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INCIDENTE EM ANTARES / Érico Veríssimo
INCIDENTE EM ANTARES / Érico Veríssimo

 

 

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 INCIDENTE EM ANTARES

 

ANTARES

Afirmam os entendidos que os ossos fósseis recentemente encontrados numa escavação feita em terras do município de Antares, na fronteira do Brasil com a Argentina, pertenciam a um gliptodonte, animal antediluviano, que, segundo as reconstituições gráficas da Paleontologia, era uma espécie de tatu gigante dotado duma carapaça inteiriça e fixa, mais ou menos do tamanho dum Volkswagen, afora o formidável rabo à feição de tacape ricado de espigões pontiagudos. Calcula-se que durante o Pleistoceno, isto é, há cerca de um milhão de anos, não só gliptodontes como também megatérios habitavam essa região diabásica da América do Sul, onde – só Deus sabe ao certo quando – veio a formar-se o rio hoje conhecido pelo nome de Uruguai. Ignora-se, todavia, em que época da Era Cenozóica surgiram naquela zona do Brasil meridional os primeiros espécimes do Homo sapiens. Tudo nos leva a crer, entretanto, que esse problema jamais tenha preocupado os antarenses. O que até hoje ainda os deixa ocasionalmente irritados é o fato de car-tógrafos, não só estrangeiros como também nacionais, n|o mencionarem nunca em seus mapas a cidade de Antares, como se São Borja fosse a única localidade digna de nota naquelas paragens do Alto Uruguai. De pouco ou nada têm servido os memoriais assinados pelo Prefeito Municipal, pelos membros da Câmara de Vereadores e por outras pessoas gradas e repetidamente dirigidos ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, protestando contra a acintosa omissão. O Pe. Gerôncio Albuquerque, quando ainda vigário da Matriz local, mais de uma vez encaminhou, mas em vão, idêntica reclamação ao Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, do qual era membro correspondente.

No entanto a verdade clara e pura é que, a despeito da má vontade ou da ignorância dos fazedores de cartas geográficas, a cidade de Antares, sede do município do mesmo nome, lá está, visível e concreta, à margem esquerda do grande rio.

 

O incidente que se vai narrar, e de que Antares foi teatro na sexta-feira 13 de dezembro do ano de 1963, tornou essa localidade conhecida e de certo modo famosa da noite para o dia – fama um tanto ambígua e efêmera, é verdade – não só no Estado do Rio Grande do Sul como também no resto do Brasil e mesmo através de todo o mundo civilizado. Entretanto, esse fato, ao que parece, não sensibilizou até agora geógrafos e cartógrafos.

Tão insólitos, lúridos e tétricos – e estes adjetivos foram catados no artigo alusivo àquele dia aziago, escrito pelo jornalista Lucas Faia para o seu diário A Verdade, porém jamais publicado, por motivos que oportunamente serão revelados – tão fantásticos foram esses acontecimentos, que o Pe. Gerôncio chegou a exclamar, dentro de seu templo, que aquilo era o começo do Juízo Final. Nesse momento de susto e angústia coletiva, um cético gaiato, desses que costumam menosprezar a terra onde nasceram e vivem, murmurou: “A troco de quê Deus havia de começar o Juízo Final logo neste cafundó onde Judas perdeu as botas?”

Bem, mas não convém antecipar fatos nem ditos. Melhor será contar primeiro, de maneira tão sucinta e imparcial quanto possível, a história de Antares e de seus habitantes, para que se possa ter uma idéia mais clara do palco, do cenário e principalmente das personagens principais, bem como da comparsaxia, desse drama talvez inédito nos anais da espécie humana.

 

O mais antigo documento escrito que se conhece referente ao lugar onde mais tarde viria a ser fundada essa comunidade da região missioneira do Rio Grande do Sul, encontra-se no livro do naturalista francês Gaston Gontran d’Auberville, intitulado Voyage Pittoresque au Sud du Brésil (1830-1831). Escreveu o ilustre cientista em seu diário de viagem :

24 de abril. – Cruzamos esta manhã o Rio Uruguai, numa balsa, e entramos em território do Brasil. Estes campos verdes, duma beleza idílica, lembram os da nossa Provence. Aqui as pastagens são boas e o gado bovino, abundante. Os primeiros homens que encontramos, tanto os brancos como os índios, me olham com uma curiosidade meio desconfiada, que acho justificável, pois devem estranhar a minha indumentária, o meu aspecto físico e principalmente a minha bagagem: as gaiolas em que trago os pássaros vivos que apanhei no Paraguai e na Argentina, e os sacos e caixas cheios das plantas e pedras que venho colecionando desde o momento em que pisei terras do Novo Mundo.

Cerca das dez horas da manhã, chegamos a um lugarejo pertencente à comarca de São Borja e conhecido como Povinho da Caveira, formado por uma escassa dúzia de ranchos pobres, perto da barranca do rio. A pouca distância deles, situa-se a casa do proprietário destas terras, que me recebeu com certa cortesia. E um homem ainda jovem, de compleição robusta, cabelos e barbas castanhos e pele clara. Tem um ar autoritário, costuma falar muito alto, parece habituado a dar ordens e a ser obedecido. Chama-se Francisco Vacariano, nome provavelmente derivado da palavra “vaca” e que não me parece legítimo, mas adotado. A casa da estância de gado do Sr. Vacariano é apenas um rancho maior que os outros da povoação. Comunico-me com esse senhor no meu -precário espanhol, e ele me responde na mesma língua mas usando, uma vez que outra, palavras portuguesas.

Almoçamos ao meio-dia e o estancieiro nos serviu, numa grande marmita de ferro, pedaços de carne seca (aqui chamada “charque”) com farinha de mandioca, tudo misturado com gordura animal. O Sr. Vacariano imaginava que eu era uma espécie de mascate. Ficou desapontado quando verificou que eu não trazia tabaco, açúcar nem sal, gêneros de que carece no momento. Expliquei-lhe que sou um cientista e o meu hospedeiro pareceu não me dar crédito, pois acha impossível que um homem empreenda uma tão longa e penosa viagem apenas para apanhar bichos e juntar plantas e pedras.

Percebi que o Sr. Vacariano não confia nos “homens do outro lado do rio” nem parece gostar deles. Tal coisa não é para estranhar-se, se levarmos em conta que recentemente o Brasil esteve envolvido numa guerra com a Argentina pela posse da chamada Banda Oriental.

O meu guia, que é um homem loquaz e grande conhecedor desta região e desta gente, duma margem e outra do rio, assegurou-me que o meu hospedeiro não só herdou as sesmarias que a Coroa de Portugal concedeu ao seu avô, no início do povoamento desta província, como também se apossou pela força de algumas léguas de campo -pertencentes a outros estancieiros vizinhos, que pôs em fuga, sob ameaças. Contou-me ainda o dito guia que boa parte do rebanho de gado que o Sr. Vacariano hoje possui é formado de descendentes dos bois e vacas que o seu pai roubou na Argentina, aproveitando a confusão de tempos de desordens e lutas intestinos no país vizinho. O guia me pediu discrição absoluta, quanto a essas informações, pois, ao que diz, o Sr. Vacariano é um homem violento e vingativo.

Fui informado de que os índios deste pouoado pensam que sou um feiticeiro, e que o capataz do meu hospedeiro está convencido de que não passo de um bispo disfarçado que aqui veio, a mandado do Papa, para estudar a possibilidade do restabelecimento das reduções jesuíticas que outro-ra floresceram nesta região. O que, porém, mais me perturbou foram as palavras que o próprio Sr. Vacariano pronunciou, ao fim de nosso almoço. Reproduzo-as aqui, verbatim: “Sabe o que fiz com o último lotador de impostos que apareceu nestas terras’! Mandei matá-lo e atirei seu corpo no rio”. Felizmente, depois dessa ameaça soltou uma risada, deu-me uma palmada cordial nas costas e declarou que era um homem de boa-fé e portanto acreditava em que eu era mesmo um colecionador de plantas e passarinhos, pois “cada louco tem a sua mania”.

Passei a tarde herborizando nos arredores do povoado. A hora de recolher, o Sr. Vacariano prometeu proporcionar-me, ao amanhecer do dia seguinte, “um espetáculo inesquecível”.

Passei a noite quase sem dormir, por causa dos mosquitos.

 

25 de abril. – Antes do nascer do sol montamos a cavalo, meu hospedeiro e eu, e nos dirigimos para uma várzea, a uma escassa légua de sua estância, e apeamos perto dum bosque, onde ficamos à espera do clarear do dia. Quando o sol apareceu, vi diante de mim uma planície pantanosa cheia duma grande variedade de aves aquáticas. Mal consegui esconder o meu pasmo e o meu júbilo, pois aquilo se me afigurava o sonho dourado dum naturalista. No primeiro relance, pude perceber ali graciosas garças, íbis, grous, galinhas-d’agua, patos, narcejas, alguns exemplares dum pássaro que, à distância, me pareceu do gênero Francoli-nus, mas dum tamanho acima do comum. Tive im.pe.tos de correr na direção daquele congresso de aves e apanhar as que pudesse, mas o Sr. Vacariano me segurou o braço, di-zendo-me que esperasse, pois havia “algo e spedar que me queria mostrar. Pouco depois apontou para uma árvore des-folhada, a uns vinte metros de onde estávamos, e eu vi, em-poleirada num dos seus galhos, uma garça dum alvor deneve, de linhas elegantes, e que em dado momento voltou a cabeça na direção do sol nascente, perfilou-se, esticou o longo pescoço e soltou um assobio prolongado, duma suavidade indescritível, a um tempo bucólico e triste, lembrando o pífaro dum pastor. Era como se a ave estivesse cantando um hino ao dia nascente. Numa espécie de transe, eu pensava nas belezas que a imaginação criadora e dadivosa de Deus espalhou pelo universo, quando o Sr. Vacariano me disse que os índios chamavam àquela garça “flauta do sol”. (Tratava-se evidentemente de um exemplar da Ardea cyanoce-phala.)

Voltamos para a estância e durante o resto do dia colhi exemplares de gramináceas e solanáceas e outras plantas que encontrei naqueles prados paradisíacos. O meu hospedeiro pareceu ter simpatizado comigo, pois quando lhe pedi emprestadas duas juntas de bois, para substituir os animais cansados que haviam puxado nossa carreta até ali, ele acedeu prontamente ao vieu pedido.

A noite, depois do jantar, saímos ambos a caminhar nos arredores da casa da estância. Como para lhe pagar pelo formoso espetáculo da manhã, localizei no céu a constelação de Escorpião, que no hemisfério austral começa a aparecer no horizonte, a leste, depois de 15 de abril, mostrei ao Sr. Vacariano a bela estrela chamada Antares, e disse-lhe que, embora não parecesse, ela era maior do que o Sol. O meu hospedeiro olhou para a estrela em silêncio e mais tarde, quando chegamos a casa, murmurou: “Antares.... Bonito nome. Para mim quer dizer ‘lugar onde existem muitas antas’, bem como nestas terras perto do rio”. Pediu-me que escrevesse essa palavra, o que fiz, num pedacinho de papel, para o qual o Sr. Vacariano ficou olhando durante algum tempo, murmurando: “Bonito nome para um povoado... melhor que Povinho da Caveira”. Depois, guardando o papel no bolso, sorriu com seus fortes dentes de carnívoro e acrescentou: “Mas não acredito que essa estrela seja mesmo maior que o Sol”.

 

Outro documento, pouquíssimo conhecido mas também importante, sobre o que se poderia chamar de pré-história de Antares é uma carta escrita pelo P.« Juan Bautista Otero, S. J., ao provincial de sua ordem, em Buenos Aires. Conta o missionário nessa missiva, datada de 4 de dezembro de 1832, que cruzou o Rio Uruguai e chegou ao Povinho da Caveira onde pediu e obteve permissão do dono daquelas terras, um certo Sr. Francisco Bacariano (sic) para fazer casamentos e batizados. Eis um trecho da referida carta:

Aqui vivem muitos índios e índias em estado de indi-gência e, o que é ainda pior, em pecaminosa mancebia. Por outro lado, a ausência de mulheres da raça branca neste aldeamento leva os homens de origem portuguesa a servirem-se dessas indígenas para a satisfação de sua luxúria. O próprio Sr. Bacariano, segundo me informou pessoa digna de fé, é pai de quase uma dezena de filhos naturais com várias destas süvícolas, mas não os batiza nem legitima. Horroriza-me a idéia de que um dia quando adultas, essas criaturas venham, sem o saber, a cometer incesto. Este é, porém, um problema que por ora temos de deixar nas mãos misericordiosas de Deus. Assim, nestes últimos três dias tenho celebrado muitos casamentos e batizado grande número de pagãos, não só crianças como também adultos. Ontem, domingo, rezei uma missa ao ar livre, com apreciável concorrência. O Sr. Bacariano não me parece ter muito respeito pela nossa religião ou por qualquer outra, mas apesar disso me tem tratado com consideração e até facilitado o meu trabalho apostolar. Perguntei-lhe, com o devido respeito, se não pretendia casar-se, e ele me respondeu que, dentro de poucos meses, iria a Alegrete para contrair núpcias com uma moça, de nome Angélica, filha dum abastado estancieiro daquela localidade.

 

Que esse casamento se realizou, é fato fora de dúvida, pois seu registro se encontra nos velhos livros da Matriz de Alegrete.

Chico Vacariano teve com sua esposa legítima ao todo sete descendentes-, entre homens e mulheres. Para grande alegria sua, nasceu-lhe primeiro um filho macho, que recebeu o nome de Antônio Maria.

Um ano após o nascimento do primogênito, teve Francisco Vacariano de enfrentar um longo período de dificuldades e agruras, durante o qual se viu mais de uma vez na iminência de perder suas terras, seu gado e o resto de seus bens. Foi por ocasião da chamada Guerra dos Farrapos deflagrada por milhares de homens daquela província que se 3rgueram em armas contra o governo imperial, então nas mãos dum Regente, pois o príncipe Dom Pedro, herdeiro do trono, não atingira ainda a maioridade.

Francisco Vacariano jamais tomou uma posição definida nessa luta. Se por um lado estava convencido da justiça da causa revolucionária, por outro o fato de os rebeldes haverem proclamado a República do Piratini lhe causava um certo desagrado, que ele exprimiu à sua mulher nestas palavras: “Um imperador é uma espécie de pai que a gente tem. Numa república me parece que todo o mundo fica meio órfão...”.

Assim, Chico Vacariano – como mais tarde viria a dizer com malícia um de seus inimigos – tratou de “jogar com pau de dois bicos”. Abrigava altemadamente em suas terras ora tropas revolucionárias ora tropas legalistas. Atendeu as requisições de cavalos, gado e mantimentos que lhe faziam ambas as facções. De resto, como poderia dizer “não” a maiorias armadas?

O que muito o favoreceu nesse jogo dùplice foi o fato de o Povinho da Caveira ser uma localidade de difícil acesso, pouco lembrada pela revolução e completamente esquecida pelo resto do mundo. Mesmo assim, duma feita Chico Vacariano e seus familiares tiveram de cruzar o rio às pressas, refugiando-se durante mais de um ano na Argentina.

A guerra civil durou quase um decênio inteiro. Vacariano costumava dizer que aquela campanha era a principal responsável pelos seus primeiros cabelos brancos e pelas precoces rugas que lhe vincavam a face. Terminada definitivamente a luta, Chico voltou ao pago, reconstruiu a sua casa, que na sua ausência quase virará tapera, e tratou de refazer aos poucos o seu rebanho bovino e recuperar o seu prestígio pessoal naquela região. O tratado de paz entre os Farrapos e os Imperiais tinha sido firmado com tanta dignidade e patriotismo, de ambas as partes, que duma simples leitura de seus termos não se poderia deduzir quem tinha sido o vencedor e quem o vencido.

Nunca ninguém perguntou a Chico Vacariano, pelo menos cara a cara, de que lado havia ele pelejado durante a guerra civil. E esse foi um assunto que o senhor de Povinho da Caveira sempre evitou pelo resto de sua vida natural.

O Povinho foi elevado a vila por alvará de 25 de maio de 1853, data em que recebeu oficialmente o nome de An-tares. Pouca gente entendeu a razão dessa mudança ou o sentido da nova denominação. Muitos, como Chico Vacariano, imaginavam que Antares significava “lugar das antas”. Houve até quem pensasse tratar-se do nome de um general brasileiro, herói de alguma daquelas muitas guerras contra os castelhanos.

Durante mais de dez anos Francisco Vacariano – como havia já acontecido desde 1829 no primitivo Povinho – foi a autoridade suprema e inconteste na vila. Nem mesmo o governo provincial tentava intervir na vida daquela pequena comunidade ribeirinha, que ainda fazia parte do município de São Borja.

 

No verão de 1860 chegou ao conhecimento de Chico Vacariano que um certo Anacleto Campolargo, criador de gado e homem de posses, natural de Uruguaiana, ia comprar terras nas proximidades de Antares. Murmurava-se que esses Campolargos eram descendentes por linha reta dum tropeiro paulista que entrara um dia numa furna do cerro do Jarau – talvez na famosa Salamanca da antiga lenda – encontrando lá um fabuloso tesouro, pois de outro modo ninguém podia explicar como um modesto negociante de mulas andasse sempre com a sua guaiaca cheia de onças de ouro, rutilantes como sóis.

Mesmo sem jamais ter visto a cara de Anacleto Campolargo, o senhor de Antares fez o possível para que a transação não se consumasse. “Não quero intrusos por aqui!” – dizia. Ora, essas terras que Campolargo queria adquirir pertenciam a um chefe político de São Borja, homem influente, amigo íntimo do governador da província. Chico Vacariano não teve outro remédio senão “engolir o sapo”, segundo uma expressão sua.

Consumada a transação, Anacleto Campolargo mandou logo construir uma grande residência de alvenaria em Antares, na praça do Império, naquele tempo pouco mais que um potreiro onde cavalos e vacas pastavam.

A primeira vez em que Chico Vacariano e Anacleto Campolargo se defrontaram nessa praça, os homens que por ali se encontravam tiveram a impressão de que os dois estancieiros iam bater-se num duelo mortal. Foi um momento de trepidante expectativa. Os dois homens estacaram de repente, frente a frente, olharam-se, mediram-se da cabeça aos pés, e foi ódio à primeira vista. Chegaram ambos a levar a mão à cintura, como para arrancar as adagas. Nesse exato momento o vigário surgiu à porta da igreja, exclamando: “Não! Pelo amor de Deus! Não!”

Nenhum dos dois potentados parecia amar a Deus e muito menos ao vigário. Contiveram-se, porém, cada qual uma secreta razão particular, e depois retomaram ambos seu caminho, seguindo em sentidos opostos.

Foi assim que entre as duas dinastias antarenses, a dos Vacarianos e a dos Campolargos, começou uma feroz rivalidade, que deveria durar quase sete decênios, com períodos de maior ou menor intensidade, ao sabor de acontecimentos de ordem política, econômica ou puramente pessoal.

 

Pouco a pouco Anacleto Campolargo foi conquistando amigos e impondo-se ao respeito e à estima de boa parte da população antarense. Era o primeiro homem na história daquela comunidade que ousava enfrentar o “Chico Vaca” – como lhe chamavam pelas costas os seus desafetos. Agressivo, opiniático, autoritário, o patriarca do clã dos Vacarianos era um sujeito sem tato. Suas palavras em geral soavam como chicotadas. O maioral dos Campolargos, porém, sinuoso e macio, cultivava o murmúrio, sabia “manipular” suas emoções e modular o tom da voz de acordo com a sua conveniência e os seus propósitos. Tinha um ar paternal, freqüentemente chamava o interlocutor de “meu filho”, se estava diante dum jovem, ou de “meu chefe”, se falava com um ancião. (“Já provou deste fumo? Não? É especial. Tem palha? Pois faça um crioulo. Pode ficar com esse naco. Ora, obrigado por quê?”)

Homem de algumas letras, Anacleto Campolargo organizou na vila o Partido Conservador, o que bastou para que Chico Vacariano, até então um tanto indiferente em matéria de política, tratasse de organizar o Partido Liberal.

Assim, Antares passou a ter dois senhores igualmente poderosos. Era exatamente essa igualdade de forças que impedia as duas facções de se empenharem em batalhas campais de extermínio. Continuando uma velha tradição, nas missas de domingo e dias santos, os conservadores sentavam-se nos bancos da direita, à frente do altar-mor, e os liberais nos da esquerda. Em seus sermões, pregados com voz trêmula, o vigário fazia acrobacias de retórica para não dizer nada que pudesse, mesmo de leve, descontentar qualquer dos dois grupos. Quando alguém lhe perguntava em particular para qual dos dois proceres antarenses inclinavam-se as suas simpatias, o pároco sussurrava, olhando dum lado para outro, a medo-, “Deus é o meu único chefe e a Igreja a minha única política”. Neutralidade, entretanto, era uma palavra inexistente no vocabulário político e social de An-tares. O forasteiro que ali chegasse, mesmo para uma visita breve, era praticamente obrigado a tomar logo partido.

Tanto os Campolargos como os Vacarianos eram criadores de gado e de cavalos. Foi, porém, o velho Anacleto o primeiro que começou a criação de ovelhas naqueles campos. Chico Vaca havia muito possuía lavouras de trigo, li-nho e arroz, razão por que era o mais rico senhor de escravos em toda a região.

 

Quando o Brasil entrou em guerra com o Paraguai, Vacarianos e Campolargos enrolaram os seus estandartes tribais e, à sombra da bandeira do Império, lutaram juntos contra a “indiada de Solano Lopes”. Chico Vacariano queixou-se-. “Só não me agrada é que desta vez temos castelhanos peleando de nosso lado”. Referia-se às forças da Argentina e da República Oriental do Uruguai, que haviam formado com o Brasil a Tríplice Aliança, para enfrentar o temível ditador paraguaio.

Como Anacleto e Francisco tivessem já passado da idade militar, cada um deles mandou dois de seus filhos alistarem-se como Voluntários da Pátria.

A guerra durou de 1865 a 1870. Foram tempos de tristeza, apreensões e durezas para os habitantes de Antares. Só depois que a campanha terminou é que chegou à vila a notícia de que Antônio Maria, o primogênito de Chico Va-cariano, havia tombado morto na batalha de Lomas Valen-tinas. Os dois Campolargos voltaram vivos mas estropiados. Benjamim, o mais velho, que havia perdido um olho num combate corpo a corpo, trazia as divisas de major e uma medalha militar. Seu irmão Gaudêncio tivera de amputar um braço. Antão Vacariano, que deixara a mão esquerda enterrada em solo paraguaio, voltara feito coronel e também condecorado por atos de bravura.

Foram esses três antarenses recebidos em sua terra com honras de heróis. Cada qual contava as suas estórias da campanha – algumas horripilantes, outras pitorescas e até jocosas. Num ponto, porém, Benjamim Campolargo e Antão Vacariano discordavam. É que cada um deles reclamava para si a dúbia glória de ter matado com um pontaço de lança o ditador Solano Lopes, na batalha de Cerro-Corá. A História, porém, desmentiu ambos.

 

Graças aos bons ofícios e ao prestígio político de Ana-cleto Campolargo, amigo de figurões do governo da província, Antares foi separada de São Borja e elevada à categoria de cidade e sede de município, por Lei Provincial de 15 de maio de 1878. Ora, esse fora sempre um dos projetos mais caros a Chico Vacariano, agora já próximo dos oitenta anos. A idéia, porém, de que tudo se tinha conseguido por obra exclusiva de seu maior inimigo, deixou-o de tal maneira abalado que, uma semana antes de começarem os festejos com que se celebraria o grande evento, Chico Vaca caiu morto, fulminado pelo que um médico de São Borja diagnosticou como um “ataque de cabeça dos brabos”. Num gesto cavalheiresco, Anacleto transferiu os festejos para dezembro daquele ano, e até mandou em nome da família Cam-polargo uma coroa de flores para o defunto. Os Vacarianos recv saram a homenagem, vendo no gesto um intolerável “debique”.

Dezembro chegou, a cidade preparava-se para as grandes comemorações quando se espalhou a notícia de que o velho Campolargo, que estava na estância, fora picado por uma jararaca, tendo morrido em menos de meia hora, apesar das benzeduras de suas negras velhas e das ervas e un-güentos de seu curandeiro bugre.

Assim, quando entrou o ano de 1879, os dois grandes clãs de Antares tinham à sua frente novos chefes. Benjamim, o caolho, era o patriarca dos Campolargos e Antão, o maneta, o maioral dos Vacarianos – dois quarentões na força da vida. Ambos haviam jurado em silêncio, junto aos cadáveres paternos, continuar aquela luta de família até ao fim do Tempo.

 

Quando, anos mais tarde, a Princesa Isabel assinou o decreto em que se abolia a escravatura no Brasil, Antão Va-cariano disse a seus familiares que esse “ato de loucura” ia precipitar o fim do Império. Foi com relutância que, pelo menos formalmente, liberou seus escravos. Ora, Benjamim Campolargo, que havia alguns anos fundara o Grêmio Republicano de Antares, exultou com a notícia da Abolição, e mais tarde soltou vivas e foguetes ao saber que a República fora finalmente proclamada no Brasil.

Durante dias Antares esteve em pé de guerra. Mulheres e crianças foram proibidas de sair à rua. Na praça trocaram-se insultos e tiros. As vidraças do prédio do Grêmio Republicano foram partidas a pedradas e balaços por monarquistas enraivecidos. Um petardo explodiu contra a porta da residência dos Vacarianos. Houve cabeças quebradas e outros ferimentos corporais, leves uns, graves outros; morte, porém, nenhuma.

Fosse como fosse, o Império havia caído e os Vacaria-nos não tiveram outro remédio senão resignar-se. E, como faziam sempre que sofriam algum revés, fecharam a casa da cidade e refugiaram-se na estância, onde curtiram a sua vergonha, o seu despeito e o seu rancor. Antão verteu às escondidas algumas lágrimas quando soube que os republicanos haviam mandado o velho imperador para o exílio. “Este país está perdido!” – disse aos membros de sua família. – “O remédio agora é esperar a hora de fazer uma revolução e reconduzir o Velho ao trono.” Xisto, o primeiro Vacariano na ordem de sucessão, resmungou: “Essa república não se agüenta nas pernas. Dizem que o barulho já começou no Rio de Janeiro”.

Em 1890 a Matriz de Antares, cuja construção tinha sido iniciada havia vinte anos, foi inaugurada por ocasião da Festa do Divino Espírito Santo. Benjamim Campolargo, Imperador Festeiro, mandou carnear seis de suas reses para dar churrasco ao povo, organizou uma quermesse e fez queimar fogos de artifício vindos da capital do Estado.

Os Vacarianos, que tinham prometido dar um sino de bronze para o novo templo, recusaram cumprir a promessa. Quando o vigário timidamente os interpelou, alegando que a Igreja nada tinha a ver com a política, Antão retrucou truculento: “Padre, nesse assunto nem Deus pode se dar o luxo de ser neutro!”

 

Os historiadores de Antares, que não são muitos, até hoje temem lembrar certos “fatos desagradáveis” da crônica desse município. Num ponto, porém, parecem todos de acordo. A revolução federalista, que irrompeu em 1893, foi sem a menor dúvida o mais cruel e sangrento período da luta hereditária entre as duas famílias antarenses rivais. Antão Vacariano e seus irmãos, filhos, cunhados e sobrinhos, partidários apaixonados do famoso tribuno do Império, Gaspar da Silveira Martins, tomaram o lado dos revolucionários e, num golpe de surpresa, apossaram-se de Antares. Os Cam-polargos, porém, não tardaram a reagir e, ajudados por forças republicanas vindas de São Borja, retomaram a cidade. O combate travou-se ao anoitecer. A tropa dos Vacarianos retirou-se, com algumas baixas, e em desordem. Antão, que tinha ficado para trás comandando uma dúzia de companheiros numa operação de retaguarda, para proteger a fuga do grosso de sua força, foi feito prisioneiro. Trazido à presença de Benjamim Campolargo, trocou com este palavras e frases virulentas. O comandante vencedor, porém, recobrou a calma e disse:

– Sou um homem de bem. Respeito o direito dos prisioneiros de guerra. Vou poupar a sua vida, apesar de todas as barbaridades que você e seus bandidos praticaram enquanto estavam de donos da cidade.

Antão Vacariano encarou firme o adversário e replicou :

– Não peço nem aceito favor de nenhum caolho filho da puta! Me soltem, me devolvam a minha adaga e venham de um a um, que eu mostro quem é macho e quem não é.

Benjamim sacudiu a cabeça e soltou a sua risadinha gutural.

– Não sou prevalecido. Não brigo com maneta. Como única resposta Antão escarrou-lhe na cara. E

neste ponto as versões divergem. Afirmam alguns cronistas que, cego de ódio, Benjamim tirou sua faca da bainha, precipitou-se sobre o inimigo e sangrou-o ali mesmo. Outros dizem que mandou um de seus homens degolar o prisioneiro mais tarde, a frio. A verdade é que Antão Vacariano foi assassinado naquela noite, e seu corpo, envolto num lençol, enterrado no cemitério local, numa sepultura rasa e sem marca.

 

A vingança dos Vacarianos não tardou. Meses depois, as forças federalistas, comandadas por Xisto, retomaram Antares e conseguiram prender Terézio, o mais novo dos Campolargos.

Xisto mandou reunir na praça os homens da cidade e ordenou que mulheres e crianças ficassem fechadas em suas casas. De mãos amarradas às costas, Terézio foi trazido à sua presença, em meio de grave silêncio. Ao redor dos dois adversários agrupavam-se aqueles guerreiros barbudos, sujos, suados e alguns até com a pele e as vestes ensangüentadas do último combate.

– É do conhecimento geral – bradou Xisto Vacariano – que os Campolargos assassinaram covardemente o meu mano Antão, que não teve nem o consolo de morrer como homem, peleando de arma na mão. Foi miseravelmente sangrado como um boi no matadouro. Pois agora chegou a nossa hora. Este Campolargo vai pagar pelos crimes do seu irmão e de todos os cachorros sarnentos de sua raça maldita!

Terézio estava livido. Mal moveu os lábios quando disse:

– Guerra é guerra. Não peço clemência.

– Não pedes nem te dou, corno filho duma grã-puta! Seguiu-se uma cena digna do pincel e da imaginação

dum Hieronymus Bosch. Xisto mandou amarrar o prisioneiro pelas pernas e pendurá-lo no galho duma árvore, com a cabeça a poucos centímetros do solo. Depois acercou-se de sua vítima, empunhando um grande funil de lata, cujo longo bico lhe enfiou às cegas no ânus, profundamente. Com a cara contraída de dor e vergonha, Terézio cerrou os dentes mas não deixou escapar o menor gemido.

Nenhum daqueles homens parecia saber ao certo o que Xisto pretendia fazer. Um deles cochichou ao ouvido dum companheiro: “Acho que o coronel vai dar uma lavagem de Pimenta e mostarda nesse ‘pica-pau’”.

Os planos de Xisto, porém, eram mais terríveis. Todos compreenderam o que ele ia fazer quando gritou: “Tragam o tempero pra salada!” e dois de seus homens, vindos do quintal do casarão dos Vacarianos, aproximaram-se, conduzindo com todo o cuidado, para não se queimarem, uma grande chaleira de ferro cheia de azeite em ebulição.

O céu estava azul e limpo. Uma brisa de primavera boba nas folhas das árvores e nas rosas de todo o ano que cobriam a cerca, ao lado da residência, agora deserta, dos Campolargos. Havia um grande silêncio na praça ensolarada.

Xisto murmurou: “Sabes o que vou te fazer, sacri-panta? Te incendiar as tripas”. A uma ordem sua, os dois homens começaram a despejar lentamente no funil todo o conteúdo da chaleira. Terézio Campolargo soltou um urro e começou a estrebuchar.

Apenas um homem, de todos quantos assistiam à cena, soltou uma risada. Os outros se mantiveram num silêncio taciturno. Romualdo, o mais moço dos Vacarianos, acercou-se do chefe da família e protestou: “Mas isso é uma barbaridade, mano!” Sem desviar o olhar da vítima, que continuava a berrar e espernear como um porco que está sendo sangrado, replicou: “Precisas aprender a lidar com o inimigo, menino. Se a coisa te faz mal ao estômago, toma um chàzinho de erva-doce e vai pra casa te deitar”.

A agonia de Terézio foi de curta duração. Quando suas convulsões cessaram, Xisto olhou para o céu, aliviado. Vieram contar-lhe então que o vigário, que estava na igreja, rezando, lhe pedia o corpo do jovem Campolargo para a encomendação e o sepultamento. Xisto sacudiu negativamente a cabeça. “Encomendar pra quê? Se esse ‘pica-pau’ tinha mesmo alma, a esta hora ela já entrou nos quintos do inferno.” Disse isto, voltou as costas para o cadáver e tornou à sua casa, onde o esperava um assado de paleta de ovelha, que ele comeu com a tranqüilidade dum justo.

 

Seis meses mais tarde os Campolargos retomaram An-tares num ataque de surpresa, à noite. Os Vacarianos retiraram-se com a sua tropa, deixando para trás, mortos ou feridos, vários companheiros. E quando, horas depois do combate, Xisto conseguiu reunir os seus homens no topo duma coxilha e começou a chamar pelos irmãos, deu pela falta de Romualdo e ficou frio. “Quem é que viu o Romualdo por último?” Ninguém se lembrava. Xisto deu-o por perdido, encolheu os ombros e pensou: na guerra como na guerra...

Mais tarde ficou-se sabendo que Romualdo na hora do inesperado ataque dos “pica-paus” estava na cama com uma china e, não tendo tempo de fugir, fora capturado.

Benjamim Campolargo esfregou as mãos num contentamento frenético. Tinha chegado a desejada hora de vingar a morte de Terézio.

No dia seguinte, por volta das oito da manhã (era já outono, dia frio e triste, céu cor de pêlo de capivara) Benjamim tratou de saber do vigário em que árvore seu irmão havia sido torturado. O padre deu-lhe a informação, mas disse: “Por tudo quanto existe de mais sagrado na vida, pelo amor de sua mãe e de seu falecido pai, eu lhe suplico que não sacrifique esse moço. Não foi ele quem matou o Terézio”.

Benjamim sorriu: “Padre” – disse ele com brandura – “eu lhe juro por Deus Nosso Senhor que não vou matar o Romualdo”. O sacerdote arregalou os olhos, surpreso. “Jura mesmo?” O outro ergueu a voz: “Juro! Aqui na frente dos meus companheiros! Pela honra da minha mãe, da minha mulher e das minhas irmãs, juro que vou soltar o moço, e vivo!” O vigário ficou pensativo, incrédulo ainda, mas nada disse. Lavou simbolicamente as mãos e voltou para a igreja.

Romualdo Vacariano foi trazido à presença de Benjamim Campolargo, que exclamou: “Tirem toda a roupa desse sujeitinho!” Três de seus homens obedeceram à ordem. “As botas também... Bom. Agora amarrem ele na mesma árvore onde penduraram o meu irmão. Assim não! Com a barriga contra o tronco, as pernas abertas... Isso!”

Um círculo duns cento e poucos homens formava uma espécie de muro ao redor da árvore. Como no dia da tortura e morte de Terézio, todas as mulheres e crianças tinham sido fechadas nas suas casas. Os companheiros entreolha-vam-se, sem saber ao certo o que seu chefe ia fazer. Benjamim chamou um dos seus companheiros, um negro alto e corpulento, e lhe disse:

– Elesbão, você é quem vai fazer o serviço no moço. O preto levou a mão à faca. Era um exímio degolador.

Benjamim sacudiu negativamente a cabeça.

– Não. O instrumento não é esse, mas o que você tem entre as pernas.

Elesbão não entendeu imediatamente o que o seu comandante queria. Quando compreendeu, murmurou, constrangido :

– Ora, coronel, eu nunca fiz dessas coisas.

– Mas vai fazet agora. E uma ordem.

– Por que logo eu?

– Porque sim.

– Aqui na frente de todo o mundo?

– É exatamente isso que eu quero: testemunhas. Elesbão olhou para o homem nu e depois para o seu comandante :

– Me prenda, coronel, me rebaixe de posto, mas uma coisa dessas eu não faço. Degolar é diferente...

Num átimo Benjamim examinou mentalmente a difícil conjuntura. Por um lado não podia ser desautorizado na frente dos seus próprios comandados; por outro, não queria castigar e talvez perder um companheiro do valor do Elesbão. Quem’ salvou a situação foi um caboclo parrudo e mal-encarado, o Polidoro, contumaz barranqueador de éguas, que se apresentou voluntário para executar a tarefa.

– Está bem – disse o chefe Campolargo. – Está na mesa. Sirva-se.

E o caboclo violentou Romualdo. Uns três ou quatro homens soltaram risadinhas. Outros, porém – a maioria – retiraram-se do local para não assistirem à cena degradante. Um capitão bigodudo chegou a gritar: “Isso não se faz a um macho, coronel! Por que não mata logo o miserável?” Benjamim, que saboreava o espetáculo, não deu a menor atenção ao protesto.

Consumado o ato, gritou: “Agora soltem a moça!” Dois soldados desamarraram Romualdo, que deu alguns passos, cambaleante, como se estivesse bêbedo, a cara aparvalhada. De repente soltou um urro, como um animal ferido de morte e, nu como estava, saiu a correr na direção do rio, atirou-se no chão, no alto da barranca, e rolou declive abaixo, até cair nágua. Pôs-se a nadar, e, a uns trinta metros da margem, deixou-se afundar. Seu corpo jamais foi encontrado.

Depois desses atos de violência e perversidade ninguém podia sequer imaginar que fosse um dia possível para Va-carianos e Campolargos voltarem a viver na mesma cidade. Terminada a revolução, com a vitória dos republicanos, Xisto Vacariano emigrou com todo o seu clã para a Argentina, onde permaneceu por dois anos. Durante essa longa ausência, um amigo seu, homem de bem e neutro em política, tomou conta da estância e dos outros negócios dos Vacarianos e, com o auxílio de amigos influentes, conseguiu evitar que os Campolargos se apossassem discriciona-riamente dos bens móveis, imóveis e semoventes de seus velhos adversários.

 

Em 1898 Xisto Vacariano’tomou um vapor em Buenos Aires e viajou até ao Rio de Janeiro onde – conta-se – se avistou com o senador Pinheiro Machado, figura prestigiosa da política nacional. Eram velhos conhecidos. Havia alguns anos, o prócer republicano hospedara-se na estância dos vacarianos e, à hora do jantar – conversa vai, conversa vem —, acabaram descobrindo que Pinheiro Machado, que ?e alistara com apenas dezesseis anos como Voluntário da ratria, durante a Guerra do Paraguai, havia servido no regimento de que Xisto Vacariano era oficial. Comemoraram a descoberta bebendo vinho do Porto e Xisto deu de presente ao futuro senador da República um de seus cavalos de purosangue e um par de estribos de prata feitos na Bélgica.

Xisto valia-se agora desta amizade para tentar resolver a sua situação e a de toda a sua família. Pinheiro Machado escutou-o com atenção e prometeu “amansar” os Campolar-gos, pelos quais – confessou – não morria de amores, apesar de eles serem seus correligionários. Mandou uma carta a Júlio de Castilhos – então Presidente do Estado – explicando-lhe a situação e pedindo a sua intercessão no assunto. Castilhos escreveu a Benjamim Campolargo reco-mendando-lhe fizesse “vista grossa” ao reaparecimento dos seus inimigos Vacarianos em Antares.

Benjamim levou alguns dias para “digerir” essa carta. Respondeu, porém, a ela declarando que faria como seu “prezado chefe e amigo” pedia. Tinha antes escrito ordenava mas passou a carta a limpo para trocar o verbo. Assim os Vacarianos foram voltando pouco a pouco para Antares. com todos os membros de suas famílias.

Naquelas primeiras semanas após a volta dos proscritos (termo usado por um jornalista republicano local) não só a população de Antares como a própria cidade – casas, muros, calçadas, plantas, pedras – pareciam viver em estado de extrema tensão, na expectativa do primeiro encontro físico entre um Campolargo e um Vacariano.

Xisto e Benjamim defrontaram-se uma tarde à frente do Grêmio Republicano. O primeiro pigarreou forte. O outro fuzilou o inimigo com um olhar de seu único olho válido. Nada disseram nem fizeram. Cada qual seguiu seu caminho e Antares e os antarenses respiraram desoprimidos.

 

Antares celebrou com grandes festas a entrada do século xx. Armou-se no centro da praça um carrossel, de propriedade dum espanhol residente em Uruguaiana. À tarde houve Cavalhadas e à noite quermesse. Acenderam-se fogueiras onde se assaram batatas-doces e lingüiças. Num grande tablado erguido à frente da Matriz, houve danças a noite inteira, ao som de músicas tocadas pelos melhores san-foneiros da cidade e redondezas. À meia-noite em ponto o sino da igreja rompeu a badalar festivamente, homens davam tiros de pistola para o ar, foguetes de lágrimas espocavam nas alturas, derramando sobre os telhados e o rio chuveiros de estrelas multicores. Homens, mulheres e crianças abraçavam-se gritando, chorando e rindo. Benjamim Campolar go, que assistia à festa da sacada de sua residência, desce« para a praça e confraternizou com o povo. Sentou-se con. a esposa à cabeceira duma mesa de cinqüenta metros de comprimento, ali ao ar livre, e deu início à grande ceia – carne de gado, ovelha e porco, galinhas e patos assados, pratarraços de arroz de carreteiro e, no firn, sobremesas feitas pelas melhores doceiras da cidade. E, a todas essas, dê-lhe vinho, dê-lhe cachaça, dê-lhe cerveja...

Os Vacarianos, esses celebraram o grande acontecimento em família, sem se misturarem com “a canalha republicana”.

A pessoa escolhida pelo intendente para falar em nome da municipalidade – um professor – saudou o século xx como a era da Luz e do Progresso, a qual, “mercê das novas invenções e descobertas do saber humano, haverá de proporcionar aos povos de todas as nações do Universo uma vida de conforto, fartara e harmonia, como nunca na História da Humanidade”.

Já quase ao clarear do dia, intoxicados de bebidas alcoólicas, dois machos do clã dos Campolargos – primos-irmãos ainda na casa dos vinte – estranharam-se, trocaram primeiro palavrões, depois bofetadas e finalmente facadas. Um deles recebeu um pontaço de faca no ventre (superficial) e o outro deixou no chão da praça um naco de seu braço esquerdo. O velho Benjamim teve de intervir pessoalmente, ajudado por dois irmãos, para evitar que o conflito se generalizasse num “pega pra capar” desastroso.

Ao saber do incidente, no dia seguinte, Xisto Vacaria-no sorriu e disse: “Começou bem pra nós esse tal de século xx”.

 

A esta altura da presente narrativa é natural que o leitor esteja inclinado a perguntar se não existiam em Antares homens de bem e de paz, com comportamento e sentimentos cristãos. A pergunta é pertinente e a resposta, sem a menor dúvida, afirmativa. Havia, sim, e muitos. Desgraçadamente seus ditos, feitos e gestos não foram recolhidos pela história oficial. Apenas uns poucos deles incorporaram-se à tradição oral da cidade e do municipio-, os restantes perderam-se para sempre no olvido.

Os livros escolares, cujo objetivo é ensinar-nos a história da nossa terra e do nosso povo, são em geral escritos num espírito maniqueísta, seguindo as clássicas antíteses – os bons e os maus, os heróis e os covardes, os santos e os bandidos.

Via de regra, não se empregam nesses compêndios as cores intermediárias, pois os seus autores parecem desconhecer a virtude dos matizes e o truismo de que a História não pode ser escrita apenas em preto e branco.

Por motivos puramente de economia de espaço – uma vez que o objetivo desta narrativa é tecer um sumário pano de fundo histórico contra o qual apresentar oportunamente os macabros eventos daquela sexta-feira 13 de dezembro do ano de 1963 – estas páginas lamentavelmente têm seguido o espírito dos citados livros escolares, focando de preferência as duas grandes oligarquias que em Antares, durante cerca de setenta anos, disputaram o predomínio político, social e econômico. Ficaram assim na penumbra do segundo, do terceiro e do último plano todos aqueles que – para usar duma expressão de Spengler – não “fazem” mas “sofrem” a História, a saber: estancieiros menores, agricultores de minifúndios, membros das profissões liberais e do magistério e ministério públicos, funcionários do governo, comerciantes, artesãos e por fim essa massamorda humana composta de párias – brancos, caboclos, mulatos, pretos, curibocas, mamelucos – gente sem profissão certa, changadores, índios vagos, mendigos, “gentinha” molambenta e descalça, que vivia num plano mais vegetal ou animal do que humano, e cuja situação era em geral aceita pelos privilegiados como parte duma ordem natural, dum ato divino irrevogável.

 

Tinha razão o editorialista do semanário A Verdade (fundado em 1902) quando escreveu que o Progresso se aproximava de Antares com botas de sete léguas. Nos tempos em que a localidade era ainda conhecida pelo nome de Povinho da Caveira, Chico Vacariano, seu fundador, sempre que tinha de mandar um recado, verbal ou escrito, a uma pessoa que morasse longe, valia-se dum portador, dum “chas-que”, dum “próprio”. Em fins do século xix, Antares gozava já dos benefícios e facilidades do telégrafo, isso para não falar no serviço postal.

Estradas de ferro ligavam muitas cidades do Rio Grande do Sul umas às outras, e o apito de suas locomotivas assustava os bichos do campo e do mato, ao mesmo tempo que a fumaça de suas chaminés sujava aqueles ares puros. Não parecia otimismo exagerado esperar-se que dentro duns dez anos, no máximo, seus trilhos fossem estendidos até a Antares. Agora, na primeira década do novo século, surgia o telefone, que Xisto Vacariano afirmava ter sido inventado por Dom Pedro II, com a colaboração dum mecânico norte-americano, seu amigo particular. O primeiro a instalar na sua casa um desses aparelhos foi Benjamim Campolargo, que corria sempre na dianteira de seu rival, em matéria de empreendimentos progressistas.

Os “próprios” e os “chasques” continuavam ativos e uteis. As mulheres, as crianças e os velhos usavam como veículos de transporte a aranha, a diligência e outras carruagens de tração animal. Carretas ainda rechinavam, ronceiras puxadas por bois lerdos, através daquelas campinas. Os antarenses em sua maioria achavam – e nisso não eram diferentes de outros campeiros do Rio Grande do Sul – que o único meio de locomoção digno dum homem macho continuava a ser o cavalo. Em certos casos tinha-se a impressão de que esse animal era um prolongamento do corpo do cavaleiro, assim como a pistola ou o revólver faziam já parte da sua anatomia.

Quando se instalou em Antares a primeira usina elétrica, Xisto Vacariano, sentado à cabeceira de sua mesa à hora do jantar, disse aos filhos: “No Povinho, o avô de vocês vivia muito bem se alumiando com lâmpada de óleo de peixe e vela de sebo. A máquina mais complicada que ele conhecia era o monjolo. Pra mim, lampião de querosene ou acetilene já é luxo demais. Ninguém me convence de mandar botar na minha casa a tal de luz elétrica. Dizem que esse negócio dá choque, pode até matar uma pessoa”.

Quando, no inverno de 1912, o intendente mandou instalar luz elétrica nas ruas da cidade, o velho Eusébio Reis, que durante mais de vinte e cinco anos exercera sozinho as funções de acendedor de lampiões, caiu numa tão grande depressão nervosa, que numa madrugada de julho enforcou-se num dos postes da iluminação moderna, e seu corpo amanheceu hirto, coberto de geada, balançando-se dum lado para outro, sacudido pelo vento gelado que soprava das bandas dos Andes.

Para surpresa geral, foi um Vacariano quem, em 1911, trouxe para Antares o primeiro automóvel, um Oldsmobile, que mandara vir de Buenos Aires. Depois de aprender a dirigir o veículo, um dos seus maiores prazeres era passear nele, de tolda arriada, pela cidade, apertando provocadora-mente na buzina de fonfom sempre que passava pela frente do solar dos Campolargos. Estes não tardaram em mandar buscar da Alemanha um automóvel Benz.

 

Como o Dr. Júlio de Castilhos estivesse seriamente enfermo, o bacharel em Direito Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, que havia sido seu chefe de polícia, sucedera-o em 1898 como Presidente do Estado, bem como no de chefe do Partido Republicano gaúcho. Castilhos faleceu em 1903, durante a operação de garganta a que fora submetido. Benjamim Campolargo, acompanhado de dois de seus filhos, embarcou às pressas para Porto Alegre, a fim de assistir às exéquias de seu chefe e amigo. Chegou tarde, mas aproveitou a oportunidade para visitar o Dr. Borges de Medeiros, que ainda não conhecia pessoalmente. Achou-o seco, formal mas digno. Ouviu, de várias pessoas importantes da capital, os maiores elogios ao caráter do presidente. Ninguém mais probo, ninguém mais justo, ninguém mais sábio – dizia-se. “Um verdadeiro varão de Plutarco” – afirmavam os edítorialístas de A Federação, o órgão oficial do Partido Republicano Rio-Grandense. Benjamim Campolargo, graças talvez a uma autovacina, voltou para Antares incontami-nado pelas virtudes morais de seu chefe. Continuou a perseguir a oposição, a coagir juizes, promotores e jurados. Governava despoticamente o município de Antares, onde os maragatos eram minoria. Tornou-se assim, como tantos outros chefes políticos municipais do Rio Grande do Sul, uma espécie de “príncipe eleitor”. Reeleito em 1903, 1913 e 1918, Borges de Medeiros exerceu durante vinte anos a sua “ditadura científica” de inspiração positivista, fechado no palácio do governo e quase divinizado como um Lama do Tibete.

Sem recursos humanos para enfrentar seus inimigos crônicos, os Vacarianos agora competiam com eles em outros terrenos que não o da política. Todos os fins de ano, quando se tratava de eleger uma nova diretoria para o Clube Comercial, a mais fina sociedade local, havia sempre uma chapa apresentada pelos Campolargos, a oficial, e outra pelos Vacarianos. O pleito era precedido de propaganda, cabala, pressões de toda sorte, e até de suborno. No dia da eleição os eleitores compareciam à sede do clube armados de punhais e revólveres, e era raro o ano em que não houvesse bate-boca, troca de insultos, de bofetadas e até de tiros.

Desde 1915 o futebol – “o salutar esporte bretão”, segundo um redator de A Verdade – tornara-se popular em Antares. Os Campolargos haviam fundado o Esportivo Mis-sioneiro e os Vacarianos favoreciam o Fronteira F. C. Não se tem notícia duma partida entre esses dois adversários que não haja terminado sem luta corporal entre seus torcedores, isso para não falar nas trocas de caneladas e pe-chadas entre os jogadores, em disputa da bola. Conta-se a seguinte estória, que parece ter sido já incorporada ao folclore futebolístico gaúcho. O Fronteira e o Missioneiro defrontavam-se numa partida decisiva de campeonato, o jogo aproximava-se do final e nenhuma das duas esquadras conseguira ainda marcar um ponto sequer. No último minuto do jogo, Pollito, atacante do Missioneiro – um argentino “contrabandeado” do outro lado do rio, a peso de ouro – driblou quase toda a defesa do Fronteira e ia na certa marcar um tento quando um Vacariano bombachudo que estava ali por perto saltou rápido para dentro do gramado, rebolou no ar o seu laço e pealou o castelhano, que caiu de costas, batendo com a nuca no chão. O goleiro do Fronteira saltou para agarrar a bola, mas um dos Campolargos alvejou-a com um tiro de revólver, e o balão se desinflou com um longo suspiro nas mãos do keeper, que soltou um berro de horror. O público invadiu o campo e então começou uma verdadeira batalha campal que durou mais de meia hora, pois soldados da polícia municipal, chamados para impor a paz, acabaram tomando partido e participando do entrevero.

 

A Primeira Guerra Mundial chegou a Antares principalmente através das páginas róseas do Correio do Povo. Pela primeira vez em mais de cinqüenta anos Campolargos e Vacarianos encontravam-se por assim dizer do mesmo lado, na mesma trincheira, alvejando simbolicamente um inimigo comum, os boches. Xisto e Benjamim admiravam a França, detestavam a Alemanha e consideravam o Kaiser um bandido desalmado, um bárbaro. Papagaiando frases de jornais e folhetos de propaganda, ambos afirmavam que os

Aliados deviam a qualquer preço “salvar a Civilização das garras sanguinárias dos hunos”.

A década de 20 trouxe para Antares muito progresso, tanto de ordem material como intelectual. Durante esse pós-guerra, o ritmo de construções de casas particulares acelerou-se. Os Vacarianos reformaram o seu casarão – “uma simples meia-sola”, disseram os seus desafetos. Os Campolargos construíram um sólido palacete de dois andares.

Em 1924 uma firma norte-americana instalou um frigorífico nos arredores da cidade – o que levou o editorialista do diário local a afirmar que Antares, até então um município exclusivamente agropastoril, começava auspiciosamente a industrializar-se.

O telégrafo, o cinema, os jornais e revistas que vinham de fora, a estrada de ferro e, depois de 1925, o rádio – contribuíram decisivamente para aproximar o mundo de Antares ou vice-versa. Forasteiros também muito faziam pelo progresso social e cultural da cidade: magistrados, promotores públicos, funcionários do governo estadual e federal, caixeiros-viajantes... Era, porém, de lamentar que Antares não possuísse, como São Borja, uma guarnição militar federal, um batalhão que fosse.

Em 1925 os Vacarianos haviam comprado o primeiro sedan Chrysler que jamais sentou suas rodas nas ruas de Antares. Numa espécie de esperada represália, os Campolargos não tardaram a adquirir na Argentina um Studeba-ker preto que, na opinião de seus rivais, tinha o aspecto dum carro fúnebre.

Foi também nesse ano de 1925 que a polícia descobriu e prendeu o primeiro comunista da história de Antares, um certo Mário Pinho, um tipògrafo, natural de Santiago do Boqueirão, homem pálido e triste que se gabava de ter lido de fio a pavio, em tradução espanhola, O Capital de Karl Marx. O agente do “olho de Moscou” passou um mês na cadeia e, depois de solto, mudou-se para Santa Maria.

Nos bailes do Clube Comercial moças e rapazes das Melhores famílias locais dançavam o charleston, sob o olhar crítico das matronas. Num sarau de arte, no solar dos Cam-polargos, um forasteiro recitou versos modernos – que ninguém entendeu – de Oswald e Mário de Andrade. Antares, pois, atualizava-se, integrando-se na Era do jazz.

 

Em 1923 os partidários do Dr. Assis Brasil – aliança de maragatos com dissidentes do Partido Republicano – haviam feito a sua revolução, protestando contra mais uma reeleição do Dr. Borges de Medeiros, confirmada pela Assembléia estadual, mas considerada pela oposição uma farsa fraudulenta, pois o candidato oficial republicano – alegavam seus inimigos – não obtivera os três quartos da votação total exigidos nesse caso pela Constituição.

Xisto V acariano a princípio pensara em ficar sossegado em sua estância (não tinha muita simpatia pessoal por Assis Brasil), mas como lhe tivesse chegado aos ouvidos o rumor de que Benjamim Campolargo ia mandar prender todos os Vacarianos machos, decidiu “ir para a coxílha” com os filhos, irmãos, genros, netos, sobrinhos, amigos, peões e demais cumpinchas: cento e vinte homens ao todo. Embora já na quadra dos oitenta, Xisto mantinha-se ainda ereto em cima do cavalo, e sentia-se apto para enfrentar mais uma campanha em sua vida. Assim, os Vacarianos se juntaram às forças de Honório Lemes. Evidenciara-se desde o primeiro momento da revolução que o número de combatentes republicanos era consideravelmente maior e mais bem armado que o dos “bandoleiros”, pois o governo estadual, além de seus partidários civis que formavam as tropas irregulares, contava também com o apoio da sua Brigada Militar, força bem armada e aguerrida.

O velho Vacariano explicava aos seus comandados: “O Gen. Honório tem razão. O plano não é dar combate de frente aos ‘chimangos’, mas negacear, atacar de surpresa, fugir na hora do aperto e voltar depois quando menos nos esperarem. O nosso chefe conhece a Serra do Caverà como a palma de suas mãos. O inimigo não ousa atacar o homem no chão dele. Assim, vamos embromando esses borgistas para provocar uma intervenção federal. O Presidente da República não gosta do Borjoca. Está louco pra meter sua cucharra na nossa panela”.

Não se teve notícia de nenhum combate, nem mesmo duma escaramuça passageira, entre os guerreiros dos Vacarianos e os dos Campolargos.

A intervenção federal foi finalmente feita no Rio Grande do Sul e dela resultou um tratado de paz. Benjamim Campolargo cantou vitória, mas Xisto Vacariano disse: “Bobagem desse caolho caduco! Quem ganhou a parada fomos nós. Com meia dúzia de espingardas descalibradas, revólveres enferrujados e lanças de guajuvira, os assisistas conseguiram o que queriam: esse tratado que reforma a Constituição do Estado, que os castilhistas consideravam intocável, e proíbe a reeleição do Chimango!”

 

Em meados da década de ‘20 várias mudanças eram já visíveis e audíveis no modo de vida tanto dos Campolargos como dos Vacarianos. No começo do século, membros das gerações mais novas dessas duas poderosas famílias tinham sido mandados estudar em Porto Alegre. Muitos voltaram para casa depois de terminado pelo menos o curso ginasial, e alguns obtiveram até diplomas de doutor em Direito, Medicina ou Engenharia, embora poucos deles chegassem a exercer essas profissões. Fos%e como fosse, todos traziam para Antares uma visão mais larga do mundo e da vida, e uns poucos podiam até ser considerados, se não intelectuais, pelo menos “intelectualizados”. Haviam adquirido 0 hábito da leitura, da música, do teatro e alguns deles – pouquíssimos, é verdade – compravam pinturas para pendurar nas paredes de suas residências, nas quais até então só se viam tristes retratos de antepassados mortos, com solenes molduras douradas.

Um jovem Campolargo de maneiras civilizadas chegou a publicar no jornal da terra um poema de sua autoria. (O velho Vacariano leu-o em voz alta e comentou, seco e certo: “Esse menino é fresco”.)

Em maio de 1926 causou os comentários mais desencontrados na cidade a notícia de que o herdeiro do trono dos Campolargos, Zózimo, tinha embarcado para Buenos Aires com sua esposa e prima-irmã Quitéria, para assistirem a alguns espetáculos da temporada lírica do Teatro Colón.

Até fins do século anterior os Vacarianos e os Campolargos haviam cultivado deliberadamente a endogamia, não com a finalidade de manter a pureza de suas estirpes, mas por motivos práticos, principalmente de ordem econômica. Queriam evitar, no caso das heranças, não só a divisão das terras do clã como também complicações nos inventários. Esses casamentos entre primos e primas – quase sempre sem amor e nem mesmo desejo – eram não raro ajustados pelos pais dos jovens, em concílios familiares. Com raras exceções, finda a minguada lua-de-mel, a mulher ficava em casa a engordar, a ter filhos e a cuidar (ou não) deles, ao passo que o marido passava boa parte da noite no Clube Comercial, jogando pôquer, ou na casa da amante, com a qual, continuando uma tradição centenária, também tinha filhos, que não reconhecia legalmente. O advogado que, por morte dum Vacariano ou dum Campolargo, ousasse apresentar-se como patrono dum filho natural do falecido, arriscava levar um tiro ou uma surra exemplar.

Durante a segunda década do novo século, porém, membros de outras famílias locais e até mesmo forasteiros, haviam começado a entrar nas cidadelas dos Vacarianos e dos Campolargos, pela porta do casamento. O velho Benjamim observava alarmado a tendência das novas gerações de sua tribo a produzir mais rebentos do sexo feminino que do masculino. Quando ele morresse, Zózimo – filho que lhe nascera quando ele tinha já 56 anos – ocuparia o seu lugar. Mas... e depois? Seu sucessor tinha apenas quatro filhas. Era o diacho. E o olho legítimo de Benjamim Campolargo entristecia quando ele pensava nessas coisas.

Tanto ele como Xisto relutavam em aceitar a idéia de que já não eram os senhores absolutos e discricionários dentro de seus feudos. As gerações novas rebelavam-se contra as idéias dos seus maiores em matéria de costumes e rituais domésticos. Chegavam a criticar, por antiquados, os seus métodos de trabalho campeiro, vejam só aonde chegamos!

Assim, ao findar a década de ‘20 os dois senhores de Antares pareciam-se um pouco com os gliptodontes e os me-gatérios no fim do Pleistoceno, isto é, eram dois representantes de espécies animais em processo de extinção. Mas, como é de se supor tenha acontecido com os monstros ante-diluvianos, Xisto e Benjamim não pareciam ter consciência de seu drama.

 

A revolução militar irrompida em São Paulo, em 1924, contra o governo do Presidente Artur Bernardes, ecoou no Rio Grande do Sul em localidades muito próximas a Antares, como São Borja, São Luís e Santo Ângelo, onde se revoltaram respectivamente dois regimentos de cavalaria e um batalhão ferroviário, este último sob o comando dum capitão de Engenharia, Luís Carlos Prestes. O velho Campolar-go chegou a organizar um corpo de voluntários para defender a sua cidade, caso ela fosse atacada. Como, porém, os insurgentes de Prestes, depois de darem combate às forças legalistas, abandonaram o Estado, rumo de Catanduvas, onde deviam reunir-se aos rebeldes de São Paulo – Antares foi poupada aos desastres de mais uma guerra, e sua população continuou a viver a vidinha de sempre.

Um dia, no princípio do verão de 1925, apareceu sorrateiro em Antares um membro da prestigiosa família Vargas, de São Borja. Chamava-se Getúlio, tinha quarenta e dois anos de idade, era bacharel em Direito e ocupava então uma cadeira de deputado na Câmara Federal, como representante do Partido Republicano de seu Estado. Homem sereno, de feições e maneiras agradáveis, sabia usar a cabeça com lúcida frieza e possuía qualidades carismáticas ainda não de todo reveladas plena e publicamente. Dizia pouco mas perguntava muito. Frio, solerte, sabia jogar com dois fatores importantes na vida: o tempo e as fraquezas humanas.

Usou de artimanhas tais, que naquele dia conseguiu reunir Xisto Vacariano e Benjamim Campolargo na casa dum amigo comum, homem apolitico e geralmente benquis-to na cidade.

Quando os dois sátrapas locais deram pela coisa, estavam já frente a frente, fechados a chave com o Dr. Getúlio numa sala de visitas que o calor de janeiro transformava num forno aceso, com a colaboração de cortinas de veludo, guardanapos de croche e tapetes felpudos. Um ventilador girava e zumbia, inócuo, em cima duma mesinha com tampo de mármore, ao lado dum vaso de alabastro com flores artificiais.

Os dois velhos inimigos naturalmente não se apertaram as mãos e nem sequer rosnaram a menor palavra um para o outro. Estavam ambos meio desarvorados. Aquilo então era coisa que se fizesse? Olhavam para Getúlio Vargas com uma expressão de censura em que se mesclavam surpresa e zanga. O deputado de São Borja, abrindo o seu sorriso mais sedutor, de excelentes dentes, convidou-os a sentarem-se, perguntando-lhes se queriam beber alguma coisa gelada. Nenhum dos dois queria. Sentaram-se com uma certa relutância pesada, cada qual na sua poltrona, separados por três metros de tapete. Getúlio Vargas acendeu com pachorra o seu charuto e por alguns instantes permaneceu silencioso a olhar, de um para outro, os dois velhos, como um árbitro que, no meio da arena, prepara-se para anunciar ao público a luta de boxe que se vai travar entre dois campeões de peso-pesado.

– Perdoem-me pela “traição” – disse ele. – Quando os fins são bons, às vezes temos de fechar os olhos à natureza dos meios. Foi essa a única maneira que encontrei para juntar numa mesma sala dois antigos adversários pessoais e políticos.

Fez uma pausa pontuada por baforadas da fumaça do charuto e pôs-se a andar dum lado para outro.

– Estou aqui a mandado de meu pai. O velho Manuel me fez portador dum pedido ao senhor, Cel. Xisto, e ao senhor, Cel. Benjamim. Os amigos hão de concordar em que os tempos estão mudando. O mundo se encontra diante da porteira duma nova Era. Essas rivalidades entre maragatos e republicanos serão um dia coisas do passado. Precisamos pacificar definitivamente o Rio Grande para podermos enfrentar unidos o que vem por aí...

Nenhum dos dois chefes antarenses perguntou o que era que vinha por aí. Mantiveram-se silenciosos e emburra-dos, bufando de calor. Getúlio ergueu a cabeça e soltou uma baforada de fumaça na direção do lustre de vidrilhos que pendia do centro do teto. Benjamim – que, por insistência de seus familiares, consentira em usar um olho de vidro para substituir o que perdera na Guerra do Paraguai – com o olho natural fit iva obsessivamente a escarradeira de louça pintada que tinha a seus pés. Xisto tamborilava nervosamente com os dedos de ambas as mãos nos braços da poltrona, enquanto seus lábios murchos e arroxeados se pre-gueavam, deixando escapar uma espécie de assobio que não passava duma ventosidade sem melodia.

– Pois o velho Manuel apela para os senhores – tornou a falar o emissário de São Borja – para que façam as pazes, apertem-se as mãos, esqueçam as diferenças e os agravos do passado e daqui por diante trabalhem juntos pelo progresso e pela grandeza de nossa terra. Não há nenhum desdouro nessa reconciliação, cuja iniciativa não partiu de nenhum dos prezados amigos aqui presentes. Foi um vizinho, um republicano, que se lembrou disso, com a melhor das intenções. Se não quiserem fazer as pazes em atenção ao meu pai ou a mim, reconciliem-se então pelo amor ao Rio Grande.

Getúlio continuou a falar sem ênfase oratória, macio e persuasivo. O Rio Grande estava destinado a cumprir no Brasil uma grande missão em prol da unidade nacional. Para isso, entretanto, era preciso primeiro recuperar a sua hegemonia política perdida após o assassinio do Senador Pinheiro Machado.

 

Não passou despercebido ao jovem deputado o efeito mágico produzido pelo nome de Pinheiro Machado no Cel. Xisto, que, ao ouvi-lo, pigarreou enquanto a pàlpebra de seu olho esquerdo tremia nervosamente.

– Quem governa o Brasil – prosseguiu Getúlio – são ora os mineiros ora os paulistas, a famosa fórmula “café com leite”. – Soltou uma risada. – Não é justo que o chimarrão tenha também a sua vez?

Falou durante mais dez minutos, concluindo assim:

– Pois agora me digam sinceramente que é que ganham sendo inimigos? Quem perde é Antares e o Rio Grande. – Voltou-se para Xisto Vacariano. – Autorizo ao senhor, coronel, a dizer publicamente, a quem quiser, que foi meu pai, que fui eu, dois republicanos, que o procuraram para fazer esta proposta de paz. Que me diz, Cel. Benjamim?

O maioral dos Campolargos parecia ainda hipnotizado pela escarradeira. Finalmente ergueu o olho bom para o “moço de São Borja” e murmurou: “Pôs é...”, vago mas já meio inclinado ao sim. O cacique dos Vacarianos, que até então estiverà sentado meio de lado, mexeu-se na poltrona e transferiu o peso do busto para o outro hemisfério das nádegas, e seu assobio sem música foi substituído por uma espécie de prolongado ronco, que tanto podia ser um princípio de assentimento como o rosnar do cachorro prestes a morder. Getúlio tornou a fazer um apelo:

– Vamos, apertem-se as mãos! O que passou, passou. Os dois anciãos levantaram-se com certa má vontade, aproximaram-se um do outro com passos arrastados e lentos e, sem se olharem cara a cara, trocaram o simulacro dum aperto de mãos. Getúlio então abraçou-os a ambos, agradeceu-lhes e felicitou-os pelo gesto, em seu nome e no de seu pai.

Seguiu-se um momento de constrangido silêncio em que nenhum dos dois adversários crônicos parecia querer ser o primeiro a dirigir a palavra ao outro. Por fim o Cel. Campolargo, fazendo um esforço sobre si mesmo, olhou enviesado para Xisto e murmurou:

– Como vai a sua patroa?

Apanhado de surpresa, pois havia mais de sessenta anos que não trocava uma palavra sequer com aquele Campolargo, Xisto ficou meio estonteado, como se tivesse sido abruptamente agredido pelo outro. Mas, recompondo-se, respondeu automaticamente:

– Bem. E a sua?

– Ué... morreu o ano passado. Não sabia? Benjamim encabulou. Tinha esquecido o óbito por completo.

– Desculpe! Meus pêsames. Getúlio Vargas interveio:

– Bom, vamos agora ao “tratado de paz”. Acho necessário, indispensável mesmo, que mandemos publicar não só no jornal local, como também no Correio do Povo, no Diário do Interior de Santa Maria e no Correio do Sul de Bagé uma declaração conjunta, assinada por ambos os amigos, explicando ao eleitorado do Rio Grande o motivo e o sentido desta reconciliação. – Levou a mão ao bolso interno do casaco. – Tenho aqui um manifesto já preparado. Vou ler para ver se os amigos estão de acordo com os seus termos ...

 

Momentos depois os dois velhos estavam em suas respectivas casas. Vacariano refletia, desapontado: “Acho que deixei me embrulhar por aquele deputadinho de borra”. Deu à família reunida para ouvi-lo a sua versão do encontro. Afirmou que tinha relutado muito, imposto condições, deixado bem claro que aquilo “não era casamento”, e que ele continuava a ser federalista, corno sempre.

Benjamim Campolargo não estava de todo descontente com o acordo que firmara. Getúlio Vargas bem podia ser o homem já escolhido pelo Dr. Borges de Medeiros para substituí-lo no governo do Estado. Talvez ele, Benjamim, tivesse acabado de atender a um pedido do futuro presidente do Rio Grande do Sul. Em casa também mentiu, dando a sua versão do fato. Ao fim do relato disse: “Me tragam álcool para eu me desinfetar. Toquei a mão dum Vacariano. Dizem que falta de vergonha é doença contagiosa”.

Pouco mais disse pelo resto de sua vida, que foi de apenas algumas horas, ^aquele mesmo dia teve um edema agudo de pulmão e faleceu ao anoitecer. Xisto, que logo após a reunião se havia retirado para a estância, morreu menos de uma semana mais tarde, com o ventre rasgado pela cornada dum boi xucro que seu lenço vermelho provocara. Antares entrou assim no seu Eoceno político.

Vacarianos e Campolargos – honrando o tratado de paz – trocaram-se condolências e custosas coroas de flores. Tibério fe ninguém nunca ficou sabendo ao certo por que o velho Xisto dera ao seu primogênito o nome dum imperador romano de tão equívoca fama) assumiu a chefia da família. Não houve problemas de inventário. Não apareceu nenhum advogado cabresteando filhos ou filhas naturais do velho Xisto, embora os houvesse às pencas.

Quanto a Zózimo, o único descendente macho do falecido Benjamim por linha reta, era um homem sem nenhuma vocação para a liderança. Tinha terminado o curso gi-nasial e feito dois anos de Direito. Gostava de ler, era meio indolente – homem de boa paz. Ficou desconcertado quando se viu feito patriarca do clã dos Campolargos. Respondeu a essa situação com eólicas intestinais que duraram uma semana. Por sorte ou desgraça sua – e neste particular as opiniões em Antares dividiam-se – sua mulher Quitéria, uma Campolargo tanto por parte de pai como de mãe, era uma criatura enérgica e inteligente, senhora de razoáveis leituras, e até duma certa astúcia política, de maneira que, depois da morte do velho Benjamim, embora Zózimo empunhasse, sem o menor garbo, o cetro de patriarca, D. Quita – como ela gostava de ser chamada, pois detestava, por antigo, o nome avoengo que recebera em batismo – passara a ser a “eminência parda”, o “poder por trás do trono”.

Eram bastante cordiais suas relações com a mulher de Tibério Vacariano, D. Briolanja, conhecida na intimidade como Lanja – outra que também não gostava do próprio nome de sabor arcaico. Nunca haviam tido nenhum atrito. Visitavam-se. Estimavam-se até. Trocavam-se receitas de doces, bolos e tricô. Lanja era o tipo da dona de casa, ocupada e preocupada com os filhos, os netos e os deveres domésticos, isso para não falar na sua devoção ao marido. Pode-se afirmar que as boas relações humanas entre essas duas damas contribuíram, mais que qualquer outro fator, para a consolidação da paz entre Campolargos e Vacarianos.

 

Quando em novembro de 1926 chegou a Antares a notícia de que Getúlio Vargas havia sido feito Ministro da Fazenda do gabinete de Washington Luís, que sucedera Artur Bernardes na presidência da República, Tibério Vacariano sorriu e, como se estivesse falando dum foguete, disse a um amigo: “Lá se foi o Baixinho! Vai subir muito alto antes de estourar”.

Não se enganava. Getúlio Vargas foi eleito presidente de seu próprio Estado quando Borges de Medeiros chegou ao termo de seu quinto mandato. Graças ao seu espírito conciliatório e à sua habilidade política, conseguiu o novo governante criar no Rio Grande um tão ameno clima político, que tornou possível a aliança de libertadores com republicanos numa Frente Única que apoiou a candidatura de Vargas à presidência da República, resultante duma desavença entre os políticos de São Paulo e os de Minas Gerais – pois estes não aceitavam o candidato que Washington Luís havia indicado intransigentemente para substituí-lo.

Consumada a Aliança Liberal em todo o Brasil, maragatos e pica-paus, cerrando fileiras no Rio Grande do Sul, de braços dados, Tibério Vacariano exclamou: “Esse Getú-lio nasceu mesmo com o rabo virado pra Lua!” E atirou-se com entusiasmo à propaganda eleitoral do “homenzinho de São Bor ja”. (“Que diria o falecido Xisto se me visse trabalhando pela candidatura dum republicano?”)

No dia das eleições nacionais ajudou os pica-paus a falsificar atas, fazendo todos os defuntos do cemitério local votar no seu candidato. Andava de mesa eleitoral em mesa eleitoral, oferecendo sugestões no sentido de aumentar fraudulentamente o número de votos favoráveis a Getúlio Vargas. (“Imaginem eu, um maragato, querendo ensinar o Padre-Nosso ao vigário”, brincava ele com os republicanos, mestres em fraudes daquela espécie.) Os fiscais do candidato oficial, em geral funcionários públicos federais que exerciam essa função a contragosto, faziam vista grossa a todas essas bandalheiras.

 

Quando em 1930 o Congresso Nacional proclamou a vitória eleitoral do candidato de Washington Luís, Tibério Vacariano berrou na praça de Antares-. “Fomos esbulhados! Esses ladrões só nos podiam vencer em eleições fraudulentas! Agora só há um caminho: a revolução!”

E aqueles meses durante os quais os jornais falavam com insistência duma “arrancada” das forças do Rio Grande do Sul para derrubar o autocrata que ousava impor à nação um candidato próprio – foram tempos de impaciência, tanto para Campolargos como para Vacarianos, cavalos de guerra que mordiam o freio e escarvavam o chão. indoceis, e só não se precipitavam em épico galope rumo da capital federal porque suas rédeas estavam em mãos indecisas. “No Rio e em São Paulo já fazem troça de nós. Dizem que somos parlapatões, que a nossa decantada bravura é pura farofa!”

Zózimo Campolargo, esse parecia já disposto a aceitar o fato consumado. De resto, o Dr. Borges de Medeiros, chefe de seu partido, não lhe parecia nada entusiasmado com a idéia duma subversão da ordem. E Zózimo assim se deixou ficar na sua vidoca, lendo lenta e interminavelmente os jornais, indo de vez em quando ao cinema (gostava especialmente dos filmes de cow-boys), tomando o seu chi-marrão habitual e relendo romances de Camilo Castelo Branco, Machado de Assis e Eça de Queiroz.

Tibério, porém, não se conteve. Embarcou para Porto Alegre, confabulou com o próprio Getúlio Vargas, achou-o vago, ambíguo e ficou irritado: “Mas como é o negócio, Presidente? Vamos ou não vamos?” O Homem sorriu: “Devagar com o andor, coronel”. Tibério voltou para Antares decepcionado. Depositava agora as suas esperanças bélicas em Oswaldo Aranha, figura fascinante que lhe parecia mais gauchamente afoito que o precavido e manhoso político de São Borja.

Em princípios de outubro daquele ano, quando lhes chegou finalmente a esperada senha telegràfica (“O que é que há?”) Tibério tinha já organizado a sua tropa. E alegrava-lhe o coração ver entre seus soldados mais lenços vermelhos do que brancos.

Um dia lhe chegou a ordem de marchar. E uma das maiores decepções de sua vida foi que a batalha campal de Itararé – que poderia ter sido uma das maiores da História do Brasil, não chegou a travar-se.

Havia, porém, um Vacariano entre os membros da Legião Bento Gonçalves que, depois da vitória da revolução, amarraram seus cavalos no obelisco da Av. Rio Branco. Como observou alguém, não bastara aos gaúchos derrubar o governo federal: era preciso também, numa afirmação de machismo guasca, ridicularizar aquele símbolo fálico da cidade São Sebastião do Rio de Janeiro.

 

Zózimo Campolargo seguira também rumo de Itararé com o Corpo Provisório de Antares, comandado por Tibério Vacariano. Não levava a sério o seu uniforme caqui nem as suas divisas de major. Não se considerava diminuído e, muito menos, engrandecido por servir sob as ordens dum Vacariano. Tudo aquilo lhe era indiferente. E que muito do que nele parecia pura apatia era um pouco ceticismo e um certo horror à teatralidade.

Em 1932, quando os paulistas fizeram a sua revolução, exigindo uma Constituição nova para o país e eleições presidenciais – pois lhes parecia que o “governo provisório” de Vargas estava ficando crônico – Tibério Vacariano de novo formou seus batalhões, “para defender a legalidade”, segundo ele – “para forrar o poncho”, murmuravam à so-capa seus desafetos, que conheciam todas as tramóias que o filho de Xisto fazia com as suas famosas “requisições de guerra”.

Zózimo Campolargo, entretanto, simpatizava com a revolução constitucionalista. Nada, porém, podia – nem mesmo queria – fazer de concreto a favor dela. Limitava-se a escutar às escondidas o noticiário sobre a guerra civil divulgado pelas estações de rádio dos revoltosos.

Entre os muitos bens e obrigações que lhe haviam cabido por morte do pai, herdara também, embora a contragosto, a fidelidade política que o velho Benjamim votava ao Dr. Borges de Medeiros, e da qual ele, Zózimo, participava duma maneira apenas intelectual, morna e distante. Quando se divulgou a notícia de que o velho chefe republicano, num gesto simbólico mas dum grande sentido moral, havia “ido para a coxilha” de armas na mão, cumprindo um compromisso assumido com os revolucionários paulistas – Zózimo Campolargo, que gostava de imaginar-se um homem liberto de mitos e símbolos – julgou-se no dever de juntar-se ao ídolo político de seu falecido pai. Preparou-se para isso, mas com tão pouco entusiasmo e tamanho vagar, que na véspera de deixar Antares para ir ao encontro do pequeno grupo que acompanhava o Dr. Borges de Medeiros, chegou-lhe a notícia de que o histórico varão da propaganda republicana havia sido feito prisioneiro por tropas fiéis a Getúlio Vargas, depois do combate de Cerro Alegre.

Como na cidade era bastante conhecida a sua posição ante aquela guerra civil, Zózimo Campolargo não hesitou em cruzar o rio, buscando asilo na Argentina. D. Quitéria, porém, permaneceu em Antares, para tomar conta da família e de seus negócios, e de vez em quando ia a Buenos Aires visitar o marido. Tibério Vacariano fazia vista grossa a essas idas e vindas. Gostava dos Campolargos. Dizia aos íntimos que nesse casal era a mulher quem carregava os cojones. Zózimo voltou para Antares em princípios de 1933. Quando ele e Tibério se encontraram na rua pela primeira vez, apertaram-se as mãos, abraçaram-se e o Vacariano, com um risinho entre sarcástico e afetuoso, perguntou:

– Ué? Onde andou metido todo esse tempo? Na estância?

 

Quando em 1934 o Brasil adotou uma nova Constituição e Getúlio Vargas foi eleito Presidente da República pela Assembléia Constituinte, por um período de quatro anos, Tibério Vacariano fez sua primeira visita ao Rio de Janeiro. Teve um rápido colóquio com o Presidente, que o recebeu com afabilidade, no Palácio do Catete, declarandc-lhe: “O senhor, coronel, é o meu homem de confiança em Antares”. Tibério aproveitou a oportunidade para conseguir com o chefe da nação bons empregos em repartições públicas federais para alguns de seus parentes e amigos. Fez esses pedidos como quem quer dar a entender que ele, Vacariano, não queria nada para si mesmo, pois “Deus me livre, Prendente, de abusar duma amizade...”.

Passou um mês na capital federal, conheceu-lhe a vida noturna, fez relações, insinuou-se nos bastidores da política e ficou estonteado quando teve uma visão do mundo dos negócios e especialmente do submundo das negociatas. Guardou a impressão de que o Rio era como uma daquelas localidades do Far West americano – que ele conhecia de fitas de cinema – nos tempos da corrida para o ouro. Na capital do Brasil havia ouro à flor do solo. Os primeiros faiscadores – vindos de todos os quadrantes do país – mexiam no cascalho das repartições públicas e principalmente no dos ministérios. Alguns haviam já encontrado veios riquíssimos. Era uma luta de apetites, choques de interesses, um torneio de prestígio, um jogo de “pistolões”. Muitos dos capitães e soldados da revolução que levara Vargas ao poder, cobravam agora o seu soldo de guerra. Um amigo de Tibério, um gauchão cínico, que ganhara um lucrativo cartório, lhe disse um dia, comentando aquele “garimpo” alucinado: “Para conseguir o que quer, Tibé, essa gente é capaz de tudo, até de usar meios decentes e legais”.

Tibério Vacariano voltou para casa com a cabeça cheia de planos efervescentes. Concluíra que havia chegado a sua hora de “tirar o pé do lodo”, isto é, livrar-se por uns tempos da vidinha pacata, segura mas medíocre e monótona que levava em Antares. Afinal de contas um homem só vive uma vez. Tinha já entrado na quadra dos quarenta, sentia-se em pleno meio-dia da vida. O Rio de Janeiro fervia permanentemente de fêmeas jovens e apetitosas, algumas delas fáceis. Pela primeira vez Tibério havia atentado na beleza do cenário da grande metrópole. “Ota cidade linda!” – costumava dizer aos amigos.

Em Antares encontrou tantos problemas e tarefas ato-caiados à sua espera, que se deixou envolver por eles e pela rotina, e acabou guardando seus projetos cariocas em alguma recôndita gaveta de seu ser. Algumas vezes, porém, quando estava em cima dum cavalo, na estância, parando rodeio ou simplesmente cruzando uma invernada, passavam-lhe pelo campo da memória imagens fugidias como essas que a gente mal vê pela janela dum trem em movimento. O Corcovado... a pedra da Gávea... ondas batendo na pedra do Arpoador... as areias de Copacabana... caras, coxas, seios, pernas, nádegas de mulheres, sob pára-sóis coloridos... peles reluzentes de óleo de coco... e o sol e o mar e as montanhas... “Pota que me pariu! Que é que eu estou fazendo aqui neste fim de mundo, fedendo a creolina e levando esta vida de baguai?”

Nessas ocasiões Tibé Vacariano entregava-se a algo que tinha todo o jeito duma saudade. Precisava voltar àquela “California”!

 

E voltou mesmo, em 1938, depois de proclamado o Estado Novo, que lhe pareceu um “golpe genial do Baixinho” para continuar no poder sem os trambolhos do Congresso e dos partidos políticos. Antes de embarcar, conversou longamente com Zózimo, que o escutou num silêncio entre tristonho e constrangido:

– Precisas compreender, homem, que os tempos mudaram. – E, num tom quase de colegial lendo um editorial de jornal, acrescentou: – É preciso reformar as velhas estruturas chamadas democráticas liberais. O Getúlio compreendeu a coisa. Somos um país subdesenvolvido de analfabetos e indolentes. É indispensável unificar e organizar a nação com punho de ferro. Vê o caso da Itália... O Mussolini acabou com a anarquia, implantando a ordem e o respeito à autoridade, e os trens já partem e chegam dentro do horário.

– Não sabia que tinhas aderido ao fascismo – sorriu Zózimo.

– Qual fascismo qual nada! Sou um realista e como tal simpatizo com os regimes autoritários. Sempre simpatizei, tu sabes.

– Mesmo no tempo do Dr. Borges de Medeiros?

– Ó homem, estamos na era do avião e do rádio e tu me vens com o borgismo! Naquela época eu era pouco mais que um rapazola inexperiente. E se me meti na revolução de ‘23 foi só para seguir o meu velho pai. Mas não desconverses. O Hitler reergueu a Alemanha, aboliu todos os partidos (menos o dele, naturalmente), botou pra fora do país os judeus que, como se sabe, são os culpados dessas guerras e intrigas políticas e financeiras internacionais, homens gananciosos e sem pátria.

– Também não sabia que tinhas virado racista.

– Racista eu? Ora, não sejas bobo. Sabes como trato a minha negrada. Eles me adoram. Mamei nos peitos duma negra-mina. Me criei no meio de moleques pretos retintos. Quando leio esses casos de ódio racial nos Estados Unidos, comento a coisa com a Lanja e lhe digo que no Brasil a gente, graças a Deus, não tem esses problemas, pois aqui o negro conhece o seu lugar.

Logo ao chegar ao Rio, em maio de 1938, a primeira coisa que Tibério fez foi visitar Getúlio Vargas e reafirmar-lhe a sua solidariedade pessoal e política. Nessa ocasião o ditador lhe disse: “Pois me alegro de ver que o amigo compreendeu o espírito do Estado Novo, que no fundo é puro castilhismo”. Tibério, que havia herdado do pai uma antipatia invencível pela figura de Júlio de Castühos e por suas idéias políticas, limitou-se a dizer: “Mas é claro, Presidente, só não vê isso quem não quer!”

Naquele mesmo ano o chefe do clã dos Vacarianos comprou um apartamento na Av. Atlântica com o auxílio dum empréstimo conseguido rapidamente no Banco do Brasil, graças a um cartão com umas palavrinhas do Homem. Pretendia dali por diante passar uma parte do ano no Rio e a outra em Antares, evitando assim – explicava – os invernos úmidos das barrancas do Uruguai, que já começava a sentir nos ossos.

 

Em 1940 estava já funcionando a máquina que ele montara para ganhar dinheiro. Associado a um primo seu e amigo íntimo, formado em Direito, Tibério abrira um escritório de advocacia administrativa e começara a vender a mais curiosamente abstrata das mercadorias: influência. Era um negócio em que não empatava nenhum capital em dinheiro. Jogava com o seu prestígio pessoal, suas boas relações com indivíduos colocados em postos-chave na engrenagem governamental. Sabia-se que ele tinha trânsito livre no Catete e em vários ministérios, e isso lhe valia boas comissões pagas com muito boa vontade por quem quer que estivesse interessado em movimentar requerimentos encalhados no mar de sargaço das repartições públicas.

Esquentado, autoritário – a princípio cometeu o erro de empregar nessas gestões o que ele chamava de “sistema gaúcho” e ir levando tudo e todos por diante “a grito no mais...”. O primo foi franco com ele: “Olha, Tibé, não te esqueças que não estás na tua estância onde mandas e desmandas, gritas com os teus peões e eles baixam a cabeça e te obedecem. Esse negócio de bancar o valentão não dá resultado aqui no Rio. Os nortistas, os nordestinos e os mineiros são, sem dúvida alguma, tão machos como nós e nos levam a vantagem de serem muito mais espertos e habilidosos. Ou tu mudas de tática ou acabamos dando com os burros nágua”.

Tibério não gostou da crítica mas procurou aproveitar a lição. Mudou de método. Aos poucos aprendeu a pacienta, a blandícia, a sinuosidade. Recalcou suas cargas de cavalaria ancestrais. Pode-se até dizer que no Rio completou 0 seu aprendizado de pedestre. Não esqueceu, entretanto, flue de vez em quando, em casos extremos, quando todos os outros recursos se esgotam, dava bom resultado segurar “o sacripanta” pelas lapelas, apertá-lo contra uma parede e rosnar: “Te quebro a cara, cafajeste!” Gestos violentos como esse, porém, se foram tornando cada vez mais raros.

Aos quarenta e dois anos, era Tibério Vacariano um homem alto e corpulento, de cabeça leonina, cara larga dum moreno claro, olhos meio enviesados e escuros, denunciando antepassados bugres, denúncia essa confirmada pelos malares um pouco salientes e pela basta cabeleira negra e lisa. Trajava com essa “elegância da fronteira”, de que era exemplo típico o Dr. José Antônio Flores da Cunha – camisas e gravatas de seda, ternos de linho branco, chapéu panama. Era um bom contador de “causos”. Suas anedotas e relatos picarescos, temperados aqui e ali com castelhanismos oportunos, faziam sucesso, contribuindo para que o filho do falecido Xisto Vacariano se tornasse uma figura popular em certos círculos sociais do Rio de Janeiro, onde era considerado um “boa bola”. Tinha fama de generoso, pois as pessoas não chegavam a perceber bem que suas dádivas eram mais verbais que concretas. Tibério sabia administrar muito bem a sua “generosidade”, exercendo-a apenas com pessoas que lhe estavam sendo ou pudessem um dia vir a ser-lhe úteis.

Era visto com freqüência na madrugada dos cassinos, na companhia de belas mulheres. Jogava roleta com alguma sorte. Teve uma amante húngara, que acabou abandonando “por cara”.

Além da advocacia administrativa, ganhava dinheiro em transações imobiliárias e ocasionalmente no câmbio negro. A Segunda Guerra Mundial proporcionou-lhe oportunidades para bons negócios, uns lícitos, outros ilícitos. Habituara-se a viver à sombra do Banco do Brasil, do qual conseguia empréstimos para amigos e sócios, e para si mesmo. E, como tantos de seus pares, já possuía, num banco de Zurique, uma conta corrente numerada, cada vez mais gorda em dólares.

Em 1931 entrara no que considerava um verdadeiro “negócio da China”. Estabeleceu uma “fábrica” de seda nos arredores de Antares. Constava ela apenas dum grande barracão de madeira às margens do Uruguai, sem nenhuma máquina, apenas com mesas e prateleiras, e uma porta que dava para o rio e três na fachada. À noite vinham da margem argentina barcas carregadas de peças de seda, de origem vária, e que eram levadas para a “fábrica”, onde uns cinco ou seis empregados as enrolavam em rótulos Seda Flor da Fronteira – Indústria Nacional e depois as expediam para muitas partes do Estado e para Santa Catarina e Paraná. Os guardas aduaneiros protegiam esse contrabando. Eram “gente do Tibé”, todos bem remunerados pelo caudilho.

Ano após ano, mal entrava o mês de novembro, Tibério punha-se a caminho do Rio Grande do Sul, de Antares e das suas terras, onde tornava a ser o estancieiro, o patrão, o homem que manda, desmanda e grita. Aliviava assim o peito e a cabeça de todos os impropérios e ímpetos agressivos reprimidos durante seus meses de “atividade civilizada” no Rio de Janeiro, no convívio com gente do asfalto e da areia da praia.

De quando em vez, durante o verão, ia à cidade para conversar com seus amigos e prepostos. O prefeito de Antares era um primo-irmão seu, pois o interventor federal não nomeava ninguém para cargos públicos dentro daquele município sem antes consultar o seu cacique.

Quando, em fins de abril ou princípios de maio de cada ano, embarcava de volta à capital federal, Tibério Va-cariano, ao vestir a sua roupa de linho ou tropical, enver-gava também a sua “personalidade carioca”. Já se habituara a esse tipo de vida, e achava até um sabor esquisito nessa duplicidade. D. Briolanja, que detestava o Rio de Janeiro com um provincianismo talvez animado por uma centelha de orgulho farroupilha, via com resignada apreensão as transformações por que passava o marido. Nada dizia, porém. Tinha o hábito, que mais parecia um vício, do silêncio. Voltava-se inteira para os filhos e os sobrinhos e para as suas atividades de dona de casa. Sabia também que, se interpelasse o marido por causa daquela sua vida de cassinos e aventuras eróticas (recebia às vezes cartas anônimas) ele lhe perguntaria, como já fizera uma vez: “Por acaso está te faltando alguma coisa, Lanja?”

 

Quando em 1943 um grupo de intelectuais e políticos mineiros publicou um manifesto pedindo a volta do Brasil ao regime democrático, Tibério Vacariano interpretou isso como a primeira fissura visível no baluarte do Estado Novo, cujos fundamentos – sentia ele – estavam sendo aos poucos solapados pelo trabalho subterrâneo de seus inimigos. A própria História – como lhe havia dito um amigo de boas letras – conspirava contra o regime getulista, cujas contradições eram demasiado visíveis e haviam ficado ainda mais gritantes quando, no ano seguinte, o Brasil mandou uma Força Expedicionária à Itália, para lutar ao lado dos americanos, em nome da democracia, contra o totalitarismo hitlerista, enquanto Getúlio Vargas mantinha ern casa uma versão paternalista de fascismo.

Foi com certa apreensão – e já pensando na sua retirada, caso houvesse uma radical mudança de ventos políticos – que Tibério Vacariano viu entrar o ano de 1945. Em janeiro leu nos jornais a notícia de que se havia reunido o Primeiro Congresso de Escritores Brasileiros, do qual resultará um memorial em que se reclamava publicamente a volta do país ao regime democrático. Tibério era um inveterado ledor de jornais e de vez em quando lia livros – de preferência biografias e crônicas políticas – mas em seu espírito, por alguma razão misteriosa, jamais tinha presente com clareza a relação existente entre livro e autor, como a de causa e efeito. Quando se referia a alguma pessoa incor-rigivelmente sonhadora, destituída de senso comum, costumava dizer: “E um poeta!” Estava já convencido de que os escritores em sua maioria inclinavam-se politicamente para a esquerda, sendo portanto “uns chatos”. Pois agora até esses escrevinhadores – que nem sequer constituíam uma classe pois não tinham sindicato – haviam deitado manifesto, reclamando não só completa liberdade de expressão como também eleições presidenciais por sufrágio universal e com voto secreto!

O que deu a Tibério uma idéia de como o Departamento de Imprensa e Propaganda – o famigerado D.I.P. – começara a “dormir nas palhas” foi o ter ele permitido que os jornais publicassem uma entrevista com José Américo de Almeida, e na qual o amigo do falecido João Pessoa se manifestava claramente favorável à realização de eleições presidenciais e declarava, com todas as letras, que nesse pleito dois homens havia no Brasil que não podiam ser candidatos: ele próprio e o Dr. Getúlio Vargas.

O ditador, que fazia muito andava silencioso, marom-bando, concedeu à imprensa uma entrevista coletiva na qual procurou justificar a sua discutida Constituição de ‘37, da autoria do Prof. Francisco Campos. Quando lhe perguntaram se pretendia ser candidato à reeleição, desconversou.

Falava-se, pois, e escrevia-se livremente sobre a “rede-mocratização do Brasil”. Os jornais aos quais o D.I.P. dera um dedinho de liberdade tomavam toda a mão, alguns já exigiam o braço e cedo a imprensa acabaria agarrando o corpo inteiro...

Os universitários, que tinham fundado a União Brasileira de Estudantes, realizaram no Rio um agitado comício popular pró-democracia. Seus colegas no Recife fizeram idênticas demonstrações mas a polícia lá reagira contra eles com grande violência, matando um estudante e um operário.

 

Em abril de 1945 o governo de Getúlio Vargas concedeu anistia a todos os presos políticos do país, inclusive ao chefe comunista Luís Carlos Prestes, encarcerado havia quase nove anos.

As eleições presidenciais haviam sido marcadas oficialmente para o dia 2 de dezembro daquele mesmo ano. Um dia um amigo “liberalòide” de Tibério encontrou-o no saguão de um dos ministérios e saudou-o de longe com um gesto de mão e estas palavras: “A procissão está na rua, meu velho!” Tibério sacudiu a cabeça, num assentimento, e ficou pensando: “Que a procissão está na rua eu sei. Só não sei ainda que santo, que irmandade vou seguir”.

Um dos candidatos à presidência da nação já público e notório era o Brig.ro Eduardo Gomes, com o qual Tibério antipatizava por causa de sua reputação de homem impoluto, espécie de vestal do Exército e da Democracia. (A palavra democracia começava a fazer-lhe mal ao estômago.) Um novo partido, a União Democrática Nacional, formado principalmente por elementos antigetulistas, havia decidido adotar oficialmente a candidatura do Brigadeiro. Um segundo candidato surgira na pessoa do Gen. Eurico Gaspar Dutra, Ministro da Guerra do governo de Getúlio Vargas, com cujo beneplácito – já publicamente anunciado pelo próprio ditador – ele contava. (Tibério via nesse apoio um gesto de diabólica habilidade política, ao mesmo tempo de sutil humorismo e, bem no fundo, de “vingança”, como se o Baixinho pensasse assim: “Ah! Me acham ruim? Pois elejam o Dutra para ver o que é bom”.)

Para Tibério o Gen. Dutra “não cheirava nem fedia”. Era sem dúvida um cidadão honrado. Mas quantos milhões de homens decentes existiriam no território nacional mas sem competência para dirigir a nação? Outro aspecto da questão sucessória que impressionava o Cel. Vacariano era o fato de que o salafrário do Getúlio – e aqui o adjetivo salafrário tinha uma conotação positiva e afetuosa – contava ainda com a estima e a admiração de grande parte do povo brasileiro.

Um dia teve uma audiência de cinco minutos com o ditador e. depois de tratar do assunto que o levara até ele, perguntou-lhe de chofre: “Presidente, por que o senhor não se candidata em dezembro? As massas estão do seu lado. A sua eleição seria uma barbada”. O são-borjense mostrou os belos dentes no seu já lendário sorriso despistador e murmurou: “Quem sabe, coronel?” E em seguida como que se sumiu, envolto na fumaça azulada de seu longo charuto. E não tocou mais no assunto.

A Grande Guerra havia terminado. Hitler estava morto e o nazismo, aniquilado. A Força Expedicionária Brasileira em breve começaria a voltar à pátria. O Partido Comunista Brasileiro agora funcionava legalmente e realizara já um grande comício Os estudantes continuavam politicamente ativos. Os mineiros ainda conspiravam. A candidatura do Gen. Dutra contava com o apoio oficial do Partido Social Democrático, formado de elementos conservadores, forças que até então, dum modo ou de outro, haviam colaborado com Getúlio Vargas em todo o país, e que tinham grande força nas pequenas cidades das zonas rurais.

Talvez o mais certo – concluiu Tibério, pensando na sabedoria dum ditado gaúcho – seria apostar no “cavalo do comissário”, que nunca perde carreira.

Em agosto daquele ano um amigo seu, getulista dos quatro costados, lhe disse:

– Coronel, acabamos de fundar o Partido Trabalhista Brasileiro. Vai ser o mais poderoso do Brasil, o partido das massas, do operariado, do homem comum, do povo. Seja um dos nossos! O P.T.B. vai lutar contra essa idéia desastrosa das eleições presidenciais em dezembro. Queremos uma Constituinte com Getúlio ainda no poder.

– Mas esse é o programa do Partido Comunista!

E daí? Se a idéia é boa, por que não apoiá-la?

– Com comunistas não vou nem pro Céu.

– Mas quem lhe disse que comunista entra no Céu?

– Queres que te fale com franqueza? As coisas estão de tal modo confusas que já não sei mais a quantas andamos. Depois que li nos jornais que o governo dos Estados Unidos permitiu que as tropas russas chegassem a Berlim primeiro que as deles, e depois que vi numa fotografia soldados soviéticos e americanos confraternizando... bom, não duvido de mais nada. Se me disserem que Deus Nosso Senhor deu uma guinada para a esquerda, eu acredito...

Tibério Vacariano via agora, para onde quer que se voltasse, cartazes e letreiros nas paredes e muros: Queremos Getúlio! – Abaixo as Eleições de Dezembro! – Constituinte com Getúlio. Os termos queremismo e queremista pareciam ter entrado definitivamente para o dicionário político brasileiro.

Por outro lado o Brigadeiro empolgava as chamadas elites, atraía os elementos intelectuais da nação, ao mesmo tempo que sua figura física e sua auréola de bom filho e bom católico fascinava mulheres de todas as idades. A cara do Gen. Dutra – achava Tibério – não ajudava o homem eleitoralmente. Mas um dia, por acaso, entreouviu um certo Dr. Fernando Carneiro, homem de aguda inteligência, dizer numa roda: “Ganha o Gen. Dutra. É que o eleitor brasileiro tem uma curiosa confiança e até uma certa predileção afetuosa pelos homens fisicamente feios”. Quanto ao Baixinho, continuava calado, e muitos imaginavam que ele tinha escondida na manga uma carta – um ás – que jogaria no momento oportuno.

Tibério Vacariano tratou de preparar cuidadosamente a sua retirada. Fazia já alguns anos que tinha fechado a sua “fábrica de seda” às margens do Rio Uruguai. Não queimou propriamente pontes, mas queimou papéis. Quando menino aprendera, em teatros mambembes e circos de cavalinhos, que existem principalmente dois tipos de mágicos: os sujos e os limpos. Os primeiros trabalhavam tão mal, que seus truques ficavam visíveis e risíveis, e os pobres coitados eram vaiados pelo público. Os segundos tinham tal habilidade, tal destreza, que as suas prestidigita-ções pareciam verdadeiros milagres. Tibério gabava-se de ser um “mágico limpo”. Procurava fazer as suas trapaças sem ficar com o rabo preso na ratoeira. Por princípio jamais escrevia cartas ou mesmo bilhetes. Negava-se terminante-mente a assinar compromissos escritos, até mesmo os rigorosamente legais. Com ele era tudo “no papo”. Mesmo assim, encontrou documentos que precisava destruir, por perigosos.

Quando em setembro daquele ano de 1945 voltou para Antares, ao vê-lo chegar na maciota, antes do tempo, os maldizentes murmuraram: “O navio deve estar mesmo afundando, pois os ratos já começaram a abandoná-lo...”.

 

Tibério Vacariano encontrava-se ainda na estância em outubro de 1945 quando ouviu pelo rádio a notícia de que o Exército havia forçado Getúlio Vargas a renunciar. Escutou também, e com um risinho sardònico – murmurando de quando em quando: “Pois sim...” – “Essa eu não engulo.” – “Agora é que vens nos contar isso?” – a leitura da proclamação em que o Gen. Goes Monteiro justificava o golpe de Estado, assumindo plena responsabilidade por ele.

No dia seguinte saiu para o campo, com “uma coisa no peito”. Sentia pena do Dr. Getúlio. O baque devia ter sido duro para o seu amor-próprio...

Um sobrinho seu veio da cidade para lhe comunicar que o ex-ditador já se encontrava no município de São Bor-ja, na sua estância do Itu.

– O senhor vai visitá-lo? – perguntou o rapaz. Tibério lançou-lhe um olhar enviesado:

– Não sei ainda.

Estava em dúvida. Sentia que a sua obrigação era ir ver o homem a quem tantos favores e atenções devia. Concluiu, entretanto, que numa conjuntura como aquela, o melhor era fazer como certos animais na hora do perigo: fingir de morto. Justificava-se perante si mesmo e os outros: “O Dr. Getúlio deve estar cercado de queremistas trabalhistas e sevandijas. Se eu visito o Homem agora, todo mundo vai pensar que isso é um ato de solidariedade política. Nessa eu não caio”. Deixou-se ficar em suas terras.

Voltou para Antares em meados de novembro e promoveu uma reunião do diretório local do Partido Social Democrático, do qual era presidente. Encontrou um dia Zózimo Campolargo na Praça da República, abraçaram-se, trocaram-se nacos de fumo em rama, prepararam os seus palhieiros e sentaram-se num banco, à sombra dum platano, para conversar e fumar.

– Sempre adversários, hem, Zózimo?

Pois é. Me fizeram presidente do diretório da U.D.N. Coisas da Quita, que continua uma grande politiqueira... E por falar em política, já foste visitar o Dr. Getúlio?

– Não. Por que perguntas?

– Ele não era teu amigo?

Era e é. Mas eu separo o homem do político. São duas coisas diferentes.

– Desde quando? – sorriu Zózimo. – Desde que ele caiu?

– Ora, vai-te à merda!

– Dela sairemos se o Brigadeiro for eleito.

– Mas não vai ser. Ganha o Gen. Dutra. Aposto um Poleango. (Era assim que Tibério pronunciava, como muitos outros gaúchos, Polled Angus.)

– Então é por isso que estás no P.S.D., não? Ou queres me fazer crer que é por convicções políticas?

– Falar em convicções políticas nesta altura dos acontecimentos é a maior bobagem deste mundo. Em matéria de idéias a tua U.D.N. e o meu P.S.D. são cavalos da mesma raça, filhos da mesma égua e do mesmo garanhão, com o mesmo pêlo e as mesmas manhas, só que com nomes diferentes. E ou não é? Confessa.

Zózimo sacudiu negativamente a cabeça.

– A U.D.N. é vinho de outra pipa – replicou. – O P.S.D. está minado de getulistas e oportunistas. O Dr. Getúlio está recomendando a seus partidários que votem no Gen. Dutra, mas presta bem atenção, Tibé, ele faz isso sem o menor entusiasmo. E ao mesmo tempo acertou a sua própria candidatura ao Senado e à Câmara federais pelo P.T.B. e pelo P.S.D. E uma duplicidade inédita na nossa vida política, acho.

Tibério, com o cigarro apertado entre os dentes, olhava fixamente para a Matriz, murmurando:

– Ê. O Getúlio nunca fecha as suas portas nem as suas janelas. Pelo menos com tranca. É um feiticeiro.

– Feiticeiro? Não sei. Talvez a feitiçaria dele esteja nas nossas fraquezas, ambições e superstições. Em qualquer caso, as urnas vão ter a última palavra. Acho que o teu amigo está politicamente liquidado.

– Não sei... não sei... até o dia 2 de dezembro muita coisa pode ainda acontecer.

– Estás vendo? Isso é que eu chamo de superstição e fraqueza. No fundo és um queremista!

De súbito, mudando o tom de voz, Tibério Vacariano disse :

– O Pe. Gerôncio me disse que a Matriz anda precisando duns consertos e duma pinturinha.

– O Brasil também, Tibé, o Brasil também.

 

Quando a eleição do Gen. Eurico Gaspar Dutra foi confirmada pelo Congresso, muitos jornais em todo o país reconheceram que o apoio de Getúlio Vargas havia sido decisivo para essa vitória. O próprio ex-ditador fora eleito por expressivo número de votos não só deputado federal como também senador.

“Eu não me enganava” – refletiu Tibério Vacariano. – “O prestígio do Homem é ainda uma coisa séria. Ele ainda é trunfo no baralho político.” Pediu a um amigo comum que sondasse o Dr. Getúlio para saber como ele receberia uma visita sua. A sondagem foi feita e a resposta veio, clara e curta. O Dr. Getúlio Vargas não o receberia.

Em fins de 1947, Tibério um dia comentou entre amigos que o Gen. Dutra, na sua opinião, havia feito uma coisa certa e outra errada. A certa era ter posto o Partido Comunista Brasileiro fora da lei. A errada, ter proibido os jogos de azar em todo o território nacional. Alguém objetou que o jogo, além de ser uma imoralidade, era a perdição das criaturas. Tibério fitou o moralista com os seus olhinhos malaios e disse: “Olhe, moço, mais desgraça tem acontecido aos homens por causa de mulher do que por causa de jogo. Você então acha que devia haver uma lei proibindo homem de gostar de mulher, e vice-versa?”

Na volta de um de seus invernos cariocas Tibério contou aos amigos que costumavam reunir-se todos os dias às dez da manhã, na Farmácia Imaculada Conceição, de propriedade de um dos genros de Zózimo Campolargo, num grupo de chimarrão conhecido na cidade como “a rodinha da Imaculada”:

– Vocês diziam que havia corrupção no tempo do Getúlio, não é? Pois fiquem sabendo que as negociatas e as roubalheiras continuam neste governo do Gen. Dutra e dizem até que a coisa agora é pior, só que mais escondida. O Presidente, que é um homem de bem, não sabe da missa a metade. Durante a guerra acumulamos reservas em ouro na importância de mais de setecentos milhões de dólares. Já não temos quase mais nada. Gastamos tudo comprando sobras de guerra e outras porcarias que os Estados Unidos nos impingiram.

– Ora, coronel, isso é exagero.

– Exagero qual nada! – vociferou o Vacariano, segurando a cuia como uma granada de mão prestes a ser atirada contra a “cambada de ladrões” que cercava o novo Presidente. – Nunca falta um sem-vergonha filho da mãe disposto a vender a pátria por trinta dinheiros. Nossa situação econômica e financeira é uma calamidade.

Alguém arriscou um resmungo:

– Afinal de contas, coronel, o general foi eleito pelo seu partido.

– Bom, mas com a gente do Brigadeiro a coisa ia ser ainda pior.

Os outros freqüentadores da “rodinha da Imaculada” entreolharam-se significativamente, mas em silêncio. Todos conheciam muito bem o Cel. Tibério Vacariano, flor do patriciado rural de Antares.

 

Quando em 1950 Getúlio Vargas aceitou a sua candidatura à presidência da República, o caso foi debatido às dez de certa manhã pelos tomadores de mate da Farmácia Imaculada Conceição. Disse Zózimo Campolargo:

Ë uma loucura. O Getúlio perdeu a noção da realidade. Nunca na História do Brasil ou de qualquer outro país, que eu me lembre, um ditador expulso do poder pelo seu próprio exército voltou ao governo eleito pelo povo.

Tibério Vacariano escutou estas palavras sem dizer água, amaciando esquírolas de fumo na palma da mão. Pouco depois, já de crioulo aceso entre os dentes, os olhos entrecerrados, murmurou: “Não sei... não sei... Acho que o Baixinho tem parte com o demônio. O eleitorado trabalhista está aumentando”. Ali mesmo em Antares, às quase três centenas de operários do Frigorífico Pan-Americano somavam-se agora os trabalhadores da Cia. Franco-Brasilei-ra de Lãs, estabelecida na periferia da cidade, fazia dois anos. Havia ainda o pessoal das indústrias menores. Calculava-se que pelo menos noventa por cento desse proletariado em idade eleitoral estava inscrito no P.T.B. e obedeciam todos à chefia dum tal Geminiano Ramos, homem de escassos trinta anos e que, além de ter fama de marxista, usava bi-godões à Stalin. Como o Partido Comunista Brasileiro estivesse fora da lei, Geminiano – operário de folha-corrida policial ainda limpa – infiltrara-se no Partido Trabalhista Que, no dizer de Tibério, era uma espécie de “sala de espera do comunismo”.

A União Democrática Nacional tentava de novo a fortuna nas urnas com o nome do Brig.r° Eduardo Gomes. O Partido Social Democrático, por insistência do Gen. Eurico Dutra, apresentara um candidato eleitoralmente inexpressivo, o Dr. Cristiano Machado, praticamente só conhecido em seu estado natal, Minas Gerais. “Esse inocente vai ser jogado na fogueira!” – profetizou Tibério.

Um dia na “rodinha da Imaculada”, poucas semanas antes da eleição, lançou um desafio geral:

– Aposto dois bois Poleangos com cada um de vocês como o Getúlio ganha a eleição, e de rebenque erguido.

No meio do silêncio que se seguiu, Zózimo Campolargo falou sereno:

– Não sou homem de apostas.

Tibé teve vontade de dizer-. “Não és homem de nada. Um água-morna dominado pela mulher”. Mas engoliu essas palavras com um sorvo quente de chimarrão.

 

Uma noite, uma semana antes da eleição, da janela de seu palacete, mas invisível para quem estivesse na rua, o patriarca dos Vacarianos assistiu ao último comício de propaganda do P.T.B., que se realizava na Praça da República. Os oradores falaram de dentro do coreto da banda de música. Alto-falantes colocados nos quatro ângulos da praça, ampliavam-lhes as vozes. “Papai” – disse uma das filhas de Tibério – “a praça está preta de gente.” Ele sacudiu a cabeça, num assentimento impaciente: “Estou vendo, menina” – disse. D. Lanja, procurando consolá-lo, murmurou: “É, mas mais da metade dessa gente decerto não vota. São curiosos”.

O marido buscou consolo num palheiro, enquanto ouvia os oradores, “papagaios queremistas” que repetiam as promessas e críticas de seu candidato. Nos seus discursos durante toda a sua campanha presidencial, Getúlio Vargas abstivera-se de atacar diretamente a figura respeitável do Presidente da República, mas dissera horrores dos desastrosos erros da política cambial de seu Ministro da Fazenda, que levava o país à bancarrota. Como Vargas, os oradores daquele comício apontavam os defeitos e injustiças da “democracia liberal capitalista” e falavam até – como tinham mudado os tempos! – em “democracia socialista de trabalhadores”. O povo reagia a essas frases com o mais frenético entusiasmo: gritos, urros, aplausos, vivas e morras.

– Veja você, Lánja – disse Tibério, atirando uma baforada da acre fumaça de seu crioulo em pleno rosto da esposa. – Quem diria que eu ia viver para testemunhar uma cena dessas! Oradores na praça, na frente da minha casa, falando em “democracia socialista” e atacando o capitalismo. Tudo obra do Getúlio! O mal que esse homenzinho tem feito ao Brasil com as suas leis sociais e as demagogias trabalhistas! Está tudo demudado. Meu pai e seus correligionários federalistas nunca conseguiram fazer nesta cidade um miserável comício durante os vinte e cinco anos da ditadura borgista.

Na praça a turba bradava ritmadamente: Ge-tú-lio! Ge-tú-lio! Quando de novo se fez silêncio para que outro orador falasse, Tibério se deu o luxo duma reminiscência em voz alta:

– Uma vez, em 1922, reunimos uns gatos-pingados nesta mesma praça pta fazer propaganda da candidatura do Dr. Assis Brasil, até que um pouco sem entusiasmo, porque meu pai não ia muito com a cara do homem de Pedras Altas. Pois bem. O velho Benjamim mandou seus capangas dissolverem o comício a rabo-de-tatu e facão. Em poucos minutos a praça se esvaziou... Quando dei pela coisa, estava só com meu pai e uns três ou quatro companheiros, de revólveres arrancados, no centro da praça, cercado pelos apaniguados do velho Campolargo. Se não fosse a intervenção do juiz de comarca, na certa eles nos liquidavam, porque eram maioria e nós estávamos dispostos a morrer brigando. No entanto agora essa canalha está aí atacando o regime, com todas as garantias legais. O Getúlio entregou o Brasil pra eles numa bandeja de ouro.

“A vitória será nossa!” – gritava na praça o orador, o industriário Geminiano Ramos. Tibério Vacariano fez um rapido exame de consciência e achou-se culpado. Na realidade, não fizera nada pelo candidato de seu partido. Durante a campanha adotara a técnica do “corpo mole”. Que diabo! Que entusiasmo a gente pode ter por um candidato desconhecido? Cristiano Machado ia ser sacrificado, espécie de Cristo político. Seu partido o havia abandonado quase por completo, pelo menos no Rio Grande do Sul. Mais uma vez se ia provar como era fantasticamente poderoso o fascínio que o “homenzinho de São Borja” exercia sobre muitos daqueles líderes do P.S.D.

No dia das eleições, quando chegou a sua hora de votar, ele próprio, Tibério Vacariano, hesitou por um instante dentro da cabina. (Não se habituava com o voto secreto, que chamava de “voto de covarde”.) E para não “embromar” a marcha da eleição, soltou um “que bosta!” e, num impulso sentimental, votou em Getúlio Vargas. Deixou a cabina meio desenxabido, como quem sai dum quarto de banho completamente nu para entrar inadvertidamente numa sala cheia de senhoras.

 

Getúlio Vargas tomou posse do cargo de Presidente da República em janeiro de 1951. No inverno desse mesmo ano Tibério Vacariano foi ao Rio de Janeiro e tentou mais uma vez reaproximar-se do Homem. Viu, porém, todas as suas tentativas frustradas, tanto as diretas como as indiretas. Ante essa repulsa obstinada, teve as mais variadas reações. A primeira foi de revolta: “Pois o pitoco que se lixe! Posso viver muito bem sem a amizade dele!” A segunda foi de estranheza: “Ué! Dizem que o Getúlio é um homem frio, sem rancores, perdoou até ao João Neves da Fontoura pelo Acuso... Que é isso comigo?” Houve depois um momento em que se sentiu vítima duma injustiça. (“Andariam me intrigando com o Presidente?”) A seguir consolou-se com a idéia, ou esperança, de que um dia o Gegê havia de precisar dele, Tibério, e seria então o primeiro a mandar-lhe emissários de paz. A todas essas o senhor de Antares sentia-se ferido no seu amor-próprio, e arrependia-se de haver-se rebaixado a pedir a Getúlio Vargas que o recebesse de novo. Isso produzia nele um constrangimento não só perante todos quantos sabiam da estória como também perante si mesmo. O diabo era que se ele, Tibério, era indulgente e compreensivo consigo mesmo, os seus desafetos, ao contrário, jamais lhe perdoavam os erros e além disso tinham uma memória de elefante.

Da janela de seu apartamento da Av. Atlântica às vezes ficava olhando para o mar, pata aquele belo mar com o qual, em todos os seus muitos anos de Rio de Janeiro, jamais tivera a menor intimidade. Gabava-se até, com um certo orgulho de campeiro, de nunca ter sequer molhado as pontas dos dedos dos pés na água do oceano. Nascera e criara-se à beira do Uruguai, onde vezes sem conta nadara, pescara e navegara de caique. Nas suas terras não podia ver lagoa, açude, sanga ou arroio que não sentisse gana de pelar-se, atirar-se nágua e dar umas braçadas ou uns mergulhos. “Sou peixe de água doce” – costumava dizer. E agora que não era mais persona grata do governo, que deixara de ser vaqueano nos labirintos daqueles ministérios e repartições públicas, chegava à conclusão de que peixe de rio não pode mesmo viver em água salgada.

Poucos dias antes de voltar para casa, Tibério Vacaria-no foi por puro acaso apresentado a um jovem industrial chinês, recém-chegado dos Estados Unidos, um certo Mr. Chang Ling, que ele passou logo a chamar de “seu Jango Lins”. Tratava-se de um dos muitos homens de negócio que tinham conseguido fugir de Changai antes de esta cidade cair em poder dos comunistas. Trouxera consigo a família, os seus móveis mais preciosos, uma carta de crédito (possuía no Chase Manhattan Bank de Nova Iorque uma conta Pessoal com um apreciável saldo credor) e o seu know-how. Queria instalar no Brasil uma fábrica de óleos comestíveis de soja e amendoim.

Mal viu na sua frente aquele homem franzino, baixo e amarelentoTibério teve uma inspiração e convidou-o para almoçar no Bife de Ouro, juntamente com o seu intérprete, um rapaz brasileiro que sabia inglês, e que andava pajeandò Mr. Ling através do emaranhado da selva carioca. O primeiro prato não havia sido ainda servido e já o Cel. Vacariano, voltando-se para o intérprete, pedia:

– Diga aí pro seu Lins que descobri o lugar ideal para a fábrica dele.

A tradução foi feita. O chinês sorriu e quis saber onde era.

– Conta pro moço – continuou o Cel. Tibério – que sou meio dono duma cidade do Rio Grande do Sul que tem nome de estrela (ouvi dizer que chinês gosta muito de estrela) nas barrancas do Rio Uruguai, justamente na zona da soja.

Fez uma pausa para que o intérprete traduzisse as suas palavras para aquela língua bárbara. O chinês continuava a sorrir.

– Diga também que sou plantador de soja, e da boa! E se ele quiser estabelecer o negócio dele em Antares, eu arrumo tudo: o terreno para a fábrica, material de construção a preço baixo e mais ainda: cinco anos de isenção de impostos municipais! O prefeito da cidade é meu sobrinho e eu tenho na mão a Câmara de Vereadores.

O chinês escutou, sacudindo de quando em quando a cabeça, a enumeração de todas essas promessas e depois disse algo em voz baixa ao intérprete, que se voltou para o maioral de Antares :

– Mr. Ling quer saber das suas condições.

– As minhas condições? Ora, quero apenas contribuir para o progresso industrial da minha cidade, que diabo!

Na realidade pretendia fazer o chin assinar oportunamente um compromisso de compra de toda a sua safra anual de soja, esperava vender-lhe um de seus próprios terrenos para a construção do edifício da fábrica e, se possível, ainda por cima ganhar de presente algumas ações da companhia, em troca de todos esses “favores”.

Enquanto o tradutor falava, Mr. Chang Ling tomava notas numa pequena caderneta de capa azul, que depois guardou no bolso do casaco.

– Então? – perguntou Tibério Vacariano, olhando para o intérprete, que a seguir confabulou em voz baixa com o chinês.

– Mr. Ling lhe agradece por tudo, inclusive pelo delicioso almoço, e declara que, quanto ao negócio, vai ainda pensar.

Tibério Vacariano pagou a conta do restaurante com a certeza de que havia perdido naquele encontro tempo e dinheiro. Enganava-se. Três meses mais tarde Mr. Chang Ling apareceria em Antares com a mulher e seus cinco filhos e mais três compatriotas seus, especialistas na fabricação de óleos comestíveis.

Menos de um ano mais tarde inaugurava-se em Antares a Cia. de Óleos Sol do Pampa, da qual Tibério Vacariano possuía 500 ações que não lhe haviam custado um vintém. Conseguira impingir ao chinês um de seus muitos terrenos situados na periferia da cidade. Tinha agora comprador certo para toda a sua produção de feijão-soja. Mas manda a verdade que se diga que cumpriu todas as promessas que fizera no Bife de Ouro ao “seu Jango Lins”.

 

Em dezembro daquele ano de 1951, aconteceu a Tibério algo que lhe mudou a vida por completo, fazendo-o esquecer as humilhações a que o Presidente o submeteu.

Um dia o telefone de sua casa tüintou, e ele pegou o fone, já irritado, como sempre, pois não se havia habituado ainda àquela engenhoca, pela qual tinha uma má vontade atávica.

– Pronto! – gritou como quem espera ouvir e dizer desaforos.

 – É o Cel. Tibério? – perguntou uma voz melíflua de mulher.

– Quem deseja falar com ele?

A Venusta.

Ao ouvir o nome da caftina, Tibério olhou instintivamente dum lado para outro para verificar se havia alguém mais na sala ou proximidades. Pigarreou e disse-.

– Um momento. – Largou o fone e foi fechar a porta. Não haveria perigo de outra pessoa escutar a conversação, pois aquele era o único aparelho existente no casarão. – Pronto. Pronto!

– É a Venusta.

– Já ouvi! Mas você não devia telefonar pra minha ca,sa, ora essa! Já lhe disse isso mil vezes.

– Não fique brabo, coronel. É um assunto importante. Tenho um presente de Natal pro senhor. ..

Ele escutava, desconfiado. Aquilo só podia ser um subterfúgio para um pedido de dinheiro. Havia anos ele ajudara Venusta, uma prostituta aposentada, a montar o bordel mais fino de Antares. emprestando-lhe dinheiro a juro baixo e prazo longo.

– Que negócio é esse de “presente”? – indagou, cauteloso.

– Eu não me esqueço do que o senhor fez por mim, Cel. Tibério.

– Está bem, está bem, fale baixo. E não precisa pronunciar o meu nome.

– Estou sozinha aqui em casa. Descobri a rapariga mais linda do mundo. Dezessete aninhos, coronel! O senhor vai ficar maravilhado.

– Novinha, hem? – Soltou uma risada áspera de ta-bagista. – E você vai enrolar a menina em papel celofane e memandar por portador, hem? Quanto vai me custar essa brincadeira?

– Não estou pensando em negócio. – Como Venusta ceceava, a palavra negócio soou quase como negófio. – Não sou mal-agradecida.

– Como é a moça? Ruiva? Muito branca? Morocha?

– Morena jambo. Mas não adianta descrever pelo telefone. O senhor tem que ver ela pessoalmente.

– Onde está a bichinha?

– Aqui comigo, guardadinha no refrigerador – disse a alcoviteira com uma risadinha despudorada. – Olhe, coronel, a menina caiu na vida não faz nem uma semana.

Logo que botei o olho nela pensei no senhor. É órfã de pai e vivia com a mãe. Agora está comigo há dois dias e não foi mais pra cama com ninguém. Não deixei. Reservei ela pro senhor. Venha ver. Se não gostar, fica o dito pelo não dito.

E se eu gostar?

– É sua.

– Está bem. Hoje de noite apareço aí.

Ao jantar tomou apenas uma sopa leve. Depois disse à mulher que ia ao clube e provavelmente voltaria tarde. Saiu de casa a pé, mas entrou num carro de aluguel do outro lado da praça e pediu ao motorista que o deixasse à esquina duma determinada rua, na parte baixa da cidade.

O bordel da Venusta ficava numa ruela pouco iluminada e tinha nos fundos do seu pequeno quintal um portão que dava para um terreno baldio – espécie de entrada secreta ou pelo menos discreta, geralmente usada pelos senhores respeitáveis da cidade que queriam entrar naquela casa de rendez-vous sem serem vistos. Tibério apertou o botão da campainha da porta dos fundos. Venusta em pessoa veio recebê-lo, recendente a Tabu, com um vestido de algodão estampado, a cara exageradamente pintada, os cabelos oxigenados de fresco. Era uma cinqüentona de carnes balofas e muito alvas, que Tibério tinha levado algumas vezes para a cama nos tempos em que ela era moça e não de todo destituída de atrativos. Subiram uma pequena escada e entraram num corredor estrategicamente mal-iluminado e por fim pararam diante da porta dum quarto.

– A menina está lá dentro à sua espera, coronel. Ela já sabe quem o senhor é e está até meio nervosinha.

– Mas eu ainda não sei direito quem ela é...

– Ora, ninguém de circunstância. O pai era ferroviário e morreu esmagado por um trem, há uns quatro anos... acho que o senhor se lembra do fato. A mãe costura pra fora. Gente muito pobre. Um caixeiro-viajante fez mal pra menina e desapareceu. A mãe descobriu a coisa e botou a boca no mundo. A moça então veio pra cá, mas ninguém ainda sabe que ela está comigo. Acho que é fácil acomodar a velha com uns cobres. Deixe a coisa por minha conta.

– Essa estória está me cheirando mal. A menina é menor, a mãe pode me incomodar, fazer chantagem. Não sei... Tenho muitos inimigos. Não sei... Nunca falta um rábula filho da mãe pra pegar uma causa dessas e me extorquir dinheiro... Não sei.

Ficou ali na frente da porta murmurando “não sei... não sei...”. Mas seu corpo sabia, da cabeça aos pés, sabia com uma intensidade que aumentava com o passar dos minutos, o sangue batendo-lhe com força nas fontes, toda a sua virilidade já agressivamente esculpida, intumescida e latejante.

– Está bem – disse por fim, com voz opaca. – Já não estou pensando mais com a cabeça, mas com outra parte do corpo. Seja o que os anjos quiserem.

Venusta abriu a porta e ele penetrou no quarto como um Miúra que entra na arena.

 

Mais tarde, naquela mesma noite, no leito conjugai, com Lanja a seu lado, ressonando tranqüilamente, Tibério recordou a hora que passara com a rapariga. Que fêmea mais bem-feita de corpo! Uma potranca de raça – cabocla de pele acetinada cor de areia úmida, seios miúdos, quadris estreitos, delicada como uma flor... Em cima dela sentira-se com vinte anos menos. E, depois de descarregar a sua primeira e furiosa onda de desejo, ficara ofegante e feliz, deitado ao lado da criaturinha.

Onde nasceste?

– No Cacequi.

– Como é o teu nome?

– Me chamo mesmo Cleopatra, mas me tratam por Cleo.

– Bonito nome, Cleo...

E então ele pusera-se a apalpá-la devagarinho, para sentir nos dedos a contextura daquela epidemie, a elasticidade daqueles músculos, o desenho daquele corpo. Chegara a inventar um brinquedo:

– Nunca ouviste a estória da Salamanca do Jarau?

– Nunca.

– Pois era uma vez um campeiro, de nome Blau Nunes. Tinha aprendido com o fantasma dum padre renegado o caminho da furna do Jarau, onde existia um tesouro escondido, e guardado pelos bichos e assombrações mais horríveis. ..

– Credo!

– Faz de conta que aqui vai o Blau Nunes...

Com os dedos indicador e médio da mão direita imitou as pernas dum homem a caminhar. Blau Nunes percorreu o braço e o ombro de Cleo, devagarinho, pisando forte.

– De repente Blau avista um cerro...

E os dedos de Tibério escalam o seio direito de Cleo e quando chegam ao cume dessa macia elevação brincam com seu mamilo – “Uma pedra?” – e a rapariga se retorce, cosquenta. “Ai! Ai! Ai!”

– Então Blau Nunes desce do cerro e começa a andar por uma linda várzea...

E agora os dedos de Tibério caminham pelo ventre levemente côncavo da menina, com lenta volúpia.

– De repente Blau Nunes avista um capão...

– Não!

E ela ergue as pernas, cruza as coxas, num movimento instintivo de defesa, procurando esconder sua furna. Mas Blau Nunes continua a andar... lá dentro está a entrada da Salamanca, do tesouro...

E os dedos de Tibério – antes, as pernas de Blau Nunes – penetram no capão e encontram a boca da furna. “Ai!” – suspira ela. – “Ai!”. Blau Nunes está alucinado.

– Onças de ouro! – exclama Tibério. – Dobrões de ouro! Jóias!

E Cleo se retorce toda, rindo, excitada.

Tibério Vacariano levantou-se num prisco. Lanja acordou, alarmada.

Que foi, Tibé? Estás sentindo alguma coisa?

Sentado na cama, meio ofegante, ele murmurou:

– Não é nada. Perdi o sono.

– Decerto tornaste muito café.

– Pois é. O calor também está brabo. Mas não é nada, Lanja. Dorme. Eu me arranjo...

Levantou-se, acendeu um cigarro, começou a passear pela casa, de pijama, sem destino certo. A imagem de Cleo não lhe saía da mente. O cheiro dela estava nas suas narinas, nos seus dedos, na sua pele, entranhado em todo o seu corpo. Abriu a janela que dava para a praça e debruçou-se nela. Vaga-lumes lucilavam por entre árvores e arbustos. Ti-bério olhou para o céu e viu o Cruzeiro do Sul bem por cima da Matriz. O vento morno chegava-lhe às narinas com um cheiro de campo queimado, de mistura com recordações de infância e adolescência.

Ali na janela o Cel. Vacariano pensou na sua idade. Cinqüenta e sete na cacunda! Não se podia dizer que fosse já um velho, mas moço, moço mesmo não era mais. Imaginou Cleo instalada na pensão da Venusta, recebendo qualquer homem que tivesse dinheiro para pagar o preço que a caftina nedia pelo seu esplêndido corpo. A idéia lhe era intolerável.

Voltou para a cama e só conseguiu adormecer madrugada alta. Levantou-se às oito horas, sentindo-se um tanto desmoralizado por ter “queimado o assado”, pois entre seus hábitos supersticiosos estava o de saltar da cama antes do sol nascer.

A primeira imagem que lhe veio à cabeça ao despertar foi a de Cleo, como a figura dum sonho bom.

Tornou a procurar a rapariga na noite daquele dia. E noutra manhã, barbeando-se no quarto de banho, conversou em silêncio consigo mesmo, puteou-se afetuosamente, examinou a própria cara no espelho, com um cuidado entre realista e tolerante. “Bonito sei que não sou, mas – que diabo! – há no mundo gente mais feia que eu.”

Tudo aquilo que sentia com relação à moça – refletiu – devia ser conseqüência da idade crítica. Sim, os homens tinham também o seu climatèrio. Ouvira esta palavra pela primeira vez da boca de seu médico carioca. O seu climatèrio finalmente chegara, e com que força!

Decidiu fazer de Cleo sua amante exclusiva, montar casa para ela. Convenceu a mãe da rapariga a vir morar com a filha, arranjou tudo com a colaboração da Venusta. Quando um novo ano entrou o Cel. Vacariano tinha o que em língua de advogado se chama de “mulher teúda e man-teúda”. Sentia-se feliz e remoçado. Se Lanja desconfiava de alguma coisa, pelo menos não dava nenhuma demonstração disso.

E agora, cada vez que Tibério queria fazer amor com a amante, bastava dizer-lhe: “Vamos brincar de Salamanca?” Blau Nunes passou a ser uma personagem importante na vida de ambos. E muitas vezes Tibério Vacariano pensou num remoto antepassado seu que, segundo uma lenda da família, tinha um dia entrado na furna encantada do Jarau e andava sempre com as guaiacas cheias de onças de ouro.

 

Em meados do inverno de 1954, Tibério Vacariano passou duas semanas no Rio, tratando de negócios. Revisitou o cenário de suas aventuras estado-novistas, reencontrou amigos e conhecidos, ouviu boatos e confidencias em torno da situação política nacional, e um dia esteve a pique de quebrar a cara dum sujeitinho que fingiu não reconhecê-lo na rua. (O calhorda devia-lhe favores!)

De volta a Antares, contou as “novidades” aos amigos da roda de chimarrão da Imaculada, e uma noite visitou com a mulher a casa dos Campolargos, pois pelo telefone prometera a Quita, sua “inimiga íntima”, um relatório verbal sobre sua viagem “à Corte”, do ponto de vista político - que era o único que realmente interessava a mulher de Zózimo.

Quando estavam os dois casais acomodados na sala de visitas dos Campolargos, sob o olhar vigilante do falecido Benjamim, ali presente num retrato a óleo de meio-corpo – os homens acenderam os seus palheiros, após o café, e as mulheres apanharam os seus trabalhos de tricô, baixaram a cabeça e puseram-se a movimentar as agulhas.

Durante alguns minutos falou-se do rigor daquele inverno – a umidade agravava o reumatismo de D. Briolanja e não fazia nenhum bem à asma de D. Quitéria – e depois cavou-se um silêncio, seguido da esperada pergunta da senhora da casa:

E então... como vai o teu “amigo”?

Tibério, as mãos trançadas contra o volumoso ventre, as pernas abertas, como se estivesse cavalgando a poltrona e não sentado nela, disse:

– O Getúlio está jodido.

– Tibé! – exclamou Lanja, erguendo brusca a cabeça, as orelhas subitamente avermelhadas. Zózimo sorriu ca-nhestro. Quita, porém, soltou uma risadinha em que se notava um leve ronrom de gato. Costumava dizer a amigos e familiares que não tinha medo nem vergonha de palavras.

– Diga por que, Tibé – pediu ela. – Mas não me venhas com potocas.

– Ué!? Por que eu havia de mentir?

– Sempre puxas brasa para a tua sardinha pessedista que, por sinal, já está podre.

Tibé sorriu, remexeu-se na cadeira, cocou disfarçada-mente uma das virilhas e começou:

– O governo está enfrentando uma crise brabíssima. Acho que este vai ser ou, melhor, já está sendo o pior ano de toda a vida política do Getúlio.

– Começou com o manifesto dos coronéis – disse Zózimo, enquanto Tibé era sacudido por um repentino acesso de tosse bronquítica, que lhe tingiu a cara duma escura purpura, fazendo-o lacrimejar. Quando pôde de novo falar, disse com voz meio apagada:

– Deve ter sido duro para o Homem demitir o seu filho político e espiritual do Ministério do Trabalho. A oposição exigiu a cabeça do Jango Goulart...

Zózimo lembrou a campanha que desde o início do ano fazia o Estado de São Paulo, que chamava Jango de alter ego de Getúlio Vargas e acusava-o de chefe do “peronismo brasileiro”.

E por acaso não será? – perguntou Quita. – O Getúlio e o Jango é que encorajam os operários a fazerem greves e ameaças. Não se tem mais sossego neste país. E depois, onde se viu fazer um aumento de 100% nos salários mínimos?

– Ó Quita – interveio Zózimo, com sua habitual cordura. – Como é que os trabalhadores podem viver com esses salários de fome?

– Vivem – replicou a esposa. – Deus é grande. Vivem e se reproduzem como coelhos.

– Bom – continuou Tibério – o que a oposição afirma e certos jornais de responsabilidade glosam, é que o Getúlio mesmo provoca toda essa inquietação social para criar um clima de confusão do qual ele pessoalmente possa tirar proveito. Dizem que está procurando pretextos para evitar as eleições presidenciais e continuar no poder.

Quitéria ergueu a cabeça:

– A solução mais decente, por legal, foi a que propôs na Câmara a bancada da U.D.N. O impeachment. E se a coisa não saiu foi porque os deputados do teu P.S.D., Tibé, se juntaram com os do P.T.B. para derrotar a moção ude-nista. Te lembras da mensagem que o Getúlio apresentou ao Congresso, em março passado? Foi dum nacionalismo tão exagerado, que assustou meio mundo. Com esse seu anti-americanismo, ele vai acabar levando o Brasil pro lado de Moscou...

– Esperem! – exclamou Tibério. – Vocês não sabem do melhor... ou do pior. Sei de fonte segura que o Getúlio anda apático, desinteressado de tudo e de todos, mal lê os papéis que assina, cochila nas audiências e nas reuniões do Ministério. Enfim, não é o mesmo homem de outros tempos.

– Está velho... – murmurou Quita, de cabeça baixa, como se dissesse um segredo às suas agulhas e ao seu fino »o de lã.

– Não é isso – protestou Tibério. – Afinal de contas ele tem só setenta e dois anos... que diabo! O que está acontecendo é que o Homem anda desiludido, desencantado. Descobriu finalmente que não tem amigos, que está cercadode aproveitadores sem escrúpulos, com raras exceções.

– Quem semeia ventos – sentenciou a dona da casa – colhe tempestades. O diabo é que nesse caso a tempestade cai sobre a cabeça de todos os brasileiros.

– A U.D.N. – prosseguiu o Cel. Vacariano – desde o princípio do ano abriu as suas baterias contra o Catete. Vocês têm lido os artigos do Carlos Lacerda? Que panfletário! Que mestre da violência verbal! Seus escritos estão demolindo pouco a pouco o governo do Getúlio. Palavra de honra, se esse moço tivesse dito na imprensa sobre a minha pessoa a metade do que disse sobre o Getúlio, eu tomava um avião, ia ao Rio e metia-lhe um balaço em cada olho, palavra.

Sem erguer a cabeça, Quita troçou:

– Deixa de prosa, Tibé. O Lacerda não ia gastar pólvora em chimango.

– Mas não acredito – observou Zózimo – que o Getúlio tenha obtido qualquer resultado financeiro pessoal com esses negócios de crédito irregulares do Banco do Brasil e essas outras indecências de que está sendo acusado pela U.D.N.

Tibé reacendeu o palheiro e disse:

– Em matéria de dinheiro o Getúlio é um homem honesto. Mas finge que não vê certas safadezas que se fazem a seu redor. A sua técnica é a de corromper para governar. E nunca se roubou tanto, nunca se fez tanta negociata à sombra do Getúlio e em nome dele como neste seu atual quatriênio. Parece que no Catete todo o mundo está dançando uma espécie de galope final.

Neste ponto Quitéria ergueu os olhos sem mover a cabeça, e esse seu gesto eqüivalia a dizer: “Olhem só quem está falando em negociatas...”

Tibério põe-se de pé, subitamente animado-.

– Ah! Ainda não contei o melhor a vocês. A grande figura desta República é o negro Gregório Fortunato, chefe da guarda pessoal do Getúlio.

– Dizem que está rico... – murmurou Lanja.

– Milionário – reforçou Quita. – Que vergonha! Temos no Brasil uma Eminência Negra!

E nesta infeliz República – prosseguiu Tibério – o Gregório tem mais força que muito ministro. Escutem esta, que é muito boa... Um dia tive de ir ao Catete...

– Não me digas que foste outra vez procurar o Ge-túlio pra fazer as pazes com ele! – interrompeu-o a dona da casa.

– Deixa o Tibé falar, Quita – pediu Zózimo.

– Qual pazes qual nada! Vamos falar com franqueza. Se o governo do Homem está por um fio, a troco de que santo havia eu de entrar agora nessa canoa furada? Bom, mas é que precisei movimentar um requerimento e fui ao Catete me entender com um oficial de gabinete com quem tenho ainda boas relações. Entrei no palácio, me meti por uns corredores meus velhos conhecidos e de repente, sem saber como. me vi na sala onde o Gregório costuma dar as suas audiências... E que vejo? Lá estava o crioulo como um potentado africano, sentado numa cadeira, com uma toalha amarrada ao pescoço, um barbeiro escanhoando o rosto dele, uma manicura ao lado polindo as suas unhas... O negrão estava cercado pelos seus pistoleiros, moços de recado, enfim, pelos membros da sua corte. Quando me viu entrar, nem se dignou a me dar bom dia. Também fingi que não tinha visto ele e fiz meia volta. Um de seus apaniguados estava dizendo qualquer coisa sobre o João Goulart e, antes de sair, ouvi o Gregório dizer em voz alta, com um ar de superioridade: “O Jango é um premário!”

As mulheres pareciam mais entretidas nos seus trabalhos de agulha que nas estórias de Gregório Fortunato. Mas Zózimo sacudiu a cabeça dum lado para o outro, exprimindo a sua consternação ante tudo aquilo.

E o- pior – continuou Tibério – é que senadores e outros figurões da República adulam o negrão, mandam-lhe presentes e bilhetinhos com pedidos.

– Pobre do Dr. Getúlio! – suspirou Lanja, que sem-pre tivera uma afeição quase maternal pelo homenzinho de São Bor ja.

O olho bom do retrato de Benjamim Campolargo parecia contemplar o grupo que ali estava na sala, com a mesma fixidez meio perplexa com que, havia quase trinta anos, fitara uma escarradeira de louça pintada, no dia em que o jovem deputado Getúlio Vargas, com sua lábia e a sua simpatia pessoal, persuadira-o a apertar a mão de seu arqui-inimigo, Xisto Vacariano. Como se também tivesse pensado nesse remoto acontecimento, Tibério ergueu a cabeça, mirou demoradamente o retrato do patriarca dos Campolargos e, sem tirar o cigarro da boca, disse:

– Este mundo velho dá cada voltai

Nenhum dos presentes contestou estas palavras.

 

                Foi na casa da amante que, em princípios daquele frio e chuvoso agosto, Tibério Vacariano ouviu, pelo rádio que tinha sobre a mesinha de cabeceira, uma notícia urgente que o deixou estarrecido. No Rio de Janeiro dois desconhecidos haviam atentado contra a vida de Carlos Lacerda, à frente de sua casa, na Rua Toneleros, tendo assassinado um oficial da aeronáutica, o Maj. Rubens Florentino Vaz, que estava em companhia do diretor da Tribuna da Imprensa. Lacerda recebera num dos pés um ferimento sem gravidade, e os assaltantes haviam fugido.

                Tibério, que estava deitado ao lado de Cleo, conduzindo Blau Nunes numa das suas andanças ereto-anatômicas pelo corpo da rapariga, ergueu-se rápido, exclamando: “A Ia fresca! A Ia fresca 1” E assim nu como estava, sentou-se na beira da cama para escutar o resto da notícia. Lacerda tinha visto ambos os assaltantes, que haviam escapado num automóvel. O estúpido crime causara indignação geral e havia já grande agitação nos meios políticos, militares e populares do Rio de Janeiro.

                “É o fim do Getúlio”‘ – refletiu Tibério enqu?nto se vestia, depois duma excursão quase frustrada à furna do Jarau, da qual aquela vez trouxera não dobrões de ouro, mas escassas moedas de cobre azinhavrado. “Agora estão perdidos. . . Mexeram com os milicos. . . É o mesmo que bolir em casa de marimbondos. E o fim.” E tocou para casa.

                No dia seguinte o assassinio do Maj. Vaz e o atentado contra a vida de Carlos Lacerda eram o assunto único na “rodinha da Imaculada”. Mais notícias haviam chegado. Um dos telegramas resumia um editorial do jornal O Globo: Getúlio Vargas atingiu ontem, pela força dos imprevistos, um dos pontos decisivos da sua carreira política. Ou S. Ex.a reconhece com suas providenciais antenas esse clamor de justiça que rompe de todas as bocas, não se fazendo nem por omissão cúmplice de seus amigos ou com estes submerge na renúncia aos deveres contraídos com o povo nas urnas em 1950. Não lhe restam senão poucas horas para optar.

                Os membros habituais da “rodinha” estavam excitados. Logo que Tibério chegou à farmácia – o chimarrão se tomava a um canto, no fundo do laboratório – perguntas lhe foram atiradas, como dardos. Que era que ele pensava da situação? Quem tinha sido o mandante do atentado? Que aconteceria agora que dois mil oficiais aviadores se haviam reunido no Clube da Aeronáutica para estudar o caso e tinham decidido conduzir um inquérito próprio, paralelamente ao que estava sendo feito pelo Ministério da Justiça?

                Tibério sentou-se, pegou a cuia, procurou esquentar ao seu contato as mãos enregeladas, deu o primeiro chupão na bomba de prata, provou o mate e finalmente disse com ar profético :

                – Aposto como o Getúlio não passa o próximo Natal no Rio. Antes de dezembro está de volta à estância do Itu, deposto pelas Forças Armadas!

                – Mas achas que foi ele o mandante do atentado?

                – Não. Conheço bem o Presidente. Não seria capaz duma barbaridade dessas. Estou certo de que alguém do seu grupo de áulicos mandou fazer o serviço no Lacerda com a intenção de ser agradável ao Velho. Um dos mandatários errou a pontaria e matou o pobre do Maj. Vaz. Serviço mui porco.

                O proprietário da farmácia, que aviava uma receita, metido no seu imaculado guarda-pó branco, disse em voz alta:

                – Deus escreve direito por linhas tortas.

                – Torta era a pontaria do bandido – retorquiu Tibério. – E não vejo por quê Deus havia de ser mais do lado do Lacerda que do major. Reconheço que às vezes Deus tem também uma pontaria miserável, Ele que me perdoei

– Mas quem foi o mandante? – tornou a perguntar um dos amigos.

Aventaram-se nomes. Benjamim Vargas? Gregório Fortunato? Luterò Vargas? Quem? Quem?

Tibério devolveu a cuia ao companheiro que estava perto da chaleira dágua quente, e, com um sorriso pícaro, improvisou:

– Hoje cedinho escrevi o nome do autor do atentado num pedacinho de papel que botei dentro dum envelope lacrado e depois fechei no cofre. Vou abrir esse envelope no dia em que o pessoal da Aeronáutica agarrar os criminosos e descobrir o nome do mandante.

Houve um silêncio geral, pois as “farsas” do Tibério eram demasiadamente conhecidas daquela companhia.

– Por que não nos dizes agora esse nome? – perguntou um dos mais assíduos membros do grupo.

– Se vocês quiserem fazer uma aposta comigo, que cada um escreva um nome num papel, meta esse papel num envelope e depois entregamos todos os envelopes ao gerente do Banco da Província para serem abertos no dia em que a Justiça divulgar a identidade do autor intelectual do atentado. Aposto com cada um de vocês dois bois Poleangos.

– Tu de novo com os teus Poleangos! – exclamou Zózimo, com ar cansado. – Aposto como estás blefando, isso sim. Mas não vou pagar pra ver.

 

Lucas Faia, diretor de A Verdade, tinha mandado instalar uma sereia à frente da redação de seu jornal. Sempre que havia uma notícia importante relativa ao crime, ele fazia funcionar essa sereia e em breve atraía uma pequena multidão à frente do quadro-negro em que ele pregava um papel com os dizeres do último telegrama recebido pelo jornal. Foi assim que a população de Antares acompanhou dia a dia, quase hora a hora, o desenvolvimento das investigações.

Um membro da guarda pessoal do Presidente da República tinha sido identificado como o chefe dos assaltantes. Os oficiais das Forças Aéreas haviam publicado uma nota violenta contra o governo. Na Câmara, deputados da oposição pronunciavam veementes discursos sugerindo o afastamento de Getúlio Vargas da Presidência da República. A guarda pessoal do Presidente tinha sido dissolvida. O “tenente” Gregório Fortunato havia sido submetido a um longo interrogatório. As investigações da Aeronáutica continuavam numa fúria febril mas metódica. Fora finalmente descoberto e preso o motorista do carro’ que dera fuga aos assaltantes logo após o crime. Havia agitações populares nas ruas do Rio de Janeiro. Tinha-se a impressão de que grande parte do povo responsabilizava indiretamente Getúlio Vargas pelo crime.

O noticiário de rádio do dia 12 reproduzia trechos do interrogatório de Gregório que, a certa altura, dissera: “Doutor, eu sou um negro muito posudo. Sou muito esquisito e só me meto naquilo que me diz respeito”. À pergunta “Você meteu a mão nisso, Gregório?” respondeu: “Não. Tenho matado peleando. Não sou homem que possa ser assalariado para matar alguém”. O noticiário informava também que, nos intervalos do interrogatório, Gregório lia o Fouché de Stefan Zweig, o seu livro predileto.

– Além de bandido, pernóstico! – comentou Tibério vacariano.

Na tarde do dia 14, a sereia de A Verdade tornou a soar para anunciar a notícia de que o Gen. Eurico Gaspar Dutra achava aconselhável a renúncia de Vargas. Houve protestos da parte de populares getulistas à frente da redação do diário antarense. Guardas da polícia municipal tiveram de intervir para separar um udenista e um trabalhista que, depois de se filho-da-putearem abundantemente, estavam já de revólver na mão.

Passaram-se os dias. Pelos noticiários dos jornais e das estações de rádio, ficava claro que as investigações da polícia tinham recuado para um segundo plano e quem realmente conduzia a busca dos criminosos eram os oficiais das Forças Aéreas. Um dos suspeitos tinha sido localizado, caçado e acuado como um animal, numa zona pantanosa, por cento e setenta membros da Aeronáutica, e fora capturado vivo ao cabo de vinte horas de implacável perseguição.

Dentro em pouco chegava-se à conclusão de que o mandante do atentado fora mesmo Gregório Fortunato, o anjo da guarda negro do Presidente.

Uivou a sereia de A Verdade e lá estava no quadro-negro uma notícia sensacional. O Ministro da Aeronáutica achava que os políticos tinham meios legais para obrigar o Presidente a deixar o poder. O Governador do Estado de Pernambuco manifestava-se também a favor da renúncia de Getúlio Vargas. O Ministro da Guerra havia determinado prontidão rigorosa para o Exército. No Rio tinham curso os boatos mais desencontrados.

Num discurso feito em Belo Horizonte, havia menos de duas semanas, Getúlio Vargas declarara que não renunciaria, e que havia de cumprir o seu mandato até ao fim.

No dia 22 de agosto um grupo de oficiais das Forças Aéreas encabeçado pelo Brig.ro Eduardo Gomes publicou um manifesto em que se exigia a renúncia do Presidente da República.

Getúlio, porém, recusava abandonar o seu posto, dizendo-. “Daqui só saio morto. Estou muito velho para ser desmoralizado e já não tenho, razões para temer a morte”.

 

– Eu não disse? – exclamou Tibério Vacariano certa manhã, ao chegar à “rodinha da Imaculada”. – Eu ia ganhar a aposta. O mandante foi mesmo o negro Gregório, como escrevi no papel. ..

A notícia do resultado final do inquérito fora noticiada por todos os rádios e jornais da nação. A sereia de A Verdade gritava de instante a instante.

– O Getúlio vai ser deposto pelas Forças Armadas – afirmou Tibério entre dois goles dum chimarrão quentíssi-mo. – E a coisa não demora. E questão de dias ou mesmo de horas.

– Não se esqueçam – disse alguém – que o Presidente declarou que do palácio só sairá morto.

– É o que vai acontecer – disse Zózimo, e todos olharam para ele surpresos. – O Getúlio não é homem de se deixar depor pela segunda vez. Vai oferecer resistência e morrer brigando de arma na mão. É meu inimigo político mas faço justiça ao seu brio e à sua coragem.

Vacariano, porém, ficou pensativo, olhando fixamente para o rótulo dum vidro de làudano que estava na prateleira do laboratório, a seu lado. Depois sussurrou, como se contasse um segredo:

– Esse homenzinho é do diabo. É capaz de descobrir ainda uma saída. Por exemplo, dar a cabeça do Gregório e de outros à Aeronáutica e à opinião pública... e continuar no Catete...

– Impossível! – reagiu calorosamente um antigetu-lista. – O “pai dos pobres” foi há pouco vaiado pelo povo nas ruas do Rio. Vocês já esqueceram isso? O prestígio do Homem acabou-se. O país inteiro está contra ele. O feitiço finalmente virou contra o feiticeiro.

Naquele exato instante um freguês entrou na farmácia e pediu um vidro de elixir paregórico. O sino da Matriz começou a dobrar finados. Quem teria morrido? Um dos mateadores disse um nome vagamente conhecido dos membros do grupo. “Coitado!” – murmurou um destes, mais por automatismo que por verdadeira compaixão. E continuaram a discutir o destino de Getúlio Vargas. E quando de novo se fez silêncio, ouviu-se o uivo triste e agourento do vento de agosto.

 

Naquela madrugada, como de hábito debruçado numa das janelas do fundo de seu palacete, Tibério Vacariano esperava o amanhecer. Lembrou-se dum dito canalha de sua infância: “O sol nasce todos os dias por detrás do cemitério de Antares e ao anoitecer se põe na Argentina”.

Meio encolhido no seu pijama de pelúcia, com uma manta de lã enrolada no pescoço, era com um certo gosto de tropeiro que oferecia a cara à mordida gelada e úmida do ar do alvorecer. Era bom sentir no còncavo da mão e nos dedos o calor da cuia de chimarrão e mais saboroso ainda chupar a velha bomba que herdara do velho Xisto, reter na boca, meio queimando a língua, o mate escaldante e depois deixar o amargo descer devagarinho, faringe e esòfago abaixo, e ir aquecer-lhe o peito, como um poncho para uso interno.

A geada branqueava os telhados. Galos cantavam em quintais próximos e distantes e, como sempre acontecia nessa hora, Tibério pensou nas incontáveis alvoradas de sua vida, na cidade e no campo, e por alguns instantes lhe passaram pela mente as imagens de seu pai, de seus irmãos e de outros amigos mortos que estavam sepultados lá em cima da coxilha e que não podiam mais ver a luz do dia. Essa era a única hora em qu’j às vezes ele pensava na sua própria morte, principalmente agora que tinha entrado na casa dos sessenta.

Quando o sol já apontava acima dos telhados, Tibério, seguindo um velho ritual, comeu na cozinha o seu pedaço de churrasco gordo e o seu naco de lingüiça cobertos de farinha de mandioca, sob o olhar entre terno e crítico da cozinheira, a mulata Dráusia, que estava com os Vacarianos havia mais de quarenta anos. Tibério tomou uma xícara de café preto, como aperitivo para o cigarro, preparou um palheiro com voluptuoso vagar e, pouco antes das sete horas, já de crioulo fumegante preso entre os dentes, dirigiu-se para o escritório, acendeu o rádio, sentou-se diante dele e ficou à espera do primeiro noticiário da manhã. Sabia que Getúlio Vargas passara aquela madrugada no Palácio do Catete discutindo com o Ministério e altas autoridades militares a sua situação, que se agravara depois que alguns generais e almirantes haviam aderido ao manifesto dos brigadeiros, exigindo a renúncia do chefe da nação. A primeira notícia de que o Presidente havia aceito a imposição fora em breve desmentida. O Catete estava isolado. O Exército, ainda em prontidão. Circulavam boatos de que Getúlio Vargas ia mandar ao Congresso um pedido para o estabelecimento do estado de sítio no país. Havia já tumulto nas ruas: o povo exigia justiça.

Tibério esfregava as mãos com frenético vigor, movia os pés metidos em pantufas de lã, pigarreava, resmungava, inspirava a fumaça do cigarro e depois a expelia pelo nariz com uma força que dava uma idéia do seu nervosismo. Ecoavam no casarão os primeiros ruídos domésticos da manhã. A criadagem começava a pôr-se em movimento. O dono da casa gritou “Raspa daqui pra fora!” quando viu uma das chinocas entrar no escritório de espanador em punho.

De repente soaram as fanfarras do Repórter Esso, e a voz bem timbrada do seu locutor fez-se ouvir, com entonação dramática:

Rio. Urgente. O Sr. Getúlio Vargas acaba de licenciar-se da presidência da República pelo período de três meses.

“O quê?” – exclamou Tibério. O locutor, porém, não lhe respondeu, continuando:

No decorrer da dramática reunião do Ministério, esta madrugada, o Sr. Getúlio Vargas repeliu a proposta de renúncia que lhe foi transmitida pelo Gen. Zenóbio da Costa, Ministro da Guerra, em nome dos chefes militares. Em certo momento, voltando-se para o Gen. Mascarenhas de Morais, o Presidente declarou com voz firme: “Já que os senhores não decidem, eu vou decidir. Desde que a situação se mantenha calma, eu pedirei uma licença. Entretanto, se os rebeldes vierem até à porta do Palácio do Catete, só me levarão morto”. A notícia da licença do Presidente Getúlio Vargas foi anunciada às quatro horas e quarenta e cinco minutos da manhã de hoje. Assumirá a chefia do governo o Vice-Presidente, Sr. ]oão Café Filho.

Tibério andava agora dum lado para outro, diante de rádio, já desatento às palavras do locutor e murmurando: “Não é possível! Licença de três meses? Qual! Isso é sinônimo de renúncia. O Getúlio está liquidado. Ou então tem algum plano diabólico pra voltar ao Catete de novo nos braços do povo, contra o Exército, contra tudo!”

Desejou falar com alguém. Dirigiu-se apressado para o seu quarto de dormir e verificou que Lanja ainda estava no bom do sono. Não quis acordá-la. Vestiu-se. Barbeou-se, mas com mão de tal modo incerta, que arranhou uma das faces. Do aparelho de rádio agora saíam músicas alegres, entremeadas de anúncios.

 

Quando, cerca das oito e meia da manhã, tornou a soar a charanga do Repórter Esso, Tibério teve um sobressalto e correu para junto do rádio, com um mau pressentimento a apertar-lhe o peito, diiïcultando-lhe a respiração. De novo a voz do locutor:

Rio. Urgente. O Presidente Getúlio Vargas acaba de suicidar-se com um tiro no coração, às oito horas e vinte e cinco minutos, em seus aposentos particulares do Palácio do Catete.

Tibério ficou estonteado. Não conseguiu entender as palavras que a seguir o locutor pronunciou. Deu uma volta sobre si mesmo, deixando o cigarro cair. Teria ouvido direito? O Getúlio tinha metido uma bala no coração... Santo Deus! Era o fim do mundo... Sentou-se, afrontado, esforçando-se por escutar o repórter, que continuava a falar: ... foi encontrado um bilhete do próprio punho do Presidente: “A saìiha de meus inimigos deixo o legado da minha morte. Levo o pesar de não ter podido fazer pelos humildes tudo aquilo que desejava”.

Lentas lágrimas escorriam pelo rosto do velho Tibério Vacariano. Saiu a vaguear pela casa e acabou entrando outra vez no seu quarto. A mulher agora estava fechada no quarto de banho, em cuja porta ele bateu. “Que é?” – perguntou ela. “Lanja, o Getúlio se suicidou.” Um grito: “Quê?” E ele: “O Repórter Esso acaba de noticiar que o Dr. Getúlio meteu uma bala de revólver no coração. Está morto”. Curto silêncio. Depois se ouviu um pranto convulsivo vindo de dentro do quarto de banho. Tibério encaminhou-se para a cozinha.

Olhou para a cozinheira e, quase como quem faz uma queixa, disse:

– Dráusia, imagine que desgraça. O Dr. Getúlio se suicidou. ..

– Não pode ser! – reagiu ela, os olhos já assustados. – Não pode ser! Ele não ia nos fazer uma coisa dessas.

– Mas fez. O rádio acaba de dar a notícia. Meteu uma bala no coração às oito e vinte e cinco da manhã. Não faz nem meia hora.

Por alguns instantes a mulata ficou calada. Seus olhos aos poucos se foram enchendo de lágrimas. Depois, com voz quase inaudível, disse:

– O corpo do Dr. Getúlio deve estar ainda quente... – Ficou um instante como que estuporada. – Eu dava tudo na vida pra poder agora encostar a minha mão na testa dele...

Tibério já lhe tinha voltado as costas para sair da cozinha, quando ouviu Dráusia perguntar a si mesma: “E agora, que vai ser dos pobres?”

Sentiu um súbito e perverso despeito, que o levou a dizer, também baixinho, como se o cadáver do Presidente estivesse na sua casa:

– Os pobres vão continuar tão pobres como no tempo em que ele estava vivo.

Foi nesse momento que o telefone tilintou. Correu para o aparelho, segurou o fone, levou-o ao ouvido e, sem a agressividade habitual, disse: “Pronto”.

– É o Tibério?

– É...

– Aqui é a Quita. Escutaste a notícia?

– Que barbaridade! Pr a mim foi como um coice de mula na boca do estômago. Ainda estou meio tararaca. Pobre país!

– Pobre homem!

– Foi o que ele ganhou por não ter sabido escolher os seus amigos.

– Te lembras da frase do Getúlio quando viu a prova de que o Gregório, um simples capanga, tinha dinheiro para comprar uma estância dum dos seus filhos? “Tenho a impressão de que estou sobre um mar de lama.” E a lama respingou o pobre do homem e ele, então, quis se lavar no próprio sangue.

– Quando ouvi a notícia da licença, pensei cá comigo: isso não fica assim. Imaginei que o Getúlio ia recuar para dar um bote mais forte na hora oportuna. Te confesso que pensei em tudo, menos em suicídio.

– Isso mostra como a gente nunca chega a conhecer direito as pessoas. Mas Tibé, uma coisa não me sai da cabeça... Este é um dos momentos mais trágicos da vida do Brasil. A nossa História não é rica em dramas pessoais.

– O exílio do Imperador, talvez...

– Mas não! Dom Pedro II não governava propriamente. E, depois, tinha as suas distrações, olhava a Lua no seu telescópio, tinha as obras completas do Victor Hugo autografadas pelo autor. E privilégios, honrarias. Conheceste o quarto onde o Getúlio vivia e agora se matou?

– Vi uma vez, rapidamente...

– É a coisa mais impessoal e fria deste mundo. Nenhum quadro nas paredes. Nenhum vaso com flores. (Só conheço o lugar por fotografias, mas é o quanto basta.) Vê bem, Tibério, usa a imaginação. O Getúlio passou a noite em claro. Assinou o pedido de licença e se recolheu aos seus aposentos, vestiu o pijama, e ficou sozinho, Tibé, sozinho, andando dum lado para outro, decerto já compreendendo que não tinha sido licenciado, mas de novo deposto. Pra um homem de vergonha como ele isso deve ter sido urna coisa brutal... E o pior loi a sua desilusão de tudo e de todos. Já imaginaste a hora em que ele escreveu o bilhete de despedida... o momento em que se vestiu... e se deitou... e pegou o revólver. . e encostou o cano no peito, à altura do coração... ? Para quem teria sido o seu último pensamento?

– Uma barbaridade, Quita...

– Mas o que não me sai mesmo da cabeça é a solidão do Homem... passeando dum lado para outro, de madrugada, de pijama... sozinho naquele quarto horrível... Nessa hora pagou todos, todos os seus pecados. ..

– Uma coisa bárbara!

– Isso chega a parecer tragédia grega, Tibé.

– O quê?

– Tragédia grega.

– Ah, pois é...

– O homem traído, desmoralizado, sem ninguém... na rua o povo, pra quem ele era uma espécie de Deus, já meio virado contra ele... Tibé, precisas consultar o teu médico.

– Eu? Por que, mulher?

– Pelo telefone a gente percebe que a tua respiração não está nada boa. Sentes alguma dor no peito?

– Dor mesmo não sinto. Mas a notícia me deixou meio sem fôlego.

– Todo mundo ficou abafado. O Zòzimo se sentiu mal quando ouviu o Repórter Esso. Botei ele na cama e dei-lhe um calmante. Como foi que a Lanja reagiu?

– Soltou o pranto.

– Pois é. Parece que é assim que o Brasil inteiro está reagindo. Somos todos uns sentimentais, Tibé. Um povo como o nosso adora as meias soluções, as compressas dágua quente. Nada é sério mesmo, neste país. Quando alguém como o Getúlio adota uma solução final, irremediável, todos perdem a cabeça. Não sei se será um bem ou um mal. Seja como for, que Deus tenha piedade da alma do Presidente.

– Amém – murmurou Tibério, automaticamente.

– Bueno. Vai tomar alguma coisa,» homem. Consulta

o teu “veterinário” e pergunta o que é que ele te receita.

Tua respiração está muito ruim. Lembranças pra Lanja!

Depois eu telefono pra ela. Não há de ser nada. Deus é grande e o Brasil tem de continuar.

 Tibério repôs o fone no lugar. Aquela conversa com a velha amiga não lhe tinha feito nenhum bem. Agora não lhe saía da cabeça a imagem de Getúlio, de pijama, as mãos às costas, andando dum lado pra outro no seu quarto frio e triste. Sozinho, sozinho, na derradeira madrugada de sua vida.

Nesse momento o uivo já agora agourento da sereia de A Verdade engolfou toda a cidade e foi também ouvido do outro lado do rio.

 

Muitas vezes a sereia do diário local soou durante aquele dia e o seguinte. E as notícias que seu redator afixava no quadro-negro tinham um caráter quase apocalíptico.

Nas ruas da capital federal o povo amotinado pedia vingança pela morte de Getúlio Vargas. Registravam-se choques entre a polícia e o povo. Soldados e tanques do Exército patrulhavam o centro da cidade.

A pior situação, porém, era a de Porto Alegre. Mal se havia divulgado a notícia do suicídio do Presidente, seus adeptos – primeiro às centenas e mais tarde talvez aos milhares – reuniam-se em vários pontos do centro da cidade, improvisando comícios cujos oradores incitavam o povo contra os partidos e jornais antigetulistas e contra os “agentes do imperialismo ianque”, responsabilizando-os todos pelo dramático gesto do Chefe da Nação. Os manifestantes percorriam aos gritos as ruas do centro, empunhando retratos de Getúlio Vargas e bandeiras nacionais. Os cinemas, cafés, bares e restaurantes haviam fechado as suas portas. A fúria da multidão atingiu seu paroxismo quando ela atacou a sede dos diretórios da U.D.N. e do P.S.D., arrombando-as. atirando para a rua seus móveis e utensílios, quebrando-os e prendendo-lhes fogo. O consulado americano e a filial do First National City Bank foram também invadidos e depredados. As instalações do Diário de Notícias e das Emissoras Associadas tinham sido igualmente destruídas e incendiadas. A mesma sorte tivera o jornal Estado do Rio Grande.

Toda a casa comerciai onde se lesse o nome americano ou América incitava a fúria destruidora dos manifestantes, mesmo que se tratasse de firmas nacionais.

O Governador do Estado entregou ao general comandante da Zona Militar do Sul o controle da situação. No momento em que um grupo de manifestantes destruía a sede do Partido Social Progressista, nos altos dum café, uma patrulha do exército interveio. Quando, saqueada por completo a sede do P.S.P., começava a destruição do próprio café, um oficial interpelou um dos manifestantes e foi por este atacado e jogado ao chão. Alguns sargentos deram tiros com cartuchos de festim para assustar os amotinados, mas como estes continuassem ainda enfurecidos e agressivos, os soldados abriram fogo contra eles com balas de verdade, matando duas pessoas e ferindo dez.

As ruas centrais de Porto Alegre apresentavam um espetáculo impressionante, com a fumaça e as chamas dos incêndios, o seu pavimento e as suas calçadas cheias de móveis e papéis incinerados – o lixo, em suma, daquelas brutalidades.

Noticiava-se que também em São Paulo e Minas Gerais tinha havido depredações e motins de rua.

Sob ponchos e guarda-chuvas os antarenses liam essas notícias e depois iam para os cafés comentá-las, beber e em muitos casos brigar. O delegado de polícia de Antares nessa noite mandou patrulhas com armas embaladas percorrerem as ruas da cidade, com recomendação de manter a ordem a qualquer preço.

A sereia de A Verdade tornou a uivar às dez da noite. A notícia agora vinha do Rio e contava que desde as vinte e uma horas milhares de pessoas desfilavam pelo fèretro de Getúlio Vargas, que estava sendo velado no andar térreo do Palácio do Catete. Gente das mais variadas camadas sociais queria ver pela última vez o seu Presidente. Vestido de escuro, estava Getúlio Vargas estendido dentro dum esquife comuma meia tampa de vidro que lhe deixava visível a parte superior do corpo. Havia em seu semblante uma grande serenidade, e nos seus lábios uma expressão que chegava quase a parecer um sorriso. Alguém lhe tinha posto entre dedos um rosário, do qual pendia uma cruz. Notava-se uma grave tristeza na fisionomia de todos os que passavam pelo fèretro, e os que não podiam beijá-lo tentavam pelo menos tocá-lo, nem que fosse apenas com a ponta dos dedos. Algumas pessoas romperam em crise de pranto. Não poucas desfalecer am.

Sabia-se agora com certeza que o corpo do Presidente ia ser sepultado no cemitério de sua cidade natal, para onde seria transportado num avião especial na manhã do dia seguinte.

 

Nessa manhã, passada a emoção das primeiras vinte e quatro horas que se haviam seguido à dramática notícia, Tibério Vacariano podia já analisar a situação com o seu olho frio de político. Compareceu como de costume à reunião das dez no laboratório da Farmácia Imaculada Conceição, na qual, como era de se esperar, o assunto exclusivo era o suicídio do Presidente Vargas e as reações que o fato provocara em todo o país.

Tibério tirou do bolso um recorte de jornal que reproduzia na íntegra a já famosa “carta testamento”, da qual Getúlio Vargas entregara uma cópia a João Goulart, logo após assinar o seu pedido de licença.

– Vocês leram direito esta carta? – perguntou o Cel. Vacariano ao chegar à roda. – É um documento infernal. Representa o último e maior golpe político do Homem. Custou-lhe a vida, é verdade, mas foi mais uma vitória do mago de São Borja. Escutem...

Pôs os óculos, pigarreou e leu a carta inteira, dando ênfase especial à seguinte passagem: Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram o meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida V&’ ra entrar na História.

Tibério Vacariano tornou a repor no bolso o recorte je jornal e os óculos.

– Estão vendo? – disse. – O Getúlio com esta carta varre a sua testada, salva-se como homem e como estadista, encontra uma saída honrosa para uma situação pessoal difícil, apresenta-se como um mártir do povo, candidata-se à História, vinga-se dos inimigos atirando nos ombros e na consciência deles o seu próprio cadáver, e ao mesmo tempo (prestem bem atenção ao que estou dizendo!) ao mesmo tempo entrega ao João Goulart e ao P.T.B, um programa político e uma bandeira de guerra. E como têm força essas bandeiras ensangüentadas! Já pensaram como o Jango vai explorar daqui por diante, em seu proveito, esse testamento? Porque podem dizer o que quiserem do herdeiro político do velho Getúlio, mas burro ele não é. E um zorro que aprendeu as artimanhas políticas de seu mestre e protetor.

Poucos minutos mais tarde A Verdade recebia um telegrama do Rio de Janeiro. A maior massa humana jamais vista nas ruas da capital federal acompanhara aquela manhã o esquife com o corpo de Getúlio Vargas, do Palácio do Catete até ao Aeroporto Santos Dumont. O povo tinha insistido em empurrar, durante todo o trajeto, a carreta militar sobre a qual fora colocado o fèretro.

Um dos companheiros da roda de chimarrão perguntou a Tibério :

– Como é? Vais ou não vais ao enterro do Getúlio?

– Não sei ainda. Por que perguntas?

– O homem era teu amigo, não era?

– Era, mas...

Calou-se, tirou a faca cuja bainha trazia presa na cava do colete, começou a amaciar com sua lâmina a palha para fazer um cigarro. O outro insistiu, com um brilho malicioso nos olhos :

– Mas quê... ?

 – Olhadisse de repente o Cel. Vacariano, com as ventas já palpitantes. – Vá ou não vá, não é da conta de ninguém. Sou dono do meu nariz, faço o que entendo.

– Está bom, Tibé. Não precisas ficar brabo. Perguntei só por perguntar. Aceitas mais um amargo?

Quando em casa a mulher lhe fez a mesma pergunta, ele foi franco:

– Talvez a minha obrigação seja ir, Lanja. Devo favores ao Dr. Getúlio, gostaria de lhe prestar uma última homenagem. Mas estou pensando... Vamos que um dos parentes ou amigos do morto me veja, me desacate, me faça qualquer desfeita. Tu sabes que não sou homem de trazer desaforo pra casa. Vou ter de armar um forrobodó e pode ser o diabo.

Não foi. À hora do almoço notou que havia nas doze pessoas sentadas à sua mesa – filhos, sobrinhos, cunhados

– um curioso silêncio. Desconfiou que todos o miravam “dum jeito meio esquisito”. De repente resmoneou: “Neste país basta um homem morrer para logo ser promovido a santo. O Getúlio tinha muitas qualidades mas também tinha muitos defeitos. O estrangeiro que examinar a situação do Brasil hoje terá a impressão de que nosso povo ficou de repente órfão de pai...”.

O silêncio continuou em torno da mesa patriarcal.

– Por amor de Deus! – exclamou o velho Vacariano.

– Quando eu morrer não me santifiquem. Sou um homem cheio de defeitos e de alguns deles até me orgulho. Quem duvidar que pergunte à Lanja...

Pegou com ambas as mãos uma costela de carneiro, meteu-lhe o dente e arrancou-lhe a carne, com pelanca e tudo, numa espécie de afirmação de autoridade e independência. No silêncio que se seguiu, ouviu-se a voz calma e terra-a-terra da matriarca dos Vacarianos:

– Estás com a cara toda respingada de farinha, Tibé.

 

Em 1955 o P.S.D. e o P.T.B. elegeram Juscelíno Ku-bitschek de Oliveira Presidente e João Belchior Goulart

Vice-Presidente da República. O Congresso Nacional reconheceu a validade dessas eleições, que se haviam efetuado com apreciável regularidade.

Tibério Vacariano que, com escasso entusiasmo, acompanhara a facção dissidente de seu partido no apoio eleitoral ao Gen. Juarez Távora, candidato da U.D.N. – apareceu certa noite na casa dos Campolargos numa espécie de visita de “pêsames políticos”. Zózimo recebeu-o com um aperto de mão chocho.

– Como vais, Tibé?

O velho Vacariano atirou o chapéu para cima dum consolo e disse:

– Com os trabalhistas de novo no poder, estamos fritos.

Quitéria tricoteava na sala de visitas, sentada na sua cadeira de balanço avoenga. Tibério apertou-lhe a pequena mão carnuda, que sempre lhe dava a impressão dum passarinho gordo e morno. Sentou-se.

– Então – perguntou a dona da casa – muito abatido?

O Cel. Vacariano fez uma careta:

– Feliz não estou. Sabia que íamos ser derrotados. Mineiro não perde parada. – Desatou um riso inaudível mas visível no movimento convulsivo dos ombros e do ventre, e na expressão picara da face. – A segunda aliança política da história de Antares entre Campolargos e Vacaria-nos (pois a primeira foi em ‘30) fracassou...

– Não há de ser nada – encorajoü-o Quita. – Vamos ganhar a próxima eleição daqui a cinco anos.

– Estarei vivo até lá? – perguntou Tibé, com fingida dúvida, pois estava certo de que chegaria à casa dos oitenta.

– Ora, Tibé, para morrer basta estar vivo. Mas acho que para desgraça nossa ainda vais muito longe...

Foi neste ponto da conversação que o Cel. Vacariano percebeu a palidez e o desânimo de Zózimo, que estava de pé ao lado da cadeira da esposa, sempre na sua atitude de Príncipe consorte.

– Ó homem, que é que há contigo?

Antes que o marido abrisse a boca, Quitéria respondeu-.

– Nada sério. O Dr. Falkenburg diz que é anemia.

– O Dr. Falkenburg é um charlatão – retrucou Ti-bério.

– Tibé, não recomece essa velha discussão. O Dr. Lázaro não é melhor que ele. Seja como for, o mês que vem vou levar o Zózimo a Buenos Aires ou ao Rio para um especialista tirar essa coisa toda a limpo. E não se fala mais nisso! Como vai a Lanja? Por que não veio?

– Ficou em casa com os netos.

Fez-se um silêncio, que Tibério rompeu para dizer com ar e voz de conspirador:

– Não sei se vocês já ouviram o boato... – Quitéria tirou os óculos e suas mãos caíram-lhe no regaço. – Dizem que o golpe vem aí... – sussurrou o visitante.

– Velho tramposo! – interrompeu-o Quitéria. – Não sabe perder.

– Confesso que não sei nem quero aprender.

A voz tão pálida e cansada quanto a face, Zózimo interveio :

– Não acredito nesses boatos.

– Na minha opinião esta é a hora certa para o golpe – afirmou Tibério.

Quitéria ergueu os olhos para ele:

– Golpe de quem contra quem?

– Das Forças Armadas, para impedir que o Juscelino e o Jango tomem posse!

– Mas se eles foram eleitos pela maioria do povo e reconhecidos pelo Congresso! Estamos numa democracia, homem de Deus!

– Qual democracia! – replicou o Cel. Vacariano. – Vivemos numa cafajestocracia, isso é que é. Se dependesse de mim, eu puxava na corrente da descarga para toda essa porcaria ir-se cano abaixo...

Quitéria tornou a baixar os olhos para o seu tricô, murmurando:

– Não te esqueças de ir junto... Tibério soltou uma risada breve:

– Mas vocês não compreenderam ainda – replicou – que se não tomarmos o poder agora estamos perdidos?

Quem vai governar mesmo no próximo qüinqüênio é o Jan-go e o maluco do cunhado dele, o Leonel Brizola. Os dois, mancomunados, continuarão manobrando os sindicatos, encorajando as greves, fazendo passar mais e mais leis favoráveis aos seus eleitores e “peiegos”, aumentando o salário mínimo, em suma, estrangulando cada vez mais as classes produtoras. Vamos acabar no socialismo!

– Que Deus nos livre – acrescentou, rápida, Quitéria. Fez-se um silêncio. Zózimo sentou-se e cerrou os olhos,

como se tivesse sentido uma súbita tontura. Quitéria ficou por um instante a observar o seu visitante e depois, sem tom polêmico, tornou a falar:

– Sabes duma coisa, Tibé? Estás ficando cada vez mais parecido com o velho Xisto. Principalmente de temperamento. Autoritário e intolerante.

Tibério lançou um olhar oblíquo para o retrato do velho Benjamim.

– O teu tio e sogro não era nenhuma flor que se cheirasse.

– Quando é que vais criar juízo, sossegar o pito e cuidar dos teus netos?

– Os netos não são meus, são da Lanja. E, depois, quem quer falar de mim! Quitéria Campolargo, a maior politiqueira da zona missioneira!

– Há política e política. Acho que é um dever cívico a gente ter um interesse ativo na política do seu país. Mas tu, Tibé, tu és um doente. Tens de estar sempre serrando de cima, mandando e desmandando, tramando intrigas...

– Tenho a política no sangue.

– Política e sífilis.

Tibério soltou uma risada bonachona. Sua amizade com a matriarca dos Campolargos alimentava-se desses insultos. Era com um ar de troça que se diziam duras verdades um sobre o outro.

Fez-se um silêncio. De cabeça caída sobre o peito, Zózimo agora cochilava, e de sua boca entreaberta saía um leve ronco rascante. Tibério olhou para o amigo e pensou: “Aposto como esse não vai longe...”.

Quando chegou a Antares a notícia de que as Forças Armadas, sob o comando do Ministro da Guerra, tinham acabado de dar um golpe de Estado, Tibério Vacariano exultou, saiu para a rua, fez um comício mirim na praça, e bravateou durante o chimarrão das dez. O país estava salvo!

Sua alegria, porém, foi de curta duração, pois em breve se esclareceu que a finalidade daquele movimento militar fora a de garantir a posse dos candidatos eleitos. Tratava-se, em suma – alegavam os seus autores – dum “golpe preventivo”.

Ao saber disso, Tibério soltou um palavrão, entrou no seu jipe e tocou para a estância, onde passou o verão inteiro no convívio das vacas que – segundo ele próprio agora dizia – lhe mereciam mais confiança que os políticos e os generais.

 

Já nos primeiros meses do governo de Kubitschek o Cel. Vacariano pôde verificar que não se realizava a sua previsão de que o novo Presidente ia ser facilmente manobrado por Jango Goulart e Leonel Brizola, os herdeiros políticos de Getúlio Vargas. Perdeu os seus Poleangos simbólicos apostados na “roda da Imaculada”, sentiu-se ferido no seu orgulho de profeta político, mas no íntimo rejubilou-se por ver que J.K. não aceitava o freio e o buçal petebistas. Quando, porém, Juscelino Kubitschek começou a pôr em prática o slogan plataforma de sua campanha eleitoral – “Cinqüenta anos âe desenvolvimento em cinco” – Tibério, arraigado conservador, ficou alarmado.

Passou o resto daquele qüinqüênio a criticar o Presidente. Tudo quanto ele fazia parecia-lhe errado ou supérfluo. Falar mal de Juscelino Kubitschek e dos seus ministros e colaboradores passou a ser para o velho político an-tarense uma espécie de pão de cada dia, do qual participava também a sua amiga Quitéria Campolargo. Comunicavam-se quase diariamente pelo telefone:

Ó Quita, você viu a última do Juscelino?

Se vi. Esse mineiro vai levar o país à ruína. Já estamos sentindo na carne e no bolso as conseqüências dos seus desatinos.

Certa manhã: depois de ler um editorial de A Verdade no qual Lucas Faia elogiava o Presidente Kubitschek por estar procurando incutir na nação brasileira a idéia de que ela tinha “um encontro marcado com o Destino, e um grande papel a representar no palco da História”, Tibério Vaca-riano tirou-se de seus cuidados e invadiu – o termo é exatamente este – invadiu a redação do jornal local, embara-fustou de chapéu na cabeça pelo escritório de seu diretor e, sem dizer-lhe “Bom dia” nem o habitual “Que tal?”, vociferou: “Você também já se vendeu pro Juscelino? Quanto está recebendo dele? Qual encontro com o Destino qual nada! Estamos é com um encontro marcado com a inflação, a bancarrota, a miséria e a anarquia!”

Lucas Faia levantou-se, mas sem perder o sorriso nem os bons modos:

– Sente-se, coronel. Vamos discutir o assunto tomando um cafezinho.

Acercou-se da porta que dava para a sala da redação e gritou:

– Ó Jucá, manda trazer dois cafés bem bons. E depressa!

Tibério continuava de pé, com o número de A Verdade na mão e dava-lhe repetidos tapas, como se quisesse castigar fisicamente o editorial.

– Nunca vi tanta besteira junta. É o teu pior escrito nestes últimos vinte anos!

– Sente, por favor, coronel. Não vamos brigar. O senhor está em sua casa.

Tibério sentou-se, mas sem tirar o chapéu. Reacendeu o cigarro que tinha, morto, a um canto da boca e esse gesto de certo modo pareceu acalmá-lo um pouco.

– O senhor sabe, coronel, como eu acato as suas opiniões... Como forte acionista d A Verdade, o meu ilustre amigo tem todo o Direito de dizer o que está e o que não está certo na orientação do jornal. Então acha que o Presidente Kubitschek está fazendo um mau governo?

– Mau? Péssimo. Perigosíssimo. O país não agüenta as loucuras desse homem. Onde se viu construir uma capital a todo vapor, remetendo o material por via aérea? Então você acredita mesmo que ele vai inaugurar essa tal cidade antes do fim do mandato?

Lucas Faia continuava aparentemente sereno.

– Coronel, eu acredito, mas posso estar errado. Agora, há alguém que nunca se engana. Só essa entidade poderá dizer a última palavra no caso.

– Quem é?

– A História.

– Não é pessoa das minhas relações...

– Coisas que hoje parecem ousadia, loucura, amanhã serão consideradas não só sensatas... como até (como direi?)... modestas, tímidas.

– Você está doido. Mande examinar essa cabeça o quanto antes.

Veio o café. Vacariano bebeu o seu em goles curtos e sôfregos, pôs a xícara em cima da mesa e disse, menos exaltado:

– É o que acontece quando um bando de eleitores analfabetos leva à presidência da República um ex-médico urologista da Força Policial de Minas Gerais.

– Mais um cafezinho, coronel?

– Ó Lucas, não me amole mais com esse café, que por sinal estava requentado.

– O senhor está muito pessimista... – sorriu o jornalista. Tinha uma voz macia e vagamente nasalada, como num defluxo crônico.

Tibério lutava agora um pouco com a própria respiração. O suor escorria-lhe pelas faces.

– Lucas, você sabe que não sou pessimista. O que sou é um homem com as patas plantadas na terra. Não vou com fantasias. E há uma coisa que já ficou bem clara nessa estória toda. Com esses seus negócios e empreendimentos do arcc-da-velha o Juscelino está dando a seus amigos, afilhados e sócios a oportunidade de enriquecer ilicitamente.

Lucas pensou nas grandes, incontáveis patifarias que o homem que tinha na sua frente havia praticado na vida – a famosa “fábrica de seda”, as operações de câmbio negro, o contrabando de pneumáticos de automóvel nos últimos anos da Grande Guerra – e continuou a sorrir um falso sorriso de mau ator. Não queria indispor-se com o velho, mesmo que tivesse coragem para tanto. Sem ser o melhor dos amigos, Tibério Vacariano era o pior dos inimigos.

 

A 21 de abril de 1960, no último ano de seu governo, o Presidente Kubitschek inaugurou Brasília oficialmente. Poucos dias depois, Zózimo Campolargo morreu de leucemia num hospital do Rio de Janeiro.

Exatamente ürês dias antes do falecimento do marido de Quitéria, Tibério Vacariano – que se encontrava então na cidade que até ao fim de sua vida ele se obstinaria em chamar de “capital federal” – foi visitar o amigo na casa de saúde onde ele estava internado havia meses.

Tinha um horror supersticioso a hospitais, que considerava verdadeiras antecâmaras da morte, com seus cheiros de desinfetantes e de febre, as suas brancuras frias e metálicas lembrando bisturis, a solidão silenciosa dos corredores onde as pessoas pareciam já fantasmas de si mesmas. Costumava dizer: “Não me lembro de ter passado mais de um dia de cama em toda mi perra vida, mas se eu vier a adoecer gravemente, não rne levem pra nenhum hospital: quero morrer na minha casa, na cama onde meu pai me fez e a “linha mãe me pariu”.

O quarto de Zózimo era imaculadamente limpo e ciato. O doente, agora de cabelos completamente encanecidos, detido num pijama branco, sumia-se pálido no alvor das cpbertas e dos lençóis, como um camaleão exangue. Quitéria, vestida de negro, estava sentada ao lado da cama, fazendo tricô com grossas agulhas brancas. A única nota viva no ambiente era dada por um vaso cheio de rosas amarelas, em cima duma’mesinha de cabeceira.

Tibério entrou meio desajeitado, com bovina lentidão, e apertou a mão fria e flácida que o amigo lhe estendeu.

– Que é isso, homem? Querendo entregar a rapadura?

– E o fim; Tibério. A última cena do último ato.

– Qual fim, qual nada! E tu como vais, Quita? – Inclinou-se e abraçou a amiga, beijando-lhe a testa.

– Vai-se indo como Deus quer – respondeu ela em voz ba’xa. – Senta o tundá naquela cadeira. E tira o chapéu, ir-al-educado!

Ele obedeceu. Podia ver agora a paisagem, enquadrada pela janela: encostas de morros cobertas de ricos e variados verdes, manchadas aqui e ali pelo roxo das flores de quaresmeira. Era um dia claro, de céu limpo, e uma leve brisa trazia fragrâncias silvestres para dentro do quarto.

“Que é que vou dizer?” – pensava o visitante. Sabia que o amigo estava perdido. Sua morte era questão apenas de dias ou talvez mesmo de horas. Tibério sentia que a voz se lhe trancava na garganta. Quitéria salvou-o do embaraçoso silêncio.

– Como vai a campanha política?

– Acesa. A corrida vai ser braba em outubro.

– Vocês já se decidiram?

– O diretório regional do P.S.D. do Rio Grande do Sul, como sabes, vai apoiar Jânio Quadros. Não quero criar problemas para os meus correligionários. Vou trabalhar por esse moço, mas sem entusiasmo. , . Nem conheço ele direito.

– Quem conhece direito os outros ou a si mesmo? – balbuciou o enfermo.

Quitéria encolheu os ombros:

– O Tibério talvez prefira trabalhar pelo Ademar de Barros, que é lobo da sua alcatéia...

O Cel. Vacariano riu com os ombros e com o ventre, mas sua cara continuou séria e de sua boca não escapou o menor sonido. Pouco depois, disse:

– Não quero nada com o Ademar, mas o Gen. Teixeira Lott me parece um homem decente.

– Parece e é. Mas tem como Vice-Presidente na sua chapa o Jango Goulart. Os trabalhistas vão votar nos dois. E não é preciso ser muito inteligente para saber o que acontecerá se essa chapa vencer. O Gen. Lott vai ser fatalmente dominado pelos nacionalistas do Brizola. E de novo teremos o P.T.B. no poder. Precisamos nos livrar duma vez por todas do espectro do Getúlio. O Jânio Quadros me parece a única saída... embora não me pareça o candidato ideal.

– Não sei... – murmurou o Cel. Vacariano. – O Jânio não será também cria do Getúlio? É um desconhecido, quero dizer, um político meio verde, sem experiência. Há poucos anos era um modesto professor completamente desconhecido, depois conseguiu eleger-se vereador em São Paulo e parece que se distinguiu como bom galo de rinha. Mais tarde foi eleito deputado pelo Paraná... Agora quer dar um pulo pra presidência da República. Será que tem pernas pra tanto?

– Mas não esqueças a obra dele como governador de São Paulo.

– Ora, São Paulo é um Estado rico, relativamente fácil de governar. Basta ter um bom secretariado. E o Jânio teve... Mas não vamos discutir mais esse assunto. Já prometi trabalhar pelo moço e vou cumprir a promessa.

Zózimo ergueu o braço e apontou com o dedo para um jornal que estava em cima duma cadeira.

– õ Tibé, você leu o Correio da Manhã de hoje? Traz uma reportagem muito interessante sobre Brasília.

Tibério olhou rápido para o jornal e depois para o amigo, dizendo:

– Não li nem vou ler. Sou contra Brasília. Essa “inauguração” foi fraudulenta como quase tudo quanto o Jusce-lino tem feito. A cidade não está nem nunca ficará pronta. Vai ser como a Sé de Braga. Nenhum Presidente poderá governar o país daquele cafundó...

Zózimo esboçou um sorriso e Tibério, confrangido, teve uma antevisão da caveira de seu amigo.

– Qual, Tibé! Não adianta a gente querer tapar o sol com uma peneira. Nosso tempo passou. Estamos velhos e atrasados. – Falava baixo, fazendo longas pausas respiratórias. – O mundo hoje é dos jovens... dos que têm coragem de fazer coisas, não apenas de conservar o que temos de bom ou de “aceitável”. O Brasil, comparado com as outras nações, é um país moço. Um potrò que vai disparar... acho até que já disparou... Os da nossa geração, Tibé, não se agüentam em cima dele nem agarrados no “santo-antônio”.

– Nunca na vida caí de cavalo. E sou domador.

– Era – zombou D. Quitéria.

Zózimo calou-se, fatigado, e permaneceu um instante de olhos cerrados. Quando tornou a falar, foi com voz tão débil, que Tibério, para ouvi-lo melhor, teve de arrastar sua cadeira para perto do leito.

– Nós... nós lá no Rio Grande não iremos... iremos nunca para diante... sem primeiro enterrar definitivamente certos cadáveres simbólicos... Gaspar Martins, Júlio de Castilhos, Borges de Medeiros... Getúlio Vargas... e outros, outros...

Tibério, que não gostou da inclusão do nome do conselheiro Gaspar Martins, ídolo da sua juventude, entre os “mitos” que deviam ser esquecidos, protestou:

– Você quer então matar as nossas tradições?

– Não. Eu quero que os homens da nossa... da nossa geração compreendam que seu tempo passou... que não podemos continuar olhando para trás... recordando as nossas cargas de cavalaria... Sepé Tiaraju... As “califór-nias” do Chico Pedro... Bento Gonçalves... Tempos novos chegaram, estão sempre chegando... Pedem outra espécie de gente... gente capaz de ousar... de olhar para a frente, enxergar longe... homens com um pé no presente e outro no futuro.

O Cel. Vacariano voltou-se pára a amiga:

– Estás de acordo com o teu marido?

Quitéria Campolargo encolheu os ombros num gesto de dúvida:

– Não sei... acho que um passado como o nosso não se bota fora como a água suja dum banho. Eu sou tradicionalista, o que não quer dizer que seja atrasada... O Zózimo e eu aqui sozinhos todos estes meses temos discutido muito esses problemas e outros. – Sorriu tristemente. —

Foi preciso esse homem adoecer pra abrir o “falador”. Antes ele pagava para ficar calado.

– Também tu nunca deixavas o teu marido abrir a boca...

– Pode ser. Mas agora estamos finalmente botando a nossa conversa em dia.

Zózimo tornou a sorrir um sorriso que já parecia ter algo de além-túmulo.

– É que compreendi que tenho pouco tempo de vida pela frente. Depois... depois dessas transfusões todas, quando o sangue que me corre nas veias não é mais o meu velho sangue, mas o de centenas de doadores... acho que muitas outras pessoas, que nunca vi, estão falando agora pela minha boca...

 

Por alguns instantes Tibério quedou-se a contemplar uma das quaresmeiras que enfeitavam os morros, e lembrou-se com preguiçosa saudade duma paineira que havia perto da casa de sua estância, em Antares.

-- Eu já preveni a Lanja, os meus filhos e o meu médico. Se um dia por desgraça eu precisar duma transfusão, não quero que me metam nas veias sangue de negro, nem de judeu ou de comunista.

– Por que, velho burro? Que diferença faz?

– Eu cá sei o que quero dentro deste corpo. E vou dizer outra coisa pra vocês dois. Eu cá só me aposento depois de morto, e assim mesmo sob protesto. Sei que meu dia vai chegar. Deus me bota na compulsória e me leva para a invernada do Nunca Mais, que é uma campanha sem fim nem princípio. Mas enquanto eu estiver vivo, hei de espernear, gritar, queimar até o último cartucho defendendo o que me pertence, o que herdei de meu pai (tanto terras e títulos e gado, como tradições), o que meu pai herdou de seu pai, de seu bisavô, trisavô, etc., etc... Ninguém põe a mão no que é meu sem a minha licença. Não aceito essas idéias modernas de socialismo, comunismo e sei lá quê mais.

Fez-se um novo silêncio. De fora vinham vozes humanas. De vez em quando se ouvia o zumbido do elevador do hospital. Tombou uma pétala de uma das rosas. Quitéria soltou um suspiro. Zózimo agora parecia adormecido. Ti-bério pensou em Cleo com uma saudade tátil.

– Neste quarto, Tibé – disse Quitéria – dentro destas quatro paredes o Zózimo e eu temos falado em assuntos em que nunca tínhamos tocado antes. Nossa morte, por exemplo...

– Pois não lhes gabo o gosto – resmungou Tibério.

– Tibé, tens fama de valente. Vives contando bravatas, proezas em revoluções e duelos... patacoadas! No entanto tens medo de pensar na tua morte, tens horror a encarar a realidade. – Tirou os óculos, limpou-lhes as lentes com um lencinho, e depois prosseguiu-. – Que esperas mais da vida? Os nossos filhos estão criados, não precisam mais de nós. Mais que isso: não querem saber de nós, de nossas idéias, de nossas manias, de nossa maneira de pensar e viver. Acho que todo homem vê sua cara todas as manhãs no espelho, na hora de se barbear. Que é que o espelho diz? Diz que o tempo passa sem parar. E que essas manchas que a gente tem no rosto (tu, eu, o Zózimo, todos os que chegam à nossa idade), essas manchas pardas são bilheti-nhos que a Magra escreve na nossa pele. Eu leio todos os dias esses recados, mas tu, Tibé, tu és analfabeto ou então te fazes de desentendido.

Zózimo escutava, de olhos cerrados e lábios entrea-bertos.

– O Zózimo não ignora o estado dele – continuou Quitéria. – Nenhum de nós se faz ilusões. Sabemos que todos um dia teremos de morrer. Gente melhor que nós tem morrido. A Virgem Maria, por exemplo, Napoleão Bonaparte. .. Morrer não é privilégio de ninguém. Todos morrem. Os ricos e os pobres, os inteligentes e os estúpidos. Uma das coisas que aprendi com a velhice foi fazer as pazes com a minha morte. Quando a Moura Torta bater na minha porta eu digo: “Entre, comadre, tome um mate. Ah, não quer? Então vamos embora”.

Fez uma pausa, olhou por alguns segundos o quadro que a janela emoldurava e depois, voltando-se para o amigo, disse:

– O que acontece é que tu és um homem sem fé, sem religião. Eu acredito em Deus e na Outra Vida, que deve ser melhor que esta. Reconheço meus defeitos, mas não tenho sido a pior das esposas nem a pior das mães ou das sogras. Tenho feito as minhas caridades. Rezo todas as noites. Vou à missa todos os domingos e me confesso todas as semanas. Estou certa que, depois da nossa morte, o Zózimo e eu vamos nos encontrar de novo em algum lugar.

– Pobre homem! – exclamou Tibério. – Não vai se livrar de íi nem na Eternidade.

Quitéria repôs os óculos e recomeçou a movimentar as agulhas e o fio de lã. Tibério olhou para o doente e teve a impressão de que o seu peito não se movia mais. Estaria morto?

– Quita, o teu marido parece que está dormindo. É melhor eu ir embora...

O enfermo abriu os olhos.

– Não, Tibé. Fica mais uns minutinhos... Este é o nosso último encontro.

– Ora, homem!

– Sabes duma coisa curiosa? Aqui nesta cama... todos estes meses... têm-me acontecido coisas esquisitas... Às vezes não sei se estou dormindo ou acordado... Esta fraqueza me deixa leve... leve, como uma sombra num sonho... Às vezes volto ao tempo de menino... me vejo, me sinto pescando, nadando ou passeando de caique no nosso rio... (É sempre verão, com um sol daqueles da nossa infância!) Ontem... ontem eu tinha doze anos... estava brincando na barranca do Uruguai quando ouvi um tiroteio... Era de tardezinha. Me escondi atrás do tronco de urna árvore e fiquei espiando um combate entre contrabandistas e guardas aduaneiros... Fiquei assustado, tremendo, o coração batendo mais depressa... um homem caiu nágua, baleado... a água ficou vermelha de sangue... vi que ele ia morrer afogado, então me atirei no rio... foi quando a

Quita me segurou pelos ombros, me sacudiu... Eu estava já com os pés para fora da cama...

– Sonho – disse Tibé.

– Sonho? – duvidou o doente. – Talvez. Mas eu acho que não cheguei a dormir de verdade... Fiquei assim no meio do caminho... entre dormindo e acordado... Um dia destes o velho Benjamim me apareceu, ficou sentado naquela cadeira, pitando o seu crioulo... cheguei até a sentir o cheiro da fumaça... vi o brilho de seu olho de vidro. .. Minha mãe também andou por aqui. Sonhos, tu di-zes. E... Talvez. Com todo esse sangue alheio no corpo, qualquer dia vou começar a sonhar sonhos de outras pessoas . ..

Quita não levantava os olhos de seu tricô. Fez-se novo silêncio. Tibé ergueu-se.

– Preciso ir andando. Tenho umas providências a tomar. – Segurou a mão do amigo e disse-. – Até qualquer dia, companheiro. Eu ainda volto aqui antes de ir embora.

– Não. Não voltes mais, Tibé. O fim de um homem não é nenhum espetáculo bonito.

O Cel. Vacariano soltou um suspiro de relutante aquiescência.

– Está bem.

– Podes dizer adeus. Não vamos nos ver mais.

– Estás impossível, Zózimo! Qualquer dia destes vou te levar de volta a Antares, e ainda havemos de tomar muitos chimarrões.

Zózimo Campolargo sacudiu a cabeça dum lado para outro sem erguê-la do travesseiro.

– Só volto para Antares dentro dum caixão... – sorriu tristemente. – Desta vez quem aposta dois Polean-gos sou eu.

Lágrimas rebentaram subitamente nos olhos de Tibé-rio Vacariano, que as enxugou desajeitadamente com os dedos grossos e de pontas manchadas de nicotina. Depois, sem se despedir de Quitéria, precipitou-se, fungando, pelo longo corredor do hospital, rumo do elevador.

 

Quitéria Campolargo fretou um avião para levar para Antares o esquife com o corpo do marido. Tibério Vacariano acompanhou-a na viagem.

A viúva de Zózimo manteve-se muito digna, a face impassível, os olhos secos. Reprimiu a sua dor e não “deu espetáculo” em sua casa, no velório, no momento em que fecharam o caixão do companheiro. Algumas das pessoas que estavam na câmara ardente, e que de certo modo esperavam a cena, como se por força duma tradição ou duma lei não escrita tivessem direito a presenciar essas explosões de dor, .como uma espécie de recompensa por terem comparecido à cerimônia – inconscientemente umas, consoiente-mente outras – sentiram-se ludibriadas. As quatro filhas de Zózimo, porém, de certo modo salvaram a situação fornecendo o elemento de tragédia que faltava àquela câmara mortuària. Beijaram desesperadamente o rosto do defunto, romperam em gritos, choros e exclamações, uma delas desmaiou nos braços do Dr. Falkenburg e foi carregada para o seu quarto. Vendo tudo isso, algumas senhoras e até alguns cavalheiros encontraram um bom motivo para desatar o pranto, o que muito os reconfortou.

Quitéria acompanhou o cortejo fúnebre até ao cemitério. Diante do mausoléu de granito negro da família, houve três discursos: um do secretário da prefeitura, em nome do prefeito e do povo de Antares, o outro do representante do diretório local da U.D.N. e o terceiro do presidente do Clube Comercial, do qual Zózimo era sócio fundador, benemérito e remido. Quitéria manteve a cabeça erguida e os olhos secos. O céu estava toldado, fazia um friozinho prematuro e o sudoeste – que os antarenses chamavam de “vento castelhano”, com um ressentimento mitológico – soprava insistente, produzindo uma musiquinha crepitante nas folhas das coroas artificiais.

 

Em princípios de setembro, o Dr. Jânio Quadros, acompanhado de alguns próceres políticos da U.D.N. e do P.S.D. de Porto Alegre, fez uma visita de seis horas a Antares. Dois dias antes de sua chegada já se via em muros e paredes da cidade a frase que costumava precedê-lo aonde quer que ele fosse.- Jânio vem aí!

A conselho de Tibério Vacariano o candidato foi à mansão dos Campolargos apresentar seus respeitos a D. Quité-ria, que estava de luto fechado, e manifestar seu pesar por não lhe ter conhecido o marido, de quem todos diziam tão belas coisas. Referindo-se ao símbolo da campanha de Jânio Quadros, a viúva disse:

– Doutor, o que este país precisa mesmo é de ser varrido de toda a sua sujeira. Use a sua vassoura sem piedade. Nós estaremos aqui na retranca, apoiando o seu governo.

Ao despedir-se, Jânio beijou-lhe respeitosamente a mão, o que muito sensibilizou a matrona dos Campolargos. À noite, à hora do comício ela ficou sentada discretamente na sua sacada, olhando para a praça atopetada de gente. Não só o largo, como as ruas e becos adjacentes, estavam tomados pelo público. Sentia-se na atmosfera, como emanações eletrizantes, o entusiasmo daquele povo. Muitos haviam trazido vassouras, que agitavam acima de suas cabeças. Outros sacudiam lenços brancos. (“Que saudade do Brigadeiro!” – suspirou D. Quitéria.) Quando Jânio Quadros subiu para dentro do coreto, de onde ia falar, cercado dos membros mais importantes de sua comitiva, a multidão prorrom-peu em gritos: “Jâ-nio! Jâ-nio! Jâ-nio!” O candidato ergueu os braços, a luz dum combustor refletiu-se nas lentes, de seus óculos, dando a impressão de que ali estava um super-homem com olhos de fogo.

Jânio Quadros fez um eloqüente discurso, emocionando o público, que o interrompia a intervalos para aplaudir e gritar ritmadamente: “Jâ-nio! Jâ-nio!” Prometeu combater a inflação, a injustiça, o nepotismo e a ineficiência burocrática. Declarou que não tinha compromissos com nenhum partido político. Era um homem livre. Como Abraão Lincoln, se eleito, governaria com o povo, para o povo e pelo povo!

 

Mais tarde, duas horas antes de embarcarem de volta a Porto Alegre, Jânio Quadros e os membros da sua caravana foram recebidos no palacete do Cel. Vacariano. Houve um momento em que o dono da casa segurou o seu candidato pelo cotovelo e disse-lhe ao ouvido:

– Preciso ter um particular com o senhor. Jânio sorriu:

Onde e quando?

– Agora. Vamos pro meu escritório.

Foram. Sentaram-se. Por alguns segundos Tibério com um olho fechado e outro aberto cozinhou o seu candidato em água fria. Não tinha conseguido formar um juízo claro sobre aquele cidadão. No físico, na maneira de portar-se e nas idéias ele não lembrava nenhum dos políticos que ele, Tibério, tinha catalogados na galeria da memória. O velho chefe antarense tinha ainda as suas desconfianças e reservas com relação ao moço do Mato Grosso...

Ouvira os mais inquiétantes rumores a respeito do Dr. Jânio. Seus inimigos diziam-no um farsante, um demagogo, e havia até quem afirmasse que seu truque eleitoreiro preferido era o de fingir de homem humilde-, ia para os comícios com o colarinho desabotoado, frouxo o nó da gravata, a roupa amassada e lá pelas tantas puxava do bolso um sanduíche embrulhado em papel e punha-se a comê-lo em publico, tudo para dar uma impressão de simplicidade, como quem diz: “Não sou nenhum grã-fino, sou como vocês. Votem em mim”. Contava-se também que, quando governador de São Paulo, sempre que no seu gabinete queria livrar-se dum importuno, da pergunta indiscreta dum repórter ou de qualquer outra situação embaraçosa, Jânio Quadros simulava desmaio^, tonturas... Era um ator consumado – afirmava-se.

Seria verdade tudo quanto se dizia dele? A cara do cristão – concluía Tibério – não confirmava nem desmentia essas estórias. Com seus cabelos escuros e lisos, uma mecha a cair de vez em quando sobre a testa (coisa que ele parecia explorar teatralmente), o bigode, os óculos de aros grandes e redondos, o homem tanto podia ser um caixeiro-viajante como um bancário ou um fiscal do imposto de consumo. Tudo, menos um candidato à presidência da República. A Lanja tinha ficado encantada com o moço. “Imagina, Tibé, que ele fala bem como gaúcho. Parece até nascido e criado aqui na fronteira.. Deus queira que ele seja eleito!” “Não sei” – pensava o marido – “não sei.” O juiz de Direito de Antares afirmava que Jânio tinha “carisma”. E ele, Tibério, nem sequer se dera o trabalho de ir procurar no dicionário o significado dessa palavra, que jamais ouvira em toda a sua vida. Mas pelo tom com que o magistrado a pronunciara, a coisa parecia boa.

– Estou às suas ordens, coronel – disse o candidato, cruzando as pernas.

– Doutor, sou um homem de sessenta e sete anos e ando metido em política desde que me tenho por gente.

– Coronel, fique certo de que conheço muito bem sua biografia.

Tibério não conseguiu descobrir se essas palavras eram um elogio, um insulto ou uma ironia.

– Pois é... Tenho tido as maiores decepções com os candidatos em que votei. Só espero que, se vencer, o senhor não nos desiluda, não seja como os outros,

Jânio Quadros franziu a testa:

– Não compreendo – disse, escandindo bem as sílabas à maneira do falar quadrado da fronteira do Rio Grande do Sul. – Não sei que é que o amigo quer dizer com isso.

– Vamos dar nomes aos bois. Não caia nas garras do P. T. B. Não se meta com os socialistas, com essa cambada da esquerda.

Jânio sorriu enigmaticamente.

– Meu caro Cel. Vacariano, o senhor ouviu o meu discurso. Se eleito, pretendo cumprir à risca tudo quanto tenho prometido ao povo durante esta campanha memorável.

– Pois é, mas as pessoas quando chegam “lá em cima” em geral mudam, esquecem as promessas feitas nos discursos e nas entrevistas. Noutras palavras, tenho medo de que o senhor atire a sua vassoura para um canto e não varra a casa.

– Pois, coronel, se o senhor pensa assim vai ter uma surpresa. Pretendo usar a vassoura, e com muito vigor. Agora, o meu caro amigo pode discordar de mim na definição da palavra “sujeira”. O que me parece sujo pode parecer-lhe limpo, e vice-versa. Mas duma coisa pode ficar certo: no meu governo não pretendo ter compadres nem afilhados. Pensarei com a minha cabeça, governarei com as minhas idéias e os meus ideais, serei senhor da minha vontade. Não tenho compromissos com partidos políticos ou grupos econômicos ou financeiros.

– Pois se assim é, não temos motivos para apreensões... não é? Mas eu gostaria que o senhor me fizesse umas promessas, agora.

A coisa soava como um pedido de pagamento adiantado por um apoio eleitoral.

Jânio mirou longamente o dono da casa e depois ergueu-se :

– Meu amigo, nenhum candidato que se preze pode fazer a quem quer que seja promessas particulares de ordem política, financeira, econômica ou de qualquer outra natureza. Meu compromisso é com o povo brasileiro, não só com os que me elegerem como também com os que votarem contra mim.

– O senhor pode me achar desconfiado, doutor, mas aqui na fronteira temos um ditado muito bom: O diabo sabe muito mais por velho do que por diabo.

– Conheço-o – replicou Jânio. – Mas o meu prezado companheiro não deve descontar a possibilidade da existência dum diabo que também saiba coisas, apesar de jovem. ..

– Claro que não! – riu-se Tibério. – Há de tudo neste mundo velho.

À porta do escritório, pouco antes de voltar à companhia dos outros convivas, o candidato encarou o anfitrião e disse;

– O que lhe posso garantir, coronel, é que, se assumir a presidência da República, eu não os decepecionarei.

Tibério deu-lhe uma palmadinha no ombro, sacudindo vagarosamente a cabeça e murmurando: “Muito bem, muito bem... “. E continuou sem saber o que pensar daquele singular espécime humano.

 

O Cel. Vacariano mandou soltar foguetes à frente da sede do diretório do P.S.D. quando as estações de rádio confirmaram a vitória de Jânio Quadros nas eleições presidenciais, com quase seis milhões de votos – “o mais cabal triunfo eleitoral da história da República dos Estados Unidos do Brasil”, como afirmaria Lucas Faia no editorial de A Verdade no número do dia seguinte.

Os estrondos dos foguetes ainda atroavam os ares de Antares quando Tibério Vacariano saiu de casa, trocando abraços e parabéns com os amigos que encontrava na praça, e foi fazer uma visita especial à sua amiga Quitéria Cam-polargo.

– Estamos finalmente no poder, Quita! – exclamou ao vê-la sentada na sua cadeira de balanço, manipulando com a sua habitual destreza as agulhas de tricô.

Deu-lhe efusivas palmadinhas nas costas. A viúva de Zózimo mal ergueu a cabeça e não interrompeu nem por um segundo o seu trabalho.

– Mas que é isso, menina? Não estás contente?

– Não sei, Tibé.

– Que bicho te mordeu?

– Primeiro, o Jango Goulart foi eleito vice-presidente na chapa do Jânio. Isso quer dizer que os getulistas continuam ainda mandando...

– Mas o Jânio é um homem de autoridade. O Jango não tira farinha com ele. Queres apostar?

– Dois Poleangos? Não aposto nada. Mas escuta. Em segundo lugar... não sei, esse tal de Jânio Quadros no princípio me entusiasmou, mas depois comecei a notar nele umas coisas esquisitas.

– Como por exemplo...

– Umas bobagens que disse em entrevistas. Depois, aquela viagem a Cuba, ao Fidel Castro, quando já era candidato. Isso me deixou de pé atrás... E, agora, três meses antes da posse, em vez de ficar no país compondo o seu ministério, o homem vai se tocar pra Europa. Acho que esse sujeito é um demagogo da pior espécie.

– Mas está eleito, e com o nosso voto.

– Paciência. Queres um cafezinho?

– Que pergunta! Temos de comemorar de algum jeito a nossa vitória. No fim de contas, não devemos ser tão pessimistas.

Veio o café em pequenas xícaras douradas, e ambos cr tomaram lentamente, recordando frases do falecido Zózimo.

Tibério estava de tal modo entusiasmado com a vitória de seu candidato que, para pasmo geral da família e dos amigos, resolveu “dar um pulo” a Brasília para assistir à posse do Presidente que ajudara a eleger. Passou três dias na chamada “nova capital”. Quando voltou para Antares, um dos filhos lhe perguntou:

– Que tal Brasília?

– Uma bosta. Não sei por que escolheram aquele lu-gar pra essa tal de Novacap. Decerto muita gente andou ganhando dinheiro por baixo do poncho na transação. Não vi nada que justificasse a escolha. Naquelas paragens só existem arbustos minguados, nenhuma árvore de mérito.

Terra porosa. É como se Brasília tivesse sido construída em cima dum cupim. E sabem duma coisa? Naquele deserto nem passarinho tem!

E que nos diz do Jânio?

– Temos que primeiro esperar, para ver o que o homem faz.

Não contou que vinha já desiludido com o seu candidato. Tentara apertar-lhe a mão, dizer-lhe duas palavrinhas mas não conseguira aproximar-se nem trinta metros do Homem. Tivera a impressão de que o ex-vereador de São Paulo “já estava com o rei na barriga”. Disse em voz alta aos familiares :

– Vou dar ao novo Presidente um crédito a prazo longo e juro baixo.

– Quantos meses? – perguntou um dos sobrinhos.

– Bueno, sou um homem generoso. Dou-lhe um ano. Não lhe passou sequer pela cabeça a suspeita de que o novo governo nacional não ia durar nem sete meses.

 

No dia 25 de agosto de 1961, exatamente sete anos e um dia depois do suicídio de Getúlio Vargas, chegou a An-tares a notícia de que Jânio Quadros acabava de apresentar ao Congresso Nacional a sua renúncia ao cargo de Presidente da República. D. Briolanja Vacariano, com palpita-ções de coração, fez o que nunca jamais fizera em toda a sua vida de esposa exemplar: acordou o marido da sesta vinte minutos antes da hora marcada e deu-lhe a notícia. Sentado na cama, estremunhado, olhos piscos, cara aparvalhada, Tibério pediu a repetição da estória. Ficou depois olhando fixamente para os dedos dos pés e de súbito ergueu-se soltando um grito: “Não! Não pode seri É boatot Não pode ser!” E rompeu a andar estonteado pelo quarto, no seu pijama de pelúcia azul-celeste. “Não é possível! É o fim do mundo! O homem está doido varrido!”

Vestiu-se às pressas, meio dispnéico, e saiu para a rua. A Praça da República fervilhava de gente, grupinhos aqui e ali, todos comentando “a renúncia”. Havia uma espécie de estupor geral. Por que foi? Por que não foi? Pode ser mentira. Não, não é, todas as estações de rádio de Porto Alegre estão divulgando o fato. Alguém informou que a Radio El Mundo de Buenos Aires acabava de dar a notícia em caráter urgente.

Tiberio Vacariano estava perturbado. “Agora temos de engolir o Jango Goulart como Presidente” – pensava. – ‘É o fim da picada! É o fim da picada!” E repetindo esta frase ele atravessou a praça em diagonal e entrou na sede do diretório do P.S.D., onde só encontrou caras alarmadas e in-terrogativas. Um de seus correligionários disse: “Segundo a Constituição o Jango tem de assumir”. “A Constituição que vá pro diabo!’Não podemos deixar o herdeiro do Getúlio tomar de novo o poderi” Alguém falou em “legalidade’ e Ti-bério, apalpando o revólver na cintura, disse por entre dentes: “A legalidade está aqui”. A um canto alguém murmurou-. “Acho que o Carlos Lacerda derrubou mais um Presidente”. “E em pleno vôo...” – acrescentou outro. – “Que pontaria infernal!”

Realmente, havia algum tempo, Lacerda, alarmado ante o perigoso comportamento de Jânio Quadros, começara a atacá-lo pela imprensa, pelo rádio e pela televisão.

A sereia de A Verdade soava a intervalos, e ondas de populares aproximavam-se da redação do diário local para ler “a última”. Os Ministros militares pareciam atônitos ante o gesto de Jânio Quadros, que apresentara a sua renúncia cedo, pela manhã, e já às onze horas embarcava para São Paulo com a família.

Que pretendia o Homem da Vassoura com essa demissão? Por que havia confiado a carta de renúncia a seu Ministro da Justiça, com a recomendação de que o explosivo documento não devia ser entregue ao Congresso antes das três da tarde?

Nasciam em Antares os boatos mais desencontrados. Ora, um boato é uma espécie de enjeitadinho que aparece à soleira duma porta, num canto de muro ou mesmo no meio duma rua ou duma calçada, ali abandonado não se sabe por

quem em suma, um recém-nascido de genitores ignorados.

Um popular acha-o “engraçadinho” ou monstruoso, toma-o nos braços, nina-o, passa-o depois ao primeiro conhecido que encontra, o qual por sua vez entrega o inocente ao cuidado de outro ou outros e assim o bastardinho vai sendo ama-mentado de seio em seio ou, melhor, de imaginação em imaginação, e em poucos minutos cresce, fica adulto – tão substancial e dramático é o leite da fantasia popular – começa a caminhar pelas próprias pernas, a falar com a própria voz e, perdida a inocência, a pensar com a própria cabeça desvairada, e há um momento em que se transforma num gigante, maior que os mais altos edifícios da cidade, causando temores e às vezes até pânico entre a população, apavorando até mesmo aquele que inadvertidamente o gerou.

 

No dia seguinte, no seu editorial assinado, em A Verdade, Lucas Faia escreveu que a inesperada notícia da renúncia de Jânio Quadros causara em Antare.s um impacto quase tão violento como o produzido pela primeira bomba atômica, a que explodira sobre Hiroxima em agosto de 1945. Embora muitas pessoas de bom-senso achassem que o jornalista tinha sido um tanto exagerado na comparação, dum modo geral reconhecia-se que, depois do suicídio de Getú-lio Vargas – ocorrido num outro agosto, mês de desgosto – a renúncia de Jânio era o acontecimento mais sensacional e dramático da vida política brasileira dos últimos tempos.

Um pormenor que dava um tempero folhetinesco à situação era o fato de que o Vice-Presidente da República, Dr. João Belchior Goulart, se encontrava então ausente do Brasil, pois havia sido mandado pelo Presidente Quadros à China Comunista, numa importante missão econômica.

Já se conhecia a íntegra da mensagem que o Chefe de Estado demissionário dirigira ao povo brasileiro. Tibério

Vacariano leu-a na sede do diretório local do P.S.D., no número do Correio do Povo chegado naquele dia. Achou-a fraca, chocha, nada convincente.

– Não tem grandeza! – exclamou, dando uma palmada na página do jornal que tinha estendido sobre a mesa, à sua frente. – Não tem drama e, pior que isso, não tem pé nem cabeça.

O secretário do diretório, um homem de meia-idade, todo em tons de cinzento – os olhos, os cabelos, a roupa e até a pele – disse:

– O Jânio sempre me pareceu um político sem convicções ideológicas: uma espécie de “órfão da tempestade” no nosso mundo político.

Outros correligionários foram aos poucos chegando e reunindo-se ao grupo que cercava o Cel. Vacariano, que continuava a comentar o manifesto.

– Ouçam esta frase. Fui vencido pela reação e assim deixo o governo. Que significa isto? Que reação? Por que não fala claro? Nestes sete meses cumpri o meu dever... Bolas! Não fez mais do que a sua obrigação. Tenho-o cumprido dia e noite.

Dia e noite? – repetiu o vice-presidente do diretório, que entrava na sala naquele exato momento, encolhido dentro dum sobretudo cor de «chumbo, uma manta de lã enrolada no pescoço, as faces cobertas por uma barba grisalha de dois dias, os olhos lacrimejantes, pois acabava de deixar a cama onde “uma gripe filha da mãe” o mantivera durante quase uma semana. – Dia e noite? – repetiu, desenrolan do a manta e revelando a camisa de pelúcia, sem gravata – Ouvi dizer que ultimamente o Jânio vivia metido no cinema do palácio, com uma garrafa de uísque ao lado, e ali ficava horas e horas, bebendo e vendo filmes de Far West, um em cima do outro. Um louco! – voltou a cabeça na direção da copa. – ó Iibório! Me traz uma cachacinha com mel e suco de limão. Ainda estou com a maldita gripe no corpo. Bom dia para todos!

Tibério Vacariano continuava a olhar para o jornal, co-mo que hipnotizado pelo manifesto. O secretário cinzento murmurou :

– A coisa toda não pode ser tão simples assim. Há muita invencionice, muita inveja, muita mentira no meio de tudo isso. Digam o que disserem, nesses sete meses o Jânio se impôs ao respeito da nação. Tinha presença, tinha autoridade. Ninguém batia na barriga dele. Mantinha seus subordinados e até os seus ministros a uma distância respeitosa.

Tibério deu outra palmada no Correio do Povo, bradando:

– Mas um Ministro de Estado não é um moço de recados! – Leu: – Forças terríveis se levantaram contra mim e me infamam ou me intrigam, até com a desculpa de colaboração. Mas que forças são essas? Por que não diz claro ou se cala para sempre?

O homem do sobretudo cor de chumbo bebeu um gole da batida que o Libório acabava de lhe trazer, estralou os beiços e disse:

– Eu cá ninguém me tira da cabeça que foram os Ministros militares que forçaram o homem a renunciar. E sabe qual foi a gota que fez o copo transbordar? A Ordem do Cruzeiro do Sul que o Jânio deu ao cubano barbudo... como é mesmo o nome dele? O Che Guevara!

– Outras boas razões tinham as forças armadas para botar esse psicopata no olho da rua – disse Tibério. – Mas escutem o que escreve o “mártir”: Saio com um agradecimento aos amigos que comigo lutaram e me sustentaram dentro e fora do governo e de forma especial às forças armadas, cuja conduta exemplar em todos os instantes e oportunidades não canso de proclamar. Agora me digam, depois desta declaração, em que ficamos?

O convalescente da gripe disse com voz ainda encatar-rada :

– Ficamos com o Dr. João Belchior Goulart na presidência da República dos Estados Unidos do Brasil.

Tibério deu outra palmada no jornal.

– Essa é que não! O Jango como nosso Presidente? Núncaras!

– Mas qual é a alternativa? – perguntou um homem gordo, que limpava as unhas com a ponta dum canivete.

– Uma nova eleição – disse o coronel. – Ou a guerra civil, se os janguistas se opuserem à solução eleitoral.

Um curto silêncio. Tibério acendeu um palheiro. O homem cinzento murmurou:

– Palavra que o sujeito me iludiu!

– Qual! – exclamou o gripado. – Percebi logo que ele era bolado dos cascos. Onde se viu um Presidente andar com aquela camisa indiana para fora das calças e obrigar seus auxiliares a usar no. trabalho esse uniforme ridículo?

– Ora, isso não tinha a menor importância. Podiam andar até pelados no palácio, contanto que fizessem boas coisas. E fizeram. Nossa burocracia pela primeira vez estremeceu desde que se proclamou a República. A inflação estava sendo pela primeira vez combatida a sério.

– Mas onde se viu governar com bilhetinhos? – perguntou Tibério. – E depois vocês devem convir que o Jânio fez um mundo de besteiras. Por exemplo, andou pelo Egito e veio de lá elogiando o nasserismo. Queria que a China Comunista fosse admitida na O.N.U. Inventou que o Brasil precisava de reatar suas relações com a Rússia Soviética. Estava tão voltado para a esquerda que os nacionalistas e os comunistas, que não votaram nele, já estavam elogiando a sua política...

O homem que limpava as unhas sorriu quase sonhadoramente ao dizer:

– Eu até que simpatizava com essa política externa independente que o Jânio procurou seguir, que diabo!

– Política independente? – exclamou Tibério Vaca-riano. – O Brasil está endividado até aos gorgomilos, praticamente hipotecado aos Estados Unidos e ainda queria dar-se o luxo de fazer parte desse tal de Terceiro Mundo. Chegamos a namorar até essas novas republiquetas africanas. Redículo!

– E... – concordou o homem do sobretudo cor de chumbo – o Jânio fez muitas bobagens. Por exemplo, essa estória de proibir o uso de biquínis nas praias... e corridas de cavalos nos dias de semana.

 – E rinhas de galo... – acrescentou Tibério, tossin-do estas palavras com baforadas de fumaça.

O gripado soltou uma risada rouca.

– Isso foi o que mais te enfureceu, hem, Tibé? Além de aficionado do esporte, és o maior criador de galos de briga em todo o Estado. Esse decreto te doeu no bolso.

-- Não é isso —<, replicou o patriarca dos Vacarianos. – A roisa toda é dum redículo de matar. O país devendo dois bilhões de dólares e o homem lá em cima fantasiado de indiano, vendo fitas de cow-boy, bebendo uísque e se preocupando com miudezas...

– Como se explica então a renúncia? – perguntou o gordo do canivete.

Tibério Vacariano ergueu-se, deu alguns passos ao redor da mesa e depois interpretou:

– Bom, no meu entender a coisa toda não passou duma farsa mal representada... O Jânio arquitetou um golpe. .. Não podia governar com minoria no Congresso, sentia-se de mãos amarradas. Escreveu então a carta de renúncia... que não era pra valer. Vai então entrega a carta ao seu’Ministro da Justiça pra ele apresentar o documento ao Congresso de tal jeito que ela não pudesse ser submetida aos deputados e por eles julgada em definitivo, no mesmo dia. Depois chamou os Ministros, militares e disse: “Fechem ou amordacem esse Congresso de borra, me dêem poderes extraordinários senão eu renuncio e vocês terão de engolir o Jango Goulart”. Mas, como se viu, a coisa não funcionou como ele esperava. O Congresso pegou o pião na unha. Aceitou logo a renúncia e fechou a questão. O Jânio ficou no aercporto de Cumbica esperando que o povo brasileiro se erguesse e o levasse de volta ao governo, de charola... Não apareceu ninguém.

– O tiro lhe saiu pela culatra.

– Isso nem foi tiro de verdade. Jânio usou uma dessas pistolinhas de brinquedo que a gente aperta no gatilho e em vez de tiro sai um leque colorido que se abre. Uma palhaçada que vai custar muito caro ao Brasil.

O homem de tons cinzentos sacudiu a cabeça.

– Não. Tudo isso é simples demais para ser verdade. Acho que tão cedo não vamos saber o que realmente aconteceu ... Daqui a uns cinqüenta anos... talvez.

E então o homem de sobretudo cor de chumbo pediu mais uma cachacinha com mel. Tibério cuspiu no chão o seu toco de cigarro. E a sereia de A Verdade começou a uivar.

 

Nos dez dias que se seguiram, a sereia do jornal local soou repetidamente, “fazendo a cidade vibrar de expectativa, apreensão, curiosidade, temor ou esperança” – no dizer de Lucas Faia.

Durante esse tempo realmente a situação política nacional tornou-se muito tensa, e a guerra civil parecia iminente. As forças armadas de terra e ar mantinham-se em rigorosa prontidão.

O presidente da Câmara dos Deputados assumiu provisoriamente a chefia da nação, horas depois da renúncia de Jânio Quadros, e um de seus primeiros atos foi o de mandar uma lacônica mensagem ao Congresso, comunicando aos representantes do povo que, por motivos de segurança nacional, os Ministros militares se opunham à volta de João Goulart ao Brasil.

Foi decretado o estado de sítio para todo o território brasileiro, para evitar as demonstrações públicas. Manifestações houve, porém, e muitas, principalmente em Porto Alegre, que estava em pé de guerra, o Palácio do Governo transformado em fortaleza, guarnecido por soldados da Brigada Militar e cercado por trincheiras de sacos de areia. O Governador Leonel Brizola, cunhado de João Goulart, dramaticamente de metralhadora portátil a tiracolo, fazia as suas proclamações por intermédio da imprensa e duma cadeia de estações de rádio, afirmando repetida e categoricamente à nação que não aceitaria nenhum golpe, e que ele estava decidido a resistir pelas armas.

Quitéria Campolargo ouvia-o ou lia-o e depois comenta-va “O diabo da subversão e da desordem de repente se transformou no ermitão da legalidade e da democracia”.

No dia 27 de agosto, ao tomar um vapor rumo de Londres, Jânio Quadros, fortemente emocionado, disse: “Fui obrigado a renunciar. Um dia voltarei, como Getúlio”. Tibé-rio Vacariano limitou sua crítica a essa frase a uma única palavra: “Fiteiro!” Depois procurou sintonizar no seu rádio uma estação que não pertencesse à Cadeia da Legalidade, de Brizola. Como não conseguisse, apagou o aparelho e saiu para a rua.

Sabia-se que sérias discussões e consultas se processavam em segredo nos meios militares. Se por um lado os Ministros da Guerra, da Aeronáutica e da Marinha não queriam dar posse ao vice-presidente, por outro nada podiam fazer de drástico e definitivo porque não contavam com o apoio de todos os comandos militares do país e nem mesmo com a maioria no Congresso. A opinião nacional estava dividida. Criara-se um impasse perigoso que talvez só pudesse ser resolvido por meios violentos.

No palacete dos Vacarianos as velas do velho oratório agora estavam sempre acesas e D. Lan ja rezava duas vezes por dia para a santa de sua devoção, pedindo-lhe que intercedesse junto a Deus para que o Todo-Poderoso não permitisse que mais uma guerra entre irmãos fosse deflagrada no Brasil. “Não adianta rezar” – disse-lhe o marido. – “Deus, me palpita que é neutro nessa questão da legalidade’, mas acho que a opinião dos santos, como a dos nossos comandantes militares, está dividida. Te digo ainda mais, Lanja, desconfio que já existe infiltração comunista na Corte Celeste.”

Disse estas palavras, acendeu o rádio e então os sons dum dos dobrados marciais de Brizola encheram-lhe a casa, vibrantes e insolentes, e o velho Vacariano berrou um palavrão e em seguida tocou-se para o diretório do P.S.D., onde teve o dissabor de encontrar muitos companheiros favoráveis à tese da legalidade da posse de Goulart.

– Tenho horror a esse homem – explicou um deles. – Mas precisamos ser coerentes, Tibé. Quando nos convém, invocamos a Constituição. Quando não convém, estamos prontos a rasgá-la.

Tibério ficou a olhar por alguns instantes para a cara do companheiro e depois, sem descerrar os dentes que apertavam o cigarro, resmungou: “Pois eu, meu velho, já vou começar a reunir gente. Acho que dessa enrascada só saímos a bala. A guerra civil é inevitável!”

Cinco dias depois não tinha conseguido juntar nem sequer cinqüenta homens. Ficou desapontado e esse desapontamento transformou-se em irritação quando leu no jornal local que os janguistas de Antares tinham oferecido a Leonel Brizola, para “a defesa da Legalidade”, um contingente de setecentos e cinqüenta homens, que só esperavam armas, munições e ordens de combate.

– Os tempos mudaram, Tibé – disse-lhe uma noite com triste resignação um seu correligionário. – Há muitos anos que estamos em minoria. Já não temos a força e o prestígio de antigamente. Um mundo novo está nascendo e os velhos como nós estão sobrando.

– Fresco mundo! – replicou o patriarca dos Vacarianos.

Voltou para casa, ligeiramente cabisbaixo. A Praça da República, como de costume naqueles dias agitados, estava cheia de gente, principalmente homens e – o que era pior – em sua quase totalidade, partidários do P.T.B. Tibério avistou o líder proletário Geminiano Ramos falando alto e gesticulando a uma esquina, no meio duns dez ou doze companheiros. Apalpou o revólver que trazia à cintura e pensou: “Se algum felho da pota me fizer qualquer provocação, traco-lhe bala”. Em vez de seguir o trajeto mais curto para a sua casa, fez acintosamente uma volta a fim de passar bem junto do grupo onde o Geminiano pontificava. Cruzou pelos “inimigos” a passo lento esperando, chegando até a desejar que alguém lhe desse alguma indireta ou soltasse alguma “risadinha debochada”. Nada disso, porém, aconteceu. Geminiano, ao vê-lo, saudou-o: “Boa noite, coronel!” O Primeiro ímpeto de Tibério foi o de levar a mão ao revólver. Conteve-se, porém, em tempo e bateu com dois dedos na aba do chapéu, e respondeu à saudação com um ronco. E continuou o seu caminho, meio derrotado.

 

Quando, dias mais tarde, noticiou-se que chefes políticos e militares haviam encontrado uma solução para a crise nacional na adoção do sistema parlamentar para o Brasil, com Jango Goulart na presidência, D. Quitéria Campolargo exclamou: “É pior a emenda que o soneto!”

– Mas está se vendo que isso é um ardil dos dois cunhados para tomarem o governo. O parlamentarismo com gente dessa laia não pode funcionar direito.

Como quem acompanha os episódios duma novela de aventuras, o povo de Antares seguiu pelo noticiário da imprensa e das estações de rádio, o complexo e cauteloso itinerário da volta de Jango Goulart da China Comunista. De Singapura, onde recebera a notícia da renúncia de Jânio Quadros, o Vice-Presidente voou para Paris, onde se encontrou com a comissão parlamentar brasileira que para lá viajara às pressas para lhe expor a fórmula conciliatória, que João Goulart estudou e finalmente aceitou. De Paris o filho espiritual de Getúlio Vargas e seus assessores voaram para Nova Iorque, de onde seguiram, via costa do Pacífico, para Montevidéu e finalmente para Porto Alegre. “O zorro é desconfiado como o mestre dele” – comentou um libertador. – “Pelas dúvidas, entrou no Brasil pelo Rio Grande.”

No dia 7 de setembro de 1961 o Dr. João Belchior Goulart prestava juramento como Presidente da República e o Brasil adotava o regime parlamentar. O novo Presidente nomeou o seu primeiro-ministro, que por sua vez formou o seu primeiro gabinete.

Alguém em Antares disse a Tibério:

– Como antigo maragato, deves estar satisfeito. Tuas idéias parlamentaristas finalmente triunfaram.

O velho Vacariano mirou-o longamente, com o crioulo preso entre os dentes amarelados, e não tomou conhecimento da ironia.

– A esta hora – disse – os restos do conselheiro Gaspar Martins devem estar se revolvendo na tumba. Aposto dois Poleangos como daqui por diante o Jango não descansa enquanto não levar este pobre país de volta ao presidencialismo.

Não se enganava. A 6 de janeiro de 1963 um plebiscito popular devolveu a Jango Goulart plenos poderes presidenciais. A experiência parlamentar no Brasil durara escassamente dezesseis meses e fora um fracasso.

 

Que tipo de cidade era Antares e que espécie de gente a habitava e governava ao tempo em que ocorreu o macabro incidente que em breve se vai narrar? Os estudiosos talvez encontrem respostas satisfatórias a essas perguntas na obra intitulada Anatomia duma Cidade Gaúcha de Fronteira, da autoria dum grupo de professores e alunos do Centro de Pesquisas Sociais, da Universidade do Rio Grande- do Sul, publicado em forma de livro em 1965 mas baseado, todo ele, em dados colhidos entre a segunda semana de fevereiro e meados de março de 1963. É que, embora a comunidade estudada apareça na monografia sob o nome imaginário de Ribeira, trata-se na realidade de Antares. Esse trabalho, que foi financiado pela Ford Foundation, teve como diretor e orientador o professor de Sociologia Martim Francisco Terra, da U.R.G.S., ajudado por um especialista em Ciências Políticas, um outro em Estatística e um terceiro em Economia. A equipe de pesquisadores era mista, num total de onze pessoas, em sua maioria alunos do último ano de Ciências Sociais, e contava com um “apêndice não acadêmico” – um fotógrafo profissional.

Conta-se que – embora não haja nenhuma prova certa de que isso tenha realmente acontecido – quando a equi-pe se reuniu para escolher a comunidade fronteiriça que ia ser objeto do aludido estudo, arrolaram-se os nomes de seis cidades gaúchas de nossa fronteira com o Uruguai e a Argentina, e discutiram-se os prós e os contras de cada uma delas, Duas foram consideradas demasiadamente estagnadas e logo postas de lado. Outras duas foram eliminadas por parecerem um tanto “sofisticadas” e por isso pouco representativas da sua região. Assim, restaram na competição apenas São Borja e Antares. O fato de a primeira dessas comunidades ser o feudo da família Vargas, tendo portanto implicações políticas delicadas, determinou sua exclusão, de sorte que Antares permaneceu sozinha na arena. Nenhum membro do grupo ficou mais feliz com isso do que Xisto, neto do Cel. Tibério Vacariano, e um dos discípulos mais dedicados do Prof. Terra.

– Bom – disse um dia o diretor do projeto – começaremos o nosso trabalho de campo a partir da segunda semana de fevereiro próximo. Esses meses de verão não só coincidem com as nossas férias como também com as dos estudantes de Antares que freqüentam universidades aqui em Porto Alegre, em São Paulo ou no Rio. Acho que esses jovens, em geral filhos de estancieiros ricos, são tão importantes como transmissores de idéias, atitudes morais e hábitos novos quanto... digamos, os pássaros e o vento no processo de polinização.

Olhou em torno e, vendo faces com expressões maliciosas, sorriu:

– Sei que acabo de dizer um enorme lugar-comum. Mas... que diabo! Esse é um direito que a Constituição não nega nem ao Presidente da República.

Tirou os óculos de grossos aros escuros, bafejou-lhes as lentes e pôs-se a limpá-las cuidadosamente com a ponta da gravata. Era esse um hábito seu muito conhecido dos amigos e alunos. O que estes últimos mais admiravam naquele mestre de quarenta e cinco anos era a sua honestidade intelectual, o seu humor em tom menor, e o seu saudável ceticismo quanto à exatidão “científica” das chamadas Ciências Sociais. Fumador de cachimbo, Martim Francisco costumava dizer que cachimbar era para ele mais um gesto que propriamente um vício ou um prazer, pois o ato de preparar o cachimbo, enchê-lo de fumo, acendê-lo lentamente com o isqueiro, tirar as primeiras baforadas fornecia pausas providenciais em situações difíceis, tanto durante as aulas como em diálogos na vida social. Era uma maneira de encher certos silêncios embaraçosos que de vez em quando se abrem como buracos inesperados no meio das conversações. Oferecia outra hipótese: o seu fascínio pelo cachimbo não seria uma reminiscência nostálgica e bovarista de sua adolescência de leitor das proezas de Sherlock Hohnes?

 

Xisto Vacariano Neto voltou a Antares em dezembro daquele agitado ano de 1961 incumbido de preparar o espírito de seus conterrâneos para o estudo a que iam ser submetidos. Conversou com o pai e depois com o avô, conseguindo convencê-los de que aquela pesquisa ia dar uma certa notoriedade a Antares. O Cel. Vacariano confabulou com o prefeito, que ficou alvoroçado, imaginando a publicidade que o projeto forçosamente ia trazer para a sua comuna e – claro – também para sua própria pessoa. A Câmara de Vereadores aprovou unanimemente a idéia de facilitar tudo à equipe universitária. Os clubes Rotary e Lions ofereceram espontaneamente a sua colaboração. É a diretoria da Associação Comercial como que se embandeirou em arco, pensando nos possíveis resultados econômicos que todo aquele “barulho” ia propiciar direta ou indiretamente a Antares.

Assim, na segunda semana de fevereiro do ano seguinte, chegaram à “Jóia do Uruguai” – cognome inventado por Lucas Faia para a sua cidade – os membros do grupo do Prof. Martim Francisco Terra. A princípio foram todos foco da atenção popular, olhados com curiosidade – simpatica, desconfiada ou neutra – seguidos na rua, examinados obliquamente nos cafés e restaurantes, encarados abertamente nas ruas ou espiados furtivamente por frestas de janelas e portas... Como era de se esperar, não tardaram os antarenses a dar aos forasteiros uma alcunha: “os gafanhotos”. Por quê? Ora, vinham em bando, no verão, em tempo de seca e com um jeito de praga. Diga-se, porém, a favor de boa parte daquela população, que ela tratou os membros do Centro de Pesquisas Sociais com a sua “jamais desmentida hospitalidade”, no dizer do diretor de A Verdade, que dedicou uma página inteira de seu jornal à “simpática caravana acadêmica”. O Clube Comercial abriu ás suas tradicionais portas a todos os professores e pesquisadores da equipe, isto é, todos menos o estudante de sociologia negro. (“Os senhores compreendem, não é por mal, não somos racistas, Deus nos livre!, mas é que durante toda a história desta sociedade nunca entrou em sua sede nenhuma pessoa de cor.”) Ao saberem dessa exceção, os “gafanhotos” recusaram terminantemente pôr os pés no clube, até mesmo para uma rápida visita.

Com a ajuda de seu cachimbo e de seu discípulo Xisto, o chefe do grupo conseguiu matar no nascedouro o baile e o banquete com que a sociedade local pretendia homenageá-los. Convenceu os próceres locais de que a maior homenagem que os antarenses poderiam prestar ao seu grupo seria, primeiro, tratar os seus membros como gente de casa; segundo, responder com a maior franqueza e paciência ao questionário que lhes ia ser apresentado. Nada mais.

Numa reunião informal, a que compareceram os grandes da terra, o Prof. Martim Francisco explicou (Lucas Faia mandou taquigrafar a fala do professor e reproduzi-la integralmente no número de A Verdade do dia seguinte) que a intenção da equipe era a mais séria e honesta possível, e que o estudo seria feito de acordo com as técnicas estatísticas mais modernas de amostragem, baseadas na teoria da probabilidade.

– Mas afinal de contas – perguntou um dos próceres – que é que os senhores desejam mesmo descobrir?

– Bom – hesitou Martim Francisco – queremos saber que tipo de cidade é Antares, como vive a sua população, qual o seu nível econômico, cultural e social, os seus hábitos, gostos, opiniões políticas, crenças religiosas, as suas... vamos dizer, superstições, em suma... tudo!

Tibério lançou na cara do sociòlogo uma dessas perguntas desnorteantes que ele costumava chamar de “pealo seco”:

– Pra quê?

– Ora, coronel... – sorriu Martim Francisco. E antes de falar encheu o bojo do cachimbo de fumo, apertou-o com o polegar e depois ficou por algum tempo aparentemente entretido na operação de acendê-lo, mas na realidade pensando numa resposta à pergunta do soba de Antares.

 

O trabalho dos universitários começou no dia seguinte. O falatório na cidade, a respeito deles, esse tinha já começado havia alguns dias. Cartas anônimas andavam já a circular em apreciável quantidade. Certo dia a cidade amanheceu cheia de boletins verdes, postos debaixo de portas, atirados de sacadas sobre as calçadas, distribuídos por meninos e meninas, de mão em mão, nas ruas e nas casas de comércio. Povo de Antares! Pais e mães de familial Alerta! Os inimigos estão já dentro de nossos muros! Protegei a vossa intimidade. Fechai as vossas portas e os vossos corações a esses forasteiros curiosos e indiscretos, agentes do comunismo internacional ateu e dissolvente. O Prof Martim Francisco Terra, o chefe dessa quadrilha vermelha disfarçada, está fichado no D.O.P.S. como marxista confesso. Defendamos a nossa crença em Deus, na Pátria, na Família e na Propriedade! Assinava esse apelo Um Patriota.

Um dos mais antigos comunistas da cidade disse um dia numa roda de correligionários: “O projeto está sendo financiado pela Fundação Ford. Está claro que nesse negócio todo anda o dedo da C.I.A. Não devemos colaborar com esses lacaios do Departamento de Estado”. Um comerciante encontrou na rua um colega e murmurou-lhe ao ouvido: Abre o olho, chê! Cuidado com os ‘gafanhotos’. Eles andam fazendo perguntas sobre preços, lucros, impostos, etc... Está claro que são espiões do pessoal do imposto de renda. A mim ninguém engana, que não nasci ontem”.

Ao fim de cada dia de trabalho toda a equipe se reunia numa sala que havia alugado para ser seu quartel-general, num edifício de apartamentos, à Rua do Comércio, e então cada pesquisador contava das vicissitudes do dia, da desconfiada resistência de alguns antarenses ante o questionário. O que finalmente os convencia a fazer o que os membros da equipe lhe pediam era o fato de eles não serem obrigados a assinar seus nomes depois de preencherem o formulário. Nessas reuniões diárias, um que outro pesquisador mostrava Uma carta anônima recebida naquele dia – ameaças veladas ou claras, denúncias, insinuações maldosas, insultos... A carta era lida em voz alta, provocando risos e comentários humorísticos.

– Paciência, meus filhos! – dizia Martim Francisco. E em seguida determinava as atividades para o dia seguinte.

E assim, durante cerca de cinco semanas, os pesquisadores conseguiram uma rica amostragem, de acordo com seus planos. Responderam ao questionário representantes da alta burguesia e da chamada “aristocracia rural”; comerciantes, funcionários públicos, donas de casa, estudantes, barbeiros, artesãos, garçons de cafés, bares e restaurantes, membros das profissões liberais, professores, empregados do comércio, motoristas de caminhões e automóveis de aluguel, etc... Xisto Vacariano, por conta própria e com a permissão de Martim Francisco, entregou-se a uma “pesquisa secreta” em torno dos hábitos sexuais da população de Antares, mas com um cuidado particular, pois o assunto era melindroso. Foi de início repelido por umas duas ou três senhoras de suas relações, que ficaram escandalizadas e ofendidas ante suas perguntas “indecentes”. Mas uma noite, conversando com Venusta, no seu bordel elegante, Xisto, o neto do velho Tibério, pediu champanha e começou a beber com a caftina, que congregou a seu redor algumas de suas “meninas”, &s quais, devidamente estimuladas pela bebida, abriram o bico e contaram das peculiaridades sexuais de seus clientes – posições e estímulos preferidos, extravagâncias, perversões ... Xisto anotou tudo e depois levou as suas “amostras a Martini Francisco, que sorriu, dizendo: “Excelente! Mas não podemos usar este material no nosso estudo. Causaríamos um escândalo dos diabos. Sugiro que escrevas um livro: O Kamasutra de Antares. Te garanto que vai ser um best-seller! Teu avô poderia escrever o prefácio!”

 

Independentemente de suas atividades profissionais, os “gafanhotos” faziam relações no plano humano com os habitantes de Antares, eram convidados para almoçar, jantar ou para festínhas em muitas casas de família. Um dos professores – solteiro e jovem – começou um namoro com a filha dum estancieiro. Uma das investigadoras teve uma proposta de casamento dum comerciante viúvo, cin-qüentão, calvo e rico. (Não aceitou.) Quanto aos namoros e namoricos, era tão pronunciada a predileção das moças antarenses pelos forasteiros, que momento houve em que o chefe do projeto temeu que os rapazes da terra se reunissem para linchar e expulsar da cidade os competidores indesejáveis.

Nas suas horas de folga Martim Francisco costumava conversar com o Pe. Pedro-Paulo, o jovem capelão da Vila Operária, com quem fizera boas relações. Ficaram muitas vezes sentados num banco da Praça da República, na calma do entardecer, à hora em que os pardais começavam a sua algazarra dentro e em torno dum alto plàtano, à frente da Matriz. Falavam na vida e na morte, em Deus, em livros, política nacional e internacional, pássaros, árvores, pinturas e outra vez no problema da finitude humana. Quase todas as noites, antes de ir para a cama, registrava de me-m°na no seu jornal íntimo aqueles diálogos, bem como as estórias que ouvira sobre as pessoas mais interessantes que ia conhecendo na cidade. O que ele não sabia era que o Pe. Pedro-Paulo também mantinha um diário em que o nome dele, Martim Francisco Terra, agora começava a aparecer com freqüência, e sob a mais favorável das luzes. A primeira nota que o sacerdote fez no seu jornal sobre o professor começava assim: Creio que hoje descobri um irmão

Os plátanos e os cinamomos começavam já a perder suas folhas amareladas e as paineiras estavam em plena floração, quando o trabalho de campo da equipe universitária terminou e os seus componentes se prepararam para deixar Antares. Dessa vez os “gafanhotos” não conseguiram nem mesmo tentaram livrar-se dum baile de despedida no Clube Caixeiral – que admitia em sua sede gente de cor – e dos almoços do Lions e do Rotary.

No dia do embarque da equipe, os moços que formavam o que Lucas Faia chamava de jeunesse dorée antaren-se exultaram. Muitas meninas, porém, ficaram tristes. E o Anjo da Verdade, que assinava algumas das cartas anônimas que circulavam na cidade, mandou um bilhete ao diretor de A Verdade revelando que duas ou três “mocinhas da nossa comunidade” tinham sido engravidadas e outras tantas defloradas e prostituídas pelos “gafanhotos vermelhos”.

Xisto Vacariano, que, depois que os companheiros se foram, permaneceu em Antares por mais uma semana, viu essa carta e comentou sorrindo: “Pelo que vejo, o Anjo da Verdade foi contaminado pelo espírito estatístico da nossa equipe”.

 

Todos os dados colhidos em Antares foram processados pelo Prof. Martim Francisco, ajudado por dois colegas, no computador eletrônico da Universidade de São Paulo. E durante todo o resto daquele ano de 1962 a equipe entregou-se à redação final do estudo, com a colaboração especial dum antropólogo – este último um tanto relutante por causa duma velha querela pessoal com a Sociologia, que ele considerava apenas uma modesta “ancila da Antropologia”.

O grupo encarregado de dar forma definitiva à obra a conselho de seu diretor tratou de eliminar todas as “enxun-dias” estilísticas dos manuscritos semifinais, a fim de que o resultado fosse um livro magro. À primeira edição em língua portuguesa devia seguir-se outra em língua inglesa.

Quando o Prof. Martim Francisco entregou os originais da Anatomia duma Cidade Gaúcha de Fronteira ao representante da Ford Foundation no Brasil, surgiu uma dificuldade que pôs em perigo a publicação desse trabalho em forma de livro. O Prof. Terra foi acusado anonimamente de comunista militante às autoridades policiais do Rio Grande do Sul, o que na opinião de muitos tornava a sua amostragem suspeita de parcialidade. Fizeram-se as investigações de rotina. Chamado ao Departamento de Ordem Política e Social, Martim Francisco teve a ocasião de verificar que a suspeita mais séria que havia contra sua pessoa baseava-se no fato de ele ter pronunciado na Universidade Federal, havia dois anos, uma série de conferências sob o título geral de Marxismo e Humanismo. Num memorial dirigido ao governador do Estado, ao general comandante do Terceiro Exército, ao reitor da Universidade do Rio Grande do Sul e ao representante da Ford Foundation, vários próceres de Antares manifestaram a sua apreensão quanto aos possíveis resultados “dum estudo planejado e dirigido por um indivíduo de tendências esquerdistas e portanto suspeito de parcialidade partidária, pois seu objetivo naturalmente era o de, por todos os meios, legítimos ou ilegítimos, desacreditar o sistema capitalista vigente na nossa comunidade”. Os signatários do memorial aproveitaram a oportunidade para “em benefício da verdade, reforçar a denúncia feita contra o diretor do aludido projeto, recordando atitudes, frases e idéias do Prof. Martim Francisco Terra, testemunhadas por anta-renses da maior idoneidade morar. O fato que mais despertara a suspeita dos habitantes de Antares quanto às verdadeiras intenções do Prof. Terra fora o interesse exagerado que ele demonstrava pela favela conhecida popularmente pelo nome de Babilônia, e que fora incontáveis vezes visitada por ele próprio e seus colaboradores, estudada e fotografada de todos os ângulos, tendo sido dezenas dos marginais nela residentes submetidos a questionários verbais que haviam sido gravados em fitas magnéticas.

A publicação dos resultados da amostragem foi sustada enquanto duraram essas investigações de natureza policial. Martim Francisco não perdeu a serenidade nem o bom-hu-mor. Escreveu uma carta ao reitor de sua universidade com cópias para o comandante do Terceiro Exército, o representante da Ford Foundation e o prefeito de Antares. Eis um trecho da missiva: “O computador que utilizamos para o processamento de todos os dados que colhemos em Antares (que no livro aparece sob o nome de Ribeira) é de fabricação americana e portanto acima de qualquer suspeita de es-querdismo. Considero também absolutamente insuspeitos os meus colegas e os estudantes que tomaram parte nessas pesquisas. E eu, que não sou americano nem russo nem comunista nem paranóico, estou disposto a consentir que meu nome seja omitido por completo do corpo do livro, não só como diretor como até como colaborador do trabalho, pois o que na minha opinião realmente importa é que ele seja publicado sem mais delongas”. O reitor da universidade considerou a carta insolente. O prefeito e outras pessoas gradas de Antares acharam-na cínica. Não se conhece a opinião do Terceiro Exército, mas o representante da Ford Foundation, amigo pessoal e admirador de Martim Francisco, riu-se de toda aquela farsa e mandou os originais para o prelo.

 

Em março de 1963 a versão original da Anatomia foi lançada no Brasil. Équando no ano seguinte Martim Francisco recebeu o primeiro exemplar da tradução americana, o governo de João Goulart havia sido derrubado e os militares estavam no poder.

Certa manhã em sua casa, à hora do café, o professor folheou o volume, cheirou-lhe as páginas – hábito muito seu – e depois entregou-o a Matilde, sua mulher, que estava sentada à mesma mesa, e continuou a leitura do jornal, que a chegada do livro interrompera. Havia na última página do matutino uma notícia informando que desde a irrupção da revolução vitoriosa de 31 de março, 378 pessoas tinham t’do seus direitos políticos suspensos, 10 000 funcionários haviam sido demitidos ou obrigados a se demitirem e que estavam em processo cerca de 5 000 investigações que envolviam umas 40 000 pessoas em todo o território nacional. Martim Francisco releu a notícia para a mulher, dessa vez em voz alta. Ela ficou um instante pen-sativa, olhando para o marido, e depois perguntou:

E tu... não estarás também sendo investigado?

– É possível e até provável – murmurou ele sem tirar o cachimbo da boca nem desviar o olhar da página do jornal.

E falas com essa calma...

– Que queres que eu faça? Que saia para rua gritando e chorando? Ou que meta uma bala na cabeça? Não cometi nenhum crime.

Ela sorriu, sacudindo lentamente a cabeça. Conhecia o marido e a sua fleuma. Tornou a olhar para a capa do livro.

– Que te parece agora esse trabalho? – perguntou.

Graficamente é um doce. Bom papel, boa impressão, boa capa. Quanto ao conteúdo, bem... acho que tem tabelas e gráficos demais. Fiz o possível para dar um certo frêmito de vida a esse estudo, mas tive de ceder muito terreno à estatística e à econometria.

Ela se ergueu, acercou-se do marido e começou a passar a mão pelos seus cabelos. Como o amava, habituara-se a gostar da fragrância de guaco da fumaça de seu cachimbo. Sempre acariciando a cabeça de seu homem, tornou a olhar para o volume:

– Sinceramente, achas que Antares está retratada fielmente nas páginas dessa Anatomia?

– Matilde, minha querida, queres que te fale com franqueza? Esse livro está para a Antares de verdade assim como um passarinho empalhado está para um passarinho vivo.

O professor pôs-se de pé e enfiou o casaco. Olhou o relógio: tinha vinte minutos para fazer a pé o percurso até à universidade.

Beijou a mulher, tornou a apalpar e cheirar o volume recém-chegado e depois disse, sorrindo:

E a verdade é que hoje sou persona non grata em Antares.

 

Como era de se esperar, os pró-homens de Antares haviam detestado o livro que, no ano anterior, fora discutido a portas fechadas numa reunião convocada pelo prefeito especialmente para esse fim.

– Abusaram da nossa hospitalidade! – exclamou o Maj. Vivaldino batendo na mesa com o punho cerrado. – Foram tratados a vela de libra, entraram nas nossas casas, na nossa intimidade e depois nos apunhalaram pelas costas. Temos de fazer alguma coisa, não acha, Cel. Vacariano?

O velho encolheu os ombros. Era o único daquela ilustre companhia que não parecia preocupado com as conclusões da Anatomia.

– Que importância pode ter um livro? – perguntou. – Andei folheando essa droga. Não entendi nem a metade do que eles escreveram aí... Essas tabelas, esses números, essas palavras arrevesadas são de morte. Quem é que vai ler essa bosta?

– Mas a obra – observou o Prof. Lábindo Olivares, diretor do Ginásio Nacional – vai ser distribuída pela Fundação Ford a todas as bibliotecas do Brasil, dos Estados Unidos e possivelmente de muitos outros países da América Latina.

– Ora, eles falam aí de Ribeira e não da nossa cidade!

– Bem, coronel, foi amplamente divulgado pelos jornais, pelo rádio e pela televisão que Ribeira é uma espécie de pseudônimo de Antares.

Lucas Faia sugeriu:

– Devíamos mandar publicar em todos os jornais importantes do país um memorial rebatendo essas infâmias sobre a nossa terra e a nossa gente.

– Vamos, vamos! – disse, conciliador, o Dr. Paiva, o novo advogado da prefeitura. – Não se trata propriamente de infâmias. E essas conclusões foram tiradas dos questionários...

Os três exemplares da Anatomia que haviam chegado a Antares andavam agora à roda, de mão em mão.

– Vejam a página 165 – pediu o Mendes, secretário do prefeito. – Somos apresentados como uma cidade prosaica, opaca (este é o termo que eles usam), como um povo sem imaginação e, além de tudo, desconfiado, sempre “com um pé atrás”. Numa nota ao pé da página se explica que esta expressão foi encontrada em 10% do total dos questionários.

O velho Vacariano desatou a rir:

– Imaginem se eles tivessem publicado a coisa que o meu neto, o Xistinho, escreveu sobre os “hábitos sexuais” dos homens de Antares. Imaginem que o felho da pota tinha lá umas “amostras” que, pelos sinais, se referiam a gente muito nossa conhecida...

O diretor de A Verdade chamou a atenção dos presentes para outro trecho do livro:

– Página 230. Observem o tom de ironia deste capítulo intitulado O Boi e a Máquina em que se pretende estudar o “impacto que uma indústria incipiente está produzindo num município agropastoril”‘.

O prefeito tirou o livro das mãos de Lucas Faia, um tanto abruptamente, abriu-o numa outra página e disse:

– No capítulo Hábitos e Tabus Alimentares esses canalhas criticam a maneira como nós comemos em Antares. Prestem bem a atenção nesta tirada e me digam se não é coisa de comunista: “Os pobres não comem porque não têm dinheiro para comprar gêneros alimentícios. Os remediados comem pouco e mal. Os ricos comem demais e errado”.

O dedo indicador de Vivaldino Brazão percorria a página. – Ah! Aqui está a frase que eu procurava: “Durante o forte do verão, nos dias de maior calor, devoram feijoadas completas”. Pois isso é comigo, senhores. Num gesto de boa vontade convidei o Prof. Martim Francisco para almoçar na minha casa e lhe ofereci uma feijoada. E o ingrato se valeu disso para me ridicularizar. Ó Dr. Lázaro!

O homenzinho que estava sentado a um canto da sala, quase a cochilar, teve um sobressalto:

– Pronto, major!

E esse negócio de colesterol de que eles falam aqui é certo mesmo?

– Não li ainda o livro, major. Mas todo alimento que contém gordura animal tende a aumentar o colesterol no nosso sangue, produzindo a artériosclérose. Vivo dizendo isso aos meus clientes, inclusive ao senhor, mas ninguém me leva a sério.

– Ah! – riu seco o Cel. Vacariano. – O meu pai só comia carne gorda e coisas fritas em banha de porco. No entanto morreu com mais de oitenta e cinco anos, não de enfarto, mas da chifrada dum touro xucro.

O prefeito umedeceu a ponta do indicador na língua e pôs-se a folhear rapidamente o livro infame, até encontrar o que procurava.

E agora, meu amigos, chegamos ao trecho desta obra que mais me irritou. É o capítulo dedicado à Babilônia (por sinal enorme, desproporcional ao resto do volume). E ilustrado com fotografias horrorosas! Não tiveram nem o cuidado de inventar outro nome para a favela. Vejam esta descrição apaixonada, parcial e eu diria até política: “Homens, mulheres e crianças aqui vivem – se a isto se pode chamar viver – na mais terrível promiscuidade, num plano mais animal do que humano, em malocas feitas com pedaços de caixotes e de latas... sem o mais elementar serviço sanitário... bebendo a água poluída duma lagoa próxima ... pisando nas próprias fezes... etc... etc... e comendo o que catam nos monturos de lixo da cidade”. Ah! Ouçam agora esta: “O visitante que se aproxima desse arraial da miséria e da desesperança sente de longe o fedor que dele se exala, mesmo nos dias sem vento...” Vamos ver mais adiante... aquil “No verão as crianças dessa aldeia fantasma morrem como moscas, de disenteria e desidratação. Encontram-se aqui, entre os grandes e os pequenos, casos crônicos de tuberculose e outras doenças propiciadas pela subnutrição. Dá pena ver os olhos entre espantados e tris-tonhos dessas criaturinhas esqueléticas que, quase todas, sofrem de ancilostomíase. . sempre cercadas de enxames de moscas, precoces candidatas à vala comum.” Senhores, não parece que estamos lendo a descrição da aldeia mais miserável da Índia ou da Bolívia? E isto deve ter sido escrito pessoalmente pelo próprio Prof. Terra, o comunista!

– Mas isso é literatura e não sociologia! – exclamou o Prof. Libindo.

E literatura barata – acrescentou Lucas Faia. – Estilo indigente.

E demagógico – disse o Dr. Paiva.

O Pe. Gerôncio sacudiu lentamente a cabeça dum lado para outro, os olhos baixos.

E viram o que os ordinários disseram da religião em Ribeira? – perguntou o Mendes. – Afirmaram com gráficos estatísticos que a nossa igreja católica está perdendo terreno para o espiritismo e para os cultos afro-brasilei-ros, principalmente para a Linha Branca de Umbanda.

 

Comentaram-se outros trechos do livro. Um gerente de banco achou baixo demais o rendimento per capita dos habitantes de Antares indicado pela amostragem. Um comerciante considerou insultuoso o que se escreveu sobre a arquitetura da cidade e sobre os seus hábitos sociais.

– Ó Mendes. Me faça o favor de ler o que está na página 340, na parte de cima.

O secretário leu:

– “O que mais impressiona o forasteiro nos habitantes de Ribeira é uma nítida tendência para o prosaismo, isto é, uma certa pobreza de imaginação e fantasia. O mau gosto que se nota na decoração das casas das famílias remediadas e mesmo das abastadas é flagrante.”

– Mais adiante!

– “Um jovem estudante, filho de tradicional família do município, assim opina sobre a sua terra e a sua gente: ‘O Rio Grande do Sul é o Estado mais reacionário do Brasil, e Ribeira a cidade mais reacionária do Rio Grande do Suf. Tornamos a perguntar: ‘Refere-se só ao reacionarismo político?’. E o rapaz: ‘Não. Reacionarismo em tudo. Veneramos morbidamente um passado e uma tradição já mortos, se é que de fato um dia existiram mesmo, e somos incapazes de sair dos trilhos da rotina e erguer a cara para o sol do futuro’. Um outro declara: ‘Ainda se cultua entre nós o machismo como se mantivéssemos no Brasil o monopólio da coragem e da virilidade’.”

O Dr. Paiva observou:

– Isso me cheira a frase inventada por um dos professores.

O prefeito de novo agarrou o volume, procurou uma página, achou-a e disse:

– Vou mandar chamar o Britinho da Livraria Excelsior e passar um pito nele. Só pode ter sido esse idiota quem disse as inconveniências que aparecem no capítulo intitulado Livros e Literatura. Ouçam: “Conversamos longamente com o único livreiro da cidade, que nos confessa estar à beira da falência comercial. Disse-nos ele, textualmente, pois suas palavras foram gravadas em ‘tape’, com a sua permissão: ‘Nosso povo não tem o hábito da leitura. Os que aqui gostam de ler não têm dinheiro para comprar livros, e quando compram custam a pagar ou não pagam nunca. Os que têm dinheiro em geral não gostam de ler. Há por aí uns intelectualóides que quando precisam de livros mandam buscá-los diretamente de Buenos Aires, do Rio de Janeiro e até de Paris. O que a maioria de nosso povo aprecia mesmo são as revistas com estórias de quadrinhos e as novelas de rádio. Se o livro desaparecesse da face da Terra acho que o povo de Antares nem chegaria a dar pela coisa”.

– Essa obra também afirma – disse Lucas Faia – que não temos arte popular.

– O que é verdade... – murmurou o juiz de Direito.

– Mas em quantas regiões do Rio Grande – perguntou o Prof. Iibindo – encontramos boa arte popular? Por que havia de Antares aparecer agora nessa monografia como sendo, por assim dizer, a única cidade do nosso Estado pobre em expressões folclóricas?

O presidente do Clube Comercial pediu a atenção dos presentes para o capítulo dedicado à vida social de Antares ou, melhor, de Ribeira.

– Afirmam esses senhores que o nosso clube é um “reduto fechado” do patriciado rural e da alta burguesia. Chegam a insinuar que somos racistas, que não aceitamos como sócios pessoas de cor nem judeus.

– O que é verdade – replicou Mendes. O prefeito franziu a testa para o seu secretario, censurando-o paternalmente pela sua intervenção infeliz.

– Segue-se um estudo – continuou o presidente do Clube Comercial – sobre o que eles chamam “sementes de racismo”. Não há dúvida: esse tal Prof. Martim Francisco Terra é mesmo um lacaio de Moscou.

E dizer-se que lhe corre nas veias o sangue dos Terras de Santa Fé! – suspirou o Pe. Gerôncio. – Um dia esse moço me visitou e eu lhe mostrei a árvore genealògica dos Terras Cambarás, fundadores de Santa Fé. O Prof. Martim Francisco vem a ser tataraneto de Horácio Terra, que em fins do século XVIII afastou-se do tronco da família, estabeleceu-se em Rio Pardo, casou-se com uma moça da vila e lá formou um forte e frutuoso ramo da árvore dos Terras. Contei tudo isto ao professor e ele não me pareceu muito entusiasmado. Nunca ouviu falar na velha Ana Terra, que até hoje é venerada em Santa Fé, a cidade que ela ajudou a fundar. Era uma pioneira na acepção exata do termo, mulher corajosa, de virtudes altíssimas. Pois o nosso sociólogo ficou frio diante de tudo isso!

– Comunista não se importa com genealogia – sentenciou o Mendes.

– Nem com tradição – acrescentou o prefeito. – Há nessa droga de livro um capítulo em que se descreve o nosso Centro de Tradições Gaúchas Chimarrão da Saudade.

Ou eu me engano ou esses universitários fizeram ironia com o nosso tradicionalismo. É um desaforo.

Quem tinha um livro aberto agora era Lucas Faia:

E esta? Diz aqui que “o português que se fala em Ribeira, como acontece aliás em maior ou menor grau nas nossas cidades da fronteira com a Argentina e o Uruguai, está inçado de castelhanismos. O falar ribeirense é seco e quadrado (‘depôs’ e ‘pôs’ em vez de ‘depois’ e ‘pois’, etc). ‘Buenas’ é uma saudação comum, assim como o ‘ciao’ italiano, este de uso mais recente. Aqui muitas vezes se agradece dizendo ‘gracias!’ Para o ribeirense ‘acender’ é ‘prender’, como em espanhol. E o emprego da interjeição ‘chê’ está muito generalizado aqui “.

O prefeito fechou o seu volume com violência, produzindo um ruído fofo, e atirou-o com desprezo e rancor em cima de sua mesa de trabalho. Olhou em torno e perguntou:

– Em resumo, na opinião dos ilustres amigos, que devemos fazer diante de todas essas... esses... insultos e mentiras? Aprovam a idéia de publicarmos um protesto nos jornais?

– Não – disse o Dr. Paiva. – Seria chamar a atenção e o interesse de muita gente sobre esse livro que, de outro modo, passaria completamente despercebido. Qualquer coisa que divulgarmos a respeito na imprensa escrita, no rádio ou na televisão serviria de propaganda para essa obra. Por outro lado não temos bases para processar judicialmente seus autores porque, vejam bem, nessas quase quinhentas páginas não se menciona uma vez sequer o nome Antares. Itaqui, Quarai, Livramento, São Borja e Uruguaiana também poderiam muito bem vestir a carapuça...

Houve um silêncio curto, cortado de pigarros, tosses, arrastar de pés e ranger de cadeiras. Lucas Faia falou:

– Bom, senhores, como diretor e redator-chefe de A Verdade não posso deixar de escrever um artigo veemente contra esses caluniadores, sob pena de passar por covarde ou indiferente E vou pedir aos nossos leitores que boicotem esse livro, e evitem até tocar com a ponta dos dedos a sua capa... que aliás está unu beleza, diga-se de passagem.

O prefeito ergueu-se, deu um puxão nas pontas do casaco, e disse:

– Proponho que o Prof. Martim Francisco Terra e os demais membros de sua equipe sejam declarados oficialmente pessoas não gratas a An tares.

A moção foi secundada pelo juiz e aprovada por unanimidade. O Maj. Vivaldino declarou a sessão encerrada e, ao despedir-se dos amigos à porta de seu gabinete, sugeriu

– Não seria má idéia comprar uns trinta. ou vinte... ou mesmo dez exemplares desse livro e queimá-los todos numa solenidade em praça pública, numa manifestação de protesto contra as mentiras que ele contém,

O Mendes tocou com a ponta dos dedos os carnudos ombros do seu chefe:

– Major, seria um auto-de-fé muito caro. O senhor viu o preço de cada volume? E, de resto, não temos verba.

O vigário, consultado, não concordou com a idéia do prefeito.

– Castiguemos esses moços com o nosso perdão – disse evangelicamente.

 

Em Porto Alegre, numa tarde de maio do ano de 1964, Martim Francisco e Xisto saíram juntos do edifício da universidade em uma de cujas salas se havia reunido toda a equipe que trabalhara na Anatomia, para que cada um apresentasse a sua crítica ao “produto acabado”. Dirigiram-se ambos para o parque, nesse tipo de passo lento e descom-promissado de quem não tem hora marcada para nada nem destino certo, e que, fatalmente, acaba levando a confidencias. Havia alguns dias Xisto Vacariano submetera à apreciação de seu mestre um ensaio de sua autoria intitulado A Hora do Tecnocrata.

Meninos e meninas brincavam perto de um dos lagos. Muitos deles passavam pedalando suas bicicletas. Um balão amarelo, perseguido por uma criança de seus dois anos. caiu perto de Martim Francisco, que não resistiu à tentação de bater nele, de leve, com o pé.

– A propósito, – disse o professor, embora não tivesse visto no balão ou na criança nenhuma relação direta com o que ia dizer – li o teu ensaio. Gostei. .. mas com uma reserva.

Xisto sorriu, baixou a cabeça para não ser atingido por um bumerangue lançado por um adolescente de camiseta vermelha.

– Pode me dizer qual é a reserva?

– Ora, nada sério. O ensaio me pareceu muito bem craniado. Só notei que estás demasiadamente fascinado pela tecnologia. Daí a aceitar sem reservas a tecnocracia é um passo muito curto.

E que mal há nisso, num país em processo de desenvolvimento como o nosso? O Brasil precisa mais de cientistas e técnicos do que de helenistas, latinistas e estetas ...

– De acordo, até certo ponto... Mas deixa também um lugarzinho na tua Sociedade Nova para os humanistas. A Filosofia não é tão inútil como parece. E o homem necessita de música, de poesia e – que diabo! – precisa também aprender a usar bem o lazer que um dia a ciência, ajudada pela técnica, lhe há de proporcionar. Em suma, a técnica nos fornece os meios. O humanismo nos orienta quanto aos fins. E não concebo humanismo sem ciência.

– Mas não haverá muita conversa fiada em torno de humanismo?

– Há conversa fiada em torno de tudo. Até (e principalmente) de Deus.

Martim Francisco fez a sua proverbial pausa para acender lentamente o cachimbo. Depois retomou a palavra.

– Te dou um exemplo de muita tecnocracia e nenhum humanismo: Hitler e a sua camarilha, que causaram talvez a maior mortandade e destruição da História. Durante a era hitlerista os humanistas alemães emigraram. Os tecnocratas ficaram com as mãos e as patas livres.

– Bom, espero que o mundo tenha aprendido a lição. ..

– Qual, Xisto! Não aprendeu. A gente esquece com facilidade. As gerações se sucedem. Cada governo escreve a História de acordo com as suas conveniências. E eu acho, meu caro, que cada um de nós tem nas suas mais remotas cavernas interiores um troglodita adormecido que, submetido a um certo tipo de estímulo, vem rapidamente à tona de nosso ser e se transforma num déspota totalitário capaz de todas as bestialidades. E nunca faltará um falso humanista para inventai” uma teoria filosófica com o objetivo de coonestar todas as monstruosidades cometidas pelo “homem das cavernas”.

– Não sou assim tão pessimista.

– Mas escuta... Quando o Presidente Truman e os generais do Pentágono se reuniram, no maior sigilo, para decidir se lançavam ou não a primeira bomba atômica sobre uma cidade japonesa aberta... imaginas que eles convidaram para essa reunião algum humanista, artista, cientista, escritor ou sacerdote?

Xisto replicou:

– Eu tinha apenas quatro anos quando a Grande Guerra terminou. Mas está claro que tenho lido muito a respeito. Vou lhe responder... Quem ordenou o bombardeio de saturação de Dresden, cidade aberta, sem instalações militares, durante essa mesma guerra (e nesse bombardeio está provado que morreu mais gente do que no de Hiroxima) não foi um tecnocrata nem mesmo o Estado Maior do exército britânico, mas sim Sir Winston Churchill em pessoa, um humanista. Sua justificativa foi a de acelerar a “guerra psicológica”.

– Bom, Sir Winston não é exatamente a minha idéia de humanista. E decerto ordenou o bombardeio de Dresden Para apressar a queda do nazismo e assim salvar o humanismo. E cá estamos enredados em palavras...

 

Sentaram-se num banco, sob uma pérgula, tornaram a recordar pessoas e cenas de Antares, comentaram a reação desfavorável dos antarenses à Anatomia e por fim Xisto indagou :

E agora... quais são os seus planos?

– Talvez emigrar...

– Como? Está falando sério? – Martim Francisco sacudiu a cabeça numa lenta afirmativa. – Mas por quê?

– Você leu com atenção o Ato Institucional do novo governo?

– Sim... quero dizer, com relativa atenção.

E as notícias de hoje nos jornais?

– Por alto. Mas... emigrar por quê?

– Já li a inscrição na parede. Estamos (e os próprios responsáveis pelo novo governo não negam) num regime autoritário. Esta pode bem ser a oportunidade para corrigir alguns de nossos muitos defeitos políticos, econômicos e sociais mas (veja bem) também pode ser a hora do mons-trinho das cavernas... dum lado e de outro.

– Aaah! Acho que o senhor está dramatizando demais a situação.

– Pode ser. Mas pelo rumo que as coisas políticas estão tomando, é de se esperar que mais tarde ou mais cedo eu esteja no número dos professores que, sob os mais variados pretextos ou sem nenhum pretexto, serão afastados da universidade por algum Ato Adicional ou decreto, sei lá!

– Afastados? Mas por quê?

– Suspeitos de esquerdismo ou de não colaboração voluntária com o movimento de 31 de março... A mim não me perdoarão jamais por ter feito aquela série de conferências em torno dos aspectos humanistas dos primeiros escritos de Marx. Como sabes, não vivo em odor de santidade política: sou o que muitos chamam de “liberal es-querdizante”. Ou simplesmente de “comunista mascarado”.

– Mas é ridículo!

– Pense na História e me diga quando, em que tempo o ridículo não andou de braço dado com o sublime. Acho que vamos entrar numa era de denúncias. Será a “hora do dedo duro”. Teremos uma caça às bruxas. E eu sou geralmente considerado uma bruxa!

– Não acredito. A situação política que essa revolução derrubou era caótica e perigosamente permissiva.

– De acordo, mas ela admitia, tolerava a discussão livre, e eu tinha a esperança de que um ponto de vista liberal prevalecesse um dia, estabelecendo a sua ordem.

– Mas... por que emigrar? O senhor poderá continuar trabalhando no Brasil. Há outras universidades e colégios.

– Um dia teremos todos os caminhos barrados. Tudo indica que essa revolução, que já está sendo contestada, continuará a encontrar uma resistência cada vez mais forte. E é natural que a contestação provoque a repressão e a repressão mais contestação. Lamentarei mas não me surpreenderei se qualquer dia entrarmos numa era de terrorismo.

– No Brasil? Não acredito.

E por que não? Chegamos ao fim de nossa adolescência nacional. Somos o único país da América Latina com jeito e possibilidade de vir a ser mesmo uma nação de importância mundial. A festa acabou. Temos de tomar nosso destino em nossas próprias mãos com a maior seriedade e decisão. Não seremos mais tratados como meninos irresponsáveis, mas como adultos. Ninguém nos dará mais presentes. O preço de ficar adulto é bastante alto, não nos iludamos ...

Fez-se um silêncio. Xisto olhava para o Auditório. Martini Francisco tinha em seus pensamentos Matilde e suas duas filhas.

– Mas emigrar para onde? – perguntou o discípulo.

– Não sei. Eu gostaria de ir para a Europa, mas vejo mais possibilidade de trabalho e tenho melhores relações humanas nos Estados Unidos.

– Sim, e lá existe plena liberdade de pensamento e expressão.

                – Até quando?

                Xisto atirou no chão o seu cigarro e apagou-o com a sola do sapato, num gesto um tanto impaciente.

                – Será que um dia não vai haver mais em toda a Terra um lugar em que um homem possa ser dono pelo menos do seu nariz, dizer o que pensa, ter uma quota razoável de liberdade? Talvez em alguma ilha deserta do Pacífico.. .

                – Não te iludas. Nem numa ilha deserta poderemos fugir à História. Um dia quando estiveres estendido na areia, nu e comendo a tua banana gratuita, um país qualquer que está querendo entrar para a “família nuclear”, testará uma bomba atômica e te levará pelos ares em pedaços. . .

                – Nunca vi o senhor tão trágico.

                Martim Francisco sorriu:

                – Os pessimistas, meu caro, estão muito mais protegidos neste mundo que os otimistas. Divertem-se menos, concordo. Mas vamos embora. A Matilde está me esperando com as meninas no lago dos barcos.

                Ergueram-se ambos e começaram a caminhar lentamente para as bandas do zoológico.

                – Sabe duma coisa, professor? Eu gostaria de um dia, se possível, ler o jornal que o senhor manteve durante sua estada em Antares.

                – Será publicado somente cinqüenta anos após a minha morte – replicou Martim Francisco, com fingida solenidade. – Mas, falando sério, é um diário desalinhavado, superficial e redigido sem muita preocupação com a forma. O que me levou a escrevê-lo foi o fato de que, no fundo, o que eu sou mesmo é um romancista frustrado.

                – Pois eu dava um braço para poder ler esse diário.

                – Não vale a pena perder um fio de cabelo por tão pouca coisa. Te asseguro que esse jornal não tem nada de extraordinário. . .

 

                Sim, o chamado Jornal de Antares, do Prof. Martim Francisco Terra, na realidade nada tem de extraordinário. Como, porém, menciona ou comenta pessoas e lugares que viriam a ser envolvidos no controvertido “incidente” de 13 de dezembro de 1963, será interessante transcrever a seguir, em itálico, algumas de suas páginas.

 

                Antares. O nome me encanta e intriga. Como se explica que, nesta região onde outrora foram as reduções jesuí-ticas, encontra-se hoje uma cidade com nome de estrela e não de santo? Na opinião do P.e Gerôncio, o velho vigário da Matriz local, a denominação deste lugar vem possivelmente de terem existido aqui antigamente muitas antas, que vinham beber água no rio, e que a semelhança entre o nome deste lugar e o da estrela da constelação de Escorpião é pura coincidência. A explicação não me convence. Acho que por aqui passou ou aqui viveu há mais de cem anos alguém, talvez algum estrangeiro, que tinha noções de Astronomia.

                Tenho a impressão de que já vivi nesta cidade: o déjà vu. Numa outra vida? Tolice. Nasci no Rio Pardo e lá passei a minha infância e parte da adolescência. Descubro parecenças entre ambas essas comunidades ribeirinhas. Isso explica tudo.

 

                A Associação Comercial de Antares afirma que a sede do município tem 20 000 habitantes, aos quais o prefeito acrescenta, com ardor cívico, mais cinco mil. Creio que tudo isso é bairrismo estatístico. Não creio que a cidade de Antares tenha mais de 15 000 almas, quando muito. Desde a sua fundação este foi um município agropastoril. Começou a industrializar-se não faz muito.

                Sinto já cócegas nos dedos para escrever e usar na Anatomia um capítulo intitulado A Vaca e a Máquina, mostrando os possíveis atritos entre a pecuária e a indústria. Imagino uma vaca passeando pelas dependências do Frigorifico Pan-Americano e observando como se transformam os animais de sua espécie em corned beef, caldos concentrados, etc. Talvez um diálogo entre essa vaca falante e pensante e o gerente do frigorífico (um americano de quase dois metros de altura, que conheci esta manhã). Ou da vaca com as máquinas. Exponho a idéia a um de meus colegas, que responde: “Isso não é sociologia, mas fantasia”. Creio que ele tem razão. Mas assim mesmo vou tentar o capítulo. Ë preciso amenizar o estudo. Penso também no choque de interesses políticos e sociais trazidos pela indústria. Os partidos de centro aqui já perdem para o trabalhista em número de eleitores.

Curioso: o romancista semi-anestesiado dentro de mim desperta em Antares. O que me tem impedido até hoje de “cometer” um romance é que, bom e ávido leitor de livros desse genero, geralmente me achico (como se diz por aqui) diante dos gigantes da ficção e ponho o meu romancista interior de novo a dormir. Humildade ou orgulho às avessas?

Quando moço escrevi contos. Relendo-os, convenço-me de que o mundo não perdeu nenhum grande criador de fic-ções. Mas a verdade é que esta cidade, esta gente, este ritmo de vida me estão acordando e avivando a “paixão espúria”. Encontro na rua, no cinema, nos restaurantes e cafés tipos que por assim dizer se me oferecem como personagens.no-velescas. O esquisitão que mora no andar superior do so-bradinho com fachada de azulejo, numa das quadras da praça, e que toca no piano coisas de Beethoven e Chopin. O meu barbeiro, um siciliano retaco, mal-encarado mas amável, e que tem o sugestivo nome de Jesualdo Aspromon-te. Um teuto-brasileiro, Egon Sturm, ex-campeão gaúcho de tiro ao alvo, e que, pelo que me contam dele, tem muito de paranóico; uma espécie de Fuehrer potencial. A rica figura do chefão do vasto clã dos Vacarianos, fundadores da cidade, e que se chama Tibério. (Seu pai não devia conhecer muito bem a biografia dos imperadores de Roma.) A velha Quitéria, matriarca dos Campolargos.

A cidade mesma poderia ser uma “personagem”. Feioca mas com uma certa graça antiga e missioneira. Seu forte, na minha opinião, são os telhados de telha colonial, cobertos de liquens dourados ou duma prata esverdeada, formando desenhos e combinações de cores que lembram telas de pintores abstracionistas. E também as suas incontáveis (o nosso estatístico protestaria com boa razão contra a palavra “incontável’, pois todo objeto pode ser contado) meiáguas de fachada caiada, janelas e portas com ombreiras de madeira cinzenta meio roídas de cupim. E as ruas, os becos, todos calçados de pedra-ferro irregular e com nomes saborosos (os antigos, pois os modernos são de pessoas) como Beco das Almas, Travessa do Contrabando, Rua do Salso, Rua das Camélias, Largo do Jasmim, etc...

Como toda cidade pequena que se preza, Antares tem a sua Rua do Comércio e a sua Voluntários da Pátria. E duas praças, uma delas a “enteada” da família, a gata borralhei-ra, fica na extremidade norte, é mal cuidada, cercada de casas velhas e baixas, o chão de terra entregue às formigas, às urtigas e às guanxumas. Mas a outra, a da República, a filha dileta da comunidade – com lagos artificiais, belas árvores e flores, canteiros de relva, um coreto no centro – essa é considerada a sala de visitas da cidade. As ruas a seu redor têm pavimento de cimento asfàltico. Neste largo ficam as residências e edifícios mais importantes da cidade: os palacetes dos Vacarianos e Campolargos, mansões de dois pisos, enormes, com muitas janelas e com platibandas ornamentadas de compoteiras, esculturas e guirlandas em alto e baixo-relevo. Em torno da Praça da República vemos também a Matriz, de construção relativamente recente mas de risco antigo, e de sabor colonial português. E nessa praça também que se erguem – cada qual com a sua “cara” – o edifício da prefeitura municipal, o do cinema, o do Clube Comercial c uma das duas mais importantes casas de comércio locais.

Nosso fotógrafo tem andado por aí a apanhar flagrantes de rua e figuras humanas. Pedi-lhe que fotografasse em cores a fachada de algumas casas, particularmente a do so-bradinho de azulejos que, por alguma razão misteriosa, não só me agrada como também me enternece.

 

Mal chegamos a Antares e já nos querem envolver nas brigas locais. Esta cidade em matéria de rivalidades tem um caráter -por assim dizer binàrio. No futebol ou se é do Fronteira F. C. ou do S. C. Missioneiro, e não há como escapar. Na vida social, ou se é do Clube Comercial ou do Clube Caixeiral. Já me perguntaram se pertenço ao grupo do Dr. Lázaro Bertioga ou ao do Dr. Erwin Falkenburg, os dois médicos mais importantes e antigos da terra, inimigos de morte um do outro. Cada um deles tem grande número de clientes devotados que de certo modo são também soldados duma legião, a qual, se necessário, é capaz de ir à guerra contra a facção inimiga.

Conheci pessoalmente o Dr. Lázaro, um homenzinho baixo, calvo, com cabelos grisalhos, penteados cuidadosamente a escova, nos lados da cabeça, rosto redondo e rosado, sempre sorridente. Um sujeito amável, desses de quem se costuma dizer que são “serviçais”. Seus clientes o adoram, não só porque acreditam nas suas qualidades de médico, como também porque se sentem protegidos pelos seus ares carinhosamente patentais. Alguém me diz que o Dr. Lázaro goza duma espécie de santidade leiga, que lhe foi conferida pela sua clientela. Ele próprio parece carregar com um certo orgulho satisfeito esse halo de santidade. É proprietário do maior hospital da cidade, o Salvator Mundi, que conta com uma pequena ala para indigentes, subvencionada vela prefeitura.

Quanto ao Dr. Erwin Falkenburg – proprietário do Hospital Repouso – conheço-o apenas de longe. É um tipo empertigado, que lembra um oficial prussiano reformado. Usa pince-nez, tem um cachaço nédio, olhos verdoengos e metálicos, e um sorriso de canto de boca que me parece de desdém ou ironia. D. Quitéria o adora, deposita nele uma confiança ilimitada e costuma dizer que, acima do Dr. Falkenburg, só Deus. Seus inimigos põem em dúvida a legitimidade de seu diploma. E o que contribui para que alguns desconfiem ainda mais do doutor teuto-brasileiro é o fato de ele usar o hipnotismo no tratamento de certas moléstias nervosas.

Pitoresca figura, a do velho Yaroslav, o fotógrafo Iam-be-lambe que faz ponto perto do coreto da Praça da República. Entre 65 e 70 anos. Estatura mediana, faces rubicun-das, péra curta e pontuda, olhos claros e um nariz que lembra o do avô no famoso quadro de Ghirlandaio que está hoje no Museu do Louvre. É natural da Tcheco-Eslováquia, está no Brasil há cinqüenta anos e em Antares há vinte e cinco. A sua câmara é uma caixa velhíssima, relíquia da infância da fotografia. Descubro que Yaroslav tem um grande orgulho profissional. Quando travo relações com ele, acha-se comigo o fotógrafo da nossa equipe. O lambe-lambe não demonstra o menor interesse pela moderníssima objetiva alemã que o nosso colaborador traz a tiracolo.

O velho tcheco é conhecido na cidade como o Rei dos Passarinhos. Vem sempre para a praça com os bolsos cheios de alpiste e migalhas, que espalha a seu redor e ali fica esperando que os pássaros venham bicá-los. Pombas pousam-lhe na cabeça, no ombro, e comem das suas mãos de dedos corroídos de ácido. Yaroslav sorri, feliz. Parece conhecer pessoalmente cada uma das aves que freqüentam esta praça.

É vegetariano e isso talvez explique os vagos verdes que imagino ver na sua péra, nos seus cabelos e nos seus olhos, que sugerem distâncias de tempo e espaço. Yaroslav não é nada loquaz, mas sinto uma misteriosa riqueza nos seus silêncios. Confessa que odeia os italianos em geral e o Jesualdo Aspromonte em particular. “Mas por quê?” – que-ro saber. Ele explica: “Porque os italianos, esses bárbaros, comem passarinhos. E o Jesualdo tem canários, pintassilgos e cardeais presos em gaiolas”. O lambe-lambe me mostra al-guns de seus pequenos amigos alados. Tem as suas noções de ornitologia. Pergunto-lhe que pensa de Antares e por que se encontra aqui há tanto tempo. Encolhe os ombros e murmura: “Há navios que andam por todos os mares da Terra mas um dia encalham, enferrujam e se resignam a não continuar a viagem. Quer tirar um retrato?”

Meu fotógrafo e eu nos recostamos nas grades do coreto, Yaroslav ajusta a sua câmara, mete a cabeça debaixo do pano preto, diz “Atenção”, aciona o obturador e “Pronto!” – grita. Cinco minutos depois mostra-nos a fotografia. Quero pagar-lhe pelo postal. Ele sacode a cabeça numa enérgica negativa, dizendo: “Vai por conta da casa”.

Insisto-.

– Mas você não me disse o que pensa de Antares... Por algum tempo o lambe-lambe fica pensativo. Depois responde, vago:

– Ora, é um banco de areia como qualquer outro. Navio encalhado não pode ter luxos...

Apertamo-nos as mãos. Creio que ficamos amigos.

 

O Maj. Vivaldino Brazão, prefeito municipal, convidou-me para almoçar em sua casa. Mai cheguei (um domingo mormacento) o anfitrião me anunciou, iluminado: “Vamos ter uma feijoada completa!” Meu estômago contraiu-se em pânico. Sorri amarelo. Balbuciei um “ahi” de mal fingido entusiasmo.

Residência decorada com um mau gosto de novo-ríco. Espécie de barroco antarense. Sou o único convidado e isso me alarma um pouco, pois sinto que vou ser muito vigiado, muito visado pelas atenções dos donos da casa. Transpiro profusamente. O prefeito tira o casaco e me convida a fazer o mesmo. Faço. Vamos para a mesa e eu enfrento o primeiro prato: uma salada de peixe e batatas coberta por uma grossa camada de -maionese feita em casa e na qual deve ter sido empregada pelo menos uma dúzia de ovos.

D. Solange, a anfitrioa, é uma mulher alta e corpulenta, de cabelos evidentemente oxigenados, rosto pintado corn exagero. É simpática mas me trata com excessiva cerimônia-

O marido toma a palavra e entra numa espécie de delírio autobiográfico, sem a menor provocação de minha parte. Quinto filho duma família de lavradores de Passo Fundo. Aos dezoito anos sentou praça na Brigada Militar do Estado e serviu em Porto Alegre. Breve foi promovido a cabo, depois o. terceiro, segundo e finalmente primeiro-sargento. Fez todos os cursos preparatórios e entrou para a Faculdade de Agronomia e Veterinária, onde obteve com paixão um diploma. Deixou a B. Aí., andou trabalhando em várias estâncias, juntou uns cobres, casou-se com uma moça pobre (o pai de D. Solange era coletor estadual em Osório e tinha oito filhos). Apaixonado pela política, Vivaldino acabou eleito deputado estadual pelo P.S.D. de’ Antares, sob a proteção do Cel. Tibério Vacariano – “é hoje, o amigo vê, tenho a minha casa, a minha posição e, afinal de contas, modéstia à parte, ser prefeito de Antares não é tão pouca coisa...”.

Sacudo a cabeça, concordando. O peixe está excessivamente salgado e a maionese tem vinagre demais. Moscas esvoaçam em torno dos pratos, colam-se no meu rosto, nas minhas mãos. O calor aumenta. Um bochorno adormenta a cidade.

– Um pouco de vinho, doutor? – pergunta a anfitrioa. – É chileno, não é. Vivi?

Aceito o vinho. Fazemos um brinde, batemos os cálices.

O Maj. Vivaldino aparenta uns quarenta e oito anos, estatura abaixo da mediana, duma gordura musculosa muito encontradiça em motoristas de caminhões de carga. Cara carnuda, pele clara, bochechas coradas, bigode castanho, cabelos já ralos, uma voz atenorada e um par de olhos vivos, disseram-me que é homem de grande coragem pessoal. Sabe usar com oportunidade – já notei – o que eu chamaria de “a sua risada de galpão” – uma risada de garganta, em hê aspirado, franca, cascateante, espécie de chocalho folga-zão, com um certo quê de debochado, no sentido em que esta palavra é usada popularmente entre nós.

A senhora do prefeito faz tudo para ser a perfeita dona de casa. Dá ordens à copeira mulata, que está uniformizada Vem a terrina cuja tampa a D. Solange levanta, tendo o cuidado de enristar refinadamente o dedo mínimo quando lhe segura a asa. Um vapor sobe da terrina, daquele nearodaços de lingüiça de porco, de charque e sei lá quê mais. Que fazer? Se como dessa feijoada vou ficar fora de combate durante dois dias no mínimo. Reúno toda a coragem cívica de que disponho, e digo: “A senhora não repare, D. Solange, mas sou um desses infelizes a quem Deus deu uma vesícula preguiçosa. Entre as comidas que meu médico me proíbe está a feijoada. Infelizmente (menti) porque este é o meu prato predileto”.

– Que lastimai – exclamou o anfitrião. – Mas coma um pouquinho só para provar, professor. Dizem que o que é bom nunca faz mal. (De novo a risadinha de galpão.)

– Vou mandar lhe fazer um bife na chapa, doutor – diz D. Solange. – Bem passado, mal passado ou ao ponto!

– Não se incomode – replico. – Vou comer arroz com um pouco de caldo da feijoada.

Mas o bife vem em poucos minutos. O prefeito felizmente esquece a minha presença por alguns instantes e se põe a comer feijoada com o belo e saudável apetite de quem deixou lá fora o seu caminhão carregado de madeira, após uma viagem de seis horas ininterruptas.

– Se o Vivaldino me tivesse dito que o senhor não podia comer feijoada – queixa-se D. Solange, segurando o seu garfo com o mindinho sempre em riste – eu tinha mandado fazer uma galinhazinha com ervilhas ou um pato com maçã.

– Ora, D. Solange, o bife está excelente. E o que importa mesmo é a companhia.

– Por falar em companhia – diz o prefeito, com o bigode reluzente de caldo de feijoada – a prefeitura está pensando em contratar os serviços duma firma...

E entra na descrição dum interminável projeto de melhoramentos urbanos ao qual não presto a menor atenção porque a cabeça começa a me doer e latejar. Sinto o suor escorrer-me em verdadeiros rios pelas “bacias” tropicais de meu peito e das minhas costas.

Durante cerca de trinta minutos o prefeito de Antares enumera as boas coisas que sua administração tem feito e está fazendo na cidade. Compreendo, então, que o homem está tentando influenciar o diretor do projeto de amostragem, e talvez candidatando-se a personagem dessa espécie de romance coletivo para o qual a minha equipe está começando a colher dados.

Vivaldino Brazão só se cala quando vem a sobremesa.

A Solange é uma doceira de mão cheia – diz, esfregando as mãos, e com os olhinhos animados duma gula meio infantil.

Papos-de-anjo nadam em calda espessa, crivados de cravos. Os doces de laranja lembram dorsos de elefantes. Os quindins são dum amarelo de Van Gogh nos seus dias de maior alucinação. E a criada traz um flan moreno feito com leite condensado.

– Não me diga que também não come doce! – exclama o major.

Sirvo-me dum quindim. Depois da sobremesa o dono da casa me diz:

– Agora vou lhe mostrar uma coisa. Já lhe contaram que sou um orquidófilo amador?

Respondo que não. Levantamo-nos. O major me toma do braço e me leva para o seu orquidário, um pavilhão de teto abobadado e paredes de vidro, nos fundos da casa. Vejo orquídeas em profusão, em vasos, em cima de prateleiras, ou pendentes do teto. Vivaldino parece um sacerdote na sua catedral. O homem que devorou uma tonelada de feijoada e que ainda tem partículas de quindins e papos-de-anjo no bigode agora se transfigura, como um místico, e vai me mostrando as suas orquídeas mais raras, como quem mostra relíquias sagradas. Fala em voz baixa, como temendo despertar suas flores desta sesta de verão. “Passo aqui as tardes de sábado e os domingos inteiros, fazendo os meus enxertos, meus cruzamentos. A coisa é mesmo que um jogo. A gente fica curioso para ver o resultado, a ‘cara’ com que a nova flor vai sair. Olhe esta aqui. E um exemplar rarís-simo. Me custou um dinheirão. Sabe donde veio? Da índia. Sim senhor, da Índia. Já empatei uma fortuna neste orquidário. A Solange às vezes me pergunta que lucro tiro com estas orquídeas. Respondo que o lucro é o meu prazer. Uns fazem versos. Outros pintam. Outros compõem música. Eu

coleciono orquídeas, brinco com elas, faço esses cruzamentos. . “

Estou tão surpreso que não sei que dizer. “O meu sonho, professor” – continua o prefeito de Antares – “o meu ideal é visitar a Colômbia e o Himalaia, que são os lugares do mundo onde çxiste a maior variedade de orquídeas.” Muda de tom: “O Prof. Libindo me garante que a palavra orquídea vem do grego e significa testículo. Ë verdade mesmo?” Respondo que é. Vivaldino exclama: “Que barbaridade! Uma flor tão delicada com um nome dessesl”

O orquidófilo amador me conduz para um outro setor de seu orquidário. “Aqui estão as espécies brasileiras. Aquela ali é uma catléia. A outra, uma léliã. A seguinte... não, a outra... essa! É a brassavola, conhecida popularmente como ‘rabo-de-rato’. Esta aqui é a ‘rabo-de-tatu, mas o nome científico dela é cyrtopodium. Ah! Veja ali aquela outra beleza! Nome científico oncidium, mas prefiro o popular: ‘chuva-de-ouro’. Pois, amigo Terra, este orquidário é a minha vida. Não tenho filhos. Cá para nós, confidencialmente, o Solange tem ùtero infantil. ]á levei-a aos melhores médicos de Buenos Aires. Não tem remédio. Então, como compensação, faço as minhas orquídeas terem filhos, promovo casamentos entre elas. Sou avô de quase todas estas flores que o amigo está vendo aquir

 

Visito com Xisto a redação e as oficinas de A Verdade. O diretor do jornal é um tipo curioso. Dá uma impressão de fluidez, é um homem que, como os líquidos, toma a forma do vaso que os contém, isto é, da pessoa com quem fala ou a quem serve. Meia-idade, alto (em termos brasileiros) moreno, calvo, pele oleosa, vaselina na voz, nos gestos e nas idéias. Sua alcunha na cidade é Lucas Lesma porque – explicam – a lesma é um animal capaz de arrastar-se sobre o fio duma navalha sem se cortar e sem cair para um lado nem vara outro. Conta-se aue Lucas F aia tem vassado avida a rastejar incólume sobre o gume da espada afiadíssi-jna da política e de mil outras contendas municipais. “Um molusco” – dizem os seus inimigos. “Um espírito conciliador” – corrigem os seus amigos. “Um puíhal” – opina Barcelona, agudo como a sua sovela de sapateiro.

Lucas recebe-nos festivamente, com os maiores elogios à nossa equipe e ao “trabalho de beneditinos” que estamos realizando, etc... etc...

Mostra-nos a sua linotipo nova, a sua impressora plana e apresenta-nos “o seu braço direito e o seu braço esquerdo”. O direito é o Ferreirinha, “pau para toda obra”, e que exerce as funções de secretário-geral, redator, revisor e, quando necessário, paginador. É um homenzinho franzino, gris, angu-loso e asmàtico que ganha um salário de miséria.

O “braço sinistro” de Lucas é o “príncipe” do jornal, um dos rapazes.mais adulados da cidade. Chama-se Vitorio Natal e é cronista social. Sua crônica diária, a Passarela, é geralmente muito lida e apreciada. As mulheres do café society local enchem o colunista de presentes e mimos: gravatas, perfumes franceses, abotoaduras de punho, pratos de doce, camisas, calças, sapatos... Seu telefone é o mais ativo da redação. Funciona o dia inteiro. “Olha, Vitorio, tu sabes que vamos a Buenos Aires este mês fazer compras? Pois é. Se quiseres dar uma noticiazinha...” – “Voltei ontem do Rio e comprei dois modelos bacanas do Dener.” – “Vamos receber amanhã para jantar aqui em casa o Embaixador Gouvea. Conheces? Te esperamos às oito e meia. Trajo de passeio, mas escuro.” Vitorio, que me parece um sujeito inteligente e malicioso, diverte-se com as damas locais. Todos os anos seleciona as Dez Mais Elegantes da sociedade antarense e organiza também um concurso para eleger “o Brotinho do Ano”.

Tem gestos adamados e usa calças Lee apertadas que lhe modelam as nádegas redondas e inquietas. Conta-nos: Quando está se aproximando a data em que escolho ‘as Oez Mais’, começo a receber dessas grã-finas insinuações Pelo telefone ou em bilhetinhos... e presentinhos, docinhos, o diabo! É uma graça! Quando o jornal publica a minha lis-ta das ‘Dez’, só falta as escolhidas me botarem no colo e me beijocarem. Sou o maior! As não escolhidas me viram a cara na rua, me cortam o cumprimento, me mandam cartas anônimas, um inferno. Mas eu me divirto. Porque am dia elas voltam às boas e o carrossel continua a girar, porque elas precisam de mim. Umas ridículas!”

Pergunto-lhe que pensa de Antares e ele me responde com uma de suas rabanadas:

– Olha, filho, isto aqui é pura várzea. Gente sem classe. Temos uns meninos que estudam em Porto Alegre ou São Paulo, bebem uísque Chivas Regai, dizem que lêem Proust e Kafka, têm carros ingleses ou alemães e vão de vez em quando a Buenos Aires. O resto (perdoem a minha cadelice), o resto é pecuário.

O cronista tem preso ao pescoço, por uma corrente dourada, uma medalha de metal com o seu símbolo astroló-gico, o escorpião. Percebendo a direção de meu olhar, ele pega a medalha e diz:

– É o meu signo. Assino a minha coluna com o pseudônimo de Scorpio. Dizem que sou venenoso.

Xisto se abre num sorriso moleque:

E tu sabes onde o escorpião guarda o veneno1} – pergunta.

O cronista responde rápido:

– No rabo. Tu deves saber tão bem como eu porque também és escorpião.

– Mas macho – retruca o meu amigo. Vitorio solta uma risadinha musical:

– Nunca se sabe, meu querido, nunca se sabe. E sempre é tempo pra mudar cuando Ia dicha es buena.

O Ferreirinha lança um olhar enviesado para o cronista social, e julgo ver um ódio assassino em seus olhos levemente estrábicos.

Quando saímos da redação, Scorpio de súbito me aperta o braço.

– Olhe só aquela morena...

Olho na direção que ele me indica. Uma vistosa fêmea está descendo de seu carro para a calçada. Pele creme, cabelos muito negros, e os olhos (percebo quando passa a dois passos de mim) verdes. “Que mulher aço!” – murmura Xisto. E ficamos os quatro ali parados a olhar para a morena que se afasta rebolando as ancas e – aposto! – consciente de que a estamos observando. “Quem é? – pergunto.

– Essa mulata – diz Scorpio – não me dá confiança. Não lê a minha coluna. Também... não sabe português.

– Mas quem é?

– Chama-se Dominique, é haitiana, casada com M. Du-plessis, gerente da Cia. Franco-Brasileira de Lãs.

Penso no estudo que Moreau de St. Méry, escritor francês do século xvni, fez da mistura de sangue europeu e africano no Haiti e concluo que acabo de ver o que ele chama de sang-mêlé, isto é, uma mulher com um oitavo de sangue negro.

– Sabe da melhor? – pergunta-me o cronista social. – Um dia essa senhora quis porque quis ver uma sessão de macumba aqui em Antares. O marido relutou mas acabou indo. Lá pelas tantas, excitada pelos cantos e pelo batuque, Mme Duplessis tirou os sapatos, soltou os cabelos, entrou na roda e, menino, foi um escândalo, o santo desceu sobre a haitiana e ela começou a gritar, a estrebuchar e a tirar a roupa... Se o marido não interviesse a tempo e não arrastasse a bichinha para fora, ela acabava nuinha no terreiro. Depois disso a “melhor sociedade local” isolou a crioula.

E você contou essa estória na sua coluna? – perguntou Xisto.

– Tentei, mas aqui o meu chefe não deixou sair a notinha.

Lucas resmungou:

– Pois sim que eu ia perder os anúncios da Franco-Brasileira!

 

Descobri ontem que já conhecia (como se conhece uma figura de lenda) o morador do andar superior do sobradinho de azulejos da Praça da República, o “maestro” Menandro Olinda. Há vários anos, quando eu era ainda estudante universitário e costumava visitar sanatórios vara doentes mentais, fiz boas relações com um conhecido psiquiatra, que um dia me mostrou a singular criatura que passeava sozinha, falando consigo mesma, pelos jardins da instituição, e tocando algo com suas mãos longas num piano invisível. O médico me contou – pedindo-me a máxima reserva – o caso desse paciente, cujo nome não me quis revelar, mas que mais tarde vim a descobrir.

Se algum dia alguém escrever a história do Teatro São Pedro, de Porto Alegre, desde a sua inauguração até aos nossos dias, certamente verá na noite da estréia do pianista Menandro Olinda um dos seus episódios mais dramáticos. E agora aqui em Antares vou anotando as coisas que me contam sobre esse solitário. Quem me fala dele com conhecimento de causa é ]esualdo Aspromonte, proprietário da bar-bearia Bela Sicilia, instalada no andar térreo do sobradinho. Outro que também me fornece subsídios preciosos a respeito é o sapateiro Barcelona, verdadeira enciclopédia de conhecimentos antarenses passados, presentes e principalmente secretos. Preencho as lacunas da estória usando a imaginação, mas com rédea curta.

Filho único e serôdio dum casal da classe média. O pai vivia do arrendamento de um campo seu. A mãe, uma rígida professora pública. Ele manso e terno, desses tipos que vivem em surdina. Ela uma disciplinadora autoritária e quase uma fanática religiosa. Ambos apaixonados pelo filho.

Desde os seis anos Menandro revelou grande talento pianistico. Quando completou o oitavo aniversário, um professor de música local declarou-o excepcional e começou a dar-lhe lições de piano. Quando o aluno completou quatorze anos o mestre antarense aconselhou os Olindas a mandarem o filho estudar em Porto Alegre. O casal mudou-se para a capital do Estado e matriculou o rapaz no Conservatório de Música. Um dia o diretor do Conservatório aconselhou os Olindas a levarem o “prodígio” – então com dezoito anos – para aperfeiçoar-se com um grande mestre, em Buenos Aires. O pai de Menandro vendeu o seu campo para apurar o dinheiro de que necessitava para as despesas de viagem e a permanência no estrangeiro. E assim passaram os três cerca de cinco anos na capital da Argentina.

Finalmente, com vinte e três anos completos, Menan-dro preparou-se para o seu concerto de estréia no Teatro São Pedro de Porto Alegre. Seu forte eram os românticos. Seu preferido, Beethoven. Seu cavalo de batalha, a Appassionata. Durante um ano inteiro estudou exaustivamente o seu programa, fechado em casa, a mãe sentada numa cadeira perto do piano, como um cão de fila. Quando ele parava, cansado, ela insistia: “Outra vez! Vamos, Nandinho!” O rapaz não tinha amigos. À noitinha costumava sair sozinho a caminhar pela praça e a conversar com seus fantasmas. No dia seguinte, às seis da manhã, a mãe o despertava, servia-lhe o café e dizia: “Para o piano!” Muitos dos vizinhos costumavam despertar todas as manhãs ao som de estudos de Chopin ou mesmo dos belos acordes iniciais da Appassionata. O barbeiro Jesualdo, que tem bom ouvido, já sabia de cor – podia até assobiar – trechos do programa do virtuoso, composto de estudos, prelúdios e noturnos de Chopin, sonatas de Schubert e Schumann e da Appassionata. A um repòrter de A Verdade que então o entrevistou, Me-nandro Olinda confiou seus planos. Faria a sua estréia no São Pedro em setembro de 1935 – durante as comemorações do Centenário da Guerra dos Farrapos – numa homenagem ao velho teatro, à capital de seu Estado e à memória do Gen. Bento Gonçalves com o qual (sua mãe lhe assegurava) os Olindas tinham um remoto mas honroso parentesco. E depois, maestro? Bom, depois ele daria um concerto no Rio, outro em Montevidéu e outro em Buenos Aires. Começaria então a ser conhecido mundialmente. A sua grande meta eram os grandes centros da Europa: Paris, Roma, Viena, Londres, Amsterdam...

A imprensa de Porto Alegre começava já a escrever sobre o “novo gênio musical gaúcho”, o jovem Paderewsky (segundo um jornal) o novo Brailovsky (segundo outro). Um cronista de arte, a quem Menandro deu uma audição priva-<fa da Appassionata, declarou que sua interpretação dessa Peça de Beethoven era tão perfeita quanto a de Backhaus.

Chegou a noite do concerto de estréia. (Visualizo a ce-na.) O São Pedro completamente lotado, com cadeiras ex-tras colocadas nos corredores da platéia. O Gen. Flores da Cunha e outros membros do seu governo no camarote oficial. O artista, envergando pela primeira vez uma casaca feita pelo melhor alfaiate da cidade, entra no palco, nervosíssimo, as mãos geladas e úmidas dum suor frio que também lhe goteja da testa, lhe escorre pelo rosto e ao longo da espinha. É recebido com fortes aplausos. Senta-se ao piano, ajeita o banco, enxuga as mãos com um lenço, espera que os aplausos cessem e os retardatários se acomodem nos seus lugares. Cerra os olhos por alguns segundos, e quando os abre avista a sua mãe sentada numa cadeira, nos bastidores, à sua frente, bem como nos tempos em que ele era adolescente e ela o obrigava a tocar escalas a tarde inteira, sob sua vigilância implacável.

Menandro sente de súbito a memória bloqueada, como se nunca em sua vida tivesse tocado o primeiro número daquele programa – um estudo de Chopin. Ele é agora um menino de treze anos, está fechado no seu quarto, ouve passos no corredor e estremece, corre para a porta a fim de certificar-se de que está realmente fechada a chave.

Começa a tocar, mas tão afobado, que não consegue interpretar o estudo com a pureza habitual. Quando dá o último acorde, os aplausos são fracos. Menandro olha de novo para a mãe. “As escalas, Nandinhol Depois podes ir brincar com as tuas bonecas. As escalas. Não! Dal capo... Isso!”

Interpreta Schumann um pouco melhor do que tocou o primeiro número. Os aplausos continuam frios. O coração de Menandro bate descompassado, um espasmo cerra-lhe a garganta. Que se estará passando com os seus dedos, com as suas mãos, com os seus pulsos? Chega ao fim da primeira parte do programa e se retira do palco, não com o. dignidade habitual, mas depressa, quase a correr, como quem foge. Seu médico vai procurá-lo no camarim, dá-lhe um calmante. Mas lá está a sua mãe, abrindo a porta do quarto do menino solitário: “Vamos, Nandinho. Está na hora da missa”. Cruzam a praça. O pai, que caminha encur-vado e devagar, arrastando os pés, fica dois passos para trás. A mãe pergunta: “Ontem confessaste todos os teus pecados ao vigário?” “Confessei, mamãe.” “Todos mesmo? Ele sente um calorão nas orelhas e no pescoço, um formigueiro no corpo. “Quem toma comunhão sem estar limpo de pecados, meu filho, vai para o inferno.”

Menandro agora ali no camarim decide cancelar o resto do concerto. “Devolvam ao público o dinheiro dos ingressos! Façam o que entenderem, mas eu não vou tocar mais!” O empresário lhe replica que isso é impossível, que ele, Menandro, tem de continuar, que tudo vai sair bem... O pianista ergue-se, trêmulo, encaminha-se para o palco, onde é recebido com raros aplausos. Torna a sentar-se ao piano. Olha para os bastidores e lá está sua mãe, que lhe faz sinais com’a cabeça, tentando encorajá-lo.

Uma sonatina de Schubert, clara e alegre. Ele a executa passavelmente bem e isso lhe dá um pouco de coragem. Mas agora vem a Appassionata! Menandro volta a cabeça na direção da platéia e sente uma vertigem. Depois olha para as próprias mãos já pousadas sobre o teclado. Mas naquele dia ele tinha esquecido de fechar a porta, e sua mãe usava em casa pantufas de lã... A porta se abriu de repente. “Minha Nossa Senhora! O que é que estás fazendo, meu fi-Iho7 Que horror! Que vergonha! Que pecado! Deus vai te castigar, fazer secar esses dedos, paralisar essas mãos!” E ele se revolvia na cama, a sua seiva a esguichar-lhe do corpo num estertor de prazer misturado com susto e vergonha.

A mãe desatou num choro convulsivo: “O meu filho! O meu filhinho que eu pensei que era inocente e puro! Ai que vergonha! Deus vai te castigar!” Fez meia volta e se foi batendo com a porta. E ele, Menandro, rompeu a chorar, pensou em suicidar-se, fugir de casa... Como ia ter coragem de encarar de novo a mãe... o pai?

O público espera, impaciente. Menandro ataca a Appassionata. Sente, porém, que suas. mãos estão agora paralisadas, que seus dedos não obedecem ao seu cérebro. Ergue-se de súbito, derrubando a banqueta, e sai quase a correr do palco e no camarim põe-se a chorar, a soluçar e a dizer incoerências. Dois dias depois, a conselho do médico, os pais 0 internaram num sanatório para doenças mentais, onde ete permaneceu três anos. Durante esse tempo a sua mãe “morreu. O pai continuou em Porto Alegre, visitava-o todas as semanas, conversavam sentados num banco do jardim do sanatório, falavam em flores, na casa de Antares, e Menandro jamais perguntava pela mãe, cujo falecimento ignorava.

Quando o médico lhe deu alta, ele voltou para Antares, em companhia do pai. Lá estava, na sua sala, o piano que ele não ousou abrir por muito tempo. Ninguém na cidade lhe falava no concerto nem no fato de ele ter passado todos aqueles anos num hospício.

Seu pai morreu em 1942. A casa ainda lhe pertencia, de sorte que Menandro a herdou. Começou a dar lições de piano e passou a viver disso e do aluguel do andar térreo de seu sobradinho. Tornou-se um dos tipos populares da cidade. Nunca, porém, esqueceu o fracasso de seu concerto de estréia. Continuou a estudar piano, preparando a sua volta.

É um homem de ordinário silencioso e retraído, mas pode dum momento para outro tornar-se loquaz e gregario: confia à primeira pessoa pue encontra o seu projeto de fazer ainda uma carreira de concertista, “retornar aos palcos do mundo”, honrar o nome de Antares e do Brasil. Alguns o escutam com paciência e o tratam até com bondade. A maioria, porém, foge dele. Muitos o ridicularizam. E, corno nos velhos tempos, ainda hoje, à tardinha, o professor de piano faz a sua caminhada solitária pela praça, olha os passarinïios, contempla as flores, troca duas palavras com o fotógrafo ambulante, entra na igreja, ajoelha-se, reza, torna a sair e volta para casa.

 

Quem me leva à residência de Menandro Olinda é o Pe Pedro-Paulo. Disse ao maestro que eu queria conhecê-lo pessoalmente e o pobre homem ficou lisonjeado. Subimos o velha e estreita escada que cheira a mofo de porão, e cujos degraus rangem ao peso dos que sobem ou descem. O professor nos recebe à sua porta, abraça-me como a um velho amigo, mas quando lhe quero apertar a mão ele sacode a cabeça negativamente: “Desculpe, mas não costumo apertar a mão de ninguém. Tenho de poupá-las. São a minha fortuna. Com elas quero ainda conquistar o mundo”. Dá-me outro abraço apertado do qual suas mãos não participam. “Entrem. Sentem-se. Esta é a vossa casa. Desculpem a desordem. É a caverna dum eremita.”

Curioso. Conheço esta sala. Talvez duma peça de teatro. Ou dum romance. Cheiro de bolor e tempo. -O tapete, de tipo persa, muito poído e desbotado. Móveis antigos. O piano de cauda a um canto. Retratos de gente morta nas paredes. Um par de daguerreótipos. A máscara de gesso de Beethoven, cópia da de bronze que está na escultura de Fernando Corona, na Praça da Matriz de Porto Alegre. Poeira nos móveis. Num ângulo da sala, uma pilha de partituras para piano. Uma estante de tipo art nouveau com livros. Um diva com uma coberta de veludo grená. Velhas cadeiras estofadas de brocado cor de ouro velho, mas já muito seboso e esfiapado.

– Venha ver a vista aqui da sacada! – convida-me o professor. Aproximo-me dele. Um ranço de suor muitas vezes dormido exala-se do corpo deste homem alto e descarnado, de rosto longo, testa olímpica e pele alva. Seus cabelos, com grandes entradas, são ralos, já meio grisalhos, compridos e esfarripados.

Avisto a Praça da República, as paineiras floridas, as torres da Matriz, gente andando pelas calçadas, namorados sentados nos bancos, o fotógrafo lambe-lambe postado perto do coreto.

Voltamos para a sala. Os olhos do professor estão fitos em. mim, como se ele estivesse procurando avaliar-me, tentando descobrir que espécie de homem sou.

– Então – diz – o senhor e seus alunos estão estudando a nossa cidade e o nosso povo, hem? Muito bem. Muito bem. Muito bem. Admiro a cultura. Mas acho que não pode haver cultura onde não houver também música, a rainha das artes.

– Professor, o senhor será também entrevistado opor-tunamente. Esta visita é (digamos assim) social.

– Muito obrigado, muito obrigado. Sou um homem pouco visitado. Todo mundo me evita nesta terra. Aqui o nosso amigo o Pe. Pedro-Paulo – e ao pronunciar estas palavras ele pousa de leve as mãos nos ombros do capelão da Vila Operária – é dos poucos que têm paciência comigo.

– Ora – protesta o padre. – Por que paciência? Sou seu amigo.

– Não sou tão lunático – diz o maestro – que não perceba que o povo de Antares me èonsidera um... lunático. Sinto isso no jeito como me olham e falam comigo. Tenho um ouvido muito agudo, ouço até os cochichos das pessoas quando passo. Riem-se de mim. Trocam dichotes a meu respeito.

Pedro-Paulo e eu estamos sentados, mas o professor caminha na nossa frente, dum lado para outro, em passadas largas e pausadas, as mãos “guardadas” nos bolsos do casaco.

– Mantenho cá minhas conversas com Beethoven. Um diálogo muito antigo, que começou na minha adolescência. Ele era também um solitário. E dizem que intratável. Mas eu não sou intratável, sou, padre? Mas... li tudo quanto se tem escrito sobre o Mestre. Conheço a vida dele melhor do que a minha própria. O senhor não vai acreditar, doutor, mas uma das biografias de Beethoven que li me impressionou tanto, que quando cheguei ao capítulo em que ele percebe que está surdo (dou-lhe minha palavra de honra como isto é verdade!) passei quase um mês surdo também. Tive de consultar um especialista. Era surdez completa. Não podia nem ouvir as coisas que eu mesmo tocava nesse piano. Os senhores acreditam?

Encara-me:

– O senhor naturalmente conhece o meu drama... Fico sem saber que dizer, mas Menandro Olinda prossegue:

– Tive uma crise nervosa durante o meu primeiro concerto. Minhas mãos ficaram de repente paralisadas. Coisa puramente psíquica. O doutor me explicou que foi um trauma de infância. Imagine, em pleno palco do Teatro São Pedro, na noite de meu primeiro concerto l Praga da minha mãe. Bom, mas isso não vem ao caso. O importante é que estou me preparando para uma volta. Para um coming back, como se diz em inglês, um retour, compreende?

Pedro-Paulo e eu nos entreolhamos furtivamente. Pergunto:

– Quando pretende dar o seu próximo concerto?

– Tem de ser o ano que vem, o mais tardar. Já entrei na casa dos cinqüenta... bom, mas isso não é velhice quando a gente pensa num Rubinstein. Estudo dez horas por dia. Minha pièce de résistence é a Appassionata. A paixão da minha vida. Quero triunfar exatamente no mesmo palco em que fracassei. E com a mesma peça. Tenho escrito várias cartas ao administrador do São Pedro, pedindo uma data para a minha rentrée. Não me responde. Escrevi também ao diretor da Escola de Belas-Artes. Ninguém responde. Neste país ninguém escreve cartas, depois todos culpam o serviço postal. Mas vou mudar o programa. Incluir alguma coisa do nosso Villa-Lobos, por exemplo. Mas insisto na Appassionata, que vai ser o fecho de ouro do concerto. Questão de amor-próprio. Sim, e de amor à sonata também.

Faz-se um silêncio. Sinto-me constrangido, com uma grande pena do pobre homem. Só agora atento bem nas suas mãos. Em geral um ser humano possui mãos, pés, cabeça, braços. No caso de Menandro Olinda tem-se a impressão de que as mãos são partes móveis de sua anatomia: são objetos que ele “carrega” consigo, com o maior cuidado, como jóias que à noite, antes de ir para a cama, guarda num estojo.

– Se eu não conseguir voltar – diz ele com voz fosca

– minha vida está acabada, sem sentido. – Encara-me. – Doutor, isto é uma cidade sem alma, sem música. Ninguém gosta da boa música em Antares. Ponha isso no seu estudo.

– Faz um silêncio, olha para as próprias mãos e murmura: – Vou dar-lhes a oportunidade de se reabilitarem.

– Para Napoleão Bonaparte – diz o Pe. Pedro-Paulo

– a música não passava dum ruído como outro qualquer.

– Estão vendo? Isso prova a minha velha teoria. Quem não gosta de música não pode ter bom coração. Napoleão não gostava... e era um paranóico, um assassino.

Como estou examinando com curiosidade os daguerreó-tipos, Menandro resolve mostrar-me fotografias de seus pais, num álbum com capa de v eludo e fecho prateado.

Essa é a minha mãe quando solteira... – Eu volto lentamente as páginas de papelão onde estão colados retratos antigos em tom de sépia. – Este é o meu velho. Ao lado dele, a minha mãe de novo, logo depois de casada. Aqui está ela quando grávida. O senhor deve estar notando que os olhos de todas as fotografias da minha genitora estão furados. Eu lhe explico. Foi uma travessura minha quando tinha treze anos. Peguei um prego... bom, mas isso não vem ao caso. Era uma bela mulher, não?

 

Visitei a Matriz, na esperança de lá ver alguma imagem ou outra qualquer peça de escultura feita nas reduções jesuíticas. Não encontrei nada. O que não foi trocado ou vendido – dizem – foi roubado. Uma pena!

Quando o vigário me avistou dentro do templo, veio ao meu encontro, levou-me à casa paroquial e aproveitou a oportunidade para me mostrar os seus “estudos históricos”, escritos a mão com pena de aço em papel almaço. Leu-me trechos de seus ensaios biográficos sobre figuras históricas do Rio Grande do Sul. Tudo muito ingênuo e convencional.

Quando deixei a igreja o velho me acompanhou até ao centro da praça. É um homem de setenta e poucos anos, embora aparente mais idade na sua magreza pálida, nos olhos líquidos, nas costas encurvadas e no caminhar hesitante. Apóia-se no meu braço, faz perguntas sobre meus títulos acadêmicos, o trabalho da minha equipe, e quer saber da “verdadeira” finalidade do nosso estudo. Falamos depois no problema do mal e do pecado no mundo moderno, e na situação atual da Igreja Católica. O P.« Gerôncio diz que respeita e estima João XXIII – um verdadeiro candidato à canonização – mas acha (“Deus me perdoe!”) que no seu pontificado a Igreja avançou demais em suas reformas.

– Meu caro professor – diz o pároco com a sua voz débil – igreja sem latim, sem o velho ritual e com todas essas novidades... padre sem batina, música profana. .. não, não é mais a Igreja de Cristo. Vamos acabar na nudez seca do protestantismo. E é uma tristeza! O Pe. Pedro-Paulo (o senhor o conhece porque já os vi juntos) é desses sacerdotes jovens, “pra frente”, como diz o vulgo. Imagine, permite que uns meninos boêmios e esquisitos toquevi música de jazz nas suas missas. Pois é. Onde vamos parar com essas modernices? E cá para nós (conto com a sua discrição) para o meu gosto, o Pe. Pedro-Paulo preocupa-se demais com política. Já leu até Marx e Lénine, isso para não falar em outros comunistas ateus. Ë um bom moço, reconheço, dedicado à sua paróquia, muito querido dos operários, não nego. Mas acho que está deslumbrado com todas essas reformas da nossa Madre Igreja. Agora me diga, doutor, será que. ele e os outros que pensam do mesmo jeito estão certos e eu errado, por velho e casmurro? Não sei. Não sei.

Falamos na “dissolução dos costumes” e eu lhe digo que nossa equipe está estudando também esse fenômeno em Antares.

– O problema é universal – murmura o pároco. – A coisa vem de Sodoma e Gomorra. Qual! Vem de mais longe ainda. Onde está o homem está o diabo e o pecado. Mas reconheço que tem havido períodos da História, por exemplo, a Idade Média, em que as criaturas se preocupavam mais com o destino da sua alma e com o temor e o respeito ao Criador.

– Acha Antares em matéria de imoralidade pior que outras comunidades que conhece? – indago.

– Ao contrário, acho melhor que muitas. Nasci em São Borja, depois que fui ordenado o meu bispo me mandou para cá. Tenho passado longos períodos fora daqui, em outras paróquias, tanto na zona da campanha como na da serra. Mas volto sempre para cá.

Estávamos agora no centro da praça, junto do coreto. O velho apontou para as bandas do nascente:

– A minha próxima paróquia será a que está lá em cima da coxilha, professor. Lá repousarão os meus restos mortais. E então a Outra Vida, a vida de verdade, começarápara a minha alma. – Olhou-me nos olhos com uma expressão de desconfiança. – O senhor parece que não é um crente...

– Não, não sou, padre.

Bateu-me afetuosamente no braço e sussurrou:

– Vou rezar pelo senhor. Seja caridoso para com os antarenses nesse seu estudo. Ninguém é perfeito.

Apertou-me a mão longamente, fez meia volta e se foi, de volta para a casa paroquial.

 

Travei conhecimento com mais uma “personagem”, o Prof. Libindo Olivares, diretor do Ginásio Nacional. Tem fama de grande helenista, latinista, matemático e filósofo. Uma espécie de sábio local. Cinqüentão, alto e magro como um Quixote sem bigodes nem barbicha, mas já com uma bar-riguinha volumosa que dá a impressão de que não foi “projetada” para o seu arcabouço de magro. Depreendo de nossa conversa em sua casa, ontem, e do que já me contaram dele, que se trata dum mitômano cujas mentiras tendem sempre a um auto-engrandecimento social e principalmente cultural. Gosta que os otitros acreditem que é íntimo de celebridades mundiais. Afirma ter correspondência com Jean-Paul Sartre de quem – faz questão de afirmar – diverge política e filosoficamente, “o que não prejudica em nada a nossa amizade e mútua admiração”. Trocou cartas com João XXIII. François Mauriac é seu amigo do peito e começa sempre as suas cartas com um mon très cher ami Libindo. Quando alguém pede para ver qualquer dessas cartas, o Prof. Olivares alega que elas estão guardadas na caixa-forte dum banco local ou nas mãos dum encadernador, em Porto Alegre, que as está enfeixando todas num volume com capei de couro e letras de ouro.

O professor é solteirão, vive numa pequena casa da Rua das Missões. Existem suspeitas quanto à sua heteros-sexualidade.

Visitei-o anteontem à tardinha. Ele me mostrou seus livros e me expôs a “sua filosofia” – curiosa mescla de neopositivismo, neo-hegelianismo, e neoplatonismo, se tal “neo-coquetel” é possível e viável.

– Quase todas as noites – contou-me ele – tenho aqui a meus pés dezenas de rapazes. São meus discípulos. Vêm pedir-me conselhos, orientação cultural, fazer-me confidencias. E eu lhes empresto livros, dou-lhes idéias... Gosto de viver entre os moços. São argila que, devidamente trabalhada, poderá transformar-se um dia em urnas, vasos e ânfo-ras de grande beleza.

– Professor, o senhor sabe que estamos fazendo um levantamento social, político e econômico de Antares... não?

– Sei, mas permita-me dizer que não acredito muito nesse sistema de amostragem. Nem na econometria.

– Respeito a sua opinião, mas gostaríamos de ter um de nossos questionários preenchidos pelo senhor.

– Poderei fazer isso, não me custa. Acontece, porém, que não sou uma pessoa representativa de nenhum grupo. Sou aqui considerado um. .. como direi? Um original, um solitário, um homem de idéias próprias.

– De acordo – respondo. – Estive olhando as lombadas de seus livros e estou admirado ante o ecletismo de suas leituras. Aí nessas prateleiras vejo até obras sobre ocultismo, cabala, zen-budismo, parapsicologia.

Sua boca rasgada e de desenho incerto move-se num sorriso de satisfação.

– Sou o que o vulgo chama “um curioso”. Homo sum; nihil humani a me alienum puto. Aqui muito em segredo, tenho feito experiências com isso que os americanos conhecem pelas iniciais E.S.P.: percepção extra-sensorial.

– Com bons resultados?

– Excelentes!

– Publicou alguma monografia a respeito?

– Não, meu caro. Pouca gente sabe que me dedico a essas coisas. Nesta terra tudo que sai da área católica ou protestante é considerado espiritismo ou macumba. Temo que acabem pensando que sou uma espécie de feiticeiro, reputação péssima para o diretor do Ginásio Nacional. Sobre E.S.P. tenho um livro já pronto, à espera de editor. Como o senhor sabe, o Brasil não tem editores à boa maneira européia. Temos apenas uma indústria de livros, quero dizer, mercadores cujo único objetivo é ganhar dinheiro, jamais ajudar a cultura. Possuo também outras obras inéditas em fundos de gaveta. Um estudo sobre Sócrates, outro sobre o Século de Ouro da Grécia. E um longo ensaio sobre Platão. E por falar em editores, a Livraria Gallimard de Paris me pediu para ver os originais desse meu estudo sobre Platão. E por falar em Gallimard, meu caro Prof. Terra, quando mocinho li Marcel Proust completo. Escrevi-lhe um dia, em francês, uma carta apaixonada de fã e recebi dele uma resposta muito simpática. Pauvre Marcel! O que eu daria para ter podido beijar as mãos que escreveram À la Recherche du Temps Perdu.

Faço as contas mentalmente e apanho o Prof. Libindo numa colossal mentira. Se ele tem apenas cinqüenta anos como diz e aparenta, e se Proust morreu em 1922, o Libin-dinho leu a obra de seu ídolo e lhe escreveu essa carta quando tinha apenas nove anosí

Esta manhã um de meus pesquisadores (22 anos) entrevistou o Prof. Libindo, que o esperou com uma de suas “encenações”. O estudante foi introduzido na casa por um mulatinho efeminado, de grandes olhos brilhantes e negros, que o levou até à porta da casa que dá para um pátio interno. “Não faça barulho, moço, que o patrão está meditando.”

Sentado no chão, de pernas cruzadas à maneira oriental, os braços em xis sobre o peito, Libindo estava imóvel, olhando intensamente para um pessegueiro. O meu colaborador esperou com paciência (contou-me ele) uns bons dez minutos. Por fim tossiu timidamente, Libindo teve um estremecimento e pareceu acordar de seu transe zen-budista, voltou-se brusco para a porta, ergueu-se dizendo: “ah!”, e veio apertar a mão do visitante. Tinha a sua nudez cobertapor um manto branco, possivelmente um lençol. Levou o meu colaborador para a sua sala de visitas, explicando:

– Eu estava tentando identificar-me com o pesseguei-ro ser o pessegueiro, transformar-me nessa árvore, integrar-me na sua natureza.

– Interessante. Conseguiu?

– Quase. Estava na última etapa. A sua tosse me chamou a isto que se convencionou chamar de “realidade”.

– Sinto muito, professor.

– Não tem importância, õ Manezinho! Traga-nos limonadas geladas. Ou o amigo prefere cerveja. .. ou mesmo café? Não? Mas... como eu dizia, é possível pelo método zen-budista a gente identificar-se com as coisas inanimadas. Às pessoas em sua maioria não acreditam nisso. O meu amiguinho acredita?

– Ora, professor, tudo é possível.

– Tenho correspondência com um dos mais notáveis zen-budistas do Japão.

– O senhor sabe japonês?

– Alguma coisa. Correspondemo-nos ora em francês ora em inglês. – Solta uma risada curta. – O homenzi-nho se confessa encantado por trocar cartas com alguém que vive nestes confins do Brasil, numa cidade com nome de estrela.

Apanhou o questionário, leu algumas das perguntas, fazendo de quando em quando “humt e sorrindo só com um canto da boca.

– Esta pergunta sobre religião, meu caro, não pode ser respondida com um sim ou com um não... nem com sinais. Eu teria de escrever um longo ensaio, um livro inteiro para explicar o meu conceito vertical de religião: primeiro definir o vocábulo, depois ir às mais profundas fontes do sentimento religioso. Sou um eclético. Em tudo, sim, não se escandalize, inclusive em sexo. Como moço inteligente que é, o senhor deve já ter lido alguma coisa sobre os andróginos. Nunca leu Platão? Fedro? O Banquete? E o Gorydon de Gide?

Nesse exato momento sentou-se subitamente ao lado do Pesquisador, que, lembrando-se de certas estórias que ouvira sobre o diretor do Ginásio Nacional, achou de bom aviso erguer-se e olhar o relógio:

– Bom, Prof. Libindo. Tenho um compromisso... e o senhor é um homem ocupado. Talvez queira voltar para a sua meditação. Deixo-lhe o questionário... preencha-o quando tiver tempo.

E bateu em retirada.

 

D. Quitéria Campulargo convidou-me para tomar chá na sua mansão. Uma das grandes damas da cidade. Anda aí pelos setenta anos. Baixinha, gordota, pele dum moreno carregado e fosco, parece-se de vulto com a Rainha Vitória. Quanto ao rosto, achatado, miúdo, e de nariz curto, lembra o focinho dum cachorrinho pequinês: não lhe falta nem o ar entre azedo e pugnaz desses pequenos animais. Mas D. Quita – como é conhecida entre os íntimos – começou a falar. Tem uma voz autoritária mas melodiosa, que sabe fazer-se envolvente e aliciante quando ela quer. Não tardei a sentir-me como diante duma das muitas tias que tenho em Rio Pardo e que visito de três em três anos.

D. Quitéria é uma mulher lúcida e bem informada sobre política estadual, nacional e internacional. Tem uma admiração ilimitada pelo Presidente John F. Kennedy, cujo retrato autografado vejo numa moldura de prata em cima dum piano de cauda, a dois passos de onde estou sentado. “Quero bem a esse menino” – diz D. Quita – “como se ele fosse de meu sangue. Quem me dera ele fosse meu genro... pelo menos.” (Contaram-me que esta senhora que tem quatro filhas e nenhum filho, e que detesta os genros, apesar [ou por causa] disso exige que eles vivam, cada qual com sua família, no casarão onde a matriarca dos Campolargos reina despótica.) “Meu consolo são os netos” – exulta ela, quando a criada entra com a bandeja de chá e uns pratos cheios de bolinhos e biscoitos. – “Tenho quinze.” Estremeçon interiormente. Imagino quinze crianças de várias idades correndo e gritando dentro deste casarão, num dia de chuva. “Estão todos agora na estância, onde costumam passar o verão. Sirva-se desses biscoitos. Recomendo-lhe os bolinhos de coalhada. Gosta? Então coma. E uma velha receita de família”

Bolinho de coalhada... Dou uma dentada num deles, mastigo, degusto e então o milagre proustiano da madeleine – que importa seja uma paródia? – se opera. Je portait à mes lèvres une cuillerée du thé où j’avais laissé s’amoller un morceau de madeleine... Certes ce qui palpite ainsi au fond de moi, ce doit être l’image, le souvenir visuel, que, lié à cette saveur, tente la suivre, jusqu’ à moi...

Tenho treze anos, férias de verão, estou orgulhoso porque fiz a minha primeira viagem de trem sozinho. Vim do Rio Pardo a Santa Fé para visitar os meus parentes Terra Cambará. Tia Maria Valéria agora me aparece (onde estava escondido dentro de mim este fantasma magro, de voz seca e olhos de azeviche...).Em que gaveta do meu ser, em que sótão da minha memória inconsciente, em que arca secreta estariam armazenadas, apanhando o pó do tempo e da vida, todas estas lembranças? Mastigo e engulo o bolinho de D. Quita, e imagens do sobrado dos Cambarás me afloram à consciência – cheiro de frituras vindo da cozinha do sobrado, o vulto duma mulher bonita e triste (Sílvia?) casada não me lembro com que parente meu... o bafo de mofo do porão da casa... a estória que alguém (quem?) me contou do cadáver dum recém-nascido, que, durante a revolução de ‘93, teve de ser sepultado na terra do porão porque o Sobrado estava sitiado pelos maragatos... E a velha Maria Valéria dizendo: “Coma mais um bolinho de coalhada, você bem que precisa de mais uns quilos!” E aquela água-furtada onde eu me refugiava às vezes quando me atacava a saudade de casa e um dia atocaiei a bugrinha que fazia a limpeza matinal daquela parte do casarão.

Tenho a impressão de que todas essas imagens com °s respectivos sons, cheiros, impressões táteis me passaram Pela cabeça em poucos segundos.

D. Quita fala então “nas indecências de nossa época”. Está escandalizada e alarmada ante a licenciosidade dos tempos modernos, a rebeldia da juventude, e a expansão da pornografia em revistas, livros, filmes, peças de teatro..,

– Sei que a senhora gosta de ler – digo.

– Muito. Não se ria se eu lhe disser que o romance mais bonito que li em toda a minha vida foi a Joana Eira da Cariota Bronte. Conhece? Uma jóia. Acho que li esse livro umas vinte vezes. Devorei também todo o Walter Scott e o Alexandre Dumas. Nunca suportei o Zola nem o Flaubert. Mas gostava do Tolstoi. Ahi leio também os modernos. Estrangeiros e nacionais, naturalmente.

– Já leu Jorge Amado?

– Por alto. É bandalho e comunista.

E o nosso Erico Veríssimo?

– Nosso? Pode ser seu, meu não é. Li um romance dele que fala a respeito do Rio Grande de antigamente. O Zózimo, meu falecido marido, costumava dizer que por esse livro se via que o autor não conhece direito a vida campei-ra, é “bicho de cidade”. Há uns anos o Veríssimo andou por aqui, a convite dos estudantes, e fez uma conferência no teatro. Fui, porque o Zózimo insistiu. Não gostei, mas podia ter sido pior. Quem vê a cara séria desse homem não é capaz de imaginar as sujeiras e despautérios que ele bota nos livros dele.

– A senhora diria que ele também é comunista?

D. Quitéria, que mastigava uma broinha de milho – e mais que nunca parecia um pequinês – ficou pensativa por um instante.

– O Prof. Libindo costuma dizer que, em matéria de política, o Erico Verissimo é um inocente útil.

Voltamos a falar na dissolução dos costumes.

– Essas idéias modernas me assustam um pouco, mas não sou dessas velhas que vivem dizendo que a gente antiga era toda santa. Se era, como é que o senhor explica todos esses filhos naturais que andam por aí? É que hoje em dia as coisas são feitas às claras, à luz do sol, debaixo do nariz da gente. Essas moças, mesmo em Antares, que é uma cidade pequena, parece que perderam por computo o pudor.

– Sei que a senhora é presidente duma sociedade chamada Legionários da Cruz...

– Sou. Depois que o ]ango Goulart fez esse plebiscito indecente e obrigou o país a voltar ao presidencialismo... e o Comando Geral dos Trabalhadores começou a instigar greves, e esses estudantes esquerdistas da U.N.E., em vez de estudarem, andam por aí viajando para Cuba, para a China Comunista e para os países do outro lado da Cortina de Ferro, aprendendo a técnica de agitação e das guerrilhas, enfim, depois de tudo isso achei que devíamos reagir de algum modo. Todos os dias tapo o nariz e leio nos jornais os discursos e entrevistas do Leonel Brizola, que repete como um disco quebrado essa coisa de remessa dos lucros das empresas estrangeiras, espoliação, reforma agrária, entre-guismo, etcetera e tal... Bom, um dia pensei assim: o povo brasileiro não é de esquerda, mas de centro. Ora, acontece que a maioria de nossa população é acomodatícia, preguiçosa e vai se deixando levar, E no dia em que a gente abrir bem os olhos isto aqui já virou república soviética, o senhor não acha... ou também é da esquerda?

Limito-me a sorrir. E ela continua:

– Vai então convoquei uma reunião de amigas e amigos, pessoas que podiam ajudar no empreendimento. Fizemos depois uma reunião grande, no teatro, com as autoridades, pessoas gradas, etcetera e tal. Mais um pouquinho de chá”?

Aceito. Sirvo-me. Como outro bolinho de coalhada e penso que, daqui a uns anos, quando tornar a sentir este gosto, possivelmente vou me lembrar de D. Quita sentadinha na sua cadeira de balanço, nesta tarde de verão, abanando-se com um leque recendente a sàndalo.

– O senhor não imagina as discussões que houve nessa primeira reunião – diz ela, sorrindo e deixando aparecer por entre os lábios arroxeados um dente pontudo e cor de marfim velho. – Sempre que o nosso juiz de Direito, o Dr. Quintiliano, e o Prof. Libindo se encontram, acabam atracados numa discussão. Não se fumam. Um embirra com o outro e cada qual quer ser mais sabichão e levar sempre a melhor. Não estou aborrecendo o senhor com essas estórias?

– Mas qual, D. Quita! Ao contrário.

– Pois é. Depois que vi todos sentados expus a finalidade da iiossa sociedade... clube, grupo ou coisa que o valha. Fui logo dizendo que não propunha a criação dum centro recreativo, mas duma frente ativa de luta, dum corpo militante para enfrentar não só os pelegos do Jango e do Brizola como também todos os tipos de esquerdismo, viessem de onde viessem...

– Compreendo.

– ... e que a nossa guerra não era só política como religiosa e moral. Precisávamos combater também a dissolução de costumes.

– Como foi recebida a idéia?

– Ora, o senhor sabe como é cidade pequena. A coisa toda fica muito na conversa fiada. Perde-se tempo em detalhes sem importância. Todos aceitaram a minha sugestão para o nome do grupo: Legionários da Cruz. Nosso lema (segundo a proposta não me lembro de quem) devia ser Deus, Pátria e Família... o que não é nenhuma novidade. O Dr. Quintiliano então se levantou e pediu que acrescentássemos Lei e Ordem. O Cel. Tibério pulou e gritou: “E Propriedade!” Vi que ia começar a inana. Ora, o Prof. Li-bindo, que estava esperando uma oportunidade para dar um quinau no juiz, disse com aquele jeitão suficiente dele: “Meu caro magistrado, quem defende a Pátria defende precipuamente a Lei e a Ordem, contidas ambas no vocábulo oceânico Pátria”. (Me lembro direitinho das palavras que ele usou, tenho boa memória.) O Dr. Quintiliano, vermelho como um camarão, não se entregou: “Pois se a coisa é assim” – disse – “bastaria então que no lema dos Legionários da Cruz se falasse apenas em Deus, pois a idéia de Deus, na sua universalidade incomensurável, abrange tudo: Ele próprio, as suas leis, a sua ordem cósmica e moral, a Pátria, a Família, a Humanidade”. E o Tibério berrou de novo: “E a Propriedadef

D. Quitéria soltou uma risadinha que lhe saiu da boca com um borrifo de broinha esfarinhada:

Depositei minha taça vazia em cima da mesinha, a meu lado.

– O senhor já ouviu dizer que daqui a três semanas o Leonel Brizola vai discursar num comício trabalhista e nacionalista aqui na Praça da República? Pois é. Vai. Mas tome nota das minhas palavras. Nesse dia todas as mulheres católicas de Antares, tendo à frente as Legionárías da Cruz, vão dissolver esse comício!

– Dissolver? – estranhei. – Mas a senhora já pensou no que -pode acontecer! Estamos numa democracia... defeituosa, reconheço, mas – que diabo! – democracia. Cada partido tem o direito de fazer propaganda de suas idéias.

D. Quitéría empertigou-se na sua cadeira, como que -procurando crescer em estatura física.

– Sim, mas o direito e a liberdade têm limites, moço. Um líder político pode fazer a sua propaganda mas não pregar abertamente a subversão da ordem, o fechamento do Congresso, o socialismo, a reforma agrária!

Percebi que tinha mexido num ninho de marimbondos.

– Mas que é que as Legionárias pretendem fazer de concreto se esse comício trabalhista se realizar?

– Sairemos da igreja para a praça cantando com toda a força de nossos pulmões o Queremos Deus. Vamos fazer tanto barulho, que ninguém poderá ouvir o Brizola e os outros oradores!

– Mas eles provavelmente falarão com o auxílio de microfones e amplificadores...

– Quebraremos o microfone e os alto-falantes. Mandaremos apagar as luzes da praça. A cidade ficará às escuras. Temos gente nossa na usina elétrica...

– Mas vai ser uma guerra, D. Quitéria! – disse eu, esforçandotne para ficar sério.

– Vai ser mais um combate, doutor. A guerra mesmo, essa começou no dia em que o Jango Goulart assumiu a presidência da República.

– Mas as senhoras estão preparadas para... digamos, para enfrentar a reação não só verbal como também física dos trabalhistas?

– Estamos por tudo. Se nos desacatarem, levam com rosários e cruzes e estandartes na cabeça... e em outras partes.

Dessa vez não pude evitar uma risada. E a velha, as narinas palpitantes, a respiração acelerada, continuou:

– Nossos maridos, nossos filhos, nossos homens, enfim estarão armados ao nosso lado, prontos para o entrevê-lo. Tome nota do que estou lhe dizendo. É o que vai acontecer se o Brizola tiver o topete de fazer sua pregação comu-no-nacionalista na frente da casa dos Campolargos e da Matriz!

Pôs a mão espalmada no peito arfante, depois abriu uma caixinha de metal dourado, tirou dela um comprimido cor de chocolate e pô-lo debaixo da língua.

– Não pense que sou uma reacionária, moço – disse, pouco depois, em voz mais baixa e serena. – Sei que os tempos mudaram e que vão mudar ainda mais. As contradições estão liquidando aos poucos a nossa classe. E a indústria, como bem disse o outro dia o Dr. Falkenburg, o meu médico, e a tal de tecnologia estão mudando a face da vida e até da moral. Dia virá em que teremos de dividir nossas terras, eu sei. Mas não há de ser a demagogia do Jango ou do Brizola que vai nos assustar. A coisa tem de ser feita direito, quando a sua hora for chegada. Não sou dessas que gostam do dinheiro pelo dinheiro. Resta-me pouco tempo de vida. Deus nunca me deu filho macho. Tenho quatro filhas. Sei que os maridos delas estão esperando a minha morte para agarrarem a minha fortuna, e se soltarem no mundo, cada qual para o seu lado. Que me importa? Meu corpo estará então no mavsoléu da família, minha alma com Deus.

Não resisti à tentação de fazer uma pergunta maliciosa.

– É verdade que o Cel. Tibério Vacariano é o presidente de honra dos Legionàrie« da Cruz?

– Ê, mas foi eleito contra o meu voto. O Tibé e a pobre da Lanja, mulher dele, são meus velhos amigos, apesar de nossos antepassados terem sido inimigos de morte durante mais de sessenta anos. Olhe, moço, eu lhe proíbo de fazer uso público do que eu lhe disse hoje nesta sala, ouviu1? O Tibério é um velho chineiro e désfrutável. Viveu metido em negociatas durante o Estado Novo e os outros Estados que se seguiram. Tem duas mulheres, o salafrário, a legítima e a amante. No entanto aceitou cinicamente a presidência de honra dos Legionários. É como eu lhe digo. Essas contradições vão acabar destruindo a nossa sociedade. Acendemos uma vela a Deus e outra ao diabo. Mas o senhor não acredita em Deus nem. no diabo, não?

– Não, D. Quita, sinto muito, mas não acredito.

Pois devia. Eles existem. E cá entre nós, que ninguém nos ouça, eles não residem, como se diz, Deus no Céu e o Tinhoso no inferno. Eles estão também aqui embaixo junto com a gente, a todas as horas do dia e da noite. Tome nota do que estou lhe dizendo.

(Diálogo transcrito de memória, mas creio que com passável exatidão.)

 

Visitei ontem o Pe. Pedro-Paulo na Vila Operária. Fui logo dizendo: “Não venho em caráter profissional. Não tenho nenhum gravador escondido nos bolsos. Não trago formulários. Dou revista...”

Ele sorri. Apertamo-nos as mãos. Quantos anos terá este homem? Perto de trinta, creio. Ou trinta já feitos. Estatura pouco acima da mediana. Moreno, mas com uns olhos dum azul de cobalto. No Rio Grande do Sul creio que os padres em sua maioria (os estatísticos que me perdoem esta súbita invasão de seu território) vêm da zona colonial, e são de sangue italiano ou alemão. O Pe. Pedro-Paulo tem por um lado avós lituanos, o que explica a cor de seus olhos e certos traços de seu rosto – perigosamente bonitos para um padre. A cabeleira basta e negra e a cor da tez lhe vieram de sua avó índia – conforme ele me explica. Sei que este jovem padre faz sucesso cam as mulheres, que, ao vê-lo passar, murmuram: “Que pão! Que pena ele ser padre! Que desperdício!”

Pedro-Paulo me mostra a Vila, a capela, o campo de esportes, a escola primária, o ginásio, o Centro Social, com a sua já razoavelmente boa biblioteca. O padre está em mangas de camisa, com calças de brim caqui e sandálias.

Depois da visita ficamos conversando sentados em cadeiras preguiçosas à sombra de árvores, bebendo refrescos e comendo figos gelados. Falamos em livros, política nacional e internacional. Puxo a conversa para os problemas atuais da Igreja Católica.

– Só agora a Igreja está voltando às suas origens – diz o sacerdote – isto é, à sua pureza original. Por muitos séculos ps príncipes da Santa Madre cortejavam e serviam reis, duques, presidentes, ministros, senadores, generais, milionários. Voltamos as costas ao povo. Conservamos um ranço medieval. Por um lado dizíamos que nosso reino não era deste mundo mas por outro nos apegávamos a tesouros e pompas terrenos. Tratávamos de convencer os pobres de que era necessário contentarem-se com a má sorte que Deus lhes dera na terra a fim de merecerem o reino dos céus e receberem, com juros, a sua recompensa por tantos anos de sofrimentos e de necessidades neste “vale de lágrimas”.

Descascando um figo, ele conclui:

– Daqui a muitos anos os historiadores talvez possam dizer que as reformas por que a nossa Igreja está passando agora foram tão (ou mais) importantes do que as da Reforma protestante.

– É possível. – E quase sem pausa de transição digo: – Tu naturalmente sabes que és conhecido em Antares como o Padre Vermelho.

Sei, e isso até me diverte. Assim também era chamado Vivaldi, o meu compositor favorito. Il prete rosso. .. embora no caso dele o rosso se referisse à cor de seus cabelos. Eu sei que em Antares sou considerado um comunista por causa de meu interesse pela causa dos operários... e tarn-bém pelas minhas leituras e opiniões.

– Como são tuas relações com o Pe. Gerando?

– Boas, mas meio cerimoniosas. Gosto do velho. É uma boa alma, mas tem horror a mudanças, de qualquer natureza. Um amigo meu oferece uma boa explicação metafórica para pessoas desse tipo. São como cegos (diz ele) que aprenderam durante anos e anos a topografia da casa onde moram, a posição de cada móvel, de cada objeto e assim podem mover-se com facilidade, sem colisões, como se pudessem ver claro. Um dia surge um sujeito... um “maluco”, dirão eles, e começa a renovar a casa, mudar a posição dos móveis e dos utensílios, abrir novas portas e janelas, e quando o nosso pobre cego tenta fazer suas caminhadas habituais, começa a chocar-se com obstáculos inesperados, a ferir-se, a sentir perigosas correntes de ar. .. e fica tomado de pânico ou de um sentimento de revolta. Esse é o caso de muitos escritores e pensadores católicos da atualidade não só no Brasil como no resto do mundo. E veja bem: os “móveis” da Igreja, a sua “decoração”, tinham para esses “cegos” um caráter sagrado, intocável.

– O vigário sabe que os jovens te procuram para confessar-se e pedir conselhos. E que muitos habitantes da cidade preferem as missas aqui na tua capela às da Matriz. Estou informado de que o bispo desta diocese, e possivelmente o arcebispo metropolitano, já receberam uma das famosas cartas anônimas de Antares denunciando o “padre comunista”.

– Ah! Quanto a isso não tenho a menor dúvida. Estou já com o espírito preparado para o que der e vier. Dia virá em que me mandarão cantar noutra freguesia... na pior que puderem encontrar...

– Que pensas de Antares? Esta pergunta tem. um tom um tanto profissional... mas vá!

– Não é diferente da maioria das outras cidades pequenas do nosso Estado. Vocês, com a pesquisa que estão fazendo, é que poderão dizer alguma coisa que não seja mera avaliação a olho nu. O que me impressiona aqui é a enorme defasagem que existe, por exemplo, entre os estancieiros ricos e a gente descalça e subalimentada. Fiquei feliz quando me disseram que você e o seu grupo estão dando muita atenção a essa horrenda favela chamada Babilônia. Acha sinceramente que poderá publicar em liuro todas as fotos desse lugar e seus habitantes?

– Claro que sim. A Ford Foundation me deu luz verde. Do contrário eu me negaria a levar para diante esta amostragem. Mas... que me dizes da tua gente, quero dizer, dos habitantes desta vila?

– Boa, dum modo geral. Claro, temos de tudo... os nossos problemas, as nossas diferenças, rivalidades pessoais e de grupo. Mas nada sério. A maioria pertence ao P.T.B. Há alguns elementos bastante politizados. Outros apenas votam e se consideram membros do partido trabalhista.

E é natural que vejam em ti uma figura paterna.

– Bom... creio que é o caso, e isso me assusta um pouco. Para ser honesto devo confessar que não estou preparado, amadurecido para essa função paterna.

– Quem está ?

– Às vezes tenho um trabalho danado para conter os mais exaltados em assuntos políticos. Em breve o Brizola vem fazer um comício na Praça da República e outro aqui na Vila. Só de pensar nisso estremeço. Está claro que ele vai falar contra a remessa de lucros e contra os entreguis-tas... e contra a espoliação da nossa economia... E, acima de tudo, a favor da reforma agrária. Pessoalmente nada tenho contra essas idéias. Mas não esqueça que quem manda aqui são ainda os estancieiros, o chamado patriciado rural.

– O velho Tibério (ele próprio me confessou isso claramente) é a favor duma ditadura militar como último recurso para salvar o que ele chama de “democracia brasileira”. Diz que estamos precisando, mais que nunca, “da espada de Caxias”. Perguntou-me se eu não estava de acordo com ele. Respondi que se as Forças Armadas usassem a espada do Pacificador corriam o risco de, por engano, acabar cometendo haraquiri.

E o velho Vacariano sabe o que é haraquiri?

– Não. Nem me dei o trabalho de lhe explicar...

– Pois o delegado de Antares, Inocêncio Pigarço, que é um homem cruel, um torturador de prisioneiros políticos, costuma dizer que o Jango e o Brizola estão cutucando o dragão com vara curta.

– Acho que o delegado tem razão. Se esse dragão despertar e resolver entrar em ação... bom, muita coisa vai acontecer. Nossos políticos profissionais, gente pela qual não tenho a menor simpatia, costumam apelar periodicamente ao Exército a fim de tomarem o poder. Os militares os ajudam e depois se encolhem. É possível que desta vez o dragão resolva ficar no poder e devorar não só as esquerdas como os próprios políticos profissionais do centro. As carnes destes na minha opinião estão podres... mas o dragão deve ter um estômago de aço...

Não sei como, a conversa envereda para rumos filosóficos. Discutimos o caráter predatório do homem, a sua tremenda capacidade de agressão. Lembro ao padre o troglodita adormecido dentro de cada um de nós. Ele sacode negativamente a cabeça e diz:

E não haverá sempre ao lado do troglodita um anjo? Um Calibã e um Ariel? Sou otimista com relação ao homem. Não penso em Hitler sem me lembrar também de Mozart. Acho que o homem é um animal agressivo, não há dúvida, mas a diferença entre ele e o lobo é que a criatura humana pensa, é ao mesmo tempo sujeito e objeto, tem a capacidade de ver o seu lado negativo e deplorá-lo. Não ignora que tem um futuro. Tem também a consciência de sua finitude. É – salvo as aberrações – capaz de compaixão, de contrição e de amor. E a crise do mundo moderno não será principalmente a falta de amor?

Como mais um figo e de repente me sinto com dez anos no quintal da casa paterna em Rio Pardo, e moscar-dos zumbem no ar, e da cozinha vem um cheiro doce de melado e eu penso, feliz, “que bom! estão fazendo rapa-durinhas de coco”.

– Me diga uma coisa, professor. Embora o senhor seja ainda um homem moço, nossa diferença de idade é duns quinze anos pelo menos. Sei que visitou a Europa e os Estados Unidos, e que suas leituras são mais variadas e sistemáticas que as minhas. Vou lhe fazer uma pergunta que lhe pode parecer tola. Ao cabo de quarenta e cinco anos de vida, de conviver com tantas pessoas em tantos países diferentes, a que conclusões filosóficas chegou... quero di’ zer, que é que pensa da vida? Se achar a pergunta pueril, não responda...

– Olha, o que eu sou mesmo... digamos assim, é ainda um “aprendiz perplexo”. Mas acho que pelo menos descobri as coisas de que gosto e as que detesto ou me deixam indiferente. E isso não é pouco.

– Por exemplo...

– Prefiro a saúde à doença, o amor ao ódio, a liberdade à escravidão, a persuasão à violência. Sei que esta não é uma resposta completa... mas que diabo!

– Imagino que não acredita em Deus...

– Sou um agnóstico. Detesto esta palavra, que a rigor não exprime nada. Trata-se duma espécie de neutralidade de que muitas pessoas se orgulham mas que a mim me constrange.

– Mas é um cristão, isso se pode ver.

– Serre a menor dúvida. O Cristo homem é uma das minhas figuras favoritas da História.

– Isso! O importante é ser cristão. Mas dum cristianismo militante e não apenas teórico, “simpatizante”. Sempre digo ao vigário da Matriz de Antares: “Padre, continue rezando pelos seus mortos que eu continuarei lutando pelos nossos vivos. Nossa Igreja é também deste mundo”.

Olho para o rosto enérgico do padre, que está com a testa franzida, os punhos cerrados, e tenho a impressão de que tem o sangue muito quente.

– Posso te fazer uma pergunta pessoal?

– Por que não? Seja o que for.

– Eu gostaria de saber se a tua fé em Deus e na Igreja é realmente forte e permanente. Não tens dias ou horas de dúvida?

Ele sorri, fica alguns segundos em silêncio e depois responde:

– Sou um homem, e portanto cheio de defeitos e fraquezas. Minha carne com muita freqüência grita de fome, às vezes com uma força que me estonteia. Claro, muitas vezes tenho as minhas dúvidas. Não faz muito atravessei um período de tão forte crise espiritual que escrevi uma longa carta a um monsenhor que admiro e estimo, contando-lhe tudo. Usei nessa carta confessional a expressão: “sinto que minha fé está presa apenas por um fio”. Sabe o que ele me respondeu? Que se regozijava por saber que a coisa era assim, pois não confiava muito nas chamadas “fés inabaláveis” dessas que julgam poder deslocar montanhas. São demasiadamente teatrais para serem profundas – escreveu o monsenhor. “O fio que prende a sua fé deve ser do melhor aço e portanto resistente e ao mesmo tempo flexível. Fé sem flexibilidade, fé sem dúvida pode acabar em fanatismo.” Terminou a carta assim: “Reze a Deus, peça-lhe para que faça esse fio resplandecer sempre na Sua luz”.

 

O INCIDENTE

Pouco depois da meia-noite, naquela quarta-feira, 11 de dezembro de 1963, Tibério Vacariano entrou no centro telefônico de Antares para tentar comunicar-se diretamente com o Palácio do Governo, em Porto Alegre.

– Tem defeito na linha, coronel – informou-lhe a operadora.

– Eu espero. Não saio daqui sem falar com o governador.

Mandou buscar em casa cuia, bomba, erva, chaleira, fogareiro – aboletou-se na melhor cadeira da agência, preparou um mate e ali ficou, a chimarrear e a fumar palheiros, durante horas e horas, resmungando coisas para si mesmo e de vez em quando esporeando a moça com frases assim: “Continue tentando”. – “Esse negócio sai ou não sai?” _ «Não durma!”

O tempo passava. A operadora cabeceava de sono. A intervalos quase reguläres o coronel ia até ao fundo da casa pata esvaziar a bexiga, deixando na parede traseira do prédio efêmeras pinturas murais. Às três da madrugada j&andou buscar em casa um café preto e forte, para ajudá-10 a vencer a própria sonolência.

Pouco após o raiar do dia a operadora teve um estremecimento.

– Porto Alegre está atendendo! – exclamou. – Alô! Aqui é Antares. Tenho um chamado urgente para o Palácio do Governo. Alô? Eu sei que são cinco da manhã, mas tente a ligação, pelo amor de Deus!

Tibério Vacariano, que cabeceava de sono, ficou de repente desperto e ergueu-se lépido. A telefonista voltou para ele um olhar turvo, emoldurado por pálpebras intumescidas.

– O Palácio está respondendo – disse com a voz era-pastada de sono. – Pegue aquele telefone, coronel. ..

Tibério agarrou sofregamente o fone do aparelho indicado, levou-o ao ouvido e gritou:

– Alô! Palácio do Governo? Hem? Não estou ouvindo nada... Alô? Aqui é o Cel. Tibério Vacariano. Preciso falar com a maior urgência com o governador... Hem? Eu sei que o homem está dormindo. Mas acorde ele. É uma questão de vida ou de morte. Quê? Fale mais alto. Já disse que é o Cel. Vacariano, chefe político de Antares... Me responsabilizo pelo que acontecer. Depressa, homem!

Ficou esperando alguns minutos, impaciente, chupando o cigarro apagado, de quando em quando lançando para as pernas da telefonista – que agora dormia sentada, os braços sobre a mesa, a cabeça aninhada neles – um olhar quase tão morto como o fogo do seu palheiro. Ouviu confusos rumores longínquos, cortados de zumbidos e assobios. Finalmente, uma voz humana.

– É o governador. E aí quem fala?

– O Cel. Tibério Vacariano, de Antares. Desculpe le tirar da cama a esta hora, governador, mas a situação é muito séria.

– Que é que há, coronel?

– Hoje ao meio-dia vai ser declarada uma greve geral em Antares: indústria, comércio, transportes, força elétrica, serviços... tudo! A cidade vai parar por completol

– Lá ontem alguma coisa a esse respeito no Correio do Povo.

Vacariano cuspiu longe o toco de cigarro, num borrifo de saliva. Cuspia simbolicamente nas bochechas daquele governador de ordinário pachorrento e agora, ainda por cima de tudo, estonteado de sono.

– Mas, doutor, estamos diante duma calamidadeI Já imaginou uma cidade parada, sem luz, sem água, sem transportes? Greve gerall

– Pois é... Sinto muito.

– Precisamos agir sem demora.

– De que jeito? A nossa Constituição reconhece o direito dos trabalhadores à greve.

– Mas isso não é mais uma greve e sim um princípio de revolução, parte duma conspiração política esquerdista para tomar o poder pela força.

Fez-se uma pausa na conversação, como se a ligação tivesse sido subitamente cortada. De novo, porém, Vacaria-no ouviu a voz grave que o sono tornava mais espessa:

– Não há nada que meu governo possa fazer dentro da legalidade.

– Pois então faça fora da legalidade.

– Alô? Fale mais alto, coronel.

– Mande a legalidade pro diabo! – vociferou Tibério. – Envie tropas da Brigada Militar para Antares e obrigue esses, mequetrefes a voltarem ao trabalho. O aumento que eles pedem é absurdo. A greve é dos trabalhadores das indústrias locais. Os outros apenas se solidarizaram com eles. Coisas que os chefes do P.T.B. e os comunas meteram na cabeça dos operários.

– Coronel, o senhor esquece que estamos numa democracia.

– Democracia qual nada, governador I O que temos no Brasil é uma merdocracia.

– Alô?! A ligação está péssima.

– Eu disse que estamos numa mer-do-cra-ci-a, entendeu?

Novo hiato na conversação. A telefonista ressonava.

– O senhor está muito excitado, coronel – veio de novo a voz. – O governo federal é trabalhista. Estamos em niinoria.

– Minoria coisa nenhuma! O que nos falta é cojones, como dizem os castelhanos.

– Calma, meu amigo. As coisas podem resolver-se duma hora para outra dentro da lei. Prometo-lhe conversar hoje mesmo com o Ministro do Trabalho e...

– A situação não é mais para conversas, mas para ação. Quer que eu fale com franqueza? Chegou a hora do Exército Nacional entrar em cena, empolgar o poder em nome do povo, da tranqüilidade geral e da justiça. O Brasil neste momento é um trem sem freios que se precipita a toda a velocidade para o abismo. E o pior é que o maqui-nista e o foguista estão loucos, loucos varridos!

Houve um silêncio, ouviu-se um pigarro distante. Por fim ficou mais clara a voz do governador:

– Há certos assuntos, coronel, que a gente não pode tratar por telefone. Passe muito bem!

Tibério repôs o fone no lugar com tanta fúria, que a telefonista despertou num sobressalto, pisca-piscando.

– Conseguiu falar, coronel?

Tibério não respondeu. Enquanto metia num saco de lona os petrechos de chimarrão, resmungava: “Garanto como ele agora volta pra cama e vai dormir até às oito. Quando acordar para o café vai pensar que este telefonema foi um sonho. Enquanto isso os comunas, os brizolistas e os pelegos do Jango Goulart estão se preparando para tomar conta da nossa cidade. É o fim da picada!”

Precipitou-se para fora do centro telefônico sem sequer agradecer à operadora.

 

Ao meio-dia em ponto a greve geral começou. Os operários do Frigorífico Pan-Americano, os da Cia. Franco-Brasileira de Lãs e os da Cia. de óleos Comestíveis Sol do Pampa abandonaram como de costume seus postos para o almoço, mas não voltaram para o turno da tarde. O mesmo aconteceu com os encarregados da Usina Termoelétrica Municipal, que cortaram a luz da cidade, com exceção dados cabos que forneciam energia aos dois hospitais. Bancários, empregados de hotéis, cafés, bares e restaurantes, bem como caixeiros de casas comerciais, recusaram-se a retornar ao trabalho, solidarizando-se com os industriários, embora eles próprios não tivessem no momento reivindicações salariais específicas. Os motoristas que dirigiam carros de propriedade alheia, abandonaram-nos na rua quando ouviram o sino da Matriz bater as primeiras badaladas do meio-dia.

Desde havia três dias as donas de casa tinham acorrido aos supermercados, aos mercadinhos, às mercearias, às padarias e às fiambrerias para comprar mantimentos, pre-venindo-se contra a carência de alimentos que fatalmente viria com a greve geral. Antares, em suma, parecia uma cidade prestes a ser sitiada por um inimigo implacável.

Ali pelas duas da tarde, nas vias centrais e na Praça da República, notava-se um movimento humano desusado para o dia e a hora. A greve geral era o assunto quase exclusivo das conversas. Comadres trocavam impressões das janelas de suas casas, dum lado para outro da rua. Formavam-se grupos às esquinas e no meio das quadras, nas calçadas ou nos sendeiros da praça, cujos bancos estavam todos ocupados. Velhos e velhas, debruçados nas janelas de suas casas, mostravam nas faces – principalmente nos olhos – o pavor de antigas revoluções, a lembrança de imemoriais degolamentos. Ninguém parecia sentir o calor abafado da tarde. Ficavam sob o olho ardente do sol a discutir e gesticular. Um vereador do P.S.D. atracou-se a socos com um colega seu do P.T.B. Rara era a janela das casas residenciais que não emoldurasse um ou dois vultos humanos que observavam a rua e trocavam impressões com os que passavam pela calçada.

Duplas de guardas municipais andavam dum lado para outro, atentos, procurando evitar brigas ou intervindo quando elas irrompiam e, tentando, mas sem resultado, evitar que se formassem aglomerações que pudessem degenerar perigosamente em comícios políticos. Perto da Matriz um homem gritava, de dedo erguido e revólver na cintura: “Se as autoridades tivessem um pingo de vergonha e coragem, elas acabavam essa greve de borra em dois tempos, a rabo-de-tatu ou a bala!” A igreja aos poucos se enchia de fiéis – quase todos do sexo feminino – que vinham orar e fazer promessas aos santos ou santas de sua devoção. Uma devota de Santa Rita de Cássia prometeu jejuar durante três dias inteiros se a greve geral abortasse.

Pesava sobre a cidade uma- atmosfera de princípio de fim de mundo.

 

Na redação de A Verdade, às quatro da tarde, Lucas Faia preparava o seu editorial para o próximo número, em cuja primeira página negrejaria uma manchete em caixa aita e tipo grosso: Greve Geral em Antares.

Lucas Lesma passava repetidamente os dedos pela calva reluzente, mordia a caneta. Que dizer da greve? Em que termos comentá-la? Atacar os grevistas por terem agredido tão violentamente a cidade, trazendo o desconforto e a inquietação para seus habitantes? Esse fora o seu primeiro impulso. Sabia que as classes produtoras de Antares haviam de aplaudir seu editorial... Mas a idéia de que os trabalhadores pudessem empastelar a redação de seu jornal fazia-o hesitar. Lucas Lesma suava copiosamente, de quando em quando passava pela face acobreada de caboclo o lenço en-cardido. Mas... se os militares dessem um golpe de Estado e derrubassem o governo de Goulart... em que posição ia ele ficar por não se ter manifestado no devido tempo contra aquela greve? Diabo de profissão!

Fazia vários minutos que estava ali sentado à sua mesa, sem casaco, olhando para o ventilador parado, a caneta esferográfica entre os dedos longos, de unhas roídas. O mais que havia conseguido escrever até então fora o título do editorial, Greve Geral. (Podia fazer uma aliteração -.Grave Greve Geral.) Contentava-se com fazer bordados nas letras do título, sombreá-las, dando-lhe uma ilusória terceira dimensão, como se com esses arabescos pudesse resolver o seu impasse. Talvez o mais sábio fosse redigir um editorial objetivo – equidistante em matéria ideológica tanto dos operários como dos patrões, um editorial anòdino, nem contra nem a favor da greve...

Uma voz aflautada interrompeu a confusa corrente de seus pensamentos:

– Ó seu Lucas, minha Passarela sai ou não sai no número de amanhã?

– Você é quem sabe, filho.

O cronista social, que alisava a longa cabeleira e de quando em quando ajeitava a camisa cor de salmão, explicou:

– É que com todo esse negócio da greve acho que ninguém estará muito interessado nas fofoquinhas da nossa society. E como vamos imprimir o jornal sem força elétrica?

– Você é quem sabe... – repetiu o diretor, desinteressado, sem olhar para Scorpio.

Este, porém, deu uma rabanada e aproximou-se da mesa do chefe, quase num passo de bale.

– Ah! Eu sabia que tinha uma boa para lhe contar...

– Depois..,

– Não, seu Lucas, escute esta, que vale a pena. Bufando de calor, irritado, Lucas largou a caneta e

olhou para o cronista:

– Conte, então, mas depressa.

– Ontem à tarde encontrei no supermercado uma das nossas grã-finas fazendo o rancho para enfrentar a greve geral. Estava toda assustadinha, sem jóias, sem pintura, mal vestida, parecia até uma cozinheira. .. O ano passado eu a coloquei entre “as Dez Mais” de Antares. Quando me viu, só faltou me abraçar e beijar. Me puxou para um lado e me contou que cancelou a viagem que ia fazer a Buenos Aires em maio... e que resolveu não fazer festa de debutante para a filha, que completa quinze anos em janeiro... E que vai entrar para o grupo de damas do Comercial que estão fazendo casaquinhos e meias de lã para as criancinhas pobres da Babilônia... ah!... e que vai obrigar o marido a vender um dos carros da família... E sabe por que toda essa transformação?

Lucas Lesma, que ainda pensava no editorial, sacudiu negativamente a cabeça.

– Está assustadíssima com esse movimento brizolista, janguista e nacionalista e sei mais quê. Acha que vem aí um governo socialista. Chegou a me dizer que se fizerem a reforma agrária e se os ricos tiverem de perder o que possuem será muito triste... mas que é que se vai fazer? E me disse, quase chorando, que é preferível “que se vão os anéis, mas que fiquem os dedos”...

Nesse momento veio do fundo da sala da redação a voz apocalíptica do Ferreirinha, que sofria um de seus piores dias de asma:

– Nem os dedos ficarão, menino!

Lucas Faia, agoniado, amassou o papel que tinha em cima da mesa e jogou-o com raiva dentro do cesto, a seus pés.

 

O prefeito convocou uma reunião especial da Câmara Municipal, que era formada de mais de um terço de vereadores trabalhistas. A greve geral foi discutida. Houve alter-cação, muita gente falando ao mesmo tempo, trocas de desaforos, tiradas demagógicas e – como era de se esperar – nenhum resultado prático. O presidente encerrou a sessão.

Às cinco da tarde daquele mesmo dia, o Maj. Vivaldino Brazão recebeu no seu gabinete, no edifício da prefeitura, uma delegação formada de três operários, encabeçada por Geminiano Ramos, e que devia encontrar-se com os gerentes das três companhias atingidas em cheio pela greve. Estavam estes últimos sentados no mesmo sofá: Mr. Jefferson Monroe III, com as longas pernas estendidas, fumava um L&M. O prefeito de vez em quando lançava um olhar fascinado para os sapatos ciclópicos do americano, conhecidos na cidade como “a frota americana do Alto Uruguai”-

Ao lado do diretor do frigorífico encontrava-se M. Jean-François Duplessis, da Franco-Brasileira, o qual, na opinião do Maj. Vivaldino, estava com o jeito “um tanto debochado”, como se não estivesse levando aquela reunião a sério. O colarinho desabotoado, o nó da gravata frouxo, as meias ésbeiçadas dobradas sobre os sapatos empoeirados, o francês fumava com ar entediado um Gauloise de pontas babadas e quase desfeito, e de vez em quando bocejava musicalmente. À sua esquerda, corretamente vestido, muito escovado e limpo, Mr. Chang Ling parecia um aluno comportado sentado em sua carteira escolar, os olhos oblíquos e escuros fitos no professor, isto é, no prefeito. Não podia, porém, disfarçar a sua inquietação ante a maneira como às vezes o francês esgrimia no ar o seu cigarro, espalhando cinzas ao seu redor.

– Senhores – disse Vivaldino Brazão, quando viu gregos e troianos sentados frente a frente, em silêncio – a situação é extremamente grave. A nossa cidade não pode suportar sem prejuízos talvez irreparáveis as conseqüências duma greve geral prolongada...

Calou-se, olhou em torno, escrutou as faces. A do americano rosada, juvenil, escoteira, os cabelos em crew cut, os olhos dum azul limpo e vazio. A do francês sardenta e aborrecida. A do chinês lembrando uma máscara asiática com um sorriso inefável de imagem arcaica. E esses três semblantes estavam voltados para o dele. Quanto aos operários, Vivaldino não olhava muito para as suas caras, demasiadamente conhecidas em Antares.

– Assim sendo – prosseguiu – faço um apelo aos senhores representantes das indústrias e aos senhores delegados dos grevistas aqui presentes, para que entrem o mais depressa possível num acordo, a fim de que mulheres, crianças e velhos não venham a sofrer os desastres duma greve geral, isso para não falar nos ruinosos efeitos que essa greve vai causar à economia do nosso município.

Novo silêncio. Seis pares de olhos focados no prefeito. O francês teve um acesso de tosse bronquítica de tabagista. O americano encolheu-se instintivamente e voltou o rosto para fugir aos micróbios gálicos. O chinês limitou-se a ali-sar o friso das calças.

Geminiano ergueu-se. Era apenas uns cinco centímetros mais baixo do que o americano, porém mais corpulento. Sua cabeçorra de abundantes cabelos castanhos e crespos lembrava a de certos mercadores ricos da Amsterdam do século xvn que tinham retratos pintados por artistas como Franz Hals: rosto carnudo e rubicundo, olhos empapuçados, dum cinzento mineral, lábios vermelhos e polpudos, sugerindo sensualidade. O prefeito detestava aquele líder operário insolente e autoritário que, apesar de viver pregando democracia e igualdade social, tinha uma indisfarçável vocação para ditador.

– Como todo mundo sabe – disse Geminiano com o vozeirão que era de se esperar daquela boca flamenga – esta greve é dos trabalhadores do frigorífico aí do mister (e fez com a cabeça um sinal na direção do americano), dos operários da Franco-Brasileira e do pessoal da Cia. de Óleos Comestíveis do “seu” Changue. Todos os outros companheiros aderiram ao movimento num gesto de solidariedade de classe. Bueno, para não encompridar demais a conversa, os cavalheiros que estão sentados nesse sofá receberam há semanas um documento contendo as nossas reivindicações salariais bem claras. Pedimos um aumento que nos parece mais que justo, em vista da inflação galopante. A resposta que recebemos foi um não redondo. Dias depois esses senhores quiseram negociar. Nos sentamos em roda duma mesa e a contraproposta que eles nos fizeram foi ridícula. Assim sendo, entramos em greve e só voltaremos ao trabalho depois que nossas condições forem aceitas. Já recebemos telegramas de solidariedade irrestrita tanto do Comando Geral Trabalhista como da União Nacional de Estudantes.

O prefeito suspirou fundo, pensou nas suas orquídeas, em cuja companhia talvez não pudesse passar aquele fim-de-semana, se a maldita greve se prolongasse.

Jefferson Monroe III movimentou as pernas, e os dois encouraçados negros pareceram tomar uma formação de combate.

– Eu... aaa... – gaguejou, buscando a palavra que queria – aaa...

O francês, que não conseguia esconder a sua impaciência, cruzava e descruzava as pernas. De repente tirou o cigarro da boca, num gesto brusco, polvilhando de cinza a lapela esquerda do casaco de Mr. ling, que a limpou discretamente com seus finos dedos de mandarim.

– Os senhores sabem muito bem – disse M. Duplessis – que, a não ser Mr. Chang, que é o proprietário único de sua indústria, nós, Mr. Monroe e eu, somos apenas gerentes de filiais.

Jefferson Monroe III pareceu recuperar a voz:

– Quando hemos recebido vosso memorial, consultamos imediatamente nossa matriz em São Paulo, e a resposta que ganhamos foi negativa. O aumento demandado pelos operários é demasiadamente alto.

– Precisamente – reforçou o francês, passando os dedos por entre os seus já ralos cabelos cor de cenoura. – Os senhores leram as respostas de nossos superiores. Personalmente nada podemos fazer.

O chinês continuou refugiado atrás da sua trincheira de silêncio. Ainda de pé, Geminiano lançou um olhar, primeiro na direção de seus dois companheiros, e depois voltou-se para o prefeito, dizendo:

– Major, nossa decisão foi tomada e não voltaremos atrás. A greve vai continuar até ao momento em que obtermos – corrigiu-se em seguida – obtivermos o aumento e as outras vantagens que pedimos em nosso memorial.

Um pensamento esvoaçou como uma borboleta colorida na cabeça do prefeito. Na Sibéria existe uma espécie de orquídea chamada calypso bulbosa. Olhou para Geminiano:

– Você deve estar lembrado de que eu lhe aconselhei tentar primeiro o dissídio coletivo. Teria sido mais prático e mais justo.

E o major se lembra de que nossa resposta foi negativa. Estamos cansados de panos quentes.

Em que parte do mundo se encontraria aquela orquídea completamente escarlate que ele vira reproduzida numa enciclopédia, em cores? Sophronites grandeflora. As orquídeas não falavam nem faziam greve. Vivaldino olhava fixamente para o rosto de Geminiano. Não havia dúvida, aquele operário tinha envergadura de chefe, era inteligente, obstinado e atrevido. Lembrou-se de que nos tempos de rapazote, quando ainda um entusiasta de Stalin, Geminiano usava um basto bigodão, que havia mandado rapar depois que o ditador russo fora expurgado post-mortem por Nikita Kruschev.

– Cavalheiros – disse o prefeito, procurando dar à voz um tom de grave autoridade paternal – em nome das vinte e cinco mil almas que vivem em Antares, faço um apelo aos representantes patronais e líderes operários aqui presentes para que entrem em acordo dentro do mais curto prazo possível. – Dirigiu o olhar para os homens do sofá. – Os senhores me façam a fineza de consultar mais uma vez, e com urgência, vossas matrizes, pondo-as ao corrente da calamitosa situação desta comunidade. E aos trabalhadores (e neste momento Vivaldino olhou para a cara polpuda de Geminiano e esbofeteou-a em pensamentos) peco boa vontade e espírito comunitário, para que possamos pôr fim a este impasse... Quanto a mim, prometo entrar hoje mesmo em comunicação com o Governador do Estado e, se possível, com o Ministro do Trabalho.

– De que jeito? – exclamou Geminiano, glorioso. – A estação de rádio não funciona por falta de força elétrica...

– Não se preocupe – replicou o prefeito, já vermelho de cólera. – O problema e meu!

Ergueu-se, puxando num gesto decidido as abas do casaco e dando assim a entender que a reunião estava terminada. Quando os visitantes começaram a erguer-se, Vivaldino Brazão satisfez mais uma vez seus pruridos oratórios:

– Quero que todos saibam que o governo municipal está preparado para repelir com energia qualquer tentativa de subversão da ordem, qualquer ato de violência, venha ele de onde vier. Tenho forças suficientes para fazer cumprir a lei, mas seria para mim o dia mais triste da minha vida aquele em que ,eu tivesse de mandar fazer fogo contra os meus concidadãos. Creio que estamos entendidos.

– Senhor maior – disse Jefferson Monroe HI. – Estamos num verdadeiro quandário. (Existe esta palavra em português?) Well, sei que meus chefes não podem aceitar as demandas exageradas de nossos operários. Creio que vamos ter greve por muito tempo, sinto muito dizer. Mas prometo fazer o meu melhor...

– Faça, mister, faça, por favor.

Ao apertar a mão do prefeito, o francês murmurou:

– Vosso Presidente sendo o chefe trabalhista – M. Duplessis soltou uma interjeição pneumàtica tipicamente francesa: pff! – não vejo como a balança possa pender para o nosso lado...

– Mas faça o que puder, monsieur.

O Maj. Brazão deteve por um instante o chinês à porta do gabinete, para lhe perguntar, com certa ternura na voz:

– Me diga uma coisa, Mr. Chang, existem muitas variedades de orquídeas na China?

 

Cerca das quatro da tarde, ao despertar duma prolongada sesta, pesado e azedo, Tibério Vacariano deu com D. Briolanja ao lado da cama, toda desfeita em pranto.

– Que foi que houve, mulher?

Os olhos injetados, o rosto tumefato, D. Lan ja balbu-ciou:

– A Quita teve um ataque do coração. Está malíssi-ma. Uma das meninas me telefonou ind’agorinha dizendo que a mãe começou a sentir umas pontadas no peito logo depois que ouviu a notícia de que a greve geral tinha estourado ...

Tibério sentou-se na cama, bocejou, e começou a calçar os sapatos, taciturno.

– A primeira vítima... – murmurou. – E não será a última. Canalhas!

– A coisa é tão séria, Tibé, que o Dr. Falkenburg chegou ao ponto de chamar o Dr. Lázaro para uma conferência médica.

– Então o negócio está mesmo preto. Temos que ir até lá imediatamente. Aqueles genros da Quita são umas bestas sem iniciativa e as mulheres deles umas débeis mentais.

Terminou de vestir-se, botou o revólver no coldre, preso ao cinto, enfiou o chapéu na cabeça, com a aba puxada sobre os olhos – mau sinal 1 – pegou a mulher pelo braço d disse: “Vamos embora!”

A praça fervilhava de gente, mais que nas manhãs de domingo, à hora da saída da missa das onze. Tibério caminhava olhando firme para a frente, mal respondendo aos cumprimentos que vinham dum lado e de outro. Levava na boca o fel da pesada sesta, no peito a tristeza que lhe causava a doença da velha amiga, e no corpo inteiro um ódio suficientemente intenso para abranger todas as formas de esquerdismo imagináveis. De vez em quando, de lábios apertados, sussurrava: “Felhos da pota”.

Estava o casal Vacariano já quase junto do coreto da praça quando o Dr. Lázaro lhe surgiu pela frente.

– Então, doutor? – perguntou Tibério. – Como vai a Quita?

O médico baixou tristemente a cabeça.

– Sinto muito ter de dar-lhes uma tristíssima notícia. D. Quitéria acaba de expirar. Fizemos o possível, o Dr. Falkenburg e eu. Enfarto do miocàrdio.

Agarrada ao braço do marido, D. Lanja rompeu a chorar em soluços convulsivos.

– Nada de espetáculo – disse-lhe o marido. – Se você tivesse morrido, garanto que a Quita saberia portar-se como uma dama. Pelo menos em público...

– Sabe duma coisa esquisita, coronel? – disse o Dr. Lázaro. – D. Quitéria é a sexta pessoa que morre hoje na cidade.

– Não diga! Quais foram as outras?

O médico fez com a cabeça um sinal na direção do sobradinho de azulejos.

– O Prof. Menandro suicidou-se esta madrugada.

– Enforcou-se?

– Não. Cortou as veias dos pulsos.

– Engraçado, para mim ele sempre teve cara de quem ia se enforcar... Mas como é que ainda não me tinham contado?

– O corpo só foi encontrado há meia hora...

E quem são os outros?

– O Barcelona é um deles...

– Esse vai em boa hora. Deus é grande. Quem mais?

– Os restantes são gentinha, com exceção do Joãozi-nho Paz, que faleceu no hospital. Fui eu quem assinou o atestado de óbito.

D. Lanja olhou para a igreja e murmurou:

– Santo Deus, que está acontecendo com a nossa cidade? Seis mortos num só dia.

Tibério encolheu os ombros:

– Meu pai me contou que na revolução de ‘93 só num dia morreram quinze pessoas num combate, aqui mesmo nesta praça. E durante a gripe espanhola, em ‘18, houve um dia em que dez antarenses bateram as botas...

O Dr. Lázaro despediu-se do casal, dizendo que ia para casa dormir um pouco, pois havia passado a noite em claro atendendo a vários de seus pacientes que não passavam bem.

Os Vacarianos continuaram a andar na direção do pa-lacete dos Campolargos, diante do qual começavam a formar-se grupos de curiosos e de amigos da família enlutada.

– Erga a cabeça – sussurrou Tibério à mulher. – Você não é católica? Pois então. Imagine a Quita no Céu, entre os anjos, mais feliz que nós nesta terra entregues ao Jango Goulart, ao Leonel Brizola e aos seus pelegos...

Entraram no prédio que, daquele momento em diante, para o repórter de A Verdade passaria a ser a “casa mortuària”. D. Lanja dirigiu-se imediatamente para o quarto da morta. Queria ajudar as meninas a prepararem a sua amiga Quita para a Grande Viagem. Tibério deixou-se ficar na sala de visitas, abraçando e dando pêsames, frio e de má vontade, aos pastranas dos genros da defunta, que apresentavam aos visitantes caras tristonhas, mas que no fundo – sabia Tibério – deviam estar felizes, pois, com a morte da velha não só se livrariam da ditadura da sogra como também entrariam na posse de todos os bens materiais do mais rico ramo da árvore dos Campolargos.

 

Na opinião dos mais antigos habitantes de Antares, o velório de D. Quitéria foi o mais concorrido de quantos havia memória na crônica da cidade. As salas do primeiro andar do casarão passaram as primeiras horas da noite de quarta-feira abarrotadas de gente. Quando os galos começaram a cantar, anunciando um novo dia, grande ainda, excepcional mesmo, era o número de pessoas que mantinham a vigília. Segundo um dos genros da defunta, dentista de profissão e estatístico amador, a criadagem do palacete serviu durante toda a noite oitocentas e quatro xícaras pequenas de café, cento e cinqüenta e duas taças de chá, trezentos e oitenta sanduíches de presunto e queijo, trinta bandejas de doces, e cento e cinco tigelinhas com sorvete (abacaxi e limão). Ao raiar do dia, dois peões da estância vieram preparar churrascos para o “último pelotão”.

Tibério e Lanja estavam entre os amigos fiéis que viram a primeira luz do novo dia entrar pelas janelas escancaradas para o nascente e iluminar a face de sombria cera da morta, que lá estava no seu caixão forrado de seda branca.

Durante aquela noite, a intervalos, Tibério aproximara-se do esquife e ab se deixara ficar, olhando longamente para a velha amiga defunta. De vez em quando tocava-lhe a testa fria com as pontas dos dedos. Depois saía, em busca de ar fresco, ia caminhar no jardim dos fundos da casa. Fazia um calor opressivo na câmara ardente, onde umas velhotas da geração de Quitéria Campolargo mantinham-se sentadas em cadeiras enfileiradas contra uma das paredes, formando uma espécie de friso móvel e falante.

A romaria à mansão dos Campolargos havia começado ao anoitecer. Os quatro genros andavam dum lado para outro, solícitos, recebendo abraços de pêsames, mas já assustados, pensando nos perigos daquela aglomeração de homens e mulheres – alguns de pouca ou nenhuma intimidade da família, outros completamente desconhecidos – naquela mansão cheia de objetos finos, raros e caros, estatuetas, relógios de ouro e prata, vasos, camafeus, medalhas, cinzeiros. Tinha sido um erro imperdoável não terem escondido todas aquelas preciosidades antes que começasse a romaria. Os quatro genros, porém, foram pouco a pouco metendo alguns desses objetos nos bolsos e levando-os das salas da frente para as dos fundos, e fechando-os a chave em arcas e cômodas.

Houve, porém, um momento em que tiveram de interromper esse trabalho, pois mal se livravam dum abraço já eram envolvidos por outro. O genro veterinário estava consolando um velho amigo de D. Quita, que chorava no seu ombro, quando viu entrar na câmara ardente D. Filadélfia, a mais notória cleptômana municipal, trazendo como sempre pendente dum braço a sua famosa bolsa de pano bordado, o terror dos proprietários de lojas da cidade. Descendia essa senhora duma família antarense tradicional e era casada com um coletor federal aposentado, homem sério e pacato, a quem a doença dela causava freqüentes vexames.

O veterinário desvencilhou-se do velho carpidor e foi prevenir discretamente os cunhados: “Alerta” – cochichou. – “D. Filadélfia acaba de chegar. É preciso ficar de olho nela”. Lembrou-se da medalha militar que o velho Benjamim Campolargo ganhara na Guerra do Paraguai e que estava no seu estojo de veludo roxo, dentro dum armário de vidro, cercado de camafeus. O dentista lembrou-se, num susto, de que esse armário se achava aberto, pois sua chave havia desaparecido inexplicavelmente.

A cleptômana abriu caminho por entre a massa humana suarenta aglomerada na sala, aproximou-se duma mesi-nha com tampo de mármore, onde havia vários objetos decorativos, abriu a bolsa, deu um piparote numa colher, cujo bojo era feito duma moeda de prata do tempo do Império, fazendo-a cair dentro da bolsa entreaberta. Olhou dum lado para outro para verificar se alguém lhe havia percebido o gesto... Com outro piparote fez tombar dentro-- da bolsa um pequeno cinzeiro de nácar. Nesse instante alguém em algum lugar da sala bateu com o cotovelo num vaso de cerâmica, que caiu e se partiu em cacos. Algumas pessoas estremeceram. Pela primeira vez em toda a sua vida Quitaria

Campolargo não fez o menor movimento de susto ou irritação, como acontecia sempre que ouvia em casa o ruído de vidro ou louça que se parte. Continuou quietinha no seu caixão de pau-marfim com ornamentos de bronze, que mandara fazer para si mesma na melhor casa de pompas fúnebres de Antares, pouco depois da morte do marido. Ao redor do esquife as coroas e os ramilhetes de flores se iam acumulando aos poucos.

À meia-noite D. Filadélfia empalmou uma caixa de rape de louça pintada que, assegurava o dentista, era austríaca e datava de 1810. Depois ficou junto do caixão contemplando com olhos úmidos e tristes a face da falecida.

 

Tibério Vacariano achava-se no jardim, sentado a uma mesa de ferro, sozinho, pensando em coisas... A noite estava morna, o ar quedo e impregnado da fragrância das madres-silvas e dos jasmineiros. Tibério chamou uma das mulati-nhas da casa e pediu-lhe uma xícara de café, enquanto em pensamentos lhe acariciava os seios pontudos. (Que estaria fazendo a Cleo àquela hora?) O café veio sem demora. Tomou um gole e fez uma careta. Requentado! Acendeu um palheiro, tragou a fumaça, soltou-a pelo nariz. Havia no jardim outros homens, que conversavam, alguns em voz alta, contando estórias alegres. Um deles aproximou-se do coronel, que o espantou com sua cara amarrada e o seu silêncio. Estava irritado, infeliz. Sentia a morte da amiga. Com quem é que ia agora brigar com gosto? Quitéria era a única pessoa em toda Antares que tinha a coragem de dizer-lhe verdades e de contradizê-lo. Além de tudo ele sentia aquela greve geral como um insulto dirigido à sua pessoa, à sua autoridade, à sua fazenda. E as suspeitas de que Cleo pudesse àquela hora estar na cama com outro homem – possivelmente um rapazola – causavam-lhe um sentimento de frustração, de revolta misturada com vergonha.

Cerca das onze e meia da noite, o Maj. Vivaldino Brazão desceu para o jardim dos Campolargos e aproximou-se de Tibério. Trazia uma cara de mau agouro. Sentou-se pesadamente junto do amigo e fitou nele o olhar entre espantado e triste.

– Aposto como me trazes más notícias. Desembucha logo.

– O Cícero Branco morreu.

– Quê? – Vacariano entesou o busto, como que galvanizado, e com um gesto brusco do braço jogou longe a xícara e o pires, que se partiram nas lajes.

– Não pode ser! – exclamou. – Faz menos de duas horas que eu vi o Cícero aqui no velório, olhando o corpo da Quita. Ele até falou comigo. Me lembro bem das palavras dele. “Antares perdeu uma grande dama.” ó Vivaldino, você está brincando, não está?

O prefeito sacudiu a cabeça numa negativa desalentada, ao mesmo tempo em que passava o lenço pelo rosto reluzente de suor.

– Coronel, com essas coisas a gente não brinca. Estou lhe dizendo que o Cícero Branco morreu. Não faz nem meia hora. O corpo ainda deve estar quente.

– Mas como foi isso, homem de Deus?

– Quando ele saiu daqui, foi direito pra casa e no meio da praça teve um troço e caiu de repente. A mulher, que ia com ele, começou a gritar. Umas pessoas que andavam por ali botaram o Cícero dentro dum auto e levaram ele para o hospital, aonde o corpo chegou já sem vida.

– Coração?

– Derrame cerebral. Fulminante. É a sétima pessoa que morre hoje em Antares.

Os dois homens ficaram a mirar-se num silêncio omi-noso.

E ele lhe entregou a letra? – indagou Vacariano, temendo já a resposta que ia ouvir.

– Tinha prometido entregar hoje de manhã...

– Mas entregou ou não?

– Não.

– Mas por quê?

– Porque teve de ir inesperadamente a São Borja tratar de negócios. Voltou ao anoitecer e disse que nos entregava o documento amanhã de manhã.

– Estamos jodidos e mal pagos – murmurou Tibério.

E judicialmente a gente não pode fazer nada sem se comprometer.

– Isso eu sei, homem. Mas precisamos resolver logo esse problema. Eu vou ter um particular com a viúva, o quanto antes. Ela precisa saber que do dinheiro que o marido tem nos bancos no nome dele, mais de um terço nos pertence.

– Mas acha que ela vai querer perder essa bolada?

– Dá-se um jeito. O importante é agir antes que um advogado se meta no assunto. Temos conosco aquele documento assinado pelo Cícero declarando que é nosso sócio e que essas promissórias, etc– etc... você sabe bem como é a coisa.

– Acho perigoso revelar tudo isso à viúva.

– Quem tem medo de perigo – retrucou Tibério, entre duro e jocoso – não tem o direito de estar vivo.

Novo silêncio. Vaga-lumes pontilhavam de verde o ar da noite. Tibério Vacariano começou a falar baixinho, como para si mesmo:

– 1963... Ano ímpar, ano de azar. Não rima mas é verdade.

– Não acredito nessas coisas, coronel, como não acredito em almas do outro mundo.

– Melhor pra você. Eu meio que acredito em números. Meu pai morreu em 25. Em 35 perdi uma tropa inteira naquele desastre da ponte... Minha mãe faleceu em 1921. Meu irmão Porfírio, em 1923. Sofri daquela eólica de rim em 1939. O Jânio Quadros renunciou em 1961. E agora tudo isso... A morte da Quita, do Cícero, a greve geral, as loucuras do Jango e do Brizola... toda essa anarquia nacional...

 

Às dez da manhã do dia seguinte a cidade inteira já sabia que, desde o nascer do sol, o cemitério local estava interditado pelos grevistas, os quais, formando uma barreira humana – uns trezentos e cinqüenta ou quatrocentos homens de braços dados – não tinham permitido que fossem enterradas as cinco pessoas falecidas na véspera.

“Mas que pretendem eles com essa atitude tão antipática?” – perguntava-se. A resposta era, quase invariavelmente: “Fazer pressão sobre os- patrões para conseguir o que querem”.

Inocêncio Pigarço, delegado de polícia de Antares, queria romper a linha dos grevistas a bala. O prefeito, porém, repeliu a idéia. Não só procurava evitar derramamento de sangue, como também sabia que o município não dispunha de guardas em número suficiente para enfrentar os pare-distas.

– Que se faz então? – quis saber o delegado. – Parlamentar com os desordeiros? Não contem comigo para essa palhaçada.

– Não – respondeu Vivaldino Brazão. – Vamos esperar. Estou certo de que os operários não terão o topete de impedir o sepultamento duma dama como D. Quitéria Cam-polargo. A prova dos nove portanto vai ser tirada hoje de tarde, à hora do enterro da velha.

Às quatro horas da tarde o fèretro de Quitéria Campo-largo foi conduzido a pulso de sua casa até à Matriz e colocado em cima dum catafalco, à frente do altar-mor. Nesse curto trajeto dezenas de pessoas das mais representativas de Antares disputaram a honra de segurar-lhe as alças ou pelo menos de tocá-las, num gesto simbólico. Rezou-se uma missa de corpo presente. No dizer de D. Briolanja Vacariano a igreja estava tão cheia que não cabia nela nem mais um suspiro. Todos os assentos estavam ocupados, e havia gente de pé nos corredores entre as duas fileiras de bancos, e ainda nos espaços laterais, sob as naves, e também no fundo do templo.

Encostado numa coluna, mas vestido de escuro, à burguesa – fatiota completa com colarinho e gravata – o cronista social de A verdade tomava mentalmente nota da maneira como estavam vestidas as figuras mais destacadas do café society de Antares presentes àquela cerimônia fúnebre. Junto da pia batismal, logo à entrada da igreja, dois senhores calvos, de meia-idade, discutiam em cochichos a legítima de D. Quitéria: concordavam quanto à extensão e à qualidade dos campos das estâncias, a quantidade aproximada de gado bovino e de cavalos, tinham dúvidas quanto ao valor dos títulos que a falecida possuía e discrepavam quanto aos imóveis de propriedade da defunta. Ambos, porém, estavam de perfeito acordo num ponto: os quatro genros, em matéria de dinheiro, podiam ficar despreocupados pelo resto de suas vidas, os felizardos!

Com lágrimas nos olhos e na voz, o Pe. Gerôncio Albuquerque fez o elogio da defunta – a mais fiel das esposas, a mais extremosa das mães, a mais dedicada das amigas: incomparável dama de caridade, grande patriota, protetora dos pobres e dos desamparados – e encomendou sua alma a Deus.

Terminada a missa, o caixão, coberto com a bandeira dos Legionários da Cruz, foi carregado para fora da Matriz pelos parentes mais chegados da defunta e colocado no carro fúnebre. Havia tanta gente à frente da igreja que os guardas municipais tiveram de intervir, a fim de abrir alas para as damas e os cavalheiros que se encaminhavam para os seus carros. Vendo aquela multidão de criaturas humildes que se acotovelavam no afã de se aproximarem do caixão de Quitéria Campolargo, para tocá-lo nem que fosse apenas com a ponta dos dedos, como se se tratasse dos restos mortais duma santa – um ancião que descia as escadas do templo amparado no braço da filha, murmurou, os lábios trementes: “Que consagração!”

Formou-se finalmente o cortejo. À frente ia a Banda Municipal Carlos Gomes, vinte e dois músicos que, a um sinal do Lucas Faia – encarregado pelo prefeito e pela família enlutada de dirigir a procissão – romperam a tocar algo que poucos na multidão conseguiram identificar como a Marcha Fúnebre de Chopin, pois, embora as duas clarinetas e os dois pistons conseguissem emitir sons que se pareciam com o da conhecida composição, uns trombones alucinados tomavam a liberdade de enxertar notas que o compositor jamais escrevera para aquela peça, um flautim frenético entrava em tremolos desesperados, talvez com a louvável intenção de simular soluços, enquanto uma tuba roncava como um animal ferido no fundo duma toca, e um tambor surdo, coberto de crepe, tentava, mas em vão, marcar a cadência da marcha. Lucas Faia aproximou-se do maestro e recomendou: “Devagar, chefe, para o povo poder acompanhar a pé o enterro!”

A poucos metros atrás da banda, vinham trinta e três garbosos cavalarianos, escolhidos a dedo, e pertencentes ao Centro de Tradições Gaúchas Chimarrão da Saudade, do qual D. Quita havia sido sócia fundadora, além de mecenas e “prenda honorária”. Comandava o grupo o Nico, sobrinho-neto de Tibério Vacariano, rapaz melenudo de nariz grande, cara pequena e bastos bigodões negros, que lhe desciam espessos pelos cantos da boca, dando-lhe ares dum façanhudo guerreiro tàrtaro. Estava ele ladeado por dois companheiros, um dos quais empunhava a bandeira brasileira presa a um mastro de guajuvira e o outro uma bandeira do Rio Grande do Sul amarrada à lança que o avô de D. Quitéria usara na Guerra dos Farrapos.

Os outros cavalarianos formavam seis filas de cinco centauros cada uma. Pareciam um museu vivo da indumentária gauchesca. Viam-se no grupo campeiros do Rio Grande do Sul trajados não só à maneira de princípios do século passado, lembrando gravuras antigas (xiripás coloridos, ce-roulas de renda de crivo, botas de anca de potrò, vinchas ao redor das cabeças) como também gaúchos de épocas mais recentes, de bombachas, botas de fole e chapéus de abas largas. Estavam todos bem montados, em belos cava-los aperados a capricho – e suas facas, pistolas, estribos e esporas reluziam ao sol daquela tarde de verão.

Poucos metros atrás dos rapazes tradicionalistas rodava o coche fúnebre, seguido de dois outros carros abertos atestados de coroas de flores naturais e artificiais. Seguiam-se, em solene lentidão, os automóveis que traziam autoridades municipais, estancieiros, comerciantes, industriais e outros membros da alta burguesia local: Mercedes, Impalas, Cadillacs, Oldsmobiles. Chryslers e outros carros caros. Lucas Faia tivera o cuidado de colocar todas essas viaturas na sua ordem hierárquica, pois as menores, de origem inglesa, francesa e principalmente os Volkswagen, eram os últimos da longa fileira. Fechava o cortejo a massa humana que se arrastava anônima e a pé. (Os pesquisadores do Prof. Mar-tim Francisco Terra que, fazia poucos meses, tinham estudado a anatomia de Antares, na certa não deixariam de anotar aquele escalonamento social em termos de veículos.)

 

O cortejo fez a volta da praça, e depois entrou na Rua Voluntários da Pátria, que o levaria em linha reta e em suave aclive, até ao topo da colina onde se achava a cidade dos mortos.

Era uma tarde luminosa. Uma brisa morna trazia até à cidade o cheiro acre de macegas queimadas. D. Filadélfia, sentada ao lado do marido, no Chevrolet da família, olhou para o firmamento azul e límpido e suspirou: “Que beleza de céu! Parece uma taça de porcelana”. O ex-coletor, amargurado por causa do comportamento indigno da esposa no velório de Quitéria Campolargo, murmurou: “Graças ao bom Deus essa taça não cabe na tua bolsa”.

Quando o cortejo se achava já próximo do cume da colina, o Pe. Gerôncio olhou para a esquerda, avistou o casario pardo da Babilônia e choramingou: “Os pobres de Antares perderam a sua mãezinha”. Isso bastou para que D. Lanja desatasse de novo o pranto.

Tibério remexia-se, inquieto, esticando o pescoço para enxergar o caminho por cima dos ombros do chofer, pro- curando ver se os operários continuavam a bloquear a entrada do cemitério. Estava armado, pronto para o que desse e viesse.

De repente o cortejo estacou. Tibério viu o Nico trazer seu cavalo a galope até junto do carro do prefeito.

– Que é que há, moço? – perguntou este último.

– Os grevistas continuam fechando o cemitério. Estão formados numa fila dupla. Calculo que são uns quatrocentos... ou mais.

As ruas que partiam do coração da cidade, colina acima, terminavam todas numa esplanada, no centro da qual ficava a necrópole. Muitos prefeitos haviam prometido transformar aquele espaço num parque ou num jardim, mas até agora o planalto continuava abandonado às ervas daninhas e às formigas.

– Quais são as ordens? – perguntou o patrão do C.T.G.

– Tocar pra diante! – disse o prefeito. – Os homens descem na frente do cemitério, mas as mulheres devem ficar nos carros. – Olhou para o moço crinudo: – Leve os seus gaúchos e forme com eles uma fila simples na frente dos grevistas... mas não muito perto. Digamos... uns cinqüenta ou sessenta metros. Se houver provocação, que não parta da nossa gente. Entendido?

– Entendido – respondeu o rapaz, dando de rédea e voltando a galope para retomar o comando do seu piquete.

O cortejo continuou a marcha.

– Que foi que houve? – perguntou D. Briolanja ao marido.

– Nada! – respondeu Tibério, seco. – Fique quieta e pare de chorar.

– Minha Nossa Senhora! – exclamou ela. – Deus parece que se esqueceu de Antares.

– Nada de pânico! – repreendeu-a o marido, cujas narinas palpitavam na excitante expectativa dum entrevero. - E o senhor, vigário, também não se alarme. Acho melhor não descer do carro. Fique com as damas.

– Ora essa, coronel, não sou nenhum covarde.

– Desculpe. Como o senhor ainda usa “saia” eu me enganei. Então venha.

O cortejo de novo parou, dessa vez já na esplanada, a uma quadra do cemitério. Vacariano abriu a porta do seu carro e precipitou-se para o grupo que se formara junto da carruagem fúrlebre: os quatro genros da morta, o prsfeito, o juiz de Direito, o Prof. Libindo, o Dr. Lázaro, o Dr. Falkenburg, o Lucas Faia e outras pessoas representativas da sociedade local. Agora podiam ver melhor os grevistas, que estavam mesmo de braços enlaçados, formando uma cadeia, e err. fila dupla, em toda a extensão do muro fronteiro do cemitério. Nico calculara certo: seriam uns quatrocentos e poucos homens. Tibério reconheceu, à frente deles, o vulto imponente de Geminiano Ramos, ladeado por dois companheiros.

O delegado Inocêncio Pigarço aproximou-se do Maj. Vivaldino, seguido por vinte guardas da polícia municipal.

– Me dê luz verde – disse – e eu arrebento essa linha a bala!

O prefeito, o juiz. Tibério Vacariano e o vigário entreo-lharam-se, em silêncio. Os quatro genros de Quitéria Cam-polejgo, a curta distância do grupo das “autoridades”, estavam encolhidos e pálidos de medo.

– Não – disse o Maj. Brazão. – Nada de violência, delegado. Vamos tirar o caixão do carro e caminhar para o cemitério como se nada de anormal estivesse acontecendo. .Agiremos depois de acordo com as circunstâncias.

Os outros concordaram com acenos de cabeça. Vacariano de instante a instante apalpava o revólver que trazia agora no bolso direito do casaco.

E você, Inocêncio – acrescentou o prefeito – você nos siga com seus homens, mas não façam nem digam nada sem ordem minha. Não me desobedeçam!

O delegado, com um brilho mau nos olhos, não disse palavra, voltou as costas para o major e foi dar instruções aos seus guardas. Os quatro genros, atemorizados, pegaram nas alças do caixão da sogra e puxaram-no do carro fúnebre e, após um instante de hesitação, começaram a andar, muito devagar, na direção da entrada da necrópole. O povinho que acompanhara o cortejo fúnebre, estava agora também na esplanada à frente do cemitério, formando um semi-círculo irregular, espécie de anfiteatro em cuja arena estava por se representar o que o Prof. Libindo Olivares imaginava pudesse ser uma rústica tragédia grega e Lucas Faia, uma comédia provinciana macabra.

Geminiano e seus companheiros começaram a movimentar-se na direção das autoridades. (“Que alvo! – pensou Tibério, olhando para o vulto do chefe dos grevistas. – Que alvo! Um tiro naquela pança era fácil de acertar...”)

Os genros caminhavam em passadas cada vez mais lentas e hesitantes. Geminiano ergueu o braço:

– Alto lá, minha gente! Façam o favor de largar no chão esse esquife, que a nossa conversa vai ser meio demorada.

Vivaldino estacou, abriu as pernas, pôs as mãos nos quadris, ergueu a cabeça, autoritário, e bradou:

– Com ordem de quem... ?

Epa lá, major! – interrompeu-o o vozeirão de Geminiano. – Não nos venha com gritos e bravatas. O melhor é a gente discutir a coisa direitinho na calma. Para principiar, não precisamos licença de ninguém pra parar na frente do cemitério.

Os genros depositaram o fèretro da sogra no chão, esmagando algumas formigas que ali caminhavam em fila dupla, na mesma direção mas em sentido contrário, e na mais rigorosa neutralidade.

– Mas, afinal de contas, que é que vocês querem? – indagou o prefeito.

– O cemitério está fechado. Este cadáver não pode ser sepultado.

– Mas isso é uma barbaridade! O cemitério pertence ao município!

– Os coveiros estão em greve.

– Ridículo! São empregados públicos. E onde está o zelador do cemitério?

– Em casa e em greve também.

Tibério Vacariano, já respirando acelerado, continha-se a custo. Queria precipitar-se sobre Geminiano e esbofe-teá-lo. Mas o Dr. Lázaro segurou-lhe o braço e disse:

– Calma, coronel. Tenha paciência. Não perca as estribeiras. Pense no seu coração.

– Nesta hora o único órgão que funciona no meu corpo são os testículos.

– Onde estão os coveiros? – perguntou o prefeito. Geminiano voltou a cabeça para trás e fez um sinal

com a mão. Três vultos destacaram-se da fileira de grevistas e deram alguns passos à frente. Vinha com eles um homem moço, vestido de alpaca cinzenta, com colarinho clerical. Era o Pe. Pedro-Paulo, capelão da Vila Operária. Va-cariano voltou-se para o velho vigário, que estava a poucos passos atrás dele, e resmungou: “Está vendo quem vem vindo lá... quem está do lado dos grevistas? O safado do Padre Vermelho. Esse comunista filho duma grandessíssima...” Engasgou-se antes de terminar o insulto. “Calma, coronel” – murmurou o Dr. Lázaro.

Os três coveiros aproximaram-se de Geminiano e permaneceram a seu lado. Eram homens magros de pele e vestes encardidas, em mangas de camisa e calças remendadas. Recendiam a suor muitas vezes dormido. Um deles estava de pés no chão e os outros dois calçavam velhas alpargatas.

– Eis os seus “funcionários”, Maj. Vivaldino. Estão em trajo de gala, como todos podem ver.

– Mas que negócio é esse? – perguntou o major, dirigindo-se aos coveiros. – Vocês são empregados da prefeitura. Abram já-já a porta do cemitério e sepultem o caixão da D. Quitéria Campolargo. E uma ordem do prefeito!

Os três homens olhavam para o chão, sem coragem de encarar seu chefe.

– Eles também querem um aumento – disse o Pe. Pedro-Paulo. – Vivem com um salário de fome. Todos os três têm famílias numerosas. Há anos que ganham o mesmo ordenado miserável.

E isso será da sua conta? – gritou o Cel. Vacariano, olhando com rancor para o jovem padre.

– Isso é da conta de toda a população de Antares – replicou Pedro-Paulo.

O prefeito continuava a encarar o líder grevista-.

– Mas que é que vocês industriários têm a ver com os coveiros?

– Eles aderiram à nossa greve. Nós os protegeremos até o fim.

– Não acredito! – exclamou Tibério. – Esses homens estão sendo forçados a se meterem na greve. Eles nem sequer sabem direito o significado dessa palavra.

– Sabem melhor do que você! – retrucou Geminiano.

Tibério Vacariano desvencilhou-se de seu médico, atirou-se contra o líder grevista, já de revólver em punho. Geminiano quebrou o corpo, segurou a mão direita de seu agressor, ergueu-a para o ar e em poucos segundos desarmou-o. Depois, sem dizer palavra, encostou-lhe na cara a mão espalmada e empurrou-o com força, fazendo-o cair sentado no chão. O delegado de polícia avançou, também de pistola na mão, seguido do patrão do Chimarrão da Saudade, mas o prefeito os conteve com gritos e gestos. O chapéu caído no solo, a seu lado, ofegante, babando-se de ódio, Tibério Vacariano olhava para Geminiano que, com a maior pachorra, tirava as balas do seu revólver – relíquia paterna, companheiro de incontáveis pelejas, jamais caído em mãos inimigas. O jornalista, o professor e o juiz procuravam conter o delegado e o patrão do C.T.G., que insistiam em investir contra Geminiano e seus companheiros, fosse como fosse. Pedro-Paulo continuava ao lado dos coveiros.

Geminiano meteu as balas no bolso e depois atirou a arma aos pés do patriarca da família Vacariano, que já agora se erguia, ajudado pelo seu médico.

– Guarde essa porcaria, velho bobo! E convença-se de que os tempos mudaram. Antares não é mais propriedade sua. – Voltou-se para o prefeito. – E agora vamos conversar como gente grande. E de igual pra igual. Os senhores já viram que não temos medo de caretas.

– Major – gritava Inocêncio – dê a ordem e nós abriremos caminho a bala!

– Essa eu pago pra ver! – sorriu o chefe dos grevistas. – Somos uns quatrocentos aqui, e estamos armados. Temos mais gente na cidade também armada e disposta a tudo.

– É uma sedição! – exclamou o juiz de Direito.

O delegado repôs sua arma no coldre, com certa relu-tância. O patrão do C.T.G. aproximou-se do prefeito e disse-lhe ao ouvido:

Meus cavalarianos estão dispostos a fazer uma carga contra os grevistas. Só esperamos uma ordem sua.

Um companheiro que lhe seguira no encalço, atirou-lhe água fria no entusiasmo:

– Escuta, chê, te lembra que nossos revólveres estão descarregados. E alguns companheiros trazem garruchas que não funcionam há quase cem anos.

– Pois então – replicou o Nico – vamos de adaga, faca, pata de cavalo e rebenque.

O Prof. Iibindo segurou-lhe o braço:

– Calma, calma. Com violência não arranjamos nada. E citou uma frase latina.

– Mas estamos sendo desmoralizados na frente do povo de Antares! – exclamou o rapaz.

– Espere – disse o prefeito – a razão está do nosso lado.

O Dr. Lázaro tentou levar o Cel. Tibério de volta para o seu automóvel, mas não conseguiu. O velho pedia balas, de calibre 38 – quem tinha balas para lhe dar? Quem tinha vergonha na cara para reagir?

Por um instante uma orquídea passou grácil e veloz pelo pensamento de Vivaldino Brazão.

– Mas, afinal de contas, que pretendem os senhores grevistas com essa atitude insólita? – perguntou o juiz de Direito.

– Aumentar nossa pressão sobre os patrões e fazer triunfar a nossa causa.

O magistrado fez um sinal na direção do esquife.

– Mas que é que essa senhora tem a ver com a greve?

– Com a nossa, nada. Mas com a dos coveiros, muito. Foi nesse momento que o Prof. Libindo, que andara

aflito dum lado para outro acalmando os ânimos com citações de Goethe, Confúcio e Platão, interveio:

– Está bem. Senhor prefeito, sugiro que s’è dispensem os coveiros. Nós mesmos sepultaremos D. Quitaria.

Geminiano sacudiu vigorosamente a cabeça flamenga.

– Nada feito! Resolvemos em assembléia geral, anteontem, que só permitiremos o sepultamento, seja de quem for, depois que os patrões atenderem às reivindicações salariais de todos nós.

– Mas isso é uma chantagem, além dum acinte, duma vergonha! – reagiu o prefeito.

Pedro-Paulo apontou para o nascente, na direção da Babilônia.

– Acinte? Vergonha? E aquela favela que é? O orgulho de Antares?

Tibério Vacariano, que havia recobrado fôlego, olhou colérico para o capelão da Vila Operária:

– Um sacerdote de Deus metido com comunistas 1

– Eles não são comunistas, coronel, são grevistas – disse Pedro-Paulo.

Tibério voltou-se para o Ps Gerôncio, que estava de cabeça baixa como que atento à marcha das formigas:

– Vigário, envie uma denúncia ao bispo desta diocese e consiga que mandem esse padre subversivo para longe daqui!

– O senhor bispo – respondeu o vigário em voz baixa – está bem informado das atividades e idéias do Pe. Pedro-Paulo.

– Pois eu já não confio mais nos bispos. .. – retrucou Vacariano. – Nem no Papa. Estão todos a soldo de Moscou !

 

O juiz de Direito olhou para Pedro-Paulo:

– É estranho que o senhor tenha concordado com a decisão que os grevistas tomaram de impedir os sepultamen-tos. É um ato sacrilego.

– Eu não concordei, ao contrário! – explicou o capelão. – Estou ao lado dos grevistas nas suas reivindicações trabalhistas. Fiz o que pude para evitar... isto. Mas não consegui convencê-los. Sinto muito.

O Pe. Gerôncio olhava agora tristemente para o esqui-fe, murmurando:

– Todos os mortos merecem o nosso respeito. Ricos e pobres. Brancos e pretos. Devemos venerar os mortos.

– É curioso – retrucou Pedro-Paulo – estranho que haja tanto respeito pelos mortos e tão pouco pelos vivos. – Encolheu os ombros. – Claro! É fácil ser justo e compreensivo para com os que morrem. Basta enterrá-los... e eles nos deixam em paz. Agora, é difícil compreender e ajudar os vivos vinte e quatro horas por dia, todos os dias do ano, ano após ano...

O sol caía para as bandas do grande rio e sua luz aos poucos se abrandava.

O prefeito olhou firme para Geminiano :

– Faço-lhes mais um apelo. Deixem-nos sepultar essa santa senhora.

– Nossa resposta é não. Já temos cinco caixões en-fileirados diante do cemitério. Num deles está o corpo dum proletário, dum velho companheiro de luta. Como vêem não abrimos exceção para ninguém.

– Essa é a sua última palavra?

– E, Pedra e cal.

– Mas a solução para a greve pode demorar – observou o Prof. Libindo. – Esses cadáveres não podem permanecer tanto tempo insepultos. É um perigo.

– Podem, sim – replicou Geminiano. – Os mortos não reclamam. Os mortos têm uma paciência inesgotável.

O prefeito reuniu seus companheiros – o Cel. Tibério, o juiz, o padre, o jornalista, o professor e algumas pessoas gradas, inclusive os quatro genros da defunta – e confa-buloü com eles. Depois de alguns minutos voltou-se para Geminiano, dizendo em voz alta, como se estivesse discursando para a multidão:

– Senhoras e senhores, resolvemos, sob protesto, levar o esquife de D. Quitéria de volta para a cidade e esperar o desenvolvimento dos acontecimentos. E desde já responsabilizo os grevistas, na pessoa do Sr. Geminiano Ramos, pelo que possa acontecer em conseqüência de toda essa loucura inaudita. (O prefeito disse inaudita.)

Geminiano sorriu com malícia:

– Eu já esperava esse truque. Nossa resposta é negativa. Vocês levam o esquife pra cidade e enterram ele noutra parte... na estância da finada, por exemplo. O caixão vai ficar é aqui com os outros cinco. Guardaremos o corpo de D. Quita como refém.

Houve entre os pró-homens de Antares um fundo silêncio de espanto e indignação. O Pe Pedro-Paulo aproximou-se do líder operário:

Gemini ano, quem sabe podemos chegar a um acordo menos...

– Nada disso, padre! Temos de dar duro. O senhor não conhece direito essa gente.

– Pense na impopularidade que essa atitude dos grevistas vai trazer para a causa da greve.

– Estou cumprindo as decisões da assembléia geral. O senhor estava na reunião e ouviu tudo. A idéia não foi minha. Nem sua. Foi da maioria. E vai ser cumprida.

 

O povo seguia a cena num silêncio ominoso.

Lucas Faia, postado entre Geminiano e Vivaldino, discursou:

– Distintas autoridades! Senhores! Amigos! Temos que usar do bom-senso numa situação como esta. As recri-minações ficam para depois. Ou para nunca. Somos todos irmãos. Ninguém é perfeito. O importante, me parece, é evitar o sangue e a violência. Assim, proponho que deixemos o esquife de D. Quitéria aqui esta noite sob a custódia dos grevistas, a cuja dignidade apelamos. É possível que amanhã de manhã ou mesmo esta noite tenhamos respostas satisfatórias para os operários, vindas das matrizes do Frigorífico e da Franco-Brasileira.

A proposta foi recebida em silêncio pelo prefeito e seus amigos. O Cel. Vacariano sacudiu negativamente a cabeça, murmurando: “Por mim, abria-se caminho a bala e pata de cavalo. Os rapazes do Chimarrão da Saudade estão dispostos. Faremos como nas guerras antigas. Na do Paraguai e na de 35 a cavalaria gaúcha arrebentou muitos quadrados inimigos. Não transijo com cafajestes”.

Lucas Lesma esperou que o velho terminasse de falar, e depois continuou:

– Geminiano – disse, aproximando-se do líder grevista. – Você me conhece há muitos anos. Meu jornal não tem sido desfavorável às suas causas. E você sabe que sou amigo do proletariado sem ser inimigo dos patrões. Sou um homem sem partido nem paixões.

– Vamos, Lucas, diga logo o que é que você quer.

– Você me garante, sob palavra de honra, que este esquife não será violado esta noite?

– Ora, homem, deixe de besteiras, não existem entre nós necrófilos nem vampiros.

De novo o prefeito, o juiz, o vigário, o médico, o delegado e o Cel. Vacariano confabularam em voz baixa. Este último propôs voltar para a cidade, reunir os seus “caboclos”, armá-los, tornar à esplanada e romper as fileiras proletárias usando da maior violência possível, “pra que isso sirva de escarmento a esses bandidos comunistas”. O vigário limitou-se a baixar a cabeça, mas o juiz disse:

– Como estamos em minoria, acho a proposta do Lucas aceitável. É a única coisa sensata que podemos fazer no momento. Voltemos para as nossas casas e demos tempo ao tempo.

E assim ficaremos desmoralizados pelo resto da vida – criticou-o o patriarca dos Vacarianos.

– Coronel, – explicou o prefeito – perderemos esta batalha mas ganharemos a guerra. Não seja assim tão pessimista.

Uma catléia acenou-lhe de longe, em seus pensamentos. Vivaldino voltou-se para Geminiano:

– Onde deixamos o esquife?

– Junto com os cinco que lá estão perto do muro do cemitério.

– Vocês o carregam?

– Não. Carreguem vocês que são donos da defunta. Os quatro genros, que suavam frio, tornaram a segurar as alças do caixão da sogra, ergueram-no e encaminharam-se com passos incertos e cambaleantes de bêbedos rumo do cemitério. Na fileira dos grevistas abriu-se um pequeno claro para deixá-los passar.

– Onde colocamos o fèretro? – perguntou o genro farmacêutico.

– Perto desse aí. É o caixão dum indigente. Não tenham receio. Pobreza não é doença contagiosa.

Os genros obedeceram. Lançaram um rápido olhar para o belo esquife da sogra e depois se afastaram rápidos, voltando para o seu grupo.

Quando o Maj. Vivaldino se encaminhava para o seu carro, seguido pelos companheiros, a multidão, que até então se mantivera um tanto distante das personagens principais do drama, aproximou-se dele, cercando-o. Antes de entrar no seu Mercedes o prefeito aproveitou a oportunidade para fazer um pequeno discurso:

– Há momentos na vida dum homem público – disse com voz grave, erguendo a mão direita com o indicador teso – em que seu maior ato de coragem é o de passar por fraco, por covarde aos olhos do povo. Mas que ninguém interprete mal o que acaba de acontecer, é o que eu desejo e espero! Isso não vai ficar assim! Tão certo como existe um Deus no Céu, hei de responsabilizar os grevistas na pessoa de seu chefe Geminiano Ramos, não só por desacato às autoridades constituídas como também por esse sacrilégio infame de impedir o sepultamento de uma das damas mais ilustres e queridas de nossa sociedade. Os senhores foram testemunhas da nossa paciência e da nossa tolerância. Não permiti que a minha polícia atirasse nos grevistas para evitar uma... um massacre. Mas quero comunicar ao povo de Antares que tenho forças suficientes para abafar qualquer tentativa de subversão da ordem, venha de onde vier. Tenho dito.

Calou-se. Ouviu-se um vago “muito bem” no meio da multidão. Não houve, porém, aplausos. Vivaldino tornou a apresentar condolências aos quatro genros. (“Os senhores viram. Fizemos o possível. Mas tenham paciência. A coisa não fica assim.”) Abraçou um a um os quatro homens de preto, os quais em seguida se dirigiram em silêncio, luto no corpo e nas faces, rumo de seus carros, onde as respectivas esposas os esperavam aflitas.

No momento em que eles passavam por dois sujeitos que estavam sentados em cima duma pedra, um destes, o que picava um pedaço de fumo em rama, murmurou para o outro:

– Viste a cara dos genros da velha Quita?

– Vi. Coitados.

– Coitados? Coitado de mim que não recebo os meus vencimentos há três meses e estou devendo a meio mundo. A “tristeza” desses quatro sujeitos nada tem a ver com a morte da sogra. A velha era uma tirana.

– Que é, então?

– Estão preocupados porque D. Quitéria foi enterrada com as suas jóias mais preciosas.

– Não diga, chê!

– Pois é. Um anel com um diamante do tamanho dum grão-de-bico. Um broche de rubis. Um colar de pérolas legítimas. Uns brincos não sei bem de quê... parece que de esmeralda. E uma pulseira de ouro maciço. Jóias de família.

– Bá!

– É para você ver... Esses caras estão preocupados porque dentro daquele caixão vão ficar abandonados centenas de milhões de cruzeiros...

– Pô!

 

O piquete do C.T.G. pôs-se em movimento. O patrão recomendou aos companheiros que não tocassem os ginetes a galope para a coisa toda não dar a impressão de retirada e derrota. A banda de música fazia muito se havia dispersado, pois o seu maestro tinha um horror neurótico às balas perdidas. Os automóveis do cortejo também se puseram em movimento, rumo do centro da cidade.

Dentro do seu Cadillac, sentado entre a esposa chorosa e o Dr. Lázaro, que lhe tomava o pulso, Tibério Vacariano ainda of egava. “Nunca...” – murmurou – “nunca em toda a minha vida... nunca nenhum homem me derrubou... nunca me encostou a mão na cara... nunca... nunca nenhum filho da mãe me desarmou... nunca nestes setenta anos da minha vida... Canalha! Ele me paga... Não perde por esperar...” O Dr. Lázaro continuava segurando entre o polegar e o indicador o pulso do seu ilustre cliente, enquanto olhava para o próprio relógio-pulseira. O padre voltou para o seu amigo uma face consternada. “Que tal, doutor?” – perguntou. O Dr. Lázaro disse: “O pulso está voltando ao normal. D. Lanja, bote este homem na cama imediatamente. O essencial agora é o repouso. Vou receitar um tranqüilizante”.

– Não tomo essa bosta!

– Toma, sim – murmurou sua mulher, maternal. – É pro teu bem, Tibé.

– Hoje ele não deve jantar, só pode tomar líquidos – tornou o médico. – Faça-lhe um caldo de galinha. Nada de café nem de cigarro. Repouso e dieta.

Tibério, a cabeça atirada para trás contra o respaldo, rosnava: “Um calhorda qualquer... na frente de toda aquela gente. E nenhum dos meus filhos presentes pra me ajudar. Se eu não meter uma bala no meio da testa daquele bolchevista me considero desonrado. Não posso mais andar na rua sem morrer de vergonha e tristeza”.

– Coronel – reclamou o Dr. Lázaro – se o senhor continua assim, acho que tenho de levá-lo para o hospital.

– Hospital? Eu? Nunca. Só se me carregarem amarrado!

– Pois então faça o que o doutor está te recomendando – interveio a esposa.

– A cama é só por hoje – explicou o médico. – Amanhã talvez o senhor já possa se levantar. Vamos bater logo um eletrocardiograma.

– Já me vem você com o seu gramofone. Meu pai viveu mais de oitenta e cinco anos sem precisar dessas frescuras.

Fez-se um silêncio dentro do automóvel. Estavam já perto da Praça da República. Via-se muita gente nas calçadas. “Por que é que estão me olhando?” – perguntou Tibé-rio. – “Decerto sabem que um operário sujo me desarmou e me derrubou. Decerto estão fazendo troça de mim.” Lágrimas rebentaram-lhe nos olhos e escorreram-lhe pelas faces.

 

Geminiano concluiu que, se tivessem de ficar ali junto aos féretros, seria desagradável para seus companheiros revezarem-se durante a noite inteira na guarda da entrada do cemitério. O melhor que podiam fazer para evitar que durante a madrugada “o inimigo” se infiltrasse na esplanada e viesse sepultar os seus mortos, era deixar grupos de quatro homens montando guarda à boca de cada uma das ruas que davam para o pequeno planalto.

Foi o que se fez. Quando a noite caiu – morna, estrelada, pingada de vaga-lumes e rascada de grilos – o alto da colina estava completamente deserto de humanidade viva. Numerosas turmas de formigas faziam serão. Lagartos corriam por entre macegas e caraguatás. Aves noturnas fre-chavam o ar em vôos curtos, acomodavam-se nas árvores ou nos túmulos, eventualmente bicavam insetos ou vermes.

Cerca das três da madrugada, um vulto humano saiu de seu esconderijo – um valo encoberto pela copa de árvores – e caminhou meio agachado na direção do cemitério. O seu nome? Nem ele mesmo se lembrava, direito, pois tinha usado muitos em sua vida, um para cada cidade onde operava. Estava sendo procurado pela polícia de muitos municípios por delitos de furto e roubo. Soubera à tardinha que o mais fino dos sete esquifes insepultos continha uma defunta ricaça, coberta de jóias valiosas. Fizera o seu plano e metera-se no valo, antes do sol sumir-se. Agora, se conseguisse fazer o “serviço” rapidamente e fugir para o estrangeiro, poderia ir vendendo as jóias aos poucos, com a maior precaução. Um cúmplice o esperava com um cavalo enci-lhado, numa das muitas encruzilhadas nas vizinhanças de Antares. Ele tentaria cruzar o rio perto da divisa com o Estado de Santa Catarina e tentar a sorte na Argentina ou mesmo no Paraguai.

Continuou a andar com toda a cautela, parando de quando em quando para olhar em torno e ficar atento aos ruídos da noite. Levava no bolso do casaco uma lanterna elétrica e no das calças um pé-de-cabra. Era a primeira vez que ia espoliar um cadáver. O principal era não chamar a atenção dos operários que guardavam as entradas das ruas, a uns duzentos metros dos muros do cemitério. Só acenderia a lanterna quando o caixão estivesse já aberto e ele precisasse localizar as jóias no corpo da defunta.

Seu coração batia sereno. Tinha bons nervos. Se não tivesse, não poderia exercer aquela profissão.

Chegou a uma das esquinas do cemitério e sondou com o olhar a entrada das ruas fronteiras. A cidade estava às escuras. À fraca luz da lua não divisou nenhum vulto humano. Felizmente a uns dez metros à frente do muro principal do cemitério estendia-se um longo renque de cinamo-mos copados, que produziam uma zona de sombra onde ele poderia trabalhar sem ser percebido. Teria o cuidado de esconder a luz da lanterna com o próprio corpo.

Sempre colado ao muro (boa idéia, ter vestido a roupa clara) o ladrão aproximou-se dos sete esquif es. O primeiro deles, bem à frente do portão da entrada, era preto e havia sido trazido às cinco da tarde. O seguinte – o claro e pequeno – era o que procurava. Ajoelhou-se ao pé dele, de-satarraxou-lhe a tampa e, contendo a respiração, ergueu-a, fazendo-a depois escorregar de mansinho para um lado. Tirou a lanterna do bolso e acendeu-a. Focou primeiro as mãos da morta, pois ouvira falar no famoso solitário de brilhante- Opa! Naqueles dedos cor de cera de abelha não viu nenhum anel. Os pulsos estavam sem pulseiras. Iluminou o peito da defunta e não viu nenhum broche. No pescoço, nenhum colar... Numa relutância supersticiosa focou o rosto do cadáver da dama e estremeceu. Os olhos dela estavam abertos, seus lábios começaram a mover-se e deles saiu primeiro um ronco e depois estas palavras, nítidas: “Senhor, em vossas mãos entrego a minha alma”. O ladrão soltou um grito abafado, ergueu-se rácido, deixou cair a lanterna acesa e o pé-de-cabra, e rompeu a correr na direção dos campos desertos...

 

Quando viva, Quitéria Campolargo gostava de ficar às vezes contemplando o céu da noite – “garimpando estrelas”, como ela própria costumava dizer. Era uma espécie de jogo divertido que de certo modo a aproximava mais de Deus. Mantinha longos namoros com as constelações – Orion, o Cão Maior, o Sagitário, o Triângulo Austral, o Centauro e principalmente o Cruzeiro do Sul que, por misteriosas artes do coração e da memória, ela não considerava uma constelação universal, mas parte do patrimônio brasileiro. Quando lhe acontecia alguma coisa que a entristecia, levando-a a descrer das criaturas humanas, ela procurava no céu o Escorpião e, se ele já estivesse visível, localizava a estrela An-tares, pensava no seu diâmetro mais de quatrocentas vezes maior que o do Sol, comparava essas grandezas astronômicas com as mesquinharias de sua terra e de sua gente e acabava encontrando no confronto um profundo consolo que a punha de novo em paz com o mundo e a vida. E sempre que se sentia melancólica ou entediada e vinham dizer-lhe que alguém a chamava ao telefone, respondia: “Diga que não estou em casa, que fui para Aldebarã...”.

Agora, estendida no seu esquife, D. Quitéria está de olhos abertos e parece contemplar um pedaço do firmamento da madrugada. Apalpa as contas do rosário, que tem entre as mãos enlaçadas, e seus lábios se movem formando as palavras duma prece.

Um vaga-lume esvoaça no campo de sua visão e acaba pousando na ponta de seu nariz. Ela o enxota com um movimento de cabeça. Depois, agarrando ambas as bordas do caixão, soergue-se devagarinho, permanece um instante sentada, olhando em torno – a solidão da esplanada e da noite, e aquela mancha luminosa e redonda num muro branco...

Retomando a prece do princípio, num sussurro – Pai Nosso que estais no Céu – ela se vai aos poucos levantando – santificado seja o Vosso nome – e por fim fica numa posição perpendicular ao esquife – venha a nós o Vosso reino – depois ergue a perna direita por cima da borda do caixão e estende o pé devagarinho, como quem experimenta a medo a temperatura da água duma banheira – seja feita a Vossa vontade – e a sola de um de seus sapatos toca o chão, seus dedos apertam a cruz do rosário – assim na Terra como no Céu... Ao terminar o Padre-Nos-so, está já fora do esquife, ambos os pés no chão, os olhos fitos num outro caixão – esse negro, com alças prateadas, e no qual ela se põe a bater de leve com o bico dos sapatos.

Durante alguns minutos a defunta fica a olhar em torno – para a esplanada, o céu, o muro do cemitério, a lanterna acesa caída no chão... Depois se põe de joelhos e nessa posição, lentamente, faz a volta do esquife vizinho, desatarraxando-lhe a tampa, que tenta em vão erguer, terminada a operação. Bate três vezes com o punho cerrado na tampa do caixão negro, cujo ocupante responde, após segundos, com três batidas semelhantes. D. Quitéria vê a tampa que ela desaparafusou erguer-se lentamente e por fim cair para um lado. Um homem de estatura mediana e vestido de escuro sai do seu fèretro, dá alguns passos com uma rigidez de boneco de mola, olha a seu redor, inclina-se, apanha a lanterna, passeia a sua luz pelo muro do cemitério, depois pela copa dos cinamomos, projeta-a contra a esplanada e por fim foca o rosto da dama, que continua ajoelhada.

– D. Quitéria Campolargo! – exclama o desconhecido. – Que honra! Que prazer!

– Quem é o senhor?

– Vamos ver se me reconhece...

Volta o feixe luminoso da lanterna sobre o próprio rosto.

– Estou conhecendo... mas não tenho a certeza.

– O Dr. Cícero Branco!

– Mas a sua cara está diferente.

– A morte, que eu saiba, nunca melhorou a cara de ninguém.

– O que me despistou foi essa mancha arroxeada no lado direito de seu rosto... Mas quando foi que o senhor. .. faleceu?

– Ontem, se não me falha a memória.

– Coração?

– A mancha que a senhora vê pode ser um sinal de que fui fulminado por uma hemorragia cerebral maciça. Eu ia atravessando a praça quando de repente tudo ficou escuro.

D. Quitéria põe-se de pé, ergue a cabeça para o céu.

– Pela posição do Cruzeiro do Sul acho que são três horas da madrugada. Como se explica que estamos ainda insepultos e abandonados fora dos muros do cemitério?

Cícero encolhe os ombros.

– É isso que me intriga. Mas estou também curioso por saber como foi que a senhora conseguiu sair de seu es-quife...

– Ora, eu estava serena no sono da morte quando de repente vi uma luz fortíssima. Imaginei que fosse o olho luminoso de Deus e disse-. “Aqui estou, Senhor, em Vossas mãos entrego a minha alma!”. Ouvi um grito de susto, a luz caiu e entrevi o vulto dum homem que saía disparando. ..

– Possivelmente um desses profanadores de cemitérios ...

– Talvez tenha sido isso mesmo, um ladrão... – Põe-se a apalpar os dedos, o pulso, o peito, o pescoço, as orelhas. – Ai! Fui roubada, doutor! O bandido levou todas as minhas jóias! – Levanta-se. – Fui roubada! Meu Deus! Jóias antigas de família...

– Desculpe-me, D. Quitéria, mas asseguro-lhe que a senhora foi posta no seu esquife sem nenhuma das suas jóias, nem mesmo a aliança de casamento.

– Como é que o senhor sabe?

– Simples. Fui ao seu velório prestar-lhe uma homenagem. Por sinal levei-lhe um ramo de gladíolos vermelhos e amarelos, que eu mesmo depositei junto de seu corpo. Fiquei algum tempo a seu lado. Seu amigo Tibério Vacariano é testemunha desse fato. Conversamos a seu respeito, fizemos os maiores elogios (aliás muito merecidos) à sua pessoa. Mas repito, sob palavra de honra, que não vi no seu corpo nenhuma jóia.

– Mas eu deixei com minhas filhas e meus genros disposições escritas muito claras: queria trazer comigo para a sepultura todas as jóias que herdei de meus antepassados ...

– As suas disposições não foram então cumpridas.

– Tratantes! Gananciosos!

Ela sai a caminhar devagarinho dum lado para outro, arrastando os pés, com as mãos na cintura.

– D. Quitéria, eu não os censuro. Seria um desperdício sepultar nesse caixão algumas centenas de milhões de cruzeiros...

– Mas não basta o que lhes deixo em terras, casas, títulos, dinheiro, sim, e outras jóias de valor?

Cícero Branco encolhe os ombros:

– A cobiça humana não tem limites, minha senhora.

– Bom, quero lhe agradecer por ter ido ao meu velório. Obrigada pelos gladíolos.

– Não me agradeça. Já que estamos mortos e não somos mais personagens da comédia humana, posso ser absolutamente franco e confessar-lhe que a homenagem que lhe prestei teve uma finalidade utilitária. Eu queria agradar a sua família, pois estava de olho no inventário de seus bens.

– Bom, já que estamos no jogo da verdade... nunca simpatizei com o senhor.

– Ora, por quê?

– Porque sempre o tive na conta dum advogado chi-canista e desonesto.

– Ninguém jamais me acusou de incompetente.

– Não vejo nenhuma incompatibilidade entre a competência e a honestidade.

– D. Quitéria, com o devido respeito à sua pessoa, conheço tão bem a história da sua família, que poderia escrever sobre os Campolargos um livro de arrepiar os cabelos. Seu tio e sogro Benjamim não era nenhum santo. Aí nesse cemitério estão enterradas umas oito ou dez pessoas que ele mandou matar ou matou com as suas próprias mãos. Quanto a roubalheiras, peculatos e abigeatos, os Campolargos só perdem para os Vacarianos...

– Bastai – exclama a velha. – Basta! Se não estamos sepultados, enterremos pelo menos o passado de nossas famílias.

Tira a lanterna bruscamente da mão do advogado e faz incidir seu raio luminoso sobre os outros cinco caixões ali enfileirados.

– Quem são esses?

– Gentinha sem importância, com exceção de dois...

– Por que não os tiramos para fora desses... dessas caixas?

– Estou lhe prevenindo que não são pessoas da sua classe...

– Bobagem! Morto não tem classe. Além disso, estou curiosa para ver as caras desses viventes, quero dizer, desses mortos.

– Seja feita a sua vontade. Tenha então a bondade de sentar-se.

Quitéria senta-se na cabeceira do próprio esquif e, o rosário sempre entre os dedos e começa a balbuciar uma oração muito antiga, que no tempo de menina aprendeu de sua avó numa noite de tempestade.

O Dr. Cícero começa a abrir o primeiro dos outros féretros. Em poucos momentos tem a seu lado o vulto dum homem mais alto que ele. Ambos entram numa altercação em surdina. Cícero ilumina’ com a luz da lanterna a cara do terceiro defunto e depois a própria.

– Você também por aqui?

– Pois é. Coisas da vida. Depois eu explico. Me ajude a abrir os outros quatro caixões.

O próximo, de qualidade ordinária, é feito de tábuas rústicas, pregadas. O advogado apanha do chão o pé-de-cabra que o ladrão deixou cair, e começa a forçar as tábuas da tampa, enquanto o outro homem desatarraxa o esquife seguinte. Dentro de poucos minutos D. Quitéria Campolargo tem diante de si, naquela faixa de sombra mais escura que a noite, seis vultos.

– Bom! – diz o Dr. Cícero. – Enfileirem-se contra o muro, que eu quero fazer as apresentações...

– Quem é você para me dar ordens? – protesta o homem alto de voz grave e áspera.

– Ó criatura! – replica o advogado. – Você não compreende que estamos todos mortos e que essas susceti-bilidades dos vivos acabaram-se para nós? Mas se você ainda vai atrás de palavras, reformulo o meu pedido: “Façam a fineza de se enfileirarem naquele muro por alguns instantes ...”

Todos obedecem e ficam de costas para o muro do cemitério, como diante dum pelotão de fuzilamento.

 

Como um mestre-de-cerimônias, Cícero faz o raio de luz da lanterna elétrica iluminar o rosto do primeiro homem da fila, o mais alto de todos: uma face eqüina, a pele dum moreno de cigano, cabelos e bigodões grisalhos, a arcada dentária muito saliente, os dentes amarelados e fortes.

– Este é o José Ruiz^ vulgo Barcelona.

– O sapateiro comunista! – exclama D. Quitéria.

– Alto lá, minha senhora! – protesta o apresentado, erguendo a mão. – Não confunda anarco-sindicalismo com comunismo. Considero isso um insulto às nossas idéias!

– De que morreu? – quer saber a matriarca dos Cam-polargos.

– Não sei nem me interessa – replica o sapateiro.

– Eu posso esclarecer – intervém o advogado. – Duma ruptura de aneurisma.

Os lábios arroxeados do sapateiro se arreganham: a dentuça fica descoberta até às gengivas descoradas, e ele começa a rir baixinho, enquanto esfrega o peito com ambas as mãos.

– Isso tinha de acontecer mais tarde ou mais cedo. Cícero foca um dos esquifes:

– Veja, Barcelona. Você deve o seu caixão, que não é nada mau, a uma gentileza da prefeitura municipal.

– Alto lá! Antes de mais nada, não sou nenhum indigente. Não peço nem aceito favores do poder constituído. Como não tenho herdeiros e sou viúvo, o governo vai ficar com a minha casa e a minha oficina. Esse caixão vagabundo custou uma ninharia. A prefeitura lucra com a minha morte!

– Vamos ao defunto seguinte... – diz Cícero.

– Não use essa palavra horrenda – pede D. Qui-téria. – Diga “pessoa”.

O raio de luz mostra agora um homem de cabeça grande, rosto alongado, ombros estreitos, pele duma palidez de cera. Está metido numa casaca que lhe assenta muito .mal. As calças lhe ficam a meia canela. A camisa é branca, de colarinho mole, sem gravata. Seus pés estão metidos em sapatos amarelos.

– O Prof. Menandro Olinda! – exclama D. Quitéria.

– Ele mesmo – confirma o advogado. – Suicidou-se abrindo as veias dos pulsos.

As mãos do pianista, com os pulsos envoltos em ata-duras, pendem-lhe abandonadas de cada lado do corpo, como entidades independentes de sua pessoa física.

D. Quitéria meneia a cabeça, estralando a língua entre os dentes, num sinal de reprovação.

– Então isso é coisa que um cristão faça, maestro? – repreendeu-o ela com ar professoral. – O suicídio é um grande pecado contra as leis de Deus.

Olinda tem os olhos revirados para o céu, a cabeça atirada para trás contra o muro.

– Vamos ao seguinte – ordena a velha.

– O seguinte é do sexo feminino – explica Cícero, iluminando o rosto duma mulher.

– Cruzes! – exclama D. Quita. – Que é isso?

É uma mulher descalça que aparenta mais de cinqüenta anos, duma magreza quase esquelética, metida num camisolão dum pano grosseiro de hospital de indigentes.

– Essa é a Erotildes, que entre 1925 e 1945, por sua graça e beleza, foi das prostitutas mais famosas de Antares.

Era a fêmea mais procurada do bordel da Venusta, a carne mais cara daquele perfumado açougue humano. Erotildes virou a cabeça de muita gente na nossa cidade, até de homens casados, senhores considerados virtuosos. D. Quita, seu amigo Tibério Vacariano teve Erotildes como amante exclusiva durante quatro anos...

– Cinco – corrige a mulher, sôfrega.

– Com o passar do tempo sua carne foi baixando de qualidade e de preço. Erotildes caiu tanto de categoria que aos quarenta e poucos anos andava pelas ruas caçando homens, vendendo o corpo a qualquer preço... Cinco mil-réis, não, Erotildes?

– Até dois – murmura ela, baixando a cabeça. – Eu não queria morrer de fome.

D. Qui teria rebate:

– Mas será que você nunca pensou em procurar um trabalho decente, menina?

Barcelona dá um passo à frente e protesta:

– Afinal de contas, isto é uma apresentação ou um julgamento? Termine duma vez esta farsa, Dr. Cícero!

– De que foi que essa mulher morreu? – quer saber D. Quitéria. E Erotildes apressa-se a informar, com certa faceirice:

– Tísica.

– Mas hoje em dia ninguém mais morre disso. Com todos esses antibióticos...

– É verdade – diz o advogado – mas Erotildes estava recolhida à ala dos indigentes do Hospital Salvator Mundi. O Dr. Lázaro alegava que na farmácia do hospital nem em nenhuma outra da cidade existia estreptomicina. Prometeu mandar buscar o remédio fora, mas pelo visto esqueceu...

– Adiante! – comanda a velha senhora.

A luz revela agora o rosto dum homem todo manchado de equimoses, com um dos olhos quase fora das órbitas. Tem-se a impressão de que foi espancado com violência e de que o braço direito, todo quebrado, está preso ao corpo apenas por um barbante.

– Este é o João Paz, jovem inteligente e idealista. Levou muito a sério o sobrenome e tornou-se um pacifista ardoroso. Organizou em Antares um comício contra a participação dos Estados Unidos na tentativa de invasão de Cuba. A polícia dissolveu-o a pauladas. Joãozinho foi preso, passou uma semana na cadeia, foi solto... tornou a ser preso. Bom, é uma estória muito comprida.

– De que morreu? – indaga D. Quita.

– De embolia pulmonar, no Salvator Mundi.

– Mentira! – brada João Paz. – Fui torturado e assassinado na cadeia municipal pelos carrascos do delegado Inocêncio Pigarço!

O Dr. Cícero faz um gesto de contrariedade resignada.

– Ó Joãozinho, tenha paciência, isto é apenas uma apresentação perfunctória. Depois darei os pormenores da sua biografia.

O raio de luz mostra agora a cabeça dum homúnculo de idade indefinida, tipo bugróide, bochechas túmidas de cachaceiro, a pele com algo que lembra o couro curtido, os olhos injetados.

– Santo Deus! – exclama D. Quitéria. – Que é “isso”!?

– O maior beberrão de Antares – diz o advogado – o nosso famoso Pudim de Cachaça.

O homem sorri, mostrando os dentes podres.

– Boa noite, dona! – diz, inclinando a cabeça em direção da dama. Depois, pondo as mãos em pala sobre os olhos, como protegendo-os da luz da lanterna, pergunta ao mestre-de-cerimônias: – Doutor, do que foi que eu morri?

– Só pode ter sido de cirrose do fígado – diz D. Quitéria.

– Essa seria a causa mortis esperada, mas o nosso Pudim não morreu de morte natural. Foi assassinado.

– Qual! – sorri o cachaceiro. – Eu assassinado? Nunca tive inimigo na vida. E quem é que ia gastar pólvora com este chimango velho? Quem foi que me matou?

– A tua mulher.

– A Natalina? Não acredito. O senhor está brincando comigo, doutor. Minha mulher não é capaz de matar nem uma mosca.

– Talvez, mas botou na tua comida uma dose de veneno que dava para liquidar um cavalo.

Por um instante Pudim de Cachaça mantém a boca aberta, num espanto.

– Não acredito! – diz por fim, meneando a cabeça. – Dessa ninguém me convence.

– Eu vi o resultado da necropsia.

– Fale língua brasileira, doutor.

– Pudim, na polícia um médico abriu o teu estômago e descobriu arsênico no que tu tinhas comido ao almoço.

– Pode ser. Mas a Natalina não tem nada a ver com isso.

– Mas se ela confessou, homem!

Por um instante Pudim de Cachaça fica em silêncio, passando a mão pelo queixo mal coberto por uma barba rala e dura de caboclo.

– Mas por quê? Por quê?

– Declarou ao delegado que estava cansada de te agüentar. Contou que, além de ter de trabalhar como uma escrava para te sustentar, tu às vezes chegavas em casa alta madrugada, embriagado, e batias nela.

A cabeça baixa,. Pudim risca o chão com a ponta do dedo grande dum dos pés descalços.

– É verdade? – pergunta D. Quitéria, com matriarcal austeridade.

Ele hesita mas por fim balbucia:

– É, dona. Sempre fui uma peste. Pobre da Natalina! Tomara que não botem ela na cadeia.

– Já está presa – informa o advogado. – Vai ser julgada no mês que vem.

– Que bosta! – exclama o cachaceiro. – Me desculpe, dona, o nome feio m’escapou. ...

Cícero Branco faz incidir o raio da lanterna sobre o rosto da ricaça:

– Pois, amigos, aqui temos conosco D. Quitéria Cam-polargo, uma das damas mais ilustres, senão a mais ilustre, da sociedade de Antares.

– Dona Quita! – exclama o Barcelona. – Quem diria! Muita meia-sola c salto botei em sapatos seus e de sua gente. Nestes meus quase trinta anos de Antares tenho ferrado os cascos de mais de metade dos membros da burguesia local.

Os cinco defuntos cercam Quitéria Campolargo. Ero-tildes inclina-se sobre ela e murmura:

– A senhora não imagina a honra que é pra mim estar aqui ao seu lado.

A velha encolhe-se, recuando o busto, brusca.

– Não fale com a boca em cima da minha cara, mulher!

Barcelona solta uma risada:

– Não me diga que a senhora tem medo dos bacilos da tuberculose...

– Tome nota, Joãozinho – sorri o advogado. – Nem na morte a gente se livra dos reflexos condicionados...

Erotildes toca de leve, tímida, o ombro de Cícero.

– Posso fazer uma pergunta, doutor?

– Ora essa! Pode.

– Estamos no Céu ou no Inferne?

– Nem num lugar nem noutro. Estamos todos do lado de fora do cemitério de Antares, insepultos.

Pudim de Cachaça, que há alguns segundos olha atentamente na direção da cidade, murmura:

– Já repararam? Não se vê nenhuma luzinha em Antares... Nem nas ruas nem nas janelas. Sabem o que eu acho? Fomos abandonados aqui porque houve uma peste que liquidou toda a população da cidade. Ou então os argentinos invadiram o Brasil e mataram a nossa gente. Ou quem sabe os russos, os chineses e os americanos começaram uma guerra atômica e destruíram a humanidade.

– Ah! – exclama Barcelona de repente, dando uma palmada na própria testa. – Já sei... Está tudo claro. A greve continua...

– Mas que é que nós temos a ver com essa greve? – pergunta D. Quitéria.

– Na véspera da minha morte, tomei parte na assembléia geral dos industriados (com direito de voz mas não de voto) e discutimos todos os meios de pressionar os patrões e as autoridades para conseguirmos os objetivos dos grevistas. Pedi a palavra e sugeri que metessem os coveiros na greve geral e que não permitissem nenhum sepultamento no cemitério enquanto os patrões não dessem ganho de causa aos operários. Agora tudo está explicado!

E não tem vergonha de nos contar isso agora?

– Só um homem com sangue espanhol nas veias podia ter tido uma idéia como essa – gaba-se o sapateiro. – Meus avós e meus pais nasceram na terra de Cervantes e Unamuno.

– Pois o feitiço virou contra o feiticeiro – disse D. Quita. – Você nunca esperou ser vítima de seu próprio estratagema. Bem feito!

– Vítima, distinta dama? Ora, pra mim tanto faz apodrecer debaixo da terra como em cima dela. Sou materialista. – Apalpa-se. – Só não esperava apodrecer com consciência...

E a sua icéia foi aceita na assembléia? – pergunta Cícero, apagando a lanterna.

– Por unanimidade, apesar do Pe. Pedro-Paulo, que é um inocente, ter falado durante quase meia hora contra ela.

Uma ave noturna – morcego ou coruja? – esvoaça por cima dos muros do cemitério e atufa-se na folhagem dum dos cinamomos.

Pudim de Cachaça apalpa cuidadosamente o estômago, murmurando:

– Me costuraram mal e porcamente.

Erotildes passa a mão pelos cabelos num gesto em que há um resquício de coquetismo.

Barcelona senta-se no chão, fica por um momento de cabeça baixa e depois diz:

– Será que estamos mesmo mortos?

– Ponha a mão no coração e veja se ele bate – sugere o advogado.

O sapateiro espalma a manopla sobre o peito e fica atento por um instante.

– Não bate. – Segura o pulso com o polegar e o indicador. – Não tenho pulso.

– Eu não respiro – diz João Paz. Cícero segura o ventre com ambas as mãos:

– Sinto que os saprófitas já estão em plena atividade nas minhas entranhas...

– Se somos mesmo cadáveres, como se explica que estamos aqui falando, trocando opiniões e idéias... com a memória funcionando... – indaga D. Quita, interrompendo a oração para os perdidos no mar, mas conservando o rosário entre os dedos.

– Minha senhora – responde o advogado – eu não explico. Confesso que não sou versado em ocultismo, teologia ou espiritualismo. De tanatologia conheço apenas o que um advogado que se preza deve conhecer... No mais, tenho lido livros da minha especialidade. Há milênios os melhores cérebros que a humanidade tem produzido vêm se debruçando sobre os mistérios da vida e da morte. Ninguém, que eu saiba, disse ainda a palavra definitiva.

Menandro olha para as estrelas, cantarolando a frase inicial da Appassionata.

Cícero cita: “A vida é um longo hábito...”.

– A vida é um vício – diz Barcelona.

– No meu caso – murmura o professor de piano – um vício solitário e triste.

D. Quitéria olha para o céu:

– Viver, para muitos, às vezes parece até uma espécie de cacoete.

 

– Acho que estamos filosofando demais – queixa-se Barcelona. – Precisamos fazer alguma coisa!

– Que pressa é essa? – pergunta o advogado. >– Temos diante de nós o resto da vida, quero dizer, da morte... da eternidade, se é que a eternidade pode ter resto. E por falar nisso, que horas serão? – Acende a lanterna e ilumina o próprio pulso. – Minha extremosa esposa decerto achou que o meu Omega de ouro era um relógio bom demais para eu trazer para a sepultura...

– O meu relógio sumiu-se na delegacia – diz João Paz. – A esta hora deve estar no pulso do homem que me assassinou.

– Empenhei o meu há vinte anos – suspira Erotildes – e nunca mais tive dinheiro pra tirar ele do prego.

Barcelona apalpa os bolsos:

– Acho que alguém afanou o Patek-Philip que herdei do meu pai...

– Nunca tive relógio na vida – confessa Pudim de Cachaça. – Pra falar a verdade, nunca me preocupei com o tempo.

D. Quita consulta suas estrelas:

– Deve ser quase quatro da madrugada.

– Que horas serão no relógio de Deus? – pergunta a ninguém Menandro Olinda. – Que dia será hoje no Seu calendário?

Barcelona põe-se a andar lentamente ao longo do muro do cemitério. O Prof. Menandro senta-se no seu caixão e coloca ambas as mãos sobre as próprias coxas com o cuidado de quem deita em seus berços duas crianças adormecidas. Vaga-lumes pousam “na cabeça de Erotildes, e ali ficam como uma efêmera tiara de diamantes.

De pé, encostado no tronco de um dos cinamomos, João Paz murmura:

– Tenho a impressão de que somos passageiros sem bagagem, que perderam um trem e estão esperando o próximo, que ninguém sabe quando vai passar. Como nossos bilhetes estão em branco, não sabemos qual é o nosso destino.

– Ah! Isso é que não! – rebate D. Quitéria. – Os hereges, os ateus, esses não sabem para onde vão. Mas quem tem fé em Deus e na sua Igreja conhece o seu destino depois da morte.

Barcelona acerca-se da dama e, com sua voz grave e meio rouca, diz:

– A senhora passou a vida inteira pagando o preço dessa passagem para o Céu com obras de caridade, missas, rezas, promessas...

– Não seja mal-educado, Barcelona! – repreende-o o advogado. – Devemos respeitar as convicções alheias.

Barcelona passa as mãos pela cabeleira hirsuta.

– Me diga uma coisa, D. Quitéria, agora que a senhora está morta... já viu Deus, como lhe prometia a sua Igreja, o seu padre e os seus livros de reza?

– Estúpido! Ignorante! Minha alma está a caminho de Deus. O que você tem aqui é o meu corpo, que os vermes já estão roendo. Como é que vou fazer um renegado, um anarquista, um atirador de bombas, um subversivo compreender essas coisas espirituais?

O sapateiro solta uma risada líquida, que soa como um gargarejo:

– Está bom, D. Quitéria, não vou discutir com a senhora. Estamos todos agora no mesmo barco.

– Mas graças a Deus em camarotes separados – replica a velha.

– Prometo-lhe não me esquecer de minha condição de passageiro de segunda ou terceira classe – sorri sardònico o sapateiro.

Pudim olha para Erotildes.

E nós, moça, estamos no porão do navio.

O Dr. Cícero aproxima-se de João Paz e murmura:

– Pelo que estamos ouvindo, nem depois de mortas as pessoas perdem o gosto da metáfora.

– A vida bem pode ser uma metáfora do estro de Deus – diz o Prof. Menandro, mas em voz baixa, como para não despertar as suas filhas adormecidas.

D. Quitéria ergue-se, aproxima-se do professor de piano e senta-se a seu lado.

– Me diga uma coisa, professor. Como foi que o senhor teve a coragem de matar-se? Não sabe que só Deus é capaz de nos dar vida e só Ele tem o direito de nos tirar essa vida?

O pianista olha para as próprias mãos e, depois de curto silêncio, fala.

– Foi a hora do diabo, D. Quitéria... Eu estava em casa sozinho e desesperado. Tentei tocar a Appassionata, e mais uma vez falhei. Compreendi que tinha estado me iludindo a mim mesmo todos estes anos, fingindo acreditar na possibilidade dum novo concerto público e da fama. E a quem cabia a culpa de meu fracasso? A minhas mãos, essas ingratas! D. Quita, procure me compreender. O que fiz não foi propriamente suicidar-me, mas castigar as minhas mãos. Se eu quisesse me matar mesmo, tomaria veneno... ou meteria uma bala no crânio. Mas não! Cortei os pulsos com uma navalha. Assassinei as minhas mãos. Uma se prestou para matar a outra. Além de tudo, são fratricidas... D. Quitéria sacode a cabeça dum lado para outro.

– Está errado – disse – está tudo errado – repete – erradíssimo. Não compreendeu então que, cortando as veias, ia morrer dessangrado?

– Não sei, não sei... Eu estava confuso. Depois que seccionei as veias dos pulsos senti a dor, e quando vi sangue tive um momento de pânico. Mas logo a calma me voltou ... Deitei-me no sofá e fiquei olhando os objetos da minha sala... O retrato de meus pais... o piano, a máscara mortuària de Beethoven... a estante de livros, as partituras de música, o velho tapete... Quanto mais sangue eu perdia, mais fraco ficava, mais se esfumava a minha visão... E então tudo me pareceu um sonho estranho. Vi a minha vida passar, desde o princípio... como projetada por uma lanterna mágica na minha memória... Me senti primeiro no ùtero de minha mãe, encolhido, confortável, protegido, mãozínhas fechadas... Lembrei-me do momento exato em que nasci, deixando aquele ninho morno e entrando neste mundo. A senhora está duvidando, não? Depois eu já estava num berço... no dia em que ergui os braços e descobri as minhas mãos... Que surpresa! Aquelas coisas que se moviam... os meus primeiros brinquedos. Depois (a senhora me perdoe, D. Quitéria) quando adolescente, usei estas mesmas mãos para propósitos indecentes... sexuais, a senhora compreende? Pelo resto da vida minhas mãos foram minhas amantes... Prostituíram-me. Eu sentia remorsos, queria livrar-me delas, mas as desavergonhadas não me deixavam em paz e aproveitavam a hora em que eu dormia para me excitarem. Enquanto eu morria me lembrei também da primeira vez em que bati com o indicador da mão direita numa tecla de piano... e o resto, as primeiras lições, o curso em Buenos Aires... as pessoas que conheci na casa de meu professor... E uma noite no teatro Colón... assistindo a um concerto de Artur Schnabel. Ah!... e eu cada vez mais fraco... e gelado... Bem no fim revi, senti aquela noite terrível, no palco do São Pedro, eu tentando tocar a Appassionata... e as minhas mãos me atraiçoando em público... E depois a vaia... a vaia das galerias, os apupos, os assobios, os gritinhos... e, pior que a vaia, o silêncio caridoso da platéia... E então, ali no sofá da minha sala, que Deus me perdoe, senti que morrer devia ser doce... ficar livre para sempre da vergonha, da angústia, da solidão... de tudo!

D. Quitéria escutou-o em silêncio e depois perguntou.-

– Mas o senhor não sabe que os suicidas não podem entrar no Céu?

– D. Quitéria, eu tive em Antares uma amostra do inferno. A incompreensão, o sarcasmo, a impiedade dos an-tarenses me doíam fundo. O inferno não pode ser pior que Antares.

– Acho que o senhor está sendo injusto com a sua cidade e os seus conterrâneos.

A velha lançou para o maestro um olhar duro, quase inimigo:

E o senhor sabe que, como suicida, não pode ser sepultado em campo-santo?

Ele encolheu os ombros ossudos e começou a cantarolar o trecho duma sonata de Mozart. E seus dedos se movimentaram de leve, crianças que se agitavam no berço, como a se debaterem num sonho.

 

Afastados do grupo, agora João Paz e Cícero Branco estão frente a frente.

– Você sabe exatamente o que me aconteceu – diz o primeiro. – Por que não contou a verdade aos outros, seu canalha indecente, corrupto, covarde!?

– Joãozinho, contenha-se. Não me diga esses nomes feios. Você sabe que não posso nem sequer encabular, pois o sangue cessou de me correr nas veias.

– Você sempre foi um assalariado do velho Vacariano e do Vivaldino Brazão. O testa-de-ferro das negociatas desses dois crápulas. O factotum. Como é que você pode ser assim tão insensível, tão amoral?

– Ora, menino, um ser humano não é uma moeda apenas, com verso e reverso. É um poliedro, com milhares de faces. E há milhares de maneiras de ver uma pessoa, um ato, um fato. Você no fundo é tão maniqueísta e religioso quanto D. Quita, que acredita na moral absoluta. Em suma: estou diante dum socialista que ainda não se livrou da nomenclatura moralista burguesa.

– Não desconverse. Você sabe muito bem que não morri de pneumonia no hospital, mas fui, isso sim, assassinado na prisão. Você nega isso?

– Não.

E você também sabia muito bem que eu não cometi nenhum crime.

– Um momento! Não tenho o dom da ubiqüidade nem o da onisciência. Nem o próprio prefeito sabe de tudo quanto se passa na sua delegacia. Houve uma denúncia... O delegado Inocêncio é um fanático da justiça e um técnico. .. Ele afirma que você é o chefe em Antares do “grupo dos onze”. Queria saber o nome dos outros dez guerrilheiros potenciais. Interrogou você pelos métodos normais, aceitos pelas nossas leis, mas você recusou falar...

– Como é que eu ia confessar uma coisa que não sabia? Nunca tive nada a ver com esse grupo, se é que ele existe mesmo em Antares.

– Seja como for, o Inocêncio Pigarço não teve outra alternativa senão recorrer aos seus “métodos especiais”.

– Por que não diz a palavra exata: tortura?

– Ora, como advogado, cultivo quando me convém o hábito do eufemismo.

– Confesse que foi sua a idéia de transferir o meu cadáver para o hospital, em segredo, e lá simular uma morte natural.

– Confesso. Mas você poderia ter evitado a tortura e a morte se revelasse os nomes dos guerrilheiros de Antares.

– Mas eu não sabia de nenhum! E se soubesse, não os denunciaria!

– Ora, existem pelo menos uns sessenta comunistas fichados na polícia em Antares. Você poderia ter apontado dez deles como integrantes do grupo... e safar-se com vida.

– Isso seria uma indignidade! Eu jamais pagaria esse preço pela minha pele.

– Todo homem tem um preço. Não se faça de santo, João Paz. Qual é o seu?

– A justiça. A verdade.

– Abstrações. Você não saberia definir nenhuma dessas palavras. E mesmo agora nós aqui estamos todos numa situação em que as palavras têm muito pouco ou nenhum valor.

Cícero foca o rosto de João Paz com a luz da lanterna.

– Não pense, Joãozinho, que eu tenha ficado insensível ao que eles fizeram a você e ao que têm feito a muitos outros. Quando um homem como eu se mete com gente da laia do Vivaldino e do Tibério, fica tão enredado, tão comprometido, que o remédio é continuar, senão está perdido. Eu não queria saber do que se passava na delegacia do Ino-cêncio. A princípio costumava ter um peso na consciência, dormia mal, me recriminava, prometia a mim mesmo romper com a camarilha. Mas o dinheiro, que para alguns cheira mal, para mim tinha um perfume paradisíaco. O dinheiro e o sucesso. E a boa vida. Mas... você não acha que isto não é conversa própria para defuntos?

Faz menção de afastar-se, mas João Paz agarra-lhe o braço, detendo-o.

– Que foi que eles fizeram com minha mulher, depois que me assassinaram?

– O Inocêncio mandou prendê-la para interrogá-la.

– Ela foi maltratada... grávida como está?

– João Paz, você quer saber da verdade ou prefere uma resposta piedosa?

– Quero a verdade. Sempre quis.

– Tudo indica que foi ameaçada de tortura...

Com o punho direito fechado João Paz golpeia a cara de Cícero, que quase cai ao solo.

– Canalha! Pústula! Bandido!

– Não senti nada – diz o advogado. – Nem física nem moralmente. Acho seu gesto tão ridículo e absurdo quanto a nossa situação de mortos insepultos.

– Os bandidos do Inocêncio podem ter assassinado o nosso filho que ainda não nasceu...

– Poucas horas antes de morrer eu vi a Rita na delegacia. Inocêncio soltou-a e em seguida o Dr. Lázaro a examinou. O bebê estava vivo.

– Não acredito.

D. Quitaria ergue-se, depois de dar duas palmadinhas consoladoras no ombro do suicida, e diz em voz alta, como quem se dirige a uma assembléia:

– Precisamos fazer alguma coisa!

Cícero Branco congrega os outros seis cadáveres:

– Companheiros, não é por estar morto que vou deixar de ser o que fui em vida: um advogado. Estive arquitetando um plano...

– Fale! – ordena D. Quitéria.

– Qual é o nosso objetivo? O de sermos sepultados dignai.iente, como é de nosso direito e de hábito, numa sociedade cristã.

– O doutor falou pouco mas bem! – exclama Pudim de Cachaça.

– Escutem com a maior atenção. Você aí, Joãozinho, aproxime-se e escute também. A idéia é simples. Amanhã pela manhã marcharemos todos sobre a cidade para protestar...

– Uma greve contra os grevistas! – entusiasma-se D. Quitéria.

– Se o fim da marcha é esse – intervém Barcelona – não contem com este defunto.

– Espere – diz o advogado, tocando o braço do sapateiro. – Usemos de todas as nossas armas. Primeiro, a nossa condição de mortos. Sejamos mais vivos que os vivos.

- Como?

– Impondo à população de Antares a nossa presença macabra. Se não nos enterrarem dentro do prazo que vamos impor, empestaremos com a nossa podridão o ar da cidade.

– Que coisa horrorosa, doutor! – diz Erotildes, ajeitando os cabelos num gesto faceiro.

– Por que não se põe em votação a proposta do Dr. Cícero? – pergunta o sapateiro.

– Bom – faz o advogado. – Não direi que aqui em cima estejamos numa democracia. Imaginemos que isto é uma... uma tanatocracia. (E os sociólogos do futuro terão de forçosamente reconhecer este novo tipo de regime.) Preciso saber se todos vocês me aceitam como advogado, caso em que terão de me passar uma procuração verbal para eu agir em nome do grupo.

D. Quitéria sacode a cabeça num movimento afirmativo. Erotildes, Pudim e Menandro a imitam. Barcelona, porém, hesita:

– Primeiro quero conhecer melhor o plano.

– Simples. Descemos juntos pela Rua Voluntários da Pátria rumo da Praça da República. Lá nos dispersaremos, cada qual poderá voltar à sua casa... Para isso teremos algumas horas. O essencial (prestem a maior atenção!) é que quando o sino da Matriz começar a dar as doze badaladas do meio-dia, haja o que houver, todos devem encaminhar-se para o coreto da praça, sentar-se nos bancos em silêncio e ficar à minha espera.

E que é que você vai fazer? – quer saber João Paz.

– Vou primeiro à minha casa buscar uns papéis importantes ... Depois me dirigirei à residência do prefeito para lhe entregar um ultimato verbal... ou nos enterram dentro do prazo máximo de vinte e quatro horas ou nós ficaremos apodrecendo no coreto, o que será para Antares um enorme inconveniente do ponto de vista higiênico, estético... e moral, naturalmente.

Barcelona passa a manopla pela cara e diz:

– O Maj. Vivaldino vai alegar que não pode fazer nada em nosso favor por causa da greve. E é a? que eu quero que você me faça agora, aqui, uma promessa: a de exigir que os patrões atendam às reivindicações dos grevistas.

Cícero sorri.

– Eu estava pensando nisso, não para ajudar a greve, que não me interessa, nem para ganhar sorrisos de além-túmulo, de Marx e Lénine. Um advogado esperto usa de todos os recursos, decentes ou indecentes, para ganhar a sua causa. E esta, amigos, é uma causa em que eu também sou meu próprio constituinte. – Volta-se para João Paz. – Como é? Ainda não tenho a sua “procuração”...

– Não confio em você. Os seus reflexos condicionados o levarão a fazer o que o prefeito e o Cel. Vacariano ordenarem.

– João Paz, o seu idealismo lhe embota «s idéias. Ouça isto: se o prefeito e os grandes da cidade tomarem contra nós alguma medida drástica, prometo denunciar em público todas as suas patifarias, roubalheiras e banditismos.

– Ah! Se eu pudesse acreditar na sua palavra! O advogado olha em torno.

– Tenho procuração de todos?

Os outros seis mortos sacodem afirmativamente as cabeças.

– Muito bem. Agora só nos resta esperar o nascer do sol.

E os sete mortos voltam a deitar-se nos seus esquifes e ali ficam, de olhos abertos, à espera dum novo dia.

 

Na manhã seguinte, o sol já alto, os operários que se revezaram durante a noite, guardando a boca da Rua Voluntários da Pátria, encaminham-se para o cemitério.

– O mau cheiro agora deve estar insuportável – resmunga um deles.

– Não carece chegar muito perto dos caixões – diz outro. – Uns trinta metros, quando muito...

– Qual! A brisa se encarrega de trazer a f eden tina até às nossas ventas.

O homem que caminha à frente do grupo volta a cabeça para trás:

– Acho que está tudo em ordem. Só nos resta esperar os companheiros que vão nos render. Estou com uma fome das brabas.

Um operário gordo e baixo, que fuma nervosamente seu cachimbo, faz alto, puxa um pigarro e diz:

– Esperem um momento. Tenho uma coisa pra contar a vocês...

Os outros interrompem a marcha.

– Que é?

– Quando eu estava de vigília, ali entre três e quatro da madrugada, vi uma luz na frente do cemitério, perto dos caixões...

– Luz? Impossível. Decerto eram vaga-lumes.

O gordo sacode a cabeça numa veemente negativa.

– Não. Parecia mais a luz duma lanterna elétrica. Acendia, andava dum lado pra outro, depois apagava e outra vez acendia...

Um dos companheiros dá uma risadinha forçada.

– Aposto que você dormiu em serviço e sonhou tudo isso.

– Não dormi. Nem mesmo me sentei. Passei todo o tempo pitando e caminhando de lá pra cá, com o olho sempre no cemitério.

– Mas se viu essa tal luz, por que não nos avisou?

– Ora... fiquei com medo que vocês quisessem ir até lá pra tirar a coisa a limpo. Achei melhor calar o bico.

– Covarde.

– De vivo não tenho medo. mas com defunto não quero nada.

– Vamos embora!

Retomam a marcha, mas tornam a estacar. O terror lhes contorce subitamente as faces e aperta-lhes os peitos e as gargantas. E que todos vêem os sete defuntos erguerem-se um a um de seus caixões, com uma lentidão de quem desperta com relutância dum sono natural.

“Minha Nossa!” – grita um dos operários. Faz meia volta e rompe a correr na direção do rio. Os outros o seguem, resfolgantes, contagiando com o seu horror os companheiros que guardam as outras bocas de rua, os quais também se precipitam em pânico em todas as direções, menos na do cemitério...

 

À luz amarelenta dum sol de seca, os mortos se entre-examinam em silêncio. O Dr. Cícero Branco é o primeiro a falar.

– Sete úteros abertos – murmura ele, abarcando com um gesto os esquifes. – Sete criancinhas recém-nascidas.

Barcelona sorri, descobrindo as presas de lobisomem.

– Fetos podres – diz.

– Vocês estão horríveis! – exclama D. Quitéria Cam-polargo, fazendo um esgar de nojo.

– A senhora não está propriamente uma beleza – replica o sapateiro.

– Felizmente não posso me enxergar...

– Se quer um espelho – avança o Dr. Cícero, numa paródia de galanteio – posso oferecer-lhe minhas pupilas.

Como única resposta Quitéria volta-lhe as costas e fica a examinar a figura de Erotildes, que dos sete defuntos é o que tem o aspecto mais cadavèrico. A pele apertada sobre os ossos descarnados de sua face é como um papel de livida seda, através do qual já se pode quase ver a caveira. A morte aplicou-lhe umas sutis pinceladas do seu azinhavre nas narinas, e ao redor dos olhos.

Cícero Branco, cuja cabeça semelha uma enorme berinjela machucada, baixa o olhar ao longo do próprio corpo e diz:

– Não sei por que me mandaram para a sepultura dentro deste smoking ridículo e bolorento! E com colarinho duro de pontas viradas e gravata borboleta... E sapatos de verniz. Minha mulher tem cada idéia!

Em seguida sua atenção concentra-se na matriarca do clã dos Campolargos, cujo rosto cor de iodo lhe dá a aparência duma mulata, como se a morte lhe houvesse trazido para a pele toda uma remota ancestralidade africana. Suas mãos agora se movem no ar, em movimentos mal coordenados, tentando apanhar o moscardo que esvoaça diante de seus olhos baços.

A epidemie quase tão branca quanto o muro caiado do cemitério, contra o qual aperta as nádegas, para evitar que lhe caiam as calças – Menandro Olinda, imóvel, segue com uns olhos vazios de estátua o vôo irisado duma libélula.

Pudim de Cachaça está acocorado, examinando de perto as formigas industriosas que passam em longas filas por entre seus pés descalços e que começam a subir-lhe pelos pés, pernas e coxas, por dentro das calças. Com sua gordura balofa de cachaceiro, as pálpebras tão intumescidas que quase lhe escondem os olhos de esclerótica amarela, ele parece um desses cachorros mortos inchados que às vezes passam pelo rio, levados pela correnteza.

Barcelona chama a atenção de D. Quitéria para os sinais de tortura que João Paz tem em todo o corpo:

– Veja como trabalha a sua polícia, dona. Está se vendo que o delegado Inocêncio aproveitou bem a sua “bolsa de estudos” com a polícia do Estado Novo.

Cícero intervém como um frio juiz de paz.

– Está bem, Barcelona. Guarde a sua demagogia para mais tarde. Precisamos agora tratar de nossa vida ou, se preferirem, da nossa morte. O problema continua o mesmo: queremos ser sepultados dignamente. Creio que está na hora de começar a nossa marcha. A caminho, pois, companheiros!

– Que horas serão? – pergunta Pudim de Cachaça.

– Estou ouvindo os sinos da Matriz – diz Quitéria Campolargo. – Deve ser a missa das sete...

– Pois então, amigos e romanos, desçamos sobre An-tares – convida o advogado. – Proponho que D. Quitéria Campolargo abra a marcha.

– Por quê? – protesta o sapateiro. – Por que é rica?

– Não. Porque é uma dama.

– Vejo outra pessoa do sexo feminino no nosso grupo...

– Sim, mas você não pode comparar D. Quitéria com essa... essa...

– Diga logo o nome sem medo. Puta, não é? Pois para mim não vejo muita diferença entre as duas. Mulher sempre mereceu todo o meu respeito, independentemente de sua profissão e da sua condição social.

– Ai. Barcelona! – exclama o Dr. Branco. – Estou começando a desconfiar que você ainda vai me dar muito trabalho...

– Tudo dependerá da sua atuação. Se você se intimidar diante dos figurões de Antares, eu entro com o meu jogo bruto. Mas onde está o nosso professor?

Volta a cabeça: Menandro continua com o corpo como que colado ao muro do cemitério.

– Vamos, maestro!

O pianista encaminha-se para o grupo.

Mal, porém, dá o segundo passo, as calças tombam-lhe aos pés, ele estaca e ali fica, imóvel, completamente nu da cintura para baixo, as vergonhas à mostra e cobertas de formigas. Parece hesitar em pedir qualquer auxílio às suas mãos assassinadas. Erotildes desata a rir. D. Quita vira o rosto. Barcelona aproxima-se do artista e, como uma ama-seca, ergue-lhe as calças, murmurando: “Esqueceram-se do suspensório... mas quem é que podia imaginar que o corpo deste defunto ia voltar à posição vertical?”. Desfaz-se do próprio cinto e passa-o ao redor da cintura do outro, afive-lando-o no último ilhó. – Pronto!

– Muito obrigado, Barcelona – murmura o maestro. – Você é um homem bom. E dizer-se que eu o conheço há mais de trinta anos e não tinha ainda notado isso!

O sapateiro encolhe os ombros:

– As pessoas que vivem olhando para o céu perdem, as boas coisas da terra.

– Não me diga que você se inclui entre essas boas coisas – observa Quitéria.

– Não sou das piores, dona, não sou das piores.

– Avante! – comanda o advogado. Oferece o braço à matriarca dos Campolargos, que o recusa, altiva, pondo-se a caminhar lentamente, lançando o pânico entre as formigas, cujas fileiras disciplinadas ela varre com a fimbria do vestido. Cícero Branco marcha um passo atrás dela. João-zinho e Barcelona ladeiam o maestro, como uma guarda de honra. Erotildes e Pudim de Cachaça deixam-se ficar naturalmente para trás, fechando a marcha.

 

D. Clementina, viúa, católica praticante e doceira profissional, mora na meiágua de fachada azul-celeste, a segunda casa à direita de quem desce a Rua Voluntários da Pátria. Tomou hoje a sua comunhão na missa das seis, já comeu o seu mingau matinal, deu alpiste aos seus canários e pintassilgos e agora se encaminha cantarolando para a única janela de sua sala de visitas, levando nas mãos um vaso de argila com um pé de gerànio florido. Antes de depor o vaso no peitoril, debruça-se para fora, diz bom dia ao vizinho da direita, que como de hábito está sentado num mo-cho à frente de sua residência, tomando chimarrão e lendo o jornal do dia – depois olha para a esquerda, divisa um grupo que vem descendo pelo meio da rua, em marcha lenta e silenciosa – Ué? bloco de carnaval em dezembro?... coisa de estudantes... mas seu coração, sentindo o horror daquela visão uma fração de segundo mais rapidamente que o seu cérebro, dispara... Ao reconhecer naquelas faces cadavéricas as fisionomias de sua freguesa Quitéria Campo-largo e do Dr. Cícero Branco... santo Deus! – D. Clementina abre a boca, solta um vagido, sente que o mundo se vai aos poucos apagando, deixa cair o vaso, que se parte em cacos contra o soalho, suas pernas se vergam e ela tomba, primeiro de joelhos e depois de borco.

O homem que mateia ergue a cabeça, olhando a rua por cima do jornal, empurra os óculos para a testa, semi-cerra os olhos para melhorar o foco de sua visão, e, de súbito, reconhecendo os componentes do lùgubre cortejo põe-se a tremer, a boca entreaberta, a água uo mate a escorrer-lhe das comissuras dos lábios, queixo abaixo. Um ronco lhe escapa do fundo da garganta, ele sente como se uma facada lhe rasgasse o peito, deixa cair a cuia e o jornal, curva-se sobre si mesmo e, como em câmara lenta, vai escorregando do mocho até tombar inteiro na calçada, batendo com a cabeça nas lajes, contra as quais se quebram as lentes de seus óculos.

Os defuntos continuam a caminhar pelo meio da rua. D. Quitéria, que observou a cena com o rabo dos olhos, murmura: “Lá se foi o velho Viridiano!” O Dr. Cícero sussurra por entre dentes: “Firme! Olhem para a frente, não digam nem façam nada, aconteça o que acontecer. Isto é apenas o princípio”.

João Paz manqueja, o braço quebrado balouçando dum lado para outro, como um pêndulo. Barcelona parece atento a tudo quanto se passa em torno, a dentuça exposta num feliz sorriso de ogro que acaba de entrar num berçário. O advogado de instante a instante puxa as pontas da negra borboleta da gravata, como se estivesse num salão de festas. Nos braços que o pianista leva cruzados contra o peito, aninham-se suas mãos, como dois bebês num berço. Erotildes e Pudim de Cachaça caminham lado a lado, de mãos dadas – crianças perdidas numa cidade desconhecida.

Duma outra casa próxima parte um grito lancinante de mulher. Ouve-se o ruído duma janela que se fecha com força, e o tinir de vidros estilhaçados.

O dono da padaria Universo sobe a Voluntários da Pátria, dirigindo a sua Kombi. Ao ver o grupo no meio da rua põe-se a buzinar freneticamente, e quando percebe que o bando não lhe abre caminho, mete a cabeça para fora do carro e berra: “Saiam da frente, seus palhaços! O carnaval ainda não chegou!” – e é nesse momento que ele reconhece alguns dos defuntos e, tomado de pânico, mete o pé com força no acelerador, torce bruscamente para um lado a roda da direção, o auto sobe na calçada e esbarra com violência e estrondo contra a parede dum prédio. O padeiro solta um urro, a respiração bruscamente cortada, duas costelas quebradas, e ali fica encurvado sobre o guidão, resfolgando forte, salivando sangue, o pavor nos olhos, enquanto pelas suas narinas entra um cheiro adocicado de carne humana decomposta.

 

Essa marcha dos mortos rumo do centro de Antares seria descrita mais tarde em prosa barroca por Lucas Faia: Foi na última sexta-feira 13 deste cálido e, já agora, trágico dezembro. O dia amanheceu luminoso, de céu limpo e translúcido, e a nossa cidade, o rio e as campinas em der-redor semelhavam o interior duma imensa catedral plate-resca, toda laminada pelo ouro dum sol que mais parecia um ostensòrio suspenso no altar do firmamento. As cigarras cantavam nus árvores e as formigas trabalhavam na terra, bem como na fábula do grande La Fontaine. Tudo parecia em paz no mundo. Era mais um dia na vida de Antares – pensavam decerto os que despertavam para a faina cotidiana. Mas ai! Mal sabiam eles do algido horror que os esperava!

Segundo o testemunho dos grevistas que guardavam a boca das ruas que, por assim dizer, deságuam como rios de pedra no estuário da esplanada do campo-santo local, seriam cerca de sete horas da manhã quando, ao se aproximarem do cemitério, eles viram, estupefatos uns, incrédulos outros, erguerem-se de seus féretros os sete mortos que estavam insepultos por culpa desses mesmos grevistas. Tomados de pânico os operários romperam em fuga desabalada. Um deles tombou vítima dum colapso cardíaco, felizmente não fatal.

A brónzea voz do sino da nossa Matriz chamava os fiéis para a missa das sete quando os sete mortos, em sinistra formatura, desceram sobre a cidade, ao longo da popular Rua Voluntários da Pátria, semeando o susto, o pavor e o pânico. Pareciam – segundo o depoimento de várias pessoas idôneas ouvidas pelo nosso repórter – figuras egressas dum grotesco museu de cera.

Testemunhas visuais (e olfativas!) do fato são unânimes em afirmar que os defuntos se moviam de maneira rígida, como bonecos de mola a que alguém – Dews ou o diabo? – tivesse dado corda. E seus olhos, fitos num ponto indefinível do horizonte, estavam cobertos duma espécie de película que para uns parecia viscosa e brilhante e para outros fosca. Causou estranheza o fato de seus corpos não produzirem nenhuma sombra. Não foram poucos os cidadãos antarenses que recusaram dar crédito ao que viam, julgando-se vítimas duma alucinação. Mortos ressurrectos? Fantasmas? Era incrível! Pavoroso! Algo de inédito não só nos anais desta comuna como também nos da Humanidade! E aquilo acontecia na nossa querida e pacata Antares! Éramos, entretanto, obrigados a dar crédito a pelo menos três de nossos sentidos – o da visão, o da audição e o do olfato – já que nada podíamos dizer dos dois restantes, pois ninguém havia tocado os corpos daqueles mortos ambulantes e muito menos – perdoe-se-me a brutal alusão – provado de suas carnes putrefatas. E mesmo agora, passada a crise, ao escrever as presentes linhas, este jornalista ainda se pergunta se tudo não foi apenas um sonho mau sofrido por toda uma população, ou, antes, um pesadelo que oprimiu nossa cidade como uma nuvem de escuro chumbo.

Só na Voluntários da Pátria o fúnebre cortejo causou mais de vinte vítimas, das quais as primeiras foram a veneranda viúva D. Clementina Montenegro e o Sr. Viridiano Fonseca. A primeira desmaiou de susto, e ao despertar entrou numa crise de nervos da qual ainda não se restabeleceu. O segundo sofreu um ataque cardíaco, sendo recolhido ao Hospital Salvator Mundi, onde se encontra num estado que ainda inspira cuidados. O sinistro bando, a todas essas, caminhava implacavelmente, em marmóreo silêncio tumular, para o centro da cidade, deixando para trás uma fétida esteira pestilencial, que em breve inundou todas as ruas adjacentes, de tal maneira ativa e nauseante que este homem de imprensa teve, e ainda hoje tem, a impressão de que, como diria Lady Macbeth, no drama do imortal Shakespeare, nem todos os perfumes da Arábia conseguirão jamais limpar nossa cidade dessa fedentina cadavèrica.

Uma senhora grávida, cujo nome a ética nos obriga a omitir, ao ver de sua janela a passagem dos sete defuntos ficou tão apavorada, que deu prematuramente à luz o seu bebé. (E graças ao bom Deus, mãe e filho passam bem.) Estamos seguramente informados de que o Sr. Mário Oregano, proprietário do mercado Nova Itália, ao avistar D. Quité-ria Campolargo toda vestida de preto, achou-a de tal maneira parecida com a sua falecida progenitora, que se encontra enterrada no pequeno cemitério de sua aldeia natal, perto de Nápoles, que se precipitou para ela em desatado pranto, exclamando “Mamma mia! Mamma mia!” – e só não a abraçou e beijou porque não pôde suportar o mau cheiro que se evolava dela e de seus macabros companheiros.

Seria longo enumerar os horrores daquela fatídica manhã, mas não nos furtamos ao desejo de narrar o caso que se nos afigura talvez o mais impressionante de todos. O Sr. Egon Sturm, cerealista local e campeão de tiro ao alvo, ao ver passar o cortejo, teve um acesso de fúria, apanhou a sua carabina, subiu correndo à água-furtada de sua casa e lá de cima pôs-se a alvejar os sete defuntos com balázios certeiros que, segundo se afirma, atingiram a cabeça e o tórax de vários deles, sem contudo fazer-lhes a menor mossa, pois os impactos das balas naqueles corpos pareciam mais leves que o pousar duma mosca. E por falar em moscas, um enorme enxame destas acompanhava, zumbindo, os defuntos, como negros e miniisculos anjos da guarda. Dantesco espetáculo!

Não saberíamos dizer quanto tempo a notícia do terrível acontecimento levou para espalhar-se pelo resto da cidade. O que sabemos de fonte segura é que o nosso constante leitor e antigo assinante, Sr. Ocário da Luz, coletor das rendas federais neste município, ao ver os mortos parados fl esquina da Rua Voluntários da Pátria com a Praça da República, precipitou-se para a igreja, onde naquele exato momento o Pe. Geróncio Albuquerque pregava o seu sermão. Dando visíveis mostras de irritação por ver o citado senhor subir a escada do púlpito e interromper-lhe a predica, o vigário escutou-o de má vontade, sacudindo negativamente a cabeça, com ar incrédulo. Por fim, levando em consideração (como ele próprío nos declararia mais tarde) o fato de ser o Sr. Ocário da Luz um homem de bem e de responsabilidade, decidiu ir ver o fenômeno de perto. Recomendou aos fiéis que permanecessem quietos em seus lugares, desceu do púlpito e. paramentado como estava, saiu do temploe encaminhou-se para o grupo, que continuava parado à esquina, convencido, o nosso bom pároco, de que se tratava duma “brincadeira de rapazes marotos”. A brisa da manhã, porém, trouxe-lhe ao olfato o cheiro da morte e em breve o nosso querido Pe. Gerôndo reconheceu o corpo da sua velha amiga Quitéria Campolargo, e o do Dr. Cícero Branco, e mais o do Prof. Menandro Olinda... Estacou, traçou no ar um sinal da cruz na direção dos inortos, abriu a boca para dizer alguma coisa mas seus lábios começaram a tremer e deles não saiu o menor som. O vigário caiu de joelhos, pálido de horror, ambas as mãos segurando o peito. Nesse instante passava pelo local o Sr. Tranqüilino Almeida, chefe dos guardas aduaneiros locais, homem de reconhecida coragem pessoal. Mesmo depois de dar pela presença dos mortos e de identificá-los todos, manteve a sua calma e, tirando do cinto o revólver e apontando-o para a macabra farandola, correu em socorro do vigário, ajudou-o a erguer-se e, ampa-rando-o com o braço esquerdo em torno da sua cintura, e sempre com o revólver voltado para os defuntos, foi recuando lentamente, de costas, conseguindo assim arrastar o sacerdote para dentro da igreja. Já então a terrível notícia se ia divulgando aos poucos entre os fiéis e um crescente zum-zum cortado de soluços começava a encher o recinto da matriz. O vigário sentou-se num dos degraus do altar, o sa-cristão trouxe-lhe um copo dágua, do qual o nosso Pe. Ge-rôncio mal conseguiu beber um gole, tal era o tremor de suas mãos e de seu queixo. O Sr. Tranqüilino levou algum tempo para perceber que entrara na casa do Senhor de chapéu na cabeça e revólver em punho. Teve um estremecimento, descobriu-se e guardou rápido a arma. Ao recobrar a voz, o padre acercou-se do microfone, ergueu os braços e bradou: “Sete mortos acabam de ressuscitar e sair de seus caixões. E o Juízo Final! Deus Todo-Poderosó vai começar o julgamento dos vivos e dos mortos. Arrependei-vos de vossos pecados enquanto é tempo! Ó Senhor, tende piedade de nós. Oremos! Oremos! Todos de joelhos. Oremos!”

O clamor então foi geral. Mulheres romperam a gritar, algumas rojaram-se ao chão e rolaram em ataques histéricos, uma delas rasgou as próprias vestes, ficando seminua e escabelada. Não poucas foram as que desfaleceram. Muitos homens choravam, ao passo que uns poucos, os mais calmos, tentavam, mas em vão, pôr alguma ordem naquele pandemônio, se é que se pode usar esta palavra em se tratando dum templo católico. Algumas mulheres prosternaram-se diante da imagem da padroeira da nossa cidade e uma senhora já idosa foi vista metendo as mãos em concha na pia e enchendo-as de água benta, que derramava sobre a própria cabeça, esfregando com ela as faces, a testa, as mãos, como se quisesse assim lavar-se de todos os seus pecados. E o padre continuava a gritar: “É o Juízo Final! Arrependei-vos enquanto é tempo! Orai! Orai! Orai!” Muitos, de joelhos, oravam, de mãos postas, voltados para o altar-mor. De súbito ouviu-se um canto estrídulo. Era uma dama (cujo nome pedimos aos nossos leitores vènia para omitir) que nos temvos de moça possuía uma voz de soprano bastante apreciável, tendo dado até um concerto no Teatro São Pedro de Porto Alegre. Agora, de pé em cima dum banco, ela entoava, um tanto trêmula e desafinadamente mas com bravura operática, a Ave-Maria, de Gounod. Com lágrimas a rolarem pelas faces alguns homens e mulheres, velhos inimigos, reconciliavam-se, esqueciam velhos e novos agravos, abraçavam-se, beijavam-se, enfim, faziam as pazes cristãmente. Muitas pessoas encaminhavam-se para o confessionário, onde a presença do Pe. Gerôncio foi exigida, primeiro com calma e depois aos gritos. E no afã de disputarem um lugar na fila dos que queriam confessar-se, as vessoas acotovelavam-se, empurravam-se e dois homens chegaram a atracar-se aos socos e rolaram pelo chão, agarrados numa luta que parecia de morte. (Mais uma vez nos permitimos não citar nomes.) E como se toda aquela confusão não bastasse, o sacristão teve a infeliz idéia de correr para o campanário, pendurar-se na corda do sino e fazê-lo bimbalhar como num alarme de incêndio. Isso, como era de se esperar, aumentou a exacerbação e o desespero daquela pobre gente, que não ousava sair para a ,rua. O Sr. Tranqüilino Almeida correu para a torre, ordenou ao sacristão que parasse de tocar o sino, e como o homem, fora de si, recusasse obedecer-lhe, o guarda aduaneiro segurou-o pela cintura, ergueu-o no ar, levando-o assim até à sacristia, onde o atirou em cima duma cadeira.

 

Mal o sino cessa de badalar, Cícero olha para os companheiros e diz:

– Bom. Nossa presença, ao que parece, já foi notada na cidade. Agora, que cada um faça o que entender: que vá rever os seus afetos ou assombrar os seus desafetos. Repito que o importante é que ao meio-dia em ponto todos venham sentar-se nos bancos do coreto da praça e lá me fiquem esperando quietos e, se possível, em silêncio. – Volta-se para D. Quitéria. – Que pretende fazer a senhora?

– Dar um sustinho nos meus genros e nas minhas filhas.

– Posso acompanhá-la?

– Não. Conheço o caminho.

Os sete mortos separam-se. A praça está deserta. As janelas e portas das casas, em derredor, fechadas. D. Quitéria lá se vai, gingando e ao mesmo tempo rígida, como uma imagem carregada em andor. Um cachorro sem dono a segue, de longe, depois estaca e, com o rabo entre as pernas, o focinho erguido para o céu, começa a ganir agonicamente.

A matrona dos Campolargos está agora diante de seu palacete, cujas portas e janelas se acham cerradas. Ela entra pelo portão lateral, atravessa o jardim deserto de humanidade – mas lá estão as suas rosas queridas, ela as acaricia com as pontas dos dedos – e vai direito à porta dos fundos, sobe os três degraus que levam ao corredor, segue ao longo deste em passadas inaudíveis, passa sem ser vista pela porta da cozinha, onde as suas negras conversam animadamente, preparando o café da manhã, e segue silenciosa rumo da sala de jantar, de onde vem um rumor de vozes masculinas e femininas.

Escondida atrás da folha duma porta entreaberta, a velha fica a espiar e ouvir suas quatro filhas e seus quatro genros, que se acham sentados em torno da mesa, no centro da qual se vê um escrínio aberto, o interior forrado de ve-ludo cor de ametista, com um espelho na parte interna da tampa. Ao redor do escrínio estão enfileiradas as jóias que a morta queria levar consigo para o túmulo: o anel de brilhante, o colar de pérolas, os brincos de esmeraldas, o broche de rubis, a pulseira de ouro maciço... Um dos genros, o veterinário, levanta-se, boceja, estira os braços espregui-çando-se, depois acende um cigarro, solta uma baforada de fumaça, olha para o velho relógio de pêndulo e diz, azedo.

– Quase oito da manhã! Parece mentira que passamos a noite em claro, discutindo, e não chegamos a nenhuma conclusão. Acho que agora pelo menos podíamos tomar café. Estou morto de sono e de fome.

– O café já vem – anuncia, seca, sua mulher.

O comerciante passa a mão pelos cabelos ralos, dizendo:

– Eu fiz uma proposta sensata, mas meus queridos cunhados e minhas queridas cunhadas a recusaram. Acham que por eu ser homem de negócios tenho de ser necessariamente desonesto.

O farmacêutico dá de ombros:

– A idéia de discutir esses problemas agora não foi minha. Sempre achei que devíamos esperar a abertura do testamento...

– Ah, meu caro! – interrompe-o o veterinário. – Não sabemos que tipo de testamento a velha Quita fez. Pode ter deixado um pedaço de campo para cada agregado, para cada peão. Vocês sabem que ela não morria de amores por nós. Podemos ter uma surpresa desagradável quando o testamento for lido. Vocês sabem que a minha preocupação maior é a estância. Já fiz a minha proposta. Arrendo a parte de vocês nesses campos. Não podemos nem devemos dividir as terras da família!

– Isso tudo nós sabemos – diz uma das filhas. —-O problema agora são estas jóias. Não vão aparecer no testamento porque todo o mundo imagina que mamãe as levou consigo para a sepultura.

O dentista, que nos últimos minutos esteve a fazer cálculos na sua caderneta de capa preta, ergue a cabeça e diz com ar professoral;

– Tenho aqui uma fórmula capaz de resolver o nosso problema !

– Qual fórmula qual nada! – reage o veterinário. – Já me vem você com a sua matemática protética.

A mulher do comerciante apanha o colar com ambas as mãos, examina-o com amor, longamente, e declara:

– Eu já disse que estas pérolas são minhas e de mais ninguém !

A esposa do dentista protesta:

– Engraçadinha! E por quê?

– Vocês se lembram daquele réveillon de 31 de dezembro, um ano antes de eu me casar? Pois a mamãe me fez ir ao baile com o colar e disse que estas pérolas combinavam muito bem com o tom da minha pele.

– Ah, é? – replica a outra. – Você tem provas de que ela disse mesmo isso?

– Ora, provas não tenho. Mas se minha palavra não basta então vai-te à merda!

– Meninas! – intervém o farmacêutico. – Que é isso? Não sei como, depois de passarem uma noite em claro, vocês ainda têm forças para brigar. Eu estou me entregando...

– Ninguém quer escutar a minha proposta? – tenta mais uma vez o dentista.

A mulher do veterinário pega o anel, enfia-o no dedo e afasta a mão para contemplá-lo melhor.

– A mamãe sempre dizia que este anel tinha de ser meu porque sou a filha mais velha.

– Mentirosa! – reage a mulher do comerciante. – Nunca ouvi a velha dizer isso.

– Disse, sim. Vocês podem ficar com o resto, que não me interessa. Quero o solitário!

O dentista ergue-se, faz com o olhar um inventário das jóias que estavam no escrínio.

– Onde está a aliança? – pergunta. – Há pouco eu a vi ali perto do broche.

Todos se entreolham, trocando-se suspeitas.

– Decerto D. Filadélfia andou por aqui – graceja o veterinário.

– Estou falando sério – replica o dentista. – Onde está a aliança da velha? É de ouro maciço.

O veterinário avança para o cunhado:

– Será que você está insinuando que algum de nós botou essa coisa no bolso, seu sacamuelas?

– Sacamuelas é a mãe! – revida o dentista, recuando um passo e pondo os óculos no bolso, pronto para uma troca de socos.

– Por amor de Deus, rapazes! – intervém o farmacêutico, colocando-se entre os dois cunhados e apaziguando-os. – Acho que estamos irritados pelo cansaço e pela falta de sono. Vamos deixar a discussão para outro dia.

– Mas onde está a aliança? – insiste o dentista. – Se alguém quiser me revistar, estou às ordens. Mas todos, inclusive as mulheres, têm de ser também revistados.

O veterinário, homem de porte atlético, segura com ambas as mãos as lapelas do odontólogo, quase o ergue no ar e grita-lhe na cara:

– Que é que você está insinuando?

O dentista livra-se do agressor como pode, entrincheira-se num canto da sala, atrás duma cadeira, e dali diz:

– Estou apenas enunciando um fato. Desapareceu uma das jóias. A menor de todas.

– Pois então – sugere a esposa do farmacêutico – vamos revistar todo mundo.

Uma das mulheres começa a fungar repetidamente, franzindo o nariz:

– Vocês não estão sentindo um fedor de rato morto?

– Não desconverse! – encanzina o dentista. – Onde está a aliança?

O comerciante, que continua sentado, mete disfarçada-mente a mão no bolso, tira dele a aliança, depois inclina o busto e finge que apanha algo do chão.

– Ora! Vejam só! Tinha caído no soalho – diz, sorrindo amarelo, e repondo o anel sobre a mesa.

Outra das mulheres põe-se também a fungar:

– Deve ser mesmo algum bicho podre. Mas rato não é. Quem sabe é algum gato morto no porão?

O dentista olha enviesado para o comerciante.

– Como é que o anel podia ter caído sem ninguém ouvir o barulho?

O outro encolhe os ombros:

– Se você acha que eu tinha roubado essa porcaria, pouco me importa a sua opinião. Agora que a velha morreu, graças a Deus podemos todos nos separar, cada qual vai para a sua casa viver a sua vida e eu não serei mais obrigado a ver a sua cara todos os dias.

Agora é o farmacêutico quem franze o nariz, funga e faz uma careta:

– O fedor também não me parece de gato morto. Que será?

– Cachorro? – sugere uma das mulheres.

Faz-se um silêncio cortado de bocejos. O farmacêutico vai até à janela em busca de ar puro.

– Mas em que ficamos? – pergunta o veterinário.

– O mau cheiro está cada vez mais forte – queixa-se uma das mulheres. – Está me revoltando o estômago. O curioso é que começou há pouco...

– Querem ou não querem ouvir a minha proposta? – exclama o dentista, como que esquecido das ofensas sofridas, impessoal como um computador eletrônico.

– Está bem – concorda o farmacêutico. – Venha lá essa famosa fórmula.

– Não agüento mais... – geme a mulher do comerciante, que aos poucos vai empalidecendo. – Acho que vou vomitar.

– Vomitaremos todos – comenta o marido – depois que ouvirmos a fórmula mágica do nosso Einstein.

O dentista senta-se, ajeita os óculos, abre a sua caderneta e diz:

– A solução é duma simplicidade infantil. Para efeito de testamento essas jóias não existem. Logo temos que resolver o seu destino aqui e agora, entre nós. Proponho que façamos uma avaliação do preço de cada uma dessas jóias. Em caso de dúvida, usaremos o critério democrático do voto. Bom. Por exemplo – aponta para uma das cunhadas – se você fica com o colar de pérolas e minha mulher com os brincos, aquela a quem tocar a jóia de maior valor fica devendo à outra a diferença de preço, que poderá ser paga em dinheiro ou em... em gado, por exemplo, ou letras de câmbio, ações de banco... etc...

– Muito difícil – interrompe-o o veterinário.

– Eu quero o colar de pérolas – insiste a mulher do comerciante.

– Mas que fedentina!

– O solitário é meu. Dou escândalo se vocês não me derem esse anel.

O suor escorre pelo rosto dos homens. O dentista começa a andar em torno da sala, fungando como um perdi-gueiro, e tentando localizar o mau cheiro.

Quitéria Campolargo aparece subitamente à porta da sala e diz:

– Não se incomodem, meninos e meninas. Só vim buscar as minhas jóias.

A filha mais moça solta um grito. A mais velha cai de joelhos e brada:

– A mamãe foi enterrada viva!

– Socorro! – grita o farmacêutico, que sai correndo da sala, rumo do jardim, enquanto a mulher do comerciante rola no chão debatendo-se em guinchos, num ataque de histeria.

– O mau cheiro – diz a velha Quita – é muito do meu cadáver, mas é mais dos pensamentos de vocês, seus trapaceiros ordinários! Pedi para ser enterrada com estas jóias e vocês não cumpriram a minha ordem. Faz tempo que estou ouvindo essa discussão indigna, ali atrás da porta. Ninguém até agora teve para comigo nenhuma palavra de respeito, de carinho ou de saudade. Está todo mundo com o sentido no meu testamento.

O dentista acha-se estendido no chão, sem sentidos. O veterinário e o comerciante paralisados de espanto, incapazes duma palavra ou dum gesto.

A defunta aproxima-se da mesa e vai pondo as jóias uma a uma dentro do escrínio, depois põe a caixa debaixo do braço, dirige-se para o lavabo social, despeja todo o seu conteúdo no vaso sanitário, puxa a corrente da descarga, longamente, muitas vezes, depois volta para a sala e exclama:

– Pronto! A divisão está feita. O Rio Uruguai herdou as minhas jóias.

 

O Dr. Cícero Branco encontra-se agora dentro de sua própria residência, cujas janelas estão ainda fechadas. Silêncio e penumbra. No pequeno vestíbulo da entrada, põe-se diante do espelho oval do cabide, mas o vidro não lhe reflete a imagem. Mesmo assim ele ajeita a gravata e limpa com as pontas dos dedos a poeira de suas lapelas de seda.

O relógio da sala de jantar começa a bater lentamente a hora. Depois da oitava badalada, de novo a quietude. O advogado sai a caminhar ao longo do corredor que leva ao seu escritório. Pára diante do quarto conjugai, fica um instante como à escuta, depois, com um cuidado de gatuno, torce a maçaneta da porta e vai empurrando esta devagarinho até abrir um vão pelo qual se insinua na peça. Sempre pisando de leve, encaminha-se para a janela que dá para a rua, e abre-lhe as venezianas, deixando entrar o sol. Efigê-nia Branco, sua mulher, está na cama com um homem, ambos completamente nus e descobertos. Deitada sobre o lado esquerdo, o corpo meio arqueado, ela forma com as coxas, o ventre e os seios uma espécie de recôncavo no qual se aninha, numa posição quase fetal, um jovem que aparenta quando muito vinte anos, e que ela enlaça com os braços. As pálpebras da viúva de Cícero palpitam à repentina intensidade da luz, e ao cabo de alguns segundos se abrem. Efigênia vê aquele vulto negro contra a janela iluminada, solta um gritinho e põe-se de joelhos na cama, os olhos piscos, o susto no rosto, os seios murchos pendentes como duas jacas brancas.

– Bom dia, Efigênia – diz Cícero com irônica bran-dura. – Lembra-se de mim? O Ciei...

Ela está como que siderada. O rapaz também desperta, e dando por aquela presença estranha no quarto, salta da cama, alarmado, e cola-se à parede, numa atitude defensiva. Só então Efigênia reconhece o marido. “Cícero! Meu Deus... mas você morreu!” – e põe-se a gritar e a rolar sobre o leito como uma possessa, a puxar os cabelos e ao mesmo tempo a rir e soluçar, ficando nas posições mais grotescas até que, exausta, deixa-se cair em decùbito dorsal, os peitos arfando, Vs mãos crispadas sobre o lençol, o olhar fixo no teto, enquanto de sua boca entreaberta se escapa um estertor líquido.

Cícero volta-se para o rapaz que, pálido, agora treme da cabeça aos pés.

– Apresento-me. Dr. Cícero Branco. Corno póstumo. Não, minto. Eu já era enganado por minha mulher, quando vivo. Existe nesta cidade uma apreciável cadeia de cartas anônimas que me mantinha informado das atividades adul-terinas dessa distinta dama, com detalhes de lugar, hora e nome do macho. E você? Acho que não o conheço... ou conheço? Pare de tremer, menino! Não lhe vou fazer nenhum mal físico ou moral. Se o meu mau cheiro o incomoda, molhe um lenço na água-de-colônia que está ali em cima do toucador e tape o nariz com ele.

Efigênia continua estendida na cama. Cícero estuda o rapaz com um cuidado de artista plástico.

– Louro, hem? Quase imberbe. Musculatura... pas-sável. Um Apoio de peso-galo. Estudante, presumo. Pois é. Minha mulher gosta de meninos. Tem a sua grande safra anual durante as férias de verão, quando os estudantes de Antares voltam de Porto Alegre e outros centros. – Olha para os órgãos genitais do rapaz. – Bom, para ser franco, a natureza não foi lá muito generosa com você. O David de Miguel Ângelo sofre da mesma exigüidade viril. Mas a sua juventude, a sua cara de anjo devem garantir o seu sucesso com certas mulheres que já entraram na menopausa.

Aproxima-se da cama, inclina-se um pouco sobre a viúva, fica um instante a examiná-la e depois diz:

– Perdeu os sentidos. Quando eu sair, Romeu, trate de reviver esta sua Julieta faisandée. Há um frasco de sais de amoníaco no armarinho do quarto de banho.

O rapaz cai de joelhos e cobre o rosto com as mãos.

– Que é isso, homem? – exclama Cícero. – Controle-se. Não tenho mais direitos nem legais nem morais sobre essa senhora. Ela está viúva. Pode dormir com quem quiser. Ah! A propósito, como foi o ato ou os atos? Satisfatórios?

Conseguiram o orgasmo simultâneo, que sempre foi o sonho da Efigênia? Desgraçadamente nunca lhe pude proporcionar esse gozo em comunhão. Ejaculação precoce, você compreende... O velho Freud explica essas coisas no seu jargão. E por falar em Freud, você sabe que a minha viúva tem idade para ser sua mãe? Pois tem. Você cometeu uma espécie de incesto branco... sem trocadilho, longe de mim! Mas deve ter sido algo de sensacional possuir a viúva dum sujeito cujo corpo ainda não foi sepultado, hem? E no próprio tàlamo conjugal! Quase um ato de necrofilia...

O moço está agora completamente estendido no chão, o corpo reluzente de suor.

– Levante-se, menino. Eu me retiro. Vou tratar do meu sepultamento definitivo. Reviva a sua fêmea, convença-a, se puder, de que tudo foi um pesadelo... Infelizmente a minha podridão vai ficar por algum tempo neste quarto. .. Mas façam o amor assim mesmo. Será très exotique, très Marquis de Sade. Você deve saber um pouco de francês... ou não sabe?

Sempre na ponta dos pés Cícero Branco deixa o quarto e dirige-se para o seu escritório, abre-lhe ambas as janelas, senta-se à sua mesa de trabalho, apanha uma caneta-tintei-ro e começa a escrever numa folha de papel em branco. O silêncio na casa continua.

 

Vinte minutos mais tarde Cícero Branco, depois de assustar as raras pessoas que encontrou na rua ou debruçadas nas suas janelas, entra no cartório do velho Aristarco. O notário, sentado à sua mesa, examina uns papéis. Ergue a cabeça, põe-se de pé de maneira tão brusca que derruba a cadeira em que está acomodado, engole em seco e fica olhando para o defunto.

Aristarco amigo, sei que você é médium vidente, por isso não acredito que tenha medo de almas do outro mundo.

O notário move os lábios formando palavras inaudí-veis, como um ator dum filme cuja trilha sonora cessa de funcionar. Tira o lenço do bolso e limpa tremulamente o suor que lhe escorre pela testa e pelas faces. Por fim consegue falar:

– Alma você não él – E com estas palavras recua, franzindo o nariz. – É um cadáver em franco processo de putrefação.

– Apodrecer é o destino de toda carne... o que é uma bela frase.

Aristarco parece ter recuperado a calma.

– Sou médium, sim, talvez o médium vidente mais conhecido da Região Missioneira. E um Kardecista convicto. Há mais de quarenta anos leio tudo quanto me cai nas mãos sobre espiritismo. Nunca tive notícia dum caso como esse... sete mortos erguendo-se de seus féretros... Sei que você morreu, li seu atestado de óbito, vi seu cadáver no velório.

E então? Como explica o fenômeno? Aristarco sacode a cabeça dum lado para outro.

– Não quero me comprometer com nenhuma interpretação. Mas posso dizer, com minha experiência de médium e de estudioso do espiritualismo, que nunca vi em toda a minha vida, nem creio possível, tamanho desperdício de ectoplasma.

– Não aceita então o testemunho de seus sentidos?

– Sei que tenho na minha frente um cadáver que se move e que fala. Mas não um espírito, isso não.

– Está bem. Não vim aqui lhe pedir explicação para o que me aconteceu, mas sim para me valer de seus serviços profissionais.

– Não compreendo...

– Você reconhece em mim um homem que em vida se chamou Cícero Soeiro Branco?

– Reconheço e dou fé.

– Você tem ou não em seus livros um espécime de minha firma?

– Tenho.

– É o que me basta. – Cícero tira do bolso um envelope e de dentro do envelope duas folhas de papel de ofício, que coloca em cima da mesa do notário. – Quero que reconheça a minha assinatura nestes documentos.

O notário olha do papel para o defunto, indeciso.

– De que se trata?

– Não é da sua conta. A assinatura é ou não é autêntica?

– É!

– Pois então aplique na parte de baixo do documento o seu carimbo e o seu jamegão. Ah! Mas ponha a data de 10 de dezembro.

– Isso não posso fazer.

E por que não?

– Porque sou um profissional honrado. Hoje é 13.

E quem é (me diga!), quem é que pode afirmar que eu não comparci ao seu cartório terça-feira 10, ante-véspera de minha morte?

– Deus.

– Deus vai fazer vista grossa a esse pecadilho, já que o documento tem uma finalidade nobre.

– Duvido.

– É engraçado, Aristarco. Você se gaba tanto de sua honestidade, me nega um pequeno favor e no entanto (lembra-se?) na estória dos bens daquela viúva do Herval Seco em 1958 você reconheceu direitinho uma firma falsificada.

Aristarco baixa a cabeça, tosse, nervoso, passa o lenço pela calva e murmura:

– Sim, mas sob a pressão das ameaças do Cel. Tibé-rio, do prefeito e... das suas!

– Pois considere-se agora também ameaçado. Vamos! Reconheça essas firmas. Não tenho tempo a perder.

Aristarco, aniquilado, ergue a cadeira do chão, torna a sentar-se à mesa, olha por alguns instantes para o papel, depois, sempre sacudindo a cabeça dum lado para outro, faz o que Cícero lhe exige.

 

Barcelona consegue entrar na sua meia-água, no Beco do Sono, arrombando uma das janelas laterais e saltando para dentro de seu quarto de dormir de viúvo solitário. A cama está desfeita. No soalho, junto dela, os seus chinelos. Atirado sobre uma cadeira, seu pijama zebrado. Em cima da mesinha-de-cabeceira, uma pilha de livros, que agora ele folheia rapidamente-, obras de Sorel e Bakunin em espanhol, em brochuras amarelentas e sovadas.

Passa para a oficina, abre a sua única janela, examina um por um os seus instrumentos de trabalho – a torquês, o martelo, o alicate, a lixadeira, a sovela... Acaricia as formas, pega um pedaço de couro curtido e com a faca afia-díssima corta-lhe um pedaço, ao acaso. Senta-se no seu mo-cho e por alguns minutos fica sorrindo e batendo tachas numa sola, continuando exatamente o trabalho que fazia quando seu aneurisma rebentou. Depois põe em movimento a máquina de costura. Olha para a prateleira, vê alguns sapatos enfileirados, agarra o maior deles, uns sapatões enormes de homem, apanha o pedaço de papel que está dentro de um deles e lê: Jefferson Monroe III. “Ianque filho duma mãe” – murmura – “agente da CIA! Eu devia te devolver estas lanchas com uma bomba dentro!”

Sai de casa pela janela arrombada, dirige-se vagarosamente para a praça, atravessando-a em diagonal, e vai direito à sede da delegacia de polícia, onde fica também a cadeia municipal.

À porta do prédio, um guarda armado de mosquetão barra-lhe a entrada.

– Que é que você quer?

– Dizer umas verdades ao teu chefe. Sai da frente, porco!

Reconhecendo o defunto, o soldado empalidece, deixa cair a arma e foge rua em fora. Os outros membros da guarda, vendo o morto, também rompem a correr em pánico. Barcelona segue ao longo do corredor, atravessa o pátio interno cercado por uma galeria, vai direito ao escritório do delegado de polícia e abre a porta devagarinho.

Inocêncio Pigarço, em mangas de camisa, está sentado à sua mesa de trabalho, falando ao telefone, de costas para a porta. O sapateiro fica a escutá-lo, sem produzir o menor ruído:

– Não, Cel. Tibério. Acho que tudo isso não passa duma brincadeira estúpida desses estudantes em férias. Todos os dezembros eles fazem das suas. No ano passado saíram à rua quase pelados... Onde se viu morto ressuscitar? Ora essa!... Hem?... Não. Só sei que muita gente jura que viu os defuntos. Mas essa eu não engulo. Preciso primeiro ver. Andei há pouco pela praça e não enxerguei ninguém, vivo ou morto. Sei que a cidade está começando a entrar em pânico. São esses malditos boatos. Nessa coisa toda pode andar dedo de comunista. Como? Não diga! Então os genros da D. Quitéria lhe afirmaram que a velha está em casa, sentada numa cadeira de balanço? E já podre? Devem estar bêbedos ou loucos varridos.

Barcelona sorri e espera, com uma das mãos segurando a maçaneta da porta.

– Não – continua Inocêncio – ainda não telefonei ao prefeito, porque achei que não devia incomodar o homem tão cedo com tolices desse calibre. Está bom. Vou sair de novo para fazer averiguações e tomar as providências que se fizerem necessárias. Depois lhe comunicarei o resultado... Até logo, coronel! Recomendações à sua senhora... Quê? Eu posso imaginar. Amiga de D. Quita como ela era... Prometo esclarecer tudo em menos de duas horas e trancafiar na cadeia os responsáveis por essa brincadeira de mau gosto.

Inocêncio solta um suspiro de impaciência, repondo o fone no lugar e põe-se a fungar, fazendo caretas. Volta-se, reconhece Barcelona, ergue-se brusco, recua três passos, com a mão no revólver que tem à cintura, os olhos arregalados de susto.

– Barcelona... você morreu!

– Pois é, pústula! Estou morto e podre. Você está vivo e mais podre que eu. Podre de alma. Podre de coração.

O delegado recuou e está agora junto da janela, como se quisesse saltar para a rua.

– Você foi enterrado vivo!

– Não. Sou um defunto legítimo e portanto estou livre da sociedade capitalista e dos seus lacaios como você, seu canalha ordinário, bandido, assassino, filho duma gran-dessíssima puta!

Inocêncio, num esforço para se dominar, vencendo a náusea e o espanto, consegue dizer ainda:

– Você não me intimida! Considere-se preso!

O sapateiro solta uma gargalhada, e pelos cantos de sua boca escorre um líquido viscoso e pardo. O delegado grita:

– Cabo da guarda! Miguelito! Palrhiro! Socorro!

– É inútil. Teus soldados são uns covardes. Fugiram quando me reconheceram.

O suor escorre pelo rosto do delegado, empapa-lhe a camisa. Sufocado, ele desabotoa o colarinho, afrouxa,a gravata, sacode frenético a cabeça dum lado para outro, como para afugentar da mente aquela visão.

– Que é que você quer comigo? – pergunta, ofe-gante.

– Te estragar o dia. Te empestar os pulmões e a consciência, bandido. Torturaste e assassinaste o João Paz. Terás de prestar conta disso ao povo, mais tarde ou mais cedo.

– Não se aproxime de mim – exclama o delegado, empunhando agora o revólver. – Vá embora, senão eu atiro.

– Atira, galinha! Não podes matar um morto! Inocêncio Pigarço puxa o gatilho. Um estampido seco

enche a sala. Rindo e avançando lentamente, Barcelona repete: “Atira de novo!” E Inocêncio dá mais quatro tiros, que varam o corpo do sapateiro.

Por fim, percebendo que detonou a última bala, atira a arma contra Barcelona, mas erra o alvo. E então, para não ser tocado pelo defunto, corre para um canto do escritório, acocora-se na posição duma múmia índia dentro duma urna. Seu estômago se contrai e ele vomita convulsivamente sobre o peito, as calças, o sapato, o chão. enquanto um verde bilioso lhe vai tingindo a cara.

Barcelona aproxima-se do delegado, baixa o olhar e diz:

– Valeu a pena morrer só para ver este espetáculo. Estou satisfeito!

Faz meia volta, encaminha-se para a porta, sai para o corredor, e quando começa atravessar o pátio, os soldados da guarda, agora entrincheirados no parapeito da galeria, começam a atirar com seus mosquetes contra ele. Sem acelerar o passo, sorrindo e jogando beijos com os dedos para um lado e outro, Barcelona dirige-se para a porta da rua, sob os fogos cruzados.

 

Vivaldino Brazão, que havia terminado de tomar o seu café matinal, estava no seu orquidário, ainda de pijama, examinando uma habenaria, quando o telefone tilintou. Encaminhou-se para a sala onde estava o aparelho, ergueu o fone e ouviu a voz excitadíssima de seu secretário:

– Prefeito! Uma coisa inacreditável, horrorosa, aconteceu! Os sete mortos que ficaram sem sepultura, levantaram-se esta manhã de seus caixões e desceram sobre a cidade!

– Ó Mendes, você já está bêbedo a esta hora do dia?

– Pela luz que me alumia, só tomei uns mates, major! Várias pessoas já viram os defuntos. O vigário, o Tranqüili-no... o... o velho Ocário da coletoria... e outros... muitos outros!

– Rapaz, tome um café bem forte. E não me amole mais a paciência com essas bobagens. Ora, onde se viu?

– Está aqui o delegado. Ele vai lhe falar.

– Pronto! É o Inocêncio?

– Ele mesmo, major.

– Não estou reconhecendo a tua voz. Que é que há?

– O que o Mendes acaba de lhe contar é verdade.

– Tu também? Pensam que não tenho mais quê fazer?

– Major, dou-lhe a minha palavra de honra...

– Mas você viu mesmo com os seus olhos algum desses... desses defuntos?

– O Barcelona há pouco invadiu em pessoa o meu escritório para me insultar. Descarreguei o meu revólver em cima dele. Acertei todos os tiros, mas o homem nem se mexeu... Depois meus guardas o crivaram de balas no pátio da delegacia e ele continuou caminhando e rindo...

– Será um caso de cara... cata (como é a coisa?) catalepsia?

– Não, major. O homem está morto mesmo. Fedia como um cachorro podre. Os outros andam espalhados por aí. E o pânico já começou na cidade. D. Quita está na casa dela, sentada na sua cadeira de balanço. As filhas e os genros (sei de fonte segura) fugiram para a estância. Os vizinhos do Prof. Menandro viram o homem entrar na casa dele e depois ouviram o som do piano...

– Impossível! Vocês estão todos vendo fantasmas. Nos meus tempos de piá, quando eu ajudava um irmão do Cel. Tibério a fazer tropas, muitas vezes dormimos em cemitérios, nos descampados. Nunca vi alma do outro mundo. Cansei de passar a noite em casa com fama de assombrada. Nunca vi nada de anormal. Morto não volta.

Curto silêncio. Depois, a voz soturna de Inocêncio Pi-garço:

– Mas esses voltaram, major. Dou-lhe a minha palavra de honra.

Vivaldino começa a suar,’enxuga a testa com a manga do pijama.

– Eu ainda acho que vocês todos estão sendo vítimas duma... – Não termina a frase. Porque sente uma súbita podridão espalhar-se na sua sala. Volta-se rápido e vê o Dr. Cícero Branco, que pergunta:

E agora acredita?

Vivaldino deixa cair o fone. Recua uns passos, sem tirar os olhos da “aparição”. Seus lábios tremem quando ele balbucia :

– Cícero... mas você... você está morto!

– Não nego. E daí?

– Co... como se explica?...

– Não se explica.

– Que é que você quer?

– Eu e mais seis defuntos, que represento como advogado, queremos ser sepultados, como é de nosso direito. Infelizmente, por falta de tempo, não pude trazer procurações assinadas pelos meus constituintes.

Vivaldino deixa-se cair pesadamente numa poltrona forrada de veludo. O suor empapa o casaco de seu pijama de seda creme. Cícero Branco afasta-se para um canto da sala.

– Estou sendo tão polido quanto possível, não me aproximando mais de você, major. Reconheço que minha presença não é das mais agradáveis ao sentido da visão e principalmente ao do olfato.

O prefeito tira do bolso um lenço e tapa com ele o nariz e a boca. Está duma palidez mortal, a respiração irregular.

– Por amor de Deus, Cícero, vá embora! Minha mulher ainda está dormindo... Se ela acorda e vê você, pode sofrer um colapso fatal. A Solange é muito doente.

– Minha missão é rápida e simples. Venho falar com o prefeito de Antares e não com o meu velho amigo e cliente Vivaldino Brazão. Exijo em nome de meus constituintes e no meu próprio que sejamos enterrados imediatamente.

O prefeito sente um espasmo de estômago e por alguns segundos luta com uma ânsia de vômito, e começa a suar frio.

Im... impossível – tartamudeia. – Vocês talvez ignorem que, se ficaram insepultos, foi... foi por culpa dos grevistas.

– Sabemos disso. Mas não estamos interessados diretamente na greve. Descubra um meio de nos sepultar decentemente e sem tardança.

O prefeito sacode a cabeça numa afirmativa aflita, e de novo se curva sobre si mesmo, apertando o estômago com uma das mãos e a garganta com a outra.

Cícero Branco continua no seu canto:

– Reúna a câmara municipal, se puder, pois desconfio que os vereadores fugirão todos da cidade quando souberem da nossa’uisita. Convide ao seu gabinete os próceres locais. Em suma, descubra um jeito rápido de atender à nossa justa reivindicação.

Arque jante, e falando através do lenço com que agora cobre o nariz e a boca, Vivaldino diz:

– É questão de tempo, Cícero. Compreenda a minha... a minha situação. Amanhã se resolve a greve, dum modo ou de outro, e vocês todos serão sepultados, como de direito...

Cícero sorri, sacudindo a cabeça negativamente.

– Não podemos esperar, sinto muito. Olhe, preste bem atenção ao que vou dizer. Dou-lhe o prazo de... – Lança um olhar para o relógio de parede. – Oito e meia... Dou-lhe um prazo de quase quatro horas. Ao meio-dia em ponto os sete mortos estarão sentados no coreto da praça à espera dum despacho favorável ao requerimento verbal que acabo de lhe apresentar.

– Só quatro horas?

– Por que não? Eu morri em questão de segundos.

– Mas... mas se os grevistas...

– Se eles insistirem em barrar nosso sepultamento, peça forças federais e use da violência a bem da comunidade.

– Não posso fazer uma coisa dessas...

– Está pensando na sua reeleição, naturalmente... Compreendo.

Oh! Não é isso... Cícero, pelo amor de Deus!

– Pois então convença os patrões a aceitar as condições dos grevistas.

– Mas isso também leva tempo...

O advogado cncaminha-se para a porta, vagarosamente.

– Bom. Esperamos a resposta ao meio-dia em ponto. No coreto da praça.

Vivaldino tira por um instante o lenço da boca e do nariz.

E se chegarmos a um impasse?

– Pior para Antares. Nesse caso não teremos outra alternativa senão ficar apodrecendo no coreto e empestando o ar da nossa amada cidade. C’est dommage!

Já com a mão na maçaneta da porta, Cícero volta-se: – Peça em meu nome desculpas às suas belas orquídeas, Vivaldino, por eu ter poluído o ar que elas respiram. E apresente também à sua senhora as minhas escusas, pois não vai ser fácil espantar o meu cheiro desta casa. Recomendo-lhe defumações de alfazema e benjoim ou, se o catolicismo de D. Solange preferir, incenso. Ciaof

 

Menandro Olinda entra no sobradinho de azulejos e sobe lentamente a estreita escada que leva ao andar superior, que ele ocupava quando vivo. Suas mãos pendem ao longo do corpo, oscilantes, mas ele não as usa para segurar o corrimão. Os degraus rangem. Um rato furtivo passa assustado por entre seus pés. Na casa toda, um silêncio antigo, recendente a mofo.

No patamar lá em cima ele faz alto, olha para a porta de sua morada por alguns segundos, depois aproxima-se dela, empurra-a suavemente com os ombros, abrindo-a, pois o trinco não funciona há vários anos e a fechadura só teve chave em tempos imemoriais.

O pianista entra na sala sombria, abre a porta da sacada com um dos pés e o interior se ilumina de sol. Depois põe-se a andar dum lado para outro – quarto de dormir, cozinha, quarto de banho – examinando móvel por móvel, objeto por objeto, utensílio por utensílio, como que fazendo um inventário mental de suas posses terrenas. Torna à sala, diz algo baixinho à máscara de Beethoven e ao retrato ama-relento de seus pais e por fim olha longamente para o sofá onde se deitou depois de haver cortado as veias dos pulsos. No tapete ao pé do diva escureja uma larga mancha de sangue.

Aproxima-se do piano, que tem o teclado descoberto, senta-se no banco giratório, olha para a partitura que está na estante e seus lábios se movem quando ele lê: SONATA, dedicata al Conte Francesco von Brunswick, Op. 57. Composta nel 1803-04, publicata in febbraio 1807 presso il “Bureau des arts et de Tindustrie” di Lipsia.

Suas mãos, como dotadas de vontade própria, erguem-se e pousam sobre o teclado. O pianista, com os olhos postos na partitura, murmura cariciosamente: sottovoce e misterioso. Seus dedos começam a move-se, tocando a frase inicial ia sonata:

 

O som do piano enche a sala, escapa-se pela janela. O maestro ergue-se, corre para a sacada e exclama:

– Povo de Antares! Fariseus e filisteus! Povos do mundo! Ouvireis agora a Appassionata, de Ludwig van Beethoven, interpretada de além-túmulo pelo virtuoso Menandro Olinda!

Faz uma curvatura para a praça deserta, torna a encaminhar-se para o piano ajustando abotoaduras imaginárias de punhos engomados invisíveis e volta-se dum lado para outro, respondendo a consultas. “Scala di Milano? Peccato, signor impresàrio. Impossibile! Salle Pleyel, à Paris’? Oh non, non, non, je le regrette, monsieur. Conzertgebaum, Amsterdam? Nein! Bolshoi de Moscou? Nyet! A explicação é simples. Tenho de tocar a Appassionata para Deus Nosso Senhor numa audição especial. Com a vossa licença. ..”

Torna a sentar-se no banco ao piano, erguendo as abas da casaca, como fez há vinte e oito anos passados no palco do Teatro São Pedro, em Porto Alegre. Depois olha para as próprias mãos, beija-as repetidamente e então recomeça a tocar a sonata, dal capo, soluçando convulsivamente, mas de olhos secos.

 

Quando lhe vêm contar que Erotildes voltou à cidade na companhia de outros seis defuntos insepultos, Rosinha pensa assim: “Aposto que ela vem me visitar...” Mas não diz nada a ninguém. Veste o seu melhor vestido, calça os seus sapatos menos velhos, pinta-se e – tudo isso feito – senta-se na cama de ferro que ambas por muito tempo partilharam, e ali se queda, ouvindo o tique-taque do despertador em cima da mesinha-de-cabeceira, ao lado duma vela acesa, metida num castiçal de latão.

É uma alcova improvisada, estreita e curta, debaixo duma escada, nos fundos duma casa muito velha, pertencente à viúva dum pedreiro. Mal cabe nela a cama, um baú, um lavatório de ferro e uma cadeira com assento e respaldo de palha trançada.

A velha lhes alugou o cubículo sem ignorar a profissão das “meninas”. Impôs, porém, uma condição rígida-. “Não me tragam machos para dentro de casa, senão eu mando vocês embora!” Assim, elas tinham que andar pelas ruas caçando homens e, quando conseguiam agarrar algum, iam fazer o amor com eles em terrenos baldios, sobre a terra ou a grama (e quantas vezes se haviam deitado seminuas ou completamente nuas em cima de urtigas ou plantas espinhosas!) ou então de pé, às pressas, em algum ângulo de muro, em ruas desertas.

Rosinha espera, com os olhos fitos no relógio. O ponteiro pequeno está pertinho das oito e o grande não muito longe dele. “Ai meu Deus!” – suspira ela, olhando a seu redor. A alcova cheira permanentemente a mofo, nunca recebe a luz do sol, e quando alguém sobe ou desce a velha escada é como se estivesse pisando na cabeça do pobre vivente que está deitado nesta cama.

São quase oito e meia quando Rosinha ouve passos muito leves no corredor. Entesa o busto e fica à escuta. Seu coração rompe a bater acelerado. Seus olhos fixam-se na porta. Um breve silêncio. Depois a porta começa a abrir-se devagarinho, e as suas dobradiças enferrujadas rangem quase musicalmente. À luz da vela, contra o fundo escuro do corredor, ali está agora a sua amiga Erotildes, que mais parece um fantasma dentro do camisolão de hospital que lhe serve de mortalha. Rosinha ergue-se, as mãos apertando uma a outra. Erotildes sorri, mostrando os dentes escuros e pontiagudos e faz: “Oh!” bem como nos seus tempos de viva. Rosinha engole em seco e depois responde como costumava fazer quando se encontravam naquele cochicholo, terminada a caçada da noite: “Oh!”

Erotildes olha em torno e depois encara de novo a companheira.

– Como vais?

– Mais ou menos. E tu?

– Morta.

– Como foi que voltaste?

– Não sei. Mas o Dr. Cícero está providenciando pra enterrar a gente. O advogado, te lembras? E tu sabes quem está no nosso grupo? Uma grã-fina, a D. Quitéria Campo-largo. Imagina só que chique!

Rosinha sacode a cabeça lentamente, imaginando... Depois baixa os olhos e murmura:

– Tu me desculpas por eu ter ficado com o teu vestido, as tuas meias, o teu sapato... e as outras bugigangas?

– Ora, que bobagem! Defunto não precisa mais dessas coisas.

– Tu não te ofendes se eu espalhar um pouco de perfume?

– Ora! Não me importo. Sei que estou fedendo. Mas que é que tu queres? Morta há quase três dias... Ou dois? Nem me lembro.

Rosinha apanha um frasco de loção (Violetas de Parma) e põe-se a perfumar o ambiente apertando freneticamente no vaporizador. Depois afasta-se da amiga morta o mais que pode naquele reduzido espaço.

– Como vai a tua tosse?

– Menina, onde é que tu viste morto tossir?

Ah, é mesmo. Também não sentes mais pontadas no pormão, né?

– Não sinto mais nada.

Novo silêncio. Rosinha aponta para os pés descalços de Erotildes :

– Quando te botaram no caixão fui eu quem te arrumei direitinho, te penteei, botei ruge na cara, batom nos beiços, e até te pintei as unhas dos pés... Não notaste?

– Notei. Muito obrigado. Novo silêncio.

E agora? – pergunta Rosinha.

– Temos que estar todos os sete ao meio-dia em ponto no coreto da praça. Ordens do Dr. Cícero.

– Então senta, menina. É cedo ainda.

– Não carece. Estou bem de pé.

A morta ajeita os cabelos com os magros dedos.

– Devo estar medonha.

– Nem tanto.

– Podes falar com franqueza. Não ligo...

– Bom, a doença te deixou meio magra e pálida. A morte não te ajudou em nada. Mas pra mim, viva ou morta, tu és sempre a Erotildes.

– Engraçado não teres medo de mim... Vim pela rua assustando meio mundo. Vi uma mulher desmaiar de susto na minha frente. Um pintor de parede me enxergou, soltou um grito e caiu da escada (Deus queira que não tenha se machucado muito). Até os gatos e os cachorros fogem de mim. E tuT nem água...

– Havia de ter graça eu ter medo de ti.

Erotildes apanha o castiçal e põe-se na frente do pequeno espelho com moldura de lata dourada que pende dum prego cravado na parede. Move a luz da chama da vela dum lado para outro, murmurando:

– Que é que há com este espelho? Não me enxergo nele.

– Decerto está te estranhando – diz a outra com uma risadinha nervosa. – Deve estar meio assustado, o coitado.

Rosinha apanha de novo o vidro de loção e aciona-lhe o vaporizador, E de novo, naquele ar quente e abafado, o perfume das violetas de Parma entra num corpo-a-corpo com o cheiro de carne decomposta que envolve Erotildes, como uma aura.

A morta repõe o castiçal em cima da mesinha, depois volta-se para a amiga:

– Como vai o negócio?

– Muito mal. Cada vez pior. Eu sempre digo: o que falta pra Antares é uma boa guarnição miütar.

– Não tens nenhum amiguinho fixe?

– Eu? Nesta idade? Dou graças quando consigo pescar um homem por noite. Cobro uma miséria e assim mesmo levo muito beiço. Tu sabes como é a coisa. Ninguém quer pagar adiantado.

Rosinha baixa a cabeça e conta:

– Ontem de noite uns meninos me agarraram a força e me levaram pra um terreno baldio. Uns cinco ou seis... Primeiro me tiraram toda a roupa, até me rasgaram um vestido quase novo. Me derrubaram, se puseram em mim, não houve porcaria que não fizessem comigo. Depois foram embora dando risadas e não me deram um mísero vintém.

– Conhecidos?

– Alguns acho que conheço de vista. Meninos de boas famílias.

– Às vezes são os piores.

– Mas não sei por que fizeram isso, logo comigo! Não precisavam me agarrar a unha, me maltratar. Se dissessem que estavam sem dinheiro, eu dava de graça. Mas não. Pareciam uns animais. Em vez de virem de um a um, vinham de dois e até de três. Uns porcos!

Erotildes fita na amiga os olhos gelatinosos e diz baixinho:

– Pois eu te digo que estou contente por ter morrido. A gente fica livre pra sempre de todas essas tristezas e vergonhas.

– Já pensei em morrer. Em tomar veneno. Mas não tive coragem...

– É pecado a gente se suicidar. Vai pro inferno.

– Mas o inferno não será aqui mesmo?

De súbito Rosinha desata o choro. Erotildes ergue a mão como para acariciar a cabeça da amiga., mas hesita em tocá-la.

– Não há de ser nada – murmura. – Não hai bem que sempre dure nem mal que nunca se acabe, como dizia a minha falecida mãe.

Erotildes pega o vaporizador e borrifa a própria cara de perfume. Depois diz:

– Bom, já te vi. Tenho ainda quase três horas livres pela frente. Acho que vou ver a Irmã Bonifácia, aquela enfermeira que foi tão boa comigo quando eu estava no hospital. Até logo, Rosinha, Deus te ajude!

Encaminha-se para a porta.

– Erotildes? Tu já viste Deus? A morta se volta:

– Ainda não. Decerto só vou ver Ele quando me enterrarem como cristão.

Rosinha limpa tremulamente as lágrimas do rosto com as pontas dos dedos.

– Vou te pedir um favor...

– Qual é?

– Diz pra Deus que me dê uma boa morte, já que não me deu uma boa vida.

 

Depois de separar-se de seus companheiros, Pudim de Cachaça, envolto numa nuvem de moscas, encaminha-se para o setor de Antares popularmente conhecido por Zona Estragada, e que fica a noroeste da cidade, perto das barrancas do rio. Passou primeiro pela sua própria casa, que encontrou fechada, assustou os vizinhos (“Que é isso, minha gente? Não me conhecem mais?”) e depois saiu em busca de seu melhor amigo, companheiro de pileques, serenatas e farras com raparigas.

– Por onde andará o Alambique? – pergunta ele a um sujeito que está parado a uma esquina. O homem, reconhecendo-o, empalidece, recua horrorizado e começa a abrir e fechar a boca, ansiado, como um peixe fora dágua.

Pudim, resignado, continua o seu caminho. Ao dobrar uma esquina dá de repente com Erotildes. Ambos estacam bruscamente, como se um se tivesse assustado do outro.

– Ué? – disse ela. – Tu por aqui?

– Ando percurando um amigo. E tu?

– Fui visitar uma amiga.

Algumas das moscas que esvoaçam e zumbem ao redor do corpo de Erotildes passam para o de Pudim de Cachaça, e vice-versa. Depois desse rápido intercâmbio de moscas os dois companheiros se separam com um “ ‘té logo”. A mulher dá alguns passos, volta a cabeça e grita:

– Não te esqueças do que o Dr. Cícero pediu, Pudim. Ao meio-dia, todos no coreto!

O cachaceiro volta-se também:

– O sol é o meu relógio. Não falha nunca. Ao meio-dia em ponto estou no coreto. Ouro e fio.

Agora Pudim de Cachaça entra no Beco do Gato, vai direito ao botequim do Quincas, seu habitual ponto de reunião noturna com o companheiro. Pára à porta e espia para dentro... Ao vê-lo o proprietário da casa solta um grito e sai a correr na direção dos fundos do boteco.

Pudim entra. Num canto da pequena sala, sentado à mesa de costume, lá está o Alambique diante dum copo de cachaça, o violão em cima duma cadeira, a seu lado.

– Homem de Deus, faz horas que ando te percurando! Alambique ergue-se, aperta as pálpebras, seus olhos

como que se movem como duas boúnhas de gude azuis, dentro dos bojos das órbitas. É um homenzinho de um metro e cinqüenta de altura, com um esqueleto de magro coberto por umas carnes balofas de alcoólatra.

– Pudim velho de guerra! Me disseram que tinhas voltado, mas eu pensei que era potoca. – Precipita-se para o amigo e abraça-o. – Senta, homem.

As moscas zumbem no ar, por cima da cabeça do morto, que se senta na ponta da cadeira.

– Bebes uma cachacinha?

– Não posso. Se eu beber, vaso. Costuraram muito mal a minha barriga.

Eu sei. Eu vi. Depois que o doutor da polícia abriu o teu bucho, eu fui às autoridades competentes e pedi o teu corpo. Me deram, sem papel nenhum. Vai então fiz uma suscrição rápida entre amigos pra te comprar um caixão. Não era gran cosa, mas, que diabo!, nunca foste homem de luxos. Te botei essa roupa, a melhor que encontrei na tua casa. Me esqueci dos sapatos. Me desculpa...

– Não estás assustado?

– Eu? De quê?

– De estar falando com um defunto. Espantei muita gente na rua. Uns dois ou três ficaram de perna frouxa e caíram. Outros dispararam.

– Ah, mas esses não eram teus amigos, como eu.

Alambique toma uma larga talagada de cachaça. Agora as moscas cobrem quase por completo a face, as mãos e os cabelos do morto.

– Meu fedor não te repuna?

Hai piores no mundo e eu tenho agüentado firme. Mas... como ia te contando, alugamos uma carroça, botamos o teu caixão dentro dela (eu mais o negro Tinoco e o carroceiro) e tocamos lomba acima, na direção do cemen-tério. Quando chegamos lá em riba vieram uns caras me dizer que ninguém podia ser enterrado, porque isto e porque aquilo. Dei-lhes uma puteada em regra, levei uns empurrões, mas tu compreendes, eles eram uns cento e tantos e nós só três, parada mui dura. Então tivemos de te deixar fora da cidade dos pés juntos. Mas toma um troço, homem!

– Já te disse que estou furado.

– Tenho sentido falta de ti.

– Como é que já estás aqui tão cedo?

– Vim tomar meu “café da manhã” – sorri o Alambique, mostrando o copo de cachaça. – Passei a noite em claro, caminhando por aí, cantando pelas esquinas. Quando o dia raiou, fiquei olhando o rio e pensando umas .bobagens. Mas toma uma branquinha!

– Já te disse que não posso. E mesmo não sinto vontade.

Alambique espanta as moscas que voe jam também em torno da sua cabeça, pega o violão e começa a tocar uns ponteios. O morto pergunta:

– Escuta aqui... é verdade, é verdade mesmo que a Nataiina botou veneno na minha comida?

– Ê. Confessou.

– Não teria sido invenção da polícia?

– Não. Falei com ela. Não nega que te matou de propósito.

– Coitada! Não está arrependida?

– Não sei. Mas não me pareceu.

E agora? Será que vai pegar muitos anos de cadeia?

– Ora, menino, isso depende de muita coisa. Do discurso do promotor. Do advogado dela. Dos jurados. Toma alguma coisa!

Alambique ergue-se e, meio cambaleante, vai até à prateleira do botequim, por trás do balcão, segura uma garrafa de cachaça e volta com ela para a mesa.

– Estamos de donos desta joça. Quando te viu, o Quincas ficou branco como papel e botou o pé no mundo. Hoje podemos beber de graça. Quem sabe aceitas um vinho. .. ou um licorzinho?

Pudim belisca, distraído, as cordas do violão do amigo.

– Onde está a Natalina?

– Na cadeia municipal. Onde mais?

Pudim de Cachaça passa a mão pelo estômago, quase numa carícia.

– Escuta aqui, Alambique... E se a gente hoje de noite fosse fazer uma serenata pra ela?

 

Do diário íntimo do Pe. Pedro-Paulo :

13 de dezembro. Cinco e quinze da tarde. Confusão de espírito ante os fantásticos acontecimentos do dia. Estará Antares sob a influência dum incubo? Nãc quero pensar nisso. Pelo menos por enquanto.

O vigário me telefonou aflito e tartamudeante. Afirma que viu de perto os sete mortos e sentiu-lhes a podridão. Jura que se moviam, falavam e até sorriam. Pediu-me para ir ajudá-lo esta tarde na Matriz, pois várias dezenas de pessoas querem confessar-se e comungar. O pobre velho sente-se culpado do pânico que parece ter tomado conta da população de Antares, pois num momento de desatino (justificável) exclamou, dentro da igreja, que o Juízo Final tinha começado.

Tudo isso me pareceu grotesco e terrível. Cerca das oito horas da manhã Geminiano me levou no seu jipe ao centro da cidade. Apeei na Praça da República. Pedi ao G. que voltasse para a Vila e que fizesse o possível para que os seus companheiros não fossem ao centro enquanto a situação não se esclarecesse. Era melhor para eles e para a greve não se envolverem no “imbroglio”.

De repente me vi sozinho no meio da praça, sob o olho ardente do sol. Suava abundantemente. O calor úmido me ardia na pele. A cabeça me latejava e doía numa dor surda, rombuda, localizada principalmente na nuca. Achei que se eu ficasse ali por muito mais tempo seria vítima duma in-solação. No entanto, por algum motivo misterioso continuava imóvel, com a vaga impressão de que tinha um encontro marcado com alguém àquela hora e naquele lugar. Mas com quem? A praça estava completamente deserta. As casas em derredor, com janelas e portas fechadas. Era como se toda a população do mundo tivesse sido destruída por uma peste ou por uma guerra nuclear e eu fosse o único sobrevivente da hecatombe. .. As cigarras que rechinavam nas árvores em breve pareciam estar dentro do meu próprio crânio, cantando e stridulamente ao ritmo do sangue que me martelava as têmporas.

E eu ainda esperava... mas quem?... com a sensação de que não podia faltar a um encontro da maior importância. O suor me entrava nos olhos e as coisas a meu redor – casas, árvores, pedras, céu – se turvavam cada vez niais, até ao ponto de eu ter a sensação de que estava no fundo do mar.

Foi então que avistei, vindo não sei de onde, um vulto que se aproximava de mim. Era um homem e manquejava.

Finalmente parou, a alguns -passos de onde eu me encontrava. Seu corpo não tinha sombra. Sua cara estava horrivelmente desfigurada.

– Não está me reconhecendo, padre?

– Joãozinho!

– Está com medo de mim?

– Não. Mas estou confuso. .. não compreendo.

– Não procure compreender. Esqueça a lógica.

Senti um aperto na garganta, meu. coração batia rápido e com força. Esfreguei os olhos com as pontas dos dedos. Dei alguns passos na direção do meu amigo, mas ele recuou.

– Não se aproxime! Estou cheirando mal. Por favor, não me faça perguntas. Aceite a minha presença assim como aceita os milagres da sua Igreja. E me escute, pelo amor de seu Deus, me escute com a maior atenção.

– Fale, Joãozinho. Que é que você quer de mim?

– Fui assassinado, você sabe... Estou preocupado com o destino de minha mulher e do nosso filho, que ela tem no ventre.

Eu já não sentia mais o corpo. Quis dizer alguma coisa, mas não consegui, pois era como se a língua me tivesse inchado dentro da boca.

– Sabe onde está a Ritinha?

– Em casa – respondi com voz espessa, articulando mal as palavras. – Visitei-a ontem.

– Como está ela?

– Desesperada. Sentindo falta de você.

– É verdade que ela foi presa e interrogada brutalmente pela polícia?

Baixei a cabeça, olhei para a minha própria sombra, com uma súbita vergonha de pertencer à espécie humana.

– Desgraçadamente é verdade.

– Foi torturada?

Senti uma tontura e a impressão de que ia cair. Fiz um esforço, mantive o equilíbrio e respondi:

– Perguntei isso à própria Ritinha, mas ela declarou que preferia não falar no assunto. Respeitei o desejo dela.

– A criança ainda está viva?

– Está. Ela se move. O médico afirma que o filho de vocês vai nascer dentro de menos de dois meses.

– Padre, eu agora quero ver a minha mulher, mas temo que ela sofra um choque muito grande quando me vir... neste estado, e isso pode ser mau para ela e para a criança... Quero que você vá vê-la “agora” e preparar o seu espírito... para este espetáculo repulsivo. Não! Não se aproxime de mim. Estou podre. Faça o que lhe pedi e não pense em mim.

Nos meus olhos as lágrimas misturavam-se com o suor. E agora eu só sentia compaixão e amor para com aquele homem, meu amigo, meu irmão.

– Outro grande favor, padre – tornou ele a falar. – Sei que não tenho o direito de lhe pedir tanto...

– Peça o que quiser.

– Salve a minha mulher e o meu filho do delegado Pigarço e de seus carrascos. Eles podem prendê-la de novo. Quero que a leve para o outro lado do rio. Conhece o Luís Romero, o dono da lancha chamada ‘“Querência”?

– Conheço.

– Ele é meu amigo e companheiro de luta. Um homem de verdade. Esta noite a cidade inteira estará preocupada com os sete defuntos. Aproveite a oportunidade para conduzir a- Ritinha até esse homem. Peça-lhe que a leve para a Argentina no seu barco. Do outro lado temos companheiros que lhe arranjarão todos os papéis de identidade necessários. Pode me fazer mais esse imenso favor?

– Posso.

– Sinto ter de comprometê-lo nessa fuga, padre.

– Não vie é possível ficar mais comprometido do que já estou. Não se preocupe comigo.

– Leve a Ritinha ao Trapiche Pequeno por volta das dez da noite.

De novo tentei aproximar-me de João, num súbito e talvez absurdo desejo de tocá-lo, apertar-lhe a mão.

– Por favor, não se aproxime. Sou um cadáver. É terrível a gente saber, sentir que está se desintegrando, apodrecendo aos poucos. É pavoroso ter consciência disso. Eu quisera acreditar em Deus e na vida eterna. Mas não posso. Nunca pude. Mas acredito nesta vida. E como! Tenho esperança num futuro melhor para nossa terra, para o mundo. Quero que meu filho nasça, cresça e viva para participar desse mundo.

– Isso é religião – disse-lhe eu baixinho. – Você diz que não acredita em Deus, mas vejo que acredita em todos os Seus pseudônimos.

Separamo-nos e eu me encaminhei para a casa de João-zinho e Ritinha, numa das missões que esperei viesse a ser das mais difíceis da minha vida de sacerdote e de homem. Mas estava enganado. Ritinha me escutou de olhos secos, com uma coragem extraordinária. Quando terminei de lhe contar de meu encontro com João, ela disse simplesmente: “Ele pode vir. Estou preparada. E nosso filho também”.

 

Na pequena sala de seu apartamento Rita Paz espera o marido. Na tarde anterior o médico lhe deu barbitúricos para que ela pudesse dormir. Deitou-se completamente vestida como estava. Ao amanhecer daquela sexta-feira, despertou dum sono ininterrupto de quinze horas, espesso e sem sonhos. Ergueu-se da cama estonteada, a memória bloqueada, e veio abrir a janela da sala. A luz do sol feriu-lhe os olhos, penetrou-lhe o cérebro doendo como cem agulhas lancinantes de fogo. Ela tornou a fechar, às cegas, as venezianas e atirou-se naquela poltrona, cerrou os olhos e ficou vendo contra as pálpebras umas manchas que avançavam e recuavam, umas arroxeadas, outras dum verde de fel: e pareciam mover-se ao ritmo do latejar de seu sangue.

O Pe. Pedro-Paulo encontrou-a naquela situação e ela o escutou sem vê-lo. Apesar de mansa, a voz do sacerdote lhe doeu nos olhos e na cabeça. Algumas das frases que ele lhe disse lhe voltam agora com toda a sua carga de horror. (Ou tudo isto é um pesadelo?)

“Ele foi torturado barbaramente. Seu rosto está quase irreconhecível. Um braço e uma perna partidos. Rita, pense em Deus e tenha coragem. O que vou lhe dizer é terrível, mas é melhor que você saiba de tudo. O corpo do seu marido está em decomposição. Prepare-se para o pior.”

Rita Paz espera. Espalma as mãos sobre o ventre in-tumescido e sente os movimentos do filho no leve ondular de sua própria carne.

Quanto tempo faz que o Pe. Pedro-Paulo saiu desta sala? Cinco minutos? Dez?

Começa a ouvir um ruído que vem da velha escada... um ruído surdo e cadenciado de passos. Alguém sobe... Ela endireita subitamente o torso e fica à escuta... Sente a garganta apertada, respira com dificuldade, as mãos agarrando com força os braços da poltrona.

O ruído de passos continua, vai ficando cada vez mais forte. De repente cessa, para recomeçar segundos depois, numa intensidade diferente: um passo pesado, outro leve e meio arrastado. (A perna quebrada!) “Joãozinho” – pensa ela. – “Joãozinho agora está no corredor, aproxima-se da porta...” Rita conserva os olhos cerrados. Ouve o ruído metálico do trinco... Quer erguer-se e correr ao encontro do marido mas não tem forças para mover-se: braços e pernas como de pano, uma fraqueza no corpo inteiro. O sangue pulsa-lhe nas têmporas. (“Meu pai morreu dum derrame cerebral.”) Sente que a porta se abre e que o marido ali está a uns cinco passos dela. Sua podridão lhe chega às narinas e Rita não pode evitar que seu rosto se crispe numa expressão de náusea.

– Ritinha...

A voz dele. Ela abre os olhos, leva alguns segundos para distinguir as feições do marido na penumbra. (Quem é esse estranho?) Esconde a face nas mãos e um soluço que lhe vem das entranhas, um soluço profundo, enorme, de que seu filho parece participar, convulsiona-lhe espasmo-dicamente o ventre, sobe-lhe dilacerante pelo peito até à garganta, onde fica trancado, incapaz de libertar-se num acesso de choro.

Eu sei que estou medonho. Mas escuta, meu amor. Prometo não ficar muito tempo.

– Não, meu querido, não. Fica! Fica! Consegue finalmente erguer-se. Ele, porém, grita:

– Alto! Não te aproximes... – E ela, que havia dado um passo, estaca, balbuciando:

– Eu queria te abraçar, te beijar... A voz dele lhe vem seca e sem cor-.

– Se deres mais um passo eu me atiro por essa janela... Escuta, Rita. Sei que estou cheirando mal. Mas não penses que a morte me destruiu o amor-próprio. Não quero te causar repugnância, nem desejo que guardes esta horrível lembrança de mim... Senta-te, por favor.

Ela obedece e ele recua para um canto da sala, o mais longe dela possível. Um novo soluço sacode agonicamente o corpo de Rita. Seus olhos continuam secos, a garganta apertada.

– Estás sofrendo muito? – consegue ela perguntar.

– Não, Ritinha, não sinto nenhuma dor física. Mas agora escuta. Se vim com os outros mortos é porque queria te rever... e principalmente fazer alguma coisa para te salvar desses bandidos, a ti e ao nosso filho. Depois, pouco me importa o que fizerem com o meu cadáver.

Ela estende os braços:

– Mas eu quero ao menos te tocar...

– Não! Não sou mais o homem com quem casaste.

– Meu pobre querido! Um curto silêncio.

– Nosso filho ainda se mexe?

– Sim.

– Ah... se eu pudesse sentir os movimentos dele! Ela sorri, como que súbita e milagrosamente liberta

do pesadelo.

– Podias encostar a mão no meu ventre...

– Minha mão podre...

– Tua linda mão. Vem, por amor de Deus, vem... João hesita.-

– Rita, tapa o nariz e a boca com um lenço...

– Joãozinho...

– Faz o que te peço. Depressa. Eu vou me aproximar de ti. Só por alguns segundos. Por favor!

Ela leva o lenço ao nariz, ele dá alguns passos, claudicando, coloca uma das mãos sobre o ventre da companheira.

– Sentes alguma coisa? – e a voz de Rita vem abafada através do lenço.

– Sinto! Sinto! Ele está vivo e é nosso!

De repente ela estende os braços e enlaça as pernas do marido num gesto desesperado e aperta a cabeça contra o ventre dele como se quisesse penetrar-lhe as entranhas.

– Não! Não! Não! – vocifera o morto, desvencilhan-do-se e recuando para um canto da sala, ao passo que ela fica ajoelhada ao pé da poltrona, o corpo outra vez sacudido por soluços secos.

– Perdoa, querida. Eu não devia ter feito o que fiz. Foi egoísmo meu. Um morto devia conhecer o seu lugar. Mas é que a morte não matou o meu amor por vocês. Nem por todos os seres vivos do mundo. Nem pelo mundo... e pela vida. Mas agora escuta. Escuta com a maior atenção. Teu futuro e o do nosso filho depende do que vou te dizer... Ritinha, estás me ouvindo?

Ela sacode repetidamente a cabeça, os olhos fitos no soalho.

– Esta noite, por volta das dez horas (atenta no que estou te dizendo), o Pe. Pedro-Paulo virá te buscar para te levar para o outro lado do rio no barco do Romero. Ninguém prestará atenção a vocês porque a cidade inteira vai estar preocupada e assombrada pela presença de sete mortos no coreto da praça. Romero sabe aonde e a quem te levar. Na outra margem, companheiros nossos te arranjarão os papéis necessários e depois te esconderão num lugar seguro, onde poderás ter o nosso filho com assistência médica. Mas escuta... Põe na bolsa todo o dinheiro argentino que temos escondido. Não leves nenhuma mala. Estás compreendendo?

Ela faz com a cabeça um sinal afirmativo.

E agora adeus. Não. Não te levantes. Não te aproximes. Conserva os olhos fechados.

Ele se encaminha lentamente para a porta.

– Joãozinho! – Ele se volta. – Há uma coisa... uma coisa horrível que preciso te contar...

– Conta, minha querida.

Ela fala com dificuldade, como se alguém lhe apertasse a garganta.

– Eu não sou quem imaginas. Sou uma covarde, uma traidora.

– Rita, não sabes o que dizes.

– Espera, espera... Se eu não te contar tudo... será mais um peso que terei de carregar pelo resto da vida.

– Não tens que me dizer nada. Lembra-te que morri anteontem. Não sei o que me vais dizer, mas seja o que for tu para mim serás o que sempre foste. Na cadeia, mesmo na hora das torturas, eu pensava em ti, recordava os bons e os maus momentos que passamos juntos. A tua dedicação e a tua lealdade eram para mim um consolo e uma esperança.

– Não, Joãozinho. Covarde e traidora, isso é que eu sou!

– Me recuso a ouvir o que dizes! – exclama ele, dando mais dois passos na direção da porta.

– Se não me escutares, sou eu quem salta por aquela janela agora – e ela pronuncia estas palavras quase gritando.

Ele estaca.

– Fala, então. ..

– Na manhã em que te prenderam... eles me levaram também, me atiraram dentro dum quarto sem janelas. .. completamente escuro... e lá me deixaram um dia inteiro, uma noite inteira... Depois me arrastaram para outra sala, me fizeram sentar numa cadeira... acho que eram muitos homens, eu não podia enxergar direito por causa daquela luz forte nos meus olhos... Queriam saber os nomes dos “outros dez” de que tu (eles diziam) eras o chefe... Respondi que não sabia.

Disseste a verdade.

– Mas eles não acreditaram. Repetiram a pergunta. Jurei por Deus que não sabia. E então aqueles animais ameaçaram de me torturar... enfiar agulhas debaixo das minhas unhas... Um deles chegou a dizer que, se eu não falasse, eles me entregariam nua aos soldados da guarda... Por fim um outro gritou: “Se você não confessa nós vamos pisar nessa tua barriga, cadelinha, e matar o teu filho...” E então... eu... eu confessei!

– Impossível! Tu não sabias, como eu também não sei. Como pode a gente conhecer os nomes dos componentes dum grupo que só existe na imaginação dum bandido alucinado, dum cachorro louco como o delegado Pigarço?

O corpo inteiro de Rita estava agora sacudido por um tremor de febre.

– Perdoa, Joãozinho... Eu estava apavorada. Pensei no meu filho e comecei a dizer nomes... os primeiros que me vinham à cabeça... nomes de companheiros nossos...

Por um instante João Paz permanece calado. Depois, com voz pausada e resoluta, diz:

– Não penses mais nisso. Eu teria feito o mesmo, no teu lugar.

– Não! Não! Tu não disseste nada, e por isso eles te torturaram e te mataram.

– Não deves imaginar que não tive medo. Não sou nenhum herói. Se não me tivessem assassinado, eu talvez no fim tivesse feito o mesmo que tu... Esquece tudo! Pensa apenas no nosso filho. Agora só isso importa.

– Espera! Quero ser sincera até ao fim. Eu podia dizer que foi só pensando na vida de meu filho que fraquejei. Não. Foi pensando também na minha própria carne. Tenho horror ao sofrimento físico. Confessei porque sou covarde. Depois que me soltaram, ouvi dizer que todas as pessoas que eu havia denunciado estavam presas. Fiquei horas sozinha ali naquela cadeira, pensando nelas, no que podiam estar sofrendo por minha causa. Se não me matei... depois de tudo isso e depois que me contaram da tua morte... se não me matei foi ainda por covardia.

– Não, Ritinha, tu não me convences da tua falta de coragem. Eu sei que és, que sempre foste e continuarás sendo uma mulher de valor.

Ela sacode a cabeça, dum lado para outro, negando-se a aceitar aquelas palavras e repetindo: “Não! Não! Não!” Ele, porém, continua:

– Escuta, minha querida. Às vezes neste mundo é preciso mais coragem para continuar vivendo do que para morrer. As pessoas que dizes ter denunciado mais tarde ou mais cedo serão libertadas. Não conseguirão provar nada contra elas. E tu, tu, Rita, terás daqui por diante uma missão a cumprir. E sou eu, teu marido e companheiro, quem te delega essa missão. Irás em exílio para a Argentina e lá terás o nosso filho. E depois o criarás com o suor do teu rosto, e farás dele um homem para que ele um dia possa ajudar as criaturas de boa vontade a criar um mundo melhor e mais justo do que o de hoje. Não percas a fé no futuro. Quem foi que escreveu que o pior pecado é o pecado contra a esperança? Não esqueças, meu amor, o Pe. Pedro-Paulo virá te buscar esta noite às dez horas. E agora fica onde estás. Não me olhes. Pensa no outro. No homem que fui. Te lembras daquele domingo, no segundo ano de nosso casamento, quando saímos a passear de barco pelo rio? Tinhas ido ao médico no dia anterior sem me dizeres nada. Guardaste bem o teu segredo. E no meio do rio, enquanto eu remava, tu me revelaste que estavas grávida... te lembras?

Ela ergue a cabeça, mas de olhos sempre fechados.

– Como podia esquecer? Eu me lembro do teu rosto no sol...

E eu fiquei tão contente com a notícia que me ergui e atirei longe o remo, pouco me importando que nosso barco fosse levado pela correnteza até ao mar... Nós íamos ter um filho... Éramos donos do mundo!

Então de súbito, como uma represa que se rompe, os soluços de Rita se transformam em pranto, e as lágrimas lhe escorrem dos olhos pelo rosto, e ela se estende no chão, quase aliviada da sua agonia, e ali fica a chorar, a chorar como uma criança.

João Paz está agora na soleira da porta.

– Não abras os olhos. Quero te fazer um último pedido. Esquece que me viste... assim. Abre as janelas. Deixa entrar o sol e o vento para que varram o meu rastro podre. Fica naquela manhã clara. Naquele barco, no rio... O sol nas nossas faces! Adeus, querida!

Ela ouve a porta fechar-se, os passos no corredor, depois na escada, e por fim o silêncio.

 

Naquela manhã, cerca das sete horas, Acácia entrou no gabinete do prefeito de Antares para fazer a limpeza de rotina. Sofria de elefantíase e movia-se com a pesada lentidão dum paquiderme. Costumava trabalhar resmungando todo o tempo para si mesma e para as almas, os anjos e os demônios que sentia permanentemente ao seu redor. Passou primeiro um pano úmido pelo soalho encerado e depois saiu a limpar com um pedaço de flanela seca as superfícies de madeira e metal cromado, e os objetos que estavam sobre a mesa de trabalho do “perfeito”. Tinha ordem de não tocar em nenhum papel que encontrasse naquele recinto, fosse onde fosse, e de não abrir nenhuma gaveta. Tratava cada móvel, cada utensílio como a uma pessoa, uma velha conhecida, com quem conversava – o telefone, as canetas, a prensa de mata-borrão, os cinzeiros, os vasos, o corta-papel... Gostava especialmente do grande tinteiro de mármore com relógio, calendário móvel e adornos dourados. Era com um sentimento de respeito mesclado de supersticioso medo que ela passava a flanela pelos dois bustos de bronze – aquelas “estautas” sem braços nem pernas que lá estavam, cada qual no seu canto. Quem eram? Não sabia. Nos muitos retratos que pendiam das paredes, enquadrados em molduras cor de ouro velho, ela só reconhecia uma fisionomia: a do Dr. Getúlio Vargas, que ela adorava como se ele fosse um santo. O Velho tinha morrido, e estava no céu, apesar de ter dado um tiro no próprio coração. Deus não teria coragem de mandar o Dr. Getúlio para o inferno. Todas as manhãs, tirante a de domingo, antes de começar a limpeza da peça, Acácia costumava ajoelhar-se diante da imagem do Pai dos Pobres e recitar atabalhoadamente uma oração, em geral um Padre-Nosso. A negra velha era a encarnação dum curioso sincretismo religioso. Macumbeira, mãe-de-santo, devota de São Jorge, ela também ia à missa aos domingos, fazia promessas a Nossa Senhora, e de vez em quando se confessava e comungava. Ultimamente dera para freqüentar a Assembléia de Deus, pois lá encontrava a oportunidade, que a encantava, de entoar hinos com os demais crentes.

Na sua breve oração daquela manhã, Acácia pediu ao Dr. Getúlio que protegesse a população de Antares, pois era uma sexta-feira 13 e na véspera uns hereges desalmados tinham impedido que sete defuntos fossem sepultados. Depois de fazer o sinal da cruz, ergueu-se, gemendo, e de repente lhe ocorreu pedir mais alguma coisa ao seu “santo”: “Meu ganhame aqui é pouco e o trabalho muito, Presidente. Mande essa gente me pagarem mais. Amém!”

Terminada a tarefa, parou no meio da sala, olhou em torno com seus olhos líquidos, de esclerótica pardacenta, viu que tudo estava bem e saiu a limpar os outros compar-timentos do palacete municipal.

 

Antônio Augusto Mendes, secretário da Prefeitura, era um trintão alto, magro, meio encurvado, o rosto amarelento picado de marcas de bexiga, os dentes maus, a voz afetuosa, os gestos obsequiosos. Seu avô, republicano da primeira hora, fora serventuário público durante quarenta anos e tinha uma admiração ilimitada por Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros. O Mendes crescera ouvindo em casa, contadas pelo avô, estórias edificantes sobre esses dois patriarcas. No ginásio a História fora a sua matéria preferida. Tinha a política no sangue, sonhava com uma deputação estadual ou mesmo – quem sabe? – federal. Fora, porém, forçado, por motivos econômicos, a abandonar o curso de Direito no terceiro ano, e voltara para Antares onde trabalhara primeiro com um rábula, e depois como escrevente dum cartório. Candidatou-se duma feita a uma cadeira na Assembléia Legislativa do Estado, mas não foi eleito, pois não obteve mais que cento e poucos votos. Dois anos mais tarde tentou a vereança, na legenda do P.S.D., e conseguiu ser eleito “pelas caronas”, como se comentou na cidade. Terminado o seu mandato, foi convidado para trabalhar com o Maj. Vivaldino Brazão, que começava a sua gestão como prefeito municipal.

Antônio Augusto Mendes orgulhava-se de ser um funcionário dedicado e diligente. E era mesmo. Vivaldino estava satisfeito com o seu auxiliar, apesar de saber que ultimamente o Mendes andava abusando dos “aperitivos” às horas mais impróprias do dia. Às vezes o álcool deixava-o um tanto alegrete, com entusiasmos excessivos e uma lo-quacidade exacerbada. Nada disso, porém, lhe prejudicava a eficiência secretarial nem as suas qualidades de “homem dos sete instrumentos”.

Nas noites em que resolvia fazer serão na prefeitura, para pôr em dia tarefas atrasadas, o Mendes, findo o trabalho, gostava de acender as luzes do gabinete do chefe, sentar-se no sofá e ali ficar bebendo caninha e olhando para os retratos dos políticos que se enfileiravam ao longo das paredes: o de Getúlio Vargas, na fotografia oficial, com a faixa de Presidente, e que durante o Estado Novo o D.I.P. distribuíra aos milhões por todo o país; o de Flores da Cunha, no seu fardamento de general honorário do Exército Nacional; o de Oswaldo Aranha, com seu ar de estadista civilizado, “com cancha internacional”; o de Juscelino Kubitschek, com o seu semblante entre simpático e irônico, com um quê de eslavo. Numa outra parede via-se o retrato de João Goulart – e o fotógrafo lhe apanhara o ar matreiro e xucro de quem nunca olha o interlocutor diretamente nos olhos. Em 1930, quando a Frente Única congraçava mara-gatos e pica-paus em torno da personalidade do homenzinho de São Borja, alguns libertadores locais tinham conseguido que o então prefeito (republicano, como sempre) pendurasse numa das paredes do seu gabinete o retrato de Gaspar Martins e o de Assis Brasil. Lá estava o conselheiro do Império com as suas barbas e o seu olhar igneo de profeta bíblico. O castelão de Pedras Altas, nariz bulboso, bigodes à Joaquim Nabuco – do seu pouco conspícuo trecho de parede parecia olhar para os outros retratos com um certo desprezo aristocrático. Na parede que dá para a praça, no vão entre as duas janelas-portas que abrem para o balcão, empinava-se num cavalete um retrato a óleo, de corpo inteiro, do senador Pinheiro Machado, cópia medíocre da tela de G. Dall’Ara, cujo original se encontra no Palácio Monroe, no Rio de Janeiro. (A imagem de Jânio Quadros havia sido retirada daquela galeria pouco menos de um mês após a sua renúncia.)

Uma noite, terminado o serão, já madrugada alta – com um copo de cachaça na mão e o espírito da cana a estimular-lhe a fantasia, o Mendes acendeu as lâmpadas do lustre do gabinete do prefeito e, com os ouvidos da memória, pôs-se a escutar o que aquelas figuras diziam. A voz que ouviu primeiro foi a do busto de Borges de Medeiros, que fitava o seu mestre e amigo Júlio de Castilhos:

– A luz dos ensinamentos de Augusto Comte, cumpre afinal promover definitivamente a incorporação do proletariado à sociedade moderna e considerar o salário como a equivalência da subsistência, e não como recompensa do trabalho humano, que não comporta nem exige nenhum pagamento propriamente dito, mas o reconhecimento devido.

Castilhos pareceu sacudir a cabeça, aprovando o seu discípulo. Depois, com a voz roufenha de quem sofre de algum mal de garganta, sentenciou:

Comte disse também que existe na ordem política alguma coisa mais importante do que a divisão de poderes. Ë a composição do orçamento. É aí que reside o grande problema social, porquanto nos povos modernos a questão capital da sociedade é o imposto.

Nesse momento Gaspar Martins, num fuzilar de olhos e óculos, bradou:

– Idéias não são metais que se fundei

Mendes, que tinha atavicamente uma alma de republicano, não resistiu à tentação de corrigi-lo :

– Fundem e não funde, conselheiro. O se não é sujeito da sentença, mas pronome reflexivo. Vá primeiro aprender gramática, seu maragatol

E bebeu mais um gole de cachaça.

Castilhos e Borges de Medeiros continuaram o diálogo.

– O Brasil – disse o segundo – atravessa uma crise profunda que abrange a complexidade dos fenômenos de ordem moral, intelectual e material. E em vão que tenta a sua debelação pelo emprego exclusivo dos remédios políticos... hlão existe uma doutrina universal; não existe uma moral positiva, generalizada; e a moral teológica, exausta e decrépita, luta debalde pela conquista de sua influência fatalmente perdida... Só a educação positiva poderá curar o ceticismo que domina as classes superiores, e o indiferen-tismo ou a revolta que caracteriza as classes inferiores.

Foi nesse ponto que o senador Pinheiro Machado se manifestou, imponente no seu fraque, a cabeça erguida, a mão direita metida no bolso das calças listradas:

– É possível que durante a convulsão que nesta hora sacode a República em seus fundamentos, possamos submergir. É possível. É possível mesmo que o braço assassino, impelido pela eloqüência das ruas, nos possa atingir... Não ocultaremos como César a face com a toga e de frente olharemos fito a treda e ignóbil figura do bandido, do sicàrio.

Mendes bebeu o último gole de caninha e disse para si mesmo que aqueles três, sim – Castilhos, Borges e Pinheiro – eram homens de prol, chefes com C maiúsculo. Que diziam os outros retratos? Flores da Cunha repetia com uma voz que a emoção engasgava: “Desta jornada ou se volta com glória ou não se volta mais!” Oswaído Aranha repetia a senha telegràfica que havia deflagrado a Revolução de 1930: “O que é que há?” (Havia um o demais na frase, refletiu o secretário da prefeitura, com uma intransigência de gramático.) Depois Aranha murmurou qualquer coisa em inglês ao seu particular amigo Franklin Delano Roosevelt, ausente em efígie. Juscelino, que parecia não levar aquela gente a sério, limitava-se a repetir: “Cinqüenta anos de progresso em cinco. A História me julgará!” O conselheiro Gaspar Martins, talvez por se sentir em minoria, gritava agora frases nos muitos idiomas que conhecia – inclusive o grego, o latim e o hebraico – enquanto Assis Brasil recitava trechos de sua tradução dum poema famoso de Longfellow, entremeado de conselhos aos agricultores e algo – que Mendes não conseguia entender – sobre as vantagens do voto secreto. E a todas essas Getúlio e Jango continuavam calados. Getúlio olhava para todos sorridente. Jango não olhava para ninguém.

Foi o Dr. Júlio de Castilhos quem disse a última palavra da noite:

– A progressão social repousa essencialmente sobre a morte. Os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mortos.

Mendes não ouviu nem viu mais nada, pois caiu no sono, estendido no sofá, e só despertou no dia seguinte, ce-dinho, quando a velha Acácia lhe bateu no ombro. Por alguns instantes ele ficou de olhos piscos, pensamentos enevoados, sem saber claro quem era nem onde estava. Por fim situou-se, sentou-se, sorriu encalistrado, e, com voz pastosa e amarga, disse: “Ò Acácia! Trabalhei como um cavalo a noite inteira!” A negra velha olhou cética para o copo que estava em cima da mesinha, à frente do sofá, cheirou-o e rosnou: “Hum-hum!”

Isso tudo aconteceu na véspera da fatídica sexta-feira.

 

A reunião dos pró-homens de An tares, convocada às pressas por Vivaldino Brazão, começa poucos minutos antes das dez. Os convidados chegam ao gabinete do prefeito num silêncio taciturno – alguns extremamente pálidos, quase todos com o susto à tona do olhar – cumprimentam-se uns aos outros de maneira vaga, molenga, sem a costumeira afabilidade, e vão se sentando nos lugares indicados pelo Mendes. O secretário, depois de ter avistado aquela manhã, um dos sete defuntos, de longe, resolvera afogar a sua perplexidade e o seu medo em vários copos de caninha.

O Dr. Quintiliano do Vale, juiz de Direito, e o vigário Gerôncio Albuquerque ficam sentados a direita da mesa do prefeito. O Cel. Tibério Vacariano aboleta-se numa poltrona do lado do coração do Maj. Vivaldino, tendo à sua esquerda o Dr. Mirabeau da Silva, promotor público – um moço de cabelos louros e crespos, rosto carnudo e rosado, }em-brando um anjo de Rubens que tivesse atingido desastrosamente a idade adulta.

Mendes acomoda num mesmo sofá os presidentes da Associação Comercial e os dos clubes Rotary e Lions. O Dr. Erwin Falkenburg e o Dr. Lázaro Bertioga tomam posição em poltronas avulsas, a dez passos um do outro, como se fossem bater-se em duelo. Lucas Faia é colocado ao pé do busto de Júlio de Castilhos e o Prof. Libindo Olivares a um metro de Borges de Medeiros.

Inocêncio Pigarço, o último a entrar na sala, ocupa a única poltrona ainda vaga, perto do senador Pinheiro Machado, como para protegê-lo, um tanto tardiamente, contra o assassino que haveria de o apunhalar pelas costas, num remoto dia de 1915 – exatamente no ano em que o delegado de Antares veio ao mundo.

De pé, atrás de sua mesa de trabalho, nauseado como se tivesse comido várias catléias fritas na manteiga, com o café da manhã – o Maj. Vivaldino Brazão pergunta ao seu secretário:

– Estão todos?

– Todos, menos o presidente da Câmara Municipal e o do Clube Comercial.

O Dr. Lázaro ergue-se e, com uma solenidade constrangida, explica:

– Senhor prefeito, o Dr. Marcolino não veio porque está de cama, doente. Posso dar testemunho disso, pois fui chamado para atendê-lo.

– Algo grave?

– Bom... uma diarréia nervosa. Tibério solta uma risadinha de desdém:

– Há! O Marcolino sempre foi um frouxo. O Dr. Falkenburg ergue-se e diz:

– O presidente do Clube Comercial também se acha enfermo, o que explica a sua ausência. Está com taquicardia.

Tibério de novo intervém:

– Isso, traduzido pra língua de cristão, quer dizer cagaço, não é?

O médico dos Campolargos senta-se duro e sério, sem mais palavra.

O prefeito pigarreia, olha para o tapete persa estendido no centro da sala (presente da laboriosa comunidade sírio-libanesa à prefeitura) e depois para o Mendes.

– Está bem. Pode retirar-se. – O secretário dá já os primeiros passos na direção da porta quando o seu chefe exclama. – Nãol Fique, Mendes, senão seremos treze neste gabinete. Não que eu seja supersticioso... Mas é bom a gente estar prevenido. Hoje é sexta-feira 13. Depois de tudo que nos tem acontecido... nunca se sabe.

O Cel. Vacariano remexe-se na sua poltrona, procurando uma posição ao agrado de sua próstata.

– O que foi mesmo que aconteceu? – pergunta.

– Ora, Tibério, você bem que sabe... Os mortos que fomos obrigados a deixar ontem do lado de fora do cemitério se levantaram de seus caixões e desceram para a cidade.

– Eu não vi nenhum deles ainda.

– Com sua licença, coronel – intervém polidamente o juiz de Direito – isso não prova nada.

– Mas o senhor viu com os seus próprios olhos algum dos defuntos, doutor?

– Devo confessar que não. Mas pessoas que me merecem crédito, como o nosso prefeito, o nosso delegado... ah!, sim, e o nosso venerando vigário, viram.

– Tibério – diz o prefeito, estendendo o braço e pondo a mão no ombro do amigo – a esta hora existem nesta terra centenas e centenas de cidadãos de ambos os sexos que viram os mortos caminhando por suas próprias pernas, gesticulando, falando... e cheirando mal.

– Eu acho que quem morre se acaba! – exclama o Cel. Vacariano.

O Pe. Gerôncio protesta timidamente:

– Não blasfeme, coronel. Quem morre vai para o Céu, o purgatório ou o inferno, conforme os desígnios de Deus.

– Bueno – retruca o outro – mas não volta para Antares. Isso é que eu quero dizer.

– Coronel – meteu-se, já meio agastado, Inocêncio Pigarço – tenho uma sugestão a lhe fazer. Sua velha amiga

Quitaria está neste momento sozinha no seu palacete, sentada na sua cadeira de balanço. Por que o senhor não vai visitá-la?

 

Tibério primeiro termina de acender o seu palheiro, dá uma tragada longa, solta o fumo pelas narinas, agita-se num acesso de tosse, e por fim responde:

– Não vou porque não quero me sujeitar a um redi-culo. Onde se viu defunto com vida? Ó Dr. Lázaro! O senhor assinou os atestados de óbito, não assinou? – O médico faz com a cabeça um sinal afirmativo. – Os sete estavam mortos, não estavam?

– Sem a menor dúvida.

– Mas que é a morte? – pergunta o Prof. Libindo Olivares, assumindo a sua pose intelectual de tirar retrato, isto é, fazendo um lado do rosto encaixar-se no ângulo reto formado pelo polegar e o indicador da mão esquerda, o cotovelo fincado no braço da poltrona.

Lucas Faia apressa-se a responder, entre sério e gaiato:

– A morte é a ausência da vida.

O promotor público sacode negativamente a cabeça angélica e repele a definição.

– Pense nos milhões, nos bilhões, nos trilhões de seres humanos que ainda não nasceram e portanto sofrem (se posso usar o verbo) duma “ausência de vida”... Nem por isso se pode afirmar que os ainda não nascidos estão mortos.

Lucas Faia soergue-se na poltrona e olha para o prefeito:

– Major, com o devido respeito, proponho que todos tirem os seus casacos. O calor está senegalesco.

– Boa idéia! – exclama Vivaldino, começando a tirar o seu, como uma gorda banana que se descasca a si mesma. Os outros o imitam com a exceção do padre, que está de batina, e do Dr. Quintiliano, que considera improprio dum magistrado ficar em mangas de camisa. Ergue-se o Prof. Olivares:

– Peço a palavra, senhor prefeito.

Infeliz, suando copiosamente e passando o lenço pela cara, o prefeito resmunga, de má vontade:

– Tem a palavra o Prof. Libindo Olivares.

– Na minha opinião (e na dos tanatologistas, naturalmente) – sorri, pedante, o mestre, olhando dum lado para outro – a morte se revela na cessação definitiva das funções do sistema nervoso, das funções circulatórias e respiratórias. .. Mais ainda! – exclama didaticamente, com o indicador enristado na vertical. – A morte nem sempre é um fenômeno instantâneo. Pode acontecer que, depois da cessação de todas as funções que acabo de mencionar, durante um número de minutos ou mesmo de horas, é possível notarem-se manifestações de vida parciais, como a con-tractilidade muscular, os movimentos peristálticos, a digestão. .. Sim, que mais?... a vibração das pestanas. Correto, Dr. Lázaro? Certo, Dr. Falkenburg?

O Dr. Lázaro sacode afirmativamente a cabeça. O teu-to-brasileiro diz seco, com sua ironia de florete:

– O senhor decorou bem a lição.

O prefeito olha desolado para o ventilador parado. Maldita greve! À medida em que o tempo passa, o calor aumenta nesta sala – um calor opressivo, úmido, pegajoso. Agora as moscas, que aos poucos foram entrando pelas janelas, começam a se fazer notadas e odiadas, pousam nos bustos ilustres, passeiam na cabeça do prefeito, na do Cel. Tibério, que as enxota com palavrões, voejam ao redor do rosto do juiz. .. E um pensamento horrível começa a formar-se na maioria destes cérebros: a suspeita de que estas mesmas moscas podem já ter pousado na pele dos sete defuntos putrefatos. É por isso que, sentindo que uma delas se aproxima de seus lábios, o promotor dá-se no próprio rosto uma palmada tão brusca, violenta e sonora, que os outros se sobressai tam.

– Que é que isso prova? – pergunta o Cel. Tibério, dirigindo-se ao Prof. Libindo. – O senhor afinal acredita ou não que esses defuntos voltaram mesmo?

– Ah, meu caro coronel, sou por temperamento um cético, mas como humanista devo ser um homem aberto a todas as possibilidades. Existe sempre “uma primeira, vez” para tudo. Tenho estudado o ocultismo, conheço a cabala tal como era cultivada na Idade Média, na Alta Galiléia...

Prof. Libindo – interrompe-o o juiz – esta não é a hora oportuna para exibições de erudição. Estamos numa situação premente, difícil e, segundo entendo, temos de tomar providências urgentes diante desse... fenômeno.

Libindo senta-se, cruza os braços e diz, ofendido:

– Devolvo-lhe a palavra, senhor prefeito. Vejo que nesta sala há pessoas que não me compreendem ou que não me querem compreender...

O prefeito agora tamborila com uma de suas canetas sobre o tampo da mesa. lembrando-se vagamente de suas marchas nos duros tempos de brigadiano.

– Em resumo, professor – diz ele, depois de tentar, mas em vão, esmagar com a prensa de mata-borrão a mosca que caminha em cima de seu tinteiro – o senhor sugere que a volta desses mortos tem uma explicação mágica, não?

– Não! – exclama Libindo Olivares. – Minha explicação é outra. A nossa cidade está sob a influência duma alucinação coletiva.

– Essa não! – protesta o delegado de polícia. – Eu não sou e nunca fui homem de alucinações.

Vários pares de olhos voltam-se para o rosto do juiz de Direito, que opina:

– Segundo minhas leituras (não tão abundantes e profundas como as do Prof. Libindo) tem havido casos de alucinação coletiva na História da Humanidade. São, porém, momentos passageiros, espécies de relâmpagos. Para que o que se passa agora em Antares possa ser explicado como sendo apenas uma alucinação... bom, essa alucinação teria de ser não só visual como também olfativa. E parece-me que está durando demais no espaço e no tempo.

– De acordo! – aprova o prefeito. – Esta manhã, senhores, (não foi ilusão ótica!) eu tive o cadáver do Dr. Cicero Branco na minha sala de visitas. Estava podre e encheu a minha casa com seu mau cheiro. Falou com a voz de sempre, só... eu diria... um pouco irônico. O Cícero em vida nunca foi irônico comigo nem com o Cel. Tibério. Éramos seus clientes e seus amigos do peito.

– Afinal de contas – pergunta Tibério, olhando enviesado para o major – que é que esse homem... ou esse defunto quer da gente?

– Ele me disse (não se riam, por amor de Deus!),ele me disse que representava os seus constituintes, isto é, os outros seis mortos, e a si mesmo. O que querem, em resumo, é ser enterrados decentemente como é de seu direito. E nos dão um prazo para resolver o problema: até ao meio-dia...

 

Cruzando e descruzando as pernas, excitado, o delegado Pigarço diz:

– Temos de resolver isso hoje mesmo, porque já noto sinais de pânico na cidade.

– A permanência desses cadáveres entre nós põe em grave perigo a saúde e a vida da população – afirma o Dr. Lázaro, olhando para o seu colega com o rabo dos olhos e percebendo que ele sacode a cabeça num acordo quase imperceptível. – Podem provocar até uma peste.

– Tenho sido já chamado para atender a dezenas de casos de distúrbios cardíacos e crises nervosas – corrobora o Dr. Falkenburg.

Do seu canto e do fundo de seu desânimo, o vigário da Matriz crocita:

– Já confessei hoje mais de cinqüenta pessoas. Várias dezenas de outros fiéis estarão me esperando em fila esta tarde.

– É uma calamidade! – suspira o presidente da Associação Comercial. – Como se não bastasse essa maldita greve, que tem trazido tão sérios prejuízos ao nosso comércio!

– Pois é – diz o presidente do Rotary Clube. – Imaginem os senhores que tivemos de adiar sine die o nosso almoço semanal, coisa que nunca nos aconteceu.

O Cel. Tibério lança-lhe um olhar furibundo e depois, voltando-se para o prefeito, pergunta:

– Como é o negócio, major? Estamos esperando as suas ordens.

Vivaldino Brazão põe-se de pé.

– Senhores, quero, antes de mais nada, dar-lhes conta das providências que tomei esta manhã logo depois que recebi a sinistra visita... Usando a estação transmissora de nosso distinto radioamador, o Dr. Falkenburg, aqui presente, comuniquei-me com o Governador do Estado. Quando contei o que está se passando nesta cidade, o homem desandou a rir e me perguntou se eu estava brincando com ele. Garanti que não estava. Contei a estória tintim por tintim. Ele continuou não acreditando. Jurei pela memória de minha mãe. Lá pelas tantas o governador prometeu tomar providências... mas falando assim com um jeito de quem quer se livrar dum louco.

—’ Quem sabe estamos todos loucos? <– pergunta Li-bindo. – Pensem nessa hipótese não de todo absurda. Uma alucinação é uma espécie de ataque súbito e agudo de esquizofrenia.

– Você perdeu uma boa oportunidade de ficar calado

– repreende-o Tibério. E, voltando-se para o prefeito, diz:

– Continue, Vivaldino.

– Bom, depois chamei o diretor do Correio do Povo, um moço distinto, meu amigo particular e que me conhece há muitos anos. Repeti a estória toda. Ele não riu, mas senti que ele estava achando a coisa toda absurda. Prometeu mandar um repórter e um fotógrafo, para ver o que há. .. Em seguida consegui ligação para as duas estações de televisão da nossa capital. Quem me atendeu na primeira delas foi um empregado que, depois de ouvir a minha estória, soltou uma risada e me perguntou se eu não tinha mais nada que fazer... Perdi a paciência e xinguei a mãe dele. Ele xingou a minha e cortou a ligação. – O prefeito faz uma pausa para entrar numa luta quase corporal com duas moscas que insistem em pousar-lhe na testa. Retoma a palavra, já meio ofegante. – Fui mais feliz na outra estação. Falei pessoalmente com o diretor, meu velho conhecido. Ele me escutou e (milagre!) acreditou em tudo...

– Deve ser hebreu – explica Libindo, com um sorriso inefável de quem tudo sabe. – Essa raça tem um faro finíssimo para o mistério e para o sobrenatural, ao mesmo tempo que continua com os pés muito bem plantados na terra, na realidade material, concreta e econômica da vida e do mundo.

– O senhor não está nos ajudando nada com as suas filosofanças – queixa-se o prefeito, olhando duro para o professor. – O tempo voa, estamos aqui já faz um tempão e não chegamos a nenhum resultado prático. Guarde suas frases para depois que os mortos forem sepultados e a cidade voltar ao normal. – Mudando de tom, conclui: – Assim, senhores, é possível que amanhã pela manhã tenhamos aqui em Antares repórteres do Correio do Povo e um cinegrafista da TV, Canal 12.

Lucas Faia esfrega as mãos e exclama:

– Estamos no mapa do mundo! Estamos na História!

– Mas a que preço! – lamenta o promotor público.

O prefeito senta-se, extenuado. Faz-se um silêncio dentro do qual zumbem as moscas. Mendes, que providenciou três jarras de limonada gelada, fez um contínuo servir os presentes. Depois, como que achando que esse ato lhe dá direito a uma opinião, aproxima-se da mesa do chefe e diz em voz baixa:

– Major, o Pe. Pedro-Paulo está aí fora, no vestibule

– Ué? Que é que ele quer?

– Tomei a liberdade de chamá-lo.

– Pra que, homem de Deus?

Os outros agora estão atentos ao diálogo, que se processa em voz alta.

– Ele nos pode ser útil... Deve saber coisas.

– Como? Por quê?

– Hoje de manhã, por uma fresta da minha janela, vi o Pe. Pedro-Paulo conversando na praça com o... o cadáver do João Paz.

O prefeito olha primeiro para Tibério e depois para o juiz de Direito, perguntando a um e outro:

– Que é que os senhores acham?

O Cel. Vacariano encolhe os ombros, neutro. O juiz murmura:

– Não devemos deixar de examinar todas as possibilidades deste caso. Se as pessoas presentes não se opuserem, concordo em que se interrogue esse... esse moço.

– Que lhe parece, Pe. Gerôncio? – pergunta o prefeito.

– Não tenho objeção nenhuma a isso.

– Traga o homem! – ordena o prefeito.

Mendes sai da sala, lépido, e volta pouco depois com o capelão da Vila Operária.

 

Pedro-Paulo faz com a cabeça um cumprimento que abrange todos os presentes e planta-se no centro do tapete, diante da mesa do prefeito.

– Sente-se, padre – convida Vivaldino, a despeito de não haver nenhuma poltrona vaga no recinto.

– Não, major, obrigado. Prefiro ficar de pé.

– Como quiser... Dr-. Vale, o senhor quer fazer as perguntas aqui ao nosso amigo?

– Bom – responde o juiz – se o senhor deseja que eu conduza o interrogatório...

– Mas isto é um tribunal? – pergunta o sacerdote. – Estou sendo julgado por algum crime?

– Ah não, reverendo! – apressa-se a explicar o Lucas Faía. – Que idéia! Queremos que nos ajude no transe difícil por que passa a nossa comuna. Seu depoimento será precioso para nós.

O Dr. Quintiliano do Vale lança a primeira pergunta:

– É verdade que o senhor conversou esta manhã na Praça com... com o Sr. João Paz?

– É.

E ele... na sua opinião, estava morto?

– Sim.

– Como foi que o senhor chegou a essa conclusão? Pedro-Paulo passa o lenço entre o colarinho de clérigo e o pescoço, antes de responder. Depois, cautelosamente, medindo bem as palavras, diz: – Deixem-me contar a estória, do princípio. Depois que o João Paz passou dois dias e duas noites na cadeia local, tentei vê-lo, fui à delegacia, mas um funcionário me informou que o Joãozinho tinha fugido da prisão e buscado asilo na Argentina. Horas mais tarde fiquei sabendo que o meu amigo tinha morrido de embolia pulmonar no Hospital Salvator Mundi. Corri para lá e pedi para ver o corpo, porque a última vez que avistei João Paz foi quando os guardas da polícia municipal o prenderam, com vida e, ao que me pareceu, com excelente saúde...

Inocêncio Pigarço está tenso na cadeira.

– Que é que você está insinuando com isso? – pergunta, ameaçador.

– Nada. .. por enquanto – replica Pedro-Paulo, sem voltar a cabeça para o delegado. – O que quero dizer, senhores, é que a polícia me proibiu de ver o cadáver, que já estava fechado no seu caixão quando cheguei à ala dos indigentes do citado hospital...

– O senhor duvidava então de que ele estivesse mesmo morto?

– Não. Li o atestado de óbito firmado pelo Dr. Lázaro. Mas quando esta manhã vi o corpo de João Paz na praça quase não o reconheci, tantas eram as marcas de tortura que ele trazia na cabeça e no resto do corpo.

O delegado põe-se de pé, brusco, e brada:

– É uma mentira! Eu vi o cadáver desse homem quando o puseram no caixão. Estava exatamente como na hora em que ele foi preso. A morte, como afirma o atestado, foi causada mesmo por uma embolia pulmonar!

O juiz ergue um braço apaziguador e quando torna a falar pesa na sua voz a serenidade grave da própria Justiça-

– Não estamos no momento investigando as causas da morte do cidadão João Paz. Pe. Pedro-Paulo, o senhor então identificou a pessoa que encontrou na praça...

– Sim, apesar de seu horrível desfiguramento, como todos terão a oportunidade de verificar dentro de menos de uma hora...

– Está bem, padre – replicou o juiz. – O que nos interessa saber é por que chegou à conclusão de que João Paz estava morto.

– Tinha uma cor cadavèrica, não respirava... e, notei tuna pronunciada opacidade na còrnea de seus olhos... Bom, acima de tudo, seu corpo exalava um cheiro de carne humana putrefata.

– Mas esse... esse cadáver caminhava? Falava? Pensava?

– A resposta é sim para as duas primeiras perguntas. Quanio à terceira, como é que vou saber se seu cérebro funcionava? Agora, o que ele me disse revelava que ainda tinha memória, domínio da palavra e vontade própria...

E que foi que ele lhe disse? – pergunta o delegado, que está de pé, desinquieto, mordendo o cigarro apagado.

Sempre olhando para o juiz, Pedro-Paulo responde:

– O que ele me disse não posso revelar aqui. Peço-lhes que não insistam...

– Manifestou-lhe o desejo de ser enterrado imediatamente, como os outros seis defuntos?

– Não. Declarou que pouco lhe importaria o que fizessem com o seu corpo.

– Que queria, então?

– Já disse que não posso revelar. O Pe. Gerôncio explicará aos senhores os deveres dum sacerdote quanto ao sigilo do confessionário.

– Então ele se confessou? – pergunta vivamente o velho pároco.

– Não no sentido religioso – responde Pedro-Paulo. – João Paz continua ateu como quando era vivo.

– Mas tudo isso é absurdo! – exclama Tibério. O Dr. QuJntiliano mantém a sua serenidade:

– Pe. Pedro-Paulo, sei que o senhor é um homem de Muitas e variadas leituras. Como explica que sete cadáveres se tenham erguido de seus caixões e marchado sobre esta cidade, como se houvessem ressuscitado?

– Não explico.

– Credo quia absurdum est – intervém o Prof. Li-bindo, num tom de voz em que se pode ver o tipo itálico da citação latina.

Lucas Faia, que agora vai e vem, percorrendo nervosamente o trajeto entre sua poltrona e as janelas-portas, toca no braço do capelão dos operários.

– Com a licença do colendo juiz de Direito... Amigo Pedro-Paulo, o senhor sabe que o nosso querido vigário ao ver os sete mortos voltou para a igreja e pensou (e até chegou a dizer isso em voz alta) que se tratava do Juízo Final?

– Sei. O próprio Pe. Gerôncio me contou isso.

E que lhe pareceu a idéia?

– Absurda. Simplesmente não acredito no Juízo Final. O promotor aponta para o jovem capelão com um dedo

apocalíptico :

– Essa, senhores, é a “moderna” Igreja de Cristo: um sacerdote católico que não acredita no Juízo Final!

Pedro-Paulo encolhe os ombros.

– Nem no inferno, nem mesmo no Céu.

– Por favor! – suplica o vigário. – Não diga mais nada. Vai acabar confessando que não acredita em Deus.

 

O presidente do lions ergue a mão como um aluno que pede ao mestre licença para falar durante a aula. Vivaldino faz com a cabeça um sinal de consentimento.

– Eu estava na igreja quando o nosso apreciado Pe. Gerôncio anunciou o Juízo Final. Confesso que a princípio fiquei alarmado, com vontade de sair correndo para casa, mas depois, pensando melhor, concluí que o Juízo Final é um... um negócio tão grande... tão importante... tão... tão final, que Deus não podia começar uma coisa enorme assim sem antes avisar a humanidade, fazer um anúncio qualquer. Não sei se estou me expressando claro...

– Por exemplo – sugere o Mendes – mandar primeiro seus anjos em revoada pelo universo tocando trom-beta... ?

O prefeito repreende o secretário com um paternal franzir de cenho.

O Pe. Pedro-Paulo volta-se para o presidente do lions:

– Compreendo. O senhor imagina o Juízo Final como o show dos shows, um superespetáculo caríssimo, desses que em televisão só podem ser patrocinados por firmas poderosas como a Standard Oil, a Ford, a General Motors. .. Seu Deus, em suma, é um empresário preocupado com o IBOPE, não?

Tibério Vacariano soergue-se na cadeira para protestar:

– Esse padreco de meia-pataca está fazendo troça de nós! Me nego a perder tempo com essas bobagens.

Libindo intervém de novo:

– Senhores, estamos cometendo uma injustiça para com nosso venerando pároco. É um homem de cultura e larga experiência. Ele ainda não nos disse o que pensa sobre essas sete “ressurreições”...

Cabeças voltam-se para o vigário, que balbucia:

– Não tenho explicação para o fenômeno. Nunca em toda a minha vida, já bastante longa, tive conhecimento de que algum morto tivesse ressuscitado...

E que me diz da ressurreição de Lázaro, que lá está descrita no Novo Testamento? – pergunta o professor com o seu sorriso mais maquiavélico.

– Mas isso aconteceu nos tempos bíblicos – argumenta o pároco.

– Daqui a dois mil anos – diz Pedro-Paulo – se uma guerra nuclear não abolir por completo o Futuro, daqui a vinte séculos a nossa era talvez possa ter um prestígio místico e mágico igual ou maior que o dos tempos bíblicos.

Mal podendo disfarçar sua impaciência, o juiz de Direito acaricia com os dedos o nó de sua gravata de seda azul-celeste, que tão bem se acasala com o azul-noturno de sua roupa de alpaca inglesa.

Lucas Faia aproxima-se do Pe. Gerôncio e quase se a-cocora, atencioso, aos pés do velho:

– O nosso amado vigário não nos disse ainda se acredita ou não na ressurreição de Lázaro. ..

O velho sacerdote olha firme para o labirintico e multi-colorido desenho do tapete persa, como se nele estivesse representada em ideogramas a solução certa para o problema que o jornalista lhe propõe.

– Bom, naqueles tempos Jesus andava na terra... Pedro-Paulo volta-se para o ancião:

– Suponhamos que Jesus Cristo tenha voltado. ..

– Logo a Antares? – pergunta rápido o Maj. Vivaldino.

E por que não? O senhor acha que São Borja, Alegrete ou São Sepé seriam cidades mais indicadas que esta para receber o Messias?

– A idéia é fascinante – exulta Lucas Faia. – Imaginem a nossa urbe transformada num santuário mais importante que o de N. S. de Lourdes... – Volta-se, radiante, para o presidente da Associação Comercial. – Hem, nosso amigo? Que possibilidades para o comércio local! Hem? Hem?

– Cale essa boca, Lucas – ralha o Cel. Tibério, passando o lenço já úmido pelo rosto. – Besteira fica muito pior em dia de canícula.

O jornalista recolhe-se a um silêncio ressentido e en-cabulado. Pedro-Paulo, porém, insiste no lema:

– Suponhamos que Jesus Cristo tenha mesmo voltado. .. Delegado Pigarço, não seria prudente mandar seus investigadores procurar o Filho do Homem? Olhe que esse indivíduo é perigoso... um subversivo socializante, um terrorista com antecedentes criminosos, com uma ficha negrís-sima no DOPS de Pôncio Pilatos. Lembre-se do que ele andou dizendo e fazendo contra o grande Estabelecimento Romano...

Inocêncio põe-se de pé, a cara contraída. Mas o jovem padre prossegue:

– Prenda Jesus, delegado, prenda-o o quanto antes! Interrogue-o. Faça-o confessar tudo, dizer o nome de todos os seus discípulos e cúmplices... Se ele não falar, torture-o em nome da Civilização Cristã Ocidental!

De punho cerrado, Pigarço precipita-se contra Pedro-Paulo para lhe esmurrar a cara, mas o Mendes salta e, com seu longo braço, magro mas musculoso, enlaça o pescoço do delegado, frustrando-lhe bruscamente o gesto. “Padre safado” – vocifera Inocêncio, com voz engasgada – “comunista filho duma...” Mendes, porém, aperta-lhe com mais força a gorja, cortando o ar necessário para terminar a suprema ofensa.

Como quem, num sobressalto culposo, desperta duma sesta a que não tem direito, o prefeito de Antares põe-se de pé, num prisco, contorna a mesa, acerca-se de seu delegado e exclama:

– Ó Inocêncio, volte pro seu lugar e tenha compostura! – Ó Mendes, você está estrangulando esse homem!

O secretário larga o delegado, que se encaminha para a sua poltrona, resmungando:

– Não admito insinuações maldosas nem ironias. Esse padre de passeata não perde nada por esperar. E você, Mendes, não precisava me apertar o pescoço com tanta força...

O secretário sai da sala para providenciar uma nova rodada de limonada. E a discussão prossegue animada durante mais de meia hora. Muitos falam ao mesmo tempo. O presidente da Associação Comercial persegue uma determinada mosca com encarniçamento e ódio, como se tivesse com ela uma velha inimizade pessoal. O Prof. Libindo, num aparte forçado, pergunta se os presentes sabem que a palavra canícula significa na realidade cadela e que era o antigo nome da estrela Sírio. Parado no meio da sala o Pe. Pedro-Paulo começa a sentir o grotesco de sua. situação. Aproveitando um hiato na conversação, pergunta ao prefeito:

– Quer que eu me retire?

– Não. Fique um minutinho mais. Desejo saber se o senhor tem alguma sugestão para resolver o nosso problema. Ao meio-dia os sete mortos estarão no coreto da praça esperando a nossa resposta. – Olha para o relógio. – Temos apenas uma escassa meia hora para tomar uma resolução. ..

– Antes de vir para cá – diz o capelão – procurei o Geminiano e lhe pedi que levantasse o embargo do cemitério, em vista dos... desses acontecimentos inesperados... Respondeu que a coisa não dependia dele, que a situação só poderia ser modificada por decisão da assembléia geral. Sugeri que convocasse essa reunião e ele me prometeu que faria isso ainda esta noite. Sinto muito, senhores, mas acho que não há mais nada a fazer senão esperar...

– Mas esperar com sete mortos apodrecendo em plena praça, empestando o ar da cidade? – pergunta o promotor. – Esperar quanto tempo?

O Maj. Vivaldino fica a olhar perdidamente para o jovem sacerdote, como para um bicho raro ainda não classificado pela Ciência.

– Alguém tem algo mais a perguntar ao Pe. Pedro-Paulo? – indaga, projetando o seu olhar em leque. Como todos continuam calados, o prefeito murmura: – Está bem, padre. Pode ir. E muito obrigado.

 

– Senhores, temos apenas vinte minutos para concertar um plano de ação – lembra o juiz de Direito.

– Sem querer me meter em seara alheia – diz o delegado de polícia – acho que estamos numa dessas situações em que os países costumam proclamar o estado de sítio. Ora, num estado de sítio cessam as garantias constitucionais. Proponho que a gente proceda nas próximas horas tomo se Antares estivesse cercada por um inimigo de morte.

E na realidade – opina o promotor – fomos assaltados por um comando que dispõe de armas excepcionais ... eu diria até mesmo sobrenaturais... E esse inimigo terrível já está dentro de nossos muros!

– Na sua opinião, Cel. Tibério, que devemos fazer? – pergunta Vivaldino.

– Bom, homem de panos quentes vocês sabem que não sou. Acho que devemos telefonar ao comandante da guarnição federal de São Borja e solicitar-lhe que nos mande uma companhia... ou um regimento bem armado para obrigar esses grevistas de borra a levantarem o sítio do cemitério. Nada de conversa: bala e baioneta em cima deles!

O prefeito coca a cabeça, ambivalente, sopra a mosca que lhe pousou na ponta do nariz, olha para o relógio, acima do retrato do senador Pinheiro Machado, e vê os ponteiros marchando implacáveis para um encontro em cima do XII – a hora fatal.

Dr. Quintiliano, qual é o seu pensamento?

– Confesso que estou meio perdido. Nunca em toda a minha vida me encontrei diante dum problema dessa natureza.

E o senhor, vigário?

– O mais que posso fazer, meu filho, é rezar pelos vivos e pelos mortos.

– Inocêncio?

– O meu plano é simples mas eficaz: armo quinze de meus soldados com máscaras contra gases lacrimogêneos, para eles não sentirem a fedentina dos cadáveres, invado o coreto e levo os sete defuntos, a muque, de volta para os caixões. A operação toda não gasta mais de quinze minutos...

– O senhor se esquece – intervém o Dr. Falkenburg – de que entre esses sete mortos está D. Quitéria Campolargo. Já pensou na péssima repercussão que essa medida drástica pode ter no espírito de nossa população?

– Ora, doutor! – rebate o delegado – o povo de An-tares a esta hora aceita tudo para se livrar da presença repugnante desses defuntos.

O prefeito volta-se para o Cel. Vacariano.

– Em que ficamos?

– Bom, em princípio a proposta do Inocêncio me parece boa. Melhor até que a minha. É mais rápido e fácil dirigir quinze guardas municipais numa operação relâmpago do que conseguir movimentar de São Borja para cá uma companhia do nosso Exército. E o plano do delegado tem a vantagem de poder ser feito sem nenhuma interferência externa. Mas confesso que me repugna a idéia de ver o corpo da minha velha amiga Quita arrastado pela polícia para dentro duma viúva-alegre e levado aos trancos e barrancos para o cemitério...

O prefeito foca o olhar cansado nos homens que estão sentados no sofá.

E os senhores presidentes do Rotary, do Lions e da Associação Comercial... que sugestão nos oferecem?

Levanta-se o primeiro deles:

– Senhor prefeito, proponho com o fraternal espírito rotário que, em vez de praticar qualquer ato de violência, enfrentemos cordialmente os mortos na praça e conversemos com eles como amigos e irmãos, procurando convencê-los de que para o bem desta terra e deste povo eles devem voltar o quanto antes, e pacificamente, para os seus fére-tros.

Levanta-se o segundo:

– Em nome do espírito dos Lions, não menos cordial e fraterno que o rotário, faço minhas as palavras do orador que me precedeu. Sou a favor de uma parlamentação. E aqui o ilustre presidente da Associação Comercial acaba de me cochichar que é da mesma opinião.

– Mas como é que vamos agüentar a fedentina na hora da conversa? – indaga o velho Tibério.

– Isso é outro problema, coronel – diz Lucas Faia. – Podemos tapar o nariz e a boca com os nossos lenços, tratando de não nos aproximarmos demais do coreto.

Roendo as unhas, aflito, Mendes olha primeiro para os ponteiros do relógio – três minutos para o meio-dia – e depois para os bustos de Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros. A progressão social repousa essencialmente sobre a morte. Os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mortos.

O juiz de Direito está agora mais pálido do que quando entrou nesta sala. O suor começa a manchar-lhe a gravata.

– Sou também a favor duma tentativa de acordo, por mais penoso que isso possa ser para nós... – diz.

– Idem – manifesta-se o promotor público, pensando obsessivamente na lata de talco que tem em casa, no banheiro, pois suas coxas carnudas ardem, assadas.

Dr. Lázaro? Dr. Falkenburg? Lucas? Pe. Gerôncio? Os quatro homens consultados pelo prefeito fazem com

a cabeça um sinal de acordo. O Maj. Vivaldino ergue-se, bufando de calor, o rosto luzidio, a camisa com largas manchas de suor sob as axilas.

– A proposta do presidente do Rotary Clube, secundada pelo do lions, está aprovada!

– Bravos! – exclama Lucas.

Mendes continua a roer as unhas e a olhar para o relógio, cujos ponteiros estão agora quase juntos. O jornalista pigarreia e diz com uma solenidade nervosa:

– Haja o que houver, senhores, a esta hora a nossa cidade começa a ser notícia em todo o Estado, em todo o país, em todo o mundo! Antares está finalmente no mapal Antares está na História! E A Verdade vai noticiar tudo isso em primeira mão!

Quatorze pares de olhos estão agora voltados para o relógio, onde os dois ponteiros acabam de encontrar-se.

 

O que aconteceu naquele momento seria narrado mais tarde por Lucas Faia no artigo mais importante de sua vida, nos seguintes termos: De súbito o cristal do silêncio foi brutalmente partido por uma pancada sonora e pareceu então que o céu, o ar, a cidade, as pessoas – tudo se punha a vibrar de surpresa e susto. Tenho a impressão de que houve entre os que se encontravam no gabinete do prefeito uma espécie de pânico, que durou uma fração de segundo, o t*mpo suficiente para compreendermos todos que se tratava do sino da Matriz que começava a bater meio-dia, em badaladas lentas, longas e lugubres. E eu sentia essas pancodas dentro de meu próprio crânio. Parecia o enorme coração de Antares a dobrar finados pelos seus vivos e pelos seus mortos. Corri para a sacada, levado pelo meu instinto jornalístico. Entrefechei os olhos por causa do clarão meridiano e escrutei o largo... Meu coração rompeu numa disparada não mais no peito, mas já na garganta. Voltei-me para dentro da sala e exclamei: “Os mortos estão chegando! Os mortos estão chegandoT Dentro de pouco estávamos quase todos amontoados no balcão da prefeitura e eu ia identificando em voz alta para os meus amigos os sete cadáveres, à medida em que os divisava.

O primeiro que subiu para o coreto foi o sapateiro José Ruiz, (Barcelona). Avistei depois D. Quitéria Campolargo, que saía de seu palacete, sozinha. O Dr. Cícero Branco, que emergira da Trav. dos Castelhanos, foi ao seu encontro para ajudá-la a cruzar a rua e levá-la até ao coreto. O Prof. Menandro Olinda deixou o seu sobradinho de azulejos, caminhando em passadas largas e leves, assim como um homem na atmosfera da Lua. Fiquei surpreendido por ver que ele envergava casaca, com sapatos amarelos: parecia um grande louva-a-deus negro. A decaída Erotildes e o alcoólatra Pudim de Cachaça vieram das bandas do rio de mãos dadas e subiram para o coreto, onde se sentaram num dos bancos como um casal de namorados. Por fim João Paz surgiu man-quejando de trás dum plàtano e juntou-se aos outros sob a coberta do gracioso coreto em estilo de pagode que orna o centro da nossa velha Praça da República.

Nós ali na sacada estávamos num silêncio de espanto, sob o sol escorchante, que mais parecia o olho de fogo dum deus vingador testemunhando o fim do mundo e do Tempo. Mesmo que eu viva cem anos jamais poderei esquecer aquele momento!

 

Uma personagem inesperada surge na praça: Yaroslav, o fotógrafo ambulante. Com um lenço amarrado à nuca, tapando-lhe o nariz e a boca, ele sai de trás duns arbustos, aproxima-se do coreto num marche-marche caricato de desenho animado e, quando chega a uns dez metros dos defuntos, ajusta o tripé da sua câmara fotográfica, mete a cabeça debaixo do pano preto, em questão de segundos aciona o obturador e depois põe a máquina nas costas e sai a correr na direção da calçada da prefeitura.

– Esse lambe-lambe até que tem nervo – resmunga o Cel. Tibério.

Voltam todos para dentro do gabinete.

– Bom – suspira Vivaldino Brazão, repondo o seu casaco como um cavaleiro que veste a armadura, preparando-se para a liça. – Chegou a hora da onça beber água.

Usando o telefone do prefeito o Dr. Falkenburg comunica-se com o administrador de seu hospital e pede-lhe que mande com urgência para uma das esquinas da praça uma ambulância com um médico e dois enfermeiros. O Dr. Lázaro chama em seguida o Salvator Mundi, iaz idêntico pedido e, sorrindo palidamente, explica:

– Para os primeiros socorros. Casos de insolação, náusea, nervos, compreendem?

Ajoelhado a um canto da sala, o Pe. Gerôncio, as mãos postas, a cabeça baixa, reza. O presidente do Lions rompe a gritar, agitado: “Não merecemos isso! Meu Deus, não merecemos isso! Somos um povo pacato e laborioso! Não fazemos mal a ninguém. Não merecemos isso! Não merecemos isso!”

Mirando-o com desprezo com o rabo dos olhos, o Cel. Vacariano resmoneia:

– Há homens que não merecem carregar esse negócio que a natureza pendurou entre as suas pernas. – E, falando mais alto: – Vamos embora, minha gente!

O Dr. Lázaro aproxima-se de seu mais ilustre cliente e murmura :

– Coronel, o senhor não devia ter vindo. Volte para casa enquanto é tempo, pelo amor de Deus! Seu coração não agüenta.

– Nenhum Vacariano jamais deu parte de doente na hora da luta – bravatela Tibério.

– Mas não se trata duma luta de homem contra homem – replica o médico – vamos enfrentar o sobrenatural! Ponha pelo menos uma pastilha de trinitrina debaixo da língua.

– Meta você uma no fió!

Diz isto e encaminha-se decidido para o patamar da escada principal. Seguem-no o prefeito, o delegado de polícia, o juiz de Direito, o promotor, o Prof. Libindo e o diretor de A Verdade.

Dando pela ausência dos médicos e dos três presidentes, Inocêncio Pigarço volta à porta do gabinete e pergunta petulante :

– Os representantes das classes produtoras não nos acompanham? E os da classe médica?

Os cinco homens, que haviam permanecido imóveis no meio da peça, num silêncio indeciso, entreolham-se e por fim se encaminham para onde estão os outros. E aqui vão agora os treze próceres de Antares e mais o Mendes, descendo a escada da prefeitura, lentamente, num silêncio solene e pressago.

 

– Um momento! – exclama Vivaldino Brazão, quando chegam ao vestíbulo principal do andar térreo. Segura o braço de seu secretário. – Não será melhor eu ter a meu lado pelo menos um representante da Câmara Municipal?

– O senhor pode falar sozinho em nome do município, chefe – responde o Mendes. – Hoje de manhã chamei por telefone todos os vereadores, um por um. Os trabalhistas recusaram o convite para a reunião alegando que o problema é do prefeito. Dois dos outros deram parte de doente e os restantes disseram que tinham sido chamados para fora da cidade...

Vivaldino parece ainda relutante.

E quanto ao protocolo – prossegue o secretário – nada lhe posso dizer, pois não existem precedentes...

– Mas quem é que vai pensar em protocolo numa hora destas! – indigna-se o velho Tibério.

– Meio-dia – diz o Dr. Lázaro. – O sol está de rachar. Não vejo sombras na praça. Não aconselho aos amigos saírem de cabeças descobertas. Perigo de insolação.

Dentro dos próximos dois minutos o Mendes sobe a correr ao andar superior, de onde volta trazendo doze chapéus.

– Você não usa tampa, Vivaldino? – pergunta 1Ï-bério.

Nesse momento, Yaroslav, vindo da rua, irrompe no vestíbulo, ofegante, com sua câmara ao ombro e algo na mão direita.

– Major! Major! Fotografei os defuntos. Veja o resultado.

Entrega ao prefeito uma fotografia ainda úmida, do tamanho dum cartão-postal. Nela o coreto aparece completamente vazio.

– Incrível! Meus olhos viram os sete mortos, mas o olho da minha câmara não viu ninguém!

A fotografia passa de mão em mão.

– Está ainda de pé a minha tese da alucinação coletiva – diz o Prof. Libindo. – As objetivas fotográficas e cinematográficas obviamente não estão sujeitas a esses fenômenos psíquicos.

O prefeito encontra-se parado sobre a soletra da porta central. Por entre as pestanas tramadas avista, meio apagados pelo excesso de luz, os sete cadáveres dentro do coreto. Em duas passadas hesitantes, ganha a calçada, com a impressão de mergulhar vestido numa piscina cheia de água quente. Pisca e com as pontas dos dedos esfrega as pálpe-bras sobre os olhos ardidos. O suor escorre-lhe em grossas bagas pelo lombo e pelo peito. O sol marra-lhe a cabeça.

– Onde está o Mendes? – pergunta, atarantado. Todos olham em torno, procurando o secretário da prefeitura, mas não o vêem. “Esse covarde me abandonou” – pensa Vivaldino.

– Que é que você quer com o seu lacaio? – pergunta Tübério. – Uma muda de roupa de baixo? Já?

– Uma aspirina – geme o prefeito. – Minha cabeça está estourando de dor.

Com dois dedos Lucas Faia pesca na miscelânea de um de seus bolsos um pequeno invólucro com duas aspirinas e entrega-o ao prefeito, que o abre, mete os dois comprimidos na boca, trinca-os e vai engolindo com dificuldade seus ásperos e amargos pedaços, que lhe arranham a garganta.

Tibério Vacariano sente a respiração curta e um aperto no peito, sob o esterno. Està também na calçada, deslumbrado pela claridade cor de zinco que faz empalidecer as imagens a seu redor. A luz réverbéra nas fachadas caiadas. Das pedras escaldantes sobe um trêmulo vapor que dá aos objetos mais distantes do observador um quê de miragem.

Surge de iriopino o Mendes – ninguém sabe nem pergunta de onde – trazendo debaixo dos braços um guarda-sol preto e uma sombrinha de mulher, dum amarelo de gema de ovo, e nas mãos um frasco de meio litro cheio dum líquido verde.

– Molhem os lenços nesta água-de-colônia, amigos – recomenda ele. – O mau cheiro deve estar medonho.

O vidro passa de mão em mão, numa ordem vagamente hierárquica, e cada qual trata de encharcar o seu lenço no líquido perfumado de alfazema. O último a fazer essa operação é o presidente do Lions, que está tão nervoso que deixa o frasco escapar-lhe das mãos e tombar nas lajes da calçada, contra as quais se parte em cacos. Os próceres estremecem.

Inocêncio Pigarço, que também esteve sumido por uns instantes, volta ao grupo e informa que mandou seus guardas estenderem-se ao longo das quatro calçadas da praça “para proteger a população”.

Depois de entregar a sombrinha amarela ao Dr. Lázaro, o Mendes abre o guarda-sol negro sobre a cabeça do prefeito, cujo braço ele segura, e ambos assim juntos começam a atravessar lentamente a rua. O Dr. Lázaro, que traz a sua maleta negra, faz o mesmo com o Cel. Vacariano, o qual, de tão perturbado, nem protesta contra o redículo daquele pára-sol efeminado sobre a sua crinuda cabeça de velho garanhão.

Afora os defuntos no coreto e os guardas de Pigarço nas calçadas, o largo da praça está completamente deserto de humanidade. Sente-se, porém, que nas casas em derredor, por trás de venezianas e postigos cerrados ou entreceirados, vultos humanos esquivos espiam para fora, seus espíritos como petecas numa partida incerta que a curiosidade joga contra o medo. Cada uma dessas fachadas sugere a face duma pessoa que, com o coração acelerado pelo pavor, finge dormir quando um ladrão lhe penetra no quarto na calada da noite: pálpebras exageradamente apertadas sobre os globos nervosos dos olhos, músculos faciais indisfarçavel-mente contraídos. Bastará um grito, um estalo, uma detonação para que essas faces de alvenaria abram instantaneamente olhos e bocas, deixando escapar uivos, ais ou apenas o arquejo convulsivo duma respiração cortada de súbito pelo susto.

Nas árvores as cigarras rechinam, lixam-lixam-lixam-liiiiiiiixam o silêncio.

 

Com passo e aspecto de cortejo fúnebre, a comitiva atravessa a terra de ninguém que separa do coreto o edifício da prefeitura. Quatorze homens conturbados, quatorze corações batendo em ritmo descompassado, quatorze goelas secas. Vivaldino Brazão e Tibério Vacariano, como dois sobas, cada qual ladeado por seu fiel fâmulo, abrem a marcha – o guarda-sol preto e a sombrinha amarela.

O prefeito faz alto junto dum pé de maricá, já pisando o chão da praça, e mede mentalmente a distância que agora o separa do coreto. Uns trinta metros? É necessário aproximar-se ainda mais, se quiser ouvir e ser ouvido durante o diálogo que vai travar com o advogado dos mortos. (Jesus Cristo, tudo isto é mentira!) O major porém hesita, pois a podridão que se emana dos cadáveres envenena o ar, devorando a fragrância da lavanda. Com insultos, Tibério incita o prefeito a continuar a marcha. O Dr. Lázaro toma o pulso de seu cliente:

– O senhor está com taquicardia, coronel! Por amor de Deus, volte para casa, vá para a cama!

Sem desviar o olhar do coreto, Tibério vocifera:

– Merda pra taquicardia! Merda pra Medicina! Merda pra Morte!

Com as sereias discretamente silenciosas uma ambulância do Hospital Repouso e outra do Saio ator Mundi chegam à praça quase ao mesmo tempo. A primeira estaca no cruzamento da Rua Voluntários da Pátria com a do Comércio e a segunda, na interseção da Av. Sete de Setembro com à Rua da Igreja. Parecem dois tanques de guerra de potências inimigas que tomam posição para um eventual combate.

O sacristão da Matriz, que depois de fazer o sino bater a última badalada do meio-dia, subiu para o alto do campanário, agora desse ponto de observação privilegiado assiste a uma cena curiosa. À medida que a comitiva do prefeito se aproxima do coreto, as janelas das casas em torno da praça se vão, aos poucos, entreabrindo ou escancarando, e vultos humanos assomam a elas. Dentro de alguns minutos várias pessoas saem pelas portas desses prédios ou emergem das ruas que desembocam na praça. Quase todas empunham guarda-sóis abertos sobre suas cabeças – não só homens como também mulheres – de sorte que o sacristão vai percebendo aqui e ali não só pára-sóis pretos mas também sombrinhas coloridas – amarelas, verdes, azuis, vermelhas, brancas – uma espécie de festiva proliferação de cogumelos.

– Veja, major – murmura Mendes, chamando a atenção de seu chefe para o fenômeno. – O povo de An-tares está aparecendo para apoiar o seu prefeito. Não estamos sós!

Vivaldino tem o olhar focado no coreto. Pode agora ver melhor os mortos, suas faces horrendas, seus corpos quase completamente cobertos de moscas. Sente uma ânsia de vômito, que a custo domina, como se orquídeas lhe fermentassem no estômago.

De pé à frente de seus constituintes, as mãos às costas, o Dr. Cicero Branco aguarda a comitiva oficial, com um sorriso na cara violàcea. “É um pesadelo” – diz o prefeito para si mesmo – “é um pesadelo. Sei que de repente vou acordar...”

– Fale! – grita-lhe Tibério. – Seja breve, porque não agüento esta fedentina.

 

Como uma patrulha de reconhecimento enviada pelos sete mortos, algumas moscas vêm ao encontro dos membros da comitiva municipal e pousam nas faces e nas mãos dos properes. Esboça-se um princípio de pânico nas fileiras do Maj. Brazão. Os defuntos continuam imóveis e silenciosos dentro do coreto, como num estranho retrato de família.

Vivaldino dá mais um passo à frente. Mendes acompanha-o, sempre mantendo sobre a cabeça do chefe a umbela negra. O prefeito de Antares pigarreia, afasta o lenço da boca, mas não do nariz, e numa voz meio nasalada, fazendo esforços para esconder a emoção e manter a sua dignidade de primeira autoridade municipal, recita o seu discurso:

– Excelentíssima senhora D. Quitaria Campolargot

– Não reconhece a própria voz. – BM Cícero Branco e demais def... digo, pessoas... a... mortas! Como prefeito desta cidade (“ai meu Deus” – murmura para si mesmo num suspiro) – recebi há mais ou menos quatro horas o... o requerimento verbal de vosso advogado... Circunstâncias alheias à vontade da prefeitura nos impedem de atender ao vosso justo pedido. (Juro como isto é pesadelo, bem como os discursos que faço em sonhos, falo e não me ouço, contínuo a falar e ninguém me escuta, quero parar e não consigo.) Como todos sabem – prossegue em voz alta

– os grevistas cercaram o cemitério e se mantêm irredutíveis na... no propósito de vos manter insepultos até que a greve seja resolvida sasti... sauf as, . . digo, satisfatoriamente para eles.

O fiel Mendes passa um lenço pelo rosto lavado de suor de seu amo. Continuam a chegar ao largo, vindos de vários quadrantes da cidade, homens e mulheres que ficam a olhar o coreto de longe, narizes e bocas tapados por lenços, um espavento nos olhos. Mais ousados que os adultos, algumas dezenas de rapazes, em sua maioria estudantes em férias – lenços amarrados à nuca, a tapar-lhes metade do rosto – atravessam a rua a correr, ganham a calçada da praça, aproximam-se do coreto e sobem apressados nas árvores maiores que o cercam, e ali ficam empoleirados nos seus galhos, como para assistir da primeira fila ao singular espetáculo que há pouco começou.

Até o velho Zoroastro, paralitico há vinte anos (um balázio na espinha, num combate com guardas aduaneiros, nos tempos em que se dedicava ao contrabando) sai de casa, atravessa a rua na sua cadeira de rodas e vem para a praça empurrado por um sobrinho médico, que traz parte da cara coberta por uma máscara cirúrgica.

Egon Sturm, o ex-campeão estadual de tiro ao alvo, encarapitou-se no telhado duma das casas mais altas do largo e là de cima olha a cena por um binóculo de campanha. É ele o primeiro a avistar os urubus que, vindos dos lados da Babilônia, começam a voar alto sobre a praça.

Tibério Vacariano trata de captar o olhar de sua amiga Quitéria, fazendo-lhe com as mãos acenos aos quais, entretanto, ela não responde.

 

O prefeito prossegue no seu discurso, de certo modo sentindo-se agora amparado pela presença daqueles “mascarados” – gente viva! – nas árvores, tão próximos dele:

– Por outro lado, os patrões, que consultei diretamente esta manhã, não parecem dispostos a conceder o aumento que os grevistas exigem. Estamos portanto num impasse. Não quero lançar contra os operários tropas estaduais ou federais porque, como todos saciem, sou um homem avesso à violência. Pela mesma razão não pretendo hostilizar-vos, pois isso seria uma injustiça. Sois antarenses como nós. A morte não vos roubou a cidadania! – Como que momentaneamente insensível ao mau cheiro, às moscas, e já com o dedo da eloqüência enristado verticalmente, e dirigindo-se particularmente aos moços nas árvores, o corpo roliço meio erguido na ponta dos pés, Vivaldino Brazão perora, sentindo recuperar o seu velho eu dos comícios e campanhas eleitorais: – Assim sendo, faço um apelo principalmente à distinta dama Quitéria Campolargo, ao meu amigo e colaborador Dr. Cícero Branco para que voltem com seus companheiros, sem mais delongas, para o lugar de onde vieram, e lá esperem quietos, como convém a mortos que se prezam, o momento em que as circunstâncias permitam o vosso se-pultamento cristão, como é de vosso direito e de nosso desejo e dever! Ë desnecessário dizer que a prefeitura vos oferece a todos transporte gratuito até ao cemitério...

Neste ponto irrompe de dentro das árvores uma enorme gargalhada em uníssono seguida de assobios, miados, cacarejos, arrulhos, guinchos...

– Filhos da mãe! – murmura Vivaldino. – Pensei que estivessem do nosso lado.

– Não há de ser nada, major – encoraja-o o Mendes. – O grosso da população responsável desta terra nos apoia.

Mais uns oito ou dez jovens agora atravessam correndo um dos canteiros de relva (Não pise na grama) e começam a subir o tronco dum grande plàtano, a poucos metros do coreto. Inocêncio Pigarço lança-lhes um olhar torvo mas nada diz nem faz. Apreensivo, desinquieto, com um espasmo de garganta – o delegado divide a atenção entre o cadáver de João Paz, que está no coreto, meio escondido atrás do corpanzil de Barcelona, e o seu próprio filho, que vê sentado ao lado do Pe. Pedro-Paulo, na borda de um dos lagos artificiais, e que evita corresponder ao seu olhar. Até que ponto o maldito padre terá contado a Mauro a estória da morte de João Paz?

Dois caminhões – o da Coca-Cola e o da Pepsi-Cola, ambos pintados nas cores da bartdeira dos Estados Unidos, e cada qual tocando a sua musiquinha de realejo – chegam à praça ao mesmo tempo e, bem como aconteceu às ambulâncias, tomam também posição de combate. Algumas pessoas – pouquíssimas – aproximam-se deles, levadas talvez mais por um reflexo condicionado do que propriamente pela sede, compram refrigerantes e põem-se a mamar nas suas garrafas, levantando os lenços o suficiente para descobrir-lhes as bocas. O resto da multidão permanece onde está, esperando a resposta do advogado dos defuntos, a qual não tarda:

– Senhor prefeito municipal – diz o Dr. Cícero Branco em voz alta e clara. – Povo de Antaresl Em nome de meus constituintes e no meu próprio, recuso, por absurdo, o pedido do Maj. Vivaldino. Exigimos o nosso sepultamento imediato. Se não formos atendidos, continuaremos apodrecendo aqui no coração da cidade.

Estrugem aplausos e gritos das muitas árvores em torno do coreto. “Bravo! Apoiado! Duro com eles, Dr. CiceroV

O prefeito deixa escapar um misto de suspiro e arroto vindo das profundezas de seu nauseado peito. Acerca-se de Hbério, chama com um sinal de cabeça o juiz, o vigário, o promotor, o Prof. Ubindo e Lucas F aia e ficam os sete a confabular durante um par de minutos, ao cabo dos quais o major de novo se volta para o coreto:

– Se essa é a vossa última decisão, dou a palavra ao Dr. Mirabeau da Silva.

– Mas que é que vou dizer? – pergunta o promotor, alarmado.

– Reforce minhas palavras – pede o prefeito – mas fale bonito. O senhor é formado e, além de tudo, está habituado a acusar. Não tenha consideração com os mortos, porque eles não estão revelando nenhuma com a população de Antares. Faz de conta que ali no coreto estão sete réus.

 

O Dr. Mirabeau sobe num banco, olha em torno e, quando se dispõe a falar, é impedido pelo grande coro ritmado que parte das árvores, por entre assobios e risadas: “Fres-co! Fres-co! Fres-co! Fres-co! O promotor fica quase tão vermelho como as flores do hibisco que lhe serve de pano de fundo. Cerra o punho e os dentes, baixa a cabeça, indignado, fecha os olhos e espera o fim da assuada.

– Senhor delegado! – brada, quando volta o silêncio. – Se não cessarem imediatamente essas insultuosas e caluniosas manifestações de hostilidade à minha pessoa, da parte desses moleques esquerdistas, desses beatniks municipais, eu me negarei a falar. Mande evacuar as galerias I

Inocêncio Pigarço consulta com os olhos o prefeito, mas este, do fundo de seu suarento desânimo, sacode negativamente a cabeça, dizendo:

– Fale assim mesmo, Dr. Mirabeau. Esses moços não sabem o que fazem. São teleguiados de Moscou. O senhor está muito acima dessas calúnias e misérias.

Ouvem-se agora tímidos aplausos partidos das muitas pessoas adultas, homens e mulheres, que aos poucos se foram juntando a retaguarda da comitiva oficial.

– Não estamos sós! – repete o Mendes. – As classes conservadoras já estão reagindo.

– Senhores jurados! – começa o Dr. Mirabeau, buscando automaticamente o olhar aprovador do juiz. Este, porém, franze a testa, estranhando essas palavras. – Quero dizer... digníssimas autoridades civis e eclesiásticas, colendo juiz de Direito, povo de An tares!

As moscas, como a uma ordem secreta dada pelos defuntos, assaltam o orador e por alguns instantes, quase em pânico, o promotor luta com elas, tratando estabanadamen-te de enxotá-las. Sente uma tontura como se estivesse, não em cima dum banco de praça, mas à beira da platibanda dum arranha-céu. Fresco... eu? Por quê? Pai de três filhas.

Feliz com a esposa. Másculo de gesto e voz. Ex-campeão de esgrima. Por que fresco? Olha para o coreto, meio perdido. Dentre todos os sete mortos até agora só prestou atenção ao cadáver de D. Quitéria, que continua a identificar com o de sua própria mãe. Só esse corpo ele vê com nitidez, mas numa outra época. Os outros defuntos ali estão como vagas manchas em vários tons de cinza, violeta e bile. Mas é preciso continuar o discurso...

– D. Mariana da Silva, digo, D. Quitéria Campolargo, com vossa licença. Meu caro colega Cícero Soeiro Branco e... demais mortos!

De novo se cala, com a memória em branco. Uma voz sai do plátano:

– Desembucha, fresco! Olha que tua maquilagem esta se derretendo!

– Profissionais competentes vos declaram defuntos – prossegue o orador, surdo agora aos insultos. – Estais portanto oficialmente mortos perante Deus e os homens. Por que voltastes? E tu, mamãe, por que não ficaste no teu túmulo? Eu não te esqueci... Juro por Deus. No próximo Dia de Finados terás as tuas rosas. – Leva a mâo aos olhos, fica um instante calado, e depois prossegue: – Por que insistis em ficar onde estais, apesar do repúdio geral de nossa população, da qual foi há pouco porta-voz nosso ilustre prefeito? Vossa presença ofende nossos olhos, nosso senso olfativo, nosso senso estético, nossos corações, nosso espírito! _ Aponta dramaticamente para o céu. – Contemplai os urubus que já voam agourentamente sobre a praça, atraídos pela vossa carniça. Estais pondo em grave perigo a vida do povo de Antares. Em breve essas aves negras estarão arrancando os olhos de nossas criancinhas com seus bicos e garras.

Uma colossal gargalhada sacode as árvores. O orador espera que se restabeleça o silêncio para continuar:

– Pensai nessas moscas que passeiam pelos vossos corpos putrefatos e depois vêm pousar em nossas epidermes, em nossos alimentos e na água que bebemos! Em suma, vós estais conspurcando a dignidade da morte. Insistindo em ficar no centro da nossa urbe, vós vos revelais maus antarenses. Nosso dever para convosco é sepultar-vos e, se não o fizemos até agora, foi por causa da atitude impatrió-tica dos grevistas, que sitiaram truculentamente o cemitério, barrando-nos a sua entrada. O vosso dever para com esta comunidade é aceitar resignadamente a vossa morte, isto é, na imobilidade e no silêncio e não... não vos valerdes (minha mãe! terei conjugado direito o verbo?) da vossa condição de defuntos para impor-nos a vossa presença perturbadora e letal. Assim, em nome do governo e da população de Antares, e em nome da decência humana, em nome da pátria e dos mais nobres sentimentos cristãos, eu vos exorto a voltar aos vossos esquif es e dentro deles aguardar a hora de vosso sepultamento. Tenho dito!

 

A multidão que agora se apinha atrás dos quatorze membros da comitiva rompe em aplausos, ao mesmo tempo que os rapazes arborícolas vaiam o orador: “Buu! Buu! Fiau! Morra o promotor! Bota pra fora! Fresco! Fresco! Fresco!” Inocêncio Pigarço trila o seu apito, seus guardas aproximam-se em marche-marche, cercam as árvores, erguem para os rebeldes os seus bastões ameaçadores, mas não ousam ir buscá-los nos galhos em que estão empoleirados. Cícero Branco pede silêncio e ordem aos rapazes das galerias. Estes finalmente se calam. A um sinal do delegado de polícia, seus guardas retiram-se para as calçadas, limpando as caras, os quepes e os uniformes sujos de cuspe, tinta, barro e líquidos suspeitos.

Que estranho animal é aquele que lá vem agora, atravessando a rua? E o Pintoca da Agência Chevrolet, metido na sua indumentária de pesca subaquática, a máscara redonda de vidro tapando-lhe o rosto, os dois tubos com reservas de oxigênio às costas. Mas por que traz também o ar-pão? Como um ser dum planeta desconhecido que acaba de chegar à Terra, ele atravessa a multidão, passa pelo pró-homens e vem sentar-se na relva a uns cinco metros do coreto, lutando já com uma náusea cuja causa não lhe entra pelo nariz nem pela boca, mas pelos olhos.

Do alto de seu telhado Egon Sturm, apesar de seu binóculo militar, a custo consegue reconhecer o vendedor de automóveis naquele “bicho escuro e estranho”. Pensa na sua carabina com mira telescòpica, sente gana de ir buscá-la, pois poderia, de onde está, atirar contra as árvores e derrubar aqueles macacos comunistas. Scheissl

O Dr. Cícero Branco puxa as asas da borboleta de sua gravata.

– O meu caro colega terminou? – pergunta. – Pois então desça do banco. Sua posição nesse poleiro é tão ridícula e abstrusa quanto os argumentos que apresentou contra nós. Pois está muito bem! Ouvida a “acusação”, peço ao colendo juiz de Direito vènia para proceder à defesa de meus constituintes. Se ele não ma conceder, falarei assim mesmo, e desde já vou avisando que essa defesa será também uma acusação. E vós, antarenses, aproximai-vos o mais possível do coreto para me ouvir melhor, pois o que vou revelar agora é do vosso maior interesse.

As três irmãs Balmacedas, velhotas solteironas conhecidas na cidade como mestras do mexerico, grandes janelei-ras e, segundo a voz do povo, autoras das mais virulentas cartas anônimas que circulam em Antares, acercam-se excitadas do coreto, cada qual com a sua sombrinha aberta – roxo, malva, rosa – os lenços de cambraia recendentes a Heno de Pravia apertados contra a boca e o nariz. O cronista social de A Verdade ousa dar alguns passos à frente mas de súbito se dobra sobre si mesmo e, numa convulsão, despeja sua viscosa angústia sobre uns lírios aquáticos. Dois enfermeiros do Sah ator Mundi acorrem, e levam Scorpio numa padiola para dentro da ambulância. Num outro setor da praça o pessoal do Hospital Repouso atende ao primeiro caso de insolação. Os próceres confabulam animadamente. E depois que a ordem e o silêncio se restabelecem, o Dr. Cícero continua o seu discurso:

– A julgar pelas palavras do prefeito municipal e do promotor público, nossa presença é indesejável na cidade, incômoda aos seus habitantes. Em suma, nosso desaparecimento foi plenamente aceito por todos, o que vem confinnar a minha teoria de que se por um lado o homem jamais se habitua à idéia da própria morte, por outro aceita sempre, e com admirável facilidade, a morte alheia. Vossa repulsa e vossa má vontade para com nossos corpos nos outorga a liberdade de dizer o que realmente pensamos de vós.

Tibério Vacariano dá um passo à frente e ergue a mão:

– Não estamos interessados na sua opinião!

– Cala a boca, coronelote! – grita alguém de dentro dum cedro. Outra vaia irrompe: “Ve-lho po-drel Ve-lho podre! Ve-lho po-dreF

Tibério tira o revólver do coldre, ergue-o, apontando-o para uma das árvores, e grita:

– Morte aos bugios! Morte aos bugios!

Inocêncio Pigarço agarra-lhe o braço armado, baixa-o de maneira a que o cano do revólver fique voltado para o chão e, ajudado pelo prefeito, consegue desarmar o patriarca dos Vacarianos. O Dr. Lázaro corre dum lado para outro« com a sombrinha sempre erguida:

– Á trinitrina, coronel, a trini trina!

 

O Dr. Cícero Branco ergue os braços, num largo gesto, como para abranger a praça e a cidade.

– Hipócritas! – exclama. – Impôs tores! Simuladores! Eis o que sois... Vista deste coreto, do meu angulo de defunto, a vida mais que nunca me parece um baile de máscaras. Ninguém usa (nem mesmo conhece direito) a sua face natural. Tendes um disfarce para cada ocasião. Cada um de vós selecionou sua fantasia para a Grande Festa. O Prof. Libindo travestiu-se de sábio. O Dr. Lázaro representa o papel de médico humanitário, espécie de santo municipal, a personificação da bondade desinteressada. O Dr. Quintiliano é a própria imagem da justiça, os olhos vendados (os dois ou um só?), numa das mãos a espada e na outra uma balança de fiel duvidoso. O nosso digno promotor freqüentemente enverga a sobrecasaca de Rui Barbosa e dança a grande polonaise da Cultura. O nosso Vivaldino Brazão, ah! esse é alternadamente Dr. Hyde, que faz vista grossa às violências de sua polícia e às próprias patifarias, e o Dr. Jeckyll, que cultiva delicadas orquídeas. Faça-se justiça ao nosso truculento Cel. Vacariano, pois ele ostenta com naturalidade e coragem cívica o manto antipático do poder discricionário, que herdou de seus ancestrais, dessa estirpe de bandidos, abigeatários e contrabandistas históricos ...

O Cel. Tibério ergue-se, estentóreo, e grita:

– Façam esse cão hidrófobo calar a boca! Onde está a polícia! – Diz isto e praticamente cai sobre um banco, resfolgante.

O advogado dos mortos continua:

– O Dr. Falkenburg usa psicologicamente com uma empáfia prussiana o boné imaginário de estudante de Heidelberg e sua cara ostenta a cicatriz fictícia dum duelo universitário... e no entanto, que ele nunca visitou a Alemanha todos nós sabemos. Formou-se numa obscura faculdade do interior do Estado. E quem mais vejo na festa? Ah! O delegado Inocêncio Pigarço... Esse sádico esconde o seu “riforme negro de oficial da S.S. de Hitler debaixo do ca-misolão do anjo da guarda que zela pela ordem no “salão de baile”. E que baile! Também tomei parte nele e usei mil máscaras, mil disfarces. Aprendi a manipular a moeda corrente (falsa mas fácil) das mentirinhas cotidianas, das grandes mentiras e das meias verdades. .. Tornei-me um mestre em todas as vossas danças e contradanças. Respeitei o vosso código, que manda aceitar as imposturas e simulações dos outros mascarados para que eles, em retribuição, aceitem as nossas...

Uma gritaria de bravos e aplausos jorra das árvores. Quando o ruído e a fúria cessam, Cícero prossegue:

– Avisto daqui o presidente do Rotary. Com que roupa está vestido? Ah! Exibe um modelo Dale Carnegie. E o do lions? Esse segue o figurino de Napoleon Hill. O digno presidente da Associação Comercial, se não me engano, procura vestir-se de acordo com os grandes empresários americanos. E lá está o nosso inefável Lucas Lesma, que usa uma imitação barata da máscara de Hearst. – Leva a mão em pala sobre os olhos. – Quem mais está no baile? Não me é fácil reconhecer todos os convivas, porque eles agora têm sobre as máscaras os lenços com que procuram proteger-se de nossas emanações cadavéricas... Lá estão as Bal-macedas, do sindicato das cartas anônimas... Vejo também damas nesta praça, algumas de nossas “dez mais” de anos passados, imitadoras da Princesa Grace Kelly, sim, e Terezinha de Jesus... e Mme Pompadour... e Coco Chanel... e Jacqueline Kennedy... e Elizabeth Taylor... Quanto às máscaras retocadas por cirurgiões plásticos que vejo na multidão... bom, nessas nem vou falar.

As moscas zumbem ao redor da cabeça do advogado dos defuntos. (Comentando mais tarde a “cena da praça” no seu famoso artigo sobre o “incidente” – mas sem repetir especificamente as palavras de Cícero Branco – Lucas Faia escreveria: “O que até agora não consigo explicar é por que todos nós continuávamos ali, em pleno olho dum sol implacável, a ouvir insultos, calúnias e mentiras em meio daquele pavoroso hálito sépulcral, vendo cair a nosso redor vítimas de insolação, e ouvindo os gritos de pessoas que se debatiam em crises nervosas. Chego a pensar que era um sortilègio maléfico que prendia ao chão da praça homens da honorabilidade do Pe. Gerôncio Albuquerque, do Cel. Tibério Vacariano, do nosso prefeito, do juiz de Direito, do promotor público e outras pessoas gradas. Poderíamos voltar as costas àqueles sete mortos, retirar-nos para nossas casas e deixá-los apodrecendo no coreto, devorados pelos urubus que voavam à baixa altura sobre a praça. No entanto lá estávamos estarrecidos, paralisados, como se na realidade o Juízo Final tivesse chegado e o Dr. Cícero Branco, por uma dessas aberrações teológicas inexplicáveis, fosse uma espécie de anjo, de promotor não de Deus – oh não! •– mas do demônio, a atirar insultos e mentiras sobre as cabeças dos mais dignos habitantes de Antares!”)

 

– E incrível – prossegue Cicero Branco, enquanto Barcelona lhe puxa repetidamente pela manga do casaco, como se quisesse dizer-lhe algo – que só agora que estou morto e decomposto é que ouso dizer-vos estas coisas. Será que a verdade fede e é só da mentira que se evolam os doces perfumes da vida? Será que o famoso poço da lenda em cujo fundo se esconde a verdade, é feito de lodo e podridão?

O Prof. Libindo Olivares cobra coragem, afasta por um momento do nariz e da boca o lenço com que se defende dos miasmas dos mortos, e pergunta:

– Mas que é a Verdade?

Cícero Branco fita no professor suas pupilas mortas e responde, sorrindo:

– Não me venhas com essa paródia de Jesus diante de Pilatos, meu inefável paranóico! Estou falando na verdade com v minúsculo. E você sabe o que é a verdade? Não sabe porque vive uma mentira crônica. Falsa é a sua moral. Falsa a sua cultura. Falsa a sua proclamada amizade e correspondência com celebridades mundiais como Sartre, Mauriac, o Papa... sei lá mais quem! Seu latim é de ginasiano. Seu grego, mitológico. Sua cultura, um produto de leituras das Seleções do Reader’s Digest.

Os arborícolas rompem num coro – “Men-ü-ro-sol Men-ti-rp-so! Men-ti-ro-so”‘. Mas calam-se a um gesto de Cícero Branco, que agora escuta algo que Barcelona lhe diz ao ouvido.

– Nosso anarco-sindiçalista acaba de me soprar um “fecho de ouro” para a minha metáfora do baile de máscaras ... Para vós o importante é que a festa continue, que não se toque na estrutura, não se alterem os estatutos do clube onde os privilegiados se divertem. A canalha que não pode tomar parte na festa e se amontoa lá fora no sereno,envergando a triste fantasia e a trágica máscara da miséria, essa deve permanecer onde está, porque vós os convivas felizes achais que pobres sempre os haverá, como disse Jesus. E por isso pagais a vossa polícia para que ela vos defenda no dia em que a plebe decidir invadir o salão onde vos en-tregais às vossas danças, libações, amores e outros divertimentos.

– Demagogia de além-túmulo! – brada o Prof. Li-bindo, de dedo erguido, mas o rosto livido.

Sentado sempre na relva, como num limbo, o pescador subaquático olha ora para o advogado dos defuntos ora para o grupo dos pró-homens, como quem segue a bola numa partida de tênis. Os urubus, agora em número crescido, voam a uns cinqüenta metros acima da praça. Um deles pousa na platibanda do palacete dos Campolargos. Um garoto que está sentado na janelinha da água-furtada dum sobrado vizinho, de estilingue em punho, carrega a sua arma, fecha um olho, mira o urubu, puxa a borracha e depois solta-a: a pedra parte, zunindo, mas erra o alvo e estilhaça o vidro de uma das janelas da mansão.

 

Um Cadillac negro pára à frente da igreja e de dentro dele salta Mr. Jefferson Monroe III que, em passadas largas, se dirige para o centro da praça, com um lenço no nariz. Faz alto a alguns metros do coreto que se reflete por um instante em suas pupilas azuis e incrédulas. De dentro de uma das árvores uma vaia começa: “Yankee, go home! Yankee, go home! Yankee, go home!”

Mr. Monroe recua de costas – um passo, dois, três – sempre olhando para os defuntos e murmurando: “It’s impossible! I don’t believe it! My God! I must be drunk”. Volta em marcha acelerada para dentro de seu carro, põe o motor em movimento e arranca na direção de sua casa.

Minutos mais tarde M. Jean-François Duplessis e sua esposa haitiana aproximam-se do coreto, vindos de um outro quadrante da praça. Ao verem a mulher do francês, os rapazes que estão nas árvores, rompem a assobiar aprecia-tivamente e em breve começa o coro – “Do-mi-ni-quel Do-mi-ni-que! Do-mi-ni-que!” – cortado de observações gaiato-eróticas: “At que peitos! Olha o tundá dela’. Do-mi-ni-quel Do-mi-ni-quel Que boazuda!”

M. Duplessis, com a metade da cara coberta por um lenço, aproxima-se do coreto e diz: “C’est degoûfantl” Volta-se para a esposa e convida: “Allons-nous en!” Ela, de narinas palpitantes, olhos meio exorbitados, já gingando como num terreiro de batuque, preparada para receber o santo, atira longe os sapatos e solta os cabelos; o marido segura-lhe com força um dos pulsos, murmurando insultos em francês, e leva-a quase de arrasto para o Citroën que ficou junto duma das calçadas da praça, enquanto a haitiana solta gritos histéricos e diz palavras duma língua exótica que nem o culto Prof. Libindo consegue identificar.

A atenção de boa parte da multidão, desviada por alguns segundos pelo número involuntariamente encenado pelo casal estrangeiro, volta-se de novo para o coreto. Cícero continua com a palavra:

– Mas basta de metáforas! – diz ele agora. – Vamos a fatos. Povo de Antares, colendo juiz de Direito, eu acuso o Cel. Tibério Vacariano e o Maj. Vivaldino Brazão de peculato e enriquecimento ilícito à custa dos cofres públicos!

– Cícero! – geme o prefeito, que continua escarra-pachado em cima dum banco, banhado em suor, os olhos esgazeados, a respiração ofegante. – Você está louco!

– Morte ao bandido! – grita incongruente o Cel. Tibério. – O meu revólver! Quem ficou com o meu revólver!?

O Dr. Lázaro torna a fazer uma espécie de dança em torno de seu cliente, sempre de sombrinha amarela em punho.

As irmãs Balmacedas, muito juntinhas as três, “braços dados, pára-sóis formando um cacho tricolor escutam atentas o advogado do diabo, os olhinhos besuntados dum interesse a um tempo menineiro e perverso.

Os arborícolas gritam: “Ga-tu-nos! Ga-tu-nos! Ga-tu-nos!”

Inocêncio Pigarço mobiliza os seus guardas, decidido a tomar de assalto, seja como for, o reduto dos defuntos. O juiz de Direito, porém, ajudado por Lucas Faia, consegue dissuadi-lo disso. E os guardas municipais, que não parecem nada dispostos a se aproximarem mais dos cadáveres, voltam à sua formação anterior, ao longo das calçadas.

Cícero Branco alteia a voz:

– Perguntareis com razão como é que conheço tão bem as patifarias desses dois próceres da nossa comuna, e eu responderei que é porque, quando vivo, pertenci a quadrilha! Sim, também fui um chicanista, um peculatário, em suma, um ladrão!

As gralhas nas árvores cantam agora: “Cí-ce-ro! Cí-ce-ro! Cí-ce-ro!” Mais uma vez o advogado pede-lhes silêncio com um gesto.

O juiz de Direito, agora mais perturbado que nunca, pois acaba de descobrir que sua própria esposa se encontra no meio da multidão, a poucos metros de onde ele está, avança um passo e, com a dignidade habitual, dirige-se ao advogado dos mortos:

– O senhor está se incriminando a si mesmo em público!

– Ora, ora, meu caro magistrado, a morte, me confere todas as imunidades. Estou completamente fora do alcance da lei dos homens. Quanto à de Deus, o Velho está cansado de saber de todos os meus pecados, os grandes e os pequenos, tanto os do corpo como os do espírito. A esta hora a minha sentença já está lavrada no Livro divino. Nada do que eu possa fazer agora modificará a minha situação na Eternidade.

Os seis mortos continuam sentados em silêncio, dentro de sua nuvem de moscas. Pudim de Cachaça e Erotildes estão ainda de mãos dadas. D. Quitéria, de cabeça baixa, mãos trançadas, brinca de fazer ura polegar girar ao redor de outro, como era seu hábito quando viva. Barcelona exibe os caninos de lobisomem. Encolhido atrás do sapateiro, João Paz olha fixamente na direção de Pedro-Paulo, e o jovem padre julga ler uma mensagem naqueles olhos opacos: “Não se esqueça da promessa que me fez”. O Prof. Menandro Olinda, fazendo de conta que seus joelhos são ujn teclado de piano, toca neles com bravura, mas inaudível para vivos e mortos, talvez um trecho da Appassionata.

Os urubus voam em círculo no céu, cada vez mais baixo, e um deles pousa ousado na platibanda do solar dos Vacarianos. Ouve-se uma detonação e, com a exceção dos defuntos, todos naquela praça estremecem. Olham em torno, procurando, e não tardam a descobrir que Egon Sturm, de carabina em punho, começou a alvejar as agourentas aves. “Que perigo!” – exclama alguém. E Inocêncio manda três de seus guardas subirem até onde está o campeão de tiro, com o fim de desarmá-lo.

Uma mulher do povo solta um gemido e cai. Correm para ela os enfermeiros da ambulância do Salvator Mundi ao mesmo tempo que os do carro do Hospital Repouso, e por um momento os dois grupos empenham-se numa luta quase corporal disputando a posse da vítima. O Dr. Mirabeau, apesar de perturbado, intervém na contenda e sugere que se decida a questão com uma moeda. Os enfermeiros do Hospital Repouso escolhem cara; os do Salvator Mundi, coroa. O juiz de Direito – símbolo da justiça imparcial – é convidado a atirar a moeda para o ar, o que faz, aparan-do-a na trêmula palma da mão direita. Coroa! Os enfermeiros do Dr. Lázaro põem a vítima na sua maca e a conduzem num marche-marche glorioso para a ambulância.

 

Engrossou a multidão que se encontra atrás dos próce-res. Ajoelhado ao pé do banco onde agora se recosta o seu precioso cliente, o Dr. Lázaro toma-lhe o pulso, ausculta-lhe o coração com o estetoscópio, suplica-lhe que volte para casa, mas o velho, com um olhar amarelo, resmunga: “O cor-neteiro do meu regimento jamais aprendeu a tocar retirada

O Pe. Gerôncio acha-se sentado na relva, recostado no tronco dum cinamomo. A maldita enxaqueca! Só enxerga a metade das imagens: a outra metade se esfuma e foge. E lá está, no canto do olho esquerdo, aquele semicírculo de fogo branco em trêmulo ziguezague. Inocêncio Pigarço continua a buscar, mas inutilmente, o olhar do filho, que conversa animadamente com o Pe. Pedro-Paulo.

Cícero Branco caminha dum lado para outro no coreto, como num palco.

– Quando vivo, senhoras e senhores – diz ele em voz clara e alta – fui, não só advogado e conselheiro desses dois “beneméritos” cidadãos cujo nome há pouco tive a honra de declinar, como também o seu testa-de-ferro e factotum. Juntos lesamos incontáveis viúvas, órfãos, ausentes e até presentes: negócios de inventários, desapropriação de terras e prédios. Protegíamos assassinos e contrabandistas quando isso nos convinha política ou economicamente.

Tibério ergue-se, arrastando consigo o Dr. Lázaro com sombrinha, estetoscópio e tudo:

– Mentira! Mentira! Você não tem autoridade para falar porque está morto e podre!

O promotor público, sentindo um fogo entre as pernas e sonhando com um paraíso da talco Johnson, reúne forças para dizer:

– Ninguém tem o direito de fazer acusações de tamanha gravidade sem apresentar provas!

O advogado dos cadáveres solta uma risada teatral e de sua boca escorre um líquido pardacento, que ele limpa com a manga do smoking.

– Provas? Eu as tenho, e as melhores, da última transação ilícita que praticamos. Atenção, povo de Antaresl O que vou contar é muito importante e esta talvez seja a última oportunidade que tenho para falar, pois os saprófitas trabalham depressa e já me devoraram boa parte das entranhas ...

As sombrinhas das Balmacedas estremecem. A massa humana agita-se num movimento de onda. Os arborícolas soltam gritos de incitação. Faz-se depois um silêncio de expectativa. Ouve-se uma nova detonação e um urubu, ferido em pleno vôo, cai a pique sobre o calçamento da Rua do Comércio.

– Quando foi da última concorrência havida no município para o fornecimento de automóveis, caminhões e máquinas agrárias à nossa prefeitura, murmuraram por aí os oposicionistas que houve fraude... Pois houve mesmo. E da grossa! Sei disso porque fui eu quem engendrou a negociata. Três firmas entraram na concorrência. A que ofereceu a melhor proposta foi logo alijada porque era uma empresa idônea e recusou entrar no cambalacho que propus. De combinação com os meus sócios, o honrado prefeito Maj. Brazão e o nosso impoluto Cel. Vacariano, inventei uma tecnicalidade que pôs logo essa companhia fora de combate... Ficaram apenas duas e foi aceita a que nos fazia a proposta mais conveniente: a que concordou em dar-nos por baixo do poncho uma “bonificação” de trinta por cento sobre o total do superfaturamento dessas viaturas e máquinas. ..

– Delegado! – exclama o prefeito. – Prenda esse canalha mentiroso!

Encolhido atrás do tronco dum guapuruvu, como de emboscada, Inocêncio Pigarço não diz uma palavra, não faz o menor movimento. Olha ainda intensamente para o filho, cujas expressões fisionômicas ele observa com apreensão.

– Como pode um homem que faleceu no dia 11 de dezembro – pergunta o juiz de Direito – depor no dia 13 desse mesmo mês? Nenhum tribunal do mundo reconheceria a validade desse testemunho.

– Seja como for, escutem! – prossegue Cícero Branco. – A transação a que me referi se consumou a portas fechadas no meu escritório profissional, presentes apenas quatro pessoas: o representante da firma fornecedora, o prefeito, o Cel. Tibério e este vosso criado, que já não é mais deste mundo, ó! Maj. Vivaldino, você não pode deixar de ter notado uns lindos cravos vermelhos que estavam num vaso em cima da minha mesa... Não notou? Bom, você só se interessa por catléias... Pois foi uma lástima, porque dentro desse vaso escondia-se um pequeno microfone ligado por um fio muito bem dissimulado a um gravador que funcionava dentro duma gaveta de minha escrivaninha. Tudo quanto dissemos naquela reunião ficou nitidamente gravado numa fita magnética. O nosso famoso “grafófobo”, o Cel. Tibério Vacariano, o espertalhão que sempre recusou assinar papéis, até mesmo os legais, dessa vez caiu na ratoeira: sem saber deixou gravada a sua voz no meu tape, e o que ele então disse poderia levá-lo à cadeia se houvesse justiça neste país.

O patriarca dos Vacarianos arranca o estetoscópio das mãos de seu médico, dá dois passos na direção do coreto, e arremessa-o como um projétil na cara de Cícero Branco. Este apanha o instrumento no ar, e depois de dizer ‘Que serventia pode ter um estetoscÓDio para um cadáver?”, joga-o na relva. O pescador subaquático apanha o instrumento com a ponta dos dedos e leva-o ao Dr. Lázaro, que, depois de curta hesitação, recebe-o de volta, meterdo-o na bolsa.

– Continuemos, meus amigos – torna a falar o Dr. Cícero. – Enquanto o carretei da tape rodava, li em voz alta as cláusulas daquele documento de compra e venda. Depois o prefeito assinou as duas vias, dizendo textualmente: “Está aqui o contrato”. A voz que se ouve em seguida é a do nosso grande Vacariano: “Epa, moço! Primeiro, venha de lá a nossa comissão. São sessenta milhões de cruzeiros em dinheirinho batido, conforme combinamos. Nada de cheques”. Se tocarmos a fita magnética o que ouviremos em seguida é a voz do representante da firma vendedora dizendo: “Está aqui a parte dos senhores, Maj. Vivaldino e Cel. Vacariano. Façam o favor de contar”.

O prefeito de Antares está atirado num banco, como aniquilado pela acusação, a papada caída sobre o peito, que sobe e desce ao ritmo descompassado duma respiração pesada. Sem deixar de segurar o guarda-sol negro, o Mendes espanta com a mão que tem livre as moscas que pousam no rosto de seu chefe.

Dentro do coreto, Barcelona solta risadas e com elas golfadas de moscas. Nas árvores, os rapazes retomam a sua gritaria e por alguns minutos reina o caos e a cacofonia no centro da praça.

– Mas onde está a fita com esse diálogo? – pergunta Lucas Faia.

Ah! – faz Cícero Branco – o ilustrado diretor do Times de Antares pensa que estou blefando. Quer pagar para ver? Pois o carretei com o tape encontra-se em mãos dum amigo meu, fora da cidade, è pode ser apresentado à Justiça onde e quando esta o reclamar.

– Tudo isso é uma invencionice vergonhosa com o fim exclusivo de desmoralizar as nossas autoridades! – protesta o promotor público.

O Pe. Gerôncio, agora com a cabeça entre as mãos, suplica a Deus que o torne surdo, para ele não ouvir as barbaridades que se dizem, cego para não continuar a ver aquele espetáculo horroroso, sem olfato para não sentir a podridão dos mortos, mudo para não ter de falar nunca mais! Nunca mais! O Prof. libindo, com o lenço recendente a alfazema e cadáver apertado contra o nariz, tenta identificar-se com a extremosa florida ao pé da qual se encontra. Impossível! O sol o cega, o calor o aplasta. Pensa em fugir, disparar rumo de seu quarto, tomar uma ducha fria, ler Platão completamente nu e esquecer. Mas por que não faz isso? Que estranha força o mantém imóvel ali à escassa sombra daquela árvore?

O juiz pensa num romance que leu com paixão e em que o personagem que narra a estória cometeu um crime gratuito por causa do sol. Lembra-se de que fechou o volume numa dúvida... Teria mesmo o criminoso alguma atenuante? Agora está convencido de que o sol pode transformar um homem num assassino. O processo de Meursault merece ser revisado. Mas é tarde demais. O réu foi guilhotinado. E então Quintiliano procura o rosto de sua esposa em meio da multidão, mas agora tem diante dos olhos uma nuvem, e começa a sentir a pancada de seu próprio sangue nas têmporas, as batidas do coração contra as costelas.. • Tem a impressão de que vai desfalecer, agarra-se no respaldo dum banco, afrouxa a gravata, desabotoa o colarinho, pensa em tirar o casaco, mas a dignidade do seu cargo exige o aborto do gesto. Onde estará Valentina? Onde estarei eu? Onde estaremos todos? ó Deus, isto será um pesadelo? Serei Meursault? Vou meter cinco balas no corpo do árabe? Cinco baias no corpo do padre? Cinco balas... A espada do sol lhe trespassa o crânio. Cymbales du soleil...

– Vou fazer mais uma denúncia – continua Cícero. – Acuso também o Maj. Vivaldino Brazão e o Cel. Tibério Vacariano de lesarem o fisco. O dinheiro que lhes vinha de todas essas transações ilícitas jamais era depositado em suas contas bancárias para evitar explicações perigosas aos fiscais do imposto de renda. Eles o guardavam em suas próprias casas num cofre. Ocasionalmente me entregavam somas para que eu as mandasse depositar em bancos argentinos ou comprasse dólares para reforçar suas contas correntes em bancos da Suíça. Eu ontem devia entregar uma promissória fria ao Maj. Vivaldino, correspondente a uma certa soma que recebi para remeter para o estrangeiro. Como não fiz isso, esse dinheiro, que depositei na minha conta num banco local, ficará sendo agora parte de meu espólio. Como morri sem testamento e não tenho filhos legítimos nem naturais, minha mulher herdará tudo quanto possuo. Atenção, meninas Balmacedas! Obrigado por vossas cartas anônimas em que me denunciastes as infidelidades de minha esposa. Esta manhã, voltando inesperadamente do cemitério, encontrei-a na cama com um rapazola. Alegra-me a idéia de que o dinheiro de meus sócios vá para as mãos puras de Efigênia, servindo, entre outras coisas, para ela comprar presentes para seus gigolôs. E vós rapazes que estais pendurados nessas árvores, quero dar-vos um prêmio pelo vosso apoio e solidariedade. O endereço de minha viúva é Rua do Carmo, 124. A faixa etária que ela prefere é a que vai de 16 a 24...

– Ó Deus, fulminai-me com um raio – suplica o Pe. Gerôncio erguendo os olhos para o céu incandescente.

Os urubus voam cada vez mais baixo. Os guardas de Pigarço no alto dum telhado agarram, desarmam e desalojam Egon Sturm, que tentou reagir a bala e em alemão. Os enfermeiros das duas ambulâncias entram noutra disputa. Dessa vez trata-se do presidente da Associação Comercial, atacado duma crise de nervos.

 

– Senhores e senhoras! – exclama Cícero Branco. – Mentissimo juiz de Direito. Tenho aqui comigo dois documentos em que reafirmo não só as denúncias que acabo de formular como menciono, também, com abundância de por-menores, outros atos criminosos praticados, com a minha cumplicidade, pelo Cel. Vacariano e pelo prefeito Brazão, casos típicos de enriquecimento ilegal. – Tira do bolso interno do casaco um envelope de ofício. – Num destes papéis menciono também o nome e p endereço do meu amigo em cujo poder se encontra a fita magnética à qual me referi há pouco. Os documentos são de meu próprio punho e têm firma reconhecida pelo tabelião Aristarco Belaguarda.

Atira o envelope sobre a relva, perto do coreto, explicando:

– Perdoe-me pelo gesto indelicado, mentissimo, mas Vossa Excelência compreende, no estado de putrefação em que lamentavelmente me encontro, não ouso aproximar-me de nenhum dos vivos presentes.

Por alguns minutos centenas de olhos fixam-se no branco retângulo de papel sobre o verde do canteiro que circunda o coreto, mas ninguém faz o menor movimento para apanhá-lo. Finalmente o pescador subaquático ergue-o do chão e entrega-o ao juiz de Direito, que primeiro recua, recusando o documento, mas que por fim o segura, dando a impressão de que tem um tijolo quente entre os dedos. Ti-bério Vacariano precipita-se para o magistrado, arrebata-lhe o envelope te, em gestos frenéticos, rasga-o em muitos pedaços, atochando-os depois truculentamente nos bolsos das próprias calças.

– A lei é clara – diz com voz gutural. – Ninguém pode depor depois de morto. Pode, Dr. Quintiliano? Pode, Dr. Mirabeau?

Ambos os homens interpelados sacodem as cabeças numa vaga e meio aparvalhada negativa.

Cícero Branco dá de ombros.

– Fiz o que pude – diz. – Quanto ao gesto do Cel. Vacariano, ele vem apenas confirmar o que todos sabemos dele! Um velho atrabiliário, arbitrário, despótico. Mas o que ele ainda não sabe é que já está morto, mais morto talvez do que os sete defuntos deste coreto!

Gritos e aplausos partem das árvores.

– Delegado! – exclama Tibério – onde estão os seus soldados que não dispersam a pau esses lacaios de Moscou?

Uma voz em falsete sai dum plàtano: “Como vai a Cleo, coronel?” Em seguida ouve-se um coro cadenciado: “Cor-nu-do! Cor-nu-do! Cor-nu-do!”.

Espumando de raiva, Tibério Vacariano olha dum lado para outro.

– O meu revólver! – grita. – O meu revólver! Quero matar esses maconheiros!

Sempre com a sua auréola móvel e escura de moscas vorazes, Cícero Branco retoma a palavra:

– Todos sabem que o Cêl. Tibério é o presidente de honra dos Legionários da Cruz, cujo lema é Deus, Pátria, Família e Propriedade. Ora, as relações de nosso furibundo pró-homem com Deus são só de cumprimento, de longe, apenas um toque de dedo na aba do chapéu. O velho Vacariano não reza, não vai à missa e nem se confessa, e durante toda a sua gloriosa existência teve incontáveis oportunidades de transgredir os dez mandamentos. Pátria? A flor dos Vacarianos ama tanto a sua, que tem passado a vida a lesar os cofres públicos e a mamar nas tetas desta pobre república. Ah, mas com a família o caso é diferente! O Cel. Tibério preza tanto essa instituição, que em vez de uma mulher tem duas: a legítima, que vive no palacete que vemos ali na esquina, e a ilegítima, instalada numa outra casa e numa outra rua. Agora, acima de Deus, acima da Pátria, acima da Família, o nosso Tibério, imperador de Antares, adora a Propriedade, e é capaz de matar e até de arriscar-se a morrer para defender as suas propriedades, aumentãndo-as à custa da propriedade alheia. Daí o seu sagrado horror a qualquer mudança do presente status quo político, econômico e social que tanto lhe convém.

– Canalha! – grita Tibério. – Pústula! Crápula!

 

E em seguida, olhando para Quitéria Campolargo, cuja atenção durante a última hora ele tentou, mas em vão, atrair, o chefe do clã dos Vacarianos declama:

– Quita! Quita! Quita! Não te lembras mais deste teu velho amigo? Estás sendo explorada por um patife sem escrúpulos, um desclassificado social que sorrindo confessa em praça pública que é enganado pela própria esposa. O Cícero está usando a tua presença, o prestígio do teu nome para atacar a classe a que pertences. Mas tu és das nossas, eu sei! Fala, Quita! Conta ao povo de Antares que ele é um intrigante, um sacripanta, um mentiroso!

O advogado dos mortos volta-se para D. Quitéria e pergunta:

À senhora quer falar? Nesta nossa pequena tana-tocracia existe a mais absoluta liberdade de pensamento e palavra, coisa hoje em dia rara na chamada América Latina.

Quitéria Campolargo ergue a cabeça e fita os olhos imóveis e sem brilho em Tibérío Vacariano, dizendo:

– Tibé, estás muito enganado. Não tenho nada mais a ver com vocês. Entre vivos e mortos não há entendimento possível. Hoje de manhã, quando voltei à minha casa, tive a maior desilusão da minha vida. Encontrei as minhas quatro filhas e os meus quatro genros discutindo a partilha das minhas jóias... das jóias com as quais eu pedi que me sepultassem. Passaram a noite batendo boca. Não creio que tivessem tido a menor palavra de afeto ou saudade para comigo. Eu queria levar as jóias para a sepultura não por birra ou vaidade, mas para evitar que elas fossem o pomo da discórdia. Compreendi esta manhã que com elas ou sem elas de qualquer modo os meus genros e filhas iam brigar: por um pedaço de terra, por um imóvel ou um móvel, por uma vaca, um porco ou um paliteiro de prata... Ë triste. Hoje em dia as pessoas prezam mais os objetos do que os outros seres humanos. Não, Tíbé. Diz à Lanja que não se iluda, e que se habitue à idéia de um dia passar para o nosso lado e ser completamente esquecida pelos filhos, filhas, netos, sobrinhos, genros... E tu também toma nota do que vou te dizer. Os moços não só esperam que os velhos morram, como até desejam que isso aconteça o mais depressa possível. É uma lei da vida. Assim, para as pessoas de idade como nós, morrer não é apenas uma fatalidade biológica como também uma espécie de obrigação social.

Os arborícolas rompem em gritos e aplausos: “Apoiado! Muito bem!” E depois, numa espécie de estribilho festivo: “Qui-ta! Qui-ta! Qui-tat É a maior! É a maior! Qui-ta! Qui-ta!”

Tibério ergue a cabeça para as árvores e protesta-.

– Dona Quita, mal-educados!

– Ora – diz a matriarca dos Campolargos – deixa os meninos em paz.

 

Três urubus estão agora pousados, imóveis, na plaü-banda do palacete dos Vacarianos. Parecem estatuetas de basalto ali postas com propósitos decorativos. Os caminhões da Pepsi-Cola e da Coca-Cola tocam ainda as suas melodias de realejo, anunciando cada qual o seu produto. Homens e mulheres vindos de vários setores da cidade – e agora entre eles vêem-se também molambentos habitantes da Babilônia – engrossam a multidão que cerca o coreto, onde neste exato momento Barcelona se ergue, ao passo que Cícero se senta.

– Não me apresento – diz o sapateiro – porque nesta cidade todo mundo me conhece, até os gatos e os cachorros. O que vou dizer é pouco, mas vale a pena ser ouvido. Sou anarco-sindicalista convicto e detesto o sistema capitalista explorador e desumano. No meu tempo de vivo ficava furioso toda vez que o cretino do delegado Inocêncio Pigarço me confundia com os comunistas, esses piolhos de Karl Marx, essas lombrigas de Lénine. – Neste momento partem de dentro dum plàtano vozes de protesto: “Trotskista! Revisionista!”, mas são abafadas por um coro de solidariedade e incitamento: “Bar-ce-lo-na! Bar-ce-lo-na! Bar-ce-lo-naF – Da minha banca de sapateiro, através da minha porta, eu a bem dizer espiava a cidade. Muita gente durante o dia vinha conversar comigo, me contar novidades, de modo que assim eu estava a par de toda a vida de Ântares, tanto da pública como da secreta.

– Cala a boca! – grita o Cel. Tibério. Barcelona, porém, continua:

– Não sou nenhum moralista. Não penso como os “pilares” da sociedade burguesa que localizam a moral entre as pernas das pessoas. Para mim existe outra moral mais alta, que é a social, a responsabilidade do homem para com o homem. – (Uma voz em falseie vem de uma das árvores: “Demagogo!”) – Acho que cada criatura humana pode fazer o que entender com o seu corpo e o seu sexo. Não é da conta de ninguém. Mas se há coisa que não agüento são os fariseus, os falsos moralistas, os que têm uma moral sexual para uso externo, da boca para fora, e outra para seu próprio uso particular e secreto. Nossa cidade está cheia desses sepulcros caiados de que falam as Escrituras, santar-rões que estão sempre prontos a condenar o próximo por faltas que eles próprios cometem às escondidas.

– Mandem esse remendão calar a boca! – diz Vivaldino Brazão com voz quase sumida.

– Tenha paciência e escute, prefeito! – responde o Barcelona. – Daqui a pouco vou me calar para sempre. Povo de Antares! Membros do sindicato das cartas anônimas! Pais e mães de família! Juventude!

Quando o orador faz uma pausa ouve-se apenas o zumbido das moscas dentro do coreto e o bater das asas dos urubus. Sente-se uma vibração nas árvores. O pescador subaquático está agora estendido na relva: ninguém sabe se ele dorme ou perdeu os sentidos.

– Quem é que não sabe – pergunta o sapateiro, com a dentuça ao sol – que o nosso sisudo Comendador Benício

Armendariz só gosta de meninas de quatorze a dezessete anos e que é a alcoviteira Venusta, protegida do Cel. Vaca-riano, quem fornece periodicamente franguinhas para a panela do nosso respeitável varão, que tanto horror tem a qualquer mudança de ordem social, política e econômica?

Os arborícolas rompem a gritar e a assobiar, sacudindo os ramos das árvores. De súbito ouve-se um estalido de galho que se quebra e um dos rapazes se despenca como uma fruta do alto dum plàtano e cai no chão, com um gemido e um baque surdo. Correm para ele os enfermeiros de ambas as ambulâncias, mas os do Hospital Repouso chegam primeiro, põem a vítima – que está desacordada – em cima duma padiola e a levam por entre a multidão, que abre alas para os deixar passar.

Esquecida a comoção, Barcelona retoma o seu discurso:

– Quem ignora (com o perdão da nossa companheira D. Quitéria), quem ignora que sua filha casada com o dono da Farmácia da Imaculada Conceição engana o marido com aquele caixeiro-viajante louro e bonitão que de vez em quando aparece na cidade e, depois de vender uma boa fatura ao farmacêutico, dorme com a mulher dele no Hotel Avenida que, por sinal, é um dos rendez-vous mais populares de An tares?

D. Quitéria sacode a cabeça lentamente dum lado para outro. As irmãs Balmacedas fremem. Os veículos da Pepsi-Cola e da Coca-Cola continuam a tocar o seu realejo, chamando uma freguesia cada vez mais escassa. E o olho sem pàlpebra do sol castiga toda aquela gente ali na praça – mais de mil almas, calcula Lucas Faia contando não só as que se acumulam em torno do coreto, mas também as que se acham às janelas das casas e nas ruas e calçadas em derredor. Um urubu desce e pousa no ápice da coberta do coreto, mas é espantado a pedradas e gritos por alguns populares.

 

O Pe. Gerôncio liberta o pranto e fica a chorar de mansinho (“Ó Deus de misericórdia, que esperais de mim numa hora destas?”) e esconde o rosto nas mãos trêmulas. O jornalista anda dum lado para outro, por entre os próceres, estonteado. O juiz de Direito, num gesto de supremo desespero, tira o casaco e a gravata, desabotoa o colarinho e estatela-se em cima dum banco e ali se deixa estar, arquejan-te, envergonhado da sua nudez e da sua impotência. O Dr. Lázaro continua a sua dança em torno de seu paciente, trêmulo de apreensão, pois sente que sua vez está por chegar. Pensa na possibilidade de fugir, sair correndo na direção... de onde? De sua casa? Do hospital? Do rio? Acaba de verificar que a pressão arterial de Tibério Vacariano subiu a 24, com a mínima de 11. Um perigo... E se o velho tem um enfarto? Ou um derrame cerebral? “Santo Deus, estou purgando os meus pecados, todos os meus pecados nesta hora do demônio!”

Mendes inclina-se sobre o prefeito e sugere uma retirada, com discrição, é claro. A posição das autoridades lhe parece insustentável. De seu posto de observação, Inocêncio Pigarço, apertando o próprio estômago dolorido contra o tronco da árvore (a ùlcera!), percebe agora claramente os furos produzidos por suas balas e pelas dos seus guardas na cabeça, no pescoço, no peito e nas mãos de Barcelona – que neste exato momento, em voz alta, nítida e pícara, recita verbetes inteiros, ricamente informativos, do seu Who is Who Na Vida Erótica de Antares, revelando adultérios e aberrações sexuais. As irmãs Balmacedas ora murmuram “Esse eu sabia!” ora “Esse não!”, e o assanhamento das três mexeriqueiras comunica-se às suas sombrinhas coloridas, que dançam minuetos no ar espesso e fétido. Escapadas fesceninas de pessoas tidas como puritanas na sociedade local são narradas com abundância de pormenores pelo sapateiro. Barcelona revela o nome completo de cada uma delas, e os arborícolas saúdam cada caso com vivas, vaias ou comentários obscenos. Da multidão conservadora que forma a retaguarda dos pilares da comunidade, de quando em quando sobe no ar um ah ou um oh de surpresa e escândalo, numa espécie de acorde dum enorme órgão. E de quando em quando a esposa de algum dos “denunciados” quebra na cabeça dele a sua sombrinha fechada. Ou então um marido, que acaba de ouvir que a esposa o engana, põe-se a esbofeteá-la, dizendo-lhe os piores nomes. Não poucos homens e mulheres esgueiram-se, disfarçadamente, por entre a multidão, fugindo da praça. Desde que Barcelona começou a dar voz às suas indiscrições, umas duas ou três damas puseram-se a chorar, uma delas tem um ataque de nervos e sobre ela se precipitam os enfermeiros do Salvator Mundi, pois os do Hospital Repouso neste momento estão às voltas com um novo caso de insolação. A polícia em breve tem de entrar em ação, porque um esposo ultrajado se atraca a socos com o homem (estava a seu lado, o hipócrita!) que o sapateiro prova ser há dez anos o “amante oficial” de sua mulher.

Com uma habilidade que o Prof. Libindo não pode deixar de comparar mentalmente com a de Demóstenes, segundo uma página de antigo livro de leitura escolar, Barcelona passa dos assuntos sexuais para outros aspectos do submundo de Antares: quem fuma maconha, quem tem o vício da morfina, que farmacêutico vende entorpecentes sem receita, aos seus “aficionados”. (Há um momento que a população inteira duma árvore manifesta o seu protesto contra essas denúncias com gritos: “Reacionário! Puritano! Delator!”)

O sapateiro continua a dizer os nomes de cidadãos aparentemente respeitáveis da comunidade, que se entregam a atividades pouco decentes ou cujo passado está longe de ser limpo.

Quem é o maior banqueiro do jogo do bicho no município? Quantas daquelas famílias que têm palacetes ao redor da praça ou ao longo da Rua do Comércio enriqueceram com o contrabando? Que figura, hoje respeitável na comunidade, cometeu um crime de homicídio em Alagoas e refugiou-se em Antares, trocando de nome?

Cícero Branco ergue-se, põe a mão no ombro do sapateiro e diz:

– Basta! Você já falou demais. Tenho um assunto mais sério a tratar.

– Está bem – concorda Barcelona – mas permita que antes eu chame uma testemunha importante. – O advogado faz um gesto de assentimento e o anarco-sindicalista diz em voz alta: – Tem a palavra a nossa companheira Erotildes!

– Ninguém está interessado no que essa decaída vai dizer! – protesta o promotor público.

Cícero rebate:

– Decaída? Por que não diz logo puta? – Leva a mão em concha ao ouvido. – Creio que ouvi murmúrios do respeitável público, chocado pelo nome “horrível” que acabo de pronunciar. Quatro letrinhas. P-u-t-a. O meu colega Dr. Mirabeau gaba-se de conhecer os quarenta sinônimos que o imortal Rui Barbosa descobriu para prostituta, mas parece não se impressionar com a prostituição propriamente dita. Claro! Vossa moral é puramente verbal. O delegado Pigarço estará sempre pronto a prender como subversivo todo aquele que escrever com realismo sobre as misérias da nossa Babilônia e outros antros de indigência, mas essas favelas propriamente ditas não preocupam a burguesia. Aquilo sobre que ninguém fala ou escreve não existe. Se um espelho reflete um ato e um fato que consideramos escandaloso, quebramos o espelho e voltamos as costas para o ato e o fato, dando a questão como resolvida. Neste país quase todos os problemas políticos, econômicos e sociais são solucionados no papel. Meu caro Dr. Mirabeau, queira ou não queira Vossa ‘Excelência, vai falar agora a puta Erotildes. – Volta-se para trás e diz: – Venha até aqui, menina!

 

Do fundo do coreto a defunta prostituta caminha até junto de Barcelona. Vem ajeitando os cabelos, pisando com ar faceiro, alisando a grosseira e encardida mortalha com as palmas das mãos.

– Os habitantes mais antigos desta cidade – diz Barcelona – devem lembrar-se do tempo em que Erotildes da Conceição era moça e bonita. Segundo a crônica policial do molusco Lucas Lesma hoje em dia ela é apenas a “decaída Erotildes de Tal”.

– Devo lembrar – intervém Cícero Branco – que os de Tal, família composta de párias, de marginais, constituem uma das mais antigas estirpes do Brasil. Suas origens datam do tempo do descobrimento. Os de Tal são brasileiros de quinhentos anos. Mas... continue, Barcelona.

– Peço silêncio – diz o sapateiro. – Prestem a maior atenção. Afinem o ouvido, porque Erotildes tem uma voz fraca. Conte a sua estória, minha filha, mas em poucas palavras. Vamos!

– Ora – diz ela – sou natural do Rincão Verde. Tinha quinze anos quando o meu padrasto se passou comigo. Não houve nada, mas minha mãe, muito ciumenta, me botou pra fora de casa e então eu vim pra cidade. Como não sabia ler e não queria ser copeira ou cozinheira nem pedir esmola, caí na vida. Fui pra cama com o primeiro homem que me prometeu dinheiro...

E você se lembra de quem foi esse homem?

– Naturalmentes.

– Ele está nesta praça? Você o enxerga aqui do coreto?

Erotildes aponta numa direção. Julgando-se indicado, o Prof. Libindo sobressalta-se e protesta, indignado:

– Jamais em toda a minha vida toquei no corpo dessa mulher!

– Pudera! – replica rápido Cícero Branco. – Você é o mais notório pederasta municipal!

Desconcertado Libindo Olivares bate em retirada, quase a correr, sob ruidosa vaia dos arborícolas. Erotildes continua de braço estendido apontando.

– Foi aquele ali... o homem da estauta – diz. Centenas de olhos voltam-se para o busto de bronze

que se encontra ao pé de um dos lagos, sobre uma base de granito ròseo polido.

– O Com. Leoverildo! – exclama alguém. – Impossível! Mentira!

– Esse mesmo. Me levou pra casa dele. Tudo aconteceu na cama do casal. A esposa do comendador estava na estância com o resto da família. Por sinal foi numa sexta-* feira santa. O ano? Deixem ver. .. 1926?... 1927? Por aí...

Na placa de bronze, embutida na coluna que sustenta o busto lê-se em caracteres salientes: Ao humanitário Comendador Leoverildo Grave, digníssimo chefe de família, cidadão benemérito, exemplo para os pósteros – a cidade agradecida. A cabeça de bronze, os olhos vazios postos em algum lugar fora do tempo, ali está impassível e invulnerável a qualquer palavra.

Da massa conservadora partem gritos coléricos de protesto. Um homenzinho de meia-idade destaca-se dela, dá alguns passos e, de braços erguidos, brada:

– Mentira! Calúnia! Meu pai era um homem honrado! Senhor prefeito... eu... eu...

De repente começa a gaguejar, a tremer e cai no chão e põe-se a estrebuchar e a babujar a terra, os olhos esga-zeados, a boca retorcida num esgar – o que não causa grande surpresa aos presentes, pois a população de Antares está habituada aos freqüentes e públicos ataques epiléticos do Leoverildo Grave F.°. Desta vez os enfermeiros do Sal-vator Mundi levam a melhor, pois correm na frente dos homens de branco do Hospital Repouso e apoderam-se do doente. “Lá se vai o filho do busto” – exclama uma voz irônica no meio da multidão.

Barcelona volta-se para Erotildes:

– Me diga uma coisa, menina. Vê alguém mais aqui que andou com você... quero dizer, gente importante?

– Hã-hã. Fui por cinco anos amàsia do Cel. Vacariano. Ele até montou casa pra mim. Quando comecei a ficar velha, ele não me quis mais, me largou e nunca mais me deu um triste vintém.

Tibério Vacariano ergue-se do banco onde está quase deitado e, espumando na comissura dos lábios, o punho erguido, grita, dirigindo-se à multidão em torno:

– Não tenho de prestar contas a ninguém da minha vida particular! Não admito que botem cadeado com chave na minha... no meu... nessa coisa que hoje em dia chamam de sexo mas que no meu tempo tinha outro nome. Sou dono de todas as minhas partes!

Rompem gargalhadas nas árvores, mas o resto da multidão se mantém num silêncio soturno e meio amedrontado.

– Bom – prossegue Erotildes de Tal – não tive outro remédio senão sair a pescar homens na rua. Ia com qualquer um. Cheguei a ser mulher de cinco mil-réis. Numa noite de agosto apanhei uma chuvarada, comecei a tossir, fiquei tísica com um febrãò danado e uma dor no peito que respondia nas costas. A Rosinha me contou depois que eu até variei. Vai então me levaram pro hospital que não me lembro direito do nome.

– O Salvator Mundi – esclarece Cícero. – Ala dos indigentes.

E ela poderia estar viva – acrescenta Barcelona – se o nosso caridoso Dr. Lázaro tivesse mandado buscar um certo antibiótico que na época não havia nas farmácias da cidade. Prometeu isso mas esqueceu. Afinal de contas quem é Erotildes de Tal? Que importância pode ter a vida duma “horizontal”? Se se tratasse dum cliente importante e pagante, a coisa seria diferente...

O Dr. Lázaro salta e, na frente do coreto, com o pára-sol amarelo numa das mãos, começa a andar dum lado para outro, como um frenético passista de frevo, gritando:

– Eu explico! Pelo amor de Deus, me escutem! Sou um homem honrado! Sou um homem bom! Católico praticante! Dr. Falkenburg, me ajude! Onde está o Dr. Falkenburg? Explique ao povo que há casos em que a estreptomi-cina não dá mais resultado... Essa mulher entrou no hospital mais morta que viva! Dr. Falkenburg! Sou um homem bom. Me ajude, Cel. Vacariano, o senhor sabe! Faço caridade há quase trinta anos nesta cidade. Passo noites em claro à cabeceira dos indigentes! Não faço diferença entre rico e pobre!

“Merirti-ra! Men-ti-ra! Men-ti-ra!” – berram os rapazes nas árvores.

O Dr. Falkenburg não se manifesta pela simples razão de que, uns vinte minutos, fugiu furtivamente deste campo de batalha, depois que Barcelona revelou a sua ligação amorosa com uma jovem enfermeira de seu próprio hospital.

– Volte para o seu lugar – diz Cícero Branco a Ero-tildes, que obedece.

Cambaleante, Alambique destaca-se dum grupo e exclama:

– Isto é ou não é uma democracia? Se é, que fale também o meu companheiro Pudim de Cachaça!

Cícero Branco chama o cachaceiro, que se aproxima dele.

– Se tem algo a dizer, Pudim, fale. Mas seja breve. De olhos baixos, o homenzinho começa:

– Não vou acusar ninguém. Só quero pedir ao meretrício juiz e ao reverendissimo promotor que não condenem a minha mulher. Se ela me envenenou (o que ainda não a-credito) foi porque sou mesmo um porcaria, não valo nada. Passava o dia sem trabalhar, de noite saía em bebedeiras e serenatas (não é mesmo, Alambique?) e quando voltava pra casa de madrugada ainda batia na pobre da Natalina. Povo de Antares, ajudem a absorver a minha mulher! Era só o que eu tinha a dizer.

Alambique põe-se a bater palmas: “Bravos! Muito bem!” Depois, no meio do silêncio geral, olha na direção das árvores e pergunta: “Pro meu amigo... nada?”

Rompem então as aclamações: “Pu-dim! Pu-dim! Pudim!”

 

Cícero, com ambas as mãos segurando a grade da ba-laustrada do coreto, dirige-se ao povo:

– Senhores, um momento! A testemunha mais importante ainda não depôs. – Volta-se para trás e diz: – Cidadão João Paz, chegou a sua vez!

Inocêncio Pigarço estremece e olha automaticamente para o filho. Desta vez os olhares de ambos se encontram. Inocêncio é o primeiro a desviar o seu.

Arrastando uma perna, Joãozinho aproxima-se do advogado. O sol bate-lhe em plena cara. Exclamações de horror, de repugnância e – mais raras – de piedade partem da multidão.

– Os próceres e o povo de Antares – diz Cícero Branco – podem ver agora em plena luz meridiana a “operação plástica” que o delegado Inocêncio Pigarço e seus carrascos fizeram na cara e no corpo deste moço.

Inocêncio dá três passos à frente e grita: “Mentira!” Uma assuada tremenda, porém, sacode as árvores: “Ban-di-do! Ban-di-do! Ban-di-do!” O delegado estaca, olha em torno, atarantado, faz uma volta completa ao redor de si mesmo e finalmente fica parado, mas num equilíbrio instável, olhando na direção do coreto. O advogado dos mortos continua:

– Me digam se alguém reconhece nesta face quase reduzida a um mingau de carne batida a fisionomia do nosso Joãozinho Paz! Dr. Falkenburg! Dr. Lázaro! Médicos de Antares! Será assim que ficam sempre os que morrem de embolia pulmonar?

Um pesado silêncio segue-se a estas palavras.

– Num certo dia deste mesmo dezembro João Paz foi preso sob a falsa acusação de estar treinando secretamente na nossa cidade um bando de dez guerrilheiros esquerdistas do qual ele era supostamente o chefe. Sua prisão foi efetuada da maneira mais irregular. João Paz foi levado para o famoso porão da nossa delegacia onde se processam os interrogatórios mais brutais. Inocêncio Pigarço fez perguntas ao prisioneiro, ordenou-lhe que dissesse o nome dos outros dez “membros do grupo”. Joãozinho negou-se a isso porque nada sabia, pois tal grupo não existe em Antares! Inocêncio Pigarço entregou o “subversivo” aos cuidados de seu “especialista” em interrogatórios, o famigerado Boquinha de Ouro... que deve estar em algum lugar desta praça e que espero esteja me ouvindo.

– Tudo isso é verdade? – pergunta Tibério Vacaria-no, olhando duro para o prefeito.

– Eu não sei de nada... de nada... – balbucia Vivaldino.

Barcelona ergue-se, súbito, e grita,:

– Mentira! Todo mundo sabe que você sempre deu carta branca ao seu delegado, que por sua vez dava carta branca ao seu carrasco...

– Que por sua vez – termina Cícero – dava carta branca aos seus instintos sádicos. Acho que todos poderão ver estas manchas arredondadas na cara e nas mãos de João Paz... Pois foram produzidas por pontas de cigarros acesos, na primeira fase do interrogatório... coisa leve, digamos... uma espécie de bate-bola inicial...

Inocêncio Pigarço permanece de cabeça baixa, temendo encontrar o olhar do filho.

– Joãozinho agüentou tudo firme – torna a falar o advogado – e não pronunciou um nome sequer. O Boquinha de Ouro perguntava: “Quem são os outros dez? Vamos!” E o prisioneiro respondia: “Não sei”. Os carrascos passaram então à segunda fase do interrogatório. Dois bru-tamontes puseram-se a bater em Joãozinho, aplicando-lhe socos e pontapés no rosto, na boca do estômago e nos testículos... Peço perdão, senhoras e senhores puritanos, por ter usado a palavra testículo, mas posso assegurar-vos que os socos e pontapés doeram mais nessa parte da anatomia de João Paz do que a palavra testículo pode doer nos delicados ouvidos da vossa moral verbal.

Joãozinho, imóvel, parece olhar para parte nenhuma.

– Estão vendo esse olho quase fora da órbita? – pergunta Cícero Branco. – Parece um ovo de codorna... sim, e esse sangue coagulado que tem por cima lembra catchupe seco... Se me perdoam pelo mau gosto da metáfora, as pálpebras e a pele ao redor dos olhos de Joãozinho lembram uma folha de repolho roxo. Guardem essa imagem para se lembrarem dela sempre à hora das refeições. Um ovo de codorna em cima duma folha de repolho roxo. É um excelente processo mnemònico e plástico (sinistra natureza morta) para não esquecer as crueldades de nossa polícia.

 

Tibério Vacariano ergue a mão:

Basta de infâmias!

Os arborícolas, que escutam o advogado em silêncio, de repente põem-se a gritar: “Velho podre! Velho caduco! Bandido!”

– Não terminei ainda – exclama o Dr. Cícero. – Esse olho foi quase arrancado por um golpe de soqueira... de quem, Joãozinho?

– Do próprio Boquinha de Ouro.

– Agora, senhoras e senhores – continua o advogado – usem a imaginação. O prisioneiro depois de toda essa violência recusa ainda falar. Já desmaiou de dor duas vezes e foi revivido com água gelada. Tia fase seguinte aplicam-lhe pauladas no corpo todo e o resultado é um braço quebrado em três lugares. Vejam...

Cícero Branco agarra o pulso do rapaz e num repelão faz que ele gire num movimento completo de hélice.

– Mas o interrogatório continua... Vem então a fase requintada. Enfiam-lhe um fio de cobre na uretra e outro no ânus e aplicam-lhe choques elétricos. O prisioneiro desmaia de dor. Metem-lhe a cabeça num balde dágua gelada e, uma hora depois, quando ele está de novo em condições de entender o que lhe dizem e de falar, os choques elétricos são repetidos...

Os urubus agora voam ainda mais baixo, em círculo, sobre o coreto, como se quisessem também escutar a narrativa do advogado dos defuntos.

– Bom, senhores, devemos reconhecer que ninguém é infalível. O especialista nestas torturas elétricas cometeu um erro, aplicou no prisioneiro uma descarga forte demais e o coração do moço parou. O médico é chamado às pressas. Daremos um prêmio, digamos... o olho bom de João Paz, a quem descobrir quem foi esse providencial esculápio. Já descobriram, não? Isso mesmo! O nosso bondoso, o nosso caritativo, o nosso altruistico Dr. Lázaro Bertiogal – E, dizendo isto, Cícero aponta para o médico de Tibério Vaca-riano.

O Dr. Lázaro deixa cair no chão a sombrinha e a bolsa, senta-se num banco, inclina o busto para a frente e esconde o rosto com ambas as mãos.

– Seja macho! – grita-lhe o Cel. Vacariano. – Defenda-se. Prove que tudo isso é uma calúnia!

O médico nada mais faz que sacudir a cabeça dum lado para outro, em silêncio. Cícero Branco prossegue:

– Nosso bom doutor tenta tudo. Respiração artificial. Injeção de adrenalina e massagens no coração da vítima. Inútil! João Paz está morto. Inocêncio Pigarço fica assustado. A solução para evitar um escândalo é enterrar secretamente o cadáver no pátio da delegacia (Não seria o primeiro!) e depois espalhar a mentira de que João Paz fugiu para a Argentina...’ O Maj. Vivaldino, posto ao corrente da situação, também entra em pânico. Sou chamado para uma consulta. Proponho outra saída. Por que não transportar urgentemente o corpo para o Hospital Sah) ator Mundi, às escondidas, e lá simular uma morte “natural”... ? Nesse momento quem se apavora é o nosso inefável Dr. Lázaro, que fala em honra profissional e perigo de desmoralização para o hospital, etc. Mas com uma frase o nosso prefeito o reduz à submissão completa: “Ou você faz isso ou eu me encarrego de divulgar todos os seus podres amanhã mesmo”. A encenação é feita. Vem até à delegacia uma ambulância do Salvator Mundi, o prisioneiro é devidamente vestido como estava quando entrou na prisão. Aos que o transportam na padiola e ao pessoal da portaria do hospital o Dr. Lázaro explica que o corpo daquele “indigente” foi encontrado por guardas caído numa sarjeta. Menos de duas horas depois o cadáver está dentro dum caixão fechado e o nosso Hipocrates assina um atestado de óbito dando como causa mortis uma embolia pulmonar.

Agora, sempre sentado no banco, o rosto coberto, o Dr. Lázaro soluça convulsivamente. Inocêncio Pigarço olha para o filho, que por sua vez o encara. E o delegado lê vergonha e rancor na face do rapaz. Mauro encaminha-se para uma das calçadas, cabisbaixo. Pedro-Paulo segue-o.

De todas as árvores irrompe agora a mais terrível das assuadas – uma gritaria de ódio, em que não se nota o menor elemento de gaiatice: “Bandidos! Bandidos! Gestapo! G.P.U.! Assassinos! Assassinost’

Tibério Vacariano, a cara cianosada, senta-se pesadamente, levando a mão ao peito. O Dr. Lázaro, alertado por Vivaldino Brazão, olha para o seu cliente e, alarmado, chama às pressas os seus enfermeiros, que colocam o velho coronel numa padiola e o carregam. E apesar de seu mal-estar e da dor no peito ele ainda tem forças para exclamar: “Não me levem pro hospital! Quero ir pra casa! Pra minha casa!”

Cícero levanta um braço, pedindo silêncio e, quando os rapazes se calam, ele declara simplesmente:

– Povo de Antares! Não temos mais nada a dizer.

Senta-se no banco fronteiro do coreto. João Paz volta também para o seu lugar. Os sete mortos estão agora imóveis, em silêncio.

A comitiva oficial, com o prefeito à frente, sempre debaixo do negro palio conduzido pelo seu fiel secretário, bate numa retirada quase desordenada, como um exército derrotado. Mais tarde, ao escrever o seu grande artigo sobre o “incidente” Lucas Faia pensou usar um simile – a retirada da grande armée de Napoleão na campanha da Rússia. Mas não ousou. Descreveu a descida dos mortos ao longo da Rua Voluntários da Pátria, os “efeitos morais daquele fato insólito no ânimo da população”, fez vagas referências a “insultos gratuitos proferidos naquele confronto no centro da praça pelo Dr. Cícero Branco e pelo sapateiro José Ruiz”. E o resto foi literatura. Terminada a longa narrativa, passou-lhe até pela cabeça a idéia de publicar esse trabalho num pequeno volume. Mas não publicou, por motivos que oportunamente serão revelados.

O povo começa a dispersar-se e a desaparecer. Os rapazes descem das árvores e também se vão. Em menos de dez minutos a praça está de novo deserta de humanidade vivente. Os prédios em derredor, agora de portas e janelas de novo cerradas, assumem outra vez uma expressão fisionômica tensa. Os urubus voam cada vez mais baixo sobre o coreto, e num círculo de diâmetro mais e mais reduzido. Uma das aves pousa no chão e faz uma volta completa ao redor da sombrinha amarela que ficou caída num canteiro de relva, como um cogumelo gigante quebrado.

No pálido céu o sol vai se inclinando aos poucos para as bandas da Argentina. Antares parece submersa num la-goão de ar estagnado e fétido. E os sete mortos apodrecem em silêncio no coreto.

 

Três horas da tarde. Na central telefônica, situada a quatro quarteirões da Praça da República, a única telefonista que permanece em seu posto é Shirley Terezinha – trinta e cinco anos, solteirona, católica praticante, fã de Frank Sinatra, de novelas de rádio, e leitora de Grande Hotel. Depois que “deu uma espiada” nos mortos do coreto, teve de tomar remédio para o estômago e um tranqüilizante. Quis ir para casa e para a cama, mas o gerente da telefônica a convocou inapelavelmente para o turno da tarde, pois as duas outras operadoras tinham dado parte de doente.

Durante as primeiras horas da tarde as linhas mantiveram-se um tanto inativas, como se a população da cidade, em estado de choque, tivesse perdido a voz. Começaram depois os chamados aflitos de pessoas que pediam médicos para atender a membros de suas famílias: crises de nervos ou cardíacas, distúrbios do aparelho digestivo... E eram tantos os chamados, que a telefonista, irritada, respondeu com aspereza a uma senhora que reclamava a lentidão com que estava sendo atendida: “Também não sou polvo. Só tenho dois braços”.

Às quatro horas e quinze minutos Shirley Terezinha surpreendeu um diálogo quase completo entre dois homens.

– Então escutaste tudo...

– Quase tudo. Estava meio longe do coreto por causa da fedentina.

– Quanta surpresa, hem?

– Não pra mim. Eu sabia de quase todas aquelas safadezas que o Barcelona denunciou.

E mesmo? Até a estória da puta e da estátua?

– Ora, meu pai me contava coisas do arco-da-velha do Com. Leoverildo. A seriedade do homem era pura fachada.

– Pô! Mas que escândalo, hem? Roupa suja lavada em plena praça pública. E tu sabes que o Natividade há pouco deu uma sova-mãe na mulher, dessas de quebrar os ossos, quando soube das cochambrerias dela com o estudante do Karmann Ghia grená?

– Deu tarde. Faz séculos que ela engana o marido. Não só com o Karmann Ghia grená, mas com o Ford azul, o Bel Air verde e branco. Topa todas as marcas. É capaz de ir até com um Ford de bigode, sim, se o carro funcionar...

----Escuta, é verdade mesmo que D. Soledade quando

chegou em casa atirou água fervendo na cara do marido, depois que soube das sacanagens dele com a mulher do ourives?

– Ouvi dizer. Sei já duns cinco ou seis casais que se separaram e dum conhecido Don Juan que fugiu da cidade. Aaah! E o Prof. Libindo, hem? Chamado de pediatra em plena Praça da República, na frente de centenas de pessoas!

– Pederasta. Pediatra é médico de criança.

– Com que cara agora ele vai aparecer em público?

– Com a mesma. O falecido Cícero falou nas máscaras, te lembras? Pois o Libindo tem mais de cem. Uma para cada ocasião, tudo dependendo do lugar, e da pessoa com quem está falando. É um desfrutávej!

– Mas depois de todas as barbaridades ditas hoje na praça, a vida de Antares não pode continuar a mesma.

– Qual, compadre, não se iluda! O tempo tem muita força. Deixe passar uns dias, umas semanas e tudo fica como dantes no quartel de Abrantes.

– Mas a denúncia contra o prefeito e o coronel... ? Shirley Terezinha ,não pôde escutar o resto da conversa

porque foi interrompida pela luzinha que brotou no painel da mesa. Uma voz aflita de mulher pedia ligação com a casa do Dr. Lázaro e exclamava que o marido estava morrendo de falta de ar.

 

Cerca das quatro e meia a telefonista escutou outro trecho de diálogo:

– Aqui é o Geminiano.

– Que tal? Tudo bem?

– Tudo mal. Notei que o povo está culpando o nosso sindicato por tudo que aconteceu. Falei ind’agorinha com o Pe. Pedro-Paulo e ele me disse que devíamos levantar o quanto antes o cerco do cemitério. A cidade não pode ficar com aqueles defuntos apodrecendo no meio da praça.

– Ué! A culpa não é nossa. Não controlamos os mortos. Nem os vivos!

– Imagina se esses cadáveres provocam uma peste e começa a morrer gente... Tu sabes que peste não olha a quem ataca. Burguês e proletário, rico e pobre, todos marcham. Por isso eu resolvi convocar uma nova assembléia geral. Hoje às nove da noite. Ficas prevenido e te peço que avises os companheiros que puderes.

– Está bem, mas que te pareceram as denúncias do Barcelona?

– Politicamente boas, mas no fundo nojentas. Não me agradou o cinismo do anarquista.

– Pois te confesso que me diverti vendo essa burguesia desmascarada em público. Onde estavas na hora do bate-boca?

– Escondido atrás dum tronco de paineira, com a cara tapada por um lenço, como um bandido de cinema. Se me reconhecem (pensei) me lincham. Quase todos acham que foi minha a idéia de barrar a entrada do cemitério.

E que me dizes do ordinário do Cícero, virando moralista depois de morto?

– Pois é. Podem me chamar de burguês, mas não gostei dos nomes feios que ele disse na frente das famílias. Não carecia. Bom, até à hora da sessãol

Pouco depois Shirley Terezinha escuta um chuveiro de insultos que um homem furioso atira através do fio nos ouvidos de outro, que se limita a rir.

– Seu canalha, cachorro, calhorda, porco, indecente! Vou agora partir a cara da minha mulher. Se tu és homem mesmo, vem correndo socorrer a tua amàsia. Mas vem armado que eu vou te esperar de revólver em punho e te meter uma bala no meio da testa, estás ouvindo, crápula?

Do outro extremo da linha vem primeiro uma risada e depois estas palavras:

– Olha, corno, proponho um duelo a arma branca. Eu vou de adaga e tu usas os chifres, tá?

Lágrimas de emoção escorrem dos olhos de Shirley Terezinha, que mastiga desconsolada um pedacinho de chocolate para “enganar o estômago”, pois não teve disposição para almoçar.

Às quatro e quarenta vem uma chamada de Porto Alegre. O secretário da redação do Correio do Povo quer falar com o prefeito. Shirley Terezinha faz a ligação.

– O major está em casa, indisposto, e não pode atender. Aqui fala o Mendes, secretário dele. Às suas ordens, cavalheiro.

O jornalista comunica ao secretário da prefeitura que seu diário mandou de automóvel a Antares, para fazer a cobertura dos “acontecimentos”, um repórter e um fotógrafo. Acrescenta:

– Acho que vão chegar aí amanhã, logo depois do meio-dia.

– Muito bem, cavalheiro. Transmita os agradecimentos do major ao diretor do seu jornal. E o senhor aceite os meus. Os jornalistas serão hóspedes da prefeitura.

Os chamados patéticos para a casa dos médicos repetem-se. O telefone do Dr. Falkenburg continua a tilintar, mas ninguém nà casa responde.

Pouco antes das cinco horas, já exausta, zonza, os braços doloridos, Shirley Terezinha escuta uma conversa que lhe gela o sangue.

– Noquinha? Aqui é a Zilda.

Que é que há, menina?

– Já ouviste a notícia? Os ratos invadiram a Cidade.

– Ratos?

– É. Milhares, milhões...

– Minha Nossa!

Ratos? Shirley Terezinha encolhe as pemas automaticamente e começa a tremer da cabeça aos pés. Luzes brotam no painel mas ela não lhes dá nenhuma atenção. Desfaz-se do fone de ouvido, apanha a sua bolsa e encaminha-se para a porta. O gerente, que de seu escritório lhe observa os movimentos através duma fresta da porta, brada: “Aonde vai, menina?”

Ela volta para o chefe um rosto desfigurado pelo medo e exclama:

– Os ratos!

E precipita-se para a rua.

 

Esse capítulo da vida de Antares estava destinado a tornar-se, entre outras coisas, uma fonte de controvérsias. A que horas havia começado a chamada “revolta dos ratos”? Nesse particular as opiniões divergiam. Qual tinha sido o detonador da “bomba”? A maioria opinava que o cheiro dos mortos havia assanhado os roedores. Mas. .. tratava-se duma revolta interna – perguntava-se, alguns em espírito de troça, outros a sério – ou duma invasão? “Ambas as coisas” – respondia o comandante da guarda municipal. A coisa parecia ter começado por volta das três e meia ou quatro da tarde quando os ratos da Babilônia e de outras favelas menores da periferia de Antares tinham começado a convergir para o centro da cidade. Ao mesmo tempo, como se misteriosamente tivessem recebido ordens irradiadas dum estado-maior, os ratos residentes, como uma quinta-coluna, haviam entrado em- ação. Os prédios de Antares, principalmente os “mais antigos, eram como cavalos de Tróia cujas entranhas estavam gordas desses “repelentes e solertes animais” – como lhes chamaria Lucas Faia na peça literária com que procurou descrever aquelas horas dramáticas vividas pela sua comunidade. Um professor público que vivia obcecado pelo “perigo amarelo” escreveu, mas nunca publicou, uma crônica sobre o episódio dos ratos, na qual comparou “esses daninhos animais” com guerrilheiros da Indochina que pareciam ter lido com proveito os manuais chineses e cubanos sobre a técnica da guerrilha urbana. E não haveria, acaso – perguntava o cronista – uma certa semelhança entre os ratos e os asiáticos na propensão que ambas essas raças tinham para se multiplicar e na sua incrível capacidade de sobreviver nas mais adversas circunstâncias sociais, ecológicas e biológicas?

Ratos de vários tamanhos, o pêlo dum negro fosco, desceram dos forros e sótãos das casas ou subiram de seus porões, emergiram dos buracos dos rodapés e das frestas dos soalhos, saltaram do fundo de velhas arcas, baús, caixas – e saíram a espalhar o terror por toda a parte, principalmente entre as mulheres e as crianças.

Ratazanas cinzentas saíam dos bueiros e esgotos, ficavam por um breve instante como que ofuscadas pela luz do sol e depois se lançavam a correr miudinho pelas sarjetas, rentes ao meio-fio das calçadas, rumo da praça, enquanto outras, vindas dos subúrbios, faziam o mesmo trajeto. Pareciam todos famintos. Alguns revelavam uma audácia e uma agressividade até então desconhecida dos antarenses que, assustados, os viam entrar nos guarda-comidas, fossar nas latas de lixo, subir nas camas, enfrentando, sem temor e às vezes sem recuar, gritos humanos, vassouradas e até o assalto dos cães e gatos mobilizados para combatê-los.

 

Dentro em pouco, boa parte da população de Antares se encontra a um passo da fronteira do pânico. Contam-se estórias que se espalham rapidamente por toda a cidade através duma fantástica rede verbal, e que vão sendo desfiguradas de pessoa para pessoa, e sempre num sentido alarmista.

Afirma-se que os ratos, já dentro do coreto, comem os pés dos mortos. Um morador de uma das casas da Praça da República jura pela luz que o alumia que viu por uma fresta de sua janela uma ratazana roendo o rosto de D. Qukéria Campolargo. Os urubus entram numa luta encarniçada com os ratos, atacando-os a bicadas, e diante dessa sangrenta disputa os sete mortos parecem manter-se impassíveis, na mais rigorosa neutralidade.

Numa das casas da Rua do Rio uma criança de colo que dormia, foi mordida na orelha por um rato que subiu no seu berço. No palacete dos Vacarianos – onde o velho Ti-bério jazia na cama, em decùbito dorsal, no torpor da se-dação – D. Lanja preparava na cozinha um mingau para o marido quando de repente “sentiu” que estava sendo observada por alguém ou “alguma coisa”. A boa senhora ergueu a cabeça e deu com um ratão cor de fumaça, imóvel em cima do refrigerador, fitando nela os seus olhinhos semelhantes a um par de botões de plástico, reluzentes, de malícia e maldade. A esposa do coronel soltou um “Ai Jesus!”, e deixou cair o prato, que se partiu, espalhando mingau sobre os mosaicos.

Em suas casas homens exasperados caçavam ratazanas a pauladas e até a tiros de revólver. Tranqüilino Almeida correu em sua sala de visitas atrás dum ratão pardacen-to, que o iludia andando ao redor dos móveis ou por baixo deles, e que parecia até divertir-se naquele jogo. Por fim, quando o animal subiu para o mármore duma mesa, o chefe dos guardas aduaneiros fez fogo, mas errou a pontaria, acertando em cheio num fino espelho de Veneza, que se trincou: prejuízo material e mau presságio. Contava-se também que havia já, por volta das seis da tarde, várias pessoas mordidas pelos diabólicos roedores.

Numa casa da Rua da Igreja uma menina de seis anos queixou-se duma ardência debaixo dum dos braços. A mãe examinou-a e descobriu numa das axilas da criaturinha o que lhe pareceu uma íngua. Mal pôde abafar um grito de horror. Um bubão! Um médico, chamado às pressas, verificou que o suposto bubão não passava duma afecção superficial de pele. Tratou de tranqüilizar a mãe aflita e os vizinhos, que já sabiam de tudo. Tarde demais! A notícia de que havia um surto de bubônica em Antares já se espalhara pela cidade. A peste! Mães desnudavam os filhos e examinavam-lhes os corpos com um cuidado frenético, em busca de ínguas, bubões ou outros sinais suspeitos. Como se sabia que os ratos eram apenas portadores das pulgas que, em suas mordidas, transmitiam às suas vítimas os bacilos da bubônica, outra guerra paralela à dos ratos começou com igual intensidade. Casas foram vaporizadas com inseticidas, fu-migadas, e os minúsculos insetos caçados individualmente. E qualquer mancha preta pequena provocava um susto seguido duma fúria assassina.

E o boato da peste – como haveria de escrever mais tarde Lucas Faia – “andava solto pela cidade como uma hiena faminta, correndo e rindo, assombrando ruas, becos, praças, casas, almas”. A peste! A peste! E ninguém conseguia conter o chacal.

 

Vivaldino Brazão às cinco e pouco da tarde deixara a cama, onde repousava das emoções e das canseiras do terrível confronto na praça, ao sol do meio-dia, e viera para o seu gabinete na prefeitura para “comandar a defesa da cidade”. Confabulara com o delegado de polícia, que por sua vez mobilizara os seus guardas, os quais saíram para a rua armados de revólveres e cassetetes com a ordem de matar todos os ratos que encontrassem.

Meninos entre sete e quatorze anos se haviam congregado espontaneamente em grupos armados de porretes, bo-doques ou pedras e saído a caçar ratos pelas ruas e quintais. O prefeito oferecia prêmios em dinheiro e livros com estórias em quadrinhos para os que matassem de cinco ratos para cima. (Era indispensável trazer as vítimas, como comprovantes.)

Um cios pró-homens de Antares entrou alarmado no gabinete do prefeito e disse:

– Precisamos tomar alguma providência urgente, major. As ratazanas estão devorando os defuntos no coreto.

– Talvez seja uma solução – rosnou, cínico, Inocên-cio Pigarço.

Vivaldino teve uma idéia: ordenou ao delegado que mandasse uns oito ou dez de seus homens protegidos por máscaras contra gases aproximarem-se do coreto para atirar contra ele bombas lacrimogêneas, a fim de afugentar tanto os ratos como os urubus. A idéia foi logo aceita. Dez homens com as cabeças metidas em máscaras, semelhando elementos dum bestiàrio surrealista, puseram em prática o plano do prefeito. As bombas explodiam, produzindo uma densa fumaça que se erguia no ar. Os ratos guinchavam, sufocados, alguns fugiam às tontas, outros caíam mortos, enquanto os urubus batiam asas, demandando as alturas.

A todas essas os defuntos continuavam sentados dentro do coreto, silenciosos e estáticos. Os guardas retiraram-se do campo de batalha, depois de contar o número de inimigos mortos. E por longo tempo ninguém pôde caminhar na Praça da República e arredores sem lacrimejar, tossir, sentir sufocações e tonturas e finalmente ser obrigado a fugir a passo acelerado ou mesmo a correr...

O sol completava a sua trajetória diária. Era agora um disco avermelhado – “olho manchado de sangue no horizonte argentino, a contemplar com sua morna indiferença a pobre cidade de Antares que ficara na outra margem do grande rio, esperando a noite com todos os seus pavores e avantesmas” – como haveria de escrever mais tarde o diretor de A Verdade.

E havia ainda cores de aquarela no céu quando outro rumor tão terrível quanto os anteriores estendeu seus tentáculos sobre a cidade. Ratos tinham caído e morrido afogados nos tanques da Hidráulica Municipal! A água potável da cidade estava portanto contaminada. Uma frase correu em Antares de boca em boca, de casa em casa, de rua em rua: “Tem rato podre na Hidráulica. Não bebam mais água das torneiras”.

O médico do departamento local de higiene telefonou da Hidráulica para o prefeito garantindo-lhe que nenhum rato fora encontrado nos tanques e que a água havia sido recentemente examinada e declarada quimicamente pura. O Maj. Vivaldino usou de todos os meios ao seu alcance para desfazer o boato, mas foi tudo em vão. O chacal de Lucas Faia continuava a correr e a gargalhar pelas ruas, casas e almas, engordando e crescendo com o passar do tempo, como se se alimentasse de segundos, minutos e horas...

 

Egon Sturm, o ex-campeão de tiro ao alvo (cinco taças de prata, quinze medalhas de bronze, três de ouro e duas entradas no Sanatório S. José, de Porto Alegre) foi protagonista de um dos episódios mais dramáticos do “dia dos ratos”.

Desde que viu os primeiros “inimigos”, o cerealista ses-sentão começou a caçá-los, em tiros certeiros, com uma espingarda de salão. Depois, armado de revólver, os bolsos grávidos de balas, saiu a matar os ratos, ratazanas e camun-dongos de seu quintal e mais tarde os que encontrava nas casas e nos quintais dos vizinhos. Dois de seus filhos o seguiam, por ordem expressa sua, com um carrinho de mão, no qual iam depositando os ratos abatidos pelo atirador. Pouco antes de a noite cair por completo, os dois rapazes – ainda obedecendo a ordens paternas – despejaram a repugnante carga no centro do quintal da confortável casa dos Sturm. Egon meteu-se no quarto de dormir, onde permaneceu uma boa meia hora e depois de lá saiu – para susto da mulher e dos filhos – envergando o uniforme dos camisas pardas de Hitler que ele escondia no fundo duma secreta arca: culotes caqui com perneiras pretas, camisa do mesmo tecido, talabarte de couro em diagonal sobre o peito e as costas, e, no braço, uma banda vermelha com um circulo branco, no centro do qual se via, em preto, uma cruz suástica. (Nos “bons tempos” – entre 1937 e 1940 – Egon tinha organizado e chefiado em Antares um grupo de camisas pardas nazistas, que agia de acordo com os camisas verdes indígenas.)

Egon Sturm desceu as escadas em passo marcial, um duro desvario nos olhos cinzentos, e dirigiu-se para o quintal. Parou diante da pirâmide de ratos mortos e ordenou aos filhos que a ensopassem de gasolina. Os rapazes obedeceram. Egon Sturm, com um garbo militar, deu três passos de ganso à frente, riscou um fósforo e prendeu fogo no monturo. As labaredas iluminaram o pátio. (Vizinhos perplexos espiavam a cena de suas janelas ou por cima de cercas e muros.) O velho Sturm ergueu o braço na saudação fascista e bradou: “Heil Hitlerl” E, imitando a voz do Führer, rompeu num discurso furioso em alemão. Em certo trecho da oração apontou para a fogueira e disse: “Hoje queimamos ratos! Amanhã queimaremos livros e jornais de judeus e comunistas! Depois d’amanha queimaremos os autores dos livros, e assim por diante, até ao Natal! Sieg heill”

Emanava-se da fogueira um cheiro nauseante. Os vizinhos curiosos desapareceram. Frau Sturm chorava, tapando o nariz com o avental. Os rapazes entreolhavam-se sem saberem que fazer.

O velho, numa brusca meia volta militar, entrou em casa, apanhou a sua melhor carabina e saiu para a rua gritando: “Morte aos judeus!” Aos que encontrava na calçada explicava que eram os judeus – com sua cabala, as suas artes mágicas e seu amor ao dinheiro e ao poder – os responsáveis pela volta dos sete mortos, pela invasão dos ratos e por todos os males que afligiam Antares e o mundo. E quando começou a aliciar e incitar conterrâneos para irem com ele até à Rua do Pessegueiro, espécie de gueto local, a fim de levar a cabo um pogrom – seus filhos não tiveram outro remédio senão chamar a polícia.

E por cima da camisa parda de Egon Sturm três guardas municipais vestiram-lhe uma camisa-de-força.

A essa hora já a noite havia caído por completo. Como a lua ainda não tivesse aparecido, as ruas estavam às escuras. Em quase todos os oratórios da cidade havia velas acesas.

 

A Matriz está ainda cheia de fiéis que rezam, não de joelhos, mas sentados, com os pés erguidos, por causa dos ratos que passam por baixo dos bancos e, como emissários de Satanás, escalam irreverentes o altar-mor, entram nos nichos dos santos, roem a cera das velas votivas.

O Pe. Pedro-Paulo, que ouviu as confissões de dezenas de homens e mulheres desde as cinco da tarde, encaminha-se agora para a sacristia, onde o pároco o espera.

– Muito obrigado, meu filho – diz o velho, pousando a mão no ombro de seu jovem colega. – Deves estar fati-gado.

– Nem tanto...

– Pois eu estou mais morto que vivo. Uma canseira de alma, mais que de corpo. Depois de ouvir todas essas confissões, essas misérias da carne humana, a genf.e compreende por que Deus destruiu Sodoma e Gomorra.

Pedro-Paulo sorri interiormente da ingênua mitologia do vigário.

– Mas por que, padre, o senhor ficou todo aquele tempo na praça, hoje ao meio-dia, debaixo da soalheira?

– Não sei. Tinha a impressão de que cordas invisíveis me amarravam ao tronco daquela árvore... Queria me movimentar mas as pernas não obedeciam à minha vontade. Fiquei tão escandalizado com o que ouvi aqueles mortos dizerem, que cheguei a pedir a Deus que me matasse ali mesmo, como um ato de misericórdia... E tu, onde estavas?

– Sentado nas bordas de um dos tanques, com o Mauro Pigarço.

– Ah! As coisas cruéis que disseram do pai dele! Deve ter sido muito duro para o rapaz.

– Ora, o Mauro já sabia de tudo...

– Não me diga!

– Padre, nenhum de nós ignora os crimes do delegado de polícia e de seus especialistas em torturas. Fechamos sempre os olhos e a boca por comodismo, indiferença ou covardia.

Por alguns segundos o padre permanece em silêncio, de dedos trançados sobre o peito, a cabeça baixa.

– Como é difícil viver... – balbucia.

– O Mauro embarcou de volta para Porto Alegre hoje no ônibus das quatro. Não se despediu do pai. E, que esta manhã tiveram em casa uma altercação violentíssima. O Mauro temeu até que o pai o agredisse fisicamente. Não podem mais viver debaixo do mesmo teto.

– Tudo por causa de política, naturalmente...

– Sim, Inocêncio detesta as idéias do filho.

– Ouvi dizer que o rapaz é comunista. É verdade?

– Comunista é o pseudônimo que os conservadores, os conformistas e os saudosistas do fascismo inventaram para designar simplisticamente todo o sujeito que clama e luta por justiça social. Por outro lado não ignoramos que na Rússia Soviética não existe nenhuma liberdade de crítica ou de expressão e que um «scritor pode ser condenado a três ou cinco anos ae trabalhos forçados na Sibéria por ter escrito poemas, artigos ou romances que contrariam ou simplesmente não seguem a linha política do partido único.

– É um mundo triste. Rezo todos os dias pela alma do Inocêncio Pigarço. E, se não me levares a mal, eu te lembraria que não é fácil julgar uma criatura humana.. • Estudando o passado dum homem a gente talvez encontre explicações para o seu comportamento no presente.

“É curioso” – pensa Pedro-Paulo. – ‘ Que terá acontecido ao Pe. Gerôncio que ele já não acredita mais tão fanaticamente no livre-arbítrio?”

– Que sabes sobre a infância desse homem?

– Nada.

– Pois bem, vou te contar algo muito importante. Não estou quebrando o sigilo do confessionário porque o Inocêncio jamais se confessou comigo. Fui testemunha ocular e auricular da cena que vou narrar e que peço não contes a ninguém. Por que não te sentas? Eu vou descansar estes ossos.

O pároco de Antares acomoda-se numa cadeira de respaldo alto. Pedro-Paulo senta-se num mocho. O velho continua a falar:

– Eu tinha uns trinta anos quando vim para esta paróquia Inocêncio devia ser um menino dos seus dez anos... O pai dele era contrabandista... sabias?

– Vagamente.

– Chamava-se Venâncio, costumava passar meses ausente, dizem que fazia contrabando na nossa fronteira seca com o Uruguai. Era um sujeito simpático, comunicativo, grande presenteador, um belo tipo de gauchão. Pois na última visita que Venâncio fez a Antares um amigo seu lhe contou que o Melquíades Zabaleta, outro contrabandista, sujeito de maus bofes, andava dizendo pela cidade que ia bater de rebenque na cara do Venâncio, onde e quando o encontrasse. Alegava que o pai do Inocêncio o havia logrado na partilha dum contrabando que os -dois tinham passado juntos.

Ö pároco cala-se, meio ofegante, e por alguns instantes fica a olhar para um rato que está agora parado num ângulo do rodapé da sacristia.

– Foi numa fria manhã de inverno (devia ser julho ou agosto), eu estava à porta desta mesma igreja quando avistei o Venâncio que vinha caminhando pela calçada da praça, trazendo o Inocêncio pela mão. Quando vi que o Zabaleta estava na esquina da praça, conversando com dois amigos, e de costas para o Venâncio, fiquei gelado, imaginando o que podia acontecer, e naturalmente pensei logo no menino. Tudo se passou dum modo que eu hoje não saberia descrever com precisão. Duma coisa me lembro claro: antes que o Zabaleta tivesse tempo de se voltar, Venâncio tirou o revólver da cintura, e, duns dez metros de distância, meteu-lhe três balaços nas costas. O Zabaleta caiu de borco na sarjeta, sangrando pela boca. O Venâncio saiu numa disparada, deixando o filho sozinho na calçada. Ouviam-se gritos: “Pega o assassino! Pega o assassino!” Atravessei a rua para tomar conta do pobre menino. Jamais poderei esquecer a expressão do rosto do Inpcêncio. Era uma mistura de susto... surpresa... talvez revolta, não sei... Olhava com olhos arregalados para aquele corpo caído numa poça de sangue. E tremia, tremia, o coitadinho. Estava em estado de choque, não conseguia chorar nem falar. Ergui-o nos meus braços e levei-o para casa. Chamamos um doutor. Durante dois dias o menino não conseguiu pronunciar uma palavra. Só olhava para a gente com uns olhos grandes, ora tristes ora apavorados. Parecia não reconhecer ninguém, nem a mãe...

– Conseguiram prender o assassino?

– Não. Nunca. Ele deve ter cruzado o rio na lancha dum companheiro. Dizem que se homiziou na Argentina ou no Paraguai. A verdade é que nunca mais ninguém teve notícias dele.

– Não escrevia à mulher? Não lhe mandava dinheiro? O padre sacode negativamente a cabeça.

– Não, nunca. A Sra. Pigarço é uma pessoa de grande valor. Costurava para fora, trabalhava noite e dia. Sem o auxílio de ninguém custeou os estudos secundários do filho. Primeiro Inocêncio queria ser advogado, creio que chegou a fazer dois anos de Direito, quando já estava empregado. Depois resolveu entrar para a polícia técnica. O Cel. Tibério ajudou-o, protegeu-o...

E depois usou-o.

O vigário finge não ter ouvido esta observação. Passa o lenço pelo rosto, longamente.

– Quando foi feito delegado, quis naturalmente servir na cidade onde era conhecido como o “filho do contrabandista bandido”. E estou certo de que procurou apaixonadamente ser o contrário do pai, ficando do lado da Lei.

– Padre – diz Pedro-Paulo – o senhor de certo modo acha então que Venâncio e não Inocêncio Pigarço é responsável pela tortura e o assassinio de João Paz e de tantos outros infelizes que caíram nas garras da polícia local?

– Não é bem isso, meu filho, e tu sabes. Mas é importante a gente conhecer esse fato da vida do Inocêncio para melhor julgá-lo.

– Mas não se trata apenas de julgamento. Imagine esta situação. Um sujeito aponta um revólver para meu peito e diz que vai me matar e eu, em vez de me defender, replico: Atira, atira porque eu sei que tens um trauma de infância. Mata-me e continua a matar outros, porque tens boas razões para isso, e todos nós te compreendemos, pobre menino!

Gerôncio sacode a cabeça desalentadamente.

– Não me compreendeste...

– Talvez não. Mas deduzo que o senhor conclui que Inocêncio ficou tão horrorizado com o crime e com os criminosos, por causa do ato do pai, de que foi testemunha, que decidiu provar que ele, o filho do bandido, era um homem de bem, do lado da Lei e do Direito. Mas veja bem, padre. No fim ele se tornou também um criminoso no seu zelo de defender a Ordem e a Justiça. Nos seus famigerados interrogatórios, na ânsia de obrigar os supostos criminosos a falar, ele usa de técnicas desumanas, criminosas. Tudo é uma questão de semântica. A tortura deixou de ser um crime para ser uma técnica que se aprende e se aplica impessoalmente.

– Tu achas que é isso que se passa com o nosso delegado?

– É apenas uma hipótese. Inocêncio Pigarço é, antes de tudo, um policial de carreira, um profissional. Como guardião da Sociedade, deve achar que os fins justificam os meios. Todos os meios, portanto, são bons se o fim é defender o “poder constituído”. Mas olhe o-problema dum outro ângulo. Por alguma razão misteriosa ele pode ter também uma certa necessidade íntima de torturar, uma secreta veia de sadismo que a profissão não só revelou como também estimulou e “justificou”. Venâncio matou porque estava assustado. Inocêncio tortura e eventualmente assassina (mesmo que não dê aos seus torturadores ordens explícitas para matar) porque isso o gratifica. Na minha opinião é mais criminoso que o pai.

– Só Deus sabe, meu filho!

– Padre, enquanto Deus não nos disser claramente o que Ele pensa de tudo isso, nós devíamos em nome de Cristo, que era e é deste mundo, combater tipos como Inocêncio

Pigarço, que matam em nome da Justiça, do Capitalismo, do Comunismo, do Fascismo, da Família, da Pátria e (não rial) até mesmo de Deus.

Gerôncio baixa a cabeça, encostando o queixo pontudo no magro peito.

– Meu filho – murmura ele – como é difícil viver! Cada vez mais. Às vezes cometo o pecado de ficar alegre por estarem contados os meus dias na terra.

– Padre, espero não estar pecando quando sinto a alegria de estar vivo. Gosto da vida. É um desafio permanente. Se ela é absurda, sem sentido, então procuremos dar-lhe um sentido. Eu acho que a senha é Amor,

Pedro-Paulo levanta-se, aperta a mão do pároco e deixa a igreja pela porta dos fundos, para fugir à praça. Avista no horizonte uma lua amarelada e não pode evitar que a imagem de Valentina lhe apareça na mente. Sente, então, um grande desejo de vê-la e de ouvir a sua voz.

 

Sete e meia. O Maj. Vivaldino e sua mulher estão em casa, sentados à mesa do jantar, olhando em .silêncio para os pratos fumegantes, sem coragem sequer para tocá-los.

– Ó Solange – diz o prefeito – manda embora o quanto antes a travessa de carne! Me dá nojo.

A uma ordem da patroa, a copeira leva os bifes de volta para a cozinha.

– Mas come alguma coisa, velhinho – diz ela – nem que seja um pouquinho de arroz. Estás só com o café da manhã.

Ele afasta de si o prato vazio.

– Como posso ter apetite, mulher, quando penso nesses defuntos apodrecendo aí na praça... e nesses ratos. . • e em todas essas outras misérias.

Mais acentuadas estão as suas olheiras, mais empapu-çados que de costume os seus olhos; e a sua barba de um dia é uma sombra azulada no rosto marcado pela fadiga. Sacudindo a cabeça dum lado para outro ele diz:

– Quanta desgraça juntai E eu sempre na esperança de despertar de repente e ver que tudo não passava dum sonho ruim...

– Não há pesadelo que dure tanto.

O silêncio de novo os envolve no seu frágil celofane. Com a lâmina duma faca, Vivaldino risca vincos paralelos na toalha da mesa.

– Não estraga a toalha, meu bem – repreende-o ela docemente. – É de linho.

Ele se põe de pé de repente, a cara contraída pela ira.

– Que bosta t – exclama. – Uma desgraça sem nome cai sobre a cidade inteira e tu aí preocupada com a toalha da mesal

Começa a andar dum lado para outro, com as mãos trançadas sobre as nádegas. Solange, de cabeça baixa, deixa passar um intervalo decente ao cabo do qual, para desconversar, pergunta, num tom pacificador:

E o Cel. Tibério... foi mesmo enfarto?

– Sei lá! – responde o marido, dando de^ombros. Mas em seguida, abrandando a voz, esclarece: – Diz o Dr. Lázaro que foi só uma... uma... (como é mesmo?) is-quemia. Mas o velho teve também um princípio de insola-ção. Parece que vai guapeando. Acho que ainda não é dessa vez que ele “embarca”.

A dona da casa manda tirar todos os pratos da mesa. Vivaldino pede um café preto “pra fazer boca pra cigarro” Vem o café e ele o bebe sem açúcar, em silêncio.

– Os jornalistas chegam amanhã, não? – arrisca D. Solange, com tímidas intenções na voz.

Ele sacode a cabeça afirmativamente.

– Já estou arrependido de ter avisado a imprensa. Depois de tudo que se disse hoje na praça...

D. Solange suspira, fica um instante imóvel e atenta, pois lhe parece ouvir um ruído suspeito-, talvez um rato roendo alguma coisa.

– Vivaldino, se eu te perguntar uma coisa... tu ficas brabo comigo?

– Diz logo. ..

Ela hesita ainda por um momento, mas por fim fala, sem olhar para o marido:

– Todas aquelas acusações que o... o falecido Dr. Cícero te fez são mentirosas, não são?

Ele estaca e fita, duro, o rosto da esposa:

– Vocês mulheres são muito engraçadas! Donde pensas que me veio o dinheiro para construir esta casa e ter dois carros na garagem? Do teu grande dote? Donde vem a piata para os teus casacos de pele. as tuas jóias, as... as nossas viagens a Buenos Aires e ao Rio? Dos meus magros vencimentos de prefeito? Ora não te faças de inocente. Se não sabias é porque não querias saber. Nunca perguntaste nada. Só pedias as coisas que querias...

– Fala baixo, Valdino. A criada pode estar ouvindo. Solange continua de olhos baixos.

– Pronto. Agora já sabes! – diz ele, retomando o seu vaivém nervoso, de ponta a ponta da sala.

E agora que é que vai acontecer? – pergunta ela. – Milhares de pessoas ouviram a denúncia. Todos vão acreditar, porque morto não mente.

– Antes de mais nada, minha filha, morto não fala. Qual é o tribunal do mundo que vai aceitar o testemunho dum defunto?

– Mas o povo ficou sabendo.

– Que é o povo? Um monstro com muitas cabeças mas sem miolos. E esse “bicho” tem memória curta.

– Estou pensando nos nossos amigos e conhecidos. Com que cara vamos sair à rua depois de tudo isso?

– Eu vou sair com a que Deus me deu. E tu, se qui-seres, podes usar uma daquelas fantasias de que falou o patife do Cícero. Vou te fazer uma sugestão-, põe máscara de esposa mártir que finge não saber das safadezas do marido. É um dos disfarces mais populares neste país.

– Falas como se eu fosse tua inimiga.

– Olha, Solange, hoje em dia nunca se sabe onde estão os amigos e os inimigos. E às vezes o inimigo está escondido dentro da nossa própria fortaleza, como no caso desses malditos ratos que estão nos infernizando a vida.

Neste ponto lágrimas começam a escorrer pelas faces da primeira dama de Antares.

– Tu és cruel, Valdino. Não mereço esse tratamento. Ele se aproxima da esposa, descansa ambas as mãos

nos ombros dela e diz com voz quase suave:

– Me perdoa. Estou nervoso. Também, depois dum dia como o de hoje... E o maldito calori E esses defuntos no coreto...

Para exprimir mudamente o seu perdão, Solange acaricia as mãos do marido com as pontas dos dedos.

E os jornais? – pergunta ainda.

– Que jornais? O Lucas não é louco de escrever sobre o que se passou hoje ao meio-dia, na praça.

E os jornalistas de Porto Alegre que chegam amanhã?

– Antes que eles botem o pé em Antares, vou mandar esses sete defuntos para o cemitério, seja como for, custe o que custar. Não vai ficar nenhuma prova de que eles de fato saíram dos seus caixões. Tudo foi uma ilusão. Tu achas que os repórteres do Correio do Povo e dos outros jor* nais vão acreditar no que o homem da rua contar? Mando o presidente da Associação Comercial declarar que toda essa coisa foi um truque para promover Antares... Telefono ao governador e aos diretores dos jornais e das estações de TV de Porto Alegre, peço desculpas pelo “trote”, pago todas as despesas, ofereço um churrasco aos repórteres e fotógrafos que vierem e te garanto que eles voltam para casa satisfeitos e meus amigos.

E depois?

– A vaca Vitória entra por uma porta e sai por outra e se acaba a estória.

– Tomara que seja assim...

– Assim será. Ou eu não me chamo Vivaldino Brazão. Boa noite, meu bem. Me desculpa pelo tratamento de choque que te apliquei. Dói mas cura.

– Acho que agora dévias ir pra cama. Precisas descansar.

– Não. Vou primeiro dar uma olhada nas minhas orquídeas, que não ouviram as barbaridades que se disseram na praça contra mim. Elas ainda me respeitam. E, acima de tudo, minhas catléias não fazem perguntas.

Solange Brazão sorri tristemente.

 

A lua sobe, e é a única lâmpada que ilumina Antares. As pessoas que ousam espiar a praça através de suas janelas podem divisar os sete mortos imóveis dentro do coreto, ao redor do qual urubus esvoaçam.

Com cinco dessas aves pousadas ao longo da sua pla-tibanda, o palacete dos Vacarianos parece parodiar o Palácio do Catete.

Dentro da mansão paira a fragrância e um nevoeiro de benjoim queimado. O Dr. Lázaro conversa a um canto da sala de visitas com dois colegas. Discutem a situação do doente, que – consideradas as circunstâncias – lhes parece bastante satisfatória.

Vacarianos de várias gerações – filhos, filhas, genros, noras, netos, sobrinhos do velho Tibério – andam dum lado para outro, nas pontas dos pés, falando baixinho. Alguém pergunta por que não mandaram chamar Xisto, mas seu pai explica: “Não achamos necessário. O Xistinho tem de fazer mais uns exames em Porto Alegre. Se a situação piorar, que Deus tal não permita, poderemos telegrafar e dizer ao rapaz que frete um táxi aéreo e venha imediatamente”.

Num outro compartimento do casarão, diante dum velho oratório tosco que pertenceu à sua bisavó, D. Lanja ajoelhada pede a Deus que não permita o marido seja chamado ao Seu divino seio. E enquanto reza, ela continua atenta aos ratos, e teme que eles venham morder-lhe os pés ou entrar-lhe por baixo da saia e subir-lhe pelas pernas. As chamas das velas bruxuleiam e o cheiro de cera derretida lembra à matriarca dos Vacarianos a noite do velório de sua amiga Quitéria. E então ela reza um Padre-Nosso em intenção à aima de sua velha amiga, cujo corpo está agora (e este pensamento lhe causa um gélido arrepio) dentro do coreto da praça, na pior das companhias, coitadinha da Quita! Pensa nas filhas e genros ingratos que fugiram para a estância e nem sequer vieram ajudar a velha neste transe difícil.

No seu quarto, deitado de costas, dentro duma tenda de oxigênio, Tibério Vacariano, num sono induzido por sedativos, anda perdido a cavalo por uma campina imensa, caçando bandoleiros, comunistas, que são ao mesmd tempo ratos, que se escondem em buracos, cubanos barbudos pendurados em árvores, lagartos, lagartixas, cobras, enormes cobras flácidas nas quais ele atira aflito e erra, porque o cano de seu revólver se verga, como chocolate derretido pelo calor, e cada vez que puxa no gatilho, em vez dum estampido, ele ouve apenas uma ventosidade musical, e todos se riem dele, e agora ele está à frente duma grande coluna militar, lenço vermelho no pescoço, caçando chimangos, e de súbito se volta e vê a solidão das coxilhas, os seus soldados desapareceram, covardes!, mas ele decide ir adiante, haja o que houver, porque sabe que agora é o bravo Blau Nunes, anda em busca da Salamanca do Jarau e traz a rainha do Egito na garupa, vão se aproximando do Nilo (este mapa está errado, carajol aqui devia estar o Uruguai ou o Ibicuí) mas o sol foi embora, uma lamparina ilumina o mundo, e ele tem deitada a seu lado Cleo, que lhe diz que agora o melhor é descansar, vovô, afinal de contas chega o dia dum homem parar, mas então vocês querem me fazer de velho? velho é o avô torto, eu ainda sou macho, vamos brincar de Salamanca, meu bem, está vendo aqueles cerros lá longe?... um par de seios, Blau Nunes sobe num, depois noutro e desce a encosta... e agora está caminhando a perito numa várzea e então avista um capão e entra e ali está a boca da caverna... por que esse susto, menina? e, diacho!, me enganei, estou num cemitério, é uma cova cheia de defuntos, um perau sem fundo...

Na sala de visitas, o Dr. Lázaro segura o braço da esposa do doente e lhe diz:

– Preciso sair por uma hora ou duas. Meus dois assistentes vão ficar aí de plantão. Não se impressione, D. Lanja. Se Deus quiser havemos de tirar o velho dessa, como já o tiramos de outras. Ali pelas onze horas eu volto...

– Obrigado, doutor. Deus o acompanhei

 

Quinze minutos mais tarde, o Dr. Lázaro bate à porta dos aposentos do Pe. Pedro-Paulo, na Vila Operária.

– Que surpresa, doutor! – exclama o sacerdote, apertando a mão do visitante. “– Entre e sente-se. Aquela cadeira ali é a melhor que tenho...

– Obrigado – murmura o médico, sentando-se, mas dum modo um pouco rígido, que denuncia o seu mal-estar.

O quarto é quadrado e pequeno, alumiado pela luz de um lampião de querosene: uma cama de ferro, uma mesi-nha-de-cabeceira, um guarda-roupa, uma prateleira com livros, uma escrivaninha, três cadeiras. Nem tapetes nem cortinas.

– O senhor deve estar perguntando a si mesmo a razão desta minha visita inesperada. Pois vamos logo ao assunto que me traz aqui... Eu vim me confessar.

– Seu confessor não é o Pe. Gerôncio?

– Olhe, vou lhe ser franco. O nosso vigário é um santo homem mas está velho demais, cochila durante a confissão e (coitadinho I) acho que ele não pode compreender os meus problemas... Prefiro confessar-me com o senhor, apesar de eu ter idade para ser seu pai... Ah! Quero lhe dizer que não acredito que o senhor seja comunista como andam espalhando por aí...

Pedro-Paulo sorri em silêncio.

– Posso fumar, padre? Obrigado. Sei que o senhor não fuma. – O Dr. Lázaro acende um cigarro com dedos trêmulos e as baforadas curtas e repetidas que solta dão uma idéia do estado de seus nervos.

– O senhor quer mesmo ouvir a minha confissão?

– Claro, por que não?

– Aqui mesmo?

– Não vejo melhor lugar.

O médico hesita, olha para o lampião com olhos eu-trecerrados.

– Se o senhor diminuisse um pouco a intensidade dessa luz, a coisa ficaria mais fácil para mim...

– Não há problema.

O padre apaga por completo a luz do lampião. Fica no quarto apenas o leite azulado do luar.

– Devo me ajoelhar?

– Não acho necessário.

– A Igreja moderna... – diz o médico, soltando uma risadinha seca e falsa.

– Fique como se sentir melhor: ajoelhado, deitado ou de pé... Para mim não faz diferença...

– Então fico sentado... – Pedro-Paulo não pode agora distinguir as feições do visitante da noite. – O senhor não me conhece direito, suponho...

– Para falar a verdade, não conheço direito nem a mim mesmo.

– Quem foi que disse Nosce te ipsum? Sócrates? Diogenes? Um desses filósofos antigos. Mas não vem ao caso. Padre, eu sempre achei o senhor um moço inteligente e culto. Diferente dos outros padres que tenho conhecido. Sem ranço de sacrisüa. Moderno, mas no bom sentido da palavra.

Pedro-Paulo sorri, compreendendo: “Ele está querendo me comprar. Será que, como quase todo o mundo, estou à venda, tenho um preço?” – Obrigado – sussurra, quase automaticamente. E pensa em seguida: “Como tudo isto é insensato!”.

– Não sei por onde principiar... – diz o médico.

– Nunca se sabe onde está o princípio.

– O senhor estava na praça hoje ao meio-dia? Ouviu tudo quanto lá foi dito... dum lado e de outro, não?

– Sim, ouvi tudo.

– Pois é. Fui cruelmente atacado.

Num repente o Dr. Lázaro levanta-se, e caminha até à janela, como em busca de ar.

– Injustamente? – pergunta o padre, para ajudá-lo. O outro torna a sentar-se:

– Sim e não. (Tenha paciência comigo, padre. Não me vai ser fácil contar tudo...) Sim e não, repito. Um fato é uma aparência, digamos... uma flor, ou uma fruta... sã ou podre. A verdade é a raiz. Está invisível mas é a mãe da flor e da fruta. Desculpe a filosofia barata. Mas o senhor deve compreender que é duro pra mim... confessar-me, quero dizer, a sério, indo à raiz dos meus sentimentos, do meu passado, da minha personalidade, do... da...

lïrou do bolso um lenço e enxugou o rosto molhado de suor.

– Tire o casaco, doutor. Está um calor horrível. O médico aceita a sugestão.

– Dentro de poucos minutos vou estar aqui diante do senhor completamente nu... espiritualmente... Decerto foi por isso que lhe pedi para diminuir a luz. Ridículo, não?

– Não acho. Continue.

– Padre, sou um homem bom no fundo... mas fraco, muito fraco. Um covarde I Vamos falar claro, fugir das meias palavras. Um desfibrado, isso é que eu sou: um homem de espinha flexível. Mas acontece que há anos estou nas mãos de dois homens sem escrúpulos que me fizeram... que me fazem até hoje cometer atos de que me envergonho. O senhor sabe a quem me refiro...

– Ao Cel. Vacariano e ao Maj. Vivaldino.

– Isso! Eles sabem segredos negros do meu passado. Cometi muitos erros. Formei-me relativamente jovem, casei-me com uma moça pobre, foi uma luta terrível pelo pão de cada dia. Não houve o que eu não fizesse para conseguir dinheiro e para não morrer de fome. Um dia tive o meu diploma quase cassado. O Cel. Vacariano veio em meu socorro, me salvou. Daí por diante fiquei uma espécie de... de escravo dele e do prefeito. Mas juro por Deus, que está me ouvindo, juro que não sou um homem mau. Fraco, isso sim. Covarde, repito. Mas de bom coração e bem-intencionado. O senhor compreende, dizem que quando a gente comete um crime, tem de cometer fatalmente outro para esconder o primeiro, e um terceiro paia encobrir os dois que ficaram para trás, e assim por diante. (Estou falando no sentido figurado, naturalmente.)

– A que “crimes” se refere especificamente?

O médico torna a sentar-se, atira o toco de cigarro pela janela, e acende imediatamente outro.

Ora... coisas, algumas sérias, outras menos. Como é que vou me explicar?

– Abortos?

– Sim. Mas o senhor sabe... hoje se fala até na possibilidade de legalizar o aborto, embora a nossa Igreja não esteja de acordo com essa prática. Mas um dia pratiquei um aborto desastroso, e todos ficaram sabendo dele na cida-dezinha onde eu clinicava.

– A paciente morreu?

– Quase. Uma hemorragia. Se eu fosse um homem realmente mau, teria fugido, deixando a criatura se esvair em sangue. Mas não. Corri em busca de socorro. Foi o escândalo, as denúncias, a minha desgraça.

– Fez esse aborto porque precisava do dinheiro, não é verdade?

– Exatamente. Nesse tempo eu já tinha dois filhos pequenos, dividas, promissórias protestadas... um inferno! Sei que cometi um delito. Como médico e como católico. Fale franco, padre, tenho perdão?

– Não me diga que veio buscar perdão... da minha boca depois de todos esses trinta anos...

– Mas o senhor é um ministro de Deus na terra.

– Com poderes limitados – sorri o padre. – Mas prossiga, por fa ror.

– O senhor vai acreditar em mim. No intimo sou um homem decente. Só fraco. Muitas vezes não olhava os meios para conseguir dinheiro... Raciocinava assim: no futuro vou ter tempo para pagar minhas dívidas a Deus e aos homens. Sabe como? Fazendo boas ações. Sendo um médico dos pobres. Minhas faltas, meus pecados eram uma espécie de “empréstimo” que eu fazia com o Criador para um dia pagar toda a dívida e mais os juros. O meu sonho era construir um hospital... como esse que hoje tenho. Quando mocinho, gostava de ler histórias sobre a vida dos santos. Verifiquei que muitos deles tinham defeitos, cometiam pecados. Cheguei à conclusão de que Deus tem um livro com duas colunas, débito e crédito. Os pecados das pessoas lhes são debitados e as boas ações creditadas. Quando o saldo credor é favorável à pessoa, isso pode ser a santidade. Eu dizia a mim mesmo que tinha pela frente toda uma vida para fazer lançamentos de crédito na minha conta corrente com Deus.

– Acho que o senhor está vendo o problema em termos de escrituração mercantil...

– Eu sei. E uma imagem. Deixe-me dizer mais. Eu queria também a fama. E queria ser admirado e amado, principalmente amado. O meu modelo na vida sempre foi São Francisco de Paula. – Cala-se, passa uma mão perdida pelos cabelos, e depois diz: – Estou divagando... ainda não cheguei ao cerne da questão.

– Me diga uma coisa, Dr. Lázaro, é verdade que ao assinar o atestado de óbito de João Paz o senhor sabia que ele tinha morrido não de embolia pulmonar mas em conseqüência das torturas a que foi submetido pelo Inocêncio Pi-garço e os seus carrascos?

De novo o médico põe-se de pé, repentinamente, como impelido por uma mola. Começa a andar na peça como um sonâmbulo ou um homem que perdeu a memória e não sabe onde está. Depois torna a sentar-se, esconde a cabeça nas mãos e solta o pranto.

– O senhor não respondeu à minha pergunta, doutor. O Dr. Lázaro Bertioga ergue a cabeça, fungando, reacende tremulamente o cigarro que tem apagado entre os dedos.

– Sabia, sabia, sabiat Já lhe disse que sou um covarde. Mas nada que eu pudesse fazer naquele momento conseguiria ressuscitar o Joãozinho. A princípio me neguei a participar da farsa vergonhosa. Mas eles me ameaçaram. O Cel. Vacariano e o Maj. Vivaldino possuem 52% das ações do Salvator Mundi. Não tive outro remédio. Mas passei duas noites sem dormir. Deus é testemunha do que estou dizendo. E Ele sabe que sou um homem bom, que ama a humanidade, e que quer ser respeitável, padre, acredite... – Suspira fundo. – E verdade também que me esqueci de mandar buscar o antibiótico para aquela prostituta...

– Aquela mulher...

– Desculpe. Aquela mulher. Mas não foi por mal. Não faço distinção entre meus clientes. Ricos e pobres. – Faz uma pausa. – Bom, não é bem assim. Cultivo os ricos. Não devo mentir a Deus. Seja como for, Ele vê tudo.. Mas a verdade é que não desprezo nem descuido os indigentes. Ah, não! Isso também Deus sabe. Eu ia mandar buscar a estreptomicina por via aérea... mas que é que o senhor quer? Sou um homem atormentado de trabalho e problemas. Labuto quinze, vinte horas por dia (e muitas vezes grátis!), durmo três, no máximo cinco horas por noite. Assim fui deixando a coisa para amanhã, para amanhã, para depois ... até que um dia a madre diretora das enfermeiras da ala dos indigentes me contou no corredor do hospital que a doente da cama número 10 tinha morrido de madrugada. Posso ser culpado pela morte dessa... dessa mulher?

– Posso falar com sinceridade? O senhor nunca me pareceu um homem atormentado por problemas morais.

Por alguns segundos o médico fica parado junto da escrivaninha, em silêncio. Depois murmura:

– Bom. Talvez eu esteja contando essas coisas de maneira a me inocentar... pelo menos um pouco. Não tenho coragem de meter a mão no meu lodo interior. Já lhe disse que sou um covarde. Mas não posso enganar a Deus, que tudo vê, tudo sabe. Padre, me ajude. Que é que vou fazer?

– Lute.

– Como?

– De hoje em diante diga não a esses dois homens que o escravizam.

– Se eu fizer isso eles me destroem profissionalmente, financeiramente, socialmente. E eu não quero que a minha mulher, os meus filhos, os meus netos fiquem sábendc quem sou. Quero ser amado e, se possível, respeitado, poi eles... e pelos outros.

– Lute, se quer paz de espírito. Lembre-se de que Cristo disse um dia a seus discípulos que não lhes trazia a paz, mas uma espada. Use a espada, doutor, e conquiste com ela o respeito próprio, o respeito dos outros e finalmente a desejada paz.

– Agora é tarde. Muito tarde, depois do que aconteceu hoje em praça pública...

– Desconfio que esse é o motivo principal desta sua visita. Veja bem. O incidente da praça não alterou o âmago do seu problema. O seu passado não mudou. O senhor é o mesmo homem. A diferença é que agora os outros sabem de suas faltas. Sua auréola de santo desapareceu. Sua imagem foi desmascarada em público.

– Mas eu sou um homem bom – diz o Dr. Lázaro, quase gritando. – Eu amo a Deusl Mas é que o anjo que tenho dentro de mim é sempre dominado pelo demônio.

– Eu não acredito nisso e o senhor também não acredita. Trata-se duma velha metáfora mais literária do que cientifica ou teológica...

O Dr. Lázaro cai de joelhos e de novo rompe a chorar. O Pe. Pedro-Paulo fecha os olhos, num mal-estar, diante desta situação melodramática.

– Padre, sou um pobre pecador. Dei falso testemunho contra o meu próximo. Tenho uma amante e filhos com ela. Cometi adultério muitas vezes. Deixei uma mulher morrer por puro descaso de minha parte. Tenho sido desonesto em várias ocasiões, e cúmplice de muitos crimes. Desgraçadamente gosto de dinheiro, preciso de dinheiro e sempre encontro desculpas para as minhas transgressões da ética profissional. Sou um cachorro sarnento que está uivando diante da cidade de Deus, lambendo os pés de seus guardas e pedindo para entrar. Amo a Deus acima de todas as misérias da minha carne. Pronto! Não posso me rebaixar mais. Tenha piedade de mim!

Cala-se. Pedro-Paulo levanta-se, vai até à janela, respira o ar morno da noite, olha para o rio, para as estrelas, depois volta para perto do visitante, mas sem saber ao certo o que lhe dizer. Por fim, contrafeito, pousa a mão na cabeça do outro homem, que continua ajoelhado e soluçando.

– Está certo – pergunta – bem certo de que não quer que eu o absolva em nome de Deus assim no espirito de quem liquida uma dívida antiga só para poder continuar a ter crédito e seguir praticando os mesmos atos ilícitos?

– Não! Não! Não! Juro sobre a cabeça dos meus filhos e dos meus netos!

– Olhe que esta é uma noite muito especial. Os sete mortos no coreto cercado de urubus. A invasão dos ratos. O senhor está perplexo e atemorizado. Mas pense numa coisa. (Por favor, levante-se, vamos, assim... Sente-se e procure ficar calmo. Isso!) Mas pense bem. Amanhã os mortos serão sepultados. Á vida voltará aos trilhos da rotina. O senhor retomará os seus velhos hábitos e práticas. O tempo o ajudará a esquecer os horrores desta noite. O que se disse na praça ficará esquecido. Um dia o senhor se lembrará de tudo isso como de um sonho mau... E então, quando nos encontrarmos na rua o senhor voltará o rosto para não me ver, e me odiará por ter dito aqui esta noite tudo quanto disse.

– Nãol Nãol Por que pensa assim?

– Porque conheço um pouco a natureza humana.

– Um sacerdote da Igreja não pode dizer uma coisa dessas1

– Este sacerdote é também um homem. E nem sei se é um bom homem.

– Padre, só lhe peço agora que me absolva. Me dê a mais severa, a pior das penitências, que eu a cumprirei. Mas me absolva, padre.

– Para quê? O sennor não compreende que Deus não é, não pode ser um barbiturico nem um analgésico?

– Eu vim aqui em busca de paz e o senhor me dá o desespero.

– Não, eu procuro fazê-lo encarar a realidade. A salvação não está em palavras. Cristo.não disse que só a verdade nos tornará livres?

Faz-se um silêncio, ao cabo do qual o Dr. Lázaro pergunta:

– Padre, o senhor me despreza depois de tudo quanto lhe contei? Fale franco, um sacerdote de Deus não deve mentir. O senhor me despreza?

– Não. Eu não desprezo nem a mim mesmo, cujos defeitos e misérias conheço melhor do que aos seus.

– Então tire esta carga de meus ombros, me absolva e me mande em paz.

E de novo o Dr. Lázaro Bertioga cai de joelhos.

 

Na sala de jantar duma meia-água da Rua das Camélias, sentadas ao redor da mesa onde, há pouco mais de meia hora, paparam a sua sopinha de cada anoitecer, as irmãs Balmacedas escrevem à luz de velas cartas anônimas, com o fim especial de completar a lista de adultérios locais que o falecido Barcelona recitou hoje em praça pública, e na qual elas notaram omissões imperdoáveis.

Enquanto escrevem com a mão esquerda, para disfarçar a letra – penas de aço sobre folhas de papel quadriculado arrancadas a cadernos escolares – as três manas comem cocadas feitas em casa. No silêncio da pequena sala só se ouve o rascar das penas no papel, o grugnì da mastigação e, mais aguçado o ouvido, o ronronar asmàtico do gordo gato cinzento que dormita ao pé da mesa, farto de ratos.

“Ó mana, orgia é com gê ou com jota?” O gato abre por um átimo os olhos amarelos e depois os fecha, recaindo na modorra. Um camundongo espia-o, cauteloso, encarapi-tado no alto do guarda-louças, meio escondido atrás dum vaso avoengo de opalina.

 

Exceção feita às meninas, ninguém comeu nada ao jantar na casa do Dr. Mirabeau da Silva. Em vista da situação excepcional de Antar.es, que papai compara – e explica didaticamente por que – com a duma cidade sitiada, as filhas são mandadas para a cama mais cedo que de costume.

O promotor está agora no seu quarto de dormir. Banho tomado, recendente a talco, acaba de vestir o seu pijama de tergal.

Sua mulher sai do quarto de banho, fresca da ducha e recendente a sabonete Maja. O dia deixou-lhe no rosto a marca de cuidados e sustos. Vendo o marido parado no meio do quarto, numa atitude estranha, ela pergunta:

– Que é que tens?

– Nada... por quê?

– Estás com a cara diferente – diz ela, erguendo a chama da vela à altura da cabeça do esposo, que está de cenho cerrado.

– Meu bem, quero te fazer uma pergunta muito séria mas peço, exijo que me respondas com a maior franqueza, sem medo de me ferir nem intuito de me agradar.

– Ó Bobó, que negócio é esse?

– Olha bem pra mim. Suponhamos que nunca me viste em toda a tua vida. – O Dr. Mirabeau faz uma volta ao redor de si mesmo, como um manequim num desfile de modas. – Achas que tenho um jeito efeminado? Fala com franqueza. Tenho?

– Ora, Bobo, que bobagemI Ficaste impressionado com o que aqueles moleques disseram de ti hoje na praça? 1

– Responde claro e, por favor, esta noite não me chames de Bobó.

Ela depõe o castiçal em cima de sua mesinha-de-ca-beceira.

– Fica tranqüilo. Não tens. Agora te deita. Estás cansado, precisas dormir pelo menos umas sete horas.

– Não estou satisfeito com a tua resposta. Não me parece muito convincente...

– Deixa de bobagem, rapaz. Vem nanar.

O promotor aproxima-se da esposa, segura-lhe com força ambos os pulsos.

– Alguma vez te decepcionei como homem?

– Fala baixo. As meninas podem estar ouvindo.

– Decepcionei?

– Não, meu bem. Nunca. Ao contrário, às vezes me deixaste um pouco assustada com os teus ardores.

De súbito ele enlaça a mulher, aperta o corpo dela, inteiro, contra o seu e beija-lhe ávida e demoradamente a boca. Sente-a, porém, passiva, indiferente. Larga-a por um instante, e ela se queixa:

– Me deixaste sem respiração...

Sem mais palavras ele a ergue nos braços (um filme da sua adolescência, Tarzan e Jane) e leva-a na direção do leito.

– Não, Bobó, hoje não!

– Hoje é uma noite como as outras!

Depõe a companheira sobre a cama, deita-se a seu lado e começa a acariciá-la, titilando-lhe todas as zonas do corpo chamadas erógenas, que ele conhece não só de experiência vivida como também de leituras especializadas. Suas carí-cias revelam mais método do que sensualidade. A esposa, porém, encolhe-se, negando-se, dá-lhe tapas nas mãos. “Sossega, Bobó!” O marido insiste. “Não sei como tens coragem. ..” – diz ela. – “Numa noite como esta...”

– Que é que tem esta noite?

– Os mortos no coreto. Os ratos. Os urubus. E até um sacrilégio a gente pensar... nessas coisas.

– Mas nós estamos vivos, meu bem, vivosl

– Fala baixo, olha as meninas.

Na memória do promotor os arboricolas recomeçam subitamente a vaia: “Fres-co! Fres-co! Fres-co!” Ele tenta desnudar a mulher por completo, atabalhoadamente, chega a rasgar-lhe a camisa de dormir, explorando ao mesmo tempo as zonas de prazer e recordando ofegante ao ouvido da companheira, em murmúrios coceguentos, requintes do passado erótico do casal. Por fim, resignada (ou cansada?) ela se deixa despir por completo, depois de apagar com um sopro a chama da vela. Triunfante, ele se põe de pé em cima da cama e aos poucos vai tirando a roupa do corpo e jogando as peças uma a uma no chão, ao acaso, até ficar completamente nu.

Mirabeau da Silva contempla agora a fêmea que tem desnuda a seus pés, ao mesmo tempo que, já meio alarmado, olhando para baixo ao longo do peito e do ventre percebe que o distintivo da sua virilidade a todas essas permanece em lànguido sossego. O promotor procura excitar-se, pensando nas esplêndidas mulheres nuas que viu em fotografias coloridas no último número do Playboy chegado a An-tares. Faz de conta que tem agora na cama mais três fêmeas: uma loura de pele alva, uma mulata cor de canela, e (por que não?) uma preta de èbano brunido, todas nuas a seus pés – cabeleiras, rostos, seios, ventres, púbis, coxas, pernas...

A esposa legítima o espera, de olhos fechados, resigna’ damente. Então ele se senta na beira da cama, segura a mão dela e murmura:

– Tem paciência, meu amor. Não sei o que está se passando comigo. E apenas uma questão de tempo...

Ela lhe acaricia a mão, compreensiva. E, sem a menor intenção maliciosa, murmura:

– Eu te preveni, Bobó, esta é a noite dos mortos.

 

– Vem pra cama, Lucas.

– Não posso. Acho que vou passar a noite em claro, escrevendo.

– Estás louco?

– Estou. Estamos todos loucos. Não é só o Egon Sturm. E Antares. Já viste uma cidade enlouquecer... casas, calçadas, ruas, pedras, árvores, passarinhos, pessoas, animais e coisas? Pois é. Antares enlouqueceu. E tu sabes quem sou eu? Lucas Faia, mais conhecido no mundo como o Cronista da Cidade Louca.

A mulher, uma mulata gorda de olhos doces e seios maternais, fica a olhar, comiserada, para seu homem, e depois arrisca:

– Eu achava... Mas ele a interrompe:

– Meu anjo, podes achar o que quiseres, mas o teu marido não vai arredar-se desta mesa antes do raiar de um novo dia. Estou começando a escrever o artigo mais importante de mi perra vida, sabes, Marfisa?

– Sobre os defuntos?

– Sobre tudo quanto se passou de ontem para cá neste burgo esquecido de Deus.

– Vais contar até as barbaridades que o Barcelona e o Dr. Cícero disseram no coreto?

Lucas coca a calva coroa da cabeça.

– Bom... Contarei por alto que os mortos insultaram os vivos. Não repetirei as infâmias que disseram, e que feriram tantas pessoas respeitáveis da nossa sociedade, porque não quero ajudar o inimigo. Mas o que importa é narrar ao mundo, em prosa rica, que em An tares, obscura cidade às margens do Rio Uruguai, sete mortos ressuscitaram e vieram para a praça pública...

– Ninguém fora daqui vai acreditar nesse negócio...

– Pouco importa. Todos vão ler a minha peça literária. Estou pensando até em publicá-la em livro.

– Não estás morrendo de canseira?

– Se eu pensar no corpo, talvez conclua que estou, Mas no momento não dou a menor atenção a esta carcaça. Sou todo espirito.

Marfisa encolhe os ombros. Está já de camisolão, castiçal em punho. A luz da vela se reflete no seu rosto gor-dalhufo.

– Me traz uma jarra com água – pede Lucas.

– Te esqueceste que os ratos caíram na hidráulica e 9 água está estragada?

– Tem cerveja?

– Não.

– Mineral?

– Também não.

– Então traz água mesmo. Ficou provado que essa estória dos ratos é puro boato. Os ratos caíram mas foi na alma dos habitantes de Antares, isso sim.

Lucas preparou cuidadosamente uma dúzia de cigarros de palha e enfileirou-os na mesa, à sua frente, junto duma caixa de fósforos, três canetas esferográficas e um cinzeiro. Jamais pôde redigir a máquina o que quer que fosse. Só sabe escrever a mão, com pena Mallet, parando de quando em quando para admirar a sua letra graúda e floreada de ex-sargento amanuense.

Olha para o papel em branco. Desenha cuidadosamente o título: A TRAGÉDIA DE ANTARES. Ou será melhor A MORTE EM ANTARES? Acha que OS MORTOS NO CORETO DA PRAÇA tem mais sabor literário e um quê de novela fantástica.

Por onde começar? De que dia, de que hora, de que ângulo? Aperta um palheiro entre os dentes, acende-o, dá uma longa tragada, solta fumaça lentamente pelas narinas, pensa no minotauro, nos labirintos de Creta, na sua mãe lavadeira (trouxa na cabeça, subindo uma lomba) e continua olhando fixamente, numa espécie de vertigem, para o papel em branco, vendo o coreto, os mortos, sentindo na memória a sua podridão, e ouvindo o crepitar dos passos furtivos dos ratos da casa.

 

Iibindo está sozinho no seu apartamento de solteirão, à Rua do Salso. Quando a sexta dose de uísque (escocês, contrabando) lhe cai no estômago vazio de aumentos, ele se sente transportado para a Grécia clássica. Começa a despir-se peripatetícamente de sua úmida indumentária do século xx. – Quem pode imaginar Anaximandro ou Pitágoras de calças, camisa e gravata? Deixando peças de roupas íntimas por todo o apartamento, chega completamente des* pido diante do espelho grande do seu guarda-roupa, no quarto de dormir, e planta-se diante dele. Examina no vidro a sua própria imagem de corpo inteiro, primeiro de frente – ahi a tristeza desses dois frutos murchos e podres pendentes da velha árvore estéril! – e depois de perfil – ahi essas pelancas frouxas, os joelhos ossudos, o ventre volumoso caído, num grotesco contraste com a magreza do resto do corpo... E o relevo das costelas sob a pele branca pintaigada de manchas pardas, os hieróglifos da velhice e da morte, ó beleza sonhada mas nunca atingidal ó sol da ÁÜca! ó poentes vistos do alto da Acropole 1 Ó verdes do Pelopo-nesot Û penhascos de Delfos!

Iibindo tem na mão um castiçal com uma vela acesa. Diogenes à procura de um Homem. Evidentemente o seu varão ideal não é esse que está no fundo do espelho, com lágrimas nos olhos. “O mais notório pederasta municipal.” Como explicar a esses idiotas? Platão, que era Platão, apreciava os efebos. Sócrates amava o belo Alcibíades.

Depõe o castiçal em cima da mesinha-de-cabeceira, arranca o lençol da cama, envolve-se nele, como numa túnica grega, aproxima-se da janela e fica olhando as estrelas, a lua – claro pêssego maduro meio mordido – um trecho do rio que, ao luar, parece uma larga coluna de mercúrio, sim, num termômetro que está medindo a febre desta cidade delirante. O ar parado cheira ainda a pedras e terra quentes. Felizmente o seu apartamento está longe da praça e até aqui não chega a podridão dos mortos.

Iibindo apanha a vela e encaminha-se para o simpósio, conversando com seu amigo Fedro. “Pois, meu caro, somos todos personagens duma farsa escrita pelo Destino. Platão já chegou? Procuremos os nossos lugares. Alcibíades ficará a direita de Sócrates. Aristófanes ao lado de Pausâ-nias. Fedro, aceito ocupar o lugar à tua nobre direita, se é que ele está vago. Obrigado! Não pude avisar-te de meu comparecimento, pois Antares está em greve geral. Com tua permissão, reclino-me. Enchei a minha taça, ó fâmulos. Ahi Lá vem Sócrates. Mestre I Antares me ofereceu hoje um cálice de cicuta. E eu vou bebê-lo em tua honra e na ide Platão. E em homenagem à Beleza e à Verdade I”

Serve-se duma dose de uísque, enchendo metade do copo, depois leva este à boca e bebe-o sofregamente até à última gota. Atira o copo contra a parede, partindo-o em pedaços. Dá estonteado algumas voltas pela sala e depois tomba no soalho em coma alcoólica.

 

Jefferson Monroe III convidou os Duplessis e os Lings à sua residência para “drinks and conversation”, após o jantar. São quase nove horas da noite. O dono da casa e Jean-François tomaram já pelo menos quatro rijas doses de gim com tônica. Dominique Duplessis preferiu a qualquer outra bebida o planter’s punch – rum, suco de limão e água. Mil-licent Monroe manteve sua fidelidade ao old-fashioned. (Como nunca confiaram na usina de energia elétrica de Anta-res, os Monroe, além duma geladeira grande movida a eletricidade, possuem uma pequena a querosene; e é graças a esta última que hoje têm gelo para as bebidas.)

O dono da casa e o gerente da Cia. Frànco-Brasileira de Lãs, depois de analisarem a greve por breves minutos, entraram numa acalorada discussão sobre a presença dos sete mortos no coreto da praça. Ilusão? Realidade? Farsa encenada habilmente pelos grevistas? Quê?

Agora ambos de pé, copos na mão, continuam o duelo verbal. O inglês, falado com seis diferentes sotaques, é a língua franca” da reunião. Duplessis encara o fenômeno dum ângulo puramente intelectual e cínico. O americano prefere examinar seus aspectos práticos e éticos. O Sr. e a Sra. Chang ling, ambos sentados em silêncio num sofá, pouco ou nada disseram desde o princípio da reunião. Parecem estar ali apenas como figuras decorativas, em duas dimensões, como as dos quadros pendurados nas paredes. Ele sorri o seu sorriso inefável de quem tudo sabe desde o princípio do Tempo e nada mais quer ou precisa saber. A sua mulherinha, encolhida e acanhada, tem o ar de quem pede desculpas aos presentes e aos ausentes pelo simples fato de existir, ocupar um lugar – embora diminuto – no espaço e no tempo.

Dominique, a mulher do francês, desenvolta e exuberante de vida, anda agora fazendo o circuito da sala, examinando móveis e quadros, pegando os objetos que encontra, virando e revirando-os corno à procura da etiqueta com o preço. Chega ao ponto de abrir gavetas e caixas para examinar-lhes o conteúdo. Millicent Monroe segue-a disfarça-damente, com olhos indignados. Desde que a haitiana chegou (a idéia do Jeff, convidar essas duas mulheres sem antes pedir o seu consentimento!) Millicent não lhe dirigiu sequer uma palavra. Ao cumprimentá-la à porta, quando os Duplessis chegaram, não lhe estendeu a mão, limitando-se a um aceno de cabeça e a um sorriso puramente mecânico de café-society. Procedeu do mesmo modo com a chinesinha, que lhe fez, entretanto, uma curvatura reverente como se estivesse diante da própria rainha da Inglaterra.

Aos dezessete anos Millicent foi realmente Rainha da Festa das Magnolias, Montgomery, Alabama, nos tempos de high school. É agora uma quarentona espigada, de cabelos dum louro de palha, os olhos uma cinza remotamente azulada, os lábios delgados, a pele granulada. Suas feições, vagas e esbatidas, são dessas difíceis de serem guardadas na memória. Tem o orgulho de ser uma WASP, isto é, white, Anglo-Saxon and-protestant: branca, anglo-saxônica e protestante.

“Que remédio senão fazer a perfeita hostess?” – pensa ela agora, suspirando. E para dizer alguma coisa, queixa-se do calor abafado do dia e da noite. E quando o marido lhe pondera que no sul dos Estados Unidos geralmente faz mais calor que em Antares, ela se irrita e replica que ele costuma dizer isso “para ser agradável aos nativos”.

Até ao terceiro old-fashioned Millicent conseguiu observar sofrivelmente as regras que regem o comportamento da perfeita anfitrioa, mas agora os espíritos sobem-lhe à cabeça e soltam-lhe a língua. A Sra. Monroe, née Marshall, fala mal do Rio Grande do Sul e particularmente de Antares, onde as casas são desconfortáveis – fornos no verão, geladeiras no inverno. A sociedade local é rastaqüera. As pessoas não conhecem as mais elementares regras de higiene. As criadas? Ah! essas, não se contentando com serem incompetentes, são também selvagens. (E conta que a penúltima delas, de tipo bugróide, ao cabo dum furioso bate-boca bilíngüe, atacara-a, mordendo-lhe um dedo – a antropófaga! – o que a obrigou a tomar soro antitetànico.) Eagora, para cúmulo de ultrajes, sete mortos erguem-se de seus caixões e descem para o centro da praça principal e lá estão empestando a cidade. Isso, positivamente, só pode a-contecer num país subdesenvolvido. Entreouvindo-a – pois continua o seu diálogo com o francês – o marido de quando em quando olha para ela, sacode a cabeça, e diz: “Come, come, darling”. E Millicent fita nele o gelo azul-cinza de seus olhos e, encrespando os seus quase invisíveis lábios, responde: “Oh shut up!”

Como a haitiana continua na sua peregrinação indiscreta pela sala, Millicent dirige-se principalmente aos Lings, que sacodem afirmativamente a cabeça como dois bonecos de terracota. De quando em quando Dominique aproxima-se do marido e cicia-lhe, rápida: “Cette femme m’emmerde”. De repente posta-se na frente da dona da casa e provoca-a:

– Não acha que os mortos têm tanto direito à praça quanto os vivos?

Mrs. Monroe entesa o busto e revida:

– No seu país podem ter, mas não no meu.

– Ah! – exclama Dominique com um sorriso de rum. – Conhece então o Haiti?

– Bom – hesita Millicent – nunca fui lá pessoalmente, mas tenho lido muito a respeito. E, para ser bem franca, como protestante eu ainda duvido da veracidade dessa estória dos sete mortos no coreto.

O marido intervém:

– Mas, darling, eu vi.

Dévias estar já meio alto.

– Não, honey, estava absolutamente sóbrio. E centenas, talvez milhares de pessoas também viram e ouviram. – Segura o braço do francês. – Jean-François, diga à Millicent o que você viu hoje ao meio-dia na Praça da República.

M. Duplessis, sem nenhum entusiasmo, resume:

– Sete defuntos no coreto, falando e movendo-se como gente viva.

E cheirando mal! – acrescenta Dominique, preparando para si mesma mais um copázio de planter’s punch. O marido toma-lhe do carnudo braço e sussurra-lhe ao ouvido: “Assez/ Assez/” Ela desvencüha-se dele e diz-. “Fou moi la paixr

Nos Estados Unidos – diz Jefferson Monroe III – temos tido muitas greves de coveiros mas nunca, que me lembre, nenhum cadáver se ergueu de seu caixão para vir perturbar os vivos.

Parece menos preocupado com o que o fenômeno possa ter de sobrenatural ou pelo menos de inusitado do que com o “comportamento social”, as más maneiras de sete antarenses que não se conformaram com a sua condição de mortos.

– Em nosso país – prossegue, com um pouco de chumbo na voz – temos um lema que rege a nossa vida. Live and let live. Vive e deixa que os outros vivam.

O francês sorri:

– Neste caso de Antares a frase deveria ser “morre e deixa os vivos em paz”.

A haitiana continua a beber. Seus olhos estão cada vez mais brilhantes, seus gestos cada vez mais bruscos, sua voz cada vez mais animada. De instante a instante, sopra a mecha de cabelo que se obstina em cair-lhe sobre um dos olhos. De repente tomba sentada numa poltrona, depõe o seu copo sobre uma mesinha, de onde apanha um exemplar do magazine Time e começa a abanar-se com ele. Mülicent, que ainda não leu esse número da revista, imagina com surdo rancor que sua capa vai ficar manchada do suor gorduroso da haitiana, e mal pode conter sua indignação. O remédio é afogar seu ressentimento num outro old-fashioned e amaldiçoar os trópicos.

E que vai fazer a prefeitura com esses cadáveres? – pergunta Jefferson. – Em nosso país já teríamos resolvido o problema.

– Chamando a Guarda Nacional? – ironiza o francês.

Oh, nãol Um comitê de cidadãos teria descoberto uma maneira de levar esses stiffs de volta para os seus caixões.

– Somos um país civilizado – diz Mülicent, olhando intencionalmente para Dominique Duplessis, que neste momento tira os sapatos, abre despudoradamente as pernas e puxa a saia, deixando à mostra um bom palmo de coxa morena, dum acetinado de pétala de magnòlia. Dominique olha para o marido-.

Tiens, Jean-François! Elle dit que les Américains sont civilisés. Pff !

Atira a cabeça para trás e solta uma risada canalha, que põe a ferver o sangue presbiteriano de Millicent.

– Outra coisa – diz Jefferson, lançando um rápido olhar enviesado para as coxas de Dominique (o que não passa despercebido a Millicent) – em nosso país jamais os grevistas industriais teriam usado dum estratagema de tão mau gosto e tão destituído de ética como esse de não permitir o sepultamento de mortos.

O casal chinês continua calado, bebericando lentamente o seu guaraná morno, ele com os lábios tocados por um espectro de sorriso e ela – talvez pressentindo aproximação de perigo – já com um vago e oblíquo sustinho no rosto.

Jean-François acende o seu Gauloise, cujo cheiro Millicent detesta, toma mais um gole de gim-tônica e volta-se para Jefferson:

– Por que vocês da Pan-American não pedem ao seu governo um regimento de marines para resolver o problema de Antares?

– Não seja sarcástico!

– Ora, Jeff, veja que Undo... Se conseguissem mais essa vitória, os fuzileiros navais americanos poderiam até mudar o seu hino, assim:

From the halls of Montezuma,

To the shores of the Ibicui.

– Very funny!

Dominique, suando copiosamente, senta-se no sofá ao lado da anfitrioa, que recua instintivamente ante esse mu-lherão excessivamente perfumado, de pele tostada e ardente.

– Então você não acredita que os mortos possam voltar?

Millicent ergue altivamente a cabeça (attagirl, keep your chin up!) como quando fez o papel de Major Barbara numa representação do grupo teatral de seu colégio.

– Não. Absolutamente.

A haitiana inclina-se sobre ela e segura-lhe o braço. Sentindo o contato desses dedos, Millicent afasta-se ainda mais. O hálito de rum da outra lhe provoca náusea.

– No Haiti nossos feiticeiros têm o poder de invocar os mortos...

– Superstição grosseira!

– Eu vi. Eu sei. Certos grupos pedem o sacrifício de animais: galos, bodes, cachorros, porcos, pombos... Mas isso é o trivial. Há uma seita, a minha preferida, cujos deuses são difíceis de contentar. Exigem a morte dum cabri sans cornes.

– Um cabrito sem cornos – traduz Jean-François – isto é, um ser humano.

– Basta! – grita Millicent, erguendo-se num prisco.

– Darling – intervém Jefferson – Mrs. Duplessis está brincando. Be a good sport!

– Hoje – diz Dominique – eu vi no coreto da praça o Baron Samedi.

Tais-toi! – ralha o marido.

Laisse-moi, vieux con!

Jefferson quer saber quem é o Baron Samedi.

– Uma entidade mítica do vudu haitiano – explica sumariamente Jean-François.

Mas Dominique, agora perigosamente de pé e já rebolando as ancas ritmadamente, diz:

Le Baron Samedi é o Deus dos Cemitérios... Usa fraque e chapéu coco... É o chefe da Legião dos Mortos... J’ai vu le Baron Samedi... hoje no coreto da praça!

– Não quero saber de nada disso – exclama Millicent, encaminhando-se para a escada e murmurando: “My God! My God!”

Allons-nous en! – rosna por entre dentes Jean-François segurando com força os carnudos braços da mulher, enquanto Jeff, sempre de copo na mão, anda dum lado para outro, apaziguador: “Girls! Girls!”

Dominique livra-se do marido e, soltando os bastos cabelos negros, que lhe caem sobre os ombros – o decote a mostrar-lhe o rego dos seios – começa a dançar num ritmo de batuque, a sacudir as nádegas, os seios, enfim, as ricas carnes morenas, enquanto Millicent sobe a escada rumo do seu quarto.

Dominique! – exclama Jean-François.

Mas a haitiana está transfigurada. Desceu sobre ela um dos espíritos do seu vudu nativo. E ela começa a recitar uma invocação:

Par pouvoir de St. Jacques Majeur, Ogoun Badagris, nègre Baguido Bago, Ogoun Ferraille, nègre fer, nègre fer, nègre ferraille, nègre tagnifer nago, Ogoun Baiala... nègre, nègre batiocone nago. ..

Uma espécie de véu gelatinoso lhe cobre os olhos negros. Um vaso já caiu duma estante e partiu-se no chão. Jean-François aproxima-se da mulher e aplica-lhe uma sonora bofetada em cada face.

O Sr. e a Sra. Chang Ling, sem se moverem de seus lugares, continuam a olhar a cena, neutros e bidimensionais.

 

No jornal íntimo de Martim Francisco Terra, sob a data de 20 de março de 1963, encontram-se as seguintes páginas :

Duas da madrugada. Sem sono. O P.« Pedro-Paulo e eu esta noite jantamos na casa do Dr. Quintiliano do Vale, juiz de Direito. Até aí, nada de extraordinário. Boa comida, boa conversa, bom vinho. O juiz manifestou logo o seu ceticismo quanto ao tipo de amostragem que nossa equipe está fazendo em Antares. Isso também não tem importância. O que me leva a escrever estas notas é a impressão que me causou Valentina, a esposa do juiz. Ora, um quarentão bem casado como eu, pai de três filhos, sujeito mais ou menos decente, vai desprevenido jantar na casa dum magistrado, esperando entediar-se, e eis que acaba vítima dum misterioso sortilègio e aqui está agora, no seu quarto de hotel a deva-near como um adolescente sobre a mulher que sem saber o enfeitiçou: Valentina do Vale. Procuro e não encontro qualificativos para essa criatura e o primeiro que me vem diz pou-co-, “perturbadora”. Acontece que a capacidade de perturbar-se varia de pessoa para pessoa. Por que Valentina me impressionou tanto? (Não sei quanto tempo essa impressão vai durar.) Será que me lembra alguém que um dia amei e se me apagou da memória? Não creio. Corre pondera à imagem duma mulher vagamente vista em sonhos? Tolice, dessas que o silêncio da madrugada costuma soprar-nos ao ouvido. O remédio agora é beber um copo dágua e recomeçar as reflexões. Feito! Caiu um pingo sobre o nome de Valentina, desfigurando-o.

Idade? Balzaquiana, sem nenhuma dúvida. A primeira vista, sua figura não diz muito. Jamais seria capa de revista. Só depois que sentamos à mesa (eu à sua esquerda) é que comecei a perceber que estava na presença duma pessoa fora do comum. Rosto oblongo – e não sei se essa é a forma exata de sua face, mas confesso que gosto da palavra “oblongo”. Em geral as mulheres de rosto redondo me deixam frio, quando não irritado. Nariz indiferente. (Agora, que vem a ser um nariz indiferente?) Boca bem desenhada. .. mas este pormenor também não exprime nada de preciso, pois devem existir no mundo milhões de bocas bem desenhadas mas diferentes umas das outras, em maior ou menor grau. A tez? Nem muito clara nem propriamente morena. Lembra a de certas mulheres que conheci na Grécia, no sul da Itália e em Portugal. Enquanto o juiz conversava com o jovem padre e a dona da casa dava ordens à copeira, entreguei-me a um jugo sutil: descobrir de que cor são os olhos de Valentina. E o sensacional desse jogo estava justamente em que tinha de ser jogado de maneira dissimulada, uma rápida olhada agora, outra depois – para não chamar a atenção da dona dos olhos e muito menos a do seu esposo e senhor. Concluí que eram da cor das águas do Mar Egeu que nos meus tempos de helenista delirante vi um dia da amurada dum navio de turismo: ora azuis, nos mais variados cambiantes, ora dum cinza-esverdeado ou violeta, tudo dependendo dos caprichos da luz. Para observar as cores do Egeu contei com o claro sol da Grécia; para pesquisar a dos olhos de Valentina tive de me contentar com a péssima luz elétrica de Antares. Agora, a voz. Sou muito sensível a vozes. (Detesto a minha.) A de Valentina é seca, como se ela recusasse usar inflexões musicais para conseguir efeitos de persuasão, encanto, simpatia. .. Momentos houve em que me passou pela cabeça a idéia de que V. é professora e já exerceu o magistério. Graças aos deuses, porém, não é nada didática. Sinto que estou aqui como um desenhista que esboçou às pressas, disfarçadamente e a medo o perfil duma pessoa e agora em casa, com o auxílio da memória, trata de reforçar ou completar os traços, enchê-los, dar-lhes uma ilusão de terceira dimensão, apanhar a “parecença”. Sinto que estou fracassando. Afinal de contas, para quem escrevo? Creio que é para os outros eus que virei a ser com o passar do tempo e que irão esquecendo cada vez mais as feições de Valentina, pois é possível que nossos caminhos não se encontrem nunca mais. (Palavra que temo um reencontro!)

Durante o jantar fiz algumas anotações mentais interessantes. O Pe. Pedro-Paulo fica um tanto perturbado na presença dessa mulher. Entre o primeiro prato e a sobremesa surpreendi-o várias vezes a olhar para ela com certo embevecimento. Notei também que o marido a “vigia” com um permanente ar apreensivo, e quando ela fala parece ficar inquieto, temendo talvez que ela diga ou faça alguma coisa – idéia, palavra, gesto – “inconveniente” ou mesmo “errada”.

Discutimos o nosso projeto sociológico, livros, política nacional e internacional, pessoas, pintura, música. O juiz me pareceu judidoso (aqui não vai nenhuma intenção de trocadilhol), falsamente profundo e arraigadamente convencional. É o que se convencionou chamar “uma bela figura de homem”, mas confesso que o achei um solene chato. Fala vagarosamente, medindo as palavras, e mais ou menos no estilo dum editorial de jornal antigo. Parece um homem cujo ideal é uma sociedade simétrica, policiada, regida por leis inflexíveis e imutáveis, cada coisa no seu lugar (e quem determina “o lugar exato” é a tradição, e tradição para ele é algo que tem a ver com seus ancestrais – pai, avô, bisavô, trisavô, etc). Está sempre, notei, do lado do oficial, do consagrado, do “legar. Deu-nos várias amostras de suas idéias e gostos no terreno da ética, da estética, da políticae da moral. Anda sempre corretamente vestido, jamais o vi despenteado, ou com a gravata torta, ou sem casaco. Parece-se mais com os austeros e convencionais juizes de comarca da minha infância do que com os juizes de Direito de hoje, em geral de espírito tão mais aberto.

Valentina – não sei se observei bem ou “desejei” que a coisa fosse assim – é o oposto do marido em tudo.

Suas idéias são arejadas, seus horizontes mentais largos. Fez observações muito agudas e irônicas (mas nunca maldosas) sobre a sociedade local e durante esse período da conversação mais de uma vez, com o rabo dos olhos, vi o marido franzir o cenho para ela, como a repreendê-la e fazê-la calar-se. Afinal de contas, não estava ela diante do diretor do projeto de amostragem sociológica de Antares?

O Pe. Pedro-Paulo, à altura do prato principal, bateu inadvertidamente com a mão no seu cálice de vinho, que caiu, manchando a toalha dum vermelho que de certo modo se refletiu no seu rosto, num encabulamento de seminarista. Valentina, com a maior naturalidade, pô-lo à vontade, mas aposto que o juiz condenou o padre pelo “delito”, dando-lhe uma sentença magnânima mas em todo o caso exemplar.

Ah! Descobri! Valentina é uma “pantera açaimada”. A idéia me vem de repente. Aí está! Eu a aceito, não sei bem por que, mas aceito. Pantera açaimada. Por que “pantera” se não noto no corpo nem nos gestos de V. nada de felino? Serão os olhos enviesados e claros, de cores mutantes! Concluo que o símbolo é menos plástico que psicológico. Dentro de Valentina dorme uma pantera açaimada pelo casamento, pelo marido convencional, pelas obrigações maternas, pelos preconceitos das pequenas cidades onde o marido tem servido a Magistratura. E agora me vêm outras lembranças e contrastes das conversas durante o jantar. Ela gosta de música barroca, de música folclórica, de música popular, desde o samba de gafieira até o “rock’n’ rol?... Ele adora a ópera. Informou-nos com um orgulho que me gelou o sangue que tem as óperas de Verdi e Puccini completas, em discos, e que pelo menos uma vez por semana, geralmente aos sábados, ficam ambos a escutar óperas inteiras, na meia-luz da biblioteca. Imaginei o juiz a acompanhar com a cabeça as árias e os trechos mais cantáveis da Traviata, do Rigoletto ou da Tosca, enquanto a um canto a pobre Valentina dormita ou boceja. Estarei fazendo uma caricatura se imaginar que o Dr. Quintiliano (um belo tipo de homem, repito, e possivelmente um bom caráter) já lhe contou mais de dez vezes os enredos de II Trovatore e de Madame Butterfly?

E a pantera açaimada fica no seu canto, encolhida mas viva, alerta, esperando a hora da libertação. Se um dia alguém lhe tirar o açaimo ou ela própria arrancá-lo num momento de revolta... que poderá acontecer? Decerto saltará faminta sobre a vida, sairá correndo livre... e o juiz morrerá de susto e vergonha.

Mas não! Os dois filhos do casal mantêm nas mãozi-nhas a corrente que prende a pantera. E, haja o que houver, ela continuará enrodilhada no seu borralho. Que lástima! Não me conformo com a idéia de que esse magnífico espécime humano tenha de passar o resto da vida fazendo o papel de gata doméstica. Não há justiça na Terra. O Pe. Ge-rôncio me assegura que haverá justiça no Céu. Esperemos, desconfiando.

 

Cerca das nove horas desta noite em que sete mortos estão em silenciosa vigília na praça principal de Ántares, dentro dum coreto sitiado por urubus e ratos, o Dr. Quintiliano do Vale encontra-se sentado na sua poltrona de ve-ludo, na biblioteca de sua casa, alumiada pela luz branca dum lampião Aladim. Faz já alguns minutos que mantém os olhos voltados para a lombada dos livros de Direito que se enfileiram na estante à sua frente, em ordem alfabética e por nome de autor – e ai de quem ousar tirar um volume de seu lugar! – mas pela expressão distante de seu olhar é fácil perceber que as imagens dos livros são apenas um indistinto pano de fundo diante do qual passam lembranças de imagens, sons, odores e sensações... Santo Deusl Aquele meio-dia na praça, a canícula, as caras hediondas e a podridão dos cadáveres, a gritaria dos rapazes nas árvores, os urubus voando em torno do coreto, e as palavras de ódio trocadas entre vivos e mortos...

Quintiliano há pouco tomou a terceira ducha fria da tarde. Ensaboou o corpo furiosamente, suspeitando de que a água cheirava a rato podre. Mesmo agora, metido em roupas frescas – mas já sentindo na pele a umidade dum novo suor – tem ainda a impressão de que guarda nas narinas, ou pelo menos na memória, o fedor dos defuntos. Como Valentina, não teve apetite para comer o que quer que fosse à hora do jantar. Os pratos voltaram intocados para a cozinha. Limitaram-se, marido e mulher, a beber água mineral morna. E agora, ainda perplexo, o juiz procura dispor mentalmente pedaços daquele doido quebra-cabeças, daquele desvairado jogo de armar, tentando formar com eles um desenho inteligível. Em vãol Sente no corpo todos os efeitos da soalheira e das emoções. Suas idéias lhe parecem embaciadas e o simples ato de pensar lhe produz dor física, projeta-o estonteado em abismos sem fundo.

Que todo esse horror não é apenas parte dum enorme e prolongado pesadelo ele já sabe, embora ainda não tenha aceito por completo a insólita e sórdida realidade. Nunca, nos seus quarenta e três anos de vida, viu coisa semelhante, a não ser em fantasias da ficção de horror, gênero literário que não aprecia. Teme agora pelo dia de amanhã. Pensa vagamente em sair da cidade com toda a família para evitar um encontro e um confronto com os representantes da imprensa de Porto Alegre. “Suponhamos” – reflete – “que os mortos desapareçam durante a noite por obra de Deus, do diabo ou do delegado de polícia de Antares...” Mesmo assim, que dizer aos jornalistas? Se os defuntos ao raiar do dia estiverem ainda no seu reduto, bastará dizer aos forasteiros: “Ei-losl Fotografem-nos. Interroguem-nos. Escrevam sobre eles. Interpretem o fenômeno. Mas não me perguntem nada”. Está convencido, porém, de que os repórteres exigirão dele um pronunciamento. Tudo isso o deixa ainda mais perturbado. Sente-se bem e seguro no convívio das regras, das normas: perde-se em pânico quando defronta as exceções, as anormalidades.

 

Quintiliano ouve os passos da esposa no andar superior. Faz quase meia hora que ela subiu para pôr os filhos na cama e fazê-los dormir, ao som das habituais estórias e cantigas.

Minutos mais tarde, quando Valentina entra na biblioteca, ele pergunta:

– Dormiram?

– Dormiram, mas antes conversaram muito. Estão um pouco assustados com os ratos.

– Ainda bem que nada sabem dos mortos na praça.

– É o que tu pensas. Infelizmente a criada contou tudo a eles. Me fizeram perguntas sobre a morte. Mãe, por que é que a gente morre? É Deus que manda a gente morrer? Quem morre pode acordar e voltar pra cidade? O que é que esses mortos estão fazendo no coretinho da banda?

E tu?

– Ora, transformei tudo numa espécie de conto de fadas. Pasteurizei a realidade.

– Realidade? – repete Quintiliano baixinho, como fazendo a pergunta a si mesmo.

Valentina senta-se na poltrona menor, perto do lampião, apanha um número da revista Manchete e começa a folheá-lo distraidamente.

– Conto de fadas... – murmura o juiz de Direito. – E no entanto estamos vivendo um conto de pavor.

– Pensa nos contos de horror que os jornais nos fornecem todos os dias: guerras, crimes requintados, genocídio, aberrações sexuais e crueldades de toda a sorte...

– Pois eu critico os romances que andas lendo, exatamente porque repetem em câmara lenta, com requintes de pormenores sórdidos, explorando-as com fins sensacionalis-tas, todas essas misérias humanas sobre as quais lemos diariamente nos jornais. Entre as personagens desses livros não há lugar para o homem normal, o homem comum, o homem bom, nem para os aspectos positivos e belos da vida.

– Se queres discutir de novo o assunto, Quintiliano, estou pronta. Vou te provar mais uma vez que, além de conformista, és um escapista. Olhas o mundo através da tua janelinha estreita, à qual dás nomes pomposos: Tradição, Justiça, Direito, Ordem, etc... Quando vês algo que te re-pugna ou assusta, fechas depressa a janela e te refugias no fundo da tua famosa cidadela interior, guardada por uma milícia secular, e lá ficas quieto e encolhido como um feto no ventre materno... E o mundo que se dane! Para ti a Justiça já deixou de ser um meio para ser um fim em si mesma.

O juiz olha surpreendido para a mulher, em cuja voz nota uma aspereza desusada.

Ele apanha um livro, abre-o ao acaso, finge ler, mas na realidade fica a observar dissimuladamente o rosto da esposa. O sexto sentido que ele se gaba de possuir e que tantas vezes o tem ajudado a descobrir o criminoso na face do anjo – e vice-versa – a sua famosa intuição lhe diz agora que no íntimo de Valentina uma tempestade começa a armar-se. O jeito como ela tira um cigarro do maço e o aperta com força com os lábios, o quase frenesi com que o acende e depois solta uma baforada de fumaça (e ele já a proibiu de fumar na sua presença, uma vez que ela se nega a abandonar de todo o vício do fumo) – tudo isso confirma a sua suspeita. Ele pode agora aproveitar a deixa para fazer a pergunta que recalcou desde que chegou a casa, ao anoitecer.

– Por que foste à praça hoje ao meio-dia? Ela o encara, num movimento rápido de cabeça.

– Havia alguma razão especial para eu não ir?

– Foi um espetáculo desagradável, impróprio para uma dama.

– Quem te garante que sou uma dama...?

– Valentina!

– Quero dizer, uma dama segundo a definição do teu dicionário particular. Se eu te mostrar uma lista dos lugares aonde desejo ir e das coisas que desejo fazer, ficariàs chocado e talvez deixasses de me considerar uma dama.

Ele fecha o livro com força, atira-o sobre a mesinha, a seu lado, ergue-se, dá alguns passos duros até à janela e ali fica, aparentemente olhando a noite cálida e as ruas escuras e desertas.

– Se eu soubesse que ias presenciar aquelas cenas repulsivas, ouvir aquelas frases grosseiras – murmura ele sem se voltar – eu não o teria permitido.

– Muito bem, mentissimo.

Ele se volta de inopino, corno se essas palavras fossem pedras que a mulher lhe tivesse atirado na nuca.

– Por que disseste isso?

– Isso quê?

Mentissimo.

– Mas não é assim que te chamam no tribunal, nos jornais, nos requerimentos? O mentissimo juiz... o colendo magistrado. Esses adjetivos te gratificam, eu sei, te produzem uma sensação quase de onipotência...

Ele a mira com pasmo.

– Não estou te reconhecendo, Valentina.

– Se nunca me conheceste direito, como podes agora me reconhecer?

Por algum tempo ele permanece de mãos trançadas às costas, fitando o tapete, e depois, num tom quase paternal, diz:

– Na certa ficaste perturbada com o que viste e ou-viste hoje na praça. Por isso te perdôo.

– Ah! Queres dizer que me absolves. Obrigada pela generosidade. “Mas deixa que te diga que perturbada não é exatamente a palavra. Edificada, isso sim.

– Não será melhor mudarmos de assunto?

– Não. Esta é a noite da verdade.

E por que esta e não todas as outras?

– Não te lembras das palavras do Dr. Cícero sobre o baile de máscaras? Vamos tirar as nossas... só esta noite. É um convite a um jogo. Se quiseres (já que és o homem do método, o cronometrador nato) podes marcar o tempo de duração do brinquedo. Digamos meia hora. É o quanto me basta.

– Podemos conversar como sempre temos conversado toda a nossa vida de casados, como adultos, sem essas in-fantüidades.

– Eu dispo a fantasia da virtuosa esposa do magistrado. Durante os próximos trinta minutos (ou vinte, se prefe-rires) deixarei de ser uma matrona romana. Tu despes a tua toga profissional. Seremos dois seres humanos tão completamente despidos quanto possível, um diante do outro. Feito?

– Se eu não te conhecesse, diria que estás bê... embriagada.

 

– Eu vou começar o jogo – diz ela. – Senta-te. – Ele obedece, a contragosto, mas fica tenso, o busto teso. – Quintiliano, estou farta desta vidinha, farta desta cidade, farta de todas as nossas mentirinhas cotidianas, da nossa rotina estúpida... desse eterno faz-de-conta... Será que me compreendes?

A voz dela é uma surdina fria, o que deixa Quintiliano ainda mais alarmado.

– Tu sabes – continua Valentina – eu sei, milhares de pessoas sabem que tudo quanto os mortos disseram hoje na praça contra os nossos “grandes próceres” é verdade...

– Como podes... – começa o juiz, mas ela o silencia com um gesto decidido.

– Espera. Me deixa terminar. Tu, que dizes amar a Justiça com jota maiúsculo, tu que pretendes ser o defensor da Ordem e da Lei, tu cultivas a amizade de crápulas como o prefeito Brazão e esse repulsivo Cel. Vacariano.

– Valentina!

– Peculatários, falsários, ladrões vulgares. Pior ainda. Apertas a mão dum assassino perverso como o delegado Pi-garço. Vais à casa desses homens, aceitas convites para comer com eles... e eu tenho de te acompanhar em tudo isso, tomar parte na farsa, afivelar uma máscara, sorrir para as mulheres desses pais da pátria, essas vacas gordas cheias de peles caras e jóias pagas com o dinheiro que os maridos roubam do povo... Tenho de mentir, fingir... E o mais terrível, Quintiliano, é quando convidas esses bandidos e esses larápios para se sentarem à nossa mesa. Por quê? Por quê?

De novo ele se põe de pé. Por alguns instantes fica a andar, acima e abaixo na sala, mudo mais de espanto que de indignação, a cabeça a doer-lhe mais intensamente que antes.

– Que foi que te aconteceu, Valentina? Nunca nestes nove anos de vida matrimonial, nunca me f alaste dessa maneira. Tornaste alguma droga?

– Tomo todos os dias a pílula amarga desse tipo de vida, que me metes na boca e que me obrigas a engolir sorrindo.

Ele cobre o rosto com as longas mãos espalmadas e fica assim por algum tempo. Depois diz:

– E incrível que tenhas aceito essa... essa realidade da volta dos mortos com tanta naturalidade e acreditado no que disse um... um cadáver.

– Aceito isso com a mesma naturalidade com que todos nós aceitamos a realidade não menos sórdida e absurda da Babilônia e das outras favelas, com a mesma inocência com que acreditamos desde a infância nas mentiras que nossos pais e nossos professores nos contaram sobre a vida.

– Ah! Esses livros que andas lendo... Essas obras que esse padre esquerdista te recomenda e empresta!

– Não metas o Pe. Pedro-Paulo no assunto. Isso é uma boa maneira de desconversar.

– Que queres então que eu faça... que eu diga? Ela nem se dá o trabalho de responder à pergunta.

– Não me vais dizer (espero) que não sabias também que o João Paz foi torturado e assassinado, e que essa “morte natural por embolia pulmonar” foi uma farsa indecente inventada pelos assassinos da polícia com a cumplicidade do Dr. Lázaro... outro amigo teu.

– Tu não sabes, criatura, que não se pode acusar ninguém sem provas?

E por que, então, quando o Dr. Cícero te atirou aquele papel com uma denúncia formal escrita, tu permi-tiste que o Cel. Tibério te arrancasse o documento das mãos e o rasgasse em pedaços na frente de toda aquela multidão?

– Não compreendes, será possível que não compreendes que estávamos todos dentro dum pesadelo... duma situação anormal? Todo mundo desnorteado, incapaz de raciocinar. .. Sete mortos saem de seus caixões e, já decompostos, vêm para a praça pública dialogar com os vivos... Tudo isso é inaudito, absurdo, insensato... impossível!

Aproxima-se da mulher, segura-a pelos ombros sem rancor mas também sem afeto e diz:

– Como pode um juiz aceitar no dia 13 de dezembro a denúncia feita por um homem que morreu comprovada-mente no dia 11 desse mesmo mês? Nenhum tribunal do mundo inteiro, em tempo algum, aceitaria essa prova como válida. Tu não queres compreender. O que queres é me agredir.

– Não. Eu quero te abrir os olhos, esses teus olhos que só vêem a imagem que criaste para ti mesmo e que tanto se parece com a do teu falecido pai. Teu objetivo mais alto na vida é chegar a desembargador, como o Velho. E eu tenho de polir essa imagem todos os dias, evitando que ela seja manchada ou arranhada. A minha vida pouco te importa. Não te passa pela cabeça a idéia de que eu também sou uma pessoa humana como as outras, que estou viva... que... que não sou um robô... um computador programado só para te servir!

– valenüna, por amor de Deus, fala mais baixo.

– Falarei em surdina para os estranhos não me ouvirem, para os vizinhos não descobrirem que o futuro desembargador Quintiliano do Vale, filho e neto de magistrados, não é adorado, idolatrado pela esposa. Quantas vezes me contaste que tua mãe serviu ao teu pai como uma escrava, apagando-se, anulando-se em benefício do Grande Homem?

Ele está rígido, calado. De repente explode:

– Cala essa boca!

– Começas a perder a Unha apolínea, Quintiliano. Isso é um sinal de que te humanizas. Não agüento mais o tédio desta vida, os livros maçantes que me obrigas a ler para que eu me eduque propriamente e me torne uma esposa digna dum desembargador... Não suporto os teus chatíssimos amigos. Estou enfarada das tuas Traviatas, das tuas Toscas, das tuas citações latinas, da tua falta de senso de humor. Deixa que te diga: tu te levas demasiadamente a sério. E a vida está passando. O tempo perdido é irreversível.

 

Por um momento Quintiliano do Vale parece que está à beira do pranto. Sua face revela espanto, desapontamento, tristeza. Faz-se um silêncio em que Valentina acende outro cigarro. Por fim, procurando dominar a voz, ele murmura:

– Devo te confessar que não sei o que dizer. Estou profundamente magoado e decepcionado contigo.

– Não esperes que eu diga “sinto muito”, que estou arrependida de ter dito o que disse. Porque não estou.

– Que pretendes fazer agora?

– Fazer? Sei lá! Disse o que há muito te queria dizer. Agora é a tua vez de falar...

Ele se senta, dessa vez derreado, a cabeça latejante caída sobre o respaldo da poltrona, os olhos fechados.

– Não, não estou nesse jogo. Só quero saber que pretendes fazer agora.

– Nada, como sempre. A vida vai continuar como antes. Eu sei. Tu não vais mudar. Eu não vou mudar. Os outros também não mudarão...

– Estou me Teferindo à nossa situação matrimonial. Ela esmaga a ponta do cigarro contra o fundo dum

cinzeiro, cruza os braços sobre o peito, como se estivesse sentindo frio, e diz:

– Se pensas que existe “outro homem”, estás enganado. Não existe. Nunca existiu. Ainda gosto de ti.

– Gostas... Esse é o verbo?

– Preferias, imagino, que eu dissesse formalmente que ainda te amo.

– Não, Valentina, eu não preferia coisa nenhuma. Talvez desejasse que não tivesses dito tudo quanto disseste. Agora é tarde. As palavras, como o tempo, são também irreversíveis. Tu me feriste profundamente.

– Esta é uma noite especial, Quintiliano. Numa casa fechada abriu-se por acaso uma janela, uma porta...

E por ela entrou a podridão de sete cadáveres insepultos.

– Talvez. Mas com esse hálito de sepultura entrou uma aragenzinha benéfica de sinceridade.

– Tu me insultaste cruelmente. Não sou o homem que descreveste. Não me considero nenhum covarde, nenhum vaidoso, nenhum esnobe. E nunca esperei ou desejei que fosses minha escrava mas sim minha companheira. E vou te provar que se eu fosse tudo isso que dizes, há muito eu teria... – Cala-se por um instante e depois, mudando de tom, diz: – Bom. É melhor eu te mostrar uma carta que recebi há mais de um mês.

Tira do bolso a carteira e de dentro desta um papel dobrado, que entrega a Valentina. Desdobrando-o, ela reconhece a folha quadriculada das Balmacedas. Aproxima-a da luz e lê:

Dr. Quintiliano: Sua esposa e o jovem Pe. Pedro-Paulo são vistos freqüentemente junti-nhos como dois namorados. A coisa está dando na vista de todo mundo. Cuidado com os chifres, doutor. Quem avisa amigo é.

Anjo da Verdade Valentina sorri.

– Por que guardaste este papel sujo com tanto cuidado?

Ele dá de ombros.

– Não sei, talvez por curiosidade.

– Por que não me mostraste esta carta anônima, se a recebeste há mais de um mês?

– Para não te insultar.

E por que me mostras agora? Para me insultar? Para provar que és magnànimo? Ou que tens confiança em mim?

Ele apanha em silêncio o papel que ela lhe devolve e rasga-o em muitos pedaços, que atira no cesto ao pé da escrivaninha.

– Queres que eu te diga uma coisa? Essa carta te fez muito mal. Agora compreendo por que não convidaste mais o Pe. .Pedro-Paulo para vir à nossa casa.

– Estás enganada.

– Não estou.

– Não vais negar que mudaste muito de idéias depois que fizeste amizade com esse padre.

Ahi Eu tinha razão... Achas que não sou capaz de ter idéias próprias. Finalmente a carta das Balmacedas produziu o efeito que elas desejavam. Envenenaram-te o espírito. Numa sociedade como esta em que .vivemos, triunfam sempre os Vacarianos, os Brazões, os Pigarços e as Balmacedas. Confessa, Quintiliano, que tem te passado muitas vezes pela cabeça à possibilidade de que eu esteja apaixonada pelo Pe. Pedro-Paulo e ele por mim.

– Que ele está enamorado de ti todo o mundo pode ver. Ele não consegue ou não procura esconder isso.

E tu estás apavorado à idéia de que a cidade inteira possa estar falando do meu “caso” com o padre, e que o teu nome respeitável anda sendo “arrastado na lama” (não é assim que se diz?). Quintiliano, quando é que vais ficar completamente adulto?

– Valentina, não basta a uma mulher ser honesta. É preciso também parecer.

– Estamos de volta ao baile de máscaras.

– Por amor de Deus não me fales mais nisso!

– Está bem. O jogo terminou. A Justiça triunfou.

– Não achas que já nos insultamos o bastante esta noite?

– Eu não me sinto insultada, mas aliviada. Disse o que há anos venho querendo te dizer. Vou dormir em paz.

E pouco te importas que eu passe a noite em claro, pensando em tudo quanto me disseste...

Ela o interrompe:

– Vais passar a noite pensando na tua carreira, no teu futuro, na tua desembargadoria, e no perigo de passar por marido enganado pela mulher... e logo com um padre ... e um padre com idéias ditas esquerdistas. E tudo isso que na verdade te preocupa mesmo, não é?

Ele solta um suspiro que lhe vem do fundo do peito.

– Não digas mais nada. Eu vou me recolher.

Quintiliano do Vale está já no meio da escada, a caminho do quarto de dormir quando ouve de novo a voz da mulher:

– Uma coisa aprendi esta noite. Ë que o depoimento dum morto não tem valor nenhum, mas uma carta anônima do Anjo da Verdade pode conter uma revelação capaz de mudar uma vida... muitas vidas.

 

Inocêncio Pigarço chega a sua casa antes das nove da noite.

– Não vais comer alguma coisa? – pergunta-lhe a mulher.

– Não.

Tira o casaco, a gravata, os sapatos e deixa-se cair pesadamente numa poltrona.

– Não queres ao menos beber alguma coisa?

– Cerveja choca?

– Não! Arranjei uns cubos de gelo com a vizinha.

– Venha então um copo de cerveja.

Minutos depois ele o tem na mão, bebe um gole largo, lambe a espuma que lhe ficou nos beiços.

A mulher permanece a seu redor, fazendo pequenas coisas que ele sabe desnecessárias. Percebe que ela lhe quer dizer alguma coisa mas não encontrou ainda a oportunidade ou a coragem para isso.

– Vamos, Beata, diz logo o que tens a dizer.

– O Mauro foi-se embora pra Porto Alegre no ônibus das quatro.

– Eu sabia.

– Como?

– Um delegado de policia deve saber de tudo que se passa na sua cidade, não deve? – Depois dum silêncio curto, pergunta: – Ele se despediu de ti?

– Não. Me deixou uma carta. Queres ler?

– Não. Não me interessa.

– Como? E teu filho.

– É um homem. Que viva a sua vida.

Ela apanha um trabalho de agulha e senta-se na frente do marido. Observando-a obliquamente eie verifica que lágrimas lhe escorrem pelo rosto, mas nada diz nem faz.

– Às vezes chego a pensar que a morte seria preferível a... a tudo isto – diz ela com voz machucada.

– Morrer não é solução pra nada.

– Tens de sair de novo esta noite?

– Só se o prefeito me chamar... ou se surgir alguma novidade.

– Que é que vocês vão fazer com esses... esses defuntos?

– Se a coisa dependesse só de mim, eu encharcava o coreto de gasolina e prendia fogo nele. Não custa muito caro construir um coreto novo.

– Mas seria horrível.

– Horrível por quê? Não sabes então que em certos países os mortos são incinerados?

Inocêncio Pigarço esvazia o copo e põe-no em cima da mesinha, a seu lado, atira a cabeça para trás sobre a poltrona e cerra os olhos. Por alguns instantes Beata fica examinando o rosto cansado do marido – as pálpebras arro-xeadas, as olheiras marcadas, a barba cerrada, já com fios grisalhos. Estará dormindo? Ela o contempla em silêncio e espera. Ele torna a abrir os olhos e fica olhando fixamente para o teto.

– Inocêncio, tenho que te confessar uma coisa.

– Que é?

– Estive na praça hoje ao meio-dia, Vi e escutei tudo.

– Sim... e daí?

– Ouvi as acusações que te fizeram.

– E agora queres saber se tudo aquilo é verdade...

– Sei que não é.

E se eu te disser que é? – pergunta ele, pondo-se de pé e encarando-a, quase num desafio.

– Continuo a não acreditar.

E por quê?

– Porque não te julgo capaz de tantas malvadezas. Ele sorri, amargo.

– Não esqueças que sou um policia profissional. Tenho obrigações definidas. Cumpro o meu dever da melhor maneira possível.

Beata movimenta, num automatismo, as agulhas verdes.

– Protejo a sociedade – continua ele, quase sarcástico – a nossa “distinta” sociedade contra os ladrões, os assassinos, enfim, os contraventores da lei, os terroristas, os subversivos... os... ora!... tu sabes muito bem o que quero dizer.

– O Joãozinho Paz sempre me pareceu um moço direito e pacato. Fui colega de escola primária da mãe dele.

– O Joãozinho era um elemento perigoso. Foi denunciado como sendo o chefe do “grupo dos onze” em Antares, um bando de guerrilheiros (existem milhares em todo o país) que entrarão imediatamente em ação logo que vier o golpe da esquerda. Mandei prender o rapaz pra um interrogatório de rotina.

Inocêncio põe-se agora a andar acima e abaixo, na pequena saia de estar. Sua mulher continua aparentemente absorta no seu trabalho manual.

– O Brasil está em vésperas de acontecimentos muito sérios, Beata. Basta ler os jornais para ver isso... E tu sabes que o Cel. Tibério e o Maj. Vivaldino não rezam pelo breviario do Jango e do Brizola. São contra o comunismo e o caos.

Beata continua a tricotar em silêncio, fungando a intervalos, os olhos ainda úmidos.

– O João Paz e os seus companheiros – prossegue Inocêncio – andavam por toda a cidade, alta madrugada, pichando frases revolucionárias em muros e paredes. Já pensaste no que nos aconteceria a todos nós se os comunistas tomassem conta deste pais?

– Nem quero pensar.

– Pois eu te digo. Teríamos, na semana seguinte à do golpe, tropas americanas desembarcando no Brasil, isso na melhor das hipóteses. Na pior, uma guerra civil para durar muitos anos... e a anarquia, a miséria, talvez até a fome.

Depois dum silêncio, ela pergunta:

– Mas o Joãozinho era mesmo culpado?

– O rapaz pelo menos não era inocente. Foi interrogado normalmente. Negou-se a dizer o nome dos outros membros do grupo. Insistimos, ameaçamos. Ele continuou calado. Ofendeu os que o interrogavam. Não nego que usamos um certo tipo de violência. Não há policia no mundo inteiro que não empregue esses métodos, umas mais, outras menos...

Beata ergue vivamente a cabeça:

E depois?

– Ora, precisávamos descobrir e prender com urgência os outros dez guerrilheiros. Entreguei o interrogatório aos meus especialistas. Um deles cometeu um erro técnico e matou o rapaz. Essa é a verdade. E não vamos falar mais nisso!

– Mas já pensaste que o Joãozinho podia estar mesmo inocente?

– Ninguém no mundo é de todo inocente. Um polícia deve partir sempre do princípio que, dum modo ou de outro, todos são culpados, até prova provada em contrário.

– Aquela estória do hospital então... é verdade?

– Descontadas as fantasias do crápula do Cícero... é. Eu tinha de me defender, porque se o fato fosse divulgado pelos jornais de todo o país, qual seria a minha situação? Os chefões tratariam de tirar o corpo fora e jogar toda a culpa pra cima de mim e no fim o único prejudicado seria eu.

Inocêncio boceja. Beata pergunta:

E se os comunistas um dia tomam mesmo o poder no Brasil... que vai ser de ti?

Ora, de duas uma. Ou me põem contra um paredão e me fuzilam sumariamente ou me poupam a vida e me utilizam. Já te disse mil vezes que sou um polícia profissional, um técnico, em suma, um homem útil a qualquer regime, mesmo aos chamados democráticos. – Ela ergue os olhos tristonhos para o marido, que continua: – Escuta aqui, Beata, o mundo se divide em vencedores e vencidos. Os vencedores é que decidem quem é ou não é culpado. Se os nazistas tivessem ganho a Guerra, os réus de Nuremberg teriam sido os chefes civis e militares aliados...

E se um golpe fascista triunfa no Brasil?

– Também serei fuzilado ou aproveitado. E pelas mesmas razões. Comunismo e fascismo são duas faces da mesma moeda. Dentro de poucos anos, mulher, o chamado liberalismo democrático não passará dum artigo de museu: uma moeda de cobre azinhavrado de valor puramente histórico... e muito pequeno.

Um relógio começa a bater lentamente as nove horas.

E esses defuntos continuam apodrecendo no coreto – resmunga Inocêncio, irritado. Beata permanece em silêncio. Depois recomeça a chorar baixinho.

– Por que essas lágrimas?

– Estou pensando no nosso filho.

– E um romântico, com todo o seu materialismo dialético. Anda com a cabeça cheia de idéias confusas. Acho que nem sabe direito o que quer. E é preciso também que saibas duma coisa importante. Interrogamos a mulher do Joãozinho e ela nos deu o nome de nove dos dez do grupo que o marido chefiava. Ficou faltando um nome. Às vezes desconfio que o Mauro é o décimo. ..

– Inocêncio! Parece até que odeias o teu próprio filho...

– Não, Beata, é ele que me odeia. Vi isso nos olhos do rapaz aqui nesta sala, onde batemos boca hoje de manhã, e mais tarde na praça, quando o Cícero estava falando mal de mim. Odio, ódio foi o que vi na cara de meu filho quando nossos olhares se encontraram...

Aproxima-se da janela aberta, olha distraidamente para a rua, mas seu olhar interior se vai pelos corredores do tempo e então de súbito é uma manhã de inverno, seu pai corre, fugindo na direção do rio – “Pega o bandido! Pega o bandido I” – e um homem caído de bruços na sarjeta solta pela boca golfadas de sangue...

Inocêncio Pigarço volta-se bruscamente para a mulher e murmura:

– Um consolo me resta... Um dia o Mauro vai casar, ter um filho... e esse filho vai também odiar o pai.

 

Alta madrugada, insone em seu quarto, o Pe. Pedro-Paulo faz o seguinte registro em seu diário íntimo:

Como prometi a João Paz, levei hoje Rita para o outro lado do rio. Geminiano emprestou-me o seu jipe para a primeira parte dessa operação de ‘contrabando’. Eram cerca de onze horas e as ruas estavam completamente desertas. A meu lado no carro, Rita permaneceu silenciosa durante o trajeto de sua casa à beira do rio. Deixei o jipe acamaleo-nado na sombra duma grande árvore, num beco, segurei o braço de Rita e descemos devagarinho a barranca até ao Trapiche Pequeno. Romero estava no seu posto e me ajudou a fazer a moça descer sem esforço nem choques -para dentro do seu barco, que ele pôs logo em movimento.

Cheiro de água e peixe no ar ainda saturado do mor-maço do dia. Romero silencioso ao leme. Rita na proa, sentada de costas para o país onde ia entrar clandestinamente, olhava para Antares que ia ficando cada vez mais recuada. .. Devia estar pensando na estranheza de tudo aquilo. .. O marido morto sentado no coreto da praça. O filho de ambos aninhado em seu ventre. O grande rio, o grande céu, o grande mistério da vida e da morte.

Meu coração batia quase tão rápido como o do barco. Medo? Sim, mas quero crer que não por mim, mas pela mulher grávida que estava conosco, e também pelo dono do barco. Ocorreu-me um simile que o Pe. Gerôncio acharia profano: a fuga da Virgem Maria com o Menino para o Egito.

Do outro lado do rio piscavam as luzes da vila do Farolito. Quando estávamos a uns- duzentos metros da costa argentina, Romero fez parar o motor da lancha. A cerca de um quilômetro ao sul de Farolito vimos uma luz pisca-pis-car. “É o sinal combinado...” – resmungou o nosso piloto. Pop.cos minutos depois fazia o seu barco entrar numa pequena enseada, sob ramadas. Dois vultos, um homem e uma mulher, nos esperavam em terra firme. Romero trocou com ambos algumas palavras em voz baixa. Rita me apertou a mão e me beijou numa das faces. Os dois desconhecidos ajudaram-na a sair do barco e a levaram noite e terra a dentro, em silêncio.

Nosso barco começou a viagem de volta. Eu sentia na face um ponto entre fresco e morno – a lembrança dos lábios da mulher de João Paz. “Passamos o nosso contrabando” – murmurou Romero, acendendo um cigarro. E brincou: “Padre, o senhor bem que podia mudar de profissão...” Respondi: “Quem lhe garante que já não mudei?” E não trocamos mais palavras durante o resto da travessia.

Estávamos no meio do rio quando me veio à cabeça a famosa frase de Heráclito: “Ninguém cruza duas vezes o mesmo rio”. Sim, refleti, ninguém nunca fala com o mesmo homem duas vezes. O Pedro-Paulo que deixou a margem esquerda do Uruguai não era o mesmo que chegou minutos depois à margem direita, e será “outro” quando tornar a pisar solo brasileiro. Mergulhei um dedo na água e isso me evocou cenas da infância, pois nasci numa vila banhada por um pequeno rio. Passou-me pela mente a face e a voz duma professora de escola primária: “Os rios correm para o mar”. “O tempo é um rio (o rosto de Martim Francisco) que nos leva para o oceano sem princípio nem fim do Nada.” Lembrei-me da nossa longa conversa no outono passado sobre a ßnitude humana. A voz do amigo me veio nítida à memória, em palavras que não esquecerei tão cedo: “Você já pensou como nossa vida seria barata e sem sentido se a gente soubesse que não ia morrer nunca? Quando muito moço, eu me sentia como uma personagem que tinha entrado por engano numa peça a cujo elenco não pertencia. Eu me movia num palco estranho sem ter idéia do meu papel, e tudo a meu redor parecia impreciso, absurdo e relativo. Um dia, mais velho, decidi olhar a morte cara a cara ou, melhor, cara a caveira, e daí por diante passei a me sentir uma pessoa, um indivíduo real, concreto, pertinente e até cheguei a pensar com saudável petulância: se a morte é a única coisa absoluta da vida, por que não hei de fazer da minha existência também um fato absoluto?”

Apertei a mão de Romero antes de deixar o barco. “Obrigado, amigo! E que Deus o ajude.” Soltando uma baforada de funtaça, ele respondeu: “Não posso me queixar do Velho. Sempre me tem dado tudo que preciso”.

Subi a barranca. Um cachorro latiu num quintal próximo. Uma criança de colo rompeu a chorar dentro duma das casinholas vizinhas. Alcancei finalmente a Rua da Margem e divisei na sombra um vulto humano. Encaminhei-me para o lugar onde havia deixado o carro, e percebi que o desconhecido me seguia. Alguém da polícia? Curioso, meu coração agora batia sereno. Continuei a andar, voltava de quando em quando a cabeça e percebia que o vulto ainda me seguia, cada vez mais de perto. Decidi parar e enfrentá-lo, como Martim Francisco fizera com a morte. Em dez ou doze passadas o homem chegou à minha frente, tão perto de mim que senti o seu hálito de cachaça.

– Boa noite, padre.

– Boa noite, Mendes – respondi, reconhecendo o secretário do prefeito.

– Posso acompanhá-lo?

E por que não?

Retomamos a marcha lado a lado. Fui o primeiro a falar:

– Não vai me perguntar que é que ando fazendo por estas bandas a estas horas?

– Não é necessário. Eu sei. O senhor acaba de voltar do outro lado do rio, aonde foi levar a Ritinha Paz.

E agora... vai me denunciar?

– Está se vendo que o senhor não me conhece, padre. Não sou polícia. Nem delator.

– Por que então nos seguiu?

– É melhor eu lhe contar tudo duma vez. A Ritinha foi a única mulher que amei de verdade em toda a minha vida. Quis casar com essa menina, mas ela preferiu o João Paz. Que era que eu podia fazer? Mas ainda gosto dela. Depois que aqueles bandidos prenderam o Joãozinho eu me julguei responsável pela Rita, passei a cuidar dela... mas de longe, para não dar motivo pra falatório. De vez em quando ia olhar as janelas do apartamento dela. Hoje eu estava escondido atrás duma esquina quando o senhor chegou e ela entrou no seu jipe. Compreendi o plano. Agora vim ver se tudo tinha saído certo...

Havíamos chegado ao lugar onde eu escondera o jipe.

– Quer uma carona? – perguntei.

– Não, padre, obrigado. Quem mora sozinho nunca tem muita vontade de voltar pra casa. Vou passar a noite em claro, caminhando à toa por essas ruas, fumando e falando sozinho. A propósito, a criancinha está direita... quero dizer, viva?

– Está, Mendes, e vai nascer dentro de menos de dois meses.

– Quem é que toma conta da Rita do lado de lá?

– Bons amigos, gente de confiança.

– É uma pena que eu não seja o pai da criança. Pena pra mim, naturalmente. Sou um sujeito feio e sem graça, mas acho que ia dar um bom pai...

– Quanto a isso não tenho a menor dúvida. Apertamo-nos as mãos, mas como o Mendes permanecesse imóvel, senti que ele queria me dizer algo mais.

– Lembra-se de hoje de manhã, no gabinete do prefeito, quando o porco do Pigarço quis lhe bater na cara?

– Claro que me lembro. Acho até que me esqueci de lhe agradecer pela providencial intervenção.

– Não me agradeça. O que eu queria era lhe contar que, quando apliquei aquela “gravata” no delegado, me passou ligeiro pela cabeça um mau pensamento: esgoelar, matar aquele bandido. É horrível a gente querer matar uma pessoa... Mas acho que Deus me compreende. O malvado do Inocêncio mandou prender a Ritinha e andou ameaçando a menina com torturas...

– Bom, agora estamos os dois presos um ao outro pelos nossos segredos, hem, Mendes?

– Pois é... Boa noite, padre. Quando amanhecer vou ter que voltar pra casa, fazer a barba, escovar os dentes, lavar esta cara suja, e ir para a prefeitura como se tivesse dormido como um justo. Não é tudo uma farsa, como disse hoje na praça o finado Cícero?

– Deus um dia há de ajudá-lo, Mendes. Você é um bom homem.

– Qual! A bondade é sua. Não sou bom. Sirvo a canalha da situação. Sou um capacho do prefeito. Tentei uma carreira política, mas fracassei. Fiquei reduzido a isto. Um reles secretário dum prefeito ladrão, que sirvo com eficiência e lealdade, porque herdei de meu pai e de meu avô, ambos empregados públicos, o hábito de bem servir sem olhar a quem. Tenho pensado em mandar o emprego e o major para a puta que os pariu, com o perdão da má palavra, mas me falta coragem pra começar vida nova nesta idade. É por isso que bebo. Outra fraqueza. Mas o senhor não tem por que estar ouvindo estas jeremiadas...

– Repito que você é um homem bom, Mendes.

– Qual nada, padre! Quer saber mesmo o que sou? Um cachorro servil que lambe as botas dos que lhe dão pontapés no rabo. Um simples vira-lata, isso é o que eu sou.

Como única resposta pousei a mão no ombro daquele pobre homem, procurando dizer com esse gesto o que não saberia exprimir com palavras que não soassem falso.

A caminho da Vila fui pensando no Mendes. De repente abre-se uma janelinha inesperada numa alma, a gente espia para dentro, mesmo sem querer, e o que vê nos surpreende, dando-nos uma visão diferente desse ser. Como se pode “julgar” (verbo paranóico que deve ser substituído por “compreender^, mais cristão) um homem só pela fachada da “casa de seu sef, ou pelas palavras que ele pronuncia na língua cotidiana e imperfeita dos homens? Lembrei-me de que um velho tropeiro um dia me disse: “Olhe, moço, ninguém é o que parece. Nem Deus”.

O Pe. Pedro-Paulo larga a caneta, relê o que escreveu duma só assentada e conclui que estas páginas incriminam Romero, os vultos desconhecidos da outra margem, o Mendes e a si mesmo.

E então, para tornar este trecho de seu diário ainda mais comprometedor, escreve, em letras de imprensa, VALENTINA, num ímpeto que tem algo de suicida. E fica a olhar com ternura para esse nome...

 

Pouca gente dormiu naquela noite em Ântares – a maioria por causa da presença dos sete mortos na praça e do calor opressivo, mas alguns porque pensavam nas possíveis conseqüências das denúncias de Barcelona, que haviam maculado a honra de tantas damas e cavalheiros da sociedade local.

Alguns maridos cujas mulheres tinham sido acusadas publicamente da prática de adultério, aproveitaram o pretexto para abandonar a casa da família legítima e ir passar a noite com as respectivas amantes e filhos naturais.

Fechado num quarto, ainda preso numa camisa-de-força, Egon Sturm planejou e executou um massacre de seis milhões de judeus, conquistou a Polônia, a França, a Inglaterra, a Rússia Soviética, os Estados Unidos e – já que estavam perto – mais a Argentina e o Uruguai. E instituiu assim o Quarto Reich, que durou mil anos.

Vivaldino Brazão dormiu apenas duas horas, e durante esse tempo teve um pesadelo do qual despertou aos gritos, com dores em todo o corpo. Sonhou que uma de suas orquídeas, transformada numa gigantesca flor carnívora de pútridas emanações, devorava-o aos poucos, partindo-lhe os ossos como uma jibóia tritura um boi antes de o engolir.

Em muitas casas as velas dos oratórios passaram boa parte da noite acesas, e por suas peças sombrias vagueavam homens e mulheres insones, como sonâmbulos ou fantasmas domésticos.

Pouco depois da meia-noite terminou a sessão de Assembléia Geral do sindicato dos industriados. Posta em votação a proposta de Geminiano Ramos para que se levantasse o cerco do cemitério “em vista dos acontecimentos” foi ela aprovada por grande maioria; nomeou-se uma comissão de três membros para, nas primeiras horas da manhã, levar ao prefeito municipal a notícia dessa decisão.

O Dr. Lázaro Bertioga, que depois do confronto na praça com os defuntos não tivera a coragem de voltar para sua casa e enfrentar os seus familiares, passou a noite inteira em vigília (benzedrina) à cabeceira do Cel. Vacariano, cujo estado de saúde era bastante satisfatório.

O acontecimento mais importante daquela noite teve como local a residência de Tranqüilino Almeida, que lá congregou velhos amigos e companheiros de aventuras aduaneiras, mesas de jogo e noitadas em pensões de mulheres, e lhes disse, ao final duma arenga: “Bom, minha gente, já que as autoridades competentes não fazem nada, nós cidadãos temos que agir. Não podemos permitir que esses defuntos fiquem aí na praça empestando o ar da nossa cidade e pondo em perigo a saúde da nossa população. Vou expor a vocês o meu plano. Prestem toda a atenção”.

 

Foi em conseqüência dessa reunião que os moradores das casas da praça e arredo.es foram surpreendidos, ao raiar do dia seguinte, por um tiroteio cortado de gritos de guerra. Os que acorreram às suas janelas presenciaram, à luz cinzenta do alvorecer, um espetáculo impressionante. Uns quinze ou vinte homens, com as caras tapadas por lenços, como os salteadores de estradas dos antigos romances de capa e espada, carregando alguns deles sacos que pareciam conter objetos sólidos, alvejavam com tiros de revólver os urubus que cercavam o coreto. Algumas dessas aves juncavam já o chão, mortas ou agonizantes, ao passo que as outras alçavam o vôo rumo do livido céu do amanhecer.

E quando o último urubu desapareceu e o primeiro sol dourou as faces dos defuntos, Tranqüilino Almeida e seus homens – pois eram eles os “embuçados da alvorada” (frase do Lucas F aia) – executaram a segunda parte de seu assalto à pequena cidadela dos mortos. Formando uma linha, a uns quinze metros do coreto, tiraram dos sacos pedras, garrafas vazias e pedaços de madeira pesada e começaram a arremessá-los como projéteis contra os sete cadáveres. Uma pedrada atingiu o Dr. Cícero Branco em pleno rosto. Outra quebrou um dente de Barcelona. Uma garrafa de Coca-Cola bateu em cheio nos peitos de D. Quitéria Cam-polargo. Pudim de Cachaça recebeu à altura do estômago o impacto dum tijolo arremessado com força, e caiu de costas. Erotildes deitou-se de borco no chão de cimento do coreto para proteger-se. O maestro Menandro Olinda manteve-se sentado, impassível, escondendo apenas as mãos. Barcelona apanhou do pavimento o tijolo que derrubara o ca-chaceiro e jogou-o de volta contra o assaltante mais próximo, atingindo-o de raspão na testa. Em seguida uma chuva de pedras e garrafas caiu sobre a cabeça e o corpo do sapateiro. Cícero Branco tirou do bolso do casaco um lenço branco e, erguendo o braço, sacudiu no ar essa improvisada bandeira de paz, ao mesmo tempo que bradava: “Armistício! Armistício!”.

Na sua fúria agressiva, os embuçados não entenderam o gesto do advogado dos mortos e continuaram o assalto. Tranqüilino gritou uma ordem: “Cessa fogo! Cessa fogo! Cessa fogo!”. Seus companheiros, ofegantes, obedeceram. “Peço cinco minutos de trégua” – disse Cícero – “para consultar meus constituintes!”

Dirigiu-se primeiro à matrona dos Campolargos que, de cabeça baixa, olhava para os cacos da garrafa de Coca-Cola com que fora alvejada.

– D. Quitéria, agora, mais que nunca, estou convencido de que somos considerados indesejáveis em Antares. Os vivos nos repelem. Nossa presença na realidade só tem trazido desavenças, desuniões e dissabores para nossos conterrâneos.

É triste – murmurou a velha – muito triste a gente descobrir depois de morta que não é querida nem respeitada na sua terra natal. E os Campolargos estão radicados em Antares há mais de um século!

– Mas que é que você propõe? – perguntou Barcelona, que tinha na mão uma garrafa de litro, disposto a continuar a refrega.

– Proponho que voltem«« todos imediatamente para os nossos caixões.

– Mas... e a greve?

– Ora, que os vivos cuidem dos vivos. E enterrem os mortos quando puderem. Está em votação a proposta de abandonar incondicionalmente nossa posição sem mais delongas. Quem estiver de acordo levante a mão.

Todos levantaram, menos Barcelona, qué queria continuar a guerra, e o Prof. Menaridro, que possivelmente achava uma indignidade usar para esse propósito as suas mãos de artista do teclado.

Junto da balaustrada do coreto, João Paz parecia procurar com os olhos, ansiosamente, alguém ou alguma coisa. De súbito surgiu numa boca de rua o Pe. Pedro-Paulo, que lhe fez um sinal e gritou, sorrindo: “A Virgem e o Menino já estão no Egito”. O rosto de Joãozinho como que se iluminou dum sol interior.

Cícero Branco dirigiu-se aos assaltantes:

– Cavalheiros, compreendemos a vossa “insinuação”. Comunico-vos que vamos voltar imediatamente para os nossos lugares. Queiram, pois, abrir caminho...

Tranqüilino Almeida deu dois passos à frente e, de pernas abertas, mãos na cintura, cabeça erguida, como um general vencedor, deu-se o luxo duma generosidade:

– Querem transporte?

Quem respondeu foi a própria Quitéria Campolargo, que se ergueu, altiva, compôs o vestido e disse:

– Não aceitamos favores de trogloditas. Vamos a pé mesmo.

Cícero Branco deu-lhe a mão para ajudá-la a descer os três degraus do coreto. E os sete mortos, na mesma formação em que haviam descido a Voluntários da Pátria, subiram a mesma rua, rumo do cemitério. O Prof. Menandro, ainda dentro do coreto, olhou em torno da praça e bradou:

– Cidade sem alma! Cidade cruel! Cidade sem amor! O que te falta é música! Eu devia odiar-te, sacudir às tuas portas o pó das minhas sandálias, mas o meu coração não abriga nenhum sentimento mesquinho. Deixo aos meus conterrâneos, que nunca me compreenderam, esta última mensagem, na mais maravilhosa das línguas do universo.

Abriu os braços e cantou para a cidade, para o rio, para o céu, para a manhã, com toda a misteriosa força de seus pulmões carcomidos, a frase inicial da Appassionata. E foi nesse exato momento que o assaltante que havia sido atingido pelo tijolaço de Barcelona tirou do bolso um ovo podre, fez pontaria e atirou-o na cabeça do maestro. O ovo se partiu contra a testa olímpica. Sua gema, dum amarelo sujo e fétido, e a sua gosmenta clara escorreram pelo rosto do pianista. Menandro Olinda, porém, cruzou as mãos sobre o peito, desceu a escada e seguiu os companheiros, rua acima.

E lá se foram os mortos, envoltos numa nuvem de moscas. Aproximadamente meia hora mais tarde chegaram aos muros do cemitério, e cada um deles se postou ao pé do seu esquife.

– Companheiros! – exclamou o Dr. Cícero Branco. – Nossa aventura terminou. Fostes maravilhosos clientes. Convido-vos agora a voltar aos vossos lugares.

Ajuda D. Quitéria a acomodar-se no seu caixão. E ela lhe sorri tristemente antes de fechar os olhos. Barcelona faz o mesmo com Erotildes, que, antes de deitar-se, diz: “Foi lindo, na praça, com todo aquele povo olhando pra gente, bem como num circo. N,unca mais vou esquecer...”.

“Pobre da Natalina!” – suspira Pudim de Cachaça, retornando ao seu rústico caixão sem verniz. João Paz estende-se no seu esquife, em silêncio, mas sorrindo, e tem de usar o braço direito para puxar o esquerdo, que ficou caído para fora. O maestro Olinda deita-se no seu ùtero de madeira, olha enamorado para as próprias mãos e depois as aninha carinhosamente no còncavo do magro peito. D. Quita, sem abrir os olhos, murmura: “Agora, sim, vou ver Deus”. Barcelona aperta a mão de Cícero e volta para o seu caixão, dizendo.- “Limpei o peito, disse o que quis pr’aqueles burgueses, morro feliz”. O advogado sorri: “Barcelona, faz três dias que você está morto. Mas isso é um pormenor sem importância. Afinal de contas, que é o tempo e o calendário para quem já está na Eternidade?”. E com estas palavras o bacharel Cícero Branco acondiciona-se na sua negra caixa, cruza as mãos sobre o abdome e cerra os olhos.

São exatamente seis e vinte da manhã de sábado, 14 de dezembro de 1963.

 

Um pouco antes das nove horas dessa mesma manhã alguns automóveis pararam à frente do cemitério e deles apearam as autoridades municipais e uma meia dúzia de homens desses em geral designados pelos jornais como “pessoas gradas”. Tanto as autoridades como os medicos do departamento de higiene local tinham as cabeças cobertas por máscaras contra gases lacrimogêneos. Aproximaram-se dos sete caixões e examinaram os defuntos, um a um. O Mendes – facilmente reconhecível pela sua altura, apesar da máscara, tomava notas numa caderneta. Os médicos fizeram um exame perfunctório nos cadáveres, reconfirmaram-lhes os óbitos, e ordenaram fossem todos sepultados sem tar-dança.

Postos ao corrente dos últimos acontecimentos, as quatro filhas e os quatro genros de Quitéria Campolargo haviam chegado a tempo para a cerimônia do sepultamento da anciã. Não houve discursos. O Pe. Gerôncio sussurrou uma breve oração ao pé do fèretro. Os familiares da defunta receberam novos abraços de pêsames à frente do suntuoso mausoléu de mármore dos Campolargos. Um amigo da família – sujeito proverbialmente curioso – chamou à parte o genro veterinário e, numa espécie de corredor entre dois túmulos de alvenaria, manteve com ele um breve diálogo:

– É verdade mesmo, nosso amigo, que D. Quitéria atirou as suas mais belas jóias no vaso sanitário e puxou a corrente?

– É verdade – confirmou o genro – mas por sorte nossa o cano entupiu e conseguimos recuperar o broche, o colar, os brincos e a pulseira. Infelizmente perdemos o anel com o solitário...

– Logo a jóia de maior valor! – lamentou o amigo da família, sacudindo a cabeça, penalizado. – E dizer-se que essa preciosidade se foi Uruguai abaixo, misturada com todas as porcarias da população de Antares. .. É uma ironia da sorte.

– O que é que vai se fazer? – suspirou o veterinário.

– Mas não perca a esperança, meu caro. Deus é grande. Contrate um escafandrista para mergulhar perto dos canos de despejo da cidade. A jóia é pesada, pode ter ficado cravada na areia do fundo do rio. Pense nisso. Contrate um escafandrista e confie na Providência Divina.

Rosinha foi a única pessoa que compareceu ao enterro de Erotildes no cemitério dos indigentes. Trouxe-lhe algumas flores que roubara do jardim dos Campolargos e entre as quais se viam algumas das rosas queridas de D. Quitéria.

Uma comissão do sindicato dos industriários representou a classe no enterro do Barcelona. A pedido do prefeito não houve discursos. Outra comissão operária esteve presente, também em silêncio, ao sepultamento de João Paz.

Alambique veio com o seu violão prestar uma homenagem a seu velho companheiro de serestas. Sentou-se num túmulo próximo do lugar onde haviam “plantado” o seu amigo, cruzou as pernas, tirou uns ponteios do violão e depois começou a cantar a valsa preferida do Pudim de Cachaça, aquela que começa dizendo que “amar é um holocausto de palpitações”. Um cavalheiro bem vestido aproximou-se dele, tocou-lhe o ombro com a ponta dos dedos e disse-lhe que era um sacrilégio cantar no cemitério. Alambique respondeu que sacrilégio mesmo era não cantar. E continuou entoando a valsinha.

Ninguém esteve presente ao ato de sepultamento do maestro Menandro Olinda. Dois coveiros fecharam-lhe o caixão, jogaram-no no fundo da cova e puseram-se a atirar-lhe terra em cima. Mais tarde, porém, foi muito comentado um fato curioso então ocorrido. Um passarinho saiu de dentro duma casuarina próxima, pousou no monticulo de terra da sepultura do pianista e rompeu a cantar, como numa espécie de oferenda musical ao artista que ali jazia.

E depois que todos haviam deixado o cemitério – os sete mortos já devidamente sepultados – o Pe. Pedro-Paulo andou a vaguear por entre as sepulturas, pensando nos mortos e nos vivos e se fazendo a si mesmo perguntas às quais nem ele nem ninguém no mundo poderia responder.

 

Deus é bom. Cedo, na manhã daquele sábado – verdadeira aleluia para os antarenses – um vento forte começou a soprar em Antares, de leste para oeste, varrendo na direção da Argentina e de outras repúblicas vizinhas, os miasmas e o mau cheiro deixado pelos mortos na Praça da República e arredores.

O sino da Matriz bimbalhou festivamente, e o seu canto parecia vir do próprio sol – “esse sino de ouro que o Criador pendurou no campanário do infinito”. (Frase dum literato local menor.)

Homens, mulheres e crianças apareceram às suas janelas ou saíram de suas casas para as ruas. Vizinhos cumprimentavam-se, abraçavam-se, trocavam-se frases de alívio ou queixa, contavam uns aos outros os padecimentos, sustos e terrores daquelas últimas vinte e quatro horas. Pareciam habitantes duma cidade sitiada que acaba de ser libertada. Os nomes de Tranqüilino Almeida e de seus “embuçados da alvorada” andavam de boca em boca. Para a maioria ele era um heróico cabo-de-guerra que, com um punhado de bravos, havia, num golpe de audácia, livrado a cidade do inimigo invasor. Outros, porém, censura/am-lhe a drástica brutalidade do gesto.

Uma senhora de boas letras, cabelos soltos, assomou à janela de sua casa, encheu os pulmões de ar limpo, os olhos de sol, os ouvidos de sinos e rompeu a recitar em altos brados um poema de Mário Quintana:

E os sinos dançam no ar. De casa a casa, os beirais, – Para lá e para cá – Trocam recados de asas, Riscando sustos no ar. Silêncio. Sinos. Apelos. Sinos. E sinos. Sinos. E sinos. Sinos. Pregoeiros. Sinos. Risadas. Sinos. E levada pelos sinos, Toda ventando de sinos, Dança a cidade no ar.

Antares parecia mesmo dançar. As suas árvores estavam também desnastradas como a poética senhora. Por um passe de mágica da luz, as fachadas das casas pareciam todas pintadas de fresco. O rio, reverberando a claridade da manhã, estava como que todo encrespado duma alegria bi-nacional.

O vento, porém, cessou de soprar. Os sinos da Matriz emudeceram. Nuvens brancas esconderam por uns momentos o sol. E foi como se todo o horror de repente tivesse voltado.

A Praça da República era agora uma espécie de território tabu. Não foi fácil para o Mendes fazer que lixeiros da prefeitura pisassem os gramados e sendeiros daquele logradouro público para recolher não só os urubus e os ratos mortos, como também todo o cisco que a multidão lá deixara depois do terrível confronto de sexta-feira, e ao qual se somavam os projéteis usados contra os mortos pelos granadei-ros de Tranqüilino Almeida.

 

Cerca da uma da tarde chegaram a Antares dois automóveis vindos de Porto Alegre, trazendo repórteres e fotógrafos do Correio do Povo, do Diário de Notícias, da Folha da Tarde e da Ultima Hora, e mais um cinegrafista da Rádio e Televisão Gaúcha. Os carros estacaram à frente do edifício da prefeitura. Obsequioso e apreensivo, o Mendes tratou logo de tomar conta do pessoal da imprensa da capital.

– Onde estão os defuntos? – perguntou logo o repórter do Correio do Povo, um sujeito com uma barbicha à Dom Quixote e que parecia (ou fingia) acreditar em almas do outro mundo.

– No cemitério – respondeu o Mendes, entre gaiato e desenxabido.

Os jornalistas olharam decepcionados para o coreto vazio. Os fotógrafos começaram a trabalhar, tirando instantâneos de rua e fotografando o coreto e a praça. O cinegrafista subiu ao alto do campanário da Matriz e de lá filmou panoramicamente Antares, o rio e arredores.

Crivado das frechas das perguntas dos forasteiros, como um moderno São Sebastião, o Mendes suportou como pôde o seu martírio, respondendo a todas as curiosidades de maneira ambígua mas sempre amável:

– Temos muito tempo para esclarecer o caso – declarou por fim. – Já almoçaram? Não? Pois um suculento churrasco e uns franguinhos dourados com polenta esperam vocês na Rosa do Pago. Vamos embora, pessoal.

Foram, comeram, beberam e o Mendes os entreteve como lhe foi possível. À hora do cafezinho o. Maj. Vivaldino apareceu, cordial, brincalhão, distribuindo abraços e agradecimentos. Sentou-se à cabeceira da mesa, indagou dos rapazes sobre a longa viagem e finalmente, com um sorriso meio contrafeito, disse:

– Então vocês caíram no meu conto, hem?

– Como assim, prefeito? – admirou-se o barbicha. – Quer dizer que toda essa estória...

– Mas, meu filho, então você, um rapaz inteligente e instruído, engoliu essa potoca de que sete defuntos se levantaram de seus caixões e vieram caminhando até à praça para conversar com os vivos?

– Bom – replicou o repórter – acreditar mesmo não acreditamos. Viemos averiguar o que houve. Porque algo houve, não me diga que não. Foi o senhor quem telefonou em pessoa ao nosso diretor, contando o fato...

Vivaldino improvisou:

– É que no outono do ano que vem pretendemos organizar aqui em Antares uma feira agropastoril e precisamos chamar a atenção de todo o Brasil para a nossa cidade. ..

Os repórteres entreolharam-se em silêncio. O Mendes pigarreava repetidamente, embaraçado.

– Naturalmente – prosseguiu o prefeito – todas as despesas desta viagem de vocês vão correr por conta da prefeitura, isso para não falar nos anúncios e reportagens pagas que vamos fazer nos jornais e nas estações de rádio e televisão que vocês representam, etcetera, etcetera e tal...

 

Depois do almoço os repórteres saíram a entrevistar pessoas que encontravam na rua. Das cinco primeiras interrogadas, uma esquivou-se, mas as quatro restantes declararam ter visto, ouvido e até cheirado os defuntos.

– Mas o prefeito nega que a coisa toda tenha acontecido – observou um dos jornalistas. – Diz que tudo foi uma invenção da prefeitura para fazer publicidade para a feira agropastoril do ano que vem.

– Qual feira qual nada! Não ouvi ninguém falar nisso.

– Então por que o Maj. Vivaldino está procurando esconder o fato?

O entrevistado olhou para os lados, cauteloso, e baixou a voz:

– O prefeito nega tudo porque ontem ao meio-dia ná praça houve um bate-boca danado entre os defuntos e as autoridades. Um dos mortos disse o diabo do governo municipal, ladroeiras, concorrências fraudulentas, cobras e lagartos. Depois outro defunto começou a revelar os podres da cidade. O delegado de polícia foi acusado de ter torturado e assassinado um dos defuntos. O meu nome? Não digo, que não sou besta. A corda sempre rebenta do lado mais fraco. Até logo, moçada!

O diálogo foi gravado em fita magnética. Os repórteres procuraram o juiz de Direito, que, para não os receber, alegou que estava indisposto, o que não deixava de ser verdade. O Dr. Lázaro Bertioga recusou terminantemente abrir a. boca sobre o assunto, invocando o juramento de Hipocrates. Os próceres locais, na sua totalidade, fecharam-se como ostras cívicas para proteger as pérolas dos tremendos segredos da sua comunidade.

A conselho dum popular, os jornalistas procuraram Yaroslav, o fotógrafo da praça.

– É verdade que você viu os sete mortos no coreto e os fotografou?

– É. Juro por Deus.

– Onde está a foto?

O tcheco mostrou-lhes o postal, que os repórteres examinaram demoradamente.

– Mas onde estão os defuntos? Aqui só vemos o coreto.

– O olho da minha máquina não enxergou eles. Só o méu. Vocês nunca leram nada sobre vampiros e fantasmas? Dizem que ás figuras deles não aparecem nunca em espelhos e também não podem ser fotografadas.

Os jornalistas, desapontados, devolveram ao lambe-lam-be a sua discutida fotografia e se foram, convencidos agora de que toda aquela estória não tinha passado mesmo duma grande mistificação, duma brincadeira de mau gosto e, na mais remota e menos provável das hipóteses, dum caso de alucinação coletiva.

Já o Dr. Mirabeau da Silva lhes dissera, quando entrevistado:

– Os senhores nem parecem pessoas de cidade grande, com experiência em tantos casos de mistificação. Como é que na era eletrônica, no século da cibernética e dos vôos interplanetários é possível a gente ainda acreditar na ressurreição de mortos apodrecidos? – Ao dizer estas palavras deu três passos bruscos à retaguarda. – Nãol Não permito que gravem minhas palavras. Sou um membro do Ministério Público. Também não firmo nenhuma declaração escrita. Prefiro permanecer anônimo. Muito grato por se haverem lembrado de mim. Passem bem.

Os jornalistas confabularam e decidiram continuar as averiguações para ver “até onde a coisa ia dar”. Dirigiram-se para a redação de A Verdade, mas encontraram-na fechada, pois o prefeito, sabendo que Lucas Faia seria fatalmente procurado por seus colegas da capital, ordenou-lhe que se escondesse, alegando que no momento não convi-nha revelar à imprensa o terrível incidente da sexta-feira. Lucas trancafiou-se no sótão da casa dum amigo. Não estava disposto a dar informações aos colegas, da capital porque ele queria ser o primeiro jornalista a escrever sobre “o fato”.

O proprietário do Salão Bela Sicilia declarou a um dos repórteres :

– Sou um homem simples, mas não tenho medo da verdade. Por esta luz que me alumia, juro que vi o cadáver do Prof. Olinda subir essas escadas (e os degraus por sinal rangiam) e depois ouvi o homem tocar lá em cima a música que costumava bater todos os dias, desde que mudei para ca o meu salão, faz uns dez anos. E um troço de Beethoven, parece. Mais ou menos assim...

Parou de trabalhar e, com tesoura e pente nas mãos, assobiou, desafinado e engolindo notas, algumas frases da Appassionata.

 

O repórter da barba quixotesca teve a idéia de visitar o Bar Bacuá, ponto de reunião da gente moça, em geral estudantes de Antares, e conversar com seus freqüentadores. Teve a melhor das acolhidas. Andou de mesa em mesa. Começou na dos comunistas – linha de Moscou. Passou depois para os que seguiam a orientação de Mao Tse-Tung, que não gostaram de ter sido visitados em segundo lugar, mas logo esqueceram o agravo, pois se tratava duma causa comum das esquerdas, isto é, – a desmoralização da burguesia local. O pessoal da linha cubana também confraternizou. Por fim o Barbicha (como já era conhecido na cidade) foi sentar-se à mesa do único representante local do trotskismo, um sujeito magro, de meia-idade, que tomava solitário a sua cerveja a uma mesa de canto. Todos os freqüentadores do Bar Bacuá afirmaram ter sido testemunhas visuais, auditivas e olfativas do “fenômeno”.

– Mas como pode um fato sobrenatural cpmo esse realmente acontecer? – perguntou o repórter do Correio do Povo.

Um dos rapazes (três prisões, um espancamento) a-pressou-se a dizer:

– No sistema capitalista, meu amigo, todos os absurdos são possíveis.

O repórter cocou a barba, pensativo:

– Quantos de vocês – perguntou – estariam pendurados nas árvores ao redor do coreto, quando esse... esse diálogo se processou?

– Uns cinqüenta ou sessenta... talvez mais.

– Mas não estariam todos já de pileque?

– Ao meio-dia, companheiro? Que é isso?

Por fim o repórter retirou-se, seguido- pelo fotógrafo, seu fiel escudeiro. Como a vida nem sempre imita a arte, o jornalista de barba quixotesca era de estatura mediana efornido de carnes. Seu Sancho Pança era alto e magro corno o Quixote de Cervantes.

Ambos decidiram visitar o Kafé Kafka. Era uma espécie de clube exclusivo que tinha apenas doze sócios (estudantes ricos e esnobes) e cuja sede – um porão que imitava uma cave existencialista parisiense – só se abria durante as férias de verão. (Afirmavam seus sócios que em matéria de literatura, fora de Kafka, Joyce e Proust não havia salvação.) Encontraram apenas dois dos sócios sentados a uma mesa, em silêncio, bebendo anisete com ar entediado.

O mini-Quixote disse quem era e a que vinha.

– Nada de fotografias – foi logo dizendo um dos kafkianos, olhando para o anguloso escudeiro.

– Dá o fora! – disse o jornalista ao fotógrafo, que obedeceu à ordem imediatamente.

O repórter esperou, mas em vão, que o convidassem a sentar-se. Interrogados sobre o “estranho incidente”, um dos freqüentadores do K.K. deu de ombros, dando a entender que o assunto não merecia o seu interesse. O outro falou, lento, sem emoção:

– Estive na praça por puro desfastio. E li apenas a primeira página dessa ridícula estória.

– Leu?

– Sim, porque a coisa toda não passou da paródia dum conto gótico... Antares é um caso perdido. Podendo ter sido cenário duma novela kafkiana de boa qualidade, contentou-se com um Edgar Poe de terceira ordem.

O repórter não se conteve e disse:

– Pois então, meninos, vão pro Kafka que os pariu! – E retirou-se, rindo.

 

Os repórteres dirigiram-se para a Vila Operária, onde entrevistaram o Pe. Pedro-Paulo, que lhes disse:

Se eu começar a contar a vocês o que vi. e ouvi nestas últimas trinta horas, eu mesmo acabarei duvidando não só das minhas palavras, como também da minha memória e até da minha razão. Querem um conselho? Deixem os mortos em paz. Tratem dos vivos ou, antes, dos subvivos.

– Que subvivos?

– Os marginais que se encontram numa condição mais animal do que humana. Os nossos favelados. Vou levar vocês a uma grande metrópole da miséria. Chama-se Babilônia. Excelente assunto para uma grande reportagem ilustrada para os jornais e para a televisão... Posso servir-lhes de cicerone. Aceitam a sugestão?

– Vamos embora! – disse o Barbicha, entusiasmado. E o escudeiro repetiu num eco: “Vos bora!”.

E foram. Ao avistarem o sky line da Babilônia os jornalistas ficaram alvorotados.

– O senhor vai ser o nosso Virgílio – disse o Barbicha ao jovem sacerdote que ia a seu lado no automóvel. – Vamos entrar no Inferno.

O Pe. Pedro Paulo sorriu com tristeza:

– Só que – murmurou – modéstia à parte, o inferno que vocês agora vão ver é pior, muito pior que o de Dante. Não tem rima nem razão.

Ao saber dessa visita, o prefeito ficou furioso:

– Padre safado, filho duma mãe! Por que não mostrou a esses meninos de Porto Alegre as coisas boas de An-tares? Os bueiros novos, as ruas calçadas, os silos de alumínio, as nossas fábricas...

– A sua coleção de orquídeas – acrescentou o Mendes, entre adulão e irônico.

– Sim, e por que não? – vociferou Vivaldino. – A minha coleção de orquídeas. Tudo menos a Babilônia!

O secretário, que já havia empinado uns copinhos de cachaça, insistiu:

– Afinal de contas, chefe, a Babilônia é a maior favela desta região do Rio Grande. Para igualar a Babilônia da antigüidade, a “verdadeira”, só faltam à nossa os jardins suspensos.

– Ora, vai-te àquele lugar, Mendes!

 

Às cinco horas daquela tarde o prefeito ofereceu aos jornalistas forasteiros, no salão de festas da prefeitura, um coquetel para o qual convidou algumas das pessoas mais representativas da sociedade local. Improvisou um discurso em que pretendeu fazer humorismo, mas que na realidade foi, além de insosso, incoerente. Enquanto ele falava, o repórter quixotesco cocava a barbicha, cocando-o com os seus agudos olhos de águia, que lembraram ao prefeito os dos urubus que ele entrevira na praça, no fatal meio-dia de sexta-feira. E, em última análise – refletiu mais tarde o major – que eram aqueles homens de imprensa senão abutres descidos das alturas para bicar as carnes cansadas duma população e duma cidade recém-libertas dum medonho .pesadelo?

Mal o Maj. Vivaldino terminou a sua oração – aplaudida com falso entusiasmo pelos seus concidadãos e já agora cúmplices – o Mendes irrompeu na sala e entregou ao seu chefe um telegrama, que o prefeito leu de cenho cerrado, movendo inaudivelmente os lábios. Depois assumiu um ar solene, olhou~ em torno, pediu a atenção dos presentes e proclamou :

– Senhores, a greve geral terminou! Os operários do Frigorífico Pan-Americano, os da Cia. Franco-Brasileira de Lãs e os da Cia. de óleos Comestíveis conseguirarri todas as suas reivindicações.

Amassou o telegrama num gesto colérico e acrescentou, em voz baixa: “O Brasil está caminhando para o caos com esse governo trabalhista esquerdizante!”.

Os jornalistas da capital saíram da prefeitura e foram entrevistar os líderes da greve. Geminiano Ramos e seus companheiros estavam gloriosos. E aquela noite os fotógrafos e os cinegrafistas puderam fotografar e filmar mais de oitocentos operários que desfilaram pelas ruas centrais da cidade numa marcha au flambeatix, que Lucas Faia espiou por uma fresta de janela do sótão onde ainda continuava escondido.

No dia seguinte pela manhã a caravana de gente da imprensa voltou para Porto Alegre.

 

Na missa das onze daquele domingo – a “missa chi-quérrima”, no dizer de Scorpio – o Pe. Gerôncio, com voz débil, pregou um sermão cheio de misteriosas alusões e subentendidos. (Os católicos deviam estar em permanente prontidão, em incessante vigilância, pois Deus às vezes mandava seus avisos e recados nas formas mais imprevistas, em linguagem codificada que era preciso a gente aprender a decifrar corretamente.) Não fez; porém, nenhuma alusão direta aos macabros acontecimentos da antevéspera e da véspera. Foi uma missa triste, quase como as de sétimo dia.

Aos poucos retornavam a Antares as famílias abastadas que, ao aparecimento dos “intruses de além-túmulo”, haviam fugido para as suas estâncias ou chácaras. A Praça da República continuava deserta, o coreto vazio, os passarinhos ausentes. Uma certa atmosfera de fim de mundo parecia ter contaminado as árvores, a terra, os bancos, as. flores e até as pedras.

E em toda a história daquela comunidade – comentavam os moradores mais antigos – nunca houve um domingo tão monótono e vaziamente domingo como aquele.

Na véspera, à noite, notara-se uma certa alegria – talvez um tanto infantil – quando as luzes das lâmpadas das ruas tornaram a acender-se, finda a greve.

Mesmo na segunda-feira, quando as casas de negócio, os restaurantes e cafés de novo abriram as suas portas e os carros de aluguel voltaram a trafegar – uma baça tristeza continuou a pairar sobre a cidade e as almas. Parecia que, passada a explosão de alegria e alívio causada pela retirada dos mortos – efusão essa, entretanto, que durara apenas algumas horas – Antares e sua população haviam caído numa espécie de marasmo melancólico que – quem sabe?

– podia ser uma espécie de misteriosa e paradoxal saudade da situação de angústia, ou então uma retardada ressaca daquela espécie de bebedeira de terror. As pessoas agora pouco se falavam umas com as outras, às vezes mal se olhavam ao se cruzarem nas ruas. O veneno destilado na praça pelas palavras do sapateiro anarco-sindicalista fazia ainda o seu efeito. Alguém disse, com certa propriedade, que não só as pessoas como a própria cidade – casas, ruas, rio, céu – pareciam desapontadas, envergonhadas.

O Cel. Tibério Vacariano melhorava, mas o Dr. Lázaro evitava sair à rua e, quando saía, era no seu automóvel preto e, se tinha de andar a pé uma quadra ou duas, caminhava rente às paredes, sem olhar para os lados.

O Prof. Libindo Olivares teve alta do hospital onde tivera de ser internado, mas trancou-se em casa, não compareceu ao colégio, temendo um confronto com os estudantes. As cartas anônimas continuavam, tecendo os fios de novas intrigas ou reforçando os das antigas. O farmacêutico genro de Quitéria Campolargo recebeu um bilhete em que o Anjo da Verdade lhe contava que sua esposa – dele, farmacêutico – fora acusada de adúltera em plena praça pública. O boticário suspirou, triste mas resignado, pois não ignorava a paixão de sua mulher pelo çaixeiro-viajante ruivo – mas queimou o bilhete na chama do fogareiro em que cos^-tumava aquentar a água para o chimarrão das dez, na sua farmácia, cujo movimento aumentara sensivelmente durante a crise e que agora mesmo esgotava todo o seu estoque de alfazema, benjoim, incenso e de vários desinfetantes. Úm amigo a quem ele contou isso, lhe disse com péssima pronúncia que à quelque chose malheur est bon.

O genro veterinário escreveu a um amigo em Porto Alegre consultando-o sobre a possibilidade de contratar um es- cafandrista, homem de absoluta confiança, para uma “operação delicada em Antares”; e pediu preço.

O genro comerciante – proprietario, entre outras coisas, de cinco açougues – observou que desde o aparecimento dos defuntos o consumo de carne na cidade diminuíra sensivelmente, e as vendas continuavam ainda fracas.

E o dentista, seguindo o seu pendor estatístico, fez para uso próprio e dos amigos mais chegados um levantamento dos danos morais causados na sociedade local pelas intrigas do Barcelona. Chegou ao seguinte resultado, “salvo erro, engano ou omissão”: Doze separações de casais seguidas de oito reconciliações. Quatro casais “estranhados” porém mais tarde reconciliados. Três maridos que deram su-mantas nas esposas. Duas esposas que agrediram fisicamente os maridos. Dois duelos a bala, do qual resultaram dois feridos, mas sem gravidade. Três homens fugidos da cidade. Incontáveis pessoas que se haviam cortado o cumprimento umas às outras. No setor “saúde” – trinta e dois acessos nervosos, vinte e cinco ataques cardíacos, mas nenhum fatal, e dezenas de casos de disenteria e outros distúrbios gástricos. E, rematando a sua proeza estatística, o dentista concluía: “Por tudo isso a esta hora aquele maldito sapateiro deve estar se retorcendo de dor nas chamas do inferno, enquanto diabinhos lhe arrancam a língua com torqueses de ferro em brasa”.

A todas essas os “rapazes do Bar Bacuá” e outros “moleques” andavam insolentes pelas ruas, soltando risadas e dirigindo dichotes a mocinhas e senhoras, e escrevendo a giz nas calçadas e a piche nas paredes as maiores imoralidades, entre as quais as mais leves eram: “Fulana é puta. Fulano é corno”. Apareciam também nas paredes e muros frases de sentido político como – “A sociedade de Antares está podre. Antares é o símbolo da burguesia capitalista decadente”.

Inocêncio Pigarço aumentou o número de soldados que patrulhavam as ruas durante a noite. E, como era de se esperar, efetuou várias prisões não só de jovens apanhados em flagrante como também de suspeitos.

 

– Precisamos fazer alguma coisa para levantar o moral do povo de Antares – declarou um dia o prefeito.

E desagravar as pessoas respeitáveis que foram insultadas em público – acrescentou o Mendes, odiando-se a si mesmo por ter feito essa observação insincera e servil.

Quando Lucas Faia procurou o Maj. Vivaldino para lhe dizer que ia publicar em A Verdade – no primeiro número que aparecesse depois do “lamentável incidente” – um grande artigo descrevendo com sabor literário a “visita dos mortos” o prefeito saltou, furibundo:

– Não publique coisa nenhuma! Esse seu artigo não pode aparecer sem a aprovação dos acionistas do jornal. Vou convocar uma sessão aqui na prefeitura para tratar dum assunto que, está me preocupando seriamente. Nessa reunião você poderá ler o seu artigo e sondar as opiniões.

A sessão realizou-se no dia seguinte pela manhã, no salão de honra da prefeitura, com a presença de uns quarenta e poucos representantes do comércio, da indústria, da pecuária e das profissões liberais de Antares, bem como de vários anciãos, cuja sábia opinião era geralmente tida em alta conta na comunidade. A reunião teve caráter rigorosamente secreto. Abriu-a o prefeito, com estas palavras:

– É urgente descobrir um remédio para apressar a cura do povo de Antares, que ainda sofre as conseqüências dum grande choque emocional. Dou a palavra ao Prof. Lá-bindo Olivares, que tem um plano a nos expor.

O sábio local ergueu-se, pigarreou e foi direito ao assunto:

– Que provas materiais, substanciais, temos nós de que realmente sete defuntos desceram sobre a nossa cidade, meteram-se no coreto da praça e de lá insultaram meio mundo? – Olhou em torno, esperando uma resposta, que ninguém deu. O helenista continuou: – Nenhuma! – Tirou do bolso um postal. – Aqui está o coreto que o velho Yaroslav fotografou na hora em que lá estavam ou, melhor, estariam supostamente os sete mortos. Ora. nesta foto o coreto aparece vazio!

Um dos presentes, comerciante de couros, homem ter-ra-a-terra, pediu licença para um aparte:

– Mas professor, milhares de pessoas viram e ouviram os defuntos, inclusive eu, minha mulher e meus filhos...

O professor sorriu :

– Poderemos confiar sempre no testemunho de nossos sentidos? Devemos dar crédito ilimitado à nossa memória?

– Que vamos fazer, então? – perguntou o proprietário, duma casa de jóias.

– Eis o que proponho – respondeu o amigo de Platão, Sócrates e outros filósofos da antigüidade. – Organizar uma campanha muito hábil, sutilíssima, no sentido de apagar esse fato não só dos anais de Antares como também da memória de seus habitantes. Sugiro (aqui entre nós) um nome para esse movimento: Operação Borracha,

Alguns sorriram. Outros menearam a cabeça, incertos. Passou pela mente de Vivaldino Brazão a cadeia carnívora que o devorara em sonhos. O genro veterinário de D. Quita, esse pensava nas possibilidades da sua Operação Escafan-dro.

O helenista prosseguiu:

– Podemos contar com vários aliados nessa campanha, a saber: o tempo, que tem uma função de borracha e de água, pois aos poucos vai apagando e lavando tudo...

Um negociante de lãs, remexendo-se na sua cadeira, objetou :

– O diabo é que o tempo leva tempo para passar.

– Mas passa – replicou o professor. – Pensem ainda em outros aliados naturais: o Bom-Senso Humano. Nenhuma pessoa em sã razão poderá aceitar o fato de que mortos em estado de putrefação pudessem mover-se, falar, pensar, ter memória... Em suma, temos a nosso favor não só a Ciência como também a Experiência Humana. O mundo inteiro se negará a dar crédito a essa... essa lenda macabra!

Lucas Faia suava abundantemente, menos de calor que de ansiedade, pois já compreendera que a publicação de seu grande artigo estava irremediavelmente condenada.

– Mas os senhores já pensaram – interveio, com voz insegura – que só em Antares existem várias centenas de pessoas interessadas em provar ao mundo que aquela cena degradante na praça, ao meio-dia de sexta-feira 13, aconteceu mesmo? Refiro-me a essas aves esquerdistas das mais variadas plumagens... e aos maldizentes profissionais... e aos espíritos de porco... e aos autores das cartas anônimas. .. e... e...

O Prof. Libindo rebateu a bola:

– Aí você chega a um ponto importante. Várias pessoas de reputação ilibada foram injusta e brutalmente atacadas em praça pública. Precisamos fazer alguma coisa para desagravá-las, em nome da segurança de nosso Edifício Social.

O presidente do Liions sugeriu – e nisso foi apoiado peio do Rotary e o do Clube Comercial – que se oferecesse um banquete monstro a todos aqueles, tanto homens como mulheres, cujos nomes tinham sido respingados de lodo pelas calúnias dos falecidos Dr. Cícero Branco e sapateiro José Rüiz. Posta em votação, a idéia foi aprovada unanimemente.

Lucas Faia, que caminhava agora dum lado para outro, ali na sala, como um bicho enjaulado, disse:

– Senhores, não se iludam! A oposição vai espalhar pelo mundo, verbalmente ou por escrito, a sua própria versão do caso. Não seria prudente que nós, os representantes das classes conservadoras...

– Produtoras – corrigiu-o um negociante de calçados.

– Sim, produtoras – repetiu o jornalista – apresentássemos a nossa versão dos acontecimentos? Pensem bem, por amor de Deus! Negar o que se passou é um perigo. E depois, meus amigos e conterrâneos, procurem olhar o fenômeno por outro prisma. Se os fatos forem narrados honestamente, da maneira como aconteceram, Antares gozará o seu momento de notoriedade e aparecerá no noticiário mun-diar, ficará na História.

Um marchante sacudiu a cabeça numa robusta negativa taurina:

– A mim pouco me importa que nossa cidade fique dentro ou fora da História.

Lucas Faia ergueu os braços num apelo patético:

– Senhor prefeito! Meus concidadãos! Peço vènia para ler o artigo que escrevi para aparecer em A Verdade, no número de depois d’amanha. – Tirou do bolso um chumaço de papéis em tiras longas, escritas a mão. Olhou em torno. – Posso começar?

Houve um momento de constrangida indecisão. Alguns dos próceres bocejaram. Outros consultaram acintosamente os seus relógios. O prefeito e o Dr. Lázaro entreolharam-se. O vigário tinha já começado a cochilar.

– Está bem, Lucas – disse Vivaldino. – Leia o seu artigo, mas ligeiro, porque estamos já perto da hora do almoço.

O jornalista começou a ler com voz cuidadosamente modulada, de entonação pausadamente dramática, a sua narrativa dos acontecimentos de sexta-feira 13: a descida dos mortos pela Rua Voluntários da Pátria, semeando o pavor nas almas, o confronto na praça (sem entrar em por-menores), a invasão dos ratos, a presença dos abutres em torno do coreto, etc... etc... A leitura durou mais de meia hora, ao cabo da qual, suando copiosamente, Lucas dobrou os papéis e atochou-os nervosamente num dos bolsos do casaco

– Que tal? – perguntou.

– Uma admirável peça literária – afirmou hipocritamente o Prof. Libindo.

– Muito eloqüente – disse, frio, o juiz de Direito, que durante toda a sessão pensara obsessivamente em Valenti-na, com quem pouco falava depois da noite dos mortos.

– Acho esse artigo uma arma de dois gumes – opinou o promotor, que não simpatizava com o jornalista. – Embora o nosso caro periodista não tenha mencionado em seu brilhante ensaio as calúnias proferidas pelo sapateiro e pelo Dr. Cícero, essa descrição poderá ser útil aos nossos inimigos, pois ela confirma o fato.

Procedeu-se a um rápido plebiscito: o artigo devia ou não ser publicado? O resultado foi um não unânime. (O articulista absteve-se de votar.)

– Mas é uma barbaridade! – exclamou ele. – A me lhor peça literária que escrevi em toda a minha vida!

– Eu o aconselharia até a queimar esses originais – sugeriu perversamente o promotor.

– Seja patriota, Lucas – disse o Mendes. – Faça esse sacrifício pelo bem da sua terra e do seu povo.

– Se eu não noticiar o “fato”, que irão dizer de mim e do meu jornal esses milhares de pessoas que viram... ?

Nesse ponto, Pigarço, que até então se mantivera sentado a um canto, em silêncio, ergueu-se, truculento:

– Viram o quê? Ninguém viu nada, porque nada aconteceu, compreende? E você também vai esquecer o que “pensa que viu”... Está compreendendo?

“Cachorro!” – vociferou em pensamentos o secretário da prefeitura, cuspindo simbolicamente na cara do delegado de polícia.

Lucas Lesma desatou a chorar, como uma criança a quem se nega com maus modos um brinquedo que ela muito deseja. O Mendes segurou-lhe o braço, compassivo, e levou-o para fora da sala.

– Onde vai ser o banquete? – perguntou alguém.

– Sugiro os salões do Comercial.

A aprovação foi geral. Onde melhor?

– Quando? – quis saber o promotor, pensando já no discurso que pretendia fazer na grande ocasião.

– Quanto mais cedo, melhor A coisa tem de sair antes do Natal, não acham?

O promotor propôs que se nomeasse uma comissão de três membros para ir à capital do Estado explicar pessoalmente “o equivoco”, isto é, os “boatos”, ao governador, aos jornais e às estações de rádio e televisão, para que ficasse limpo o nome de An tares.

O Mendes, que voltara à reunião, disse:

– Com a permissão aqui do meu ilustre chefe, proponho que se elejam agora os membros da comissão executiva da Operação Borracha. – E de novo sentindo-se o mais vil e servil dos mortais, acrescentou: – Proponho que o nosso Cel. Tibério Vacariano seja eleito por aclamação seu presidente de honrat

Aplausos unânimes.

 

A verdade, porém, é que, por artes do repórter da bar-bicha quixotesca, os correspondentes das agências de notícias UPI, AP e Frànce Press transmitiram aos jornais do mundo notícias sobre o estranho incidente de Antares, cujo nome assim apareceu em muitos jornais e revistas internacionais naquela semana entre 16 e 22 de dezembro. O Times de Londres noticiou em dez ou doze linhas que os habitantes duma pequena cidade do sul do Brasil, à beira dum grande rio, alegavam ter visto sete mortos erguerem-se de seus es-quifes e descerem para a praça central do lugar. O jornal interpretou o fato como sendo um hoax (mistificação). Já o Ashashi Shinbum, de Tóquio, noticiando a mesma ocorrência, classificou-a como um caso de alucinação coletiva. Mais tarde o magazine Time publicou na sua seção intitulada Latin America uma estória sob a epígrafe Seven Corpses in a Bandstand (Sete Cadáveres num Coreto) em que o incidente de Antares foi narrado em tom de amável sarcasmo e interpretado como tendo sido tudo um ardil da Câmara de Comércio antarense, para chamar a atenção do resto do país sobre a sua comunidade, com finalidade puramente mercantil. Le Monde não tomou conhecimento do assunto. Um diário de Port-au-Prince interpretou o fenômeno à luz do vudu e deu à notícia o título de Le Baron Samedi au Brésil. Outros jornais pequenos e grandes – na Austrália, na Itália, na Áustria, na Holanda e na Bélgica – dedicaram curtos parágrafos neutros ao evento ou pseudo-evento. Um jornal de Berlim Ocidental narrou a “anedota” como um exemplo de humor negro. Já na Alemanha Oriental a estória foi apresentada como uma alegoria ao “apodrecimen-to da sociedade burguesa”. Os periódicos de Atenas nada publicaram, mas em Praga, Istambul e Budapeste o caso chegou deturpado, e Egon Sturm ganhou no “drama” um papel estelar, na qualidade de chefe dum pseudo movimento neofascista clandestino, que tentava implantar o nazismo hitlerista no sul do Brasil. E um nobre inglês empobrecido pelos impostos de pós-guerra, a ponto de ter de abrir as portas de seu castelo ao público, como um museu com entrada paga, escreveu ao Times de Londres uma carta na qual insinuava que só um castelo escocês secular tinha o direito de possuir fantasmas próprios (como era o caso do seu), mas que uma pequena comunidade como Antares, perdida nos confins dum país subdesenvolvido como o Brasil, não podia de maneira alguma gozar daquela pletora de almas do outro mundo. Terminava a missiva censurando o Times pela leviandade de ter noticiado “o grosseiro embuste”.

 

O banquete realizou-se no salão de festas do Clube Comercial. A Verdade publicou – encabeçada pelos nomes do Cel. Vacariano e do Maj. Brazão – a lista de todos os homenageados de “ ambos os sexos, e que eram exatamente aqueles que direta ou indiretamente haviam sido atingidos pelos insultos e calúnias partidos das pútridas bocas do advogado Cícero Branco e do sapateiro José Ruiz. Mas tanto o jornal como os oito oradores que falaram durante aquele banquete de desagravo, tiveram o cuidado de não fazer a menor referência à natureza dos “agravos” e muito menos ao confronto na praça entre vivos e mortos.

Mais de quinhentas pessoas, “o que Antares possui de mais fino e representativo”, no dizer de Scorpio – que no banquete envergou o seu smoking de gola verde, com uma camisa rendada – sentaram-se às longas mesas “em forma de U invertido”, enfeitadas com rosas, gladíolos, jasmins e outras flores. Um gaiato anônimo, que sempre os há, comentou (e a piada se espalhou pela cidade) que só faltava ao arranjo floral alguns cravos de defunto.

O Cel. Tibério Vacariano, que continuava em casa, em convalescença, ouviu os discursos pelo rádio que tinha à cabeceira de sua cama. Os homenageados mais aplaudidos pelos convivas e louvados pelos oradores foram, além do citado varão, o prefeito municipal, o Dr. Lázaro Bertioga, Inocêncio Pigarço, o juiz de Direito e o promotor público. Quando um dos oradores terminou o seu elogio do delegado de polícia – “esse abnegado servidor da Justiça que sacrifica o sono da noite, arrisca a própria vida e a própria saúde na sua luta incessante para garantir a paz e a ordem em Antares, soldado que é da sociedade cristã ocidental, hoje em dia tão brutalmente atacada por grosseiros materialistas a soldo de Moscou, Pequim e Havana!” – Inocêncio Pigarço foi aplaudido de pé durante mais de três minutos. Ninguém fez o brinde de praxe ao Presidente da República, mas ao fim do banquete, depois que se distribuíram e acenderam os charutos, o prefeito municipal ergueu o corpo e a taça de champanha e brindou a Democracia e a Justiça, que tinham ganho mais uma batalha em Antares. Um observador – e não precisava ser muito arguto! – notaria nas faces da maioria dos convivas uma curiosa mescla de alegria forçada e uma espécie de mal-escondida cabula. Foi necessário que se bebesse muito vinho para que as conversas ganhassem alguma animação e um arremedo de espontaneidade.

Os homens casados haviam comparecido à festa com suas esposas. Entretanto, aqui e ali se via, sozinho, um macho, que mais tarde a malícia popular passaria a chamar de “cornudo solitário”. Segundo esse mesmo público, que leu a notícia do banquete em A Verdade, o número de “cor-nudos contentes” era maior que o dos solitários, pois lá se viam alguns cavalheiros sentados ao lado de suas esposas adúlteras. Comentou-se que uma das máscaras mais tristes de quantas estavam no àgape era a do juiz de Direito, pois sua esposa Valentina se havia recusado a “representar mais essa farsa” e ficara em casa cuidando dos filhos e lendo um livro de Z. J. Lebret, um frade dominicano reconhecidamente subversivo.

O Mendes também tomou parte no banquete, metido num smoking alugado, de mangas demasiadamente curtas e já meio lustroso nos fundilhos das calças. Como era de se esperar, bebeu demais, começou a dizer inconveniências e teve de ser retirado do recinto por dois empregados do clube, por ordem expressa do prefeito.

Quando, terminada a festa, os convidados deixavam a sede da melhor sociedade antarense na direção de seus carros e de suas casas, amontoava-se na frente do prédio uma pequena multidão, formada em geral de gente jovem, e que rompeu numa grande vaia: assobios, uivos, latidos, cacare-jos, mugidos... Em meio dessa cacofonia irreverente, ouviam-se palavras e frases como “Farsantes!” – “Abaixo a burguesia!” – “Hipócritas!”. Inocêncio Pigarço, que, tendo previsto essa demonstração de hostilidade, pusera seus guardas de prontidão, mandou-os carregar contra os manifestantes, de cassetetes em punho Os rapazes reagiram a pedradas. As damas da sociedade soltavam gritos de horror. Uma delas desmaiou. Outra teve rasgado um lindo vestido, modelo do costureiro Ruy, de Porto Alegre. Alguns maridos indignados levaram a mão à cintura, num reflexo condicionado mas, verificando que estavam desarmados, acharam de melhor aviso desertar do campo de batalha. Soldados da polícia e manifestantes atracaram-se finalmente num corpo-a-corpo feroz, e rolavam pelas calçadas, pela sarjeta e pelo calçamento da rua. Da sacada do prédio do clube, Inocêncio dava ordens aos seus comandados, e como o número dos inimigos da ordem aumentasse de minuto para minuto – e agora eles vinham armados de porrete – o delegado de polícia, vendo que os convidados haviam desaparecido de cena, resolveu lançar mão das bombas de gases lacrimogêneos. Conjurou então os homens-elefantes com suas estranhas armas marcianas, e as bombas começaram a explodir, sua fumaça a espalhar-se no ar, e os desordeiros foram assim dispersados, ensangüentados uns, muitos com as roupas em frangalhos, e lacrimejantes todos. No dizer do prefeito municipal, triunfou mais uma vez a Democracia.

 

A Operação Borracha continuava, a despeito dos esforços em contrário feitos pelas esquerdas e pelas cartas anônimas. Estudiosos de psicologia, parapsicologia, ocultismo, espiritismo ou meros curiosos começaram a aparecer em Antares, vindos de Porto Alegre e outras cidades do Estado. Depois de interrogar as autoridades, os pró-homens locais, os estudantes e o povo das ruas, ficavam em estado de perplexidade ou dúvida. Alguns chegaram à conclusão de que tudo havia sido apenas um caso de alucinação coletiva, fenômeno raro mas possível. A maioria, porém, ficou convencida de que a coisa toda não passara duma ridícula mistificação.

Um dia chegou à sua terra o estudante Xisto Vacariano trazendo consigo seu amigo e mestre Martim Francisco Terra, que ele hospedou no palacete dos Vacaríanos. D. Lanja recebeu-o com a sóbria hospitalidade duma matrona gaúcha dos bons tempos. E quando Xisto levou o amigo e hóspede ao quarto de seu avô, que estava já sentado numa poltrona, na última fase de sua convalescença, o caudilho estendeu-lhe uma mão mole e morna, e seus olhinhos brilharam duma expectativa pícara.

– Uél Por aqui de novo, moço? Não tem medo de apanhar uma sova?

– Ora, por que, coronel?

– Por causa das bobagens que vocês andaram escrevendo sobre Antares naquela droga de livro... como é mesmo o nome dele?

– Anatomia duma Cidade Gaúcha de Fronteira.

– Pois é. Tome assento, doutor. Ó Xisto, mande sua avó preparar um café bem bom para nós Estou louco pra fumar um palheiro.

– O senhor não pode fumar, vovô. O médico lhe proibiu.

– Pois vão, você e o médico, à pota que os pariu. E que venha logo esse café.

Martim Francisco sentou-se.

– Pois, coronel, vim averiguar o que há de verdade nessa estória dos sete defuntos no coreto.

Tibério Vacariano, solidário com a Operação Borracha, disse :

– Mas você acredita mesmo em almas do outro mundo?

– Não. Mas algo houve.

– Por exemplo...

– É o que vou procurar descobrir.

– Como?

– Para principiar, conversando com gente da terra... O velho soltou uma risadinha seca e curta.

– Ora, cada cabeça uma sentença. Você vai acabar louco.

Xisto entrou com três xícaras fumegantes numa bandeja. Serviram-se os três de açúcar e começaram a beber o café com lenta delícia. Depois de emborcar a sua xícara, Tibério Vaca nano tirou do bolso do pijama um palheiro pronto, apertou-o entre os dentes, acendeu-o, puxou uma longa tragada e depois soltou a fumaça, com uma expressão de felicidade no rosto emagrecido.

– É bom estar vivo! – exclamou. – Mesmo no governo do Jango Goulart.

– Vovô – disse Xisto – o Brizola vem a Antares em janeiro ou fevereiro do próximo ano para falar num comício petebista. Como é que o senhor vai receber o homem?

– Como o Floriano Peixoto: a bala!

– Mas o seu reino acabou – retorquiu o rapaz. – O senhor é um dos últimos representantes do velho coronelis-mo no Rio Grande do Sul.

Tibério ficou por um instante pensativo, a fumar, e depois murmurou:

– Pode ser Mas ainda não morri. E enquanto me restar um pingo de vida ninguém me pisa no poncho. Hei de defender as minhas idéias com as armas que tiver.

– Mas que idéias? – provocou-o o neto.

– Não sejas bobo, menino. As minhas idéias são as minhas propriedades, o meu sossego, a minha vida, este crioulo, as coisas que sempre gostei de fazer e, acima de tudo, a minha liberdade. Não vou entregar nada do que é meu a esses comunistas de merda, declarados ou disfarçados.

– E que me diz da liberdade alheia? E do bem-estar dos outros? – perguntou Martim Francisco.

– Ora, professor,, que cada qual cuide da sua vida. Quem for mais capaz e mais macho vence. E a lei do mundo. Sempre foi.

E por quanto tempo o senhor e os de sua classe imaginam que podem manter os seus privilégios?

– Espero morrer antes da vitória da canalha.

– Mas isso que o senhor chama de canalha – observou Martim Francisco – constitui a maioria do povo brasileiro.

– Haja o que houver – disse o velho, piscando um olho – temos um trunfo escondido.

– O Exército?

– Adivinhou. Você não é tão burro como parece.

– Mas já pensou, coronel, que um golpe do Exército pode levar o país tanto para a Esquerda como para a Direita? E não lhe ocorreu também que, uma vez no poder, os militares podem facilmente dissolver os partidos e alijar os políticos profissionais... e os coronéis de... de... quero dizer, os coronéis honorários, como o senhor?

– As Forças Armadas, moço, um dia vão apertar os parafusos frouxos deste país. Precisamos, antes de mais nada, de ordem.

– Mas não necessariamente da ordem unida. Tibério Vacariano ia responder mas não pôde, pois

rompeu num acesso de tosse bronquítica, que lhe congestionou o rosto, deixando-o ofegante.

– Eu não disse? – repreendeu-o o neto.

– Agora vê se vais contar pra tua avó que eu fumei. ..

Com os olhos lacrimejantes do esforço, a voz engasgada, o ancião fixou no hóspede o seu olhar de peixe.

Quer um conselho, moço? Não esquente lugar em Antares. Vá embora o quanto antes. Nossa gente não gostou do seu livro. Você pode ter dissabores, já andei ouvindo conversas ...

– Que conversas? – indagou Xisto.

– Andam dizendo que vão desacatar o seu amigo em público. Um desses melenudos brabos até falou em dar uma sova nele aí mesmo na praça.

– No coreto? – perguntou o professor, soltando uma clara risada.

 

O sociólogo passou boa parte daquela noite palestrando com o seu amigo Pedro-Paulo, caminhando ambos lado a lado ao longo do rio. O padre lhe contou tudo quanto sabia sobre a volta dos mortos. Martim Francisco escutou-o sério, em silêncio. Houve um momento em que pararam ambos no alto da barranca do Uruguai e ficaram olhando para as luzes de Farolito, na margem oposta. Depois o professor perguntou:

– Que explicação tens para o fenômeno?

– Para falar com toda a sinceridade... nenhuma.

– Estás certo de que tudo não passou duma ilusão?

– Tão certo como estares aqui a meu lado agora.

– E estranho...

– Eu te pergunto o que é que não é estranho?

Continuaram a andar, sempre margeando o rio. Martim Francisco falou ao amigo de livros que havia lido recentemente. Pedro-Paulo lhe disse de sua nova afeição: Tei-lhard de Chardin. (“Esse encontro era fatal” – pensou Martim Francisco.) Separaram-se depois das duas da madrugada. Martim Francisco notou que quando se encaminhava para a casa dos Vacarianos um vulto o seguia, parando quando ele parava. Compreendeu que o desconhecido, fosse quem fosse, estava procurando amedrontá-lo

No dia seguinte recebeu uma carta anônima em que um Amigo Desinteressado lhe declarava que sua vida estava em perigo. Pouco depois o Mendes o procurou, da parte do prefeito, para lhe pedir que deixasse a cidade o quanto antes, pois o governo municipal não lhe podia dar garantias de vida.

– Mas eu não pedi garantias a ninguém! – sorriu o professor de sociologia.

Mendes segurou os braços do forasteiro com suas longas mãos angulosas:

– Meu amigo, tudo isto é uma miséria e eu estou envergonhado de ser o portador deste recado. Agora, aceite, por favor, o conselho do prefeito. Vá embora o quanto antes. Hoje, se possível. Nesta cidade existe gente capaz de tudo.

– Mas qual é o meu crime?

– Ora, doutor, quem lhe disse que é preciso cometer um crime para ser castigado? Não faça mais investigações sobre os mortos do coreto. Sinto ter de lhe comunicar que o senhor não é persona grata em Antares... o que, sob certos aspectos, pode ser considerado uma honra.

Martim Francisco sacudiu lentamente a cabeça, compreendendo tudo.

– Se a coisa é assim, não quero criar mais problemas para a sua cidade, Mendes. Mas cá em segredo, que ninguém nos ouça, você viu mesmo esses mortos que desceram do cemitério para a praça?

– Vi, por Deus que vi! – respondeu o secretário da prefeitura em voz baixa. – Se não me engano, o senhor não acredita no fenômeno...

O outro sacudiu os ombros.

– Creio que a História não registra nenhum fato dessa natureza, que me lembre...

– Quer dizer que o professor nunca encontrou um morto que se move, que fala e pensa, como se estivesse vivo? Pois agora tem um aqui na sua frente, em avançado estado de putrefação física e moral.

E enquanto dizia estas palavras, lágrimas escorriam-lhe pela face.

 

Martim Francisco fez as malas e embarcou na tarde daquele mesmo dia, de volta para Porto Alegre, levando consigo um caderno cheio de anotações: reprodução de diálogos que tivera com várias pessoas de Antares, desenhos, lembretes... Tinha observado que, com relação ao incidente dos mortos, a velha guarda obstinava-se em negar a sua veracidade, ao passo que as gerações novas tudo faziam para confirmá-lo.

O Pe. Pedro-Paulo e Xisto o levaram à estação rodoviária e, esperando a hora da partida do ônibus, ficaram os três a um canto da sala de espera, conversando em surdina.

– Como é que vês a situação política nacional? – perguntou o Pe. Pedro-Paulo.

– Muito turva, muito confusa Talvez estejamos no prelúdio do caos.

– Como assim?

– Antes de cinco ou seis meses, se tanto, teremos um golpe de direita ou de esquerda, com a participação do Exército. Vença o lado que vencer, haverá sempre uma grande vítima: as liberdades civis.

– O professor está muito pessimista – sorriu Xisto.

– Talvez a palavra exata seja realista.

– Espero sempre um milagre – disse o sacerdote – decerto por deformação profissional. Isso pode não ser científico nem sensato, mas ajuda a gente a viver com alguma esperança.

– Pois eu sou otimista – afirmou o neto do velho Tibério. – Boas coisas estão por vir.

Martim Francisco, já abraçando os amigos – pois se anunciava pelo alto-falante a partida do seu ônibus – disse :

– Acho que no Brasil devemos ser pessimistas a prazo curto e otimistas a prazo longo. Até mais ver, Pedro-Paulol Até março, Xisto! Escrevam! Escrevam!

 

A comissão encarregada de levar a cabo a Operação Borracha tinha todos os motivos para considerá-la já vitoriosa. Yaroslav, entretanto, contava ainda aos forasteiros e a todos quantos o interrogavam sobre “o incidente”, que ele vira, ouvira e cheirara os mortos. O prefeito, irritado, mandou chamá-lo ao seu gabinete, para uma reprimenda:

– Se você continuar dizendo por aí que viu mesmo os mortos no coreto, eu cancelo a sua licença de fotógrafo ambulante! E se você reincidir na sua mentira, a prefeitura tratará da sua extradição para a Tchecoslováquia... e aí você vai ver como é duro viver nesses países do outro lado da Cortina de Ferro.

O fotógrafo cocou a barba e de cabeça baixa, murmurou:

– Está bem. Vou esquecer o que vi.

– Viu o quê? – explodiu o chefe do executivo municipal. – Você não viu coisa alguma!

– Então vou esquecer “o que não vi”...

– Raspa daqui pra fora, gringo desaforado!

O fotógrafo bateu em retirada, a passo acelerado. O Mendes, que estava no vestíbulo contíguo, ouviu-o murmurar por entre dentes: “Fascistas!”

 

Pelo Natal, o estado de espírito dos habitantes de An-tares tinha já dum modo geral melhorado consideravelmente. Na véspera do dia em que se celebra o nascimento do Menino Jesus, nas casas de família de remediadas a abastadas, em Antares, perus foram primeiro embriagados, depois mortos, desventrados, temperados, recheados, assados ao forno e finalmente comidos alegremente à luz das veli-nhas das árvores de Natal e ao som de cantigas alusivas à festividade. O comércio local, durante o período de festas, só não vendeu o que não tinha. (No dia 25 de dezembro os habitantes da Babilônia comeram os restos já meio deteriorados de peru catados nas latas de lixo de Antares, às primeiras horas da manhã.)

A prefeitura mandou desinfetar com crcolina o coreto da Praça da República, cujo chão foi lavado com sabão, em muitas águas, escovado repetidamente e finalmente deixado a secar e arejar-se. Isso feito, o Maj. Vivaldino mandou passar-lhe duas mãos de tinta verde, que é a cor da primavera e da esperança. E o tempo, com sua pachorra, sua paciência, e sua sutil e invisível broxa foi passando mãos de esquecimento no espírito dos antarenses e até nas pedras e plantas da cidade.

Os ventos, que sopraram com freqüência naquele fim de dezembro, ajudaram muito o tempo na sua operação de limpeza e esquecimento. E vieram também fortes chuvas. E alguns casais que ainda estavam separados por causa das intrigas do Barcelona, reconciliaram-se.

Num dos últimos domingos daquele ano, a Banda de Música Carlos Gomes deu o seu primeiro concerto no coreto depois do... bom, do incidente. A primeira peça do programa foi a protofonia de O Guarani, da autoria do imortal epônimo do conjunto. Von Suppé foi também homenageado. Verdi esteve presente em “Seleções de Aida”. Tocaram-se também músicas de caráter popular: sambas, frevos e marchinhas. E no fim, para encerrar o programa, a banda executou com grande brilho um dobrado americano intitulado Stars and Stripes for Ever. (O Prof. Iibindo Olivares traduziu para amigos – Estréias e Listras para Sempre – e explicou que se tratava duma alusão à bandeira dos Estados Unidos.) Como em certo trecho desse vibrante dobrado o flautim tem um papel de muito destaque, ouvindo os trêmulos desse piccolo, o maestro lembrou-se de que Barcelona revelara em público que sua mulher – dele, maestro – e o flautista eram amantes. Suas orelhas aos poucos foram ficando vermelhas como crista de galo. E o som das tubas, marcando o compasso do dobrado, parecia-lhe a voz grave de homens gordos a roncar ritmadamente: Cor-no! Cor-no! Cor-no!

Mr. Jefferson Monroe III não esteve presente ao concerto porque, com sua esposa, havia deixado Antares poucos dias antes, transferido que fora para outra cidade, num desses países semi-imagináriós da América Central. Jean-François Duplessis e sua mulher também faziam já as malas para retornar à França, mas compareceram ao concerto. Caminhando nas calçadas da praça, de braço dado com o marido, num desafio à sociedade local, Dominique, excessivamente pintada, rebolou o que pôde as venustas ancas e nádegas haitianas. Mr. Chang Ling e sua senhora assistiram a todo o concerto sentadinhos quietos num banco, e receberam com o mesmo sorriso inefável tanto a ária de Radamés como a Cavalaria Ligeira de Von Suppé, e as marchinhas de rancho e os sambinhas de gafieira que a banda executou.

 

Chegou finalmente o esperado 31 de dezembro. A diretoria do Clube Comercial esmerou-se em fazer daquele réveillon o maior, o mais alegre da história de Antares. Contratou uma orquestra típica de Buenos Aires e um conjunto moderno de Porto Alegre. Scorpio aproveitou a grande festa para apresentar as Dez mais Elegantes do Ano, por ele escolhidas, e também os Dez Mais Graciosos Brotinhos.

A festa foi animadíssima. Começou às onze com a quadrilha dos Lanceiros dançada por um grupo do C.T.G. Chi-marrão da Saudade, com todos os seus bailarins exibindo trajes característicos. Depois o Maj. Vivaldino Brazão marcou a tradicional polonaise, na qual tomou parte apenas a já muito reduzida “velha guarda”. A seguir, os moços tomaram por completo conta da festa, com suas “danças importadas” – quase todas com nomes ingleses – em que as pessoas não dançam umas com as outras, mas contra as outras.

Alguns casais que se haviam separado depois do incidente na praça foram vistos risonhos, dançando de corpos colados, no salão do clube, como jovens namorados.

Pouco antes da meia-noite ouviram-se detonações de revólver e o espocar de foguetes vindos da Zona Estragada que, como acontecia em todos os fins de ano, tinha sempre os seus relógios adiantados. A maioria dos tiros foram, como de tradição, dados para o ar, mas pelo menos três deles tinham endereço certo, dirigidos que foram para o peito, a cabeça ou o ventre de desafetos dos atiradores. (Um morto e dois feridos.) Ao soar da meia-noite começou o pandemônio dentro das salas do Clube Comercial. Gritos, risadas, choros de emoção, abraços, votos, beijos, encontrões e duas orquestras tocando ao mesmo tempo peças diferentes. Parentes e amigos procuravam-se no meio da multidão alvoro-tada para se abraçarem e se desejarem um feliz e próspero Ano Novo.

Em seu casarão, o velho Tibério Vacariano, sentado na sala de visitas na companhia da “patroa”, recebeu como um cacique as homenagens dos membros de sua tribo e da cria-dagem. Vieram do baile para beijar-lhe a mão os seus filhos, filhas, genros, sobrinhos, netos e até uma bisneta (escolhida por Scorpio como O Brotinho do Ano). A todas estas o Cel. Tibério pensava na sua Cleo, a quem pretendia visitar, custasse o que custasse, depois de passada toda aquela cerimônia tribal.

No clube bebeu-se muita cerveja, muito uísque e muita champanha. Inimigos ou. desafetos reconciliaram-se, num acesso de ternura alcoólica. Mas para não quebrar um antigo hábito, alguns amigos estranharam-se, brigaram e chegaram ao “Pula pra fora, se és homem”. Alguns pularam e se atracaram a socos rolando na relva do jardim do clube. Outros ficaram onde estavam, atendendo aos que diziam “Deixa disso! Deixa disso!”.

 

Um novo ano havia entrado. O Lucas Faia, que enver-gava um smoking que mal lhe entrava no corpo, sentia já quase cicatrizada a ferida aberta em sua vaidade pela rejeição de sua maior peça literária. O Prof. Libindo Oliv ares, ao abraçar o prefeito, disse-lhe ao ouvido: “Nossa Operação Borracha foi um sucesso, major. Podemos dá-la por encerrada”. E o prefeito, os olhos reluzentes de animação, exclamou: “Voce é um bichão, Libindo. Que seria de nós sem a sua ajuda?” E quando q outro se afastou, radiante, Vivaldino murmurou por entre dentes: “Pederasta duma figa!”

O ano de 1964 tinha apenas uma hora de idade quando Tibério Vacariano, iludindo a vigilância de sua mulher, ocupada com netos e bisnetos, entrou sorrateiro no seu automóvel e mandou-se para a casa da amante. Cleo recebeu-o com beijos. O velho insistiu em ir para a cama com ela. “Pro forma” – explicou, porque desde a sua doença ele já não ousava mais “brincar de Salamanca”. Tirou toda a roupa, deitou-se e, tremulamente deliciado, ficou vendo a amante despir-se pouco a pouco, com a languidez duma odalisca. E quando ela se estendeu a seu lado e lhe deu um beijo na boca, ele murmurou: “E uma lástima, meu bem, mas o Blau Nunes anda agora meio estropiado”. Mesmo assim, imitando as pernas do campeiro da lenda, seus dedos escalaram os seios de Cleo – que de cerros se haviam transformado em montanhas, por artes da fisiologia mancomunada com o tempo – e depois percorreram em passos lentos o ventre, não mais uma planície com uma suave depressão, mas já uma coxilha. E Blau Nunes penetrou no capão, buscando, mas sem o antigo ardor, a furna do tesouro. E, fazendo todo esse trajeto, o coronel chorava de saudade e impotência, e as lágrimas lhe escorriam pelo rosto pintalgado de manchas de purpura senil.

Àquela hora o Pe. Pedro-Paulo estava sozinho, parado à beira do rio, olhando para as luzes de Farolito, que piscapiscavam na margem oposta. Pensava no filho de Joãozinho e Ritinha que em breve ia nascer, e essa idéia lhe dava um frêmito de esperança, ele não sabia e nem mesmo procurava saber em que nem por quê.

Um homenzinho aproximou-se dele, cambaleante, e saudou-o com voz pastosa:

– Boa noite, padre. Feliz Ano Novol

– O mesmo pra você, amigo – respondeu Pedro-Paulo, reconhecendo o Alambique, envolto na sua aura de cachaça e com um violão a tiracolo.

– Não repare, mas estou num porre medonho... Mal me agüento nas pernas.

– Por que não vai pra casa? Se quer, eu o acompanho. ..

– Não, padre, muitas gracias. Vou esperar o nascer do dia. Quero fazer uma serenata pro sol, já que fiz tantas pra lua. E vai ser a última da minha vida.

– Por que a última?

– Ora, com essas músicas loucas que andam por ai, não vale mais a pena um vivente cantar as modinhas de antigamente. Ninguém mais aprecia. E quer saber duma coisa? Vou enterrar o meu violão.

O Pe. Pedro-Paulo sorriu:

– Não faça isso. A gente não deve nunca enterrar as coisas que ama.

 

Como costuma acontecer tanto na vida como nos romances, passaram-se os anos. E muitas mudanças se operaram em Antares e no resto do universo.

Caçado pela polícia do novo governo, Geminiano Ramos uma noite atravessou o rio às pressas, na lancha do Romero, e ambos pediram asilo na Argentina.

Lucas Lesma, procurando equilibrar-se incólume, desta vez ao longo do fio duma espada, compôs para o seu jornal um artigo de fundo intitulado Novos Tempos: Novas Esperanças no qual, entre elogios à revolução vitoriosa, escreveu: “Agora que as greves estão felizmente proibidas por lei, reina a maior harmonia entre patrões e empregados, e os sindicatos e os trabalhadores não vão mais ser usados, como acontecia no governo deposto, como instrumentos de política partidária, nem como fatores de desordem sociaV.

A paz remava também no cemitério local, onde, a dar crédito à voz do povo, todas as tardinhas, à mesma hora, um sabiá vinha cantar sobre a lápide da sepultura de Me-nandro Olinda, em torno da qual ardiam quase sempre velas votivas, pois criara-se a lenda de que do Além o suicida concedia graças e obrava milagres.

A polícia fechou o Bar Bacuá, sob o pretexto de que era um antro de agitadores comunistas. O Kafé Kafka, esse morreu de morte natural.

O delegado Inocêncio Pigarço foi investigado, proclamado limpo de pecados contra a ética profissional e por fim promovido e transferido para a delegacia duma outra cidade muito mais importante que An tares, do ponto de vista de estratégia policial.

O minuano dum áspero agosto soprou o P « Gerôncio Albuquerque para o Reino do Céu, mas não antes de ele ter tido o privilégio de encomendar a Deus a alma de seu amigo Tïbério Vacariano, vitimado por uma trombose cerebral. O enterro do velho chefe político de Antares foi muito concorrido e, como o de D. Quitéria Campolargo, puxado por um brioso piquete do C.T.G. Chimarrão da Saudade, ao som das marchas fúnebres da Banda de Música Carlos Gomes. Diante do mausoléu dos Vacarianos falaram três oradores. Um deles afirmou que com o Cel. Tibério desaparecia um lídimo representante duma estirpe de bravos que, durante mais de um século, haviam ajudado a manter as fronteiras não só geográficas como também tradicionais e morais do Rio Grande do Sul. Um jovem pálido, novato na cidade – e que tinha acompanhado o enterro ninguém sabia ao certo por que – pediu a palavra e, sem esperar que lha concedessem, rompeu a discursar com uma eloqüência um tanto estrídula. Em certo trecho de sua oração, teve o desplante de comparar o defunto a um dinossauro, isso para completar uma atrevida metáfora – a de que os “grandes répteis” da vida pública brasileira estavam em processo de extinção, já que agora o país entrava política, social e economicamente numa era geológica mais avançada. Ouviram-se murmúrios de descontentamento entre os membros da velha guarda que cercavam o esquife do ilustre morto.

O Dr. Quintiliano do Vale foi transferido para uma entrância superior à de Antares, dando assim mais um passo rumo do ideal supremo de sua vida. Suas relações com Valentina, porém, haviam esfriado consideravelmente depois do diálogo da “noite dos mortos”.

O Dr. Mirabeau da Silva fez mais dois filhos dentro dum período de três anos. As irmãs Balmacedas foram denunciadas (anonimamente) ao novo delegado de polícia, interrogadas e ameaçadas de processo judicial, caso não cessassem, por completo e para sempre, de escrever cartas anônimas.

O Maj. Vivaldino Brazão, que não havia sido reconduzido à prefeitura, andou por uns tempos sorumbático, numa nostalgia da autoridade, e procurou consolo no convívio de suas orquídeas. Tentou, mas sem resultado positivo, empolgar a chefia da Aliança Renovadora Nacional, o novo partido governista. Diante desse malogro, resolveu entrar num período de hibernação política.

O fotógrafo Yaroslav continuou no seu posto, junto ao coreto, a tirar retratos de namorados e forasteiros e a dar a sua dose diária de alimento e amor a seus amigos, os passarinhos. No inverno de 1968, ao ouvir pelo seu rádio portátil a notícia de que os tanques soviéticos haviam entrado em Praga e feito fogo contra a sua população, teve um colapso cardíaco e tombou morto ali mesmo no chão da praça, em meio de suas pombas.

O Dr. Lázaro Bertioga, graças às suas boas obras, foi recuperando aos poucos a auréola de santidade, mas sempre que avistava na rua o Pe. Pedro-Paulo fazia as mais complicadas manobras para não encontrar-se com ele cara a cara. Cedo, porém, livrou-se do homem que lhe conhecia os segredos mais íntimos, pois o “padre vermelho” foi investigado, interrogado pela polícia política e, embora não tivessem descoberto nada de grave contra ele, perdeu o seu posto de capelão da Vila Operária, tendo sido pouco depois transferido pelas autoridades eclesiásticas para uma paróquia remota e obscura. Foi lá que um dia recebeu uma carta de seu amigo o Prof. Martim Francisco Terra que, expurgado com vários outros colegas da sua universidade, emigrara para o Chile.

O Mendes pensava ainda em Rita com afeto e bebia cada vez mais. Continuava como funcionário da prefeitura, mas num posto inferior ao que ocupava antes. Agora recebia ordens do novo prefeito, um coronel de verdade que tinha imposto ao serviço municipal uma sadia disciplina de caserna.

O Prof. Libindo Olivares permaneceu na direção do Ginásio Nacional, produziu mais uns três ou quatro livros imaginários e ultimamente anda contando a todo mundo que mantém uma correspondência polêmica com o Prof. Herbert Marcuse, “esse corruptor da juventude”, cuja fijosofia ele, Libindo Olivares, contesta apaixonadamente.

A alta sociedade de Antares entrou nestes últimos cinco anos numa espécie de crescente delírio exibicionista e competitivo, em matéria de posição e virtudes mundanas. Qual é o casal número um do nosso café society? Quem dá as melhores festas? Quem tem mais “classe”? Qual a mais elegante de nossas damas? Quem possui o automóvel mais fino? De quem é a residência mais confortável? E a mais bem decorada? Quem visitou mais vezes o Velho Mundo? Qual a hostess mais sofisticada do ano? E assim por diante. ..

É por isso que Scorpio, o cronista social de A Verdade, se tornou uma das personalidades mais prestigiosas da cidade. As grã-finas o adulam, presenteiam e fazem-lhe confidencias. O rapaz não só exigiu aumento de ordenado no jornal como também um telefone vermelho para a sua mesa na redação, onde o Ferreirinha, sempre mal pago e amargurado, arrasta a sua carcaça e a sua asma. “Que diabo, Lucas!” – costuma dizer Scorpio com freqüência. – “Você sabe que é a minha Passarela que faz vender este pasquim!”

Sete anos após aquela terrível sexta-feira 13 de dezembro de 1963, pode-se afirmar, sem risco de exagero, que Antares esqueceu o seu macabro incidente. Ou então sabe fingir muito bem.

 

A julgar pelas aparências, pelo seu progresso material visível a olho nu – novas indústrias e casas de comércio, mais ruas asfaltadas, serviços públicos melhores – Antares é hoje em dia uma comunidade próspera e feliz.

Como, porém, nada é perfeito neste mundo, às vezes na calada da noite vultos furtivos andam escrevendo nos seus muros e paredes palavras e frases politicamente subversivas, quando não apenas pornográficas.

Os dedicados guardas municipais, sempre alerta, dão-lhes caça dia e noite. Numa destas últimas madrugadas abriram fogo contra um estudante que, com broxa e piche, tinha começado a pintar um palavrão num muro da Rua Voluntários da Pátria. Na calçada, no lugar em que o rapaz caiu, ficou uma larga mancha de sangue enegrecido, na qual a imaginação popular – talvez sugestiónada por elementos da esquerda – julgou ver a configuração do Brasil. (É assim que nascem os mitos.)

Cedo, na manhã seguinte, empregados da prefeitura vieram limpar a calçada dessa feia mácula, e quando começaram a raspar do muro o palavrão, aos poucos se foi formando diante deles um grupo de curiosos.

Aconteceu passar por ali nessa hora um modesto funcionário público que levava para a escola, pela mão, o seu filho de sete anos. O menino parou, olhou para o muro e perguntou :

– Que é que está escrito ali, pai?

– Nada. Vamos andando, que já estamos atrasados...

O pequeno, entretanto, para mostrar aos circunstantes que já sabia ler, olhou para a palavra de piche e começou a soletrá-la em voz muito alta: “Li-ber. ..”.

– Cala a boca, bobalhão! – exclamou o pai, quase em pânico. E, puxando com força a mão do filho, levou-o, quase de arrasto, rua abaixo.

 

                                                                                            Érico Veríssimo

 

 

                      

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