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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A TERRORISTA / Doris Lessing
A TERRORISTA / Doris Lessing

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A TERRORISTA

 

A casa ficava afastada da barulhenta rua principal, no que parecia ser uma área sem valor. Uma casa grande. Sólida. Telhas pretas se projetavam sobre a calha, e de uma falha junto à base de uma chaminé gorda um pássaro voou, carregando em sua esteira um pedaço de relva que tinha várias vezes o seu tamanho.

Eu diria que a construção é de 1910 — comentou Alice. — Repare como as paredes são grossas.

Era o que se podia perceber pela janela quebrada logo aci­ma deles, no segundo andar. Ela não obteve resposta, mas isso não a impediu de tirar a mochila, deixando-a cair sobre um ta­pete vivo de urtigas, que tentava digerir latas enferrujadas e co­pos de plástico. Deu um passo para trás, a fim de ter uma vista melhor do telhado. O movimento fez com que Jasper entrasse em seu campo de visão. Como ela já esperava, seu rosto assumira uma expressão crítica, com a intenção de ser notado. Por sua vez, não precisava que Jasper lhe dissesse que ela estava exi­bindo sua cara, que ele descrevia como tola.

Pare com isso — ordenou ele.

Jasper estendeu a mão bruscamente e agarrou-a pelo pulso, com toda a firmeza. Doeu. Alice fitou-o, sem qualquer desafio, mas confiante, e disse:

Será que vão nos aceitar?

E, como ela já previa, Jasper respondeu:

Toda a questão é saber se nós vamos aceitá-los.

Ela resistira ao teste, a dor que se irradiava pelo osso, e Jas­per largou seu pulso, encaminhando-se para a porta. Era uma porta sólida e segura, numa pequena rua transversal, repleta de jardins suburbanos e confortáveis casas similares. Não tinham telhas faltando e janelas quebradas.

Por quê, por quê, por quê? — indagou Alice, furiosa, endereçando a pergunta provavelmente ao próprio universo, com o coração transbordando de angústia por causa da casa ampla, bela e desamada.

Arrastando a mochila pela alça, foi se juntar a Jasper na porta da frente.

Uma questão de lucro, é claro — disse ele, apertando o botão da campainha, que não tocou.

Jasper deu um empurrão brusco na porta e os dois entra­ram num vestíbulo grande e escuro, do qual subia uma escada, que virava num patamar largo e depois continuava a se elevar, até onde a vista não podia alcançar. Um lampião colocado no chão, a um canto, fornecia toda a iluminação do local. De uma sala ao lado vinha o som de um suave tamborilar. Jasper foi abrir a porta. As janelas estavam tapadas por cobertores, não deixan­do entrar qualquer claridade. Um jovem negro levantou os olhos de sua família de tambores, as faces e os dentes brilhando à luz da vela.

Oi — disse ele, todos os dedos das mãos e os pés em ação, de tal forma que parecia estar dançando sentado ou talvez fosse alguma espécie de aparelho de ginástica.

Aquele negro risonho e jovial, que parecia um anúncio de férias maravilhosas no Caribe, afetou o órgão de credibilidade de Alice com um tom de falsidade. Ela compôs um pequeno memorando para si mesma, dizendo para não esquecer a primeira impressão de ansiedade ou até pesar, que era a verdadeira mensagem que seus nervos recebiam do negro. E descobriu-se prestes a dizer: "Está tudo bem, está tudo bem, não precisa se preocupar!" Mas, enquanto isso, Jasper estava perguntando:

Onde está Bert?

O jovem deu de ombros, indiferente, ainda sorrindo e não parando por um instante sequer o vigoroso ataque aos instrumentos. Jasper segurou Alice pela parte superior do braço, aper­tando com força, e levou-a de volta ao vestíbulo, onde ela comentou:

Este lugar fede.

Imagino que você vai dar um jeito nisso — disse ele, no seu desajeitado modo apaziguador, que Alice sabia ser uma manifestação intencional de amor.

Sentindo a vantagem, ela tratou de dizer, no mesmo instante:

Não se esqueça de que você tem vivido na moleza nos últimos quatro anos. Não vai achar nada fácil depois disso.

Não me chame de mole — disse ele, chutando-a no tornozelo.

Não com força, é claro, mas apenas o suficiente para ela sentir.

Dessa vez Alice seguiu na frente e abriu uma porta que julgava ser a da cozinha. A luz iluminou a desolação. Pior do que isso, o perigo: deparou com fios de eletricidade arrancados das paredes e espalhados por toda parte, desencapados. O fogão es­tava caído de lado no chão. As janelas quebradas permitiam a passagem da água da chuva, que se acumulava em poças por to­da parte. Havia um passarinho morto no chão. O cheiro era horrível. Alice começou a chorar, de pura raiva.

Filhos da puta! — murmurou ela. — Fascistas nojentos e asquerosos!

Eles já sabiam que a prefeitura, a fim de evitar a possibilida­de de estranhos invadirem a casa e se instalarem, havia enviado operários para tornar o lugar inabitável.

Eles nem mesmo deixaram esses fios seguros. Nem mesmo...

Subitamente cheia de energia, Alice virou-se e começou a abrir portas. Dois banheiros naquele andar, os vasos obstruídos com cimento. Ela continuou a murmurar imprecações, as lágrimas escorrendo pelas faces.

Os porcos de merda, os fascistas escrotos...

Era ódio que lhe proporcionava toda aquela energia. Esta­va completamente incrédula, porque nunca fora capaz de acreditar, em algum canto de sua mente, que alguém, ainda mais um membro das classes operárias, pudesse obedecer a uma or­dem para destruir uma casa. Nesse canto de seu cérebro, em que reinava uma incredulidade perpétua, começou o monólo­go que Jasper nunca ouvia, pois não o teria autorizado: "Mas eles são pessoas. Foram pessoas que fizeram tudo isso. Para im­pedir outras pessoas de viver. Não posso acreditar. Quem po­deriam ser? Como será que são? Jamais conheci alguém que pudesse fazer uma coisa assim. Ora, devem ter sido pessoas co­mo Len, Bob e Bill, amigos. Eles fizeram isso. Vieram aqui e encheram os vasos com cimento, arrancaram todos os fios, blo­quearam o gás".

Jasper estava parado, observando-a. Sentia-se satisfeito. Aquela fúria de energia banira sua cara, a expressão de Alice que ele tanto detestava, quando toda ela parecia inchada e brilhando, como se não apenas o rosto mas o corpo inteiro se enchesse de lágrimas, que vertiam de todos os poros.

Sem consultá-lo, ela subiu correndo a escada. Jasper seguiu-a, devagar, ouvindo-a bater nas portas e depois, como não houvesse resposta, abrindo-as bruscamente. Ali, no segundo andar, havia a ordem, não o caos. Cada quarto tinha sacos de dormir, um, dois ou três. Velas ou lampiões. Cadeiras com mesinhas. Livros. Jornais. Mas nenhuma pessoa à vista.

O cheiro no andar era forte. Vinha lá de cima. Subiram ainda mais devagar a escada generosamente larga e se confrontaram com um fedor que levou Jasper a ter uma momentânea ânsia de vômito. O rosto de Alice manteve-se firme e orgulhoso. Ela abriu uma porta para um cenário de baldes de plástico com mer­da até a borda. Mas parecia que aquele quarto fora considerado devidamente cheio e haviam iniciado o processo no que ficava ao lado. Cerca de dez baldes vermelhos, amarelos e laranja esta­vam reunidos ali, esperando.

Havia outros cômodos naquele andar, mas nenhum era usa­do. Nem poderia, tão forte era o cheiro.

Eles desceram em silêncio, observando onde pisavam, pois havia detritos por toda parte e era mínima a claridade que entrava pelas janelas sujas.

Não estamos aqui para ter conforto — declarou Jasper, antecipando-se a qualquer comentário de Alice. — Não é para isso que viemos.

Ela comentou:

Não entendo como alguém pode optar por viver assim, quando é tão fácil dar um jeito.

Agora ela parecia apática, esvaziada, extinta toda a incandescência do acesso de fúria.

Jasper preparou-se para iniciar um discurso sobre as suas inclinações burguesas, mas a porta da frente abriu-se antes que tivesse tempo de começar. Um vulto de aparência militar delineou-se contra a luz do sol.

Bert! — exclamou ele, descendo o resto da escada de três em três degraus. — Bert! Sou eu, Jasper...

Alice pensou maternalmente, escutando aquela voz tão ale­gre: E por causa da porra do seu pai. Mas isso era parte de suas reflexões particulares, já que Jasper obviamente não lhe conce­dia o direito de acalentar tais pensamentos.

Jasper — reconheceu Bert, erguendo os olhos em segui­da para fitá-la, na semi-escuridão.

Alice... como eu lhe contei — murmurou Jasper.

Camarada Alice — disse Bert, a voz brusca, firme e pu­ra, insistindo nos padrões.

A voz de Jasper acompanhou o ritmo quando ele informou:

Acabamos de chegar. Não havia a quem nos apresen­tarmos.

Falamos com o cara que está lá dentro — comentou Ali­ce, terminando de descer a escada e indicando a sala de onde vinha o tamborilar suave.

Ah, Jim... — murmurou Bert, desdenhosamente.

Encaminhou-se para uma porta que os dois não haviam inspecionado e abriu-a com um pontapé, já que não tinha maçane­ta; entrou na sala, sem olhar para verificar se eles o seguiam.

Era uma sala quase normal. Com a porta fechada, dava até para imaginar que era a sala de estar de uma casa comum, embora tudo ali — cadeiras, um sofá, o tapete — estivesse sujo e encardido. O mau cheiro parecia quase excluído, mas Alice ti­nha a sensação de que uma película invisível de fedor grudara em tudo e o contato seria escorregadio, se seus dedos encostas­sem em qualquer coisa.

Bert parou, empertigado, um pouco inclinado para a fren­te, observando-a. Mas Alice sabia que ele não a via. Era more­no, magro, provavelmente com vinte e oito ou trinta anos. Seu rosto estava coberto por cabelos pretos reluzentes, entre os quais brilhavam a boca vermelha e os dentes brancos. Usava uns jeans novos azul-marinho e um blusão azul-escuro bastante aperta­do, todo abotoado e imaculado. Jasper estava com uma calça de linho azul-clara e uma camisa listrada, como a de um mari­nheiro; mas Alice sabia que em breve ele estaria com roupas como as de Bert, que eram na verdade a sua indumentária habi­tual. Jasper tivera um breve flerte com a frivolidade, por algu­ma influência.

Alice sabia que os dois homens começariam a conversar ago­ra, sem se preocuparem com ela. Contentou-se em ficar zelan­do por seus interesses, enquanto olhava pela janela grande que dava para o jardim, onde detritos de todo tipo se amontoavam até a altura do peitoril. Pardais estavam ocupados na pilha, escavando e procurando. Um pássaro preto estava empoleirado numa caixa de leite, olhando em sua direção. Além dos passari­nhos, avistou um gato descarnado, agachado sob uma hortên­sia, com folhas verdes ainda novas e botões rosa e azuis, que em breve seriam flores. O gato também a observava, com olhos brilhantes e famintos.

Bert foi até um armário e pegou uma garrafa térmica do tamanho de um balde e três canecas.

Quer dizer que tem eletricidade aqui? — perguntou Alice.

Não. Um camarada da rua seguinte enche para mim to­das as manhãs.

Observando a cena com metade de sua atenção, reparou co­mo Jasper olhava para a garrafa térmica e o café sendo servido. Sabia que ele estava morrendo de fome. Por causa da briga com a mãe dela, Jasper saíra da casa furioso, sem comer nada no des­jejum. E não tivera tempo de tomar o café que ela lhe levara. Alice pensou: Esse deve ser o suprimento de Bert para o dia inteiro. Ela indicou que queria apenas metade de uma caneca. E Bert serviu-a exatamente de acordo com sua especificação.

Jasper tomou logo todo o café e ficou olhando para a garra­fa térmica, querendo mais. Bert não notou.

A situação mudou — começou Bert, como se fosse a continuação de alguma reunião anterior. — Minha análise estava incorreta, como se pôde constatar. Subestimei a maturidade po­lítica dos quadros. Quando submeti a questão a votação, a me­tade decidiu contra e saiu daqui imediatamente.

Jasper declarou:

Teriam demonstrado que não mereciam confiança. Boa viagem para todos.

Exatamente.

Qual era a questão? — indagou Alice.

Ela usou a sua "voz de reunião", pois já aprendera que isso era necessário, se queria sair-se bem. Soava-lhe falsa e fria, sempre a deixava constrangida; por causa do esforço que isso exi­gia, ela parecia indiferente, até mesmo distraída. Contudo, seus olhos absorviam a cena à sua frente com firmeza e atenção: Bert olhando para ela, ou melhor, para o que acabara de dizer; Jas­per olhando para a garrafa térmica. Abruptamente, ele não foi mais capaz de se conter e inclinou-se para a garrafa. Bert em­purrou-a em sua direção, murmurando:

Desculpe.

Você sabe qual era a questão — disse Jasper, em tom áspero. — Eu lhe contei. Vamos nos juntar ao IRA.

Está querendo dizer que vocês votaram se deviam ou não se juntar ao IRA?

Por que não procuramos a prefeitura? — indagou Alice, irritada.

Jasper murmurou:

Ela já vai começar mais uma vez...

A porta se abriu e uma moça entrou. Tinha cabelos pretos curtos e brilhantes, cortados com elegância, olhos negros irrequietos, lábios vermelhos e uma pele muito branca. Era firme e reluzente como uma cereja fresca. Olhou atentamente para Bert, Jasper e Alice, que sentiu que estava sendo vista de fato.

Sou Pat — anunciou ela. — Bert me falou sobre vocês dois. — Uma pausa. — São irmãos?

Jasper se apressou em protestar, a voz um tanto áspera:

Não, não somos!

Mas Alice gostava quando as pessoas cometiam o erro e comentou:

Muitas vezes nos tomam por irmãos.

Pat tornou a examiná-los. Jasper ficou nervoso sob a inspe­ção e desviou o rosto, as mãos nos bolsos do casaco, como se tentasse parecer indiferente a um ataque.

Os dois eram louros, com reflexos avermelhados nos cabe­los, que tendiam a se dispor em anéis e mechas. Os de Jasper eram muito curtos, os de Alice um pouco menos curtos, cheios e fáceis de arrumar. Ela mesma os cortava. Ambos tinham pele rosada e sardenta. Os pequenos olhos azuis de Jasper fixavam- se em brancos redondos e rasos, o que lhe dava uma aparência de franqueza, angelical. Era muito magro e usava roupas bem justas. Alice era corpulenta e tinha uma aparência atarracada, informe. Às vezes uma garota de doze anos, até de treze, antes de ser iluminada pela puberdade, mostra-se como será na meia- idade. Um grupo de mulheres está parado na plataforma do me­trô. Mulheres de meia-idade, com sacolas de compras, conver­sando. Mulheres muito baixas, não é? Não. São meninas, de doze anos ou por aí. Quarenta anos sendo mulher vão transcorrer e deixá-las como são agora, corpulentas e cautelosas, ansiosas por agradar.

Alice podia parecer uma garota gorducha e desajeitada ou, às vezes, uma mulher de cinqüenta anos, mas nunca aparentava a sua idade, que era trinta e seis anos. Agora foi a garota quem retribuiu o olhar de Pat, com curiosidade amistosa, através de olhos azul-cinzentos, sob sobrancelhas ruivas.

Já soube que esta pequena e feliz comunidade está se desfazendo? — indagou Pat, encaminhando-se para a janela, a fim de ficar ao lado de Alice.

Ela parecia muito mais velha do que Alice, mas era dez anos mais moça. Ofereceu um cigarro a ela, que foi recusado; fumou o seu com necessidade, vorazmente.

Já, sim, e indaguei: Por que não negociar com a prefeitura?

Ouvi seu comentário. Mas eles preferem a miséria romântica.

Romântica... — repetiu Alice, com evidente desdém.

Alice parecia aturdida. Bert achou que era medo e decla­rou, com um desdém sonoro e frio:

Eles ficaram com o maior cagaço. E fugiram como coe­lhos apavorados.

Alice insistiu:

Como foi formulada a votação?

Depois de uma pausa, Bert respondeu:

Que este grupo deveria procurar a liderança do IRA e oferecer nossos serviços como uma organização sediada na Inglaterra.

Alice digeriu a informação por um momento, parecendo tensa devido ao esforço, pois lhe custava acreditar. Então, comentou:

Mas Jasper me disse que esta casa era da União do Cen­tro Comunista.

Correto. Esta é uma casa ocupada pela UCC.

A liderança da UCC decidiu oferecer todos os seus ser­viços ao IRA? Não consigo entender!

Alice falou com veemência, não de todo em sua voz "polí­tica". Bert respondeu bruscamente, porque estava contrafeito, como ela bem podia perceber:

Não.

Então como pode um setorda UCC oferecer seus servi­ços?

Ela observou nesse momento que Jasper procurava atrair a atenção de Bert com sua expressão de "Não dê importância a ela" e tratou de se antecipar, acrescentando:

Não tem sentido.

De certa forma, você está correta — admitiu Bert. O ponto foi discutido. Ficou combinado que o contato não poderia ser feito como uma representação oficial da UCC, mas seria permitido que um grupo de membros assumisse a iniciativa, co­mo indivíduos associados.

Mas...

Alice perdeu o interesse. Lá vão eles de novo, pensou ela. Fazendo besteira. Tornou a concentrar sua atenção na pilha de lixo um metro além da janela. O pássaro preto desaparecera. O pobre gato farejava pelas beiras da pilha, por onde as moscas zumbiam.

O que se come por aqui? perguntou ela.

Só comida de fora.

O lixo lá fora é um risco para a saúde. Deve haver ratos.

Foi o que a polícia disse.

A polícia?

Estiveram aqui ontem à noite.

Ahn... Então foi por isso que os outros resolveram ir embora.

Não foi, não — garantiu Bert. — Eles foram embora por­que ficaram com cagaço. Por causa do IRA.

O que a polícia disse?

Eles nos deram quatro dias para sair daqui.

É contra a natureza negociar com o sistema — protes­tou Bert.

Quer dizer que esta comuna está se dissolvendo? — perguntou Jasper abruptamente.

Ele parecia tão garotinho que Alice apressou-se em olhar para os outros, a fim de verificar se alguém percebera. A atitu­de fora notada: por Pat, que levava o cigarro aos lábios entre dois dedos, depois afastava, tornava a aproximar, a fim de po­der tragar e soprar a fumaça, tragar e soprar a fumaça. Olhando para Jasper. Fazendo seu diagnóstico.

Alice tratou de falar, o coração invadido por uma ansieda­de suave e familiar, por causa de Jasper:

Não é contra a minha natureza. Já fiz isso várias vezes.

É mesmo? — disse Pat. — Eu também. Onde foi?

Em Birmingham. Éramos sete e procuramos a prefeitu­ra para nos instalar numa casa. Pagávamos as contas de luz, gás e água. Ficamos lá por treze meses.

Bom para você.

E em Halifax fiquei numa casa abandonada com autori­zação da prefeitura durante seis meses. E quando eu vivia em Manchester... no tempo em que estava na universidade... havia uma casa cheia de estudantes, pelo menos uns vinte. Come­çou com uma casa invadida, a prefeitura chegou a um acordo e acabou como pensão estudantil.

Os dois homens limitaram-se a ouvir essa conversa, sua conferência suspensa. Jasper tornou a encher a caneca. Bert indi­cou a Pat que a garrafa térmica estava vazia, mas ela limitou-se a sacudir a cabeça, prestando atenção a Alice.

Por que não procuramos a prefeitura? — indagou Alice, dirigindo-se diretamente a Pat.

Eu faria isso, mas estou indo embora.

Alice reparou que Bert se empertigava, embora continuas­se sentado, furioso e calado. Pat acrescentou para ele:

Eu disse a você ontem à noite que ia embora.

Alice já chegara à conclusão de que o problema era mais do que político. Havia um relacionamento pessoal que estava se rompendo por causa de alguma divergência política! Todos os seus instintos repudiavam tal decisão.

Pensou, involuntariamente: Mas que absurdo deixar que a política interfira em um relacionamento pessoal! Não era assim que ela pensava: não teria resistido, se fosse desafiada. Mas pensamentos similares muitas vezes passavam por sua cabeça. Pat disse a Bert, que estava com o rosto parcialmente desviado:

O que você esperava? Numa reunião ordinária como aquela... dois caras que eram de fora, nada sabíamos a respei­to deles. E também não sabíamos nada sobre o casal que che­gou na semana passada. Jim estava na sala e ele nem mesmo é da UCC. E de repente aquela resolução é submetida a votação.

Não foi de repente.

Quando discutimos antes, resolvemos fazer contatos individuais. Debater o problema com cada um, tomando todas as precauções.

A voz de Pat estava impregnada de desprezo. Ela olhava para seu amante presumivelmente como se ele fosse algo que devia ser jogado logo na lata de lixo.

Seja como for, você mudou de idéia — declarou Bert, os lábios vermelhos brilhando em fúria no meio da barba. Havia concordado que o apoio ao IRA era a posição lógica para esta etapa.

É a única atitude correta — interveio Jasper. A Irlan­da é o fulcro do ataque imperialista.

Não mudei de idéia — protestou Pat. Mas se vou trabalhar com o IRA ou qualquer outra organização, tenho de sa­ber com quem estou operando.

Você não nos conhece lembrou Alice, com uma pon­tada de compreensão angustiada de que ela e Jasper eram parte do motivo do rompimento daquele casal.

Sem ressentimentos disse Pat. Não há nada de pessoal. Mas é verdade. Só ouvi falar de vocês quando Bert contou que se encontrara com Jasper no comício de sábado. E aposto que Bert nem conheceu você.

Não, não conheceu confirmou Alice.

Lamento muito, mas não é assim que se deve agir.

Entendo o seu ponto de vista murmurou Alice.

Silêncio. As duas mulheres continuaram paradas ao lado da

janela, envoltas pela nuvem aromática do cigarro de Pat. Os dois homens estavam sentados em cadeiras, no meio da sala. O ba­rulho parecido com chuva dos tambores de Jim ainda soava no outro lado do vestíbulo. Alice perguntou:

Quantas pessoas restam aqui, agora?

Pat não respondeu, e Bert finalmente informou:

Contando com vocês dois, sete. Uma pausa e ele acrescentou: Não sei sobre você, Pat.

Sabe, sim respondeu ela, ríspida e fria.

Mas os dois estavam agora se fitando, e Alice pensou: Não será fácil eles se separarem. Ela disse:

Se somos sete, então quatro de nós se encontram aqui neste momento. Cinco, se Pat... Onde estão os outros dois? Quero chegar a um acordo para eu poder procurar a prefeitura.

Os vasos estão cheios de cimento, os fios de eletricidade foram arrancados, os canos esmagados disse Bert, em tom de desdém crescente.

Não é difícil endireitar tudo garantiu Alice. Fize­mos isso em Birmingham. A prefeitura deixou a casa em ruínas para que ninguém a ocupasse. Arrancaram os vasos. E todos os canos. Encheram a banheira com cimento. Havia lixo empilhado nos cômodos. Limpamos tudo.

E quem vai pagar? indagou Bert.

Nós.

Com que dinheiro?

Daremos um jeito interveio Pat. Custa muito mais correr de um lado para outro para filar banheiros do que pagar as contas de luz e gás.

E um argumento disse Bert.

E a polícia não ficaria de olho na gente arrematou Alice.

Silêncio. Ela sabia que algumas pessoas e desconfiava de que Bert era assim, mas não Pat lamentariam saber disso. Ado­ravam as confrontações com a polícia. Inesperadamente, Bert declarou:

Se pretendemos desenvolver nossa organização, não va­mos querer a atenção da polícia.

Tem toda a razão concordou Pat. E o que eu sem­pre disse.

Silêncio outra vez. Alice compreendeu que tudo estava agora em suas mãos. E ressalvou:

Só tem um problema. Nesta comunidade eles exigem o nome de alguém para garantir o pagamento das contas de luz e gás. Quem está empregado?

Três dos camaradas que foram embora ontem à noite estavam.

Camaradas! — exclamou Bert. — Uns oportunistas de merda!

Eram bons e honestos comunistas — insistiu Pat. — Acontece apenas que não querem trabalhar com o IRA.

Bert começou a se sacudir numa teatral risada silenciosa, e Jasper acompanhou-o.

Ou seja, estamos todos vivendo da previdência social — comentou Alice.

O que significa que não adianta procurar a prefeitura — acrescentou Bert.

Alice hesitou por um instante, mas acabou dizendo, an­gustiada:

Eu poderia pedir à minha mãe...

Jasper explodiu numa risada rouca, que deixou seu rosto vermelho.

A mãe dela, uma porca burguesa...

Cale essa boca! Estamos vivendo com minha mãe há qua­tro anos — explicou Alice, numa voz ofegante e controlada, que lhe parecia agressivamente fria e hostil. — Quatro anos. Burguesa ou não.

Arranque tudo o que puder da classe média rica — disse Jasper. — Tudo e mais alguma coisa. E assim que eu penso.

Está bem, está bem — murmurou Alice. — Concordo. Mas ela nos sustentou por quatro anos. — Depois, capitulou. — E por que não deveria? Afinal, é minha mãe.

A última frase foi pronunciada em voz débil, trêmula e angustiada.

E isso mesmo — disse Pat, examinando-a curiosa. — Mas não adianta pedir à minha. Há anos que não a vejo.

Muito bem — disse Bert, levantando-se subitamente e in­do se postar na frente de Pat, em atitude de desafio. — Quer dizer que você não vai mais embora?

Precisamos discutir o assunto, Bert — ela se apressou a ressalvar.

Pat se adiantou e parou diante de Bert, fitando-o nos olhos. Ele passou o braço por seus ombros e os dois saíram.

Alice correu os olhos pela sala. Observando tudo. Fora uma sala de estar de uma família. Confortável. A pintura não estava tão ruim assim; as cadeiras e o sofá provavelmente continua­vam nos mesmos lugares em que estavam antes. Havia uma la­reira, que nem mesmo fora tapada.

Vai mesmo pedir à sua mãe? Vai falar com ela para ser nossa fiadora? Jasper parecia desolado. — E quem vai pagar os consertos?

Pedirei aos outros para contribuírem.

E se eles não quiserem? — indagou Jasper sabiamente, partilhando experiência, num momento cordial.

Alguns não vão querer, e sabemos disso. Mas daremos um jeito. Sempre damos, não é?

Mas isso era um apelo muito direto à intimidade, e no mes­mo instante ele recuou para a posição crítica.

E quem vai fazer todo o trabalho?

Era o que ele vinha dizendo há catorze anos. Quinze anos.

Na casa em Manchester que partilhara com quatro outros estudantes, Alice fora a encarregada de tudo, cuidando da cozi­nha e das compras, providenciando a arrumação. Ela adorava. Tirara seu diploma, mas nem mesmo tentara arrumar empre­go. Ainda estava na casa quando chegara a nova leva de estu­dantes, e ficara para cuidar deles. Fora assim que Jasper a conhe­cera, ao aparecer uma noite para o jantar. Ele não era mais es­tudante, formara-se sem qualquer distinção e fracassara em seus esforços meio desanimados para conseguir um trabalho. Perma­necera na casa, não vivendo ali formalmente, mas como um "hóspede" de Alice. Afinal, fora somente graças ao empenho de Alice que a casa se tornara uma pensão estudantil; antes, era uma casa abandonada que fora invadida. E Jasper não ia embo­ra. Alice sabia que ele se tornava extremamente dependente de­la. Mas já naquele tempo e desde então Jasper se queixava de que ela não passava de uma criada, desperdiçando sua vida a ser­vir aos outros. Ao se mudarem de uma casa para outra, de uma comuna para outra, o padrão persistira: ela cuidava de Jasper e ele protestava que as outras pessoas a exploravam.

Ele dissera a mesma coisa até na casa da mãe de Alice:

Ela está apenas explorando você. Obrigando-a a cozinhar e fazer as compras. Por que se sujeita a esse papel?

Agora, Alice anunciou:

Temos quatro dias. Vou começar a agir.

Não olhou para Jasper, passando por ele e saindo para o vestíbulo. Levou sua mochila para a sala em que Jim tocava os tambores e disse:

Fique de olho nisso para mim, camarada. — Ele acenou com a cabeça e Alice acrescentou: — Se eu conseguir permissão da prefeitura para vivermos aqui, você vai contribuir para as despesas?

As mãos se afastaram dos tambores. O rosto redondo e afá­vel assumiu uma expressão de pesar e ele comentou:

Eles dizem que eu não posso ficar aqui.

Por que não?

Só porque não me meto com política. Quero apenas vi­ver. — Uma pausa e Jim acrescentou, em tom de incredulidade: — Mas cheguei aqui primeiro. Antes de qualquer um de vocês. Esta casa era toda minha. Eu a descobri. E disse a todo mundo: Pode vir, cara, pois é o Palácio da Liberdade.

Isso não é justo — concordou Alice.

Eu já estava aqui há oito meses. Isso mesmo, oito meses. A polícia não sabia. Ninguém sabia. Eu me mantinha limpo e cuidava de minha própria vida, mas de repente...

Ele estava chorando. Lágrimas brilhantes escorriam pelas faces negras e pingavam no tambor maior. Limpou-as com o lado da palma.

Continue por aqui e incluirei o problema na agenda da próxima discussão — decidiu Alice.

Ao sair da casa, ela pensava: Todos aqueles baldes de merda lá em cima devem ter sido enchidos por Jim. Ou quase todos. E também pensou: Se eu não mijar, vou acabar estourando... Porém não tinha coragem de subir e usar um daqueles baldes. Foi para o metrô, pegou um trem para uma estação que tinha banheiros decentes e usou-os. Lavou o rosto, escovou os cabelos e foi para a estação da mãe, onde entrou na fila de uma cabi­ne telefônica.

Três horas depois de ter saído da casa a gritar insultos, ela ligou para a mãe.

Oi, mãe. Aqui é Alice.

Silêncio.

Sou eu, Alice.

Uma pausa.

O que você quer?

A voz apática, sem qualquer inflexão. Empenhada na necessidade de superar os obstáculos por conta de todos, Alice disse:

Preciso conversar com você, mamãe. Encontramos uma casa. Eu poderia obter uma licença da prefeitura para ficarmos lá, numa base temporária e controlada... como em Manchester, entende? Mas precisamos de uma pessoa para ser fiadora das contas de luz e gás.

Ela ouviu um murmúrio inaudível e depois:

Não acredito!

Só estamos querendo a sua assinatura, mamãe. Vamos pagar tudo.

Um silêncio, em seguida um suspiro ou um ofego, depois a linha ficou muda.

Alice, agora fervendo com uma raiva intensa, tornou a dis­car. Ficou escutando o barulho da campainha, imaginando a cozinha em que estava tocando, a cozinha grande e aconchegante, as janelas altas e faiscando (ela as limpara na semana passada, com a maior satisfação), a mesa comprida à qual a mãe estava sentada naquele momento, tinha certeza. Depois de cerca de três minutos, a mãe atendeu e disse:

Sei que não vai adiantar, Alice, mas falarei assim mes­mo. Mais uma vez. Tenho de sair daqui. Está me entendendo? Seu pai não quer mais pagar as contas. E não tenho condições de continuar a morar aqui. Terei dificuldades para pagar as minhas próprias contas. Está me entendendo?

Mas você tem uma porção de amigas ricas.

Outro silêncio. Então, Alice começou, em tom maternal, gentil, de quem fazia um sermão:

Por que você não é como a gente, mamãe? Nós partilha­mos o que temos. Ajudamos uns aos outros quando deparamos com problemas. Será que não percebe que seu mundo está liquidado? Os tempos da burguesia rica e egoísta acabaram. Vocês estão condenados...

Não duvido disso — declarou a mãe de Alice, o que redespertou na filha o sentimento de mais pura afeição, pois lá estava outra vez o tom de ironia familiar e confortador, desapa­recendo a horrível apatia e o vazio. — Mas você precisa com­preender que seu pai não está mais disposto a partilhar seus ganhos indecorosos com Jasper e todos os amigos dele.

Pelo menos ele está disposto a reconhecer que são indecorosos.

Um suspiro.

Vá embora, Alice — disse a mãe. — Simplesmente suma. Não quero mais vê-la. Não quero ter notícias suas. Procure com­preender que não pode dizer às pessoas as coisas que me falou esta manhã e depois aparecer como se nada tivesse acontecido, com um sorriso jovial, pedindo mais um favor.

A linha ficou muda.

Alice estava atordoada com o choque. Sua cabeça transbordava com sombras e luzes estonteantes. Alguém atrás dela na fila disse:

Se já acabou...

O homem empurrou-a para o lado e começou a discar.

Alice deixou a estação e ficou vagueando a esmo pela área ao redor, agora cercada por ferro corrugado. Até bem pouco tempo atrás ali funcionara uma feira livre, com incontáveis pes­soas vendendo e comprando. Ela própria se instalara ali no ve­rão passado; primeiro vendera bolos, biscoitos e doces, depois sopa quente e sanduíches. Comida apropriada, tudo de trigo in­tegral e açúcar mascavo, legumes cultivados sem inseticidas. E tudo preparado na cozinha da mãe. Mas depois a prefeitura fe­chara a feira. Para construir mais um de seus enormes prédios, aqueles porras daqueles elefantes brancos que ninguém queria, a não ser as pessoas que ganhavam lucros fabulosos com a cons­trução. Corrupção por toda parte. Chorando alto, debulhada em lágrimas, Alice passou cambaleando para o outro lado da cerca de ferro, como uma cerca de campo de concentração; e pensar que ainda no verão passado...

Um apito soou estridentemente. Alguma fábrica... uma hora da tarde. E ela ainda não fizera coisa alguma... Parada nos degraus compridos e rasos que levavam à biblioteca públi­ca, enxugou os olhos e fez com que olhassem para fora e não mais para dentro. Era um lindo dia. O sol estava brilhando. Nu­vens brancas corriam pelo céu, e o azul parecia deslumbrante e promissor.

Voltou à cabine telefônica na estação de metrô e ligou para o escritório do pai, pela linha particular.

Ele atendeu no mesmo instante.

Aqui é Alice.

A resposta é não.

Nem sabe o que eu ia dizer.

Pode falar.

Quero que seja o fiador das contas de luz e gás de uma casa abandonada que pretendemos ocupar.

Não.

Ela desligou, a ira ardente voltando. Sua energia levou-a pa­ra a rua. Subiu a avenida até um prédio grande, um pouco recuado, com alguns degraus. Foi até a porta e ficou apertando a campainha até que uma voz de mulher, não a que esperava, disse:

Sí?

Puta merda, a empregada! — exclamou Alice. — Onde está Theresa?

Está trabalhando.

Deixe-me entrar.

Alice empurrou a porta ao som da campainha, quase caiu ao entrar no saguão, subiu quatro lances de escada atapetados até uma porta em que uma mulher morena, baixa e atarracada, a esperava.

Quero entrar — disse Alice, com veemência, empurrando-a para o lado.

A espanhola não disse nada, apenas ficou parada, atordoa­da, tentando encontrar as palavras certas.

Alice foi para a sala de estar em que estivera tantas vezes com sua amiga Theresa, sua amiga desde que ela, Alice, nascera, a gen­til e adorável Theresa. Uma sala grande, tranqüila e ordenada, as janelas grandes dando para os jardins... Parou, ofegando. Vou arrancar esses quadros e vender, pensou. Vou levar esses pe­quenos netsukes.Quanto será que valem? Vou quebrar tudo...

Alice pegou o telefone e ligou para o escritório. Theresa estava em reunião.

Chame-a — ordenou ela. — Imediatamente. E uma emergência. Avise que é Alice.

Ela não tinha a menor dúvida de que Theresa atenderia, e foi o que aconteceu.

O que foi, Alice? Qual é o problema?

Quero que seja a fiadora de uma casa abandonada que pretendemos ocupar. Não, não precisa pagar nada. Quero apenas a sua assinatura.

Estou no meio de uma reunião, Alice.

Estou cagando para a sua reunião. Quero que você seja a fiadora de nossas contas de luz e gás.

Você e Jasper?

Isso mesmo. E mais alguns outros.

Lamento, minha cara, mas a resposta é não.

Qual é o problema com Jasper? Por que você está se comportando assim? Por quê? Ele é tão bom quanto você.

Theresa declarou, calma e jovial como sempre:

Não, Alice, ele não é tão bom quanto eu. Muito ao contrário. E justamente esse o problema. Mas eu posso lhe dar cin­qüenta libras, se quiser aparecer.

Já apareci. Estou no seu apartamento. Mas não quero o seu dinheiro nojento.

Sendo assim, minha cara, lamento muito.

Você gasta cinqüenta libras num vestido. Numa refeição.

E você partilhou a última refeição, não é? Mas já chega dessa bobagem. Desculpe, estou muito ocupada. Todos os com­pradores estão aqui.

Não tem nada de bobagem. Quando você me viu gastar cinqüenta libras numa refeição? Se minha mãe quer gastar cin­qüenta libras de comida com todas aquelas suas amigas ricas escrotas e eu cozinho, isso não significa...

Se você quiser aparecer para conversar esta noite, Alice, será bem-vinda. Mas terá de ser bem tarde, pois ficarei trabalhando pelo menos até as onze horas.

Você... você... você não passa de uma rica de merda — murmurou Alice, subitamente apática.

Desligou e já se preparava para ir embora quando se lem­brou de uma coisa. Foi ao banheiro e se aliviou, tornou a lavar o rosto, com todo o cuidado, escovou os cabelos. Estava com fome. Foi para a cozinha e preparou um sanduíche reforçado. Lisa seguiu-a e ficou parada à porta, observando, de mãos cruzadas sobre o cabo de um espanador, como em oração. Um rosto moreno, paciente, cansado. Sustentava a família em Valencia, dissera a Theresa. Ficou olhando Alice comer o salame e o pa­tê com grossas fatias de pão. E continuou a olhar enquanto Alice inspecionava a geladeira e tirava uma sobra de arroz tem­perado, que comeu com uma colher, de pé. Ao se retirar, Alice disse:

Ciao.

Ouviu a resposta enquanto saía:

Buenos dias, senorita.

Havia alguma coisa naquela voz, um tom de crítica, que tornou a atear a raiva de Alice. Desceu correndo a escada e saiu para a rua.

Já passava de duas horas da tarde.

Seus pensamentos turbilhonavam. Jasper... por que eles o odiavam tanto? Era porque tinham medo dele. Medo de sua verdade... Percebeu que se encaminhara para um ponto de ôni­bus e que o ônibus a levaria à prefeitura. Embarcou, subitamente fria, concentrada e cuidadosa.

Começou a ensaiar mentalmente suas negociações anterio­res bem-sucedidas. Sabia que muita coisa dependeria da pessoa com quem falasse... sorte... Tivera sorte antes. E, além do mais, o que ia sugerir era razoável, no melhor interesse de todos, os contribuintes, o público em geral.

Na vasta sala, repleta de mesas, pessoas e telefones, Alice sentou em frente a uma moça, mais jovem do que ela. Compreendeu no mesmo instante que estava com sorte. No lado es­querdo do peito de Mary Williams estava um buttonde "Salvem as baleias!" O desenho alegre do animal fez com que Alice se sentisse terna e protetora. Mary Williams era uma boa pessoa. Como ela, como Jasper, como todos os seus amigos. Ela se im­portava com as coisas.

Alice deu o endereço da casa, confiante, e enunciou sua intenção. Ficou esperando, enquanto a moça apertava alguns bo­tões. A informação veio logo.

Está marcada para demolição informou Mary Williams.

Ela ficou sorrindo. Não havia mais nada a dizer. Alice não esperava por isso. E descobriu que não era capaz de falar. Era a angústia que a dominava, mas transformando-se lentamente em raiva. O rosto que Mary Williams contemplava logo estava estufando e brilhando, o que a levou a balbuciar, contrafeita:

Mas... mas... o que houve?

Não pode ser demolida... não pode... — murmurou Alice, a voz vazia, apática. E no instante seguinte a raiva preva­leceu. É uma casa maravilhosa! Perfeita! Como podem demoli-la? E um escândalo!

Sei que algumas vezes...

Mary Williams suspirou. Seu olhar para Alice era uma sú­plica para que não fizesse uma cena. Alice percebeu e compreen­deu que as cenas não eram raras naquela mesa.

Deve ter havido algum engano disse ela. Tenho certeza de que não destroem casas como aquela... Por acaso a conhece? E uma boa casa. Um bom lugar.

Acho que planejam construir no terreno um prédio de apartamentos.

Mas é claro! O que mais poderia ser?

As duas mulheres riram, os olhos se encontrando.

Espere um instante disse Mary Williams.

Levando o papel com as estatísticas vitais da casa, ela foi

conferenciar com um homem que ocupava uma mesa na extre­midade da sala. Voltou pouco depois e disse:

Tem havido uma porção de reclamações sobre o estado da casa. Inclusive da polícia.

Está mesmo uma nojeira concordou Alice. Mas poderíamos limpar num instante.

Mary acenou com a cabeça. Continue! E sentou, rabiscando um papel enquanto Alice falava.

E Alice falou. Sobre a casa. Seu tamanho, solidez, situação. Disse que toda a estrutura estava intacta, exceto por algumas telhas faltando. Disse que era preciso muito pouco para torná- la habitável. Falou sobre a casa abandonada em Birmingham e o acordo de ocupação que fizera lá; sobre Manchester, onde um cortiço marcado para demolição fora salvo e se tornara uma pensão para estudantes oficialmente reconhecida.

Não estou dizendo que isso não poderia acontecer aqui — murmurou Mary.

Ela ficou pensando, a caneta esferográfica em ação numa estrutura de células, como uma colméia. Alice adivinhara. Mary era uma boa pessoa, estava do lado deles. E verdade que Mary não era o seu estilo, de saia escura, blusa branca engomada, o sutiã contornando os seios modestos, onde a baleia balançava, a cauda erguida para o céu, preta sobre o mar azul. Mesmo as­sim, os cabelos escuros de Mary, caindo em cachos sobre a tes­ta, e as mãos roliças e brancas faziam com que Alice se sentisse confortada e segura. Sabia que se Mary pudesse fazer alguma coisa, tudo acabaria bem.

Espere um minuto — disse Mary, e foi outra vez conferenciar com o colega.

O homem agora lançou um longo olhar de inspeção a Ali­ce, que continuou sentada, confiante. Sabia como parecia: a lin­da filha de sua mãe, cabelos curtos e crespos, bem-escovados, rosto alvo e rosado, um pouco sardento, olhos francos, azul- cinzentos. Uma moça de classe média, com sua segurança, seu conhecimento das coisas, sentada com decoro; e se usava uma túnica militar azul, por baixo havia uma blusa estampada em branco e rosa. Mary Williams voltou e anunciou:

Haverá uma decisão sobre as casas na próxima quar­ta-feira.

A polícia nos deu quatro dias para sair de lá.

Nesse caso, creio que não podemos fazer nada.

Tudo o que precisamos é de uma declaração, por escri­to, de que o assunto está sendo estudado, para mostrar à polí­cia. Mais nada.

Mary Williams não disse nada. Por sua postura e por seus olhos — que não fitavam Alice —, ficou patente que, no final das contas, ela era muito jovem e provavelmente tinha medo de perder o emprego.

Alice podia perceber que havia ali alguma espécie de confli­to: era mais do que uma funcionária que às vezes não gostava do que tinha de fazer. Alguma coisa pessoal fervilhava em Mary Williams, dando-lhe uma expressão obstinada e furiosa. Ela levantou-se e foi procurar pela terceira vez o homem cuja fun­ção era dizer sim e não. Ao voltar, Mary Williams disse, falan­do por seu colega:

Quero que compreenda que a carta diria apenas que a casa está na pauta da reunião de quarta-feira.

Alice indagou, inspirada:

Por que não vai visitá-la? Você e...?

Bob Hood. E ele que...

Eu sei, eu sei — interrompeu-a Alice. Por que vocês dois não vão conhecer a casa?

Acho que Bob já visitou as casas, mas há algum tempo. Talvez devêssemos mesmo ir...

Mary estava escrevendo as palavras que salvariam a casa, Alice tinha certeza. Por todo o tempo que Alice e os outros preci­sassem. Talvez para sempre... por que não? O pedaço de papel foi metido num envelope com o timbre da prefeitura e Alice recebeu-o.

Tem telefone na casa?

Foi arrancado.

Alice já ia descrever o estado da casa: cimento nos vasos, fios elétricos soltos, todo o resto. Mas o instinto lhe disse que era melhor não o fazer. Sabia que Mary ficaria tão furiosa e repugnada quanto qualquer pessoa normal pelos danos delibera­dos, mas estes haviam sido causados pelas autoridades, e aquela moça era uma autoridade. Não se devia fazer coisa alguma para provocar a besta implacável que era a burocracia.

Quando devo lhe telefonar? perguntou ela.

Na quinta-feira.

Era o dia em que a polícia dissera que eles seriam expulsos da casa.

Estará aqui na quinta-feira?

Se eu não estiver, pode falar com Bob.

Mas Alice sabia que as coisas não correriam tão bem com Bob.

E uma questão de rotina explicou Mary Williams. Ou vão demolir as casas imediatamente ou adiarão a decisão. Já adiaram várias vezes.

Foi nesse instante que ela ofereceu a Alice o sorriso da cumplicidade e arrematou:

Boa sorte.

Obrigada. Até breve.

Alice foi embora. Eram apenas cinco horas da tarde. Em um dia, ela conseguira. Em oito horas.

Tudo estava em movimento na suave tarde de primavera, as nuvens claras, as folhas novas, as superfícies tremeluzentes dos gramados; e quando chegou à sua rua, encontrou-a repleta de crianças, gatos e jardineiros. A cena de prosperidade e tran­qüilidade suburbanas provocou-lhe um ímpeto de violento des­dém, como uma ameaça secreta a tudo o que via. Ao mesmo tempo, paralela a essa emoção, mas sem afetá-la, havia outra cor­rente, de desejo, anseio.

Alice parou na calçada. Do alto de sua casa, um jato amare­lo era lançado sobre o lixo que entulhava o jardim. Do outro lado da sebe, na casa vizinha, uma mulher estava parada, segu­rando uma pá em que havia diversas mudas, enraizadas em ter­ra preta fofa. Olhava para a casa vergonhosa e comentou:

Uma coisa nojenta. Já falei com a prefeitura.

Oh, não! Por favor, não... — Mas vendo o rosto e os olhos da mulher se endurecerem, Alice acrescentou: — Estou vindo da prefeitura. Vai acabar tudo bem. Estamos negociando um acordo.

E o que vão fazer com todo esse lixo — a mulher mais declarou do que perguntou.

Ela virou as costas a Alice, inclinando-se para a terra fra­grante de seu canteiro de flores.

Alice encaminhou-se para a sua porta num tumulto de identificação fervorosa com a casa criticada, dominada pela ira con­tra o responsável por aquele esguicho amarelo — provavelmente Jasper — e com a necessidade de iniciar de imediato o trabalho de reconstrução.

A porta não se mexeu quando a empurrou. O calor verme­lho da raiva dominou-a por completo, e ela esmurrou a porta, gritando:

Como se atrevem a me trancar do lado de fora?

Com a visão lateral, ela percebeu a mulher na casa ao lado

se empertigar e observar a cena por cima da sebe.

A ira se desvaneceu, enquanto ela dizia a si mesma: Preciso fazer alguma coisa em relação a essa mulher o mais depressa pos­sível; ela tem de ficar do nosso lado.

Alice ofereceu à mulher um sorriso conciliador e um aceno de mão, um pouco como o abano de rabo de um cachorro se desculpando, mas a vizinha se virou sem qualquer reação.

Subitamente a porta foi aberta e os dedos de Jasper aperta­ram seu pulso. O rosto dele tinha um sorriso frio que ela sabia ser de medo. De quem?

Enquanto ele a puxava para o interior, Alice disse, numa voz que soou como um grito abafado:

Largue-me. Não seja estúpido.

Onde você esteve?

O que você acha?

O que andou fazendo durante o dia inteiro?

Ora, não enche!

Alice sacudiu o pulso para restaurar a circulação quando ele a soltou, ao ver que as portas haviam sido abertas. Ali no vestíbulo estavam Jim, Pat, Bert e duas moças, vestidas de maneira idêntica, em macacões azuis folgados e casacos de malha bran­cos, com expressões críticas.

Sempre mantemos essa porta trancada e com uma barra por causa da polícia — explicou Bert, num jeito apressado, apaziguador.

Alice pensou: Ora, não há necessidade de me preocupar tan­to com ele. E disse:

Não estava trancada esta manhã, quando chegamos. E a polícia não aparece a esta hora, não é?

Ela disse isso porque precisava dizer alguma coisa, sabia que seu acesso de raiva fora lamentável.

Os cinco a fitavam, os rostos ensombreados pela luz difusa do lampião. E Alice acrescentou, em sua voz mansa habitual:

Estive na prefeitura e está tudo certo.

Como assim? — indagou Bert, afirmando seus direitos.

Alice disse:

Todo mundo está aqui e quero discutir o assunto. Por que não agora?

Alguém contra? — perguntou Jasper jovialmente, mas saindo em proteção de Alice, como ela percebeu, com gratidão.

Os sete foram para a sala de estar, ainda plenamente iluminada pela luz do dia.

Os olhos de Alice se concentraram ansiosos nas duas mo­ças desconhecidas. Como se incapazes ou indispostas a dispen­sar muita atenção ao problema, elas se empoleiraram nos braços de uma poltrona velha e puída. Estavam partilhando um cigar­ro. Uma delas era loura, de traços delicados, os cabelos presos num rabo-de-cavalo, com pequenos anéis emoldurando todo o rosto. A outra moça, não, mais do que isso, mulher, era corpu­lenta, cabelos curtos, crespos e negros, com um brilho de pra­teado. Seu rosto era forte, os olhos diretos. Fitou Alice atenta­mente, reservando-se qualquer julgamento, e disse:

Esta é Faye. Eu sou Roberta.

Ela estava informando também que as duas constituíam um casal, mas Alice já vira essas coisas antes.

Alice... Alice Mellings.

Muito bem, camarada Alice, devo dizer que você não perde tempo. Pessoalmente, eu gostaria que tivesse discutido o assunto primeiro.

Eu também penso assim — acrescentou Faye. — Gosto de saber o que está sendo dito em meu nome.

Ela falava em cockney, numa voz viva e atraente. Alice compreendeu no mesmo instante que era uma afetação, a moça ado­tara o estilo, como tantas outras pessoas. O que se apresentava a todo mundo era uma linda e risonha jovem cockney, mas Ali­ce observou-a atentamente, tentando descobrir o que ela era de fato.

Essa inspeção intensa e avaliadora fez com que Faye se remexesse no braço da poltrona e se mostrasse um pouco amua­da, o que levou Roberta a interferir, apressadamente:

Em que nos comprometeu, camarada Alice?

Já entendi — disse Alice. — Vocês estão querendo ficar na moita.

Roberta deixou escapar um grunhido breve e divertido, com que reconhecia a percepção de Alice, e então disse:

É isso mesmo. Quero passar algum tempo na moita.

Eu também — acrescentou Faye. — O pessoal da segu­rança de Clapham está procurando pela gente, mas é melhor não perguntar por quê. Quanto menos se disser, melhor.

Ela concluiu jovialmente, sacudindo a cabeça.

E o que você não sabe não pode lhe fazer mal — comen­tou Roberta.

Não faça perguntas e não ouvirá mentiras — gracejou Faye.

Mas a verdade é mais estranha do que a ficção — sugeriu Roberta.

Bem que pode repetir isso — concordou Faye.

A pequena encenação das duas fez com que todos rissem, divertidos. Como um bom número de music-hall: Faye, a garo­ta cockney, e seu parceiro. Roberta não estava falando cockney, mas tinha uma voz tranqüila e prosaica, com um sotaque do norte. Sua própria voz? Não, era fabricada. Provavelmente mo­dulada na Coronation Street.

Esse é mais um motivo para não querermos a polícia aparecendo aqui a todo instante — declarou Bert. — Fico satisfeito de que a camarada Alice esteja tentando regularizar nossa situa­ção nesta casa. Apresente seu relatório, camarada Alice.

Bert também modificara a voz. Alice podia perceber em alguns momentos os tons elegantes de uma escola pública das clas­ses superiores, mas a voz fora encrespada para se parecer com a de um membro legítimo das classes operárias. Era muito azar, pois ele se denunciava facilmente.

Alice falou. (Sua própria voz datava dos dias na escola feminina em North London, uma voz correta, insípida. Houve­ra uma ocasião em que se sentira tentada a usar o sotaque nortista do pai, mas acabara chegando à conclusão de que seria uma de­sonestidade.) Não contou que ligara para a mãe e o pai, mas informou que poderia conseguir cinqüenta libras a curto pra­zo. Depois, resumiu sua visita à prefeitura, avaliando o que via em sua imaginação: as expressões de Mary Williams, revelando a Alice que a casa ficaria com eles, por causa de algum proble­ma ou atitude pessoal da jovem. Mas tudo o que Alice disse a esse respeito, a essência da entrevista com Mary, foi o seguinte:

Ela é legal. Está do nosso lado. E uma boa pessoa.

Está querendo dizer que arrumou alguma coisa para mostrar à polícia? indagou Jim.

Alice entregou-lhe o envelope amarelo, ele tirou a carta e examinou-a. Ela podia perceber que Jim era uma dessas pessoas cujo destino é determinado por documentos, relatórios, cartas oficiais. E a voz de Jim era mesmo cockney, autêntico. Alice per­guntou abruptamente:

A polícia tem alguma coisa contra você?

Jim fitou-a primeiro com uma expressão de surpresa, de­pois defensiva e finalmente amargurada. Ele amarrou o rosto infantil e franco e disse:

E se tiver?

Nada murmurou Alice.

Enquanto isso, um olhar para Faye e Roberta revelara que as duas não queriam encontros com a polícia. Devia ser algo pior. Isso mesmo, provavelmente pior. Isso mesmo, certamente pior. Estariam fugindo?

Não sabia que você estava nessa situação comentou Bert. Até recentemente a polícia também queria falar comigo.

E comigo também proclamou Jasper no mesmo ins­tante, não querendo ficar de fora.

A voz de Jasper era quase a de suas origens. Ele era filho de um advogado de uma pequena cidade de Midlands, que fora à falência quando Jasper estava no meio da escola primária. Con­cluíra sua instrução com uma bolsa de estudos. Jasper era mui­to inteligente, mas considerara a bolsa uma caridade. Sentia muito ódio do pai, que fora bastante estúpido para se manter em investimentos escusos. Sua voz de classe média, como a de Bert, fora adulterada. Com os camaradas das classes operárias podia falar como eles e o fazia, em momentos emocionais.

Está ficando escuro interveio Pat, levantando-se.

Ela riscou um fósforo e acendeu duas velas que estavam no

console da lareira, em castiçais de latão um tanto finos. Estavam opacos de gordura. A luz do dia minguava cada vez mais além das janelas, e os sete se encontraram no meio de uma poça de suave luz amarelada, nas profundezas de uma sala de teto alto e escura.

Pat apoiou o cotovelo no console da lareira, assumindo agora o comando da situação. À luz romântica, com seus trajes militares escuros, as botas pretas, parecia como certamente devia saber uma guerrilheira ou soldado de algum exército. Con­tudo, a luz realçava as suas feições delicadas, as linhas suaves das mãos; na verdade, ela parecia mais com a imagem idealiza­da de um soldado do sexo feminino num cartaz de recrutamen­to. Talvez uma recruta do exército israelense, com um livro numa das mãos e um rifle na outra.

Dinheiro disse Pat. Precisamos conversar sobre dinheiro.

Sua voz era típica da classe média, mas Alice sabia que não fora assim que Pat começara. Ela se esforçava muito para apre­sentar aquela voz.

Tem toda a razão disse Jim. Concordo.

A única outra pessoa naquela sala, além de Alice, que conservava sua própria voz, sem qualquer modificação, era Jim, o cockney autêntico.

Vai custar muito mais do que podemos imaginar dis­se Bert —, mas estaremos comprando paz e sossego.

Não precisa custar tanto assim protestou Alice. Por um lado, a comida sairá pela metade do preço. Posso falar por experiência própria.

É verdade confirmou Pat. Também tenho experiência. Comer por aí custa muito mais.

Alice sabe como alimentar as pessoas bem baratinho informou Jasper.

Era visível que enquanto os cinco enunciavam suas posições, todos eles, talvez sem o perceberem, olhavam para Roberta e Faye. Ou, mais precisamente, para Faye, que estava sentada ali sem fitá-los, mas olhando para qualquer outro lugar o teto, seus pés, os pés de Roberta, o chão —, enquanto soprava a fumaça do cigarro que mantinha entre os lábios. Sua mão, pousa­da no joelho, tremia um pouco. Ela dava a impressão de que tremia ligeiramente por todo o corpo. Mas sorria, embora não fosse o melhor dos sorrisos.

Esperem um pouco, camaradas — disse ela. — Vamos su­por que eu goste de comida de fora. E eu gosto, entendem? E se me der vontade de sair para comer em algum lugar? O que acontece, então?

Ela riu e sacudiu a cabeça, exibindo — como se sua vida dependesse disso — uma insolência cockney, como já fora mostra­da em mil filmes.

Eles têm um argumento forte, Faye — comentou Ro­berta, parecendo neutra, a fim de não irritar a amiga.

Ela estava atenta a Faye, incapaz de se controlar, lançando- lhe olhares rápidos e nervosos.

Ora, que se foda — disse Faye, assumindo de vez o pa­pel de cockney, porque tinha medo de sua ira, como todos po­diam perceber. — Ontem, pelo menos para mim, tudo estava correndo quase perfeito, e hoje a coisa toda mudou. Não gosto de ser organizada, entendem?

E ela fazia tudo à sua maneira — disse Bert, no tom frio das classes superiores, sorrindo, como se fosse um gracejo.

Ele não gostava de Faye e aparentemente não se importava com que isso ficasse patente. Pat apressou-se em aliviar a situa­ção com bom humor:

Se você não quer participar, então não precisa. Pode co­mer por nossa conta!

Ela fez o comentário sem rancor. Até riu, esperando que Faye a acompanhasse; mas Faye sacudiu a cabeça, seu rosto se contraiu, perdendo a beleza, os lábios empalideceram, enquan­to ela os comprimia. O cigarro e a mão tremiam violentamen­te, a cinza espalhando-se por toda parte.

Esperem um instante — interveio Roberta. — É preciso esfriar um pouco a cabeça.

Aparentemente, a exortação foi dirigida aos cinco que olhavam para Faye. Mas Faye sabia que o comentário estava desti­nado a ela. E se obrigou a sorrir.

Foi dita alguma coisa sobre a maneira como deveríamos pagar? — perguntou Roberta.

Não, mas conheço as várias maneiras como costumam fazer isso — respondeu Alice. — Em Birmingham, por exem­plo, fixaram uma taxa pela casa toda, a fim de se cobrirem os impostos. E pagávamos luz e gás em separado.

Luz... — murmurou Faye. — Quem vai querer pagar a luz?

Não se paga nada ou então se paga apenas a primeira con­ta — explicou Jasper. — Alice é boa nessas coisas.

Todos podemos ver em que Alice é boa — comentou Faye.

Por que não adiamos a discussão até sabermos de tudo com certeza? — sugeriu Pat. — Se fizerem uma avaliação para o aluguel e impostos e cobrarem tudo do nosso seguro social, numa base individual, então seria conveniente para alguns e não para outros. Seria para mim, por exemplo.

Não seria para mim, entende? — informou Faye, doce mas veemente.

Nem para mim — acrescentou Roberta. — Não quero me tornar uma residente oficial desta casa. Nem Faye.

Faye com toda a certeza não quer — disse Faye. — On­tem eu era livre como um passarinho, indo e vindo. Não vivia aqui, apenas entrava e saía quando queria. E agora, de repente...

Está bem, está bem — interveio Bert, irritado. — Você não quer ser contada, não tem problema.

Está me dizendo para ir embora? — indagou Faye, com uma risada estridente.

Seu rosto pareceu de novo se transformar por completo, sugerindo alguma outra Faye, uma Faye pálida, assustadora, vio­lenta, a prisioneira involuntária da linda cockney. Jim riu subi­tamente e comentou:

Já me disseram para ir embora. Por que não Faye e Ro­berta, se o problema é esse?

Faye concentrou toda a força de sua fúria pálida em Jim, e Roberta apressou-se em interferir:

Ninguém vai embora. Absolutamente ninguém. — Fi­tou Jim nos olhos. — Mas devemos ser muito claros sobre o que vamos ou não vamos fazer. E temos de ser claros agora. Se uma quantia certa for fixada para a casa, podemos discutir então quem vai contribuir com o quê. Se pedirem uma contribuição individual, tirada do nosso seguro social, a resposta é não, não e não.

O tom era afável, mas não muito.

Não vou contribuir — anunciou Faye. — Por que deve­ria? Gosto das coisas como estavam.

Como podia gostar? — indagou Bert. — Aturar as coisas como estavam é diferente.

E de repente todos souberam por que era a Faye que ha­viam observado tão nervosamente, Faye que dominara tudo.

Ela se empertigou, montada no braço da cadeira, assumiu uma expressão ainda mais furiosa, tremeu toda e disse, numa voz que não tinha qualquer relação com a linda cockney:

Seus Hitlers nojentos de merda, seus porcos fascistas, quem são vocês para nos dizerem o que fazer? Quem são vocês para nos darem ordens?

Essa voz saía das profundezas de Faye, de alguma terrível privação. Era rude, rouca, sofrida, como se as próprias palavras exigissem um esforço árduo e ela só conseguisse arrancá-las com dificuldade, passando só Deus sabia por que obstáculos de mente e língua. Que sotaque era aquele? De onde vinha? Todos fica­ram olhando-a fixamente, estavam todos silenciados por ela. E Roberta, passando o braço pelos ombros trêmulos da amiga, murmurou "Faye, Faye, querida Faye", até que a moça subita­mente teve um sobressalto e depois pareceu ficar inerte, arrian­do em seus braços.

Silêncio.

Qual é o problema? — perguntou Bert, que se recusava a perceber que ele era a causa da explosão do outro eu de Faye. Ou seriam outros eus? — Se Faye não quer contribuir, muito bem. Sempre fazem a avaliação por baixo, pelo menos em casas abandonadas como esta. E outras pessoas virão, é claro, para substituir os camaradas que foram embora ontem. E teremos de fazer com que aceitem o acordo que fizemos com a prefeitura.

Meio escondida nos braços de Roberta, Faye parecia se contorcer e debater, mas foi ficando quieta. Alice disse:

Se não limparmos a casa, teremos de deixá-la de qual­quer maneira. Podemos arrumar tudo, mas para conservar a ca­sa precisamos da prefeitura. Tem havido reclamações. A mulher da casa ao lado disse que já se queixou...

Joan Robbins — interveio Faye. — Uma vaca fascista. Eu vou matá-la.

Mas foi na voz cockney que ela falou agora, não na outra, a verdadeira. Faye tornou a se empertigar, desvencilhando-se da solícita Roberta, e acendeu outro cigarro. Não olhava para os outros.

Não vai, não — disse Roberta, suavemente.

Ela reafirmou seus direitos sobre Faye, tornando a passar o braço por seus ombros. Faye submeteu-se, com o afetado balanço da cabeça e um sorriso.

Está tudo uma nojeira — comentou Alice.

Tudo estava bem até que você chegou — disse Jim.

Não era um protesto ou uma acusação, mas uma indaga­ção. No fundo, ele estava dizendo: Como foi tão fácil para vo­cê, quando era impossível para mim?

Não se preocupe — murmurou Alice, sorrindo para ele. — Depois que estiver tudo limpo, seremos como as outras pessoas na rua e ninguém nos notará. Vai ver só.

Se quer jogar dinheiro fora, o problema é seu — disse Faye.

Temos de pagar pelo menos a primeira conta de luz e gás — comentou Bert. — Se conseguirmos persuadi-los a restabelecer a ligação.

Isso é fácil — declarou Alice.

Os medidores ainda estão aqui — acrescentou Pat.

Eles sempre esquecem de tirá-los — disse Jim.

E com que vamos pagar? — indagou Faye. — Não esta­mos todos vivendo do seguro-desemprego?

Houve outro momento de silêncio. Alice sabia que haveria dinheiro suficiente se o aluguel fosse baixo. Isto é, se as pessoas tivessem bom senso para administrar seu dinheiro. Ela e Jas- per, morando com sua mãe e sem pagar nada, recebiam cerca de oitenta libras por semana da previdência social. Mas não guar­davam coisa alguma, porque Jasper gastava toda a sua parte e ainda uma boa parcela do que ela recebia, sempre lhe exigindo:

Para o partido — dizia ele... ou qualquer outra causa que estivessem apoiando no momento.

Mas Alice sabia que boa parte do dinheiro ia para o que descrevia para si mesma, afetadamente, como "a vida emocional de Jasper".

Sabia também que em comunidades como aquela havia os que pagavam e os que se recusavam a fazê-lo, e não havia nada que se pudesse fazer para remediar tal situação. Sabia que Pat contribuiria; que Pat faria com que Bert também contribuísse... pelo menos enquanto ela estivesse ali. Já as duas garotas não abririam mão de um único penny.Quanto a Jim... era melhor esperar para ver. Ela disse:

Tem uma coisa que podemos fazer agora: desobstruir os vasos.

Roberta riu. Era uma risada orquestrada, com a intenção evidente de ser notada. Faye disse:

Estão cheios de concreto.

Também estavam assim numa das casas que conheci. Não é difícil. Mas precisamos de ferramentas.

Poderia ser esta noite? perguntou Pat, que parecia interessada, com uma admiração relutante.

Por que não? Temos de começar respondeu Alice, com alguma veemência. Sua voz exprimia toda a intensidade de sua necessidade. Eles ouviram, reconheceram, cederam. Não se­rá tão difícil quanto estão pensando agora. Já dei uma olhada nos banheiros. Se as caixas estivessem cheias de concreto seria difícil... provavelmente teriam rachado... mas não é tão di­fícil assim desobstruir os vasos.

Os operários concretaram o registro principal infor­mou Bert.

O que é ilegal disse Alice, amargurada. Aposto que o Departamento de Agua não sabe. Tem alguma ferramenta por aqui?

Não respondeu Bert.

Você não disse que tem um amigo que mora aqui perto? Ele não teria ferramentas?

Ela, Felicity. Seu namorado tem. Ferramentas de eletri­cista. Tudo. E o seu trabalho.

Então poderíamos pagar a ele para endireitar toda a par­te elétrica.

E com que vai pagar? perguntou Faye, a voz agora melodiosa. Com que vamos pagar a ele, minha cara Alice? Com quê?

Vou buscar aquelas cinqüenta libras. E você, Bert, vá procurar seu amigo. Alice já estava na porta. Diga a ele que precisamos consertar o encanamento e a parte elétrica. O enca­namento primeiro. Se ele tiver uma talhadeira e um malho, po­demos começar pelo banheiro aqui do vestíbulo. Voltarei num instante.

Ela ouviu Jasper gritar, enquanto passava pela porta:

Traga alguma coisa para comer. Estou faminto.

Nas asas do sucesso, Alice voou para o metrô. No trem, pensou na casa, imaginando-a limpa e arrumada. Subiu corren­do a avenida até o prédio de Theresa. E somente quando ouviu a voz de Anthony é que lembrou que Theresa chegaria tarde.

Sou eu, Alice disse ela pelo interfone.

Pode entrar, Alice.

A voz firme, controlada e sensual de Anthony lembrava-a dos inimigos com que se defrontava, e ao chegar à porta do apartamento, sabia que estava usando a sua cara.

E um prazer, Alice disse Anthony, em tom caloroso mas falso, pois Theresa é que era sua amiga.

Ela entrou, sabendo que era indesejável. Anthony estava de roupão e tinha um livro na mão. Ele está ansioso por uma noite tranqüila, pensou Alice. Mas pode muito bem me dispensar dez minutos.

Sente-se, Alice. Quer beber alguma coisa?

Não, Anthony. Nunca bebo. — Ela foi direto ao assun­to. — Theresa disse esta manhã que poderia me emprestar cinqüenta libras.

Ela ainda não chegou. Está em uma de suas reuniões.

Pensei que você poderia me dar o dinheiro. Estou precisando.

O tom era veemente e incisivo, uma acusação. Anthony fi­tou atentamente a mulher que estava parada ali, no meio da sa­la de estar, usando roupas que ele considerava militares, o rosto inchado pelas lágrimas e pela hostilidade.

Não tenho cinqüenta libras.

Uma mentira, reconheceu Alice, fitando-o com tanto ódio que ele murmurou:

Sente-se, por favor, minha cara Alice. Acho que vou to­mar um drinque, embora você não queira.

Anthony estava tentando fazer com que a situação se tor­nasse divertida, mas ela percebeu sua intenção. Continuou de pé, observando, enquanto o corpulento e moreno Anthony se virava para se servir do uísque de uma garrafa de cristal. Durante toda a sua vida, parecia a Alice, tivera momentos em que o imaginara e a sua amiga Theresa nus na mesma cama, à noite, o que lhe causava profunda repugnância.

Sabia por sua mãe que a vida sexual daqueles dois era inten­sa, variada e tempestuosa, apesar das urbanidades opressivas e jocosas de Anthony, das palavras carinhosas sussurrantes e risonhas de Theresa. Cara Alice, querida Alice, mas à noite... Era mesmo repulsivo.

E Alice pensou, como fazia quando era pequena: E eles são tão velhos! Observando as costas largas do homem, cobertas pela grossa seda cinza, a cabeça lisa, negra como petróleo e pequena para o corpo, pensou também: Eles têm feito sexo todas as noi­tes, durante todos esses anos.

Anthony virou-se para ela num movimento rápido, o copo na mão, depois de ter pensado o que deveria dizer.

Vou telefonar para Theresa. Se ela não estiver mais em reunião...

E encaminhou-se rápido e inexorável para o telefone. Alice correu os olhos pela sala grande e luxuosa. E pensou: Vou pegar um desses pequenos netsukese fugir, eles vão achar que foi a espanhola. Mas Anthony voltou nesse instante e anunciou:

Disseram que já encerraram o expediente. Ela está vin­do para casa. Vou preparar alguma coisa para o jantar. Theresa fica muito cansada para cozinhar quando tem essas reuniões. Com licença.

Ele estava contente pela oportunidade de virar as costas, pensou Alice. No instante em que Anthony desaparecia na cozi­nha, a porta foi aberta. Era Theresa. Por um momento, Alice não a reconheceu, pensou que fosse outra mulher cansada e de meia-idade. Depois, refletiu: Ela parece gasta.

Theresa parou, exausta, o rosto vincado. Usava óculos es­curos, o que deixava seus olhos piscando e ansiosos quando os tirava.

Oh, Alice... — murmurou ela, encaminhando-se apres­sada para a cadeira perto dos drinques e ali arriando.

Serviu-se de um drinque, meio desajeitada, continuou sen­tada com o copo aninhado contra o peito, a respiração lenta, os olhos fechados.

Só um instante, Alice, só um instante, Alice querida...

Quando Anthony voltou à sala, inclinando sua corpulên­cia para beijá-la, ela levantou o rosto para seus lábios, os olhos ainda fechados, e disse:

Graças a Deus terminamos mais cedo. Mais uma noite trabalhando até onze horas e eu estaria liquidada.

Ele pôs a mão em seu ombro e apertou-o. Theresa sorriu-lhe, espichou os lábios no movimento de um beijo, os olhos sempre fechados. Anthony retornou à cozinha, dizendo:

Providenciei uma sopa e uma salada.

Oh, Anthony querido... obrigada... uma sopa... é justamente o que estou precisando.

O que Alice sentiu nesse instante foi uma dor fria e penetrante — inveja; mas não sabia que era isso e disse, para se livrar da cena, para se livrar dos dois:

Você disse que me daria cinqüenta libras. Posso levar, Theresa?

Acho que sim, querida — murmurou Theresa, vagamen­te. E no instante seguinte ela se empertigou, abriu a bolsa elegante e espiou dentro. — Cinqüenta... cinqüenta... onde foi que eu guardei? Ah, sim, aqui está...

Tirou cinco notas de dez libras e entregou-as a Alice.

Obrigada. — Alice tinha vontade de sair correndo com o dinheiro, mas não achava isso certo; sentia uma profunda afeição por Theresa, que parecia tão cansada e confusa, que sempre fora boa para ela. — Você é a minha predileta e a melhor, a tia mais querida.

Ela falou com um sorriso contrafeito, como sempre fazia quando era pequena e se empenhavam naquele jogo. Os olhos de Theresa estavam abertos agora e fitavam os de Alice.

Alice, minha querida... — Ela suspirou. Empertigou- se outra vez na cadeira. Esticou a saia vermelha. Levantou a mão para alisar os cabelos escuros. Pintados, é claro. — Sua pobre mãe... ela me telefonou esta manhã. Estava muito transtornada, Alice.

Ela estava transtornada — disse Alice no mesmo instan­te. — Sempre está.

Theresa suspirou.

Alice, por que você continua com ele... com Jasper... por que... Não, espere. Não vá embora, por favor. Você é tão bonita e simpática, minha querida... — Nesse ponto, ela deu a impressão de oferecer a Alice sua expressão especial, como se num beijo. — E uma boa moça. Por que não pode escolher alguém... deveria ter um relacionamento verdadeiro com alguém.

Ela terminou constrangida, por causa da expressão fria e desdenhosa de Alice.

Eu amo Jasper — declarou Alice. — E amo muito. Por que vocês não podem compreender isso? E não me importo... com o que você se importa. O amor não é apenas sexo. Sei que é isso o que você pensa...

Mas os anos de afeição, de amor, travaram sua língua, ela sentiu as lágrimas escorrendo pelo rosto.

Oh, Theresa, obrigada! Muito obrigada! Virei visitá-la em breve. Prometo. Mas agora tenho de ir. Estão me esperando...

E Alice correu para a porta, soluçando violentamente. Saiu batendo a porta. Desceu a escada, as lágrimas voando de seu ros­to, saiu para a rua, e só então se lembrou que as notas ainda estavam em sua mão, havia o perigo de serem levadas pelo ven­to ou roubadas. Guardou-as no bolso da túnica e seguiu apres­sada e segura para a estação de metrô.

Enquanto isso, no lindo apartamento, eles estavam conversando sobre Alice. Anthony manteve uma expressão irônica e divertida, até que Theresa reagiu:

O que é, meu amor?

Que garota — respondeu ele; a aversão que sentia por Alice transparecia em sua voz.

Eu sei, eu sei... — murmurou Theresa, irritada, a exaus­tão começando a se manifestar.

Uma garota... que idade tem ela agora?

Theresa deu de ombros, não querendo se incomodar com o problema, mas mesmo assim interessada.

Tem razão, querido. A gente está sempre esquecendo.

Quase quarenta?

Oh, não! Não é possível!

Uma pausa, o vapor do prato de sopa que Anthony trou­xera e pusera na mesinha a seu lado subia entre os dois. Eles se fitavam através do vapor.

Acho que ela está com trinta e cinco... não, trinta e seis anos — disse Theresa finalmente.

Um caso típico de desenvolvimento suspenso — comen­tou Anthony, insistindo em seu direito de não gostar de Alice.

Acho que tem razão... mas Alice... ela é tão meiga... uma coisinha tão doce...

Na rua de Alice as casas estavam repletas de luzes e pessoas, o meio-fio atulhado com os carros dos que haviam voltado do trabalho; e sua casa, assomando na extremidade, era escura, po­derosa, silenciosa, misteriosa, definida apenas pelas luzes e o ba­rulho da rua principal, além. Ao chegar ao portão, divisou três vultos prestes a passar pela entrada escura. Jasper, Bert. Quem seria o terceiro? Alice aproximou-se depressa, e Jasper e Bert viraram-se bruscamente para confrontarem o perigo. Viram que era ela e disseram ao garoto que os acompanhava:

Está tudo bem, Philip. Esta é Alice... camarada Alice.

Estavam agora no vestíbulo, e Alice constatou que não era um garoto, mas um rapaz, pálido e franzino, com grandes olhos azuis entre os cabelos claros e brilhantes, que pareciam refletir toda a claridade difusa do lampião. Sua primeira reação foi: Mas ele está doente, não é forte o suficiente! Pois compreendera que aquele era seu salvador, o restaurador da casa.

Philip disse, fitando-a, com uma obstinação que Alice reconheceu ser o resultado de um esforço, uma pressão contra as chances desfavoráveis:

Terei de cobrar. Não posso fazer de graça.

Cinqüenta libras — disse Alice, percebendo um ligeiro movimento involuntário de Jasper em sua direção, informando que ele daria um jeito nela, se não tomasse cuidado.

Philip disse, na mesma voz suave e obstinada:

Quero ver o trabalho primeiro. Preciso calcular o custo.

Alice percebeu que aquele rapaz já fora ludibriado no quelhe era devido. Mas com aquela aparência, de um pequeno órfão inocente, ele estava convidando! Ela declarou, maternal e orgulhosa:

Não estamos pedindo favores. E um trabalho.

Por cinqüenta libras interveio Bert, com uma aspere­za jocosa —, dá até para bloquear um ninho de ratos. Pelo me­nos hoje em dia.

Alice viu seus lábios vermelhos faiscarem na moita escura do seu rosto. Jasper soltou uma risadinha.

A aliança dos dois homens contra ela pois era isso o que acontecia agora, pelo menos momentaneamente — deixou-a sa­tisfeita. Enquanto voltava correndo para casa, estivera pensan­do se Bert seria um daqueles homens a que Jasper se afeiçoava, como já acontecera, da mesma forma que um irmão menor, de­monstrando uma necessidade ansiosa que fazia o coração de Alice se apertar em angústia, para não ficar de fora nas aventuras. Tais manifestações sempre a consternavam, não por ciúme ela in­sistia com veemência para si mesma e às vezes para outras pes­soas —, mas porque tinha medo de que um dia pudessem ter­minar de maneira desastrosa.

Umas poucas vezes, homens que Jasper conhecera durante essas excursões a um mundo de que ele lhe falava, enquanto aper­tava seu pulso e a fitava atentamente à procura de sinais de fra­queza, haviam chegado a uma casa ou outra em que eles estavam instalados, sendo recebidos pela prestimosidade amistosa e fra­ternal de Alice.

Jasper? Ele voltará ao anoitecer. Não quer esperar?

Porém os homens sempre iam embora.

Mas quando havia por perto um homem como Bert, a quem ele podia se ligar, então Jasper não saía bordejando...uma palavra que ela costumava usar, casualmente.

Por onde você andou bordejando ontem à noite, Jasper? Tome cuidado. A situação já é bastante ruim, com a polícia de olho na gente por motivos políticos.

Esse era o poder que ela tinha sobre Jasper, os controles que podia usar. Ele respondia em tom afável e orgulhoso:

Tem toda a razão, Alice, mas eu sei me virar.

E ele podia contemplá-la com um dos seus súbitos sorrisos genuínos, bastante raros, que reconhecia que eles eram aliados, numa guerra desesperada.

Agora, Alice sorriu por um instante para Jasper e Bert e tornou a concentrar sua atenção em Philip.

O mais importante são os banheiros disse ela. Vou lhe mostrar.

Conduziu-o ao banheiro de baixo, levantando o lampião, enquanto paravam à porta. Desde o dia em que os operários da pre­feitura despejaram concreto no vaso, o pequeno banheiro se encontrava deserto. Estava empoeirado, mas normal.

Filhos da puta balbuciou Alice, com lágrimas na voz.

Philip parecia indeciso, e ela compreendeu que tudo depen­dia de sua pressão. Por isso, acrescentou:

Vamos precisar de uma britadeira. Tem uma? Alice percebeu que ele não sabia muito bem do que se tratava. Uma dessas máquinas que os operários usam para quebrar concreto nas estradas, só que menor.

Acho que conheço alguém que tem.

Pode arrumá-la esta noite?

Aquele era o momento, Alice sabia, em que ele podia sim­plesmente ir embora, abandoná-la, sentindo a opressão como acontecia com ela daquela casa violada; mas ela sabia também que assim que Philip começasse... E se apressou em acrescentar:

Já fiz isso antes. Sei como se deve trabalhar. E posso garantir que não é tão difícil quanto parece.

Ele continuou imóvel, sua pose ressentida e relutante revelando de novo que se sentia sufocado, e Alice insistiu:

Vai descobrir que não sairá perdendo. Sei que é disso que tem medo. Prometo.

Estavam agora bem próximos um do outro, na entrada do pequeno banheiro. Ele fitou-a da distância de poucos centíme­tros da intimidade súbita, viu seu rosto autoritário e tranqüili­zador como o de uma irmã mais velha mandona, mas gentil, e sorriu de repente, um sorriso franco e terno, dizendo:

Tenho de ir para casa, ligar para meu amigo, descobrir se ele tem mesmo a tal britadeira, pegar emprestado o carro de Felicity...

Ele estava zombando de Alice com a enormidade da tarefa.

Está certo murmurou ela. Eu ficaria muito agradecida.

Philip acenou com a cabeça e um momento depois passou pela porta da frente e desapareceu. Quando foi para a sala de estar, onde Jasper e Bert estavam, esperando como demonstravam pela maneira como sentavam, passivos e tranqüilos — que ela fizesse milagres, Alice anunciou, confiante:

Ele foi buscar algumas ferramentas. Voltará logo.

Ela tinha certeza de que isso aconteceria; e em menos de

uma hora Philip estava de volta, com uma caixa de ferramentas, britadeira, bateria, lanternas, tudo o que era necessário.

O concreto no vaso, ali posto há anos, estava se encolhen­do nos lados e não demorou a partir. O banheiro, arranhado e descolorido, estava agora usável. Isto é, desde que a água corresse. Pois havia um bloco de concreto vedando o registro ge­ral. Philip rompeu essa couraça com a broca ruidosa e nervosa e o registro apareceu, reluzente como uma coisa nova. Philip e Alice, sorridentes e triunfantes, ficaram olhando para o regis­tro recém-nascido.

Vou verificar se todas as torneiras estão fechadas, mas deixarei uma aberta — sugeriu ela suavemente.

Alice queria ter certeza absoluta antes de anunciar a vitória para os que esperavam na sala de estar, conversando sobre polí­tica. Circulou pela casa inteira, verificando as torneiras, e des­ceu correndo.

Depois de quatro anos, se não houver ar nos canos...

Ela apelou para Philip. Ele virou-se para o registro geral e

girou-o. No mesmo instante, os canos começaram a tremer e fazer barulho.

Ainda funciona! — exclamou Alice.

Ele foi verificar as caixas, enquanto Alice ficava no vestíbu­lo, com lágrimas de gratidão escorrendo pelo rosto.

Duas horas depois a água corria por toda a casa, os três banheiros estavam disponíveis e no vestíbulo se concentrava um grupo de comunitários incrédulos e exultantes, que haviam si­do informados, voltando de diversas partes de Londres, sobre o que estava acontecendo e que, de modo geral, não acredita­ram. E agora, Alice esperava, estavam envergonhados.

Mas podíamos ter feito tudo isso antes, há muito tem­po! — Foi Jim quem falou, entre pesaroso, incrédulo e alegre, para depois acrescentar: — Vou buscar todos os baldes que es­tão lá em cima. Podemos nos livrar da...

Espere um pouco! — gritou Alice. — Não pode ser as­sim. Tem de ser um de cada vez, ou podemos entupir todo o sistema, depois de tantos anos, quem sabe quanto tempo? Fize­mos isso uma vez em Birmingham, despejamos coisa demais de uma só vez... havia um cano rachado em algum lugar lá por baixo e no dia seguinte tivemos de abandonar a casa. Afinal, estamos apenas começando.

No comando dos outros e de si mesma, Alice estava parada no último degrau da escada, exausta, suja, coberta de fuligem e poeira do concreto se desintegrando, até nos cabelos, que estavam cinza. Todos aclamaram-na a sério, mas também com al­gum escárnio. E havia um tom de advertência, que ela não percebeu ou não deu importância.

Já temos a água, Philip — ela disse. — Agora, vamos cui­dar da luz.

E, em silêncio, Philip fitou-a, com uma expressão obstina­da e gentil, aquele frágil garoto — não, homem, pois ele já ti­nha vinte e cinco anos, como Alice descobrira, entre todas as outras coisas a seu respeito que precisava saber —, e subitamen­te todos estavam calados, porque haviam discutido, enquanto ele e Alice trabalhavam, quanto tudo aquilo custaria e com quan­to teriam de contribuir.

Se tivessem chamado um bombeiro — disse Philip —, sabe quanto teriam de pagar?

Umas duzentas libras — sugeriu Pat, que não interferira na operação delicada de Alice, Philip e a casa, mas estivera mais envolvida do que os outros, acompanhando os estágios do trabalho à medida que eram realizados e fazendo comentários, di­zendo como ela também já fizera isso e aquilo numa casa e outra.

Alice tirou as cinqüenta libras do bolso e entregou a Philip, dizendo:

Receberei minha pensão da previdência depois de ama­nhã.

Ele virou as notas, um total de cinco, pensando, Alice sa­bia, que se encontrava numa situação já conhecida. Depois, levantou os olhos, sorriu e anunciou:

Voltarei amanhã de manhã. Só posso cuidar da parte elétrica à luz do dia.

E se retirou, acompanhado não por Bert, que o trouxera, mas por Alice, que o levou até o portão, o lixo malcheiroso ao redor. Philip disse, com o sorriso meigo e dolorido que já atingira o coração de Alice:

Bom, pelo menos é para camaradas.

Afastou-se pela rua, onde as casas estavam agora mais escu­ras, depois que as pessoas haviam ido para a cama. Passava de uma hora da madrugada.

Alice voltou ao vestíbulo deserto e ouviu a descarga no banheiro. Prendeu a respiração, parada ali, pensando: Os canos... Mas pareciam estar funcionando direito. Jasper veio ao seu en­contro e avisou:

Vou dormir.

Onde?

Era um momento delicado. Na casa de sua mãe Jasper ti­nha seu próprio quarto, apropriando-se do que pertencia ao ir­mão de Alice, onde se eriçava todo, um ouriço-cacheiro zelando por seu direito de ficar sozinho à noite. Ela dizia que não se importava; sabia o que sentia; mas se importava e muito com os pensamentos dos outros, não a seu respeito, mas sobre Jasper. Agora, porém, estavam sozinhos no vestíbulo, podiam en­frentar a decisão juntos. Jasper fitava-a com a expressão opressiva que indicava que se sentia ameaçado, como Alice muito bem sabia. Pat se aproximou e avisou-os:

O quarto ao lado do nosso está vazio. Provavelmente precisa de alguma limpeza. Os dois que o ocupavam não eram muito...

No vasto vestíbulo escuro, onde o lampião projetava a sua poça indecisa de claridade, os três ficaram parados, as mulheres olhando para Jasper, Alice sabendo por quê, mas Pat ainda não. Alice sabia que Pat, de inteligência ágil e perspicaz, compreen­deria tudo num instante... e de repente Pat comentou:

Seja como for, é o melhor quarto vazio disponível...

Ela percebera tudo num instante, mas parecia que Jasper

não notara coisa alguma, pois disse, em tom efusivo:

Muito bem, Alice, vamos lá.

Pat acrescentou, enquanto eles subiam em silêncio:

Alice, não pense que não achamos você uma tremenda maravilha!

E ela riu. Alice, sem se importar, entrou atrás de Jasper no quarto grande e vazio. Ele já mexera em sua mochila, estenden­do o saco de dormir junto da extremidade da parede da direita, de maneira impecável, o mais longe possível. Alice disse:

Vou buscar minhas coisas.

Ela continuou parada por um momento, esperando que Jas­per a repudiasse, mas ele permaneceu imóvel, de costas, sem di­zer nada. Desceu correndo para o vestíbulo, torcendo para que Pat não estivesse mais lá. Mas estava, sozinha, em silêncio, como se esperasse que Alice descesse, querendo fazer o que fez então, que foi se adiantar, abraçar Alice e encostar o rosto no dela. Conforto. A garantia da camaradagem. E também compaixão. Alice sentiu, desejando poder dizer em voz alta: "Mas eu não me importo. Você não compreende".

Obrigada — murmurou, contrafeita.

Pat soltou um grunhido de riso e aceno, enquanto voltava para a sala de estar, onde — como não podia deixar de ser — os camaradas estavam discutindo Alice, Jasper e aquela explosão de ordem em suas vidas.

Lá em cima, no quarto, estava escuro, mas entrava um pouco de claridade, do céu e do tráfego. Alice estendeu seu saco de dor­mir com a base fina de espuma de borracha e um instante depois estava deitada de costas, junto à parede, do lado oposto àquele em que se encontrava Jasper, enroscado como sempre, numa solidão feroz, que a fazia se angustiar por ele. Jasper não estava dormin­do, mas não demorou a mergulhar no sono, como ela pôde per­ceber pelo relaxamento do corpo, como se tivesse sido arrastado pelas ondas para uma praia e lá ficasse abandonado.

Cansada demais para dormir, Alice ficou prestando aten­ção ao modo como as pessoas iam para a cama. Boa-noite, boa-noite, no patamar e no corredor. Roberta e Faye no mesmo quarto, é claro. Jim em outro. E, no quarto ao lado daquele, Pat e Bert. Oh, não, ela não queria isso, não queria o que sabia que ia acontecer. E aconteceu, os grunhidos, sussurros, movi­mentos e gemidos — bem do outro lado da parede, perto de seu ouvido. Era demais. O amor era demais; o que todos di­ziam que ela era uma tola por dispensar; até lamentavam por ela. Theresa e Anthony, todas as noites, sem falta, assim dizia sua mãe, depois de anos de casamento, grunhindo e ofegando, gemendo e querendo. Alice ficou completamente rígida, olhan­do para as sombras no teto, por onde as luzes dos carros na rua corriam e se perseguiam, seus ouvidos agredidos, a mente cons­ternada. Obrigou-se a pensar: Amanhã vamos cuidar de toda a parte elétrica... Dinheiro. Precisava de dinheiro. Onde? Da­ria um jeito. Não tinha a menor intenção de enganar Philip.

Philip, despedido seis meses atrás da empresa construtora — o primeiro a ser despedido, e Alice sabia o motivo, por causa de sua constituição franzina: é claro que qualquer patrão pensa­ria que ele era fraco demais —, estabelecera-se por conta pró­pria. Era agora um decorador e, assim esperava, empreiteiro. Ele possuía duas escadas compridas, uma pequena, um cavalete (mas precisando e muito de outro), brochas, algumas ferramen­tas; e podia pegar emprestadas outras coisas de seu amigo em Chalk Farm. Fora contratado para reformar uma casa, apesar de sua aparência frágil, e talvez por causa disso; recebera apenas a metade do pagamento, sendo informado de que não fizera o trabalho direito. Sabia que não lhe pagariam o resto; para isso, teria de recorrer à justiça, e não tinha condições. Estava vivendo da pensão do governo. Achava que poderia arrumar um tra­balho em breve, reformando um pub em Neasden. Ele dissera que tinha certeza de que conseguiria fechar o contrato, mas Alice não acreditava muito. Morava com Felicity (sua namorada?) no apartamento dela, a duas ruas dali. Ele tinha de ser pago.

Os ruídos do outro lado da parede haviam cessado, mas ago­ra recomeçaram. Alice arrastou seu saco de dormir para a ou­tra parede, com medo de despertar Jasper, que acharia que a sua proximidade era uma intrusão. E, como era inevitável, no momento em que ela se acomodou Jasper acordou. Ela pôde vê-lo fitando-a com uma expressão furiosa, rangendo os dentes.

Você está no meu espaço — disse ele. — Sabe que não nos intrometemos no espaço um do outro.

Alice disse:

Não gosto daquela parede.

Tal situação já ocorrera antes, muitas vezes, ela não preci­sava explicar. Soerguendo-se, apoiado no cotovelo, o rosto contraído em fúria e repulsa, Jasper escutou o que se podia ouvir claramente através da parede; depois, tornou a se estender, a res­piração acelerada. Alice acrescentou:

Preciso levantar cedo para tentar arrumar algum dinheiro.

Ele não disse nada. Dali a pouco a casa ficou em silêncio.

E Jasper tornou a adormecer.

Alice cochilou um pouco. Em sua mente, já estava vivendo o dia seguinte. Ficou esperando pela claridade, que entrou sombria pelas janelas imundas e revelou a sujeira do quarto. Ansia­va agora por um chá, alguma coisa para comer. Desceu para o vestíbulo, que ainda pertencia à noite e ao lampião, foi para a sala de estar, na esperança de que a garrafa térmica estivesse ali. Mas bebeu água fria de um jarro, depois usou o banheiro, com orgulho mas também com cautela, pensando nos canos que haviam ficado sem qualquer cuidado durante um número des­conhecido de invernos. Dirigiu-se então para a estação de me­trô, parando para o desjejum no Fred's Caff. Havia espaço para oito ou dez mesas, quase grudadas. Um local aconchegante, pa­ra não dizer íntimo. Quase todos os fregueses eram homens. Havia duas mulheres sentadas à mesma mesa. A princípio pare­ciam ser de meia-idade, por causa de sua apatia e calma; depois, podia-se perceber que eram mais jovens, mas cansadas. Prova­velmente faxineiras, depois de uma madrugada de trabalho em escritórios próximos. No balcão, Alice pediu chá e com um ar de desculpa torrada de pão de centeio; foi informada pela própria esposa de Fred, provavelmente, pois a mulher tinha um jeito de proprietária, de que não serviam torradas de pão de cen­teio. Alice foi procurar um lugar para sentar, levando o chá, um prato de torradas de pão branco pingando manteiga e uma fatia de bolo. Como uma concessão à saúde, voltou para buscar um suco de laranja. Era evidente que naquele estabelecimento seria melhor sentar com as duas mulheres, e foi o que fez.

As duas comiam torradas e tomavam um café aguado. Esta­vam sentadas em atitudes descontraídas e vazias de mulheres relaxando conscientemente; nos rostos que viraram para Alice havia sorrisos vagos e afáveis, como escudos. Não queriam con­versar, apenas ficar ali sentadas.

O sal da terra!, Alice disse a si mesma, respeitosa, observan­do aquela cena de operários se abastecendo para um dia de trabalho duro com pratos de ovos, batatas fritas, salame, pão frito, vagens cozidas tudo, enfim. Colesterol, refletiu Alice, agonia­da. Todos pareciam tão doentios! Tinham uma aparência páli­da e gordurosa, como bacon frito ou batatas fritas que não ficaram no fogo o tempo necessário. No bolso de cada um ou sobre a mesa, sendo lidos, estavam o Sun ou o Mirror. Meros extraviados, pensou Alice, aliviada porque não tinha a obriga­ção de admirá-los. Eram operários da construção civil ou traba­lhavam na abertura de estradas, talvez até fossem autônomos, trabalhando por conta própria; não eram aqueles os homens que salvariam a Inglaterra de si mesma! Alice recostou-se para sabo­rear a torrada encharcada de manteiga e logo sentiu-se melhor. Mesmo sem vontade de tomar o suco de laranja meio ácido, obrigou-se a bebê-lo, entre goles do chá amargo. As duas mu­lheres observavam-na com a mesma atenção indiferente que dis­pensariam aos hábitos exóticos de um estrangeiro, registrando tudo nela, sem darem a impressão de que o faziam. Ela tinha lindos cabelos crespos, podia-se ouvir as duas pensando; por que então não cuidava deles direito? Estavam cobertos de poeira! Era uma pena que usasse aquela grossa túnica militar, que a fa­zia parecer um homem! E olhe só para as mãos: ela não se dá o trabalho de manter as unhas limpas! Depois de condenarem, elas perderam o interesse, levantaram-se e foram embora, com gritos de despedida para a mulher atrás do balcão.

Ciao, Liz.

Até amanhã, Betty.

Elas apareciam ali todas as manhãs, depois de três ou qua­tro horas de faxina em escritórios. Aqueles homens passavam pelo café a caminho do trabalho. Todos se conheciam, Alice podia perceber; era como um clube. Ela terminou rapidamente e foi embora. Lá fora, junto à banca de jornais da esquina, as duas mulheres com quem ela estivera sentada estavam paradas, em companhia de uma terceira. Todas usavam calças informes, blusas e casacos de lã, e carregavam pesadas sacolas de compras. As ferramentas de trabalho. Conversavam animadas, ocupan­do o menor espaço que podiam, porque a maré cheia do movi­mento matutino de pessoas indo para o trabalho espalhava-se pelas calçadas.

Ainda era muito cedo. Passava apenas um pouco das oito horas. Sua mãe devia estar tomando banho. Se Alice fosse até lá agora, poderia entrar sem fazer barulho e preparar o café, fazendo uma surpresa à mãe, quando ela descesse, de roupão. Poderiam então sentar à mesa grande na cozinha, comer muesli e tomar café. Dorothy leria seu Times e ela, o Guardian. Todos os dias eram entregues naquela casa o Times, o Guardian, o Morning Star e o Socialist Worker,os dois últimos para ela e Jasper. Jasper dizia que lia o Worker porque era preciso sempre saber o que a oposição estava fazendo; mas Alice sabia que, secreta­mente, ele tinha tendências trotskistas. Não que ela se impor­tasse com isso; achava que os socialistas de todos os cre­dos deviam se unir pelo bem comum. Na casa da mãe ela lia o Guardian. Durante anos esse jornal fora o único que entrara na casa. Até que um dia a mãe fora visitar sua grande amiga Zoé Devlin e a encontrara usando um avental do Guardian, a palavra "Guardian" estava impressa em vários tamanhos, pre­to sobre branco. Isso provocara um choque em Dorothy Mellings; ela dissera que tivera uma revelação por causa da ce­na. Que Zoé Devlin, entre todas as pessoas do mundo, estives­se disposta a pôr o uniforme, a proclamar seu conformismo!

Fora o começo do período de lindas declarações forçadas da mãe — um período que ainda não acabara. E o começo também de uma série de reuniões entre as duas mulheres, com o objetivo de reavaliarem o que pensavam.

— Nós nos demos muito bem por décadas — Alice ouvira a mãe dizer ao telefone, iniciando a primeira discussão —, presumindo que concordávamos numa porção de coisas. O que não acontece. Uma ova que concordamos sobre tudo! Vamos ter de decidir se você e eu temos alguma coisa em comum, Zoé. O que me diz?

A típica merda intelectual, opinara Jasper, falando bastante alto, com a intenção de Dorothy ouvir.

Lembrando Jasper, Alice compreendeu que não podia simplesmente aparecer agora, fazer café e cumprimentar a mãe com um sorriso.

Pegou um trem e acabou encontrando outro café, onde ninguém a julgaria extraordinária. Estava quase vazio; o movimento maior não começaria antes de mais duas horas, quando apare­ceriam as pessoas fazendo compras, homens e mulheres. Alice comeu agora bolinhos de trigo integral e mel, recuperando o estado de graça. Com um olho no relógio, deixou o tempo pas­sar. A mãe provavelmente sairia para fazer compras por volta de nove e meia, dez horas. Tinha por hábito fazer isso logo ce­do, pois era uma coisa que detestava.

Alice fizera as compras durante quatro anos. E adorava. Ao voltar para a cozinha grande, carregando as caixas com alimen­tos que viajavam no carro, guardava tudo com extremo cuida­do. A mãe quase sempre estava presente (se Jasper não estivesse!) e ficavam conversando, como amigas. Sempre se deram bem. Em casa, Alice era uma boa moça, uma boa filha, como sempre gostara de ser. Era ela quem cuidava da cozinha... E é claro que a mãe tinha o maior prazer em deixá-la fazer isso. (Havia um pequeno pensamento inquietante escondido em algum lu­gar por ali, mas Alice resolveu ignorá-lo.) Durante os quatro anos em que Alice e Jasper residiram na casa, ela fizera as com­pras e cozinhara. E também cozinhava — às vezes requisitando a cozinha por dois ou três dias consecutivos — as comidas que vendia na feira.

Jasper costumava entrar rapidamente, aproveitando as oportunidades em que Dorothy não estava presente, e se empantur­rar com qualquer coisa que ela estivesse cozinhando naquele dia — "sua" sopa, por exemplo, bolos, pão natural. Ou, se ela não estivesse cozinhando, saíra para a feira, ele entrava furtivamen­te e tirava da geladeira qualquer coisa que lhe agradasse. Alice sempre a mantinha abastecida com presunto, salame e picles para ele. Jasper preparava enormes sanduíches, levava para o seu quar­to e lá ficava, sem descer por horas a fio. No início, Dorothy ainda perguntava, apreensiva:

O que Jasper faz lá em cima o dia inteiro?

Estuda — Alice sempre respondia, orgulhosa e intimidativa.

Ela sabia que, às vezes, Jasper não fazia absolutamente na­da durante o dia inteiro. Ele podia ler o Socialist Workerou o Morning Star. Afora isso, escutava música popular, com fone nos ouvidos; podia dançar pelo quarto sozinho, sem fazer barulho. Era muito gracioso, Alice o sabia, mas detestava ser vis­to, o que era uma pena. Jasper devia ter sido dançarino, quem sabe de balé?

Depois ele tornava a descer, sempre em silêncio, para bus­car mais comida. Nunca entrava de bom grado na cozinha se Dorothy estivesse lá. Nunca sentava para comer com elas. Quan­do Alice o censurara, dizendo que sua mãe não gostava disso, Jasper respondera que era ela que não gostava dele (o que era verdade, como se constatou depois, embora Dorothy não o dis­sesse expressamente no começo). Por sua vez, ele achava que Dorothy era uma vigarista vulgar. Esse epíteto, tão desproposi­tado, deixara Alice atordoada, e por isso ela apenas balbuciara:

— Como pode dizer uma coisa dessas, Jasper?

Ao que ele emitira ruídos sonoros, estalando os lábios. E claro que Jasper não estava presente quando Dorothy recebia convidados. No fundo, era como se ele nunca estivesse em casa, a não ser pelo constante furto de comida da cozinha. Qual­quer um pensaria que Dorothy lhe negava comida. Alice brigara com ele muitas vezes por causa disso e depois se punha a cho­rar quando ele reagia com injúrias.

Agora, sentada naquele café aconchegante, onde as pessoas que entravam podiam cumprimentá-la, comendo mais bolinhos, mais mel (para passar o tempo, agora, não por fome), Alice pen­sava: A verdade é que ela odeia Jasper, sempre odiou; as pessoas costumam odiá-lo. E provavelmente lhe negava mesmo comi­da... se o odiava. Alice finalmente pensou, com um sentimen­to que beirava o pânico: Como ela devia se sentir por não poder ocupar sua própria cozinha, nem sequer poder entrar, com me­do de esbarrar em Jasper? E mais: Eu simplesmente fazia tudo, preparava todas as refeições. E ela adora cozinhar...

Ás nove e meia Alice deixou o café, gritando uma despedi­da para Sarah, que trabalhava ali há anos. Outrora uma refugia­da da Áustria, era agora uma mulher idosa, com fotografias dos netos crescidos pregadas na parede, por trás do balcão. Alice encaminhou-se, não muito depressa, para a casa da mãe. Parou na frente por algum tempo, depois refletiu que qualquer vizi­nho que observasse poderia estranhar aquele comportamento. Entrou, usando a chave que não entregara à mãe quando fora embora, no dia anterior. Parou no vestíbulo, aspirando a casa, o lar, a casa grande, aconchegante, tranqüila, que recendia a ami­zade. Foi para a cozinha e seu coração disparou. Havia caixas no chão cheias de pratos e travessas, pires, xícaras e copos esta­vam empilhados em cima da mesa, já acondicionados em folhas de jornal. Ora, mas é claro! Agora que ela e Jasper tinham ido embora, a mãe resolvera dar a louça e outras coisas desnecessá­rias para um leilão de caridade. Só podia ser isso. Uma criança pequena, ameaçada, olhos arregalados e frenética, Alice ficou olhando para as caixas por um longo tempo, antes de subir cor­rendo para seu quarto. Estava como o deixara no dia anterior. Sentiu-se melhor. Subiu mais um andar, até o quarto que Jas­per usara. Havia no chão um tapete, um Bokhara. Antes estava na sala de estar, mas começara a ficar puído e encontrara um refúgio por baixo.de uma mesa naquele quarto, que quase não era usado, até que Jasper o requisitara. O tapete era lindo. Ali­ce enrolou-o ternamente e levou-o para a cozinha. Esperava agora não deparar com a mãe. Olhou ao redor, encontrou papel e caneta, escreveu: "Levei o tapete. Alice". Colocou o bilhete entre os copos embrulhados. Sentiu-se outra vez em perigo pe­la visão das caixas, mas fez um esforço para esquecê-las e saiu de casa. A mãe se aproximava do final da rua, sob um toldo de verde intenso. Andava devagar, a cabeça baixa. Parecia can­sada e velha. Alice seguiu apressada na outra direção, até perder a mãe de vista, depois passou a andar cada vez mais devagar, até Chalk Farm. A loja de tapetes acabara de ser aberta. Uma mulher de meia-idade sentava-se a uma escrivaninha, com uma xícara de café à frente; baixou os óculos escuros para fitar Alice por cima.

Quer vender? — perguntou ela. E quando Alice esten­deu o tapete no chão, ela acrescentou, a respiração acelerada:

Lindo!

Juntas, as duas ficaram imóveis, contemplando o tapete, fascinadas e acalmadas pela poça de cores suaves no chão. A mu­lher inclinou-se, pegou o tapete, suspendeu-o contra a luz. Alice deu a volta para ficar a seu lado e viu a luz passar pelo tapete, parecendo arder em um ponto. Sentiu um aperto na garganta e pensou, angustiada: "Vou levá-lo para a casa. E tão lindo... " Mas esperou, enquanto o tapete era largado no chão, caindo em dobras. A mulher disse, então:

Está muito puído. Teria de ser remendado. Eu não po­deria lhe dar mais que trinta.

Trinta? — repetiu Alice, em tom de lamúria. Não sabia o que poderia esperar. Sabia apenas que o tapete era ou fora valioso. E balbuciou, pensando que não valera a pena levá-lo:

Trinta.

Meu conselho é o de que você deve ficar com o tapete e aproveitá-lo — disse a mulher, voltando à mesa, deixando os óculos escuros retornarem ao lugar e tomando um gole de café.

Não posso — murmurou Alice. — Preciso do dinheiro.

Ela pegou as três notas e, depois de um último olhar prolongado para o tapete, ali abandonado, deixou a loja.

Depois de comprar comida para Jasper, foi para a casa. A rua estava com uma aparência matutina, vazia, as pessoas tinham ido trabalhar ou estavam na escola; as mulheres, dentro das ca­sas, arrumavam tudo ou cuidavam das crianças. Não esperava encontrar ninguém acordado em casa; em comunas como aquela, ninguém levantava cedo.

Mas Pat estava na sala de estar, sozinha, tomando café, da garrafa térmica. Indicou com um gesto que Alice devia se servir, mas Alice ainda estava com a barriga cheia do lauto desje­jum e sacudiu a cabeça.

Arrumei algum dinheiro, mas não o suficiente — in­formou.

Pat não disse nada. A claridade intensa da manhã, ela pare­cia mais velha, toda flácida e consumida, não mais com o bri­lho de cereja. Os cabelos ainda não haviam sido escovados, ela recendia a sexo e suor. Alice pensou: Hoje vamos limpar os ba­nheiros. Eram dois.

Pat continuava calada. Acendeu um cigarro e começou a fumar, como se planejasse se afogar em fumaça.

Alice já percebera que Pat era uma dessas pessoas que precisam de tempo para despertar completamente pela manhã e não iria dizer nada por algum tempo. Ela sentou, também em silên­cio, avaliou o estado em que se encontrava a sala. As cortinas eram trapos, e não se podia esperar que resistissem a uma lava­gem. Talvez sua mãe... O carpete ainda era aproveitável. Mas como arrumar um aspirador de pó?

Ela sabia que Pat a observava, mas não enfrentou seu olhar. Sentia que Pat era uma aliada e não queria desafiar essa impres­são. Pat disse finalmente, tossindo um pouco por causa da fumaça:

Apenas vinte e quatro horas! E esse o tempo em que vo­cê está aqui!

E ela riu. Não com hostilidade. Mas reservando-se um jul­gamento. Bastante justo, pensou Alice. Em política, era sempre assim que se devia agir...

Houve um súbito ruído na rua e o caminhão de lixo parou. Soltando uma exclamação, Alice saiu correndo e foi direto para os dois homens que carregavam as latas de lixo do jardim vizinho.

Por favor, por favor, por favor...

Eles pararam, lado a lado, fitando-a, homens enormes, for­tes por causa de seu trabalho, confrontados por aquela mulher que se mostrava ao mesmo tempo obstinada em sua decisão de não sair da frente e frenética. Alice balbuciou:

O que será preciso para vocês limparem este jardim? Eu sei, eu sei...

Os dois exibiam expressões de desdém repugnado, enquan­to olhavam da sórdida imundície para ela, de volta à sujeira, outra vez para Alice, retornando ao jardim, avaliando a tarefa.

Deveria ligar para a prefeitura — disse um dos homens.

Vocês são a prefeitura — insistiu Alice. — Não, por fa­vor... chegamos a um acordo. Temos autorização para ficar nesta casa. Pagaremos as despesas.

Dê um pulo até aqui, Alan — gritou um dos homens, para o caminhão, que não parava de vibrar, pronto para masti­gar qualquer quantidade de caixas de plástico, latas, papel, o li­xo que atulhava o jardim de sua casa, até a altura das janelas.

Outro homem enorme saltou do caminhão, de macacão azul, usando grossas luvas de couro. Alan, árbitro do destino de Alice, como Philip, como Mary Williams.

O que será preciso para vocês tirarem esse lixo? — perguntou ela.

Alice falou com calma confiante, como convinha à filha de sua mãe, e ao mesmo tempo com desespero. Eles ficaram olhan­do para ela, sem pressa, observando o rosto inchado, informe e infantil, os olhos azuis, redondos e ansiosos, jeans desbotados de tanta lavagem mas impecáveis, a túnica grossa, a blusa com um estampado de flores. E tudo, absolutamente tudo, impreg­nado de uma poeira cinzenta, que fora abanada e escovada, mas persistia teimosamente, como um obscurecimento da cor.

Deram de ombros, como um só. Três pares de olhos conferenciaram.

Vinte libras — disse Alan, o motorista.

Vinte? — lamuriou-se Alice. — Oh, não, vinte libras!

Uma pausa. Eles pareciam, como um só, constrangidos. A pausa se prolongou.

Ponha todo esse lixo em sacos plásticos, minha querida, e pegaremos amanhã. Por quinze.

Alice sorriu. Depois deu uma risada. E a seguir soluçou, murmurando:

Obrigada, muito obrigada...

Espere pela gente amanhã, querida — disse Alan, paternal.

Os três se afastaram, como um só, para a casa do outro la­do da rua e suas latas de lixo.

Alice verificou se o dinheiro continuava em seu bolso e entrou na casa. Pat ainda estava no mesmo lugar, num transe de fumaça. Jim descera e estava comendo as coisas que ela trouxe­ra para Jasper. Ela anunciou:

Se metermos tudo em sacos plásticos, eles levarão o lixo amanhã.

Dinheiro — disse Pat.

Dinheiro, dinheiro, dinheiro, dinheiro — disse Jim, metendo uma banana na boca.

Tenho o dinheiro. Se arrumar os sacos plásticos...

Ela se calou, com uma expressão suplicante.

Pode deixar que eu ajudo — prometeu Jim.

Tudo isso é ótimo, mas o que vamos fazer com a outra casa? — indagou Pat. — Podemos limpar tudo aqui, mas a situa­ção lá é muito pior.

Alice ficou olhando para ela, a boca rosada entreaberta, a expressão triste, e Pat acrescentou:

Será possível que não notou a casa ao lado?

Alice saiu correndo de novo e olhou pela primeira vez para o jardim do qual a vizinha lhe falara. Ordem suburbana. Mas havia uma sebe alta naquele jardim e mais além... Saiu para a rua, andou um pouco e viu, como não acontecera antes, porque fazia suas pequenas excursões por outro percurso, uma ca­sa idêntica à que estava reivindicando, com janelas quebradas, telhas faltando, um ar de abandono, o jardim cheio de lixo. O mau cheiro era horrível.

Ela voltou pensativa e amargurada para a sala de estar e perguntou:

Aquela casa está vazia?

A polícia esvaziou-a há três meses, mas está outra vez ocupada.

Não é problema nosso — declarou Alice, desconfiando que poderia se tornar. — Vou providenciar os sacos plásticos.

A quantidade suficiente custou dez libras. Pat olhou para a pilha preta lustrosa nos degraus e comentou:

Deve ter custado uma boa nota. — Mas ela não se ofere­ceu para contribuir. — Vamos recolher o lixo com as mãos?

Sem a menor hesitação, Alice foi para a casa ao lado, tocou a campainha, conversou com Joan Robbins e voltou com duas pás e um forcado.

Como consegue essas coisas? — indagou Pat, com uma ironia cansada, mas pegando o forcado e um saco e começando a trabalhar.

Era muito pior do que parecia, pois as camadas inferiores estavam comprimidas, apodrecidas e repugnantes. Um saco preto lustroso depois de outro recebeu a sua carga horrível. Foram sendo colocados lado a lado, até que o jardim estava atulhado de sacos pretos, quase transbordando de detritos em decompo­sição. O gato magro observava da sebe, os olhos fixos em Ali­ce. Incapaz de suportar por mais tempo, ela foi encher um pires com leite e outro com sobras de queijo, pão e batatas fritas frias. Levou para o gato, que se adiantou cautelosamente e comeu.

Pat estava parada, olhando para Alice. Que olhava para o gato. Jim apoiou-se numa pá e disse:

Eu tinha um gatinho. Foi atropelado.

Pat esperou por mais, mas não houve. Deu de ombros e comentou:

É a vida de um gato.

E continuou a trabalhar. Mas os olhos de Jim estavam marejados de lágrimas e Alice murmurou:

Sinto muito, Jim.

Eu jamais teria outro gato... não depois daquele.

E Jim também voltou a trabalhar, furiosamente. Não de­morou muito para que os jardins, o da frente e o dos fundos, estivessem limpos. A relva pálida parecia disposta a uma nova arremetida para a vida. Uma roseira, há muito submersa, exibia galhos finos e esbranquiçados.

Era um lindo jardim — disse Jim, satisfeito.

Estou fedendo — reconheceu Alice, amargurada. — O que vamos fazer agora? E ainda nem pensei na água quente. Se Philip chegar, avisem a ele que não vou demorar.

Ela entrou, encheu baldes com água fria no banheiro. Agua quente, pensava Alice, essa é a próxima etapa. Dinheiro.

Philip não apareceu.

Bert e Jasper desceram juntos, entretidos numa conversa responsável sobre as perspectivas políticas. Disseram a Alice e Pat que iam comer alguma coisa, notaram o jardim limpo e as filei­ras de sacos, comentaram "Bom trabalho" e partiram para o Fred's Caff.

Pat teria partilhado uma risada com Alice, porém Alice não estava disposta a enfrentar seus olhos. Nunca trairia Jasper, pa­ra quem quer que fosse! Mas Pat insistiu:

Deixei uma comuna antes porque tinha de fazer todo o trabalho. E diga-se de passagem que não eram apenas os homens... éramos seis, três mulheres, mas eu sozinha fazia tudo.

Ao ouvir isso, Alice olhou muito séria para Pat, fazendo uma pausa em seu trabalho de limpar uma janela.

É sempre assim. Há sempre uma ou duas pessoas que assumem todo o trabalho.

Ela ficou esperando que Pat comentasse, discordasse, levantasse uma questão de princípio.

Você não se importa disse Pat.

Ela parecia outra vez aprumada, tendo se lavado e escova­do os cabelos. Alice pensava: Está tudo ótimo, ela ajeitou os olhos, os lábios vermelhos e ele pode então... Sentiu-se amar­gurada e murmurou:

É sempre assim.

Que revolucionária comentou Pat em seu jeito espe­cial, que era amistoso, mas com uma mordacidade que sugeria, aparentemente, um julgamento seu, permanente e profundo, uma maneira intimamente arraigada cie encarar a vida.

Mas eu sou mesmo uma revolucionária declarou Ali­ce, muito séria.

Pat não disse nada, mas puxou a fumaça para o fundo de seus pobres pulmões e espichou a boca num beicinho verme­lho para soltar o jato, que flutuou em tentáculos para o teto sujo. Seus olhos acompanharam a fumaça em espiral, até que ela disse finalmente:

Eu acho que você é, mas há quem não tenha tanta certeza.

Está se referindo a Roberta e Faye? Ora, elas são ape­nas... facínoras!

Como assim? disse Pat, rindo.

Você sabe muito bem.

Com absoluta franqueza, Alice desafiou Pat a assumir uma posição, pois sabia que a outra não era facínora, mas uma pessoa séria, como ela própria. Pat não recuou da confrontação. Era um momento, as duas sabiam, de grande importância.

Um momento de silêncio, mais fumaça invadiu seus pul­mões, foi expelida, devagar, sibariticamente, as duas observan­do as espirais exuberantes.

Seja como for disse Pat —, elas estão preparadas para qualquer coisa. Podem enfrentar tudo. Até o pior, se for necessário.

E daí? reagiu Alice, calma e confiante. Eu também enfrentaria. Estou pronta para tudo.

Acredito em você.

Jim entrou na sala.

Philip chegou.

Alice saiu correndo e viu-o à luz do dia pela primeira vez. Um garoto franzino, um tanto encurvado mas era um ho­mem —, com as faces pálidas e encovadas, olhos azuis grandes e brilhantes, as mãos compridas, brancas e elegantes, cabelos lou­ros lustrosos. Trazia suas ferramentas.

A instalação elétrica? — disse Alice, seguindo na frente para a cozinha devastada, sabendo que havia mais uma coisa que precisava enfrentar e resolver.

Philip foi atrás, fechou a porta e perguntou:

Se eu acabar o trabalho, Alice, posso vir morar aqui?

Ela compreendeu agora que já esperava por isso. Afinal, to­das as vezes que surgira o assunto, seu acordo com a namorada, alguma coisa ficara por dizer. Philip explicou:

Estou querendo ser independente. Viver por conta pró­pria. Sabendo que Alice estava pensando nos outros, em seus planos, ele acrescentou: Sou da UCC. Por que haveria problema?

Mas não do IRA, refletiu Alice, sabendo que deveria cuidar disso depois.

Se depender de mim, a resposta é sim disse ela.

Isso seria o suficiente? Philip julgara que era ela quem mandava ali... e quem não pensaria assim?

Ele concentrou sua atenção nos fios que haviam sido arrancados do reboco e no fogão, que fora derrubado e estava caído de lado.

Havia amargura em seu rosto: a mesma raiva incrédula que Alice sentia. Estavam unidos, achando que poderiam destruir com suas mãos o que aqueles homens haviam feito com a casa.

Homens como os lixeiros, refletiu Alice, obrigando-se a pensar. Homens simpáticos. Fizeram tudo aquilo. Mas depois que abolirmos o imperialismo fascista, não haverá mais gente assim.

A esse pensamento surgiu uma imagem mental da mãe, que suspirava, ria, parecia exausta, quando Alice falava em tais coi­sas. Na semana passada mesmo, ela dissera, em seu novo âni­mo, amargo, lacônico e incisivo:

Contra a estupidez, os próprios deuses.

Como? indagara Alice.

Contra... a... estupidez... os... próprios... deu­ses... lutam... em vão declarara a mãe, separando as palavras, apresentando-as não como se esperasse alguma coisa de Ali­ce, mas lembrando a si mesma a inutilidade de tudo.

A amargura que Alice sentia contra a prefeitura, os operá­rios, o sistema, agora incluía também a mãe. Foi dominada por uma raiva intensa, que a deixou tonta e a fez cerrar as mãos. Recuperando o controle, percebeu que Philip a observava com uma expressão curiosa. Por causa de seu estado, que ele julgava mais violento do que o vandalismo dos operários merecia?

Eu seria capaz de matá-los — murmurou Alice.

Ouviu a própria voz, implacável. E ficou surpresa. Sentiu as mãos doerem e descerrou-as.

Eu também — declarou Philip, só que de uma maneira diferente.

Ele largara no chão as ferramentas e estava parado, espe­rando. Fitava-a com aquela obstinação, agora familiar e como­vente. A assassina em Alice se desvaneceu e ela disse, oferecendo a promessa que Philip precisava ter, antes de iniciar qualquer coisa:

Nada mais justo, se você fizer o trabalho.

Ele balançou a cabeça, acreditando em Alice; depois concentrou sua obstinação na atenção à parede mutilada.

Não está tão ruim assim — anunciou Philip, depois de um longo tempo. — Parece que arrebentaram tudo numa explosão de raiva, mas não causaram muitos danos.

Como? — indagou Alice, incrédula, pois lhe parecia que a cozinha... ou pelo menos duas paredes... estavam germinando cabos e fios elétricos pendentes, além do reboco que se acumulava na base dessas paredes desbotadas, com um aspecto lamentável.

Já vi coisas piores. — Uma pausa. — Terei de levantar as tábuas do assoalho. Não posso trabalhar de outra maneira.

O reboco caído endurecera, e Alice teve de quebrá-lo. A cozinha estava coberta por uma fina poeira branca. Ela trabalhava ao nível do chão, enquanto Philip se mantinha por cima, na mesa grande que arrastara para junto da parede. Não demo­rou muito para que o reboco e outros detritos estivessem em sacos, e Alice varreu tudo, com uma escova e uma frigideira, que eram as únicas coisas de que dispunha. Estava irritada e cho­rosa, pois sabia que cada centímetro do teto e das paredes teria de ser lavado e pintado. A casa inteira estava assim e ainda ha­via o telhado... o que encontrariam quando finalmente tiras­sem do horrível terceiro andar aqueles baldes fétidos? Alice escovava e escovava, cada movimento levantava mais sujeira para o ar, e ela pensava. Tenho de procurar o Departamento de Ener­gia Elétrica, mas como poderei ir até lá neste estado?

Ela levantou-se, uma aparição no ar saturado de poeira branca, e disse:

Sua amiga... está em casa? Será que ela me deixaria to­mar um banho?

Philip não respondeu: examinava um cabo, com a ajuda de uma lanterna. Alice acrescentou, furiosa:

Havia banhos públicos até o ano passado, muito bons, perto daqui, na Auction Street. Amigos meus os usavam... eles estão numa casa abandonada na Belsize Road. Mas a prefeitura os fechou.

Ela sentiu as lágrimas quentes escorrerem pelas faces esbranquiçadas e ficou olhando, exausta, suplicante, para as costas fran­zinas de Philip, quase femininas.

Tivemos uma tremenda briga quando saí de casa — informou Philip.

Alice pensou: Ela expulsou-o.

Ora, não importa. Darei outro jeito. Vou me limpar e depois procurar o Departamento de Energia Elétrica. Por isso, tome cuidado, pois eles podem ligar a corrente a qualquer momento.

Acha que pode convencê-los?

Já consegui outras coisas, não é?

Ao pensar nisso e em outras vitórias, Alice sentiu que a depressão se dissipava, e voltou a transbordar de energia.

No vestíbulo, as duas mulheres desesperadas estavam se preparando para sair para o mundo de ruas, jardins, vizinhos, ga­tos, carros e pardais.

Pareciam-se com as outras pessoas, pensou Alice, observando-as virar o rosto, a linda e loura Faye muito delicada, dentro do ambiente protetor quase tangível da morena Roberta, forte como um tanque — tão forte quanto eu, concluiu Alice, parada ali, sabendo que estava com a aparência de um palhaço que aca­bara de tomar um banho de farinha de trigo.

Ora, ora... — murmurou Faye, divertida.

Essa é ótima — comentou Roberta.

As duas riram e passaram pela porta, como se não tivessem nada a ver com todo aquele trabalho árduo.

Não adianta esperar coisa alguma — disse Alice para si mesma, estoicamente, depois de muita experiência com as pes­soas que faziam e com as que não faziam.

Subiu para o banheiro e ficou nua, desolada, enquanto a banheira se enchia de água fria, até o nível da marca de sujeira, que indicava onde já fizera a mesma coisa no início daquele dia. E mais uma vez ela entrou na água, esforçando-se para limpar a sujeira, a filha de sua mãe, pensando morbidamente nos qua­tro anos que passara na casa da mãe, onde a água quente saía obediente ao toque de um botão. Eles não sabem quanto isso custa, pensou Alice, furiosa. Tudo isso vem do suor dos operá­rios, de nós.

Fez o melhor que pôde; vestiu uma saia limpa e impecável, que tomara emprestada da mãe, com o gracejo apropriado: pre­cisava às vezes de uma saia para ter respeitabilidade, pois algu­mas pessoas se sentiam mais tranqüilas assim. Pôs outra blusa limpa, dessa vez a de algodão azul, que a fazia sentir-se confian­te. Arrumou da melhor forma possível os cabelos, ainda gordu­rosos e cheios de poeira, apesar de tê-los mergulhado num balde de água fria. Desceu para a sala de estar. Pat, relaxada numa pol­trona, dormia. Alice aproximou-se sem fazer barulho e contem­plou aquela desconhecida, que era sua aliada. E pensou: Ela não irá embora por enquanto. Não quer ir. Não tem Bert em alta conta, mas vai ficar por causa de todo o seu amor.

Pat estava esparramada na poltrona como se tivesse caído do teto, a cabeça inclinada para trás, o rosto levantado e expos­to. Os olhos e os lábios tremiam, prestes a se abrirem. Alice ficou esperando que ela despertasse e sorrisse. Mas Pat conti­nuou adormecida, vulnerável sob a inspeção meticulosa de Ali­ce. Ela sentiu que possuía Pat naquele olhar sua vida, o que ela era e o que seria. Nunca se permitiria dormir assim, exposta a qualquer um que entrasse e olhasse. Era uma atitude descuidada e tola, como andar na rua com dinheiro solto na mão. Alice adiantou-se e inclinou-se sobre Pat, a fim de observar melhor aquele rosto inocente, com os olhos fechados, por trás dos quais uma habitante se embrenhara por território desconhecido. Sentiu-se curiosa. Com que Pat estaria sonhando, parecendo um bebê tirando um cochilo, depois de tomar uma mamadeira? Ali­ce começou a sentir-se protetora, querendo que Pat despertas­se, caso os outros entrassem e a vissem assim, indefesa. Mas, a seguir pensou: Provavelmente será Bert, não é mesmo? A Bela Adormecida! Agora era desdém o que sentia, por causa da ne­cessidade de Pat. Se ela tem esse problema, então não há saída, disse Alice a si mesma, ponderada, dando os descontos necessá­rios. E, procurando não fazer barulho, deixou a sala de estar, atravessou o vestíbulo e saiu para o mundo exterior. Eram cerca de três horas de uma tarde de primavera fresca e revigorante. Alice pegou o ônibus para ir ao Departamento de Energia Elé­trica, com a maior confiança.

O departamento ficava num prédio grande e moderno, recuado da rua, onde enxameavam, em carros e a pé, pessoas ani­madas, poliglotas e necessitadas, cuja vida sustentavam com luz, chaleiras fervendo, vigorosos aspiradores de pó... energia. O prédio parecia consciente de seu papel: quase um milhão de pes­soas dependia de suas atividades. Era sólido e confiável. As ja­nelas faiscavam. Os carros dos funcionários estavam estacionados em filas ordenadas, reluzentes.

Alice subiu os degraus e, conhecendo o caminho por já ter visitado prédios similares, foi direto para o segundo andar, cons­tatando que se encontrava no lugar certo, pois havia uma sala em que cerca de dez pessoas esperavam. Contas atrasadas, no­vas ligações, ameaças de corte, uma pequena e paciente multi­dão de solicitantes. Havia duas outras portas na sala, e Alice sentou-se numa posição que lhe permitia ver através de ambas. Quando as portas se abriam para emitir um consumidor e ad­mitir outro, Alice examinava o rosto daqueles novos árbitros. Havia somente mulheres, sentadas por trás de suas respectivas mesas. Depois de um único olhar, ela compreendeu que havia uma que devia evitar. Aquela mulher cumpria a lei ao pé da letra, calculou Alice, percebendo uma certa satisfação na com­petência. Rosto e lábios finos, cabelos louros ondulados e im­pecavelmente escovados, um sorriso que Alice não tinha a intenção de ganhar. Mas a outra mulher poderia aceitar seus argumentos, embora à primeira vista... Ela era grande, e o ves­tido grosso e justo mantinha-a compacta e segura, desempenhan­do as funções de um espartilho, mas daquela fortaleza de vesti­do emergia um rosto largo, suave, um tanto infantil, e mãos enormes e também suaves. Alice procurou a posição adequada e no momento devido viu-se sentada diante daquela mulher ma­ternal, que sabia que várias vezes por dia contornava um pouco o rigor da lei, pois sentia pena das pessoas.

Alice contou sua história e descreveu — sabendo exatamen­te o que estava fazendo — a casa grande e sólida, que inexplicavelmente seria demolida, a fim de dar lugar a mais um repulsivo bloco de apartamentos. Depois, exibiu o envelope oficial da pre­feitura, com a carta dentro.

Aquela autoridade, a senhora Whitfield, apenas correu os olhos pela carta e disse:

Estou vendo que a casa foi incluída na agenda para discussão, mas isso é tudo. Ainda não houve uma decisão. Ela levantou um cartão no pequeno arquivo a seu lado. Número 43? Conheço a casa. Tem a 43 e a 45. Passo por lá todos os dias, a caminho da estação do metrô. E as casas me deixam enojada.

Ela olhou embaraçada para Alice, até corou.

Já começamos a limpar a 43. Os lixeiros vão levar todo o lixo amanhã.

Quer que eu providencie a religação agora, antes de sa­ber a decisão da prefeitura?

Tenho certeza de que será favorável disse Alice, sorrindo.

Ela estava mesmo convencida. A senhora Whitfield percebeu-o, sentiu-o e meneou a cabeça.

Quem vai garantir o pagamento? Você? Por acaso tem um emprego?

Não respondeu Alice. No momento, não.

Ela pôs-se a falar, de maneira calma e séria, sobre as casas em Halifax, Manchester e Birmingham que haviam sido salvas, em que a energia elétrica correra obediente através dos fios, de­pois de uma longa abstinência. A senhora Whitfield ficou escu­tando, sólida e firme em sua cadeira, enquanto a mão enorme e branca empunhava uma caneta esferográfica por cima de um formulário: Sim. Não.

Para autorizar a religação da energia, preciso primeiro de um fiador disse ela.

Mas sabe que essa exigência só existe aqui... talvez em mais um ou dois outros lugares. Em Lampton, por exemplo, vocês seriam obrigados a nos fornecer energia de qualquer ma­neira. Basta as pessoas pedirem que a ligação tem de ser feita.

Você parece conhecer a situação tão bem quanto eu comentou a senhora Whitfield, suavemente. Não sou eu quem formula a política, apenas a executo. E a política aqui é exigir um fiador.

Mas os olhos azuis da mulher, fixados em Alice, não eram combativos ou hostis, muito ao contrário; ela parecia estar ape­lando para que Alice apresentasse alguma solução.

Meu pai vai garantir o pagamento declarou Alice. Tenho certeza.

A senhora Whitfield já começara a preencher o formulário.

Então não há problema. Qual é o nome dele? Endere­ço? Telefone? Precisamos de um depósito.

Alice tirou dez libras e pôs sobre a mesa. Sabia que não era suficiente. A senhora Whitfield assumiu uma expressão cautelosa e assinou o formulário. Não olhou para Alice. Um mau sinal. Não pegou o dinheiro. Finalmente, ergueu os olhos para Alice e pareceu surpresa com o que viu.

Quantos vocês são? perguntou ela, apressada, como quem queria ganhar tempo, olhando para a nota e depois fazendo um esforço para confrontar o rosto de Alice, aquele ros­to que não aceitaria uma negativa.

Não era justo!, a senhora Whitfield parecia estar sentindo. Eram impróprias e erradas as emoções que Alice introduzira naquele escritório ordenado e sensato. Provavelmente o que a senhora Whitfield devia estar fazendo era dizer a Alice que fos­se embora e voltasse depois com provas suficientes de sua posi­ção como cidadã. Porém a senhora Whitfield não podia fazer isso. De jeito nenhum. Alice podia perceber pelo modo como o busto enorme arfava, pelo rosto um pouco corado e choca­do, que estava prestes a sair vitoriosa.

Está bem a senhora Whitfield acabou dizendo.

Ela permaneceu imóvel por um momento, não tanto emdúvida, pois já tomara sua decisão, mas preocupada. Por Alice.

Aquelas casas são enormes comentou ela, querendo dizer que consumiam muita energia.

Não haverá problemas garantiu Alice, sabendo que haveria. Pode fazer a ligação esta tarde? Temos um eletricis­ta trabalhando na casa e isso ajudaria muito...

A senhora Whitfield acenou com a cabeça. Alice foi embo­ra, sabendo que a mulher a observava, perturbada, talvez já especulando por que cedera.

Em vez de seguir direto para casa, Alice parou numa cabi­ne telefônica, na esquina, e ligou para a mãe. Não reconhe­ceu a princípio a voz que atendeu; mas era a mãe. Aquela voz horrível e sem qualquer inflexão... Ela quase disse "Aqui é Alice", mas não foi capaz. Repôs o fone no gancho gentilmente e ligou para o pai. Mas foi o sócio dele que atendeu.

Comprou uma garrafa térmica grande (que sempre seria útil, até em manifestações e piquetes), pediu à mulher de Fred para enchê-la com um chá forte e foi para casa.

A nuvem de poeira branca na cozinha se dissipara. Ela dis­se a Philip, agora agachado no chão, com metade das tábuas do assoalho levantada:

Tome cuidado, pois eles podem ligar a corrente a qual­quer momento.

Já ligaram. Acabei de testar.

Philip presenteou-a com um sorriso que fez com que tudo valesse a pena. Sentaram-se à mesa grande e tomaram o chá for­te, felizes, num clima de companheirismo. Era uma cozinha grande. Houvera um tempo em que uma família ali centraliza­va a sua vida, aquecida, segura e inabalável. Sentavam-se juntos em torno daquela mesa. Mas Alice sabia que era preciso dinhei­ro antes que tudo isso pudesse recomeçar.

Ela deixou Philip e foi para a sala de estar, onde Pat estava acordada, não mais esparramada e exposta à sua curiosidade an­siosa. Estava lendo. Um romance. De algum autor russo. Alice conhecia o nome do autor como conhecia o nome de muitos autores — ou seja, como se fossem objetos numa prateleira, só­lidos e fixos, reluzentes, com vida e luz próprias. Como boli­nhas de gude, que se podia revirar entre os dedos pelo tempo que se quisesse, mas jamais revelavam seus segredos, jamais se submetiam.

Alice nunca lia outra coisa além de jornais.

Quando criança, insistiam muito com ela: Alice tem um bloqueio contra os livros. Era uma leitora relutante, algo que não podia ser ignorado numa casa impregnada de livros. Seus pais, especialmente a mãe, as visitas, todas as pessoas que ela conhe­cia já tinham lido tudo. Nunca paravam de ler. Os livros entra­vam e saíam de sua casa em ondas.

Eles se reproduzem nas prateleiras — gracejavam os pais, e depois seu irmão, na maior felicidade.

Mas Alice acalentava seu bloqueio. Era um mundo em que podia optar por não entrar. Podia polidamente recusar. E persistia nessa atitude, sempre polida, mas firme, saboreando se­cretamente o poder que possuía de inquietar os pais.

Não vejo o menor sentido em toda essa leitura — dizia.

E continuara a dizê-lo, mesmo na universidade, estudando política e economia, ainda mais porque os livros que deveria ler não possuíam a qualidade inacessível e zombeteira daqueles outros.

Estou interessada apenas nos fatos — ela sempre afirma­va, durante esse período, quando não havia escapatória e tinha de ler pelo menos um mínimo de livros.

Mas, depois, aprendera que não podia dizer isso. Sempre houvera livros de todos os tipos nas casas ocupadas e nas comu­nas. Costumava especular como era possível que um camarada com uma visão lúcida e correta da boa vida estivesse disposto a arriscar tudo pela leitura de todos aqueles textos perigosos e equívocos, nos quais podia mergulhar por um instante, mas lo­go se retirava, como que escaldada. Chegara a ler em segredo, quase até o fim, um romance que fora recomendado como um instrumento útil na luta, mas experimentara a mesma sensação do tempo de criança: se perseverasse, deixando que um livro levasse a outro, poderia se descobrir perdida, sem mapas.

Mas ela sabia as coisas certas para dizer. E comentou agora, sobre o livro que Pat estava lendo:

Ele é um escritor muito humanista.

Pat fechou o Riso na escuridão e empertigou-se na poltro­na, com expressão pensativa, olhando para Alice.

Nabokov um humanista? indagou ela.

Alice compreendeu que havia o grave risco do que temia mais do que qualquer outra coisa: a conversa literária.

Eu acho que sim insistiu ela, com um sorriso modes­to e o ar de uma pessoa disposta a defender uma posição impopular, alcançada depois de muita reflexão. Ele se importa realmente com as pessoas.

Alguém algum camarada, em alguma ocasião, em algu­ma comuna recomendara: "Quando em dúvida, pode tachá-los de humanistas".

A expressão firme, interessada e pensativa de Pat lembrava uma coisa a Alice. Uma pessoa. Isso mesmo: Zoé Devlin. Era assim que ela olhava para Alice quando se falava em literatura; Alice não tinha então qualquer alternativa senão oferecer uma contribuição.

E, subitamente, Alice lembrou mais uma coisa. Zoé Devlin. Isso mesmo.

Uma briga ou pelo menos uma discussão entre Dorothy Mellings e Zoé Devlin. Recentemente. Não muito antes de Alice partir.

Ela se concentrava com tanto empenho na recordação que sentou, mal notando o que fazia e esquecendo Pat.

A mãe queria que Zoé lesse algum livro e Zoé dissera que não, pois achava que sua visão política era reacionária.

Como sabe se ainda não leu? indagara Dorothy, rindo.

Há uma porção de livros assim, não é? insistira Zoé. Provavelmente escritos pela CIA.

E você mesma quem está falando, Zoé? dissera Dorothy, parando de rir. E de fato Zoé Devlin? Minha grande amiga, a destemida e incorruptível Zoé Devlin, uma pessoa de mente aberta?

Espero que sim.

Eu também espero — continuara Dorothy, cada vez mais séria. — Será que ainda temos alguma coisa em comum?

Ora, Dorothy, pare com isso. Não quero discutir, mes­mo que você esteja com vontade.

Não está disposta a discutir sobre algo tão importante quanto um livro? Uma visão da vida?

Zoé acabara gracejando sobre a situação. E fora embora pou­co depois. Teria voltado à casa? Claro que sim, pois estava sempre entrando e saindo daquela casa há... desde que Alice nascera.

Zoé era uma das "tias" de Alice, como Theresa.

Por que não pensara em procurá-la para conseguir dinhei­ro? Espere um pouco, havia alguma coisa no fundo de sua mente... o quê? Isso mesmo, houvera aquela tremenda briga entre Dorothy e Zoé. E fora recente, não tinha mais de uma semana ou por aí. Apenas uma briga? Não, mais. Uma porção.

Dorothy dissera que Zoé era mole, como um sorvete de chocolate.

Haviam gritado uma com a outra.Zoé saíra correndo. Ela, Alice, gritara para a mãe:

Você não vai ter mais nenhuma amiga se continuar assim!

Alice estava se sentindo enjoada. E muito. Acabaria vomitando, se não tomasse cuidado. Continuou sentada, imóvel, com­primindo os olhos, mas falou normalmente, como se nada tivesse acontecido:

Estou com receio de que a polícia possa aparecer de novo.

Era isso o que ela viera dizer.

A polícia? Por quê?

Precisamos tomar uma decisão. Vamos supor que a po­lícia apareça de novo e entre na casa.

Já sobrevivemos a isso antes.

O problema são os baldes... todos aqueles baldes lá em cima. Não podemos esvaziá-los no sistema. Não tudo de uma vez. Seria um risco. Só Deus sabe como os canos estão lá em­baixo, onde não podemos ver. E se esvaziarmos um de cada vez... um por dia, por exemplo... vai levar uma eternidade. Mas se cavarmos um buraco...

Tem os vizinhos — disse Pat no mesmo instante.

Conversarei com a mulher da casa ao lado.

Não posso imaginar Joan Robbins pulando de alegria.

Mas vai acabar com a coisa de uma vez por todas, não é mesmo? E todos ficarão satisfeitos por isso.

Todo o trabalho teria de ser feito por você, Jim e eu.

Sei disso. Vou falar agora com Joan Robbins. Peça a Jim para ajudar.

Uma pausa. Pat bocejou, contorceu-se na poltrona, levan­tou o livro, tornou a baixá-lo e disse:

Está bem.

No jardim ao lado, que era bastante largo, dividido por um caminho de cascalho, Joan Robbins trabalhava num canteiro com um forcado. Debaixo de uma árvore, do outro lado, estava sentada uma velha, olhando para o céu.

Joan Robbins empertigou-se quando Alice apareceu, assumindo uma atitude defensiva. Mas Alice não lhe deu tempo pa­ra um protesto, pois foi logo dizendo:

Senhora Robbins, pode nos emprestar suas ferramentas por algum tempo? Queremos escavar um buraco. Bem grande. Para o lixo.

Joan Robbins, que já agüentara a irritação da casa 43 por muito tempo, deu a impressão de que ia dizer não, que já estava cansada de tudo aquilo. O rosto simpático estava furioso e corado.

Mas a velha sentada numa cadeira debaixo da árvore inclinou-se para a frente nesse momento. Seu rosto era encovado e arroxeado, os cabelos brancos eriçados. E ela disse, numa voz engrolada, velha, um pouco trêmula:

Vocês são muito porcos.

Não somos, não — protestou Alice, firmemente. — Estamos limpando tudo.

Pessoas porcas e desagradáveis — insistiu a velha, embo­ra já não com tanta segurança, depois de avaliar uma moça tão simpática parada no gramado verde, com os narcisos por trás.

Sua mãe? — perguntou Alice.

Uma inquilina — respondeu a senhora Robbins, sem moderar a voz. — Ocupa o apartamento de cima.

Alice compreendeu a situação num relance. Aproximou-se da velha e disse:

Como tem passado? Sou Alice Mellings. Acabei de me mudar para a casa 43. Estamos arrumando tudo e tirando o lixo.

A velha se encolheu: seus olhos pareceram ficar vidrados pelo esforço.

Até breve — acrescentou Alice.

Voltou para junto da senhora Robbins, que indagou, carrancuda, indicando as fileiras de sacos pretos lustrosos, todos cheios:

O que vão enterrar?

Ela sabia!

Vai acabar com o mau cheiro, de uma vez por todas — respondeu Alice. — Pensamos em cavar o buraco esta tarde e nos livrarmos de tudo esta noite... para sempre.

E uma coisa horrível — disse a senhora Robbins, choro­sa. — E uma rua muito agradável.

Amanhã, a esta hora, já não haverá mais lixo. O mau cheiro vai desaparecer.

E o que me diz da outra casa, a 45? As moscas são de­mais no verão. Não deveria ser permitido. A polícia bem que tira o pessoal de lá... mas eles sempre voltam.

Ela poderia ter dito "vocês". Alice insistiu:

Se começarmos a cavar agora...

Joan Robbins sugeriu:

Se cavassem bastante fundo...

Alice voltou correndo para a casa. Na sala em que o vira pela primeira vez, Jim tocava seus tambores. A princípio ele não sorriu, mas acabou por fazê-lo, porque era essa a sua natu­reza. Mas ressaltou:

Daqui a pouco estarão me dizendo: Jim, você tem de ir embora...

Ninguém vai dizer isso — garantiu Alice, fazendo outra promessa.

Ele levantou-se e seguiu-a; encontraram Pat no vestíbulo. Na parte do jardim mais distante da rua, escondida pela casa, havia um lugar que já fora um depósito de adubo. Começaram a cavar, enquanto do outro lado da sebe a senhora Robbins tra­balhava no canteiro, sem olhar para eles. Mas ela era a barreira contra o resto da rua abelhuda, que obviamente observava de suas janelas, trocando comentários, achando até mesmo que es­tava na hora de chamar a polícia de novo.

A terra estava macia. Encontraram o esqueleto de um cachorro grande, duas moedas antigas, uma faca quebrada, um for­cado de jardim enferrujado, que seria bastante útil quando fizessem a limpeza, depois uma garrafa... e outra garrafa. E logo estavam tirando uma garrafa depois de outra. De uísque, conhaque e gim, garrafas de todos os tamanhos, centenas, esta­vam afundados até a altura da cintura no buraco na terra, cer­cados por garrafas, anos de ressacas e esquecimento de alguém.

Pessoas voltavam do trabalho, paravam, olhavam, comentavam. Um homem disse, jovialmente:

Vão enterrar um cadáver?

Daqui a pouco a polícia vai aparecer comentou Jim, amargo, experiente.

Oh, Deus, essas garrafas! praguejou Pat.

O banco de garrafas murmurou Alice. Se tivésse­mos um carro... Quem tem um carro?

O pessoal da outra casa tem.

Da 45? Será que nos emprestariam? Precisamos nos livrar dessas garrafas.

Você é demais, Alice protestou Pat.

Mas ela encostou sua pá na parede da casa sabiam que do outro lado ficava a sala de estar, onde Bert e Jasper conversavam —, saiu para a rua transversal e encaminhou-se para a prin­cipal. Voltou pouco depois num velho Toyota. Eles estenderam sacos de plástico vazios nos assentos e encheram o carro com garrafas: atrás até o teto, a mala, o espaço na frente ao lado do motorista, deixando apenas lugar para Alice se agachar, enquanto Pat guiava até os grandes depósitos de cimento, onde trabalha­ram por quarenta e cinco minutos, quebrando as garrafas.

Já chega por hoje disse Pat, falando sério, enquanto estacionava o carro diante da casa 45.

Saltaram, e Alice olhou para o jardim, consternada.

Não vai querer limpar esse também! acrescentou Pat, outra vez mais uma declaração do que uma pergunta.

Ela foi para a casa, sem olhar para trás, subiu para o segun­do andar e entrou no banheiro.

Não fez qualquer comentário sobre a lâmpada nova, derramando alguma claridade pelo vestíbulo.

Alice pensou: Quantos cômodos a casa tem? Vamos pôr uma lâmpada em cada um? Mas isso custaria libras e mais libras, pe­lo menos dez. Preciso arrumar dinheiro...

Estava escuro lá fora. Uma noite úmida, ventando bastante.

Alice foi para a sala de estar. Bert e Jasper não estavam ali. Ela pensou: Nesse caso, seremos eu e Jim...

Jim estava outra vez com seus tambores. Ela entrou na ou­tra sala e disse:

Vou buscar os baldes. Você fica ao lado do buraco e jo­ga a terra. Bem depressa, antes que a rua inteira comece a reclamar.

Jim hesitou, parecia prestes a protestar, mas acabou concordando.

Ela nunca tivera de fazer nada tão repulsivo, em toda a sua história de comunas e casas abandonadas. O quarto que tinha apenas uns poucos baldes já estava horrível, mas o outro, maior, cheio de baldes transbordando, deixou-a com vontade de vomi­tar antes mesmo de abrir a porta. Trabalhou depressa, carre­gando dois baldes de cada vez, controlando o estômago em­brulhado, num miasma que não parecia diminuir, mas em vez disso se espalhava da casa para o jardim e a rua. Ela esvaziava os baldes, enquanto Jim rapidamente jogava terra por cima. O rosto dele tinha uma expressão horrível. Do jardim em frente vieram gritos de "Porcos!" Alice saiu para a pequena rua e pa­rou junto a uma sebe, bastante alta, dizendo a alguém que ob­servava do outro lado, um homem:

Estamos limpando tudo. Não haverá mais qualquer chei­ro depois desta noite.

Vocês deviam ser denunciados à prefeitura.

A prefeitura sabe declarou Alice. Está a par de tu­do o que fazemos aqui.

Sua voz era serena, confiante, no tom de um proprietário para outro proprietário. Retornou sob os lampiões para seu jar­dim escuro, com uma pose tranqüila, quase indiferente. E recomeçou o trabalho de descer os baldes.

Por volta das onze o buraco estava cheio, completamente coberto, e o mau cheiro já começava a se dissipar.

Alice e Jim ficaram parados no escuro, cercados pelas moi­tas confortadoras. Ele tirou um cigarro do bolso e acendeu-o; embora não costumasse fumar, Alice aceitou um. Fumaram jun­tos, tragando as nuvens de fumaça e soprando com força, ten­tando preencher o ar do jardim com aquela fragrância. Jim comentou, com uma risada consternada:

Era tudo merda minha. Ou quase tudo. Havia também de Roberta e Faye.

Sei disso. Não importa, agora.

Já pensou, Alice... alguma vez já parou para pensar a respeito... quanta merda fazemos ao longo da vida? Só estou aqui há oito meses, mais ou menos. Se toda a merda que fazemos na vida fosse posta num tambor... ou num tanque gran­de... precisaríamos de um tanque grande como o da usina de energia elétrica de Battersea para todo mundo. Ele estava rin­do, mas parecia assustado. Vai tudo para os esgotos, por bai­xo dos nossos pés. Mas já pensou o que aconteceria se os esgotos ficassem entupidos?

Isso não vai acontecer garantiu Alice, esquadrinhan­do na escuridão o rosto escuro de Jim, procurando descobrir o que o estava realmente assustando.

E por que não? Dizem que nossos esgotos são velhos e apodrecidos. E se explodissem, com o gás de esgoto?

Ele tornou a rir. Alice não sabia o que dizer.

E a gente continua a viver nesta cidade — acrescentou Jim, dominado pelo desespero. — Continuamos a viver...

Jim estava agora muito diferente de seu jeito habitual. Desaparecera a expressão doce e cordial. Era agora amargurada, irada e assustada.

Esqueça tudo isso, Jim. Vamos tomar um chá. O servi­ço já acabou.

É justamente o que eu estava querendo dizer — insistiu Jim, soturno. — Você diz vamos tomar um chá e acha que é o fim de tudo. Mas não é. De jeito nenhum.

Ele largou a pá e foi se trancar sozinho em sua sala.

Alice também entrou na casa. Pela terceira vez naquele dia ela foi para o banheiro encardido, fazendo um esforço para se lavar com água fria.

Depois, ela subiu. Todas as janelas do último andar esta­vam abertas, deixando entrar o ar fresco. Chovia. Os sacos de lixo ficariam com bastante água, o que poderia deixar os lixei­ros irritados.

Meia-noite. Alice desceu, bocejando, avaliando a casa mentalmente, a disposição dos cômodos, tudo o que precisava ser feito. Onde estava Jasper? Ela queria Jasper. A necessidade de Jasper a dominava de vez em quando, como naquele momento. Apenas saber que ele estava por ali, em algum lugar; ou, se não estava, chegaria em breve. Mas quando chegou ao último de­grau houve uma batida na porta, como um aríete em ação. A polícia. Sua mente disparou. Jasper? Se ele estava na casa, ficaria escondido? Bastava à polícia dar uma olhada em Jasper para agarrá-lo. Haviam gracejado muitas vezes que se a polícia avis­tasse Jasper a cem metros de distância, no escuro, partiria para o bote. Devia haver alguma coisa nele que era inadmissível. E Roberta e Faye? Por favor, Deus, faça com que elas ainda este­jam no piquete. A polícia só teria de dar uma olhada nelas tam­bém para entrar em ação. O tipo errado de policial acharia irresistível o seu jeito infantil. Mas Pat não seria problema. Nem Bert... Onde estava Jim?

Enquanto ela pensava em tudo isso, Pat passou pela porta da sala de estar e fechou-a, de um jeito que revelou a Alice que os dois homens se encontravam lá dentro; e Philip estava na porta da cozinha, segurando uma lanterna grande, acesa, e um alicate.

Alice correu para a porta da frente e abriu-a, tão depressa que os homens que a martelavam cambalearam para dentro, qua­se caindo em cima dela.

Entrem disse ela calmamente, avaliando a situação num olhar.

Os policiais exibiam a expressão de caçadores, que ela conhecia muito bem; mas a situação não era tão má assim, pois eles não estavam com o sangue quente, à exceção talvez de um, cujo rosto era familiar a Alice. Não como indivíduo, mas como um tipo. Um rosto frio, aprumado, com um bigodinho felpudo. Um rosto de criança, de olhos cinzentos, duros e frios. Ele gosta disso, refletiu Alice; e percebendo o olhar do homem ao redor, como se estivesse ansioso por atacar, mal contido por uma colei­ra, ela sentiu calafrios descendo pelas coxas. Tomou cuidado pa­ra evitar que o homem percebesse sua expressão e foi postar-se na frente de outro policial, grande e largo, que devia pesar pelo menos cem quilos. Um sargento. Ela também conhecia o tipo. Não era dos piores. Teve de levantar os olhos para fitá-lo, e o homem contemplou-a de cima, com olhar avaliativo.

Mandamos vocês saírem daqui disse esse homem, com o mesmo tom que os lixeiros haviam usado, um desdém duro, mas ao mesmo tempo fazendo um gesto para dois homens que estavam prestes a empurrar Pat para o lado e entrar na sala de estar, o que os levou a desistir.

Alice estendeu o papel amarelo e disse:

Estamos aqui com autorização.

Não estão, não disse o sargento, percebendo no mes­mo instante o ponto principal.

Ainda não, mas faltam apenas dois dias para isso in­sistiu Alice. Já fiz isso antes. Não há problemas, desde que se paguem as contas e se mantenha a casa limpa.

Limpa, hem? disse ele, inclinando-se para Alice, com as mãos nos quadris, como um sargento de teatro. O lugar está uma nojeira.

Viu todo o lixo lá fora. A prefeitura vai levá-lo amanhã. Já combinei com eles.

Combinou, hem? Então por que recebemos vários telefonemas de que vocês tinham aberto um buraco no jardim para enterrar estrume?

Estrume é mesmo a palavra confirmou Alice. Os operários da prefeitura encheram os vasos com cimento, e por isso havia baldes lá em cima. Precisávamos nos livrar deles. E cavamos um buraco.

Uma pausa. O homem enorme ficou parado ali, um pouco inclinado para a frente, deixando que o rosto largo e vermelho expressasse uma incredulidade controlada.

Vocês cavaram um buraco — murmurou ele.

Isso mesmo.

No meio de Londres. Vocês abriram uma fossa.

Foi justamente o que fizemos — concordou Alice, sem­pre polida.

E depois de abrirem uma fossa, vocês a encheram com...

O homem hesitou.

Merda — completou Alice.

Os cinco outros policiais riram, sorriram, prenderam a respiração, de acordo com suas naturezas, mas o jovem bruto a quem Alice prestava alguma atenção desde o início chutou subitamente a porta do armário debaixo da escada, quebrando-a.

Philip deixou escapar uma exclamação, e o homem avan­çou para ele no mesmo instante.

Você disse alguma coisa? — indagou o policial, assoman­do sobre Philip, que estava parado, em seu macacão branco, e podia ser facilmente desmontado com um chute.

Isso não importa — interveio o sargento, com plena autoridade.

Ele queria cuidar do crime principal. O policial rancoroso deu um passo para trás e parou, os punhos cerrados, os olhos fixados agora em Pat, que se mantinha relaxada, observando Alice. Avaliando o olhar dele, Alice compreendeu que Pat podia esperar o pior se encontrasse aquele homem em alguma ma­nifestação. E experimentou novamente a sensação de calafrio.

Quer dizer que vocês abriram um buraco no jardim e fizeram uma fossa, sem qualquer autorização? — indagou o sargento.

O que mais podíamos fazer? — respondeu Alice, em tom moderado. — Não podíamos despejar ao mesmo tempo dezenas de baldes de merda no sistema de esgoto. Não numa casa que estava vazia. Haveria então motivos maiores para reclama­ções, não é?

Outra pausa.

Não podem fazer esse tipo de coisa — declarou o sar­gento.

Batendo em retirada. Por favor, Deus, pensou Alice, não deixe que Pat ou Philip diga "Mas fizemos!"

Silêncio. A coisa estava na balança. Por favor, Deus, por favor, pensou Alice, não permita que nada aconteça, que as duas garotas não entrem o que seria a pá de cal ou que Jasper não resolva se intrometer... Pois Jasper, num certo ânimo, podia muito bem sair e provocar uma confrontação.

Mas a situação se manteve. Os cinco policiais que estavam dispersos pelo vestíbulo voltaram a se concentrar em torno de seu líder, como uma posse. Alice disse:

Com licença, mas pode me devolver isso?

O sargento ainda estava com o papel amarelo. Ele tornou a ler, solene, depois entregou-o.

Terei de comunicar a abertura do buraco ao Departa­mento de Agua disse ele.

Não havia canos onde cavamos declarou Alice. Ab­solutamente nenhum.

Apenas um esqueleto comunicou Pat, em tom negligente. Os seis homens se viraram em sua direção, como um só, com expressões iradas, e ela acrescentou: De um cachorro. Era a sepultura de um cachorro.

Os homens relaxaram. Mas continuaram a olhar para Pat. Ela os provocara, mas suavemente. A luz difusa da única lâm­pada, Pat estava descontraída, uma moça morena e bonita, com um sorriso polido.

Vamos voltar declarou o sargento, sacudindo a cabe­ça para a porta.

Todos saíram, o ameaçador por último, com um olhar frio e frustrado para Philip e Pat, mas sem dispensar muita atenção a Pat, uma pessoa comum, que não oferecia qualquer desafio.

A porta foi fechada. Ninguém se mexeu. Todos ficaram olhando para a porta; a polícia podia entrar de novo, arromban- do-a. Uma armadilha. Mas os segundos foram passando. Ouvi­ram um carro ser ligado. Alice acenou com a cabeça para Phi­lip, que parecia prestes a romper numa efusão de sentimento. E a porta foi aberta. Era o sargento.

Dei uma olhada naqueles sacos disse ele. Disse que serão levados amanhã?

Mas seus olhos vasculhavam o vestíbulo, detendo-se com um ligeiro franzido da testa na porta quebrada do armário sob a escada.

Isso mesmo, amanhã. Com voz desapontada, Alice acrescentou: Não foi muito legal quebrar aquela porta sem motivo algum.

Apresente queixa disse o sargento, lacônico, quase jo­vial, para desaparecer em seguida.

Fascistas de merda! disse Pat, quase numa explosão.

Todos permaneceram onde estavam. Era quase como se brincassem de "estátuas".

Eles deixaram passar dois ou três minutos e depois, como uma só pessoa, ressuscitaram, enquanto Jim emergia das som­bras de sua sala, sorrindo. Os quatro foram para a sala de es­tar, onde Jasper e Bert estavam refestelados, tomando cerveja. Alice compreendeu, pelo jeito dos dois, que Jasper estivera con­tando a Bert como ela era boa nessas coisas... refletindo crédi­to sobre si mesmo; e que Pat estava impressionada e Jim incré­dulo com a aparente facilidade de tudo. Ela sabia que aquele era o momento em que podia impor sua vontade em qualquer coisa, e em sua mente, no alto da longa agenda de dificuldades a serem superadas, um item se destacava: Philip e Jim.

Ela aceitou uma garrafa de cerveja oferecida por Bert, que a acompanhou com o sinal do polegar para cima. Logo to­dos estavam sentados num grupo compacto no centro da sala alta. Ainda não houvera tempo para substituir a luz de vela por uma lâmpada. Mas Philip manteve-se um pouco apartado, hesitante.

Primeiro disse Pat —, a Alice!

Todos beberam a ela, que se manteve em silêncio, sorrin­do, com medo de chorar.

Agora, pensou ela, vou resolver o problema de Philip. E de Jim. Vamos acertar tudo.

Mas no vestíbulo, subitamente, soaram vozes, risos. Um momento depois as duas garotas entraram na sala, acesas com a exal­tação que deriva de um dia satisfatório em piquetes, manifes­tações e marchas.

Roberta, rindo, aproximou-se do engradado, pegou uma garrafa, levou à boca, tomou um longo gole de cerveja. Estendeu a garrafa para Faye, que também bebeu.

Que dia! exclamou Roberta, indo se instalar no braço de uma poltrona, enquanto Faye ocupava o outro.

Uma dupla apartada, elas contemplaram o resto, como aventureiras, e iniciaram seu relato, Roberta liderando, Faye com­pletando os detalhes.

Eram cerca de duzentos ou trezentos piqueteiros — os números variaram, já que muitas pessoas apareciam e iam embora evitando que os caminhões com jornais passassem pelos por­tões para serem distribuídos. A polícia estava presente para pro­videnciar que os caminhões passassem incólumes.

Duzentos guardas! disse Roberta, desdenhosa. Duzentos guardas escrotos!

Mais guardas do que piqueteiros — acrescentou Faye, rindo.

Roberta olhou para ela, cheia de afeto. Animada e exultan­te, Faye era bonita de verdade. Sua aparência de apatia, até mesmo de depressão, desaparecera por completo. Parecia cintilar na sala escura.

Tive de impedir que Faye ficasse muito exaltada — informou Roberta. — Caso contrário ela estaria lá na frente. E com nós duas tendo de nos manter escondidas...

Houve prisões?

Cinco — respondeu Roberta. — Levaram Gerry. Mas ele não foi quietinho.

Não foi mesmo — acrescentou Faye, orgulhosa.

Quem mais?

Não conhecíamos os outros. Acho que eram da turma dos militantes.

Uma pausa. Alice sabia que perdera a vantagem e sentiu-se desanimada. E, percebendo a expressão de Jasper, enquanto ob­servava as duas garotas, ela pensou: Ele estará lá amanhã, se bem o conheço.

Vou para lá amanhã — anunciou Jasper.

Ele olhou para Bert, que disse:

Certo.

Bert olhou para Pat e ela murmurou:

Estou nessa.

Silêncio. Faye rompeu-o, muito excitada:

Eu gostaria de acabar com um daqueles camburões. Quando vi aquela coisa parada ali, blindada, toda iluminada, com uma tela no pára-brisa, senti o maior ódio... parecia a própria essência do mal.

Tem razão — concordou Bert. — Simboliza tudo o que odiamos.

Eu gostaria... eu gostaria... — Percebendo como o amante a fitava, Faye bancou a coquete nesse momento, acres­centando com um tremor provocante: — Eu gostaria de cravar os dentes no camburão!

Roberta deu-lhe um tapinha afetuoso no ombro e depois abraçou-a por um instante.

Mesmo assim, nós duas não devemos aparecer lá outra vez — ressaltou ela. — Não podemos ser apanhadas.

Por que não? — protestou Faye. — Basta a gente tomar cuidado.

É claro que eles fotografaram todo mundo — interveio Jim, muito excitado. — Devem ter os retratos de vocês.

Mas não estávamos fazendo nada — insistiu Faye. — E muito azar ter de ficar na moita...

Eu irei — anunciou Jim. — Terei o maior prazer. Sacanear os porcos.

Falou com sinceridade e algum pesar, o que fez com que Faye e Roberta o fitassem, curiosas. Bert disse:

A polícia esteve aqui esta noite.

Ainda bem que não estávamos — comentou Roberta.

Alice cuidou deles — explicou Pat. — Ela é uma verda­deira maravilha.

Porém ela não falou com a mesma cordialidade que teria se as duas mulheres não tivessem aparecido para dividir as fidelidades.

Tudo arruinado, pensou Alice, amargurada, surpreenden­do a si mesma. Um momento antes, ela refletira: Aqui estou eu a me preocupar com uma casa, enquanto elas estão fazendo algo sério.

Ora, muito bem — disse Faye, descartando a visita da polícia à casa como algo sem importância, em comparação com os grandes problemas. — Tenho de dormir agora, se quiser acor­dar cedo amanhã.

As duas se levantaram. Roberta olhou para Philip, que ain­da estava sentado ali, apartado, esperando.

Vai passar a noite aqui? — perguntou ela.

Philip olhou para Alice, que se apressou em dizer:

Eu disse a Philip que pode ficar aqui.

Ela ouviu o tom de apelo em sua voz, sabia que estava com a sua cara, sabia que podia a qualquer momento perder o controle e desatar a chorar.

O corpo de Roberta mudara sutilmente, parecia mais duro, indignado, embora ela se esforçasse para manter uma expressão imparcial. Philip dava a impressão de que estava recebendo gol­pes invisíveis.

Roberta olhou para Bert, alteando as sobrancelhas. A expressão de Bert era neutra; ele não tomaria partido. Mais uma vez, Alice pensou: Ele não é grande coisa. Não presta.

Alice olhou para Pat e percebeu algo que poderia salvar a situação. Pat esperava por Bert; isso mesmo, algo fora dito, dis­cutido, quando ela não estava presente. Uma decisão? Pat final­mente falou, já que Bert não se manifestava:

Philip, Alice não pode tomar decisões individualmente. Alice, você sabe disso. Precisamos discutir o assunto.

Nesse ponto ela olhou para Jim, que declarou no mesmo instante:

Cheguei aqui antes de qualquer um de vocês. Esta casa era minha. Ele parecia furioso, estava furioso, a jovialidade risonha desaparecera. Eu disse a vocês que podiam ficar, que esta era a Casa da Liberdade.

Ali estava uma questão de princípio. Alice a reconheceu e pensou: "E Jim quem vai salvar Philip!" Jim acrescentou:

E depois vocês vêm me dizer: "Este não é o seu lugar, tem de sair daqui". Não dá para entender!

Roberta e Faye se levantaram. Roberta disse:

Devemos convocar uma reunião de verdade e discutir o assunto direito.

Philip também se levantou e disse:

Estou trabalhando aqui há dois dias. As cinqüenta libras não pagariam a fiação que já usei.

Alice olhou desesperada para Jasper. Que estava esperando uma manifestação de Bert. Que sorriu calmamente, os dentes brancos e os lábios vermelhos brilhando na barba preta.

Pat levantou-se. E disse bruscamente, desapontada com Bert:

Não vejo qualquer motivo para que Philip não possa fi­car. Por que não? E Jim já estava aqui antes de qualquer um de nós chegar. Agora vou me deitar. Se queremos participar do piquete amanhã, então devemos levantar até as oito horas, o mais tardar.

Eu estarei no piquete declarou Philip.

Alice respirou fundo e conteve um gemido. Depois, murmurou:

Arrumarei o dinheiro. Terei amanhã à noite.

Philip soltou uma pequena risada desapontada.

E possível disse ele. Mas não é essa a questão. Se eu me preocupasse apenas com o dinheiro, nem estaria aqui.

Tem toda a razão concordou Pat. Bom, acho que todos estaremos no piquete amanhã.

Ela bocejou e espreguiçou-se, vigorosamente, sensualmen­te, lançando um olhar para Bert, que reagiu se levantando e passando um braço por seus ombros.

Oh, não, pensou Alice, não de novo!

Roberta e Faye saíram, de mãos dadas. Boa noite. Boa noite.

Bert e Pat também deixaram a sala, enlaçados.

Jasper foi atrás deles. Alice ouviu-o subir a escada corren­do, fazendo o maior barulho. E disse a Philip e Jim:

Está tudo acertado.

Mas você não pode dizer que está, não individualmente ressaltou Philip.

Isso mesmo acrescentou Jim.

Ele perdera sua agressividade irada. Voltara à sua personalidade sensata, sorridente. Mas Alice pensou: Se o expulsarmos, ele voltará uma noite e arrebentará toda a casa. Ou algo pareci­do. Ela ficou surpresa porque os outros não haviam percebido isso, não haviam sentido.

Philip disse a Alice, assumindo uma posição que já tivera de adotar muitas vezes antes, como ela desconfiava:

Não vou trabalhar aqui amanhã. Irei com os outros. Afi­nal, a luta contra os capitalistas é mais importante que o nosso conforto.

Sem pagamento, não há trabalho! Ele saiu e foi possível ou­vir seus passos na escada.

Jim também saiu, sem dizer boa-noite, e foi se refugiar em sua sala. Começou a tocar seus tambores, baixinho, em tom emocional, como uma ameaça.

Alice estava sozinha. Deu a volta pela sala, apagando as ve­las. Ficou esperando que os olhos se ajustassem, a fim de poder ver na escuridão irregular os contornos assumindo forma, o en­costo de uma poltrona, a quina dura de uma mesa. E pensou: A próxima coisa que farei será...

Ao deixar a sala, sentia-se preocupada: Será que Jasper le­vou suas coisas para outro quarto? Seu coração pareceu se con­trair. Pois se Jasper a excluísse, ela sabia que, com a presença de Bert, seria difícil manter com ele a ligação que era o sentido e propósito de sua vida. Tinha certeza de que Jasper não a deixaria, mas podia se afastar muito.

Passou para o vestíbulo, agora vazio e enorme, sem ninguém. Apagou a luz. Subiu no escuro, sentindo o carpete puído bastante escorregadio, na escada e no patamar do andar em que os outros estavam, por trás das portas fechadas. Até Philip se encontrava ali, no quarto pequeno, depois do grande que Ro­berta e Faye ocupavam. Jim sempre dormia lá embaixo, onde estava sua música e também porque seria mais fácil pular pe­la janela e fugir, se fosse necessário.

Alice abriu a porta de seu quarto e constatou, com um alí­vio que deixou seus joelhos bambos, que Jasper ali estava, enroscado contra a parede, parecendo um bicho na semi-escuridão.

O saco de dormir de Alice estava junto à mesma parede; no pas­sado, ele já o afastara muitas vezes. Foi se deitar, completamen­te vestida.

Jasper...

O que é?

Boa noite.

Ele não disse nada. Os dois ficaram em silêncio, prestando atenção para descobrir se Pat e Bert recomeçariam. E foi o que aconteceu. Mas Alice sentia-se esgotada. Pegou no sono imedia­tamente e quando acordou já era dia claro. Jasper já saíra, e ela sabia que todos os outros também. Estava sozinha na casa, à exceção talvez de Philip. Foi verificar. Nem Philip; e suas fer­ramentas estavam perto do buraco no assoalho, onde estivera trocando os fios.

Ela precisava arrumar dinheiro. De qualquer maneira.

Eram nove horas da manhã.

Alice pensou: Se eu falar com mamãe, explicar a situação... Mas a perspectiva dissolveu-se num poço de consternação. Não lembrava exatamente o que a mãe dissera, mas sua voz vazia, como se toda a vida tivesse sido sugada... disso ela recordava. O que será que está acontecendo com mamãe?, pensou Alice, indignada.

O pai. Mas ele tem de me dar algum dinheiro! E vai dar! Essa perspectiva também morreu; não podia sobreviver... Descobriu que estava pensando na casa nova do pai. Isto é, não era tão nova assim; o pai já morava lá há mais de cinco anos, pois ela e Jasper só tinham ido se instalar com a mãe depois que ele saíra há mais de um ano. Uma nova esposa. Dois novos filhos. Alice imaginou a casa, em que já estivera várias vezes. O jar­dim: Jane. Jane Mellings,com seus dois lindos bebês no jardim enorme, abundando agora com as flores da primavera.

Alice pareceu ressuscitar, desceu correndo, pegou a túnica e saiu para a rua, onde as pessoas começavam a ligar seus carros para ir ao trabalho. Enquanto corria, pensava: Os lixeiros disseram que viriam! Mas ela só se ausentaria por uma hora. Eles não virão tão cedo... mas como posso ter certeza? Se aparece­rem e não encontrarem ninguém... Mesmo assim, continuou a andar, o mais depressa que podia, pensando: Mas eles não vão aparecer por enquanto. Tenho certeza absoluta.

Ela ofegava ao entrar na estação do metrô, arrancou um bilhete da máquina, desceu a escada e chegou à plataforma no ins­tante em que um trem parava. Não ficou surpresa, sabendo que as coisas estavam transcorrendo a seu favor naquela manhã. Fi­cou se remexendo inquieta, de pé, no trem apinhado, subiu cor­rendo a escada na outra estação, avançou rapidamente pelas ruas arborizadas e foi parar na frente da casa do pai, que ficava a menos de um quilômetro da casa da mãe.

Avistou no jardim, como já esperava, a nova esposa do pai, Jane, sentada na grama, sobre uma manta grande, de listras ver­melhas e verdes, em companhia de duas crianças pequenas, cu­jas cabeças louras refletiam os raios do sol.

Alice desviou os olhos da cena, como se o olhar pudesse ter a força de obrigar Jane a fitá-la. Encaminhou-se para a porta da frente, descobriu que estava trancada, deu a volta para os fundos. Estava agora à plena vista de Jane, se ela virasse a cabeça. Alice entrou na cozinha, que fez seu coração se confranger, por ser espaçosa, com uma vasta mesa de madeira, sobre a qual as­sentavam tigelas com frutas e flores, coisas que para ela eram o símbolo da felicidade.

Foi para o vestíbulo e subiu a escada, pensando que se o pai estivesse atrasado para o trabalho — o que nunca acontecia — ela diria: Olá, papai, finalmente o encontrei! Abriu calmamente a porta do quarto e deparou, como já esperava, com uma enorme cama de casal, as cobertas empurradas para um lado, a camisola de Jane (de seda vermelha), o pijama do pai, uma bola listrada de criança, um ursinho de pelúcia.

Alice foi direto para as portas corrediças por trás das quais estavam penduradas as roupas do pai. De maneira impecável: o pai era um homem metódico. Revistou os bolsos, sabendo que encontraria alguma coisa, pois sempre fora uma piada, em sua casa, que Dorothy Mellings sempre descobria dinheiro nos bolsos do marido e o gastava com extravagâncias. Ele, o pai de Alice, indagava:

Afinal, em que gastou o dinheiro?

E a mãe de Alice respondia:

Pêssegos conservados em conhaque.

Ou marrons glacês. Ou uísque Glenfiddich.

As mãos de Alice entravam e saíam rapidamente dos bol­sos, e ela orava. Oh, Deus, faça com que haja algum dinheiro, faça com que haja bastante. Seus dedos encontraram um maço grosso e ela tirou-o, sem acreditar em sua sorte. Um enorme maço de notas. E notas de dez libras. Meteu-as no bolso da túnica e saiu do quarto. Desceu a escada, atravessou a cozinha e saiu para o quintal dos fundos. Nem parou para verificar se Jane estava olhando para o outro lado. Sabia que estava.

Afastou-se apressada pela rua, e um momento depois a casa estava fora de vista. Parou então, virada para uma sebe alta, e contou as notas. Não queria acreditar, mas era verdade. Trezentas libras.

O pai daria por falta daquele dinheiro; não era apenas um vidro de gengibre ou de pêssegos em conserva. Trezentas libras. O pai pensaria que ela roubara... Jane roubara. Pois que pen­sasse assim! Alice experimentou um prazer frio e azedo, tor­nou a guardar as notas e saiu correndo. Os lixeiros!

Cerca de quarenta e cinco minutos depois de sair ela estava de volta à casa e viu o caminhão do lixo virar a esquina.

Sabia, tinha certeza, que tudo correria bem. Ficou parada ali, sorrindo, o coração disparado, fazendo o sangue latejar em seus ouvidos.

Os mesmos três homens do dia anterior saltaram do cami­nhão do lixo. Reconheceram-na, acenaram com a cabeça e começaram a carregar os sacos pretos e lustrosos. Não disseram uma só palavra sobre a chuva, que tornara ainda mais pesados os sacos com o lixo.

Levaram cerca de vinte minutos; Joan Robbins veio se pos­tar diante de sua porta e ficou observando, de braços cruzados. Quem mais estava observando? Alice não olhou, mas fez questão de ir até a sebe para falar com Joan Robbins e sorrir: vizinhas trocando comentários, seria isso que os observadores veriam. Depois, foi até o portão, por onde o último saco de lixo acabara de passar, e entregou quinze libras a Alan, o moto­rista, com o sorriso de uma dona-de-casa. Entrou. Passava um pouco de dez horas. O dia inteiro estendia-se pela frente, e cada minuto seria ocupado com alguma atividade útil. E seria mes­mo, assim que começasse. Pois seu vapor se esgotara. Estava ago­ra pensando neles, seus amigos, sua família; deviam estar diante das oficinas em Melstead, misturados com os outros piquetei­ros, avaliando a disposição da polícia, circulando confiantes, tro­cando comentários que os guardas tinham de ouvir e ignorar... ignorar até poderem se desforrar mais tarde.

Bert, Jasper e Pat, Jim e Philip, Roberta e Faye... ela es­perava que as duas tomassem todo o cuidado. Ora, eram todos politicamente amadurecidos, sabiam até que ponto podiam ir. Jasper? Bom, Jasper não participava de uma confrontação há muito tempo; por um lado, ele acabara de cumprir em liberda­de uma pena de dois anos. Ela não queria mantê-lo sempre em segurança, mas apenas que as coisas fossem feitas da maneira certa. Jasper era incontrolável, fora condenado a dois anos não por alguma coisa útil — na opinião de Alice —, mas apenas por descuido.

Sentou-se sozinha, envolta confortavelmente pela sala de estar grande e surrada, e viu que estava com fome. Não tinha ener­gia para sair de novo. Havia junto à parede um malote amar­rotado de estafeta, com um pão e um pouco de salame. Só Deus sabia há quanto tempo estavam ali, mas ela não se importou. Comeu devagar, tomando cuidado com as migalhas. Precisaria de ajuda para aquela sala: era muito grande e o teto bastante alto. Mas a cozinha... Precisou de uma hora para se decidir a entrar em ação; estava mesmo cansada. Além do mais, desfru­tava mentalmente o prazer de gastar o dinheiro, que podia sen­tir num volume grande e macio logo abaixo do coração. Mas acabou fazendo um esforço e se levantou, foi para a cozinha. Enchendo os baldes com água fria — infelizmente —, começou a trabalhar. Esfregou o teto e as paredes, deslocando a escada em torno do fogão, que ainda estava caído de lado no chão. Em determinado momento, sentiu que as lágrimas escorriam pelo rosto... pensava nos outros, todos juntos, gritando em unís­sono:

Abaixo Thatcher! Abaixo Thatcher! Abaixo Thatcher!

E mais:

Abaixo a polícia! Abaixo a polícia! Abaixo a polícia!

Podia ouvi-los entoar:

Os operários unidos jamais serão vencidos!

Pensou como um deles — Philip, isso mesmo, seria Philip - iria a um pub e compraria sanduíches e cerveja para os outros. Talvez houvesse até uma cantina ambulante àquela altura; devia haver, já que o piquete operava há algum tempo.

Pensou no clima denso e carregado, no momento em que os carros blindados — o símbolo de tudo o que abominavam - começariam a avançar, e a multidão lutaria unida, tornando- se uma muralha contra a polícia.

Alice chorou um pouco, alto, fungando e engolindo em se­co, enquanto limpava o chão. Se eles decidissem que Philip não podia ficar na casa, então... aqueles ladrilhos no teto, aqueles ladrilhos...

Por volta das quatro horas da tarde a cozinha estava limpa, sem qualquer mancha de terra ou poeira. A mesa grande se en­contrava no lugar apropriado, com as pesadas cadeiras de ma­deira ao redor, tendo em cima um pote de geléia de vidro com alguns junquilhos recolhidos do jardim. Só o pobre fogão con­tinuava caído de lado, uma lembrança da desordem. Alice pen­sou em pegar o metrô e ir se encontrar com os outros tinha direito a isso, era veterana de uma centena de batalhas —, mas sentou para descansar um pouco na sala de estar e pegou no sono. Acordou para descobrir que os outros estavam chegan­do, fazendo um grande barulho, rindo e conversando, exultan­tes com seus feitos.

Alice, sonolenta na poltrona grande, manteve-se humilde, quase penitente, enquanto fazia um esforço para se levantar e cumprimentá-los. Sentiu que não precisava fazer isso quando a comida e a bebida foram arrumadas no chão e convidaram-na a participar do banquete.

E foi só então que se lembrou. Tirou do bolso o grosso ro­lo de notas e, rindo, entregou cento e cinqüenta libras a Philip.

Por conta disse ela.

Silêncio. Todos a fitavam. E depois riram, puseram-se a abraçá-la e uns aos outros. Até mesmo Jasper abraçou-a rapida­mente, enquanto ria, dando a impressão de que se exibia para os outros.

Sei que é melhor não perguntar de onde veio o dinhei­ro, mas meus parabéns assim mesmo disse Roberta.

Espero que tenha sido ganho honestamente acrescen­tou Faye, afetada.

Todos recomeçaram a se abraçar e rir, mas Alice sabia que era mais pelos excessos exuberantes de emoção das vigorosas confrontações com a Autoridade naquele dia do que por satisfação com seu empenho...

De qualquer forma, ainda temos de tomar uma decisão coletiva — declarou Faye.

Mas Roberta protestou:

Ora, Faye, não enche. Está tudo certo...

As duas mulheres trocaram um olhar, e Faye compreendeu: haviam discutido o assunto e discordado. Bert disse, sumariamente, como se não tivesse a menor importância:

Para mim, está tudo bem.

Jasper ecoou:

Eu concordo.

E Pat disse:

Claro que está tudo bem.

Philip não podia falar, pois acabaria chorando; brilhava de alívio, de felicidade. E Jim... ora, ele simplesmente aceitava, Alice podia perceber, como uma moratória; ela sabia que nada poderia ser mais do que um bem temporário para Jim. Mas ele estava bastante satisfeito. Havia na sala um clima agradável, acon­chegante. Uma família...

Esse clima perdurou durante a refeição e enquanto Alice os levava à cozinha para mostrar a limpeza.

Ela é mesmo uma maravilha entoou Faye. Alice, a maravilha; a maravilhosa Alice...

Ela estava inebriada e exultante, todos sentiam prazer em contemplá-la.

Sem que Alice pedisse, Bert e Jasper levantaram o fogão e o puseram em seu lugar, junto à parede.

Vou consertá-lo amanhã prometeu Philip, feliz da vida.

Subiram juntos a escada, relutantes em se separar pela noi­te, de tão unidos que se sentiam num grupo.

Deitada no chão, ao longo da parede, no escuro, seus pés a um metro dos pés de Jasper, Alice indagou, sonhadora:

O que você e Bert decidiram?

Um movimento brusco de Jasper, que ela notou, pensan­do: Eu não sabia que ia dizer isso.

Ele estava tenso, exposto; era a sua reação às palavras de Alice.

Ora, Jasper, eu não me importo acrescentou ela, impaciente, mas conciliadora. Mas vocês discutiram o assunto, não é?

Uma pausa.

Discutimos.

Afeta a todos nós.

Outra pausa. E depois, relutante:

Achamos que talvez não seja má idéia ter os outros aqui. Mas eles precisam ser da UCC. Jim terá de se alistar.

Ou seja, Philip e Jim serão uma cobertura.

Jasper não disse nada. Quem cala consente. Alice acres­centou:

É claro que haverá mais pessoas chegando e...

Ele se apressou em dizer, nervosamente:

Você não pode deixar qualquer um entrar. Não pode­mos aceitar qualquer um.

Eu não falei em qualquer um... e os outros não preci­sam saber que somos do IRA.

Exatamente.

Então Alice comentou, com uma voz sonhadora e para sua própria surpresa:

Com os camaradas na outra casa, fico pensando...

Ela parou. Interessada no que dissera. Com um sentimento de respeito.

Mas Jasper se soerguera; apoiado num cotovelo, observava- a na semi-escuridão, os faróis da rua correndo pelo teto, pare­des e chão, iluminando-os a intervalos irregulares. Ele ficou calado. Não perguntou "Como sabe da outra casa?", nem disse "Como se atreve a me espionar?", coisas que dissera com freqüência no passado, até aprender que Alice possuía aquela ca­pacidade: saber sem que lhe contassem.

Ela pensava depressa, escutando o que dissera. Então Bert e Jasper tinham ido à outra casa, não é? Há camaradas ali? Mas é isso mesmo!

Vocês apenas foram até lá contando com a sorte ou... o que aconteceu? — indagou Alice.

Ele respondeu tensamente, depois de uma pausa:

Houve um contato. Eles mandaram uma mensagem.

Para você? Para você e Bert?

Pela hesitação de Jasper, Alice compreendeu que ela estava incluída, mas não tinha a menor intenção de transformar isso num cavalo de batalha.

Recebemos uma mensagem — insistiu ele secamente, tornando a se estender no saco de dormir.

E você, Bert e... os camaradas de lá decidiram que deveríamos ter mais pessoas aqui, como cobertura.

Silêncio. Mas Alice sabia que ele não estava dormindo. Dei­xou passar alguns minutos, enquanto pensava. Depois, mudou de assunto, comentando:

Daqui a pouco os outros vão ter de começar a contri­buir. Até agora fui eu quem pagou tudo.

Onde arrumou aquele dinheiro? — perguntou Jasper no mesmo instante, lembrando o fato, como era intenção de Alice.

Ela estava preparada; inclinou-se no escuro e entregou-lhe algumas notas.

Quanto? — perguntou Jasper.

Cinqüenta.

Com quanto você ficou?

Não faça perguntas.

Alice teria respondido se ele insistisse, mas Jasper limitou- se a comentar:

Está bem, pode espremer ao máximo.

Alice disse:

Tenho de ir à prefeitura amanhã. Pode me dar meu car­tão da previdência?

Claro.

Os dois aguardavam os sons de amor no quarto ao lado, mas Bert e Pat deviam estar exaustos e dormiram logo. Jasper e Alice estavam tensos, mas relaxaram agora, num silêncio cordial. Alice pensou: Estamos juntos... E como um casamento: uma conversa antes de dormir. Espero que ele comece a me contar o que aconteceu hoje.

Alice não queria perguntar, mas sabia que Jasper sabia que ela ansiava por ouvir tudo. E ele foi generoso: começou a falar. Ela o amava quando estava assim. Jasper relatou tudo, desde o início: como os sete viajaram no metrô, como compraram sanduíches e café na estação, instalaram-se em dois bancos de fren­te uns para os outros, partilharam o desjejum. Como foram de táxi até as oficinas. O motorista estava do lado deles e dissera, antes de partir:

Boa sorte.

Isso foi maravilhoso comentou Alice baixinho, sor­rindo no escuro.

E assim continuaram a conversar, aos sussurros, Jasper descrevendo tudo, pois era muito bom nisso, projetando em pala­vras imagens de um evento, uma ocasião. Ele é muito inteligente, deveria ter sido jornalista, refletiu Alice.

Ela poderia conversar a noite inteira, pois dormira até mais tarde. Jasper, no entanto, logo adormeceu; e ela se contentou em ficar deitada ali, no silêncio, formulando seus planos para o dia seguinte, que sabia que não seria fácil.

Quando acordou, Jasper não estava mais no quarto. Ela su­biu para o topo da casa e examinou os quatro quartos que dei­xara com as janelas abertas. Os dois quartos em que estavam os horríveis baldes já eram apenas quartos que em breve esta­riam ocupados por outras pessoas. Mas não fora por isso que subira. Havia manchas úmidas e marrons nos tetos de dois quar­tos. Localizando no patamar o alçapão para o sótão, subiu no peitoril da janela para alcançá-lo. Mal conseguiu alcançar, mas sentiu o alçapão se levantar sob seus dedos. Não haveria nenhum problema ali!

Desceu correndo para a cozinha, onde soavam vozes. E o que ali encontrou fez com que seus olhos se enchessem de lágrimas. Estavam sentados em torno da mesa: Bert e Pat, bem juntos; Jasper; Jim, sorridente e feliz; e Philip, já trabalhan­do no fogão, inclinando-se por trás, com uma xícara de café em cima. Bert fora à casa da namorada de seu amigo Philip, Felicity, enchera a garrafa térmica, comprara croissants, manteiga e geléia. Era uma refeição de verdade. Ela sentou em seu lugar, à cabeceira da mesa, em frente a Bert, e disse:

Se esta cozinha tivesse umas cortinas...

Todos riram.

Antes de falar em cortinas, é melhor você acertar tudo com a prefeitura.

Quem falou foi Jasper, um tanto prepotente, mas apenas porque estava com ciúme de Pat, que disse:

Eu apoiaria Alice... apoiaria em qualquer coisa.

Café e croissantsapareceram à sua frente, e Alice indagou:

Alguém já notou como está o teto lá em cima?

Eu notei — respondeu Pat.

Philip protestou:

Não posso fazer tudo ao mesmo tempo.

Ele parecia melindrado, e Pat disse:

Não se preocupe. Não é difícil consertar as telhas. Já fiz isso uma vez, em outra casa.

Farei isso junto com você quando terminar aqui — prometeu Philip.

Pat disse a Bert:

Se alguém pudesse tirar as telhas que caíram na calha...

Não gosto de alturas — respondeu Bert, com a maior tranqüilidade.

Eu posso cuidar disso — declarou Alice. E acrescentou para Jasper, não para Bert: — Se conseguisse emprestado o car­ro da outra casa, não poderia procurar alguns móveis nas lojas? Vi quatro lojas de móveis de segunda mão na rua em que meu pai mora, todas com coisas boas.

Uma pausa, e ela acrescentou, com veemência:

Refugo. Tudo aquilo é refugo. — Ela sabia que estava prestes a assumir sua cara especial, e tratou de continuar: — Esta casa, com todos os seus cômodos... e pessoas jogando coisas fora por toda parte, quando ainda estão boas e usáveis.

Alice ficou lutando contra si mesma, sabendo que Pat a examinava, fazia um diagnóstico. E Pat disse a Bert:

Aí está o seu trabalho para hoje, Bert. Você e Jasper. — Enquanto ele ria de alguma piada antiga sobre sua indolência, ela acrescentou, irritada: — Mas que merda! Alice tem feito to­do o trabalho até agora.

E arrumado todo o dinheiro — comentou Philip, do fogão.

É isso aí — murmurou Bert.

É isso aí — concordou Jasper, satisfeito, já se movimen­tando de um lado para o outro, irrequieto, querendo sair com Bert, procurar, vasculhar as ruas...

Os dois saíram no instante em que Roberta e Faye entra­ram na cozinha, encontraram os remanescentes dos croissants e sentaram-se para consumi-los.

Alice arrastou a pesada escada de Philip para a frente da ca­sa e subiu. Por sorte a casa era atarracada, afundando na terra, não alta e assustadora. Quando ela chegou lá em cima, Pat já estava no telhado, sentada perto da chaminé, pela qual passava um braço: passara pelo sótão e uma clarabóia. O telhado pare­cia erodido e esburacado em torno da base da chaminé. Muitas telhas haviam deslizado e estavam presas na calha. Para onde ia toda a água? Ainda não haviam examinado o sótão direito.

Alice começou a se inclinar, pegando as telhas e pondo-as no telhado à sua frente. Pat parecia não estar com a menor pressa de começar; desfrutava a vista, contemplando os telhados e janelas superiores. E é claro que também os vizinhos, que obser­vavam as duas mulheres trabalhando no telhado. Onde estavam os homens?, quase que se podia ouvir aquelas pessoas pensando — Joan Robbins, a velha sentada debaixo de uma árvore, o ho­mem olhando irritado de uma janela superior.

Pegue! — gritou Alice, pronta para jogar a primeira telha.

Mas Pat disse:

Espere um instante.

Ela virou-se de bruços e espiou através do telhado.

Tem um ninho nesta viga — acrescentou, em voz abafa­da, como se receasse incomodar os pássaros.

Oh, não, que coisa horrível!

Alice parecia subitamente histérica, e Pat fitou-a friamente, por cima do braço estendido sobre o telhado.

Pelo amor de Deus! — exclamou Alice, começando a chorar.

Um pássaro —- protestou Pat. — Um pássaro, não uma pessoa.

Ela arrancou punhados de palha e outras coisas e jogou lon­ge. Depois, alguma coisa bateu ruidosamente nas telhas: um ovo. O pequeno embrião de um pássaro ficou esparramado ali. Mexendo-se.

Alice continuou a chorar, pequenos arrancos de soluços ofegantes, os olhos fixos no telhado.

Outro ovo se arrebentou nas telhas.

Olhos infantis e frenéticos imploraram a Pat, que ainda enfiava o braço pelo buraco no telhado. Mas Pat, deliberadamen­te, não estava olhando para Alice, enquanto continuava a ar­rancar o que havia ali embaixo.

Um terceiro ovo voou em arco por cima do telhado e foi cair no jardim.

Já acabei anunciou Pat, olhando para Alice. Pare com isso!

Alice fungou até o choro acabar. E, a um aceno de cabeça de Pat, começou a lhe jogar as telhas. Pat pegava-as com extre­mo cuidado, uma após outra.

Roberta e Faye apareceram lá embaixo e saíram para a rua, acenando em despedida.

Divirtam-se — disse Pat, lacônica, irônica, mas com um sorriso revelando que ela, como Alice, não esperava outra coisa.

Pouco depois Philip subiu para ajudar Pat. Alice, depois de ter limpado todas as calhas até onde podia alcançar, desceu pa­ra deslocar a pesada escada por alguns passos. Continuou a trabalhar assim, contornando toda a casa, removendo massas de folhas em decomposição e telhas caídas. Lá em cima, Philip e Pat repunham as telhas nos lugares.

Alice sentia-se desanimada e traída. Por alguém. Os dois minúsculos passarinhos parcialmente formados estavam caídos no telhado, o pescoço estendido, olhos fechados, sem que ninguém olhasse. Os pais circulavam pelos galhos altos nas proximida­des, queixando-se.

Alice tentou se concentrar no que tinha de ser feito em seguida. A faxina. Uma limpeza completa! Janelas e assoalhos, pa­redes e tetos, depois a pintura, muita tinta, custaria...

No meio da tarde foi telefonar para a prefeitura, como se isso não tivesse a menor importância, como se tudo estivesse acertado.

Foi informada de que Mary Williams não estava e sentiu um aperto no coração.

Bob Hood, uma autoridade incomodada em seu trabalho importante, disse bruscamente que a decisão sobre a 43 e a 45 fora adiada para o dia seguinte.

Quer dizer que está tudo certo? indagou Alice.

Claro que não respondeu Bob Hood. Não ficou acertado que você ou qualquer outra pessoa poderá ocupar essas casas.

Alice declarou, em voz tão incisiva e autoritária quanto a dele:

Deveria visitar a casa. É uma desgraça que tenha sido considerada apropriada para demolição. A cabeça de alguém vai rolar por causa disso. Tenho certeza de que cabeças rolarão. São duas casas perfeitamente sólidas, em bom estado.

Uma pausa. Um pouco irritado mas já batendo em reti­rada —, ele disse:

E recebemos mais reclamações. Não podemos permitir que essa situação continue.

Mas já limpamos a 43... a casa que ocupamos. A polí­cia pode confirmar.

Alice esperou, confiante. Conhecia o tipo, sabia como funcionava a mente mesquinha e covarde de gente assim, sabia que o dominara por completo. Podia ouvir sua respiração, podia sentir como as engrenagens mentais se ajustavam.

Muito bem disse Bob Hood. Darei um pulo até aí. Estava mesmo querendo dar uma olhada nessas duas propriedades.

Pode me dizer a que horas mais ou menos vai aparecer? pediu Alice.

Não é preciso. Temos chaves.

Sei disso, mas não podemos deixar que desconhecidos entrem aqui sem mais aquela, não é? Gostaria que nos indicasse a hora aproximada.

Era tanta desfaçatez que ela ficou espantada consigo mes­ma. Mas sabia que não era um exagero por causa de sua atitude, tão autoritária quanto a dele. E não ficou surpresa quando Bob Hood anunciou:

Irei até aí agora.

Ótimo. Estaremos à espera.

Alice desligou. Voltou correndo para a casa. Gritou para Philip e Pat lá em cima que o homem da prefeitura estava vin­do e que eles não deveriam parar de jeito algum, porque seria ótimo se o fiscal visse gente trabalhando. Depois, entrou, foi inspecionar a sala de estar e a cozinha. Subiu para os quartos em que todos dormiam. Ficou impressionada ao descobrir que o quarto de Roberta e Faye era um genuíno refúgio de femini­lidade, com penteadeira, almofadas, uma colcha estendida so­bre o saco de dormir duplo, fotografias tudo meio encardido, é verdade, mas causaria uma boa impressão. Ela alisou a saia. Ajeitou os cabelos, as unhas. Ouviu uma batida na porta antes do que esperava e desceu correndo a escada, quase tropeçando, com um sorriso frio já fixado no rosto, a fim de abrir a porta da maneira correta.

Bob Hood? Sou Alice Mellings.

Espero que aqueles dois no telhado saibam o que estão fazendo.

Eu também. Ele é empreiteiro e ela o está ajudando. Co­mo amadora. Mas já trabalhou nisso antes.

Alice o silenciara. Ah, seu homenzinho repulsivo, pensava ela por trás do sorriso de boa moça, seu burocrata insignifican­te e nojento!

Quer dar uma olhada aqui embaixo primeiro? Claro que isso não lhe dará uma idéia do estado em que a casa se encontrava há apenas três dias. Por um lado, os operários da prefeitu­ra encheram os vasos com concreto e arrancaram os fios das paredes... criando um grande risco de incêndio.

Não tenho a menor dúvida de que eles estavam apenas cumprindo ordens.

Está querendo dizer que receberam instruções para dei­xar os fios perigosos e concretar o registro geral da água? Será que o Departamento de Agua sabe disso?

Bob Hood ficou vermelho e furioso. Sem olhar para ele, Alice foi abrindo uma porta após outra no primeiro andar, demorando-se na cozinha.

O eletricista já consertou tudo aqui, mas tiveram sorte de a casa não pegar fogo. Mary Williams me informou que vo­cê já esteve aqui antes. Como foi que não notou os fios soltos e desencapados?

Lá em cima, ela disse, sabendo que para aquele homem qualquer coisa incorreta, até mesmo um colchão no chão em vez de numa cama, deveria ser uma afronta eterna:

Terá de aceitar a minha palavra, é claro... mas a verda­de é que esses quartos se encontravam no pior estado possível quando chegamos aqui. E mal começamos a trabalhar.

Encontra-se no pior estado possível agora — comentou ele, rispidamente, dando uma olhada no quarto em que Alice e Jasper dormiam, os dois sacos de dormir encostados na pare­de, como peles de cobra descartadas.

E relativo. Acho que ficará surpreso quando voltar a vi­sitar a casa dentro de um mês.

Bob Hood tratou de aproveitar a vantagem:

Eu disse que não deve esperar coisa alguma.

Se esta casa ficar vazia outra vez, vai se encher de vânda­los e mendigos dentro de uma semana, e você sabe disso. Tem sorte por sermos nós que estamos aqui. Vamos deixar a casa em ordem, sem qualquer despesa para os contribuintes.

Ele não disse nada. Em silêncio, inspecionaram os quartos do último andar, agora com um cheiro agradável, o ar circulan­do. Instintivamente, Bob Hood fechou uma janela depois de outra, com um ar meticuloso, virtuoso e irritado. Como uma porra de uma dona-de-casa, pensou a sorridente Alice. Desceram.

Tenho de concordar com você... não há motivo para que essas casas sejam demolidas, ao que eu posso ver — disse ele. — Vou examinar o assunto.

A menos que alguém vá ganhar muito dinheiro com is­so — comentou Alice, suave e implacável. — Leu o artigo do Guardian, "O escândalo da reforma urbana"?

Li, sim. Mas não é relevante para este caso.

Ahn...

Eles estavam na porta.

Alice ficou esperando. Merecia uma capitulação; e foi o que aconteceu. A autoridade declarou, de expressão sisuda, mas com todo o corpo manifestando uma cumplicidade involuntária:

Defenderei sua posição amanhã. Mas não prometo na­da. E não apenas esta casa, mas também a outra. Vou até lá agora.

Mais uma vez, Alice esquecera a outra casa.

Bob Hood se afastou e ela subiu correndo para uma peque­na janela pela qual podia observar a outra casa. Com irada frustração, viu o jovem limpo, bem-penteado e bem-vestido parar diante das pilhas de lixo no jardim, e percebeu que sua expres­são era a mesma dos lixeiros: um nojo exasperado e incrédulo.

Incapaz de suportar as batidas fortes do coração, o estôma­go em polvorosa, Alice desceu, devagar, subitamente sem qualquer energia, e foi arriar na sala de estar, no momento em que Pat entrava, acompanhada por Philip.

E então? — indagou Pat.

O rosto de Philip estava contraído de ansiedade, havia uma oração em seus olhos.

Estamos perdidos — respondeu Alice, começando a cho­rar, o que a deixou furiosa. — Oh, Deus, mas que merda! Não é possível!

Pat, ajeitando-se no braço da poltrona em que Alice estava encolhida, passou um braço por seus ombros encurvados e disse:

Você está cansada. Surpresa! Você está cansada.

Vai acabar tudo bem! — soluçou Alice. — Tenho certe­za! Posso sentir!

No silêncio, ela compreendeu que, por cima de sua cabeça, Philip e Pat trocavam olhares, dizendo um ao outro que ela, Alice, tinha de ser consolada, afagada, que era preciso servir-lhe café da garrafa térmica e conhaque de uma garrafa guardada para ocasiões especiais. Mas sabia também que o interesse de Pat podia ser genuíno, mas não era como o de Philip e o seu. O coração de Pat nunca haveria de disparar nem seu estômago embrulharia... Por esse motivo, não aceitou a fraternidade en­volvente de Pat, permaneceu sozinha, triste e isolada, tomando o café, o conhaque. Philip era seu pupilo, sua responsabilidade: sua família, porque era igual a ela. Mesmo assim, sentia-se satis­feita por ter Pat como aliada.

E foi então que Jasper e Bert voltaram com os despojos de Londres, essa autêntica caverna dos tesouros. Alice correu para o vestíbulo, a fim de receber uma carga de coisas que precisa­vam ser separadas e que desviaram suas emoções para outro circuito.

Oh, mas que desperdício vergonhoso! — exclamou ela, furiosa, vendo os sacos de plástico cheios de cortinas, que ali estavam só porque alguém se cansara delas, uma geladeira, ban­cos, mesas, cadeiras, tudo ainda aproveitável, embora algumas coisas precisassem de uns poucos minutos de trabalho para se­rem consertadas.

Bert e Jasper tornaram a sair; estavam exultantes e gostan­do da missão. Uma dupla, uma dupla de verdade, uma equipe; unidos por aquele empreendimento, de mobiliar a casa. E como tinham o carro para o dia inteiro, precisavam aproveitar ao máximo.

Philip e Pat deixaram o trabalho no telhado para ajudar Alice a arrumar os móveis e foram comprar os acessórios para as cortinas, com dinheiro que ela tirou de sua reserva.

Correram de um lado para outro, subiram e desceram, carregando móveis, pendurando cortinas, estendendo no vestíbu­lo um tapete grande, que só precisava de uma limpeza para se tornar perfeito.

Bert e Jasper, depois de vasculharem Mayfair e St. John's Wood, chegaram ao final da tarde com outro carregamento e anunciaram que por aquele dia bastava... e os ocupantes da casa sentaram-se na cozinha, para tomar chá e comer ovos com bacon, já feitos no fogão, tendo por companhia o zumbido da geladeira.

E no meio desse banquete, que era um delicado equilíbrio de interesses, o resultado de boa vontade cuidadosa e calculada, houve uma batida na porta. Porém era uma batida hesitante, não um chamado autoritário. Todos se viraram como um só; da cozinha, podiam avistar a porta da frente, que estava se abrin­do. Uma jovem apareceu; enquanto os outros olhavam aturdi­dos — De quem ela é amiga? —, o coração de Alice começou a disparar. Já sabia de tudo, pela maneira como a visitante cor­reu os olhos pelo vestíbulo, agora atapetado, aconchegante, com uma iluminação fraca mas adequada, depois observou a escada sólida e finalmente contemplou-os. Ela era toda determinação e propósito.

Ela é da prefeitura — tranqüilizou Alice. — Mary Williams. A colega daquele fascista que esteve hoje aqui. Mas é uma boa pessoa...

Ela sabia que o último comentário provocaria uma discus­são que ocorreria mais tarde, talvez ainda naquela noite. Tal­vez não uma discussão acirrada, mas pelo menos uma conver­sa amistosa... Oh, Deus, faça com que esteja tudo bem, orou Alice, levantando-se e dizendo aos outros:

Não se preocupem. Vou conversar com ela...

Saiu, fechando a porta da cozinha, para um riso que a ta­chava de autoritária, mas não insuportavelmente assim. Oh, por favor, por favor, suplicava interiormente — talvez ao Desti­no —, enquanto se encaminhava sorrindo para Mary. Que esta­va sorrindo em súplica para Alice. E como Alice esperava, Mary começou:

Passei pelo escritório... estive o dia inteiro num curso, pois eles sempre mandam a gente fazer cursos, o que estou fa­zendo agora é de relações sociais... e encontrei com Bob Hood, que estava saindo. Ele me contou que esteve aqui...

Alice estava abrindo a porta da sala de estar, que parecia com a de qualquer outra casa, aconchegante, embora um tanto velha e gasta; viu o rosto de Mary se enternecer, ouviu-a suspirar.

Elas se sentaram. Agora, Mary era a suplicante e Alice a juí­za. Alice procurou ajudar:

Não acha que é uma ótima casa? Seria loucura demoli-la.

Mary não pôde conter a explosão:

Pois eles estão loucos! (Alice não pôde deixar que o "eles" fosse pronunciado num tom irônico familiar, seco, até mesmo resignado.) Quando optei pelo setor de habitação, pensava que estaria providenciando casas para as pessoas, ajudando os desa­brigados. Mas se eu soubesse... Estou completamente decep­cionada agora. Se você soubesse o que costuma acontecer...

Mas eu sei.

Nesse caso...

Mary estava corando, os olhos suplicantes.

Vou direto ao ponto. Acha que eu poderia vir morar aqui? Estou precisando. E não apenas eu. Queremos casar... eu e meu namorado, Reggie. Ele é químico industrial.

Essa parte do químico foi introduzida para me tranqüili­zar, pensou Alice, com os primórdios de um desdém que tra­tou de reprimir e esconder.

Estávamos juntando dinheiro para comprar um apartamento e ele perdeu o emprego. A firma em que Reggie traba­lhava foi fechada. Por isso, tivemos de renunciar à idéia do apartamento. Poderíamos morar com minha mãe ou com os pais dele, mas.. . se ficássemos aqui teríamos condições de guar­dar algum dinheiro...

Ela se obrigara a dizer tudo, odiando seu papel de suplican­te; e o resultado do esforço era uma determinação intensa, co­mo uma ordem.

Mas Alice estava pensando: Oh, merda, é pior do que eu imaginava. O que os outros dirão? Procurou ganhar tempo.

Não quer dar uma olhada na casa?

Oh, Deus! — balbuciou Mary, as lágrimas escorrendo. — Bob disse que tem uma porção de quartos lá em cima, todos vazios.

Ele não vai morar aqui! — protestou Alice, sem saber se ela própria iria e manifestando uma aversão tão profunda a Bob Hood que Mary parou de chorar, aturdida.

Ele é uma boa pessoa — murmurou Mary. — Apenas sua atitude é esquisita.

Não é apenas a atitude — insistiu Alice.

Acho que tem razão...

O reconhecimento da hediondez de Bob fez com que Alice se sentisse mais cordial, e ela disse, gentilmente:

Já viveu em alguma comuna? Não, claro que não. Pois eu já vivi. Em muitas. Não é fácil. As pessoas têm de se ajustar a esse tipo de vida.

Os olhos brilhantes e famintos de Mary — como os do po­bre gato, pensou Alice — refletiam o anseio de ser tudo o que Alice quisesse.

Ninguém jamais disse que sou uma pessoa de convivên­cia difícil — comentou ela, suspirando, fazendo um esforço pa­ra parecer engraçada.

A maioria das pessoas aqui se interessa por política — declarou Alice, muito formal.

E quem não se interessa? Hoje em dia, todos têm o de­ver de ser políticos.

Somos socialistas.

Não tem problema.

União do Centro Comunista.

Comunistas?

Alice pensou: Se ela for à reunião amanhã e disser que so­mos comunistas... E bem capaz de fazê-lo e com um lindo sor­riso democrático! Alice ressaltou:

Não comunista como o Partido Comunista da Grã- Bretanha.

Mantendo os olhos firmemente fixos no rosto de Mary, pois sabia que tudo o que Mary via no seu era tranqüilizador — a menos que estivesse usando sua cara, o que tinha certeza de que não acontecia —, Alice acrescentou, firmemente:

Os camaradas na Rússia perderam o caminho. Já se extraviaram há muito tempo.

Quanto a isso, não pode haver a menor dúvida murmurou Mary, com um desprezo evidente, enxugando os olhos com um lenço de papel.

Ela parecia recuperada, uma jovem simpática e comum, os cachos castanhos brilhando, a pele viçosa. Como um anúncio de sabonete de qualidade média. Mas no dia seguinte ela podia decidir o destino de todos eles, pensou Alice, examinando-a com curiosidade. Se ela dissesse a Bob na manhã seguinte, enquanto tomassem um café, antes da reunião, "Passei pela casa 43 na Old Mill Road ontem à noite e aquilo é uma verdadeira pocilga", ele poderia mudar de idéia com a maior facilidade, ainda mais se lembrasse a sujeira da outra casa.

Alice perguntou:

Bob Hood disse alguma coisa sobre a casa ao lado?

Disse apenas que não há nada de fundamentalmente errado.

Então por quê? explodiu Alice, incapaz de se contro­lar. Por quê?

O projeto era construir dois blocos de apartamentos no lugar em que estão estas casas. Não apartamentos horríveis. Ao contrário, até muito bons. Mas não combinariam com todas as casas ao redor.

Mary fez uma pausa e depois acrescentou, amargurada, esquecendo sua posição:

Mas algum construtor ganharia muito dinheiro com is­so. E, depois, deu um passo ainda pior. Um negócio entre amigos.

Chocada por suas palavras, ela lançou um olhar embaraça­do para Alice e arrematou com um sorriso social.

Não podemos deixar que façam isso murmurou Alice.

Concordo. Seja como for, o que conta é o que Bob diz. E ele está furioso e vai brigar. Diz que é um crime derrubar estas casas. Mary hesitou por um instante e depois saltou pa­ra um mergulho no que julgava obviamente ser uma indiscri­ção ainda maior. Fui da Tendência Militante por algum tempo, mas seus métodos não me agradavam e por isso fui embora.

Alice estava espantada. Mary na Militante! Mas é claro que ela não poderia gostar dos métodos da Militante. E também não gostaria dos métodos de Alice, Jasper, Pat, Roberta ou Faye. Nem dos de Jim, diga-se de passagem (era do que Alice descon­fiava). Mas já era uma impossibilidade Mary ter sequer se apro­ximado da Tendência Militante. Alice perguntou, cautelosa:

E Reggie?

Ele também deixou a Tendência Militante pelo mesmo motivo. Fiquei chocada com o que vi por lá, empregos para os camaradas e tudo mais... — Outra vez o breve sorriso social, como um pedido de desculpa sempre pronto. Concluímos que não era o nosso lugar. E aderimos ao Greenpeace.

Mas se vocês são trotskistas... — murmurou Alice, esperançosa.

Com um pouco de sorte, Mary diria que sim, que eram trotskistas, o que tornaria impossível a presença dos dois na casa... Mas Alice ouviu outra coisa:

Não somos nada no momento, apenas do Greenpeace. Pensamos em entrar para o Partido Trabalhista, mas precisamos de algo mais...

Dinâmico arrematou Alice, escolhendo uma palavra lisonjeiramente vigorosa, mas não ideológica. Talvez a UCC seja o que estão procurando. Seja como for, venha conhecer a casa.

Ela se levantou e Mary também... era como o encerramen­to de uma entrevista. Alice já concluíra que gostava de Mary. A jovem se ajustaria. Mas o que dizer de Reggie? Pensamentos em Reggie acompanharam as duas mulheres enquanto elas cir­culavam rapidamente pelos andares superiores. Alice abriu as portas dos quartos vazios, escutando Mary suspirar ansiosamen­te. Não ficou surpresa ao ouvi-la informar, enquanto desciam:

Para dizer a verdade, Reggie está me esperando no pub que fica aqui perto.

Ela riu, uma risada vigorosa de menina. Depois de um momento, Mary acompanhou-a, com um trinado meio ofegante.

O problema é que temos de discutir o assunto — comunicou Alice. — Todos nós. Uma decisão coletiva.

Podemos voltar daqui a meia hora?

Precisamos de mais tempo. — Uma pausa, e Alice acrescentou, por causa dos olhos suplicantes de Mary: — Farei o me­lhor possível.

Alice voltou à cozinha, onde todos se encontravam num ambiente de conforto (criado por ela), e expôs a situação.

Devido a toda a comida, a conversa, a cordialidade e a união, houve uma explosão de risos. Mas havia na reação um aspecto teatral que não agradou muito a Alice.

A seguir, houve um longo momento de silêncio, rompido por Pat:

Está querendo dizer que não vamos ficar com a casa se não deixarmos eles virem para cá, Alice?

Ela demorou a responder.

Tenho certeza de que Mary não faria qualquer coisa rancorosa de propósito. Mas se ela vier morar aqui, tomará todo o cuidado com o que disser. È da natureza humana.

Alice concluiu sem muita convicção, usando uma frase que obviamente estava além do razoável.

O que ela pode dizer que venha a fazer uma grande diferença? — insistiu Pat.

Se ela disser que somos um bando de vermelhos, Bob Hood logo encontrará um motivo para nos expulsar. Ela não se importa porque também o é.

Aquela garota é uma revolucionária? — indagou Bert, rindo.

Ela é uma espécie de trotskista. Ou foi.

Então como eles poderiam ficar aqui, Alice? — pressio­nou Bert, firme mas gentil.

Não creio que ela seja muita coisa no momento. Em ter­mos ideológicos. Além do mais — persistiu Alice corajosamen­te, sabendo o que seu argumento lhe custara no passado, provocando todas as acusações —, não somos todos assim, de certa forma? Afinal, não proclamamos que Trótski nunca existiu. Nós lhe concedemos todo o crédito por suas realizações. E dizemos que Lênin é que foi o verdadeiro líder do proletariado. Depois, os camaradas por lá enveredaram por um caminho errado, acei­tando Stálin. Se dizer que Trótski foi um bom camarada e de­pois seguiu por um caminho errado transforma alguém num trotskista, então todos nós o somos, não é? E pelo que me lem­bro, não estabelecemos uma linha definida em relação a Tróts- ki. Pelo menos não na UCC.

A ideologia não é mesmo a sua linha, Alice declarou Jasper, com um ar de superioridade.

Creio que este não é o momento para definir nossa ati­tude em relação ao camarada Trótski disse Pat, depois de tro­car olhares eficientes com Bert. Há algo de procedente no que Alice argumentou, mas isso não é o importante agora. Acho que esse negócio de ter uma casa limpa e um teto sobre nossas cabeças está começando a nos definir. E o que nós fazemos.

Levou quatro dias ressaltou Alice, apelando por justi­ça. Apenas quatro dias.

Mas agora parece que precisamos ter aqui duas novas pessoas só para mantermos a casa.

Jim interveio:

Por que não os convidamos a entrar na UCC? Eu vou entrar.

E por que não? disse Bert, depois de uma pausa prolongada.

Alice percebeu que ele e Jasper trocavam um olhar demo­rado e pensativo. Sabia que eles estavam pensando se não deve­riam ir à outra casa para pedir a alguém quem? —um conselho. Ou instrução.

Precisamos decidir esta noite disse ela. A reunião será amanhã.

E agora ela tinha a sua cara. A voz assim lhe dizia; e os ou­tros também, ao se virarem para observá-la, sentada ali, estofa­da e sofredora.

Bert e Jasper ainda olhavam um para o outro, distraídos. O que eles faziam, na verdade, era reconstituir mentalmente o que fora dito por alguém na casa ao lado, especulando como enquadrar aquela nova situação. Bert acabou dizendo:

Não vejo por que não poderíamos convidá-los. Sempre dizemos que queremos recrutar mais gente, e os dois podem es­tar maduros. Com um pouco de educação política...

E, com essas palavras, ele e Jasper se levantaram ao mesmo tempo e saíram. Jasper avisou, antes de se retirarem:

Voltaremos num minuto.

Pat anunciou:

Também vou sair. Tenho de visitar uma pessoa.

Não quer conhecer Mary e Reggie?

Pat deu de ombros, sorriu e saiu. Alice fora lembrada — como tinha certeza ser a intenção da outra — de que Pat não se importava realmente, iria embora de qualquer maneira.

Restavam Alice, Philip e Jim.

Pouco depois Mary apareceu, em companhia de um homem sobre quem Alice se descobriu pensando, à primeira vista, "Mas é claro!". Com isso, estava querendo dizer que ele e Mary for­mavam uma dupla. Não na aparência, pois o homem era alto, magro, de pele muito branca, olhos pequenos e pretos sob so­brancelhas pretas e espessas, cabelos pretos lisos e abundantes. Ficaria calvo muito cedo. Onde ele combinava com Mary era no ar de moderação, de bom senso e de proporções adequadas. Mais precisamente, adequadas ao círculo em que viviam, aos ami­gos, à sociedade. Alice contemplava — e sabia disso — a respei­tabilidade. Não que não apreciasse esse tipo de bom senso, mas não seria apropriado ali, naquela casa. Era com um infinito sen­timento de tolerância que ela admitia que outras pessoas preci­savam de suportes e apoios. Pensou: Santo Deus, eles nasceram para ser dois pequeno-burgueses simpáticos, numa casinha simpática. Mais um pouco e estarão preocupados com suas pensões.

Vendo-os juntos, ela sentiu que um erro estava sendo cometido. Aqueles dois não deveriam estar ali. A sós com Mary, podia até gostar dela. Vendo-a com seu companheiro, Reggie, Alice sentia-se alienada, com os primórdios de uma intensa hos­tilidade.

— Sentem-se — convidou ela, sorrindo.

Alice pôs a panela no fogão e ligou a eletricidade. Era uma pena: um fogão a gás seria muito melhor. Mas encontrariam algum ainda aproveitável num ferro-velho ou comprariam um recondicionado, por cerca de dez libras.

Virou-se para observar Reggie examinando Jim e pensou: Com um pouco de sorte, ele terá preconceito racial e não vai querer ficar aqui. Mas não houve tal sorte: ele parecia simpatizar com Jim. Ou, se não gostava de negros, sua atitude nada revela­va. Mas é claro, refletiu Alice, que com essa turma, esse maldito pessoal de classe média, não se pode descobrir nada por sua ati­tude, mesmo com a polidez e tudo mais. A simpatia, porém, era genuína, ela tinha certeza; a linguagem do corpo — algo que o instinto preparara Alice para compreender,- muito antes que hou­vesse um nome específico — dizia que Reggie não tinha qual­quer problema com outra cor de pele. Pelo menos isso. Ela ficou escutando a conversa, Reggie com Jim, Mary com Philip. En­cheu canecas com café e pôs na mesa, junto com um bolo.

Conversa inconseqüente. Como ela, Alice, acertara tudo com o Departamento de Energia Elétrica e também resolveria qualquer problema com a Companhia de Gás. O Departamento de Água também seria informado, é claro. Alice não disse que o departamento não descobriria por vários meses que a li­gação de água fora restabelecida e que não tinha a menor inten­ção de atrair a atenção deles. Aqueles dois eram pagadores e ao mesmo tempo guardiães das contas. Ela advertiu-os:

Já vivi em muitas comunas e vocês terão de aceitar uma coisa: algumas pessoas simplesmente não contribuem, não entram com nada.

O que levou Jim a declarar, magoado:

Até vocês chegarem aqui não havia nada para pagar, não é?

Não estou me referindo a você, mas à situação em geral ressalvou Alice. Não é bom os dois virem para cá pensan­do que tudo funciona certinho.

Mary comentou:

Mas com tanta gente aqui, ainda será mais barato do que em qualquer outra parte, sem o aluguel.

Exatamente. — E Reggie acrescentou, indo direto ao pon­to: Não querem nos falar sobre a UCC? Nunca ouvimos fa­lar. Mary e eu ficamos conversando no pub. Não nos lembra qualquer coisa.

Ainda não é um partido grande respondeu Alice. Mas está crescendo. Quando começamos, não tínhamos a in­tenção de transformá-lo num partido de massa. Não queremos que isso jamais aconteça. Os partidos de massa perdem o conta­to com o povo.

É verdade concordou Reggie.

Mas ele falou com extremo cuidado, como se pudesse dizer outras coisas. Alice pensou: Ele e Mary vão trocar olhares... Não aconteceu, mas apenas por um esforço tão patente que ela pensou, com desdém: As pessoas são espantosas. Trocam olhares como se ninguém pudesse perceber, não imaginam que assim se denunciam... Qualquer um pode interpretar o que as pessoas estão pensando.

Reggie disse:

UCC... União do Centro Comunista?

Centro porque queremos mostrar que não somos desvionistas da esquerda nem revisionistas.

União... dois partidos juntos, dois grupos?

Não. Uma união de posições. Sem divisões sutis. Não queremos isso.

E vocês iniciaram a UCC?

Estou entre os fundadores. E Jasper Willis também. Já ouviram falar dele? — Enquanto Reggie e Mary sacudiam a ca­beça, Alice pensava: Vão ouvir. — Éramos vários. Foi em Birmingham. Temos uma seção lá. E um camarada escreveu na semana passada para comunicar que abriu uma seção em Liver­pool. E tem quatro membros novos. Sem falar na seção aqui em Londres.

A essa altura, Mary e Reggie não conseguiram mais evitar que seus olhos se encontrassem. Alice experimentou um ímpe­to de desprezo autêntico, como ódio, e acrescentou:

Todos os partidos políticos têm de começar, não é? E sempre começam com uns poucos membros. Começamos só há um ano e já temos trinta membros aqui em Londres. Incluin­do os camaradas nesta casa.

Ela resistiu à tentação de dizer: "E há também alguns na casa ao lado".

Qual é a posição política? — indagou Reggie, ainda com o mesmo jeito cuidadoso que indica que não vai permitir que se inicie uma discussão genuína porque prefere manter sua opinião em reserva.

Pois esperem só que ainda vão ouvir falar, e muito, da UCC!, pensou Alice. De qualquer forma, vocês vão se juntar a nós, porque querem morar aqui. Oportunistas! Ao mesmo tempo, pensava: Vamos educá-los. Matéria-prima é matéria-prima. O que conta é o que vocês serão daqui a um ano. Se não tiverem economizado o suficiente para se mudarem antes. E, pelo menos vocês dois, não terão qualquer pressa para ver esta comuna acabar. Disse:

Temos um manifesto político. Eu lhes darei uma cópia. Mas vamos promover uma conferência no próximo mês e definiremos todos os detalhes.

Alice percebeu que eles não estavam prestando atenção. Pensavam em quando poderiam se mudar.

Perguntaram se poderiam trazer alguns móveis, ofereceram panelas e uma chaleira elétrica.

Aceitamos com a maior satisfação — declarou Alice.

Continuaram a conversar, até que Jasper e Bert voltaram

da outra casa. Alice percebeu no mesmo instante que não have­ria qualquer problema para a vinda de Reggie e Mary. Pelo me­nos não daquele lado; já Roberta e Faye seriam outra coisa.

Reggie ficou em silêncio, recostado na cadeira, avaliando Jasper, avaliando Bert. Alice percebeu que ele sentia alguma sim­patia por Bert. Os dois eram da mesma espécie. Ele não foi muito com Jasper. Ela lembrou que também sentira um alerta instin­tivo, alguma repulsa, quando se encontrara pela primeira vez com Jasper, há tantos e tantos anos. E depois descobrira que estava completamente enganada.

Mary e Reggie foram embora às onze horas; tinham medo de perder o último trem do metrô para voltarem a Muswell Hill e Fulham, onde moravam, respectivamente, tão separados.

Philip disse que estava exausto e foi se deitar.

Jim foi para sua sala e eles ouviram a música baixa do seu toca-discos, acompanhada pelos tambores, ainda mais baixos.

O que aconteceu com Faye e Roberta? perguntou Alice.

Foi Bert quem respondeu:

Há uma comuna só de mulheres em Paddington. Elas estão sempre lá.

Por que elas não se mudam para lá?

Gostam daqui disse Bert, com uma careta que dizia não faça perguntas e...

Bert subiu para dormir, e Alice e Jasper ficaram a sós na cozinha.

Está bem disse Jasper. Contarei tudo, se me der uma chance.

Subiram para o seu quarto. Jasper não dissera que ela deve­ria sair ou que ele sairia. Alice meteu-se em seu saco de dormir como um cachorro se esgueira para o seu canto predileto, evitando olhares, torcendo para que ninguém percebesse.

Podiam ouvir Bert se movimentando de um lado para ou­tro no quarto adjacente. Jasper disse:

Bert e Pat vão passar o fim de semana fora.

Dava angústia ouvir sua voz.

Apenas o fim de semana murmurou Alice, procuran­do confortá-lo pela perda de Bert. Quanto a ela, seu coração entristecido informava que sentiria falta de Pat mesmo pelo fim de semana. Para onde eles vão?

Não me disseram, e eu não perguntei.

Eles ficaram num silêncio impregnado de companheirismo, os pés quase se tocando. Ainda não haviam encontrado corti­nas para aquele quarto, e as luzes dos carros passando lá fora continuavam a correr pelo teto. Toda a casa tremia com a passagem dos caminhões pesados que seguiam para o norte, proporcionando a Alice um sentimento confortador de familiari­dade, como se há meses morassem ali, não há dias; tinha a im­pressão de haver passado toda a sua vida em casas que tremiam com o tráfego.

Gostaria de ir para o piquete amanhã? — perguntou Jasper.

Mas eu preciso realmente ficar aqui — lamentou Alice.

Então podemos ir na noite de sábado e pintar alguns slogans.

Ela controlou a voz, a fim de não deixar transparecer o ím­peto de satisfação, de gratidão.

Seria ótimo, Jasper.

Providencie as latas de spray.

Ele virou-se para a parede. Alice não ouviria coisa alguma sobre a outra casa naquela noite. Mas amanhã, à noite... ela poderia ouvir. E no sábado...

Ela acordou junto com Jasper, às sete horas da manhã, mas ficou imóvel, observando-o, os olhos quase fechados. O corpo magro mas vigoroso de Jasper transbordava com a energia da expectativa. Tudo nele, dos cabelos cor de gengibre (que parti­cularmente Alice achava mais para cor de canela) aos pés pe­quenos e ágeis, que ela adorava, porque eram tão alvos e esguios, estava cheio de vida. Jasper parecia dançar enquanto se vestia, o rosto pálido tinha uma expressão inocente e doce quando pa­rou por um momento junto à janela, a fim de verificar como estava o tempo para o piquete do dia. Exibia um ar exaltado e sonhador quando passou por Alice, aparentemente adormeci­da, encaminhando-se para a porta. Não olhou para ela.

Alice relaxou, deitada de costas, e ficou escutando. Jasper bateu na porta ao lado e ela ouviu o resmungo relutante de Bert e a resposta imediata de Pat:

Já acordamos.

Depois, a batida na porta de Roberta e Faye. Philip? Oh, não, Philip não, pois precisava dele na casa! Mas não houve outra batida, e Alice passou a ter outra preocupação: Será que Philip não vai se sentir excluído, desprezado? Uma batida na porta por baixo — a sala grande que Jim usava como quarto, que talvez devesse ser usada como sala mesmo... Não, não se­ria justo. Um grito sobressaltado de Jim e ela não pôde saber se ele estava ou não satisfeito por ser acordado.

Os sons da casa adquiriam vida. Alice podia descer se qui­sesse, podia sentar com o grupo animado e despachá-lo com sorrisos, mas estava com a boca ressequida e os olhos ardendo. Por algum motivo — talvez um sonho? —, queria chorar, voltar a dormir. Desistir. Desconfiava do que sentia, pois esse sentimento a acompanhava desde que podia se lembrar: ser excluída, deixa­da de fora. Indesejável. O que era uma tolice, pois bastaria di­zer que também ia. Mas como poderia, quando o destino de todos seria decidido naquela manhã na prefeitura e não estava absolutamente certo de se ficariam com a casa? Ao se despedir, Mary dissera "Farei o melhor que puder", e era evidente que não podia ir além disso. Alice projetou Bob Hood em sua ima­ginação e, contemplando o jovem correto e ponderado, dese­jou que ele fizesse tudo o que ela queria. "Defenda-nos", disse ela, em sua mente. "Faça com que eles concordem. E nossa ca­sa." Manteve essa projeção por alguns minutos, enquanto escu­tava os outros se movimentando na cozinha. Quase que no mesmo instante, porém, eles saíram. Iam comer num café. O que era um absurdo, pensou Alice, furiosa: desperdiçar todo aquele dinheiro! Todos teriam de aprender a comer em casa. Conversaria com eles, discutiria o assunto.

Ah, como ela se sentia deprimida e triste!

Por algum motivo, pensou no irmão, Humphrey. A incré­dula raiva familiar a dominou. Como ele pudera se contentar em aceitar o jogo deles? Um emprego seguro, controlador de tráfego aéreo... quem poderia imaginar que alguém optaria por consumir sua vida assim? E a mãe dissera que ele escrevera para anunciar um filho. O primeiro. Abruptamente, Alice pensou: Isso significa que sou tia. Nunca lhe ocorrera antes. A raiva se desvaneceu e ela pensou: Talvez eu vá visitá-lo para conhecer o bebê. Continuou deitada, sorrindo, por mais algum tempo, na casa silenciosa, embora o barulho do tráfego lá fora a envol­vesse. Depois, controlando-se conscientemente, com uma ex­pressão determinada, saiu do saco de dormir, vestiu os jeans e desceu. Havia cinco xícaras de café por lavar na mesa — haviam se demorado para isso, o que significava que não passariam pe­lo café; fariam outra refeição no trem, durante a viagem; não, não pense nisso. Lavou as xícaras, pensando: Preciso providen­ciar água quente. Os operários da prefeitura deviam ter rouba­do o boiler e não tinham dinheiro para comprar um novo. Um boiler de segunda mão? Philip deve saber onde e como conse­guir... Hoje ele vai consertar as janelas, se eu conseguir os vi­dros. Ele dissera que precisaria de outra manhã para as telhas. Sete janelas — quanto custaria o vidro para tudo isso?

Ela pegou o dinheiro que restava: menos de cem libras. E com tanta coisa a comprar, a pagar... Jasper prometera rece­ber o seguro-desemprego dela, mas não podia reclamar, pois ele trabalhara muito no dia anterior, trazendo todas aquelas coisas para casa. Foi nesse instante que ela viu no peitoril da janela um envelope em que estava escrito "Alice" e, embaixo, "Te­nha um dia maravilhoso!" Assinado: "Amor, Jasper". Seu di­nheiro estava lá dentro. Ela conferiu rapidamente. Jasper costumava ficar com a metade, dizendo: Devemos fazer sacrifí­cios pelo futuro. Mas lá estavam quatro notas de dez libras.

Sentou-se à mesa, enternecida de amor e gratidão. Jasper a amava. De verdade. E fazia aquelas coisas doces e maravilhosas.

Alice relaxou, à cabeceira da enorme mesa de madeira. Se quisessem vendê-la, poderiam conseguir cinqüenta libras. Ou mais. A cozinha era comprida, mas não muito larga. A mesa ficava perto de uma janela com um peitoril largo. Da mesa podia avistar a árvore, o lugar em que ela e Jim haviam enterrado a merda, agora uma mancha saudável de terra escura, a cerca além, que era da casa de Joan Robbins. Era uma cerca alta de madeira, com arbustos aparecendo por cima, florescendo. Uma explosão amarela de forsítia. Passarinhos. O gato subiu na cerca e abriu a boca num miado silencioso, olhando para ela. Alice abriu a janela, que faiscava ao sol. O gato veio para o pei­toril, bebeu um pouco de leite e comeu algumas sobras. Fi­cou sentado ali por algum tempo, os olhos experientes fixos em Alice. Depois, começou a se lamber.

Encontrava-se em péssimo estado e deveria ser levado a um veterinário.

Tanta coisa que precisava ser feita... Mas Alice sabia que não faria nada enquanto não recebesse notícias de Mary. Continuaria sentada ali, sozinha, ociosa. Engraçado: ela era descrita como desempregada, nunca tivera um emprego e estava sem­pre ocupada. Ficar sentada calmamente, sem fazer nada, era um regalo excepcional. Ficar sozinha — isso era ótimo. O sentimen­to de culpa ameaçou uma invasão com esse pensamento: era uma deslealdade para com seus amigos. Não queria ser como a mãe: egoísta. A mãe costumava reclamar e importunar para ter uma tarde só sua e descarregava nos filhos. Privacidade. Gente assim dava muita importância à privacidade: noventa e nove por cen­to da população do mundo não sabia o que a palavra significa­va. Se é que alguma vez a tinham ouvido. Não, era melhor assim, mais saudável, um grupo de camaradas. Partilhando. Mas, nes­se ponto, a preocupação voltou a atormentá-la, e ela pensou: E por isso que estou tão transtornada esta manhã. Por causa de Mary. Por causa de Reggie. Eles não são dos nossos. Nunca poderão se soltar completamente para se fundirem conosco. Permanecerão um casal. Terão suas opiniões particulares a respei­to de todos os outros. Mas isso também se aplicava a Roberta e Faye, que formavam um casal: elas deixavam patente que pos­suíam suas próprias atitudes e opiniões; não gostavam do que estava acontecendo agora, com a casa. E Bert e Pat? Não, eles não tinham opiniões próprias, que levantavam contra os outros; mas, na verdade, Pat só estava ali porque gostava de ser trepada (a palavra certa para o relacionamento!). Jim? Philip? Ela e Jasper?

Quando se chegava ao fundo, ela e Jasper eram os únicos revolucionários autênticos ali. Horrorizada com tal pensamen­to, mesmo assim Alice analisou-o. E Bert? Jasper o aprovava. A afeição de Jasper a homens que eram como irmãos mais ve­lhos nada tinha a ver com política, mas com suas naturezas: sem­pre eram do mesmo tipo. Condescendentes. Gentis. Era isso. Bert era uma boa pessoa. Mas seria um revolucionário? E injus­to dizer que Faye e Roberta não eram revolucionárias autênti­cas só porque não gosto delas, pensou Alice... Aonde aqueles pensamentos a levavam? Qual era o sentido? O grupo, sua fa­mília, era fragmentado, diminuído, criticado para fora da exis­tência. Alice pensou: Se não ficarmos com esta casa, vamos para a comuna em Brixton.

Um som lá em cima, imediatamente por cima. Faye e Ro­berta não haviam ido com os outros. Alice escutou como elas acordavam e se levantavam: movimentos bruscos, os sacos de dormir sendo arrastados pelas tábuas do assoalho, uma risada, uma risadinha abafada. Silêncio. Depois passos e um momento depois as duas estavam na cozinha.

Alice levantou para pôr a panela para esquentar e tornou a sentar. As duas recendiam a maduro — suadas e fêmeas. Não iam se lavar com água fria, não aquelas duas!

Sorriram para Alice, sentaram juntas de costas para o fo­gão, onde podiam olhar pela janela, e ver o sol da manhã.

Sabendo que não havia outro jeito, Alice fez um esforço para relatar o que acontecera na noite anterior, sobre Mary e Reggie. Não atenuou coisa alguma. As duas continuaram sentadas lado a lado, esperando pelo café, sem olhar uma para a outra, pelo que Alice sentiu-se grata. Viu aparecer em seus ros­tos a ironia que ouvia em sua própria voz.

Quer dizer que a UCC tem dois novos recrutas? perguntou Roberta, desatando a rir.

São boas pessoas comentou Alice, com um tom de censura, mas rindo também.

Faye não riu; os pequenos dentes brancos seguravam o lá­bio inferior rosado; a testa brilhante franzida e toda a sua pes­soa anunciavam a desaprovação. Roberta parou de rir.

Ei, pensou Alice, já vi isso antes: pensava-se que Roberta era a forte parecia maternal, a galinha com seu pintinho —, mas não era esse o caso, pois Faye é quem o era, apesar de suas maneiras afetadas e implicantes. E ela observou Faye com aten­ção e respeito, pois ela estava prestes a se pronunciar. Roberta também esperou.

Escute, Alice, quero que preste toda a atenção, pois vou dizer o que penso...

E Alice compreendeu que ela tinha dificuldade para se expressar, era por isso que recorria a tantos truques e artimanhas, afetações e hesitações, a olhares cautelosos e sorrisos para Ro­berta e para si mesma; mas por baixo era ferro, era formidável.

De uma vez por todas, não me importo com toda essa felicidade doméstica, com toda esta casa e o jardim limpo... — Nesse ponto ela esperou, polidamente, enquanto primeiro Roberta e depois Alice, percebendo que Roberta o fazia, riam um pouco. Continuou: Houve um tempo em que esta casa teria me parecido um palácio. Para mim, todo esse negócio é classudo demais. Já vivi em pelo menos mil casas abandonadas, buracos, cantos, quartos, barracos e residências legais... e aqui é a melhor de todas. Mas não me importo.

Sacudiu um dedo para Alice, impertinente, jovial. Roberta olhava fixamente para a amada, como uma irmã mais velha: Se­rá que ela está indo longe demais? Longe demais, Alice sabia, com toda aquela apresentação, a atitude, os meios que lhe permitiam dizer o que pensava. Roberta não queria que Alice pensasse que aquela garota era frívola ou tola.

Mas Alice não pensava assim, absolutamente.

A qualquer momento vamos ter água quente e assoalho vitrificado. Eu não ficaria surpresa. Para mim, no entanto, tudo isso é merda, entende? Merda!

Alice levantou-se, despejou água quente nas três canecas que já tinham o café solúvel, levou-as para a mesa, pôs a garrafa de leite e o açúcar perto de Faye. Fez tudo isso como uma espécie de demonstração e percebeu que Faye, ao estender a mão para o café, que ia beber puro e sem açúcar, podia compreender, até mesmo apreciar, a julgar por seu rápido e astuto sorriso. Mas Faye ia continuar, com determinação. Também abandonara seu estilo cockney e a voz que o acompanhava. Falava agora o in­glês da BBC.

Não me importo com essas coisas, Alice. Será que não entende? Se você quer me servir, então sirva. Se não quer, não sirva. Não me importo com uma coisa nem outra.

Roberta se apressou em dizer, protetora:

Faye tem levado uma vida terrível, uma vida de merda...

E não pôde mais continuar, virou o rosto para o outro lado.

É verdade, mas não dê maior importância a isso de­clarou Faye. Eu não dou.

Roberta sacudiu a cabeça, incapaz de falar. Pôs a mão, hesitante, pronta para ser rejeitada, no braço de Faye, que acres­centou:  

Se tenciona relatar a Alice a minha horrível infância, o problema é seu, mas não conte nada enquanto eu estiver aqui.

Ela tomou o café amargo, fez uma careta, pegou um biscoi­to, deu uma mordida, mastigou e engoliu, como se fosse uma dose de remédio. Outro gole de cafeína. Roberta desviara o ros­to. Alice sabia que ela se sentia infinitamente triste por alguma coisa; se não pelo passado de Faye, então por seu presente; sua mão, ignorada por Faye, deixara o braço de Faye e descaíra pa­ra seu próprio colo, onde se encontrava inerte, trêmula e la­mentável, enquanto sua cabeça abaixada, com os anéis de cabelos pretos, fazia Alice pensar num cachorro humildemente apaixo­nado. Roberta irradiava amor e anseio. Naquele momento, pe­lo menos, Faye não precisava de Roberta, mas Roberta morria de necessidade de Faye.

Faye provavelmente tem ocasiões em que deseja se livrar de Roberta, acha que é tudo demais é isso mesmo, pensava Alice. Pois aposto que Roberta nunca deseja se livrar de Faye! Oh, Deus, toda essa coisa pessoal interferindo em tudo, o tempo todo! Pelo menos Jasper e eu resolvemos essa parte.

Faye continuava a falar. Por Deus, preste atenção, ela pode arrumar um emprego na BBC, pensou Alice. Quando será que ela aprendeu a falar tão bem? E para quê?

Já conheci pessoas como você antes, Alice. Durante a minha longa carreira. Não pode deixar as coisas como estão.

Está sempre arrumando tudo, fazendo as coisas funcionarem. Se há um pouco de poeira num canto, você entra em pânico.

Nesse ponto Roberta deixou escapar uma risada áspera e Alice sorriu afetada... pensando em todos aqueles baldes.

Ora, riam, podem rir à vontade!

Parecia que Faye poderia ter parado por aí, pois hesitou, e o estilo cockneyquase se restabeleceu, com um sorriso insinuante. Mas ela tratou de se controlar, empertigou-se com uma solidão fria e feroz, tão auto-suficiente que a mão de Roberta, outra vez solícita, procurando, se afastou.

Só me importo com uma coisa, Alice. E você, preste atenção, Roberta, pois está sempre esquecendo o que eu sou, como eu sou. Quero acabar com esse sistema de merda, nojento, men­tiroso, cruel, hipócrita. Está me entendendo, Alice? Você tam­bém, Roberta?

Ela não estava absolutamente bonita ou atraente naquele instante, mas pálida e irada, a boca contraída, os olhos duros; e isso — a maneira como parecia — retirava qualquer sentimen­talismo do que disse em seguida:

Quero acabar com tudo isso para que as crianças não so­fram tanto quanto eu sofri.

Roberta estava isolada, repudiada, incapaz de falar. Alice disse:

Mas você acha que não sou uma revolucionária, Faye? Concordo com tudo o que disse.

Não sei nada a seu respeito, camarada Alice. A não ser que é uma maravilha com uma casa. E com a polícia. Gosto disso. Mas antes de sua chegada, tomamos uma decisão, uma decisão conjunta. Resolvemos que vamos trabalhar com o IRA. Já esqueceu?

Alice ficou calada. Estava pensando. Mas Jasper e Bert não haviam discutido as coisas na outra casa? Disse finalmente, com todo o cuidado:

Soube que um camarada da outra casa indicou que...

Que camarada? — indagou Roberta, ressuscitando. — Não sabemos de nada disso.

Ahn. . . — murmurou Alice. — Pensei...

E tudo besteira de amador — interveio Faye. — De repen­te alguma autoridade desconhecida na casa ao lado diz isso e aquilo.

Não pensei...

Alice não tinha nada a dizer. Estava pensando: Fora Bert quem levara Jasper para...? Fora Jasper quem...? Não me lembro de Jasper jamais ter feito qualquer coisa assim antes...

Depois de algum tempo, embora ninguém dissesse nada, mas todas acalentassem seus pensamentos em separado, Alice disse:

Muito bem, concordo. Está na hora de a gente se reunir e discutir tudo. Da maneira correta.

Inclusive os dois novos camaradas?indagou Faye, amargurada.

Não, não, apenas nós. Apenas você, Roberta, Bert, Jasper, Pat e eu.

Sem Philip e sem Jim acrescentou Roberta.

Nós seis poderíamos ir a um café ou a outro lugar para uma discussão sugeriu Alice.

Isso mesmo concordou Faye. Não podemos ter uma discussão aqui, com tantos elementos estranhos. Exatamente.

Talvez pudéssemos conseguir um quarto emprestado na outra casa aventou Alice.

E por que não podemos fazer um lindo piquenique no parque? indagou Faye, com veemência.

Por que não? concordou Roberta, rindo.

Podia-se perceber que ela recuperava a ascendência, sentia-se forte e confiante, lançava para Faye olhares que em breve seriam retribuídos.

Outro silêncio, sociável, sem ressentimentos. A seguir, Alice disse:

Tenho de perguntar isso, é um assunto que precisa ser levantado. Vocês duas estão dispostas a contribuir com alguma coisa para as despesas?

Faye, como se podia esperar, soltou uma risada. Roberta se apressou em dizer, como uma censura a Faye, o que revelava a Alice as discussões que as duas tiveram sobre aquele assunto:

Vamos pagar pela comida e coisas assim. Você tem de nos dizer como funciona.

Sai muito barato, com tanta gente.

Isso é justo comentou Faye. Mas podem me deixar de fora de todos os arranjos. Não estou interessada. Roberta pode fazer o que quiser.

Ela se levantou, sorriu jovialmente para as outras duas e saiu. Roberta fez um movimento instintivo para acompanhá-la, mas continuou onde estava.

Darei uma contribuição, Alice. Não sou como Faye... não sou indiferente ao ambiente em que vivo. E pode estar cer­ta de que ela é realmente assim.

Roberta falou em tom de premência, sorrindo, insistindo , na diferença de Faye, como ela era singular e preciosa.

Sei disso.

Roberta estendeu duas notas de dez libras, que Alice pegou, sem nenhuma expressão, sabendo que seria só isso. Agradeceu a Roberta, que ficou se remexendo por mais um instante e depois, incapaz de suportar por mais tempo, levantou-se e foi atrás de Faye.

Ainda não eram dez horas. Mary dissera para telefonar à uma da tarde. Persuadida pelos odores deixados no ar da cozi­nha por Faye, por Roberta, ela subiu para o banheiro e forçou-se a tomar um banho frio. Agachou-se na banheira, incapaz de baixar as nádegas para a água, esfregando-se e ensaboando-se. Satisfeita, vestiu roupas limpas, fez uma trouxa com o que tirara e com as roupas de Jasper que precisavam de uma lavagem — o que determinou ao cheirá-las — e saiu para a lavande­ria. Avistou a velha sentada debaixo da árvore no jardim ao lado, os membros descarnados e projetados, como um monte de ga­lhos secos dentro de um saco de saia e casaco de lã. Ela gesticu­lou ansiosamente para Alice, que saiu para a rua, avançou pela calçada e passou pelo portãozinho branco da outra casa, sorrin­do. Esperava que os vizinhos estivessem observando.

Ela saiu e me deixou — anunciou a velha, fazendo um esforço para se empertigar de sua posição arriada. — Eles não se importam. Ninguém se importa.

Quando ela se pôs a falar em voz rouca sobre os crimes de Joan Robbins, Alice ajeitou-a numa posição em que podia respirar direito, pensando que a velha não devia pesar mais do que a sua trouxa de roupa suja. Ficou escutando, com um sorriso, até que não agüentou mais e inclinou-se para gritar, em ouvi­dos possivelmente surdos:

Mas ela é muito gentil ao trazê-la para sentar aqui fora, no jardim. Não é obrigada a fazer isso, não é? — E depois, quan­do o rosto da velha parecia prestes a irromper em protesto, Alice acrescentou: — Não tem importância. Vou buscar uma boa xícara de café.

Chá, chá — balbuciou a velha.

Terá de tomar café. Estamos sem bule para o chá. Fique sentada aqui esperando.

Alice voltou à casa, serviu um café com açúcar, levou-o pa­ra a velha.

Qual é o seu nome?

Senhora Jackson, Jackson... só me chamam assim.

Meu nome é Alice, e moro na casa 43.

Mandou embora todas aquelas pessoas sujas, no que fez muito bem disse a senhora Jackson, já escorregando outra vez pela cadeira, como uma velha boneca bêbada, a caneca virando para o lado em sua mão.

Virei vê-la de novo dentro de poucos minutos pro­meteu Alice, antes de partir apressada.

A lavanderia ocupou-a por quarenta e cinco minutos. Foi buscar a xícara com a senhora Jackson e depois ficou escutando Joan Robbins, que veio da cozinha para dizer que Alice não devia acreditar na velha, que estava caduca; não havia uma úni­ca razão no mundo para que ela, Joan Robbins, devesse fazer alguma coisa pela velha, muito menos ajudá-la a descer a escada para o jardim e tornar a subir, servir café e... As queixas con­tinuaram, enquanto a senhora Jackson gesticulava para as duas, insistindo que sua história era a certa. A cena estava sendo tes­temunhada por várias pessoas, nos jardins e janelas; Alice dei­xou que desfrutassem tudo.

Com um aceno de mão, ela voltou para sua casa.

Eram onze horas, e uma frágil aparição cambaleou na esca­da: Philip, que disse:

Não me sinto bem, Alice. Não me sinto...

Ele chegou lá embaixo, precariamente, e seu rosto, de um anjo triste mas embaraçado, foi apresentado a Alice para diagnóstico e julgamento, com uma confiança absoluta na justiça, o que ela lhe dispensou.

Não estou surpresa, depois de todo aquele trabalho no telhado. Não pense em fazer qualquer coisa hoje. Trate de des­cansar.

Eu bem que gostaria de ir com os outros, mas...

Vá para a sala de estar. Relaxe. Levarei um café para você.

Alice sabia que aquela doença precisava apenas de afeição.

Philip acomodou-se numa poltrona e ela levou-lhe café, e sentou- se também, pensando: Não tenho nada melhor para fazer.

Ela soubera que em alguma ocasião teria de escutar uma história de iniqüidades: aquele era o momento, Philip recebera pro­messas de empregos que não haviam se concretizado; fora des­pedido sem aviso prévio; não recebera pagamento por traba­lhos realizados. Tudo isso lhe foi contado na voz veemente e magoada de alguém que sofrera um azar inexplicável e até ma­ligno, enquanto o motivo de tudo que ele era frágil como uma marionete não era mencionado; nunca poderia ser men­cionado, Alice tinha certeza.

E quer saber de uma coisa, Alice? Ele me disse: "Esteja aqui na próxima segunda-feira e terei um emprego para você". Mas sabe que emprego era? Queria que eu carregasse enormes caixas de tinta e outras coisas para um furgão! Sou um constru­tor e decorador, Alice! Mas aceitei o emprego, trabalhei por qua­tro dias e fiquei com as costas arrebentadas. Passei duas semanas no hospital e depois fiz fisioterapia por um mês. Quando fui procurá-lo para cobrar os quatro dias de trabalho, ele disse que eu é que fora o errado e...

Alice escutava e sorria, sentia o coração confrangido por ele. Parecia-lhe que muita coisa fora pedida a seu coração na­quela manhã, uma pobre vítima depois de outra. Ora, não ti­nha importância, um dia a vida não seria mais assim; era o capitalismo que se mostrava tão implacável e pernicioso, não se importava com o sofrimento de suas vítimas.

Ao meio-dia e meia, quando pensava em ir à cabine telefônica, ela ouviu alguém chegando e correu para interceptar a po­lícia, a prefeitura... quem seria desta vez?

Era Reggie, que depositava caixas no vestíbulo, sorrindo. Informou que Mary deixara a reunião por um momento para lhe telefonar e dar a boa notícia. E ela estaria ali com outro car­regamento na hora do almoço. O alívio deixou Alice meio ton­ta; e, depois, chorou. Encostada na parede, ao lado da porta, na sala de estar, levou as mãos à boca, como numa dor profun­da, suas lágrimas se despejando dos olhos fechados.

Ora, Alice, por quê? — murmurou Reggie, aproximando- se para espiar seu rosto trágico, obrigando-a a repelir os afagos amistosos e um braço estendido por seus ombros.

Reação — sussurrou ela, correndo para o banheiro, a fim de vomitar.

Quando saiu, Philip e Reggie estavam parados lado a la­do, fitando-a, prontos para sorrir, esperando que ela lhes permitisse.

E, finalmente, Alice sorriu, depois riu, não pôde mais parar.

Philip a fitava fixamente, enquanto Reggie, constrangido, sentava-se.

Alice também se sentia constrangida: O que há de errado comigo? Devo estar doente também.

Mas Philip não estava mais doente. Saíra para contar as janelas quebradas, antes de comprar o vidro. Reggie subiu para dar uma olhada nos quartos. Alice ficou na cozinha.

Foi lá que Mary a encontrou, quando chegou com uma cai­xa cheia de panelas, louça de barro e uma chaleira elétrica.

Sentou-se do outro lado da mesa. Estava corada e exultante. Alice ouvira-a rir com Reggie da mesma maneira que Roberta e Faye riam, e, às vezes, Bert e Pat. Dois contra o mundo. Intimidade. Alice foi logo perguntando:

Quais são as condições?

Será apenas por um ano.

Alice sorriu e, diante da expressão de Mary, explicou:

É uma vida.

Mas é claro que eles podem prorrogar o prazo. Se não decidirem demolir a casa, no final das contas.

Não vão demoli-la — declarou Alice, confiante.

Não tenha tanta certeza.

Mary estava agora se mostrando suscetível por conta de seu outro eu, a prefeitura. Alice deu de ombros. Esperou, olhando para Mary, que parecia não saber realmente porquê. Alice aca­bou perguntando:

Mas o que foi decidido sobre o pagamento?

Ora, uma ninharia — respondeu Mary, vagamente. — Ainda não fixaram a quantia exata, mas não será grande coisa. Apenas um valor simbólico.

Sei disso — insistiu Alice, paciente. — Mas quero saber como. Uma soma redonda por toda a casa?

Oh, não! — exclamou Mary, como se isso fosse uma extorsão inconcebível (tal é a força de uma decisão oficial para uma mentalidade oficial). — Nada disso. O benefício será ajus­tado individualmente para todos na casa. Ninguém aqui está tra­balhando, não é?

Não é esse o problema, Mary — comentou Alice, espe­rando que Mary percebesse o problema.

Mas isso não aconteceu. Nem podia; o que em sua expe­riência poderia prepará-la para a situação?

Creio que seria mais fácil se fosse uma quantia fixa e dividida por todos. Ainda mais por ser tão pequena. O suficiente para cobrir os impostos e taxas, não mais do que dez ou quinze libras por semana. Mas não é assim que costumamos fazer.

Era outra vez a autoridade se manifestando, na maneira decisiva de quem sabe que tudo o que se faz deve ser feito da me­lhor forma possível.

Tem certeza de que não há nenhuma possibilidade de mudar essa decisão? — indagou Alice com muito cuidado, de­pois de uma breve pausa.

Absolutamente nenhuma.

No fundo, o que Mary dizia era o seguinte: É um proble­ma tão insignificante que não há sentido em desperdiçar mais um minuto sequer com o assunto.

E era tão insignificante para Mary que ela começou a circu­lar pela cozinha, examinando-a, com um sorriso feliz, como se desembrulhasse um presente.

Alice continuou sentada, ajustando-se à situação. Faye e Roberta não concordariam, iriam embora imediatamente. Jim tam­bém. Jasper não gostaria... exigiria que tanto ele como Alice partissem. Muito bem, todos iriam embora. Por que não? Ela já fizera isso muitas vezes! Havia aquela casa vazia em Stockwell... Jasper e ela vinham falando há meses em ocupá-la. Se­ria conveniente para Faye e Roberta, pois a comuna de mulheres que elas freqüentavam era por aquelas bandas. Só Deus sabia que outros lugares, refúgios, esconderijos elas usavam. Alice ti­nha a impressão de que eram muitos.

Mas era uma pena ter de deixar aquela casa. E enquanto pensava em partir, o pesar contraiu a garganta de Alice, levou-a a fechar os olhos, sofrendo.

E ela disse, parecendo fria e autoritária, por causa da rigidez na garganta:

E isso aí. Lamento muito, mas não tem outro jeito.

Como assim? —Mary se virara e estava imóvel, como uma atriz trágica, a mão na garganta. Não estou entendendo!

Não faz a menor diferença para vocês, não é? Você e Reggie podem ficar aqui sozinhos. E tenho certeza de que poderão facilmente trazer amigos para ocupar a casa.

Mary arriou numa cadeira. Da garota mais feliz do mundo, ela passara a uma pobre criatura, pálida e frágil, uma suplicante.

Não compreendo! Que diferença isso faz? E é claro que Reggie e eu não podemos ficar aqui sozinhos.

Por que não?

Mary ficou vermelha e balbuciou:

E claro... nem precisa dizer... eles não podem saber que estou morando aqui. Bob Hood e os outros não podem sa­ber que estou morando numa casa emprestada.

Ah, então é isso... — murmurou Alice vagamente, por­que já pensava nos problemas de outra mudança.

Não compreendo repetiu Mary. Qual é o problema?

Alice suspirou e explicou, sem entrar em detalhes, que al­guns deles não queriam que sua presença na casa fosse registrada.

Eles são criminosos? indagou Mary.

Ela exibia agora uma tonalidade rosa brilhante e parecia indignada. Alice percebeu que aquele momento já ocorrera an­tes, com a Tendência Militante. Métodos! E disse, parecendo sarcástica, por causa do esforço que fazia para ser paciente:

Política, Mary. Política, entende?

Alice tinha a impressão de que no caso de Jim era algum problema criminal, mas achou melhor ignorar esse detalhe. E provavelmente também havia um problema criminal com Faye e Roberta, por falar nisso.

Será que não entende, Mary? As pessoas recebem o seguro-desemprego em um distrito, mas residem em outro lu­gar. As vezes em vários outros lugares.

Ahn... estou entendendo...

Mary refletiu sobre a perspectiva: revolucionários eficien­tes e perigosos em fuga, sempre escondidos. Mas parecia inca­paz de absorver. E disse, com alguma irritação:

Talvez a decisão possa ser ajustada. Mas ainda bem que a prefeitura não sabe disso.

Quer dizer que pode dar um jeito de alterar a decisão?

Aliviada, a casa recuperada, Alice começou a sorrir, entre lá­grimas. — Oh, Deus, então está tudo bem!

Mary fitava-a atentamente. Alice, constrangida por causa da profundidade de sua emoção, sorriu-lhe. Aquele era o momen­to em que Mary, por sua repugnância a qualquer coisa que não conferia com o padrão invisível do que era certo, conveniente e apropriado, um sistema rígido que partilhava com Reggie, po­deria se levantar, balbuciar algumas desculpas rígidas e ressenti­das e ir embora. Para dizer a Bob Hood que a prefeitura come­tera um erro, que aquelas pessoas na casa 43... Mas ela apenas sorriu e murmurou:

Falarei com Bob. Espero que não haja qualquer proble­ma. Todos vão rachar as despesas? Pedirei que mandem as con­tas todos os meses, em vez de semanalmente. Será mais fácil controlar os pagamentos.

Ela conversou por mais algum tempo, a fim de restaurar a sua autoridade e a da prefeitura, depois comentou que seria preciso fazer alguma coisa com a casa 45. Havia reclamações constantes.

Falarei com eles — sugeriu Alice.

Outra vez a autoridade interveio:

Não é da sua conta, não é? Por que deveria se intrometer?

Vendo Alice dar de ombros, aparentemente indiferente, Mary apressou-se em acrescentar: — Mas talvez seja uma boa idéia...

Ela subiu, com uma expressão tão irritada quanto a de Alice. As duas pensavam que não seria fácil a combinação de tantas pessoas na casa.

Pouco depois Mary saiu com Reggie. Ele a deixaria no trabalho e mais tarde voltariam juntos, com outro carregamento. Trariam alguns móveis também, se ninguém se importasse. Uma cama, por exemplo.

Alice ficou sentada, sozinha. Philip apareceu, pegou o dinheiro para o vidro e saiu para comprá-lo.

Alice contemplava a si mesma durante os últimos quatro dias e pensou: Tenho me comportado como uma louca? Afi­nal, é apenas uma casa... e o que venho fazendo? Aqueles dois, Reggie e Mary... revolucionários? Eles eram da Tendência Militante? Que absurdo!

Foi se recuperando lentamente. A energia voltou. Pensou nos outros, no campo de batalha em Melstead. Trabalhavam pela causa; e ela devia fazer isso também. Alice acabou saindo, tomando cuidado para não verificar se a velha estava ou não lhe acenando. Caminhou junto à sebe que separava sua casa pri­meiro da rua e depois da 45. Entrou na ruazinha transversal que era igual à sua e parou no mesmo lugar em que vira Bob Hood parar no dia anterior, olhando para o jardim cheio de lixo.

Avançou decidida pelo caminho, preparada para ser examinada por quem quer que estivesse ali e se interessasse. Bateu na porta. Esperou um bom tempo para que abrissem. Deu uma olhada no vestíbulo, igual ao de sua casa, mas com caixas empi­lhadas. Havia uma lâmpada. Então eles tinham energia elétrica.

A sua frente estava um homem que a impressionou no mes­mo instante como sendo estrangeiro. Não era por alguma coisa específica em sua aparência, mas havia nele algo diferente. Era russo, Alice teve certeza, o que lhe proporcionou um frisson de satisfação. Era poder, a idéia de poder, que a excitava. O ho­mem em si não tinha nada de extraordinário: largo, não gordo, embora pudesse facilmente se tornar, e não muito alto; na ver­dade, era apenas um pouco mais alto do que ela. Tinha um ros­to largo e um tanto rude, olhos pequenos, cinzentos e pene­trantes. Usava uma calça cinza de sarja que parecia nova e cara e uma camisa também cinza, abotoada e imaculada.

Podia ter sido um soldado.

Sou Alice Mellings. Da casa ao lado.

Ele acenou com a cabeça, muito sério.

Entre.

O homem levou-a por entre as pilhas de caixas para o cô­modo que na outra casa era a sala de estar. Ali, tinha a aparên­cia de um escritório ou estúdio. Havia uma mesa junto à janela grande, a cadeira de costas para a janela. Alice compreendeu o motivo dessa disposição: o homem queria saber quem entrava e saía pela porta.

Ele sentou nessa cadeira e acenou com a cabeça para a ou­tra, em frente. Alice sentou.

Ela pensava, impressionada: Este é o homem, a coisa real.

Ele ficou esperando que ela falasse.

A única coisa que Alice sabia agora que não podia falar era "Você andou dizendo a Jasper e Bert o que devem fazer?", justamente o que desejava saber.

Acabamos de receber autorização da prefeitura para ocu­par a casa, por um prazo curto — disse ela. O homem acenou com a cabeça. — Pensamos que vocês deveriam tentar a mesma coisa. Torna a vida muito mais fácil, entende? E significa que a polícia os deixará em paz.

Ele pareceu relaxar, recostou-se, estendeu um maço de cigarros na direção de Alice, acendeu um para si enquanto ela sa­cudia a cabeça, prendeu a fumaça nos pulmões por um instante, depois expeliu num sopro único e rápido, antes de dizer:

Depende dos outros. Não vivo aqui.

Isso era tudo o que ele ia dizer? Parecia que sim. E a verda­de é que dissera tudo o que era necessário. Confusa, Alice apressou-se em acrescentar:

Há o problema do lixo. Terão de pagar aos lixeiros...

Ela hesitou. O homem a fitava atentamente. Alice sabia que ele estava percebendo tudo. Era um exame frio e meticuloso. Mas não hostil, não inamistoso, não é?

Deram-nos um prazo de um ano para ocupar a casa. Is­so significa que depois que o lugar estiver arrumado poderemos concentrar toda a nossa atenção na... — Alice evitou a pala­vra "revolução" — política.

O homem parecia não ter ouvido. Esperava por mais? Que ela continuasse? Atrapalhada, Alice acrescentou:

E claro que nem todos em nossa casa... Por exemplo, Roberta e Faye não acham que. . . Mas por que saberia quem são elas? Vou explicar...

Ele interrompeu-a:

Sei quem são Roberta e Faye. Como são os dois novos?

Alice respondeu, concedendo a Reggie e Mary o crédito devido:

Já foram membros da Tendência Militante, mas não gostaram dos métodos.

Nesse ponto ela se atreveu a oferecer um sorriso, esperan­do uma retribuição, mas o homem apenas indagou:

Ela trabalha na prefeitura? Em que nível?

Ela não toma decisões.

O homem balançou a cabeça.

E qual é a situação dele? E químico, não é?

Químico industrial. Perdeu o emprego.

Onde trabalhava?

Não perguntei. — Uma pausa, e Alice acrescentou: — Vou descobrir.

O homem tornou a balançar a cabeça. Continuou a fumar. Estava empertigado na cadeira, os antebraços sobre a mesa, com um papel na frente, em que seus olhos pareciam fazer anota­ções. Ele era como Lênin!

Alice pensou: A voz. Americana. Mas com algo estranho para uma voz americana. Não, não era a voz nem o sotaque, mas alguma outra coisa. Nele.

O homem não dizia nada. A dúvida e a ansiedade que se acumulavam em Alice acabaram por aflorar.

Jasper e Bert foram para Melstead. Saíram cedo.

Ele acenou com a cabeça. Pegou um jornal impecavelmen­te dobrado e abriu-o à sua frente, virando as páginas.

Já viu o Times de hoje?

Não leio a imprensa capitalista.

O que talvez seja uma pena — comentou o homem, de­pois de uma pausa.

Ele empurrou o jornal, indicando um parágrafo.

"Indagado se eram bem-vindos esses reforços para o pique­te, Crabit, o porta-voz dos grevistas, declarou que gostaria que os trotskistas e a turma do piquete-de-aluguel se mantivessem a distância. Não eram desejados. Os trabalhadores podem resolver seus problemas sozinhos."

Alice sentiu que poderia recomeçar a chorar com a maior facilidade.

Mas este é um jornal capitalista — alegou ela. — Estão tentando dividir as forças democráticas, querem nos desunir.

Ela já ia acrescentar "Será que não pode perceber isso?", mas não foi capaz.

O homem pegou o jornal de volta e ajeitou-o no lugar em que se encontrava antes. Agora não olhava para Alice.

Camarada Alice, há meios mais eficientes de fazer as coi­sas. — Ele se levantou. — Tenho o que fazer.

Ela estava dispensada. O homem saiu de trás da mesa e acompanhou-a até a porta da frente.

Obrigado por ter vindo me procurar.

Alice balbuciou:

Haveria um cômodo nesta casa que pudéssemos usar pa­ra uma... uma discussão? Alguns de nós não têm muita certe­za sobre... sobre alguns dos outros.

Vou perguntar — respondeu o homem.

Ele não reagira como Alice receava. A conversa parecia tão descabida...

O homem balançou a cabeça mais uma vez e, finalmente, ofereceu-lhe um sorriso. Alice saiu, completamente atordoada. Dizia a si mesma: Mas ele é a coisa real, tenho certeza.

O homem não dissera seu nome.

Alice foi andando devagar porque à sua frente, no meio da calçada, havia uma garota com um bebê num carrinho. A criança parecia um embrulho de plástico estofado, com uma cabeça pá­lida e rechonchuda na extremidade. Choramingava numa nota alta e persistente que deixou Alice nervosa. A garota parecia cansada e desesperada. Tinha cabelos claros e lisos, que davam a impressão de precisarem de uma lavagem. Alice percebeu, pe­lo empinar irado de seus ombros, que ela estava com vontade de bater na criança. Esperava poder andar mais depressa quan­do chegasse à sua rua, mas a garota virou ali, ainda ocupando o meio da calçada. Parou, olhando para as casas, demorando-se em particular na 43. Alice seguiu adiante e empurrou o portão. E foi nesse instante que ouviu a garota dizer:

Você mora aqui? Nesta casa?

Moro — respondeu Alice, sem se virar, em tom brusco.

Sabia o que estava para acontecer. Foi avançando pelo caminho e ouviu as rodas do carrinho rangerem em seu encalço.

Com licença — insistiu a garota.

Pela vozinha obstinada, Alice compreendeu que não tinha como escapar. Virou-se abruptamente, bloqueando a passagem para a porta da frente. Confrontava agora a garota com um não estampado na cara. Não era a primeira vez, é claro, que se en­contrava em tal situação. E pensou: É injusto que eu tenha de lidar com esse problema.

A garota era uma pobre coitada. Provavelmente em torno dos vinte anos. Já desgastada por tudo, e a única energia que lhe restava era a irritação com a criança chorona.

- Soube que esta casa foi aberta à ocupação a curto prazo.

Ela não desviava os olhos do rosto de Alice. Eram grandes, cinzentos, até bonitos, mas Alice não queria a pressão que lhe aplicavam. Virou-se para a porta e abriu-a.

Onde soube disso?

A garota não respondeu. Disse apenas:

Estou enlouquecendo. Tenho de arrumar um lugar para ficar. De qualquer maneira.

Alice passou para o vestíbulo e ia fechar a porta, mas descobriu que o pé da garota a impedia. Ficou surpresa, pois não esperava tal iniciativa. Mas essa determinação tornou-a mais for­te; afinal, se a garota possuía tanto espírito, então sua situação não era tão ruim assim.

A porta ficou aberta. A criança agora chorava ruidosamen­te, com a maior animação, dentro de sua mortalha de plástico transparente, os olhos azuis arregalados, derramando lágrimas. A garota enfrentou Alice, que percebeu que ela tremia de raiva.

Tenho tanto direito de ficar aqui quanto você — decla­rou ela. — E se houver lugar, virei para cá. E tem bastante espa­ço, não é? Basta olhar para o tamanho desta casa!

A garota correu os olhos pelo vestíbulo grande, com o ta­pete reluzente que dava uma aparência de luxo discreto, obser­vou as várias portas, dando para cômodos e mais cômodos, um autêntico tesouro. A seguir contemplou a escada larga, que subia para outro andar. Mais portas, mais espaço. Alice, em ago­nia, fitou-a nos olhos.

Estou num daqueles hotéis... sabe como são? Pois to­do mundo devia saber. A prefeitura nos jogou lá, meu marido, Bobby e eu. Um cômodo só. Estamos lá há sete meses.

Alice podia sentir pelo tom, incrédulo por tanto horror, como haviam sido aqueles sete meses.

Pertence a alguns estrangeiros nojentos — continuou a garota. — Uma coisa repulsiva. Por que eles deveriam ter um hotel e nos ordenar o que fazer? Não temos permissão para co­zinhar. Pode imaginar uma coisa assim com um bebê? Um cô­modo só. E o chão é tão sujo que não posso pô-lo para engatinhar.

Essa informação foi fornecida a Alice em voz emocionada e trêmula, enquanto a criança continuava a chorar, firme e sonora.

Não pode vir para cá — insistiu Alice. — Não é um lu­gar adequado. Para começar, não tem aquecimento. Não há nem água quente.

Agua quente! — exclamou a garota, tremendo de raiva. — Agua quente! Passamos três dias sem água quente e com o aquecimento desligado. A gente liga para a prefeitura e reclama, eles dizem que estão providenciando. Quero um pouco de espaço. Um quarto. Posso esquentar água numa panela para la­var a criança. Tem fogão aqui, não é? Nem posso dar uma co­mida decente a meu filho. Só aquelas porcarias que se compram prontas.

Alice não respondeu. Estava pensando: Por que não? Que direito tenho eu de dizer não? E foi nesse instante que ela ouviu um ruído lá em cima. Virou-se para deparar com Faye no patamar, observando. Havia alguma coisa nela que prendeu a atenção de Alice; algum propósito inabalável, um ânimo implacável. A criatura linda e frágil, Faye, tornara a desaparecer; em seu lugar havia uma mulher maligna, de rosto branco, olhos frios e punitivos, que desceu a escada rapidamente, como se fosse atacar a garota, que a princípio se manteve firme, mas depois, aturdida, deu um passo para trás. E logo Faye estava em cima dela, inclinando-se para a frente e sussurrando:

Saia. Saia. Saia.

A garota balbuciou:

Quem é você? O que...

Faye empurrou-a, pela força de sua presença, seu ódio, de volta à porta, passo a passo. A criança agora berrava.

Como se atreve? — disse Faye. — Como pode entrar aqui desse jeito? Ninguém disse que podia entrar. Sei como você é. Depois de se instalar, trataria de se apropriar de tudo o que pu­desse. É desse tipo.

Tamanha insanidade manteve Alice em silêncio e a garota boquiaberta e de olhos arregalados fitando sua algoz, enquanto batia em retirada para a porta. Ali, Faye lhe deu um empurrão de verdade, o que a fez tropeçar para cima do carrinho e quase derrubá-lo.

Faye bateu a porta estrondosamente. Depois, abriu-a e tor­nou a bater, com toda a força. Tudo indicava que continuaria a fazer isso, mas Roberta entrou em cena nesse instante. Nem mesmo ela se atrevia a tocar em Faye, mas pôs-se a falar, em voz baixa, premente, persuasiva:

Faye, Faye, Faye querida, pare com isso, não, tem de parar. Está me escutando? Pare com isso, Faye...

Faye ouviu-a, o que se podia perceber pela maneira como manteve a porta aberta, hesitante, antes de batê-la outra vez. Mais além podia-se ver a garota, afastando-se devagar pelo caminho, a criança berrando. Ela olhou para trás a tempo de avis­tar Faye ser envolvida pelos braços de Roberta e, assim, mantida prisioneira. E Faye gritou, a voz rouca, ofegante:

Largue-me!

A garota parou, a boca escancarada, os olhos frenéticos. Oh, não, aqueles olhos pareciam dizer, enquanto ela se virava outra vez e corria desajeitada para longe daquela casa dos horrores.

Alice fechou a porta e os gritos da criança cessaram. Rober­ta arrulhava:

Faye, Faye, calma, querida, não, meu amor, está tudo bem...

Faye soluçava como uma criança, com grandes ofegos para respirar, e arriou sobre Roberta. Gentilmente, Roberta levou-a para cima, passo a passo, sempre murmurando:

Calma, calma, não, Faye, por favor, está tudo bem...

Elas entraram em seu quarto, a porta foi fechada, o vestí­bulo ficou vazio. Alice continuou parada ali por mais algum tempo, atordoada; depois, foi para a cozinha e sentou, com o corpo todo tremendo.

Em sua mente, acompanhava a garota na calçada. Não sen­tia culpa, mas uma identificação com ela. Imaginou-se seguindo com a criança pesada e incômoda para o ponto de ônibus, espe­rando e esperando, o rosto impassível, dizendo às outras pes­soas na fila que não se importava com o que pensavam do berreiro de seu filho. Depois, subindo no ônibus com dificuldade por causa do carrinho, sentando com a criança, que talvez não estivesse mais chorando, mas seria uma massa informe de sofrimento exausto. E saltando do ônibus, tornando a ajeitar a criança no carrinho, encaminhando-se para o hotel. Alice co­nhecia aqueles hotéis, sabia o que acontecia.

Depois de algum tempo, obrigou-se a fazer um chá forte e bebeu como se fosse conhaque. Silêncio no piso de cima. Roberta teria posto Faye para dormir?

Mais tarde, Roberta entrou e sentou. Alice sabia como de­via estar parecendo, pela avaliação de Roberta. E pensou: No fundo, ela é uma dessas mulheres maternais, cheia de compreen­são e peitos enormes; quer bancar a machona e durona, mas, para seu azar, não passa de uma mamãezinha.

Não queria se incomodar com o que sabia que estava para acontecer. E quando Roberta disse:

Imagino que impressão deve ter causado, Alice, mas...

Ela tratou de interrompê-la:

Não me importo. Está tudo bem.

Roberta hesitou, depois se forçou a continuar:

Faye às vezes fica assim, mas está muito melhor, e há bastante tempo não tinha um acesso desses. Há mais de um ano.

Certo.

E é claro que não podemos ter crianças aqui.

Alice não disse nada.

Tendo necessidade de alguma reação que não estava obten­do, levantou-se e foi se ocupar com saquinhos de chá e uma caneca. Disse, em voz baixa, rápida, vibrante:

Se soubesse da infância de Faye, se soubesse de tudo o que lhe aconteceu...

Não estou interessada na porra da infância dela comentou Alice.

Mas eu tenho de contar, para o bem de Faye... Ela foi constantemente espancada quando criança...

Não quero saber gritou Alice subitamente. Acho que você não compreende. Já tive todas as infâncias infeli­zes que vou ouvir. As pessoas continuam e continuam... Para mim, infâncias infelizes são a grande desculpa, o grande álibi.

Chocada, Roberta murmurou:

Um bebe maltratado... e bebês maltratados crescem para se tornar adultos.

Ela voltara a seu lugar, sentara, agora inclinava-se para a frente, os olhos fixados em Alice, determinada a fazê-la reagir.

Conheço uma coisa disse Alice. Comunas. Casas ocupadas como esta. Se não se toma cuidado, viram isso... pessoas falando sobre suas infâncias de merda. Nunca mais. Não estamos aqui para isso. Ou é o que você quer? Uma espécie de encontro de grupo permanente. Tudo acaba se transformando nisso, se a gente deixar.

Roberta, convencida de que Alice não ia escutar, ficou em silêncio. Tomou o chá ruidosamente, e Alice estremeceu.

Havia alguma coisa vulgar e grosseira em Roberta, Alice estava pensando, perturbada e irritada demais para censurar seus pensamentos. Ela ainda não se lavara, embora a água já saísse das torneiras. Havia nela aquele cheiro metálico de sangue. Ou Roberta ou Faye, se não as duas, estava menstruada.

Alice fechou os olhos, refugiando-se num lugar em seu ín­timo que descobrira há muitos anos não sabia quando, mas ainda era uma criança pequena. Lá dentro estava segura, o mun­do ao redor podia explodir quanto quisesse. E ouviu-se dizer, naquela sua voz sonhadora e desligada:

Acho que Faye acabará morrendo um dia desses. Ela já tentou o suicídio, não é?

Silêncio. Abriu os olhos para deparar com Roberta em lágrimas.

Já, mas não depois que eu...

Todas aquelas pulseiras... — murmurou Alice. Ci­catrizes por baixo das pulseiras.

Ela só tem uma cicatriz pequena. No pulso esquerdo.

Alice tornara a fechar os olhos e tomava o chá, sentindo

que seus nervos estariam em breve retornando à vida.

Um dia desses vou lhe contar a infância infeliz de mi­nha mãe. Sua mãe era louca e o pai, peculiar. Isso mesmo, "peculiar" é a palavra. Ah, se eu lhe contasse... — Ela não tinha a menor intenção de falar da mãe. Mas não importa.

Alice começou a rir. Era um riso saudável, até jovial, demonstrando como apreciava os caprichos e a riqueza da vida.

Por outro lado, meu pai. . . era farinha de outro saco. Quando criança, ele se sentia feliz o dia inteiro. E por isso ele diz que foi a época mais feliz de sua vida. Mas podemos acredi­tar nele? Eu me sinto propensa a acreditar. Ele é tão obtuso e estúpido que não notaria se fosse infeliz. Poderiam tê-lo espan­cado à vontade e ele nem notaria.

Ela abriu os olhos. Roberta a examinava com um sorriso sugestivo. Contra sua vontade, Alice sorriu em resposta.

Para mim, esse é o ponto final acrescentou Alice. Tem um conhaque ou algo parecido?

Que tal um baseado?

Não, obrigada. Não acontece nada comigo. E não gosto.

Roberta saiu e voltou um momento depois com uma garra­fa de uísque. Ficaram bebendo na cozinha, cada uma sentada numa extremidade da mesa comprida. Quando Philip chegou, cambaleando ao peso dos vidros para as janelas, pronto para co­meçar a trabalhar, recusou um trago, alegando que estava pas­sando mal. Subiu para o seu saco de dormir. O que realmente quisera dizer foi que Alice devia estar trabalhando também, e não sentada ali, sem fazer nada, deixando o tempo passar.

Roberta, depois de beber muito, subiu para junto de Faye. Houve silêncio lá em cima.

Alice resolveu tirar um cochilo. Havia no vestíbulo um envelope, e ela achou que era uma correspondência comercial qual­quer. Pegou-o para jogar fora, descobriu que era do Departa­mento de Energia Elétrica e sentiu-se gelada e enjoada; decidiu se dar algum tempo antes de abri-lo. Foi para a cozinha. Em mãos. A senhora Whitfield dissera que passava por ali no cami­nho entre sua casa e o trabalho. Deixara o envelope pessoal­mente, ao voltar para casa. Era muita gentileza... Alice abriu-o e leu a carta:

"Prezada senhorita Mellings,

Entrei em contato com seu pai para tratar da garantia do pagamento das contas da Old Mill Road, 43, de acordo com a nossa conversa. Lamento dizer que a resposta dele foi negativa. Não poderia aparecer para discutir o problema nos próximos dias?

Atenciosamente,

D. Whitfield."

A carta humana e cordial fez Alice sentir-se apoiada a princípio, mas depois a raiva dominou-a. Por sorte não havia nin­guém ali para testemunhar sua explosão interior, os dentes rangendo, os olhos esbugalhados, os punhos cerrados como se empunhassem facas. Circulou pela cozinha, fervendo de ódio, como uma mosca enorme trancada num quarto numa tarde quente, esbarrando nas paredes, cantos da mesa, fogão, sem sa­ber o que fazia, soltando grunhidos, choramingando, rosnando o que não demorou a ouvir. Assustada, sentou à mesa, ficou completamente imóvel, reprimindo o que sentia. O sossego ab­soluto depois de tanta violência, por alguns minutos. E então irrompeu em movimento, saiu da cozinha, subiu a escada, foi bater com toda a força na porta de Philip. Movimentos no quar­to, mas nenhuma resposta. Alice gritou:

Sou eu, Philip! Alice!

Pode entrar.

Ela entrou e encontrou-o saindo do saco de dormir e ves­tindo o macacão.

Oh, desculpe...

Alice descartou esse embaraço sem maior importância e foi direto ao assunto:

Philip, você pode ser fiador de nossas contas de luz? Como ele fizesse uma cara de quem não estava entendendo, Alice acrescentou: A conta desta casa. Minha mãe não quer ser fia­dora e meu pai também não. Nem a miserável da Theresa e o miserável do Anthony...

Ele estava de pé na sua frente, a claridade intensa e amarela­da do final da tarde por trás, um vulto pequeno e escuro, numa pose rígida e desajeitada. Alice não podia ver seu rosto, e foi para o lado do quarto. Philip virou-se em sua direção e ela viu-o confrontá-la, pequeno, pálido, mas obstinado. Diante de sua expressão, Alice compreenderia que fracassaria, mas mesmo as­sim disse, bruscamente:

Tem um negócio, papel timbrado, pode ser o fiador das contas.

Como, Alice? Não tenho condições de pagar, e você sa­be disso.

Falando como se ele tivesse de pagar, pensou Alice, furiosa outra vez. Mas Philip teria ouvido o seu gracejo de que o primeiro pagamento seria também o último? Ela disse, em tom autoritário:

Ora, Philip, não diga bobagem. Não teria de pagar na­da, não é? E apenas para manter a luz ligada.

Ele resistiu, tentando se manter jovial:

E se eu tivesse de pagar, Alice?

Claro que não teria!

Alice percebeu que ele estava pronto para rir com ela, po­rém ela não tinha como rir.

O que vou fazer agora, Philip? Não tenho a menor idéia!

Não acredito, Alice disse ele, rindo agora, mas gentilmente.

Em voz normal, Alice insistiu:

Precisamos de um fiador, Philip. E você é o único, entende?

Mas ele continuou a resistir:

Não é possível, Alice. Para começar, aquele endereço no papel timbrado é do lugar em que eu morava antes de Felicity... e foi demolido. Não existe mais.

Os dois ficaram se olhando com expressões consternadas idênticas, como se as tábuas do assoalho começassem a ceder sob o peso; pois ambos eram invadidos, ao mesmo tempo, por uma visão de impermanência: casas, prédios, ruas, bairros inteiros, demolidos, derrubados, desaparecendo, uma ilusão. Sus­piraram juntos e, num repente, abraçaram-se ternamente, con­fortando um ao outro.

Ela não quer que a luz seja desligada — explicou Alice. — Deseja ajudar. Só precisa de uma desculpa, mais nada... Ei, espere um pouco... acho que encontrei a solução...

Eu tinha certeza de que encontraria — comentou Philip.

Alice continuou, muito excitada:

Isso mesmo. Meu irmão. Direi ao departamento que ele será o fiador, mas que está ausente, numa viagem de negócios... em Bahrein, não importa o lugar. E a senhora Whitfield vai aceitar. Tenho certeza.

E fazendo o sinal do polegar para cima, Alice saiu corren­do do quarto, rindo, exultante.

Era tarde demais para telefonar para a senhora Whitfield agora, mas cuidaria disso no dia seguinte e não haveria mais pro­blemas.

Não havia necessidade de falar a respeito com Mary e Reggie. E claro que se Mary quisesse poderia garantir o pagamento das contas; era a única que tinha um emprego. Mas Alice sabia que ela jamais concordaria em ser a fiadora.

Alice precisava dormir. Estava abalada e trêmula por den­tro, onde sua ira residia.

Estava escurecendo quando Alice acordou. Ouviu a risada de Bert na cozinha, um profundo "rô rô rô". Não é o seu riso habitual, pensou ela. E como seria? Mais provavelmente "ri ri ri". Isso mesmo, Bert inventara aquela risada para seu uso comum. Confiável e confortável. Viril. Vozes e risos, sempre os inventamos... A voz inventada de Roberta, segura. A voz e a risada rápidas e leves de Pat. E a sua própria risada? Talvez. Então os dois estavam de volta, o que significava que Jasper tam­bém se encontrava ali. Alice saiu do saco de dormir, pôs um suéter, fixou no rosto um sorriso que acompanhava seus senti­mentos por Jasper: admiração e amor suplicante.

Mas Jasper não estava na cozinha com os outros dois, que se mostravam felizes, realizados, comendo peixe com batatas fritas.

Está tudo bem, Alice — disse Pat, puxando uma cadeira para ela. — Eles o prenderam, mas não é sério. Será levado a um tribunal de Enfield amanhã de manhã. Estará de volta ama­nhã até a hora do almoço.

E se ele receber uma pena de detenção? — indagou Bert.

Recebeu uma de dois anos com sursis em Leeds, mas o prazo terminou no mês passado.

No mês passado? — repetiu Pat.

Seus olhos procuraram os de Bert, não encontraram refle­xo para o que estava pensando — provavelmente contra a sua vontade, calculou Alice —, e, para não enfrentarem os de Alice, concentraram-se na tarefa de comer uma batata frita dou­rada após outra. Não era a primeira vez que Alice deparava com insinuações de que Jasper gostava de ser detido... precisava acrescentar essa emoção à sua vida. Ela comentou:

Ele teve de tomar cuidado com o que fazia durante mui­to tempo, vigiar cada passo. Acho...

Alice examinava Bert; sabia que ele poderia lhe contar o que precisava saber sobre a prisão. Jasper fora agarrado pela polícia e Bert não; bastava isso...

Pat empurrou as batatas fritas em sua direção, e Alice co­meu uma ou duas, cautelosa, pensando no colesterol.

Quantos foram presos?

Sete. Não conhecíamos três. Os outros foram John, Cla­rissa e Charlie. E Jasper.

Nenhum dos camaradas das lideranças sindicais?

Nenhum.

Silêncio. Rompido por Bert:

Eles têm multado as pessoas em vinte e cinco libras.

Alice ressaltou, automaticamente:

Então devem pedir cinqüenta libras por Jasper.

Ele achou que seria uma multa de vinte e cinco. Dei-lhe vinte libras, e portanto ele deve ter o suficiente.

Alice, que estava prestes a se levantar, pronta para se reti­rar, perguntou:

Ele não quer que eu vá até lá? Por que não? O que ele disse?

Pat respondeu com uma cautela evidente:

Ele me pediu para dizer a você que não fosse.

Mas eu sempre estava presente todas as vezes que o agarraram. Sempre. E compareci ao tribunal em todas as ocasiões.

Foi o que ele disse — insistiu Bert. — "Digam a Alice que não precisa se incomodar."

Alice continuou sentada, tão concentrada em seus pensamentos que a cozinha, Bert e Pat, até mesmo a casa ao redor, desapareceram. Encontrava-se no cenário do piquete. O furgão carregado com jornais apareceu nos portões, a aparência lustrosa e sinistra avisando a todos para odiá-lo; o piquete avançou, to­dos gritando; e lá estava Jasper, como ela o vira tantas vezes, o rosto pálido distorcido por um ódio intenso, os cabelos aver­melhados. Jasper era sempre o primeiro a ser preso, pensou Alice, orgulhosa, sempre dedicado, sempre obviamente — até para a polícia — disposto ao auto-sacrifício. Puro.

Mas havia alguma coisa que não se ajustava.

Você achou que era melhor não ser preso também por algum motivo, Bert?

Porque, se era esse o caso, poder-se-ia esperar que Jasper também voltasse para casa.

Jasper descobriu lá alguém que pode nos ser muito útil — respondeu Bert.

No mesmo instante tudo se ajustou na mente de Alice.

Era um dos três que vocês não conheciam?

Exatamente. — Bert bocejou. — Detesto ter de pedir, mas poderia me dar as vinte libras? Jasper disse que eu deveria pedir a você.

Alice contou o dinheiro. Não deixou que seu olhar se desviasse da tarefa. Pat comentou, suavemente:

Esse pequeno maço de notas não vai durar muito tempo se continuar assim.

Tem razão.

Alice estava orando: Faça com que Bert saia. Faça com que ele suba. Preciso conversar com Pat. Pensava isso com tanto afinco que não ficou surpresa quando ele se levantou e anunciou:

Vou visitar Felicity para tomar um banho.

Irei também daqui a pouco — disse Pat.

Bert saiu, e as duas continuaram sentadas. Alice perguntou:

Qual é o nome do homem da outra casa?

Lênin?

Agradecida, Alice riu com ela, sentindo-se especial e privilegiada naquela intimidade com Pat, que a admitia numa cons­piração importante. Pat acrescentou:

Ele diz que seu nome é Andrew.

De onde você acha que ele vem?

Boa pergunta.

Ele tem até sotaque americano, Pat.

A linguagem do Novo Mundo.

Isso mesmo.

Elas trocaram um olhar sugestivo.

Depois de dizerem tudo o que era necessário sobre aquele assunto, as duas o abandonaram. Após uma pausa, Alice informou:

Fui até lá esta tarde. Para pedir a eles que tomem algu­ma providência com a sujeira.

Boa idéia.

O que tem em todas aquelas caixas?

Folhetos. Livros. Pelo menos é o que dizem.

Mas com a polícia por aqui a todo instante?

Não estavam lá anteontem. E aposto que não estarão amanhã. Talvez até já tenham sido removidas.

Chegou a ver os folhetos?

Não, mas perguntei. Foi o que ele disse... o tal de An­drew. Material de propaganda.

Outra vez um assunto foi deixado de lado, por consenti­mento tácito. Pat comentou:

Aposto que Bert acha que o tal camarada... com quem Jasper conversou em Melstead... pode nos fornecer algumas informações úteis.

Para o IRA?

Isso aí.

Ouviu alguma coisa da conversa?

Não. Mas Bert participou durante algum tempo.

A essa altura, Alice poderia ter perguntado: O que Bert acha dele? Mas não se importava com o que Bert pensasse. A avalia­ção de Pat é que era importante.

Como ele parecia? Talvez eu o conheça. Não era alguém da turma habitual?

Tenho certeza que nunca o vi antes. Nada de especial para informar.

Foi... foi o camarada Andrew quem disse a vocês para participarem dos piquetes? Ele disse alguma coisa sobre Melstead? Quantas vezes já estiveram na outra casa?

Pat sorriu e respondeu, embora indicasse por sua atitude que não havia motivo para que o fizesse:

Já estive lá duas vezes. Bert e Jasper têm ido com mais freqüência. Quanto a Melstead, tenho a impressão de que o ca­marada Andrew... — ela enfatizou um pouco a palavra "camarada", como se achasse que Alice devia pensar bastante a respeito — que o camarada Andrew não é muito favorável a que os quadros de fora participem dos piquetes.

Alice declarou, com veemência:

Mas é nossa luta também! E uma luta de todas as forças progressistas do país! Melstead é um ponto focal do imperialismo fascista, não apenas um problema dos sindicalistas de Melstead!

Você perguntou. — Uma pausa, e Pat acrescentou: — Na minha opinião, o camarada Andrew tem peixe mais graúdo pa­ra fritar.

Uma emoção intensa invadiu Alice, como aconteceria com alguém que tivesse passado a vida inteira falando em unicórnios e de repente vislumbrasse um. Ela fitou Pat com um excitamento especulativo, mas Pat parecia não perceber o que acabara de di­zer. Se ela não estava insinuando que os camaradas na Old Mill Road, 43 haviam se aproximado involuntariamente de grandes acontecimentos, o que então quisera sugerir? Mas Pat se levan­tava nesse instante. Encerrando a conversa. Alice queria que ela ficasse. Não podia acreditar que Pat estivesse disposta a se reti­rar logo agora, naquele momento emocionante, quando even­tos fabulosos pareciam iminentes. Mas Pat se espreguiçava e bocejava. Seu sorriso era de satisfação, seus olhos se encontra­ram com os de Alice num relance; ela parecia estar zombando, provocando. Ela é sensual demais, pensou Alice, indignada. Mas disse:

Perguntei... ao camarada Andrew se poderíamos usar um cômodo naquela casa para reuniões... reuniões do grupo interno.

Nós também pedimos. Ele disse que sim.

Pat sorriu, baixou os braços. Ficou olhando para Alice, não mais sorrindo, dizendo com o corpo que a conversa já fora mais do que suficiente e queria ir embora.

Onde estão os novos camaradas?

Ela já se encaminhava para a porta.

Estão lá em cima.

Pat saiu e Alice ficou sentada, até ouvi-la subir, entrar no quarto e fechar a porta.

Só então Alice saiu da casa, apressada. Era muito cedo para o que ia fazer. A rua, embora escura, tinha o clima de final de dia, com carros chegando para estacionar, outros partindo para as diversões noturnas, uma inquietação de luzes. Mas o tráfego na rua principal conservava a intensidade da luz do dia. Foi dar uma olhada na casa 45. Teve a impressão de que já haviam co­meçado a remover o lixo; isso mesmo, lá estavam alguns sacos cheios junto à sebe, o plástico preto brilhando. Divisou dois vultos inclinados para a terra, nos fundos, não muito longe do buraco que ela, Pat e Jim tinham escavado, embora uma sebe grande se interpusesse. Estariam cavando uma fossa também? A escuridão era profunda lá atrás. Luzes das janelas superiores de Joan Robbins iluminavam o topo da casa 45, mas não des­ciam até o jardim. Alice espreitou por algum tempo, não viu nin­guém entrar ou sair; não podia divisar o camarada Andrew pelas janelas do primeiro andar porque as cortinas estavam fechadas.

 

Foi para a estação do metrô, pegou um trem e ficou planejando o que ia fazer. Subiu pela rua arborizada em que Theresa e Anthony moravam. Parou na calçada, olhando para as jane­las da cozinha no terceiro andar. Imaginou que eles estavam sen­tados ali, em lados opostos da mesa pequena que usavam quando se encontravam sozinhos. Uma comida deliciosa. Sentiu a boca ficar aguada ao pensar na comida que Theresa preparava. Se to­casse a campainha, ouviria a voz de Theresa: Alice, querida, é você? Pode entrar. Ela subiria, se juntaria aos dois na noite com­prida e tranqüila, aproveitaria a comida. Sua mãe talvez apare­cesse. Mas a raiva dominou-a ante esse pensamento e sacudiu-a com mãos em brasa, a tal ponto que sua vista escureceu e descobriu-se a caminhar mais depressa pela rua, virando em outra, e mais outra, andando como se pudesse explodir caso parasse. Caminhou por muito tempo, enquanto o sentimento das ruas mudava para a noite fechada. Encaminhou-se para a rua do pai. Foi avançando casualmente. As luzes estavam acesas no primeiro andar; todas as janelas despejavam um jorro de luz. Lá em cima havia uma claridade difusa no quarto em que as crianças dor­miam. Muito cedo. Continuou a andar, deu a volta, passou de novo pela casa de Theresa e Anthony, que estava agora escura, subiu a ladeira, desceu, tornou a entrar na rua do pai. As luzes de baixo estavam apagadas, mas acesas as do quarto. Há cerca de uma hora encontrara uma pedra do tamanho e formato cer­tos na beira de um jardim e a guardara no bolso. Olhou para um lado e outro da rua sossegada, onde os lampiões projeta­vam manchas douradas nas árvores. Um casal, de braços dados, vinha lentamente da direção da estação do metrô. Velhos. Um casal idoso. Estavam absorvidos no esforço de andar, não vi­ram Alice. Que mesmo assim foi até a extremidade da rua e vol­tou depressa, no ímpeto de sua necessidade, de sua decisão. Não havia agora ninguém na rua. Ao chegar à casa do pai, ela seguiu direto para o portão, que não se deu o trabalho de abrir sem fazer barulho, e jogou a pedra com toda a força de que era ca­paz na janela do quarto. Esse movimento, a linha firme e contí­nua do arremesso, com toda a força do corpo por trás, e depois a volta completa no balanço do impulso, com a saída para a calçada, a rapidez e a violência, a eficiência, nada disso poderia ser deduzido da maneira como Alice era, em qualquer outra oca­sião do dia ou da noite, a boa menina Alice, a filha de sua mãe... Ela ouviu a janela se espatifar, um grito estridente, o berro do pai. Mas já se afastara; correu pelas sombras densas das árvores para uma rua transversal, percorreu-a e saiu na rua principal, sessenta segundos depois de ter arremessado a pedra. A respira­ção era ofegante, ruidosa demais... Parou, olhando para uma vitrine, a fim de normalizar a respiração. Percebeu que estava cheia de aparelhos de televisão e foi para a vitrine seguinte, calmamente, examinando vestidos, até poder entrar no supermer­cado sem que ninguém reparasse em sua respiração. Ali ficou por uns vinte minutos, escolhendo e rejeitando. Levou a cesta branca carregada para a caixa, pagou, encheu os sacos e voltou para casa de metrô. Desde que a pedra deixara sua mão, mal pensara no que podia estar acontecendo na casa do pai.

Agora, vendo a sóbria luz azulada da delegacia de polícia, ela entrou. Não havia ninguém na mesa de recepção, mas podia ouvir vozes em parte da sala que estava fora de sua vista. Tocou a campainha. Ninguém veio atender. Tocou de novo, autoritá­ria. Uma jovem policial apareceu, avaliou-a, decidiu se mostrar contrariada e sumiu. Alice tocou de novo. Agora, a jovem, tão aprumada em seu uniforme escuro quanto Alice no dela — jeans e blusão —, aproximou-se devagar, uma expressão irritada e de­cidida, indicando que estava escolhendo as palavras para pôr Alice em seu lugar.

Podia ser uma emergência disse Alice. Como ia sa­ber? Por acaso não é. Portanto, você está com sorte.

O rosto da policial ficou subitamente vermelho, ela ofegou, os olhos se arregalaram. Alice acrescentou:

Vim comunicar a ocupação autorizada de uma casa... uma licença a curto prazo... deve conhecer o processo...

A esta hora da noite? indagou a mulher habilmente, numa tentativa de recuperar o controle da situação.

Não devem ser mais do que onze horas, não é? Não sa­bia que havia um horário determinado para tratar dessas coi­sas.

Já que você está aqui, vamos resolver logo o problema. O que quer comunicar?

Alice disse:

Vocês estiveram lá... uma batida, há três noites. Não sabiam que era uma ocupação autorizada... pela prefeitura. Ex­pliquei a situação. E agora vim confirmar. Ficou tudo acertado numa reunião na prefeitura hoje.

Qual é o endereço?

Old Mill Road, 43.

Um pequeno brilho se insinuou no rosto da policial.

Espere um instante.

Ela desapareceu e Alice escutou vozes, de homem e de mulher. A policial voltou, acompanhada por um homem. Alice reconheceu-o: era um dos que haviam estado na casa. Ficou de­sapontada porque não era o que chutara a porta.

Boa noite — disse ela, gentilmente. — Deve se lembrar, pois já esteve na Old Mill Road, 43.

Claro que lembro. — Ainda havia em seu rosto vestí­gios das risadas de que desfrutara com os companheiros. — Fo­ram vocês que enterraram a. . . que abriram uma fossa...

Isso mesmo. Enterramos as fezes que outras pessoas deixaram lá em cima. Em baldes.

Alice estudou os rostos afetados e repugnados à sua frente. Macho e fêmea. Do mesmo tipo.

Não consigo imaginar por que vocês reagem assim. As pessoas enterram seus excrementos em buracos há milhares de anos. E ainda hoje continuam a fazê-lo, na maior parte do mun­do... — Como isso parecesse não os alcançar, ela acrescentou: — Neste país só temos esgotos sanitários há cerca de cem anos. Menos até, em algumas áreas.

Mas agora temos — comentou a mulher, incisiva.

Isso mesmo — concordou o homem.

Creio que adotamos a providência responsável e higiê­nica. A natureza cuidará do resto muito em breve.

Mas não façam isso de novo — disse o homem.

Não temos mais necessidade, não é? — murmurou Alice gentilmente. — O que vim comunicar é que podem verificar com a prefeitura: a casa 43 tem agora uma ocupação autorizada, a curto prazo.

A mulher pegou um formulário. O homem voltou para jun­to dos companheiros. Pouco depois houve uma explosão rui­dosa de risos escandalizados. E mais outra. A mulher, preen­chendo diligentemente o formulário, contraiu os lábios. Alice não pôde definir se era ou não uma reação de crítica.

Pequenas coisas divertem mentes pequenas — comentou

ela.

A policial lançou um olhar que dizia que Alice não devia dizer tais coisas, mesmo que ela própria estivesse pensando as­sim. Alice sorriu-lhe, de mulher para mulher.

E isso aí. A ocupação da casa agora é legal, na mais per­feita ordem. Mais alguma batida e estarão ultrapassando os limites.

Creio que somos nós que decidimos isso — declarou a policial com um sorriso tenso.

Não são, não — contestou Alice. — Tenho certeza de que não. Sei que não haverá mais reclamações dos vizinhos.

Vamos torcer para que não — murmurou a mulher, retirando-se para o convívio dos seus no fundo da sala.

Satisfeita, Alice saiu e foi para casa, passando pela 45. Não havia ninguém no jardim, agora. Mas na sombra mais densa, no encontro das duas sebes, ela percebeu que um buraco fora escavado. Não pôde resistir. Pela segunda vez naquela noite, abriu furtivamente um portão de jardim. A casa parecia deserta, todas as janelas estavam escuras. O buraco tinha cerca de um metro e meio de profundidade. Havia um cheiro intenso de terra revolvida nas encostas ao redor. O fundo parecia plano... água? Alice inclinou-se para verificar. Uma caixa ou algo parecido fo­ra colocado ali. Ela empertigou-se, olhando ao redor. Desfru­tando conscientemente da situação, da sensação de perigo e de ameaça, pensou: Eles estão observando de trás das cortinas ou lá de cima... eu faria isso, no lugar deles. Mas é um risco. Virou- se para avaliar a estratégia da operação. Não, talvez não hou­vesse problema. Enquanto a abertura da fossa do outro lado po­dia ser observada pelos ocupantes de três casas e por qualquer um que passasse pela casa de Joan Robbins, ali dois lados esta­vam resguardados pela sebe e pela cerca alta, e um terceiro pela casa. Entre aquele lugar e o portão havia moitas e arbustos. As janelas superiores da casa de Joan Robbins estavam escuras. Do outro lado da rua, recuada, atrás de seu jardim, uma casa; e cer­tamente qualquer um podia ver o que quisesse das janelas de cima. Que estavam escuras; as pessoas ainda não haviam subido para deitar. Ela já vira o que precisava ver. Gostaria de ficar, o cheiro agradável da terra revolvida e o ímpeto do risco incen­diando seu sangue, mas afastou-se, rápida como uma sombra, foi até a porta da frente e bateu, gentilmente. Foi aberta no mes­mo instante. Por Andrew.

Eu sabia que você devia estar observando — comentou Alice. — Vim avisar que já comuniquei à polícia que a 43 é uma ocupação autorizada. Por isso, eles estarão propensos a acredi­tar quando vocês aparecerem e disserem a mesma coisa.

Seu pulso estava acelerado, o coração batia forte, cada célu­la pulsando e alerta. Sabia que sorria; ah, aquilo era o oposto de "sua cara", quando se sentia assim, como se tivesse bebido uma essência de perigo destilada extrafina e pudesse andar nas nuvens ou correr cinqüenta quilômetros.

Viu o vulto baixo e poderoso sair da escuridão do vestíbulo para um ponto em que podia divisar seu rosto, à luz dos lampiões da rua. Estava sério e determinado, a visão lhe proporcio­nou um agradável sentimento de submissão a seus poderes su­periores.

Enterrei uma coisa... uma emergência disse ele. Sairá daqui dentro de um ou dois dias. Deve compreender.

Claro que compreendo.

Alice sorriu. Ele hesitou. Adiantou-se mais um pouco. Ela sentiu mãos vigorosas segurarem seus braços. Estava cheirando a bebida? Vodca? Uísque.

Estou pedindo para guardar segredo.

Alice balançou a cabeça.

Claro.

Ninguém mais deve saber.

Ela tornou a balançar a cabeça, pensando que só uma pes­soa podia saber na 43, mas quantos não saberiam naquela casa?

Vou confiar totalmente em você, Alice. Ele concedeu- lhe um sorriso tenso e breve. Porque não tenho outro jeito. Sou o único que sabe nesta casa. Todos os outros saíram. Apro­veitei a oportunidade para... para usar um esconderijo muito conveniente. Um esconderijo temporário. Ia cobrir com uma camada de terra e depois espalhar um pouco de lixo por cima.

Alice ficou sorrindo, desapontada com ele, embora não em seu estado normal; ainda flutuava. Pensava que tudo o que ele dissera provavelmente era inverídico, em parte ou no todo, mas não era da sua conta. O homem ainda a segurava pelos braços, que estavam prestes a rejeitar aquela persistente pressão mascu­lina de advertência. Ele pareceu percebê-lo, pois baixou as mãos.

Devo dizer que tenho uma opinião diferente de algumas pessoas de sua casa. Confio em você.

Alice não disse nada. Apenas acenou com a cabeça.

Ele entrou, também lhe acenando com a cabeça, mas sem sorrir.

Alice teria de pensar a respeito. Melhor até, dormir com o problema.

Sua exultação se desvanecia rapidamente. Ela pensou: "Mas amanhã Jasper e eu vamos sair juntos e então... " Seria uma noite inteira daquela emoção inebriante.

Mas o pobre Jasper não se sentiria assim, provavelmente, depois de passar um dia na cadeia. Como era a delegacia de po­lícia de Enfield? Ela não se lembrava de qualquer informação a respeito.

Na rua principal, avistou um vulto franzino e encurvado diante do portão da casa 43. Uma estranha postura... era a garota daquela tarde e ia jogar alguma coisa na janela da sala de estar. Uma pedra! Alice pensou: jogando com a mão abaixo dos ombros, patético! O desdém a reabasteceu. Exuberante, ela se aproximou da moça, que se virou para fitá-la, soltando um "Oh!"

E melhor largar isso — advertiu Alice.

A moça obedeceu. Aquela claridade, ela tinha uma aparên­cia desbotada: cabelos e rosto descoloridos, lábios e olhos apáticos. Com as pupilas enormes.

Onde está seu filho? — perguntou Alice.

Meu marido está lá. De porre.

Ela gemeu por um instante, mas logo parou. Tremia toda.

Por que não procura o pessoal do sistema habitacional? — indagou Alice. — Tem gente para aconselhar sobre a ocupação a curto prazo de casas abandonadas.

Já fiz isso.

Ela começou a chorar, um choro desamparado, rápido, soluçante, como uma criança que já derramou lágrimas por ho­ras. Alice sentiu os primórdios de uma pressão muito familiar.

Você é que tem de fazer alguma coisa por si mesma. Não adianta apenas ficar esperando que os outros ajudem. Deve en­contrar a sua casa abandonada. Mude-se. Ocupe-a. E depois pro­cure a prefeitura... Pare com isso!

Ela arrematou com raiva quando a garota desatou a chorar. Reprimindo o choro, a garota ficou parada na frente de Alice, cabeça baixa, esperando pelo veredicto ou sentença.

Oh, Deus!, pensou Alice. De que adianta? Conheço esta por dentro e por fora. E igualzinha à Sarah, de Liverpool, e à pobre coitada da Mabel. Basta que uma autoridade lance um olhar e saberá que ela vai ceder no mesmo instante.

Uma autoridade... Ora, havia uma autoridade ali, naque­la casa; havia Mary Williams. Alice sentiu-se maravilhada com um pensamento: apenas dois dias antes Mary Williams parecia ter seu destino — o de Alice — nas mãos; e agora Alice tinha dificuldade até para se lembrar da posição dela. Sentia por Mary, na verdade, o desprezo que se concede a alguém ou a uma insti­tuição que cedeu muito fácil. Mas podia-se fazer um apelo a Mary por conta daquela... criança. Alice tornou a contemplar a ex­pressão desolada da garota, a passividade, e pensou: De que adian­ta? Ela não é dessas pessoas que...

Era exasperação o que a impulsionava agora.

Qual é o seu nome?

A cabeça vergada se ergueu, os olhos mortiços se apresentaram, chocados, para Alice.

O que você acha que vou fazer? — indagou Alice. — Procurar a polícia e comunicar que você ia jogar uma pedra em nossa janela?

E subitamente ela se pôs a rir, enquanto a garota observa­va, espantada, dando um passo involuntário para trás, afastando- se daquela lunática.

Acabei de pensar numa coisa. Conheço alguém na prefeitura que talvez possa... apenas talvez...

A garota parecia ter ressuscitado, inclinava-se para a frente, a mão trêmula apertando o antebraço de Alice.

Meu nome é Mônica balbuciou.

Mónica só não é suficiente. — Alice fez um esforço para não se afastar simplesmente em impaciência. — Preciso saber seu nome completo e endereço.

A garota baixou a mão e começou a tatear pela saia. Tirou uma bolsa pequena e espiou o conteúdo.

Não se preocupe — disse Alice. — Basta falar. Não vou esquecer.

A garota disse que se chamava Mônica Winters e o hotel - de que Alice já ouvira falar — era tal e tal, o número dela o 556. O número produziu-lhe uma imagem de miséria con­centrada, centenas de casais com filhos pequenos, cada família em um cômodo, sem os confortos mínimos, uma sordidez ab­soluta. Perdendo toda a exultação e excitamento, Alice ficou sóbria, parada ali, consternada.

Pedirei a essa pessoa para lhe escrever — disse Alice. — Até lá, se eu fosse você, circularia por aí, examinando as casas vazias que encontrasse. Verifique tudo. Entre, descubra como estão as instalações. . . os encanamentos...

Ela parou de falar, desolada, sabendo que Mônica não era capaz de arrombar uma janela de uma casa vazia, a fim de entrar para dar uma olhada, e que o marido provavelmente era igual.

Até breve — acrescentou Alice.

Ela virou as costas à garota e entrou, sentindo que os 556

no mínimo —, jovens casais, com seus bebês sarapintados e frustrados, lhe haviam sido encaminhados pelo destino, como sua responsabilidade.

Oh! Deus! — murmurava, enquanto fazia o chá na cozi­nha vazia. — Oh, Deus, o que vou fazer?

Alice poderia chorar tão ruidosa e inutilmente quanto Mônica. Jasper não estava ali!

Subiu para o segundo andar e viu que havia uma luz acesa lá em cima. Continuou a subir. A claridade saía por baixo da porta do quarto ocupado por Mary e Reggie. Alice esqueceu que era meia-noite e que ali se instalara um casal respeitável. Bateu na porta. Alguns movimentos e uma voz:

Entre.

Alice contemplou uma cena de conforto. Móveis, lindas cortinas, uma cama de casal em que Mary e Reggie estavam deita­dos, lado a lado, lendo. Eles olharam por cima de seus livros com idênticas expressões cautelosas, que diziam: "Até aqui e nem mais um passo além!" Uma onda de riso incrédulo amea­çou Alice. Ela reprimiu-a, enquanto pensava: Não veremos mui­to estes dois, eles estarão sempre...

Mary, uma garota esteve aqui, desesperada. Está no Shaftwood Hotel...

Não fica em nosso distrito disse Mary no mesmo instante.

Sei disso. Mas ela...

Conheço o Shaftwood acrescentou Mary.

Reggie examinava a própria mão, virando-a de um lado eoutro, aparentemente com interesse. Alice sabia que era a situação que ele examinava; Reggie não estava acostumado àque­le informalismo, à vida em grupo, mas agora dispensava alguma consideração.

Não conhecemos todos? Mas essa garota... seu nome é Mónica... parece que é suicida, capaz de fazer qualquer coisa.

Mary disse, depois de uma pausa:

Alice, verei o que posso fazer amanhã. Mas deve compreender que há centenas ou milhares de pessoas nessa situação.

Claro que sei. Uma pausa. Boa noite.

Alice desceu, pensando: Estou bancando a idiota. E não se pode dizer que não conheço o tipo. Se arrumar um lugar para ela, a garota vai encontrar um jeito de estragar tudo num instante. Lembra de Sarah? Tive de lhe encontrar um apartamen­to, providenciar a mudança, procurar o Departamento de Ener­gia Elétrica e depois seu marido... Mónica é uma dessas pes­soas que precisam de uma mãe, alguém que cuide dela... E ocor­reu a Alice uma idéia de tanta beleza e simplicidade que ela começou a rir.

Estava agora no quarto que ocupava junto com Jasper. Sozinha. O saco de dormir de Jasper era um emaranhado azul.

Ela foi endireitá-lo. Pensou: Tem sido maravilhoso partilhar um quarto com Jasper. E pensou também: Mas ele só está aqui por­que Bert fica do outro lado da parede. Ela escutou: silêncio. Pat e Bert dormiam. Esse pensamento, do motivo pelo qual Jasper consentia que ela dormisse ali, em vez de subir para outro quarto ou lhe pedir que saísse, lançou sua mente numa vertigem, co­mo se estivesse — a mente — nauseada. Sentou em seu saco de dormir, tirou o blusão, a calça jeans, pôs uma camisola antiqua­da que fora de sua mãe. Sentia-se confortável e confortada na­quela camisola.

E recomeçou a rir: sua mãe gostava de cuidar das pessoas!

Alice entrou no saco de dormir. Os faróis dos carros cor­riam pelo teto. Pensou com inveja em Jasper na sua cela. Ele estaria com seu novo e misterioso contato... Bom, saberia de tudo amanhã. Jasper voltaria para casa até a hora do almoço.

Alice acordou tarde. Quando desceu para a cozinha, oito canecas no escorredor indicavam que alguém lavara tudo; ela era a última. Havia na mesa um bilhete para ela: "Vamos passar o fim de semana fora. Voltamos na noite de domingo. Jas­per sabe." Pat assinara "Pat e Bert".

Philip trabalhava na fiação elétrica no último andar com o jeito tranqüilo e contemplativo de um operário. Alice, agachando-se prestativa a seu lado, pensou: Este aqui nunca daria um patrão; é um empregado típico; não pode trabalhar sem al­guém segurando sua mão. Philip mostrou-se obsequioso, saben­do que não o fora no dia anterior. Falou de tudo o que ainda precisava ser feito e de como faria, pouco a pouco; disse que era preciso antes de mais nada examinar o sótão, pois tanta chuva entrando devia ter afetado as vigas. Alice declarou que o acom­panharia lá em cima, mas primeiro tinha de telefonar para o Departamento de Energia Elétrica. E onde estava Jim? Ele po­dia ajudar no sótão. Alice pensou: Jim é grande e forte, Philip não é; juntos, precisariam da metade do tempo. Mas Philip in­formou que pedira a Jim para ajudá-lo, naquela manhã mesmo. Jim era um cara esquisito, não era? Não gostava que lhe pedis­sem qualquer coisa. Na opinião de Philip, havia mais coisas em Jim do que os olhos podiam perceber. Nesse ponto Alice e Philip trocaram, com seus olhos, sentimentos a respeito de Jim; exatamente como pessoas olhavam, mas não falavam, apreen­sões a propósito de Faye — como se alguma coisa fosse perigo­sa demais para palavras ou pelo menos volátil, como se fosse um artefato eletrônico arriscado que poderia ser acionado por uma combinação descuidada de sons.

Talvez eu devesse conversar com ele — sugeriu Alice, vagamente.

Ela desceu para inspecionar seu território, antes de sair pa­ra telefonar.

Mary, é claro, estava no trabalho. E Reggie? Enquanto Alice especulava, ele apareceu, carregando mais caixas. Parecia exultante, como convém a um homem que conquistou território, mas também embaraçado, por causa de todas aquelas pro­vas de preocupação com o material. Reggie teria preferido, em suma, não esbarrar com Alice. Disse agora que ele e Mary esta­vam guardando móveis e outras coisas num segundo quarto, mas tirariam tudo se alguém precisasse se instalar ali.

Há o sótão — comentou Alice. — Ou haverá, depois que o ajeitarmos.

Esperou que Reggie se oferecesse para ajudar, mas isso não lhe ocorreu. Ele saiu para buscar outro carregamento.

Alice pensou que era melhor telefonar logo para o Departamento de Energia Elétrica. Ressentia-se por ter de sair em busca de um telefone, no meio de tanta atividade útil, desperdiçando tempo com algo que não passava de rotina.

Mas assim que ouviu a voz da senhora Whitfield, compreendeu que devia dispensar à situação mais tempo e atenção do que previra. A senhora Whitfield estava, se não hostil, pelo menos formal na censura. Disse que em sua opinião seria desejável que Alice comparecesse ao escritório o mais depressa possível. Alice respondeu que iria agora mesmo, o escritório era perto, numa voz animada e afável que insistia em que não havia qual­quer problema, nada estava errado. Ela desligou gentilmente, de um modo que acompanhava a voz. Mas estava sendo atacada por um dos seus acessos de ira. O pai! O que ele dissera? Devia ter sido terrível, para que a senhora Whitfield mudasse tanto.

Alice sentia-se furiosa demais para ir conversar com a mu­lher. Precisava acalmar-se, andando depressa pelas ruas, adian­do os pensamentos sobre o pai. Mas mostraria a ele; o pai não devia pensar que ficaria impune.

Na ante-sala do Departamento de Energia Elétrica, ela sor­riu e acenou para a senhora Whitfield: Aqui estou, uma boa moça! Mas a senhora Whitfield desviou os olhos. Quatro pes­soas entraram antes de Alice. Uma perda de tempo.

Sentou-se à frente da autoridade, na sala grande e clara. Percebeu no mesmo instante que a senhora Whitfield não cortaria a luz. Ou pelo menos não queria fazê-lo. Tudo dependeria de Alice. Que começou a falar sobre o pai. Ele era rico, possuía uma gráfica. Claro que poderia pagar as contas sem a menor dificuldade, se fosse necessário. Mas ele estava, admitiu Alice, numa fase difícil naquele momento.

Ele tem tido muitos problemas — murmurou Alice, com a expressão de uma pessoa que contempla compadecida a miséria humana, absolvendo-a de culpa. E, naquele momento, era mesmo o que sentia. — O rompimento com minha mãe... e depois todos os tipos de dificuldades... a nova esposa é simpá­tica, muito amiga minha, mas não é legal... está me entenden­do? Meu pai fica com muita coisa nas costas.

Continuou a falar assim, sentindo desolada que não adian­tava muito, enquanto a senhora Whitfield escutava, olhos abaixados, rabiscando com a caneta esferográfica no canto superior esquerdo do formulário de Alice.

Seu pai foi categórico ao declarar que não estava dispos­to a garantir o pagamento — comentou ela finalmente.

Não queria fitar Alice, que se empenhava em fazer com que ela levantasse os olhos. O que Cedric Mellings dissera?

Somos dez pessoas na casa, agora. O que significa que um bocado de dinheiro entra a cada semana.

Mas será que uma parte virá para nós? — A senhora Whitfield ainda estava muito seca para abrandar. — Nenhum de vo­cês tem emprego?

Só uma. — Uma pausa e Alice acrescentou, numa inspiração súbita: — Mas é funcionária da prefeitura. Trabalha na Belstrode Road e não quer dar aquele endereço. Não conseguia encontrar um lugar para morar, estava desesperada.

A senhora Whitfield suspirou.

Sei como as coisas podem se tornar terríveis. — Mas agora ela ergueu os olhos e fitou Alice de maneira diferente; ali estava uma colega de casa de uma funcionária da prefeitura que traba­lhava no escritório central para aquela área. — O que vamos fazer?

Ela vencera! Alice mal podia evitar que sua exultação transparecesse. E disse, humildemente:

Tenho um irmão. Ele trabalha na Ace Airways. Pedirei a ele para ser o fiador. — A senhora Whitfield acenou com a cabeça, aceitando o irmão. — Mas ele está em Bahrein no momento.

A senhora Whitfield suspirou outra vez. Não de irritação, mas porque sabia que era mentira e sentia-se triste por Alice.

Baixou os olhos de novo. Um segundo desenho surgiu ao lado do primeiro, no formulário de Alice. Ela perguntou, gentilmente:

E seu irmão estaria disposto a garantir as contas de luz para dez pessoas?

Mas ele saberia que não teria de pagá-las, não é? Alice apressou-se em acrescentar, para evitar que a senhora Whitfield se sentisse na obrigação de responder à pergunta: Tenho cer­teza de que ele vai concordar.

Quando voltará de Bahrein?

Daqui a um mês. Irei procurá-lo e explicar tudo. Foi on­de errei com meu pai. Deveria ter falado com ele antes, em vez de simplesmente presumir...

Sua voz tremia. Parecia patético, mas ondas ardentes de homicídio se esboroavam dentro de Alice. Explodirei aquela casa, pensava, matarei os dois.

Creio que seria uma boa idéia — disse a senhora Whitfield.

Uma pausa longa. Não porque ela estivesse indecisa: a deci­são já fora tomada. Queria que Alice dissesse mais alguma coisa que melhorasse a situação ou pelo menos fizesse com que pare­cesse melhor. Mas Alice limitou-se a esperar.

Muito bem acrescentou a senhora Whitfield, empertigando-se no espartilho do vestido marrom grosso, de mangas curtas, braços roliços e morenos, mãos roliças com pequenos anéis faiscando, tudo disposto de maneira simétrica, inclusive os pés, com toda a certeza, embora Alice não pudesse vê-los, colocados lado a lado. Eu lhe darei cinco semanas. E tempo suficiente para falar com seu irmão. Ela não olhava para Alice. E precisarei de mais alguma coisa como depósito.

Alice tirou uma nota de dez libras não era o suficiente e ela sabia e colocou-a na frente da senhora Whitfield, que a pegou, alisou-a, guardou-a numa antiquada caixa de dinheiro, numa gaveta, depois escreveu um recibo.

Espero-a daqui a cinco semanas. Tornou a suspirar. Até lá.

Era a própria mulher bondosa e decente; sua aflição pelas coisas deste mundo cruel estampava-se em toda a sua pessoa. Quase que certamente nos olhos também, porém não estava olhando para Alice e não olharia, limitando-se a arrematar:

Diga ao próximo para entrar.

Alice murmurou, em tom um pouco indiferente, a fim de não dar muita importância à situação, embora se sentisse enternecida de gratidão e alívio.

Obrigada. Adeus.

Ela saiu. Cinco semanas eram uma vida inteira, qualquer coisa podia acontecer... e aconteceria. Mas estava numa maré de sorte; iria à Companhia de Gás para acertar as coisas.

Ali, ela disse que a Old Mill Road, 43 era uma ocupação autorizada, Mary Williams da Belstrode Road podia confirmar; a luz estava ligada, a senhora Whitfield do Departamento de Energia Elétrica podia confirmar; e seu irmão, no momento em Bahrein, seria o fiador. Esperara que o homem idoso, de aparên­cia simpática, paternal, ficasse livre, e então, suplicou:

Gostaríamos que o gás fosse ligado logo... está muito frio... não temos água quente... é horrível...

Ah, a expressão preocupada e chocada do homem! Não po­dia conceber a vida sem água quente, pelo menos para pessoas como ele e Alice.

Um depósito?

Alice pôs vinte libras na mesa e fitou-o com olhos afáveis e infantis.

Ele pegou o dinheiro. Aceitou-o. Mas sentia-se infeliz com a situação. Como a senhora Whitfield na primeira entrevista, não entendia por que estava sendo compelido por Alice.

Precisamos de um fiador disse ele, mais para si mes­mo. Seu irmão voltará dentro de um mês, não é? Está certo.

Mais um problema resolvido. Alice saiu, recatadamente agradecida.

Precisava arrumar algum dinheiro. De qualquer maneira. Onde?

Sóbria, foi para casa e informou a Philip que o gás seria religado. Se encontrassem um boiler de segunda mão, ele poderia instalá-lo?

Estavam agachados de frente um para o outro, no patamar do último andar, à luz intensa de abril, que entrava pela janela na escada, um pouco obscurecida pela sujeira. Philip sorria, satisfeito com ela, com aquela casa, com o lugar que ocupava ali; disposto a continuar a trabalhar. Mas Alice sabia que o pesar e o ressentimento persistiam, apenas estavam subjugados no mo­mento; e muito em breve teria de arrumar dinheiro para Phil­ip. Para o boiler. Para as tábuas novas do assoalho no vestíbulo, num canto em que a água pingara de um cano vazando. Para... para... para...

Philip, sei que se você aceitasse o trabalho em bases profissionais teria de cobrar centenas de libras. Não se preocupe com isso... só quero que espere um pouco. Arrumarei o dinheiro.

Ele balançou a cabeça, sorriu, continuou a trabalhar, no meio de um emaranhado de fios pretos, como uma espécie de duende entre raízes urbanas. Frágil... podia-se derrubá-lo com um sopro, pensou Alice, o coração se confrangendo por ele.

E onde estava Jasper? Será que, no final das contas, não fo­ra levado ao tribunal naquela manhã? Ou bancara o idiota e continuara na cadeia?

Preocupações, preocupações e mais preocupações; Alice sentia-se oprimida por tantas preocupações.

Foi sentar à mesa da cozinha. E pensou, contemplando o lugar tão aprazível: já estou assumindo tudo como favas con­tadas!

Fazendo um esforço, trabalhou por uma ou duas horas na pilha de coisas trazidas por Jasper e Bert e largadas num canto do vestíbulo; ajustou uma cortina aqui, estendeu um tapete ali. Tudo precisava de uma boa limpeza! Tiraria todas as cortinas quando tivesse tempo e levaria para a lavanderia, mas por en­quanto. . . Encontrou um banco pequeno e sólido, descartado só porque estava com uma perna solta. Colou-a e pôs o banco no canto da cozinha, saiu para o jardim, cortou alguns ramos de forsítia. A velha dormia em sua cadeira, debaixo da árvore. Joan Robbins estava a apenas um metro de distância, do outro lado da cerca. Parecia contente por ver Alice e começou a falar com a voz cansada sobre a maneira como a velha a obrigava a subir e descer a escada correndo, até a acordara no meio da noite. O que podia fazer? Ela já não agüentava mais.

Alice, que conhecia aquela situação de algum lugar do seu passado bem-abastecido, sabia que havia muito pouco que se pu­desse fazer; na verdade, as coisas ficariam cada vez piores. Per­guntou se a senhora Robbins estava a par dos serviços disponíveis aos idosos. Estava, mas não gostava da perspectiva de uma por­ção de pessoas entrando e saindo de sua casa, o dia inteiro. Quem eram tais pessoas? Não teria como controlá-las.

Ela falou e falou, enquanto escavava violentamente a terra no limite de seu jardim. Por anos a casa fora civilizada e ordenada; ela e o marido lá embaixo, com o jardim; a senhora Jackson, uma viúva, ocupando o apartamento de cima. Mas agora era como se ela estivesse morando com a senhora Jackson! Co­mo se fosse sua filha! Era o que a velha parecia pensar.

Alice, com todo o tempo do mundo e nada melhor para fazer, com os ramos amarelos de forsítia nos braços, escutando e aconselhando. Não podia haver a menor dúvida de que seria melhor ter a Ajuda Doméstica, Refeições sobre Rodas e tudo mais, além de uma assistente social para aconselhar e assumir a responsabilidade, em vez de cuidar de tudo sozinha.

Joan Robbins respondeu que talvez fosse mesmo, pensaria a respeito... Com um sorriso de genuína gratidão para Alice, uma expressão de boa vizinha, ela comentou que se sentia con­tente por Alice estar ali, por finalmente haver gente decente no pobre número 43.

Alice entrou, pôs as forsítias num vaso e ajeitou-o no ban­co que estava no canto da cozinha; sentou-se.

Onde estava Jasper?

Aquela era a noite em que sairiam para pintar slogans com spray. Ela tinha a tinta duas latas, vermelha e preta à espe­ra, num canto do vestíbulo.

Sentada à mesa da cozinha, rabiscou slogans num envelope.

Qual era a mensagem que queriam transmitir? A mensagem completa, exata — era por aí que devia começar.

O Uso de Alcagüetes Desmascara a Verdadeira Natureza da Democracia Britânica. Uma Lei para a Inglaterra, Outra pa­ra a Irlanda do Norte, Colônia da Inglaterra.

Era isso. Talvez encontrassem um bom espaço, como uma parede ou um muro comprido e baixo para escrever tudo.

Tinha de encontrar algo mais curto.

Alcagüetes Ameaçam a Democracia!

Não, muito abstrato.

Alcagüetes — Injustiça!

Alcagüetes — Uma Mancha Vergonhosa para a Inglaterra!

Alcagüetes — Vergonha para Nós!

Alice ficou imóvel, o brilho das forsítias em seus olhos. Fechou-os, o amarelo turvou-se e agitou-se na escuridão. Começou a sorrir, recordando a última ocasião em que ela e Jas­per haviam saído juntos. Apenas duas semanas antes. Em ver­melho e preto, escreveram "Todo o Apoio às Mulheres de Gree- nham" sobre a pintura opaca verde-cinzenta de uma ponte, a duzentos metros de uma delegacia de polícia. Ela escrevera, Jas­per ficara de vigia, do outro lado da delegacia. Encerrara ao ou­vir o sinal de Jasper, um grito que ele aperfeiçoara para parecer uma buzina de carro. Guardara a lata de tinta na sacola. Sem olhar para trás, afastara-se pela calçada, pensando que Jasper de­via estar passando pela delegacia. Entre um e outro, provavel­mente dois guardas. Mas os passos que se aproximaram dela eram os de Jasper leves e apressados. Isso significava que os guar­das tinham ido para o outro lado, mas poderiam vê-los se se virassem, Jasper e ela fitaram-se, animados e deliciados, sa­bendo que qualquer um que os olhasse naquele momento po­deria adivinhar, apenas pelas ondas de energia que irradiavam. Os olhos de Jasper diziam: Vamos...

Ela correra de volta à ponte, iluminada por um lampião, a dez metros de distância. Os guardas continuavam a se afastar, calmamente. Jasper esperara onde estava. Alice pegara o spray vermelho e começara a escrever, em letras de trinta centímetros de altura, "Mulheres de Greenham... "

Mantinha apenas a metade de sua atenção no que fazia, concentrando a outra em Jasper, que levantara os braços subitamen­te. Sem se virar para olhar, ela disparara em sua direção, ouvindo passos pesados correndo em seu encalço. Estava agora bufando: animais nojentos, fascistas, porcos, porcos, porcos... Alcan­çara Jasper, que a pegara pelo pulso, correram juntos para a es­tação do metrô. Mas antes de chegarem lá viraram numa rua transversal e depois, torcendo para que os guardas ainda não tivessem alcançado a esquina, em outra. Conheciam alguém que morava numa casa ali. Mas o sangue estava acelerado, sentiam- se inspirados; ela não ficara surpresa quando Jasper balbuciou:

Vamos correr o risco...

Voltaram à rua principal, que estava apinhada, as pessoas circulando por pequenas lojas que vendiam peixe e batatas fritas, lanchonetes, uma discoteca, um supermercado ainda aber­to. Poderiam entrar no supermercado, mas estavam convencidos de que os guardas os reconheceriam; por isso, avançaram de­pressa através da multidão, que não lhes dispensara maior aten­ção, como já esperavam, atravessaram a rua no instante em que o sinal mudava, de tal forma que os carros, começando a andar, desataram a buzinar.

Desceram para a estação do metrô. Não olharam para veri­ficar se os guardas haviam desembocado na rua principal a tem­po de vê-los. Os olhos de Jasper outra vez exigiram que assumissem o risco; subiram pelo outro lado da estação e avistaram dois guardas diferentes se aproximando. Tranqüilos e in­diferentes. Alice e Jasper passaram por eles. E tornaram a des­cer para o metrô. Saltaram duas estações depois, onde Alice vira uma ponte comprida e baixa sobre as linhas do trem. Já eram dez horas e chovia um pouco. Ali, a delegacia ficava a uma boa distância. Do outro lado, os carros passavam regularmente. Na ponte já estava escrito, em letras brancas que haviam escorrido, "As Mulheres Estão Furiosas".

Pararam, de braços dados, de costas para o tráfego, co­mo se olhassem por cima das linhas do trem. Alice, virando a lata de spray para baixo, escrevera: "Estamos Todas... " Fora o máximo que pudera escrever sem mudar de posição. Deslocaram-se uns poucos passos, tornaram a parar juntos, ela escrevera "Furiosas. Furiosas com... " Outro desloca­mento. "Irlanda. Com Machismo. Com... " Mais um deslo­camento. E fora então que ouviram os ouvidos alertas à me­nor variação no fluxo de tráfego um carro diminuindo a marcha logo atrás. Olharam para trás: não era um carro da polícia. Mas dois homens sentados no banco da frente os ob­servavam.

"...Trident", concluíra Alice. E se afastaram, devagar, sabendo que o carro os acompanhava. A sensação inebriante, a exultação: prazer. Não havia nada igual!

Agora, recordando, Alice ansiava por outra noite assim. Torcia para que Jasper não se atrasasse, não se sentisse cansado, es­tivesse disposto a sair. Ele prometera...

... Haviam percorrido talvez uns cento e cinqüenta metros. Sorte! Uma rua de mão única! O carro, é claro, não os seguira. Ao final da rua, seguiram para o ponto de ônibus e para Kilburn, onde haviam trabalhado antes.

"Não ao Cruise! Não ao Trident!"

Ninguém os notara até então.

Cansados, a exultação se desvanecendo, resolveram parar e pegaram um táxi para a casa da mãe de Alice, onde ela fizera café e ovos mexidos para os dois.

Eram agora seis e meia.

Mary entrou na cozinha, sentou por um instante com Alice, disse que ela e Reggie iam ao cinema. Falara a respeito da tal garota, Mónica; não havia nada, absolutamente nada. Fi­zera o máximo possível, Alice devia compreender.

Não tem importância disse Alice. Pensei em outra coisa.

Mary viu o envelope rabiscado, sorriu e informou:

Reggie e eu vamos à manifestação da Greenpeace amanhã.

Bom para vocês.

Mas é chocante, é terrível, a destruição de nossos campos...

Sei disso murmurou Alice. Já estive em algumas manifestações deles.

É mesmo?

Alice percebeu que Mary sentia-se aliviada por saber que as duas partilhavam isso; mas Reggie chamou-a do vestíbulo e ela saiu, com um sorriso.

Onde estavam Roberta e Faye? Provavelmente na tal co­muna de mulheres. E Philip? Ele podia ter sido despejado pela namorada, mas ainda ia lá tomar banho e fazer as refeições, con­tara Bert. E Jim? Era um problema sério: Onde estava? O rosto risonho, a voz suave... mas, afinal, o que estava acontecendo?

Além de sua casa, seu lugar ter sido usurpado daquela maneira.

Preocupações, preocupações, refletiu Alice, sentada a se preocupar.

Jasper entrou, sorridente, exuberante, andando como um dançarino e exclamando prontamente, ao ver as forsítias:

Mas que lindas!

Aí estava: as pessoas diziam isso e aquilo a seu respeito, mas ninguém sabia como ele era sensível, como era gentil. Jasper inclinou-se agora e beijou-a no rosto; foi um beijo de leve, superficial, mas ela compreendeu; e compreendia também quan­do, em raras ocasiões, tinha de abraçá-lo por uma exuberância de amor, e Jasper se encolhia, como se estivesse diante de uma alma penada, algo frio e lamentoso, uma criança perdida. E ele tentava agüentar, aquele súbito sopro de seu amor; Alice podia sentir a brava determinação de suportar, até mesmo uma inten­ção mínima de retribuir. O que, é claro, ele não podia fazer não em termos físicos; Alice sabia que tudo o que ela sentia co­mo uma efusão de afeição era experimentado por Jasper como uma demanda.

Ele parou perto dela, radiante, positivamente inebriado com o excesso de orgulho e satisfação.

Então correu tudo bem.

Trinta libras.

Não foi muito?

Eles me conheciam explicou Jasper, orgulhoso.

Como era a cela?

Não era das piores. Deram-nos comida... não era das piores. Mas fiquei com Jack. . . um pseudônimo, entende?

Claro respondeu Alice, também radiante. O que eu não sei...

... não pode prejudicá-la.

Ele esfregou as mãos e começou a dançar em passos ágeis pe­la cozinha: foi até as forsítias e acariciou-as delicadamente, até a janela, e voltou para junto dela. Alice pôs a chaleira com água para esquentar, colocou café solúvel numa caneca e parou jun­to ao fogão, apenas para ficar de pé, não sentar, enquanto ele se movimentava, elétrico.

Bert também não sabe. Por falar nisso, onde está Bert?

Ele avisou-o: foi passar o fim de semana fora com Pat.

Ah, sim... o fim de semana... Até quando?

Jasper estava agora imóvel, ameaçado, o rosto franzido.

Domingo à noite.

Vamos fazer uma viagem. Ele sabia que ia, mas não tão cedo. Jack diz...

Um belo nome irlandês — comentou Alice.

Ele riu, adorando provocá-la.

Claro que há Jacks na Irlanda. — Uma pausa. — E como soube... Mas você sempre sabe, não é?

O comentário tinha um tom ácido.

Onde mais poderia ser? — murmurou Alice, jovial, no tom que sempre assumia quando Jasper se surpreendia com al­go que era óbvio para ela. — Você, Bert e Jack vão para a Irlan­da porque Jack é do IRA?

Tem contato. Pode promover uma reunião.

Finalmente! — exclamou Alice, entregando-lhe uma caneca de café puro e tornando a sentar.

Ele ficou em silêncio, quieto por um momento.

Preciso de algum dinheiro, Alice.

Ela pensou: "Então é isso" — significando o fim daquela maravilhosa cordialidade. Preparou-se para uma briga.

Dei a Bert o dinheiro que ele deu a você para a multa.

Preciso comprar a passagem para Dublin.

Mas não pode ter gastado a sua parte da pensão!

Jasper hesitou. Teria gastado? Como? Nunca poderia compreender o que ele fazia com o dinheiro, para onde ia — não tivera tempo... para uma outra vida, pois estava com Bert, com Jack!

Eu disse que pagaria a passagem de Jack. . . A multa deixou-o duro.

Ele também foi multado em trinta libras?

Não. Quinze.

Tenho gastado e gastado — protestou Alice. — Ninguém entra com nada... apenas um pouco aqui e ali.

Ela pensou: Pelo menos Mary e Reggie vão contribuir, é o mínimo que se pode dizer de sua espécie... Até a quantia exata, não mais, não menos.

Não pode ter gastado tudo. — Jasper parecia que a esta­va punindo deliberadamente. — Eu vi. Eram centenas de libras.

Quanto acha que tudo isso está custando?

Então — como Alice já esperava —, a mão de Jasper fechou- se em torno de seu pulso, apertando, machucando.

Enquanto você fica brincando de casa e jardim, esban­jando dinheiro em porcarias, a Causa tem de sofrer, ficar sem nada.

Os pequenos olhos azuis de Jasper, nas depressões rasas de carne muito branca e brilhante, fixavam-na, sem piscar, a pres­são no pulso aumentando. Mas há muito que Alice já adquirira imunidade daquela acusação em particular. Sem resistir, deixando o pulso inerte no círculo de osso, ela sustentou o olhar e disse:

Não vejo motivo para você pagar a passagem do cama­rada Jack. Ou as despesas. Se ele não encontrasse você, como arrumaria a passagem?

Mas ele só vai até lá por nossa causa... para promover o contato.

Alice fez um esforço para combatê-lo:

Você pegou nos últimos dias o dinheiro de três sema­nas. Tinha cento e vinte libras ou mais. E ainda por cima pa­guei sua multa. Não pode ter gastado mais de vinte libras de transporte e lanches.

Quando Alice fazia isso, deixava-o saber que fazia aquele cálculo silencioso e eficiente dos seus gastos, do que ele devia estar fazendo, Jasper odiava-a totalmente e não escondia. Ficou branco de ódio. Os lábios finos e rosados, que Alice normal­mente adorava pela delicadeza e sensibilidade, estavam estica­dos numa linha lívida, na qual apareciam os dentes pequenos. Jasper parecia um rato, pensou ela, sabendo que seu amor por ele não diminuía um átomo sequer.

Por que não arranca mais algum dinheiro da porra da sua mãe? Ou de seu pai?

Alice não explicara exatamente de onde tirara todo o di­nheiro que gastara tão prodigamente na casa, mas é claro que ele adivinhara.

É o que pretendo fazer. Quando sentir que posso. Mas agora não adiantaria.

Jasper largou seu pulso.

Agora ele vai me punir, vai pegar suas coisas e passar a dor­mir em outro quarto.

Um silêncio prolongado, Jasper se remexendo, descon­solado.

Vamos sair para comer sugeriu ele, tristemente.

Está bem.

O ânimo de Alice tornou a melhorar, embora ele não fizesse qualquer menção à excursão com os sprays e tivesse visto os slo­gans rabiscados no envelope sobre a mesa. Mas, então, Jasper disse:

Lamento não poder sair com você para pichar esta noi­te, Alice. O motivo é que não quero atrair atenção pouco antes de uma coisa importante.

Tem toda a razão.

Alice refletiu que em anos de pichação, circulando perto da polícia, escarnecendo da sua proximidade, só haviam sido apanhados quando queriam. Essa era a pura verdade.

Jasper queria falar sobre os dois dias em Melstead, os pi­quetes, a emoção, a prisão, a noite na cela e Jack. Foram a um restaurante indiano, onde ele falou e falou, Alice escutando com toda a atenção, projetando imagens de tudo. Ela pagou a refeição. Foram a um pub, Jasper tomou o vinho branco habitual, Alice pediu suco de tomate.

De volta à casa, ela esperou, tensa, na expectativa de Jasper pegar suas coisas e levar para outro quarto. Mas ele não disse nada a respeito, apenas entrou no saco de dormir, com um sus­piro que a deixou aliviada; era o suspiro de uma criança encon­trando um lugar seguro.

Jasper não voltara a falar sobre dinheiro, mas agora recomeçava. Era por isso que não tinha levado suas coisas para ou­tro quarto.

Discutiram, incessantemente, no quarto escuro, enquanto as luzes disparavam pelo teto. Ao final, Alice concordou em dar o dinheiro para a passagem de "Jack". Sabia que por algum motivo era importante que Jasper recebesse o dinheiro dela. Essencial. Sem­pre havia aqueles momentos entre os dois em que ela tinha de ceder, contra a razão, contra o bom senso: Jasper tinha de vencer de qualquer maneira. Alice sabia que ele tinha cem libras, prova­velmente mais. Talvez muito mais. Jasper lhe disse em certa oca­sião, no ânimo de crueldade irônica que às vezes o dominava, que vinha guardando dinheiro discretamente durante todos aqueles anos, o suficiente "para me livrar de você para sempre".

Isto não fazia o menor sentido: que ela pudesse perceber quando pensava a respeito, mas sentia a força da ameaça.

A mãe de Jasper... ora, Alice não ia se envolver nem mes­mo em pensamento com toda aquela melancólica psicologia, mas não era de admirar que ele tivesse problemas com as mulheres.

Pela manhã, depois do café, ele ficou perto de Alice, calado e sombrio, até que ela lhe deu o dinheiro da passagem para Dublin. Disse então que ia se encontrar com Jack e acertar tudo. Se não voltasse naquela noite, estaria em casa no dia seguin­te. Alice devia avisar a Bert que viajariam para a Irlanda na terça-feira, bem cedo.

E Jasper saiu. Ela pensou: Ele vai fazer uma de suas coisas, como passear, bordejar...? Ela achava que não. Jasper não se arriscaria, não com toda a sua alma empenhada na viagem à Ir­landa. Mas "Jack" não seria como ele? Não, Alice tinha certeza de que não. Falando sobre Jack, era como se ele estivesse falan­do sobre Bert, como falara sobre os homens com os quais tive­ra aquele relacionamento específico: de admiração, dependência, podia-se dizer até passivo... mas quem estava agora imprimindo o ritmo, fazendo com que Bert fosse para a Irlanda, fazendo com que Jack os levasse? Não era tão simples assim aquela his­tória de irmão mais moço.

Ela tinha o dia inteiro. Sozinha, podia-se dizer.

Philip subira para o sótão — devia ir ajudá-lo, ficar a seu lado, ou ele começaria a se sentir mal outra vez. Jim — onde estava Jim, qual era o problema? Ele não aparecia desde o dia anterior.

Faye e Roberta? Ouvira-as chegar muito tarde. Pat dissera que haviam ido ao cinema e depois a festas. Uma outra vida — mulheres. O fechado, enjoativo, repulsivo — pelo menos pa­ra Alice — e claustrofóbico mundo das mulheres. Não para ela! Mas elas eram bem-vindas. Deixe que mil flores desabrochem e todo o resto... Dez horas da manhã, e Mary e Reggie ainda estavam na cama. Mary descera, fizera café, levara para cima. Sem dúvida continuavam deitados naquela espantosa cama de casal, que tinha uma cabeceira e mesinhas embutidas dos lados. Só pensar naquela cama, a vida que insinuava, fazia com que Alice se sentisse ameaçada. Metidos juntos naquela cama pela vida inteira, tomando café, olhando de uma maneira cautelosa para as pessoas que eram diferentes, como que avisando para se manterem a distância.

Onde ela ia arrumar dinheiro? Tinha de conseguir. Precisa­va de dinheiro. De qualquer maneira.

Domingo.

Puxa, era apenas domingo, seis dias depois que ela e Jasper haviam deixado a casa da mãe. Ela fizera muita coisa, em tão pouco tempo. Cheia de energia, Alice foi para o sótão, ao encontro de Philip, que estava num macacão branco, circulando sob as vigas do telhado. Havia um cheiro horrível de podre.

Duas vigas devem ser trocadas anunciou Philip. Es­tão completamente podres. Ou toda a casa pode desmoronar.

Dinheiro. Ela precisava arrumar dinheiro.

Muito cedo para pedir a Mary e Reggie. Em algum momento haveria uma negociação. Ela já podia ver seus rostos, os rostos da maldita classe média, quando o assunto de dinheiro fosse le­vantado. Oh, Deus, como os odiava, toda aquela gente da clas­se média, avarenta, contando migalhas, sempre concentrada em economizar e acumular, economizar pensou Alice, a boca cheia de bílis, contemplando uma viga de trinta centímetros de largura, que parecia cinzenta e escamosa, com fibras amarelas esbranquiçadas. A própria podridão, que estenderia seus tentá­culos insinuantes por toda a madeira, se fosse permitido, depois desceria pelas paredes, para o chão, espalhando-se como uma doença...

Ela pensou: Venho vivendo assim há anos. Quantos? Do­ze? Não, catorze anos não, mais... O trabalho que já fiz por outras pessoas, arrumando coisas, fazendo coisas acontece­rem, abrigando os desabrigados, proporcionando-lhes alimento —e muitas vezes pagando por isso. Vamos supor que eu tivesse guardado um pouco, um pouquinho só, desse dinheiro para mim, o que teria agora? Mesmo que fossem apenas umas poucas centenas de libras, quinhentas, não estaria agora angus­tiada de preocupação.

Quanto custará trocar essas duas vigas?

A madeira, em torno de cinqüenta... de segunda mão. Mas talvez eu possa encontrar o que preciso num depósito de material usado, se conseguirmos o carro emprestado de novo. Quanto à mão-de-obra...

Philip soltou uma risadinha desafiadora.

Não se preocupe.

Alice estava pensando: E ele precisará de ajuda: Não tem força para ajeitar vigas enormes no lugar, carregá-las até aqui; haverá necessidade de andaimes ou algo parecido. O que signi­fica dinheiro.

Ela desceria e pediria a Mary e Reggie.

Um bilhete na mesa: "Fomos à manifestação da Greenpeace. Amor. Reggie e Mary". A letra de Reggie. "Amor"! Alice sentou à mesa e contou o que ainda tinha. Só trinta e cinco libras.

Tornou a subir e trabalhou com Philip, removendo a sujei­ra do sótão. De onde vinha tanta coisa, lixo e mais lixo, mais outros sacos, roupas velhas, a maioria apenas trapos. Tudo por­caria. Só porcaria? No fundo de um velho baú preto, por baixo de sapatos rachados, havia camadas de tecido macio, vestidos envoltos em papel de seda preto. Vestidos de baile. Ela jogou- os pelo alçapão e pulou em seguida para examiná-los. Ei, olhe só para isso! Três vestidos muito bonitos, envoltos em separa­do em papel de seda preto. Início dos anos 30. Um deles era rendado, preto, laranja e amarelo, com fios dourados. O corpete era simples e liso, descendo até os quadris e se abrindo em pequenas pontas, como pétalas. O cheiro metálico da renda dou­rada deixou-a com vontade de espirrar.

Alice afastou-se do alçapão, a fim de ficar fora do alcance da vista de Philip, que continuava no sótão, e tirou a blusa de malha. Enfiou o vestido brilhante por cima da cabeça. Não pas­sou pelos quadris, ficou preso numa massa na cintura. Como não havia espelho na casa, não podia ver como ficaram seus bra­ços e ombros, mas via suas mãos fortes e sardentas afagarem o tecido e compreendeu que o vestido a reclamava, como uma impostora exigindo reconhecimento. Tirou-o, furiosa, tornou a pôr a blusa de malha, recuperando com isso um sentimento de conveniência e até de virtude, como se tivesse sido tentada por um momento pelo proibido. Não experimentou o vestido de chiffon cor de damasco, com tiras de contas prateadas na frente e atrás, algumas soltas, outras faltando, como se um inseto co­medor de contas tivesse agido ali. Levantou o vestido verde ren­dado contra o corpo. Era justo em cima, com um recatado decote rosa em V, mas descendo nas costas até o cóccix. E vestidos pa­ra a tarde, o new look, lustrosos e ainda bons. Quem os guarda­ra lá em cima, incapaz de jogá-los fora? Quem os esquecera e fora embora, deixando todos aqueles baús no sótão? Ela mos­trou os vestidos a Philip, que riu muito ao contemplá-los. Mas quando Alice disse que conseguiria algum dinheiro pelos vesti­dos, talvez bastante, ele deu de ombros, involuntariamente res­peitoso.

Guardou tudo numa mala e pegou um ônibus para a Bell Street, até uma loja para a qual a mãe já vendera alguns vestidos. E recebera mais de cem libras.

Sábado. As lojas estavam apinhadas. A mulher na loja que vendia roupas antigas estava ocupada com uma freguesa que exa­minava um vestido branco de crepe-da-china da década de 20, com lantejoulas douradas formando rosas em torno dos qua­dris. Pagou noventa libras pelo vestido. E tinha uma mancha no ombro, que ela disse que esconderia com uma rosa dourada.

Alice adiantou-se com a mala, percebeu os olhos da mulher se estreitarem em cobiça ao tirar o que havia lá dentro. Estava determinada a conseguir o máximo de dinheiro possível, até o último penny. Barganhou cada vestido, observando os olhos da mulher, que sempre a denunciavam. Eram olhos estreitos, es­pertos, acostumados a verificarem os menores pontos, um mi­núsculo rasgão, o jeito de um bordado. Quando Alice tirou o vestido de chiffon, com as contas prateadas, a mulher até suspi­rou, sua língua, grande e pálida, deslizou sobre os lábios.

Por esse vestido Alice obteve sessenta libras, embora a mu­lher insistisse que uma costureira competente teria de substi­tuir as contas que faltavam e isso custaria... Alice não tinha idéia de quanto custaria. Sorriu polidamente, balançou a cabe­ça e manteve-se irredutível.

Foi para casa com duzentas e cinqüenta libras, sabendo que a mulher venderia as roupas por quatro vezes mais. Mas estava satisfeita.

Não contaria a Jasper. Isso significava que a lealdade a proi­bia de contar a Philip que de qualquer maneira não acredita­ria. Disse a ele que conseguira cento e cinqüenta libras, deu-lhe cem e ouviu-o suspirar um pouco; um suspiro muito diferente do ofego brusco da mulher na loja. Como uma criança como Jasper entrando em seu saco de dormir na noite passada, de volta ao lar, são e salvo.

Bom, aquele dinheiro daria para manter as coisas em andamento, mas não por muito tempo. Philip e ela gastaram sessen­ta libras naquela tarde num boiler a gás de segunda mão. E mais cinco libras pela entrega. Ao final da semana haveria água quente. Até mesmo aquecimento, se os radiadores que não haviam sido roubados não estivessem avariados pelo abandono.

Não que Alice se importasse com o aquecimento, mesmo depois de quatro anos na casa aquecida da mãe. Acabara se acos­tumando a se adaptar a temperaturas diferentes. Antes da casa da mãe, passara um inverno numa casa ocupada que não tinha qualquer aquecimento. Simplesmente usara muitas roupas, mantendo-se em movimento. Jasper se queixara, tivera frieiras, mas até ele agüentara; fora esse, porém, um dos motivos pelos quais Jasper se mostrara satisfeito ao ir morar na casa quente de sua mãe, depois de um inverno frio.

Ela ficou trabalhando até tarde com Philip, como sua assistente, entregando as ferramentas, segurando firme o facho de uma potente lanterna. Observou suas mãos esguias e ágeis es­branquiçadas pela luz e viu que Philip podia ter sido, devia ser, um artífice extraordinário e meticuloso, nunca deveria perder tempo com canos e tábuas de assoalho, que pareciam mais pe­sadas do que ele. Aquele desperdício abasteceu a indignação que a mantinha em movimento, povoou sua mente com pensamen­tos que justificavam tudo o que fazia: um dia seria impossí­vel que pessoas como Philip fossem mal-empregadas, humilha­das, insultadas pelas circunstâncias; um dia — e por causa dela, Alice, e seus camaradas — as coisas seriam diferentes.

A meia-noite ela compreendeu que Jasper não viria mais. Seu coração iniciou um pequeno lamento particular, o que a deixou envergonhada, tratando de reprimi-lo. Fez ovos com ba­con para Philip. Depois que ele foi dormir, continuou esperan­do, não apenas por Jasper, mas também por Jim. Encrenca! Podia sentir que se aproximava.

Mary e Reggie chegaram, sorrindo, radiantes, com aquela expressão especial dos manifestantes bem-sucedidos. Sentados com Alice, tomando café, eles contaram como centenas de pes­soas marcharam contra a poluição de uma determinada praia. Deixaram Alice com uma pequena pilha de panfletos; ao saber que em breve a água quente seria um dos confortos da casa, Reg­gie comentou que precisavam ter uma conversa sobre finanças. Mas naquela noite sentiam-se exaustos, precisavam dormir. Su­biram enlaçados. Alice sabia que eles iam fazer sexo. Pois então ela ficaria mais um pouco ali embaixo.

Mary e Reggie tornaram a descer, desmanchando-se em sorrisos, indagando sobre as roupas, todas aquelas coisas velhas es­palhadas no patamar do último andar. Alice esquecera de ar­rumar e disse que o faria no dia seguinte. Mais sorrisos, e os dois subiram de novo.

E se eu não arrumar?, pensou Alice. Claro que eles não arrumariam! Nem pensaram nisso! Eu fiz aquilo e por isso eu te­nho de arrumar. Conheço essa gente, conheço esses dois, conhe­ço a classe média... Quero mais que todos se fodam.

Mas sentada ali, pensando em todo aquele entulho, que te­ria de ser metido em sacos, trazido para baixo e deixado no jardim, para ser levado pelos lixeiros, que teriam de ser pagos, um novo pensamento surpreendeu sua mente. Ao ver aqueles re­quintados vestidos, jogara-os pelo alçapão e descera para examiná-los. Mas não acabara de inspecionar o que havia no sótão. Ainda havia lá em cima outras caixas, baús, trouxas amarradas. Podia haver mais roupas antigas lá em cima, mais coisas que seriam convertidas em dinheiro.

Alice subiu correndo, esquecendo Mary e Reggie no quar­to por baixo do sótão. A escada ainda estava em posição, pois Philip não terminara. Lá em cima, ela acendeu a potente lanterna. A maioria das caixas havia sido aberta, mas na beira do sótão, sob a parte mais baixa do telhado, havia três baús anti­quados, do tipo que as pessoas costumavam levar em cruzeiros, "para uso na viagem". Eram de alguma espécie de fibra, pinta­dos de um castanho lustroso, agora opaco, com tiras de madei­ra como reforço. Ela abriu-os, um, dois, três, o coração mar­telando no peito. Dentro do primeiro, jornais. Jornais? Alice ajoelhou-se junto ao baú, empurrando os jornais para os lados, vasculhando mais fundo, rebuscando nos cantos. Pilhas de jor­nais amarelados, e só. Por quê? Para quê? Que lunático...O segundo tinha jornais cobrindo livros. Não livros especiais, ne­nhum tesouro ali, apenas a coleção de alguma família. Livros velhos, esmaecidos. O talismã, a capa marrom corroída. Peque­nas jóias da Bíblia... Ela amou e perdeu... O tesouro de Sierra Madre... O crochê mais simples. Uma coleção de Dickens.

Poderia obter umas poucas libras pelo lote todo. Mas havia outro baú. Rezando, verificou o interior. Vazio, a não ser por meia dúzia de velhos potes de geléia.

Uma tempestade de raiva a dominou. Levantou-se chutan­do os baús, depois jogando livros, jornais e potes pelo sótão, gritando insultos para as pessoas que haviam deixado aquele li­xo ali.

Merdas nojentos! Porcos fascistas! Vou matar todos vo­cês! Vou bater... até virarem... polpa...

O acesso continuou e ela ouviu gritarem seu nome lá de baixo:

Alice! Alice! O que houve?

Uns porcos nojentos de classe média que ficam acumu­lando coisas...

Jornais, potes, botinas e trapos caíam pelo alçapão para os pés de Mary e Reggie.

Qual é o problema? Podemos ajudar?

Alice viu os dois rostos agitados e preocupados de cidadãos responsáveis virados para cima, iluminados por sua lanterna em bruscos movimentos; subitamente, desatou a rir. Parou por ci­ma deles, cambaleando e rindo.

Oh, Alice! exclamou Mary.

Oh, Alice! protestou Reggie.

Os dois exibiam um ar de censura, petulante. Alice soltou-se, rolou para a beira do alçapão, segurou-se com as mãos fortes, balançou e caiu bem diante de Mary e Reggie, rindo e apontando para eles.

— Se pudessem ver a cara de vocês, se pudessem ver...

E ela continuou a rir e cambalear, entre as pilhas sórdidas, chutando sapatos e roupas para todos os lados. Cacos de vidro espalharam-se pelo chão.

Mary e Reggie olharam um para o outro, para ela, e volta­ram apressados para seu quarto. O barulho da porta fechando, polido e contido, apesar de tudo, fez com que Alice risse de no­vo. Ela arriou no chão, entre todo aquele lixo, e continuou a rir até o silêncio. Levantou os olhos para o alçapão e viu o bri­lho da lanterna acesa lá em cima. Iluminava as vigas enviesadas do telhado, mostrava duas vigas podres, que mesmo lá de bai­xo, com aquela claridade, pareciam estar se dissolvendo.

Alice tornou a subir. Recusando-se a olhar para as vigas perigosas, começou muito sóbria a fechar os baús, arrumar um pouco. Ia mesmo arrumar tudo lá em cima? Para quê? Para quem?

Apagou a lanterna, deixando-a exatamente onde a encon­trara, para Philip. Deixou o sótão, dessa vez pela escada, em­purrou todo aquele refugo com os pés para uma pilha grande ao lado do corrimão. Fazia o maior barulho, mas não se impor­tava. Seria uma boa lição para eles, pensou. Um dia, Mary e Reggie dirão: Bem que tentamos viver numa comuna, fizemos o maior esforço, mas ficamos com medo...

Ela estava outra vez tremendo de riso. Desceu, gritando, soluçando com o riso. Se é que era mesmo riso; já ouvira aqueles lamentos tristes. E pensou: Estou rindo pelo lado errado da boca...

As três horas da madrugada foi se deitar, desolada, prometendo a si mesma que cuidaria da pintura de pelo menos um cômodo no dia seguinte. Talvez o quarto que ocupava. Sabia que Jasper ficaria satisfeito, mesmo que parecesse escarnecer. Pensando em Jasper, no que ele estava fazendo, com quem, Alice mergulhou num sono irrequieto, levantou muitas horas antes do que qualquer outro, tirou as poucas coisas que havia no quar­to, foi buscar os cavaletes, tintas e rolos de Philip, limpou o teto e as paredes com um espanador amarrado na ponta de uma vassoura, varreu do chão a poeira resultante. Ainda eram ape­nas sete horas da manhã.

Sentada sozinha na cozinha, tomando café, olhando para as forsítias amarelas, Alice irradiava saúde, energia, determinação. Não poderia ter feito aquilo se Jasper estivesse ali, teria de adaptar-se seu ritmo ao dele... Às vezes, muito raramente, o pensamento lhe ocorria: Se eu estivesse sozinha, se não preci­sasse me preocupar com Jasper... Era excepcional, e ali estava uma dessas ocasiões. Sabia que estava presa a Jasper pelo que parecia uma corda esticada de ansiedade, que vibrava com as necessidades dele, nunca com as suas; sabia como era afligida por Jasper, como ele a sufocava. E se ela o deixasse? (Pois Jas­per nunca a deixaria!) Se encontrasse um lugar para si, com ou­tros camaradas, é claro — já mudara tantas vezes que isso nada significava, poderia fazê-lo outra vez com a maior facilidade. Sem Jasper. Ficou imóvel, a mão de garota sardenta não che­gando a envolver completamente a caneca marrom, os olhos fixos nas bem-aventuradas forsítias que povoavam toda a cozi­nha com energia, com prazer. Sem Jasper? Alice começou a fa­zer pequenos movimentos, inquietos, apreensivos, a respiração acelerando, depois se reduzindo a um suspiro. Como poderia viver sem Jasper? Era verdade o que as pessoas diziam: eles eram como irmão e irmã. Mas vamos supor... O pensamento de outro homem levou-a a balançar a cabeça, incrédula. Não que muitos não tivessem se aproximado para perguntar: Por que Jas­per, por que não eu? Ele não lhe dá coisa alguma.

Mas ele dava. E quanto dava! Como poderia deixá-lo?

Alice levantou-se lentamente, lavou a caneca, ficou parada por algum tempo, imóvel, o olhar fixo. Pensou: Sempre esqueço que o tempo está passando. Já tinha mais de trinta anos. Muito mais... Para ser mais exata, trinta e seis. Se queria algum dia ter um filho... Não, não; os autênticos revolucionários res­ponsáveis não devem ter filhos. (Mas tinham!)

Ela tratou de se desvencilhar de todo esse emaranhado de pensamentos e subiu correndo, como se alguma delícia ou pra­zer a aguardasse no quarto, não a tarefa árdua de pintar.

Trabalhou sem parar, até acabar de passar a primeira mão. Teto e paredes estavam cobertos por tinta branca fresca, onde antes havia sujeira e encardimento. Algumas pessoas deixariam assim, mas não Alice: haveria uma segunda mão. Circulou so­bre os jornais espalhados pelo chão, alguns deles datados dos anos 30, do tempo da guerra. "Segunda frente!", em letras pre­tas garrafais, deslizou para baixo de outra folha. "Attlee pro­mete... " Não estava interessada no que Attlee ou qualquer outro prometera. Voltando à cozinha, descansou e pensou: Ter­minarei nosso quarto por volta de meio-dia, poderia pintar ou­tro. Precisaria de ajuda para a sala de estar. O pior é o quarto das garotas, Faye e Roberta. Terei de dar uma olhada rápida agora...

Tinha certeza de que as duas não estavam em casa, mas mesmo assim bateu na porta para se certificar. Silêncio. Ela entrou e, porque seus olhos se dirigiram para o teto e as paredes, não percebeu logo que as duas estavam ali, no final das contas, duas massas por baixo de cobertores, xales, uma porção de coisas, quase todas floridas. Roberta, perturbada mas sem saber por quê, esticou os braços para bocejar, depois sentou, os seios balan­çando, e olhou com desprazer para Alice. Que disse:

Desculpe. Pensei que não estavam em casa.

E não estamos!

Mas a expressão de aversão, que Alice receava ser o que Roberta sentia por ela, foi substituída por outra mais amável. Ro­berta tateou à procura de cigarro. Pela aparência tensa do fardo que era Faye, Alice compreendeu que ela estava acordada. Ex­plicou:

Estou pintando nosso quarto. Acabarei em duas horas. Pensei em pintar também o quarto de vocês ainda hoje, se quiserem.

Nesse instante Faye sentou, jogando as cobertas para o la­do, em um só movimento, como uma nadadora aflorando à superfície. Lançou um olhar furioso para Alice, como o que apresentara à pobre Mônica.

- Não — disse ela, em voz fria e implacável. — Você não vai pintar este quarto. Não vai mesmo. E agora nos deixe em paz.

Está tudo bem, Faye — murmurou Roberta.

Não está, não — gritou Faye, em tom estridente. — Pin­te a porra do seu quarto, Alice. Mas mantenha essas suas mãozinhas de merda longe da gente, está me entendendo?

Acostumada a tais situações, Alice manteve-se firme, sem se sentir magoada ou ofendida ou qualquer das coisas que sabia que Faye queria que ela ficasse. Estava pensando: Nota dez para Roberta. Não deve ser fácil aturar Faye o tempo todo.

Está bem, Faye — disse Alice. — Claro que não vou pin­tar nada, se vocês não quiserem. Mas não acha que o quarto está sujo demais?

E olhou com interesse para as paredes, onde, à luz forte da manhã — o sol ainda brilhava sobre uma —, parecia que pode­riam começar a brotar cogumelos.

Elas ficaram sentadas ali, Faye e Roberta, olhando para Alice, tão diferentes de Mary e Reggie que Alice achou até gra­ça — interiormente, é claro, sem deixar transparecer. E seu coração se confrangeu por elas. Mary e Reggie aqueles chefes de família, como Alice desdenhosamente pensava neles sentados lá em cima, em sua cama conjugal, examinando Alice, sa­biam que nada poderia realmente ameaçá-los. Mas Roberta, apesar de toda a sua solidez bonita e morena, de seu instinto maternal, e Faye, como um pintinho frágil aconchegando-se sob o ombro forte da amada, eram vulneráveis. Sabiam que qual­quer coisa, até mesmo Alice, podia atropelá-las como um tra­tor, reduzi-las a fragmentos.

Está tudo bem repetiu Alice gentilmente, com uma infinita compaixão. Não se preocupem. Desculpem.

E saiu, ouvindo a voz estridente de Faye enquanto a porta era fechada, ouvindo a voz consolada de Roberta.

Alice voltou ao trabalho de passar a segunda mão de tinta, equilibrada sobre os cavaletes. Pensou pela primeira vez: Sou uma idiota. Elas gostam assim. Roberta, Faye, com toda a certeza, gostam de viver na imundície. Refletiu sobre isso por al­gum tempo, enquanto passava mais tinta branca para reforçar a que já estava ali, por cima de sua cabeça, a outra mão encosta­da no teto, para se firmar. Elas gostam disso. Precisam disso. Se não gostassem, já teriam feito alguma coisa há muito tempo. E fácil endireitar e limpar as coisas; portanto, se não o fizeram é porque preferem assim.

Concedeu a esse pensamento bastante tempo e profundida­de. Mas não era esse o caso de Jim. Ele não gostava. Bastava ver como ficou satisfeito quando comecei a limpar tudo. Ele não gostava de todos aqueles horríveis baldes lá em cima, ape­nas não sabia como... Jim, ele não tem a capacidade da classe média (quantas vezes ouvira isso na casa de sua mãe); é desam­parado, não sabe como as coisas funcionam. Mas Faye e Rober­ta bom, elas não são da classe média, para exprimir em termos suaves, mas com toda a certeza... isso mesmo, elas teriam aprendido o know-how, a competência; portanto, se não endi­reitaram as coisas foi porque não queriam.

Imagine só querer viver naquele quarto, naquele quarto repulsivo, com paredes que parecem montes de esterco; o que aconteceu ali, o que fizeram no quarto? Provavelmente não foi Roberta. Faye: qualquer coisa errada, qualquer coisa lamentá­vel e pavorosa teria de ser Faye, nunca Roberta. Provavelmen­te quando Faye tivera um de seus acessos... todos os tipos de coisas terríveis acontecendo e depois Roberta agüentando fir­me: Faye querida, está tudo bem; não faça isso; por favor, Faye; relaxe, querida...

Alice terminou de passar a segunda mão ao meio-dia, lavou o rolo, tampou as latas de tinta e levou tudo para um quarto de cima. Enquanto Philip dormia, enquanto Mary e Reggie dormiam, enquanto Roberta e Faye dormiam (elas não saíram do seu quarto), ela pintara um quarto inteiro. E realizara um bom trabalho, sem manchas nem cantos matados, os jornais estavam comprimidos, prontos para os latões de lixo, que em breve es­tariam cheios outra vez.

Fez ovos, tomou chá, lavou-se com água fria, de pé na banheira. Toda limpa e arrumada, com uma blusa impecável, de pequenas flores rosa e gola redonda, Alice saiu da casa e foi pa­ra a 45, como se tivesse planejado fazer isso durante o dia inteiro.

Tinha certeza de que o camarada Andrew não estaria na cama, mesmo que todos os outros ainda estivessem deitados.

Cerca de dois terços dos sacos de refugos haviam desaparecido, e o buraco que ela vira antes parecia nunca ter existido, coberto por uma camada de folhas mortas, em que dois passari­nhos procuravam alimento.

A porta foi aberta por uma jovem que era ao mesmo tem­po alta e esguia e inflada e volumosa, pois usava um uniforme de combate em cáqui e verde, parecido com um traje que Alice vira recentemente numa loja de excedentes militares.

Sou Alice.

Ela falou ao mesmo tempo em que a jovem dizia:

Você é Alice. E acrescentou: Sou Muriel.

Com um sorriso cordial, Muriel deu um passo para o lado,

deixando Alice entrar no vestíbulo em que não restava mais qual­quer vestígio das caixas de panfletos ou o que quer que fossem. Ali não havia tapete no chão; afora isso, o vestíbulo era igual ao da outra casa. Havia até mesmo uma vassoura encostada num canto.

Posso falar com o camarada Andrew?

Muriel respondeu, para desapontamento de Alice:

Acho que ele está dormindo. Lendo o comentário no rosto de Alice, ela se apressou em ressaltar: Mas ele só voltou às três horas da madrugada, e os barcos do canal da Mancha. . .

Depois de fornecer essa informação, a que Alice achou que não tinha direito, Muriel disse, com uma expressão irritada de culpa, por causa do rosto crítico de Alice, que ia verificar. Encaminhou-se para a porta da sala onde Alice estivera e levan­tou a mão, como se fosse bater. Mas arranhou a porta delicada­mente, para não dizer com intimidade, usando apenas o dedo indicador. Alice foi dominada pela angústia fria e terrível que nunca dizia a si mesma que era ciúme. Poderia até desfalecer por causa disso. Certamente sentia-se tonta e, quando sua cabe­ça desanuviou, Muriel ainda estava ali, sorrindo complacente, o dedo ainda levantado, parecendo um bico de passarinho. Isso mesmo, ela parecia um ganso, ou melhor ainda, um ganso no­vo, atarracado e informe. E virou o rosto para Alice, com um sorriso satisfeito.

Posso ouvi-lo agora. Ele está se mexendo.

Ela falou como se os movimentos do camarada Andrew fossem por si mesmos uma prova de sua superioridade, que estava disposta a partilhar generosamente com Alice. A porta foi aberta, e o camarada Andrew apareceu, piscando, os olhos avermelha­dos. Vestia uma calça amarrotada e uma camisa de malha bran­ca que precisava de uma lavagem. Alice sentiu o cheiro de álcool e reprimiu a desaprovação: ele devia estar cansado, tendo che­gado tão tarde. Ele sorriu para Muriel de uma maneira que Alice não se sentiu propensa a analisar, depois viu Alice e acenou- lhe com a cabeça amavelmente, indicando que ela devia entrar.

Alice entrou na sala, e o camarada Andrew fechou a porta, sorrindo para Muriel, a fim de excluí-la.

A sala também fora esvaziada e só restavam dois pacotes. Uma cama dobrável baixa estava encostada a uma parede, com apenas um cobertor vermelho em cima. Estava desarrumada, mas também ele saíra direto da cama para atender ao arranhão na porta. Havia um travesseiro sem fronha, e o tecido listrado parecia gorduroso. Aquela pequena cena da cama era diferente da impessoalidade do resto da sala e sugeria uma masculinidade rude, até mesmo brutal.

Bocejando, sem tentar disfarçar, o homem sentou numa poltrona antiga, ao lado da lareira apagada. Alice sentou na poltro­na em frente.

Estive na França informou o camarada Andrew. Apenas uma pequena viagem.

Alice descobriu-se a olhar discretamente para a cama, que dava a impressão de ser do exterior. Ou talvez de algum clima moral diferente, como uma guerra ou uma revolução. O cama­rada Andrew percebeu que ela examinava a cama. Ainda estava acordando. Levantou-se abruptamente, foi até a cama, esticou o cobertor vermelho, escondendo o travesseiro horrível. Tor­nou a sentar. E comentou:

Já me livrei do que você viu naquele buraco. Foi para o lugar onde pode ter alguma utilidade.

Ótimo — murmurou Alice, indiferente.

Ele podia ou não ter mandado ou levado a "coisa", mas e daí? Ela não queria saber.

Deve estar especulando o que era. Tudo o que posso lhe dizer é que se trata de algo de que uma quantidade muito pequena percorre um longo caminho.

Um intenso desdém aflorava em Alice por causa da inabilidade do homem. E ela disse, em voz firme:

Na minha opinião, quanto menos pessoas souberem a respeito, melhor.

Significando: quanto menos ela soubesse. Os olhos do camarada Andrew se estreitaram e ficaram duros, mas logo ele sorriu.

Tem toda a razão, camarada. Acho que estou com a guar­da baixa. Sou um homem que precisa dormir. Sete em vinte e quatro horas, ou funciono abaixo do melhor nível.

Alice balançou a cabeça, mas analisava-o com uma visão crítica. Achava-o pouco impressionante. Um homem baixo e cor­pulento. Os cabelos curtos achatados aqui e ali, como o pêlo de um animal quando está irritado. Um bafo rançoso saía de sua boca, azedo, não apenas porque ele podia ter bebido demais. Era um homem que precisava vigiar o peso.

Fico contente por ter aparecido, camarada Alice. Estava querendo conversar sobre algumas coisas com você.

Ele se levantou, foi até a mesa à procura de cigarros, ficou de costas para Alice, ocupado em pôr um na boca e acendê-lo. Esse procedimento durante o qual ele parecia estar acabando de despertar, numa série de movimentos rápidos, eficientes e ponderados, sufocou o espírito crítico de Alice. Ela pensou: Ape­sar de tudo, ele é a coisa real. Permitiu-se confiar no homem.

Teve início então uma conversa extraordinária, que se prolongou por algum tempo; eram quase cinco horas quando ela foi embora. Alice sabia que o camarada Andrew estava arran­cando dela o que precisava saber — sondando-a —, e que ele de­via saber também que ela o permitia, compreendia todo o processo. Ela se encontrava numa espécie de estado sonhador, pensativa, passiva mas alerta, acumulando todos os tipos de im­pressões e idéias, que analisaria mais tarde.

O camarada Andrew queria que ela rompesse com "toda aquela turma de lá, você é muito superior a eles", e se lançasse numa carreira de... respeitabilidade. Ela devia se candidatar a um emprego numa certa firma, de importância nacional. Conseguiria o emprego porque ele tomaria as providências necessá­rias, através de contatos que já tinha na firma. Referiu-se várias vezes à "nossa rede". Alice trabalharia em computadores — ele, Andrew, daria um jeito para que ela fizesse um rápido curso de treinamento, que seria uma base suficiente para que uma mu­lher inteligente como ela pudesse se desenvolver. Enquanto is­so, ela moraria num apartamento, não numa casa ocupada a título precário, levaria uma vida normal... e esperaria.

Alice escutou tudo isso com uma atitude de modéstia, as pálpebras abaixadas.

Estava pensando: E quem é ele? Para quem eu trabalharia? Tinha uma boa idéia... mas será que isso fazia alguma diferença? O ponto principal era outro: ela achava ou não que toda a superestrutura terrível devia ser derrubada e destruída, de uma vez por todas? Uma limpeza completa, isso é que era necessá­rio. E Alice contemplou uma paisagem arrasada, árida e desola­da, talvez com um pouco de cinza pálida sendo soprada por toda a extensão. Isso mesmo. Era preciso se livrar da superestrutura podre para abrir caminho a algo melhor. Para o novo. Tinha alguma importância quem fazia a limpeza, quem derrubava tu­do? Rússia, Cuba, China, tio Tom Cobbley, todos eram bem-vindos, em sua opinião.

Mas ela disse, depois de algum tempo, numa pausa que ali estava para que preenchesse:

Não posso, Andrew. — E, subitamente, aflorando de suas profundezas: — Uma vida burguesa? Quer que eu leve uma vi­da de classe média?

Alice ficou sentada ali rindo dele — escarnecendo mesmo —, carregada com a energia do desdém, do desprezo.

Ele a observava com atenção, agora não mais cansado ou atordoado de sono. Sorriu gentilmente.

Camarada Alice, não há nada de errado em uma vida confortável... tudo depende do objetivo. Não seria viver assim por causa do conforto, por causa da segurança... — Andrew parecia estar fazendo um esforço para desprezar essas palavras tanto quanto ela — mas sim por causa do seu objetivo. Nosso objetivo.

Os dois se fitavam. Através de um abismo. Não de ideolo­gia, mas de temperamento, de experiência. Alice sabia, pela maneira como ele dissera "não há nada de errado em uma vida confortável", que Andrew não sentia uma repulsa como a sua. Ao contrário, ele até gostaria de uma vida assim. E como sabia? Ela não tinha como explicar por que sabia de tais coisas sobre os outros. Apenas sabia. Aquele homem explodiria uma cidade sem cinco segundos de remorso — e ela não o criticava por isso —, mas exigiria um bom uísque, comeria em bons restaurantes, gos­taria de viajar em primeira classe. Era da classe operária na ori­gem, pensou ela; a vida lhe fora difícil. Era por isso. Não lhe cabia criticá-lo. E Alice declarou, categórica:

Não adianta, camarada Andrew. Eu não poderia. Não suportaria a espera... das ordens... não importa quanto tempo levasse.

Acredito em você — murmurou ele, balançando a cabeça.

Não me importaria com o perigo. Mas não poderia vi­ver assim. Acabaria enlouquecendo.

Ele tornou a balançar a cabeça, ficou em silêncio por um momento. E depois, parecendo divertido pela primeira vez, até mesmo cômico:

Mas tenho recebido relatórios diários, camarada Alice, até mesmo de hora em hora, sobre as transformações que promoveu naquela pocilga.

A aversão com que ele ressaltou a última palavra era tão intensa quanto poderia ser a dos pais de Alice. Inclinando-se para a frente, Andrew pegou-lhe a mão, sorrindo jovialmente, e virou-a, o dorso para cima, em sua mão forte e quadrada. A mão de Alice se encolhera um pouco, mas ela deixou-a ali, firme. Não gostava de ser tocada, em nenhuma circunstância! Mas o conta­to de Andrew não era tão ruim assim. A firmeza o tornava su­portável. Nas articulações de Alice havia uma crosta de tinta branca. Ele repôs gentilmente a mão no joelho dela e acres­centou:

Em pouco tempo vai transformar aquela casa num palácio.

Não está entendendo. Não vamos viver naquela casa co­mo eles fazem. Não vamos consumir e gastar, amolecer e ficar acordados nos preocupando com nossas pensões. Não somos como eles, que são repulsivos.

A voz de Alice estava quase sufocada de asco. Seu rosto se contorceu em ódio.

Houve um silêncio prolongado, durante o qual ele resol­veu deixar aquele assunto inauspicioso. (Mas, pensou Alice, não o abandonaria por muito tempo!) Ofereceu um café. Havia uma chaleira elétrica, canecas, açúcar e leite numa bandeja no chão. Ele aprontou o café com rapidez e eficiência.

Depois, começou a falar sobre as pessoas do número 43. Alice constatou que a avaliação era a mesma que ela fizera. O que a agradou e lisonjeou, confirmando a convicção em si mesma.

Ele falou muito bem sobre Jim, sobre Philip, mas não se demorou em perguntas. Pareceu descartar Bert. Queria saber mais a respeito de Pat, onde ela trabalhara, qual era o seu treinamen­to. Alice respondeu que não sabia, não perguntara.

Mas isso é importante, camarada Alice — censurou-a Andrew, da forma mais gentil possível. — Muito importante.

Por quê? Não tenho um emprego desde que deixei a uni­versidade. E venho fazendo tudo direito.

O comentário acarretou um obstáculo no fluxo da conver­sa; Andrew estava reprimindo uma necessidade de repreendê-la. Há muito de burguês nele, pensava Alice, mas apenas um pouco crítica, por causa do respeito agora consolidado que sen­tia pelo camarada Andrew.

Jasper... ele não falaria sobre Jasper. Por causa de seu vín­culo comigo, pensou Alice. Mas ela não precisava perguntar: o camarada Andrew não tinha muito tempo para Jasper. Pois ele ia ver uma coisa!

Roberta e Faye. Ele fez muitas perguntas sobre as duas, mas o que o interessava mesmo era o lesbianismo. Não por lascívia ou qualquer outra coisa que Alice pudesse detestar: havia ali uma total incompreensão. Ele simplesmente não tinha a menor idéia a respeito. Nenhuma experiência, concluiu Alice. Queria saber como era a comuna de mulheres que Roberta e Faye freqüenta­vam. Qual a relação entre lésbicas e as formulações revolucio­nárias das mulheres políticas. Alice sugeriu panfletos e livros, que providenciaria para ele. Andrew acenou com a cabeça, mas continuou: como mulheres do tipo de Faye e Roberta viam as relações entre homens e mulheres depois da revolução? Alice suprimiu o impulso de dizer: Elas querem liquidar todos os ho­mens. Lembrava as discussões longas e acaloradas com Molly e Helen, em Liverpool, durante as quais ela, Alice, alegara que a atitude das duas equivalia a um desprezo tão total aos homens, que na verdade eliminava todo e qualquer pensamento sério a respeito deles. Mas o que ela disse agora foi o seguinte:

Há muitas formulações diferentes no Movimento Feminista. Eu diria que Faye e Roberta representam um extremo.

Havia ainda Mary e Reggie; e, como Alice já esperava, o camarada Andrew recusou-se a descartá-los, como ela queria. Justamente o que ela mais detestava nos dois era o que mais o interessava: Alice sabia que ele especulava se Mary e Reggie não poderiam ser persuadidos a se tornarem parceiros latentes da revolução, uma expressão que ela usou e Andrew aprovou com um sorriso seco e um aceno de cabeça.

Alice não sabia. Duvidava muito. Eles eram naturalmente conservadores. (Não que ela tivesse alguma coisa contra o Green- peace. Ao contrário.) Em suma, eram burgueses. Na sua opi­nião, Andrew deveria discutir o assunto pessoalmente. Não podia responder por eles.

Alice sabia que isso cortava a premissa tácita da conversa: a de que ela estava disposta a agir de bom grado como sua assistente na avaliação de possíveis recrutas. Por algum motivo ou outro. Não declarado. Tácito.

Eles planejavam o pessoal do número 43 — aceitar mais gente em sua comuna?

Por que não? Há bastante espaço.

Concordo. Quanto mais, melhor.

E assim eles continuaram, remontando, por alguns minu­tos bastante tensos, à infância de Alice. A mãe de Alice não interessava ao camarada Andrew, mas Cedric Mellings era outro caso. Sua empresa era muito grande? Quantos empregados? Co­mo eles eram?

O irmão de Alice: ela resolveu não dizer que Humphrey trabalhava numa importante companhia de aviação. E limitou- se a comentar:

Não perca seu tempo com ele.

Mais café e uma conversa muito satisfatória sobre a situa­ção da Inglaterra. Podre como uma maçã estragada, pronta pa­ra ser derrubada pelos tratores da história.

Quando Alice disse que precisava ir, pois esperava por Jasper, e levantou-se, ele também ficou de pé e pareceu hesitar. Então disse rapidamente, parecendo contrafeito pela primeira vez:

Está há muito tempo com Jasper, não é?

Quinze anos.

Sabendo o que estava para vir, reconhecendo muitos momentos assim no passado, Alice virou-se para sair. Andrew es­tava a seu lado, e ela sentiu o braço se estender de leve sobre seus ombros.

Camarada Alice, não é fácil compreender... por que optou por esse... relacionamento.

A parcela habitual de afronta, ressentimento e até raiva aflorou em Alice. Mas ali estava o camarada Andrew, e ela já deci­dira que qualquer coisa que partisse dele tinha de ser diferente.

Você não compreende murmurou ela. Não é ca­paz de compreender Jasper.

O braço continuava em seus ombros, tão gentilmente que Alice não sentia qualquer pressão. E ele disse, insinuante:

Mas certamente, Alice, você poderia...

Obter algo melhor era o que ele queria dizer. Alice virou-se para fitá-lo, com um sorriso firme.

Está tudo bem — murmurou ela, como uma colegial. — Eu amo você.

A incredulidade tornou o sorriso de Andrew irônico, paciente.

Bom, camarada Alice... — Fez uma pausa, divertido. — Apareça quando quiser.

Por que não vai visitar nosso palácio?

Obrigado. Irei mesmo.

E Alice foi para a casa, atordoada com indagações.

Tencionava subir para admirar seu quarto recém-pintado, mas alguma coisa levou-a à porta de Jim. Bateu. Não houve resposta, e ela entrou. Jim estava estendido em cima de seu saco de dormir, virado para ela, de olhos abertos.

Você está bem, Jim?

Ele não respondeu. Parecia horrível... Alice aproximou- se, ajoelhou-se, pôs a mão na dele. Estava seca, muito quente.

Jim! O que você tem?

Ora, que importa? — balbuciou ele, num soluço abafa­do, pondo o braço sobre o rosto.

Por baixo da manga havia um ferimento avermelhado que se estendia do cotovelo ao pulso. Largo. Repulsivo. Parecia cheio de geléia vermelha.

O que aconteceu, Jim?

Meti-me numa briga. — As palavras saíram num soluço de frustração e raiva. — Não se preocupe que vai sarar. Não é nada. Já está limpo.

Jim parecia estar lutando contra si mesmo, estendido ali, batendo com o punho na cabeça, contraindo as pernas, depois esticando-as bruscamente.

Mas a polícia não o pegou.

Não, mas a esta altura já devem saber que eu estava lá. Há alguém para cuidar disso. De que adianta? Não há a menor possibilidade de você me livrar desta encrenca. Sendo assim, de que adianta?

Tentou arrumar um emprego?

Tentei, mas de que adianta?

Ele virou-se e ficou deitado de costas, os braços inertes nos lados do corpo.

Alice podia compreender. Havia uma certa fúria frenética em estar desempregado, perseverar para arrumar um trabalho e ser rejeitado. Era diferente de assumir o desemprego.

O que estava tentando?

Uma gráfica em Southwark. Mas não conheço toda essa nova tecnologia... aprendi com as máquinas antigas. Fiz um curso de um ano, pensei que me valeria alguma coisa.

Não disse nada a respeito. Mas deve haver centenas de pequenas gráficas por todo o país que ainda usam máquinas antigas.

Então devo ter me candidatado a um emprego em meta­de delas nos últimos quatro anos.

Meu pai tem uma gráfica. Pequena. Fazem todos os ti­pos de trabalho. Panfletos, folhetos e catálogos.

Ele não continuará a usar máquinas antigas por muito tempo.

Escreverei para ele. Por que não? Ele se diz socialista.

De que adianta? Sou negro.

Espere um instante. Estou pensando.

Jim estava tenso, quente e desesperado, mas já um pouco melhor, pensou Alice. Como uma freira ou sua irmã, ela ficou sentada a segurar-lhe a mão, sorrindo gentilmente.

Isso mesmo acabou murmurando. Escreverei para meu pai. Farei isso. Vou obrigá-lo a praticar o que prega. Além do mais, ele já teve empregados negros.

Alice percebeu que, contra a vontade, ele voltava a sentir esperança.

E vou escrever agora acrescentou ela.

Na mochila em que parecia guardar metade de sua vida, Alice procurou e encontrou uma caneta esferográfica e um bloco.

"Querido papai,

Este é Jim..."

Qual é o seu nome todo, Jim?

Mackenzie.

Tenho um primo que casou com uma Mackenzie.

Meu avô era Mackenzie. De Trinidad.

Então talvez sejamos parentes.

Um pequeno acesso de riso sacudiu-o e deixou-o com um sorriso. Ele suspirou, relaxou, virou-se para Alice, apoiou a cabeça na mão. Estaria adormecido em breve.

Ela escreveu:

"Este é Jim Mackenzie. Não consegue arrumar emprego. E um gráfico. Por que não lhe dá emprego? Não se intitula um progressista? Há quatro anos que ele está desempregado. Em nome da Revolução.

Alice"

Ela dobrou o bilhete com todo o cuidado, meteu num envelope azul (escolhendo o azul em vez do creme por algum mo­tivo) e endereçou-o.

As pálpebras de Jim estavam caindo.

Por que não vai até lá amanhã? O ferimento não estará mais aparecendo.

Alice levantou a manga de sua camisa gentilmente. Ela não encontrou resistência. Era um corte horrível e deixaria uma ci­catriz grande. Precisava levar alguns pontos. Mas isso não im­portava agora.

Gosto de você, Alice. É uma pessoa realmente sincera... Entende o que estou querendo dizer?

Ele não acrescentou "ao contrário dos outros". Alice po­deria ter chorado, sabendo que era verdade o que ele dizia, sentindo-se confirmada e apoiada. Continuou ali até que ele dor­miu; depois saiu para o vestíbulo escuro, acendeu a luz com or­gulho e com a consciência do que esse pequeno ato significava, quanto custara e ainda custaria; ela apertou um pequeno botão na parede e os elétrons obedientemente correram pelos cabos, porque a mulher no Departamento de Energia Elétrica assim decidira.

Dinheiro. De onde?

Parada ali, contemplando o vestíbulo, tão agradável agora (embora ela soubesse que precisava limpar todo o tapete, que ficara muito tempo dobrado na poeira do depósito), Alice cons­tatou que Philip consertara o armário pequeno por baixo da escada, quebrado pelo policial.

Nesse momento houve uma batida na porta. Com uma premonição Alice foi até ela, já fixando no rosto uma expressão de autoridade.

Era a policial que ela encontrara na delegacia. Seu parceiro estava no portão, um jovem que Alice nunca vira antes.

Boa noite — disse Alice. — Em que posso servi-la?

Ela deixou a porta aberta às suas costas, a fim de que a or­dem do vestíbulo pudesse ser observada. Percebeu que a mu­lher fazia uma avaliação. Alice não ficou surpresa ao reparar que a policial tentava localizar com os olhos o lugar no jardim em que aqueles malucos haviam enterrado...

Um tal de James Mackenzie mora aqui?

Mora, sim.

Posso falar com ele?

Poderia, mas ele não está.

Quando voltará?

Talvez não volte esta noite. Foi visitar amigos em Highgate.

Quer dizer que ele não esteve aqui neste fim de semana?

Estava aqui ontem à noite.

E passou a noite inteira na casa?

Passou, sim. Por quê?

Estava aqui desde o anoitecer?

Estava. Jantamos aqui e depois ficamos jogando cartas.

Havia um ligeiro tremor na voz de Alice; ela ia dizer "To­dos passamos a noite aqui", mas lembrou-se a tempo de que nem "todos" podiam estar dispostos a arriscar o pescoço por Jim, se fosse possível alcançar "todos" e avisá-los a tempo.

Você e ele estavam aqui?

E mais um amigo dele. Um garoto branco. William qualquer coisa.

Alice sabia que a policial percebera a pequena hesitação, mesmo que apenas de maneira subliminar. Mas estava tudo bem, ela concluiu; era o que podia deduzir da indecisão da mulher. Alice bocejou, levou a mão à boca e disse:

Desculpe-me, mas já é tarde...

Ela tornou a bocejar, oferecendo o sorriso certo à policial. Que sorriu em retribuição, enquanto tornava a olhar com toda a atenção para o vestíbulo tranqüilizador.

Obrigada.

A mulher encaminhou-se para o portão e saiu, a fim de retornar com seu parceiro à ronda vigilante pelas ruas culpadas.

Alice foi dar uma olhada em Jim, sem fazer barulho. Ele estava dormindo.

Seguiu para a cozinha e escreveu uma carta para a mãe. Ficaria à espera de Mónica Winters, que com toda a certeza apa­receria dentro de um ou dois dias.

Enquanto se ocupava com isso, eles chegaram, a intervalos de poucos minutos, primeiro Jasper, depois Pat e Bert, finalmente Roberta e Faye. Os seis sentaram em torno da mesa na cozinha com um sortimento de comidas, trazidas separadamente e que agora seriam consumidas junto: pizzas, peixe com batatas fritas, tortas. Alice fez café, distribuiu as canecas, sentou à ca­beceira da mesa. Sua felicidade por aquela cena era tão intensa que fechou os olhos, a fim de que não irradiassem grandes jatos de brilho, denunciando-a para a severidade dos outros.

Bert queria saber sobre Jack. Jasper fez um relatório. Os olhares trocados por Faye e Roberta disseram a Alice que havia problemas.               

E foi o que aconteceu. Faye indagou, em sua maneira afeta­da, mas que nada escondia de sua seriedade, por que aqueles planos haviam sido formulados sem uma reunião para a aprovação por todos. Pat declarou que concordava: Jasper não tinha o di­reito de assumir as coisas pessoalmente...

Isso, Alice sabia, era dirigido em parte a Bert, que fora cúmplice de Jasper.

Jasper e depois Bert disseram que ninguém estava comprometido com coisa alguma. Todo o plano até agora era realizar uma pequena viagem exploratória à Irlanda, encontrar um re­presentante do IRA e oferecer a cooperação de um grupo ali.

Que grupo? indagou Faye, mostrando os lindos dentes.

Isso mesmo acrescentou Pat, com uma ponta de iro­nia que indicou a Alice que tudo acabaria bem. Vamos empenhar todos os vastos recursos da UCC ou apenas nós mesmos?

Alice percebeu que Roberta teria rido de tal intervenção se o ânimo de Faye permitisse.

Bert, como queria se reconciliar com Pat, assumiu o coman­do e disse, os dentes brancos aparecendo por entre a barba escura, num sorriso firme, responsável e convincente:

Posso compreender as restrições das camaradas. Mas na natureza das coisas... — nesse ponto ele contraiu os lábios ver­melhos para indicar e partilhar com todas as perspectivas da­quela operação determinados contatos devem ser especulativos e até mesmo, aparentemente, ad hoc. Afinal, o encontro com Jack foi fortuito. Foi puro acaso, e tornou-se produtivo, graças ao camarada Jasper. Foi ele quem fez o contato inicial...

Alice podia perceber que não seria fácil para qualquer deles admitir alguma obrigação para com Jasper, embora ele se man­tivesse corretamente impessoal, um pouco apartado da cena, aguardando a aprovação geral, a própria imagem de um cama­rada responsável.

Mas nesse momento houve um barulho no vestíbulo e a por­ta da frente foi fechada. Jasper levantou-se de um pulo para verificar e informou que era Philip, saindo para a rua. O fato de ele não ter vindo para a cozinha significava que se sentia inde­sejável, o que levou Faye a comentar:

Não há lugar onde possamos conversar nesta casa ago­ra. Alice cuidou disso.

Pat se apressou em intervir:

Podemos ir para a outra casa. Mas certamente é seguro conversar aqui por algun» minutos.

Daqui a pouco Jim vai aparecer. Por que não? — inda­gou Faye, suavemente. — "Oh, Jim", podemos dizer, "estamos apenas tendo uma conversinha sobre o IRA."

Ou Mary e Reggie — sugeriu Roberta, aliando-se a Faye por amor.

Na verdade, como os outros sabiam, ela concordava com eles, não precisava da condenação furiosa que Faye tinha de usar como combustível para seguir em frente.

Por que não definimos logo, agora, alguns pontos bási­cos? — sugeriu Pat. — Não há muita coisa para discutir, não é?

Nada disso — protestou Faye. — Estou falando sério, mesmo que todos os outros estejam apenas brincando.

E com pequenos movimentos petulantes dos lábios e olhos ela desafiou-os; depois, pegou um cigarro, acendeu-o e soprou a fumaça com irritação.

Em seu apoio, vieram sons do vestíbulo: Mary e Reggie, falando e rindo, abriram a porta da cozinha e ficaram em silên­cio no mesmo instante. Sem qualquer motivo para não entra­rem — já que o espírito da casa era de que as pessoas deviam conversar à mesa da cozinha —, eles deram a impressão de sen­tir uma unidade, de saber que não eram desejados. Sorrindo po­lidamente, disseram:

Oh, estávamos apenas...

E apesar dos convites para que ficassem — de Alice, de Pat —, eles subiram.

Maravilhoso! — exclamou Faye.

Concordo — disse Pat. — Isso não foi nada bom. Sugiro que alguém dê um pulo até a outra casa para saber se podem nos emprestar um cômodo... isto é, se todos acham que precisamos discutir mais alguma coisa.

Preciso discutir muita coisa ainda — declarou Faye.

Jasper foi, ficou lá aparentemente por um minuto apenas, voltou para anunciar que eles seriam bem-vindos.

Ele foi o primeiro a seguir para a outra casa. Depois foi a vez de Alice, em seguida Bert e Pat. E, finalmente, Faye e Roberta.

A garota que parecia um ganso abriu-lhes a porta, indican­do um quarto no alto da escada — no mesmo lugar do quarto que na outra casa era ocupado por Jasper e Alice. Fora um quarto de criança, tinha cordeirinhos, patos, Mickey Mouses, dinossauros engraçados, robôs, bruxas em vassouras e outras necessi­dades da infância de classe média.

— Santo Deus, quanta merda! — exclamou Faye, com a maior veemência.

Ela estendeu as mãos bonitas, mostrando as unhas finas, pintadas de um vermelho forte, como se pudesse arranhar as ilus­trações nas paredes. Mas sorriu, se é que se podia chamar aquilo de sorriso.

O que se constatou, no final das contas, é que não havia muita coisa a mais para se falar.

O que ficou evidente é que todos esperavam que o camara­da Andrew participasse da conversa, até mesmo Alice, que sa­bia que ele desaprovava. O que exatamente especulou ela agora? O contato com o IRA? Não, claro que não. A cooperação com o IRA? Como poderia? Então só poderiam ser eles, aquele grupo, entrando em contato com os camaradas irlandeses daquela maneira. Ou este grupo. E ponto final.

Mas não a ela, Alice. Andrew a aprovava. Secretamente satisfeita, apoiada por tal pensamento, que não podia partilhar com ninguém, Alice manteve-se retraída, observando o desen­volvimento da "reunião", percebendo nos rostos de Jasper e Bert como eles ansiavam por ouvir passos, ouvir uma batida na porta, ouvir "Posso participar da reunião, camaradas?"

Mas nada disso aconteceu.

Foi reiterado que Bert e Jasper fariam a viagem apenas co­mo reconhecimento. Poderiam descobrir que tipo de apoio os camaradas irlandeses esperavam. Isso foi considerado um tanto insosso, um tanto insatisfatório, a formulação foi corrigida e tornou-se: Bert e Jasper estavam autorizados pelos presentes a oferecer apoio aos revolucionários irlandeses e pedir que indi­cassem missões concretas.

Não ficaram muito tempo. Ninguém se sentia à vontade naquele quarto, que continha os fantasmas de crianças privilegiadas... de crianças amadas?

Concluíram rapidamente e se retiraram, voltando para o número 43. Roberta e Faye foram ao cinema. Gostavam de filmes violentos, até pornográficos, havia um passando no cinema pró­ximo. Os outros quatro encontraram Mary e Reggie na cozi­nha, comendo em pratos, com todo o decoro. Os restos de pizza, batatas fritas, latas de cerveja e papéis haviam sido jogados na lata de lixo. Mary e Reggie disseram:

— Sentem-se e comam conosco.

Mas assim como os seis haviam repelido Mary e Reggie, ago­ra os dois pareciam cercados por uma corrente invisível: Mantenham distância. Provavelmente eles ainda estão irritados com a noite passada, pensou Alice. Acho que fui longe demais. Ora, o problema é deles.

Com muitos sorrisos e murmúrios de boa-noite, os quatro subiram. Outra reunião foi realizada no quarto recém-pintado, on­de sentaram no chão e discutiram o problema de Faye e Roberta, que não gostavam da intervenção do camarada Andrew em suas atividades. Era por isso que esperavam que ele participasse da reu­nião na outra casa. "Quem era o camarada Andrew?", elas que­riam saber. Quando os quatro terminaram de discutir sobre as duas mulheres, eles formavam uma unidade intima, camaradas até a morte. E, no entanto, Alice não podia deixar de pensar que Pat, por mais que parecesse empenhada agora, não concedia todo o seu apoio a Bert. A jovem atraente e animada, afetuosa e descontraída com Bert depois do fim de semana juntos, presumivelmen­te a sós, não convencia Alice. Lábios cor de cereja lustrosos e faces brilhantes seriam comprimidos contra os lábios vermelhos e sen­suais de Bert, aqueles dentes brancos morderiam e arranhariam a abundante barba preta de Bert... Apesar disso, porém, pensou Alice, apesar disso... E era óbvio que Pat não gostava da idéia de Bert ir à Irlanda em companhia de Jasper. Ela não gostava de Jasper. Na verdade, não constituíam uma unidade, apenas davam essa impressão. Alice, interiormente apartada, refletiu que era mais do que provável que Pat sentisse a mesma coisa.

O cheiro de tinta era muito forte. Jasper acabou dizendo que não poderia dormir ali e subiu. Seu tom foi tão incisivo que Alice não se atreveu a acompanhá-lo. Desceu para passar a noite na sala de estar.

Ela dormiu mal, acordando várias vezes para escutar, a fim de não perder a partida de Jasper pela manhã. Ouviu os dois homens descerem e irem para a cozinha. Seguiu-os; já se sentia excluída, indesejável. Eram apenas seis horas de uma manhã fria e ensolarada de final de primavera.

Alice teve a impressão de que Jasper mal a via ao sair. Ace­nou para ela no portão, onde estava parada, como qualquer dona- de-casa vendo seu homem partir.

Ela voltou para seu saco de dormir, com o pressentimento de que passaria muito tempo antes que Jasper voltasse para casa.

Mas os dias foram passando de forma bastante agradável. Pat estava sempre à disposição de Alice, ajudando-a a pintar e limpar; as duas fizeram milagres, transformando cavernas sórdidas em cômodos limpos e aconchegantes. Pat era divertida, meiga, simpática. Alice se abria e expandia nessa normalidade, nessa descontração, e pensava muitas vezes em quanto consu­mia de seu tempo com o coração apertado e na sombria expec­tativa de mais uma afronta de Jasper. Mas durante o tempo todo, enquanto desfrutava da situação, gostava de Pat, sentia que nunca fora tão feliz, não podia deixar de refletir: E assim que as pes­soas se comportam quando decidem ir embora; num certo sen­tido, ela já partira.

Philip, com o apoio afetuoso das duas mulheres, pôs em funcionamento o sistema de água quente. Todos tomaram banhos em comemoração. Até mesmo Faye, encorajada por Roberta. Philip voltou ao telhado e terminou de arrumar as telhas. Tro­cou tábuas de assoalho e substituiu o reboco caído, consertou as engrenagens das caixas dos vasos e providenciou canos no­vos para pôr no lugar dos velhos, tomando emprestado o carro da outra casa. Descobriu um painel descartado de aquecimento central ainda aproveitável e a casa passou a ter aquecimento de verdade. Localizou duas vigas de madeira boa num depósito de refugos a um quilômetro de distância, mas não conseguiu le­vantá-las; teriam de esperar por Bert e Jasper para ajudá-lo.

Alice, Mary e Reggie realizaram uma reunião de contabilidade para determinar as contribuições regulares. Mary, que sa­bia exatamente o que teria de ser pago, já definira as cotas sua e de Reggie. Era bem pouco. Luz, gás? Com dez pessoas na ca­sa, quanto poderia dar? Foi feita uma avaliação. Agua? O De­partamento de Agua ainda não os procurara. Parecia que o casal só pensara nisso, como se não houvesse mais nada. Alice lembrou-se secamente de todas as melhorias.

— Mas todas as coisas foram trazidas de depósitos de refu­gos — ressaltou Mary, indicando que não deixara de perceber tudo o que estava sendo feito.

A reunião era à mesa da cozinha. Reggie e Mary sentavam de frente um para o outro, amáveis e seguros; Alice estava à cabeceira da mesa, esperando pelo que sabia ser inevitável. Tinha certeza. Podia ver nos olhos de Mary um brilho que indi­cava que ela estava fazendo contas, não do que podia dever a Alice, mas o que acumulava, claro que no momento apenas na imaginação, para a aquisição de um apartamento ou casa.

Tivemos de pagar o boiler, uma porção de fios, ferramen­tas, madeira e vidro comentou Alice.

Ela não esperava muito. E tinha razão. Reggie e Mary trocaram olhares, a quantia de vinte libras foi oferecida e aceita.

Não houve qualquer menção ao trabalho de Philip. Alice pôde ouvir nitidamente o pensamento: Mas é claro que ele não faria o serviço se não viesse morar aqui.

Sorrindo, até recatada, Alice aceitou o chá que Mary se ofereceu para fazer por sentimento de culpa, sem a menor dúvi­da —, contemplou os dois e pensou: Por Deus, como eu odeio pessoas como vocês. Como odeio as suas mentes mesquinhas, avarentas, gananciosas. Porque sabia que estava estufando e em­palidecendo, dominada por sua cara, ela sorriu ainda mais e de­pois convidou-os a falar sobre seus planos para a futura casa, o que eles fizeram no mesmo instante, deixando de prestar aten­ção à sua presença.

Jim levou a carta para Cedric Mellings e voltou trêmulo, quase chorando de felicidade. Começaria a trabalhar no dia seguinte. Por sorte, alguém estava saindo da firma. Por sorte, Jim seria bastante conveniente a Cedric Mellings. E ainda podia aguardar a possibilidade de treinamento nos novos mistérios téc­nicos. Alice comentou, incisiva:

Consciência culpada. Toda essa turma... o problema deles é o remorso.

Ele é muito simpático, Alice. E me tratou muito bem.

Estavam na cozinha. Jim, sentado ou melhor, empolei­rado numa cadeira —, não conseguia ficar quieto, a todo instan­te se levantava e cambaleava ao redor, rindo, incontrolável; tornava a sentar, encostava a cabeça na mesa, ria, batia com os punhos nos lados da cabeça, num excesso de felicidade e grati­dão; as batidas se transformavam num ritmo firme e exultante. Ele acabou abrindo os braços, revirando os olhos, o rosto ne­gro se abrindo num sorriso largo, os dentes brancos à mostra.

Alice, com mil coisas terríveis para dizer a respeito do pai, tratou de reprimi-las, porque amava Jim, amava seu desamparo, sua vulnerabilidade e a participação que ela tinha em aliviar suas mágoas, porque sabia que aquele homem ou rapaz ele tinha vinte e dois anos era realmente doce, tinha gentileza e ternura; e sabia também que um período de felicidade, de su­cesso, o transformaria. Podia imaginar como ele seria se ganhasse dinheiro, assumisse o controle de sua vida. Podia vê-lo nitida­mente: Jim como era agora, mas transbordando de confiança e novas habilidades. Por isso, não disse mais nada sobre seu pai de merda, mas apenas escutou, partilhando o que sabia ser um momento na vida de Jim que ele nunca mais esqueceria.

Depois, ela levou-o para jantar fora, em comemoração; Philip e Pat acompanharam. A noite tornou-se uma daquelas em que os participantes precisam fazer uma pausa e dizer a si mesmos: É verdade, sou eu mesmo quem está aqui... A felici­dade sentou com eles à mesa do Seashell Fish-and-Chips; não conseguiam parar de sorrir, Jim ria e suspirava a todo instante. Houve um momento em que ele comentou:

Não posso acreditar que seja de fato eu.

Os outros se entreolharam, não suportando a incapacidade de exprimir o que sentiam por ele; mas podiam rir e era Pat quem sentava a seu lado afagá-lo ou abraçá-lo. Os demais fre­gueses do restaurante, que em outras ocasiões podiam ter pen­samentos rígidos sobre raça ou sobre mulheres brancas abraçan­do publicamente homens negros (ou pelo menos não com tan­ta desinibição), estavam abrandados, como se podia ver por seus rostos, que também mostravam tendências ao riso sem motivo, pela demanda da ocasião, que era de um abandono total e es­pontâneo à felicidade.

Os quatro voltaram à casa como um grupo unido e terno, Jim como o rei, o vitorioso; não querendo que a noite se per­desse, eles sentaram à mesa da cozinha, tendo como sentinelas as forsítias amarelas, relutantes em se separarem.

Alice já pensava: Esta noite é de se pensar que seremos ami­gos pelo resto da vida, que nunca poderemos fazer mal um ao outro, mas tudo isso pode mudar de repente. Ela sabia, já vira acontecer. Seu coração poderia se confranger, arrastá-la para o fundo do poço, mas ela não permitiu, manteve-o numa corren­te curta e cruel, como se fosse um cachorro perigoso.

Um cartão-postal mostrando as montanhas Wicklow foi enviado por Jasper, com a mensagem: "Gostaria que você estives­se aqui!" Alice conhecia exatamente o ânimo extravagante em que ele estava, e seu rosto assumiu o sorriso que o pensamento de Jasper tantas vezes evocava: modesto, ansioso e admirador, como se os caprichos do gênio ficassem para sempre além de seu alcance. Não mostrou o cartão a ninguém, porque sabia que os outros não compreenderiam. Descendo cedo, muito antes dos outros, ela o encontrara no chão, junto à porta da frente.

Jim saiu para seu primeiro dia de trabalho num ânimo de terna incredulidade, ainda incapaz de parar de sorrir.

Pat, em vez de ajudar Alice a limpar e pintar, saiu para visi­tar "uma amiga" e voltou com a informação de que Bert telefonara, transmitindo um recado. Estava tudo bem e eles voltariam em breve.

O que eles estão fazendo para arrumar dinheiro? Foi esse o pensamento que Alice guardou para si. E também pensou: Quando Bert voltar, Pat não estará mais aqui. Era o que podia perceber no rosto dela. Mas também guardou esse pensamento para si.

Naquela noite, uma batida na porta, furtiva e apressada, informando a Alice quem era, levou-a a encontrar Mônica no ca­minho, perto do portão — não junto da porta, pois a moça ficara com medo de que Faye pudesse abrir.

Vendo Alice, ela se adiantou rapidamente, fitando-a com olhos sequiosos.

Faye se encontrava na cozinha com Roberta, e por isso Alice fechou a porta, sem fazer barulho. Saiu com Mónica para a rua e foram andando até um ponto em que as saudáveis plantas de Joan Robbins as escondiam da vista da casa.

Soube de alguma coisa? — indagou Mónica, já soturna e desolada, aparentemente percebendo pelo rosto de Alice que não havia qualquer notícia.

Ela parecia inchada e pálida. Os cabelos estavam desgrenhados e gordurosos. Exalava um cheiro de derrota tão intenso que Alice teve de fazer um esforço para suportar.

Não dá para esperar nada da prefeitura. — Percebendo um desdém ou rosnado de Eu já sabia!, Alice acrescentou: — Mas tive outra idéia.

Pediu que Mónica a esperasse ali, voltou furtivamente para a casa como se fosse culpada de alguma coisa, tornou a sair com a carta que escrevera para a mãe. Mônica se afastara pela meta­de do caminho para a rua principal, talvez esperando que Alice não retornasse.

Pensou que eu não ia voltar? Se está sempre esperando o pior, então é isso que vai ter.

Um sorriso fraco, constrangido.

Leve esta carta ao endereço no envelope. E vá com o bebê.

Mas já é muito tarde. Deus sabe como é difícil para ele dormir naquele lugar, e está dormindo agora.

Vá amanhã. E a casa de minha mãe. Ela gosta de bebês. E gosta de cuidar das pessoas.

A dúvida no rosto de Mónica não diminuiu de forma algu­ma a confiança absoluta que Alice sentia. Olhe só o que conse­guira com Jim! Estava numa maré de competência e sorte, não podia cometer erros. Tinha certeza de que a mãe seria boa para com a pobre Mônica. E acrescentou, incisiva:

Não se preocupe, Mónica. E, afinal de contas, vale a pe­na tentar, não é?

Olhando desconfiada para o envelope, Mónica encaminhou- se para o ponto de ônibus, enquanto Alice ia se juntar aos outros à mesa da cozinha. Ela preparara um guisado ou sopa gros­sa, sua especialidade, desenvolvida até a perfeição em anos de vida comunitária. Quantas pessoas já haviam gracejado que Alice podia alimentar multidões com aquele prato! Como os pães e os dois peixes da Bíblia.

Quantas pessoas já haviam entrado naquela casa ocupa­da ou em outra e indagado: "Restou um pouco de sua sopa, Alice?", sentando para jogar pedaços de pão dentro e depois estendendo os pratos para comer mais. Não havia deficiências die­téticas nas pessoas que se alimentavam com sua sopa! E nos tempos em que havia bem pouco dinheiro, fora o que os mantivera sobrevivendo, a Jasper e a ela, por meses a fio.

Alice instalou-se em seu lugar e disse aos rostos inquisitivos, prontos para qualquer emergência:

Não era nada demais. Está tudo bem.

Roberta e Faye, Mary e Reggie, Philip e Jim, Pat e Alice ficaram sentados ali noite afora, compelidos a serem como uma família pela magia daquela sopa, o vinho tinto com que Reggie contribuíra e o pão excelente, saudável, de trigo integral, assim como o frívolo pão branco que Faye exigira.

Foi outra noite de prazer, e Jim tinha muitas histórias para contar sobre o pai de Alice e os outros que trabalhavam com ele, doze ou mais, como ela era afortunada por ter um pai assim — enquanto ela se limitava a sorrir e mantinha a língua sob controle.

Na manhã seguinte, ela estava sozinha na casa quando hou­ve um tumulto de batidas violentas na porta, uma voz gritando:

Saia daqui! Quero falar com você!

Alice foi ao encontro de Mónica, que estava transformada pela fúria, disposta a matar. A criança no carrinho, uma coisinha miserável e feia, choramingava sem parar.

Por que fez isso? Por que me mandou até lá? O que eu fiz a você?

E Mônica começou a chutar as pernas de Alice, esmurrar seus braços.

Qual é o problema? O que aconteceu? Ela não a aceitou?

Não havia ninguém! — berrou Mónica. — Por que me mandou lá?

Ela deve ter saído para fazer compras. Mas vai voltar.

Mónica parou de gritar, parou de agredi-la com os braços e pernas. Olhou consternada para Alice e disse:

A casa está vazia. Ninguém mora ali. E tem uma placa de "Vende-se".

Você foi à casa errada — sugeriu Alice, vagamente.

Alguma coisa aflorava em sua mente, um pensamento, uma

lembrança: caixas na mesa da cozinha, cheias de louça embrulhada em jornal. Ela olhou para Mónica e acrescentou, agora também pálida e ofegante:

Há um engano. Alguma coisa está errada.

Você é que está errada — disse Mónica, com uma risada brusca e repulsiva. Ainda olhava fixamente para Alice, como se incapaz de acreditar no que via. — Por que fez isso comigo? Para quê? Imagino que se divertiu com essa brincadeira cruel. Você é a própria essência do mal, uma louca nessa casa.

Explodindo em gemidos, ela saiu correndo, empurrando e sacudindo o carrinho, a tal ponto que a criança desatou a chorar. Seguiram para o ponto de ônibus, fazendo o maior baru­lho, deixando Alice na porta, atordoada e olhando sem ver para a carta que escrevera à mãe e que Mónica metera em sua mão.

"Querida mamãe,

Esta é a Mónica. Ela vive com seu bebê num daqueles ho­téis horríveis que você já deve conhecer. E se não conhece, deveria. Por que não a aceita em sua casa? E o mínimo que pode fazer. Tem três quartos vazios, agora. Mónica e o bebê vivem num quarto nojento, sem um lugar onde ela possa cozinhar ou fazer qualquer outra coisa.

Sua filha, Alice.

P. S.: E há também um marido."

Ela entrou e sentou no último degrau da escada. Ali ficou por um longo tempo, a mente vazia. Depois, iniciou um movimento curioso, esfregando a mão sobre o rosto, como se sen­tindo ou querendo alguma coisa. Era um movimento vigoroso, arrastando a carne para um lado ou outro, e prolongou-se por uns dez minutos. Uma tarefa que tinha de realizar, uma neces­sidade; um observador poderia pensar que ela recebera ordem de fazer isso, sentar naquele degrau com os dedos empurrando a carne por todo o rosto.

Depois, muito metódica, Alice pegou a bolsa e encaminhou- se à estação do metrô. Foi até a casa da mãe e parou, olhando para a placa de "Vende-se". Era como se alguma coisa tivesse sugado os móveis, mas deixado intacto o espírito da casa. O fo­gão continuava na cozinha, embora a geladeira tivesse desapa­recido. As cortinas continuavam penduradas na janela, acon­chegantes. Parecia que se ela virasse a cabeça poderia reapare­cer a mesa a que tantas vezes sentara, em que servira sopa à mãe e aos convidados da mãe. O resto da casa se encontrava na mes­ma situação. Nos quartos estavam as cortinas que ela conhece­ra por toda a sua vida, e os carpetes permaneciam no chão, mas camas e armários haviam sumido. Alice foi para o seu quarto e agachou-se no canto em que ficava a cama branca e estreita onde dormira desde os dez anos de idade. Na janela estava o pavão vermelho e azul que ela desenhara numa tarde de chuva, quando o jardim se encontrava quase escondido pela neblina cinzenta. Um calendário de 1980 estava pendurado na parede; ela o guardara porque gostava da ilustração: Bar no Folies-Bergère, de Manet. Identificava-se com a garota que ali estava, cercada por garrafas, tangerinas, espelhos, o balcão, um paredão de pes­soas com rostos horríveis.

Havia sol no jardim e gatos num gramado que precisava ser aparado.

Alice desceu como uma sonâmbula. Depois, num frenesi, despertada, furiosa, traída, arrancou as cortinas de um cômodo após outro, enrolou-as, saiu cambaleando da casa, esquecendo de trancar a porta, mal conseguindo andar com a carga. Viu uma mulher olhando de uma janela e pensou: Qual é o problema? Elas são minhas, não são? Conseguiu chegar à esquina, sempre cambaleando. Fez sinal para um táxi, voltou à casa, mandou que o motorista esperasse, enquanto entrava para buscar as cor­tinas que ainda restavam. Seguiu para o número 43, onde pas­sou a tarde inteira pendurando cortinas onde antes não existia nenhuma ou substituindo cortinas que não lhe despertavam sen­timento algum. De qualquer forma, aquelas cortinas eram mil vezes melhores do que as trazidas dos depósitos de refugos: de linho genuíno, seda ou veludo grosso, forradas e com entretela, com franjas e borlas.

Como a mãe tivera coragem de abrir mão daquelas corti­nas sem ao menos consultá-la?

Quando foi para a cozinha, Philip estava lá. Alice compreendeu no mesmo instante, por sua atitude, que ele tinha alguma coisa a dizer.

Ele imprimira um volante, que distribuiria em hotéis, restaurantes, lojas, anunciando sua firma: "Philip Fowler, cons­trutor e decorador"; precisava arrumar trabalho de verdade em breve; achava que já contribuíra com mais do que sua parte pa­ra aquela casa, que agora se encontrava em condições de fun­cionamento. Se "eles" quisessem que Philip fizesse mais, então teriam de pagar; claro que não aos preços normais, mas pelo menos o suficiente para que valesse a pena.

O que ainda precisava ser feito ali era trocar as calhas. Também uma parte do cano de escoamento exterior (ele aconselhou que isso devia ser feito em breve, porque a parede estava bas­tante encharcada e acabaria se esfarelando). A caixa-d'água no sótão estava quase que completamente enferrujada, em sua opi­nião podia arrebentar a qualquer momento, inundando a casa. Os peitoris das janelas no último andar estavam apodrecidos, deixando a chuva entrar. E ainda havia o problema das duas vigas podres no sótão.

Ele apresentou a Alice uma lista dessas necessidades, em ordem de urgência, a caixa-d'água em primeiro lugar.

Dinheiro. Ela teria de arrumar algum.

Alice permaneceu sentada, sozinha, por um longo tempo, olhando para as forsítias. Estavam murchando. Pétalas amarelas haviam caído no chão. Saiu, cortou mais alguns ramos, jo­gou fora os secos e ficou sentada durante a tarde inteira, pensando.

Onde estava sua mãe, para começar? Imaginava que podia escapar de Alice desse jeito? Estaria louca? Devia estar, sem avi­sar a Alice e Jasper... Nesse ponto, em algum lugar no fundo de sua mente, um pensamento começou a vibrar e incomodar, qualquer coisa que a mãe dissera. Se tal acontecera, não fora de uma maneira que Alice pudesse registrar.

Conseguiria arrancar da mãe algum dinheiro emprestado? Não, se ela acabara de se mudar. Com todas as despesas inevitá­veis. Além disso, a mãe provavelmente ainda não superara a rai­va; precisava de tempo para esfriar.

E Theresa e Anthony?

Alice pensou sobre essa possibilidade por muito tempo. Theresa poderia lhe dar outras cinqüenta libras, mas isso não seria suficiente. De que adiantariam apenas cinqüenta libras? Recebera as quarenta e tantas libras da previdência naquela semana, que se derreteram em coisas de que Philip precisava. Pensou que se fosse lá enquanto a empregada estivesse trabalhando, numa ocasião em que Theresa e Anthony se encontrassem fora, no trabalho, poderia pegar os netsukes.Se fosse rápida e eficiente, a empregada não notaria. Mas o pensamento não persistiu; foi eliminado pela afeição. Theresa sempre fora boa para ela, não podia fazer isso agora. Anthony era diferente. Se fosse apenas Anthony... ela se apropriaria de qualquer coisa que perten­cesse a ele!

Zoé Devlin? Por algum motivo, Alice não foi capaz de se aprofundar nessa possibilidade. Sentia-se repugnada, como se Zoé tivesse brigado violentamente com ela também, não apenas com a mãe.

Não poderia escolher uma casa conveniente e roubá-la? Não era desprovida de talentos nessa área. Sentia-se confiante de que teria sucesso.

Mas tornar-se uma ladra, uma ladra de verdade — seria um passo além do que ela era. Como poderia se considerar uma re­volucionária, uma pessoa séria, se fosse uma ladra? Além do mais, seria prejudicial à Causa, se fosse apanhada. Não. E sempre fo­ra honesta, nunca roubara coisa alguma, nem mesmo quando era criança. Nunca passara por aquela fase de tirar coisas da bolsa da mãe ou dos bolsos do pai, como acontecia com algumas crian­ças. Nunca.

Pôde se imaginar a escolher uma casa propícia, espreitar a saída dos moradores, entrar, apoderar-se de coisas valiosas — afinal, sabia o que era valioso e o que não era. Não fora uma dessas crianças pobres que entravam por uma janela aberta ou uma porta trancada de maneira imperfeita e depois não sabiam mais do que roubar uma televisão ou um vídeo. Mas não pôde se imaginar com qualquer coisa que fosse, vaso, tapete ou colar, tentando vendê-lo.

Não, essa possibilidade estava excluída.

Precisava conseguir dinheiro. Todas aquelas pessoas toman­do e tomando... embora Jim tivesse anunciado orgulhoso, na noite anterior, que agora contribuiria de forma apropriada; pa­garia sua estada, Alice não precisava se preocupar com isso.

Ela só podia pensar no pai. Não a casa: era muito cedo para tentar isso de novo. A firma. Fechando os olhos, Alice visualizou o interior do prédio que alojava a C. Mellings, Printers and Stationers. O cofre no escritório do pai tinha cheques, mas não era isso o que ela queria. Na pequena papelaria, que o pai co­meçara em pequena escala, como uma experiência, tornando-se tão bem-sucedida que às vezes ele gracejava que financiava tu­do, havia um cofre cheio de dinheiro. Mas apenas durante o dia, quando a loja estava cheia de gente. Todas as noites o di­nheiro era levado para o outro cofre, lá em cima. E na manhã seguinte era levado para o banco. Como podia pegar esse di­nheiro? Não conhecia a combinação e não tinha a menor in­tenção de virar uma profissional, com explosivos ou qualquer outra coisa que eles usassem.

Nada disso. Precisava de outra coisa; precisava de ousadia. Era sexta-feira. As vendas lá eram melhores na sexta-feira do que em qualquer outro dia. A loja fechava às cinco horas, e o dinheiro era levado direto para cima, a fim de ser contado. E permanecia no cofre até a manhã de segunda-feira. As sextas- feiras, o pai muitas vezes ia mais cedo para casa, porque ele, Jane e as crianças gostavam de passar os fins de semana em Kent, onde tinham amigos. Um típico arranjo burguês: Cedric e Jane ficavam com os Boults; os Boults usavam a casa de Cedric e Jane em suas viagens a Londres. Nada disso jamais acontecera enquanto Cedric vivera com Dorothy! Não poderia. A mãe es­tava impregnada da noção do meu e seu: não se podia imaginá-la partilhando sua casa com outra família. Por algum motivo, os fins de semana no campo e as visitas dos Boults a Londres deixavam Alice fervendo de raiva.

Mas, com um pouco de sorte, o pai iria embora às três ho­ras da tarde.

Para chegar à gráfica, ela teve de saltar duas estações do me­trô depois daquela em que ficavam a casa do pai e a da mãe — ou melhor, a antiga casa da mãe. Foi andando, fazendo um esforço deliberado para não pensar muito, entrou na loja, onde foi devidamente cumprimentada, a filha do patrão. Atravessou a loja, dizendo que queria falar com o pai, subiu para o escritó­rio. Os empregados arrumavam suas mesas para o fim de sema­na. Ela cumprimentou-os e foi para a sala do pai, onde sua secretária, Jill, estava sentada na cadeira dele, contando o dinhei­ro da loja.

Oh, ele já saiu — murmurou Alice, sentando-se.

Jill, contando, folheou algumas notas de dez libras, sorriu, acenou com a cabeça, a boca se mexendo para indicar que não podia parar. Alice também sorriu e acenou com a cabeça, levantou-se e foi até a janela, olhou para fora. Indolente e privi­legiada, filha do sistema, ela apoiou-se no peitoril, observando o movimento na rua, escutando os sons de papel deslizando so­bre papel.

Deveria dizer que o pai combinara lhe dar algum dinheiro? Se dissesse, Jill não poderia recuar; e na segunda-feira, ao ser informado, o pai não a denunciaria, não diria: Minha filha é uma ladra. Alice já ia falar: Ele disse que eu poderia ficar com quinhentas libras. Mas foi então que aconteceu, a sorte incrível e milagrosa que agora sempre esperava, já que ocorria com tan­ta facilidade e freqüência: o telefone tocou na sala ao lado. Jill continuou a contar. O telefone tocava e tocava.

Mas que droga! murmurou Jill, delicada, pois era o tipo de boa moça que o pai sempre escolhia para secretária.

Ela correu para atender. Alice viu em cima da mesa um sa­co de lona branca em que já haviam sido guardadas pilhas de notas. Enfiou a mão, tirou um maço grosso e depois outro, me­teu dentro da túnica e voltou a se debruçar na janela, de costas para a sala. Jill voltou, informando que era a senhora Mellings, querendo falar com seu pai. Alice levou alguns momentos para compreender que devia ser sua mãe, não a nova senhora Mel­lings, que naquele momento já devia estar a caminho dos pra­zeres de um fim de semana em Kent.

Não queria perguntar: "Sabe qual é o seu endereço?", pois assim se trairia; mas indagou, em tom de indiferença:

De onde ela estava ligando?

Mais uma vez, Jill demorou a responder, porque continua­va a contar o dinheiro.

Acho que de casa.

Ela não estava notando coisa alguma. Alice esperou até Jill se levantar, com três sacos de lona branca, notas, cheques e moedas separados, indo guardar no cofre.

Bom, vou embora.

Avisarei a seu pai que esteve aqui.

Ao chegar em casa, Alice contou o dinheiro. Mil libras. Pensou no mesmo instante: Eu poderia ter tirado duas ou três mil... seria a mesma coisa. De qualquer forma, quando descobrirem que o dinheiro desapareceu, quando se lembrarem de que estive lá, saberão que fui eu. Perdida por um, perdida por mil.

Teria de se arrumar com aquela quantia.

Pensou por um momento no lugar em que poderia guardar o dinheiro. Não contaria a Jasper. Acabou abrindo seu saco de dormir, meteu os dois maços lá dentro, refletiu que só por muito azar alguém tocaria ali, descobriria o que ela tinha.

Noite de sexta-feira. Jasper e Bert estavam ausentes há dez dias. Haviam dito que voltariam naquele fim de semana.

Alice pensou em Pat. Onde estava ela? Desceu e encontrou-a na cozinha, de túnica e echarpe, com a mochila de lona verme­lha. Ela escrevia um bilhete e parou quando viu Alice, com um sorriso que era ao mesmo tempo severo e frágil revelando a Alice que Pat não gostava de despedidas e se apressaria agora.

Estou indo embora, Alice murmurou ela, mal permitindo que seus olhos se encontrassem.

Acabou com Bert?

As lágrimas afloraram aos olhos de Pat. Ela virou a cabeça.

Em algum momento eu teria de romper. Chegou esse momento.

Uma pessoa de fora não pode fazer comentários.

O coração de Alice estava contraído pela perda, o que a surpreendeu. Parecia que se afeiçoara a Pat.

Tenho de ir, Alice. Por favor, compreenda. Não é por causa de Bert. Continuo a amá-lo. E a política.

Está querendo dizer que não concorda com a nossa li­nha em relação ao IRA?

Não é isso. Não tenho qualquer confiança em Bert.

Pelo menos ela não acrescentou "e em Jasper".

Aqui está meu endereço, Alice. Não vou desaparecer. Não quero fazer rompimentos dramáticos, nada disso. Estarei trabalhando à minha maneira... no mesmo tipo de coisa, só que em algo que considero mais... sério.

Sério?

Isso mesmo, sério. Não vejo nada de sério nessa viagem à Irlanda, baseada apenas na palavra de alguém chamado Jack. Ela parecia cansada e repugnada, a palavra "Jack" foi pronunciada desdenhosamente. É tudo muito amador. E não pos­so mais aceitar.

Eu já imaginava que você iria embora.

Pat desviou a cabeça abruptamente. Porque estava chorando.

Ficamos juntos por tanto tempo...

A voz se tornara rouca e um pouco engrolada.

Não importa murmurou Alice, tristemente.

Eu me importo. E também me importo por deixar vo­cê, Alice.

As duas mulheres se abraçaram, chorando.

Voltarei prometeu Pat. Falamos sobre um congresso da UCC. Voltarei para ele. E por tudo o que sei, não suportarei me separar de Bert. Já tentei uma vez, antes.

Ela saiu, correndo, a fim de deixar as emoções para trás.

Os dois homens voltaram na noite de domingo. Alice percebeu no mesmo instante que haviam fracassado. Jasper estava apático, e Bert soturno, antes mesmo de ler a carta que Pat lhe deixara.

Ela fez jantar para Jasper, que logo depois subiu para seu quarto de dormir, no último andar. Bert disse que estava cansa­do, mas Alice seguiu-o e encontrou-o de pé no quarto que antes partilhava com Pat, sozinho. Ela entrou e disse, embora fosse evidente que Bert não estava pensando na Irlanda:

Eu gostaria de lhe fazer algumas perguntas. Jasper cos­tuma ficar esquisito quando sofre um desapontamento.

É o que também me acontece. — Mas Bert abrandou e ficou parado, as mãos pendendo. — Não conseguimos nada.

Sei disso. Mas por quê?

Alice pensava que aquela rejeição fazia emergir o melhor em Bert. Sem a afabilidade fácil, sem o brilho constante dos dentes brancos entre os lábios vermelhos e a barba preta, ele pare­cia sóbrio e responsável. E sacudindo a cabeça, murmurou:

Como vou saber? Simplesmente nos disseram não.

Ela não sairia enquanto Bert não contasse tudo. E foi o que ele acabou fazendo, Alice escutando com toda a atenção, a fim de projetar uma imagem em que pudesse confiar.

"Jack", em Dublin, estivera em bares e pontos de encon­tro, fizera indagações, reunira-se com um homem e outro, sem­pre informando a Bert e Jasper que tudo corria da melhor forma possível. Depois, Bert e Jasper — mas não Jack, um fato que para Alice devia dar o que pensar — encontraram-se com um certo camarada, numa certa casa secreta, num subúrbio. Ali, fo­ram interrogados por um longo tempo, de uma maneira que — Alice podia perceber pela expressão de Bert, enquanto rela­tava a história — não apenas impressionara os dois, mas tam­bém os deixara mais moderados. Assustara-os, concluiu Alice, satisfeita por isso, pois achava que Jasper era às vezes um pou­co negligente com as coisas.

Quase ao final desse encontro ou entrevista, um segundo homem aparecera, sentara sem dizer nada, limitando-se a escu­tar. Bert comentou, com uma risada curta e um balanço de cabeça:

Esse segundo cara parecia não ser de brincadeira. Eu não gostaria de enfrentá-lo.

O homem que conduzira a conversa ao final dissera, falan­do em nome do IRA, que se sentiam agradecidos pelo apoio oferecido, mas eles — Bert e Jasper — deviam compreender que o IRA não operava como uma organização política comum, e o recrutamento era efetuado com extremo cuidado, atendendo a necessidades específicas.

Jasper interrompera para declarar que é claro que compreendia:

Todos compreendem.

O camarada repetira então, palavra por palavra, o que aca­bara de dizer. E acrescentara que era útil para a causa republica­na ter aliados e partidários no próprio país opressor e que Jasper, Bert "e seus amigos" poderiam desempenhar um papel importante, mudando a opinião pública, fornecendo informações. Po­deriam ser abastecidos, por exemplo, com folhetos.

Jasper aparentemente se tornara excitado e fizera um longo discurso sobre o imperialismo fascista. Os dois homens, o que falara e o que se mantivera em silêncio, escutaram sem qualquer comentário e sem expressão.

A seguir, o homem silencioso simplesmente deixara a sala, com um sorriso e um aceno de cabeça. O sorriso, ao que parecia, impressionara Bert e Jasper.

Ele sorriu, ao final — repetiu Bert, com o pesar que impregnara todo o relato.

Podia-se até dizer que Bert estava embaraçado. Por si mes­mo e por Jasper? Por Jasper? Alice esperava que não fosse por causa de Jasper, embora, obviamente, fazer o discurso emocional não tivesse sido uma boa idéia.

Alice gostaria de continuar a conversa, mas Bert disse:

Já agüentei demais por hoje. Esse negócio com Pat...

Lamento muito — murmurou Alice. — E sei que ela também lamenta.

Obrigado — disse Jasper, secamente. — Muito obrigado.

E começou a tirar a túnica, como se Alice já tivesse se retirado.

Ela resolveu dormir na sala de estar outra vez, porque escolher um quarto agora seria a separação final. Jim apareceu no momento em que ela se acomodava. Ele passara o fim de sema­na com amigos, exultante. Eram amigos que não via há muito tempo, visitados agora porque havia algo para comemorar. Ali­ce percebeu que, depois de apenas três dias, Jim já parecia alerta e competente; ele se tornara embotado e lerdo com o desem­prego. E claro que todos sabiam que isso acontecia, mas teste­munhar os resultados tão depressa...

Satisfeita com Jim, apreensiva por Jasper, Alice ficou acor­dada por um longo tempo, na sala silenciosa. Não se podia ou­vir o tráfego da rua principal naquele lado da casa.

Sabia que nem Jasper nem Bert acordariam cedo, mas fez um esforço para se levantar a tempo de fazer companhia a Jim durante o chá com flocos de milho. Pensou que era um pouco parecida com a mãe, cuidando para que um filho comesse antes de sair para a escola. E não teve escrúpulos em dizer:

Tem certeza de que já comeu o suficiente? Não há can­tina na gráfica. Seria melhor levar alguns sanduíches.

E Jim, como um filho com uma mãe desvelada, respondeu:

Não se preocupe, Alice. Estou muito bem.

Depois Philip apareceu e foi discutido o problema da nova caixa-d'água. Ou melhor, uma boa caixa-d'água de segunda mão. Alice tinha alguma idéia de quanto custaria uma nova? Não, mas podia imaginar! Philip iria naquela manhã à sua fonte para tais coisas; se houvesse alguma disponível, ele gostaria de com­prar; nesse caso, teria dinheiro para isso? Alice autorizou-o a comprar a caixa-d'água, o pedaço do cano de escoamento e a calha. Entrando e saindo rapidamente da sala de estar, ela pe­gou trezentas libras no saco de dormir, não querendo que Philip soubesse quanto havia ali mas apenas porque não que­ria que ninguém soubesse. Um pensamento desconcertante e até mesmo vergonhoso insinuara-se em sua mente. Depois de adquiridas as necessidades daquela lista final, ela deveria guar­dar algum dinheiro numa poupança. Para si mesma. Um dinhei­ro de que ninguém teria conhecimento. Não era certo dispor de alguma reserva? Isso mesmo, abriria uma poupança e não contaria a Jasper.

Philip e Jim saíram. Roberta e Faye deviam estar dormin­do ou na comuna das mulheres. Mary e Reggie haviam passado fora um fim de semana prolongado e não voltariam antes do anoitecer. Bert e Jasper dormiam ou se mantinham em silêncio nos seus respectivos quartos. Alice sentou na extremidade da mesa, na cozinha em sossego. O gato, ausente há dias, reapare­ceu no peitoril da janela, recebeu permissão para entrar, acei­tou flocos de milho e leite, lambeu todo o prato e depois foi embora.

Alice sentia-se pesarosa. Aquela história do IRA fora o ím­peto de Jasper por meses. Muito antes da saída dramática da ca­sa de sua mãe já era o IRA... o IRA... o dia inteiro. A princípio, ela não levara a sério. Mas depois tivera de fazê-lo. Agora, tudo isso ruíra. Distribuir panfletos não poderia satisfazer Jasper.

Nem Bert, a quem ela vira no dia anterior como um camarada potencialmente responsável. Nunca passara pela cabeça de Jas- per ou de Bert a possibilidade de serem recusados. Por não se­rem considerados bastante bons. O IRA não levara Jasper e Bert a sério? Obrigando-se a analisar esse pensamento, devagar, de modo meticuloso, Alice revirou-o na mente, reconstituindo a cena, vendo com nitidez Jasper e Bert com os dois homens do IRA. Não pôde deixar de admitir que Bert e Jasper haviam cau­sado uma péssima impressão. E podia acontecer! Com Jasper, acontecia sempre.

Outra possibilidade era a de Jasper, Bert e os outros — inclusive ela própria — serem testados. Isso mesmo, era bem pos­sível. Alguém os vigiaria, sem que o soubessem. (O camarada Andrew surgiu vigorosamente diante de Alice a esta altura, e ela sorriu à imagem.) Mas certamente Jasper e Bert não haviam pensado nisso; e os camaradas irlandeses não lhes deram nada de específico para fazer.

Isso significava — Alice tinha de enfrentar o inevitável — alguns dias terríveis com Jasper. Quase não o veria. Ele sairia de casa, talvez voltando à noite para comer alguma coisa e sain­do outra vez. Certa ocasião, num momento de crise, Jasper as­sumira essa atitude por várias semanas, mais de um mês; ela vivera no terror da polícia batendo à porta e a notícia sobre Jasper temida desde que o conhecera. Quando ele estava daque­le jeito, não era muito cuidadoso.

A única esperança era seu vínculo com Bert. Cada vez mais firme. Bert podia salvar a situação sem sequer saber que havia uma crise.

Duas horas se passaram, Alice cada vez mais deprimida. Philip voltou, satisfeito, anunciando que seu amigo no depósi­to de refugos, com contatos em todas as demolições, dispunha de tudo o que a 43 precisava; o material se encontrava num furgão lá fora. Mas gastara as trezentas libras e precisava de dinhei­ro para pagar o carreto. No momento em que ele explicava isso, atravessando o vestíbulo junto com Alice, Jasper apareceu, des­cendo a escada quase correndo. Alice ficou imóvel, contemplando-o, o coração disparando. Sempre esquecia, quando pas­sava algum tempo sem vê-lo, como Jasper a afetava. A sua leve­za — cada passo dava a impressão de que ele poderia decolar! — e a maneira como parou ali, ao pé da escada, esguio e emper­tigado: era de pensar que ele era de outro mundo, tão pálido e gracioso, os cabelos curtos brilhando... Mas Jasper estava com a cara amarrada. Sob seu olhar, Alice teve de ir à sala de estar, onde dormira, enquanto ele sabia por que ela o fazia e se ajoelhava junto ao saco de dormir, que mal ficava fora de seu campo de visão. Ela se arriscava à sua entrada na sala; e ti­nha aquele sentimento ansioso e descontrolado que era fatal com Jasper. Ele compreenderia que ela fora pegar dinheiro. O que devia fazer? Alice pôs o que restava de um maço e outro ainda intacto dentro da blusa, onde ficaram visíveis. Colocou um ca­saco, embora Jasper fosse perceber no mesmo instante o moti­vo pelo qual o vestira, e saiu para o seu olhar frio e furioso, que a dissecava por completo. Bert aparecera na escada, pare­cendo cansado e desmoralizado. Que contraste entre Jasper e Bert: um parecia o anjo vingador o pensamento aflorou compulsivo à mente de Alice —, o outro se mostrava abatido e de­bilitado. Philip pediu jovialmente aos dois homens:

Podem me dar uma ajuda?

Jasper não se mexeu. Bert não se mexeu. Envergonhada por eles, Alice murmurou:

Eu ajudo.

Ela saiu com Philip. O motorista, Philip e ela tiveram mui­ta dificuldade com a caixa-d'água, que era pesada e grande, mas conseguiram tirá-la do furgão e levá-la para a casa. O motorista declarou que sua responsabilidade acabava ali. Philip foi buscar a calha e o pedaço do cano de escoamento e tornou a entrar. Bert e Jasper estavam na cozinha, a porta fechada. Alice entrou assim mesmo e disse:

Mas que merda! Será que vocês não podem nos ajudar a levar aquelas coisas lá para cima?

Os dois comunicavam desaprovação e ira por trás daquela porta fechada. Agora, Jasper disse:

Alice, você ficou louca ou o quê? O que pensa que está fazendo? Para que todo esse lixo?

Ela se obrigou a enfrentá-lo.

A caixa-d'água está podre, completamente enferrujada. Quer só Deus sabe quantos galões de água desabando em cima da gente?

Não me importo respondeu Jasper. Se cair, iremos para outro lugar, como sempre fizemos.

Essa traição fria e cruel penetrou até o mais fundo de Alice, deixando seus olhos obscurecidos. Quando se recuperou, descobriu que agarrava a beira da mesa para manter o equilíbrio. Fitou Jasper, ignorando Bert, que punha a chaleira para esquen­tar, cortava pão.

Você sabe que gosto de um lugar decente para morar, um lugar agradável. E claro que sabe...

Mas que merda! — exclamou Jasper, melodramático, porque Alice estava destruindo a imagem que ele gostava de apre­sentar a Bert. — Não vou me envolver com essa história. E quanto está custando? Quanto gastamos desta vez?

Os olhos azuis, duros e redondos, que naquela manhã pareciam se projetar dos lagos cremosos e rasos ao redor, estavam repletos de ódio. Alice sabia o que podia esperar no momento em que ficassem a sós.

Apelou para Bert:

Ajude-nos, por favor. Philip e eu não podemos carregar tudo sozinhos. Olhe só para Philip!

Lentamente, sem qualquer mudança na expressão, Bert pas­sou manteiga no pão e sentou. Depois, erguendo os olhos e ven­do o rosto de Alice, ele se levantou inesperadamente, tão ágil e transbordando de energia quanto antes estava apático (mas era a energia de raiva), e saiu com ela para o vestíbulo, onde Philip, frágil como uma folha, esperava junto à caixa-d'água. Sem di­zer uma só palavra, Bert inclinou-se e levantou um lado da caixa- d'água, deixando Philip e Alice se ajustarem da melhor forma possível. Com ela esbarrando em toda parte, de tão furioso, os dentes brancos agora aparecendo entre os lábios vermelhos con­traídos, numa careta de esforço, a caixa foi levada lá para cima, com muitos danos para o corrimão. No último andar, Bert sim­plesmente largou a caixa e desceu apressado. Alice e Philip ou­viram a porta da cozinha bater de novo, excluindo-os. Ela olhou para Philip com uma expressão de desculpa. Mas ele não a fita­va. A caixa precisava ser deslocada para a extremidade do peque­no patamar. A outra, a enferrujada, estava no sótão. Não havia como passar aquela caixa pelo alçapão. Mistério! Como os cons­trutores da casa pensavam que uma nova caixa poderia ser levada para cima, quando a caixa original, presumivelmente instalada antes de o telhado ser concluído, chegasse a seu fim natural? Deviam acreditar que as caixas-d'água tinham uma vida eterna.

Mas a distância entre o lugar onde a nova caixa se encontra­va agora, bloqueando a passagem no alto da escada, e o lugar em que devia ficar era grande demais para que a deslocassem.

Alice viu Philip aflito, envergonhado, vulnerável.

Espere aqui — murmurou ela.

Alice desceu e viu Jasper saindo da sala de estar, onde obviamente estivera procurando por seu dinheiro. Parando no úl­timo degrau, ela disse isto, sem saber que o faria:

Já agüentei demais, Jasper. Se você não é capaz de aju­dar numa coisa tão pequena, quando eu faço tanto, então vou embora.

Como se não estivesse a caminho da cozinha, ele se virou abruptamente e subiu correndo a escada. Quando Alice chegou lá em cima, ele deslocava a caixa junto com Philip para o lugar em que deveria ficar. Ali estava o outro Jasper, inteligente, rá­pido, engenhoso. Pois Philip dissera que tábuas, pedaços de pa­pelão, qualquer coisa, precisavam ser colocados por baixo da caixa para levantá-la, por causa dos canos se projetando, e Jas­per, vendo as pilhas de jornais que haviam descido do sótão, recolheu tudo num instante e transformou numa plataforma de quase meio metro. Alice percebeu que, enquanto ajuntava os jornais rapidamente, ele separava alguns, como se fossem car­tas de um baralho num jogo qualquer, com manchetes interes­santes: "Os Manifestantes de Jarrow... " "Hitler Invade... " "A Batalha de El Alamein... "

Se os camaradas irlandeses pudessem vê-lo agora!, pensou Alice, observando seu trabalho eficiente e rápido; e depois como ele, Philip e ela própria levantaram a enorme caixa, como se nada pesasse, para cima dos jornais...

Jasper não a fitara. Ela estava quase desfalecendo com a violência de seu coração. Era perigoso demais ameaçar Jasper. E se ele a deixasse? Oh, não, ele não a deixaria. Alice tinha certe­za absoluta. Não podia deixá-la.

Jasper desceu a escada correndo, sem um sorriso ou olhar, e ela tornou a ficar a sós com Philip. Que estava aflito. Pela atmosfera em que se envolvera, que Alice sabia ser veneno puro.

E sabia também que Philip pensava: Se eu não tivesse me esforçado tanto nesta casa, talvez fosse melhor ir embora. Além do mais, ele estava transtornado pela partida de Pat.

Alice deixou Philip concentrado no trabalho, pensando que dessa vez lhe dera o dinheiro para os materiais, mas não pela mão-de-obra. Ela quase voltou para lhe entregar o dinheiro que tinha... Desceu alguns degraus... e quase tornou a subir, he­sitou e depois — a sorte estava do seu lado — acabou fazendo-o. Deu a Philip o que restava do pacote já usado — não chegava a duzentas libras, é verdade, muito longe do que deveria ser — e desceu para a cozinha, abrindo a porta ousadamente, sem se importar que tivesse sido fechada para excluí-la.

Bert se fora.

Jasper a esperava.

De onde tirou aquele dinheiro?

Não é seu dinheiro, por isso cale a boca.

Está nos deixando enojados, Alice. Achamos que ficou insuportável. Só se preocupa com o seu conforto.

O que é uma pena.

Alice sentou. A luz forte da manhã, Jasper, parado à sua frente, parecia um tanto vulgar e até mesmo feio — foi o que pensou Alice, que há apenas poucos momentos se derretia num êxtase familiar de admiração por ele.

Jasper olhava para sua cintura. O blusão, posto às pressas, estava aberto. Na frente, por dentro da blusa de algodão, apare­cia a protuberância do maço de dinheiro.

Por um momento, Alice temeu que ele pudesse avançar, agarrar seu pulso e arrancar o dinheiro. Jasper não fez isso; ape­nas se aproximou da janela e ficou olhando para fora. E declarou:

Não precisa pensar que vou desistir, aceitar a palavra deles como a decisão final!

Alice demorou um momento para compreender: ele estava falando sobre os camaradas irlandeses. Ela murmurou:

Claro que não.

Alice acreditava, com um abrandar do seu pobre coração, que agora poderia começar a discussão objetiva e responsável que tanto gostava de ter com Jasper. Mas a porta foi aberta e ela se virou para deparar com Jim. Que a princípio pensou que não era Jim. A pele marrom lustrosa estava pálida e áspera, os olhos pareciam vidrados.

O que aconteceu? Qual é o problema?

Ela se aproximou de Jim, que tratou de se desvencilhar.

Fui despedido.

Oh, não! Ele não pode ter feito isso!

A respiração de Jim era ofegante. Um som alto, angustiante.

Disseram que roubei dinheiro.

Oh, não! — Uma pausa e Alice repetiu, mas agora num tom diferente: — Oh, não!

Jasper observava a cena em silêncio.

De que adianta? — indagou Jim, aos céus, não a ela, parecendo histriónico, mas não o sendo, pois a indagação tinha toda a sua vida por trás. Ele olhou direito para Alice, vendo-a. — De qualquer maneira, Alice, obrigado. Sei que você tentou. Mas não adianta.

E saiu, a cambalear e chorar. Alice foi em seu encalço.

Espere um pouco. Vou até lá imediatamente. Darei um jeito. Vai ver só.

fim sacudiu a cabeça, foi para a sua sala e fechou a porta.

Alice ficou parada do lado de fora, pensando. Jasper veio na cozinha. Exibia um sorriso de cumplicidade, até mesmo de congratulações. Claro que ele não adivinhara toda a verdade, pois ninguém poderia imaginar a sua sorte, fazendo com que o telefone tocasse naquele exato momento. Mas Jasper compreendera, sendo tão inteligente, a essência do que acontecera.

Vou conversar com meu pai.

É melhor não ir com isso aí — sugeriu Jasper, acenando com a cabeça para a sua cintura.

Ele falou suavemente, como um camarada num momento difícil. Sem pensar, como se não houvesse mais nada que pudesse fazer, Alice enfiou a mão por baixo da blusa. O maço de notas ficara preso na cintura do blusão e ela ficou puxando. Os dedos deslizaram pela pele sedosa e quente e num relance doce e íntimo de lembrança ou advertência seu corpo (seu corpo se­creto e vivo, que ela ignorava durante quase todo o tempo, fa­zendo um esforço para esquecê-lo) adquiriu vida e falou-lhe. Os dedos comicharam com o calor e ela ficou imóvel, parecendo perplexa ou indecisa, o maço de notas solto na mão. Dava a impressão de que tentava se lembrar de alguma coisa. Jasper ti­rou o dinheiro de sua mão e guardou-o no bolso da túnica.

Vou conversar com meu pai — repetiu Alice, falando bem devagar, ainda desconcertada com a mensagem do seu eu sepultado, que vibrava na ponta dos dedos e subia pelo braço.

Desceu lentamente pelo caminho até o portão, saiu pela rua principal a caminho da estação do metrô, ainda sonhando, ain­da envolta por uma teia de insinuações, lembranças, estímulos. Levou os dedos seduzidos ao nariz e cheirou, parecendo ainda mais perplexa e consternada. Percebeu que parara na calçada, com as pessoas passando, o tráfego correndo para um lado e outro — há quanto tempo estava ali, imóvel? Não pôde deixar de olhar para a casa, refletindo que Jasper poderia estar espionando-a. E estava mesmo. Vislumbrou sua palidez na janela do banheiro no primeiro andar. Mas ele desapareceu no instante seguinte.

Suas energias voltaram num ímpeto, ao pensamento de que agora, com todo aquele dinheiro, Jasper poderia ir para algum outro lugar: se quisesse alcançá-lo, tinha de se apressar.

Em C. Mellings, Printers and Stationers, Alice passou dire­to pela loja e subiu para a sala do pai. Ele estava sentado à sua escrivaninha, enquanto Jill, a secretária, sentava à mesa do ou­tro lado. Alice parou na frente do pai e perguntou:

Por que despediu Jim? Por que fez uma coisa dessas? Foi uma atitude nojenta de fascista. Só porque ele é negro, mais nada.

Ao ver a filha, Cedric Mellings ficara vermelho, depois empalidecera. Inclinou-se para a frente, apoiado nos antebraços, os punhos cerrados.

O que está fazendo aqui?

O quê? Vim porque você despediu Jim. Como pôde fa­zer isso? Foi uma injustiça!

E Alice chutou a frente da mesa, com toda a força, várias vezes.

Dei um emprego a Jim Mackenzie porque nossa políti­ca sempre foi a de contratar negros, indianos, qualquer um. Sempre operamos aqui numa base de política não-racial. Como você sabe muito bem. Mas eu já devia imaginar que era melhor não aceitar ninguém recomendado por você.

A voz de Cedric era agora baixa e amargurada, ele parecia estar se sentindo mal.

Vá embora, Alice. Saia daqui. Já agüentei tudo o que po­dia suportar de você.

Vai me escutar! — gritou ela, estridente. — Jim não pe­gou o dinheiro! Fui eu! Como se é capaz de tamanha estupi­dez? — O último comentário foi endereçado a Jill. — Eu estive no escritório, não estive? Você é cega, idiota ou qualquer coisa parecida?

Jill levantou-se, papéis e canetas esferográficas caindo para todos os lados. Ficou olhando para Alice, atordoada, tão pálida quanto o patrão.

Não fale assim com Jill! — interveio Cedric Mellings. — Como se atreve a entrar aqui e... Que história é essa de que foi você quem levou o dinheiro? Como poderia...

Nesse ponto ele pôs a cabeça nas mãos e soltou um gemi­do. Jill teve uma ânsia de vômito e correu para o banheiro.

Alice sentou na cadeira à frente da mesa do pai e esperou que ele se recuperasse.

Você levou o dinheiro? — indagou Cedric finalmente.

Claro que fui eu. Estive aqui, não estive? Jill não contou?

Não me passou pela cabeça. Ela também não pensou nes­sa possibilidade. Por que deveria?

Ele se recostou agora, os olhos fechados, fazendo um esfor­ço para se controlar. As mãos tremiam, em cima da mesa.

Vendo isso, Alice experimentou um ímpeto de triunfo e depois de compaixão. Sentia-se contente pela oportunidade de ob­servar o pai sem que ele percebesse.

Sempre pensara no pai como um homem atraente, até mes­mo bonito, embora soubesse que nem todos pensavam assim. A mãe, por exemplo, tinha o hábito de chamá-lo de "Medo­nho", nos momentos críticos.

Cedric era compacto, com tendência para engordar, a pele bem clara, um pouco sardento, cabelos louros sempre curtos, que pareciam avermelhados sob algumas luzes. Seus olhos eram azuis. Alice sentia um orgulho sincero de sua história, de sua carreira.

Cedric Mellings era o caçula de vários filhos. A família vi­nha das proximidades de Newcastle. Havia ligações escocesas. O avô de Cedric fora clérigo. O pai era jornalista e longe de ser rico. Todos os filhos tiveram de se esforçar ao máximo para obter instrução e se lançar na vida. Cedric era jovem demais para a guerra e por isso nunca perdoara o destino.

Ao contrário dos irmãos, não parecia capaz de se arrumar na vida; desperdiçara seu tempo na universidade, casara muito cedo, viera para Londres, tivera diversos empregos; escrevera um livro, que fora notado mas não dera dinheiro, depois outro, um relato animado e irreverente sobre a carreira de um jor­nalista na província. Era baseado na vida do pai e fizera bastante sucesso para lhe render cinco mil libras, um bocado de dinhei­ro em meados dos anos 50. Compreendera com os conselhos e apoio de Dorothy que era uma oportunidade que talvez não se repetisse. Comprara uma gráfica que fora à falência e lo­go, graças a seus contatos no Partido Trabalhista e todos os ti­pos de grupos políticos de esquerda, tinha um movimento suficiente para sustentá-lo, com a produção de panfletos, peque­nas brochuras e volantes, seguindo-se dois pequenos jornais. A firma prosperara com os bons tempos dos anos 60, e Cedric ini­ciara a seção de papelaria como uma especulação, mas dera cer­to imediatamente. Na maior felicidade, a família deixara o apartamento pequeno e miserável em Stockwell e comprara uma casa confortável em Hampstead. Bons tempos! Era o que todos lembravam dos anos 60, uma época áurea, em que se conseguia tudo com facilidade. Tempos de amizades fáceis, empregos, oportunidades, dinheiro; as pessoas sempre entrando e saindo, lon­gas refeições de família à mesa grande na cozinha enorme, vi­tórias na escola, festas, férias por toda a Europa.

Cedric Mellings tivera uma ou duas ligações extraconjugais, e o mesmo acontecera com Dorothy Mellings. Choques, tempestades, acessos de raiva, acusações; longas discussões familia­res, as crianças envolvidas, coisas remendadas e abafadas, a família unida. Mas, a essa altura, as crianças estavam crescendo, cres­cendo, saindo de casa Alice para o norte, de volta ao territó­rio do pai, embora a princípio não percebesse isso.

Cedric Mellings e Dorothy Mellings ficaram sozinhos na enorme casa. Que não deixara de ficar repleta de visitas, entrando e saindo, comendo e bebendo. Cedric apaixonara-se por Jane. E fora viver com ela. Dorothy continuara na casa enorme.

Tudo acabara. Explodiram e desapareceram os bons tem­pos, os empregos fáceis, parecia que até as conquistas, os ami­gos, afeição, dinheiro.

Cedric e Dorothy pareciam um centro, talvez mesmo essencial; muitas pessoas famosas freqüentavam a casa, com suas conversas sobre política, livros, causas, marchas a favor disso e daquilo, manifestações. Parecia haver um brilho ou lustro em Cedric e Dorothy, uma aura ou atmosfera de sucesso, de con­fiança em torno deles. Mas depois... o que acontecera com tu­do aquilo? Cedric com Jane era muito diferente. Por um lado, a casa era muito menor, porque, no final das contas, C. Mel­lings Printers and Stationers tinha de sustentar duas famílias; a casa de Cedric e Jane não possuía aquele clima esquivo mas inequívoco de descontração, de sucesso. Dorothy, sozinha na casa grande por algum tempo e depois com Alice e Jasper, pa­recia ter cada vez menos amigos. As pessoas que apareciam pa­ra uma refeição com Dorothy Mellings enquanto Alice lá estava, com Jasper tendiam a vir sozinhas ou aos pares, a maio­ria mulheres, talvez precisando dos conselhos de Dorothy ou mesmo de tomar dinheiro emprestado; amigas divorciadas muitos dos casais que freqüentavam os Mellings nos bons tem­pos haviam se separado. Óu era um casal que ficava relembran­do os bons tempos do passado, como tudo estava diferente agora. Se Dorothy oferecia uma festa, era sempre pequena, um gran­de esforço. Ela dava a impressão de estar cansada de tudo, de ter esquecido como as festas aconteciam espontaneamente nos anos 60 e início dos 70. Tomavam a casa de assalto, sugavam as pessoas de todas as partes, os telefones retiniam com convites informais e encomendas de vinho e comidas.

Por algum tempo, Cedric Mellings fora o patinho feio da família que se transformara em cisne pois quem mais entre os seus irmãos levava uma vida tão cintilante e glamourosa? —, mas agora se restabelecera a qualidade de patinho feio. Mas o que tudo aquilo representava?, pensou Alice, desdenhosa e triun­fante, contemplando o rosto muito pálido do pai, ansioso e ten- so, com gotas de suor na testa: imprimir um lixo nojento para esta ou aquela facção nojenta do fascista e nojento Partido Tra­balhista, imprimir jornais asquerosos para os asquerosos libe­rais e revisionistas, explorar os políticos de merda oportunistas e o lixo burguês, coisas que estavam de qualquer forma fadadas a serem varridas para as latas de lixo da história?

Tudo fora lixo, sem exceção. O que Alice não podia se per­doar era deixar-se embalar por tudo aquilo... Mas tivera o bom senso de sair a tempo e conhecer pessoas que podiam levá-la pelo rumo certo...

Cedric Mellings finalmente suspirou, abriu os olhos e, ten­do definido sua posição, inclinou-se para a frente e disse, sem fitar Alice:

Muito bem, você pegou o dinheiro, se é o que afirma. Lamento muito pelo rapaz. Diga a ele para voltar e... Tenho certeza de que poderemos endireitar tudo. E agora vamos falar de você, Alice. Imagino que será uma surpresa para você, já que vive num mundo de sonho, mas aquelas mil libras não são uma quantia que a firma esteja em condições de perder. Também es­tamos sofrendo com a recessão. Os tempos são incertos... tal­vez tenhamos de fechar. A gráfica, não a papelaria.

Ele deu a risada incrédula e admirada que costumava acompanhar qualquer referência à papelaria.

Cartões de cumprimentos! Esse é o grande negócio. Sem falar nos doces, chocolates e todas essas porcarias.

Cedric fitou Alice agora e foi capaz de sustentar o olhar, embora fosse evidente que isso exigia algum esforço, manter os olhos nos olhos da filha; ele não podia compreender o que esta­va vendo.

Posso supor que não adianta lhe pedir para devolver o dinheiro? — ele quase suplicou.

Ao ouvir isso, Alice riu. O riso reconhecido, de admiração, alguma espécie de necessidade que Cedric, o pobre tolo, não podia sequer começar a entender. Mas ele acenou com a cabeça, como se compreendesse, e acrescentou:

Imagino que o seu Jasper já se apropriou do dinheiro. Bom, sei que não adianta dizer qualquer coisa a respeito dele para você. É completamente cega nesse ponto. Mas precisa compreender uma coisa: não terá mais qualquer dinheiro meu. Não vejo motivo para que eu deva sustentar aquele... Vamos dei­xar por aqui. Estou apertado em matéria de dinheiro, Alice... pode entender isso? E não foram as mil libras. Há poucos dias algum desgraçado entrou em nosso quarto, meu e de Jane, e levou...

E de repente, enquanto o pensamento lhe ocorria, ele sacudiu-se para trás na cadeira, como se tivesse levado um pequeno choque elétrico, depois ficou olhando atordoado para Alice, a boca literalmente escancarada. Até aquele momento, esse furto não fora relacionado com Alice. Ela limitou-se a sor­rir, sem admitir nada, mas sabendo que não precisava perder tempo com negativas.

Outra vez Cedric ficara chocado até o fundo do coração, não podia falar, empenhou-se angustiado em ordenar os pensamentos. A respiração era rasa, ofegante. Tateou à procura de um cigarro, acendeu-o desajeitado, pôs-se a tragar como se a fu­maça fosse um narcótico. E, finalmente, murmurou:

Alice, não sei... Agora você virou ladra? E isso? E as­sim que vive? Não posso entender. Cedric apagou o cigarro, esmagando-o como se quisesse fazer a mesma coisa com Alice. Pensei que fosse algum vagabundo, esses garotos que entram numa casa num impulso súbito...

Foi a essa altura que o pensamento seguinte atingiu-o, deixando-o outra vez atordoado.

Foi você? Também jogou aquela pedra?

Ele sabia que fora; não era uma pergunta. E continuou, de­pois de uma pausa:

Aquela pedra não acertou Deborah por menos de um palmo. Havia vidro por toda parte. . . um estilhaço acertou na perna de Jane...

Cedric sacudiu a cabeça, como um cachorro com dor nos ouvidos. Estava se livrando de Alice para sempre.

Claro que você acertou em todos os seus cálculos, Alice. Concluiu que eu não chamaria a polícia porque é minha filha. E não vou fazê-lo desta vez. Mas na próxima chamarei. Para mim, você se transformou numa espécie de animal selva­gem. Está além do julgamento normal.

Alice levantou-se. Não sentia angústia por aquela repulsa; achava que já fora rejeitada e abandonada há muito tempo.

Qual é o endereço de minha mãe?

Cedric levou algum tempo para registrar a pergunta. Preci­sava se dar tempo para que o pensamento o alcançasse.

Quer dizer que perdeu o endereço dela?

Nunca tive. Ela foi embora, não é? Simplesmente dei­xou a nossa casa, abandonou-a.

A voz de Alice era uma acusação furiosa.

Do que está falando? Há meses que ela planeja se mudar.

Porque você não a sustenta.

Porque eu não sustento vagabundos como você e Jasper.

Mas qual é o endereço dela?

Descubra você mesma. Daqui a pouco estará roubando da pobre Dorothy e jogando pedras em suas janelas.

Mas o comentário foi feito em voz hesitante; ele ainda não podia acreditar.

Alice deixou a sala e atravessou o corredor até o escritório geral na frente. Perguntou à moça encarregada dos arquivos:

Qual é o endereço de minha mãe? Dorothy Mellings. Qual é seu endereço?

A moça, é claro, não fora informada do escândalo da filha do patrão e de bom grado foi ao arquivo, encontrou a ficha e leu para Alice, que memorizou o endereço e se retirou. Passou por Jill, que a fitou atentamente, com uma expressão quase suplicante, como se ela fosse uma assassina ou assaltante que pu­desse atacá-la.

Alice passou pela papelaria, cheia de idiotas comprando revistas sobre a vida graciosa e romântica, romances de aventuras e lindos cartões que diziam "Para um Amigo Especial", "Amor no Seu Aniversário" ou "Estou Pensando em Você". Ou cai­xas de papel de carta com desenhos de narcisos ou rosas. Ou... tudo merda, um verdadeiro lixo.

Foi para um café na Finchley Road e ali sentou por um lon­go tempo, sozinha, tomando um café forte. Precisava pensar.

Concluiu que era improvável que o vínculo com Bert impedisse Jasper de se lançar numa de suas bebedeiras; que teria de sentar e esperar; que Bert quase que certamente partiria à procura de Pat; que a melhor coisa que ela podia fazer era orga­nizar um Congresso da UCC o mais cedo possível. O trabalho para isso fomentaria na casa o sentimento, o clima apropriado, acabando com a atmosfera desagradável do último dia. Acabara de salvar a situação de Jim. Mas Philip, uma alma gentil e até tímida, iria embora se ela não fizesse alguma coisa.

Quando chegou em casa, encontrou aberta a porta da sala que Jim ocupava; todas as suas coisas haviam desaparecido.

Foi um golpe duro. Alice chorou, parada ali, olhando para a sala em que nada restara de Jim. Nem os instrumentos musicais — tambores, guitarra, acordeão —, nem o saco de dormir, as roupas, o toca-discos... nada. Jim sumira daquela sala co­mo se nunca tivesse estado ali.

Ela não tinha endereços de amigos ou família.

Ficou na porta aberta, levantando os punhos cerrados para os lados da cabeça e batendo, batendo com força, enquanto se lamuriava:

Não, não, não, oh, não...

Passos desceram a escada correndo; era Faye, indignada, ultrajada.

Qual é o problema?

Jim... ele se foi... sumiu...

Boa viagem! exclamou Faye, rindo. Nós não gostávamos mesmo dele.

Levantando os olhos, Alice avistou Philip, acima de Faye. Seu rosto dizia que ouvira o comentário, como Faye sem dúvida queria que acontecesse. Mas ela também viu Roberta, que se encaminhou apressada para Faye, agarrou seus braços e puxou-a para longe. O rosto de Roberta era grave e chocado magoado por causa de Faye.

A voz baixa e persuasiva de Roberta; a risada alta e estri­dente de Faye. Uma porta foi batida. Roberta desceu correndo, segurou Alice, começou a confortá-la no choro.

Calma, calma, calma...

A culpa é minha soluçou Alice. Toda minha. Fui eu que fiz. Tudo por minha causa.

Calma, calma... Não tem importância.

Ela levou Alice para a sala de estar e obrigou-a a se meter no saco de dormir. Foi buscar um copo de uísque, fê-la beber, para dormir, esquecer.

Alice histérica, como Faye tantas vezes histérica, estava sen­do dopada para se tornar inofensiva.

Ela dormiu até a noite. Depois, encontrou na cozinha Ro­berta e Faye, Mary e Reggie. Jasper não estava ali. Bert saíra para tentar persuadir Pat a voltar. Sentando, Alice disse:

Acho que devemos organizar um Congresso da UCC.

Outra decisão democrática? indagou Faye, rindo.

Estou sugerindo. Apresentando a proposta.

Eu sou a favor declarou Roberta. Há uma porção de membros que nunca conhecemos. Uma nova seção, novos grupos... devemos nos encontrar.

Parece uma boa idéia — comentou Reggie, no tom ponderado de alguém que sempre aprecia os congressos, discussões, quaisquer manifestações do processo democrático.

Também concordo acrescentou Mary. Estive pensando que pode ser o tipo de partido político que venho procu­rando. Não tenho tempo para os grandes partidos burocráticos.

Quando? perguntou Faye.

Muito em breve respondeu Alice. Quanto mais ce­do melhor. O partido está crescendo depressa. Precisamos consolidar e formular as políticas agora.

Concordância geral, embora Faye só aceitasse porque Ro­berta aderira à proposta.

Cinco dias e cinco noites seguiram-se sem Jasper. Bert vol­tou, sem conseguir o que queria e com uma aparência encova­da e amargurada que Alice continuou a encarar como uma melhoria. Bert perguntou onde Jasper estava; Alice, como sem­pre encobrindo, respondeu que Jasper decidira visitar um irmão. Bert, que no final das contas passara bastante tempo em com­panhia de Jasper, mostrou-se surpreso porque nunca fora men­cionado um irmão. Alice explicou que Jasper visitava o irmão porque era seu único "parente viável". A expressão fez com que Bert a olhasse de maneira estranha, mas ela explicou que Jasper tinha uma família de merda e o irmão era o único decen­te. (As visitas de Jasper ao irmão de fato aconteciam, embora raramente.)

Bert, Alice ficou satisfeita ao constatar, sentia falta de Jas­per, tendia a se mostrar desorientado, sem saber o que fazer. Mas estavam numa fase de atividade intensa, pois o congresso seria realizado no fim de semana depois do seguinte, ali mes­mo, naquela casa, número 43. Mensagens eram despachadas e cartas escritas, sempre havia idas apressadas às cabines telefôni­cas na estação do metrô.

Alice assumiu a maior parte do trabalho, mas Bert visitou a seção em South London, a fim de providenciar que todos ali se sentissem inspirados a comparecer. Foi indagado ao número 45 se as pessoas não queriam participar, se não como membros ou membros em potencial, pelo menos como delegados ou observadores. Alice sabia que era inevitável a presença de obser­vadores; e não ficou surpresa quando a mulher-ganso Muriel declarou que estaria presente. O camarada Andrew comunicou que gostaria de comparecer, mas estaria ausente na ocasião.

As duas casas poderiam ser usadas como dormitórios, se o número 43 fosse insuficiente.

Alice deveria providenciar comida farta, mas barata. Para variar, foram garantidas algumas contribuições a seus fundos, já que se cobrariam aos delegados taxas mínimas pela alimentação e alojamento. Depois de alguma contribuição, fixou-se a quantia de duas libras por pessoa para o fim de semana.

Alice também disse que seria ótimo se todo o lixo que ain­da restava no número 45 fosse removido, pois causava uma péssima impressão. Como nada fosse feito, ela tomou o carro emprestado e fez várias viagens, com a ajuda de Philip, ao vaza­douro de lixo.

As apreensões de Philip e sua mágoa por causa de Jim fo­ram aliviadas pelo congresso e o clima feliz que estava criando.

Bert visitou o número 45 várias vezes durante aqueles cin­co dias. Conversava com o camarada Andrew, como Alice o sabia, pois também visitava o camarada Andrew, que parecia querer conversar sobre Bert, não fazendo segredo de seu plano para ele, que era o caminho de um emprego, segurança e res­peitabilidade. É um "treinamento especial", não-especificado, mas compreendido. Alice não podia deixar de especular sobre a escolha de Bert; por que Andrew mudara de idéia a seu res­peito? Ela própria não confiava muito em Bert. Ele se deixava levar com muita facilidade, por exemplo. Haveria alguma ou­tra coisa que Bert discutia com Andrew? Alice estava ansiosa por saber, pois se o IRA não aceitara Bert e Jasper (e, por ex­tensão, o resto deles, inclusive Alice), então alguma outra coisa do mesmo tipo tinha de aparecer. Todos queriam ser úteis, ser­vir de alguma forma! Alice sondou Andrew, mas ele não estava disposto a revelar coisa alguma ou ignorava as idéias alternati­vas de Bert e Jasper. Alice sondou Bert, mas parecia que ele es­perava por Jasper para "formular um compromisso de acordo com nossos recursos". Mais uma vez, Alice pensou: "Ah, as im­pressões fáceis!" — nesse caso, a impressão, como ela sabia que muitas pessoas tinham, era a de que Jasper era o dependente de Bert, seu discípulo.

Jasper se referira várias vezes a Muriel, o que poderia constituir uma indicação para Alice, se sua aversão a Muriel não aflo­rasse prontamente, impedindo-a de prestar atenção ao que po­deria fazer. Jasper comentara que Muriel estava deixando a 45. Começaria a trabalhar. "Um trabalho de verdade", enfatizara ele, com um sorriso orgulhoso, mas discreto, convidando Alice com os olhos e a atitude a compreendê-lo. Mas o que ela preci­sava ouvir de Jasper era a declaração de que ele considerava Mu­riel tão insignificante quanto ela achava; com toda a certeza, Jasper não gostava dela, e Alice sabia disso.

— O camarada Andrew já acertou tudo, o treinamento e o resto.

O respeito que ele tinha por Andrew fazia com que aquilo que pudesse sentir em relação a Muriel não tivesse a menor importância.

Alice tentou até descobrir por intermédio de Muriel quais podiam ser os planos de Jasper. Mas assim que ouviu o no­me de Jasper, Muriel disse incisivamente que em sua opini­ão Andrew era "basicamente" um membro de confiança e útil. O que pareceu a Alice inteiramente despropositado. E ela especulou: Seria por causa de suas dúvidas ocasionais em relação a Andrew?

Tais dúvidas, difíceis de definir, porque a razão sempre as pulverizava, cristalizavam-se no fato de que o camarada Andrew muitas vezes cheirava a bebida; não podia criticá-lo por sua par­cialidade para com a mulher-ganso, porque aprendera há muito a não se aventurar por essa área. Sabia que as pessoas precisa­vam de todo aquele sexo, e o encontravam com pessoas surpreen­dentes e às vezes de maneiras surpreendentes. Só porque o camarada Andrew era... o que ele era, isso significava que de­via fazer um voto de celibato? Não! Mesmo assim. . . Garrafas de vodca e uísque se acumulavam no consolo da lareira da sala que ele ocupava, muitas vezes substituídas.

Havia outra moça, Caroline, que aparentemente também vivia na 45, embora quase não fosse vista. Alice gostaria de conversar com ela, pois se sentia atraída por alguma espécie de afi­nidade; mas, ao que tudo indicava, Caroline não sentia a mesma coisa. De qualquer forma, ela permanecia apartada. Era uma mu­lher — ou moça, pois ainda tinha vinte e poucos anos — baixa e um tanto gorducha, não desprovida de atrativos, que dava a impressão de sorrir com freqüência. Talvez fosse esse sorriso fácil que atraía Alice, embora os olhos, sempre vigilantes, fos­sem duros como botões castanhos. A impressão geral, no en­tanto, era de boa índole, de vontade de agradar. Caroline, disse a mulher-ganso friamente, não estava disposta a seguir as deter­minações do camarada Andrew para se tornar um membro útil, mas tinha (Muriel achava e, por isso, Andrew devia pensar igual) tendências para o idealismo liberal.

Caroline tinha uma amiga chamada Jocelin, que costuma­va visitar a 45 e que talvez até decidisse viver ali. Ao contrário de Caroline, ela era desagradável. Corpulenta, podia-se mesmo dizer que atarracada, com cabelos louros lisos, repartidos no meio e afora isso desgrenhados, andava em passos firmes e deli­berados, sem olhar muito para as outras pessoas, sorrindo tão facilmente quanto Caroline, porém acenando com a cabeça indiferente quando Alice a vislumbrava através de uma porta ou atravessando o vestíbulo com toda a sua eficiência.

Havia também uma dupla de rapazes que viviam na 45 e que Alice não chegara a conhecer. A mulher-ganso disse que Andrew estava "trabalhando" os dois ao que parecia, com sucesso. Eram do norte da Inglaterra, da classe operária, desem­pregados mas, assim se julgava, apenas temporariamente. Os quatro Caroline, Jocelin, Paul e Edward — recusaram-se a comparecer ao Congresso da UCC, mas iriam à festa, na noite de sábado. Em suma, haveria muitos observadores durante aque­le fim de semana; mas, refletia Alice, por que não?

Jasper voltou na noite de domingo. Como sempre aconte­cia depois de suas excursões, parecia doente. Emagrecera, esta­va mais esguio do que o habitual. A pele sedosa estava opaca e manchada, os olhos injetados, a aparência debilitada, como se o seu eu essencial tivesse sido atacado ou exaurido. Procurou Alice imediatamente, e ela alimentou-o com sua sopa, um bom pão e um copo após outro de leite gelado, que ela guardara na geladeira, à sua espera. Não houve qualquer comentário sobre o dinheiro.

Informado sobre o congresso, ele se mostrou a princípio indiferente, depois perguntou por Bert, que gracejou sobre sua aparência e disse que o irmão não devia ter lhe dado coisa algu­ma para comer. Jasper gracejou em resposta que o irmão não era cozinheiro, ao contrário de Alice. Embora fosse patente que devia estar na cama, ele insistiu em subir com Bert para conver­sar no alto da casa. Algum plano ou decisão amadurecera em Jasper, mesmo enquanto mergulhava nas emoções do mundo homossexual. Tinha de conversar a respeito imediatamente.

Quando decidiu se deitar, ele foi para o quarto no último andar, como Alice já esperava.

Ela voltara a dormir no quarto que partilhara com Jasper, ao lado do quarto de Bert. Pois sabia que se Pat voltasse, Jasper também voltaria.

Na segunda-feira, Philip anunciou que recebera uma resposta séria a toda a sua propaganda. Mas precisava de ajuda. O problema era que muitas vezes se apresentava para oferecer seus serviços; as pessoas viam como ele era e davam desculpas para recusá-lo. Mas ele era capaz de fazer o trabalho muito bem como todas as pessoas na casa podiam confirmar. Queria que Bert o acompanhasse, como seu parceiro. Podia ficar calado, se assim desejasse; e era apenas na primeira entrevista. Depois que tudo ficasse acertado, não seria fácil para os clientes rejeitarem-no, mesmo que fosse trabalhar sem Bert. O plano provocou muitos comentários divertidos à mesa do jantar. Bert concordou e tudo deu certo. O trabalho na 43 foi considerado encerrado, embora ainda houvesse no sótão duas vigas podres que espalhavam a podridão por toda a casa. Philip prometeu que cuidaria delas assim que terminasse aquele trabalho, pelo qual seria devidamente remunerado. Recusara-se a começar sem um bom adiantamento e não terminaria se não recebesse parce­las periódicas. Era um novo restaurante de comida para viagem que ficava a cerca de um quilômetro de distância.

Os primeiros delegados chegaram no meio da semana. Eram Molly e Helen, da seção de Liverpool. Militantes do Movimen­to Feminista haviam escrito para comunicar que estavam dis­postas a organizar uma creche. Se não houvesse creche, as mães com filhos pequenos não poderiam comparecer; era uma ques­tão de princípio. Devia ficar claro, no entanto, que elas só cui­dariam de meninas; era outro princípio, aparentemente aplicado com sucesso em todas as creches que já tinham instalado.

Alice imaginara vagamente que haveria crianças vindo com os pais; mas agora lembrou-se dos problemas de princípios e também das prováveis reações de Faye, o que desencadeou uma segunda remessa de mensagens e cartas, em todas as direções, comunicando que não se podia trazer crianças. Molly e Helen tinham muita coisa a dizer sobre isso quando chegaram, e Alice ficou aliviada quando elas resolveram aproveitar ao máximo a estada na capital, com seu conforto, saindo para passar o dia com os piquetes em Melstead. Elas passaram outro dia visitan­do a comuna de mulheres freqüentada por Faye e Roberta, de onde voltaram rindo, irrequietas, com excesso de vitalidade — era melhor não perguntar de que tipo — e famintas. Entregan­do duas libras cada uma, elas disseram que não fariam compras com Alice no dia seguinte, pois precisavam comprar roupas, mas depois a ajudariam a cozinhar.

Enquanto isso, quatro camaradas chegaram de Birmingham, dois homens e duas mulheres, que passaram um dia com os piquetes e uma noite na cadeia. Como todo o dinheiro que tra­ziam foi gasto nas multas, não podiam contribuir para as despesas do fim de semana. Mais dois camaradas chegariam de Liverpool na noite de sexta-feira — tinham emprego e não po­diam vir antes. Haveria mais seis de Birmingham, também che­gando na sexta-feira, também porque trabalhavam. Quatro pessoas de Halifax pensando em criar uma seção ali viriam na sexta-feira.

Todos os trinta e tantos membros da seção de Londres só viriam na manhã de sábado e dormiriam onde pudessem, na 43 ou na 45, na noite de sábado para domingo.

Alice estava aperfeiçoando sua sopa. Mas precisava de um panelão, e não queria comprar. A mãe tinha algo assim. Deixando as assistentes a cortar legumes e pôr lentilhas de molho, ela foi de metrô e andou até deparar mais uma vez com o car­taz de "Vende-se". Esquecera que a mãe se mudara. O que a deixou impaciente e furiosa; estava outra vez com raiva da mãe. O novo endereço se encontrava devidamente arquivado em sua mente. E acarretava um sentimento de vergonha, de pesar. Não era numa das melhores áreas; Alice calculou que ainda podia ser considerado Hampstead por alguém caridoso. Logo ela es­tava parada na frente de um bloco de apartamentos de quatro andares, com um jardim pequeno e imundo. A mãe não podia estar morando ali! Mas lá estava seu nome num pedaço de pa­pel inserido numa fenda ao lado do número 8: Mellings. Um interfone. Alice foi dominada por um pânico inexplicável, não tinha coragem de tocar. Mas uma velha parou a seu lado, en­fiando a chave na porta.

Com licença improvisou Alice. Estou procurando pela senhora Forrester. Número 2.

Não vai encontrar nenhuma senhora Forrester no nú­mero 2, queridinha. Eu sou a moradora do número 2 e meu nome é senhora Wood.

Mas que coisa estranha murmurou Alice, animada e jovial, o sonho de uma avó. Sabe se há alguma senhora Forrester morando neste prédio?

Tenho certeza de que não tem nenhum Forrester aqui.

A velha riu e Alice acompanhou-a. Uma pausa e, como Alice

rezava para que acontecesse, a velha acrescentou:

Vou pôr uma chaleira no fogo. Não quer entrar para to­mar um chá?

Claro que sim; e Alice entrou, puxando o carrinho de compras. A porta do número 2 foi aberta e ela acompanhou a velha até a pequena cozinha, ajudando na arrumação das compras. Par­te de sua mente formulava uma censura rigorosa: Como pode fazer uma coisa dessas, deixar que uma desconhecida entre em seu apartamento? Eu podia ser uma ladra. Outra parte bradava: Mjnha mãe não pode estar morando aqui, não pode! E ainda outra sussurrava: Vou explodir este prédio. Vou mesmo. Não se devia permitir a construção de um lugar assim.

O apartamento da senhora Wood e presumivelmente o apartamento de Dorothy Mellings tinha dois cômodos não muito grandes e uma cozinha que mal dava para uma mesa pe­quena, a que ela e Alice sentaram, bem perto uma da outra, olhando para uma parede amarela encardida, tomando chá e co­mendo dois biscoitos cada uma. A senhora Wood vivia de uma pensão. Classe operária. Tinha um filho em Barnet que visitava aos domingos. Não gostava da nora, que Deus a perdoasse. Ti­nha um neto de cinco anos.

Dorothy Mellings não tinha família para visitar nos fins de semana; esse pensamento aflorou à superfície da mente de Alice, mas foi rejeitado com um ímpeto de emoção: se a mãe decidira morar num lugar assim, então devia ter enlouquecido!

Quando Alice se retirou, sabia com exatidão o que a mãe, três andares acima, teria no armário da cozinha; e certamente não haveria espaço suficiente para um panelão de alumínio.

Alice ficou uma hora ou mais e partiu com promessas de voltar. Foi a uma loja de ferragens e comprou o panelão neces­sário, pensando que, no final das contas, haveria muitos outros congressos e reuniões no número 43; e se tivesse de mudar, le­varia o panelão.

Mas recebera um golpe; seu coração se lamuriava e doía; não tinha mais um lar de verdade. Não havia mais nenhum lu­gar onde soubessem quem ela era, onde pudessem reconhecê-la e aceitá-la.

Subitamente, todo um exército de recordações a invadiu.

Alice estava parada no meio da calçada, na hora de maior movimento, enlaçando um panelão de alumínio, bastante gran­de para cozinhar um pequeno arbusto, o olhar fixo e aparente­mente em estado de choque.

Recordava as festas da mãe. Haviam acontecido durante toda a sua infância e adolescência. Depois que Alice partira para a uni­versidade, raramente voltando para casa, as festas ainda continua­ram; ouvia comentários de alguém, provavelmente de Theresa.

Uma das festas de sua mãe... foi maravilhosa.

Sempre aconteciam da mesma maneira. A mãe comentava,

com uma expressão irrequieta e mortificada:

Está na hora de oferecermos uma festa... Oh, não, eu não poderia agüentar!

E ela começava então a tomar as providências, convidando esta e aquela pessoa, com um mês de antecedência. Sua relutância em relação à festa se desvanecia, e ela começava a brilhar de tanta energia. Convidava os colegas políticos de Cedric, to­das as pessoas que trabalhavam na C. Mellings, Printers and Stationers, as incontáveis pessoas que ela conhecia e que de alguma maneira pareciam estar sempre entrando e saindo da casa. Co­nhecia todas as pessoas na rua e as convidava. Convidava uma mulher que conhecera na mercearia e com quem puxara con­versa, o homem que fora consertar o telhado, um novo au pair da Finlândia (que conhecera no ônibus) que devia estar solitá­rio. No dia da festa, que começava ao meio-dia, havia até uma centena de pessoas se acotovelando por toda a casa; à meia-noite, provavelmente a metade ainda se encontrava na casa, sendo ali­mentada pelo panelão de Dorothy, do tamanho de uma tina. Eram festas maravilhosas. Todos diziam isso. E Alice também.

Ah, que bom, vamos ter outra festa! — exclamava ela.

E se punha a ajudar, na maior animação. Quando ficou mais

velha, depois dos dez anos ou por aí, podia perceber que era útil, mas quando criança era apenas tolerada por aquele turbilhão de eficiência que era sua mãe organizando uma festa. Ain­da assim, insistia em arrumar frutas num prato ou distribuir cinzeiros pela casa, enquanto a mãe reduzia seu ritmo ao da fi­lha. Pelo menos enquanto "ajudava", Alice não se sentia tanto como uma criatura minúscula numa grande onda, fazendo si­nais desesperados e frenéticos para a mãe, que permanecia indi­ferente na praia, sem notá-la.

Quando havia festas, quando havia pessoas na casa, parecia que Alice se tornava invisível para a mãe, não tinha lugar em sua própria casa.

Havia sempre pessoas passando a noite depois das festas: as embriagadas, as que não queriam beber e guiar ou as que tinham vindo de outras cidades. E Dorothy dizia a Alice, na voz con­fiante que acompanhava o sucesso no controle daquele ajunta­mento de pessoas que fazia a casa inteira — para não dizer a rua — explodir com barulho e música por horas e horas:

Alice, você terá de abrir mão de seu quarto. Pode ir dor­mir com Anne? (A melhor amiga de Alice durante a maior par­te da infância.) Não? Por que não? Ora, Alice, não banque a difícil. Mas se não quer, então é melhor levar seu saco de dormir para o nosso quarto.

Alice sempre protestava, reclamava, ficava zangada, fazia uma cena — manifestações que quase não eram percebidas, co­mo se podia prever, com tantas outras coisas acontecendo no palco da festa: mulheres na cozinha lavando a louça, conversas íntimas entre casais por toda a casa, os últimos dançarinos embri­agados circulando pela sala. Quem podia se importar se Alice estava de mau humor mais uma vez?Dormir no quarto dos pais deixava-a violentamente emotiva, e não podia se controlar.

Quatro horas da madrugada e ela estava em seu saco de dor­mir, com uma camada de espuma de borracha, junto à parede, sob a janela. Cedric Mellings, num pijama vistoso, vermelho- escuro, azul-escuro, estava bêbado ou tenso; de qualquer forma, expansivo. Adorava as festas da esposa e orgulhava-se dela. Sempre preparava os drinques, alugava os copos cuidava de toda essa parte. Dorothy Mellings usava uma das coisas bonitas que costumava pôr para dormir, talvez uma bata larga no estilo conhecido como "mother Hubbard", um quimono ou uma kanga do Quênia, enrolada no corpo das maneiras mais diferentes. Também estava tensa, embora não muito, mas não precisava ficar assim, pois sentia-se inebriada, exaltada, flutuando, não con­seguia parar de sorrir, enquanto se estendia na cama ao lado de Cedric e se punha a gemer dramaticamente:

Oh, Deus, meus pés!

Ele a enlaçava, Dorothy se aconchegava um rápido olhar, um lembrete de um ou de outro de que Alice se encontrava no quarto —, alguns beijos sonolentos e ambos dormiam. Mas Alice não dormia. Permanecia acordada, tensa, na casa silenciosa finalmente e naquele quarto tão distante do silêncio por­que... quanto barulho faziam duas pessoas dormindo! Não era apenas a respiração, profunda e imprevisível, regular por algum tempo e depois mudando num ofego ou ronco. Cedric tendia a roncar, mas aparentemente ele próprio se apercebia disso, vi­rava para o lado e passava a dormir de forma mais decorosa. Mas não silenciosamente.

A respiração dos dois se elevando, no escuro... Alice não podia parar de escutar, pois parecia que estava dizendo alguma coisa que ela precisava compreender mas que não conseguia absorver. Duas respirações diferentes, aspirar e expirar, aspirar e expirar, prolongando-se interminavelmente, tendo de conti­nuar mas podiam parar de modo imprevisível, pelo que pa­reciam minutos, embora Alice soubesse que isso era um absurdo, era apenas porque ela aguçava os ouvidos com tanta fúria de concentração que o tempo se tornava mais lento. Enquanto um deles, Dorothy ou Cedric, se mantinha num intervalo da respi­ração, o outro continuava, aspirando e expirando, fazendo a vi­da prosseguir. Não demorava muito para que o silencioso respirasse fundo e retornasse ao diálogo que parecia ocorrer entre os dois. Uma conversa, era essa a impressão da criança escu­tando ali, como se os pais falassem um ao outro, não em palavras, agora, mas numa linguagem que Alice não conhecia. Aspirar e expirar, aspirar e expirar com tantas pequenas pausas, hesita­ções e mudanças de ritmo que era como se estivessem questio­nando um ao outro — e a seguir (Alice esperava por isso) o estágio em que a respiração se tornava regular, profunda e dis­tante, afastando-se mais e mais a cada minuto.

Aquelas duas pessoas ali, as duas pessoas enormes e podero­sas na cama imensa que constituía o outro foco da casa (a mesa grande na cozinha era o primeiro)... era como dormir no mesmo quarto com duas criaturas que mal chegavam a ser huma­nas, tão estranhas e secretamente perigosas pareciam a Alice quando era criança e depois quando estava mais velha, com on­ze ou doze anos, e ainda em seus quinze anos ou por aí. Ela mudou, cresceu, ou pelo menos ficou mais velha, mas a impres­são era de que os pais continuavam como antes. Nada mudava. Era sempre a mesma coisa, aquela cena depois da festa, com os dois se acomodando na cama imensa, enlaçados, resvalando pa­ra o sono que os levava para tão longe que Alice sempre se so­erguia, apoiada no cotovelo, aguçando os olhos através da es­curidão do quarto para as duas elevações, compridas, volumo­sas, que eram seus pais. Porém naquele momento não eram se­us pais, haviam se tornado impessoais e se afastado de Alice. Não podiam ser alcançados. A não ser que ela deixasse o sa­co de dormir e fosse tocar em um deles, acordando-o. Ao que Cedric ou Dorothy despertavam, voltavam a ser eles próprios; como se impostores, sinistros, ameaçadores e misteriosos habi­tassem aqueles corpos adormecidos, mas fossem expulsos pelo contato de Alice. Então, Dorothy ou Cedric, sonolento e so­bressaltado, murmurava:

— Qual é o problema, Alice? Durma.

E eles já se afastavam, retornando depressa àquele outro país — e os impostores lá estavam, não eram mais Cedric e Dorothy. Alice ficava acordada, escutando as respirações, as fungadelas, mur­múrios engrolados e incompreensíveis saindo daquele sono que acontecia por cima dela, no platô da cama; e escutando seu pró­prio sangue ser bombeado e correr pelo corpo, pensando como galões de sangue turbilhonavam ali, naqueles dois corpos... Não conseguia dormir; ou dormia e acordava na maior ansiedade. No instante em que havia qualquer claridade por trás das cortinas si­lenciosas e atentas, que pendiam ali durante a noite inteira, teste­munhas junto com ela da ausência de Dorothy e Cedric de sua cama, seu quarto, sua casa, seus filhos, Alice se levantava e saía. A casa, é claro, estava mergulhada no caos. Por toda parte pessoas ainda dormiam, de tal forma que ela mal tinha coragem de abrir uma porta, com medo do que poderia encontrar. Mas a cozinha era um lugar seguro, e ali ela trabalhava. Gostaria de contar com alguma ajuda — do irmão, Humphrey, por exemplo. Mas ele sem­pre se mostrava feliz em aproveitar o convite dos pais para arru­mar um outro teto sob o qual dormir e raramente estava em casa.

Depois dos doze anos ou por aí, Humphrey permanecia em casa cada vez menos, passando não apenas uma noite em outra casa da rua, mas com amigos por todo o país, às vezes durante semanas a fio. Para Alice, a impressão era de que as festas haviam desencadeado esse processo. Sentindo-se como ela (não que alguma vez houvessem conversado a respeito, mas Alice sabia), como alguma pequena criatura do mar aderindo por sua vida a um rochedo, mas sendo atacada e golpeada por enormes on­das, até se desprender e se afastar à deriva. Como ela também fizera, mais tarde. Mas separadamente; eles mal se viam. Inda­gada se tinha irmãos, Alice precisava fazer um esforço para se lembrar de Humphrey.

Há anos que ela não pensava em tudo isso; foram os braços estendidos em torno do panelão prateado que trouxeram tudo de volta. E poderia continuar parada ali se alguém não tocasse em seu ombro: um homem, um operário, pois usava um macacão branco e carregava uma bolsa com ferramentas — isso mes­mo, a loja de ferragens fazia uma liquidação.

Você está bem, querida? — perguntou o homem.

Estou, sim.

Foi como se ela respondesse: "Por que alguém deveria pen­sar que não estou?"

Já começávamos a nos preocupar com você. Parecia ter criado raízes na calçada, do jeito como estava!

O homem riu, esperando que Alice o acompanhasse; seu rosto gentil — quase que certamente de um pai, para não falar de um marido — mostrava preocupação para com ela. E Alice riu também e foi para o número 43, onde entrou sob aplausos, por causa das dimensões magníficas e do potencial evidente do panelão. Ela sorria na cozinha, preparando sua sopa, enquanto camaradas entravam e saíam para provar, fazer sanduíches ou comer alguma coisa trazida de fora. Estava dissolvida no pesar, por causa da perda de sua verdadeira casa e pelo que recordara, parada na calçada. Oh, Deus, pensava, enquanto trabalhava na cozinha, sempre sorrindo (a Alice de todos, confiável, prestativa, um tesouro), como eles foram capazes de fazer isso comigo? Tiraram meu quarto, sem mais aquela, como se não fosse meu quarto, como se apenas tivessem me emprestado: "Alice, você terá de abrir mão de seu quarto mais uma vez". Há anos que acontecia. O que eles pensavam que faziam? A cada vez sentira que não era realmente sua a casa, que não tinha direito a um lugar ali e a qualquer momento os pais poderiam expulsá-la.

Mas tudo isso é bobagem, pensava Alice, cortando, pican­do, misturando, sorrindo. A maioria das pessoas do mundo não tem a metade do que eu tive, e quanto a seus próprios quartos...

Ora, tudo isso não importa, o congresso exigiria muito trabalho e teria de parar de pensar a respeito, graças a Deus.

Na noite de sexta-feira, depois que todos chegaram e havia vinte e quatro pessoas na casa, o espantoso caldeirão de sopa alimentou todo mundo e foi reabastecido, à uma hora da madrugada, quando os outros já estavam deitados, a fim de ficar pronto para o dia seguinte.

Por volta das nove e meia da manhã seguinte, todos os camaradas de Londres chegaram. Circularam por toda a casa, a soltar exclamações, por seu tamanho e conforto. Não foram pou­cos, de casas ocupadas não tão confortáveis, os que aproveita­ram para tomar um banho. As pilhas de pão na cozinha dimi­nuíram imediatamente, e Alice saiu correndo para comprar mais. Aquele fim de semana custaria... ela não queria pensar sobre isso.

Todos elogiaram também a decoração da sala de estar.

Por cima da lareira havia uma enorme bandeira vermelha, o emblema da UCC num canto, bordado na noite anterior pe­las duas garotas de Birmingham. Num canto do vermelho-vivo havia uma foice e um martelo em dourado e, em outro, um ga­lo e uma rosa em verde.

Um retrato de Lênin estava pendurado em frente à bandei­ra. Ao lado de Lênin e várias vezes maior havia um cartaz de uma baleia: "Salvem as baleias!" Nas outras paredes havia car­tazes dizendo "Salvem a Inglaterra da poluição!", "Salvem os nossos campos!", "Lembrem-se das mulheres de Greenham Common!", e mais um cartaz do IRA, mostrando um soldado britânico espancando um garoto com os braços amarrados. Nu­ma mesa no vestíbulo estavam os panfletos: Em defesa do IRA, toda a propaganda do Greenpeace, vários livros sobre Lênin, um longo poema em versos livres sobre Greenham Common, uma ampla variedade de folhetos do Movimento Feminista e sobre antivivissecção, vegetarianismo, o uso de agentes químicos em alimentos, Cruise, Trident, o despejo do lixo radioativo no mar, o tratamento cruel de bezerros e galinhas e as condi­ções nas prisões da Inglaterra.

No clima familiar e inebriante mas confortador que caracteriza o início de tais eventos, quarenta e tantas pessoas se es­premeram na sala de estar, sentando nos lugares que encon­travam, no chão ou nos peitoris das janelas. Lá fora, era um dia de sol intermitente. Lá dentro, o novo sistema de aque­cimento tornou-se demais para alguns e tiveram de abrir as janelas.

Quase todos tinham menos de trinta anos. Alice calculava que era de longe a mais velha. Isto é, à exceção de Roberta, que se limitava a rir quando perguntavam sua idade.

Foi para Bert e Jasper que todos olharam, embora tivesse combinado que Pat, se aparecesse, faria o discurso de abertura.

Há muitos dias que Bert a aguardava ansioso, como sabiam todos os moradores da casa.

Agora, Bert postou-se descontraído junto à lareira, apoiou o cotovelo no consolo, onde havia um vaso com narcisos, assumindo uma atitude informal, e disse:

Este é o primeiro Congresso Nacional da União do Cen­tro Comunista. De pequenas sementes crescem grandes árvores.

Aplausos vigorosos. Sorrisos, risadas satisfeitas. Mary Williams e Reggie aplaudiam, sóbrios mas enfáticos. Muriel senta­va no chão, num canto. Ela estava ali como espiã, Alice lembrou a si mesma.

Bert não riu. Nem mesmo sorriu. O problema com Pat deixara-o abatido, proporcionando-lhe uma expressão de sofri­mento, controlada pelo pensamento. A afabilidade fácil desa­parecera. Acenou com a cabeça brevemente aos aplausos e continuou para dizer que a UCC se propunha a ser um partido não-sectário, aproveitando o melhor dos partidos socialistas exis­tentes, aprendendo com seus erros e fracassos. A UCC estava de­terminada a se basear nas grandes tradições da classe operária britânica, empenhando-se pela mudança social radical, através de uma revolução, "se for necessário... e cada dia nos ensina que a classe que controla este nosso país só se deixará desalojar pela força... " Aplausos, risos e gritos. Uma revolução que aprenderia com a experiência da Revolução Russa, da Revolu­ção Chinesa e, se preciso, com a Revolução Francesa, pois não era exagero afirmar que as lições da Revolução Francesa não estavam absolutamente esgotadas. O congresso daquele fim de semana não fora convocado com o objetivo de formular uma política detalhada, pois muito mais trabalho teria de ser realiza­do nesse sentido, mas sim para definir os princípios gerais. E agora ele, Bert Barnes, passaria a palavra a um revolucionário muito mais completo e desenvolvido, o camarada Willis.

Jasper ocupou o lugar de Bert. Não se apoiou no consolo da lareira, mas ficou empertigado como uma flecha, os braços baixados nos lados do corpo, os cabelos louro-avermelhados bri­lhando, os olhos fixos no retrato de Lênin. Começou o discur­so em voz mais alta do que o habitual, o que fazia com que parecesse tensa a Alice. Mas também ela estava acostumada a seu estilo oratório e julgava-o por outros critérios: por exem­plo, sabia que Jasper mal dormira na noite passada, pois ficara absorvido numa discussão acalorada e volúvel, e ficar sem dor­mir não lhe era conveniente.

Seu estilo era o de usar frases familiares do léxico socialista, mas como se tivesse acabado de descobri-las, naquele momento mesmo; assim, quando ele começava, havia muitas vezes um ins­tante em que as pessoas mostravam uma tendência a rir. Mas isso cessava logo, por causa de sua seriedade desesperada, até mes­mo extasiada.

Camaradas! Sejam todos bem-vindos, camaradas. Este é um momento histórico para todos nós. Há bem poucos nesta sala hoje, mas somos uns poucos eleitos... escolhidos pelo tem­po em que vivemos, escolhidos pela própria história!... e não há nada que não possamos realizar, se assim nos empenharmos.

Neste ponto, se Bert ou qualquer outro estivesse falando, haveria aplausos. Mas houve um silêncio tenso. A verdade era que os camaradas não esperavam aquele tom de extrema seriedade; ou pelo menos não tão cedo.

Todos conhecemos as condições terríveis e criminosas na Inglaterra. Todos sabemos que o governo fascista-imperialista deve ser derrubado à força! Não há outro caminho para o progresso! As forças que vão nos libertar a todos nós já estão sendo forjadas. Estamos na vanguarda dessas forças, e a responsabili­dade por um futuro glorioso está em nossas mãos.

Jásper continuou assim por cerca de vinte minutos. Alice escutava cada palavra com um sorriso doce, confiante, até mes­mo belo; aquele era o Jasper que mais amava, e era maravilho­so para ela constatar como as outras pessoas reagiam. Até pessoas que ela sabia que o criticavam passavam a admirá-lo em mo­mentos assim. Ou pelo menos reconheciam que ali estava algo extraordinário e muito mais do que um orador natural, o que no final das contas não chegava a ser um fenômeno raro. Isso mesmo, ali estava um líder. A coisa de verdade.

Alice estava de pé ao lado da porta, pronta para sair depres­sa quando chegasse o momento de começar a preparar o chá. Escutava e observava os rostos: como reagiam, como os níveis de atenção eram levados por Jasper. Aquilo acontecia com freqüência quando Jasper começava a falar — um nervosismo, até mesmo uma tendência para risos reprimidos, talvez para fazer comentários sardónicos — pois seu estilo não era o comum bri­tânico, simples, bem-humorado de preferência, sensato. E é claro que Alice seria a primeira a admirar esse britanismo. Era nos­so! As características nacionais eram preciosas. Mas Jasper era um caso especial. Tinha de impor sua exaltação sobre os outros desde o início; e naquele dia não houve risinhos prontamente abafados por outros, que se situavam num nível superior, mais digno. As expressões que ela via não eram de crítica, longe dis­so; eles não confiavam em si mesmos para acreditar em alguma linda mensagem ou dádiva que lhes estava sendo oferecida por Jasper, não se sentiam à altura. Alice aprendera há muito tem­po que enquanto Jasper falava as pessoas não aplaudiam nem gritavam em aprovação. Permaneciam absolutamente silencio­sas — isto é, depois dos difíceis momentos iniciais; e quando ele acabasse de falar haveria um silêncio prolongando-se por cerca de quinze segundos, talvez mais. E em seguida viriam os aplau­sos, súbitos, fervorosos, até mesmo violentos; as pessoas se le­vantariam, gritariam e aclamariam. Os aplausos prosseguiriam assim até cessarem de repente.

E foi justamente o que aconteceu. Os aplausos ao final fo­ram como se alguma coisa se liberasse nas pessoas. Algumas mu­lheres estavam em lágrimas. Todos pareciam profundamente comovidos. (Nem todos; Alice notou que a mulher-ganso, sen­tada como parte de outra audiência, nem aplaudiu. Seus olhos se encontraram com os de Alice, mas seguiram adiante, como se ela não visse Alice, não quisesse ser chamada a explicar o lap­so em sentimento real, para não falar de boas maneiras.) De­pois todos se levantaram, os que já não estavam de pé, na necessidade de aplaudir mais calorosamente, de tão inspirados e inflamados por Jasper, aquele emissário do que ele próprio apregoava como "o futuro, nosso glorioso futuro". Não supor­tavam sentar de novo; embora o intervalo para o chá só estives­se previsto para dali a uma hora, os preparativos começaram naquele instante.

O intervalo prolongou-se por bastante tempo, pois havia muitas pessoas entretidas em conversas. Não eram sobre a UCC ou sequer sobre alguma coisa que Jasper dissera; seu discurso de abertura, na verdade, mal foi mencionado. Quando o inter­valo estava terminando — os camaradas Alice, Roberta e Bert tendo de gritar por cima da algazarra todos os tipos de ameaças e advertências terríveis, sempre divertidas, é claro, para fazerem as pessoas voltar à sala de estar —, Pat apareceu. E tinha uma aparência assustadora. Igualzinha a Bert, para ser mais exato. Estava pálida e magra, perdera o brilho de cereja. Bert e ela se abraçaram rapidamente, de um jeito convulsivo e até culpado; mas Pat não olhou para ele, e por isso Alice compreendeu que ela não ficaria por muito tempo.

Escolher Pat e não Jasper para fazer o discurso de abertura fora uma decisão sensata. O estilo dela era muito diferente do de Jasper, insinuante, bem-humorado, informativo. Pat não es­tava a par do discurso inspirador de Jasper, é claro. Ela contou como a UCC surgira — não de uma forma que apelasse para a emoção, mas explicando que fora uma decorrência da insatisfa­ção com os partidos socialistas existentes, que passou a analisar. Na verdade, estava fazendo uma análise curta mas competente da situação econômica na Inglaterra. As pessoas escutavam com toda a atenção, embora não como haviam ouvido o discurso de Jasper. Contribuíam com fatos e dados, riam sarcasticamente em pontos mais expressivos, havia pequenas ondas de aplau­sos. Fora uma tragédia, Alice sabia, Pat não ter chegado a tempo para o discurso de abertura, deixando Jasper para falar ao final do dia, como fora planejado. Do jeito como as coisas ficaram, era quase como se Jasper nem tivesse feito um discurso; fora tudo desperdiçado; nada parecia fluir do que ele dissera.

Quando o congresso foi suspenso para a sopa, sanduíches e comida que os camaradas de Londres haviam trazido, as conversas durante o longo intervalo, quando abordavam política, eram estimuladas pelos comentários de Pat. Mas o fato é que a maior parte das conversas não foi sobre política. Pessoas que não se viam há algum tempo, talvez anos, estavam se reencon­trando ali. Pessoas de mentalidade parecida se falavam pela pri­meira vez no início de amizades ou ligações amorosas. Pediam- se notícias dos camaradas em Birmingham, Liverpool e Halifax que não haviam podido comparecer. E havia também o reen­contro de antigos amantes; o relacionamento interrompido de Pat e Bert não era o único. Já eram quase três horas da tarde quando eles voltaram à sessão; e mais uma vez, Bert, Roberta e agora Pat também tiveram de gritar pela casa toda para inter­romper as muitas conversas em andamento, a fim de que o con­gresso prosseguisse.

A mulher-ganso não compareceu à sessão da tarde; já havia desaparecido antes mesmo do almoço. Ficara patente que ela aprovara o discurso de Pat, tanto quanto desaprovara o de Jasper, o que Alice lamentava no seu íntimo. Ela estava absolutamente convencida de que Muriel teria outro sentimento se ouvisse Jasper falar no momento oportuno, ao final, quando poderia exemplificar e resumir as emoções de todos.

Depois do almoço (embora já fosse quase a hora do chá), o primeiro ponto da agenda foi discutido: quais as tendências na atual situação britânica que indicavam o caminho para o futuro? As tendências apontadas foram: um, "a insatisfação com o desemprego, que tem de ser explorada"; dois, "a repulsa em massa do povo britânico pela política do governo em relação aos armamentos nucleares"; e três, "a rejeição florescente e ainda não expressa do povo britânico à política tory1na Irlanda do Norte".

Depois do chá, que não ocorreu antes das cinco horas, discutiu-se de que forma essas três tendências podiam ser enfa­tizadas e exploradas. Antes mesmo de terminarem de definir isso, chegaram mais pessoas, de diversas partes de Londres, que haviam ouvido falar do congresso e estavam interessadas... e também sabiam da festa depois. Apareceram camaradas de Liverpool e Birmingham que por um motivo ou outro não pu­deram chegar mais cedo. E veio um grupo da 45 (mas não o camarada Andrew). Havia de repente sessenta pessoas na sala, e estava desconfortável. Algumas se retiraram para o vestíbulo, onde sentaram a conversar, com muito riso e barulho. O con­gresso foi encerrado cedo, antes das sete horas, restando ainda o segundo ponto da agenda a ser discutido. Era "O futuro da Grã-Bretanha: socialismo pleno".

A festa noturna começou. Como uma explosão. A algazar­ra era impressionante, antes mesmo de a luz do dia se desvanecer. Apareceram os penetras, tornando impossível qualquer conversa política séria. Alice, Jasper, Pat e Bert corriam a todo instante para providenciar mais comida e bebida. Reggie e Mary contribuíram com um galão de sidra de Devon. A polícia che­gou às onze horas, não encontrou qualquer evidência de transgressão, foi recebida com calma e eficiência por Alice; entre eles estava a policial, que parecia agora quase uma velha amiga. Al­guns vizinhos bateram na porta à uma hora da madrugada, queixando-se de que não conseguiam dormir. Alice disse que lamentava muito, mas havia setenta pessoas na casa e com tanta gente tinha de haver barulho. Não gostariam de entrar e parti­cipar da festa?

Só às quatro horas da madrugada é que os exaustos camara­das se meteram em seus sacos de dormir, espalhados pelas duas casas. Ninguém se levantou antes do meio-dia, quando já estava na hora, pelo menos para alguns, de partirem de volta para suas cidades no norte. Isto é, ninguém se levantou mais cedo, com exceção de Alice, que arrumava tudo.

Ficou ocupada a servir sopa, sanduíches, chá e café durante a tarde inteira e início da noite. Uns poucos foliões passaram a noite de domingo na casa e foram embora na manhã de segunda-feira, bem cedo.

Pat também partiu. Estava chorando. E o mesmo acontecia com Bert. Alice comentou, irritada:

Mas que merda! Por que vocês não param com essa besteira?

Sentiu depois que devia pedir desculpas. Mas não beijou Pat na despedida, limitando-se a dizer:

Oh, Deus, estou cheia de tudo isso!

E desatou a chorar. Deixou para os outros o encargo de la­var tudo e foi deitar, sem se importar se Jasper estava por perto ou não.

Mas ele estava ali quando Alice acordou, agachado a seu la­do, com uma xícara de café na mão. Exibia uma expressão radiante, como um garoto que sabia que se comportara muito bem.

O que foi, Jasper?

A esperta Alice — murmurou ele, gentilmente. — Foi maravilhoso o que você fez.

Mas ela permaneceu deitada, os braços nos lados do corpo, os pés estendidos. Não estava pensando em Jasper, no congres­so ou na diversão e jogos do fim de semana. Havia um vazio em Alice, um poço, uma cova; sabia que sonhara com a casa agora trancada e com a placa de "Vende-se" na frente. E sabia que devia estar brilhando com lágrimas não-derramadas.

Preciso lhe dizer uma coisa, Alice.

Estou escutando — respondeu ela, formal e remota.

Percebeu que ele hesitava, estremecia. Jasper sentia-se esnobado. Ela deveria se importar, mas isso não acontecia.

Bert e eu... vamos para a União Soviética.

Depois de registrar a informação, Alice comentou:

Os camaradas irlandeses não quiseram aceitar vocês, e os soviéticos aceitarão?

Não era absolutamente um comentário desdenhoso ape­nas uma declaração de posição —, mas lhe valeu um olhar de ódio. Jasper levantou-se, pairando acima dela, um anjo furioso, pronto a lançar raios vingativos.

Não quero atitudes negativas e destrutivas de sua parte, Alice.

Pausa. Ela não se mexeu nem falou.

Indeciso, Jasper tornou a se agachar, disposto a conquistá-la.

Como podem ir tão depressa? Não se pode viajar para a União Soviética de um momento para outro.

Na noite de sábado, um dos camaradas de Manchester disse que sabia de um grupo de turistas que partiria para Mos­cou esta semana. Havia algumas vagas, porque várias pessoas desistiram, por causa da gripe. Podemos obter os vistos através do organizador da excursão. Já mandamos nossos passaportes e vamos recebê-los no momento da partida.

Isso é ótimo.

Uma pausa.

Alice...

Jasper começou hesitante, mas parou. Ia pedir dinheiro, mas sentia agora que seria inútil.

Você já me levou até o último penny, Jasper. E gastei o dinheiro da pensão da semana passada na festa. Não adianta tentar me arrancar qualquer coisa. Percebendo o rosto dele começar a assumir uma expressão ávida e cruel, Alice acrescen­tou, indiferente: E é impossível para mim arrancar mais di­nheiro de Dorothy ou de meu pai.

Ele permaneceu ali, agachado, uma das mãos no chão, estudando o rosto de Alice. Depois levantou-se e encaminhou-se para a porta. Quando Jasper estava saindo, ela comentou:

Se Pat voltar antes da partida, Bert não irá com você.

Ele bateu a porta; Alice não virou a cabeça para observá-lo,

mas continuou imóvel, como uma pedra ou um cadáver, sem vida, olhando pela janela, agora emoldurada pelas lindas cortinas de brocado, verdes e douradas, que antes estavam pendura­das na sala de estar da casa de sua mãe.

Ela dormiu. Acordou ao final da tarde numa casa vazia, to­mou um banho, pôs uma saia que fora da mãe, de lã macia, com enormes rosas sobre um fundo marrom-claro, e um suéter rosa que Pat lhe dera.

Saiu direto da casa e foi para a 45, onde entrou sem bater; o fim de semana fizera com que as duas casas se tornassem uma só. Da cozinha um buraco sórdido, não alegre e decorado com flores como a da 43 — saiu Muriel-ganso, que lhe ofereceu um sorriso pós-festa rigorosamente racionado.

Se Andrew está, quero falar com ele.

A fim de evitar mais arranhões insinuantes na porta, Alice acompanhou Muriel e bateu.

Entre.

Alice entrou, fechando a porta a Muriel. O camarada An­drew estava deitado, esticado como um soldado, como Alice se postara antes, em sua cama baixa, mas com os braços cruzados sobre o peito.

Ele virou as pernas e baixou-as, sentou, abriu um espaço para Alice sentar ao seu lado. Ela assim o fez, mantendo uma distância apropriada.

Preciso saber algumas coisas anunciou ela.

Está certo.

Mas ela ficou calada, apática, não continuou.

Andrew estudou-a por algum tempo, abertamente, sem qualquer tentativa de disfarçar, depois tornou a deitar na cama es­treita, quase encostado na parede. Puxou Alice pelo braço; sem resistir, ela estendeu-se a seu lado. Havia pelo menos uns quin­ze centímetros entre os dois. Ele não a tocou.

Sabia que Bert e Jasper vão para Moscou?

Sabia.

Uma pausa. Alice pensava. Como sempre fazia: uma defi­nição lenta e meticulosa das possibilidades latentes em tudo.

Mas não foi você quem sugeriu.

Não, não fui eu.

Não.

O silêncio prolongou-se. Andrew chegou a especular se ela não viera até ali para dormir, de tão pálida e exausta que parecia. Examinou-a, virando um pouco a cabeça, depois pegou-lhe o pulso direito gentilmente, com a mão esquerda. Alice ficou tensa, depois relaxou: era muito diferente do aperto assassino que Jasper usava.

Você devia se livrar logo dessa gentalha, Alice.

Gentalha! explodiu ela, com toda a energia que lhe restava. São pessoas!

Andrew insistiu, deliberadamente:

Gentalha.

Ela prendeu a respiração, mas deixou escapar suavemente:

O que Muriel lhe contou?

O que acha que ela me disse? Você não é estúpida, Alice.

Ela podia sentir que estava inchando e se derretendo. Calculou que lágrimas escorriam por suas faces.

E o que me diz da festa? ela quase soluçou. Não estava lá!

Andrew permaneceu calado. Depois, gentilmente, passou o braço sob o pescoço de Alice, pondo a mão esquerda na parte superior de seu braço. Parecia, ao mesmo tempo, estar amparando-a e cuidando para que ela não pudesse escapar.

Você deve se afastar daquelas pessoas, Alice.

Está se referindo a Jasper.

A Jasper, Bert e os outros. Todos se ocupam apenas com joguinhos sem importância.

Eles não pensam assim.

Não, mas tenho certeza de que você pensa.

Outro silêncio. Alice quase relaxara agora no braço de Andrew, que estendeu a mão direita e a colocou em sua cintura, por baixo dos seios. Mas ela não queria e não podia ter aquele contato, e afastou a mão, irritada.

Eles estão brincando, Alice, como crianças com explosi­vos. São muito perigosos. Perigosos para si mesmos e para os outros.

E você não é perigoso?

Não, não sou.

Ela deu uma risada breve, desdenhosa, mas também impregnada de admiração.

Não sou mesmo, Alice. Se você faz as coisas direito e com todo o cuidado, então as únicas pessoas que saem machu­cadas são as que deveriam se machucar.

Alice pensou sobre isso por um longo tempo e ele não a interrompeu.

De quem você recebeordens, Andrew?

Eu recebo ordens. E as dou.

Ela pensou um pouco.

Foi treinado na União Soviética?

Fui.

Você é russo.

Meio russo. Meu pai era irlandês. Mas não vou entediá- la com a minha interessante história.

Houve agora uma pausa prolongada, cerca de dez minutos. Alice poderia facilmente adormecer, pois sua respiração era lenta e profunda, mas manteve os olhos abertos.

Andrew se virou um pouco para ela; no mesmo instante, Alice ficou tensa e se afastou, embora ainda envolvida pelo seu braço.

É uma mulher pura e boa murmurou o camarada Andrew. É o que me agrada em você.

Isso, ao que parecia, poderia levar Alice a uma reflexão ain­da mais demorada da que acontecera com relação aos comentários anteriores. O que Andrew podia ver em seu rosto era uma expressão distraída, quase aturdida, em decorrência da exaustão, mas havia também um certo recato, que quase o estimulou a esforços adicionais. Quase: alguma coisa o conteve, talvez o fato de que o recato encobria uma reação surpreendentemente violenta à palavra "pura". Será que ela, Alice, era mesmo pura? E fora assim durante todo aquele tempo, sem o saber? Talvez devesse pensar a respeito; se era pura, então teria de conviver com isso! Essa era a palavra! Não se podia mais usar a palavra "pura" na Inglaterra daquele jeito, estava fora de moda, era um absurdo. E se ele não sabia disso, então... Como eram treina­das as pessoas como Andrew? Talvez não importasse que ele fosse tão estranho, tão diferente; afinal, a Inglaterra estava cheia de estrangeiros. Tivera importância ali, na 43 e 45? Mas tudo dependia do que ele queria fazer. Apresentar-se como Lênin não incomodara ninguém (com exceção de Faye e Roberta), mas tam­bém ela, Alice, só conhecia uma parte da história. O que mais havia? Finalmente, ele rompeu o silêncio:

Acho que você deveria tirar umas férias, Alice.

O que a surpreendeu tanto que ela tentou sentar, mas An­drew tornou a puxá-la para baixo.

Alice estava agora junto dele, e o corpo forte e quente de Andrew começou a irradiar ondas de sensação por todo o seu corpo. Ela sentia-se fascinada e repugnada. Mantinha os olhos fixados no teto, porque sabia o que veria se os baixasse pelo cor­po de Andrew. Não ia se envolver com aquilo, pura ou não!

Não entendo por que está sempre querendo que eu faça coisas de classe média.

O que há de classe média em férias? Todo mundo tem direito a férias. A vida moderna é muito ruim para todos.

Alice pensou que ele estava zombando, mas um olhar confirmou que não era esse o caso.

Mas para onde eu poderia ir? Você despreza todas as pessoas que conheço.

Eu não disse todas. De jeito nenhum.

Pelo que me lembro, não gosta de Pat. Sabia que ela dei­xou Bert porque também acha que ele não é uma pessoa séria?

Sabia. Ela é uma pessoa séria, Alice. Como você.

Mas queria que Bert fizesse alguma coisa.

Mudei de idéia a respeito dele. Foi um erro de jul­gamento.

Não sei... — murmurou Alice, cansada, depois de uma pausa, começando a se sentir uma garotinha a fungar.

Pois eu sei. Está cansada, camarada Alice. Trabalha e trabalha, mas a maioria daquelas pessoas não vale a pena.

A essa altura ela deixou escapar um gemido genuíno, como uma criança, aconchegada contra Andrew, que murmurava pa­ra confortá-la e acalmá-la. E Alice chorou.

Pobre Alice... Mas não adianta chorar. Terá de tomar uma decisão. Aqueles dois Errol Flynns vão para Moscou. Por que você não vai embora antes de eles voltarem?

Errol Flynn!

Não gosta de Errol Flynn? Sempre adorei os seus filmes.

Há uma grande diferença entre nossas duas culturas — declarou Alice, falando para o peito de Andrew.

Os dois estavam deitados de tal maneira que a protuberân­cia dura de Andrew se mantinha a distância e por isso não a incomodava.

Isso é verdade. Mas as pessoas gostam de Errol Flynn, não é? Se não fosse assim, por que ele seria um astro famoso?

Vou pensar sobre tudo isso.

Deve mesmo.

E quando você vai voltar?

Como soube que eu ia viajar?

Pensei que poderia.

Andrew hesitou.

Tem razão. Vou me ausentar, provavelmente por algu­mas semanas... — Sentiu que Alice parecia encolher e acres­centou: — Ou talvez apenas por uma ou duas semanas. — Outra pausa. — E você deve se separar, Alice. Acredite em mim. Tenho um pouco de experiência com esse tipo de gente. Onde pes­soas assim estão, há sempre encrenca.

Depois de alguns minutos, ela se sentou, afastando as mãos de Andrew, de uma maneira escrupulosa, como uma dona-de- casa.

Obrigada, camarada Andrew. Pensarei com muito cui­dado a respeito de tudo o que me disse.

Eu também lhe agradeço, camarada Alice. Tenho certe­za de que vai pensar bastante.

Da porta, Alice virou-se para oferecer-lhe um sorriso contrafeito e depois saiu, apressando-se para não ter de falar com Muriel, que podia ser uma pessoa séria, mas não era alguém de quem estivesse disposta a gostar, nem mesmo por ordem do ca­marada Andrew.

Os poucos dias que se seguiram foram os mais felizes que Alice já conhecera.

De modo geral, quando Jasper estava a reboque uma expressão que outras pessoas usavam, não ela de uma figura de irmão, como Bert, Alice quase não o via. Mas agora eles a con­vidavam para acompanhá-los em tudo o que faziam. Ao cine­ma, mais de uma vez. Ao National Theatre Bert comentou que Shakespeare tinha muitas lições para a luta e que deviam aprender a usar cada arma que a vida lhes oferecia, se não que­riam ser marxistas primitivos. Passaram uma noite num pub que Alice sabia que fora escolhido com todo o cuidado por Jasper, a fim de não mostrar a ela nada de sua outra vida. Nem a Bert...

Mas o melhor de tudo, embora não saíssem para pichações, que era a atividade predileta de Alice, foi a sugestão de Jasper para uma manifestação. Alice sabia que ele fazia aquilo para agradá-la e compensar sua ausência.

As discussões sobre o local e contra quem se manifestariam foram tão agradáveis quanto a própria expedição. É claro que naquele estágio fascista da história britânica não podia haver ca­rência de alguma coisa contra a qual protestar, mas por acaso o fim de semana próximo era rico em opções. O secretário de Defesa falaria em Liverpool, a primeira-ministra em Milches- ter, e um certo professor americano fascista em Londres. Sua "linha" a de que as diferenças entre os seres humanos eram determinadas pela genética, não pela cultura enfureceu o Mo­vimento Feminista, como era de esperar. Faye ficava histérica à simples menção de seu nome. Na noite de sexta-feira, depois de um bom jantar da sopa de Alice e de pizza, eles sentaram e conversaram sobre o dia seguinte.

A cozinha estava alegre, transbordando de vida. O vaso no banquinho tinha tulipas e lilases. Reggie e Mary contribuíram com duas garrafas de vinho tinto, sobre o qual Reggie natu­ralmentefalou como um entendido.

Embora o dia seguinte já fosse maio, eles pareciam envol­tos por uma chuva fria e incessante, o que fazia com que a cena e a companhia se tornassem ainda mais agradáveis. Era o que Alice pensava, risonha e grata, apesar de sentir um aperto no coração. Seu pobre coração parecia levar uma vida própria nos últimos dias, recusando-se a dar atenção ao que ela pensava. Mas ficar ali noite afora, com bons amigos, era agradável. Pois des­de a festa que os unira muitas das tensões pareciam ter se dis­sipado.

Até Philip, que trabalharia durante o fim de semana e não poderia acompanhá-los na manifestação, contribuiu com pensamentos úteis. Por exemplo, o de que a manifestação do Green- peace seria sua escolha: só por causa dos esforços do Greenpeace é que o governo fora forçado a admitir a extensão da poluição radiativa; se não fosse por isso, continuaria a mentir a respeito. Reggie e Mary, que no dia seguinte viajariam para Cumberland, gostaram da sugestão: fora dito o que eles sentiam. Pois os dois e não podiam evitar a impressão de que pensavam assim achavam que a manifestação sobre questões específicas, como a poluição costeira, era mais eficaz do que um protesto geral, "como berrar e gritar contra Maggie Thatcher".

Demonstrando assim o que sentia em relação à política dos outros ou pelo menos de seus métodos, Reggie esfriou um pou­co o bom humor, embora ainda fosse bastante intenso para levá-los a zombar do casal do Greenpeace com um coro vigoroso de vaias, e resmungos.

E isso mesmo interveio Mary, pondo a mão na de Reggie, para lhe dar apoio —, vocês não vão mudar as idéias dela com algumas vaias. Mas os fatos poderão mudá-las.

Concordo murmurou Philip.

Era um esforço para ele fazer isso, desafiar os verdadeiros detentores do poder na comuna (como agora se intitulavam, não mais os meros ocupantes autorizados de uma casa abandona­da). Parecia ainda mais frágil e menor do que antes de começar o novo trabalho. Dava a impressão de definhar. Seus olhos es­tavam avermelhados. Mas havia também uma expressão dura e irada; passava por maus momentos no trabalho, que ia muito devagar, segundo o grego que o contratara.

Todo aquele amor e harmonia eram bastante precários, pensava Alice, enquanto sorria; bastava que acontecesse uma coisi­nha qualquer e tudo desaparecia. Pôs as mãos em torno da caneca com café, sentindo o calor espalhar-se pelo corpo, e refletiu: E como uma família.

Faye estava dizendo, os dentes à mostra, em sua expressão característica e excitação fria:

Vaias? Gritos? Eu vou matar aquele desgraçado! Que di­reito tem ele de vir para cá com todo o seu veneno nojento con­tra as mulheres? Já temos os nossos próprios reacionários em quantidade suficiente!

Todos saindo de seus buracos e mostrando as suas verdadeiras cores acrescentou Roberta. Vai conosco, Jasper? E você, Bert? Vão demonstrar sua solidariedade às mulheres?

Uma pausa. Era para Milchester que Alice desejava ir. Para a senhora Thatcher. Mas havia uma carona para Liverpool e não custaria nada. Jasper sabia que ela preferia Milchester. E Bert também. Alice dissera que não tinha dinheiro. O que era verdade, contava apenas com a pensão. Estava disposta a ir para Liverpool. Odiava o secretário de Defesa, e não apenas por causa de sua política... havia alguma coisa naquela sua cara in­sidiosa e maligna de tory...

Quanto ao professor americano fascista, ela não podia entender o que Roberta, Faye e os outros estavam querendo. Ja­mais pudera compreender por que a palavra "genética" provo­cava tanta raiva. Achava que elas bancavam as tolas, até mesmo frívolas. Se as coisas eram assim, então... então eram e ponto final. Era preciso desenvolver o resto a partir daí.

Certa ocasião, há muito tempo, em seus dias de estudante, ela comentara a sério, inquisitiva (numa tentativa sincera de harmonia, baseada em opiniões partilhadas) que as mulheres tinham seios "e todo esse tipo de coisas", enquanto os homens "eram equipados de maneira diferente", isso não era genético? E se assim era, então as glândulas e hormônios não deviam ser diferentes? Geneticamente? Isso causara uma tempestade de res­sentimentos, da qual a comuna levara dias para se recuperar. Todo aquele negócio de sexo, pensava Alice, era sempre assim! Qualquer coisa relacionada com sexo! Deixava as pessoas dese­quilibradas. Fora de si. Era preciso aprender a ficar quieta e dei­xar que os outros se envolvessem. Só queria que a deixassem de fora...

Há vinte anos ou mais, sua mãe, em seu jeito descuidado, amistoso, clamoroso, maternal-prosaico, informara a Alice que ela iria em breve menstruar, mas tinha certeza de que de qual­quer maneira a filha já sabia de tudo a respeito. Claro que Alice estava a par de tudo pela escola, mas o fato de a mãe lhe falar incluía em sua agenda, por assim dizer, fazia com que se tornas­se real. Ficara furiosa, não com a natureza, mas com a mãe. Daí por diante, sua atitude em relação "à praga" — a mãe insistira em usar essa palavra espirituosa, alegando que era acurada — fora de eficiência neutra. Não permitiria que qualquer coisa tão tediosa se intrometesse em sua maneira de viver.

Quando as pessoas a sondavam sobre suas atitudes em rela­ção ao feminismo e à política sexual, era sempre a esse começo (como o considerava) que ela remontava.

"Claro que as pessoas devem ser iguais", comentava, já começando a parecer um pouco irritada. "Nem é preciso dizer."

Em suma, ela sempre se descobria numa posição falsa.

Agora, em silêncio, aninhando o café a esfriar depressa, ela sorria e esperava que o assunto do professor fascista ficasse para trás. Foi o que aconteceu, e Bert comentou:

Sempre gostei de Milchester.

Isso pareceu completamente despropositado a várias pessoas. Será que ele estava bêbado? Sem dúvida já havia bebido mais do que a sua cota habitual. Todos o tratavam com indulgência nos últimos tempos, por causa de Pat. Talvez inconscientemente. Sua aparência, seu estado reclamavam isso das pessoas. Bert an­dava esquelético, apático, até mesmo distraído; era como se ou­tros pensamentos corressem paralelos aos que ele expressava. E Bert acrescentou:

Sempre foi uma cidade com guarnição militar.

Exclamações de incredulidade. Faye disse:

Oh, Deus, você ficou louco? Gosta dessas coisas? Guer­ra, soldados?

E interessante — insistiu Bert. — Porque as cidades continuam iguais por séculos e séculos. Milchester já era uma cidade-guarnição no tempo dos romanos.

Silêncio. Atordoados com o rumo tão diferente do habitual, os outros lembraram que Bert estudara história na universidade.

E o mesmo acontece com os países, diga-se de passagem — continuou Bert. — A Inglaterra é sempre igual. A Rússia também. A Alemanha...

A qualquer momento vamos ter o caráter nacional, co­mo o destino genético — interveio Faye, furiosa.

Retornando à realidade pelo tom de Faye, Bert deu de om­bros e se calou.

Vamos para Milchester — declarou Jasper.

Olhando para Alice, ele sorriu e depois piscou. Orgulhosamente: ele sentia orgulho por tratá-la tão bem. Isso significava que Jasper pagaria para ela a passagem de trem. Tarifa de fim de semana. Onze libras. Pelos três, trinta e três libras. Com esse dinheiro poderiam comprar... Mas isso era absurdo, as pes­soas precisavam de um descanso. Férias. O camarada Andrew assim dissera.

Ela sorriu com intimidade para Jasper, lágrimas de gratidão iminentes, mas os olhos dele desviaram-se da pressão de sua emo­ção, Faye disse a Roberta, com a maior veemência:

Parece que nós duas ficaremos sozinhas!

Nunca sozinhas, querida. Tenho certeza de que vai apa­recer uma porção de gente.

Faye deu uma risadinha, olhando acusadora para os camaradas, depois acrescentou:

Vou dormir.

E saiu sem se despedir. Roberta sorriu, pedindo a todos tolerância para com Faye, e saiu em seu encalço. Puderam ouvir Faye dizer na escada que eram todos fascistas e machistas. Sor­riram uns para os outros.

Reggie e Mary disseram que viriam buscá-los às cinco ho­ras da manhã seguinte para chegarem a Cumberland a tempo para a manifestação, e por isso queriam dormir cedo.

Philip também saiu; começaria a trabalhar às oito horas da manhã.

Jasper, Bert e Alice continuaram na cozinha, discutindo o dia seguinte. Alice compreendeu que Jasper não queria que ela jogasse ovos ou frutas na senhora Thatcher. Ele não chegou a dizê-lo, mas era óbvio. O que significava que ele a queria a seu lado, não na prisão. Isso a deixou na maior felicidade e gratidão. Impulsos afetuosos atacavam seus braços incessantemente: ansiavam por abraçá-lo. Beijos fraternais habitavam seus sorri­sos. Jasper sentiu isso e passou a se dirigir pessoalmente a Bert, embora explicasse os planos a ela. Não deixaria que o prendes­sem, porque em breve partiria com Bert para a União Soviéti­ca. Os vistos seriam concedidos a qualquer momento, mas se não desse para aquela viagem, então haveria outra com vagas dentro de uma semana.

Alice estava desapontada por ter de ficar na parte ordeira da multidão, mas não tinha importância, pois sempre haveria outras ocasiões.

Bert anunciou que ia deitar. Jasper se levantou no mesmo instante e disse que também ia. Alice compreendeu que Jasper não queria ficar a sós com ela, embora soubesse que ele se sentia feliz por tê-la ali, quando Bert também estava. Ela subiu pa­ra o quarto que partilhara com ele, ao lado do quarto de Bert. Sem a companhia de Pat, é claro que Bert fazia menos barulho, mas andava dormindo mal, como Alice podia ouvir. E naquela noite, mesmo com a porta fechada, ela pôde ouvir que Faye es­tava tendo um dos seus ataques.

"Faye teve um dos seus ataques ontem à noite", Roberta poderia dizer, esquecida de que a frase antiquada — vitoriana? — uma vez usada jocosamente por Faye ("Eu estava tendo um dos meus ataques, minha cara"), tinha o objetivo de ser cômica e por isso se tornara parte do linguajar comum. Nos momen­tos em que Roberta a usava, adquiria uma aparência corriquei­ra, passada, era como uma serva ou pessoa da classe mais inferior falando numa peça. Teatral. Quando Faye e Roberta eram au­tênticas? Só quando se sentiam derrotadas, abatidas, por algu­ma pessoa ou situação, pressionadas a se tornarem pessoas que usavam aquelas vozes desgraciosas, rudes e impetuosas, que fa­ziam com que parecessem assumidas por estranhas lamentá­veis... e não se podia esperar que tais estranhas conhecessem Faye e Roberta.

Alice dormiu mal. Acordou para ouvir Reggie e Mary des­cerem; suas vozes joviais soavam altas, como se fossem as úni­cas pessoas na casa, que lhes pertencia. Ouviu Roberta e Faye descerem, quietas, sem falar. Eram nove horas quando Bert acor­dou, no quarto ao lado. Ele pôs-se a acender um cigarro depois de outro. Alice pensou: Talvez acabemos não comparecendo à manifestação contra a desgraçada da Thatcher hoje. E desceu para a cozinha, determinada a não deixar transparecer seu desa­pontamento. Em seguida Bert apareceu, foi acordar Jasper, que poderia cancelar a excursão com a maior facilidade, como Ali­ce logo percebeu. Chovia muito.

Mas eles deixaram a casa e foram pegar o trem, ficaram observando Londres dar lugar aos campos, através das janelas su­jas do vagão e das mortalhas cinzentas de chuva. Bert mantinha-se em silêncio, acalentando seus pensamentos, que — Alice desconfiava — partilharia com Jasper, se ela não estivesse pre­sente. Jasper a tratava com extrema polidez.

Saltaram na estação e pegaram um ônibus para a universi­dade. Os prédios enormes e frios assomaram através do agua­ceiro. Alice sentiu um ódio assassino povoar seu coração. Conhecia a maioria das novas universidades; visitara-as, lá par­ticipara de manifestações. Quando contemplava uma, sentia que se confrontava com a personificação visível do mal, algo que desejava esmagar e reduzir a nada. O inimigo. Se eu pudesse pôr uma bomba debaixo de todos esses prédios, pensou, se eu pu­desse... Um dia desses...

Estavam atrasados. Diante da entrada principal se agrupa­vam cerca de sessenta manifestantes, sob capas de plástico e guarda-chuvas, vigiados por oitenta e tantos guardas. Ao depa­rar com a cena, Jasper se animou e correu para a frente, gritando:

Porcos fascistas! Porcos! Porcos! Covardes! Quantos de vocês são necessários para cada manifestante?

Alice correu para alcançá-lo, a fim de se manter a seu lado, pronta para acalmá-lo. Bert se foi atrás, devagar, andando, não correndo.

Os carros oficiais se aproximaram. Antes que Alice, Jasper e Bert pudessem alcançar a multidão, a senhora Thatcher sal­tou e foi levada rapidamente para o interior. Frutas e — como Alice esperava — ovos voaram pelo ar e se espatifaram com um barulho abafado. A senhora Thatcher já entrara.

Os manifestantes entoaram um coro de: "Fora os mísseis nucleares, fora, fora! Fora os mísseis nucleares, fora, fora!"

E continuaram, bravamente. A senhora Thatcher ficaria lá dentro pelo menos por duas horas.

Os guardas estavam entediados e ressentidos, obrigados a ficar parados ali, sob a chuva; estavam prontos para a menor provocação. Uma garota perto de Alice pegou uma laranja gran­de no chão e arremessou-a num guarda, cujo capacete foi der­rubado. Na maior satisfação, dois guardas avançaram para ela. A garota esquivou-se pela multidão por um momento, mas eles acabaram agarrando-a e arrastaram-na, inerte, os cabelos casta­nhos compridos encharcados em sua esteira, para um cambu­rão. Os dois guardas voltaram sob um coro de vaias. Alice podia sentir que Jasper a seu lado vibrava com uma excitação frustra­da. Ele ansiava por uma luta de verdade. E Alice também. Até os guardas, que sorriam com um ar de desafio para os manifes­tantes. Alice, lembrando seu papel, disse a Jasper:

Tome cuidado com aquele ali. É um carrasco e está an­sioso pela oportunidade de acertar você. — Como Jasper pare­cia prestes a explodir em ação, ela acrescentou: — Não se esqueça de que hoje é sábado. Não queremos passar o fim de semana na cadeia. E não se esqueça também de sua viagem.

Outros, menos onerados pelas circunstâncias, jogaram fru­tas e ovos nos guardas e foram prontamente levados para os camburões à espera.

A porra do Estado policial! — berrou Jasper, quase descontrolado de tanta excitação.

Ele corria pela multidão, como se estivesse sendo persegui­do. A multidão aproveitou sua deixa, gritando também:

Estado policial! Estado policial!

Alice percebeu que os policiais trocavam um sinal com os olhos; compreendeu que todos seriam presos à menor provoca­ção. Ansiava por isso, ansiava pelo momento em que sentiria a violência rude das mãos dos guardas em seus ombros, ficaria inerte, seria arrastada para o camburão... Mas ela disse a Jasper:

Vamos correr.

E os dois se afastaram, de mãos dadas. Bert, parado sozinho à beira da multidão, também se afastou quando começaram as prisões. Mas logo parou e ficou observando. Acabaria sendo pre­so dentro de mais um momento. Alice, o sangue em fogo, o rosto distorcido pela excitação, saiu correndo, esgueirando-se entre os guardas, admirando a própria habilidade. Agarrou Bert e gritou:

Vamos sair daqui!

Despertado, Bert murmurou:

Ah, sim... Isso mesmo, Alice.

E ele seguiu-a.

Agarrem-nos! — gritou um guarda, enquanto os três se afastavam em disparada.

Cinco ou seis guardas foram atrás deles, mas um escorre­gou numa poça, caiu e deslizou pela lama, tentou se levantar e caiu de novo. Os outros se agruparam ao seu redor. Desapontados porque a perseguição fora tão breve, Bert, Jasper e Alice encaminharam-se para o ponto do ônibus. A chuva era intensa e fria.

Sentiam-se deprimidos, agora que não havia mais o desafio da polícia. Não fora uma confrontação das mais satisfatórias. Todos pensavam que haviam gastado muito dinheiro por pouca coisa.

Entraram num café. Os homens comeram salsichas e bata­tas fritas. Alice pediu uma saudável sopa de legumes.

Debateram se deveriam voltar à universidade para a saída da senhora Thatcher. Alice era a favor, embora temesse o efei­to sobre Jasper daquele rosto tory,rosa e branco, seguro e complacente. Se ele passasse o fim de semana na cadeia, a passagem não teria mais validade, e as tarifas para a segunda-feira eram o dobro.

Mas ela sentia que não fizera o suficiente pelo dinheiro investido.

Concordaram em voltar, a fim de demonstrar solidarieda­de aos outros se é que ainda restava algum manifestante por lá. Mas a chuva apertou. Um autêntico dilúvio tropical, se é que uma chuva tão fria merecia o nome de tropical.

Foram para a estação e, deprimidos, voltaram para Londres. Lá chegando, foram ao cinema. Em casa, encontraram Faye e Roberta na cozinha e trocaram informações. Ficou evidente que eles Jasper, Bert e Alice teriam feito muito melhor se com­parecessem à manifestação contra o professor, que fora um tre­mendo sucesso. Cerca de mil pessoas, garantiu Faye auto­maticamente Alice corrigiu para "seiscentas". A maioria de mu­lheres, mas também muitos homens. Empurraram o professor de um lado para outro, quase o derrubaram, deixaram-no com­pletamente abalado.

Isso pelo menos fará com que ele pense um pouco comentou Roberta, feliz, lembrando como gritara que ele era um machista nojento, a soldo dos fascistas.

Até mesmo a manifestação contra Thatcher parecia eficaz, em retrospectiva. Afinal, algumas pessoas haviam sido presas. Reggie e Mary tinham uma televisão no quarto, como não podia deixar de ser. Todos subiram e se apinharam lá dentro, fa­zendo piadas sobre a cama enorme, os móveis impecáveis, os tapetes. Sentaram na cama e assistiram aos noticiários. Não hou­ve qualquer referência ao professor fascista, mas exibiram um breve filme dos manifestantes lutando com a polícia na univer­sidade. Os três ficaram desapontados por não aparecerem na tela. O locutor informou que em determinado momento a polícia receara que tivesse sido lançada uma bomba.

Foi uma laranja! gritou Alice.

Todos riram e escarneceram, desceram para mais conversa na cozinha, levando quatro garrafas de vinho de uma caixa que Mary e Reggie tinham guardada sob a cômoda.

Eles não vão se importar disse Faye, rindo, mas de uma forma que indicava que todos sabiam que eles se importa­riam e muito.

Philip chegou, mas estava cansado e foi logo deitar.

Os cinco ficaram bebendo e conversando até tarde.

As manifestações pareciam cada vez melhores à medida que a noite passava. Beberam aos camaradas nas celas da polícia. Alice sentia-se triste por não estar lá. Há algum tempo que não era presa, e já começava a achar que não estava se empenhando ao máximo na Luta. Mas ainda bem que isso não aconteceu, pois na segunda-feira Jasper e Bert foram informados de que os vistos haviam sido concedidos e podiam viajar. Eles partiram na­quela tarde. Alice murmurou, no momento da despedida:

Espero vocês dentro de dez dias.

Percebeu que os dois trocavam um olhar — mais uma vez, o ridículo, insultuoso e absolutamente óbvio olhar "secreto" que as pessoas sempre usavam. Ocorreu-lhe, de maneira desconcertante, que eles não esperavam voltar em dez dias.

Ela pensou em tudo isso com muito cuidado, dormiu com o problema, no dia seguinte mandou um recado para o endere­ço que Pat lhe deixara.

"Bert e Jasper viajaram", escreveu ela. "Por que você não vem passar um ou dois dias comigo? Se não vier, escreva, por favor. Sabe alguma coisa sobre a viagem? Bert por acaso disse que não voltaria em dez dias?"

A carta provocou um cartão em resposta: "Telefone para mim às nove horas de quinta ou sexta-feira. Muito amor, Pat". Esse "muito amor" magoou Alice e fê-la chorar um pouco.

Quando ouviu a voz exuberante, firme e agradável de Pat, Alice suplicou:

Volte, por favor, Pat.

Estou sem dinheiro.

Pagarei sua passagem. Venha logo.

Pat disse que iria e Alice compreendeu, pela melhoria em seu ânimo, quão pouco se sentia à vontade com Faye e Rober­ta, quão pouco tinha em comum com os respeitáveis Reggie e Mary.

Pat chegou no dia seguinte, e as duas requisitaram a sala de estar, ali se instalaram, conversando, trocando as novidades. Pat encontrara, na comuna em que agora vivia, pessoas que Alice conhecia. Ela teve de contar a manifestação anti-Thatcher. Tam­bém mencionou, delicadamente, o professor fascista, esperan­do algum apoio de Pat para seus pensamentos particulares. Mas no rosto de Pat surgiu aquela expressão desamparada e ressenti­da que Alice meio que esperava. Ela pegou o cigarro e pôs-se a fumar furiosamente.

Não pode imaginar que é por acaso que toda essa histó­ria de diferença genética está sendo apregoada agora, Alice!

Por quê? — indagou Alice, tímida, mas obstinada. — Es­tá querendo dizer que ele é pago para isso? Por quem? Pela CIA?

Pat sacudiu a cabeça, cada vez mais furiosa, soprou nuvens amargas e disse, vagamente:

E por que não?

Alice resolveu parar por aí; não havia sentido em continuar. Em vez disso, perguntou a Pat por que seria que ela, Alice, tinha a impressão de que Bert e Jasper não planejavam voltar pa­ra casa tão cedo. Pat suspirou e fitou a amiga com uma compaixão inequívoca.

Eles estarão em casa, Alice, no dia marcado disse ela, gentilmente. Mas pensam que não voltarão tão cedo, entende?

Alice compreendia. Mais do que isso, percebera tudo no momento em que Jasper falara a respeito pela primeira vez. Mas depois bloqueara o pensamento, porque era dolorosamente ri­dículo.

É a Irlanda outra vez. Eles planejaram tudo. Dirão ao guia da Intourist: "Camarada, queremos falar com alguém que tenha autoridade".

Santo Deus! murmurou Alice, envergonhada. Essa não!

É exatamente o que vai acontecer. E é claro que o guia da Intourist vai responder: "Com quem gostariam de conver­sar, camaradas? Com o camarada Andropov?" Jasper e Bert di­rão, modestamente: "Oh, não, não é preciso tanto. Alguém menos importante servirá para nós".

Pat estava rindo, mas não feliz, já que escarnecia de Bert; e Alice sofria por Jasper.

No mesmo instante camaradas importantes vão aparecer e dizer: "Camarada Willis, camarada Barnes? Ao seu dispor!" Jasper e Bert explicarão que resolveram fazer o treinamento para espiões, de preferência na Tchecoslováquia ou Lituânia. "Mas é claro! Que idéia excelente! Precisaremos apenas de uma ou duas horas para acertar tudo. Esperem um pouco pela mi­nha volta, camaradas."

Alice riu irresoluta, parou de rir e comentou:

Tem toda a razão. Mas o que me diz do camarada Andrew?

O que tem o camarada Andrew?

Não acha que ele é descuidado demais? Pergunta a qual­quer pessoa com quem simpatiza se não quer fazer um peque­no treinamento.

Ele não foi muito feliz em sua escolha.

Bert?

Bert recusou. Mas tente imaginar Bert sob disciplina em algum lugar. Em alguma espécie de situação estruturada. Ele tem muitas qualidades.

E eu? indagou Alice, hesitante. Vai dizer que preci­so de uma situação estruturada?

Claro que não. O que precisa é...

Está bem, está bem, já sei. Livrar-me de Jasper.

Pobre Alice...

E pobre Pat!

Isso também!

Alice encostou a cabeça no braço da poltrona, esvaída de toda a energia, como acontecia nos momentos em que contem­plava Jasper claramente.

As duas permaneceram em silêncio por alguns minutos. Alice não se mexia; Pat fumava, irrequieta.

Além disso, há muita gente sabendo, Pat. O que impe­diria as pessoas de informar?

Informar à polícia?

Isso mesmo.

Qual de nós faria isso?

Alice deixou que os rostos das pessoas conhecidas desfilas­sem diante de seus olhos. Empertigou-se, de olhos fechados, contemplando aqueles retratos mentais. Faye. Roberta. Bert. Jasper. Pat. Ela própria. Muriel. Caroline? Jocelin?

Acho que ninguém.

Mas continuou como estava, empertigada, olhando. Agora era a sua cena com Andrew depois que ela vira o... o que quer que havia no fundo do buraco no jardim da 45. Pat não sabia disso. Somente ela, Alice, sabia... Somente ela, Alice, sabia, porque não contara a ninguém e jamais contaria. Era de con­fiança. Porque isso era verdade, e sentia confiança em sua abso­luta discrição, também sentia confiança no camarada Andrew.

Isso mesmo, acho que concordo com você, Pat.

Falou com modéstia, com um ar de discrição, de julgamen­to ponderado. Pat sorriu com afeição, porque era uma atitude típica de Alice; e disse, mudando deliberadamente de assunto e de ânimo:

E agora vamos nos divertir! Foi para isso que vim até aqui!

Pat sugeriu então uma porção de pequenos prazeres em que Alice nunca pensaria pessoalmente.

Foram tomar chá no Savoy, para começar. Pat fez tudo pa­ra agradar Alice. Usava uma saia preta de lã muito bonita, que comprara numa liquidação, parecia mais atraente e elegante que qualquer outra mulher no Savoy de muitas colunas, dourado e romântico. Alice vestira uma saia, mas afora isso estava como sempre. Comeram muito e Pat foi exigente com o chá. Saíram como piratas vitoriosos.

Depois, passaram uma manhã na Harrods, comprando com os olhos. Ou melhor, Pat agiu; Alice não se importava com o luxo, mas apreciou a satisfação de Pat, que usava de novo a espetacular saia preta de lã, que a fazia parecer exótica, muito pou­co britânica. No dia seguinte, com a chuva passando, foram ao Regent's Park e passearam por entre as poças e lilases e cerejei­ras em flor.

Pat finalmente anunciou que precisava voltar para casa. E Alice percebeu que ela disse "casa" com uma ênfase toda especial.

Voltará a me visitar, Pat? Muito em breve?

Pat parecia constrangida. Riu e respondeu:

Acho que não tornaremos a nos encontrar, Alice. Ou melhor, talvez sim. E também talvez não...

Ela procurava gracejar a respeito, como era seu jeito, mas os olhos transmitiam uma mensagem de pesar.

Por quê? — indagou Alice. — Por quê? Por quê?

Pat ficou séria no mesmo instante.

Já lhe disse que sou séria, Alice, ao contrário daqueles nossos dois lunáticos.

E, com isso, ela beijou Alice, lágrimas nos olhos, e saiu correndo para o metrô. E saiu também — Alice podia compreen­der — de sua vida.

Alice dormiu com esse problema, mas não se sentia esclarecida quando despertou pela manhã. Talvez não quisesse ficar.

Parecia ter perdido o ímpeto, não sentia vontade de fazer coisa alguma. Joan Robbins estava no jardim. Alice conversou com ela por algum tempo. Entre outras coisas, descobriu que as duas casas estavam vazias há seis anos.

Isto é, não exatamente vazias — comentou Joan Robbins, embaraçada.

Falou das pessoas que moravam lá antes de a prefeitura desapropriar as casas, famílias com filhos e netos, muitos visitan­tes. Eram excelentes jardineiros: os dois jardins estavam mara­vilhosos.

Pouco depois apareceu uma espécie de assistente social e trouxe a velha para sentar no jardim. Alice conversou com ela também. Como sempre acontecia quando saía de sua própria vida para o mundo das pessoas comuns, sentia-se dividida, con­fusa. Assim se sentira durante o tempo todo em que vivera com Jasper na casa da mãe; fora por isso que não quisera continuar lá, estava sempre pressionando Jasper para irem embora. Ago­ra, depois de semanas com sua própria gente, camaradas de um tipo ou outro, a convicção de que sua espécie de vida era a úni­ca (para ela agora, para todos mais tarde) estava reforçada. Joan Robbins parecia-lhe patética, mexendo nas clematites com seus fungicidas e sprays;a velha era meio demente, levando Joan Rob­bins à loucura com exigências contínuas. Pensando firmemen­te "A vida não pode ser assim!", Alice voltou ao número 43 e na porta deparou com Caroline, da outra casa. Ela tinha um embrulho para Alice. Entregou-o, disse que não queria entrar e seguiu para o ponto de ônibus. Alice abriu o embrulho. Era dinheiro. No vestíbulo, contou rapidamente. Quinhentas libras. Com um bilhete de Muriel: "O camarada Andrew disse que is­to era para você".

Alice guardou o pacote no saco de dormir e foi ao número 45. Muriel saía no instante em que ela chegou, carregando uma valise. Mas, a princípio, Alice não a reconheceu.

Depois, percebeu que Muriel não se sentia feliz ao vê-la, pois provavelmente contava em ir embora antes que Alice chegasse.

Preciso falar com você, Muriel.

Acho que não tenho nada a dizer.

As duas foram para a sala usada pelo camarada Andrew, ago­ra convertida em quarto, pois havia quatro sacos de dormir arrumados junto às paredes.

Muriel parou no meio da sala, esperando que Alice come­çasse. Largou a valise a seu lado.

Ela não estava usando o seu uniforme de batalha ou qual­quer outro traje parecido. Em vez disso, vestia um elegante costume de linho azul. Da Harrods. Alice o vira lá anteontem.

E usava o corte de cabelo da princesa Diana.

Alice sabia que Muriel era uma garota de classe superior, por isso a detestava tanto. Como todos de sua laia, Muriel ti­nha a mesma atitude desdenhosa e altiva, implícita em cada pa­lavra e olhar. Em sua escola democrática progressista, Alice conhecera muitas garotas assim e decidira logo na primeira semana que as odiava e sempre odiaria.

Outro pensamento que lhe ocorrera era o de que o camara­da Andrew tivera uma ligação amorosa com Muriel por causa da atração que garotas assim exerciam sobre os homens das classes operárias, que professavam desprezá-las.

Por que o camarada Andrew deixou aquele dinheiro pa­ra mim?

Não tenho nada a ver com isso — respondeu Muriel, incisiva e áspera, como Alice já esperava. — Absolutamente nada.

Ele deve ter dito alguma coisa.

As duas ficaram se olhando na sala grande, cheia de clarida­de e dominada pelo ruído do tráfego na rua principal.

Esse maldito tráfego... — murmurou Muriel.

Ela foi até as janelas, uma, duas, três, e fechou-as com uma batida estrondosa.

Voltou a se postar diante de Alice, aproveitando o interva­lo (para isso fora até as janelas) para decidir o que falar. Alice antecipou-se com uma pergunta:

O que devo fazer em troca?

Ao ouvir isso, a camarada Muriel exibiu uma irritação bem controlada.

Não acha que é um problema que deve discutir com o camarada Andrew?

Mas ele não está aqui. Quando voltará?

Não sei. Se ele não aparecer, haverá algum outro. — E como Alice continuava a confrontá-la, obstinada, ela definiu a situação como a via: — Alice, você está conosco ou contra nós.

Eu estaria com vocês... com o camarada Andrew... sem o dinheiro, não é?

Ou prefere ser um daqueles idiotas úteis?

Alice não reagiu, persistindo na postura de interrogatório infinitamente paciente e obstinado.

Lênin — acrescentou Muriel. — Um idiota útil: vago e incontrolado entusiasmo pelo comunismo. Pela União Soviéti­ca. Mas você sabe de tudo isso.

Alice, na verdade, mal lera Lênin. Sentia por ele uma espé­cie de reverência de todo o seu ser, como uma genuflexão, co­mo se fosse o Homem Perfeito. E espantoso que tal gigante possa ter vivido!, esse era o seu sentimento, mais do que suficiente. E por falar nisso, não lera muito mais de Marx além do Manifesto comunista. Sempre dizia de si mesma: "Não sou uma inte­lectual!", com um sentimento de superioridade.

Agora, sentia que a mulher-ganso estava sendo irrelevante, além de ofensiva.

Não creio que o camarada Lênin desprezasse as pessoas que admiravam sinceramente as conquistas da classe operária nos países comunistas — declarou Alice, tão incisiva e autoritá­ria quanto a camarada Muriel.

Que se manteve em silêncio, fitando Alice com olhos azul- claros um pouco protuberantes. Só depois de algum tempo é que disse:

O camarada Andrew tem o seu potencial em alta conta.

O relance de prazer que a invadiu tornou Alice imune a qualquer coisa que Muriel pudesse pensar. E ela disse, humildemente:

Fico contente por isso.

Creio que não há mais nada a dizer.

Muriel pegou a valise.

Já vai partir para a sua carreira de crime, hem?

Alice riu efusivamente do que acabara de dizer. Muriel sor­riu polidamente, mas estava furiosa.

Espero que seja na BBC — comentou Alice, pensativa. Uma pausa e ela se apressou em acrescentar: — Ou em algum outro lugar parecido.

Muriel ficou imóvel por um instante, com a valise na mão, depois largou-a no chão, deu um passo na direção de Alice e declarou, incisiva:

Alice, não deve fazer perguntas assim. Não... deve... fazer... perguntas... assim. Está me entendendo?

Alice sentia-se no estado sonhador em que sabia de tudo, um estado em que confiara durante a vida inteira.

Mas imagino que irá primeiro para uma escola de espionagem na Tchecoslováquia ou Lituânia.

Muriel soltou uma exclamação de espanto, ficou vermelha.

Quem lhe contou?

Ninguém me contou. Se vai a algum lugar com essa ca­ra, então suponho... é só isso, uma suposição.

Alice estava contrafeita, duvidando de si mesma. Muriel a observava atentamente, os olhos parecendo pistolas.

Se tem inspirações tão brilhantes, deveria guardá-las só para si.

Não sei por que está tão irritada. Todo mundo sabe on­de ficam as escolas de espionagem soviéticas.

Sei disso, mas...

A mulher-ganso parecia dominada por uma grande exasperação. Olhava para Alice como ela já se descobrira observada muitas vezes. Como se fosse uma pessoa em quem não se podia acreditar, alguém impossível! Com Jasper, em tais ocasiões, ela dizia, obstinada:

"Não entendo por que tudo isso. Alguma coisa perfeitamen­te óbvia está acontecendo, eu faço um comentário e as pessoas se mostram desconcertadas. Acho que é infantil".

Depois de uma pausa, Muriel concluiu:

Imagino que foi Andrew quem contou a você. Ele não devia ter feito isso. Ela pensou por um momento. Estou bastante aliviada por sair desta esfera. Ficarei mais feliz com al­guém num nível superior.

Ele não está num alto nível?

Se estivesse, não lidaria com pessoas como a gente respondeu Muriel, com um sentimento intenso, súbito e inesperado.

Alice riu de surpresa por Muriel ser capaz de admitir, mes­mo num instante sentimental, que se encontrava num nível inferior ao de qualquer outra pessoa.

E isso mesmo acrescentou Muriel. Ele também via­jou para fazer um treinamento. E, na minha opinião, bem que está precisando. As vezes há algo de muito errado com o seu julgamento.

Com isso, ela tornou a pegar a valise e encaminhou-se para a porta.

Adeus. Creio que nunca mais tornaremos a nos ver. A não ser que você resolva aceitar o treinamento. O camarada Andrew vai sugerir.

Seu tom deixava bem claro o que ela pensava do plano do camarada Andrew. Mas Alice compreendera subitamente mais uma coisa.

Santo Deus, acabei de perceber... Pat também vai, nãovai?

Se ela contou a você, não devia.

Pat não me contou nada. Eu apenas...

Estou atrasada.

E Muriel foi embora, demonstrando um grau de alívio que fez Alice pensar: Ela vai precisar de muito treinamento para não deixar transparecer cada coisa que passa por sua cabeça.

Alice voltou devagar ao número 43 e sentou-se só à mesa da cozinha para pensar.

O pensamento mais forte, na verdade mais um sentimento ou um anseio, era o de que Jasper não lhe dissera que pensava que se manteria ausente por muitos meses. Isso mesmo, ele fora "simpático" para compensar. Mas não lhe contara! Jasper nun­ca a traíra antes. E verdade que sempre houvera uma parte de sua vida sobre a qual nada lhe falava; Alice aceitava tal situação. Mas a parte política... sempre haviam discutido tudo.

Ele se tornara capaz de ausentar-se por seis meses, um ano, sem dizer nada. Bert? Seria influência de Bert?

É verdade que havia a questão da segurança, ela podia compreender. Mas não mudava o que sentia agora.

Algo se rompera entre os dois; Jasper cortara o laço que os unia.

Faria alguma coisa — iria embora para outra comuna, renunciaria a Jasper (mas esse pensamento deixou-a completamente gelada e triste), diria a ele que... diria qualquer coisa, mas não continuaria assim. As pessoas estavam certas, Jasper a usava.

Com isso, foi pegar o pacote de dinheiro do camarada An­drew no saco de dormir e procurou uma agência de poupança.

Depois, voltou à mesa da cozinha, passou a tarde sentada ali, observando a luz do céu se apagar, sentindo a casa escurecer ao seu redor. Não queria conversar com ninguém. Quando ou­viu Mary e Reggie chegarem, saiu e ficou andando sozinha pe­las ruas. Parou por algum tempo diante do prédio de apartamentos onde a mãe agora morava. Nenhuma das luzes que po­dia ver na fachada era de sua mãe, pois o apartamento dela fica­va nos fundos. Foi dar uma olhada no pequeno cartão em que estava escrito Mellings.Voltou para casa, torcendo para que a cozinha estivesse vazia. Eram onze horas.

Não havia ninguém lá. Teria uma boa noite de sono e decidiria o que fazer na manhã seguinte. Provavelmente visitaria algumas comunas onde tinha amigos. Ou talvez fosse ao Festi­val Marxista de Verão na Holanda. Encontraria pessoas que sa­bia que estariam lá; ou então faria novas amizades.

Uma coisa já estava determinada: não se encontraria ali quando Jasper e Bert voltassem, dentro de dez dias... não, em me­nos de uma semana, agora.

Gostaria de ter mergulhado imediatamente num sono profundo, a fim de abster-se de qualquer pensamento, mas ninguém dormiu muito no número 43 naquela noite, pois Faye gritou e esmurrou as paredes sem parar.

Alice pensou, pela primeira vez, que o motivo de Faye es­tar ali e não na comuna das mulheres, onde as duas passavam tanto tempo, era o fato de ela não ser bem-vinda lá — mais do que isso, fora expulsa. Não aturariam aquela louca. Já não suportavam mais. Era óbvio, quando se pensava um pouco a res­peito: ela podia passar o dia na comuna, mas não a noite, perturbando o sono das pessoas. Mas pobre Roberta! Sua voz baixa, premente, gentil, pôde ser ouvida durante quase toda a noite, tranqüilizando e advertindo.

Acordada, escutando o desespero de Faye, seu sofrimento, Alice pensou, como sempre, que um dia, muito em breve, não haveria mais pessoas como Faye. Nem como Muriel. Não mais pessoas avariadas pela vida.

Pensou também muito firme, deixando a mente se abrir para uma perspectiva após outra nas implicações do que apren­dera desde que chegara ali. Não tinha antes a menor idéia de nada daquilo! Havia pessoas assim por todo o país uma rede, para usar a palavra do camarada Andrew. Pessoas boas e com­petentes vigiavam e esperavam, julgando quando outras (como ela, como Pat) estavam maduras, podiam se tornar úteis.

Sem se tornarem suspeitos dos pequenos burgueses, dominados pela superestrutura mental da Inglaterra fascista-imperialista, pobres escravos da propaganda, esses guardiães, esses ob­servadores, detinham em suas mãos todos os cordões. Nas fá­bricas, grandes indústrias (onde o camarada Andrew queria que ela trabalhasse); no serviço público (que era o lugar para a ca­marada Muriel!); na BBC, nos grandes jornais por toda parte a rede se espalhava, até mesmo em lugares insignificantes, co­mo aquelas duas casas, 43 e 45, ocupações autorizadas, comu­nas sem importância. Nada era pequeno demais para ser igno­rado, todos com algum potencial eram notados, observados, ava­liados... o que lhe proporcionou um sentimento de segurança e conforto.

Alice finalmente dormiu quando Faye se calou; continua­ria a dormir manhã afora se Roberta não batesse em sua porta, gritando que tinha uma coisa importante para dizer.

Alice sentou no mesmo instante, esperando por más notícias.

Roberta estava com uma aparência horrível, como não po­dia deixar de ser. Seus olhos estavam vermelhos, o rosto con­traído de exaustão. Mais do que isso, ela fora empurrada para a outra Roberta. Havia nela um aspecto de vulgaridade, como uma mulher dos cortiços num filme da década de 30, ainda mais quando pôs um cigarro no canto da boca e deixou-o pender, enquanto falava, agachada ao lado do saco de dormir de Alice. Usava um robe imundo.

Tenho más notícias, Alice. Minha mãe está no hospital em Bradford. Tenho de ir até lá. Está me entendendo? Tenho de ir até lá.

Alice percebeu que Roberta ainda argumentava com Faye em sua mente e perguntou:

O que ela tem?

Câncer respondeu Roberta, a expressão sombria. Está doente há muito tempo. Eu já devia ter ido.

Sua voz também regredia: havia agora entonações do North Country. Será que ela era dos cortiços de alguma cidade indus­trial do norte?

Alice já podia adivinhar tudo. Roberta lhe pediria para "fi­car de olho" em Faye, que não podia ser deixada na comuna das mulheres; sem Roberta, elas não suportariam Faye nem mesmo durante o dia. Ela, Alice, por um prazo indeterminado, te­ria de...

Eu ia contar a você que acabei de tomar a decisão de fa­zer uma viagem.

A voz de Alice parecia dura e soturna, como a de Roberta, que ao ouvir isso deixou escapar um som de choro. Pegou a mão de Alice e apertou, fitando-a nos olhos.

Oh, Alice, por favor, por favor! Não posso deixar Faye sozinha! O que aconteceria?

Roberta tremia. Alice podia sentir sua exaustão se transmitindo a ela, através da mão que apertava a sua.

E não tem a menor idéia de quanto tempo ficará ausen­te — murmurou Alice.

Roberta largou a mão de Alice e sentou, o cigarro penden­do dos lábios, os olhos vazios. O último recurso.

Oh, Deus! — exclamou Alice. — Acho que não há ou­tro jeito. Mas não sou você, Roberta. Não vou mimar Faye co­mo você faz...

Roberta ficou subitamente inerte. Encostou a cabeça nos joelhos, derrubando o cigarro no saco de dormir. Alice pegou- o prontamente e ficou olhando para Roberta, encolhida na po­sição uterina, os braços em torno dos joelhos.

Você não imagina o que isso significa para mim, Alice. Não pode...

Claro que compreendo. Sem você, Faye não consegui­ria resistir. Seria internada num hospício. Passa todo o seu tem­po cuidando para que ela não caia nas mãos deles.

Roberta empertigou-se, as lágrimas escorrendo, suplicante.

Alice...

Mas há o outro lado da questão. Ela se comporta pior em sua companhia do que com qualquer outra pessoa. Porque você permite.

Enquanto Roberta fazia menção de protestar, Alice continuou, objetivamente:

Oh, não, não estou dizendo que ela não é pirada... ela é mesmo... mas já notei que às vezes alguém assim se compor­ta de maneira normal com todo mundo, faz tudo, nem se pensaria que era pirada. Mas existe uma pessoa, uma só, com quem ela perde o controle. Dá o que pensar.

Roberta a observava atentamente. Um novo cigarro estava sendo aceso, e, enquanto essa operação se realizava, os olhos de Roberta não se desviaram do rosto de Alice. Lá estava outra vez a Roberta do número 43, a pobre Roberta de um passado terrível fora sepultada de novo. E ela comentou, sem demonstrar qualquer aborrecimento:

Já pensei nisso. Não é estranho? Faye é normal com to­dos os outros... ou quase sempre... — Nesse ponto, ela con­vidou Alice, com um pequeno sorriso pesaroso, a lembrar o incidente em que Faye descera correndo a escada, aos gritos es­tridentes, para expulsar Mónica. E outras coisas. — Provavel­mente ela estará bem com você.

Se não tentar o suicídio.

Uma expressão intensa de repúdio. Um rápido balanço de cabeça, que significava, como Alice sabia: Não estou disposta a sequer pensar sobre isso.

Precisamos pensar nisso.

Tenho de me vestir e partir, Alice. Vou pegar o trem dentro de uma hora.

Roberta saiu correndo. Voltou logo depois, como Alice sa­bia que aconteceria, com os vidros de pílulas.

Se cuidar para que ela tome estas pela manhã e estas an­tes de deitar...

Alice pegou os vidros com uma expressão que dizia: Você sabe muito bem que não posso obrigá-la a nada.

Sei que não tem sentido dizer obrigada, Alice. Mas se algum dia eu puder ajudá-la...

Cinco minutos depois Alice ouviu-a descer correndo e dei­xar a casa.

Faye não acordaria antes de meio-dia ou mais tarde.

Alice demorou-se a tomar banho e se vestir, estava na cozi­nha tomando café quando Caroline apareceu.

Há algum tempo que queria fazer amizade com Caroline, mas sentia agora que isso seria a última gota. Pegando a chalei­ra e o pote de café, como se já morasse ali, Caroline disse:

Alice, vim perguntar se posso me mudar para cá.

Alice limitou-se a dar de ombros, mas estendeu sua caneca para que Caroline tornasse a enchê-la.

Caroline, depois de uma rápida inspeção de Alice com seus olhos penetrantes, encheu as duas canecas e foi sentar com a sua na outra extremidade da mesa.

Qual é o problema?

Alice contou.

E apenas um problema a curto prazo — proclamou Caroline, descartando-o.

Alice riu.

Está certo. E qual é o problema na outra casa?

Caroline mexia vigorosamente o açúcar em seu café, um ges­to que anunciava autodeterminação nos dias atuais, quando as pessoas confessam tomar açúcar, como no passado podiam fazer com um problema de alcoolismo. Ela servira três colheres de chá de açúcar e pegou a caneca para tomar com uma satisfa­ção evidente e voraz.

Alice tornou a rir, só que agora de uma maneira diferente. Acertara em cheio: ela e Caroline já estavam no início daquele processo misterioso, conhecido como "dar-se bem".

A policia deu uma batida lá na noite passada.

Não tinham acertado tudo com a prefeitura?

Estávamos sempre para fazer isso, mas não chegamos a resolver. Mas não faria qualquer diferença.

Então o que eles estavam procurando?

Alguma coisa. Rebuscaram tudo.

E não havia nada?

Nada.

Caroline ficou esperando pelas perguntas que Alice formu­lava em sua mente.

Alguém dedurou?

Achamos que não. Para dizer a verdade, acho que eles procuravam por muamba.

Mas ninguém usa, não é?

Maconha sim, heroína não. Tenho a impressão de que eles pensaram que a 45 era um esconderijo. Quilos e mais qui­los de heroína da melhor qualidade por baixo do assoalho.

Alice pensava rapidamente. Seu rosto se contraía, como o de um cachorro ansioso.

Ei, relaxe, Alice. Não aconteceu nada demais.

Por quanto tempo... coisas entraram e saíram da outra casa?

Não por muito tempo. Umas poucas semanas. E quase sempre apenas por um dia ou pouco mais. As vezes apenas por uma ou duas horas.

Sempre para o camarada Andrew?

Ele organizava tudo.

Como o camarada Andrew se instalou naquela casa?

Ele conheceu Muriel em algum lugar. Está muito na de Muriel.

Está querendo dizer que ele escolheu a 45 para morar porque Muriel se encontrava lá?

Ele não mora lá. Está sempre entrando e saindo. Acho que nunca passou mais que dois ou três dias consecutivos.

E a camarada Muriel está na de Andrew.

Para dizer a verdade, acho que ela não está muito interessada.

Ora, não me importo com essas coisas — murmurou Alice, como sempre entristecida e repugnada por tais assun­tos. — Seja como for, parece muito arriscado.

Por quê? Não havia como encontrar qualquer prova. A polícia já apareceu três vezes desde que estou morando lá. Nunca descobriram nada. Houve uma ocasião em que metade dos sa­cos de lixo só tinha lixo suficiente para cobrir o que realmente continham.

E era o quê?

Coisas, entende? — murmurou Caroline vagamente, tirando com a colher o açúcar úmido e amarelado do fundo da caneca e lambendo com a língua grossa e rosada.

Alice ficou em silêncio. Registrava tudo o que podia daque­la criatura rechonchuda e saudável, sentada ali a irradiar satisfação física. Tentava compreender o segredo. Mas, notou Alice, embora ela pudesse parecer uma foca lustrosa, sorrindo e falan­do — presumivelmente — sobre explosivos, suas pupilas per­maneciam contraídas e inflexíveis. Isso lhe proporcionava uma expressão astuta, até mesmo fria, que deixou Alice aliviada. Sen­tiu que se podia contar com Caroline.

Acho que eram explosivos — comentou Alice, indiferen­te. — Foi o que pensei desde o início.

Qualquer coisa assim. Mas eu disse ao camarada Andrew: "Algum de nós foi convidado a opinar sobre o que entra e sai? Não me lembro de ter havido uma votação".

Chegou lá antes dele?

Muito antes. Fui morar lá há um ano. Fiquei sozinha por semanas, até que Muriel apareceu. E depois, subitamente, Andrew chegou. Nunca soubemos como Muriel teve conhecimento... eu diria que a camarada Muriel não é mais habitante natural de uma comuna do mundo.

Concordo com você nesse ponto.

Mas ela logo assumiu o comando. E depois vieram Paul e Edward... e penso agora que ela os chamou porque Andrew mandou. Convidei então algumas amigas minhas, três garotas, que viviam numa casa horrível em Camberwell. Mas Muriel não demorou a se livrar delas.

Como?

Não pelo que fez, mas sim pelo que ela é... — respon­deu Caroline, ponderada, sorrindo com a satisfação de falar e ser compreendida.

Ela esperou que Alice risse. Alice riu, e Caroline acrescentou:

Elas não gostavam da maneira como Muriel controlava tudo e resolveram ir embora quando Andrew chegou.

Alice pensava em tudo aquilo. E pela maneira como Caro­line a fitava, sabia que a outra esperava que ela fizesse justamente isso, pensar.

Muito bem murmurou Alice finalmente. Então vo­cê não gosta do camarada Andrew.

E quem é o camarada Andrew? Quem é ele para dar or­dens e determinar o que pode e o que não pode acontecer?

Não somos obrigados a fazer o que ele diz. Cabe a nós dizer sim ou não.

Mas é difícil dizer não quando um carro aparece com cinco caixas de panfletos. Ou alguma outra coisa.

Mais café. Mais açúcar. Alice não pôde evitar um pensamen­to: Seus dentes...

E quer saber de mais uma coisa? disse Caroline, amável, receptiva, porém com os olhinhos castanhos duros e controlados. Não me importo com a porra da União Soviética. Ou com a porra da KGB. Ou com qualquer outra coisa do gênero.

"KGB" pronunciado assim causou um choque e tanto a Alice; não chegara a dizer a si mesma: Estou envolvida com a KGB. Além do mais, as palavras possuíam uma característica implacável, que era difícil associar com o camarada Andrew. De­pois de um momento de silêncio, ela comentou:

Mas é uma maneira útil de obter treinamento, pelo me­nos para algumas pessoas.

Só para algumas pessoas. E se quiserem esse tipo de treinamento.

Há alguma coisa em tudo isso que não se ajusta con­cluiu Alice, com um pouco de dificuldade.

Era difícil criticar o camarada Andrew. Ou pelo menos em voz alta; em seus pensamentos, não podia se conter.

Tem toda a razão. E sabe o que é? Tenho dispensado ao assunto a mais persistente consideração... por mais estra­nho que isso possa parecer.

Alice riu, como a outra esperava.

Isso mesmo. Em minha experiência, que não é das mais vastas, mas suficiente, tudo se transforma em alguma espécie de confusão. Fica-se imaginando tramas espantosas e fantásticas, organizadas até os últimos detalhes extraordinariamente efi­cientes, mas quando se descobre a verdade sobre qualquer coisa, até sobre as conspirações da KGB, tudo não passa de uma con­fusão estúpida.

Alice sentia-se agora realmente perturbada, porque sua mãe já dissera aquilo. E sempre o comentava nos últimos tempos parte daquela fase nova e desconcertante em que ela se encontrava. Durante os últimos quatro anos, Alice ouvira muitas vezes Dorothy Mellings exclamar, com uma satisfação tão intensa pelo escândalo que a deixava furiosa:

Não passa de outra maldita confusão, só isso! Eles mete­ram os pés pelas mãos! Não perca seu tempo tentando enten­der! E apenas mais uma embrulhada dessa gente!

Quase sempre o comentário era para Zoé Devlin, que ten­tava argumentar com ela com Dorothy. Do mesmo jeito que ela vinha fazendo ultimamente com a mãe, paciente, perseverante, quando ouvia esse tipo de coisa.

Nem tudo pode ser apenas uma confusão, Dorothy. O que deu em você? Será que não quer mais se incomodar em pen­sar sobre as coisas?

E Dorothy Mellings respondia para Zoé Devlin:

Quem não está querendo pensar? Acho que é você. Vi­ve em algum mundo de sonho todo rosado, tudo vai bem, tudo é sensato e resultado de decisões amadurecidas. Pois não é nada disso! Tudo é apenas uma tremenda trapalhada!

Ouvir as palavras da mãe saírem de forma tão complacente do rosto rechonchudo e risonho de Caroline era um golpe gran­de demais para Alice, que perdeu uma boa parte do que a outra acrescentou. E ouviu, quando tornou a prestar atenção:

Acho que o nosso camarada Andrew não estava à altura de suas funções. Tenho a impressão de que o Ocidente lhe su­biu à cabeça. Ou pelo menos a vida farta.

Então que Deus o ajude murmurou Alice, repugnada.

Tem toda a razão. E Muriel era demais para ele, uma garota da alta-roda, Roedean e todo o resto.

Roedean?

E mais escola preparatória, curso de culinária para gourmets e uma porção de coisas. Não é espantoso como as classes superiores aderem ao comunismo? Acha que o camarada Marx previu isso em sua bola de cristal?

Olha só quem está falando protestou Alice, sabendo que não era certo falar assim de Marx.

Eu? Não sou da classe superior. Apenas da velha e ente­diada classe média, como você.

Estou a uma geração da classe operária. Pelo lado de mi­nha mãe.

Meus parabéns disse a camarada Caroline, rindo.

Apesar de tudo, tenho certeza de que a camarada Mu­riel vai se sair muito bem.

Quem disse que não? Nasceu para isso. Já posso até ler as manchetes: "Toupeira vermelha apanhada em flagrante em... " Onde você acha que vai ser?

BBC respondeu Alice, incapaz de se conter.

É possível. Ou no Times. Talvez o Guardian?

O Times. E o estilo errado para o Guardian. Mas provavelmente, quando ela concluir o treinamento... Ela é muito inteligente, tenho certeza.

Eu também sou, mas o camarada Andrew não foi atraí­do para a camarada Muriel por causa de seu potencial para a espionagem. Os dois quase não saíam da cama. Ou, para ser mais exata, do chão.

Alice desligou o interruptor, dizendo vagamente:

Ora, não me importo com essas coisas. E daí? Muriel partiu. Andrew partiu. Você quer ficar aqui. Isso deixa...

E Jocelin também quer vir para cá.

Quer dizer que só restarão Paul e Edward na outra casa?

Eles vão se mudar para um apartamento esta semana. Arrumaram emprego. Ou melhor, Andrew conseguiu para eles. Num lugar dos mais estratégicos.

O que significa que em breve haverá um novo grupo de ocupantes na outra casa.

Só não quero estar lá. Não tem água quente. Um lugar frio como a Sibéria. Muito diferente desta casa.

Havia um quarto vazio no último andar e outro ao lado do quarto de Faye e Roberta.

Não vejo por que não, Caroline.

Mal posso esperar para vir. Além de tudo, a policia esca­vou aquele buraco no jardim e o lixo que enterramos está voando por toda parte.

Por algum motivo, isso pareceu a Alice a última gota que ela esperava.

Oh, não! lamentou ela. Oh, Deus, não!

Oh, sim. Voltamos ao ponto de partida. Dissemos para eles, depois que escavaram tudo: "Não vão pôr o lixo de volta no lugar?" E eles nos mandaram à merda. Encantadora como sempre, a polícia. Bom, vou buscar minhas coisas.

Alice foi também até a outra casa, parou no portão e ficou olhando. Lixo por toda parte, e soprava o vento firme da primavera. O buraco que ela explorara e vira o quê? era uma vala repulsiva, a terra clara empilhada ao redor em montinhos irregulares.

Mas ela não podia deixar Faye sozinha, por isso voltou.

Faye só desceu ao anoitecer, pálida e triste, pronta para chorar. Mas mantinha o controle e estava disposta a participar do jantar comunitário, com Caroline e Jocelin, Reggie e Mary, Philip e Alice.

Tudo corria muito bem até às nove horas mais ou menos, quando houve uma violenta batida na porta.

Oh, não! exclamou Caroline. De novo!

Alice já estava na porta da frente, abrindo-a com um sorri­so. Dois policiais, um deles o jovem de expressão rancorosa. Estavam de mau humor, incumbidos de fazer alguma coisa que não desejavam.

Fomos informados de que vocês têm alguma coisa en­terrada no jardim anunciou o jovem mal-encarado. Va­mos escavar para verificar o que é.

Vocês já sabem o que é. Nós avisamos.

Alice não estava rindo. Sabia que por muito pouco aqueles dois começariam a quebrar a casa toda.

Sabemos apenas o que você nos contou protestou o outro policial, que Alice nunca vira antes.

Vou pegar uma pá para vocês sugeriu Alice.

Trouxemos a nossa, obrigado.

Alice conduziu-os ao lugar onde fora aberta a fossa. A luz da cozinha incidia ali.

E aqui mesmo que a terra foi revolvida disse o jovem rancoroso ao companheiro.

Alice tratou de se retirar apressada para o interior da casa. E re­comendou aos outros, que pareciam prestes a explodir em risadas:

Não façam isso ou eles se vingarão em cima da gente! Para Faye, que soltava risadinhas abafadas e balançava, à beira da histeria, ela acrescentou: Fique quieta, Faye!

Alice sabia que se o pequeno psicopata lá fora fosse provo­cado por Faye, seria capaz de fazer qualquer coisa. E arrematou:

Podemos rir depois, não agora.

Ela está certa concordou Caroline.

Eles sentaram, os rostos impassíveis, contendo uma angús­tia de riso.

Lá fora, à luz que vinha da cozinha, os dois homens cava­ram. Por não mais que dois ou três minutos. Depois se empertigaram, apoiaram-se por um momento em suas pás e desapa­receram.

Alice tomara a precaução de deixar a porta da frente aber­ta, a fim de que todos fossem visíveis, sentados ao jantar: a co­zinha confortável, as flores, a comida.

Ela foi até a porta, polida e prestativa.

O jovem rancoroso parecia prestes a explodir num acesso de raiva.

Vocês deviam ser processados! gritou, olhando além de Alice para a cena na cozinha.

Comunicamos tudo o que fizemos. Eu estive pessoalmen­te na delegacia para apresentar um relatório.

Alice sabia que essa era a expressão correta, "apresentar um relatório".

O policial ficou parado, literalmente rangendo os dentes para Alice, preparado para avançar, quebrar e destruir. Mas ela tomou o cuidado de evitar seus olhos, mostrar-se passiva e até in­diferente.

O outro homem já estava no carro da polícia.

Um minuto depois eles foram embora. Alice saiu, pegou a pá que os policiais haviam deixado e usou-a para repor a terra removida. Não estava tão ruim assim. A natureza, como era de esperar, fazia seu trabalho muito bem.

Quando voltou à cozinha, sua aparência foi o sinal para uma celebração de risos e gracejos. Parecia que não podiam mais pa­rar de rir, especialmente Caroline e Jocelin, para as quais toda a história era novidade. Alice não sentia muita vontade de rir. Sabia que não era o fim; os visitantes voltariam.

Sabia também, ao olhar para Faye, que era improvável que ela dormisse muito naquela noite. E já passava de três horas da madrugada quando Faye subiu, aceitou dois Mogadons de Alice e despediu-se afavelmente.

Não demorou muito, no entanto, para que ela começasse a chorar. Não o choro ruidoso e irado que tinha quando Ro­berta se encontrava presente, mas os soluços desamparados e desesperados de uma criança. Alice foi ao seu quarto, sentou-se com ela, segurando sua mão. Faye não pegou no sono até às sete horas da manhã, e Alice dormiu sentada ali, ao seu lado.

Vários dias passaram. Faye esforçava-se ao máximo, todos sabiam disso e a apoiavam. Quando ouvia pessoas na cozinha, ela descia e sentava-se conversando sobre tudo com a maior gra­ça, como tão bem sabia fazer, encenando o seu pequeno núme­ro cockney. Mas tendia a cair em silêncio de repente, com o olhar fixo; alguém tentava então despertá-la gentilmente, trazê-la de volta ao convívio geral.

Ela se ofereceu para ensinar a Alice como fazer um ensopadinho econômico, ficou uma delícia, todos gostaram. Alice es­peculou como ela podia suportar se tinha alguma consciência disso a maneira como todos viviam em suspense por seus hu­mores. Mas Faye não teve um colapso nem chorou. Parecia nor­mal, até mesmo uma pessoa comum; e Caroline e Jocelin chegaram a comentar que não compreendiam por que todos se preocupavam tanto com Faye. Ela era simpática, muito inteli­gente, conhecia política a fundo. Acontece que Faye lera mui­to, mais do que qualquer ocupante da casa; era especialmente versada em Althusser. Escrevera parte de uma tese sobre Althusser na universidade, onde só permanecera por dois perío­dos, antes de sofrer um colapso.

Faye só ia deitar muito tarde; quando o fazia, dizia a Alice que estaria muito bem sozinha.

Alice levantava-se durante a noite com freqüência, para escutar do lado de fora da porta de Faye. Tinha a impressão de que Faye quase não dormia; muitas vezes ela chorava, baixinho, sem querer incomodar os outros. Em outras ocasiões, Alice po­dia ouvi-la a andar pelo quarto, acendendo cigarros, até cantan­do para si mesma.

Roberta escrevera; tinham o endereço do hospital. Sua mãe morria lentamente; Roberta voltaria assim que pudesse.

Uma semana passou. Jasper e Bert já deveriam estar de vol­ta. Então chegou um cartão-postal escrito por Jasper e assinado pelos dois, remetido de Amsterdam: "Gostaríamos que vocês estivessem aqui. Voltaremos em breve".

Caroline e Alice passavam muito tempo juntas. Esgotada, Alice precisava da vitalidade natural dela, de sua animação. Caroline admirava-a, não parava de falar sobre a maneira como Alice transformara aquela casa.

Jocelin se mantinha em seu quarto a maior parte do tempo. Estava no alto da casa. Parecia ter pouco a dizer a eles... ou a qualquer outra pessoa, diga-se de passagem. Era uma observadora silenciosa — e, pensava Alice, assustadora. O que fazia no quarto? Caroline dizia que ela estudava manuais para aprender a ser uma boa terrorista. Fazia o comentário rindo, como era o seu estilo.

O fim de semana se aproximou.

Na sexta-feira, Reggie e Mary partiram para Cumberland, assim que Mary saiu do trabalho, para outro sábado de manifestações. Jocelin também deixou a casa, limitando-se a dizer:

— Até segunda.

Caroline avisou que passaria o fim de semana com um anti­go namorado, que casara com outra, se separara e ainda deseja­va casar com ela. As vezes ela pensava em aceitar; com mais freqüência, pensava que não. Apesar disso, gostava da companhia do antigo namorado; haviam se divertido muito juntos. Ela convidara Alice a acompanhá-los. Alice teria concordado, se não fosse por Faye. Sentia-se amargurada, sentada sozinha à mesa da cozinha; Faye subira para se deitar, e Philip também estava em cima.

Se tudo estivesse correndo bem — ou seja, sem Faye —, ela teria ido embora sem deixar um endereço para Jasper; não importava para onde. Precisava fazer pé firme, declarar que já era demais. Podia até abandoná-lo.

Repetindo para si mesma como estaria melhor sozinha, sen­tiu o coração gelar e entristecer; parou, limitando-se a concluir: "Vou apenas dar uma lição nele, e mais nada".

Mas como poderia lhe ensinar alguma coisa se continuava ali, obediente, esperando por sua volta? O que quase certamen­te aconteceria dentro de um ou dois dias.

Aquela história da mãe de Roberta fora um desastre, tanto para ela quanto para Roberta e Faye.

E assim ela remoía, tomando café e mais café, sentada sozinha.

Ainda não era meia-noite quando subiu. Parou diante da porta de Faye, escutando: não havia qualquer som. O que era muito estranho. Faye nunca dormia antes das duas ou três horas da madrugada.

Alice viu a si mesma, parada ali, o ouvido encostado numa porta, no patamar escuro. Ficou furiosa, consigo mesma, com todo mundo: uma ira de auto-compaixão. Foi para seu quarto e decidiu dormir logo. Mas não conseguiu. Quando se encontrava sã e salva em sua camisola vermelha vitoriana, foi até a janela e ficou observando o tráfego. Sentia-se extremamente ir­requieta e apreensiva. Vá outra vez até a porta de Faye, disse a si mesma. Ora, já chega, trate de se deitar e pare com isso! Mas não o fez. Abriu a porta do outro quarto silenciosamen­te, ficou parada ali, como um fantasma, preparada para ouvir Faye gritar que fosse embora, que a deixasse em paz, parasse de bisbilhotar... A luz estava apagada, o quarto mergulhado na escuridão. Podia-se divisar Faye, uma trouxa no canto. Ha­via um cheiro forte. Ao compreender que o cheiro era de san­gue, Alice acendeu a luz e gritou. Faye se encontrava estendida de costas, apoiada nas almofadas bordadas, muito branca, a bo­ca entreaberta, os pulsos cortados repousando em cima das co­xas. O sangue encharcava tudo.

Alice continuou a gritar.

Previra aquilo, temera, mais ou menos sabia que era inevitável. Sempre soubera que não podia suportar a visão de san­gue, que perderia o controle se se descobrisse numa situação assim. Foi por isso que continuou parada gritando.

Philip chegou. Os gritos dele, abafados e cautelosos, penetraram em sua mente.

Alice, Alice, o que aconteceu?

Ela parou de gritar. Em sua volumosa camisola vermelha, era como uma fêmea num melodrama vitoriano. Apontou um dedo para a visão horrenda e estremeceu. Philip disse:

Ela cortou os pulsos.

Ele passou o braço por Alice, que era muito mais alta e pe­sada, o que o fez cambalear. Juntos, perderam o equilíbrio e se descobriram a segurar o alizar da porta.

Alice teve de recuperar o bom senso, o controle.

Foi para o lado de Faye. O sangue ainda jorrava, pulsando, em ondas vermelhas.

Temos de estancar a hemorragia.

Ela olhou ao redor, encontrou uma echarpe numa cadei­ra, amarrou-a em torno dos pulsos de Faye, como algemas. A hemorragia cessou. Philip, também recuperando o controle, anunciou:

Vou chamar uma ambulância.

Não pode fazer isso! — gritou Alice.

Por que não? Ela vai morrer.

Não vai, não! Será que não entende? Ela não pode ir pa­ra um hospital!

Por que não?

Roberta nunca nos perdoaria. A polícia, entende? A polícia...

Philip olhava para Alice como se estivesse diante de uma louca.

Tem alguma atadura elástica na casa?

Por que teríamos isso aqui? indagou ele, consternado.

Tem razão. A sua fita isolante. A que usa nos serviços de eletricista.

Ele já se afastava para buscá-la. Alice ajoelhou-se ao lado de Faye, que parecia ter se tornado tão leve e vazia quanto uma folha morta. Como se pode verificar o pulso de uma mulher que cortou os dois? Onde mais há uma pulsação?, especulou Alice, frenética, espiando aqui e ali. Aproximou o rosto das na­rinas de Faye e sentiu uma ligeira respiração. Faye não estava morta. Mas tanto sangue perdido, tanto... Tudo estava enchar­cado de sangue. Faye se encontrava no meio de uma poça vermelha.

Philip entrou correndo no quarto, com um rolo de fita isolante preta. Alice prendeu-a em torno de um pulso, como uma pulseira, a fim de impedir o sangue de esguichar, enquanto Phil­ip cobria o ferimento. Fizeram a mesma coisa no outro pulso, e Alice retirou a echarpe.

Ela perdeu muito sangue murmurou Alice.

Precisa receber uma transfusão insistiu Philip, obstinado, o rosto indicando sua crítica a Alice.

Precisamos lhe dar algum líquido. Não, espere...

Alice desceu correndo até a cozinha. Preparou uma mistu­ra de água quente, sal e açúcar, já que não havia glicose disponível. Subiu correndo.

Ela está inconsciente, Alice comunicou Philip, ainda com a expressão de aversão, de hostilidade. Como pode beber alguma coisa se está inconsciente?

Alice ajoelhou-se, passou o braço por baixo da cabeça iner­te de Faye, a fim de erguê-la, tentou despejar o líquido por sua boca.

Vai entrar nos pulmões protestou Philip. Você a está afogando.

E foi então que, milagrosamente, Faye engoliu.

Beba isto, Faye ordenou Alice. Você tem de beber.

Faye parecia querer sacudir a cabeça, mas engoliu. Era por­que tinha o hábito de aceitar ordens... as ordens de Roberta. Alice sabia disso e procurou falar com uma voz suave e amoro­sa, como a de Roberta.

Beba tudo, Faye. Você tem de beber.

Devagar, durante mais de vinte minutos, Alice conseguiu fazer com que Faye engolisse cerca de meio litro da mistura.

Depois descansou. Estava encharcada de suor. O suor era do terror, ela sabia.

Philip ajoelhou-se aos pés de Faye, observando. Sua expres­são de desaprovação, até mesmo de horror, não se atenuara. Era Alice quem o horrorizava, ela sabia disso e não se impor­tava.

Ela não vai morrer declarou Alice, em voz alta, tanto para Faye quanto para Philip. Fique aqui. Faça-a beber mais um pouco, se puder. Ela deve ter feito isso um minuto antes de termos entrado. Vou telefonar para Roberta.

Philip ocupou o lugar de Alice, passando o braço sob a ca­beça de Faye. Estendeu a mão para o jarro cheio de líquido.

Alice pensou, vendo-os assim a frágil e lívida Faye, o frá­gil e pálido Philip —, que os dois eram da mesma espécie, vítimas, nascidos para serem pisoteados e esmagados. Havia alguma coisa de vingança nesse pensamento em relação a Philip, pois Alice sabia que ele estava revoltado com sua atitude.

Ela correu para a casa de Joan Robbins. Não havia luz ace­sa. Comprimiu o botão da campainha com um dedo e não mais o soltou. Podia ouvir o ruído estridente lá dentro. Uma janela foi levantada por cima de sua cabeça e ela ouviu a voz ríspida de Joan Robbins:

O que foi? Quem está aí?

Deixe-me entrar! gritou Alice, a voz como a de uma criança ou a de Faye. E como Joan Robbins não deixasse imediatamente a janela, ela acrescentou: Sou eu, Alice! Alice, da casa ao lado!

As luzes se acenderam no vestíbulo, e Joan Robbins apare­ceu, num roupão florido e chinelas vermelhas, furiosa, aturdi­da e assustada.

Preciso telefonar... é muito importante... tem uma pessoa doente balbuciou Alice.

Joan Robbins deu um passo para o lado. Junto ao telefone, ela folheou as listas, que Joan tirou de uma capa de plástico e entregou-lhe. Encontrou o que procurava, ligou para o hospital em Bradford e deixou um recado para Roberta:

Avise a ela que sua amiga está doente e que precisa vir imediatamente.

Recomeçou a folhear as páginas, procurando por outro número. Só quando viu a palavra "samaritanos" é que compreendeu o que queria.

Não quer ligar para 999? — indagou Joan Robbins, curiosa.

Alice sacudiu a cabeça e levantou-se, os olhos fechados, a respiração irregular, como se estivesse prestes a desmaiar. Joan correu para a cozinha, a fim de preparar um chá.

Alice ligou para os samaritanos. Uma voz firme e amável atendeu. Ela não ouviu as palavras, apenas o tom. Ficou em silêncio, escutando. Teria de dizer alguma coisa ou a voz pararia, sumiria.

Quero um conselho. Isso é tudo. Um conselho.

Qual é o problema?

Ela não disse nada, limitou-se a ouvir a voz moderada e prestativa, que continuou, dizendo que Alice não devia desligar, que ninguém a pressionaria ou a qualquer outra pessoa, ninguém a denunciaria, não importava o que ela ou qualquer outra pes­soa tivesse feito.

Alice manteve-se em silêncio até ouvir Joan Robbins voltando, quando então disse rapidamente:

Alguém cortou os pulsos.

Não houve tempo para mais. Joan chegou com duas xíca­ras de chá quente.

Alice pegou a sua no mesmo instante, sabendo quão desesperadamente precisava dela. Tentou beber o líquido escaldan­te, enquanto escutava.

Deve levar sua amiga para o hospital. O mais depressa possível. Chame a ambulância. Ligue para 999. E uma questão de vida ou morte. Precisa fazer isso imediatamente.

E se eu não fizer isso? — disse Alice finalmente, esco­lhendo suas palavras por causa de Joan, que se mantinha ata­rantada a seu lado, exortando-a com sorrisos e olhares a tomar o chá.

Se não fizer... mas tem de fazer... o mais importante é manter sua amiga acordada e fazê-la ingerir tanto líquido quan­to possível. Ela consegue beber?

Consegue.

Alice continuou a escutar, como se fosse alguma música distante e impossível, que distraía e confortava, acalmava e ofere­cia um apoio infinito e inabalável.

Depois de alguns minutos, ela simplesmente desligou, deixando que aquela voz sensata e gentil desaparecesse no reino do inacessível. Ajustou o rosto ao brilho habitual, o sorriso de boa moça, e disse a Joan Robbins:

Obrigada. Muito obrigada. Eu estava falando com os samaritanos. Sabe quem eles são?

Já ouvi falar.

São pessoas maravilhosas murmurou Alice vagamen­te. Bom, é melhor eu voltar. Deixei outra pessoa cuidando de tudo e não creio que esteja muito acostumado a alguém doente.

Joan acompanhou Alice até a porta, com a expressão de alguém que sente que não foi dito tudo e que espera que possa ser dito, mesmo agora.

Obrigada repetiu Alice, polidamente. E depois acrescentou, frenética, agradecida: Obrigada, obrigada.

Ela saiu correndo pela escuridão. Joan Robbins esperou pa­ra vê-la passar pela porta do número 43. Depois voltou para o interior de sua casa, examinou as manchas de sangue no telefone, listas e mesinha. Limpou a mesinha e ficou pensando por alguns minutos. Decidiu não chamar a polícia e foi para a cama.

Alice encontrou Philip e Faye exatamente como os deixa­ra. Mas os olhos de Faye estavam abertos e fixos no teto, inexpressivos.

Telefonei para Roberta informou Alice.

Ela procurou uma camisola limpa ou alguma outra coisa, encontrou um pijama, foi buscar água quente e panos. Ela e Phil­ip despiram Faye. Puxaram o saco de dormir encharcado, tira­ram os lençóis, removeram o colchão de espuma de borracha, embebido de sangue, como uma esponja. Não demorou muito para que Faye estivesse lavada e vestida. Durante todo esse pro­cesso, ela se manteve inerte e dócil. Mas Alice não se deixou enganar. Sabia que Faye esperava pelo momento em que ela e Philip virassem as costas, a fim de tirar as ataduras dos pulsos.

O saco de dormir de Alice foi trazido, junto com lençóis limpos. Encontraram uma bolsa de água quente numa gaveta. Levou algum tempo, mas finalmente Faye estava deitada e aco­modada, no calor e conforto.

Já eram mais de três horas da madrugada.

Alice pensava: Se Roberta se encontrava no hospital, já recebeu o recado, está a caminho, pode chegar aqui pela manhã.

Enquanto isso, ela e Philip deviam ficar sentados ali, para o caso de um pegar no sono.

Ninguém dormiu. Faye permaneceu imóvel, o rosto como o de um fantasma. Não fechou os olhos. Não olhou para eles. Não disse nada.

Philip estava ajoelhado aos pés de Faye, Alice sentava-se a seu lado. De vez em quando Alice levantava Faye, levava a ca­neca a seus lábios e a fazia beber.

Philip saiu para preparar mais um pouco da mistura de sal e açúcar com água, e também um chá para ele e Alice. Mas não olhava para ela, não a encarava nos olhos.

Ficara bastante chocado por ela, pela situação, a tal ponto que se desligava de tudo aquilo.

Alice pensou, em desafio, até zombeteira: Então isso define Philip! E assim que ele é!

A manhã logo chegou, pois já era a segunda metade de maio. Com o sentimento irritadiço e vazio que acompanha a exaustão, Alice escutou o coro do amanhecer, refletindo que gosta­ria de ouvi-lo com mais freqüência; tentou atrair os olhos de Philip, partilhar com ele aquele momento de renovação, de pro­messa. Mas Philip se manteve apartado, ajoelhado ali, como um pequeno devoto, paciente, modesto, pronto para ser útil. E ab­solutamente isolado. Alice acabou dizendo:

Se quiser, Philip, pode ir dormir. Darei um jeito de fi­car acordada. E quando não conseguir mais, eu o chamarei da escada.

Significando: Não posso deixá-la sozinha aqui, não pode­mos, nem por um segundo. Ele compreendeu, acenou com a cabeça e saiu.

Faye resvalou para o sono ou fingiu dormir... Alice não sabia qual das duas coisas, mas não estava disposta a correr qual­quer risco. Continuou sentada, de vez em quando salpicando água em seu próprio rosto, batendo em suas faces. Quando fa­zia isso, tinha a impressão de ver um lampejo de alguma coisa que podia ser divertimento ou pelo menos um comentário no rosto passivo de Faye. Os sons de uma manhã de domingo nor­mal, o leiteiro, crianças brincando na rua, vozes dos jardins. Eram sons que normalmente ela nunca escutava...

A pilha ensangüentada no canto começava a deixar Alice repugnada. Mas não podia se mexer, não devia se mexer. Sabia que Faye não estava adormecida.

O tempo passou... e passou. Mais de uma vez, teve de se controlar para não cair no sono, sacudindo-se bruscamente pa­ra continuar acordada. Num momento em que agiu assim, viu Faye abrir os olhos; trocaram um olhar. Alice: Não vou deixar você partir; e Faye: Não pode me impedir, se eu quiser.

Então, por fim, passos subiram correndo a escada, a porta foi aberta e Roberta ajoelhou-se ao lado de Faye, cujos olhos estavam agora abertos. E ela disse, numa voz que misturava amor fervoroso, ira, exasperação, incredulidade:

Faye, oh, Faye querida, como pôde fazer isso, como pôde!

Alice levantou-se e observou como Roberta pegava Faye, gentilmente, ternamente, beijava-a, aninhava-a, inclinava-se pa­ra beijar os pulsos cortados.

Faye encostou o rosto no peito da amiga e ali ficou, no seular.

Roberta olhou para Alice por cima de Faye, com lágrimas escorrendo pelas faces.

Ainda bem que ela chegou, pensou Alice.

Minha mãe está em coma, por isso não tem problema.

Então está tudo certo.

Alice recolheu as coisas manchadas de sangue e murmurou:

Philip está dormindo há algumas horas. Assim, ele pode descer para ajudá-la, se precisar. Mas eu preciso dormir agora.

Foi para o quarto, mas não dormiu, por um longo tempo. Reconstituía interminavelmente a cena em sua mente, a infini­ta ternura de Roberta com Faye, a paixão de amor em seu ros­to ao olhar para Alice, o rosto de Faye comprimido contra seu peito.

Quando acordou, estava determinada a partir. Já agüentara demais. Se Jasper a quisesse, teria de encontrá-la. E não deixaria o endereço. Tomaria o café da manhã e iria embora.

Mas é claro que não era mais de manhã. Dormira o dia in­teiro. Lá embaixo encontrou Philip comendo os remanescen­tes de um caldeirão de sua sopa. Percebeu que a hostilidade da noite anterior se atenuara, modificara. Afinal, Faye sobrevive­ra. E verdade que Alice sabia que Faye poderia não ter sobrevi­vido. Mas pelo menos mantivera Faye fora do alcance da Autoridade.

Alice esperou, indiferente, enquanto ele explicava alguma coisa que planejara dizer, provavelmente ensaiara em sua men­te durante o dia inteiro.

Meio escutando, a mente concentrada em trens para aquela noite ou para a manhã seguinte, pensando no lugar para onde iria, Alice ouviu-se suspirar, o que fez com que tornasse a fixar toda a sua atenção em Philip.

Ele estava com uma aparência horrível, pior do que a falta de sono na noite anterior podia justificar.

Trabalhando das oito horas da manhã até o anoitecer e durante os fins de semana, ele ainda não fora capaz de cumprir o que prometera. A data que fixara para concluir os trabalhos já passara e ainda restava a pintura, vários dias pela frente. O grego dissera que fora enganado por Philip, nunca teria contra­tado uma pessoa sozinha para realizar aquele enorme trabalho de reforma e decoração, muito menos alguém tão frágil quanto Philip. Se Philip não conseguisse acabar o trabalho em dois dias, ele o grego consideraria que houvera quebra de contrato e não pagaria a segunda metade do dinheiro. (Philip já se vira em tal situação antes, mas não esperava que também aconteces­se dessa vez.)

O que Philip queria era ajuda da comuna. Reggie não esta­va trabalhando! O que Reggie fazia durante o dia inteiro?, Phil­ip perguntou a Alice com veemência. Nem mesmo tentava arrumar um emprego. Circulava por leilões, procurando barga­nhas. Alice sabia que o sótão estava se enchendo com móveis de Mary e Reggie, para não falar do quarto ao lado daquele em que os dois dormiam. O que custaria a Reggie ajudar Philip por dois dias?

Mas ele sabe pintar? indagou Alice, quase mecanicamente.

A expressão contrafeita de Philip confirmou a convicção que aflorou subitamente em Alice: Philip queria que ela o ajudasse. Afinal, fora ela quem pintara a maior parte daquela casa enorme e pintara depressa e muito bem. Haviam até graceja­do que um profissional não seria capaz de fazer melhor. E, na verdade, em um outro momento de seu passado, Alice pintara casas profissionalmente e ninguém se queixara.

A aversão a ela que Philip demonstrara na noite passada era em parte uma decorrência do que vinha pensando há algum tem­po: Alice era a única que poderia resolver todos os seus proble­mas, mas parecia não percebê-lo, recusava-se a reconhecer sua necessidade.

Alice permaneceu em silêncio, os olhos baixos, resguardando-se do pensamento de Philip. Por que ele deveria esperar aqui­lo? Que direito tinha? A resposta era evidente: ele fizera todo o trabalho naquela casa imensa por um pagamento absolutamen­te inadequado. Fora Alice quem quisera assim; os outros não se importavam. Agora era Alice quem deveria compensá-lo. Cla­ro que ela podia entender tudo, a lógica da situação, a justiça. Mas queria ir embora, sumir dali. Aquela casa, pela qual tanto lutara, parecia agora uma armadilha, pronta para entregá-la de volta a Jasper, de quem precisava escapar. (Mesmo que fosse por pouco tempo, apressou-se em acrescentar seu triste coração.) Mas sabia que ajudaria Philip, pois tinha de fazê-lo. Nada mais justo.

E anunciou que ajudaria, viu todo o corpo de Philip, aque­le corpo frágil de pardal, convulsionar-se em soluços, o rosto iluminado.

Acompanhou-o pela rua para conhecer as instalações. Eram enormes, não um daqueles cubículos de beira de calçada, com um balcão em que se serviam algumas fatias de tortas e sanduí­ches. No meio da sala havia um balcão largo, acabado mas sem pintura, com uma área enorme por trás para preparar e cozi­nhar alimentos. Fogões, geladeiras e freezers já haviam sido en­tregues e aguardavam o momento de ocuparem seus lugares. Mas a parede nos fundos precisava de reboco. Três paredes não se encontravam em estado dos piores, mas precisavam de uma lim­peza antes da pintura. Pelo olhar de Philip, Alice compreendeu que ele tencionara fazer mais com aquelas paredes do que agora planejava. Em termos ideais, deveria haver mais de uma mão de tinta. Philip observava-a, esperando por seu veredicto.

Mas enquanto Alice hesitava, sabendo que se um patrão procurava por um pretexto para não pagar ou pagar menos have­ria de encontrá-lo lá, ouviu mais alguém ali, no enorme espaço vazio. Virou-se para deparar com o homem que contratara Phil­ip. E o primeiro olhar foi suficiente para ter certeza de que Philip seria enganado, não importava o que fizesse ou como ela o ajudasse.

O grego era mesmo repulsivo. Os olhos pretos e pequenos exibiam uma ira exagerada, como a que acompanha a defesa de uma posição falsa. Ao ver Alice, ele gritou:

Eu disse outro operário, não a sua namorada!

Ao que Alice respondeu, em sua melhor voz fria:

Está cometendo um erro. Já fiz esse trabalho muitas vezes.

Posso imaginar escarneceu o grego, usando o desdém com uma teatralidade consciente. Deve ter passado uma mão de tinta em sua cozinha.

Seja como for, você está pagando muito mal insistiu Alice. Pelo dinheiro que vai pagar por este trabalho, não po­de exigir muito.

Ela não sabia quanto Philip estava ganhando, mas bastava olhar para aquele homem para saber que não era suficiente. E sabia também que com um tipo desses era preciso ser igualmente autoritário e arrogante.

Ela virou-lhe as costas e foi se postar diante da parede, examinando-a. Philip seguiu sua deixa e foi para o seu lado. O grego fingiu inspecionar o balcão e depois arrematou:

— Darei mais dois dias.

E se retirou. Mas Alice sabia que não havia esperança. Por sua causa, Philip não seria enganado em muito; mas aquele homem não tinha a menor intenção de pagar todo o preço com­binado.

Por isso, ela não disse a Philip que aquelas paredes deviam ser raspadas e limpadas direito. Limitou-se a sugerir que se Phil­ip tinha um macacão extra, poderia começar a trabalhar imediatamente; eram apenas dez horas. Ele foi trabalhar no rebo­co, enquanto Alice pintava. Trabalharam a noite inteira. Por duas vezes uma dupla de policiais, nenhum dos quais conhecia Alice, passou por lá e olhou. O grego apareceu uma vez, pen­sando que não estava sendo notado.

Pela manhã, Philip concluíra o reboco e Alice passara a primeira mão de tinta em três paredes e no teto.

Ela tinha certeza de que o grego apareceria no instante em que se retirassem e encontraria algum defeito no trabalho.

Alice e Philip voltaram ao número 43; e lá estavam Jasper e Bert, comendo ovos com bacon. Havia alguma coisa neles que não agradou a Alice — essa foi a primeira impressão, antes que todos explodissem em sorrisos e abraços. Pois, como era de se esperar, a presença de Jasper dissolveu tudo o que Alice sentira antes; estava feliz, era ela mesma, completa, quando fora ape­nas meia pessoa sem ele. E Jasper também se mostrava satisfeito; até beijou-a, os lábios secos em sua face, os braços a envolvê-la como um círculo de ossos, mas significando afeição, significan­do amor.

Philip não ficou, disse que precisava tirar duas horas de so­no. Era o que se permitia, depois de duas noites e dois dias sem dormir. Olhou para Alice, suplicante, pois ela dissera que duas horas de sono eram tudo de que precisava antes de reiniciar o trabalho.

Mas lá estava Jasper! Philip, da porta, olhou para Jasper; havia em seu rosto o reconhecimento da inevitabilidade, Jasper como o destino inexorável, pois é claro que agora Alice não cumpriria sua palavra...

Mas Alice cumpriria sua palavra, embora soubesse naquele momento, quando Jasper acabara de voltar e as pressões dele ainda não haviam começado a se acumular, que tudo estaria bem enquanto ouvisse o relato de suas aventuras, mas depois não receberia coisa alguma, além de bruscos sins e nãos.

Havia alguma coisa naqueles dois homens uma expres­são febril nos olhos, uma espécie perniciosa de excitação o que seria exatamente? Não tinha relação com a vida sexual de Jasper, pois Bert não partilhava isso; mas Bert transmitia a mes­ma impressão. Seria ira? Inquietação, sem dúvida. Apenas exaus­tão? Talvez. Eles disseram que a travessia de barco fora péssima e que não dormiam há várias noites. Subiriam para dormir.

Alice explicou o que estava fazendo; as convenções da vida comunitária garantiriam um elogio por ajudar um companheiro.

Mas eles não fizeram qualquer menção a ajudarem também.

E subiram juntos, uma dupla, uma unidade, unidos por suas experiências, a respeito das quais estavam dispostos a dizer ape­nas que a excursão não fora das piores, o problema da União Soviética era a burocracia; se os camaradas pudessem aceitar is­so, a visita ao país seria um prazer.

E depois da União Soviética? Haviam abandonado a excur­são em Moscou e seguido para a Holanda. Não parara de chover.

Bert foi para o seu saco de dormir no quarto ao lado do que Alice ocupava. Jasper encontrou seu quarto, em cima, com as coisas de Jocelin. Houve grandes estrondos no último andar: Jasper empurrava para o patamar os móveis no quarto ao lado do de Mary e Reggie. Alice sabia que isso estava acontecendo, podia compreender, pelo barulho, que Jasper se encontrava em um dos seus acessos de raiva, quando podia deslocar armários e caixas como se tivesse a força de dez homens. Ela dormiu, com seu despertador interno armado para tocar duas horas depois.

Acordou triste, desesperada; não tinha como deixar de aju­dar Philip, mas sabia também que não podia realmente aju­dá-lo. E queria ficar com Jasper.

As instalações do grego ficaram prontas por volta de meia- noite. Duas mãos de tinta em tudo. Até mesmo no reboco, em­bora ainda fosse cedo demais para isso. Tudo feito às pressas. E de forma adequada. Mas, pelo menos para Alice, sem qual­quer prazer.

A meia-noite os três estavam ali de novo, sob as luzes de trabalho ofuscantes, agora cercados por paredes amarelas, que o grego examinou atentamente, uma a uma, desprezando-as.

Tudo aconteceu como Alice já sabia que seria inevitável.

O trabalho não estava bom; Alice era apenas uma amado­ra, e Philip, um vigarista. Ele teria de pagar a alguém para arre­matar tudo. (Claro que todos os três sabiam que isso era menti­ra; os fregueses veriam um amarelo fresco e atraente que muito em breve, no entanto, começaria a descascar.) Philip podia ir à polícia, se quisesse, mas nem mais um penny... E assim ele continuou, gritando, dramático, apontando indicadores em re­jeição para o teto, o reboco, dando de ombros para demonstrar seu desespero com a raça humana, revirando os olhinhos pre­tos amargos.

Alice interveio com palavras frias e veementes. Discutiram. Philip, branco como um ovo, gaguejava ao falar. Ao final, Phil­ip recebeu dois terços do combinado.

A uma hora da madrugada, Alice e Philip deixaram a loja carregando escadas e cavaletes, sabendo que tudo seria confisca­do se ficasse ali. Alice ficou montando guarda, enquanto Philip cambaleava pelo quilômetro até a casa, carregando uma escada três vezes mais pesada do que ele. Voltou com Bert e Jasper, que o ajudariam porque não havia outro jeito. Bert fora arran­cado de seu saco de dormir.

O material de Philip foi guardado em segurança na sala do primeiro andar, que Jim ocupara. Philip lá ficou, num estado de desespero furioso.

Bert foi se deitar de novo. Risonha e gentil, como uma noi­va, Alice disse a Jasper que seria maravilhoso se ele pudesse fi­car em sua companhia, enquanto ela comia. Quase não pusera nada no estômago o dia inteiro. Jasper respondeu bruscamente que havia mesmo um problema que precisava discutir com ela, mas seria melhor deixar para o dia seguinte. E subiu para dormir.

Alice também foi deitar, sem comer; tinha a sensação de que estava sendo arrastada para uma cachoeira ou um abismo, sem saber por quê.

Acordando cedo na manhã seguinte por causa da fome, ela estava comendo na cozinha quando Philip apareceu. Com os olhos injetados e fora de si. Enlouquecido, julgou Alice.

Philip provavelmente não dormira, passara a noite acorda­do ordenando seus pensamentos, preparando-os para apresen­tar a Alice no momento em que a encontrasse a sós.

Ele sentou, mas tão de leve que podia se levantar de um pu­lo na crista de qualquer onda na discussão. Os punhos pousa­ram na mesa, à sua frente.

Tinha outro trabalho para assumir, uma loja que seria aberta em breve. Poderia consegui-lo, mas teria que resolver tudo em um dia ou dois, no máximo. Não adiantava trabalhar sozinho. Precisava de um sócio Alice podia compreender isso, não é?

Alice devia ir com ele! Formariam uma boa equipe. Ela era uma excelente pintora, meticulosa e rápida. Os dois juntos, não ha­veria trabalho que não fossem capazes de realizar. Afinal, Alice não estava fazendo nada com seu tempo!

Philip gritava porque sabia que ela recusaria, e a raiva da rejeição já o dominava. Era como se a estivesse ameaçando, em vez de sugerir uma sociedade.

Todos vocês nunca levantam um dedo, nunca trabalham, são parasitas, enquanto pessoas como eu mantêm tudo em fun­cionamento... — Parecia que ia chorar, a voz impregnada pe­lo sentimento de traição. Falam sobre desempregados por toda parte, pessoas querendo trabalho, mas onde estão? Não consi­go arrumar ninguém para trabalhar comigo. Qual é a sua res­posta, Alice?

A pergunta foi agressiva, acusadora. E é claro que Alice respondeu não.

Philip gritou então que Alice só se importava consigo mes­ma, "como todos os outros". Fizera com que Jim fosse despe­dido e nunca pensara nele desde então. Onde estava Jim? Ela não sabia, nem se importava. E Mónica isso mesmo, ele sa­bia de tudo a respeito, ouvira a história, Mônica fora despacha­da numa busca inútil para uma casa vazia —, ele calculava que essa era a idéia que Alice tinha de uma brincadeira. Faye pode­ria ter morrido, pois ela não queria se incomodar, nem mesmo chamara uma ambulância. E não se importava com ele, Philip, depois que lhe arrancara tudo o que podia, pondo-o para traba­lhar dia e noite por uma ninharia. Agora que Alice tinha sua casa como desejava, ele, Philip, podia ir para o inferno, que ela não se importava.

E assim ele continuou, aos berros, meio chorando. Alice sabia que, se levantasse e o abraçasse, ele desabaria em seus bra­ços como uma pilha de palitos de fósforo, balbuciando: "Per­doe, Alice, eu não queria dizer essas coisas, seja minha sócia, pelo amor de Deus".

Mas ela não o fez, permaneceu sentada, pensando que as janelas estavam abertas e que Joan Robbins poderia ouvir tudo, se estivesse no jardim.

A fúria de Philip desvaneceu-se em silêncio e aflição. Ele ficou olhando fixamente, não para Alice, para qualquer outra coisa, menos ela. E, depois de um momento, saiu correndo da cozinha e da casa.

Alice ficou esperando que Jasper acordasse. Tinha a sensa­ção de que passara uma boa parte de sua vida fazendo isso. Pensou de novo: Mas vou deixá-lo. Devo partir. Não seria para sempre, mas preciso de algum tempo para mim.

Ela se descobriu subitamente de pé, abrindo a geladeira, vasculhando os armários. Faria uma de suas sopas. Mas como esti­vera trabalhando com Philip, não havia quase nada em casa. Foi às lojas, comprou comida, demorou-se nos preparativos, sen­tou à mesa, enquanto a sopa cozinhava. O gato apareceu no pei­toril da janela, miou através do vidro; Alice deu-lhe as boas- vindas, ofereceu restos de comida. Mas o gato não estava com fome; provavelmente Joan Robbins ou alguma outra pessoa o alimentara. Queria apenas companhia. Não sentaria no colo de Alice, mas esticou-se todo no peitoril da janela. Contemplou Alice com seus olhos de vagabundo e deixou escapar um pe­queno som, um grunhido ou miado de saudação. Alice desatou em lágrimas, num acesso de gratidão.

A manhã passou. Quando Jasper acordasse, explicaria tu­do: uma pequena pausa, era isso o que ela precisava.

Ao meio-dia, Bert e Jasper desceram juntos, gracejando que haviam sido acordados pelo aroma da sopa de Alice. O ânimo de raiva, rebelião ou qualquer outra coisa dos dois parecia ter desaparecido junto com a exaustão.

Loquazes, joviais, ofereceram a Alice pequenas anedotas da viagem e louvaram sua sopa. Ela se mantinha apática, observando-os. Seu ânimo logo se tornou patente para os dois, que em determinado momento chegaram a trocar olhares de "Mamãe-está-zangada", o que valeu um sorriso sarcástico de Alice. Aban­donaram as tentativas de apaziguá-la, e Bert disse:

Decidimos que está na hora de termos uma discussão am­pla sobre a nossa política, camarada Alice. Apenas entre os verdadeiros revolucionários, não com o lixo.

Ele exibiu todos os seus lindos dentes brancos num sorriso desdenhoso. Alice deixou passar. Jasper inclinou-se para a fren­te, também sorrindo, para acrescentar:

Pensamos em realizar a discussão esta noite. Ou ama­nhã à noite, o mais tardar. Mas a questão é a seguinte: onde? Mary e Reggie não devem saber. Nem Philip!

Ele também ofereceu um sorriso de escárnio. Os dois pareciam ter adquirido um estilo novo, bastante dramático, pensou Alice, examinando-os com toda a imparcialidade. E perguntou, realmente interessada:

Como vão classificar Faye? Ela é séria ou não?

Os rostos de Bert e Jasper ficaram anuviados; estavam a par da tentativa de suicídio, mas não se incomodavam com isso.

Será que ela estará em condições de participar da discus­são? — indagou Bert, hesitante.

Alice riu. Foi uma risada que a surpreendeu, parecendo tão natural, até divertida. Estava descobrindo que aqueles dois eram muito engraçados, por serem tão estúpidos. E disse, indiferente:

Se querem convocar uma reunião, então por que não o fazem?

Alice levantou-se e foi cuidar do caldeirão de sopa, acrescentando mais ervilhas, sal e depois água. Notou que o apetite de Jasper e Bert não diminuíra.

Quando se virou, os dois se mostravam desolados, de fren­te um para o outro, mas sem se olharem. Nem para ela. Refletiam, concluiu Alice, que sua ira contra eles era justificada, que haviam sido tolos por não levarem esse fator em consideração. E também que sentiam a rejeição dela como mais uma, numa sucessão de rejeições.

O coração de Alice quase se derreteu. E ela disse a Jasper:

Sinto muito. Você vai embora, inventando uma porção de mentiras. E depois aparece desse jeito... Sinto muito.

Encaminhou-se para a porta, e Jasper estava a seu lado. Alice sentiu o seu aperto frenético no pulso; era tudo o que ele sabia fazer para trazê-la de volta. Ela desvencilhou a mão com a maior facilidade.

Sinto muito, Jasper.

E saiu. No outro lado da porta, abrandou um pouco e acrescentou:

Gostaria que me avisasse a hora da reunião.

Alice subiu, pensando em dormir um pouco. Depois pode­ria telefonar para a sua antiga comuna em Halifax. Uns poucos dias ali e voltaria a ser como antes.

Mas houve uma batida na porta da frente, alta e ansiosa. Ela foi abrir, pronta para a polícia. Mas era uma mulher que não conhecia e que disse prontamente:

Sou Felicity, moro aqui perto. A amiga de Philip. Telefonaram do hospital. Philip sofreu um acidente. Querem que algumas de suas coisas sejam levadas para lá.

Ela já estava se virando com um sorriso, o dever cumprido, mas Alice disse:

Não vai até lá?

Significando: A responsabilidade não é sua?

Vou visitá-lo — respondeu Felicity vagamente. — Mas não agora. As coisas de Philip estão aqui, não é?

Ela fora uma extensão do número 43 durante todo aquele tempo, mas ninguém pensaria assim por sua atitude. Era peque­na, vigorosa, autoritária, tão competente quanto Alice em fir­mar sua posição. Estava dizendo que não tencionava permitir que Philip se tornasse sua responsabilidade.

Alice pensou em Philip naquela manhã, furioso e lamentá­vel. E disse:

Muito bem. Ele está mal?

Não morreu. Mas foi por pouco. Teve sorte. Ossos que­brados.

Felicity tornou a sorrir e foi embora, apressada.

Alice subiu para o quarto de Philip. Suas roupas estavam em prateleiras bem pintadas, arrumadas meticulosamente. Encontrou três pijamas limpos, azul, verde e marrom, fez uma pi­lha; um roupão pendurado num gancho atrás da porta; escova de dentes e uma toalha posta para secar no peitoril da janela; sabonete, barbeador elétrico. E partiu, limitando-se a dizer a Bert e Jasper, através da porta aberta da cozinha, que ia ao hospital, mas sem mencionar Philip. Não queria que qualquer dos dois descartasse o acidente como haviam feito com a tentativa de sui­cídio de Faye. Era terrível, e ela sabia disso. Representava uma espécie de fim para Philip. Claro que ele próprio se deixara atro­pelar ou qualquer outra coisa que tivesse acontecido, porque precisava ressaltar sua situação. Fazer-se desamparado, tornar visível seu desamparo.

No hospital, porém, Alice descobriu que a situação era pior do que Felicity dissera. Ombro fraturado. Rótula fraturada. Pul­so esquerdo fraturado. Equimoses. Mas também havia uma fratura de crânio. Philip seria levado para a sala de operações dentro de poucos minutos. Os médicos desconfiavam da existência de lesões internas. Ele estava inconsciente. Como Alice disse que não sabia se Philip ainda tinha família — e se tinha, não podia fornecer um endereço —, a irmã da enfermaria escreveu seu no­me no formulário como "parente mais próximo". Tem telefo­ne? Alice decidiu que Felicity não podia se esquivar totalmente e deu o telefone dela para emergências. Além do mais, o núme­ro 43 não tinha telefone.

Depois, ela parou numa porta, sem saber o que esperar, por­que não visualizara coisa alguma. Avistou no meio da enferma­ria uma máquina enorme, com roldanas e alavancas, rodas e tubos, por baixo da qual, meio sentado, mas arriado e inerte, estava Philip, todo enfaixado. Só o rosto era visível: com uma palidez cadavérica, veias azuis adejando nas pálpebras lívidas, lábios brancos que pareciam ter alguma espécie de tintura rosa ressequida nos cantos. Mais do que nunca, ele parecia ser um duende, uma criatura inumana. Ali imóvel, desamparada, com a irmã da enfermaria logo atrás, Alice não era capaz de se me­xer. Pensava que era isso o que acontecia com as pessoas à mar­gem da sociedade, agarrando-se à vida, mas apenas por um fio. Bastava uma escorregadela; podia ser algo insignificante, como o grego, mas fazia parte da curva descendente de uma vida e não precisava mais nada as pessoas não conseguiam mais se segurar e caíam. Fora o que acontecera com Philip.

Alice virou um rosto tão chocado para a irmã da enferma­ria, que esta disse no mesmo instante:

Você está bem? Incisiva, mas indiferente, porque não queria suportar Alice. Desça para tomar um chá. Sente-se um pouco.

Sua expressão indicava que estava disposta a se preocupar com Alice, mas só se ela apresentasse sintomas que o justifi­cassem.

Estou bem murmurou Alice.

Ela observou a irmã se aproximar de Philip e examiná-lo atentamente por cerca de um minuto. Por alguma razão, aque­la inspeção meticulosa revelou tudo a Alice. Ela virou e saiu correndo pelos corredores, esperou pelo elevador e entrou, sem ter consciência de suas ações. Choramingava sem parar, o olhar fixo à frente contemplando o rosto agonizante de Philip.

E então ocorreu-lhe o pensamento: Philip já estava no fim do túnel antes de perguntar se podia viver com a gente. Pensamos ver alguém no início de uma curva ascendente, com um novo negócio, tudo pela frente, mas não era absolutamente as­sim. E bem provável que não tenha sido o grego quem o fez largar o fio talvez isso tenha acontecido no momento em que Felicity o expulsou. (Alice sabia agora que fora justamente is­so, a atitude de Felicity.) Ou talvez muito antes. E, de repente, Alice sabia. Tudo estava perfeitamente claro, como um gráfi­co. Não era uma questão de Philip não conseguir mais se segu­rar. Ele nunca se segurara. Não acontecera algo que deveria ter acontecido: um professor ou outra pessoa deveria ter dito: Este aqui, Philip Fowler, deve ser um artesão, fazer coisas pequenas, delicadas e intrincadas; devemos prepará-lo para isso. Olhem só a perfeição com que faz as coisas! Não pode dobrar uma ca­misa ou arrumar uma posta de peixe com batatas fritas sem fa­zer um quadro.

Não acontecera. E Philip começara a trabalhar para uma firma construtora, como todas as pessoas que não têm uma especialização. Um pintor numa construtora, perdendo um em­prego após outro, até tomar uma decisão: Trabalharei por conta própria.

Era tudo inexorável. E terrível...

Mais tarde, Alice não se lembrou de como voltara do hos­pital. Na cozinha, Roberta deu uma olhada nela e apresentou seu remédio: conhaque. Roberta passou o braço pelos ombros de Alice, ajudou-a a subir, ajeitou-a no saco de dormir, puxou as cortinas.

Alice dormiu durante os dois eventos daquela noite.

O primeiro foi a visita do policial rancoroso, acompanha­do de uma colega, a fim de falar sobre um carro roubado. Jasper e Bert estavam presentes e as coisas não correram muito bem, teriam acabado em violência e prisões se, por sorte, Mary e Reggie não houvessem aparecido e conversado com os policiais em sua própria linguagem, em seus próprios termos. Mas depois Mary e Reggie se mostraram frios, desapontados, argu­mentando que não havia necessidade de criar problemas com a polícia, bastava que as pessoas soubessem lidar com ela. "E também, é claro, se comportar", estava implícito.

Eles subiram, mas Reggie desceu quase que no instante seguinte para perguntar se Bert e Jasper não tinham mesmo nada a ver com o carro roubado.

Somos revolucionários, não bandidos — respondeu Bert, furioso.

Mais tarde, quando já passava de meia-noite, Felicity tor­nou a aparecer para informar que haviam telefonado do hospi­tal. Philip morrera. Ela estava bastante transtornada, como contaram a Alice no dia seguinte. E foi convidada a entrar, a tomar a sopa de Alice e o conhaque de Roberta.

Alice não soube de nada disso até o dia seguinte. No meio da manhã. Estavam todos na cozinha, o sol entrando, o gato no peitoril da janela.

Ele afundou muito depressa, não foi? — comentou Alice, visualizando uma coisinha quebrada, como um passarinho ou um inseto, tentando se segurar a uma palha, um graveto, mas em vão.

Os outros não compreenderam, porém Faye murmurou, com um sorriso frio:

Sorte de Philip.

Mary disse que Philip a impressionara como alguém extremamente instável.

Alice observou que se a polícia escolhera aquela casa como um lugar para se divertir um pouco, então não valeria a pena viver ali. Os outros a fitaram curiosos: a indiferença com que falara é que causava estranheza.

Alice se levantou e subiu, pôs a escada de Philip na posição e foi para o sótão. Parou sob as enormes vigas podres, iluminando-as com a lanterna. Pensava ou tentava pensar, a fim de tomar uma decisão, compreender, aceitar que Philip cui­dara de tudo na casa, todas as ameaças e perigos. Mas aquela ameaça, a principal, ele não enfrentara. Nem podia. Apenas por causa do seu tamanho. Porque não passava de um punhado de ossos frágeis com uma camada de carne. Alice podia ver em sua imaginação o tipo de homem que seria capaz de remover aque­las duas vigas podres e substituí-las por outras. Um homem enor­me podia contemplá-lo levantando as vigas para o lugar. Sem qualquer esforço. Humilhada e sem compreender, por causa da arbitrariedade, da frivolidade da vida, ela tornou a descer e disse que, se as vigas não fossem trocadas, a casa começaria a desabar, lá por cima. Sentou à cadeira que ocupara antes de su­bir, no lado da mesa. Na cabeceira e na outra extremidade, co­mo pai e mãe, estavam Reggie e Mary. Irradiaram desaprova­ção. Sabiam disso, mas não estavam dominados pelo pânico.

É claro que teremos de consertar as vigas declarou Mary.

Jasper, Bert, Faye e Roberta, que vinham observando Alice endireitar as coisas há semanas, olharam para ela, talvez esperando que dissesse: "Está tudo bem, já consertei". Jocelin e Caroline não se envolveram. Alice murmurou:

Quer dizer que vocês arrumaram um apartamento?

Surpresa, até mesmo afrontada, Mary respondeu:

Isso mesmo, mas como...

E Reggie:

Mas ainda não contamos a ninguém porque não está decidido.

O que significa que esta casa volta à lista, não é? insis­tiu Alice.

Não para demolição garantiu Mary. — Chegou-se à conclusão de que houve um erro. Tanto esta casa como a 45 serão reformadas. Mas, de qualquer forma, nada acontecerá tão cedo. Ou seja, vocês terão bastante tempo para encontrar outro lugar.

Outra casa vazia para uma ocupação autorizada acrescentou Reggie, generoso.

Os outros tornaram a olhar para Alice, que tanto se empenhara naquela casa; novamente pareceram surpresos ao verifi­car que ela se mantinha despreocupada.

Alice examinava Mary, examinava Reggie, abertamente, pois precisava saber o que acontecia. Podia ver os dois, sentados lado a lado na cama de casal, discutindo sobre todos, com idênti­cas expressões de crítica escandalizada. Jim. A tentativa de suicídio de Faye. Agora Philip. Alice compreendeu que eles de­viam se sentir acuados entre lunáticos. Ora, não tinha impor­tância, aquelas duas boas casas estavam salvas e muitos haviam encontrado abrigo nelas por algum tempo.

Arrumou um emprego? perguntou Alice, certa de que Reggie o conseguira.

Outra vez irritação: porque a classe média, é evidente, não gostava de ser tão transparente.

Arrumei, sim confirmou Reggie. E uma firma no­va, em Guildford. Claro que é um risco, o índice de fechamen­to de firmas novas está muito elevado no momento. Mas é um empreendimento promissor. Pode dar certo.

O fato de ele não informar o que era, pensou Alice, signifi­cava que o "empreendimento" poderia ser criticado pelos ou­tros. Agentes químicos: Reggie era químico. Mas ela não estava interessada.

Reggie levantou-se. Mary levantou-se. Uma distribuição de sorrisos. Mas era alívio o que eles sentiam. Linguagem do corpo. Estampada neles. Os dois, Mary e Reggie, acharam que de­veriam ficar com os outros durante algum tempo, por causa da morte de Philip, mas agora já era suficiente, podiam subir e pros­seguir em suas próprias vidas, tão sensatas. Eles não perderiam o pega na vida para escorregarem e caírem, serem tragados por alguma sarjeta.

Engraçado, pensou Alice. Sentados em torno desta mesa, há umas três semanas, todos nós. Não se diria que Philip have­ria de perder a luta. Jim? Possível. E Faye...? Alice teve o cui­dado de não olhar para Faye, sentindo que um olhar naquele momento seria como um julgamento, uma sentença. Para ela, Alice, a cozinha parecia cheia de fantasmas, e seu coração se con­traía pelo pobre Philip, que tanto se empenhara, fora tão galan­te. Não era justo.

Bom, com Reggie e Mary partindo em breve não restariam muitos ali. Jasper, Bert e ela. Caroline e Jocelin, Faye e Roberta. Sete pessoas.

Pat se fora. Jim se fora. Philip se fora. O camarada Andrew desaparecido em algum lugar. Até mesmo a mulher-ganso parecia a Alice, no ânimo em que se encontrava, uma velha e boa amiga que lhe fora arrancada. Muito bem, que tirassem aquela casa. Por que não? Não ia se importar. Sabia que estava agora com sua cara: podia sentir os olhos de Jasper observando-a aten­tamente. Para evitá-los, ela se levantou e iniciou os preparati­vos para outro caldeirão de sopa.

Camarada Alice disse Bert, em sua voz política —, estamos todos aqui. Decidimos ter uma reunião assim que Reggie e Mary se recolhessem.

E vão se dar ao trabalho de me chamar? indagou Alice.

Mas voltou ao seu lugar, notando que Bert e Jasper haviamocupado as duas extremidades da mesa.

Meio da tarde. Sol. Joan Robbins aparava sua sebe com uma tesoura antiga. Plaque, plaque, plaque, a intervalos regulares, que mantinham os ouvidos aguçados. No jarro sobre o banquinho havia algumas rosas prematuras. Amarelas. O gato refestelava-se no peitoril da janela, no outro lado do vidro, olhando. Bert começou:

Tendo em vista nossas observações em Moscou e subseqüentes discussões, Jasper e eu concordamos que deveríamos for­mular uma nova política. Claro que terá de ser discutida am­plamente em todas as suas implicações, mas, apenas para indi­car para onde nossas conclusões apontam, fizemos uma formu­lação provisória: a de que os camaradas presentes não vêem qual­quer motivo para aceitar diretivas de Moscou.

Ou de qualquer outra fonte externa acrescentou Jasper.

Bert inclinou-se para a frente e fitou a todos com um ar dedesafio.

Isso mesmo disse Caroline, que descascava uma laranja e lambia o sumo dos dedos. Concordo plenamente.

Eu também declarou Jocelin no mesmo instante.

Muito bem disse Faye. Mas de quem foi a idéia de nos envolvermos com aquele merda do camarada Andrew e suas coisas? Foi sua, camarada Bert. E sua também, camarada Jasper.

Ela usava a sua voz conveniente da BBC, o que era um choque, como sempre, depois de seus flertes habituais com a lín­gua. E parecia fria, transbordante de ódio.

Bert e Jasper ficaram desconcertados. A fúria do desapontamento em Moscou fora atenuada pelas discussões sobre política, sobre "formulações", e haviam perdido de vista a história recente de teorização. Alice pôde perceber que os dois faziam um tremendo esforço para se lembrarem.

Bert não estava disposto a renunciar aos prazeres das "implicações" e insistiu:

Mas é essencial analisar a situação. — Uma pausa, e ele corrigiu, pouco convincente: — Ou pelo menos aconselhável.

Por quê? — indagou Jocelin.

Isso mesmo, por quê? — acrescentou Faye.

Silêncio.

Rompido por Alice, diplomaticamente:

Há algumas coisas que eu gostaria de saber antes de abandonarmos o assunto.

Faye suspirou. De forma exagerada. Fazia um esforço para estar ali com os outros. Estava muito pálida. Parecia só haver vida nos cabelos lustrosos, que emolduravam com anéis e cachos o rosto vazio.

Eu gostaria de saber como o pessoal da outra casa, do número 45, envolveu-se com os escrotos dos russos — disse ela.

Boa pergunta — concordou Caroline, fazendo pequenas pilhas de casca de laranja com os dedos brancos e sólidos, que tinham anéis reluzentes.

Alguém sabe? — insistiu Alice.

Jocelin sabe — informou Caroline.

Jocelin deu de ombros, como que irritada por toda a cena.

Todos olhavam para ela. Não era fácil contemplá-la. Não por sua aparência, que nada tinha de extraordinário. Era loura, a normalidade ressaltada pela linda Faye, tão delicada e suave, sempre se apresentando de uma maneira diferente. Jocelin não se importava se era admirada ou mesmo vista. Olhos verdes e frios observavam tudo, e ela se mantinha irada o tempo todo, como se uma raiva generalizada a tivesse dominado em algum momento e ela passado a acreditar que era assim que se experi­mentava o mundo. Não era fácil suportar essa hostilidade; e as pessoas tendiam a olhar não para o seu rosto e sim para as mãos, que eram bem-feitas, os dedos compridos e flexíveis, ou para as roupas, esperando ali encontrar alguma coisa de interessan­te. Mas ela sempre vestia jeans e uma blusa de malha.

Vou contar o que aconteceu — anunciou Jocelin. — O que eu sei. Havia uma casa em Neasden que funcionou muito bem como ponto de intercâmbio, por várias semanas. Ninguém espera usar um lugar assim por mais de algumas semanas. Mas de repente a polícia apareceu. Havia um informante. Ou qualquer coisa assim.

Ela acendeu um cigarro e Alice percebeu que o ato servia para ganhar algum tempo, a fim de que pudesse determinar exatamente quanto queria dizer. E tratou de estimulá-la:

Intercâmbio de quê?

A mesma coisa que acontecia na outra casa... na 45. Principalmente material de propaganda. Mas também matériel.

Essa palavra tão profissional causou, como Alice reparou, agradáveis frissons em Bert e Jasper, que se inclinaram para a frente, ansiosos, fitando Jocelin, sem saber que o faziam. Mas, percebendo sua atitude, apressaram-se em desviar os olhos, em­baraçados.

Era uma questão de encontrar algum lugar depressa. E bem depressa. Alguém disse que a 45 estava vazia. Só havia necessidade de um lugar por dois dias. Era o que se pensava.

Quem precisava? — indagou Bert, meio brusco.

Obviamente, o camarada Andrew — respondeu Caro­line, incisiva e desaprovadora.

Isso mesmo — confirmou Jocelin. — Ele organizava material de propaganda. Quase tudo para o IRA. E quase tudo im­presso na Holanda. E também... outras coisas. Uma parte perigosa. E muito.

Nesse ponto ela sorriu friamente para os outros, mas com os lábios fechados; todos sorriram apreensivos e desviaram os olhos.

Mas a casa não estava vazia — explicou Caroline. — Eu só me ausentara por poucos dias. Voltei e encontrei dois quar­tos atulhados de coisas. E depois a camarada Muriel apareceu, seguida pelo camarada Andrew.

Caroline riu sinceramente, e todos, aliviados, riram também. Mas não Jocelin, que fitou a todos com seus olhos verdes, um de cada vez, esperando o momento de continuar.

Parece que não foi fácil encontrar outra casa convenien­te. Não havia nada realmente seguro. Enquanto procuravam, eles continuaram na 45. E usaram todos os recursos. Houve uma ocasião em que havia no jardim quatro latões cheios de panfle­tos cobertos por lixo. Mais de uma vez, houve sacos de plástico com matériel. Mas não podia continuar assim. Não demorou muito para que a maioria dos camaradas fosse embora, todos de uma vez. E foi então que a camarada Alice entrou em cena.

Jocelin sorriu, mas seus olhos eram como blocos de pedra verde.

A combinação de talentos extraordinários da camarada Alice era um golpe de sorte. Parece que a camarada Muriel e o camarada Andrew estavam prestes a seguir o exemplo de vocês, fazendo da 45 uma ocupação autorizada pela prefeitura. Mas mudaram de idéia: haveria o risco de visitas constantes do pes­soal da prefeitura, e as coisas continuavam a chegar e partir nas horas mais inesperadas da noite e do dia. Concluíram que já era suficiente que houvesse respeitabilidade na casa ao lado, que con­tava até com uma funcionária da prefeitura, Mary Williams. E depois houve um Congresso da UCC.

Ela riu, deixando claro o que pensava da UCC. E deles?

Mas como você se envolveu em tudo isso? — indagou Faye. — Não gostava do camarada Andrew mais do que nós.

Eu não disse que não gostava dele — protestou Jocelin.

Gostar... ora, quem se importa com isso? Eu não estava envolvida com o camarada Andrew ou com qualquer dos atos. Resolvi me mudar para cá porque Muriel disse que vocês queriam trabalhar com o IRA.

E agora ela tornou a fitá-los, lentamente, um após o outro, sem a menor pressa. E acrescentou, muito suave:

Isso me interessa. Moscou, KGBe todo o resto não me interessam... mas isso é história, agora que Andrew se foi. Para onde quer que seja. E eu não gostaria de estar no lugar dele.

Nem eu — murmurou Caroline.

Alice sentiu-se magoada pelo camarada Andrew. Parecia que alguma coisa choramingava baixinho ali, em seu peito. Então aquele era o fim do camarada Andrew? Elas não se importavam com o que pudesse acontecer a ele! Ou se nunca mais tor­nassem a vê-lo! Jasper estava dizendo:

Por quê? O que aconteceu? Não entendo o que estão querendo insinuar.

O que ele fez? — acrescentou Bert.

Ninguém respondeu. Elas não iam perder tempo com isso. O ca­marada Andrew não valia o esforço. Fora embora. Desaparecera. Jasper informou, com uma veemência que irrompeu abruptamente:

Bert e eu estivemos na Irlanda. Conversamos com os camaradas. Não estavam interessados.

Foi o que eu soube — comentou Jocelin, calmamente.

Passaram-me essa informação. Mas e daí? Quem é o IRA para nos dizer o que fazer em nosso próprio país?

O que impressionou a todos com a força de alguma verda­de óbvia e inelutável, que inexplicavelmente não haviam percebido até aquele momento. Mas é claro! Quem era o IRA para lhes dizer o que deviam fazer?

Bert riu baixinho, os dentes brancos aparecendo. Jasper também riu — e Alice sofreu ao ouvi-lo, pois podia avaliar pela ri­sada como ele ficara magoado e deprimido pela recusa de Moscou em levá-los a sério, depois da recusa na Irlanda. A risada de Jas­per era desdenhosa e orgulhosa, a confiança lhe voltava; ele cor­reu os olhos por todos, justificado.

Absolutamente certo! — exclamou Faye. — Finalmen­te. No que me diz respeito, vocês todos acabaram de ver a luz. Temos de decidir o que vamos fazer, e nós mesmos executare­mos. Não precisamos pedir permissão a estrangeiros.

Ela ainda usava sua voz fria e correta.

Concordo plenamente — declarou Roberta.

Então está decidido — comentou Alice. — Tudo o que temos de fazer agora é formular um plano.

Houve nesse momento uma batida na porta da frente. Alice foi atender e voltou com Felicity. Como Alice estava registrada como a "parente mais próxima" de Philip, tinha de ir ao hospital para cuidar de algumas formalidades. Felicity não que­ria sentar; não queria, como todos podiam perceber, ser força­da a se imiscuir nos problemas de Philip.

Por que eu, Felicity? — indagou Alice, furiosa. — Por que não você?

Philip foi para o meu apartamento porque não tinha on­de ficar. Estava desesperado. Para mim, ele era apenas uma pessoa sem um lugar para morar.

Mas ele não tem família ou alguém?

Tem uma irmã.

Onde?

Como vou saber? Ele nunca me disse.

As duas se fitavam, como se travassem uma batalha amar­ga. Compreendendo como deviam parecer, elas se sentiram embaraçadas. Felicity explicou:

Quando eu disse que Philip podia ficar, pensei que fosse pelo fim de semana, uma semana no máximo. Mas ele ficou lá mais de um ano.

Alice compreendeu que ela é quem teria de cuidar de tudo e murmurou, amargurada:

Ora, está bem...

Tendo conseguido o que queria, Felicity tornou-se "simpática", recusou um chá com desculpas apressadas e deixou a casa.

Pobre Alice — comentou Roberta. — Irei com você.

Alice começou a chorar. Todos ficaram espantados.

Claro que ela está chorando acrescentou Roberta. Tem mesmo que chorar. Está cansada.

Ela passou o braço pelos ombros de Alice e levou-a para a porta.

Não façam coisa alguma que nós não faríamos enquan­to estivermos ausentes arrematou Roberta jocosamente, pa­ra todos, mas com os olhos fixos em Faye, que, traída, sacudiu a cabeça e recusou-se a fitar a amiga, voltando a ser de repente uma donzela cockney.

As duas passaram algumas horas no hospital, assinando formulários, falando com as autoridades competentes. Alice con­cordou em tirar um atestado de óbito. Combinou verificar os bens de Philip com um representante da prefeitura, que iria à casa no dia seguinte.

A meia-noite, Roberta reanimou-a com uma xícara de chocolate quente, deixando patente que isso seria tudo; não se sen­tia na obrigação de fazer mais nada por Philip, embora pudesse ajudar ainda mais se Faye não estivesse tão necessitada.

Alice passou a manhã providenciando o atestado de óbito e a tarde verificando as coisas de Philip com um representante da prefeitura. Foi difícil e angustiante. Ele possuía umas poucas roupas e cerca de quinhentas libras numa caderneta de poupan­ça, que pagariam o funeral.

Alice não falou sobre as escadas e os outros equipamentos; pelo menos não seriam vendidos a algum negociante por um décimo do valor real. Eles os ocupantes do número 43 — pos­suíam agora suas escadas, cavaletes e ferramentas. Pelo que isso valia, enquanto valesse alguma coisa.

Por causa da preocupação de Alice com a disposição das coi­sas de Philip, tudo na casa ficou em compasso de espera. Ou melhor, todos ficaram aguardando, com exceção de Jocelin, que trabalhava num quarto de cima numa variedade de artefatos pro­duzidos com base no que aprendia nos "livros de receitas", co­mo os chamava, oferecendo conselhos admiráveis e precisos sobre a fabricação de artefatos explosivos. Ela tomara de em­préstimo um pouco do matériel que passara pelo número 45. Alice, junto com os outros, foi ver os artefatos, a convite de Jocelin. Estavam arrumados numa mesa de cavalete armada com as coisas de Philip, num quarto trancado trancado por causa de Mary e Reggie, que deveriam se mudar dentro de poucos dias, mas continuavam na casa. O que impressionou Alice nas coisas feitas por Jocelin foi o fato de parecerem tão insignificantes e até mesmo frágeis, meras montagens de pedaços disso e daqui­lo. Os artefatos eletrônicos que Jocelin exibia com tanto orgu­lho não pareciam mais portentosos do que os fragmentos de circuitos minúsculos encontrados quando se desmonta um rá­dio transistorizado.

Havia inclusive clipes de papel, percevejos, dois relógios ordinários, pedaços de arame, produtos químicos domésticos, tu­bos de cobre de tamanhos diversos, bilhas, tachas, pacotes de explosivo plástico, dinamite antiquada, rolos de algodão, bar­bante.

Enquanto Jocelin trabalhava com satisfação ("prazer" não era uma palavra para ela) naqueles brinquedinhos e Alice cho­rava por Philip — pois sentia agora como se tivesse perdido um velho amigo, até mesmo um irmão —, Jasper e Bert compareceram a algumas manifestações, sempre advertidos de que to­massem cuidado e não se deixassem prender, pois havia um trabalho importante a ser feito; e Roberta e Faye foram para a casa de uma amiga em Brighton, porque a brisa do mar faria bem a Faye. A mãe de Roberta continuava em coma.

O dia passou devagar. A casa parecia vazia. Alice descobriu- se a pensar que Roberta e Faye provavelmente voltariam na­quela noite. Gostariam de ser recebidas com uma refeição e tan­to, talvez mesmo um banquete? Enquanto ela se preocupava com isso, sentada na cozinha, em companhia do gato, Caroline apa­receu com sacolas cheias de comida. Demonstrava uma grande satisfação; não, Alice devia permanecer sentada, deixar que a servissem por uma vez.

Até então somente Alice providenciara comida. Isto é, co­mida de verdade, não uma pizza ou porções de batatas fritas. Só Alice carregava sacolas pesadas com frutas e legumes, abastecia a geladeira com manteiga e leite, guardava pacotes de macarrão e latas de cereais nos armários. Agora, sentia-se profundamente grata, observando Caroline, que trabalhava com um sorriso, com um contentamento secreto tão intenso que parecia transbordar. Alice também se sentia ressequida; fazia aquelas coisas, cozinhar, alimentar, acalentar como se fosse uma obrigação, um dever. Nunca sentira em toda a sua vida o que via agora se irradiar de Caroline, que a fitou, enquanto lambia uma colher para testar o molho, como se partilhasse um prazer que só mesmo raras pes­soas no mundo, os iniciados, podiam suspeitar. Ela estendeu uma colher para Alice, com todo o cuidado, contendo — assim pare­cia — alguma essência ou destilação, e observou com os olhos brilhantes Alice provar e proclamar:

Está fantástico, maravilhoso.

Sou uma grande cozinheira — Caroline cantou ou ronronou. — Era isso que eu devia estar fazendo...

Ao lembrar-se do que fazia, a desolação dominou-a por um momento e ficou calada.

Depois, contou sua história a Alice. Uma boa filha da clas­se média, como se descreveu, viu a luz — isto é, que o Sistema estava podre e precisava de uma mudança radical — quando ti­nha dezoito anos. Estava apaixonada por um jovem Che Gue­vara, mas ele se tornou respeitável aos olhos dela, ingressando no Partido Trabalhista. Apesar disso, era o grande amor de sua vida. Sempre que o visitava — "Angústia absoluta, minha cara, por que eu faço isso?" —, sabia que aquele era o homem para ela.

Mas como eu poderia viver assim? Seria impossível! Um fim de semana é suficiente. Depois choramos, brigamos e nos separamos. Até a próxima vez.

E assim Caroline foi falando, ficando corada, parecendo relaxar e abrandar ao calor da cozinha, farinha de trigo na face, mangas arregaçadas, as mãos enormes no controle de tudo. Pa­recia roliça, suave, contente, com satisfações secretas e inescrupulosas.

Jasper e Bert voltaram, prontos para um banho quente e comida. Haviam ido a Nottingham para se juntarem aos pique­tes numa greve de mineiros. Chovera e fazia frio. Roberta e Faye estavam morrendo de fome, anunciaram no instante em que chegaram. Faye tinha outra vez um pouco de cor nas faces, retornara ao mundo dos vivos e exibia sua personalidade cockneycom toda a graça e animação. Roberta, tão feliz porque seu amor estava melhor, mostrava uma parte de si que os outros não conheciam. Cantou, muito bem, numa voz de contralto, cheia e controlada, primeiro algumas canções operárias, depois diversas canções portuguesas, espanholas e russas. Ela aprende­ra canto, mas encontrara seu lugar na revolução.

Havia bastante vinho, e todos ficaram altos. Mary e Reggie não apareceram.

Todos já se preparavam para deitar, por volta das duas ho­ras da madrugada, quando houve uma batida baixa e apressada na porta da frente.

Oh, Deus, a polícia! — gritou Alice, a voz estridente.

Ela correu para confrontar os guardas. Mas não era a polí­cia. Dois jovens, carregando enormes volumes, estavam para­dos ali, sorrindo, encurvados para o lado sob o peso.

O que é isso? Não podem trazer essas coisas para cá! — protestou Alice, sabendo o que acontecia, com todo o seu prazer pela noite se dissipando, sentindo apreensão e calafrios.

Essa não! — exclamou um deles, irlandês da cabeça aos pés. — Disseram para a gente deixar tudo aqui.

É um engano — insistiu Alice.

Mas o jovem deixou o volume no chão do vestíbulo e foi embora. Seu companheiro, com um sorriso contrafeito, fez o mesmo.

Vocês têm de levar essas coisas de volta! — gritou Alice. — Estão me entendendo?

Os dois desceram pelo caminho e ela viu-os parar ao lado de um furgão pequeno e velho. Conferenciaram por um momento, virando-se para conferir o número da casa. Alice se adian­tou e persistiu:

Vocês não entenderam. Aquelas coisas não podem ser deixadas aqui. Devem levar tudo de volta.

É mais fácil dizer do que fazer — protestou o homem que falara primeiro.

Ele parecia injuriado. Mais do que isso, assustado. Até cor­reu os olhos pelas sombras dos jardins e a rua principal, onde o movimento diminuía, mas ainda existia. Era uma noite escu­ra e úmida. Os três estavam parados à luz de um lampião, discutindo.

Alice declarou que aquela era a casa errada, e que já não era mais seguro deixar qualquer coisa no lugar que procuravam, o número 45.

Eles responderam que a ordem era para deixar a encomen­da no número 43.

Vocês têm de levar daqui!

Não vamos levar nada!

Alice imaginou uma janela sendo levantada às suas costas e virou-se para olhar o alto às escuras da casa em frente à de Joan Robbins. Enquanto fazia isso, os dois homens aproveitaram a oportunidade para embarcar no furgão. Ela teve de se afastar apressada para o lado, a fim de não ser atropelada.

Oh, não! — lamentou-se no escuro, observando o fur­gão virar a esquina e desaparecer. — Não é possível! Não é justo!

Continuou parada ali, impotente, sentindo que as coisas haviam escapado ao controle. Pensou que devia entrar, pois sem­pre podia haver um vizinho bisbilhoteiro e interessado. As duas caixas, lisas e inocentes, estavam no vestíbulo, sem nada que anunciasse seu conteúdo.

Jasper e Bert se encontravam na escada, olhando, desconsolados. E também um pouco bêbados. Mais acima, Jocelin. Ro­berta e Faye haviam ido para o quarto. Caroline ainda arrumava a cozinha.

Não podemos ter isso aqui! — Alice apelou para os homens.

Mas foi Jocelin quem passou por eles e disse simplesmente:

Vamos levar para o sótão.

Enquanto as duas subiam com grande dificuldade, eles finalmente se prontificaram a ajudar. Primeiro a caixa mais pesa­da e depois a outra foram guardadas num canto remoto do sótão.

Jocelin declarou que descobriria o que havia dentro das cai­xas pela manhã. Talvez até naquela noite: não estava com sono.

Tome cuidado para não explodir todos nós — advertiu Jasper.

Ela não disse nada. Não tinha muita consideração por Jas­per e não tentava disfarçar. Mas parecia gostar de Bert, que, por sua vez, sentia-se atraído por Caroline, que não percebera seu interesse ou achava melhor ignorá-lo.

Alice voltou à cozinha, arrumou isso e aquilo, atenta aos sons de alguém ou de todos retornando para conversar a respei­to. Pois compreendera que alguma coisa ruim acontecera. Não era apenas mais uma pequena contrariedade, como uma visita da polícia. Quando concluiu que ninguém viria, o que significa que não tinham visto o que àquela altura já deveriam, Alice sen­tou à cabeceira da mesa e caiu num estado de torpor. Sentimen­tos entorpecidos, mas não um pensamento, pois sua mente permanecia ativa.

Ninguém lhes dissera que o número 43 se tornaria um ponto de intercâmbio. A camarada Muriel teria mencionado, se soubesse. Caroline e Jocelin não esperavam. O camarada Andrew nem sequer abordara o assunto. (Nesse ponto, o pensamento do dinheiro, as quinhentas libras, se apresentou, e Alice consi­derou tal possibilidade, sem preconceitos.) O número 43 não podia ter pessoas trazendo coisas e outras buscando, a qualquer hora do dia ou da noite! Não daria certo! Mas com quem Alice podia entrar em contato para dar esse aviso? Ocorreu-lhe que não tinha como falar com Pat ou Muriel, muito menos com o camarada Andrew. A irrealidade da situação, aquelas pessoas serem tão vívidas, ali, naquela casa e também na outra, por se­manas — camaradas, podia-se dizer até íntimos —, e em seguida não estarem mais lá, desaparecerem por completo, de tal forma que não podia sequer lhes mandar um cartão-postal... Esse pen­samento aprofundou seu torpor, como uma área branca que se espalhava lentamente por todo o seu ser.

E havia outra coisa. (Mas claro que isso não era um pensamento novo.) Ali estavam eles, empenhados em "fazer final­mente algo concreto", todos prontos para isso — podia-se agora dizer que o número 43 balançava, como um barco à beira de uma cachoeira (Alice sacudiu a cabeça vigorosamente, como um cachorro removendo a água das orelhas) —, com pessoas que não tinham muita confiança umas nas outras. (Alice reconsti­tuiu a expressão de Jocelin ao constatar que Bert e Jasper conti­nuavam parados na escada, enquanto ela, Jocelin, descia correndo para ajudar a carregar os enormes pacotes.) Não, com toda a certeza, Jocelin não admirava Jasper. O que pensava de Faye? Não era difícil imaginar. Mas não era quase certo que ela devia aprovar Roberta? E Caroline? Não era fácil imaginar um con­traste maior entre a mulher indolente e sensual e a fria e objeti­va Jocelin. E ela própria, Alice? Será que Jocelin também a desprezava?

Ocorreu-lhe que estava usando Jocelin como um ponto de referência, uma base de julgamento. Como se Jocelin fosse a chave para tudo. Mas, afinal, era ela quem estava trabalhando nas bombas ou o que quer que fosse.

Alice subiu para o topo da casa, viu que a luz saía por baixo da porta da oficina de Jocelin, bateu e ouviu um "Entre" sussurrado.

Jocelin ergueu os olhos do lugar em que estava sentada, atrás da bancada, as mãos ocupadas com um pedaço de arame de cobre. Por perto havia pacotes de diversos produtos quími­cos domésticos, parecendo tranqüilizantes em suas embalagens coloridas.

Jocelin continuou a olhar para Alice, esperando que ela se explicasse. E era formidável e assustadora, pensou Alice. Contudo, o que podia ser mais comum do que Jocelin? Um estra­nho veria uma loura um tanto desleixada, os cabelos claros caindo pelo rosto, manchas de algum pó branco no suéter cin­za e velho. Mas era a sua concentração, o empenho no que fazia...

Alice balbuciou um "Olá" e Jocelin não respondeu, conti­nuou a trabalhar, despejando grãos brancos de uma panela ve­lha num cano de cobre.

Não gostei do que aconteceu — disse Alice, soando ine­ficaz até para si mesma.

Jocelin acenou com a cabeça.

Também não gostei. Mas não sei o que podemos fazer, a não ser continuar. Devemos fazer o trabalho rapidamente e depois nos dispersar.

No quarto não havia lugar para sentar, apenas a bancada e o banco que Jocelin ocupava. As janelas mostravam um céu cinzento. Os passarinhos começariam a cantar em breve. Alice ficou de pé na frente de Jocelin, como uma colegial diante da professora.

Já pensou no que devemos fazer?

Claro — respondeu Jocelin. — O que vamos explodir dependerá dos nossos meios, não é? Tenho uma boa noção da ca­pacidade destas coisas. Mas precisamos discutir.

Você já... isto é... já fez...

Não, nunca fiz nada disso antes. Mas é uma questão de usar o bom senso.

Jocelin pôs de lado o pedaço de cano de cobre, que tinha cerca de vinte e cinco centímetros de comprimento e presumivelmente estava pronto. Pegou outro. Acenou com a cabeça para o "livro de receitas", aberto ao lado. Aquela produção parti­lhava as mesmas qualidades dos artefatos feitos de acordo com suas receitas. Não era impresso, mas fotografado, o que lhe pro­porcionava uma aparência técnica e sinistra. Era apenas papel de péssima qualidade. Tinha uma capa de plástico amarelado, como um livro de culinária ordinário. Tudo naquela bancada parecia ordinário, improvisado e por algum motivo inacabado. Isto é, tudo menos as atraentes embalagens dos produtos quí­micos, que pareciam brilhar com a quantidade de pensamento e competência empregada em sua fabricação.

Não seria uma má idéia se fizéssemos um ensaio — suge­riu Jocelin, sorrindo.

Como se podia esperar, era um sorriso frio, agressivo.

Tem toda a razão — murmurou Alice.

Podemos escolher alguma coisa que mereça ser explodida.

Alice animou-se.

Isso mesmo. Algo absolutamente nojento... revoltante.

Jocelin fitou-a com curiosidade, por causa daquela súbita animação.

Tem alguma sugestão? Quero uma coisa bem definida, se entende o que estou querendo dizer. Algo concreto, não muito grande. A fim de que eu possa determinar as quantidades.

Alice revisava em sua imaginação o que gostaria que fosse explodido. Teve de descartar as cercas altas de ferro corrugado em torno do antigo mercado, onde tantos se divertiam e ganha­vam a vida, que era como um festival durante a semana inteira, especialmente aos sábados e domingos. Uma cerca não era algo "definido". E ela continuou a pensar.

Não uma cabine telefônica — ressalvou Jocelin. Diz aqui quanto é preciso exatamente para destruir uma.

Um carro?

Podemos usar um carro, por causa da dificuldade de aces­so. Da possibilidade de nos verem. Mas sei quanto um carro precisaria. Temos de encontrar outra coisa.

Alice sorriu.

Já sei o quê. Uma paixão de aversão a dominara, tão intensa que se sentia trêmula. — Oh, Deus, é isso mesmo! Vou mostrar a você. Não fica longe.

Está certo.

Jocelin deixou seu posto e as duas desceram a escada em silêncio. O vestíbulo não estava escuro, mas cinzento. Luz do dia. Em breve haveria pessoas nas ruas, os trabalhadores que ma­drugavam.

Caminharam apenas um quilômetro, até uma área de pequenas ruas, abertas antes da invenção do automóvel. Agora, caminhões passavam por ali o dia inteiro, fazendo manobras em marcha a ré para virarem as esquinas, passando uns pelos outros por poucos centímetros. As calçadas, construídas para que duas pessoas pudessem passar uma pela outra, eram bastan­te estreitas. Em duas daquelas ruas pequenas, formando um ân­gulo reto, a calçada fora alargada, reduzindo as ruas ainda mais, em cerca de um metro. Essa demonstração de inteligência da autoridade já era bastante espetacular, mas ainda por cima, pa­ra tornar tudo absolutamente incompreensível para a mente co­mum, a prefeitura, depois de conquistar esse metro a mais para o conforto e satisfação dos cidadãos, instalara na beira da calçada assim conquistada blocos de cimento, como pilastras de amar­ração num cais, de um cinza-amarronzado repulsivo, com um metro de altura e redondos, parecendo dentes. Esses objetos re­pugnantes, inúteis e obstrutivos, vinte ou mais, nas esquinas da rua afligida, pela qual Alice passava sempre que ia para a esta­ção do metrô, provocavam-lhe a raiva impotente tão familiar, violenta e impossível de apaziguar. Parava ali, contemplando a cena, como fizera ao imaginar os operários da prefeitura en­chendo os vasos com cimento, quebrando canos, arrebentando casas inteiras, e dizia a si mesma: Pessoas fizeram isso. Primei­ro, em algum escritório, imaginaram tudo, elaboraram um pla­no e ordenaram que operários executassem. Era assustador, como uma espécie de estupidez invisível que se tornava eviden­te e visível. Como os modernos prédios de universidade.

Lado a lado na calçada, que era, por causa dos dentes de cimento, tão estreita quanto antes do alargamento, Alice e Joce- lin observaram a cena. Um caminhão em marcha a ré fazendo uma curva muito fechada derrubara um dos dentes para o lado. As bases estavam manchadas com urina e cocô de cachorro. Sob o céu cinzento e baixo do amanhecer, as casas ainda adormeci­das abrigavam pessoas que seriam insultadas por aquelas calça­das, aqueles dentes de cimento, cada vez que saíssem. As casas pareciam ternas e inocentes, o céu puro e triste. E então come­çou o coro do amanhecer.

Alice chorava de raiva. Jocelin suspirou e disse:

Entendo o que quis dizer. Mas não é uma locação fácil. Deve haver pessoas por aqui em quase todos os momentos do dia e da noite.

Não há ninguém agora.

Mas há sempre corujas noturnas espiando pelas janelas ou mulheres com bebês.

Alice sentiu-se confortada por aquela evidência de normali­dade em Jocelin.

Mas isso se aplica também a qualquer outro lugar, o tem­po todo, não é?

Jocelin não respondeu. Observava o dente entortado. Sem lançar um olhar culpado ao redor ou verificar as fileiras de janelas, ela se encaminhou apressada até esse bloco e tentou levantá-lo. Conseguiu mexê-lo um pouco. Alice foi ajudá-la e, juntas, com bastante dificuldade, levantaram o bloco para uma posição perpendicular e depois deixaram-no cair de novo.

Jocelin examinou rapidamente a brecha na base da estrutu­ra, onde havia apenas alguns arames finos.

Este servirá. Porei a carga por baixo e deixarei o bloco de pé. Tudo o que quero saber é a quantidade que precisarei usar. Amanhã. Faremos tudo amanhã. Cerca de uma hora mais cedo do que agora.

Já eram quase cinco horas da manhã.

As duas estavam paradas ali pelo menos há dez minutos; não aparecera ninguém. Mas se encontravam cercadas por jane­las e, possivelmente, olhos. Um sentimento familiar de temeridade e excitação invadia Alice. Sua horrível apatia se desvane­cera. A sensação de torpor, como um veneno — acabara!

E quando viraram a esquina de sua rua, Alice desatou a cor­rer, por puro excesso de energia, saltou o portão e só foi parar na porta, que no final das contas tinha de ser aberta. Com uma chave. Jocelin se aproximou, calmamente, lembrando:

E preciso ter todo o controle para esse trabalho. Calma. Sem qualquer excitação.

Alice murmurou uma desculpa. As duas foram se deitar.

Alice não dormiu muito; experimentava toda a emoção da expectativa. Descendo por uma casa adormecida, obrigou-se a andar um pouco para se acalmar, recordando o que Jocelin dissera.

Foi sentar na cozinha e pensou: Aqui estou de novo, esperando as pessoas acordarem. Tomou chá, comeu torrada de tri­go integral com mel, lembrou os pacotes no sótão. No mesmo instante, todo o seu ser parecia afligido pela confusão, pela di­visão. O que se precisava era um carro... mas não havia car­ro na casa 45... Como conseguir um? Depois de verificar pri­meiro se já não seria muito tarde — cerca de oito horas, havia tempo de alcançá-la antes que saísse para o trabalho —, Alice encaminhou-se o mais depressa que podia para o apartamento de Felicity.

Quando lá chegou, Felicity estava saindo e não escondeu sua irritação ao ver Alice. Mas Alice não lhe deu tempo de re­moer o sentimento, pois foi logo dizendo:

Os problemas de Philip já estão mais ou menos resolvi­dos. Mas procuram sua irmã. Se não a encontrarem em dois dias, marcarão o funeral para segunda ou terça-feira de qualquer maneira.

Felicity, como era esperado e como devia, parecia embaraçada, mas também impaciente.

Obrigada. Foi muita gentileza sua cuidar de tudo.

Não tive alternativa — lembrou-a Alice, bruscamente.

As duas mulheres se fitaram, mas Felicity parecia empenhada

num jogo de tentar se esquivar de alguém sem ser tocada. Alice acrescentou:

Pode me emprestar seu carro por algumas horas?

Ao que Felicity suspirou e murmurou:

Vou usá-lo esta manhã.

Ela era assistente social.

Estou precisando — insistiu Alice, com toda a simpli­cidade.

Felicity pensou por um momento.

Pode usá-lo amanhã de manhã, até a hora do almoço.

Ela não poderia dizer mais claramente: E isso é tudo o quevai conseguir de mim como compensação! Ao que Alice respondeu:

Muito bem. Então consideraremos as contas acertadas.

Ouvir isso convertido em palavras fez Felicity corar, masela disse:

Estou com pressa. A mesma hora amanhã?

E quase correu para seu carro, um Datsun, estacionado à beira da calçada, junto a todos os outros carros, conformados e obedientes.

Problema resolvido, refletiu Alice, tirando da cabeça todos os pensamentos sobre os perigosos pacotes. No dia seguinte, ela os levaria para o vazadouro de lixo e ponto final. E se trouxessem mais algum, também se livraria dele.

Diante da porta da casa estava parado um homem de terno cinza impecável e gravata, a própria essência da autoridade, o que levou Alice a pensar: Oh, não, não a prefeitura de novo! Assumiu sua expressão competente, a de estou-pronta-para- enfrentar-qualquer-coisa.

Mas foi com um sotaque americano que o homem indagou ou constatou:

Alice Mellings?

Isso mesmo.

Ela compreendeu no mesmo instante que precisaria de to­da a sua habilidade para aquela confrontação iminente. O san­gue excitado assim lhe dizia.

Posso entrar?

Sem falar, ela abriu a porta e seguiu na frente do homem para a cozinha; indicou que ele deveria sentar na cadeira à extremidade da mesa. Pôs a chaleira no fogo e sentou à cabeceira.

O homem parecia mais jovem do que ela. Mas era do tipo que sempre parece jovem. Tinha um rosto liso, atencioso e po­lido, como um estudante antiquado. Os olhos castanhos, bas­tante atraentes, devotavam-se agora a cada movimento de Alice, examinando-a tão atentamente quanto ela fazia com ele. Tinha as mãos bem-cuidadas. Mas a característica mais extraordinária era a ausência de características que pudessem diferenciá-lo. Não havia nada, absolutamente nada, que ressaltasse. Um burocra­ta, alguém que basicamente trabalhava entre quatro paredes, ex­posto no máximo a uma aragem ou a um ar muito frio que entrava por uma janela aberta. Poderia ser aprovado num exame sobre como ser comum. Mas havia algo excessivo nisso... E claro que ela, Alice, só costumava conhecer inconformistas — ou, como dizia a mãe, em sua maneira antiquada, boêmios; é claro também que na Inglaterra de hoje, especialmente em Lon­dres, ninguém dava importância a essas coisas, mas, mesmo as­sim... Foi ele quem rompeu o silêncio:

Camarada Mellings, fui informado esta manhã de que relutou em aceitar uma entrega de matériel.

Alice ficou atordoada. O uso da palavra matériel agora, naquele contexto, não a emocionava absolutamente. Naquela si­tuação (de que ela queria se livrar), a palavra matériel era ameaçadora demais. Era uma palavra que insistia em ser levada a sério.

Isso é verdade, camarada Mellings? Eu gostaria que me desse alguma explicação.

Ele falava de maneira abstrata, a sua personalidade removi­da, mas as palavras usadas eram o suficiente. Alice sentiu-se subitamente furiosa. Quem ele pensava...

Claro que é verdade — respondeu ela, calma e fria. — Foi um absurdo trazer para cá. Nunca houve nenhum acordo para que essas coisas ficassem na casa.

Ela usou deliberadamente a palavra "coisas", que parecia indicar algo sem importância. O homem passou a língua pelos lábios, os olhos se estreitaram um pouco.

Isso não é possível — declarou ele, depois de uma pausa prolongada.

Alice percebeu que ele estava perplexo, tentando encontrar algum fio solto que o guiasse.

E, sim. Todos os tipos de coisas eram deixados na casa ao lado e depois apanhados. Mas nada tinha a ver com esta ca­sa. A situação aqui é muito diferente.

A chaleira começou a apitar, o que permitiu a Alice se levantar abruptamente. De costas para o homem, ela despejou café solúvel em duas canecas. Devagar. Alguma coisa no estranho a perturbava. Ele era um pouco como aqueles fardos gran­des, lisos e lustrosos lá de cima, sem qualquer marca por fora e só Deus sabia o quê por dentro.

Um americano? Talvez...

Alice demorou para se virar e pôr a caneca na frente do homem. Não perguntara o que ele tomaria. A seguir surpreendeu a si mesma ao bocejar, um bocejo profundo e irresistível. Afi­nal, quase não dormira. Ele fitou-a, discretamente, surpreso.

Aquele olhar não estava na agenda; e Alice sentiu-se subitamente no controle.

Sentou, muito calma; quando o homem parecia procurar por leite ou açúcar, ela empurrou em sua direção uma garrafa de leite pela metade e uma xícara velha com açúcar. Compreendeu que aquelas disposições domésticas não contavam com a aprovação do estranho.

Alice esperou, a mente trabalhando no que a perturbava no homem.

Os revolucionários americanos dependem dessa ligação disse ele —, a fim de que sua ajuda possa alcançar os revolucionários irlandeses.

Que revolucionários americanos?

Como sabe, camarada Mellings, muitos americanos honestos desejam ajudar os irlandeses em sua luta contra o opres­sor britânico.

Mas quase todos são cidadãos comuns, não revolucionários.

Havia no comentário um considerável desprezo pelo ho­mem por sua inexatidão.

Ele olhava agora para a sua caneca, como se o exame de Alice não tivesse proporcionado a informação de que precisava e a caneca talvez lhe oferecesse uma inspiração.

Vamos deixar tudo bem claro acrescentou Alice. Você deve ser um americano que fornece matériel aos camara­das irlandeses.

Ela não tivera a intenção de parecer tão rude e escarninha. Ele disse, ainda olhando para a caneca:

Isso mesmo, sou americano, Gordon O'Leary. Ameri­cano de terceira geração. Uma antiga família irlandês-americana. Como os Kennedys.

O homem riu, pela primeira vez. A risada oferecia a piada a Alice como um presente, e ele levantou os olhos para fitá-la, com toda a confiança.

O camarada Andrew também é americano? indagou ela, a voz impregnada de desdém.

Claro que sim. Mas acho que sua família veio da Alema­nha.

Porra nenhuma. O camarada Andrew é tão americano quanto... — Alice fitou-o nos olhos, com toda a força de sua inocência essencial, sua sinceridade. E você não é americano. Não poderia ser um americano nem em mil anos.

As faces pálidas e obedientes do homem ficaram coloridas, a respiração se alterou, enquanto ele baixava os olhos perigosamente furiosos. Disse, recuperando o controle:

Mas posso lhe garantir que sou. Por que não deveria ser?

Você é russo. Como Andrew. Mas é claro que fala com um sotaque americano perfeito.

Alice riu, de nervosismo. Mas estava imbuída da raiva mais sincera. Nunca suportara ser tratada como uma idiota. E era como estava sendo tratada agora.

O homem efetuou algum ajustamento interno, suspirou, empertigou-se na cadeira, como que lembrado por um monitor interior de que não devia ficar arriado, olhou para Alice e murmurou:

Camarada Mellings, a verdade é que sou mesmo ameri­cano. De Michigan. Sou engenheiro, e depois que concluir cer­tas missões aqui, é nisso que voltarei a trabalhar. Está me entendendo?

Ele esperou pela resposta. Mas Alice, embora o escutasse, fitando seu rosto, tinha o olhar meio vidrado, porque sua men­te trabalhava vertiginosamente. Por que ele não podia ser ame­ricano? O sotaque era perfeito, melhor que o de Andrew! O problema estava em seu estilo. Em alguma coisa nele. Como eram então os americanos? (Alice até fechou os olhos, permitindo que os americanos que conhecera aflorassem em sua ima­ginação, a fim de examiná-los.) Todos os que encontrara — e ela lembrou a si mesma que a maioria era de jovens e membros da rede de exploradores e andarilhos internacionais, mas ainda assim americanos genuínos — eram muito diferentes. Havia uma certa qualidade... o que era? Isso mesmo, muita grandeza, fran­queza, descontração... havia uma liberdade, isso mesmo, essa era a palavra. Enquanto aquele homem (e ela abriu os olhos pa­ra fazer comparações com o que estivera examinando em sua tela interior, deparando com ele a observá-la com extrema cu­riosidade) era tenso e controlado, dava a impressão de que não seria capaz de qualquer movimento espontâneo, mesmo que ten­tasse. Parecia, embora estivesse sentado "relaxado" — presumivelmente no que passava por uma pose informal —, usar uma camisa-de-força invisível, que jamais tirara em toda a sua vida. As próprias moléculas haviam adquirido o hábito de se manter vigilantes.

Você não é americano — concluiu Alice. — Mas isso não importa. Só quero que não traga aquelas coisas para cá. Não vamos aceitar.

Vai fazer o que foi acertado. O que ficou combinado.

Ele falou suave, mas ameaçadoramente. Alice compreendeu que aquela maneira de transmitir uma ameaça lhe fora ensinada: método 53 para intimidar o alvo. O desprezo que sentia pe­la transparência do homem a estava colocando além de seu alcance.

Já disse que não combinaram nada com a gente.

Foi combinado, sim! E com você, camarada Mellings!

Quando? Nunca me disseram nada. Nem uma única vez.

Como não disseram? Aceitou ou não o nosso dinheiro, camarada Mellings?

Isso fez com que Alice recuasse um pouco, franzindo o ros­to. Mas ela insistiu:

Não pedi o dinheiro. Deram porque quiseram.

Mas recebeu-o — ressaltou o homem, com um desdém polido, suave, que combinava com seu estilo geral.

E verdade. Mas só soube de alguma coisa quando a camarada Muriel... sabe quem é, a mulher que parece um ganso... me entregou um pacote com quinhentas libras, pouco antes de partir para o seu curso de espionagem na Lituânia ou algum outro lugar.

Dessa vez ele ficou vermelho mesmo, como um bife cru, chegando a lançar um olhar furioso para Alice, antes de recuperar o controle mais uma vez. Tornou a se empertigar, lem­brando, talvez pela raiva, que mesmo quando se está sentado é preciso manter os joelhos unidos, permitindo-se no máximo um cotovelo apoiado na mesa.

Se o camarada Andrew ou qualquer outra pessoa disse alguma coisa sobre escolas de espionagem, em qualquer lugar, foi apenas um monte de besteiras.

Alice pensou a respeito, sem qualquer pressa.

Não acho que eram besteiras. Para onde Muriel e Pat foram? Partiram para treinamento em algum lugar. Seja como for, não tem a menor importância para mim. Não estou interessada na América, Tchecoslováquia, Rússia ou Lituânia. Ne­nhum de nós está. Somos revolucionários ingleses e decidiremos nossa política e atos de acordo com a tradição inglesa. A nossa tradição.

Depois de uma pausa considerável, o homem disse:

Claro que é compreensível que deva primeiro uma leal­dade à sua própria situação. Mas estamos empenhados numa luta entre as crescentes forças comunistas do mundo e o capitalismo nos estertores da morte. E uma situação internacional, o que significa que as políticas devem ser formuladas de um pon­to de vista internacional. É uma luta mundial, camarada.

Tenho a impressão de que você não compreendeu direi­to — insistiu Alice. — Não vamos aceitar ordens de você ou de qualquer outro. Não vamos aceitar ordens de ninguém.

Não é uma questão do que vocês decidiram ou deixa­ram de decidir, camarada — declarou o homem, bem devagar, enfatizando cada palavra. — Não pode renegar acordos que já foram feitos.

Alice arrematou a discussão, ao reiterar:

Mas não por nós.

Os olhos violentamente hostis do homem foram ocultados às pressas, o olhar baixando mais uma vez para a caneca.

O silêncio prolongou-se por algum tempo, e Alice acabou comentando, em seu jeito de boa anfitriã, deixando as pessoas à vontade:

Tenho a impressão de que o seu camarada Andrew me­teu os pés pelas mãos. Não foi isso? E está tentando remediar as coisas?

Ela ouviu a respiração do homem sair ruidosamente. E em seguida, devagar e regular, como se ele a controlasse. Seus olhos não estavam disponíveis à inspeção de Alice. Tudo nele estava tenso, contraído, até mesmo a mão, pousada sobre a mesa.

Não precisa ficar tão nervoso. Com tanta gente na KGB... milhões, não é?... isso mesmo, sei que é o que acon­tece na Rússia, apenas alguns de vocês não estão de olho na gen­te... e assim é inevitável que haja alguns ineptos.

O olhar rápido que o homem levantou abruptamente as­sustou Alice por um instante, mas ela continuou, firme, gentil, pois agora desejava com toda a sinceridade deixá-lo à vontade, se possível, tendo conquistado a vantagem e fazendo-o aceitar seu ponto de vista.

Tenho certeza de que a mesma coisa acontece do nosso lado. E uma turma de merda, se for verdade apenas a metade do que se lê nos jornais. . .

A última parte era sua mãe, sem tirar nem pôr; Alice especulou por que a mãe deveria estar falando de forma tão autori­zada e natural através de sua boca. Não que se importasse. A voz de Dorothy Mellings parecia bastante apropriada naquela situação. E Alice arrematou:

Sendo apanhados como acontece o tempo todo. Mas imagino que não seria provável ouvirmos falar dos seus. Vo­cês simplesmente os apagam. Esse é um dos problemas de se ter uma imprensa livre.

Agora ele mudou a posição, aparentemente tentando rela­xar, embora o punho cerrado continuasse em cima da mesa, à sua frente. O olhar fixo em Alice era firme, sua respiração nor­mal; algum ponto decisivo fora alcançado na conversa, se é que se podia chamar aquilo de conversa. Alguma decisão provavelmente fora tomada. Ou seja, estava tudo bem. O homem iria embora dentro de um momento e ficaria tudo resolvido.

Mas o homem ainda não oferecia qualquer sinal de que es­tava prestes a se retirar.

Pois então que continue sentado aí. O pensamento de Alice queria focalizar não aquele homem ou o motivo de sua presen­ça ali, mas aquela noite, a aventura com Jocelin, o que a aguar­dava, sentindo agora um vínculo quase fraternal com ela, em contraste com o sentimento opressivo e complicado que expe­rimentava em relação àquele russo. Aquele estrangeiro. E ela co­mentou:

— Acho que parte do nosso problema... isto é, agora, en­tre mim e você... é o que se costuma chamar de choque cultu­ral! — Nesse ponto ela riu, como Dorothy Mellings teria feito. — As tradições de vocês são muito diferentes das nossas. Neste país não se pode abordar as pessoas e dizer o que devem fazer ou pensar. Não adianta. Temos uma democracia. E já temos uma tradição democrática há tanto tempo que está impregnada em nosso sangue.

Alice concluiu gentilmente, com um sorriso. O que acon­tecia com o homem era que ele estava pensando, como costu­ma acontecer, não tão raramente, em conversas: Mas essa mulher está louca! Pirada! Demente! Pobre coitada, ficou completamente insana! Como não percebi isso antes?

Em momentos assim, têm de ocorrer reajustamentos rápi­dos e totais. Por exemplo, toda uma conversa anterior precisa ser reavaliada àquela luz nova e lamentável, avaliações devem ser processadas, como a de determinar se aquela pessoa de fato pirou ou se apenas demonstrara uma excentricidade um tanto estimulante, mas não apropriada para a situação específica.

Alice não desconfiava de que tais pensamentos pairavam na mente do homem; sentia-se feliz a flutuar, todos os tipos de fra­ses tranqüilizadoras e convenientes aflorando em sua mente, co­mo se fosse uma gravação que nem sabia que existia. Se no entanto Alice pudesse contemplar o próprio rosto, poderia ser diferente, pois a parte superior — sobrancelhas e testa — exibia uma expressão preocupada, talvez mesmo um pouco frenética, como se duvidando do que dizia, enquanto a boca risonha con­tinuava a produzir palavras.

E creio que foi esse provavelmente o problema do ca­marada Andrew. (Aqui, a cena na cama aflorou-lhe à mente e Alice teve de sacudir a cabeça vigorosamente para apagá-la.) Ele parecia ter muita dificuldade para compreender os padrões da cultura ocidental. Espero que não pense muito mal dele. Eu o tinha em alta conta.

Então você tinha, você tinha... — comentou o homem, não indagou, de uma maneira até bem-humorada.

Tudo nele indicava que estava prestes a se levantar e ir embora.

Isso mesmo. Ele me pareceu uma boa pessoa. Um ser humano dos melhores.

Fico contente por saber disso — murmurou o camarada Gordon O'Leary, de Chicago, Smolensk ou qualquer outro lugar, levantando-se agora, mas em câmara lenta.

Ou talvez fosse assim que Alice via, pois não havia a me­nor dúvida de que estava diferente. Falta de sono, era isso!

Alguém virá buscar o matériel esta noite — prometeu o homem.

Não está mais aqui — improvisou Alice.

Não podiam deixar que aquele russo, aquele estrangeiro, circulasse por toda a casa. Não com todas aquelas bombas e ou­tras coisas lá em cima. Daqui a pouco ele estaria lhes dizendo o que deveriam fazer com tudo aquilo. Dando ordens. Ele ja­mais compreenderia: era russo; e os russos tinham toda aquela história de autoritarismo.

E onde está?

Ele virou-se bruscamente, ficando muito perto de Alice. Ela se levantara, tinha as mãos no encosto da cadeira. O homem não parecia agora suave e burocrata, um nada. Todo o terror que Alice poderia sentir durante a última meia hora invadiu-a nesse momento. Quase não conseguia ficar de pé. Ele parecia enorme e sinistro, assomando poderoso por cima dela, os olhos como pistolas.

—- Está no vazadouro de lixo em Barstone. O vazadouro municipal.

Os joelhos de Alice pareciam estar derretendo. Sentia frio, queria estremecer. Compreendera tudo, mas aquela era realmen­te uma situação grave e errara em algum momento. Sem ter a intenção. Não era culpa sua! Mas a maneira como aquele ho­mem a fitava — jamais algo assim lhe acontecera antes. Não sa­bia que podia haver uma situação em que a sensação fosse de desamparo total.

Ele estava tão furioso! Devia estar tão furioso? Ficara bran­co, não vermelho, com o esforço — ela supunha — de se controlar, o esforço de não a agredir. De não matá-la. Alice sabia disso.

Não deveria ter dito, de maneira tão indiferente, "vazadouro de lixo", que as coisas estavam no lixo. Isso mesmo, fora tolice. Uma precipitação. Talvez ela devesse dizer agora: Não, eu esta­va brincando, as caixas se encontram lá em cima. Mas se o fi­zesse, ele subiria e encontraria Jocelin trabalhando e então...

Alice sentiu que podia desmaiar ou mesmo começar a cho­rar. Podia sentir as lágrimas inundando-a, começando a pres­sionar e porejar por todo o corpo.

Estou sozinho — anunciou o homem. — Tenho um car­ro. Preciso de alguém... ou melhor, duas pessoas... para ir até esse lugar e me ajudar a recolher os pacotes.

Ahn... — murmurou Alice ofegante, a voz soando dé­bil e tola. — Eu não faria isso. Não em plena luz do dia. Pode haver gente por lá. Caminhões despejando lixo, para começar. Seria perigoso.

Seria perigoso? — Alice sentiu outra vez que o homem poderia matá-la com a maior facilidade, fazer alguma coisa que não pudesse evitar. — Mas não podemos deixar tudo abandona­do num depósito de lixo.

Por que não? Já viu algum? Tem todos os tipos de coi­sas. Acres e mais acres. Dois pacotes marrons comuns não chamariam a atenção.

Alice percebeu que já começava a se sentir melhor outra vez.

Dois pacotes novos, grandes, fechados? — insistiu o homem, o rosto bem perto do de Alice, distorcido pela raiva.

Mesmo assim, eu esperaria até a noite.

Não vou esperar. Chame duas pessoas. Homens. Há ho­mens nesta casa, não?

Alice declarou, com frieza, quase recuperando plenamente o controle:

Eu e outra mulher carregamos as caixas... — Ela já ia dizer "lá para cima", mas conteve-se a tempo — para o carro.

Então duas mulheres. Não importa.

Importa, sim. Não nos dê ordens. Será que não entende que não pode nos dar ordens? Não somos russos.

Os olhos de Alice estavam fechados, não tanto porque não se sentia bem (ao contrário, sentia-se melhor), mas porque po­dia sentir o ódio do homem envolvê-la. Tudo acabara, ele ia matá-la. Um movimento, o som de passos, ela abriu os olhos e viu o homem se afastando. Mas ele parou na porta, virou-se e disse, suavemente, com uma intensidade extraordinária de des­prezo, de aversão pessoal:

— Não pense que é o fim, camarada Mellings. Pois não é absolutamente o fim, longe disso. Não pode brincar conosco desse jeito. Espere só para ver, camarada Mellings.

Seu rosto se convulsionou por um instante, naquele movimento de faces e língua que, se continuado, acabaria na ação de cuspir. Ele ficou imóvel, os olhos semicerrados, fixando-a, determinado a marcá-la, sufocá-la, com a força do que sentia.

Agora ali estava o próprio homem, o que ele era realmen­te. Alice sabia disso, compreendeu que o via como era de fato. Aquele não era o espião suave e conformado que fora ensinado a controlar cada movimento, gesto, expressão, mas alguma coi­sa além disso. Ali havia poder. Não fantasias sobre poder, pe­quenos jogos ou inveja, mas o poder de verdade. Ele personi­ficava as certezas da força, de se encontrar plenamente no lado certo. Sabia que era superior, dominante, no controle. Acima de tudo, no lado certo.

O homem saiu, fechando a porta — Alice registrou — gentilmente. Sem batidas estrepitosas que pudessem alertar os vi­zinhos.

Alice correu para a pia e vomitou.

Lavou meticulosamente a sujeira, esfregou e limpou, em­bora só pudesse usar uma das mãos, a outra servindo para se apoiar, de tão fracos que estavam os joelhos. Foi para o banhei­ro, cambaleando, pois o terror parecia instalado em suas entranhas. Segurando-se na beira das portas e nas maçanetas, voltou à cozinha, arriou numa cadeira, baixou o rosto para a mesa, os braços esparramados, inerte como um trapo. Nunca antes sen­tira algo parecido com aquela fraqueza física. Permaneceu as­sim talvez por meia hora, enquanto as forças lhe voltavam, lentamente.

E então Jocelin apareceu, mal olhou para Alice — portan­to, obviamente não podia se encontrar num estado tão lamentável — e disse que ela precisava tomar um café bem forte: ficar sem dormir não combinava com ela. Se começassem agora, ti­nha certeza de que poderia aprontar o artefato explosivo apro­priado para o trabalho daquela noite. Ela falou com indiferença, mas com a satisfação fria, que era a sua maneira de demonstrar a excitação que, Alice sabia, muito em breve a deixaria recupe­rada. A fim de acelerar o processo, Alice subiu com Jocelin pa­ra a oficina, dessa vez levando uma cadeira. Ficou observando aquelas mãos meticulosas e inteligentes em ação. Não demorou muito para que se sentisse tão melhor a ponto de quase esque­cer o camarada Gordon 0'Leary. Pensou vagamente: Precisa­mos decidir se devemos ou não levar os pacotes para o vazadouro de lixo. Como está, ele vai pensar que já foram encontrados e levados para algum lugar. O terror real lhe parecia agora tão distante que ela pensou também: Ora, isso fará com que ele passe por maus momentos. Uma boa lição. Falou a Jocelin sobre o homem como se fosse alguma espécie de vendedor importuno a quem despachara.

Quem eles pensam que são? — concordou Jocelin.

O entusiasmo das duas começou a impregnar a casa inteira, como os aromas de uma sopa de Alice. Por algum tempo, todos ficaram lá em cima, observando Jocelin trabalhar, gracejando como gostariam de usar essa ou aquela bomba. Blocos de apar­tamentos. O centro de computação da polícia. Qualquer siste­ma de depósito de informações, por falar nisso. Certos condo­mínios. Qualquer abrigo nuclear construído em qualquer lugar, pois beneficiariam apenas os ricos. Usinas nucleares.

O jogo foi se tornando cada vez mais desenfreado e ruido­so, até que Caroline lembrou que Reggie e Mary chegariam em breve. Deixaram Jocelin trabalhando sozinha e se dispersaram pela casa, mas a todo instante se encontravam nos patamares, na cozinha, pois era difícil naquele dia não procurar a companhia uns dos outros, partilhar aquela onda de excitamento, de poder.

Tudo correu bem naquela noite, uma quinta-feira. Reggie e Mary voltaram pelo tempo suficiente para pegar algumas coisas; passariam o fim de semana fora. Um golpe de sorte: signifi­cava que poderiam passar a noite inteira juntos. E reuniram-se na cozinha, rindo, gracejando, como se estivessem embriagados. Mas ninguém bebera. E Jocelin mantinha-se quieta, concentra­da, apartada dos outros pelas necessidades de sua tarefa.

Ela decidiu que seria melhor se três pessoas participassem da expedição, não duas, porque seria preciso levantar o pesado bloco de cimento. Todos competiram pela honra, e Jocelin escolheu Bert. Faye ficou desapontada e um pouco irritada. Ro­berta disse:

Não se preocupe. Haverá outras ocasiões.

Quando faltavam quinze minutos para as quatro horas da madrugada, Jocelin, Bert e Alice deixaram a casa sem fazer barulho. Todas as janelas na pequena rua estavam escuras. Na rua principal os lampiões pareciam recolher sua própria luz; o ama­relo se adensava, enquanto uma claridade cinzenta e abstrata se insinuava pelo céu. Nas calçadas, entre os lampiões, estava es­curo. Ali embaixo, à frente deles, a escuridão se agitou e se trans­formou num cachorrinho preto e branco, seguindo com um ar modesto e pensativo de algum lugar para outro. Não havia nin­guém naquela rua nem na ruazinha em que iam trabalhar. Tu­do levou apenas um minuto: Alice e Bert levantaram o bloco de cimento e Jocelin ajeitou a bomba por baixo. O bloco ficou de pé. Não saíram correndo; em vez disso, foram andando de­vagar até uma esquina, depois aceleraram os passos. Alguns mi­nutos depois de chegarem em casa, quando tomavam um chocolate quente na cozinha, ouviram a explosão da bomba. Mais alta do que esperavam.

Não gracejavam mais agora, sentiam-se tensos, um pouco irritadiços, ansiando por sair para verificar os estragos, mas Bert argumentou que os criminosos sempre voltam ao local do cri­me e a polícia conta com isso.

Jocelin foi se deitar. O mesmo fizeram Faye e Roberta. Os outros não foram capazes. Por volta das nove horas, Caroline saiu, foi andando por ruas movimentadas e encontrou a área isolada, com fitas vermelhas e amarelas, "como uma feira", e polícia por toda parte. Parecia não haver muitos danos. Como vidraças quebradas, por exemplo. Acordaram Jocelin para informá-la. Ela ficou desolada: sua intenção era fragmentar o blo­co de cimento e uma parte da calçada. Também foi dar uma olhada e voltou com uma expressão sombria. Seus cálculos não haviam sido corretos. Foi para a oficina, dizendo que queria fi­car sozinha para pensar.

Alice lembrou que aquela era a manhã em que teria o carro à disposição para se livrar dos pacotes. Ficou mal-humorada, até amargurada, por ter de resolver o caso numa manhã como aquela, num dia em que poderia ficar com os outros, sem qual­quer problema.

Discutiram o assunto. Deveriam sair agora, no meio da manhã, procurar algum lugar para deixar os pacotes? Caroline su­geriu indolentemente que não precisavam se incomodar afinal, todos deixariam a casa muito em breve. Que os próximos ocu­pantes resolvessem o problema.

Bert e Jasper disseram que não. Alice, embora relutante, concordou.

Os quatro desceram os pacotes do sótão, com alguma dificuldade e muitos esbarrões. O barulho atraiu Jocelin. Ela disse que queria verificar o que havia ali, afinal, podia ser algo útil. As tiras de plástico que envolviam o pacote foram cortadas com facilidade. O embrulho era de papel encerado. Por baixo havia um papelão grosso. Dentro, uma camada de estopa oleosa. E nesse ninho, diversas peças de armas de fogo. Os cinco conspi­radores debruçaram-se sobre o pacote aberto, atordoados. Os corações batiam forte, os olhos faiscavam. Empertigaram-se, len­tamente, para respirar melhor. A mão de Caroline, pousada na beira do pacote, tremia incontrolável; ela retirou-a rapidamen­te. Os cinco ficaram parados ali, em torno das peças de armas, que tinham um brilho opaco à luz insuficiente. A respiração era meio rouca e sussurrada, podiam ouvir um ou outro suspi­rar. Bert acabou dizendo, com uma risada:

Dá até para pensar que estamos encagaçados... e con­fesso que estou mesmo. De repente, a coisa é para valer...

Todos riram também, com exceção de Alice, que levantara os punhos cerrados, cobrindo a boca entreaberta. Seus olhos fixavam-se tragicamente em Jocelin, por cima das mãos. Jocelin lançou-lhe um olhar impaciente e disse:

Vamos acabar logo com isso.

E ela recomeçou a empurrar o pacote.

Não! gritou Jasper, entrando em ação subitamente.

Num frenesi de energia, ele começou a remover as peças

de armas e a montá-las como achava que deveriam ser, trabalhando por cima das outras peças, ainda enterradas na estopa.

Não faça isso protestou Jocelin, fria e suave... para grande alívio de Alice.

Que também interveio:

Não, Jasper, não...

Bert já tentava ajudar Jasper, mas era lento e desajeitado, em comparação com o amigo.

Embora Jasper se mostrasse rápido e competente, reunin­do as peças, separando-as, procurando outras maneiras de ajustá- las, não estava conseguindo montar uma arma completa.

São metralhadoras? indagou Alice, quase chorando.

Pare com isso disse Jocelin a Jasper. Mesmo que conseguisse montar uma arma, o que faria com ela?

Pode deixar que encontraremos um uso garantiu Bert, todos os dentes brancos brilhando, esforçando-se ao máximo para ser tão eficiente quanto Jasper, que quase terminara de mon­tar uma coisa preta, reluzente, de aparência sinistra, como as armas que se vêem em filmes de ficção científica para crianças.

Estão deixando impressões digitais em tudo — insistiu Jocelin, com tanto desdém que Bert e a seguir Jasper largaram as armas e recuaram. Fixando os olhos frios e demolidores em Jasper, revelando exatamente o que pensava dele, ela acrescen­tou: — Seu idiota. Estúpido rematado. O que pensa que vai fa­zer? Deixá-las em qualquer lugar, para estarem à mão em caso de necessidade?

Ela empurrou os dois para trás com os cotovelos e pôs-se a trabalhar. Primeiro, desmontou num instante e com eficiên­cia as armas parcialmente montadas (revelando a todos que sa­bia exatamente o que estava fazendo, que tinha conhecimento de armas assim), depois pegou pedaços de estopa e limpou as impressões digitais. Caroline comentou:

Provavelmente não vai adiantar muito só esfregar as impressões desse jeito... não com os métodos que usam hoje em dia.

Talvez não, mas não acha que já é tarde demais para pen­sar nisso? — respondeu Jocelin. — Temos de nos livrar destas coisas... só isso, mais nada.

Por que não enterramos no jardim? — sugeriu Bert, parecendo um garotinho privado de um brinquedo.

Neste jardim? Mas que idéia brilhante! — Enquanto tornava a guardar as peças no ninho de estopa, Jocelin acrescen­tou: — Se vocês pensam em alguns trabalhos que precisam realmente ser feitos, algo concreto... isto é, inserido no con­texto apropriado e organizado de forma apropriada... então sempre se pode arrumar armas. E vocês sabem disso, não é?

Bert fitava-a com ressentimento, mas também com admira­ção, o que concedia a ela o direito de assumir o comando. Seus olhos ardiam de excitação, e ele não podia parar de sorrir: den­tes, olhos, lábios vermelhos, tudo faiscava.

Jasper se continha, os olhos resguardados pelas pálpebras, a fim de não revelar quanto estava furioso — o que Alice sabia que acontecia. Via Jasper e Bert como nunca os vira antes — soldados, soldados de verdade, numa guerra. E pensou: Ora, eles adorariam, particularmente Jasper. Apreciaria cada minuto... O pensamento deixou-a ainda mais consternada, e ela recuou alguns passos, comprimindo as mãos contra a boca.

Jocelin avaliou muito bem a situação dela, apesar da preocupação em fechar o pacote.

Nunca tinha visto armas de fogo antes, Alice?

Nunca.

Sua reação é exagerada.

Tem toda a razão interveio Jasper no mesmo instan­te, recuperando-se na fúria ostensiva contra Alice. Olhem só para ela. Parece até que viu um fantasma.

E de repente ele se tornou como um garotinho no recreio tentando assustar outro, balançando as mãos para ela e gritando:

Buuu! Alice viu um fantasma...

Pare com isso, pelo amor de Deus! berrou Jocelin, perdendo a calma. Temos um trabalho sério a fazer... já esqueceram? E tenho de voltar ao trabalho. Levem estas caixas para algum lugar, larguem por lá e esqueçam. Só criariam problemas.

E, com isso, ela subiu, à sua maneira lenta e determinada, sem olhar para trás. Todos sabiam que Jocelin estava furiosa consigo mesma por ter perdido a calma.

E ficaram olhando, em silêncio, até que ela desapareceu, e o clima se desanuviou um pouco.

Vamos cuidar logo disso murmurou Bert.

Indecisão. Com a ausência de Jocelin, que mandava de fatona situação, por um momento ninguém foi capaz de agir. Mas Alice acabou se mexendo e declarou:

Vou buscar o carro.

E saiu correndo. As chaves do carro haviam sido deixadas com a vizinha de baixo, porque ela informou irritada, indi­cando como Felicity devia estar furiosa Felicity ficara espe­rando que Alice chegasse na hora marcada. Pedidos de desculpas e sorrisos. Alice trouxe o carro e os quatro puseram os pacotes dentro. Não era de admirar que fossem tão pesados.

Ficaram discutindo para onde levar os pacotes. O vazadou­ro de lixo? Não, não àquela hora do dia. Jogar no rio? Não, seriam observados. Era melhor seguir para algum subúrbio com muita vegetação, como Wimbledon ou Greenwich, e tentar en­contrar um lugar para deixá-los. Estavam a caminho, passando por Chiswick, andando devagar no tráfego intenso, quando avis­taram, numa rua transversal, um enorme portão de ferro cor­rugado e a placa "Warwick & Sons, Negociantes de Ferro-Velho". Deram a volta ao quarteirão e passaram pelo portão. O lugar parecia deserto. Alice estacionou em fila dupla enquanto Bert entrava, calmamente, como se fosse um freguês, e espera­va um momento. Mas ninguém apareceu. Ele voltou correndo, o rosto afogueado, os olhos avermelhados, os dentes brancos e os lábios vermelhos faiscando no meio da barba preta. Jasper ficou febril no mesmo instante. Alice, admirando-os, passou pelo portão em marcha a ré e parou. Era um vasto depósito. Naque­la parte de Londres havia terrenos amplos, com casas grandes e imensos jardins. Mas aquele lugar tinha alguns galpões quase em ruínas, de tijolos e ferro corroído, nos fundos, com pesados cadeados nas portas. Afora isso, por toda parte havia pilhas e mais pilhas de canos de metal, pedaços de carros, barras de fer­ro enferrujadas, fragmentos de metal entortados. Latão e cobre rebrilhavam inesperadamente, e pilhas de plástico leitoso indi­cavam que ali se negociava com outras coisas além de metais. Havia vigas antigas empilhadas perto do portão, de carvalho a julgar pela aparência (duas assim viriam a calhar para o telhado da pobre 43), tendo ao redor refugos de todos os tipos, inclusi­ve uma porção de caixas de papelão, em rápida desintegração, contendo mais metal, garrafas de plástico e outros objetos. Era o lugar certo. Jasper e Caroline saltaram e ajudaram Bert a tirar os pacotes do carro, largando-os perto da pilha de vigas. Os olhos de Alice pareciam estar estourando; ondas negras a sacudiam. Mas tinha de manter o carro em funcionamento. Através de sua febre, ela viu como Bert já se empertigava, o trabalho concluí­do, olhando ao redor; como Caroline voltara ao carro, tornava a embarcar, enquanto Jasper, implacável, rápido, eficiente, es­fregava terra nos pacotes e arranhava-os com um pedaço de fer­ro que pegara numa pilha, trabalhando num frenesi de intenção definida. Aquele era Jasper!, pensou Alice, orgulhosa, um or­gulho que animava todo o seu ser. Quem ainda não vira Jasper assim, em tal momento, nunca poderia saber! Em comparação, Bert era um homem rústico, compreendendo lentamente o que o outro fazia e depois se prontificando a ajudar, quando Jasper já quase acabara. Os dois pacotes não pareciam mais os mons­tros pardos e insidiosos de poucos minutos antes, já estavam iguais a todos os outros refugos espalhados por ali, seriam facil­mente ignorados.

Jasper e Bert voltaram ao carro, e Alice deu a partida. Pelo que podiam saber, ninguém os vira.

Seguiram para o centro de Londres e entraram num pub em Shepherds' Bush. Era meio-dia e meia. Procuraram um lugar em que podiam observar o aparelho de televisão e sentaram-se para beber e comer. Estavam esfomeados, todos eles. Não havia nada no noticiário, e assim que acabou eles deixaram o pub e foram para casa. Ainda sentiam fome e estavam quase caindo de sono. Compraram mais comida e foram comer à mesa da cozinha, junto com Faye, Roberta e Jocelin. A sensação era de anticlímax. Mas não queriam se separar; precisavam uns dos ou­tros, tinham necessidade de ficar juntos. Começaram a beber. Jasper e Bert, Alice e Caroline saíram para dormir um pouco, por duas ou três horas, em ocasiões diferentes, mas todos senti­ram, sozinhos em seus quartos, uma atração intensa em relação aos outros para tornarem a descer. Beberam pelo final da tarde e a noite afora, não exultantes, mas deprimidos. Não o confes­saram, mas Faye mostrou-se chorosa umas poucas vezes.

Assim que o metrô começou a funcionar, pela manhã, Jas­per foi comprar os jornais. Voltou com todos, do Times ao Sun. A cozinha fervilhava subitamente com o barulho de páginas de jornal viradas, que foi se tornando cada vez mais frenético.

Não havia qualquer notícia sobre a façanha deles! Nem uma só palavra. Ficaram furiosos. Faye encontrou finalmente um pequeno parágrafo no Guardian que dizia que alguns desordeiros haviam explodido a esquina de uma rua na West Rowan Road, Bilstead.

Desordeiros disse Jocelin, fria e letal, os olhos bri­lhando.

Ela não acrescentou não havia necessidade, pois era o pensamento de todos: Vamos dar uma lição nessa gente.

E assim eles foram deitar. Manhã de sábado. Seis horas.

Dormiram o dia inteiro e acordaram com a sensação agradavelmente alienada que ocorre depois que se fica desperto por um longo tempo e ao final se desfruta de um sono longo e re­parador.

Discutiram qual seria o local do próximo atentado. Várias possibilidades, mas Jocelin declarou que precisava de mais tem­po para ter certeza absoluta dos meios. Além disso, acrescen­tou Alice, Philip provavelmente seria enterrado na segunda ou terça-feira; deveriam cuidar disso primeiro. Ela compreendeu, pelo silêncio subseqüente, pela maneira como evitaram olhar para ela pelo menos imediatamente que não passara pela cabeça de ninguém ir ao funeral de Philip. Ela anunciou, na voz polida e indiferente que usava quando se sentia mais magoada, mais traída:

Eu vou, mesmo que ninguém mais vá.

Jasper conhecia aquela voz e disse que a acompanharia. Fi­cou satisfeito e até mesmo acanhado, como um menino, pelo olhar agradecido que Alice lhe lançou. Faye comentou que detestava funerais, nunca fora a nenhum. Quando as pessoas mor­riam, estavam mortas, arrematou ela. Caroline lembrou que mal conhecera Philip. E Jocelin acrescentou que essa era também a sua situação.

Alguém foi comprar cigarros e voltou com o Advertiserlo­cal o pequeno jornal distribuído nas ruas, posto em caixas de correspondência ou enfiado por baixo das portas. Ali havia uma matéria que dizia:

"Uma bomba explodiu na esquina da West Rowan Road no início da manhã de sexta-feira. Um bloco de cimento foi destruído e outro ficou avariado. A explosão afetou as paredes de casas próximas e arrebentou as vidraças em quatro. A senhora Murray, uma viúva de oitenta e sete anos, disse que estava sen­tada à sua janela no segundo andar e avistou três jovens perto do bloco de cimento. Ainda estava escuro e ela não pôde vê-los direito. Achou que estavam fazendo alguma brincadeira. E vol­tou para a cama, ainda vestida.

"’Venho dormindo muito mal nos últimos tempos', comen­tou ela. Ouviu a explosão, e fragmentos de vidro voaram pelo quar­to. 'Foi muita sorte eu não estar mais sentada à janela", declarou ela a um repórter. A senhora Murray sofreu pequenos ferimento; dos fragmentos de vidro e ficou em estado de choque."

Oh, pobre coitada... — balbuciou Alice.

Ela não olhou para Jocelin, pois sabia que iria deparar com uma expressão de censura.

Uma vaca velha e idiota disse Faye. E uma pena que a gente não tenha acabado com ela. Estaríamos lhe fazendo um favor. A vida não vale a pena para essas velhas megeras. Es­tão meio mortas de tédio, mas ainda com anos pela frente.

Os outros resolveram rir, para apaziguá-la. Faye estava dominada por um dos seus violentos ânimos reminiscentes mas provocado por quê? Nunca sabiam. Ela tremeu um pouco em desafio, sem olhar para os outros, sem olhar sequer para Ro­berta, que estava um pouco encurvada, de cabeça baixa, sofren­do por Faye.

Acho que já sei o que fazer anunciou Jocelin. E dessa vez tudo dará certo.

Ela parecia zangada, até amargurada. Todos se sentiam amargurados de frustração. Uma notícia pequena no Advertiser local! Pensavam que era uma humilhação, mais uma na longa suces­são de menosprezos do que realmente eram, de suas verdadeiras capacidades, que começara — como os acessos de violência de Faye — há tanto tempo que nem podiam se lembrar. Eram brutais na necessidade de se imporem, de provarem seu poder.

Continuaram a beber. Alice manteve-se sóbria, como sem­pre, e apreensiva. Afinal, era sábado. E às onze horas, como ela meio que esperava, houve uma batida forte na porta da frente. Levantou-se no mesmo instante e encaminhou-se para a porta da cozinha, antes que os outros se mexessem. E disse a Jasper:

Fique fora de vista, está bem? Não saia daqui, de jeito nenhum...

A Bert:

Mantenha Jasper aqui. Não o deixe sair.

A Jocelin:

Tem alguma coisa que eles possam encontrar?

Jocelin passou correndo por ela e subiu.

E aquele fascista. Eu sabia que ele voltaria. Veio se vin­gar. Eu sabia que ele voltaria.

As batidas na porta continuavam. Ela abriu a porta, dizen­do incisivamente, usando todos os recursos para se impor, para ser a senhorita Mellings:

Assim você vai acordar a rua inteira.

Era mesmo ele, o jovem louro e rancoroso, com olhos frios de bebê, bigode felpudo. Estava sorridente e sádico. Segurava alguma coisa nas costas e tinha um cheiro repulsivo.

Alice teve uma idéia do que estava para acontecer e sabia que não poderia fazer nada para detê-lo. Mas o importante era que Jasper não aparecesse, não no ânimo em que se encontrava — haveria uma luta, ela tinha certeza.

Por trás do jovem louro havia outro policial. Ambos tinham risadinhas de colegiais no rosto; nenhum dos dois olhou para Alice — um mau sinal.

O que desejam? — perguntou ela.

É o que você deseja — disse o porco fascista.

Ele e o colega desataram a rir, levando a mão à boca, como comediantes de teatro.

É o que você gosta — disse o segundo policial, com um forte sotaque escocês.

E o que é de gosto regala a vida — acrescentou o inimi­go de Alice.

Oh, como ela o detestava, como o conhecia, até pelo aves­so! Sabia muito bem o que acontecia nas celas da polícia quan­do ele tinha alguém impotente e à sua mercê. Mas não devia ser Jasper.

A fim de provocá-lo, atrair sua ira, Alice permitiu-se dizer, numa voz débil e trêmula de garotinha:

Oh, por favor, vão embora...

Foi o suficiente. A medida certa.

Não é disso que você gosta? — disse o pequeno fascista, rindo e arremessando um saco de plástico cheio no vestíbulo.

Merda para merda — arrematou o outro.

O cheiro invadiu o vestíbulo, invadiu toda a casa, enquan­to os dois se afastavam a correr, rindo.

E claro que estava por toda parte, salpicara tudo.

Mas o importante era que Jasper permanecera na cozinha.

Avançando com extremo cuidado, Alice foi até a porta da cozinha e avisou:

Se eu fosse vocês, ficaria exatamente onde estão.

Mas eles não ficaram, avançaram num grupo furioso e ruidoso, bradando imprecações e ameaças. Jasper iria agora mes­mo à delegacia. Mataria aquele fascista. Explodiria tudo.

Faye vomitava na pia da cozinha, amparada por Roberta. Jocelin apareceu no patamar, olhou para baixo, como uma figura do Juízo Final ou algo parecido, pensou Alice, cansada de todos eles. Sabia quem ia limpar a sujeira.

Calem-se! — gritou ela. — Não estão entendendo nada. Isto é bom, não é mau. Ele precisava se vingar por ter bancado o idiota no outro dia. Tivemos sorte de que ele resolvesse fazer uma coisa desse tipo. Poderia ter entrado e quebrado tudo, não é? Todos nós já vimos isso acontecer antes!

Ela tem razão — concordou Jocelin, que também teve uma ânsia de vômito e controlou-se; depois retornou a seu quarto.

Alice já pegara um balde com água e jornais. Parou por um momento, olhando para os três, Jasper, Caroline e Bert, que ainda se mantinham imóveis na porta da cozinha, observando-a.

Ela ajoelhou-se na extremidade do vestíbulo e começou a tarefa lenta de lavar o tapete, palmo a palmo. Quando acabasse, pediria a Bert e Jasper para levarem tudo e jogarem nos la­tões de lixo.

Por que está perdendo tempo lavando isso? — indagou Caroline. — Jogue fora.

Alice estava mesmo esperando que alguém dissesse justamente isso. E foi com uma voz fria que respondeu:

Se pusermos no jardim como está vai feder, haverá quei­xas e um pretexto para a polícia voltar.

Tem razão — murmurou Jasper.

Ela continuou a trabalhar. Estava dominada por uma fúria implacável. Poderia matar, não apenas os policiais, mas também Jasper, Bert e até a jovial Caroline, cujo rosto chocado, espian­do da porta, parecia dizer que não se podia acreditar na estupi­dez e maldade do mundo.

Não vá se deitar — Alice ordenou a Jasper. — Quando eu acabar, você e Bert podem levar tudo para fora.

Levou uma hora ou mais para acabar com o tapete. Os dois carregaram-no, pesado de água e detergente, cheirando agora a produtos químicos, para os latões de lixo.

Imagino que alguém pode estar acordado e vigiando, co­mo sempre — comentou Alice, amargurada e muito cansada, parada no centro do vestíbulo.

Faye disse que ia deitar. Roberta acompanhou-a, depois voltou, pegou outro balde e ajudou a lavar o assoalho e as paredes. Todos os demais foram deitar.

Enquanto trabalhava, Roberta praguejava incessantemente em sua outra voz, a voz rude, atrapalhada e opressiva de sua criação, não a voz lenta, descontraída e confortável da Roberta de todos os dias que eles conheciam. Não praguejava muito al­to, apenas o suficiente para ser audível: um fluxo incessante de ódio contra a polícia, o mundo, Deus, por si mesma e por Faye.

Quando acabaram, as duas foram tomar banho. Depois, Roberta saiu para comprar os jornais de domingo. Mas não havia nada neles, nem uma só palavra.

Alice e Roberta dormiram por algumas horas. Faye, acor­dada no meio da manhã, ficou furiosa com Roberta por "se dei­xar envolver". Como vingança, subiu para conversar com Jocelin, que trabalhava em suas bombas. Primeiro, como apren­diz, ajudou Jocelin; depois, descobrindo que possuía uma apti­dão genuína, tentou fazer alguma coisa por conta própria. Desceu para tomar um chá e levou o manual de instruções. Nesse momento, Mary e Reggie chegaram do trabalho, passando por lá antes de seguirem para o novo apartamento. Achava-se em péssimo estado, disseram eles, mas tendo visto Alice em ação, sabiam o que se podia fazer para enfrentar o caos. A maneira como disseram isso indicou aos outros que estavam dispostos a se mostrarem "simpáticos" enquanto tivessem de permane­cer ali. Mary pegou na mesa O uso de explosivos num ambiente urbano e folheou-o, a princípio distraidamente, depois mais de­vagar, com mais atenção. Estendeu-o para Reggie, com um olhar que estava longe de ser "simpático". Na cozinha estavam Caro­line, Jasper, Bert e Faye, todos subitamente tensos, decididos a não olharem um para o outro, tentando parecer indiferentes. Reggie estudou o manual por algum tempo e depois largou-o na mesa. Não olhou para os outros e continuou sentado, pen­sando. Logo ele e Mary trocaram uma longa consulta com os olhos, e Reggie anunciou que pretendiam se mudar para o no­vo apartamento imediatamente, embora ainda não estivesse pronto. Poucos momentos antes Mary comentara que espera­riam pelo menos até que o apartamento tivesse água quente.

O casal subiu, deixando as canecas de chá pela metade.

Não foi muito inteligente o que fez, camarada — disse Bert a Faye, mostrando uma porção de dentes brancos.

Faye sacudiu a cabeça. Respirava depressa, sorria, franzia o rosto e mordia os lábios.

Não tem importância — afirmou ela. — Depois que se livrarem de nós, nunca mais vão querer pensar a nosso respei­to. Somos todos uns merdas para eles.

Mesmo assim — insistiu Bert, fazendo um esforço para ser severo, como a ocasião exigia —, foi uma estupidez.

E riu, como se fosse uma piada. Faye riu também, meio frenética, fitando-o com ressentimento. Depois se levantou e su­biu correndo, para Roberta. E todos lá embaixo puderam ouvir, por cima de suas cabeças, a voz baixa e maternal de Roberta, a voz irada e estridente de Faye; suas queixas para Roberta esta­vam sendo formuladas na "outra" voz, a de sua criação; Rober­ta respondeu em sua voz cotidiana.

Os três continuaram sentados, inquietos. E Jasper disse, rindo:

Não sei por que Alice tem que dormir o dia inteiro.

E subiu para acordá-la. O que fez martelando a porta do quarto em que ela dormia, onde ele também já dormira. Não houve resposta. Jasper entrou com todo o cuidado, viu a trouxa amontoada que era Alice virada para a parede; achando inad­missível a escuridão do quarto, ele foi abrir as cortinas. Alice ergueu-se abruptamente no saco de dormir, os olhos contraí­dos por causa da claridade intensa da tarde. Divisou um vulto escuro ameaçador à sua frente, delineado pela claridade, e gritou.

Mas que merda! — exclamou Jasper, irritado.

Ah, é você...

Ela tornou a se deitar, como antes, de costas para Jasper. Ele não podia suportar tal atitude. Ajoelhou-se junto às cos­tas de Alice, viu as pálpebras tremerem em sua pele sedosa e sardenta.

Alice — disse ele, polido mas firme —, você tem de acordar. Algo aconteceu.

Ela abriu os olhos. Não indagou "O que foi?" Permanece­ram nessa posição por algum tempo, mais de um minuto. Era como se Alice pensasse que levantar por sua ordem e descer se­ria comprometer-se mais do que desejava, comprometer-se de novo, quando já tomara uma decisão.

Jasper continuava atrás dela. Podia sentir seu calor nos ombros, na determinação da necessidade que tinha dela. Alice mur­murou, indiferente:

Está bem. Descerei logo.

Ele ficou ali mais um pouco, esperando que Alice se virasse e sorrisse. Mas acabou se levantando e saiu, fechando a porta sem fazer barulho.

Oh, não! — balbuciou Alice, ofegante, para a parede. — Oh, não! Não posso!

Mas ela se levantou, pôs os jeans e a blusa de malha, desceu. A mesa estavam agora Jasper, Bert e Caroline. Jocelin fora convocada.

Alice serviu-se de chá, em silêncio, sem a menor pressa. Sentou. Escutou o relato do que acontecera. E proclamou, confir­mando Faye:

Não tem a menor importância. Eles não vão querer pen­sar mais a nosso respeito, assim que forem embora. Além do mais, não há motivo para relacionar qualquer coisa que acon­teça com a gente. Muitas pessoas têm esses manuais de ter­rorismo.

Ela não formulou o comentário final entre aspas, uma pia­da, como sempre acontecera na casa até então. A piada se desgastara, virara um lugar-comum.

Mas eles são uns asquerosos respeitadores da lei insis­tiu Caroline. Provavelmente pensarão que é seu dever comunicar à polícia, quando relacionarem uma coisa com outra.

Houve um momento de aflição, em que todos se entreolharam, reconhecendo a verdade dessa declaração. Mas Bert lo­go descartou-a, com uma risada.

Relacionar o que com quê? Ainda nem decidimos coisa alguma.

Esta é uma ocasião tão boa quanto outra qualquer para conversarmos a respeito propôs Jocelin.

Nesse caso, teremos de chamar Roberta e Faye lem­brou Jasper, apreensivo.

Involuntariamente, ele levantou os olhos para o teto, além do qual, pelo que se podia presumir, Roberta e Faye haviam se reconciliado; estavam deitadas ou sentadas.

Talvez não seja a ocasião mais oportuna — sugeriu Bert.

Por sua careta, Alice deduziu que Faye se encontrava num dos seus acessos. E disse, vagamente:

Talvez devêssemos discutir sem a presença de Faye.

Todos a fitaram, prontos para censurá-la. Mas todos pensa­ram, como ela pôde perceber, que suas palavras tinham alguma procedência.

Foi Jocelin, que trabalhara com Faye por algumas horas naquele dia, quem comentou:

Mas ela é muito inteligente. E tem algumas boas idéias sobre o local.

Onde seria? — indagou Bert, rindo mais uma vez. — Diga- nos. Ela não patenteou seus pensamentos sobre o assunto.

Jocelin respondeu com toda a seriedade:

Concordo com vocês que Faye é emocional. Mas tive a impressão esta manhã de que ela seria muito eficiente numa emergência.

Quem vai subir para chamá-las? — perguntou Jasper, em tom jocoso.

Todos olharam para Alice.

Ela continuou como estava, limitando-se a mexer o chá.

Qual é o problema com você? — perguntou-lhe Jasper.

Estou cansada.

Alice se levantou, de uma maneira que parecia ao mesmo tempo impulsiva e mecânica. Parecia surpresa por ter se levan­tado e estar se encaminhando para a porta. Jasper foi atrás e segurou-a pelo pulso.

Aonde você vai, Alice?

Dar uma volta.

Mas estamos discutindo se vamos ou não ter uma reu­nião formal. Uma reunião para decidir qual o caminho que devemos seguir.

Era como o momento em que Jasper se ajoelhara às suas costas, enquanto ela estava deitada no saco de dormir. Uma pausa prolongada, e Alice voltou para sua cadeira, continuou a me­xer o chá, como se não tivesse saído dali.

Vou chamar Faye e Roberta — anunciou Jocelin, dei­xando a cozinha, decidida.

Todos puderam ouvir um coro de vozes diferentes, a de Faye estridente, a de Roberta sonora e positiva, a de Jocelin intervindo. Jocelin teve a última palavra. Desceu, comunicando que estava tudo bem. Ficaram esperando meia hora, gracejando a respeito.

E logo estavam todos reunidos. A discussão prolongou-se por horas a fio. Discutiram os métodos de estações ferroviárias, restaurantes, monumentos públicos. O Memorial Albert foi o predileto por alguns minutos, até que Faye disse que não, que o adorava; não danificaria uma só pedra de seu edifício. Hotéis. Downing Street, 10. Ministério do Interior. O centro de com­putação do MI-5. O Ministério da Guerra.

E continuaram. Como acontece quando diversas pessoas escolhem o nome para alguma coisa, entre muitas possibilidades, as sugestões foram se tornando cada vez mais desenfreadas e ima­ginativas, foram se tornando mais engraçadas, e tudo se con­verteu numa comédia. De vez em quando alguém dizia que deviam discutir a sério, mas a seriedade parecia ser um item que não constava da agenda. Todos estavam fracos de tanto rir quan­do finalmente decidiram qual seria o lugar. E recuperaram a se­riedade com a exigência insistente de Faye de ser a pessoa que colocaria os explosivos. Era sua vez, alegou ela. Alice, Jocelin e Bert haviam ficado com toda a diversão na última vez.

A decisão foi de que a "coisa de verdade" seria conduzida por Faye, Jasper e Jocelin, esta como a responsável pelos explosivos, com os outros ajudando. A reunião foi encerrada por volta das oito horas. Comemoraram com a ida a um restaurante in­diano. Depois, Faye e Roberta foram ao cinema. Bert, Jasper e Caroline Bert queria que Alice os acompanhasse foram visitar a casa ocupada em South London. Jocelin precisava dar os últimos retoques em seu trabalho.

Alice disse que não queria ir com os outros, que estava bem, desejava dar um passeio sozinha. Isso mesmo, queria dar uma volta, não entendia por que os outros estranhavam tanto. Gostava de andar sozinha.

Era a primeira vez que alguns deles ouviam falar dessa inclinação de Alice, e houve comentários jocosos.

Ela partiu, de rosto franzido, pelas ruas escuras. Parou de­pois de cerca de cem metros e ficou olhando para um jardim, onde eram visíveis apenas o contorno das flores, um arbusto, todas as cores esvaídas. Recuperou o controle com um suspiro e seguiu para o apartamento da mãe. Ali, tocou a campainha, e a voz da mãe atendeu quase que no mesmo instante.

Sou eu, Alice. Uma pausa e ela acrescentou, autoritá­ria, impertinente. Sou eu, Alice.

Outra pausa. Prolongada. Então, a porta zumbiu e Alice subiu correndo a escada despojada e horrível. Parecia que espe­rava, quando a mãe abriu a porta, entrar na sala grande e agra­dável da velha casa dos Mellings, pois adiantou-se como se o lugar fosse enorme e teve de fazer um esforço para parar na fren­te da mãe, encostada na poltrona que obviamente acabara de deixar. Era uma sala pequena mas bastante decente, o que não impediu que Alice a considerasse miserável e horrenda. As duas poltronas, nos lados da pequena lareira a gás, que na velha casa tinham muito espaço ao redor, agora eram como prisioneiras surradas e grandes demais, obrigadas a se confrontarem. Preci­savam de uma reforma; Alice nunca notara isso antes.

E ela disse, em voz escandalizada, hostil:

O que pensa que está fazendo num lugar como esse?

A sala era fria. Alice não se importava com isso, mas Dor­othy usava suéter e meias de lã, roupas de inverno. Alice co­nhecia aquele suéter amarelo folgado e a saia de lã. Eram ve­lhos. Os cabelos da mãe, totalmente brancos agora, estavam presos num coque desleixado. O rosto pálido e bonito, sisudo, confrontava Alice, com um franzido que não dava sinais de que poderia se atenuar.

Como sempre acontecia quando Alice estava com a mãe, emoções agradáveis e gentis predominavam sobre as iradas, que experimentava quando estava longe.

O rosto sofredor e agressivo com que ela entrara já desaparecera, e ela sorriu. Era o sorriso tímido, ansioso por agradar, da boa filha. Alice deu uma olhada para verificar onde podia sentar. A poltrona que a mãe ocupava tinha livros empilhados ao lado, até a altura do braço. Na prateleira por cima da peque­na lareira a gás havia uma garrafa de uísque e um copo quase cheio.

A poltrona em frente à da mãe fora ocupada por alguém. Alice olhou ao redor para ver se a pessoa se escondia em algum lugar. As almofadas da poltrona estavam comprimidas, com a aparência de uma ocupação longa e íntima. Ao lado desse móvel havia uma xícara de chá vazia no chão. Alice imaginou Zoé Devlin e a mãe sentadas frente a frente, ouviu suas risadas vigo­rosas e felizes, que pareciam excluir todas as outras pessoas. Uma pontada de angústia percorreu seu corpo, e o olhar que lançou para a mãe era outra vez de ressentimento.

Por que está toda agasalhada assim? Está doente?

Uma pausa. Então, Dorothy respondeu, cautelosa, o rosto

ainda franzido:

Como sabe muito bem, sou friorenta. Ao contrário de você.

Então por que não acende a lareira?

Outra pausa.

Como já deve ter imaginado, preciso ter muito cuidado com o dinheiro.

Ela falou em voz quase abafada, ainda cautelosa, com medo do que outro tom, um movimento errado, poderia provocar. Como uma enfermeira com um paciente intratável.

Não dá para entender — protestou Alice. — A situação não pode ser tão ruim que não tenha condições de acender o fogo se está com frio.

Dorothy Mellings suspirou. Desviou os olhos. Não para as duas poltronas, que agora pareciam uma promessa de uma con­versa longa e cordial que era devida a Alice, mas para uma pe­quena mesa retangular encostada à parede, onde provavelmente fazia suas refeições. Havia um prato ali, com uma maçã e uma banana. Alice soltou uma exclamação furiosa e foi até a geladei­ra pequena, no recesso que era chamado de cozinha. Havia na geladeira uma garrafa de leite, um pouco de queijo, quatro ovos e a metade de um pão branco.

Alice virou-se bruscamente para a mãe, mas antes de poder dizer qualquer coisa Dorothy perguntou:

Quer chá ou alguma outra coisa, Alice? Está com fome?

Não, não estou com fome — respondeu Alice, com um tom acusador.

Dorothy sentou numa das cadeiras à pequena mesa, indi­cando que Alice devia sentar no outro lado. Mas Alice não era capaz de reconhecer os direitos daquela mesa mesquinha na vi­da de sua mãe e sentou no braço da poltrona que fora ocupada pela amiga de Dorothy.

Zoé Devlin esteve aqui?

Não. Como já sabe, Alice, não estamos mantendo boas relações no momento.

Ora, não seja ridícula. Você sempre soube como ela é.

Mas você sabe muito bem que brigamos.

E Theresa, esteve aqui?

Ainda não.

Brigou também com Theresa?

Não há motivo para que eu tenha de lhe contar coisa alguma.

Dorothy meio que se levantou — não precisava mais do que isso —, pegou o copo de uísque e tomou um gole longo, a boca um pouco contorcida. Uísque Grant's. Dorothy podia ser pobre, pensou Alice, amargurada, mas não deixaria de comprar a sua marca predileta de scotch.

Alice observou ansiosamente aquele rosto duro, que parecia imobilizado para sempre numa carranca, as sobrancelhas unidas.

E teve a sensação de que não conhecia a mãe. Dorothy Mellings, nos bons tempos de antigamente, nos dias que podiam povoar a memória de Alice por horas a fio, fora uma mulher alta e atraente, cabelos vermelho-dourados presos num coque, a pele sedosa e delicadamente sardenta, olhos verde-azulados. Um tanto pré-rafaelita, como todos costumavam gracejar. Mas como Dorothy nunca se recostava indolente, não ficava suspi­rando nem revirava os olhos, a comparação não ia muito além. Agora, era uma mulher idosa, alta e forte, com os cabelos bran­cos desarrumados. Os olhos eram como pedaços de pedra ver­de. Quando estava com outras pessoas — Zoé Devlin, por exemplo —, era toda vitalidade e riso.

Então, quem veio visitá-la?

A senhora Wood, que mora lá embaixo.

Alice levantou-se, aturdida, e tornou a sentar.

A senhora Wood! Mas como é possível? Ela não é...

Está insinuando que ela não é bastante boa para mim?

Mas... — Alice descobriu-se literalmente incapaz de fa­lar. Todo aquele esplendor de hospitalidade, a casa grande, as pessoas entrando e saindo, as refeições, a... — A senhora Wood...

Não sabia que você a conhecia.

Mas não pode...

Só porque ela é da classe operária? Ora, Alice, como po­de alegar uma coisa dessas contra ela? Quanto a mim, retornei ao meu nível. E quem está sempre se gabando de seu avô da classe operária? — Pela primeira vez naquela noite, Dorothy sor­riu e olhou de fato para Alice, com uma fúria fria nos olhos esverdeados. — Ou acha que ela não é bastante inteligente para mim?

Mas vocês não têm nada em comum... aposto que ela nunca leu coisa alguma em toda a sua vida, para começo de conversa!

Uma súbita reverência pela literatura, Alice? — Dorothy tomou outro gole de uísque. — Mas posso lhe garantir que acho a companhia da senhora Wood tão gratificante quanto... uma porção de outras pessoas que eu poderia mencionar. Ela não é cheia de besteiras e pretensões.

Quando Alice lembrou o movimento inexplicável da mãe para a crítica implacável de coisas que ela considerara sagradas por toda a sua vida, seus olhos encheram-se de lágrimas, levando- a a pensar: Tem sido demais para ela; ah, como a pobre coitada deve estar sofrendo.

Você nunca deveria ter saído de casa. Bastava dizer que ficaria lá de qualquer maneira e não precisaria vir para cá.

Parecia um apelo, como se a mãe pudesse dizer mesmo ago­ra "Tem razão, foi um erro", e voltar para a casa.

Dorothy parecia surpresa. Depois, o olhar cauteloso vol­tou, acompanhado pela cara amarrada.

Mas você sabe o que aconteceu, Alice.

Que importa o que aconteceu? O fundamental é outra coisa: o que vai acontecer agora?

As vezes eu me desespero ao tentar conversar com você sobre... necessidade. Não adianta. Sempre levou uma vida tão fácil que não é capaz de compreender. Se quer alguma coisa, acha naturalmente que pode obter...

Alice deixou escapar um pequeno som de protesto, queren­do dizer que em sua opinião a mãe se desviara por completo do assunto. Mas Dorothy continuou:

Sei que não adianta. Tenho pensado muito em você, Alice. E cheguei a uma conclusão muito simples. Você foi estragada por tanto mimo. E o mesmo acontece com os filhos de Zoé.

Isso foi dito sem emoção. Quase com indiferença. Toda a paixão fora consumida.

Alice deixou passar, como parte da nova personalidade de Dorothy ou um momento de loucura. Era melhor ignorar. Pro­vavelmente passaria logo, como aquela idéia absurda de morar ali.

Acho que você deve dizer a Cedric que não quer morar aqui. Ele tem de lhe dar mais dinheiro.

Dorothy suspirou, mudou de posição na cadeira, deu a impressão de que queria largar tudo por puro cansaço, mas recu­perou-se e empertigou-se.

Preste atenção, Alice. E saiba que vou falar pela última vez. Não sei por que você parece incapaz de entender. Não é muito complicado.

Dorothy inclinou-se para a frente, os olhos fixos no rosto rechonchudo, patético e desaprovador de Alice, e falou devagar, explicando tudo.

Quando seu pai me deixou, disse que eu poderia ficar na casa. Reformei o último andar para ser um apartamento independente. Ia alugá-lo, e assim pagaria as despesas. Impostos. Luz. Gás.

Alice balançou a cabeça, relacionando-se com o que estava sendo dito. Encorajada, Dorothy continuou:

Em vez disso, porém, aceitei você e Jasper na casa. Você escreveu indagando se poderia passar algum tempo em casa.

Não me lembro disso. Foi você quem escreveu para perguntar se eu não queria passar algum tempo lá.

Está bem, está bem, Alice. Como quiser. Não vou dis­cutir. Não adianta. Seja como for, aconteceu. Aceitei você e Jas­per. Disse a seu pai que algumas pessoas precisavam de mais tempo para amadurecer... estava falando de você, é claro. Não me importo com Jasper.

Um calafrio de rejeição afligiu Alice. E preparou-se, como já fizera tantas vezes, para assumir o fado de tudo, em defesa de Jasper.

Seu pai sempre insistia: "Mande-os embora. Eles já têm idade suficiente para se defenderem sozinhos. Não sei por que eu tenho de sustentar aquela dupla de parasitas". Mas eu não podia, Alice, não podia.

Isso foi dito numa voz diferente, a primeira voz "simpáti­ca" da mãe que Alice ouvia naquela noite. Era baixa, angustia­da, uma súplica. Alice sentiu-se bastante fortalecida para dizer:

Claro que não. Aquela casa enorme, apenas você mo­rando ali e suas amigas entrando e saindo.

Dorothy ficou outra vez surpresa com a filha. Observou-a com atenção, o rosto novamente franzido.

E curioso como você parece não conseguir entender as coisas.

Se Alice parecia incapaz de absorver um ponto essencial na situação, Dorothy também era incapaz de absorver um fato es­sencial em relação à filha.

Por que não compreende? indagou ela, não a Alice, mas à sala, ao ar, a uma ou outra coisa. Não consigo fazer você entender... O fato é que eu estaria lá agora, na casa, se não fosse por você e Jasper. Não, Alice, não estou culpando você, mas a mim mesma.

Outro gole de scotch. Naquele ritmo, ela estaria alta muito em breve. E Alice teria de ir embora. Detestava quando a mãe ficava alta; era quando ela começava a dizer todas aquelas coisas negativas.

Foi isso o que aconteceu, Alice. E não posso imaginar por que me dou o trabalho de dizer a você mais uma vez. Não é a minha pessoa predileta, Alice. Não estou particularmente interessada em vê-la.

Alice lutava com um pensamento difícil. Seu rosto estava contorcido. Mordeu os lábios rosados. Parecia ofendida, como se Dorothy tivesse comentado: "Não gosto da blusa que está usando".

Mas quando Jasper e eu fomos embora, por que não reformou o apartamento e o alugou?

Porque gastara o dinheiro que Cedric me dera para isso. Com vocês. Ou melhor, com Jasper, é claro. Além do mais, como a única maneira de me livrar de vocês parecia ser me mu­dar, eu já acertara tudo com o corretor. Como você sabe muito bem, já que atendeu os telefonemas... — Ela parou, suspirou. — Não, claro que não foi isso. Seu pai disse que já era demais. Foi esse o motivo. Cedric disse: "Chega!" E não posso culpá-lo.

Espere um pouco — disse Alice. — Que história é essa de que atendi os telefonemas?

Claro que você fez isso. Atendeu todos, não é? Queren­do ser prestativa. Como só você sabe ser.

Eu atendi os telefonemas?

Alice não conseguia se lembrar disso. E Dorothy não po­dia acreditar que Alice não lembrasse. Pela milésima vez, ocor­ria a situação em que Alice dizia "Não me lembro, você está enganada", pensando que a mãe inventava maldosamente as coi­sas, enquanto Dorothy suspirava e acalentava pensamentos in­teressantes sobre a patologia da mentira.

Seja como for, você poderia dizer que mudou de idéia.

Dessa vez o suspiro de Dorothy foi elaborado e teatral.

No mundo normal, Alice. . . mas você não saberia na­da a respeito... existem coisas como contratos.

Oh, merda!

Isso mesmo, Alice, uma merda. Mas havia dois motivos para que eu não mudasse de idéia, mesmo que Cedric mudasse. Por um lado, eu queria me livrar de tudo aquilo. Você me pres­tou um grande serviço, Alice. Houve um tempo em que eu po­deria torcer seu pescoço... sentia-me uma visita em minha própria casa, mal podia entrar em minha própria cozinha... e de repente pensei: Meu Deus, que alívio! Estou livre de tudo. Quem disse que eu tinha de passar minha vida comprando co­mida e cozinhando? Passei anos e anos de minha vida assim, cambaleando ao peso de quilos e mais quilos de comida, cozi­nhando tudo e servindo a uma porção de pessoas vorazes que comiam demais.

O som de protesto de Alice nesse ponto foi como um ge­mido, e ela fitou a mãe com olhos frenéticos: Pare, por favor, pare, antes de destruir tudo, até mesmo as recordações de nossa casa maravilhosa.

Mas aquela força perigosa e destrutiva que era agora sua mãe não a ouviu ou decidiu não dar atenção, pois continuou, em voz dura e fria, mas divertida, como se nada, nada mesmo, pudesse ser levado a sério.

E o outro motivo foi que havia um negócio fantástico: com aqueles alemães... como é mesmo que eles se chamam? Você sabe, falou com eles... queriam comprar a casa como es­tava, com carpetes e cortinas... tudo, enfim. Mas eu precisava sair depressa para eles se instalarem. E você e Jasper não iam embora, não importava o que eu dissesse.

A essa altura, Dorothy Mellings inclinou a cabeça para trás e riu, enquanto Alice, os olhos arregalados, as articulações da mão esquerda entre os dentes — deixaria marcas ali — dava a impressão de que iria se dissolver numa poça de lágrimas.

Foi então que Cedric telefonou para Jasper e disse que chamaria a polícia se ele não fosse embora. Então, graças a Deus, vocês saíram. O corretor me pressionou para aprontar logo a casa para a venda. E assim que a casa ficou vazia, alguém en­trou e levou todas as cortinas.

Dorothy balançou de tanto rir, o tipo de riso que costuma­va partilhar com Zoé Devlin, mas que não estava sendo partilhado com Alice.

Não sobrou uma única cortina. Com os alemães chegan­do em quatro dias. Ficaram furiosos. Tinham fechado o con­trato com as cortinas e queriam cortinas de qualquer maneira. Se não, o negócio estava cancelado. — Dorothy tomou outro gole de scotch. — Perdi o apartamento que ia comprar. Contei o que acontecera. Eles foram muito simpáticos, mas não podiam esperar. Era um bom apartamento, mas devo admitir que estou satisfeita. Era grande demais para mim. No fundo, não preciso de nada maior do que isto. Queria me livrar de tudo aquilo.

Entendendo, corretamente, "Queria me livrar de você", Alice sentiu finalmente os olhos se encherem de lágrimas, que escorreram pelas faces.

Umas pessoas de Yorkshire ficaram com a casa, sem as cortinas. Por duas mil libras a menos, mas àquela altura eu já não me importava mais. Este apartamento estava disponível. E ótimo. Quanto mais simples melhor. Quando penso em todos os anos da minha vida que passei naquela agitação...

Alice murmurou, desconsolada, num fio de voz:

Lamento ter levado o tapete.

Ah, então foi você... Mas a verdade é que não tem a menor importância. Não tenho mesmo espaço para aquele ta­pete. Pode ficar.

Alice fungou algumas vezes, antes de acrescentar:

Desculpe ter chamado você de fascista.

Como? — Dorothy parecia incrédula. — Fascista? Ora, ora... E todas aquelas outras coisas? Fascista... Mas quem se importa com seus insultos malcriados?

O que eu disse? Não...

Em algum lugar, no fundo da mente de Alice, ainda reverberava a cena da despedida, quando gritara insultos para a mãe e Jasper fizera a mesma coisa. Ela estava incandescente. Derre­tendo de raiva.

Ainda está com Jasper? — perguntou Dorothy.

Outra Alice, toda integridade e certeza, baniu a criança que

choramingava.

Claro. Continuo com Jasper. Você sabe disso.

Oh, Deus, Alice! — exclamou Dorothy Mellings, oferecendo subitamente à filha a sinceridade simples e efusiva que era o que Alice lembrava da mãe, particularmente dos últimos quatro anos em sua casa, e pela qual estava ansiosa. — Por que não arruma um emprego? Por que não faz alguma coisa?

Parece que esqueceu o fato de que temos mais de três milhões de desempregados — declarou Alice, com ar virtuoso.

Ora, não diga bobagem. Você se formou com melhores notas do que a maioria de sua turma. Todas as filhas de minhas amigas na sua idade arrumaram empregos e fizeram uma car­reira. Você poderia fazer o mesmo, se quisesse. Mas nem ao me­nos tentou. Podia começar agora... talvez seu pai ajudasse. Tem visto Cedric?

Não quero isso — protestou Alice. — Não vou levar es­se tipo de vida. Não ficarei sentada num escritório das nove às cinco.

Subitamente, com exasperação, com perda, com incompreensão, Dorothy explodiu:

Ah, eu queria tanto uma coisa para você, Alice! Não ti­ve uma educação adequada, como sabe... Quantas vezes já lhe disse isso? Casei quando tinha dezenove anos. Devia haver uma lei contra isso. E depois limitei-me a cuidar da casa, a cuidar de você e de seu irmão, só fazia cozinhar e cozinhar e cozinhar. Sou uma desempregável. Quando você e seu irmão eram pe­quenos, eu ficava pensando como minhas amigas estavam se tor­nando alguém. E eu empacara. Lembra-se de Rosemary Holmes? Sabia que ela está no Bart's? E uma especialista de fama interna­cional em alguma coisa relacionada com o fígado. Aí está, sou tão ignorante que nem mesmo sei o que é. Fomos colegas de escola. Mas ela foi para a universidade.

A exibição descontrolada de emoção por parte da mãe teve o efeito de fortalecer Alice, torná-la rígida e desaprovadora. Observar a mãe ficar alta, em festas ou não, era o motivo pelo qual Alice nunca bebia. Sempre houvera um momento, quando Dorothy bebia, em que alguma malevolência terrível transbor­dava, como um agente químico pernicioso, queimando tudo em que tocava. Mas a força destrutiva que antes só se manifestava quando ela estava embriagada, como se saísse de algum canto de seu íntimo sob pressão excessiva, parecia agora tê-la domina­do por completo, de tal forma que nada estava a salvo de sua hostilidade sarcástica: nem os filhos, nem os amigos, nem o ex- marido ou qualquer coisa de seu passado.

Alice pensou, enquanto observava Dorothy contemplar com expressão pesarosa alguma oportunidade perdida: O que ela pen­sa que deveria ter feito?

Tenho certeza de que eu seria uma boa médica — acrescentou Dorothy. — E você sabe disso. Também daria uma boa fazendeira. Ou exploradora.

Exploradora! — escarneceu Alice, debilmente.

Isso mesmo, exploradora.

O copo estava vazio. Dorothy levantou-se, foi até a prate­leira, serviu-se de outra dose generosa de uísque, tornou a sen­tar. Não olhava para Alice.

Não fiz nada com a minha vida. — Ela sorria, desdenho­sa, como se assim anulasse Alice. — Eu ficava olhando para vo­cê quando era pequena e pensava: Pelo menos cuidarei para que Alice tenha instrução, esteja preparada para enfrentar a vida. Não vou deixar que Alice fique empacada como eu, sem qualificação para coisa alguma. Mas, no final das contas, você consu­miu sua vida exatamente como eu. Cozinhando e cuidando de outras pessoas. O trabalho escravo da mulher.

Ela riu, amargurada, demolindo todos os anos maravilho­sos sobre os quais Alice pensava com tanto anseio, matando a antiga Dorothy Mellings, que irradiava calor por toda parte, as pessoas procurando-a, cercando-a, querendo o que ela tinha: o dom de encher tudo a seu redor com vida.

Alice sentia-se magoada além das palavras, estava toda encolhida, enquanto a mãe continuava a falar:

Este mundo é dominado pelas pessoas que sabem como fazer as coisas. Sabem como as coisas funcionam. Estão preparadas. Lá no alto, há uma camada de pessoas que comandam tudo. Mas nós... não passamos de pessoas rústicas. Não entendemos o que está acontecendo e não podemos fazer nada.

Alice percebeu que recuperava o controle.

Não diga bobagem. Podemos fazer qualquer coisa que quisermos.

Vocês ficam brincando de revolução, empenhados em seus joguinhos, pensando que são importantes. Mas não passam de pessoas rústicas, nunca farão coisa alguma.

Você não compreende, mãe declarou Alice, calma e confiante. Vamos derrubar tudo. Mas tudo mesmo. Todo es­se lixo nojento em que vivemos. Tudo desabará. Vai ver só.

O que levou Dorothy a também recuperar o controle. Sua vigilância cautelosa voltou, ela tratou de aumentar a distância que a separava da filha, os olhos verdes pareciam pedras geladas outra vez.

E depois vão reconstruir tudo à sua imagem! Que perspectiva! Ela riu, enquanto Alice começava a ficar vermelha, a se levantar. Não me entenda mal, como provavelmente é inevitável. Com tantos de vocês por aí, com apenas um pensa­mento fixo, o de conquistar o poder...

Dorothy riu ainda mais alto, o riso de bêbada que Alice tan­to detestava.

Já posso imaginar tudo. Jasper deve se tornar o ministro da Cultura... é o tipo talhado para o cargo. Detesta qualquer coisa decente e já escreveu um romance horrível que não con­seguiu publicar. E você seria sua assessora prestativa.

Alice ia explodir, de tão furiosa, agora de pé, os punhos cerrados, o rosto vermelho e contorcido.

Por Deus, Alice, vá embora! exclamou Dorothy Mellings. Será que não percebe que estou cansada de você? Não consigo mais suportá-la.

Alice acabou explodindo, a voz estridente:

Sua velha fascista asquerosa! Você e seus amigos fascis­tas! Não se importam com ninguém... — Ela estava incoeren­te, ofegante, suando. Esperem só para ver. Está tudo podre.

Tudo minado. Mas vocês são tão indiferentes e estúpidos que nem percebem. Vamos derrubar tudo.

Alice se adiantou e empurrou a mãe pelo ombro, de tal for­ma que Dorothy teve de se segurar na beira da mesa para man­ter o equilíbrio.

Vão ver só! — berrou Alice, para depois sair correndo da sala, batendo a porta.

Abastecida por uma angústia raivosa, ela desceu a escada e saiu para a rua, virou a esquina e tornou-se parte da pequena multidão tardia que se dispersava em torno da estação do metrô. Um quarteirão depois dois guardas em ronda se aproxima­ram e Alice tornou-se no mesmo instante a boa cidadã, voltando para casa depois de alguma diversão ao final da tarde. Reconhe­ceu um dos guardas. Ele participara da primeira batida na casa. Mas ele não a reconheceu. Alice acenou-lhe com a cabeça e sor­riu, a contribuinte que pagava seu salário. O guarda murmurou:

Boa noite.

Eles recebiam ordens para confraternizar, pensou Alice, permitindo que seu rosto e corpo o desprezassem, depois de se en­contrar a uma distância segura. Mas a ira se dissipara na corrida pela calçada. Pensava agora na mãe com uma intensa compai­xão protetora. Dois pequenos cômodos de merda! Dorothy pa­recia enorme naquela sala; se se virasse muito depressa, poderia derrubar uma parede. Passando as noites a conversar com Zoé Devlin e ler livros! Alice examinou agora, de uma imagem men­tal arquivada, o título dos livros nas duas prateleiras na parede e na pilha no chão, ao lado da poltrona. Para que ela queria ler aquele tipo de livros? Era como se ainda estivesse na escola. Quando Zoé Devlin ia visitá-la, elas sentavam de frente uma para a outra e conversavam sobre a vida. Não. Sobre livros. Não, é claro que isso não mais acontecia, elas haviam brigado. O que era ridículo; teriam de dar a volta por cima; eram como irmãs, ou pelo menos assim diziam a si mesmas. Uma briga idiota... ou melhor, uma sucessão de brigas.

Alice estava parada na calçada, como uma criança brincan­do de estátua, aparentemente à espera de um táxi ou de uma carona. Contemplava — sem o querer — a cena da horrível bri­ga final entre a mãe e Zoé. Na antiga sala de estar, no segundo andar, que se estendia da frente aos fundos e de lado a lado da casa, com muitas janelas, proporcionando vistas do jardim e das árvores. Dorothy Mellings e Zoé Devlin se fitavam, pálidas, sé­rias demais para gritarem ou se insultarem, como já acontecera antes, embora sempre se reconciliassem depois, rindo muito.

Duas mulheres idosas, altas, fortes e bonitas, com a sala aprazí­vel se prolongando ao redor até as janelas, os jardins mais além.

A visão de Alice se transformou. Duas velhas. Ambas pareciam cansadas e abatidas. Alice sentiu que o fato de serem tão velhas era uma afronta a ela. Como haviam ficado assim tão depressa? E por que ficaram? Por que deixaram que aquilo acon­tecesse? Por que não se importaram? Será que não percebiam como eram ridículas, levando-se tão a sério?

Três dias antes as duas haviam suspendido uma discussão, alegando que começariam a se agredir se não o fizessem. Na oca­sião, Dorothy dissera:

Nós nos conhecemos nas charnecas de Aldermaston. E nos conhecemos por causa de nossas atitudes políticas. Era isso o que tínhamos em comum.

Ao que Zoé respondera:

Ah, todo o resto não contava, é claro! E somos amigas há vinte anos!

Zoé, será que percebe que agora tenho de censurar tudo o que digo a você? Que não posso mais falar sobre qualquer coisa que estou realmente pensando?

Há muito sobre o que falar.

Não há, não. Não quero desperdiçar meu tempo em fo­focas e discutindo se devemos ou não comer manteiga e bacon. Ou se devemos começar a fazer macarrão em casa. E sobre isso que conversamos.

O seu problema é ter se tornado reacionária demais.

Não comece a me pregar rótulos idiotas. Você e todos os outros voltaram ao século XIX. Ficam chorando pelos már­tires de Tolpuddle e cantando Bandiera rossa. Não passam de uma piada de mau gosto.

Você não achava que era uma piada.

Mas acho agora. Sabia que tenho de pensar duas vezes antes de convidá-la a vir aqui? Não pode ser convidada junto com alguém que tenha uma opinião política diferente sobre qualquer coisa, porque começa a dizer que se trata de um fascista. Nem mesmo quer conhecer alguém que leia um jornal de direi­ta. Sabia que se tornou uma fanática insuportável, Zoé?

E você é uma fascista! Lendo livros sobre a KGBe ven­do vermelhos debaixo de cada cama!

E há mesmo vermelhos debaixo de cada cama — decla­rara Dorothy, muito séria. — Oh, Deus, quando penso que se dizia isso como uma piada... Está lembrada? O mais engraça­do é que nós éramos os vermelhos debaixo das camas.

E Dorothy desatara a rir. Zoé permanecera séria, acusando com veemência:

Daqui a pouco você estará apoiando a política externa de Reagan e Thatcher.

Já me perguntei se não devia fazer isso. Afinal, há qua­renta anos não era fascista lutar pelo mau contra o pior. Por que teria de ser agora?

Vou embora, Dorothy. Se não o fizer, acho que acaba­rei agredindo você.

Tem razão. Acho melhor mesmo você ir embora.

Isso acontecera três dias antes. Nenhuma das duas tomara qualquer iniciativa para uma reconciliação. Até a manhã em que Zoé voltara. Jasper estava na cozinha, tomando o desjejum pre­parado por Alice. Dorothy Mellings falava ao telefone, na sala de estar, mantendo-se a distância de Jasper, como Alice gostava.

Zoé entrara na sala de estar, olhando além de Alice, que cuidava das flores para a mãe. Parara no meio da sala, contemplan­do Dorothy com expressão dramática, que não se apressara em encerrar a conversa telefônica, pois queria ganhar tempo — co­mo tanto Alice quanto Zoé puderam perceber —, a fim de se preparar para a confrontação. E seria justamente isso, uma con­frontação: o rosto e o corpo de Zoé assim o diziam. Ficara pa­tente para Alice que Zoé viera provocar uma discussão. Queria alguma espécie de embate ruidoso com Dorothy; havia algo de acusador em sua aparência. Preparara todos os tipos de argu­mentos a serem usados e como fazê-lo.

Dorothy levantara-se devagar e fora se postar na frente de Zoé, como se aceitasse o desafio para a luta. Mas agora que o momento chegara, as duas estavam pálidas e sérias, falando em voz baixa — o que era muito pior do que berrar, porque os gri­tos quase sempre acabavam em risadas —, um tanto ofegantes pelo horror do que acontecia.

Tenho de dizer uma coisa e você tem de escutar, Dor­othy. Mesmo que comece a me odiar por isso. Ainda mais do que já me odeia.

Não diga besteira — respondera Dorothy, impaciente.

Tudo se resume nisso, não é? Qualquer coisa que eu fa­ça ou pense é uma estupidez para você?

Quer mesmo falar sobre isso? A sério? Que as pessoas com opiniões políticas diferentes são estúpidas? Claro que era isso o que eu costumava pensar.

Não me desvie do assunto, Dorothy. Tenho de dizer tu­do. Percebe o que está fazendo? Só porque Cedric a deixou...

Já faz cinco anos.

Deixe-me falar. Cedric a deixou, e você precisa sair des­ta casa. Sei que é horrível, você tem de adotar a política da terra arrasada... destruir tudo ao bater em retirada. Porque não doerá tanto se deixar tudo arrasado.

Nesse ponto Zoé fizera uma pausa, esperando, ao que pare­cia, a aceitação agradecida de Dorothy a seu diagnóstico.

Não pode estar falando sério! — exclamara Dorothy, mantendo a voz baixa, mas amargamente desdenhosa. — Veio aqui para me dizer isso?

Sim. É importante. Você está se tornando tão diferente...

Por mais estranho que possa parecer, a idéia já me ocor­reu. Essa sua psicoterapia está fazendo com que se torne muito obtusa, Zoé. Apresenta uma coisa absolutamente óbvia como se fosse uma grande revelação.

Zoé dera a impressão de que vibrava de raiva. Mas também não permitira que sua voz se alteasse.

Se é tão óbvio, então por que você continua a agir assim?

Não pode haver maneiras diferentes de encarar a situa­ção? Será que não pode conceber que existem maneiras diferen­tes de se analisar a mesma coisa? Duvido muito, do jeito que você é... Nem ao menos suporta uma pessoa que leia um jor­nal diferente... Preste atenção. Minha vida tem de mudar. Cer­to? Por mais estranho que possa parecer, já levei em consideração tudo o que você disse. Mas estou fazendo um inventário... pode entender? Estou pensando... entende? Estou pensando em minha vida. O que significa que estou reavaliando mui­tas coisas.

Dorothy e Zoé se fitavam, empertigadas, como soldados que receberam ordem de ficar à vontade ou um casal prestes a iniciar os passos elaborados de uma dança.

E tudo o que pode perceber a meu respeito é que não temos nada em comum — dissera Zoé. — E isso? Depois de vin­te anos de amizade!

O que temos em comum agora? Só cozinhamos e fala­mos sobre os nossos malditos filhos, discutimos o colesterol e a beleza do corpo, comparecemos a manifestações.

Não tenho notado a sua presença em nenhuma, recentemente.

Deixei de ir quando compreendi que as manifestações e todo o resto não passavam de diversão.

Diversão?

Isso mesmo. As pessoas comparecem às manifestações porque isso lhes proporciona alguma emoção. Como se fossem piqueniques.

Não pode estar falando sério, Dorothy!

Claro que estou. Ninguém se dá mais o trabalho de in­dagar se vai adiantar alguma coisa participar de manifestações e marchas. Só falam sobre como se sentem. E tudo o que importa. E apenas pela emoção. Pela diversão.

Oh, Dorothy, isso é uma perversidade!

Por quê, se é verdade? Precisa usar seus olhos e obser­var... as pessoas em piquetes, marchas ou comícios estão se divertindo imensamente. E se forem espancadas pela polícia, ain­da melhor.

Silêncio. Zoé olhava para Dorothy, aturdida. Não podia acreditar que a amiga estivesse mesmo falando sério. E Alice, parada ali, petrificada, as flores nas mãos, observava as duas e suplicava interiormente: Oh, não, por favor, não, parem com isso, por favor, parem com isso. A mãe passara dos limites na destruição e não havia o menor sentido em escutá-la. Era melhor não dar atenção.

Vou lhe dizer uma coisa, Zoé. Todos vocês, marchando de um lado para o outro, sacudindo bandeiras e entoando canções patéticas... Ali you need is love... não passam de uma piada. Para as pessoas que realmente controlam este mundo, vo­cês são uns gaiatos. Ficam olhando para vocês e pensam: Isso é ótimo, serve para manter essa gente ocupada.

Não posso acreditar que você esteja falando sério.

Não sei por que não. Estou dizendo que falo sério.

Quer destruir as coisas, romper com seus amigos.

Não dá mais para conversar com você. Quando eu digo uma coisa que realmente penso, você começa a chorar e a se lamentar.

Saiba que eu me importo se nossa amizade terminar, mesmo que você não se importe.

Não tenho mais energia para todas essas briguinhas e discussões — declarara Dorothy.

Zoé saíra correndo da sala, murmurando algo furiosa — mas não alto; em nenhum momento as vozes das duas haviam se alteado. E Dorothy, com uma expressão melancólica, apática, voltara para junto do telefone e sentara, pronta para fazer outra ligação. Mas não discara logo. Ficara imóvel por algum tem­po, a cabeça apoiada na mão, olhando para a parede.

Quer que eu faça um chá? — perguntara Alice, efusiva.

— Não, obrigada, Alice querida.

Mas ela fora para a cozinha, fizera o chá, levara uma xícara para a mãe, deixara-a no lugar onde ela ainda estava sentada, sem se mexer, a cabeça apoiada na mão.

Alite pensou (parada na beira da calçada, embora ainda não soubesse que estava ali): Dorothy precisa realmente de alguém para cuidar dela! Sem comida na geladeira, bebendo sozinha. Seria melhor se ela vivesse com a gente, no número 43. Podia ocupar os dois quartos grandes lá em cima, quando Mary e Reggie saíssem. Um pensamento aflorou à mente de Alice, imedia­tamente censurado: Eu teria então alguém com quem conversar.

Alice imaginou-se e à mãe à mesa na cozinha grande, jor­nais e livros por toda parte. Dorothy falaria sobre os livros, e Alice escutaria as notícias sobre aquele mundo em que ela pró­pria, por algum motivo, não era capaz de entrar.

Essa idéia sofreu uma morte rápida e natural.

Alice voltou a si, na beira da calçada. Fazia frio. Um céu repleto de estrelas enevoadas. No outro lado, um lampião projetava uma claridade amarelada.

Já passava de meia-noite. Jasper, Bert e Caroline não estariam em casa naquela noite; ela tivera certeza disso no instante em que eles se afastaram. Bert e Caroline estariam se esfregando em al­gum lugar; todos aqueles olhares e sorrisos tinham de desaguar em alguma coisa. E Jasper (se pudesse) estaria no quarto ao lado...

Alice eliminou esse último pensamento de sua mente e en­trou na casa sem fazer barulho, não querendo ver Faye e Ro­berta ou Reggie e Mary. Mas não havia ninguém na casa, à exceção de Jocelin, ainda trabalhando. Alice bateu na porta, po­lida, entrou ao ouvir um resmungo que presumivelmente era um "Entre". Na bancada comprida diante de Jocelin havia qua­tro pequenos artefatos de aparência sinistra, idênticos, enfileirados lado a lado, parecendo latas de sardinhas descomunais e complexas. Por toda parte havia componentes de bombas, ago­ra desmontadas, e algumas tigelas de cozinha contendo produ­tos químicos. Presumivelmente esperando para serem levadas de volta a seus lugares apropriados, na cozinha. Jocelin separa­va itens em pequenas pilhas. Acenou com a cabeça para Alice, sem sorrir. Parecia uma operária inclinada sobre uma linha de montagem, só que nenhuma operária poderia trabalhar com os cabelos louros e gordurosos caindo desgrenhados pelo rosto e com o blusão vermelho e manchado, com um buraco no coto­velo.

Vou enterrar estas coisas. Poderemos pegar na próxima vez em que precisarmos — Jocelin permitiu-se um sorriso para Alice. — Nenhum policial virá escavar o jardim por algum tempo.

Estas quatro são suficientes? — indagou Alice, mas ape­nas para demonstrar sua admiração pelo planejamento de Joce­lin para realizar tanto com tão pouco.

Jocelin balançou a cabeça, olhando para os quatro artefatos com um ar satisfeito de posse. Foi até a janela, parou ali, de cos­tas para Alice, as mãos nos quadris. Depois, virou-se e disse:

Está bastante escuro. Vamos logo.

A coleção de componentes foi despejada — de forma descuidada, já que não havia qualquer perigo agora — num saco de plástico, metido dentro de outro e mais outro. As duas saí­ram furtivamente para a noite. Sem fazerem qualquer barulho.

Pararam por um momento no lugar onde a polícia começa­ra a escavar, ambas pensando que seria o local mais seguro, mas não poderiam suportar. Uma moita de lilases, perto da cerca de Joan Robbins, ainda exalava uma fragrância intensa, embora as flores, pretas na escuridão, estivessem se desmanchando. A terra estava mole ao redor. Nenhuma luz incidia ali. Casas escuras ao redor. Usando uma colher de pedreiro, trabalhando o mais silenciosamente possível, Alice abriu um buraco de bom tamanho; Jocelin ajeitou o fardo, e jogaram a terra por cima. Voltaram para dentro da casa, sentindo um vínculo a ligá-las, cúmplices bem-sucedidas. Na cozinha, Jocelin disse:

Eu já ia esquecendo. Tem um recado. Ou melhor, dois. Primeiro, aqueles irlandeses voltaram.

Ela parecia despreocupada, mas Alice compreendeu que alguma coisa horrível acontecera.

Os mesmos que trouxeram aquele... matériel?

Isso mesmo. Queriam saber em que lugar do vazadouro foram deixadas as duas caixas.

O que você disse?

Que não sabia de nada.

Para Jocelin, ao que parecia, isso era suficiente; ela mexeu o açúcar no café, provavelmente pensando em sua obra, os artefatos ainda enfileirados na bancada lá em cima.

E o que aconteceu depois?

"Ora, garota, isso não é suficiente para nós. Tem de compreender. Recebemos ordens e temos de cumpri-las. A mulher que vimos na última vez tem de nos acompanhar ao vazadouro e mostrar onde estão as coisas."

Jocelin disse tudo isso com um sotaque irlandês, perfeito na opinião de Alice — tão acurado que a levou até a pensar: Será que ela é irlandesa? E se for, o que significa isso? Tem algu­ma importância? Aqui está mais uma pessoa nesta casa com uma voz falsa! Jocelin continuou:

E eu disse a eles: "Quer dizer que vão voltar?" Eles responderam: "Claro que vamos. Amanhã de manhã, pode con­tar". — Em sua voz normal, Jocelin acrescentou, como se tudo aquilo não tivesse nada a ver com ela: — Assim, suponho que eles voltarão.

Então não estarei aqui — declarou Alice, parecendo cal­ma, mas dominada pelo pânico.

Ela pensara que a excursão para se livrarem dos pacotes fo­ra o fim de todo aquele episódio.

A outra coisa é que Felicity esteve aqui. Disse que descobriram a irmã de Philip, e o funeral foi marcado para quarta-feira.

Então não podemos fazer o que planejamos para esse dia.

Havia decidido que quarta-feira seria o melhor dia para o ato bélico. Jocelin protestou:

Primeiro o mais importante.

Mas alguém deve comparecer ao funeral.

Você vai. Não é essencial para o plano.

Mas eu quero estar presente!

Jocelin deu de ombros. Pegou a caneca, levantou-se, disse "Boa noite" e subiu. Provavelmente para aperfeiçoar os quatro artefatos explosivos.

Alice já ia deitar quando Mary e Reggie chegaram para avi­sar que mudariam na quarta-feira; contratariam um caminhão de mudança.

Alice quase riu com a idéia do caminhão de mudança, mas lembrou que dois quartos e parte do sótão estavam atulhados de móveis e limitou-se a dizer:

Está certo. Vão precisar de ajuda?

Não recusaremos — respondeu Reggie.

E os dois subiram. Então não pode ser mesmo na quarta-feira, pensou Alice. E também foi se deitar. Acordou cedo e deixou um bilhete na mesa da cozinha, dizendo que se os irlan­deses aparecessem, deviam ser informados de que ela viajara e ninguém sabia em que lugar do vazadouro estavam os pacotes, e provavelmente já haviam sido cobertos por novas cargas de lixo. Ela saiu, refletindo que fora provavelmente aquele russo que os mandara até a casa. Pois ela o despachara, não? Daqui a pouco todos estariam cansados de procurar; era só uma questão de agüentar firme. E tratou de reprimir e ocultar sua an­siedade.

Era uma manhã agradável, ensolarada, não fria. Alice cir­culou pelas ruas, descobriu que eram apenas dez horas, sentou por muito tempo num pequeno restaurante, tomando um desjejum que não queria realmente. Onze e meia. Ela pensou em visitar a mãe de novo, chegou a ir até a entrada do prédio, mas desistiu, lembrando que veria de novo aquela sala mesquinha, a mãe comprimida lá dentro, com as duas poltronas outrora es­plêndidas e agora surradas. Atravessou Londres para visitar uma comuna em que vivia uma garota que conhecera em Birming­ham. A garota estivera no congresso da UCC. Haviam falado em se encontrarem de novo, talvez no mês seguinte. Era uma casa perfeita para um congresso, refletiu Alice, sentindo um frio no coração, ao recordar que todos deveriam deixá-la dentro de um mês: todos admitiam tacitamente que seria preciso se dis­persarem. E quem podia saber onde todos estariam?

Ela voltou para a casa às cinco horas. Jasper, Bert e Caro­line estavam na cozinha, comendo refeições de viagem. Um olhar foi suficiente para confirmar a Alice que acertara em cheio: Bert e Caroline podiam agora ser considerados um casal. Mas Alice decidiu não se importar.

Foi informada de que os irlandeses não haviam voltado.

Faye e Roberta chegaram, e os seis — as duas e mais Jasper, Bert, Caroline e Jocelin — resolveram que o trabalho seria exe­cutado, de acordo com os planos, na tarde de quarta-feira. Pela manhã, ajudariam Reggie e Mary com a mudança. Alice podia ir ao enterro.

— Mas não sei se o enterro será de manhã ou à tarde — protestou Alice.

Ninguém respondeu. Não era importante. Alice pensou que a mesma coisa aconteceria se fosse embora: nunca seria mencionada, seria esquecida por completo, como Jim, como Pat. E como Philip. Não, Jasper sairia à sua procura, ela tinha certe­za; os outros podiam esquecê-la, mas Jasper não.

Na terça-feira todos foram ao local do crime — a piada particular —, circularam pelo enorme hotel, parte da multidão. Cla­ro que se deram o trabalho de se vestirem à altura. Jocelin, ao que parecia, possuía outras roupas além de jeans e blusão. Usa­va um vestido rosa de linho que dava a impressão de ter sido comprado em Knightsbridge. Caroline vestira o disfarce prote­tor de uma saia bege bem-cortada e uma blusa amarela. Rober­ta, por uma questão de princípio, recusou-se a mudar, mas não chamava atenção em seu terninho azul-escuro. Faye estava com uma blusa branca e jeans, e se destacava não apenas pela beleza, mas também porque ardia com um triunfo secreto, que a leva­va a falar muito e se exibir. Era a própria essência de sua perso­nalidade cockney, espirituosa e escandalosa. Os outros riam, mas também advertiam-na de que ficasse quieta. Roberta, muito ner­vosa, esforçava-se para controlá-la. Jasper também ostentava um ar de exultação que o tornava até bonito, pensou Alice. Parecia pairar sereno acima da multidão de turistas e pessoas que faziam compras, superior a tudo; estava num deslumbramento de ima­gens sobre como em breve provariam do que eram capazes, na­quele cenário luxuoso e desavergonhado. Depois do reconhe­cimento satisfatório, todos foram tomar chá.

Ao terminarem, pegaram um táxi para Hammersmith, on­de assistiram a Diva, um filme que alguns já tinham visto mais de uma vez. Jantaram juntos no restaurante indiano perto da casa, concordando que deveriam deitar cedo. Explicaram a Reggie e Mary que era por causa do trabalho árduo que os aguarda­va no dia seguinte, quando os ajudariam na mudança — o que pareceu aceitável para o casal, já que tirar os móveis da casa, levá-los para o apartamento e arrumá-los lá era a única coisa com que valia a pena ocupar suas mentes. Mary comentou, quase que distraidamente, que aquela casa estava incluída na agenda dos assuntos que seriam discutidos na semana seguinte e havia uma recomendação de Bob Hood para que as coisas fossem ace­leradas. Era lamentável, acrescentou Mary, que aquelas lindas casas não estivessem sendo usadas.

Alice ficou subitamente tão furiosa que mal conseguiu balbuciar:

E uma pena que a prefeitura se mostrasse disposta a deixá-las vazias por seis anos.

Mary poderia se inflamar, como acontecera com Alice. Ela ficou vermelha, a representante da autoridade e o ser humano lutando em seu íntimo, e depois disse, soltando uma risada que mesclava desculpas e um tom ofendido:

Tem razão. Foi horrível deixarem as coisas esquecidas por tanto tempo.

Mas tudo ficará bem agora — insistiu Alice, que não se sentia absolutamente abrandada. Haverá algumas pessoas vi­vendo nelas.

Mary hesitou por um instante e saiu da cozinha, seguida por Reggie. Havia um alívio estampado nos dois: graças a Deus sairemos daqui amanhã!

O funeral de Philip foi às dez horas da manhã de quarta-feira. As nove, deixando os outros na maior animação a carre­garem os móveis para um caminhão que parecia ocupar a rua inteira, Alice foi para o apartamento de Felicity, onde se en­controu com mais duas pessoas que haviam conhecido Philip no tempo em que morara ali e gostavam dele. Os quatro foram para o crematório no carro de Felicity. A irmã de Philip estava lá, com o marido. Ao que parecia, tinham vindo de Aberdeen. Philip era escocês, um fato que até aquele momento jamais aflorara.

A irmã era uma coisinha pálida e magra, com uma expres­são obstinada, como a de Philip: determinada a não se deixar levar pelos ventos hostis da vida. O marido era um jovem pe­queno e pálido com olhos azuis míopes e um bigodinho ralo. Os dois tinham forte sotaque escocês. O casal parecia ansioso por evitar os quatro amigos de Philip, ou pelo menos só falou o mínimo necessário; com a polidez satisfeita, foram sentar separados na "capela". Foi um serviço religioso apropriado. Nem Felicity nem Alice, muito menos os outros dois, um rapaz e uma moça que haviam ajudado Philip a pintar uma sala, sabiam se ele fora religioso. Talvez fosse apenas a burocracia seguindo seu curso inexorável. E a irmã e o cunhado não os esclarece­ram. O caixão, grande, marrom e lustroso, que fazia com que qualquer um que conhecera Philip pensasse na maneira como seu corpo pequeno e frágil devia estar estendido lá dentro, co­mo uma mariposa morta, estava bem à vista de todos, enquan­to um clérigo da Igreja Anglicana esforçava-se ao máximo para dar um pouco de vida às palavras que entoava com tanta fre­qüência.

E acabou. A irmã de Philip despediu-se apressadamente. Estava com os olhos vermelhos. O marido limitou-se a acenar com a cabeça a distância. Os quatro voltaram. O caminhão da mu­dança estava outra vez parado na frente do número 43; já fizera uma viagem e voltara.

Não pensávamos que tínhamos tanta coisa comentou Mary alegremente, parada na traseira do caminhão, carregando uma caixa com porcelana que Reggie comprara no leilão de uma casa.

Conseguimos fazer tudo! anunciou Bert, ruidoso, jo­vial e falso.

O antagonismo, que era a verdade do que sentiam uns pe­los outros Mary e Reggie por eles, eles por Mary e Reggie —, estava na superfície, e todos sabiam disso, como indicavam os rostos hostis. Mas apenas por um instante. Os sorrisos e a boa vontade voltaram a prevalecer.

Acho que vou tomar um banho e tirar um cochilo disse Bert, ao final das despedidas. Estou exausto.

Também vou tomar um banho murmurou Faye, insinuante, olhando para Roberta, que esfregaria suas costas e a enxugaria depois.

Adeus para vocês todos! gritaram Mary e Reggie, embarcando na frente do caminhão com muitos sorrisos e acenos e partindo, deixando para trás a cena tranqüilizadora do grupo acenando do jardim.

E claro que, antes de irem embora, eles haviam pago a quan­tia exata que deviam, até o último penny gorduroso.

Quase histéricos de riso reprimido, os outros correram pa­ra a cozinha, em busca de chá e sanduíches. Era uma hora da tarde. O momento certo. Tudo absolutamente correto.

As coisas corriam muito bem. Os eventos se sucediam de maneira favorável, encaixando-se nos devidos lugares, a sorte quase que ostensivamente do lado deles: o fato de a prefeitura ter resolvido realizar o funeral de Philip naquela manhã; o fato de Mary e Reggie terem escolhido aquele dia para se mudarem os camaradas não poderiam desejar nada melhor. E ainda ha­via o carro: alguém na outra comuna comentara ela não po­dia imaginar quão oportunamente que o homem na casa ao lado viajara em férias com a família e que seu carro, um Escort, estava estacionado junto ao meio-fio, na frente da casa, há uma semana e lá continuaria por mais uma.

Ele está mesmo pedindo que alguém o pegue sugeriraela.

É claro que o carro estava trancado, mas para Jasper era um dos seus talentos isso não constituía um obstáculo.

Tarde da noite passada, depois de voltarem do cinema e do restaurante indiano, Bert, Jasper e Jocelin saíram furtivamente da 43, foram para o metrô e seguiram até a outra comuna. Não entraram: não queriam envolver mais ninguém na operação. Cla­ro que correram o risco de os amigos voltarem de algum lugar e encontrarem-nos. Mas três estavam ausentes; haviam comen­tado que iam viajar. Para abrir o carro, ligá-lo e partir, Jasper e Bert levaram um minuto. Circularam por Pimlico e Victoria, mas não encontraram nada que os agradasse. Precisavam de um lugar seguro em que pudessem instalar os explosivos. Estavam atentos ao nível de gasolina: menos de meio tanque, e não que­riam parar num posto. Finalmente, mais longe do "local do cri­me" do que queriam, encontraram uma rua de casas geminadas; uma delas estava sendo reformada ou pelo menos tinha um car­taz de "Vende-se material de construção". Na frente de cada casa havia um jardim cheio de arbustos e um pequeno cami­nho, não muito mais que um espaço para estacionar. Os três discutiram o lugar enquanto circulavam por outras ruas. Não era o ideal, mas não descobriram nada melhor. A outra casa, geminada, presumivelmente estava ocupada; embora fossem três horas da madrugada, sempre havia a possibilidade de insones vigilantes, sem falar nos guardas fazendo ronda. Mas em breve começaria a clarear... Jocelin comentara que era uma pena que não pudessem esperar até o inverno: uma longa noite escura era justamente o que precisavam. Sofreram até um momento de de­pressão, pensando que toda a operação fora mal concebida, ou pelo menos estava sendo executada de maneira precipitada. Tu­do era tão improvisado! Mas era também essa qualidade que pa­recia ajudá-los — e que tanto os atraía, aumentando a emoção, reforçando o segredo, fazendo com que sentissem vontade de rir sem qualquer motivo específico e soltar piadinhas, quanto mais tolas melhor.

Ao final, esse ânimo triunfara e voltaram à rua, entraram no pequeno "caminho" na frente da casa vazia. Jocelin precisa­va de cerca de vinte minutos para instalar os explosivos. Bert correra para uma extremidade da rua, Jasper para a outra, a fim de vigiarem a possível aproximação de guardas. Na verdade, Joc­elin estava oculta da rua pelos arbustos, se não mesmo das jane­las superiores da casa ocupada. As janelas continuaram escuras; ela não pudera divisar ninguém lá em cima. Inserira os quatro artefatos em seus lugares, com extrema precisão. Estava atenta a qualquer sinal de Jasper ou Bert, mas não houvera nenhum. Enquanto trabalhava, sentira um desprezo bem-humorado por aqueles cidadãos negligentes, que podiam ser enganados com tan­ta facilidade.

Ao cabo de vinte minutos, Jasper e Bert voltaram; ela não os ouvira, embora tivessem a respiração ruidosa da corrida. Um momento depois o carro deixara o abrigo e tornara a circular pelas ruas. Não havia muito tráfego. O céu começara a clarear. Parecia não haver um lugar para estacionar em parte alguma.

Todas as beiras de calçada estavam ocupadas por incontáveis car­ros, e outra vez eles tiveram de andar mais do que desejavam. O marcador de gasolina indicava que estavam com menos de meio tanque. Como poderiam saber se estava funcionando? Bert comentara que certa ocasião tivera por meses um carro que in­dicava o tanque quase cheio, quando na verdade estava quase vazio. Finalmente encontraram uma vaga, outra vez mais dis­tante do que esperavam. Estacionaram, saltaram e pararam por alguns segundos, olhando para o carro que era, potencialmen­te, uma bomba.

Foram para um café que ficava aberto a noite inteira e partilharam uma refeição, embora a prudência dissesse que não de­viam fazer isso: formavam um grupo ruidoso, que chamava atenção.

Ora, que se dane! exclamara Jocelin.

Foda-se! arrematara Bert.

Foram para casa em plena luz do dia, por volta das cinco horas da manhã. Mary e Reggie não haviam se levantado, o que era a única coisa que receavam; a sorte estava ao lado deles, não podiam fazer nada errado!

Tudo isso Alice soube naquele momento, enquanto toma­vam sua sopa e comiam torradas de pão integral, porque ela não acordara até às oito horas, e a essa altura Mary e Reggie já esta­vam de pé e na cozinha.

Sentia-se como se não fosse uma verdadeira participante naquela grande operação, como se não fosse considerada uma par­ceira. Contudo, não podia dizer isso ou sequer sugerir, pois não havia nada de específico em que pudesse se basear para o pro­testo. Mas enquanto os seis encontravam-se em torno da mesa, relatando os últimos acontecimentos, Alice notou que mal a olhavam. Estavam dispensando atenção uns aos outros exata­mente de acordo com os papéis que cada um desempenhava: Faye e Jasper, Jocelin e Bert. Depois Roberta, que estava quase tão marginalizada quanto Alice.

Alice soube que Jasper é quem guiaria o carro para a posi­ção. O que a deixou apavorada. Ele não era bom motorista e tendia a entrar em pânico numa emergência. Estava convencida até aquele momento, por algum motivo, de que ela é que seria incumbida de guiar o carro. Era uma boa motorista, cautelosa e hábil. Sentiu vontade de dizer pelo menos: "Não, Jasper não deve guiar o carro; por que não Faye? por que não Roberta?" As duas eram boas motoristas. Mas sua posição na periferia dos acontecimentos parecia impedi-la de qualquer interferência.

Aparentemente, tudo fora decidido naquela manhã, enquan­to Mary e Reggie iam buscar o caminhão de mudança e ela comparecia ao funeral de Philip.

Jasper guiaria o carro. Faye estaria com ele porque foi essa a impressão de Alice assim o exigira, como um direito seu; Jocelin os acompanharia agora até o lugar em que o carro estava estacionado, numa rua transversal, armando os artefatos para explodirem no momento que seria escolhido na ocasião. Pois não podiam determinar exatamente quanto tempo levariam para chegar lá nem como estaria o tráfego. Calculavam que se­ria mais ou menos às quatro e quarenta e cinco.

Foi só então que Alice soube que as bombas detonariam por um mecanismo de tempo, não por um controle eletrônico. Ficou consternada. Todas as discussões anteriores baseavam-se na presença de Jocelin nas proximidades, podendo observar a situação na rua e na calçada e escolhendo o momento exato.

Alice perguntou, quase timidamente, com a maior dificul­dade para intervir numa animada troca de gracejos entre Faye e Jasper:

Mas se as bombas simplesmente explodirem numa hora determinada, não poderemos saber quem estará por perto, não é?

No mesmo instante os outros assumiram uma expressão so­lene e dedicada. Ela compreendeu que o pensamento estava em suas mentes, por trás de toda a exultação, mas era reprimido, mantido lá no fundo. Bert disse, mostrando uma porção de den­tes brancos:

"A moralidade deve ficar subordinada às necessidades da Revolução". V. I. Lênin.

Todos riram, e Alice percebeu, pela maneira como subitamente evitavam que seus olhos se encontrassem, que se sentiam contrafeitos.

De qualquer forma, será uma boa lição para eles comentou Faye.

Era um dos seus comentários típicos, que todos habitual­mente ignoravam ou como Roberta fez agora procuravam atenuar.

Faye querida, não é um comentário dos mais simpáticos.

Faye deu uma risadinha e sacudiu a cabeça. Os olhos brilhavam, as faces estavam coradas. Alice insistiu, obstinada:

Não acho certo. Não foi o que combinamos.

Jocelin respondeu, compenetrada, levando-a a sério:

Você não estava aqui quando discutimos o assunto. O problema é que esses controles eletrônicos não são absolutamente confiáveis. Ou pelo menos não com o material de que dispo­nho. Claro que existem alguns muito bons, mas não se esqueça de que tive de trabalhar apenas com as coisas que conseguimos obter.

Então, por que não marcamos para detonar no meio da noite, quando não haverá ninguém por perto?

Pensamos nisso. Mas há a questão de causar o maior impacto possível. Umas poucas vidraças quebradas durante a ma­drugada... e daí? Desse jeito, porém, estará na primeira página de todos os jornais de amanhã e nos noticiários da TV esta noite.

Depois de comentar ou proclamar isso, Jocelin desviou os olhos de Alice; e nenhum deles tornou a fitá-la. Ela compreen­deu nesse momento que se sentia excluída não apenas pela au­sência na discussão crucial, mas também porque a discussão crucial ocorrera "às suas costas" — como pensava —, a fim de que não estivesse ali para dizer coisas que os outros não que­riam ouvir. Eles sabiam — sentiam, se é que não pensavam — que ela protestaria, diria que não, que estava errado, obrigando-os a escutar, a refletir. Por isso, sem que ninguém assim planejasse objetivamente, os cinco discutiram durante sua ausência.

Onde estava Caroline?

Alice descobriu que Caroline, ao saber que as bombas se­riam detonadas num momento determinado, independentemen­te das possíveis mortes, declarara que não queria ter nada a ver com aquilo.

Foi Jocelin quem contou isso a Alice, em voz neutra, mas fria de desaprovação. Fria, pensou Alice, por causa da necessi­dade de pôr uma distância entre ela e o que sentira no momen­to em que Caroline fizera sua declaração. Claro que Alice sabia o que acontecera; podia reconstituir o momento, pelo que ha­via no rosto de todos agora. O plano quase fora abandonado por causa da determinação de Caroline. Agora, ao recordarem a discussão — que era o que todos faziam —, os rostos tinham expressões idênticas de fria inquietação.

Se eu estivesse presente, pensou Alice, poderia apoiar Caroline; e nós duas poderíamos virar as coisas para o outro lado.

Alice lançou um olhar furtivo — não se atreveu a mais do que isso — para Bert, que sabia que provavelmente ela o fitaria! Era uma repetição de Pat! Pat dissera que Bert era um amador na reunião em que se tomara a decisão de fazer uma "aliança com o IRA", quando uma porção de moradores da casa preferira ir embora. Depois disso, ela ainda o chamara algumas vezes, afetuosamente, de "amador". Era provável que Caroline também o tivesse classificado assim.

Alice pensou: Pat, Jim, Philip e agora Caroline. Ela era mi­nha amiga, uma amiga de verdade.

Eles já estavam conversando de novo. As duas horas, Jocelin, Faye e Jasper seguiriam de metrô até o carro. Não havia motivo para supor que o carro não estaria exatamente onde fo­ra deixado naquela madrugada. Jocelin levaria cerca de cinco minutos para armar os explosivos. Faye a ajudaria, com seus dedos rápidos e ágeis. Ninguém prestaria atenção a três pessoas com o capô de um carro levantado por um momento, efetuan­do pequenos ajustamentos em alguma coisa, arrumando o con­teúdo de uma mala, verificando um estepe.

Jocelin estava dizendo que não havia a menor necessidade de que os outros estivessem no local. Não havia nada para fazerem. Seria redundante. Aumentaria o perigo. Sugeriu que Bert, Roberta e Alice ficassem na casa e pusessem a chaleira no fogo às cinco e meia. E bem que Alice podia preparar um pouco de sua sopa: todos estariam famintos quando voltassem.

Nada disso interveio Faye sorrindo, todos os dentes pequenos e pontiagudos à mostra. Absolutamente não.

Charmosa e impertinente, mimada e caprichosa, ela revi­rou os olhos para Roberta, tornou a fitar os outros e acrescentou:

Preciso ter minha Roberta. De qualquer maneira.

Mas é claro! concordou Bert, efusivo. E Alice e eu também estaremos lá. Sem discussão. Proposta aprovada. E pon­to final.

Risos, até mesmo de Alice, que se sentia outra vez parte da família.

Duas horas da tarde. Jocelin, Faye e Jasper partiram.

Jasper não se lembrou de oferecer um sorriso ou um olhar a Alice. Estava absorvido numa conversa animada que parecia um flerte. . . com Faye. Todos riam muito alto ao saírem.

Roberta continuou sentada à mesa, encolhida, silenciosa, apática. Podia-se perceber agora quanto ela detestava a situação, não queria que Faye corresse aquele perigo.

Depois que os três partiram, os outros três ficaram nervo­sos, calados, distantes de qualquer exultação. Tinham de esperar.

Faye, Jasper e Jocelin levariam dez minutos para chegar à estação do metrô. Depois, provavelmente meia hora, dependen­do do movimento dos trens, para alcançar o carro. Cerca de quarenta e cinco minutos, pois haveria necessidade de duas bal­deações. Dez minutos da outra estação do metrô ao carro. Era difícil calcular quanto tempo exatamente levariam para guiar o carro até o local do crime. A hora de maior movimento ain­da não teria começado. Mas talvez houvesse um tráfego inten­so; quem podia saber? O percurso poderia ser coberto em quinze minutos ou, se tivessem azar, quarenta. Em algum momento entre três e meia e quatro horas, Jasper e Faye não Jocelin, ela teria se retirado antes disso estariam procurando uma va­ga para estacionar do lado de fora do grande hotel. Poderiam ficar dando voltas por algum tempo. Havia também o proble­ma dos guardas de trânsito. Se aparecessem enquanto Jasper e Faye ainda procurassem uma vaga, eles teriam de se afastar por alguns minutos, só retornando depois que os guardas tivessem ido embora. Se os guardas surgissem depois que o carro estives­se estacionado, não havia problema; o pior que podia aconte­cer dissera Faye seria eles estarem muito perto quando o carro explodisse.

As bombas estariam armadas para detonarem quando faltassem quinze minutos para as cinco horas; mais tarde, só se o tráfego parecesse particularmente ruim.

Não havia sentido em Alice, Bert e Roberta partirem antes das três horas, eles pensaram, mas às duas e meia não podiam mais suportar a espera por um momento sequer. No instante em que se levantaram, houve uma batida na porta da frente. Uma batida civilizada, não da polícia.

Podem deixar que eu atendo murmurou Alice. De­ve ser Felicity, trazendo-me alguma coisa de Philip.

Uma mesinha marchetada feita por Philip ficara na casa de Felicity e ela prometera que a traria, para Alice. Felicity fazia isso, como Alice sabia, em parte pela necessidade de se livrar de tudo o que lhe lembrasse Philip e das complexas emoções que ele evocava, mas também por um impulso generoso: achava que Philip gostaria que a mesinha ficasse com Alice.

A porta estava um homem que Alice não conhecia. Espe­rando apenas Felicity, uma mesinha e um breve momento de emoção, literalmente doente de excitamento e apreensão, Alice não estava preparada para convidá-lo a entrar, para confrontá- lo ou para qualquer situação que estivesse trazendo.

A senhorita Mellings está? perguntou o homem.

Automaticamente, Alice efetuou as avaliações habituais desua voz: classe média, britânica, provavelmente um servidor ci­vil ou qualquer coisa assim.

Sou Alice Mellings, mas peço que me desculpe, pois es­tou com muita pressa.

Eu agradeceria se me concedesse apenas um momento.

Oh, Deus, pensou Alice, mas que merda, temos de partir; pois agora que fora tomada a decisão de ir logo, ela achava que não se podia perder nem mais um minuto.

Não pode voltar mais tarde?

Claro que posso, e voltarei. Mas, enquanto isso, poderia me ajudar com algumas informações.

Alice pensou que a visita estava relacionada com a decisão da prefeitura de reformar as duas casas; talvez o homem fosse um emissário. Mas ela não estava realmente pensando nisso. Ainda lhe passou pela cabeça um lampejo de reconhecimento ou de advertência de que a atitude daquele homem, seu estilo, a maneira de falar, não condiziam com as circunstâncias da pre­feitura, enquadrando-se em outra coisa completamente diferente.

O que deseja saber? — indagou, apressada.

Tem alguma informação sobre um homem chamado Andrew Connors?

Alice ficou atordoada, uma risada desvairada e inoportuna ameaçando dominá-la. E disse, com um súbito desdém:

Por acaso é mais um falso americano? Não, claro que não. Sotaque britânico. Mas do que se pode ter certeza por um sotaque?

O visitante ficou surpreso, o que nada tinha de surpreen­dente, e demorou um pouco para responder. Finalmente disse, com uma autoridade suave que não era muito diferente da que Gordon O'Leary demonstrara:

Concordo, senhorita Mellings, que nem sempre os sota­ques são o que parecem. Mas estou aqui para falar de Andrew Connors... preciso de algumas informações a seu respeito.

Em seu estado normal, a essa altura Alice diria "E quem é você?" — ou algo parecido —, mas nesse momento estava ansiosa para que o homem fosse embora, a fim de que ela e os outros pudessem partir. Seu estado era febril, de fúria, impaciência.

Que tipo de informação? Não sei muita coisa. De qual­quer forma, por que não pergunta a Gordon 0'Leary? Ele pa­rece saber de tudo.

Uma pausa. Se estivesse atenta, Alice talvez não gostasse da maneira como o homem a focalizou, estreitando os olhos, numa inspeção meticulosa e competente.

Talvez eu faça isso mesmo.

Ele poderá lhe contar tudo — insistiu Alice. — E agora peço que me desculpe, mas tenho de ir...

Ela já ia fechar a porta na cara do homem quando a pessoa hospitaleira que a habitava, que não suportava desapontar ou parecer hostil, levou-a a acrescentar, de maneira desastrosa:

E quando o encontrar, avise a ele que se mais alguma carga de matériel ou qualquer outra coisa for enviada para cá, nós vamos jogar na rua e deixar lá.

Ela falou jovialmente, até sorrindo, como se dissesse: "Quan­do o encontrar, transmita meus cumprimentos". E começou a se virar para fechar a porta e voltar.

Só mais um momento, senhorita Mellings.

Oh, Deus, por favor! Tenho de ir!

Está certo. Já disse isso. Mas há uma coisa que preciso discutir com você.

Então vamos discutir, mas não agora. Além do mais, já disse tudo o que era necessário. E repito: não vamos aceitar or­dens dos russos ou de quaisquer outros. Parece que não está entendendo isso, camarada... Ainda não me disse seu nome.

Meu nome é Peter Cecil.

Peter Cecil? Alice poderia ter rido de novo. Seu sotaque é mesmo perfeito. Maravilhoso. Meus parabéns.

Nesse ponto, ela deu uma risadinha, infantil e divertida. Embora não o avaliasse devidamente, por causa do coração dispa­rado e da excitação excessiva, ela observou-o por tempo sufi­ciente para constatar que ele parecia de fato a essência de um inglês, combinando com o nome.

Obrigado disse ele, cordialmente. Não gostaria de almoçar comigo?

Está bem. Mas eu ia dizer o que você parece não ser ca­paz de aceitar: somos britânicos, entende? Comunistas britâni­cos. Alice hesitou e depois acrescentou, já que a situação parecia exigir um esclarecimento: Comunistas britânicos livres.

Ahn... Onde podemos nos encontrar? Amanhã?

Amanhã? Por que não? Amanhã está bem. Conhece o Taj Mahal? O restaurante na High Street?

Combinado. Amanhã, à uma da tarde. Obrigado por seu tempo, senhorita Mellings.

Não há de quê.

Alice esqueceu-o inteiramente ao correr para junto dos outros, que foram logo dizendo:

Pelo amor de Deus, Alice, não podemos mais esperar! Temos de partir imediatamente!

Faltavam vinte minutos para as três horas. Esperaram dez minutos por um trem na estação do metrô, muito mais do que calculavam. Ficaram parados na Baker Street, as portas abertas, pessoas entrando sem qualquer pressa, por mais sete minutos. Gracejaram que não se lembravam de jamais haver esperado tan­to. Em Green Park esperaram outra vez. Estavam agora frené­ticos de suspense; sentiam que eram bombas, que podiam ex­plodir a qualquer momento. Saindo do metrô às três e meia, Bert desatou a correr e as duas foram atrás, a fim de fazê-lo se controlar.

Fique calmo — disse-lhe Roberta, irritada. — Lembre-se de que temos de passar despercebidos.

Quem olhasse para Roberta não poderia deixar de notá-la.

Estava muito pálida, suando, o rosto trágico de tanta seriedade.

Foram andando depressa em torno do hotel, passando por outras pessoas na calçada. Os três não olhavam uns para os outros nem para as possíveis vítimas. Alice pensava: Mas pessoas podem ser mortas...Oh, não, isso não podia acontecer! Den­tro do seu peito, no entanto, uma pressão aumentava, doloro­sa, como um grito mas ela não podia permitir que fosse ouvida. Era como o uivo de um animal em desespero, mas não podia alcançá-lo e confortá-lo.

O que os outros pensavam? Roberta... ora, era fácil, ela pensava apenas em Faye. E Bert? Ele parecia não estar muito diferente de sua personalidade afável, mas devia especular, como Alice: Será que essa garota vai morrer? Ou essa velha? Tal­vez essa ou aquela pessoa?

Não havia sinal de Jasper e Faye. Depois de contornarem o hotel duas vezes, Roberta disse:

Não adianta continuar. E não devemos ficar juntos.

Sem sequer olhar para os outros, ela afastou-se sozinha efoi parar na calçada oposta, de onde podia ver a lateral do hotel à sua frente, e à esquerda, a rua pela qual Jasper e Faye deveriam vir.

Bert também se afastou, sem olhar para Alice, e foi para a outra calçada, na frente do hotel. Alice, logicamente, poderia se postar no lado em que Roberta não estava, mas decidiu que a frente era melhor, e foi ficar perto de Bert.

Faltavam quinze minutos para as quatro horas.

Nenhum sinal do carro.

Um ônibus passou, lentamente. Jocelin sentada embaixo, na janela. Olhou para eles e mexeu a boca para informá-los: "Quinze... para... as... cinco". Depois, por um breve ins­tante, ela levantou a mão esquerda, os cinco dedos bem aber­tos, balançou-a três vezes para a frente e para trás, tornou a mexer a boca para informar "Quinze... para... as... cin­co", e passou a olhar fixamente para a frente.

Acho que será às quatro e quarenta e cinco comentou Bert, jocosamente.

Quatro horas.

O grande hotel, com sua aparência sóbria e luxuosa, asso­mava maciço, pessoas entrando e saindo. Alice pensou: Talvez tenha havido algum problema e eles não virão mais. Tudo vai acabar bem.

Devemos avisar a Roberta que será às quatro e quarenta e cinco? indagou Bert. E ele próprio se encarregou de responder: Não, não podemos chamar atenção.

Mas acabou mudando de idéia, atravessou a rua correndo, esgueirando-se por entre os carros. Roberta estava parada na bei­ra da calçada, absolutamente imóvel. Alice observou Bert abordá-la, pegá-la pelo braço, aparentemente levando-a a procurar uma posição mais discreta. Roberta desvencilhou o braço e conti­nuou exatamente onde estava. Bert permaneceu a seu lado por um momento, depois voltou devagar, dessa vez esperando que o sinal de trânsito abrisse para os pedestres.

Alice pôde ver seu rosto com toda a clareza. Nunca o vira assim. E, se houvesse visto, talvez não o reconhecesse. Bert da­va uma impressão de se encontrar isolado, apartado, como se nada pudesse transpor a distância entre ele e as pessoas que pas­savam pela rua, como se fosse amaldiçoado ou desterrado. Ti­nha uma cor pálida, doentia, como um cadáver.

O uivo ou grito no peito de Alice forçou-se a sair pela boca num berro estridente. Ela se descobriu a correr para longe de Bert e entrar no hotel. Procurava por um telefone. Duas cabines, uma vazia. Pensou: Oh, Deus, se a lista telefônica que pre­ciso não estiver aqui! Mas estava; encontrou o número dos samaritanos e discou, enquanto gritinhos de choro afloravam por sua boca, incontroláveis, como se o animal alojado lá dentro estivesse sendo espancado.

A voz afável e neutra do samaritano atendeu.

Depressa, depressa, uma bomba vai explodir! Venham depressa! Está num carro!

E onde está o carro? perguntou o samaritano, sem se perturbar. Alice não respondeu logo e ele acrescentou: Precisa nos dizer. Não podemos mandar alguém aí se não nos der essa informação.

Alice pensou: Mas o carro ainda nem chegou aqui! Como posso saber se chegará? Depois pensou nas pessoas, em todas aquelas pobres pessoas, e murmurou, desconsolada:

Talvez já seja tarde demais.

Mas onde está? Pode nos dizer o local?

Alice não foi capaz de fornecer o endereço.

Está em Knightsbridge. — Já ia desligar quando teve uma idéia e acrescentou: — E o IRA. Liberdade para a Irlanda! Por uma Irlanda unida e paz para toda a humanidade!

Ela desligou, começou a correr de volta, forçou-se a andar. Encaminhou-se direto para Bert, a fim de que ele pudesse virar o rosto em sua direção, permitindo-lhe descobrir que estava nor­mal. Mas quando ele a fitou, Alice constatou que era um rosto morto e horrível; depois Bert piscou-lhe lentamente, o que de­salojou a visão dele como um cadáver. Voltou a ser o Bert de sempre, um pouco pálido e tenso, mas só isso.

Não é tarde demais para evitar, pensou Alice. E tudo um engano. Devemos planejar com mais cuidado. Talvez Faye e Jas- per tenham decidido cancelar a operação. Desarmaram as bom­bas. E por isso que estão atrasados.

Quatro e quinze.

Em todo aquele tempo, houvera apenas três vagas disponí­veis para estacionamento.

A seguir Alice notou que Bert olhava para o outro lado, fixamente, imóvel. Devia ser o carro. Um Escort branco passou por Bert e depois por Alice, com Jasper e Faye na frente, Faye ao volante. Pareciam exaltados, mas também apavorados. O pára-lama traseiro no lado próximo da calçada estava amas­sado. Fora por isso que haviam se atrasado. Ela se aproximou de Bert, que concordou com seu diagnóstico.

Não havia vaga para estacionar em parte alguma. O carro, confinado pelo tráfego, virou à direita lentamente, arrastou-se pela rua transversal, onde os veículos se encontravam quase pa­rados, desapareceu por algum tempo no outro lado, retornou completando a volta, passou por Roberta, que foi incapaz de se controlar e levantou os braços para Faye, mas tornou a baixá-los, devagar, presumivelmente porque o casal no carro não lhe deu a menor atenção. A possibilidade de eles terem pelo menos esse bom senso confortou Alice. O Escort branco passou outra vez por Bert e Alice. Eram quatro e vinte e cinco. Não havia guardas de trânsito, o que já era alguma coisa.

Não haviam discutido o que fazer se não houvesse vaga pa­ra estacionar. Enquanto o tempo escoava, será que os dois conseguiriam encontrar uma vaga e correr a tempo?

Dessa vez Faye não entrou pela rua ao lado do hotel, mas seguiu por mais um quarteirão e fez a volta. Inexplicavelmente. Enquanto o Escort branco estava fora de vista, dois carros par­tiram da rua transversal, deixando uma vaga grande. Faye a per­ceberia, quando completasse a volta?

Quando Faye reapareceu, já passava de quatro e meia.

A essa altura Alice estava doente de tensão, de angústia. Sa­bia que fungava sem parar, mas não podia se conter.

Faye passava outra vez por Roberta, que agora não se me­xeu, permanecendo completamente imóvel. Desespero. As pes­soas reparavam em sua presença.

Quando o carro passava por Bert, ele fez um sinal, apon­tando para a vaga. Faye e Jasper pareciam dois blocos de cera com os olhos fixos. A princípio não olharam para Bert, depois Jasper fitou-o e puxou o braço de Faye.

Bem a tempo, Faye virou na rua transversal.

Nesse instante um carro entrou na vaga, vindo pelo outro lado, mas deixou bastante espaço para que Faye estacionasse. Já havia carros por trás do Escort branco. A fim de estacionar, ela tinha de paralisar o tráfego, esperando por uma brecha para atravessar até o outro lado da rua. O carro, com outros buzi­nando atrás, forçou passagem pelo fluxo de tráfego, sob um co­ro de buzinas e gritos. Faye entrou com o carro na vaga em diagonal e parecia prestes a deixá-lo assim, pois abriu a porta. Mas tornou a fechá-la e subiu abruptamente com o Escort para a calçada. Uma pausa longa, marcha a ré, o carro já estava mais bem estacionado, mas não muito.

Os outros carros ainda buzinavam.

Roberta, vendo as poses rígidas e atentas de Bert e Alice, observando Faye estacionar, atravessou a rua apressada para fi­car junto deles. Alheios a quaisquer decisões anteriores de não ficarem juntos para não chamarem atenção, os três formavam um grupo compacto, olhando para o carro delinqüente. Ago­ra, no entanto, podia-se dizer que eram pessoas condenando um péssimo estacionamento.

— Pelo amor de Deus, saiam logo! — balbuciou Roberta, a voz um tanto alta, áspera, angustiada. — Depressa!

Jasper saltou, abrindo a porta contra o fluxo de tráfego e inclinando-se a seguir para olhar para dentro do carro e para Faye.

Pelo amor de Deus! — suplicou Roberta.

Jasper empertigou-se, fechou a porta e foi andando pelo la­do do carro, tencionando contorná-lo, ir para a calçada e abrir a porta para Faye. Pelo menos era o que parecia para os três que observavam. Pois não havia motivo, a não ser que a porta estivesse emperrada, para que Faye não a abrisse e saísse também, o mais depressa possível. O tempo estava se esgotando. Faltavam cinco minutos. Mas o tempo já se esgotara, pois nesse momento houve a explosão, e parecia que as janelas do mundo inteiro estavam se despedaçando, enquanto o carro se fragmen­tava todo.

Faye, Faye — soluçou Roberta, enquanto corria pela rua, sem olhar para os carros.

Jasper! — choramingou Alice, correndo atrás.

Por todo um lado do hotel a cena era de desastre: corpos caídos na calçada, alguns imóveis, alguns fazendo um grande es­forço para sentar ou levantar; fragmentos de metal, cacos de vi­dro, bolsas, reboco, sangue.

Quando Alice chegou ao local, Jasper não estava lá. Depois ela o viu, correndo para o outro lado da rua, as mãos na cabeça. Todo ensangüentado.

Idiota, pensou Alice. Não fuja, é muito melhor esperar aqui, há uma porção de pessoas feridas; você seria apenas mais um dos feridos.

Roberta estava parada entre os corpos, olhando fixamente para os destroços do carro, que parecia ter arriado sobre si mes­mo: um emaranhado de metal. Gemendo, Roberta virou-se e, inclinando-se, começou a espiar o rosto dos feridos e — como Alice acabara de compreender — dos mortos na calçada.

Subitamente Roberta deu um grito e sentou-se no meio-fio, aninhando uma massa sangrenta que, raciocinou Alice, só podia ser Faye. Isso mesmo, ela podia divisar um braço, branco, bonito, intacto, com uma porção de pulseiras coloridas no pu­nho. Alice aproximou-se de Roberta e disse:

Pare com isso. Não pode fazer mais nada agora e sabe disso. Temos de sair daqui.

Roberta fixou os olhos em Alice, sem vê-la ou a qualquer outra coisa, depois voltou a contemplar a massa vermelha. Cho­rava, de uma maneira seca, ofegante, frenética.

Roberta — insistiu Alice, conseguindo até exibir um sor­riso amistoso e persuasivo —, levante-se, por favor.

Nesse momento, naquele cenário de desordem, de destrui­ção, que permanecera mais ou menos o mesmo durante os últimos cinco minutos, desde a explosão, irrompeu a Sociedade, irromperam a Lei e a Ordem, sob a forma de sirenes estridentes de ambulâncias e carros de polícia, que subitamente estavam por toda parte, centenas de guardas, ao que parecia. As ambu­lâncias pararam com a traseira viradas para a calçada, iniciando o trabalho árduo e cuidadoso de recolher os feridos e os cadá­veres da calçada. Mas a polícia se encontrava em estado de pâni­co, descontrolada, os guardas correndo de um lado para outro, gritando ordens, empurrando os curiosos, que a essa altura já haviam aparecido, como não podia deixar de ser, aumentando a confusão geral.

Alice disse ao homem da ambulância que se debruçou so­bre Roberta:

Acho que ela não está ferida. Mas ela... —por algum motivo, Alice não foi capaz de usar o nome de Faye para se referir àquela massa de carne e sangue ela estava bem no ca­minho da explosão.

E onde você estava? indagou o homem da ambulân­cia, ajudando gentilmente a pobre Roberta a se levantar.

Estava ali, naquela calçada respondeu Alice, dizendo a verdade. Mas não me machuquei.

A essa altura havia dois homens agachados ao lado de Faye, enquanto Alice e Roberta estavam de pé. Alice segurava Roberta, a quem disse, suavemente:

Ela está morta.

Sei disso disse Roberta, em voz normal.

A essa altura um guarda se aproximou e gritou:

O que estão fazendo aqui? Estão feridas? Então tratem de se afastar!

Alice passou o braço por Roberta e levou-a para longe. Não queria que o guarda pensasse um pouco e começasse a interrogar Roberta, que numa inspeção informal não parecia anormal, embora estivesse encharcada de sangue da cintura para baixo.

Ela não pensara no que faria com Roberta, ensangüentada e naquele estado, quando se afastasse da polícia e da multidão. Foram detidas por outro guarda, mais controlado, que disse que Roberta parecia precisar de cuidados médicos.

Ela se encontra em estado de choque explicou Alice.

Pois então leve-a para a ambulância ordenou o guar­da, virando-se para ajudar os companheiros a afastarem os curiosos.

Não havia nada a fazer. Alice foi com Roberta na ambu­lância, junto com dez outras pessoas, todas em estado de choque ou ligeiramente feridas. Os feridos mais graves estavam sendo levados para outras ambulâncias.

A delas foi uma das primeiras a partir. Alice e Roberta fica­ram em silêncio, escutando as pessoas que choravam, se queixa­vam ou contavam muito excitadas como passavam pacificamente pela rua ou entravam e saíam do hotel e de repente...

Rostos e braços cortados, possíveis fraturas, equimoses. Uma mulher tivera as roupas rasgadas pela explosão e estava envolta por um cobertor. Outra fora arremessada por uma janela que no momento estava se espatifando. Tinha uma porção de cor­tes pequenos e profundos e parecia ser a que estava em piores condições.

Chegaram ao hospital em poucos minutos.

Roberta foi examinada e declarada ilesa.

Alice explicou ao policial simpático que as duas estavam entrando no hotel quando o acidente acontecera. Depois, pega­ram um táxi e foram para casa. O motorista comentou que fora uma coisa chocante; provavelmente os árabes, de novo; não ti­nham o senso de como a vida era sagrada, não como os ociden­tais; se dependesse dele, os árabes não teriam mais permissão para vir à Inglaterra.

Roberta e Alice não disseram nada.

Eram sete horas quando chegaram em casa. Bert estava na cozinha, cuidando de Jasper, que tinha muitos cortes no rosto e cabeça, mas afora isso estava bem. Bert disse que os talhos pre­cisavam de pontos; alguns eram bem profundos. Jasper negou. E estava certo. Devia ter ficado, em vez de fugir, argumentou Jocelin; podia inventar alguma história e ser cuidado com as ou­tras vítimas no hospital. Agora, ele não devia de jeito nenhum ir a um hospital ou sequer procurar um médico. Mas uma das mulheres na comuna de South London fora enfermeira; não ha­veria problemas se o levassem até lá.

— Não acho certo — insistiu Jasper. — Quanto menos pes­soas envolvidas, melhor.

Alice achou que essa posição era a mais sensata e tentou examinar os cortes. Jasper repeliu-a. Mas não pareciam muito gra­ves, na avaliação de Alice; talvez nem deixassem cicatrizes. E sempre havia a cirurgia plástica.

Os cinco finalmente sentaram-se ao redor da mesa.

Jasper contou, de maneira objetiva e formal, como calcula­ra mal uma distância ao deixar a rua em que o carro estava, e batera no pára-lama dianteiro de um carro estacionado. Teria ido embora, mas de repente havia um carro imediatamente à sua frente, bloqueando a passagem, e um homem que testemu­nhara a batida de uma janela do segundo andar descera corren­do para anunciar que Jasper não podia escapar impune. Jasper afirmara que tal idéia não lhe passara pela cabeça. O homem declarara que ele mentia. Travaram uma pequena discussão, antes de chegarem ao ponto de trocar as seguradoras: Jasper, é claro, dissera que informaria o endereço da sua depois. Descobriram em seguida que o pára-lama traseiro amassado do Escort bran­co estava travando a roda, e ele teve de usar uma chave de roda para afastá-lo. O homem ficara parado ao lado, como se fossem criminosos que deviam ser vigiados. A fim de alcançar o amas­sado, Jasper tivera que se deitar na rua e bater por baixo. Era difícil e demorara, estavam retendo o tráfego.

Quando finalmente tornaram a partir, estavam tão atrasa­dos que até pensaram em cancelar toda a operação. Faye pode­ria facilmente desarmar as bombas, mas o problema era que, àquela altura, teria de trabalhar à vista de todas as pessoas nos outros carros e passando pelas calçadas. Além do mais, alegara Faye, fazer ou morrer; ela queria ir até o fim. Seria lamentável desistir depois de tanto trabalho.

Quando Faye aparecera, na segunda vez, fora porque não encontrara nenhuma vaga para estacionar. Já haviam decidido parar o carro em qualquer lugar possível, a fim de que Faye pu­desse desarmar as bombas, independentemente de quem estivesse olhando. A essa altura, faltavam apenas doze minutos. Mas não havia vaga alguma na rua.

Então não há mais nada a fazer — dissera Faye, bravamente.

Ela tentara guiar mais depressa, mas estava contida pelo tráfego.

E quando Jasper saltara, mas Faye não, fora porque a porta de Faye estava emperrada? Ele dera a volta para ajudá-la?

A indagação era de Roberta, e o tom, acusador.

Jasper hesitou. Alice sabia que isso acontecia porque ele tentava pensar numa maneira de não dizer algo. Quando ficava as­sim, muito pálido mas luminoso, com uma expressão sincera, sofredora e desamparada, significava que ia mentir. E Jasper co­meçou gaguejando, controlou-se e disse:

Quando entrou na vaga, Faye avançou muito depressa para a calçada e freou. Não estava com o cinto de segurança. Nenhum de nós dois estava, entende?

Claro que não — respondeu Roberta bruscamente.

Ela foi jogada para a frente e bateu com a barriga no volante. Ficou sem fôlego, entende?

Ele falava gentilmente para Roberta, enquanto Alice pen­sava: Jasper é gentil, muito gentil, não queria contar a verdade a Roberta...

E Roberta olhava fixamente para Jasper, a boca entreaber­ta, a respiração ofegante. Todos sabiam que ela pensava que sua Faye morrera por causa de alguma insignificância, algo ridículo; pelo resto de sua vida Roberta pensaria, incrédula, que Faye morrera porque guiava muito depressa e batera com força ex­cessiva numa calçada.

Percebi que ela não podia se mexer — explicou Jasper.

Engrenei a marcha a ré... estendi o pé por cima e consegui. E depois disse que ela tinha de saltar depressa. Mas Faye conti­nuou imóvel. Acho que ela estava se sentindo muito mal para se mexer. Saltei do carro para dar a volta e tirá-la pelo outro lado. E foi então que a bomba explodiu.

Cinco minutos antes do prazo previsto — disse Rober­ta, dessa vez acusando Jocelin. Que, como Jasper, manteve-se em silêncio, hesitante. Havia alguma coisa que ela não queria dizer. Roberta prontamente indagou:

Quem marcou o tempo? Faye?

Isso mesmo.

Roberta sacudiu a cabeça, como se dissesse Não, não, não - a tudo —, mas depois mergulhou num silêncio opressivo, dizendo sim ao chá, sim ao açúcar nele, sim a um biscoito. Porém ela não comeu nem bebeu.

Todos sabiam que ela sairia em algum momento daquele estado passivo.

Jasper começava a sentir dores intensas. Bert subiu corren­do, trouxe analgésicos para Jasper, sedativos para Roberta e um rádio.

Ficaram escutando o noticiário:

"Cinco pessoas morreram e vinte e três ficaram feridas, algumas gravemente, esta tarde, quando um carro explodiu no lado de fora do Hotel Kubla Khan, quebrando todas as vidraças daque­le lado e avariando diversos carros estacionados. Esse crime mons­truoso e desumano demonstra mais uma vez a total falta de senti­mentos do IRA, que assumiu a responsabilidade pelo atentado".

Mas que coisa incrível! — exclamou Jocelin. — Que absurdo!

É mesmo — concordou Alice, sem relacionar seu telefonema com aquela informação.

Depois de alguns minutos escutando a indignação e frustra­ção dos outros, ela finalmente estabeleceu a ligação e compreendeu que nunca poderia lhes contar o que fizera. Jamais, pois perderia para sempre a confiança de todos.

E se Bert se lembrasse de que ela deixara a calçada a seu la­do por um prazo que devia ter sido no mínimo de cinco minutos?

Mas parecia que ele não se lembrava.

Caroline voltou em torno das dez horas. Mostrou-se arre­dia, até mesmo fria. Disse que não se sentaria com eles; estava cansada e queria dormir.

Ouvira o noticiário, declarou, quando Jasper parecia pres­tes a iniciar o relato.

Caroline fez um café, bebeu-o de pé, sem olhar para os outros.

Onde está Faye? — perguntou ela, e todos compreende­ram que não podia mesmo saber.

Faye morreu — respondeu Roberta, desatando a chorar.

A princípio foi um choro baixinho, desolado, que foi se tornando mais ruidoso, entremeado de gemidos.

Podia acontecer — comentou Bert, bruscamente.

Quer dizer que ela estava no carro? — indagou Caro­line, sem querer parecer interessada.

Roberta começou a uivar, um som igual ao que Alice pare­cia carregar no peito: um som terrível, lúgubre.

Verificaram se as janelas estavam trancadas. Deram outro sedativo a Roberta, e Jocelin e Alice ajudaram-na a subir. Ela estava pesada, quase inerte. Tiveram de arrastá-la, sustentá-la, até mesmo ordenar que mexesse as pernas. Alice entrou primeiro no quarto para se certificar de que as janelas estavam trancadas. Tarde demais, quando Roberta já se encontrava deitada na pi­lha aconchegante de coisas estampadas e almofadas que parti­lhara com Faye, elas se lembraram de que outro quarto seria melhor. Deixaram-na ali mesmo, torcendo para que o sono si­lenciasse em breve aquele choro horrível.

Quando as duas voltaram à cozinha, Bert e Jasper continuavam à mesa. Caroline sentara-se no peitoril da janela, mantendo-se a distância dos outros. Ficaram em silêncio, tentando não se deixar afetar pelo barulho terrível por cima de suas cabeças. Ro­berta uivava; não parecia humana. Podia-se acreditar que havia lá em cima um animal ferido, agonizante.

Todos estavam pálidos e tensos. A testa de Bert exibia go­tas de suor. No rosto de Jasper havia um sorriso frio. Caroline parecia estar passando mal. Jocelin era a menos transtornada.

Bert não parava de lançar olhares suplicantes para Caro­line, que se recusava a fitá-lo. Subitamente, ele tirou do bolso da túnica, onde ficara sobre seu coração, um papel muito dobrado, onde estavam escritas algumas palavras. Todos sabiam quais eram as palavras, pois Bert já as lera, mais de uma vez. Agora, depois de fitá-los, um a um, cuidadosamente, para lhes chamar a atenção mas nem assim Caroline reagiu —, ele leu:

"A lei não deve abolir o terror; prometer isso seria ilu­são ou impostura; deve ser consolidada e legalizada em princí­pio, claramente, sem evasivas ou enfeites. O parágrafo sobre o terror deve ser formulado da maneira mais ampla possível, já que somente a noção revolucionária de justiça e a consciência revolucionária podem determinar as condições de sua aplicação na prática".

Silêncio. Os outros não olhavam para Bert.

Lênin. Uma pausa, e ele repetiu, confiante: Lênin.

Alice observara-o enquanto ele lia, interessada em verificarse a visão que tivera de Bert diante do hotel poderia ressurgir o Bert com aparência de cadáver. Mas, ao contrário, a leitura o fortaleceu e ele sorriu enquanto lia, os dentes brancos aparecendo entre saudáveis lábios vermelhos.

Obrigada murmurou Jocelin, como que por uma ques­tão de protocolo, mas prestando atenção a Roberta. Acendeu um cigarro, as mãos trêmulas. Vendo que todos notavam isso, ela acrescentou: — Reação, mais nada.

Jasper continuava a sorrir. Era como se escutasse uma mú­sica distante. Alice sabia que ele controlava a necessidade de vomitar. Pensou que Jasper parecia um soldado ferido, com suas ataduras ensangüentadas. Caroline saiu do peitoril da janela e disse:

O que o Código Penal da Rússia tem a ver conosco? Ou Lênin, diga-se de passagem acrescentou ela, desafiando-os. Tudo besteira de amador, se querem saber minha opinião.

Ela estava furiosa e, depois de uma pausa, comunicou a Alice:

Tenho um recado para você. Um homem esteve aqui essa tarde. Um americano. Disse que voltará para falar com você amanhã. Por volta das quatro horas. Gordon O'Leary.

Ela não olhou para Bert, saindo da cozinha sem qualquer despedida.

Gordon O'Leary de novo comentou Jocelin, como se isso não tivesse muita importância.

Mas que atrevimento murmurou Alice mecanicamen­te, pensando que teria um dia movimentado, almoço com Pe­ter Cecil e depois Gordon O'Leary à tarde.

Ninguém disse mais nada. O silêncio foi rompido por Bert:

Também vou embora. Não adianta ficar por aqui.

Eu também vou acrescentou Jasper.

Você vai partir? perguntou Alice a Jasper, incrédula.

Combinamos que iríamos embora no momento em que a operação fosse concluída respondeu Jasper, sem fitá-la.

Alice pensou: Ele não pode estar planejando ir com Bert. Assim que Bert arrumar outra mulher, ele ficará sobrando mais uma vez.

Ela não disse nada, o que deixou Jasper inquieto. E ele indagou, truculento:

Você também vai?

Acho que não respondeu Alice, vagamente.

Mas terá de ir. Mary disse que a casa está outra vez na agenda.

Estão sempre dizendo isso.

Não seja tão estúpida insistiu Jasper. Se não for es­te mês, será no próximo ou no outro.

Até lá, continuarei aqui. E alguém tem de ficar com Roberta.

Como esse era um argumento incontestável, Jasper manteve- se em silêncio por algum tempo. Mas logo, pressionado pela intransigência de Alice, disse, espantado, escandalizado com ela:

Mas combinamos que deveríamos nos dispersar, Alice. Foi uma decisão unânime.

Ele até agarrou o pulso de Alice, no aperto firme e premen­te de sempre, inclinando-se para observar seu rosto.

O aperto indicava a ela que não ficaria sem Jasper por mui­to tempo. Alice sorriu tranqüilamente para aquele rosto, com os olhos azuis imersos nos lagos cremosos e rasos, em que sobressaíam as pequenas sardas louras.

Avise-me onde você estará e manteremos contato, Jas­per. Alguém sabe onde encontrar os parentes de Roberta? Ela deve ter uma família, não é?

Todos sabiam apenas qual era o hospital em que a mãe de Roberta estava morrendo.

Ela não vai continuar aqui comentou Jocelin.

Alice sabia que ela estava certa. Bert subiu para pegar sua mochila de lona com as roupas e alguns livros. Jasper também foi buscar seus pertences. Tinha ainda menos do que Bert.

Alice continuou sentada à mesa, apática, pensando naquela casa, naquele lar que ela criara, deserto, vazio, os operários da prefeitura entrando.

Jocelin disse que partiria pela manhã. Acrescentou que acha­va que o saco com os componentes de explosivos estaria bas­tante seguro, até que tornassem a precisar. Riu. E subiu.

Bert e Jasper se demoraram na cozinha, naquele último momento, relutando em partir. Não querendo deixá-la, ou ao con­forto que ela proporcionara a todos? Alice resolveu não pensar sobre isso. Comentou que tinha a impressão de que Roberta estava se acalmando.

Era verdade que os uivos lá em cima já não pareciam tão intensos. E logo cessaram. A casa ficou em silêncio.

Jasper inclinou-se rapidamente e deu um beijo no rosto de Alice, como num jogo de "último toque".

Até breve murmurou ele.

Jasper saiu sem olhar para verificar se Bert o seguia. Não era fácil para ele deixá-la, pensou Alice, agradecida.

Ela permaneceu sozinha na cozinha.

Tornou a escutar os noticiários. Estavam de fato obtendo uma boa cobertura; haviam deixado sua marca.

Cinco mortos. Uma garota de quinze anos se encontrava em estado desesperador, devia morrer também. Mais de vinte feridos.

O noticiário da meia-noite dedicou mais de cinco minutos ao atentado.

Alice dormiu, sentada à mesa, a cabeça nos braços.

Acordou por volta das seis horas para deparar com Rober­ta, trêmula, pálida e horrível, fazendo um chá.

Roberta disse que arrumaria suas coisas e iria embora. Vol­taria para junto da mãe. Já devia ter feito isso, é claro, mas Faye... Sua voz tremia, ela mordeu os lábios, controlou-SE tomou o chá. Subiu para buscar seus pertences, desceu com vá­rios endereços em que Alice poderia encontrá-la, escritos a lá­pis num pedaço de papel. Pelo menos Roberta não estava saindo de sua vida para sempre.

Roberta, ao contrário dos outros, possuía muitas coisas. Deixaria os móveis, mas levaria as cortinas, tapetes, colchas, tra­vesseiros, espelhos, cobertores, que estavam reunidos em duas trouxas grandes, levadas de táxi para a estação.

Alice escutou o noticiário das oito horas da manhã.

O IRA (na Irlanda) declarara que não tinha nada a ver com o atentado a bomba do dia anterior e liquidaria aqueles que cometiam tais atos em seu nome. Eles não saíam por aí assassinando pessoas inocentes.

Essa é muito boa, pensou Alice. E chegou a dar uma risada. Pelo absurdo da situação.

Mas não importava o que o IRA dizia; não lhes cabia deci­dir o que faziam os camaradas naquele país.

Alice especulou: Valeria a pena fazer uma viagem à Irlanda para explicar aos camaradas irlandeses a posição dos camaradas ingleses?

A especulação foi interrompida pela descida de Jocelin, com uma mochila e uma valise. Também tomou um chá e ouviu a informação de que Roberta já fora embora sem fazer qualquer comentário, sem sequer indagar se Roberta pedira para mante­rem o contato. Não mencionou Bert e Jasper. Sobre Caroline, disse que era uma boa camarada, mas não compreendia que era preciso fazer sacrifícios. Disse isso de pé não se sentara —, segurando a caneca de chá com as duas mãos, olhando por ci­ma, com olhos injetados. Alice pensou que parecia até que ela estivera chorando.

Jocelin foi embora, e Alice ficou sozinha na casa.

Tornou a escutar o noticiário e pensou em sair para com­prar os jornais. Mas não o fez. Deixaria para comprar quando saísse para o almoço com Peter Cecil. Peter Cecil! Os polires russos não tinham bom senso suficiente, ao escolherem um no­me tão óbvio. Era quase como uma piada, como se quisessem se mostrar. (A essa altura, lá no fundo de Alice, agitou-se uma pequena inquietação, uma dúvida, mas ela não foi capaz de relacioná-la com qualquer coisa e por isso tratou de reprimi-la.)

Ainda era muito cedo para ir ao restaurante.

Continuou sentada ali, sozinha, na casa silenciosa. Na casa traída...Deixou que a mente vagueasse de cômodo em cômodo, louvando suas realizações, como se alguém mais tivesse fei­to tudo aquilo, mas o trabalho não fora devidamente reconhe­cido, por isso agora lhe fazia justiça. A casa podia ser como um animal ferido, de cujos muitos ferimentos ela cuidara, um a um, limpando e enfaixando; agora estava bem, recuperada, ela a afa­gava, satisfeita consigo mesma e com a casa... Não totalmente saudável, é claro, mas ela não queria pensar no que acontecia nas vigas do sótão. Pobre casa, pensou Alice, transbordando de ternura. Espero que alguém venha a amá-la um dia, cuide dela.

Quando eu for embora. . . Era um absurdo continuar ali, Jasper estava certo, mas ela não partiria por enquanto, ficaria mais um pouco: sentia que podia ajeitar as paredes daquela casa, a sua casa, em torno de sua pessoa como um manto, em que se aconchegaria, em que estaria segura.

Sentia-se tão estranha, tão diferente do que realmente era! Mas era natural. Precisava sair para uma longa caminhada ou talvez bater um papo com Joan Robbins. Não, haveria comentários sobre o IRA e o atentado. As pessoas comuns não podiam compreender e não adiantava esperar que... Foi a essa altura que a ternura que abundava por ali, dentro e fora de Alice, sem saber a que lugar pertencia, apegou-se às pessoas comuns. Com lágrimas nos olhos, Alice pensou: Pobres coitados, pobres coi­tados, não podem compreender! Como se os seus braços envol­vessem todas as pobres e tolas pessoas comuns do mundo.

Então, ela começou a pensar, mas com muito cuidado, so­bre os pais. Primeiro, o pai: não, ele era horrível demais para que desperdiçasse seu tempo, nunca mais pensaria nele. A mãe... O que Dorothy diria se soubesse que a filha estivera envolvida no atentado? Não que Alice pensasse que tinha al­gum motivo concreto para lamentar; afinal, não tivera uma participação real. Suspirou, uma respiração longa e convulsi­va, como uma criancinha. Era algo que nunca poderia contar a Dorothy; saber disso fez com que se sentisse apartada da mãe, de uma forma que jamais acontecera antes: poderia lhe oferecer uma despedida final, em vez de ter apenas mais uma de suas bri­gas tolas!

Oh, não, era tudo demais, tão difícil... Alice levantou-se abruptamente; parecia que estava prestes a sair da cozinha e depois da casa, mas, parando numa pose rígida por um minuto, mais ou menos, tornou a sentar, porque lembrara de Peter Cecil. (Peter Cecil, rá, rá!) Não podia ir embora no momento, porque havia aquele almoço. Mas talvez eu lhe conte tudo, pen­sou Alice, ele é um profissional, posso falar sobre a explosão sem todos os certos e errados para atrapalhar, apenas como uma operação que foi realizada, mas de forma um pouco confusa... Engraçado, ela não pensara até aquele momento que haviam me­tido os pés pelas mãos. Mas será que fora isso mesmo? Se publi­cidade era o objetivo, então houvera sucesso! E Faye? Mas os camaradas sabiam que suas vidas corriam perigo; no momento em que assumiram aquele papel, decidiram se tornar terroris­tas... Não podia se lembrar de alguma ocasião em que dissera: "Sou uma terrorista, não me importo de morrer". (Alice sentiu- se outra vez impelida a levantar, num movimento de pânico acuado, mas tornou a sentar.) Durante todo o tempo eu espera­va que alguma coisa começasse, pensou; e em seu rosto insinuou-se um sorriso assustado, incrédulo, pela impropriedade de tudo. Então não acreditara que o atentado a bomba era sério? Não, não realmente; aceitara, embora sentisse que não era certo — e por trás havia o pensamento de que o trabalho sério (qualquer que pudesse ser) viria mais tarde. E o que eles pensariam sobre o atentado? (Eles, os russos.) Não havia necessidade de indagar o que Andrew diria. Ou Gordon. Podia imaginar perfeitamente suas expressões de condenação.

E Peter Cecil? Por alguma razão, ele era diferente. Claro que não revelaria nomes, pensou Alice. Apenas falaria com mui­to cuidado, contaria a história. Diria que fui informada por alguém que está por dentro e queria "saber sua opinião.

Nesse ponto várias advertências que seus nervos haviam registrado e guardavam, até que delas pudesse cuidar, quase aflo­raram, mas tornaram a recuar. Enquanto isso, ela pensava que Peter Cecil tinha um rosto simpático. Era verdade. (Alice o con­templava em sua imaginação, como ele lá estivera no dia ante­rior, à porta, enquanto ela se encontrava num frenesi de im­paciência para sair.) Um rosto gentil. Não como o daqueles rus­sos, muito ao contrário, ele era bastante diferente... E nesse ponto os sinais de alerta retornaram, num ímpeto, clamando por atenção. Alice não pôde mais reprimi-los.

Claro que Peter Cecil não era como os russos, porque ele não era russo. Era... era do MI-6, MI-5, XYZ ou qualquer outra daquelas siglas miseráveis, não fazia a menor diferença. O importante é que ele era inglês. Isso mesmo, inglês!

A tal pensamento, a essa palavra, um alívio suave e doce espalhou-se por Alice, tão intenso que teve de reconhecê-lo e se sentir embaraçada. Era demais! Inglês ou não, ele era o inimigo, era — pior do que os russos — era da classe superior (Cecil!),era um reacionário, era um fascista. Isto é, não exatamente um fascista, seria um exagero pensar dessa forma. Mas inglês. Um dos nossos. Pensou sobre o britanismo de Peter Ce­cil e o que significava, o que sentia a respeito: que conversar com ele seria muito diferente de falar com aqueles russos, que entendiam tudo errado, porque não sabiam como nós, ingleses, realmente somos. E qual era o problema de sentir isso? Eles (os camaradas) não haviam decidido que não teriam negócios com os russos nem com o IRA, apenas com a nossa própria gente?

Enquanto se imaginava conversando com Peter Cecil, Alice compreendeu que muitas coisas não precisariam ser ditas, como acontece entre pessoas do mesmo país, não importava quanto estivessem divididas sobre determinadas coisas. (Como política!)

Mas o que ele queria saber? Alice não podia lembrar o que fora dito no dia anterior. Sua memória era um branco, e só recordava que ele a interrogara sobre Andrew. (Andrew Connors? Por que não? Talvez ele fosse mesmo Connors.) Mas o que ela dissera? Alguma coisa demais fora dita? Não, tinha certeza de que não, tudo fora açodado, ela se encontrava num estado fe­bril, queria apenas livrar-se de Peter Cecil o mais depressa pos­sível. O matériel? Não, não era provável que ela mencionasse isso, não é? Claro que não dissera nada a respeito!

Alice continuou sentada, fria, tensa, assustada, tentando lembrar, ao mesmo tempo em que o pensamento Ele é inglês vinha em seu socorro. Fazia um grande esforço para aguçar a memó­ria, obrigá-la a entregar o que continha, enquanto pensava: Ele é inglês, vai compreender.

Claro que Alice sabia que esquecia coisas, mas não tanto assim ou com freqüência. Quando a mente começava a ficar atordoada e perplexa, tentando freneticamente se apegar a alguma coisa estável, então ela se permitia no mesmo instante como o fez então resvalar para a infância, onde se detinha agrada­velmente em uma cena ou outra, que atenuava, polia e pintava com novas cores, até que fosse como entrar numa história que começava assim: "Era uma vez uma menininha chamada Alice, com sua mãe, Dorothy. Uma manhã, Alice estava na cozinha com Dorothy, que fazia a sua torta de maçã predileta, com ca­nela, açúcar mascavo e creme. A pequena Alice perguntou: 'Ma­mãe, não sou uma boa menina?' "

Mas nesse instante sua mente não permaneceu nesse sonho ou história; insistiu em voltar ao presente, afastar-se da mãe, que finalmente repudiava Alice por causa do atentado a bomba.

Ficou sentada, quieta, enquanto o tempo passava, levando-a para o almoço e Peter Cecil. Estava ansiosa e seu estômago doía, o coração batia forte e dolorido.

Não havia necessidade de contar coisa alguma a Peter Cec­il. Por que deveria fazê-lo? Talvez falasse um pouco sobre Andrew. Não seria prejudicial a Andrew; nem mesmo sabia onde ele se encontrava. "Andrew Connors?", ela diria. "Ele me dis­se que era americano. De vez em quando visitava a outra casa; estava apaixonado por uma garota que vivia lá na ocasião. Es­queci o nome dela. Isso é tudo o que sei."

Teriam um bom almoço. Talvez ele até se mostrasse ami­go, como Andrew. Afinal, considerava Andrew um amigo, ape­sar de no presente não pensar tão bem dele como antes. Havia sempre pessoas decentes, mesmo entre os reacionários. Alice lembrou-se de um camarada, dizendo em algum lugar teria sido em Birmingham? na comuna em Manchester? que era marxismo primitivo pensar que como indivíduos todos os mem­bros da classe dominante eram maus. Bastaria apenas que to­masse cuidado com o que dissesse, e não haveria problemas. Basta tomar cuidado e confiar na inspiração. Era tolice ficar senta­da ali a se preocupar com o que poderia dizer; sempre sabia, quando chegava o momento, como controlar as situações.

E isso se aplicava também a Gordon O'Leary... Mas en­quanto pensava nele Alice sentiu a ansiedade no estômago tornar-se uma pontada de dor, intensa, quase insuportável. Oh, merda, ela acabara de compreender que precisava tomar cuida­do para não mencionar Gordon a Peter Cecil ou permitir que Peter Cecil chegasse perto daquela casa depois do almoço. Mas não importava, tinha certeza de que poderia dar um jeito em tudo. Cuidaria primeiro de Peter Cecil e depois de Gordon O'Leary. Mas ela pensou subitamente —, por que tinha de se encontrar com Gordon? Depois do almoço podia simplesmente partir para um passeio em qualquer lugar, só voltando para a casa mais tarde. Não, isso seria apenas adiar o problema. Voltaria a tempo do restaurante, depois de se despedir de Peter Cecil lá, deixaria um bilhete na porta dizendo... Não, não po­dia haver nenhum bilhete: os vizinhos perceberiam e viriam in­vestigar. Era muito melhor deixar que todos pensassem que as coisas continuavam a correr normalmente, por tanto tempo quanto possível; por isso era uma boa idéia que eles a vissem pelo menos entrar e sair.

Quando voltasse do restaurante, trancaria as portas e jane­las havia apenas uma janela que não trancava e teria de prendê- la com pregos antes de partir —, subiria para o alto da casa, pas­saria para o sótão, poria um peso no alçapão, a fim de que nin­guém pudesse deslocá-lo. Mesmo que Gordon O'Leary entrasse na casa de alguma forma e dificilmente ele gostaria de ser vis­to arrombando uma casa em plena luz do dia —, não saberia que podia subir para o sótão; como poderia saber?

Esse planejamento e arranjos detalhados faziam com que Alice se sentisse melhor. Nisso é que era eficiente: sentia-se ou­tra vez no comando de tudo, a dor no estômago abrandava, a respiração voltava a ser mais tranqüila.

E estava até ansiosa pelo almoço com Peter Cecil, Sorrindo gentilmente, uma caneca de chá muito forte na mão, parecendo naquela manhã uma garotinha de nove anos que tivera talvez um pesadelo, a pobre criança ficou sentada, esperando pelo momento de sair para se encontrar com os pro­fissionais.

 

                                                                                            Doris Lessing

 

 

                      

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