpresa agradável de ser informados de que nos seria servido um pillaw recém preparado, com galinha. Aceitamos.

     Além de nós, não havia outro hóspede no salão e o jovem que nos servia, pelo jeito, considerava um pecado falar. Assim, comemos silenciosamente, sem que nos interrompessem. Depois veio o casmurro que nos havia recebido, para indicar os quartos, que nos estavam reservados.

     — Possuem a koptcha e, por isso, gostaria de conversar com vocês; mas, agora, não tenho tempo, porque se realiza um espetáculo de canto, no jardim.

     — Quem está cantando? — perguntei, admirado.

     — Um cantor desconhecido, que chegou hoje, aqui.

     — Ele é pago?

     — Não. Veio, para pernoitar. Sentou-se no jardim e começou a cantar; então todos os hóspedes foram lá. Ele canta constantemente e todos escutam constantemente; por isso, temos que lhe levar o talak e o café no jardim. Dá muito trabalho.

     — Sabes de onde vem o cantor e como se chama?

     — É da terra de Áustria e tem um nome estranho; diz que devemos chamá-lo de Madi Arnaud. Se não estiverem muito cansados, podem ir também ao jardim; mas, nada compreenderão, porque ele canta numa língua desconhecida. Contudo, é muito bonito, tão lindo, como a gente ainda nunca ouviu. Demos-lhe a citara da nossa filha e, de suas cordas, ele tira o cântico de todos os pássaros.

     Conduziu-nos pelo pátio e abriu duas portas, uma ao lado da outra, na pequena casa. Entrava-se diretamente do pátio para os quartos. O homem unha mandado colocar palha nos quartos e, por cima, alguns cobertores, gentileza que devíamos, certamente, à koptcha.

     Omar e Osko foram para um dos quartos, enquanto Halef devia dormir comigo. O nosso guia afastou-se e também aqueles meus dois companheiros, para reunir os nossos teres e haveres.

     Durante o tempo que nós dois estávamos ocupados com os leitos, ouvimos os sons de uma citara. O nosso quarto de dormir tinha uma janela, no lado oposto da porta, a qual estava fechada.

     Tínhamos luz, proveniente de uma tijela cheia de sebo, da qual pendia um pavio aceso.

     O que ouvimos, era uma verdadeira introdução de oito compassos e, então, escutei, com grande surpresa, as quadrinhas alegres, em alemão:

    

     “s'Diandl ha Zahnerl

     So weiss wie Schnee

     Sand alie z'samm eing'setzt

     Drum thoan’s ihr noet weh.

    

     s'Diandl hat soe a goldene

     Riegelhaub'n dahaust,

     Tragt aba a Barrocka,

     Pfui Teufi, mir graust.” (5)

    

     Escutei. Avivou-se-me uma recordação. Seria possível? Também Halef escutou.

     — Sídi, sabes quem cantava assim? — perguntou.

     — Sim, quem?

     — O homem em Djiddah, que esteve junto conosco em casa de Malek, o Xeque dos ateibeh, e de Hanneh, minha mulher, a rainha das filhas. Levava uma espada gigantesca e trazia ao pescoço um lenço de seda amarela.

     — Sim, tens razão; aquele homem cantava bem assim.

    

     “Mei Muatta hat's g'sagt

     Zu mein lieab'n Papa

     Dass mei Ahndl ohne mi

     Gar koa Groszmutta war.” (6)

    

     Era o que se ouvia. E o cantor continuava:

    

     “Doe Koechina bringa

     Doe Gaens so gern um,

     Denn doe gar gross Verwandschaft

     Doe war iahna z'dumm.” (7)

    

     Halef estava literalmente eletrizado. Disse:

     — Sídi, vou lá fora. Preciso ver se é, realmente, o homem que via Hanneh.

     _________________

     (5) A rapariga tem dentes

           Tão brancos como a neve.

           Por terem nascido juntos,

           Nenhum doer lhe deve.

    

           De ouro é a touca

           Que a rapariga em casa tem.

           Mas, põe uma coisa estapafúrdia.

           Oh, diabo! Que medo que me vem!

    

     (6) A minha mãe já disse

           Ao papai querido

           Que a velha não seria avó

           Se eu não tivesse nascido.

    

     (7) Entre as cozinheiras

           Matar o ganso e moda.

           Pois o parentesco mui chegado,

           Por demais as incomoda

      

     — Sim, vamos.

     Não longe da porta do nosso quarto, havia uma passagem pelo muro do jardim. Quando chegamos ao outro lado, vimos, num prado verdejante, uma quantidade de lâmpadas de sebo iguais, cuja claridade tremeluzente iluminava um pequeno auditório, em semicírculo. Diante deste, estava sentado — sim, reconheci-o logo — Martin Albani, o nosso conhecido de Djiddah. Viu-nos entrar, lançou-nos um olhar, mas não nos observou melhor e continuou cantando:

    

     “Und der Tuerk und der Russ,

     Die zwoa getin mi nix o'.

     Wann i no mit der Gretl

     Koan Kriegshandel ho'!” (8)

    

     Aproximei-me lentamente, até encontrar-me atrás dele. Queria surpreendê-lo, como a sua presença me tinha surpreendido. Sem notar que eu estava parado junto às suas costas, começou a cantar a estrofe:

    

     “Wenn droVn auf doe Latschn

     Der Auerhahn balzt

     Kriagt mein Diandl a Bussei

     Des grad a so schanalzt” (9)

    

     Vi que ele tomava a posição de Fá maior. Abaixei-me e lhe tirei a citara da mão, continuando a cantar, no mesmo tom:

    

     “Does Diandl is sauba

     Vom Fuass bis zum Kopf,

     Nur am Hals hat's a Binkerl,

     Does hoast ma an Kropf. (10)

    

     ________________________

     (8) Nem ao turco, nem ao russo,

           A minha estima hei de dar.

           Enquanto com a Gretl

           Em guerra eu não me achar.

    

     (9) Quando, lá na sebe distante,

           O galo silvestre abre o bico,

           A minha rapariga leva um beijo,

           Que estala e tonto eu fico.

    

     (10) A rapariga está limpa

             Desde os pés até a cabeça.

             Mas, no pescoço, tem um papo:

             Não há coisa que mais desvaneça!

 

     O homem pulara de pé e me olhava, espantado.

     — Quê? — perguntou. — Alemão também?

     — Sim. Deus seja conosco, senhor Albani.

     — O senhor me conhece? Milagre sobre milagre!

     — E o senhor não conhece a mim? Vamos fazer mais um passeio de camelo? Lembra-se?

     — Camelo? Um passeio desses só arrisquei uma única vez, e aí... bombas e granadas, agora me volta o juízo! É o senhor? O senhor, o senhor, o senhor? Era o caso de a gente arrebentar de alegria, se fosse possível. Como veio parar em Ismilan?

     — Estou à sua procura.

     — À minha procura?

     — É verdade.

     — Como assim? Sabia, então, que me achava aqui?

     — Sabia. O senhor vem de Tchirmen e pretende ir a Menlik.

     — De fato, ele sabe! Por quem soube disso?

     — Primeiro, quem falou a seu respeito foi Chimin, o ferreiro de Kochikawak.

     — É verdade. Estive na casa dele.

     — Devo dizer que não tinha idéia de que fosse o senhor. O ferreiro falou-me de um tuerki tejaghyrydjy, que tinha chegado à sua casa.

     — Tuerki tji .. tjo.. tju... como era essa palavra? Que significa, em alemão?

     — Cantor.

     — Ah, sim. O diabo que carregue com essa língua turca! Ainda não me ajeito com ela.

     — E, contudo, viaja por este país.

     — Bom. É verdade que me entendo. Se não vai com palavras, recorro à mímica. Fazer caretas é uma linguagem universal, que todos compreendem. Mas, sente-se e me conte o que...

     — Por favor, vire-se um pouco. Aí está uma pessoa, que também lhe quer dizer boa noite.

     — Onde? Aqui? Mas, este é o senhor hadji. Ha... Hi__ Ho..., com o nome comprido!

     Halef notou que se falava a seu respeito. Disse, com dignidade imponente:

     — Hadji Halef Omar Ben hadji Abud Abbas Ibn hadji Dawud Al Gossarah.

     — Está bem, está bem! Essa quantidade de hadjis não me entra na cabeça. Deixemos ficar só no nome mais simples, Halef. Portanto, boa noite, senhor Halef!

     Estendeu-lhe a mão e Halef tomou-a, sem ter compreendido uma palavra.

     — Faça o favor de não esquecer que o bom hadji não entende uma palavra de alemão — declarei. — Não o está entendendo.

     — Ah, sim! Que é que ele fala?

     — Árabe e turco.

     — São esses, exatamente, os meus pontos fracos. Bem, já nos entenderemos. Mas, agora, a cantoria está terminada. Vamos às narrativas.

     Os presentes tinham compreendido que, ali, se havia dado um encontro inesperado. Viram, com grande pesar, que a citara, na qual, de resto, faltavam duas cordas, foi posta de lado. O triestino, porém, desistiu da ventura de ser admirado por eles e me seqüestrou por completo. Fêz-me sentar e disse:

     — Agora, conte-me o que lhe aconteceu desde aquele tempo.

     — Isso encheria muitas noites. Narre-me, porém, antes de tudo, como passou, de então para cá.

     — Bem e mal, alternativamente. Fiz diversas coisas, em parte com sorte e em parte com infelicidade. Agora, sou sócio do meu sócio e procuro conhecer quais as vantagens comerciais que esta terra oferece.

     — Para onde vai daqui?

     — À feira anual de Menlik.

     — Eu também.

     — Maravilhoso! Ficaremos juntos?

     — Sim, desde que tenha boa montaria. Tenho pressa.

     — Oh, estou muito bem montado. Nesse particular, não haja dúvida, para ficarmos juntos.

     — Espero que saiba montar melhor do que daquela vez, quando alugamos camelos em Djiddah.

     — Não se preocupe! Monto como um índio, como um domador!

     — Tem cavalo próprio?

     — Não.

     — Mau! Alugado?

     — É verdade. Tenho duas mulas, uma para mim e outra para as mercadorias. O dono viaja numa outra mula, como guia e arrieiro.

     — Quanto está pagando?

     — Pago só as duas primeiras mulas, à razão de dez piastras, cada uma, por dia.

     — É o preço habitual para os forasteiros, que não conhecem as condições locais e, conseqüentemente, se deixam enganar, com facilidade.

     — Como assim? Estou pagando demais?

     — Está. Um indígena pagaria só a metade.

     — Ah! Espera, meu rapaz! D'ora em diante receberás só cinco piastras por animal!

     — Não se precipite! Qual é o seu passaporte?

     — Um teskereh.

     — Quer dizer que não tem recomendação para os funcionários? Então, não deve tornar-se imprudente. Onde alugou os animais e o guia?

     — Em Mastanly.

     — Então, continue pagando o preço combinado até encontrar outro» Com este, eu negociarei.

     — Muito bem! Sou lhe muito grato. Que distância temos daqui a Menlik?

     — Cerca de vinte e cinco aghatch turcas ou sejam quinze milhas alemãs. Isto em linha reta.

     — Seriam três dias de viagem. Mas, como não podemos voar, gastaremos mais tempo.

     — Hum! No meu garanhão, não gastaria dois dias. As mulas costumam ser muito emperradas. Como se portam as suas?

     — Oh, muito bem!

     Pronunciou essas palavras tão pausadamente, que supus estivesse me dizendo uma pequena inverdade, para não me deixar mudar de idéia, para dispensar a sua companhia.

     — Escute, senhor Albani, está pregando uma petazinha, não? — perguntei.

     — Oh, não, absolutamente!

     — Será que essas mulas, mulas de aluguel, sejam absolutamente infalíveis e sem defeito?

     — Bem, aquela que monto, tem lá qualquer parafuzinho frouxo. Tem o costume de se parar, às vezes, nas patas dianteiras e levantar as traseiras, para fazer exercícios no ar. E a mula cargueira nem sempre anda como se quer. De vez em quando fica parada, para gozar as delícias do panorama; também, uma vez que outra, deita-se para fazer exercícios de pensamentos e isso, justamente, onde a lama é mais funda. Mas esse fato não quer dizer nada, porque ela sempre recupera o tempo perdido. De fato, quando lhe ocorre, lá de quando em vez, a idéia de que um pouco de movimento seria de utilidade para a saúde, põe-se a correr com a velocidade de um trem rápido. E depois relinxa de alegria, ao ver que temos de correr atrás dela, para apanhar as mercadorias perdidas na corrida. Na verdade, cada animalzinho quer ter o seu prazerzinho e eu sou muito humano para não lhe estragar o divertimento.

     — Muito obrigado! O maior prazerzinho de um animalzinho desses deve ser o de obedecer ao seu dono.

     — Ora, não seja tão rigoroso! Espírito de oposição há em toda a parte. Finalmente, esses são todos os defeitos que têm as mulas.

     — Parece-me que o guia escolheu o melhor animal para si próprio, não?

     — É verdade. Mas, não posso levar-lhe a mal. Cada um é o melhor amigo de si mesmo.

     — É uma sentença muito nobre; mas, nesse caso, o senhor também deveria ser o melhor amigo de si mesmo. Estou curioso para ver como vai passar, com esses animais, pelos maus caminhos que existem daqui por diante. Para onde quer ir, depois de Menlik?

     — Ainda está indeterminado. Ou vou para o sul, a Salonik, ou para leste, a Trieste.

     — Aconselho-o que escolha a primeira dessas alternativas.

     — Por quê?

     — Porque é o caminho menos perigoso.

     — Julga que a humanidade aqui é má?

     — Não digo isso; mas o povo que mora entre esta região e o Adriático tem uns costumes originais. Gosta da comunhão de bens, mas só quando os outros têm alguma coisa. E depois gosta de praticar toda a sorte de exercícios de tiros e facadas e, nesse caso, escolhem para alvo, o que é para admirar, quase sempre um ser vivo.

     — Realmente, é muito desagradável.

     — O senhor leva uma grande variedade de mercadorias e, talvez, dinheiro. Isso tudo é muito sedutor para gente que tem tais idéias. Poderia muito bem ser que lhe pedissem as suas coisas emprestadas, para toda a vida. E poderia acontecer até que o senhor, ao embarcar de regresso à sua terra, notasse que o tinham matado, lá nas montanhas, e jogado no fundo de um precipício.

     — Agradeço essas considerações e projetos. Não supus que fosse assim. Até agora não me ocorreu nada de importante, a não ser em Adatjaly, onde fui amassado, mas não com massa, e, depois, perdi uma carteira. O último acidente só posso atribuir ao meu desleixo, mas não à conta da população daqui.

     — Talvez, sim.

     — Alguém pode ser culpado por eu perder qualquer coisa?

     — Não, se o senhor a perdeu realmente.

     — Acredita que me possam ter furtado a carteira?

     — É possível. Mas, se se desse o contrário, aquele que a encontrasse poderia devolvê-la.

     — Hum? Mas, essa pessoa me conhecia? Nem sei onde perdi a carteira.

     — De certo, o prejuízo não foi muito grande?

     — Não. Continha oitenta florins austríacos, em papel. Não seria esse o maior prejuízo; mas, havia dentro dela algumas recordações muito caras, que lamento profundamente perder.

     — Que era?

     — Diversas coisas, que naturalmente não o interessam.

     — É verdade — nem a morte nos pode separar!

     — Quê? Que está dizendo?

     — Quanto és linda!

     — Senhor, não o compreendo!

     — Cálculo exatos dos preços de todas as partidas de scat. É realmente uma lembrança de grande valor, que relembrará sempre um solo de paus, mal jogado, com sete trunfos e três dez limpos.

     — Que está dizendo! Acredito até que saiba o que havia na minha carteira!

     — Mais ou menos.

     — De onde?

     — Oh, tive o prazer de conversar a seu respeito com uma linda jovem.

     — Jovem? Linda? Onde?

     — Parece conhecer muitas moças assim?

     — Algumas.

     — De fato, o senhor viaja para procurar uma esposa.

     — Com a breca! Agora sei a quem se refere: à criada da estalajadeira do leite coalhado em...

     — Quando esteve lá, também estava mexendo leite coalhado?

     — Da manhã até a noite. Creio que é a sua paixão.

     — Cada qual tem as suas paixões. O marido dela, o hospedeiro, também tem uma.

     — Qual? A brutalidade?

     — Não. Isso era só o costume. A sua paixão é não devolver os objetos achados.

     — Achou alguma coisa?

     Tirei a carteira do bolso e lhe estendi.

     — O meu portefeuille! — disse, perplexo. — Esse homem, o estalajadeiro, achou isso?

     — Achou e justamente quando o senhor ainda estava lá.

     — Que ladrão! Mas, que aconteceu para que ele lhe devolvesse a carteira, depois de ter guardado segredo para mim?

     — Obriguei-o a entregá-la. A referida moça denunciou-me o lugar onde estava escondida.

     Contei-lhe detalhadamente a aventura. Abriu a carteira e verificou que nada faltava.

     — Por minha causa, meteu-se num verdadeiro perigo — disse. — Agradeço-lhe muito.

     — Por sua causa? Oh, não! Quando tomei a defesa da vítima, não sonhava ainda que o senhor tinha estado ali. Portanto, não me deve nenhuma gratidão.

     — Coitada da moça! Então, ele a tinha encarcerado! E eu que a procurei por todos os cantos, sem encontrar.

     — Naturalmente, queria despedir-se dela?

     — Lógico! Na verdade, sou um grande amigo das despedidas e das cenas comoventes. Não se admirou ao ver letras alemãs, no caderno de apontamentos?

     — Fiquei surpreendido. Mas, agora chega. Pretendo partir muito cedo, amanhã e, por isso, quero descansar um pouco.

     — Dormir? Mas, não! Desejo que conte o que lhe aconteceu, em todo esse longo tempo que não nos vimos.

     — É demais para hoje de noite. De resto, viajaremos juntos e, assim, teremos tempo para essas narrativas.

     — Onde vai dormir?

     — Depois do muro, a primeira porta.

     — A minha é a terceira.

     — Então somos vizinhos, porque dois dos meus companheiros estão no quarto a seu lado. Boa noite.

     — Boa noite.

     Antes de tudo, fui, com Halef, à cocheira, a fim de ver os animais. Estavam bem cuidados. Como de costume, antes de dormir, disse uma sure ao ouvido de Rih e ia me dirigir ao quarto de dormir; mas, no pátio, encontramo-nos com o homem sinistro, que nos havia recebido. Parou junto a nós e disse:

     — Senhor, os hóspedes saíram, quando terminou o canto. Agora tenho tempo para conversar. Queres vir comigo?

     — Com muito prazer. O meu companheiro também irá.

     — Ele tem a koptcha e me é bem-vindo.

     Levou-nos à casa da frente e, depois, a uma saleta, onde nos sentamos nas almofadas. O homem nos serviu café em xícaras muito bonitas e cachimbos trabalhados caprichosamente. A impressão era de abastança. Quando os cachimbos estavam acesos, sentou-se, ao nosso lado, e disse:

     — Possuem o sinal e, por isso, não indaguei nada sobre os passaportes; digam-me como devo chamá-los.

     — O meu amigo chama-se Halef Omar e eu sou Kara efêndi,

     — De onde vêm?

     — De Edreneh. Temos de falar com três pessoas, que, possivelmente, chegaram aqui.

     — Quem são?

     — Conhecerás Manach el Barcha. Refiro-me a ele e aos seus dois companheiros.

     Olhou-nos perscrutadoramente e comentou:

     — Acredito que são nossos amigos.

     — Teríamos vindo aqui, se fôssemos inimigos?

     — Tens razão.

     — Ou teríamos a koptcha?

     — Não. A tua, principalmente, não possuirias; conheço-a muito bem. Vislumbrei perigo. Não deixei, porém, perceber embaraço algum e respondi.

     — De onde a conheces?

     — Ela é um pouco diferente das comuns; é a koptcha de um chefe. Pertenceu ao meu irmão Deselim.

     — Ah, és o irmão do estalajadeiro daqui?

     — Sou.

     — Dá-me muito prazer. Recebi a koptcha dele.

     — Então, também és um chefe e fizeste uma troca. Os amigos trocam as koptchas. Onde o encontraste?

     — Em Karbatch, no mato que ali existe, e onde fica a choupana do mendigo Saban.

     — Ele não ia lá.

     — Sim, ia ter com o padeiro e tintureiro Bochak, em Dchnibachlue. Estive lá como hóspede.

     — Onde está meu irmão, agora?

     — Ainda está em Kabatch.

     — Posso saber o que e quem és, realmente? Existem muitos e diferentes efêndis.

     — Vou dizer-te só uma palavra e então saberás como deveras me fulgar. A palavra é Usta.

     Era uma experiência que fazia, mas o resultado foi excelente. O homem fêz um gesto de agradável surpresa e disse:

     — Sim, é o bastante. Nada mais quero saber.

     — Fazes muito bem; não estou acostumado a me submeter a interrogatórios.

     — Em que posso te ser útil?

     — Dize-me primeiro se Manach el Barcha esteve aqui.

     — Esteve, acompanhado por dois outros.

     — Quando?

     — Permaneceu uma noite aqui e ontem, ao meio dia, partiu.

     — Então, foi muito depressa. Também esteve na casa do teu parente, o kiaja de Bu-kiõj, e ali trocou um cavalo.

     — Estiveste com o kiaja?

     — Estive. Recebe muitas lembranças dele. Manach el Barcha foi a Menlik. Sabes, por acaso, onde posso encontrá-lo, ao chegar lá?

     — Sim; deu-nos o seu endereço, porque o meu irmão também quer ir a Menlik. Mora lá um rico negociante de frutas, chamado Glawa. Na casa deste, ele vai se hospedar. Qualquer pessoa te dirá onde mora.

     — Manach el Barcha perguntou pelo Chut?

     — Sim. Vai ter com ele.

     — Eu também.

     — Então, irão juntos.

     — Penso que sim; mas os desígnios de Alá são imperscrutáveis e os acontecimentos, por vezes, não vêm como a gente os espera. Pode ser que Manach parta, antes de eu chegar. Por isso, gostaria de saber onde posso encontrar o Chut.

     — Vou dizer-te. Quando fores de Menlik a Istib e alcançares, na estrada, a localidade de Rodowitch, deveras tomar a direção norte, até a aldeia de Sbiganzi. Fica situada entre os rios de Bregalnitza e Sletowska. Ali mora o açougueiro Tjurak. A este perguntarás pela caverna; ele te dará resposta. E, quando chegares a essa caverna, saberás tudo sobre o chut, tudo quanto quiseres e o que eu mesmo não sei ainda.

     — Pensei encontrar o negociante de cavalos Mosklan em Palatza, mas ele não estava.

     — Como, conheces Mosklan?

     — Conheço toda essa gente. Ele é o mensageiro do Chut.

     — Sabes disso também? Efêndi, vejo que és um membro proeminente da união. Dá-nos grande honra em hospedar-te aqui. Ordena que eu obedecerei; farei qualquer serviço que mandares.

     — Agradeço. Não preciso mais nada do que as informações que me deste e, agora, queremos descansar.

     — Quando nos deixarás?

     — Amanhã, depois do clarear do dia. Não nos precisas chamar; acordaremos à hora certa.

     Depois de cumprimentar, com amabilidade, mas superiormente, retiramo-nos.

     — Sídi, — disse Halef, em caminho — soubemos tudo quanto queríamos. Ele te tomou por um grande ladrão e eu por teu amigo e aliado. Existe gente que, ao invés de ter miolo na cabeça, tem pirão de ovos. Se soubesse que seu irmão quebrou o pescoço e que partiste os dentes de Mosklan, certamente teria deixado de nos desejar tão boa noite. Não te parece possível que, ainda, no correr da noite, chegue notícia do que aconteceu?

     — Oh, meu caro Halef, não vamos proclamar a vitória, ainda.

     — Fi amahn Allah — Deus nos guarde! Este homem nos estrangularia!

     — Temos, portanto, que tomar todo cuidado. Entramos na toca da hiena, para dormir com ela. Vamos ver se saímos com sorte.

     Apesar disso, dormi bem. Só acordei quando ouvi a voz de Albani, que já estava cantando lá fora. Era um estroína descuidado e, infelizmente, não cantou mais por muito tempo. Dessa viagem, na verdade, regressou sem acidente maior; mas, pouco tempo depois, encontrou a morte, tomando banho de mar.

     Quando saí para o pátio, ele estava negociando com o irmão do estalajadeiro sobre o preço da hospedagem. A diária parecia-lhe ser muito alta; contudo teve de pagar o que lhe era pedido. Era, realmente demais, o que se lhe pediu. Observei isso ao hospedeiro, mas este me disse, em voz baixa:

     — Que queres? Se peço mais do que habitualmente, isso também vem em teu proveito. É um descrente e tem que pagar também por aquele que têm a koptcha, porque destes jamais peço dinheiro.

     — Conseqüentemente, de mim também não?

     — Não. Tu e os teus companheiros são meus hóspedes particulares e nada pagarão.

     Sob determinados aspectos, isso não me agradava, pois não se tem satisfação em receber hospitalidade por parte de inimigos; mas, por precaução, precisava tolerá-lo.

     Fui com Halef, Omar e Osko à sala da estalagem, onde nos foi servido café; em seguida, ensilhamos os animais e partimos, depois de nos termos despedido.

 

    No Pombal

     Cavalgávamos à margem do Arda. Como verifiquei logo, o guia de Albani reservara para si a melhor mula e montava um bom selim turco. Ao alemão, ele dera o animal mais obstinado e rebelde, com uma sela que me fêz rir. Se fosse uma sela para conduzir carga, não seria nada; mas a coisa era um cavalete de madeira, de largura incrível, fazendo com que as pernas do cavaleiro, de um e de outro lado, estivessem a trinta centímetros de distância do animal. Em tal posição, o cavaleiro devia sentir dores, se não preferisse levantar os joelhos até à altura do assento. Não havia nem rédeas, nem estribos. No lugar destes, havia, de cada lado do instrumento de suplício, uma corda, com diversas alças — aparelhamento que se distinguia, mais por ser barato, do que por ser de confiança.

     Não estávamos longe da cidade, quando encontramos um homem, que trazia um cão. Este começou a latir e já a mula de Albani levantou as patas traseiras, começando a dar coices, mas não depressa, e, sim, bem devagar. Via-se que o animalzinho tinha prática nessas evoluções e as fazia com arte e muito gosto.

     — Ah, eh, oh! — bradou o cavaleiro. — Já começas outra vez! Oh, besta!

     Procurou segurar-se, mas não conseguiu. Escorregou por cima da cabeça do animal e estava no chão, antes mesmo das patas traseiras da mula terem concluído a exibição ginástica. Albani ergueu-se de um salto e deu um soco entre as orelhas da besta. Vendo isso, o dono do animal entendeu de protestar:

     — Por que estás dando na mula? Ela é minha ou tua? Com que direito maltratas um animal que não é teu?

     — E esse animal tem o direito de atirar ao chão um homem, que não é o seu dono? — respondeu Albani.

     — Atirar no chão? Porventura, ela te jogou no chão? Deixou-te cair vagarosa e delicadamente, a fim de que não sofresses qualquer acidente. Deves-lhe gratidão, por isso. Ao invés, porém, de lhe agradecer, estás surrando.

     — Aluguei-a para andar e não para ser jogado ao chão. Ela tem que obedecer. Pago-a e, portanto, é minha. Se não obedece, castigo-a.

     — Oh! Se lhe bateres outra vez, voltarei e te deixarei no meio da estrada. Monta outra vez!

     Albani trepou novamente no animal; mas, agora, o bicho não queria, andar. Não se afastou do lugar. O cavaleiro praguejava violentamente; a mula parecia divertir-se com a sua raiva. Abanava com o rabo e meneava as orelhas; mas não saía do lugar. Albani não tinha coragem de a surrar novamente. Pediu ao dono que fizesse o animal andar; mas aquele respondeu:

     — Deixa que faça a sua vontade. Quer ficar parada, que fique. Por si mesma, terá a idéia de andar de novo. Enquanto isso, vamos indo.

     Assim aconteceu. Numa volta do caminho, olhei para trás. Lá estava, ainda, o animal teimoso, sacudindo as orelhas. Mal, porém, tínhamos passado a curva, em virtude da qual não nos podia avistar, a mula pôs-se em movimento e isso, com uma velocidade, que o cavalete de montaria, sobre o qual Albani se desengonçava, estalava por todas as juntas. E, como o animal tinha começado a correr, também não parou mais; pelo contrário, passou por nós e continuou, sempre para diante.

     O efeito foi contagioso. A mula de carga, que era levada, a cabresto, pelo dono, desprendeu-se e saiu correndo atrás da companheira fugitiva; nós, naturalmente, seguimo-la. Mas, logo, tivemos de parar, a fim de colher os objetos perdidos, durante a carreira. Quando alcançamos Albani, estava novamente no chão, esfregando as partes do corpo, que, por direito, deviam ficar sobre a sela e não no chão. Os dois animais estavam a seu lado e abanavam os rabos, torciam as orelhas e rangiam os dentes. Podia se pensar que isto significava um sorriso zombeteiro e malicioso.

     Os objetos perdidos foram outra vez amarrados ao animal de carga. Albani montou e fomos adiante. Mas, não havia decorrido meia hora, e já aquela criatura admirável tinha emperrado e não queria sair do lugar.

     — Virá depois. Vamos adiante — opinou o dono e mandão. Até agora, eu estava calado; mas, então, respondi:

     — Desejas que o animal dispare outra vez? Se isso se repete, chegaremos muito longe! Ele que use o chicote.

     — Não admito.

     — Ora, ora! Que te disse este senhor, quando alugou os animais?

     — Pediu dois cavalos ou mulas, um para montar e outro para a carga.

     — Bem, muito bem! Então, não pediu expressamente aquela mula que lhe deste?

     — Não.

     — Pois bem, apeia e troca com ele!

     O homem fêz uma cara muito admirada. Pareceu considerar a minha proposta inacreditável, tola.

     — Que dizes? Queres que lhe entregue este animal? Este é meu!

     — O outro também é teu, entendeste?

     — Mas, só monto este aqui e nunca outro.

     — Nesse caso, farás uma exceção. Este senhor pediu um animal para montar e outro para a carga. Para montar, é preciso também uma sela. Mas, possuis só uma e é a que tens aí. Quem paga uma montaria, precisa tê-la efetivamente. Portanto, trocarás com ele.

     — Não faltava mais nada!

     — Eu quero! — respondi em voz alta.— Tenho o ferman do Grão Senhor; este cidadão é meu companheiro; está debaixo da minha proteção e, conseqüentemente, também sob a do padixá. Se te dou uma ordem, tens de obedecer, simplesmente. Portanto, desce da mula!

     Albani apeou; mas o outro disse:

     — Ele pediu dois animais e os tem. Não permito que me ordenem coisa alguma!

     — Halef!

     O pequeno hadji, há muito esperava esse convite, com a mão no cabo do chicote. Mal estava pronunciada aquela palavra, e já o chicote de couro de hipopótamo zunia nas costas do homem desobediente e, na verdade, com tanta força, que ele saltou dos arreios, berrando. Apanhou mais algumas chicotadas e, depois, nada mais teve a alegar contra a troca. Tem que se saber tratar a gente, de acordo com os seus costumes.

     Naturalmente, Albani estava de pleno acordo com a modificação verificada; tinha vantagem, mas, infelizmente, nós outros não, pois até chegarmos à aldeia próxima, uma das mulas tinha disparado duas vezes, com o seu dono e a outra, uma vez distribuíra a carga pela estrada. Para felicidade nossa, achamos, nessa localidade, um proprietário de cavalos, disposto a nos tirar da dificuldade. O outro foi pago. Quando partimos, berrou-nos ainda uma porção de ameaças, às quais não demos atenção.

     Quiséssemos conservar a direção de Menlik, o caminho nos levaria a Boltichta. Mas a linha reta nem sempre é o caminho mais curto. Nessa direção, teríamos uma grande quantidade de elevações e vales profundos para atravessar. Para evitar todas as dificuldades que daí decorriam e a perda de tempo, dirigimo-nos para o norte, para alcançar, depois dos serros de Kruchema, o vale de Domus ou Karlyk.

 

     Ao meio dia, paramos em Nastan e, à noite, estávamos em Kara-Bulak, onde dormimos. Depois, tomamos a direção leste, para Nevrekup. Cerca do meio dia, alcançamos um planalto que caía íngreme para os lados de Dospad-Dere. Não havia estradas propriamente dita e se tornou difícil passar, por entre os numerosos arbustos, que nos impediam o caminho.

     Quando passamos por um desses arbustos, Rih deu, repentinamente, um salto para o lado, o que não era do seu costume. Deixei que fizesse a sua vontade, e vi que o animal bufava de um modo estranho, com as ventas voltadas para o arbusto.

     — Sídi, há alguém aí dentro — disse Halef.

     — Pode ser. Em qualquer hipótese, há qualquer coisa de extraordinário.

     O hadji já tinha apeado e entrava pelos arbustos. Ouvi uma exclamação assustada. Halef voltou e disse:

     — Entra aí! Achei um cadáver.

     Naturalmente, segui-o, com os outros. Encontramos um pequeno lugar limpo, cercado de arbustos espessos. Ali estava o cadáver de uma mulher, numa posição curiosa, ajoelhada, com a cabeça encostada a uma construção original.

     Com efeito, haviam sido colocadas pedras sobre pedras, de modo a fazer uma espécie de altar, no qual havia um nicho, contendo um pequeno crucifixo de madeira.

     — Uma cristã! — disse Halef.

     Tinha razão. Era um santuário, escondido no mato, talvez erguido por essa mulher, com grande sacrifício, pois notei que, naquela região, as pedras eram raras. Ela havia reunido aquelas pedras — quem sabe de que distância e com quais esforços — para servir calmamente a seu Deus.

     Senti-me profundamente emocionado; também os outros, conquanto maometanos, estavam silenciosamente diante daquele quadro. O lugar, onde Deus chama uma alma para junto de si, é um lugar sagrado.

     Ajoelhei-me para rezar e os meus companheiros fizeram o mesmo. Depois, examinei o cadáver.

     Era uma mulher de trinta e tantos anos. O rosto nobre, de feições delicadas, era magro. As mãos pequenas, que estavam entrelaçadas em atitude de quem reza, segurando um rosário, não tinham mais sinais de vida. No dedo mínimo da mão direita, havia um anel de ouro, com uma ametista, mas sem gravação alguma. Não estava vestida à moda búlgara, e sim como uma turca. Diante da imagem do Crucificado, tinha descoberto a cabeça. O véu estava ao lado. Certamente tinha sido bonita; era-o, ainda, morta. Nos seus lábios, havia um sorriso e, nas suas feições, a tranqüilidade denotava que o anjo da morte lhe tinha tocado, com mão delicada.

     — Que farás? — perguntou Halef.

     — Só podemos fazer uma coisa: procurar os parentes da falecida. Estes moram pelas proximidades, pois uma mulher não costuma se afastar muito da sua casa. Devemos estar perto de Barutin. Vamos! Deixa-la-emos aqui.

     Montamos novamente e continuamos.

     A descida ainda era mais dificultosa, mas os arbustos estavam mais separados. Em breve, avistamos uma construção em forma de torre e, ao redor, uma porção de casas. O proprietário de cavalos disse, então.

     — Isso deve ser o karaul do capitão.

     Karauls são torres de observação, freqüentemente ocupadas por força militar, para guardar as estradas e a região. Provém dos tempos antigos, mas não perderam a sua utilidade.

     A torre estava num ponto elevado e, de fato, passava por ali uma coisa parecida com estrada, que se dirigia a uma localidade, visível ao longe.

     — Lá é Barutin — disse o homem. — Aqui, onde nos achamos, nunca estive; mas já ouvi falar nesse karaul. Mora aqui um capitão, que perdeu a graça do Grão Senhor. Não se deixa ver quase e vive como um ermitão. É um misâmtropo; mas, sua mulher, dizem que é amiga dos pobres e dos infelizes.

     — Vamos lá!

     Quando chegamos à torre, veio ao nosso encontro um homem, que se via ter sido soldado. Uma barba tão longa e espessa como a dele, jamais eu tinha visto.

     — A quem querem falar? — perguntou, indelicado.

     — Ouvi dizer que aqui mora um oficial.

     — Ê verdade.

     — Está em casa?

     — Está. Mas, não recebe ninguém. Vão embora!

     — É o que faremos; mas, dize-nos, antes, se, por aqui, acaso, é procurada uma mulher.

     A sua cara tomou, logo, uma expressão de grande interesse. Respondeu:

     — Sim, sim! A senhora desapareceu. Desde ontem, já a estamos procurando, baldadamente.

     — Achamo-la.

     — Onde? Onde está? Por que não veio junto?

     — Leva-me à presença do teu amo.

     — Vem, vem!

     De repente, tinha se tornado delicado. Apeei-me e o segui. A torre era uma construção maciça. Embaixo, havia uma parte habitável. Subimos por uma escada e chegamos a um compartimento pequeno, onde tive de esperar. Ouvi, no quarto vizinho, algumas exclamações, em voz alta, e depois a porta foi aberta violentamente, aparecendo o capitão.

     Era um homem bonito, que não tinha, ainda, cinqüenta anos de idade. Os olhos estavam vermelhos; tinha chorado.

     — Achaste-a? Onde está? — exclamou, precipitadamente.

     — Permite-me que te cumprimente, primeiro — respondi. — Posso entrar em tua casa?

     — Sim, entra.

     O compartimento para onde entrei era de regular tamanho. Tinha três janelas altas, estreitas, semelhantes a seteiras. Nas paredes havia algumas almofadas, que constituíam o único mobiliário e sobre aquelas, muitas armas e cachimbos. Dois meninos, que se mantinham abraçados, estavam sentados a um canto. Vi que também eles tinham chorado. O velho ex-soldado não se afastou. Queria ouvir o que eu dizia.

     — Sê bem-vindo! — disse o capitão. — Onde está minha mulher?

     — Bem perto daqui.

     — É impossível. Procuramo-la por toda a parte, sem a encontrar. Até agora, ainda, toda a minha gente está à sua procura.

     Naturalmente, eu não queria explodir logo com a notícia da sua morte; por isso, perguntei:

     — A tua mulher estava doente?

     — Sim, há muito tempo estava enferma. Por que perguntas? Ela morreu? Sei que não pode viver muito tempo, porque o médico me disse que estava tuberculosa.

     — Tens ânimo para ouvir a verdade?

     O homem empalideceu e virou-se, como se a notícia, assim, não o atingisse com tanta dureza.

     — Sou um homem — disse. — Fala!

     — Ela está morta.

     Ao ouvir essas palavras, as duas crianças soluçaram alto. O pai nada disse; mas encostou a cabeça contra a parede. Vi que o seu peito arfava; lutava contra um soluço, que só podia abafar com grande esforço. Só depois de algum tempo, virou-se para mim e perguntou:

     — Onde a viste?

     — Junto de uns arbustos, a uns dez minutos daqui.

     — Queres levar-nos lá?

     Antes de poder responder, ouvi um ruído, nas minhas costas, como se alguém fosse estrangulado. Voltei-me rapidamente. Ali estava parado o velho. Tinha posto a ponta do seu casaco na boca, para não deixar ouvir o seu soluço; mas não conseguiu. Deixou cair a aba novamente e começou a chorar de causar dó.

     Também o capitão não se pôde mais conter; chorou, também, e as crianças os acompanhavam. Isso doeu-me. Aproximei-me da janela e olhei para fora. Nada vi, porque também eu tinha lágrimas nos olhos.

     Demorou muito até que os dois se acalmassem. O capitão excusou-se:

     — Não deves rir-te de nós, desconhecido! Eu amava muito a mãe dos meus filhos. E este aqui era o meu alferes, quando perdi a graça do Grão Senhor, e não me abandonou, como todos os outros. Ela era o meu consolo, na solidão. Como viverei sem ela?

     O que eu ia dizer, talvez não fosse conveniente que o velho alferes ouvisse; por isso, perguntei-lhe.

     — Há, por aqui, uma padiola?

     — Há! — respondeu.

     — Apronta-a e procura alguns homens para carregá-la.

     O velho saiu e depois indaguei do capitão:

     — És, naturalmente, um moslemita?

     — Sim. Por que perguntas?

     — Tua mulher era cristã?

     Dirigiu-me um olhar rápido e respondeu:

     — Não... mas, tens, porventura, alguma base para perguntar isso?

     — Tenho. Creio que ela era cristã.

     — Era amiga dos descrentes. Quando vim para aqui, precisei de uma criada. Tomei uma mulher velha. Não sabia que era cristã; mas, mais tarde, soube-o e, também, que ela queria seduzir minha mulher. Mandei-a embora. Desde então, Hara ficou quieta, cada vez mais quieta; chorava, às vezes, e, depois, ficou doente. Tossia e perdia as forças.

     — Então, fôste rude para com ela?

     Respondeu, só depois de algum tempo:

     — Devia eu deixar que ela se tornasse uma djaur?

     — Todavia, ela se tornou e, de pesar pela tua rudera, adoeceu e morreu. Ergueu lá, por entre os arbustos, um altar de pedra, para poder rezar ao Todo Poderoso, como os cristãos. Morreu, rezando. Que haja paz entre tu e ela.

     — És, por acaso, um cristão?

     — Sou.

     O capitão olhou-me, demoradamente, nos olhos. Lutava com os seus próprios pensamentos; estendeu-me, depois, a mão e disse:

     — Não tens culpa de ser um descrente e nem de ter ela acreditado no culto cristão. Leva-me até onde ela está, a mim e às crianças.

     — Não queres deixar as crianças? Ainda terão ocasião de vê-la.

     — Tens razão. Vamos sozinhos!

     Os meus companheiros ainda estavam parados, lá embaixo. Quando o capitão os viu, falou:

     — Pensei que estivesses só, pois não os vi chegar. São meus hóspedes. Lá está a estrebaria e mais além a casa de moradia, propriamente dita. Eu moro sozinho na torre. É verdade que não há ninguém em casa, mas vão lá e façam como se estivessem em sua própria casa.

     — Onde está o alferes? — indaguei.

     — Não achou pessoa alguma e decerto saiu, em busca dos outros. Todos saíram, para procurar minha mulher. Vamos sós.

     Os meus companheiros dirigiram-se para a casa indicada. Halef levava Rih, pela rédea. O capitão viu o garanhão e era muito oficial para não esquecer, por um instante, o seu luto.

     — Este cavalo é teu? — perguntou.

     — É.

     — Um cristão, com um cavalo desses? Deve ser um homem nobre e rico. Perdoa-me se esqueci de te tributar as honras merecidas!

     — Alá fêz todos os homens e lhes recomendou que fossem irmãos. Nada tenho que te perdoar. Vem!

     Começamos a subir o planalto. Quando chegamos aos arbustos, ficando eu parado, o capitão olhou em torno, inquiridoramente, e indagou:

     — É aqui?

     — É. Lá dentro.

     — Nesse sarçal? Quem poderia imaginar! Como a pudeste achar?

     — O meu cavalo descobriu-a. Parou aqui, bufando. Vamos entrar!

     Entramos pela ramagem, até o lugarzinho limpo. A cena que, então, presenciei jamais se apagará da minha memória. Quando o olhar do capitão caiu sobre o cadáver, soltou um grito estridente e se jogou ao lado da morta. Tomou-a nos braços; beijou-lhe os lábios gelados; acariciou-lhe as faces e alisou os seus cabelos carinhosamente. Com certeza, ele a amara muito, muitíssimo, e, não obstante, fora rude para com ela.

     Ela conservara a sua crença em segredo, perante o marido. Quantas vezes não teria sustentado e sofrido as mais cruciantes lutas espirituais?!

     O homem parecia pensar na mesma coisa. Agora, que tinha a morta nos seus braços, não mais chorava. O seu olhar estava fixo nas feições da falecida, como se quisesse descobrir, ali, algum segredo.

     — E de pesar, ela adoeceu e morreu! — disse finalmente.

     Seria um erro, procurar consolá-lo. Falei, portanto:

     — Ela morreu na crença, que traz a bem-aventurança. O cristianismo permite que as mulheres tenham parte no reino dos céus e tu lhe quiseste roubar o céu.

     — Não fales assim! As tuas palavras despedaçam-me o coração. Ela está morta e talvez eu seja o culpado disso. Pudesse ela abrir os olhos, só uma vez mais; pudesse falar, uma só vez ainda! Um olhar, uma palavra, era só o que eu queria. Mas, foi-se embora, sem despedida e jamais verei os seus olhos e ouvirei a sua voz. E tenho um sentimento, como se fora eu o seu assassino!

     Conservei-me silencioso. O capitão olhou, examinando, ò rosário.

     — Este não é o cordão de orações do moslemita — disse, depois de algum tempo. — Deveria ter noventa e nove contas para as noventa e nove virtudes de Alá. Este cordão, porém, contém contas pequenas e grandes. Que significará isso?

     Expliquei-lhe.

     — Podes ensinar-me essa saudação à Virgem Maria e as palavras do Padre-nosso?

     Fi-lo. Quando terminei, disse ele, lentamente:

     — “Perdoai-nos as nossas dívidas”! Acreditas que ela tenha perdoado a minha?

     — Acredito, porque ela era cristã e te amava.

     — Isto é o cordão de orações da velha criada, que mandei embora. Guardá-lo-ei, porque estava nas mãos de Hara, quando morreu. E lá em cima está também a cruz da velha. Ela deixou ambas as coisas. Este lugar ficará assim como está e, talvez, venha visitá-lo com freqüência. Mas ninguém deverá vê-lo. Levarei a morta para fora. Vamos.

     Ele não deixou o cadáver junto aos arbustos, e, sim, levou-o um bom trecho adiante, para que o lugar, onde sua mulher tinha morrido, não pudesse ser achado facilmente. Cobriu o rosto da extinta com o véu e depois balbuciou:

     — Viste-lhe o rosto. É um pecado; mas, como ela morreu cristã, posso estar tranqüilo. Outros, porém, não deverão vê-la.

     Esteve sentado, ainda, longo tempo ao lado do cadáver e se acusava a si mesmo. A sua dor era sincera, mas, a pouco e pouco, foi acalmando. Em seguida, veio o alferes, com dois homens, que conduziam a padiola. Halef estava com eles, pois tinha sido o seu guia. O cadáver foi levado para casa, ao quarto da torre, onde eu falara com o capitão. Os meninos tinham nove e onze anos de idade; compreendiam a perda que tinham sofrido. O seu choro dilacerava o coração; tive de sair para não soluçar, também, tocado pela emoção profunda.

     Os moradores das casas, situadas ao redor da torre, tinham voltado; estavam todos na dependência do capitão. Este era abastado e todas as casas lhe pertenciam.

     Por sua ordem, foi-nos servido um almoço; ele próprio, entretanto, não se deixou ver. Mais tarde, mandei dizer-lhe que desejávamos partis e recebi o convite para ir vê-lo. Quando cheguei ao quarto da torre, estava sentado ao lado do cadáver. Via-se-lhe que tinha chorado e estava abatido. Estendeu-me a mão e disse:

     — Queres abandonar-me?

     — Sim, tenho de continuar a viagem.

     — É tão preciso, assim? Não podes ficar hoje comigo? Se Hara ainda vivesse, teria de me falar sobre a crença dos cristãos; mas como, agora, está morta, não há ninguém, além de ti, por quem eu possa conhecê-la. Fica aqui; não me deixes só com os pensamentos, que me martirizam.

     Não tinha tempo a perder; mas tive o sentimento de que não devia desatender a esse pedido e, por isso, acedi ao seu desejo.

     Os companheiros não tinham grandes objeções a fazer e, assim, fiquei sentado, com o capitão, até a noite e ainda mais. A nossa conversação era séria, muito séria. Como leigo, não podia tornar-me um missionário, junto dele; mas o seu coração estava aberto e tentei, tão bem como pude, deitar-lhe a semente, na esperança de que viesse a brotar e frutificar. Permaneci toda a noite a seu lado; na madrugada, prosseguimos viagem.

     Passamos por Barukin; à tarde, por Dubnitza e chegamos, à noite, a Nevrekup, outrora famosa pelos seus minérios de ferro. No outro dia, continuamos. Estávamos numa região célebre, pois foi aqui, nestas montanhas, que, segundo a lenda grega, Orfeu, com o poder dos seus cânticos, deu vida e movimento às árvores e às pedras. Ao meio dia, alcançamos, finalmente, Menlik.

     Compreende-se que não nos dirigimos para o lugar, onde Manach el Barcha devia estar. Procuramos outra pousada, mas encontramos todas as casas ocupadas.

     A feira anual tinha começado, e a afluência de forasteiros era grande. Como Albani tivesse pago ao alugador de cavalos e estivesse, portanto sozinho, achou um cômodo. Nós, porém, com os cavalos, tínhamos maior dificuldade.

     Acabávamos de receber uma recusa de uma hospedagem, quando fomos abordados por um homem, que disse:

     — Procuram, certamente, um lugar para pousar?

     — É verdade — respondi. — Sabes, por acaso, de algum?

     — Para vocês, sim; para outros, não.

     — Por que, só para nós?

     — Porque possuem a koptcha. São, portanto, irmãos. Meu amo os receberá.

     — Quem é o teu amo?

     — É carroceiro e não mora longe daqui. Se me quiserem seguir, levo-os até lá.

     — Guia-nos. Ser-te-emos muito gratos.

     O homem foi na frente e nós o seguimos.

     — Já vi esse homem — observou Halef, a meia voz.

     — Onde?

     — Na estrada da cidade. Estava ali e parecia esperar alguém. Agora, também me recordei de ter passado por ele. Não me chamara a atenção, naturalmente, por acaso. Mais tarde, no entanto, tive de reconhecer que ele só esperara por nós.

     Conduziu-nos a uma casa, que tinha uma entrada tão larga e alta, que, desde logo, pudemos entrar, montados, no pátio. Ali estavam duas carretas de bois, certamente de propriedade do dono da casa. À nossa frente, na parte traseira do pátio, havia uma casa de madeira, que o nosso guia apresentou como sendo a cocheira. Disse que devíamos levar os cavalos, ali para dentro.

     — Não achas que é preciso conversarmos, primeiro, com o teu amo?

     — Por quê?

     — Não sabemos, ainda, se ele está disposto a nos receber.

     — Receberá. Há lugar bastante e pessoas que trazem a koptcha sempre lhe são bem-vindas.

     — Então, também é um irmão?

     — É. Aí vem ele.

     Surgiu, no pátio, um indivíduo baixo e gordo, que não me causou a melhor impressão. Era zarolho. É verdade que não tenho prevenções contra pessoas, com esse defeito físico; mas, esse homem tinha um modo de caminhar, rastejante, traiçoeiro como o de gato e do jumento, por assim dizer, quadrado; sempre me pareceu que tais pessoas não eram de bom caráter.

     — Quem trazes aí? — perguntou ao peão.

     — São amigos; têm a koptcha e não encontraram lugar nas estalagens. Dás licença que fiquem aqui?

     — São bem-vindos. Quanto tempo ficarão aqui?

     — Alguns dias, talvez — respondi. — De bom grado, pagar-te-emos o mesmo que pagaríamos num han.

     — Não fales nisso! Os meus hóspedes nada têm que pagar. Acharão o que precisarem. Levem os cavalos para a cocheira e, depois, venham ter comigo, lá dentro.

     Afastou-se novamente. Pareceu-me que aquele indivíduo tinha trocado um olhar de muita satisfação com o criado.

     A cocheira era comprida e tinha duas divisões. Numa destas, estavam os bois; a outra, estava vazia e foi posta à nossa disposição. O servo subiu por uma escada estreita e disse:

     — Vou buscar feno; ou desejam outro pasto?

     — Traze o que tiveres.

     Quando tinha desaparecido lá em cima, olhei por um buraco existente na parede dos fundos da cocheira e vi um pátio de regular tamanho. Lá estava um homem alto e forte, em posição de espreitar. Parecia escutar o que fazíamos. Nisso, o servo tossiu e o homem respondeu, tossindo também. Depois, deixou o pátio.

     Naturalmente, isso me causou espécie, mas nada deixei perceber, quando o servo voltou. Tratamos dos cavalos e, em seguida, fomos à sala, onde o gordo nos esperava. Estava sentado numa poltrona, diante de um tripé, no qual estava uma bandeja com taças de café. Deu-nos novamente as boas vindas e bateu palmas. Apareceu um rapazote, que encheu as taças.

     Tudo ia tão bem, como se nos estivessem esperando. Também, havia ali uma caixa com fumo. Preparamos os cachimbos e recebemos brasas para acendê-los.

     — Tens um bom cavalo — disse o indivíduo. — Queres vendê-lo?

     — Não.

     — É pena. Teria ficado com ele, imediatamente.

     — Então és um homem rico. Não é qualquer um que pode pagá-lo.

     — Carroceiros têm que ter dinheiro. De onde vens, hoje?

     — De Nevrekup.

     — E para ondes queres ir, daqui?

     — A Seres.

     Não me passou pela idéia dizer-lhe a verdade. Fez uma cara de quem sabe de tudo, mas não quer dizer, e perguntou:

     — Quais são os negócios que fazes, por aqui?

     — Queria comprar cereais, frutas e coisas semelhantes. Há, por aqui, alguém que negocie com isso?

     Não conseguiu abafar um sorriso irônico.

     — Há um mejwedji aqui — respondeu. — Chama-se Glawa e te servirá bem, pois é um irmão.

     Assim, tinha levado a conversa para esse Glawa, em casa de quem Manach el Barcha estava hospedado.

     — Mora longe daqui? — informei-me.

     — Na outra estrada. Conheço-o muito bem. Há menos de meia hora, estive na casa dele.

     — Está ocupado?

     — Está. Hoje, não poderás ir lá.

     — Decerto tem muitos hóspedes em casa?

     — Ainda nenhum; mas espera alguns. Deselim, de Ismilan, o armeiro e dono de um café, também quer vir. Tu o conheces, por acaso?

     — Conheço. É um irmão.

     — Quando o conheceste?

     — Há alguns dias. Também estive na casa dele.

     — Viste, também, o seu irmão?

     Aquele indivíduo queria dar a impressão de indiferença; parecia, entretanto, que visava um determinado objetivo, com tais perguntas. Pediu-me dados individuais e eu lhe dei as informações que julgei oportunas. Quando, depois de algum tempo, observou que eu desejava sair, ofereceu-se com tanta insistência que não pude recusar, não obstante ter preferido sair só com Halef.

     Havia um movimento extraordinário na feira de Menlik; mas um espetáculo desses não pode ser comparado com uma feira alemã. O turco taciturno atravessa em silêncio as fileiras das tendas, ou melhor, das estantes dos vendedores, que estão sentados ao lado das suas mercadorias, sem dizer palavra, e nem lhes ocorre chamar a atenção de algum comprador. E se alguém se aproxima para comprar, o negócio é feito em tanto silêncio, que até parece uma troca de segredos.

     A diferença reside principalmente, na falta do elemento feminino. Vêem-se quase exclusivamente homens e só, aqui e ali, surge uma massa enorme, em forma de balão, de cujo postiguinho reluzem olhos negros. As mulheres dos não-maometanos, efetivamente, não estão obrigadas a um retraimento igual, mas, também, para elas não é distinto entregar-se ao borborinho da multidão, num mercado.

     Carroceis, tendas para espetáculos, jogos e dados não existem. Ao verdadeiro crente moslemita, o jogo de dado é uma infâmia, porque o Alcorão o proibe. Realejos, bandas de música, que dão vida a uma feira européia, não se podia procurar aqui. Mas, sim, existia alguma coisa, que diverte sobremaneira os turcos, isto é, uma barraca com sombrinhas chinesas. Dão a isso o nome de Kara goez ojunu.

     A essa barraca, o povo afluía em massa, saindo e entrando: ao entrar, com a expressão de intensa expectativa; ao sair, com um sorriso de grande satisfação.

     — Já viste, alguma vez, um Kara goez? — perguntou o carroceiro.

     — Não.

     — Como é possível? Não há nada mais lindo do que essas lanternas mágicas. Vamos entrar!

     Parecia impossível conseguir lugar; mas, com a ajuda dos cotovelos, que pús, impiedosamente, em atividade, chegamos até o limite máximo do que era possível; estávamos, assim, no meio de uma multidão, que, em expectativa silenciosa, aguardava o divertimento, por que ansiava.

     Comecei a me sentir mal. Os orientais dormem com as suas vestes, que, consequentemente, tiram do corpo, raríssimas vezes. Nem têm idéia de uma mudança regular de roupa. Por isso, não é milagre, se a sua presença pode ser notada, não só com os olhos, como também com o nariz. E, sobretudo, esse povo comprimido, terrivelmente! O poeta do “Inferno” fantasiou coisas terríveis, mas, contudo, deixou desapercebida uma das maiores penas — uma pobre alma, exprimida entre orientais, para esperar sombrinhas chinesas, impossibilitado de mexer os braços, para tapar o nariz. Foi uma sorte, eu não saber, naquele tempo, coisa alguma sobre a existência da infinidade de tipos de bacilos existentes num ambiente fechado e com muita gente. Que oceano de bacilos não nos envolvia ali!

     Afinal, ouviu-se um assobio cortante. O espetáculo começou. O que vi, era obceno no mais alto grau, e gargalhadas trovejantes recompensavam o trabalho dos seus organizadores, quando em geral, os orientais entendem que rir alto é sinal de estupidez. Quis sair imediatamente, mas não pude. Estava tão firmemente enterrado na multidão, que não podia mexer uma articulação e, assim, fui obrigado a agüentar até que um segundo assobio deu a entender ao público que já tinha visto mais do que bastante por um quarto de uma piastra.

     Agora, a geléia de gente pôs-se em movimento e começou a se desfazer em pessoas. Ao chegar lá fora, tomei fôlego, profundamente, antes de qualquer outra coisa. Enjôo de mar é um divertimento, comparado com aquilo a que eu acabara de resistir.

     — Vamos entrar novamente? — perguntou o carroceiro.

     Halef estendeu-lhe os dez dedos, num gesto de recusa decisiva, e eu não respondi.

     Durante o passeio, observei que o carroceiro estava demasiadamente interessado em não se perder de nós; também procurava, ansiado, evitar que se estabelecesse uma palestra entre eu e outras pessoas. Falei, por vezes, a pessoas que nos encontravam; logo o homem nos interrompia e fazia por me afastar dali. Isso, fê-lo suspeito. Comecei a perceber que ele tinha qualquer idéia, a meu respeito.

     — Não passaremos pela casa do mijwedji Glawa? — perguntei-lhe.

     — Não. Por quê?

     — Queria saber onde ele mora, pois preciso procurá-lo, amanhã. Queres mostrar a sua residência?

     — Sim.

     — O mijwedji é sérvio?

     — Por que pensas isso?

     — Porque o seu nome é sérvio.

     — Adivinhaste. Segue-me!

     Depois de algum tempo, mostrou-me uma casa, que disse ser a do negociante de frutas e eu a observei bem. Era já crepúsculo, quando voltamos para casa. Ouvimos ali, que o servo havia levado uma queda e estava tão mal que tinha sido necessário chamar o médico. O carroceiro foi procurar o seu criado e nós nos dirigimos à cocheira.

     Quando lá cheguei, vi que os cavalos não tinham guarda. Osko e Omar, também, tinham saído. Rih voltou-me a cabeça, relinchou e soltou uns bufidos, como jamais tinha feito. Acariciei-lhe a cabeça; habilmente, o cavalo, depois disso, encostava as suas ventas ao meu ombro e, em seguida, me beijava na face — porque um cavalo também beija — mas dessa vez, deixou de fazê-lo. Continuou a bufar e mostrou uma agitação incomum. Examinei-o. Já era quase escuro na cocheira, mas notei que o animal só pisava com a pata traseira direita. Levantei a pata esquerda e a apalpei. Rih soltou novos bufidos e mexeu com a perna, como se estivesse sentindo dor.

     — Está manco — disse Halef. — Era o que faltava! onde teria sido ferido?

     — Vamos ver já! Levemo-lo para o pátio; ali ainda está claro. Meu cavalo realmente manquejava, de tal modo que me admirei. Até o momento em que eu apeara, não se lhe tinha observado a mínima coisa. De onde, portanto, um ferimento repentino? Esfreguei a perna pisada, mas o cavalo não sentia dor ali. O mal estava no casco. Levantei a pata e a examinei, mas nada pude ver. Comecei a tatear a ponta do dedo, mas, durante muito tempo, sem resultado. Finalmente, o cavalo teve um estremecimento e eu notei uma pequena elevação debaixo dos pêlos. Afastei-os e vi a cabeça de um alfinete, que fora metido na carne do animal, ao lado da ferradura.

     — Aqui, Halef, um alfinete!

     — Alá! Como é possível? Onde teria pisado nisso?

     — Pisado? Não era possível ter pisado de modo que o alfinete entrasse na carne. Olha aqui!

     Viu o alfinete e, no mesmo instante, estava com o chicote na mão. Queria afastar-se; mas, segurei-o.

     — Alto! Não faças tolice!

     — Tolice? Quem sabe é tolice chicotear a pessoa que maltrata, assim, o animal, para estropeá-lo?

     — Espera um pouco! Antes de tudo, temos que tirar o alfinete. Segura a perna!

     Rih notou que eu ia socorrê-lo. Podia utilizar-me só da faca, para tirar o alfinete. Certamente, o animal sentia dores com isso, mas ficou bem quieto. Quando tinha tirado o alfinete, Halef pegou-o e disse:

     — Dá-me o alfinete! Quero descobrir o malvado que fêz isso, para lhe meter no... na..., dize-me, sídi, onde doa mais!

     Rih pôde pisar novamente no chão. Eu não estava menos furioso do que Halef, mas a coisa precisava ser examinada. Para que fim fora feito aquilo?

     — Eu sei — disse Halef.

     — Bem, por quê?

     — Para te induzir a vender o cavalo.

     — Creio que não. Os ciganos costumam empregar esse meio. Se a gente não acha o alfinete, julga-se que o animal não tem cura e procura se desfazer dele. Mas, aqui deve haver outra intenção.

     — Ele te perguntou se querias vender o cavalo.

     — Pela minha resposta, verificou certamente que isso nem me passava pela idéia. E se realmente acreditou que pudesse me induzir à venda, por um processo tão infame, enganou-se redondamente. Não posso fugir a uma suspeita, na verdade, incerta ainda, mas que muito bem se justifica. Por que permaneceu esse carroceiro sempre a meu lado? Por que procurou evitar qualquer palestra minha, com outras pessoas? Ao mesmo tempo, tenho de pensar nos gemidos que ouvimos, ao chegar. O servo está ferido, segundo diz o seu amo. Hum!

     — Hum! — fêz, também, Halef, pensativo. — Sídi, ocorre-me uma idéia.

     — Que é?

     — Pensei sobre o motivo que se poderia ter para estropear um cavalo, se não fosse para obrigar o seu dono a vendê-lo.

     — Achaste algum motivo?

     — Sim. Há só um: era para o animal não poder andar; quer-se impedir o cavaleiro de avançar depressa.

     — Muito bem. Pensei nisso, também. E, se alguém deve ser obrigado a andar devagar, quais as intenções que tem aquele que quer isso?

     — Alcançá-lo mais depressa ou passar por ele.

     — Sim. Não estou longe de acreditar que nos queiram perseguir, depois da nossa partida.

     — Que pode lucrar, com isso, este carroceiro? Nada lhe fizemos. É nosso hospedeiro; tem que nos proteger, ao invés de nos prejudicar.

     — A sua hospitalidade foi-nos vantajosa, porque não achamos lugar em parte alguma; mas o seu comportamento causa-me estranheza. Se o criado, efetivamente, nos esperou na estrada, sabia-se já da nossa chegada. Uma informação dessas só poderia ter vindo de Ismilan. Desde então, perdemos algum tempo e é bem possível que algum mensageiro tenha chegado, na nossa frente. Neste caso...

     — Olha, sídi! — interrompeu-me Halef.

     Leváramos Rih novamente para a cocheira, onde ainda nos encontrávamos. Já estava bem escuro. Também, lá fora, começava a escurecer, mas havia, ainda, tanta claridade que se podia ver todo o pátio. À frente, na entrada, estava uma mulher velha. Olhou em redor de si, como se tivesse algum mistério; depois, atravessou rapidamente o pátio e entrou pela porta da cocheira.

     — Esgar, estás aí? — perguntou.

     — Quem é Esgar? — respondi.

     — O sérvio.

     — Não está aqui!

     — Não? Aqui está escuro. Quem és?

     — Um hóspede do carroceiro.

     A mulher entrou um pouco mais na cocheira e disse, precipitadamente:

     — Fala! És um cristão?

     — Sou.

     — Vens de Ismilan?

     — Venho.

     — Senhor, foge! Abandona esta casa e a cidade, mas depressa, hoje à noite, ainda.

     — Por quê?

     — Estás ameaçado por um grande perigo, que atinge a ti e aos teus companheiros.

     — Por parte de quem? A que perigo te referes?

     — Por parte de Glawa, o negociante de frutas. Mas, em que consiste este perigo, não sei nada. Eles querem combinar, primeiro. Devo dizer ao teu hospedeiro, que, daqui a uma hora, quando estiver bem escuro, vá à casa vizinha.

     — Vizinha? Quem mora aí?

     — Glawa, meu amo.

     — Disseste “vizinha”? O negociante de frutas não mora nas proximidades.

     — Ocultaram-te a residência dele? É uma prova de que tenho razão de te avisar. Glawa mora, de fato, aqui ao lado. O seu pátio é pegado a esta estrebaria.

     — Ah, sim! Atrás destas tábuas é o pátio?

     — Sim, foge! Não tenho tempo. Vim, sorrateiramente, até aqui e acreditei encontrar um de vocês; mas ninguém me deve ver. Tenho que ir imediatamente ao carroceiro.

     Queria afastar-se. Segurei-a pelo braço e pedi:

     — Só um momentinho. Que estamos em perigo, já tínhamos notado. A desconfiança que, apenas, se esboçara, agora é certeza. Mas, por que motivo tu te metes em perigo, para nos avisar?

     — Vieram da feira. Passaram pela nossa casa. Eles os viram e um' deles te chamou de djaur, um cachorro cristão. Mas eu, também, sou cristã e o meu coração me disse que devia avisar-te. Tens a minha crença; rezas para a Santa Virgem Marryam, como eu. Sou tua irmã; não devo permitir que meu irmão pereça.

     — O bom Deus te pagará! Mas, dize: quem é essa pessoa de quem falas?

     — São dois. Chegaram, hoje, pela manhã, de Ismilan. Não conheça os seus nomes. Ao mais velho chamam de mendigo, mas isso não é o nome. Tem um aspecto feroz; creio que o vi alguma vez. Certamente esteve em qualquer ocasião, na casa do meu antigo amo, lá na torre, próximo de Barukin.

     Virou-se para sair; mas, as suas últimas palavras induziram-me a re-tê-la, ainda.

     — Pára! — disse. — Fizeste, lá, por entre arbustos, um altar, com a imagem do Crucificado? Fizeste-o com a ajuda da senhora?

     — Sim. De onde sabes?

     — Venho de lá. Fui hóspede do teu antigo chefe. Encontrei a senhora diante do altar, para onde tinha ido a fim de morrer. Estava morta.

     — Morta? Meus Deus! É verdade?

     — É. Se tivesses tempo, poderia contar-te tudo. O teu antigo amo falou a teu respeito.

     — Oh — disse, com insistência — tens de contar tudo. Não posso ficar nem um instante mais aqui; mas, diante disso, arriscarei tudo. Que me matem, se me descobrirem. Voltarei outra vez, mas não para aqui. Permanecerás, ainda, algum tempo, neste estábulo?

     — Se quiseres.

     — Sim. Virei para junto desta parede; poderemos conversar aí, tu aqui, e eu, lá fora.

     — Poderás entrar. Estas tábuas não são empecilho muito grande. Posso tirar, facilmente, uma ou duas delas, bastando arrancar os pregos.

     — Notarão mais tarde.

     — Não; pregarei novamente.

     — Bem. A ninguém dirás que estive contigo. Irei, agora, e, quando estiver tão escuro, que não me possam ver, voltarei.

     Em seguida, saiu, apressada.

     — Hasa nassieb — Isto é a Providência Divina! — disse Halef.

     E tinha razão. Justamente esta velha criada, esta cristã fiel, embora guardando segredo da sua crença, encontrava-se lá na casa do vendedor de frutas! O maometano conhece, efetivamente, a palavra acaso, mas designa com ela coisas que os de outras religiões julgam possíveis e ele nunca. As palavras taktir, kismet, kader (1), que têm significados diametralmente opostos, são por ele consideradas sagradas.

     — Acreditas que seja Saban, o mendigo de quem ela falou? — perguntou o pequeno hadji.

     — Muito provável.

     — Mas disseste que o ferreiro o tinha levado consigo!

     — De qualquer forma, terá conseguido evadir-se. Naquela noite, não saiu ileso; mas, contudo, não há de ter sido proeza incomum para ele vir a Menlik.

     — Quem será o outro, sídi?

     — Tenho o pressentimento de que seja o nosso hospedeiro de Ismilan, o irmão do kawehdji Deselim, que quebrou o pescoço. O mendigo contou-lhe tudo; agora, perseguem-nos para se vingar.

     — Há de lhes ser difícil! — comentou o pequeno Halef.

     — Antes de mais nada, devemos procurar informar-nos sobre o que eles resolveram.

     __________________

     (1) Providência Divina, disposição do destino.

 

Com certeza, a velha criada prestar-nos-á todo o seu concurso.

     — Essa velha, boa flor da quaresma! Dar-lhe-ei um presente. Que lhe devo dar! sídi? Achas que, talvez, sirvam algumas moedas de prata, destas que estavam na bolsa para mim?

     — O melhor presente será, decerto, dinheiro; ela é pobre, não há dúvida. Mas, fica com o teu, Halef. Providenciarei sobre isso.

     — Sabia disso — disse Halef, rindo-se à socapa. — Tenho só prata, mas tu tens ouro. Faço o presente da tua bolsa. És um homem nobre e pagas aquilo que o teu amigo e protetor dá de presente aos outros. Mas, não lhe dês senão uma das tuas moedas de ouro. A nossa viagem, ainda, irá longe e não podemos saber de quanto vamos precisar.

     — Estás ficando muito econômico! Lembra-te, porém, que essa mulher é a nossa salvadora.

     — Não é, não. Ela nos avisou, mas, já sabíamos, antes disso, que estávamos em perigo. Teríamos usado precauções. Mas, dize, sídi: por que vamos esperar o que eles resolvem fazer contra nós? Vamos lá ter com esse carroceiro traidor; botar-lhe-ei alguns socos no nariz e depois procuramos outro hospedeiro.

     — Não é possível. Temos que agarrar Manach el Barcha e Barud el Amasat, que estão aqui. Nem devem imaginar que sabemos de alguma coisa. Preciso cientificar-me por que, finalmente, vieram a Menlik. Se queres dar serviço aos teu punhos, não faltará oportunidade, mais tarde.

     — Sim, queres esperar até que te denunciem como assassino. Então, serás enforcado e eu ficarei debaixo do teu cadáver, chorando lágrimas de leite e espírito. É verdade que sou teu protetor, mas não deves exigir demais de mim.

     — O grande perigo de que falas seria aumentado, se agredíssemos o carroceiro. De resto, agora não é ocasião para tagarelices inúteis. Não devemos deixar que o hospedeiro perceba o que sabemos. Se ficarmos aqui, na cocheira, ele poderá desconfiar facilmente. E como pretendo encontrar-me aqui, com a criada, preciso ir ter com ele, pelo menos, por pouco tempo. Antes disso, porém, vamos examinar essas tábuas.

     A podridão tinha adiantado o serviço. Não se precisava de esforço, para afrouxar algumas tábuas; em seguida, entrei na casa.

     O carroceiro estava na sala, com sua mulher, que se afastou, logo que entrei. Ambos, seguramente, estavam entretidos com algo muito sério; podia concluir isso das atitudes.

     — Alá mandou-te preocupações? — perguntei-lhe. — Elas estão escritas na tua face.

     — Sim, senhor, tenho preocupações — disse. — O meu servo está banhado em sangue, que lhe sai da boca e do nariz.

     — Leva-me para junto dele.

     — És médico? Já esteve um, aqui; mas o doente sente tantas dores, que também tive de mandar chamar o alquimista. Este saiu, agora mesmo.

     — Que pensa ele sobre a doença?

     — Conheceu-a imediatamente; é mais inteligente do que o outro. Todas as doenças, todas as curas e remédios não são segredos para ele. Disse que o doente tinha “um tumor no estômago, proveniente de laranjas azedas que ingeriu. O tumor já se desenvolveu até a pele. O fato de o servo ter levado uma queda ou pancada, somente contribuiu para revelar essa doença interior. O alquimista vai mandar um tônico para o estômago e, mais tarde, numa operação, cortar fora o carnegão.

     — Dará resultado?

     — Oh, ele tem uma faca, com a qual parte o osso mais duro e o estômago é muito macio.

     — Sim, parece ser um grande médico; mas, apesar disso, deixa-me ver o doente.

     Acedeu. O enfermo estava deitado, gemendo sobre um velho cobertor; tinha perdido muito sangue. Como trazia as calças e o casaco sobre o corpo nu, era fácil chegar à ferida. Berrou alto, quando toquei nela.

     — Entendes de tumores no estômago? — perguntou o hospedeiro.

     — Sim; mas, neste caso, não se trata de semelhante doença.

     — De que, então? O que é que ele tem?

     — Trata-se de uma perigosa doença de ferradura.

     Olhou me, bestificado.

     — Doença de ferradura? — interrogou. — Nunca ouvi falar nessa doença.

     — Olha aqui! Este inchaço parece ter sido provocado por um coice de cavalo. O lugar ensangüentado tem a forma de uma ferradura. Esta enfermidade tem a particularidade de quebrar as costelas e só ataca aquelas pessoas que não aprenderam a lidar com um alfinete.

     O hospedeiro não sabia bem, como devia encarar as minhas explicações. Socorreu-se de uma pergunta:

     — Acreditas que foram quebradas as costelas?

     — Acredito. Também foi atingido o pulmão, conforme prova este sangue. O teu alquimista é um idiota; o primeiro médico era mais inteligente. Se não chamares o melhor médico que existe em Menlik, este homem morrerá. Mas, se escapar com vida, deve, de futuro, ter mais cuidado com cavalos desconhecidos.

     — Mas, ele não tocou em cavalo estranho!

     — Neste caso, foi este que tocou no servo e, de tal modo, que o meu conselho será bem observado.

     — Sabes algum remédio para curá-lo?

     — Sei; mas, para essa cura, precisa-se de muito tempo. Chama o médico e, até que este venha, põe compressas de pano bem molhado sobre o peito do doente; é o melhor remédio.

     — Temos um médico militar muito inteligente, aqui; mas, devido à feira, talvez não tenha tempo. Não achas que devo dar ao doente uma tintura de ruibarbo e colocar um emplastro vesicatório?

     — Toma, tu mesmo, a tintura de ruibarbo, misturando o emplastro. Nenhuma das duas coisas pode te fazer mal; para o doente é muito forte.

     — As tuas palavras são ásperas, senhor! Irei já, a fim de chamar o médico militar.

     — Quando voltarás?

     — Não sei bem certo. Antes, tenho de ir à casa de um amigo, que não me deixará sair logo. Quando voltar, poderemos jantar. Ou já tens fome?

     — Não. A tua alma está cheia de bondade: posso, porém, esperar até o teu regresso.

     Afastou-se, de fato, imediatamente. Sabia que logo iria à casa do negociante de frutas. Era-me agradável, pois podia, assim, ir conversar com a criada, sem ter de recear uma possível interrupção.

     Sabia, agora, que o criado tinha fincado o alfinete no casco de Rih e levara deste um coice. Não precisava castigar mais o homem. Tive pena dele, apesar da raiva que me causara o seu ato perverso.

     Ao descer, encontrei Osko e Omar, que voltavam do passeio. Aquele tomou-me pelo braço e disse:

     — Efêndi, estão nos enganando! Este carroceiro é um mentiroso, um homem perigoso.

     — Como assim?

     — O vendedor de frutas mora logo aqui; perguntamos por ele. E sabes quem está na casa dele?

     — Bem, quem é?

     — Aquele que nos deu hospedagem em Ismilan. Estava na porta da casa.

     — Ele viu vocês?

     — Viu. Recuou imediatamente, para se esconder. Pensou, decerto, que ainda não o havíamos visto. Que faremos?

     — Talvez tenhamos de deixar esta cidade, ainda durante a noite. Aqui está dinheiro. Comprem frutas e algumas aves, mas de modo a que ninguém veja, e dêem tudo a Halef. Mas, não devem demorar!

     Ambos saíram e eu fui à estrebaria. Agora estava escuro e não precisei esperar muito até que batessem na parede. Afastei as tábuas, que já estavam frouxas embaixo e só se mantinham dependuradas nos pregos de cima, e me esgueirei para o pátio vizinho.

     — Alá! Alá! Vem para fora — disse a velha.

     — Sim; assim é melhor. Se formos interrompidos, escaparei logo. Não há perigo. O carroceiro já está na tua casa?

     — Não; a hora ainda não passou. Mas, senhor, querias falar sobre a minha dona.

     Na verdade, eu tinha coisa mais necessária a fazer, mas ela merecia que atendesse ao seu desejo. Dei-lhe informações tão minuciosas, quanto permitiam as circunstâncias do momento. A notícia da morte da sua ama, parecia despedaçar-lhe o coração. Chorava, a meia voz, esquecida de si mesma. Depois, contou o seu passado, como fora despedida pelo seu patrão daquele tempo e, após diversas viscissitudes, como chegara à casa do negociante de frutas de Menlik.

     Isso lhe fazia bem e, por isso, escutei de boa vontade, embora lutasse com a minha própria impaciência. Infelizmente, tive de interromper a narração daquela boa alma e lhe chamar a atenção para o presente.

     — Oh, Isa, Jussuf, Marryam! — disse ela, então. — Estou pensando só em mim, mas não em ti. Posso prestar-te algum serviço? De boa vontade o farei.

     — Podes, sim. Ouviste, por acaso, pronunciar o nome Manach el Barcha ou Barud el Amasat?

     — Sim. Ambos estiveram aqui, com mais uma pessoa até hoje.

     — Até hoje? Onde estão, agora?

     — Foram embora.

     — Para onde?

     — Não sei. Vieram os dois homens, de quem te falei. Falaram em segredo e, depois, os três partiram. Eles não sabiam bem, quando e de onde tu virias. Depois, foi chamado o carroceiro. O seu servo foi colocado na estrada de Nevrekup e o do negociante de frutas na de Vessme e Wlakawitza. Assim, não podias escapar. Ouvi dizer que eras um cristão e que se queriam vingar de ti. Queriam que ficasses na casa do carroceiro e, em seguida, resolveriam o que fazer. Soube disso, a pouco e pouco e então resolvi te avisar. Agora, sou muito feliz, por tê-lo feito, e queria que pudesse, ainda, fazer muita coisa por ti.

     — Agradeço-te! Não sei quanto tempo ficarei aqui e se, ainda, poderei ver-te. Permite que te dê uma lembrança do homem desconhecido, a quem dedicaste a tua amizade.

     Entreguei nas suas mãos o presente escolhido previamente. Nada disse. Estava escuro e ela, decerto, queria primeiro apalpar o objeto. Depois, exclamou em voz quase alta demais:

     — Oh, Deus! Um rosário! Oh, senhor, como és bondoso! Era a maior aspiração da minha vida. Um rosário dos moslemitas eu não queria e um cristão é tão raro e tão caro. Em todas as orações, pensarei em ti. Mas, que devo fazer, hoje, para te servir?

     O presente tinha provocado, nela, uma espécie de entusiasmo. Estava na disposição até de se arriscar a qualquer perigo, se eu tivesse solicitado.

     — Achas que é impossível saber o que resolvem? — perguntei.

     — Será difícil. Tive de levar redes e vinho para a sacada. Lá, eles terão a sua conferência e será difícil espreitá-los.

     Com a palavra “sacada”, ela decerto queria designar o sótão. Aqueles canalhas usavam de grande cautela.

     — Tomam vinho, eles, os adeptos do Profeta?

     — Oh, tomam seguidamente, até não ter mais juízo; somente ninguém deve saber disso. O quartinho está bem escondido. Tem que se subir por uma escada velha. Queria escutar, sorrateiramente, mas, lá de cima é difícil fugir. Se a porta fosse aberta, eu estaria perdida. O patrão proibiu que se subisse, hoje, para aquele quarto.

     — Nem deves pensar em te arriscar tanto assim! E contudo, eu desejava saber o que conversam.

     — Agora sei o que farei. Irei espreitá-los! Deito-me sobre o telhado do quartinho.

     — Como pensas fazer isso?

     — Lá em cima existe um pombal. Meto-me ali dentro e ouvirei tudo. Era divertido — um pombal!

     — Pode se entrar nesse pombal? — perguntei.

     — Pode. Há muitos anos, não tem pombas. A porta de entrada é tão grande, que uma pessoa consegue entrar facilmente.

     — De que é o chão?

     — É de varas de madeira, colocadas uma ao lado da outra.

     — Estão seguras?

     — Muito seguras; existem, entretanto, frestas e se pode olhar perfeitamente para dentro do quartinho e ouvir tudo. Irei lá em cima e depois virei trazer as informações.

     — Hum! Não queria permitir que te arriscasses tanto e, além disso, é. .

     — Senhor, — atalhou-me — faço-o; faço-o de boa vontade.

     — Creio em ti; mas, poderia ser dito muita coisa, que não compreendesses bem. A tua informação, assim, poderia conduzir-me a engano, ao invés de me ser útil. Se eu pudesse ir pessoalmente lá para cima, seria muito melhor.

     — Está muito sujo, lá em cima.

     — Isso não me pode deter. A questão é saber se posso chegar lá, com segurança, sem ser pressentido.

     — Podes, facilmente.

     — Como assim?

     — Está escuro, senão poderias enxergar uma escada, junto à casa. Subindo por ela, chega-se ao lugar onde o meu amo deposita a palha, com que negocia. Mais uma escada, e chegarás ao lugar onde se encontra o feno. Passando, depois, por baixo do telhado, ficarás sob o teto do edifício principal e bem na porta do pombal. Entra neste, fecha a porta atrás de ti, e ninguém imaginará que haja alguma pessoa ali dentro. À esquerda dessa porta, desce uma escada para dentro do prédio.

     — Achas que eu poderia experimentar?

     — Sim; mas preciso conduzir-te até lá.

     — Bem. Para descer acharei jeito sozinho.

     — Quando os homens descerem, ficarei sabendo que, também, já saíste. Depois, virei novamente aqui. Talvez possa te ser útil, ainda. Queres que te leve lá para cima? Já deve estar na hora.

     — Sim; mas espera um momento.

     Arrastei-me novamente para a cocheira. Topei, aí, com Halef, que não se tinha afastado.

     — Sídi, ouvi tudo — disse.

     — Bem; então não preciso dizer-te coisa alguma. Osko e Omar ainda não chegaram?

     — Não.

     — Mandei que comprassem mantimentos. Não sei como terminará esta aventura. Conserva os cavalos ensilhados, como se quiséssemos partir imediatamente; mas é preciso que guardes a maior reserva.

     — Receias algum perigo?

     — Não; mas é preciso que se esteja preparado para tudo.

     — Então, subirei contigo.

     — É impossível.

     — Sídi, há perigo e sou teu protetor.

     — Tu me proteges melhor, se executares as minhas ordens.

     — Então, leva, pelo menos, as tuas armas.

     — Armas, para ir a um pombal? Tolice!

     — Vejo que queres fazer a tua desgraça. Mas, vigiarei por ti.

     — Vigia, mas não te afastes dos cavalos. Tenho a faca e dois revólveres; é quanto basta.

     Em seguida, arrastei-me outra vez para o pátio. A criada pegou-me pela mão e me levou à escada. Sem me dizer uma palavra, subiu na frente e eu a segui. Ao chegar lá em cima, notei palha amontoada. A mulher puxou-me alguns passos adiante, até uma segunda escada, menos alta, Quando tínhamos subido esta, encontramo-nos sobre os barrotes do teto da casa vizinha. Naquele lugar, a velha pegou-me novamente pela mão e me conduziu mais para diante, sempre por baixo da cumieira. Eu era mais alto do que ela e bati, por várias vezes, com a cabeça contra os caibros e barrotes. É verdade que ela dizia sempre: “aqui há um barrote”. Mas, diza-o sempre quando eu já tinha travado conhecimento com o mesmo.

     Finalmente — brrr! — havia uma descida tão inclinada que perdemos o equilíbrio e escorregamos para baixo, numa distância de alguns centímetros. Felizmente nada aconteceu, pois o campo de patinação era constituído por feno.

     Levantamo-nos e permanecemos quietos durante alguns momentos, para verificarmos se a nossa queda havia sido ouvida. Como tudo permanecesse em silêncio, ela me disse, baixinho:

     — Aqui, bem na nossa frente, está o pombal e, à esquerda, a escada. Não desço por aqui, mas volto pelo mesmo caminho por onde vim.

     — Será que os homens já estão aí?

     — Não; senão os ouviríamos.

     — Foi muito bom, porque, do contrário, teriam ouvido o teu grito.

     — Olha, aqui; abri a porta. Vou-me; toma cuidado, para que não te aconteça algum desastre.

     Ouvi que ela subia pelo feno; depois, tudo ficou em silêncio e pavorosamente escuro.

     Numa mata-virgem americana, durante a noite, não me sentiria tão angustiado, como neste canto desconhecido, escuro e apertado. À direita estava a parede; à esquerda, a escada. Eu estava num lugarzinho de, apenas, alguns pés quadrados de superfície. Atrás de mim, o chão de feno e na frente uma parede estreita de madeira, com uma portinha aberta, tão pequena que mal me podia esgueirar por ela.

     Tudo quanto me cercava era facilmente inflamável; mas era preciso ver, também, onde me encontrava. Por isso, tomei um fósforo e acendi. Olhei rapidamente em redor de mim, fora do pombal, e depois dentro deste. Ah, a velha tinha muita razão. Havia sujeira em quantidade; mas, era necessário suportar. Felizmente, o gabinete era tão espaçoso, que me deixava bastante lugar. Ali à direita, parecia faltar um pedaço de chão; entretanto, a metade esquerda aparentava ser bem resistente. Rastejei para dentro e puxei a porta. Ainda não me havia instalado confortàvelmente, quando comecei a sentir os efeitos do cheiro reinante. Notei que ninguém seria capaz de ficar, ali dentro, durante dois minutos, sem espirrar toda uma fuga de Sebastião Bach. Era altamente perigoso. Procurei com a mão, até encontrar uma corda. Puxei nela e, realmente, abriram-se duas fendas e começou a entrar tanto ar, quanto justamente precisava para respirar.

     Esse luxo tornou-se mais exigente. Gatinhei novamente para fora e trouxe uma quantidade de feno, para ter, pelo menos, um encosto mais macio para os cotovelos. Agora, tinha tanto conforto, como era possível neste lugar.

     Naquele momento, seria agradável se as pessoas esperadas chegassem; mas, a minha paciência foi submetida, infelizmente, a uma prova bem dura. Percebi que, sem alguns preparativos, não se podia permanecer naquele lugar por muito tempo. O ar fresco não bastava. Cobri, novamente, a porta. O ar que provinha do feno era melhor, contudo, do que o do estêrco de pombas, cujo aroma me envolvia. Para evitar os espirros, tirei o lenço do bolso e o amarrei, dobrado, sobre o nariz e conservei a boca o mais próximo possível das fendas abertas.

     Por aí, as aves do ramo de oliveira tinham entrado e saído. Um golpe de vista convenceu-me de que me encontrava debaixo da cumieira. O ruído e as luzes da feira chegavam até onde me achava. Ao mesmo tempo, os pensamentos iam e vinham. O célebre emir hadji Kara Ben Nemsi efêndi do meu pequeno Halef, no pombal! Um viajante do mundo metido neste pombal? Sim, é bem a história contada pelo poeta, sobre o alfaiate, que devia percorrer o mundo, mas teve tanto medo que sua mãe foi obrigada a escondê-lo no pombal.

     Tive de pensar nessa balada romântica de heroísmo. Ri-me, alegre, para mim mesmo; isso causou tremuras no corpo, comunicando-se ao assoalho — este estalou.

     Bem pensado, isso deveria me deixar muito desconfiado; mas, as madeiras tinham suportado, pouco antes, movimentos mais fortes e agüentaram; por isso, não havia motivos para receios. Mesmo que a resistência do pombal não tivesse sido calculada para milênios, nada poderia acontecer, pois eu me achava bem quieto.

     Agüentei, assim, cerca de uma hora e a minha situação tornava-se cada vez mais incômoda. Como estava com o nariz amarrado, respirava pela boca. O pó áspero, irritante forçou-me a tossir. Não me era possível, também, tapar a boca!

     Finalmente ressoaram vozes e passos, por baixo de mim. A porta foi aberta; fêz-se luz e entraram — dois, quatro, seis homens, que se sentaram nos colchões de palha, estendidos pelo chão.

     Agora que a luz, lá debaixo, penetrava pelas frestas do meu assoalho de varas, este não me pareceu mais inspirar confiança. Havia buracos apreciáveis e assustadores. “Muito seguras” dissera a velha. Não achei isso, de modo nenhum.

     A chuva, penetrando pelo telhado seriamente estragado, molhara o guano e o tornara uma crosta pegajosa. Deveria ser esse o motivo, por que o estrume não caíra, há muito, pelas frestas.

     Agora, porém, eu me tinha mexido, sobre essa crosta e o resultado podia ser fatal para mim. Avistei, com terror, a camada branco-cinza que se formara, lá embaixo, sobre todos os objetos, em alguns até a espessura de um dedo; e, além disso, continuava peneirando, ininterruptamente, uma chuva de pó.

     Isso foi notado, perfeitamente, quando os homens se sentaram.

     Aquele que trazia a luz na mão, um homem comprido e magro como um caniço, naturalmente o hospedeiro, olhou furioso para cima e disse:

     — Djehenneme gitme kedije; onu õduerim — Maldição sobre os gatos. Mato-os!

     Pode-se imaginar que não me mexi; mal tinha coragem de respirar.

     Ao lado do dono da casa, estava o meu amável hospedeiro, o carroceiro; seguiam-se Saban, o mendigo, e o irmão de Deselim, de Ismilan. O mendigo tinha um braço amarrado e, na testa, um valente galo. Parecia que tinha fugido ao ferreiro, só depois de uma luta. Os outros dois homens, eu ainda não vira. Levavam a koptcha; eram, portanto, correligionários e tinham fisionomias, que se designariam melhor com a expressão “cara de poucos amigos”. Um deles trazia, além das armas comuns, alguma coisa, amarrada à cintura, a que me senti inclinado a considerar uma funda. Naquele tempo, eu não sabia que essa arma ainda hoje é usada, naquelas regiões.

     Esses dois homens mantinham-se calados; só os outros falavam.

     O mendigo contou o episódio da choupana e informou, depois, sobre o nosso encontro noturno e como caíra nas minhas e nas mãos do ferreiro. Como prisioneiro, amarrado ao cavalo, teve de se deixar levar sem resistência, até chegar, na madrugada, a uma aldeia, onde foram à casa de um amigo do ferreiro. Lá, porém, estava de visita um amigo do mendigo, que o desamarrou e assim lhe foi possível fugir, no mesmo cavalo. O ferreiro perseguira-o e o alcançara. Tinha havido luta, corpo a corpo, durante a qual o mendigo apanhara alguns golpes muito rudes; não obstante, conseguira escapulir. Naturalmente, continuara a toda pressa a sua viagem para Ismilan e aí soubera, na estalagem, que eu tinha estado ali e já partira.

     Quando o irmão de Deselim soube que eu era o culpado de ter o seu irmão quebrado o pescoço, montou imediatamente, para perseguir-me, junto com o mendigo. Sabia que eu iria chegar na casa do negociante de frutas de Menlik e, portanto, aí me acharia.

     Em caminho, encontraram-se com o guia de Albani, que fora despachado, dele sabendo o resto. Souberam que tínhamos tomado outro caminho e se apressaram para chegar, antes de nós, a Menlik, o que conseguiram, pois trocaram o cavalo do mendigo, por outro melhor.

     Encontraram, em Menlik, Barud el Amasat, Manach el Barcha e o guarda de presos, que, com eles, fugira, e lhes comunicaram tudo. Os três — assim advertidos — tinham partido imediatamente, para não serem surpreendidos por nós, mas exigiram o compromisso formal de que seríamos impedidos de prosseguir no seu encalço.

     Nas duas saídas pelo leste da cidade, nos haviam esperado, para levar-nos a alojar na casa do carroceiro. O resto deveria ser combinado.

     — Compreende-se, por si mesmo — disse o negociante de frutas — que esses cães não devem alcançar os nossos amigos.

     — Não devem alcançar? — interveio o ismilanense. — Queres impedir só isso? Não deve acontecer mais nada? Esse desconhecido não matou o meu irmão? Então, não me enganou e extorquiu os nossos segredos? Não está em poder da koptcha, de modo que o tomei, não só por um dos nossos, como também, até, por um chefe? Ele prejudicará enormemente a nossa união, se o deixarmos escapar. Tem que ficar!

     — Como conseguirás isso?

     — Como? Ainda perguntas?

     — Sim, pergunto.

     — Bem, com palavras bonitas e atitudes amáveis não conseguiremos. Temos que empregar a força. Podemos fazê-lo por duas maneiras. Ou damos queixa contra ele, para que seja preso, ou nós mesmos o prendemos.

     — De que queres acusá-lo?

     — Não existem motivos suficientes?

     — Nenhum motivo será útil. Disseste-me que ele tem três papéis: o teskereh, buyuruldi e, também, o ferman. Está debaixo da proteção, não só das autoridades, como é também recomendado pelo Grão Senhor. Se o quiserem prender, mostrará os seus passaportes e se fará uma curvatura diante dele, pedindo-lhe que dê as suas ordens. Conheço isso. E mesmo que fosse preso, rir-se-ia disso. É um francônio e pedirá a intervenção do seu cônsul. E, se o vice-cônsul tiver medo de nós, haverá o cônsul geral, a quem não se lhe dará tomar-nos em consideração.

     — Tens razão. Portanto, vamos agir.

     — Mas, como?

     Nisso, o mendigo fêz um gesto enérgico com a mão e disse:

     — Por que perdem tantas palavras? Ele é um traidor e um assassino. Metam-lhe uma faca no corpo; assim se calará e nada poderá revelar.

     — Tens razão — concordou o ismilanense. — O meu irmão está morto. Sangue por sangue! Estropeaste o seu cavalo, para que o possamos alcançar depressa. Por que, afinal, devemos deixá-lo partir? A minha faca está afiada. Enquanto estiver dormindo, aproximar-me-ei sorrateiramente e lhe meto o aço no coração. Assim, a nossa conta está liquidada.

     Ao ouvir estas palavras, o carroceiro contestou, precipitadamente:

     — Não pode ser! Sou amigo e cúmplice de vocês; prontifiquei-me a recebê-lo em minha casa, para podermos observá-lo bem; daqui por diante continuarei a fazer o papel que me tocar. Mas ele não deve morrer em minha casa. Não quero comparecer diante do juiz, porque um protegido do Grão Senhor foi assassinado em minha casa.

     — Covarde! — rosnou o ismilanense.

     — Cala-te! Sabes que não sou covarde. Já tenho bastante prejuízo, pois o meu servo está gravemente ferido. Acredito até que este forasteiro imagina o que fizemos.

     — Como pode imaginar?

     — Falou de alfinetes. Quem sabe se não chegou a descobrir o que estava no pé do cavalo. Esses cachorros francos infiéis têm os olhos do demônio. Vêem tudo que não devem ver.

     Então, um dos homens que eu não conhecia, abandonou o tjibuk e disse:

     — Abreviem a discussão! Palavras são para as crianças e mulheres; nós, porém, somos homens e queremos praticar atos. Manach el Barcha quer esperar-nos nas ruínas de Ostromdja, para que lhe digamos, como tornamos inofensivos esses cães. Devo levar-lhes a notícia, com este meu irmão, e não estou disposto a esperar uma eternidade.

     Essas palavras, naturalmente, eram de grande importância para mim, pois me diziam onde devia procurar os fugitivos. Agora, aguardava, com a maior ansiedade, a resolução que seria tomada. Causa-nos uma sensação toda especial, o fato de ouvir que, no momento, o couro da gente é que está em jogo.

     É claro que me esforcei, para não perder uma palavra do que iam dizer. Tanto mais desagradável, portanto, tornou-se-me um ruído, lá no feno. Levantei a cabeça. Seria o gato, a respeito do qual falara o dono da casa? O bichano andava passeando por ali, numa ocasião que não poderia ser mais inoportuna. Embaixo, as vozes fizeram-se ouvir mais altas. Quase mais alto, entretanto, tornou-se o ruído, na frente do pombal. Verificou-se um escorregão ruidoso, um “ah” de raiva e, após, fêz-se silêncio, lá fora, mas, também, embaixo.

     Um olhar lançado para baixo mostrou-me que todos escutavam. Também eles tinham ouvido a bulha. Foi uma sorte que, justamente no momento, todos estavam falando mais alto do que antes.

     — Que foi isso? — perguntou o mendigo.

     — Decerto, o gato — respondeu o negociante de frutas.

     — Tens muitos ratos, lá em cima?

     — Ratos e camondongos.

     — Mas, se foi uma pessoa que nos espreita!?

     — Quem se arriscaria a isso?

     — É melhor que verifiques.

     — Não é necessário; contudo vou ver.

     Levantou-se e saiu do quarto. Agora, eu me encontrava em perigo. Encolhi as pernas, quanto pude. É verdade que o homem não trazia luz; mas, se tateasse e achasse a porta do pombal aberta, decerto suspeitaria e meteria a mão para dentro. Ouvi a escada ranger. Realmente, o indivíduo subia — mas não chegou até o alto.

     — Alguém está aí? — perguntou.

     Ninguém respondeu; mas houve um sussurro no feno, de modo que ele, com certeza, também ouviu.

     — Quem está aí? repetiu.

     — Miau — fêz-se ouvir, como resposta.

     Em conseqüência, ouviram-se exclamações raivosas. Era, realmente, o gato, que merecera a sua maldição de há pouco. O homem resmungou incomodado e voltou ao compartimente onde estavam os outros.

     — Ouviram? — perguntou. — Foi aquele animal.

     A faca já estava na minha mão; agora, porém, tranqüilizei-me — não por muito tempo, pois quando o ruído recomeçou, senti qualquer coisa como se alguém estivesse examinando o lugar onde eu me achava, com a mão, tateando levemente. Agucei o ouvido. Ah, uma mão segurou o meu pé.

     — Sídi — ouvi, cochichado. Agora reconheci o gato.

     — Halef? — respondi, tão baixo quanto pude.

     — Sim. Não imitei maravilhosamente o miado do gato?

     — Homem, que estás fazendo! Mete-nos, a ti e a mim, no maior perigo!

     — Foi preciso. Demoraste muito. Preocupei-me contigo. Era tão fácil te descobrirem!

     — Devias esperar que isso acontecesse.

     — Ora! Devo esperar até que te matem! Não, sou teu amigo e protetor.

     — Que me mete em embaraços. Conserva-te, agora, bem quieto!

     — Tu os vês?

     — Vejo.

     — E ouves o que dizem?

     — Ouço, sim, ouço! — respondi, impaciente. — Mas não os ouvirei, se continuares a tagarelar.

     — Bem, calo-me. Mas dois ouvem melhor do que um. Também vou escutar, entrarei.

     Ouvi que se movimentava para entrar.

     — Homem, és infernal! — murmurei, depressa. — Não te preciso. Fica lá fora!

     Infelizmente, porém, o ismilanense levantou a voz nesse momento, de tal sorte que Halef nem pôde ouvir as minhas palavras. Gatinhou para entrar no pombal e, de fato, entrou. Dei-lhe, na verdade, um valente ponta-pé; mas o pequeno sujeito tinha boas intenções, boas demais para as circunstâncias. Estava obstinado na idéia de fazer de espião e, talvez, acreditasse que o ponta-pé fosse um movimento casual de minha parte.

     Agora, tinha entrado. Apertei-me quanto pude para a esquerda.

     — Oh, Alá! Que fedor! — murmurou.

     — Vem para cá! Aqui, aqui, bem perto de mim! — ordenei-lhe. Ali, à direita, vais cair.

     Fêz um movimento precipitado, para vir para o meu lado e, com isso, naturalmente revolveu uma grande quantidade de guano, porque, lá em baixo, o negociante de frutas começou a vociferar:

     — Vai para o inferno, gato desgraçado! Já está por cima de nós e joga toda a lama para baixo.

     — Puu! Ah! — Oh! — Uh! — bufou Halef, a quem o pó mal cheiroso penetrara pelo nariz e nos pulmões.

     Em virtude da minha ordem, tinha-se chegado bem para junto de mim; por isso, senti que o seu corpo estava numa contração nervosa, retorcendo-se como um réptil.

     — Atch gõsueme — Toma cuidado! — adverti, porque, apesar de ter o nariz amarrado, estava a pique de espirrar.

     — Sim, sídi! Ninguém deve ouvir... oh... ih... bchch... gch-chch... dchchchchch... ampara-me, Alá!

     Lutava desesperadamente contra a irritação nasal invencível. Ouvi uns gemidos e suspiros indescritíveis, reprimidos inutilmente e fui levado irresistivelmente a fechar-lhe a boca.

     — Oh, Alá... Al... il... dl... ah... ha... ha... ha... habtziiii habtzuéuuuu!

     Nisso, explodiu, e, na verdade, com tanta força, fazendo ressonância, que todo o seu corpo sofreu um abalo; mas, também, estourou debaixo de nós. Senti que todo o pombal bamboleava e se desmantelava.

     — Si... si... sídi, oh, Moamé, estou caindo!

     Halef queria dizer essas palavras em voz baixa, mas, como já tinha perdido o chão debaixo de si, soltou-as, de susto, quase como um brado de socorro. Segurou-me pelo braço. Vi que me arrastaria também para baixo e me soltei, num tirão. Em seguida, tudo começou a estalar em redor de mim: um estrondo tremendo, uma nuvem de guano grossa, mais pavorosa ainda, debaixo de mim, gritos altos, rugidos, exclamações de cólera, tosses e espirros; o bom hadji se precipitara para baixo, com a metade do pombal.

 

     Também eu estava meio oscilante. Um impulso rápido e as minhas pernas estavam acima do buraco; depois de um esforço muscular enorme, estava com todo o corpo fora. Arranquei o lenço do nariz e comecei a tossir e espirrar, como se me pagasssem para isso. Era de todo indiferente, que me ouvissem também.

     Embaixo, originou-se uma barulheira infernal. Halef certamente estava em perigo. A luz não estava apagada. Teria sido agarrado ou teria tido tanta presença de espírito que conseguisse fugir? Precipitei-me pela escada abaixo, tão depressa quanto a escuridão permitia. O pandemônio era o meu guia. Procurei a porta do quarto — tateei, na certeza de que podia haver um trinco na parte externa. Era preciso só puxar uma alavanca, que estava amarrada a um cordão. Não estava fechada por dentro. Abri. Uma poeira espessa de guano veio ao meu encontro, escurecendo o ambiente.

     Até onde os meus olhos alcançavam, vi um caos de braços, pernas e cacetes, tudo em movimento — um barulho indescritível de gente tossindo, espirrando, praguejando e, ainda mais, uns estalos, como se alguém pusesse, com toda a força, um relho em atividade. Notei que essa gente se agarrava mutuamente, pensando ter segurado o intruso inesperado. Ressoou, então, a voz de Halef:

     — Sídi, onde estás? Também desceste?

     — Sim, estou aqui.

     — Socorro, socorro! Agora me pegaram!

     Saltei — sem refletir — saltei no meio daquela aglomeração de gente. Sim, tinham-no pegado. Segurei-o com a mão esquerda, arranquei-o das mãos que o retinham e o atirei porta fora. Alguns socos com a direita e eles recuaram. Imediatamente, também eu estava fora, fechei a porta e a tranquei com a alavanca.

     — Halef!

     — Aqui.

     — Estás ferido?

     — Não. Vamos embora!

     — Sim, desce aqui, pela escada.

     Segurei-lhe a mão e o puxei pela escada abaixo. Fui conduzido pelo ruído de vozes, que ressoavam embaixo. Ouvira-se o barulho e, agora, vinham ver o que tinha acontecido.

     Escorregamos mais do que corremos pela escada; ao descer, derrubamos algumas pessoas, chegamos felizmente embaixo e nos precipitamos sobre o pátio, para o lugar onde tinha despregado as tábuas. Quando tínhamos passado ali e nos detínhamos, para respirar, o pequeno hadji disse:

     — Graças a Alá! Ninguém me bota mais num pombal!

     — Ninguém te mandou ir lá em cima.

     — Tens razão. Sou culpado de tudo. Mas, mesmo assim, foi bonito, porque dei serviço ao meu relho, o que certamente tão cedo não sairá da memória dessa gente. Ouves que chamam? Escuta!

     — Sim. Estão nos procurando. Onde está Osko? Onde está Ornar?

     — Aqui — responderam os dois, bem perto.

     — Os cavalos estão prontos para partir?

     — Estão. Esperamos há muito tempo.

     — Saiamos da estrebaria e para longe da cidade.

     Cada qual pegou o seu cavalo. As minhas armas estavam dependuradas nos arreios, como verifiquei. No pátio montamos. O portão estava aberto; chegamos, sem empecilho, à estrada.

     Halef ia ao meu lado.

     — Para onde vamos? — perguntou éle. — Conheces o caminho? Não vamos indagar de ninguém?

     — Não. Ninguém percisa saber que direção tomaremos. Iremos para leste. Primeiro, saiamos da cidade! Depois acharemos, com certeza, algum caminho.

     — Mas, precisamos, então, fugir? É indispensável?

     — Vamos embora; em qualquer caso, isso é bom. Queres denominar a nossa partida de fuga, podes fazê-lo. Sei onde está Barud el Amasat. Não está aqui e iremos procurá-lo, bem como aos seus companheiros.

     Em breve, Menlik tinha ficado para trás. Quando, naquele mesmo dia, penetráramos na cidade, pelo lado oposto, não tinha imaginado que tão depressa viria a deixá-la novamente.

 

    Um Vampiro

     Depois de termos dado as costas a Menlik, envolveu-nos uma noite escura; contudo, pudemos constatar que nos encontrávamos sobre um caminho trilhado. Tínhamos, pela frente, o rio Struma, antigamente Strymen, que, partindo de Menlik, corria para o sul, em demanda da fértil planície de Seres. Cavalgávamos em terreno desconhecido. Sabia, somente, que tinha de ir a Ostromdja, localidade que também leva o nome de Strumnitza, em virtude do rio que a banha. Deveríamos, propriamente, tomar a direção de Petridach; mas, era de supor que suspeitassem disso e nos perseguissem nesse rumo. Por essa razão, pouco depois, quebrei a rota, em ângulo reto, voltando para o norte.

     — Para onde vais, sídi? — perguntou Halef. — Estás te afastando do caminho.

     — Por um motivo muito justo. Tomem cuidado! Procuro um trilho, um caminho, que nos leve mais para o norte até o rio, que se encontra na mesma direção daquele que costeamos até agora. Quero despistar os nossos perseguidores.

     — Então, temos que cuidar. Está muito escuro.

     Andávamos quase às cegas. Sem demora, observei que nos encontrávamos, novamente, sobre um caminho. À esquerda, ouvi o rangido das rodas de uma carreta de bois. Tomamos, então, esse rumo. Em pouco tempo, alcançamos a carreta. Arrastavam-na dois enormes búfalos. O carreteiro caminhava na frente. Na gigantesca canga, arqueada ao centro, estava dependurada uma lanterna de papel.

     — Para onde leva este caminho? — perguntei ao carroceiro.

     — A Lebnitza — respondeu, mostrando para a frente, com a mão.

     Assim, fiquei orientado. Aquele caminho, portanto, conduzia a Lebnitza, que está situada à margem do rio de igual nome, o qual deságua no Struma.

     — Para onde pretendem ir? — perguntou o carreiro.

     — A Mikrova.

     — Então, cuidado! O caminho é ruim. És um moleiro?

     — Boa noite! — disse eu, sem responder-lhe a pergunta.

     Tinha boa razão para fazer aquela interrogação. À luz da sua lanterna, observara que nós dois, Halef e eu, dávamos a impressão de ter estado metidos num saco de farinha. Ainda não havíamos tido ocasião de nos limpar. Se não quiséssemos estragar as nossas roupas, precisávamos esperar até a manhã seguinte, para, então, fazer a limpeza.

     Depois de algum tempo, ouvi o ruído característico das ferraduras de um cavalo em marcha. Alcançamos um cavaleiro solitário, que saudou, com amabilidade.

     — Vêm igualmente, de Menlik? — perguntou ele. A resposta foi afirmativo.

     — Quero ir a Lebnitza. Para onde vão?

     — Também, para lá — respondi.

     — Isto é sorte! O barqueiro não me passaria para o outro lado. A uma hora tão tardia, ele não leva um único homem. Mas, como também irão passar, naturalmente se prontificará, porquanto vai ganhar mais. Posso ir em sua companhia?

     — Sim, desde que queiras.

     A falar verdade, o seu pedido não me calhava bem; como, porém, podia servir-nos de guia, não discordei. Sobre a barca, realmente, eu nada sabia.

     Daí por diante, não mais se conversou. O homem vinha lateralmente, um pouco atrás de mim e Halef, observando-nos atentamente. Apesar da escuridão, notara certamente as nossas armas e, igualmente, o guarda-pó claro; não sabia, decerto, por quem nos deveria tomar. Como não lhe dirigíamos nenhuma palavra, manteve-se calado.

     Ao chegarmos à margem do rio, o homem foi direito à barca, que dificilmente teríamos encontrado. Já do outro lado, separamo-nos, em seguida, com um cumprimento breve.

     De nenhum modo, pretendia ficar em Lebnitza. Tinha tomado esse caminho, para despistar os nossos inimigos e evitar Petridach. Desta localidade, o caminho corre ininterruptamente junto ao Strumnitza, até chegar a Ostromdja. Lá ficava a ruína, onde Manach el Barcha queria aguardar. Contava alcançar essa estrada, ainda, durante a noite. Em razão disso, prosseguimos logo, em direção a Derbend, situada ao sudoeste de Lebnitza.

     Pouco depois, entretanto, notei que Rih não andava bem. Teria sido de conseqüências graves o ferimento do alfinete? Se aquele excelente animal adoecesse, eu estaria amarrado. Tinha que poupa-lo e botar umas compressas frias na pata. Por isso, fiquei satisfeito, quando, após algum tempo, vi a luz de um fogo, à margem do caminho. Rumamos para o mesmo.

     No meio do campo, erguia-se uma choça de madeira, comprida e baixa, em que logo reconheci um sahan. Esses sahans são casas, onde se carneiam reses, freqüentemente em número elevado, para extrair a graxa pelo cozimento. Os otamanos não gostam da carne de rês. Até há pouco tempo, não sabiam aproveitar o valor dos seus rebanhos. Nos sahans, era cozida a graxa e depois transportada para as cidades maiores. Somente, per vezes, cortava-se o lombo em fatias, secando-as, para depois vender, como gênero alimentício.

     Foi numa dessas choupanas que nos detivemos. A sua parte mais ampla servia de matadouro e fundição de sebo; a menor, parecia ser a habitação. A primeira divisão tinha diversas portas largas, que estavam abertas. Ali, havia alguns fogos, sobre os quais estavam dependuradas caldeiras enormes. Perto, encontravam-se os carniceiros — indivíduos selvagens, sujos e besuntados de graxa. Os fogos iluminavam uma grande parte do campo e exibiam os objetos sob aspectos grotescos. Os homens ouviram-nos chegar e vieram à porta. Cumprimentamos e eu indaguei se podíamos achar, ali, um lugar para descansar. Um deles aproximou-se de mim, observou-me e disse, rindo:

     — Um bicho de farinha, que acaba de sair da farinheira! Não haverá, por aí, um pintarroxo que o devore?

     Os outros começaram a gargalhar, em coro, e também se chegaram. Era uma recepção amabilíssima! Quis responder energicamente, mas, Halef antecedeu-se:

     — Que dizes, sebento! Lambe o sebo da tua cara e enseba a tua inteligência, antes de te divertir à custa dos outros! A tua beleza não aumenta com as risadas, porque, assim, mostras os dentes de um crocodilo e o focinho de um buldogue, que comeu saramago. Tens, por acaso, um filho?

     A pergunta foi rápida e inesperada, o discurso enérgico e arrogante, de sorte que o homem caiu na esparrela.

     — Tenho — respondeu, perplexo.

     — Então, a pobre criança é descendente de um homem que não tem miolo na cabeça, porque pertence à raça dos macacos. Tenho pena dela!

     Só agora o carniceiro conseguiu compreender o que lhe era dito. Meteu a mão nos trapos de lã, que trazia no corpo, e onde se achava uma comprida faca de carnear, dizendo, furioso:

     — Estou ouvindo bem? Que foi que disseste?

     — Vejo que a tua inteligência não é bastante grande para compreender as minhas palavras, que, não obstante, foram tão claras! Devo repeti-las, porventura?

     — Sefil, djuedjue. — Homúnculo desgraçado! Queres que te meta esta faca na barriga?

     Quis meter o cavalo entre ele e Halef; nisso um dos seus companheiros segurou-o, pelo braço, e disse, pressuroso:

     — Sõkiut dur onlann-war koptchaji — Cala-te, que eles têm a koptcha!

     Isso mudou o rumo, para melhor, da cena que ameaçava tornar-se perigosa. O homem examinou-nos melhor e declarou, depois, em tom de desculpa:

     — Afw sejr temez-dim. — Perdão, não tinha visto.

     — Por outra vez, abre mais os teus graciosos olhos — aconselhou Halef. — É tão fácil ver que este emir, que é nosso amigo e chefe, usa uma koptcha de dirigente. Recebeste-nos com insultos. Deveria meter-te a mão na cara, de modo que virasses uma cambalhota, lá para dentro daquela caldeira de sebo. Mas estou disposto a ser generoso e, por isso, vamos perdoar-te. Dêm-nos um lugar para descansar, pasto para os cavalos e uma escova para as nossas roupas, para que possam ver se, realmente, somos bichos de farinha.

     Halef era um homem bastante destemido. Acrescia que sempre tivera sorte com as suas demonstrações de valentia. Se, porventura, numa destas, em determinada ocasião, atraía embaraços momentâneos, sempre a minha intervenção pudera arrancá-lo da dificuldade. Por isso, também agora, não se deixou atemorizar por esses homens, não obstante a sua aparência não inspirar a menor confiança.

     O carniceiro, a quem Halef dirigira o sermão, mirava-o com uma espécie de comiseração feroz, mais ou menos como um branco americano olharia para um cão fraldeiro, que estivesse a atacá-lo, latindo. Na sua cara, se podia ler, claramente, o pensamento: Pobre verme! Uma dentada e um gole, já estás devorado; mas não farei, porque tenho pena de ti.

     Apeamos e obtivemos milho debulhado para os cavalos. Para nós, conseguimos carne, em quantidade. Naturalmente, tratei do cavalo, em primeiro lugar, e pedi um pano velho, que precisava para compressas frias. Quando já havia posto o pano na pata do animal, um dos carniceiros perguntou-me se o cavalo estava doente.

     — Sim — respondi. — Levou uma picada um pouco acima da ferradura.

     — E estás botando água? É verdade que isso refresca, mas eu sei de um remédio muito melhor.

     — Que é?

     — Sou conhecido, aqui por toda a região, como veterinário. Sei de uma pomada que tira todo o calor e cura todas as feridas, com a maior rapidez. Se quiseres experimentar esse remédio, não terás do que te arrepender.

     — Bem; vamos fazer uma prova.

     Absolutamente, não era precipitado o meu procedimento. Já tinha ouvido dizer que, em muitos desses sahans, tinham sido realizadas curas, de que o mais competente veterinário não se precisaria envergonhar. Não devia arrepender-me, também, da confiança dada ao carniceiro. Rih andou com a pomada durante três dias e não havia mais sinal de qualquer conseqüência advinda da picada do alfinete.

     Halef e eu dormimos, com os cavalos, ao ar livre. Osko e Omar preferiram a choça. Pouco antes do amanhecer, fomos acordados por campeiros, que traziam uma porção de búfalos, na maioria amarrados, os quais tinham sido vendidos ao sahan, por serem velhos ou indomáveis. Nem se podia pensar mais em dormir, embora tivéssemos dormido apenas duas horas.

     Aqueles animais deviam ser abatidos imediatamente. Queria ver qual o método que seria aplicado. Laçava-se o búfalo, pelos chifres, com duas cordas e se o levantava por um palanque. Sobre um toro transversal, colocado à altura da cabeça do animal, estava um homem, que a martelava, a torto e a direito, até que o animal morresse. A agonia era medonha.

     Pedi permissão para matar, a tiros, os animais destinados ao suplício. Riram-se. Não acreditavam que uma bala pudesse penetrar no corpo de um desses animais gigantescos e ossudos. Provei-lhes o contrário.

     O primeiro búfalo atingido permaneceu, ainda, uma porção de tempo, imóvel, com a cabeça profundamente inclinada. Nem a ponta do rabo dava sinal de vida. Com os olhos esgazeados, fixos em mim, o animal ficou estaqueado, com as pernas abertas, como uma figura de ferro fundido

     — O machado! O machado e cordas! — gritou um dos homens. — O animal já vai disparar!

     — Tranquiliza-te! — respondi. — Não vai disparar, mas sim desmoronar.

     Isso aconteceu realmente. Repentinamente, como, se tivesse sido atingido pela bala somente agora, o animal robusto caiu, estrondosamente, para não mais se mover.

     O mesmo aconteceu com os demais. Não era honroso estar a abater esses animais; contudo, tinha a satisfação de ver que morriam sem sofrimento.

     Fiquei admirado de não termos sido interrogados sobre a nossa procedência e destino. Talvez devesse isso à circunstância de usar a koptcha. Não se aventuravam a fazer perguntas. Antes de partirmos, tomamos grande provisão de postrama, isto é, lombo de búfalo seco. Essa carne, que se conserva por muito tempo, é extraordinariamente gostosa e nutritiva. Quando perguntei pela nossa dívida, pediram-me que, absolutamente, não falasse em pagamento. Nada foi aceito e nos despedimos, muito satisfeitos, dessa gente, embora a nossa recepção não tivesse sido pacífica.

     Dentro de uma hora, alcançáramos Derbend e, ao meio dia, encontravamo-nos em Jenikoi, à margem esquerda do Strumnitza. Fizemos então um breve descanso e, depois, continuamos para Tekirlik.

     Os cavalos estavam cansados — coisa que não era de pasmar, pois desde Adrianópolis não haviam tido repouso realmente compensador. Assim, cavalgávamos vagarosamente, tendo à esquerda o rio e à direita as colinas que levam ao planalto de Plachkawitza-Planina. Durante a jornada, Halef deixava pender a cabeça. Estava de mau humor, o que, nele, era fato que se observava mui raramente e, por isso, chamou-me a atenção. Interroguei-o e ele me disse que o peito lhe doía.

     A origem poderia encontrar-se na nossa aventura do dia anterior. Talvez tivesse batido em qualquer coisa, ao cair do pombal. Entretanto, não se recordava; aquele bom rapaz preocupava-me e por isso deliberei abreviar a jornada.

     Ao chegar a Tekirlik, procurei o han. Foi-me mostrada uma choça, que, de fato, não tinha aparência convidativa. Apesar disso, apeamo-nos e entramos, deixando os cavalos sob o cuidado de Omar. Vimos um quadro, então, que, absolutamente, não era apetitoso. No pequeno e enfumaçado compartimento, estavam sentados alguns homens. Um deles estava ativamente empenhado em cortar as unhas dos dedos dos pés, com um punhal. A seu lado, permanecia acocorado outro, com um objeto na mão, semelhante a qualquer coisa, que, há muitos anos, tivesse sido uma escova e esfregava aquilo que, naturalmente, só ele considerava uma calça. Essa peça do vestuário estava tão suja e o seu dono trabalhava com tanta decisão que se achava envolvido por uma espessa nuvem de pó. Diante desses dois, um terceiro tinha um vaso de leite, seguro com as pernas, picando alho na sua faca, para misturar com aquele precioso líquido. Na terceira parede, recostavase, sentado no chão, um quarto indivíduo, que tinha a cabeça de um outro, sobre as pernas, estando a barbeá-lo. Este último era um arnaute barbudo. Só no meio do crânio havia um punhado de cabelo e o resto da cabeça estava toda ensaboada. Tudo quanto o barbeiro raspava era esfregado, sem constrangimento, na parede e, ao mesmo tempo, ele fazia caretas, como não vi nem nos negros barbeiros dos Estados-Unidos. E isso quer dizer muita coisa, porque esses “barbers” pretos são famosos pelas suas admiráveis momices e deformações voluntárias da cara.

     Quando aqueles senhores nos viram entrar e ouviram os nossos cumprimentos, miraram-nos demoradamente. Depois, o que cortava as unhas e o que limpava a roupa prosseguiram nas suas ocupações. O homem do leite aproveitou-se da interrupção para levar à boca uma dose de alho, mortalmente perigosa. O barbeiro, porém, ergueu-se de um salto, inclinou-se diante de nós e disse:

     — Choch geldiniz; bendeniz ei õpir. — Sejam bem-vindos. Este servo beija-lhes as mãos.

     Como não estivéssemos tão sujos como o escovador de calças, certamente o barbeiro nos tomava por gente aristocrata.

     — Mehandji nerde. — Onde está o estalajadeiro? — perguntei.

     — Dychar dadyr. — Está lá fora.

     — Berber-sen. — És barbeiro?

     — Hei hei; im hekim bachi — Absolutamente não; sou médico-chefe.

     Disse isso com um acento, que não podia ser mais orgulhoso e cheio de si, indicou o arnaute e acrescentou, num gesto de grande significação:

     — Onu-da chiche komarim — Vou aplicar-lhe ventosas, e escarifi-cá-lo.

     Antes que eu pudesse dizer-lhe que essa comunicação decuplicava a minha admiração, o arnaute deu-lhe um poderoso ponta-pé e bradou:

     — Cão, a quem é que tens de servir? A mim ou ao outro? Pensas que posso estar deitado aqui, por todo o tempo que quiseres? Vou-te mostrar que tens, diante de ti, um funcionário do padixá!

     O médico-chefe agachou-se logo, tomou a cabeça ensaboada e continuou o seu trabalho interrompido.

     Efetivamente, quisera voltar no primeiro instante; mas, ao ouvir falar em ventosas, resolvi ficar. Queria ver como esse famoso médico-cirurgião ia praticar a operação. Acocoramo-nos tão junto um do outro, como era possível, para, de nenhum modo, chegar demasiadamente perto dos outros.

     Quando o hospedeiro entrou e nos interrogou sobre o que desejávamos, pedi-lhe um gole de raki, a única coisa a que a gente se podia arriscar.

     O barbeiro tinha concluído o seu trabalho e esfregou o crânio reluzente com o seu caftan, cuspindo, como era natural, previamente, na parte competente daquela peça do seu vestuário. Após, o arnaute desnudou o tórax. Constituía, certamente, uma honra para nós a declaração, por ele feita, para justificar-se:

     — Gidjichim war. — Tenho comichões na pele.

     Algumas chicotadas seriam, certamente, de maior utilidade, no caso do que a sarjadura.

     O médico-chefe trouxe um saco, que se encontrava a um canto, e tirou alguns objetos, que tomei por pesos velhos e ocos de relógios. Cada um teria a capacidade de um décimo de litro. Ademais, apareceu nas suas mãos um instrumento, que se parecia, como dois ovos se parecem, com um espivitador. Em seguida, foi queimado raki e o doutor segurou um daqueles pesos sobre as chamas. Quando o ar estava rarefeito pelo fogo, o arnaute teve de se deitar de barriga para baixo, e o barbeiro procurou prender-lhe a gigantesca ventosa nas costas.

     A beira daquela vasilha tinha esquentado; o arnaute sentiu a dor e enviou ao médico-chefe uma tão valente tapona, que este se deitou, de todo o comprimento, no chão.

     — Que estás pensando?! — vociferou o paciente. — Deves botar ventosas e não me queimar.

     — Não tenho culpa — desculpou-se o médico. — O instrumento tem de estar quente, senão não puxa.

     Daí por diante, entretanto, tomou mais cuidado e conseguiu aplicar duas ventosas. Lançou-me um olhar triunfante, mas foi arrancado ao seu entusiasmo, pelas exclamações furiosas do arnaute.

     — Homem, queres matar-me? Quem é que pode agüentar essas dores?

     — Tem paciência, um momento. Ainda está comichando?

     — Não. Está queimando e picando e mordendo.

     — Vês que te estou ajudando. A comichão já passou. Agora vamos ao escarificador.

     Tirou um ferro comprido do saco, o qual julguei ser de fato um espivitador e começou a afiá-lo. Fêz isso com um jeito tão imponente, como se se tratasse de dar uma facada na nuca de um hipopótamo. Examinou o fio do instrumento num barrote da parede e, depois, ajoelhou-se; ao lado do paciente.

     As ventosas, entrementes, tinham esfriado e caído, deixando duas inchações enormes e vermelhas.

     O curandeiro tomou impulso e disse:

     — Bir — iki — aetch. — Um, dois, três! Alá! Alá! Que fazes? E esse o agradecimento, que me dás pela restituição da tua saúde?

     É que, no momento em que o arnaute recebeu a picada, o médico-chefe levou uma segunda bofetada. O paciente operado levantara-se, num pulo, e pegara o homem milagroso pelo pescoço.

     — Cão, quase me mataste! — berrou. — Como podes derramar desmedidamente o sangue de um servo do padixá? Queres que te levante na ponta de uma lança ou queres que te estrangule?

     Também eu me levantei, mas não por causa desse incidente, que, em nada, me dizia respeito e, sim, por outro motivo. É que o homem, que andara recortando as unhas, concluíra esse serviço e começara outro, infelizmente, não menos nojento.

     Tirara o pano de côr berrante, que trazia à cabeça, a título de turbante, e o colocara diante de si, para depois tomar um pente tosco de madeira e se entregar a um entretenimento, que, na verdade, não deixava de ser característico de um oriental, mas que não devia ser feito tão publicamente e sem constrangimento. Parecia não ser maometano, pois tinha cabeleira espessa — e que cabeleira! Esse montão de imundície, ele estorroava com uma veemência... mas, paremos aqui!

     No momento em que a intervenção cirúrgica parecia aproximar-se de um desfecho interessante, o homem não quis perder aquele delicado espetáculo. Levantou-se, sem cerimônia, e sacudiu o pano, justamente na direção em que nos achávamos.

     Naturalmente, num instante eu estava lá fora e os outros me acompanharam. Halef comentou, rindo:

     — Afw, efendi; tehammuel etmez-di daha bajle wakyt. — Perdoa-lhe, senhor; ele não podia suportar mais.

     O estalajadeiro recebeu o pagamento e nós deixamos a localidade, interessante só para os colecionadores de insetos. Um outro ban, mesmo que existisse, certamente não seria mais convidativo, e, assim, os companheiros concordaram comigo, quando manifestei a preferência de dormir no campo, ao ar livre, do que numa casa dessas.

     Ao sair da aldeia, alcançamos um homem, pobremente vestido, caminhando ao lado de uma carroça, puxada por um burrico magro. Cumprimentei-o e lhe perguntei a que distância nos encontrávamos de Radowa e se, no percurso, havia alguma estalagem. Tínhamos de cavalgar duas horas; um han não havia. Começamos a conversar; mostrou-se muito humilde. Pareceu precisar dominar-se, para articular a interrogação:

     — Queres ficar em Radowa, senhor?

     — Talvez resolva deter-me antes.

     — Então, terias de dormir ao relento.

     — Não faz mal. O céu constitui o teto mais saudável.

     — Tens razão. Se não fosse pobre e cristão, oferecer-te-ia a minha casa.

     — Onde moras?

     — Não é longe daqui; alguns minutos acima do arroio encontra-se a minha choupana.

     — E qual é a tua profissão?

     — Sou tijoleiro.

     — Exatamente, por seres pobre e cristão, irei ficar contigo. Também sou cristão.

     — Tu, senhor? — perguntou, tão admirado, quanto contente. — Tomei-te por um moslemita.

     — Por quê?

     Respondeu, sacudindo os ombros:

     — Os cristãos, aqui, são muito pobres.

     — Também não sou rico. Não precisas ter preocupações. Temos carne. Nada mais pediremos do que água quente para o café. Tens família?

     — Sim, tenho mulher. Também tinha uma filha; mas, morreu.

     O seu rosto tomou, ao dizer isso, uma expressão que me impediu de fazer mais perguntas.

     Poderia parecer injustiça de nossa parte meter em embaraços aquele pobre diabo; mas, por muitas vezes, verifiquei que justamente os pobres se sentem felizes e orgulhosos quando podem dar hospitalidade a quem se encontra em melhor posição. Em todo o caso, aquele homem era muito pobre; via-se pelas suas roupas, que eram constituídas de só de uma camisola de linho e uma calça. A cabeça e os pés estavam descalços.

     Depois de algum tempo, chegamos a um arroio, que se lançava no Strumnitza, e continuamos pelo vale, até a choça, junto à qual havia um poço de barro. Naquela havia somente as aberturas da porta e da janela, mas ostentava uma chaminé verdadeira. Ao lado da porta, fora feito um banco de tijolo; nos fundos da casinha, notava-se uma pequena horta, seguida de uma plantação nova de árvores. Isso dava uma impressão boa e agradável. Ao lado da casa, encontravam-se extensas fileiras de tijolos, amontoados e, neste momento, a mulher vinha do poço. Ouvira a nossa aproximação, mas parecia estar assustada com a presença de gente estranha.

     — Aproxima-te! — disse o homem. — Esses efêndis ficarão, hoje, conosco.

     — Oh, céus! Estás brincando! — exclamou ela.

     — Não, não estou brincando. Este efêndi é um cristão. Certamente lhe darás as boas vindas.

     Ao ouvir essas palavras, seu semblante tomou uma expressão de alegria.

     — Senhor, permite que me lave — disse. — Estive trabalhando no poço.

     Dirigiu-se ao arroio, lavou as mãos, enxugou-as no seu avental e estendeu-me a direita, com as seguintes palavras:

     — Nunca tivemos gente tão distinta em nossa casa. Somos pobres e não sei o que vou oferecer-lhes.

     — Temos tudo quanto precisamos — tranqüilizei-a. — Teríamos continuado; mas, soube que eram cristãos e, por isso, resolvi ficar aqui.

     — Então, entrem em nossa casa. Bem avaliamos a honra que nos é trazida.

     Essas palavras eram sinceras, cordiais e comoventes. Também ela estava vestida pobremente, mas limpa, não obstante o trabalho sujo a que se dedicara. Saia, blusa e avental estavam rasgados em numerosos lugares e remendados caprichosamente. A gente gosta de ver isso. Os rostos de ambos eram descarnados e tinham uma expressão que falava de sofrimentos morais. Falando sinceramente: desde logo, gostei daquelas duas criaturas.

     Ao entrar, encontrava-se uma pequena divisão que servia de depósito de ferramentas e de estábulo para o burrico. Dali, passava-se, à esquerda, por uma segunda porta, a parte habitada pelo casal.

     Havia ali — sim, de fato! — um fogão, feito de tijolos. Depois, existia uma mesa, um banco e alguns escabelos, trabalho feito a mão, e tudo lavado com o maior asseio. Sobre algumas tábuas, presas à parede, havia numerosos vasos. No canto mais afastado, estava a cama, feita de galhos resinosos, que alcançavam até o teto, e, ao lado, havia um nicho, com a imagem de São Basílio, tendo uma velinha acesa, na frente.

     Era pobre, mas agradava ao olhar.

     A mulher olhou para o marido, embaraçada, como a fazer uma pergunta. Esse acenou para fora da casa e meneou a cabeça. Enquanto deixávamos os nossos objetos, aproximei-me da janela e vi que a mulher atravessava o arroio, levando uma enxada, e, ao chegar ao outro lado, começara a cavar, perto de um arbusto. Imaginei logo do que se tratava.

     Naquelas regiões e mais para o interior da Grécia, é usual, naturalmente entre os cristãos, enterrar bilhas ou outros quaisquer recipientes, contendo vinho, e hermèticamente fechados, para serem desenterrados somente por ocasião do casamento da filha. O vinho atingiu, então, a uma qualidade rara. Nos casamentos ricos, há abundância; não deve sobrar nenhuma gota.

     — Deixa-o lá — falei ao homem. — Prefiro a água e os meus companheiros não são cristãos, mas, sim, maometanos e não podem beber vinho.

     — Não são cristãos? Mas fizeram o sinal sagrado diante desta imagem!

     — Porque viram que fiz. Eles não desprezam as pessoas doutra fé, mas obedecem aos seus próprios mandamentos. Deixa, portanto, o vinho dentro da terra.

     — De onde sabes que tenho vinho enterrado e que quero ir tirá-lo?

     — Adivinhei.

     — Tenho muito pouco, só uma bilha. A minha filha recebeu-o do jovem, que depois foi seu noivo. Enterramos o vinho, para dar um brinde de honra, no casamento. Já que ela morreu, queria oferecer-te.

     — Não permito que o faças. Doer-me-ia a consciência.

     — Senhor, aceita-o. Damo-lo com tanto prazer!

     — Sei disso. A dádiva do pobre tem o seu valor centuplicado. Fico tão satisfeito, como se o bebesse.

     Saí e chamei a mulher. Obedeceu, somente depois de grande relutância. Pedi-lhe que esquentasse água. Enquanto ela atendia a essa solicitação, levamos os cavalos para um plano, onde havia capim excelente e os maneamos. Depois, dei o café à mulher, para que o moesse. Tive a satisfação de constatar um lampejo de alegria nos seus olhos. Quem sabe, há quanto tempo essa pobre gente não tinha tido café verdadeiramente bom!

     Quando essa bebida estava pronta e espalhava o seu aroma por todo o compartimento, tiramos aquela pobre gente do embaraço, tomando os nossos copos. Chegou então a vez das provisões de carne. Quando já tínhamos tomado o café, o assado estava convidando para comer.

     Ambos deviam sentar-se conosco à mesa, mas não se deixaram convencer. Não aceitaram pedaço algum de carne.

     — Perdoa-nos, senhor! — disse o homem. — Hoje, não devemos comer.

     — Por que não? Hoje não é dia de jejum.

     — Nada comemos nas segundas, quartas e sextas-feiras.

     — Sei que os monges costumam jejuar nesses três dias; mas, vocês são leigos.

     — Contudo, jejuamos. Resolvemos assim.

     — É por causa de alguma promessa?

     — Não. Não fizemos promessa; combinamos entre nós.

     — Então, dar-lhes-ei um pouco de farinha, para que possam fazer alguma coisa.

     — Agradeço-te. Nós não comemos, absolutamente nada.

     — Mas, até mesmo os seus sacerdotes comem, durante os dias de jejum, legumes, raízes e ervas.

     — Nós, porém, nada comemos. Não leves a mal, senhor.

     Essas duas criaturas anêmicas estavam, ali, sentadas num escabelo; de suas faces descarnadas transpirava o sofrimento e, apesar da melhor boa vontade, não conseguiam tirar os olhos dos que comiam. Isso doeu-me. Cada bocado prendia-se-me na garganta. Levantei-me e saí. Diante de sofrimento algum, em face de uma renúncia, não posso ser um assistente frio e calmo.

     Procurei um lugar para deitar-me e, em breve, encontrei um excelente. O céu estava bem estrelado, menos escuro do que nas noites anteriores. Nos fundos da casa, subia uma colina, coberta de sarças espessas. Lá em cima, onde se erguiam as primeiras árvores, havia um claro; já o notara, à nossa chegada. Procurei, neste momento, aquele lugar. Seguramente, havia ali uma grama fofa, onde pudesse descansar, tranqüilamente. Debaixo de um plátano, vi uma coisa quadrada, escura. Aproximei-me. Era uma sepultura. À cabeceira desta, via-se uma cruz, presa ao tronco da árvore.

     Estaria essa sepultura em qualquer relação com a tristeza dos nossos hospedeiros? Com o seu jejum? Certamente.

     A minha compaixão aumentou, mas, tomei a resolução firme de nada indagar. Não é bom alargar feridas que sangram, nem rasgar as que já cicatrizaram. Desci da pequena colina e encontrei o hospedeiro, nas proximidades da casa, pois decerto, procurara por mim.

     — Senhor, tu te retiraste — disse. — Te desgostaste comigo?

    

     — Não. Por que poderia maguar-me contigo?

     — Porque recusei as tuas dádivas. Desces lá de cima. Viste uma sepultura?

     — Vi.

     — É a de minha filha. Queria perguntar-te uma coisa muito importante. Posso?

     — Sim. Tenho tempo.

     — Peço que me acompanhes até onde estão os cavalos. Ninguém mais precisa ouvir o que digo.

     Fomos à pastagem. Lá nos sentamos um ao lado do outro. Demorou algum tempo, até que ele falasse. Deveria custar-lhe achar um começo adequado. Finalmente, disse:

     — Quando saíste, falamos a teu respeito. Soube que és um escritor e escreves livros; que aprendeste todas as coisas da sabedoria e que não há pergunta a que não possas dar resposta.

     Já aquele traquinas do pequeno Halef tinha dado com a língua nos dentes! Naturalmente, quanto mais berrantes fossem as cores com que me pintava, tanto mais luz se irradiava também sobre a sua figura! Respondi, por isso:

     — Não é verdade. Existe só uma sabedoria; não conheço outra.

     — A qual te referes?

     — Encontra-se nos mandamentos da Sagrada Escritura: Buscai, antes de tudo, o reino de Deus; o resto, depois, virá por si mesmo.

     — Tens razão, com certeza. Conheces a Escritura Sagrada e os seus ensinamentos?

     — Estudei e busquei nela a luz, porque ali se encontra a vida eterna; mas a alma humana é muito fraca, para suportar a luz divina. Durante semanas, meditei, por vezes, sobre uma palavra da Bíblia e reconheci que procedia atrevidamente. Depois, li com o coração, e encontrei logo a Verdade.

     — Com o coração? Quem poderia ler assim! Achaste o que a Bíblia diz sobre a morte e a vida eterna?

     — Achei.

     — Acreditas numa vida, depois da morte?

     — Se não acreditasse, seria melhor que eu não tivesse sido criado. A crença na salvação eterna é já o começo da própria salvação.

     — Então, a alma continua a viver, depois da morte?

     — Sim, com toda a certeza.

     — E existe um purgatório?

     — Existe.

     — Dizemos nós que não existe. Existem fantasmas?

     — Não.

     — Oh, quem dera que pudesse acreditar! Existem almas, que não encontram descanso e, por isso, voltam, como fantasmas. Eu sei. Por isso, sou tão infeliz e, por isso, jejuo, com minha mulher. Acreditamos que, assim, talvez, possamos salvá-la.

     — Salvá-la? A quem te referes?

     — Àquela em cuja sepultura estiveste. A minha filha.

     — Queres, por acaso, dizer que ela anda errante, como fantasma?

     — Sim, é verdade.

     — Desgraçado! Quem foi tão perverso que convenceu um pai de que sua filha erra pelo mundo, como duende?

     — Sei bem certo!

     — Viste-a, porventura?

     — Eu não, mas, outros viram.

     — Não acredites!

     — Mas, eu a ouvi.

     — Estás louco! Em que aspecto ela se apresenta?

     — Apareceu como morcego — respondeu, baixando a voz e colocando a boca bem próximo do meu ouvido. — Não se deve falar disso, pelo menos não em voz alta. Como ouvi dizer que eras um tão grande sábio, pensei que me pudesses indicar um meio de lhe dar descanso e paz eterna.

     — Nenhum sábio conhece o meio que procuras. Mas, acredita firmemente que não existem espectros, e, assim, ficarás, de repente, liberto do teu sofrimento.

     — Não posso; não posso! Eu a ouço. E, sempre, justamente, na hora em que ela expirou.

     — Que hora é essa?

     — Duas horas antes da meia noite. Nesse instante, ela vem, através do espaço, e bate na nossa porta.

     — Como morcego? Assim, ela bate?

     — Não sei. Somente a ouvi, mas nunca enxerguei. Mas, outros a viram, como morcego, e, agora, o seu noivo está gravemente enfermo e vai morrer.

     Tive um pressentimento.

     — Acreditas que ela seja um vampiro? — perguntei.

     — Sim, ela é, de fato.

     — Meu Deus! Isto é mais horrível do que pensei.

     — Não é? Morrerei, ainda, de desgosto.

     — Sim, morre de desgosto! Mas, de desgosto pela tua tolice! Entendeste?

     Fui rude; mas, não é todo remédio que tem sabor doce. O homem estava chorando a meu lado; sentia a compaixão mais sincera. A crendice, naquelas regiões, está tão arraigada, que se precisa de meios ásperos e rudes, se a gente quer combatê-la. De resto, pretendia permanecer ali, apenas algumas horas, e, por essa razão, não me sobrava tempo para longas explorações.

     — Senhor, esperava ouvir palavras de consolo, — disse o homem — mas não de escárneo.

     — Não estou zombando de ti, e, sim, pelo contrário, estou aborrecido com a tua superstição. Vai ao pope da vossa igreja e procura ouvi-lo. Ele te dirá que pecado cometes, em acreditar que a tua filha seja um vampiro.

     — Oh, estive falando com ele.

     — E então, que foi que disse?

     — O mesmo que disse a Wlastan, que também foi ter com ele.

     — Quem é esse Wlastan?

     — Antigamente, o meu melhor amigo; agora, porém, o meu mais rancoroso inimigo. O seu filho era o noivo da minha filha. Agora, ela se levanta da sepultura e vai sugar-lhe o sangue, de modo que ele se vai extinguindo aos poucos, e terá que morrer.

     — Hum! Então, ele também foi falar com o pope! Que foi que este lhe disse?

     — Concordou que a minha filha era um vampiro.

     — Impossível! Então, ela morreu sem confissão e sem absolvição? Diz-se que isso sempre acontece com os vampiros.

     — Infelizmente, foi assim. O pope mora longe daqui e não pôde vir. E, em Tekirlik, não pude enterrar o cadáver, por causa das bexigas.

     — Morreu tua filha dessa doença?

     — Sim. Naquele tempo, havia muitos doentes de varíola. A minha filha não se sentia bem; tinha dores de cabeça e não podia comer. Foi à casa de Wlastan, para tratar da mulher deste, que ia ser a sua sogra e estava enferma. Não tardou que regressasse. Tinha febre; decerto, aconteceu-lhe alguma coisa; estava aterrorizada, amedrontada; não pude, porém, saber o motivo. Em delírio, sempre dizia que o filho de Wlastan, seu noivo, tinha que morrer. Depois, vieram as bexigas e ela morreu; mas, antes de expirar, ainda disse que ele ia morrer. Agora, ela é um vampiro e vem buscá-lo, se não se aplicar o meio indicado pelo pope.

     — Que meio é esse?

     — Tem que se abrir a sepultura e enterrar-lhe no coração uma estaca benta, ponteaguda, que tenha estado, durante oito dias, embebida na banha de um porco, matado oito dias antes de Natal.

     — Horrível, horrível! Também acreditas nisso, na eficácia desse remédio?

     — Sim. Mas, não concedo licença para que se faça isso. O pope que venha e fique, vigilante, ao lado do doente; então, o espectro não virá. Se isso acontecer, durante doze noites seguidas, ela não voltará e estará salva. Se, porém, fôr ferida na sepultura, cairá nas mãos do demônio. Dizem que é medonho o aspecto de um vampiro, quando vai ser ferido: grita e pede com palavras meigas. Isso se realiza, sempre, à meia noite. O corpo do vampiro não se desfaz. Está deitado no túmulo, com o calor e o sangue, como se fosse vivo. Porque não quero deixar abrir a sepultura da minha filha, Wlastan tornou-se meu inimigo mortal.

     — Que é esse homem? — perguntei.

     — É ladrilheiro e telheiro, enquanto eu faço somente tijolos refratários. Somos filhos da região de Drenowa e viemos para cá, a fim de arrendar a olaria. Ele era abastado; eu, pobre. Mas não era orgulhoso e o seu filho queria ser meu genro. Agora, tudo está acabado.

     — Ele mora longe daqui?

     — Um quarto de hora, rio acima.

     — Procurá-lo-ei amanhã, cedo, e lhe direi o que penso. Vocês os dois são incrivelmente tolos!

     — Então, o pope também seria estúpido?

     — Talvez seja mais do que isso. Mas, dize: a tua filha vem, em dias determinados, através do espaço, para bater na tua porta?

     — Não vem com muita regularidade.

     — Nunca correste para fora?

     — Não. Como poderia? A vista de um vampiro, paga-se com a vida.

     — Então queria que viesse hoje.

     — Hoje, é quarta-feira e, nesse dia, quase sempre tem vindo.

     — Bem! Então, vou perguntar-lhe por que não te deixa dormir.

     — Senhor, isto seria loucura! Eu teria que enterrar mais um cadáver.

     — É possível.

     — Refiro-me ao teu cadáver.

     — Dificilmente. Entretanto, vamos encerrar a nossa conversa. Ouço que os meus companheiros estão falando. Agora comeram e me procuram.

     — Nada lhes dirás?

     — Só ao pequeno hadji irei contá-lo. Ele me ajudará a curar o vampiro.

     — Senhor, peço-te encarecidamente que não procedas irrefletidamente. Vais sacrificar estupidamente a tua vida.

     — Pelo contrário, agirei muito refletidamente. Aliás, já há muitos anos, anseio por ver um fantasma e ficaria muito satisfeito se esse desejo, hoje, fosse realizado.

     — Vejo que não tens medo e adivinho o motivo. Quererias ter a bondade de me mostrar o feitiço que possuis?

     — Sim, com gosto. Aqui está. Mostrei-lhe os punhos cerrados.

     — Abre a mão, para que possa ver.

     — Olha aqui! Não há coisa alguma na mão. O talismã são os punhos; é o que quero dizer.

     Não mais falamos, visto que nos encontramos com os outros. Diante da casa, mantivemos ainda uma breve conversação, durante a qual dei uma prova do meu fumo ao kerpitji, que se sentiu muito feliz, e depois dissemos boa noite aos dois velhos. Não se admiraram pouco, quando lhes comunicamos que iríamos dormir, lá no alto, junto à sepultura. Protestaram decididamente, mas não obtiveram resultado. Onde uma infeliz criatura, cansada do mundo, está dormindo o sono eterno, a gente pode, sem receios, deitar-se para o breve repouso de uma noite.

     Osko e Omar subiram; com o pretexto de olhar pelos cavalos, fiquei com Halef.

     — Sídi, tens algum segredo, que esses dois não devam saber? — perguntou Halef.

     — Tenho. Já viste, alguma vez, um duende, Halef?

     — Dizem que existe toda a espécie de djinns, no deserto e nas florestas, nos montes e vales; mas ainda não vi nenhum espírito.

     — Estás enganado. Já viste um.

     — Onde?

     — No país dos curdos, o espírito da caverna.

     — Refere-te a Marah Durimeh? Era uma boa mulher, mas não um djinn mau. Um verdadeiro djinn, entretanto, eu queria ver.

     — Sei de um.

     — Onde?

     — Aqui. Durante a noite, vem um espectro, pelo ar, e bate nessa porta.

     — Oh, milagre! Acreditas que também venha hoje?

     — Não sei; mas desejo.

     — Eu também. Poderíamos perguntar a esse espírito, se tem o passaporte do Grão Senhor. Vamos?

     — Vamos. Dentro de meia hora, será chegado o momento em que ele costuma vir. Se não vier, perderemos só esses poucos minutos.

     — Então, vamos esperá-lo?

     — Aqui, no arroio, atrás dos arbustos, podemos estar deitados, confortavelmente, no capim, e estaremos tão próximos da casa, que a alcançaremos em cinco passos. Esperamos até que ele queira voltar e o seguraremos, então, de ambos os lados.

     — Utilizaremos as armas, se ele se defender?

     — Vamos ver se evitamos isso. Nós dois, com certeza, conseguiremos segurar um único fantasma.

     — Creio que sim. Na verdade, não te precisaria, para isso. Sou teu amigo e protetor. Poderias deitar-te, tranqüilamente, para dormir.

     Ao dizer essas palavras, meteu-se atrás de um dos arbustos. Deitei-me, perto dali, atrás de outro. A falar verdade, só procedi assim pour passer le temps. Estava firmemente convencido de que o vampiro não viria. Por isso, não pensei em tomar as necessárias precauções e perguntei, na distância de vários metros, como ia se sentindo Halef, com a sua dor no peito, e lhe recomendei que se poupasse, se, por acaso, tivéssemos de lutar, corpo a corpo.

     — Fica quieto, sídi — respondeu. — Quem quer pegar um djinn, não pode adverti-lo, por meio de uma palestra, em voz alta. Agora, aprenderás isso de mim.

     Naturalmente, obedeci a essa ordem. O pequeno hadji tinha razão. Uma vez que estávamos ali, devíamos encarar a coisa com seriedade. E séria ela era, efetivamente. Já tinha lido e ouvido muito sobre essa superstição dos vampiros. Agora, tratava-se, em caso de termos sorte, de examinar as asas de um desses chupadores de sangue e livrar os nossos dois bons hospedeiros de um pavor e de um sofrimento. Certamente, era um embuste.

     Assim, esperamos muito mais de meia hora. Já eu queria ir embora, quando ele apareceu, rastejando, rapidamente e sem ruído, vindo do lado onde me encontrava. Era a figura de um homem, sombria, que se arrastou até a porta, com movimentos ágeis, parando ali para espreitar. Depois, o tratante produziu aquele ruído sibilante que ouvi, certa vez, em Viena, num teatrinho de fantoches, quando Mefistófeles veio buscar o doutor Fausto.

     Assobia-se fortemente, faz-se o som aumentar e diminuir e, ao mesmo tempo, deixa-se ouvir um sussurro, como se cantasse em voz baixa. Isso dá a impressão exata de que o vento zune numa aresta de rochedo. Depois, aquele patife bateu três vezes na porta da casa e queria afastar-se, rapidamente. Nisso, ouviu-se a voz de Halef:

     — Dur, gizli jueruemdji, chimdi seni bizm-war. — Pára, pisa-mansinho, agora te pegamos!

     Saltou contra o homem, para agarrá-lo. O espírito, como espírito, tinha muita presença de espírito. Deu uma pancada na cara do hadji e bradou:

     — Ered a tatarba!

     Dizendo essas palavras, afastou-se correndo.

     Se o pequeno Halef não tivesse aberto a boca antes do tempo, a coisa teria se passado de outro modo. O indivíduo fugiu em direção oposta àquela em que eu me achava, de maneira que tinha uma dianteira igual à largura da casa. Contudo, corri no seu encalço, e, ao passar, disse, furioso, algumas grosserias a Halef. Punido dessa forma, ele me seguiu, velozmente.

     O fugitivo era um bom corredor. Tratava-se de fazer, desde logo, um grande esforço. Entre os índios, aprendi a atirar-me para a frente, ao invés de saltar, e assim aproximei-me rapidamente, tanto que já estendia a mão para segurá-lo. Mas, também agora, não o abandonou a presença de espírito. Num movimento célere, desviou-se do caminho, e passei por ele, pois me encontrava com as duas pernas no ar. Naturalmente, voltei-me instantaneamente. Ele corria através do arroio; quase tinha atingida a margem. Tomei impulso, para, num salto, alcançar a outra margem. Consegui. Ergui-me logo, e o segurei. Pegara-o pela cinta e travara um dos pés, para derrubá-lo.

     — Az istenért! — deixou ele escapar, num grunhido.

     Ou o homem afrouxou, rápido como um relâmpago, a cinta, ou esta não se achava bem segura — fiquei com um pedaço na mão e cambaleei para trás, em conseqüência do próprio esforço feito; o espírito, porém, atirou-se por entre as sarças, onde já não precisava segui-lo.

     — Pegaste-o? — perguntou-me Halef, que, justamente, se preparava para saltar, igualmente.

     — Não; mas já te pegarei pelas orelhas! Ontem, caíste do pombal e, hoje, espantas esse homem, com o teu grito intempestivo.

     — Sídi, isso foi exclusivamente devido ao entusiasmo! Aquele meliante só fugiu, realmente, de medo.

     Isso era tão engraçado, que, apesar do aborrecimento, tive que rir.

     — Naturalmente de medo e não de audácia. Agora, podes ir procurá-lo, se queres preguntar-lhe pelo passaporte do Grão Senhor.

     — Ao clarear do dia, acharemos os seus rastos.

     — Sim, justamente, quando pretendemos partir.

     — Mas, pelo menos, tens alguma coisa dele. Que é?

     — Um pano velho, que, ao que parece, servia-lhe de cinta.

     — Entendeste o que disse?

     — Sim; era húngaro. Perguntarei ao tijoleiro se conhece alguém, por aqui, que fale essa língua. Na cinta, está metida alguma coisa. Vamos ver o que é.

     Sentira algo naquele pano, semelhante a um objeto redondo, com um cabo. Tirei essa coisa e pretendia levantá-la contra o céu para ver do que se tratava. Mas o cheiro penetrante, que veio ao meu nariz, provou-me, antes de olhar, que tinha na mão um cachimbo velho, completamente embebido de suco de fumo.

     — Que é? — perguntou Halef.

     — Um cachimbo.

     — Allah! 'l Allah! Os fantasmas também fumam?

     — Às vezes, ao que parece, e isso com fumo que não é de boa qualidade.

     — Mostra-me.

     Pegou o cachimbo, cheirou e exclamou:

     — Ai de mim! Quem quiser cheirar nisso, não pode ter nariz. Levantou o braço para atirar fora aquele objeto; impedi-o, no entanto.

     — Alto! Que vais fazer? Preciso desse cachimbo.

     — Alá te guarde! Queres fumar nisso?

     — Não. Servirá para saber quem é o fantasma.

     — Tens razão. Eu o teria jogado fora e, assim faria mais uma asneira.

     — Vamos voltar à casa do tijoleiro.

     Este tinha ouvido o grito de Halef, bem como as palavras proferidas pelo desconhecido representante do fantasma e, depois, os nossos passos. Estava atrozmente amedrontado. Quando entramos na casa, o seu rosto estava branco como um lençol e nada menos o da sua mulher.

     — Viste o vampiro, senhor? — perguntou, levantando-se, precipitadamente, do assento.

     __ Vi.

     — Então, terás que morrer. Quem avista um vampiro, não pode ficar com vida.

     — Morrerei, nesse caso, muito breve, porquanto não só o vi, como também o ataquei.

     — Deus do céu!

     — Segurá-lo-ia de muito bom grado. Infelizmente, porém, escapou-me.

     — Pelo espaço?

     — Não; pelo contrário, andando muito direitinho pela estrada e, depois, através do arroio. Ao fugir, chegou a dizer algumas palavras.

     — Quais?

     — Eredj a tatárha e az istenêrt.

     — Ninguém pode entender isso. Certamente, é a linguagem dos duendes.

     — Oh, não! É o idioma dos magiares, que conheço perfeitamente. O espírito estava muito assustado. As palavras, por ele pronunciadas, só escapam quando se está com medo. Haverá, aqui nas proximidades, alguém, que tenha vindo da Hungria?

     — Há.

     — Quem é?

     — O servo de Wlastan.

     — Ah, isso é muito curioso. Tu o conheces?

     — Muito.

     — Conheces, também, esses dois objetos?

     Mostrei-lhe a cinta e o cachimbo.

     — Pertencem àquele criado — respondeu. — Conheço muito bem, particularmente o cachimbo. Ele pita com esse cálice de barro e canudo de junco. Quando o canudo está bem embebido de fumo e este já escasseia para encher o cachimbo, ele corta um pedaço de junco com os dentes, para mastigar. Diz que isso é que constitui a coisa de mais fino sabor. É meu inimigo, porque queria a minha filha e o repeli. Agora, ele também estava aí fora?

     — Não sei bem certo. Acredito que o vampiro não volte mais. Amanhã, o verás. Resolvera partir ao clarear do dia; mas ficarei algumas horas mais, para ir contigo à casa de Wlastan.

     — Que estás pensando, senhor? — disse, assustado. — Ele nos poria porta fora!

     — Dou-te a minha palavra de que, mesmo que nos receba indelicadamente, acabará por despedir-se de nós com a maior amabilidade. Terás restabelecido, completamente, as tuas relações com Wlastan.

     — Como queres conseguir isso?

     — Desejo pensar sobre o caso, e é a razão por que vou descansar. O tijoleiro não queria que me retirasse. A nossa aventura diante da sua casa constituía uma charada e o que eu disse não lhe era possível compreender. Pediu esclarecimentos; preferi, porém, fazê-lo esperar, para se convencer, diante dos fatos, de que não existem vampiros e fantasmas. Por isso, saí, com Halef, recusando responder a qualquer pergunta, e subi a mencionada colina. Osko e Omar já estavam dormindo. Não se conversou coisa alguma.

     Convenci-me de que aquele servo, por vingança pela recusa que sofrerá, tivera a idéia de fazer passar a falecida filha do kerpitji por um vampiro. Amanhã cedo, iria chamar aquela ave sinistra, para extorquir-lhe uma confissão.

     Como estávamos todos cansados, em breve, o sono apoderou-se de nós; contudo, pelo menos eu dormia um sono muito leve. Tinha o pressentimento de que algo ainda nos iria acontecer.

     Tinha eu sonhado ou era verdade: ouvira um ruído semelhante ao de uma pedra que rola do alto da colina, atravessando as sarças. Ergui-me e escutei. Sim, de fato, aproximavam-se passos, não de uma, mas de muitas pessoas.

     Rapidamente, acordei os meus companheiros. Algumas palavras lacônicas, em voz baixa, bastaram para orientá-los e desaparecemos, por entre os arbustos, na direção oposta àquela em que se ouvia o ruído das pessoas que se aproximavam.

     Mal tínhamos tido tempo de nos esconder, quando apareceram as pessoas, que tão sem-cerimônia nos vieram roubar o sono. Debaixo do plátano, naturalmente, estava mais escuro do que no campo, iluminado pelo céu cheio de estrelas; contudo, podia distinguir perfeitamente quatro pessoas. O que ia na frente, parecia trazer diversas ferramentas, que jogou ao chão, perto da sepultura; pouco atrás, caminhavam outras duas pessoas, que conduziam uma terceira, cautelosamente, para, afinal, fazê-la sentar no solo. Uma daquelas duas era uma mulher.

     — Começamos logo, senhor? — perguntou o primeiro.

     — Sim. Temos que nos apressar. Já está perto da meia-noite. A bruxa do inferno não deve mais sair do túmulo!

     — Não nos fará mal? — perguntou a mulher, amedrontada.

     — Não. Já te disse cem vezes que praticamos uma boa ação. Agarra a enxada, András!

     András, em português André, é uma palavra húngara. Constatei, assim, quais eram as pessoas que se encontravam na nossa frente. Eram Wlastan, sua mulher, o filho e o servo.

     Nada podia ter sido mais satisfatório para mim. Resolvi não deixar, sequer, que essa gente tocasse na sepultura; procedi sumariamente. Algumas palavras, dirigidas aos meus companheiros, eram suficientes. Saltamos para a frente. Um grito quádruplo e cada um de nós estava com uma daquelas quatro pessoas pela garganta, eu com o servo.

     — Nagy Isten. — Grande Deus! — berrou este.

     Joguei-o ao solo e o segurei fortemente, puxei a faca e encostei-lhe a ponta na garganta.

     É singular que, nesses momentos, embora se conheça muitas línguas, sempre se serve, involuntariamente, da materna; assim também o húngaro. Não devia dar tempo a que refletisse.

     — Eras o vampiro! — bradei-lhe.

     — Sim — respondeu, aterrado.

     — Para vingar-te, porque a filha do tijoleiro não gostava de ti?

     — Sim.

     — Todas as noites vinhas bater nesta porta, fazendo o papel de fantasma?

     — É verdade.

     Essa confissão era bastante para convencer os outros três; mas, lembrei-me de que o filho de Wlastan estava definhando lentamente. Na verdade, isso podia verificar-se só de medo do vampiro; todavia, a pergunta já estava na ponta da língua:

     — E, ao teu jovem amo, ias ministrando alguma droga misteriosa?

     — Perdão! — gemeu o criado.

     — Que era?

     — Veneno de ratos; mas, todos os dias, só um pouco.

     — Ele devia morrer aos poucos?

     — Sim.

     — Por quê? Dize a verdade, senão meto a faca na tua garganta.

     — Queria ser o filho e sucessor — balbuciou o húngaro.

     Agora, tudo estava desvendado. A filha do tijoleiro tinha voltado à casa, assustada, apavorada e, ainda antes de expirar, dissera que o seu noivo ia morrer; mas, calara a origem do que sabia. Segurei o patife com mais vigor e perguntei:

     — A noiva do teu jovem amo pilhou-te, quando lhe estavas dando veneno e tu a obrigaste ao silêncio, com ameaças?

     Seria de medo da faca ou acreditaria ele — tão perto da sepultura e em conseqüência da premeditada violação de um cadáver — que não estava tratando com um ente humano? Não importa. Confessou.

     — Ameacei-a de que também mataria seus pais, se tivesse a idéia de me denunciar.

     — Chega! Vamos todos à casa do tijoleiro.

     Levantei o criado e obriguei a caminhar na minha frente, colina abaixo. Os outros seguiram-nos. Ninguém disse uma palavra. O bom proprietário da choça ainda não estava dormindo. Naturalmente, ficou profundamente admirado ao nos ver entrar, juntamente com o seu inimigo mortal.

     — Aqui, — declarei, atirando o servo a um canto — aqui está o vampiro. Examina-o bem. Ele vive de velhos juncos embebidos de fumo e desenterra os cadáveres, para seu próprio divertimento.

     O bom homem olhou-nos, um por um. Não conseguia articular uma sílaba. Wlastan já recuperara o uso da língua. Estendeu-lhe as mãos e disse:

     — Perdoa! Fomos enganados.

     — Como vieram aqui?

     — Queríamos abrir a sepultura, lá em cima. Trouxemos a estaca -benta, para enterrá-la no coração da tua filha. Nem mesmo eu sei como ... como...

     Não ouvi mais. Não me senti autorizado a assistir à cena de reconciliação que se ia seguir e, por isso, saí. Halef, Omar e Osko seguiram-me.

     O pequeno hadji fazia toda a sorte de glosas sobre o vampiro. Ouvimos as palavras pronunciadas dentro do casebre, primeiro furiosas e agressivas — certamente contra o servo— depois mais calmas e, finalmente, alegres. Em seguida, fomos convidados a entrar.

     — Senhor, — disse o kerpitji — tudo devemos a ti. Tiraste a vergonha e o sofrimento da nossa vida. Como poderei pagar-te isso?

     Também a sua mulher estendeu-nos a mão, soluçando. Entretanto, declarei:

     — Devem tudo ao seu próprio procedimento. Apesar de pobres, receberam com hospitalidade, um desconhecido. Agora, terão a recompensa: não mais precisarão jejuar de tristeza pela lenda estúpida, que lhes amargurava a existência. Se não te queixasses do teu sofrimento a mim, o socorro certamente não teria sido tão rápido.

     — Sim, ouvi dizer que eras entendido em todas as ciências. Conheces, também, os venenos?

     Olhei para o filho de Wlastan, o qual estava ali, com o rosto descarnado e pálido. Contudo, os seus olhos brilhavam de contentamento e esperança.

     — Entendo tanto de venenos, dos seus efeitos e dos antídotos, que posso assegurar que este bom rapaz ficará curado, muito em breve, se forem a um médico de verdade e não a um curandeiro. Aquele indivíduo, que está atirado ali no canto, deverão entregar ao juiz. Que receba o seu castigo!

     O meu diagnóstico, embora sendo de um leigo, produziu a maior alegria, até mesmo no rapaz, que veio rapidamente ao meu encontro e me apertou a mão, com tanta força, como os seus pais.

     Sem dizer palavra, Wlastan tomou uma corda, amarrou as mãos do criado e o levou dali. Um sinal seu fêz com que sua mulher o seguisse.

     Quando voltaram, depois de meia hora, mais ou menos, ela trazia um cesto grande, cheio de comestíveis; ele, entretanto, carregava um enorme cântaro.

     — Senhor, — disse Wlastan — não quiseste beber o vinho matrimonial do meu pobre inimigo, que agora será, para sempre, o meu amigo mais prezado, por causa da sua pobreza; no entanto, sou rico; poderás beber o meu, que acabo de desenterrar.

     — Beberei. Mas, se esse vinho nos agradar, terás que me prometei a tua proteção ao pobre amigo, para que ele não mais precise esforçar-se, além do possível, para conseguir os meios que afastem o sofrimento e a miséria.

     — Prometo, com satisfação. Aqui tens a minha mão. Sempre que estivermos juntos, lembrar-nos-emos de ti e desta noite, com alegria imensa.

     Em seguida, começou o jantar festivo. Os meus três companheiros maometanos notaram quanto nos agradava o vinho. Decerto, a boca se lhes enchia d'água. Halef, então, cochichou, ao meu ouvido:

     — Sídi, é tão vermelho-carregado e esteve debaixo da terra; não é mais vinho.

     — Que é, então?

     — É o sangue da terra. Isto, com certeza, se pode beber?

     — Naturalmente!

     — Então, permite que enchamos também os nossos copos. Queremos ficar alegres, como vocês.

     E encheu o copo — muitas, muitas vezes.

     Só se deve dizer, ainda, que ninguém teve idéia de dormir. E, ao raiar do dia, quando nos dirigíamos para a estrada e deixáramos o pequeno vale, comentou o hadji:

     — Quando voltar para casa, onde me espera Hanneh, a mais bela das beldades, ensinar-lhe-ei a fazer, do vinho, sangue da terra, porque uma gota deste abafa todos os sofrimentos do mundo. Alá é grande e Maomé o seu Profeta!

 

    No Konak de Dabila

     Os estados que se encontram sob o domínio do sultão pertencem àqueles, em que o viajante, por vezes, verifica, com pesar e também com prejuízo, que os mapas, pelos quais se deve guiar, em caso de necessidade, não correspondem à verdade.

     Para se poder ler uma carta geográfica, precisa-se de certos conhecimentos; mas, mesmo que se os tenha, poderão surgir os maiores embaraços se se confiar nos desenhos que não reproduzem fielmente a verdadeira situação dos acidentes topográficos.

     Existem, por exemplo, em numerosos mapas, dois traços, partindo da antiga e famosa Seres, para o norte, em direção a Demir-Hissa e Petrowitch, até chegar a Kõprili e Uskub. Conclui-se, ao ver essa linha dupla, que ali existe uma boa e larga estrada ou rodovia — mas, quanto é diferente a realidade!

     Não há sinal de uma verdadeira estrada. Quando deixamos os desfiladeiros e nos aproximamos do vale do Strumnitza, supunha encontrar, como as cartas geográficas indicavam, uma boa estrada, paralela àquele curso d'água. Mas o que encontramos não podia ser comparado, em hipótese alguma, com uma estrada vicinal. Os caminhos pelos quais os nossos colonos se dirigem às suas roças são melhores e mais bem conservados, do que o era aquela estrada real.

     Do ponto, onde tínhamos entrado na chamada estrada real, precisaríamos de cinco horas de viagem para chegar a Ostromdja, se não se quisesse forçar os animais. Essa localidade constituía o termo da jornada, nesse dia.

     Outrora, tive em mãos uma antiga obra cartográfica da Turquia. Era dedicada a Sua Alteza Real Carlos, príncipe-primaz da União Renana, o Grão Duque de Francfort, arcebispo de Ratisbona, etc; ao “magnânimo príncipe alemão, conhecedor e amigo das ciências e generoso protetor dos sábios.” Ao cavalgarmos em direção a Ostromdja, ocorreu-me que, segundo aquela obra, esta localidade devia ser encontrada perto de um serro, em cujo topo existia um castelo antigo, em ruínas. Nas vizinhanças, realizava-se, antigamente, uma feira famosa, e, ao sopé do morro, surgiam fontes de água quente. Mas, quem pode confiar num “Panorama da Turquia Européia”, editado em 1812!?

     Por algumas corografias mais recentes, sabia que aquela cidade tinha cerca de sete a oito mil habitantes, na maioria turcos e búlgaros, que se dedicavam preferencialmente à cultura do algodão e tabaco. Estava curioso para ver como se nos apresentaria tal cidade.

     Infelizmente, Halef ainda sentia dores. A nossa última aventura no pombal, parecia que lhe tinha produzido um traumatismo violento, embora não fosse perigoso. É verdade que não se queixava, mas, sem embargo, deixei que os cavalos andassem devagar, para não o obrigar a maior esforço.

     À margem esquerda do rio estendia-se a planície, que, em seguida, se elevava aos poucos até os morros de Welitza, e, à direita, os cumes de Plachkawitza-Planina eram cortados pelos abismos.

     Alcançamos Radowa, um ninho triste, cujos habitantes, ao que parecia, dedicavam-se à plantação do tabaco e, após, a estrada conduzia, por sobre uma ponte velha, para a outra margem do rio. Como andássemos devagar, somente alcançamos, quase ao meio dia, a aldeia de Dabila, que era a nossa última etapa antes de Ostromdja.

     Bem notara que Halef, de quando em quando, cerrava os lábios numa contração de dor. Por isso, ao entrarmos na aldeia, procurei, desde logo, um lugar onde pudéssemos descansar. Vislumbrei um muro comprido e alto, em mau estado, por trás do qual apareciam algumas casas. A parte superior do portão estava pintada de branco e nela estavam escritas, em turco, as seguintes palavras: ''Mekian rahatuen ile eminlikuen ile huzurun.”

     Essa legenda despertou-me uma impressão de saudade da minha terra distante. Um letreiro, uma inscrição num chan turco era uma raridade. Estas palavras significavam: “Albergue para descanso, tranqüilidade e conforto”. Poder-se-ia confiar nelas?

     — Vamos entrar aqui? — perguntei a Halef.

     — Se queres, sídi — respondeu —; farei o que te agradar.

     — Então, vamos!

     Penetramos, pelo portão, no pátio, que era circundado por três casas baixas e pelo mencionado muro.

     No meio daquele havia o que se costumava chamar de “mina de ouro do agricultor”; refiro-me ao depósito de estêrco. Pelo seu tamanho e pela sua altura, podia-se acreditar que o seu proprietário era rico daquele metal precioso, tanto mais que todo o pátio, propriamente, podia aspirar à qualificação de mina de ouro; pois, mal tínhamos passado o portão, os cavalos começaram quase a nadar num mar profundo de resíduos vegetais e animais, que faziam sentir a sua presença, de uma maneira pouco agradável, aos órgãos do olfato.

     — Ej gõzel koku, ej nimet burundan — Oh, perfume! Oh, delícia do nariz! — exclamou Halef. — Sim, isto é uma hospedaria de conforto. Quem se deitar aqui, terá uma cama muito fofa. Sídi, queres experimentá-la?

     — És o meu amigo e protetor; imitarei o que fizeres.

     Com isso, terminara a nossa troca de impressões, porquanto uma canzoada ladrante nos atacou furiosamente. Parecia que aquelas feras queriam despedaçar-nos. Meti as esporas no cavalo e espalhei a matilha, que, aos latidos, se dispersou.

     Procuramos inutilmente alguma pessoa. As casas, situadas à nossa direita e à esquerda, davam a impressão de servir para fins agrícolas, enquanto a que nos ficava fronteira parecia ser a habitação; mas, só parecia, pois nada autorizava a acreditar na exatidão do que supúnhamos. Havia buracos, mas não janelas propriamente ditas. Igualmente, não se via chaminé. A porta era estreita e baixa. Não obstante, aproximamo-nos dessa casa e apeamos.

     Só então um ente humano deixou-se avistar. Não podia dizer se se tratava de um homem ou de uma mulher. Aquela criatura trazia calças vermelhas, enormemente largas, amarradas um pouco acima do tornozelo. Não podia distinguir se os pés estavam descalços ou metidos em sapatos. Mas estavam pretos: disso não havia dúvida. A camisa cobria-o desde o pescoço até os joelhos. Estava amarrada à cintura por uma tira de couro e acreditei que, em tempos idos, tivesse sido uma fustanela (1) branca. Agora, porém, parecia ter servido, durante dez gerações, aos bisavós e aos tataravós de pintores de brocha, e, finalmente, como complemento especial, ter sido passada no lodo de um banhado. O pescoço e a cara eram extremamente magros e certamente nunca haviam tido contato com água. A cabeça balançava, como um pagode chinês. Sob os trapos de pano, que lhe cobriam a cabeça, apareciam alguns fios de cabelo.

     — Gueniz cbajir ola — Bom dia! — cumprimentei. — Quem és?

     — Im bach djarije — Sou a criada-chefe — foi a resposta, com entonação de superioridade.

     — Onde está o teu amo?

     — Lá dentro.

     Com essas palavras, a provedora daquela hospitaleira casa, fêz um gesto com o polegar sobre o ombro, mostrando o interior da habitação.

     — Selamlariz onu — Então, iremos cumprimentá-lo.

     — Pek ei sultanum — Muito bem, meu senhor.

     Afastou-se, para nos dar passagem. Tive de me curvar, para não bater com a cabeça na trave da porta. Não havia vestíbulo, como verifiquei, então. A casa era constituída pelas quatro paredes laterais e pelo telhado de palha. O interior estava dividido por trançados de vime, como acontece, freqüentemente, naquelas regiões.

     — Sol tarafda — À esquerda! — orientou-nos a criada-chefe.

     Obedecemos e entramos na divisão por ela determinada, sem encontrar o hospedeiro.

     O compartimento era iluminado por duas aberturas na parede. Não havia janela, como já disse. No centro, estava uma mesa, com quatro bancos ao redor. Muito bem lavada, dava uma impressão de limpeza o que me deixou profundamente admirado. Pela aparência da criada, não podia esperar isto. Também os bancos estavam limpos e sem mancha.

     Como não enxergasse nenhuma imagem sagrada, supus que o proprietário fosse moslemita.

     Nas aberturas da parede, encontravam-se alguns vasos com flores, que davam uma boa impressão àquela parte da casa e o reservatório de madeira, que continha água, mostrava-se tão limpo que era um prazer a gente servir-se do seu conteúdo.

     Bati com o cabo do relho na mesa. Imediatamente, uma das paredes divisórias foi um pouco afastada e surgiu um homem, que perguntou o que desejávamos.

     Estava vestido à moda turca e levava um fêz vermelho na cabeça. Era de compleição robusta, e a barba espessa e longa, que lhe caía sobre o peito, dava-lhe um aspecto imponente.

     — És o dono da hospedaria? — perguntei-lhe.

     — Sou, mas não dou mais hospedagem — respondeu.

     — Então, terás de tirar o letreiro da tua casa.

     — Tirarei ainda hoje. Mandarei cobri-lo com tinta.

     _______________

     (1) Do turco: fystan, vestimenta de mulher. Ê uma espécie de saiote curto, com pregas, afunilado, que cái até os joelhos. Faz parte do traje nacional grego.

 

     Disse essas palavras com acento de desgosto, que deixava supor tivesse tido maus resultados com a sua hospedaria.

     — Não vimos para ficar aqui — esclareci. — Queremos, apenas, descansar um pouco e beber alguma coisa.

     — Podem descansar e beber. Também lhes darei algo que comer.

     — Que tens para beber?

     — Tenho raki e uma boa cerveja, que posso recomendar.

     Com que, então, o homem tinha cerveja! Hum! Era surpreendente.

     — Quem foi que a fabricou?

     — Eu mesmo.

     — Como a tens guardada?

     — Em cântaros grandes. Todos os dias, fazemos cerveja nova, pois distribuo aos meus empregados.

     Isto, agora, já não era uma boa recomendação. Naturalmente, o estalajadeiro percebeu o meu pensamento, pois declarou:

     — Podes experimentar, confiadamente. É bem nova, pois acabou de ser preparada hoje de manhã.

     Decerto, o homem acreditava que a cerveja é tanto melhor quanto mais nova. A minha opinião, no entanto, era bem diversa; contudo, encomendei a bebida, porque estava curioso por conhecer que diabo de coisa merecia, aqui, a denominação de cerveja.

     Foi trazido um grande cântaro de cerveja e colocado sobre a mesa.

     — Bebe! — procurou entusiasmar-me o homem. — Dá vigor e espanta os males.

     Enchi-me de coragem, tomei o cântaro com ambas as mãos e o levei à boca. A coisa não cheirava mal; dei um gole, corajosamente; mais um e continuei. Era muito aguada, tendo cinco vezes mais água do que a cerveja de Munich, mas não tinha gosto ruim. Era um remédio para a sede, mais nada.

     Também os outros beberam e deram opiniões lisonjeiras, talvez só porque não condenei. O hospedeiro ficou, visivelmente, satisfeito. As suas feições contrafeitas, tomaram uma expressão alegre e declarou, cheio de si:

     — Sim, eu mesmo sou fabricante de cerveja; e ninguém pode igualar-me.

     — Onde aprendeste isto?

     — Com um estrangeiro, que nasceu na terra da cerveja. Residia, durante algum tempo, em Istambul e era sapateiro. Mas, naquela terra, todos fazem cerveja e, por isto, ele também sabia. Era muito pobre e voltou à sua pátria. Compadeci-me dele e lhe dei hospedagem, com comida e cama, durante muito tempo. Em conseqüência, deu-me, em sinal de gratidão, a receita para fabricar cerveja.

     — Qual é o nome da terra de onde ele veio?

     — Guardei o nome, com todo o cuidado. Chama-se Elanka.

     — Ao que parece, não tomaste boa nota do nome.

     — Oh, sim! Era, de fato, Elanka.

     — Ou, talvez, Erlanga?

     — Erla... senhor, tens razão. Assim como disseste, esse é o nome do país. Recordo-me. A palavra não é fácil de pronunciar. Conhece essa terra?

     — Conheço, mas Erlanga não é uma nação e sim uma cidade da Bavária.

     — Sim, é isso mesmo! Era um bawarialy. Agora me ocorre. Bavária é uma parte da Alemanja, onde todos tomam cerveja. Até as crianças de peito reclamam-na, chorando.

     — O sapateiro disse-te isso?

     — Sim, foi!

     — Bem, não o conheço e não sei, portanto, se, já em tão tenra idade, ele bebia cerveja. Em todo o caso, provou que essa bebida não faz com que a gente se torne ingrata. Poderemos comer alguma coisa?

     — Sim, senhor; dize, somente, que deseja o teu coração.

     — Não sei o que tens para nos oferecer.

     — Pede o que quiseres — pão, carne, aves; temos de tudo, tudo.

     — Hum! Poderíamos conseguir uma fritada de ovos?

     — Sim, posso dar-te o que pedes.

     — Mas, quem vai prepará-la?

     — A minha mulher.

     — Não será a bach djarije, que nos recebeu?

     — Oh, não, senhor! Sei porque perguntas. Ela é a chefe e a mais ativa no trabalho da estrebaria, mas nada tem que ver com o preparo da comida.

     — Então, vamos experimentar.

     Saiu, para encomendar o que pedíramos. Os meus companheiros demonstraram a sua satisfação pelo fato de não ser a excelente provedora incumbida, também, dos serviços de cozinha.

     Quando o estalajadeiro voltou, sentou-se junto de nós e parecia observar-nos melhor do que antes.

     — Não os recebi com muita amabilidade — disse. — Não me levem a mal. Existem hóspedes que estragam a vontade da gente manter uma casa deste gênero.

     — Já tiveste alguma experiência desagradável?

     — Já, e muitas.

     — Decerto, há pouco tempo?

     — Sim, hoje, durante a noite. Fui roubado.

     — Por hóspedes? Como aconteceu esse fato?

     — Deves saber que cultivo muito tabaco. Em épocas determinadas, vem um negociante de fumos de Saloniki, o qual faz as suas compras. Ontem, esteve aqui e me pagou a última prestação, correspondente à safra do último ano. Eram exatamente cem libras. No momento em que ele punha as moedas, todas de ouro, sobre a mesa, chegaram três desconhecidos, que indagaram se podiam dormir aqui. Dei-lhes as boas-vindas e levei o dinheiro ao meu quarto de dormir. Daí, foi-me roubado.

     — Como puderam conseguir? É tão fácil penetrar no teu quarto? As paredes, também, são de vime, como estas?

     — Oh, não! O meu quarto fica no canto esquerdo, no fundo da casa e é constituído pelas paredes fortes dos muros e por duas paredes de tijolo, muito resistentes, que atingem até o telhado. A porta é sólida e, até, foi reforçada com ferro. Tomei tais precauções, porquanto é ali que guardo tudo quanto tem valor para mim.

     — Como puderam penetrar os ladrões? E, principalmente, como adivinharam que levaste o dinheiro para aquele quarto?

     — Deves notar que, aqui, todas as paredes são de vime e, portanto, podem ser afastadas facilmente. Por isso, foi possível a um dos três seguir-me e observar para onde levei o dinheiro. Depois, saiu rapidamente para os fundos da casa, a fim de espreitar pela janela, para ver onde colocava as moedas. Quando tinha guardado o dinheiro, pareceu-me ouvir um ruído, procedente de fora. Cheguei, apressadamente, à janela e escutei. Ouvi, então, passos, que se afastavam. Quando voltei, faltava um dos três indivíduos. Chegou alguns instantes depois.

     — Não desconfiaste desta circunstância?

     — No momento, não. Os passos que ouvira, podiam ser os de um dos meus criados, que, àquela hora, habitualmente, trabalham nos fundos da minha casa. Só mais tarde, quando dei falta do dinheiro, lembrei-me do fato e desconfiei, principalmente porque, depois de interrogar a criadagem, soube, por um dos operários, que, justamente à hora indicada, estivera no curral das ovelhas, que um dos desconhecidos com ele se tinha encontrado, ao vir do lado do meu quarto.

     — Sabes, por acaso, de que modo foi praticado o roubo?

     — Ainda é uma charada para mim. Quando fui dormir era muito tarde, algumas horas depois da meia noite. Jogara e ganhara dinheiro, motivo por que quis colocá-lo junto do outro. Quando abri o armariozinho, estava vazio.

     — Hum! Antes, estava fechado? Quero dizer, fechado à chave?

     — Estava, sim.

     — E o quarto, também?

     — Não. Este, não. Quase sempre está aberto, porque a minha mulher e os filhos, freqüentemente, entram e saem e, se o fechasse, teria sempre o trabalho de estar abrindo.

     — Disseste que ganharas no jogo. Com quem jogaste?

     — Com aqueles três homens.

     — Não jogaste também com o negociante de fumo?

     — Não. Ele partiu antes de anoitecer. Os hóspedes ainda não se sentiam cansados e me perguntaram se queria jogar cartas com eles. Manifestei-me de acordo e ganhei quase uma libra. Durante o jogo, tive que beber raki com eles e, como me obrigassem a tomar muito, fui ficando, pouco a pouco, embriagado e acabei tão cansado que não pude continuar jogando.

     — E, nesse caso, fôste logo para o teu quarto, para colocar o lucro no armário?

     — Não. Tive que abrir o portão para os homens. Disseram que era muito tarde, para irem dormir. Estava por amanhecer e, por isso, preferiram partir, em seguida. Pagaram mais do que lhes pedi pela hospedagem e, depois, partiram.

     — Para onde? Disseram-te isso?

     — Sim. Queriam ir a Doiran.

     — Hum! Isto é para o sul, passando por Furkoi e Oliwetza. E de onde vieram.

     — De Menlik.

     — Ah, de Menlik. E eram três? Viste-os bem?

     — Naturalmente! Joguei durante quase seis horas com eles.

     Tive o pressentimento de que esses três homens eram os mesmos que procurávamos. Por isso, continuei a perguntar:

     — Então, viste também os seus cavalos?

     — Sim. Eram três tordilhos.

     — Peh ne gueze! — Que lindo, que lindo! — interveio o pequeno hadji. — Sídi, imaginei logo, logo.

     — Sim, és um amigo atilado e protetor do teu amo.

     — Que foi que ele imaginou? — perguntou, apressado, o hospedeiro.

     — Alguma coisa, que talvez te interesse mais tarde — respondi. — Agora, peço-te que me dês maiores esclarecimentos.

     — É a respeito das pessoas que me roubaram?

     — Adivinhaste.

     — Então, interroga-me. Dir-te-ei, com muito prazer, tudo que quiseres saber.

     A sua fisionomia tomou outra expressão. As palavras do pequeno hadji fizeram-no supor que tínhamos qualquer relação com os ladrões e, assim, ansiava por saber alguma coisa sobre estes. Via-se que começava a nascer no seu íntimo uma esperança, embora muito incerta.

 

     — Então, eles já tinham partido, quando deste pela falta do dinheiro? — continuei. — A tua suspeita recaiu imediatamente sobre os três?

     — Não. Despertei, naturalmente, em primeiro lugar, toda a minha gente e a interroguei. Todos são pessoas honestas e não existe nenhum, entre eles, que eu julgue capaz de um ato semelhante. Revistei todos, sem encontrar coisa alguma que desse motivo a uma suspeita. Depois, lembrei-me dos três desconhecidos. Inquiri os criados sobre aqueles hóspedes e soube, então, que um deles estivera nos fundos da casa, justamente quando levei o dinheiro para o meu quarto.

     — Mas o roubo não foi praticado a essa hora. Pelo contrário, deve ter sido muito depois.

     — Naturalmente. Também penso assim.

     — Parece-me, igualmente, que não bastava um homem para apoderar-se do dinheiro. Foram precisos, certamente, dois deles. Não podes recordar se, alguma vez, dois saíram?

     — Saíram, sim. Lembro-me bem. O fato não me chamou a atenção, logo; só, depois, pensei nele.

     — Aconteceu isso, cedo ou tarde?

     — Antes da minha família ir dormir.

     — A tua gente dorme contigo, no mesmo quarto?

     — Naturalmente, todos.

     — Então, o roubo deve ter sido realizado antes de terem ido dormir. Os ladrões refletiram bem sobre o crime. Como puderam, entretanto, evitar que os surpreendesses em flagrante?

     — Um deles começou a mostrar-nos provas de prestidigitação com as cartas. Como eu gostasse muito, autorizou-me a chamar toda a minha gente para apreciar. Enquanto, assim, éramos entretidos, os dois outros afastaram-se, o que, entretanto, não me fêz desconfiar. Somente quando os companheiros voltaram, o homem nos disse que mostrara tudo quanto sabia. Depois, toda a minha gente saiu e começamos a jogar.

     A gente não se deve admirar de que, aqui, na Turquia distante, existissem jogos de cartas. Já muitas vezes vira jogar cartas naquela terra. Sim, cheguei a ser espectador de prestidigitadores de baralhos, que não se precisariam envergonhar diante de nenhum dos europeus. Quase sempre, no entanto, tratava-se de gregos ou armênios. O turco, propriamente, não tem a paciência precisa para, pelo exercício, adquirir a necessária agilidade. Portanto, não me admirei, absolutamente, de que, aqui, no albergue de Dabila, tivessem sido apresentados trabalhos de prestidigitação; mas, senti-me curioso por saber qual dos três se tinha apresentado como artista.

     Pedi que o hospedeiro descrevesse o homem e cheguei à conclusão de que o guarda da prisão, cúmplice na fuga, era o prestidigitador. Conseqüentemente, Manach el Barcha e Barud el Amasat fizeram o roubo, juntos, e era de se acreditar que o guarda estivesse informado do seu propósito.

     — Então, depois da revista e do interrogatório, chegaste à convicção de que os desconhecidos eram os autores do roubo? — prossegui. — Que fizeste, depois?

     — Mandei todos os meus criados, a cavalo, em sua perseguição.

     — Ahn! Por que não foste junto?

     — Corri para Ostromdja, em busca do chefe de polícia, para fazer a queixa e pedir alguns khawass. Só me atenderam depois de longas negociações e de eu ter pago quinhentas piastras. Fui obrigado a me comprometer ao pagamento de todas as despesas que se verificassem com a perseguição dos ladrões e, caso fossem pegados, a dar, ainda, uma gratificação especial de dez libras.

     — Esse homem honrado é um administrador inteligente do seu próprio bolso. Alá que o conserve, ainda, por muito tempo.

     — O diabo que o carregue! — respondeu o hospedeiro, ao meu voto piedoso. — O Profeta quer que reine justiça sobre a terra. Os funcionários do Grão Senhor têm que nos servir, sem exigir presentes, e, se desejas uma vida longa a esse mandrião, não te posso considerar um bom discípulo do Profeta.

     — Não sou, de fato.

     — Ah, és, porventura, um chiit, um adapeto da falsa doutrina? Ao dizer isso, o homem afastou-se um pouco de mim.

     — Não — respondi. — Sou cristão.

     — Cristão! É muito melhor do que um chiit, que, certamente, depois da morte, vai para o inferno. Vocês cristãos, se acreditarem em Isa Ben Marryam (Jesus) poderão, pelo menos, ir para o céu, embora só até o terceiro; os outros céus — do quarto ao sétimo— estão reservados só para os verdadeiros moslemitas. Nada tenho contra os cristãos, pois o homem, que me ensinou a fabricar cerveja, também era um katolika. Tanto mais me admira, porém, que almejes uma vida longa àquele funcionário.

     Aproximou-se, lentamente, de mim.

     — Formulei este voto, porque desejo que ele não morra, antes de sofrer o castigo pela extorsão — respondi. — Sabes, por acaso, quais são as providências que vão ser tomadas?

     — Sei. Vai mandar todos os seus khawass procurar os gatunos. Em todas as localidades, situadas entre a nossa e a de Doiran, será feita uma busca rigorosa; ele próprio quer ir à frente dos seus esbirros.

     — Suponho que, neste momento, está comodamente sentado nas suas almofadas, para fumar o seu querido tjibuk e tomar café.

     — Se soubesse disto, com certeza, ele não se sairia bem desta.

     — Saberás, porque, agora, irás conosco a Ostromdja para procurá-lo.

     — Eu? Por quê? — perguntou, espantado.

     — Falemos disso depois. Já verificaste se cumpriu a sua promessa e mandou os khawass, no encalço dos ladrões?

     — Não tive tempo, porque precisei voltar, para estar presente, no regresso dos meus criados.

     — Já voltaram?

     — Já. Tinham se dividido e foram até Furkoi e Welitza, sem descobrir pista alguma dos larápios. Aí, julgaram acertado voltar. Naturalmente, passei-lhes uma boa descompostura. São assalariados, que descuram dos interesses do seu amo.

     — Oh, não; fizeram muito bem.

     — Acreditas? Por quê?

     — E mesmo que fossem a Doiran ou mais longe ainda, não achariam pessoa alguma.

     — Dizes isso com tanta convicção?

     — Porque estou inteiramente convencido, de fato. Os ladrões nem sequer pensam em ir a Doiran.

     — Mas, declararam que iam.

     — Pregaram-te uma peta, para te enganar. Acreditas que um gatuno seja tão imprevidente, que vá mostrar a sua pista à polícia?

     — Quando disseram o seu destino, ainda não haviam cometido o roubo.

     — Mas já o premeditavam. Também tinham outro motivo para guardar segredo sobre o destino. Já estão sendo perseguidos por outros fatos antigos. Naturalmente, supunham que os seus perseguidores, caso viessem a Dabila, chegariam na tua casa, perguntando por eles. Por isso, deram indicação errada. E — coisa que também deves tomar em consideração — disseram que vinham de Menlik e queriam ir a Doiran. O caminho direto de uma dessas localidades à outra passa pelas montanhas de Sultanitza. No entanto, eles se dirigiram para leste, fazendo, aqui, uma curva para o sul. Desviaram-se da rota numa distância que avalio em cerca de duas milhas alemãs. Mas, quando se está em fuga e precisa poupar os cavalos, não se vai andar seis horas precisamente sem finalidade.

     O hospedeiro olhou-me, inquiridoramente.

     — Efêndi — perguntou — és realmente cristão?

     — Sou. Por que perguntas?

     — Se não fosses cristão, acreditaria que és funcionário da polícia.

     — Existem khawass, que não são moslemitas.

     — Não serias um khawass comum, mas sim um dos mais altos zabtie. E entre estes, ao que saiba, não se aceitam cristãos.

     — Por que estás com tanta vontade de me tomar por um polícia?

     — A tua pessoa parece-se com um polícia e falas como se soubesses de tudo, antes que te dissessem. Também os teus companheiros servem muito bem para o que me representam. Olha para esses dois! — indicou Osko e Omar Ben Sadek. — Que olhar perscrutador e severo! A dignidade do seu cargo está escrita nas suas feições. E, aqui, este pequeno! — Referia-se ao hadji Halef Omar. — Não se parece com a zabtie personificada? Estes olhos e esse sorriso esperto! Não parece mesmo que ele seria capaz de prender todo o mundo, se quisesse?

     Os meus três companheiros citados deram uma gargalhada. Respondi, seriamente.

     — Estás enganado. Somos simples viajantes, que estamos, como qualquer outro, sujeitos à proteção da polícia. Mas, percorremos muitos países e regiões, e vimos e aprendemos muito mais do que milhares de outras pessoas. Não nos causa embaraço, por isso, uma situação igual àquela em que te encontras. Quem, sempre, permanece em sua terra, tem idéias limitadas às proporções dos acontecimentos quotidianos e, quando lhe ocorre algum fato extraordinário, encontra logo dificuldades intransponíveis.

     — Podes ter razão, e... mas, aí vem a comida. Sirvam-se sem constrangimento. Quando tiverem terminado, poderemos continuar a conversa sobre a minha questão. Desejas, por acaso, que dê água e pasto aos cavalos? Tenho um bom milho, que está bem debulhado.

     — Sim, dá-lhes um pouco de forragem e dize a um dos teus criados que tire os arreios e molhe o lombo dos animais. Isso os refrescará. Trouxeram-nos de Edreneh até aqui, sem descansar uma única vez.

     — Não longe da casa, tenho um açude, com água limpa e clara. Queres que os meus criados os banhem?

     — Peço-lhes que façam o que dizes.

     O homem parecia ser um agricultor de iniciativa e, para as circunstâncias locais, de capacidade empreendedora, apesar da sujeira que havia no pátio. As cem libras, mil oitocentos e cinqüenta marcos, em dinheiro alemão, constituíam apenas uma parte do valor da sua safra anterior. Em qualquer hipótese, tratava-se de um homem muito abastado. E o fato de ter chegado a fazer um açude, provava que sabia utilizar muito bem a sua propriedade.

     Também sabia viver melhor do que a grande massa dos demais habitantes dali. Disso, teria a prova, em seguida, pela qual podia constatar igualmente que ele não nos considerava como viajantes comuns.

     A comida foi-nos servida por dois moços, vestidos com muito asseio. Os pratos eram de diversas fritadas de ovos que despertavam o apetite, pelo cheiro agradável que desprendiam, e de melancias temperadas com muito cuidado, além de outras frutas. As comidas encontravam-se sobre pratos de louça branca, do que muito me admirei, e só as melancias estavam num prato de barro vermelho.

     O hospedeiro verificou se estávamos bem servidos e ordenou, depois, quando já nos tinham apresentado até um cesto, contendo facas, garfos e colheres:

     — Peçam à senhora que mande quatro guardanapos e outros tantos panos de mesa para as mãos. Os homens, que aqui se encontram, são muito viajados e aristocratas. Não poderão dizer que foram mal servidos na casa do konakdji Ibarek.

     Portanto, era Ibarek o nome daquele homem atencioso, que possuía até guardanapos. Estava convencido de que a comida nos iria agradar bastante. O estalajadeiro afastou-se, para dar as ordens citadas aos criados. Em seguida, trouxeram-nos os guardanapos e os panos de mesa para as mãos, sendo que estes últimos me pareciam supérfluos. Panos de mesa, para as mãos, juntamente com guardanapos, possivelmente nunca são apresentados, nem mesmo nos hotéis de primeira categoria do ocidente.

     Quando tomei os guardanapos e entreguei um a cada um dos meus companheiros, sorri intimamente por ver todos os olhares, interrogadoramente, cravados em mim. Não sabiam o que fazer com aquelas coisas brancas e limpas. O pequeno hadji foi o único que se arriscou a ser ridicularizado por mim. Perguntou:

     — Sídi, que devemos fazer com estes panos? Pois já existe uma grande toalha sobre a mesa.

     — Mas, também não são toalhas.

     — Machallah! Milagre divino! Serão lenços? Nenhum de nós está resfriado.

     — Também não é isso. Estes panos são usados assim como estou mostrando, para que a gente não suje a roupa com a comida.

     — Allah akbar! Deus é grande! Nesse caso, a gente fina deve ser, positivamente, muito lorpa; porque precisa de cortinas para meter a comida na boca e não sujar as roupas. Aprendi a comer corretamente e o meu casaco esperará inutilmente poder beber um pouco deste excelente suco de melancia.

     Amarrei o guardanapo, o mais desajeitadamente possível e como os outros reproduziram exatamente o meu procedimento, acabamos por ficar como crianças, que recebem, na boca, despejado pela mamãe caprichosa, o mingau de leite bem preparado.

     Enquanto comíamos, notei que os cavalos eram levados para os fundos da casa. O hospedeiro, como legítimo muçulmano, parecia considerar indelicado testemunhar a nossa refeição. Voltou ao compartimento, onde nos achávamos, só depois de termos terminado, e deu ordem aos moços para tirarem a mesa e nos trazerem bacias com água. Também estas eram de louça branca, e, finalmente, vieram também as toalhas para enxugar as mãos.

     Enquanto lavávamos as mãos, Halef murmurou ao meu ouvido:

     — Sídi, não estás com medo?

     — De quê?

     — Que conta vai dar isto! Esta comida boa, a cerveja fresca, facas, garfos e colheres, uma toalha de mesa, bacia para se lavar, toalha para enxugar, pano de mesa para as mãos e até cortinas de peito de linho branco! Ademais, a própria tjeleba preparou tudo pessoalmente! Creio que este excelente hospedeiro nos vai cobrar igual quantia à conta do chefe de polícia.

     — Não te preocupes. Estou convendo de que nada precisaremos pagar, aqui.

     — Acreditas que o hospedeiro tenha essa idéia preciosa e filantrópica?

     — Seguramente. Teremos que dar, apenas, um bakchich aos criados.

     — Se ele fôr tão razoável assim, pedirei, hoje, amanhã e depois de amanhã, nas orações que faço antes de dormir, que o Profeta haja por bem interceder junto ao anjo da morte por este bom hospedeiro.

     — Por que, só até depois de amanhã?

     — Chegam três vezes. Até lá, conheceremos decerto outras pessoas, que nos tratem bem e que se tornem merecedoras das minhas orações em seu favor.

     O pequeno hadji sorriu levemente, como era seu costume, sempre que se mostrava esperto.

     Depois das abluções, o estalajadeiro convidou-nos para sentar novamente à mesa. Queria encher outra vez o cântaro de cerveja e pediu que bebêssemos o que ainda restava. Recusei e disse:

     — Causarias alegria a mim e a ti também se me mostrasses, agora, o armário, do qual roubaram o dinheiro. Queres fazer-me esse favor?

     — Sim. Vem e me segue.

     Halef acompanhou-nos. O seu espírito investigador não permitia ficar para trás, como os outros.

     O hospedeiro precisou, apenas, afastar duas daquelas paredes divisórias e já nos encontrávamos diante da porta do seu quarto de dormir. Não estava fechada. Verifiquei, logo, que havia um trinco, com cujo auxílio se podia evitar, por dentro, que se abrisse a porta. Não havia camas.

     Junto às paredes, em redor do compartimento, havia um chamado serir, que é um cavalete de latas, coberto de almofadas. Neste, dormiam os donos da casa, sem se cobrirem no verão e cobertos de peles no inverno.

     Este mau costume dos levantinos, esta falta de roupas de cama e estas raríssimas mudanças do vestuário, não só predispõem para muitas doenças, como também são a causa da existência, em massa, desses insetos sedentos de sangue, que, em certa ocasião, foram chamados de “hopphopp” e “krapele” (2), por um magnata húngaro, que, de fato, conhecia os nomes latinos de pulex e pediculus, mas não sabia os seus correspondentes em alemão.

     As paredes eram pintadas de branco. O único ornamento era constituído pela sentença, escrita nas quatro paredes, em continuação, com letras árabes:

     — “O sono dos justos é vigiado pelos anjos; junto ao leito dos maus, porém, o futuro geme as suas amedrontadas queixas.”

     O quarto tinha só uma abertura. Em frente desta, estava o armário que procurávamos.

     — Aí dentro, estava o dinheiro — disse o hospedeiro, mostrando o pequeno armário. — Fechei-o novamente, como estava antes de ser cometido o roubo.

     — Abre-o, um pouco — disse, de início.

     O homem tirou a chave do bolso e abriu. O armário estava completamente vazio. Examinei a chave e a fechadura. Não era um objeto comum de fábricas. À minha interrogação, ficou esclarecido que havia em Ostromdja um serralheiro, que tinha feito aquele trabalho, e, na minha opinião, não se podia abrir com um gancho ou com um pino.

     Mas, assim também se tornava mais obscuro o modo por que tinha sido praticado o roubo.

     — Tens certeza de que deixaste este armário fechado? — perguntei.

     — Sim, tenho.

     — Hum! Havia só dinheiro aí dentro?

     — Não. Estavam também as jóias da minha mulher e algumas miudezas de ouro e prata.

     — Tudo isto foi roubado?

     — Sim, tudo desapareceu.

     — Isso demonstra que os ladrões não tiveram tempo para fazer a escolha. Também o roubo foi praticado, às escuras; assim, os larápios não podiam distinguir o que tinha valor para eles ou não.

     — Oh, o diadema da minha mulher e o colar eram, principalmente, de moedas pequenas e grandes, de ouro e prata. Apesar da escuridão, os gatunos devem ter percebido isto. O resto era só braceletes, pregadores e anéis, e tudo de valor.

     — E serve para nos levar à descoberta dos ladrões. O ladrão cauteloso não se apodera dessas coisas. Se aqueles dois homens levaram estes objetos, deram a prova de

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     (2) Pulgas e piolhos.

 

que não são ladrões cautelosos e observadores das regras do seu criminoso ofício. Mas, temos que verificar, de qualquer modo, como puderam abrir o armário.

     Queria examiná-lo melhor, mas o pequeno hadji já o tinha feito.

     — Já achei, sídi — disse. — Aqui está!

     Mostrou o interior do armário. Ao primeiro golpe de vista, notei que o fundo não estava bem ajustado. Passei então a examinar o modo por que o armário estava preso à parede. Não o segurava uma viga de ferro ou coisa parecida, que oferecesse maior resistência, e sim, estava simplesmente, dependurado num prego, de onde podia ser tirado facilmente.

     Tirei o armário do lugar e, então, pudemos constatar, claramente, que tinha sido aberto pela parte de trás. Notavam-se os sinais, provenientes, sem dúvida, de uma faca muito resistente.

     As diversas paredes do armário não eram pregadas e sim reunidas por meio de solda de estanho. O arrombamento, assim decerto produzira um ruído bem forte.

     — Não ouviste coisa alguma? — perguntei.

     — Nada, absolutamente.

     — Provavelmente, verificou-se um estalo forte. Talvez fizeram muito barulho, não?

     — Absolutamente. Estávamos tão interessados nas provas de cartas, que, pelo contrário, nos conservamos bem quietos e calados. Talvez os ladrões não deixaram a porta aberta.

     — Provavelmente, tomaram o cuidado de não a deixar aberta. Com toda a certeza, fecharam até o trinco, para não serem surpreendidos.

     — Bem, então nada podíamos ouvir.

     — Como não? Não existem paredes divisórias e sim, somente, teceduras de vime. O arrombamento da parte traseira do armário tinha de ser percebido. Quero acreditar, que... hum!

     Aproximei-me da janela. Tinha a largura precisa para dar passagem a uma pessoa de compleição não muito robusta. Também o armário era bastante pequeno para ser dado ou passado pela janela.

     — Vamos uma vez para fora — convidei, abandonando o quarto. Seguiram-me, contornando a casa.

     — Já examinaste a janela, na parte externa? — perguntei ao estalajadeiro.

     — Não. Como poderia pensar nisso? O armário encontrava-se no quarto. Lá é que foi cometido o roubo. Que poderemos achar aqui?

     — Talvez não seja inútil examinar, como pensas. Vamos ver. Mas, deixem para mim; não se aproximem da janela. Poderiam estragar os rastos.

     Quando cheguei ao lugar que ficava sob a janela, ambos permaneceram um pouco afastados. Bem perto da parede, crescia um silvado de ortigas. Estava pisoteado, exatamente na parte que ficava debaixo da janela.

     — Olha! — comentei. — Podes ver que alguém pulou a janela.

     — Mas, decerto, há mais tempo. Talvez tenha sido um dos meus filhos.

     — Não. Não foi um menino, porque encontro o sinal de um sapato ou bota de homem. E não faz tempo. As ortigas quebradas não estão murchas; as folhas, apenas, estão caídas. Calculo que foram quebradas ontem. Também os rastos das botas são novos. As beiras altas e finas da impressão do pé no solo estariam secas, se os sinais fossem antigos.

     — Como podes saber tudo isso! — declarou o hospedeiro, admirado.

     — Para saber tal coisa basta ter um olho atilado e pensar um pouco. Olha aqui! Aqui, podes ver o lugar onde foi colocado o armário. Naturalmente, este ficou um pouco sujo, no chão úmido, mas os ladrões inteligentes limparam-no novamente, apesar da escuridão.

     — Por onde podes verificar também a exatidão desta última afirmativa?

     — Pela circunstância de não se encontrar mais sinal de sujeira no armário; é tão simples. Vamos ver adiante!

     Procurei no chão. Debalde. Tirei a faca da cintura e cortei as ortigas, bem junto do solo. Depois de as ter tirado dali, examinei o lugar limpo. Entre os restolhos podia-se encontrar alguma coisa. A minha suposição era acertada. Em dois lugares, rebrilhavam objetos que pareciam ser de ouro. Busquei-os. Era um anel muito fino, com uma turquesa, e um brinco de ouro, de quase uma e meia polegada de diâmetro; tão grandes como os que usam as mulheres, naquela região.

     — Agora, olha! — chamei o hospedeiro. — Aqui, os larápios perderam alguma coisa. Conheces estas jóias?

     — Ah! Pertencem à minha mulher. Não estará aí, também, o outro brinco?

     — Ajuda a procurar!

     Todo o trabalho, entretanto, foi inútil. Nada mais se achou. Sabíamos, agora, como tinha sido realizado o roubo. Os ladrões recearam que o ruído fosse percebido. Por isso, um deles saiu pela janela e o outro lhe entregou o armário, que foi aberto fora do quarto, embaixo da janela

     O que ainda faltava tratar, podia ser resolvido dentro de casa. Foi conseguinte, resolvemos voltar para o compartimento, onde nos achávamos antes. Previamente, porém, fomos, por um instante, ver os cavalos.

     Já tinham sido banhados no açude e se achavam novamente ensilhados. Com embornais, presos ao focinho, comiam, junto à margem do açude, o milho debulhado, que lhes valia por um jantar opíparo. Pedi aos criados que deixassem os animais onde estavam, pois aí não havia tantas moscas e mosquitos como no pátio sujo, apesar da proximidade da água. E foi uma sorte tomar essa resolução, como pude certificar-me muito depressa.

     De fato, mal entráramos na casa e nos dispúnhamos a tomar lugar à mesa, quando vimos chegar ao pátio dois cavaleiros. O seu aspecto não era positivamente recomendável. Os cavalos não prestavam e, além disso, encontravam-se visivelmente estropeados, sendeiros velhos, pelos quais não pagaria nem cinqüenta marcos. E os dois homens correspondiam perfeitamente ao valor dos animais, pois se vestiam com farrapos e estavam imundos.

     — Vamos receber novos hóspedes — observou Halef.

     — Não dou atenção a essa classe de gente — respondeu o hospedeiro. — Mandá-los-ei embora.

     — Podes fazê-lo, possuindo uma casa de pasto?

     — Quem poderá impedir que recuse as pessoas que não me agradam?

     Queria sair, para executar a deliberação tomada. Retive-o, entretanto, pelo braço.

     — Alto! — disse. — Deixa-os entrar.

     — Por quê?

     — Preciso saber o que conversam.

     — Tu os conheces?

     — Conheço. Mas, em nenhuma hipótese, deverão saber que nos encontramos aqui. Por isso, não devem ver, nem a nós, nem aos cavalos.

     — Pode-se evitar facilmente. Basta que fiquem no meu quarto até que eles se tenham retirado.

     — Os meus companheiros procederão assim. Quanto a mim, quero espreitá-los.

     — Não sei o que vais lucrar, mas não te será difícil escutá-los. Vem cá. Vou te esconder.

     Levou-me para trás de uma das divisões de vime. Nesta, havia diversos feixes de vime, recostados à parede.

     — Mete-te aqui atrás destes feixes — disse o homem. — Poderás ver através das frestas do trançado de vime. Os desconhecidos ficarão tão perto de ti que poderás ouvir as suas palavras, mesmo que não falem em voz muito alta.

     — Mas, se descobrirem que alguém os espreita?

     — Colocarei estes feixes numa posição que não deixará lugar para que te vejam.

     — Bem. Quero dizer-te ainda que partiremos antes desses dois cavaleiros, que pretendem ir a Ostromdja. E tens que ir comigo.

     — Eu? Por quê?

     — Para retomar o dinheiro dos ladrões.

     — Estão em Ostromdja?

     — Tenho muitos motivos para supor que isso seja exato. Manda ensilhar, portanto, imediatamente, o teu cavalo e o põe junto dos nossos, em um sítio, onde não possam ser vistos por esses dois indivíduos. Logo que tenha ouvido o bastante, aqui, irei sorrateiramente ao teu quarto. Um dos teus criados deve ficar ali, preparado para nos conduzir até onde se encontrem os cavalos, lugar em que, também, deveras estar, em seguida. Retiro-me, antes que me vejam.

     Essa palestra só se tornou possível, porque os dois recém-chegados não se apressaram em entrar na estalagem. Apearam vagarosamente e, depois, foram a uma das casas laterais, decerto “para ver se encontravam algo que pudessem levar consigo”, como se expressou o hoteleiro.

     Este se afastou, enquanto me fui colocar entre a parede trançada e os feixes de vime, procurando acomodar-me o melhor possível. As frestas da parede permitiam-me observar perfeitamente todo o interior da casa.

     Ouvi, então, passos que se avizinhavam.

     — Sídi, onde estás? — interrogou a voz do pequeno hadji do outro lado dos feixes.

     — Estou metido aqui. Que é que queres? Como és pouco cauteloso!

     — Ora! Aqueles indivíduos ainda não vêem, estão no estábulo, para examinar os cavalos do estalajadeiro. Disseste que os conhecias. É verdade?

     — É claro.

     — Então, quem são?

     — Não os reconheceste, também?

     — Não, sídi.

     — Contudo, em geral, és um bom fisionomista. Não notaste a funda que um deles traz à cintura?

     — Naturalmente.

     — Bem, e quem usava uma arma dessas?

     — Sei eu!

     — Deverias saber. Lembra-te, mais uma vez, do pombal.

     — Oh, sídi, não me quero recordar disso. Quando penso nesse lugar sinistro, tenho vontade de te pedir que me dês umas taponas.

     — Com certeza, viste as pessoas que estavam no sótão, abaixo de nós?

     — Sobre as quais caiu o gato, juntamente com as varas que serviam de assoalho ao pombal, e o gato era eu! Sim, observei bem aquela gente!

     — E também os dois homens esfarrapados, que se achavam a um canto? Eram irmãos.

     — Ah, sídi, agora me lembro. Um deles tinha uma funda. Acreditas que sejam eles?

     — Sim, são. Tomei boa nota das suas caras.

     — Oh, Alá! Efetivamente, declararam que precisavam ir a Ostromdja, para informar os três bandidos do que nos tinha acontecido e, talvez, até que já havíamos sido enviados para o Paraíso.

     — Era o que queriam. Receberam a incumbência de Manach el Barcha e Barud el Amasat.

     — Então, ainda não estiveram em Ostromdja e os três indivíduos, que procuramos e que roubaram o dinheiro do nosso hospedeiro, não sabem que continuamos na sua pista. Sídi, permite que te faça uma proposta muito boa.

     — Qual é?

     — Vamos reduzir à impotência os dois homens que pretendes espreitar?

     — É o que vamos fazer, logicamente.

     — Mas, como?

     — Resolveremos depois.

     — Oh, já está resolvido.

     — De tua parte? Que pensas fazer?

     — Vou matá-los por um pouquinho.

     — Não penses nisso, Halef!

     — Oh, sídi, só um pouquinho! Eles despertarão, em seguida, no inferno. A isso, com certeza, não se pode chamar de assassinato.

     — Deixa-me em paz com essas propostas.

     — Bem, esqueço-me, às vezes, de que és cristão. Se dependesse de ti, arriscarias a vida pelo teu mais encarniçado inimigo. Esses dois bandidos estão no propósito de nos fazer o maior mal possível. Se encontrarem os três companheiros, em Ostromdja, podes ficar certo de que nos espreitarão e, a cada um de nós, darão uma bala, antes de nos sobrar tempo para pensar sobre as conseqüências, que, em certas circunstâncias, isso nos pode trazer.

     — Tomaremos cuidado para que estes dois não alcancem aqueles três. Ou melhor, proporcionaremos meios e modos para que eles se encontrem.

     — Estás doido?

     — Absolutamente, não.

     — Que tens, então?

     — Não sou doido, mas refletido, segundo me parece. Não sabemos como encontrar os fugitivos. Conseguimos ouvir, no pombal, que os três estão nas ruínas. Mas não conhecemos tais ruínas. Será difícil, senão impossível, descobrir alguém que se encontre escondido lá.

     — Oh, sou teu amigo e protetor hadji Halef Omar. Os meus olhos enxergam daqui até o Egito, e o meu nariz é muito, muito mais comprido. Será fácil para mim, encontrar aqueles indivíduos.

     — É igualmente fácil ou, melhor, muito mais provável que eles te achem antes e, então, não te darão tempo para rezar a sure da morte. Não, nada faremos, por enquanto, contra estes dois homens; nem sequer nos deixaremos avistar por eles, para podermos segui-los e observá-los. Eles, que procuram a nossa ruína, devem ser justamente os guias, pelos quais nos possamos apoderar dos outros três.

     — Alá! Esta idéia também não é má.

     — Alegra-me ver que reconheces. Mas, agora, afasta-te daqui, para que não venhas a ser descoberto. Diz, entretanto, ao hospedeiro que faça o possível para que estes indivíduos fiquem retidos aqui pelo maior espaço de tempo possível, após a nossa partida. Devem ser tratados de modo a que permaneçam aqui, durante muito tempo. Pagarei de boa vontade toda a despesa. Dize isso ao hospedeiro e, agora, vai embora.

     — Sim, sídi, eu me sumo. Parece que chega alguém.

     As últimas palavras foram ditas num cochicho. Depois, o hadji afastou-se. E, agora, finalmente, entraram os dois tipos esperados.

     Encontraram a sala vazia. Também Osko e Omar, já há muito, tinham desaparecido e o hospedeiro viera, apenas, esconder o cântaro de cerveja.

     Agora, podia observar melhor a ambos, do que dois dias antes. Realmente, eram muito mal encarados. Existem pessoas, que mostram, logo, o que se deve julgar a seu respeito. Os dois, que estavam diante de mim, pertenciam a essa categoria de gente. O seu vestuário era miserável e, além disso, sujo e roto, a dar nojo; mas as suas armas eram muito boas e pareciam estar bem cuidadas.

     Enquanto um dos dois levava a funda dependurada à cintura, o outro usava uma das armas, outrora tão temidas, dos sérvios e valáquios, que se refugiaram nas florestas, perseguidos pelos turcos, isto é, um czakan dos heiduques, cujo cabo torto era revestido do couro aperolado do tubarão. Conhecia esta arma só por referência e, também, aqui e ali, vira algum exemplar, mas ainda não fora testemunha do seu emprego. Não imaginei que viesse a ser, muito breve, um alvo dessa perigosa arma.

     Os homens olharam em torno de si, ao penetrarem na sala.

     — Não há ninguém — murmurou o fundeiro. — Será que estão pensando que não vamos pagar o raki que bebermos?

     — Mas, iremos pagá-lo? — riu-se o outro. — Não somos foragidos das florestas? Não possuímos a koptcha, temida por todos? Se não quisermos pagar espontaneamente, desejaria saber quem teria a idéia de nos obrigar.

     — Cala-te! Somos só dois e este lbarek é um homem rico e tem muitos criados e operários, contra os quais nada poderemos fazer. Não me meto em perigo, por causa de um gole de raki. Não obstante, é desagradável que não nos venham atender. Será que pensam que somos vagabundos?

     — Somos, porventura, coisa melhor?

     — Como não, se somos?... Somos os heróis das florestas e das montanhas, os quais estão incumbidos de vingar as injustiças de que são vítimas.

     — A plebe, porém, diz “salteadores”, ao invés de “heróis”, o que me é de todo indiferente. Talvez não haja pessoa alguma aqui, porque essa boa gente prefere espiar-nos pelas frestas das paredes. Isso lhes daria mau resultado! Vamos ver!

     Saíram e se aproximaram das paredes de vime, que faziam as divisões. Ao chegarem perto do lugar, onde me achava, um deles disse:

     — Aqui atrás destes feixes, pode muito bem haver alguém escondido. Vamos experimentar. A minha faca é bem pontuda.

     Os modos, por que estes homens se apresentavam, denunciavam claramente qual era o seu estofo. E, como eles, são, na maioria, todos aqueles que se sentem aureolados de glória por “terem ido às florestas”, como se diz na expressão vulgar. Talvez existam alguns dos bandoleiros que, perseguidos pela injustiça, obrigados pelo ódio e pela prepotência, tiveram de homiziar-se nas montanhas; mas o seu número é infinitamente insignificante, diante da massa daqueles que, só por brutal perversidade, romperam os laços sagrados, que as leis humanas e divinas estabeleceram.

     Aquele demônio puxou a faca e a meteu entre os diversos feixes, felizmente, porém, a uma altura excessiva. Se eu não tivesse tido a idéia de me sentar, certamente seria atingido.

     Naturalmente, era preciso que permanecesse quieto, servindo de alvo a este herói da faca e isso já era caso diferente. Certamente, não teria esperado o golpe; mas, fosse como fosse, seria uma vergonha para mim, em qualquer caso, deixar-me pilhar tão estüpidamente. Existem certas coisas, que se podem fazer, sem macular a sua honra e o sentimento da própria dignidade, mas não se deve deixar perceber. A essas coisas pertence o espiar.

     Espiar é uma vergonha, diz-se geralmente; em determinadas circunstâncias, porém, pode ser realmente um dever. A quem se oferece uma oportunidade de espiar criminosos e, assim, evitar um delito, e não a aproveita, por um sentimento injustificado de vergonha ou orgulho, torna-se cúmplice dessa ação. No meu caso, havia também, para justificar-me, o instinto da conservação.

     — Não há ninguém aí — concluiu o homem, aliviado. — Não aconselharia que alguém viesse espreitar-nos. Vamos entrar!

     Voltaram à sala de refeições e chamaram pelo hospedeiro. Este entrou e se desculpou por não ter podido atender imediatamente.

     — Estava me preparando para viajar — esclareceu. — Infelizmente, tiveram que esperar.

     — Aonde vais? — perguntou aquele que trazia a funda.

     — A Tekirlik.

     Fora inteligente ao indicar justamente um rumo oposto. Ainda assim, o indivíduo continuou indagando:

     — Que vais fazer? Vais a negócios?

     — Não, vou por assuntos particulares. Que desejam comer ou beber?

     — Raki. Mas traze bastante. Temos sede e pagaremos bem.

     Se essa gente bebia aguardente para matar a sede, eu gostaria de ver a sua garganta.

     — Pagar? — respondeu o hospedeiro, sorrindo. — Vocês são os meus primeiros hóspedes e tenho o costume antigo de dar gratuitamente, no dia de hoje, ao primeiro hóspede que aparecer, tudo quanto me pedirem.

     — Olá! Que dia é hoje?

     — É o dia do meu aniversário.

     — Então, aceita os nossos parabéns e te desejamos uma vida de mil anos. Então, aquilo que bebermos e comermos não precisaremos pagar?

     — Não.

     — Então, traze já um cântaro de raki. Beberás conosco.

     — Não posso, pois tenho que partir imediatamente. Quero passar o dia de hoje na casa de um parente, que mora em Tekirlik. Mas, serão bem atendidos; garanto.

     Retirou-se para ir buscar a cachaça.

     — Escuta, — disse aquele que usava o machado histórico — tivemos sorte, não?

     — Sim — concordou o outro, fazendo uma careta de alegria. — Nós nos faremos bem.

     — Quando voltar, e souber o que comemos, este homem não deverá dizer que não soubemos festejar o seu aniversário.

     Fiquei satisfeito ao constatar que o hospedeiro, concordando comigo em reter aqueles tipos, procedera com tanta inteligência. Trouxe, em seguida, um cântaro, cujo conteúdo, na minha opinião, bastava para embebedar, no mínimo, dez homens. Ao mesmo tempo, colocou sobre a mesa um copo, que se dispôs a encher.

     — Alto! — ordenou o que usava funda. — Esse vidrinho é para crianças. Somos, no entanto, homens e beberemos do cântaro mesmo. Devemos gozar bem o que Alá nos dá. Bebo à tua saúde e te desejo tudo quanto tu mesmo desejarias.

     Tomou dois tragos longos, parou e tomou mais, depois fêz uma cara, como se tivesse bebido um néctar. O seu companheiro seguiu o exemplo, também não bebeu menos, estalou com a língua e disse, estendendo o cântaro para o hospedeiro:

     — Bebe. amiguinho! Este refresco não tem igual em todo o mundo. Bebe, mas não muito, para que nós, como teus hóspedes, não saiamos prejudicados.

     O hospedeiro, apenas, molhou os lábios e respondeu:

     — Não sairão prejudicados e poderão mandar encher novamente o cântaro.

     — Será que nos obedecem, quando não mais estiveres aqui?

     — Sim. Dei ordem ao criado, que os serve, que traga tudo que pedirem, naturalmente se houver.

     — Então, desejo-te dez mil anos de vida, ao invés de um só. És um filho do Profeta muito devoto e muito digno, e levas uma vida meritória, em recompensa da qual ainda serás levado ao seio de Abraão pelo anjo da morte.

     — Agradeço-te. Agora, porém, preciso ir. Peçam o que quiserem ao criado, enquanto eu não voltar.

     — Onde está esse servo?

     — Lá fora no pátio. Não há ninguém em casa. Todos foram para o campo, e, dentro de pouco tempo, voltarão.

     O espertalhão fêz essa afirmativa para inspirar-lhes confiança. Não deviam suspeitar de que estavam sendo espreitados e sim, pelo contrário, era preciso que se sentissem absolutamente sós e tranqüilos.

     — Desejamos-te uma boa viagem — disse o proprietário do machado. — Antes, porém, queremos que nos dês uma informação.

     — A respeito de quê?

     — Estiveram aqui, há pouco tempo, três homens, não pessoas comuns, mas homens muito finos?

     — Hum! Aqui chega muita gente. Deves descrever essas três pessoas.

     — Não é preciso. Basta dizer que cavalos montavam. Eram três tordilhos.

     — Ah, exatamente! Agora me lembro. Estiveram aqui ontem de noite. Efetivamente são homens muito finos.

     — Dormiram aqui?

     — Não. A falar verdade, queriam dormir; mas jogamos quase até de manhã e, por isso, acharam melhor continuar logo.

     — Disseram-te para onde iam?

     — Sim.

     — Talvez Ostromdja?

     — Não. Queriam ir a Doiran.

     — Ah, sim! E foram para lá, de fato?

     — Naturalmente. Pois se o disseram! Por que poderiam mudar de idéia?

     — Tens razão. Decerto viste que eles foram para o sul?

     — Eu? Vi? — perguntou admirado. — Para verificar isso, teria de correr atrás deles por toda a aldeia. Qual a razão que poderia existir, para assim proceder?

     — Perguntei sem pensar. Mas, adiante! Depois não vieram outras pessoas, procedentes do mesmo lugar?

     Essa pergunta, seguramente, se referia a mim e aos meus companheiros. Como devia ser respondida, eu sabia; mas estava firmemente convencido de que o estalajadeiro daria resposta diferente. O mais fácil, certamente, era negar. Que não passáramos na aldeia, era difícil sustentar; pois tínhamos atravessado abertamente por todas as povoações situadas em caminho, e muita gente nos tinha visto. Ambos, decerto, já se tinham informado pela estrada e sabiam que nos encontrávamos na sua frente.

     O melhor era, portanto, confessar que passáramos por ali. Se fosse bem esperto, deveria dizer que tínhamos seguido no encalço dos três viajantes anteriores, para Doiran. Desta forma, convenceria os interrogadores de que durante algum tempo, pelo menos durante muitos dias, nada deviam recear de nossa parte. Mas, como disse, não lhe atribuía tanta inteligência. Por isso, fiquei agradàvelmente surpreendido com o prosseguimento da palestra. Bem contra a minha expectativa, o hospedeiro provou que também podia ser arguto. Respondeu:

     — Não tive outros hóspedes desde ontem. Já lhes declarei que são os primeiros, hoje.

     — Hum! Mas aqueles a que nos referimos vieram a Dabila, não há dúvida.

     — Então, atravessaram a aldeia, sem chegar aqui.

     — É possível. E isso é muito desagradável, pois desejávamos alcançá-los. Precisamos falar com eles.

     — Eram seus conhecidos?

     — Até muito bons amigos.

     — Então, deviam ir ao encalço deles, sem perda de tempo.

     — Infelizmente. Mas queríamos tanto corresponder à tua hospitalidade, saboreando os teus presentes! Talvez encontremos essas quatro pessoas, a quem agora nos referimos, em Ostromdja.

     — Eram quatro?

     — Sim.

     — Havia, porventura, um que montava um puro sangue?

     — Sim, sim! Viste-o?

     — Vi. Até levava duas espingardas, ao invés de uma só, não é?

     — É exato, é exato!

     — E dos três outros, um era um sujeitinho pequeno, que, no lugar da barba, tinha uns dez ou onze fios de cabelo no queixo?

     — É isso mesmo! Tu os viste. Mas onde, já que não estiveram aqui?

     — Lá fora, no portão. Estava ali, com o vizinho, quando chegaram. Queriam hospedar-se aqui. Mas, quando lhes disse que era o dono da casa, o de barba escura, que montava o cavalo árabe, perguntou se tinha visto passar três homens, montando tordilhos.

     — Cheitan! E que foi que respondeste?

     — A verdade, naturalmente.

     — Ai de ti!

     — Por quê?

     — Por nada. Foi uma exclamação sem motivo. Continua!

     — O homem interrogou-me quando os três estiveram aqui, quanto tempo permaneceram e para onde foram, depois.

     — Ah, magnífico! E que lhe respondeste?

     — Tudo quanto sabia. Disse-lhe que aqueles por quem perguntava tinham partido em direção sul, para Doiran. Não devia ter feito isso?

     — Oh, sim, como não? Fizeste muito bem. Como procederam eles, então?

     — O cavaleiro, a que me refiro, manifestou pressa em seguir os outros e declarou que, por esse motivo, não podia apear. Informou-se, minuciosamente, sobre o caminho daqui a Doiran.

     — Saiu por essa estrada?

     — Sim. Acompanhei-o, com os demais, até a saída da aldeia, dando todos os esclarecimentos, com os maiores detalhes. Depois, partiram a galope, rumo a Furkoi. Com certeza, estavam muito apressados.

     — Então, sabes, com toda a segurança, que seguiram para o sul?

     — Tão certo, como eu me achar diante de ti.

     — Não foram para leste, por acaso, para os lados de Ostromdja?

     — Qu'esperança! Fiquei parado muito tempo, observando-os até que desapareceram por trás da montanha. O cavalo árabe entusiasmou-me de tal sorte, que não pude deixar de contemplá-lo.

     — Sim, é de fato um cavalo soberbo; não há dúvida.

     — Então, terão de ir, também, a Doiran, pois desejam falar com esses quatro homens.

     — Certamente; mas, já não temos pressa. Como foram para lá, sabemos que nos vão esperar.

     — Alegro-me com isso, principalmente por tê-los visto e falado, pois, do contrário, não poderia dar estas informações. Agora, porém, tenho de sair. Não me levem a mal, por não poder fazer-lhes companhia.

     Contrariamente ao seu procedimento anterior, os dois asseguraram ao hospedeiro toda a sua gratidão, usando das expressões mais amáveis, e se despediram como se lhes tivessem dado toda a sua amizade. Quando o dono da casa saiu, o da funda deu um soco na mesa e exclamou:

     — Que sorte! Agora, estamos livres deste pesadelo! Não foram a Ostromdja!

     — Sim, podemos ficar contentes por isso. Que inteligência, essa de Manach el Barcha e Barud el Amasat, ludibriando o ingênuo hospedeiro, com a afirmação de que iriam a Doiran! Agora, os cães que nos espiaram, também foram para lá e hão de procurar baldadamente.

     — Nunca estive em Doiran e não sei qual é a distância daqui até lá.

     — Creio que se tem de cavalgar sete horas. Aqueles indivíduos somente chegarão lá, à noite. Amanhã, procurarão informações. Ficarão sabendo, então, sem dúvida, que foram logrados. Mas, antes de dois dias, não precisamos esperá-los em Ostromdja. Podemos, por conseguinte, permanecer aqui, comendo e bebendo, o tempo que nos aprouver.

     — Fico tão alegre, com isso, como se eu mesmo estivesse de aniversário. Será que o hospedeiro ainda volta hoje?

     — Não lhe passará pela cabeça!

     — Devíamos ter-lhe perguntado.

     — Por quê?

     — Se soubesse que só volta amanhã, proporia que ficássemos aqui hoje à noite. Somos hóspedes e nos será servido tudo que pedirmos, sem precisarmos pagar um único pára. Isso a gente tem que aproveitar o quanto pode.

     — Não te preocupes. O hospedeiro não voltará antes de amanhã.

     — Acreditas?

     — Quando se festeja o aniversário, a festa principal deixa-se para de noite.

     — É verdade.

     — Quando ela termina, já passou da meia noite. Pensas que, então, ele ainda vai montar, para cavalgar, durante quatro horas, até a sua casa?

     — É claro que não estará disposto a fazer isso.

     — Talvez não esteja só indisposto. Come-se e bebe-se, e a bebida, num aniversário, é coisa séria. É fácil tomar-se uma bebedeira, em razão da qual se prefere dormir até alto dia.

     Tive a impressão de me achar na minha querida Alemanha, onde se encontram as mesmas opiniões.

     — Tens razão — concordou o outro, tomando um trago formidável do cântaro. — O hospedeiro vai beber e amanhã dormirá muito. Pode-se confiar que não voltará antes do meio dia. Podemos ficar à vontade e dormir esta noite aqui. Aqueles quatro sujeitos malditos não são para temer, e, consequentemente, não temos pressa em chegar a Ostromdja.

     — Bem! Então ficamos! Quando penso na noite de ante-ontem fico com raiva de mim mesmo. Este homem, que monta o garanhão, e que é um cachorro cristão, um infiel, estava nas nossas mãos e o deixamos escapar!

     — Sim, é incrível! Uma única facada, e o homem já seria inofensivo!

     — Foi tudo tão repentinamente. Ninguém teve tempo de refletir. Mal estavam entre nós e já tinham desaparecido, outra vez.

     — Como, porém, teriam subido ao pombal?

     — Naturalmente, pelo depósito de feno.

     — Mas como puderam saber que, dali, seria possível espiar-nos? Além disso, quem foi que lhes disse que íamos fazer uma reunião e que nos encontrávamos no sótão, justamente por causa deles?

     — O diabo contou-lhes tudo. Os djaurs são todos presas do demônio. Por esta razão, já em vida são seus amigos. Ninguém mais podia ter sido. Mas, ai deles se chegarem a Ostromdja! Terão de ir para o inferno, todos os quatro.

     — Hum! A nós dois a coisa, absolutamente, não interessa. Somos, apenas, os mensageiros e somos pagos por isso.

     — Mas eu sou amigo de quem me paga e estou sempre a seu lado.

     — Mesmo, em caso de matar?

     — Por que não, se dá dinheiro? Será pecado matar um djaur?

     — Não; é até uma ação muito meritória. Quem mata um cristão sobe um degrau inteiro para o sétimo céu. Esta é a doutrina antiga, que, atualmente, por desgraça, não se quer mais observar. Sinto comichão nos dedos para meter uma bala nesse estrangeiro, se ele fôr a Ostromdja.

     — Estarei contigo.

     — Lembra-te quantas vantagens teríamos. Seríamos muito bem pagos e, depois, tudo quanto ele traz seria nosso. Só o seu cavalo seria uma verdadeira fortuna para nós. O palafreneiro do padixá pagaria uma boa quantia por ele, se o levássemos a Istambul.

     — Ou não pagaria nada.

     — Alto lá!

     — Perguntar-nos-ia pela sua procedência.

     — Herança, naturalmente.

     — Onde estaria o pedigree, que o comprador certamente exigiria?

     — Estará, provavelmente, com o homem. Cairia nas nossas mãos, nem há dúvida. Receio somente que não sejamos nós que receberemos o garanhão.

     — Por que não?

     — Manach el Barcha e Barud el Amasat serão tão inteligentes como nós.

     — Hum! É verdade. Poderemos, no entanto, enganá-los facilmente.

     — Como assim?

     — Ocultando-lhes que o estrangeiro foi a Doiran. Nós lhes diremos que fugiu e, provavelmente, foi a... a... a qualquer lugar, cujo nome ainda resolveremos. Depois de amanhã, partiremos para Doiran e assaltaremos os quatro indivíduos.

     — É uma idéia maravilhosa. Suspeito, apenas, que Manach e Barud não se deixem enganar.

     — Teríamos de proceder com muita estupidez, para que isso se desse.

     — Quem sabe quanto tempo vamos precisar para achá-los.

     — Nem uma hora.

     — Estou convencido do contrário. Sabemos somente que temos de ir às ruínas. Mas, ali, poderemos procurar muito tempo.

     — Esqueceste que temos de falar ao velho Muebarek?

     — Sei muito bem disso. Mas, em primeiro lugar, não sabemos se lhe indicaram exatamente o ponto onde se acham, e, em segundo lugar, não conhecemos o velho. Quem sabe que tipo será!

     — Dizem que tem a koptcha.

     — Não basta para que todos os segredos lhe sejam participados.

     — Nesse caso, teremos a senha que Barud el Amasat nos deu e que também ia dar ao velho Muebarek. É o sinal para que nos indique ou mostre o lugar onde estão ocultos os nossos companheiros. Portanto, vamos achá-los imediatamente. Não me preocupo com isso. Resta saber se ainda exigirão novos serviços nossos.

     — Recusarei. Ficaríamos impedidos de ir atacar os quatro desconhecidos.

     — Recusar? Não é possível. Temos que obedecer. Sabes que a desobediência é castigada com a morte.

     — Se está provada. Mas, quando estou doente, não posso obedecer.

     — Ah, queres fingir de doente? Então, também eu precisaria fazê-lo, e isto seria suspeito. Por que ficaríamos doentes, ao mesmo tempo?.

     — Encontraremos uma boa desculpa, também para isso. No caminho, encontramo-nos com os quatro desconhecidos e fomos atacados por eles.

     — Hum! Portanto, saímos feridos?

     — Sim. Ponho ataduras na cabeça e tu fazes o mesmo no braço. Estaremos tão cansados e abatidos que não nos poderão exigir outros serviços... olha, ali vai saindo o hospedeiro. Bebe, para nos certificarmos se, de fato, o criado enche novamente o cântaro.

     Beberam e beberam, conseguindo, finalmente, esvaziar o cântaro, o que muito me espantou — estou quase a dizer, apavorou. Depois, um dos homens aproximou-se da janela e chamou o criado, que, naturalmente, recebera as necessárias instruções do seu amo.

     Os dois hóspedes ouviram dele que lhes seria servido tudo quanto pedissem e, por isso, ordenaram, em primeiro lugar, que enchesse novamente o cântaro.

     Com os dois desses cântaros de aguardente, podia se embebedar um rinoceronte e, por isso, fiquei convencido de que, em breve, os homens estariam num estado que não podia ser favorável à minha intenção de espiá-los.

     Quando a bebida foi trazida, ambos ficaram silenciosos, olhando para o chão e bebendo, com intervalos curtos. Verifiquei que nada mais podia saber por eles e resolvi, por isso, afastar-me.

     Não estava bem satisfeito com o meu êxito. Que apurara? Que o Chut, o misterioso chefe daqueles que “foram às montanhas”, mantinha os seus subordinados numa disciplina férrea, chegando a castigar a desobediência com a pena de morte.

     Ademais, sabia, agora, positivamente, que Barud el Amasat, Manach el Barcha e o guarda da cadeia, fugido com ambos de Adrianópolis, encontravam-se nas ruínas de Ostromdja. Mas tais ruínas podiam ser muito grandes. Talvez os fugitivos só se encontrassem lá, durante a noite, ou em horas determinadas.

     Soubera, ainda, que havia um tal Muebarek, apelido que se dá a um “santo”, por quem os mensageiros, mediante uma senha, seriam informados do paradeiro dos três referidos homens. Mas, quem seria esse “santo”, que, apesar da sua santidade, pertencia à união criminosa dos bandoleiros? Onde podia ser encontrado? Também nas ruínas? E qual seria a palavra, com a qual a gente podia identificar-se diante dele?

     Confiava encontrar, facilmente, o “santo”. Mas adivinhar a senha, era extraordinariamente difícil, senão impossível. Talvez fosse viável embaraçá-lo numa surpresa e arrancar-lhe o segredo.

     Em todo o caso, estava convencido de que aqueles dois borrachos não ofereciam perigo, até a manhã seguinte. Dentro em pouco, estariam tão embriagados que não mais poderiam andar. Talvez nem chegassem a pedir comida, e seriam metidos num canto qualquer para cozinhar a bebedeira.

     Isso, naturalmente, era de grande vantagem para mim, pois, desse modo, aqueles que procurávamos ficariam sem notícias, e o tempo que medeava entre hoje e amanhã ao meio dia — pois, antes, os dois bêbados não podiam ser esperados em Ostromdja — podia ser aproveitado para procurar os três fugitivos.

     Agora que nada mais havia para espreitar, esgueirei-me por entre os feixes de vime e rastejei até o quarto do hospedeiro. Estava fechado por dentro, com o trinco. Quando bati levemente, Halef abriu. Estava ali dentro, acompanhado dos outros dois e de um criado.

     — Tivemos de fechar o trinco, sídi — esclareceu Halef, baixinho. Estes marotos podiam ter a idéia de verificar se havia alguém aqui.

     — Muito bem. Onde estão os moradores da casa?

     — Esconderam-se, porque o estalajadeiro contou que todos estavam no campo.

     — Então, vamos partir. Vai na frente e cuida para que não sejamos descobertos.

     O criado, a quem fora dirigida essa ordem, deixou-nos sair, fechou, depois, a porta, tirou a chave e saiu correndo, na ponta dos pés.

     O outro criado, que servia os hóspedes, também esperava ordens. Entrou na sala, em seguida, e começou a falar em voz alta, com os dois beberrões, para concentrar toda a atenção deles, e, desse modo, conseguimos afastar-nos facilmente da casa.

     Uma vez fora, continuamos, rapidamente, para a parte dos fundos do prédio e fomos levados, pelo criado, a uma regular distância, em meio do campo, onde se encontrava o dono da estalagem, com alguns criados e os cavalos, esperando por nós.

     — Finalmente! — disse. — Decerto, o tempo não te custou a passar tanto como a mim. Agora, porém, vamos partir. Montem.

     — Mas, antes, quero pagar. Dize-nos quanto estamos devendo.

     — Devendo? — riu-se o hospedeiro. — Nada, absolutamente nada.

     — Não devemos aceitar.

     — Como não? Foram meus hóspedes.

     — Não. Chegamos sem convite e até pedimos tudo que comemos e bebemos.

     — Efêndi, não continues! Não me faças o insulto de recusar a minha hospitalidade. Quando dou a dois bandidos, como os que estão lá dentro, tudo quanto querem, posso, com certeza, pedir-lhes que considerem pagas as suas despesas.

     — Mas justamente o que dás àqueles dois vagabundos, também foi pedido por mim. Cheguei a prometer que pagava.

     — Senhor, queres incomodar-me? Vais ajudar-me a recuperar o meu dinheiro e eu poderia pedir-te algumas piastras miseráveis por cerveja e dois ovos? Não o farei, em nenhuma hipótese.

     Já às primeiras palavras não me teria oposto, e só o fiz por causa de Halef. Queria ver a cara dele, que se contraía incessantemente, numa agitação nervosa. Receava que eu viesse, não obstante, a pagar a despesa. Por isso, interveio às pressas:

     — Sídi, conheces o Alcorão e todas as suas explicações. Por que estás agindo contrariamente aos ensinamentos ditados pelo anjo Gabriel? Não reconheces que é impiedoso recusar a mão que se estende carinhosamente? Quem dá uma esmola, dá a Alá e quem recusa uma dádiva, ofende Alá. Espero que te arrependas da dureza do teu coração e que honres ao Profeta. Monta, portanto, e não te preocupes com as piastras, que ninguém quer.

     Isso foi dito com tanta seriedade e pressa, como se se tratasse de uma coisa de vida e morte, da perdição e da bem-aventurança. Cedi, rindo, e dei aos criados um bakchich, uma ninharia, que, no entanto, os entusiasmou a ponto de me beijarem a mão, um por um, o que não pude evitar, não obstante todos os esforços.

     Depois, partimos, em primeiro lugar pelos fundos da aldeia, e, em seguida, tomamos a estrada de Ostromdja, a qual, entretanto, não era estrada.

     Andamos pouco tempo por ela; depois que já tínhamos deixado a aldeia, perguntei ao estalajadeiro:

     — Esta coisa a que se dá o nome de estrada, é o único caminho que conduz a Ostromdja?

     — É o mais direto. Existem, no entanto, outros caminhos, pelos quais, porém, o percurso é maior.

     — Escolhamos um desses caminhos! Gostaria de evitar este.

     — Por quê?

     — Porque amanhã, quando aqueles dois indivíduos nos perseguirem...

     — Amanhã? — interrompeu-me o estalajadeiro.

     — Pretendem ficar tanto tempo na tua casa, visto nada precisarem pagar. Não te esperam antes de amanhã, porque, na sua opinião, vais tomar uma notável bebedeira, pelo teu aniversário, hoje.

     — Estes patifes! Vou surpreendê-los e lhes declarar que absolutamente não faço anos hoje.

     — Não farás isso, seguramente.

     — Olé! Por que não?

     — Porque também é do teu interesse, que não cheguem antes de amanhã, em Ostromdja. Ainda saberás disso. Quando, então, vierem no nosso rasto, ficarão sabendo que de fato fomos a Ostromdja e não a Doiran. Isso poderia inutilizar todos os meus planos.

     — Bem! Se desejas, podemos tomar outro caminho. Aqui mesmo, sai um caminho, pelos campos e pastagens. Andaremos de modo a chegar à estrada de Kusturlu. Lá ninguém nos conhece.

     Dobramos, assim, para um lado. Todavia, a coisa que ele chamava de caminho podia ser tudo, menos um caminho. A gente via no solo que, de fato, às vezes, passava alguém por ali, mas não havia um trilho.

     À direita e à esquerda, viam-se campos, na maioria com plantações de tabaco. Também avistei uma pequena e modesta plantação de algodão. Seguiam-se, depois, terrenos baldios, e, afinal, matagais, por onde andávamos, sem avistar uma picada.

     Havíamos cavalgado silenciosos. Mas o albergueiro não pôde mais refrear a sua curiosidade. Perguntou:

     — Ouviste o que falei com os dois homens?

     — Tudo.

     — As suas perguntas e as minhas respostas?

     — Não me escapou nada.

     — Então, estás satisfeito comigo?

     — Desempenhaste brilhantemente o teu papel. Tenho que te elogiar, de fato.

     — Fico contente. Não foi tão fácil para mim achar uma saída.

     — Sei muito bem disso e, em conseqüência, fiquei duplamente satisfeito quando observei a tua argúcia. Provaste que és um excelente espertalhão.

     — Senhor, estou maravilhado por ouvir isto da tua boca, porque um elogio teu vale dez vezes mais do que um enunciado por qualquer outro.

     — Deveras? Por quê?

     — Porque és um sábio, que conhece tudo, desde o sol até o mais ínfimo grãozinho de areia, e a quem jamais alguém venceu. Conheces imperadores e reis, que te estimam, e viajas na sombra do Grão Senhor, com quem comeste no mesmo prato.

     — Quem te disse?

     — Alguém que o sabe.

     Supus logo que o meu pequeno hadji, habitualmente tão comportado, tinha soltado mais uma das suas fanfarronices. Dizia-se meu amigo e protetor e quanto mais alto me guindava tanto maior era a proeminência que a minha posição lhe emprestava. Um olhar que lhe dirigi demonstrou-me que ele, decerto na previsão de uma tempestade, logo que o hospedeiro começou a falar, procurou retardar a marcha, para ficar um pouco atrás.

     O fato do estalajadeiro não responder logo à minha pergunta, provava que Halef lhe proibira de citá-lo.

     — Quem é, então, que sabe algo, com que, nem sequer eu sonho? — continuei, perguntando.

     — Não devo dizer.

     — Bem. Então, vou mencioná-lo. Disse-te o seu nome?

     — Sim, efêndi.

     — É muito comprido. Chama-se, porventura, esse pequeno velhaco hadji Halef Omar, et cetera?

     — Efêndi, não me perguntes.

     — Contudo tenho que te perguntar.

     — Mas tive que prometer que não revelaria o seu nome.

     — Tens de sustentar a palavra. Não precisas dizer o nome. Dize somente sim ou não. Foi o hadji?

     Vacilou, ainda, embaraçado, mas, quando lhe dirigi um olhar enérgico e irado, respondeu:

     — Sim, foi ele que disse.

     — Então, quero te participar que é um grande mentiroso.

     — Senhor, dizes isso por modéstia.

     — Não. Não te deixes iludir. Absolutamente não sou modesto. Podes ter a prova disso no fato de ter saboreado o teu excelente almoço, sem pagar...

     — Senhor, cala-te! — interrompeu-me.

     — Não; preciso falar, para corrigir a falta deste hadji Halef Omar. Positivamente, mentiu. Vi o padixá, mas não comi no mesmo prato, com ele. Conheço imperadores e reis, sim, mas só pelo nome, e também, uma vez que outra, vi um deles; entretanto, não me estimam; nem sequer conhecem o meu nome. Para eles, nem existo.

     Olhou-me com uma expressão, em que constatei de imediato que dava muito mais crédito às fanfarronices do hadji do que à minha confissão sincera.

     — E no que diz respeito à minha sapiência, — prossegui — absolutamente não vou muito longe. Ao que te disse, conheço tudo quanto há, desde o sol até o grão de areia? Pois bem, o grão de areia conheço, como qualquer outro; mas, sobre o sol, só sei que gira em torno da terra, qual a distância que nos separa, qual a sua circunferência, qual o seu peso estimativo, qual o diâmetro e como...

     — Machallah! Machallah! — gritou o homem, alto, olhando-me aterrorizado e afastando o seu cavalo de perto do meu.

     — Por que gritas? — perguntei.

     — Sabes tudo isso? Tudo quanto disseste agora?

     — Sei.

     — A distância da terra ao sol?

     — Mais ou menos, vinte milhões de milhas.

     — Que giramos em torno dele?

     — Naturalmente.

     — Qual a sua força e a sua grossura, também sabes?

     — Sei.

     — E até quanto pesa?

     — Mais ou menos. Um milhão de toneladas não faz diferença, no caso.

     Fêz uma cara verdadeiramente apavorada e parou o cavalo.

     — Senhor, — redarguiu o homem — estive uma vez em Istambul e falei com um sábio dervixe, que, por sua vez, já se encontrara com muitos sábios de outras terras. Ele jurou-me pelo Profeta e pelas suas barbas, que as estrelas não são tão pequenas como parecem, e sim muito, muito maiores do que a terra. Parecem tão pequenas porque estão infinitamente longe do mundo. Fiquei completamente assustado. Mas, tu declaras que sabes qual é essa distância e muito mais coisas! Conheces também a lua?

     — Alguma coisa.

     — A que distância está da terra?

     — Oitenta e seis mil aghatch turcas.

     — Oh, Allah, wallah, fallah! Efêndi, tenho medo de ti!

     Fixou em mim um olhar estarrecido. Então, Halef aproximou-se, parou ao nosso lado e disse:

     — Oh, o meu sídi sabe mais, ainda muito, muito mais. Ele sabe que existem estrelas que ainda não enxergamos e que não existem mais certas estrelas, cuja luz nós avistamos todas as noites. Ele próprio me disse e explicou. Mas, esqueci-me outra vez, pois a minha cabeça é muito pequena para uma quantidade tão grande de sóis e estrelas.

     — Isso, de fato, é verdade? — berrou o turco.

     — Sim. Pergunta-lhe tu mesmo.

     Ao ouvir essa afirmação, o homem largou as rédeas sobre os joelhos; levantou as mãos à altura do rosto e apontou os dez dedos contra mim. Isso se faz no Oriente, quando a gente se quer defender do mau olhado e das bruxarias.

     — Não! — disse ao mesmo tempo. — Não lhe perguntarei. Nada quero saber. Absolutamente nada mais quero ouvir. Alá proteja a minha cabeça contra essas coisas e esses números. Arrebentaria com um morteiro velho, em que pusesse pólvora em demasia. Deixa-nos prosseguir.

     Tomou, novamente, as rédeas e pôs o seu cavalo em movimento. Ao mesmo tempo, murmurou:

     — E, assim mesmo, dizes que o hadji é um mentiroso! Ele disse muito pouca coisa, ainda!

     — Ibarek, o que ouviste de mim, agora, sabe qualquer criança, na minha pátria.

     — Machallah! Agradeço por uma terra dessas, onde as crianças já tem que pesar e medir as estrelas. Que sorte não ter eu nascido na Alemannia! O sapateiro, que me ensinou a fabricar cerveja, não me disse nada disso e foi muito bem feito. Deixa-nos falar de outra coisa. Dizia eu, que o teu elogio me alegrava duplamente, porque sai da tua boca. Ficaste satisfeito comigo e isso me dá a esperança de recuperar o meu dinheiro.

     — Se a minha esperança não me engana, então o recuperarás, de fato.

     — Esperança? Tens, apenas, esperança?

     — Sim. Que mais podia ter?

     — Tu não tens esperanças: sabes com certeza.

     — Estás enganado.

     — Não. Posso jurar que sabes exatamente.

     — Pronunciarias um juramento falso.

     — Não, efêndi! Quem sabe ler os rastos das pessoas, no deserto, no mato e nos campos — rastos que há muito desapareceram — sabe também onde se encontra o meu dinheiro roubado.

     Agora, fiquei seriamente irado. O pequeno hadji podia meter-me nas situações mais difíceis, com os seus irrefletidos elogios.

     — Naturalmente, foi Halef que também te disse? — perguntei ao estalajadeiro.

     Confirmou, com um inclinar de cabeça. Então, dirigi-me ao pequeno hadji:

     — Halef, por que ficas para trás? Vem cá, uma vez!

     — Que devo fazer, sídi? — perguntou, humilde, como um cachorro que sabe ser chamado para apanhar uma surra e, mesmo assim, sacode o rabo.

     — Devias levar a kurbatch, o relho de couro de hipopótamo nas costas! Sabes por quê?

     — Sídi, não baterás jamais no teu fiel Halef. Sei muito bem disso!

     — Esta é justamente a desgraça, pensares que não te posso castigar. Mas existem outros castigos muito diferentes do chicote. Terás uma redução de comida! Não comerás nada, enquanto estivermos saboreando galinha assada.

     Pronunciei essas palavras em tom sério e ameaçador. Galinha assada era a sua vida! Mas, respondeu, sorrindo:

     — Sídi, preferirias não comer coisa alguma e me darias a galinha inteira.

     — Cala-te. Se não te corriges, mandar-te-ei embora.

     — Efêndi, sabes que correria atrás de ti. Sou teu criado. Juntos, passamos fome e sede, sentimos calor e sentimos frio, choramos e rimos. Sídi, duas pessoas, assim, dificilmente se separam.

     O bom rapaz tinha, de fato, razão. E sabia bem o que acontecia, quando tocava nessa corda. A minha raiva acalmava, imediatamente.

     — Mas, Halef, não deves mentir assim!

     — Sídi, foi mentira? Não sabia disso, realmente. Como podes ficar tão irado quando digo que comeste no mesmo prato com o Sultão?

     — Pois é uma mentira!

     — Não podes sustentar! Não comeste, em Istambul, na casa do Kasi Askeri?

     — Que tem a ver isso com as tuas fanfarronadas?

     — Muita coisa. O sultão, então, não come alguma vez com o Kasi Askeri?

     — Oficialmente, não.

     — Portanto, em segredo. Bem, então não estou enganado, de modo algum. Quão fácil será que o sultão venha a ser servido no mesmo prato, do qual também já comeste! Vês, Sídi, que o teu fiel Halef sabe bem o que diz. És bem como a trufa, exatamente igual. É uma gulodice excelente e custa caro, mas esconde-se debaixo da terra, porque não se deve falar dela. Só eu te conheço e como vejo a tua fisionomia iluminar-se, de novo, com um sorriso amável, o meu coração está outra vez feliz e contente. Alá faz as nuvens e dá a luz do sol. O homem tem que aceitar o que Alá lhe dá.

     Sim, o meu rosto estava alegre. O diabo que fique sério, quando se é comparado, com tanto espírito, com uma trufa. Tive que me rir, e o pequeno hadji também riu. Era esse o desfecho certo, quando eu começava a despejar uma tempestade sobre ele.

     Continuamos a jornada. Notei, pelos olhares que me dirigia o turco, e pela circunstância de se conservar ele um pouco para trás, que me votava um profundo respeito. Parecia ter vontade de me tomar por uma maravilha do mundo.

     O mato estava a terminar e troteávamos sobre uma planície, que oferecia espaço amplo para a marcha dos cavalos. Manifestou-se, então, outra vez a curiosidade do albergueiro.

     — Efêndi, — começou — poderei voltar hoje?

     — Acredito que seja difícil.

     — Por quê?

     — Então, não queres levar o teu dinheiro?

     — Naturalmente.

     — Terás de ficar, portanto, mais tempo conosco. Precisamos, em primeiro lugar, pegar os ladrões, para poder recuperá-lo.

     — Mas sabes onde estão.

     — Não.

     — O hadji disse que sabes.

     — Não deixes que te minta. Sei que estão em Ostromdja, escondidos; mais nada. Terei que procurá-los.

     — Perguntaremos por eles.

     — Seria inútil. Certamente não se deixarão ver.

     — Waih! Então, também não os acharemos!

     — Talvez, sim. Tenho uma pista deles.

     — Aqui no chão?

     O bom homem ouvira de Halef que eu sabia ler as pegadas. Agora, acreditava que podia encontrar uma coisa destas, aqui na minha frente, ao solo.

     — Não — respondi é bati com o dedo na testa. — Aqui está a pista que havemos de seguir. És, porventura, bem conhecido em Ostromdja?

     — Sim. Pois é a cidade mais próxima da minha aldeia.

     — Existe um morro, ali, por perto?

     — Um muito alto.

     — Com uma ruína, em cima?

     — Um montão de destroços.

     — De onde provém?

     — Não se sabe bem certo. Os búlgaros dizem que, outrora, tiveram um poderoso império aqui e um dos seus príncipes famosos morava neste castelo. Depois, vieram os inimigos, que tomaram o castelo e o destruíram.

     — Decerto, os turcos?

     — Alguns dizem isso. Outros, porém, dizem que foram os gregos.

     — É a mesma coisa, para nós. Pode se subir facilmente à ruína?

     — Sim, é muito fácil.

     — E não é proibido?

     — Oh, não. Qualquer pessoa pode subir, mas, mesmo assim, são poucos que sobem.

     — Por quê?

     — Porque maus espíritos moram lá em cima.

     — É possível? Bem, iremos vê-los.

     — Efêndi, estás doido?

     — Absolutamente. Há muito tempo, anseio por ver um desses espíritos. Agora, estou satisfeito, porque esse desejo vai ser realizado.

     — Senhor, abandona essa idéia!

     — Ora! Vou experimentar.

     — Pensa bem, pois durante o dia não existem almas do outro mundo,

     — Não irei procurá-las durante o dia.

     — Oh, Alá! Queres subir lá, durante a noite?

     — Provavelmente.

     — Então, nunca mais descerás. Os espíritos te aniquilarão.

     — Estou curioso para ver como o farão.

     — Não zombes, efêndi! Os maus espíritos não perguntarão se sabes medir a lua e o sol e também nem de que prato grã-senhorial comeste. De mais a mais, nem mesmo farão qualquer pergunta; pelo contrário, agarram-te pelos cabelos e torcem-te a cara para as costas.

     — Deveras?

     — Sim, sim! — repetiu.

     — Já aconteceu algum caso destes?

     — Muitos.

     — Lá em cima, nas ruína?

     — Sim. De manhã, encontraram-se as pessoas, entre os destroços do castelo, com a cara voltada para as costas.

     — Estavam vivas, ainda?

     — Como podes perguntar!? Quem tem o rosto virado para as costas, naturalmente, quebrou o pescoço. Estavam, portanto, mortas.

     — Ora bem! Falaste de pessoas e não de cadáveres. Essa gente era conhecida?

     — Não. Sempre foram desconhecidos. Só uma vez, foi um homem de Ostromdja. Era um khawaas novo e disse que não acreditava em espíritos. Botou a faca e o revólver na cintura e subiu o morro, ao anoitecer. No dia seguinte, apareceu, lá em cima, como os outros. A cara estava com uma côr azul avermelhada e a língua caía, enorme, para fora da boca.

     — Foi há muito tempo?

     — Ainda não fazem dois anos. Eu mesmo vi esse homem temerário.

     — Quando ainda vivia?

     — Sim e também quando cadáver. Era o que te queria dizer.

     — Tenho imenso prazer. Descreve-me, por favor, o cadáver.

     — Tinha um aspecto medonho.

     — É essa toda a descrição que posso esperar?

     — Não. Foi embrulhado num velho caftan, quando o trouxeram do morro. Eu tinha ido cedo à cidade, para comprar sementes de fumo, e cheguei justamente a tempo de ver o cadáver.

     — Desejo, especialmente, saber qual o aspeto que tinha o pescoço.

     — Pavoroso!

     — Descreve-o, por favor. Havia ferimentos?

     — Não. Mas, podia-se ver claramente onde os fantasmas meteram as garras.

     — Hum! As garras, porventura, tinham penetrado no pescoço?

     — Que estás pensando? Os espíritos não podem ver sangue. Jamais fazem ferida. Nem sequer, arranham a pele. Entretanto, enxergava-se perfeitamente o sinal das garras. Tive horror, diante do cadáver; mas, apesar de tudo, observei-o perfeitamente e muitos outros fizeram a mesma coisa,

     — Que forma tinham os sinais das garras?

     — De impressões sangüíneas, arroxeadas, compridas e estreitas, sendo duas atrás e oito na frente.

     — Já o imaginava.

     — Já viste, também, alguma vez, alguém que tivesse sido matado pelos espíritos?

     — Não, nunca. Os espíritos da minha terra não matam ninguém. São de natureza muito mais pacífica. Existem, apenas, três espécies. Chamam-se “Plagegeister”, (3) “Schoengeister”, (4) e “Salmiakgeister”. (5). Só a primeira espécie pode se tornar desagradável. As outras não fazem mal.

     — Que feliz é a tua pátria, efêndi, por ter apenas essas espécies de espíritos! Os nossos são muito mais perversos, muito mais. Torcem, logo, o pescoço da gente. Então, a gente morre.

     — Sim, eu também acredito que, então, se morre.

     — Naturalmente! Por isso, peço-te por amor de Alá que não subas, à noite, naquele morro sinistro. Senão, terias de ser trazido, depois, como cadáver.

     — Bem, vou resolver.

     — Fazes muito bem! Agora, o meu coração fica, novamente, aliviado. Meteste-me muito medo.

     — Então, não falemos mais nas ruínas. Dize-me se existe, em Ostromdja, uma pessoa, que se chama Muebarek.

     — Naturalmente, existe.

     — Conheces?

     — Muito bem.

     — Também, poderei vê-lo?

     — Se estiver em casa, sim. Qualquer pessoa pode ir ter com ele.

     — Neste caso, também já fôste na sua casa.

     — Freqüentemente. Levei-lhe muitas piastras.

     — Para quê?

     — Para pagar os seus remédios.

     — Ah, é um hekim?

     — Não.

     — Ou farmacêutico?

     — Também, não. É um santo.

     — Mas um santo, ao que eu saiba, não negocia com remédios, não é?

     _________________

     (3) Maçador, homem importuno.

     (4) Homem de espírito.

     (5) Essencia de amoníaco.

 

     — Por que não? Quem lhe pode proibir? Ninguém. Toda a gente está satisfeita, porque o velho Muebarek está aqui. Quando nenhum hekim e nenhum farmacêutico podem ajudar, ele ajuda seguramente.

     — Por conseguinte, também ajudou a ti?

     — Até muitas, muitas vezes, a mim, à minha família e ao meu gado.

     — Portanto, ele é médico de animais e de gente. Isso é interessantíssimo!

     — Oh, mas, ele mesmo, é muito mais interessante!

     — Como assim?

     — Tem mais de quinhentos anos de idade.

     — Queres que eu me assuste?

     — Não, não precisas te assustar. É bem verdade.

     — Mas não acredito.

     — Não lhe digas isso, porque senão estarás perdido.

     — É tão perigoso falar nele?

     — É. Tem um espírito que voa por toda a parte, para ouvir o que se fala sobre o velho Muebarek.

     — Maravilhoso! Suprema maravilha! Não sabes se se pode ver esse espírito?

     — Naturalmente. Anda sempre com ele. É um corvo grande e negro, como a noite.

     — Hum! Não o acompanha, igualmente, um enorme gato preto?

     — De fato! Como sabes disso?

     — É apenas suposição. Estiveste, alguma vez, no quarto, onde ele faz os seus remédios?

     — Estive. Mas como sabes que tem um quarto especial para isso?

     — Suposição igualmente. Não viste, ali, os pássaros empalhados?

     — Vi.

     — As serpentes?

     — Também.

     — Os sapos em vidros? Os morcegos dependurados no teto?

     — Allah! Wallah! Sim, sim!

     — E depois as caveiras e esqueletos?

     A cada pergunta que fazia, a sua cara ficava mais espantada.

     — Senhor, — bradou, finalmente — conheces o Muebarek?

     — Não.

     — Mas sabes exatamente que aspecto tem o seu quarto.

     — É porque já conheci outros Muebareks.

     — Então, cada Muebarek tem um quarto, assim?

     — A maioria deles tem. Sim, também existiram muitos que duraram várias centenas de anos.

     — E não queres acreditar na idade deste?

     — Não, absolutamente não.

     — Então, não compreendo.

     — Esse homem já está há muito tempo aqui?

     — Não. Apenas, há seis anos.

     — Ora veja! Desde quando, existem fantasmas nas ruínas?

     — Oh, sempre existiram.

     — Desde todos os tempos torceram o pescoço da gente?

     — Não. Isso começou apenas há poucos anos.

     — Esquisito! Sabes há quantos anos? Gostaria muito de saber.

     — O primeiro, que teve a cara voltada para as costas, foi um grego, que pernoitou na minha casa, no dia anterior. Na manhã seguinte, estava morto, embaixo das ruínas. Sei ainda que, desde então, decorreram cinco ou seis anos.

     — Portanto, exatamente o tempo em que Muebarek se encontra em Ostromdja. Esse velho santo terá, por acaso, ainda outras particularidades?

     — Não, exceto que jamais come ou bebe.

     — E, contudo, está vivo?

     — Ele diz que é justamente porque não come nem bebe que chegou a mais de quinhentos anos de idade. Alá não come jamais e por isso é eterno. O Muebarek, também, nunca teve dentes, exatamente porque nunca comeu.

     — Talvez os perdesse.

     — Não, não! A quem lhe pede, mostra a boca. A gengiva não tem falha e não há nenhum sinal de dente.

     — Então, começo a acreditar que é um grande santo.

     — Seguramente o é. Alá ama-o e por isso lhe concedeu o dom de se tornar invisível.

     — De fato!? Isso é uma qualidade excepcional. E, ainda há pouco, disseste que não possuía outras particularidades.

     — Sim, se, com essa palavra, queres dizer isso, então tem muitas outras qualidades.

     — Não queres dizer algo, a respeito delas?

     — Não me ocorrem, no momento. Diz-se tanta coisa, que se chega a ficar tonto.

     — Fôste, porventura, em alguma oportunidade, testemunha ocular de que ele se pode tornar invisível?

     — Creio que sim.

     — Conta-me.

     — Sabia que o filho do meu vizinho estava doente e que o velho Muebarek viria vê-lo. Minha mulher sentia fortes dores de cabeça e queria que o velho lhe receitasse um amuleto. Por isso, coloquei-me na porta da minha casa, à hora em que o Muebarek devia vir. Veio. Chamei-o pelo nome. Mas não respondeu. Chamei outra vez e como também não respondesse, atravessei a estrada e lhe fui falar. Cumprimentei-o e lhe disse que minha mulher precisava do seu auxílio. Olhou-me, rancoroso, e perguntou por quem o tomava. Quando lhe respondi que era o célebre santo, ele se riu de mim e entrou no pátio de meu vizinho. Esperei muito, muito tempo, mas não voltou. Só Busra, o aleijado, a quem eu nem tinha visto entrar, saiu se arrastando com as duas muletas. Quando, depois, procurei o vizinho para perguntar pelo santo, afirmou-me ele que este nem sequer viera. Jurei que o havia visto entrar e ele jurou que só o aleijado estivera na sua casa. O velho Muebarek, porém, desaparecera. Que dizes a isto efêndi?

     — De momento, nada.

     — Por que, de momento?

     — Para poder dar uma opinião, seria preciso observar o santo, durante algum tempo. Mas a coisa talvez se explique do modo mais simples.

     — Como assim, efêndi?

     — O santo entrou na casa do teu vizinho, pela frente e saiu pelos fundos.

     — Não podia. O pátio fica na frente da casa e, nos fundos, não há, nem pátio, nem saída. O portão, por onde o vi entrar, era o único caminho por onde podia ter saído.

     — Talvez se tenha escondido?

     — Onde? A casinha do vizinho é tão pequena que se veria logo quem quer que pretendesse esconder-se.

     — Então, a coisa é notavelmente misteriosa. Não posso explicá-la.

     — Pode ser explicada e isto, só como acabei de dizer. O Muebarek pode tornar-se invisível. Não acreditas?

     Toda a história era, evidentemente, uma trapaça. Mas devia eu discutir com o hoteleiro, que se mostrava e parecia ser, realmente, inteligente, sujeito, porém, às crendices estúpidas do Oriente? Podia ser também que, no próprio interesse da causa por que nos batíamos, conviria deixá-lo com a sua opinião. Em razão, disso, redargüi:

     — Quem ainda não refletiu sobre essas coisas e não viu coisas semelhantes, não pode dizer, nem sim, nem não.

     — Mas eu digo sim! — interveio Halef, que ouvira tudo, dirigindo-me, de quando em quando, um olhar travesso.

     — Tu? Portanto, acreditas?

     — Forte e firmemente.

     — Muito me admira.

     — Por que, sídi?

     — Porque, tanto quanto eu saiba, ainda não conheceste ninguém que tivesse o dom de se tornar invisível.

     — Eu? Não conheci ninguém? Oh, sídi, como estás enganado!

     — Bem, quando foi que fizeste esses conhecimentos?

     — Muitas vezes e, ultimamente, hoje mesmo.

     Imaginei que ia fazer mais uma das suas travessuras. Por isso, calei-me. Mas, o turco, logo, pegou fogo. Pensou obter uma confirmação para a sua superstição e interrogou, depressa:

     — Hoje? Quem sabe se foi em caminho?

     — Oh, não!

     — Então, decerto, na minha casa?

     — Adivinhaste.

     — Alá! Haveria alguém, em minha casa, que pudesse se fazer invisível, com tanta rapidez?

     — Sim, na tua casa.

     — Eu também o vi?

     — Naturalmente!

     — Foi, por acaso, um daqueles dois biltres?

     — Nem pensam nisso.

     — Bem, quem foi então?

     — A fritada de ovos. Viste-a penetrar, claramente, na minha bôca depois, desapareceu.

     O hospedeiro fêz, primeiro, uma cara estupefata, depois iludida, e, finalmente, até irada, e disse ao hadji.

     — Hadji, dizes que estiveste em Meca, a cidade do Profeta?

     — Assim é, realmente.

     — Não acredito.

     — Queres insultar-me?

     — Não; contudo digo que não acredito.

     — Pergunta ao meu sídi! Ele sabe muito bem, pois esteve...

     Dirigi-lhe um olhar premonitório, de modo que se interrompeu bruscamente, em meio da frase. O albergueiro era moslemita e não precisava saber qual a aventura que tivéramos no santuário dos maometanos.

     — E, mesmo que o efêndi pudesse provar dez vezes, — respondeu o turco — eu ainda não acreditaria.

     — Por que não?

     — Porque um hadji devoto não seria capaz de semelhante brincadeira com um crente. Acreditei que fosses um homem sincero e bom; mas és um velhaco que só pensa em fazer caçoadas.

     — Ouve, ó filho deste lindo vale, sabes como me chamo?

     — Pois já ouvi teu nome!

     — Qual é?

     — Halef.

     — Este é o nome, pelo qual só os meus amigos íntimos podem chamar-me. Para os outros, porém, eu me chamo hadji Halef Omar Ben hadji Abul Abbas Ibn hadji Dawud al Gossarah. Toma nota disso!

     — Um nome tão comprido ninguém é capaz de guardar na memória; pelo menos, eu não.

     — Isso só prova que a tua inteligência é muito pequena. Mas, quando ouves quão famoso é o meu nome, pensarás de outro modo, a meu respeito. Sou um filho devoto do Profeta; mas sei que a vida não pode consistir, somente, de exercícios religiosos. Alá quer que os seus filhos se alegrem. Portanto, não é pecado fazer uma pilhéria, que a ninguém pode prejudicar. Mas, se me chamas de mandrião, só por causa desta brincadeira, fazes-me um insulto que só se pode lavar com sangue. Como, entretanto, és nosso hospedeiro e nós te devemos ser agradecidos, quero engulir a minha raiva e te perdoar.

     Disse isto de um modo tão engraçado que o estalajadeiro teve que rir. A reconciliação não se fêz esperar.

     — Então achas que a minha crença é ridícula? — perguntou-me, finalmente, o estalajadeiro.

     — Oh, não! Quer o homem acredite no que é certo ou no que é errado, levo tudo muito a sério. Talvez possa ver o velho Muebarek e, então, será possível formar juízo, a seu respeito. Onde é que mora?

     — No morro.

     — Ah! Talvez perto das ruínas?

     — Não perto, mas nas próprias ruínas.

     — Isto é... na verdade, isto é muito interessante. Por que instalou-se lá em cima?

     — Para esconjurar os maus espíritos.

     — Mas, infelizmente, não conseguiu...

     — Como não?

     — Aparecem sempre e torcem o pescoço das pessoas.

     — Só alguns. Esses espíritos são muito poderosos. Ninguém nem mesmo o Muebarek, pode forçá-los a desaparecer, de uma vez só, principalmente porque existe uma única noite, em todo o ano, durante a qual se pode tocar nos espíritos.

     — Que noite é essa?

     — Não sei. Em cada uma dessas noites, o velho conseguiu dominar um dos espíritos; portanto, um por ano.

     — São, ao todo, seis.

     — Sim. Se quiseres, talvez consigas vê-los.

     — Ah, ainda se pode vê-los?

     — Naturalmente, só os seus cadáveres.

     — Então esses espíritos também tinham corpos?

     — Sim, do contrário não poderiam aparecer aos mortais. Habitualmente, não têm corpo, mas quando querem tornar-se visíveis, precisam de um e, nessa ocasião, pode-se pegá-los, tapando todos os buracos, para que não possam sair.

     — Isto é novidade para mim. Com toda a certeza irei ver os cadáveres desses seis espíritos.

     — Levar-te-ei lá. Também irei junto, ao morro e às ruínas, mas de dia. Durante a noite, ninguém me leva lá em cima.

     — Talvez ninguém te peça um tal ato de heroísmo. Preciso, no entanto, pedir-te mais algumas informações. Já estiveste, alguma vez em Radowtch?

     — Já, muitas vezes até, e mais longe ainda.

     — Conheces a aldeia de Sbiganzi?

     — Estive uma vez lá, por pouco tempo, apenas, uma única hora. É um ninhozinho, situado entre dois rios.

     — Conheço esses dois rios. São o Bregalnitza e o Sletowska. Conheces algumas pessoas de lá?

     — Poucas.

     — Talvez, o açougueiro Tjurak?

     — Não o conheço.

     — É pena.

     — Por que, efêndi?

     — Queria informar-me a seu respeito.

     — Então, perguntaremos em Ostromdja. Acharei alguém que o conheça.

     — Deixa isso comigo. As indagações devem ser muito cautelosas. Ninguém deve saber que me interesso por ele. Lá pela região de Sbiganzi deve existir um lugar chamado caverna. Já ouviste, porventura, esse nome?

     — Creio que sim, mas não posso recordar-me.

     — Então, faze como se nunca te falei, a respeito.

     — Há algum segredo, em torno disso?

     — Evidentemente.

     — Vê, também tens segredos! És, entretanto, reservado e nada dizes sobre isso. Quando, porém, falo dos meus, sou ridicularizado, como, por exemplo, quando, há pouco, falei sobre o velho Muebarek.

     — Não se tratava de um segredo, mas, sim de um verdadeiro milagre.

     — Oh, existem muitos desses milagres, a respeito dele. Por exemplo, é tão magro que se ouve o bater dos seus ossos, quando caminha.

     — Impossível!

     — É verdade! Todos já ouviram.

     — Tu também?

     — Também eu, com os meus próprios ouvidos.

     — Então, estou curioso para verificar se igualmente consigo ouvir isso.

     — Seguramente, desde que prestes bem atenção.

     — Como se veste ele?

     — Tem só três peças de roupa, que são um velho xale como cinta, em redor do corpo; um velho caftan, no qual se encontram muitos bolsos, e um pano velho na cabeça.

     — Não usa sapatos ou sandálias?

     — Nunca, nem mesmo no inverno.

     — Parece, de fato, não ser amigo de luxo, de nenhuma espécie. Que é isto? Há alguém por aqui.

     Chegáramos a um ponto onde as sarças eram mais espaçadas. O garanhão deixara ouvir aqueles bufidos, que constituíam sinal infalível de que havia alguém nas proximidades.

     Parei e olhei em torno. Não se via pessoa alguma. Também os meus companheiros pararam.

     — Vamos adiante — disse o turco. — Que temos que ver com qualquer pessoa que esteja por aqui?

     — Talvez nada, talvez alguma coisa. Estou acostumado a verificar quem anda escondido por perto de mim.

     — Então, és capaz de querer procurar?

     — Não. O cavalo me dirá onde se acha.

     — Alá! Vais perguntar-lhe?

     — Evidentemente.

     — E responde?

     — Claro e compreensivelmente.

     — Bem como a jumenta de Baalim! Que maravilha! E não queres acreditar nos meus milagres!

     — Aqui não se trata de milagre, porque o cavalo não me responde, na minha, mas, sim, na sua língua, como verás agora já. Cuida!

     Faláramos em voz baixa, está claro. Levei o cavalo alguns passos para diante, sem que desse sinais de rebeldia. Também dirigiu-se obedientemente para a esquerda. Mas, quando o guiei para a direita, bufou outra vez, fêz sinal com as orelhas e sacudiu o rabo em círculo.

     — Vês! — disse ao hospedeiro. — Aqui à direita há alguém. Isso foi o que o garanhão disse. Irei ver.

     Na certeza de encontrar um vagabundo, esporeei o cavalo para entrar por entre os arbustos. Depois de poucos passos, vi o homem, pressentido pelo animal. Usava a vestimenta e as armas de um khawass, e estava deitado, comodamente, na relva macia, fumando o seu tjibuk. Via-se-lhe na fisionomia tranqüila e satisfeita que vivia na mais perfeita amizade com Deus, com o mundo e, decerto, consigo mesmo. Até o aparecimento inesperado de cinco cavaleiros parecia não o tirar da sua tranqüilidade. Seguramente, tínhamos interrompido o seu profundo kef.

     — Alá esteja contigo! — cumprimentei.

     — E com vocês! — respondeu.

     Com certeza, vira também os outros, que se aproximaram comigo.

     — Quem és, amigo? — perguntei.

     — Não estás vendo?

     — Um khawass?

     — Sim, um polícia do Grão Senhor, a quem todo o mundo está subordinado. Alá o guarde!

     — Muito bem. Nesse caso, recairá um pouco dessa bênção sobre ti.

     — Mas escassa. E essa partezinha nem sequer é paga pontualmente.

     — Onde estás empregado?

     — Em Ostromdja.

     — Quantos camaradas tens?

     — Mais nove.

     — Então são dez khawass, ao todo. Têm muito serviço?

     — Muito. A humanidade é má. Os atos dos injustos não nos deixam descansar, nem dormir. Corremos, dia e noite, para alcançar o crime.

     — Sim, de fato, nós te surpreendemos exatamente, durante uma dessas corridas de resistência.

     Não se deixou embaraçar pela ironia; ao contrário, respondeu:

     — Corri até suar, naturalmente só em pensamento. Os pensamentos são mais velozes do que as pernas dos homens. Por isso, é preferível andar com aqueles do que com estas. Assim, nenhum criminoso pode escapar.

     — Esta é uma interpretação, superiormente modelar, das tuas obrigações.

     — Sim, eu levo tudo a sério, pois é este o meu dever.

     — Portanto, há pouco estavas correndo em busca de alguém?

     — Era o que fazia.

     — Em busca de quem?

     — Tens alguma coisa com isso?

     — Não.

     — Por que perguntas, então?

     — Porque me agradas e porque és um filósofo, de quem se pode aprender muita coisa.

     — Não sei bem quem é esse feilessuf, mas decerto já o vi. Pelas tuas palavras, pode-se adivinhar que é um homem inteligente e superior, pois dizes que se pode aprender com ele. Por isso, fico contente que me dás a honra de comparar-me com tal pessoa. Tens costumes finos e um modo magnífico de viver. És daqui?

     — Não.

     — De onde, então?

     — De uma terra longínqua, que está no ocidente.

     — Ah, conheço-a. Chama-se Índia.

     — És um excelente geógrafo; no entanto, eu pensava que o ocidente era noutra direção.

     — Não, o ocidente está na Índia. É a única terra onde pode ficar o ocidente; noutra parte não há lugar para ele. Mas, se não és daqui, o meu dever exige que te pergunte pelo passaporte. Tens?

     — No bolso.

     — Mostra-me.

     Como o homem permanecesse, calmamente, deitado, fumando o seu cachimbo, respondi:

     — Não queres vir aqui, para vê-lo?

     — Não, isto não fica bem.

     — Por que não?

     — Não posso menosprezar a minha dignidade.

     — Exatamente. Eu também não posso diminuir a minha.

     — Resta saber qual das duas é a maior. Naturalmente, a minha.

     — Como assim?

     — Em primeiro lugar, sou polícia e tu és um forasteiro. Em segundo lugar, a tua pátria está situada num ocidente completamente errado; portanto, devo acreditar que, na tua terra, tudo é falso, inclusive os passaportes. Para ver um passaporte falso, não levanto nem mesmo um dedo, quanto mais a mim mesmo.

     Não pude conter uma risada.

     — És um funcionário incomparável — respondi. — As tuas opiniões sobre os encargos da tua função são tão primorosas, que quase se tem de acreditar que foram ditadas pelo próprio Profeta.

     — Se pensas assim, então apeia e vem te legitimar.

     Realmente, apeei, tirei uma moeda de prata do bolso, entreguei-lha e disse:

     — Este é o meu passaporte.

     Examinou a moeda, fez uma cara alegremente surpreendida, tirou, pela primeira vez, o cachimbo da boca e bradou:

     — Uma moeda de dez piastras. É verdade?

     — Estás vendo.

     — Isso não me aconteceu em toda a minha vida, nem mesmo em Istambul. Senhor, os teus costumes são muito mais distintos do que pensei. Alcançaste o degrau mais elevado da educação e todos os Paraísos estarão abertos para ti.

     — Então, concordas em que este passaporte é legítimo?

     — É muito legítimo. Não é falso, como pensei inicialmente. Os teus companheiros não querem legitimar-se também?

     — Parece que não é preciso.

     — Por que não?

     — Examina melhor o meu passaporte. Foi expedido para todos nós.

     — Isto não é bom. O padixá devia expedir ordens para que todos os forasteiros e estrangeiros se legitimassem com esses passaportes.

     — Talvez o faça mais tarde. Estiveste, então, em Istambul?

     — Muitos anos.

     — Desde quando estás aqui?

     — Apenas, há duas semanas.

     — Então se explica que não conheças este meu companheiro, que é aqui das redondezas. — Indiquei o hospedeiro. — Vês que não somos todos forasteiros. Queres nos dar licença de continuar?

     Muito contrariamente à minha pergunta, tinha intenção de permanecer, ali, ainda por algum tempo. Respondeu, como eu esperava:

     — Com muito gosto. Mas, se te agradar, podes ficar mais um pouco. Gosto de entreter-me com pessoas, cuja educação me entusiasma.

     — Não estou menos entusiasmado pelo teu comportamento. Posso, para acabar, saber quem era a pessoa a quem, há pouco perseguias, em pensamento, com tanta diligência?

     — Gostaria de te ser agradável, mas custa-me tanto falar.

     — Não parece.

     — Como não? Quando se corre, intimamente, com tanta velocidade, começa-se a suar e os pulmões perdem o fôlego. Não tens nada com que pudesse refrescar a minha língua?

     Cõmpreendi-o perfeitamente; não obstante, perguntei:

     — Que é que usas, de preferência?

     — Metal frio; por exemplo, um pouco de prata. Isso faz prodígios.

     — Qual precisaria ser o tamanho?

     — Uma moeda de cinco piastras, só.

     — Posso socorrer-te facilmente. Aqui está.

     Tirei uma moeda de cinco piastras da algibeira e lhe entreguei. Meteu-a no bolso, ao invés de botar na língua, e declarou:

     — Agora, custa-me menos falar do que antes. É uma coisa toda especial. Quem não sabe, não pode entender. Quando se tem de esperar meses e meses, sem receber o soldo, custa a viver e igualmente a falar, principalmente quando se tem que dar saltos, como eu. Na verdade, não devo prender um criminoso e sim três.

     — É muita coisa que se exige de ti.

     — É tanto que já estou, desde hoje de manhã cedo, deitado aqui, pensando como devo proceder para pegar aqueles velhacos. Não é difícil?

     — Muito!

     — Espero, porém, que, por estes dias, me ocorra qualquer boa idéia.

     — Mas não se suspeitaria que estás perseguindo os criminosos.

     — Mas estou, de fato!

     — Sim, em pensamentos. Mas, decerto, acreditar-se-á que também os persegues, andando com as pernas.

     — Não, nenhuma pessoa de juízo pode pensar isso. Se tivesse corrido, desde hoje cedo, sem descanso, estaria extenuado e abatido e não teria prendido os bandidos. Preferi deitar-me aqui para calcular qual a distância a que já terão chegado.

     — Não sabes para onde fugiram?

     — Quem pode saber isto?

     — Nem mesmo o rumo?

     — Disseram que os criminosos foram a Doiran. Mas, quem é inteligente, não acreditará que eles iriam dizer para onde se destinavam depois do delito.

     — Tens toda a razão. Não te deram algumas pistas?

     — Pois não? Eles montam tordilhos e roubaram cem libras, inclusive alguns objetos de ouro. Agora, estou pensando como poderei encontrar os ladrões, com auxílio dos três tordilhos e das cem libras.

     Disse isso com tanta graça e ironia, que quase soltei uma gargalhada. Continuei inquirindo:

     — Então todos os teus camaradas estão, como tu, pensando sobre esses tordilhos?

     — Não têm idéia disso, pois nada sabem sobre o caso.

     — O chefe de polícia não lhes disse coisa alguma a respeito?

     — Não.

     — Não os mandou, também, em perseguição dos ladrões?

     — Não.

     — Mas, devia fazer, não?

     — Acreditas? A idéia dele é completamente diferente. Mandou-me chamar, porque sou, de fato, o seu melhor e mais arguto investigador, e me deu seis dias de prazo para pensar sobre esse fato. Mas espero terminar antes. Por isso, preferi esta solidão e estou me aconselhando, seriamente, comigo mesmo. Os meus camaradas nada sabem, porque não se deve revelar coisa alguma a respeito. Quando os ladrões souberem que os perseguimos, naturalmente fugirão ainda mais e nós ficamos a ver navios.

     — Mas, se até lá, gastarem o dinheiro?

     — Então, foi porque Alá o quis, e nenhuma pessoa inteligente terá reclamações a fazer.

     Durante toda a minha palestra com o khawass, observara que o albergueiro estava, intimamente, agitado. Entregara-se à convicção de que todo o aparelhamento policial existente movimentava-se para restituir-lhe o dinheiro perdido. Para seu pasmo, teve que ver e cientificar-se, naquele momento, que, apenas, um único khawass recebera instruções a respeito. E este único contava, até, com um prazo de vários dias, não para, porventura, capturar os ladrões, mas para pensar sobre a questão.

     E este único, agora, entregava-se ao isolamento, para levar uma existência idílica, adocicada pelo seu tjibuk. Como se expressava comodamente, corria, em pensamento, atrás dos gatunos.

     Isto era demais para a vítima do roubo. Por diversas vezes, quis tomar parte na conversa, mas fora impedido pelos meus olhares suplicantes e sinais que lhe fiz. Mas, agora, não mais podia dominar a sua raiva. Apeou do cavalo, num salto, aproximou-se do khawass, que continuava deitado no chão, com o cachimbo na boca, e berrou:

     — Que estás dizendo? Foi Alá que o quis?

     — Sim — respondeu o interrogado, distraidamente.

     — Que o dinheiro fosse gasto?

     — Se desaparecer, foi Ele que o quis.

     — Ora veja! Bonito! Maravilhoso! Isto é grandioso! Sabes, por acaso, onde foi roubado?

     — Em Dabila, creio eu.

     — Também creio. E da casa de quem?

     — Da casa de um homem chamado Ibarek.

     — Tu o conheces?

     — Não.

     — Então, vais aprender a conhecer.

     — Naturalmente! Quando lhe levar os ladrões.

     — Não. Imediatamente, vais conhecê-lo! Olha para mim! Quem posso ser?

     — É-me de todo indiferente. E que tens que ver com este assunto?

     — Muita coisa, até muita! Chamo-me Ibarek. Sou o homem, que foi vítima do roubo.

     — Tu? — perguntou o khawass, admirado, sem se mover uma polegada, sequer.

     — Sim, eu!

     — Muito bem! Isso me alegra. Tenho que te dizer alguma coisa muito importante.

     — Que é?

     — Não coloca o teu dinheiro, de futuro, num lugar, onde os ladrões possam achar.

     — Machallah! Que homem! Que gente! Efêndi, que dizes a isto? Que devo fazer?

     Estas perguntas furiosas foram dirigidas a mim. Mas nem cheguei a responder. O meu pequeno Halef não se tinha incomodado pouco com o procedimento e a indiferença do polícia. Por pouco que a coisa lhe interessasse pessoalmente, não lhe era possível permanecer quieto, assistindo a tudo, pois, para isso, era demasiadamente colérico. Já há muito tempo, estava agitado, inquieto. Mas, agora, saltou no chão e respondeu, em meu lugar:

     — Que deves fazer? Já te vou mostrar! Aproximando-se rápido do khawass, gritou-lhe, furioso:

     — Sabes como a gente se comporta diante de um efêndi desconhecido e ilustre e seus companheiros?

     — Sei muito bem. Por que berras deste modo?

     — Justamente porque não sabes como se procede e porque te quero mostrar. Levanta-te, neste instante!

     Disse essas palavras em tom autoritário. O khawass sorriu com desprezo, sacudiu a cabeça e respondeu:

     — Que dizes, menino?

     Isto era o maior insulto para o pequeno hadji. Ninguém o chamara ainda de menino, impunemente.

     — Que sou? — perguntou furioso. — Um menino? Vou te mostrar qual o meu comprimento e a minha altura, quando se mede com o chicote! Levanta-te ou eu te ajudo!

     — Larga o relho! Não o posso tolerar, anão!

     — Que? Também sou anão? Oh, o anão já te vai provar que podes tolerar muito bem o chicote! Toma — toma — toma — toma — toma — toma — toma!

     Premunira-se de um forte impulso e, a cada “toma”, o chicote zunia nas costas do homem.

     Este permaneceu, ainda alguns instantes, na mesma posição, sentado, petrificado de espanto pela ousadia do hadji. De repente, deu um pulo, levantando-se, berrou de raiva, como um touro, e se atirou, de mãos fechadas, contra Halef.

     Fiquei perfeitamente tranqüilo, com o cotovelo apoiado na cabeça do serigote. O khawass era um homem robusto; mas não me passou pela idéia correr em auxílio do meu hadji. Conhecia-o bem demais. Agora que a questão estava nas suas mãos, ou melhor, no seu chicote, certamente saberia levá-la a termo. Qualquer intervenção de outrem, mesmo a minha, ofendê-lo-ia. E, ademais, estava convencido de que, apesar de ser mais franzino, possuía maior força física e agilidade do que o khawass.

     Este quisera, na verdade, atirar-se contra o hadji, mas, já ao primeiro impulso, cambaleou para trás, pois Halef o recebera com golpes de chicote, vibrados a torto e a direito, com a velocidade de um pensamento, de modo que formava uma barreira, pela qual o inimigo não podia passar. Os golpes choviam sobre o khawass: nas costas, nos ombros, nos braços, nos flancos, nas cadeiras e nas coxas. O homem estava sendo, formalmente, costurado a chicote. Contudo, Halef evitava, deliberadamente, acertar na cara, e mesmo na cabeça do polícia.

     Quanto menor era a resistência do khawass, mais alto gritava. Finalmente, ficou bem quieto, recebendo, imóvel, as chicotadas. Ao mesmo tempo, urrava como um tigre.

     — Assim! — disse, afinal Halef, deixando cair o chicote. — Agora, recebeste a recompensa pelo bom conselho, que, há pouco, deste ao homem de quem roubaram o dinheiro. Se possuíres mais um pouco de sabedoria no teu miolo, deixa-a aparecer consoladamente; o pagamento será imediato. E, se me chamares novamente de anão, então, faze-o já. Justamente, tenho tempo de sobra, para continuar a recompensar-te como mereces.

     O khavass não respondeu. Retorcia-se de dores. Os seus olhares estavam cravados, furiosos, no hadji. Só deixava ouvir alguns sons inarticulados. Enfim, pareceu recordar-se, repentinamente, da dignidade da sua função, a que, há pouco, aludira. Empertigou-se todo e disse:

     — Homem, deves estar maluco! Como podes bater num khawass do Grão Senhor?

     — Cala a boca! Surraria o próprio Grão Senhor, se ele se atrevesse a tratar-nos, como fizeste. Que és, finalmente? Um soldado, um polícia, um servo de cada súdito! Não és nada mais, nada!

     Pela aparência, podia-se supor que estava com muita vontade de pôr o seu chicote, novamente, em ação. A vítima, porém, não queria deixar chegar a isso e respondeu:

     — Sempre insultando! A mim não podes ofender. As nossas instruções mandam que tratemos o povo com urbanidade, quando...

     — Que povo? — interrompeu-o Halef. — Somos, por acaso, povo?

     — Que, então?

     — Que somos? Estás cego? Olha para mim! Não vês com quem estás falando?

     — Nada vejo.

     — Então, realmente, és cego e tolo. Vou dizer-te quem sou. O meu nome é hadji Halef Omar Ben hadji Dawud al Gossarah! Qual é, no entanto, o teu nome?

     — Chamo-me Selim.

     — Selim! Nada mais?

     — Que nome queres que tenha ainda? Selim chega.

     — Selim chega! Sim, pode bastar para ti, que és um simples khawass e mais nada.

     Dificilmente, o polícia sabia que os árabes livres têm o costume de adicionar, ao seu próprio nome, o dos seus antepassados. Quanto mais comprido fica, assim, um nome desses, tanto maior é o orgulho, com que é usado.

     — Pensas que um khawass não vale absolutamente nada? — perguntou, então.

     — Cala-te! — respondeu o hadji. — Um khawass, que se chama só Selim, nada tem que dizer. Olha, quem são os outros que aqui estão.

     Indicou Omar e continuou:

     — Esse é Omar Saban If el Habadji, Ben Abu Musa Djafar es Sofi Otalan Ibn Avizenna ali hafis abu Nerwan el Hegali!

     Depois, mostrando Osko, disse:

     — E este famoso guerreiro chama-se Osko obd el Latif Mefari Ben Mohamed Hassan el Djaseris Ibn Wahab Alfirat Biruni et Seirafi! Sabes, agora?

     Precisei esforçar-me para não dar uma gargalhada sonora. Nenhum dos dois tinha tais nomes; mas, para dar maior imponência, o pequeno hadji citou uma porção de nomes e de antepassados, dos quais Osko e Omar jamais ouviram falar, em toda a sua vida.

     E o fêz com tanta seriedade e os nomes árabes saíam com tanta rapidez e facilidade da sua boca, que o polícia ficou perplexo, estático, como se cada nome fosse uma bala que o atingisse.

     — Então, responde! — bradou Halef, agitado. — Perdeste a língua, ó homem, que estás satisfeito com o teu único nome de Selim? Não tens outros nomes, nem antepassados? Como se chamava o teu pai e o avô do pai do teu pai? Não tiveram feitos heróicos, ou foram bandidos e covardes, a ponto de te envergonhares de nos dizer os seus nomes? Ou, quem sabe, nem nasceste, e, sim, escapaste de uma ratoeira, num dia escuro? Olha para nós! Somos gente!

     O khawass ainda não sabia o que responder. As recriminações do hadji choviam sobre ele.

     — Olha para este aqui! — disse Halef, indicando o hospedeiro. — Não é árabe, mas um turco, e, contudo, não se chama só Selim, porém, Ibarek el konakdjy — Ibarek, o albergueiro. — Foram-lhe roubadas cem libras. Que se poderia roubar de ti — tu, que nada mais tens, senão o nome Selim?

     — Olé! — respondeu, afinal, o khawass, tratado com tanto desprezo. — Também não sou mendigo. Tenho um cargo e...

     — Cargo! Cala-te sobre o cargo! O que este significa, já vimos. A tua função parece ser a de estar deitado na relva, roubando os dias e as semanas de Alá. Mas, porei em movimento os preguiçosos. Irei ao chefe de polícia e lhe darei a beber tanto azougue que acabará por espernear e estrebuxar. Ordeno-te que te prepares e partas imediatamente para a cidade. Se não estiveres na presença do chefe de polícia, dentro de meia hora, mandarei afogar-te na água mais profunda e, em seguida, matar-te com um canhão. Partiremos, agora. Não penses que dei a ordem, por brincadeira. Falo sério. Saberás disso.

     O khawass abriu a boca, de espanto.

     — Que? — redargüiu. — Queres dar-me uma ordem?

     — Como não? Não ouviste, porventura?

     — De que modo podes me dar ordens?

     — Que pergunta! Naturalmente, tens que me obedecer. Pois, és somente Selim, o anônimo, enquanto eu sou hadji Halef Omar Ben hadji Abul Abbas Ibn...

     — Pára, pára! — interrompeu-o o khawass, tapando os ouvidos com as duas mãos. — O teu nome é de fato uma serpente tão comprida, que a gente tem medo de ser esmagado por ela. Sim, irei imediatamente para a cidade. Mas, não porque ordenaste, e sim para denunciar-te. Bateste num servo do Grão Senhor. Por isso, receberás um castigo, como ninguém ainda recebeu.

     Reuniu as suas coisas espalhadas pelo chão e desapareceu por trás dos arbustos. Recearia uma nova explosão da capacidade de ação do meu pequeno hadji ou teria sede de vingança, pela punição recebida? Talvez, ambas as coisas.

     — Lá vai ele, disparando! — disse Halef, satisfeito. — Que achas da minha ação, sídi?

     Olhou-me, como se esperasse um elogio. Ao invés disso, porém, ouviu uma repreensão enérgica.

     — Procedeste mal, muito mal. Já fizeste muita tolice, mas nunca tão grande como agora.

     — Sídi, estás falando sério?

     — Estou.

     — Mas, esse homem, certamente, mereceu o castigo.

     — Possuías, no entanto, o direito de castigá-lo?

     — Quem o faria, então?

     — O seu superior hierárquico.

     — Oh, Alá! Se este tivesse que o surrar, certamente ambos pegariam no sono. Não, quem tiver de agir, faça-o depressa! Esse indivíduo ficou deitado, diante de nós, como se fosse o bisavô do Grão Senhor, a quem todos os fiéis e infiéis são submissos. Estraguei-lhe esse divertimento.

     — Sem pensar, entretanto, nas conseqüências.

     — Quais poderão ser as conseqüências? Se nos denunciar ao chefe de polícia, é bem possível que, também este, experimente o meu chicote.

     — Halef, agora chega. O homem merecia um castigo; é verdade. Mas devias esperar o que eu fizesse. Não sabemos quais os perigos que nos esperam e, em face disto, foi uma tolice inexplicável inimizar-nos com a polícia. Tratei zombeteiramente aquele homem. Deverias fazer o mesmo. Em lugar disso, surraste-o. Não mandei que o fizesses, motivo por que as conseqüências não me preocupam. A coisa, absolutamente, não me interessa. Vê lá como consegues safar-te do atoleiro.

     Montei e me afastei. Os outros seguiram-me, silenciosos. Halef estava cabisbaixo. Começou a perceber, aos poucos, que nos podia ter causado grandes males.

     O turco, que maior motivo tinha para estar com raiva, cavalgava, calado, ao meu lado. Só depois de algum tempo, procurou informar-se:

     — Efêndi, as conseqüências podem ser, de fato, graves para o hadji?

     — Evidentemente.

     — Entretanto, tu o defenderás?

     — Nem na mínima coisa! — respondi, pois Halef estava ouvindo. — Ele se tornou culpado do crime de desacato à autoridade e de lesões corporais na pessoa de um funcionário da polícia imperial. Não posso salvá-lo, se o prenderem.

     — Então, que fuja!

     — Faça o que entender. Agiu sem o meu consentimento, como uma criança, que é incapaz de refletir sobre as conseqüências dos seus atos. Que caiam sobre ele. Não posso ajudá-lo.

     Não me foi fácil dizer essas palavras. Talvez me doessem mais do que ao próprio Halef; achei, porém, necessário passar-lhe uma ensaboadela semelhante.

     Seguira-me, fielmente, por todos os perigos, e que perigos! Quantas vezes arriscara a sua vida comigo! Abandonara a sua pátria, e o que era mais, também Hanneh, a flor das mulheres. O meu corção estava cheio de gratidão. Mas começava a ser imprudente.

     As arriscadas perigosas de que tantas vezes saíramos bem; a sorte que sempre tivéramos em escapar às maiores entaladelas — tudo fermentou a confiança que tinha em si próprio. Assemelhava-se a um cachorrinho valente, que tem a coragem de atacar, até mesmo os mais fortes representantes da raça canina. Uma única dentada do gigante mata-lo-ia. E, justamente, agora, nos aproximávamos da zona de domínio dos skipetars. A prudência tornava-se duplamente precisa.

     Intimamente, regozijava-me por ter ele dado uma tão valente lição ao preguiçoso polícia e estava resolvido, como bem se compreende, a aparar as conseqüências. Mas achei aconselhável abafar um pouco a sua vontade e precipitação de agir.

 

    O Santo

     Depois de algum tempo, alcançamos a estrada de Kusturlu e dobramos à direita. Aproximavamo-nos do Strumnitza, cavalgando através de plantações de fumo e algodão.

     Em breve, vimos erguer-se, diante de nós, um morro, em cujas faldas se distinguiam as casas da cidade. No alto da cúpula, avistava-se a floresta escuro-verdejante, de cujo seio espiavam os muros carcomidos das ruínas.

     — É Ostromdja — explicou o turco.

     — Também chamada Strumnitza, em virtude do rio que corre perto da cidade — acrescentei, esgotando os meus conhecimentos de geografia.

     Neste momento Halef colocou-se do meu lado. A vista da cidade, fê-lo recordar-se das conseqüências possíveis do seu ato precipitado.

     — Sídi — começou.

     Fiz como se não ouvisse.

     — Sídi!

     Continuei olhando impassivelmente para a cidade.

     — Não me ouves, ou não me queres ouvir?

     — Ouço.

     — Achas que devo fugir?

     — Não.

     — Também não o faria. Preferia meter uma bala nos miolos. Ou achas que devo deixar-me prender por um polícia?

     — Age a teu bel prazer.

     — Preferia meter-lhe uma bala na cabeça.

     — E, aí mesmo, é que serias encarcerado.

     — Que achas que vai acontecer?

     — Não sei. Temos que esperar os acontecimentos.

     — Sim, vamos esperar! Mas tomar-me-ás sob a tua proteção?

     — Penso que estou sob a tua. Pois tu te denominas meu amigo e protetor!

     — Sídi, perdoa-me! Só tu tens sido protetor.

     — Não, Halef. Muitas vezes estive sob a tua proteção. Não esquecerei jamais e, por isso, vamos ver se esta gente, aqui, se arrisca a mexer com o famoso hadji Halef Omar.

     — Hamdulillah! Graças a Alá! Caiu-me uma pedra do coração, a qual era tão grande e tão pesada, como o morro, aí na frente, onde está situada a cidade. Posso suportar tudo, menos a certeza de que o meu efêndi está incomodado comigo. Ainda estás brabo?

     — Não.

     — Então dá-me a mão.

     — Aqui está.

     O olhar que me dirigiu, cheio de amizade profunda e fidelidade — quase diria fidelidade canina — penetrou-me fundo no coração. Que bem precioso é a sorte de possuir um amigo tão fiel!

     Acercavamo-nos, cada vez mais, da cidade. Antes de alcançarmos as primeiras casas — verdadeiras choças — vimos um mendigo, sentado numa pedra do caminho, um quadro tétrico de miséria e degeneração.

     Propriamente é errado dizer que estava sentado no caminho, pois não o estava. Parecia mesmo não poder sentar direito. Estava deitado, com as costas encolhidas, meio de lado, tendo as muletas junto de si. Nos seus pés, estavam enrolados trapos, amarrados com cordões. O seu único abrigo consistia numa coisa, meio pano e meia capa, ao redor da cintura. Nesse pano parecia guardar as dádivas, que lhe eram oferecidas: pão, frutas e outras coisas, pois fazia um volume considerável. O corpo era macilento e sujo tostado. Via-se bem costela por costela, e as clavículas ressaltavam como as de um esqueleto. A cabeça estava coberta de cabelos sujos, hirsutos e desgrenhados, que, durante anos, provavelmente, não sentiam a proximidade de um pente. A cara estava inchada, mas os seus traços eram bem pronunciados. A pele apresentava uma côr vermelho-azulada, como se estivesse enregelada. Os olhos estavam bem no fundo das órbitas.

     Estranhei essa cara. Nela havia uma contradição, que me chamou a atenção, ao primeiro golpe de vista; não podia, no entanto, dizer em que consistia essa contradição. A expressão era de idiotismo e insensibilidade.

     Vi tudo isso, mas não neste momento e sim mais tarde, quando paramos diante do mendigo, para dar-lhe uma esmola. Observei-o muito bem, pois fora informado pelo turco de quem se tratava.

     Efetivamente, quando ainda nos achávamos longe e o avistáramos, o albergueiro me disse:

     — Lá está Busra, o aleijado, de quem te falei.

     — Aquele que esteve na casa do teu vizinho, quando acreditaste que o santo havia chegado?

     — Sim, efêndi.

     — Ele precisa, realmente, de esmolas?

     — Precisa. Não pode trabalhar, pois não tem mais a espinha dorsal.

     — Neste caso, provavelmente, não poderia viver.

     — Não entendo nada disso. Diz-se assim. Anda com duas muletas e arrasta as pernas. Não as pode mover. Ademais, é um imbecil que só sabe dizer algumas palavras. Todos lhe dão alguma coisa. Se permaneceres alguns dias aqui, vê-lo-ás, com freqüência.

     — Tem parentes?

     — Não.

     — Onde mora?

     — Em parte alguma. Come, onde lhe dão algo que comer, e dorme sempre no lugar onde a fadiga o prostra. É um ente miserável, a quem Alá dará, na outra vida, o que lhe recusou nesta.

     O aleijado estava de costas para nós. Quando ouviu o tropel dos cavalos, ergueu-se, com grande dificuldade, auxiliado pelas muletas e nos encarou. Vi então a sua cara apática, idiota. Os seus olhos pareciam não enxergar. Era um olhar morto, inexpressivo. O homem podia ter quarenta anos de vida; contudo, era difícil atribuir-lhe, exatamente, uma determinada idade.

     Senti compaixão pelo miserável e não imaginei quão saliente seria o papel de inimigo que ainda iria representar. Paramos junto do aleijado. Estendeu-nos a mão e balbuciou, afônico, repetidamente, a palavra:

     — Ejlik, ejlik, ejlik — Caridade, caridade, caridade!

     Os outros lhe deram e também eu dei uma moeda de duas piastras. Mas, quase assustei-me, porque, no momento em que lhe dava a moeda, o seu corpo estremeceu e dos seus olhos, antes sem vida e brilho, relampejou uma faísca, um olhar cheio de ódio e rancor, como nunca vira nos olhos de um inimigo. Um instante após, as pálpebras se fecharam e o rosto tomou, novamente, a expressão da estupidez.

     — Chuekuer, chuekuer — Obrigado, obrigado! — balbuciou.

     Era tão singular, quase inacreditável, se eu não o tivesse percebido, com extraordinária clareza. Que tinha comigo aquele esmoleiro? Por que esta inimizade infundada contra uma pessoa completamente desconhecida? E, se desses olhos podia brotar um olhar tão intensivo de ódio, seria mesmo idiota esse homem? Ao mesmo tempo tive a impressão de já ter visto essa cara. Mas, quando e onde? Não me enganaria? Não parecia que também me conhecia?

     Continuamos a viagem, ficando eu atrás dos outros; involuntariamente, virei-me, para olhar, mais uma vez, o mendigo.

     Que era isto? Já não estava mais estendido, desamparado, sobre a pedra. Estava sentado vigorosamente, estou em dizer ereto, e levantava o braço direito, com a muleta, brandindo-a ameaçadoramente contra nós. Nós? Talvez, somente contra mim.

     Senti-me profundamente impressionado. O homem parecia, neste momento, um verdadeiro demônio. Sim, as suas feições estavam, satânicamente, descompostas. No meu íntimo, começou a surgir um pouco de clareza sobre o lugar onde já o vira. Uma cidade oriental — horrível aperto de gente — pavorosos gritos e berros — milhares de mãos procuravam agarrar-me — seria em Meca? — a fantasmagoria se desfez e eu fiquei sabendo, tanto como antes.

     — Este mendigo, realmente, não pode caminhar? — perguntei ao turco.

     — Só com as muletas — respondeu. — As pernas estão dependuradas no corpo, como trapos.

     — E não se senta?

     — Não. Não tem mais a espinha dorsal.

     Não ter espinha! Que tolice! Silenciei sobre o circunstância de o ter visto, naquele momento, numa posição muito enérgica, pois julguei aconselhável não deixar o turco participar de um segredo, que eu próprio não conhecia, apenas imaginava.

     Pouco tempo depois, chegamos à cidade. Perguntara ao turco pelas fontes de água quente já referidas e soubera que existiam, de fato, mas não como supunha. Havia tempos em que a água jorrava abundantemente, para depois secar, quase por completo. Às vezes, havia água quente, em quantidade e, em seguida, a vertente se extinguia. Agora, vertia parcamente, ao que me informou o turco.

     Quando tínhamos diante de nós as primeiras casas, ou melhor, choças, o albergueiro disse:

     — Efêndi, talvez tenhas vontade de ir ver já as fontes de água quente?

     — Estão no caminho?

     — Não. Entretanto, temos que andar pouco, para lá chegar.

     — Então, vamos.

     Desviou-se para um lado e contornamos algumas choupanas e os jardinzinhos a elas pertencentes — os quais, entretanto, não mereciam essa denominação.

     Ganidos altos de voz feminina feriram os nossos ouvidos.

     — Aí está a fonte — informou o nosso guia.

     — Onde se verifica essa gritaria?

     — Sim. Deves saber que se crê ser essa água muito boa para determinadas enfermidades. Quando está vertendo em pequena quantidade, as mulheres que a vieram buscar, brigam entre si.

     Contornamos uma moita de espirradeiras e chegamos à frente da fonte.

     O curso da água estava assinalado por um regato, cujo leito, cor de ocre, indicava que a fonte continha ferro. Via-se pouca água. Provinha essa de uma depressão do solo, em forma circular, onde se avistavam os mesmos sinais vermelhos. O lugar todo pisoteado, demonstrava que a freqüência, ali, era grande.

     À beira da depressão, achavam-se pedras, que, por certo, tinham sido levadas para ali, a fim de servirem de assentos.

     Neste instante, estavam presentes só três pessoas e, para melhor me explicar, eram do sexo feminino: duas mulheres e uma menina de oito anos, mais ou menos.

     Uma das mulheres estava bem vestida, conquanto suja, e o volume do seu corpo era apreciável. Era ela, cuja voz resingueira de falsête ouvíramos há pouco. Estava de costas para nós e, como continuasse a gritar, não ouviu a nossa aproximação.

     Aos seus pés, encontrava-se um trapo velho e uma bilha, cuja asa estava quebrada. O vaso caíra e do seu interior saía uma massa escura, cuja aparência não era nada recomendável.

     A outra mulher estava sentada numa das pedras. Vestia uma saia rota e a parte superior do corpo, inclusive os braços, estava coberta com um pano antediluviano. Dava, porém, uma impressão sofrivelmente asseada, mais asseada do que a outra, que, a julgar pelos seus vestidos, desfrutava melhor posição. A sua cara era magra. A necessidade imprimira-lhe as suas rugas escuras. A criança ao seu lado envolvia-se numa camisa de algodão, bem lavada e até corada, ao que parecia.

     A gorda resmungona despejava as palavras de raiva, com uma rapidez, que nem se podia acompanhá-las. Só as expressões dobradamente fortes podiam-se distinguir claramente. Nem mesmo um estivador seria capaz de usar de tamanhas grosserias. Ao mesmo tempo, a mulher dava socos, ora na outra, ora na criança.

     Esta outra, à nossa chegada, fêz um movimento, que levou a rabujenta a voltar-se para nós.

     Oh, céus! Que cara! A visagem tatuada de um ilhéu dos mares do sul seria o verdadeiro ideal de beleza diante daquilo! A razão disso encontrava-se no fato de ter a mulher enlambusado a cara com uma massa grossa e vermelha. O seu aspecto era medonho. Ao avistar-nos, afastou-se da outra e estacou no curso ruidoso do seu discurso.

     — Paz seja convosco! — cumprimentei.

     — Para sempre, amém! — respondeu a mulher.

     Essas palavras fizeram-me supor que era uma búlgara, confessando a fé grega.

     — É esta a fonte, onde se encontra a cura?

     — Sim, senhor, esta fonte é famosa em todo o país e muito mais longe ainda.

     A esta explicação, ajuntou a enumeração duma porção de doenças, para as quais lá se encontrava remédio, e de outros tantos milagres, que aconteceram naquele lugar.

     Desenvolveu, com isso, tanto talento oratório, que fiquei estupefato. As palavras brotavam-lhe da boca, numa torrente impetuosa, e não achei nem uma vaga da milésima parte de um segundo para entrar, com uma pergunta, por essa brecha. Nada mais me restou, senão esperar simplesmente que ela terminasse, o que, no entanto, somente se deu depois de muito tempo, porque, tendo citado inumeráveis enfermidades, interrogou-me sobre quais os achaques e defeitos que me tinham levado até ali. Mas, absolutamente, não esperou uma resposta.

     — Oh, Allah! Machallah! Allah we Allah! — bradava Halef, uma vez que outra, batendo com as palmas das mãos.

     A mulher parecia entender que essas interjeições não se referiam à maré das suas palavras e sim às maravilhas da fonte termal, e se sentiu, assim, mais autorizada a continuar a enumeração, com uma rapidez falante realmente esmagadora. Para fazê-la calar-se, toquei, levemente, com as esporas na ilharga do garanhão. Não estava acostumado a isso e saltou com as quatro patas.

     A oradora interrompeu-se, pulou para trás e deu um grito de susto. Aproveitei-me disso para tomar a palavra.

     — Como te chamas? — perguntei-lhe.

     — Nohuda. Nasci em Debrinitz, como meu pai também. A minha mãe morreu pouco depois do meu nascimento. Os avós vieram do outro lado do rio...

     Obriguei novamente o morzelo a corcovear, porque receiava, não sem razão, que ela subiria a escada de seu parentesco, até as origens de Matusalém e mais longe ainda. Felizmente, interrompeu-se e eu tive a formidável presença de espírito de me aproveitar do momento para uma explicação:

     — Querida Nohuda, preciso te dizer que vim aqui por causa de uma dor de cabeça. Sinto, de fato...

     — Dor de cabeça? — interveio às pressas. — Senhor, fizeste bem, foi muito bom que vieste. Se soubesses quantas cabeças, milhares e mais milhares em número, encontraram a cura de...

     O morzelo empinou-se novamente, de modo que ela fêz um novo intervalo. Declarei:

     — A minha dor de cabeça é tão forte que até o ouvir voz humana causa-me padecimentos enormes. Faze, portanto, o favor de só falar, quando te perguntar alguma coisa. Vejo, pelo teu gesto, que, no teu peito, mora uma alma meiga e cheia de compaixão; por isso, acredito que me farás esse favor.

     Por certo, tocara na sua corda sensível, pois colocou ambas as mãos sobre o coração e disse, com voz abafada:

     — Senhor, isto é verdade; tens razão. Calar-me-ei como se já estivesse mo túmulo. Responderei só as tuas perguntas. Reconheceste o meu bom e meigo coração. A tua pobre cabeça não sofrerá por minha causa.

     O pequeno hadji fêz uma cara infinitamente feroz, o que só acontecia, quando empregava todo o seu esforço para reprimir o riso. Também se via nos outros que, a custo, continham uma risada.

     — Em primeiro lugar, quero que me perdoes por te ter interrompido, querida Nohuda. Eu te encontrei numa palestra muito íntima. Qual era o assunto?

     Os seus olhos rebrilharam, novamente, irados. Parecia arrebentar outra vez aquele furacão de palavras; por isso, segurei a cabeça com as duas mãos, numa pantomima de dor.

     — Não tenhas medo, senhor! — disse, baixinho. — Não recomeçarei a briga e só quero te dizer que discutimos por causa disto.

     Indicou a bilha.

     — Que é?

     — O meu vaso de pomada.

     — Precisas desta bilha, aqui na fonte?

     — É até imprescindível.

     — Por que vens a esta vertente?

     — Por que? Wardur genjlenne — Rejuvenesce.

     — Olá! Queres remoçar? Mas não precisas disso!

     — Achas? És muito bondoso. Quem dera que o meu marido também tivesse essa opinião! Sabes, agora, que me chamo “Ervilha”. Mas, desde algum tempo, ele me chama só de sua velha vagem. Não é humilhante?

     — Talvez não faça por mal. Possivelmente, emprega essa palavra, pensando ser um tratamento carinhoso.

     — Oh, não! Conheço-o bem demais. É um bárbaro, um homem irreverente, um tirano desatencioso, um...

     Segurei a cabeça.

     — Tens razão — disse, contendo-se. — Não devo falar alto. Mas, quero mostrar e lhe provar que não sou uma velha vagem. Por isso, venho aqui diariamente e unto o rosto com a lama da beleza.

     Não era fácil conter o riso.

     — Procedes com muita sabedoria — respondi. — Mas, como é preparado esse barro?

     — Amassam-se pétalas de rosas e cozinham-se com farinha e água, até ficar um pirão. Este é trazido para aqui e misturado, em partes iguais, com a borra vermelha da fonte e, depois, esfrega-se no rosto. Ajuda, é certo que ajuda.

     — Efetivamente?

     — Certamente! Nenhuma verruga, nenhum sinal, nenhuma engelha, nenhuma ruga resiste a este grude. É famoso em todo o país. Por isso, zanguei-me quando essa menina derrubou o vaso. Mas sou uma alma delicada e meiga, como reconheceste muito bem, e, por conseguinte, calei-me e vou perdoar o descuido.

     — Fazes muito bem. Meiguice é o ornamento mais lindo da mulher, e a discrição aumenta o seu encanto.

     — Também digo isso! — afirmou.

     — Sim, cara Nohuda, a discrição é o melhor remédio para se conservar bonita até a idade mais avançada. Quando as paixões não decompõem as feições, a beleza pode conservar-se em todos os traços do rosto. Mas, decerto sabes o que o sábio Bahuwi disse sobre uma mulher, que sempre está rezingando e brigando.

     — Não, senhor, porque nunca falei com esse homem.

     — Ele disse que o rosto de uma mulher, agitado pela raiva, assemelhase a um saco cheio de sapos e tartarugas. O saco está sempre em movimento, porque aqueles bichos feios nunca ficam quietos.

     — Ele tem razão! Também sempre pensei a mesma coisa; por isso, esforcei-me, para exteriorizar os meus profundos sentimentos, com calma constante. Mas o meu mando não está de acordo. Quer, pelo contrário, que eu seja mais vivaz.

     — Então, conta-lhe a história do saco, e logo concordará contigo. Mas, vejo que a pomada no teu rosto já está seca. Terás de botar outra.

     — Já, agora já! Agradeço-te.

     — Mas não fales. O rosto não se deve mexer.

     — Não direi uma palavra.

     Tomou a bilha e a encheu da decantação amarelo-avermelhada da fonte, fazendo a mistura com o resto do grude, ainda existente. Depois de ter mexido tudo com o maior afinco, tirou a crosta, que lhe cobria o rosto, com as unhas, e esfregou nas faces uma nova camada da “lama da beleza”.

     Toda a cena constituiu o gáudio dos meus companheiros. O mais cômico do espetáculo, entretanto, achava-se na circunstância de só termos falado, no final da conversação, em voz muito baixa, naturalmente, para poupar a minha pobre cabeça.

     Só agora, sobrou-me tempo para observar melhor a outra mulher. À vista de suas faces encovadas e dos olhos sumidos no fundo das órbitas, brotou-me involuntariamente a pergunta:

     — Adch semin — Tens fome?

     Não respondeu. Mas, nos seus olhos, pude ler que a minha suposição era exata.

     — Chasta sen — E estás doente?

     Agora, ela acenou, afirmativamente.

     — De que estás sofrendo?

     — Senhor, tenho reumatismo nos braços.

     — A fonte te ajuda alguma coisa?

     — Sim, ela serve para tudo.

     — Como pegaste essa doença?

     — Porque sou colhedora de plantas. Assim, sustento a mim e aos meus filhos, juntando ervas, que vendo ao farmacêutico. Fazendo esse serviço, estou sempre no mato e no campo, quer chova, quer não, freqüentemente desde o alvorecer do dia até altas horas da noite. Muitas vezes, fiquei resfriada e, agora, toda a friagem se concentrou nos braços, que só posso mover com grandes dores.

     — Consultaste um médico?

     — Ninguém me aceita, porque sou pobre.

     — Mas, o farmacêutico, a quem vendes as ervas, podia dar-te um remédio, não?

     — Ele deu, de fato. Mas não ajudou. Por isso, ficou tão zangado, que não quer que eu vá à sua casa.

     — É muito grave. Mas existe mais alguém aqui — o velho Muebarek — que cura todas as doenças. Não fôste falar com ele?

     — Também fiz isso; mas, mandou-me embora, muito brabo, porque me odeia.

     — Ele te odeia? Ofendeste-o, porventura?

     — Nunca.

     — Então, não tem motivo para ser tão ríspido contigo.

     — Acha que tem um motivo, porque, de vez em quando... vê, aí vem ele!

     Indicou a direção, de onde viéramos.

     Do lugar, onde nos achávamos, podia-se divisar toda a estrada, que nos conduzira no rumo da cidade. Já durante a conversa, olhara para esse caminho e também para a pedra, onde estivera sentado o mendigo aleijado. Este, no entanto, desaparecera, enquanto observei uma figura de homem esbelto, que procedia do rumo daquela pedra, caminhando, vagarosamente, todo cheio de dignidade.

     Onde fora o esmoleiro? Toda a região, diante de nós, era plana e limpa. Èle forçosamente teria que ser visto, fosse para a esquerda, para a direita ou tomasse uma linha reta, através da planície. E, se tivesse ido para a cidade, aí mesmo que o teríamos visto, mormente porque um aleijado, com muletas, só pode andar com muita lentidão. Mas fôra-se, desaparecera sem deixar rasto.

     Não longe da pedra, onde estava sentado, havia uma plantação de algodão. As plantas mal podiam ter quatro pés de altura. Atrás delas o mendigo não podia estar, a menos que se conservasse deitado. Não podia, entretanto, fazer isto, porquanto não estava em condições de se levantar sozinho. Esse desaparecimento repentino era incompreensível.

     Entrementes, o aludido homem aproximava-se cada vez mais. Mantinha a cabeça baixa, como se tivesse os olhos cravados na terra. Quando chegou à pequena distância das primeiras casas, não continuou pelo caminho que havíamos trilhado, e, sim, dobrou logo para um atalho lateral, dirigindo-se a nós. Como supusesse que não se tinha afastado do caminho, só por estar abismado nos seus pensamentos, acreditei que se aproximasse de nós intencionalmente.

     Neste momento, a mulher chamou-nos a atenção para ele. Por minha causa, não precisaria fazê-lo, porquanto eu me colocara de modo a poder ver, já de longe, o referido homem, e, durante a palestra, não desviara, a não ser poucos instantes, o olhar que lhe dirigia constantemente.

     Os outros voltaram-se para vê-lo.

     — Sim, é o Muebarek! — disse o turco. — Efêndi, é ele. Observa-o bem.

     — Já observei.

     — Agora, podes ouvir os estalidos dos seus ossos.

     — Vamos ver. Talvez faça também a gentileza de desaparecer, diante de nós.

     — Se quiser, poderá fazê-lo.

     — Dize-lhe que faça.

     — Não me arrisco.

     — Por que não?

     — Poderia levar a mal.

     — Ora! Ele te conhece.

     — Isso não influi.

     — E ganhou muito dinheiro contigo.

     — Em compensação, curou-nos. Não nos deve obrigação alguma. Nessa ocasião, o “santo” já se achava junto de nós. Passou muito, muito devagar por nós, sem levantar o olhar do chão. As duas mulheres ficaram paradas, em atitude cheia de respeito. O turco levantou as mãos, saudando-o. Nós, porém, aparentemente, não nos preocupamos com ele. Fingi não observá-lo sequer, quase voltando-lhe as costas, mas sem lhe tirar os olhos.

 

     Assim, notei que, sob as pálpebras semifechadas, dirigia-nos um olhar prolongado. A sua abstração era só uma máscara. Fazia-o sempre ou devia eu considerar essa atitude, esse misterioso olhar de soslaio, dedicado a mim, exclusivamente?

     Escutei atentamente, e, de fato, ao passar, ouvia-se, a cada passo, um ruído leve, como o de ossos que se entrechocavam. Uma pessoa que não fosse de todo destemerosa e livre de preconceitos poderia sentir arrepios de susto.

     Vestia-se como o turco dissera: de pés descalços, com um pano na cabeça e o corpo envolvido por um caftan. Nada se podia ver do xale, pois o caftan era trespassado na frente.

     Era extraordinariamente magro, com os olhos muito encovados, como o mendigo, pelo qual passáramos. A sua cara ossuda era côr de terra. As maçãs do rosto eram muito salientes e a boca descaída. O velho, por certo, não possuía mais dentes. A região bucal assemelhava-se a um golfo profundo, sob o qual avançava, com grande proeminência, o queixo pontudo, e o nariz se destacava, duplamente agudo.

     Esse era portanto o célebre “santo”, que Alá abençoara com tantos dons misteriosos e maravilhosos.

     Passou, como um Dalai-Lama, para quem os homens são criaturas tão desprezíveis, que o seu olhar não se rebaixa a distingui-los. Também a ele — tive essa sensação inexplicável — já vira certamente, e isso em circunstâncias que não me podiam ter sido agradáveis. Esse sentimento agitou-me intimamente.

     Se tivesse julgado que nos subtrairia totalmente à sua atenção, enganara-se redondamente. Já tinha passado alguns passos, quando se virou repentinamente e deixou correr o seu olhar penetrante sobre o nosso grupo; depois, ressoou a sua voz rangente:

     — Nebatja!

     A colhedora de plantas estremeceu.

     — Nebatja! Aqui!

     Mostrava, com o indicador, para o chão, mais ou menos, como a gente chama um cachorro, que vai ser surrado.

     A mulher caminhou, a passos lentos, amedrontada, em sua direção. O seu olhar era ameaçador, tão penetrante, como se quisesse perfurá-la.

     — Há quanto tempo morreu teu marido? — perguntou-lhe.

     — Três anos.

     — Rezaste pela sua alma?

     — Diariamente.

     — Não era adepto do Profeta, cheio de fama, cujo nome é tão sagrado, que não desejo mencioná-lo aos teus ouvidos; era um nusrani, um confessante de outra doutrina. Pertencia aos cristãos, que não sabem o que querem crer, motivo por que se dividem em muitas seitas e se combatem. Mas Alá, na sua misericórdia, resolveu que também eles poderão chegar às divisões mais baixas do céu. O teu marido, porém, será assado no fogo do inferno.

     Pareceu esperar uma resposta; mas a mulher calou-sé.

     — Ouviste? — perguntou.

     — Sim — respondeu ela, em voz baixa.

     — E acreditas?

     Ela não respondeu.

     — Tens que acreditar, pois eu mesmo o vi. Durante esta noite, um anjo de Alá tirou-me da terra e me conduziu à mansão dos bem-aventurados. Num abismo, a meus pés, estava o inferno, com os precipícios flamejantes. Lá dentro, vi, entre muitos outros, o teu marido. Estava amarrado a um rochedo. Uma bicharia infernal roía o seu corpo e as labaredas pontudas lambiam a sua cara. Ouvi-o berrar de dor. Viu-me nas alturas, deslisando suavemente sobre ele, e me pediu que te dissesse que os postes, fincados no rochedo a seu lado, eram para ti e tua prole.

     Calou-se. A mulher chorava.

     Senti ímpetos de amarrotar aquele indivíduo a socos, mas conservei-me calmo. Halef estava com a mão no cabo do chicote e o seu olhar dirigia-se, alternativamente, a mim e ao santo. Precisaria, apenas, fazer um leve aceno, para que o pequeno hadji sovasse aquele famoso homem, de acordo com a necessidade.

     — E, agora, mais uma coisa! — prosseguiu o Muebarek. — Estiveste na polícia?

     A mulher baixou a cabeça.

     — Queres que te pague uma indenização. Queres que te dê dinheiro, porque teu filho anda rastejando ao redor da minha residência. Dá mais um passo como esse, e eu ordenarei a todos os espíritos das trevas que te martirizem, até que entregues a tua alma infiel. Toma nota disto!

     Virou-se e se afastou.

     — Allah 1'Allah! — disse Halef, rangendo os dentes. — Efêndi, és humano?

     — Creio que sim.

     — Também sou. Dá-me licença para correr atrás desse maroto e lhe chicotear o couro duro, em regra.

     — Pelo amor de Alá, cala-te! — advertiu o turco.

     — Calar? Quem pode calar diante disto?

     — Ele ouve cada uma das tuas palavras.

     — Ridículo!

     — Olha lá! O seu criado lá está sentado.

     Indicou uma árvore desgalhada, na qual se encontrava uma gralha.

     — És do diabo? — perguntou Halef.

     — Não. Esse pássaro é um espírito, a quem ele ordenou que nos espiasse, para lhe contar, depois, cada palavra que trocamos.

     — E eu te digo que essa ave é uma gralha bem comum.

     — Estás enganado. Não vês como olha, com curiosidade, para nós?

     — Naturalmente! Esses pássaros são curiosos. Tinha vontade de lhe meter uma bala.

     — Não o faças! Seria a tua morte.

     — Tolice.

     — O tiro não acertaria no pássaro e sim em ti mesmo.

     — A minha espingarda não atira para trás.

     Halef tomou efetivamente a sua arma. Mas, nesse momento, as duas mulheres se precipitaram sobre ele, amedrontadas, e lhe pediram que não atirasse, pois faria a desgraça, não só dele próprio, como também de todos nós.

     — Mas vocês não têm miolo, mulheres? — bradou, irado.

     — Tens que nos acreditar, és obrigado! — disse a colhedora de ervas. — Também outros foram tão descuidados e temerários como tu. Arrependeram-se amargamente.

     — É possível? E que lhes aconteceu?

     — Adoeceram...

     — Acaso!

     — Um deles, até enlouqueceu...

     — A loucura já estava dentro dele!

     — E alguns morreram...

     — Por que a morte já vinha roendo a sua vida.

     — Oh, não! Pelo contrário, foi porque tocaram nos pássaros do santo. Como toda a atenção estava concentrada no hadji, fiquei esquecido...

     Coloquei-me atrás do cavalo, apontei, com a carabina de repetição, contra o pássaro, e atirei.

     As mulheres soltaram gritos esganiçados de susto. A bala atravessara a gralha e a matara instantaneamente. O pássaro estava debaixo da árvore, imóvel.

     — Efêndi, que fizeste! — exclamou o turco. — Isso pode custar-te a salvação eterna.

     — Corre lá! — respondi. — Tapa todos os buracos do pássaro, para que o espírito não possa sair. Então existirá, entre os cadáveres de espíritos, mais um. Oh, como são tolos!

     Halef saltara do cavalo e fora buscar a gralha. Estava cheia de bichos. Mostrou ao turco e às mulheres e disse:

     — Se o Muebarek não pode livrar os espíritos que o servem, nem mesmo dos piolhos, então não pode coisa alguma. Envergonhem-se! Já ouviram alguma vez dizer que um espírito tem piolhos? Onde está escrito isso? Nos livros dos cristãos? O Profeta, nas muitas vezes em que falou dos espíritos, jamais aludiu à necessidade de os limpar.

     Essa prova, de que a gralha não podia ser um espírito, era tão breve, como singular; mas produziu um efeito melhor e mais rápido do que a que se conseguiria com um grande discurso.

     — Efêndi, qual é a tua opinião? Um espírito pode ter piolhos?

     — Não.

     — Mas é um espírito mau.

     — Qual é o maior espírito do mal?

     — O diabo.

     — Muito bem! Dize-me, então, se o Profeta ou algum dos seus sucessores ensinou que o demônio era flagelado pelos piolhos?

     — Na verdade, isso não está escrito em parte alguma. E os insetos certamente queimariam se chegassem ao inferno com o diabo.

     — Descobriste isso com grande sagacidade. Então, responde à tua própria pergunta.

     Esse incidente, por si mesmo tão ridículo, tinha maior significação para nós do que podia imaginar. Os moradores das choças, atrás de nós, observaram tudo e só mais tarde vim a saber que a notícia do sucedido se espalhara pela cidade, com a rapidez do raio.

     Um pássaro do suposto santo fora abatido, por um desconhecido, que saíra completamente ileso. Era inaudito!

     Quem não conhece a superstição naquelas regiões, considera um fato desses inacreditável. Acrescia o respeito que o Muebarek soubera conquistar. Tudo quanto se referia à sua pessoa era positivamente intangível.

     A prova de Halef produzira o seu efeito. As mulheres e também o turco sentiram-se tranqüilizados. À colecionadora de ervas não sobrara tempo para pensar na gralha. As palavras que o velho lhe dirigira, eram-lhe de muito maior importância.

     Ela — como cristã grega — estava sob a influência do pope e a gente precisa conhecer os popes da outra banda dos Bálcãs para saber o que isso significa.

     Esses senhores sacerdotes são recrutados das camadas mais inferiores da sociedade e gozam de uma instrução que não deixa a desejar nada mais do que tudo. Qual pode ser, portanto, a situação daqueles, cujas almas estão confiadas a tal gente!?

     Podia-se ver, naquela mulher pobre e infeliz, o seu intenso abatimento, diante da notícia de que seu marido estava no inferno e a esperava com os filhos.

     O bom Halef colocou-lhe a mão sobre o ombro e disse, consoladoramente:

     — Nebatja, não chores! O teu marido está no céu.

     Olhou-o, inquiridoramente.

     — Não acreditas, por acaso? — perguntou o hadji.

     — Como sabes?

     — Vi-o.

     — Tu?

     — Sim — confirmou seriamente.

     — Quando?

     — Durante esta noite. O anjo de Alá veio e me levou desta terra. Conduziu-me sobre os céus, de modo que via tudo. Enxerguei, então, o teu marido sentado no terceiro céu...

     — Mas, tu o conheces? — perguntou a mulher, precipitadamente. O pequeno hadji não ficou embaraçado com essa pergunta. Respondeu, sem pensar:

     — Não; mas o anjo me disse: “Olha para baixo! Lá está sentado o marido da pobre Nebatja, que, amanhã, verás em Ostromdja.” Daí, fiquei sabendo quem era aquele bem-aventurado. Este também levantou a cabeça, pois ouvira as palavras do anjo, e me pediu que te trouxesse lembranças. A seu lado, estavam os lugares para ti e teus filhos.

     Halef externou tudo isso, em tom sério. Não lhe ocorreu fazer pilhéria com a coisa mais sagrada. Era sua intenção tranqüilizar a desgraçada e o fêz a seu modo próprio. A mulher continuava olhando, sacudindo com a cabeça.

     — É verdade o que estás dizendo? — perguntou, afinal.

     — Pelo menos, tão verdade como a história do Muebarek.

     — Mas como podes olhar dentro do céu? Não és cristão!

     — O velho Muebarek, porventura, é cristão?

     Isso impressionou-a.

     — Esse velho patife — continuou Halef energicamente — não conhece melhor o céu do que eu e qualquer outro. Talvez se adapte melhor ao inferno. Pelo menos, estou inteiramente convencido disso. Mas se pensas que só um cristão pode falar a respeito do céu, dirige-te a este efêndi e o interroga. Ele te dará todos os esclarecimentos.

     Indicou-me com um sinal e a mulher passou a olhar-me interrogativamente.

     — Ora pelo teu marido — disse-lhe eu. — É o teu dever cristão. O Muebarek mentiu-te; porque nenhum anjo vem à terra buscar um mortal para levá-lo ao céu e, depois, trazê-lo de volta. A Escritura Sagrada ensina que Deus mora numa luz, onde nenhuma criatura terrena pode estar. Ver-te-ei novamente e, então, falaremos sobre este assunto. Agora, porém, vamos tratar de preferência da tua enfermidade. Baldadamente, procurarás a cura nesta fonte. Desde quando, usas esta água?

     — Há mais de um ano.

     — O teu sofrimento tornou-se menor?

     — Não, efêndi.

     — Então, vês que tenho razão. Esta fonte não cura o teu sofrimento.

     — Meu Deus! Que será de mim e das crianças? Não posso trabalhar e já, há algum tempo, estamos passando fome. Agora, a única esperança, que ainda me restava, e que punha nesta água, vai por terra, desmoronada.

     Começou a chorar, amargamente.

     — Não chores, Nebatja! — consolei-a, — Dir-te-ei um remédio melhor.

     — És um hekim?

     — Sim, nesta doença sou até um hekim bachi. Não ouviste falar nos médicos estrangeiros, que vêm do ocidente?

     — Muitas vezes. Diz-se que são homens muito sábios e podem curar todas, todas as doenças.

     — Bem, venho do ocidente e posso curar a tua doença. Como aplicaste esta água?

     — Ficava sentada, aqui, desde manhã cedo até a noite, fazendo compressas frias.

     — Assim agravaste o mal. Que aconteceu com o menino, a que se referiu o Muebarek?

     — Como não posso mais, mandei-o procurar ervas. As melhores crescem no morro: alcaravia chirivia, erva de ganso, hortelã pimenta silvestre e muitas outras. Mas o Muebarek não quer que se tire. Enxotou o menino e, quando a necessidade nos obrigou a arriscar outra vez, jogou-o pelas rochas abaixo, de modo que a criança quebrou o braço.

     — E te queixaste dele?

     — Não. Fui à polícia e pedi proteção. As três outras crianças são muito pequenas. Não conhecem as ervas. Não posso mandá-las procurar.

     — Certamente, não aceitaram a tua queixa na polícia?

     — Não aceitaram. O zabtie muchiri (1) disse a que eu devia trabalhar.

     — Não lhe disseste que não podias trabalhar?

     — Sim, mas mandaram-me pôr na rua, por um khawass e me ameaçaram com bastonadas, se voltasse.

     — Uma mulher a bastonadas! Mas, não te preocupes! Receberás a proteção.

     — Efêndi, podias consegui-lo?

     — Espero que sim.

     — Ser-te-ia agradecida e rezaria diariamente por ti.

     Queria pegar a minha mão, mas, para isso, era-lhe demasiadamente doloroso mover com o braço.

     — Dize-me, primeiro, onde moras.

     — Logo aqui, ao lado, na segunda casa.

     — É cômodo. Leva-me lá uma vez; quero ver a tua habitação. Os meus companheiros esperarão.

     O tiro na gralha fora ouvido e atraíra uma grande quantidade de curiosos, que ficaram à certa distância e, agora, pasmavam ao ver que me dirigia, acompanhado da mulher, para a sua casa.

     Quem conhece a vida de sujeira e trapos, que leva a metade da Ásia, facilmente acreditará que eu aparentava, pelo vestuário, ser um príncipe de alta linhagem.

     Imaginei o que viria e não me enganei. Não vi uma habitação, mas um buraco, sem assoalho e sem reboco, tão úmido que as paredes gotejavam, tudo coberto de uma espessa camada de mofo e desprendendo um cheiro horrível.

     E nessa cavidade, rolavam-se e se deitavam, cerca de dez crianças, umas sobre as outras. Dois buracos pequenos, que serviam de janelas, não deixavam penetrar mais luz do que o necessário para reconhecer as caras.

     Acrescente-se a isso cobertores e roupas fedorentas, utensílios inexplicáveis; em suma, era pavoroso.

     A um canto, estava sentada uma mulher velha que mastigava alguma coisa de aspecto claro. Observando melhor, vi que se tratava de uma abóbora crua.

     Não longe dela, mantinha-se acocorado um menino, com o braço ao peito. Era filho da Nebatja. Levei-o à frente da porta, para poder ver melhor, e tirei as ataduras, a fim de examinar o braço. Não sou nem médico nem cirurgião, portanto nenhum técnico; mas verifiquei, contudo, para minha satisfação, que o hekim, por quem fora encanado o braço, não era um idiota.

     Era verdade que o menino parecia a fome personificada.

     — Não deves continuar morando aqui — disse eu à sua mãe. — Nunca ficarás boa nesta casa.

     — Senhor, onde devo ir?

     — Sai daqui, de qualquer modo, sai!

     — É fácil de dizer. Mal posso pagar esta casa.

     — Providenciarei para obter outra.

     — Oh, quem dera que conseguisses.

     — O que puder, farei. É verdade que sou estranho aqui e acabo de chegar, mas espero que, não obstante, possa te ser útil.

     — E também vais me dar um remédio para as minhas dores?

     — Não preciso dar-te. Podes mandar buscar. Sabes o que é um vidoeiro?

     — Sei, sei bem.

     _________________

     (1) No original alemão, encontra-se aqui a palavra muschiri e, mais adiante, muchiri. O autor não explica a sua significação. Sabemos, entretanto, que muschiri ou muchiri, de acordo com a grafia que adotamos, é palavra com que, antigamente, se designava a categoria civil de um vizir, correspondente à mais alta graduação militar. Hoje, essa palavra é müsür e significa somente marechal de campo ou generalíssimo.

      Muchiri, que se encontrará mais adiante, quer dizer funcionário colocado à testa de um mudiriêh, que significa província. (N. do T.)

 

     — Existem essas árvores aqui?

     — Não muitas; mas a gente pode achar.

     — Bem, as folhas dessas bétulas são o melhor remédio para o teu sofrimento.

     — É possível? Folha de vidoeiro prestará para essa doença dolorosa?

     — Sim, é como digo. Eu próprio experimentei, em mim mesmo. Existem muitos povos que não têm médicos e só se curam com esses remédios simples. Por eles, soube que as folhas de vidoeiro curam o reumatismo. Quando, depois, sofri dessa enfermidade, experimentei o remédio e achei excelente.

     — E como é empregado?

     — Espera até que chova. Nessa ocasião, tira as folhas molhadas, com as mãos, dos galhos, de modo a conservar bem úmidas, e as leva, rapidamente, para casa, pois não devem secar. Depois, cobre o braço doente com uma grossa camada dessas folhas e deita-te. Se são as pernas que estão doentes, mete-as num saco cheio daquelas folhas, amarrando-o a cintura e deita em seguida. Em breve, pegarás num sono profundo, transpirando muito, motivo por que é necessário cobrir-te cuidadosamente. O suor do membro enfermo e a água da folhagem escorrerão das ataduras. Dormirás muito tempo, profundamente. Quando acordares, levanta-te e sentirás que a doença já desapareceu. Em casos graves, como o teu, tem que se repetir o tratamento.

     A mulher ouvira-me atentamente. Agora, interrogou:

     — Não se pode ir buscar as folhas, quando não choveu, para depois molhar com água?

     — Não. Nesse caso não daria resultado. É um tratamento muito debilitante; por isso, não deves estar com fome antes de iniciá-lo.

     Ela baixou os olhos, tristemente.

     — Efêndi, quando nada tenho, nada posso comer. Passaria fome de boa vontade, desde que não visse as crianças chorarem.

     — Vamos dar um jeito nisso. Um bom amigo deu-me uma pequena quantia para que a desse a um pobre, merecedor, se o encontrasse durante a minha viagem. Que achas: devo dar-te esse dinheiro ou devo esperar outra oportunidade?

     Levantou o olhar brilhante para mim.

     — Efêndi!

     Pronunciou só essa palavra, mas soava como uma multidão de pedidos, vergonha e agradecimentos.

     — Então, devo dar?

     — Quanto é, afinal?

     — Duas libras.

     — Libras? Não conheço esse dinheiro. Quantos paras são?

     — Paras? É muito, muito mais.

     — Decerto, algumas piastras?

     — Duas libras são duzentas piastras.

     — Oh, céus!

     Queria bater as palmas das mãos, mas a dor impediu-a.

     — E porque são duas moedas de ouro, deves receber, quando as trocares, duzentas e dez piastras.

     Tirara a referida importância do bolso, a qual constituía um presente de Hulam, em Adrianópolis, e ofereci à mulher. Mas ela recuou:

     — Efêndi, estás brincando!

     — Não, estou falando sério. Toma!

     — Não devo.

     — Quem proibe?

     — Ninguém. Mas, uma dádiva tão grande...

     — Não continues! Aquele que me deu essa quantia é muito rico. Aqui, agarra o dinheiro, e, se o quiseres trocar, procura um homem sério. Compra alimentos para ti e as crianças. Amanhã, voltarei.

     Apertei-lhe o dinheiro nas mãos encarquilhadas e me retirei precipitadamente. Seguiu-me, mas fiz sinal enérgico para que retrocedesse, de modo que não se atreveu a acompanhar-me até onde estavam os meus companheiros. Continuamos a cavalgada. Ao montar, verifiquei que os curiosos cercavam a pobre mulher, certamente para fazer-Ihe mil interrogações.

     De Nohuda, que queria rejuvenescer, não me despedi. Aproximara-se dos espectadores curiosos — apesar da sua cara emplastrada — e ali naturalmente, não a fui procurar.

     Ao sair da terma, penetramos numa ruazinha estreita, em cuja esquina vi um indivíduo maltrapilho, que nos observou com olhar penetrante. Não me chamou a atenção, porque quase todas as pessoas, que encontrávamos, eram, mais ou menos, maltrapilhas.

     Agora, não sabia para onde o turco nos conduziria. Perguntei-lhe a respeito e ele expressou a sua admiração por eu não lhe ter perguntado isso antes.

     — Acreditei que cuidasses de nos abrigar bem — respondi.

     — Naturalmente. Eu os conduzirei ao konak “et Tohr el ahmar”, da qual se agradarão bastante.

     Esse título da hospedaria causou-me certa impressão. Dava a sensação de que nos encontrávamos numa ruazinha de pequena cidade provinciana alemã. Et Tohr el ahmar não significa outra coisa senão “Ao boi vermelho”. Tais palavras soavam-me aos ouvidos como a música das canções de Gungl. A denominação denunciava, efetivamente, mau gosto, mas não se podia esperar, aqui, um hotel com letreiro parisiense.

     — Conheces o estalajadeiro? — perguntei.

     — Até muito bem — respondeu, sorrindo. — A sua mulher é irmã da minha.

     Fiquei satisfeito, porque podia contar que a amizade que nos dedicava Ibarek se transmitiria ao hospedeiro e sua mulher.

     A cidade não oferecia — pelo menos, tanto quanto podíamos ver, naquele momento — nada de extraordinário. Casas e choças orientais, que exibem, na frente, as suas paredes, sem janelas. Construções pobres, ameaçando ruir. Caminhos, constituídos de lama seca, dos quais levanta uma poeira horrível, nos dias de calor, enquanto, no tempo de chuva, a gente se enterra até os joelhos, no lodo. Além de tudo, o quadro geral que se nos apresentava era de uma organização de ciganos — gente suja e animais magros. Assim se assemelha uma cidade à outra, nesta região.

     Quando me voltava, por qualquer circunstância, avistava aquele vagabundo, que estava parado na mencionada esquina. Troteava, vagarosamente, no nosso encalço e, depois de uma observação mais atenta, cheguei à conclusão de que nos perseguia.

     Por que razão? Eu o supunha.

     Finalmente, Ibarek mostrou-nos um portão grande, aberto, sobre o qual se ostentava a figura escarlate de um boi.

     — É aqui! — disse.

     — Então, entrem! Farei como se continuasse a andar.

     — Por quê?

     — Vem seguindo os nossos passos um indivíduo, que, seguramente, foi mandado pelo Muebarek, para observar onde ficaremos. Quero preparar uma bonita surpresa para esse sujeito.

     Os meus companheiros entraram pelo portão; no entanto, continuei, um pouco mais adiante.

     A nossa chegada despertara a atenção geral. Em toda a parte, as pessoas ficavam paradas, contemplando-nos. Mesmo assim, conservei debaixo dos olhos a pessoa que nos seguia.

     Puxei então a rédea e cavalguei num círculo fechado. Isso se tornou possível, porque o konak não se encontrava numa rua e, sim, numa praça. Aquela gente toda continuava, ainda, olhando para o portão aberto e, principalmente, para mim. O magnífico cavalo parecia prender toda a sua atenção. Deixei-o curvetear elegantemente e o guiei, assim, para a direção em que se achava o homem suspeito.

     O indivíduo trajava calças largas e um casaco curto. Ambos estavam reunidos por um xale, enrolado à cintura.

     Neste momento, soltei aquele assobio, que era um sinal para o garanhão se arrojar em disparada. Ouviu-se uma gritaria geral e todos recuaram. Podia-se acreditar que o cavalo tomara os freios.

     O espião estava tão abismado na sua missão, que não pensou, logo, em fugir. Em seguida, porém, levantou os braços, de pavor, e berrou, tanto como podia berrar, pois viu que o cavalo se lançava, exatamente, contra ele. Talvez quisesse assustar o cavalo, com esses gritos, visto que era tarde demais para fugir. Explica-se isso em razão de estar ele encostado a um muro, do qual o animal se aproximava, a galope.

     Já estava junto dele. Colou-se à parede. Entretanto, abaixei-me e o segurei pelo xale, levantando-o. Trazendo-o pela direita e o atirando para a esquerda, sobre a cabeça do cavalo, apertei-o, em seguida, de modo que ficou deitado sobre os meus joelhos.

     — Allah w'Allah 1'Allah! — berrou o indivíduo, procurando libertar-se.

     — Fica quieto! — bradei-lhe. — Senão te mando para o diabo. Ouvindo essas palavras, o homem fechou a boca e também os olhos. Não era um herói.

     Dirigi-me, após, para o konak e atravessei o portão, a trote. Ali, estava Halef com os companheiros. Observaram o incidente e riam a bandeiras despregadas; apressaram-se a fechar o portão e correr o ferrôlho grande.

     E isso de fato era necessário, porque uma considerável massa de povo acotovelava-se já nas proximidades, para ver o que significava aquele caso singular.

     Soltei o prisioneiro no chão e apeei. Um homem vestido à turca aproximou-se, ao lado de Ibarek, e me cumprimentou. Era o hospedeiro. Enquanto troquei as saudações usuais, o meu confrade cavaleiro recuperara a faculdade de pensar.

     Tomou postura, caminhou ao meu encontro e perguntou, em tom ameaçador:

     — Senhor, por que me fizeste isto? A minha alma podia pertencer à morte!

     — A tua alma? É feita de um material tão frágil?

     — Não zombes! Sabes quem sou?

     — Não, até agora ainda não.

     — Sou o barqueiro do rio.

     — Bonito! Vives, portanto, sobre a água. Não te alegraste por ter, uma vez, andado a cavalo?

     — Alegrar? Pedi, porventura, que me levasses?

     — Não, mas foi do meu agrado convidar-te.

     — Darei queixa contra ti.

     — Lindo!

     — E te mandarei castigar.

     — Melhor ainda.

     — Sem tardança, irás comigo ao zabtie mudhi. (2)

     — Mais tarde, meu caro amigo. Agora, não tenho tempo.

     — Não posso esperar. Tenho que estar na minha barca.

     — Onde é isso?

     — À beira do rio.

     — Provavelmente, nas proximidades da estrada de Kusturlu?

     — Como podes ter essa idéia? Lá, não há rio.

     — Sei muito bem disso. Mas o barqueiro, que, agora, afirma não ter tempo, estava lá parado, numa esquina, e nos seguiu muito calmamente. É verdade ou não?

     — É. Mas, que tens com isso?

     — Muita coisa, meu amigo. Por que nos acompanhaste?

     — Posso andar com quem eu quero.

     — E eu posso montar com quem quiser. Ambos vimos, assim, satisfeita a nossa vontade.

     — Andar a cavalo é coisa muito diferente. Poderia ter quebrado o pescoço.

     — Talvez não fizesses falta!

     — Senhor! Fala mais uma vez desse modo e eu te meto esta faca na barriga.

     Fazendo um gesto ameaçador, levou a mão à cintura, e tirou a faca, que estava na bainha.

     — Deixa isso aí! Não tenho medo de semelhante coisa.

     — Ora essa! Quem és, finalmente, que te permites insultar-me?

     — Sou hazredin Kara Ben Nemsi emir. Já ouviste falar nesse nome, alguma vez?

     ____________________

     (2) Aqui aparece, no original, a palavra mudiri, a que nos referimos em nota anterior. (N. do T.)

 

     Tomei uma posição de superioridade e me esforcei para causar uma impressão de arrogância e ameaça. Assumo, de boa mente, a responsabilidade de ter usado o título de emir. Mas, era mais de que fanfarronada usar o título de hazredin, isto é, Alteza. Pensei, porém, poder proceder, desta vez, como o meu pequeno hadji.

     Não possuía nenhuma autoridade sobre esse barqueiro, e, contudo, queria obrigá-lo a me dizer quem o mandara vigiar-nos. Precisava, portanto, confundi-lo e, por isso, precisava de uma dignidade, consubstanciada num cargo honorífico, que, infelizmente, não possuía.

     Verifiquei, também, imediatamente, que acertara. O homem inclinou-se bastante e respondeu:

     — Não, sultanum, nunca ouvi pronunciar esse sereníssimo nome.

     — Então, ouves agora e sabes quem sou. Guia-te por isso. Acreditas que eu goste de ter espiões, atrás de mim?

     — Emir, eu não te entendo.

     — Entendes-me muito bem, mas não o queres confessar.

     — Efetivamente, não sei o que queres.

     — Rapaz! Queres que me dê o trabalho de te fazer perguntas? Não tenho tempo para isso e, além de tudo, considero-te demasiadamente papalvo. Confessa, imediatamente, quem te mandou seguir-nos, para saber onde eu apearia.

     — Ninguém, senhor.

     — Contudo, tu o fizeste.

     — Andei, casualmente, atrás de ti.

     — Era o caminho mais perto para o rio?

     Ficou, visivelmente, enleado.

     — Senhor, realmente te enganas. Tomei esse caminho, inteiramente distraído.

     — Muito bem! Quero acreditar. Mas, se pensas que isso é de vantagem para ti, estás completamente enganado. Um barqueiro, que deve estar junto da sua barca e, não obstante, se acha em caminhos duvidosos, não nos serve, porque não é de confiança. Darei ordem ao mudir para que te demita. Existem outros que são mais dignos desse cargo.

     Agora, o homem assustou-se.

     — Emir, não faças isso! — bradou, súplice.

     — Sim, farei e isso tanto mais depressa quanto antes verificar que me mentiste.

     Olhou alguns instantes para o chão. Depois, declarou, vacilante:

     — Efêndi, quero ser sincero e confessar que te segui.

     — Agora é tarde.

     — Vês que me arrependo da mentira, Não mentirei mais.

     — Então, dize-me também, quem te mandou.

     — Ninguém. Eu o fiz, espontaneamente.

     — É mentira.

     — Não, efêndi.

     — Vamos ver! Quem mente uma vez, também mente pela segunda vez.

     Voltando-me para Halef, ordenei:

     — Hadji Halef Omar Agha vai buscar dois khawass, imediatamente. Este homem vai levar bastonadas.

     — Imediatamente, sultanum! — respondeu o pequeno, fazendo menção de se afastar.

     — Pára! — gritou o barqueiro, assustado. — Agha, fica aqui! Vou confessar.

     — É tarde! Agha, anda depressa.

     Nisso, o homem caiu de joelhos e pediu, com as mãos postas:

     — Não me dês bastonadas, não me dês bastonadas! Não posso resistir.

     — Por que não?

     — Os meus pés são muito delicados e sensíveis, porque estou sempre dentro d'água.

     — Precisei cerrar os dentes para não rir. Sabidamente, as bastonadas são aplicadas na sola dos pés e essa parte inferior do seu corpo era demasiadamente sensível a tais impressões violentas! Se eu quisesse levar em consideração este fato, então era melhor desistir do castigo, pois este consiste exatamente em martirizar fisicamente a pessoa. Com isso não quero dizer, evidentemente, que seja um amigo do costume de martirizar a sola dos pés dos meus semelhantes. Respondi, portanto:

     — Justamente porque sofres dobradamente, deverias ser duplamente cauteloso, para evitar tudo que pudesse levar as autoridades a te punir. Mas, neste momento, estou na minha hora de compaixão e vou experimentar se posso deixar valer o perdão.

     — Experimenta, senhor! Quero fazer uma confissão franca.

     — Então, declara quem te deu a incumbência?

     — O Muebarek.

     — Que ofereceu por isso? Dinheiro?

     — Não. O santo nunca dá dinheiro. Prometeu-me um amuleto, para pescar peixes em abundância, porque sou barqueiro e pescador ao mesmo tempo.

     — E qual era o encargo?

     — Devia seguir-te e, depois, comunicar-lhe onde ias morar.

     — Quando e onde ias fazer essa comunicação?

     — Hoje à noite, na sua ermida no alto do morro.

     — Pode-se falar com ele, a horas tão tardias?

     — Não. Mas sempre está para aqueles a quem deu qualquer incumbência. Precisa-se apenas bater e dizer uma determinada palavra...

     Parou, assustado.

     — Continua — ordenei.

     — Não há mais nada.

     — Queres mentir-me outra vez?

     — Oh, não, efêndi.

     — E, não obstante, estás mentindo.

     Pensei naquilo que o homem dissera há pouco, isto é, que o Muebarek nunca dava dinheiro. Se sabia disso com tanta certeza, era porque já executara outras ordens do velho. Por isso, prossegui:

     — Quando se bate, como de costume, ele não abre?

     — Não.

     — Mas. quando se diz uma palavra determinada, pode-se entrar? Calou-se.

     — Então, fala! Ou queres que te mande abrir a boca? As bastonadas são um bom remédio para isso.

     Continuava olhando, indeciso, para o chão. O medo do Muebarek parecia ser tão grande como o pavor de levar bastonadas.

     — Bem! Se não queres falar, podes assumir a responsabilidade das conseqüências. Hadji Halef Omar Agha!

     Mal enunciara essas palavras, já o barqueiro concluíra o seu trabalho de refletir. Disse, humildemente:

     — Efêndi, não mandes chamar os khawass. Quero dizer-te tudo. Que o Muebarek se zangue comigo! Por sua causa, não deixarei que me arrebentem, a bastonadas.

     — Por que poderá zangar-se contigo?

     — Proibiu-me, expressamente.

     — Queres participar-lhe que me contaste tudo?

     — Não. Nem penso nisso. Mas tu mesmo lhe dirás.

     — Não te preocupes. Não tenho motivo para revelar isso.

     — Então ele o saberá, pelos seus pássaros.

     Novamente os pássaros! Aquele velho patife soubera explorar, extraordinariamente, a patetice daquela gente.

     — Não há nenhum por aqui. Vês algum?

     Olhou em torno de si. Não se via nenhum corvo, sigralha ou gralha.

     — Não. Decerto, não mandou nenhuma ave, porque não sabia onde ias apear.

     — Poderia, no entanto, ter mandado alguma delas voar no meu encalço. Assim, não te meteria em embaraços e eu não poderia mandar dar bastonadas num pássaro. O teu velho Muebarek parece não ser, ainda, tão inteligente, como deixa supor. Desse modo, também não precisas ter receio. Fala. Quando se quer ir visitá-lo, em segredo, precisa-se de uma determinada palavra?

     — Sim, efêndi.

     — Existem palavras diferentes para cada uma das diversas pessoas?

     — Não. Todos sabem só essa palavra.

     — Talvez quando se trata de assuntos diferentes?

     — Também não. Existe só uma palavra e nenhuma outra.

     — Qual é?

     — Bir Syrdach!

     Essa contrassenha absolutamente não estava mal escolhida, porque significa “Um confidente”.

     — Mas é essa a verdadeira palavra? Não a inventaste, por acaso?

     — Não, senhor! Como poderia arriscar-me a tanto!

     — Já me mentiste três vezes. Portanto, não me mereces crédito.

     — Agora, estou falando verdade.

     — Já te submeterei a uma prova, com outra pergunta. Porventura, executaste, já por diversas vezes, incumbências secretas do Muebarek?

     Só respondeu, depois de algum tempo:

     — Sim, efêndi.

     — Quais?

     — Não posso dizer.

     — Também não poderás, se receberes bastonadas?

     — Não, em caso algum.

     — Por quê?

     — Fiz um juramento rigoroso. Prefiro deixar que me matem do que ir para o inferno, por causa de um perjúrio.

     Neste instante, falava com um tom de absoluta sinceridade. Por isso aproveitei a oportunidade para lhe perguntar:

     — Conheces, por acaso, a senha: en Nassr?

     — Conheço.

     Não esperava essa confissão apressada. Realmente, o homem estava sendo sincero.

     — Como vieste a conhece Ia?

     — Pelo mesmo modo que a atual. O velho Muebarek me disse.

     — Para que era empregada?

     — Como sinal de reconhecimento.

     — Entre quem?

     — Entre todos os seus conhecidos.

     — Agora, não se usa mais?

     — Não.

     — Por quê?

     — Porque foi denunciada.

     — Por quem?

     — Aqui, ninguém sabe. A traição se deu em Istambul.

     — De que forma?

     — Não posso dizer.

     — Prestaste, também, um juramento?

     — Não. Mas, dei a minha palavra.

     — Então, podes falar tranqüilamente sobre isso, sem cometer um falso juramento. De resto, quero demonstrar-te que sei mais, a respeito, do que pensas. Existia, em Istambul, uma casa para as entrevistas dos en Nassr. Isso foi denunciado por um homem, que morava ao lado, na casa de um judeu. Não?

     — Senhor, sabes disso? — perguntou, admirado.

     — Oh, sei muito mais. A casa foi presa de incêndio e se produziu uma luta.

     — Sabes muito bem de tudo!

     — Posso interrogar-te até a respeito do Usta. Já ouviste falar nele?

     — Quem não conhece esse nome!

     — Viste-o pessoalmente?

     — Não.

     — Sabes quem é?

     — Também não.

     — Também não sabes onde pode ser encontrado?

     — Só os iniciados podem saber.

     — Creio que és um deles.

     — Oh, não, efêndi.

     Olhou-me, concomitantemente, com tanta franqueza, que fiquei convencido de que falava a verdade.

     — Bem, agora que provaste não seres tão mau, como tive que pensar, inicialmente, vou suspender as bastonadas.

     — E queres me deter?

     Isso era, de fato, cômico! Contudo, conservei uma atitude enérgica e respondi:

     — Verdadeiramente, devia mandar-te encarcerar; mas, como te tornaste sincero, vou relevar também isso. Estás livre e podes ir.

     — E, senhor, posso continuar como barqueiro?

     — Podes. Se te perdôo todos os outros castigos, podes igualmente continuar sendo o que és.

     Ao ouvir essas palavras, o seu rosto iluminou-se de alegria.

     — Efêndi! — exclamou. — A minha alma está cheia de gratidão. Concede-me só mais um favor e serei feliz.

     — Que é?

     — Nada digas a Muebarek, sobre o que te contei.

     Podia satisfazer, facilmente, esse seu desejo. Era, com efeito, do meu próprio interesse que o velho nada soubesse a respeito. Quanto menos imaginasse que tais segredos eram do meu conhecimento, tanto mais seguro eu estava de vencê-lo, pela astúcia.

     Por conseguinte, assegurei ao barqueiro que me calaria e, depois, ele se afastou, muito satisfeito com o termo feliz deste intermezzo.

     E desnecessário acentuar que a última parte da conversação decorreu sem testemunhas incômodas. O hospedeiro fora chamado e se afastara com o irmão. Assim, nenhum dos dois ouviu a palavra secreta. Os dois, que estavam juntos: — Halef, Osko e Omar — vá lá que soubessem.

     Em seguida, certifiquei-me de que os cavalos estavam bem abrigados e, durante isso, fui olhado, com admiração, por uma massa de gente, que se comprimia diante do portão e ia entrando. Parecia-lhes inacreditável que um cavalheiro, a galope, pudesse carregar um homem, levantando-o do chão, para colocar sobre o cavalo. Ou seria que a minha pessoa despertava o seu interesse por qualquer outro motivo?

     Esta última pergunta podia ser respondida afirmativamente, quando Halef me contou que um homem do povo lhe perguntara se eu era o bekim bachi estrangeiro, que dera mais de duzentas piastras a Nebatja e que se arriscara, também, a matar um dos pássaros de Muebarek.

     Encontrava-me a menos de vim quarto de hora neste konak e já era um homem famoso. Isso, de nenhum modo, podia me agradar. Quanto menos atenção me fosse dada e menos se falasse a meu respeito, tanto mais depressa e facilmente podia solucionar a minha missão.

     Em seguida, dirigi-me para o interior da casa. Estava instalada quase como aquela de Dabila, só que, aqui, ao invés de paredes de vime trançado, existiam divisões feitas de tijolos.

     O turco nos recomendou bem, porquanto fomos levados a uma sala especial e recebemos, em primeiro lugar, água para nos lavar e limpar o pó, e, depois, um almoço, que, em face das circunstâncias locais, era muito decente.

     Os dois cunhados comeram conosco. Guardanapos ou, como Halef os tinha qualificado, “cortinas de peito”, de fato não havia. Compreende-se facilmente que a palestra girou em torno do roubo, cujos pormenores foram analisados, mais uma vez.

     Entrementes, comecei a me lembrar de que nunca vira o guarda da prisão, companheiro dos fugitivos; os dois outros, conhecia muito bem. Por isso, perguntei a Ibarek:

     — Reconhecerias os três ladrões, se os visses?

     — Imediatamente.

     — Então, observaste-os bem. Podes me descrever aquele que fêz as provas com as cartas? Poder-se-ia encontrá-lo e ainda não o vi.

     — Oh, é muito fácil reconhecê-lo! Tem um sinal que não pode tirar.

     — Qual?

     — Tem lábio leporino.

     — Isso basta. Não precisa descrevê-lo mais.

     — Não queres saber o seu vestuário?

     — Não.

     — Parece-me que seria bom saber como está vestido.

     — Isso só pode servir para nos induzir a erro. O vestuário pode ser alterado ou mudado. Mas, como tem um lábio leporino, que não poderá esconder, estou perfeitamente satisfeito.

     Neste momento, entrou um criado, que cochichou algumas palavras com o estalajadeiro. Este ficou, visivelmente, embaraçado, encarando-me, indeciso:

     — Que há? — perguntei.

     — Perdoa, senhor — respondeu. — Lá fora estão muitos khawass.

     — Por nossa causa?

     — É verdade.

     — Que querem?

     — Prendê-los.

     — Allah akbar — Deus é grande! — exclamou Halef. — Que entrem! Vamos ver como corremos: se eles conosco ou nós com eles!

     — Sim — concordei; — mas manda ensilhar imediatamente os cavalos.

     — Pretendem fugir?

     — Não faltava mais nada!

     Saiu e, pela porta, que assim ficou aberta, entraram seis khawass, armados até os dentes. O que eu esperava, verificou-se. Aquele com quem faláramos, em caminho, estava entre eles. Não era de admirar, pois tínhamos andado muito devagar.

     Plantaram-se na porta e o nosso conhecido adiantou-se. Provavelmente, solicitara o direito de usar da palavra, como desagravo bem merecido. Da sua antiga fleugma parecia nada mais restar, pois bradou, batendo com a coronha de sua arma no chão:

     — E agora!

     Só essa palavra era destinada a nos aniquilar. Nela havia um mundo de alegria, superioridade, zombaria e satisfação. Mas nenhum de nós se moveu. Sem termos combinado, continuamos a comer tranqüilamente. Os três companheiros imitavam o meu exemplo.

     — E agora! — repetiu o herói.

     Como também não se seguisse uma resposta a essa provocação, o homem aproximou-se mais um passo e inquiriu, como se fora um juiz da lei de Lynch:

     — Não estás ouvindo?

     Recebeu uma resposta, que estava tanto fora dos seus como também dos meus cálculos. O pequeno hadji levantou-se, agarrou a grande bandeja, na qual nos fora servido o precioso pillaw de arroz, nadando em banha, aproximou-se do khawass e lhe estendeu aquele pillaw, que ainda bastava para dez pessoas, folgadamente, dizendo só esta única palavra:

     — Toma!

     Ambos se entreolharam durante alguns instantes. Enquanto isso, o cheiro daquele prato predileto penetrava no nariz do khawass; a sua fisionomia enérgica foi perdendo a energia, aos poucos. Os lábios se abriram involuntariamente, as narinas tremiam, e um sorriso comunicativo começou a bailar nos seus lábios. As pontas dos bigodes estremeciam — não havia mais dúvida; o pillaw vencera.

     — Qual é o khawass turco que pode resistir à graxa de um pillaw! O homem soltou a arma, segurou a bandeja, virou-se para os companheiros e perguntou:

     — Istermitz siniz? — Querem?

     — Ewwet, beli — Sim, sim! — responderam, logo, cínco vozes.

     — Então, sentem-se.

     Os outros encostaram as suas espingardas à parede e se sentaram ao lado do seu camarada. Era um prazer vê-los agachados, seriamente e cheios de dignidade, com ares de clássicos sábios gregos — metendo os dedos no arroz e o enrolando na palma da mão, até ficar uma bola — jogando essas bolas nas bocas enormemente escancaradas.

     Hadji Halef sentara-se novamente no seu lugar e não contraiu um músculo do rosto.

     Em seguida, chegou o hospedeiro. Quando viu aquela assembléia raastigante e enroladeira de bolas de arroz, tratou de desaparecer, instantâneamente, porque, se ficasse mais um segundo, teria rompido numa formidável gargalhada.

     Quando o pillaw já desaparecera, o digno khawass trouxe a bandeja de volta.

     — Ejwallah. — Agradecemos! — disse, colocando a bandeja sobre a mesa, levantou a arma do chão, tomou postura e falou, com um gesto de ditador romano:

     — E agora!

     Achei que era tempo de responder.

     — Que desejas? — perguntei, lacônicamente.

     — Vocês! — foi a resposta, ainda mais lacônica.

     — Para quê?

     — Para levar ao zabtie muchiri.

     — Que quer ele?

     — Castigá-los.

     — Por quê?

     — Pela surra.

     — Que surra?

     — Que eu levei.

     — Então, já estás castigado! Para que somos precisos, ainda?

     Pudesse eu pintar a cara que fêz, neste momento, esse quadro seria a mais preciosa recordação da minha permanência na Turquia. Era, positivamente, indescritível. O homem estava sumido, completamente aniquilado. Mas, não tardou a ter a idéia de que, não obstante tudo, precisava dizer alguma coisa. Fêz uma cara muito sinistra e exclamou:

     — Vão voluntariamente?

     — Não.

     — Portanto, à força?

     — Não.

     — Alá, Alá! De que jeito, então?

     — De nenhum.

     Acabara-se toda a sua filosofia. Qualificara-se como o mais arguto dos seus camaradas; mas, há diferença entre perseguir três tordilhos, em pensamento, e prender cinco homens, que não perdem a tranqüilidade, diante de nenhuma zabtie e nem por coisa alguma. Fêz aquilo que julgou ser o mais acertado e que, efetivamente, o era: encostou-se à parede e disse a um dos seus camaradas:

     — Fala tu!

     O interpelado adiantou-se. Começou a coisa de um modo completamente diverso. Parecia ter talento para lições de mostrador, pois levantou a espingarda, encostou-me a coronha quase no nariz, exibiu-a, depois, em círculo, e perguntou:

     — Sabes o que é isto?

     Em virtude da raridade da situação, respondi, eu mesmo:

     — Sim.

     — Então, que é?

     — Uma coronha de espingarda,

     — De fato, e nela está o cano, com o qual se dá tiros. Entendes?

     — Entendo.

     — Agora, já sabes tudo.

     — Não sei de nada.

     — Tudo.

     — Não, sabemos somente que se pode dar tiros com essa espingarda.

     — Mas isso chega. Vimos para prendê-los.

     — Ah! Era preciso que explicasse isto!

     — É, porém, tão lógico! Se não nos acompanharem imediatamente, pegaremos as espingardas.

     — Para nos matar, porventura?

     — Claro.

     — Bem, estamos prontos. Podem atirar.

     Tomei um cigarro e o acendi. Os outros me imitaram e ficamos todos fumando; os khawass encararam-nos, com olhar estarrecido. Uma coisa dessas nunca lhes ocorrera.

     Aconteceu justamente o que eu julgava ser impossível: o comandante exonerou-se. Virou-se, deu um encontrão noutro khawass e disse:

     — Comanda tu!

     Este logo se prontificou a empunhar o cetro abandonado, voluntariamente. Adiantou-se, ao que parecia, com a intenção de fazer um discurso muito sério. Comecei a acreditar que, pouco a pouco, um passaria o comando ao outro, até que todos, cansados do insucesso, se retirassem conjuntamente. Mas não deveríamos sair tão bem desta situação, pois, exatamente, no momento em que o terceiro generalíssimo abria a boca para começar, a porta foi aberta, e apareceu a cara e o uniforme de um sargento.

     — Onde se meteram?

     — Aqui.

     — Estou vendo! Onde estão os sujeitos?

     — Aqui.

     O informante indicou-nos.

     — Por que não os levaram?

     — Não quiseram ir.

     — Por que não os obrigaram?

     — Não pudemos.

     Essas perguntas e respostas sucediam-se com tanta precisão e presteza, que parecia terem sido estudadas. Era para morrer de riso.

     — Então, vou mostrar como se prende semelhante gente. Aproximou-se e puxou a espada. Os seus olhos rolavam como esferas e os seus dentes compridos e amarelos tornaram-se visíveis.

     — Ouviram, “seus” patifes, que se quer de vocês? — berrou aos nossos ouvidos.

     Ninguém respondeu.

     — Ouviram?

     Todos calaram.

     — São surdos?

     Parecia mesmo, porque nenhum de nós, sequer, piscava os olhos. Encolerizou-se tanto, que perdeu completamente as estribeiras. Levantou a espada, para me dar um golpe com a folha chata e berrou:

     — Cão! Já vais aprender a falar!

     A espada zuniu — mas não nas minhas costas, oh, não, e sim no chão; o sargento, porém, notou, logo que olhou para si mesmo, que também estava estirado no chão.

     Quando se ergueu, praguejando, e quis investir contra nós, deteve-se, ainda, um momento, a nos olhar espantado, como se fôssemos fantasmas. Era que ainda estávamos sentados ali: quietos, imóveis, duros e mudos, como ídolos de barro.

     Ninguém se movera, a não ser eu; pois lhe tinha tirado a espada da mão com um soco e, em seguida, precisara vibrar-lhe o golpe que o prostrou. Isso, entretanto, com tanta rapidez, que nem sequer se podia calcular.

     Encarou-nos todos, um por um, virou-se e perguntou:

     — Então, ainda há pouco eles estavam assim?

     — Sim — respondeu o nosso conhecido das macegas do caminho.

     — Estão doidos!

     — É claro.

     Entreolharam-se e sacudiram as cabeças e, assim, teriam sacudido as cabeças, — quem sabe quanto tempo — se eu não me tivesse levantado, aproximando-me do sargento, para perguntar-lhe:

     — A quem procuram?

     O seu rosto alegrou-se instantaneamente, pois certificou-se, por essa pergunta, que sabíamos falar sofrivelmente.

     — A vocês — foi a sua resposta lacônica.

     — A nós? Como é possível? Tu falavas sobre cães e patifes? Dizendo isso, olhei-o firmemente, fazendo-o corar — realmente corou.

     — Quem é que quer ver-nos? — perguntei.

     — O zabtie muchiri.

     — Para quê?

     — Quer interrogá-los.

     Vi que era sua intenção dar uma resposta bem diferente, mas esta não lhe saiu dos lábios grossos.

     — É coisa muito diferente. Ainda há pouco alguém falou em castigar. Vai, portanto, e dize ao zabtie muchiri que iremos em seguida.

     — Não posso ir, senhor! — respondeu-me.

     — Por quê?

     — Tenho que levá-los. Devo até prendê-los.

     — Sabe, então, o muchiri quem somos?

     — Não, senhor.

     — Então, corre a vai dizer-lhe que não somos homens que se deixem prender.

     — Não posso ir, realmente. Faze-me o favor e vai comigo. Os senhores já estão esperando há muito tempo.

     — Que senhores?

     — Os conselheiros.

     — Ora bem! Então, em atenção a esses senhores, vou seguir imediatamente. Vamos para fora.

     Os khawass, naturalmente, idearam uma prisão de modo bem diverso. Encaminhei-me para o pátio e, atrás, vieram os meus companheiros e, finalmente, os khawass. Lá estavam os nossos cavalos, ensilhados.

     O sargento pareceu ver um pouco mais claro, pois se dirigiu a mim e perguntou:

     — Por que vão para o pátio? O caminho mais curto não é pelas estrebarias e sim pelo portão.

     — Não te preocupes — respondi. — Já tomaremos esse caminho. Rapidamente, dirigi-me para perto do garanhão e montei.

     — Alto! — bradou o sargento. — Queres fugir. Desce! Não deixem os outros montar!

     Os seus homens seguraram os cavalos e o próprio sargento pegou-me pela perna, para me puxar para baixo.

     Fiz o cavalo levantar as patas dianteiras e girar sobre as trazeiras. O sargento teve que soltar.

     — Cuidado, minha gente! — adverti, em voz alta. — O meu cavalo se assusta facilmente.

     Obriguei o animal a umas lançadas, por entre os khawass, que se espalharam, gritando, espavoridos. Com isso, os meus companheiros ganharam tempo para montar e pudemos sair, a galope, pelo portão.

     — Odjurola. — Adeus! Até a volta! — gritei para o sargento.

     — Dur, dur. — Pára, pára! — berrava ele, correndo com os seus subordinados, atrás de nós.

     — Não os deixem ir embora! Segurem os ladrões, os bandidos, os patifes!

     Gente, para nos deter, havia muita. A notícia de que seríamos presos se espalhara rapidamente pela cidade e atraíra uma massa de povo apreciável.

     Mas, a esses bons súditos do Senhor dos Crentes não passou pela idéia botar-nos a mão, e, com isso, arriscar-se a cair sob as patas dos cavalos. Pelo contrário, fugiam, gritando, à nossa aproximação.

     O caminho que deveria seguir, para chegar ao lugar, a que chamaríamos de “juizado” noutro país, era claramente delineado, pelo movimento do povo, que queria assistir ao processo penal para eles altamente interessante. Contudo, perguntei-a um homem velho, que se afastava, assustado, para um lado, quando passávamos:

     — Onde mora o kadi de Ostromdja?

     Mostrou uma rua, que desembocava na praça e respondeu:

     — Entra ali, senhor. À direita, verás a meia-lua com a estrela, sobre um portão.

     Seguimos a sua indicação e chegamos, passando pelo povo que ali se comprimia, a um muro comprido e alto, no qual havia o portão referido.

     Por esse portão, penetramos num pátio quadrado, onde fomos recebidos por uma multidão de curiosos.

     Enfrente ao portão, estava a casa do juizado e de moradia. Os paus lavrados, de que era feita, eram verdes e o vão das paredes pintado de azul, o que dava uma impressão admirável.

     O pátio estava extraordinariamente sujo. Só a parte junto da casa estava revestida de alguma coisa que deveria representar uma calçada. Mas esse trottoir parecia ter sido arrancado para servir na construção de uma barricada.

     Diante da porta, havia uma cadeira de braços, com uma almofada de tempos imemoriais. Perto, estava um banco, com as quatro pernas para cima. Algumas cordas e uns feixes de varas, da grossura de um dedo polegar, deixavam supor que nos encontrávamos no instituto correcional da justiça local, destinada à aplicação da pena de bastonadas. Alguns khawass estavam ali e, bem perto, um nosso conhecido, quero dizer o aleijado, por quem havíamos passado, antes de chegar à localidade.

     A cara que nos mostrava era muito interessante. Estava, decerto, convencido de que entraríamos ali, escoltados como prisioneiros. O fato de chegarmos de cabeça erguida, arrogantes, a cavalo, e sem acompanhamento policial, deu-lhe à cara uma expressão de tão estúpida admiração, que talvez me tivesse feito rir, se não se visse, nos seus olhos chamejantes de ódio, algo que absolutamente não combinava com a sua idiotice aparente.

     Apeamo-nos. Atirei as rédeas para Osko e aproximei-me dos khawass.

     — Onde está o kodja bacha?

     Essa pergunta foi feita em tom autoritário. O interrogado fêz uma saudação militar, respeitosa, e respondeu:

     — Lá dentro da sua casa. Queres falar com ele?

     — Quero.

     — Então, vou te anunciar. Dize-me o teu nome e o que desejas.

     — Eu mesmo vou dizer-lhe isso.

     Empurrei-o para um lado e me encaminhei para a porta. Esta, porém, neste momento, foi aberta por dentro, e saiu um homem alto e magro, que seguramente era ainda mais magro do que o aleijado e o velho Muebarek.

     A sua figura estava envolvida num caftan, que arrastava no chão, de modo que não se podia ver os pés. Na cabeça, usava um turbante, cujo pano havia sido branco, cinqüenta anos atrás. O seu pescoço era tão fino e comprido que mal podia sustentar o peso da cabeça. Esta cabeça balanceava e se sacudia, para cá e para lá, para baixo e para cima, o que dava a impressão de que o nariz gigantesco e ponteagudo dedicava especial simpatia ao pomo-de-adão, saliente como um papo.

     Piscou os olhos pequenos e sem pestanas, melosos e circundados de vermelho, e inquiriu:

     — Com quem queres falar?

     — Com o kodja bacha.

     — Sou eu.

     — Sou um forasteiro, que tem motivo para te trazer uma reclamação.

     Queria responder, mas não chegou a isso, pois, nesse momento, chegou o sargento, correndo, seguido pelos seus homens, parou estupefato diante de nós e disse, sem fôlego:

     — Allah w'Allah! Aí estão eles!

     Junto e atrás dele, comprimia-se cada vez mais povo; mas ninguém disse uma palavra. Tudo se passava com tanta calma e silêncio, como se nos encontrássemos numa mesquita. O lugar, onde estava o banco, com as quatro pernas para o ar, era sagrado para aquela boa gente. Talvez, muitos deles já tinham sido amarrados ali, com a sola dos pés seguros às pernas de pau do banco. Essas recordações são aniquiladoras.

     O funcionário, ao invés de me responder, virou-se para o sargento.

     — Então, ainda não trouxeste o homem? Talvez desejas receber as bastonadas, em seu lugar?

     Em resposta, o khawass, já sem fôlego de tanto correr, indicou-me e respondeu:

     — Aí está ele, senhor!

     — Que? É este?

     — Ê.

     O kodja bacha virou-se, imediatamente, outra vez, para mim e me observou da cabeça aos pés. Ao mesmo tempo, a sua cabeça balanceava, como se fosse missão de toda a sua vida provar, por meio desse movimento de pêndulo, a redondeza da terra. A sua cara tomou uma expressão enérgica, sinistra, e disse bruscamnete:

     — Então, és tu o preso?

     — Eu? Não, não sou ele — respondi calmamente.

     — Este meu sargento dos khawass já disse que és!

     — Disse uma inverdade.

     — Não, digo a verdade. É ele — sustentou o sargento.

     — Estás ouvindo? — trovejou o kodja bacha. — Tu o chamas de mentiroso; mas eu sei que sempre fala verdade.

     — E eu te digo que mente! Viste-nos, por acaso, quando entramos pelo pátio?

     — Sim, estava na janela.

     — Então, terás observado que vínhamos a cavalo. Venho, voluntariamente, para aqui. Os teus khawass seguiram-nos depois. Chamas a isso uma prisão?

     — Sim. É verdade que chegaram um pouco antes, mas a polícia foi buscá-los e, portanto, são prisioneiros. Estão presos.

     — Estás cometendo um formidável engano.

     — Sou o kodja bacha e não me engano nunca. Toma nota disto! Ao dizer essas palavras, com o acento mais enérgico, sacudia com a cabeça de modo tão assustador que receei quisesse atirá-la contra mim. Realmente, o homem tinha um aspecto apavorante.

     — Então, vou provar-te que, não obstante, estás enganado. Não há um único kodja bacha, em todo o mundo, a quem eu daria licença para me chamar de seu prisioneiro.

     Alguns passos rápidos em direção do cavalo e um salto — eu já montava. Os meus companheiros montaram, com igual rapidez.

     — Sídi, saímos pelo portão? — perguntou Halef.

     — Não, nós ficamos. Quero somente abrir caminho até o portão. Parecia que o cavalo compreendera a minha intenção. Começou a curvetear, ladeando o corpo, indo e vindo, em direção ao portão, e dando coices para a frente e para trás, ao mesmo tempo que soltava fortes bufidos das narinas dilatadas, obrigando a massa de povo a abrir caminho, e se recostar, contra os muros.

     — Fechem o portão! — ordenou o juiz aos seus khawass.

     — Aquele que mexer no portão, será amassado a pata de cavalo! — ameacei.

     Nenhum dos khawass se moveu do lugar. O kodja bacha repetiu a ordem, sem encontrar obediência. O chicote de couro de hipopótamo estava na minha mão e isso parecia, demasiadamente, perigoso para aquela gente.

     Aproximei-me tanto do funcionário da justiça, que o cavalo bufava na sua cara. Saltou para trás, estendeu os braços para o ar e gritou:

     — A que te atreves! Não sabes onde estás e quem sou eu?

     — Sei muito bem. Mas tu não tens idéia de quem é a pessoa que está diante de ti. Irei queixar-me ao teu superior, o makredch de Saloniki. Ele que te diga como deves tratar um tebdili kyjafet iledchi (3) distinto.

     Essas palavras, pronunciadas em tom ameaçador, continham uma fanfarronada a que me julguei autorizado, em face das circunstâncias. O efeito foi o desejado, pois o velho bacha disse agora, em tom muito mais delicado do que antes:

     — És um tebdilen em viagem? Não sabia disso. Por que não me disseste?

     — Porque nem sequer perguntaste, ainda, o meu nome e a minha posição.

     — Então, dize-me quem és.

     — Mais tarde. Primeiro, quero saber se realmente me consideras teu prisioneiro. O meu comportamento será de acordo com a tua resposta.

     Esse convite meteu-o em embaraço. Ele, o dominador de Ostromdja e circunvizinhanças, devia retirar as suas próprias palavras! Olhou-me, com estranheza, e vacilou, antes de dar a resposta. A sua cabeça começou a bambolear de um modo assustador. Parecia que ia quebrar o pescoço.

     — Agora, uma resposta. Senão, vamos embora.

     — Senhor, — disse — realmente não foram amarrados e amordaçados e, por isso, vou admitir que não foram presos.

     — Bem, isso basta-me, por enquanto. Mas, que não te ocorra mudar de idéia. Iria queixar-me ao makredch.

     — Tu o conheces?

     — Se o conheço é coisa com que nada tens a ver. Basta que eu e ele saibamos disso. Mandaste me chamar. Concluo daí que queres fazer-me uma comunicação. Estou disposto a ouvi-la.

     Era engraçado ver a cara que fêz. Parecíamos ter trocado os papéis. Eu falava, com superioridade, e isso não só figuradamente, como também em verdade, pois estava montado. Na sua fisionomia, via-se que travava uma luta entre o ódio e a dúvida, cada qual procurando prevalecer. Olhou irresoluto em torno de si e depois respondeu, finalmente:

     — Estás enganado. Não mandei dizer que queria falar com vocês, mas, sim, mandei de fato que os prendessem.

     — Fizeste-o de verdade? Quase não posso acreditar. Tens ordens do supremo tribunal para agir com justiça e prudência. Qual era a razão da prisão?

     — Vocês maltrataram um dos meus khawass e, em seguida, puseste em perigo a vida de um dos habitantes desta cidade.

     — Hum! Vejo que não te contaram a história, de conformidade com os fatos. Castigamos um khawass porque o merecia e eu salvei a vida de um morador da cidade, levantando-o do chão, para o levar comigo no cavalo. O cavalo te-lo-ia amassado, se eu não tivesse tido tanta presença de espírito.

     — Isso é, na verdade, muito diferente daquilo que me foi contado. Terei que fazer um inquérito, para saber de que lado está a verdade.

     ______________

     (3) Pessoa que viaja incógnito.

 

     — Esse inquérito é de todo supérfluo. Não vês que as tuas palavras contêm um insulto para mim? As minhas palavras não devem provocar a mínima dúvida em ti e, sem embargo, queres fazer uma investigação. Não sei o que deva pensar sobre a tua delicadeza e atenção.

     Sentiu-se metido em apuros e respondeu, desalentado:

     — Mesmo que tenhas razão, tenho que fazer a investigação, justamente, para mostrar aos acusadores que tens razão.

     — Em todo o caso, vá lá que o faças.

     — Então, apeia. Começarei já o interrogatório.

     Tudo fora dito em voz alta que cada um dos presentes entendeu, palavra por palavra. Agora, o povo ainda mais se aproximou, para melhor poder ver e ouvir. Faziam-se comentários em voz baixa e os olhos que todos nos dirigiam demonstravam claramente que nos votavam um profundo respeito. Do modo como falei, ninguém ainda tinha falado ao seu kodja bacha.

     Esse digno funcionário sentou-se na sua cadeira. Tomou uma atitude destinada a impor o maior respeito possível e repetiu a sua ordem anterior.

     — Apeia e manda que a tua gente, também, apeie. A atenção que se deve à autoridade, exige isso.

     — Sou da mesma opinião, mas não vejo a autoridade.

     — Como? Estou te entendendo bem? A autoridade sou eu.

     — Realmente? Então, estou muito enganado. Quem é o juiz de paz de Ostromdja?

     — Sou eu. Exerço os dois cargos.

     — Pertence o nosso processo à alçado do juiz de paz?

     — Não, mas sim a kasa (4).

     — Nese caso, tenho razão. O naib pode dicidir sozinho, sem conselheiros. Mas, para uma kasa precisa-se de um kodja bacha, um promotor público, um suplente, um tenente civil e um escrivão de justiça. Agora, dize-me onde estão esses homens. Só vejo a ti.

     A cabeça do homem começou a balancear, outra vez, para lá e para cá.

     — Costumo tratar dessas coisas, também, sozinho — disse ele.

     — Se os moradores de Ostromdja admitem isso, é coisa que não me interessa. Mas eu conheço as leis do padixá e exijo que sejam cumpridas. Exiges, entretanto, de minha parte, um respeito a uma autoridade, que não enxergo.

     — Mandarei chamar esses homens.

     — Então, apressa-te! Não tenho muito tempo.

     — Não obstante, terás que esperar, porque não sei se será possível encontrar logo o bach kiatib e o suplente foi para Ufadilla. Decerto, só voltará daqui a algumas horas.

     — É desagradável. A autoridade não se deve deixar procurar. Que dirá o makredch, se eu lhe contar isso?

     ______________________

     (4) Trata-se de uma espécie de conselho de administração, na Turquia, e se constitui de funcionários denominados Kaim-makam, sendo uma subdivisão dos wilajets. Estes são os governos gerais das províncias, no antigo império otomano. — (N. do T.).

    

     — Não precisas contar-lhe. Ficarás seguramente satisfeito com o tratamento que receberás.

     — Como assim? A que tratamento te referes?

     — Não sabes?

     — Não.

     — Naturalmente, tenho que detê-los aqui, até que a kasa se tenha reunido. Mas, estarão à vontade, tanto quanto o permitam as circunstâncias.

     — Escuta! Estaremos tão à vontade, quanto seja do nosso gosto. Queres deter-nos aqui, isto quer dizer que estamos presos. Mas saibas que não me conformo com isso.

     — Mas a lei o exige.

     — Parece que fizeste leis para o teu próprio uso, as quais naturalmente não reconheço. Fui acusado e estou de acordo em que se investigue o fato. Estou, portanto, pronto a me apresentar perante esta justiça; mas não permito que me roubem a liberdade. Voltarei ao komak e esperarei, lá, a tua comunicação.

     — Não posso permitir.

     Levantou-se da cadeira.

     — Que farás para impedir?

     — Se me obrigares, terei que te deter, à força.

     — Ora! Já me mandaste uma vez os teus khawass. Que fizeram? Nada! E o mesmo resultado obterias agora. Se fores inteligente, deixarás de te fazer ridículo, perante o teu povo. Dou-te a minha palavra de que não penso em fugir. Esperarei a tua intimação e a obedecerei.

     Provavelmente, reconheceu que era melhor evitar mais cenas, que pudessem prejudicar a sua reputação. Respondeu-me, depois de alguns momentos de reflexão:

     — Atendendo ao fato de seres um forasteiro fidalgo, concordarei com a tua proposta; mas preciso pedir-te que me dês a promessa formal de que não fugirás.

     — Dou-a.

     — Põe a tua mão na minha. É do regulamento.

     — Está bem.

     Estendi-lhe a mão, do alto do cavalo. Parecia-me que ia soltar uma gargalhada; mas conservei a necessária serenidade e fui despedido, pelo bacha, com palavras solenes.

     Quando nos preparamos para sair, o povo se afastou, respeitosamente, do caminho. O juiz otomano costuma valer-se de uma infalibilidade tirânica. O velho kodja bacha, decerto, não fazia exceção à regra. Mas o seu prestígio acabava de sofrer um golpe poderoso. Que ele o sentia, verifiquei no olhar sinistro que nos dirigiu, antes de desaparecer pela porta da sua casa.

     E havia mais alguém que não estava satisfeito com o termo do incidente — o mendigo.

     Casualmente, dirigi-lhe um olhar, e quase me assustei com o relâmpago que nos enviou dos seus olhos escuros. Um homem, que tinha tais olhares, era impossível ser estúpido. Comecei a me convencer de que a idiotice aparente era só uma máscara.

     O ódio desse homem não era instintivo, mas sim calculado e, decerto, bem motivado; via-se isso no seu olhar. Que tinha comigo? Onde o tinha encontrado? Que lhe fizera eu?

     Estava convencido de que não o via pela primeira vez. Anteriormente, já nos encontráramos. Mas quando, onde e em que circunstâncias? Não podia lembrar-me, mesmo me esforçando, como o fiz, no caminho de volta.

     Comecei a suspeitar, ou melhor, a convencer-me de que, de qualquer forma, viria a me encontrar com o mendigo. Em mim, alvorecia a suposição de que ele estava em qualquer relação com o motivo da nossa presença e deliberei mantê-lo bem vigiado.

     Naturalmente, Ibarek e bem assim o seu parente, estavam muito satisfeitos com o desfecho do processo criminal. Perguntaram-me se tinha receio do prosseguimento da questão e lhes assegurei que nem pensava nisso. Quando, depois, perguntei ao estalajadeiro se não tinha um criado de toda a confiança, trouxe-me um homem, a quem dei ordem para se dirigir, secretamente, ao pátio do bacha e observar o mendigo. Queria saber se permanecia ali ou se ia se afastar.

     Halef ouviu a minha ordem. Aproveitou a primeira oportunidade, em que ficamos a sós, para perguntar:

     — Sídi, por que mandaste observar o mendigo? Tens alguma coisa com ele?

     — Não, mas creio muito mais que ele tenha conosco.

     — Como assim?

     — Não observaste que nos dirige olhares inexplicáveis?

     — Não; não o observei.

     — Então, observa, quando nos encontrarmos outra vez. Parece-me que já nos encontramos, alguma vez.

     — Onde?

     — Infelizmente, não sei. Já pensei sobre isso, mas não me ocorre. Deve ter sido longe daqui.

     — Certamente, estás enganado.

     — Dificilmente.

     — Como poderia o aleijado vir de tão longe?

     — Hum! Talvez ele, apenas, se disfarce.

     — Oh, não! Reconhece-se logo quanto é miserável A gente pensa, às vezes, já ter encontrado uma determinada pessoa e isso só tem a sua razão de ser na semelhança entre os entes humanos. Quando o Muebarek passou por nós, tive a mesma inexplicável impressão. Parecia-me já tê-lo visto.

     — Realmente? É muito interessante!

     — Por quê?

     — Porque penso a mesma coisa.

     — Então, alguma vez, vimos alguém que era muito parecido.

     — Não. Certamente, vimos ele mesmo. Não observaste o olhar que me dirigiu?

     — Vi. Parecia que não queria deixar perceber.

     — Talvez não fosse sua intenção olhar para mim; mas não pôde dominar-se. Traiu-se a si mesmo.

     — E, contudo, estás enganado. Sei que também estou enganado. O homem, que confundi com o Muebarek, tinha uma barba grande e espessa.

     — Sabes disso?

     — Sei. Se o velho tivesse uma barba dessas, seria bem parecido.

     — E onde viste esse homem barbudo?

     — Não me lembro mais.

     — Extraordinário! Seja como fôr, temos que nos cuidar do Muebarek e do mendigo. Talvez tenhamos que nos cuidar só de uma pessoa.

     — Que queres dizer com isso?

     — Quero dizer que o Muebarek e o mendigo não são duas pessoas distintas.

     — Sídi! Que estás pensando?

     — São uma e a mesma pessoa.

     — Impossível!

     — Nem mesmo sei como pensei nisso; mas, tenho essa idéia e não a posso abandonar.

     Fomos interrompidos. Chegou o estalajadeiro e nos participou que o kodja bacha mandara percorrer a cidade, em busca dos funcionários necessários para a constituição da kasa.

     — Assim, poderás ver, também, o Muebarek — acrescentou.

     — Que tem ele com isso?

     — Pois ele é o bach kiatib.

     — O escrivão da justiça? Quem lhe deu esse cargo?

     — O kodja bacha. Os dois são muito amigos.

     — Ai de vocês! Quando a raposa e o lobo se unem, a ovelha está perdida.

     — Julgas que esses dois são maus?

     — Bons, eles não são.

     — Efêndi, estás muito enganado.

     — Deveras? Fazes melhor juízo a respeito do kodja bacha?

     — Sobre este não. É prepotente e injusto. Mas tem o poder nas mãos e nada podemos fazer contra ele. Mas, no que se refere ao Muebarek, ele é o filantropo querido do povo. Se não quiseres fazer inimigos, nada digas contra ele.

     — Parece-me, pelo contrário, que ele é o flagelo desta região.

     — Lembra-te de que é um santo!

     — Quiçá, um marabut? Não!

     — Cura todas as doenças. Se quisesse, poderia até ressuscitar os mortos.

     — Ele próprio disse isso?

     — Assegurou, pessoalmente,

     — Então, é um mentiroso abjeto.

     — Senhor, não digas isso a ninguém.

     — Diria na própria cara do Muebarek, se ele se atrevesse a fazer essa afirmação diante de mim.

     — Nesse caso, estarias perdido. Previno-te disso.

     — Como assim, perdido?

     — Como ele tem o poder de salvar da morte, pode, igualmente, tirar a vida.

     — Quer dizer, matar?

     — Não. Ele nem toca em ti. Diz umas palavras e tens que morrer.

     — Pratica, então, a magia?

     — De fato, é assim.

     — Um santo e bruxo! Como se concilia isso? Vocês se contradizem, a si mesmo. Bem, mas aí vem o criado.

     O homem se aproximou e informou que o mendigo deixara o pátio.

     — Observaste para onde foi?

     — Sim. Sobe o morro. Decerto, vai à casa do Muebarek.

     — De vez em quando, ele vai lá?

     — Seguidamente.

     — Por que o santo não o cura?

     — Sei eu? Terá as suas razões para não o fazer.

     — Já viste, alguma vez, ambos conversarem juntos?

     O homem pensou, durante algum tempo, e depois respondeu:

     — Não, nunca.

     — Mas, se o mendigo vai com tanta freqüência à casa do Muebarek, é certo que se falam.

     — Naturalmente. Mas é curioso que nunca os tenha visto juntos.

     — Sim, também a mim isso parece extraordinário. Talvez consiga obter um esclarecimento, a esse respeito. Gostaria de ver o que faz o mendigo, lá no morro. É possível?

     — Ele pode te ver?

     — Não.

     — Nesse caso, precisaria guiar-te, pois não conheces a região.

     — Bem, guia-nos, então.

     Halef precisava estar junto. Tirei o meu binóculo do alforge e, depois, seguimos o criado.

     Guiou-nos, pelo pátio, até o jardim e dali para o campo livre. Indicou uma direção para a esquerda.

     — Vê, lá vai ele, subindo. O pobre só consegue adiantar-se devagar. Levará, talvez, meia hora, para chegar lá em cima. Até lá, já teremos chegado, há muito tempo, no topo do morro.

     Levou-nos pela direita, onde havia um bosque bastante cerrado, na encosta do morro. Lancei os olhos sobre o terreno. Podíamos, cobertos pelos arbustos, chegar facilmente ao alto, sem sermos vistos. Lá, onde o mendigo andava, porém, havia plantações de melancias. De longe, portanto, podia-se observá-lo perfeitamente. Por esse motivo, mandei o criado embora. Podia desistir do seu auxílio. Era mais provável que a sua presença se tornasse embaraçosa para nós.

     Subimos com regular rapidez, conservando-nos bem na beira das macegas, para não perder o mendigo de vista.

     Ele sabia que podia ser visto da cidade e se conduzia, tomando esse fato em consideração. Manquejava, vagarosamente, e descansava, freqüentemente.

     Em breve, alcançáramos o mato, que circundava o topo da montanha. Abrigados, assim, dobrei para a esquerda, até nos encontrarmos na direção, em que vinha o aleijado. Se prosseguisse nesse caminho, teria que passar perto de nós, forçosamente.

 

     O mendigo parou e olhou em torno de si.

     Sentei-me na grama macia e Halef tomou lugar, a meu lado.

     — Há alguma coisa determinada, no que queres saber agora, sídi? — perguntou o meu companheiro.

     — Sem dúvida.

     — Que é?

     — Quero ver como o mendigo se transforma no Muebarek.

     — Então, não abandonas a tua idéia?

     — De nenhum modo.

     — Verás que te enganas.

     — É possível, mas não acredito. Passará aqui na certa. Logo que se aproxime, nós nos esconderemos atras das árvores e o seguiremos de longe.

     Tivemos que esperar, ainda minutos e depois fomos obrigados a nos retirar.

     O mendigo veio.

     No momento em que alcançou o mato e se achou abrigado pelas árvores, de modo que não mais podia ser avistado da cidade, parou e olhou em torno de si.

     Essa investigação foi feita com os modos de um homem, que tem todos os motivos para ser cauteloso. Pareceu convencer-se de que não havia pessoa alguma nas proximidades, pois, ergueu-se de todo o corpo, espichou-se e se espreguiçou. Depois, penetrou mais um trecho, mato adentro, e se esgueirou, para trás de um sarçal.

     Observáramos tudo muito bem. Podia andar e sustentar-se de pé, sem auxílio das muletas.

     — Sídi, talvez tenhas, de fato, razão — disse Halef. — Vamos lá?...

     — Não, ficaremos aqui.

     — Mas creio que queres observá-lo. Irá mais adiante.

     — Não, fará a transformação, naquele silvedo e voltará para a cidade, como Muebarek.

     — E eu creio que subirá até o fim, onde se encontra a sua habitação.

     — Não fará tal coisa, pois não lhe sobra tempo. Tem muita pressa para ver reunido o tribunal. Presta atenção!

     Peguei o binóculo e o coloquei na direção em que supunha encontrar-se o indivíduo. De fato! Na verdade, não podia ver, mas os galhos se mexiam. Estava lá debaixo.

     Depois de cinco minutos, mais ou menos, surgiu... como Muebarek.

     — Allah akbar! — disse Halef. — Quem diria que tinhas razão, sídi?

     — Eu disse. Existem pressentimentos, que a gente sabe que vão se verificar. Este santo é um grande pecador. Talvez possamos provar-lhe isso.

     — De fato, ele se dirige, de volta, para a cidade. Vamos segui-lo, outra vez?

     — Não penso nisso. Não poderá existir melhor oportunidade para examinar a sua casa e as ruínas.

     — Tens razão. Então, vem! Vamo-nos apressar.

     — Não tanto! Primeiro vamos ao lugar, onde ele fêz a transformação. Talvez consigamos verificar como costuma executar esse trabalho.

     O velho seguira, numa certa distância, à beira do mato, e depois saiu, por entre duas plantações de melancias, em direção à cidade.

     Dirigimo-nos ao sarçal, mas nada encontramos. O capim e os galhos estavam pisoteados, mas nada mais se podia ver. Onde estariam as muletas?

     — Não pode fazê-las desaparecer, naturalmente — opinou Halef.

     — Com certeza, leva-as consigo.

     — Então, teria que se ver.

     — Hum! Isso não é forçosamente preciso. Talvez sejam munidas de dobradiças, de modo que as pode fechar e levar debaixo do caftan.

     — Não seria dificultoso para ele?

     — Com toda a certeza.

     — Poderia, do contrário, escondê-las.

     — É mais incômodo ainda. Todas as vezes que se quisesse transformar no mendigo, teria que voltar ao esconderijo. Quando as leva consigo, pode fazer a transformação em qualquer lugar e a qualquer hora.

     — Sídi, tudo parece tão estranho, tão incompreensível, quase como um conto.

     — Acredito de boa mente. Nas grandes cidades das terras do ocidente ocorrem coisas, ainda, muito diferentes. Agora me lembro que se diz que os seus ossos estalavam. Ouviste isso?

     — Sim, sídi. Ibarek o hospedeiro, disse. E, depois, quando o Muebarek passou por nós, ouvi os estalidos.

     — Não eram os ossos, e sim as muletas.

     — Alá! Agora compreendo.

     — Já, naquela ocasião, causou-me espécie o fato de o mendigo desaparecer completamente, e o Muebarek vir, da mesma direção, sem que pudesse ter sido visto antes. Agora, tenho a solução desta charada. Vamos subir, agora, à sua choça.

     — Vamos, logo, diretamente, por dentro do mato.

     — Não. Procuraremos o caminho. Vi, lá debaixo, por onde sobe e tomei nota disso.

     — Por que queres ir pela picada, onde, em todo o caso, poderemos ser vistos?

     — Da direção tomada pelo velho, ele não nos pode ver. E se outros notam que estamos subindo, não quer dizer nada. Procuraremos rastos de patas de cavalos.

     — Aqui, em cima?

     — Naturalmente. Ou acreditas que Barud el Amasat, Manach el Barcha e o guarda da prisão, fugido, deixaram os seus cavalos, em qualquer lugar, na cidade?

     — Não, decerto que não. Em qualquer hipótese, não se deixaram ver na cidade.

     — Também é a minha opinião. Subiram o morro e esconderam os cavalos e a si mesmos, por lá.

     — Se já não foram embora, de novo.

     — Ainda estão aí. Querem esperar os dois irmãos, aqui. O velho Muebarek já terá encontrado um esconderijo para eles. Naturalmente, isso será difícil de achar. O melhor guia serão os rastos dos cavalos.

     — Acharás os rastos?

     — Espero que sim.

     — Mas, já se passou tanto tempo!

     — Não quer dizer nada. Os três homens, que procuramos, não são índios, acostumados a esconder os seus rastos.

     — Sim, tu entendes e sabes ler todos os rastos e pegadas. Estou curioso para ver como o farás, agora.

     Eu mesmo estava curioso e tinha muito menos confiança na minha argúcia, do que deixei o pequeno hadji perceber.

     Continuávamos à beira do mato, debaixo das árvores, até encontrar o caminho, que conduzia para o cimo do morro. Não era um caminho propriamente dito, pois não estava marcado pelo uso. O chão era pedregoso. Só aqui e ali havia uma grama.

     Seguindo vagarosamente, fui procurando rastos, impressões de patas. Não havia nada, absolutamente nada. Não teriam os três se servido desta estrada?

     Tinham chegado pela manhã e se podia imaginar que tivessem contornado a cidade, para não serem vistos.

     Assim, subimos um bom pedaço, até que encontrei sinais de cavalos. Vinham da direita, por dentro do mato. As impressões das ferraduras eram bem visíveis, no chão mole de lama.

     Agora, podíamos andar mais depressa. Havia sinais em quantidade suficiente, para provar que, dali por diante, o caminho fora trilhado pelos cavalos.

     Em pouco tempo, chegamos ao topo. O caminho terminava numa clareira. Do outro lado, avistavam-se os muros e paredes em ruínas. Uma choupana, feita de caibros e pedras, recostava-se numa parede carcomida.

     — Lá dentro mora o velho — manifestou-se Halef.

     — Com toda a certeza.

     — Vamos entrar?

     Queria sair de sob as árvores e atravessar a clareira, mas eu o retive.

     — Alto! Primeiro, precisamos nos certificar se não somos observados.

     — Não há ninguém aqui.

     — Sabes, com tanta certeza?

     — Ouvir-se-ia ou se veria alguém.

     — Oh, hadji Halef Omar, julguei que fosses muito mais inteligente e cauteloso! Aqueles que procuramos estão escondidos aqui. Será muito fácil que nos descubram, e, então, todo o nosso esforço estará perdido. Fica parado aqui.

     Fazendo um semicírculo, rastejei à beira da clareira, indo até à choça e me aproximei da porta. Estava fechada. Muito embora espreitasse e escutasse muito, nada consegui observar. Com o mesmo resultado, examinei o outro lado e, em seguida, voltei para junto de Halef.

     — Estamos realmente bem sós — disse-lhe. — Agora, vamos tratar de descobrir o esconderijo dos três. Os cavalos terão que ser os nossos guias.

     — E, contudo, não achaste os cavalos.

     — Já os acharemos.

     O chão era de rocha. Não havia, portanto, rasto algum; mas, debaixo das árvores, tinham que ser encontrados sinais. E, no meio da clareira, havia uma fonte, que surgia por entre pedras, e da qual jorrava pouca água. Junto dela, encontrava-se um pouco de capim, brotando do chão.

     Fomos lá. Os cavalos precisavam beber e certamente esta fonte teria servido para isso.

     Examinei tudo, em redor. De fato! Encontrei a ponta do capim roído. Um raminho de dente-de-leão estava caído, com a haste quebrada. Aquela florzinha amarela deu-me uma impressão de estar na minha pátria.

     — É um dente-de-leão — disse Halef. — Por que o observas com tanta atenção?

     — Esta flor me dirá quando os cavalos estiveram bebendo água.

     — Ela diz isso, de verdade?

     — Diz. Examina-a bem. Está murcha?

     — Não, ainda está bem fresca.

     — Porque estava caída na água; estivesse lá em cima da rocha e não mais estaria tão fresca. Os estames já estão murchos. Pode fazer, mais ou menos, uma hora e meia que esta flor foi arrancada. A essa hora, os cavalos estiveram aqui.

     — Ou teria sido uma pessoa?

     — Seria uma pessoa capaz de morder o capim?

     — Não, não faria isso.

     — Mas aqui estás vendo o capim todo roído. Alguns colmos foram totalmente arrancados e estão aqui. Observa-os. Já estão murchos, porque não caíram perto da água. Calculei bem, quando disse uma hora e meia. Agora, precisamos saber, de onde vieram e para onde foram, novamente, levados os animais.

     — Como saberás isso?

     — De qualquer modo. Diante de nós, temos o muro. Não podem passar por dentro dele. Temos que procurar alguma abertura.

     Em primeiro lugar, dirigimo-nos à choupana. Aí nos separamos. Halef dirigiu-se para a direita e eu para a esquerda, a fim de examinarmos a margem da clareira. Encontramo-nos do outro lado. Podia confiar nos meus olhos, mas não nos dele. Por isso, investigamos novamente o trecho por ele percorrido, onde o caminho, também, era pedregoso no começo.

     — Cuidei bem, sídi — disse Halef. — Não entraram por aqui.

     Entre as árvores de folhas aciculiformes havia gravetos. Um bordo inclinava os seus galhos mais baixos até o chão e, aqui, achei o que procurava. Mostrei-lhe um dos galhos.

     — Olha, que vês aqui, Halef?

     — Alguém quebrou as pontas.

     — Foi um cavalo que mordeu, ao passar.

     — Um homem, também, podia ter feito isso.

     — Dificilmente. Vamos adiante.

     Seguimos nessa direção e em pouco tempo alcançamos chão mais mole, onde se viam claramente os sinais de ferraduras. Depois, chegamos a uma brecha no muro, onde havia um lugar circundado por quatro paredes altas. Parecia que ali fora uma sala.

     Diante de nós, uma abertura semelhante a uma porta nos conduzia para um segundo compartimento parecido, porém, menor, o qual tinha três aberturas. Entrei por estas.

     No chão, não havia sinal algum. As duas primeiras saídas ou entradas levavam a uns quartos pequenos, desmantelados. O terceiro nos conduzia a um lugar limpo, onde devia ter sido um pátio. Estivera calçado.

     Aí Halef mostrou-me, orgulhoso da sua sagacidade, um rasto que não enganava — a excreção de um cavalo.

     — Estiveram aqui — disse. — Vês que também sei achar pegadas?

     — Sim, eu te admiro. Mas, fala mais baixo, de agora em diante. Estamos nos aproximando dos animais e, onde estes estão, naturalmente, encontram-se também os homens.

     Olhamos em torno, mas baldadamente. O pátio parecia ter só essa entrada, por onde penetráramos. Em torno, todas as paredes não tinham brechas. Aquela que estava na nossa frente fora fechada pelo crescimento da hera.

     — Não podemos ir adiante, porque não há caminho — disse Halef.

     — Os cavalos estiveram aqui. É verdade. Mas, agora, foram embora.

     — Ainda ponho em dúvida isso. Vamos ver. Vagarosamente, examinei as quatro paredes. Quando alcancei o meio da parede de hera, tive a impressão de sentir o cheiro característico de cavalos.

     Mesmo nas grandes cidades movimentadas, onde a polícia sanitária zela cuidadosamente pela limpeza, poderá se notar, pelo cheiro, quais são os pontos de parada dos carros de aluguel. Estava sentindo esse cheiro.

     Chamei Halef para junto de mim e ele concordou. Quando, então, examinamos a hera, verificamos que esta constituía o disfarce de uma entrada, que dificilmente teríamos achado, sem aquele cheiro.

     A ramagem podia ser facilmente afastada. Quando fizemos tal, vimos um pequeno compartimento diante de nós. Estava vazio. Entramos.

     — Agora, muita cautela! — murmurei. — Lá fora estão os cavalos. Leva o revólver na mão. Temos que estar preparados para tudo. Os indivíduos naturalmente se defenderão.

     — Vamos prendê-los?

     — Talvez.

     — Ou vamos chamar a polícia?

     — Conforme as circunstâncias. Tenho uma corda comigo. Mas só chega para amarrar um deles.

     — Trouxe correias.

     — Bonito! Então, vem! Mas, devagar!

     Corremos rapidamente para a entrada. Olhamos para o outro lado, com toda a precaução. Ali, estavam parados os três cavalos, roendo algumas espigas de milho, que lhes tinham dado. Uma pequena abertura no muro, levava-nos para mais adiante. Parecia-me ouvir uma voz abafada, vinda daquele ponto.

     De fato! Agora, ouvimos risos altos e cheguei a perceber claramente a voz de um homem, sem contudo poder distinguir as palavras pronunciadas.

     — Estão aí — cochichei para o pequeno hadji. — Fica aqui, quero ir examinar.

     — Pelo amor de Deus, sídi, toma cuidado! — preveniu.

     — Não tenhas cuidado! Se ouvires disparar um tiro, virás socorrer-me.

     Preferiria ter rastejado para a frente, mas isso podia assustar os cavalos, pois um homem em pé não lhes mete medo. Por isso, caminhei devagarinho, bem de mansinho.

     Os animais me viram. Um deles soltou uns bufidos inquietos. Se eu estivesse no lugar dos três homens teria tomado tal bufido com mau sinal; aquela gente, porém, nada notou.

     Alcancei a parede do lado oposto e, só então, agachei-me. Avançando só com muita lentidão, pus a cabeça perto da entrada.

     Havia, ali, um lugar de onde tinha sido tirado uma pedra. Esse buraco permitiu-me olhar para o outro lado, sem que a minha cabeça fosse vista.

     Lá estavam sentados todos os três. Manach el Barcha e Barud el Amasat estavam com as costas voltadas para mim. O guarda tinha o rosto voltado para a entrada. Não o tinha visto ainda, mas devia ser ele.

     Jogavam cartas, naturalmente fazendo o mesmo jogo que haviam empregado para desviar a atenção de Ibarek do roubo.

     As suas armas estavam encostadas a um canto; também tinham tirado as facas e as pistolas.

     Voltei-me e vi Halef parado na entrada. Fiz-lhe um sinal e ele se aproximou. Novamente, um dos cavalos soltou um bufido, sem ser notado pelos jogadores. Halef acocorou-se ao meu lado e olhou pelo buraco.

     — Hamdulillah! — balbuciou. — Agarramo-los! Que faremos?

     — Vamos prendê-los, dada à magnífica oportunidade. Estás de acordo?

     — Naturalmente. Mas como faremos?

     — Pegarás o guarda da prisão e eu os dois outros.

     — Por que os dois mais perigosos?

     — Entender-me-ei com eles, facilmente.

     — Então, começa!

     — Primeiro, tira as correias, para que as tenhamos à mão.

     Halef tirou as correias do bolso que, depois, facilmente podia utilizá-las. Nesse momento, Barud el Amasat soltou uma praga.

     — Wai bachina! Que estás pensando! A nós, tu não enganas. Sabemos que roubas no jogo e te cuidamos. Embaralha as cartas, de novo!

     — Não preferes parar? — perguntou Manach el Barcha. — Por que vamos estar a nos tomar o dinheiro, mutuamente?

     — Tens razão. Também é muito, cacete e desde que o Muebarek trouxe a notícia idiota não posso mais prestar atenção ao jogo.

     — Talvez ele se tenha enganado.

     — É impossível. Descrevemos o indivíduo com tanta clareza, que teria de o reconhecer, imediatamente.

     — Alá que o maldiga eternamente! Que tem ele conosco? Que lhe fizemos? Que nos deixe em paz.

     — Ele nos deixará em paz. Amanhã cedo, é um homem morto.

     — Se fôr possível.

     — Será possível. O Muebarek é poderoso. Fará tanto, ainda, que esses cães serão encarcerados. Depois, durante a noite, iremos lá e os mataremos.

     — E se não forem presos?

     — Procurá-los-emos no konak. O Muebarek terá que nos ajudar. Ele se transforma no mendigo.

     Era evidente que se tratava de um bonito plano. Portanto, devíamos ser assassinados! O Muebarek já estivera lá e lhes comunicara a minha chegada.

     — Gostaria de vê-lo — disse o guarda. — Se homens como vocês, tem medo dele, é que deve ser um indivíduo perigoso.

     — Um cheitan, um djaur, um cachorro cristão, que vai queimar-se no mais fundo lodaçal do inferno, é o que ele é! — respondeu Manach el Barcha. — A mim, ele perseguiu, em Edreneh, através de vinte ruas e vielas. Fiz tudo quanto foi possível para despistá-lo e, contudo, ele me achou. E o homenzinho, que o acompanha, é um demônio igual. Por que não o matamos, aquela vez, na estrebaria, em Edreneh, ao invés de deixá-lo vivo? Gostaria de saber quem são os dois outros; mas também têm que morrer. O diabo os protege, do contrário não teriam escapado de Menlik.

     — Os homens lá, decerto, procederam com muita estupidez.

     — Sim. E os mensageiros ainda não chegaram. Nada mais nos resta, senão ajudar-nos a nós mesmos. Também não o faremos de graça. O cavalo desse homem vale a pena que esfriemos os quatro. E as suas armas, dizem que são excelentes. Nem posso esperar a volta do Muebarek. Se conseguirmos, hoje, livrar-nos desses perseguidores, estaremos livres de todas as preocupações. Terei verdadeiro prazer de meter a faca no coração desse patife.

     — Não farás isso!

     Dizendo essas palavras, entrei e lhe dei um soco, que o prostrou, logo.

     Os dois outros olharam-me, durante alguns segundos, estarrecidos, imóveis de susto. Era o suficiente. Segurei Barud pela garganta e apertei tanto, que ele sacudiu um pouco os braços e, em seguida, ficou estendido, de todo o comprimento.

     Halef jogara-se contra o guarda da prisão, o qual, de medo, nem pensou em defender-se.

     Segurei Barud ainda durante alguns momentos, até que não se mexeu mais; tinha perdido os sentidos como Manach. Depois, ajudei Halef a amarrar o guarda.

     Em seguida, colocamos os dois outros, lado a lado, de modo que um tinha os pés junto à cabeça do outro. A corda foi passada, depois, em torno dos dois corpos, sendo tão fortemente amarrada, que, sem auxílio estranho, era-lhes impossível mexer-se. O guarda, naturalmente, foi amarrado, com o mesmo cuidado.

     Examinamos os seus bolsos e os alforges, que também estavam ali. Achamos todos os objetos, roubados de Ibarek, e muita outra coisa mais. Especialmente Manach tinha uma regular importância em dinheiro.

     O guarda observou o nosso procedimento, sem dizer uma palavra. Não nos tinha visto ainda; podia, porém, imaginar quem éramos.

     Halef deu-lhe um ponta-pé e perguntou:

     — Patife, sabes quem somos?

     O interrogado não respondeu.

     — Ouviste? Pergunto se imaginas quem somos. Responde, senão te meto o chicote!

     — Sei — rosnou o homem amarrado, com medo do chicote.

     — Sim, querias nos conhecer. Disseste-o há pouco. Agora, o teu desejo está satisfeito. Não pensaste nisso, com certeza!

     Barud el Amasat podia respirar novamente. Recuperou os sentidos, rapidamente, abriu os olhos e me encarou, aterrado:

     — O jazik. — Ai de nós! — exclamou. — Agora, estamos perdidos.

     — Sim, — riu Halef. — Estão perdidos, terão o destino que idearam para nós, bandidos. Queriam assassinar-nos.

     — Não, isso não é verdade!

     — Cala-te! Ouvimos tudo.

     — Os outros é que queriam, eu não.

     — Vai mentindo. Sabemos muito bem a quantas andamos.

     Agora, também Manach el Barcha começou a se mexer, isto é, tanto quanto o permitiam as cordas com que estava amarrado. Olhou-nos e depois fechou novamente os olhos.

     — Agora, não nos queres cumprimentar, maroto! — exclamou Halef, dando-lhe uma chicotada.

     Então, o homem abriu novamente os olhos, encarou-nos alternadamente e, depois, disse:

     — Desamarrem-nos! Dêm-nos a liberdade!

     — Que Alá não o permita.

     — Eu pago a liberdade.

     — Não és suficientemente rico para isso.

     — Sou rico, muito rico.

     — Com dinheiro que guardaste dos teus roubos! Ser-te-á tomado.

     — Ninguém o acha.

     — Então, ficará onde está. Não o precisamos. Sídi, que faremos com esses ladrões? Não os podemos levar para a cidade.

     — Não. Que fiquem aqui, até que voltemos para buscá-los.

     — Será que não fugirão?

     — Não. Tomaremos todas as precauções para que fiquem bem seguros.

     — Mas, aquilo que achamos, naturalmente levaremos?

     — Deixamos aqui. A polícia terá que achar tudo, como nós achamos agora.

     Utilizamos as rédeas e os freios dos animais para amarrar os prisioneiros melhor ainda, de modo que nem sequer se podiam mover. Mas, contudo, tomamos essas medidas de segurança, de modo a que não ferissem aqueles homens. O guarda da prisão foi amarrado, transversalmente, sobre os outros, de forma que se lhes tornou impossível modificar a sua posição, rolando. Depois, saímos.

     Os presos não disseram mais uma palavra. Ameaças seriam ridículas e nós não tínhamos ouvidos para solicitações e súplicas.

     Quando alcançamos a clareira, Halef foi à casa do Muebarek, para verificar se estava fechada.

     — Esse sujeito podia pregar-nos uma peça, se soltasse os três bandidos — disse.

     — Não voltará em tempo.

     — Mas o que acontecerá se ele voltar e vier ter com os presos?

     — Se subir o morro, estaremos junto dele.

     — Achas, então, que não é possível vir antes de nós?

     — Não. Estará sentado na casa do kodja bacha, esperando por nós e mal se contendo de impaciência. Não sairá de lá, enquanto não estiver terminado este célebre processo judicial.

     — Se soubesse o que o ameaça!

     — Breve saberá. Vamo-nos apressar. Está anoitecendo.

     O dia estava a terminar e o sol se inclinava no horizonte. Ao chegar no konak, fomos informados de que o kodja bacha mandara chamar o albergueiro Ibarek. Este ainda não voltara. Depois, já tinham vindo dois mensageiros para nos buscar. Anunciaram que os homens da justiça já se tinham reunido.

     — Não percas a coragem, efêndi! — disse o hospedeiro. — Encontrarás uma grande assembléia. O pátio está apinhado de gente. Todos estão curiosos para ver como te defenderás.

     — Já mostrei a essa gente, mais ou menos, como me portarei.

     — Sim e por isso estão duplamente curiosos para ver um homem que não tem medo do kodja bacha.

     Justamente quando íamos sair, chegou o barqueiro.

     — Senhor, — disse — venho secretamente, para te pedir um conselho. Não sei como devo comportar-me.

     — Deveras, porventura, apresentar-te como testemunha de acusação?

     — É verdade. O Muebarek me obriga a isso. Procurou-me para esse fim.

     — Que deveras dizer contra mim?

     — Que me puseste em perigo de vida e que, depois, me maltrataste, aqui, neste pátio.

     — Fiz isso?

     — Não, efêndi.

     — Então, ele te induz a prestar um testemunho falso. Isso ele pagará.

     — Senhor, nada digas! Ele se vingaria de mim.

     — Não tenhas cuidado! Será impossível vingar-se.

     — É verdade?

     — É. Diz tranqüilamente toda a verdade. Nada te poderá fazer.

     — Então, voltarei depressa. Fugi sorrateiramente. Seguimo-lo, vagarosamente.

 

                                                                                            Karl May

 

 

                      

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