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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PELO CURDISTÃO BRAVIO / Karl May
PELO CURDISTÃO BRAVIO / Karl May

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

PELO CURDISTÃO BRAVIO

 

Preparando a contra-ofensiva

Voltávamos da visita que fizéramos ao chefe dos Curdos Badimans. Ao chegarmos à última colina e ao relancearmos os olhos pelo vale dos Adoradores do Diabo, vimos, bem nas proximidades da casa do Bei, um grande monte de palhas de arroz, que os Dschesidis se empenhavam em aumentar. Pir Kamek assistia aos trabalhos e punha, às vezes, pedaços de betume no monte.

- Aquela é a pira - disse o Bei Ali.

- O que pretendem sacrificar?

- Não sei.

- Algum animal?

- Somente os hereges costumam queimar animais.

- Frutas?

- Os Dschesidis não queimam nem animais nem frutas no fogo dos seus sacrifícios. O Pir nada me disse, por isso não sei o que irão sacrificar hoje. Ele é uma pessoa virtuosa, um santo, e o que fizer não é pecado.

Na colina fronteira continuavam as salvas dos peregrinos, salvas que eram respondidas no vale; quando lá cheguei, notei, entretanto, que não caberia mais gente do que a que já havia. Entregamos as nossas montarias e nos dirigimos ao sepulcro, em cujo caminho levantava-se um chafariz cercado por chapas de grés. O Mir Xeque Khan, sentado numa das chapas, dirigia a palavra aos peregrinos que, a uma certa distância, o escutavam cheios de profundo respeito.

- Esta fonte é santa e só o Mir, eu e os sacerdotes nela nos podemos sentar. Peço-te, pois, não te magoares por teres que ficar de pé! - disse Ali Bei.

À nossa aproximação o Khan fêz um sinal aos presentes estes abriram alas para passarmos. Em seguida ergueu-se e veio ao nosso encontro, estendendo-nos a mão.

- Sejam bem-vindos. Tomem lugar à minha direita e à minha esquerda.

Dizendo isso, indicou ao Bei Ali o seu lado esquerdo, de modo que a mim cabia sentar-me à direita. Sentei-me na laje santa, sem que tivesse percebido num só dos presentes o menor gesto de contrariedade. Oh! quanto contrastava, no entanto, essa minha atitude com aquela que os maometanos eram obrigados a adotar!

- Falaste com o chefe? - perguntou o Khan.

- Falei e está tudo na melhor ordem. Participaste alguma coisa aos peregrinos?

- Ainda não.

- Está em tempo. Dá ordens para que essa gente se reúna!

- Eu sou o guia espiritual. O resto é contigo. Não pretendo tirar-te a glória de teres protegido os fiéis e vencido os inimigos!

Era um sinal de modéstia de que jamais seria capaz um Imã maometano. Ali, o Bei, ergueu-se e saiu a passos. Enquanto eu palestrava com o Khan, notei um invulgar movimento entre os peregrinos, movimento que ia crescendo de minuto a minuto. As mulheres e crianças, imóveis, ficaram paradas nos seus respectivos lugares; os homens estavam enfileirados junto ao arroio e os chefes de tribos, ramificações e localidades, formavam um círculo em torno do Bei Ali, que lhes comunicava os propósitos de Mutessarif de Mossul. Notava-se um silêncio e uma ordem dignos de menção; não havia a algazarra desordenada que, em geral, se notava quando as tropas orientais se reuniam. Depois de terem sido transmitidas às ordens e o aviso do Bei Ali, a reunião se dissolveu na mesma ordem e compostura.

O Bei Ali voltou.

- Quais as ordens que lhes transmitiste? - perguntou-lhe o Khan.

O interrogado estendeu o braço, indicou uma tropa composta de vinte homens que subia pela mesma estrada de onde descêramos e declarou:

- Vejam: são os guerreiros de Airam, Hadschi Dsho e Shura Khan, que conhecem muito bem esses caminhos. Vão ao encontro dos turcos e nos avisarão, em tempo, quando estes estiverem chegando. Estendi, igualmente, sentinelas na direção de Baadri; desse modo, o inimigo não nos poderá atacar de surpresa. Até o anoitecer temos ainda três horas, tempo mais que suficiente para transportarmos os animais e todos os nossos haveres para o vale do Idiz. Selek irá junto como guia da tropa.

- E os homens que seguem para o Idiz estarão de volta à hora do Santo Ofício?

- Sim, com toda certeza.

- Então que se inicie já o transporte!

Logo que a patrulha partiu, uma extensa fileira de homens, uns conduzindo animais pelas rédeas e outros levando aos ombros diversas utilidades, passou por nós, desaparecendo um após o outro, por trás do sepulcro. Em seguida, surgiram novamente numa vereda encravada na rocha e dos nossos lugares podíamos acompanhá-los com o olhar até desaparecerem ao alto, numa densa mata.

Tive que fazer a refeição em companhia do Bei Ali. Ao findar, a Baschi-Bozuk acercou-se de mim:

- Senhor, tenho algo a dizer-te.

- Fala com franqueza!

- Estamos na iminência de um grande perigo!

- Ah! Que perigo?

- Esses homens, os Adoradores do Diabo, estiveram a fitar-me durante meia hora com olhares terríveis. Pareciam querer matar-me.

Como Buluk-Emini ostentasse o seu uniforme, achava justificável a atitude dos Dschesidis, ameaçados pelos turcos. Contudo, tinha convição de que nada sucederia a Baschi-Bozuk.

- Isso é grave, - disse eu. - Quem servirá, depois, a cauda do teu burro?

- Eles sangrarão o burro também! Não viu como mataram a maior parte dos búfalos e ovelhas que havia?!

- O teu burro está seguro e tu também! Um pertence ao outro e ninguém há de separá-los.

- Prometes?

- Prometo.

- Estive muito inquieto durante a tua ausência.

- Pretendes ausentar-te novamente?

- Por enquanto, não; ordeno-te porém, que permaneças aqui e não te mistures com os Dschesidis, porque, do contrário, não poderei proteger-te.

O herói, a quem Mutessarif prometera a minha proteção, afastou-se meio tranqüilo. Em seguida recebi nova advertência: Halef procurou-me.

- Sídi, já sabes que vai haver uma guerra?

- Uma guerra? Entre quem?

- Entre os Osmanlis e os Adoradores do Diabo.

- Quem te disse!

- Ninguém.

- Ninguém? Não ouviste nada a respeito do que falamos hoje de manhã, em Baadri?

- Não ouvi coisa alguma, pois vocês falaram no idioma dos turcos e esta gente fala de tal jeito que não compreendo nada do que dizem. Vi, porém, que se realizou aqui uma grande assembléia e que depois desta todos os homens examinaram as armas. Daí a pouco retiraram do local as alimárias e tudo o mais que possuíam. Em seguida, quando subi ao avarandado para falar com o Xeque Maomé, estava ele ocupado em retirar de suas pistolas a carga velha para substituí-la por nova. Não bas-tam, então, esses indícios para se estar convencido do perigo?

- Tens razão, Halef. Amanhã, ao romper da alvorada, de Baadri e também de Kaloni, chegarão tropas turcas para atacar os Dschesidis.

- E eles sabem disso?

- Sabem, sim.

- Qual é o efetivo dos turcos?

- Mil e quinhentos homens.

- Eles terão muitas perdas, pois o seu plano de guerra foi denunciado! Ao lado de quem te vais colocar Sídi?

- Não participarei da luta.

- Não? - retrucou o homenzinho decepcionado. - Também não devo tomar parte no combate?

- A qual dos combatentes és simpático?

- Aos Dschesidis.

- A esses, Halef? Aos Dschesidis que acreditavas te roubarem o paraíso?

- Oh, Sídi! Não os conhecia ainda; agora estimo essa gente!

- Mas são ímpios!

- Ora, Sídi, tu também não estás sempre pronto a acudir gente de bem, sem cogitar do seu credo, sem perguntar se adoram a Alá ou a qualquer outro deus?

Vi com satisfação que o meu bravo Halef, que a todo transe pretendera converter-me ao islamismo, se expandia abertamente num sentimentalismo essencialmente cristão! Respondi-lhe:

- Ficarás comigo!

- Enquanto os combatentes demonstram a sua coragem e valor guerreiro?

- É possível que se proporcione ocasião de mostrarmos, também nós, e em muito mais elevado grau, a nossa valentia e o nosso valor bélico.

- Neste caso, ficarei contigo! O Buluk Emini também ficará?

- Também.

Subi ao avarandado para ir ter com o Xeque Maomé Emin.

- Hamdullillah, louvado seja Deus, porque chegas! - exclamou ele. Ansiava pela tua vinda como a relva anseia pelo orvalho da noite!

- Estiveste sempre aqui em cima?

- Sempre. Ninguém deve reconhecer-me, porque então estarei descoberto. Que novidades trazes?

Depois de lhe haver narrado tudo, ele, apontando para as armas que se achavam à sua frente, disse:

- Terão uma recepção brilhante!

- Não chegarás a usar essas armas.

- Não? Pensas então que nossos amigos e eu não saberemos defender-nos?!

- Seus amigos são bastante fortes e valentes para, sozinhos, defenderem suas posições. Acaso pretendes morrer atingido por uma bala ou por um golpe de faca para que teu filho pereça na fortaleza de Amadijah?

- Emir, falas como um homem prudente, não, porém, como um homem valente!

- Xeque, sabes muito bem que não temo inimigo algum! Não é o medo que fala em mim, não! Bei Ali exigiu que nos afastássemos da luta. Ele, como eu, estamos convencidos de que ela não se realizará.

- Neste caso, esperas que os turcos se rendam sem oporem a mínima resistência?

- E se não se renderem serão fuzilados em massa!

- Os oficais turcos não possuem valor algum, os soldados, porém, são valentes. Eles assaltarão as colinas e ficarão facilmente senhores da situação.

- Mas mil e quinhentos contra seis mil homens?

- O único meio de vencê-los seria sitiá-los aqui dentro do vale.

- E é exatamente o que vai suceder.

- Então teremos que nos retirar com as mulheres para o vale do Idiz?

- Tu irás.

- E tu?

- Ficarei aqui.

- Allah kerihm. Fazendo o quê? Encontrarias morte certa.

- Não tenho o menor receio disso. Encontro-me sob a sombra do Padixá, sou portador de uma recomendação do Mutessarif e tenho em minha companhia um Buluk Emim, cuja presença, por si só, seria o bastante para pôr-me ao abrigo de qualquer violência dos turcos.

- Mas que pretendes fazer aqui?

- Evitar a consumação de grandes males, se isso me fôr possível.

- E o Bei Ali sabe disso?

- Não.

- E o Mir Xeque Khan?

- Também não. Saberão tudo oportunamente.

A muito custo convenci o Xeque de que eu devia ficar com ele. Finalmente aceitou minha proposta.

- Allah illa Allah! Os caminhos dos homens estão prescritos no livro - declarou ele; não pretendo demover-te do teu propósito, mas ficarei aqui contigo!

- Tu? Não é possível!

- Por que não?

- Eles não devem encontrar-te.

- E a ti, também não.

- Já te disse que não corro perigo algum; a tua sorte, porém, será bem diversa, se fores surpreendido.

- O fim do homem está prescrito no livro! Como tenho que morrer um dia, não importa que seja aqui ou na fortaleza de Amadijah.

- Queres ir de encontro à desgraça e te esqueces que me arrastarás contigo!

Vi que era este o único meio de arrancá-lo à sua obstinação.

- Como? - perguntou-me.

- Se eu ficar sozinho, serei protegido pelos meus Firmans; mas se te encontrarem comigo, a ti um inimigo do Mutessarif e um prisioneiro foragido, terei perdido essa proteção e não poderei mais contar com a ajuda daquela gente. Então estaremos ambos perdidos!

O velho ficou pensativo. Percebi logo por que relutava em refugiar-se no vale do Idiz, mas deixei-lhe tempo para tomar uma resolução. Finalmente declarou em voz baixa e indecisa:

- Emir, me achas um covarde?

- Não. Sei que és um homem valente e decidido.

- E que pensará, depois, Bei Ali a meu respeito?

- Pensará o mesmo que eu e o Mir Xeque Khan.

- E os demais Dschesidis?

- Todos conhecem as tuas tradições de bravura e sabem perfeitamente que não és capaz de fugir de inimigo algum, por mais feroz que este seja!

- E se duvidarem da minha coragem guerreira, serás o meu defensor? Dirás abertamente que segui para o vale de Idiz, para junto das mulheres, por causa, unicamente de teus rogos insistentes?

- Direi isso a todos de viva voz.

- Pois bem, farei o que me propões.

Resignado, afastou a sua espingarda e virou-se para o vale, que já estava sendo envolvido pelo manto escuro da noite.

 

AS SOLENIDADES RELIGIOSAS DOS DSCHESIDIS

Naquele instante voltavam os homens que haviam seguido para o vale do Idiz conduzindo os haveres. Vinham em préstito, um a um, e se dispersaram no vale diante de nós.

Nesse momento, ressoou uma salva no sepulcro do Santo, emquanto o Bei Ali subia e nos falava:

- Iniciam-se as grandes comemorações junto ao sepulcro. Nunca foram essas solenidades assistidas por um estranho, mas o Mir Xeque Khan, em nome de todos os sacerdotes, autorizou-me a convidar-vos para as mesmas!

Evidentemente aquele convite constituía uma grande honra para nós; mas o Xeque Maomé o recusou:

- Muito obrigado, Senhor; mas aos muçulmanos não é permitido tomar parte em adorações a outro deus que não seja Alá!

Sem dúvida, ele era muçulmano; contudo deveria ter-se esquivado um pouco mais delicadamente de comparecer ao rito religioso daquela gente! Ele ficou e eu acompanhei o Bei Ali.

Ao sairmos defrontamos uma paisagem verdadeiramente bela. Todo o vale estava banhado num verdadeiro mar de luzes. As ramagens das árvores, o arroio em baixo, as majestosas rochas das colinas, em torno das casas e nas suas soleiras, tudo enfim estava maravilhosamente iluminado. O Mir acendera uma tocha na lâmpada eterna do túmulo e, empunhando-a, veio para o pátio interno. Naquela tocha os Xeques e os Kawals acendiam as suas lanternas; na luz destas os faquires, por sua vez, acendiam as suas e em seguida todos saíam do pátio para a planície do vale, onde milhares e milhares de pessoas acorreram para se purificarem no fogo santo das lanternas.

Aquele que lograsse aproximar-se das lanternas dos sacerdotes passava a mão pelas chamas, para depois levá-la à testa e à altura do coração. Os homens casados passavam a mão duas vezes, a fim de obterem a bênção também para as suas mulheres. O mesmo faziam as mães para os seus filhos menores que não podiam atravessar a multidão e chegar até as tochas do fogo sagrado. Nessa cerimônia notava-se um júbilo intenso, um delírio de contentamento que, não obstante a grande aglomeração de fiéis, nada tinha de irritante.

Também o santuário foi iluminado. Em todos os nichos dos muros ardia uma lâmpada e por sobre os pátios estendiam-se linhas de guirlandas vistosas que produziam um efeito encantador.

Os sacerdotes haviam-se postado em duas filas no pátio interno. Num dos lados, formavam os Xeques com suas vestimentas brancas e, em frente, os Kawals. Estes empunhavam, alternativamente, um deles uma flauta e o outro um tamborim. Eu me sentara, juntamente com o Bei Ali, debaixo de um parreiral. Não pude ver onde se encontrava Mir Xeque Khan.

De repente, do interior do sepulcro, ressoou um brado e os Kawals se prepararam para tocar os seus instrumentos. A flauta passou a executar, em som plangente, uma lenta e amargurada melodia, enquanto o tamborim marcava-lhe o compasso. Em seguida a música desenvolveu-se subitamente em acordes prolongados, em quatro escalas, primeiramente o tamborilar pianíssimo das pontas dos dedos no tamborim, depois piano, mais forte, fortíssimo e então entraram as flautas em duas claves a tocar notas que não existem em nossa escala musical, mas de efeito bem agradável.

Quando os Kawals terminaram de tocar, o Mir Xeque Khan saiu do interior da casa, acompanhado de mais dois Xeques. Um deles precedia-o, conduzindo uma estante de madeira, semelhante à estante de música; esta foi colocada no meio do pátio. O outro trazia dois jarros, um contendo água e outro um líquido inflamável. Esses dois vasilhames foram colocados sobre a estante da qual O Mir Xeque Khan aproximou-se.

Fêz um sinal com a mão e passaram a tocar um prelúdio, acompanhado pelos sacerdotes, que cantavam um hino a uma voz. Infelizmente não me foi possível anotar as palavras, pois isso daria na vista. O hino era escrito no idioma árabe e incitava os fiéis à purificação, à fé e à vigilância.

Depois do hino, Mir Xeque Khan dirigiu um breve sermão aos sacerdotes. Em poucas palavras, ele falou na necessidade de todos pautarem a sua conduta isenta de quaisquer pecados, de fazer bem a todos os homens e de manter-se firmes e inabaláveis na sua fé, defendendo-a dos inimigos.

Em seguida voltou e sentou-se junto de nós, embaixo da parreira. Um dos sacerdotes trouxe, então, um galo vivo, que amarrou, pelo pé, ao púlpito; à sua esquerda foi colocada a água e à direita o material inflamável já ardendo.

Começaram novamente a tocar. O galo, encolhido, acocorava-se no solo. Parecia não dar atenção aos sons pianíssimos da música. Esta começou a tornar-se mais forte e a ave pôs-se a espreitar. Levantando a cabeça, passeou uns olhares desconfiados pela assistência, deparando, durante este exame, com o jarro de água. Apressadamente deu um pulo e meteu o bico na vasilha para beber. Esse fato auspicioso foi anunciado com alegres rufados dos tamborins. Estes pareceram despertar o interesse musical da ave. Ela ergueu a cabeça e escutava como que em doce recolhimento. Mas daí a minutos notou que se achava na iminência do perigo das chamas. Quis voltar, mas não pôde porque estava presa ao púlpito. Enraivecido o galo bateu as asas e cantou, sendo seguido imediatamente pelos tamborins e pelas flautas. Essa atitude dos músicos pareceu convencê-lo de que se achava num concurso musical. Virou-se para os exe-cutantes e, batendo as asas, cantou novamente. Responderam-lhe o canto como há pouco e, por algum tempo, cantou novamente num torneio musical, que parecia não ter mais fim, até que a ave, furiosa, voou para dentro do sepulcro.

A música acompanhou esse feito heróico do galo com os mais intensos “fortíssimos”; as vozes jubilosas dos sacerdotes se fizeram ouvir e, junto com os instrumentos, atacaram o andante final com uma intensidade que fatalmente teria que fatigar músicos e cantores! Ao terminarem a execução da peça, os Kawals beijaram os instrumentos.

Os sentimentos religiosos de um cristão revoltam-se, naturalmente, ao assistir tais ritos pagãos, mas, a falar a verdade, nada divisei de amoral naquela prática religiosa.

Agora devia seguir-se a venda de balas, da qual já falei. Antes, porém, os sacerdotes se aproximaram e ofereceram a mim e ao Bei algumas de presente. Eram balas bem redondas gravadas com uma palavra árabe, feita com instrumento apropriado para tal fim. Das sete que me deram, quatro delas traziam as palavras: El Chems, o sol.

As vendas foram efetuadas no pátio externo, ao passo que no interno a música e as canções ainda continuavam, com seus esquisitos acordes. Deixei o santuário. Do alto da colina, o vale deveria apresentar um aspecto maravilhoso, e eu saí em busca de Halef para acompanhar-me até lá. Encontrei-o no avarandado da casa, sentado ao lado do Buluk Emini. Pareciam entregues a uma animada palestra, pois ouvi Halef dizer:

- Quêee? Deve ter sido um russo?

- Sim, um russikow a quem provera Alá cortar-lhe a cabeça; sim, porque se não fosse ele eu ainda teria nariz! Como louco, eu desferia pancadas em torno de mim; o biltre, porém, tentava atingir-me a cabeça; quis desviar-me e recuei. O golpe que me devia atingir a cabeça, acertou somente o...

- Hadschi Halef - chamei.

Tinha prazer em interromper mais uma vez a espirituosa palestra do nariz... Ambos ergueram-se, num salto, e se chegaram a mim.

- Quero que me acompanhes, Halef, vem!

- Aonde, Sídi?

- Até o alto da colina. Quero apreciar o vale que, sem dúvida deve apresentar um deslumbrante espetáculo de iluminação!

- Oh, Emir, deixe-me ir junto! - pediu Ifra.

— Não me oponho a isso. Portanto, vamos!

 

UMA “ESTRELA” SUSPEITA

Subimos a colina situada na direção de Baadri. Por toda parte encontrávamos mulheres e crianças munidas de lanternas e todas nos saudavam e nos falavam com alegria infantil. Vários Dschesidis nos acompanharam para iluminar o caminho. Eu, porém, pedi-lhes que voltassem ou ao menos apagassem os fachos luminosos. Para melhor apreciar o panorama era preciso que ficássemos às escuras.

Embaixo, no vale, continuava a orgia de luzes, que jorravam de todas as partes. Milhares de pontos luminosos cruzavam-se, saltitavam, desviavam, bailavam e voavam numa confusão bela e grandiosa, pequeninos ao longe, lá embaixo, e, depois, avolumando-se cada vez mais, ao aproximarem-se de nós. O santuário borbulhava de luzes multicores e as duas torres, em harmoniosa simetria, elevavam-se flamejantes dentro da escuridão da noite. Além do efeito empolgante da iluminação, sentíamos, como se viesse de muito longe, o rufar dos tambores, o trinado das flautas, o som abafado de vozes humanas intercalado por constantes brados de júbilo; tudo isso completava o conjunto maravilhoso daquele espetáculo que nos deliciava os olhos e os ouvidos. Tive vontade de me deixar ficar horas inteiras para gozar melhor aquele maravilhoso espetáculo.

- Que estrela é aquela? - perguntou alguém perto de mim em idioma curdo. A pergunta fora feita por um dos Dschesidis.

- Onde? - perguntou um dos seus companheiros.

- Olha para a Rea Kadisahn (1) à direita!

- Estou olhando.

- Em baixo cintila uma estrela muito brilhante. Agora ela apareceu novamente! Conseguiste vê-la?

- Sim. É a Kjale be scheri. (2).

As quatro estrelas que em nossa constelação formam o costado do urso, para os curdos têm o nome de “O Velho”. Eles acham que “O Velho” tem a cabeça oculta nalgum grupo de estrelas vizinho. As três estrelas que entre nós formam a cauda da Grande Ursa, para eles são os “dois irmãos e a mãe cega do “Velho”.

- O Kjale be scheri? Mas este é formado por quatro estrelas! - opinou um deles. - Deve ser a Kumikji chiwan (3).

- Esta fica mais ao alto. Agora surgiu novamente. Ah! nós nos enganamos; ela aparece ao sul! Não pode ser outra senão a Meschin (4).

- Talvez tenhas razão. Meschin é formada também de várias estrelas. Que acha o senhor daquelas estrelas?

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(1) Via Láctea.

(2) Literalmente: O velho sem cabeça. (Grande Ursa).

(3) Vênus. E  (4) Balança: - Constelação do zodíaco.

 

Essa pergunta fora dirigida a mim. O fenômeno impressionara-me.

Os fachos e as lanternas embaixo lançavam uma claridade tal para o alto que me era difícil reconhecer a nova estrela surgida. O brilho, porém, que ao longe, no firmamento, de quando em quando surgia, para desaparecer em seguida, era intenso. Assemelhava-se a um fogo-fátuo que subitamente se acendia para em seguida apagar-se. Observei a claridade por algum tempo ainda e depois disse a Halef:

- Hadschi Halef, corra depressa para a esplanada do vale e diga ao Bei Ali que se digne a vir imediatamente cá! Trata-se de um assunto importante.

O meu servo desapareceu com passos apressados e eu avancei um pouco para a frente não só a fim de examinar melhor a nova estrela, como também para esquivar-me das inúmeras perguntas que me dirigiam os Dschesidis.

Felizmente o Bei ouvira que eu havia subido a colina e resolvera seguir-me. Halef encontrou-o perto de onde estivéramos e o trouxe à minha presença.

- Que pretendes mostrar-me, Emir?

Estendi o braço, horizontalmente.

- Olha nessa direção! Não demorarás em ver surgir uma estrela. Ei-la!

- Vejo-a nitidamente.

- Agora ela desapareceu. Tu a conheces?

- Não. Está muito longe no firmamento e não pertence a uma das constelações conhecidas.

Penetrei nas moitas e cortei algumas varas. Finquei uma delas no solo e fui me postar alguns passos na sua frente.

- Ajoelha diante dessa vara. Fincarei outra na direção em que a estrela tornar a surgir. Viste-a agora?

- Sim, vi-a distintamente.

- Onde devo enterrar a vara? Aqui?

- Meio palmo mais para a direita.

- Então aqui?

- Aí mesmo.

- Bom. Continua a observar!

- Apareceu outra vez! - exclamou o Bei, depois de alguns minutos.

- Onde? Vou fincar uma terceira vara!

- Já não apareceu mais no mesmo rumo e sim muito para a esquerda.

- A que distância?

- A dois passos da vara anterior.

- Aqui?

- Sim, aí mesmo.

Enterrei a terceira vara no solo e o Bei continuou observando.

- Vi-a novamente - declarou.

- Onde?

- Já não à esquerda, mas à direita.

- Está bem! Era isto o que te queria mostrar. Agora podes levantar-te.

Os demais que nos acompanhavam admiravam-se da minha atitude e o Bei também não a podia compreender.

- Por que mandaste chamar-me por causa daquela estrela?

- Porque não se trata de estrela alguma!

- Que é então aquele ponto luminoso? Uma simples luz no firmamento?

- Se fosse uma simples luz no firmamento seria digna de estudos cosmográficos. Mas trata-se de uma linha luminosa.

- De que forma chegas a tal conclusão?

- Não pode ser uma estrela porque surge abaixo do cimo da montanha. E que de fato são diversas luzes, facilmente constatarás pela experiência que acabamos de fazer. Naquele rumo cavalgam ou andam a pé numerosas pessoas munidas de archotes ou lanternas e uma ou mais delas de quando em quando projetam o seu clarão para cá.

O Bei proferiu uma exclamação.

- Tens razão, Emir!

- E quem serão aquelas pessoas?

- Peregrinos não podem ser, porque estes viriam pela estrada de Baadri a Xeque Adi.

- Pensas nos turcos!...

- Senhor! Isso seria possível?

- Ao certo, não sei. Não conheço a zona. Descreve-a para mim, Ali Bei.

- Daqui, em linha reta, a estrada segue para Baadri e ali mais à esquerda para Ain Sifni. Divide essa estrada em três partes e seguindo pelo primeiro terço, terás aquelas luzes à tua esquerda na direção do rio, que vem de Xeque Adi.

- É possível atravessar o rio a cavalo?

- É, sim.

- E depois seguir-se para Xeque Adi?

- É possível sim.

- Então houve em todos os preparativos uma grande negligência!

- Qual?

- Destacaste patrulhas para Baadri e Kaloni e não para Ain Sifni.

- Daquele ponto não chegarão os turcos. A gente de Ain Sifni nos denuciaria a sua passagem.

- Sim, mas se os turcos, em vez de passarem diretamente por Ain Sifni, atravessarem Khausser, em Dscheraijah, para, entrando na estrada de Ain Sifni, alcançar este vale? Palpita-me que eles então tomariam o mesmo turno daquelas luzes. Vê, a mesma avançou agora um pouco para a esquerda!

- Emir, a tua suposição talvez seja verdadeira. Vou expedir imediatamente algumas patrulhas.

- E eu vou examinar a estrela mais de perto. Tens um homem que conheça bem essa zona?

- Ninguém a conhece melhor do que Selek.

- Êle é um bom cavaleiro. Põe Selek para guia!

Descemos a colina o mais depressa possível. A última parte de nosso diálogo foi falada baixinho de modo que ninguém, nem mesmo o Baschi-Bozuk percebeu coisa alguma. Selek foi encontrado logo; deram-lhe um cavalo e ele tomou de suas armas e munições. Fiz questão que Halef também me acompanhasse. Eu podia confiar nele mais que em qualquer outro. Vinte minutos depois de haver eu avistado a estrela pela primeira vez, cavalgávamos pela estrada que conduzia a Ain Sifni. Na próxima colina paramos. Passei em revista o horizonte na semi-escuridão e finalmente divisei a luz que surgiu novamente. Para ela chamei a atenção de Selek.

- Emir, aquilo não é estrela nenhuma, nem tampouco archotes, pois estes iluminariam perímetro mais extenso. São lanternas.

- Pois preciso aproximar-me o mais possível delas. Conheces bens aquela zona?

- Vou conduzir-te para lá; conheço a estrada com os seus mínimos acidentes. Segue-me sempre e traze o animal de rédeas curtas.

 

ESPREITANDO OS TURCOS

O meu guia tomou a direita do rio e depois cavalgamos a pequeno trote, sempre para a frente. Foi uma cavalgada dificultosa, mas dentro de um quarto de hora podíamos distinguir várias luzes em vez de uma só como até agora. Após outro quarto de hora, durante o qual as luzes desapareceram por trás de uma montanha, alcançamos esta e vimos então, diante de nós, uma extensa fileira de cavaleiros. Que espécie de cavaleiros era, ainda não podíamos distinguir. Estes desapareceram depois, subitamente, e não tornaram a surgir.

- Existe por lá alguma colina?

- Não, o terreno se desenvolve numa vasta planície - respondeu Seleck.

- Ou quem sabe alguma baixada, algum vale, onde as luzes tenham desaparecido?

- Não.

- Ou quem sabe, ainda, algum mato que...

- Sim, Emir - acudiu o guia. - Lá onde elas desapareceram há um bosquezinho de oliveiras.

- Ah! Ficarás então aqui com os cavalos e esperarás pela minha volta. Halef, porém, irá comigo.

- Senhor, leva-me também! - pediu Selek.

- E os animais? Se os levarmos, eles denunciarão a nossa presença.

- Eles ficam aqui, amarrados!

- O meu garanhão é de muito valor para deixá-lo aqui sem vigilância. Além disso, não és adestrado em caminhar de gatinhas para fazer uma observação. Logo te ouviriam ou, talvez até, te enxergariam.

- Emir, sou um hábil rastejador!

- Acalma-te! - replicou-lhe Halef. - Também eu pensei que conseguiria rastejar para o meio de um Duar para de lá tirar o melhor cavalo; mas quando tive de rastejar diante do Efêndi, fiquei acanhado como se fosse um menino de escola! Mas consola-te. Alá não quis que nascesses para lagarto!...

Depusemos as armas e nos fomos. A noite era tão clara que se podia distinguir sofrivelmente uma pessoa a uns quinze passos. Diante de nós surgiu um ponto negro que cada vez avolumava-se mais: era o bosque de oliveiras. Quando dele nos acercamos de modo a podê-lo alcançar dentro de cinco ou seis minutos, paramos e eu me pus atentamente a observar. Não se percebia o menor ruído.

- Caminha bem por detrás de mim para que os nossos vultos formem uma só linha!

-Eu trajava calças e casaco de côr escura; à cabeça trazia o tarbusch, que tirara do turbante. Desse modo não era fácil distinguir-me do solo escuro. Halef estava no mesmo caso.

Lentamente prosseguíamos caminhando meio curvados. Nisso percebemos distintamente um ruído causado pela quebra de gravetos. Deitamo-nos, então, de ventre no solo e rastejamos para frente. O ruído se avolumava cada vez mais.

- Estão juntando gravetos talvez para acender um fogo.

- Que bom para nós, Sídi! - cochichou-me Halef.

Não tardamos em atingir a orla posterior do bosque. Relinchos de animais e vozes humanas cada vez se nos tornavam mais perceptíveis. Nesse instante chegamos a um denso tufo de ervas altas. Apontei para o mesmo e sussurrei:

- Esconde-te aqui e me espera, Halef!

- Senhor, jamais te abandonarei; irei em tua companhia!

- Tu contribuirias para que me descobrissem. Rastejar silenciosamente no meio da mata é mais difícil do que em campo raso. Trouxe-te comigo apenas para que me cobrisses a retirada. Ficarás aqui deitado, mesmo que ouvires o detonar de tiros. Quando eu te chamar, então sim, vem o mais depressa possível!

- E se não voltares e nem me chamares?

- Então, passada meia hora, rastejarás para frente a ver o que me aconteceu.

- Sídi, se te matarem, matarei eu a todos!

Ouvi apenas essas suas palavras; mas não me havia ainda afastado muito dele, quando percebi uma voz alta ordenar:

- Et atesch. - Acende o fogo!

Essa voz partira de uma distância talvez de uns cem passos. Eu podia, pois, descuidadamente continuar rastejando. Nisso, ouvi o crepitar de fogo e notei umas labaredas que iluminavam através das árvores até bem próximo de mim. Este fato constituía naturalmente um sério obstáculo para o meu propósito.

- Taschlar atesch tschewresinde. - Colocai pedras em torno do fogo! - comandou a mesma voz.

Esta ordem foi, é claro, imediatamente obedecida, pois as chamas não produziram mais a mesma claridade e, assim, eu podia avançar facilmente. Arrastei-me de uma oliveira para outra e em cada uma delas parava a observar se não fora notado. Felizmente essa precaução era supérflua; eu não me achava nos sertões da América do Norte e aquela boa gente nunca imaginaria que algum mortal fosse capaz de observá-los daquela forma!

Deste modo fui avançando, sempre para frente, até que cheguei perto de uma árvore em cujas raízes havia um enorme tufo de vergônteas, que formavam um excelente esconderijo. Tanto mais vantajosa se me tornou essa posição quando depois vi que próximo à referida árvore se achavam parados dois homens, justamente a quem desejava escutar, visto serem oficiais.

Com toda cautela, atingi a moita de vergônteas, por trás da qual me pus a escutar. Ergui os olhos e vi tudo o que se passava.

Dois canhões e dois obuzes se achavam ali perto; mais adiante, e amarrados aos troncos de árvores, pastavam vinte muares, número necessário para o transporte daquelas peças de artilharia. Em geral, para a condução de um canhão, são precisos de quatro a cinco animais; um para o cano, outro para o armão e de dois a quatro para o transporte das caixas de munições.

Os artilheiros estavam deitados, comodamente, no solo e palestravam. Os dois oficiais, porém, pretendiam tomar café e fumar o seu Tschibuk; por isso é que fora aceso o fogo no qual, sobre duas pedras, aquecia uma chaleira com água. Um dos heróis era capitão e o outro tenente. O primeiro tinha a aparência de um honrado e displicente burguês; parecia-se mais com um rotundo mestre-padeiro alemão que alugara por marco e meio um uniforme de oficial turco, a fim de representar nalguma peça teatral... Com o tenente acontecia quase a mesma cousa. Assemelhava-se a uma copeira de café, sessentona com idéias de donzela, e que se fantasiara de oficial turco para tomar parte nalgum baile carnavalesco.

Tive vontade de sair do meu esconderijo para dizer-lhes:

- Boa noite, mestre padeiro, boa noite, senhorita, não me conhecem? - “Não conheço, não!” - seria a resposta.

Naturalmente as palavras que ouvi foram bem outras. Estava tão próximo deles que podia ouvir tudo o que diziam.

- Os nossos canhões são excelentes, - rosnou o capitão.

- Excelentes! - respondeu o tenente com voz de flauta.

- Arrazaremos, arrazaremos tudo!

- Tudo! - disse o tenente, como se fora o eco do seu superior.

- Faremos boas presas!

- Boas presas.

- Lutaremos com bravura!

- Com bravura!

- Seremos promovidos!

- Promovidos! Galgaremos as mais elevadas posições!

- Depois só fumaremos fumos da Pérsia!

- Fumos de Schiras!

- E café da Arábia!

- Café de Moka!

- Os Dschesidis terão que morrer todos!

- Todos!

- Aqueles malfeitores!

- ... feitores!

- Aqueles impuros, aqueles desavergonhados!

- Aqueles cães!

- Mataremos a todos!

- Amanhã, bem cedo!

- Nem há dúvida!

Eu vira e ouvira o suficiente, razão por que retrocedi. Primeiro cautelosa e lentamente e depois com relativa ligeireza. Ergui-me e passei até a caminhar ereto, do que muito se admirou Halef, quando voltei para perto dele.

- Que há, Sídi?

- Artilheiros. Vem, não podemos perder tempo!

- Vamos sem rastejar?

- Não é preciso mais rastejarmos.

Alcançamos ligeiro os nossos cavalos, montamos e regressamos ao vale. O caminho para Xeque Adi foi vencido agora muito mais rapidamente do que na vinda. Fomos encontrar tudo no mesmo movimento de há pouco.

Disseram-me que o Bei Ali se achava no santuário e para lá me encaminhei; fui encontrá-lo no pátio interno na companhia de Mir Xeque Khan. Veio-me ao encontro ansiosamente.

- Que descobriu? - perguntou logo.

- Canhões!

- Oh! - fêz espantado. - Quantos?

- Quatro pequenos de montanha.

- Que visam eles?

- Bombardear Xeque Adi. Enquanto a cavalaria e a infantaria efetuam o ataque pelos flancos, a artilharia operará à margem do arroio, lá embaixo. O plano não é mau, não; daquela posição é fácil dominar todo o vale. O principal era transportar imperceptivelmente as baterias através das montanhas e isso já conseguiram, utilizando-se de muares para tal fim; dentro de uma hora poderão transportá-la do acampamento atual até aqui.

- Que faremos, Emir?

- Põe-me imediatamente sessenta ginetes à disposição, bem como algumas lanternas e dentro de duas horas verás os canhões e os soldados que os conduzem, aqui em Xeque Adi!

- Aprisionados?

- Sim aprisionados.

- Forneço-te até cem ginetes em vez de sessenta!

- Muito bem, dá-me, então apenas oitenta e dize-lhes que estou à sua espera lá embaixo, no arroio.

Saí e encontrei Halef e Selek ainda com os cavalos.

- Que pretende o Bei fazer? - perguntou-me o primeiro.

- Nada. Nós é que vamos fazer alguma cousa!...

- Que é isso, Sídi? Estás a rir! Senhor, conheço a tua fisionomia! Vamos buscar os canhões, não é?

- É isso mesmo o que vamos fazer! Pretendo, porém, apossar-me das peças de artilharia sem derramamento de sangue e, para consegui-lo, levaremos oitenta ginetes conosco.

 

APRISIONANDO A ARTILHARIA TURCA

Montamos e cavalgamos para a saída do vale, onde não foi preciso esperarmos muito pela chegada dos oitenta Dschesidis.

Mandei Selek com dez na frente e segui-o, a uma distância, com os demais. Até a colina, onde o guia ficara à nossa espera, com as montarias, não encontramos inimigo. Apeamos. Expedi alguns homens para a frente com o fim de velar pela nossa própria segurança. Deixei dez vigiando os cavalos, com ordem de não abandonarem o local, sem minha determinação. Depois nos encaminhamos de mansinho na direção do bosque das oliveiras. A uma determinada altura, fizemos alto e eu prossegui sozinho. Sem encontrar obstáculo, alcancei a oliveira de onde há pouco espionava os turcos. Estavam divididos em vários grupos e palestravam. Eu contava encontrá-los já a dormir. A vigilância militar e a expectativa do combate não os deixava, porém, lembrar-se de repouso. Contei trinta e quatro homens, inclusive os sub-oficiais, o capitão e o tenente; feito o que, voltei para junto de minha gente.

- Hadschi Halef e Selek tragam os cavalos! Vocês cavalgarão descrevendo um arco e passarão pelos fundos do bosque. Serão detidos. Digam, porém, que erraram o caminho e que pretendiam seguir para Xeque Adi, com o fim de assistir às grandes festas que lá se estão realizando. Desta forma desviarão toda a atenção dos Osmanlis de nós. Deixem o resto por nossa conta. Avante!

Dispus a tropa em duas extensas linhas na mesma direção, a fim de cercar o bosque por três faces. Dei as necessárias instruções ao pessoal, deitamo-nos no chão e rastejamos para a frente.

Como era natural, eu rastejava mais ligeiro, pois era o mais treinado nisso. Já me achava no tufo de vergônteas há dois minutos, quando percebi fortes ruídos, produzidos por cascos de cavalos. O fogo continuava a arder. Em vista disso era-me possível ver bem o decurso das coisas no acampamento turco. Os dois oficiais, com certeza, haviam fumado e tomado café durante a minha ausência .

- Xeque Adi é um antro pernicioso! - ouvi o capitão dizer.

- Muito pernicioso! - respondeu o tenente.

- A população adora o diabo!

- O diabo! Que Alá a esmague e a estraçalhe!

- Nós é que vamos fazer isso!

- Sim, nós a estraçalharemos!

- Todos, sem poupar um só!

Até aqui pude escutar, mas neste momento o trote dos cavalos foi ouvido. O tenente levantou a cabeça.

- Chega alguém! - disse. O capitão pôs-se à espreita.

- Quem será? - perguntou ele.

- Vejo que são dois cavaleiros.

Os oficiais, que se achavam sentados, levantaram-se, sendo seguidos pelos soldados. Halef e Selek foram avistados através da claridade que o fogo lançava no bosque. O capitão saiu-lhe ao encontro e puxou da espada.

- Alto! Quem vem aí? - urrou-lhes.

Os meus dois companheiros foram imediatamente cercados pelos turcos. O pequeno Halef contemplava os oficiais de baixo acima e eu compreendi que os mesmos lhe causara igual impressão que a mim, quando os vi da primeira vez.

- Quem são, pergunto! - repetiu o capitão.

- Gente!

- Que gente?

- Homens!

- Que espécie de homens?

- Homens a cavalo!

- O diabo que te engula! Responde direito, do contrário receberás bastonadas! Quem são vocês?

- Somos Dschesidis. - Respondeu Selek, à meia voz.

- Dschesidis? Ah! De onde?

- De Meca.

- De Meca! Alá, Alá! Também lá existem adoradores do diabo?

- Existem e exatamente em número de cinco vezes cem mil.

- Tantos assim! Alá kerihm; como Ele deixa crescer tanta erva daninha no meio dos trigais! Para onde vão?

- Para Xeque Adi.

- Ah! cairam-me nas mãos! Que pretendem lá?

- Assistir às grandes festas.

- Já sei de tudo. Vocês cantam e dançam na companhia do diabo, ao mesmo tempo que adoram um galo que foi escaldado no fogo do Desche-hennah! Apeiem! Estão presos!

- Presos? Que fizemos?

- São filhos do diabo! Serão vergastados até que o diabo saia do corpo de vocês! Desçam já dos cavalos!

O próprio capitão avançou e os dois homens foram formalmente arrancados das montarias.

- Entreguem-me as armas!

Eu sabia que Halef jamais obedeceria a uma tal intimação, nem mesmo na situação especial em que se achava. Ele olhou na direção do fogo à procura de algo e eu ergui então a cabeça o quanto bastava para ele ver-me. Agora o meu servo adquirira a certeza de se achar em segurança. Pelos rumores atrás de mim, percebi que minha gente já havia sitiado o acampamento.

- Nossas armas? - perguntou Halef. - Ouve Jus Baschi: permite que te diga uma coisa!

- O quê?

- Poderemos dizer apenas em reserva e só a ti e ao Mülasim.

- Não quero saber de nada do que pretendes comunicar-me!

- Mas trata-se de um assunto importante, importantíssimo mesmo!

- Que é, afinal?

- Ouve!

O pequeno Halef cochichou-lhe alguma cousa ao ouvido, fazendo com que o capitão recuasse uns passos e o contemplasse numa atitude um tanto respeitosa. Mais tarde, soube o que o meu astuto criado lhe dissera: “O que tenho a dizer-te será bom para o teu bolso!”

- Estás falando a verdade? - perguntou-lhe o oficial.

- A verdade.

- E serás discreto, depois de fecharmos o negócio?

- Asseguro-te que ficarei mudo como uma porta!

- Jura!

- Como queres que eu jure?

- Dize: “Juro por Alá e pelas barbas do... - Não, vós sois Dschesidis. Jura-me pelo Diabo que é o deus de tua adoração!

- Está bem. O diabo sabe que depois não direi nada a ninguém!

- Olha que ele te estraçalhará o corpo, se quebrares o juramento! Vem, Mülasim, e venham também vocês dois.

Os quatro homens aproximaram-se do fogo; eu podia agora ouvir ainda melhor o que diziam.

- Agora podes falar! - disse o capitão a Halef.

- Liberta-nos. Pagar-te-emos a nossa liberdade!

- Têm dinheiro?

- Temos, e muito até.

- E não sabem que todo o dinheiro que possuem me pertence? Tudo o que trazem é nosso!

- Mas jamais acharias cousa alguma. Procedemos de Meca e quem empreende uma tão longa viagem sabe ocultar bem o dinheiro e demais objetos de valor que conduz.

- Eu já hei de achar!

- Pois afianço-te que não acharás, nem mesmo se nos matares e examinares minuciosamente as nossas vestes. Os adoradores do diabo possuem meios eficazes para tornar invisíveis os seus dinheiros.

- Alá é oniciente!

- Mas tu não és Alá!

- Não devo libertar vocês!

- Por que não?

- Depois de soltos, vocês nos trairiam.

- Trair? Como?

- Então não vês que nos achamos aqui numa expedição de guerra?

- Fica certo de que guardaremos reserva, nada dizendo a quem quer que seja!

- Mas vocês vão para Xeque Adi!

- Há nisso algum inconveniente para vocês?

- Há, sim!

- Então envia-nos para onde te convier!

- Concordas em seguir para Baaveiza e lá permanecer durante dois dias?

- De bom grado!

- Quanto pretendem pagar-nos pela liberdade?

- Qual o preço que exiges?

- Quinze mil piastras de cada um.

- Senhor, somos peregrinos pobres! Não trazemos tanto dinheiro conosco!

- Quanto possuem?

- Talvez nos seja possível pagar-te quinhentas piastras.

- Quinhentas? Pretendes lograr-me!

- É provável que, em último caso, consigamos reunir seiscentas!

- Pois me pagarão doze mil piastras e nem uma a menos. Juro isso por Maomé! E se recusarem, mandarei vergastar vocês até que me entreguem essa importância. Tu próprio confessaste que dispões de meios para tornar invisível o dinheiro que possuis; portanto trazes elevada soma contigo e eu tenho meios ainda mais eficazes para fazer o dinheiro aparecer bem depressa!

Halef fingiu que se assustara.

- Senhor, realmente não deixas por menos?

- Não!

- Neste caso, somos obrigados a nos curvar às tuas exigências!

- Canalhas! Agora descobri que trazem muito, muitíssimo dinheiro mesmo! E em vista disso terão que me pagar a quantia que eu pedi antes, isto é, quinze mil piastras!

- Perdão, senhor! Isto é muito pouco!

O capitão olhou perplexo para o pequeno Halef.

- Que pretendes dizer com isso, homem?

- Que qualquer de nós dois valemos muito mais do que quinze mil piastras. Permite que te demos cincoenta mil?

- Homem, perdeste o uso da razão?

- Ou talvez cem mil!

O mestre-padeiro Jüs Baschi ficou pasmado. A sua carantonha difusa e rotunda enrubesceu e ele olhou interrogativamente para o semblante magro e esquálido do companheiro.

- Tenente, o que dizes de tudo isso? Este, boquiaberto, confessou ingenuamente:

- Nada, absolutamente nada! Não compreendo este homem!

- E eu tampouco. Deve ser um verdadeiro nababo!

E dirigindo-se novamente a Halef.

- Onde tens o dinheiro?

- Precisas saber?

- Claro que sim!

- Viajamos na companhia de alguém que paga por nós e este alguém não podes ver!

- Valha-nos, Alá! - tu te referes ao diabo!

- Queres que o chame?

- Não, não, nunca! Não sou um Dschesidi e não sei falar com ele! Eu morreria de susto à sua simples presença!

- Não te assustarás, não! Esse Scheitan surgirá em figura de homem. - Ei-lo, que já vem!

Eu erguera-me por detrás da oliveira e com dois passos largos me postara diante dos dois oficiais. Apavorados, desviaram-se, um para a direita e outro para a esquerda. Como o meu vulto não lhes parecera lá muito apavorante, ficaram parados a me contemplar, imersos em nervoso mutismo.

- Jüs Baschi - interpelei-o - ouvi tudo o que falaste hoje de noite. Disseste que Xeque Adi era um antro pernicioso!

Uma inspiração profunda fêz-se ouvir em lugar de resposta.

- Disseste que Alá esmagaria e estraçalharia a sua população.

- Oh, Oh! - soou.

- Disseste mais que fuzilarias aos montes aqueles impuros e desavergonhados e que irias colher boas presas.

Um pavor mortal agitava o Mülasini e o Jüs Baschi se limitava a gemer, parecendo haver emudecido.

- Depois disso ambos pretendiam galgar as mais elevadas posições e fumar unicamente fumos deliciosos de Schiras!

- Oh, ele sabe de tudo! - balbuciou, finalmente, o obeso capitão.

- Sim, sei de tudo! Vou agora fazer vocês dois galgarem a uma posição bastante elevada. Sabe qual?

O oficial meneou a cabeça negativamente.

- As colinas, no meio das quais fica o vale dos impuros, dos desavergonhados! Não acham que as colinas são posições elevadas?... Agora digo eu o que disseste, não faz muito aos meus companheiros: - Estão presos!

Os soldados não atinaram com a situação; achavam-se todos reunidos num cerrado agrupamento. A um aceno dado por mim, os Dschesidis saíram de suas posições e os cercaram. Nenhum deles lembrou-se de opor resistência. Os oficiais, porém, compreenderam, finalmente, o verdadeiro estado das cousas e levaram a mão à cintura.

- Alto lá! Nada de resistências! - adverti-os, sacando o revólver. - Aquele que pegar em arma será fuzilado no mesmo instante!

- Quem és? - perguntou o capitão.

O gorducho estava banhado em suor. Até certo ponto, eu tinha compaixão daquela figura de mestre-padeiro virado a oficial turco, bem como da figura de D. Quixote ao seu lado! Lá se foram os seus sonhos de promoções! ...

- Sou amigo de vocês e por isso não desejo que sejam todos fuzilados pelos Dschesidis. Entreguem as armas!

- Mas precisamos delas!

- Para quê?

- Para defender as baterias!

Não me pude conter diante daquela ingenuidade sem exemplo! Ri a bom rir! Depois tranqüilizei-o:

- Não tenhas cuidado! Nós mesmos já haveremos de guarnecer muito bem os canhões!

Ainda relutaram um pouco, mas por fim resolveram depor as armas.

- Que pretendem de nós? - perguntou o Jüs Baschi apreensivo.

- Tudo depende da atitude que mantiverem. É provável que sejam mortos, mas também poderão alcançar indulgência desde que nos obedeçam.

- Neste caso que deveremos fazer?

- Primeiramente, respondam, com precisão, as perguntas que eu fizer.

- Está bem.

- Não vêm seguidos de outras tropas?

- Não.

- É esta realmente a única força em marcha?

- Sim.

- Pois então Miralai Omar Amed pôs em relevo a sua inépcia, a sua incapacidade de organização! Xeque Adi acha-se guarnecida por milhares de homens em pé de guerra e ele envia para lá apenas uma bateria composta de trinta e quatro combatentes e quatro míseros canhões! Ao menos ele deveria expedir um Alai Emini à testa de duzentos homens de infantaria para cobrir a marcha da artilharia. Aquele homem julgou talvez que os Dschesidis, quais moscas, seriam fáceis de apanhar! Que ordens recebeste dele?

- De transportarmos a bateria até ao arroio, sem que os Dschesidis o percebessem.

- E daí?

- Subiríamos pela margem do arroio à meia hora de distância, e iríamos postarmo-nos diante de Xeque Adi.

- Continua!

- Lá deveríamos esperar até ele nos enviar um emissário. Em seguida avançaríamos até a entrada do vale para bombardeá-lo à bala, metralha e granadas.

- O avanço será permitido; podem mesmo marchar um pouco além da entrada do vale. Mas do bombardeio se encarregará outra gente! Não é preciso se darem a esse trabalho...

Já que tudo sucedera daquele modo, os turcos, como legítimos fatalistas, entregaram-se calmamente ao Destino. Tiveram que entrar em forma e depois seguir escoltados pelos Dschesidis. As peças de artilharia foram carregadas pelos muares que eram conduzidos por trás da escolta. É óbvio que montamos, ao passar pela nossa cavalhada.

À meia hora de distância do vale de Xeque Adi deixei os canhões, guarnecidos por vinte homens. Assim procedemos para esperarmos o emissário que enviaria o Miralai.

Logo à entrada do vale deparamos com uma formidável massa popular. O boato da nossa pequena expedição se espalhara entre os peregrinos e todos ali se haviam reunido, a fim de aguardar os acontecimentos. Nesse meio tempo cessaram também todas as salvas que se faziam durante os festejos no vale, de modo que este se achava envolto no mais profundo silêncio. Essa medida fora determinada, para que se ouvissem melhor os tiros entre nós e os turcos, caso eles reagissem e houvesse alguma escaramuça.

O primeiro que me veio ao encontro foi o Bei Ali.

- Finalmente de volta! - exclamou ele visivelmente tranqüilizado.

Depois acrescentou apreensivo:

- Mas sem os canhões! Noto também alguns claros entre a tropa que te entreguei!

- Não falta um só homem e nem um único foi ferido!

- Onde estão pois os outros?

- Junto com Halef e Selek, fora do vale, guarnecendo os canhões que lá deixei.

- Por que os deixaste lá?

- Este Jüs Baschi contou-me que o Miralai ia mandar um emissário ao ponto em que deixei aquelas peças de artilharia. Depois da vinda do emissário a tropa bombardearia Xeque Ali com obuzes metralhas e granadas. Tens pessoal hábil para manejar aqueles canhões?

- Até mais do que o suficiente!

- Destaca, então, uma bateria para aquele local. O objetivo dessa bateria é vestir os uniformes dos prisioneiros turcos, prender o emissário na sua chegada e, por fim, fazer uma detonação. O estrondo será para nós o sinal da aproximação do inimigo e este ao ouví-Io efetuará logo a evasão. Que destino darás aos prisioneiros?

- Mandarei retirá-los daqui e conservá-los sob custódia.

- No vale de Idiz?

- Não. Este local não pode ser visto senão por um Dschesidi. Há, porém, não muito longe daqui, um desfiladeiro, onde é fácil retê-los vigiados por uma guarnição pouco numerosa.

Na residência do Bei aguardava-me um lauto jantar, que me foi servido por sua própria esposa. Ele não jantou conosco, pois tinha que assistir à mudança de uniformes dos presos, que depois foram levados para o desfiladeiro. Os homens que vestiram os uniformes turcos eram todos hábeis artilheiros e saíram logo para tomar conta dos canhões.

A luz das estrelas já ia morrendo pouco a pouco, quando o Bei Ali voltou à minha presença.

- Estás pronto para seguir, Emir?

- Seguir para onde?

- Com destino ao vale de Idiz.

- Perdão, ficarei aqui!

- Pretendes tomar parte no combate?

- Não!

- Unir-te então a nós, a fim de ver se somos de fato valentes?

- Não me unirei a vós; permanecerei em Xeque Adi!

- Farás isso, então?

- Sim. É a medida mais acertada que posso tomar.

- Serás morto!

- Não! Acho-me debaixo da proteção do Grão-Senhor e do Mutessarif.

- Apesar disso, és nosso amigo, aprisionaste a artilharia turca e isto te custará a vida!

- Quem irá informar os turcos? Ficarei aqui na companhia de Halef e do Baschi-Bozuk. Deste modo, poderei prestar ao teu povo serviços mais relevantes do que combatendo nas fileiras de tuas tropas.

- Nesse ponto, tens razão, Emir. Mas se fizermos fogo tu podes ser ferido ou talvez morto.

- Não creio. De fôrma alguma me deixarei servir de alvo.

Nesse momento abriu-se uma das portas e por ela entrou um homem. Era um dos componentes da patrulha, que Ali expedira.

-Senhor, retiramo-nos porque os turcos já chegaram a Baadri! Dentro de uma hora estarão aqui.

- Volta e dize à tua gente que se conserve sempre próxima do inimigo, mas de modo a não ser vista por eles.

 

RECHAÇANDO O ATAQUE

Fomos para a frente da casa. As mulheres e crianças desfilaram diante de nós e desapareceram por trás do sepulcro. Em seguida chegou outro homem, correndo e quase ofegante, a avisar:

- Senhor, há muito que os turcos deixaram Kaloni e marcham por entre as matas. Dentro de uma hora poderão estar aqui!

- Tomai posição no lado oposto do primeiro vale e à sua aproximação recuai. Encontrareis no alto gente nossa à espera.

O homem voltou e o Bei se afastou por algum tempo. Eu me achava diante da casa e olhava os vultos que desfilavam na minha frente. Quando as mulheres e crianças se afastaram, seguiu-se-lhes uma extensa fila de homens, a pé uns e a cavalo outros. Estes, porém, não desapareceram por trás do sepulcro como as mulheres, mas subiram as elevações que marginavam as estradas de Baadri e Kaloni, a fim de deixar o vale livre aos assaltantes. Experimentei uma sensação estranha, ao contemplar aqueles vultos escuros. Foram apagadas as luzes umas após outras, um facho seguido do outro se foi extinguindo e apenas as duas torres do sepulcro se elevavam para os ares com suas línguas flamejantes! Agora me achava sozinho em casa. As pessoas da família do Bei haviam seguido para o Idiz, Buluk Emini estava dormindo, em cima, no avarandado, e Halef ainda não voltara. Ouvi, então, o galope de um cavalo. Halef chegava a toda brida. Enquanto ele apeava, ouvi fortes ruídos que vinham das baixadas.

- Que é isso, Halef?

- São árvores que tombam. Ali, o Bei, determinou que as abatessem a fim de fechar o vale embaixo, para defender os canhões contra a investida dos turcos.

- Boa idéia! Onde estão os outros dos vinte?

- Por ordem do Bei tiveram que ficar junto dos canhões, cuja guarnição ele mandou reforçar com mais trinta homens.

- Esta bateria já basta para resistir a uma ofensiva, por mais violenta que seja.

- Onde estão os prisioneiros? - perguntou Halef.

- Fora daqui, sob custódia.

- E esses homens aqui já marcham para a luta?

- Lógico!

- E nós?

- Permaneceremos aqui mesmo! Estou louco por ver as fisionomias dos turcos, quando perceberem que caíram na cilada.

Essa idéia agradou tanto Halef que ele não mais discutiu a nossa abstenção do embate. Talvez ele mesmo compreendesse que a nossa permanência era ainda mais perigosa do que a adesão às fileiras dos Dschesidis.

- Onde está Ifra? - perguntou.

- Dormindo em cima, no avarandado.

- Ele é um dorminhoco, Sídi, e com certeza foi por isso que o seu capitão lhe deu aquele burro que leva a noite toda a relinchar. Ele sabe alguma coisa do que vai suceder?

- Creio que não e nem deve saber até que ponto chegou a nossa participação nos acontecimentos. Compreendes?

Nessa altura, voltou o Bei Ali, a fim de buscar o seu cavalo. Fêz-me uma série de exposições tendentes a me demover da resolução tomada, mas tudo sem resultado. Foi assim obrigado a deixar-me. Fê-lo com os mais sinceros votos de que nada me acontecesse, assegurando-me repetidamente que mandaria fuzilar os mil e quinhentos turcos, caso eles me fizessem algum mal. Por fim pediu-me que colocasse uma toalha branca, que se achava na sala de jantar, no mastro da bandeira, por cima do avarandado. De lá o sinal seria visto num extenso perímetro. Assim que eu tirasse a toalha era um sinal de que nos achávamos em perigo de vida, e ele se apressaria em acudir-nos.

Dito o que, montou e foi colocar-se à frente de sua tropa. Era o último homem dos Dschesidis que deixara o vale.

O dia começava a amanhecer; o céu se iluminava e já se distinguiam, isoladamente, os galhos das árvores. Defronte, na parede do vale, perdia-se o eco do trote do cavalo do Bei. Agora me achava sozinho, acompanhado apenas dos meus dois servos, visto que o meu intérprete teve que me deixar, naquele famoso vale onde seguiam um culto misterioso. Sozinho? Bem sozinho? Era mesmo assim? Não estava eu agora a ouvir rumores de passos, um pouco adiante, na pequenina casa, El Schems, enfeitada de chifres?

Um vulto esguio e alvacento saiu do seu interior e olhou depois para trás. Sobre o peito caíam-lhe densas e negras barbas e a basta cabeleira branca como neve caía nas costas, até abaixo dos ombros. Era Pir Kamek; reconheci-o.

- Tu ainda aqui? - disse-me em tom de voz quase áspero, quando parou na minha frente. - Por quê?

- Porque ficando aqui prestarei melhores serviços do que de qualquer outra forma.

- É possível, Emir. Contudo deverias acompanhar os demais!

- Pois faço-te a mesma pergunta: Quando pretendes unir-te aos combatentes?

- Não viste ainda aquela pira? - respondeu sombrio. - Ela é que me retém aqui.

- Por quê?

- Porque chegou o momento de arder nela o sacrifício, para o qual a organizei.

- Mas os turcos te interromperão o holocausto!

- Pois exatamente eles é que me trarão o objeto do sacrifício, e hoje comemorarei o mais grandioso dia da minha vida!

Tive uma sensação quase de insegurança ao ouvir aquela voz meio cavernosa. Dominei-me porém, e perguntei-lhe:

- Não pretendias falar-me, hoje, do livro que o Bei me emprestara?

- Queres ouvir-me por prazer ou porque isso te é útil?

- Certamente!

- Emir, sou um sacerdote pobre; possuo apenas três cousas: a vida, o vestuário e o livro. A vida vou devolvê-la ao puríssimo, ao onipotente, ao piedoso que ma emprestou; o vestuário deixarei ao elemento no meio do qual ficará sepultado o meu corpo e o livro te darei de presente, para que o teu espírito possa falar com o meu, depois que os tempos, os mares e os mundos os separarem um do outro.

Era aquilo uma simples figura de retórica em estilo oriental ou falava nele um pressentimento de morte próxima? Senti um calafrio no corpo.

- Pir Kamek, a tua dádiva é grandiosa! Estou inclinado a não aceitá-la!

- Emir, eu te estimo! Receberás o livro e quando o teu olhar cair sobre a última palavra que nele escreveu a minha mão, nela verás assinalada toda a história sangrenta dos Dschesidis, os desprezados, os perseguidos!

Tive que abraçá-lo.

- Sou-te muito grato, Pir Kamek! Também eu te estimo e quando abrir o teu livro, será o mesmo que ter diante de mim a tua figura veneranda e ouvir dos teus próprios lábios as palavras que escreveste. Agora, porém, deves deixar Xeque Adi, pois ainda não é tempo!

- Vês aquele santuário onde o santo está sepultado? Este jamais fugiu. Não está escrito também no teu Kitab que ninguém deve temer aqueles que nada mais podem matar do que o corpo, pura matéria bruta? Ficarei aqui porque estou certo de que os Osmanlis não poderão causar-me mal algum. E se me matarem, que tem isso? El Schem, o brilhante, não morre também todos os dias para ressucitar outra vez? Não constitui a morte a entrada num mundo mais claro, mais puro? Já ouviste alguma vez um Dschesidi dizer que outro morreu? Diz simplesmente que se transubstanciou: pois não existe nem morte e nem túmulo, mas vida e só vida! Em virtude deste princípio é que tenho a certeza de ver-te um dia novamente, depois de minha morte!

Ditas essas palavras,ele saiu apressado e desapareceu por trás da parede externa do sepulcro.

Entrei em casa e subi para o avarandado. Antes de atingi-lo, ouvi rumor de vozes. Halef conversava com Ifra.

- Bem sozinho? - ouvi o último perguntar.

- Sim.

- Para onde foram os outros, os muitos, os milhares?

- Sei lá!

- Mas por que se foram embora?

- Fugiram!

- De quem?

- De vocês.

- De nós? Hadschi Halef Omar não compreendo o que me estás a dizer!

- Pois então falarei mais claro: Eles fugiram do teu Mutessarif e do teu Miralai Omar Amed!

- Mas por quê?

- Porque o Miralai aí vem para atacar Xeque Adi.

- Alá akbar, Deus é grande e a mão de Mutessarif é poderosa! Dize-me agora se devo ficar com o nosso Emir ou se tenho que combater sob as ordens do Miralai!

- Tu ficarás conosco!

- Hamdullillah, graças e louvado seja Alá, pois é bom que eu fique junto do nosso Emir a quem me cabe proteger!

- Tu? Já o protegeste alguma vez?

- Sempre, durante todo o tempo em que ele vem viajando sob a minha proteção!

Halef soltou uma risada sardônica e replicou:

- És mesmo homem para isso! Sabes quem é de fato o protetor do Emir?

- Eu!

- Não, eu!

- Não foi o próprio Mutessarif que o colocou debaixo de minha guarda?

- Não foi ele próprio, o Emir, que se colocou espontaneamente sob a minha proteção? Quem vale mais aqui, o Sídi ou a tua baboseira de Mutessarif?

- Halef Omar, contém a tua língua! Oh, se o Mutessarif soubesse dessas tuas palavras!

- E pensas que o temeria? Sou Hadschi Halef Omar Ben Hadjil Abul Abbas Ibn Hadjil Dawuhd al Gossarah!

- E eu sou o Ifra, pertenço aos Baschi Bozuks do Grão Senhor e pelos meus feitos heróicos fui elevado a Buluk Emini! Por ti zela uma única pessoa e por mim o Padixá e todo o estado a que chamam de Osmani!

- Desejaria saber as vantagens decorrentes de tal proteção!

- As vantagens? Já vou dizer-te: - recebo um soldo mensal de trinta e cinco piastras e diariamente duas libras de pão, dezessete lotes de carne, três de manteiga, cinco de arroz, um e meio de ingredientes vários, inclusive sabão, azeite e pomada para lustrar as botas!

- E em paga disso realizas feitos heróicos?

- Sim, e gloriosos até!!

- Eu quisera assistir a um deles!...

- O que? Pões em dúvida a minha afirmativa?! Basta eu citar-te apenas as circunstâncias em que perdi o nariz! Perdi esse ornamento facial numa refrega entre drusos e maronitas do oásis de Libanon. Fomos expedidos para lá, a fim de combatermos pela ordem e pelo respeito às leis. Num desses embates, eu desferia golpes ao derredor de mim, quando um dos inimigos desferiu um golpe para atingir-me a cabeça. Desviei-me e o golpe foi atingir-me exatamente o na... oooh... ooah! Que foi isso?

- Sim, o que foi isso? Um tiro de canhão!

Halef tinha razão. Realmente fora um estrondo de canhão que viera interromper a interessante narrativa do pequeno Bulyk Emini. Era o sinal de que a nossa artilharia aprisionara o ajudante de Miralai. Os dois desceram afobados do avarandado.

- Sídi, começou o bombardeio! - exclamou Halef, olhando para a sua pistola.

- ... e a granadas! - acrescentou Ifra.

- Está bem. Vão buscar os cavalos e os escondam no pátio interno!

- Também o meu burro?

- Claro. Em seguida fechem a porta!

Eu próprio peguei a toalha branca e a coloquei no mastro à guisa de bandeira. Depois estendi algumas cobertas de lã no solo e deitei-me no avarandado, de modo a não ser visto do lado de fora. Os dois servos sentaram-se perto de mim.

Nesse meio tempo o dia clareara completamente e se podiam distinguir os mínimos objetos. Densa neblina cobria o vale. Contudo as luzes do santuário continuavam a arder, ofuscando as vistas.

Assim passaram-se cinco a dez minutos de expectativa vigilante, quando o relincho de um cavalo se fêz ouvir no declive do vale, seguido de outro correspondido agora por outro animal, no flanco oposto. Percebi logo a situação: as tropas avançavam ao mesmo tempo pelos dois flancos do vale. O plano de Miralai estava sendo executado com toda precisão.

- Eles chegam! - sussurrou Halef.

- Sim, aí vêm eles! - cochichou Ifra. - Senhor, se nos tomarem por Dschesidis e fizerem fogo contra nós?

- Soltarás o teu burro e eles te reconhecerão imediatamente!

Não havia tropa de artilharia entre os atacantes; os animais que relincharam eram as montarias dos oficiais. Do contrário teríamos ouvido maior tropel de cavalos. Pouco a pouco, no entretanto, começamos a ouvir um rumor que cada vez tornava-se mais audível. Eram passos de numerosas pessoas que se aproximavam.

Finalmente, percebemos vozes humanas que vinham do sepulcro e, minutos após, passos cadenciados de uma tropa de infantaria que marchava. Ergui a cabeça para observar. Eram uns duzentos Arnautas, figuras possantes, de fisionomias selvagens, que desciam do vale, comandados por um Alai Emini e dois capitães. Por trás desse regimento, vinha uma patrulha de Bachi Bozuks que se distribuíram por todas as direções do vale à procura dos moradores, que não davam sinal de si. Fechando a formatura, vinha um grupo de cavaleiros, composto exclusivamente de oficiais: dois Jues Baschis, um Kaimakam e diversos Kal Agassis. À frente dos oficiais cavalgava um homem alto e esguio, ostentando uniforme vistosamente bordado com fios de ouro. Era o coronel comandante geral da expedição.

- Aquele é o Miralai! - disse Ifra em tom de profundo respeito.

- E o civil que o acompanha?

Ao lado do coronel cavalgava um indivíduo cuja fisionomia chamava a atenção do observador mais distraído. Sei que não é nobre comparar-se pessoas a espécimens do ramo zoológico. Nem isso se ajusta a espíritos mesmo mediocremente cultos e educados. Mas, realmente, há homens que a um simples golpe de vista para o seu semblante, irresistivelmente nos induzem logo a pensar em determinados animais! Já vi noutras pessoas conjuntos fisionômicos semelhantes a de macacos, de buldogues, de gatos e de urubus; tenho visto, mesmo rostos que me lembram bois, asnos, raposas, corujas, etc. Mesmo não se sendo frenólogo ou fisionomista, notamos logo que os gestos, os movimentos todos dessas pessoas possuem até certo ponto as características dos animais de que nos estão constantemente a recordar... O mesmo se dava com o paisano que acompanhava o comandante geral das tropas turcas. A sua cara era a perfeita reprodução de um abutre...

- É o Makredsch (1) de Mossul, o conselheiro privado do Mutessarif.

Mas que pretendia afinal aquele Makredsch junto às tropas? Que função ou qual o seu objetivo? Fui interrompido em minhas reflexões por um tiro de canhão, seguido imediatamente de outro. Brados ensurdecedores, gritarias verdadeiramente infernais ressoaram do sepulcro. Minutos após percebemos forte trotar de animais. Era o grupo de oficiais, que parou exatamente debaixo do meu posto de observação.

- Que estrondo foi aquele - perguntou o Miralai aos oficiais do seu estado-maior.

- Dois tiros de canhões! - apressou-se o Makredsch em responder.

- Muito bem! - respondeu o coronel ironicamente. - Um oficial dificilmente responderia a essa pergunta com tamanha precisão e acerto! Mas, por Alá que é isso?

Os Arnautes que há pouco, haviam avançado, retrocediam em doida e desordenada correria, gritando como loucos. Muitos deles ensangüentados e aos frangalhos e todos visivelmente horrorizados.

- Alto! - urrou o coronel. - Que sucedeu?

- Fizeram uma carga de metralha contra nós. O Alai Emini tombou morto juntamente com um dos capitães. Outros caíram feridos e jazem no campo da luta ali adiante no...

- Allah ondari boza-uz - Alá que os extermine! Fuzilaram a sua própria gente! Vou mandar matá-los todos a bastonadas! Nassi Agassi, cavalga para frente e vai prestar esclarecimentos àqueles cães!

Essa ordem fora dada a um dos Kol Agassi do seu estado-maior. Era o mesmo que eu surpreendera no arroio de Baadri e o auxiliara a recuperar a liberdade. Ele deu de esporas no cavalo, mas pouco tempo depois voltava visivelmente agitado.

- Senhor, não foi a nossa gente, mas os Dschesidis que fizeram a descarga! Deixaram que me aproximasse e depois se deram a conhecer. Trajam os uniformes de nossos soldados!

- Onde se acham assestados os nossos canhões?

- Foram tomados pelos inimigos! Pois foi com eles que há pouco atiraram. O Jues Baschi deixou-se surpreender!

O coronel proferiu uma tremenda blasfêmia.

- O canalha pagará bem caro sua covardia e pusilanimidade. Onde está ele?

- Preso com toda a bateria!

- Preso? Com toda a bateria? Portanto sem que opusesse a mínima resistência!

Picou o cavalo tão violentamente com as esporas que este se pôs nas patas traseiras. Em seguida perguntou:

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(1) Juiz.

 

- Onde estão os Dschesidis, esses homens do diabo, esses giaurs entre os giaurs? Vim para prendê-los, vergastá-los, matá-los, mas nenhum deles tem a coragem de se apresentar! Desapareceram? Já havemos de encontrá-los! Antes disso, porém, retoma-lhes as peças de artilharia! As tropas de Diarbekir fizeram fusão. Avança com elas seguindo por Kjerjuk!

O Kol Agassi voltou em disparada e imediatamente a infantaria de Diarbekir se pôs em movimento. O coronel, com o seu estado-maior, afastou-se mais para o lado e as tropas marcharam pela sua frente. Mas nem um minuto decorrera, ouviu-se o troar de quatro tiros de canhão, repetindo-se a mesma cena de há pouco: os sobreviventes, alguns deles levemente feridos, fugiam abandonando no campo da luta os mortos e os gravemente feridos. O coronel tocou o cavalo para o meio da tropa e castigava os seus comandados com a lâmina da espada.

- Parem, covardes. Parem! Do contrário, mandarei todos para o Dschehennah! Agassi, ordena o avanço dos dragões para baixo!

O ajudante saiu a galope. Os fugitivos se agruparam num único bloco e muitos dos Baschi Bozuks chegaram, anunciando haverem encontrado todas as casas desertas.

- Destruam as casas, arrazem tudo a fogo e procurem a senda dos Dschesidis. Preciso saber onde foram parar esses infiéis!

Chegara o tempo de entrar eu em ação, uma vez que me dispusera a prestar algum serviço, permanecendo no vale.

- Halef, se me suceder alguma cousa de grave, retira o pano branco pendente do mastro. É o sinal convencionado entre mim e o Bei para que este venha em meu socorro.

Ditas essas palavras, levantei-me do leito improvisado e fui logo visto pelos oficiais turcos.

- Ah! - bradou o Miralai - Ali já está um! Desce, filho de cão! Preciso de algumas informações tuas!

Meneei a cabeça e, virando-me para Halef, recomendei-lhe:

- Vem comigo e fecha a porta depois que eu sair da casa! Não deixes ninguém entrar nela sem minha licença. Se eu chamar pelo teu nome, então sim, abre-a prontamente!

Descemos e eu fui para frente da casa. A porta fechou-se por trás de mim rangendo os gonzos. Assim que os oficiais me viram sair, formaram um quadrado, onde me encerraram!

- Verme que és, responde sem pestanejar as perguntas que te vou fazer! - trovejou-me o coronel.

- Verme? - exclamei, calmamente. - Pega este papel e lê!

Os seus olhos, quais coriscos, pareciam querer fulminar-me de enraivecidos! Contudo, não se negou a agarrar o Ferman do Grão Senhor. Ao pôr os olhos sobre o selo apertou-o de encontro à testa, mas muito de leve e com um ar quase de desprezo. Depois olhou ligeiramente o texto do passaporte.

- És um Franke?

- Não, sou um Nemtsche.

- É a mesma coisa! Que estás fazendo aqui?

- Estudando os costumes dos Dschesidis - respondi-lhe recolhendo novamente o passe.

- Estudar para que? Que tenho eu a ver com esse Bu-djeruldi! (1) Estiveste em Mossul, com o Mutessarij?

- Estive, sim.

- E tens licença dele para permaneceres aqui?

- Claro que sim! Ei-la!

Exibi-lhe o segundo documento, que o coronel leu e me devolveu.

- Realmente, mas...

Suspendeu a frase, pois, naquele momento, da escarpada ressoou uma intensa fuzilaria de carabinas ao mesmo tempo que se ouviam os rumores de patas de cavalos a correr.

- Scheitan! Que é aquilo, lá em cima?

Como a pergunta em parte fora dirigida a mim, respondi:

- São os Dschesidis. Estás sitiado e toda a reação será inútil!

O homem firmou-se no cavalo e ergueu-se nos estribos, bradando:

- Cão!

- Não fales assim, Miralai! Se continuares com tais palarras insultuosas, retirar-me-ei da tua presença!

- Tu ficarás aqui!

- Quem pretende impedir que me vá? Estou pronto a prestar-te todas as informações que puder, mas não estou habituado a me colocar debaixo das ordens de Miralais. Já te mostrei debaixo de qual proteção me encontro e se isso não me adiantar alguma cousa, saberei eu próprio me defender e proteger!

- Ah!

Levantou o braço para desferir-me um golpe.

- Halef!!

Ao gritar por Halef, meti-me violentamente por entre as montarias daqueles oficiais e abri caminho, rompendo sem dificuldade o quadrado que me cercava; a porta da casa escancarou-se e mal a fechei atrás de mim, um tiro de pistola veio alojar-se na esquadria. O Miralai fizera fogo contra mim.

- Esta bala era para ti, Sídi! - exclamou Halef, indignado.

- Sobe comigo!

Enquanto subíamos a escada, ouvimos lá fora uma gritaria confusa misturada com pateadas de cavalos. Ao chegar em cima, pude ainda ver a retaguarda da cavalaria, que, dobrando a curva do vale, desaparecia. Era uma verdadeira loucura atirar a cavalaria contra os canhões. Para ir contra estes, o único meio viável seria talvez atacá-los com os atiradores, postados num dos flancos da colina. O Miralai nem ao menos se apercebera da sua verdadeira situação. A sua sorte foi que o Bei tinha o firme e humanitário propósito de poupar as vidas humanas de parte a parte o mais que lhe fosse possível, pois os turcos se achavam tão juntos em frente ao santuário e pelo caminho que subia a colina, que cada bala dos Dschesidis exigiria muitas vítimas.

Começou novamente o troar dos canhões. As metralhas e as granadas, se fossem bem visadas, deveriam abrir formidáveis claros entre os cavalarianos, o que aliás se

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(1) Passaporte.

 

confirmava daí a pouco: todo o vale regorgitava de cavalarianos em disparada sem rumo, de dragões correndo feito loucos e de cavalos em fuga sem os respectivos ginetes...

Agora sim, o Miralai imóvel como uma estátua espumava de raiva e decepção; era bom, porque talvez só assim ele se apercebesse da sua verdadeira situação. Olhando em volta, deu ele comigo no avarandado, a contemplar o vale. Fêz-me um aceno para eu chegar à sua presença. Fiz que não o compreendera ou que nem o notara.

- Desce e vem falar comigo! - ordenou.

- Para quê? Sinto-me tão bem aqui!

- Mas preciso de algumas informações!

- Para depois tomares a alvejar-me?

- Aquele tiro não era destinado a ti!

- Ainda bem! Mas pergunta o que desejas daí mesmo. Responder-te-ei daqui e verás que dá para compreenderes tão bem como se eu estivesse na tua presença. Mas, nota, para o teu governo e integridade física!

A essas palavras acenei para Halef que logo me compreendeu.

- Estás vendo este homem? É o meu fiel criado e amigo. Olha que ele traz uma espingarda na mão. Assim que qualquer um de vocês fizer um mínimo movimento para usar alguma arma, ele te fuzilará, Miralai, e então direi as mesmas palavras que tu: “Aquele tiro não era destinado a ti!”

Halef ajoelhou-se bem à borda do avarandado e apontou a sua espingarda para a cabeça do Miralai. Este mudou de cor, não sei se de medo ou se de raiva.

- Afasta essa espingarda!

- Continua nessa posição! - retruquei.

- Homem, não vês que tenho perto de duzentos combatentes em torno de mim? Se me irritares, posso reduzir-te facilmente a pirão!

- E eu só tenho este servo e a um simples aceno te remeterei para junto dos teus antepassados!

- Os meus saberiam vingar horrivelmente a minha morte!

- Mas muitos deles levariam o diabo antes de penetrar nesta casa! Além disso o vale está sitiado por quatro mil guerreiros bem adestrados, que poriam vocês em debandada!

- Quantos guerreiros disseste?

- Quatro mil! Olha para a colina! Não vês cabeças ao lado de cabeças? Agora um homem vem descendo. Empunha, à guisa de bandeira, um turbante de tecido branco, que é o sinal de parlamentar. Deve ser um emissário do Bei de Baadri. Expede uma patrulha para assegurar-lhe a chegada incólume aqui e recebe-o de acordo com a pragmática! Isto só poderá redundar em vantagens para ti e tuas tropas!

- Guarda os teus ensinamentos chulos! Não preciso deles! Deixa vir os rebeldes! Onde estão todos os Dschesidis?

- Vou dizer-te! O Bei Ali soube que pretendias atacar os peregrinos. Tomou então todas as medidas de defesa. Expediu gente para observar as tropas de Mossul, Diarbekir e Kjerkjuk. As mulheres e crianças foram conduzidas a um lugar seguro. Bei não impediu a tua expedição, antes deixou-te livre o vale para nele entrares sem obstáculos. Mas, abandonando o vale, ele o sitiou e a sua força é incalculavelmente mais vantajosa, quer quanto à posição que ocupa quer quanto ao efetivo bélico. E le está ainda de posse da tua artilharia com toda a munição. Estarás perdido, se não negociares cortêsmente com o seu parlamentar!

- Eu te agradeço, franke! - vou “negociar cortêsmente”, primeiro com ele e depois contigo mesmo... Possuis o Bu-djeruldi do Grão Senhor e o Ferman do Mutessarif e fazes causa comum com os nossos inimigos! És um vil traidor e receberás o castigo que mereces!

Nesse momento, o Nassir Agassi, seu ajudante, encostou o seu cavalo no dele e lhe disse algumas palavras que, de cima, não pude ouvir. O coronel, apontando para mim, perguntou-lhe:

- É aquele a quem te referes?

- É a ele mesmo. Não faz parte dos nossos inimigos, não, e está aqui como hóspede destes por pura casualidade. Salvou-me a vida um dia!

- Então falaremos depois a tal respeito. Agora venham todos para o interior daquele edifício.

 

INOMINÁVEL TRAIÇÃO - HORRÍVEL VINGANÇA

Encaminharam-se todos para o templo do Sol, defronte ao qual apearam-se e entraram.

Nesse meio tempo, saltando e galgando de rocha em rocha, aproximava-se do vale, em linha reta, o emissário do Bei. Atravessando o arroio chegou ao local e entrou também no templo. Nenhum tiro se fêz ouvir e o silêncio era absoluto, interrompido apenas pelos passos dos soldados que, antes agrupados numa posição bastante perigosa, se estendiam mais para baixo.

Passou-se bem mais de meia hora, ao cabo da qual o parlamentar saiu do templo, porém, não caminhando, mas carregado pelos outros. Fora algemado. O coronel, que também surgiu na entrada do templo, olhou para a pira e apontou na direção da mesma. Chamaram dez Arnautes, que escoltaram o homem até o monte de palhas de arroz e betume. Ia ser fuzilado, pois os homens preparavam as suas armas.

- Alto, lá - bradei ao coronel cá do avarandado. - Que pretendes fazer? Trata-se de um parlamentar e portanto duma pessoa intangível!

- Ele não passa de um rebelde como tu! Primeiro ele, depois chegará também a tua vez! Já sabemos agora quem nos aprisionou a artilharia e a entregou nas mãos dos inimigos!

O coronel levantou o braço e a salva detonou. O parlamentar tombou morto. No mesmo instante aconteceu uma cousa inesperada: invadindo o meio da soldadesca formada, surgiu a figura de um homem austero. Era Pir Kamek. Alcançou o monte de palhas de arroz, isto é, a pira, e ajoelhou-se diante do morto.

- Ah! é outro! - exclamou o Miralai, aproximando-se apressadamente do sacerdote. - Levanta-te e me responde!

Mas não pude ouvir nada, pois a distância era demasiadamente grande para isso. Eu via apenas os gestos solenes do Pir e os coléricos do Miralai. Depois notei que o primeiro meteu a mão na pira e minutos após erguia-se uma chama da mesma. Um pressentimento fúnebre sacudiu-me os nervos. Deus de bondade, Deus de onipotência, teria ele se referido hoje a um tal sacrifício, a uma tão formidanda punição, a uma tão tétrica vingança com relação ao assassino de seu filho e de sua mulher!

Agarraram-no com o fim de arrancá-lo da pira mas era já tarde para apagar as chamas, alimentadas terrivelmente pelo betume. Ao fim de um minuto, quando muito, as chamas ardiam terrivelmente projetando-se no espaço.

O Pir se achava cercado e seguro: o Miralai parecia querer abandonar o local. Mas nisso ele resolve virar-se e voltar para perto do Pir. Falaram-se, o coronel agitadamente, o Pir calmo e de olhos cerrados. Subitamente abriu os olhos, desvencilhou-se dos dois turcos que o seguravam e agarrou o coronel. Com a força física de um gigante, ergueu o Miralai. Dois saltos e ele postou-se diante da fogueira, mais outro e ambos desapareceram no meio das chamas pavorosas que pareciam subir aos céus! Alguns movimentos entre as labaredas davam a perceber que os dois condenados à morte pelo terrível elemento lutavam ainda, num esforço supremo: um para salvar a vida e o outro para conservar este na fogueira até ser totalmente consumido.

Fiquei gelado como se tivesse caído, em dia de inverno rigoroso, num rio de águas geladas! Então por isso é que o dia de hoje era “o mais grandioso” para o Pir, conforme me dissera! Sim, o dia mais grandioso para um homem é quando ele deixa esta vida para sacrificá-la pelo fogo à eternidade! Aquela tremenda vingança para com o Miralai seria a “última palavra” com que a mão do Pir assinalava a “sangrenta história dos Dschesidis, os desprezados, os perseguidos?” E aquele fogo era o “elemento” no qual o seu corpo seria sepultado e ao qual, por isso mesmo, o sacerdote legaria o seu vestuário?

Horrível! Fechei os olhos. Não queria ver mais nada e nem saber de coisa alguma! Desci para a sala e me deitei num tapete. Durante algum tempo, lá fora reinara um silêncio e uma calma relativas. Depois, porém, recomeçou o bombardeio. Eu nada tinha a ver com aquilo. No caso de ameaçar-me algum perigo, Halef certamente me avisaria. Não podia esquecer aquela cabeleira nevoenta e aquele vulto de uniforme dourado a se degladiarem em meio das chamas dantescas da fogueira sinistra! Deus meu, quão valiosa e quão inestimável é uma vida humana e, no entretanto...!

Assim passou-se um bom espaço de tempo. Cessara o bombardeio e eu percebi ruídos de passos que desciam a escada. Halef entrou na sala.

- Sídi, é para vires ao avarandado!

- Fazer o quê?

- Um oficial exige a tua presença.

 

OS PRIMÓRDIOS DA PAZ

Levantei-me e subi novamente. Um simples olhar e fiquei ao par de tudo. Os Dschesidis não ocupavam mais as elevações do vale, mas pouco a pouco haviam descido. Por trás de toda árvore, por trás de todo tufo, por trás de toda pedra ou penedo se achavam entricheirados combatentes era posição de descarregar as suas carabinas contra os assaltantes. Uma coluna, protegida pelo fogo da artilharia, havia mesmo atingido a baixada e tomado posição num macegal que marginava o arroio.

Faltava apenas uma coisa: se a bateria avançasse um pouco mais para cima então seria fácil exterminar os turcos em minutos apenas.

Diante da casa, por baixo do avarandado, se achava Nagir Agassi.

- Senhor, não te negas a uma conferência conosco?

- Que pretendes dizer-me?

- Queremos mandar um emissário entender-se com o Bei Ali e com o Miralai - a quem Alá conceda o paraíso! - dizendo isso apontou para a pira que continuava ainda a arder pavorosamente - matou o parlamentar dos Dschesidis, nenhum de nós poderá encarregar-se dessa missão. Não queres desempenhá-la por nós?

- Aceito a incumbência. Que devo dizer-lhe?

- O Kaimakam já te ordenará tudo. Ele agora assumiu o comando geral e está ali naquela casa. Vem junto!

- Ordenar-me? O Kaimakam não tem esse direito e nem admito que me ordene coisa alguma. Se alguma coisa eu fizer por vocês o farei expontâneamente. O Kaimakam que venha, mas que venha ele em pessoa falar comigo se quiser! A distância é a mesma. Esta casa lhe está aberta, mas exclusivamente a ele e, quando muito, a mais uma única pessoa que trouxer consigo. E todos os demais que daqui se aproximarem serão fuzilados!

- Além de ti, quem mais está no interior da casa?

- O meu criado e um Kawass do Mutessarif, um Baschi-Bozuk.

- Como se chama ele?

- É o Buluk-Emini Ifra.

- Ifra? Aquele do burro?

- Justamente! - respondi meio rindo.

- És então o forasteiro que dispensou as bastonadas ao oficial a fim de captar a amizade do Mutessarif?

- Sou eu mesmo.

- Espera, então, um instante!

Minutos após, o Kaimakam apareceu descendo a escadaria do templo e em seguida veio em direção à casa em que me alojara. Vinha acompanhado apenas do Makredsch.

- Halef, abre a porta e conduze-os à sala. Depois, fecharás a porta e voltarás para aqui. A todo aquele que se aproximar da casa sem ser chamado, fuzilarás incontinenti sem mais hesitações!

Descemos. Os dois homens entraram para a sala. Eram dois altos funcionários; mas com essa circunstância não me devia preocupar; recebi-os em atitude discreta e muito comedida, fazendo-lhes um simples sinal para que se sentassem. Feito o que, perguntei-lhes, sem desejar-lhes boas vindas, como é da praxe turca:

- O meu criado deixou-os entrar na casa. Disse ele como me deverão chamar?

- Não disse, não.

- Aqui todos costumam chamar-me Hadjil Emir Kara Ben Nemsi. Sei muito bem com quem estou tratando. Que pretendem dizer-me?

- És um Hadjil? - perguntou o Makredsch.

- Claro que sim!

- Estiveste então em Meca?

- Estive. Não vês o Kuran que uso ao pescoço e a garrafinha de água zem-zem?

Julgamos que fosses um giaur!

- Foi para dizer-me isto que me procuraste?

- Não. Pedimos que em nosso nome vás entender-te com o Bei Ali!

- Vocês me dão garantias para essa incumbência?

- Damos.

- E ao meu criado também?

- Também!

- Que devo dizer ao Bei?

- Que se renda incondicionalmente! Que entregue as armas e se submeta ao Mutessarif!

- E depois disso? - perguntei, curioso por saber as outras exigências.

Depois disso, a penitência que lhe vai impor o governador será a mais branda possível.

- Tu és o Makredsch de Mossul e este Kaimakan o comandante geral das tropas que aqui expedicionaram. Cabe, pois, a ele e não a ti dizer-me as condições a serem transmitidas.

- Mas eu sou o enviado especial do Mutessarif.

A essas palavras o homem da “cara de abutre” fêz uma inclinação, quase batendo com a testa no chão.

Estás provido de credenciais?

- Não.

- Pois então a tua palavra voga tanto como a de qualquer soldado raso!

- O Kaimakam é testemunha da minha investidura especial.

- Não adianta! Só darei crédito a uma credencial escrita! Vá buscá-la! O Mutessarif enviaria para representá-lo um homem de certa cultura e não a ti!

- Pretendes insultar-me?

- Não! Apenas pretendo dizer que militarmente falando não és coisa alguma, que nada entendes dessas coisas e que por conseguinte cabe-te calar!

- Emir! - exclamou fulminando-me com uns olhares cheios de raiva.

- Queres que te prove que realmente és um indivíduo inculto? Vocês estão de tal modo sitiados que nenhum poderá fugir: meia hora, no máximo, é bastante para que todos aos montes jazam estirados no solo. E numa situação insustentável dessas tens ainda o rompante de exigir, por meu intermédio, uma rendição incondicional das forças do Bei. Se eu aceitasse tal missão, ele me tomaria como um desiquilibrado. O Miralai, a quem Alá seja misericordioso, atirou os seus mil e quinhentos guerreiros à ruina, à morte certa! E tudo isso levado pela sua imprudência, pela sua desmedida vaidade e curteza de inteligência. Ao Kaimakam compete agora suavizar a situação e salvar as tropas da ruína inevitável. Se isso conseguir, terá ele procedido como um bravo oficial, como um herói no verdadeiro sentido do termo! Mas não é com palavras altaneiras, por trás das quais espreitam o medo e a perfídia, que ele chegará a um objetivo tão elevado! Mas já te estou dando demasiada trela! O Kaimakam que fale, se quiser. Entender-me-ei exclusivamente com ele! Sobre questões militares só a um guerreiro cabe tratar!

- Não obstante terás que ouvir a mim também!

- Não sei em que ponto?

- Há no caso assuntos que se relacionam diretamente com as leis e eu sou o Makredsch de Mossul!

- Sê lá o que quiseres! Não estás em condições de me apresentar outorgas escritas e isto me basta!

Sentia verdadeira repulsa por aquele homem, entretanto, não o trataria tão energicamente se a sua postura tivesse sido diferente e se eu não tivesse um pressentimento de que ele fora o maior culpado de tudo o que sucedera. Com que fim se incorporara aquele “jurisconsulto” às tropas expedicionárias? Exclusivamente para no caso de serem os Dschesidis vencidos, tornar-lhes mais sensível o caminho da lei dos Osmanlis!

Dirigi-me, agora, ao Kaimakam:

- Que direi ao Bei se ele me perguntar a razão por que atacaste Xeque Adi?

- Dirás que pretendíamos prender dois assassinos no meio deles e também porque não pagam pontualmente os Haradschs (1) a que estão obrigados.

- O Bei por certo se admirará de tua exposição de motivos! Os assassinos devem ser procurados entre a tua própria gente. E quanto aos impostos, a cobrança podia ter sido efetuada por outros meios, sem ter necessidade de apelar para o emprego de violência. E que lhe direi a respeito da tua resolução atual?

- Ele que mande um emissário para eu expor a este as condições sob as quais evacuaremos nossas tropas do vale!

- E se ele quiser conhecer, previamente, essas condições?

- Exijo, em nome do Mutessarif, a entrega dos nossos canhões com todos os pertences; por todo morto ou ferido de nossa parte uma determinada importância em dinheiro, o pagamento de todos os Haradschs em atraso e uma contribuição de guerra, cuja importância a fixarei oportunamente!

- Só isso? Allah kehrim, Deus é generoso! Ele supriu-te de uma boca assaz pródiga em exigências! Não precisas dizer mais nada; basta, o resto dirás ao próprio Bei. Irei já e voltarei, eu mesmo, com a resposta ou então a enviarei por intermédio de um emissário.

- Dize-lhe ainda que ponha em liberdade os nossos artilheiros e que lhes pague uma contribuição pelo susto que lhes pregou!

- Transmitirei mais esta exigência; mas desconfio que ele também irá exigir uma indenização pela surpresa que vocês lhe deram. Estamos entendidos! Vou sair, mas antes advirto-os de uma coisa: Se causarem maiores danos a Xeque Adi, o Bei não terá mais contemplações!

Levantei-me. Eles fizeram o mesmo e saíram.

Chamei Halef e Ifra para selarem os cavalos. Este serviço durou pouco e em seguida montamos e subimos o vale.

- Esperem aqui! Eu já volto.

Desci por uma das escarpadas para ver o efeito dos tiros da artilharia. O quadro era apavorante, mas os Dschesidis suavizavam-no, recolhendo os turcos feridos e prodigalizando-lhes os curativos de emergência que eram possíveis. Oh, como seria diferente a situação se os Osmanlis fossem os vencedores! Voltei para prosseguir com os meus criados, embora os combatentes por detrás de suas trincheiras me chamassem alegremente para junto deles. Numa das faces laterais da colina, deveria encontrar-me com o Bei.

Quando passei pelo templo, diante deles se achava postado o Kaimakam com o seu estado maior. Acenou-me e aproximei-me dele.

- Dize ao Bei que exigimos ainda uma indenização pela morte do Miralai!

- Creio que o Makredsch se dá demais ao trabalho de inventar novas exigências, mas estou certo de que o Bei também exigirá uma indenização pelo parlamentar que vocês fuzilaram. Mas transmitirei mais esta imposição descabida!

- Tens um Baschi-Bozuk na tua companhia?

- Como vês!

- Quem te cedeu?

- O Mutessarif.

- Precisas ainda dele?

- Claro que sim.

- Mas nós também.

- Vai buscar uma ordem escrita do governador. Quando me apresentares essa ordem, entregar-te-ei o Buluk Emini!

Continuei a cavalgar, cruzando por homens de fisionomias carregadas. Muitos, intintívamente, levavam a mão ao punhal, mas o Nasir Agassi acompanhou-nos até uma zona segura.

A nossa despedida foi rápida, devido à premência de tempo.

- Efendi, ainda nos veremos um dia? - perguntou-me Nasir Agassi.

- Alá é que sabe tudo e também isso; e não nós!

- És o meu salvador; jamais me esquecerei de ti e te sou muito grato! Se nos encontrarmos ainda um dia, dize-me em que te posso servir!

- Que Deus te proteja! Talvez te encontre um dia, quando já fores um Miralai! E então desejarei que tenhas melhor Kismet que o de Ornar Amed!

Com um aperto de mão despedimo-nos. Mais tarde fui encontrá-lo onde menos o esperava.

A poucos passos mais para cima, encontramos o primeiro Dschesidi por trás das moitas. Este se aventurou a avançar tão longe, para obter melhor alvo, ao recomeçar o combate. Era o filho de Selek, o meu intérprete.

- Emir, não te aconteceu nada? - foi logo me perguntando já de longe.

- Como vês nada sofri. Tens contigo o livro de Pir Kamek?

- Não. Escondi-o num lugar seguro, onde nenhum dano lhe podem causar.

- Mas se tombasses na luta, o livro estaria perdido, porque todos ignorávamos onde o escondeste.

- Não, Sídi. Avisei a diversos companheiros e estes te informariam.

- Onde está o Bei?

- Naquele penhasco lá em cima, de onde melhor se avista o vale. Deixa-me acompanhar-te até lá.

Pôs a espingarda a tira-colo e saiu à nossa frente. Alcançamos o penhasco. Era interessante ver como os Dschesidis, de pé, deitados, acocorados, aguardavam o sinal de fogo a ser dado pelo chefe, a fim de começar a luta, mas agora seriamente! Aqui compreendia-se melhor ainda que os turcos estavam perdidos, se não fizessem um acordo com o inimigo. Era o mesmo ponto onde eu estivera na véspera com o Bei a observar a suposta estrela. Imaginem como mudam rapidamente as situações. Há poucas horas surgira a misteriosa “estrela” e já a pequena seita que se animara a empunhar as armas contra o Grão Senhor se achava no mesmo local como vencedora!

- Dou graças ao Onipotente por ter-te conservado a vida e a saúde! - exclamou o Bei sinceramente. - Correste algum perigo?

- Não, porque então te faria o sinal convencionado.

- Vem para cá!

Apeei e acompanhei-o até a rocha. Daqui tudo se podia avistar no vale: o santuário, a casa de residência do Bei, as baixadas, a artilharia por trás das trincheiras e ambas as faces do vale.

- Estás vendo aquele ponto branco por cima da minha casa de residência?

- Sim. É a toalha que prendi ao mastro.

- Se ela houvesse desaparecido, eu daria um sinal e quinhentos de meus homens correriam para baixo, protegidos pelo fogo da artilharia, para te acudir.

- Muito obrigado, Bei Ali! Não me aconteceu nada; apenas o Miralai atentou contra a minha vida, à bala, porém, errou o alvo.

- Isto ele pagará! Não sairá daqui sem uma punição em regra.

- Já foi mais do que punido!

Narrei-lhe o que vi, bem como as palavras com que momentos antes o Pir se despedira de mim. Ele ouviu-me em silêncio e profundamente impressionado. Mas quando terminei o relato, limitou-se a dizer:

- Pir Kamek era um herói!

Em seguida ficou absorto e só muito tempo depois perguntou-me:

- Que disseste? Eles mataram o meu emissário?

- Fuzilaram-no.

- Quem ordenou tal fuzilamento?

- Com certeza o Miralai.

- Oh! se este ainda estivesse vivo! - rugiu. - Tive mesmo um pressentimento de haver sucedido alguma cousa ao parlamentar. Disse-lhe que recomeçaria o bombardeio se ele dentro de meia hora não estivesse de volta. Mas hei de vingá-lo! Vou dar agora o sinal de combate mas de combate sério, finalmente!

- Espera ainda, pois preciso antes falar-te! O Kaimakam, que assumiu agora o comando geral, pediu-me que te procurasse em seu nome.

Relatei-lhe fielmente toda a minha conversação com o tenente-coronel e com o Makredsch. Quando pronunciei o nome do último, o governador franziu o sobrolho, mas continuou a ouvir-me em silêncio até o fim.

- Então o Makredsch acompanha as tropas! Agora já sei a quem devemos agradecer todos esses fatos! Ele é o mais feroz inimigo dos Dschesidis, odeia-os, é o seu vampiro, o seu sanguessuga! Foi o Makredsch quem provocou aquele assassinato a fim de que o mesmo servisse de pretexto para obrigar-nos, por meio dessa agressão covarde e brutal, ao pagamento de uma contribuição extorsiva. Mas a minha embaixada, que seguiu para Istambul, procurará também o Kasi Askeri de Anatólia (1) a fim de entregar-lhe uma carta, escrita ainda por Pir Kamek. Ambos eram conhecidos

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(1) Corregedor-mor da Turquia Asiática.

 

e muito amigos, e Pir durante muito tempo foi hóspede. O corregedor-mor da Turquia Asiática sabe distinguir a verdade da mentira.

- É o que desejo de coração! Mas quem pretendes mandar como emissário junto do Kaimakam? Não deves mandar um homem de espírito vulgar, porque este facilmente cairia nalguma cilada.

- Quem pretendo mandar? - Não mandarei ninguém. Falarei eu em pessoa com ele. Sou o chefe dos meus homens e ele o comandante dos seus e a nós compete resolver o assunto. Mas sou o vencedor e ele o vencido; portanto ele que venha procurar-me!

- Procedes muito bem, de acordo com o direito!

- Vou esperá-lo aqui. Assegurar-lhe-ei inviolabilidade tanto durante as negociações, como no trajeto de ida e volta. Mas, se dentro de meia hora o Kaimakam não estiver em minha presença, darei início ao bombardeio, que só cessará, quando não houver mais um só Osmanlis com vida!

Ele aproximou-se de seus ajudantes, com os quais conferenciou ligeiramente. A seguir se afastaram dois deles. Um, empunhando um manto branco à guisa de bandeira, desceu, depois de largar as armas, pelo mesmo caminho de onde viera; o outro, beirando uma elevação, desceu a escarpada na direção do local, onde se achava assestada a artilharia.

A seguir, o Bei ordenou a alguns Dschesidis que se achavam próximos, que erguessem uma barraca para nós. Enquanto era cumprida a ordem, notei que em baixo abriam-se os entrincheiramentos. As peças da artilharia foram transportadas pelos vãos abertos até próximo à planície do vale, aonde os dois Dschesidis já haviam chegado. Ali uma grande quantidade de penedos soltos e árvores derribadas formavam um novo entrincheiramento.

Uns vinte minutos após a partida do emissário, aproximava-se de nós o Kaimakam, novo comandante geral das tropas inimigas. Vinha acompanhado por três soldados e a seu lado cavalgava o Makredsch. Fora uma grande imprudência da parte deste último; notei-o pelos olhares sombrios que o Bei lançava para ele.

O Bei entrou na barraca e se abancou no tapete estendido ao solo. Eu recebi os que chegavam. Os três soldados turcos ficaram do lado de fora da barraca e os seus superiores entraram.

- Salam, - cumprimentou Kaimakam.

O Makredsch não os saudou de modo algum. Como juiz dum Grão Senhoriado esperava que o Bei dos Adoradores do Diabo lhe desejasse boas vindas. Este, porém, fingiu não notar sua presença ali. O governador apontando para o tapete disse:

- Kaimakam, komar-sen - Tenente-coronel, podes sentar-te!

O oficial turco sentou-se, ereto e cheio de afetação; o Makredsch, intrusamente, sentou-se também ao seu lado.

- Pediste para que viéssemos falar contigo - começou o oficial. - Por que não fôste tu nos procurar?

- Enganas-te! - respondeu o Bei com fisionomia carregada. - Não te pedi coisa alguma, mas apenas mandei prevenir-te de que metralharia os Osmanlis, caso não procurasses entender-te conosco! Esta é a verdade! E isto é um pedido? Perguntas mais, por que não fui eu te procurar? Quando eu viajar de Xeque Adi para Mossul, então eu te procurarei e não tu a mim. Vieste de Mossul para Xeque Adi, onde te encontras agora e portanto deves conhecer os deveres a que te obriga a cortesia. O teu gesto me força a esclarecer desde logo o ponto de partida de nossas atuais conversações. És um servo, um funcionário do Grão Senhor e do Mutessarif, um oficial que só em casos de emergência, comanda um regimento; eu, porém, sou um príncipe livre de curdos e generalíssimo de todas as minhas tropas. Por conseguinte, não penses que o teu posto é hierarquicamente mais elevado que o meu.

- Não sou nenhum criado do...

- Cala-te! Estou habituado a que me ouçam e não me interrompam quando falo! Nota isto, Kaimakam! Tu penetraste, sem prévio aviso e sem que a isso tivesses o menor direito, nos meus domínios, como o ladrão, o salteador de mão armada. A um ladrão costumo prender e matar, conforme entender; mas como és um servo do Grão Senhor e do Mutessarif, vou falar-te por bem, antes de te fazer sentir a extensão do meu domínio. Se tu e os teus soldados ainda vivem, agradeçam exclusivamente à minha generosidade e ao meu espírito de indulgência.

O Kaimakam fêz uma fisionomia de espanto, visto que não esperava uma tal explanação dos fatos. Refletiu ainda por algum tempo sobre a resposta que deveria dar. Mas o Makredsch, em cuja fisionomia de abutre vislumbrava-se nitidamente uma expressão de ódio flamejante, tomou a palavra:

- Bei Ali, que ousadia! Tratas-nos de ladrões e assassinos, a nós os representantes legítimos do Padixá e do governador geral! Contém-te na tua impetuosidade, do contrário te arrependerás amargamente!

O Bei dirigiu-se com a maior calma deste mundo ao tenente-coronel:

- Kaimakam. Quem é este doido?

- Afivela esta língua, Bei Ali! Este Effendi é o Makredsch de Mossul! - respondeu o oficial tomado de pavor.

- Estás caçoando! Um Makredsch não pode ser um doente mental! O Makredsch de Mossul aconselhou o Mutessarif a organizar esta expedição de guerra contra mim. Portanto se ele não fosse um desequilibrado jamais se abalançaria em chegar à minha presença, pois deve saber muito bem o que pode esperar!

- Não estou caçoando, não! É de fato o nosso Makredsch.

- Vejo que não sonhas e nem estás bêbado! Por isso acredito que estejas falando sério. Mas considera que mandei chamar apenas a ti!

- Ele veio na minha companhia, na qualidade de representante e embaixador do Mutessarif!

- É possível que assim seja, pois estás dizendo. Mas podes provar o que me dizes?

- Posso!

- Numa situação destas, palavras apenas não bastam. Tenho confiança em ti, não há dúvida; mas qualquer outro que me procurar em caráter idêntico, terá que provar que possui o direito e autorização para entrar em negociações comigo; e se isso não lhe fôr possível, correrá o perigo de ser tratado da mesma forma como trataste há pouco ao meu emissário.

- Um Makredsch jamais correrá tal perigo!

- Pois provarei o contrário!

O Bei bateu palmas e imediatamente penetrou na barraca o Dschesidi que fora buscar o Kaimakam.

- Prometeste ao tenente-coronel todas as garantias de vida?

- Sim, Senhor!

- Ao Kaimakam apenas?

- Sim e a mais ninguém!

- E aos três soldados que se acham lá fora?

- Não, nem a eles e nem ao Makredsch.

- Então retira-os daqui como prisioneiros! Este homem, que se diz Makredsch de Mossul leva-o também aprisionado. É ele o culpado de tudo, inclusive da morte do meu parlamentar!

- Eu protesto! - bradou o tenente-coronel.

- Saberei defender-me e vingar-me! - exclamou o Makredsch puxando o punhal, que trazia à cintura.

No mesmo instante, porém, o Bei ergueu-se, de um salto, e desferiu um soco tão violento na cara do Makredsch que o mesmo caiu de costa.

- Cão! Ousas puxar armas contra mim dentro de minha própria barraca! Fora!

- Alto lá! - exclamou o oficial. - Viemos como parlamentares, portanto estamos imunes de qualquer violência!

- O meu emissário procurou-os também na qualidade de parlamentar e não obstante foi fuzilado como um traidor. Fora com estes homens!

O Dschesidi agarrou o Mahredsch e o retirou da barraca.

- Neste caso, também eu me retirarei! - ameaçou o Kaimakam.

- Vai!! Poderás alcançar tuas tropas debaixo de nossa proteção, sem que nada te suceda. Mas antes de chegares lá, muitos dos teus soldados estarão mortos. - Emir Kara Ben Nemsi sobe à rocha e estende horizontalmente o braço direito. É o sinal para a artilharia entrar em operação!

- Não vás! - acudiu nervosamente o comandante dirigindo-se a mim. - Não tens o direito de atirar!

- Por que não? - perguntou Ali.

- Seria um assassínio hediondo, pois não nos podemos defender!

- Não seria assassínio, não, mas castigo merecido e desforra muito justa. Vocês nos atacaram sem antes nos declararem guerra; invadiram o nosso domínio armados de espadas, espingardas e canhões, a fim de nos exterminar. Agora, porém, que a artilharia está em nosso poder, agora que foram recebidos por nós na devida forma e agora que estão subjugados dizes que aquele que atirar comete um assassínio vulgar! Kaimakam encoleriza-te, mas não te exponhas ao ridículo!

- Soltarás imediatamente o nosso Makredsch!

- Não faltava mais nada! Então não compreendes que ele constitui represália ao meu emissário assassinado!

- Pretendes matá-lo?

- Talvez sim! Tudo depende ainda do acordo a que chegarmos em nossas negociações.

- Quais as exigências que me apresentas?

- Estou pronto a ouvir as concessões que me fazes!

- Concessões! Aqui vimos para impor!

- Já te pedi que não te expusesses ao ridículo! Dize-me primeiro qual o motivo que os levou a nos agredirem!

- Há alguns assassinos no meio de tua gente.

- Sei a que te referes. Afianço-te, porém, que estás mal informado. Não foram dois dos nossos homens que mataram um dos teus mas, ao contrário, três Osmanlis que assassinaram dois Dschesidis! Tomei todas as providências para comprovar esta afirmativa. Dentro de pouco tempo o Kia-jah (1) da localidade onde se desenrolou o fato, estará aqui, juntamente com pessoas das famílias das vítimas.

- Talvez se trate de outro fato!

- É o mesmo, mas o Makredsch adulterou a verdade. Ele não tornará a proceder desse modo! E mesmo que fosse tal como dizes, de forma alguma isso seria motivo para sermos atacados, de mão armada, em nossos domínios!

- Temos ainda um segundo motivo!

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(1) Alcaide.

 

- Qual?

- Vocês não pagaram ainda o Haradsch a que estão sujeitos.

- Já pagamos, sim! Dize-me o que tratas de Haradsch? Somos curdos livres; o tributo que pagamos, pagamo-lo espontaneamente. Já pagamos o imposto per capita, a que todo cidadão não mussulmano está sujeito para isentar-se do serviço militar. Agora queres ainda que paguemos o Haradsch, que na sua essência não é outro do que este mesmo tributo per capita! E se estivessem no seu direito, se realmente devêssemos algum imposto ao Mutessarif, seria isso razão suficiente para nos atacarem em pé de guerra? E o local da agressão precisava ser justamente Xeque Adi, onde atualmente se acham reunidas milhares de pessoas que não estão sujeitas a Mossul e que por isso não lhe devem cousa alguma? Kaimakam, tanto tu como eu sabemos muito bem o que pretende de nós o governador: dinheiro e presas. Não lhe foi possível, porém, nos roubar e saquear conforme esperava e por isso será melhor não falarmos mais nas razões que o induziram a esta façanha criminosa. Tu não és um jurista e muito menos um arrecadador de impostos! És um oficial e portanto falemos apenas no que se refere à tua função militar. Fala que escutarei!

- Estou incumbido de exigir a entrega dos assassinos e garantir a arrecadação do imposto em atraso; se não me atenderes, destruirei Xeque Adi e todas as localidades dos Dschesidis. São ordens que recebi do Mutessarif e que saberei cumprir!

- E feito isso levarás para Mossul tudo o que pertencer aos Dschesidis exterminados, não é assim?

- Tudo, tudo!

- É essa então a ordem que recebeste do governador?

- Tal qual!

- E dizes que saberás cumpri-la?

- Integralmente.

- Pois então cumpre-a!

O Bei ergueu-se do solo, o que significava estarem concluídas as negociações. O Kaimakam fêz um movimento para detê-lo.

- Que pretendes fazer agora, Bei?

- Tu vais destruir as aldeias dos Dschesidis e roubar os haveres de suas populações. Eu, na qualidade de governador dos Dschesidis, saberei proteger e defender os meus súditos! Fomos atacados sem prévias formalidades internacionais, conforme praxe em nações menos organizadas. Estás agora a defender este ato infame com argumentos que são formidáveis mentiras. Pretendes roubar e assassinar; destruir e arrasar; vocês até mataram o meu próprio emissário que mandei em caráter pacífico no intuito nobre de evitar perdas de vidas humanas e derramamenro de sangue. Esse ato é atentatório aos mais comezinhos princípios de Direito Internacional. Em vista disso tudo, não posso mais considerá-los como guerreiros e nada mais me resta senão tratá-los como ladrões vulgares e ladrões vulgares matam-se no próprio local do roubo, sem mais formalidades ou considerações de quaisquer espécies. Estamos entendidos! Volta para junto de tuas tropas. Por enquanto estás debaixo de minha proteção e te cercarei de todas as garantias. Depois, porém, cessará tal proteção e serás considerado um dos chefes da quadrilha de salteadores que invadiu o meu domínio e com eles perecerás também!

O governador dos Dschesidis abandonou a barraca e estendeu o braço em sentido horizontal. Sem dúvida alguma, há muito que os artilheiros esperavam avidamente pelo referido sinal: um tiro de canhão troou pelos ares seguido logo de outro.

- Que estás fazendo? - exclamou o Kaimakam horrorizado. - Rompes o armistício enquanto ainda me acho na tua companhia!

- Chegamos, por ventura, a algum armistício? Não te disse há pouco que estávamos entendidos? Ouves? São metralhas e granadas; as mesmas que estavam destinadas a nós; agora, porém, trocaram-se os papéis! Alá é grande e faz justiça; castiga os pecadores com as mesmas armas com que pecaram ou pretendiam pecar! Estás ouvindo a gritaria de tua gente? Vai, corre às suas fileiras e ordena-lhes o arrasamento de nossas aldeias!

Realmente o terceiro e quarto tiro parece terem produzido algum efeito. Isso se depreendia do berreiro infernal partido da esplanada do vale.

- Suspende o bombardeio, Bei Ali! Suspende, para que possamos prosseguir nas negociações!

- Tu cumpres as ordens do Mutessarif e eu o meu dever! Estamos entendidos, já te disse!

- O Mutessarif não deu ordem alguma a mim mas ao Miralai e agora constitui sagrado dever meu poupar a vida dos homens cujo comando assumi. Preciso tentar a sua salvação!

- Se persistires nesse propósito, estou pronto a reencetar as negociações!

- Então vem, voltemos para o interior da barraca. Mas suspende o fogo!

 

O ARMISTÍCIO

O Bei tirou o lenço de seu turbante e desfraldou-o para as posições ocupadas pelos seus combatentes. Depois tornou a entrar na barraca.

- Que exiges de mim? - perguntou o Kaimakam.

O Bei olhou pensativamente para o solo e depois respondeu:

- Não é contigo que estou encolerizado e por isso quero poupar-te. Qualquer acordo que fecharmos, constituirá a tua ruína, pois as minhas condições em qualquer caso serão desvantajosas para vocês. Por isso, para te isentar de quaisquer responsabilidades, realizarei as negociações diretamente com o próprio Mutessarif.

- Eu te agradeço muito, Bei.

O Kaimakam não parecia ser homem mau. Ficara satisfeito por haverem as coisas tomado aquele rumo. Daí o agradecimento ter partido visivelmente do seu coração sincero.

- Mas uma condição tenho eu a impor-te! - disse o Bei.

- Qual?

- Tu te considerarás, juntamente com a tua tropa, meu prisioneiro de guerra e permanecerás em Xeque Adi até o fim de minhas negociações com o Mutessarif.

- Aceito essa condição, pois posso cumpri-la. O Miralai foi o culpado de tudo. Agiu com lamentável imprudência.

- Entregarás então as armas?

- Isto seria afrontoso para os nossos brios militares.

- Mas achas que, na qualidade de prisioneiros de guerra, poderão ficar armados?

- Considerar-me-ei prisioneiro de guerra, e como tal me comprometo apenas a permanecer em Xeque Adi, sem nos evadirmos até que o Mutessarif haja resolvido a nosso respeito.

- A evasão seria mesmo a ruína. Custaria a vida de vocês todos!

- Bei, sou sincero e reconheço que a nossa situação é grave. Mas sabes de que são capazes mil homens no auge do desespero?

- Sei muito bem, mas afianço-te que nenhum se escaparia!

- Mas muitos dos teus tombariam também! Além disso não deves esquecer que o Mutessarif tem ainda os regimentos de linha e os de dragões a seu dispor, efetivo esse cuja maior parte ficou em MossuL Acrescenta a isso os reforços que ele receberia de Kjerkjuk, Diarbekir, Sulima-nijah e de outras guarnições, fora a artilharia que ainda lhe resta, e terás de reconhecer que, embora sejas momentaneamente o senhor da situação, não te manterias assim por muito tempo.

- Queres que renuncie eu a uma vitória e às vantagens dela decorrentes à simples perspectiva de que mais tarde serei derrotado? O Mutessarif que venha com os seus regimentos. Vou mandar dizer-lhe que te custará a vida qualquer ataque posterior que ele realizar contra o meu povo. E se ele tem ainda a seu dispor outros recursos em homens e munições para se assenhorear da situação, o mesmo se dá comigo para mantê-la. Não deves ignorar que a uma simples convocação minha, numerosas tribos de curdos levantar-se-ão em armas contra ele. Contudo eu anseio pela paz e não pela guerra. Tenho hoje reunido neste vale os Dschesidis de todo o Curdistão e das províncias limítrofes; fácil me seria acender entre eles o facho da revolta; mas não o farei, desde que o Mutessarif se disponha a respeitar os direitos dos meus jurisdicionados. Por enquanto ainda vou deixar as tuas tropas de posse das armas; mas prometi armas a um aliado e estas armas o Mutessarif é que irá fornecê-las!

- Quem é esse aliado?

- Nenhum Dschesidi comete a vilania de trair um amigo! Como eu ia dizendo, as tuas tropas ficarão de posse das armas, mas me fornecerás todas as munições de que dispões em retribuição aos mantimentos necessários à sua subsistência.

- Ora essa! Se eu te fizer entrega das munições, será o mesmo que depor as armas!

O Bei Ali riu.

- Pois bem, podes ficar também com as munições; mas fica certo de uma coisa: se as tuas tropas padecerem fome e me vierem pedir alimentos para elas eu só os fornecerei em troca de espingardas, pistolas, espadas e facas. Nessas condições não serão considerados como prisioneiros de guerra, pois imediatamente firmaremos um armistício.

- É viável a tua proposta e estou inclinado a aceitá-la!

- Vês como sou indulgente! Mas ouve as minhas condições: Permanecerás no vale Xeque Adi, sem a menor comunicação com o seu exterior; suspenderás todas e quaisquer hostilidades contra o meu povo; respeitarás o nosso santuário e as nossas residências; no primeiro ficam expressamente proibidos de entrar e nas últimas somente com licença expressa de minha parte; o armistício durará até receberem novas ordens do Mutessarif, ordens que só te poderão ser transmitidas na minha presença; a toda tentativa de fuga, embora uma só, isoladamente ou em grupos, a toda e qualquer transgressão das cláusulas agora estabelecidas, seguirá o rompimento do armistício, reiniciando-se o combate; conservarás a posição que atualmente ocupas e eu permanecerei na minha. Concordas?

Depois de muitas reflexões e de várias contrapropostas o Kaimakam aceitou as condições do armistício. Interessou-se muito pelo Makredsch e exigia a sua libertação, mas o Bei não o atendeu. Trouxeram papel e tinta para o local. Eu redigi as cláusulas do armistício e ambos assinaram, como representantes das duas partes: um pôs a sua assinatura individual no documento e o outro o seu Bukendim. (1).

Agora o Pali aguardava as novas ordens do Bei.

- Far-me-ás o favor de redigir uma carta ao Mutessarif? - perguntou-me o Bei.

- Com muito prazer. Que pretendes comunicar-lhe?

- Em primeiro lugar, a atual posição das suas tropas. Depois escreverás que pretendo conferenciar com ele e o espero aqui ou em Dscherraijah. Poderá vir acompanhado apenas de cinqüenta homens no máximo e deverá abster-se de quaisquer propósitos hostis. A reunião será efetuada amanhã até o meio-dia. Se ele faltar à reunião, matarei o Makredsch e farei as suas tropas sentirem o efeito de suas próprias metralhas e granadas! O mesmo ordenarei se souber que ele se acha animado do propósito de prosseguir nas hostilidades. Podes escrever isto?

- Sim.

- Confiarei a Pali fazer-lhe verbalmente outras comunicações especiais. Escreve o mais rápido possível para que ele possa partir já.

Alguns minutos depois me achava sentado no interior da barraca e, de papel sobre o joelho, escrevia à moda oriental, da direita para a esquerda, a carta para o governador de Mossul, que seria incapaz de imaginar que tal documento fora redigido pelo seu protegido. Uma hora depois, Pali, a galope, seguia a estrada que conduz a Baadri.

As festas no vale Xeque Adi foram bruscamente interrompidas, mas a indignação por esse fato não era tão intensa quanto a alegria de ver afastado o perigo que ameaçara a reunião dos peregrinos.

- E que vai ser agora da festa? - perguntei ao Bei Ali. - Os Osmanlis talvez permaneçam vários dias lá em baixo e os Dschesidis não devem esperar tanto tempo.

- Vou oferecer-lhes uma festa mais empolgante do que a que eles esperavam. Conheces ainda o caminho que segue para o vale do Idiz?

- Conheço sim.

- Tens tempo. Cavalga até lá e traze-me o Mir Xeque Khan com os Xeques e os Kawals. Vamos ver se ainda salvamos uma parte do corpo de Pir Kamek para enterrá-lo no vale do Idiz.

Era uma idéia que iria empolgar os Dschesidis e a mim interessava extraordinariamente assistir às cerimônias fúnebres dum Dschesidi. Levei apenas Halef comigo, deixando Buluk Emini.

Eu dissera, é verdade, que conhecia o caminho para o vale do Idiz, mas não viajara nunca de Xeque Adi para lá e sim de Baadri. O Bei julgara que eu tivesse seguido para lá, em companhia de Selek, passando por Xeque Adi. Não lhe esclareci essa circunstância pois queria ver se encontraria o vale sem conhecer a estrada. Não erraria o rumo e a senda que os Dschesidis tinham feito na véspera deveria estar ainda

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(1) Literalmente; - “Esta chancela sou eu em pessoa”.

 

muito nítida, portanto poderia trilhar por ela. Cavalguei descendo um dos cantos do vale até chegar num ponto acima do santuário. Tive que passar por numerosos Dschesidis que güarneciam as escarpadas. Depois desviei à esquerda, penetrando no mato. Para quem, como eu, possuía vistas apuradas, não se tornava difícil reconhecer a pista. Segui-a e alcançamos, daí a pouco, o ponto onde eu apeara com o meu intérprete. Aí se achava postada uma sentinela, com ordem de não deixar passar ninguém sem exibir autorização. Apeamos e deixamos os cavalos na elevação.

Depois descemos pelas escarpadas e, quando entramos no vale, este apresentava um extraordinário movimento. Milhares de mulheres e crianças haviam acampado naquele local pitoresco. Reses e cavalos pastavam na relva verde junto da esplanada; ovelhas e cabritos trepavam pelas rochas. Reinava, porém, o mais profundo, silêncio; todos falavam baixinho para que o esconderijo não fosse descoberto por algum vozerio imprudente. Junto ao arroio estava sentado o Mir Xeque Khan com os sacerdotes. Receberam-nos com grande alegria. Até agora haviam sabido apenas que o ataque dos turcos fracassara, mas um relato minucioso dos acontecimentos ninguém ainda fizera.

- Salvou-se o santuário?

Foi a primeira pergunta que o Khan me dirigiu.

- O santuário e todas as casas.

- Ouvimos o bombardeio. Houve muito derramamento de sangue?

- Apenas da parte dos Osmanlis.

- E dos nossos?

- Não ouvi dizer que um deles saísse ferido no combate. Morreram dois, mas não na luta.

- Quais foram?

- O Sarradsch (1) Hefi, de Baazoni e...

- Hefi, de Baazoni? Um homem devoto, trabalhador e valente. Não em luta? Como veio então a morrer?

- O Bei o enviara como emissário para entender-se com os Osmanlis e estes o fuzilaram. Fui obrigado a assistir impassível à cena, sem poder correr em sua salvação.

Os sacerdotes de mãos postas inclinaram as cabeças e permaneceram contritos a escutar-me. Apenas Mir Xeque Khan disse-me com um timbre grave na voz:

- Ele transubstanciou-se! El Schems não o iluminará mais aqui, pois ele foi-se para baixo de outro sol, num outro mundo, onde o veremos ainda um dia! Lá não existe nem morte, nem túmulo, nem dor, nem tristeza; lá tudo são luzes e delícias. Está junto de Deus!

Era tocante a maneira com que aquela gente recebera a notícia da morte de um amigo. Nenhuma palavra de ódio ao assassino! Aqueles sacerdotes guardavam luto mas acreditavam na transubstanciação do morto numa vida eterna. De uma tal devoção o Islã jamais seria capaz; ela só podia ser uma conseqüência de idéias e ensinamentos cristãos que os Dschesidis recolheram e conservavam.

- E quem é o outro morto? - perguntou o Khan.

- Ficarás horrorizado!

- Um homem jamais se horroriza da morte porque a morte é amiga do homem, o fim do pecado e o começo da bem-aventurança! Quem é?

__________

(1) Mestre-seleiro.

 

- Pir Kamek!

Ficaram como que imersos numa grande dor, mas não pronunciaram uma só palavra. Também agora foi Mir Xeque Khan quem usou da palavra.

- Ewlija dejischtirmis - O santo transubstanciou-se! - Chueda bujurdi - Deus assim o quis! Relate-nos a sua morte!

Narrei-lhes o doloroso acontecimento o mais minuciosamente possível. Todos me ouviram com profunda atenção. Depois pediu o Khan.

- Senhores, cultuemos a sua memória!

Inclinaram as cabeças. Rezavam? Não sei; vi, porém, que os olhos de muitos rebrilhavam de lágrimas e que a comoção era sincera! Dizem que só os alemães possuem no mais elevado grau aquela coisa que chamam de “sentimento” (1). Se isso é verdade, então aqueles Dschesidis se assemelhavam muito aos alemães. Quanto eu desejaria que o sol do cristianismo iluminasse a sombra dos seus vales e dourasse o cume de suas montanhas!

Só depois de algum tempo abandonaram o recolhimento e então pude falar-lhes.

- Agora o Bei Ali enviou-me para buscar os senhores. Ele vai ver se ainda consegue salvar alguns restos mortais do Pir Kamek, para realizar o seu sepultamento ainda hoje.

- Sim, isso constitui um dever sagrado que temos de cumprir. Os ossos do Pir não podem repousar no mesmo local onde estão os do Miralai.

- Receio que não possamos encontrar mais ossos, mas apenas cinzas!

- Então apressemo-nos!

Pusemo-nos a caminho. Acompanhavam-nos todos os sacerdotes e os Kawals; os faquires, porém, ficaram para vigiar o vale do Idiz. Quando alcançamos Xeque Adi e ao chegarmos pouco acima da barraca do Bei, falava este com um homem que enviara ao tenente-coronel para perguntar-lhe se ele consentiria que os Dschesidis procurassem, na fogueira, os restos do corpo do Pir. O Kaimakam respondera acedendo, com a condição apenas de nenhum dos participantes do enterro comparecer armado.

O Bei não podia acompanhar os Xeques, visto que a sua atividade estava toda concentrada em outros afazeres do momento. Pedi permissão para me reunir ao cortejo, o que prazeirosamente concederam. Quase iam esquecendo o principal: uma urna ou qualquer outra caixa para nela recolherem os restos do santo. O Bei lembrou-se também da urna.

- Mir Xeque Khan, lembra-te de que o oleiro Rassat, de Baadri, que adquiriu renome pela sua competência, fabricou-me uma urna para eu guardar os restos do meu pai, mais tarde, a fim de evitar que ele se confundisse com as serragens do madeiramento do caixão e se tornasse impuro? Essa urna é uma obra-prima daquele oleiro-artista e bem digna de recolher os despojos do santo. Ela está guardada em minha residência de Baadri e já enviei um homem para buscá-la. Este estará de volta antes de terminares os serviços junto à pira.

A procissão movimentou-se então vale abaixo. Passamos pela bateria e atingimos o local onde o Santo se sacrificara juntamente com o inimigo. Vimos um monte de

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(1) É a tradução mais aproximada do termo alemão Gefühl ao qual como a palavra portuguesa “Saudade”, não é possível dar-se-lhe o verdadeiro equivalente, noutros idiomas.

 

cinzas destacadas dos escombros da fogueira e já meio apagadas. Em frente à fogueira jazia o corpo do parlamentar assassinado. O calor das chamas destruirá o seu vestuário e apenas crestara-lhe o corpo. O cadáver foi removido, trabalho com que muito padeceu o nosso olfato.

As cinzas estavam já resfriadas. Munimo-nos de ferramentas nas casas adjacentes e em seguida polegada por polegada, principiamos o serviço de remoção das camadas de cinza. O trabalho exigia todo o cuidado, razão por que demandou muito tempo; nesse ínterim aproximou-se um Dschesidi que trazia pelas rédeas um animal carregado com a urna funerária. Esta tinha o formato de uma chaminé de lampião e sobre a tampa estava gravada a figura resplandecente do sol. No bojo da urna foram gravadas, a fogo, algumas legendas no idioma dos curdos.

Tinha a impressão de que seria impossível distinguir-se os restos do Santo no meio dos escombros da fogueira, mas me enganara. Depois de retiradas as cinzas, ficara apenas um monte distinto e para o qual fora atraída toda a atenção dos sacerdotes. Pareciam indecisos e o Xeque Khan chamou-me com um aceno.

Não era fácil examinar os montes de cinza. Éramos obrigados a tapar a boca e o nariz com as mãos. Tínhamos realmente os corpos dos dois mortos diante de nós. Estavam meio assados e meio carbonizados, reduzidos à terça parte de sua proporção normal, encolhidos horrivelmente. Achavam-se envoltos numa densa crosta formada pelo betume misturado com as cinzas.

- São os mortos - declarei. - Graças ao betume conseguirão sepultar o Santo.

- Mas qual deles é o Santo?

- Examinem.

Quis ver até que ponto ia a agudeza de espírito daquela gente. Examinaram, reexaminaram e não havia forma de resolverem a questão difícil, à primeira vista, porém, facílima para quem possui espírito de observação.

- É impossível distinguir o corpo do Pir, - disse o Khan, já meio desconsolado. - Só nos resta ou desistir de guardar-lhe as cinzas ou colocar na urna os corpos dos dois, o do nosso amigo e o do nosso inimigo, o do devoto e o do ateu. Ou quem sabe nos darás um melhor conselho Emir Kara Ben Nemsi?

- Sim, sei um meio de resolver o caso.

- Qual é?

- Guardaremos na urna apenas os restos do Pir!

- Mas já viste que não podemos distinguir um corpo do outro.

- No entanto é tão fácil fazer essa distinção. Este aqui é o do Pir e o outro, o do turco.

- Como chegas a esta conclusão? Podes provar o que afirmas?

- Posso, e com tanta segurança quanto desejares. O Pir não conduzia armas consigo; o Miralai, porém, usava uma espada, um punhal e duas pistolas. Não vês grudados no corpo carbonizado daquele ali o cano recurvado de uma pistola e a lâmina do punhal? Os cabos das referidas armas foram destruídos pelo fogo. E aqui bem por trás dele, no meio das cinzas, está de fora a ponta da espada. Logo, este é o corpo do Miralai; não pode haver a menor dúvida.

Os Dschesidis ficaram admirados de não terem chegado a uma conclusão tão simples quanto verdadeira. Todos concordaram com a minha opinião e apressaram-se em recolher os restos mortais do Pir e guardá-los na urna.

Durante todo o tempo que duraram as pesquisas, o Kaimakam, juntamente com os seus oficiais, estivera parado ali perto. A ele foi entregue o corpo do seu ex-superior e nós voltamos para a colina. Ao chegarmos, o Bei solicitou ao Khan que desse ordens para a realização das cerimônias fúnebres.

- Temos que adiá-las para amanhã. - declarou este.

- Por quê?

- O Pir Kamek era o mais devoto e o mais sábio de todos os Dschesidis; deverá ser sepultado com todas as honras a que tem direito e para isso hoje já é demasiadamente tarde. Vou dar instruções no sentido de lhe ser erigido um túmulo condigno, no vale do Idiz, o que só ficará concluído amanhã.

- Então precisarás de pedreiros e carpinteiros?

- Não. Faremos uma obra de simples penedos soltos, tão bem superpostos que dispensem o auxílio de argamassa para a sua junção. Toda mulher, toda criança poderá, de acordo com as suas forças, trazer uma pedra para o túmulo do Santo. Deste modo nenhum dos peregrinos deixará de prestar o seu concurso para a ereção do túmulo do transubstanciado.

- Mas eu preciso dos guerreiros para a vigilância dos turcos! - ponderou o Bei.

- Depois que uma parte deles tiver cumprido o seu dever de solidariedade, virão os outros, de modo que não será prejudicado o serviço de vigilância e nem a participação de todos na cerimônia fúnebre. Agora vamos deliberar sobre a configuração que daremos ao túmulo.

Como não me cabia participar nos preparativos para o enterro, procurei o meu intréprete para traduzir-me o manuscrito que o Pir me legara. Ele o havia escondido numa árvore ôca debaixo da qual nos abancamos, onde pude ouvir sem ser interrompido.

Nessa leitura, passou-se o dia e a noite estendeu o seu manto sobre Xeque Adi. Nas colinas que cercavam o vale ardiam fogueiras dos Dschesidis, uma após outra. Era impossível aos turcos fugir, mesmo que o Kaimakam pretendesse valer-se da escuridão para evadir-se com suas tropas. A noite decorreu sem novidade e pela madrugada Pali voltava de Mossul. Eu dormira na barraca do Bei onde ainda me achava quando o emissário chegou.

- Encontraste o Mutessarif? - perguntou-lhe Ali.

- Sim, senhor, já a tardias horas da noite.

- Que te disse ele?

- Primeiro ficou furioso e quis mandar matar-me a vergastadas. Depois convocou numerosos oficiais do seu Divan Effendisi (1), com os quais conferenciou durante longo tempo. A seguir permitiram-me que voltasse.

- Não estiveste presente à conferência?

- Não.

- Que resposta te deu depois o Mutessarif?

- Entregou-me uma carta para ti.

- Dá-ma!

Pali tirou do bolso um invólucro fechado com o Mohuer Mutessarifuen (2) que entregou ao Bei. Ali abriu-o e passou a lê-lo. No meio do grande manuscrito ________________

(1) Conselho.

(2) Selo da Governadoria.

 

estava metida uma carta lacônica e aberta. O Bei alcançou-me ambas as cartas dizendo:

- Lê tu, Emir! Estou ansioso por saber o que resolveu o Mutessarif.

 

TRAIÇÃO FRUSTRADA

A missiva fora redigida pelo escrivão da governadoria e assinada pelo governador. Nela este prometia estar na manhã seguinte, acompanhado de dez homens, em Dscherraijah e apresentava ao Bei a condição de fazer-se acompanhar também apenas com esse exíguo número de homens. Expressava a sua esperança em que as negociações iriam ter um termo favorável e honroso para ambas as partes e pedia que entregasse a carta aberta, inclusa, ao seu Kaimakam. Nesta era ordenado ao referido oficial que mantivesse as tropas em atitude pacífica, até receber novas ordens, poupar Xeque Adi e tratar os Dschesidis como amigos. Em postscriptum, porém, observava-lhe que “lesse e examinasse aquela carta com toda a atenção...”

O Bei. Ali meneou a cabeça satisfeito.

Depois de uma pausa, o chefe dos Dschesidis desabafou o coração com as seguintes palavras:

- Vencemos a partida e o Mutessarif recebeu uma lição de que jamais se esquecerá na sua vida. Não é isso também o que depreendes da carta, Emir? O Kaimakam receberá imediatamente a sua e amanhã cedo partirei para Dscherraijah.

- Por que entregar a carta ao Kaimakam?

- Pertence-lhe, pois a ele foi endereçada.

- Contudo é supérflua a entrega dessa correspondência, visto que ele já se dispôs a cumprir o que nela lhe é ordenado, independemente de ordens especiais do Mutessarif.

- Mas ele cumprirá com mais rigor ainda as cláusulas do armistício, desde que saiba ser esta também a vontade do Mutessarif.

- Confesso-te, porém, que esta carta provocou-me sérias suspeitas!

- Por quê?

- Ora, primeiramente porque ela não tinha a menor razão de ser. Depois, me soam estranhas as suas últimas palavras escritas em potscriptum! Por que deveria o tenente-coronel “ler e examinar com toda a atenção” a carta, que é tão simples e não encerra no seu texto nada de complicado ou digno de maiores estudos?!

- É fácil de perceber. O Mutessarif quis nos dar uma prova da boa vontade que o anima, mandando que o comandante geral leia com toda a atenção a sua ordem e a cumpra à risca!

- A ordem é tão simples que dispensaria aquela observação final, razão por que tenho cá as minhas desconfianças...

- Seja o que fôr, mas essa carta não me pertence; o governador, confiando na minha honestidade, entregou essa carta para mim, a fim de que chegue às mãos do seu oficial e ele há de recebê-la!

Era como se o acaso quisesse contribuir, de modo especial, para que essa resolução do Bei fosse cumprida, pois no momento um dos sentinelas chegou e avisou:

- Senhor, um cavaleiro vem subindo o vale!

Saímos do interior da barraca e reconhecemos depois no que se aproximava a figura do Kaimakam, que, sem escolta de espécie alguma, vinha procurar-nos. Esperamo-lo do lado de fora.

- Seni selamlar-im - eu te saúdo! - disse depois de apear-se, primeiro ao Bei e depois a mim.

- Chosch geldin-sen Efendi - Sê bem-vindo, Senhor! - correspondeu o Bei. - Que desejo te trouxe à minha presença?

- O de zelar pelos meus guerreiros, que não têm pão para o seu alimento.

Essas palavras foram ditas sem mais preâmbulos. O Bei sorriu levemente.

- Eu já esperava por isso! Mas anotaste que só te vendo pão em troca de armas?

- Sim, já me disseste. Mas estou certo de que em vez de armas aceitarás agora dinheiro!

- Aquilo que o Bei dos Dschesidis diz costuma sustentar! Tu precisas de víveres e eu de armas e munições. Fazemos a permuta do que nos falta e ambos ficaremos bem servidos.

- Esqueces-te de que eu preciso de armas e munições!

- E tu te esqueces de que eu preciso dos meus víveres para abastecer o meu povo! Neste momento estão reunidos muitos milhares de Dschesidis neste vale e todos querem comer e beber. E para que precisas tu de armas? Não nos tornamos amigos?

- Sim, mas tão somente até o término do armistício.

- Creio que também por mais tempo. Emir peço-te que leias a carta do governador para ele ouvir!

- Recebeste alguma carta dele? - perguntou o tenente-coronel, apressado.

- Recebi, sim. Enviei-lhe um emissário que voltou há pouco. Lê, Emir!

Li a carta que ainda se achava em meu poder; pareceu-me perceber na fisionomia do Kaimakam um gesto de decepção.

- Então será firmada a paz entre nós! - disse o oficial.

- Sim, e até lá tu te portarás como nosso amigo, conforme expressamente te recomenda o Mutessarif.

- Expressamente?

- Sim, ele incluiu uma carta dirigida a ti, que agora te entregarei.

- Uma carta? Dirigida a mim? - exclamou o oficial. - Onde está?

- Nas mãos do Emir. Pede-lhe.

Eu já me dispunha a fazer-lhe entrega da missiva, mas a maneira agitada com que ele estendeu o braço para agarrá-la deixou-me ainda mais desconfiado.

- Permite que a leia para ti!

Li-a até antes da observação final que me causara suspeita. Finda a leitura o tenente-coronel perguntou:

- É só isso? Não escreveu mais nada o Mutessarif?

- Mais duas linhas. Ouve-as.

Li também a observação final, conservando os olhos meio levantados para ele. Subitamente ele arregalou os olhos e então já eu não tive mais dúvidas de que aquelas linhas encerravam uma ordem oculta.

- Esta carta me pertence. Quero-a!

A essas palavras ele avançou tão rapidamente com a mão que mal tive tempo de encolher o braço para que não arrebatasse a carta.

- Por que essa pressa, Kaimakam? - perguntei-lhe, encarando-o face a face. - Encerra esta carta algo tão importante que te leva a perder o domínio sobre ti próprio?

- Nada, absolutamente nada encerra a mais do que leste, mas o documento me pertence!

__ O Mutessarif te enviou esta carta por intermédio do Bei e a este compete resolver se dela te faço entrega ou se te ponho simplesmente ao par do seu conteúdo.

- Mas ele já te disse que a entregues para mim.

- Sim, mas como este documento, à vista da tua atitude, parece encerrar algo mais importante do que demonstra, permite-me que o examine com mais atenção!

A minha suspeita se confirmava cada vez mais. Em vez de aceder logo, que é o que deveria fazer caso estivesse com a consciência tranqüila, sentou opor obstáculos ao exame da carta. Contra a luz do sol examinei o papel, sem que nisso encontrasse algum ponto de partida para a confirmação integral de minha desconfiança. Apalpei e cherei o papel; debalde também. Depois coloquei-o horizontalmente com a superfície para cima, de modo que nele pudesse bater o sol. Foi então que divisei alguns caracteres, entre as linhas escritas, visíveis apenas a olhos muito apurados.

- Pois fica sabendo que não receberás esta carta! - declarei formalmente ao Kaimakam.

- Por que não?

- Porque ocultos entre as linhas escritas, há outros caracteres legíveis, que vou examinar com mais minúcia!

- Enganas-te, Efêndi!

- Não me engano, não! Para quem possui boa visão os caracteres acham-se até bem visíveis. A comunicação secreta que o Mutessarif, burlando a boa fé do Bei, ousou fazer-te, vou lê-la com toda precisão, colocando o papel nágua!

- Pois faze essa experiência! - respondeu ele visivelmente satisfeito.

- Agora a tua calma te traiu, Kaimakam! Não vou colocar o papel nágua, mas sobre o fogo!

Eu acertara. Vi-o pelo mal contido susto que lhe transpareceu na fisionomia.

- Assim queimarás e inutilizarás a carta! - observou-me.

- Não tenhas receios! Um Efêndi do ocidente sabe lidar com essas coisas.

O Bei mal podia conter-se de pasmo.

- Estás realmente convencido de que essa carta contém alguma ordem secreta?

- Manda acender um fogo que logo te provarei!

Pali ainda se achava presente. A um aceno do Bei ele juntou arbustos secos pelo chão e os acendeu. Acocorei-me junto ao fogo e coloquei o papel acima das chamas. Nisso o Kaimakam, num verdadeiro salto de tigre, chegou-se ao fogo e tentou violentamente arrebatar-me o documento. Eu já esperava por esse gesto seu e desviei-me, fazendo com que ele caísse estirado ao solo. O Bei ajoelhou-se sobre ele.

- Contém-te, Kaimakam! - exclamou o chefe dos Dschesidis. És um homem falso e vieste até aqui solicitar-me prévias garantias e agora considera-te meu prisioneiro!

O oficial reagia quanto lhe era possível. Éramos, porém, três contra um e não demoraram a nos acudir vários Dschesidis, que se achavam pelas imediações. O oficial foi desarmado, algemado e conduzido para o interior da barraca.

Afinal pude terminar a minha experiência com mais calma. Coloquei o papel acima das chamas e os caracteres das entrelinhas tornaram-se bem legíveis.

- Bei Ali, estás vendo como eu tinha razão.

- Emir, tu és um feiticeiro!

- Não sou feiticeiro, não! Mas conheço os processos de tornar legíveis tais caracteres.

- Oh, Efêndi! Grande é a sabedoria dos Nemtsches!

- Há materiais com os quais se fabrica uma tinta que seca logo depois de se escrever com ela, até que por outro meio se provoque a sua visibilidade. A ciência que descobriu esse meio, chama-se Química. Esta ciência é mais cultivada no Ocidente do que aqui e daí a razão de nos acharmos muito mais adiantados. Conhecemos muitas espécies de escritos secretos que dificilmente serão descobertos e decifrados. O processo, porém, empregado para a feitura dessa carta é tão simples que não demanda lá muita inteligência para desvendá-lo. Adivinha com que material foram escritas essas letras?

- Dize!

- Com urina.

- Impossível!

- Se escreveres com urina de animal ou de gente, as letras somem-se, assim que esse material seca. Mas se colocares o papel sobre chamas os caracteres tornam-se escuros e legíveis.

- Afinal, que rezam as palavras escritas com urina nessa carta?

- “Aí chegarei depois de amanhã para derrotá-los!”

- Mas é isso verdade? Não estás equivocado?

- Assim está escrito!

- Muito bem, dá-me a carta!

Agitadíssimo o governador dos Dschesidis passou a caminhar de um lado para outro; em seguida parou novamente diante de mim.

- Isto é ou não é uma inominável traição, Emir?

- Ê uma grande perfídia!

- Não deveria eu esmagar esse tal de Mutessarif? Está em minhas mãos fazê-lo!

- Então terias que te haver com o Padixá.

- Efêndi, os russos têm um ditado que diz: “O céu é alto e o tzar está longe!” - O mesmo se dá aqui em relação ao Padixá. Eu sairei vencedor!

- Mas farás verter rios de sangue, Bei. Não me disseste, entretanto, ainda há pouco, que amavas a paz?

- Amo-a, realmente, mas é preciso que me deixem também viver nela! Esses turcos vieram com o propósito preconcebido de nos roubar a liberdade, a vida e os haveres; não obstante até aqui os poupei, quanto me foi possível. Agora tramam nova traição, nova ignomínia! Então não devo reagir?

- Deves reagir, sim, mas não de espada em punho!

- Como então?

- Com esta própria carta. Apresenta-te com ela diante do Mutessarif e ele estará derrotado!

- Ele me atrairá a uma emboscada a fim de aprisionar-me se eu seguir amanhã para Dscherraijah!

- E quem te impede de fazer o mesmo com ele? Isto ser-te-á mais fácil do que a ele, que ignora estares de posse do seu segredo.

O Bei olhou fixo para o chão durante algum tempo e depois respondeu:

- Vou conferenciar com o Mir Xeque Khan. Irás comigo até o vale do Idiz?

- Com muito prazer!

- Mas antes disso vou tornar inofensiva aquela gente lá em baixo! Não entra na barraca comigo, espera-me aqui fora.

Por que não queria ele que o acompanhasse ao interior da barraca? Sua mão repousava no cabo do punhal e seus olhos brilhavam resolutamente. Pretendia ele evitar que eu o impedisse de perpetrar algum ato de vingança? Estive bem meia hora à sua espera e durante esse tempo percebi tons coléricos de uma discussão acalorada. Finalmente voltou. Trazia na mão um papel, que me entregou.

- Lê! Quero saber se está isento de falsidades!

Continha uma ordem, escrita em poucas palavras, determinando que o oficial turco a quem a mesma fosse exibida, entregasse imediatamente ao Dschesidi portador da referida ordem todas as armas e munições da tropa.

- Não, nesta não há intenção oculta, nem ordem secreta. Como conseguiste isso?

- Se não me atendesse, eu o teria mandado fuzilar logo e ao Makredsch, reiniciando, depois, seriamente, o bombardeio geral. Dentro de uma hora todos estariam exterminados.

- E o Kaimakam continua como prisioneiro?

- Sim. Será guardado de sentinela à vista juntamente com o Makredsch.

- E se as tropas não se submeterem a essa condição?

- Então concretizarei a ameaça com que já estou cansado de os intimidar. Fica aqui até eu voltar e verás como os turcos me respeitarão!

 

DESARMANDO OS TURCOS

Distribuiu ainda algumas ordens ao seu pessoal e depois desceu para o local onde se achavam assestadas as peças de artilharia. Dentro de dez minutos todos os Dschesidis estavam prontos para o combate. Os atiradores estavam estendidos em linha defronte aos seus respectivos esconderijos e os artilheiros postados junto aos canhões. Depois o entrincheiramento abriu-se num ponto para dar passagem a duzentos Dschesidis e a trinta muares cargueiros. Eram estes em sua maior parte os que apreendêramos quando tomamos a artilharia. A bateria fêz alto a certa distância, ao passo que o seu chefe seguia para o local, onde se encontravam os oficiais dos Osmanlis.

De meu posto podia observar tudo o que se passava lá embaixo. As negociações duraram muito tempo. Depois todos os soldados invasores entraram em forma, marchando mais ou menos até o ponto em que ficara a bateria, onde depuseram as armas. Isso não decorreu lá em muita ordem e nem tão calmamente, visto que foi necessário obrigar a muitos turcos a entregar suas espadas e pistolas. Mas tudo não passou de vãs discussões, pois os invasores estavam certos de que toda e qualquer resistência que opusessem seria interrompida a metralha e granadas.

Após uma hora de ausência, voltou o Bei Ali. Vinha acompanhado dos muares carregados com as armas e munições tomadas aos turcos, as quais iam ser transportadas para o vale do Idiz. Também o Kaimakam foi conduzido por alguns guerreiros a um local seguro. Era este o mesmo onde se achavam o rotundo capitão e o esguio tenente de artilharia, gozando a agradável companhia do Makredsch. Lá o capitão e o tenente poderiam aguardar as suas promoções a “posições elevadas e fumar somente fumos de Schiras”!

Pusemo-nos a caminho. Halef nos acompanhou. Não vi o Baschi Bozuk, pois de tanto tédio resolvera dar um passeiozinho pelos arredores, montado no seu inseparável burrico. A caminho para o Idiz encontramos uma grande coluna de Dschesidis que regressava. Haviam prestado os seus serviços na ereção do túmulo de Pir Kamek e agora iam render os outros companheiros, para que estes pudessem também cumprir com aquele dever de piedade. Disseram-nos que os serviços iam já bem adiantados.

À entrada do Idiz deparamos com um colossal movimento de povo. No meio da esplanada, as mulheres moíam farinha, com o auxílio de duas pedras, e outras fabricavam pães nos fornos improvisados com pedras; ainda outras se achavam ocupadas em fazer archotes e consertar as lanternas que de véspera foram trazidas de Xeque Adi. Mas o maior borborinho de gente se notava na parte superior do vale, onde o túmulo estava sendo construído. Este ia ter a configuração de uma formidável pirâmide cujo pedestal ficava de encontro à parede rochosa do vale. A base do túmulo era constituída de grandes penedos soltos para cujo transporte e colocação foi necessária a força conjugada de muitos homens. No meio ficava uma abertura em forma de sol, onde seria colocada a urna funerária. Centenas de obreiros trabalhavam na construção; uns rolavam pedras enormes para o local e outros, como esquilos, saltitavam pelas rochas em busca de penedos frouxos.

Dos sacerdotes, alguns dirigiam a obra e outros nela trabalhavam como qualquer Dschesidi menos graduado. Mir Xeque Khan estava sentado nas proximidades do túmulo. Dirigimo-nos a ele. O Bei relatou-lhe as ocorrências do dia e mostrou-lhe as duas cartas do Mutessarif. O Khan ficou imerso em profunda meditação; depois perguntou:

- Que pretendes fazer, Bei?

- Tu és mais idoso e o mais sábio entre nós! Vim ouvir teus conselhos!

- Dizes que sou o mais idoso e tens razão. Mas não te esqueças de que as pessoas idosas fazem jus ao descanso! Dizes ainda que sou o mais sábio dos Dschesidis. A maior sabedoria do mundo consiste em pensar no Onipotente, no Todo Bondade! Ele dá força ao fracos; protege os oprimidos; Ele não quer que derramemos o sangue dos nossos irmãos.

- São esses turcos nossos irmãos? Eles que como ferozes animais de presa, assaltam o nosso povo?

- São nossos irmãos, sim, apesar de não nos tratarem como tais. Matas a um irmão que te quer mal?

- Não!

- Fala-lhe amável ou severamente, conforme as circunstâncias, mas jamais exijas dele o sacrifício da vida! Assim, pois falarás com o Mutessarif!

- E se ele não me ouvir?

- O Todo Misericordioso deu ao homem juízo para pensar e coração para sentir. E aquele que se negar a ouvir as palavras, aquele que não considerar os sentimentos do seu irmão, é porque abandonou o Misericordioso e só então é que a sua cólera e o seu castigo cairá sobre ele!

- Mir Xeque Khan vou agir conforme as tuas sábias palavras!

- Portanto repito-te minha pergunta: Que pretendes fazer?

- Partir para Dscherraijah acompanhado de dez homens apenas, mas mandarei seguir-me uma coluna de guerreiros suficientemente numerosa para aprisionar o Mutessarif. Antes, porém, isto é, hoje ainda, enviarei batedores a Mossul, Kufjundschik, Telkeif, Baawiza, Raz Ul Aiina e Khorsabad, os quais me informarão em tempo dos planos organizados pelo Mutessarif. Falarei em paz com ele, mas se me negar a ouvir procederei severamente. E se nem me atender, mostrar-lhe-ei a carta secreta e farei um sinal para o prenderem. Enquanto estiver com ele, a minha gente cercará Dscherraijah. Ele não me escapará!

- E quem governará Xeque Adi durante a tua ausência?

- Aceitas a investidura?

- Aceito.

O modo como agiam era simples e tocante. O regente temporal dos Dschesidis entregava ao espiritual as rédeas do governo, sem que em tal gesto se notasse o menor resquício de inveja, o menor vestígio de desconfiança ou despeito. “Aceitas a investidura?”, perguntou simplesmente um e “Aceito” respondeu o outro. Que impressão horrível não causaria entre os Adoradores do Diabo a palavra “Luta Cultural”!

Conferenciaram apenas a respeito do abastecimento das tropas turcas aprisionadas e sobre as comemorações fúnebres que se iam realizar. Enquanto os dois deliberavam, andei de grupo em grupo a ver se conseguia adquirir novos conhecimentos lingüísticos entre os curdos. De repente senti que alguém se aproximava por trás de mim, enquanto me falava, ofegante:

- Desvia-te, Sídi!

Virei-me. Era Halef, que empregava todas as suas forças em rolar uma enorme rocha.

- Que fazes aqui? - perguntei-lhe admirado.

- A minha contribuição para o monumento.

- E será aceita? Não és Dschesidi!

- Aceitam de bom grado. Já me informei a respeito.

- Neste caso também vou trazer uma pedra!

Não muito longe de nós, jazia solto um enorme bloco de granito. Larguei as armas e me dispus a rolá-lo para o local do túmulo. O meu tributo foi aceito com grande satisfação e demonstrações de agradecimento pelos Xeques e, depois de haver eu gravado o meu nome na pedra, com o auxílio da ponta do punhal, foi esta erguida por uma espécie de guindaste improvisado com cabos de aço a um local exatamente acima da figura do sol

Entrementes o Bei concluiu a tarefa que o trouxera a Xeque Adi e, pronto para o regresso, perguntou-me se desejava acompanhá-lo ou preferia ficar no Idiz.

- De que modo poderei observar melhor as comemorações fúnebres?

- Se fores comigo, - respondeu. - A urna será transportada em extensa procissão, à luz dos fachos e das lanternas, de Xeque Adi para este vale.

- Mas pensei que ela já se achava aqui.

- Não; acha-se dentro de água fresca no mato e será ainda depositada no santuário antes de ser colocada no túmulo.

- Não obstante a presença dos turcos?

- Eles não nos embaraçarão as cerimônias.

- Então voltarei contigo.

- Tens ainda tempo até a noite. Estás disposto a dar-me uma demonstração de amizade?

- Com muita satisfação, desde que esteja ao meu alcance.

- Tu sabes que prometi armas ao chefe dos Curdos Badinans. Acharias o local de sua choupana?

- Muito facilmente até. Creio que nem é preciso cavalgar até lá, pois ele pretendia mandar ocupar os vales adjacentes. Além disso, já está mesmo em tempo de lhe enviar notícias.

- Queres encarregar-te disso?

- Pois não!

- E também levar-lhe as armas prometidas?

- Se me confiares esta missão!

- Entregar-lhes-ás cem espingardas e as respectivas munições. Três muares cargueiros bastam para conduzir tudo. Quantos homens precisas para acompanhar-te?

- É de se esperar algum ataque ou quaisquer outras atitudes hostis?

- Não.

- Dá-me então apenas dez guerreiros. Levarei também comigo ao Mohammed Emin que lá vem descendo a colina.

Soubera há pouco que o Xeque de Haddedihn saíra para caçar. Nesses últimos dias eu nem conseguira falar com ele. Ele aparecera o menos possível em público, a afim de que sua presença não constituísse objeto das palestras de todos. Além disso ele possuía ainda um certo preconceito contra os Adoradores do Diabo, razão por que aceitaria satisfeito o convite de seguir comigo.

Pouco tempo depois, os muares estavam carregados e nós empreendíamos à viagem. Paramos ligeiramente em Xeque Adi e de lá, tomando à esquerda, entramos na estrada que conduz a Kaloni. A minha suposição não falhara. Já pouco além de Xeque Adi alcançamos a primeira colina ocupada pelos Curdos Badinans. Fomos conduzidos à presença do seu chefe que, desta vez, dispensou-me um tratamento mais respeitoso. Tive que me demorar com ele e tomar uma refeição em sua companhia, refeição que a sua própria esposa nos prepara. Mostrou-se muito satisfeito com a remessa de armamento e de um modo especial com a espada do Kaimakam, um presente extra que lhe enviara o Bei. Mohammed Emin agradou-se de tal modo dos Curdos Badinans que resolveu ficar aqui até eu voltar, muito embora não soubesse o idioma dessa gente. Não me opus a essa decisão, visto que a sua presença em Xeque Adi poderia ainda ser notada pelos turcos e então fracassaria o verdadeiro objetivo de nossa ida a Amadijah. Voltei, pois, sem ele.

Anoitecia, quando vi novamente o Bei e lhe dei notícias dos Badinans. Notei que os turcos haviam recuado mais para o centro da esplanada, a fim de deixar livres as redondezas do santuário.

- Quando começarão as solenidades? - perguntei.

- Assim que escurecer. Leva a tua espingarda, pois serão desfechados muitos tiros!

 

OS FUNERAIS DE PIR KAMEK

Estava curioso por ver o enterro e convencido de que antes de mim nenhum europeu havia assistido a uma cerimônia fúnebre de um membro de remarcado relevo entre os Adoradores do Diabo. Sentei-me a contemplar o vale até que escureceu. As fogueiras do acampamento ardiam pelos arredores e do santuário erguia-se pouco a pouco uma dupla pirâmide de luzes, tal qual sucedera na primeira noite que passei em Xeque Adi. Também colocaram lanternas nas duas portas do sepulcro.

- Vamos! - convidou-me o Bei que na companhia de alguns Dschesidis mais chegados a ele, montava a cavalo.

O Baschi Bozuck não quis ir junto. Halef nos acompanhou. Descemos o vale e paramos defronte ao santuário, que se achava profusamente iluminado. O local onde ele se erguia foi guarnecido por duas linhas de Dschesidis armados, a fim de impedir a aproximação de qualquer turco. No interior do santuário já se encontrava o Mir Xeque Khan com todos os sacerdotes; a outros, além do Bei e eu, não era permitida a entrada naquele templo. No pátio interno se achavam duas alimárias jungidas uma a outra, carregadas com uma liteira onde seria colocada a urna para ser transportada. Ao redor desses dois muares se achavam formados os sacerdotes. A nossa aproximação, eles começaram a cantar lentamente uma canção monótona em cujo texto repetiam-se várias vezes as palavras Dschan-dedim “entrego minha alma”. Depois dessa cerimônia inicial, deram aos animais água fresca e alguns grãos de milho, o que significava que aquele a quem transportavam iria fazer uma longa viagem. A seguir, o Mir Xeque Khan fêz alguns sinais com a mão, que eu não compreendi, e os sacerdotes entoaram outro cântico, mas desta vez mais harmonioso. Possuía quatro estâncias cada uma das quais começava com as palavras Tu Chode dehabini, keif inim - “Tu amas a Deus e gozáras do descanso eterno”. Infelizmente, porém, eu compreendia muito pouco do idioma-curdo para entender todos os versos.

Quando terminou aquele cântico, o Khan fêz novo sinal, colocando-se à frente; dois Xeques pegaram os animais pelas rédeas, que foram seguidos por uma fila dupla dos demais Xeques e Kawals, e aos quais o Bei e eu nos juntamos. O préstito se pôs em movimento e, ao sair do templo, foi saudado pela guarda com uma salva.

Imediatamente das colinas detonaram centenas e centenas de tiros a anunciar que a procissão se pusera em marcha para o vale do Idiz.

Marchamos lenta e compassadamente e quando chegamos no caminho do vale, deparamos com um quadro atraente. Os Dschesidis um a um, a trinta passos de distância, formavam em dupla linha desde Xeque Adi até o vale do Idiz. Cada um daqueles homens empunhava um archote e cada qual, descarregando a espingarda, seguia em fila com a procisão. Deste modo formou-se um préstito, que aumentava a cada tiro detonado. As luzes dos archotes coloriam de modo indescritível a escuridão do bosque, em sua maior extensão formado por frondosos carvalhos, e o troar das salvas quebrava o silêncio. Verdadeiramente deslumbrante era, porém, o aspecto do vale do Idiz. Este parecia-se mais a uma formidável cratera vulcânica a jorrar chamas no meio das quais errava uma multidão de espíritos. Milhares de vozes, em uníssono, nos deram as boas vindas e, segundos depois, as luzes se formavam pelos dois flancos da esplanada. Esta se achava iluminada como se fosse dia claro. O maior foco de luz, porém, era formado pelas duas piras acesas de cada lado da pirâmide sepulcral, que se erguia à orla da mata. Apoderou-se de mim o doce temor que nos abate e ao mesmo tempo também nos anima o coração, quando este é tocado por algo de elevado que o nosso mundo espiritual ainda não nos revelara.

No momento em que os dois muares chegaram ao túmulo, cessaram as salvas, e um profundo silêncio caiu sobre o vale. A urna foi deposta e presa ao cabo de aço. Outro cabo colocado por baixo da urna impedia que esta batesse contra as pedras que formavam a pirâmide. O Mir Xeque Khan fêz um aceno e o cabo foi puxado. A urna foi subindo, subindo sempre até atingir a configuração do sol. Os sacerdotes pegaram então do cabo e a colocaram no compartimento a ela destinado.

A seguir, o Khan fêz sinal que iria falar. Proferiu um breve sermão. Suas palavras calmas, inteligíveis e insinuantes ressoaram em todo vale e, muito embora nada entendesse eu de seu sermão, sentia-me comovido diante daquela cerimônia fora do comum. Finda a predica, o coro de sacerdotes se fêz ouvir num cântico simples e melodioso, do qual apenas compreendi a introdução Ro debele - “O sol está surgindo”. Depois todos se conservaram de mãos postas e troou uma salva como igual jamais eu ouvira.

Com isso, estavam terminadas as cerimônias fúnebres propriamente ditas. Agora, porém, é que começava a movimentar-se de fato a vida do vale do Idiz. Jamais poderei descrever exatamente o que foi aquela noite grandiosa, noite das chamas, noite dos fachos luminosos entre rochas que pareciam galgar aos céus, noite das lamentações, das interrogações misteriosas dos oprimidos, dos perseguidos, noite dos que se converteram a uma forma de adoração, cuja essência era a ânsia por aquela luz que ou-trora iluminara a estrada aos três Xeques, que talvez sairam da mesma terra onde agora eu me achava, para irem a Belém, e diante do presépio fazer a sua conversão: “Vimos Sua estrela no Oriente e viemos para adorá-Lo!”

Estive sentado com os sacerdotes até depois da meia-noite. Em seguida foram apagados os fachos e as fogueiras extinguiram-se. Apenas as duas piras do monumento ardiam ainda quando, enrolado no albornós, procurei acomodar-me debaixo de uma árvore para dormir. Lá em cima estava a urna com os restos do Santo. Aquele Mirdes-Scheitan fora o mais culto e instruído entre todos os seus irmãos de crença e no entanto não soube encontrar o caminho da Verdade.

Oh! Quão felizes são aqueles cujo berço está exatamente neste caminho! E no entanto, muitas vezes dificilmente eles o reconhecem e avaliam. Fechei os olhos e finalmente consegui adormecer: mas sonhei com salvas, com fachos luminosos, com a urna de onde saltavam caveiras a dansar, rosnando, em torno de mim, um cristão. Quiseram agredir-me, mas apareceu Pir Kamek que os afastou de mim dizendo:

- Ele possui um Kitab santo onde está escrito: Oghuldschiker, stzi oranize de sein-iz - “Meus filhos amai-vos uns aos outros!”

 

O presbítero-rei

 “Nós, Presbítero João, com a Graça de Deus e de Nosso Senhor Jesus Cristo, rei dos reis, em Alexios Komenos, governador de Constantinopla. Saúde e feliz desenlace.

Chegou ao conhecimento de nossa Majestade que ouviste falar de nossos esplendores e das nossas grandezas. O que desejamos saber é se estás ligado a nós na verdadeira fé e sobretudo se crês em Nosso Senhor Jesus Cristo.

Se desejas saber a extensão e magnificência do nosso poder, a área territorial de nossos países, então fica sabendo que somos Presbítero João o servo de Deus: superamos em riquezas a tudo que se acha debaixo do céu, e em virtudes e poder, a todos os reis do mundo. Setenta reis estão obrigados a pagar-nos tributos. Somos um cristão fervoroso, amparamos o protegemos por meio de esmolas a todo o cristão pobre que se achar ao alcance de nossa mercê. Realizamos um voto, conforme convém ao renome de nossa majestade, de visitar o túmulo de Nosso Senhor, à testa de um grande exército e lutar contra os inimigos da Cruz de Cristo, a fim de humilhá-los e elevar assim a Seu santo nome.

A nossa magnificência reina sobre as três Índias e o nosso domínio estende-se até além da extrema Índia, onde repousa o corpo do apóstolo Tomaz; de lá estende-se sobre o deserto que se esplana em direção ao oriente, de onde segue pelo poente, até Babilônia, a abandonada, e ainda além, até a torre de Babel.

Setenta e uma províncias seguem nossa orientação, das quais algumas são províncias cristãs e cada uma delas possui o seu rei próprio. E todos estes reis nos pagam tributos. Em nossos reinos a fauna é riquíssima vendo-se nela representadas quase todas as suas variedades que existem debaixo dos céus; há elefantes, dromedários, camelos, etc. Em nossos países jorra leite e mel. Numa parte dos meus reinos não há veneno que consiga medrar; na outra viceja toda a sorte de pimentas; ainda numa outra crescem densos macegais, que mais se assemelham a matas fechadas, macegais que estão repletos de ofídios de todas as espécies. Lá existe também um lago arenoso sem água. Três dias de viagem além desse lago, elevam-se monumentais montanhas riquíssimas em pedreiras. Entre as citadas montanhas fica situado um vasto deserto por entre inóspitas colinas. Por baixo destas, no subsolo, corre um arroio inacessível, que desemboca num rio procurado pelos nossos súditos que nele colhem pedrarias preciosas em grande profusão. Nas adjacências desse rio estabeleceram-se dez tribos de judeus, os quais, embora afirmem possuir o seu próprio rei, passam por cima da autoridade deste para se tornarem, como ele, nossos servos e tributários.

Numa outra província dos nossos reinos, situada nas proximidades da zona tórrida, há vermes que em nosso idioma chamam-se salamandras. Esses vermes só podem viver no fogo e formam casulos semelhantes aos formados pelos bichos da seda, casulos que são tecidos pelas damas de nossa corte e fornecem-nos os vestuários. Mas só podem ser lavados em fogo claro.

À frente do nosso exército são conduzidas treze cruzes de ouro e pedras preciosas; mas quando saímos sem a comitiva de Estado, conduzimos à frente das tropas apenas uma cruz, que não é tecida de ouro e pedrarias, para que sempre tenhamos presente a imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo; levamos ainda um vaso de prata estofado de ouro para que todos saibam que somos o rei dos reis!

Anualmente visitamos o corpo de São Daniel, sepultado no deserto da Babilônia. O nosso palácio é construído de ébano e madeira de Schittim, o que impede de ser atingido pelo fogo. De cada extremo do telhado pendem duas maçãs de ouro, em cada uma das quais acham-se encrustados dois carbúnculos para que o ouro resplandeça durante o dia e as maçãs iluminem à noite. Os portões principais são trabalhados em chifre misturado com sardônia, a fim de impedir que no palácio entrem venenos, e os portões menores são feitos de ébano. As janelas são de puro cristal, as mesas de ouro maciço e ametista e as colunas que as sustentam de puro marfim. O nosso aposento de dormir constitui uma admirável peça artística trabalhada em ouro, prata e toda sorte de pedrarias preciosas. Nele arde permanentemente um vaso com incenso. A nossa cama é de safira. Possuímos as mais lindas mulheres. Diariamente reunimo-nos a palestrar trinta mil pessoas, fora os hóspedes eventuais. E toda essa gente percebe subsídios de nossas arcas, destinados ao forrageamento das montarias e à aquisição de outras utilidades. Durante todo o mês e seguindo rigorosamente uma escala organizada para tal fim, somos servidos por sete reis, sessenta e cinco duques e trezentos e sessenta e cinco condes. Em nosso refeitório, sentam-se diariamente à mesa, à nossa direita doze arcebispos e à nossa esquerda vinte bispos; além desses, o patriarca de Santo Tomaz, o protopapa de Salmas e o arquiprotopapa de Susa, cidade em que se acha a sede do renome de nossa Majestade e o nosso palácio imperial. Sacerdotes em número igual aos de dias que contém o ano cuidam da administração espiritual de nossa capela. O nosso copeiro-mor é um Primaz e rei; o nosso mordomo um arcebispo e rei; o nosso camareiro-mor, um bispo e rei; o nosso marechal da corte, um arqui-mandarim; o nosso cozinheiro um abade e rei; nós, porém, adotamos um título menos pomposo para, deste modo, realçar ainda mais a nossa grande modéstia e humildade!”

Assim reza, em excerto, uma carta que o presbítero João, imperador dos tártaros, personagem histórica duvidosa, enviou ou teria enviado ao imperador da Grécia. Apócrifa ou não, o caso é que esta carta envolve além de originalidades pitorescas que encontram sua razão de ser na obscura mentalidade predominante em séculos remotos, alguns fatos positivos e detalhes reais, mais tarde confirmados por Marco Polo, João de Mandevile e por outros viajantes e exploradores. Dessa carta lembrei-me agora, quando cheguei ao pátio externo do Xeque Adi e lancei um olhar para o nascente, onde se elevavam os montes de Surgh, Zibar, Haiir, Tura, Ghara, Baz, Dschelu, Tkhoma, Karitha e Tijari.

Nos vales situados entre aqueles montes habitavam os últimos sectaristas cristãos aos quais aquele imperador tártaro pertencera. Em sua época, foi um povo poderoso e bastante influente; as sedes dos seus metropolitas estendiam-se e espalhavam-se através de todo o continente asiático, desde as costas do mar Cáspio até os lagos chineses, do extremo norte dos confins de Skythienes até a ponta extremo sul da península da índia. Eram os conselheiros de Maomé e depois dos seus sucessores. A influência cristã de que está eivado o Kuran provém, de um modo geral, dos livros e ensinamentos daquele povo. Mas com a cilada urdida pelo Califa desmoronou-se o seu poderio com impressionante rapidez, pois à sua grosseira evolução espiritual cedera a pureza divina, que prodigaliza a força de um poder invencível. Exatamente sob o governo de Kassan, que era filho do Arghum e neto do célebre conquistador de Bagdad, Khan Hulaku, começou depois a perseguição contra os descendentes do povo do presbítero imperador, perseguição que acabou sendo crudelíssima e implacável. Com um ódio insaciável, Kassan os perseguia, destruindo-lhes os templos e matando a golpes de espada todos que não conseguiam refugiar-se, a tempo, nas montanhas do Curdistão agrestre. Os descendentes daquele povo viviam ainda hoje nestes lugares, que depois fortificaram, adquirindo o aspecto de fortalezas. Agora, eles como últimos descendentes de um povo assírio, outrora tão poderoso, vivem permanentemente ameaçados pelas espadas dos turcos e pelo punhal dos curdos. Revivera para eles uma época de opressão e martírio a cujo simples relato ficamos de cabelos eriçados e com a alma confrangida! Em grande parte a culpa desse triste estado de coisas cabe àqueles missionários transatlânticos de várias seitas religiosas surgidas no advento da reforma, que deram às igrejas e às escolas um aspecto de fortificação; esse gesto dos evangelizados atraiu, para si, desde logo, as desconfianças e a animosidade dos governantes nativos. Com essa e muitas outras medidas imprudentes, os missionários prejudicaram grandemente a obra de evangelização que se propunham realizar, causando a si próprios grandes danos tanto de ordem espiritual como material.

Era minha viagem para Amadijah, passei por localidades habitadas por esses caldeus cristãos; por essa ocasião lembrei-me ainda mais vivamente daquela carta do presbítero João, pois o referido documento traça com fortes pinceladas o passado de glória e de poderio daquele povo hoje fraco e eternamente amesquinhado. Antigos ministros e conselheiros de príncipes e califas, estão hoje, a não ser os que voltaram para o seio de igreja católica, sem a menor força moral e material, tanto que suportaram as maiores violências praticadas pelos Beis aliados Abd ei Sumit e o Khan Bei, sem opor a menor resistência. No entretanto a topografia privilegiadíssima dos domínios por eles ocupados punha-lhes nas mãos os mais eficientes meios de defesa, constituídos pelo inexpugnável entrincheiramento natural que apresenta.

Oh! quão diferentemente se portaram os Dschesidis, em face das investidas inimigas!

Depois daquela noite das chamas no vale do Idiz, o Bei Ali seguiu para Dscherraijah, aparentemente acompanhado apenas por dez homens. Mas antes já de sua partida enviara uma grande legião de guerreiras para se concentrarem nas imediações de Bozan.

O Mutessarif realmente chegara a Dscherraijah acompanhado pelo mesmo número de homens, mas Bei Ali soubera por intermédio dos seus espias que ele mandara concentrar numerosas tropas entre Seio Khan e Ras ul Aiin a fim de marcharem contra Xeque Adi. Em vista dessa informação, mandou, sem mais formalidades, encerrar o Mutessarif num compartimento e considerá-lo prisioneiro de guerra. A fim de recuperar a sua liberdade, o governador de Mossul foi obrigado a suspender todos os seus pérfidos planos de guerra e aceitar as propostas de paz que lhe impusera o Bei.

Em vista desse epílogo favorável, recomeçaram com redobrado júbilo as festas interrompidas dos Dschesidis. As comemorações ganharam, em esplendor e entusiasmo, de todas até então realizadas em Xeque Adi.

Terminadas as festividades, pretendia eu partir imediatamente para Amadijah, mas soube que Maomé Emin havia torcido um pé durante uma caçada que realizara no monte de Kaloni. Assim fui obrigado a esperar três longas semanas até que ele se restabelecesse, tempo esse que aproveitei para melhor conhecer os costumes dos curdos.

 

A DESPEDIDA AOS DSCHESIDIS E AOS BADINANS

Finalmente um emissário de Maomé Emin veio avisar-me de que este já se achava curado e pronto para empreender viagem. De manhã bem cedo parti, a fim de buscá-lo na residência do chefe dos Curdos Badinans. Minha despedida dos Dschesidis foi comovente e tive que prometer-lhes passar, em meu regresso, mais alguns dias com eles. Eu recusara, agradecido, a escolta que me queriam pôr à disposição para acompanhar-me. Desejava viajar só. Contudo não me foi possível contrariar a desejo manifestado pelo Bei de acompanhar-me até a residência do chefe dos Curdos Badinans, para despedir-se de Maomé Emin.

Partimos, seguindo pelas elevações leste de Xeque Adil. Saíramos bem dos acontecimentos desenrolados nesses últimos dias. Que nos iria agora oferecer o futuro? Quanto mais distante viajássemos para o noroeste, tanto mais feroz seria a população montanhesa que encontraríamos pelo caminho, população que não se dedica à agricultura, mas vive apenas de roubos e da criação de gados. O Bei deve ter adivinhado o meu pensamento.

- Emir, vais atravessar zonas escabrosas e cheias de toda sorte de perigos. Até que ponto pretendes atingir as montanhas?

- Até Amadijah.

- Terás que seguir mais para diante!

- Por quê?

- Quer sejas bem sucedido ou não no objetivo que te leva a Amadijah, serás por fim forçado a empreender uma fuga. Todos lá conhecem o caminho que deverá tomar o filho de Maomé Emin e por isso guarnecem toda a sua extensão. Assim sendo, como e por onde pretendes cavalgar?

- Procederei de acordo com as circunstâncias do momento. Poderemos escapar seguindo a pé na direção sul e atingir o Zab Ala, ou então, a cavalo mesmo, costeando o rio Akra. Resta-nos ainda o recurso de, tomando o rumo norte, atravessar as montanhas de Tijari e Marann-Dagh e, depois, vadeando os rios Khaubur e Tigre e transpondo o deserto salino, refugiar-nos em Sindschar.

- Se tomares este caminho, jamais te tornaremos a ver!

- Deus guia os pensamentos e os passos do homem; a ele confiamos a nossa sorte!

Prosseguimos viagem. Halef e o Baschi Bozuk nos acompanhavam à certa distância. O meu cavalo encontrara oportunidade de descansar bem. Antigamente estava habituado a forragear-se exclusivamente de tâmaras “Balahat” e agora fora obrigado a alimentar-se de outros pastos. Não obstante, porém, estava muito carnudo e apresentava algum excesso de força, de modo que eu teria de esporeá-lo o mais possível com o fim de fazê-lo readquirir equilíbrio orgânico. Eu estava curioso por ver como ele se conduziria ao transpor as montanhas nevadas do Curdistão.

Não tardamos em alcançar os Badinans, que nos dispensaram uma acolhida cordialíssima e hospitaleira. Maomé Emin estava já aprestado para a viagem e depois de comermos alguma coisa, de fumarmos e palestrarmos durante uma hora, dispusemo-nos a partir. Bei Ali estendeu a mão a todos e por último a mim. Os seus olhos umedeceram-se de lágrimas.

- Emir, crês que te estimo? - perguntou-me comovido.

- Tenho certeza disso; também me despeço de ti cheio de tristeza, pois meu coração sente-se unido ao teu!

- Tu partes e eu fico; mas acompanhar-te-ei em pensamento e os meus melhores augúrios seguirão a tua senda. Apresentaste as tuas despedidas ao Mir Xeque Khan, mas ele me fêz portador de sua bênção para que a derrame sobre ti no momento da tua partida. Deus esteja sempre contigo e te acompanhe em todos os teus caminhos; que a sua cólera caia sobre os teus inimigos e sua bênção aos teus amigos! Vais ao encontro de graves perigos e o Mir Xeque Khan prometeu-me a sua proteção para ti. Ele pede que aceites este Melek-Ta-us, que te servirá de talismã. Sei que não tomas esse pássaro como um ídolo, mas simplesmente, para que com ele possas provar ser amigo nosso. Todo o Dschesidi a quem tu mostrares esse Ta-us sacrificará seus haveres e a sua vida em tua defesa. Aceita essa dádiva mas não a confies a outros, pois ela é destinada exclusivamente a ti! Agora, feliz jornada e, mais uma vez, que a benção de Deus sempre te acompanhe!

Abraçou-me, montou apressadamente e partiu sem virar-se uma só vez para ver-me. Foi como se um pedaço de meu coração tivesse ido com ele. Era uma generosa, uma valiosa dádiva aquela que o Mir Xeque Khan me mandara por seu intermédio. Quanta discussão não originou a existência real de um Melek Ta-us! E no entanto eu agora tinha o sinal enigmático nas mãos. Fora uma extraordinária prova de confiança que me dera o Khan e é obvio que eu apenas dela me aproveitaria em momentos de extrema necessidade!

Era trabalhada em cobre e representava a figura dum pássaro, de asas abertas para alçar o vôo e por baixo estava gravada a legenda curda Hemdscher - “Amigo” ou “Correligionário”. Trazia um cordão de seda para prender o talismã ao pescoço.

Os Badinans quizeram acompanhar-nos num grande trecho a fim de nos garantir a travessia; tive que aceder, mas com a condição de retrocederem assim que chegássemos à aldeia de Kaloni, que distava umas quatro horas de Xeque Adi. As casas da aldeia eram quase sem exceção, todas construídas de pedras e se elevavam quais ninhos de pássaros, entre as videiras, numa grande altitude do leito do rio Gomel. Davam essas casas a impressão de grande solidez, devido aos blocos de rocha que lhes formavam os pilares e os ângulos.

Aqui, demos o nosso adeus aos Badinans que nos acompanhavam e continuamos viagem os quatro apenas.

Após cavalgarmos por um caminho muito íngreme, que obrigou os cavalos a uma boa puxada, alcançamos a aldeiazinha de Bebozi, situada no cume de uma apreciável elevação. Ali ergue-se um templo católico, visto que a população é composta de caldeus convertidos ao cristianismo. Fomos hospitaleiramente acolhidos por ela que nos forneceu gratuitamente todos os alimentos e bebidas, não obstante a minha insistência em pagar tudo o que consumíramos. Ofereceram-nos um guia para acompanhar-nos, oferta que não aceitamos. Em vista de nossa recusa, amavelmente feita, é claro, ensinaram-nos tão minuciosamente o caminho que conduzia à próxima localidade, que dificilmente o erraríamos.

 

EM SPANDAREH

A estrada conduzia primeiramente pelo sopé de uma elevação, penetrando num bosque de arbustos para, no fim, chegar a Cheloki, uma das etapas de nossa rota. Nessa localidade fizemos um pequeno alto e eu me dirigi ao Baschi Bozuk:

- Buluk Emini, ouve o que te vou dizer!

- Sou todo ouvidos, Emir!

- O Mutessarif de Mossul te ordenou que arranjasses tudo de que eu necessitasse. Até agora, porém, ainda não me fôste útil em coisa alguma; mas de hoje em diante entrarás efetivamente em serviço!

- Que devo fazer, Efêndi?

- Passaremos esta noite em Spandareh. Cavalgarás na frente e providenciarás para que tudo esteja arranjado, quando chegarmos lá. Compreendeste?

- Muito bem, até! - respondeu-me tomando ares de dignidade funcional. - Irei depressa e quando chegares toda a aldeia te receberá com manifestações de júbilo.

Fincou as esporas nos flancos do seu burro e saiu a galope.

De Cheloki até Spandareh a distância não é grande, mas já anoitecia, quando chegamos àquela aldeia curda. Seu nome é devido à grande quantidade de álamos que lá existe, pois Spidar, Spindar ou também Spandar em idioma curdo, quer dizer álamo branco. Perguntamos pela residência do Kiajah e, em vez de nos fornecerem as informações solicitadas, todos contemplavam-nos com olhares enfurecidos.

É que eu dirigira as minhas perguntas em língua turca; agora, porém, que repeti em idioma curdo o pedido de informação sobre a residência do Malkoe-gund, que significa “o decano”, tornou-se aquela gente mais complacente para comigo. Fomos conduzidos a um suntuoso edifício, diante do qual apeamos e entramos. Em um dos compartimentos contíguos palestravam em voz alta, de modo que eu podia ouvir toda a conversa. Parei e pus-me a escutar:

- Quem és tu, cão, covarde? - trovejou uma voz colérica. - Um Baschi Bozuk que anda montado num burro. Isto para ti é honra, para o burro humilhação, pois carrega um indivíduo mais burro do que ele! E tens a petulância ainda de vires aqui para me preterir.

- E quem és tu, hein? - retrucou a voz de falsete do meu valente Ifra. - És um Arnaute, um degolador, um ladrão! A tua boca e os teus olhos são parecidos com a boca e os olhos de um sapo imundo; teu nariz assemelha-se a um pepino; a tua voz soa tal qual o piar de uma codorniz. Quanto a mim, eu sou um Buluk-Emin do Grão Senhor! E tu quem és? Um Khawassa e nada mais!

- Homem, torço-te o pescoço para as costas se não te calares! Que tens tu com o meu nariz? E tu que nem possuis um! Dizes que teu amo é um grande Efêndi do Ocidente, quando na verdade só há um grande Efêndi, no Ocidente e este é o meu Senhor! Basta a gente olhar para a tua cara e logo se vê quem é o teu Senhor! E vens para enxotar-me daqui!

- E quem é o teu Senhor? Também um grande Efêndi do Ocidente? Pois agora sou eu que te afirma: O único grande Efêndi do Ocidente é o meu amo! Compreendeste?

- Escutem-me! - começou uma terceira voz calma e grave. - Ambos anunciaram dois grandes Senhores do Ocidente. Um deles é portador de um escrito do “Onsul” (1) de Frankistão, escrito que foi também assinado pelo Mutessarif; é um documento de valor não há dúvida. O outro, porém, acha-se sob a égide do Padixá; apresenta escritos do Grão Senhor, do Mutessarif e tem direito ao Disch-parassi; isto é ainda de mais valor! Este último, pois, será hospedado aqui na minha própria casa e o primeiro numa hospedaria. Aquele não pagará coisa alguma, pois será considerado meu hóspede de honra; o outro, porém, indenizará não só o pouso como tudo o que consumir durante a sua estada.

- Isso não admito! - soou a voz do Arnaute. - O que se conceder a um deve ser concedido também ao outro!

- Ouve! Sou o Nezanum (2) e Senhor desta aldeia; as minhas palavras é que vogam e não tolero que estranho algum me venha fazer observações! Soejle-dim - Tenho dito!

Então resolvi abrir a porta e entrar, acompanhado de Maomé Emin.

- lvari-1’kher - Boa Noite! - saudei. - És o alcaide de Spaadareh?

- Sou eu sim - respondeu o decano da aldeia.

- Este homem é meu criado - disse eu apontando para o Buluk-Emini. - Mandei-o à frente a pedir tua hospitalidade. Que resolveste?

- És tu o Grande Efêndi que viaja sob a proteção do Grão Senhor e tem o direito ao Disch-Parassi?

- Sou eu em pessoa.

- E este homem é teu guia?

- É meu amigo e companheiro de viagem.

- Tendes muita gente na vossa companhia?

- Apenas este Buluk-Emini e mais um criado.

- Ser sere men at - Sede bem-vindos!

Levantou-se do seu lugar e nos estendeu a mão.

- Sentem ao meu lado junto do fogão e fiquem à vontade na minha casa. Irei destinar um quarto com todas as comodidades que correspondem a uma personagem de sua posição. Em quanto estimas o teu Disch Parassi?

- Da parte de nós os dois e do criado, receberás de graça. Mas para esse Baschi Bozuk pagarás cinco piastras. Ele é representante do Mutessarif e não tenho o direito de coagi-lo a dispensá-la.

- Senhor, és indulgente e generoso; fico-te muito agradecido. Nada te faltará para o teu conforto. Permite que eu me afaste durante pouco tempo na companhia desse Khawassa!

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(1) Cônsul.

(2) Alcaide, ou decano de aldeia.

 

Ele se referia ao Arnaute. Este ouvira a nossa palestra com ar sombrio. Agora, porém, mostrou-se francamente encolerizado:

- Eu não saio daqui; exijo as mesmas concessões para o meu Senhor!

- Pois então fica! - respondeu simplesmente o Nezanum. - Mas se depois o teu amo não encontrar hospedagem a culpa será exclusivamente tua!

- O que são esses dois homens que se dizem amparados pelo Grão Senhor? Não passam de árabes, ladrões dos desertos e que aqui nas montanhas pretendem bancar altas personalidades...

- Hadschi Halef! - bradei eu.

O meu criado entrou.

- Halef, este Khawassa teve o arrojo de nos injuriar; assim que ele pronunciar mais uma palavra desagradável, toma conta dele!

O Arnaute, que se achava armado até os dentes lançou uns olhares francamente desprezíveis à figura de Halef.

- Eu temer a esse anão, eu, eu que sou o...

Não pôde continuar porque no mesmo instante caiu por terra e ajoelhado sobre ele estava o meu criado ameaçando sacar do punhal com uma das mãos e apertando-lhe a garganta com a outra.

- Chegou a hora, Sídi?

- Não; basta a lição que já recebeu. Previne-o, porém, de que estará perdido se tiver outro gesto insultoso!

Halef soltou-o e ele ergueu-se do solo. Os seus olhos brilhavam pérfidos e com animosidade; todavia não se aventurou a empreender coisa alguma.

- Então vamos! - disse depois ao decano da aldeia.

- Queres escolher a habitação? - perguntou-lhe este.

- Por enquanto, sim. Mas quando o meu Senhor chegar conduzilo-ei até aqui e então decidiremos quem dormirá nesta casa; ele também julgará a questão suscitada entre mim e o criado desses árabes!

Retiraram-se ambos. Durante a ausência do Nezanum, um dos seus filhos nos fêz companhia e logo depois nos vieram avisar que o quarto estava arranjado.

Fomos conduzidos a um aposento, onde em meio de tapetes nos foram armados dois leitos fofos; ao centro desse aposento serviram-nos um jantar. Dada a rapidez com que foram feitos esses preparativos, era de se supor que o decano da aldeia não pertencesse à classe dos menos abastados. O seu filho sentou-se conosco, não tomando, porém, parte na refeição, o que constituía uma prova de respeito mais que suficiente para nos deixar orgulhosos. Éramos servidos pela própria esposa e uma filha moça do decano.

Foi-nos servido cherbet. Bebemo-lo em lindas Findaschani ferfuri (1), uma grande raridade aqui no Curdistão. Seguiu-se Belqualpamasi pão de trigo frito em mel, acompanhado de Findika (2), conjunto culinário que não apreciei muito. Veio depois Vizihn (3) acompanhado de bolinhos de arroz que nadavam em fino molho e de Vera Asch (4) que condizia perfeitamente com o nome. Dois assados que se seguiram

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(1) Taças de porcelana.

(2) Salada verde.

(3) Assado de cabrito.

(4) Literalmente: Mó de moinho. Um bolo enorme, com formato de uma mó de moinho..

 

lourejavam bem apetitosos sobre o tapete. O couro tostado tinha uma aparência amarela, como os leitões que se comem nos restaurantes europeus. Pareciam assados de pomba. Um verdadeiro quitute cujo paladar para mim era um tanto exótico.

- Esta carne é de Kewuk (1) - perguntei ao jovem filho do decano.

- Não. São assados de Bartschemik (2) - respondeu-me este.

- Hum! Uma verdadeira surpresa gastronômica! Nisso entrou o decano que, a um aceno meu, sentou-se ao nosso lado e participou da refeição. Durante todo o jantar, numa folha colocada no compartimento, foi queimado mastique. Agora como o dono da casa já estivesse presente foi servido o principal prato do dia: assado de Quapameh (carneiro) com molho em conserva, acompanhado de arroz bastante cebolado. No fim da refeição, o decano fez um aceno para a esposa e filha. Trouxeram-lhe uma terrina tapada que ele recebeu com grande solenidade.

- Sabes o que vem aqui nessa terrina? - perguntou-me.

- Não sei - respondi-lhe.

- É um prato talvez desconhecido para ti. Só é conhecido no Curdistão, país habitado por homens valentes e corajosos.

- Deixas-me curioso!

- Aquele que provar esse manjar, sentirá as forças redobrarem e não temerá mais a inimigos de quaisquer espécie! Cheira!

Levantou um pouco a tampa e fêz-me sentir o cheiro do conteúdo da terrina.

- Pensas que tal prato é usado só no Curdistão? - perguntei-lhe.

- Sim, só em nosso país.

- Pois estás enganado; muitíssimas vezes o tenho saboreado noutros lugares.

- Onde?

- Entre os Urus e outros povos, principalmente na América. Lá essa espécie de animal é muito maior e desenvolve-se mais bravio e feroz do que aqui.

- Tu é que estás enganado, pois esta caça só existe no Curdistão!

- Nunca estive antes no Curdistão e no entanto conheço logo essa caça pelo simples cheiro. Portanto devo tê-la saboreado em outras terras.

- Então dize que espécie de caça é!

- Tu vais nos servir um assado de urso! Não adivinhei?

- Realmente acertaste! - exclamou admirado.

- Conheço essa caça melhor do que tu pensas. Não olhei para o interior da terrina, mas aposto como são as patas do urso!

- Adivinhaste outra vez. Serve-te!

Depois, a palestra encaminhou se para caçadas. No Curdistão há realmente grande quantidade de ursos, mas estes não são tão possantes e ferozes como os acinzentados que erram pelas montanhas rochosas dos Estados Unidos. O assado de urso foi acompanhado de uma grossa papa feita com peras e ameixas torradas; serviram-nos ainda lagostim cozido, acompanhado de um prato cujo paladar pareceu-me um tanto exótico e complicado. Tomei a liberdade de perguntar o que era e a esposa do decano foi solícita em prestar-me as informações que pedira.

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(1) Pomba.

(2) Morcego.

 

- Toma abóboras e as cozinhas em mingau, - disse ela. - Adiciona açúcar e manteiga a esse mingau, rala queijo branco sobre o mesmo e junta-lhe alhos socados. Depois de mexer bem essa massa, adiciona-íhe ainda amoras e sementes socadas de girassol. Feito isso, terás um quitute inigualável!

Provei aquela mistura extravagante e “inigualável” de abóbora, semente de girassol, queijo, açúcar, manteiga, amoras e alhos e senti que seu gosto não era tão mau como deixava prever aquele estranho conjunto de ingredientes. Como sobremesa foram-nos servidas passas de maçãs e uvas, juntamente com um cálice de Racki. Por fim trouxeram-nos os cachimbos.

Enquanto acendíamos os fortes, nicotinosos e mal fermentados fumos de Kelekowa, percebemos um vozerio lá embaixo. O decano da aldeia levantou-se e saiu a ver o que sucedera. Como ele deixasse a porta aberta, foi-nos possível então ouvir palavra por palavra.

- Quem é? - perguntou o alcaide.

- Que quer de mim aquele homem? - perguntou alguém no idioma inglês.

- Perguntou quem tu eras! - respondeu um terceiro também em inglês.

- Como se diz “eu” em turco?

- Ben.

- Well! Ben!!! - bradou o estranho ao decano.

- Ben? - perguntou este admirado. Como é o teu nome?

- Que quer ele agora? - perguntou a mesma voz em inglês.

Essa voz me parecia tão conhecida que de surpreendido pela presença ali daquele homem ergui-me num salto.

- Pergunta como te chamas!

- Sir David Lindsay! - gritou o personagem para cima.

 

ENCONTRO INESPERADO

No mesmo instante já me achava ao seu lado, em baixo, no umbral. A sua figura era iluminada pelas chamas do fogo. Ali estava parado o enorme cilindro cinzento, a cabeça grande e esguia, a boca enorme, o nariz com a configuração da “Sierra Nevada”, o pescoço comprido e nu, o amplo colarinho da camisa, a gravata cinzenta xadrezada, o colete xadrezado, o casaco xadrezado, a calça xadrezada, as polainas xadrezadas e as botas côr de pó. À mão trazia a inseparável enxada destinada a afrontar os “Fowlings-bulls” e outras antiquadas arqueológicas.

- Mister Lindsay! - exclamei eu.

- Well! Quem me chama? - Oh!... Ah!... É o senhor?

O homem arregalou os olhos e abriu ainda mais a boca, fitando-me estarrecido, como se estivesse diante da morte.

- Como veio a Spandareh, sir? - perguntei-lhe, quase tão espantado como ele.

- Eu? Well! A cavalo!

- Naturalmente! Mas pergunto que procura o senhor aqui?

- Eu? Oh! O senhor e os Fowlings-bulls!

- A mim?

- Yes! Já lhe direi tudo. Antes, porém, tenho que falar com uma pessoa.

- Com quem?

- Com o maioral, com o burgomestre da aldeia. Sujeito horrível!

- Por quê?

- Porque acolhe os árabes em detrimento do inglês! Sujeito miserável, não é? Onde está ele?

-- Aqui! - respondi apontando para o decano que, nesse ínterim, chegara à porta.

- Questione, achincalhe-o! - ordenou o inglês ao intérprete que se achava ao seu lado. - Faça escândalo, faça barulho, muito, muito barulho! Yes!

- Permita-me, sir, que me encarregue eu disso! - acudi. - Os dois árabes, por causa dos quais está o senhor zangado, não lhe causarão embaraço algum. São seus melhores amigos.

- Ah! Onde estão eles?

- Um deles sou eu e o outro é Maomé Emin!

- Mao... mé... Emin! Onde está Maomé Emin?

- Lá em cima. Suba comigo!

- Well! Extraordinário, imenso, incompreensível!

Sem mais formalidades fui logo empurrando-o escada acima e mandei tanto o intérprete como o Arnaute que pretendiam subir também, que se retirassem. Entre as damas curdas aquele vulto xadrezado provocou um espanto chistoso; elas se afastaram a certa distância do estranho personagem. Maomé Emin, em geral tão circunspeto, proferiu gostosa gargalhada, ao ver a cratera escura que a boca aberta do inglês formava.

- Ah! Good day, sir Mister Maomé! How do you do? - Como vai?

- Maschallah! Como é que veio o inglês parar nestas alturas? - perguntou este.

- Já haveremos de saber, - disse eu.

- Conheces este homem? - perguntou-me o dono da casa.

- Conheço-o. É o mesmo forasteiro que há pouco enviou o Khawass a te pedir hospedagem. Trata-se dum amigo meu. Arrumaste hospedagem para ele?

- Se é um amigo teu, ficará na minha própria casa, como hóspede meu! - respondeu a primeira autoridade de Spandareh.

- Dispões de acomodações para tanta gente?

- Para hóspedes bem vindos há sempre lugar suficiente. Ele que tome lugar e faça uma refeição!

- Sente-se, sir! - disse eu a Lindsay. - Conte-nos agora o que o levou a deixar os campos dos Haddedin e vir para Spandareh!

- Well! Mas primeiro tratarei de acomodá-los.

- Acomodar quem?

- Os criados.

- Eles que tratem de suas próprias acomodações, pois para isso são seus criados.

- E os cavalos?

- Eles também tratarão dos cavalos. Portanto, Mister, vamos ao que nos convém!

- Hum! Tudo está ficando tedious, horrivelmente monótono!

- Mas não chegou a fazer escavações, nem pesquisas científicas?

- Muito, muito até.

- E achou alguma cousa?

- Nothing. Nada, nada! Horrível!

- Continue!

- Saudades, horríveis saudades!

- De quem?

- Hum! Do senhor, sir!

Tive que me rir.

- Com que então tinha saudades de mim!

- Well, very well, yes, Não achei Fowlings-bulls, o senhor tinha ido embora e eu resolvi ir também!

- Mas, sir, conforme nossa combinação, o senhor teria que esperar pela minha volta!

- Não tive paciência, não suportei mais!

- Mas havia muito em que se distrair. Não faltava com quem conversar.

- Apenas com árabes! Psiu! Não me compreende, aquela gente!

- Mas o senhor tinha um intérprete!

- Saiu, escapou-se, fugiu!

- Ah! Aquele grego fugiu? Mas estava ferido!

- Sarou a ferida na perna! O canalha de manhã cedo desapareceu!

- Então sim, concordo que o senhor não se podia entender com aquele povo. Mas como veio encontrar-me?

- Sabia que o senhor tencionava seguir para a Amadijah. Parti para Mossul. O cônsul supriu-me de passes. O governador subscreveu-os e forneceu-me um intérprete e um Khawass. Depois segui para Dohuk.

- Para Dohuk? Por que esta grande volta?

- Havia guerra com os Adoradores do Diabo; eu não poderia passar. Segui então de Dohuk para Duliah e de Duliah a Mungayschi e depois de lá para esta aldeia. Well! E achei o senhor. Muito bem, esplêndido!

- E agora?

- Ficaremos juntos, nos meteremos em aventuras, faremos excavações! Encontrarei Fowling-bulls para o Traweller-Klub, de Londres, yes!

- Está bem, mister Lindsay! Mas por enquanto temos outras cou-sas a realizar!

- Que coisas?

- O senhor não ignora os motivos que nos levam a Amadijah!

- Conheço-os. É um belo gesto, demonstram uma atitude destemerosa; é uma aventura emocionante! Vou ajudar a libertá-lo!

- Creio que não nos será de grande utilidade!

- Não! Por quê?

- Sabe falar apenas o inglês.

- Tenho intérprete!

- Pretende revelar a ele o nosso segredo? Ou quem sabe já revelou durante a viagem?

- Não lhe disse uma só palavra a respeito!

- Foi muito bom sir, porque do contrário estaríamos correndo perigos incalculáveis. Devo dizer-lhe francamente que desejaria encontrá-lo muito mais tarde e não agora!...

- A mim? Well! Muito bem! Sempre julguei que o senhor fosse meu amigo! Mas como não é, rompamos relações! Seguirei para... para...

- Para o inferno, pois outro lugar não resta para acomador a sua tolice! Está mais do que claro que o senhor é meu amigo do mesmo modo que sou seu amigo. Mas deve reconhecer que na situação atual a sua companhia nos causa embaraços e sérios embaraços, difíceis de remover!

- Embaraços? Por quê?

- A sua figura dá muito na vista!

- Bem, darei ao meu exterior aparência mais discreta. Que devo fazer para isso?

- Hum! A citação é delicada. Não posso mandá-lo de volta; deixá-lo aqui tampouco; tenho que levá-lo na minha companhia; realmente não há outra solução para o caso!

- Bem, muito bem!

- Mas terá que se dirigir por nós!

- Well! Farei sua vontade!

- Despedirá imediatamente o intérprete e o Khawass!

- Sim, irão para o diabo! Yes!

- Terá também que mudar essa roupa!

- Mudá-la como?

- Não usá-la! Terá que ostentar um traje turco ou uma vestimenta curda!

Ele me fixou um olhar de espanto. Era como se eu o estivesse obrigando a devorar a sua própria pessoa. Aliás a sua enorme boca se prestaria muito bem para isso...

- Um traje turco, uma vestimenta curda? Horrível! Pavoroso!

- Não há outro remédio!

- Mas que irei vestir?

- Bombachas turcas ou então curdas preto avermelhadas.

- De côr preta avermelhada! Bem, está muito bem! Vermelho e preto, quer dizer xadrezado!

- Por mim, seja! Como prefere? O sistema turco ou o curdo?

- Curdo!

- Então terá que usar roupas preto avermelhadas; são as cores dos curdos. Quer dizer, calças curdas. Um colete, espécie de camisa que cobre toda a calça.

- Tudo vermelho e preto?

- Naturalmente!

- Xadrezado?

- Pode ser. Mas deverão cobrir o corpo desde o pescoço até os tornozelos. Depois um sobretudo ou manto.

- Tudo preto e vermelho?

- Claro que sim!

- Xadrezado?

- Dá no mesmo. Depois um turbante de tamanho desproporcional como o usam os curdos de distinção.

- De cores preta e vermelha?

- Também!

- Xadrezado?

- Se quiser.

- E depois um cinto, meias, sapatos, armas...

- De cores preta e vermelha?

- Por mim pode até mandar pintar a sua cara de preto e vermelho, ficando deste modo todo xadrezado!

- Onde posso comprar essas coisas?

- Quanto a isso não sei dizer nada. Encontraremos uma loja, apenas em Amadijah. Quem sabe existe por aqui algum mercador de roupas, pois Spandareh é uma aldeia bem populosa. E... o senhor tem dinheiro, muito dinheiro, não é assim?

- Muito e muito, well! Pagarei tudo!

- Então vou pedir as informações de que precisamos.

Dirigi-me ao decano:

- Existe em Spandareh algum Urubadschi (1)?

- Não existe.

- Tens um homem disponível para ir agora a Amadijah, comprar roupas para este forasteiro?

- Tenho sim, mas a loja só estará aberta amanhã cedo e, portanto, as roupas só chegarão aqui perto do meio dia.

- Ou quem sabe se há alguém que possa emprestar um vestuário até Amadijah, de onde o devolveríamos?

- És meu hóspede de honra; tenho um Pambuka (2) novo ainda, que te emprestarei com muita satisfação.

- E também um turbante?

- Não há pessoa alguma por aqui que disponha de dois turbantes. Mas posso te arrumar um boné.

- De que tipo?

- Vou dar-te um Kulik (3), que servirá ao forasteiro.

- De que côr?

- Vermelha e com fitas pretas.

- Então seria um favor se me arranjasses essas peças todas, para amanhã cedinho. Mandarás um homem em nossa companhia, com salário pago por nós. Chegados a Amadijah e depois de adquirirmos um vestuário novo, te devolveremos tudo por intermédio desse homem. Mas desejo que não se divulgue esse empréstimo!

- Calaremos em torno do caso, tanto eu como o emissário que te acompanhar!

A seguir, serviram o jantar ao inglês. Compunha-se de alguns restos deixados por nós, mas que foram bem dispostos nas terrinas. O homem parecia não só estar com apetite mas também com uma fome devoradora, pois por entre as suas alvas fileiras de dentes desapareceu quase tudo que lhe foi servido. Com satisfação notei que lhe trouxeram também um pouco daquele assado que eu tomara por carne de pomba. O inglês devorou tudo, até o menor ossinho. Depois colocaram na sua frente, um artístico prato trabalhado em nós de madeira, no qual havia um alimento parecido com beefsteak. O aroma era delicioso e eu, embora contrariando o habitual comedimento tivesse jantado muito, fiquei novamente com apetite. Precisava saber que prato era aquele!

- Sidna, que manjar saboroso é esse? - perguntei à senhora que servia o inglês.

- E’ preparado com Tscbekurdscbek (4) - respondeu-me ela.

- Mas preparado de que forma?

- Pegam-se gafanhotos que são esmagados muito bem e colocados depois numa cova escavada em solo úmido. Quando começam a se decompor, e que já desprendem um cheiro desagradável, são torrados e depois fritos em azeite.

Não era mau, não!... Resolvi não ocultar por muito tempo ao meu amigo inglês, o segredo daquela importante receita culinária. Enquanto ele comia como um glutão, fui ver o que fora feito de nossas montarias. Estavam bem tratadas e guardadas. Junto delas se achavam Halef, o intérprete, Buluk Emin, e o Arnaute, em calorosa disputa que cessou como que por encanto, com o meu aparecimento.

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(1) Alfaiate ou negociante de roupas feitas.

(2) Vestimenta de lã.

(3) Boné de feltro. 

(4) Gafanhoto.

 

- Que discussão é esta? - perguntei a Halef.

- Este homem pretende achincalhar-te, Sídi! Ameaçou de assassinar-nos, a mim e a ti, porque, obedecendo às ordens tuas, atirei-o ao solo!

- Deixa-o falar. Ele não fará coisa alguma! Tudo isso não passa de fanfarronadas!

A essas minhas palavras, o Arnaute levou a mão à pistola e bradou:

- Cala-te homem! Ou pretendes encontrar-te ainda hoje com este teu criado no Dschehenna?

- Tschit-i, ker, werujem, ti szi szlep! - Cala-te, cão! Acho que estás completamente cego! - retruquei-lhe no idioma dos Arnautes. - Não enxergas o perigo a que te atiras?!

- Que perigo? - perguntou-me estupefato.

- Male ti pucshke ne gadschaju dobo! - Essa pistola não tem bom alvo! - retruquei-lhe indicando para a sua arma.

- Por quê?

- Budutschi um-e-m oeno boelje! Por que eu sou melhor atirador que tu!

Ao mesmo tempo que lhe falava, apontei-lhe com o meu revólver. Eu conhecia perfeitamente bem as violências de que são capazes os Arnautes e, assim, não podia ligar pouca importância à sua ameaça feita com tamanha desenvoltura. O Arnaute não dá o mínimo valor à vida do próximo e nem à sua própria. Por causa de um gole dágua ele é capaz de fuzilar um seu semelhante, e depois com toda a calma apresentar o seu pescoço ao alfange do carrasco. Ofendêramos aquele Khawass e por isso era de se esperar um tiro dele. No entanto, após a minha ameaça, ele retirou a mão do cabo da pistola e perguntou-me em tom de admiração:

- Falas o idioma dos Schkiperia (1)?

- Conforme ouviste, sim!

- És um schkipitar?

- Não.

- Que és então?

- Sou Neumatz (2) e previno-te de que a gente da Nemacschka (3) sabe lidar com indivíduos da tua espécie!

- És apenas um Neumatz? Não és um Madschar, um Rusz, Szrbin (4) ou um Turcschin? Obietz-i dschawo-wraga! Vai para o diabo!

Ligeiro como um raio tirou a pistola e a detonou. Não conservasse eu os olhos fixos no cano da arma e a bala me teria atingido a cabeça; desviei-me, porém, rapidamente para um lado e o projétil passou sibilando. Antes de poder alvejar-me com a segunda pistola que trazia à cinta já eu o subjugara, atirando-o ao solo e comprimindo-o com os joelhos.

- Quer que o mate, Sídi? - perguntou-me Halef.

- Não. Toma, amarra-o simplesmente!

Ergui-o do chão e soltei-lhe os braços por um segundo. Foi o suficiente para o Arnaute desvencilhar-se e disparar dali. Num instante desapareceu por entre o arvoredo que confinava com a casa. Todos os presentes saíram-lhe ao encalço, mas voltaram em seguida, sem conseguir nem sequer enxergá-lo mais.

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(1) Denominação que os albaneses dão ao seu país.

(2) Alemão. 

(3) Alemanha.

 (4) Sérvio.

 

O tiro atraíra também os demais moradores da casa, que acorreram logo.

- Quem atirou? - perguntou Lindsay.

- O seu Khawass.

- Contra quem?

- Contra mim!

- Oh, horrível! E por quê?

- Por vingança.

- É um verdadeiro Arnaute! Acertou-lhe?

- Não.

- Vamos fuzilá-lo, sir, e já!

- O homem fugiu!

- Well! Então deixemo-lo em paz! Não faz mal!

E o inglês tinha toda a razão. O tiro do Arnaute não me acertara, por que pois proceder sanguinariamente? Voltar, por certo que ele não voltaria mais, e de uma emboscada armada por ele mais tarde não precisaríamos talvez recear. O inglês, depois que se encontrou comigo, não precisava mais nem dele e nem do intérprete, razão porque justou contas com este e o despediu, com a condição, porém, de na manhã seguinte deixar Spandareh e voltar diretamente para Mossul.

Passamos o resto da noite a palestrar com os curdos, palestras que se encerraram com uma dança realizada em nossa honra. Fomos convidados a passar para o pátio. Este formava uma área quadrada coberta por telhado e provido de uma galeria destinada à assistência. Esta ali se achava sentada ou acocorada pitorescamente, ao passo que na área destinada às danças se reuniam umas trinta mulheres.

Estas formavam uma dupla roda, no meio da qual se achava um mestre de danças brandindo um venábulo. A orquestra compunha-se de uma flauta, um instrumento parecido com violino e dois tamborins. Por meio de um brado estrídulo, o mestre deu o sinal para iniciar-se o bailado. A arte de Terpsicore cultivada por ele compunha-se de diversos e vulgares movimentos de braços e pernas. Esses movimentos se dirigiam sempre para o mesmo ponto. O grupo de mulheres acompanhava os gestos do mestre. Não pude descobrir o menor significado, a mínima concepção artística em todo aquele bailado simplicíssimo. Contudo as mulheres ostentando os turbantes quadriculares dos quais pendiam véus, e iluminadas à luz dos fachos, apresentavam um lindo quadro, que encantava os olhos.

Quando terminou o bailado, os homens aplaudiram os dançarinos com um prolongado e estridente murmúrio de satisfação. Eu, porém, tirei do bolso uma pulseira e chamei a filha do decano que me serviu a refeição e que agora tomara parte no bailado como uma das figuras principais. A jóia era constituída de peças de vidro amarelo que imitavam o âmbar transparente, e espesso, muito apreciada no Oriente, onde é bastante procurada e obtém elevados preços. Na Alemanha, poderia adquirir uma dessas jóias de algum vendedor ambulante, pela importância máxima de uns sessenta pfenigs. Aqui, porém com a dádiva daquela pulseira eu ia proporcionar uma alegria indizível à moça, que a avaliaria por uma verdadeira fortuna.

A moça aproximou-se de mim. Todos viram que eu a chamara e logo calcularam que pretendia oferecer-lhe alguma lembrança, pela sua contribuição artística à festa. Eu precisava honrar o meu hospedeiro procurando praticar um gesto elevado de cortesia...

- Vem cá, mimosa filha dos curdos de Missuri! Em tuas faces esplende a luz do Chefag (1), e a tua fisionomia é linda como a corola da Sumbul (2). Os teus cachos de cabelos longos e ondulados possuem o perfume das Guliliks (3) e a tua voz é sonora como o cântico do Bulbuli (4). És a encarnação viva da hospitalidade desvanecedora, a filha de um herói, e serás ainda a noiva de um curdo sábio, dum valente guerreiro da tua nação! Os teus braços e os teus pés naquela dança divinal deleitaram-me o espírito e confortaram-me o coração de viajor nostálgico. Aceita esta Bazihn (5) e pensa em mim quando com ela te ornares!

A jovem ficou vermelha de alegria e acanhamento e não sabia o que responder-me.

- Az khorhame ta, Hodia! Sou “tua própria” (6), oh! Senhor! - balbuciou finalmente a moça.

Essa é a saudação da pragmática, adotada, pelas moças e mulheres curdas em relação a um personagem importante. O seu pai também ficara de tal modo satisfeito com a distinção que eu fizera à filha, que, esquecendo-se completamente da atitude discreta e de reservas a que como oriental estava obrigado, pediu que a moça lhe mostrasse o presente a fim de examiná-lo.

- Que soberbo, que magnífico! - exclamou o velho fazendo a pulseira correr a roda, de mão em mão. - São pedras de âmbar tão custosas e tão lindas como mais lindas e mais custosas não as usa nem o sultão, cravejadas no seu cachimbo! Minha filha, o teu pai não estaria em condições de dar-te um tão valioso dote matrimonial, como o presente que este Emir acaba de te fazer! De seus lábios brotam as palavras da sabedoria e dos fios do seu bigode resplandece a bondade em todo o seu fulgor! Pede-lhe licença, minha filha, para que lhe agradeças assim como uma filha agradece ao pai!

Ela enrubesceu ainda mais do que antes. Contudo perguntou-me:

- Dá-me licença, Senhor?!

- Dou-te, sim.

Ela então inclinou-se para mim, que me achava sentado no solo, e beijou-me a boca e ambas as faces; depois, porém, acanhada, retirou-se apressadamente.

Não me surpreendeu aquela maneira de agradecer, pois sabia que a uma jovem curda era permitido saudar a um conhecido, dando-lhe um beijo. Quando uma pessoa de nível superior permite tal gesto, é uma grande distinção para quem o recebe, motivo por que a minha generosidade redobrou aos olhos daquela gente depois que consenti em ser beijado. Essa circunstância foi, aliás, logo expressada pelo decano:

- Emir, a tua bondade ilumina o meu solar como o sol aquece a terra! Concedeste à minha filha a graça de poder recordar-se sempre de ti, com o ósculo que te depôs na boca e nas faces. Agora, permite-me que também eu te ofereça uma lembrança para que sempre tenhas em mente a aldeia de Spandareh!

O velho inclinou-se para um dos ângulos do telhado e proferiu o chamado: Dojan (7). Uma porta abriu-se e notei que a assistência deu lugar para passar um enorme

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(1) Crepúsculo vespertino.

(2) Jacinta.

(3) Flores.

(4) Roxinol.

(5) Pulseira.

(6) Estou sempre pronta a me entregar em holocausto por ti!

(7) Falcão.

 

cachorro galgo, que logo começou a subir a escada, com o fim de chegar até nós. Minutos depois o galgo se achava diante do decano a acariciá-lo. Era um daqueles animais extraordiariamente grandes, que nas Índias, na Pérsia e desde Turquestão até a Sibéria têm a denominação de Slogi. Entre os curdos aquela raça fina de cães tem o nome de Tazi. Esses cães perseguem as gazelas fugitivas; apanham mesmo os burros alçados e não temem igualmente à pantera e ao urso. Confesso que aquele cachorro despertou em mim uma profunda admiração. Como cão possuía os mesmos predicados que o meu pastor como cavalo.

- Emir, declarou o decano, esses cães dos curdos missurianos são afamados até além das montanhas do Curdistão. Criei vários Tazis, pelo quais eu podia me sentir orgulhoso. Nenhum deles, porém, possuía os predicados deste aqui. É teu!

- Nezanum, a dádiva é tão preciosa que me constranjo em aceitá-la - respondi.

- Pretendes ofender-me? - perguntou-me o velho seriamente.

- Não, de modo algum, - esclareci-lhe. - Quis apenas dizer que a tua bondade excedeu em muito à minha. Permite-me que aceite o teu presente, mas permite-me também que te ofereça esta garrafinha!

- Que líquido é este? Alguma essência perfumosa da Pérsia?

- Não. Comprei-o de Beith Alá, na cidade santa de Meca e é água da fonte sagrada de Zem-Zem.

Desprendi a garrafinha do pescoço e entreguei-a ao decano. Estava ele de tal modo perplexo que hesitou em agarrar a dádiva. Depu-la no colo.

- Oh! Emir, que estás fazendo! - exclamou finalmente, entusiasmado. - Trazes para a minha casa a dádiva mais esplendorosa que Alá colocou sobre a terra. Realmente pretendes presentear-me com ela?

- Aceita-a; ofereço-te de coração!

- Abençoada seja a tua mão e que todos os teus caminhos sejam perenes de felicidades! Vinde, oh! Homens, tocai nessa garrafa para que fiqueis também tocados pelo generosidade do grande Emir!

A garrafa passou de mão em mão. Eu prodigalizara àquela gente a maior alegria que se possa imaginar! Quando o entusiasmo dos presentes já havia acalmado de certo modo, o decano dirigindo-se novamente a mim, disse:

- Senhor, este cão agora é teu. Cospe-lhe três vezes no focinho e faze-o dormir esta noite enrolado no teu manto, junto do teu leito e ele jamais te abandonará!

O inglês assistira a toda aquela cena sem compreendê-la verdadeiramente. Perguntou-me:

- Fêz presente de Zem-Zem, Mister?

- Fiz, sim.

- Well! Desfaça-se sempre dessas coisas! Água é água!

- E sabes o que recebi em troca daquela água?

- O que foi?

- Este cão.

- Como? Quê?! Não é possível!

- Por que não?

- Trata-se dum animal muito precioso. Conheço essa raça de cães! Este aí, por exemplo, vale no mínimo umas cinqüenta libras esterlinas!

- Vale ainda mais. E, no entretanto recebi-o de presente.

- Por quê?

- Porque presenteei aquela pulseira à filha do decano.

- Homem fabuloso! Poço de sorte! Primeiramente dispensado de pagar qualquer cousa pelo cavalo preto do Maomé Emin e agora ainda recebe de presente um lindo cachorro galgo! Quanto a mim sempre um sem sorte! Nem sequer encontrei um único Fowling-bull. Horrível!

Maomé também contemplava o cachorro com admiração e eu creio que ele estava um tanto invejoso. Devo confessar que me achava com sorte. Pouco antes de me deitar, fui ver se as nossas montarias continuavam bem guardadas. O decano encontrou-me nessa inspeção.

- Emir, - perguntou-me à meia voz, - permites que te faça uma pergunta?

- Fala!

- Pretendes seguir para Amadijah?

- Pretendo.

- E de lá para diante?

- Não sei ainda.

- Há algum segredo nessa tua viagem?

- Achas que há?

- Sim, francamente, acho que há!

- Por quê?

- Tens um árabe na tua companhia que não é lá muito prudente, pois ele arregaçou as mangas do albornós e eu pude ver a tatuagem do seu braço. É um inimigo dos curdos e também um inimigo do Mutessarif; é um haddedihn. Acertei?

- É um inimigo do Mutessarif apenas, mas não dos curdos, - respondi-lhe.

Aquele homem era sincero; não podia, pois, mentir-lhe. Era preferível confiar nele do que dizer-lhe uma inverdade que aliás ele não acreditaria.

- Os árabes todos são uns encarniçados inimigos do curdos; mas ele é teu amigo e meu hóspede; não o denunciarei. Sei também o que ele pretende fazer em Amadijah!

- Dize-me, então!

- Há muitos dias, os guerreiros do Mutessarif conduziram um prisioneiro árabe por aqui. Chegaram e apearam na minha casa. O prisioneiro era um filho do Xeque dos haddedihns e ia ser recolhido à fortaleza de Amadijah. Ele se parece tanto com este teu companheiro como um filho pode parecer-se com o pai!

- Mas é comum encontrar-se pessoas parecidas que não são parentes próximos e nem remotos.

- Sei disso e nem pretendo violar-te o segredo! Mas uma coisa vou pedir-te: se voltares de Amadijah, chega em minha casa, quer seja de dia quer de noite, quer em caráter oculto no caso de te moverem alguma perseguição, quer livremente! Sempre serás bem-vindo embora esteja contigo o árabe a que me referi há pouco.

- Muito obrigado! Aceitarei o teu oferecimento.

- Nada tens que me agradecer! Deste-me a água da sagrada fonte de Zem-Zem e eu te saberei valer em todos os transes de tua vida! Mas se o teu caminho te conduzir, depois, a outras paragens, então terás que me satisfazer outro pedido.

- Se estiver ao meu alcance, estou ao teu dispor!

- No vale de Berwari ergue-se o castelo de Gumri. Nele mora o filho do celebrado Bei Abd el Summit; uma de minhas filhas é sua esposa. Dá lembranças minhas aos dois. Vou dar-te um sinal pelo qual reconhecerão ambos que és meu amigo.

- Cumprirei gostosamente essa missão.

- Expõe-lhe tudo de que careceres; tudo eles farão por ti, visto que nenhum curdo que se preza estima os turcos e menos ainda o Mutessarif de Mossul.

Em seguida o decano entrou na casa. Conheci desde logo o objetivo daquele bravo curdo. Percebera o nosso propósito e pretendia nos ser útil na sua execução. Recolhi-me, levando comigo o estupendo cachorro galgo. Quando nos levantamos na madrugada seguinte, ouvimos dizer que o intérprete já havia deixado Spandareh e tomado o rumo de Bebozi.

Eu dormira com Maomé Emin no mesmo compartimento. Ao inglês fora destinado outro quarto. Quando este apareceu em nossa presença, foi recebido com... estrondosas gargalhadas. Ninguém pôde conter-se ao aspecto jocoso que apresentava o displicente Mister Lindsay. Dos pés à cabeça estava trajado de preto e vermelho e sobre a cabeça ostentava o boné curdo, parecido com um coador de café virado pelo avesso; dele pendiam duas fitas, parecidas com tentáculos de pólipos...

- Good morning! Por que estão rindo? - perguntou com fisionomia fechada.

- De alegria, em face do seu exterior divertidíssimo, Sir.

- Well! Alegra-me!

- Que traz aí debaixo do braço?

- Aqui? Hum! Pacote, penso eu!

- Sim, que é pacote eu sei! Mas que traz em tal pacote?

- Nele embrulhei a cartola, as meias e as botas. Well!

- Pode deixar esses trajes aqui!

- Aqui? Por quê?

- Pretende arrastar sempre junto consigo essas ninharias inúteis?

- Inúteis? Ninharias? Horrível! Vou precisar de tudo depois!

- Mas não logo.

- Voltaremos para aqui?

- Talvez sim, mas é muito duvidoso.

- Então! Had-box, levarei o pacote! Claro!

A larga vestimenta ficava-lhe tão folgada, como se com ela houvesse alguém vestido um espantalho. Mas com isso não se preocupava ele. Tomou triunfalmente lugar ao meu lado e disse com ares de vencedor:

- Eis-me um curdo! Well!

- Um verdadeiro, um autêntico!

- Esplêndido! Excelente! Magnífica aventura!

- Falta, porém, ainda uma coisa!

- O que?

- O idioma.

- Vou aprendê-lo.

- Isto não se aprende tão depressa e se não quer prejudicar-nos precisa tomar uma de duas resoluções.

- Qual?!

- Ou se finge de mudo...

- Mudo? - Dumb? Horrível! Não me sujeitarei a isso! - interrompeu-me.

- Sim, ou se finge de mudo ou, melhor ainda, de surdo-mudo!

- Sir, enlouqueceu?

- Obrigado! Contudo persisto no que digo. Ou o senhor se finge de mudo ou faremos constar haver feito um voto...

- Um voto? Well! Bela idéia! Interessante! Mas que voto?

- De não falar.

- De não dizer cousa alguma? Nenhuma só palavra? Ah!

- Nem uma única!

- Nem uma sílaba?

- Não! Naturalmente que apenas durante o tempo em que estivermos sendo vigiados ou vigiando à alguém. Quando estiver só conosco poderá falar à vontade!

- Está bem! Isto é, está menos mau! Vou fazer esse voto! Quando começarei?

- Imediatamente após a nossa saída de Spandareh.

- Well! Tudo de acordo!

Tomamos o café matinal e nos supriram de toda a sorte de provisões para a viagem. Depois montamos a cavalo. Despediramo-nos de todos os membros da casa, exceto do decano, e dissemos adeus também a outras pessoas que ali se reuniram. O decano mandara selar o seu animal e nos ia acompanhar durante um trajeto da estrada.

Por trás de Spandareh havia um caminho muito acidentado, quase intransitável, que conduzia para a montanha Tura-Ghara. Para galgá-lo na direção da montanha, era preciso que os cavalos tivessem patas de cabras, todavia venceram galhardamente o trajeto e chegamos sem novidade ao cume. Lá chegados, o decano parou o cavalo, tirou um pacote da maleta do serigote que me deu dizendo:

Quando chegares a Gumri, entrega isso ao marido de minha filha, Mando para ela um lenço de seda persa e para o seu marido um Dizgin (1) para a sua Mehin (2), que lhe prometi. Se lhes entregares esses objetos, saberão logo que és irmão e amigo meu e te receberão como se fosse eu em pessoa. Mas gostaria muito se de tua parte te esforçasses para tornares a esta aldeia e passares alguns dias na minha casa, que também é tua.

E apontando para um cavaleiro curdo que nos acompanhou, cavalgando ao lado de Halef e do Baschi Bozuk, continuou:

- Aquele é o homem que me trará de volta o traje que emprestei a este forasterio. A ele poderás também entregar o pacote que agora te dei, uma vez que sejas obrigado a mudar de rota, não passando por Gumri. Agora chegou o instante da nossa despedida! Aalaeik sallam, u rahhmet Allah “A Paz e a Misericórdia do Senhor esteja contigo!”

Abraçamo-nos, osculamo-nos e depois ele estendeu a mão também aos demais. Vim a conhecer nele um homem do qual ainda hoje me lembro com respeito e admiração.

 _______________

(1) Freio.

(2) Égua.

 

Rumo a Amadijah

Prosseguimos viagem. A estrada descia a colina na direção do vale do Amadijah. Este vale é formado por enormes muralhas de grés e cortado por um verdadeiro labirinto de desfiladeiros, de onde jorravam, regatos murmurantes, que constituíam afluentes do rio Zab. Os desfiladeiros e as esplanadas estavam repletas de florestas de carvalhos, que produziam exelentes nozes-de-galhas, com as quais os habitantes movimentavam um comércio bastante animador. Nas esplanadas ficavam situadas numerosas aldeias caldáicas, que se achavam ou desertas e abandonadas ou então muito pouco povoadas, pois os caldeus, para fugirem à opressão turca, ao assalto e ao saque levados a efeito contra eles por algumas tribos curdas recuaram para as montanhas.

Atravessando por entre carvalhos gigantescos que avivavam em mim a saudade da pátria, cavalgamos ao encontro de nosso objetivo.

- Posso falar? - perguntou Lindsay, baixinho.

- Sim. Ninguém nos está observando.

- Mas o curdo por trás de nós?

- Isso não vem ao caso.

- Well! A aldeia de onde viemos chama-se Spandareh?

- Isso mesmo.

- Que impressão lhe causou?

- Muito boa. E ao senhor, sir!

- Esplêndida! Boa acolhida, cavalheiro distinto, sua esposa também! Boa comida, belos bailados, excelente cachorro!

A estas últimas palavras olhou cubiçosamente para o galgo que caminhava junto do meu cavalo. Eu tivera a precaução de prendê-lo a uma corda amarrada na argola do serigote. O cão parecia ter feito camaradagem com o meu cavalo e adquirido a convicção plena de que eu era agora o seu dono. Às vezes, levantava a cabeça e olhava-me com seus enormes e agudos olhos.

- Sim, - respondi - tudo estava esplêndido, principalmente a refeição que nos serviram!

- Excelente! Até pombas e beefsteak!

- Hum! Acredita haver de fato comido carne de pomba?

- Well! Por que não?

- Porque aquilo nunca foi pomba.

- Não? Como? Era sim!

- Afirmo-lhe que não!

- Que espécie de caça era então?

- Daquela a que os zoólogos deram o nome latino de Vespertilio murinus ou myotis.

- Não sou zoólogo e tampouco latinista!

Aquela espécie de “pomba” chama-se vulgarmente morcêgo!

- Mor...

Não acabou a frase. Os seus órgãos de deglutição e digestão foram obrigados, ao pronunciar eu aquela palavra, a um esforço brutal, de modo a transformar-lhe a boca num trapezóide ou numa permanente abertura de caverna, na qual se poderiam fazer as mais lindas viagens de exploração...

- Sim, morcêgo, de morcêgo, era aquele assado que lhe serviram sir!

Parou o cavalo e passou a contemplar o azul infinito.

Finalmente ouviu-se um ranger de dentes: a boca fechara-se-lhe. Calculei logo que readquiriria a calma precisa para dar expansões ao seu espanto por meio de palavras.

- ... cego!!!

Com essas breves sílabas completara a anterior “mor”, há pouco interrompida; depois curvou-se na sela e pegou-me pelo braço.

- Sir!

- Que há?

- Não se esqueça das atenções curiais a que se está obrigado em face de todo o cavalheiro!

- Poventura lhe tenho faltado com alguma delas?

- Como não?!

- Mas em que ponto?

- Como pode afirmar que Sir David Lindsay é um papa-morcêgos?

- Morcêgos? Eu disse que havia comido um apenas!

- É a mesma coisa! Um ou diversos, a injúria é igual! Isto não fica assim! Exijo satisfações suas! Satisfações!! Well!!

- Pois já dei, homem!

- Já deu? Já teria dado? Ah! Como?

- Comendo morcego também! Maomé Emin comeu também!

- Também? O senhor e ele? Ah!

- Sim, também eu tomei aquilo por assado de pombas. Mas quando perguntei o que era, soube que se tratava de morcêgo.

- Não pode ser! Morcêgo tem pele!

- Fora previamente esfolado!

- Então era de fato morcêgo?

- De fato!

- Não é pilhéria?

- Não é, não!

- Está falando seriamente?

- Seriamente!

- Horrível! Oh! Vou ser acometido de eólicas, cólera, tifo, oh! Yes!

Realmente o homem fazia uma cara de quem estava atacado de cólera; eu precisava mostrar-me compadecido.

- Sente-se mal, sir?

- Muito! Yes!

- Quer que o ajude?

- Depressa! Com quê?

- Com algum específico homeopático.

- Traz algum aí? Sinto-me verdadeiramente mal! Horrivelmente mal! Que específico conduz consigo?

- Similia similibus.

- Outra vez com a sua zoologia? Ou latinismo?

- Sim, ambos. Em latim quer dizer: igual com igual. Em zoologia, é o mesmo que dizer: “com gafanhoto!”

- O que? Gafanhoto?

- Sim, gafanhoto!

- Contra a minha indisposição? Para eu comê-lo?

- Não é para o senhor comer gafanhoto, não, pois já comeu!

- Já comi? Eu?

- Sim, homem!

- Dullness, tolices! Impossível! Quando?

- Ontem à noite.

- Ah! Esclareça melhor!

- O senhor afirmou há pouco que os beefsteaks estiveram muito saborosos.

- Muito! Excelentes!

- Mas não era beefsteak, não!

- Não era? Não eram beefsteaks? Sou inglês! Eram verdadeiros beefsteaks!

- Garanto-lhe que não! Informei-me da dona da casa!

- Que era então?

- Gafanhotos fritos em azeite.

- Gafa...

Suspendeu como antes a frase, mas, ao invés de abrir a boca como fizera fechou-a, cerrando os lábios, de modo que espichou-se para os lados; com um pouquinho de boa vontade poderia com um dos ângulos da boca tocar uma ponta das orelhas. A ponta do nariz afilou-se para os beiços como que a refletir sobre um meio de corrigir a burla sofrida.

Depois de muito tempo, a sua fisionomia adquiria lentamente a conformação normal; restabeleceu-se-lhe o Restitutio in integrum e os lábios despregaram-se um do outro.

- ... nhoto!

Deste modo terminou a frase começada por ‘“gafa” e a ponta do nariz ergueu-se de novo pontiaguda como sempre.

- Sim, gafanhotos comeu o senhor.

- Ah! Horrível! Mas nem tinham o gosto daquele ortoptero.

- Como sabe? Já comeu gafanhotos alguma vez?

O inglêz fêz uns gestos como se mesmo montado quisesse pisar sobre os seus próprios ombros...

- No at no time! - nunca!

- Afianço-lhe que foram gafanhotos. São apanhados e esmigalhados; depois guardados dentro da terra para que entre num leve período de fermentação, isto é, até ficarem haut gout e por fim, depois de socados, são fritos em azeite. Pedi esta receita à esposa do alcaide da aldeia, por isso sei muito bem o que estou dizendo!

- Horroroso! Já estou com espasmo no estômago!

- Está agora satisfeito com a satisfação que lhe dei?

- Também comeu gafanhotos?

- Não.

- Não? E por quê?

- Por que não me serviram.

- Então apenas eu comi daquilo?

- Apenas o senhor. Em todo o caso, isto constituiu uma prova de distinção da parte da esposa do alcaide para com o senhor!

- E o senhor sabia que era gafanhoto que me estavam servindo?

- Primeiramente não. Mas, enquanto o senhor comia, informei-me a respeito.

- Por que não me disse logo?

__ Porque o senhor teria tomado alguma atitude com a qual o nosso anfitrião se ofenderia.

- Mister, não admito essa sua atitude! Traição! Perfídia! Espírito de nocividade! Tenho vontade de esmurrá-lo, de...

Conteve-se, pois naquele momento, detonou um tiro e a bala arrarcou-me um farrapo do turbante.

__ Apeem-se e coloquem-se por trás dos cavalos! - bradei.

Ao mesmo tempo colocava-me por trás do meu pastor e não sem tempo, visto que no mesmo instante detonou outro tiro e a bala sibilou-me por cima da cabeça. Num instante desafivelei a coleira que prendia o cão e gritei-lhe:

- Sert! - Segura-o!

O cachorro soltou apenas um leve latido, como a dizer que me havia compreendido; e como um raio entranhou-se macega adentro.

Estávamos num desfiladeiro, cujos flancos eram cercados por carvalhos tenros. Penetrar nesse bosque seria um gesto imprudentíssimo, pois nos exporíamos talvez ao alvo certeiro do atirador invisível. Continuamos abrigados pelos corpos dos cavalos, a escutar.

- Maschallah! Quem teria sido? - perguntou Maomé.

- O Arnaute, - respondi-lhe.

Nisso ouvimos um grito de susto seguido de fortes latidos do cão.

- Dojan segurou o malfeitor - declarei tão calmo quanto possível. - Buluk Emini vá buscá-lo!

- Allah illa Allah! Eu não saio daqui! Em vez de um, podem também estar lá dez e até cem homens a nos armar uma emboscada, caso em que eu estaria perdido!

- Tens razão! E se morresses o pobre do teu burro ficaria órfão!... É um portento! Bem, fica então aqui a vigiar os cavalos. Vamos!

Saí na companhia dos demais e nos embrenhamos no denso macegal, onde não foi preciso andarmos muito. Não me enganara; era de fato o Arnaute. O cão não o estraçalhara, mas derrubara-o e deitara-se sobre o homem, segurando-o com os dentes na carótida, não fortemente e sim de leve: a qualquer movimento do antagonista para desvencilhar-se de suas presas, o cão as cravaria de fato, e o homem estaria perdido. Fiquei admirado da extraordinária inteligência do cão. O Arnaute havia puxado a faca, para livrar-se do seu atacante. O cachorro tinha, pois, mais de uma tarefa a desempenhar.

Primeiramente tomei o punhal do assaltante e depois uma das pistolas da cinta. A outra, com ambas as cápsulas detonadas fora jogada ao solo, à investida do cachorro.

- Geri! - Ritira-te!

A essa ordem o Dojan soltou o Arnaute. Este se ergueu do chão e instintivamente passou a fazer massagens no pescoço, à altura em que o animal o abocanhara.

- Homem, queres por força cometer um assassínio. Desejas que te esmague aqui mesmo?

- Sídi, dá essa ordem, que eu me encarrego da execução! Posso enforcá-lo. - disse Halef.

- Psiu! O seu tiro não atingiu ninguém. Deixa-o andar!

- Emir, - opinou Maomé - trata-se de uma verdadeira fera, que precisamos tornar inofensiva para sempre!...

- Este canalha alvejou-me e estou certo de que jamais repetirá tal façanha covarde! Retira-te já daqui, canalha!

No mesmo segundo o salteador desaparecia como uma flecha através das árvores. O Dojan quis persegui-lo, mas eu o contive.

- Sídi, precisamos segui-lo! É um Arnaute e será perigo ambulante para nós, se não o fizermos perder para sempre a faculdade de locomoção! ... - exclamou Halef.

- Por que será ele um perigo ambulante? Pensas que irá a Amadijah? Lá ele não aparecerá, do contrário moverei um processo sumário contra ele.

Maomé e o inglês também protestaram energicamente contra o meu gesto, que qualificavam de idiotamente compassivo. Eu, porém, não lhes dei atenção e voltei calmamente para os cavalos. O cachorro seguiu-me sem que eu o chamasse; notei que não precisava mais trazê-lo preso à coleira e durante a viagem vi que o fiel animal se afeiçoara de todo a mim.

Cerca do meio dia alcançamos uma pequena aldeia, chamada Bebadi; era uma localidade paupérrima e habitada por nestorianos, conforme me pareceu. Fizemos aí uma pequena parada e foi com muita dificuldade que arranjamos um pouco de cherbet, para tomarmos com a nossa refeição.

Afinal tínhamos diante de nós a montanha em forma de cone, ao sopé da qual ficava Amadijah, aonde chegávamos pouco tempo depois. Nos dois flancos da estrada que subia a montanha havia diversos pomares regularmente cultivados; a localidade propriamente dita, porém, já ao longe, não causava ao viajor impressão lá muito imponente. Depois de havermos descido a montanha, entramos pelo portão da cidade que de uma feita, já devia ter caído, mas que depois fora consertado ligeiramente, com o fim de prestar os seus serviços nalguma emergência. Ali achavam-se alguns Arnautes andrajosos, guarnecendo a entrada da cidade, para evitar que os inimigos a invadissem. Um deles pegou no meu cavalo e outro no do haddedihn, pelas rédeas.

- Alto! Quem são vocês? - perguntou-nos.

Apontei para o Buluk Emini, dizendo-lhe:

- Não vês que temos um soldado do Grão Senhor em nossa compannhia? Ele te responderá por nós.

- Mas falei contigo e não com o Buluk, ouviste?!

- Vai-te, afastá-te para o lado!

Ao dizer isso, encurtei as rédeas do animal e firmei-me na sela. O cavalo pôs-se nas patas traseiras e o Arnaute de susto caiu ao solo. Maomé seguiu o meu exemplo e continuamos a galope entrando na cidade. Por trás de nós ainda ouvimos o praguejar dos Arnautes e uma forte discussão entre eles e o Baschi Bozuk. Encontramo-nos, mais adiante, com um homem, que usava um enorme Kaftan e trazia um lenço velho enrolado na cabeça.

- Quem és? - perguntei-lhe com desembaraço.

- Senhor, sou um Jehudi (1) Que me ordenas?

- Sabes onde mora o Mulesselim? (2)

- Sei, Senhor.

- Conduze-nos ao seu Serai!

Quanto mais desassombrosa fôr a atitude com que se pisa no Oriente, tanto mais amavelmente se é recebido e tratado. Além disso, aquele homem era um judeu, portanto um indivíduo sem direito à cidadania, mas apenas ali tolerado; não fêz por isso o menor gesto de desobediência à ordem que lhe dei com energia. As ruas e vielas achavam-se desertas e tristíssimas. Não se notava o mínimo sinal de vida.

_____________

(1) Judeu.

(2) Comandante da praça.

 

Encontramo-nos com poucas pessoas que apresentavam um aspecto doentio, denotando depauperamento moral e fisíco, o que constituía uma viva prova das tradições de insalubridade daquela cidade.

O aspecto exterior do Serai desmentia formalmente o nome pomposo de Palácio que se lhe dava. Assemelhava-se mais a uma ruína reformada, em cuja frente nem sequer se via um guarda. Apeamos e confiamos as montarias à vigilância de Halef, do curdo e do Buluk Emini, o qual, nesse meio tempo, já nos havia alcançado. Depois de darmos uma propina ao judeu, que a agradeceu entusiasticamente, entramos no Serai.

Só depois de havermos caminhado durante algum tempo de um lado para outro na sala, é que avistamos um homem. Ao notar a nossa presença, veio apressadamente ao nosso encontro.

- Quem são? - Que pretendem aqui? - interpelou-nos, tomado de cólera.

- Homem, fala noutro tom, do contrário vou ensinar-te o que é ser cortês! Quem és tu?

- Sou o guardião deste palácio.

- É possível falar-se com o Mutesselim?

- Não!

- Onde está ele? Saiu a cavalo.

- Já compreendi. Está refestelado comodamente em seu aposento, ao invés de cuidar de suas obrigações militares!

- Pretendes ditar-lhe normas de vida e de proceder?!

- Não, mas pretendo obrigar-te a dizer-me à verdade!

- Afinal, quem és tu para me falares desse modo? És um infiel. Como te arriscas a entrar no palácio do comandante, acompanhado de um cão?

Ele tinha toda a razão, porque ao meu lado estava o formidável galgo a dirigir-lhe uns olhares que denotavam estar apenas à espera de um sinal meu, para avançar no turco.

- Pois então coloca guardas diante do portão, repliquei-lhe, para que só tenham entrada aqueles a quem é permitido! A que horas poderei falar com o Mutesselim?

- À hora do crepúsculo vespertino.

- Está bem. Dize-lhe então que a essa hora o procurarei!

- E se ele me perguntar quem és?

- Dize-lhe que sou um amigo do Mutessarif de Mossul.

Ao ouvir essas minhas palavras, o homem desconcertou-se; nós, porém, não lhe demos mais importância alguma e voltamos para fora, a fim de montar a cavalo e procurar hospedagem. Não seria difícil acomodarmo-nos, visto que a maioria das casas se achavam vazias. Contudo não iria apossar-me arbitrariamente de uma delas e precisava, pois, tomar as medidas para obtê-las pelos meios legais. Passando em revista as casas, cavalgávamos por uma das ruas, quando avistamos uma figura marcial. A sua jaqueta, como as calças de veludo, estava coberta de bordados com fios de ouro; suas armas não valiam cousa alguma e do Tschibuk, que vinha fumando com toda a solenidade, pendiam, conforme depois cheguei a contar, quatorze borlas douradas. Ficou parado a contemplar o meu cavalo, com ares de profundo conhecedor. Parei e saudei-o:

- Sallam!

- Aaleiikum! - correspondeu-me com um orgulhoso inclinar de cabeça.

- Sou forasteiro nesta terra e não costumo falar com Virkadschis (l). A sorte fez porém, que me encontrasse contigo, a quem vou solicitar as informações de que preciso - fui-lhe dizendo na mesma atitude orgulhosa mantida por ele.

- O teu sotaque diz-me que és um Efêndi. Estou pronto a responder à tuas perguntas.

- Quem és?

- Sou o Agha Selim, comandante geral dos albaneses, que defendem esta tradicional fortaleza!

- Eu sou Kara Ben Nemsi, um protegido do Padixá e enviado especial do Mutessarif de Mossul. Procuro uma casa, onde possa morar por alguns dias em Amadijah. Não sabes de uma atualmente desabitada?

Ele desceu de sua pose primitiva e, perfilando-se militarmente, respondeu:

- Que Alá abençoe a tua Alteza, Efêndi! És um Grão senhor que deve ser acolhido no palácio do Mutesselim!

- Mas o superintendente do palácio já me repeliu, quando há minutos o procurei e eu...

- Que Alá arruine aquela criatura! - interrompeu-me o comandante. - Irei já arrancar-lhe um pedaço do corpo!

 

UMA DESPÓTICA GOVERNANTA

Revirou os olhos e com ambos os braços fazia sinais de quem estivesse espaldeirando alguém. Aquele homem devia ser um oficial de educação vulgaríssima.

- Deixa esse homem! Não merece a honra de ter hóspedes que lhe dêem muitos backschisch (2).

- Backschisch? - perguntou o militar. - Tu ofereces muitos backschischs a quem te hospedar?

- Neste ponto não sou avarento!

- Neste caso sei de uma habitação, onde podes morar e fumar como o Xá-in-Xá da Pérsia. Queres que te conduza até lá?

- Sim, quero ver a casa!

O homem fez meia volta e saiu caminhando em nossa frente. Nós o seguimos. Conduziu-nos através de ruas comerciais, cujos estabelecimentos estavam quase completamente vazios de mercadorias, até chegarmos diante de uma pequena praça.

- Esta é a Meadin juedschelikue. - “Praça Grande!” - declarou-me.

Aquele logradouro poderia possuir todos os requisitos para o fim a que se destinava, mas não era “grande”, conforme dizia o seu nome espalhafatoso. Percebia-se logo que estávamos numa cidade turca, pois pela praça perambulavam numerosas matilhas de cães vadios. Ao avistarem o meu lindo galgo, todos se fizeram ouvir em latidos ensurdecedores, mas o “Dojan” qual o Paxá diante de um bando de mendigos, não lhes deu a menor atenção.

- E ali está a casa a que me referi. - acrescentou o Agha.

Indicou um edifício que tomava quase toda a face anterior da praça, e que apresentava

___________

(1) Pessoa vulgar.

(2) Gorjetas.

 

um aspecto externo nada mau. Tinha várias pengascheris (1) na frente, providas de grades de madeira e por sobre a sotéia havia um passadiço, o que era um grande luxo para a terra onde nos encontrávamos.

- Quem mora nesta casa? - perguntei-lhe.

- Eu mesmo, Efêndi - respondeu-me.

- E a quem pertence?

- A mim.

- Adquiriste-a por compra ou alugaste-a?

- Nem uma nem outra cousa. Fora em tempos remotos propriedade do célebre Ismaiil Paxá e depois de sua morte ficou sem dono até eu tomar posse dela. Vem, vou mostrar-te todas as dependências!

Aquele denodado comandante geral dos Arnautes estava realmente ávido pelos meus backschisch. Mas com isso muito me alegrava eu, visto que por seu intermédio viria talvez obter todas as informações de que precisava. Apeamos diante da casa e entramos. À entrada achava-se de cócoras uma mulher velha, que descascava cebolas e que com os olhos rasos de lágrimas, mastigava as cascas. Pela sua aparência deveria ser ou a bisavó do judeu errante ou alguma tia de Matusalém que a morte vinha poupando através dos séculos.

- Ouve-me, minha doce Mersinah, aqui te trago uns homens! - disse-lhe o comandante com inflexão carinhosa na voz.

De tão lacrimosa, ela não nos podia enxergar; esfregou os olhos com a própria cebola que tinha na mão, de modo que as lágrimas aumentaram ainda mais.

- Homens? - perguntou ela com voz que soava cavernosa na sua boca desdentada.

- Sim, homens que vão morar nesta casa.

Largou a cebola no chão e ergueu-se do solo com rapidez  juvenil.

- Morar? Nesta casa? Estás doido, Agha Selim?

- É o que estou dizendo, minha querida Mersinah, tu serás a Meichandscha (2) desses homens e os servirás com carinho e solicitude!

- Hospedeira? Servi-los? Allah kerihm. Realmente ficaste doido! Não vês que trabalho dia e noite e mal dou conta dos serviços que a tua manutenção me exige?! Enxota já esses homens, corre com eles da minha frente! Ordeno-te e não ousarás desobedecer-me!

O militar ficou um pouco contrafeito, o que não pôde dissimular. A sua “doce Mersinah” parecia empunhar nesta casa um cetro formidável.

- Não terás acréscimos de serviço, minha pombinha. Vou contratar uma kyzla (3) para servi-los.

- Uma kyzla? Agora a voz não ressoava mais cavernosamente, mas num agudo irritante, como se o bicho da “pombinha” se houvesse transformado numa palhêta de clarinete. - Uma kyzla! É por certo uma jovem e bonita kyzla, hein?

- Isto depende dos meus hóspedes, Mersinah!

Ela pôs as mãos nos quadris, movimento usado tanto no Oriente como no Ocidente, e tomou profunda inspiração. Aquilo queria dizer que ela precisaria de uma boa reserva de fôlego para melhor expressar o seu poderio dominador.

__________

(1) Janelas.

(2) Hospedeira.     

(3) Serviçal.

 

- Depende desses homens? Depende de mim! Aqui sou eu a Senhora da casa! Aqui só eu é que mando! Aqui só eu é que ordeno o que se deve fazer ou deixar de fazer! Repito-te a minha ordem: Corre imediatamente com estes homens daqui! Estás ouvindo Agha Selim? Rua, rua com eles!

- Mas não são uns homens, minha querida, minha doce Mersinah!

Mersinah, que significa murta, enxugou novamente os olhos e ficou a contemplar-nos com mais atenção. Eu próprio me espantara da afirmativa feita pelo Agha. Se não éramos homens, que éramos então?!

- Não são homens?

- Não - respondeu ele. - São Efêndis grandes Efêndis que se acham debaixo da égide do Grão Senhor.

- Que tenho eu com o Grão Senhor! Aqui sou eu a Grã Senhora, a Sultana Balide, aquilo que eu disser se...

- Mas, calma Mersinah! Eles te darão uma boa quantidade de backschisch!

Basckschisch possui no Oriente uma atração irresistível; também na presente situação parecia ser a pedra filosofal. A “murta” deixou cair os braços em posição normal, tentou um sorriso à guisa de prelúdio, sorriso, porém, que era mais um grunhido, e dirigiu-se a David Lindsay:

- Vão me dar uma grande quantidade de backschisch? É verdade?

O interrogado meneou a cabeça e apontou para mim.

- Que tem esse homem? - perguntou-me ela. - É algum doente?

- Não - respondi-lhe. - Deixa que eu te diga quem somos, oh alma desta casa! Este homem ao qual acabas de fazer a pergunta, é um fervoroso peregrino de Londristão; com a enchada que carrega consigo, escava a terra para ouvir a palavra dos mortos e fêz um voto de fé: não falar uma só palavra, sem que para isso obtenha permissão.

- Um devoto, um santo, um feiticeiro? - perguntou, tomada de pavor.

- Justamente! Advirto-te que não o ofendas! Este outro aqui, é o regente de um grande povo que habita o longínquo ocidente e eu sou um Emir dos guerreiros que admiram as mulheres e distribuem backsbischs. És a Sultana desta casa. Permite-nos que a examine para ver se há acomodações suficientes para morarmos nela alguns dias!

- Efêndi, tuas palavras possuem o perfume da rosa e do cravo; tua boca é mais sábia e diligente que o focinho desse esquálido Agha Selim, que nem sabe exprimir o que deseja dizer e a tua mão é como a mão do Alá que distribui bênçãos a todos os mortais! Viajas na companhia de muitos criados?

- Não. Os nossos braços são bastante vigorosos para nos defendermos a nós mesmos. Viajamos acompanhados apenas por três serviçais: um criado efetivo, um Khawass do Mutessarif de Mossul e um curdo que ainda hoje deixará Amadijah, de volta para a sua aldeia.

- Sejam todos bem-vindos, Senhores! Examinem a minha casa e o meu jardim; se se agradarem de tudo, os meus olhos os vigiarão e iluminarão a existência feliz que aqui haveis de levar!

 

APROXIMANDO-SE DO OBJETIVO

Limpou novamente os olhos “vigilantes” e “luminosos” e juntou as cebolas do chão, a fim de desimpedir o caminho para a nossa passagem. O valente Agha dos Arnautes pareceu sentir-se felicíssimo com o novo rumo que tomara a questão. Primeiramente ele guiou-nos a uma sala que lhe servia de aposento. Era espaçosa, mas como mobiliário tinha apenas um velho tapete no chão, também usado como sofá, cama, cadeira e mesa. Dependuradas nas paredes viam-se algumas armas e diversos cachimbos. No assoalho havia uma garrafa bojuda, rodeada de numerosas cascas de ovos.

- Apresento-lhes as minhas boas vindas, no meu aposento - exclamou o comandante. - Bebamos agora à nossa saúde e à nossa imorredoura amizade!

Baixou-se, a fim de agarrar a garrafa e as cascas de ovos. Destas deu uma a cada um de nós, enchendo-as em seguida. Era Raki o que nos oferecera. Bebemos nas taças improvisadas, ao passo que o comandante servira-se do gargalo da própria garrafa. Não o retirou da boca, até que adquiriu a tranqüilizadora convicção de que a bebida forte e bastante sulfúrica que continha a citada garrafa, não lhe poderia produzir mais revoluções gástricas, em virtude de estar... vazia! Em seguida pegou nas cascas de ovos que lhe alcançáramos e, depois de sorver o pouco que ainda nelas deixáramos, as depôs cuidadosamente no chão.

- Kendim idschad eter. - Minha própria invenção! - declarou cheio de orgulho. - Admiram-se de que não uso copos?

- Não. É evidente que, a eles, preferirás a tua invenção - respondi-lhe.

- Prefiro-a sim, mas pela razão de não possuir copos. Sou o Agha dos albaneses e percebo de soldo e subvenção a importância mensal de trezentos e trinta piastras; mas já há onze mezes que estou com os meus vencimentos em atraso. Allah kerim; Padixá kendisi onu kullar. Deus é bondoso e o sultão precisa mesmo de dinheiro!

Em vista daquela revelação, não era de admirar que a palavra backschisch tivesse um tal prestígio naquela cidade!

Mostrou-nos todos os compartimentos da casa. Era muito espaçosa mas estava condenada também à ruina, como todas as edificações da cidade. Tomamos quatro aposentos, um para cada um de nós e outro para Halef e o Baschi Bozuk. O aluguel era baratíssimo, cada aposento cinco piastras por semana, o que correspondia a um marco alemão.

- Querem ver o jardim? - perguntou o Agha depois.

- Naturalmente. Está bem cuidado?

- Muito bem! Até parece o jardim do Éden! Nele erguem-se e vicejam todas as qualidades de árvores, verduras, flores e gramados como ainda não vi iguais na minha vida. Durante o dia é todo iluminado pelo sol e à noite ele recebe o brilho de milhares de estrelas que recamam a abóboda celeste. É lindo, extraordinariamente lindo, o meu jardim!

- E também não chove sobre ele? - perguntei.

- Quando vem chuva, o jardim recebe também o seu quinhão dágua; às vezes até a neve resolve fazer-lhe uma visita. Venham e contemplem o meu poético jardim!

No pátio havia um galpão que alugamos para os cavalos. Também o aluguel era de um marco, isto é, de cinco piastras. O jardim estava situado dentro de uma área de quarenta passos quadrados, sendo, pois, muito pequeno. Nele erguia-se um cipreste desgalhado e um pé de macieira silvestre. As “qualidades de verduras, flores e gramados” a que ele se referia, compunham-se de alguns kendir (1), umas moitas de madanas (2) e alguns pés de margaridas, prestes a definhar. A maior maravilha do jardim, porém, era um canteiro onde em cordialíssima promiscuidade floresciam diversos pés de soghani (3), sarmysack (4), kedilan (5) algumas uvas do mato, diversos cogumelos e alguns pés de violetas. Floresciam, mas devido à falta de água começavam já a definhar.

- Bir guezel bagtsche - Um lindo jardim! Não achas? - perguntou o Agha, soltando uma densa baforada do cachimbo.

- Guezel-zorli. - Estupendamente lindo! - respondi-lhe.

- Pek bereketli! - É fértil!

- Ghajet rebeketli! - Fertilíssimo!

- Ile tschok guezel dikekler. - E repleto de plantações! Não é?

- Sim e plantações raríssimas!

- Sabe quem já possuiu este jardim florido?

- Quem?

- A mais linda rosa dos curdos. Nunca ouviste falar de Khan Esma, cuja beleza mulher nenhuma ainda superou?

- Ouvi falar sim. Não era a mulher de Paxá Ismaiil, o único filho, morgado do califa dos Abassidas?

- Justamente. Ela adotara o título honorífico de Khan, como todas as mulheres de sua família iluminada. O Paxá Ismaiil foi sitiado pelo Paxá Indsche Bairakder Mohammed; este destruiu as muralhas que cercavam o castelo e tomou-o de assalto. Em seguida prendeu Ismaiii com a Khan Esma e levou-os, algemados, para Bagdad. Pois neste jardim viveu aquela encantadora mulher, a espalhar o perfume de sua beleza. Emir, eu quisera que ela ainda estivesse aqui!

- Foi também a Khan Esma quem plantou essas salsas e aqueles alhos?

- Não - respondeu ele meio agastado com a pergunta. - Foram plantadas pela minha governanta.

- Então dá graças a Alá por ainda teres essa Mersinah no lugar de Khan Esma!

- Efêndi, esta às vezes se torna muito áspera!

- Não deves queixar-te disso, visto que Alá distribui os dons de várias modalidades... E no livro achava-se também escrito que terias de aspirar o perfume da “Murta”.

- Sim, neste ponto tens razão! Mas, dize-me, Emir, não queres alugar também este jardim?

- Quanto pedes pelo aluguel?

- Dá-me dez piastras por semana e todos poderão passear pelo jardim e gozar quanto quiserdes sem pagamento de quaisquer outras contribuições especiais, das doces recordações de Khan Esma!

____________

(1) Cânhamo.

(2) Salsa.

(3) Cebolas.

(4) Alho.

(5) Alfavaca.

 

Hesitei em responder. O jardim era contíguo à parede amuralhada de um edifício, na qual havia uma grande fila de seteiras, por onde penetrava o ar no interior deste. Aquele tinha um aspecto de presídio. Resolvi informar-me a respeito.

- Creio que não alugarei este jardim.

- Por que não?

- Aquela parede, que é uma verdadeira muralha, não me agrada.

- Aquela parede? Por que Efêndi?

- Não me agrada espairecer nas proximidades de uma prisão.

- Oh! Mas os presidiários que ali estão recolhidos, não te incomodarão em nada. As paredes são tão espessas que eles não conseguirão passar o braço pelas seteiras.

- É aquela a única prisão de Amadijah?

- Sim. A outra desmoronou. O meu Tschausch (1) é o encarregado da vigilância aos prisioneiros.

- E achas que estes não me incomodarão?

- Não verás um só deles e nem lhes ouvirás nem uma só silaba.

- Nesse caso, aceito o arrendamento por dez piastras semanais. Tens, portanto, uma féria de trinta e cinco piastras por semana, proveniente dos nossos alugueis. Permite-me que eu pague adiantadamente a primeira semana!

Em face dessa minha oferta, ele grunhia de satisfação. O inglês notou que eu punha a mão no bolso, a fim de pagar. Meneou negativamente a cabeça para mim, tirou do bolso a sua carteira e a colocou em minha mão. O displicente companheiro estava em condições de sofrer uma pequena sangria na mesma, por isso dela tirei três Mahub-Zechines e dei-as ao Agha.

- Aí tens as trinta e cinco piastras. O troco fica de backschisch para ti.

Aquela importância era mais do que o dobro da que ele tinha a receber; por isso mostrou-se satisfeitíssimo e disse em tom de profundo respeito:

- Emir, no Kuran reza: Quem dá o dobro será abençoado cem vezes por Alá! Alá constituiu-se agora teu devedor e te pagará com abundância e generosidade!

- Bem, agora necessitamos de tapetes para mobiliar nossos quartos e de alguns cachimbos para fumar. Onde se podem conseguir estes últimos, por empréstimo, Agha? - perguntei-lhe.

- Senhor, se me deres mais duas dessas peças de ouro, obterás tudo que teu coração anseia.

- Aqui as tens.

- Vou correndo para trazer-te tudo!

Deixamos o jardim. No pátio achava-se Mersinah, a alma do palácio. Suas mãos estavam agora pretas de ferrugem. Mexia com o indicador numa latinha oxidada, cheia de manteiga derretida.

- Emir, alugarás os quartos? - perguntou-me a governanta.

A essa pergunta ela apercebeu-se de que o seu dedo não fazia parte integrante da lata, puxou-o rapidamente para fora e limpou-o com a língua.

- Ficarei com todos eles e também com o galpão e o jardim.

- Ele até já pagou os alugueis adiantadamente, observou o Agha, sublinhando a última palavra.

- Em quanto importou o pagamento?

_____________

(1) Sargento.

 

- Recebi dele trinta e cinco piastras, o equivalente de uma semana de aluguel.

Da gorjeta, o Agha não falou. Estaria também nesse particular debaixo do paputsch (1) de sua “murta”? Tirei mais uma mahbub-zochine (2) do bolso e dei a ela.

- Aceita esse presente, tu, pérola da hospitalidade! Já é a primeira backschisch que te dou. Se ficarmos satisfeitos contigo, receberás ainda mais.

Ela pegou na moeda com avidez e a pôs ligeiro num bolso do cinto.

- Muito obrigada, Senhor! Vigiarei dia e noite para que te sintas tão bem aqui como se estivesses no seio do patriarca Ibraim (3). Agora vejo que realmente pertences àqueles guerreiros nobres que admiram as mulheres e as presenteiam com backschisch! Vai para o teu quarto, Emir! Vou fazer-te um pirindsch coberto com muita manteiga.

- A tua bondade é grande - respondi-lhe. - Mas não temos tempo de aceitá-la, pois precisamos sair já.

- Mas desejas que eu prepare a comida, não é assim, Emir?

- Disseste que precisavas trabalhar dia e noite para atender unicamente o Agha; logo não devemos ainda importunar-te. Além disso, é de se esperar que sejamos convidados muitas vezes para jantar ou almoçar fora, e se isso não suceder, mandaremos buscar os nossos alimentos nalgum jemegidschi (4).

- Mas não devem recusar a refeição de honra que agora pretendo servir.

- Bom, então aceitamos alguns ovos quentes. Outro alimento não poderemos tomar hoje.

Era a única cousa que se poderia comer, feita pelas mãos pouco asseadas daquela “murta”.

- Ovos? Vou esquentá-los já, Sídi; mas peço que poupem as cascas que o Agha utiliza depois para taças e que ele, em geral, quando toma ovos tem a imprevidência de quebrar irrefletidamente.

Recolhemo-nos por alguns instantes aos nossos aposentos e o Agha veio logo trazendo os cobertores, os tapetes e os cachimbos que tomara por empréstimo a algum negociante. Eram novos e por isso podíamos ficar descançados quanto à limpeza dos mesmos. Em seguida chegou Mersinah trazendo a tampa de um velho caixão de madeira, à guisa de bandeja. Sobre a tampa estavam os ovos que constituiriam a refeição de honra que ela ia oferecer-nos. Ao lado destes um bolo meio queimado e também a celebérrima latinha com manteiga derretida, onde ela há pouco estivera remexendo com o indicador, rodeada de algumas cascas de ovos, contendo sal bastante sujo, pimenta socada e umas ervas doces de procedência duvidosa. Talheres apropriados para tomar os ovos é claro, não acompanhavam a “bandeja”.

A refeição de honra com que éramos recebidos e para a qual, num gesto de cortesia, convidáramos Mersinah, terminou dentro de pouco tempo. Ela agradeceu gentilmente a distinção, aliás, nunca esperada por ela, com que a cumuláramos, agarrou novamente no “aparelho de jantar” e com ele voltou para a cozinha. Também o Agha levantou-se.

- Sabes, Senhor, aonde irei agora? - perguntou-me ele.

- Só se me disseres!

_______________

(1) Tamanco.

(2) Mais ou menos cinco marcos.

(3 ) Abraão.

(4) Hotel.

 

- À casa do Mutesselim. Ele vai saber quanto vale um Emir distinto e também quanto lhe custará o modo brusco e indelicado com que te recebeu o guardião do palácio.

Recompôs o seu semblante, limpando do bigode o resto de manteiga que juntamente com Mersinah saboreara toda, e partiu. Agora estávamos sós.

- Posso falar, Sir? - perguntou-me Lindsay.

- Sim, mister.

- Vamos comprar a roupa.

- Agora?

- Sim, agora.

- Vermelho xadrezado?

- Naturalmente!

- Então vamos ao bazar.

- Mas não devo falar. O senhor fará a compra, sir. Aqui, o dinheiro.

- Compraremos apenas roupa?

- Que mais?

- Algumas baixelas, de que precisamos, umas para nós e outras para presentearmos, por medida de prudência ao Agha e à sua governanta. Também algum fumo, café e outras coisas necessárias.

- Well! Pagarei tudo!

- Servir-nos-emos, por enquanto, de sua bolsa, mas depois ajustaremos contas.

- Psiu! Pagarei tudo! Assunto resolvido!

- Irei junto? - perguntou Maomé.

- Como quiseres. Mas acho que seria melhor apareceres o menos possível em público. Em Spandareh já te reconheceram como um Haddedihn e, além disso, o teu filho é muito parecido contigo, o que também me assegurou o decano daquela aldeia.

- Pois ficarei!

Acendemos os nossos Tschibuks e nos fomos. A entrada da casa estava envolta em densas nuvens de fumaça e na cozinha tossia a “Murta”. Quando nos viu sair, chegou por um instante na frente.

- Onde está a nossa gente? - perguntei-lhe.

- Junto dos cavalos. Vais sair?

- Vamos ao bazar fazer algumas compras. Não queremos interromper-te, oh guardiã da cozinha! Olhe a caldeira! Está a ferver; a água corre por cima!

Deixa correr, Senhor! Deste ou daquele modo, a comida ficará pronta.

- A comida? Cozinhas naquela caldeira?

- Sim.

- Só para ti e para o Agha?

- Não.Tenho que cozinhar também para os presos.

- Ah! Os que estão recolhidos no edifício contíguo?

- Para esses mesmos.

- Há muitos desses infelizes na prisão?

- Não chegam a vinte.

- São todos de Amadijah?

- Não. Há entre eles diversos soldados Arnautes desertores, alguns caldeus, um curdo, um casal de Amadijah e por fim um árabe.

- Um árabe? Mas não há dessa gente em Amadijah!

- Aquele foi trazido preso de Mossul.

- Que alimentos distribuis aos prisioneiros?

- Pão, que é cozido por mim mesma, e, pela manhã ou à noite, conforme a minha disposição, esta comida quente que estou preparando.

- Que comida é?

- Água engrossada com farinha.

- E quem leva as refeições?

- Eu mesma. O sargento abre os cubículos e assiste à distribuição. Já viste um presídio, Emir?

- Ainda não.

- Pois se quiseres ver agora, vem comigo!

- O sargento não o permitiria!

- Por que não? Aqui, sou a Grã Senhora, e todos se curvam às minhas ordens.

- Mas também és Grã Senhora do sargento?

- Claro, não sou eu a protetora e Grã Senhora do Agha?

- Sim, isto é verdade! Vou refletir ainda. Não sei se condiz com a dignidade de um Emir visitar uma prisão e cumular aquele que permitiu tal visita de alguns backschisch.

- Condiz, sim, Efêndi. Fica até muito bem! Talvez que derrames a tua bondade sobre os presidiários, para que eles possam comprar-me alguns alimentos especiais, e fumo, que os infelizes nunca têm.

Nada mais me podia ser tão auspicioso do que as informações que agora acabava de obter; tive, porém, a precaução de não fazer mais perguntas, pois isso talvez viesse a despertar suspeitas. Halef, o Buluk Emini e o curdo, de Spandareh foram chamados, a fim de acompanhar-nos. Em seguida nos fomos.

 

UM “EMPRÉSTIMO” SINGULAR

O comércio da cidade achava-se paralizadíssimo. A muito custo encontramos um Café, onde nos foi servida tal bebida, a qual tinha um paladar semelhante à cevada queimada. Nesse estabelecimento disseram-nos a causa da falta de movimento em Amadijah. Não obstante as alterosas e arejadas montanhas de que está rodeada, a cidade é muito insalubre e, no começo da estação estival, nela grassa, em caráter endêmico, a febre lenta. Por essa época, a população mais abastada e também a que constitui as classes médias, procura as matas das redondezas, onde se instalam em suas casas de verão, a que chamam lilaks.

Depois de havermos tomado café e enchido novamente os nossos cachimbos, encaminhamo-nos para a loja de vestuários. O dono do Café nos indicara um estabelecimento, no qual poderíamos adquirir tudo de que precisávamos. O negócio foi realizado na presença do suposto mudo inglês e com a sua aprovação tácita. Ele recebeu um traje completo, com xadrezes pretos e vermelhos, por um preço relativamente barato. A seguir compramos os outros objetos e os mandamos para casa pelo criado. Presenteamos o curdo com uma bolsa de fumo enfeitada de pérolas, objeto que ele colocou à cinta ostensivamente para que desse logo na vista de todos não ser ele uma personalidade vulgar.

A seguir, e acompanhado apenas pelo inglês, fui dar um passeio pela cidade, com o fim de conhecê-la melhor. Nesse passeio convenci-me ainda mais de que aquela praça de guerra fronteiriça, outrora de uma importância capital e à qual ainda hoje os turcos não consideravam depreciativamente, poderia ser facilmente tomada e ocupada, de surpresa, por algumas centenas de guerreiros curdos de iniciativa e empreendimento. Os poucos soldados que encontrávamos tinham um aspecto faminto e doentio. Em sua maior parte estavam atacados pela febre endêmica. Também as armas de defesa, devido ao seu péssimo estado de conservação, não mereciam mais tal nome.

- Quando voltamos, o Agha já estava à minha espera.

- Emir, estou já há algum tempo aguardando tua volta.

- Para quê?

- Para levar-te à presença do Mutesselim.

- Levar-me? - perguntei a sorrir e sublinhando a frase.

- Levar propriamente, não, acompanhá-lo! Relatei-lhe tudo e encostei meus punhos cerrados no queixo do guardião do palácio. Alá o protege, pois do contrário eu o teria morto, estrangulado!

Ao dizer isso revirou os olhos e encolheu os dez dedos das mãos em tenazes.

- Que disse o comandante?

- Emir, queres que eu te fale a verdade?

- Espero que não procederás de outro modo.

- Ele não está nada satisfeito com a tua visita!

- Ah! Por quê?

- Não estima os forasteiros e muito raramente recebe visitas.

- É algum ermitão?

- Não é isso. O comandante desta praça recebe, com moradia livre, seis mil setecentas e oitenta piastras de vencimentos mensais e com ele ocorre a mesma coisa que comigo: há onze meses que não recebe soldo algum e nem sabe o que há de comer e beber. A miséria é grande. E nessa circunstância poderá ele alegrar-se com uma visita de destaque?

- Mas quero apenas vê-lo e com ele palestrar; não pretendo jantar ou almoçar na sua companhia e à sua custa, não!

- Impossível! A alta dignidade de tuas funções e principalmente em se tratando de um Efêndi de destaque como tu, obriga-lhe a fazer-te uma recepção brilhante. E, em vista disso, ele se viu na iminência de... de...

Parou um tanto contrafeito.

- De que, homem?

- De chamar ao palácio os judeus aqui residentes, a fim de pedir-lhes quinhentas piastras de empréstimo, importância necessária para custear a tua recepção.

- E obteve o empréstimo?

- Allah illa Allah; os judeus não tinham mais dinheiro algum, porque o comandante dias antes deixara-os sem um vintém, em conseqüência de um empréstimo idêntico que lhes fêz. Agora, porém, ele pediu um carneiro e o mais que é necessário, emprestados. E essa situação é grave, gravíssima mesmo, Emir, principalmente para mim.

- Como para ti?

- Porque terei de lhe emprestar essas quinhentas piastras. E a não ser que...

- ... que sejas...

- Mas fala, Agha!

- ... rico. Oh, Emir, eu mesmo não teria uma única moeda, se não me tivesse dado hoje aquele dinheiro! E dele ainda fui obrigado a dar trinta e cinco piastras a Mersinah!

Emprestar, para minha recepção, quinhentas piastras ao Mutesselim era o mesmo que dá-las de presente. Convertidas em moeda alemã, importava mais ou menos em cem marcos. Em conseqüência do dinheiro que eu achara nos animais do Albu Seif não me achava sem recursos e a benevolência do Mutesselim seria talvez de incalculáveis vantagens para o nosso propósito. Achava-me, pois, em condições de dar ao comandante aquelas quinhentas piastras, o mesmo ocorrendo em relação ao inefável mister Lindsay, para quem tal importância era uma ninharia, sobretudo em se tratando de viver uma aventura emocionante. Em vista disso dirigi-me ao quarto do inglês, enquanto o Agha me esperava.

Sir David achava-se atarefado em mudar de roupa. A sua fisionomia comprida resplandecia de contentamento.

- Mister, que tal o meu aspecto agora? - perguntou-me.

- Verdadeiramente curdo!

- Well! Muito bem, muito bem! Ótimo!

- Mas como enrolar o turbante?

- Dê-me cá essa coisa!

Nunca o inglês tivera um turbante nas mãos. Pus-lhe a carapuça na cabeça calva, e enrolei com arte e gosto o lenço axadrezado de preto e vermelho em volta do mesmo. Deste modo consegui formar um dos vistosos turbantes usados naquelas paragens por pessoas de destaque. Esses turbantes chegam a ter muitas vezes um diâmetro de quatro pés.

- Bem, eis aí um Grande Khan autêntico!

- Excelente! Grandioso! Bela aventura! Libertar Amad el Ghandur! Pago tudo! Pago muito bem!

- Está falando a sério, sir?

- Por que não?

- Sei que é um homem abastado e que sabe aplicar na devida forma a sua fortuna!

- Quer algum dinheiro?

- Quero! - respondi-lhe, simplesmente.

- Well! Será atendido! Para o senhor?

- Não. Acho que me conhece bem, neste ponto!

- Claro. Sei que não costuma pedir dinheiro a ninguém. Mas para quem?

- Para o Mutesselim.

- Hum! Por quê? Para quê?

- Aquele homem é paupérrimo. O Sultão está a dever-lhe onze meses de vencimentos. Por esse motivo, vem aplicando o sistema adotado por todo o funcionário público turco, sugando bastante a população local. Atualmente ninguém na cidade dispõe mais de dinheiro e, portanto nada lhe podem emprestar. A minha visita veio por isso trazer-lhe sérios embaraços. Ele está obrigado a fazer-me uma recepção oficial e não dispõe de meios para isso. Pediu então um carneiro e outros comestíveis e bebidas por empréstimo, mandando perguntar-me, veladamente, é verdade, se eu era bastante rico para emprestar-lhe quinhentas piastras. Essa transação, está visto, é caracteristicamente turca e não se pode contar com a restituição daquela quantia... Como, porém, é de muita necessidade para nós conquistarmos as suas boas graças, resolvi...

O inglês interrompeu-me, fazendo um rápido movimento com a mão.

- Bom, o senhor lhe mandará uma nota de cem libras esterlinas!

- É muito, Sir! Ao câmbio de Constantinopla importaria isso em onze mil piastras! Quero enviar-lhe apenas quinhentas piastras e peço-lhe que lhe mande também outras quinhentas! Isso o satisfará plenamente.

- Mil piastras! Ninharia! Presenteei muitas vezes a xeques árabes com vestuários de pura seda! Eu quisera ver o Mutesselim. Se me permitir, entrarei com a importância toda! O senhor ficará com o seu dinheiro!

- Concordo!

- Recomende então a Agha que prepare tudo!

- Preparar o quê?

- Presentes. Compraremos muitos para distribuir pelo caminho! Faremos gastos! Nos presentes ao Mutesselin incluiremos o dinheiro!

- Mas não demais, sir!

- Quanto? Cinco mil piastras?

- Manda as mil! Ou então, quando muito, duas mil. É o bastante!

- Well! Duas mil! Combinado!

Voltei para junto do Agha Selim.

- Dize ao comandante que o visitarei na companhia de um dos meus camaradas!

- Quando?

- Daqui a pouco.

- O teu nome ele já o conhece; e o do outro?

- Bei Hadschi Lindsay.

- Bei Hadschi Lindsay. Bom! E as piastras, Emir?

- Pedimos-lhe permissão para levar-lhe um presente!

- Neste caso, obriga-lo-ás a dar-te também um!

- Não somos pobres, não! Temos tudo de que precisamos e para nós será motivo de grande alegria, se ele não nos der presente algum. Com isso conquistará até a nossa gratidão! Dize-lhe isso!

O Agha retirou-se consolado e satisfeito.

Cinco minutos após eu e o inglês montávamos a cavalo; recomendei-lhe muito que não dissesse uma só palavra durante a audiência, nem pelo caminho. Halef e o Buluk acompanharam-nos. O curdo voltou para Spandareh com o vestuário e com muitas lembranças nossas ao decano. Paramos numa loja, onde adquirimos tecidos bordados para um traje de gala, bem como uma finíssima bolsa na qual Sir David pôs vinte peças de ouro, de cem piastras cada uma. Nesse particular o inglês não era absolutamente mesquinho; isso teve ocasião de provar por diversas vezes, sempre com vantagens para mim.

 

 

COM O MUTESSELIM

Fomos em direção ao palácio do comandante da praça. Diante do mesmo, achava-se uma tropa de duzentos homens, em parada, conduzida por dois Mulasins e sob o comando geral do nosso valente Agha Selim. Este puxou a espada e comandou:

- Ajakda duryn dykkatli! Em linha!

Os soldados envidaram todos os esforços para obedecerem à voz de comando, mas a formatura constituía uma linha toda serpenteada que no fim se assemelhava à cauda de um ofídio.

- Tschalghy! Islik tscharyn: - Música! Apito!

Três flautas tocavam, acompanhadas de um tambor turco que se parecia com a batida num bule de folha para café.

- Daha gioer! Kuwetlirek! Mais alto, mais vibrante!

O comandante da parada fazia toda sorte de trejeitos, no que era seguido pelos músicos. Enquanto se realizava a guarda de honra, distinção que muito nos desvanecia, galopamos pela frente da formatura e fomos apear defronte do palácio. Os dois tenentes cavalgaram até nós e seguraram os loros de nossos estribos para apearmos. Levei a mão ao bolso, tirei duas moedas de prata, no valor de dez piastras, e apertei-as nas mãos dos dois. Meteram-nas, satisfeitos, no bolso sem se sentirem chocados na sua honra de militar. Os oficiais subalternos turcos, principalmente em guarnições longínquas, prestam-se a ser considerados como tais.

Ao Agha entreguei a fazenda e a bolsa com as vinte moedas.

- Anuncia-nos ao comandante e entrega-lhe esse presente de nossa parte!

O oficial encaminhou-se solenemente para o interior do palácio e nós o seguimos. No portão estava o guardião do palácio. Recebeu-nos de modo diferente do da primeira vez. Cruzou os braços sobre o peito, inclinou-se profundamente e balbuciou com humildade:

- Bendeniz ei oepir; aghamin size selami wer. O vosso criado beija-vos as mãos! O meu Senhor envia-vos os seus respeitos!

Passei por ele sem lhe responder, e Lindsay também fêz como se nem o tivesse notado. Confesso que o porte do nosso mister escavador de “touros alados”, não obstante as cores berrantes do seu traje, causava boa impressão. A vestimenta sentava-lhe como se a houvessem talhado para ele; ser inglês e além disso possuir a fama de um homem rico eram elementos que lhe garantiam, aqui neste país, a segurança individual.

O guardião, não obstante o solene desprezo que lhe dedicamos, correu à nossa frente e conduziu-nos a um compartimento que servia de sala de espera. Ali estavam os funcionários do Comandante da praça sentados sobre pobres tapetes. Ao chegarmos, levantaram-se e cumprimentaram-nos respeitosamente. Eram em sua maioria turcos, havendo também alguns curdos entre eles. Os últimos, pelo menos quanto ao seu aspecto exterior, causavam melhor impressão do que os primeiros, que pareciam achar-se em péssima situação econômica. Diante de uma janela, achava-se parado um curdo, no qual se reconhecia à primeira vista o montanhês livre. Olhava impaciente e sombriamente para a rua. Um dos turcos aproximou-se de mim:

- És o Emir Hadschi Kara Ben Nemsi, que o Mutesselim espera?

- Sou eu mesmo.

- E esse Efêndi é o Bei Hadschi Lindsay, que fêz uma profissão de fé para não falar?

- É êle mesmo.

- Eu sou o Basch Kiatib (1) do comandante. Ele pede que esperes um momento.

- Para quê? Não estou habituado a esperar e ele estava avisado de minha chegada!

- Está numa importante conferência que não deve demorar.

Pude logo imaginar de que se tratava a conferência importante. Daí a minutos um criado saiu correndo do gabinete do comandante e embarafustou-se noutro compartimento, para voltar em seguida, trazendo dois tubos sem tampa. Um deles continha fumo e o outro grãos de café torrados. O comandante mandara adquirir aqueles artigos, somente depois de haver recebido o nosso presente. Antes da volta do criado, o Agha saiu do gabinete do Mutesselim.

- Desculpa, Efêndi, um momento só! Serás imediatamente recebido.

Nisso vira-se para ele o curdo que estava parado defronte à janela.

- E quando tocará finalmente a minha vez?

- Serás recebido ainda hoje, pelo comandante!

- Ainda hoje? Cheguei aqui muito antes desses Efêndis e de todos os demais que aqui estão. O assunto que me trouxe aqui é urgente e preciso partir ainda hoje!

Selim revirou os olhos.

- Esses Efêndis, um é Emir e o outro, Bei, ao passo que tu és um curdo. Depois deles é que serás recebido.

- Tenho o mesmo direito que eles, visto ser o enviado dum homem valente que também é Bei!

Agradava-me imensamente a atitude livre e desassombrada daquele curdo, muito embora a sua reclamação diretamente me afetasse. O Agha, porém, mostrou-se encolerizado com ela, pois começou a revolver novamente os olhos e respondeu enérgico:

- A tua chegará mais tarde ou talvez nunca. E se isso não te agradar, vai-te embora! Tu nem sequer possuis o elemento principal, para chegar diante dum vulto proeminente, como é o comandante da praça de Amadijah.

Ah, percebi! O curdo esquecera-se do “elemento principal” que era o backschisch. Não se intimidou com a resposta, mas retrucou:

- Sabes qual é esse elemento principal para um curdo de Bervari? Esta espada, fica sabendo!

Dito isto, bateu no cabo da espada e continuou:

- Quer experimentá-la? Fui enviado pelo Bei de Gumri e para ele é uma ofensa estar eu sendo sempre preterido na audiência; o Bei saberá como proceder daqui por diante! Retiro-me.

- Não te retires - exclamei.

O curdo achava-se já no batente da porta. O Bei, a que ele se referiu, seria o mesmo ao qual vinha eu recomendado pelo decano de Spandareh? Neste caso seria uma excelente oportunidade de me anunciar com vantagens ao mesmo!

- Quem és? - perguntou-me asperamente.

___________

(1) Escrivão.

 

Acerquei-me dele e estendi-lhe a mão, dizendo:

- Quero saudar-te porque seria o mesmo que saudar o teu Bei.

- Tu o conheces?

- Nunca o vi, mas falaram-me muito a seu respeito. É um guerreiro denodado, que merece a minha simpatia e admiração. Queres ter a fineza de transmitir-lhe um recado meu?

- Se me fôr possível, por que não?

- É possível, sim. Em primeiro lugar vou provar-te que aprecio o teu Bei. Serás recebido pelo Mutesselim antes de mim.

- Estás falando sério?

- Nunca se fazem pilhérias com um valente curdo.

- Estás ouvindo? - perguntou o meu interlocutor, dirigindo-se a Agha. - Este Emir, forasteiro aqui, sabe o que é cortesia e atenção. E um curdo também sabe corresponder na devida forma!

E dirigindo-se novamente a mim:

- Senhor, agradeço-te a concessão; basta a tua boa vontade que me alegrou sobremodo o coração! Esperarei tranqüilamente até terminares a tua conferência com o Mutesselim.

Agora foi ele que me estendeu a mão. Correspondendo ao aperto, respondi-lhe:

- Aceito a tua gentileza, porque, aliás, sei que não esperarás muito tempo. Mas, dize-me: dispões de tempo para me fazeres uma visita em minha atual residência, após a audiência?

- Irei visitar-te e o tempo gasto nessa visita que muito me desvanece, recuperarei cavalgando depois mais ligeiro. Onde moras?

- Na casa desse Agha, o comandante dos Arnautes.

No mesmo instante o curdo recuou fazendo-me um respeitoso inclinar de cabeça, pois o criado abrira a porta do gabinete para me fazer entrar, juntamente com David Lindsay.

A sala, onde fomos introduzidos, tinha as paredes forradas com velhos papéis e no fundo havia um estrado coberto por um tapete, sobre o qual estava sentado o comandante. Este era de estatura alta e esguia e tinha a cabeça emoldurada por cabelos prematuramente grisalhos. Os seus olhos não possuíam expressão sincera e o homem não despertava a menor confiança aos que dele se aproximavam. Levantou-se à nossa entrada e indicou-nos os lugares à sua esquerda e à sua direita, para sentarmos. A mim isso não foi difícil; mister Lindsay, porém, com dificuldade tomou aquela posição a que os turcos tratam de “descanço dos membros”. Realmente quem não estiver acostumado nessa posição, adormece-lhe logo as pernas. Portanto, em consideração ao inglês, eu precisava dispor as coisas de modo a não demorar muito a audiência.

- Chosch gelam demek omriniz tschok ola - Sejam bem-vindos, Senhores! Que Alá lhes conceda longa existência - saudou-nos o comandante.

- Igualmente a ti! - respondi-lhe. Viemos de longe para dizer-te que muito nos alegramos em ver-te o semblante venerável. Que a bênção esteja sempre em tua mansão e que cheio de êxito seja tudo o que empreenderes!

- Também desejo-lhes prosperidade e bom sucesso em todas as empresas! Como se chama a terra onde viste a luz do dia, Emir?

- Germanistão.

- É governada por um grande Sultão?

- Por muitos Padixás.

- E dispõe de muitos guerreiros?

- Quando os Padixás mobilizam os seus guerreiros, há milhões de olhos postos neles.

- Não vi ainda essa terra, mas deve ser muito grande e cheia de tradições de bravura, porque do contrário, não viajarias à sombra do Grão Senhor.

Aquilo era evidentemente um convite para que eu exibisse as credenciais. Fi-lo imediatamente.

- Disseste a verdade. Este é realmente o Bud-jeruldi do Padixá! Recebeu o meu passaporte, levou-o à testa, aos lábios e ao peito, passando depois e lê-lo.

- Mas teu nome está grafado aqui diferentemente de Kara Ben Nemsi!

Ah! Que fatalidade! O inconveniente de haver eu conservado aqui o nome que me dera Halef poderia acarretar-me algum dano; mas recuperei depressa a presença de espírito e ponderei:

- Queres ler o nome que está escrito sobre esse passaporte para eu ouvir?

Ele tentou satisfazer o meu pedido, mas com muita dificuldade. E a respeito de minha nacionalidade esteve por algum tempo a soletrar, não logrando unir sequer uma sílaba.

- Ora vê! Nenhum turco consegue ler e pronunciar um nome germano; nem um Mufti, nem um Molah será capaz disso, visto que o nosso idioma é muito difícil e escrito com caracteres diferentes dos usados pelos turcos. Vou ler eu no teu lugar: Hadschi Kara Ben Nemsi. O mesmo nome está escrito igualmente nesta carta que o Mutessarif de Mossul te envia por meu intermédio.

Entreguei-lhe a missiva e quando a leu, ficou satisfeito com a minha explicação anterior e me devolveu o Bu-djeruldi com as cerimônias pro-tocolares.

- E este Efêndi é o Bei Hadschi Lindsay?

- Tal qual.

- De onde provém ele?

- De Londristão! - respondi-lhe no intuito de não enunciar-lhe o conhecido nome de Inglaterra.

- Fêz ele um voto de fé para não falar?

- Fêz, tanto que não pronuncia uma só palavra.

- E sabe fazer magias?

- Cuidado, Mutesselim! Dessas coisas não se fala a uma pessoa que ainda não se conhece.

- Mas já iremos travar conhecimentos, visto que sou um fervoroso adepto da magia! Achas que com ela a gente consegue fabricar dinheiro?

- Sim, não é difícil fabricar-se dinheiro.

- E é verdade que existe uma pedra dos sábios?

- Sim, há uma, que é a filosofal... Esta, porém, não jaz debaixo da terra, mas no coração do homem; portanto não é possível fabricá-la!

- Falas muito obscuramente; entretanto percebo que és um grande mágico. Há duas espécies de magias, uma negra, e outra branca. Conheces ambas?

Não me sobrava outro recurso senão responder divertido:

- Oh, conheço estas e todas as demais qualidades de magias.

- Mas ainda há outras? Quais?

- Brancas, verdes, amarelas e também uma vermelho-cinzenta. Este Bei Hadschi Lindsay, por exemplo, antes era adepto da magia enxadrezada de cinza e agora passou-se para a enxadrezada de preto e vermelha.

- Isto logo se nota nas cores do seu traje. O Agha Selim contou-me que ele conduz uma enxada com a qual escava a terra para ouvir as vozes dos mortos.

- É isso mesmo. Mas deixemos de magias por hoje! Sou guerreiro e Efêndi e não um mestre-escola para estar aqui ministrando lições.

O bravo comandante da praça de Amadijah havia sugado todos os recursos da província e agora estava atacado da mania de fazer dinheiro, apelando para os recursos da magia. Naturalmente, nem me passava pela cabeça reforçar nele aquela superstição; mas na atual situação não era oportuno discutir sobre assunto tão delicado e ao mesmo tempo frívolo. Ou quem sabe fora a enxada do inglês que o induzira a entrar em negociações mágicas conosco? Era também possível. De resto as minhas últimas palavras fizeram nele um tal efeito que bateu palmas, determinando nos servissem café e nos trouxessem os cachimbos.

- Ouvi dizer que o Mutessarif sustentou recentemente um combate com os Dschesidis, é verdade? - perguntou-me, desviando a palavra para outro tema.

O assunto era para mim um tanto arriscado, mas não sabia como me desviar dele. O seu modo de falar soava a interrogatório. “Ouvi dizer”, começara ele assim a frase. Mas então aquele chefe, como súdito que era do governador e principalmente na sua qualidade de maior autoridade militar de Amadijah não conheceria a ocorrência com mais pormenores do que aqueles que sabia “por ouvir dizer”...?! Resolvi responder, tocando-lhe no ponto fraco.

- Também sei, porque ouvi dizer!

E, para antepor-me a alguma eventual pergunta inoportuna de sua parte, acrescentei:

- Infligiu-lhes o castigo que mereciam e não tardará a vez desses árabes fantasmagóricos!

Ele afilou os ouvidos e olhou-me perscrutadoramente.

- Baseado em que chegas a essa conclusão, Emir?

- Em coisa alguma. Falei pessoalmente com o Mutessarif a este respeito.

- Com o Mutessarif? Mas com ele em pessoa?

- Claro!

- Quando?

- Por ocasião da visita que lhe fiz, é óbvio!

- Mas como veio o governador a falar-lhe sobre essas coisas? - perguntou num gesto de incredulidade mal disfarçado.

- Sem dúvida por ter confiança em minha pessoa e também por pretender confiar-me uma incumbência em relação à nova expedição de guerra em preparativos.

- Mas que incumbência?

- Já ouviste falar um dia em política e diplomacia, Mutesselim?

Aos seus lábios aflorou um sorriso afetado.

- Seria eu comandante da praça de Amadijah, se não fosse um diplomata?

- Tens razão! Mas por que estás a revelar-me o contrário?

- Procedi com falta de diplomacia?

- Com muita, asseguro-te!

- Em que sentido?

- Porque inquiriste sobre a natureza da minha incumbência com tamanha inabilidade, que me causou pasmo. Não me é dado esclarecer ponto algum, o que não deverias ignorar. Portanto como poderia eu satisfazer à tua curiosidade?

- Por que não? O Mutessarif não tem segredos comigo!

- Singular! No entanto para conheceres a tarefa de que estou incumbido, pretendeste interrogar-me sem mais formalidades. Isto prova exuberantemente que o governador de Mossul tem mais confiança em mim do que em ti. E que seria então se o objetivo da minha vinda a Amadijah se relacionasse com algum ataque aos domínios árabes?

- Isso não seria possível!

- Quê? O ataque aos domínios dos árabes?

- Não! A tua viagem a esta cidade com aquele objetivo.

- Pois é bem possível! Confiar-te-ei apenas que depois de minha volta de Amadijah, seguirei para as savanas árabes, a serviço do Mutessarif de Mossul. Vou estudar secretamente a topografia da região e depois te apresentarei os meus planos de combate.

- Mas estás dizendo a verdade?

- Digo-te confidencialmente, portanto deve ser verdade!

- Então és um grande confidente do governador.

- Pelo menos o suponho!

- Tens prestígio junto dele!

- Não sei! Mesmo que tivesse, não o alardearia, para não decair no seu conceito.

- Emir, deixas-me apreensivo!

- Por quê?

- Não me acho iluminado pelas boas graças do Mutessarif. Disso não tenho mais a menor ilusão! Dize-me sinceramente se de fato és amigo seu e pessoa de sua confiança!

- O governador fêz-me revelações que a outro não o faria e confiou-me previamente todo o seu plano de guerra contra os “Dschesidis”; agora, quanto ao ser ele amigo meu ou não, é uma pergunta que peço me dispensares de responder.

- Pois vou submeter-te a algumas provas, a ver se de fato sabes mais do que os outros!

- Faze-o - retruquei-lhe confiante, embora intimamente um tanto receioso.

- A qual das tribos árabes se dirige de um modo especial a tua expedição bélica?

- Aos Schammares.

- E a que ramificação da mesma?

- Aos Haddedihns.

Agora a sua fisionomia aguçada tomara uma expressão espreitadora.

- Como se chama o Xeque daquela ramificação?

- Maomé Emin. Tu o conheces?

- Não. Mas ouvi dizer que o Mutessarif o prendera. Com certeza falou-te sobre essa prisão, visto que mereces a sua confiança, a ponto de enviar-te para as savanas árabes!

O bom homem fazia um esforço inaudito por ser diplomata! Mas eu ria-lhe na cara.

- Oh Mutesselim, tu me submetes a uma prova irrisória. Será Amad el Ghandur tão idoso para o confundires com Maomé Emin, seu pai?

- Como poderia eu confundi-los, se não vi ainda nenhum deles!

 

GESTO ALTIVO DE UM CURDO

Levantei-me.

- Terminemos a nossa palestra! Não sou um menino, a quem se faz de tolo. Se quiseres ver o prisioneiro desce e procura a prisão lá embaixo. O sargento te mostrará. Previno-te: Guarda reserva que o tens na tua prisão e não o deixes fugir! Enquanto o futuro Xeque dos Haddedihns estiver no domínio do Mutessarif, este tem o direito de impor condições aos árabes. Agora permite que me retire! Estou farto de tanta comédia!

- Emir, não tive intenção de ofender-te. Fica!

- Tenho outros serviços.

- Terás que ficar, pois mandei preparar uma refeição para ti!

-- Posso tomar a minha refeição na minha própria residência, muito agradecido! Além disso, lá fora está um curdo que tem muita necessidade de falar contigo. Chegou antes de mim ao palácio, por isso quis que ele entrasse primeiro. Mas o curdo foi tão gentil que cedeu-me a sua vez.

- Trata-se dum emissário do Bei de Gumri. Ele que espere, se quiser!

- Mutesselim, tomo a liberdade de prevenir-te contra um erro em que incides!

- Qual?

- Tratas aquele Bei como a um inimigo ou então como a um homem que não se precisa respeitar nem temer!

Notei que ele fazia um esforço brutal para conter uma explosão de cólera contra mim.

- Pretendes ditar-me ensinamentos, Emir, tu, a quem nem sequer conheço?!

- Não! Como poderia eu ditar-te ensinamentos, a ti, que és muito mais velho que eu! Já há pouco, quando me falavas de magias, dei-te a entender que te considerava tão sábio que me dispensavas os ensinamentos. Mas julgo que um homem de idade não fica diminuído na sua dignidade, ouvindo o conselho dum jovem.

- Sei como se deve tratar aquele curdo. O seu pai foi o Bei Ab ei Sumit, que deu tanto que fazer aos meus antecessores, principalmente ao pobre Selim Zillahi!

- E queres que o filho te dê também que fazer? O Mutessarif precisa de suas tropas para enviá-las contra os árabes e uma parte delas precisa ter sempre pronta para se defender dos Dschesidis nos quais não pode confiar. Que dirá o governador, quando eu lhe comunicar que tratas os curdos de Gumri de tal maneira, que é de se temer um levante deles, no momento em que notarem não dispor o Mutessarif de forças suficientes para rechassá-los? Faze o que bem entenderes Mutesselim! Eu jamais te ministrarei ensinamentos e nem te darei conselhos!

O meu argumento amainara a sua iracúndia. Via-se-lhe na fisionomia.

- Achas que devo receber aquele curdo?

- Faze o que bem entenderes, já te disse!

- Se prometes tomar uma refeição na minha companhia, vou recebê-lo já e na tua presença.

- Nessas condições, ficarei; ia retirar-me, pois não queria que, por minha causa, o pobre homem tivesse que esperar ainda mais tempo.

O Mutesselim bateu palmas e de uma sala contígua surgiu o criado, ao qual ordenou fizesse entrar o curdo. Este entrou a seguir, com porte altivo e saudou o comandante com um simples Sallam.

- És um emissário do Bei de Gumri? - perguntou-lhe o Mutesselim.

- Sou.

- Que me mandou dizer o teu Senhor?

- Meu Senhor? Um curdo livre não tem Senhores! É o meu Bei e o meu generalíssimo nos campos de batalha, mas não meu Senhor. Esta palavra apenas é conhecida pelos turcos e pelos persas!

- Não te mandei entrar para questionar contigo. Que recado te trouxe à minha presença?

O curdo parecia ter imaginado que fora eu a causa de não haver ele esperado mais tempo. Dirigiu-me um olhar significativo e respondeu ao comandante, lentamente e em tom sério:

- Mutesselim, eu era portador de um recado para ti; como, porém, tive que esperar tanto tempo... me esqueci dele! O Bei enviará agora outro emissário a entender-se contigo, e esse por certo não se esquecerá do recado... desde que não tenha que esperar também...

As últimas palavras ele as pronunciou já do umbral da porta e depois desapareceu. O comandante ficou perplexo. Por esta ele não esperava, ao passo que eu dizia de mim para comigo que nenhum embaixador europeu se teria desincumbido de sua missão de um modo mais altivo e digno do que aquele simples curdo. Estive quase a me levantar, a fim de correr atrás dele para lhe expressar o meu aplauso, a impressão ótima que o seu procedimento me deixara. Também o Mutesselim esteve quase a correr-lhe ao encalço, porém, com propósito diferente...

- Canalha! - exclamou este erguendo-se. - Hei de... Refletiu, porém, e se conteve. Enchi displicentemente o meu Tschibuk e o acendi.

- Que dizes a isso, Emir? - perguntou-me o comandante.

- Eu já esperava por essa atitude. Um curdo não é um grego hipócrita e tampouco um esquálido judeu, que não tem ânimo bastante nem para gritar quando se lhe pisa nos pés... Só estou a pensar: Que fará agora o Bei de Gumri e que dirá o Mutessarif sobre teu procedimento!

- Vais narrar-lhe isto?

- Não. Mas ele não tardará em sentir as conseqüências do teu indelicado modo de proceder.

- Vou mandar chamar aquele curdo de volta.

- Não atenderá ao teu chamado!

- Mas não pretendo tratá-lo asperamente!

- Ele não acreditará. Há uma só pessoa que o poderá convencê-lo de voltar aqui.

- Quem?

- Sou eu.

- Tu?

- Sim eu! Sou amigo dele; é possível que atenda ao meu pedido,

- És amigo dele?! Mas tu o conheces?

- Encontrei-o há pouco na tua ante-camara, onde, é verdade, o vi pela primeira vez. Mas falei-lhe como se deve falar a um homem investido no caráter de emissário de um Bei e esse gesto conquistou-me a sua amizade.

- Mas não sabes onde ele se encontra agora!

- Sei, sim!

- Onde? Ele se retirou de Amadijah. O seu cavalo não está mais amarrado no pátio.

- Dirigiu-se para minha residência, onde está à minha espera.

- Convidaste-o a visitar-te? Vais oferecer-lhe uma refeição?

- Sim, vou tratá-lo com hospitalidade. O objetivo principal de meu convite, porém, liga-se a uma mensagem que tenho para entregar ao seu Bei.

O Mutesselim ficava cada vez mais pasmado.

- Mas que mensagem?

- Ora essa, pensei que fosses um diplomata! Pergunta ao Mutessarif, se estás tão curioso em saber de tudo!

- Emir, desde a tua chegada que levas a me falar por enigmas.

- A tua sabedoria conseguirá decifrar em breve os enigmas que as minhas palavras encerram. Falando sinceramente, acabas de cometer um grave erro e como não aceitas nem os meus conselhos e nem os meus ensinamentos, procurarei, ao menos, corrigir esse erro, enviando uma cordialíssima mensagem ao Bei de Gumri. Deste modo agirei no interesse do Mutessarif, a cujo serviço aqui me encontro!

- Não posso saber qual o conteúdo de tua mensagem?

- Bom, vou dizer-te, confidencialmente, do que se trata, não obstante ser um segredo diplomático: tenho um presente para enviar-lhe.

- Um presente? De quem?

- Este detalhe, sim, não posso te confiar abertamente. Mas talvez te seja fácil adivinhá-lo se eu te disser que a pessoa que o remeteu é uma personalidade de relevo na administração de uma cidade, que fica ao oeste de Amadijah e que esta personalidade deseja com fervor que o Bei de Gumri não alimente propósitos hostis contra os turcos.

- Senhor, agora sim, tenho certeza de que realmente és pessoa de confiança do Mutessarif de Mossul; dele é o presente, quer te resolvas confessar-me ou não!

 

UMA PÉSSIMA ADMINISTRAÇÃO

Aquele homem era leviano e de uma lamentável incapacidade para exercer a investidura a que fora elevado. Vim a saber mais tarde que ele alcançara tal posto graças ao seu antecessor, que, também, de um salto, subira de Nesum Emini, de Zila, na Ásia Menor a Mutesselim de Amadijah. A minha visita ao comandante tomara como se vê, um rumo bem inesperado. Por que personalidade ele me tomava era-me fácil depreender de suas próprias palavras, mas não afirmar positivamente; no entretanto, pelo rumo que tomava a nossa conversação chegáramos a tocar em assuntos que quase diretamente diziam respeito ao propósito secreto que nos levara a Amadijah. O homem não estava na altura nem de ser um decano de aldeia, muito menos ainda comandante de uma praça de guerra fronteiriça. Contudo eu sentia compaixão dele sempre que me lembrava do embaraço em que ficaria, uma vez conseguida a concretização do nosso objetivo. Gostaria que ele, em tal caso, ficasse isento de responsabilidade, porém, não havia possibilidade de encaminharmos as coisas em tal sentido.

Suspendemos por instantes a nossa conversa, pois nos trouxeram a refeição. Compunha-se de uns pedaços do carneiro, tomado por empréstimo, acompanhado de magro pirão. O comandante revelou-se um verdadeiro glutão, comendo avidamente e conservando-se em mutismo. Quando, porém, estava satisfeito, perguntou-me:

- Esperas encontrar realmente o curdo em tua residência?

- Claro. Creio que ele sabe cumprir a sua palavra.

- E o trarás novamente à minha presença?

- Se fôr este o teu desejo, sim.

- Mas achas que ele esperará por ti? Estás demorando muito... Essas suas últimas palavras não exprimiam de modo algum prova de falta de hospitalidade, mas o seu receio de que o curdo também perdesse a paciência de esperar-me, tal qual sucedera com ele. Em vista disso, respondi-lhe:

- Ele não tardará em partir para Gumri, motivo por que vou procurá-lo já. Permite que me retire!

- Sim, mas com a condição de vires jantar hoje à noite em minha companhia!

- Muito bem. A que horas devo vir?

- Mandarei avisar-te, por intermédio do Agha Selim. Ademais a qualquer hora do dia ou da noite que chegares aqui, serás bem-vindo.

O almoço recepcional não demandara muito tempo. Levantamo-nos e fomos acompanhados gentilmente por ele até o portão da rua. Ali se achavam os nossos dois criados junto dos animais e à nossa espera.

- Tens um Baschi Bozuk na tua companhia? - perguntou-me o comandante.

- Sim, como Khawass. Aliás o Mutessarif quis pôr-me à disposição uma grande comitiva, mas não aceitei, pois estou habituado a me defender eu próprio de qualquer perigo que encontre numa jornada, por mais perigosa que seja!

O Mutesselim contemplou o garanhão que eu montava.

- Mas que pérola de cavalo! Compraste-o ou é criação própria?

- Ganhei-o de presente.

- De presente! Aquele que te fêz tal presente deve ser algum príncipe! Quem foi?

- Também este detalhe constitui segredo. Mas talvez não demores a ver essa pessoa.

Montamos e ao nos retirarmos, ouvimos logo a voz de comando do Agha Selim em frente à sua tropa:

- Silahlarile nischanlaryn! - Apontar!

Apontaram as armas, mas nem os canos de duas ficaram em alinhamento.

- Tschaghy, schamataji! - Música, façam zuada!

Começaram novamente os mesmos ruídos semelhantes aos produzidos por batidas numa cafeteira.

- Hepsi herbiri halan atyn! - Fogo, todos ao mesmo tempo! Lamentável! Apenas umas poucas espingardas conseguiram detonar.

O Agha revirava os olhos, o que também faziam os seus comandados ao mesmo tempo em que examinavam as confusas armas de fogo, remexendo no ferrôlho e nos canos; só depois que havíamos dobrado a primeira esquina, é que uma ou outra das espingardas conseguiu desentupir e deflagrar o tiro engasgado.

Quando chegamos aos nossos compartimentos, o curdo estava no meu quarto, sentado sobre o tapete e fumava cachimbo, tendo-se servido do meu fumo. Alegrei-me com aquela cena, pois ela denotava serem iguais os nossos pontos de vista a respeito de hospitalidade.

- Kheiir ati, hemscher! Sê bem-vindo, amigo! - fui logo saudando-o.

- Como? Conheces o idioma curdo? - perguntou-me contentíssimo.

- Muito pouco, mas experimentemos a ver se nos compreendemos. Eu dera ordens a Halef para buscar, numa casa de pasto, qualquer comestível, a fim de oferecer ao meu hóspede. Acendi também um cachimbo e sentei-me a seu lado.

- Fui obrigado a fazer-te esperar mais do que pretendia - disse-lhe eu à guisa de excusa.

- Tive muito prazer em esperar-te! A linda donzela, tua governanta, forneceu-me um cachimbo e eu tomei a liberdade de servir-me do teu fumo. Simpatizei logo contigo e pela tua fisionomia vi que não levarias a mal esta liberdade.

- És um guerreiro do Bei de Gumri. O que é meu é nosso, bom amigo! Ah, agradeço-te a satisfação e o divertimento que me proporcionaste com o teu gesto altivo em face do comandante.

- Qual?

- És ainda jovem, mas procedeste como homem maduro, dando-lhe aquela resposta enérgica.

Ele riu-se e disse:

- Eu lhe teria falado noutro tom, se não estivesses presente.

- Mais enérgico?

- Não, mais brando. Mas como havia um estranho junto do comandante, competia-me mostrar-me digno daquele que me enviara à presença do Mutesselim.

- E conseguiste o objetivo de tua missão. O comandante pede, por meu intermédio, que voltes à sua presença para transmitir-lhe o recado.

- Conheces esse comandante? És amigo dele?

- Vi-o hoje pela primeira vez.

- Pois vou dizer-te que espécie de homem é aquele. Aliás, para traçar-lhe o perfil moral e administrativo, basta que eu te diga somente que a arrecadação do Saliahn (1) mal atinge ao total de vinte mil piastras e que ele não tem mais a concessão dessa arrecadação, como, de resto, é praxe em toda parte. O sultão raramente ouve as reclamações dos súditos. Mas dessa vez teve que ouvi-las, pois as queixas clamaram aos céus, e o povo se encontrava no auge da desesperação. Ele saqueava de tal modo a população, que esta, mesmo nos rigores do inverno, preferia ficar nas suas residências de verão, situadas nas matas, onde ao menos se sentiam abrigadas de suas violências e extorções. O resultado foi o que vês: A cidade está empobrecida e a fome nela parece ter fixado definitivamente o seu domínio. O Mutesselim precisava de dinheiro e mais dinheiro e após desbaratar o produto do erário público, tomava empréstimos aos cidadãos e todo aquele que se negasse a lhe dar dinheiro incorria fatalmente na sua ira, na sua vingança. Além disso é um poltrão que só se mostra forte em face dos fracos e inermes. Os seus soldados curtem fome e frio, porque não recebem nem alimentos e nem roupas para cobrirem a nudez. O comandante trocou as carabinas boas e eficientes com as quais estavam as tropas armadas, por outras em mau estado, recebendo dinheiro de volta, dinheiro que converteu em proveito próprio. E quando lhe mandam pólvora para os poucos canhões que defendem a fortaleza, ele as vende com o fim de apurar dinheiro para as suas despesas particulares. Esse comandante que também acumula as funções de governador civil, não zela pelo bem público; aliás, nem está comprenetrado, segundo todas as aparências, desse sagrado dever de sua dupla investidura.

Era uma administração caracteristicamente turca a que me estava descrevendo o jovem curdo. Agora já não me admirava mais do fracasso da salva de honra, da qual momentos antes fôra eu testemunha ocular e auricular.

- E que tal são as suas relações com o teu Bei? - perguntei-lhe depois.

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(1) Imposto sobre as fortunas particulares.

 

- Nada boas. Numerosos curdos vêem à cidade ou para aqui efetuar compras de utilidade para o seu gasto ou vender os mantimentos de suas colheitas. Para estes ele acaba de lançar um imposto extorsivo com o qual o Bei não concorda. Também em muitos casos, que nem estão na sua alçada resolvê-los, procura ele exercer a sua pressão e violência contra nós. Há poucos dias dois curdos estiveram aqui, fazendo compras de pólvora e chumbo. Ao se retirarem, foram detidos no portão da cidade pela guarda, que lhes exigiu o pagamento de um imposto extra sobre as compras por eles feitas. Aquele imposto era e é completamente desconhecido; nunca havia sido cobrado de ninguém. Pois os nossos compatriotas, não dispondo no momento da importância exorbitante que lhes exigiram por tributo, o qual excedia em muito ao preço das mercadorias, que já eram bastante caras, foram presos e recolhidos à fortaleza. O Bei exigiu a soltura dos seus dois súditos, concordando mesmo em que lhes fossem confiscados o chumbo e a pólvora. O Mutesselim, porém, não aceitou o acordo. Além da confiscação das citadas mercadorias, exigiu mais uma pesada multa e a indenização de todas as despesas decorrentes da prisão e encarceramento dos nossos homens. De modo que de vinte, que era o preço da mercadoria, teremos que pagar cento e vinte piastras. Enquanto não pagarmos essa exorbitante quantia, o Mutesselim conservará presos os dois curdos e nos debitará diariamente dez piastras para atender às despesas de sua custódia.

- E era sobre este assunto que pretendias falar com ele?

- Exatamente.

- E pretendias fazer-lhe o pagamento exigido?

- Não!

- Apenas prosseguir nas negociações? Essas não conduziriam a nenhum resultado satisfatório.

- Estou incumbido de preveni-lo apenas de que daqui por diante, deteremos todo o habitante de Amadijah que pisar o nosso território e só o soltaremos depois que os nossos forem libertados.

- Medidas de represália, portanto! Também não conduziriam a resultados satisfatórios, visto que o Mutesselim pouco se importaria com o aprisionamento de um ou mais habitantes de sua cidade. Além disso, é preciso ter em mente que, dessas medidas de represália, nascem em geral conflitos de proporções incalculáveis. O melhor talvez seria os dois curdos conseguirem fugir da fortaleza.

- O Bei é da mesma opinião. Mas uma fuga torna-se impossível.

- Por quê? A vigilância é tão rigorosa?

- Oh! Com os guardas não nos preocupamos. A guarnição da fortaleza é composta apenas de um sargento e de três soldados, que dominaríamos com facilidade. Mas isso causaria um alvoroço, uma algazarra que poderia redundar em perigo para nós.

- Perigo? Hum!

- O principal obstáculo é o seguinte: mesmo depois de dominada a guarnição da fortaleza, será impossível penetrar no seu recinto.

- Por quê?

- As muralhas são intransponíveis e as portas das celas estão fechadas com uma trava de ferro tão espesso, que não cede ao mais violento golpe. A prisão dá para os fundos desta casa, que é habitada pelo Agha dos Arnautes. Todo ruído fora do comum chamaria a sua atenção e seria fatal para nós. Por conseguinte temos que renunciar à idéia de evasão.

- Renunciarem, mesmo que encontrassem um homem pronto para auxiliá-los na fuga?

- Mas quem seria este homem?

- Eu!

- Tu, Emir? Esplêndido! Como poderia eu então te demonstrar a minha gratidão! Os dois prisioneiros são o meu pai e um irmão meu.

- Como te chamas?

- Dohub. Minha mãe é uma curda da tribo do Dohubis.

- Devo dizer-te que sou completamente estranho nesta cidade e mesmo não conheço, de momento, meio algum para facilitar a consumação de tal fuga. Mas o teu Bei me foi recomendado e tu mesmo já conquistaste as minhas simpatias. Amanhã vou fazer umas pesquisas a ver o que poderemos fazer nessa questão.

- Achas que devo voltar à presença do Mutesselim?

- Sim, deves procurá-lo novamente e fazer ainda uma tentativa no sentido de conseguir o teu propósito por meios suasórios. Já me esforcei em preparar-lhe o espírito e é provável mesmo que ele agora resolva soltar o teu pai e teu irmão espontaneamente.

- Senhor, preparaste-lhe de fato o espírito em tal sentido?

- Claro que sim.

- Mas de que maneira o fizeste?

- Seria longo esclarecer-te agora tudo. Mas vou escrever-lhe algumas linhas que talvez te sejam de valia uma vez que sigas o meu conselho.

- Que conselho me dás?

- Em primeiro lugar, não lhe fales em represálias. Dize-lhe que se não soltar os prisioneiros hoje ainda, seguirás para Mossul a prevenir o Mutessarif de que os Curdos-Bervaris se levantarão todos contra ele. Dirás mais que nesta viagem passarás pelo território dos Dschesidis e conferenciarás com o Bei e generalíssimo destes.

- Senhor, isto é dizer demais, é arriscar muito.

- Apesar disso, dize isso! Aconselho-te que faças assim, pois tenho cá razões para isso. Detendo os dois prisioneiros, o que ele queria era extorquir-lhes dinheiro de que muito está necessitando. Esse motivo cessou agora, pois lhe fizemos presente de uma vultosa quantia em piastras.

- Então vou procurá-lo!

- E imediatamente, sem perda de tempo. Depois voltarás aqui para que eu te dê o recado que tenho para o teu Bei.

Desprendi uma folha do meu caderno de notas e nela escrevi as seguintes palavras em turco: “Permite-me que tome fervorosamente a defesa da causa do curdo portador deste bilhete! Evita de incorrer nas iras do Mutessarif!” - Depois de assinar o bilhete, entreguei-o a Dohub, que saiu apressadamente.

Eu tivera o arrojo de me inculcar como uma personalidade prestigiosa! Procedia daquele modo por mero espírito de aventura, é verdade. Mas agora que o caso me fizera subir numa cuciófera, impelindo-me até mais da metade de seu tronco, deveria eu retroceder, depois de tão emocionante escalada, quando com mais um pequeno impulso eu poderia atingir o cimo?!

Nisso voltou Halef com um tal carregamento de comestíveis e frutas, como se pretendesse nos aprovisionar para uma semana inteira.

- Que prodigalidade, Hadschi Halef Ornar! - disse-lhe eu.

- Allah akbar; Alá é grande, Sídi, mas a minha fome é ainda maior. Sabes que eu e o minúsculo Ifra, depois daquela refeição que tomamos em Spandareh, pela manhã, não pusemos mais um só alimento na boca?

- Então come! Mas põe qualquer cousa de lado, para que meu hóspede não vá embora sem comer algo. Arrumaste vinho?

- Não. Tu te tornaste um fiel e fervoroso crente e, no entanto persistes ainda em querer ingerir a bebida dos infiéis! Allah kerihm, sou um muçulmano devotado e havia de comprar vinho aqui em Amadijah?!

- Pois vou eu mesmo procurá-lo, compreendeste?!

- Não, Sídi; não quero que vás! Mas aqui nesta terra quase todo mundo só fala o idioma curdo, do qual não entendo patavina e da língua turca conheço muito pouco. Portanto só posso comprar coisas cujo nome tu saiba pronunciar.

- Vinho em turco é Charab e em curdo Cherab; é muito fácil de reter na memória. Mister Lindsay quer vinho, vá, pois, comprá-lo!

 

EXERCENDO A MEDICINA

O meu inefável criado, meio contrafeito, saiu apenas para obedecer-me. Quando abriu a porta, ouvi a voz da Mersinah de permeio com outra voz áspera de homem. Logo a seguir voltou Halef e disse:

- Sídi, lá embaixo está um homem que a governanta não quer deixar subir.

- Que homem é?

- Um habitante de Amadijah, cuja filha está doente.

- E que temos nós com isso?

- Desculpa-me, Sídi! Há pouco quando saí para comprar os víveres, passou por mim um homem ofegante que quase me levou por diante num encontrão. Ao perguntar-lhe por que ia com tanta pressa, respondeu-me que sua filha caíra gravemente enferma e se não chamasse um Hekim(1) talvez não escapasse. Aconselhei-o, então, a procurar-te, no caso de não encontrar nenhum médico nesta tristíssima cidade!

- Como fôste fazer isto, Halef? Sabes perfeitamente que não tenho mais aquela farmácia ambulante, com a qual eu curava os doentes no Nilo.

- Oh, Sídi, és um grande sábio e mesmo sem o auxílio daqueles grãos, curas os doentes!

- Mas não sou médico!

- No entanto, sabes tudo!

Que me resta fazer? Halef lembrando-se daquelas gordas propinas, dera ao homem informações exageradas a meu respeito e eu tinha que arcar com as conseqüências, quisesse ou não!

- A governanta foi mais prudente do que tu, Halef! Em todo caso, faze o homem subir!

______________

(1) Médico.

 

Desceu voltando em seguida com um homem de cuja testa e barba o suor corria em bicas. Era um curdo, conhecia-se pela tolik (1) que lhe caía na testa por baixo do turbante. Não obstante, usava vestes turcas.

- Sallam! - saudou-me apressadamente. - Oh, Senhor, venha depressa, do contrário minha filha morrerá; ela já está falando do céu!

- De que sofre a moça?

- O “Espírito Mau” entrou-lhe no corpo, deixando-a possessa.

- Quem te disse?

- O velho Hekim turco que chamei para atendê-la. Deu-lhe um amuleto para usar ao pescoço, mas foi logo dizendo que de pouco adiantaria.

- Que idade tem a tua filha?

- Dezesseis anos.

- Sofre ela de espasmo ou de epilepsia?

- Não! Nunca esteve doente até hoje.

- Que faz o “Mau Espírito” com ela?

- Entrou-lhe pela boca, pois ela queixa-se que lhe arranham a garganta; além disso aumentou-lhe os olhos, para que estes lhe servissem de janela, de onde ele espia para fora. Os seus lábios estão vermelhos e inchados, o mesmo se dando com as suas faces. Lá está ela agora deitada a falar das belezas do céu, que já enxerga!

Havia necessidade urgente de socorrê-la, pois, pelo sintoma descrito, tratava-se dum caso de envenenamento.

- Vou ver se posso fazer alguma coisa! Moras muito distante daqui?

- Não.

- Além do velho Hekim, existe algum outro médico nesta cidade?

- Não.

- Então vamos ligeiro!

Saímos quase a correr. Conduziu-me através de umas três ruas e depois a uma casa cujo aspecto era de certo modo suntuoso. O proprietário não devia, pois pertencer à classe dos homens mais pobres. Entramos e, passando por três quartos, chegamos a um aposento. Sobre uma almofada jazia de costa, estirada, a figura de uma jovem em convulsões. A seu lado se achavam ajoelhadas algumas mulheres a chorar e um pouco distante um homem idoso, que havia tirado o turbante e, de olhos fixos na enferma, murmurava algumas orações confusas.

- És tu o Hekim? - perguntei-lhe.

- Sou.

- Que tem esta doente?

- O diabo apossou-se do seu corpo, Senhor!

- Tolice! Se ela estivesse com o diabo no corpo, não falaria do céu.

- Senhor, não entendes dessas coisas! O demônio proibiu-lhe de comer e beber e ela agora ficou tonta.

- Deixa-me examiná-la!

Empurrei as mulheres para o lado, e ajoelhei-me diante da moça. Era uma jovem muito formosa.

______________

(1) Madeixa de cabelos.

 

- Senhor, salva minha filha das garras da morte! - suplicava-me uma das mulheres. - Nós te daremos tudo o que desejares! Ela é nossa filha única! A nossa única razão de ser!

- Sim. Salva-a! - ressoou uma voz cava dos fundos do compartimento. - Salva-a que depois possuirás riquezas e serás o dileto de Deus!

Olhei para o ponto de onde partia aquela voz e vi uma anciã, cujo aspecto exterior quase me causou medo. Parecia contar uns cem anos, recurvada e formada apenas de pele e ossos; seu rosto horrível se assemelhava a uma caveira e de sua cabeça caía uma cabeleira basta e nevacenta que vinha até o solo.

- Sim, salva-a! É minha trineta! Salva-a! - continou a macrobia de mãos postas e com um rosário entre os dedos. Vou ajoelhar-me e erguer preces à Virgem Dolorosa, à Santa Mãe de Deus!

Uma católica! Aqui no meio dos turcos e dos curdos!

- Reza, - respondi emocionado - reza que farei tudo para salvá-la!

A doente jazia de olhos abertos e ainda muito vivos. Mas as pupilas estavam dilatadas e o semblante rubro; tinha as pulsações aceleradas e violentas convulsões sacudiam-lhe o pescoço. Nem perguntei quando adoecera. Era leigo, mas concluí logo que a moça ingerira beladona e estramônio.

- Tua filha já vomitou? - perguntei ao homem que me viera buscar.

- Não.

- Tens um espelho?

- Tenho, mas pequeno.

- Dá-me.

O velho Hekim proferiu uma casquinada e disse:

- Pretende fazer o “Mau Espírito” mirar-se no vidro!

Não lhe respondi. Fiz os raios solares que entravam pela janela incidirem sobre o espelho, de modo que o reflexo batesse no semblante de minha cliente. O reflexo ofuscante não lhe produziu efeito algum sobre a íris.

- Quando comeu a tua filha pela última vez? - perguntei.

- Não sei. - respondeu o pai. - Ela se achava só.

- Onde?

- Aqui em casa.

- Ela não se acha tomada de espírito mau algum, mas comeu ou bebeu alguma cousa venenosa!

- Allah Ma Allah! É isso verdade, Senhor?

- É, sim!

- Não creias! - replicou o Hekim. - O diabo é que lhe entrou corpo a dentro!

- Cala-te velho imbecil! - Tens limões? - perguntei, dirigindo-me depois ao dono da casa.

- Não.

- E café?

- Tenho.

- Não seria possível obter-se umas nozes de galha?

- As nossas matas produzem dessas nozes em grandes quantidades, Temos algumas em casa.

- Prepara ligeiro um café bem forte, cozinha algumas nozes nágua, e manda alguém procurar limões.

- Ah! Vai ele agora repastar o diabo com café, nozes e limões! - exclamou o velho tomado de pavor e de mãos postas.

Na falta de um instrumento apropriado, meti o dedo na boca da doente, a fim de provocar-lhe o vomito, protengendo-me contra os seus dentes com o auxílio do cabo da faca. Depois de muitos esforços, consegui algum resultado, embora obrigasse a moça a movimentos dolorosos. Repeti a experiência, mas agora sem resultado.

- Existe uma Etchzaga (1) nas imediações? - perguntei, visto que se tornava necessária a aplicação de um vomitório.

- Há uma nesta mesma rua.

- Vem depressa, conduze-me até lá.

Saímos e o meu guia parou-se defronte de um pequeno estabelecimento.

- Aqui é a casa do Attar (2) - disse-me.

Entrei na pequena botica e me vi rodeado por um caos de objetos, úteis e inúteis. Pomadas rançosas, alcaçuz, emplastros secos e velas de sebo, numa única caixa, café em grão misturado com flores de tílias; pimenta em grão junto com pó de giz, folhas de sena num vidro de boca larga onde se lia: “Mel”; taxas de sapatos, gengibre, e sulfato de cobre; sabão, fumo e sal; óculos, vinagres, antimônio, cânhamo, tintas, linhas, borracha, botões, fivelas, pixe, nozes em conservas, figos, etc... Todas essas coisas diversas se achavam misturadas ou sobrepostas umas às outras e junto daquilo tudo estava um homenzinho esquálido cujo aspecto exterior dava a impressão de que ele próprio, momentos antes, havia experimentado todos aqueles específicos e ingredientes. Oh! Quantos males à população já não teria ocasionado aquele velho Attar! De todos os seus específicos só o sulfato de cobre serviria para o fim que eu tinha em vista. Comprei-o. Levei também um vidro de essência de sal amoníaco. O primeiro produziu efeito satisfatório ao ser aplicado na doente. Depois fi-la tomar um café bem forte com sumo de limão e por fim as nozes cozidas. Depois disso, recomendei à família que lhe fizessem todas as espécies de movimentos possíveis, borrifassem-na com água fria, lhe dessem a cheirar a essência de amoníaco, para evitar que ela adormecesse e prometi-lhe voltar o mais cedo que me fosse possível.

O tratamento que ministrei à doente não era, aliás, o mais adequado, mas eu não conhecia outro; afinal... produziu os seus efeitos. Agora que o perigo parecia removido, eu podia tratar de outros assuntos. Relanceei os olhos pelo quarto e a um dos cantos vi um cesto quase cheio de amoras. No meio destas havia diversas... ginjas venenosas.

- Queres ver o “Mau Espírito” que se apoderou do corpo dessa moça? - perguntei ao Hekim.

- Não é possível. Os espíritos são invisíveis. E mesmo que não fossem, não poderias mostrá-lo, pois não crês nessas coisas. Se a moça não vier a falecer que agradeça ao meu amuleto!

- Mas não viste que o tirei imediatamente de seu pescoço? Está aqui no chão o teu amuleto, vou abri-lo já!

___________

(1) Farmácia.

(2) Boticário.

 

- Não te é permitido isso! - exclamou o velho tentando arrebatar-me o objeto da mão.

- Não te atrevas, a me tocar, velho! Não vês que tenho punhos mais fortes que tu? Por que não devo abri-lo?

- Porque o amuleto encerra feitiço. Sentirás, ao seu contato, as mesmas convulsões da moça!

- Pois estou curioso!

O velho quis ainda opor outros obstáculos, mas abri o breve feito de pele de bezerro e dentro dele havia... Uma mosca.

- Não te cubra de ridículo com este inseto inofensivo, homem! - disse-lhe eu rindo-me e pisoteando a mosca, que já se achava morta. - E agora, onde está o teu “Mau Espírito” que pretendia apossar-se do meu corpo?

- Espera! Ele já virá!

- Pois agora vou mostrar-te o diabo que entrou no corpo da doente. Olha para cá! Que é isto? És um Hekim e tens obrigação de conhecer essa fruta!

Exibi-lhe uma das ginjas venenosas.

- Alá de misericórdia! São oeluem kries (1). Aquele que comer dessa fruta morrerá na certa, estará perdido, irremediavelmente perdido!

- Pois foi dessa fruta que a moça comeu algumas; isso logo descobri pelos seus olhos. Aquele que a ingerir ficará com as vistas dilatadas. Toma nota disso, ouviste?! E agora põe o turbante e toca-te daqui para fora, antes que te obrigue a comer uma dessas cerejas mortíferas, para ver se realmente a mosca te virá salvar a vida!

Juntei a ginja do chão e fingi que me acercava dele. A este meu gesto, o velho, tomado de um pavor mortal, enfiou o turbante na sua calva e saiu às pressas porta fora sem ao menos se despedir dos presentes.

Estes reconheceram que eu tinha razão. Mais alto do que minhas palavras, falava-lhes a melhora visível que a doente experimentara. Desandaram todos em demonstrações fervorosas de gratidão, às quais só pude pôr fim retirando-me quase tão apressadamente como o velho. Disse-lhes que me chamassem em seguida se o estado da enferma se agravasse.

 

INCIDENTE MERSINAH VERSUS HALEF

Quando cheguei à casa do Agha, a Mersinah, fazendo uma algazarra dos demônios, saía da cozinha porta fora munida de uma enorme colher -de madeira. Logo por trás dela voou um trapo de pano molhado que lhe foi alvejado com tanta perícia que atingiu o cocô em formato de salsicha, enrolando-se todo pela cabeça. Ao mesmo tempo do “santuário” em que pontificava a “deusa” do Agha, ressoou a voz colérica de Hadschi Halef Omar:

- Cuida-te megera imunda! Toca mais uma só vez no meu saboroso café e verás que te sucede! Ladra!

Ela desenrolou ligeiro o trapo da cabeça e o transformou numa bola, por certo que para com ela revidar a investida do meu criado; naquele instante, porém, os seus olhos depararam-se comigo, que chegava.

_______________

(1) Cereja da morte.

 

- Oh! Emir, que bom que chegaste! Salva-me das garras daquele homem furioso!

- Que houve, oh! flor de Amadijah!

- Ele afirma haver encontrado do meu café no teu tubo e no meu cartucho de papel grãos do que tu compraste hoje!

- Quem sabe se não é verdade?

- Verdade? Pois juro-te pela Ayescha, que é a mão de todos os santos, como jamais mexi no teu tubo de café!

- Ah, é! Avó de todas as mentirosas e ladras! - ecoou do interior da cozinha. - Não avançaste em nosso café do qual duzentas drehm (1) me custaram vinte e cinco piastras?! Já vou prová-lo ao Sídi.

Ao pronunciar essas palavras, ele saiu da cozinha empunhando com a mão direita o tubo de café em grão que havia comprado e com a esquerda o enorme cartucho de papel contendo o café da “Murta”.

- Sídi, tu conheces o café de Narimah?

- Bem sabes que conheço.

- Então me diz em qual desses dois recipientes há desse café?

Procedi, tanto no tubo como no cartucho, uma detida inspeção ocular e depois respondi:

- Todos os dois recipientes contém daquela qualidade de café, porém, tanto num, como no outro, está misturado com outra qualidade ordinária e também com cascas torradas!

- Estás vendo, Sídi! Comprei café especial de Narimah para nós. Esta mãe e avó ao mesmo tempo de todos os salteadores e ladrões, porém, só usa para o seu consumo e o do Agha, um ordinaríssimo café misturado com cascas nauseantes. Portanto, provado está que ela avançou no meu tubo para melhorar, à nossa custa, a sua água suja, a que tem o desplante de dar o nome de café!

- Sídi, és um guerreiro denodado, um cientista de renome e o mais sábio de todos os juizes - retrucou a Murta, ao mesmo tempo que brandia o esfregão molhado arrojadamente perto do nariz de Halef. - Tu castigarás severamente este pai e avô de todos os delinqüentes, este filho dileto da infâmia e da calúnia!

- Castigar-me? - exclamou Halef tomado de surpresa. - Ainda mais isso?

- Sim! - sentenciou a governanta com toda a convicção. - Foi ele próprio que misturou os dois cafés, com o intuito único de desmerecer-me e à minha casa diante dos teus olhos!

- Oh, tu maravilha dos trinta e nove crimes! - trovejou Halef enfurecido. - Tens a ousadia de apresentar-me como ladrão diante do Sídi?! Não fosse tu mulher, uma pífia mulherzinha, aliás, e eu te faria...

- Calma, Halef! Não te zangues, pois estou presente à contenda e saberei pronunciar uma sentença justa! Mersinah, tu afirmas que Halef é quem fêz a mistura das duas qualidades de cafés?

- Sim, Emir!

- Então ele contribuiu com o seu esforço para o esclarecimento dessa complicada questão jurídica. Agora contribui também tu e separa de ambos os _____________

(1) 1,300 kg.

 

recipientes as duas espécies de cafés. Ficarás com o teu e Halef com o dele.

 

LIBERTANDO DOIS PRISIONEIROS

Ela ia abrir a boca e dizer que para “poupar o serviço” preferia deixar as coisas como estavam, inclinando-se a desistir de sua exigência e a tornar sem efeito a sua queixa sobre uma insignificância como considerava agora o assunto, mas Halef a antecedeu:

- E isso depressa, vá ande! Temos urgente necessidade do nosso café!

- Por quê? - perguntei-lhe.

- Tens visitas lá em cima à tua espera.

- Que visitas?

- São três curdos. Aquele que te visitou hoje está junto.

- Então vá comprar outro café!

Subi apressadamente a escada, pois os dois outros curdos não poderiam ser outros senão os prisioneiros. Essa suposição fora acertada. Quando entrei no quarto, os visitantes se levantaram e Dohub exclamou:

- Foi este o Emir que os salvou! Oh! Efêndi, o Mutesselim depois de ler o teu bilhete me restituiu o meu pai e o meu irmão!

- Disseste-lhe que irias a Mossul, no caso de não seres atendido?

- Disse. O teu conselho foi excelente, pois àquelas palavras o comandante mudou logo de tom, desmanchando-se em amabilidades para comigo e mandou chamar, logo após a leitura do bilhete, o Agha Selim à sua presença. Este depois teve que lhe apresentar os dois encarcerados.

- E em que pé ficou a questão dos impostos e das multas?

- O Mutesselim dispensou tudo, com exceção da pólvora e do chumbo, que se negou a nos devolver. Emir, dize-me como devemos agradecer-te?

- Conheces o decano de Spandareh?

- Oh, muito bem! Sua filha é a mulher de nosso Bei e ele seguidamente vem a Gumri visitar a ambos.

- Pois é também amigo meu. Estive hospedado em sua casa. Pediu-me o decano que visitasse o seu genro, caso passasse por Gumri.

- Vem, Emir, vem visitar-nos! Terás uma recepção mais brilhante do que teria o Mutesselim ou o próprio Mutessarif, se estes nos viessem procurar.

- Talvez ainda vá a Gumri, mas só daqui a alguns dias. O decano deu-me um pacote para eu entregar ao teu Bei. Dá-lhe lembranças minhas e dize-lhe que, mesmo sem conhecê-lo pessoalmente, sou seu amigo e desejo-lhe toda sorte de venturas!

- Era esta a incumbência de que nos querias encarregar?

- Era, sim.

- Mas nos pedes muito pouco, Senhor!

- Mais tarde talvez tenham oportunidade de dar-me uma prova de amizade!

- Estamos prontos para tudo! Vem até nós e ordena que serás obedecido em tudo que desejares!

- Estarão dispostos a dar guarida a um amigo meu, no caso de perseguição por parte do Mutesselim?

- O teu amigo que empreenda a fuga e nos procure, que o comandante jamais deitará os olhos em cima dele!

Dirigi-me ao mais velho deles, em cuja fisionomia notava-se as privações por que passara na prisão, e perguntei-lhe:

- Conheces os presos que estiveram contigo na mesma prisão?

- Não - respondeu o velho. - Tanto eu como o meu filho estivemos metidos, isoladamente, num cubículo escuro, onde não víamos e nem ouvíamos coisa alguma.

- O sargento encarregado da vigilância é um homem mau?

- Nunca falou conosco. A única voz humana que ouvíamos diariamente era a da megera imunda, que nos trazia as refeições.

- Como são os caminhos daqui a Gumri?

- Primeiramente descerás o vale de Bervari e isso por uma estrada tão íngreme e perigosa que terás que apear e puxar o cavalo pelas rédeas. O vale possui matas ricamente povoadas de carvalhos e nele ficam situadas várias aldeias, habitadas algumas por curdos e outras por caldeus nestorianos. Passarás também pela planície ressequida a que chamam de New-Dacht e que fica situada na aldeia Maglano; depois alcançarás o lugarejo curdo Hajis, habitado apenas por umas poucas famílias paupérrimas. Passarás por muitas correntes dágua, que afluem todas para o Zab e de longe avistarás Gumri, construída ao sopé de uma rocha, que, isolada, ergue-se no meio da planície.

Depois dessas e outras informações indispensáveis, convidei-os para a refeição. Os dois curdos recém-libertados comeram com uma tal sofreguidão, que me deu a conhecer o modo carinhoso e solícito com que a “Murta” do Agha cuidava da alimentação dos seus “pensionistas”. Halef serviu-nos depois café e bebidas, coisas de que os prisioneiros se viram privados por algum tempo, bem como fumo que depois usaram em seus cachimbos.

 

NA CASA DE MINHA “CLIENTE”

Por fim se retiraram, justamente no instante em que entrava o Agha para me dizer que o Mutesselim estava à minha espera para a recepção combinada. Os curdos despediram-se de mim por entre as mais calorosas demonstrações de estima e renovaram o pedido para que eu visitasse um dia a sua aldeia. Dohub levou o pacote do decano de Spandareh e eu estava convencido de que grangeara amigos, com os quais poderia contar na certa, em caso de qualquer necessidade!

Na minha ida para o palácio do comandante, visitei ainda a minha “paciente”; fui recebido na ante-sala pelos seus pais, que não ocultaram a sua alegria pela minha visita.

- Como vai passando sua filha? - perguntei-lhes.

- Oh! Melhor, muito melhor, Senhor! - respondeu o pai. - A tua sabedoria é quase maior do que a nossa gratidão. Ela já fala com mais sensatez e confessou-me haver realmente comido cerejas da morte. A tua bondade é excelsa, pois soube que és um médico que não leva assistência aos enfermos, visando pagamento de honorários. Além disso, me disseram que és um grande Emir, um favorito do Grão Senhor e um amigo íntimo do Mutessarif.

- Quem te disse?

- Toda a cidade já sabe. O Agha Selim não te regateia louvores; o Mutesselim recebeu-te com guarda de honra e por tua ordem chegou até a soltar presos da fortaleza. Essas coisas correm logo de boca em boca, razão por que viemos a saber também.

- Não és natural desta cidade? Pelo que vejo és um curdo!

- Acertaste, Efêndi. Sou um curdo de Lizan e há pouco tempo me transferi para Amadijah, visto não me sentir seguro na minha terra.

- Não te sentias seguro? Por quê?

- Lizan pertence à região de Tijari e é habitada quase que em toda a sua extensão por cristãos nestorianos. Estes sofreram cruéis opressões de modo que ultimamente o desespero se apoderou deles a tal ponto que parecem querer dizimar-se uns aos outros. E como não sou cristão, mas um fervoroso maometano, tratei de me pôr a salvo de prováveis violências, transferindo residência para aqui, onde posso continuar no meu negócio.

- A que ramo de negócio te dedicas?

- Compro as colheitas de nozes e as remeto para o Tigris, de onde são transportadas aos diversos mercados consumidores.

- És um maometano e, no entanto a vovózinha que hoje vi em tua casa é uma cristã. Como se explica isto?

- Emir, trata-se de uma história que muito nos aflige, a mim e à minha mulher! O bisavô de minha mulher era um célebre Melek (1) de Tajaris e aceitou os ensinamentos de Cristo, o crucificado. Sua mulher, que hoje viste em minha casa, fêz o mesmo. O filho, porém, era um fiel adepto do Profeta e separou-se do pai. Este faleceu e o filho, que perdera o título de Melek, morreu mais tarde também. Este ficou pobre por vontade do Profeta, embora seu pai tivesse sido um dos fidalgos mais ricos da época. Os seus filhos também ficaram empobrecidos e quando casei-me com minha mulher, que é sua bisneta, ela mal possuía um vestido para, cobrir-lhe a nudez. Mas nos amávamos reciprocamente e Alá abençoou a nossa união; tornamo-nos abastados.

- E a bisavó?

- Nunca a tínhamos visto, até que um dia ela apareceu em Lizan. Tem mais de cem anos de idade, pensa em morrer breve e por isso quis ver e conhecer a sua decendência, antes de sua morte. Há muito tempo que ela nos visita duas vezes por ano; mas nunca soubemos de onde vem e nem para onde vai depois.

- Mas não lhe perguntaram?

- Apenas uma vez. Não nos respondeu e desapareceu por longo tempo. Desde aquela época nunca mais nos animamos a fazer-lhe tal pergunta. Está neste momento junto da enferma. Queres vê-la?

- Sim, vamos até lá!

Encontrei a paciente sensivelmente melhor. O rubor das faces desaparecera completamente; a sua pulsação era lenta, mas animadora, e já falava melhor. As pupilas haviam readquirido o seu aspecto normal. Continuavam, porém, as dores de garganta e ela engulia ainda com dificuldade. Olhou-me curiosa e ergueu-me a mão em sinal de agradecimento.

Aconselhei que continuassem a dar-lhe café com limão; recomendei ainda que lhe ministrassem um forte escalda-pés; dispunha-me a sair, quando ergueu-se o vulto da velha, que se achava sentada junto ao leito.

- Senhor, eu julgava que fosses um Hekim; peço-te perdão por te haver falado em retribuições materiais, quando de tua primeira visita à minha trineta!

- A melhor paga que eu poderia esperar, é a tua alegria por veres a tua trineta salva! Essa satisfação que te inunda o sêr, para mim vale mais do que todo o ouro do mundo!

- Deus abençoou a tua mão, Emir! Ele torna forte os fracos e condescendentes e misericordiosos os fortes. Quanto tempo vai levar até a doente ficar completamente boa?

- Poucos dias bastam para ela readquirir a saúde e robustez de sempre.

- Senhor, não vivo em mim, mas nesta trinetinha. Eu já morri há anos, há muitíssimos anos, mas ressuscitei naqueles a quem eu desejo preservar das máculas da alma e do corpo! Salvaste não só a dela, mas também a minha vida! Nem podes imaginar o benefício que com isso fizeste a muitos que nunca viste e nem conheces. Voltarás aqui?

- Voltarei, sim, amanhã.

- Então por hoje não preciso dizer-te mais nada

Voltou-se para o leito da enferma, onde tornou a sentar-se. Falava-me tão misteriosamente aquela velhinha; para os próprios parentes ela era um verdadeiro enigma. Gostaria de ter tempo para desvendar aquele mistério! Queriam que eu jantasse, mas ponderei-lhes que acabara de tomar a minha refeição e, além disso, em palácio, esperava-me uma recepção. Desculparam-me e acompanharam-me carinhosamente até a porta.

 

(1) Príncipe.

 

A recepção em palácio

Quando cheguei ao palácio, o Mutesselim já se achava cercado de todos os seus funcionários e oficialidade da guarnição. Portanto ia realizar-se uma grande recepção festiva. Ocupei o lugar de honra ao seu lado. Achavamo-nos reunidos num compartimento maior, com as dimensões de uma sala pequena dos palácios europeus. Havia espaço suficiente para todos se moverem à vontade, mas cada qual estava sentado calmamente, fumava o seu cachimbo, tomava o café que estava sendo servido e palestrava à meia voz com os que lhes estavam próximos. Quando, porém, o Mutesselim pronunciava alguma palavra em voz alta todos inclinavam a cabeça, em expectativa respeitosa, como se estivessem na presença de um monarca poderoso.

A nossa palestra também fora feita em voz baixa. Depois de muitas prolixidades, disse-me o comandante.

- Já ouvi dizer que hoje curaste uma jovem, possuída do “Mau Espírito”. O meu Hekim viu quando te dirigiste para casa da enferma e exigiu-me depois que intimasse a retirar-te da cidade, por seres um feiticeiro.

- O teu Hekim é um nécio, Mutesselim! A moça comera uma fruta venenosa e eu lhe ministrei simplesmente um remédio que neutralizasse o veneno. Em toda a marcha da moléstia, pois, não houve a menor interferência do diabo e nem do “Mau Espírito”.

- És então um Hekim?

- Não. Creio que já sabes quem e o que eu sou! Mas no meu país situado ao oeste daqui, para muito além de Stambul, qualquer habitante leigo possui maiores conhecimentos médicos do que o teu Hekim, que pretende afugentar o diabo do corpo dos seus clientes valendo-se de uma inofensiva mosca morta!

Eu falara demais e talvez com alguma temeridade; mas não fazia mal nenhum que aquela gente tivesse encontrado um dia alguém que se arriscasse a abalar sua absurda mentalidade.

O Mutesselim fêz como se não houvesse percebido aspereza em minha réplica e prosseguiu:

- Então curas todas as doenças?

- Todas! - respondi-lhe resolutamente.

- E conheces também todas as tisanas?

- Todas!

- Há tisanas que os muçulmanos não devem ingerir?

- Há, sim!

- Quais, por exemplo?

- As tisanas preparadas com substâncias de cujos gozos o Profeta proibiu aos seus adeptos, por exemplo, a banha de porco e o vinho.

- O vinho também constitui tisana?

- Sim, e muito eficaz até.

- Quais os casos em que é aplicado?

- Em determinadas moléstias do sistema nervoso e sangüíneo, e bem assim como fortificante e estimulante do aparelho digestivo.

A nossa palestra interrompeu-se novamente. Os presentes conversavam à meia voz com os seus pares e, depois de algum tempo, o Mutesselim, também em voz baixa, declarou-me:

- Efêndi, estou doente, muito doente!

- Ah! Será possível! Que Alá te restitua a saúde!

- E realmente tenho esperanças, pois sou um bom muçulmano e fervoroso adepto do Profeta.

- De que doença sofres?

- Já consultei muitos médicos e todos foram unânimes em afirmar sofrer eu de determinadas moléstias do sistema nervoso e sangüíneo e bem assim de debilidade do aparelho digestivo.

Foi com um esforço brutal que me contive para não dar-lhe uma gostosa gargalhada na cara. Estava explicada a razão do seu introito singular, que se assemelhava ao rodeio do gato em torno de um prato de mingau quente... Era certo que, depois de todo aquele jogo de perguntas, ele ia terminar por pedir-me alguma coisa.

- E os médicos te ministraram algum específico ou tisana?

- Sim, mas não fizeram efeito algum. Aqueles homens não são tão inteligentes e cultos como tu. Não achas também que necessito tomar algum fortificante para estimular o meu aparelho digestivo?

- Necessitas sim, estou convencido disso!

- E não serias capaz de me fornecer à tisana ou o específico?

- Não é possível!

- Por que não?

-Porque o Profeta proíbe!

- Mas o Profeta não determina e nem deseja que o verdadeiro crente pereça à moléstia do sistema nervoso e sangüíneo! Leste já o Kuran com toda atenção?

- Li-o várias vezes!

- Então dize-me se o Profeta proibiu o uso de quaisquer remédios?

- Ah! isso não!

- Estás vendo! Neste caso serás capaz de ministrar um estimulante para o meu aparelho digestivo?

- Não possuo os ingredientes necessários para a sua preparação.

- Estás pilheriando novamente, pois sei bem que os tens, sim!

- Como sabes?

- O teu criado comprou hoje muitos ingredientes daqueles na casa de um judeu.

Ah! O Mutesselim mandou observar-nos! Já sabia até que o minúsculo Halef comprara vinho para o inglês. Devíamos redobrar de precaução, do contrário o nosso propósito poderia fracassar.

- Bom, vou fornecer-te o estimulante!

- Em que dosagem?

- Um vidro de remédio cheio.

-Emir, é muito pouco! Sou comandante de uma praça de guerra e um homem de estatura muito alta; a tisana estará no fim antes de estimular todo o corpo! Não concordas com isso?

- Pois sim, dar-te-ei dois vidros!

- E me fornecerás dois vidros por dia, durante uma semana inteira?

- Mutesselim, receio que fiques demasiadamente forte!

- Oh! Emir, não tenhas receio!

- Bem, experimentemos durante uma semana!

- Mas, além disso, me farás um outro favor.

- Qual?

- Um Mutesselim jamais deve permitir que os seus comandados saibam que sofre ele do sistema nervoso ou digestivo.

- Realmente!

- Embrulharás as garrafinhas tão bem embrulhadas, de modo que não se perceba o seu conteúdo?

- Com prazer te satisfarei o desejo.

- Sofres também do sistema nervoso, Emir?

- Não. Por que me perguntas?

- Porque mandaste comprar aqueles ingredientes.

- Não era para mim.

- Para quem então? Para o mudo Hadjil Lindsay?

- Tu ainda há pouco me disseste que um Mutesselim nunca deve deixar os seus comandados saberem que ele é doente de algum “sistema”. Também há outros homens que têm necessidade de ocultar essa circunstância.

- Ou quem sabe é para o teu outro companheiro que ainda nem se deixou ver na cidade? Deve ser um homem muito doente, visto que desde a sua chegada ainda não saiu do aposento.

Aquilo soava-me a interrogatório! O comandante pretendia informar-se a respeito de Maomé Emin.

- Sim, é um homem muito doente - respondi-lhe.

- De que doença sofre ele?

- Do coração.

- Esperas curá-lo?

- Tenho todas as esperanças.

- Lamento que devido à sua moléstia não tenha ele te acompanhado a esta recepção. É amigo teu?

- E um bom amigo, até!

- Como se chama?

- Ele me pediu que, por enquanto, não te dissesse seu nome. É um velho conhecido teu e pretende fazer-te uma surpresa.

- Ah! - fêz curioso. - Uma surprêza? Quando?

- Assim que estiver restabelecido.

- E quanto tempo levará ainda?

- Poucos dias, apenas.

- Não seria melhor eu procurá-lo, já que ele não pode visitar-me?

- Esta visita causar-lhe-ia fortes comoções, prejudiciais à sua saúde abalada. Isto tu deves reconhecer.

- Neste caso terei que esperar.

O homem mergulhou-se em novo silêncio. Depois reiniciou o interrogatório.

- Sabes que tu para mim constituis um enigma?

- E tu para mim também.

- Por quê?

- Porque me achas enigmático! Dize-me se alguém algum dia te falou com tamanha clareza, sinceridade e desassombro como te tenho falado desde o meu primeiro encontro!

- Neste ponto tens razão, Efêndi! Nem eu consentiria que outros o fizessem. A ti, porém, que és um Emir, e que viajas sob a sombra do Grã Senhor, tendo-me sido calorosamente recomendado pelo Mutessarif, abro essa exceção.

- E com todo o desassombro de minhas atitudes, constituo ainda um enigma para ti?

- Sim, constituis!

- Pois vou fornecer-te a chave para a sua decifração. Faze-me as perguntas que julgas necessárias para te esclarecer.

- Acima de tudo, eu quisera saber de que modo obtiveste a proteção do Grão Senhor, o modo por que sou julgado por este e quais os seus planos a teu e meu respeito! Mas para isso não dispomos hoje de tempo. Falaremos sobre o assunto amanhã a sós e com toda a calma.

Agradou-me essa resolução. Nesse instante todas as atenções se concentravam para o Medah (1) contratado pelo Mutesselim para divertir os seus convivas durante aquela noite. Os cachimbos foram enchidos e acesos de novo, tornaram a servir-nos café e todos escutavam as palavras do narrador.

Este colocou-se no meio da sala e contou com voz cantante e plangente as histórias já mil vezes ouvidas do Abu-Szaber, do sapateiro de boca torta, de Gane, da escrava do amor, do Nuredim Ali e do Vedrddim Hassan. Por essas narrativas recebeu ele duas piastras e ficou despachado.

 

APLICANDO A “TISANA”

Em seguida o Mutesselim ergueu-se para significar que estava findo o sarau. Houve trocas de calorosas demonstrações de cortesias, de inclinações respeitosas e todos se retiraram satisfeitos por terem gozado uma noitada na companhia do comandante e do Emir Hadschi Kara Ben Nemsi, por entre fumaradas de tabaco, xícaras de café, histórias e lendas do Medah! Depois de estarmos na rua, o Agha que me vinha acompanhando, pediu-me:

- Emir, permites que te enfie o braço?

- Pois não, aqui tens o meu!

- Sei que não estou na altura dessa distinção, pois és um grande Emir, um sábio Efêndi e um favorito do Profeta; mas eu te estimo e, além disso, deves ter em vista que não sou um Arnaute vulgar, mas um valente Agha, encarregado de dirigir a defesa

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(1) Narrador de lendas

 

dessa fortaleza contra a arremetida de cinqüenta mil inimigos que nos rodeiam.

- Sei disso e também te estimo. Vem, vamos!

- Quem era?

Ele se referia a um vulto que se achava de tocaia no ângulo da esquina e que agora de esguelha passara por nós, desaparecendo apressadamente na escuridão. Reconheci logo aquele vulto. Era o Arnaute que nos agredira; julguei melhor, porém, não citar essa ocorrência ao Agha.

- Foi um dos teus Arnautes, é claro!

- Talvez seja, mas nunca vi aquela cara.

- A luz do luar ilude!

- Sabes, Emir, o que eu queria dizer-te?

- O quê?

- Hum! Estou doente. Sofro horrivelmente!

- De que, homem?

- Estou atacado do sistema nervoso e sangüíneo.

- Agha Selim, estiveste a espionar a minha palestra!

- Não, Efêndi! Mas eu tinha forçosamente que ouvir tudo, pois me achava sentado logo depois do Mutesselim.

- Mas a uma distância bem grande que para ouvir o que falávamos seria necessário afinar bem os ouvidos!

- Então não se deve escutar uma conversa daquelas, quando se necessita de um fortificante?!

- Mas creio que não queres que eu te forneça esse fortificante!

- E quem mais haveria de fornecê-lo? O velho Hekim? Aquele me daria moscas mortas para comer!

- Mas queres que eu te forneça o fortificante num vidro de remédio ou numa garrafa bojuda?

- Numa, não; certamente queres dizer nalgumas garrafas bojudas!

- E quando?

- Já, se estiveres disposto!

- Então, apressemos o passo para que cheguemos ligeiro a casa.

- Não, Emir! Em casa tropeçarei com a Mersinah, pelo caminho. Esta jamais deve saber que sou doente do sistema nervoso e digestivo!

- Por que não, se é ela quem te prepara os alimentos?

- Os alimentos, vá lá, mas as tisanas, não! Ela própria se encarregaria de beber tudo, não me deixando um só gole! Conheço um local, onde se pode tomar essa tisana, com calma e segurança.

- Onde?

- Efêndi, esses locais em geral são instalados e dirigidos por judeus ou gregos. Ainda não notaste?

- Realmente. Mas ali serás notado e amanhã toda a cidade ficará sabendo que o teu “sistema” não anda lá muito forte!

- Só nós os dois nos veremos reciprocamente. Este judeu tem uma sala reservada, onde nem o luar pode penetrar!

- Então vamos! Mas sejamos precavidos, para que não nos observem entrando na “botica” do judeu!

Mais uma sangria na minha bolsa! Não fazia mal. Sentia-me satisfeito em conhecer o Agha, como um bom muçulmano, que reconhece haver o Profeta condenado o consumo do vinho, mas não da tisana que se prepara com as uvas. Além disso, um pequeno pifão que o chefe militar tomasse, poderia ser vantajoso para o meu objetivo.

Depois de passarmos por algumas ruas estreitas e angulosas, paramos defronte a um mísero casebre, cuja porta se achava apenas encostada. Chegamos ao seu umbral, de onde Selim bateu palmas. Em seguida saiu do seu interior um judeu recurvado, de fisionomia característicamente israelita, que alumiou a cara do Selim.

- Ah! Sois vós, Alteza? Deus Abraão, como levei um susto, quando vi dois vultos parados diante da casa, no lugar do vosso, que tenho a honra de receber diariamente em minha casa, com satisfação e com profundo respeito de súdito vosso!

- Abre, velho!

- Abrir o quê? Qual das salas a pequena ou a grande?

- A pequena!

- Posso ter confiança neste Senhor que tem a honra de acompanhar-vos? Não correrei o risco de que ele divulgue alguma das concessões que vos faço por espírito de camaradagem, para que depois me castigue o poderoso Mutesselim?

- Não precisas recear coisa alguma! Abre, senão arrombarei a porta! O velho separou umas tábuas, por trás das quais abriu-se uma porta.

A porta conduzia a um pequeno compartimento, cujo assoalho estava atapetado com uma esteira de cortiça em mísero estado de conservação. Algumas almofadas de musgo, atiradas ao chão, constituíam os sofás.

- Quereis que acenda a luz?

- Naturalmente!

- Que desejais tomar, Senhores?

- A mesma cousa de sempre!

Foram acessos dois candieiros e agora o judeu pôde contemplar-me melhor.

- Katera Mussa, (1) este é um grande Efêndi e um herói nos campos de batalha! Se vê logo, pelas silahs (2) reluzentes, pelo Kuran de ouro que usa ao pescoço e pelo simbehl (3) igual ao de Jehoschuah, conquistador da Canaan! Neste caso, não devo servir a bebida comum, mas vou buscar de outra enterrada num dos ângulos do porão e que só sirvo a pessoas de qualidade!

- Que bebida é? - perguntei-lhe.

- É um vinho de Tuerbedi Haidari, país que ninguém conhece e onde vicejam videiras, cujos frutos, do tamanho de uma pera, possuem o mais delicioso suco que se conhece.

- Traze uma garrafa! - encomendou o Agha.

- Não; traze dois cântaros! Devias saber que o vinho de Tuerbedi Haidari é acondicionado em grandes cântaros de barro e depois passado para outros menores! - observei-lhe.

- Conheceis essa qualidade de bebida? - perguntou o judeu.

- Tomei-a já por diversas vezes.

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(1) Por Moisés!

(2 ) Armas.

(3) Bigode.

 

- Onde? Em que parte do mundo fica esta terra?

- O nome que tu citaste é o de uma cidade situada na província de Terbidschan, na Pérsia. O vinho é bom e espero que tenhas sabido conservá-lo. Quanto custa?

- Sois um Senhor de distinção! Por isso o tomareis quase de graça. Pagareis apenas trinta piastras por um cântaro.

- E isto é quase de graça?! Traze os dois cântaros para que eu possa provar o vinho. Depois dir-te-ei quanto receberás pela bebida!

O judeu retirou-se. A um dos cantos se achavam recostados à parede alguns cachimbos, ao lado de caixas de fumo. Sentamo-nos ali e agarramos cachimbos sem piteiras. Peguei da minha que sempre trazia comigo e parafusei-a no mesmo; depois experimentei o fumo: era do bom, persa legítimo!

- Que instalação é aquela aos fundos da casa? - perguntei ao Agha?

- Uma drogaria e uma sala para café. Mais aos fundos existe um salãozinho para os fumantes de ópio, bem como um bar destinado ao populacho. Nesta sala aqui, porém, só têm entrada pessoas de distinção social - declarou o Agha, com ares de importância.

Confesso que me alegrei por haver encontrado aquela qualidade de vinho na taverna do judeu. É um vinho tinto, encorpado e de uma elevada dosagem alcoólica; dois ou três goles do mesmo bastam para deixar embriagada uma pessoa não habituada a beber álcool. Pela sua entrada triunfal na espelunca do judeu, depreendi logo que o Selim era um grande apreciador da bebida de Noé; contudo um cântaro daqueles o faria cambalear com facilidade.

Nisso chegou o taverneiro trazendo os dois cântaros, cada um com a medida de um litro mais ou menos. Hum! Pobre Agha Selim! Experimentei a bebida. O vinho sofrerá alguma alterarão certamente durante a viagem, mas não estava mau.

- Então, Alteza, que tal? Gostou do vinho?

- O seu paladar não é ruim, de modo que vale umas vinte piastras o cântaro.

- Senhor, é pouco, muito pouco! Se não pagar mais, levo de volta o meu vinho e vos servirei outro mais comum!

- No país onde ele é fabricado, custa, ao cambio local, quatro piastras. Como vês, o preço que te ofereço é convidativo; se o não aceitares fica com o teu vinho!

Dizendo isso ergui-me pronto a me retirar.

- Que marca devo trazer então?

- Nenhuma! Tomarei apenas desta e pelas vinte piastras o cântaro, que deixarias também por quinze! Tenho certeza disso!

- Se não quiserdes, a Alteza Agha Selim o tomará.

- Ele se retira comigo!

- Bom, deixo por vinte e nove piastras!

- Boa noite, velho! Abri a porta.

- Não vos retireis, Efêndi! Deixo-vos a deliciosa bebida pelas vinte piastras, porque é uma honra para mim e para o meu estabelecimento, ter-vos como freguês!

O negócio estava, pois, fechado e, aliás, com muita satisfação para o judeu, o que notei depois quando o paguei e ele meteu as moedas no bolso grunhindo de alegria. O Agha, primeiramente, provou alguns goles, mas depois esvaziou um copo de vez.

- Allah illa Allah! Wallah, Billah, Tallah! Um vinho tão bom nunca experimentei na vida! Achas que é uma boa tisana para curar o meu sistema enfermiço, Emir?

- É o mais poderoso específico contra a tua doença.

- Ah! Se a “Murta” soubesse!

- Ela também está com o “sistema” arruinado?

- Arruinado, não digo, mas sedento ele está! Ela tem sempre muita sede, Efêndi.

Virou o segundo copo e depois o terceiro.

- Não é de admirar! Ela está muito sobrecarregada de serviço! Trabalha demasiadamente.

- Mas não para mim, disso Alá é testemunha!

- Mas para os teus prisioneiros, que lhe compete alimentar.

- Distribui-lhes pão e água engrossada com farinha apenas uma vez por dia!

- Quanto recebes do Mutesselim pela alimentação dos encarcerados?

- Trinta páras (1) diários por preso.

Ao câmbio atual seriam quinze pfennigs. Dessa importância, no mínimo, metade ficava colada nas mãos do Agha!

- E quanto recebes pelo serviço de vigilância?

- Duas piastras por dia, das quais, porém, até hoje não senti nem cheiro. Em vista disso te admiras de que eu não conheça ainda esta qualidade de vinho?

Tornou a esvaziar outro copo.

- Duas piastras? É muito pouco! Não compensam o trabalho que te dão os encarcerados!

- Trabalho? Nenhum! Que trabalho me poderiam dar aqueles canalhas? Vou diariamente uma vez à prisão para ver se não morreu algum.

- A que horas costumas fazer tal visita?

- A hora que me dá na veneta.

- E mesmo à noite?

-Sim, desde que tenha esquecido de fazer durante o dia e, casualmente, tenha saído à noite. Wallahi, lembro-me agora de que hoje ainda nem fiz a visita diária!

- Minha chegada te impediu.

- É isto mesmo, Efêndi.

- E és obrigado a fazer ainda a visita?

- Não. Era só o que faltava!

- Por quê?

- Aqueles canalhas não merecem que me esforce por causa deles!

- Perfeitamente. Mas não decrescerás no respeito dos teus comandados?

- Que respeito?

- És Agha, portanto um oficial superior. Teus Arnautes precisam ter medo de ti. Não é assim?

- Sim; precisam; por Alá, que precisam! - sublinhou.

- Também o sargento que subcomanda a guarda?

- Também este. Naturalmente! Aquele mazir (2) aliás é um grande cão! Preciso inspirar-lhe medo, terror!

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(1) Pára - fração da piastra. 

(2) Sargento

 

- Neste caso deves vigiá-lo severamente, precisas fazer às vezes uma visita extraordinária à prisão a ver se cumpre rigorosamente as tuas ordens, do contrário ele jamais terá medo de ti!

- Esplêndida idéia! Vou, daqui por diante, fazer visitas fora de hora, vou, sim! Por Alá, que vou!

- Se ele estiver certo de que não o vigias durante à noite, sairá a beber pelas tavernas ou em orgias com as bailarinas, e se rirá depois, gostosamente de ti!

- Ele que se arrisque! Vou surpreendê-lo amanhã, ou talvez hoje ainda! Emir, me acompanharás nessa diligência?

Claro que nem de longe manifestei a dúvida de que se me era ou não permitido entrar na prisão. Antes fiz como se a minha companhia fosse uma honra para ele.

- Merecem aqueles malandros a distinção de se avistarem com um Emir?

- Não irás lá por causa deles, mas para dar-me a honra de tua companhia!

- Neste caso terás que dar à minha visita o caráter de se tratar de um jurista, que se acha em viagem de estudos de sistemas presidiários!

- É claro! Fingirás que és o próprio Mutesselim que me acompanha. Farás uma rigorosa inspeção em todos os departamentos da prisão.

- Assim, irei junto, pois tenho certeza de que os Arnautes não me tomarão por um simples Khawass.

O seu cântaro estava no fim e eu bebera parelho com ele. Os seus olhos diminuíam cada vez mais de diâmetro e as pontas de seus bigodes se achavam em desalinho.

- Vamos mandar vir mais um cântaro, Agha Selim? - perguntei-lhe.

- Por mim não, Efêndi. Estou louco por surpreender aquele Mazir. Amanhã voltaremos aqui.

O sargento apenas servira de pretexto; a verdade, porém, era que ele já sentia os efeitos do vinho de Tuerbedi Haidari. Depôs o cachimbo no seu lugar e ergueu-se com passos indecisos.

- Que tal este fumo, Efêndi? - perguntou-me.

Percebi até onde o Agha pretendia chegar e respondi:

- Ruim. Causou-nos dores de cabeça e tonturas.

- Por Alá tens razão. Esse fumo debilita e anarquiza o sistema nervoso e sangüíneo, ao passo que vimos cá para fortificá-los. Bem, agora vamo-nos!

 

VISITANDO O PRESÍDIO

Bateu palmas; era o sinal de que nos íamos retirar. Saímos. O vinho produzira excelentes resultados para o meu objetivo. Quando chegamos à rua, disse-me:

- Ruim. Causa-nos dores de cabeça e tonturas.

Foi menos a sua amizade do que a fraqueza do seu “sistema” que o levara a fazer-me tal pedido; logo que aspirou o ar da noite, mostrou-se exímio mestre naquelas acrobacias fatais em que se confundem o Nadir com o Zênite!

- Maomé era um sujeito judicioso, não achas, Emir? - exclamou em voz tão alta que obrigou um transeunte a estacar para ouvir de que se tratava.

- Por quê?

- Porque não proibiu o uso das tisanas. Tivesse ele feito também esta proibição, ter-se-ia que fazer tinta das uvas. Sabes onde está a prisão?

- Por trás de tua casa.

- Tens sempre razão, não há dúvida. Mas onde está a minha casa?

Era uma pergunta difícil de se responder, a não ser que a resposta fôsse tola como a pergunta.

- Bem diante da prisão, Agha!

Ficou parado, ou, antes, tentou parar-se com firmeza nas pernas e olhou-me estarrecido.

- Emir, és um sujeito tão judicioso como o foi o velho Maomé, não é? Por isso confesso-te que aquele fumo subiu-me de tal modo à cabeça que vejo aqui à direita a fortaleza e à esquerda a... fortaleza também. Qual dos dois lados é o verdadeiro?

- Nenhum deles. À tua direita ergue-se um carvalho e aquilo lá em cima, à esquerda, é uma nuvem no firmamento.

- Uma nuvem? Allah illa Allah! Deixa que eu te segure um pouco mais!

Cambaleante o chefe militar dos albanezes, avançou comigo quase que de arrasto. Deste modo adiantamos muito a nossa caminhada e não demorou estarmos postados diante de um edifício que eu tomei pela prisão, embora ainda não a tivesse visto de frente.

- Não é aqui o Zindan? (1) - perguntei-lhe.

O homem pôs o turbante na nuca e olhou para todos os lados.

- Hum! Pelo menos o edifício é muito parecido. Não haverá por aqui alguém que nos informe? Fui obrigado a segurar-te tão fortemente, que estou com as vistas confusas e isso é grave. As casas cruzavam por mim com tamanha velocidade que pareciam caravanas a galope.

- Não vejo ninguém. Mas deve ser a prisão, sim!

- Vamos experimentar!

Levou a mão ao cinturão em procura de alguma coisa que não achava.

- Que procuras?

- A chave da porta.

- Tu a carregas contigo?

- Sempre! Procura tu, quem sabe achas!

Apalpei-o pelo cinturão e achei imediatamente a chave. Não era possível deixar de encontrá-la em seguida, pois era tão grande que poderia carregar-se o orifício com uma bala número 0, destinada a caçar ursos.

- Está aqui a chave! Queres que eu abra a porta?

- Sim, abre! Receio, porém, que não aches o orifício da fechadura, pois o teu “sistema” ficou muito alterado com aquele fumo.

A chave servia.

- Afinal, encontramos a prisão! - exclamou o Agha aliviado. Conheço muito bem esse ruído da chave! Entremos!

- Devo fechar novamente a porta?

- Claro que sim. Num presídio toda precaução é pouca.

- Chama o carcereiro!

________________

(1) Fone.

 

- O sargento? Para quê?

- Para nos alumiar a entrada.

- Era só o que faltava. Vim aqui para surpreendê-lo na sua negligência e falta de pontualidade no cumprimento de minhas ordens.

- Neste caso não deves falar tão alto!

Quis seguir para frente, mas cambaleava de tal modo que teria tombado ao solo se eu não o segurasse com ambas as mãos.

- Que foi isso, Emir? Entramos numa casa estranha!

- Onde fica a sala do sargento? No terraço?

- Não, no primeiro andar.

- E onde está a escada, aqui na frente ou nos fundos?

- Hum! Deixa-me lembrar! Creio que na frente. Depois da porta precisa-se caminhar uns seis a oito passos para alcançar a escada.

- À direita ou à esquerda?

- Sim, em que posição me acho? Oh, Emir o teu organismo não suporta aquela tisana. Colocaste-me numa posição enviesada, de modo que o assoalho não é plano, mas corre de alto a baixo, assemelhando-se a uma ladeira das estradas que conduzem às montanhas!

- Então vem cá! Por trás de ti está a porta; aqui é a direita e ali a esquerda. Em qual desses lados está a escada?

- No esquerdo.

Continuamos a caminhar cautelosamente e, tateando com o pé, descobri, realmente, logo depois, os degraus inferiores de uma escada.

- Aqui está a escada, Agha.

- Exatamente! Não vas cair, Emir! Nunca estiveste nesta casa; o melhor será eu segurar-te, pois vejo que estás cambaleando diante dos meus olhos!

O homem já não me dava o braço, mas se dependurava em mim, de maneira que eu tive que carregá-lo, por assim dizer, escada acima, escada que eu não conhecia.

- Bom, agora estamos no primeiro andar. Onde fica a sala do sargento?

- Fala mais baixo! A primeira, desviando-se para o corredor da direita.

Conduziu-me para frente, ao invés de desviar-se para a direita... Depois de tatear pela parede, descobri finalmente uma porta.

- Acho duas trancas, mas não a fechadura.

- Não tem fechadura.

- Mas a porta está fechada com as trancas.

- Quer ver que no fim penetramos numa casa alheia!

- Vou retirar as trancas e abrir a porta.

- Faze isso para que eu veja a quantas andamos...

Retirei as duas pesadas travas da porta e esta abriu-se para o lado de fora. Em seguida entramos.

- Existe alguma vela ou cousa parecida na sala do sargento?

- Existe sim, há um lampião e fósforos no nicho da parede à esquerda.

Tateando descobri o nicho com o lampião e os fósforos; acendi logo a luz.

O compartimento era estreito e acanhado. Uma rede de junco atirada ao assoalho servia-lhe de mobiliário para tudo. Um púcaro partido, um par de sapatos rotos, um par de tamancos, uma moringa vazia e uma chibata se achavam espalhados pelo chão.

- Não está o sargento? Onde andará ele metido? - perguntou o Agha.

- Deve estar na sala dos Arnautes que aqui montam guarda.

 

O Agha agarrou o lampião e, oscilante, quis sair em procura do seu subordinado, mas foi tão infeliz que tropeçou logo na porta.

- Não me empurres, Emir! Vem, segura o lampião; prefiro guiar-te, pois do contrário, tonto como estás que mal te susténs de pé, és capaz de me jogar escada abaixo. Eu te estimo, sou teu amigo, teu melhor amigo. Por isso aconselho-te jamais ingerires daquele vinho persa. Não podes suportá-lo. Ele te deixa além de tonto, violento!

Foi com grande esforço e paciência que consegui trazê-lo novamente escada abaixo. Ao chegarmos à sala destinada ao alojamento dos Arnautes, encontramos a mesma também fechada, e, ao abri-la, verificamos estar este compartimento deserto. Assemelhava-se mais a uma baia do que alojamento de soldados, circunstância que dava uma triste idéia do asilamento recebido ali pelos prisioneiros.

- Também os soldados abandonaram os seus postos!

- Tu tinhas razão, Emir! Esses canalhas foram para a orgia, ao invés de vigiar a prisão. Mas hão de aprender a temer-me! Vou mandar aplicar-lhes bastonadas! Não, mandarei enforcá-los, é melhor!

Tentou revirar os olhos, mas não o conseguiu; o vinho depois de algum tempo é que redobrava de efeito. Via-se isso nele.

- Que faremos agora?

- Que pretendes dizer, Emir?

- Eu, no teu lugar, ficaria aqui para fazer aos Arnautes a recepção que merecem!

- Claro que vou tomar essa medida. Mas onde os esperaremos?

- Aqui mesmo ou lá em cima.

- Aqui! Por dinheiro nenhum tornarei a subir a escada. Preciso arrastar-te comigo, Emir, e tu és muito pesado. Vê como cambaleias, homem! Senta-te, talvez te passe essa tontura!

- Mas pensei que íamos passar em revista a prisão!

- É mesmo! - disse visivelmente “fatigado”. - Mas esses sujeitos que aí estão recolhidos não merecem essa honra de nossa parte! São todos ladrões, salteadores, curdos e um árabe, que é o pior deles.

- Onde está recolhido esse árabe?

- Aqui embaixo mesmo, numa cela logo ali adiante, pois carece de uma vigilância mais severa do que os outros. Mas senta-te, senão cairás!

Sentei-me ao seu lado, não obstante ser o chão de barro endurecido, e barro cheio de imundícies ainda por cima! O Agha bocejou.

- Estás cansado? - perguntou-me ele.

- Um pouco.

- Por isso estás a bocejar. Dorme um pouco, até eles voltareml Então te acordarei. Allah il Allah como te tornaste tonto e indeciso. Contigo a gente não pode mais contar. Entretanto, vou pôr-me mais à vontade possível.

Deitou-se, estirou as pernas e pôs as mãos debaixo da cabeça à guisa de travesseiro. Seguiu-se um silêncio profundo; por fim o chefe albanês deixou pender a cabeça: o Senhor do presídio dormia.

Quantas vezes lera eu que os prisioneiros valiam-se das bebedeiras dos seus vigilantes para fugirem do cárcere e me irritara com tais narrativas que me pareciam fantasiosas! Agora eu, em conseqüência da bebedeira do chefe da prisão, estava diante da realidade de um daqueles fatos; achava-me sozinho de posse dos prisioneiros e do presídio! Deveria eu abrir o cubículo e soltar o Haddedihn? Seria uma imprudência que acarretaria males insanáveis. Não nos achávamos de momento preparados para abandonar a cidade. E, por fim, a culpa toda recairia sobre o pobre Agha e eu seria o único indiciado, o que me podia ser perigoso ou, no mínimo, me causaria sérios transtornos de futuro. O melhor mesmo seria facilitar a evasão de nosso prisioneiro em circunstâncias que a sua fuga constituísse um verdadeiro mistério. E essa empresa, daqui por diante, ser-me-ia talvez fácil, sem que sobre mim recaísse a menor suspeita. Decidi-me, pois, procurar apenas falar com o prisioneiro e facilitar-lhe a evasão só depois de realizar todos os preparativos.

O Agha jazia no solo, e roncava de boca aberta. Sacudi-lhe o braço primeiro de leve e depois fortemente. Não se acordou. Agarrei o lampião e deixei o alojamento, cuja porta fechei sem ruído. Coloquei-lhe uma das trancas, a fim de não ser de modo algum surpreendido. Havia notado, há pouco, que todas as portas não dispunham de fechaduras e que eram fechadas por duas travas de ferro. Não precisava eu, pois, andar em procura de chaves.

 

CONFABULANDO COM O PRISIONEIRO

Por fim sofri uma certa mudança em meu estado de espírito, quando depois me encontrei sozinho no corredor geral, cuja escuridão a luz do lampião não conseguia dominar. Mas dispus-me a estar pronto para o que desse e viesse. Se por acaso surgisse alguma circunstância imprevista, eu tudo arriscaria para não me retirar da fortaleza sem dali arrancar o prisioneiro. Aproximei-me de sua cela, arredei a trava de ferro e deixei a porta bem aberta, a fim de poder ouvir o menor ruído depois de me achar lá dentro.

Aquilo não era uma cela, mas uma verdadeira toca, onde se achava o prisioneiro! Sem ligação à escada alguma, a toca que se me deparou diante dos olhos possuía uma profundidade de uns dois metros. Media quatro passos de comprimento e dois de largura, mais ou menos, e o solo não se achava assoalhado ou nivelado de modo algum. Por cima, perto da cobertura, havia uma seteira, que do meu quarto eu já avistara de dia. Além de uma bacia de barro cheia de água, daquelas bacias que se utilizam para dar alimentos aos cachorros, nada mais tinha o preso à sua disposição.

O presidiário estava deitado sobre a terra úmida e fria e à minha aproximação levantou-se. Com os olhos fundos nas órbitas e emagrecido, parecia um semi-morto; no entanto o seu porte era altivo e cheio de dignidade; seus olhos brilharam enfurecidos ao interpelar-me:

- Que desejas?! Não se pode nem ao menos dormir sossegado?

- Fala baixo! Não pertenço ao corpo de guardas que te vigiam. Como te chamas?

- Por que me perguntas?

- Fala mais baixo, pois ninguém deve ouvir-nos. Como é teu nome?

- Tu bem sabes, por que estás a perguntar? - retrucou-me agora, porém, em voz baixa.

- Tenho apenas uma suposição e para confirmá-la, desejaria ouvir dos teus próprios lábios o teu nome.

- Chamam-me de Amad ei Ghandur.

- Então és justamente a pessoa que procuro. Prometes conservar-te calmo, depois das palavras que te vou dizer?

- Prometo!

- Maomé Emin, teu pai, está bem próximo daqui.

- Allah illa Allah...!

- Cala! Os teus brados podem denunciar-nos!

- Quem és tu?

- Um amigo do teu pai. Quando fui hóspede dos Haddedihns, tive oportunidade de lutar ao lado do teu pai contra os seus inimigos. Soube então que te achavas preso e para aqui viemos a fim de libertar-te.

- Graças a Alá! Mas não posso acreditar!

- Podes crer! Vê esta tua janela: dá para um pátio que confina com um jardim, onde estão os aposentos habitados por nós.

- Quantos homens formam a caravana?

- Apenas quatro. Teu pai, eu, mais um amigo e um criado.

- Quem és tu e quem é o outro amigo?

- Deixemos isso para mais tarde, pois agora não podemos perder tempo!

- Vamos fugir já?

- Não. Não fizemos ainda os preparativos para a tua evasão e aqui me encontro por acaso. Fui trazido à fortaleza de um modo imprevisto. Sabes ler?

- Sei, sim.

- Mas falta-te a luz para leres.

- Ao meio dia há claridade bastante para se distinguir as letras.

- Então ouve: poderia arrancar-te já daqui, mas isso redundaria em grave perigo para todos nós. Afianço-te, porém, que dentro de poucos dias estarás livre. Por enquanto não sei ainda como te facilitaremos a evasão. Quando ouvires o ruído de uma pedra caindo pela seteira dentro da tua cela, apanha-a, porque nela estará amarrado um papel, contendo as instruções, que deves seguir.

- Senhor, vens restituir-me à vida, pois já me achava à beira do desespero! Como soubeste que me tinham trazido para Amadijah?

- Foi o Dschesidi, que encontraste no arroio, que me contou tudo.

- Está certo. Oh! Agora vejo que falas a verdade! Vou esperar com resignação; dá lembranças ao meu pai!

- Darei ainda hoje. Tens fome?

- Muita!

- É possível esconderes pão, lampião e fósforos nesse cubículo?

- Sim. Faço com as mãos um buraco na terra onde guardarei tudo.

- Então aí tens o meu punhal. É bom teres uma arma para qualquer eventualidade. Mas trata-se de uma arma de estimação, faze tudo para não perdê-la!

O rapaz agarrou apressadamente o punhal e apertou-o entre os dentes.

- Senhor, Alá se lembrará de ti! Agora possuo uma arma, agora me libertarei mesmo que vocês não puderem facilitar-me a fuga!

- Poderemos! Não empreendas nada precipitadamente; isso lançaria teu pai e a ti próprio em sérios perigos!

- Esperarei uma semana inteira. Se até lá eu não souber notícias de vocês, agirei por conta própria.

- Está bem! Se me fôr possível, ainda esta noite mandar-te-ei, por esta seteira, pão, outros alimentos e fósforos. É provável que possamos então conversar. Se não houver perigo, poderás, mesmo, ouvir a voz do teu pai. Por enquanto, passa bem; tenho que me ir!

- Senhor, deixa que te aperte a mão!

Estendi-lhe a mão. Apertou-a com as suas duas mãos com tanto entusiasmo que me causou dores o seu aperto.

- Que Alá te abençoe as mãos enquanto elas se poderem mover, e depois, quando estiverem postas, no sono derradeiro da morte, que o teu espírito encontre no Paraíso a recompensa por teres sido o meu anjo salvador.

Fechei novamente o cubículo e lentamente voltei para a sala onde se achava o Agha. Este continuava a dormir e a roncar; sentei-me ao seu lado.

Ali estive uma hora inteira até que percebi passos que se dirigiam para porta do presídio. Levantei-me depressa, fechei a porta que se achava aberta e despertei o Agha. Não era isto tarefa fácil, tanto mais que devia ser efetuada o mais depressa possível. Fiz com que ficasse em pé. Olhou-me com os olhos intumescidos.

- Ah! és tu Emir. Onde nos achamos?

- No presídio. Põe-te em linha! Olhou perplexo em torno de si.

- No presídio? Ah! Como viemos parar aqui?

- Lembra-te do judeu e da tisana; pensa também no sargento ao qual tencionávamos surpreender, na falta do cumprimento de suas obrigações.

- O sarg... Maschdlab, agora lembro-me de tudo! Estive dormindo. Onde está ele?

- Fala baixo! Não ouves? Os teus comandados estão lá fora a palestrar amistosamente. Passa um lenço nos olhos e recompõe tua fisionomia?

O bom Agha se achava em estado deplorável; mas pelo menos recuperara a consciência e já se podia suster firme de pé. Pegou o lampião, abriu a porta com um ponta-pé e saiu para o corredor. Os soldados apavorados, pararam. O comandante acercou-se deles.

- De onde vêm, matilha de cães? - trovejou-lhes.

- Do café - respondeu o sargento, depois de hesitar por instante.

- Do café! Em lugar de estarem a postos! Quem deu licença para se retirarem?

- Ninguém!

O pessoal tremia de pavor. Tinha pena deles. A sua negligência me fora de tanta utilidade! Não obstante a luz escassa e bruxuleante do lampião, pude ver que o Agha revirava os olhos de modo terrível. As pontas de suas barbas tremiam e os punhos cerravam-se de cólera. Contudo apercebeu-se de que o seu estado de embriaguez não cessara ainda de todo e por isso avisou aos comandados:

- Amanhã vocês receberão o castigo!

Depôs o lampião sobre um degrau da escada e dirigiu-se a mim:

- Ou quem sabe achas, Emir, que devo lavrar-lhes logo a sentença? Queres que eu mande chibatear um atrás do outro?

- Adia a sua punição para amanhã, Agha Selim! Eles não poderão fugir dela!

- Vou adiá-la em atenção a ti. Vem!

Depois disso, recolhemo-nos a casa, onde a Murta já nos aguardava.

- Estiveste tanto tempo com o Mutesselim? - perguntou ela desconfiada.

- Mersinah, afianço-te que a reunião vai prolongar-se até de manhã cedo. Mas como eu sabia que estavas sozinha em casa, pedi desculpas ao comandante e me retirei. Não quero que os russos te cortem a cabeça. Vai haver guerra!

Tomada de espanto, a governanta pôs as mãos na cabeça.

- Guerra? Mas entre quem?

- Entre os turcos, russos, persas, árabes e curdos. Uma divisão russa com cem mil homens e três mil canhões já se acha concentrada em Serahrn, quatro horas distante daqui.

Apavorada, ela pôs as mãos na cabeça.

- Oh! Alá! Eu morro, já estou morta! E tu terás que combater também?

- Claro. Engraxa-me ainda esta noite as botas! Mas não contes nada a ninguém. A guerra constitui ainda um segredo de Estado e a população de Amadijah dela só deverá ter conhecimento, quando amanhã os russos cercarem a cidade.

Oscilante e extenuada, a governanta sentou-se sobre a primeira panela que encontrou perto de si.

- Já amanhã! Mas isso é verdade?

- Claro que sim.

- E vão bombardear a cidade?

- Vai ser um bombardeio terrível!

- Agha Selim, não engraxarei as tuas botas!

- Por que não?

- Não deves participar da guerra; não quero que morras em combate.

- Bom! Folgo com isso, pois assim posso dormir mais descansado. Boa noite, Efêndi! Boa noite, minha doce Mersinah!

E saiu para o seu quarto. A flor de seu solar seguiu-o com um olhar desconfiado e depois perguntou-me:

- Emir, é verdade que os russos vêm aí?

- Não é bem certo ainda. Creio que o Agha levou muito a sério a questão.

- Oh! Tu vertes bálsamo no meu coração aflito! Não será possível conservá-los distante de Amadijah?

- Vamos tratar disso amanhã... Separaste as duas qualidades de café?

- Sim, Senhor. Foi um trabalho insano; mas aquele homem mau que é o Hadschi Halef Omar, não me deixou em sossego enquanto não fiz a separação. Queres vê-los?

- Quero.

A velha trouxe o tubo e o cartucho; vi que de fato ela se dera ao trabalho de separar as duas qualidades que havia misturado.

- E qual a tua sentença agora, Emir?

- Favorável a ti. Como tuas níveas mãozinhas tiveram que tocar por tantas vezes nesses grãos, o café será teu. Também teus serão os utensílios que mandei comprar hoje. Dos copos, porém, faço presente ao valente Agha Selim.

- Oh! Efêndi, és um juiz íntegro! Tens mais de bondade no coração que eu de panelas na cozinha; esse saboroso café constitui o perfume da tua generosidade! Que Alá amenize o coração dos russos, para que não venham assaltar a cidade e que não te matem! Achas que ainda hoje posso dormir descansada?

- Podes, asseguro-te!

- Obrigada, pois o descanso é o único lenitivo que alegra o espírito atribulado de uma pobre mulher como eu!

- Dormes aqui embaixo, Mersinah?

- Durmo.

- Mas não na cozinha, e sim lá na frente?

- Senhor, o lugar da mulher é na cozinha, onde deve dormir também! Hum! Aquilo não me agradava. Além disso, a blague do Agha fora inoportuna. Com toda certeza a “Murta”, em face daquela alarmante notícia não conciliaria logo o sono. Subi, mas ao invés de me dirigir ao meu aposento, encaminhei-me para o do Haddedihn. Já dormia, mas acordou-se logo quando cheguei. Relatei-lhe a minha aventura no presídio e ele não podia ocultar a sua comoção.

Empacotamos os comestíveis com o lampião e fósforos e rastejamos até uma sala situada na soteia. Esta possuía apenas uma janela, isto é, uma abertura quadricular, fechada por um tampo de madeira, que se achava encostado. Quando assomei à abertura vi que o alpendre de alvenaria que ladeava o pátio era plano e acessível, pois tinha a altura de uns três metros apenas. Subimos ao alpendre e deste passamos para o jardim onde outrora a Khan Esma espalhava o “perfume de sua beleza”. Estávamos agora separados da prisão por uma parede espessa, cujo cimo podíamos alcançar com a mão.

- Espera! - pedi ao Xeque. - Por medida de segurança vou fazer um reconhecimento, a fim de verificar se não estamos sendo vigiados.

Subi ao alpendre e percorri-o em toda a sua extensão. De uma das seteiras à direita da galeria notei uma luz bruxoleante. Era a sala onde o Agha dormira, depois da bebedeira. Certamente lá se achavam agora os Arnautes, que de medo não podiam dormir. A seteira seguinte, pois, era a cela, onde se achava Amad ei Ghandur.

Reconheci todas as imediações sem haver encontrado algo de suspeito. Encontrei também fechada a porta que conduz da prisão ao pátio. Voltei, então, para o local, encontrando o Haddedihn já trepado ao muro.

- Maomé!

- Que tal?

- Tudo em ordem. Podes descer daí?

- Posso.

- Então vem, mas sem fazer o menor ruído.

O Xeque desceu.

Saímos pelo alpendre e fomos postar-nos debaixo da seteira que eu quase podia alcançar com o braço.

- Debruça-te, Xeque, firmando-te à parede.

Assim ele fêz e eu, saltando sobre os seus ombros, coloquei-me de face bem diante da seteira.

- Amad ei Ghandur! - chamei pela seteira, onde encostei logo o ouvido.

- Es tu, Senhor? - soou uma voz abafada debaixo para cima.

- Sou.

- Meu pai também está aí?

- Está sim. Ele vai descer, agora, alimentos, lampião e fósforos, por um cordão e depois falará contigo. Espera!

Desci das costas do árabe.

- Pesei-lhe muito?

- Não se suporta por muito tempo o peso, devido à posição incômoda.

- Bem, agora façamos diferente; como não falarás apenas um minuto com teu filho, ajoelharás sobre os meus ombros, de modo que possa depois soerguer-me contigo.

- Ele te ouviu?

- Ouviu e perguntou-me por ti. Tenho um cordão aqui no bolso e por meio dele descerás os alimentos e os demais objetos.

Prendemos o pacote numa das extremidades do cordão. Com as mãos entrelaçadas atrás formei um degrau, no qual o árabe podia pisar; segurei-o depois com as mãos para que ele não escorregasse e por fim se ajoelhou sobre os meus ombros com tanta segurança, como se o fizesse em terreno firme.

Maomé desceu o pacote e começou então um diálogo apressado e animado, do qual eu só ouvia as palavras do meu companheiro. Por diversas vezes o Xeque perguntou-me se eu ainda suportava o seu peso. Era um homem alto e possante e, de fato, respirei aliviado quando daí a cinco minutos ele terminou a palestra e o depus sobre o alpendre.

- Emir, precisamos arrancá-lo dali, não suporto mais delongas! - exclamou o velho emocionado.

- Em primeiro lugar sairemos daqui sem perda de tempo. Vou apagar todos os vestígios que deixamos em nossa passagem para que amanhã não suspeitem de nós.

- Não podíamos ter deixado pista, pois o alpendre é de alvenaria.

- Cautela nunca é demais.

Ele saiu à frente e eu o segui logo depois. Em pouco tempo estávamos de volta ao aposento do Xeque.

Maomé quis logo fazer um plano para a fuga do filho. Recomendei-lhe que, por hoje, o melhor seria deitar-se a dormir e, depois de lhe desejar boa note, recolhi-me.

Na manhã seguinte, visitei, em primeiro lugar, a minha paciente. Achava-se fora de qualquer perigo. Estava apenas a mãe na sua companhia. Pelo menos não vi ninguém mais em casa. Depois dei uma volta pela cidade e fui até os fundos da prisão, para ver se não havia alguma probabilidade de fuga sem ser preciso passar pelo portão. Havia uma saída por ali, mas não dava passagem a cavaleiros, apenas a pedestres.

Quando voltei para casa, o Agha acabava de levantar-se.

- Emir, já é dia. - disse ele.

- E já há muito tempo! - concordei eu.

- Oh! Quis dizer-te que agora poderíamos falar mais detalhadamente sobre o nosso assunto.

- Nosso assunto?

- Sim, nosso. Estiveste também na prisão. Devo dar parte ou não?

- Eu, no teu lugar, silenciaria sobre o caso.

- Por quê?

- Porque o melhor será que ninguém saiba haveres estado na prisão durante a noite. O teu pessoal notou que não caminhavas com muita firmeza e poderão citar essa circunstância nalgum inquérito a que serás submetido.

- É verdade. Ao me acordar a pouco é que vi o deplorável estado de minha vestimenta. Tive que esfregá-la bastante para tirar-lhe a sujeira. Foi um milagre a Mersinah não ter dado pela coisa! Então achas que não devo dar parte dos homens?

- Acho. Deves limitar-te a repreendê-los e a tua complacência lhes fascinará com o efeito dos raios solares sobre os seus olhos.

- Tens razão, Efêndi. Vou depois fazer-lhes um sermão enérgico.

Os olhos do Agha se reviravam tal qual a pá de um ventilador de gabinete. Em seguida ficaram parados e a sua fisionomia adquiriu uma expressão de benignidade.

- Eu os indultarei do castigo, tal qual o Padixá que preserva a vida e propriedade de milhões e milhões de súditos!

 

GRANDES REVIRAVOLTAS NA ADMINISTRAÇÃO DE MOSSUL

Retirou-se, mas parou no primeiro degrau da escada, pois lá fora havia apeado um cavaleiro e eu ouvi uma voz muito conhecida perguntar:

- Moram em tua casa três Efêndis, dos quais um se chama Hadschi Emir Kara Ben Nemsi, e que viajam na companhia de um criado?

- Moram. Que pretendes dele?

- Quero falar com ele!

- Aqui está o Emir.

Selim afastou-se para o lado de maneira que o homem me pudesse ver. Não era outro senão Selek, o Dschesidi de Baadri.

- Efêndi! - exclamou cheio de alegria. - Deixa que te saúde!

Ao apertarmo-nos as mãos, vi que ele montava o cavalo do Bei Ali; o animal estava banhado em suor. Cavalgara, pois, apressadamente. Era de supor-se, em vista disso, que me trazia uma importante mensagem.

- Leva o teu cavalo para o pátio e sobe! - disse-lhe eu.

Quando daí a minutos nos achávamos sós no quarto, ele entregou-me uma carta.

- De quem é?

- Do Bei Ali.

- Quem a escreveu?

- O Mir Xeque Khan, o príncipe dos sacerdotes.

- Como achaste a minha residência?

- No portão da cidade me informaram logo.

- E como vieste a saber que se acham dois Efêndis na minha companhia? Quando estive no vale do Idiz só havia um.

- Soube-o em Spandareh.

Abri a missiva. Encerrava notícias interessantes, algumas até auspiciosas para os Dschesidis, mas entre elas uma nada agradável para mim.

- Quê? Um tal sucesso alcançou a embaixada do Bei Ali? - perguntei surpreendido. - O Kasi Askarie de Anatólia veio com ela para Mossul?

- Sim, Senhor. Ele estima o nosso Mir Xeque Khan e procedeu a uma rigorosa sindicância. O Mutessarif será destituído, sendo nomeado outro para o cargo.

- E o Makredsch de Mossul fugiu?

- Isso mesmo. Ele era culpado de todos os erros praticados pelo Mutessarif. Vieram à luz graves irregularidades, coisas de arrepiar os cabelos! Há onze meses que os subgovernadores não recebem os seus subsídios e os comandantes, oficiais e soldados os seus soldos. A humilhação aos árabes, exigindo destes os tributos, nada adiantou ao país, porque ele embolsou todo o dinheiro arrecadado. E muitas outras irregularidades mais! Os Kawass destacados para efetuarem a prisão do Makredsch chegaram tarde: ele fugira. Em vista disso todos os Beis e Kiajahs das cidades adjacentes receberam ordens para prendê-lo assim que ele aparecer. O Kasi Askarie de Anatólia presume que ele se tenha refugiado em Stambul visto ter sido amigo do Weli (1) daquela cidade.

___________

(1) Vice-rei.

 

- Não há razão para essa suposição; o Makredsch deve ter-se refugiado nas montanhas, onde torna-se mais difícil capturá-lo ou, então, deve ter-se dirigido antes para a Pérsia do que para Bagdad, aproveitando tal viagem para extorquir todos os juizados que lhe estão subordinados.

- Tens razão, Efêndi. Ontem de noite soubemos que ele estivera na véspera, pela manhã, em Alkosch e à noite em Mungayschi. Ao que parece ele pretendia vir para Amadijah, mas por outros caminhos, a fim de não passar pelas localidades dos Dschesidis, a quem ele assaltou.

- O Bei Ali teve razão em supor que a chegada aqui do Makredsch me acarreta sérios embaraços. Ele se tornará um entrave para mim, pois nem estou em condições de provar a sua qualidade de fugitivo, em cujo encalço anda a justiça.

- Oh! Emir, o Bei é previdente. Quando soube o que se passara com o Makredsch ordenou-me que encilhasse o seu melhor cavalo e que viajasse a noite inteira, a fim de chegar aqui antes do ex-juiz superior, no caso em que ele, realmente, se destinar a Amadijah. E quando deixei Baadri, ele me entregou dois ofícios que recebera de Mossul. Aqui estão. Lê e vê se te são de alguma utilidade!

Abri os escritos. Um deles era uma carta do Kasi Askarie, comunicando ao Mir Xeque Khan as destituições do Mutessarif e do Makredsch. O outro era um ofício dirigido ao Bei Ali, ordenando a prisão do Makredsch, no caso deste ali aparecer e o seu transporte imediato para Mossul. Ambos os documentos estavam providos da assinatura e do grande selo do Kasi Askarie.

- Esses documentos me são realmente de extraordinário valor. Durante quanto tempo poderei ficar com eles?

- São teus. Podes ficar com eles para sempre.

- Então ainda ante-ontem à noite o Makredsch esteve em Mungayschi?

- Sim.

- Provavelmente chegará hoje aqui e eu só preciso desses documentos para a ocasião de sua chegada. Podes esperar tanto tempo?

- Eu aqui ficarei até não precisares mais de mim.

- Bem, então procura o segundo quarto e lá encontrarás conhecidos teus: o Hadschi Halef e Buluk Emini.

 

ASSISTINDO À DISTRIBUIÇÃO DE ALIMENTOS AOS PRESOS

A notícia de que o Makredsch viria provavelmente para Amadijah encheu-me, a princípio, de apreensões, que desapareceram depois que me vi de posse daqueles dois documentos. Julgara eu mesmo que a destituição das duas autoridades, traria como conseqüência a libertação do nosso prisioneiro, mas depois de ler a segunda carta vi que não.

À tarde entrou a “Murta” no meu quarto.

- Efêndi, queres acompanhar-me até a prisão?

Era-me vantajoso aquele convite, mas antes de acedê-lo precisava falar com Maomé Emin. Por isso respondi-lhe, contemporizando.

- Agora não tenho tempo.

- Mas prometeste que consentirias que os prisioneiros me comprassem alguma coisa!

A rosa de Amadijah parecia ser um espírito excessivamente ganancioso. Estava ávida por auferir algum lucro que a sua pequena transação com os presos lhe iria trazer.

- Cumprirei a minha promessa, mas infelizmente só daqui a quinze minutos terei tempo.

- Então esperarei, Emir! Mas não poderemos ir juntos!

- O Agha estará presente?

- Não. Ele está de serviço junto ao Mutesselim.

- Então ordena ao sargento que abra a prisão. Neste caso, poderás ir já que depois irei também.

Ela retirou-se com fisionomia bisonha. Parecia não se preocupar se o sargento daria ou não permissão para eu entrar no presídio: eu não tinha esse direito, pois não possuía uma autorização especial dos seus superiores. Dirigi-me imediatamente ao quarto de Maomé e deixei-o ao corrente do meu propósito de fazer nova visita ao presídio. Recomendei-lhe que estivesse preparado para fugir a qualquer hora e que mandasse adquirir por Halef, secretamente, uma veste turca para o filho. Acendi depois o Tschibuk e, com passos graves, atravessei o pátio rumo ao presídio. Quando dele me aproximei, vi que a porta estava aberta. O sargento se achava defronte à mesma.

- Sallam! - saudei cerimoniosamente.

- Sallam aaleikum! - correspondeu o sub-oficial. - Que Alá abençoe tua entrada nesta casa, Emir! Fizeste jus à minha gratidão!

Entrei e ele fechou a porta.

- Gratidão? - perguntei-lhe com indiferença. - De quê?

- O Agha Selim esteve aqui. Achava-se muito irado. Quis mandar chibatar-nos, mas, finalmente, disse que, graças à tua intervenção, nos indultaria do castigo. Tem a bondade de acompanhar-me.

Subimos pela escada, a mesma que tanto trabalho me dera para encontrar e subir com Agha. À porta estava parada a “Murta”, com uma caldeira de folha na mão, contendo um pirão, que parecia haver sido preparado com a lavagem da cozinha e águas sujas provenientes da lavagem dos quartos. No chão estava o pão cozido pelas suas mãos delicadas. Fora outrora também um mingau, mas com a ação do fogo adquirira alguma consistência. Ao seu lado formavam os Arnautes, empunhando vasilhames que pareciam ter sido tirados de algum monte de louça e vidros quebrados. Inclinaram-se quase até o solo, mas, em sinal de respeito, conservaram-se mudos.

- Emir, ordenas que eu dê início à distribuição dos alimentos? - perguntou-me a Murta.

- Sim, começa!

Imediatamente foi aberta a primeira porta. Era um cubículo também, mas o solo estava nivelado com a entrada. Ali se achava metido um turco. Não se levantou e nem se dignou a nos dirigir um olhar.

- Dá-lhe duas rações, pois é um Osmanli! - ordenou o sargento.

O homem recebeu duas conchas de minguau e um pedaço de pão. Na cela seguinte se achava também um turco, que recebeu a mesma porção. O ocupante do terceiro cubículo era um curdo.

- Este cão só receberá uma porção, pois é um Balahn (1).

Mas que organização modelar, em matéria de presídio! Estive quase a esbofetear aquele sargento, que continuou a obedecer o mesmo critério durante toda a distribuição de alimentos. Quando os prisioneiros do primeiro andar estavam repastados, descemos ao terraço.

- Quem são os presidiários que se acham aqui embaixo?

- Os mais perigosos deles. Um árabe, um judeu e dois curdos da ‘tribo de Mulamuh. Falas o idioma curdo, Emir?

- Falo.

- Creio que não desejas falar com os prisioneiros?

- Não. Esses homens não merecem tal honra!

- Isto é verdade. Mas não sabemos falar curdo e nem árabe e esses cães sempre têm alguma coisa a nos dizer.

- Neste caso falarei com eles.

Era exatamente o que eu queria. Mas nunca supus prestar com isso também um serviço aos guardas.

Foi aberta a cela de um dos curdos. Estava bem à entrada. O pobre com certeza padecia fome, pois quando recebeu a sua concha de mingau, pediu que lhe dessem um pedaço maior de pão, do que de costume.

- Que quer ele? - perguntou o sargento.

- Um pouco mais de pão. Dá-lhe!

- Darei em atenção ao teu pedido!

Chegou a vez dos judeus. Fiquei calado, pois estes falavam turco. Expuseram uma série de queixas e reclamações que, no meu ponto de vista, eram razoáveis. Não foram porém atendidas.

O segundo curdo era um homem idoso. Pedia apenas para ser conduzido à presença do juiz. O sargento prometeu atendê-lo e riu-se sardônicamente.

Finalmente foi aberta a última das celas. Amad el Ghandur se achava metido bem aos fundos do cubículo, parecia nem querer mexer-se. Quando me viu, porém, levantou-se.

- É este o árabe? - perguntei-lhe.

- Ele mesmo.

- Não fala turco?

- Não fala coisa alguma.

- Nunca pronunciou uma palavra, desde que está aprisionado?

- Nem uma sílaba. Por isso não lhe distribuímos comida quente.

- Queres que eu fale com ele?

- Tenta, pode ser que a ti ele atenda.

Aproximei-me do encarcerado e lhe disse:

- Não me respondas!

Em vista disso ele não pronunciou uma só palavra.

- Vê como ele não responde! - declarou o sargento encolerizado. - Dize-lhe que és um grande Emir e então te responderá!

Agora sim eu estava certo de que o sargento não compreendia turco. E mesmo que compreendesse, desconhecia o dialeto dos Haddedinh.

- Fica preparado para esta noite - disse eu a Amad. - Talvez me seja possível voltar aqui.

O jovem continuou imóvel e altivo.

- Nem assim ele fala! - exclamou o sub-oficial. - Nem pão receberá, pois não quis responder ao Efêndi.

A revisão das celas estava finda. Depois quiseram mostrar-me as demais dependências do presídio. Acedi, embora isso não me trouxesse vantagem alguma. Por fim estava terminada a visita e Mersinah olhava-me interrogativamente.

- Tens tempo para fazer um café para os prisioneiros?

- Tenho.

- E fornecer-lhes pão em abundância?

- Também.

- Quanto custa tudo?

- Trinta piastras, Efêndi.

Seis marcos mais ou menos. Estava a apostar que os prisioneiros não receberiam nem um marco do alimento por mim encomendado. Tirei o dinheiro do bolso e paguei adiantadamente a despesa.

- Aqui tens a importância exigida e desejo que todos os presos sem exceção recebam café quente com bastante pão!

- Receberão uma porção reforçada.

Dei à velha e ao sargento quinze piastras a cada um e aos Arnautes dez, gorda propina que eles nem esperavam. Desmancharam-se em agradecimentos e salamaleques. Quando me retirei e me achava já longe, notei que ainda estavam a me fazer inclinações.

Chegando em casa, procurei logo Maomé Emin. Lá se achava Halef, que trouxera a roupa encomendada. A hora foi propícia, pois nem o Agha e nem a “Murta” se achavam em casa.

Contei ao companheiro o resultado de minha visita à prisão.

- Então hoje de noite! - exclamou alegre.

- Se fôr possível! - acrescentei.

- Mas como pretendes fazer?

- Se o acaso não me deparar coisa melhor, procurarei abrir a prisão com a chave que o Agha traz consigo e...

- Ele não te dará a chave.

- Tomo-a dele. Depois esperarei até que os guardas estejam dormindo e então abro a cela de Amad.

- Assim é muito perigoso, Emir! Ouvirão o ruído.

- Não creio. Não dormiram a noite passada e hoje deverão estar cansados. Além disso, dei-lhes uma gorgeta que converterão em Raki, o que lhes facilitará ainda mais um sono pesado. Ademais observei bem e notei que a porta principal abre-se sem ruído. Se eu fôr cauteloso, ser-me-á fácil à empresa.

- Mas se fores surpreendido?

- Não preciso ter cuidados neste sentido. Diante dos guardas, terei boas desculpas a dar e se me pegarem com o prisioneiro, então sim, procederei conforme as circunstâncias exigirem.

- Para onde pretendes conduzir Amad?

- Ele deixará imediatamente a cidade.

- Com quem?

- Com Halef. Vou sair agora com este para fora da cidade, a fira de procurar um esconderijo apropriado.

- E o guarda do portão?

- Ele não verá os dois fugitivos. Conheço um local, onde se pode saltar o muro.

- Deveríamos ir logo todos juntos com o preso!

- Não. Aqui ficaremos no mínimo durante um dia ainda, a fim de desviar de nós toda e qualquer suspeita.

- Mas enquanto isso, Amad estará em posição perigosa, pois irão procurá-lo em toda a cidade e arredores.

- Também quanto a isso será providenciado. Próximo ao portão da cidade, as rochas formam um abismo, pelo qual poucos homens arriscarão a descida. Nesse precipício lançaremos alguns farrapos da antiga vestimenta de Amad, a qual rasgaremos para esse fim. Encontrarão esses farrapos e admitirão logo que, em sua fuga noturna, houvesse caído no precipício.

- Onde mudará ele de roupa?

- Aqui, e na mesma ocasião lhe será raspada toda a barba.

- Então vou vê-lo! Oh! Emir, que alegria para um coração de pai!

- Apresento, porém, uma condição: Devem fazer tudo debaixo do maior silêncio.

- É claro que assim procederemos. Mas a governanta o verá, pois ela sempre se acha na porta da cozinha.

- Conseguirás superar com facilidade este obstáculo. Halef te avisará quando Amad estiver a chegar. Então descerás para impedir, de qualquer modo, que Mersinah o veja. Não te será difícil e enquanto isso o criado o trará aqui para o quarto, que fecharás assim que voltares e só o abrirás na minha chegada.

 

UM ESCONDERIJO PARA O ÁRABE

Notei que Halef tirara os cavalos do galpão e saíra. A porta do quarto do inglês se achava aberta. Ele acenou-me para chegar até lá.

- Posso falar, Sir?

- Pode.

- Ouço tropel de cavalos; vamos sair? Para onde?

- Para fora da cidade.

- Well, irei junto!

- Tenciono cavalgar pelo mato. O senhor será forçado a embrenhar-se pelo meio de macegas.

- Por que não?

Num instante estava ele pronto. Foi selado mais um cavalo e daí a pouco saíamos todos rumo ao portão que conduz para Asi e Mia. Era tal qual me referira o curdo Dohub. O caminho era tão íngreme que tivemos de levar os cavalos pelas rédeas. No portão não fomos detidos, visto que a guarda era composta de Arnautes que na véspera formara na parada em minha honra.

Chegados embaixo, no vale, se prosseguíssemos pela direita chegaríamos às residências de verão dos habitantes de Amadijah, que se recolheram à montanha. Desviamos para a esquerda entrando na mata. Esta possuía grandes clareiras de modo que por ela podia-se cavalgar desembaraçadamente. Depois de um quarto de hora atingimos uma clareira, onde apeamos.

- Por que apear? - perguntou Lindsay.

- Vamos procurar um esconderijo para Amad.

- Ah! Não demora ser libertado? Participei-lhe o meu plano.

- Excelente! - disse o inglês. - Belos perigos nessa aventura! Surpreender! Boxear! Well! Auxiliarei na consumação da fuga!

- Oh! Mister, o senhor não me poderá ser útil na execução do plano!

- Não? Por quê? Derrubo a soco todos os que encontrar pelo caminho! Well! Sou um inglês livre! Yes!

- Bom, veremos primeiro! Nessa direção à esquerda está o local por onde se pode saltar o muro. Portanto precisamos arranjar aqui um esconderijo para o libertado. Quer auxiliar-me na procura?

- Yes!

- Então dividamo-nos. O senhor seguirá em linha reta e eu me desviarei para o lado. Aquele que encontrar um local apropriado descarrega a pistola e fica à espera do outro.

Halef permaneceu junto aos cavalos e nós saímos cada qual para o seu rumo. O mato era, agora, denso e não havia jeito de encontrar um local apropriado para o esconderijo. Nisso ouço um tiro à minha esquerda. Caminhei para aquela direção e ouvi uma segunda detonação bem próxima de mim. Vi depois o inglês, entre uma brenha de onde se elevavam quatro gigantescos carvalhos, a trepar num deles. Estava descalço e despira o albornós. Também o enorme turbante axadrezado de vermelho e preto estava no solo.

- Dei dois tiros em vez de um. O estampido no meio da mata engana às vezes! Achou esconderijo?

- Não.

- Achei um.

- Onde?

- Adivinhe! Não será capaz!

- Veremos!

O companheiro estava descalço e meio despido, portanto trepara em alguma árvore. É óbvio que o esconderijo devia ser na copa de um dos carvalhos. Mas estes eram tão espessos que impossível seria trepá-los. Ah! Ao lado de um deles erguia-se um pinheiro esguio a confundir sua copa com a do carvalho. Bem lá em cima os galhos se enroscavam formando uma espécie de mirante, facilmente acessível, e, além disso, um dos carvalhos era ôco.

- Adivinhei, sir! - declarei-lhe eu.

- Onde é?

- Lá em cima, ou no mirante ou no tronco ôco.

- Well! Acertou! Já estive trepado lá. O tronco ôco presta-se melhor!

- Então sabe trepar bem?

- Como um esquilo! Yes!

- Mas todo o tronco é ôco?

- Quase todo!

- Mas quem entrar no tronco ôco cai para o fundo e não conseguirá sair mais.

- Isso mesmo! Não sai mais!

- Portanto de nada nos serve!

- Bom, muito bom! Yes! Fazer instalações necessárias para não cair!

- De que maneira?

- Ah! Não sabe? Hum! Mister Lindsay é um sujeito astuto! Linda aventura! Esplêndida! Pena que nada preciso pagar! Pagar bem! Cortar galhos entupir buraco! Muitos musgos aqui! Colocá-los em cima dos galhos. Então não cairá mais ôco abaixo! Esconderijo estará pronto! Linda vivenda de verão! Aprazível vila!

- Assim como diz ficará talvez muito bem. Que dimensões têm a parte ôca do pau?

- Quatro pés mais ou menos. Mas para baixo ainda maior. Sabe trepar?

- Sei. Vou olhar aquela “vila” mais de perto.

- Não trepe sem nada. Leve logo galhos para entupir buraco! Time is money!

- Tem razão. Aqui há suficientes galhos de carvalho.

- Mas ah! Como levar para cima? Trepar e carregar, não é possível!

- Trouxe o meu laço. Sempre me acompanha em todas as jornadas, pois uma corda dessas é de incalculável utilidade.

- Well! Cortaremos já os galhos!

- Mas proceda sempre com muita cautela, Mister! Acho bom certificarmo-nos primeiro se estamos sós. A nossa palestra em inglês ninguém, nestas paragens, a compreenderá. Portanto não denunciaria o nosso propósito. Mas antes de entrarmos em ação, precisamos tomar todas as cautelas possíveis.

- Então faça reconhecimentos! Enquanto isso corto galhos!

Dei uma batida pelas redondezas e me convenci de que não estávamos sendo observados; depois ajudei o inglês, que estava ansioso por construir uma vila no tronco do carvalho. Cortamos uma dúzia de galhos entre o macegal, galhos de quatro pés de comprimento cada um. Fizemos o corte, evitando deixar o menor vestígio e depois amarrei-os com o chalé que me servia de cinta, prendendo-o a uma das extremidades do laço. Em seguida, trepei pelo pinheiro. Chegado ao primeiro ramo, puxei o feixe de galhos. Lindsay trepou depois e deste modo chegamos com a nossa carga até a abertura do tronco, onde amarramos a outra ponta do laço. Examinei a parte ôca. Era enorme e aumentava, à proporção que ia para baixo, até o solo.

Começamos, em seguida, a tarefa de “assoalhar” a “vila”. Essa tarefa exigia fosse feita com todo o cuidado, pois se os galhos não ficassem muito firmes o assoalho poderia sossobrar com o habitante. Com o auxílio das facas, depois de estafantes trabalhos, conseguimos terminar a obra.

- Agora vamos buscar musgos, que transportaremos também com o auxílio do laço.

Descemos e pouco depois havíamos juntado quantidade de musgos e folhas secas, mais do que suficiente para deixar o serviço terminado por completo.

- Trabalhamos com vontade! - disse o inglês, enxugando o suor que lhe corria pelas faces. - Amad vai ter moradia confortável! Agora, comestíveis, bebidas, cachimbos, fumo e a instalação estará completa!

Voltamos depois para junto de Halef, que já se achava cheio de cuidados pela nossa grande demora.

- Mister Lindsay, agora fica o senhor vigiando os cavalos, enquanto vou mostrar o esconderijo ao nosso Hadchi Halef Ornar! - declarei

- Well! Mas para voltar logo; yes!

- Sabes trepar numa árvore? - perguntei a Halef quando chegamos ao esconderijo.

- Sei, Sídi. Trepei já em muitas tamareiras, para colher tâmaras. Por quê?

- Mas a escalada vai ser agora bem diferente. Terás que subir numa árvore de tronco liso, sem apoio de espécie alguma e também de nada adiantará a maneia que se usa aos pés quando se sobe para colher tâmaras. Estás vendo aquela abertura no tronco da árvore lá em cima?

- Estou, Sídi.

- Sobe até lá e examina a abertura! Primeiramente subirás por este pinheiro, de onde passarás para o carvalho.

O homenzinho fêz a experiência com bons resultados.

- Senhor, aquilo é um verdadeiro quiosque, - disse quando desceu. Construíram há pouco?

- Sim. Sabes em que rumo fica o forte de Amadijah?

- Fica à esquerda.

- Então ouve o que vou dizer-te! Espero poder tirar Amad ei Ghandur hoje à noite da prisão. Ainda durante a noite, ele terá que ser trazido para fora da cidade, tarefa de que tu te encarregarás.

- Senhor, a guarda nos pilhará!

- Não. Há um local na fortaleza onde o muro está tão avariado, que permite fácil acesso para a rua, sem que ninguém note. Vou mostrar-te esse ponto agora quando voltarmos. O principal é não errares este lugar á noite, pois naquela abertura das árvores ficará Amad escondido, até virmos buscá-lo. Para que graves bem na memória, toma agora o caminho pelo qual terás que andar com Amad, hoje à noite, e depois vol-tarás para aqui. Estaremos à tua espera junto dos cavalos. Ao voltarmos para casa, tudo faremos para não sermos vistos, pois lá ninguém deve saber que um de nós abandonou hoje a cidade.

- Sídi, muito obrigado!

- Obrigado, por quê?

- Porque afinal vais permitir que eu faça novamente alguma coisa. Há muito tempo que eu vinha sendo obrigado a me contentar apenas em ver, de braços cruzados, os outros viverem aventuras!

Ele saiu a estudar o caminho e eu retornei para junto de Lindsay, que, estirado sobre os musgos, contemplava displicentemente o azul do céu.

- Grandioso o Curdistão! Faltam apenas as ruínas! - declarou-me.

- Há muitas ruínas por aqui, embora não sejam milenárias como as de Tigris. Para encontrar tais ruínas, talvez tenhamos que procurá-las e só então o senhor se convencerá da sua existência. Dos vales do Curdistão, o fumo de aldeias queimadas e o cheiro de ondas de sangue sobem ao céu. Encontramo-nos num país, onde a vida, a liberdade, a propriedade e haveres estão mais em perigo do em qualquer outro. Façamos votos para que não venhamos a nos convencer, por experiência própria, dessa realidade contristadora!

- Mas quero convencer-me por experiência própria, Sir! Quero aventuras! Gostaria de lutar, boxear, atirar! Pagarei tudo!

- Para isso talvez encontre muitas oportunidades, sem que seja preciso pagar coisa alguma; bem por trás de Amadijah termina o território turco e começam aquelas regiões habitadas pelos curdos, os quais se submeteram ao domínio dos turcos ou assumiram a obrigação de pagar-lhes tributos, apenas por formalidade. Lá nessas regiões os nossos passes não nos asseguram a menor garantia. Pode até acontecer que sejamos tratados com hostilidades precisamente por viajarmos munidos desses documentos.

- Não os exibiremos então!

- Claro que não. Essas hordas violentas e semi-selvagens se conquistam mais facilmente, quando a gente se entrega confiadamente à sua hospitalidade. Um árabe é capaz de recolher um forasteiro à sua cabana, com propósitos ocultos; um curdo, porém, jamais. E se tal não acontecer, a gente recorre à proteção das mulheres e então, sim, está-se em segurança.

- Well! Vou recorrer à proteção das mulheres! Esplêndido! Boa idéia, Mister!

Uma hora depois voltava Halef. Assegurou ele que mesmo à noite encontraria o esconderijo facilmente, desde que conseguisse sair da cidade. O objetivo de nosso passeio estava, pois conseguido e voltamos para Amadijah. Fiz de tal maneira, que tivemos de passar pela parte do muro em ruína.

- Este é o ponto a que me referi - declarei a Halef. - Quando depois saíres, examina mais detidamente aquela brecha, mas de modo a não dar na vista.

- Farei isso sem demora, Sídi, pois não tarda anoitecer.

 

TENTATIVA DE PRISÃO

Realmente quando chegávamos em nossa residência, o sol já ia desaparecendo. Não tive tempo de descansar, pois o Agha me veio esperar logo na porta.

- Hamdulillah. Graças a Alá que finalmente chegaste - declarou. - Esperava impacientemente por ti.

- Por quê?

- O Mutesselim ordenou-me que te levasse à sua presença.

- Que pretende ele de mim?

- Não sei.

- Nem imaginas?

- E para falares com um Efêndi, chegado há pouco.

- Que Efêndi é?

- O Mutesselim proibiu-me dizer-te.

- Psiu! O Mutesselim não tem o direito de me ocultar coisa alguma. Eu sabia de há muito da chegada desse Efêndi.

- Sabias? Como, se isso era um segredo?

- Pois te provarei que conheço esse grande segredo. É o Makredsch de Mossul, o Efêndi que chegou.

- Realmente tu sabes! - exclamou o oficial admirado. - Mas ele não se acha só com o Mutesselim.

- Quem mais está com ele?

- Um Arnaute.

Ah! atinei logo de quem se tratava e respondi-lhe:

- Também esse pormenor eu sabia. Conheces o homem?

- Não.

- Sei que não conduz armas consigo.

- Allah akbar! Acertaste. Efêndi tu sabes de tudo.

- Pelo menos ficaste sabendo que o Mutesselim não é homem para me ocultar coisa alguma.

- Mas, Senhor, não deve ser agradável o assunto que tratam a teu respeito!

- Por quê?

- Sou obrigado a guardar reservas.

- Bom, Agha Selim, vejo agora que és meu amigo!...

- Sim, sou teu amigo, Emir; mas os deveres funcionais obrigam-me a obedecer às instruções emanadas de meus superiores.

- Pois então afianço-te que ainda hoje te darei ordens que obedecerás como se as tivesse recebido do próprio comandante. Desde quando está o Makredsch em Amadijah?

- Há duas horas apenas.

- E durante todo esse tempo estás à minha espera?

- Não. O Makredsch chegou sozinho, não trazendo comitiva alguma consigo. Eu me achava exatamente com o comandante, quando ele entrou no palácio. Disse que viajara incógnito, porque estava encarregado de uma missão importantíssima, da qual ninguém deveria ter a mínima idéia. Continuando na palestra, o comandante citou também o teu nome e os dos teus companheiros. O Makredsch deve conhecer-te, pois escutou atentamente e mandou que o comandante descrevesse o teu físico com exatidão. “É ele mesmo!” - exclamou depois e pediu ao comandante mandasse eu sair do gabinete. Mais tarde fui chamado novamente e recebi ordens de te buscar e...

- E que mais?

- E... Emir, sou de fato teu amigo e por isso vou dizer-te o resto. Mas prometes guardar reservas?

- Prometo!

- Depois era para eu buscar uma escolta de Arnautes e cercar esta casa, para que teus companheiros não conseguissem fugir. Também para te prender já se acham postados vários Arnautes no Palácio. Chegando lá, deverei prender-te e recolher-te à fortaleza.

- Ah! Isso é muito interessante, Agha Selim! Um dos teus cubículos foi preparado para me servir de asilo?

- Sim e bem ao lado da cela do árabe. Já mandei espalhar algumas palhas no chão, pois o comandante não quer que recebas o mesmo tratamento recebido pelos ladrões recolhidos ao presídio, uma vez que és um Emir!

- Sou-lhe muito grato por essa consideração. Os meus companheiros serão também recolhidos à fortaleza?

- Também. Mas não recebi instruções especiais a respeito deles.

- Que diz a “Murta” de tudo isso?

- Está sentada na cozinha e chora que dá pena.

- Que bondosa! Mas tu me falaste de um Arnaute?

- Sim. Esteve em palácio antes da chegada do Makredsch e falou durante muito tempo com o Mutesselim... Depois fui chamado e interrogado.

- Sobre quê?

- O comandante queria saber se o Efêndi enxadrezado também se conserva mudo na sua residência.

- E que lhe respondeste?

- Disse-lhe a verdade. De fato não ouvi ainda aquele Efêndi pronunciar uma só sílaba.

- Então vamos! Quero saber o que de mim pretende o comandante.

- Senhor, é para eu levar-te preso, mas te estimo. Não preferirás fugir?

- Não, Agha! Não tenho motivos para recear ao comandante e menos ainda ao Makredsch. Mas peço-te levar além de mim, mais um companheiro à presença do teu chefe.

- Qual deles?

- O emissário que há pouco veio procurar-me.

- Vou chamá-lo. Ele está no pátio.

Enquanto isso fui à cozinha. A Mersinah estava sentada no chão e fazia uma cara tão triste que realmente me senti tocado.

- Oh! És tu Efêndi! - exclamou ela erguendo-se. - Apressa-te, apressa-te! Ordenei ao Agha que te deixe fujir.

- Aceita os meus agradecimentos por este teu gesto de benevolência, Mersinah! Contudo ficarei aqui!

- Mas vão encarcerar-te, Emir!

- Esperemos!

- Se o fizerem, Efêndi, chorarei até morrer e prepararei para ti a melhor sopa que há. Não passarás a mínima privação!

- Não terás o trabalho de cozinhar para mim, porque não vou ser encarcerado. Isto te asseguro!

- Emir, com estas palavras restituis-me a vida! Mas, não obstante, são capazes de prender-te de fato, e aí te tirarão tudo o que possuis. Não preferes deixar o teu dinheiro e todos os demais objetos de valor, sob a minha guarda? Porei tudo em lugar seguro e nada direi a ninguém!

- Acredito, anjo desta casa! Mas uma tal precaução é supérflua, de momento!

- Faze então o que melhor te aprouver! Vai e que Alá com os seus profetas te acompanhe e te resguarde!

Fomos. Ao atravessarmos a praça vi postados por trás dos portais das casas, os Arnautes de que o Agha me falara. Ao que se via, de fato a coisa se estava tornando séria. Também diante do palácio, no portal do mesmo e até na ante-câmara havia soldados de armas embaladas. Quase me tomei de cuidados!

O comandante não se achava só no seu gabinete. Os dois tenentes estavam na entrada e também o Agha não voltou, mas se abancou num tapete.

- Sallam Aaleikum! - saudei o comandante com a maior despreocupação possível, não obstante me achar dentro da cilada.

- Aaleikum! - respondeu o comandante, com certa reserva, ao mesmo tempo que me indicava um tapete, um pouco distante dele, para me sentar.

Fiz como não tivesse visto o sinal e abanquei-me a seu lado, lugar em que noutras audiências me sentara também.

- Mandei chamar-te mas não vieste logo - começou. - Onde estiveste todo este tempo, Efêndi?

- Fui dar um passeio a cavalo.

- Onde?

- Na cidade.

- Que pretendias fazer?

- Exercitar o meu cavalo. Deves saber que um animal de trato requer cuidados especiais.

- Quem foi contigo?

- O Bei Hadji Lindsay.

- Aquele que fêz a profissão de fé de conservar-se mudo?

- Aquele mesmo.

- Ouvi dizer que ele não cumpre lá muito rigorosamente tal voto.

- Ah! é?

- Sim, ele fala!

- Ah! é?

- E fala também contigo!

- Ah! é?

- Tenho certeza disso!

- Ah! é?

Aquele meu “Ah! é?” deixou o homem meio embaraçado.

- Mas tu deves também saber disso! - disse ele depois.

- Quem foi que te disse que o Bei Lindsay fala?

- Uma pessoa que o ouviu falar.

- E quem é esta pessoa?

- Um Arnaute chegado hoje a esta cidade, para apresentar-me queixa contra vocês todos.

- E que fizeste depois da visita do Arnaute?

- Mandei à tua procura.

- Para quê?

- A fim de interrogar-te.

- Allah illa Allah! A uma queixa apresentada por um Arnaute canalha mandas procurar-me, eu um Efêndi e Emir, para tratar-me da mesma forma como se trata a um biltre daqueles! Mutesselim, que Alá abençoe a tua sabedoria para que ela não fuja do teu cérebro!

- Efêndi, pede a Deus para que conserves tu a tua sabedoria, da qual tens também muita necessidade!

- Isto soa-me como uma ameaça!

- E tuas palavras como um insulto!

- Sim, mas somente depois de me haveres insultado! Atenta, Mutesselim: neste revólver há seis balas e neste outro a mesma quantidade. Dize-me o que tiveres a me dizer; mas fica sabendo que um Emir do Germanistão não é um Arnaute e nem se deixa comparar a essa escória de gente! Se o meu companheiro não cumpre rigorosamente o seu voto de fé, o que tem um Arnaute com isso?! Onde está esse patife?

- Acha-se a meu serviço.

- Desde quando?

- Já há muito tempo.

- Mutesselim, estás dizendo uma inverdade! Aquele Arnaute ontem não se achava ainda a teu serviço. Trata-se de um homem de cujas façanhas ainda te contarei outros pormenores. Se o Bei Hadji Lindsay fala, apesar de seu voto de fé, trata-se de uma questão a resolver com a sua consciência e ninguém possui o direito de se envolver com ele!

- Terias razão se fosse apenas isto o que eu sei dele!

- Que sabes mais?

- Ele é amigo dum homem de quem suspeito muito!

- Quem é este homem?

- Tu mesmo!

Fingi-me de espantado.

- Eu? Allah kehrim, Deus é grande, e também te beneficiará com a sua misericórdia!

- Falaste-me a respeito do Mutessarif, dizendo-te um grande amigo seu!

- E disse a verdade!

- Não disseste, não!

- Queeê? Chamas-me de mentiroso?! Neste caso não me conservarei aqui por mais tempo. Dar-te-ei oportunidade ainda de engulires esta ofensa!

Levantei-me e fiz como se pretendesse retirar-me.

- Alto lá! - bradou o comandante. - Não arredarás um pé daqui!

- Pretendes dar-me ordens?

- Lógico!

- Arrogas-te esse direito?

- Aqui estás debaixo de minha autoridade e se eu te ordenar que fiques, nada mais te restará do que obedecer-me sem titubear!

- E se eu não te obedecer?

- Obrigar-te-ei a isso! És meu prisioneiro!

Os dois tenentes levantaram-se. O mesmo fêz o Agha, mas mui vagarosamente e forçado, conforme se notava nele.

- Teu prisioneiro? Enlouqueceste, Mutesselim? Sallam!

Virei-me novamente para a porta.

- Segurem-no! - ordenou o comandante.

Os dois tenentes agarraram-me, um de cada lado. Parei-me e soltei uma casquinada estridente primeiro na cara de um e depois na do outro; depois voaram um após o outro pelo gabinete indo cair junto do Mutesselim.

Este nunca sentira uma reação tão violenta como aquela; estava habituado a que todos se curvassem profundamente diante dele e agora estava ali atarantado sem saber o que fazer.

- Afianço-te - reatou depois a palestra - que não és amigo do Mutessarif.

- Não leste então a sua carta?

- Chegaste até a combater contra ele!

- Onde?

- No Xeque Adi!

- Prova-o!

- Aqui há uma testemunha!

- Manda chamá-la!

- Vou satisfazer-te este desejo.

A um aceno do Mutesselim, o Agha deixou o gabinete.

Momentos depois voltava ele na companhia do... Makredsch de Mossul. Este não se dignou a me dirigir um só olhar. Passou por mim diretamente para junto do comandante, abancou-se no mesmo lugar onde antes eu estivera sentado e agarrou um dos canudos do cachimbo que ali se achava, passando a fumar.

- É este o homem de que me falaste, Efêndi? - perguntou-lhe o comandante.

O homem lançou-me um olhar de desprezo e respondeu:

- É este mesmo!

- Estás ouvindo? - perguntou-me o comandante enérgico. - O Makredsch de Mossul, que deves conhecer, é testemunha ocular de que combateste contra o Mutessarif.

- Ele é um refinado mentiroso!

A essas palavras, o juiz superior olhou-me de cheio.

- Verme! - rugiu.

- Não tardarás em conhecer melhor este verme! - retruquei-lhe. - Repito: és um mentiroso, pois não me viste puxar armas contra as tropas do Mutessarif!

- Outros viram.

__ Mas não tu! E, no entanto o comandante disse que pretendes ter visto, pois declarou-me que eras testemunhas ocular de minha atitude! Cita-me as pessoas que me viram!

- Os Topdschs (1) nos contaram tudo!

- Pois mentiram também! Não lutei contra eles, não houve o menor derramamento de sangue, pois se renderam com os canhões sem oporem a menor resistência. E depois quando estive cercado dentro do vale Xeque Adi não cansei de aconselhar indulgência e humanidade ao Bei Ali, de modo que a mim é que devem não terem sido todos esmagados na esplanada do vale. E é dessa minha atitude que pretendes chegar à conclusão de que sou inimigo do Mutessarif?

- Assaltaste a bateria e tomaste-lhe os canhões!

- Neste ponto, concordo prazerosamente.

- Mas responderás por este crime, perante a justiça de Mossul!

- Oh!

- Oh! não! O Mutesselim efetuará imediatamente a tua prisão e ce remeterá para

____________

(1) Artilheiros.

 

Mossul, a ti e a todos os teus companheiros. Há só um meio de vocês se salvarem.

- Qual é?

Ele fêz um sinal e o Agha com os dois tenentes se retiraram.

- És um Emir de Frankistão, visto que os nemsis são frankes - começou o Makredsch. - Sei que todos vocês se acham debaixo da proteção do cônsul de seus países e por isso não podemos matá-los. Todavia, praticaste um crime punível com a morte. Temos que te transportar para Mossul e de lá para Stambul, onde, na certa, te será aplicada à pena que mereces.

Fêz uma pausa. Parecia não lhe ser fácil dar à palestra o rumo desejado.

- Entretanto estiveste debaixo da proteção do Mutessarif e também o Mutesselim te dispensou uma acolhida cordial. Ambos não querem que te aguarde uma tão triste sorte!

- Que Alá pense neles nos seus momentos derradeiros!

- Bem! Sendo assim, é possível que desistamos do nosso propósito em efetuar a tua prisão, no caso de...

- No caso de?

- No caso de dizeres qual o valor que tem a vida de um Emir de Germanistão.

- Não tem valor algum!

- Não? É caçoada!

- Estou falando seriamente. A vida de um nemsi não vale coisa alguma.

- Em que sentido?

- Porque Alá a todo momento pode chamar um Emir para junto de si.

- Tens razão. A vida de um homem está permanentemente nas mãos de Alá. Mas trata-se de um bem que se deve defender e tudo fazer por conservar.

- Ao que parece, não és um bom muçulmano, porque senão saberias que o caminho do homem acha-se assinalado no livro.

- E mesmo assim um homem pode jogar fora a sua vida, desde que não saiba seguir o texto do livro. Não achas?

- Está bem, Makredsch. Em quanto estimas tu a tua própria vida?

- No mínimo dez mil piastras.

- Neste caso a vida de um Nemtsche vale dez mil vezes mais, isto é, cem milhões de piastras. Como se explica estar a vida de um turco tão depreciada?

O homem olhava-me admirado.

- És um Emir tão rico?

- Claro, do contrário não possuiria eu uma vida tão cara.

- Neste caso, admito que aqui em Amadijah avaliarás tua vida em vinte mil piastras.

- Naturalmente.

- E pelo mesmo valor a do Bei Hadji Lindsay.

- Concordo.

- E dez mil a do terceiro.

- Não é demasiado.

- E a do teu criado?

- É um árabe, não há dúvida, mas um homem valente e fiel, cuja vida vale tanto como a dos outros.

- Então achas que a dele vale também dez mil piastras?

- Acho, sim.

- Já somaste essas importâncias?

- Sim, importam em sessenta mil piastras. Não é isso?

- Sim. E tens toda essa importância contigo?

- Somos muito ricos, Efêndi.

- E quando desejam pagar-me?

- Nunca.

Era interessante de ver a cara com que os dois turcos me contemplaram e depois se entreolharam. A seguir o Makredsch inquiriu:

- Que pretendes dizer com isso, Efêndi?

- Que provenho de um país no qual reina a justiça. Lá diante do juiz o mendigo tem o mesmo valor que o rei. Se o Padixá dos Nemsis viola as leis é castigado como qualquer outro cidadão. No meu país ninguém possui o direito de comprar a sua própria vida por mais dinheiro que tenha, pois lá não há juizes canalhas. Os Osmanlis, porém, não possuem outra lei que não seja a sua bolsa. Daí a razão por que traficam com a Justiça. Não me é possível comprar a minha vida, desde que eu mereça perdê-la por algum crime infamante que haja cometido.

- Neste caso a perderás!

- Não creio. Um nemsi não mercadeja a sua vida, mas sabe defendê-la!

- Efêndi, não poderás defender-te.

- Por quê?

- A tua culpa está mais do que comprovada e além disso tu próprio a confessaste.

- Não é verdade. Não confessei haver praticado crime algum. Apenas disse que, de fato, tomei os canhões de vocês. E este procedimento não merece castigo.

- Tu é que pensas! Negas-te, pois a aceitar a nossa proposta toda bondade e toda complacência?

- Dispenso bondades e complacências!!

- Neste caso não temos outro remédio senão prender-te.

- Pois experimentem!

O comandante dirigiu-me um sermão procurando fazer-me aceitar o suborno que me era oferecido, mas como não aceitei a sua arenga, ele bateu palmas e apareceram novamente os três oficiais.

- Levem-no daqui! - ordenou-lhes. E dirigindo-se a mim: - Espero, Efêndi, que não te recusarás a acompanhá-los. Lá fora há soldados suficientes para tornar improfícua qualquer resistência de tua parte. Enquanto aqui estiveres preso serás bem tratado e...

- Cala-te, Mutesselim! - interrompi-o. - Gostaria de ver o turco dominar-me! Para imobilizar vocês cinco basta apenas um nemtsch e os teus soldados atacados de febre fugirão ao dar com os olhos em mim. Fica certo disso! Sei muito bem que, se fosse preso, seria tratado do melhor modo possível, pois isso seria de teu próprio interesse. Para Mossul não serei transportado visto que isso de nada adiantaria ao Makredsch. Este deseja apenas que eu resgate a minha liberdade, porque necessita de dinheiro para atravessar as fronteiras.

- Atravessar as fronteiras? - perguntou Mutesselim. - Como devo compreender essas tuas palavras?

- Pergunta-o ao próprio Makredsch!

 

A PRISÃO DO MAKREDSCH

Ele olhou para o Makredsch, que subitamente mudara de côr.

- Que sentido têm as suas palavras? - perguntou, por fim, a este.

- Não o compreendo! - respondeu o ex-magistrado turco.

- Bem que ele me compreende! - revidei. - Mutesselim, tu me insultaste; quiseste prender-me. Fizeste-me uma proposta que te acarretaria graves conseqüências no caso de eu divulgá-la, ou fazê-la chegar ao conhecimento de teus superiores. Vocês dois fizeram-me ameaças e agora eu é que lançarei mão de suas armas para mostrar-lhes os limites de sua autoridade. Sabes quem é este homem?

- O Makredsch de Mossul.

- Estás enganado. Já não o é mais, pois foi destituído de suas funções.

- Destituído? - perguntou o comandante assustado.

- Canalha! - retrucou o Makredsch. - Eu te estrangulo!

- Destituído?! - exclamou novamente o comandante, interrogativamente e um tanto espantado.

- Sim, des-ti-tu-ído! Eu não te disse, Agha Selim, que hoje eu te daria uma ordem a que obedecerias sem vacilar? Pois agora recebe-a: Prende esse que se diz Makredsch de Mossul e recolhe-o à cela que fora destinada a mim! Depois será ele transportado para Mossul.

O bom Agha primeiramente fitou-me estarrecido e depois olhou para o comandante e o Makredsch. Mas naturalmente que não moveu um só pé, para dar cumprimento à minha determinação.

- Este homem enlouqueceu! - exclamou o Makredsch, levantando-se.

- Tu é que enlouqueceste, pois do contrário não te aventurarias em aparecer nesta cidade. Por que não passaste as fronteiras salvadoras, em linha reta e ousaste atravessar Mungayschi? Como vês, sei de tudo. Aqui, Mutesselim, eis a prova do direito que me assiste em ordenar a prisão deste sujeito!

Entreguei-lhe a correspondência que fora dirigida ao Bei Ali. O comandante examinou, em primeiro lugar, as assinaturas.

- Do Kasi Askari de Anatólia?

- Exatamente. Ele se acha em Mossul e determina o aprisionamento desse homem e a sua remessa para aquela cidade. Lê!

- Tens razão! - exclamou, depois, admirado. - Mas que é feito do Mutessarif?

- Foi também destituído. Lê a outra carta!

- Allah kerihm, Graças a Deus! Houve grandes acontecimentos!

- Pois toma nota deles! O Mutessarif foi destituído, bem como o Makredsch. Também queres ser destituído?

- Senhor, tu és um enviado secreto do Kasi Askari ou talvez até do Padixá!

- Quem eu sou ou deixo de ser não vem ao caso; mas vês que estou ao par de tudo e espero que saberás cumprir com o teu dever!

- Efêndi, tens razão, saberei de fato cumpri-lo! - Makredsch, não me resta outra cousa; aqui está escrito, preto no branco, e terei que efetuar a tua prisão!

- Efetua, pois, se és capaz! - retrucou este.

Um punhal reluziu em suas mãos e como um relâmpago ele atravessou o gabinete, passando por mim como uma bala em direção à porta de saída. Perseguimo-lo e chegamos à porta ainda em tempo de vê-lo ser arrojado ao solo. Selek se encarregara de embargar-lhe os passos, e, derribando-o, arrancara-lhe das mãos o punhal. Em seguida foi desarmado e conduzido ao gabinete.

- Quem é este homem? - perguntou o comandante apontando para Selek.

- É o emissário que o Bei Ali, de Baadri, enviou-me. Ele voltará para lá e tu lhe permitirás que acompanhe a escolta que conduz o prisioneiro. Deste modo poderemos estar seguros de que o Makredsch não fugiu pelo caminho. Além deste, a escolta conduzirá outro preso.

- Qual, Senhor?

- Manda buscar o Arnaute que apresentou a queixa contra mim!

- Tragam-no! - ordenou o Mutesselim aos seus comandados.

Um dos tenentes saiu voltando em seguida na companhia do Arnaute, que estava longe de supor haverem as coisas tomado um rumo contrário a ele.

- Pergunta-lhe, agora, onde estão as suas armas? - determinei.

- Onde as tens?

- Foram-me tomadas.

- Onde?

- Enquanto eu dormia.

- Ele está mentindo, Mutesselim! Este homem fora posto à disposição do Bei Hadji Lindsay, pelo Mutessarif; depois atirou contra mim, fugindo em seguida. Em nossa viagem para aqui, emboscando-se na mata, alvejou-me com dois tiros, que felizmente erraram o alvo. Meu galgo o segurou, mas fui condescendente com ele, permitindo que se escapasse pela segunda vez. Por esta ocasião, tiramos-lhe as armas que estão ainda em poder do meu Khawass. Queres que mande chamar testemunhas de que estou a dizer a verdade?

- Senhor, creio nas tuas palavras! - Prendam esse cão e recolham-no ao cubículo mais seguro e infeto que houver! - ordenou ao Agha.

- Senhor, ordenas que eu leve ao mesmo tempo o Makredsch? - perguntou Agha.

- Leva-o!

- Mutesselim, antes disso manda amarrá-lo! Tentou fugir a pouco e repetirá a tentativa.

- Amarrem-no!

Ambos foram transportados para a fortaleza e eu fiquei sozinho com o comandante. Este se achava tão agitado em virtude dos últimos acontecimentos, que se deixou cair extenuado sobre o tapete.

- Quem imaginaria isso! - disse ofegante.

- Tu, claro que não, Mutesselim!

- Perdão, Senhor! Eu ignorava todos os acontecimentos.

- Certamente que o Arnaute se encontrou antes com o Makredsch e com ele combinou tudo, do contrário não se arriscaria a vir cá apresentar-te queixa contra mim, que tinha motivos para mandar puni-lo.

- Aquele não alvejará mais ninguém! Permite que eu te ofereça um cachimbo!

Depois de acendermos os nossos Tscbibuks o comandante disse em tom quase desenxabido:

- Emir, pensas que eu falei sério?

- Quando?

- Quando te exigi dinheiro pela tua soltura.

- Claro que falaste sério!

- Senhor, estás enganado! Cingi-me à vontade do Makredsch, mas depois te teria devolvido a parte que me coubesse.

- Mas permitirias que eu fugisse?

- Sim. Como vês, sou bem intencionado contigo.

- Mas não te seria permitido desde que a queixa contra mim fosse fundamentada.

- Pretendes lembrar-te daqui por diante desse meu ato?

- Não, desde que, daqui por diante, teu modo de proceder me leve a esquecê-lo!

- Jamais hás de lembrar-te disso, Emir. Esquecer-te-ás da mesma forma como te esqueceste de outra coisa!

- De quê?

- Da tisana.

- É verdade, Mutesselim, me esqueci daquela promessa. Mas a receberás ainda hoje.

Nesse instante entrou um dos criados.

- Senhor, lá fora está um Basch Tscbausch (1) que me pede para anunciá-lo.

- Que quer ele?

- Vem de Mossul e se diz portador de uma mensagem importante.

- Manda-o entrar!

O oficial entrou no gabinete e entregou uma correspondência selada com o grande selo oficial. Reconheci logo ser o timbre do Kasi Askati de Anatólia. O comandante rompeu o selo, abriu a correspondência e passou a lê-la. Depois mandou que o emissário voltasse no dia seguinte para buscar a resposta.

- Senhor, sabes de quem é esta correspondência? - perguntou-me o comandante depois que o soldado se retirou.

- Do juiz superior de Anatólia.

- Exatamente. Comunica-me ele a destituição do Mutessarif e do Makredsch. Ordena-me que o prenda assim que ele aparecer por aqui, e o remeta para Mossul. Vou mandá-lo amanhã por intermédio deste Basch Tschausch. Queres que na minha correspondência mande notícias suas?

- Não é necessário. Eu mesmo vou escrever-lhe. Mas junto com aquele oficial manda também uma escolta bem reforçada.

- Já vou providenciar sobre esse ponto, tanto mais que com o Makredsch seguirá outro prisioneiro importante.

Assustei-me.

- Que prisioneiro?

- O árabe. Assim ordena o Kasi Askari de Anatólia; diz ele que o filho do Xeque deve ser enviado como refém para Stambul.

- Quando partirá a escolta?

- Amanhã cedo. Vou já fazer a correspondência.

- Neste caso não quero estorvar-te.

- Oh! Efêndi, a tua presença me é agradabilíssima!

- Sim e a tua a mim também, mas o teu tempo é precioso e não devo tomá-lo.

- Mas amanhã cedo virás visitar-me?

- Talvez.

- Gostaria que estivesses presente, por ocasião da partida da escolta, para veres como executo rigorosamente as ordens que me são transmitidas.

- Neste caso, virei, Mutesselim, Sallam!

- Sallam! Que Alá seja teu guia!

Quando cheguei em casa uma voz entusiasta me acolheu:

- Hamdullilah, Efêndi, ainda vives e estás livre!

Era a “Murta”. Ela pegou de minhas mãos e respirou aliviada.

________________

(1) Sargento-mor.

 

- És um grande herói; o teu criado e o emissário me disseram. Se te prendessem tu sozinho derrubarias todos os que estivessem no palácio e também o Agha.

- Este não, mas todos os demais! - respondi divertindo-me.

- És igual ao Kelad, o forte. Tuas barbas estão para a direita e para a esquerda como as barbas de uma pantera e os teus braços são como as pernas de um elefante.

Aquilo tudo, em sentido figurado, naturalmente. Oh! “Murta”, que atentado ao ornamento louro de minhas faces e à simetria de meus braços e pernas! Tive que ser também cortês:

- A tua boca fala como as estrofes de um poeta, Mersinah, e dos teus lábios eflui mel; tua palavra faz bem como o emplastro sobre uma ferida e o som argentino de tua voz soa de modo a ninguém dele jamais se esquecer! Aqui tens cinco piastras para comprares crayon para tuas pálpebras e esmalte para tuas rosadas unhas. O meu coração deseja alegrar-se contigo para que o espírito se me permaneça jovem e meus olhos se deliciem com a estética do teu passo e andar.

- Senhor, és mais valente que Ali, mais sábio que Bekr, mais forte que Simsah (1) e mais belo que Huseiin! Ordena o que devo cozinhar, assar ou torrar para tu comeres! Faço tudo o que exigires, pois contigo raiou o sol da alegria no portal de minha casa!

- Tua bondade toca-me o coração, oh! Mersinah; não sei como correspondê-la. Mas não tenho fome e nem sede, quando vejo o brilho dos teus olhos, a côr sadia de tuas faces e a beleza de tuas níveas mãozinhas. Está o Agha Selim?

- Está. Ele contou-me tudo. Os teus inimigos foram derrotados. Sobe e consola os teus que se achavam inquietos pela tua sorte.

Subi.

- Afinal voltou! - exclamou o inglês. - Grandes apreensões! Quis correr em seu socorro! Felizmente já está aí!

- Estiveste em perigo? - perguntou-me Moamé

- Não muito. Apenas passageiramente. Já sabes que o Mutessarif foi destituído?

- O de Mossul?

- Sim e o Makredsch também.

- Por isso é que Selek veio?

- Exatamente. Ele não te disse nada de tarde, quando saímos a cavalo?

- Não. Conservou-se sempre reservado e silencioso. Neste caso, Amad será posto em liberdade, pois o Mutessarif é que o conservava preso!

- Tive igualmente esta esperança, mas infelizmente a sua situação agravou-se mais ainda. O Grão Senhor aprova a conduta dos turcos contra vocês e o juiz superior de Anatólia ordenou que levassem teu filho como refém para Stambul.

- Allah kerihm! Quando vai ser ele transportado?

- Amanhã cedo.

- Assaltaremos a escolta no caminho!

- Enquanto restar-nos esperanças de libertá-lo por meio de ardis, não deve ser derramado inutilmente sangue humano.

- Mas só dispomos do tempo de uma noite.

- E é o quanto basta para fazermos o que desejamos.

E dirigindo-me ao inglês:

- Sir, preciso de vinho para o Mutesselim.

- Merece vinho aquele sujeito? Que beba água! Café, chá de tílias e soro de manteiga!

- Mas foi ele que me pediu vinho!

- Maroto! Não deve tomá-lo! É maometano!

- Os muçulmanos gostam tanto como nós de tomar vinho. Acho aconselhável conquistar-lhe as boas graças enquanto possamos precisar delas.

- Está bem! Vai ganhar vinho! Quanto?

- Uma dúzia. Entro eu com a metade e o senhor com a outra metade da importância.

- Psiu! Não compro meio vinho! Aqui tem todo o dinheiro!

Alcançou-me a bolsa sem se preocupar com a quantia de que eu lançaria mão. Ele era um gentilhomem e eu um pobre diabo.

- Como é? - perguntou. - Salvaremos Amad?

- Salvaremos.

- Hoje?

- Exatamente.

- Como?

- Vou tomar vinho junto com o Agha Selim e procurarei...

- Ele também toma vinho?

- Apaixonadamente.

- Bons muçulmanos! Merecem chibata!

- Mas exatamente essa sua predileção pelo vinho nos trará grandes, vantagens. Tomará até ficar embriagado e depois tirar-lhe-ei a chave do presídio. Soltarei então o árabe e o trarei aqui para o aposento do seu pai, onde mudará de roupa. Feito isso, Halef o conduzirá à “vila” que o senhor ajudou a construir para ele.

- Well! Bravo! Qual a minha atuação nessa aventura?

- Primeiramente estar atento e cuidar para que não sejamos pilhados. Quando o trouxer, imitarei a voz do corvo que é despertado do sono. Halef descerá em seguida, a fim de abrir a porta e desviar a atenção da governanta na cozinha. O senhor com Moamé virão até a escada e receberão o presidiário, que mudará de roupa, esperando depois até minha volta.

- E depois o senhor sairá novamente?

- Sim, irei ter com Agha Selim, para repor-lhe a chave no cinturão, a fim de que não recaia suspeita sobre nós.

- Tarefa dificílima a sua! E se fôr pego em flagrante?

- Possuo um punho e se isso não bastar conduzo também armas. Por enquanto, porém, vamos jantar todos juntos!

 

APLICANDO NOVAMENTE A “TISANA”

Durante o jantar ministrei todas as instruções a Moamé. Halef voltou com o vinho, do qual fêz um pacote.

- Leva-o agora ao Mutesselim! - ordenei-lhe.

- Mas pretende este bebê-lo? - perguntou o meu criado surpreendido.

- Ele dará a aplicação necessária. Entrega-lhe o pacote, dizendo que é o remédio que lhe mando. E ouve: quando eu sair acompanhado do Agha Selim, tu nos seguirás secretamente e anotarás a casa onde entrarmos. E em qualquer caso que seja necessária a minha presença, virás chamar-me.

- Mas em que compartimento daquela casa poderei encontrar-te?

- Depois de atravessares o batente, caminha oito passos e em seguida entra pela porta à direita, que dá para uma sala onde me encontrarei. Se o taverneiro, que é um judeu, quiser impedir-te de entrar, dize-lhe que andas à procura do Emir forasteiro, aquele que toma vinho em cântaro de barro. Compreendeste?

Ele saiu com o pacote de vinho debaixo do braço.

Moamé Emin estava num estado nervoso deplorável. Nem naquela ocasião em que tivera que aprisionar os seus inimigos no vale dos Degraus, se achava ele numa tal depressão nervosa. Cingira o cinturão e nele colocara todas as suas armas; pusera também nova carga na espingarda. Não podia rir-me dele. O coração de pai é uma coisa santa; eu também tinha um pai na pátria distante e saudosa, um pai que muitos cuidados e aflição sofrerá por minha causa; portanto eu compreendia o procedimento do velho árabe.

Finalmente voltou o Agha Selim da conferência que tivera com o governador. Ele tomou na cozinha o seu jantar, e depois, sorrateiramente, nos dirigimos para a taverna do judeu. O comandante do forte havia na véspera conhecido sobejamente os efeitos violentos daquele vinho e agora o tomava com bastante comedimento. Ingeria-o a pequenos goles e muito vagarosamente.

Já fazia bem três quartos de hora que estávamos tomando vinho e este ainda não produzira o menor efeito sobre o espírito do meu conviva; Agha tornara-se apenas mais silencioso e, pensativo, ficou a olhar para frente, no ângulo da sala onde nos abancáramos num tapete de cortiça. Já me dispunha a fazê-lo tomar o resto do vinho e encomendar mais dois cântaros, quando bateram à porta.

- Quem é? - perguntou o Agha.

- Deve ser o meu criado Halef.

- Sabe ele que nos achamos aqui?

- Sabe.

- Efêndi, que fôste a fazer!

- Mas ele ignora o que estamos fazendo.

- Não o deixemos entrar!

Foi bom ter dado aquelas instruções a Halef! A sua vinda era uma prova de que havia ocorrido algo de extraordinário. Abri a porta e saí para a rua.

- Halef!

- Sídi, és tu?

- Sou eu mesmo. Que sucedeu?

- O Mutesselim chegou.

- Isto é grave, pois poderá estragar todo o nosso plano. Já iremos. Fica permanentemente postado diante da porta do meu quarto para que eu te possa chamar no caso de necessidade!

Voltei para a sala reservada.

- Agha, foi uma sorte haver dito ao Hadji o local em que nos achávamos. O Mutesselim está em tua casa e te espera.

- Allah illa Allah! Vamos depressa, Efêndi! Que pretende ele?

- Halef não sabe.

- Deve ser algum assunto importante. Apressemo-nos! Deixamos o resto do vinho nos copos e nos cântaros e nos dirigimos a passos largos para casa.

Quando cheguei em casa, encontrei o Mutesselim sentado no lugar de honra do meu aposento e fumando numa das piteiras do meu Nargileh. Ao avistar-me teve a cortesia de levantar-se.

- Ah! Mutesselim, tu aqui no meu aposento! Que Alá te guie os passos e te torne agradável à presença ao meu lado!

No íntimo, porém, não sentia a satisfação que expressara com aquele jogo de frase, tão em uso nas terras levantinas.

- Emir, desculpa-me haver eu tomado a liberdade de subir aos teus aposentos! A governanta desta casa, a quem Alá deu uma cara como segunda não existe, convidou-me a vir para cá. Eu desejava falar com o Agha Selim.

- Neste caso, permite-me que eu saia. Deve ser assunto reservado, o que desejas tratar com ele.

Em vista dessas minhas palavras, ele estava obrigado a pedir que eu ficasse, se é que não desejasse cometer um atentado contra o espírito de educação turca.

- Fica, Emir, e tem a bondade de sentar-te. Também o Agha queira tomar lugar ao meu lado, pois o que desejo saber deste tu podes ouvir também, Efêndi.

Os cachimbos de reserva foram trazidos. Enquanto o acendíamos, observei meticulosamente a expressão fisionômica do Mutesselim. A luz vermelha da lanterna que iluminava o aposento não me permitia estudar-lhe bem a fisionomia, mas a sua voz tinha um timbre de quem não está com o equilíbrio das forças perfeito. A língua pesava-lhe um tanto e o olhar estava inseguro.

- Achas, Efêndi, que o Makredsch é um prisioneiro importante?

- Acho que sim.

- Sou do mesmo parecer. Por isso deixa-me apreensivo a idéia de que ele talvez consiga um meio de evadir-se.

- Mas está em lugar seguro!

- Não há dúvida, mas isto não me basta. Agha, esta noite eu não dormirei e virei umas duas ou três vezes à prisão a fim de verificar de visu se o homem, de fato, ainda está em sua cela.

- Senhor, deixa que eu me encarregue desse serviço de vigilância.

- Neste caso eu não poderei vê-lo, o que não me deixará conciliar o sono. Não, farei em pessoa o serviço de guarda na prisão! Dá-me a chave do presídio!

- Não vês, Senhor, que com isso me melindras?

- Não pretendo melindrar-te, mas quero estar tranqüilo. O Kasi Askari de Anatólia é muito severo. Receberei o “Cordão de Seda” (1), se o preso evadir-se.

Com aquela sua resolução, o nosso plano estava a periclitar! Não haveria um meio de remediar o mal? Eu me achava disposto a tomar uma decisão rápida: ou o vinho ou a violência! Enquanto o Agha apresentava ainda algumas objeções ao seu superior, eu saí para o corredor, onde se achava Halef.

- Traze-nos do melhor fumo; e toma este dinheiro, vai a casa onde há pouco me

encontraste e pede ao judeu daquele vinho de Tuerbedi Haidari, do qual há pouco estávamos bebendo.

__________________

(1) Nota do trad. - Demissão ou quiçá força; teimo mais ou menos equivalente ao nosso “Bilhete Azul” da época atual.

 

- Quanto de vinho?

- Um dos grandes cântaros, que contém dez menores. O judeu te emprestará o cântaro.

- É para eu trazer a bebida do Diabo ao aposento?

- Não. Deixa-a no teu quarto que lá irei buscá-lo. O Baschi Bozuk, porém, não deve saber de nada. Dá-lhe esta gorgeta. Ele que vá dar um passeio e pode demorar-se o tempo que quiser. Poderá procurar o corpo da guarda e se apresentar ao oficial com o qual viajará amanhã. Deste modo livrar-nos-emos dele.

Voltei ao quarto exatamente no instante em que o Agha entregava a chave da prisão ao Mutesselim. Este a colocou no cinturão de pano e disse-me:

- Sabes que o Makredsch tentou resistir à prisão?

- Sei. Primeiro tentou subornar o Agha e depois ameaçou-o de morte.

- Isso ele pagará!

- E, - acrescentou o Agha - quando o intimei a esvaziar os bolsos, não me obedeceu.

- Que traz ele nos bolsos?

- Dinheiro, muito dinheiro!

- Emir, a quem pertence agora aquele dinheiro? - perguntou-me o comandante em atitude de espreita.

- A ti compete apreendê-lo.

- Exatamente. Vamos já à prisão!

- Mutesselim, queres deixar-me? - perguntei-lhe. - Pretendes magoar-me?

- Sou tua visita, mas não teu hóspede!

- Não fui previamente avisado de que vinhas. Permite-me que te ofereça um cachimbo para fumares na minha companhia. É um fumo como raramente se encontra aqui.

Naquele instante entrava Halef trazendo o fumo. Era da qualidade do que fumava Mister David Lindsay. O comandante deveria gostar do fumo. Além disso, estava resolvido a não deixá-lo sair do meu quarto sem que fosse por minha vontade. Mas felizmente a coisa não chegou a vias de violências, visto que ele aceitou o cachimbo. Mas no decorrer da palestra, notei que os seus olhos dirigiam-se constantemente para a porta em ansiosa expectativa.

- Recebeste a tisana, Senhor?

- Recebi. Muito agradecido, Efêndi!

- A quantidade foi suficiente?

- Ainda não a contei.

- E nem provaste o remédio?

- Só um pouquinho.

- E que tal?

- Excelente. Mas ouvi dizer que os há mais doces do que aquele.

O bom Agha sabia muito bem do que se estava falando. Sorriu astuciosamente e dirigiu-me uns olhares faiscantes e provocadores.

- Sim, há tisanas muito mais doces do que aquela - respondi-lhe.

- São raras?

- Não.

- E produzem o mesmo efeito curativo?

- Melhor ainda. Assemelham-se ao leite que eflui da árvore do paraíso.

- E se encontra daquele remédio em Amadijah?

- Posso prepará-lo em toda parte e também em Amadijah.

- E quanto tempo levas até tê-lo pronto?

- Dez minutos. Se quiseres esperar, provarás a bebida do paraíso, que é servida a Maomé pelas Huris.

- Esperarei!

Os seus olhos brilhavam voluptuosamente e mais voluptuosamente ainda os do Agba. Deixei o quarto e aproveitei a ocasião para dirigir-me ao aposento de Maomé Emin.

- Emir, todo o nosso plano foi águas abaixo! - disse-me logo Haddedin.

- Como? Não, agora é que vai começar a sua execução que estou certo será plena de êxito.

- Mas não conseguirás apoderar-te da chave!

- Talvez nem venha a precisar dela. Aguarda os acontecimentos com paciência; é o melhor serviço que podes, de momento, prestar ao teu filho.

Lindsay chegou também ao quarto.

- Mandou buscar do meu fumo! Quem o saboreia?

- O comandante.

- Muito bem! Fuma do meu fumo, bebe do meu vinho! Esplêndido! Maroto!

- Por que não deveria ele saboreá-los?

- Que ficasse em casa. Veio atrapalhar o plano arquitetado!

- Estás enganado. Talvez que, em vez disso, ele o facilite até. Mandei comprar vinho!

- Mais ainda?

- Claro. E vinho persa. Derruba até um elefante. Doce como mel e forte como leão!

- Well! Também gosto de vinho persa!

- Já providenciei para que ao senhor seja também trazido algum vinho daquela qualidade. Vou deixar os dois oficiais alegres e depois verei o que se pode fazer.

Dirigi-me a seguir para a cozinha e mandei acender o fogo. Antes que este estivesse ardendo, voltou Halef, trazendo um enorme cântaro da perigosa bebida. Enchi uma panela e coloquei-a a ferver, deixando-a depois aos cuidados da Mersinah. Voltei depois para o aposento do inglês.

- Eis o néctar persa! Mas dê-me os copos. Estão com o senhor. Quando depois voltei para o meu quarto, os dois oficiais turcos dirigiram-me uns olhares cheios de expectativa.

- Eis a tisana, Mutesselim, prova-a fria e depois verás a diferença de paladar quando a tomares quente.

- Mas dize-me cá, Efêndi, isto é realmente remédio ou simples vinho?

- Esta bebida é a melhor tisana que conheço até hoje. Toma-a e depois me diz se ela não te alegra a alma!

O comandante provou e tornou a provar o vinho. Em sua fisionomia grave e cansada brilhou um raio de satisfação.

- Foi tu mesmo quem descobriu esse remédio?

- Não, mas o próprio Alá que dela dá a saber aos crentes de sua predileção.

- Então achas que Ele nos ama? Que somos prediletos seus?

- Naturalmente.

- Quanto a ti, eu já sabia que eras um favorito do Profeta. Tens mais dessa tisana?

- Tenho. Ei-la, esvazia o copo! Enchi-lhe novamente o copo.

Os seus olhos brilharam mais satisfeitos ainda do que há pouco.

- Efêndi, que é Ladakia, Djebeli e fumo de Schira comparado com este remédio! É mais delicioso do que o aroma do melhor café. Não me poderias fornecer a receita do seu preparo?

- Lembra-me depois, que a escreverei num papel para ti, antes de deixar Amadijah. Mas não faça cerimônias; aqui está o cântaro. Bebe a vontade! Eu tenho que voltar para a cozinha, a fim de preparar o outro remédio.

Premeditadamente, desci a escada pisando nas pontas dos pés para não fazer ruído e abri de repente a porta da cozinha. Realmente: Lá estava “Murta” diante da panela e com uma taça de porcelana turca tirava vinho da panela que fazia desaparecer de uma golada pela boca escancarada; depois proferiu um grunhido de satisfação.

- Cuidado, não queimes a língua, Mersinah! Assustada virou-se, deixando cair a taça no chão.

- Oh Sídi, era uma aeruemdschek (1) que caíra na panela e eu estive a pescá-la.

- E enguliste depois essa aranha?

- Não, Emir, mas apenas o pouco de vinho que lhe ficara no corpo.

- Dá-me aquela panelinha ali.

- Ei-la, Emir!

- Enche-a com essa bebida!

- Para quem?

- Para tu beberes depois.

- Que é isto, Emir?

- Um remédio, inventado por um Hekim persa, para rejuvenescer os velhos. Quem dele beber o suficiente alcançará a bem-aventurança e todo aquele que beber constantemente alcançará a vida eterna...

Ela agradeceu-me efusivamente e eu levei o resto do vinho fervido para o meu aposento. Os dois bebedores, apesar da sua diferença de postos, se haviam aproximado muito um do outro e pareciam entregues a uma palestra assaz agradável.

- Sabes, Efêndi, a respeito de que estivemos aqui a questionar? - perguntou-me o comandante.

- Não, pois não ouvi coisa alguma!

- Sobre qual dos sistemas o que mais tem sofrido, se o dele ou o meu. Quem tem razão?

- Vou resolver já o assunto: aquele no qual o medicamento fizer efeito mais rápido é justamente o que tem o sistema mais avariado!

- A tua sabedoria vai além de nossa compreensão. Que trazes nesta panela?

- É Itschki itschkilerin (2), que não se compara a qualquer outra!

- E queres que a provemos?

____________________

(1) Aranha.

(2) O néctar dos néctares.

 

- Se o desejares, encher-te-ei o copo.

- O meu também, Efêndi - pediu-me o Agha.

Era vinho puro fervido, sem mais preparados, o que estavam ingerindo, mas o faziam com uma sofreguidão de espantar. Ambos tomavam de um só gole. O comandante, perdendo a compostura militar, por diversas vezes limpava com a língua a barba do seu Agha de alguma gota de vinho extraviada pela floresta da mesma. A palestra dos dois, já nessa altura, era simplesmente a de dois insanos quando se encontram no mesmo cubículo dum hospício. O Mutesselim abraçava-me e reabraçava-me e o Agha conservava confiadamente o seu braço enlaçado na minha cintura.

De repente, Agha se levantou para buscar uma outra vela, pois a que ardia já estava terminando. Ergueu-se bem do solo, mas quando quis dar o primeiro passo tombou de pernas espalhadas, qual um principiante no esporte de patinação.

- Que tens, Agha? - perguntou-lhe o seu comandante.

- Oh! Senhor, parece que estou acometido de Baldyr tschekmisch. Creio que tenho que me sentar novamente.

- Senta-te! Vou socorrer-te.

- Conheces algum específico contra essa doença?

- E miraculoso até! Senta-te!

O Agha retomou o seu lugar, ao passo que o comandante ergueu-se um pouco e informou-se afavelmente:

- Em qual das pernas sentes convulsão?

- Na esquerda.

- Estende-me a perna!

O Agha estendeu-lhe a perna e o seu superior hierárquico começou a fazer-lhe massagens e a puxá-la com certa violência.

- O jazik! Ai! Senhor! Creio que é na esquerda!

- Estende-me então aquela!

O Agha cumpriu a ordem e era de ver a cena tragi-cômica: o Mutesselin, que para as mínimas coisas utilizava-se de criados e pagens, tratava com carinho e solicitude a perna do seu subordinado.

- Está bem! Cessou a convulsão! - declarou-lhe depois o Agha.

- Então levanta-te e experimenta caminhar!

O comandante da fortaleza levantou-se e fêz um esforço brutal para manter-se ereto, conseguindo-o, afinal. Mas caminhava indeciso. Parecia um filhote de pássaro que, pela primeira vez, exercitava as asas.

- Mas, caminha, homem! Espera, vou ajudar-te!

O Mutesselim quis levantar-se com sua habitual ligeireza, mas preferiu depois sentar-se novamente, do contrário teria perdido o equilíbrio do corpo. Depois apoiando-se no meu ombro levantou-se afinal. De pé, espalhou bem as pernas, a fim de evitar a queda. Olhou estarrecido para a luz.

- Emir, a tua vela está caindo!

- Mas ao que vejo ela se acha firme.

- Não, ela está caindo e o papel vermelho que lhe serve de quebra-luz está pegando fogo.

- Não vejo nada disso.

- Maschallah! Vejo-a cair e, no entanto ela continua sempre no mesmo lugar. Deves estar muito oscilante, Agha Sellim! Não cambaleie deste modo, homem, senão tombarás ao solo!

- Não estou cambaleando, não, Mutesselim!

- Como não, se estou vendo! Achas que sou cego?

- Tu é que estás cambaleando, Senhor!

- Eu? Agha, estou com muito receio do teu “sistema”. Os teus nervos te agitam dum lado para o outro e o aparelho digestivo te passou para a perna. Mexes com os braços e as pernas, como se estivesses a fazer um exercício de natação. Oh! Agha, este remédio foi excessivamente saboroso e forte para ti. Ele te arrojará ao solo!

- Senhor, enganas-te! O que atribuis a mim se dá exatamente contigo. Vejo que tuas pernas bailam e os teus braços saltitam. Tua cabeça anda a roda. Efêndi estás muito doente. Que Alá te valha para que não pereça todo o teu sistema sangüíneo!

Isto foi para o Mutesselim uma afirmativa ousada. Cerrou os punhos e ameaçou:

- Cuida-te, Agha Sellim! Aquele que afirmar não se achar em ordem o meu sistema, será chibateado ou encarcerado! Wallah! Onde coloquei a chave?

Remexeu no cinto e achou-a depois de alguma procura.

- Agha, formaliza-te e me acompanha! Vou passar uma revista na prisão. Emir, o teu remédio é realmente igual ao leite do paraíso; mas o diabo é que com ele te viraste o estômago, pois tentas sempre caminhar de cabeça para baixo. Permite que nos retiremos por um instante!

- Se vais sair com o propósito de passar em revista a prisão, não me cabe tolher-te no cumprimento do teu dever.

- Bem, então iremos! Aceita os nossos agradecimentos pela saborosa bebida que nos deste a provar. Irás breve preparar outra porção desse remédio?

- Prepararei, assim que tu quiseres.

- A quente é mais deliciosa do que a fria, mas o diabo é que ela penetra demasiadamente nos ossos da gente. Que Alá te proteja e te assegure uma boa noite!

Sairam e eu os segui. O comandante caminhava de braço dado com o Agha. Ao chegarem à escada pararam.

- Sellim Agha, desce tu, primeiro!

- Senhor, como teu subalterno, não me é isso permitido!

- Tolice! Bem sabes que sou desprendido e não me preocupo com essas coisas de disciplina quando se trata dum amigo!

O Agha experimentou a descida, colocando um pé após o outro, e com toda precaução, sobre o primeiro degrau da escada. O Mutesselim fazia o mesmo. Não descia com firmeza nas pernas, tanto mais que a escada lhe era desconhecida.

- Efêndi, estás ainda aí? - perguntou ele.

- Estou.

- Sabes que é dever de cortesia acompanhar a visita até a porta de saída?

- Sei perfeitamente.

- No entanto não me acompanhas!

- Então permite que o faça; está ainda em tempo!

 

A APREENSÃO “LEGAL” DE VALORES

Peguei-o pelo braço e o apoiei. Embaixo, defronte à porta, ele parou e tomou profunda inspiração.

- Emir, aquele Makredsch é, de certo modo, também um prisioneiro teu - disse-me.

- Se pensarmos bem, tens razão.

- Então te compete também verificar se ele não se evadiu da prisão!

- Neste caso te acompanharei.

- Então vem e me dá o braço!

- Tu tens dois braços, Efêndi, - ponderou-me o Agha. - Dá-me o outro!

Os dois homens dependuravam-se pesadamente em mim, mas a embriaguez não lhes tomara ainda completamente conta do espírito. Os passos eram indecisos, mas mesmo assim caminhamos ligeiro para a frente. As ruas estavam desertas. Não encontramos ninguém.

- Os teus Arnautes vão assustar-se com a minha chegada - disse o comandante ao Agha.

- Não só com a tua, mas também com a minha! - redarguiu o Agha batendo no peito.

- O árabe ainda se acha na cela?

- Senhor, achas que eu deixaria um homem daqueles fugir? - perguntou-lhe o Agha muito ofendido.

- Vou revistar a cela dele. Ele também conduzia dinheiro?

- Não.

- Quanto dinheiro achas que o Makredsch possui?

- Não sei.

- Ele terá que entregar tudo. Mas os teus Arnautes não devem estar presentes à revista que lhe vamos passar.

- Mandá-los-ei embora.

- E se eles se puserem à espreita?

- Eu os fecharei dentro de um dos aposentos.

- Bom. Mas o caso é que depois de nos retirarmos, eles serão muito capazes de falar com os prisioneiros.

- Não falarão, não, pois os conservarei trancafiados.

- Assim ficará bem. O dinheiro que tiver o Makredsch pertence à caixa do Mutesselim, que do mesmo dará uma boa propina ao seu Agha.

- Quanto me darás, Senhor?

- Não posso ainda dizer, pois primeiro preciso saber qual a quantia, que ele traz.

Chegamos à prisão.

- Abre-a, Agha Sellim!

- Senhor, tu estás de posse da chave.

- É verdade!

O comandante tirou a chave do cinto para abrir a porta. Experimentou por muito tempo, mas não encontrava o orifício da fechadura. Com esta já contava eu. Por isso declarei-lhe:

- Permite, Efêndi, que abra eu a porta, por ti!

Abri a porta, conduzi os dois homens para o interior do forte, e coloquei a chave na fechadura pelo lado de dentro.

- Entrem enquanto fecho a porta!

Eles saíram caminhando devagarinho pelo corredor e eu fingi que fechava a porta com a chave, mas não o fiz.

- Fechei novamente. Aqui tens a chave, Mutesselim!

Ele guardou-a no cinto. Nisso os Arnautes vieram ao nosso encontro, trazendo um lampião.

- Está tudo em ordem? - perguntou o Mutesselim com postura, soberba e autoritária.

- Está, Senhor.

- Não se evadiu ninguém?

- Não, Senhor.

- Nem o árabe?

- Nem este.

- Tampouco o Makredsch?

- Tampouco - respondeu o sargento.

- É uma sorte para vocês, cães! Se tivesse fugido algum prisioneiro, eu mandaria chibateá-los até morrerem. Vão já embora, para o alojamento! Agha Sellim, fecha-os lá.

- Emir, não queres encerrá-los?

- Por que não?

Gostei daquele convite. O Agha tomou do lampião e eu conduzi os Arnautes para o primeiro andar.

- Por que vamos ser encerrados, Senhor? - perguntou-me o sargento.

- O comandante vai interrogar alguns presos e ninguém deve estar presente.

Levei-os até o seu alojamento e depois fechei o mesmo com a trava. Em seguida voltei para o terraço. Como o comandante e o Agha se achassem nos fundos, a porta da frente estava às escuras. Aproximei-me sorrateiramente e abri-a, mas de modo que ficasse levemente encostada. Depois fui ligeiro procurar os dois oficiais.

- Onde está ele recolhido - ouvi o Mutesselim perguntar quando cheguei.

- Aqui.

- E onde está o Haddedihn? - perguntei antecedendo-me ao comandante, pois me interessava que a cela do meu protegido; fosse a primeira a ser aberta.

- Aqui embaixo, na segunda cela.

- Então abre-a!

O comandante concordou tacitamente com a minha ordem. Meneou a cabeça em sinal de assentimento e o Sellim abriu o cubículo.

O prisioneiro ouvira o ruído dos nossos passos e já se achava de pé próximo à porta.

O Mutesselim acercou-se dele.

- És o Amad, filho de Maomé Emin?

Não obteve resposta.

- Não podes falar?

Seguiu-se o mesmo silêncio.

- Cão, já te hão de abrir a boca. Amanhã serás transportado daqui!

Amad não pronunciara nem uma sílaba mas conservava os olhos fitos em mim, para não escapar-lhe o menor sinal de minha fisionomia. Com um leve franzir do sobrolho, signifiquei-lhe que estivesse alerta e em seguida o Agha fechou a cela.

Depois disso foram vistoriadas as demais celas. O Makredsch se achava recostado à parede da sua e nos dirigia um olhar cheio de expectativa.

- Então, Makredsch, que tal achas isso aqui? - perguntou-lhe o comandante, naturalmente ainda sob os efeitos do vinho.

- Quisera Alá que estivesses no meu lugar!

- Disso me defenderá o Profeta! O teu destino vai ser triste.

- Não tenho receio!

- Tentaste assassinar o Agha.

- Ele não merece outra coisa!

- Pretendeste suborná-lo.

- Ele é a encarnação perfeita da idiotice!

- Quiseste pagá-lo imediatamente!

- O que ele merecia era ser enforcado logo!

- Mas é possível que um dos teus propósitos seja concretizado - disse o comandante astutamente.

A sua fisionomia se iluminara com a expectativa de colher uma boa prêsa e também um pouco devido aos efeitos da bebedeira.

- Como? - perguntou o Makredsch mais animado. - Falas sério?

- Claro que sim.

- Queres encetar negociações comigo?

- Para esse fim é que viemos aqui.

- Que importância exiges?

- Quanto dinheiro tens contigo?

- Mutesselim, preciso de dinheiro para a viagem!

- Seremos razoáveis e não exigiremos todo o teu dinheiro.

- Bom, então comecemos as negociações. Mas não aqui na cela.

- Onde então?

- Num compartimento construído para habitação de gente e não paia habitação de ratos, como este.

- Então sobe!

- Neste caso, dá-me a mão.

- Agha, alcança tu a mão ao Makredsch! - ordenou o comandante que parecia não confiar muito no equilíbrio do seu corpo.

Com o Agha, porém, dava-se a mesma coisa, visto que ele tocou-me no ombro e pediu-me:

- Efêndi, faze-o por mim!

Para não demorar mais, alcancei a mão ao Makredsch e o tirei da cela, que era um verdadeiro buraco tosco e anti-higiênico como aliás todas as do presídio.

- Para onde deve ele ser conduzido? - perguntei.

- Para o corpo da guarda, - respondeu o comandante.

- Devo deixar a porta desta cela aberta ou...

- Encosta-a apenas! - acudiu o Mutesselim.

Eu pretendia ganhar tempo fechando a cela para que os oficiais me deixassem só por um instante; falhou, porém, esse meu plano. Agora eu tinha que esperar por outra ocasião que surgisse no decorrer das negociações.

 

LIBERTANDO O JOVEM AMAD

A frente ia o Makredsch, atrás dele o comandante trazendo o lampião, depois o Agha e por fim eu. Chegados ao corpo da guarda, bastou um leve encontrão meu no comandante e um ligeiro empurrão no seu braço para cair o lampião.

- Agha, que fazes? - exclamou este.

- Não fui eu, Senhor!

- Estás a me empurrar! Agora está escuro. Arranja outro lampião.

- Vou pedir um ao Arnaute - disse eu abandonando o alojamento. Tranquei por fora a porta do corpo da guarda e corri para a cela do meu protegido.

- Amad el Ghandur!

- Senhor, és tu?

- Chega depressa à porta, sobe depressa!

Com meu auxílio ele pulou ligeiro da cela e eu fechei novamente a porta.

- Não fales, mas apressa-te - sussurrei-lhe.

Agarrei-o e com ele saí correndo porta afora, saindo pelo portão, desguarnecido como sempre.

O ar fresco açoitava-o. O homem estava num lamentável estado de debilidade física.

Depois coloquei-o no chão e saí correndo. Fiz um pequeno alto próximo à casa do Agha, onde o presidiário tomou fôlego.

- Lá é minha residência onde encontrarás teu pai na entrada. Proferi o pio do corvo e notei imediatamente uma luz à porta de entrada da casa, verificando também que ela fora aberta.

Continuamos correndo e na entrada já se achava Halef à nossa espera.

- Entrem depressa!

Em seguida, voltei correndo para a fortaleza, que alcancei dois minutos depois de a havermos deixado. Subi como uma flecha a escada e munindo-me de um lampião no alojamento dos Arnautes, voltei para o corpo da guarda.

- Demoraste muito, Efêndi - observou-me o comandante.

- Os guardas me detiveram para saber por que estavam fechados no compartimento.

- Deverias ter-lhes dado bofetadas ao invés de resposta! E por que nos fechou aqui dentro?

- Senhor, lembra-te de que havia um prisioneiro na tua companhia!

- Ah! És previdente, Emir! Fizeste muito bem! Põe o lampião ali no canto e demos início às negociações!

Era óbvio que a intenção do comandante não era soltar o prisioneiro mesmo depois deste efetuar o pagamento de certa soma em moeda corrente. Pretendia somente apoderar-se do dinheiro por meio de ardil, em virtude de temer a resistência do Makredsch. Mas aquele ardil constituía uma fraude, um infamante deslize administrativo, ao mesmo tempo que uma formidável imprecaução. Ambos os oficiais se achavam alcoolizados; o Makredsch facilmente os teria subjugado, lhes tirado a chave, evadindo-se calmamente da prisão.

- Dize-me antes qual o preço que impões para o meu resgate!

- Só poderei fixar um quantum depois de saber se estás ou não em condições de pagá-lo!

- Mas faze ao menos uma oferta!

- Podes pagar-me três mil piastras?

- É demasiadamente alto o preço, disse o Makredsch esquivo.

- Então me pagarás quatro mil!

- Senhor! Em vez de diminuires, aumentas!

- E tu ao invés de aumentares, diminuis! Um Mutesselim não deve permitir que se regateie com ele. E se não concordares já, aumentarei ainda mais!

- Não disponho dessa quantia. Duas mil piastras ser-me-ia possível dar-te.

- És sovina, mas não demorarás em te tornar mão aberta. Exijo agora cinco mil!

- Senhor, dar-te-ei três mil.

- Cinco, já te disse!

O Makredsch fixava os olhos furiosos no comandante e o receio de perder o dinheiro que extorquira ao país lhe estava estampado na fronte. Mas a ânsia da liberdade venceu a ganância do dinheiro.

- Prometes soltar-me, assim que eu te pagar essa quantia?

- Prometo!

- Jura pelo Profeta!

- Juro-o!

O comandante pronunciou estas últimas palavras irrefletidamente, perturbado pelo álcool.

- Eis o dinheiro! Conta-o - disse o Makredsch.

Tirou do bolso um envólucro de tecido de seda e passou a contar o dinheiro, após o que deu-o ao Mutesselim.

Depois deste haver contado também, perguntou-lhe o Makredsch:

- Está certo?

- São kaimes (1) no valor de cinco mil piastras. Mas deves saber que este dinheiro não possui mais o seu valor nominal. A libra esterlina custa hoje quarenta e uma kaimes ao invés de cento e dez, portanto tens que me dar mais duas mil piastras!

- Senhor, lembra-te de que os kaimes rendem seis por cento de juro!

- Isso era antigamente, mas apenas com uma certa parte da emissão. Hoje, porém, o Gão Senhor já não paga mais juro algum por ele. Anda, depressa, entrega-me mais duas mil piastras!

- És injusto!

- Bom. Volta já para o buraco de onde te retiramos!

O Makredsch suava em bagas.

- Mas a diferença não atinge a duas mil piastras.

- Quanto então?

- Mil trezentas e sessenta e três.

- Dá no mesmo. O que eu digo está dito! Terás que pagar-me mais duas mil

_________

(1) Uma espécie de papel-moeda.

 

piastras!

- Senhor, és mais feroz do que um tigre!

- E tu morrerás ainda de avareza!

Com a raiva estampada no semblante, o Makredsch contou a importância exigida.

- Toma, leva-a! - disse depois tomando profunda inspiração.

O Mutesselim conferiu a soma, dobrou as notas e as pôs no bolso.

- Está certo - disse este. - Dá graças a Alá por te haver inspirado a atender a minha exigência, do contrário terias que dar-me muito mais ainda.

- Bem, agora deixa-me sair - disse o Makredsch pondo o embrulho novamente no bolso.

O comandante contemplou-o com ar teatral e retrucou, fingindo-se pasmado:

- Deixar-te sair?! Sim, mas só depois de haveres feito o pagamento ajustado.

- Já fiz neste instante!

- A minha parte sim, mas não a deste Agha dos Arnautes!

- Allah illa Allah! - bradou o prisioneiro encolerizado. - Tu exigiste só aquelas cinco mil piastras. Portanto nada mais te devo.

- Alá te obscureceu a razão. Por que não me perguntaste para quem eram destinadas aquelas cinco mil piastras? Eram para mim. O Agha ainda tem a receber de ti a sua parte.

- Quanto?

- Importância igual à recebida por mim.

- Senhor, é Satanaz que fala pelos teus lábios.

- Pois paga, que Satanaz se calará!

- Não pagarei mais coisa alguma!

- Então serás novamente guardado naquele buraco!

- Oh! Maomé, oh! Califas, vós ouvistes-lhe o juramento! O Scheitan está metido no seu corpo e o fará perecer!

- O querosene deste lampião está terminando. Como é, pagas ou não pagas?

- Bom, dou mil piastras ao Agha!

- Dá-lhe cinco mil! Deixa de regatear, do contrário subirei o preço!

- Não tenho tal quantia.

- Tens sim! Vi que tens ainda mais do que isso.

- Neste caso, darei...

- Queres que eu exija seis mil?

- És um tirano, sim, és o diabo personificado!

- Bom, Makredsch, estamos entendidos!

Dito isso o comandante ergueu-se, mas com o olho no Makredsch.

- Bem - disse o prisioneiro. - Pagarei o que pedes.

A liberdade tivera afinal para ele mais valor do que o dinheiro. Passou novamente a contar o dinheiro enquanto o comandante sentava-se. Realmente havia ainda aquela importância no envólucro de seda, mas só lhe ficaram restando algumas cédulas.

- Aqui está o dinheiro - disse o Makredsch - e que Alá amaldiçoe aquele que dele se apoderar!

- Disseste bem. Makredsch - redarguiu-lhe calmamente o antigo aliado e agora adversário. Este Agha dos Arnautes não aceitará esse dinheiro!

- Por que não?

- Porque contaste apenas cinco mil, esquecendo-te dos dois mil que deve acompanhar para perfazer a soma real.

O Makredsch fêz um movimento de quem ia investir contra o comandante. Dominou-se, porém, e disse:

- Não possuo senão essas três cédulas.

- Se fôr assim, vou encarcerar-te novamente. Talvez, então, te recordes de que trazes mais dinheiro contigo. Levanta-te e vem!

O Makredsch fêz uma fisionomia de quem está se sufocando e tirou do bolso uma carteira, que segurou de modo que só ele podia ver-lhe o conteúdo.

- Bem, vou ver se consigo reunir mais esta quantia que pretendem extorquir-me! Tens um coração de pedra e a tua alma transformou-se num penedo. Tenho aqui apenas algumas moedas de prata, misturadas com peças de ouro. Estas últimas receberás uma vez que atinjam a importância exigida.

Depôs as três cédulas no chão e depois as peças uma a uma.

- Está completa! Fico mais pobre do que nunca; possuo apenas quarenta piastras e dessas preciso para não morrer de fome.

Confesso que fiquei com pena do homem; aliás, eu já previra que lhe seria arrancado o último pára que trouxesse consigo! Parecia que a visão do dinheiro, fizera o Mutesselim recuperar o equilíbrio do espírito.

Também no Agha não se notava o menor vestígio de embriaguez. Este avançou ligeiro com as mãos, a fim de agarrar o dinheiro.

- Fica quieto! - trovejou-lhe o comandante. - Por enquanto eu é que guardarei este dinheiro.

- Agora, finalmente estou em liberdade! - exclamou o Makredsch.

O comandante meneou a cabeça fingindo-se admirado com aquela alocução.

- Em liberdade? Pagaste, por ventura, o teu resgate?

- Perdeste o uso da razão, Mutesselim? Não embolsaste todo o dinheiro?

- Apenas a minha parte e a deste Agha Sellim. Mas o Emir aqui não recebeu ainda coisa alguma!

- E nem tem coisa alguma a receber!

- Quem te disse? Está presente, e não pode assistir de graça às nossas negociações. Achas que ele é teu pai?

- Sê razoável! Este forasteiro não tem a menor autoridade sobre mim!

- Não foi ele quem ordenou a tua prisão? Estás acometido de febre, Makredsch, do contrário reconhecerias que, aliás, ele tem direito a receber maior soma ainda que nós dois juntos!

- Não tem direito a coisa alguma! - bradou furiosamente o martirizado. - Ele não receberá nada, porque não tenho nada e mesmo que eu tivesse milhões não lhe daria uma só piastra!

- Tu ainda tens dinheiro!

- Quarenta piastras apenas, conforme já te disse.

- Oh, Makredsch, como me causas dó! Achas que não sei distinguir o som do ouro do da prata?! A tua bolsinha está recheada de moedas de ouro de cinqüenta piastras cada uma e pelo seu volume vejo que estás em condições de pagar o Emir e ficar ainda com bastante dinheiro para tua viagem.

- Enganas-te!

- Mostra-me tua bolsinha!

- É minha e não tens nada com ela!

- Bem, fica com ela, mas paga o que deves!

O Makredsch estava sob o completo domínio das exigências desmedidas daquele homem ganancioso. Era uma cena repugnante, que mostrava claramente a situação da administração turca, principalmente nas províncias e cidades, que se achavam distantes das vistas do Padixá.

- Não é possível! - respondeu o Makredsch decididamente.

- Então acompanha-nos à tua cela!

- Não acompanho, pois paguei-te o meu resgate e tenho direito a ser solto!

- Pois te obrigaremos a obedecer esta ordem.

- Neste caso devolve-me o dinheiro que me extorquiste!

- Este dinheiro pertence-me de direito. Fui eu que efetuei a tua prisão e, portanto estou na obrigação de arrecadar tudo o que trazes contigo.

- Eu pagaria também esta importância, se a tivesse!

- Tu a tens! E mesmo que isso fosse verdade, vi que possuis um lindo relógio e os teus dedos estão cheios de anéis de brilhantes, jóias que dariam para pagar mais do que a importância que te exijo.

- Fiquemos nisso! Não posso! Quinhentas piastras sou ainda capaz de dar a este homem, que, aliás, é meu inimigo.

Dizendo isso fitou-me com um olhar, no qual se lia a expressão do ódio irreconciliável. Agora tinha certeza de que ele era um inimigo ferrenho meu!

- Então é esta a tua última oferta? - perguntou-lhe o comandante.

- É!!

- Então, avia-te! Acompanha-nos à tua cela. Levantou-se resolutamente. O Agha fez o mesmo.

Eu que me achava diante da porta desviei-me para o lado, a fim de deixar o caminho livre ao Mutesselim. Do cinto deste aparecia à chave, na qual repousavam os olhos do presidiário. Este, de um salto, arrancou a chave, atirou o comandante contra o Agha, de modo que ambos se chocaram, oscilantes, em mim, quase me fazendo cair também ao solo, e saiu correndo porta afora em direção à porta principal. O lampião fora derrubado e estávamos às escuras.

Eu já ouvia o ruído da chave na fechadura. A circunstância de haver eu fechado a porta apenas com trinco e não à chave embaraçou a manobra do Makredsch.

Este, desesperado, fez tudo para abrir a porta por meio da chave, sem se lembrar de verificar a fechadura. Nesse ínterim eu o alcançara e o segurara. Resistiu à minha investida e teve a precaução de tocar-me na cinta. Senti-o e agarrei-lhe o braço, mas ele já se havia apossado de minha faca, pois o fio da mesma passou-me pela palma da mão, ferindo-a. Estava tão escuro que eu não podia ver-lhe os movimentos. Contudo, depois de alguns segundos de luta consegui segurar-lhe o braço e era tempo, pois ele se preparava para apunhalar-me.

Nesse ínterim os dois oficiais aos gritos chegaram até a porta. O comandante agarrou-me.

- Larga-me Mutesselim, sou eu!

- Seguraste-o!

- Segurei-o, sim! Fecha depressa a porta à chave e acende o lampião! Assim ele não conseguirá fugir.

- Podes dominá-lo sozinho, Emir? - perguntou-me o Agha.

- Posso.

- Então vou buscar o lampião.

O comandante fechou a porta à chave, mas não se animou a aproximar-se de nós. Segurei o preso de encontro à parede até a volta do Agha com o lampião.

- Tira-lhe a faca da mão! - disse eu ao Agha.

Este arrancou-lhe a arma e agora eu podia movimentar aquele braço também. Num segundo o Makredsch se achava no solo completamente subjugado.

- Amarrem-no - ordenei.

- Com quê?

- Com o seu próprio cinto.

Executaram minha ordem. Exausto, o Makredsch deixou-se amarrar.

- Amarrem-lhe também as pernas! - ordenou o comandante ao Agha.

Aquele, antes de mais nada, esvaziou os bolsos do prisioneiro de tudo que ele ainda possuía, depois tirou-lhe também os anéis do dedo e pôs tudo no bolso. A seguir, o Agha pegando o preso por uma das pernas, arrastou-o até a cela, onde foi recolhido. Feito isso subiu ao primeiro andar, para soltar os Arnautes e recomendar-lhes a mais severa vigilância ao Makredsch.

- Toma conta da chave do portão - ordenou o comandante. Assim estaremos mais certos de que qualquer nova tentativa de evasão será ineficaz.

Depois que Agha pediu ao sargento a chave do portão, deixamos o presídio.

Chegados à rua, o Mutesselim parou. Já lhe tinha passado completamente os efeitos do vinho.

- Agha, vou agora fazer o inventário de todos os haveres tomados ao Makredsch, visto que terei de mandá-los com a mesma escolta que o conduz, para Mossul. Tu terás que assinar também o inventário, para que deste modo eu possa comprovar a veracidade da relação; é bem possível que aquele biltre vá dizer depois que lhe tiramos mais do que consta da relação.

- A que horas devo assinar o documento? - perguntou o Agha.

- À hora de costume.

- Ficarás com as chaves?

- Sim, é possível que eu ainda resolva fazer outra revista esta noite. Boa noite, Emir! Fôste-me hoje de grande valia e amanhã me dirás de que forma te demonstrarei o meu agradecimento.

O comandante se encaminhou para o palácio e nós fomos para casa.

- Efêndi! - exclamou o Agha.

- Que é?

- Eu já possuía sete mil piastras sobre o assoalho!

- E ficaste contente com isso?

- Muito!

- Dize ao comandante que te dê a quantia que te pertence.

- Que me dê o que me pertence? Sabes o que vai suceder amanhã?

- O que?

- O Mutesselim vai escrever um relatório, no qual dirá que o Makredsch trazia mil piastras consigo e eu serei obrigado a pôr minha assinatura debaixo dessas inverdades escritas. O resto, inclusive o relógio e os anéis, ficará com o comandante que, por todo esse trabalho, me dará a gorgeta de cem piastras apenas.

- E ficarás satisfeito com a sua generosidade!

- Satisfeito? Morrerei de raiva!

- O relatório vai ser entregue ao Basch Tschausch?

- A ele mesmo.

- Não, receberás mais do que cem piastras.

- Quem me dará mais do que cem piastras?

- O Mutesselim ou eu.

- Sei que tens um coração nobre. Oh! Efêndi, se tu aos menos ainda tivesses um pouco daquele remédio!

- Tenho sim. Queres tomá-lo?

- Estou com água na boca!

- Vou buscá-lo lá na cozinha e poderás tomá-lo à vontade.

A porta da casa achava-se encostada. Na cozinha a “Murta” dormia o sono dos justos sobre uns trapos velhos que de dia lhe serviam de vestuário e de noite de leito.

- Mersinah! - chamou o Agha. Ela não acordou.

- Deixa-a dormir - pedi-lhe. - Vou levar-te o remédio e depois vai também dormir, pois devido ao esforço que dispendeste hoje, precisas muito de descanso.

- Alá sabe quanto trabalhei hoje!

Encontrei depois os meus companheiros todos reunidos no aposento do Haddedin.

Falavam-me em voz tão alta que fui obrigado a impôr-lhes silêncio.

Amad el Ghandur vestira o novo traje e seu pai cortara-lhe o cabelo, fizera-lhe a barba e limpara-o das sujeiras da prisão. Agora ele apresentava um aspecto bem diferente do que tinha antes na cela. A sua semelhança com o pai era patente. O ex-presidiário levantou-se e veio ao meu encontro.

- Emir, sou árabe e não um grego tagarela. Soube agora quanto fizeste pela minha tribo e por mim pessoalmente. A minha vida e tudo o que tenho te pertencem.

Foram palavras simples as que pronunciou o rapaz, mas partidas do coração.

- Ainda não estás em segurança. O meu criado levar-te-á a um esconderijo - respondi-lhe.

- Estou pronto para seguir. Estávamos apenas esperando a tua volta.

- Sabes subir?

- Sei. Atingirei o esconderijo, não obstante me sinta muito fraco.

- Aqui tens o meu laço. Se as forças te falharem, Halef que suba na frente e depois te conduza ao esconderijo. Possuis armas?

- Lá estão no canto. Papai comprou-as para mim. Aqui tens o teu punhal. Muito obrigado!

- E alimentos?

- Já está tudo empacotado.

- Então vai. Não demoraremos a ir buscar-te.

O filho do Xeque na companhia de Halef deixou a casa e eu em seguida saí sorrateiramente levando a roupa velha do presidiário. Alcancei, sem ser notado, o precipício onde pendurei farrapos pelos ângulos das rochas e pelos arbustos que se erguiam à sua beira.

De volta, fui conduzido pelo inglês ao seu quarto. Ele estava encolerizado.

- Entre e sente-se, Sir - disse ele. - Horrível isto aqui!

- Por quê?

- Estou sentado na companhia deste árabe e não entendo uma só palavra do que ele diz! Meu vinho acabou-se, meu fumo acabou-se e eu estou também quase me acabando. Yes! Não tenho com quem distrair-me. Fique!

- Estou a seu inteiro dispor para narrar-lhe todo o sucedido.

Tive que sujeitar-me à vontade dele, muito embora estivesse cansado e quisesse deitar-me. Aliás, eu precisava ainda esperar pela volta de Halef. Este demorou muito e, quando voltou, o dia já começava a clarear.

- Como se foi? - perguntou Lindsay. - Chegou bem à “vila”?

- Com algum esforço, sim!

- Well! Halef rasgou suas vestes. Aqui tens, Halef, um Bachschich.

Halef não compreendeu as palavras em inglês, mas à última frase os seus olhos adquiriram brilho novo. Estendeu a mão e recebeu uma moeda de ouro, no valor de cem piastras.

- Vai comprar roupa nova - acrescentou o inglês.

Assim passou-se aquela noite cheia de perigos e de vigílias, Agora podia eu ao menos entregar-me a um descanso reparador, o que fiz dormindo um sono profundo sem sonhos. Não acordei por mim mesmo, mas fui despertado por uma voz enérgica:

- Efêndi! Emir, acorda! Depressa!

Acordei e vi na minha frente o Agha em trajes menores, com barbas e bigodes em desalinho.

- Que há? - perguntei-lhe mui calmamente.

- Levanta-te, aconteceu uma coisa terrível!

Pouco a pouco fui sabendo dele que o Mutesselim descobrira que o árabe se havia evadido da prisão e, em conseqüência dessa fuga, achava-se extremamente enfurecido. O Agha, tremendo de medo, pedia-me que o acompanhasse até a prisão, a fim de acalmar o Mutesselim.

Pouco depois achavamo-nos a caminho da prisão. No portão estava o comandante à espera do Agha. Nem se lembrou de saudar-me, mas pegou Agha pelo braço e arrastou-o para o pátio fronteiro, onde os Arnautes se achavam apavorados.

- Desgraçado! Que fôste fazer? - berrou-lhe o Mutesselim.

- Eu, Senhor? Nada, absolutamente, nada fiz!

- Justamente nisso é que está o teu infamante delito! Por não teres feito nada, absolutamente nada!! Não cuidaste dos prisioneiros!

- Onde devia eu cuidá-los, Senhor!

- Aqui, no presídio, naturalmente!

- Mas eu não podia entrar nele!

O Mutesselim passou a contemplá-lo estarrecido. Ao que parecia, não atinara ainda com o que o Agha lhe pretendia dizer.

- Eu não tinha a chave - acrescentou depois este.

- Não tinhas a chave...! Sim, Agha, tens razão e foi a tua sorte, porque se não fora isso estarias perdido, irremediavelmente perdido! Vem e olha para a cela!

Seguimos pelo corredor afora. A porta da cela estava aberta e esta vazia.

- Fugiu! - disse o Agha.

- Sim, fugiu! - disse o Mutesselim furioso.

- Quem lhe abriu a cela?

- Sim, quem? Dize-me Agha?

- Eu não, Senhor!

- Nem eu! Só os guardas aqui permaneceram. O Agha virou-se para estes:

- Venham aqui, cães!

Hesitantes, os Arnautes aproximaram-se.

- Foram vocês que facilitaram a fuga, abrindo a porta da cela? O sargento arriscou uma resposta:

- Agha, nenhum de nós tocou na tranca. A ordem que temos é de abrir a porta somente a tarde, depois da refeição dos presos, razão por que não abrimos uma única das celas.

- Quer dizer que fui eu o primeiro a abrir esta cela? - perguntou o comandante.

- Sim, Efêndi!

- Pois quando a abri já o preso não estava mais nela. Mas de que maneira se teria ele evadido? Ontem à noite ainda o encontramos e agora já desapareceu! Dessa hora em diante foram vocês exclusivamente que aqui estiveram. Um de vocês, pois, facilitou a evasão do biltre!

- Juro por Alá que nem tocamos nesta porta! - assegurou o sargento, trêmulo de medo.

- Mutesselim, permite que fale eu agora. Esses Arnautes não se achavam de posse nem da chave do portão. Se um deles facilitou a fuga do presidiário, este ainda deve achar-se no interior da fortaleza.

- Tens toda a razão. Fiquei ontem com ambas as chaves em meu poder. Vamos dar uma busca rigorosa em todos os compartimentos do presídio.

- Destaca também soldados para ser dada uma busca pelos muros da cidade e pelos esconderijos dos precipícios circunjacentes. Se o fugitivo conseguiu sair da cidade, certamente que não o fêz por um dos seus portões, mas escalando o muro e neste caso deve ter deixado algum vestígio de sua passagem. A sua roupa, devido ao tempo de reclusão naquele cubículo úmido e sem ar, ficou bolorenta e com o tecido estragado, por isso não deve ter resistido à passagem pelas penedias.

- Sim, - declarou o comandante, ordenando ao mesmo tempo a um dos Arnautes - corre ao corpo da guarda e transmite em meu nome a ordem de se dar uma rigorosa busca em toda a cidade e adjacências.

Em seguida foi iniciada a busca pelo presídio, diligência que durou bem uma hora inteira. Como era natural, não foi encontrado o menor sinal do evadido. Já íamos deixar a prisão, quando chegaram dois Arnautes, com alguns farrapos de roupa.

- Encontramos estes trapos dependurados sobre uma rocha do precipício - comunicou um deles.

O Agha pegou no trapo e passou a examiná-lo.

- Efêndi, é um pedaço da roupa do prisioneiro - declarou ao Mutesselim. - Conheço-o muito bem.

- Tens certeza disso?

- Absoluta.

- Portanto, o patife conseguiu sair desta casa!

- Mas pereceu no precipício! - acrescentei.

- Vamos até lá para examinar melhor o local! - ordenou o comandante.

Deixamos a fortaleza e nos dirigimos para o local, onde eu rasgara a roupa do árabe e dependurara os farrapos pelos penedos e pelos tufos de arbustos. Agora que pude observar bem o local à luz do dia, admirei-me de não ter caído no precipício em plena escuridão da noite. O Mutesselim examinou o terreno.

- Ele caiu aqui e com certeza morreu. Mas eu desejaria saber apenas de que modo conseguiu ele sair da fortaleza! A que hora se deu a fuga?

Esta pergunta, como é fácil de compreender, ficou sem resposta. Voltamos. O comandante envidava todos os esforços para desvendar o mistério da evasão do árabe. Estava irascível e grosseiro para com tudo e todos. Por essa razão, evitei aproximar-me dele. Mas nem por isso senti tédio ou monotonia. Em seguida comprei o cavalo que era destinado a conduzir Amad el Ghandur e depois visitei a minha cliente da qual quase já me ia esquecendo.

Defronte a casa achava-se uma mula com montaria de mulher. Na ante-sala encontrava-se o dono da casa, que me acolheu com expressões de alegria.

Encontrei a doente já sentada no leito. As suas faces haviam readquirido a côr normal e os olhos também não davam mais o menor sinal de envenenamento. À cabeceira da enferma achavam-se sua mãe e a trisavô. Esta última estava em traje de viagem. Sobre suas roupas brancas vestia ela um roupão preto de montaria, e na cabeça usava um véu também de côr preta, que agora se achava atirado para as costas. A moça imediatamente estendeu-me a mão.

- Oh! Efêndi, quanto lhe sou grata, pois, agora, estou certa de que não morrerei!

- Sim, ela viverá! - exclamou a velha. - Tu fôste o instrumento de Deus e da Virgem Santíssima na salvação de uma vida que prezo mais do que tudo no mundo. Riquezas não me é permitido oferecer-te, porque és um grande Emir que dispõe de tudo de que necessitas. Mas dize-me, Efêndi, de que forma devo demonstrar-te o meu agradecimento?

- Agradece a Deus, em vez de agradecer a mim, pois foi Ele que salvou a tua trineta.

- Pois assim farei e rezarei também por ti, Senhor, e a oração de uma mulher, que já não pertence mais a este mundo, será ouvida por Deus! Quanto tempo ficarás ainda em Amadijah?

- Muito pouco.

- E para onde irás depois?

- Ninguém deve sabê-lo, pois creio que surgirão motivos que me forçarão a ocultar esse detalhe. À senhora, porém, direi que pretendo seguir na direção do levante.

- Então seguirás a mesma rota que vou empreender agora. A minha montaria está ensilhada, à minha espera. Talvez nunca mais nos vejamos; neste caso aceita a bênção de uma anciã, à qual não é permitido dar-te outra coisa e que coisa melhor não teria mesmo para dar-te! Mas um segredo vou revelar-te, pois, talvez ele te seja de utilidade. Para o lado leste daqui vão romper dias amargurados e é possível que tu vás viver um ou alguns desses dias. Se estiveres em perigo, ou se sofreres privações, quando estiveres entre Aschiehtah e Gunduktha, última localidade de Tkhoma, e ninguém te valer, dirás ao primeiro que encontrares que viajas sob a proteção do Ruh ‘i kulyan.

- Sob a proteção do Ruh ‘i kulyan? O espírito da caverna? Quem é que adota este nome singular? - perguntei à velha.

- Isso ninguém te dirá.

- Mas falas-me nele e por isso deves estar em condições de me esclarecer o caso.

- O Ruh ‘i kulyan é uma criatura que ninguém conhece. Ele ora está aqui, ora acolá, em toda parte, enfim, onde haja alguém que faça uma prece que mereça ser atendida. Em todas as aldeias há determinados lugares onde a uma certa hora do dia ou da noite se pode falar com o Ruh ‘i kulyan. A esta hora os necessitados o procuram e depõem-lhe súplicas aos pés. Ele então ministra conselhos e consolos, mas ele também sabe ameaçar e punir muitos poderosos que não procedem de acordo com os seus desejos. Nunca se fala nele diante de um estranho, pois apenas os bons e os amigos devem saber onde é ele encontrado.

- Em vista disso o teu segredo não terá valor algum para mim.

- Por quê?

- Ninguém me dirá onde posso encontrá-lo, se bem que saibam reconhecer seu nome.

- Dize à pessoa com quem falares a seu respeito que me encontraste e que eu te falei a respeito dele e essa pessoa então te levará à sua presença. Meu nome é conhecido em todas as terras do Tijari e os bons sabem que podem confiar nos meus amigos.

- Como é o teu nome?

- Marah Durimeh.

Era uma comunicação misteriosa a que me fizera a anciã, mas soava tanto a aventura que não lhe dei o menor apreço. Despedi-me e voltei para casa. Lá chegando, notei um vozerio invulgar na cozinha. Devia ter acontecido alguma cousa que irritasse a “Murta”. Na situação em que me achava, o mínimo acontecimento poderia adquirir importância para mim, razão por que resolvi entrar na cozinha. Mersinah passava um formidável sermão no valente Agha, isso vi logo de chegada. De punhos cerrados, ameaçadoramente, achava-se a governanta diante dele, que baixava os olhos, qual menino que recebe uma reprimenda de seu pai. Ao entrar eu na cozinha, “Murta” dominou-se um pouco, dirigindo-se logo a mim:

- Espia só este Agha Efêndi!

Olhei para o homem, como que obedecendo-lhe à ordem.

- Achas que ele é o Agha dos Arnautes?

- Claro.

Esta resposta dei, naturalmente, com toda convicção, pois não ignorava exercer o homem aquele cargo. Mas exatamente este tom de resposta levou “Murta” a continuar na sua arenga:

- Queeê? Até tu o consideras um comandante de guerreiros valentes? Pois vou dizer-te o que ele é: não passa de um comandante de poltrões!

O pobre do Agha ergueu os olhos e tentou fitar a sua antagonista, o que, aliás, conseguiu.

- Não te zangues, Mersinah, pois sabes que sou nervoso e me assusto de qualquer coisa! - ponderou.

- Afinal, qual o motivo dessa contenda? - arrisquei-me a perguntar.

- Por causa das cinqüenta piastras! - respondeu “Murta”, olhando desprezivelmente para o chão.

Olhei na mesma direção e vi sobre o solo duas moedas de vinte piastras e uma cédula de dez.

- Que há com esse dinheiro?

- Foi dado pelo Mutesselim. Comecei a imaginar o resto.

- Para quê?

- Como gratificação especial pala prisão do Makredsch. Efêndi, sabes quanto dinheiro este tinha mais ou menos consigo?

- Calculo em vinte e quatro mil piastras, mais ou menos.

- Ainda bem que Agha me falou a verdade. Todo este dinheiro o Mutesselim tomou-o de Makredsch e dá apenas cinqüenta piastras a este valente Agha.

- Quê?

- O comandante ficou com todo aquele dinheiro e saiu a passo, dando apenas uma ninharia para o Agha! Pergunta a ele se estou mentindo?

- Mas que deveria eu fazer? - perguntou este, desculpando-se.

- Jogar-lhe esta bagatela nas barbas! Eu teria feito isso, na certa. Acreditas, Efêndi?

- Acredito, sim!

A minha resposta fora sincera. A “Murta” realmente seria capaz daquele gesto. Ela honrou-me com um olhar agradecido e perguntou-me:

- Achas que devo restituir-lhe este dinheiro?

- Não lhes deves restituir coisa alguma.

- Não?

Dirigi-me ao Agha:

- Assinaste a relação que vai ser enviada a Mossul, dos dinheiros e demais haveres tomados ao Makredsch?

- Assinei.

- Quanto dinheiro o comandante relacionou?

- Quatrocentas piastras em ouro e oitenta e uma em prata.

- E nada mais?

- Não!

- E o relógio e os anéis?

- Também não.

- O Mutesselim é teu superior e não deves provocar a sua inimizade; foi bom, pois, teres aceitado o dinheiro. Lembras-te de minha promessa?

- Lembro-me muito bem!

- Pois vou cumpri-la, falando ao comandante. Ao menos, deves ganhar mil piastras.

- Mas é isso verdade, Efêndi? - perguntou Mersinah.

- Evidentemente. O dinheiro não pertence nem a Mutesselim e nem a Agha; mas de qualquer modo não irá parar às mãos de quem pertence, que é o povo. Portanto, deixemos ficar como está. Mas o Agha não deve ser tão grosseiramente enganado!

- O comandante terá que lhe dar sete mil piastras, não é assim?

- Tanto ele não lhe dará. Aquela promessa foi feita apenas para facilitar mais a extorção. Selim, o Basch Tschausch já se foi embora?

- Não, Efêndi.

- Mas como? Pois era para ele partir pela manhã.

- O Mutesselim terá que redigir outro ofício, pois no anterior comunicava remeter ao mesmo tempo o preso árabe. Talvez o Basch Tschausch tenha que esperar até ser capturado o fugitivo.

- Creio não haver esperança disso.

- Por quê?

- Porque ao fugir caiu num precipício e morreu.

- E se isso não passar de uma mentira?

- Como?

- Mutesselim parece achar que ele ainda vive.

- Falou-te ele mais detalhadamente sobre isso?

- Não, mas concluí isso de suas palavras.

- Pois creio que ele está enganado!

 

NOVO PERIGO PARA O PLANO

Depois deste diálogo, dirigi-me para meu quarto. Teria algum gesto meu ou dos camaradas provocado as suspeitas do comandante? Era possível. Neste caso deveríamos estar preparados para tudo. Mas, não obstante, antes de fazer uma comunicação aos companheiros, lancei um olhar retrospectivo para tudo o que sucedera. Não me lembrei de atitude nenhuma nossa que pudesse ter dado na vista. Fui interrompido em meus pensamentos pelo Agha, que subira a escada e entrara no meu quarto.

- Efêndi, está aí um emissário do Mutesselim. Este manda dizer-nos para irmos novamente à prisão.

- Ele já está lá?

- Está sim.

- Espera-me lá embaixo! Não demoro!

O Mutesselim me teria mandado chamar com propostas amistosas ou hostis? Resolvi preparar-me para a última hipótese. Ambos os revólveres estavam carregados. Pus também a pistola na cintura e fui procurar Halef. Este estava só no quarto.

- Onde está o Boluk Emini?

- O Basch Tschausch levou-o.

Aquilo nada tinha de extraordinário, mas deixou-me desconfiado.

- Quando?

- Logo que tu saíste para comprar o cavalo.

- Vamos falar com o Haddedihn!

Este achava-se deitado e fumava o seu cachimbo.

- Emir, Alá não me dotou de paciência para esperar pela consumação de um anseio - foi-me logo dizendo Maomé. - Que estamos ainda fazendo aqui na cidade?

- Talvez a deixemos dentro de pouco tempo. Pelos sintomas que notei, estou quase a dizer que o nosso plano foi descoberto.

Agora o chefe dos Haddedihn ergueu-se lentamente do solo, como quem foi vítima de um imprevisto, mas que se sente bastante forte para ocultar o choque e enfrentar-lhe as conseqüências.

- Como chegas a esta conclusão, Emir?

- Sim, trata-se de uma simples suposição. O comandante mandou-me chamar à prisão, onde já se acha à minha espera. Irei, porém, munido de todas as precauções. Se eu não estiver de volta dentro de uma hora, é porque me sucedeu alguma coisa grave.

- Findo este prazo, vou procurar-te! - exclamou Halef.

- Não conseguirás falar comigo, pois, estarei talvez na prisão e como... prisioneiro. Terão depois dois caminhos a escolher: ou fugirem ou então procurarem libertar-me.

- Jamais te abandonaremos! - assegurou-me o Haddedihn calma, mas resolutamente.

Como estava ele agora de postura altiva e ereta diante de mim! Com as densas barbas, que lhe desciam até a cintura, apresentava o aspecto de um homem destemido, porém, refletido!

- Muito obrigado! No caso de me prenderem, não o conseguirão sem uma luta renhidíssima e de qualquer modo não me deixarei amarrar. Talvez depois me seja possível assinalar a cela em que me recolherem.

- De que maneira assinalarás, Sídi? - perguntou-me Halef.

- Tentarei subir pela parede e pela seteira estender uma das peças do meu vestuário. Depois talvez te seja possível mandar-me recados por intermédio de Agha ou de Mersinah. De qualquer maneira, não me conservarão preso por muito tempo. Mantenham os cavalos permanentemente ensilhados para qualquer eventualidade de fuga. O resto deixo por tua conta; eu agora não tenho mais tempo. Mutesselim me espera e preciso ainda falar com o inglês.

Também este, estirado sobre o tapete, fumava.

- Foi bom ter vindo, Sir! Vamo-nos embora! - foram as palavras com que me acolheu Mister Lindsay.

- Embora, por quê?

- Está insuportável isto aqui!

- Fale mais claro!

O inglês ergueu-se e, aproximando-se da abertura da janela, apontou para o telhado da casa fronteira.

- Veja!

Olhei na direção citada e vi um Arnaute deitado de barriga a vigiar-nos.

- Vou também subir ao nosso telhado, - disse o inglês displicentemente - e saudá-lo com uma bala!

- Vou agora à fortaleza, onde Mutesselim me espera. Se dentro de uma hora eu não voltar é porque me sucedeu alguma coisa e eu estou preso. Neste caso, colocarei uma peça de roupa na seteira do cubículo em que me achar.

- Está muito bem. Yes! Vai ser divertido! Hão de conhecer Mister Lindsay mais de perto!

- Combine tudo com Halef. Ele fala alguma coisa de inglês.

- Falarei por meio de pantomima! Yes!

Saí em direção à fortaleza. Por mim velavam três homens, nos quais eu podia confiar. Além disso, Amadijah estava por assim dizer despovoada. A metade da guarnição achava-se acometida de febre e eu tinha Mutesselim nas mãos.

Selim Agha já me esperava à porta da rua. A conversa que eu tivera com os companheiros demorara um tanto, por isso procuramos recuperar o tempo perdido, caminhando mais apressadamente. Quando lá chegamos, o comandante, como da outra vez, achava-se à nossa espera no portão principal. Durante todo o trajeto, observei atentamente o caminho, mas não vi ninguém em minha perseguição, nem espiando-me. O comandante cumprimentou-me muito cortêsmente, mas vi logo que sua cortesia era toda ardilosa.

- Efêndi, - disse ele, depois de fechar a porta da prisão - não achamos o corpo do fugitivo.

- Mandou dar uma busca no precipício?

- Sim. Fiz alguns homens descer por uma corda. O prisioneiro não passou por ali, não!

- Mas os farrapos de suas roupas estavam lá!

- É possível que ele próprio os pusesse lá manhosamente.

- Neste caso ele precisaria de outra roupa para vestir-se!

- E é provável que ele tivesse essa outra roupa. Ontem foi adquirido por alguém um traje completo.

A essas palavras ele dirigiu-me um olhar prescrutador. Esperava talvez que me traísse alguma mudança de fisionomia; mas, ao contrário. Ao me dizer aquilo, ele havia demonstrado a sua desconfiança e eu sabia como proceder daí em diante!

- Para ele? - perguntei com um riso de incredulidade.

- Presumo que sim. Compraram ainda um cavalo de montaria!

- Também para ele?

- Penso que sim. E este cavalo ainda se acha na cidade.

- Pretende o fugitivo sair francamente pelo portão da cidade? Oh! Mutesselim, acho que o teu “sistema” não está ainda em ordem. Vou mandar-te mais uma dose daquele remédio!

- Jamais tomarei aquela tisana! - respondeu ele meio embaraçado. - Estou convencido ainda de que o preso está presentemente na cidade.

- E sabes também como ele fugiu?

- Isso ainda não descobri; mas estou certo de que nem Agha e nem os guardas têm culpa de sua fuga.

- E o preso acha-se escondido nalguma casa?

- Isso descobrirei depois e tu me auxiliarás nas pesquisas, Efêndi.

- Eu? Com muito prazer.

Olhando rapidamente para cima, vi que lá se achavam postados mais Arnautes do que na minha chegada. Não havia, pois mais dúvida de que o comandante tinha o firme propósito de prender-me durante aquela minha visita à prisão. Pela fisionomia ingênua de Agha, depreendia-se que ele não estava ao par das intenções do Mutesselim. Portanto, também ele incorrera na desconfiança do comandante, que talvez estivesse certo de que o prisioneiro se achava na casa em que residíamos.

- Ouvi dizer que és um hábil investigador, Emir! - disse o comandante.

- Quem te disse?

- O teu Baschi Bozuk que soube por intermédio do teu criado. Com que então ele interrogara o Baschi Bozuk. Para isso é que este fora levado pelo Basch Tschausch! O comandante prosseguiu:

- E em vista disso eu te peço que faças uma rigorosa pesquisa no interior da prisão.

- Mas eu já pesquisei por ocasião de nosso último encontro aqui.

- Mas não tão minuciosamente como é preciso, quando se quer descobrir pegadas. E muitas vezes um detalhe insignificante a que não se deu importância, constitui todo o ponto de partida de uma diligência policial.

- Neste ponto, tens razão. Então queres que eu examine toda a fortaleza?

- Sim, mas a começar pela cela, pois foi de lá que ele se evadiu.

Oh! sagacidade turca! Por cima de mim percebi ruídos de passos leves. Arnautes desciam pé ante pé.

- Tens razão - disse eu sem demonstrar ter compreendido o seu propósito. - Manda abrir a porta da cela.

- Atende-o! - ordenou ao Agha.

Este escancarou a porta do cubículo onde estivera Amad. Aproximei-me dela, mas com tanta precaução que ninguém conseguiria empurrar-me para dentro da cela, e olhei para o seu interior.

- Nada vejo de anormal aqui.

- Daí nada podes ver. Terás que descer ao cubículo, Efêndi.

- Se julgares conveniente, descerei - respondi-lhe despreocupadamente.

Desprendi a porta das dobradiças e coloquei-a no meio da entrada, de modo a tê-lo sempre à vista, quando estivesse no interior da cela. Por esta o valente comandante não esperava. Isso dificultava-lhe sobremodo a consumação do seu intento.

- Que estás fazendo? - perguntou, decepcionado e agastado, ao mesmo tempo.

- Tirei a porta das dobradiças, como vês! - respondi-lhe secamente.

- Para quê?

- Oh! Quando se fazem pesquisas desta natureza, é preciso ter tudo à vista!

- Mas para isso não é necessário tirar a porta do seu lugar. Não obterás mais luz com isso.

- É verdade! Sabes qual é a pista mais segura?

- Qual?

- Aquela que se lê na fisionomia do homem. E esta, - neste momento bati-lhe camaradamente no ombro - um Efêndi de Germanistão sabe achá-la e lê-la com precisão.

- Que pretendes dizer com isso? - perguntou surpreendido.

- Que mais uma vez evidencias o teu pendor diplomático. Sabes maravilhosamente ocultar os segredos dos teus intentos. E exatamente por isso vou fazer-te a vontade e entrar na cela, ou, antes, pular para dentro dela.

- A que intentos te referes?

- A tua inteligência penetradora te fêz chegar à conclusão acertada de que ninguém melhor pode saber a maneira pela qual um preso se evade do presídio, senão um outro preso... Graças sejam dadas a Alá por ter criado homens tão astuciosos e inteligentes!

Pulei para o buraco formado na cela e baixei-me, como que em procura de alguma coisa, no solo. Fingindo despreocupação, olhei, porém, por debaixo do braço, e surpreendi Mutesselim a fazer um sinal a Agha. Ambos baixaram-se para agarrar a pesada porta e colocá-la novamente nas dobradiças. Virei-me.

- Mutesselim, deixa a porta no chão!

- Vamos colocá-la no lugar que lhe pertence.

- Neste caso também eu voltarei para o lugar que me pertence e tu te encarregas sozinho das pesquisas.

Fiz menção de pular para fora do cubículo, o que, aliás, não era muito fácil, visto a superfície da cela ser de regular profundidade.

- Alto, não saias! - ordenou o Mutesselim ao mesmo tempo que, a um sinal seu, acudiam diversos Arnautes armados. - Considera-te meu prisioneiro!

O bom Agha ficou inerte de susto. Olhou estarrecido primeiro para o Mutesselim e depois para mim.

- Prisioneiro teu? - perguntei-lhe. - Estás pilheirando!

- Estou falando sério!

- Então enlouqueceste durante a noite! Como é que concebes tu a idéia de seres homem para efetuar minha prisão?!

- Estás preso e preso ficarás, enquanto não capturarmos o fugitivo!

- Mutesselim, duvido muito que o consigas capturar!

- Por quê?

- Para uma diligência dessa natureza é mister um homem inteligente e corajoso e Alá não foi pródigo em dotar-te destas duas qualidades essenciais!

- Pretendes escarnecer-me? Dá tu conta de tua inteligência e coragem, pois muito te faltam.

E dirigindo-se a um Arnaute ordenou:

- Repõe a porta no seu lugar e coloca-lhe a pesada trava! Agora, sim, saquei da pistola e engatilhei-a.

Os bravos Arnautes estacaram indecisos e trêmulos de pavor.

- Mãos à obra, cães! - trovejou-lhes o comandante.

- Não deixem uma só bala alojar-se no corpo! - bradei-lhes engatilhando a pistola.

- Arrisca-te a atirar! - disse o comandante, em voz alta.

- Arriscar? Oh! Ingênuo Mutesselim, chamas a isso de arriscar?! Com esta gente me arranjarei facilmente e tu serás o primeiro a quem minha bala acertará!

O efeito foi instantâneo, pois o audaz herói de Amadijah, como que impulsionado por uma mola elétrica, desapareceu da entrada da cela.

- Atirem contra ele, canalhas, poltrões! Por quem esperam?

- Não lhe obedeçam, pois aquele que se atrever a tocar nesta porta será por mim imediatamente despachado com salvo-conduto para o Dschennah.

- Não lhe dêm ouvidos, atirem! - esbravejava o comandante.

- Mutesselim, não te esqueças de quem eu sou! Qualquer falta para com minha pessoa custar-te-á a vida!

- Vão obedecer-me ou não, Arnautes covardes?! Ou querem que seja eu quem os mate já a tiros? Selim Agha, empunha armas!

O pupilo de “Murta”, seguindo o exemplo de seu superior, assentara-se a um ângulo do corredor. Era embaraçosa a sua situação. Via-se isso no seu semblante. O pobre precisava de que eu saísse em seu socorro!

- Afastem-se da porta, pois agora vou entrar seriamente em ação! Dizendo isto, assestei a pistola contra a guarda, que recuava espavorida. Com um esforço não muito grande, saltei da cela e de súbito postei-me de pistola em riste diante do comandante.

- Mutesselim, lá embaixo na cela não há o menor vestígio que sirva de base para as pesquisas.

- Allab illa Allah! Emir, afasta de mim esta pistola!

Ele nem se apercebeu de que possuía também uma arma de fogo com a qual poderia reagir contra mim.

- Colocá-la-ei novamente no seu lugar depois que os Arnautes se recolherem ao alojamento que lhes pertence e nós ficarmos sós! Agha, conduz esta gente para lá!

Agha obedeceu, sem vacilar, a essa minha ordem dada em tom enérgico. Dirigindo-me aos guardas:

- Vão, vão embora sem pestanejar e não me apareçam tão cedo diante dos olhos!

Os homens desapareceram apressados, escada acima.

- Bom, agora porei a pistola na cinta. Oh! Mutesselim, como te aviltaste aos meus e aos olhos de todos os teus comandados! O teu ardil falhou escandalosamente e a violência que empregaste, de nada adiantou. E agora aí estás qual um fakara guenakiar (1) que precisa pedir misericórdia! Por que razão quiseste encarcerar-me?

- Eu precisava fazer uma diligência na tua casa.

- E eu não podia estar presente a essa diligência?

- Terias reagido.

- Ah! Tens-me então respeito! Quanto folgo em sabê-lo! E achavas que meus companheiros não haveriam de reagir também?

- Deles és tu o mais perigoso. Não temia os demais.

- Pois enganas-te, Mutesselim. De toda a comitiva, sou eu o mais condescendente. O meu Hadsch Halef Omar é um herói; o Bei Hadji Lindsay é um homem que se enfurece por dez réis de mel coado e luta como um leão; o terceiro, que ainda não conheces, em bravura e denôdo a todos nós supera! Da presença deles, morto saírias, desde que os não tratasses com cortesia e distinção. Quanto tempo achas que eu, no caso de haver vingado o teu ardil, me conservaria preso naquela infeta cela?

- O tempo que melhor me aprouvesse!

- Eras dessa opinião? Vê essas armas e essas cartucheiras recheadas de munições! Eu teria derrubado a tiros a porta da cela e mais as pesadas travas que as fecham, e em dois minutos me colocaria onde agora estou colocado: na tua frente, olhando-te de viseira erguida! E ao primeiro tiro meu, saberia minha gente que me achava em perigo de vida e toda ela para aqui acudiria e ai de ti, ai de todos vocês!

- Eles não conseguiriam penetrar aqui!

- Um projétil de nossas espingardas facilmente arrebenta as fechaduras de teu pardieiro. Vem cá que te mostrarei uma coisa!

Virei-o na direção da cela e indiquei-lhe a seteira da mesma, pela qual se divisava uma nesga do firmamento; pela seteira via-se um vulto com roupagens enxadrezadas de vermelho e preto, que sisudo assestava a espingarda na direção da seteira.

- Conheces aquele homem? - perguntei-lhe.

- Conheço, é o Hadji Lindsay!

- Ele mesmo! Está ele sobre o telhado do meu aposento e aguarda, de olhos fitos para a seteira, o sinal convencionado. Mutesselim, a tua vida está presa por um fio de cabelo. Que tens contra mim?

- Fôste tu quem libertou o prisioneiro!

- Quem te disse?

- Tenho testemunhas oculares!

- E por causa disso era preciso que me aprisionasses, a mim um Efêndi e Bei; um Emir que se acha numa posição muito mais elevada do que tu, que não possuis o Bud-jeruldi do Grão Senhor e que por mais de uma vez te deu provas exuberantes de que não teme homem algum?

- Sim, não temes ninguém e era esta a razão por que eu resolvera prender-te para melhor poder dar uma busca em tua residência.

- Poderias varejar minha residência, estando eu presente, que não ee tolheria a ação.

- Senhor, não farei a diligência; encarregarei disso o meu pessoal.

Ah! Ele agora temia também o “herói”, o “homem furioso como leão” e ao terceiro que a “todos nós superava em denodo e bravura”.

- Pois concordo com essa medida, desde que seja levada a efeito, discretamente. Podes varejar todos os recantos da casa, eu nada tenho contra isso. Como vês, pois, nenhuma razão tinhas para encarcerar-me durante a tua diligência!

- Mas sabia eu lá do teu propósito amistoso!

- O maior erro teu, porém, foi me julgares um parvo que se deixaria encarcerar sem mais resistências! Não repitas essa façanha, pois uma coisa te afirmo: tua vida está presa por um fio de cabelo!

- Mas Emir, no caso de encontrarem o preso na tua residência, serei forçado a efetuar a tua prisão!

- Então sim, não resistirei à mesma; pelo contrário, me entregarei espontaneamente ao carcereiro.

- Por enquanto não posso permitir que vás para casa.

- Por que não?

- Preciso ter a certeza de que não deste instruções para melhor ocultarem o presidiário.

- Bom. Mas asseguro-te que, sem a minha presença, os meus companheiros não permitirão a menor diligência nos seus e no meu aposento! Ao contrário, derrubarão a tiros todo aquele que se atrever atravessar-lhes o batente da porta!

- Escreve-lhes então um bilhete, dizendo-lhes que permitam à minha gente cumprir a medida por mim ordenada!

- Farei isso de bom grado. Agha pode levar-lhes já o bilhete.

- O Agha não!

- Por quê?

- É possível que ele esteja ao par de tudo e previna a tua gente.

- Oh! Agha te é fiel e não sabe dizer nem ocultar coisa alguma a respeito do prisioneiro! Não é verdade, Agha Selim?

- Senhor, - disse este ao seu comandante - juro-te que não sei de coisa alguma e que também este Efêndi ignora tudo!

- Não podes fazer a última afirmativa sob juramento; quanto à primeira vou aceitá-la, em consideração a ti. Emir, tu me acompanharás agora e te acarearei com os teus acusadores.

- E eu exijo, mesmo, essa acareação!

- Com um dos acusadores posso fazê-la já!

- Quem é ele?

- O Arnaute que por tua causa lá está metido na cela.

- Ah! aquele?!

- Vistoriei hoje todas as celas e perguntei aos prisioneiros se eles não tinham visto algum movimento durante a noite. Ao chegar a vez do Arnaute, fêz-me este algumas revelações muito prejudiciais a ti.

- O biltre pretende desforrar-se! Não preferes enviar um dos guardas à minha residência? Se eu escrever simplesmente um bilhete aos companheiros, estes facilmente desconfiarão haja ele sido escrito ardilosamente por outrem.

- No guarda acreditarão ainda menos.

- Nem estou a pensar o contrário. Mas o guarda chamará o meu criado, que pessoalmente se convencerá de que, de fato, a ordem partiu de mim.

- E com ele falarás somente em minha presença?

- Claro.

- Então vou mandar chamá-lo.

Chamou um dos Arnautes e deu-lhe as ordens naquele sentido. A seguir mandou Agha abrir o calabouço, no qual se achava recolhido o Khawass que estivera a serviço do inglês.

- Levanta-te! - ordenou-lhe Mutesselim. - Responde com a verdade o que te vou perguntar! Persistes em afirmar o que me disseste hoje?

- Persisto.

- Repete a afirmativa!

- O homem a quem tu chamas Hadji Lindsay é um Inglis. Tomou a mim e a um intérprete a seu serviço, em Mossul, e a este declarou que viajava em procura de um homem que partira para libertar um prisioneiro.

Portanto, Mister Fowling-bull, dera, sim, largas à língua!

- E citou o nome deste homem? - perguntei ao Arnaute.

- Não.

- E declinou ao intérprete o nome do prisioneiro que se tinha em vista libertar?

- Não.

- Nem o local onde se achava recolhido o preso?

- Não.

- Mutesselim, tem este Arnaute alguma coisa mais a expor em abono de suas declarações?

- Não. É tudo o que tem a dizer.

- Pois não adiantou coisa alguma. Agha, fecha novamente o calabouço. Oh! Mutesselim, és um diplomata de formidável alcance visual a que não me poderei furtar a honra de enaltecer, quando chegar a Stambul! Lá se apressarão em te colocar numa posição mais elevada do que a que ocupas atualmente. Talvez que o Padixá se resolva a nomear-te vice-rei de Bagdad, de tal modo se impressionará com a descrição que eu lhe fizer de tua capacidade. Hadji Lindsay pretende procurar um homem que se acha em viagem. Disse ele que esse homem era eu? Esse homem, à procura do qual anda o Hadji, nutre o propósito de libertar um prisioneiro. Esclareceu ele que se trata desse prisioneiro? Então um inglês, cuja pátria se acha distante mil dias de viagem em camelo, se abalançaria a deixá-la para vir aqui arrancar um árabe a prisão? Quando deixou a sua terra, nunca vira ele a figura de um árabe.

- És amigo de Amad el Ghandur?

- Mas estou a dizer-te que nunca o vira até o dia em que com ele me avistei naquele cubículo! Hadji Lindsay não fala turco e nem árabe e o seu intérprete entendia muito pouco de inglis. Sabe lá o que este intérprete não ouviu e entendeu dos lábios do seu amo! Talvez o Hadji lhe tenha contado simplesmente uma lenda, de que são férteis os inglis.

- Mas como, se ele nem fala?

- Naquela época ainda ele falava. O seu voto de fé data de mais tarde.

- Então vem, serás acareado com outras testemunhas! Batem à porta. Deve ser o teu criado.

Ele abriu a porta. O Arnaute entrou acompanhado de Halef, a quem declarei estar de acordo com a vistoria em nossa residência e acrescentei-lhe:

- Com isso quero provar a Mutesselim que sou amigo seu. Deixem os homens examinar tudo. Agora vai!

- E tu para onde vais agora?

- Vou com Mutesselim.

- E quando voltarás?

- Não sei ainda.

- Durante uma hora pode-se falar e tratar de muita coisa. Se dentro deste tempo não estiveres de volta, iremos buscar-te, estejas onde estiveres e seja qual fôr a tua situação!

Ditas essas palavras retirou-se. O comandante parecia bastante indeciso. A posição varonil do meu pequeno Halef impressionara-o.

Na ante-câmara do seu palácio achavam-se diversos funcionários e servos. O comandante acenou para um dos primeiros, que entrou no gabinete. Sentamo-nos, mas desta vez não me foi oferecido um cachimbo para fumar.

- É este o homem! - disse o comandante, indicando o funcionário.

- Que homem?

- Aquele que te viu.

- Me viu onde?

- Na rua que conduz para o presídio. Ibraim, fala!

O funcionário, vendo que me achava em liberdade, dirigiu-me um olhar de insegurança e, meio indeciso, relatou:

- Eu voltava do palácio, Senhor! Já era bem tarde, quando abri a porta de minha casa. Ia fechá-la novamente, e nisso ouvi rumor de passos muito apressados. Eram dois homens que caminhavam muito ligeiro; um puxava o outro que respirava com dificuldade. Desapareceram na esquina e, em seguida, percebi o grasnar de um corvo.

- Reconheceste os dois homens?

- Apenas este Efêndi! Estava muito escuro, mas distingui seu vulto.

- E como era o outro?

- Era de estatura menor.

- E ambos te viram?

- Não, pois achava-me por trás da porta.

- Podes retirar-te! O homem afastou-se.

- Então, Emir, que dizer a isso?

- Não estive eu toda à noite na tua companhia?

- Estiveste, porém, ausente por alguns minutos, quando fôste buscar o lampião. Neste meio tempo levaste, como suponho, o prisioneiro para fora da prisão e te deste pressa em voltar, visto que estávamos à tua espera.

Dei uma gargalhada.

- Oh! Mutesselim, dize-me cá, quando resolves tornar-te um hábil diplomata? Convenço-me agora de que o teu sistema precisa realmente de algum fortificante. Permite-me algumas perguntas!

- Faze-as!

- No momento em que fui buscar o lampião, em poder de quem estava a chave da porta da rua?

- Comigo.

- Poderia eu, mesmo que o quisesse, sair para a rua?

- Não! - respondeu tardiamente.

- Na companhia de quem me dirigi para casa?

- Na de Agha Selim.

- Agha é de estatura mais baixa ou mais alta do que eu?

- Mais baixa.

- Agora, Agha, responde-me conscienciosamente: ao nos recolhermos, andamos como uma lesma, ou caminhamos ligeiro?

- Ligeiro - respondeu o interrogado.

- Não caminhamos de braço dado?

- Caminhamos, sim.

- Mutesselim, acha que o grasnar de um corvo ouvido em sonhos, tem alguma relação com a fuga do prisioneiro?

- Emir, tens razão. A tua defesa combina admiravelmente com os elementos comprovantes por ti citados.

- Não é assim, não combina admiravelmente, mas a questão é tão simples e tão natural que me deixas apavorado da pequenez de tua imaginação! Acho-me tomado de cuidados pela tua saúde mental. Contigo estava a chave da prisão e consequentemente ninguém podia sair de lá sem o saberes; na companhia de Agha recolhi-me ao meu aposento e passamos exatamente pela rua em que reside aquele funcionário; esta circunstância também não ignoravas. Baseado num depoimento que serve exclusivamente para pôr em relevo a minha inocência em toda a questão, pretendes grosseiramente condenar-me? Fui amigo teu. Cumulei-te de presentes e finezas. Prendi o Makredsch, e isso te coloca no caminho das honrarias e promoções; ofereci-te medicamentos que te refrigeraram o corpo e a alma, e tudo isso me agradeces com o meu encarceramento! Estou pasmado do teu comportamento! E o que de mais grave há em tudo isso é desconfiares do teu próprio Agha que sabes ser-te fiel e capaz de arriscar sua própria vida para defender a tua!

A essas palavras, Agha ergueu-se a alguns centímetros do solo.

- Ah! Isso é verdade! - concordou ele, levando a mão ao copo da espada e revirando os olhos. - Minha vida pertence-te, Senhor! Por ti estou sempre pronto a sacrificá-la.

As provas eram por demais concludentes. O comandante estendeu-me a mão e suplicou-me:

- Perdão, Emir! Estás justificado e desistirei da vistoria em tua residência!

- Tu a vistoriarás ou mandarás vistoriá-la por tua gente. Faço questão cerrada disso!

- Mas em vista das provas colhidas posteriormente, aquela medida perdeu a sua razão de ser!

- Persisto na minha exigência!

Mutesselim levantou-se e saiu.

- Efêndi, eu te gradeço por me haveres posto a coberto de sua suspeita! - disse-me Agha.

- Já verás como farei ainda mais por ti!

O comandante voltou com uma expressão de profundo aborrecimento estampada no semblante e disse:

- Lá fora está Basch Tschausch que deve voltar para Mossul e...

- Sim, aquele que me tirou Baschi Bozuk para tu o interrogares! Ouviste dele alguma coisa que me tornasse suspeito?

- Não, ele foi todo louvores a teu respeito. Mas dize-me: que devo eu escrever ao Kasi Askari de Anatólia a respeito da evasão do árabe?

- Escreve-lhe a verdade!

- Grandes males me acarretaria uma exposição verdadeira dos acontecimentos, Efêndi. Não achas que posso mandar dizer que o prisioneiro faleceu?

- Isso é lá contigo!

- E tu me desmentirias depois?

- Para isso não tenho o menor motivo, enquanto mostrares ser meu amigo.

- Bem, vou escrever assim.

- Mas se nesse meio tempo conseguires deitar-lhe a mão? Ou então se ele conseguir alcançar, feliz, a pátria?

- Então argumentarei que o Mutessarif deposto me remetera outro homem o qual tomara por Amad el Ghandur e que entretanto não era. E se eu conseguir capturá-lo... Efêndi, melhor será eu não me preocupar mais com a sua captura!

Aquilo era um sistema verdadeiramente turco de sair das dificuldades... A mim, porém, convinha-me a sua resolução.

- Basch Tschausch sabe que o árabe escapuliu?

- Sabe que fugiu um árabe. Mas tratava-se de um outro e não de um Haddedin. O árabe que se evadiu pertencia à tribo dos Abu Salman, que se negara a pagar-me os impostos devidos! Compreendeste?...

- Pois então toma logo providências, para que te livres da responsabilidade da detenção do Makredsch. Se esse também se evadir, estarás irremediavelmente perdido!

- Dentro de uma hora partirá a escolta.

- Já fizeste a relação dos haveres apreendidos a Makredsch?

- Já, e foi assinada por mim e pelo Agha.

- Esqueceste de uma assinatura, Mutesselim.

- De qual?

- Da minha, é claro.

- Efêndi, não é necessário.

- Mas é aconselhável, por medida de precaução.

- Por que razão?

- Porque pode bem acontecer que em Mossul ou Stambul me peçam informações a respeito, caso não se conformem com os valores que relacionaste. Prevendo essa circunstância, seria melhor eu assinar a relação, porque deste modo tu ficarias a coberto de qualquer dúvida da parte dos teus superiores. Além disso, atribuo a Makredsch qualidades suficientes para levantar-te uma falsidade, quando chegar junto às autoridades superiores.

O comandante ficou visivelmente embaraçado.

- O ofício com a relação já está dobrado e timbrado! - ponderou o homem.

- Mostra-me!

Levantou-se e foi ao compartimento contíguo.

- Efêndi - obtemperou Agha amedrontado, - não deixes perceber que eu te disse alguma coisa.

- Fica descansado.

O Mutesselim voltou com um ofício selado e lacrado. Alcançou-me sem preocupação.

Tomei do papel e apalpei-o para ver se de fato se tratava da relação em apreço. Dei ao documento a forma de um canudo. Como não se achava dentro de envelope, pude ler algumas palavras isoladas, que me convenceram de que, de fato, o comandante não me iludira. Não podia ler por completo as cifras isoladas, contudo fiz como se me tivesse inteirado do conteúdo e li lentamente e em voz alta:

- Quatrocentas piastras em ouro... oitenta e uma piastras em prata...! Mutesselim terás que abrir esse ofício. Cometeste um grande erro na soma dos haveres!

- Senhor, nada tens que ver com este assunto.

- Neste caso eu também não deveria ter nada que ver com a apreensão dos dinheiros e mais objetos em poder do preso. No entanto apelaste para a minha ajuda! E, se eu não te valesse naquela ocasião, não terias levado a efeito a apreensão. Não é assim?

- Tens razão - respondeu o homem ingenuamente.

- Prometeste-me então cinco mil piastras acrescidas de mais duas mil, dada à desvalorização atual daquele papel-moeda. Onde está essa soma?

- Emir!

- Mutesselim!

- Disseste ser amigo meu e, no entanto pretendes afligir-me!

- Disseste ser amigo meu e, no entanto pretendes trapacear-me!

- Tenho que mandar esse dinheiro para Mossul.

- Vais remeter as quatrocentas e oitenta e uma piastras, conforme relacionaste neste documento. O teu dever, porém, seria enviar todo o dinheiro apreendido ao Makredsch juntamente com o relógio e os anéis. Se procederes deste modo, nada tenho a exigir; se não procederes, porém, reclamo a parte que me toca.

- Não tens parte alguma neste bolo! - declarou-me.

- Nem tu nem Agha. Recebeu este alguma coisa?

- Sete mil piastras em papel - respondeu apressadamente para cortar a este a resposta.

O pobre Agha fêz uma tal cara, que a muito custo contive uma gostosa gargalhada.

- E então? Por que regateias a parte que me cabe?

- És um forasteiro e não um funcionário meu.

- Dou-te razão. Mas neste caso, desisto de minha partilha em favor do Padixá. Dize a Baschausch que passe pela minha casa antes de partir. Por intermédio dele, vou mandar o meu relatório dos fatos ao Kasi Askari de Anatólía. Adeus, Mutesselim, e permite-me que hoje à noite eu venha visitar-te.

Encaminhei-me para a porta, mas ainda não a tinha alcançado quando o comandante me perguntou:

- Que importância vais mencionar em teu relatório?

- A soma redonda de vinte e cinco mil piastras e mais o relógio e os anéis.

- E quanto pretendes receber de mim?

- Apenas à parte que me cabe na partilha; sete mil piastras era papel-moeda ou cinco mil em prata ou ouro.

- Efêndi, nem havia tanto ouro em poder do preso.

- Sei distinguir muito bem o sonido do ouro do da prata e a bolsinha estava recheada.

- És rico, Emir, e te contentarás com quinhentas piastras!

- Duas mil em ouro, é a última proposta que faço!

- Allah kerihm, não te posso dar essa importância!

- Então passa bem!

Dirigi-me novamente à porta. Mutesselim esperou que eu a abrisse e chamou-me outra vez. Não lhe dei atenção e continuei meu caminho. Já me achava na rua, quando percebi rumores de passos atrás de mim. Era Agha que me viera chamar.

Quando voltei ao gabinete, ali não se achava o comandante; daí a pouco, porém, apareceu de um compartimento contíguo. Seu olhar estava nublado e hostil.

- Exiges duas mil piastras? - perguntou ele com voz rouca.

- Em ouro!

Sentou-se e sobre o tapete contou-me vinte moedas de cem piastras. Baixei-me, agarrei as piastras e meti-as no bolso. Ele esperou um instante e depois perguntou-me de fronte carregada:

- E nem agradeces?

- Eu? Ao contrário, espero que tu me agradeças, porque te presenteei três mil piastras!

- Estás pago de tudo e não me presenteaste, pois, coisa alguma. Quando pretendes ir-te embora?

- Não sei ainda.

- Aconselho-te a deixares a cidade hoje mesmo.

- Por quê?

- Tens o teu ouro e agora vai. Mas não caias na asneira de voltar aqui!

- Mutesselim, não representes comédia comigo, do contrário devolvo-te as piastras e escrevo um relatório às direitas para o Kasi Askari. Se me aprouver ficar nesta cidade, ficarei e tu me receberás sempre com toda a cortesia, quando eu te procurar. Mas para aliviar-te dos receios que te torturam a alma, afianço-te que ainda hoje empreenderei viagem. Antes, porém, aqui voltarei para me despedir de ti e então espero que nos separemos em paz.

Deixei o palácio e voltei para junto dos companheiros. No caminho encontrei um pelotão de Arnautes, que, intimidados, afastaram-se para o lado, a fim de abrir-me passagem. No portão achava-se Mersinah contemplando os soldados. Suas faces estavam rubras de cólera.

- Emir, já se viu uma coisa dessas? - disse a despótica governanta bufando.

- Quê?

- Um Mutesselim ordenar busca na casa do seu próprio Agha de Arnautes!

- Não sei disso, oh! anjo desta casa, pois nunca na minha vida fui Agha de Arnautes e nem de coisa alguma!

- E sabes o que procuravam nesta busca?

- Não. O quê?

- O árabe fugitivo! Procurar um fugitivo na casa do seu carcereiro! Mas deixa esse Agha chegar em casa, que lhe direi o que faria eu no seu lugar!

- Não brigues com ele! O pobre vai sofrer uma grande mágua.

- Por quê?

- Porque vou empreender viagem na companhia dos meus camaradas.

- Tu?

A “Murta” tinha um ar de incredulidade.

- Sim eu. Tive uma questão com o Mutesselim e não desejo permanecer mais numa localidade governada por ele.

- Allah, Tallah, Wallah! Senhor, fica, que eu obrigarei aquele désposta a tratar-te com todas as honras que mereces!

Era uma promessa a cujo cumprimento seria interessante assistir! Não podia, porém, esperar mais e dirigi-me aos aposentos, enquanto a voz da “Murta” continuava a ribombar embaixo como trovão ao longe. Em cima achava-se o Baschi Bozuk diante da escada. Ouvira minha voz e me esperava.

- Efêndi, vim despedir-me de ti!

- Entra, vou pagar-te os salários.

- Oh! Emir, já estou pago de tudo!

- Quem te pagou?

- Aquele homem de cara comprida.

- Quanto te deu ele?

- Isto!

Com os olhos resplandecendo de alegria o pobre homem levou a mão à bolsa do cinturão e dela tirou um punhado de moedas de prata.

- Mas vem, não obstante. Se é assim, o homem da cara comprida pagou-te os salários e eu agora vou pagar o burro.

- Allah kehrim, não vendo aquele animal por dinheiro nenhum do mundo! - exclamou Baschi Bozuk espantado.

- Quero pagar-te é o salário do burro e não comprá-lo, compreendes?

- Maschallah, se fôr assim, entrarei!

Ele entrou comigo no meu aposento, onde não havia ninguém. Passei-lhe um atestado de bons serviços e dei-lhe ainda algum dinheiro, com o que o homem ficou quase fora de si de contentamento.

- Emir, nunca encontrei um Efêndi tão bondoso como tu. Gostaria que fosses meu capitão, ou meu major, ou coronel! Então, sim, por ti ofereceria o meu peito nos campos de batalha a ponto de perder o nariz, como já me sucedeu uma vez. Isto aconteceu na grande batalha de...

- Deixa aquela batalha em paz, meu bom Ifra. Estou convencidíssimo de tua bravura e dos feitos heróicos que já registraste na tua folha militar! Estiveste hoje com Mutesselim?

- O Basch Tschausch levou-me à sua presença e eu tive que responder uma porção de perguntas que me fêz.

- Quais foram as perguntas que ele te fêz?

- Se em nossa companhia se achava um prisioneiro; se tu mataste muitos turcos no combate com os Dschesidis; se por acaso eras algum ministro de Stambul e muitas outras coisas mais que de momento não me recordo.

- Em tua viagem passa por Spandareh, Ifra. Procura o decano daquela aldeia e dize-lhe que hoje segui para Gumri e que entreguei o seu presente ao genro. Chegado a Baadri, procurarás o Bei Ali e confirma as notícias que Selek vai levar pessoalmente.

- Também este vai hoje embora?

- Sim. Onde está ele?

- Junto do seu cavalo.

- Dize-lhe que pode selar a sua montaria. Vou mandar algumas cartas por seu intermédio. E, agora, passa bem, Ifra! Que Alá te proteja a ti e ao teu burro! Não te esqueças nunca de que ele deve levar uma pedra na cauda!...

Os três companheiros estavam sentados no quarto do inglês, armados em pé de guerra. Halef quase abraçou-me de alegria e o inglês estendeu-me a mão tão afetuosamente que adivinhei logo ter ele estado preocupadíssimo com a minha sorte.

- Correu perigo, Sir? - perguntou-me.

- Cheguei a estar metido no mesmo calabouço de onde retirara Amad el Ghandur.

- Ah! Esplêndida aventura! Foi prisioneiro! Por quanto tempo?

- Pois dois minutos.

- Libertou-se sozinho?

- Sozinho. Quer que lhe conte toda a história?

- Claro! Well! Yes! Lindo país este, muito lindo! Todos os dias sensações cada vez mais emocionantes!

Narrei-lhe tudo e por fim acrescentei:

- E dentro de uma hora deixaremos Amadijah!

O inglês me olhou interrogativamente.

- Com destino a Gumri - terminei.

- Oh! Foi lindo isto aqui! Muito interessante!

- Mas ainda ontem achava o senhor tudo insípido! Como é isso, Mister Lindsay?

- Claro! Eu não tinha que fazer! Contudo foi esplêndida a nossa temporada! Romântica! Yes! Como vai ser em Gumri?

- Mais romântica ainda!

- Well! Então vamos para lá!

 

OS ÚLTIMOS MOMENTOS EM AMADIJAH

Ele levantou-se e foi aprestar a sua montaria, dando-me assim tempo para eu contar também aos outros companheiros a minha última aventura. Ninguém mais se alegrou com a nossa partida do que Maomé Emin, cujo coração de pai anseava por estar junto do filho. Também ele se ergueu ligeiro do solo para fazer os preparativos de viagem. Voltei ao meu quarto para escrever uma carta ao Bei Ali. Nela contei-lhe em poucas palavras todo o sucedido, e agradeci-lhe calorosamente as suas duas cartas que tão relevantes serviços me prestaram na situação em que me encontrei. Entreguei as cartas a Selek, que deixou imediatamente Amadijah. Não quis ele unir-se à escolta, pois como Dschesidi preferiu viajar sozinho. Nisso ouço rumores de duas pessoas a subir as escadas. Agha Selim entrou juntamente com a “Murta”.

- Efêndi, falaste sério ao dizer que irias deixar Amadijah? - perguntou-me o comandante dos Arnautes.

- Falei, e ouviste muito bem quando declarei isso a Mutesselim.

- Eles já estão selando os animais! - disse a “Murta” soluçando e fingindo enxugar algumas lágrimas; infelizmente, porém, levou a mão apenas até a altura do nariz.

- Para onde pretendes seguir?

- Mutesselim não precisa saber disso, Agha. Vamos para Gumri.

- Não chegarão lá hoje.

- Pernoitaremos então no caminho.

- Senhor, - pediu-me Mersinah - fica ao menos esta noite era nossa companhia. Vou preparar-te as mais deliciosas iguarias!

- É coisa resolvida: partiremos!

- Creio que não temes a Mutesselim.

- Que não o temo ele próprio sabe muito bem!

- E eu também! - acudiu Agha. - Obrigaste-o a entregar-te duas mil piastras, basta este fato!

“Murta” arregalou os olhos.

- Maschallah! Que soma! - exclamou eletrizada.

- E tudo em ouro - acrescentou Agha.

- A quem pertence todo esse dinheiro?

- Ao Emir naturalmente - replicou Agha. - Emir, devias ter dito também algumas palavras a meu favor!

- Não disseste, Efêndi? - perguntou a “Murta”. - Lembra-te de que prometeste dizer!

- E cumpri a minha promessa.

- Realmente, Emir? Quando falaste com o Mutesselim a este respeito?

- No momento em que Agha esteve com ele.

- Senhor, não ouvi coisa alguma! - exclamou este desenxabido,

- Maschallah! - exclamei - Ficaste então surdo de um momento para outro! O Mutesselim ofereceu-me quinhentas piastras em lugar das cinco mil que lhe exigi!

- Sim, mas exigiste pela parte que te cabia e não pela minha!

- Agha Selim, tu afirmas ser meu amigo e, no entanto duvidas da minha palavra! Não compreendes então que para eu conseguir alguma coisa precisava fingir que a importância se destinava a mim?

- Fingir... ?

O homem fitava-me como que petrificado.

- Fingir? - exclamou “Murta”.

A governanta percebera o enredo da história antes que Agha.

- Por que precisavas fingir? - continuou ela. - Continua, Emir!

- Já esclareci tudo a Agha.

- Emir, jamais esclareças coisa alguma a Agha, porque ele ficará na mesma. Nunca vi homem de bestunto tão acanhado! Esclarece antes a mim!

- Se eu houvesse exigido o dinheiro para Agha, este incorreria nas iras do seu chefe...

- Tens razão, Efêndi - acudiu a mulher apressadamente. - Sim, a situação ao invés de melhorar, mais se agravaria, porque depois de tua partida teríamos que devolver-lhe todo o dinheiro.

- Foi exatamente nisso que pensei e daí a razão de eu haver negociado as coisas como se fossem de meu interesse!

- E realmente não pediste aquela quantia para ficares com ela? Oh! Dize depressa!

A nobre “Murta” tremia toda.

- Não, a soma que arranquei ao comandante pertence a Agha, respondi-lhe.

- Maschallah! É verdade, Emir?

- Naturalmente!

- Então ele vai receber realmente mais dinheiro além dessas quinhentas piastras?

- Vai sim.

- Quanto?

- O dinheiro todo.

- Allah illa Allah! Quando, quando?

- Agora, já.

- Hamdulillah! Graças e louvado seja Alá! Ele por tuas mãos nos torna ricos. Cumpre agora a promessa!

- Aqui está o dinheiro. Vem, Agha!

Contei-lhe a importância toda na mão que ele me estendeu aberta.

O pobre quis fechar depressa a mão, mas a draconiana “Murta” foi mais ágil do que ele. De chôfre avançou no dinheiro e apoderou-se das moedas de cem piastras.

- Mersinah! - disse-lhe Agha.

- Agha Selim! - vociferou-lhe a governanta.

- O dinheiro pertence a mim! - exclamou.

- E será teu, ninguém disse o contrário!

- Sei guardar o meu dinheiro, não preciso da tua ajuda para isso! - resmungou o chefe dos Arnautes.

- Em minhas mãos está mais seguro - tornou ela.

- Dá-me, ao menos, um pouco dele! - pediu-lhe.

- Ora deixa-me zelar pelo teu futuro! - respondeu bajulando.

- Dá-me ao menos as cinqüenta piastras de ontem!

- Essas te darei, Agha!

- Todas?

- Todas sim, mas o diabo é que vinte e três já se foram!

- Foram-se para onde, Mersinah?

- Inverti-as na compra de farinha e água para os presos.

- Água? Mas como, se água não custa nada?

- Para os prisioneiros nada é de graça, lembra-te disso Agha! Mas, Emir, tu é que ficaste sem um pára...

Agora, que ela estava de posse do dinheiro todo, é que se mostrava interessada por minha situação financeira. Aquela “Murta”!

- Não quero nem uma moeda desse dinheiro! Nem me seria permitido embolsá-lo!

- Não te seria permitido? Por quê?

- A minha religião me proíbe.

- Tua religião? Allah illa Allah! Religião alguma impede que a gente receba dinheiro!

- Oh! Sim! Esse dinheiro não pertence ao Makredsch, pois ele não o adquiriu por meios lícitos tampouco a Mutesselim ou a Agha. Mas de qualquer forma iria parar em mãos de quem a ele não tem direito e só esta razão é que me levou a obrigar Mutesselim, a entregar uma parte dele a Agha. Como seria inevitável a fraude, que esta ao menos não trouxesse vantagens exclusivamente a Mutesselim, que Agha filho de Deus também é!

- Efêndi, sublime religião a que professas! - assegurou-me “Murta”. - Como és um adepto fervoroso do Profeta. Que Alá te abençoe?

- Mas ouve, Mersinah. Se eu fosse um adepto fervoroso do Profeta, tu nada receberias, pois embolsaria tudo para mim. Não sou muçulmano, não!

- Não és muçulmano? - exclamou ela surpreendida.

- Sou cristão.

- Maschallah! És um Nesorah (*)?

- Não. Minha fé é bem diversa da dos nestorianos.

- Crês então na Omm Allah Marryam (2)?

- Creio.

- Oh! Emir, todo o cristão devoto desta santa é homem de bem! - Como sabes disso?

- Por ti chego a tal conclusão; também Marah Durimeh sempre me diz.

- Ah! Tu a conheces?

- É conhecidíssima em toda a cidade. Raramente ela vem a Amadijah, mas quando chega distribui suas bênçãos a quem quer que encontre pelo caminho. Também é adepta da Omm Allah Marryam e é a salvação de muitos. Mas lembro-me agora de que preciso ir vê-la.

- Ja não está mais na cidade.

- Sim, já partiu, contudo preciso ir a casa onde ela esteve parando.

- Por quê?

- Vou avisar àquela gente que te vais embora.

- Quem te mandou avisar?

- O pai da moça que curaste.

- Não vás. Fica aqui!

- Preciso ir!

- Mersinah, não vás! Ordeno-te!

Minha ordem de nada valeu; descera já a escada e, quando assomei à janela, vi-a atravessar a praça.

- Deixa-a ir, Efêndi - disse Agha Selim. - Oh! por que me deste todo aquele dinheiro na presença dela? Agora estou mais “pelado” do que antes, pois daquilo tudo nem um pára receberei.

- Tem ela o feio hábito de apossar-se do que não lhe pertence?’

__________

(1) Nestoriano.

(2) Maria, Mãe de Deus.

 

- Isso não! Mas é uma grande sovina, Efêndi! Tudo que não seja necessário para a manutenção nossa e dos prisioneiros ela guarda em lugar bem seguro, para que eu não ache. Tem orgulho em saber que, depois de sua morte, passarei a ter muito dinheiro. Mas com isso é que eu não estou satisfeito, não! Passo por duas privações, levo uma vida de verdadeira miséria. Fumo dos piores tabacos e quando visito o judeu de todos os remédios sou obrigado a beber o pior deles. Esta medicina, não é... eficaz!

 

A PARTIDA

Aborrecidíssimo, o denodado Agha saiu a passos, seguido por mim para o pátio onde os cavalos já estavam sendo selados. Depois disso, na companhia do inglês, dei algumas voltas pela cidade para fazer diversas compras. Ao voltarmos, todos já se achavam reunidos no portal; da casa, prontos para a partida. Entre eles achava-se um homem em quem de longe reconheci o pai da minha cliente.

- Senhor, soube que vais partir - exclamou o bom homem, vindo-me ao encontro. - Ao saber disso, aqui vira trazer-te minhas despedidas. Minha filha não demora estar cheia de saúde como dantes; ela, eu e minha mulher rogaremos a Deus que te proteja! E para que não te esqueças de nós, trouxe-te uma pequena jadikar (1); pedimos-te com fervor que a aceites!

- Aceitarei, se fôr uma usak-defek (2), senão, não!

- É tão pobre e insignificante que me acanho de entregar-te em mão. Permite-me que a entregue ao teu criado! A qual deles?

- Aquele que está perto do Rappe.

O homem tirou de sob o manto um estôjo bordado com pérolas e entregou-o a Halef. Vi depois que entregou outro objeto ao criado, além da referida dádiva. Agradeci-lhe e despedimo-nos.

Era agora a parte mais difícil do programa: a despedida de Agha e de “Muta”. O primeiro revistou cavalo por cavalo, examinando se todas as peças estavam em ordem e, ao fazer isso, revirava constantemente os olhos. As pontas de seu bigode arfavam como se fossem algum fole de ferreiro e, de quando em quando, levava a mão ao pescoço como se algo o estivesse a estrangular. Por fim estendeu a mão a Halef em despedida. Começava pois debaixo para cima...

- Adeus, Hadschi Halef Omar! Que Alá esteja sempre contigo!

Agha nem ouviu a resposta do pequeno Halef, mas deu um pulo até perto do cavalo, para matar uma mosca que lhe pousara no pescoço. Depois, num enérgico recuo, afastou-se do animal e estendeu a mão a Maomé.

- Que Alá esteja sempre contigo e com a tua gente! Volta à nossa casa, se os caminhos do Profeta te conduzirem a Amadijah!

Nisso notou que o peitoral do serigote do cavalo do inglês estava alguns centímetros enviesado. Apressou-se em arrumá-lo, acocorando-se debaixo do animal e dando ares de quem estava a fazer muita força. Por fim terminou o serviço e apertou a mão ao ginete.

_________

(1) Lembrança.

(2) Barato.

 

- Sídi, que teu caminho seja sempre abençoado por...

- Well! - interrompeu-o o inglês. Aqui!

Uma propina caiu sobre a palma da mão de Agha e pela atitude do inglês devia ser ela bem gorda. Este gesto do inglês, tornou o chefe dos Arnautes mais confuso ainda. Reatou o fio de sua saudação.

- Sídi, que teus caminhos sejam sempre abençoados por Alá...

- Well? - atalhou novamente o inglês e uma nova remessa de backscbich caiu-lhe sobre a mão. Hadschi Lindsay desconhecendo o idioma turco, tomava por um pedido de gorgeta o ato do homem estender-lhe a mão.

- Sídi, - recomeçou Agha em voz mais alta - o teu caminho é o caminho dos justos.

- Well! - soou pela terceira vez.

Desta vez, porém, Agha recolheu subitamente a mão e valeu-se do ensejo de estar eu montado a cavalo para segurar-me o estribo. A sua fisionomia adquiriu o aspecto de nuvens sombrias carregadas com vendavais; trêmulo de emoção abriu a boca para proferir palavras de despedida, mas naquele instante lágrimas abundantes que há minutos vinha contendo num esforço brutal, jorraram-lhe face abaixo. As palavras que então balbuciou, chorando, tornaram-se meras sílabas isoladas e incompreensíveis. Estendeu-me a mão; tomei-a entre as minhas e apertei-a com força, pois também me achava tocado pela emoção do homem que era sincera e desinteressada. Depois, fugindo ao espetáculo pouco edificante de um homem chorar em público, saiu a correr e colocou-se novamente no portal da casa. Boa alma, francamente!

Mersinah estava, aliás, à espera que Agha se retirasse. Veio correndo, com uma fisionomia risonha e iluminada. Ia começar a despedida por Halef, quando eu, aproximando-me deste, a cavalo, ordenei-lhe:

- Halef, segue com os outros vale abaixo que, enquanto isso, vou ao palácio ter com o Mutesselim. Depois os alcançarei depressa.

Depois virei-me para Mersinah.

- Aqui tens minha mão! Agradeço-te por tudo! Passa bem, não morras jamais e pensa em mim, sempre que estiveres a cozinhar os manjares dos presos!

- Passa bem, Emir, tu és a alma mais generosa que...

Não ouvi mais nada. Dei de esporas no cavalo e saí a galope, seguido, pari-passu, pelo meu galgo, em direção ao palácio. Lá chegado, amarrei o animal na frente. Na ante-sala achavam-se reunidas várias pessoas. Todas as caras eram conhecidas, alguns funcionários e outros que participaram da reunião em minha honra, na noite de minha chegada a Amadijah. Quando deram com o cachorro, levantaram-se do solo espantadas.

- Onde está Mutesselim? - perguntei-lhes.

- No seu gabinete - respondeu um dos presentes.

- Está sozinho?

- O guardião do palácio está com ele.

Nem me fiz anunciar, mas fui logo entrando com toda a desenvoltura. O cachorro acompanhou-me. O guardião fêz uma cara apavorada e Mutesselim de chôfre ergueu-se do solo.

- Efêndi, que fazes aqui? - exclamou este.

- Venho despedir-me de ti.

- E para isso precisavas vir com o cachorro?

- Este cachorro é melhor do que muita gente. Disseste-me que eu não viesse mais à tua presença e eu venho com o cachorro. É esta a resposta de um Emir de Germanistão. Sallam!

Deixei o gabinete com a mesma rapidez com que nele entrara e saí do palácio. Lá fora esperei ainda um pouco, mas ninguém ousou vir tomar-me satisfações. Montei e parti. Quando alcancei os companheiros, estes já haviam transposto o portão da cidade; a despedida da Mersinah, tomara-lhes muito tempo.

- Que fêz mais com Mutesselim? - perguntou-me Sir Lindsay. Narrei-lhe a despedida sarcástica que levei ao comandante.

- Excelente! Hum! Que temeridade! Pagaria boa propina por esta bravata, se o senhor fosse outro homem. Yes!

O inglês continuou ainda por algum tempo a rir e a falar com os seus botões.

 

AMAD REUNE-SE À CARAVANA

Não demoraria muito e teríamos que apear e puxar os cavalos pelas rédeas, pois estávamos prestes a atingir o íngreme caminho descrito pelo jovem curdo. Esporeamos os cavalos e atingimos o local, onde desviáramos em procura de um esconderijo para Amad. Aqui Halef apeou e entranhou-se na mata a ver se éramos seguidos e espionados. Continuamos em direção ao esconderijo.

Chegados ao grupo de carvalhos, disse o inglês:

- Aprazível vila aquela lá em cima. Well! O felizardo habitante está a fumar cachimbo comodamente.

Realmente, viam-se algumas nuvenzinhas de fumo sairem pela “Vila Amad” acima. O árabe estava metido no fundo do ôco da árvore e só se apercebeu de nossa chegada depois que lhe despertamos a atenção com um alto brado. Pôs de fora a cabeça e logo nos reconheceu. O puríssimo ar da mata, respirado por ele, e a abundante e suculenta alimentação que vinha ingerindo restauraram-lhe as forças, permitindo-lhe pelo menos descer da árvore sem o auxílio de ninguém. Devolveu-me o laço que lhe emprestara na véspera.

Voltamos a galope e entramos novamente na estrada real, visto que tencionávamos cavalgar o maior trajeto possível, para nos afastarmos de Amadijah e das vistas do seu Mutesselim. Halef nada nos comunicou haver notado de suspeito nas observações que fizera, e nos dirigimos então para o local onde ficavam as residências de verão dos habitantes endinheirados da cidade.

Cavalgamos vale acima, cuja esplanada era banhada por um arroio que corria da montanha. Mais para cima dividia-se esse arroio em vários braços; a planície distendia-se e alargava-se, apresentando uma infinidade de cabanas e palhoças dispostas em pitoresca assimetria e que constituíam as residências de verão.

Fora felicíssima a escolha daquele local para nele instalar as residências de verão. As cabanas e palhoças estavam à sombra dos pomares, carinhosamente cultivados, e de trepadeiras; ramagens exóticas, tapetando as escarpadas, completavam o todo poético e demasiadamente belo daquele subúrbio de veraneio. Este vale salubérrimo constituía um flagrante, mas adorável contraste com a atmosfera saturada de bacilos que se respirava na fortaleza de Amadijah!

Enquanto os demais prosseguiam a trote largo para se afastarem o mais possível de prováveis batedores que nos estivessem seguindo, apeei-me junto com o inglês em frente a uma casa de câmbio; Lindsay trocou nesse estabelecimento uma grande quantidade de moedas por outras em curso nas terras para as quais seguíamos.

Meia hora depois atingíamos o espinhaço da montanha, embora o trajeto fosse de duas milhas inglesas. Daí já descortinávamos todo o vale de Berwari em nossa frente, vale em que nos acharíamos a coberto de qualquer perseguição da parte dos turcos.

Ao longe verdejavam as montanhas do Tijari, das quais destacava-se principalmente o pico de Aschiehtah. Os seus cumes brilhavam alvacentos, pois estavam cobertos de neve; no entretanto há bem pouco tempo, ao transpormos as savanas dos Haddedihns, tivemos que escovar os cavalos das flores que o outono fizera cair sobre eles.

À direita daquelas montanhas, subiam por trás dos vales de Zab, férteis em aguadas, a região montanhosa de Tkhoma e mais para o sul viam-se as elevações de Tura-Ghara, do Dschebel Haiir e do Zibar. A respeito do Tijari e Tkhoma falara-me a velha Marah Durimeh. Instintivamente lembrei-me do seu mistério, do “Espírito da Caverna” que pontificava naquelas regiões. Teríamos ainda oportunidade de nos defrontarmos com ele na presente jornada?!

 

Entre vingadores de sangue

Da elevação que fica por trás de Amadijah, corre a estrada para a planície de Newdascht. Lá chegados, fincamos as esporas nos flanços dos animais, a fim de vencermos o mais rápido possível o ressequido solo que caracteriza aquela planície.

Atingimos assim a aldeia Maglana, sobre a qual o curdo Dohub me falara. É habitada exclusivamente por curdos que vivem em permanentes hostilidades com os caldeus das aldeias circunjascentes. Paramos apenas para nos informar-mos do caminho: depois prosseguimos sempre a galope. Passamos por localidades exterminadas, cuja destruição provocada por chamas devoradoras, arrastara consigo imensas ondas de sangue. Os destroços achavam-se espalhados em grandes extensões e os animais de presa das matas haviam dissecado as ossaturas humanas que aqui e ali encontrávamos aos montes. Um calafrio mortal perpassou-me pelo corpo!

- Ao longe, em ambos os lados, víamos, de quando em quando, tênues nuvens de fumaça subirem aos ares. Enxergamos depois o muro de uma casa, escapada milagrosamente aos efeitos dos elementos destruidores. À nossa frente surgiu um cavaleiro que se afastou para o mato, ao notar que éramos superiores em número.

Anoitecia quando vislumbramos um grupo de umas trinta casas espalhadas pela planície. Era a aldeiazinha de Tiah, onde pretendíamos pernoitar. Não sabíamos ainda, é claro, de que maneira ali seríamos recebidos.

Fomos avistados de longe e numerosos cavaleiros nos vieram ao encontro; o seu propósito certamente era repelir-nos, no caso de sermos inimigos, ou acolher-nos, se os procurássemos com fins amistosos. A uns dois mil passos da aldeia os cavaleiros fizeram alto para nos esperar.

- Conservem-se um pouco à retaguarda! - ordenei aos meus companheiros e galopei para a frente.

Vi que, ao notarem o meu cavalo, se entreolharam; aquilo, ao mesmo tempo que me orgulhava, deixava-me um pouco receoso daquela gente. Embora se possua uma boa montaria, armas e dinheiro, nunca se está em segurança no meio daquele povo bandoleiro e semi-selvagem. Fica-se sujeito a perder tudo e muitas vezes até a própria vida!

Um dos cavaleiros adiantou-se.

- lvari! I kher! - Boa noite! - saudei-o.

Depois de responder ao cumprimento, passou a examinar-me desde o turbante até os cascos do cavalo e então passou a fazer-me perguntas:

- De onde vens tu?

- De Amadijah.

- Para onde pretendes seguir?

- Para o Kalah de Gumri.

- Que és: turco ou árabe?

- Não sou nem uma coisa nem outra, mas sim um...

- Cala-te! - vociferou o homem. - Responde ao que te estou perguntando. Falas curdo, mas curdo não és. És por ventura grego, russo ou persa?

Limitei-me a menear a cabeça negativamente e o meu interlocutor se viu em situação embaraçosa, sem saber o que me perguntar mais. Recebia-me aquele homem como se fosse ele um vigilante de fronteiras russas. Não permitia que lhe dissesse a que povo eu pertencia, pois, estava disposto a adivinhar com sua pretensa agudeza de espírito. Mas como esta lhe falhara agora, desferiu um violento soco nos olhos de seu cavalo, que soltou angustiosos bufidos de dor.

- Afinal, a que povo pertences? - resolveu, por fim, perguntar.

- Sou um tschermaka (1) - respondi-lhe orgulhosamente.

- Um tschermaka? - exclamou o meu interlocutor. - Conheço a Tschermaki. (2) A sua tribo habita as margens do lago Urmiah, em miseráveis cabanas de junco.

Essas palavras foram pronunciadas em tom de profundo desprezo.

- Enganas-te - retruquei-lhe. - Os tschermakas não habitam as margens do lago do Urmiah e tampouco residem em cabanas de junco.

- Cala-te! Conheço muito bem os tschermakas, e se não sabes onde moram é porque a eles não pertences. Quem é aquele curdo ali? Dizendo isso, o homem apontava para o inglês.

- Não é curdo, não; apenas usa trajes curdos.

- Se apenas usa trajes curdos é porque curdo não é!

- Pois foi exatamente o que afirmei!

- E se curdo não é, não pode, nem tem o direito de andar vestido como curdo! Isso não admitimos! Quem é ele, afinal de contas?

- Um inglis - respondi-lhe secamente.

- Um inglis? Oh! Conheço os inglis; moram do lado de lá da montanha Ararat, são salteadores de caravanas e se alimentam repugnantemente de gumgumuku gaurana (3)!

- Enganas-te novamente! Os inglis não residem na região do Ararat; não são salteadores de caravanas e menos ainda se nutrem de lagartos!

- Cala-te! Eu estive com os inglis e na companhia deles comi gumgumuku gaurana e até gummumuku selana. E se êle não os come, inglis não é! E quem são os outros três cavaleiros?

- Um deles é meu criado e os demais são árabes.

- Árabes de que tribo ou ramificação?

- Peretencem à grande tribo dos Schammares.

Eu lhe dissera a verdade porque me fiava na inimizade reinante entre os turcos e os schammares. Um inimigo dos turcos deveria ser um amigo dos curdos. É verdade que as tribos sulinas dos schammares viviam também em constantes rixas com as tribos dos curdos do sul, mas isso devido às incursões hostis que estes faziam, saqueando e oprimindo as populações dos schammares. Agora, porém nos achávamos no centro do Curdistão, onde por certo não haveria a menor tensão das relações curdo-árabes, razão por que me arrisquei a fazer aquela declaração. Aliás os curdos viviam

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(1) Alemão.

(2) Alemanha.

(3) Lagartos.

 

em permanentes desforras sangrentas com várias tribos irmãs num estado de guerra que parecia não findar mais.

- Conheço os schammares; moram na embocadura do Eufrates, bebem água do mar e possuem mal olhar. Casam-se com as suas próprias mães e fazem rolos de carne de porco (1).

- Estás outra vez equivocado. Os schammares não moram à beira-mar e nem comem carne de porco.

- Cala-te! Eu em pessoa os visitei e vi tudo! Se estes homens que te acompanham não se casaram com as suas mães é porque não são schammares. Vivem também os schammares em lutas sangrentas com os curdos do Sar Hasan e do Zibar e portanto são também inimigos nossos. Que pretendem vocês fazer aqui?

- Perguntar se têm uma cabana para nela pernoitarmos.

- Não temos cabanas. Somos curdos de Berwari e residimos em casas confortáveis. Uma delas ficará à sua disposição desde que provem que não são nossos inimigos.

- Que espécie de provas exige para que te convenças da verdade do que afirmei?

- Que nos entreguem seus cavalos e suas armas.

“Oh! vis mentirosos e papa-lagartos! Estão aí a considerar idiota a gente que faz lingüiça!”

Isto disse eu, naturalmente, de mim para comigo. Em voz alta, porém, repliquei-lhe:

- Jamais um homem se separa de seu cavalo e de suas armas!

- Neste caso, não poderão pernoitar em nossa aldeia! - declarou o curdo, asperamente.

- Prosseguiremos, então, nossa viagem! - respondi-lhe em tom brusco, retrocedendo para os meus companheiros.

Os demais curdos fecharam um círculo em torno do seu chefe.

-  Que disse ele? - perguntou o inglês.

-  Querem que lhes entreguemos nossas montadas e o nosso armamento para que obtenhamos pousada.

- Ah! Que as venham buscar! - urrou o inglês.

- Por amor de Deus, Sir! Nenhum tiro, hoje! Os curdos cultivam a desforra de sangue em grau mais elevado ainda do que os árabes. Se cometemos a imprudência de matar ou ferir um deles, por nos tratarem hostilmente, estaremos perdidos! São eles cinco vezes mais numerosos que nós.

- E que faremos então? - perguntou.

- Continuaremos a viagem, e se nisso nos embaraçarem, procuraremos um entendimento com eles.

Propus a mesma coisa aos demais camaradas e, como nenhum deles era covarde, todos concordaram com o meu alvitre. Aqueles curdos não eram, por certo, da aldeia, pois esta não podia dispor de um tão elevado número de guerreiros adolescentes; achavam-se, com certeza, ali reunidos para tratar de qualquer assunto, e assunto talvez bem grave, pois todos estavam animados de espírito verdadeiramente belicoso.

_________

(1) Lingüiça.

 

Dissolveram então o círculo e se espalharam em grupos desordenados: não se moviam de seus lugares e a sua aparência era de quem aguardava a nossa decisão.

- Pretendem embargar-nos o caminho! - disse Maomé Emin.

- Pela aparência não se depreende outra coisa - concordei eu. - Não façam uso das armas a não ser que estejamos em perigo de vida!

- Em vista da atitude daqueles homens, tentemos voltear a aldeia! - propôs o meu criado árabe.

- A opinião é boa. Vamos!

Desviamo-nos da rota para dobrar em arco, mas no mesmo instante, os curdos se movimentaram e o chefe deles veio ter comigo.

- Para onde pretendem seguir agora? - perguntou-me.

- Para Gumri - respondi-lhe, acentuando a última palavra.

A minha resposta parecia não ser do desejo do chefe curdo, pois replicou-me:

- Fica muito distante e a noite já vem caindo. Não alcançarão hoje aquela aldeia.

- Pernoitaremos noutra povoação ou, então ao ar livre.

- Se fizerem isso, serão atacados pelas feras das matas, e vejo que possuem péssimas armas de defesa.

Aquilo naturalmente era uma indireta para obter de nós informações mais detalhadas sobre nossas armas. Talvez fosse vantajoso concordar com ele, pois a sua cobiça pelas nossas armas poderia acarretar-nos graves perigos. Não obstante isso, respondi-lhe:

- Usamos armas eficientíssimas!

- Não creio! - respondeu.

- Oh! Trazemos conosco armas tão poderosas que uma só delas bastaria para matar vocês todos!

Deu uma risada irônica e retrucou:

- Tens uma boa garganta!... Mostra-me a tal arma! Tirei um dos meus revólveres do coldre e disse ao curdo:

- Estás vendo esta coisinha insignificante? Chamei em seguida o meu criado e ordenei-lhe:

- Quebra um ramo de arbusto, deixa no mesmo apenas seis folhas e segura-o para o alto. Depois alvejarei as folhas uma por uma,

O criado saiu logo a cumprir a ordem e os demais curdos, notando, de que se tratava, aproximaram-se. Cavalguei até uma certa distância e fiz a mira. Os seis tiros foram detonados um após outro e Halef apresentou ao chefe curdo o galhinho limpo de folhas.

- Katera Chodeh! (1) - exclamou este. Todas as seis folhas foram arrancadas a bala!

- E não foi nada difícil! - declarei, dando-me ares de importância. - Entre os tschermakis qualquer criança faz o mesmo. A principal particularidade desta arma, porém, é que se pode com ela alvejar muitos tiros com notável rapidez sem que seja preciso carregá-la.

O homem mostrou o gatilho à sua gente; enquanto o examinavam, tirei seis

____________

 (1) Por Deus!

 

cartuchos da patrona e carreguei novamente o revólver; fi-lo, porém, por trás do cavalo, para que não o notassem.

- Estás vendo aquela tu (1)? Atenção!

Apeei, assestei a escopeta Henry e a detonei por onze vezes. A cada tiro, os curdos proferiam uma exclamação de crescente admiração.

- Vão agora até aquela amoreira e a examinem.

Todos correram, e muitos, para melhor examinar a árvore, desceram dos cavalos. Isso deu-me tempo para carregar de novo a arma. Idêntica façanha! Com a mesma arma me impusera ao respeito dos comanchos, nos Estados Unidos (2); esperava que o mesmo acontecesse agora. Dai a pouco voltou o chefe exclamando já de longe:

- Chodih! (3) acertaste os onze tiros e um por baixo do outro em admirável simetria!

Era um bom sintoma o tratamento de senhor que ele me dava agora.

- Conheces por enquanto apenas duas de nossas armas, mas creio ser o suficiente para te convenceres de que não precisamos recear os animais ferozes das matas.

- Mostra-nos as outros armas!

- Não disponho de tempo para isso, o sol está declinando no horizonte e temos que prosseguir viagem.

- Espera um instante!

Galopou para o grupo de sua gente e com ela entrou a conferenciar. Depois voltou e declarou-me:

- Podes pernoitar em nossa aldeia.

- Mas não entregamos nem os nossos cavalos e menos ainda nosso armamento em paga da hospedagem .

- Nem é necessário. Vocês são cinco homens e cinco dos nossos se prontificaram a ceder cada um deles um leito. Tu pousarás na minha casa.

 

UMA HOSPEDAGEM PERIGOSA

Hum! Aquilo não me inspirava confiança! Eu precisava proceder com toda a cautela. Por que mudaram eles subitamente de atitude? E por que não nos deixavam prosseguir viagem?

- Contudo, não ficaremos aqui e continuaremos nosso caminho - declarei-lhe. - Temos que nos dividir e isso não nos serve. Somos todos companheiros e amigos e só pousaremos onde haja lugar para ficarmos todos juntos.

- Espera então outro instante!

Os curdos voltaram a conferenciar entre si, demorando-se mais desta vez. Parecia que eles pretendiam fazer tempo, até escurecer e, deste modo, impedir-nos a continuação da viagem. Finalmente o chefe voltou.

- Chodih, será feita a tua vontade. Cederemos uma casa, onde todos poderão _______

(1) Amoreira.

(2) Vide “Winnetou”, 3º volume.

(3) Senhor.

 

pernoitar em comum.

- Há também lugar para os nossos animais?

- Sim, na própria casa há um pátio onde eles podem ficar.

- Pernoitaremos sozinhos na casa?

- Claro, atualmente está desocupada. Vê, lá já vai um dos meus homens para transmitir as ordens neste sentido. Querem os alimentos de graça ou podem pagá-los?

- Queremos ser teus hóspedes. Podemos?

- Podem.

__ Sem duvida, és tu o nezanum da aldeia?

- Sou eu mesmo.

- Neste caso estende-me ambas as mãos e dize-me que sou teu bamscher (1)!

O decano atendeu-me embora depois de alguma hesitação. Agora sim, me sentia seguro e fiz um sinal aos companheiros para que se aproximassem. Fomos levados para o meio dos curdos e, depois, a galope, seguimos para a aldeia. Diante de uma casa relativamente vistosa o chefe nos fêz parar e disse:

- Esta é a casa onde passarão a noite! Podem entrar!

Antes de apear, examinei bem a casa por fora. Compunha-se apenas de um pavimento, cujo sótão parecia ser destinado ao depósito de feno. O pátio era cercado por um muro de uns dois metros de altura e nele vicejava alguma relva entremeada de alguns tufos de arbustos. Para alcançá-lo era necessário passar pela casa.

- Estamos satisfeitos com esta casa. De onde buscaremos feno país os nossos animais? - perguntei-lhe.

- Chegada a hora, mandarei forrageá-los.

- Mas lá em cima há um galpão com feno, pelo que vejo!

Visivelmente embaraçado, o homem olhou para cima e respondeu depois de alguns segundos:

- A forragem que ali está recolhida não é lá muito boa; pode fazer mal aos animais.

- E quem cuidará de nossas refeições?

- Eu as trarei pessoalmente, juntamente com um lampião. Se desejarem mais alguma coisa é só me avisar. Moro naquela casa ali!

Apontou para uma casa que ficava bem perto da que nos fora destinada. Apeamos e levamos os animais para o pátio. Depois examinamos o interior da casa, que se compunha de uma peça apenas, dividida em duas partes por meio de uma parede de vime trançado. Ambas as divisões possuíam duas aberturas à guisa de janela e se achavam providas de uma rede. As aberturas eram altas, mas tão estreitas que não se podia meter a cabeça por elas. O solo não era assoalhado; era feito de barro socado, e sobre o mesmo estendia-se um tapete de junco. Além disso, não kavia mais nada dentro das peças.

As portas fechavam-se por meio de dois pesados barrotes. Neste particular estávamos em segurança. Abandonadas no pátio, viam-se algumas ferramentas, cuja utilidade não me foi possível averiguar.

Achavamo-nos a sós, pois o decano ficara lá fora; resolvemos, em vista disso, realizar um “conselho deliberativo” de nossa caravana.

__________

(1) Hóspede.

 

- Achas que estamos em segurança? - perguntou o xeque.

- Tenho dúvidas a este respeito. O decano pessoalmente tudo prometeu-me e cumprirá a sua promessa. Somos hóspedes seus, e por isso também da aldeia. O caso, porém, é que no grupo havia muitos homens que não são cá do povoado.

- Estes nada nos poderão fazer - declarou-me o xeque. - Se eles matarem ou molestarem um de nós incorrerão na vindita de morte de toda a aldeia, da qual somos hóspedes.

- E se nos roubarem?

- Que nos poderão roubar?

-Talvez os cavalos, talvez as armas e talvez mais ainda.

Rindo-se, o Xeque Maomé passou a mão pelas barbas e disse:

- Reagiremos!

Nisso entrou o inglês, que fora espairecer lá fora. O nariz estava à direita e a boca à esquerda da face, sinal evidente de que descobrira algo estranho.

- Hum! - resmungou ele. - Vi uma coisa! Interessante! Yes!

- Onde? Diga-me!

- Psit! Não olhe para cima! Estive no pátio. Local sujíssimo aquele! Vi o tufo de arbustos junto do muro e subi. Bom de se assaltar a casa por aquele lanço! Olhei para o sótão e vi uma perna. Well! Perna de homem! Durante algum tempo ele esteve espreitando pela porta do sótão, onde há feno guardado.

- Mas viu bem, sir? Não estará enganado?

- Vi como estou a ver o senhor! Yes!

Lembrei-me então de não ter visto, à nossa chegada, nem uma escada e nem qualquer outro meio de acesso ao sótão. Saímos para o pátio a fazer observações, com o fim de esclarecer o mistério. Não vimos nada por onde se conseguisse galgar o sótão. Tínhamos que examinar com urgência, pois não tardava o escurecer.

Junto à porta dos fundos, um caibro da cobertura sobressaía um tanto desta. Peguei o laço e, fazendo dele quatro dobras, lancei-o para o barrote, onde ficou preso. Por ele depois subi ao sótão, que se achava atulhado de feno. Estendi o braço para dentro a fim de examinar o local. De começo não encontrei nada de estranho. Continuei apalpando e dai a minutos agarrava a cabeça de uma pessoa, que se açoitara no ângulo mais distante do compartimento.

- Quem és tu? - perguntei.

- Ah! ah!... - soou uma voz como que bocejando. O homem queria convencer-me de que dormia.

- Sai daí - ordenei-lhe.

- Uh! ah!... - bocejou novamente. Afastou depois minha mão e veio saindo vagarosamente. O dia estava bastante claro para eu reconhecer que aquele homem não dormira um segundo que fosse. Embasbacado, parou depois na minha frente, a fingir-se de surpreendido.

- Um estranho! Quem és tu? - perguntou-me.

- Dize-me antes quem tu és!

- Esta casa é minha! - respondeu.

- Ah! é! Folgo com isso, pois assim poderás dizer-me como conseguiste subir ao sótão.

- Pela escada.

- Onde está ela.

- No pátio.

- Lá não está, não!

Olhei agora mais minuciosamente em torno de mim e vi uma escada sobre a borda do telhado.

- Homem, estás ainda dormindo, pois nem te lembras de que depois de subires, puxaste a escada para cima e a depositaste ali! Ei-la!

Virou-se perplexo para o local onde depositara a escada e disse, como que atarantado:

- Ali? Ah! é! Desculpa, ainda estava meio dormindo.

- Mas desperta, agora! Desçamos!

Dito isto, arredei a escada e arrumei-a para descermos. O homem, obedecendo-me, saiu à frente sem dizer uma só palavra. Primeiro mostrou-se surpreendido por encontrar um estranho dentro de sua casa. Depois de haver descido, sem perguntar porque me arrogara o direito de penetrar na sua residência, correu para a casa de Nezanum (decano).

- Quem era? perguntou o inglês.

- O dono desta casa.

- Que fazia ele lá em cima? -Fingia que estava dormindo.

- Não dormia! Conheço aquele sujeito! Era o mesmo que saiu à frente, depois que o decano da aldeia concordou em nos hospedar. O senhor não pôde observá-lo, porque no momento estava entregue àquela proeza de tiros. Yes!

- Portanto, provado está que nos tratam com animosidade!

- Penso a mesma cousa. Mas que pretenderão de nós?

- Não pretendem tirar-nos a vida, porém, os nossos haveres.

- O sujeito subira ao sótão, por certo, para ver quando dormíamos. Depois disso, faria o sinal combinado e os outros se acercariam para tirar-nos cavalos e tudo o mais que trazemos conosco!

Da mesma opinião do inglês eram todos os componentes do grupo. Estava agora completamente escuro, de modo que não se podia ver se no forro havia algum lanço, pelo qual se conseguisse descer para o interior da casa; contudo parecia-me que aquela hipótese estava fora de qualquer dúvida. Já me dispunha, por falta de qualquer outro material de iluminação, a acender um tição, quando à porta bateu alguém. Abri-a. Era o decano acompanhado de mais dois homens, que nos traziam a refeição, água e duas velas. Estas eram feitas de cera cheia de impurezas, de modo a não produzir grande iluminação. Acendi uma delas.

- Encontrei um homem no sótão. Era ele realmente o dono desta casa?

- Sim - respondeu monossilabicamente o Nezanum.

- Que queria ele lá em cima?

- Dormia.

- E por que recolheu ele a escada, depois de haver subido?

- Não queria ser perturbado no sono.

- No entanto disseste que seríamos os únicos habitantes desta casa!

- Mas ele já se achava dormindo, no sótão, quando entraram; eu não sabia que ele estava aqui e, além disso, ele ignorava que eu houvesse cedido a sua casa para hóspedes.

- Ele sabia sim, Nezanum!

- Quem te disse? - perguntou-me asperamente.

- Aquele homem fazia parte do grupo que nos encontrou fora da aldeia!

- Cala-te. Não fazia, não; ficara aqui dormindo!

Arre! o decano voltara novamente ao seu tom de arrogância! Não me deixei, entretanto, intimidar por ele; com desenvoltura reiniciei o meu interrogatório:

- Onde estão os homens que não pertencem à tua aldeia?

- Já não estão mais aqui.

- Dize-lhes que não se arrisquem a voltar novamente!

- Por quê?

- Adivinha, se puderes!

- Cala-te! Não adivinho coisa alguma!

Com essa resposta arrogante, retirou-se a primeira autoridade do povoado, seguido dos dois homens que com ele vieram.

O jantar trazido por ele era frugalíssimo: passas de amoras, pio, abóbora cozida no borralho e água fresca. Felizmente, porém, trazíamos alguns alimentos conosco e não iríamos, pois, sofrer privações. Enquanto Halef preparava o jantar, mandei que o jovem Haddedihn, munido das duas velas, saísse para o vestíbulo. A porta ficava próxima a um dos ângulos da casa, portanto o vestíbulo era constituído pelo espaço compreendido entre o muro e as paredes do quarto. Quando Amad chegou lá fora com as velas, subi ao sótão e examinei detidamente o assoalho do mesmo. Finalmente, descobri por sobre o vestíbulo umas frestas que, no seu conjunto, formavam um quadrado regular. Meti a faca nas frestas e ergui uma tampa de madeira quadricular. Estava desvendado o segredo! De pesquisa em pesquisa, encontrei umas avarias no assoalho do sótão, avarias que permitiam não só ver o que se passava no interior da casa, mas também ouvir tudo o que se falava.

Desci em seguida e, abreviando o processo, peguei o meu rih pelas rédeas e o conduzi para dentro da sala.

- Alô! - exclamou Lindsay. - Que houve?

- Vá buscar também o seu cavalo, pois os curdos estão com os olhos em nossas montarias! Aqui por cima há uma abertura, pela qual se pode descer para depois abrir a porta e sair para o pátio. Os curdos esperariam até ferrarmos no sono e depois sairiam a passo e displicentemente com os nossos animais.

- Tens razão, tem toda a razão! Vou já buscar minha montaria! Yes!

Os demais fizeram o mesmo. As janelas foram depois calçadas com barrotes e os animais guardados na outra peça da casa. Em seguida peguei a escada e levei o cachorro para cima. Agora podiam os curdos, galgando o muro, penetrar no pátio. Lá não encontrariam mais as ambicionadas presas. Talvez me tivesse enganado e os homens nem nutrissem propósitos de roubar-nos. Se tal fosse, também mal nenhum nos fariam as precauções tomadas.

Agora podíamos, com toda calma, planejar a nossa ação para o futuro. Em Amadijah isso não nos fora possível, pois a cada momento poderia surgir algum inprevisto que nos embaraçasse os projetos feitos. Não só precisávamos fazer nossos planos como concretizá-los. Em primeiro lugar, tratemos de resolver por qual das estradas voltaríamos ao Tigre.

- O caminho mais curto é o que atravessa a região dos Dschesidis - opinou Maomé Emin.

- Por este não podemos seguir - declarou Amad. - Já fui visto lá e agora me reconheceriam logo.

- Também por outro motivo aquela rota não nos é segura - acrescentei eu. - Não sabemos em que termos redigiu o governador de Mossul o seu relatório e não podemos seguir diretamente a oeste.

- Então, restam-nos duas estradas - esclareceu Maomé. - Uma delas conduz, através das Tijaris, para Buthan e a outra segue o Zab abaixo.

- Qualquer uma dessas duas estradas é perigosa, não só para o prisioneiro evadido, como para todos nós. Prefiro o roteiro do sul, embora nos conduza pelo território do Abu Salman.

Esta decisão foi aceita por todos. Ficou, pois, resolvido que cavalgaríamos através de Gumri, para Lizan e, de lá, seguiríamos o curso do rio até o ponto onde conflui para o território curdo de Chirwan e Zibar; daí cortaríamos um arco, atravessando, depois, em linha reta, as montanhas de Tura Ghara e Hair. Depois alcançaríamos a margem do Akra, que nos levaria novamente ao Zab.

Depois de acertado o roteiro da viagem, deitamo-nos a dormir. Ferrei logo no sono e fui despertado por um empurrão que o inglês me deu nas costas.

- Mister! - sussurrou-me David Lindsay. - Ouço passos lá fora! Chega alguém de mansinho.

Ansiosamente procurei ouvir o que se passava lá fora, mas os animais não estavam muito calmos e por isso não podia confiar lá muito nos meus ouvidos.

- Acho que não é nada! - ponderei. - Não nos achamos em meio da mata virgem, onde qualquer rumor de gente denuncia perigo próximo. Com certeza, nem todos na aldeia se recolheram ainda.

- Pois que se recolham duma vez! Descansem os ossos e não nos amolem a paciência! Well! Boa noite, mister!

Virou-se o inglês para o outro lado. Minutos depois, chamou-me novamente a atenção; desta vez também eu percebera nítidos rumores no pátio.

- Estão no pátio! - cochichou o inglês.

- Parece que sim! Veja que excelente cachorro tenho eu! Compreendeu que lhe compete guardar unicamente o sótão e por isso não deu ainda o menor sinal de si!

Nobre cão! Não pretende apenas espantar aqueles sujeitos, mas abocanhá-los às direitas!

Meia hora depois, percebi leves passos na parte fronteira da casa. Toquei no braço de David Lindsay.

- Já ouço tudo! - disse-me este. - Mas que querem eles?

- Julgam talvez que trouxemos os animais para o vestíbulo e colocam a escada para subir ao sótão e de lá baixarem e se apoderarem das montarias. Se conseguirem chegar ao vestíbulo, basta-lhes abrir a porta da frente e agarrar os cavalos.

- Não conseguirão, não!

Mal terminara o inglês a sua frase, ouvimos, por cima de nós, um estridente e angustioso brado humano e o ruído rápido e violento da investida do galgo.

- Abocanhou o sujeito! - disse Lindsay, jubiloso.

- Psit! Silêncio! - recomendei.

Os outros companheiros também despertaram e se achavam à espreita.

- Vou ver a coisa de perto - disse o inglês.

Levantou-se e, pé ante pé, saiu para o pátio.

- Esplêndido! Yes! Estive lá em cima. Lá se acha um sujeito estirado no chão e seguro pelo cachorro! Não se anima a falar ou se mover. E embaixo, na rua, muitos curdos! Estão todos calados. Yes!

- Enquanto o cão não latir, estamos em segurança. Mas assim que encostarem mais escadas precisamos subir logo.

Estivemos à espreita um bom tempo. Nisso, ouviu-se um horrível e angustioso grito. Era um grito de quem estava nos últimos estertores da morte. Sobre isso não havia dúvida. Em seguida outro, acompanhado do latido de vitória desferido pelo cão.

Agora, sim, a situação poderia agravar-se. Levantamo-nos. Chamei Halef para junto de mim, pois na sua companhia teria melhor probabilidade de êxito na empreitada. Ambos saímos para o vestíbulo e pela escada subimos ao sótão. Deparamos logo com um corpo humano que jazia no assoalho. Examinei-o: estava morto. O cão rasgara-lhe o pescoço. Percebi logo onde o cão se achava, pelos latidos baixinhos com que me saudava. A uns cinco passos do morto, jazia no solo outro corpo e sobre ele estendido o enorme galgo. Ao menor movimento que fizesse, o homem seria morto pelas presas do cão.

Olhei para baixo e lá vi muita gente aglomerada. Não havia dúvida de que toda a população do povoado participava daquele roubo e talvez de alguma empresa a mais em vista. O primeiro que subira ao sótão, fora agarrado pelo cão. O grito do agredido intimidara os outros. Quando, porém, subiu o segundo, o cão não teve outro remédio senão liquidar com o primeiro e segurar o recém-chegado.

Que deveríamos fazer agora?

Desci, deixando Halef de sentinela em cima. Depois de uma curta deliberação, ficou resolvido que nos manteríamos no mais profundo silêncio, para que na manhã seguinte todos pudessem proceder como se nada houvessem percebido das ocorrências da noite. Muito perigosa, sem dúvida, era a nossa situação agora, não obstante estarmos a jeito de nos defendermos de inimigos mais numeroso ainda do que aquele que nos estava cercando. Mas com uma reação enérgica grangearíamos o respeito de todas as localidades que tínhamos em vista cruzar na presente jornada. Se tal não sucedesse, nem ao menos poderíamos retroceder pelo caminho de onde viéramos.

Nisso, bateram fortemente à entrada da casa. Os curdos haviam reunido um conselho deliberativo e agora vinha alguém por certo nos comunicar as conclusões do mesmo. Acendemos as velas e, de armas engatilhadas, saímos para o vestíbulo.

- Quem bate? - perguntei.

- Chodih, abre! - respondeu a voz do Nezanum.

- Que queres de nós? - perguntei-lhe.

- Tenho um recado importante a transmitir-te.

- Pois transmite-o daí mesmo!

- Não, tenho que estar na presença de todos vocês.

- Então entra!

Nem lhe interpelei se estava ou não sozinho, pois, de qualquer forma, além dele, não deixaria entrar mais ninguém. Os companheiros assestaram as espingardas. Afastei da porta o barrote que a calçava e a conservei entre-aberta de modo a só poder passar uma única pessoa. Quando o decano viu as armas apontadas para ele, ficou parado no portal.

- Chodih, pretendem atirar contra mim?

- Não. Apenas estamos preparados para o que der e vier. Assim como é o senhor que entra, bem poderia ser um inimigo.

A essa explicação minha, o homem entrou.

- Por que vem perturbar nosso sono? - trovejei-lhe de chegada.

- Vim apenas preveni-los! tartamudeou o homem.

- Prevenir de quê?

- De um grave perigo que os ameaça. Como são meus hóspedes, tenho o dever de avisá-los do que se passa.

Relanceou o olhar em torno da casa e deu com a escada e o buraco aberto no forro.

- Onde estão os seus cavalos? - perguntou-me.

- Na sala ao lado desta.

- Na sala? Chodih, esta foi construída para residência de gente e não de animais!

- Um bom cavalo para um viajante possui mais valor do que gente ruim e perversa!

- O dono desta casa vai encolerizar-se, pois os animais vão estragar-lhe o chão.

- Indenizaremos todos os prejuízos ocasionados pelos cavalos.

- Por que trouxeram para dentro a escada?

- Porque o lugar dela é aqui, uma vez que a casa não tem escadas internas.

- Estavam dormindo?

Respondi-lhe afirmativamente e ele prosseguiu:

- Não ouviste barulho algum?

- Apenas o barulho de passos lá fora diante do muro; mas não podemos proibir a ninguém de andar na rua, pois é pública. Ouvimos também o barulho de gente descendo para o pátio, o que sobremodo nos desagradou. O pátio é nosso, desde que à nossa disposição puseste esta casa. Estivessem lá os nossos cavalos, e teríamos descarregado as armas contra os invasores, que tomaríamos por ladrões.

- Ladrões, como? Os cavalos não podiam ser retirados por cima do muro e, além disso, lá deve estar de guarda o cachorro que vi hoje contigo.

Aquele era o ponto em que ele me queria pilhar, mas não caí na armadilha.

- Também sabemos que por cima de muros não se podem retirar os cavalos; estes, porém, no caso em que fossem roubados, seriam puxados pelo interior da casa na direção da rua.

- Como? Se não é possível entrar nela?

- Dá mais alcance à tua memória, Nezanum! Assim como se pode subir ao sótão e de lá descer para aqui, pode-se também abrir a porta que dá para o pátio e, depois de apoderar-se dos cavalos, trazê-los pela casa a dentro até a rua! Estaríamos então metidos aqui sem nos podermos defender da pilhagem.

- Mas quem subiria ao sótão?

- Oh! Não sejas infantil! Lá estava escondido um homem que, com muita dificuldade, conseguiu levar a escada para cima, depois de ter subido. Isso é que nos despertou suspeitas, e por isso guardamos aqui as nossas montarias. Assim, poderão subir centenas de ladrões ao sótão que de lá não descerão para aqui e quando raiar a alvorada, o assoalho estará coalhado dos seus cadáveres!

- Matariam, neste caso, os assaltantes?

- Nós não! Aqui ficaríamos pacatamente a dormir, pois podemos confiar no cachorro que lá se encontra vigilante, com suas presas sempre prontas para o bote!

- Mas no sótão não é lugar de cachorro!

- O lugar do cachorro é em toda a parte onde fôr preciso vigilância; além disso, é bom que saibas que os cães dos tschermakis costumam fazer digressões noturnas sobre os telhados e sótãos das cidades. Mas aqui vieste para nos prevenir! De quê? Nem ao menos nos disseste a natureza do perigo que nos ameaça, e aí estás a trelar sobre inutilidades!

- Roubaram há pouco a escada a um dos moradores da aldeia. Saindo ele em sua procura, encontrou-a encostada no muro desta casa. Junto à escada havia algumas pessoas estranhas, que à sua chegada fugiram. Quando soube do ocorrido, julguei tratar-se de ladrões que tentavam assaltá-los, por isso vim avisá-los do perigo.

- Obrigado pelo interesse que tomaste por nós! Mas vai dormir sossegado que faremos o mesmo. O galgo não deixa que ladrões penetrem na casa.

- Mas se o galgo matar alguém?

- Quando se trata apenas de um invasor, o cão não mata, mas segura-o com vida até eu acudi-lo. Mas se um outro tiver a imprudência de subir também, então sim, matará o que está segurando, para agarrar a outro.

- Chodih, neste caso já houve uma desgraça!

- Que desgraça?

- Além daquele homem que encontraste, um outro subiu ao telhado.

- Tens certeza disso?

- Absoluta.

- Ah! Nezanum, então estiveste junto com o ladrão ao tentar este invadir-nos a residência? Que devo agora pensar de ti e do teu espírito de hospitalidade?

- Não estive com o ladrão, não! O que te disse foi-me contado por alguém.

- Então quem te contou esteve presente à tentativa criminosa!

- Não, ele apenas viu quando o homem subiu ao telhado.

- Dá no mesmo. Aquele que primeiro revelar a ocorrência, é porque fêz causa comum com o ladrão. Mas que tenho eu a ver com este? Não dei licença a ninguém para subir no meu sótão e aquele que fizer descerá sem a minha ajuda! Boa noite, Nezanum!

- Não pretendes então fazer um exame no sótão?

- Tenho pouca disposição para isto, no momento. Quero é dormir!

- Então, permites que ao menos eu suba até lá?

- A ti dou licença, pois não és ladrão uma vez que me pedes permissão para entrar na casa e percorrer aquela peça! Mas acautela-te com o cachorro! Se o animal te avistar, te abocanhará logo, matando, porém, o outro que por ventura estiver segurando.

- Estou armado! - declarou o decano.

- É mais ágil do que tu, e não poderás matá-lo, a não ser que sejas um homem riquíssimo para depois indenizar-me.

- Chodih, acompanha-me até o sótão! Sou o Nezanum e, em razão de meu cargo, tenho que fazer uma averiguação lá em cima.

- Se pretendes subir, para cumprires teu dever como decano, estou pronto a fazer-te o obséquio que me pedes. Vamos!

Subi à frente e ele atrás. Ao chegarmos ao sótão, o decano deu com os olhos no morto. Embaixo havia ainda a mesma multidão de há pouco.

- Chodih, aqui jaz um! - exclamou o homem.

Aproximei-me dele. Ele baixou-se e apalpou o cadáver.

- Sere men (1)! Está sem vida! Oh! Senhor! Que fêz o teu cachorro?

- A sua obrigação. Não te queixes dele, louva-o, antes! O homem que aí está morto quis assaltar o proprietário desta casa, ignorando que nela hoje se achava gente que se não deixa atacar por ladrões e assassinos!

- Mas onde está o cachorro? - perguntou.

- Apontei para onde estava o cão.

- Oh! Chodih, o cão tem outro homem nas presas! Chama-o para que o largue! - exclamou o homem.

- Não faltava mais nada! Dize, porém, àquele homem que não se mova e nem pronuncie uma só palavra, senão será estrangulado!

- Mas vais deixá-lo a noite inteira naquela posição?

- Entrego-te apenas o corpo do morto; o outro que ainda está vivo, porém, ficará em meu poder!

- Por quê? Pretendes deixar o cachorro toda à noite aqui?

- Sim; se mais alguém ousar pisar nesta casa ou neste sótão sem o meu consentimento, será estraçalhado por ele. Este homem ficará em meu poder como refém.

- Quê? Exijo que me entregues imediatamente este homem com vida! - vociferou o decano.

- Pois ele ficará em meu poder, fica sabendo dessa!

- Sou Nezanum e ordeno-te!

- Deixa de dar ordens, que de nada adiantam! Queres levar o cadáver, ou não?

- Levarei os dois; tanto o morto como o vivo!

- Não pretendo proceder com crueldade. Esse homem não ficará naquela posição, não; levá-lo-ei lá para o nosso aposento, onde será tratado com benevolência. Mas qualquer agressão contra nós importará na sua morte imediata!

O decano pôs sua mão sobre meu ombro e disse com gravidade:

- Esta morte praticada pelo teu cão, já é suficiente para que todos vocês encontrem morte certa em nossa aldeia! Ou não conhecem os tschermakis a lei de vingança de sangue?

- Por que estás aí a falar-me em vingança de sangue? O cachorro estrangulou um ladrão. É nisso em que se resume o caso presente, que nem por sombras incorre na lei de desforra sangrenta!

- Como não? Sangue foi derramado e derramado pelo teu cachorro!

- E mesmo que assim seja, o caso não é de tua alçada. Tu próprio me disseste ainda há pouco ser o ladrão, ou ladrões, gente estranha à aldeia!

____________________

(1) Ai minha cabeça.

 

- Tenho, sim, muita cousa com o caso. O sangue foi derramado na minha aldeia e os parentes do morto exigirão satisfações de mim e de todos os meus súditos. Dá-me os dois homens!

- Minha decisão é a mesma: leva apenas o morto!

- Cala-te! - urrou agora a primeira autoridade da aldeia curda. Até então falara brandamente comigo. - Ordeno-te, e se desta vez não me obedeceres saberei obrigar-te.

- De que modo?

- A escada se acha ainda encostada a casa. Ordeno imediatamente que minha gente suba e esta é bastante numerosa para compelir-te à obediência e mais alguma coisa talvez...

- Esqueces-te de uma circunstância: lá em baixo estão quatro homens, que não temem inimigo algum; aqui estou eu com o cachorro!

- Pois também eu estou aqui!

- Tu? Serias o primeiro a voar sótão abaixo! Presta atenção! Antes que ele se apercebesse de alguma coisa, agarrei-o pelo braço direito e pela coxa esquerda e o ergui a uma boa altura.

- Chodih! - gritou o homem.

Coloquei-o novamente no assoalho.

- Então dize-me cá: quem me impediria de jogar-te lá embaixo? Bem. Vai embora e dize à tua gente o que viste e ouviste!

- Não me entregas este homem?

- Por enquanto, não.

- Pois então fica lá também com o morto! Responderás pelo teu ato! Ele não desceu para o interior da casa, mas pela escada, diretamente para a rua.

- E dize ainda à tua gente - gritei-lhe quando já descia - que leve a escada daí e vá embora! Quero esta casa livre de importunos e mandarei uma bala a todo que dela se acercar!

Depois que chegou à rua, conferenciou em voz baixa com o seu pessoal. Não podia compreender uma só palavra do que falavam. Depois de algum tempo, porém, a escada foi arreada e a reunião dissolveu-se.

Só então chamei o cachorro. Este largou logo a presa, mas dela separou-se apenas alguns passos.

- Levanta-te! - disse eu ao curdo.

Este ergueu-se com dificuldade do solo e tomou profunda inspiração. Era de estatura esmirrada. A sua voz soou como a de uma criança, quando exclamou:

- Chodih!

Pronunciou aquela palavra apenas, mas nela resumia-se toda a aflição de morte que o agitara!

- Trazes armas contigo?

- Somente um punhal.

Por via das dúvidas, afastei-me um passo para o lado.

- Coloca-o sobre o assoalho e avança dois passos!

O homem me obedeceu e eu peguei, então, a arma e coloquei-a na cintura.

- Agora desce comigo!

Deixando o cão no telhado, desci com ele ao nosso aposento, onde os outros me aguardavam ansiosamente. Relatei-lhes tudo e o inglês passou a contemplar, curioso, o prisioneiro, que contaria quando muito uns vinte anos de idade.

- Oh! Mister, este sujeito é parecidíssimo com o velho! Sabes qual é o velho? O decano parlador! Yes!

Vi agora que o inglês tinha razão. Não dera eu antes pela semelhança.

- Realmente! Será algum filho dele?

- Por certo! Pergunte-lhe! Maroto!...

No caso de se confirmar a nossa suposição, motivos poderosos tinha, pois o Nezanum em insistir na sua entrega. Mas a confirmação traria a lume também uma formidável quebra do espírito de hospitalidade do decano.

- Quem és? - perguntei ao prisioneiro.

- Um curdo - respondeu.

- De que localidade?

- De Mia.

- Mentes!

- Senhor, digo a verdade!

- Tu és desta aldeia!

Ele hesitou um pouco, mas o bastante para me convencer de que eu acertara.

- Sou de Mia - repetiu o rapaz.

- Que fazes então aqui, tão longe de tua terra?

- Vim trazer um recado do Nezanum de Mia.

- Creio que não conheces tão bem o Nezanum de Mia, como conheces o desta aldeia, pois és filho deste último!

O homem assustou-se visivelmente e fez um grande esforço para não demonstrar seu susto.

- Quem te impingiu esta mentira? - perguntou-me fingindo-se de calmo.

- Não permito que me mintam, nem tu nem ninguém! Amanhã bem cedo, saberei ao certo quem és e ai de ti, então, se me ludibriaste!

O rapaz, contrafeito, olhava para o chão.

- Assim como te portares, serás por nós tratado. Se fores sincero, perdoar-te-ei a falta praticada, pois és muito moço ainda para refletires maduramente antes de cometer algum ato indecente! Se persistires, porém, em negar-nos a verdade, outra companhia não terás para esta noite, do que a do meu cão!

- Bom, Chodih, de qualquer forma tu descobririas a verdade. Sou, realmente, filho do decano desta aldeia.

- Que estiveste procurando nesta casa? - perguntei-lhe.

- Os cavalos!

- Mas como pretendias retirá-los daqui?

- Teria encerrado vocês neste quarto e depois sairíamos calmamente com eles pela porta da frente!

Esta confissão não era infamante para ele, pois para um curdo o abigeato como um assalto à mão armada, vale por um feito heróico que cobre de galardões o seu autor.

- Quem é o morto que está lá em cima?

- O proprietário desta casa.

- Procedeste com muita prudência! A ele competia tomar a dianteira no roubo, por melhor conhecer a casa e ser mais adestrado em andar de gatinhas. Mas por que fôste tu precisamente o designado para segui-lo? Havia no grupo homens mais possantes e aguerridos do que tu!

- O garanhão preto que montas deveria pertencer a meu pai e a mim cabia tudo fazer para que ninguém, em primeiro lugar, deitasse-lhe a mão nas rédeas; deves saber que, entre curdos, aquele que primeiro tocar no cavalo, ficará com ele.

- Com que então, foi teu pai quem ordenou o roubo? Teu pai que me assegurou hospitalidade na sua aldeia!

- Assegurou-te hospitalidade; entretanto, não és hóspede nosso!

- Por que não? - perguntei-lhe admirado.

- Porque moram sozinhos nesta casa. Onde está o hospedeiro do qual são hóspedes? Se tivessem exigido que o proprietário da casa pernoitasse com vocês, então, sim, seriam nossos hóspedes e como tais acobertados de todos os perigos!

Recebi naquele instante uma lição que mais tarde me seria útil.

- Mas teu pai, em voz alta, e apertando-me as mãos, declarou-nos, solenemente, hóspedes seus!

- Não tem ele obrigação de cumprir a sua palavra, visto que prescindiram daquela formalidade indispensável a que há pouco me referi.

- Meu cão matou o dono da casa. Constitui isso motivo para vingança sangrenta?

Respondeu-me que sim. Continuei a interrogá-lo.

- E quem será o vingador?

- O morto tem um filho nesta aldeia.

- Estou satisfeito com as tuas informações. Estás livre, vai para casa!

- Chodih! - exclamou o rapaz doido de alegria. - Falas sério?

- Claro. Não te disse que serias tratado de acordo com o teu procedimento? Fôste sincero comigo e em paga disso recuperarás a tua liberdade. Dize a teu pai que os tschermakis são gente pacífica e ordeira que jamais anseia pela morte de alguém, mas que sabem igualmente se defender quando ofendidos ou agredidos! Lamento sinceramente a morte do nosso hospedeiro. Mas ele próprio foi culpado disso e eu não temo o vingador do seu sangue!

- Por que não o indenizas da morte do pai com uma importância em dinheiro? Vou falar-lhe já a este respeito.

- Não indenizarei coisa alguma! Se aquele homem não tentasse roubar-nos, nada de mal lhe teria acontecido.

- Mas, Senhor, vocês serão mortos um após outro, assim que raiar o dia!

- Mesmo tendo eu te dado à liberdade e a vida?

- Mesmo assim! Fôste bom comigo e por isso vou prevenir-te de tudo. Pretendem apoderar-se dos seus cavalos, armas e dinheiro, em suma de tudo o que trazem. Assim não os deixarão sair da aldeia sem que entreguem tudo, de boa vontade ou à força! Depois disso, o vingador exigirá ainda o resgate da dívida de sangue, que assumiram com ele.

- Pois fica certo de que não nos tomarão os cavalos, as armas, o dinheiro e nenhum dos nossos haveres. Quanto à minha vida, está nas mãos de Deus e não nas mãos de um curdo! Vocês já viram o manejo de nossas armas, quando alvejei o galhinho de arbusto e o tronco da amoreira. Mas a sua verdadeira eficiência só verão num encontro sangrento, peito a peito, se se aventurarem a sustentá-lo conosco!

- Chodih, as armas de vocês nada nos farão, pois nos concentraremos nas casas fronteiras e, pelas janelas e portas, fuzilaremos vocês todos sem que nos vejam.

- Portanto, nos sitiarão! - observei-lhe. - O sítio não terá longa duração!

- Disso sabemos nós! Vocês não têm nada para comer e beber e terão que submeter-se às nossas imposições! - declarou o jovem curdo.

- É muito discutível a supremacia de vocês sobre nós. Dize a teu pai que somos amigos do Bei de Gumri.

- Ele não levará isso em conta. Um cavalo vale muito mais para ele do que a amizade de um Bei.

- Bem, estamos entendidos! Podes retirar-te. Aqui está o teu punhal!

- Chodih! Vamos roubar os cavalos e tudo mais que vocês possuem; mas os teremos sempre na conta de valentes e bondosos homens!

Aquilo fora dito com uma ingenuidade de que só um curdo seria capaz. Abri-lhe a porta, enquanto por trás de mim, meus companheiros protestavam.

- Mister - exclamou Lindsay. - Vai dar liberdade àquele biltre?

- A sua liberdade traz-nos mais proveitos que a sua prisão.

- Conte-me então tudo! Que esteve a falar com ele? Quero saber tudo! Yes!

Relatei aos companheiros a conversa que tivera com o rapaz, inclusive o fato de ser o Nezanum o responsável pela tentativa de assalto de que fôramos vítimas. As vozes de protesto de meus companheiros recrudesceram.

- E a todas essas, ainda soltas um dos ladrões, Emir! - exclamou Maomé em tom severo. E por quê?

- Primeiramente, de piedade por ele e depois visando também compensações. Se o conservássemos aqui, ele seria para nós um constante embaraço; teríamos que alimentá-lo com nossos próprios alimentos e precisamos muito destes. Assim, porém, ele sai cheio de gratidão por nós e, ao invés de hostilizar-nos, pregará brandura em nosso favor!

Esse ponto de vista obteve, afinal, a aprovação de todos, que depois se acalmaram. Mas ninguém se lembrou mais de dormir; resolvemos ficar todos de vigilância.

Daí a pouco Halef, batendo-me no braço, disse:

- Como não vais dormir, terás agora tempo de examinar o presente que te deu aquele homem em Amadijah.

Realmente não me lembrara mais do presente que me dera o pai da minha paciente.

- Dá-me!

Ao abrir o estojo não pude conter uma exclamação. O estojo, ricamente trabalhado, nem se comparava com a riqueza do seu conteúdo! Era um kalihum persa para nele se fumar quando a cavalo. Tratava-se de um cachimbo de alto custo que até o inglês parecia invejar. Pena não poder fumá-lo logo, pois só dispúnhamos de algumas gotas dágua.

- E o homem também te deu alguma coisa? - perguntei a Halef.

- Sim, Sídi! Deu-me cinco medschidje de ouro. Sídi, às vezes é muito bom que Alá faça nascer cerejas venenosas nos campos. Allah illa Allah! Ele sabe o que faz!

Quando começou a raiar o dia fomos para o sótão de onde podíamos descortinar a maior parte da aldeia. Vimos ao longe apenas alguns homens postados, como se estivessem a nos guardar. Nas proximidades, porém, não havia mais ninguém.

Algum tempo depois a porta de uma das casas fronteiras se abriu e dela saíram dois homens que se dirigiram à nossa residência. No meio do caminho pararam.

- Pretendem fazer fogo contra nós? - perguntou-nos um deles.

- Não. Vocês nada nos fizeram de mal! - respondi com toda a calma.

- Estamos desarmados. Permitem que retiremos daí o cadáver?

- Subam com toda confiança.

Halef desceu para abrir-lhes a porta e os dois curdos subiram ao sótão.

- São parentes do morto? - perguntei-lhes.

- Não. Se fôssemos não subiríamos até aqui - respondeu um deles.

- Por que não?

- Porque melhor poderíamos vingar-lhe a morte, se tu não nos conhecesse.

Mais uma lição sobre os costumes curdos estava eu recebendo.

- Bom, levem daqui o corpo deste infeliz! - ordenei-lhes.

- Antes disso temos um recado do Nezanum para transmitir-te.

- Que me manda dizer ele?

- Ele manda-te agradecer a liberdade que lhe deste ao filho, que se achava em teu poder e dele poderias fazer o que bem te aprouvesse! A tua generosidade o comoveu.

- Só isso me manda dizer o chefe de vocês?

- Manda dizer ainda para nos entregarem os cavalos, as armas, o dinheiro, enfim todo o carregamento. Depois disso, poderão sair daqui em paz. Ele desiste de ficar com a tua roupa, porque fôste misericordioso com o seu filho.

- Dize-lhe que não entregaremos coisa alguma!

- Reflete antes desta resposta, Chodih! Estou certo de que mudarás de idéia! Temos ainda outro recado a dar-te.

- De quem?

- Do filho deste morto.

- Que me manda dizer ele?

- Que lhe entregues a tua vida!

- Estou pronto a isso!

- Senhor, é verdade? - perguntou o homem pasmado.

- Sim, dize-lhe que venha cá buscá-la!

- Senhor, estás a pilheriar com assunto tão sério! A ordem que temos é exigirmos de ti a vida ou contigo negociarmos o preço da indenização do sangue que derramaste!

- Quanto pede ele pelo sangue do pai?

- Quatro daquelas espingardas com as quais se atira sem parar e cinco daquelas pistolinhas de seis tiros. Além disso, três cavalos e duas mulas.

- Não possuo o que ele me pede.

- Então arranja essas coisas em qualquer parte, pois daqui não sairás enquanto não fizeres o pagamento exigido.

- Não pago coisa alguma!

- Neste caso terás que morrer. Não vês lá naquela janela o cano de uma espingarda apontada para cá? É ele. No momento em que lhe levar a tua resposta negativa, ele fará fogo contra vocês todos.

- Pois ele que o faça!

- E também se negam a entregar os seus haveres?

- Não entregamos nada. Venham buscar se forem capazes!

- Então que comece o combate!

Pegaram o corpo do morto e descendo a escada levaram-no embora. Depois disso fechamos as portas. Transmiti aos companheiros as propostas que recebera por intermédio dos dois emissários. Os árabes franziram o sobrecenho. Conheciam muito bem o que era vingança de sangue, pois muito tiveram que lutar contra as crueldades turcas neste sentido. O inglês, porém, fêz uma fisionomia satisfeita.

- Esplêndido! Sitiados! Bombardeio! Abrir brecha! Well! Mas não farão coisa nenhuma, sir!

- Farão, sim, mister Lindsay! Atirarão contra nós, assim que aparecermos a descoberto, pois...

Confirmando as minhas palavras, ouviu-se o detonar de um tiro, de outro e mais outro e, por fim, de diversos. De permeio, ouvíamos o latido de Dojan no sótão. Subi apressadamente para a coberta da casa e com toda a cautela meti a cabeça fora da porta. Vi uma cena pitoresca. Da casa oposta faziam uma carga cerrada contra o cachorro. Este apercebendo-se da situação, latia contra as balas que sibilavam pela sua frente. Chamei-o, tomei-o nos braços e o conduzi para baixo.

- Veja, mister, como eu tinha razão! Aquele bombardeio era dirigido contra o cachorro.

- Well! Não tardarão em fazer também uma experiência contra nós.

O inglês abriu a porta da frente e se encaminhou alguns passos para o vestíbulo.

- Que loucura é esta, sir? - Pretende morrer? Venha já para dentro!

- Psiu! A pólvora dos curdos não vale nada! Do contrário teriam acertado no cachorro.

De outro lado detonaram um tiro e a bala foi alojar-se no muro. Lindsay virou-se para lá e triunfante, apontou com o indicador para o orifício feito pelo projétil, a fim de significar ao atirador que errara o alvo por alguns metros! Um segundo tiro quase o atingiu. Saí então, agarrei-o bruscamente e o arrastei para dentro de casa. Naquele instante ouviu-se um grito infernal, partido do lado oposto, ao mesmo tempo que um novo tiro era detonado. A bala, passando rente ao meu ombro, foi alojar-se num ângulo da porta. Fora, sem dúvida, o filho do morto que, com aquele grito dos demônios, quisera significar-me que a bala partira do cano de sua espingarda! Como se vê a coisa tornava-se séria.

- Sídi, acudiu Halef, não responderemos ao bombardeio?

- Agora, não.

- Por que não agora? Atiramos melhor que eles e se alvejarmos suas janelas, por medida de prudência diminuirão a investida.

- Sei disso. Mas primeiro experimentemos escapar sem matar um dos agressores. Já basta aquele, morto pelo cão.

- Como nos escaparemos daqui? Assim que aparecermos com os cavalos à frente da porta, seremos recebidos à bala.

 

- Essa gente ambiciona a posse dos nossos cavalos e por conseguinte, evitará matá-los. Se nos entrincheirarmos por trás dos cavalos, talvez não nos atirem.

- Oh! Sídi, preferirão matar os cavalos a nos deixar escapar com eles!

O meu criado tinha toda a razão. Pensei muito para ver se descobria um meio de sairmos daquela situação fatal, sem derramamento de sangue, mas em vão!

- Em que pensa, sir? - perguntou o inglês. - Por que não devemos atirar, se eles atiram contra nós? Se fizermos fogo, diminuirá por certo o numero de ladrões curdos! Gostaria que escapássemos sem dar um tiro, não é verdade? Hum! Isso não será possível.

- Por que não?

- Ficaríamos expostos ao ridículo! Teria caráter de fuga! Seria escandaloso! Yes!

- Isso nos deve ser indiferente. O senhor sabe muito bem, sir, que eu seria incapaz de tomar uma resolução que de fato nos cobrisse de desprezo. Vamos, exponha-me o seu plano!

- Antes preciso saber se estamos sendo atacados também pelos fundos da casa.

- Não há casas atrás da nossa.

- Mas há campo, que possivelmente está ocupado por atiradores. Yes!

- Sim, e depois?

- Abriremos um rombo no muro!

- Realmente não é má a idéia!

- Well! Excelente idéia. Partiu de mister Lindsay. Esplêndido! Yes!

- Mas falta-nos a ferramenta!

- Tenho minha enxada!

De fato, o inglês trazia sempre a enxadinha presa ao serigote; aquela ferramenta, porém, servia para escavar um canteiro de jardim, mas não para abrir as paredes de um muro.

- A sua enxada é muito frágil, sir; talvez encontremos alguma ferramenta mais apropriada no pátio. Vamos ver!

Comuniquei aos demais o plano do inglês e todos nos acompanharam. Galguei o muro e vi que os curdos realmente não se lembraram de guarnecer o campo, pois em parte alguma se via alguém. Sem dúvida, os sitiantes estavam certos de que, por causa dos cavalos, sairíamos somente pela porta da frente, tendo, por isso guarnecido apenas à frente da casa.

- Aqui! - ouvi Lindsay exclamar. - Aqui tem uma coisa que nos serve para fazer o serviço.

A coisa que ele triunfalmente trazia levantada na mão, assemelhava-se a uma alavanca de ferro e com ela bem se podia abrir uma grande brecha no muro.

- Serve admiravelmente ao nosso propósito. Agora, porém, cuidemos de despitar os nossos sitiantes. Precisamos fazer o serviço sem nos interromperem. Halef que conduza os cavalos para o pátio e Amad que se deite no telhado a montar guarda, para que ninguém note o que estamos fazendo aqui. Se conseguirmos perfurar o muro, não precisamos empreender uma fuga ridícula; pelo contrário desfilaremos, em grande parada, diante dos homens que, de perplexos, se esquecerão completamente de nos tirotear.

Os serviços ficaram bem distribuídos. Halef encarregou-se dos cavalos; o haddedin calmamente se entregou ao serviço de vigilância e o inglês brocava ativamente o muro. Resolvemos começar a destruição deste, não de cima, pois assim facilmente nos surpreenderiam, mas de baixo. Teríamos também que trabalhar pelo lado de dentro para que só nos notassem quando um simples golpe bastaria para desmoronar a parede de alvenaria.

Finalmente conseguimos separar a primeira pedra e, pela cavidade aberta, fácil nos foi deslocar as outras. Quando já estávamos quase no fim da obra, chamamos os dois haddedins que se colocaram ao lado dos cavalos. Mister Lindsay pegou da alavanca para o último golpe.

- Agora, destruir tudo! Yes!

 

AS CONSEQÜÊNCIAS DE UMA TEMERIDADE

O inglês recuou, lançou-se depois para a frente a fim de dar impulso à alavanca e desferiu um golpe tão violento que a parede já ruída, desmoronou completamente em toda a extensão visada por nós. Desentulhamos um pouco a passagem e, num vertiginoso salto, atravessamos, a cavalo, os escombros do muro e nos achamos na rua defronte ao campo. Saíramos da perigosa conjuntura, antes mesmo que ela tivesse verdadeiramente começado. Deixávamos assim uma hospedagem, à francesa: sem pedirmos as contas para liquidar...

- Para onde, agora? - perguntou Lindsay.

- Dobremos a esquina desta casa vagarosamente e, depois, a passos tardos, atravessemos a aldeia. Cavalgue o senhor à frente!

O inglês obedeceu. Seguiam-no os dois árabes, e eu fechava o grupo. Passamos por entre a casa em que pernoitáramos e as duas fronteiras onde se concentravam os assaltantes, e aconteceu exatamente o que eu previra: nenhum tiro foi disparado contra nós. Mas não nos achávamos ainda muito distante dali, quando, por trás de nós, ouvimos brados estridentes. Agora, sim, fincamos as esporas nos flancos dos animais e em doida disparada saímos da aldeia.

Vimos então que toda a cavalhada do povoado se achava solta na pastagem e nós poderíamos, assim, tomar uma grande dianteira aos inimigos, antes que estes os montassem, para nos perseguir.

A estrada atravessava uma planície abundante em aguadas, o que daria ensejo aos animais de desenvolver o mais possível a sua resistência. Fui obrigado a sofrear o meu garanhão, pois se lhe afrouxasse as rédeas, os companheiros teriam ficado a uma boa distância à retaguarda.

Por fim, por trás de nós divisamos uma extensa linha de ginetes que nos perseguiam.

Maomé Emin lançou um olhar apreensivo ao cavalo montado pelo filho e disse:

- Se ele montasse um cavalo melhor, por certo que os inimigos não nos alcançariam.

E ele tinha razão. Fora? Aliás o melhor cavalo que encontráramos em Amadijah, mas possuía uma andadura pesada e resfolegava com grande dificuldade.

- Sídi, - disse Halef - não pretendes matar nenhum curdo?

- Enquanto pudermos evitar, não.

- Mas nada de mal haverá se lhes alvejarmos os cavalos!

- Creio que não nos restará mesmo outro remédio!

O homenzinho tirou dos ombros a sua espingarda e examinou o ferrôlho. A quinhentos passos de distância aquela arma jamais errara o alvo e as minhas escopetas possuíam ainda maior alcance e eficiência. Os nossos perseguidores se aproximavam cada vez mais de nós. Os brados proferidos por eles eram bem diferentes dos que se ouvem, em geral, nas provas desportivas. É que os animava o firme propósito de exterminar-nos. À frente do bando, galopava um cavaleiro. A quinhentos e cinqüenta passos distante de nós, ele assestou a arma e disparou um tiro. Aquele homem estava armado de uma excelente espingarda. Vimos às lascas que voaram de uma pedra bem próxima de nós e na qual acertara o seu tiro. Era um curdo ainda jovem, talvez o vingador do sangue paterno.

- Well! - disse o inglês, apeando-se.

Assestou a arma e deflagrou o tiro. O cavalo montado pelo curdo estremeceu por segundos e tombou, depois, pesadamente.

- Agora o ginete que vá para casa! Yes!

Aquele tiro certeiro e disparado a sangue frio deu origem a um infernal berreiro dos nossos perseguidores. Pararam para conferenciar, mas em seguida reencetaram a perseguição. Dentro de pouco tempo, alcançamos um largo arroio, sobre o qual não havia ponte. Eram impetuosas as suas águas e bastante profundas, de modo que fomos forçados a procurar mais abaixo um ponto por onde pudéssemos vadear o arroio. Isto, naturalmente, nos expunha ao alvo dos atiradores. Os curdos pararam novamente. Alguns deles haviam avançado um pouco, apearam-se e se postaram por trás dos animais. Por sobre os lombos destes vimos logo em seguida vários canos de espingardas assestados para nós.

Apeamos rapidamente e nos entrincheiramos também por trás de nossas montarias. Respondemos, ou melhor, os companheiros é que responderam à carga que nos fizeram; o nosso tiro comprovou possuirmos melhores armas de fogo que eles. Dos nossos quatro tiros todos acertaram o alvo, ao passo que apenas uma das balas curdas atingira de raspão a cauda do cavalo de Lindsay. Este sacudiu a cabeça.

- Essa gente não entende de nada. Que parvos! Alvejar um cavalo pelo rabo! Disso só mesmo um curdo será capaz!

- Procurem um lugar para atravessarmos o arroio! - ordenei ao inglês e aos haddedins. - Eu, com Halef, me encarregaria dos atacantes.

Os donos dos cavalos tombados voltaram apressadamente para junto dos companheiros na retaguarda. Dois deles, porém, se deixaram ficar na posição primitiva. Notei que tornavam a carregar as espingardas.

- Sídi, não atires; deixa-me esse prazer!

- Vá lá!

O meu criado carregou a espingarda e apontou-a. Juntamente com os tiros dos inimigos ouviram-se os dois de sua arma. O pequeno Hadschi acertara admiravelmente o alvo. Um dos animais caiu no mesmo local; alvejara-o na cabeça. O outro, relinchando dolorosamente, saiu em louca disparada planície afora. Das balas dos dois curdos, porém, não sentimos o menor efeito.

- Se isso continuar assim, - disse Halef, rindo-se - ficarão todos eles sem as suas montarias e terão que retornar à aldeia carregando os arreios às costas. Vês como correm à cata de refúgio no meio dos outros camaradas. Eles que digam a estes que se aproximem também um pouco mais de nós!

- Já receberam a lição que mereciam.

Os homens se achavam reunidos agora num só grupo e, na frente, estava o nezanum que lhes falava acaloradamente. Aqueles homens desconheciam o longo alcance de minhas armas, e por isso supunham-se seguros lá no local onde estavam reunidos. Daí a sua admiração ao me verem sair para a frente do cavalo e assestar contra eles a escopeta. Um tiro desta e no mesmo instante o nezanum caía do cavalo, que logo se estirou morto no chão. Apontei mais para a direita e também o outro cavalo ficou espichado no chão. Gritando desesperadamente, os demais curdos retrocederam um trecho. Os cavaleiros que ficaram a pé, praguejando contra nós, engaruparam-se nos outros e se foram também. Ainda bem que aquela gente a partir de ontem adquirira um formidável respeito de nossas armas; do contrário, todos nós estaríamos perdidos.

Agora tínhamos tempo para procurar uma passagem no arroio, passagem que achamos logo depois. Vadeamo-lo e galopamos com a velocidade permitida pelo cavalo de Amad.

O vale de Berwari é banhado por vários riachos que correm das montanhas e que deságuam num braço do Khabur. Este, por sua vez, é afluente do Zab. Esses regatos são marginados por altos arbustos e a planície toda apresenta uma infindável variedade de carvalhos e de árvores bem copadas. O vale é habitado, em parte por curdos-berwaris e em parte por nestorianos cristãos. As aldeias destes ficam quase todo o tempo abandonadas.

Achavamo-nos agora fora do alcance de nossos perseguidores e prestes a alcançar algumas aldeias curdas, pelas quais no entanto, não passamos pois ignorávamos a maneira por que nelas seríamos recebidos. Alguns homens, que no campo se entregavam às suas ocupações diárias, notaram-nos, entretanto.

Infelizmente não conhecíamos bem o caminho que pretendíamos tomar. Sabia apenas que Gumri ficava ao norte; era esta a única indicação que nos servia de guia. As abundantes correntes dágua do caminho detinham-nos a cada passo, e nos obrigavam a grandes rodeios. Por fim chegamos a uma aldeia, composta apenas de algumas casas. Não era possível evitá-la, pois num lado ela confinava com um profundo arroio, e, no outro, com uma densa mata. A aldeia parecia achar-se deserta, por isso a cruzamos despreocupadamente.

Mal passáramos pela primeira casa, ouvimos vários tiros, partidos das janelas das casas.

- Zounds! - exclamou o inglês, fazendo massagem no braço esquerdo.

 

UM CONTRATEMPO FAVORÁVEL AO INIMIGO

Fora atingido por uma bala. Eu próprio jazia no solo e o meu cavalo fugia em disparada. Levantei-me e corri para fora da aldeia, onde cheguei incólume, não obstante vários tiros terem sido disparados contra mim. Um rastro de sangue indicava que meu cavalo estava ferido. Neste instante não me lembrei mais dos companheiros. Como louco, deitei a correr e encontrei o animal no orla do mato, onde ficara parado. A bala, de raspão, passara-lhe pelo pescoço e lhe ocasionara um ferimento não grave mas muito doloroso. Achava-me ocupado em examinar a ferida do animal, quando os companheiros me alcançaram. Haviam deflagrado inutilmente algumas balas e depois seguiram-me, sem que houvessem sofrido maiores danos. Apenas o inglês tinha o braço esquerdo sangrando.

- É perigoso o seu ferimento? - perguntei-lhe.

- Não. Raspou-me apenas pelo músculo, superficialmente. E sabem quem me alvejou? O nezanum!

- Impossível!

- Estava de tocaia no telhado. Vi-o bem!

- Se fôr assim, eles nos cortaram o caminho e nos vieram armar uma emboscada nesta aldeia abandonada. Uma sorte para nós que não tomaram todos eles posição sobre os telhados! Pelas frestas das janelas, não se pode fazer um tiro seguro contra cavaleiros em movimento.

- Mas como caiu lindo do cavalo, mister! - disse o inglês pilheriando comigo. - Gostei de ver quando saiu correndo atrás do cavalo. Yes!

- Folgo muito por haver gozado do espetáculo, sir! Mas, agora, avante!

- Avante? Mas pensei que primeiro voltaríamos para agradecer àquela gente!

- Com isso correríamos ao encontro de novos perigos; além disso, é preciso atar a sua ferida, o que não se pode fazer aqui tão perto do inimigo.

- Well! Vamos então!

O pequeno Hadschi Halef não concordou com a resolução.

- Sídi, não deveríamos dar uma lição àqueles curdos, impedindo-os de continuar em nossa perseguição?

- De que modo pretendes fazer isso?

- Onde achas que eles deixaram os cavalos?

- Alguns, nas próprias casas em que se reuniram e os demais, talvez, fora da aldeia, nalgum esconderijo.

- Procuremos então este esconderijo e tomemos os seus cavalos! Não será difícil essa tarefa; em campo aberto eles não se arriscam a atacar-nos, e é provável que a cavalhada não esteja lá muito vigiada.

- Pretendes tornar-te um ladrão de cavalos, Halef?

- Não, Sídi! Queres, por ventura, taxar isso que te proponho de roubo de cavalos?

- Tratando-se, como de fato se trata, de um caso de defesa pessoal, não considero roubo; contudo, a medida seria de uma imprudência lamentável. Demandaria algum tempo até acharmos o esconderijo e depois, com certeza, teríamos que lutar com os guardas da cavalhada, o que acho desnecessário, porque não tardaremos em alcançar Gumri, onde nos sentiremos a salvo de qualquer investida daqueles curdos.

Prosseguimos em marcha e notamos, pouco tempo depois, que continuávamos sendo perseguidos. Os curdos se mantinham a uma distância que reciprocamente nos tornava alvo de um ataque. Mais tarde, ao entrarem numa curva, perdemo-los de vista. Cortavam, pois, o caminho para novamente nos agredirem de emboscada mais adiante, ou, talvez, para chegarem antes de nós à aldeia de Gumri. Tal suposição confirmou-se daí a pouco. Diante de nós, se bem que de longe ainda, se descortina a rocha que, isoladamente, se erguia no meio de planície e a cujo sopé ficava a Kalah de Gumri. Tratava-se de um forte não muito eficiente construído de argamassa e que rapidamente poderia ser guarnecido de alguns canhões. Entretanto os curdos consideravam-no como uma fortaleza muito resistente.

Estávamos próximos desta localidade, quando ouvimos brados ensurdecedores e uma centena de guerreiros curdos saírem da mata próxima e investirem contra nós. Lindsay ergueu a espingarda.

- Por amor de Deus, sir, não atire! - bradei-lhe ao mesmo tempo que lhe abaixava o cano da espingarda.

- Por quê? Está com medo, sir?

Não tive tempo de responder-lhe. Os curdos já haviam invadido o nosso grupo e nos separavam uns dos outros. Um rapaz firmando-se no estribo, ergueu-se sobre o lombo do cavalo e puxou do punhal para o golpe. Arranquei-lhe a arma da mão e o joguei ao solo. Feito isso, peguei outro pelo braço e disse-lhe:

- És meu protetor! Ele meneou a cabeça.

- Estás armado! - respondeu.

- Confio-te todas as minhas armas. Aqui as tens!

O homem agarrou minhas armas e colocou uma das mãos sobre o meu ombro, dizendo aos do bando:

- É meu protegido durante todo este dia!

- E os meus companheiros também! - acrescentei.

- Estes não me pediram proteção! - declarou, esquivando-se.

- Peço-a eu, em seu lugar; eles não falam o idioma curdo.

- Que deponham as armas, que serei seu hal-am (1).

O desarmamento geral de nossa caravana foi feito com rapidez, embora nenhum dos companheiros estivesse lá muito de acordo com o meu procedimento. A não ser aquele ao qual eu tomara o punhal, todos, sem exceção, pareciam agora menos preocupados com a nossa vida do que por conservar as nossas pessoas debaixo do seu domínio. Um deles, porém, dirigia-me olhares tão raivosos, que nele reconheci logo o vingador de sangue, o que, realmente, daí a pouco, se confirmava plenamente. Quando nos pusemos em movimento, aproveitando uma oportunidade, ele sacou do punhal e desferiu-o contra o cachorro. Este foi, porém, mais ágil que o homem. Saltou para trás desviando-se do golpe e agarrou o agressor pelo punho pouco acima do cabo do punhal. Ouvimos o ranger dos ossos entre as presas esmagadoras do cão. O curdo soltou um grito de dor, deixando cair o punhal. O cão arrojou-o prontamente ao solo e segurou-o pela garganta. Algumas dúzias de espingardas apontavam para o valente galgo.

- Catera Chodeh! - exclamei eu. Por Deus, afastem as espingardas, do contrário o homem será estrangulado!

Realmente, uma bala que não produzisse a morte imediata do cão custaria à vida ao curdo. Os guerreiros reconheceram isso e como nenhum deles tinha confiança no tiro, baixaram as espingardas.

- Manda o cachorro sair de cima do homem! - ordenou um deles.

- Foi esta fera que matou o meu vizinho! - vociferou outro. Era o nezanum que saía de trás de um tufo de arbustos onde se acoitara. Até agora tomara ele a precaução de se manter sempre a uma boa distância de mim.

- Tens razão, nezanum. E estrangulará também a este se eu lhe ordenar!

- Manda o cachorro soltar o homem! - repetiu aquele que há pouco já dera tal ordem.

- Dize-me antes se esse rapaz é o vingador.

- É ele mesmo; é dever seu, e sagrado dever, tirar-te a heif (2).

- Bem, vou mostrar-lhe já que não o temo! - Dojan, geri! - afasta-te daí!

O cachorro largou o curdo que se levantou. A mão devia doer-lhe muito, visto que a levava desesperadamente aos lábios. Recrudesceu o seu ódio! Acercou-se, ameaçadoramente, e sacudiu a mão ferida diante de mim.

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(1) Hal é tio por parte de mãe Am por parte de pai; a junção dessas duas palavras adquire o significado de Protetor.

(2) Desforra.

 

- O teu cachorro tirou-me as forças do braço! - trovejou-me. Mas não creias que lá por isso vá eu encarregar outro da vingança! Es heisi cho-e desti cho-e bigerim tera. Vou desforrar-me com minhas próprias mãos!

- Falas como um sapo, cujo coaxar ninguém teme! - respondi-lhe. - Estende-me o teu braço para que eu examine a ferida e a envolva em panos!

- És por ventura algum médico? De ti não recebo derman (1) de forma alguma, ainda mesmo que eu tenha de morrer. Mas tu, sim, de mim receberás dermans, e em tão grande quantidade que ficarás bastante satisfeito comigo! Isto garanto-te eu!

- Acho que estás acometido de ta (2), porque, do contrário, procurarias salvar a mão!

- A deka (3) de Gumri há de me socorrer. Ela é mais hábil médica do que tu! - respondeu o rapaz desprezivelmente. - Tu e este galgo são dois cães e como cães hão de morrer!

O moço enrolou a mão numa das pontas de sua roupa e apanhou do chão o punhal. Fomos levados para o meio da horda, que logo se pôs em movimento. Todos os curdos se achavam a pé. Haviam deixado as montarias em Gumri. Eu estava um pouco receoso de nossa sorte, mas medo propriamente não tinha.

Silenciosos, os curdos caminhavam ao nosso lado, de olhos alertas para não nos deixarem fugir. Também o meu Halef e os dois árabes não diziam uma só palavra. O inglês, porém, não pôde por muito tempo conter a sua raiva.

- Belo angu preparou-nos o senhor! - resmungou Lindsay. - Devíamos ter fuzilado aos montes esses sujeitos!

- Não nos seria possível, sir. Sairam muito de surpresa da emboscada!

- Yes! Agora estamos metidos num beco sem saída. Depusemos as armas! Fatal história! Horrível! Voltarei outra vez com o senhor para o Curdistão! Como se chama burro em curdo, sir?

- Ker. Mula, filhote de burro, chama-se dachik.

- Well! Então nós os quatro procedemos como dachiks e o senhor como um grande e obstinado ker!

- Comove-me a comparação! Aceite os meus agradecimentos, sir! Não acha então que seria uma loucura, uma estulta pretensão, cinco homens apenas combaterem contra cem que já haviam chegado a avançar-lhes até a aba do fraque?

- Possuímos melhores armas que eles!

- E nos valeriam elas de alguma coisa, estando nós peito a peito com o inimigo, e tendo sido apanhados de surpresa? E se delas fizéssemos uso, muito sangue seria derramado inutilmente, e misturado a esse sangue estaria o nosso também. Além disso, lembre-se da vingança de sangue cultivada em tão alto grau pelos curdos! Não, mister Lindsay, que está o senhor a pensar?

Nisso vimos um cavaleiro que a toda brida galopava ao encontro do bando. Quando se aproximou de modo a distinguirem-se-lhe as feições, reconheci nele Dohub, o curdo cujo pai e irmão estiveram presos na fortaleza de Amadijah. À sua presença o bando que nos conduzia parou. Dohub atravessou a horda, veio direito a mim e estendeu-me cordialmente a mão.

- Chodih! És tu que vens! Mas como? Estás prisioneiro?

— Como vês!

- Oh, perdão, amigo meu! Estive ausente de Gumri e agora, na minha volta, soube que se pretendia efetuar a prisão de cinco estranhos. Pensei logo em ti e apressei-me em vir ao encontro dessa tropa, a ver se minha previsão se confirmava. Chodih! az kolame ta. - Senhor, sou servo teu! Ordena o que desejares de mim!

- Fico-te muito agradecido! Mas não necessito por enquanto do teu auxílio, pois este homem já concordou em ser nosso protetor.

- Por quanto tempo?

- Por um dia.

- Emir, permite que seja eu o protetor, mas por todos os dias de minha vida!

- Terás permissão para isso?

- Sim. És nosso amigo e serás recebido como Mivan pelo Bei. Ele está à tua espera e terá grande alegria em apresentar a ti e aos teus companheiros as boas vindas de sua parte e da de todo Gumri e Berwari.

- Creio que não me será possível ir ter com ele.

- Por que não?

- Deve um Emir se apresentar em qualquer parte sem as suas armas?

- Vi que as tiraram!

E dirigindo-se à nossa escolta:

- Devolvam-lhes as armas!

O curdo ferido protestou energicamente contra esta ordem.

- São prisioneiros e não podem andar armados!

- Não são prisioneiros, não! Serão recebidos em nossa aldeia como hóspedes de honra do Bei.

- Como? Foi o próprio Bei quem nos ordenou a sua prisão.

- É que ele não sabia tratar-se exatamente dos homens cuja visita esperava!

- Esses homens mataram meu pai. Vê a minha mão! Foi mordida pelo seu cachorro!

- Ajusta contas com ele depois que deixar de ser hóspede do Bei. Vem, Chodih! Agarra tuas armas, dize aos companheiros que façam o mesmo e venham todos comigo.

Foi-nos devolvido tudo que nos haviam tomado; separamo-nos da escolta e, a galope, seguimos para a aldeia.

- E afinal, sir, perguntei a Lindsay, que pensa o senhor agora a respeito do ker e dos quatro dachiks?

- Não compreendi coisa alguma da conversa!

- Mas o senhor recebeu as armas de volta!

- Well! E que mais?

- Vamos ser recebidos como hóspedes do Bei de Gumri.

- Vou dar-lhe as satisfações da praxe, sir! O burro fui eu!

- Obrigado, sir! Parabéns por conhecer tão bem a si próprio.

 

NO PALÁCIO DO BEI DE GUMRI

Todas as preocupações estavam agora removidas e com o coração tranqüilo atravessamos o estreito portão da aldeia. Contudo não pude dominar um sentimento de horror à visão da outrora residência do célebre Bei Abd el Summit que, aliado aos Beis Beder Khan e Nur Ullah, assassinara milhares de habitantes cristãos dos Tijaris. A aldeia apresentava um aspecto verdadeiramente marcial. As estreitas ruas se achavam tão repletas de curdos armados que era impossível que todos eles fossem naturais ou moradores da localidade. Neste particular, a pequena fortaleza de Berwari apresentava vista bem diversa da que oferecia o deserto e desorganizado forte de Amadijah.

Ali topamos com o curdo de Serdacht Ali, de lança em punho. Fazia a figura de um pobre diabo ao lado dos curdos de Balani e Chadi, que nunca supunha eu encontrar aqui. Um curdo de Alegan, das montanhas de Bohtan, palestrava mais além com outro da Omerigan que, da região de Diarbekr acorrera a Gumri. Encontramos depois componentes da tribo do Amadi-manan passeando com um curdo de Dilmanikan, de Esi. Enfim iá se achavam concentrados guerreiros das tribos dos Bulanuh, Hadir-sohr, Hasananluh, Delmamikan, Karatschiur, etc Viam-se guerreiros até de Kazikan, Semsat, Kurduk e Kandali a espairecer pelas ruas da aldeia.

- Como vieram parar todos esses forasteiros em Gumri? - perguntei a Dohub.

- Na sua maioria, são vingadores de sangue que aqui se reuniram para liquidar questões uns com os outros; outros são emissários de todas as regiões onde se teme um levante dos cristãos.

- Receiam idêntico levante nesta região?

- Sim, Emir. Os cristãos das montanhas dos Tijaris latem como cães acorrentados. Anseiam por se livrarem do jugo, mas de nada lhes adiantam os latidos ferozes que proferem. Chegou ao nosso conhecimento que eles pretendem assaltar o vale de Berwari; chegaram mesmo a matar alguns homens de nossas tribos, mas o sangue desses nossos irmãos em breve cairá sobre eles mesmos. Estive hoje em Mia e os homens de lá vão realizar amanhã uma caçada de ursos; encontrei deserta a aldeia baixa.

- Existem duas aldeias com o nome de Mia?

- Existem, sim, e ambas pertencem ao domínio de nosso Bei. A Alta-Mia é habitada exclusivamente por muçulmanos e a Baixa-Mia por cristãos nestorianos. Estes últimos subitamente desapareceram do seu povoado.

- Por quê?

- Não se sabe. Chodih, chegamos à residência do Bei. Apeia juntamente com tua gente e dá-me licença para ir anunciá-los ao nosso chefe!

Paramos defronte a uma casa pouco vistosa, mas cuja altura atestava ser a residência de algum governante. A uma palavra proferida por Dohub, se aproximaram alguns curdos a fim de receber e levar para as baias os nossos cavalos. Daí a momentos voltou Dohub e conduziu-nos à presença do Bei. Fomos encontrá-lo numa ampla sala de recepções, tendo vindo ao nosso encontro até a porta. Achava-se cercado por algumas dúzias de curdos que, respeitosamente, se levantaram à nossa chegada. Era um homem que beirava a casa dos trinta, de elevada estatura e espadaúdo; a sua nobre fisionomia atestava o legítimo tipo caucásico e era emoldurada por densas barbas negras. O turbante que usava tinha quase um metro de altura; ao pescoço, e preso a uma corrente de prata, trazia vários talismãs e amuletos; a sua jaqueta, como as calças, eram de ricos tecidos ostentando finos bordados; à cintura trazia um cinto, onde reluziam um punhal, duas pistolas de cabo de prata e uma vistosa e artisticamente trabalhada schyur (1) sem bainha. O Bei dava a impressão de um condutor semi-

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(1) Espada.

 

selvagem de ladrões e abigeatários; as maçãs do rosto eram-lhe, sem perda de sua varonilidade, macias e sedosas; quando me saudou, seu timbre de voz tornou-se suave e cheio de amabilidade.

- Sê bem-vindo, Emir! És meu irmão e teus companheiros, meus amigos.

Estendeu-nos a mão a todos. A um sinal seu, foram trazidas quase todas as almofadas, que se achavam no compartimento, para nelas nos sentarmos. Sentamo-nos, enquanto os curdos que se achavam com o chefe se conservaram de pé.

- Disseram-me que contigo posso falar curdo, que entendes o nosso idioma. É verdade?

- Não compreendo ainda bem o teu belo idioma e os meus companheiros ainda menos - respondi-lhe.

- Neste caso, permite-me que fale no idioma turco ou árabe!

- Não, Senhor! Peço que fales em teu idioma mesmo, para que os presentes compreendam também a nossa palestra. Pedi-lhe por espírito de cortesia.

- Oh! Emir, vocês são meus hóspedes de honra. Falemos, pois, numa língua conhecida também pelos teus companheiros, a fim de que estes participem da palestra. A qual dos dois idiomas dão eles preferência?

- Ao árabe. Mas, Bei autoriza, antes de iniciarmos a palestra, que tua gente se sente! Não são turcos, nem persas, mas curdos livres, que só devem levantar-se quando cumprimentam alguém!

- Chondekar (1), vejo que és um homem que conhece e honra os curdos! Vou permitir, pois, que minha gente tome lugar.

Sentaram-se todos e os olhares que então me dirigiram diziam-me que eram reconhecidos à minha cortesia. Eu tratava com um governador inteligente, pois no interior do Curdistão raramente se encontra um curdo que, além dos diferentes dialetos do seu idioma, fale ainda turco ou árabe. Supus que o Bei falasse também o persa, o que foi logo confirmado no decurso de nossa palestra.

Serviram-nos os cachimbos e uma aguardente de arroz, muito apreciada em todo o Curdistão.

- Que pensas dos curdos de Berwari? - perguntou-me o Bei. Não era uma pergunta capciosa a que o governador me dirigia, mas sim uma usual introdução nas palestras com gente estranha.

- Se todos forem como tu, só coisas agradáveis terei que dizer deles, depois.

- Compreendi bem as tuas palavras. Até agora só coisas desagradáveis tens ouvido a respeito do meu povo - observou.

- Oh! Não! Não conheci em Dohub e em seu pai e irmão três bons amigos?

- Mereceste não só a sua grande amizade, mas também a minha. No entanto, correspondemos à tua generosidade com ingratidão. Estás disposto a perdoar-nos? Eu ignorava que eras tu!

- Perdão também te peço eu! Um dos teus súditos foi morto, mas não tivemos a mínima culpa.

- Conta-me como se desenrolaram os acontecimentos!

Relatei-lhe pormenorizadamente todo o ocorrido e perguntei-lhe depois se em

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(1) Tratamento nobiliárquico.

 

tudo aquilo havia algum motivo fundamental para uma vingança de sangue contra nós.

- Segundo os costumes de nosso país, o moço é obrigado a desagravar a morte do pai, sob pena de incorrer no desprezo público.

- Mas dificilmente tomará ele contra mim tal vingança!

- És hóspede meu e enquanto estiveres em minha casa e dentro dos limites dos meus domínios nada te acontecerá. Estás livre de qualquer perigo. Mas, depois, ele te perseguirá, passo a passo, mesmo que vás para o fim do mundo.

- Não o temo!

- Para vencê-lo em campo aberto, estou certo de que és homem. Mas poderás reagir a uma bala que te deflagrem dalguma emboscada? Não preferes pagar o resgate de sangue?

- Não! - respondi acentuando a palavra.

- Alá concedeu-te demasiada coragem; vai esta ao ponto de zombares de um vingador de sangue! Vou cuidar, porém, para que esta coragem não te acarrete a ruína. Estiveste com o pai de minha mulher em Spandareh ?

- Fui hóspede seu e nos tornamos amigos.

- Sei disso. Não fosse ele teu amigo e não te confiaria o presente que nos mandou. Alá te tem valido muito, pois em toda parte encontras amigos.

- Alá distribui o bem e o mal; enche de alegrias os seus filhos, mas, às vezes, também de desgostos, com o fito de pô-los à prova. Também encontrei inimigos em Amadijah.

- Quem? O Mutesselim?

- Aquele não era nem amigo e nem inimigo meu. Temia-me simplesmente. Mas foi ele procurado por um homem que me odeia e por culpa do qual quase que eu ia sendo aprisionado.

- Quem era este homem?

- O Makredsch de Mossul.

- O Makredsch? - perguntou o Bei atentamente. - Este é inimigo de todos. Que foi ele fazer em Amadijah?

- Lá se achava em fuga para a Pérsia, visto que o Kasi Askari de Anatólia demitiu-o juntamente com o Mutessarif de Mossul.

Essa notícia causou extraordinária surpresa ao Bei. Transmitiu-a imediatamente à sua gente que a recebeu visivelmente surpreendida também. Tive que relatar-lhe minuciosamente o caso.

- O Mutesselim, neste caso, será também demitido? - perguntou-me.

- Não se sabe ainda. Era ele o carrasco-mor do ex-Mutessarif que lhe enviava para Amadijah todo aquele cujo desaparecimento de Mossul lhe era conveniente.

- Mas o Mutessarif mandava apenas criminosos para lá, não é assim?

- Não. Nunca ouviste falar em Amad el Ghandur, o filho de Xeque dos Haddedihns?

- Também ele foi aprisionado e remetido para Amadijah?

- Foi! E o pobre, ao ser preso, estava longe de ter, ao menos, uma idéia vaga da perfídia que lhe estava tramada.

- Fosse eu um haddedihn e peregrinaria para Amadijah, a fim de soltar o filho do meu Xeque.

- É coisa muito difícil, Bei.

- Contudo eu o faria! O ardil muitas vezes produz melhores resultados que a violência.

- Convém que saibas, então, que um haddedihn seguiu para Amadijah, animado de tal propósito.

- Um apenas?

Respondi-lhe afirmativamente.

- Nada arranjará! Para empresas importantes como esta, é preciso o concurso de muitos.

- E não obstante conseguiu o seu objetivo - retruquei-lhe.

- Tu ketisch nezani. - Que não sabes tu? Libertou então o filho do Xeque! Violenta ou ardilosamente?

- Ardilosamente, é claro!

- Um homem valente, decidido e sobretudo inteligente era ele. Foi um simples guerreiro?

- Não. Foi o Xeque Maomé Emin em pessoa.

- Chodih, estás a me relatar milagres! Creio neles por serem ditos por ti. E achas que retornarão à sua tribo sem algumas escaramuças?

- Só Alá e tu sabem disso.

- Eu? Que queres dizer com isso?

- Sim, tu! Ouvi dizer que se dirigirão não para o oeste, mas pretendem passar pela região do Berwari, de onde alcançarão o Zab, para depois descê-lo.

- Emir, que aventura formidável! Bem-vindo em minha casa serão ambos os heróis se me derem a honra de procurar-me. Quando se deu a evasão?

- Ontem à noite.

- Baseado em que afirmas com tanta certeza? Viste-os?

- Vi os dois e também tu os estás vendo agora, pois eles estão sentados ao teu lado. Esse homem é Maomé Emin, o Xeque dos Haddedins e o outro é Amad el Ghandur, seu filho.

O chefe curdo esgueu-se num pulo e perguntou:

- Quem é este outro?

- Meu criado.

- E aquele?

- Um amigo meu, um homem do ocidente. Reunimo-nos todos para libertar o preso da fortaleza de Amadijah! - esclareci com simplicidade.

Estabeleceu-se um grande vozerio; ouviam-se declarações em curdo, exclamações em turco e saudações em árabe. Tudo quanto os curdos ouviram dizer dos haddedins, inclusive a batalha no vale dos Degraus, veio à baila. Tive que desempenhar o papel de intérprete, trabalho que me fêz suar em bicas. Parcos eram os meus conhecimentos do idioma curdo, sendo o turco e árabe ali falados em dialetos, de modo que eu tinha de adivinhar as palavras, pois não as entendia. Essa circunstância deu lugar a várias e interessantes trocas de termos e adulterações de sentido, o que, não obstante a postura solene que conservávamos, nos fizeram rir bastante.

No fim de nossa palestra, o Bei assegurou-nos que tudo faria para facilitar-nos a viagem. Prometeu-nos pôr à disposição a courama para diversas balsas, bem como um guia, conhecedor perfeito das correntezas dos rios Khabas e extremo alto de Zab Ala, como também nos daria recomendações para os curdos de Chirwan e Zibar, cujos territórios teríamos que atravessar. Dissuadiu-nos de empreender uma marcha direta através das montanhas do Tura-Ghara, visto que lá a sua influência, longe de nos ser valiosa, só nos poderia acarretar males irreparáveis.

- Por lá existem - acrescentou o Bei - muitos nestorianos cristãos, vários povos Adoradores do Diabo e também algumas pequenas tribos curdas com as quais Berwari se acha em permanentes hostilidades. Todos são ladrões, assassinos e salteadores; as montanhas são tão agrestes e inacessíveis que jamais atingirão o Zab por aquele rumo. Bom, devem ir descançar agora e permitam-me que termine a minha tarefa diária, antes de tomarmos uma refeição. Tenho hoje muitos negócios a realizar, pois amanhã não estarei na aldeia.

- Pretendes ir a Mia? - perguntei.

- Pretendo, sim. Quem te disse?

- Ouvi dizer por Dohub que pretendes ir lá combater um urso.

- Um? É uma família inteira daquelas feras que por lá dizima os rebanhos. Devo dizer-te que na terra dos curdos há numerosos ursos e - acrescentou com orgulho - os giaurs desta região afirmam haver neste país duas grandes pragas, uma tão perigosa quanto à outra: os ursos e os curdos!

- Permitiras que te acompanhemos no combate?

- Claro, se fôr de seu agrado. Poderão assistir a todo o combate sem que perigo algum os ameace.

- Não pretendemos assistir, mas tomar parte ativa na luta!

- Emir, os ursos que vamos combater são animais furiosos!

- Enganas-te! Os ursos que povoam os desfiladeiros e as montanhas rochosas do Curdistão são quase inofensivos, comparados com os de outras terras; lá essas feras possuem o dobro do tamanho, da pujança e da ferocidade dos daqui.

- Já ouvi falar nisso. Há um país coberto eternamente de gelo e água, onde existem gigantescos ursos cujas peles são vendidas por preço muito alto. Hirtsch el Buz (1) é como aqui denominamos tais feras.

- Sim, mas não foi nesse país que eu andei. Lá pegam-se os ursos a que te referiste para, nas cidades, exibi-los, mediante pagamento de entradas. Mas há outro país que possui também enormes ursos, de valiosas peles, ursos que são os mais possantes e ferozes de todos. As proporções daquelas feras comparadas com as do Curdistão são as mesmas que as de um cavalo para um cachorro, do qual a gente se defende sem, no entanto temê-lo.

- E já viste também estes ursos? - perguntou o Bei pasmado.

- Combati-os por inúmeras vezes até!

- Então saíste vencedor, pois vives ainda. Consinto que, em nossa companhia tomem parte no combate aos ursos.

O Bei levou-nos a uma sala, no meio da qual se achava uma sufra (2) de pouca altura, com cinco almofadas ao redor. Ele retirou-se em seguida e, logo depois, apareceu na sala uma senhora, atrás da qual vinham algumas servas que nos traziam uma pequena refeição para nos entretermos enquanto não chegava a hora do almoço. Essa refeição compunha-se de carne que fora assada antes de ser frita em nata;

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(1) Ursos do gelo.

(2) Mesa.

 

acompanhavam o assado passas de uvas, amoras em conserva e uma salada verde, feita não sei de quê.

- Ser sere men at. - Sede bem-vindos! - saudou-nos a senhora. - Como vai passando meu pai, o nezanum de Spandareh?

- Deixamo-lo bem de saúde e também as demais pessoas de sua família, graças a Alá! - respondi-lhe.

- Tende a bondade de comer e, enquanto isso, peço-vos que me faleis de Spandareh. Já faz muito tempo que não recebo notícias de lá.

Atendi-lhe o pedido, fornecendo-lhe notícias minuciosas. Ela se sentia feliz em falar comigo a respeito de sua terra natal; mandou até buscar, nas baias, o galgo e, numa demonstração de amizade, serviu-lhe alguns restos de carne de cabrito. Pela sua palestra notei que reinava harmonia entre a família, o que muito me comovia, fazendo-me lembrar da minha, deixada na pátria.

Ao terminarmos a refeição, ela retirou-se e nós nos estiramos com toda a comodidade sobre o leito de almofadas. Fomos interrompidos nesse dolce far niente pela entrada de um homem na sala, e, aliás, um homem por quem não esperávamos: o curdo ferido pelas dentadas do cão. Trazia o braço numa tipóia.

- Que queres? - perguntei-lhe.

- Um backschisch, Senhor!

- Um backschisch? A troco de quê?

- Para que eu não te matee.

- Pelo que vejo, não ficaste ainda bom da febre que te causou a ferida. Quanto ao que te referes, se de nós dois alguém há que mereça um backschisch, sou eu, que tudo fiz para conservar-te a vida, quando estiveste nas presas do cão. No entanto, o que fizeste por mim? Atiraste contra mim e tentaste ainda apunhalar-me. E por isso pedes-me um backschisch? Vai embora depressa para não te tornares ridículo aos nossos olhos.

- Senhor, não peço o backschisch por te haver atirado e tentado apunhalar-te, mas em paga por ter eu concordado com o preço do resgate de sangue.

- Resgate de sangue? De quem o recebeste?

- Do Bei. Tomou ele a si o pagamento daquela dívida de honra que assumiste comigo!

- Quanto te deu ele?

- Um cavalo, uma espingarda de chumbo e cinqüenta ovelhas.

- Muito menos, portanto, do que exigias de mim.

- Ele é meu Xeque e sou obrigado a obedecer-lhe. E exatamente por ser tão pequeno o preço do resgate, é que venho pedir-te a minha gorjeta.

- Um curdo livre e orgulhoso de sua raça não mendiga backschich como um hammal (1) turco. Mas como, não obstante, o fazes, vou dar-te a esmola, mas não já, e sim quando me despedir desta aldeia.

- Quanto me darás então?

- Tudo depende do modo como te portares conosco.

- O nosso nezanum receberá também alguma coisa?

- Tens ordens dele para interpelar-me a este respeito?

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(1) Carregador.

 

- Tenho, sim.

- Dize-lhe então que só dou alguma coisa a um mendigo, quando pessoalmente este me estende a mão. Se o nezanum fôr um homem que vive das recomendações do Profeta, receberá ele de todos nós a sua esmola, Mas que venha ele ter conosco; não negociamos, neste sentido, com intermediários. Além disso, já lhe dei de presente a vida do filho e isso vale muito mais que a mais generosa esmola.

O curdo se retirou. Recebera ele o preço do sangue derramado com a morte do seu pai, mas a sua cara tinha uma expressão que não me inspirava confiança. Era como se me quisesse dizer que eu evitasse um encontro com ele noutras circunstâncias que não as atuais.

- Que desejava aquele sujeito? - perguntou Lindsay.

- O Bei lhe pagou, por nós, o preço do resgate de sangue e...

- Como? O Bei.

- Sim, por espírito de hospitalidade.

- Nobre, muita nobreza! Yes! Quanto pagou?

- Um cavalo, uma espingarda e cinqüenta ovelhas.

- Quanto é isso em dinheiro?

- Não chega nem a cinco libras ou cem marcos alemães.

- Vou devolver-lhe a importância acrescida de juros. Yes! Foi linda aventura! Well!

- Isto seria uma grave ofensa para ele, sir; procuraremos compensá-lo indiretamente, oferecendo-lhe um lindo presente.

- Bom! Lindo! Que lhe daremos?

- É muito cedo para pensarmos sobre isso.

- E aquele homem ainda pede uma gorjeta? Mister, como se diz em curdo bofetada, tapona, murro na face?

- Sileik.

- Well! Por que lhe não deu um sileik?

- Porque o lugar não era próprio para isso. Ao contrário, prometi-lhe uma gorjeta, que a receberá de fato, assim que partirmos daqui.

- Então permita que lhe dê eu o sileik; servir-lhe-á ao mesmo tempo de lembrança nossa e corretivo!

Quando o Bei terminou suas tarefas governamentais, nos conduziu ao pátio, onde nos foi servido o almoço. Almoço não, banquete é que foi aquilo, pois nele tomaram parte mais de quarenta convivas. Além dos convidados, outros se achegavam à mesa e com uma sem-cerimônia, caracteristicamente oriental, pediam para participar do banquete.

Quase ao findar a refeição, verificou-se que o almoço não chegaria para todos os que se apresentaram depois. Resolvendo a dificuldade, os intrusos receberam de presente uma ovelha viva, que logo se deram pressa em prepará-la. Um deles fêz uma cova no chão, outro trouxe pedras e lenha para o braseiro; outro sangrou o animal e o pendurou com as patas dianteiras amarradas a um caibro. Para a limpeza não foram retirados os intestinos da ovelha, mas o curdo encheu de água a boca, encostou os lábios no reto do animal e “seringou-o” por ali adentro. Aquele sistema de lavagem intestinal foi repetido tantas vezes até calcularem eles estar a ovelha com o intestino completamente limpo. Depois foi a carne dividida em tantas partes quantos eram os homens a participar da refeição. Cada qual recebeu a sua porção de tripa juntamente com a de carne, e foi assá-la; daí a pouco desaperecia tudo por entre as fileiras de dentes para o interior dos respectivos estômagos sem almoço até aquela hora!

Depois do almoço o Bei mostrou-nos as suas cavalariças. Nelas se achavam mais de vinte cavalos, porém, apenas um tordilho chamava especial atenção do visitante; os demais eram cavalos bem ordinários. Em seguida, assistimos a torneios desportivos realizados em nossa honra e também a um sarau de canto, acompanhado por duas guitarras de duas cordas apenas. Encerrando o programa, pareceu-nos um homem a contar lendas e histórias; Baka ki mir - O sapo moribundo; Gur bu schevan - O lobo transformado em pastor; Scyeri kal - O velho leão; Ruvi u bizin - A raposa e a cobra.

A assistência ouvia atentamente as narrativas; eu, porém, dei graças ao céu quando as mesmas terminaram e pudemos ir dormir. O Bei conduziu-nos a uma ampla sala rodeada de divãs, que nos serviriam de leito. Como no compartimento nada de extraordinário notei, admirava-me dos olhares cheios de expectatitva com que nos observava o Bei. Era o olhar de uma pessoa que julga haver realizado uma notável invenção e espera dos seus convivas os aplausos a que se julga com direito. De tanto ele olhar para um mesmo ponto, descobri, afinal, o objeto que esperava ele ser por nós admirado; naturalmente que logo fiz ares de admiração e explodi em exclamações entusiásticas, do melhor que me foi possível fingir.

- Que é isso! Oh! Bei com que deslumbradora riqueza te agraciou, Alá! Os teus tesouros devem ser mais fabulosos do que os do Bei de Revandoz ou os do governante de Dschulamerik.

- A que te referes, Emir? - perguntou ele com uma certa vaidade.

- Àquele rico dscham (1), com o qual ornamentaste o teu palácio.

- Sim, é um objeto raro e valiosíssimo! - respondeu o governante curdo com orgulhosa modéstia.

- De quem o adquiriste?

- Comprei-o de um Israel (2) que o trouxe de Mossul, com o fim de presenteá-lo ao xa da Pérsia.

Seria descortês perguntar-lhe pelo preço do vitral. O judeu inventara por certo uma lenda a respeito do xa da Pérsia, para melhor extorquir o Bei, pedindo um preço fabuloso pelo vidro. Este nada mais era do que um pedaço de vidraça comum partida e não tinha maiores dimensões do que a de duas mãos de uma pessoa. Estava colada a um papel oleado fixo na janela; representava o maior e o mais fino ornamento da sala! O Bei nos deu boa-noite, certo de nos haver empolgado com a visão daquele caco de vidro.

Fatigados como nos achávamos, adormecemos tranqüilamente e, ao contrário da noite anterior, com toda a segurança.

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(1) Vitral.

(2) Judeu.

 

Uma original caçada de ursos

Na manhã seguinte, o Bei em pessoa veio despertar-nos.

- Emir, levanta-te juntamente com os teus companheiros, se é que realmente pretendem acompanhar-me a Mia. Não tardarei em partir com a minha comitiva.

Como, seguindo costumes da terra, dormíramos vestidos, foi-nos possível atendê-lo quase que imediatamente. Serviram-nos café e alguns pedaços de carne fria, e partimos em seguida. O caminho para Mia cruzava por diversas aldeias curdas, cercadas por hortas bem tratadas. Antes da aldeia, desenvolve-se o terreno em sensíveis elevações e tivemos que transpor um passo, junto ao qual éramos esperados por alguns homens. Este fato pareceu surpreender ao Bei, pois perguntou-lhes a razão pela qual não haviam ficado em Mia.

- Senhor, desde ontem que vêm acontecendo coisas que precisamos relatar-te - respondeu um deles. - Que os nestorianos abandonaram a Baixa Mia já deves ter sabido por intermédio de Dohub. Esta noite um deles esteve na Alta Mia, à procura dum amigo com o qual tem uma dívida de gratidão, aconselhando-o a deixar imediatamente a cidade, sob pena de pôr a vida em risco.

- E são apenas essas coisas insignificantes que os atemorizam? - perguntou o Bei.

- Isso não nos atemoriza, pois bastante fortes e valentes somos nós para repelir, altivamente, qualquer investida desses giaurs. Soubemos, porém, hoje bem cedo, que os cristãos assassinaram moradores muçulmanos de Zawitha, Minijanisch, Murghi e Lizan e aqui nas proximidades de Seraruh foram incendiadas algumas casas. Cavalgamos ao teu encontro, para que soubesses desses acontecimentos o mais breve possível.

- Bem, vamos então! Veremos até que ponto se pode dar fé a essas notícias!

Continuamos cavalgando, elevação abaixo, e logo atingimos o ponto onde a estrada se bifurca para a Alta e Baixa Mia. Tomamos a estrada de Alta Mia, onde o Bei possuía uma casa. Foi ele recebido ali por uma legião de curdos armados de azagaias e lanças. Era a legião de caçadores.

Apeamos, e o guardião da casa serviu-nos alguns alimentos e bebidas. Enquanto merendávamos, o Bei, à frente da casa, fazia sindicâncias, ouvindo uns e outros para ter uma idéia exata da agitação provocada pelos nestorianos. O que soube parece ter sido satisfatório, pois quando ele entrou na sala, ria-se fazendo uma fisionomia de quem fora importunado por vãos pressentimentos de outrem.

- A aldeia está realmente em perigo? - perguntei-lhe.

- Absolutamente não. Aqueles nestorianos daqui se retiraram, com o objetivo único de não nos pagar as devidas dscherums (1) e, lá do outro lado, em Seraruh, incendiou-se um pardieiro. E agora estão essas múmias a temer imaginários levantes e derramamento de sangue quando os giaurs dão graças a Alá que os deixemos em paz.

__________

(1) Multas.

 

Venham. Dei ordens para a partida imediata da legião de caçadores. Passaremos por Seraruh, onde constataremos logo que não tem fundamento esse temor dos homens de Mia.

- Não seria melhor dividirmo-nos em dois grupos?

- Por quê? - perguntou o Bei, até certo ponto surpreendido.

- Não me disse que se tratava de duas famílias de ursos?

- Ficaremos todos juntos; primeiro abateremos uma, e depois a outra.

- Fica longe daqui a zona das feras?

- A minha gente seguiu-lhes as pegadas. Disseram-me que basta cavalgarmos meia hora, para encontrarmos a pista. Pretendes realmente tomar parte no combate?

Respondi afirmativamente, e ele então me disse:

- Vou munir-te de algumas azagaias.

- Para quê?

- Não sabes que não se matam ursos à bala? Estes só morrem depois que neles se cravam diversas azagaias.

Essa resposta me fêz duvidar do adestramento dos curdos e da eficiência de suas armas.

- Pois fica lá com tuas azagaias que hei de saber matar um urso à bala.

- Bem, faze lá o que quiseres; conserva-te, porém, sempre ao meu costado para que eu te possa proteger no caso de te veres em perigo!

- Que Alá livre a ti do perigo, assim como dele me livra. Cavalgamos para fora da aldeia. A legião se assemelhava a um grupo de simples caçadores de gazelas, tão parcamente aprestados se achavam os seus componentes. Descemos primeiro o vale, subimos outeiros, atravessamos uma infinidade de desfiladeiros e matas, até que afinal chegamos a uma floresta de faias entremeadas de árvores baixas.

- Onde fica a caverna dos ursos? - perguntei ao Bei.

Ele apontou simplesmente para diante de si, sem indicar propriamente um ponto certo.

- Encontraram as pegadas dos animais?

- Sim, mas do outro lado.

- Ah! Mandou cercar a caverna?

- Sim. Os caçadores enxotarão agora a fera em nossa direção. Tu ficarás à minha direita e aquele Emir do ocidente, que também não aceitou as azagaias, à minha esquerda, para eu os proteger bem.

- Estão todos os ursos na caverna? - perguntei-lhe.

- Onde mais hão de estar? Só saem à noite para atacar os rebanhos. Era uma pitoresca organização a que o Bei dava àquela caçada de ursos! Todos estávamos montados em forma de um semicírculo e cada cavaleiro, assim que fossem enxotadas as feras, deveria manter uma distância de quarenta passos um do outro!

- Faremos fogo à aproximação dos ursos? - perguntei, impaciente.

- Poderão fazer, porém, fiquem certos de que não matarão uma só das feras! Logo após o tiro devem tratar de fugir sem perda de tempo.

- E que farás então?

- Quando se aproximar um urso, o caçador mais próximo lançar-lhe-á a azagaia na barriga e fugirá tão depressa quanto o seu cavalo puder suportar. A fera o perseguirá e o caçador imediato sairá atrás e lhe lançará também aquela arma, fugindo depois, como o primeiro. Outros caçadores acudirão, lançando cada um a sua azagaia e fugindo à investida do animal. Este receberá tantas azagaias pelo corpo, que, por fim, esvaindo-se em sangue, tombará.

Traduzi ao inglês aquela original lição de venatória.

- Parvos caçadores! - resmungou Lindsay. - É pena que a linda pele ficará dilacerada! Vamos fazer um negócio, sir?

- Que negócio?

- Compro-lhe o urso.

- Se eu o abater, vendo-o.

- Psiu! Compro-o vivo ainda.

- Singular este negócio!

- Talvez seja! Quanto quer pelo urso?

- Não posso vender o que ainda não possuo!

- Nem é para possuir! Quando o animal aparecer aqui, o senhor deixará que eu o abata. Para que não se meta na caçada, é que resolvi comprar-lhe a fera, antes mesmo que ela apareça.

- Quanto me pagará neste caso?

- Cinqüenta libras, sir. Bastam?

- É mais do que bem pago! Eu apenas queria conhecer a sua oferta. Não o vendo, porém!

O inglês olhou-me encolerizado.

- Por que não, sir? Não sou seu amigo?

- Não vendo, faço-lhe presente da fera! Veja lá como se arranja com ela!

- Não obstante receberá de mim as cinqüenta libras, mister! - respondeu o inglês, satisfeito.

- Não as aceitarei!

- Não faz mal! Liquidaremos a conta de um modo indireto, depois! Yes!

- Era só o que faltava. Bem grande já é o meu débito para com o senhor. Faço, porém, o negócio com uma condição. Estou louco por ver como esses curdos caçam ursos. Quando a fera aparecer, não dê logo o tiro. Deixe que lhes lancem algumas azagaias. Valeu?

- Vou fazer-lhe este favor. Yes.

- Mas cuidado! Assim que a fera se mover, alveja-a nos olhos ou então diretamente no coração. Os ursos daqui não são lá muito ferozes; contudo é fácil tornar-se fatal uma caçada destas.

- Ah! Quer fazer-me um favor?

- Com muito prazer, se estiver ao meu alcance.

- Empreste-me a sua espingarda! É mais eficiente que a minha. Concorda?

- Se prometer não lançá-la às garras do urso, empresto-a.

- Hei de segurá-la nas minhas próprias garras. Yes!

- Então dê-me a sua arma.

Trocamos as espingardas. O inglês era, aliás, um bom atirador, mas eu estava curioso por ver como se portaria ele em face do urso.

A legião de curdos se dissolveu. Metade deles saiu acompanhada pelos cachorros, a fim de enxotar os ursos da caverna, e a outra metade ficou no local para formar o semi-círculo. Halef e os dois árabes aceitaram as azagaias que o Bei lhes ofereceu e tomaram posição no semi-círculo. Eu e o inglês, porém, ficamos de fora na companhia do Bei. Não cedi o meu cachorro para enxotar as feras. Conservei-o ao meu lado.

- Os cães apenas enxotam os ursos ou também os caçam? - perguntei ao Bei.

- Não lhes é possível caçar, pois as feras disparam logo deles.

- Oh! como são inofensivas, então!

- Calma, já irás conhecê-las!

Demorou bastante tempo, até que pelo barulho percebemos que se haviam movimentado os enxotadores; seguiram-se fortes latidos e o brado de Alaaá. Os latidos aproximavam-se, rapidamente, e os brados mais se distanciavam. Minutos depois, lancinantes latidos anunciavam-nos que um dos cães fora ferido. Deflagrou-se um tiro e a matilha prosseguiu com redobrada intensidade.

- Acautela-te, Emir! Vem aí o urso ou os ursos!

O Bei tinha razão. Ouvimos um ruído na mata próxima e em seguida surgiu um urso preto. Não era um gigante daquela fauna. Um simples tiro o faria tombar facilmente. Ao avistar-nos, a fera ficou parada como a refletir sobre a atitude que tomaria em face daquela inesperada situação. Um urro em surdina significou o seu aborrecimento e os olhos flamejavam furiosos contra nós. Onde nos achávamos não havia macegal no bosque, de modo que poderíamos mover-nos a cavalo com todo o desembaraço. O Bei resolveu não deixar a fera refletir até o fim. Cavalgou uns passos ao seu encontro e lançou-lhe uma azagaia, que nela ficou cravada. Em seguida virou apressado o cavalo, que tremia de pavor diante do urso.

- Foge Emir! - bradou-me, mas ao mesmo tempo passava a galope por entre mim e o inglês e se ia embora, sem mais se preocupar com a proteção que assegurara às nossas vidas.

O urso soltou um urro ensurdecedor de dor, tentou sacudir a azagaia de si e, não conseguindo, saltou furiosamente em perseguição do Bei. Nesse momento dois cavaleiros que nos ficavam próximos, galoparam atrás da fera e lançaram-lhe as azagaias, das quais uma só atingiu o alvo, não ficando, porém, cravada no animal. Este imediatamente virou-se para os novos agressores. Notando isso, o Bei retrocedeu e lançou contra a fera outra azagaia, que se cravou mais profundamente ainda do que a primeira. O animal tentou novamente sacudir do corpo as armas, enquanto mais dois cavaleiros investiam contra ele.

- Devo atirar agora? - perguntou-me Lindsay.

- Sim, abrevie o suplício do pobre urso!

- Segure-me então o cavalo!

Aproximou-se de mim, visto que com as correrias do urso nos havíamos separado, desceu do cavalo e passou-me as rédeas para eu segurar. Já ia fazer a pontaria quando percebemos um ruído na mata e outra fera apareceu. Era a ursa que se aproximava muito lentamente, porque consigo vinha um filhote, que carecia da proteção maternal. Era maior do que o macho e o seu urro, mais assombroso. O momento não era dos menos perigosos. Lá o urso, aqui a ursa e nós entre ambos! Mas o meu mestre Fowling-Bull não perdeu a sua habitual calma e sangue frio.

- A ursa, sir? - perguntou-me ele.

- Naturalmente!

- Well! Procederei com galanteria! As damas sempre têm preferência aos cavalheiros!

Meneou satisfeito a cabeça, afastou da testa o turbante e, a passos lentos e de espingarda assestada, aproximava-se da ursa. Esta, vendo a aproximação do inimigo, empurrou o filhote para entre as pernas trazeiras e com as dianteiras esperava o assaltante, num bote mortal. O inglês aproximou-se dela uns três passos, apontou-lhe o cano da espingarda, com uma calma de quem estivesse a alvejar uma figura inanimada, e desfechou-lhe o tiro contra a cabeça.

- Para trás! - preveni-o.

Era desnecessário preveni-lo, pois o inglês já se havia afastado para o lado e assestava a arma para o segundo tiro. Não foi preciso este segundo tiro. A ursa estremeceu, sacudiu as patas para o ar e rolou pesadamente ao solo.

- Estará morta? - perguntou-me o inglês.

- Sim; mas é bom esperar um pouco antes de lhe tocar.

- Well! Onde está a outra fera?

- Lá do outro lado.

- Espere-me aqui. Vou mimoseá-lá com a outra bala.

- Dê-me a espingarda para carregá-la.

- Deixe isso! Demora muito!

Dizendo isso, saiu a passo para o local onde os curdos lutavam com o urso, já esvaindo-se em sangue. O Bei se preparava para lançar outra azagaia, quando viu chegar Lindsay e deteve o lançamento da arma. O governador de Gumri já dera o inglês por perdido. Este, porém, ficou tranqüilamente parado, ao ver que a fera avançava furiosamente contra ele. Deixou-a aproximar-se dele até o momento em que estendia as patas dianteiras para o fatídico abraço, quando detonou a arma. Este tiro produzira o mesmo resultado do anterior. O animal caiu nos estertores da agonia.

Ergueu-se então um ensurdecedor berreiro de júbilo, dominado apenas pela malta de cães que a todo transe pretendiam apoderar-se do urso. O inglês, porém, com a maior indiferença deste mundo, retrocedeu a passos tardos, voltou para o seu cavalo e me devolveu a arma.

- Aí a tem, sir. Pode carregá-la agora, se quiser! Yes!

- Tome lá o seu cavalo!

- Que tal fiz o serviço?

- Muito bem!

- Well! Folgo muito! É lindo o Curdistão! Muito lindo! Yes! Os curdos não podiam sair da surpresa em que os deixara o inglês; achavam extraordinário que um homem a pé, munido somente de espingarda e tendo esta apenas um dos canos carregado, se aventurasse a enfrentar um animal de presa, para eles, tão feroz. Aliás, mister Lindsay revelara-se um modelo de caçador atilado. Não compreedia por que um filhote tão desenvolvido ainda se achava junto à mãe. Depois de muito trabalho, os curdos conseguiram dominar o filhote e amarrá-lo, pois o Bei resolvera levá-lo vivo para Gumri.

- Senhor, - disse-me o Bei - esse Emir do ocidente é um homem denodado!

- Evidentemente.

- Agora não me admiro mais de que os berwaris não conseguissem subjugá-los ontem, até que os surpreenderam de um modo tão rápido.

- De qualquer forma, não nos teriam subjugado; eu, porém, aconselhei aos companheiros que não resistissem. Sou teu amigo e não queria deixar que matassem gente tua.

- Mas como é possível acertar bem nos olhos dos dois ursos?

- Conheci um caçador que a toda fera e a todo inimigo mandava invariavelmente um certeiro tiro na vista. Era ótimo atirador e possuía uma arma que jamais errou o alvo.

- Adotas também o mesmo sistema de tiro?

- Não. Já atirei muito, mas só em casos extremos é que alvejava a vista do inimigo. Onde fica a segunda zona de caça?

- Na direção do oeste, perto de Seraruh, do lado de lá. Vamos seguir já para aquela zona.

 

CAINDO NA EMBOSCADA

Foram deixados alguns homens junto às caças abatidas e nós outros continuamos a excursão venatória. Deixando o mato, chegamos a um desfiladeiro pelo qual corria um regato, à cuja margem teríamos que seguir. O Bei cavalgava à frente, ao lado dos dois haddedihns; Halef se misturara aos curdos, com os quais, ao que parecia, fizera já alguma camaradagem; eu e o inglês fechávamos o préstito. Distraimo-nos de tal modo na palestra, que não notamos que nos havíamos distanciado muito dos curdos; já não os avistávamos mais. De repente ouvimos a detonação de um tiro.

- Que é isso? - perguntou o inglês. - Já vamos chegando à zona dos ursos, sir?

- Por certo que não.

- Mas quem está atirando, então?

- Vamos ver; venha!

Ouviu-se, então, uma salva, como se o tiro anterior fosse um sinal convencionado. Esporeamos os cavalos e galopamos. Meu garanhão voava como uma flecha pela estrada lodosa; de repente parou enrolado numas raízes que se elevavam do solo. Eu as vira, quis desviá-lo delas, mas não me foi possível. Com o balanço do animal, preso ao tufo, fui cuspido violentamente da sela. Isso me sucedia pela segunda vez durante dois dias! Mas desta vez não caí com a mesma felicidade da véspera. Bati com a região temporal na coronha da arma que trazia a tira-colo, e caí desacordado.

Quando recuperei os sentidos, senti uma agitação dolorosa em todo o corpo. Abri os olhos e me vi dependurado entre dois cavalos. Colocaram varas ao serigote e nelas me haviam amarrado. À frente e por trás de mim cavalgavam cerca de trinta vultos marciais, dos quais vários se achavam feridos. Entre os cavaleiros estava também mister Lindsay, porém, algemado. O chefe da escolta montava o meu garanhão e usava também as minhas armas. A mim haviam deixado apenas a camisa e as calças, ao passo que Lindsay, além dessas duas indispensáveis peças do vestuário, salvara também o seu turbante. Havíamos sido saqueados em todos os nossos haveres e aprisionados.

Nesse ínterim, um dos cavaleiros, virando-se, viu-me de olhos abertos.

- Parem! O homem ainda vive! - exclamou ele. Imediatamente parou o esquadrão e me fecharam num cerco. O chefe acercou-se de mim e perguntou-me:

- Podes falar?

O silêncio de nada nos adiantaria, por isso respondi-lhe:

- Sim!

- És o Bei de Gumri? - começou a interrogar o chefe.

- Não sou, não!

- Não mintas!

- Falo a pura verdade!

- És o Bei, sim!

- Não sou!

- Quem és então?

- Um estranho.

- De onde?

- Das terras do ocidente.

O homem riu sardônicamente.

- Está ouvindo, minha gente? Pretende ser um forasteiro, dizendo-se filho das terras do ocidente. No, entretanto acompanhado dos habitantes de Gumri e Mia vai à caçada de ursos e fala a língua do país!

- Achava-me em Gumri como hóspede do Bei de Berwari; e não falo corretamente a língua do teu país, tu mesmo o estás testemunhando. São nestorahs?

- Assim nos tratam os muçulmanos.

- Eu também sou cristão!

- Tu?

O homem soltou outra risada de escárneo.

- Um Haschi é o que és, usas o Kuran ao pescoço e envergas trajes-muçulmanos. Pretendes enganar-nos?

- Absolutamente não! Já te afirmei que estou dizendo a pura verdade!

- Dize-me então se Sidma Marryam é a Mãe de Deus!

- É, sim!

- E um sacerdote deve tomar uma mulher por esposa?

- Não. Deve conservar-se solteiro.

- Existem mais ou menos três sacramentos?

- Há mais de três.

Não obstante o perigo a que me achava exposto, nem por sombras haveria de renegar a minha religião. E as conseqüências se me fizeram logo sentir.

- Pois fica sabendo, então, que Sidma Marryam foi uma criatura humana como qualquer outra, que um padre possui o direito de casar-se e que existem apenas três sacramentos, que são o batismo, a comunhão e a ordenação. És um muçulmano e se fores um cristão és dos falsos, enviados pelos sacerdotes para levantar os turcos, os curdos e os persas contra nós; isso é mais grave ainda do que se fosses um simples adepto do falso profeta! A tua gente feriu muitos dos nossos e pagarás com o teu sangue essa ignominiosa afronta.

- Vocês pretendem ser cristãos e são uns sanguinários! Que lhes fizemos? Nem ao menos sabemos se foram vocês que atacaram o Bei e a sua gente ou se foi o Bei e a sua gente que os atacou!

- O Bei foi por nós espreitado, pois muito bem sabíamos que ele viria com sua legião caçar nos desfiladeiros; infelizmente conseguiu fugir-nos com toda a sua horda façanhuda. Fica sabendo disso!

- Para onde pretendem conduzir-nos?

- Saberás quando lá chegarmos.

- Então livra-me ao menos desta posição e deixa-me montar o cavalo que me pertence!

- Não te nego tal coisa. Mas sobre ele serás amarrado, para que não nos escapes!

- Concordo, perfeitamente!

- Quem é o teu companheiro? Ele feriu dois dos nossos homens e matou-nos um cavalo; fala um idioma que nem o diabo compreende.

- É um inglês.

- Inglês? Mas como, se está trajado de curdo?

- Porque para esta terra é o traje mais prático.

- É ele algum missionário?

- Não é, não!

- Que andam fazendo nesta região?

- Viajamos pelo Curdistão para conhecer-lhe os homens, a fauna, a flora, as cidades e as aldeias.

- Mais ainda agrava-se a sua situação, visto que neste caso sois reles espiões! Que têm a ver com este país? Nós nunca fomos ao seu para bisbilhotar as aldeias, as cidades, a fauna e a flora! Coloquem-no sobre o cavalo e, amarrem-no ao outro, com uma corda, que ele diz ser inglês! Amarrem também um cavalo ao outro.

A ordem foi prontamente cumprida. Aquela gente carregava tanta corda que por certo contavam colher presas bem mais numerosas do que as que colheram. Fui amarrado ao lombo da montaria e puxaram mais uma corda entre mim e o inglês, de modo que a fuga de um de nós, isoladamente, se tornaria empresa impossível. Lindsay assistia a tudo isso com uma cara em que se viam estampadas todas as amarguras deste vale de lágrimas.

- E agora, sir? - perguntei-lhe.

Meneou umas duas ou três vezes a cabeça e disse afinal:

- Yes!

- E meio desnudos, hein?

- Yes!

- Como sucedeu tudo isso?

- Yes!

- Vá para o diabo com o seu Yes! Perguntei-lhe como caímos na armadilha?

- Como se diz traiçoeiro e ladrão em língua curda?

- Traiçoeiro é heilebaz e ladrão herambaz.

- Pergunte, então, o que deseja saber, a esses heil e herambaz!

O chefe do bando deve ter percebido a palavra enunciada em curdo, pois virou-se e perguntou:

- Que disseste?

- Estou a me informar de meu companheiro como caímos prisioneiros! - respondi-lhe.

- Falem então curdo para que compreendamos também o que estão a dizer!

- O meu camarada não fala este idioma!

- Pelo menos, não estejam a dizer coisas que nos ofendam.

Dito isso, virou-se de novo e galopou para a frente do bando. Fiquei satisfeito porque ele não nos proibiu, propriamente, de falarmos. Um dos outros curdos certamente não nos daria tal concessão. Nossos pés estavam amarrados de modo que a corda pendia frouxa por baixo da barriga do cavalo. Da minha perna e do meu braço esquerdo partia uma corda que ia prender-se à perna e ao braço direito de David Lindsay. Deixaram, porém, as nossas mãos livres para que pudéssemos governar os cavalos que também iam ligados por uma corda. Nossos dominadores deveriam fazer uma excursão pelo oeste bravio dos Estados Unidos, por entre os índios daquela região. Garanto que muito lucraria com a jornada...

- Bem, sir, conte-me como tudo aconteceu.

- Well! O senhor “plantou uma figueira” igualzinha a de ontem. Se continuar assim, o Curdistão vai ficar coberto de figueiras! Eu cavalgava por trás do senhor. Compreende-me?

- Compreendo e o estou ouvindo muito bem, continue!

- Meu cavalo caiu sobre o seu que agora passou à propriedade daquele cavalheiro, e eu... hum! Yes!

- Ah! “plantou uma figueira” também?

- Well! A minha, porém, não foi igual à sua!

- Compreendo, é possível que o senhor seja um plantador mais hábil que eu.

- Sir, como se chama língua em curdo?

- Nekul.

- Bom! Afivele um pouco a sua nekul, mister!

- Obrigado pelo conselho, sir! O seu modo de falar, depois de sua convivência com os curdos, parece ter-se estilizado muito! Não é assim?

- Não é mesmo de admirar que, depois de tantas aventuras eletrizantes, se adquira novo estilo de linguagem! Yes! Mas, como estava dizendo, caí ao solo e me levantei lentamente. As armas e tudo o mais que eu trazia voaram longe. Nisso, chegaram esses herambaz e investiram contra mim.

- E o senhor reagiu?

- Naturalmente! Mas mal pude juntar a faca e uma das pistolas que se achavam no chão; por isso é que eles conseguiram desarmar-me e prender-me!

- E onde ficou o Bei com sua gente?

- Não vi nenhum deles, mas ouvi tiros mais adiante.

- Por certo havia dois destacamentos dessa gente pelas redondezas.

- É provável. Quando terminaram de me amarrar, cuidaram do senhor. Pensei até que o senhor estivesse morto. Têm havido exemplos de maus cavaleiros que chegam a quebrar o pescoço numa rodada, não é assim?

- Possivelmente!

- Depois disso o senhor foi amarrado entre aqueles dois animais e nos pusemos em marcha depois de terem eles se apossado de nossos cavalos.

- O senhor foi interrogado por eles?

- Por muito tempo! Respondi-lhes! E como! Yes!

- Antes de mais nada é preciso que tomemos nota do rumo que vai tomando esta gente. Em que direção fica o desfiladeiro, onde nos sucedeu o desastre?

- Exatamente por trás de nós.

- Lá está o sol, portanto cavalgamos agora para o sudoeste. Agrada-lhe ainda o Curdistão, como há pouco quando abatia os ursos?

- Hum! Miserável país, às vezes. Que gente é essa?

- Nestorianos.

- Admirável seita cristã! Não acha, sir?

- Essa gente tem sofrido tantas crueldades dos curdos, que não é de admirar que pratique represálias.

- Perfeitamente, mas podia ter esperado outra ocasião mais oportuna para suas represálias. Que faremos agora?

- Nada, pelo menos, por enquanto.

- Não fugiremos?

- Na situação em que nos achamos?

- Hum! Lindo traje era aquele! Elegante, mesmo! E afinal, foi-se...! Em Gumri receberemos novos trajes.

- Isto seria o de menos. Mas sem o meu cavalo e as armas não fugirei. Que é feito do seu dinheiro, mister?

- Transmigrou-se para os bolsos daquele heilebaz que esteve há pouco falando com o senhor. E o seu?

- Transmigrou-se também e por certo para o mesmo bolso! A sorte é que não trazia muito dinheiro comigo.

- Bela aventura! Que pensa o senhor que farão conosco?

- Estou certo de não nos acharmos em perigo de vida. Mais cedo ou mais tarde, eles nos soltarão. Mas duvido de que nos devolvam nossos haveres.

- E pretende o senhor desistir de suas armas sem mais nem menos?

- Nunca, nem que eu tivesse que procurá-las por todo o Curdistão.

- Well! Eu o ajudaria nisso!

 

“ENSINANDO” O MANEJO DE ARMAS

Atravessamos um amplo vale situado entre duas colinas que se estendiam primeiro para noroeste e depois para sudoeste; dobramos depois à esquerda subindo uma colina até alcançarmos o planalto, de onde se avistavam as casas de diversas localidades, bem como um rio onde deságuavam muitos outros. Naquela zona deviam estar situadas as aldeias de Murghi e Lizan, pois, na minha opinião, há muito que já havíamos passado pelas adjacências de Seraruh.

Chegando ao planalto, paramos debaixo de frondosos carvalhos. A nossa escolta apeou. Permitiram-nos que também apeássemos, mas nos amarraram ao tronco de uma árvore. Cada qual se foi servindo dos alimentos que trazia. Nós ficamos apenas olhando os outros comerem. O inglês pigarreava de aborrecimento e, por fim, resmungou:

- Sabe o senhor o que já estava eu a ante-gozar?

- O quê?

- As deliciosas patas e lombos do urso, que iríamos saborear.

- Esqueça agora as patas e o lombo. Está com fome?

- Não. Até estou farto... de raiva! Olhe só para a cara daquele biltre! Não atina com o manejo dos revólveres.

Com calma, aquela gente podia agora examinar tudo o que de nós havia apreendido. Vimos os nossos haveres correrem de mão em mão, e, além do dinheiro que foi guardado cuidadosamente, as nossas armas é que despertavam mais a atenção dos seus novos “donos”. O chefe tinha ambos os meus revólveres nas mãos e os examinava detidamente. Não houve forma de descobrir como funcionavam. Virou-os, revirou-os, e por fim dirigiu-se a mim:

- São armas essas coisinhas? - perguntou ele.

- São.

- E armas de fogo?

- Exatamente.

- Como se manejam?

- Não é possível explicar verbalmente; só mesmo mostrando.

- Então mostra-nos!

Nem passava pela cabeça do homem que aquelas “coisinhas” poderiam tornar-se perigosíssimas em minhas mãos.

- Mesmo assim, não compreenderias - respondi-lhe.

- Por quê?

- Antes disso, precisas conhecer aquela outra arma e saber como ela funciona.

- A que arma te referes?

- A que está à tua direita.

Era à espingarda Henry que eu aludia. Tanto esta como o revólver possuíam uma válvula de segurança, que o homem não sabia manejar.

- Dize-me, então, como se maneja esta - ordenou-me.

- Já te disse que para aprenderes, só mesmo eu mostrando.

- Pois aqui tens a arma. Mostra-me!

Passou-me a arma e depois que eu a tive nas mãos senti que nada mais precisaria temer daquela gente.

- Fornece-me uma faca para que eu possa afrouxar o gatilho - pedi. O chefe do bando atendeu-me. Com o auxílio da faca afastei a válvula de segurança, embora também pudesse ter feito isso com uma leve pressão do dedo. Depois de afastar a válvula, conservei ainda a faca na mão.

- Dize-me em que desejas que eu atire, para iniciarmos a instrução.

Virou-se para um lado e voltando-se depois para mim, perguntou:

- És bom atirador?

- Sou, sim.

- Derruba então uma noz daquela nogueira.

- Pois vou derrubar as cinco, carregando no entanto apenas uma vez a arma.

- Isto é impossível!

- Digo-te a verdade! Queres que a carregue?

- Carrega-a!

- Então dá-me aquela bolsa que esteve presa à minha cinta. Estás com ela agora no teu cinturão.

A espingarda estava completamente carregada, mas o que eu queria era reaver a minha munição.

- Que coisinhas pequenas são essas que estão dentro dessa bolsa? - perguntou-me.

- Já te vou mostrar. Quem possui uma coisinha dessas, não necessita de pólvora e nem de chumbo para atirar.

- Vejo que realmente não és curdo; possuis objetos nunca vistos neste país. És de fato cristão?

- E um bom cristão - acentuei.

- Reza-me o Padre Nosso.

- Não pronuncio bem as palavras curdas, mas espero que me perdoarás alguns erros que eu cometer.

Esforcei-me por fazer o melhor possível a lição. Por várias vezes ele corrigiu-me, principalmente nas palavras “tentação” e “livrai-nos do mal” que não as consegui pronunciar. O homem, porém, disse depois satisfeito:

- Realmente não és muçulmano, pois um muçulmano jamais diria uma oração cristã. Não abusarás da espingarda e por isso vou dar-te a bolsa.

Os seus companheiros pareciam não achar imprudente e parva a sua atitude. Pertenciam todos a uma classe de população que durante longo tempo esteve desarmada, graças às violências de seus opressores; não conhecia, em virtude disso, o valor de uma arma nas mãos dum homem decidido. Além disso, todos se achavam curiosos por assistir às demonstrações que eu ia fazer.

Tirei um cartucho da cartucheira e fiz como se o introduzisse na espingarda. Apontei-a depois para o alto, em direção ao galhinho com as cinco nozes que pretendia derrubar. Puxei cinco vezes consecutivas o gatilho e o ramo ficou limpo de nozes. A surpresa daquela gente simples não conhecia limites.

- Quantas vezes consecutivas atiras com esta espingarda? - perguntou-me o chefe.

- Tantas vezes quantas eu quiser - respondi-lhe.

- E com esta pistolinha?

- Com ela dá-se o mesmo.

- Explica-nos o seu funcionamento também!

- Dá-me então a pistola.

Depus a espingarda ao meu lado e peguei os revólveres que o nestoriano me passava. Lindsay, cheio de expectativa, observava os menores movimentos que eu fazia.

- Já lhes disse que sou um cristão, oriundo das terras do ocidente. Jamais matamos um sêr humano, pois que assim nô-lo mandam os ensinamentos de nossa santa religião; mas, agredidos, sabemos defender-nos e ninguém nos vence na luta! Possuímos armas de grande eficiência e delas ninguém se salvará, quando reagirmos contra agressões que porventura soframos. Vocês são mais de trinta valentes guerreiros; mas se não estivéssemos amarrados a esta árvore e se quiséssemos matá-los, dentro de poucos minutos e com essas três armas apenas mataríamos todos, sem escapar um só para contar a façanha aos outros! Acreditas nisso?

- Também possuímos boas armas! - respondeu o chefe levemente apreensivo.

- Nem chegariam a usá-las, pois o primeiro que pegasse de sua espingarda, de sua faca ou de sua lança seria também o primeiro a morrer. Se não opuserem, porém, resistência, falaremos em paz e nada faremos a vocês.

- Não nos poderão fazer nada, pois estão amarrados ao tronco da árvore.

- Tens razão; mas se quiséssemos estaríamos logo livres - respondi-lhe em tom calmo e solene. - Esta corda está simplesmente em torno de nossa barriga e depois presa à árvore. Eu entregaria essas armas ao meu companheiro, tal como estou fazendo agora; depois tomaria da faca e a um único corte a corda cederia e nós estaríamos livres. Viste?

À medida que eu falava, fazia o que estava dizendo. Coloquei-me de pé com a espingarda na mão e Lindsay, ao meu lado, com ambos os revólveres. O inglês ansiosamente procurava compreender pelos gestos o que dizia eu, pois não conhecia o idioma curdo.

- És um homem inteligente - disse o chefe. - Mas não precisavas ter inutilizado aquela corda. Senta-te e explica-nos o funcionamento das duas pistolinhas.

- Por duas vezes já te disse que o seu funcionamento não se pode explicar, mas mostrar praticamente! E te mostrarei, desde que satisfaças as exigências que vamos apresentar.

Agora é que o homem se apercebeu de que eu estava procedendo com espírito de reação. Levantou-se e os demais fizeram o mesmo, pegando as armas.

- Que exigências me fazes? - perguntou-me, ameaçadoramente.

- Ouve-me, mas com toda calma e cortesia. Não somos simples guerreiros, mas Emires a quem se deve todo o respeito e consideração, quando presos! Vocês nos saquearam e algemaram como se fôssemos vulgares ladrões. Agora exigimos, impomos que nos restituam tudo o que nos roubaram!

- Jamais o faremos!

- Então vou satisfazer-te o desejo, e mostrar-te praticamente o manejo de nossas armas! Tomem nota, oh! Ladrões: o primeiro de vocês que fizer menção de nos atirar ou de investir com a lança será também o primeiro a morrer no próprio local em que estiver! É bem melhor negociarmos com calma e prudência, do que termos de matar a todos vocês.

- Vocês dois também tombarão na luta!

- Mas muito antes de nós a maioria de vocês já terá morrido.

- Temos que amarrá-los novamente; é nosso dever conduzi-los à presença do Melek.

- Se pretendem algemar-nos, nunca nos levarão à presença de Melek! Já te disse que sabemos defender-nos. Mas se tudo nos restituirem, iremos espontaneamente à presença do Melek, pois, assim, poderemos apresentar-nos a ele como Emires.

Aquela boa gente não era sanguinária e, além disso, estava temerosa de nossas armas. Entreolhavam-se, cochichavam e, finalmente, o condutor do bando me perguntou:

- Que objeto exiges de volta?

- Todo o nosso vestuário.

- Serás atendido.

- Depois, o dinheiro e tudo o mais que possuíamos nos bolsos.

- O dinheiro não restituiremos, porque temos de entregá-lo ao Melek!

- E além disso, ainda nossas armas e os cavalos.

- Exiges o impossível!

- Pois está bem! Vocês serão então os culpados, se nos reapoderarmos violentamente do que nos pertence! És o condutor desta legião e roubaste o que era nosso. Sou obrigado a fuzilar-te como vil ladrão para podermos reaver o que é nosso.

Assestei a espingarda, enquanto Lindsay apontava os revólveres.

- Alto! Não atirem! - pediu o homem. - Realmente nos acompanharão se devolvermos tudo?

- Acompanharemos!

- Jura!

- Minha palavra vale por juramento!

- E tampouco farás uso das armas?

- Só em caso de defesa própria, se ousarem agredir-nos novamente. Voltou a cochichar com os companheiros. Parecia-me que ele lhes estava a dizer que desta ou daquela forma ficariam de posse do que era aosso. Por fim devolveram-nos tudo sem que encontrássemos falta do menor objeto. Enquanto nos vestíamos com as roupas que nos haviam tomado, Lindsay pediu-me que lhe narrasse todo o decurso de nossas negociações, pois nada compreendera da conversa. Findo o relato, o Mister ficou com cara de pau.

- Que foi o senhor fazer, mister? Já havíamos recuperado tão heroicamente a nossa liberdade!

- Acha? Pois se eu procedesse diferentemente, tudo isso redundaria num combate sangrento!

- Teríamos matado todos eles.

- Uns cinco ou dez, sim; mas depois tocaria a nossa vez! Fique satisfeito por termos reavido as nossas coisas. O resto se conseguirá também. Calma!

- Para onde nos vão conduzir?

- Saberemos isso depois. Ademais, não se esqueça de que nossos amigos não nos abandonaram. Tenho certeza de que Halef tudo fará em nosso favor!

- Acredito. Um portento aquele seu criado!

Quando terminamos os nossos preparativos, montamos e continuamos a cavalgar. Bastava-me uma leve pressão da coxa sobre o lombo do cavalo e seríamos homens livres por completo. Mas eu empenhara a palavra de que acompanharia a horda e não podia deixar de cumpri-la. Cavalgamos ao lado do chefe, que não tirava de nós seus olhos atentos.

- Mais uma vez pergunto-te: para onde pretendes conduzir-nos?

- Isto é lá com o Melek.

- Onde está esse tal de Melek?

- Ao chegarmos ao precipício da montanha, esperaremos por ele.

- Mas de que aldeia é esse teu Melek?

- De Lizan.

- Acha-se ele ainda em Lizan e virá aqui mais tarde?

- Não; ele saiu em perseguição do Bei de Gumri.

- Ah! E por que vocês se separaram dele?

- Porque ele não precisou de nosso auxílio; viu que o Bei se achava acompanhado de muito pouca gente. Ao voltarmos foi que encontramos vocês.

Afinal decifrara-se o enigma. O inimigo era tão numeroso que foi impossível qualquer reação de nossos amigos no sentido de socorrer-nos.

O nosso caminho conduziu-nos logo depois, colina abaixo, e vimos em nossa frente o vale do Zab, numa distância de algumas horas. No fim de duas horas alcançamos um povoado composto apenas de quatro casas. Três delas eram de pau a pique e a quarta de alvenaria. Possuía um andar, além do térreo e, aos fundos, um grande jardim.

- Aqui paramos - disse o chefe.

- A quem pertence esse sobrado?

- Ao irmão do nosso Melek. Vou levá-los à sua presença.

No momento em que eu ia apear, percebemos uns uivos de cão entremeado de resfolegos. Olhamos para trás e vimos um cão que, como uma bala, descia pelo precipício. Era o meu Dojan que eu confiara à guarda de Halef. A corda pela qual o criado o conduzia estava arrebentada e o animal, com o seu admirável instinto, descobrira-me a pista. Latindo alegremente, pulou-me na garupa e foi com grande dificuldade que o contive na sua expansão de alegria. Pus-lhe as rédeas do cavalo entre as presas e então fiquei certo de que ninguém se aproximaria do animal sem eu saber. Em seguida, fomos conduzidos para o interior da casa. O chefe da horda levou-nos então a uma sala e disse-nos que esperássemos um pouco. Saiu e depois de algum tempo voltou.

- É para virem - disse ele. - Mas antes deponham as armas!

- Por que isso?

- O irmão do Melek é um padre.

- Ao qual tu apareces armado!

- Mas eu sou amigo dele.

- Ah! Ele nos teme!

- É isso mesmo.

- Fica tranqüilo! Se ele tiver propósitos honestos para conosco, nenhum perigo correrá.

Passamos para a sala onde se achava o dono da casa. Era um sujeito raquítico e avelhantado; a sua fisionomia não era de molde a inspirar grande confiança. A um aceno seu, retirou-se o condutor do bando.

- Quem são vocês? - perguntou-nos, sem mesmo nos cumprimentar.

- E quem és tu? - retruquei-lhe no mesmo tom áspero que usara ele.

O homem franziu a testa.

- O irmão do Melek de Lizan.

- E nós somos prisioneiros do Melek de Lizan!

- A tua atitude não se parece lá muito com a de um prisioneiro!

- Porque sou um prisioneiro espontâneo e sei perfeitamente que não continuarei por muito tempo nesse caráter.

- Espontâneo? Fôste aprisionado pela nossa gente; como te arrogas essa espontaneidade de ação!

- Fomos aprisionados, mas em seguida nos libertamos. Acompanhamos depois a tua gente voluntariamente para não sermos obrigados a matá-la toda. Não te comunicaram esse pormenor?

- Não acredito no que dizes.

- Pois te obrigaremos a acreditar se o duvidares muito!

- Estiveste com o Bei de Gumri; como fôste parar na casa dele?

- Isso não é da tua conta! Contudo vou dizer-te para ministrar-te uma lição de civilidade! Procurei-o para transmitir recomendações que lhe mandara um parente seu.

- Não és então vassalo seu?

- Não. Sou forasteiro neste país.

- E um cristão, conforme ouvi dizer.

- Disseram-te a verdade.

- Mas um cristão que aceita os falsos ensinamentos!

- Estou convencido de que são os ensinamentos verdadeiros!

- Não és um missionário?

- Não és um padre? - perguntei sem responder à pergunta feita.

- Pretendi de uma feita seguir esta carreira - respondeu-me sem cerimônia.

- Quando voltará o Melek?

- Hoje ainda; mas à hora incerta.

- E achas que aqui ficaremos à sua espera? Ele meneou a cabeça afirmativamente.

- E em que caráter?

- Em caráter de prisioneiro que é o que já és.

- E quem me deterá?

- A minha gente e a tua palavra empenhada!

- A tua gente não será capaz de me deter e quanto à minha palavra já foi cumprida. Prometi ao bando acompanhá-lo aqui e desobriguei-me desta promessa.

O homem parecia refletir.

- Tens razão. Aqui ficarás não como prisioneiro meu, mas como hóspede.

O pseudo sacerdote bateu palmas e uma mulher idosa apareceu no limiar da porta.

- Traze cachimbo, café e esteiras! - ordenou o senhor da casa. Primeiramente foram trazidas as esteiras e nós nelas nos abancamos ao lado do homem que era considerado padre. Ele nos tratava agora com mais cordialidade e quando nos serviu o cachimbo, teve até a fineza de acendê-lo para nós. Informei-me dele a respeito da situação dos caldeus nestorianos e o homem contou-me coisas que, ao simples relato, nos causavam tanto horror a ponto de ficarmos com os cabelos eriçados. Os guerreiros que nos prenderam se achavam acampados ao redor da casa. Eram todos eles gente simples, colonos, conforme vim a saber depois, e que se dedicavam à guerra como os nômades e outras classes semelhantes de povos. Não conhecia aquela gente o manejo das armas e averiguei por algumas afirmações inadvertidas do nosso atual hospedeiro que de dez de suas espingardas nem cinco talvez chegariam a detonar.

- Devem estar fatigados - disse ele, depois de tomarmos o café. - Permitam que lhes indique um quarto, onde ficarão alojados!

Levantou-se e abriu uma porta. Aparentemente por cortesia, afastou-se para o lado para que entrássemos em primeiro lugar no compartimento. Mal, porém, transpusemos a soleira, ele bateu com a porta e a fechou com pesada tranca.

- Ah! Oue é isto? - perguntou Lindsay.

- Perfídia! Oue mais havia de ser?

- Deixou então que ele nos pilhasse!

- Eu já esperava por isso!

- Por que, então, entrou, se já esperava por isso?

- Por que pretendia descansar um pouco; doem-me os ossos em conseqüência da rodada.

- Poderíamos também descansar nalgum outro lugar que não aqui na qualidade de prisioneiros!

- Não somos prisioneiros, não; repare essa porta, que eu já vinha examinando durante a nossa palestra. Alguns pontapés ou golpes de coronhas bastam para fazê-la ceder.

- Arrombemo-la então já!

- Não nos achamos em perigo, por enquanto!

- Pretende esperar até que venha mais gente reforçar o bando que nos cerca? Agora não nos será difícil montarmos e sairmos a trote.

- A mim atrai-me irresistivelmente a aventura que vamos viver! A ocasião não podia ser mais oportuna para bem conhecermos estes cristãos sectários.

- Não estou lá muito curioso por conhecê-los, não! Prefiro a liberdade, a adquirir tais conhecimentos...

De repente ouvi o meu cachorro rosnar raivosamente e depois golpear como se estivesse a se defender dalgum agressor. A única janela que havia ficava numa das paredes laterais do quarto e era tão pequena que por ela não se podia nem meter a cabeça; assim não podia eu ver o que se passava lá fora. A seguir ouvi um curto latido seguido de um grito, Em vista disso, seria impossível continuarmos na prisão!

- Venha, sir!

Com os ombros forcei a porta; ela cedeu muito pouco ao meu impulso.

- Tome da coronha! - sugeriu Lindsay, agarrando ao mesmo tempo sua espingarda para o golpe.

Alguns golpes apenas foram suficientes para despedaçar a porta. No compartimento, onde antes nos achávamos com o irmão do Melek, estavam postados quatro homens, com a incumbência por certo de nos montar guarda, pois, de arma em riste, tentaram impedir nossa passagem. Os homens, porém, não davam a impressão de que estivessem verdadeiramente com vontade de se envolverem numa luta conosco, se necessário fosse.

- Tenham a bondade de ficar aqui! - disse-nos um, amavelmente.

- Fica tu em nosso lugar, por alguns instantes!

Empurrei-o para o lado e saímos correndo escada abaixo. Ao chegarmos defronte à casa, vimos que um círculo de homens fechava os nossos cavalos. Lá se achava estirado no solo, debaixo das patas e entre as presas do cachorro, o nosso amável hospedeiro, que tão cativante recepção nos fizera momentos antes.

- Fugimos, sir? - perguntou Lindsay.

- Sim, montemos sem perda de tempo.

No mesmo instante estávamos sentados no serigote.

- Alto lá, que atiraremos! - bradaram várias vozes ao mesmo tempo.

Diversas espingardas se achavam apontadas para nós, mas não demos a menor atenção.

- Dojan geri!

O cachorro, com um vertiginoso salto, largou a presa e correu para o meu lado. Peguei da espingarda e coloquei-a a tiracolo o mesmo fazendo Lindsay. Os nossos animais, a toda brida, venceram o círculo que se formava em torno deles. Dois únicos tiros foram deflagrados contra nós, errando, porém, o alvo. Segundos depois, todos os nestorianos, em altos brados, montavam a cavalo e saíam em nossa perseguição. A aventura, desde o momento em que fôramos aprisionados pelo bando, tomara um cunho de verdadeira comicidade. Constituía tudo aquilo um vivo certificado do quanto uma tirania é capaz de desenervar um povo. Que significaríamos nós os dois contra aquela assombrosa maioria do inimigo, se este fosse formado de homens corajosos e decididos?

Não nos importamos com a perseguição e voltamos o mais velozmente possível, pelo caminho por onde viéramos. Quando atingimos as colônias, os nossos perseguidores achavam-se longe de nós.

- Daqueles nos livramos! - disse Lindsay.

- Mas dos outros ainda não!

- Por que não?

- É bem provável que nos encontremos com eles.

- Desviemo-nos então do caminho!

- Para chegar a Gumri não é possível tomar outra direção.

- Abriremos então brechas por entre os canalhas, no caso de encontrá-los! Well!

- Sir, também isso nos será difícil. Estou convencido de que aquele bando que nos aprisionou, compunha-se de gente medrosa e mal armada, que o Melek mandou de volta, para não lhe embaraçar a expedição. Aventuraram-se a nos atacar porque éramos apenas dois e, além disso, não nos achávamos em condição de nos defendermos, quando fomos aprisionados.

- Nunca mais deixarei que me prendam. Yes!

- Tampouco estou disposto a isso, mas o homem nunca sabe o que lhe reserva o futuro.

Depressa chegáramos ao planalto, onde mostrara ao bando o poder de nossas armas. Tirei da sacola o binóculo para olhar os vales e precipícios que se descortinavam à nossa frente. Nada vi que nos obrigasse a tomar qualquer precaução e, em vista disso, continuamos a cavalgar vale abaixo. Atingimos depois o ponto onde fôramos aprisionados. Lindsay quis dobrar à direita, rumo em que ficava a aldeia de Mia e a nossa zona de caça, mas eu parei hesitante.

- Não seria melhor descermos aqui pela esquerda, sir? - perguntei ao companheiro. - Ali foram os nossos assaltados por isso é necessário, e até um dever nosso, examinar o campo em que se deu o encontro.

- Vamos encontrar todos em Mia ou Gumri - retrucou-me Lindsay.

- Pois Gumri fica exatamente à esquerda. Vamos!

- Vamos ao encontro de novos perigos, sir!

Sem lhe dar mais atenção ao que dizia, cavalguei para a esquerda e ele seguiu-me um tanto descontente.

 

PRISIONEIRO DO MELEK

Encontrei o tufo com a raiz à flor da terra, no qual meu cavalo se enredara, atirando-me fora da sela. A uns oitocentos metros além encontramos, morto, um cavalo do qual fora tirado o arreamento. A grama e os arbustos se achavam pisoteados, e as pedras, respingadas de sangue, mostravam que ali fora travado um combate. A senda subia: os curdos haviam fugido, perseguidos pelos nestorianos. Isso agitou o inglês que não se lembrou mais do seu aviso acautelador de há pouco e tocou seu cavalo a trote.

- Venha, sir! - disse-me ele. - Precisamos ver o que sucedeu à nossa gente!

- Cuidado! - preveni-o. - O vale é largo e muito descampado. Se o inimigo estiver chegando precisamente neste instante, estaremos perdidos.

- E eu com isso? Temos que socorrer os nossos e basta!

- Estes já não precisam mais de nosso socorro!

Lindsay, porém, não se deixou deter e eu não tive outro remédio senão acompanhá-lo pelo vale aberto, quando preferia viajar protegido pelos tufos e pelas árvores.

Mais embaixo o vale fazia um ângulo cujo vértice confinava quase com a margem do arroio o que nos impedia de continuarmos por ali. Bem próximo daquele ponto jazia no solo um cadáver desnudado. Via-se que era o de um curdo, pela madeixa de cabelo caida à testa. Dobramos o vértice da ângulo. Mal havíamos caminhado uns cem metros, quando se agitaram as altas ervas que marginavam as paredes do vale e no mesmo instante nos vimos cercados por uma grande quantidade de vultos armados. Dois deles seguraram-me o cavalo pelas rédeas, enquanto outros me pegaram pelas pernas e braços, com o fim de imobilizar-me. O mesmo se deu com o inglês que, cercado por uma turbamulta de inimigos, ficou imóvel em cima do cavalo. Trovejaram-lhe algumas palavras às quais não respondeu por não entendê-las. Para desembaraçar-se da situação, apontava para mim, mandando que os agressores falassem comigo.

- Quem são vocês? - perguntou-me um dos assaltantes.

- Amigos dos nestorahs. Que querem de nós?

- Não somos nestorahs; assim nos tratam os inimigos e opressores. São curdos?

- Não somos nem curdos, nem árabes e tampouco turcos. Apenas usamos vestes adotadas por esses povos. Somos feringhis (1).

- De onde?

- Eu sou um nemtsche e o meu companheiro, um inglis.

- Não conheço os nemtsches, mas os inglis são uma raça malvada. Vou conduzi-los à presença do Melek, que resolverá sobre o destino de vocês.

- Onde está o Melek?

- Lá mais embaixo. Nós somos a vanguarda, vimos quando chegavam.

- Nós os acompanharemos. Larguem-nos!

- Desçam dos cavalos!

- Permite que me conserve montado! Levei uma rodada e não posso caminhar bem.

- Podem, então, ficar montados e nós conduziremos os cavalos de vocês pelas rédeas. Mas assim que tentarem fugir ou puxar das armas, serão fuzilados no mesmo instante!

O tom era marcial e decisivo. Aqueles homens davam de si impressão bem diversa dos outros que nos aprisionaram antes. Fomos conduzidos vale abaixo. Com os olhos em mim, o cachorro marchava sempre ao meu lado; não abocanhara nenhum dos guerreiros, por ver que eu me portara com calma.

Um pequeno regato corria da direita e desaguava no arroio. Vinha ele de um vale adjacente que, confinando com o vale principal, formava uma vasta planície. Nesta se achavam acampados cerca de seiscentos guerreiros, divididos em grupos, ao passo que a cavalhada pastava nas imediações. A nossa chegada despertou a atenção de todos, mas ninguém proferiu brados ou outro qualquer sinal de guerra.

Fomos levados para o mais numeroso dos grupos, no meio do qual se achava um homem bastante corpulento, diante do qual o nosso aprisionador fêz uma inclinação de cabeça.

- Ah! São os prisioneiros! Podes voltar para o teu posto.

Ele fora pois avisado antecipadamente de nossa chegada. Sem o pressentirmos, nós já nos vínhamos encaminhando para as suas mãos. O Melek parecia-se um pouco com o irmão; meus olhos, porém, se desviaram dele e passearam por um outro grupo.

_________________

(1) Forasteiros.

 

Neste se achava o Bei de Gumri, e Amad el Ghandur juntamente com diversos curdos desarmados, rodeados por uma numerosa guarda. À nossa aparição, conservaram admiravelmente a presença de espírito.

O Melek fêz-nos um sinal para apearmos.

- Aproximem-se - ordenou ele.

Entrei para a roda e, sem cerimônia, me abanquei ao seu lado, sendo neste gesto seguido pelo inglês. O governador dos caldeus olhou-nos um tanto surpreendido, nada dizendo, porém, sobre a nossa audácia.

- Resistiram à prisão? - perguntou-me.

- Não! - respondi-lhe laconicamente.

- Mas como, se conservam as armas?

- Por que haveríamos de matar os caldeus, se somos seus amigos? São cristãos como nós.

- Vocês são cristãos? De que cidade?

- A cidade de onde viemos, tu não a conheces. Fica muito distante daqui, no ocidente, onde até hoje não esteve nenhum curdo.

- São então frankes? Talvez do Inglistão?

- O meu companheiro provém de Inglistão. Eu, porém, sou um nemtsche.

- Nunca vi um nemtsche. Moram eles com os inglis num mesmo país?

- Não. Separa-nos um mar.

- Ouviste dizer isso por outros, pois não és um nemtsche!

- Por que não?

- Vejo que trazes ao pescoço um Kuran, dos usados pelos Hadschis.

- Comprei-o com o intuito único de conhecer a religião e os ensinamentos adotados pelos muçulmanos.

- Procedes mal, então. Um cristão não deve conhecer outros ensinamentos que não os de sua religião. Mas se são frankes por que vêm ao nosso país?

- Estamos aqui estudando as possibilidades de iniciarmos um intercâmbio comercial com este país.

- Que mercadorias trouxeram para vender?

- Por enquanto não trouxemos nada. Primeiro precisávamos saber de que necessitam para depois relatá-lo ao nosso governo.

- Por que usam então tantas armas, se nos procuram simplesmente com espírito comercial?

- O uso de armas é um direito consagrado a todo homem livre. Aquele que viaja sem armas, será tomado por um covarde, que as perdeu para o inimigo.

- Dize então ao teu governo que nos envie muitas armas, pois aqui há milhares de pessoas que desejam ser homens livres! Vocês devem ser homens destemidos, do contrário não se aventurariam a vir a terras tão distantes. Estão sob a proteção de alguém?

- Sim. Trago um Bu-djeruld do Grão Senhor comigo.

- Mostra-o.

Dei-lhe o passe e vi logo que o homem sabia ler. Aquele Melek era, portanto um homem de certa instrução. Devolveu-me depois o documento.

- Viajas debaixo de uma proteção que de nada te vale nesta zona; mas vejo que não são guerreiros vulgares e isto os favorece muito. Por que somente tu falas e teu companheiro não?

- Ele conhece apenas o idioma do seu país de origem.

- Que fazem nesta zona distante do Curdistão?

- Demos com a senda do combate e resolvemos segui-la.

- Onde passaram a última noite?

- Em Gumri - respondi sem hesitar.

O homem levantou a cabeça com um agudo olhar de surpresa.

- E ousas dizer-me isso?

- Claro, pois digo-te a verdade!

- És então amigo do Bei. Como se explica não teres combatido ao seu lado?

- Eu fiquei para trás e não pude, depois, correr em socorro de meus companheiros, pois tua gente embargou-me os passos.

- Fôste agredidos por ela?

- Fomos, sim.

- Resistiram à prisão?

- Um pouco. No momento de sermos atacados, havíamos, os dois, rodado de nossos cavalos. Eu jazia sem sentidos no solo e o meu companheiro com a queda deixara cair às armas. Por ele foi morto um cavalo e feridos dois homens.

- E que houve depois?

- Fomos despojados de nossos haveres, inclusive das roupas, amarrados aos cavalos e conduzidos à presença do teu irmão.

- E já estão aqui? Como se explica isso?

Relatei-lhe tudo, desde o instante de sermos presos, até o minuto presente. Â medida que eu falava, ele ia arregalando os olhos. Por fim, bradou admirado:

- Katera Aisa! - Por Jesus! Ainda me contas tudo isso? Ou és um grande herói, ou um homem leviano ou tens vontade de morrer!

- Não me encontro em nenhum desses três casos. Falei-te com toda franqueza porque a um cristão não é permitido mentir e porque me agradei de tua fisionomia. Não és um salteador, um tirano diante de quem todos tremem, mas um honrado governante dos teus, amas a verdade e a ouves com íntima alegria!

- Chodih, tens razão, foi tua sorte teres procedido desta maneira. Se me tivesses mentido estarias irremediavelmente perdido como irremediavelmente perdidos estão aqueles ali!

A essas palavras apontou ele para os prisioneiros.

- Como virias a saber que eu te mentira?

- Conheço-te muito bem. Não és o homem que lutou ao lado dos haddedihns contra os inimigos destes?

- Sou eu mesmo!

- Não és o homem que combateu ao lado dos Dscbesidis contra o Mutessarif de Mossul?

- Dizes a verdade!

- Não és o homem que libertou Amad el Ghandur da fortaleza de Amadijah?

- Libertei-o sim!

Eu ia ficando cada vez mais surpreendido. De onde aquele regente nestoriano tirara tais informações acerca de minha pessoa?

- Como vieste a saber de tudo isso, Melek? - perguntei-lhe.

- Não salvaste da morte uma moça de Amadijah, que comera cerejas venenosas?

- Sim. Até isso tu sabes?

- A sua tri-avó não se chama Marah Durimeh?

- Assim é o seu nome. Tu a conheces?

- Ela esteve em minha casa e falou-me muito a teu respeito; contou-me tudo o que soube pelos seus parentes, que foram informados dos teus feitos por intermédio de um teu criado. Ela sabia que provavelmente passarias pela nossa zona e pediu-me que me tornasse teu amigo.

- Mesmo assim, como poderias ter certeza de ser eu exatamente aquele homem de que ela te falou?

- Não te apresentaste, ontem, em Gumri com as tuas credenciais? Temos lá um amigo que tudo nos manda dizer. Por isso é que sabíamos da caçada de hoje e também que nela tomarias parte. Enquanto estávamos de emboscada, vi que te havias afastado do grupo e expedi um destacamento para aprisionar-te e levar-te para a aldeia, a fim de que nada sofresses no combate.

Aquilo tudo tinha um tal sabor de lenda, que estava inclinado a não acreditar. Agora compreendia a atitude dos homens que nos prenderam, se bem que tivessem abusado demasiadamente da ordem recebida, despojando-nos de tudo que trazíamos, inclusive dos vestuários.

- Que pretendes fazer agora? - perguntei ao Melek.

- Levar-te para Lizan, onde serás meu hóspede de honra.

- E os meus amigos?

- O teu criado e Amad el Ghandur serão imediatamente postos em liberdade.

- E o Bei!

- É meu prisioneiro. A assembléia deliberará a seu respeito.

- Pretendes matá-lo?

- É bem possível.

- Neste caso, me recusarei a ser teu hóspede!

- Por quê?

- Sou hóspede de honra do Bei e o seu destino deve também ser o meu! Ao seu lado hei de combater, a seu lado hei de vencer ou ser derrotado ou a seu lado hei de morrer!

- Marah Durimeh disse-me que eras um Emir, isto é, um valente guerreiro, mas não te esqueças de que a valentia quando posta irrefletidamente em ação conduz o homem à sua ruína irremediável. O teu companheiro não compreendeu a nossa conversa. Fala com ele para ver o que resolve!

Gostei dessa sua resolução, pois agora tinha ensejo de me entender com o inglês para ver o que podíamos fazer na presente conjuntura.

Dirigi-me, pois a Lindsay:

- Sir, tivemos uma recepção que nem em sonhos imaginaria ter.

- Foi hostil a recepção?

- Ao contrário, a mais cavalheiresca que se possa imaginar. O Melek nos conhece. Aquela macróbia cristã, cuja trineta eu curei em Amadijah, falou-lhe a nosso respeito. O homem nos convida agora para acompanhá-lo a Lizan, como seus hóspedes.

- Well! Muito bem! Excelente!

- Mas deste modo procederemos ingratamente com o Bei, pois ele ficará preso e será talvez fuzilado!

- Hum! Desagradável a situação! É um bom homem, o Bei. Yes!

- Certamente! Talvez nos fosse possível arrancá-lo da prisão e fugir com ele.

- Como?

- Os prisioneiros não estão algemados. Se cada um deles se apossar rapidamente de um dos cavalos que às centenas pastam aí tão perto, e galoparem a toda brida, talvez que lhes possa eu cobrir a retirada, pois tenho motivos para duvidar de que os nestorianos façam fogo contra mim.

- Hum! Lindo golpe! Esplêndio!

- Mas deve ser desferido rapidamente! Concorda em nos auxiliar?

- Yes! Interessante aventura!

- Mas não faremos uso das espingardas, sir!

- Por que não?

- Seria uma ingratidão contra o Melek.

- E se nos prenderem?

- Não creio nessa hipótese. Meu cavalo é excelente e o seu também e se os animais dos companheiros forem matungos, resta-nos o recurso de os entranharmos pela mata. Bem, está disposto para o golpe?

- Oh! Yes!

- Atenção!

Voltei para perto do Melek.

- Que resolveram? - perguntou este.

- Conservarmo-nos fiéis ao Bei de Gumri.

- Recusam então a minha amizade?

- Isto não. Mas creio que não nos impedirás de cumprirmos um sagrado dever nosso. Vamos agora nos retirar, mas prevenimos-te de que tudo faremos para libertá-lo.

O homem com ar de riso respondeu:

- Mesmo que forem chamar todos os seus guerreiros, chegarão tarde, porque já nos teremos retirado daqui. Mas nem chegarão a retirar-se, visto que pretendem, como disseste, facilitar-lhe a fuga. Sou, pois, obrigado a detê-los aqui.

Levantei-me e Lindsay já se achava junto de sua montaria.

- Deter-nos? - perguntei-lhe, mas apenas para ganhar tempo, pois eu fizera um sinal a Halef, mostrando-lhe os cavalos que pastavam perto do grupo. - Acho que não deves fazer-nos prisioneiros.

- A isso me obrigam, embora devam ter compreendido ser vã toda a tentativa que fizerem para libertar o Bei de Gumri.

Vi que Halef me compreendera, pois cochichava com os demais, que mostravam ares de assentimento e depois me dirigiam olhares significativos.

- Melek, ouve o que te vou dizer - disse eu pondo-lhe a mão sobre o ombro, pois vira que chegara o momento oportuno. - Olhe para este vale acima!

O homem virou-se, ficando de costas para os prisioneiros, e perguntou:

- Que há?

- Enquanto olhas para este lado por trás de ti sucedem-se coisas que reputarias de impossível se tu próprio não as visses!

- Que queres dizer com isso? - perguntou-me admirado.

Não lhe respondi logo, não;  precisava contemporizar mais um pouco.

Realmente, naquele instante, se ergueram os prisioneiros e pularam nos lombos dos cavalos, antes mesmo que o primeiro rebate fosse dado. O inglês também montara e seguira os camaradas, derrubando com as patas do cavalo numerosos curdos que se preparavam para a perseguição.

- Os teus prisioneiros estão fugindo - respondi-lhe displicentemente. Fora um ardil de criança do qual eu lançara mão para desviar-lhe a atenção dos prisioneiros; contudo logrou vingar. O Melek urrou:

- Em perseguição deles! Avante! - e ao mesmo tempo montava a cavalo. Era um garanhão curdo possante e bem adestrado. Montado nele, facilmente alcançaria os fugitivos. Era preciso, pois que eu tolhesse seu caminho. Saltei na sua direção de punhal em riste.

Quando o Melek ia pegar nas rédeas, finquei a ponta do punhal na coxa do cavalo que saiu correndo campo fora, soltando bufidos de dor.

- Traidor! - bradou o Melek investindo contra mim.

Atirei-o longe e num vertiginoso salto sentei no lombo do meu garanhão, galopando a toda brida.

Os fugitivos sabiam que na parte extrema do vale se achava postada uma patrulha e por isso tomaram à direita. Passei pelos perseguidores que ponteavam os demais, de modo que entre eles e eu havia um regular espaço. Parei então e assestei a espingarda.

- Parem que eu atiro!

Não fui atendido; puxei duas vezes o gatilho e matei os cavalos dos dois. Esse meu ataque deu lugar a que os fugitivos ganhassem mais distância e desaparecessem de vista. Agora, surgiu o Melek montado no seu garanhão, que conseguira pegar. Apercebeu-se logo da situação e sacou da pistola.

- Fogo contra ele! - bradou enfurecido e cavalgou na minha direção.

Agora sim, dei de rédeas e fugi a galope. Tudo dependia da velocidade do meu animal.

Pus-lhe a mão sobre uma das orelhas e bradei:

- Rih...!

A esse brado o animal estendeu o corpo e voou como que impulsionado por hélices. Suas longas crinas roçavam pelos meus joelhos. Dentro de um minuto, o Melek não me poderia alcançar com o tiro de espingarda alguma. Agora de dia claro a corrida era bem diferente da que eu fizera pelo Vale dos Degraus, em plena escuridão da noite, quando me dirigia ao acampamento dos haddedins. Alcancei a primeira curva do vale, precisamente no instante em que os meus desapareciam na segunda. Veio-me então uma idéia. Tornei-me o mais leve possível sobre o serigote e Rappe voava que até o galgo não o acompanhava, sendo obrigado a correr a uma certa distância. Em três minutos, alcancei os companheiros, que forçavam o mais que podiam os seus cavalos.

- Cavalguem mais ligeiro ainda! - gritei-lhes. Isso apenas por pouco tempo. Vou confundir o Melek.

- De que jeito? - perguntou o Bei.

- Não te preocupes com isso. Não tenho tempo para esclarecimentos. Mas hoje à noite nos encontraremos em Gumri.

Fiz alto, enquanto os companheiros continuavam no galope. Logo depois desapareciam numa nova curva. Voltei para a anterior e avistei, ao longe, os perseguidores com o Melek à frente. Calculei mais ou menos o tempo que levariam para alcançar o ponto em que me achava e retrocedi a trote primeiro, e a galope depois. O galgo alcançou-me novamente e logo os perseguidores, que, ao me avistarem, supunham naturalmente que ainda eu nem havia alcançado os fugitivos, mas que tomava o mesmo rumo que eles.

Defrontei-me com outro arroio que corria também de um vale adjacente, e dobrei por este. Era pedregoso e nele havia pouca vegetação. Tive por isso que cavalgar mais vagarosamente. Pouco depois, vi que o Melek me perseguia com sua gente; estavam, pois, salvos os curdos.

Não demorou muito, constatei algo desagradável e desfavorável para mim. O cavalo do Melek era melhor escalador de montanhas que o meu, ao qual precisava eu estar sempre espicaçando. Desse modo, à distância que me separava do bando perseguidor diminuía cada vez mais. O caminho mais difícil de vencer foi um desfiladeiro íngreme e cheio de pedras soltas que embaraçavam o galope do animal. Acariciei o cavalo e ele bufia esforçando-se o mais que lhe era possível. Finalmente atingíamos o cume. De repente, por trás de mim, detonou um tiro disparado pelo Melek. Felizmente a pontaria falhou.

Antes de mais nada precisava examinar o terreno, o que fiz com um relancear de olhos. Vi apenas elevações cheias de matas e entre elas nenhum sinal de estrada. O que me restava fazer era costear o vale pela direita, onde se oferecia a via mais transponível. O ponto em que me achava no cume desenvolvia-se num planalto, o que sobremodo facilitou-me o avanço.

Desci o vale pela vereda mencionada dando em seguida com um caminho trilhado. Por ele prossegui e continuei sempre a galope.

Ao longe percebi o brado estridente, proferido pelo Melek. Fora de raiva por me ver escapar? Pareceu-me, porém, antes um brado prevenindo-me de algum perigo a que me ia arrojar. Continuei na fuga e notei que o Melek me perseguia, mas cavalgando com toda a cautela. O terreno tornava-se cada vez mais difícil. À minha direita as rochas elevavam-se escarpadas a grandes alturas e à minha esquerda viam-se enormes precipícios. O caminho tornava-se cada vez mais estreito. O Rappe, originário das montanhas de Schammar, era afeito a descidas de precipícios; não se tornou por isso cestroso e galopava sempre resolutamente para diante. A vereda, de quando em quando, se alargava um pouco e eu tinha esperança de encontrar daí a minutos uma passagem através das paredes do vale. Mas subitamente o cavalo parou, pois não lhe era mais possível ir para frente. Cavalo e cavaleiro estacaram a contemplar um precipício da profundidade de centenas de metros!

Era horrível a situação em que me encontrava. Para frente não me era possível seguir e para trás tampouco, pois o Melek, com sua gente, tomara posição num canto de rocha. Ele conhecia a região, pois apeara e calmamente continuara a perseguição a pé.

Eu poderia escorregar pelas ancas do cavalo e tentar a fuga, mas assim perderia o meu excelente garanhão, o que de forma alguma desejava. Resolvi, pois, tudo arriscar. Recuaria com o cavalo e como uma bala, atravessaria a horda dos perseguidores, que, maus atiradores como eram, possivelmente não conseguiriam capturar-me. Retrocedi até um local em que a vereda se alargava.

O Melek levantou a espingarda e bradou:

- Pára, do contrário atiro!

Eu devia atirar também. O cavalo, porém, se assustaria e comigo se arrojaria no precipício. Mas ficar no local não queria. Resolvi então apelar para a espingarda, pois talvez o Rappe, vendo os meus aprestos para o tiro, não ficasse cestroso. Firmei-me nos arreios, apontei a espingarda e gritei:

- Vão embora, senão quem atira sou eu!

O Melek deu uma risada, dizendo:

- Estás caçoando comigo. A essa distância ninguém atinge o alvo.

- Pois presta atenção que vou furar o teu turbante!

Girei a espingarda no ar e bati o gatilho numa cápsula já descarregada, para que depois o garanhão não se assustasse do tiro. Em seguida apontei e fiz o tiro, firmando as rédeas. Esta última providência fora desnecessária, pois o cavalo nem se moveu do lugar. Ouvi então um brado estridente. O Melek desaparecera. Já receava havê-lo atingido, quando vi que ele apenas se colocara num local seguro.

Carreguei novamente o cano deflagrado e me fui aproximando do bando. O cachorro durante todo esse tempo se manteve em silêncio. Conservava-se sempre à distância do cavalo, como se compreendesse que não devia perturbar-lhe os movimentos com o menor ruído. Daí a pouco não haveria mais perigo de nos despenharmos pelo precipício.

Graças a Deus, estávamos a salvo! Voltei a galope pela vereda. A pouca distância de mim deparei com o Melek na companhia de vinte dos seus homens.

- Alto! - bradou ele. - Assim que fizeres menção de atirar, faço-te fogo!

Aqui, sim, toda resistência seria loucura.

- Que queres? - perguntei-lhe.

- Apeia! Obedeci-lhe.

- Depõe as armas! - ordenou.

- Jamais farei isso!

- Então serás já fuzilado!

- Fuzilem-me! - respondi mostrando-lhe o peito.

O homem, porém, não se animou a fuzilar-me. Conferenciou em voz baixa com os seus comandados. Depois declarou:

- Emir, poupaste-me a vida e eu também não te quero matar! Estás disposto a nos acompanhar voluntariamente?

- Para onde?

- Para Lizan.

- Sim, mas com a condição de não me tirares nada do que conduzo!

- Ficarás com tudo.

- Juras?

- Juro!

Cavalguei até ele, mas de revólver em punho, para reagir contra qualquer emboscada que eventualmente me armassem. Mas o Melek estendeu-me a mão, perguntando:

- Emir, não foi horrível esta cavalgada?

- Realmente foi.

- E não perdeste a coragem?

- Então eu estaria perdido. Deus me protegeu!

- Sou teu amigo!

- E eu, teu!

- Contudo sou obrigado a te aprisionar, pois tratas-me como a um inimigo!

- Mas com toda lealdade! Que pretendes fazer de mim em Lizan? Encarcerar-me?

- Sim. Mas se prometes não fugir, poderás morar como meu hóspede na minha residência.

- Ainda não posso prometer-te isto. Deixa-me refletir sobre o caso.

- Sim, tens tempo para isso!

- Onde estão teus guerreiros? Ele riu-se e respondeu-me:

- Chodih, procedeste com admirável habilidade e invulgar esperteza. Contudo adivinhei teu propósito.

- Que propósito?

- Achas então que eu seria tão tolo para acreditar que o Bei de Gumri tivesse fugido por este vale que ele conhece tão bem como eu? Ele sabe muito bem que por aqui não se pode escapar ninguém.

- E que tem isso a ver com minha pessoa?

- Quiseste confundir-me com a tua cavalgada a esmo. Segui-te porque tenho certeza de que o Bei será capturado e, além disso, eu te queria também em minhas mãos. Estes homens vieram comigo; os outros, porém, se dividiram e não tardarão em capturar o Bei.

- Eles hão de resistir - retruquei.

- Não possuem armas!

- Fugirão a pé, atravessando a mata.

- O Bei é demasiadamente orgulhoso para abandonar um cavalo, que ainda pode andar! Tu te lançaste debalde ao perigo e debalde mataste-nos um cavalo e feriste outro.

Voltamos pela mesma vereda que nos trouxera, No ponto em que me desviara, um grupo de cavaleiros aguardava o Melek.

- Então, como se foram? - perguntou-lhes o chefe.

- Não conseguimos capturar todos.

- Quais os que foram presos?

- O Bei, o haddedin, o criado desse Chodin e mais dois curdos.

- Bastam estes. Resistiram à prisão?

- Não, porque seria empresa inútil; foram logo cercados por nós. Alguns curdos, porém, se embrenharam na mata e se foram.

- Temos seguros os principais e isso é o bastante.

Voltamos agora para o local onde encontráramos os prisioneiros. Impressionava-me o fato de não haverem capturado o inglês. Como conseguira escapar-se? Não compreendia curdo e como então se arrumaria Ele?

Quando chegamos ao acampamento, lá encontramos no mesmo lugar os prisioneiros, que agora se achavam algemados.

- Queres estar com eles ou comigo? - perguntou-me o Melek.

- Primeiro com eles - respondi-lhe.

- Neste caso, convido-te a depor as armas.

- Peço-te então que me deixes, juntamente com os prisioneiros, estarmos ao redor de ti. Se me atenderes, prometo-te não usar de armas e nem tentar fugir, até chegarmos a Lizan.

- Mas auxiliarás a fuga dos outros!

- Não, afianço também por eles, com a condição, porém, de nada lhes ser despojado e de se conservarem sem algemas.

- Valeu!

Sentamo-nos todos juntos e, confesso, envergonhados uns dos outros; todos, com exceção do inglês, havíamos sido capturados. Nisso ressoou um brado de admiração; no acampamento apareceu um cavaleiro, que ninguém esperava: era mister Lindsay.

- Ah, sir! Já de volta? - perguntou-me o inglês.

- Sim. Good day, mister David Lindsay!

- Como veio para aqui, se fugiu sem deixar rastros?

- É claro que não voltei tão espontaneamente como o senhor.

- Espontaneamente? Fui obrigado!

- Por que obrigado?

- Ah! Situação horrível. Sei apenas o que significa burro e língua em curdo! Queria o senhor então que eu atravessasse sozinho esta terra miserável? Vi que todos haviam sido capturados e resolvi voltar.

- Onde se meteu no momento em que os outros foram aprisionados?

- Distanciei-me um pouco dos outros, por ser melhor o meu cavalo. Mas onde se escondeu o senhor?

- Sir, passei hoje pelo mais perigoso momento de minha vida, creia-me. Apeie. Vou narrar-lhe tudo.

O inglês soltou o cavalo e sentou-se em nossa roda e eu narrei-lhe minha cavalgada através da vereda rochosa.

Quando terminei o relato, mister Lindsay comentou:

- Mister, que dia horrível hoje, horrível mesmo! Well! Não estou disposto a tomar tão cedo parte noutra caçada de ursos. Yes!

Também eu, o Bei, Halef e Amad el Ghandur tínhamos muito que conversar. O primeiro esperava que Maomé Emin tivesse ido para Gumri em busca de socorro e alegrava-se com a expectativa de serem ainda os nestorianos atacados em seu próprio acampamento. Mas não se concretizou aquela sua esperança.

Após uma refeição frugal que recebemos dos nossos vencedores, empreendemos a viagem. Fomos colocados no meio do bando, que se pôs em movimento, tomando o mesmo caminho pelo qual, naquele dia, por duas vezes eu cavalgara com o inglês. A expedição fêz um alto para sepultar o curdo morto. Depois prosseguimos a galope, de modo que antes do anoitecer atingíamos o povoado em que residia o irmão do Melek.

Naquele povoado não fomos recebidos muito cordialmente. Os caldeus que nos saíram em perseguição e depois nos perderam de vista, se haviam recolhido à aldeia e nela se achavam à espera da expedição. Cumprimentaram os seus camaradas com brados jubilosos; a nós, porém, dirigiam palavras e olhares ameaçadores. O irmão do Melek se achava à porta para saudá-lo.

- Capturaste o grande herói que de tão valente prefere fugir do inimigo? Correu para trás como um repugnante caranguejo que se alimenta de podridões. Algema-o para que não consiga fugir novamente! - escarneceu de nós o pseudo padre.

Eu não podia deixar de responder àqueles termos insultuosos. Se me conservasse indiferente em face da ofensa, o respeito pela minha pessoa iria águas abaixo, respeito de que tanto carecíamos na atual conjuntura. Por esta razão entreguei a Halef as rédeas do meu cavalo e me aproximei do irmão do Melek de punhos cerrados, trovejando-lhe:

- Homem, cala essa boca! Como ousa um mentiroso e traidor falar nesses termos a uma pessoa de bem?!

- Que te atreves a dizer-me?! - vociferou ele. - Tratas-me de traidor? Repete esta frase que te arrojarei ao solo!

Retruquei calmamente, mas de sobrecenho carregado:

- Experimenta-o se fores homem! Chamei-te de mentiroso e traidor, porque disto realmente não passas! Recebeste-nos como hóspedes, para nos prender mais facilmente com o intuito único de nos roubar os cavalos. Não és apenas um mentiroso e traidor, mas um ladrão a toda prova!

A essa frase, o homem ergueu o punho cerrado, mas antes de desferir-me o soco, estava no chão sem que nele eu tivesse posto as mãos. Meu Dojan seguira-lhe todos os movimentos e o derrubara. Em seguida apertou-lhe a garganta com as presas de tal modo contra o chão que o homem não conseguia proferir um ai.

- Chama o cachorro para que largue o meu irmão, do contrário apunhalo-o! - ordenou-me o Melek.

- Experimenta! Fica certo de que antes de ergueres o punhal, teu irmão estará morto e tu, caído ao chão no seu lugar. Este cachorro é de fina raça. Vê como ele já te tem de olho!

- Ordeno-te que o chames!

- Ordenas? Eu te disse que te seguiríamos até Lizan sem fazermos uso de nossas armas; mas te disse que não terias o direito de te considerares como nosso Senhor e déspota! Teu irmão hoje já esteve debaixo daquele cachorro e eu o salvei. Agora, porém, não o farei enquanto não tiver certeza de que ele se portará pacificamente daqui por diante.

- Ele se portará, sim!

- Garantes isto sob tua palavra de honra?

- Sim, dou-te a minha palavra de honra como ele não os ofenderá mais!

- Bem, confio na tua palavra e previno-te de que não deves quebrá-la. Do contrário, será a tua ruína!

A um chamado meu, Dojan largou o caldeu. Este levantou-se e fugiu apressado; mas antes de desaparecer pela porta, ergueu a destra cerrada ameaçadoramente na minha direção. Conquistei assim um inimigo mortal.

Tal incidente desagradou também ao Melek e nos desfavoreceu aos seus olhos. A sua fisionomia tornou-se mais severa e os seus olhos mais enublados que antes.

- Entrem! - ordenou apontando para a porta.

- Permite que fiquemos aqui ao ar livre! - declarei-lhe.

- Descansarão e dormirão melhor e mais em segurança no interior da casa - respondeu em tom decisivo.

- Se te referes à nossa segurança, afirmo-te que aqui estaremos mais a coberto de perigos, que entre as paredes desta casa, onde já fomos uma vez traídos!

- Não se repetirá mais aquele fato. Venham.

Agarrou-me pelo braço; eu, porém, desprendi-me de suas mãos com impulso violento.

- Ficaremos aqui! - respondi-lhe resolutamente. - Não estamos acostumados a nos separar de nossos cavalos. Aqui fora há grama em abundância para eles e também bastante lugar para acamparmos.

- Seja como quiseres, Chodih - respondeu o homem. - Mas aviso-os de que mandarei vigiá-los com todo rigor.

- Quanto a isso, faze lá o que quiseres.

- Aquele que tentar fugir, será fuzilado!

- Pois fuzila-o!

- Como vêem, faço-lhes a vontade; mas um de vocês não pode ficar no grupo.

- Qual é?

- O Bei.

- Por que o Bei?

- Vocês não são propriamente prisioneiros; mas ele, sim!

- Ele ficará conosco, pois dou-te minha palavra que não fugirá. E esta palavra é mais garantida que as paredes de alvenaria onde o pretendes encarcerar.

- Respondes por ele?

- Com a minha vida!

- Bom, seja como quiseres. Mas afianço que te exigirei realmente a vida se ele escapar! Vou mandar-lhes as esteiras, que servirão de cama, lenha para o fogo, alimentos, bem como alguma bebida. Escolham um local que melhor acharem para o acampamento.

Próximo à casa havia um relvado macio que escolhemos para acampar. Os cavalos, maneados, foram soltos nas pastagens e nós acendemos uma enorme fogueira ao redor da qual nos sentamos, sobre as esteiras que nos foram trazidas. Depois recebemos uma ovelha recém-carneada, para nós mesmos prepará-la. Fizemos um espeto para assar a carne.

Numa fuga ninguém pensava, pois toda a legião de nestorianos nos cercava, à distância, acampada também em torno de enormes fogueiras. Assavam as suas ovelhas e cordeiros ao mesmo sistema nosso e estavam jubilosos pela estrondosa vitória do dia alcançada pela suas armas!

- Qual é o seu atual estado de espírito, sir? - perguntou-me Lindsay.

- O de uma pessoa que está com fome, sir!

- Well! Tem razão!

Levantou-se e foi ter com Halef que naquele instante tirava do fogo o espeto de carne, para servi-la à caravana. Ele estava com muita fome para esperar pelo criado; puxou da faca, cortou um enorme pedaço de assado, abriu a boca em forma de losango para dentro do qual fazia desaparecer aos poucos a carne.

Olhei casualmente para a casa. Esta estava bem iluminada pelo clarão das fogueiras e assim pude divisar sobre o telhado uma cabeça humana; depois apareceram os ombros e por fim o cano de uma espingarda apontada para a nossa fogueira. De um salto vertiginoso ergui-me e apontei a espingarda. Do telhado luziu o fogo de um tiro ao mesmo tempo que, cá debaixo, detonava também a minha arma. Ouviu-se um grito vindo do telhado, correspondido ao mesmo tempo junto de nossa fogueira. Este último partira do losango de mister Lindsay. A bala do pérfido atirador derrubara no chão a faca e o assado que ele ia levando à boca.

- Zounds! - exclamou o companheiro. - Quem foi o canalha?

Aquilo se dera com uma rapidez tão singular, que ninguém, a não ser eu, percebeu o relampejar do tiro sobre o telhado. Um dos nestorianos que se achava próximo e que parecia desempenhar as funções de sub-chefe de legião, acercou-se de nós.

- Por que estás a atirar, Chodih? - interpelou-me.

- Em defesa própria.

- Em defesa própria? Mas quem te agrediu? Não vejo nenhum inimigo teu.

- Mas eu vi - respondi-lhe. - Estava deitado lá em cima sobre o telhado e alvejou-me.

- Estás enganado, Chodih!

- Não estou enganado, não! Deve ter sido o irmão do Melek e como ele, a todo transe, quer matar-me, resolvi pagar-lhe agora na mesma moeda.

- Mataste-o? - perguntou o homem assustado.

- Não. Fiz-lhe pontaria contra o cotovelo direito e estou certo de que não errei o tiro.

- Senhor, agrava-se mais agora a situação! Vou imediatamente ver o que sucedeu.

Todos os nestorianos se haviam levantado de seus lugares e pegado em armas. Somente o inglês se achava ainda sentado no chão. Os seus lábios descreviam todas as imagináveis figuras geométricas e o seu nariz estava de tal modo abatido que pendia para a boca desesperançado.

- Está perplexo, sir? - perguntei-lhe.

Ele tomou profunda inspiração, pegou da espingarda e levantou-se vagarosamente.

- Mister, quase que fui acometido de um ataque! - confessou ele sinceramente.

- Por causa de um tiro?

- Não por causa do tiro, mas em conseqüência do golpe que recebi. A faca voou longe e o pedaço de carne bateu-me no rosto, como se eu houvesse recebido uma bofetada dum marinheiro de estibordo. Veja as minhas faces e a faca ali no chão. Yes!

- Sídi, isso vai degenerar em luta? - perguntou Halef afrouxando a pistola na cinta.

- Creio que não.

- E que haja mesmo um combate! Não o tememos!

O pequeno e valente homenzinho dirigia olhares desprezíveis aos caldeus, que, aliás, nenhum gesto hostil haviam mostrado ainda e esperavam calmamente as ordens que lhes traria o sub-chefe.

Este não tardou em voltar na companhia do Melek que, com ares ameaçadores, dirigiu-se ao nosso acampamento.

- Qual de vocês deflagrou um tiro? - perguntou.

- Eu - respondi-lhe. - E o fiz porque atiraram também contra mim.

- Não é verdade. A bala destinava-se ao teu cachorro.

- E quem mandou matar o meu cão? Talvez tenha sido tu.

- Não. Nem eu sabia disso. Mas, Chodih, agora sim, todos vocês estão perdidos. Por causa dum cachorro, atiraste contra meu irmão!

- Tenho todo o direito de atirar contra aquele que pretender matar-me o cão e desse direito usarei amplamente daqui para o futuro! Atenta para o que te estou dizendo! E ademais disso, como prova teu irmão que fêz pontaria contra o cachorro e não contra mim?

- Ele o afirma!

- Então ele é um péssimo atirador, pois não acertou no cão e sim nesse Emir de Inglistão.

- Bom, mas a sua intenção era acertar no animal. Não há homem que, à noite, faça um tiro certeiro.

- Isso não é desculpa para um procedimento tão perverso. A bala sibilou a quatro passos além do cão e se visasse quatro dedos mais acima, esse Emir seria agora cadáver. Além disso, há pessoas que à noite possuem tiro certeiro. Disso te vou dar provas irrecusáveis. Fiz pontaria para o cotovelo direito de teu irmão e estou certo de que o aleijei daquele braço, embora no momento pouco tempo me sobrasse para fazer mira.

O homem acenou a cabeça enfurecido.

- Deixaste-o sem aquele braço; hás de pagar isso com a vida!

- Ouve, Melek, contenta-te por não ter feito pontaria contra a cabeça dele, que era um alvo muito mais seguro que o cotovelo! Não quero ver correr sangue humano, pois sou cristão; mas aquele que ousar agredir-me, ou aos meus companheiros, ficará conhecendo a eficiência de nossas armas.

- Não tememos as armas de vocês, pois os superamos em número!

- Não nos impressionamos com a sua superioridade numérica. Enquanto estiver em jogo minha palavra empenhada, só agiremos em defesa própria; mas depois disso, verão quem somos.

- Terão de entregar-nos as armas, para com elas não praticarem maiores danos.

- E depois disso que acontecerá?

- Vou reunir o tribunal para julgar os outros; tu, porém, fica entregue ao meu irmão. Derramaste o seu sangue e portanto o teu lhe pertence.

- Os Caldanis (1) são cristãos ou bárbaros?

- Não é da tua conta! Entrega-me tuas armas!

Toda a sua legião fechara cerco em torno de nós, de modo que ouvia tudo o que falávamos. À sua última ordem, estendeu o braço para agarrar a minha espingarda.

Dirigi a sir Lindsay umas palavras em inglês e aos demais falei em árabe, prosseguindo depois nas negociações com o Melek.

- Então nos consideras prisioneiros?

Ao responder ele afirmativamente, retruquei-lhe:

- Imprudente! Achas que temos medo de ti? Aquele que erguer o braço contra um Emir de Germanistão, ergue-o contra si próprio. Fica sabendo que não sou teu prisioneiro. Tu sim, és meu prisioneiro!

A essas palavras agarrei-o pela nuca e apertei-lhe tão fortemente o pescoço, que o deixei sem forças. Imediatamente os meus companheiros formaram um círculo em torno de mim, empunhando as espingardas contra os soldados. Essa manobra foi praticada com tamanha rapidez que os nestorianos estacaram boquiabertos. Aproveitei essa curta pausa e lhes bradei:

- Estão vendo como o Melek está pendente do meu braço? Basta-me que lhe faça uma pequena pressão com o dedo para reduzi-lo a cadáver, ao mesmo tempo que metade de vocês morrerá pelas balas enfeitiçadas de nossas armas! Mas se retornarem às suas fogueiras, poupar-lhe-ei a vida e também os tratarei com bondade. Ouçam: contarei até três. Se então ainda se encontrar um de vocês nas atuais posições, o Melek estará perdido! Vamos lá: um... dois... três...

__________

(1) É como os curdos-nestorianos preferem ser tratados.

 

Nem ainda terminara de pronunciar a última palavra, já os caldeus ocupavam os seus primitivos lugares em torno das fogueiras. Via-se, pois, que a vida do Melek tinha para eles grande valor. Este rolou ao solo exausto e demorou algum tempo até que recuperasse de todo o fôlego. Saíra ele do interior da casa, sem se munir de arma alguma e agora me achava na sua frente apontando-lhe o revólver ao coração.

- Não te arrisques a levantar-te! - ordenei-lhe. - Assim que o fizeres, sem minha licença, serás atingido pela bala deste revólver!

- Chodih, tu me mentiste! - gemia ele levando ambas as mãos ao pescoço, em minucioso exame.

- Não sei de que modo te menti! - redargüi-lhe.

- Deste-me tua palavra de não fazeres uso das armas.

- Perfeitamente, mas subordinei a promessa à condição de não sermos tratados hostilmente.

- Prometeste-me ainda que não fugirias!

- E quem te disse que pretendemos fugir? Portem-se como amigos e terão em nós amável companhia!

- Tu próprio fôste o primeiro a iniciar as hostilidades!

- Melek, chamas-me de mentiroso e, no entanto tu é que estás a mentir. Tu mesmo nos assaltaste e assaltaste também os curdos de Gumri. E quando pacificamente descansávamos à fogueira do acampamento, vem teu irmão e nos alveja a tiros. Quem, pois, foi o primeiro a iniciar as hostilidades, nós ou tu?

- O tiro destinava-se unicamente ao cachorro!

- Isso é até uma irrisão, Melek! Pretendeste matar meu cachorro, para que este não pudesse mais nos proteger. Aquele animal, para mim, tem mais valor do que a vida de cem caldanis. Quem lhe tocar num fio do pêlo ou nas pontas de nossas vestes, será tratado como a um cão hidrófobo, do qual a gente se salva, matando-o. Nas minhas mãos esteve a vida do teu irmão; alvejei-o, no entretanto apenas no braço, para que este jamais possa pegar em armas na prática de crimes. Também a tua vida está agora nas minhas mãos. Que resolverás a nosso respeito?

- O mesmo que já te disse há pouco. Ou não sabes o que é vingança de sangue?

- Matei teu irmão?

- Mas derramaste seu sangue, e sangue com sangue se paga!

- Ele próprio foi o culpado de tudo! E que tens a ver com o seu propósito de vindita?

- Sou seu irmão e herdeiro legítimo!

- Por enquanto ele ainda vive; que se vingue mesmo se quiser. Ou é teu irmão, por ventura, uma criança que precisa que tu já antes de sua morte representes os seus direitos? Tu te dizes cristão e estás aí a falar de vingança de sangue! De quem hauriste esses ensinamentos cristãos? Tens a assistência espiritual de um Katholika (1), de um Mutran (2), de um Khalfa (3), tens um Akudjakoni (4), um Keschihschi (5), um Schammaschi (6), um Huhpodjakoni (7), e diversos Karuhji (8). E entre todas essas personalidades eclesiásticas não houve uma que te incutisse no espírito os ensinamentos do filho da Mãe de Deus?

- Não existe uma mãe de Deus. Marrya foi apenas mãe do homem Aissa (9).

___________

(1) Patriarca.

(2) Arcebispo.             

(3) Bispo.      

(4) Arcediago.             

(5) Sacerdote.

(6) Diácono. 

(7) Sub-diácono. 

(8) Leitor apostólico.                          

(9) Jesus.

 

- Não discutirei contigo, pois não sou sacerdote e nem missionário. Mas crês no preceito religioso que nos diz ser este homem Aissa ao mesmo tempo o verdadeiro Deus.

- Creio.

- Então lembra-te do que ele nos ordenou: Amai os vossos inimigos; abençoai os que vos maldizem; fazei bem àqueles que vos odeiam e rogai por aqueles que vos ofendem e perseguem; se assim fizerdes, sereis filho de vosso Pai no céu!

- Sei muito bem que Ele pronunciou estas palavras.

- E por que não as obedeces então? Por que falas em vingança de sangue? Queres que eu, ao voltar à minha pátria, diga lá que não são cristãos mas bárbaros hereges?

- Jamais voltarás à tua pátria!

- Voltarei sim e tu serás quem menos me deterá! Vê esta lenha que lanço ao fogo! Antes de ser reduzida a cinza, serás um cadáver ou me terás prometido tratar-nos como hóspedes, sob pena de o desprezo do mundo inteiro cair sobre a tua casa e a tua tribo!

- Se eu não prometer o que exiges, matar-me-ás então?

- Partirei imediatamente levando-te como refém! Mas se me impedirem a partida, sou forçado a liquidar-te.

- Também não és cristão!

- Minha religião não exige que me deixe matar inútil e covardemente! Antes ordena-me que defenda a vida que por Deus me foi dada para ser útil ao próximo e prepará-la para a eternidade! E aquele que me quiser tirá-la, roubando-a a Deus, contra ele hei de me defender até onde minhas forças o permitirem. E que minhas forças não são as de uma frágil criança, disto já te convenceste há pouco!

- Chodih, és um homem perigosíssimo!

- Enganas-te. Sou um homem pacífico, mas ai de quem me quiser para inimigo seu! Olha para o fogo! O pedaço de lenha está prestes a reduzir-se a cinzas.

- Concede-me um prazo maior, para que eu possa falar a meu irmão!

- Não dilato por um minuto que seja o prazo que já te dei!

- Mas a sua situação de ofendido está a exigir-te a vida!

- Que ele a venha buscar, se fôr capaz!

- Não te posso dar liberdade!

- Por que não?

- Porque disseste que não abandonarias o Bei de Gumri.

- Disse isso e sustento!

- E a ele não posso dar liberdade. Ele é um ferrenho inimigo dos caldanis e os curdos de Berwari virão forçosamente nos atacar.

- Por que não os deixaste em paz? Pela última vez te advirto que a lenha está quase no fim!

- Pois bem. Sou obrigado a obedecer-te, pois estás em condições, de concretizar a ameaça feita. Serão considerados meus hóspedes!

- E também o Bei?

- Também ele. Mas com a promessa de não deixar Lizan, sem o meu consentimento.

- Garanto pelo cumprimento desta cláusula!

- Isso não se refere apenas a ele, mas a todos vocês.

- Claro. Contudo imponho uma condição.

- Qual?

- Ficaremos na plena posse de nossos haveres.

- Valeu!

- E assim que alguém de tua gente proceder hostilmente contra nós, acho-me desobrigado da palavra empenhada.

- De pleno acordo!

- Agora, sim, estou satisfeito. Estende-nos a todos a mão e depois podes voltar para junto do ferido. Queres que eu lhe pense o ferimento?

- Não. A tua presença o enraivecerá ainda mais. Além disso, já receberemos auxílio de outra parte. Encolerizo-me por me haveres vencido. Temo-te e contudo te estimo. Façam a refeição e depois durmam em paz. Ninguém lhes fará mal algum!

Estendeu-nos a mão a todos e depois voltou para casa. Já não precisávamos mais temer aquele homem. Também pela fisionomia dos guerreiros, via-se que neles calara profundamente a nossa atitude. Ao arrojado pertence o mundo e o Curdistão faz parte integrante deste!

Agora podíamos tranqüilamente saborear o assado de ovelha. Durante a refeição tive que traduzir aos companheiros todas as minhas negociações com o Melek. O inglês sacudiu a cabeça com ar de dúvida. Não lhe agradara as condições do acordo.

- A todas essas o senhor procedeu tolamente, sir! - disse Lindsay.

- Em que ponto?

- Ah! Devia ter apertado um pouco mais a garganta daquele sujeito; nós nos encarregávamos dos outros.

- Não seja imprudente, sir David. Esta gente é demasiadamente numerosa contra nós!

- Teríamos fugido; yes!

- Um ou dois de nós, sim; mas os outros estariam perdidos.

- O que é isso? Tornou-se covarde agora, sir?

- Creio que não. Pelo menos não sou ameaçado de ataque quando a tiro derrubam-me um pedaço de assado.

- Obrigado, por me recordar este fato! Ficaremos então em Lizan? Que cafundó é esse? Cidade ou aldeia?

- É uma capital tumultuosa de oitocentos mil habitantes, com hipódromo, velódromo, teatros, cinemas, pista de corridas e de patinação.

- Vá para o diabo, se não sabe inventar melhor pilhéria! Deve ser uma linda biboca, essa tal de Lizan! Yes!

- Sim, é poeticamente banhada pelo Zab; mas como é constantemente destruída pelos curdos, não se pode comparar a Londres ou Pequim.

- Destruída? Tem soçobrado muita coisa lá?

- Com toda certeza.

- Esplêndido! Vou escavar. Achar Fowling-Bulls. Mandar para Londres. Yes!

- Não me suponho a isso, sir!

- E me ajudará nas escavações, mister. Esses nestorianos também me ajudarão. Pago bem! Well!

- Não vá errar o cálculo!

- Como? Não há Fowling-Bull naquela biboca?

- Certamente que não!

- Por que então me está a arrastar inutilmente por este maldito país?

- Então estou a lhe arrastar, mister? Não foi o senhor mesmo que, contra minha vontade expressa, deixou Mossul e saiu em minha procura?

- Yes! Tem razão! Era muito insípido aquilo lá! Eu queria viver aventuras.

- Bem, o senhor já viveu tais aventuras e mais algumas ainda além das que desejava! Portanto dê-se por satisfeito, deixando de resmungações, sob pena de abandoná-lo eu por aqui, onde soçobrará e mais tarde será escavado como Fowling-Bull e remetido para Londres!

- Mais sem graça ainda esta pilhéria! Basta! Não quero ouvir nem uma mais!

O inglês se afastou e o Bei se aproximou de mim para falar sobre a nossa situação. Ele se mantinha silencioso e com ar sombrio.

- Chodih, não me agradam as condições em que negociaste o acordo - disse-me ele com toda a sinceridade.

- Por que não?

- São muito perigosas para mim.

- Não era possível conseguir-se condições mais favoráveis para o acordo. Se nós te abandonássemos, sem insistirmos em incluir-te nas negociações, estarias a esta hora prisioneiro. No entanto, estamos todos a salvo!

- A salvo propriamente não, pois nem eu, nem vocês poderemos abandonar Lizan. Procedeste, é verdade, como um bom e dedicado amigo meu e isto muito me enternece. Contudo a minha situação não é outra senão a de um prisioneiro.

- Apenas não podes deixar Lizan; no mais, não és considerado prisioneiro.

- Mas isso já basta. Que me adianta se a cidade será a minha prisão? Onde se achará agora Maomé Emin?

- Creio que em Gumri.

- Que estará ele providenciando por lá?

- Creio que está reunindo os teus guerreiros para virem libertar-nos.

- Era o que queria ouvir de ti. A coisa vai encaminhar-se para uma luta e uma luta encarniçada e tu ainda crês que o Melek nos considera realmente como hóspedes!

- Creio e estou certo de não me enganar.

- A vocês sim, mas a mim não, pois tenho nele um dos mais ferozes inimigos.

- Se na qualidade de hóspedes com que nos tratar não abranger a tua pessoa, terá ele rompido o pacto feito e nós então poderemos proceder como melhor nos convier no momento!

- Além disso, deves reconhecer que é desonroso para mim estar inativo em Lizan, ao passo que os meus oferecem seus peitos em renhido combate! Antes tivesses morto ao Melek! Esses restorahs estavam tão amedrontados que teríamos fugido facilmente, sem sermos alvejados por um só tiro.

- Os pontos de vistas de um guerreiro curdo são divergentes dos de um Emir cristão. Dei minha palavra ao Melek e hei de cumpri-la enquanto estiver convencido de que ele não alimenta o propósito de quebrar a sua!

Com essa argumentação minha venci o Bei. Havíamos terminado a refeição e nos deitamos a dormir, após havermos sorteado a guarda. Eu me fiava no Melek pelo menos por aquela noite, mas mesmo assim cautela nunca seria demais. Assim um de nós conservava-se sempre de atalaia, fingindo que dormia.

A noite decorreu sem que fôssemos em nada peturbados. Pela manhã mandaram-nos outra ovelha, que assamos pelo mesmo sistema de véspera. Depois veio o Melek ter conosco, dizendo que nos preparássemos para a partida. Já durante a noite algumas tropas dos caldeus haviam empreendido viagem de forma que o nosso acampamento estava agora reduzido.

Descemos o vale e alcançamos as margens do Zab. Não se encontravam plantações em toda a zona; apenas nas proximidades de um povoado que atravessamos, viam-se os caules de uma pequena roça de cevada balouçarem ao vento. O solo, no entretanto, era exuberante mas o estado de permanente agitação em que vivia o país impedia os colonos de se entregarem ao cultivo da terra; não estavam eles muito dispostos a lançar sementeira para depois abandonar a colheita ao inimigo.

Em contraposição, porém, atravessamos por extensos bosques de nogueiras carregadas de frutos e por matos abundantes de madeira de lei. Era lindo e agradável de cavalgar-se de manhã cedo por entre aqueles bosques, onde o ar matinal entremeado do odor das nogueiras, parecia refrigerar-nos o corpo.

A expedição dividiu-se em vanguarda e retaguarda e nós íamos no espaço situado entre as duas colunas. À minha direita cavalgava o Bei e à esquerda o Melek. Este conversava muito pouco; via-se que cavalgava em nossa companhia, unicamente por causa do Bei de Gumri que queria ter sob as vistas. Além disso aquela autoridade era um prisioneiro que lhe aumentaria a celebridade entre seu povo, ao chegar com ele triunfalmente a Lizan.

Meia hora antes de chegarmos a Lizan, um homem cavalgou ao nosso encontro, homem que logo nos despertou suspeitas, pois não era de molde a inspirar lá muita confiança. Era de uma robusta constituição física e também o seu cavalo era dos mais possantes que eu vira até então. Vestia apenas calças de chita e uma camisa do mesmo tecido; à cabeça, ao invés de turbante, trazia amarrado um enorme lenço. Estava armado de uma espingarda que parecia não ser de fabricação oriental. Por trás dele, em respeitosa distância, cavalgavam dois vultos com ares de quem se achavam a serviço daquele homem.

Ele deixou que a vanguarda passasse e depois galopou diretamente ao nosso grupo.

- Sabbab’l ker! - Bom dia! - o homem saudou o Melek com voz grave.

- Sabbah’l ker! - respondeu este.

- O teu emissário - continuou o recém-chegado - disse-me que alcançaste uma formidável vitória para as nossas armas.

- Katera Chodeh! - Graças a Deus, assim sucedeu realmente!

- Onde estão os teus prisioneiros?

O Melek apontou para nós e o homem nos mediu com olhares sinistros. Depois perguntou:

- Qual deles é o Bei de Gumri?

- Esse!

- Ah! - fêz ele tomando inspiração. - Então este homem é filho do estrangulador de nossa gente, estrangulador que se chamava Abd-el Summit. Ele é tal qual o pai. Graças aos céus que o prendeste! Terá ele que expiar agora os crimes do seu pai!

O Bei de Gumri ouviu todo o libelo sem opor-lhe a menor contradita; eu, porém, não achei de bom aviso deixar que o homem formasse um falso juízo a nosso respeito. Dirigi-me, então, ao nosso aprisionador e disse-lhe:

- Melek, quem é este conhecido teu?

- É o Rais de Schohrd.

- E como se chama ele?

- Nedschir e usa também o título de Bei.

A palavra curda Nedschir significa “valente caçador” e como ele usava o título não muito comum entre os caldeus de Bei devia ser, pois, uma pessoa de certo valor entre os seus. Contudo retruquei-lhe:

- Bei Nedschir, o Melek não te relatou toda a verdade. Não somos...

- Cão! - atalhou-me o homem ameaçadoramente. - Quem está falando contigo? Cala-te! Espera que alguém te fale, para depois responder!

Às suas palavras ensaiei um sorriso amável, ao mesmo tempo que puxava para a frente da cinta a faca e isso de um modo ostensivo.

- Quem te dá licença para chamares de cão aos hóspedes do Melek? - perguntei-lhe com toda calma.

- Hóspedes? - retrucou o homem em tom de menosprezo. - O Melek não os tratou ainda agora de prisioneiros?

- Pois exatamente por isso é que estava eu a te dizer que não dissera ele toda a verdade. Pergunta-lhe agora se somos hóspedes ou prisioneiros dele!

- Sejam lá o que forem; o caso é que o Melek os traz presos. Mas deixa tua faca na cinta, senão te derrubo a socos do cavalo!

- Bei Nedschir! És um homem muito chistoso! Mas eu é que não estou lá muito disposto a te aturar os chistes. Porta-te daqui por diante com mais cortesia em relação a nós, sob pena de te derrubar eu do cavalo!

- Cão e mais uma vez cão! Aí o tens!

A essas palavras ele ergueu o punho e tentou empurrar o meu cavalo com o seu. O Melek, porém, segurou-lhe o braço e bradou-lhe:

- Pelo amor do Santo Jesujabos, contém-te, senão estarás perdido.

- Eu? - exclamou o gigante estupefato.

- Sim, tu!

- Por quê?

- Este guerreiro estranho não é um curdo mas um Emir das terras do poente. Tem nos punhos o vigor do urso e possui armas contra as quais toda a reação é inútil. É meu hóspede; sê pois amável com ele e com os de sua comitiva!

O Rais sacudiu a cabeça.

- Pois não temo nem aos curdos e nem a essa gente, vinda das bandas do poente. Perdoá-lo-ei por ser teu hóspede. Mas ele que se cuide comigo, senão verá quem possui o vigor do urso, se ele ou eu. Bom, continuemos a viagem; aqui vim somente para te trazer as boas vindas.

Sem dúvida, aquele homem; superava-me grandemente em força física; mas tratava-se de uma força bruta sem escola, que eu não precisava temer. Por isso, posto que não liguei ao seu perdão, não passei a tratá-lo com mais respeito que antes. Eu pressentia que de qualquer forma ainda me iria desavir com ele.

 

EM LIZAN

Reencetamos a cavalgada e não tardamos em alcançar o local de nosso destino. As miseráveis e toscas cabanas e palhoças que formam Lizan, ficam situadas em ambas as margens do Zab, numa zona onde este corre com muita impetuosidade. O seu leito está cheio de rochedos que dificultam sobremodo o tráfego de balsas e também a natação. A ponte que construíram sobre o rio, é formada de vimes trançados assentados sobre vários penedos à guisa de pilar. O assoalho formado também de vime trançado não é lá muito resistente, de modo que, ao transpô-la a cavalo, se deve fazer com toda cautela. Mas assim mesmo atravessamos sem acidente algum a perigosa ponte.

Na margem oposta a expedição foi acolhida com os brados jubilosos de uma grande multidão de mulheres e crianças. As poucas casas que se viam, não podiam comportar toda aquela gente, por isso era de supor haver muitas pessoas de aldeias adjacentes reunidas naquele momento em Lizan.

A residência do Melek, defronte à qual apeamos, ficava à margem esquerda do Zab. Era de estilo caracteristicamente curdo e avançava um pouco para o rio, a fim de que a aragem das águas espantasse da casa os mosquitos, verdadeira praga naquela região. O pavimento superior da casa não tinha paredes e compunha-se apenas do telhado sustentado por pilares de tijolos construídos nos quatro vértices do quadrado. Aquele compartimento era o de recepção e para lá nos conduziu o Melek, após havermos confiado os nossos cavalos à guarda de Halef. Havia lá uma quantidade regular de esteiras artisticamente tecidas e sobre as quais nos acomodamos displicentemente.

O Melek não dispunha naturalmente de muito tempo para nos fazer companhia; fomos, pois, deixados quase a sós. Pouco depois, porém, entrou uma mulher que num prato de cortiça nos trouxe uma grande variedade de frutas e outros alimentos. Seguiam-lhe duas meninas de uns dez e treze anos, munidas de bandejas também de cortiça.

As três nos saudaram humildemente e colocaram o prato e as bandejas em nossa frente. As meninas se retiraram, mas a mulher ficou no compartimento a nos olhar curiosa.

- Desejas alguma coisa? - perguntei-lhe, vendo que ela não queria retirar-se.

- Sim, Senhor - respondeu.

- O que é?

- Qual é o Emir do ocidente?

- Há dois desses Emires aqui. Eu e aquele ali. À última palavra indiquei o inglês.

- Refiro-me àquele que não é somente guerreiro, mas é também médico.

- Então deve ser eu - declarei-lhe.

- Fôste tu quem, em Amadijah, salvou uma jovem que comera cereja venenosa?

Respondi-lhe afirmativamente e ela disse-me:

- Senhor, a mãe de meu marido deseja ardentemente ver-te e falar contigo.

- Onde está ela? Vou procurá-la já.

- Oh! Não, Chodih. És um grande Emir, ao passo que nós somos mulheres. Permite que ela venha ter contigo!

- Com muito prazer.

- Mas ela é bastante idosa, não podendo por isso estar de pé por muito tempo.

- Ela pode conservar-se sentada e falar comigo à vontade.

- Sabes que as mulheres em nosso país não podem permanecer sentadas na presença de pessoas de qualidade como tu?

- Sei, sim; mas a ela faço prazeirosamente essa concessão.

A mulher retirou-se, para daí a pouco voltar novamente, trazendo apoiada uma senhora idosa, alquebrada ao peso dos anos. Suas faces eram cheias de rugas, mas os olhos brilhavam com vivacidade juvenil.

- Bem-vindos sejam à casa de meu filho! - saudou-nos ela. - Qual deles é o Emir que procuro?

- Sou eu. Vem e senta-te.

- Não, Chodih; não tenho direito de sentar-me ao teu lado; deixa que eu sente num dos cantos da sala.

- Não permito, não! - respondi-lhe. - És cristã?

- Sou.

- Também eu sou. Minha religião ensina que, perante Deus, todos são iguais; sejam ricos ou pobres, poderosos ou humildes, velhos ou moços. Sou teu irmão e tu, minha irmã em Cristo; mas tens muito mais idade que eu e por isso compete-te um lugar à minha direita.

- Só me sentarei, se tu ordenares.

- Ordeno-te!

- Então, obedecerei, Senhor!

Ela deixou-se conduzir até o lugar em que me achava e sentou-se à minha direita. Depois sua nora deixou o compartimento. A velha por muito tempo esteve a contemplar-me com olhos perscrutadores. Depois disse-me:

- Chodih, tu és tal qual me descreveram. Já conheceste pessoas à cuja entrada o compartimento torna-se sombrio?

- Sim, e muitas até.

- E também outras que onde quer que surjam parecem trazer consigo o brilho e o benéfico calor do sol?

- Também já as encontrei, mas em muito menor número.

- Tens razão. Mas tu és uma destas últimas.

- Dizes isso por elevado espírito de cortesia!

- Não, Senhor. Sou uma mulher velha que aceita resignadamente tudo o que Deus manda; jamais direi uma inverdade. Ouvi dizer que és um grande guerreiro; creio, porém, que as maiores e mais brilhantes vitórias tu as consegues com a luz de tua fisionomia. Uma fisionomia como a tua a gente estima logo e serás logo estimado por todos que contigo se encontrarem.

- Oh! Possuo muitos inimigos. Logo não é como dizes.

- Então são homens malvados. Nunca te vira, mas já me considerava tua amiga muito antes de te conhecer.

- Como será isso possível?

- Muito simples. Uma amiga minha falou-me muito a teu respeito.

- Quem é essa tua amiga?

- Marah Durimeh.

- Marah Durimeh? - perguntei com ares de surpreendido. Tu a conheces?

- Conheço-a, sim.

- Onde mora ela? Onde se poderá falar com ela?

- Não sei.

- Mas se é tua amiga, deves saber onde ela mora.

- Ela ora está aqui, ora ali. Parece-se com o pássaro que ora está num galho, ora noutro.

- Ela te visita com freqüência?

- Ela não aparece com a pontualidade do sol, mas como uma chuva refrigerante, às vezes cedo, outras vezes tarde.

- Quando esperas receber novamente a sua visita?

- Pode ser que ela ainda se ache em Lizan; mas só virá na outra lua ou talvez nem venha mais, pois pesa-lhe sobre os ombros ainda maior número de anos que a mim.

Aquela mulher me falava de um modo tão estranho, tão misterioso, que instintivamente me fêz lembrar o Ruh’i Kulyan de que me falara Marah Durimeh de um modo não menos misterioso, como a anciã que se achava ao meu lado.

- Então ela te visitou em seu regresso de Amadijah? - perguntei-lhe.

- Isso mesmo. Falou-me a teu respeito, dizendo-me que talvez viesses a Lizan, pediu-me que se por aqui passasses, que te dispensasse um tratamento como se fosses meu filho. Permites que assim eu faça?

- Prazeirosamente, mas com a condição de cobrires também os meus companheiros com o teu manto protetor.

- Farei por todos tudo que estiver em minhas forças. Sou a mãe de Melek e os seus ouvidos ouvem carinhosamente as minhas palavras; mas há um entre vocês pelo qual nada adianta eu pedir.

- Quem é?

- O Bei de Gumri. Qual é deles?

- O homem que está sentado ali na quarta esteira. Ele ouve e compreende todas as tuas palavras; os demais, porém, não falam o idioma do teu país.

- Pois ele que ouça e entenda o que falo! - respondeu a macróbia em tom enérgico. - Já ouviste falar nas opressões que tem sofrido o meu país?

- Ouvi muitas cousas já!

- Já te falaram nos Beis Khan Beder, Zeinel, Nur-Ullah e Abd-el-Summita, os quatro assassinos de cristãos? De todos os lados nos atacaram aqueles curdos monstruosos. Destruíram e incendiaram-nos as casas, jardins e pomares; saquearam-nos as colheitas, profanaram-nos os templos, mataram-nos os maridos e filhos, descarnaram-nos as crianças e martirizaram-nos as mulheres e donzelas até estas perecerem ao último alento. As águas do Zab estavam tintas de sangue dos inocentes e os precipícios e montanhas se achavam iluminados pela veemência dos fogos de fuzilaria que dizimavam nossas aldeias e povoados! Um brado uníssono de dor ecoava por todo o país. Era o brado de angústia de milhares de cristãos nos estertores da morte! Aos ouvidos do Paxá de Mossul chegaram as angustiosas lamentações, mas a elas se fêz surdo.

- Já ouvi dizer! Deve ter sido pavoroso tudo isso!

- Pavoroso? Oh! Chodih, esta palavra não resume em si tudo por que passamos! Eu te poderia citar fatos de confranger-te o coração. Prestaste atenção à ponte pela qual transpuseste o Berdizabi (1)? Por aquela ponte foram arrastadas as nossas donzelas, a fim de serem conduzidas a Tkoma e Baz; elas, porém, se lançaram no rio, porque preferiam morrer a sofrer os tormentos e as ignomínias que as esperavam. Não se salvou em Lizan nenhuma donzela. Vês aquele monte rochoso lá à direita? Lá se refugiou o povo de Lizan porque naquela montanha se sentiam mais seguros, pois daqui os inimigos não os conseguiriam atacar. Mas levaram pouca água e pouco alimento para o refúgio e para não perecerem de inanição tiveram que se render ao Bei Khan Beder. Para que eles se rendessem, o Bei lhes prometeu, sob sacratíssimo juramento da sua fé, que lhes pouparia a vida e a liberdade, com a condição apenas de deporem os nossos homens as armas. Os cristãos aceitaram a condição e mal depuseram as armas, o Bei quebrou o seu juramento, mandando matá-los todos a golpes de espada e punhaladas. Quando os curdos estavam com os braços cansados da chacina, abreviavam o serviço empurrando os cristãos aos montes, montanha abaixo, de uma altura de novecentos pés. No roldão do massacre bárbaro não pouparam ninguém; anciãos, homens, mulheres e crianças, todos enfim foram passados pelo fio da espada e o resto jogado precipício abaixo. De milhares e milhares de Caldanis escapou-se um só para lhes contar a triste história. Queres que te conte ainda mais, Chodih?

- Basta! - exclamei horrorizado com aquela narrativa.

- E agora está aqui sentado, na casa do Melek, um filho daquele monstro! Achas que devemos, à vista do que te relatei, tratá-lo com indulgência?

Qual não seria o estado de espírito do Bei de Gumri naquele instante! Nem sequer pestanejou; era demasiadamente orgulhoso para defender os seus antepassados da acusação daquela mulher. Eu, porém, respondi:

- Ele encontrará indulgência nesta casa, sim!

- Acreditas nisso?

- Sim, porque não é justo, nem humano, que ele espie o crime dos outros! O Melek assegurou-lhe hospitalidade e eu só deixarei Lizan, com ele, a salvo de qualquer perigo.

A velha baixou a sua respeitável cabeça branca e pôs-se a meditar. Depois perguntou-me:

- Então és amigo deste Bei?

- Sou. E, além disso, seu hóspede em Gumri.

- Senhor, isto é grave para ti!

- Por quê? Achas então que o Melek não cumprirá a sua palavra?

- Ele nunca deixou de cumprir a palavra empenhada - respondeu ela orgulhosamente. - Mas o Bei aqui ficará preso até morrer e deste modo jamais voltarás à tua pátria.

- Isto tudo compete a Deus determinar! Sabes já o que o Melek resolveu a nosso respeito? Ficaremos encerrados nas quatro paredes desta casa?

__________________

(1) O alto Zab.

 

- Tu, não; os outros, porém, ficarão.

- Neste caso, posso sair pela aldeia quando eu quiser?

- Sim, desde que consintas em ser acompanhado por um guarda. Tu não receberás hospitalidade simples como eles; mas hospitalidade com liberdade de sair quando quiseres, mas naquelas condições.

- Então deixa-me falar com o Melek. Queres que te conduza também aos teus aposentos?

- Oh! Senhor, como és bondoso! Sim, leva-me para que eu me possa vangloriar de haver sido conduzida, já à beira do túmulo, por uma personalidade de invulgar sapiência e de finos dotes de espírito.

Ajudei-a a erguer-se e ela apoiou-se no meu braço. Deixamos o pitoresco compartimento e descemos a escada em direção ao pavimento térreo. Aqui a velha separou-se de mim e eu saí para o campo fronteiro à casa, onde numerosos caldeus se achavam reunidos. Entre eles se encontrava o Bei Nedschir. Ao avistar-me, caminhou arrogantemente ao meu encontro.

- A quem procuras aqui? - perguntou-me asperamente. 

- Ao Melek. - respondi-lhe com calma.

- Este não dispõe de tempo para te aturar; volta para o sobrado!

- Estou habituado a fazer o que bem me aprouver. Dá ordens aos teus criados, se quiseres, mas não a um homem livre como eu, a quem nada tens que ordenar!

Ao retrucar-lhe daquela maneira, o homem se aproximou de mim a passos largos e, pelo brilho de seus olhos, compreendi logo que se ia ferir uma luta entre nós os dois. Tinha certeza disso e se o não imobilizasse ao primeiro golpe, eu estaria perdido.

- Queres ou não obedecer-me? - trovejou-me.

- Menino, não te cubras de ridículo! - retruquei-lhe com um sorriso de escárneo.

- Menino! - urrou ele. - Aqui tens a paga do teu desaforo! Desfechou um golpe em direção à minha cabeça, golpe que aparei em tempo e mandei-lhe o meu punho cerrado com tamanha violência de encontro ao temporal, que julguei ter quebrado todos os dedos da mão. O homem tombou sem proferir um gemido e ficou estirado no solo. Os presentes recuaram assustados; um deles, porém, exclamou:

- Matou-o a soco!

- Não o matei, não; apenas mandei que seus sentidos fossem dar um passeiozinho - respondi-lhe. - Borrifa-lhe com água a cabeça que ele não tardará a recuperar os sentidos.

- Chodih, que fôste fazer? - ressoou uma voz por trás de mim. Virei-me e vi o Melek saindo da casa.

- Eu? - perguntei-lhe. - Não preveniste este homem que me deixasse em paz? No entanto, ele cometeu a vilania de bater-me. Dize-lhe depois que não repita a façanha, senão seus filhos ficarão órfãos e os seus amigos se verão privados de sua companhia, talvez nefasta.

- Mas ele não está morto?

- Não. Mas outra vez que ele se envolver comigo, aí sim, não se escapará mais com vida de minhas mãos!

- Senhor, tu irritas os teus inimigos e por tua pessoa enches de cuidados os teus amigos. Como posso proteger-te, se anseias permanentemente por brigar?

- Dize isso ao Nedschir, pois é bem provável que não possas protegê-lo do impulso do meu braço. Se permites que ele me insulte, não me culpes então pela lição que sou obrigado a ministrar-lhe.

- Senhor, retira-te! Ele está recuperando os sentidos!

- Achas que fugirei de um homem que arrojei ao solo?

- Mas ele te matará!

- Nem me darei mais ao trabalho de usar o braço. Presta atenção! Os companheiros que se achavam no primeiro andar - pavimento este sem paredes, conforme já disse - haviam assistido a toda cena. Dirigi-lhes um olhar cujo significado eles logo compreenderam.

 

Borrifaram a cabeça do Rais. Começou a levantar-se vagarosamente. Eu não podia deixar as cousas se converterem numa nova luta de boxe, pois tanto a mão com que lhe aparara o golpe como a direita se achavam inchadas; devia considerar-me satisfeito por não haver fraturado o braço ao golpe daquele Golias. Agora ele me avistou. Com um estrídulo brado de raiva, investiu de punho cerrado contra mim. O Melek tentou contê-lo; também outros tentaram impedi-lo, mas tratava-se de um homem possante e a todos dominou. Virei-me novamente para os companheiros e bradei ao Rais:

- Bei Nedschir, olha lá para cima!

O homem seguiu a direção do meu olhar e deu com as espingardas dos meus camaradas apontadas para ele. Estava ainda com o espírito bastante lúcido, para compreender aquela linguagem... Parou e ergueu o punho.

- Homem, hei de encontrar-te ainda!

Sacudi simplesmente os ombros em sinal de indiferença e o Rais se retirou apressadamente.

- Chodih, - disse o Melek ainda ofegante do esforço que fizera para segurar o Hércules caldeu - em que perigo estiveste metido!

- Não era tão grande o perigo. A um simples pestanejar de minha parte, os meus companheiros tornariam o meu inimigo imóvel para sempre.

- Cuida-te dele agora!

- Sou teu hóspede. Cuida tu para que ele não continue a ofender-me.

- Disseram-me que estavas à minha procura?

- Sim. Eu queria saber se posso andar livremente por Lizan.

- Podes, sim.

- Mas serei acompanhado de um guarda?

- Guarda, não; serás acompanhado por uma pessoa de minha confiança, apenas visando a tua segurança e inviolabilidde.

- Compreendo-te muito bem, mas aceito essa condição. Quem será o meu guarda?

- Guarda não, mas protetor e guia, Chodih. Terás a companhia de um Karuhja.

Karuhja! Portanto um leitor, um clérigo! Convinha-me e gostava mesmo de semelhante companhia.

- Onde está ele? - perguntei-lhe.

- Aqui na casa. Ele mora comigo. Vou mandá-lo procurar-te e já. Dito isso entrou na casa e, daí a minutos um homem de meia idade veio ter comigo. Usava uma vestimenta comum do país, mas pela sua figura e modos de se conduzir dava a impressão de ser realmente um clérigo. Saudou-me muito costesmente e perguntou-me o que lhe ordenava eu.

- É para me acompanhares pela aldeia! - disse-lhe.

- Sim, Senhor. O Melek é que determinou!

- Antes de tudo desejaria conhecer Lizan. Queres guiar-me?

- Não sei se devo, Chodih. Esperamos receber a toda hora a notícia da chegada dos curdos de Berwari que virão para libertá-los.

- Prometi não deixar Lizan sem a licença do Melek. Não te basta isso?

- Vou me fiar em ti, embora seja eu o responsável por tudo que fizeres na minha presença. Que queres ver em primeiro lugar?

- Eu desejaria galgar a montanha de onde o Bei Khan arrojou os caldanis pelo precipício.

- A escalada é dificílima. És alpinista?

- Não tenhas cuidado a esse respeito.

- Então vamos!

Em caminho resolvi sondar o Karuhja sobre a sua situação religiosa. Eu não compreendera ainda bem a concepção que aquela gente tinha a respeito do cristianismo e por isso desejava dele alguns esclarecimentos. Além disso ele me fizera uma pergunta que viera a calhar:

- És muçulmano, Chodih?

- O Melek não te disse que sou cristão?

- Sim, mas não és caldani. Pertences talvez à religião pregada pelos missionários de Inglistão?

Respondi-lhe negativamente e ele disse:

- Folgo muito com isso, Senhor!

- Por quê? - perguntei-lhe.

- Não quero saber de sua religião, porque deles também não quero saber.

Com essas poucas palavras, aquele homem dissera tudo o que havia, aliás, a dizer sobre aqueles missionários.

- Tiveste algum incidente com um deles? - perguntei.

- Com diversos deles. Mas bati o pó dos sapatos e me afastei deles! Conheces os ensinamentos de nossa religião?

- Não muito bem.

- Nem queres conhecê-los, não é?

- Oh! Como não?! Os caldanis têm alguma profissão de fé?

- Sim e um caldeu a reza duas vezes por dia.

- Então reza para eu ouvir!

- Cremos num único Deus, todo poderoso, Criador e Pai de todos os seres visíveis e invisíveis. Cremos em Nosso Senhor Jesus Cristo, filho de Deus, que no mundo foi o único Filho de Seu Pai; não foi concebido e é o verdadeiro Deus; que foi criado pelo Pai com as mesmas mãos com que Este criou o Mundo e todas as coisas que nele existem; que por amor dos homens e para sua bênção desceu do céu por intermédio do Espírito Santo e se tornou homem, sendo nascido de Maria Virgem; que padeceu e foi crucificado ao tempo de Pôncio Pilatos, morreu e foi sepultado; que no terceiro dia ressurgiu dos mortos, conforme já o prescreviam as escrituras, subiu ao céu e está sentado à mão direita de seu Pai de onde voltará um dia para julgar os vivos e os mortos. E cremos num Espírito Santo, que é o Espírito da Verdade, que veio do Deus Pai, o Espírito que ilumina. E numa igreja cristã comum a todos. Para a remissão dos pecados reconhecemos o santo batismo; reconhecemos ainda a ressurreição dos mortos e cremos numa vida eterna!

Depois de uma pausa, perguntei-lhe:

- Guardam também o jejum?

- E rigorosamente - respondeu-me. - Durante cento e cinqüenta e dois dias, não devemos tomar alimentos do reino animal, inclusive peixes, e o patriarca nunca come carne de espécie alguma e se alimenta exclusivamente de vegetais.

- Quantos sacramentos reconhecem?

No momento em que o homem ia me responder, a nossa interessante palestra foi bruscamente interrompida por dois cavaleiros que vinham a todo galope.

- Que há? - perguntou o homem.

- Aí vêm os curdos! - foi a resposta.

- Onde estão?

- Já subiram a montanha e vão descendo o vale.

- De quantos homens se compõe a expedição?

- De muitas centenas.

Dito isso os cavaleiros prosseguiram a galope e o Karuhja ficou parado.

- Chodih, voltemos!

- Por quê?

- Prometi ao Melek voltar assim que os curdos se aproximassem. Creio que não me obrigarás a faltar com a palavra!

- Naturalmente que não! Vamos!

Quando atingimos o campo fronteiro à casa do Melek, notava-se ali um extraordinário movimento. Mas aquela gente não organizara ainda um plano de defesa. O Melek se achava reunido em conferência com alguns sub-comandantes, entre estes o Rais.

Eu pretendia passar calmamente pela multidão e me dirigir para a casa, mas o Melek chamou-me:

- Chodih, vem cá, por favor!

- Que perdeu ele aqui? - perguntou encolerizado o possante Rais - É um estranho, um inimigo; não pertence à nossa gente!

- Cala-te! - ordenou-lhe o Melek. Depois se dirigiu a mim: Sei dos teus conhecimentos bélicos, pelas notícias dos combates no vale de Deratsch e dos Dschesidis. Não nos queres dar um conselho?

Naturalmente que gostei muito daquela pergunta, contudo respondi-lhe:

- Deve ser já tarde para que o meu conselho sirva de algo.

- Por quê?

- Devias ter começado já ontem as negociações.

- Que pretendes dizer com isso?

- É mais fácil evitar um perigo de que combatê-lo, quando já prestes a cair sobre nós. Se não tivesses atacado os curdos, não precisarias deles te defender hoje.

- Não é isso o que quero saber!

- Não obstante julguei de bom aviso dizer-te! Sabias ontem que hoje viriam os curdos te atacar?

- Todos sabíamos.

- Por que então não ocupaste os desfiladeiros? Se tivesses feito isso, ocuparias agora uma posição invencível. Os curdos, porém, já os atravessaram e dominam a situação.

- Ah! Mas saberemos combater!

- Aqui?

- Não, na planície de Lizan.

- Mas lá é que pretendes receber os atacantes? - perguntei-lhe admirado.

- Sim, respondeu indeciso.

- E ainda estás aqui com tua gente?

- Precisamos antes de tudo pôr as nossas famílias e haveres em segurança.

- Oh! Melek, como vocês, os caldanis são uns grandes guerreiros! Desde ontem que sabiam da vinda dos curdos e nada fizeram para segurança das famílias e haveres. Pretendem combater o inimigo e ainda falam em pôr a seguro as famílias e os haveres! Antes de terminarem com essa medida de previdência, já os curdos estarão em Lizan. Ontem vocês surpreenderam os curdos e por isso os venceram; hoje, porém, serão eles que os surpreenderão e vocês estarão perdidos!

- Senhor, não foi para ouvir isto que te chamei para cá!

- Bem, arranjem-se, como quiserem! Passem bem! Fiz menção de me retirar, mas o Melek deteve-me.

- Chodih, dá-nos um bom conselho! - suplicou-me.

- Não posso dar-lhes conselho algum; porque não me pediste antes?

- Chodih, salva-nos.

- Agora é humanamente impossível.

- Oh! Quanto te seríamos agradecidos se tu nos salvasses!

- Nem seria necessário! Por que procederam desajuizadamente? E como posso eu estar do seu lado, se os combatentes aí vêm com o propósito de libertar-me e aos meus companheiros?!

- São meus hóspedes e não prisioneiros!

- Também o Bei de Gumri?

- Deixa de me fazer pressão, Chodih!

- Pois bem, vou proceder com mais liberalidade do que merecem. Vão ligeiro ao encontro do inimigo e coloquem-se num local por onde eles não possam passar. Os curdos não empreenderão logo o ataque, mas enviarão um emissário a sindicar a respeito de nossa posição. Traze-me esse emissário aqui e depois, sim, lhes darei um conselho.

- Vai junto conosco, Chodih!

- Irei com prazer uma vez que permitas levar na minha companhia o meu criado Halef que lá perto do muro guarda os nossos cavalos.

- Pois não! - disse o Melek apressado.

- Mas eu não permito! - retrucou o Rais.

Estabeleceu-se uma discussão violenta entre os dois, mas no fim o Melek venceu, pois a maioria dos guerreiros estava do seu lado. O Rais dirigiu-me um olhar cheio de ódio, saltou no seu cavalo e se foi.

- Onde pretendes ir? - gritou-lhe o Melek.

- Não é da tua conta! - foi a resposta.

- Vão ter com ele e o acalmem - pediu o Melek aos demais, enquanto eu ordenava a Halef que preparasse o meu cavalo e o seu.

Depois subi ao primeiro andar para instruir os meus camaradas.

- Que houve? - perguntou o inglês.

- Aí vem os curdos de Gumri, para nos libertar - respondi.

- Muito bem! Yes! Homens corretos! Passe-me a espingarda! Vou misturar-me no entrevero! Well!

- Calma, sir David. Primeiramente aqui ficará muito calmamente até que eu esteja de volta!

- Por quê? Onde pretende ir?

- Ao encontro dos curdos, para encetar negociações e ver se harmonizamos pacificamente as coisas.

- Será fuzilado pelos caldeus. Yes!

- Não creio!

- Não devo ir junto?

- Não, apenas Halef irá comigo.

- Então vá! Mas se o senhor não vale mais, arrazo toda Lizan! Yes!

Os outros também concordaram com a minha resolução. Somente o Bei apresentou uma condição.

- Chodih, nada resolverás sem o meu consentimento?

- Não. Ou voltarei eu aqui ou te mandarei chamar.

Tomei de minhas armas, desci a escada e montei a cavalo. O local fronteiro à casa estava vazio; apenas o Melek ali se achava à minha espera. Uma guarda ficara também para vigiar os prisioneiros.

Tivemos que transpor novamente a ponte perigosa. Do outro lado do rio reinava grande confusão entre as tropas. Uns armados de espingardas, outros de azagaias; alguns cavalarianos a pé e alguns infantes a cavalo. Todos queriam comandar. Por fim chegou a notícia de que o Rais de Schohrd se retirara com sua gente por haver questionado com o Melek. Dos curdos nem sinal.

- Senhor, que farei agora? - perguntou o Melek apreensivo.

- Manda verificar onde se acha o inimigo!

- Já mandei vários homens, mas cada qual me volta com notícias contraditórias. Vê a minha gente em que confusão se acha. Pode-se ter gosto em comandar homens assim?

Causava-me dó aquele homem. Notava-se logo que ele não podia contar com o seu pessoal. Para um ataque de emboscada seus soldados foram corajosos; mas hoje quando lhes cabia enfrentar as conseqüências do ataque seu, de véspera, todos ali se achavam sem espírito de decisão. Não se notava neles o menor vestígio de disciplina militar. Assemelhavam-se a um bando de carneiros a correr impensadamente ao encontro dos lobos.

Também o próprio Melek não dava a menor demonstração de iniciativa, de força de vontade e de capacidade de mando. Na sua fisionomia espelhava-se mais que simples preocupação, mas medo. Talvez lhe fosse vantajosa agora a presença do Rais. Eu tinha a absoluta convicção de que ao primeiro golpe os caldeus seriam derrotados pelos curdos. Por isso respondi às exclamações angustiosas do Melek:

- Queres ouvir o meu conselho?

- Quero.

- Os curdos dominam vocês completamente. Há apenas dois caminhos para seguir. Volta com os teus para a margem oposta do rio e defende a passagem. Com isso ganharás tempo para levantar o moral de tuas tropas.

- Mas então terei que sacrificar tudo o que estiver na aldeia desta margem?

- De qualquer modo sucederia isso mesmo.

- Qual é o segundo caminho?

- Entrar em entendimento com os atacantes.

- Por intermédio de quem?

- Estou ao teu dispor para isso.

- Por teu intermédio, Chodih? Pretendes fugir-me?

- Nem me passa isso pela idéia. Dei-te minha palavra e saberei, como sempre, cumpri-la!

- Mas concordarão estes curdos em entrar em entendimento conosco, depois de os termos assaltado ontem?

- O seu Bei não é teu prisioneiro? Isto te dá uma grande força sobre eles.

- És amigo e hóspede dos curdos; dirigirias as negociações de modo que eles ficassem com todas as vantagens e nós apenas com os danos decorrentes da situação.

- Sou também teu hóspede; encaminharei as negociações de modo honroso para ambas as partes.

- Mas eles te prenderão, não deixando que voltes novamente para as minhas hostes.

- Não me deixarei deter. Repara meu cavalo! Não vale dez vezes mais que o teu?

- Cinqüenta vezes; não, cem vezes mais, Senhor!

- Pois bem, permutemos as nossas montarias! Deixo-te meu lindo garanhão, em penhor de minha volta.

- Falas sério?

- Naturalmente. Confias em mim agora?

- Confio, sim; queres levar também o teu criado?

- Não; este ficará contigo, pois não sabes lidar com o meu cavalo.

- Existe algum segredo para isso?

- Realmente.

- Chodih, então é perigoso para mim montar o teu corcel. Que o monte teu criado e tu montarás o seu.

Era o que eu queria. O meu cavalo estaria melhor nas mãos do criado do que nas do Melek que era um ginete vulgar. Respondi-lhe, pois:

- Bom, cinjo-me à tua vontade. Deixa-me trocar imediatamente de cavalo.

- Já?

- Claro. Não temos tempo a perder.

- Esperas encontrar os curdos?

- Estes já fizeram tudo para serem encontrados o mais depressa possível. Mas não poderíamos unir numa só negociação as duas propostas que te fiz? Se a tua gente entrar em contacto com os curdos, antes de eu encontrá-los, tudo estará perdido. Assim, retira-te com teus guerreiros para a margem oposta, que haverá mais probabilidade de obter-se uma solução pacífica!

- Mas desta forma nos lançaremos em suas mãos!

- Não, ao contrário; vocês se desviarão deles e ganharão tempo. Como poderão os curdos de Berwari atacá-los se estão ocupando a ponte?

- Tens razão. Vou dar logo o sinal de comando neste sentido.

Enquanto eu descavalgava e montava o animal de Halef, o Melek desprendeu do serigote uma concha e a levou à boca. O som proferido na concha foi ouvido ao longe. Os caldeus surgiram de todos os lados, pois lhes agradava mais a direção para onde haviam sido agora chamados do que a que levavam, onde havia todas as probabilidades de sofrerem de um minuto para outro, um ataque dos valentes curdos. Cavalguei ao encontro dos atacantes e daí a pouco, olhando para trás, não avistei mais os caldeus. Cavalguei bem só, pois até Dojan deixara entregue a Halef.

 

O Espírito da Caverna

A tarefa que me propusera realizar, não parecia difícil. Da parte dos curdos nada tinha a recear quanto à minha pessoa e como teriam que levar em consideração o perigo em que se achava exposta a vida do seu Bei, seria possivelmente bem fácil a realização de um acordo honroso para ambas as partes.

Cavalgava lentamente e de ouvido alerta ao menor ruído. Atingi o cume de um outeiro e avistei embaixo, na mata, um bando de gralhas que queriam pousar nas árvores; mas mal tocavam o topo destas, alçavam novamente o vôo. Era evidente que aqueles pássaros eram constantemente interrompidos no seu pouso por pessoas que cruzavam a região. Agora sabia para onde me dirigir em procura dos atacantes. Desci o outeiro e nem muito ainda havia caminhado, quando foi deflagrado um tiro, destinado a mim. Apeei rapidamente e postei-me por trás do animal. Eu vira o flamejar do tiro e sabia pois onde tomara posição o imprudente atirador.

- Kur’o (1), põe de lado a tua kirbit (2)! - exclamei.

- Foge, senão encontrarás morte certa! - respondeu o atacante.

- Ehz be via kenian. - É até absurdo! Qual o homem capaz de matar um amigo?

- Não és nosso amigo e sim um nasarah.

- Já verás que te enganas neste ponto. Fazes parte da vanguarda das tropas curdas?

- Quem te disse?

- Eu sei; conduze-me à presença do teu comandante!

- Que queres lá?

- Meu hospedeiro, o Bei de Gumri, encarregou-me de procurá-lo numa missão reservada.

- Onde está o Bei?

- Em Lizan, preso.

Enquanto isso, notei que outros vultos se aproximavam, mas procuravam ocultar-se por trás das árvores.

- Dizes-te hóspede do Bei. Mas quem és tu, afinal? - continuou ele.

- Um Emir só a outro Emir dá informações de si. Conduze-me à presença do teu comandante ou traze-o aqui. Preciso falar-lhe como emissário do Bei.

- Senhor, pertences aos Emires estrangeiros que se acham também presos?

- Acertaste.

- E realmente não és nenhum traidor?

- Katisch baqua! - O que, seu idiota? - bradou uma voz por trás da árvore. - Não vês que ele é aquele Emir que atira initerruptamente com sua espingarda? Afasta-te daí imbecil e deixa eu falar com ele!

Imediatamente apareceu um jovem curdo que de mim acercou-se respeitosamente, dizendo-me:

___________

(1) Menino.  

(2) Fósforo.

 

- Allahm d’allah! - Graças a Deus, que eu te vejo novamente, Senhor! Estivemos muito preocupados com a tua sorte.

Nele reconheci logo um dos homens que na véspera conseguira fugir do Melek e respondi-lhe:

- Tornaram a nos prender, mas temos passado bem. Quem comanda a expedição?

- O Rais de Dalascha e com ele acha-se também o valente Emir dos Haddedins, da tribo dos Schammares.

Fiquei contente de ouvir aquilo. Então Maomé Emin conseguira realmente chegar a Gumri e agora voltava para nos livrar.

- Não conheço o Rais de Dalascha. Leva-me ao local onde ele se acha!

- Senhor, ele é um valente guerreiro. Chegou ontem à noite em visita ao Bei e como soube que este se achava preso, jurou arrazar toda Lizan e enviar os seus habitantes para o inferno, pois melhor sorte não merecem eles. O Rais acha-se em caminho e nós viemos à frente para que ele não seja surpreendido nalguma emboscada. Mas, Senhor, que é do teu cavalo? Fôste despojado dele?

- Não; deixei-o voluntariamente em Lizan. Mas vamos, preciso falar urgente com o Rais!

Puxando o cavalo pelas rédeas, segui o homem. Não havíamos caminhado mais de mil passos, quando topei com uma legião de cavaleiros na qual, para satisfação minha, avistei Maomé Emin. Achava-se também montado e reconheceu-me logo.

- Hamdulillah! - exclamou ele. - Bendito e louvado seja Deus que me concede a sorte de tornar a ver-te! O bom Deus iluminou-te a vereda para que conseguisses escapar daqueles nasarahs. Mas, - acrescentou assustado - fugiste sem o teu corcel?

Acalmei-o neste particular.

- Não fugi e também o cavalo ainda me pertence. Está sob a guarda do Hadschi Halef Omar, o que bastava para se ter a certeza de estar em mãos seguras.

- Não fugiste? - perguntou o haddedin admirado.

- Não, aqui vim na dupla qualidade de emissário do Bei de Gumri e do Melek de Lizan. Onde está o comandante desta expedição?

- Aqui, sou eu! - respondeu uma voz.

Contemplei o homem interrogativamente. Montava um cavalo magro e de pêlo arrepiado, com freios de palha de coqueiro trançada. O comandante era de estatura alta e esguia. Um enorme turbante cobria-lhe a cabeça e seu rosto era coberto por uma barba tão cerrada que através dela só se divizavam os olhos e o nariz. Seu modo de olhar não me inspirava grande confiança.

- És tu o Rais de Dalascha? - perguntei-lhe.

- Sou. E quem és tu?

Maomé Emin respondeu em meu lugar:

- É o Emir Kara Ben Nemsi, de que já te falei.

Novamente o curdo cravou-me seu olhar inquiridor, parecendo que já estava agora ao par do que eu era.

- Ele que nos diga depois o que nos tem a dizer; por enquanto que se reúna a nós. Avante!

- Pára! Preciso transmitir-te uma mensagem! - pedi-lhe.

- Cala-te! - trovejou-me o curdo. - Eu sou o general desta tropa e aquilo que eu ordeno deve ser obedecido sem a mínima reação. Tagarelice é próprio das mulheres; ao homem, porém, compete agir! O momento não comporta conversas fiadas!

Não me achava habituado a permitir que me falassem naquele tom. Maomé Emin fêz-me imperceptívelmente um sinal animador. O Rais já se havia afastado alguns passos; aproximei-me dele e agarrei-lhe o cavalo pelas rédeas.

- Alto, já! Sou o enviado do Bei! - avisei-lhe.

Sempre achara que uma criatura destemerosa protegida ainda por um pouco de força e adestramento físico se imporia àquela gente semi-selvagem. No caso presente, porém, tive a impressão de que me enganara, pois o homem ergueu o punho fechado e ameaçou:

- Homem, tira as mãos do cavalo, senão te esmago a soco!

Via que falharia a missão que me levara ao encontro da expedição curda, se eu me deixasse intimidar no mínimo que fosse pela atitude desenvolta daquele homem. Em vista disto retruquei-lhe:

- Aqui estou eu no lugar do Bei de Gumri e a mim compete o comando; tu porém não passas de um modesto kiaja (1), que de agora em diante é obrigado a obedecer e não mais a mandar! Apeia e já!

O Rais desprendeu então a espingarda do serigote e brandiu-a por cima da cabeça para desfechar-me o golpe.

- Ker, seti te tschar tan kim - Arrebento-te a cabeça em quatro pedaços, idiota! - trovejou ele

- Experimenta, mas antes disso obedece-me! - revidei-lhe.

De um arranco derrubei-lhe o cavalo sobre as patas trazeiras e o animal cestroso reergueu-se de um vertiginoso salto, pondo-se de pé. Fiz isso com uma tal rapidez, que o kiaja voou da sela. Antes que ele se pudesse levantar, arranquei-lhe a espingarda e a faca e esperei pela sua investida.

- Sai! Cão! - bradou ele, levantando-se e atirando-se contra mim. - Esmago-te!

Desferi-lhe um ponta-pé na boca do estômago e o herói tombou novamente no solo.

- Homem, não te aproximes de mim porque atiro! - bradei, apontando contra ele sua própria espingarda.

- Devolve-me as armas! - vociferou-me.

- Só depois de falar contigo em boa paz.

- Nada tenho a falar contigo!

- Mas eu tenho que falar contigo, e estou acostumado a fazer que me ouçam, anota isto, Kiaja!

- Não sou Kiaja, mas um Rais, um nezanum!

Embora todo aquele incidente se realizasse em poucos minutos, de nós já se aproximara grande número de curdos que a tudo assistiram. Olhando as suas fisionomias de relance, via que nenhum deles estava inclinado a tomar precipitadamente partido. Por isso respondi despreocupadamente:

___________

(1) Termo pejorativo de burgo-mestre turco.

 

- Não és nem Rais e tampouco nezanum; não és nem ao menos um curdo livre, como todos esses bravos e valentes homens que pretendes comandar.

- Prova-o! - replicou ele no auge da raiva.

- És o decano da aldeia de Alascha; mas as sete aldeias Dalascha, Chal, Serschkiutha, Beschukha, Behedri, Biha e Schraise pertencem à zona de Chal, que paga tributo à cidade de Amadijah e conseqüentemente são dominados pelo Paxá de Mossul e pelo Grão Senhor de Stambul. O decano de uma aldeia que paga tributos ao Padixá não é um nezanum livre, mas um kiaja turco! Se um livre e valente curdo me insulta, tomo-lhe satisfações de armas nas mãos, pois que se trata de um homem que não baixa a cabeça a quem quer que seja. Mas aventure-se um kiaja turco, que não passa de um servo do Mutessarif, a chamar-me de cão e derrubo-o do cavalo e piso com a sola dos sapatos sobre seu ventre, para fazê-lo conhecer a humildade que ele deve a um homem leal e valente. Digam-me, oh! homens livres: quem elevou este celebrado arrecadador de impostos de uma aldeia turca à investidura de comandante de curdos livres?

Ouviu-se um murmúrio geral e uma voz respondeu por todos:

- Ninguém. Ele próprio se arvorou em comandante da expedição. Dirigi-me ao que dera a resposta.

- Conheces-me?

- Sim, Emir, a maior parte de nossa expedição te conhece.

- E sabes que sou amigo e hóspede do Bei?

- Todos nós o sabemos.

- Então dize-me: não havia entre vocês ninguém mais digno de substituir temporariamente o Bei do que este biltre que os vem comandando?

- Há muita gente até! - respondeu o curdo com orgulho. - Mas este homem a quem tratas de kiaja, está seguidamente em Gumri. E como ele possui uma força de Hércules e é credor do Melek de uma desforra de sangue, entregamos-lhe o comando, função a que a todo transe pretendia nela se investir. Além disso, dada a relevância do objetivo, não podíamos perder tempo com a eleição do substituto temporário do nosso Bei.

- Possui força de Hércules? Mas como, se derrubei-o do cavalo e depois ao solo pisoteando-lhe o corpo? Afianço-lhes que ele não se levantará mais da terra e a sua alma irá para o Dschehennah, se ele se aventurar a ofender mais uma vez a mim ou a um dos meus companheiros! O punho cerrado de um Emir de Germanistão é de kuhmassh para os amigos e camaradas, para os inimigos, porém, é de Tchelik e Demihr.

- Senhor, que exiges dele?

- O Bei está aprisionado em Lizan. Mandou-me aqui para falar com o seu comandante e ministrar-lhe as instruções necessárias. Este homem porém, não quer obedecer ao Bei; não quer ouvir-me e além de tudo taxou-me de cão!

- Ele tera que obedecer. Será obrigado a ouvir-te! - vozes uníssonas bradaram no meio da tropa.

- Bem, vocês lhe transmitiram o comando e agora ele que fique nessa investidura até a libertação do Bei. Mas assim como eu respeito a sua autoridade exijo que ele respeite também a minha. Aqui estou enviado pelo Bei e, portanto sou aqui o seu representante autorizado. Se estiver o kiaja disposto a tratar-me pacificamente e pacificamente entrar em conversações comigo, devolvo-lhe então as armas e o Bei dentro em poueo será restituído ao convívio de seus súditos.

Olhei perscrutadoramente para os curdos e ali na clareira de um bosque, local em que agora nos achávamos, havia para mais de cem curdos berwaris a aplaudir-me a atitude. Em seguida dirigi-me ao kiaja:

- Ouvistes as minhas palavras; reconheço-te como comandante destas tropas e por isso daqui por diante passarei a tratar-te de Agha. Aqui tens a tua espingarda e a tua faca. E agora espero que ouças as minhas palavras!

- Que tens a me dizer? - perguntou-me no auge da raiva.

- Reúne primeiro todos os teus berwaris. Nenhum deverá avançar antes de terminarmos as nossas negociações.

O homem olhou-me espantado.

- Mas ignoras então que pretendemos atacar Lizan? - perguntou-me.

- Sei disso muito bem até. Mas para tal ainda haverá tempo mais tarde.

- Se retardarmos o ataque, os nasarahs investirão contra nós. Eles sabem de nossa vinda, pois já andaram espreitando-nos.

- É justamente por estarem ao par de tudo que o Bei expediu-me para falar-lhes. Os caldeus não os atacarão e recuaram para a margem oposta do Zab, onde defendem a ponte.

- Tens certeza disso?

- Fui eu próprio que os aconselhei a tomarem aquela posição.

O comandante olhou sombriamente ao seu redor e também da roda dos guerreiros muitos olhares cheios de animosidade se dirigiam contra mim. A seguir decidiu-se o homem.

- Senhor, farei o que exiges; mas não penses que aceitaremos um mau conselho de um estranho.

- Procede lá como quiseres, neste ponto! Escolhe um descampado onde reuniremos o conselho. Para este convoca imediatamente os Assiretahs; os demais que se encarreguem do serviço de vigilância, para que estejam descansados.

O kiaja deu as necessárias ordens neste sentido e então reanimou-se o espírito das tropas. Tive tempo então de trocar algumas palavras com Maomé Emin. Contei-lhe todas as nossas aventuras, depois que nos separamos, e ele ia contar-me as suas quando nos avisaram já terem escolhido um descampado para nele se efetuar o conselho. Precisávamos, pois, partir para lá.

- Sídi, muito obrigado por teres feito sentir àquele kiaja que não somos uns parvos! - disse-me por fim o haddedin.

- Mas já não tinhas feito isso antes?

- Não tenho a tua sorte. Se eu lhe tivesse dito só metade do que disseste, teria sido estraçalhado por esta gente. Além disso, deves levar em consideração que sei apenas algumas palavras curdas e, entre eles, poucos são os que entendem alguma coisa de árabe. Aquele kiaja deve ser um celebrado ladrão e bandido, pois do contrário essa gente não teria tanto respeito dele.

- Como? Não viste como a mim também não me respeitaram menos, embora não seja eu salteador e ladrão? Quando alguém me ofende, revido logo na altura; eis todo o segredo do temor que me tem essa gente. E leva em conta, Maomé, que não só o punho cerrado produz tal efeito, mas o modo de desferi-lo juntamente com os gestos e o timbre de voz. Bem, vamos, eles estão à nossa espera; agora não nos separamos mais.

- Quais as propostas que vais fazer ao kiaja?

- Saberás oportunamente.

- Mas eu não compreendo curdo.

- Durante a reunião traduzir-te-ei tudo.

 

A REUNIÃO DO CONSELHO DOS CURDOS

Chegamos a uma clareira maior do que aquela onde antes nos achávamos reunidos. O conselho de guerra já estava formado. Mais ou menos vinte guerreiros encontravam-se junto ao Agha, e os animais, estavam amarrados às árvores. Bizarro era o aspecto que apresentavam os curdos com os cavalos ensilhados de diversas maneiras. Pena que não tive tempo de fazer observações mais minuciosas a este respeito.

- Senhor, - começou o Agha - estamos prontos a ouvir o que nos tens a dizer! Mas esse homem pertence aos Assiretha?

- Ao fazer tal pergunta, apontava para Maomé Emin. Aquela atitude de animosidade precisava ser revidada no mesmo instante.

- Maomé Emin é o celebrado Emir dos Beni haddedins da tribo dos Arab-ech Schammares. É um governante culto e um guerreiro denodado, cujas barbas alvacentas até os infiéis respeitam. Ninguém até agora se aventurou em arrojá-lo do cavalo ou a pisá-lo sobre o ventre. Se disseres mais uma só palavra que não me seja do agrado, voltarei para junto de Bei; levar-te-ei, porém, preso para Lizan e lá te mandarei desferir bastonadas na palma dos pés.

- Senhor, disseste que querias negociar em paz comigo!

- Porta-te pacificamente então, homem! Dois homens, como Maomé Emin e eu, não se deixam insultar nem por mil guerreiros. Com as nossas armas nas mãos, não tememos todos os guerreiros das terras de Chal a que pertences! Colocamo-nos agora debaixo do Odschag desses curdos berwaris, que não permitirão que um amigo do seu Bei seja insultado!

Aquele que proferir a palavra Odschag, pode contar com a mais sincera proteção em qualquer eventualidade; por isso, ao proferir eu aquela frase, o mais velho dos guerreiros levantou-se, enfiou os braços no meu e no de Maomé Emin e declarou em tom de ameaça ao kiaja.

- Aqueles que ofenderem estes Emires, serão considerados meus inimigos e tratados como tal. Ser ebabe men! - Juro pela cabeça de meu Pai!

Aquelas palavras do conceituado curdo eram bastante enérgicas para impedir que o Rais nos ofendesse dali por diante. Este perguntou afinal com calma:

- Qual a mensagem que tens a nos transmitir?

- Tenho a dizer-lhes que o Bei de Gumri acha-se aprisionado em Lizan e...

- Disso já sabíamos; para nos transmitir esta notícia não precisavas ter vindo aqui.

- Quando fores para o Dschehennah reunir-te aos teus antepassados, agradece-lhes por terem feito de ti um homem tão cortês! Só entre os negros e os Adschani é costume não deixar-se uma pessoa falar até ao fim; o teu Chodasch merecia receber uma boa sova de vara!

Embora eu tivesse reagido à insolência do Rais, o guerreiro idoso, que tomara em nome dos demais a nossa defesa, sacou da pistola e trovejou:

- Ser babe men. - Pela cabeça de meu Pai jurei! Talvez não tardemos em ouvir o estampido desta espingarda! Continua, Emir!

A situação era verdadeiramente singular. Nós, dois estranhos, defendidos dos insultos do comandante pelos seus próprios comandados! Que diria a tal respeito um capitão de cavalaria de um país civilizado? Só mesmo no incivilizado país curdo é que acontecem tais coisas. Aceitei o convite e continuei.

- O Melek de Lizan exige o sangue do Bei.

- Por quê? - perguntaram vozes gerais.

- Porque tombaram muitos caldanis sob as armas curdas.

A minha afirmativa produziu agitação entre eles. Deixei que se acalmassem e pedi-lhes que me ouvissem tranqüilamente.

- Sou o enviado do Bei; mas ao mesmo tempo sou também o emissário do Melek; estimo o Bei e o Melek pediu-me que me tornasse seu amigo. Devo trair a um dos dois?

- Não! - respondeu o nosso protetor.

- Disseste bem! Sou forasteiro nesta terra; não tenho nenhuma desforra sangrenta a tirar nem de vocês e nem dos nasarahs, por isso devo seguir as palavras do Profeta: “Que a tua palavra seja em defesa de teus amigos!” Portanto falarei com vocês como se aqui estivessem o Bei e o Melek a lhes falarem. E que Alá ilumine o cérebro de todos os presentes para que nele não se aninhe nenhuma idéia de injustiça.

O nosso protetor usou de novo da palavra.

- Fala com toda a franqueza; fala também em nome do Melek que te constituiu, por sua vez, enviado seu. Temos convicção de que só dirás a verdade e que não serás capaz de nos ofender ou nos prejudicar na mínima coisa!

 

UMA MENSAGEM DE PAZ E DE CONCÓRDIA

- Então, ouçam meus irmãos! Não faz ainda muitos anos um brado uníssono de angústia e de dor ressoou através destas montanhas e vales; as mães choravam de aflição no cimo da montanha e os filhinhos choravam na angústia da morte atirados despenhadeiro abaixo. Os alfanges brandiam furiosamente como se estivessem nas primeiras horas do juízo final e punhais abatiam milhares de vidas. Digam-me agora, quem manejava então esses alfanges e esses punhais?

- Nós! - bradaram triunfantes em uníssono.

- E quem eram os que pereciam àquela horrível carnificina?

Desta vez o kiaja antecedeu a todos na palavra:

- Os nasarahs a quem Alá devia exterminar da terra!

- Que lhes tinham feito então os nasarahs?

- A nós? - perguntou o homem admirado. - Não são eles giaurs? Não crêem eles em três deuses? Não adoram eles as pessoas já de há muito falecidas? Não são os seus próprios ulemas (1) que pregam o eterno aniquilamento de seu próprio povo?

Seria a maior imprudência suscitar aqui discussões de ordem teológica, por isso respondi-lhe simplesmente:

- Vocês então os mataram simplesmente por causa da religião que eles professavam! Confessam que os mataram às centenas, aos milhares?

- Aos milhares! - respondeu o comandante cheio de orgulho.

- Pois bem, vocês conhecem o Thar, isto é, a vindita de sangue, e admiram-se de que agora os descendentes dos chacinados se ergam de armas na mão para exigir o seu sangue?

- Senhor, eles não têm tal direito, porque são giaurs!

- Enganas-te! Sangue humano é sempre sangue humano! O sangue de Abel não era o sangue de um muçulmano e não obstante Deus disse a Caim: “O sangue do teu irmão está a me bradar da terra!” - Visitei muitos países e conheci muitos povos, cujos nomes vocês nem ouviram; não eram muçulmanos, mas muitos deles adotaram também a vindita de sangue; no entanto, eles não se admiram quando outros se vingam da morte dos seus, perpetradas por eles. Aqui estou como um emissário que não pertence a nenhum dos dois partidos: os curdos de um lado e os nasarahs de outro. Estes também receberam as suas vidas de Deus e se não querem que eles as defendam é porque são assassinos covardes. Vocês confessaram ainda há pouco que mataram milhares de nestorahs; portanto não se admirem agora se os nestorahs anseiam pela morte do seu Bei que lhes está nas mãos. Aliás, eles possuem o direito de exigir-lhes o sacrifício de tantas vidas quantas foram sacrificadas por vocês. Assim, pelo menos, manda a lei da vindita de sangue adotada por vocês.

- Pois que venham os giaurs! - vociferou o Agha.

- E eles virão realmente se não lhes estenderem a mão amiga da conciliação!

- Conciliação? Estás doido?

- Estou com o juízo perfeito! Que pretendem fazer-lhes? O Zab corre entre eles e vocês e muitas vidas perderiam antes de forçar a ponte ou conseguirem um passo para vadear o rio. E enquanto isso eles receberiam reforços de grandes legiões vindas de Aschihta, Serspitho, Zawitha, Minijanisch, Murghi e de muitas outras localidades. Serão derrotados sem grandes lutas!

- E sabes quem então teria a culpa de tudo isso? - perguntou-me o Agha, erguendo-se com a fisionomia de um acusador.

- Quem? - perguntei calmamente.

- Tu!

- Por que eu?

- Não nos confessaste, tu mesmo, há pouco, que lhes deste o conselho de recuarem para a margem oposta do rio?

E dirigindo-se aos demais membros do conselho acrescentou:

- Estão vendo agora que ele não é nosso amigo, mas um vil traidor?

Retruquei-lhe:

- Exatamente por ser amigo de vocês é que dei aos nasarahs tal conselho. No mesmo instante em que um deles tombar no combate, o Bei será fuzilado, sem mais formalidades. Devo voltar para junto do Bei e dizer-lhe que não lhe dão valor à vida?

_____________

(1) Sacerdote muçulmano.

 

- Achas, então, que não devemos empreender ataque algum?

- É justamente isso o que estou a sugerir-lhes.

- Senhor, julga-nos uns covardes que não possuem a ombridade de ao menos vingar a morte dos nossos homens mortos ontem por eles?

- Não, ao contrário, sei que são valentes guerreiros, mas também homens prudentes, incapazes de se lançarem inutilmente à ruína certa! Conhecem bem o Zab; quem de vocês ousará atravessá-lo, sabendo que do lado oposto está o inimigo à espreita, pronto para abater um a um todos os que transpuserem o rio?

- Repito, tu és o único culpado disso!

- Já te disse que assim procedi, visando salvar a vida do Bei!

- Com semelhante conselho quiseste salvar a tua vida e não a dele!

- Enganas-te mais uma vez. Tanto eu como os meus companheiros de caravana estamos em Lizan na qualidade de hóspedes do Melek e não de prisioneiros. Apenas o Bei e os curdos que com êle foram aprisionados é que estão em custódia e serão mortos, assim que se iniciarem as hostilidades.

- E se não acreditarmos nisso, estarias em condições de provar o que dizes?

- Estaria eu aqui, se fosse um prisioneiro?

- O Melek te poderia ter solto sob palavra. Por que cargas dágua te tomou debaixo da sua proteção? Quem foi que te recomendou a ele?

- Fui-lhe recomendado por uma mulher, é verdade, mas uma mulher cuja palavra o Melek leva em grande conta.

- Como se chama a mulher?

- Marah Durimeh.

Ao citar-lhes aquele nome, esperava cair no desagrado geral. Mas qual não foi a minha surpresa quando depois me convenci do contrário. O efeito da sua enunciação foi formidável. O Agha fêz uma fisionomia de quem ficara imensamente surpreendido.

- Marah Durimeh? Onde te encontraste com ela?

- Em Amadijah.

- Quando?

- Há poucos dias.

- Como te encontraste com ela?

- A sua trineta comera cerejas envenenadas e como sou um hekim, fui chamado para atendê-la. Encontrei-a na casa da paciente, que salvei, aliás, do perigo.

- Disseste então à velha que pretendias vir a Gumri e Lizan?

- Sim.

- E que te disse ela quando persististe no teu propósito? Vê se te lembras. Quem sabe deu-te uma senha que ainda não me podes revelar?

- Disse-me ela que quando me achasse em perigo, perguntasse pelo Ruh’i kulyan, que me socorreria.

Mal terminara de pronunciar aquela palavra, o homem, que antes tão hostilmente me tratava, ergueu-se de um salto vertiginoso e estendeu-me a mão.

- Emir, eu não sabia disto. Perdoa-me! Se Marah Durimeh te transmitiu esta senha, nada deve te suceder. Agora sim tuas palavras serão por nós ouvidas com a mais religiosa atenção. De quantos homens se compõe o efetivo dos nasarahs?

- Não cometerei a traição de revelar-te isso. Sou tão amigo deles como teu; também a eles direi com quantos homens vieste.

- És mais prudente do que seria necessário, Emir. Achas mesmo que eles matariam o nosso Bei no caso de os atacarmos?

- Estou convencido que sim.

- E se recuarmos, eles o libertarão?

- Não tenho certeza disso, mas espero que sim. O Melek atenderá facilmente às minhas ponderações.

- Mas o diabo é que diversos dos nossos foram mortos; e estes precisam ser vingados!

- Vocês já não mataram milhares de nasarahs?

- Dez curdos valem mais do que mil nasarahs!

- E os caldanis acham que dez deles valem mil curdos.

- E pretenderão eles nos pagar em dinheiro o resgate de sangue?

- Não sei, mas confesso-te francamente que eu, no seu lugar, não o faria.

- Queres dizer que os aconselharás a não pagar tal resgate?

- Não, porque tanto a vocês como a eles só proponho medidas tendentes a uma pacificação honrosa de parte a parte. Eles mataram poucos curdos ao passo que vocês mataram milhares de nasarahs. Neste caso eles é que tem o direito de exigir o pagamento de um resgate de sangue. Além disso, lembrem-se de que os caldanis estão com o Bei nas mãos. Se meditarem refletidamente sobre todo o conjunto dos fatos, concluirão que eles é que de momento dominam toda a situação.

Os caldanis estão com o espírito muito belicioso?

Eu deveria dizer-lhe que não, mas preferi responder evasivamente aquela pergunta.

- Portaram-se eles ontem covardemente? Reflete sobre as ondas de sangue que jorraram pelo Zab; conta a ossada alvacenta ainda hoje exposta ao relento, nos vales desse rio, e saberás até que ponto está latente nos caldanis o espírito de vingança do seus mortos!

- Estão eles armados de muitas e boas espingardas?

- Jamais cometerei a traição de te revelar isso. Ou pretendes também que eu lhes diga de que maneira vocês estão armados?

- Puseram eles a salvo os seus haveres, levando-os para a outra margem do rio?

- Seria coisa de imprudentes deixar ao abandono o que possuem, quando empreendem uma fuga. Aliás, os haveres dos caldanis são tão minguados, que não lhes seria tarefa difícil trazê-los todos consigo.

- Faze o favor de retirar-te com teu companheiro, que agora vamos deliberar. Já ouvimos de ti o que precisávamos ouvir.

 

AS DELIBERAÇÕES TOMADAS

Atendemos à sua solicitação e eu aproveitei para traduzir a Maomé Emin todo o decurso das nossas negociações. Antes que os curdos tivessem concluído as deliberações, deles se aproximou um guerreiro, trazendo um homem desarmado.

- Quem é este homem? - perguntou o Agha.

É um enviado do Melek que tentava aproximar-se de nós - respondeu o guarda. - Veio falar com este Emir, a mandado daquele. A essas palavras o curdo apontou para mim.

- Que te traz à minha presença? - perguntei-lhe.

- Senhor, - respondeu o rapaz - como demoraste muito, o Melek mandou dizer-te que se não voltares depressa o Bei será morto.

- Vêem agora que são verdadeiras as informações que lhes prestei? - exclamei dirigindo-me aos curdos. - Deixem este homem se retirar para dizer ao Melek que nada me sucedeu e que dentro em pouco estarei novamente na sua presença!

Fui obedecido e as deliberações prosseguiram apressadamente.

Devo confessar que o aparecimento daquele emissário muito influíra na decisão dos curdos; mas causava-me estranheza o recado que ele me trouxera. Ao deixar o Melek este não estava tão belicoso e sanguinário como deixava transparecer com esta sua atitude. Não fora também por causa de minha segurança pessoal que ele tomara aquela medida, pois, sendo eu hóspede do Bei, sabia ele muito bem que nada me fariam os curdos.

Finalmente os Assiretahs haviam chegado a uma decisão e eu fui novamente chamado em conselho aberto. O comandante tomou a palavra:

- Senhor, te comprometes a não negociar com os caldanis coisa alguma que redunde em prejuízo nosso?

- Claro que me comprometo.

- E estás disposto a voltar agora para junto deles?

- Sim, mas na companhia do meu amigo Maomé Emin.

- Por que este não continua com as nossas tropas?

- Ele é prisioneiro seu?

- Não.

- Então é livre de fazer o que melhor entender; resolveu ficar na minha companhia e por isso irá comigo! Que devo dizer ao Melek?

- Que lhe exigimos a soltura do nosso Bei.

- E que mais?

- O Bei resolverá o resto.

Essa resolução poderia ocultar alguma perfídia, e por isso me informei:

- Quando deve ele ser solto?

- Imediatamente e junto com seus súditos presos.

- Para onde deve ele se dirigir depois de solto?

- Para aqui.

- E desistirão vocês de atacar?

- Por enquanto sim.

- E depois que o Bei chegar?

- Isto é ele que resolverá.

- E se o Melek resolver soltá-lo só depois de regressarem pacificamente a Gumri?

- Senhor, não aceitamos esta condição. Daqui só nos retiramos, depois que o governador de Gumri conosco estiver.

- Que pretendem mais?

- Nada.

- Então ouçam o que tenho ainda a dizer. Procedi lealmente com vocês e o mesmo farei em relação ao Melek. Não lhe aconselharei medida alguma que venha em prejuízo de vocês. Mas prestem atenção no que digo: o Bei será morto, se se retirarem deste local, sem antes firmarem um tratado de paz.

- Pretendes talvez aconselhar esta morte ao Melek?

- Que Alá me livre disso! Mas não posso consentir que pretendam libertar o Bei exclusivamente para que ele os dirija depois num ataque contra Lizan.

- Senhor, falas com muito desassombro e sinceridade.

- Assim costumo proceder sempre. Portem-se com paciência, até minha volta!

Eu e Maomé Emin montamos a cavalo. Deixamos o local e nenhum curdo nos acompanhou.

 

APRISIONAMENTO DO EMISSÁRIO

- Que mensagem te confiaram os curdos? - perguntou-me Maomé Emin.

Expus-lhe o encargo que me fora confiado e também as minhas dúvidas a respeito da aceitação da proposta curda. Esporeamos os cavalos e já havíamos quase atingido o rio, quando ouvimos no macegal ao lado um ruído suspeito. Olhei para o local e no mesmo instante vi o clarão de dois tiros disparados ao mesmo tempo contra nós. Aos estampidos, o cavalo do haddedin embrenhou-se no macegal; o meu porém, recebeu um tiro certeiro e tombou logo morto. E como o ataque fora de surpresa nem tive tempo de desenfiar os pés dos estribos. Tombei, pois, junto com o cavalo ficando meio debaixo dele. Em seguida vi oito homens ocupados em me desarmarem e me algemarem. Um deles era aquele mesmo que, dizendo-se emissário do Melek, me transmitira o recado. Portanto as minhas suspeitas se haviam confirmado.

Supus logo tratar-se de algum canalhismo do Rais de Schohrd, o Bei Nedschir. Procurei reagir tanto quanto me permitiam as forças. Eu jazia no solo e a perna direita debaixo do corpo do cavalo. Mas tinha os braços livres e embora tudo fizessem por segurá-los e amarrá-los, desferi ainda vários golpes até que fui imobilizado. Sabia que não poderia vencer oito homens possantes, ainda mais que me haviam tomado todas as armas.

Puxaram-me então de sob o cavalo, de modo que agora me mantinham de pé. Não era a primeira vez que me amarravam, mas nunca fora de um modo tão ignóbil. Amarraram-me as mãos, uma contra a outra, e prenderam-me os braços contra o peito, mas apertaram tão fortemente as cordas, que fiquei com a respiração difícil. Além disso, amarraram-me de tal modo ambas as pernas que me era impossível dar sequer um passo Amarraram-me depois ao cavalo, que já estava à minha espera.

Desde o relampejar dos dois tiros até o momento de ser eu preso ao animal não decorrera talvez nem três minutos. Esperava que Maomé Emin voltasse, mas não queria pedir socorro, para não dar este prazer aos canalhas que tão covardemente me haviam atacado. Mas ficar calado, ah! isso não era comigo.

- Que pretendem de mim? - trovejei aos meus aprisionadores.

- Só a ti queremos - respondeu arrogantemente o chefe do bando. - Aliás, queríamos também o teu cavalo, mas infelizmente não o montavas.

- Quem são vocês?

- És mulher para seres tão curioso?

- Cala-te! Vocês são uma malta de cães ao serviço do Bei Nedschir. Ele não teve coragem de atacar-me e encarregou disso a sua matilha, para que não sofresse um arranhão no couro!

- Cala-te! Saberás bem depressa por que te aprisionamos. É melhor te portares em silêncio e com a calma, do contrário te metemos mordaça na boca!

O bando se pôs lentamente a cavalgar. Encaminhamo-nos ao rio, transpondo-o por um passo. Do outro lado havia uma horda armada até os dentes e que ocultou-se à nossa aproximação. Com certeza era Nedschir que dali observava, com sua gente, o cumprimento de suas ordens. Recuara satisfeito por ver que elas haviam sido cumpridas. Ao chegarmos à margem oposta, seis dos homens que me acompanhavam se detiveram ali e eu continuei escoltado pelos demais. Atravessamos por densas matas, cheias de espinheiros e logo percebi que evitavam passar pela aldeia de Schohrd, cujas míseras choupanas e escombros de casas avistei mais abaixo.

Depois de cavalgarmos algum tempo, chegamos a um desfiladeiro abrupto que parecia desembocar no vale de Raola. Continuando por esse desfiladeiro, alcançamos finalmente uma casa de pedra em forma de cubo, com uns três metros de altura. Nela só havia uma abertura que servia de porta e janela ao mesmo tempo.

Defronte a esse cubo de pedra apearam-se os homens.

 

UMA PRISÃO SINGULAR

- Madana! - chamou um deles.

Imediatamente ouviu-se no interior da casinha, um rosnado semelhante ao de gato, e daí a pouco uma mulher bem velha surgiu à abertura. Madana quer dizer salsa. Porque fora dado um nome tão cheio de “tempero” àquela mulher, não sei. Mas depois que ela chegou perto de mim, a atmosfera ficou saturada de “essência” de alho, cebola, peixe deteriorado, rato morto e sabe lá que mais! Se eu não estivesse amarrado ao cavalo, palavra que a teria  jogado longe de mim com um ponta-pé. Ela vestia uma saia que de tão curta, era mais própria para um esfregão; chegava apenas até o meio da coxa. Uma jaqueta imunda, uma coisa nos pés à guisa de sapato de pano, que depois do dilúvio talvez nunca tivera contato direto com a água...

- Está tudo em ordem? - informou-se um dos meus escoltadores. Ele lhe fêz muitas outras perguntas a que ela invariavelmente respondia com um “sim”.

Fui depois desprendido do cavalo e metido dentro daquela casa. Havia algumas frestas na parede de pedra, de modo que entravam alguns raios de luz e assim pude examinar com o olhar todo o compartimento em que me achava. Compunha-se de uma só peça quadrada com um poste fincado no chão, num dos cantos detrás. Ao redor deste, havia um monte de palha e folhas secas de árvores e bem próximo vi um alguidar com água, um caco de louça de barro que outrora fazia parte integrante de um púcaro, mas que agora era aproveitado como terrina. Esta continha uma espécie de massa que parecia formada metade de cola de marceneiro e a outra metade de minhoca ou sangue-sugas. Apesar de algemado poderia eu resistir, dando um pouco que fazer aos meus algozes; contudo deixei calmamente que me amarrassem àquele poste.

A mulher ficara parada diante da abertura. Um dos meus aprisionadores deixou silenciosamente a casinhola, mas outro achou bom ministrar-me algumas instruções antes de se retirar.

- Estás preso! - declarou-me.

Não lhe respondi.

- Não conseguirás fugir daqui!

O mesmo silêncio de minha parte.

- Vamos retirar-nos, mas aquela mulher te vigiará rigorosamente,

- Dize-lhe então que ao menos fique lá fora... - resolvi afinal observar-lhe.

- Não; ela não arredará o pé da casa! - retrucou o homem. - Não tirará os olhos de ti e quando tiveres fome ela te dará o que comer.

- Onde está a comida?

- Ali!

O homem apontou para a “terrina” que tanto já me estimulara o apetite momentos antes...

- Que é aquilo? - perguntei.

- Não sei. Madana cozinha como ninguém na aldeia.

- Por que me trouxeste para aqui?

- Não compete a mim dizer-te; saberás por intermédio de um outro. Não tentes fugir porque será em vão; Madana dará um sinal e aparecerão alguns homens para te conterem e a tua situação se agravará mais.

Depois disso, ele também se retirou. Percebi o ruído dos passos dos dois homens que se iam. A “Salsa” veio então temperar o ambiente com a sua presença e não tirava os olhos de mim. Depois de algum tempo resolveu ir sentar-se à abertura da casa mas de olhos voltados para o meu lado. Graças a Deus, o ambiente tornava-se mais respirável!

Sem dúvida alguma, era crítica a minha situação; mas mais do que isso preocupava-me a sorte dos companheiros em Lizan. O Melek deveria ter-me esperado com ansiedade e os curdos de há muito que esperavam talvez pelo meu regresso. E aqui me achava, entretanto, amarrado feito um buldogue na casa de cachorros! Que resultaria de tudo isso?

Uma esperança me restava ainda: se Maomé Emin tivesse voltado a Lizan, por certo iriam examinar o local em que eu fora assaltado. Encontrariam o cavalo morto e os vestígios do ataque; o resto eu devia confiar na agudeza de espírito do meu Halef.

Assim estive por muito tempo mergulhado em pensamentos, procurando achar um meio de fugir. Fui interrompido em minhas cogitações pela voz de Madana. Era mulher como qualquer outra e por isso não podia ficar por muito tempo calada.

- Queres comer alguma coisa? - perguntou-me.

- Não, obrigado!

- E beber?

- Também não.

Terminara a palestra, mas a aromática “Salsa” se abancou no chão bem próximo ao meu nariz. Tomou do caco de louça e colocou no colo. Vi que ela metia todos os cinco dedos da mão direita dentro da “terrina” com salada de minhoca ao molho de cola de marceneiro, fazendo desaparecer toda a iguaria pela boca desdentada. Fechei os olhos. Durante algum tempo ouvi um ruído quase crepitante de mastigação. Depois um outro produzido pela língua, ao limpar o caco de louça como se fora esfregão; por fim, um grunhido de um suíno satisfeito e bem alimentado... E com tudo isso, uma atmosfera bastante “temperada”! Oh! “Salsa” braba, por que não fôste desprender o teu aroma condimentoso lá na rua?

 

UMA REVELAÇÃO INESPERADA

Só depois de algum tempo é que resolvi abrir os olhos. A minha vigia e protetora se achava ainda sentada na minha frente com os olhos fixos em mim e lambia ainda os lábios, como o gato após tomar algum alimento. Seu olhar demonstrava compaixão e muita curiosidade.

- Quem és? - perguntou-me ela.

- Então não sabes? - retorqui-lhe.

- Não. És um muçulmano?

- Sou cristão.

- Um cristão e preso? És um curdo-berwari?

- Sou um cristão do longínquo ocidente.

- Do ocidente? - exclamou a mulher cheia de surpresa. - Da terra onde as mulheres dançam com os homens, onde se come com pás?

Portanto até aos ouvidos daquela “Salsa” chegaram a fama da cultura ocidental. Com certeza, ela ouvira falar em nossas polcas  em nossas colheres (1).

Meneei a cabeça afirmativamente.

- Que vieste fazer em nosso país?

- Ver se suas mulheres são tão lindas quanto as nossas.

- E que achas a este respeito, hein?

- São adoravelmente lindas as mulheres do curdistão.

- É verdade, são lindíssimas! - concordou a “Salsa”. - São mais bonitas mesmo que as mulheres de qualquer outra terra. Tens mulher?

- Não tenho, não!

- Fazes-me pena! Tua vida se assemelha então a uma terrina sem sarmysac com salanjanghosch!

- Sarmysac com salanjanghosch! Lesma com alho! Teria sido esse o manjar que há pouco desaparecera pela sua goela? A “Salsa” ingerira tudo aquilo sem o auxílio de “pá”!

- E não desejas tomar uma mulher para tua esposa?

- Bem que eu desejaria, mas não posso!

- Por que não?

- Então é isso possível a alguém quando se acha algemado?!

- Espera até que sejas posto em liberdade!

- Achas que me porão em liberdade?

- Claro. Somos caldanis e não matamos os inimigos! Que fizeste para te algemarem?

- Vou contar-te tudo. Procedente de Mossul, passava por Amadijah...

- Quando estiveste em Amadijah? - atalhou-me a velha impacientemente.

- Há bem pouco tempo.

- E te demoraste muito lá?

_____________

(1) Refere-se o autor à fama das baixelas fabricadas com o metal de Württenberg.

 

- Alguns dias.

- Não viste naquela cidade, por acaso, um Emir do ocidente que também é hekim?

- Vi-o, sim.

- Descreve-me o seu tipo! Ou, antes, conta-me alguns de seus feitos em Amadijah!

- Aquele Emir curou uma jovem que comera cerejas venenosas, destas que vegetam junto com cerejas boas.

- Ele ainda se acha em Amadijah?

- Não.

- E onde andará agora?

- Por que me perguntas por ele?

- Ouvi dizer que ele pretendia passar por esta zona.

Ela falava com uma precipitação que punha em evidência o seu interesse pela pessoa sobre a qual solicitava tais informações.

- Sim, ele já se encontra nesta zona - respondi-lhe.

- Onde? Dize-me depressa?

- Aqui mesmo!

- Aqui em Schord? Não ouvi dizer ainda.

- Não só em Schohrd, mas também aqui na tua choça.

- Nesta choça? Katera Aissa, por amor de Jesus, neste caso és tu a pessoa em apreço!

- Sim, sou eu mesmo a pessoa por quem tanto perguntas.

- Senhor, podes provar o que dizes?

- Claro que sim.

- A quem encontraste na casa da doente?

- Uma velhinha chamada Marah Durimeh.

- Deu-te ela um talismã?

- Não; mas disse-me que no caso de me achar em perigo nesta zona, deveria eu perguntar pelo Ruh ‘i kulyan.

- És tu mesmo, Senhor! - disse ela de mãos postas. - És amigo de Marah Durimeh; vou socorrer-te, vou proteger-te. Conta-me como vieste a parar nesta prisão!

Já era pela terceira vez que hoje eu sentia os efeitos da influência de Marah Durimeh. Que poder e prestígio era aquele que possuía a misteriosa macróbia?

- Quem é Marah Durimeh? - perguntei-lhe.

- É uma velha princesa, cujos ancestrais desligaram-se do Messias e, com armas e bagagem, passaram-se para Maomé. Ela paga agora o pecado dos seus antepassados e erra de um lado para outro!

- E quem é o Ruh ‘i kulyan?

- É o espírito do Bem. Uns dizem que é o arcanjo Gabriel e outros afirmam que é o arcanjo Miguel, que anda pelo mundo a proteger os crentes. Nesta localidade há um certo lugar onde, a determinadas horas, se pode falar com Ele. Mas antes de mais nada, dize-me como fôste preso.

Satisfazer-lhe o pedido, só me podia trazer vantagens. Procurei esquecer a minha incômoda posição e as dificuldades de respiração que me causavam os braços fortemente amarrados ao peito e narrei-lhe todas as minhas aventuras desde Amadijah

até o momento presente. A velha me ouvia com a maior atenção e quando termiaei, ela pegou-me quase carinhosamente num dos braços algemados.

- Senhor, adivinhaste: foi realmente o Nedschir que te mandou prender. Não sei por que deu tal ordem; o que sei é que não gosto dele; não suporto, até! É um homem violento e vou salvar-te de suas garras.

- Queres tirar-me as cordas?

- Senhor, não posso arriscar-me a tanto. Nedschir não tardará a chegar e então me castigará atrozmente.

- De que modo então pretendes salvar-me?

- Casualmente hoje é o dia em que à meia-neite se fala ao Ruh ‘i kulyan. O espírito do Bem é que te salvará.

- Vais pedir-lhe por mim?

- Não posso procurá-lo. Já estou muito velha e o caminho é muito acidentado para eu atravessá-lo na minha idade. Mas... - conteve-se e ficou pensativa a olhar para o chão; depois levantou a cabeça, olhou-me perscrutadoramente e perguntou:

- Senhor, serias capaz de mentir?

- Absolutamente.

- Fugirás, mesmo que me prometas não fugir?

- Aquilo que prometo, costumo cumprir.

- Doem-te os braços; ficarias aqui, se eu afrouxasse as cordas?

- Prometo-te não arredar o pé deste poste, se assim exigires.

- E deixas que eu aperte novamente as cordas, no caso de chegar alguém?

- Claro que deixo.

- Jura.

- As santas escrituras ordenam: ou dizes sim ou dizes não; o que passar disso é injusto. Não juro, mas te prometo deixar-me amarrar e saberei cumprir a promessa.

- Tenho confiança em ti!

Ela ergueu-se do solo e procurou afrouxar-me as cordas. Confesso francamente que naquele instante nem senti o odor condimentoso da “Salsa”...! Ela conseguiu afrouxar as cordas e eu estiquei os braços doloridos e tomei profunda inspiração. Madana, porém, sentou-se novamente à porta, de onde podia avistar ao longe os que se aproximavam da choça. Do portal, ela continuou a conversar comigo.

- Se chegar alguém, vou amarrar-te novamente - disse-me ela. - E depois... depois... oh! Senhor, voltarias para a choça se eu permitisse que te afastasses dele por algum tempo?

- Claro que sim. Onde queres que eu vá?

- Lá no morro, para falar com Ruh ‘i kulyan.

Ouvi-a atentamente. Seria talvez uma aventura como até agora não me fora dado ainda viver. A velha me concederia uma pequena licença para eu andar livre, a fim de me dirigir ao misterioso “Espírito da caverna”, a quem conheceria pessoalmente.

- Irei e podes estar descansada, porque voltarei à prisão haja o que houver! - prometi a Madana, prazerosamente. - Mas não conheço o caminho que conduz ao morro!

- Chamarei Ingdscha que te guiará.

Ingdscha quer dizer “Pérola”. O nome muito prometia.

- Quem é Ingdscha? - perguntei curioso.

- Uma das filhas do Bei Nedschir.

- Filha do Bei! - perguntei surpreendido.

- A filha é diferente do pai, Senhor.

- Mas ela me guiará ao morro, sabendo que conspiramos contra o seu pai?

- Guiará, sim. Ela é favorita de Marah Durimeh e eu já lhe falei do Emir forasteiro que faz milagres e cujas armas ninguém vence.

Como se depreende daí, a minha celebridade de médico milagroso correra até a aldeia dos confins do curdistão. Admirado, perguntei-lhe:

- Quem te falou a respeito de minhas armas?

- O teu criado contou tudo ao pai de tua paciente e Marah Durimeh contou-me depois. Ingdscha está ansiosa por ver um Emir de Frankistão. Queres que eu a chame, Senhor?

- Sim, desde que isso não seja demasiadamente arriscado.

- Neste caso, terei que te amarrar novamente, mas apenas durante a minha ausência.

- Amarra-me, então.

 

A “PÉROLA” DO CURDISTÃO

Devido à situação em que me achava, deixei-me amarrar prazerosamente, não sentindo mais o aroma da “salsa”. Depois disto, a velha deixou a choça. Voltou em seguida, dizendo que Ingdscha já vinha. Ao tirar-me as algemas, perguntei-lhe se estivera na aldeia, demonstrando cuidado pela sua responsabilidade de vigia.

- E se te viram na aldeia? Não sabem todos que estás encarregada de minha guarda?

- Oh! Os homens não estão em casa e as mulheres que me viram, não serão capazes de me denunciarem.

- Onde estão os homens?

- Foram a Lizan.

- Fazer o quê?

- Não perguntei. Que tenho eu a ver com as lidas dos homens? Talvez Ingdscha te saiba informar a respeito.

A velha abancou-se de novo defronte à porta. Nisso, porém ela ergueu-se de chôfre, para dar passagem a uma pessoa que chegava. Ouvi cochichar diante da porta, e nela apareceu um vulto que devia ser o de Pérola.

Verifiquei em seguida que o nome de “Pérola” condizia muito bem com a moça. Contava quando muito umas dezenove primaveras; de estatura alta e fisicamente robusta, serviria admiravelmente para esposa de um cabo de esquadra da tradicional Guarda de Honra prussiana, composta exclusivamente de homens altos. Contudo possuía uma cútis mimosa e mostrava o acanhamento adorável de uma airosa moça na presença de algum estranho.

- Salam, Emir! - cumprimentou-me a jovem à meia voz e um tanto acanhada.

- Salam! - correspondi-lhe. És Ingdscha, a filha do Rais de Schohrd?

- Sou, Senhor.

- Perdoa-me não me levantar para saudar-te; como vês, estou amarrado a este poste.

- Pensei que Madana te havia desamarrado por algum tempo.

- Ela desprendeu-me apenas as mãos.

- E por que não te desamarrou completamente?

- Dizendo isso, a moça baixou-se para afrouxar todas as cordas; eu, porém, delicadamente a impedi de fazer tal coisa.

- Muito obrigado pela tua bondade! Peço-te, porém, que não me desamarres pois, se chegar alguém, não haverá tempo para colocar as cordas como estão agora.

- Madana tudo me contou. Senhor, não devo consentir que tu, um Emir, estejas sentado no chão e amarrado a um poste. Um Emir do ocidente que viaja por todo o mundo em busca de aventuras!

Aquilo era uma conseqüência das petas do meu Haschi Halef Omar. A moça tomava-me por um Harum ai Rachid, em viagem de caças e aventuras.

- Mas, por medida de precaução, peço-te insistentemente que me deixes como estou. Vem, senta-te ao meu lado e deixa que te faça algumas perguntas.

- Senhor, grande é a tua bondade. Sou uma pobre moça, cujo pai te ofendeu mortalmente.

- Talvez eu o perdoe, por tua causa.

- Não por minha causa, mas por causa de minha mãe, Senhor! Ele não é meu verdadeiro pai; o primeiro marido de minha mãe faleceu.

- Pobre moça! E o teu padrasto é enérgico e violento contigo?

Os seus olhos se iluminaram.

- Enérgico e violento? Senhor, ele que se arrisque a isso! Não chega a ser violento, mas despreza a sua mulher e suas filhas; quando está em casa nem se apercebe da presença daqueles entes a quem ele devia amar. Não quer que o amemos e por isso, por isso... é que não é pecado eu conduzir-te ao Ruh ‘i kulyan.

- E quando me levarás?

- À meia noite, pontualmente, devemos estar no morro.

- Acha-se ele numa caverna?

- Sim, todos os primeiros dias das segundas semanas, à meia-noite.

- Mas como sabem que ele está lá?

- Pela vela que se leva junto. A gente a coloca na entrada da caverna e se afasta um pouco. Se a vela continuar a arder é porque Ele não está. E se se apagar ele está na caverna e então a gente se aproxima da mesma; entra-se três passos na caverna e pede-se o que se quer dele.

- Sobre que assuntos se pode falar ao Espírito?

- Sobre todo e qualquer assunto. Pode-se pedir alguma coisa; apresentar queixas contra outrem e também solicitar informações sobre qualquer coisa.

- Mas eu pensava que o Espírito não falava! Como se obtém dele a resposta?

- Depois de se fazer o pedido, volta-se até perto do quadro. Se a luz começar a arder novamente é porque o pedido será atendido; às vezes na mesma noite, ou então dentro de muito pouco tempo, recebe-se de um ou de outro modo a notícia alvissareira.

- Que quadro é este de que falas?

- Da mãe de Deus colocado numa elevada coluna.

Aquilo causava-me admiração, pois sempre ouvira dizer que os caldanis ensinavam não ser a Virgem Maria, Mãe de Deus, mas apenas mãe de Jesus, a quem consideravam como uma simples criatura humana. Assim, o misterioso Ruh ‘i kulyan parecia ser um católico crente.

- Desde quando ali se acha o quadro com a Virgem Maria? - perguntei-lhe.

- Não sei; mas já muito antes de eu nascer.

- E nenhum curdo ou Caldani exigiu ainda a sua retirada dali?

- Não, porque então o Ruh ‘i kulyan desapareceria para sempre.

- E ninguém deseja isso?

- Ninguém, Senhor! O Espírito distribui farta messe de benefícios em toda a redondeza. Ele ajuda os pobres e aconselha os ricos; protege os fracos e ameaça os poderosos da terra; o bom anseia por ele e o mau treme diante dele. Se eu pedir ao meu padrasto que te solte, ele rirá na minha cara; mas se o Espírito lhe ordenar tal coisa, será obedecido.

- Já estiveste alguma noite à procura do Espírito?

- Muitas vezes.

- E todos os teus pedidos foram atendidos?

- Todos.

- Quem se encarregou de transmitir-te as notícias?

- Das primeiras vezes, recebi-as à noite e não pude ver quem era. Da última, porém, foi Marah Durimeh. O Espírito apareceu-lhe e mandou-a à minha presença.

- Então conheces Marah Durimeh?

- Desde que vivo.

- Onde mora ela?

- Ninguém sabe. Talvez não more em parte alguma, mas é recebida com todo o carinho onde quer que chegue.

- De onde é ela nautral?

- Há várias versões a tal respeito. A maioria afirma ser ela uma princesa de velha casta real que reinou em Lizan. Tratava-se de uma poderosa casa real sob cujo domínio se encontrou toda a Tijari e Tkhoma. Comiam e bebiam em pratos e taças de ouro maciço e todos os demais utensílios que usavam eram de pura prata. Depois, porém, tornaram-se adeptos do profeta de Medina e o Senhor fez cair a sua cólera sobre eles. Foram espalhados por todas as terras. Somente Marah Durimeh conservou-se fiel à sua religião e Deus a abençoou com uma idade avançada, com um grande coração e com fabulosas riquezas.

- E onde guarda ela essas riquezas, visto que não tem residência certa?

- Ninguém sabe também. Dizem uns que ela escondeu o ouro que possui no seio da terra. Outros, porém, afirmam que ela tem preponderância sobre os espíritos do mundo subterrâneo, que lhe dão tanto ouro quanto ela necessita.

- Então ela te falou a meu respeito?

- Disse-me tudo o que teu criado contou em Amadijah a teu respeito. Pediu-me ela que assim que eu soubesse que estavas nesta região, fosse ter com o Ruh ‘i kulyan para pedir-lhe que te protegesse contra todos os perigos. Agora, porém, tu em pessoa farás esse pedido.

- Como, não me acompanharás à caverna?

- Não, mas apenas até perto dela. Se lá fores em pessoa eu posso então ficar à distância. Não tens fome, Senhor? Madana disse-me que lhe permitiste comer a refeição que te estava destinada.

- Quem preparou aquela refeição?

- Ela mesma. O papai lhe ordenou.

- E por que o alimento não foi feito na tua própria casa?

- Porque ele não queria que soubéssemos que ele tinha uma pessoa presa. O marido de Madana é o seu melhor amigo e companheiro, por isso ela recebeu a ordem de vigiar-te.

- Onde estão os homens da aldeia?

- Devem estar nas proximidades de Lizan.

- Fazendo o quê?

- Não sei.

- E não te será possível indagar a este respeito?

- Talvez. Mas dize-me, Senhor, aceitas algum alimento?

- Desisti da refeição, porque não estou acostumado a comer lesmas com alho. - respondi delicadamente.

- Oh! Emir vou servir-te outra cousa. Dentro de uma hora será noite escura. Vou depressa para trazer-te tudo de que necessitas.

Ela levantou-se ligeiro e eu lhe pedi:

- Não te esqueças de indagar o que os homens foram fazer em Lizan!

Pérola se retirou e bem a tempo; nem dez minutos haviam decorrido, quando Madana, que acompanhara a moça até um certo trecho do caminho, entrou afobada na choça.

- Tenho que te algemar completamente! - exclamou ela. - Meu marido vem aí, enviado pelo Bei Nedschir. Ele não deve saber que estivemos conversando. Não me denuncie Emir!

Amarrou-me novamente e se foi sentar à porta. Um cavaleiro parou diante da choça e apeou. Era um sujeito esguio e já idoso. Pelo seu aspecto, não podia deixar de ser o marido de “Salsa”. Entrou e, sem saudar-me, examinou as algemas; depois de constatar que estava em ordem, dirigiu-se à “Salsa” em tom áspero:

- Vai para a rua, pois nada tens que escutar!

Sem retrucar uma só palavra, Madana saiu da choça e o homem acocorou-se na minha frente. Eu estava ansioso por ouvir o que me diria a “Salsa-macho” que, em odor condimentoso, em muito superava à “Salsa-fêmea”.

- Como te chamas? - trovejou-me.

Nada lhe respondi.

- Estás surdo? Quero saber o teu nome.

Continuei calado.

- Homem, queres ou não responder-me?!

Dizendo isso, desferiu-me um ponta-pé na coxa. Com as mãos nada podia fazer, pois estava manietado. Mas como estava com as pernas livres, pude retribuir-lhe na mesma moeda, sem ser necessário descer a considerações de ordem teórica... Ergui a perna direita e desferi um golpe no homem, que este foi bater à parede com tal violência como se fosse lançado por uma catapulta. Ele devia possuir uma ossatura resistente, para não lhe advir maiores conseqüências do que as que lhe advieram do ponta-pé. Ergueu-se do solo e começou a examinar-se, sem dizer, porém, uma só sílaba.

- Homem, não te arrisques a repetir esta façanha! - disse-me depois, mas num tom já muito mais brando.

- Fala-me com cortesia que com cortesia te responderei! - repliquei-lhe.

- Quem és?

- Poupa-me tais perguntas! Quem eu sou, já de há muito o sabes.

- Que fazias em Lizan?

- Não é da tua conta.

- Onde está o teu garanhão preto?

- Muito bem guardado!

- Onde guardaste os teus haveres?

- Num lugar onde não os encontrarás para roubar!

- És rico? Estás em condições de pagar um resgate para reaveres a tua liberdade?

- Chega mais perto de mim que te pagarei logo o resgate! Não esqueças o teu lugar: eu sou um Emir e tu um simples súdito do Rais. A mim, pois, como uma personalidade que te é mais elevada, compete fazer-te perguntas, às quais responderás sem hesitar! Não penses que me vou deixar escogitar por ti!

Pareceu-lhe mais acertado cingir-se à minha vontade. Depois de refletir um pouco disse, com toda calma:

- Faze-me então as perguntas que desejares!

- Onde está o Bei Nedschir?

- Por que desejas saber?

- Porque foi ele quem me mandou assaltar covardemente!

- Enganas-te!

- Não mintas!

- Estás enganado, afianço-te! Nem ao menos sabe onde te encontras!

- Achas que há alguém capaz de ludibriar um Emir do Frankistão? Se eu sair daqui e descer o vale chegarei a Schohrd. À direita fica Lizan, à esquerda Raola e lá no morro é a caverna do Ruh ‘i kulyan.

O homem não conseguia ocultar a sua surpresa.

- Que sabes a respeito do “Espírito da caverna”, forasteiro?

- Mais do que tu e também mais do que todos os que moram neste vale!

Mais uma vez era Marah Durimeh que me fazia senhor da situação. O caldeu já nem sabia desincumbir-se da missão que o trouxera à minha presença.

- Dize-me então o que sabes! - pediu-me.

- Cala-te! Não és digno de ouvir falar a respeito do “Espírito da caverna”. Que queres de mim? Por que cargas dágua me assaltaste e aprisionaste?

- Desejávamos apropriar-nos do teu cavalo.

- E de que mais?

- De tuas armas.

- Continua!

- E de tudo o que possuis.

- Adiante!

- E também de tudo o que traziam os teus companheiros.

- Oh! Como são modestos e se contentam com pouco!

- Depois de nos dares tudo isso, serás posto em liberdade.

- Achas? Pois eu acho que não, pois pretendem mais alguma coisa de mim.

- Nada mais a não ser que ordenes ao Melek de Lizan que não solte o Bei de Gumri.

- Ordenar? Estás doido, velho! Achas que tenho poderes para dar ordens ao rei de Lizan e, no entanto, estás aí a me fazer observações, tu que não passas de um verme!

- Senhor, não me ralhes!

- Não te ralho. Digo-te apenas uma verdade. Não tens vergonha, homem? Dizes-te um cristão, porém, não passas de um ladrão vil e salteador. Também eu sou um cristão e não me cansarei de dizer daqui por diante que os caldanis são gente da pior espécie, mais baixa ainda do que os bandoleiros curdos! O berwaris de Dschohord receberam-me, a mim um cristão, com toda a cordialidade e alegria e os nasarahs assaltaram-me de emboscada, traiçoeiramente, com o intuito confesso de me roubarem.

- Não contarás coisa alguma por aí, pois se não fizeres o que te vou dizer, jamais na tua vida andarás sem algemas.

- Veremos! O Melek de Lizan não tardará em exigir-lhes a minha soltura imediata.

- Não o tememos, pois ele não tem o direito de nos ordenar coisa alguma. Além disso, ainda hoje, receberemos a adesão de aliados poderosos. Entregarás os teus haveres?

- Nunca!

- Então saibas que só amanhã tornarei aqui. Não te avistarás com mais ninguém a não ser comigo e com a tua vigia, que daqui por diante fica proibida de te fornecer alimentos. Hás de render-te à fome! E como me bateste com os pés, por castigo não ganharás nem água para beber!

Despejou a água do alguidar, fêz mais alguns gestos de menosprezo a mim e saiu para a rua. Ouvi-o ainda por algum tempo a dar ordens à sua mulher e depois montou e se retirou.

Agora sabia qual o propósito que os levara a me assaltar.

Depois de algum tempo, Madana voltou.

- Ele te ofendeu, Senhor? - foi a sua primeira pergunta.

- Deixa estar! Há de lhe sair cara a bravata.

- Senhor, não te zangues com ele; foi o Rais que o mandou proceder assim. Ele estava muito encolerizado contigo. Proibiu-me de falar contigo e te dar-te a mínima coisa para comer e tampouco água para beber.

- Quando voltará ele?

- Somente amanhã. Irá ainda esta noite a Murghi.

- Enquanto isso virão os outros à aldeia? Ou quem sabe não regressarão os que estão em Lizan?

- Creio que não. Poucos podem saber que aqui estás preso. Ele derramou a água do alguidar. Vou ao poço buscar água fresca.

 

HALEF SOCORRE O PRISIONEIRO

A velha trouxe-nos o alguidar cheio de água fresca e também alguns gravetos resinosos para iluminar a choça, pois começava a escurecer. Mal havia ela colocado um dos gravetos num nicho da parede, ouviram-se passos do lado de fora. Por sorte não me achava ainda desamarrado. Mas que seria aquilo? Aquele latido era o de um cão que vinha sendo contido à força pela coleira e que agora, livre, dava expansão à sua alegria por encontrar o que procurava. Continuaram os latidos; oh! conheci-os.

- Dojan! - chamei quase chorando de alegria.

Um novo latido misturado com uma voz humana respondeu ao meu chamado. De repente o cão invade a choça derrubando pela frente a pobre da “Salsa”, e de alegria pula-me ao ombro tentando lamber-me as faces. No mesmo instante o cano ameaçador de uma espingarda apontou para dentro da choça e uma voz perguntou:

- Sídi, estás aí dentro?

- Sim, Halef.

- Há algum perigo?

- Não. Podes entrar, sem receio.

O pequeno Hadschi surgiu então na porta e exclamou:

- Hamdulillah, Sídi, que te encontrei. Como vieste a parar nesta... Maschallah, fôste agrilhoado! Por esta mulher? Por este dragão? Vai já para o Dschehenah, bruxa horrível!

No auge da fúria, o homenzinho sacou do punhal.

- Calma, Halef! - exclamei. - Estou preso, sim; mas esta mulher tem sido uma verdadeira amiga para mim nesta hora difícil. Ela me teria salvo, mesmo que não me encontrasses.

- Verdade?

- Sim, já estamos com o plano até combinado.

- Imagine que eu a ia apunhalando!

Com a fisionomia agora iluminada por um sorriso meigo, o homenzinho dirigiu-se à velha:

- Graças sejam dadas a Alá por haver criado, oh! Mais formosa das mulheres do Curdistão! Os teus cabelos são como seda, as tuas faces como as púrpuras do crepúsculo vespertino e os teus olhos brilham como estrelas no céu. Nobre dama, a ti me apresento, respeitosamente como admirador de tua beleza: Sou Hadschi Halef Omar Ben Hadschi Abul Abbas Ibn Hadschi Dawud al Gossarah! Estiveste ao lado de meu amigo e amo, com o calor de tua bondade e de tuas virtudes e por isso eu, como a menor dos teus servos...

- Pára, Halef! - exclamei pondo um fim àquela torrente de palavras. - Esta mulher não entende a mínima coisa de árabe, só compreende curdo.

O meu criado procurou reunir então todo o vocabulário curdo que conhecia para dizer a Madana que a tomava pela mais formosa das mulheres do Curdistão e que, por se haver colocado ao meu lado, podia contar com a sua imorredoura amizade. Saí em socorro dela, declarando:

- Madana, tu há pouco ainda me falavas no meu criado que relatara meus feitos ao pai da moça que comera cerejas venenosas. Pois é este aquele meu criado. Ele encontrou a minha pista e seguiu-a até aqui para me salvar.

- Oh! Senhor, que farás agora? Pretendes fugir?

- Fica descansada! Nada empreenderei sem antes combinar contigo. Senta-te de novo e tranqüiliza-te.

Enquanto isso, Halef cortara as minhas ligaduras e sentara-se ao meu lado. Agora me achava bem amparado, pois na sua companhia e na do cão eu não precisaria temer a nenhum nasarah.

- Sídi, conta-me o resto.

Relatei-lhe todo o ocorrido, sendo constantemente interrompido pelos seus brados de adimiração ou indignação, conforme as passagens da aventura. Por fim Halef declarou solenemente:

- Oh! Sídi, se eu fosse um Paxá, recompensaria generosamente a Madana e me casaria com Ingdscha. Mas como não sou Paxá e possuo já a minha Hanneh, dou-te um conselho de amigo: casa com “Pérola”!

- Pois sim, vou pensar no assunto! - respondi-lhe rindo. - Mas agora, antes de mais nada, dize-me como vão as coisas em Lizan e como vieste a descobrir-me aqui.

 

OS ACONTECIMENTOS EM LIZAN

- Sídi, aquilo lá ficou em grande confusão! As coisas foram feitas bem como aconselhaste: os nasarahs tomaram posição no lado oposto do rio e esperaram pela tua volta. Mas ainda estás por voltar...

- E o haddedin não voltou?

- Voltou sim e quando ia atravessar a ponte, quase foi fuzilado; felizmente, porém, eu o reconheci ainda a tempo. Contou-nos ele que foras alvejado em caminho e que o seu cavalo se assustara e disparara com ele. Custou-lhe muito sofrear o animal; ao conseguir dominá-lo, voltou para o lugar do assalto e lá encontrou morta a minha montaria que cavalgavas na ocasião. Mas tu havias desaparecido...

- E ele não correu imediatamente em busca de socorro, nas hostes curdas?

- Não, Sídi. O haddedin imaginou que os próprios curdos é que te haviam armado a emboscada, pois o seu comandante, aquele kiaja, é um homem mau. Em vista disso, Maomé Emin cavalgou para Lizan a fim de nos avisar do que acontecera.

- Ficaram então atarantados?

- Eu não, Sídi, mas os outros ficaram. Eu sabia o que devia fazer e agora vejo que não me enganei. Os companheiros, porém, complicaram mais as coisas: realizaram um grande conselho, que deliberou enviar aos curdos um ultimatum para que eles te entregassem imediatamente vivo ou morto, conforme estivesses.

- Graças a Deus, estou muito bem.

- Senhor, se eles te tivessem matado, por Alá que eu não sairia deste país antes de matar um a um aqueles berwaris! Tu sabes que te estimo!

- Sei, meu bravo Halef! Mas continua.

- A embaixada portadora do ultimatum, porém, foi muito mal recebida pelos curdos.

- Quem a compunha?

- Maomé Emin, dois dos curdos presos junto com o Bei, o escrivão do Melek e um nasarah que entende um pouco de árabe e que servia de intérprete do haddedin. Primeiro os curdos não queriam acreditar que houvesses sido assaltado; tomavam essa declaração por um ignominioso ardil que o Melek lhes pretendia armar. Mas quando viram o cavalo morto, acreditaram. Eram então unânimes em afirmar que os nasarahs te haviam afastado porque não queriam a tua mediação no conflito. As embaixadas de ambas as partes andavam depois de lá para cá! Foi então que chegou o Bei Nedschir e afirmou teres sido fuzilado pelos curdos, sendo ele testemunha ocular do fuzilamento, pois se achava nas proximidades do delito.

- Canalha!

- É mesmo um canalha, Sídi! Mas deixa-o que receberá ainda a sua recompensazinha! Como eu ia dizendo, aquilo deu numa confusão dos diabos, confusão que quase ia degenerando num sangrento combate. Resolvi a situação, sugerindo ao Melek que firmasse um armistício e enquanto isso eu sairia em tua procura a ver se te encontrava. Todos achavam que seria inútil a minha tentativa para encontrar-te. Quando, porém, lhe falei do nosso cachorro, todos ficaram mais esperançados. Foi então enviada aos curdos uma nova embaixada, da qual eu fiz parte. Estes aceitaram as condições do armistício, que durará até amanhã ao meio dia. Se a esta hora não estiveres de volta recomeçarão as hostilidades.

- E depois o que fizeste?

- Fomos para o local do assalto levando o cão. Dojan, como louco, seguiu então a tua pista arrastando-me atrás de si. Era óbvio que terias atravessado o rio; os companheiros de embaixada opinavam que eu deveria voltar a Lizan para atravessar a ponte; não tinha, porém, tempo a perder com essa volta, pois não tardava anoitecer. Em vista disso, resolvi despir-me, amarrar a roupa à cabeça e atravessar o rio a nado, juntamente com Dojan.

- Encontraste logo a pista?

- Encontrei, sim. Depois de me vestir a seguimos e... agora aqui estamos, Sídi, eu e o teu cachorro!

- Halef, nunca me esquecerei deste teu gesto de amigo, que reflete dedicação e nobreza! - respondi-lhe comovidissimo.

- Cala-te, Sídi! Tu farias o mesmo ou muito mais ainda por mim, se me encontrasse em situação idêntica!

- E que disse o inglês?

- Não compreendo a língua dele, mas ele andava correndo de um lado para outro qual uma pantera ao ser apanhada.

- O Bei Nedschir sabe que andas em minha procura e que trouxeste o cachorro?

- Não, porque antes disso ele já se havia retirado.

- Encontraste alguém aqui?

- Não; o cachorro parece haver-me guiado por uma vereda nunca atravessada por ninguém.

- Onde está o meu garanhão preto?

- No pátio da casa do Melek. Confie-o aos cuidados do haddedin.

- Bem, está em boas mãos.

De repente ouvimos passos do lado de fora. Halef preparou a arma para o tiro e Dojan colocou-se pronto para o bote. Acalmei os dois, pois era Ingdscha que entrava.

A moça ao ver o criado e Dojan, ficou perplexa junto à porta.

- Não tenhas receio, - declarei-lhe - este homem e esse cachorro nada te farão.

- Como vieram parar aqui?

- Procurando-me, a fim de me libertarem.

- Pretendes, então, deixar-nos?

- Ainda não.

- Precisas ainda da ajuda do Ruh ‘i kulyan?

- Preciso. Estás disposta a conduzir-me ao morro?

- Com muito prazer, Emir! Aqui tens alguma coisa para comer e beber. Mas agora este alimento não chega para alimentar os dois e ainda o cachorro. Vou buscar mais.

A jovem trouxera um cesto de cortiça tão cheio de provisões que daria para cinco comerem à vontade.

- Não te preocupes, minha boa amiguinha, pois o que trouxeste dá de sobra para nós todos. Tu e Madana também tomarão parte na refeição.

- Senhor, somos mulheres!

- Em minha pátria as mulheres não são nunca desprezadas. Para nós elas constituem o ornamento e a alma da casa e, nas refeições, ocupam os lugares de honra.

- Oh! Emir, como são felizes as mulheres de tua pátria.

- É, mas são obrigadas a comer com “pás” - acudiu a “Salsa” em tom compadecido.

- Não são pás, não, mas utensílios de finíssimo metal, com os quais se come com mais apetite do que com os dedos. Aquele que na minha terra engordurar as mãos nas refeições, é considerado pessoa relaxada e sem educação. Vou mostrar-lhes agora um formato de uma kaschyk (1).

Enquanto Ingdscha estendia no chão um pano, para nele depor o alimentos, peguei da faca de Halef e cortando uma grande lasca do poste, com ela fiz uma colherinha de madeira. Ao tirar água do alguidar com a colher, as mulheres ficaram admiradíssimas.

- Agora dize-me, Madanna, pode-se chamar de kuerek (2) a um utensílio tão delicado? - perguntei à velha.

- Não, Senhor! - respondeu. - Não possuis uma boca tão grande como de princípio julguei.

- Senhor, que farás agora dessa pazinha! - perguntou Ingdscha.

- Vou jogá-la fora.

- Oh! não, Emir. Não me queres presentear com ela?

- Não é suficientemente bonita para te dá-la de presente. A “Pérola de Schohrd” merece uma colher de pura prata.

- Senhor! - exclamou a moça enrubecendo. - A colherinha é bem bonita, sim! Apreciarei tanto como se ela fosse de altyn e guemisch (3). Basta ser feita por tuas mãos! Peço-te que ma dês, para que de ti eu conserve uma lembrança, quando depois te retirares!

- Bem, fica com ela. Mas amanhã, na companhia de Madana, me visitarás em Lizan e então te darei um presente mais bonito.

- Quando pretendes sair daqui?

- Conforme a determinação do Ruh ‘i kulyan. Mas por enquanto senta-te aqui e vamos fazer a refeição.

Halef até agora estivera calado; apenas observava a moça. Nesse momento, porém, o meu minúsculo criado suspirou e disse:

- Sídi, tu tinhas razão!

- Razão em que, Halef?

- Mesmo que eu fosse um Paxá, não mereceria aquela linda moça para esposa. Casa tu com ela! É a moça mais linda que vi até hoje.

- Deve haver por aqui algum rapaz a quem ela ame.

- Pergunta-lhe!

- Não é possível, Halef. Seria uma descortesia de minha parte.

Ingdscha deve ter notado que falávamos a seu respeito; para evitar que ela desconfiasse, declarei-lhe:

- Já conheces este homem.

- Como assim, Emir?

______________

(1) Colher.

(2) Pá.

(3) Ouro e prata.

 

- É o criado de que te falou Marah Durimeh. Os meus demais companheiros me supunham assassinado e só ele, sem outra companhia a não ser a do cachorro, aventurou-se a me procurar.

- É pequeno, mas um homem fiel e corajoso! - disse ela com um olhar de reconhecimento a Halef.

- Que disse a moça a meu respeito? - perguntou Halef, pois notara bem o seu olhar.

- Que és um homem pequeno, mas fiel e de muita coragem.

- Dize-lhe que ela é uma linda e boa moça e que sinto não ser eu um Paxá.

Enquanto lhe traduzia as suas palavras, ele estendeu-lhe a mão e ela, rindo-se estendeu também a mão. A fisionomia da moça era tão amável e bondosa, que tive compaixão da vida monótona e triste que a bela menina levava na sua terra, num meio semi-bárbaro.

- Não tens um desejo que eu te possa satisfazer? - perguntei-lhe depois disso.

Ela olhou-me pensativa por alguns segundos e respondeu:

- Tenho, Senhor!

- Qual é?

- Emir, vou lembrar-me sempre de ti. Quando fores embora, te lembrarás de vez em quando de nós?

- Lembrar-me-ei muitas vezes até!

- Na tua pátria a lua brilha como aqui?

- Brilha, sim.

- Senhor, olha então sempre para a lua; lá em cima se encontrarão os nossos olhos!

Era bonito e sincero o que ela dizia. Agora eu é que lhe estendi a mão.

- Olharei, sim, podes estar certa! Todas as noites quando contemplares a lua, lembra-te de que também a estou contemplando e me lembrando de ti! A lua, pois, te trará as minhas saudações, formosa jovem!

- E levará as minhas a ti.

Depois disso, a palestra ficou suspensa; mas, no decorrer da refeição, reanimou-se de novo. Ingdscha foi a primeira a quebrar o silêncio.

- Teu criado irá contigo à caverna?

- Não. Voltará já para Lizan, a fim de tranqüilizar os meus camaradas.

- Deve ir mesmo, pois ele está ameaçado de algum perigo.

- Que perigo? - perguntei-lhe aparentando calma.

- Há pouco, passaram dois homens pela aldeia. Um deles lá ficou e o outro veio para esta choça. Falei com o primeiro. Não era para ele dizer nada a ninguém mas tagarelou tanto que descobri tudo. Achas que até amanhã, ao meio dia a luta estará terminada?

- Espero que sim.

- Mas há muita gente que não deseja isso e esta gente acaba de nomear meu pai seu comandante. Este expediu às pressas emissários para Murghi, Minijonisch e Aschitha, e também vale abaixo até Biridschai e Ghissa, a fim de mobilizar todos os guerreiros e trazê-los para aqui. Amanhã cedo, depois de todos se concentrarem em nossa aldeia, atacarão Berwari.

- Que imprudência! Teu pai lançará todo o vale de Berwari na desgraça.

- Achas que os berwaris dominam a situação?

- Eles dominam em tática de guerra, mas não em efetivo. Mas no que se iniciar o combate, todas as localidades curdas se levantarão e os caldanis serão dizimados em pouco tempo, pois ficarão sitiados completamente.

- Oh! Deus, antes não fosse acertada a tua previsão!

- Mas infelizmente é! Se de hoje até amanhã os beligerantes não firmarem uma paz, dias mais aflitíssimos ainda do que os da época dos Beis Beder e Nur-Ullah raiarão para os caldanis. É bem possível que estes, inclusive mulheres e crianças, sejam completamente exterminados da terra.

- Realmente é este o teu ponto de vista, Emir?

- É esse mesmo.

- Oh! Jesus, que devemos fazer?

- Onde está teu pai?

- Não sei ao certo; ele anda de uma aldeia a outra animando os guerreiros para o combate.

- Então só mesmo o Ruh ‘i kulyan nos poderá valer. Mas até lá é preciso que se realizem os preparativos.

- Encarrega-te disso, Emir, e todas as pessoas animadas de espírito pacífico, sempre te abençoarão mesmo depois de teres ido embora!

Terminada a refeição, perguntei a Halef:

- Acharás o caminho para Lizan, sem seres notado?

O criado meneou afirmativamente a cabeça e eu continuei:

- Voltarás agora para lá e dirás ao Melek e ao Bei de Gumri onde me encontraste.

- Devo dizer-lhes também quem foram os canalhas que te assaltaram?

- Dize, sim. O Bei Nedschir prendeu-me para que eu não continuasse como mediador da paz entre as duas hostes aguerridas. Pela minha liberdade, eles exigem de mim e dos companheiros todos os haveres.

- O Scheitan que lhe dê o que exige!

- Como vês, ele já mandou despojar-me de tudo. Deixa-me a tua pistola e a tua faca aqui. O cão também ficará comigo.

- Fica também com a minha espingarda, Sídi! Chegarei mesmo desarmado a Lizan.

- A espingarda poderia embaraçar-me. Dize ao Melek e ao Bei de Gumri que o Nedschir está reunindo guerreiros de diversas aldeias para atacarem os curdos berwaris. O Rais em pessoa percorre também algumas aldeias levantando os guerreiros. Dize ao Melek que o prenda, assim que ele aparecer por lá!

- Sídi, desejaria encontrar agora aquele homem no caminho. Observei-o bem hoje e assim que o encontrar, neutralizo-lhe os movimentos, tornando-o uma criatura inofensiva...

- Tu sozinho? Deixa-te disso! Ele é demasiadamente possante para o dominares.

O homemzinho levantou-se com ares de quem se ofendera. Arregaçou as mangas e exclamou:

- Ele demasiadamente possante para mim? Que estás pensando, Sídi? Onde ficou o teu proverbial espírito de justiça? Não venci Abu Seif? Não realizei ainda muitos outros feitos heróicos? Que pode esse tal de Bei Nedschir contra o célebre Hadschi Halef Omar? Ele não passa de um verme, que esmago debaixo do taco das minhas botas! Tu és Kara Ben Nemsi, o herói de Frankistão; queres então que eu, teu amigo e protetor, tenha medo de um andrajoso saldani? Oh? Sídi, estou admirado, da mudança que se operou em teu espírito!

- Admiras-te de mim, mas sê prudente! Agora deves fazer tudo para chegares sem novidade a Lizan. Da tua chegada lá depende todo o êxito do meu plano.

- E se me perguntarem quando irás, que lhes devo responder?

- Dize-lhes que amanhã estarei lá.

- Então toma a minha pistola e o meu punhal. Agarra também a minha cartucheira; que Alá te proteja!

O meu fiel criado acercou-se de Ingdscha e estendeu-lhe a mão em despedida.

- Adeus, oh! bela entre as belas! Breve nos veremos de novo. Também estendeu a mão à boa “Salsa”:

- Passa bem, virtuosa mãe dos caldanis! Os momentos que passei na tua choça foram cheios de alegria e se queres também uma colher, te farei uma; assim te recordarás sempre deste homem que te estima. Salam, mulher solícita e incomparável hospedeira, Salam modelo de virtudes femininas!

Nem Ingdscha e nem Madana compreenderam as suas palavras, mas as aceitaram prazeirosamente e o acompanharam até a porta.

Olhei para as estrelas a fim de ver que horas eram, pois também havia sido despojado do relógio. Deveriam ser umas dez horas.

Faltam duas horas para meia-noite. Quando iremos? - perguntei à moça.

- Dentro de uma hora.

- O meu tempo é muito precioso. Não se pode falar antes ao “Espírito da Caverna”?

- Não; só à meia-noite em ponto. O Espírito se zanga quando alguém o procura antes.

- Comigo ele não se zangará.

- Tens certeza disso?

- Absoluta.

- Então iremos assim que Madana voltar.

- Tens uma vela?

Ela apontou-me para uns fios de junco embebidos em sebo de carneiro e depois perguntou-me:

- Senhor, tenho um pedido a te fazer.

- Fala!

- Perdoarás meu pai?

- Perdôo, sim, mas em atenção a ti.

- Mas o Melek ficará irado com ele.

- Eu o acalmarei, fica tranqüila!

- Muito obrigada!

- Não viste quem ficou com as minhas armas e os demais objetos que me tomaram?

- Não. Mas com certeza estão em poder de meu pai.

- Ele costuma guardar objetos que não lhe pertencem?

- Para casa não os levou, senão eu teria visto. Nesse instante, Madana voltou.

- Senhor, - disse ela satisfeita - teu criado é um sujeito ajuizado  muito cortês.

- Por quê?

- Deu-me uma coisa que há longos anos não recebia: um oepuesch (1), um bem dado oepuesch.

Fiquei perplexo. Halef dar um beijo? E naquela velha e mal cheirosa “Salsa”? Um beijo na boca desdentada por onde de roldão desapareceram todas as lesmas com um carregamento de alho?! Isso era incrível.

- Um oepuesch? Onde? - perguntei-lhe.

Ela mostrou-me a mão que de há muito não tinha mais contato direto com a água e respondeu:

- Aqui nesta mão. Foi um eloepuesch (2) como se costuma dar em mocinhas de certa distinção. Teu criado é um homem de grande espírito de cortesia!

Ah! Ainda bem que fora a mão que Halef beijara! Contudo aquilo constituía também um ato de heroísmo de Halef, só justificável por se sentir ele tão ligado a mim pelos laços do coração. Naquela mulher, de mãos cujo asseio deixava tudo a desejar, ele via apenas a minha salvadora.

- Podes orgulhar-te disso! - respondi-lhe. - O coração de Hadschi Halef Omar pulsa cheio de amizade por ti, por haveres tomado tão carinhoso interesse por mim. Também vou demonstrar-te a minha gratidão. Ela fêz então um movimento como se desejasse levar seus dedos aos meus lábios, por isso acrescentei a toda pressa:

- Mas terás que esperar quando eu estiver de novo em Lizan.

- Esperarei até lá, Senhor!

- Agora, irei com a Ingdscha à caverna. Que farás se nesse ínterim alguém vier verificar se me acho ainda seguro?

- Emir, dize-me que devo fazer.

- Se ficares aqui, serás castigada por me teres deixado sair; assim o melhor será te esconderes até a nossa volta.

- Seguirei o teu conselho; vou esconder-me num ponto do qual eu posso observar a choça e ao mesmo tempo ver quando voltas.

- Então vamos, Ingdscha!

Coloquei as armas na cintura e peguei Dojan pela corda. A jovem ia à frente e eu a seguia.

 

DIANTE DO “ESPÍRITO DA CAVERNA”

Caminhamos primeiro por um trecho pelo qual eu fora conduzido preso; depois subimos à direita e continuamos nesse rumo até chegarmos ao sopé do morro. Este era serpenteado por um mato eivado de macegas, de modo que tivemos de caminhar muito perto um do outro, para não nos extraviarmos.

Daí a pouco a mata abriu-se em clareiras e tivemos que passar por uma rocha estreita, de onde começava o íngreme caminho para o cume do morro.

- Toma cuidado, Senhor! - preveniu a moça. - Daqui por diante o caminho

__________

(1) Beijo.

(2) Beijo na mão.

 

se tornará muito acidentado.

- Deve ser difícil a pessoas idosas procurar o “Espírito da Caverna”, pois só mesmo pessoas moças e resistentes podem trilhar este caminho.

- Não, os velhos também conseguem chegar ao morro, mas por outro caminho. Se seguíssemos por este levaríamos o dobro do tempo, pois ele fica no lado oposto do morro.

Apoiando-nos mutuamente, galgamos o morro e finalmente chegamos a um labirinto de barrancos, entre os quais logo supus se achar o objetivo de nossa escalada, que durara meia hora.

Pouco adiante, os barrancos deixavam uma espécie de passeio livre, a cujos fundos se elevava uma parede de rocha. Ingdscha ficou parada.

- É lá! - disse-me, apontando para a parede negra. - Irás daqui em linha reta e ao pé daquela parede encontrarás uma pequena abertura na qual colocarás a vela depois de acendê-la. Em seguida voltarás para junto de mim. Espero-te.

- E daqui se pode ver a luz acesa?

- Sim, mas por enquanto ela arderá em vão, pois falta muito ainda para a meia-noite.

- Contudo vou ver se comigo o “Espírito” faz uma exceção. Pega aqui a corda e fica segurando o cachorro; põe-lhe uma das mãos sobre a cabeça!

Peguei a vela e dirigi-me à caverna. Uma sensação de expectativa me dominava naquele instante e isso não era de admirar. Ia desvendar o mistério que envolvia o “Espírito da Caverna”. Era claro que já me havia ocorrido uma idéia, com a qual esperava eu desvendá-lo senão todo, pelo menos em parte.

Cheguei à beira da caverna, cuja entrada tinha altura suficiente para um homem poder comodamente passar em posição vertical. Estive por algum tempo à espreita e não ouvi ruído algum; acendi depois a vela e a coloquei na parede.

Voltei em seguida para junto da moça. Senti uma sensação estranha, quando me encontrei sozinho diante da caverna. E não era para menos; mesmo uma pessoa isenta de todo e qualquer resquício de superstição necessita de boa dose de coragem para, à meia noite, galgar um morro onde habita um “Espírito”.

- A vela está ardendo. Agora esperemos para ver se ela se apaga - disse Ingdscha.

- Nem a mais leve brisa sopra neste instante; portanto se se apagar é sinal certo de que o Ruh ‘i kulyan está presente.

- Olha! - disse a moça amparando-se nervosamente em meu braço. - Apagou-se!

- Então voltarei lá.

- Espero-te aqui.

Quando cheguei à caverna tateei a parede em procura da vela; fora retirada dali. Tinha certeza de que o “Espírito” se achava bem perto dali, talvez num dos nichos da parede, de onde tudo se ouviria se alguém falasse. Penetrei dois passos na caverna.

- Ruh ‘i kulyan! - chamei à meia voz.

Não obtive resposta.

- Marah Durimeh!

O mesmo resultado.

- Marah Durimeh, responde-me confiadamente; não desvendarei o teu mistério! Sou o hekim que curou de envenenamento a tua trineta em Amadijah, e agora preciso muito falar-te.

Não me enganara, não! Ao lado, ouviu-se um ruído de quem se erguia, surpreendido, do solo. Depois disso, porém, decorreram muitos segundos sem que eu recebesse resposta. De repente, porém, ouvi uma voz perguntar:

- És realmente o Emir hekim de Frankistão?

- Sou. Tem confiança em mim! Calculei logo que eras tu o Ruh ‘i kulyan e vim procurar-te; saberei guardar o teu mistério!

- É de fato a tua voz, mas não te posso enxergar para te identificar.

- Faze-me algumas perguntas que te orientem neste sentido!

- Bem! Que tinha o hekim dentro do seu amuleto, com o qual queria afugentar o diabo do corpo da menina?

- Uma mosca morta.

- Emir, de fato és tu mesmo! Quem te ensinou o caminho para a caverna?

- Ingdscha, a filha do Bei Nedschir.

- Avança mais quatro passos!

Avancei e fui apalpado por uma mão, que me conduziu para o lado, onde havia um compartimento formado por uma fenda da rocha; dei alguns passos nesse compartimento.

- Espera agora! Vou acender uma vela.

Momentos depois, iluminada pela luz da vela, vi diante de mim a veneranda figura oriental de Marah Durimeh a contemplar-me, envolta num longo manto escuro. A sua branca cabeleira, chegava quase até o solo.

- Realmente és tu mesmo, Emir! - repetiu a macróbia. - Aceita os meus agradecimentos por me teres procurado. Mas não deves dizer a ninguém quem é o “Espírito da Caverna”!

- Guardarei rigoroso sigilo em torno disso!

- É algum desejo que te trouxe à minha presença?

- Sim, mas não é em meu proveito e sim em benefício dos caldanis, que se preparam para ir de encontro a uma verdadeira calamidade, da qual somente tu talvez possa livrá-los. Dispões de tempo para ouvir-me?

- Disponho, sim. Vem, sentemo-nos!

Ali perto havia uma estreita pedra que dava bem para dois se sentarem. Devia servir de banco para o descanso do “Espírito da Caverna”. Ela colocou a luz num dos cantos laterais da rocha e nos abancamos na pedra.

- Tuas palavras anunciam grandes males! Fala, Senhor!

- Já sabes que o Melek de Lizan assaltou de emboscada o Bei de Gumri e o aprisionou?

- Santa Mãe de Deus, isso é verdade?! - exclamou a velhinha, visivelmente assustada.

- É sim; estive presente na ocasião como hospede do Bei e fui também aprisionado.

- Eu não sabia nada disso. Nesses últimos dias estive em Haijschad e Biridschai e só hoje é que voltei ao morro.

- Os curdos berwaris estão concentrados em Lizan e começarão amanhã o combate.

- Oh! Parvos que odiais o amor e amais o ódio! Quereis que as águas se tinjam outra vez de sangue e que o lampejo do fogo envolva a terra?! Conta-me tudo, Senhor, conta-me!

Satisfiz-lhe o desejo e ela escutava-me ofegante. Era como se a morte estivesse sentada ao meu lado, e, no entretanto daquela criatura esquelética dependia talvez, naquele momento, a vida de milhares de pessoas. Ela não moveu um só dos membros de seu corpo e nem uma ponta do seu vestuário tremeu. Quando, porém, terminei o relato, ela levantou-se da pedra num rápido movimento.

- Emir, ainda é tempo. Queres auxiliar-me?

- Com muito prazer.

- Sei que tens muito que contar-me a teu respeito. Mas não me contes nada agora, pois temos coisas inadiáveis a fazer. Deixa para amanhã. O “Espírito da Caverna” até hoje foi mudo; nunca alguém o ouviu falar; mas hoje ele fala, hoje ele tem que falar. Leva Ingdscha como guia, Emir, e volta já para Lizan. Que o Melek, o Bei de Gumri e o Rais de Schohrd venham imediatamente procurar o Ruh ‘i kulyan! Transmite-lhes urgentemente este recado!

- E achas que me obedecerão?

- Obedecerão, sim, têm que obedecer, fica certo disso!

- Mas é difícil de se encontrar o Rais agora!

- Emir, se ninguém o encontrar, tu hás de encontrá-lo. Eu te conheço! Também ele terá que impreterivelmente vir falar comigo. Seja antes ou depois dos outros. Aqui o esperarei até ele chegar.

- Os homens me perguntarão, isto é certo, de quem recebi tal incumbência. Direi que foi do “Ruh ‘i kulyan” e nada mais. Está bem assim?

- Está muito bem. Eles não precisam saber de coisa alguma e principalmente que é o “Espírito da Caverna”.

- Queres que eu venha na companhia deles depois?

- Podes acompanhá-los, mas não entres com eles na caverna. O que lhes tenho a dizer é confidencial. Dize-lhes que entrem imediatamente na caverna sem as formalidades usuais e caminhem até encontrarem um compartimento iluminado!

- Conseguirás que me devolvam tudo de que me despojaram?

- Vai descansado que tudo conseguirei. Mas agora vai duma vez. Amanhã nos veremos de novo e então poderás falar com Marah Durimeh tanto tempo quanto quiseres.

Saí e encontrei Ingdscha no mesmo lugar em que a deixara.

- Esteve muito tempo lá, Senhor!

- Tanto mais depressa teremos que caminhar agora.

- Não; tens que esperar até arder novamente a luz, do contrário não saberás se teu desejo foi ou não cumprido.

- O meu desejo vai ser atendido, sim.

- Como é que sabes disso?

- O espírito me disse.

- Senhor, acaso ouviste a sua voz?

- Claro. Estivemos por muito tempo conversando.

- Mas isso ainda nunca sucedeu! Deves então ser um grande e célebre Emir!

- O “Espírito” não leva em consideração a posição das pessoas, mas as suas virtudes individuais.

- Também o viste?

- Estivemos face a face.

- Senhor tu me assustas! Que aparência tem ele?

- Essas coisas não se devem revelar. Vem, é para tu me guiares. Preciso partir já para Lizan.

- E que será de Madana que lá está à nossa espera?

- Primeiro me mostrarás o caminho certo e depois voltarás para a choça a fim de dizer-lhe que não espere mais por mim.

- Mas que lhe dirá meu pai, quando vir que não estás mais no poste?

- Ela que lhe diga para ir ter imediatamente com o Ruh ‘i kulyan. E se tu te encontrares antes com teu pai, manda-o logo ao morro. Ele que vá imediatamente, tenha lá o que tiver para fazer. Se não obedecer ao “Espírito”, ai da vida dele!

- Senhor, estou ficando com medo. Vamos!

Tomei o cão pela corda e a moça pela mão. Descemos o morro, e, como era natural, gastamos menos tempo. Quando atingimos o sopé, dobramos à direita, ao invés de tomarmos à esquerda de volta à choça. A moça conhecia tão bem a zona que me levou sempre em linha reta de modo que daí a quinze minutos nos achávamos na estrada que liga Lizan a Schohrd. Aí paramos e lhe disse:

- Conheço agora o caminho; podemos separar-nos. Quando vinha preso, fui conduzido por aqui: tomei boa nota da estrada. Muito obrigado, Ingdscha! Amanhã nos veremos de novo. Boa noite!

Ela pegou minha mão e a beijou leve e respeitosamente. Depois saiu quase voando, como uma pombinha inofensiva. Estive parado ainda por algum tempo e depois segui a estrada rumo a Lizan, mas com o pensamento voltado para... Schohrd!

Vencera eu, talvez, metade do caminho, quando diante de mim percebi o ruído de cascos de cavalo. Afastei-me para o lado e ocultei-me por trás dumas moitas, para não ser visto. O cavaleiro aproximou-se a galope e ia passando por mim. Era o Rais. Chamei-o:

- Bei Nedschir!

O alcaide de Schohrd parou o cavalo.

Desprendi a corda da coleira de Dojan, para que o cachorro tivesse os movimentos livres, caso eu necessitasse do seu auxílio, e acerquei-me depois do Rais.

- Quem és? - perguntou-me ele.

- O teu prisioneiro! - respondi-lhe, agarrando o cavalo pelo freio. Ele baixou-se no serigote e olhou-me na face. Tentou agarrar-me de chôfre. Mas fui mais ligeiro e detive-lhe o punho.

- Nedschir, acalma-te e ouve o que tenho a dizer-te! Vim a mandado do Ruh ‘i kulyan; é para tu o procurares imediatamente na caverna.

- Mentiroso! Quem te libertou?

- Queres obedecer ao chamado do “Espírito” ou não?

- Cão, eu te mato!

Dizendo isso, levou a cintura a mão que ainda tinha livre. Dei-lhe um empurrão tão violento que ele caiu longe, no solo!

- Dojan, pega!

O cão tomou conta dele, enquanto eu me esforçava para dominar o cavalo. Dojan jazia, de quatro patas sobre o seu corpo e segurava-o pela garganta.

- Nedschir, o menor movimento ou palavra por ti pronunciada custar-te-á a vida. Este cachorro é mais feroz que uma pantera. Vou amarrar-te e conduzir-te para Lizan. Se te opuseres a isso ou se me disseres uma só palavra, deixo que o cão te estraçalhe a garganta!

Vendo a morte diante de si, não opôs dificuldade a que eu o amarrasse, da mesma forma que a mim havia amarrado. Deixei, porém, as pernas livres para que ele pudesse caminhar. Liguei uma corda à amarra-dura do tronco e dos braços e prendi a outra extremidade ao serigote.

Montei depois no seu cavalo e levei o famoso Bei pela frente. Ele caminhava sem hesitar.

- Quem te libertou? - perguntou-me raivosamente depois de algum tempo.

- Saberás mais tarde!

- Para onde me conduzes?

- Também saberás mais tarde!

- Vou mandar chicotear Madana! - rosnou o homem.

- Não mandarás, não! Onde estão minhas armas e tudo o mais que me tiraste?

- Nada está em meu poder.

- Hei de achar todas as minhas coisas. Mas me diz uma coisa, Nedschir: não tens um cavalo melhor que este?

- Tenho muitos cavalos, fica sabendo!

- Era exatamente o que desejava ouvir. Amanhã vou então escolher um deles para substituir o que eu montava hoje e que mandaste matar.

- O Sheitan há de fornecer-te um cavalo em substituição àquele! Amanhã a esta hora serás novamente meu prisioneiro!

- Veremos!

 

NOVAMENTE EM LIZAN

Continuamos em silêncio, pois o Nedschir não deu mais expansão à sua raiva. O Rais ia à minha frente e o cachorro caminhava rente com ele como que a escoltá-lo. Daí a pouco, avistamos Lizan. Durante a minha ausência, a aldeia se transformara num acampamento de exército. Do outro lado do Zab a escuridão era densa, mas na margem de cá ardiam numerosas fogueiras, ao redor das quais se achavam os homens, uns de pé, outros sentados. De longe parecia-me que a maior fogueira era a que ardia defronte à casa do Melek. Para não demorar mais, fiz o cavalo trotar, obrigando assim o prisioneiro a um puxado exercício de corrida. Não tardamos em alcançar as primeiras fogueiras.

- O Emir do Ocidente, o Emir do Ocidente! - ressoava nas fogueiras. Ou então: - Olha o Nedschir, olha o Nedschir!

Daí a pouco éramos acompanhados por numerosos caldeus e assim chegamos à casa do Melek. Lá se achavam no mínimo uns sessenta homens armados. O primeiro a quem reconheci foi sir David Lindsay. Quando me viu, sua fisionomia iluminou-se. Veio correndo a meu encontro e no momento em que eu apeava envolveu-me num amplo e fraternal abraço!

- My dear Mister! - bradou o inglês na maior expansão de alegria. - Já de volta! Well come! Hail, hail, hail!

- Não me quebre todos os ossos com este seu abraço de tamanduá, sir David! - disse-lhe eu rindo. - Os outros também querem alguns ossos para quebrar!

- Eh! Oh! Ah! Onde esteve metido? Como se foi, hein? Libertou-se sozinho? Lucky day, trouxe um prisioneiro! Incompreensível tudo isso! Yes!

Daí a pouco fui atacado pelo outro lado.

- Allah illa Allah! Estás de volta, Efêndi! Graças a Alá e ao Profeta! Agora hás de nos contar tudo que te sucedeu!

Era Maomé Emin que assim exclamava. Amad el Ghandur, seu filho, que se achava do lado bradou:

- Wallahi, isso foi desígnio de Deus! Agora está removido o principal perigo! Sídi, estende-nos a mão!

Meio afastado do grupo, se achava parado o pequeno Hadschi Halef Omar. Não dizia uma palavra, mas dos olhos lhes saltavam duas lágrimas de alegria. Estendi-lhe também a mão.

- Halef, a ti é que devo em grande parte a minha liberdade!

- Cala-te, Sídi! Quem sou eu comparado a ti! Um rato, um cão, mas um cão fiel que se sente feliz quando o distingues com um olhar!

- Onde está o Melek?

- Em casa.

- E o Bei?

- Numa sala fechada, pois agora é o refém.

- Vamos procurá-lo!

Estávamos cercados por uma enorme multidão de caldeus. Desprendi o Rais do serigote e fiz-lhe sinal que me acompanhasse.

- Não hás de conduzir-me para dentro de casa! - trovejou-me o alcaide de Schohrd.

- Dojan, atenção!

Esta advertência foi o suficiente. Segurando uma das extremidades da corda que prendia o Rais, toquei-o para diante, casa a dentro. Lá fora ouvia-se um murmúrio geral. Todos estavam curiosos por saber o que realmente acontecera. Quando entramos em casa, o Melek nos veio ao encontro. Ao me ver, estendeu-me a mão, exclamando cheio de alegria:

- Emir, que vejo! Tu novamente de volta? São e salvo? E... ali o Nedschir, como prisioneiro!

- Sim, entremos e esclareçamos a situação!

Passamos para o compartimento maior do andar térreo, onde havia lugar para todos nós. Sentamo-nos nas esteiras, ao passo que o Rais teve que permanecer de pé. A ponta da corda que o prendia, estava agora presa aos dentes de Dojan. A cada movimento do prisioneiro, o cão soltava latidos ameaçadores.

- Como caí nas mãos do Rais de Schohrd e como lá fui tratado já devem ter sabido por intermédio de Halef - disse eu aos companheiros e ao Melek.

- Sabemos, sim - ecoou na roda.

- Então não preciso repisar o assunto e...

- Como não, Emir? Desejamos ouvir tudo de teus próprios lábios! - interrompeu-me o Melek.

- Mais tarde. Agora não há tempo para isso, pois temos assuntos urgentes a tratar.

- Como te libertaste e como prendeste o Rais?

- Também mais tarde contarei pormenorizadamente tudo isso. O Rais incitou todos os guerreiros das localidades circunjacentes para atacar amanhã cedo o vale de Berwari. Isso seria a ruína certa dos caldanis e além disso...

- Não seria, não - ouviu-se uma voz dizer.

- Não discutamos sobre este ponto! Só mesmo o Ruh ‘i kulyan é capaz de acabar com esta situação perigosa e salvar os caldanis.

- O Ruh ‘i kulyan! - ecoaram vozes de admiração e espanto.

- Sim, fui ter com ele.

- Conhecias a caverna? - perguntou o Melek.

- Encontrei-a e narrei ao “Espírito” tudo o que se estava passando. Ele ouviu-me com toda a atenção e depois pediu-me para...

- O “Espírito” falou contigo? Ouviste-lhe a voz? Emir, nenhum mortal até agora conseguiu isso! - exclamou um dos caldeus que conosco ali entrara de roldão. - Deves ser então um favorito de Deus e temos que obedecer à tua voz!

- Se me ouvirem, só terão proveito com isso. Será a salvação de vocês!

- Que te disse o “Espírito da Caverna”?

- Pediu-me que partisse imediatamente e chamasse o Melek de Lizan, o Bei de Gumri e o Rais de Schohrd à sua presença.

Um estridente “Ah!” ressoou por toda a sala. Continuei:

- Desci então apressadamente o morro e depois me encontrei com este Rais. Transmiti-lhe o recado do Ruh ‘i kulyan e como ele se negasse a obedecer ao chamado do “Espírito”, aprisionei-o e o trouxe para aqui. Tragam o Bei para esta sala para que possa transmitir-lhe o recado! O Melek levantou-se e perguntou-me:

- Emir, não estás a caçoar conosco?

- Trata-se de um assunto demasiadamente sério para com ele se fazer chistes!

- Neste caso, temos que atender ao chamado. Mas não será perigoso levarmos o Bei conosco? Se ele nos fugir, ficaremos sem refém.

- Ele terá que fazer a promessa de não fugir e cumprirá depois a sua palavra.

- Vou trazê-lo para cá.

O Melek saiu para em seguida voltar na companhia do Bei. Quando o regente de Gumri me avistou, correu-me ao encontro.

- Estás de novo aqui, senhor! - exclamou. - Alochem d’Allah! Graças a Deus e a ti estou são e salvo. Recebi com grande aflição a notícia do teu aprisionamento, pois todas as minhas esperanças estavam concentradas em ti.

- Também pensei sempre em ti apreensivamente - respondi-lhe. - Eu sabia quanto tu desejavas a minha liberdade e Alá veio ao encontro dos teus desejos, arrancando-me ao poder do inimigo e conduzindo-me novamente ao teu lado.

- Quem foi o teu inimigo? Este aí?

- Exatamente este.

- Que Alá faça descer a ruína sobre ele e os seus filhos, bem como sobre os filhos dos seus filhos! Não eras amigo desta gente assim como eras meu amigo? Não dirigiste as negociações visando o bem desta gente? E em paga de tudo isso, ele mandou armar-te uma emboscada e aprisionar-te! Vê agora o que tens a esperar da amizade de um nasarah?

- Em toda parte há bons e maus, tanto entre muçulmanos como entre os cristãos, Bei; por isso os bons nunca devem pagar pelos maus.

- Emir, - redarguiu o Bei - eu te estimo. Conseguiste abrandar-me a ponto de já me achar inclinado a firmar uma paz com esta gente. Agora, porém, que tão infamemente procederam contigo, as armas é que resolverão a situação.

- Não te esqueças de que és prisioneiro! - ponderei-lhe.

- Os meus berwaris virão libertar-me! - respondeu com orgulho.

- Já estão aí, mas são numericamente inferiores aos nasarahs.

- Por trás destes, mais alguns milhares estão preparados para a luta.

- E se estes vierem, será a tua ruína, pois te encontrarão já morto. Estás aqui como refém e com a tua vida pagarás qualquer agressão dos teus contra os nasarahs.

- Ainda que eu morra! Alá já lançou nas escrituras o destino dos crentes. Ninguém é capaz de modificar o seu Kismet.

- Mas lembra-te de que o Melek é meu hospedeiro! Ele não queria que me sucedesse nenhum mal e foi apenas o Rais que, contra o desejo de todos, procedeu hostilmente comigo.

- De que modo fugiste?

- Pergunta-o a Ruh ‘i kulyan!

- A Ruh ‘i kulyan? - exclamou pasmado. - Ele esteve contigo?

- Não; eu é que estive com ele, e te manda dizer para tu o procurares imediatamente.

- Imediatamente?

- Sim, sem mais demora.

- Senhor, estás caçoando comigo! O Ruh ‘i kulyan é um “Espírito” poderoso e violento e eu perto dele não passo de um mísero Oelidschi, que treme diante do invisível.

- Aquele espírito não é invisível.

- Viste-o então?

- Vi-o e com ele falei.

- E não tombaste logo morto?

- Como vês, ainda vivo!

- Sim, os Emires de Frankistão chegam até a falar com os espíritos!

- Não há aqui tanta gente que já falou com o Ruh ‘i kulyan? E no entanto ninguém ainda tombou morto na sua caverna.

- Falaram com ele, sim; mas ninguém ainda o viu.

- E nem eu estou dizendo que vais vê-lo. Ele apenas ordenou que tu, o Melek e o Bei Nedschir fossem procurá-lo com a máxima urgência Pretendes por ventura desobedecer a esta ordem? O Melek já concordou em procurá-lo na caverna.

- Então irei também.

- Tinha certeza que procederias assim. Mas com isso não te esquecerás de que és prisioneiro do Melek?

- Pensa ele que tentarei fugir?

- Ele precisa proceder com cautela. Prometes-lhe não fugir e voltar espontaneamente para Lizan?

- Dou-te minha palavra que o farei!

- Estende-lhe a mão!

O Bei obedeceu-me; o Melek correspondeu ao aperto de mão e disse com toda a cortesia e urbanidade:

- Bei, tenho confiança em ti e não mandarei vigiar-te, pois tua pessoa, neste momento, tem para mim mais importância do que o maior tesouro. Iremos a cavalo e tu nos acompanharás como um homem livre!

- A cavalo! - perguntei-lhe. - Não é isso impossível por causa do caminho acidentado?

- Há um outro caminho, mais longo, mas pelo qual se pode chegar a cavalo até a caverna. Demanda menos tempo do que se galgássemos o morro a pé. Irás conosco, Senhor?

- Sim, embora me tenha sido proibido acompanhá-los até o interior da caverna.

- E que será então do Bei Nedschir?

O Rais nem esperou pela minha resposta e disse arrogantemente:

- Eu não irei; fico aqui!

- Mas não ouviste o que o Ruh ‘i kulyan ordena? - perguntou-lhe o Melek.

- Não tenho a menor obrigação de obedecer a este sujeito aí!

- Então não obedeces ao “Espírito”?

- Obedeço, sim, mas não quando me manda chamar por intermédio deste indivíduo!

- Mas ordeno-te que obedeças mesmo assim!

- Melek, sou Bei Nedschir, Rais de Schohrd: não tens nada que me ordenar!

O Bei olhou-me interrogativamente, por isso me dirigi a Halef:

- Halef Omar, não viste se há cordas por aqui?

- Oh! Olhe para aquele canto; ali há cordas em abundância! - respondeu o meu criado.

- Traze-me algumas delas!

O minúsculo Hadschi compreendeu o meu propósito. Deu um encontrão nas costelas do Rais, que lhe estava no caminho, e foi buscar algumas cordas feitas com palhas de tamareira. Eu, porém, declarei ao Melek:

- Se ele não quiser ir por bem, irá por mal. Ele será amarrado ao cavalo de modo que não possa mover-se.

- Experimenta! - trovejou Nedschir. - Farei de ti o que fizeste do marido de Madana, quando ele foi procurar-te na prisão.

- Que disse este sujeito? - perguntou Halef.

- Como pretendemos amarrá-lo ao corcel, ele disse que derrubaria a ponta-pés todo aquele que se aproximasse dele.

- Maschallah! Este homem está louco!

Dizendo isso, o homenzinho deu um salto e no mesmo instante o hercúleo caldeu jazia no solo, subjugado. Daí a minutos o Rais estava amarrado de tal modo, que seu corpo parecia metido dentro de um estojo.

- Mas, Halef, assim também não! O homem terá que cavalgar!

- Não é preciso que ele governe a montaria, Sídi. Será amarrado ao cavalo de barriga para baixo. Assim ele fará alguns exercícios de natação em seco!

- Está bem! Leva-o para fora!

O minúsculo Halef agarrou o gigante pela gola, levantou-o de modo que ficasse apoiado às costas e o arrastou para a rua. Os demais caldeus o acompanharam. Em seguida, o inglês acercou-se de mim.

- Mister, não entendi coisa alguma, nothing. Aonde pretendem ir agora?

- À presença do “Espírito da Caverna”.

- “Espírito da Caverna”? Thunder-storm! Posso ir junto?

- Acho que não!

- Não comerei o tal “Espírito”.

- Acredito!

- Onde mora ele?

- Lá em cima nos penedos.

- Penedos? Há ruínas por lá?

- Não sei. Quando estive lá já era noite alta.

- Penedos! Caverna! Espírito! E talvez também Fowling-bulls?

- Dificilmente.

- Contudo irei junto! Estive aqui tanto tempo só. Ninguém me entende. Estou satisfeito por tê-lo de novo aqui. Leve-me junto!

- Pois sim; mas nada verás na caverna!

- Desagreable, uncivil! Gostaria de ver um espírito... espírito ou fantasma! Vou junto, sim! Yes!

 

ATENDENDO AO CHAMADO DO “ESPÍRITO”

Ao sairmos, toda a população de Lizan estava diante da casa. Embora fosse grande a aglomeração, reinava o maior silêncio. Todos viram à luz dos archotes que amarrávamos o Rais ao cavalo. Mas ninguém se moveu do lugar, para impedir ou perguntar por que fazíamos aquilo. Trouxeram os nossos cavalos e os archotes para iluminarmos o caminho. Só depois de estarmos montados, é que o Melek declarou ao povo que nos dirigíamos ao morro do Ruh ‘i kulyan. Ordenou que durante a sua ausência nada fizessem e depois partimos, deixando toda aquela gente boquiaberta.

À frente cavalgava o Melek na companhia do Bei, seguido de Halef que trazia pelo cabresto o cavalo ao qual se achava amarrado o Rais. Eu e o inglês fechávamos a comitiva. O Melek e o Bei conduziam os archotes. Assim, dois a dois, chegamos ao morro.

- Fúnebre é aquilo! Yes! Sozinho nem por nada entraria eu naquela caverna! - disse o inglês à meia voz. Quando veio aqui estava sozinho, sir?

- Não.

- Não? Quem o acompanhou?

- Uma senhorita.

- A maid! Good luck! Jovem?

- Muito jovem.

- Bonita?

- Lindíssima.

- Interessante?

- Claro! Mais interessante que um Fowling-bull.

- Heavens, como o senhor é de sorte! Conte-me tudo.

- Mais tarde, sir. Amanhã a verá também.

- Well! Direi depois se realmente é ela mais interessante que um Fowling-bull. Yes!

Demos por encerrado o diálogo. Um silêncio sepulcral e as trevas da noite envolviam o morro.

- Atingimos o nosso objetivo - disse-me o Melek. - Naqueles penedos é que fica a caverna. Apeiemos e deixemos aqui os nossos cavalos. Vais conosco?

- Vou por causa do Rais, mas apenas até a caverna. Nela não entrarei. Apaguem os archotes.

Depois de havermos desprendido o Rais do cavalo, amarramos os cavalos a um tronco de árvore, deixando-os entregues à vigilância de Lindsay e Halef. Para que Nedschir pudesse caminhar, tiramos-lhe as cordas das pernas. Ao fazermos isso, Dojan dirigia tais olhos ao Rais, que mesmo no escuro eram de se temer. Possuíam o mesmo brilho fosforescente de uma tintureira, quando esta, à noite, sobe à tona dágua,

- Rais, tu acompanharás o Melek e o Bei. Eu irei atrás de ti. Se titubeares, entrarás em contato direto com as presas do cachorro!

Dito isso, fiz sinal para nos dirigirmos à caverna. O Rais nos acompanhou sem opor a menor desistência. Ao chegarmos ao local onde Ingdscha me esperara, disse-lhes eu:

- Agora entrem na caverna e continuem em linha reta até encontrarem um compartimento iluminado.

A julgar pela profunda inspiração que tomavam, os homens não pareciam lá muito destemerosos em face daquela visita.

- Emir, desamarra-me o braço! - pediu-me o Rais. Admirei-me do tom de amabilidade com que me fizera tal pedido.

- Não te arrisques - disse-lhe.

- Não fugirei, não, Emir! Vou junto até o interior da caverna!

- Doem-te as ligaduras?

- Muito!

- Tu mandaste amarrar-me do mesmo modo e eu tive que suportar as dores por muito mais tempo. Não obstante, porém, vou afrouxar-te as cordas, mas não tenho lá muita confiança na tua palavra.

Ele calou-se. Portanto tinha razão em desconfiar.

Os dois governantes se postaram de cada lado do Rais.

- Senhor, ficas aqui? - perguntou o Melek.

- Como já te disse, sim.

- É melhor, pois é bem possível que o Rais nos obrigue a pedir tua ajuda.

- Vão, que daqui estarei de olho nele!

Os homens se encaminharam para a caverna e eu me sentei sobre uma pedra. O cão percebera de tal modo a minha idéia que acompanhou ainda o Rais, até que o fiz voltar. Sentou-se depois junto de mim, pondo a cabeça sobre o meu joelho para eu acariciá-la.

Assim estive durante muito tempo na companhia de Dojan. Os pensamentos, céleres, atravessavam montanhas e vales, rios e mares até a pátria. Quantos exploradores tudo dariam para estar no lugar em que agora me encontrava! Como Deus me havia guiado e protegido até hoje nas minhas múltiplas e arriscadas jornadas! Quantas e quantas bem equipadas expedições já não haviam percebido às investidas de povos semi-selvagens entre os quais eu encontrava, no entanto, amável acolhida! Como se explicava isso? Quantos livros eu já lera sobre países e povos, cuja leitura me dera idéias erradas e injustas a seu respeito. Verifiquei que muitos países, povos e tribos não eram tão bárbaros, conforme diziam os livros! A flâmula do Bem que Deus sopra no homem jamais se apaga de todo e mesmo os povos selvagens respeitam um estranho quando vêem que este os respeita também. Naturalmente toda regra tem a sua exceção. Quem semeia amor, amor colherá, seja entre os esquimaus, ainos ou papuas, seja entre os botocudos. É verdade que eu não saíra ileso de minhas excursões, e muitas cicatrizes que tinha no corpo eram testemunhas irrefutáveis disso. Mas tal acontecera porque eu jornadeava como “aprendiz de explorador de regiões incultas” e assim não poderia escapar à regra geral. Os aprendizes de sapateiro não recebem muitas vezes como gorjeta, palavras ásperas e taponas, da freguesia que atendem? Pois idêntico era o meu caso. Cavacos do ofício! Pudera ser eu um pioneiro da civilização e do cristianismo! Jamais haveria de oprimir os meus irmãos de países incultos, que afinal são filhos de Deus, e como nós, orgulhosos e egoístas.

 

UMA PALAVRA QUE VALE POR UM ORÁCULO

Decorrera já mais de uma hora e eu ainda ali me achava sozinho. Já estava quase receando que algo houvesse sucedido aos homens no interior da caverna e pensava na melhor maneira de socorrê-los, quando os vi saindo do penedo.

Levantei-me. Haviam tirado as algemas do Rais.

- Tiveste que esperar muito por nós! - disse o Melek em tom de escusa.

- Eu já estava receando pela sorte de vocês - respondi-lhe. - Dispunha-me a ir em seu auxílio.

- Não seria necessário, Senhor! Vimos o Ruh ‘i kulyan e com ele falamos.

- Viram-no?

- Sim. Era a... Dize tu primeiro o seu nome!

- Marah Durimeh?

- Sim, Emir. Quem o diria!

- Eu! De há muito que supunha tal. Que resolveram com ela?

- É segredo que saberemos guardar até o túmulo. Senhor, aquela mulher é uma célebre Meleka, e o que ela nos disse predispôs-nos à pacificação. A partir de hoje, os berwaris são nossos amigos e hóspedes de honra e, nesse caráter, é que sairão de Lizan.

- Foi isso realmente o que ficou assentado?! - exclamei visivelmente satisfeito.

- Foi, sim! - acudiu o Bei de Gumri. - E sabes a quem devemos agradecer esse feliz desfecho?

- Claro. A Ruh ‘i kulyan.

- Sim, mas também a ti, Emir. A velha rainha ordenou-nos que fôssemos teu amigo o que, aliás, já éramos antes. Peço-te que fiques neste país como meu irmão ou, aliás, como irmão de nós todos indistintamente, tanto dos curdos como dos caldanis!

- Muito te agradeço! Mas também amo o país dos meus antepassados, no qual vi a luz do dia. Ao lado deles desejo ser sepultado quando a minha alma deixar este mundo. Contudo prometo demorar-me neste lindo país na companhia de meus companheiros, tanto quanto me permitir o tempo de que ainda disponho. Marah Durimeh continuará sendo o “Espírito da Caverna”, embora lhes tenha revelado a sua identidade?

- Sim, porque, com exceção de nós, ninguém saberá jamais que ela é o Ruh ‘i kulyan. Juramos-lhe guardar segredo até a morte. Também não revelarás isso a ninguém?

- Saberei guardar religiosamente sigilo sobre isso.

- Ela te visitará amanhã à tarde em minha casa, pois estima-te tanto como se fosses seu filho ou neto - observou o Melek. Bem, agora vamos-nos embora.

- E os caldanis convocados por Nedschir - perguntei precipitadamente, pois queria retirar-me a coberto de qualquer perigo futuro.

A essas palavras, o Rais acercou-se de mim, estendendo-me a mão.

- Senhor, sê também meu amigo e irmão e me perdoa tudo! Eu. estava em caminho errado, do qual prazerosamente me afasto agora. Receberás tudo que te apreendi e imediatamente irei ao local em que se acha reunida minha gente para lhe dizer que reina paz entre os curdos e caldanis.

- Bei Nedschir, aqui tens minha mão. Perdôo-te de todo o coração. Queres saber quem me libertou da tua prisão?

- Já sei quem foi. Marah Durime contou-me tudo. Foi Madana e Ingdscha e esta depois te levou à presença do Ruh ‘i kulyan.

- Estás zangado com elas?

- Eu me teria zangado, sim, e as castigaria severamente. Mas as palavras da velha Meleka me convenceram de que as duas procederam muito bem. Deixa que eu também te vá visitar!

- Peço-te que vás! Bem, mas agora vamos, irmãos! Os meus dois companheiros que lá ficaram guardando os cavalos, já devem estar apreensivos por nossa causa.

Saímos do local e voltamos para junto de nossas montarias e lá encontramos realmente Halef e o inglês preocupados com a nossa demora.

- Onde ficou tanto tempo? - foi logo perguntando mister Lindsay. Quase saí em seu socorro, para matar aquele Holeghost!

- Obrigado pelo interesse. Mas como o senhor vê, não é mais necessário esse feito épico de sua parte, sir!

- Mas que aconteceu lá?

- Mais tarde, mais tarde. Agora, porém, vamos partir. Halef tomou-me pelo braço.

- Sídi, - disse-me ele ao ouvido - aquele já não está mais nas cordas!

- O “Espírito das Cavernas” o libertou, Halef.

- Neste caso aquele Ruh ‘i kulyan é um espírito muito imprudente. Sídi, vamos amarrá-lo imediatamente!

- Não. Ele pediu-me perdão de tudo e eu o perdoei de boa mente.

- Sídi, és tão imprudente quanto o “Espírito”! Mas eu saberei proceder com mais cautela. Sou Hadschi Halef Omar e não lhe perdôo coisa alguma!

- Nada tens que perdoar-lhe!

- Não?! - perguntou o homenzinho pasmado. - Pois fica sabendo que tenho e muito!

- Por quê?

- O homem te agrediu, a ti de quem sou amigo e protetor, e isso constitui ainda mais grave ofensa do que se me tivesse agredido a mim próprio! Se ele quiser que eu o perdoe, que venha cá pedir-me perdão. Não sou nem turco, nem curdo e nem nasarah, mas um Radschul el arab que não deixa que ofendam o seu Sídi! Dize-lhe isso!

- Talvez eu tenha ainda oportunidade para lhe transmitir as tuas palavras. Agora, porém, o momento não é próprio. Monta a cavalo! Os outros já montaram. Vamos!

O Melek acendeu novos archotes e empreendemos imediatamente  a viagem de regresso. Não voltamos silenciosos como tínhamos vindo. Todos conversavam amistosamente, apenas eu me conservava calado.

Aquela visita ao morro dera-me muito que pensar. Que poder era aquele que Marah Durimeh possuía sobre o Melek e o Bei? O fato de “haver ela sido rainha não justificava uma tão grande influência. Mais do que isso seria preciso para conciliar dois inimigos tão inflexíveis, de origem étnica e de religião tão diversas. E tanto mais era ainda de admirar que ela tivesse transformado o violento e selvagem Bei Nedschir num homem cordato e amável. E por que tudo aquilo deveria ficar em segredo para mim? Aquela Marah Durimeh não só era uma criatura misteriosa, mas além disso, um invulgar, um extraordinário caráter! Que fascinante tema para o homem que anda pelo mundo em busca de dados interessantes para a sua pena! Confesso que o mistério que envolvia aquela personalidade, passara a interessar-me mais do que a questão entre os curdos e caldeus.

Ao avistarmos novamente as fogueiras de Lizan, o Bei Nedschir nos disse:

- Agora tenho que me separar de vocês.

- Por quê? - perguntou-lhe o Melek.

- Vou ao local onde se acha concentrada a minha gente, para dizer-lhe que reina paz entre curdos e caldanis; se não me apressar, ela pode impacientar-se e invadir Lizan a qualquer hora.

- Então vai depressa!

Ele se separou de nós dobrando à direita; dentro de dez minutos estávamos em Lizan. Os homens nos receberam com fisionomias cheias de curiosidade. O Melek reuniu-os e, erguendo-se na sela, comunicou-lhe haverem cessado todas as hostilidades de ambas as partes, porque assim o ordenara o Ruh ‘i kulyan.

- E deixaremos os berwaris à espera até amanhã? - perguntei-lhe.

- Não, Senhor! A auspiciosa notícia deve ser-lhes transmitida imediatamente.

- Quem será o emissário?

- Eu - respondeu o Bei. - Não acreditarão tão facilmente noutro. Irás comigo, Senhor?

- Irei, sim. - concordei - Mas espera apenas mais um instante. Perguntei ao caldeu que me estava mais próximo:

- Conheces a estrada para Schohrd?

- Conheço, Emir.

- Mas tão bem que possas chegar lá mesmo em noite escura?

- Sim, Emir.

- Conheces Ingdscha, a filha do Rais?

- Muito.

- E também uma senhora chamada Madana?

- Conheço-a também.

- Então pega um cavalo e vai lá. Dize-lhes que podem dormir tranqüilamente, pois foi firmada a paz. Dize-lhes ainda que o Rais se tornou meu amigo e que não está zangado por me haverem dado liberdade.

Senti-me no dever de mandar às duas bravas mulheres a notícia do feliz desfecho da contenda; era fácil de imaginar quanto não deviam estar receosas pelo que lhes sucederia quando o Rais desse pela minha evasão. Depois de dar o recado, reuni-me ao Bei de Gumri. Já havíamos tocado os cavalos, quando o Melek ainda nos disse em voz alta:

- Tragam os berwaris para cá! Serão nossos hóspedes de honra! Cavalgamos a galope e já vencêramos metade do caminho quando ouvimos uma voz:

- Quem vem lá?

- Amigos, de paz! - respondeu o Bei.

- Digam os nomes!

Naquele momento o Bei reconheceu a voz da sentinela.

- Tranqüiliza-te, Talaf; sou eu!

- Senhor, és tu em pessoa! Schuekr’ Allah! - Graças a Deus que de longe reconheci tua voz! Conseguiste fugir da prisão?

- Não fugi, não. Onde estão acampados?

- Cavalga por aqui em linha reta e logo avistarás as fogueiras.

- Guia-nos até lá!

- Não devo, Senhor!

- Por que não?

- Sou sentinela e só abandonaria meu posto, depois de substituído.

- Quem comanda a tua tropa?

- Ainda o Rais de Dalascha.

- Escolheste então um condutor extraordinariamente inteligente e atilado. Mas agora sou novamente teu comandante e só a mim deves obedecer. As sentinelas tornaram-se agora dispensáveis, dado o novo rumo que tomaram as coisas. Vem, guia-nos!

O homem fêz ombro-armas e saiu caminhando à frente. Em seguida avistamos as chamas das fogueiras por entre as árvores e minutos depois chegávamos ao acampamento que ficava no mesmo local em que na véspera se realizara o conselho deliberativo.

- O Bei! - ouviam-se todos exclamarem.

Os soldados se levantaram para cumprimentar o seu governante com expansões de alegria. Também fui cercado e saudado com cordialíssimos apertos de mão. Apenas o que fora até então comandante conservava-se à distância e de fisionomia anuviada, observando a cena. Percebeu que seu poder findara. Finalmente, resolveu aproximar-se e estendeu a mão ao Bei.

- Bem-vindo, Senhor! - disse o Agha. - Conseguiste fugir?

- Não; fui libertado espontaneamente.

- Bei, é o maior milagre que já vi.

- Não é milagre algum. Firmei a paz com os caldeus.

- Procedeste precipitadamente! Expedi emissários a Gumri e amanhã cedo aqui estarão centenas de curdos pára reforçar nossas fileiras.

- Neste caso, fôste tu que agiste precipitademente. Não sabias que este Emir seguira para Lizan, com o fim de tratar da paz?

- Sim, mas ele havia sido assaltado e preso.

- Mas soubeste depois que não fora o Melek quem mandara assaltá-lo e prendê-lo!

- Quais as compensações que receberás dos caldeus pela paz?

- Nenhuma.

- Nenhuma? Oh! Bei, procedeste de modo lamentável. Então eles não te assaltaram de emboscada, matando muitos dos nossos?! Não existe mais a lei da vindita de sangue ou, em lugar dela, não exiges uma indenização em dinheiro ou espécie?

O Bei olhava-o na cara com um sorriso sardônico.

- És o Rais de Dalascha, não é assim? - perguntou-lhe depois em tom amável.

- Claro! - respondeu o Rais admirado.

- E a mim deves conhecer bem, não é?

- Por que não haveria de te conhecer?

- Então dize-me quem eu sou!

- O Bei de Gumri, sem dúvida!

- Perfeitamente! Queria apenas ver se estavas enganado, pois, pelo jeito, parecias haver perdido a memória. E que achas que fará o Bei ao homem que o chama de imprudente diante de tantos guerreiros?

- Senhor, queres premiar os meus serviços com ingratidão?

Agora, sim, o Bei mudou de tom.

- Verme! - trovejou ele. - Queres proceder comigo como procedeste com este Emir de Frankistão? Ele te acalmou, aplicando-te merecido castigo. E queres então que eu te tema, quando um forasteiro não vacila em arrojar-te do cavalo e pisotear-te o corpo?! Que serviços me prestaste e quem te elevou às funções de comandante das tropas? Fui eu porventura? Fica sabendo que foi o Ruh ‘i kulyan quem nos ordenou firmar a paz; e como a voz do “Espírito” é toda pela paz, perdôo-te também. Mas ai de ti se censurares novamente meus atos e minhas palavras. Monta já a cavalo e vai a Gumri dizer aos berwaris que fiquem calmamente em seus lares! Se não me obedeceres cegamente e em seguida, amanhã estarei com os meus guerreiros em Dalascha e, em toda a região de Chal, saberão como o filho do Bei Abd-et Summit castiga um kiaja insolente. Raspa-te daqui para Gumri e já, escravo dos turcos!

O brilho do olhar do Bei e a sua entonação de voz amedrontaram de tal modo o Rais de Dalascha, que este, sem dizer uma só palavra, montou a cavalo e se foi. O Bei dirigiu-se depois aos demais e ordenou:

- Recolham as sentinelas e patrulhas e venham todos para Lizan na minha companhia. Lá serão hospedados pelos nossos amigos, os caldeus!

Vários soldados saíram em busca das sentinelas e patrulhas, enquanto os demais apagavam as fogueiras. Sem a menor interpelação, sem o mínimo gesto de recusa, daí a dez minutos deixávamos a clareira rumo a Lizan.

 

DEPOIS DA PAZ

Ao chegarmos, a aldeia estava em festa. Enormes montes de lenha foram feitos para aumentar as fogueiras; numerosos caldeus ocupavam-se em matar carneiros e até já haviam abatido duas reses gordas, das quais tiravam o couro para depois carnear. Todas as Uejaetasch da aldeia foram trazidas para o local, a fim de nelas assarem a carne, prato principal da refeição com o qual os curdos iam ser recepcionados. Numerosas mulheres e moças se ocupavam em transformar os grãos de trigo em farinha, com a qual fabricariam o pão. Todos se achavam dispostos numa extensa linha e o aspecto era agora bem diverso daquele que eu observara antes de partir.

Os ex-inimigos foram saudados, pelos caldeus, com sinceridade embora com um pouco de acanhamento. Por seu lado, os curdos se reuniram aos caldeus, um tanto desconfiados. Mas nem decorrera um quarto de hora, todos já palestravam cordialmente e via-se que a paz fora de fato sincera. Falavam entusiasmados no Ruh ‘i kulyan que transformara, em paz e alegria, a guerra hedionda e sangrenta.

Nós, estávamos como convivas de honra, inclusive o Bei de Gumri, sentados no terraço da casa do Melek e no decorrer do banquete comentávamos, com toda a cordialidade e às vezes até com gracejos inofensivos, os últimos acontecimentos. Naturalmente que o meu valente Halef tomava parte na refeição e ele também demonstrava a grande alegria que sentia pelo feliz desfecho das hostilidades. Já alvorecia, quando me dirigi a um quarto que me fora indicado, para dormir um pouco e refazer-me das fadigas desses últimos dias cheios de agitação e perigo.

Quando me acordei, ouvi embaixo a voz do Rais de Schohrd. Desci e fui recebido por ele entre expansões de júbilo. Trouxera-me o que me havia tomado; não faltava o menor objeto. Apesar disso, o Rais declarou que estava pronto a dar-me qualquer satisfação e fazer qualquer reparação que porventura eu exigisse. Naturalmente não exigi coisa alguma. Fiquei satisfeito por ele reconhecer o mal que me fizera, a ponto de se dispor a repará-lo. Tal gesto muito o elevava agora no meu conceito.

Diante da casa palestravam como bons amigos curdos e caldeus. Outros dormiam, envoltos em cobertores.

Daí a pouco avistei a alguma distância, dois vultos femininos que chegavam. Levei a mão aos olhos em forma de pala e reconheci Madana e Ingdscha. Ao se aproximarem mais de nós, verifiquei que a “condimentosa salsa” vestia seu traje domingueiro. Usava um chapéu de abas largas com a copa formada de penas de pássaros multicores. Em lugar de sapatos, trazia aos pés dois pedaços de pano, cuja côr não se distinguia bem, mas que deveriam ter sido vermelhos. Da cintura para baixo enrolava-se num tapete multicor à guisa de vestido. O tapete era preso por uma faixa de pano, que se assemelhava a um esfregão de cozinha. O busto era enrolado por uma peça de vestuário, cujo feitio nem a mais imaginosa modista seria capaz de inventar. Era uma verdadeira colcha de retalhos. Por entre aquele tapete e a blusa multicor aparecia a ponta da camisola. Mas que era aquilo? Tecido ou couro? Oh! “Salsa”, não há tanta água no Zab, fiel libertadora de um Emir do Germanistão?

Ingdscha, a seu lado, formava um flagrante contraste. Sua basta e densa cabeleira caía-lhe em duas adoráveis trancas pelos ombros. À cabeça usava um lenço encarnado amarrado com elegância; trazia uma saia branca e uma blusa tipo túnica. Um manto solto cobria-lhe todo aquele traje até o tornozelo; calçava lindos sapatos de cano alto.

Ao se aproximarem, Ingdscha avistou-me e corou tornando-se ainda mais formoso o seu rostinho oriental de cútis bronzeada. A “Salsa” porém, quase correndo veio ao meu encontro; ao chegar à minha frente levou a mão ao peito e forçou de tal modo uma inclinação que tocou com a cabeça nos joelhos.

- Sabahh ‘l ker! Bom dia, Senhor! - saudou-me ela. - Querias ver-nos hoje e aqui estamos!

Era uma saudação lacônica, quase que ao sistema militar.

- Sejam bem-vindas e entrem. Quero que os meus companheiros conheçam as damas a quem devo minha salvação.

- Senhor, - disse-me Ingdscha - mandaste-nos um emissário; muito te agradecemos por teres feito isso, pois realmente já estávamos aflitas.

- Já viste o teu pai, depois que nos separamos?

- Não. Desde ontem que não veio mais para Schohrd.

- Ele está aqui. Entrem!

Na porta elas se encontraram com o Rais que ia saindo. Ao avistar-se com a filha, ele fêz uma fisionomia até certo ponto de espanto. Perguntou-lhe, porém, com muita amabilidade:

- Procuras-me?

- Sim, há guerra e desde ontem que não te víamos.

- Não tenhas receio. Já cessaram as hostilidades. Vai ter com a esposa do Melek. Não tenho tempo para te atender.

Depois disso, o alcaide de Schohrd saiu para o descampado, montou a cavalo e se retirou. Subi com as duas damas para a sotéia.

- Heigh-day, quem nos trazes aí? - exclamou Lindsay.

Ofereci o braço às duas damas e as levei à sua presença.

- Eis as duas damas que me salvaram da caverna dos leões, sir! - declarei-lhe. - Aqui te apresento Ingdscha, a “pérola”, e Madana, a “Salsa”.

- “Salsa”? Hum! não gosto desse tempero. Mas a “Pérola” é admiravelmente linda! As duas são bravas mulheres! Yes! Vou oferecer-lhes um presente, pagarei bem! Well!

Também os demais companheiros ficaram contentes com a visita das minhas libertadoras e as cercaram de todas as atenções. Ficaram em nossa companhia até o meio-dia. Depois de haverem almoçado conosco, acompanhei-as até um trecho do caminho de volta para Schohrd. Ao despedir-se, Ingdscha me perguntou:

- Senhor, realmente te reconciliaste com meu pai?

- Asseguro-te que sim.

- E perdoaste-o totalmente?

- Perdoei-o.

- E ele não está zangado comigo? Não serei repreendida?

- Não te dirá uma só palavra áspera, por me teres libertado.

- Vais visitá-lo?

- Achas que serei bem recebido, Ingdscha?

- Oh! sim, Senhor!

- Então irei visitá-lo amanhã ou talvez ainda hoje.

- Desde já te fico muito obrigada pela visita. Até logo! Madana ficou parada na minha frente até que a moça se distanciou de modo a não nos ouvir, e perguntou-me:

- Senhor, lembras-te ainda do que nos disseste ontem?

Calculei logo a que se referia, por isso respondi-lhe rindo:

- Palavra por palavra.

- E no entanto te esqueceste de algumas palavras que disseste.

- Ah! quais?

- Vê se te lembras!

- Acho que não me esqueci de nada.

- Oh! te esqueceste, sim, e te esqueceste justamente das mais lindas palavras que pronunciaste!

- Quais foram então?

- As palavras que se referiam ao presente.

- Minha boa Madana, não me esqueci do presente, não! Perdoa-me, provenho de um país onde as mulheres são mais bem consideradas que aqui. As mulheres de lá, tão airosas e tão lindas, não devem carregar pacotes muito grandes. Por isso não lhes entreguei em mão os presentes. Não quero que vocês os carreguem por este caminho tão acidentado. Vou remetê-los ainda hoje por um portador de confiança. E amanhã quando eu lá chegar, ficarei orgulhoso de te ver ornada com o presente que te mandarei!

Desanuviou-se o semblante da “Salsa”, que sorria novamente. Depois, de mãos postas, exclamou:

- Oh! Como devem ser felizes as mulheres no teu país! Ele fica muito distante daqui?

- Muito.

- Quantos dias de viagem?

- Mais de cem.

- Que pena! Mas virás, realmente, nos visitar amanhã?

- Sem falta.

- Então, passa bem! O Ruh ‘i kulyan demonstrou que tu és o seu preferido. Asseguro-te que sou tua boa amiga!

Apertou-me a mão e saiu correndo para alcançar Ingdscha. Se o Germanistão não ficasse tão distante, por certo que a “Salsa” iria ver se realmente são tão felizes as mulheres do meu país.

 

ÚLTIMO ENCONTRO COM O “RUH ‘I KULYAN”

Ao voltar, vi à direita um vulto que descia o morro. Era a velha Marah Durimeh. Ela também me reconheceu e me acenara para me aproximar. Quando viu que eu atendia ao seu chamado, virou-se e subiu o morro a passos lentos a fim de que eu não a perdesse de vista. Chegando ao cume do morro, embrenhou-se num macegal, onde ficou à minha espera.

- Que a paz de Deus esteja contigo, meu filho! - saudou-me a macróbia. - Desculpa-me se te fiz subir o morro. Minha alma se sente ligada à tua, e na casa do Melek não posso falar-te reservadamente. Por isso é que te chamei. Dispões agora de tempo para me ouvir?

- O tempo que quiseres, minha boa mãezinha!

Ela pegou-me então pela mão, como se fosse seu filho, e conduziu-me mais uns cem passos pelo macegal a dentro, até chegarmos a uma clareira coberta de musgos, de onde se descortinavam todas as cercanias. Ao chegar lá, ela sentou-se.

- Senta-te ao meu lado meu filho!

Sentei-me. Ela então deixou cair o amplo manto que a envolvia e o seu vulto encanecido e venerando me fazia lembrar as figuras do tempo do profeta Israel.

- Senhor, - começou ela - olha para lá, entre o sul e o oeste! Aquele sol nos traz a primavera e o outono, o verão e o inverno; pois bem, mais de cem vezes vi aquele sol completar o seu ciclo. Contempla-me a cabeça! Alva como a neve, é mais um símbolo da morte que da velhice. Eu já te disse em Amadijah que de há muito não vivo mais, e disse-te uma verdade. Eu sou apenas um... espírito - o Ruh ‘i kulyan.

Fêz uma pausa para respirar melhor. Daí a pouco continuou falando com uma voz cava, como se partisse de um túmulo. Mas a sua figura vibrava aos influxos de um coração palpitante e os olhos brilhavam úmidos.

- Já tenho visto e ouvido muitas coisas - continuou a macróbia. - Vi montanhas soçobrarem e vales se elevarem; vi os maus triunfarem e os bons perecerem na ruína; vi os felizes chorarem e os infelizes rirem; vi os corajosos tremerem de medo e os débeis e medrosos se encherem de coragem. Eu chorei e ri com todos eles; soçobrei e me elevei com as montanhas e vales. Veio depois o tempo em que aprendi a pensar. Compreendi então que havia um Deus que rege o universo, conduzindo indistintamente pela mão os seus filhos quer ricos, quer pobres, quer felizes, quer infelizes. Muitos desses filhos se desprenderam da sua mão e o escarneceram. Alguns há que ainda hoje se dizem seus filhos, mas na verdade o são daquele que reina no Dschehenna. Por isso é que há tantas misérias e depravações na face da terra: o homem não ouve a voz de Deus! E para salvar a sua Criação, o Poderoso nem sequer encontrará mais um segundo Noé, para patriarca de uma geração melhor.

A velhinha fêz nova pausa. As suas palavras, o tom de sua voz, os seus olhos cansados, mas expressivos, os seus gestos lentos, fatigados e, contudo tão incisivos tudo enfim calava-me profundamente no espírito. Agora começava a compreender a enorme ascendência moral que a macróbia possuía sobre aquela gente simples.

- Minha alma tremia e meu coração ameaçava partir-se; o pobre povo causava-me dó. Eu possuía muitas riquezas e no meu coração morava o Deus que eles haviam abjurado. Minha vida morreu então, mas com ela não morreu o Deus que em mim morava. Ele destinou-me, pois, para sua serva. E agora, empunhando o cajado da fé, ando de um lugar para outro, pregando os ensinamentos do Todo Poderoso, do Todo Bondade. Falando e pregando, não com palavras, das quais eles haveriam de rir, mas com ações que cobrem de bênçãos aqueles que estão sedentos da misericórdia do Pai. A velha Marah Durimeh e o Ruh ‘i kulyan eram enigmas para ti; continuam a ser, meu filho?

Não pude fazer outra coisa, senão agarrar-lhe a mão esquelética e apertá-la de encontro aos lábios.

- Compreendo-te!

- Bem sabia que bastariam essas palavras que te disse, para compreenderes tudo, pois também lutas na vida: dentro de ti, com a tua natureza, e fora de ti com os teus semelhantes.

Olhei rapidamente para aquela velha que tanto havia impressionado o meu espírito e que vislumbrara com toda exatidão o que se desenrolava no meu ser. Nada respondi e depois de algum tempo ela continuou:

- És um Emir no teu país?

- Não sou um Emir igual aos que existem aqui. Entre nós há Emires pelo nascimento, Emires pelo dinheiro, Emires pela sabedoria e Emires pelo sofrimento, pela resignação e pela luta.

- A qual deles pertences?

- Aos últimos.

Ela fitou-me por algum tempo perscrutadoramente e depois perguntou-me:

- És rico?

- Sou pobre.

- Pobre em ouro e prata, mas não em outros bens, pois teu coração distribui abundantemente dádivas que alegram o próximo. Já ouvi falar nos muitos amigos que conquistaste na tua jornada e também a mim confortaste e fizeste feliz. Por que não ficas em casa, por que te aventuras em terras tão longínquas? Disseram-me que percorres essas terras, realizando feitos com as tuas armas; mas isso não deve ser verdade, pois as armas matam e tu não queres a morte do próximo.

- Marah Durimeh, ainda não disse a ninguém a finalidade que me levou a sair da minha pátria; mas tu vais sabê-la já.

- Em tua pátria também ninguém sabe?

- Não. Lá eu sou um desconhecido, um homem sem relações sociais; mas é precisamente isto o que me faz bem à alma.

- Meu filho, és ainda jovem. Por ventura Alá te impôs sofrimentos que te obrigam a buscar a solidão?

- Não; recolho-me dentro de mim mesmo com a mesma finalidade que para ti é a razão de viver.

- Esclarece-me - pediu-me ela.

- Quem nos áridos desertos está prestes a morrer de inanição, conhece o valor das gotas que refrigeram e salvam a vida. E aquele sobre quem o peso do sofrimento cai sem que uma mão fraternal se lhe estenda em ajuda, sabe quanto vale o amor pelo qual em vão anseia. E não obstante o meu coração está pleno daquilo que eu não encontrava, daquele amor que, à terra, trouxe o Filho do Senhor para anunciar-nos que todos somos irmãos e filhos de um só Pai. E assim como o Salvador baixou das alturas, a que nenhum mortal pode atingir, assim também se espalham pelo mundo as suas Mensagens, anunciando a todos que vivem nas trevas o evangelho do amor. São estes os Emires do cristianismo, os heróis da Fé os Meleks da misericórdia.

- Mas nem todos ensinam o que expuseste agora. Há enviados que aqui vêm para afugentar os emissários da verdadeira fé. Contempla este país onde agora brilha o sol. O mesmo sol já assistiu ao morticínio de milhares, e o mesmo rio que agora estás a contemplar, levou em sua correnteza centenas de cadáveres de vítimas inermes. E por quê? Pergunta-o aos Emires da Fé que moraram por trás dos montes de Karitha e Tura China: pergunta aos Xeques, os príncipes cristãos que eram governadores de cidades e estados do sultão e que, de braços cruzados, deixaram que tudo acontecesse! Aquele sultão e os governadores cristãos não tinham o dever de defender e proteger os cristãos, estivessem estes em qualquer parte dos seus domínios? Hoje à meia-noite salvei da morte os cristãos deste vale, eu, uma mulher; por que aqueles Emires tinham menos poder que eu? Antigamente eu era uma princesa, hoje não passo de uma mulher velha; entretanto curdos, turcos e caldeus me ouvem. Também anunciei hoje à meia-noite o cristianismo, não o cristianismo de meras palavras, pregado por esses falsos emissários que levam o povo a se estraçalhar, mas o cristianismo da ação, do qual ninguém pode duvidar. Se aplicares corretivos aos maus, estes te demonstrarão gratidão, enquanto os bons, que anseiam pela salvação, se alegrarão com a tua vinda. Não enviem missionários que, qual santelmos em alto mar, se apagam logo, mas homens a quem os opressores temam; então, sim, as montanhas e os vales se alegrarão com o advento da  era do amor que reinará entre os homens. A terra então se encherá de bênçãos e se concretizará a idéia de um só pastor e de um só rebanho. Não tem esse pastor um legítimo representante na terra? Por que se afastam dele? Voltem a ele; então viverão em harmonia e o poder daquele que os enviou, transformará a terra na Belad et Kuds (1), onde jorram leite e mel!

Durante o seu sermão, ela se levantara. Seu vulto, há pouco recurvado, estava ereto diante de mim; em sua fisionomia brilhou subitamente um relâmpago de vida; os seus olhos afundados nas órbitas se iluminaram de entusiasmo e sua voz soava alta e cheia, como se ela estivesse a falar a milhares de pessoas. Foi um momento do qual jamais me esquecerei. Fatigada, parou de falar. Esta mulher deve ter visto, ouvido, sentido, pensado e talvez também lido muita coisa. Que deveria responder-lhe?

- Marah Durimeh, também me exprobras?! - perguntei-lhe.

- Por que me perguntas?

- Porque também sou um emissário.

- Tu? Quem te enviou?

- Ninguém. Venho por mim mesmo.

- Com o fim de ensinar?

- Não e sim.

- Não te compreendo, meu filho. Explica-te melhor!

- Tu própria disseste que desejas a vinda de emissários de ação, mas não de ação que se extinga no mar como um santelmo. Deus distribui os dons segundo a sua Sabedoria. A uns dá o poder da palavra que empolga os povos e a outros encarrega da execução dos seus ensinamentos. O dom da palavra não me foi dado e eu não posso ser avaro com os dons que Deus me deu. Por isso nunca estou sossegado na pátria. Sou forçado a dela sair sempre para longínquas regiões a fim de ensinar e pregar, não com palavras, mas procurando tornar-me útil a todo o irmão que me acolher. Estive em países e com povos cujos nomes não conheces; fui hóspede de povos brancos, amarelos, vermelhos e pretos; tenho sido hóspede de cristãos, judeus, muçulmanos e ateus; entre todos eles semeei amor e misericórdia. Ao me retirar, sentia-me fartamente compensado, se por trás de mim dissessem: aquele forasteiro não conhecia o medo; sabia e podia mais que nós e, no entanto sentia e procedia como um irmão nosso; respeitou os nossos deuses e nos estimou; jamais nos esqueceremos dele, pois era um homem de bem e um valente companheiro; ele era um cristão!” Assim é que anuncio a minha fé e quando entre esses homens encontro um apenas que respeita ou até estima esta fé, considero não haver sido infrutífera a minha tarefa diária e então, em qualquer lugar onde estou, repouso das fadigas do dia.

Seguiu-se uma pausa muito longa. Ambos ficamos a olhar para o chão. Daí a pouco ela tomou a minha mão direita entre as suas.

- Senhor - disse ela - eu te estimo muito.

Ao dizer isso, seus olhos me fitaram tão ternamente, que jamais esquecerei aquele instante.

- Meu filho - continuou ela. - quando deixares este vale, os meus olhos não te verão mais, não obstante, Marah Durimeh rezará por ti e te abençoará até que eles se cerrem. Também serás tu o único que, além daqueles três que à meia-noite estiveram com o Ruh ‘i kulyan, saberá do meu segredo. Queres sabê-lo?

- Se o silêncio fôr melhor, desistirei de sabê-lo; no entanto se achares conveniente me fazer tal revelação, ouço-te.

- Aqueles três juraram jamais dizer uma palavra sobre o caso e...

- Também nada direi!

- A ninguém?

- A ninguém!

- Então saberás tudo.

A seguir revelou-me todo o mistério. Era uma história compungente própria para celebrizar um escritor, uma longa história da sangrenta era dos três demônios Abd-el Summit-Bey, Beder Khan-Bey e Nur-Ullah-Bey que com suas chacinas quiseram exterminar os cristãos do vale do Zab, uma história a cujo relato ficamos de cabelos arrepiados. A velha levou muito tempo até terminar a sua história e depois conservou-se silenciosa perto de mim. Apenas os soluços de quando em quando interrompiam o silêncio e ela levava as mãos esqueléticas aos olhos para enxugar as lágrimas que vertiam aos borbotões. Depois, fatigada, deitou a cabeça no meu ombro e pediu-me em voz sussurrante:

- Vai agora! Quero descer até Lizan, mas vou esperar até que o meu coração pulse com normalidade. À noite te farei uma visita.

Satisfiz-lhe a vontade e me retirei.

Ao chegar em Lizan, já não vi mais um só guerreiro curdo, a não ser o Bei de Gumri que lá estava à minha espera.

- Emir, - disse-me ele - minha gente já foi embora e eu também me vou despedir de ti. Mas espero que voltes ainda a Gumri.

- Voltarei.

- E permanecerás algum tempo em minha casa?

- Por pouco tempo, pois os haddedihns estão saudosos dos seus.

- Eles já me prometeram ir contigo passar algum tempo em Gumri, ocasião em que estudaremos o meio mais seguro de alcançarem o Tigre. Adeus, Emir!

- Adeus!

Junto com meus companheiros, o Melek assistiu à despedida. O Bei tornou a despedir-se deles e saiu a galope, a fim de alcançar a sua legião de curdos.

Marah Durimeh cumpriu a palavra. À noite veio visitar-nos. Num momento em que lhe foi possível falar-me sem que os outros nos ouvissem, perguntou-me:

- Senhor, atenderás um pedido meu?

- De todo o coração.

- Crês no poder do amuleto?

- Não.

- Contudo, preparei hoje um para ti. Prometes usá-lo?

- Como lembrança tua, sim.

- Aceita-o então. Enquanto estiver fechado ele não produzirá nenhum efeito; mas se um dia precisares de salvação, abre-o; o Ruh ‘i kulyan estará então ao teu lado.

- Muito obrigado.

O amuleto estava costurado num retalho quadricular de chita. Como estivesse preso por uma fita, coloquei-o logo ao pescoço. Mais tarde de muito haveria de me servir, embora não acreditasse no seu poder. Também longe estava de supor que aquele amuleto encerrasse uma surpresa tão grande...

 

                                                                                            Karl May

 

 

                      

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