Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O BATIZADO DA VACA / Chico Anisio
O BATIZADO DA VACA / Chico Anisio

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O BATIZADO DA VACA

 

   NÃO SE PÕE AMENDOIM NOS OUVIDOS

   Com tantos lugares maiores e mais práticos, o menino achou de enfiar o amendoim exatamente no ouvido. Ouvido esquerdo, que foi o escolhido por comodidade, visto tratar-se de um menino canhoto.

   A família, na Tijuca, em meio ao ajantarado do domingo, mesmo na hora em que o pai procurava uma sintonia melhor para escutar as corridas, ficou em pânico por causa de uma frase.

   — Mãe — disse o menino que enfiara o amendoim no ouvido —, não estou ouvindo direito.

   — Não está ouvindo direito, como? — indagou a mãe.

   — Como? — inquiriu o menino dando uma inflexão diferente ao advérbio.

   — Tua mãe está perguntando — intrometeu-se o pai abandonando, durante o que dizia, a sintonia no rádio — como é que você não está ouvindo direito. Entendeu?

   — O senhor está perguntando se eu entendi? — voltou o menino, sentado no lugar ao lado da cabeceira.

   — É, entendeu? — tornou o pai, levando à boca, com um ligeiro auxílio indicador-polegar, um pedaço de rabada.

   — Entendeu o quê? — desentendeu o menino.

   — Você está surdo? — gritou a irmã da outra cabeceira que ficava sob a Ceia do Senhor.

   — Será que ninguém compreende o que eu falo? — vociferou o menino, já se pondo de pé. — Eu estou dizendo que não estou ouvindo direito.

   — Você não está ouvindo direito? — insistiu a mãe, já tão aflita, que nem ligava mais para a rabada que esfriava no prato.

   — O que foi que a senhora disse? — questionou o menino, retornando mais calmo ao seu assento.

   — Esse menino está doido — admitiu o pai, voltando a tentar captar a narrativa dos páreos.

   — Doido, não — contestou a mãe —, que ele não é maluco. Você é louco?

   — Um pouco, mãe — respondeu o menino, pensando que a mãe lhe perguntara ser mouco.

   — Não estou entendendo coisa nenhuma — reagiu a irmã numa irritação que mostrava que ela não entendia coisa nenhuma. — Fala comigo, Geraldinho. O que é que há?

   — Falou comigo? — quis saber o menino que enfiara um amendoim no ouvido.

   — Ele está crecré — resolveu a irmã, voltando ao caqui, que era muito mais interessante do que aquele diálogo absurdo.

   Por alguns momentos, sem falar, todos comeram. Rabada ou caqui, feijão ou melancia. O silêncio era tão absoluto que o pai quase conseguiu achar a estação que procurava. Aí, o menino falou.

   — Mãe, não estou ouvindo quase nada.

   — Você já disse isso.

   — O que foi que a senhora disse? — perguntou o menino que não estava ouvindo quase nada.

   — Eu disse que você já disse que não está escutando direito! — irritou-se a mãe com a boca cheia de rabada.

   — Como? — argüiu o menino com o ouvido cheio de amendoim.

   — Eu acho melhor botar esse garoto de castigo — sugeriu o pai, com um dedo no dial, outro na polenta.

   — Foi você quem falou, Terezinha? — perguntou o menino quase surdo ao ouvir a voz do pai.

   — Foi o pai — volveu a irmã de cabelos longos e paciência cortada rente.

   — O quê? — era o menino quem perguntava.

   — Geraldinho! — bradou o pai, deixando o rádio de lado numa atitude tão absurda quanto esta estória. — Presta atenção. Olha para mim. Está escutando o que eu estou falando?

   — O senhor está falando? — sussurrou o menino, preso entre as mãos do pai que lhe deixavam resquícios de rabada e polenta nos ombros.

   — Estou! — gritou o pai, com um soco tão forte na mesa que fez a concha mergulhar no feijão.

   — Não adianta. Eu não estou escutando quase nada — monocordiou o menino Geraldinho.

   — Sabe o que é que eu acho? — ponderou a irmã. — Eu acho que o Geraldinho não está escutando direito.

   — Se ele não está escutando direito — ponderou de novo a mãe — por que não avisa? Está escutando agora, Geraldinho?

   — O quê?

   — Está escutando agora? — repetiu mais alto o pai.

   — Ãh?

   — Está escutando? — esganiçou-se a irmã da cabeceira.

   — Olhem. Eu já disse, e vocês não entendem. Eu não estou escutando direito — falou Geraldinho, já irritado.

   — Ele não está escutando direito — traduziu a mãe, tomando uma visível atitude de defesa do filho que tinha colocado amendoim no ouvido.

   — Mas por quê? — indagou o pai apoplético.

   — Como? — murmurou o menino, numa pergunta a medo, pela notória apoplexia paterna que geralmente dava motivo a surras homéricas.

   O pai esqueceu as corridas de Pernambuco, que tentava escutar, e pediu um lápis que lhe foi entregue pela filha, em meio às folhas de um caderno escolar. O pai escreveu, com letras de imprensa, a pergunta:

— DESDE QUANDO VOCÊ NÃO ESTÁ ESCUTANDO DIREITO?

   Empurrou, com má vontade, o caderno para o lado do menino.

   — Quer saber desde quando eu não estou escutando direito? — quis assegurar-se o menino de ter lido certo.

   — É, Geraldinho — disse a mãe muito maternal —, desde quando?

   — Como? — perguntou Geraldinho muito trêmulo.

   O pai respondeu passando o dedo sob a frase que esfregava na cara do menino.

   — Desde que eu enfiei um amendoim no ouvido.

   Tiraram o amendoim, deram-lhe uma surra e o mandaram para fora da sala, em sinal de protesto.

   O menino foi e voltou chorando, para se sentar na cadeira em frente à tevê.

   — Fazendo a gente ficar doida, esse moleque! — comentou a mãe, tirando a mesa do ajantarado.

   — Como? — perguntou o menino, que acabara de enfiar um amendoim no ouvido direito.

  

   O VESTIDO DE TAFETÁ

   Apresento-lhes o Sr. Horácio, ex-amanuense, ex-proprietário de uma casa de doces que servia à Colombo, ex-tipógrafo de uma gráfica na Rua do Sabão, onde eram impressos os trabalhos literários de Emílio de Menezes, ex-torcedor do Andar aí F. C, ex-vizinho de Noel Rosa ("Esse menino vai longe!" — costumava dizer), ex-speaker da Rádio Cruzeiro do Sul. Com tanto ex a co-enumerar os seus feitos e profissões, pode-se calcular a idade do Ex-Horácio em redor dos noventa anos, não bem vividos, porque, no ex-Rio, a vida era bem menos confortável do que a que agora é dada aos novos Horácios, mas, na pior das suposições, bastante variada porque, além do citado no seu curriculum vitae, há que se juntar outros pontos importantes: ex-contemporâneo de Bilac, ex-amigo do Barão de Itararé, ex-cabo eleitoral de Antônio Carlos, ex-etc.

   Horácio Vivacqua é casado com Dona Natália (a quem chama Nazinha) Peçanha, mulher do Império e que nele parece continuar a viver. O fato de Nazinha ser um ano e meio mais velha do que Horácio serviu de complicação para a vida do casal. Um lá e cá compreensivo. Ela, com um pouco mais de meses, mordia-se de ciúme do seu Horácio, sempre no temor de que ele encontrasse, pelos caminhos da vida, alguém mais jovem e, por isso, mais tentadora; ele, corroendo-se pelo temor de que Dona Nazinha se encantasse por um Paula Ney qualquer, que lhe soubesse dizer frases que jamais Horácio seria capaz de compor.

   Este mútuo ciúme fez com que o casal, junto com as bodas de ternura (setenta e cinco anos de casados não merecem outro nome), completasse, igualmente, as bodas de guerra, porque foram setenta e cinco anos de brigas diárias e enfadonhas. Os motivos? Quaisquer. O casal Vivacqua digladiou-se por causa de médicos ("a próxima vez que aquele doutorzinho pegar no seu pulso com aquela cara, dou-lhe com um castiçal!"), enfermeiras ("eu vi o jeitinho com que ela passou o algodão no seu braço, pra aplicar a injeção"), leiteiros ("e na hora de entregar o leite ele precisava dizer aquele bom-dia meloso?"), copeiras ("virava os olhos, na hora de tirar a mesa, a cadelinha!"), escrivães ("quando perguntou o seu nome, pensei que ia perguntar seu telefone, também"), professoras ("deu um beijo no menino de olho em você, como quem diz: não posso beijar o pai, beijo o filho"), dentistas ("a delicadeza com que extraiu o dente foi de dar na vista; comigo é vapt-vupt, com você foi cheio de coisinhas, tá doendinho, tá machucandinho?"), vizinhas ("deixe ela vir de novo pedir ovo emprestado!") e por setenta e cinco anos Horácio e Nazinha fizeram da vida uma guerra quase crescente de mútua desconfiança.

   Mas ali estava o usado e cansado par de amantes em torno da mesa, filhos à volta, netos ao lustre, vizinhos ao redor, amigos à espreita, comemorando setenta e cinco anos de brigas em comum.

   Horácio no ex-terno do casamento e Nazinha curtindo um vestido lindo, de celeste azul, com chiado gostoso de tafetá a cada passo lento que dava de um lado para o outro atendendo aos convivas.

   A idade dos dois, somada, ganhava longe da soma total do que tinham, em anos, os filhos e os netos.

   Cento e oitenta e um anos de amor preparavam-se para cortar o bolo que era representado por uma trincheira (brincadeira que os filhos prepararam, modo encontrado de gozar as desavenças amorosas que havia entre os dois). O verbo vai no passado porque, com as bodas, festejava-se o oitavo ano de trégua. Não se dera ordem de cessar-fogo nem houve um que levantasse a branca bandeira da paz. Simplesmente, com a idade, resolveram, de um dia para o outro, que não havia mais motivos para dúvidas ou contendas.

   Na hora de partir o bolo comemorativo a faca foi posta na mão do simpático Horácio que, com o mesmo antigo cavanhaque que já voltava a ser moda, preparou-se para iniciar a partilha.

   — Não — gritou um filho —, sozinho, não. Mamãe, pega na faca junto com papai. Tem que ser as duas mãos juntas.

   Como no dia do casamento, igual que no bolo dos dez anos, nas bodas de prata, nas de ouro, etc. Não era a primeira vez que as mãos se uniam num repartir de bolo. Assim fizeram e, antes de entregar o primeiro pedaço a quem julgava merecer, o velho Horácio puxou um pigarro da ex-garganta e, de voz calma e o mais alto que lhe permitia a idade, declarou aos presentes:

   — Quero comunicar que esta festa de comemoração dos setenta e cinco anos de casados merece, como fundo musical, a Valsa da despedida. Hoje, após a saída do último de vocês, mudo-me para um hotel. Vou-me separar de Nazinha.

   A sala assumiu o aspecto de um velório. Era tão grande a quietude gerada pelo pasmo que se conseguiu ouvir a fina e quase ausente voz de Dona Nazinha:

   — Por quê, Horácio? O que foi que eu fiz?

   — perguntou ela. — O que foi que eu fiz? — insistiu, dizendo a frase que mais dissera no correr da vida.

   Horácio Vivacqua, de olho rútilo e nervos tensos, não olhava a mulher nos olhos, mas destruía (ou tentava isso) o vestido de tafetá.

   — Não queira bancar a santinha. Você botou esse vestido para me humilhar. Era com ele que você estava naquela tarde.

   — Que tarde? Aquela do ajudante-de-ordens do Marechal Floriano?

   — Está vendo como você lembra? — disse Horácio, jogando o bolo ao chão e retirando-se à procura do Hotel Central (que ele nem sabia já ter sido posto abaixo), enquanto Dona Nazinha, com princípio de enxaqueca, dirigia-se ao seu quarto para escrever mais uma página do décimo terceiro tomo do seu diário.

   Enquanto subia as escadas, o tafetá fazia um ruído que parecia um chlec-chlec. . . chlec-chlec. . . Como sempre.

  

   VIÚVA, PORÉM DIFÍCIL

   Desde que o marido morreu, Cleonice permanecia invicta. Não foi por falta de oportunidades e, muito menos, por ausência de propostas, que as oportunidades se fartaram de surgir e as propostas eram praticamente diárias. Amigos (?) do falecido Pedrosa viviam num assédio crescente, a convidá-la para boates e passeios, acenando com viagens à Europa, América, Ásia, África e Oceania. A tudo e a todos ela recusava, sempre com aquele sorriso que não trazia apenas agradecimento pela lembrança, mas, muito mais, resignação:

   — Obrigada, Dr. Heitor, mas. . . sabe? Acho que não fica bem. Faz tão pouco tempo que o Pedrosa morreu. Não sei. Parece que ainda é adultério.

   Se, em vida, nunca lhe passara pela cabeça a menor possibilidade de enganar o marido, muito menos o faria agora. Era como apunhalar um morto. Em vida, o Pedrosa podia revidar; depois de morto, não. A traição ao defunto era indefensável, e a um homem bom como o Pedrosa foi, toda a sua vida, não se faz uma coisa assim. Os que recebiam as negativas respostas de Cleonice acabavam por se pôr de acordo.

   — Tem razão, Cleonice. Você está certa. Futuramente, quem sabe, não é? — perguntavam, na esperança de ouvir uma concordância com esta segunda possibilidade levantada; mas o que escutavam não era do seu agrado.

   — Nem agora, nem futuramente, nem nunca, Dr. Plácido. Mulher, eu só fui do Pedrosa. O Pedrosa morreu para o mundo, eu morri para o sexo.

   — Mas quem está falando em sexo? — mentia o Dr. Plácido.

   — Para mim, pegar na mão é sexo. Mais de cinco frases eu já acho pecado. Com licença.

   E se retirava, acabando o assunto. Cleonice até se punha ruborizada quando se tocava nisso.

   O retrato a óleo do Pedrosa, encimando o sofá maior, era o retrato de um santo — que um santo marido ele fora — merecedor de todas as honras post-mortem, coisa que Cleonice nunca negara, estamos todos de prova. E também provavam isto as recusas sistemáticas.

   — Sabe, Cleonice, eu estive pensando. Você, sozinha, vivendo apegada a esta lembrança. . . isto é doentio.

   — Pois é desta doença que eu vou morrer. Se ser honesta é moléstia, Dudu, eu sou uma mulher com câncer.

   — Bate na boca, Cleonice. O que você precisa é de distração, sair, ver gente, divertir-se.

   — A lembrança me distrai, Dudu. A saudade é a minha motivação de vida. Dá licença.

   E voltava à casa, voltando assim ao passado. Era uma criatura que construíra o futuro no passado; uma mulher que eliminava o presente da vida, como se o passado fosse a única coisa que o futuro lhe garantisse. Ficava horas e horas na sala, a velha sala onde os mesmos velhos móveis, cobertos com capas de morim para não apanhar poeira, descansavam. Naquela cadeira onde Pedrosa sentava para ler seus livrinhos de bolso, nenhum homem jamais sentaria.

   Mantinha tudo como se o marido não tivesse sido levado por aquele enfarte, de madrugada.

  

   Pedrosa, em vida, era o que diziam: um touro. Nunca tivera uma gripe e nem era dado às pequenas dores. Dos que nunca ficam doentes, entende? Mas esses são os que vão antes. O doentinho morre aos oitenta e sete, provavelmente atropelado. O touro estoura de uma hora para outra.

   Foi assim o enfarte do Pedrosa. Tinha jogado uma pelada noturna no campinho do Clube dos Caiçaras, de onde chegou contando os lances do jogo onde ele brilhara. "Os meninos de língua de fora, e o vovô aqui indo e vindo, indo e vindo", tinha sido uma frase sua. Tomou um banho quente (dizem que isso precipitou a coisa) para relaxar os muitos músculos, botou seu pijama de cadarço e deitou, depois de ler dois capítulos de um livro de Shell Scott.

   Às duas e meia, aconteceu, e o Prontocor não chegou a tempo de o encontrar com vida.

   — Morreu novo. Vê se quarenta e oito anos é idade para alguém morrer — comentavam os de sessenta e sete ou setenta e um anos, unindo ao comentário a esperança de que alguém concordasse que quarenta e oito seja o auge da juventude.

   — O que me admira é que tinha uma saúde de ferro. Era um leão de forte.

   Mas Pedrosa, cercado de cravos e prantos, não tinha mais jeito de tornar possível a frase que Cleonice gritava, num histerismo de viúva inesperada: "Pedrosa, você não morreu, você não pode ter morrido. Abre os olhos, Pedrosa, você está vivo".

   Se estava, pior pra ele, porque o féretro saiu da capela do São João Batista, e a viúva, após o fechamento do túmulo, desmaiou nos braços das vizinhas, fazendo um juramento sucinto e definitivo:

   — Homem, nunca mais! — frase que repetiu seis vezes enquanto Dudu, Plácido e Dr. Heitor, presentes ao sepultamento, já se punham de olho na anágua que teimava em aparecer sob a barra do vestido que mal cobria a coxa da viúva.

  

   Não tinham filhos nem cachorros, que, de um modo geral, representam filhos para quem não os tem. Cleonice vivia só, na casa da Rua Dr. Satamini. Só, pensavam os outros. Vivia muito bem acompanhada, asseverava ela, pois dizia viver com a lembrança, a saudade, a tristeza e, o que de fato importa, o respeito. Sozinha, ao cair da tarde, dialogava com o morto. Sentava-se na cadeira de palhinha e, enquanto tricotava, conversava longas horas, como se o Pedrosa estivesse ao lado, lendo uma aventura de Philo Vance, na cadeira de sempre. Fazia pausas entre as frases como a dar tempo para as possíveis respostas do finado.

   — Sabe, Pedrosa, seus amigos continuam me perseguindo. . . O Dudu, Dr. Heitor, Pedro da Bolsa de Valores, o Dr. Plácido. . . Mas comigo não arranjam nada. . . Lembra da promessa que eu fiz à beira do túmulo?. . . Era verdade, Pedrosa, você vai ver. . . Se fosse para aceitar eu já tinha aceitado. .. Promessa a um morto não é coisa que se esqueça . . . Quer um cafezinho, Pedrosa? um chazinho com creme-cráquer? Estou te atrapalhando? . . . Desculpa, Pedrosa.

   E ficava olhando o retrato do marido sobre o sofá, onde o finado tinha o queixo pousado na mão fechada, como se a fotografia tivesse sido tirada especialmente para uma atitude de "estou te observando". Uma vigia eterna e sem utilidade, porque Cleonice já tinha falado: "Homem, nunca mais".

   Uma vez por mês o banco mandava o dinheiro da mesada. Pedrosa, quando vivo, não dera importância apenas ao físico. Tinha deixado tudo entregue a um dos bancos mineiros de tantas agências espalhadas pela cidade. O gerente, homem de confiança, era o tutor da herança. As ações, letras de câmbio, dinheiro guardado, tudo estava sob o controle do banco e permitia à viúva o recebimento sagrado e tranqüilo de uma farta mesada que lhe dava direito a viver sem i necessidades.

   E, quanto à mesada, ela nem gastava tudo. O que sobrava era recolocado no banco. Dona Cleonice, cada vez que devolvia o que restava ao fim de cada mês, pensava numa bola de neve; era um aumento da certeza de que nunca lhe faltaria o pão, porque o teto estava garantido pela casa da Rua Dr. Satamini, casa que já bem precisava de uma pintura, quando pouco.

  

   Aqui entra o ladrão na estória. Tanto se falou do dinheiro de Cleonice (diziam ser fortunas!) que isto chegou ao ouvido do ladrão. O vento lhe contou que numa certa casa da Rua Dr. Satamini morava uma viúva rica que tinha dinheiro nas gavetas e jóias no cofre.

   O roubo foi às três da manhã. O negrão forçou as janelas da sala e da cozinha, e acabou entrando pela porta dos fundos, que não se negou ao seu pé-de-cabra ensinado e diplomado. Esperou uns momentos até que a vista se acostumasse ao escuro. Viu a cadeira de palha onde um tricô em meio de caminho descansava com as agulhas mal enfiadas; o sofá, o retrato do falecido — com a mão no queixo e o olhar de advertência. Aquele olhar não era para ele. Na sala, nada que interessasse. Voltou à cozinha, por onde entrara, e comeu um farto pedaço de gelatina de limão; esteve na copa, na sala de almoço, e subiu pela escada de madeira cuja passadeira mostrava rasgões num ou noutro degrau. No que rangeu, por exemplo.

   Foi esse rangido que acordou Cleonice, pondo-a a par de que havia alguém dentro de casa, certamente um ladrão. Sentou na cama e ficou esperando que ele entrasse. Jóias, não tinha, que as guardava no banco. Dinheiro, apenas o resto da mesada que amanhã iria devolver ao gerente. Que Deus fizesse o que melhor lhe parecesse. O ladrão poderia matá-la, por ficar irritado ao comprovar a inutilidade de assaltar aquela casa. E se assim fosse? Mais cedo iria juntar-se ao Pedrosa que, seguramente, tudo observava lá do lugar onde Deus o pusera.

   E a porta se abriu para o ladrão entrar.

   — Boa noite — disse a voz de Cleonice, num tom manso que parecia dar boas-vindas.

   Tomado pelo susto e não por medo, o ladrão recuou um passo, estendendo a arma em ameaça.

   — Se levantar, eu passo fogo.

   Era um negro de um metro e oitenta. Usava um shorte, e o corpo, provavelmente ensebado, recebia a luz de um anúncio em néon, que entrava pela bandeira da janela, e o tornava brilhante. Seus músculos fortes refletiam o amarelo que fluía do anúncio da rua.

   — E por que me matar, moço? Eu sou uma velha. Uma velha pobre que mora sozinha. O senhor pensa encontrar aqui jóias e dinheiro, não é? Perde seu tempo.

   E contou que vivia de uma mesada e que deixava que os vizinhos julgassem que ela nadava em dinheiro porque lhe agradava que a imaginassem milionária.

   — ... mas eu sou pobre, moço. Minha pobreza é do tamanho da minha velhice. Só é menor do que a minha solidão. O senhor me parece ser um homem bom.

   O negro abaixou o revólver. Mas Cleonice ainda não acabara de falar.

   — O senhor jantou hoje?

   — Mais ou menos — demorou o negro a responder.

   — Ninguém janta mais ou menos. A gente janta ou não janta. O que comeu hoje?

   — Um sanduíche de mortandela, no almoço. E, no jantar. . .

   — Não jantou.

   — Comi um pedaço de gelatina, lá embaixo.

   — Só? Mas lá embaixo há mais o que comer. Ela cobriu a camisola com um robe e desceu, levando, pelo braço, o negro ladrão. Era sebo, de fato, que tinha no corpo.

   Enquanto fritava dois ovos, os dois conversavam. Era um pouco ridículo o que acontecia naquela cozinha. Cleonice, com creme no rosto e um lenço protegendo o penteado que fizera anteontem, junto ao fogão preparava a ceia do negro ensebado que, de shorte e pernas cruzadas, folheava uma revista antiga como a dos consultórios médicos. A conversa era mais um conselho.

   — O senhor é um homem moço, por que não arranja um emprego decente? Ganho honesto, o dinheiro rende mais. Quanto. . . — demorou a dizer a palavra — . . .rouba por mês?

   — Não tem nada certo.

   — Em média — insistiu Cleonice. — Um dia pelo outro. Trezentos?

   — Tendo sorte, um pouco mais — confessou o negro.

   — Digamos. . . quatrocentos.

   — É, digamos.

   O negro não mentia. Havia casas de bom faturamento e também havia casas como aquela em que nada levaria, pois já não mais admitia tirar um centavo da madame que acabava de fritar os ovos que lhe matariam a fome.

   — Coma.

   — Não tem uma cervejinha? Desculpe abusar, mas. . .

   Não tinha cerveja, que Cleonice não bebia, mas lhe foi servido um Grapette que tingiu o copo de roxo. Ele comeu com avidez, passando o pão-meio-borracha no amarelo de ovo que sujava o prato.

   — Agora vamos conversar — propôs Cleonice.

   — Madame — disse o ladrão —, a senhora foi muito legal comigo, mas vamos deixar a conversa pra outro dia. Já são quase quatro horas e. . .

   — Mas o senhor não vai mais roubar — atalhou a velha.

   E, sem dar ao ladrão uma fração de segundo para responder, propôs um acordo que não deixava de ser interessante.

   — . . . e você fica trabalhando aqui. Numa casa tem que ter um homem. O senhor cuida do jardim, conserta uma coisa ou outra que se quebre, faz as compras da casa. Pode dormir na garagem. No tempo do Pedrosa a gente tinha um Plymouth, mas com a morte dele eu vendi. Você não acha que eu fiz bem? O que é que o senhor acha?

   Ela misturava "você" e "o senhor" com a mesma facilidade com que falava, convencendo o negro a se regenerar.

   — ... e eu pago duzentos e cinqüenta por mês. Mas com casa e comida. E aqui é perto do Maracanã. O senhor pode ir a pé. Você não acha bom?

   O negro concordou com um aceno de cabeça e ela ainda falou muito: da polícia, de carteira assinada, desconto para o Instituto, do fim do perigo de entrar em casas onde não sabia o que o esperava, falou e falou. Era um negócio a ser pensado. Mas a resposta, ela a exigiu na hora.

   — Quero que resolva agora. Em caso contrário, a casa está às ordens. Escolha o que quer roubar e leve. Dinheiro, tenho cinqüenta contos. Resolva.

   Ele não pensou muito. E mais um homem honrado nasceu. Desta vez numa casa da Rua Dr. Satamini (casa que precisava ter umas telhas trocadas, porque já havia goteiras em alguns cômodos).

  

   Como era de se esperar, houve os comentários malévolos. Não foram muitos os que aceitaram como coisa normal a presença do negro naquela casa. Levantavam-se as mais amorais hipóteses, e poucos recebiam como verdade o fato de o negro ser um ladrão que tinha entrado etc, etc.

   Dona Cleonice calculava o que falavam, mas não dava importância nenhuma. O negro era-lhe útil. Tinha mudado as telhas, dado uma demão de tinta na casa, por dentro e por fora, mexera no encanamento. Enfim, além de muito útil, altamente econômico. Apesar de ser uma boca a mais para comer, ainda assim desde a chegada do negro as despesas tinham diminuído consideravelmente. Tinha mês de devolver ao banco não os cinqüenta ou sessenta cruzeiros de sempre, mas até cento e tantos, coisa que o gerente louvava. "Ah, se a minha mulher fosse assim. . . " O que os vizinhos pensassem ou falassem, azar deles. Mas o negro não gostava muito dos disse-me-disse.

   — Olha, dona, a senhora está falada às pampas aqui na rua.

   — Eu não me incomodo, Lisandro — tranqüilizava Cleonice.

   — Mas fica chato pra mim, também, né? O pessoal "andam" dizendo que a gente anda com coisa, um com o outro, e pega mal, né?

   — A maldade entra por um ouvido e sai pelo outro.

   — Mas a senhora vê? Falam à beca. Já nem posso andar na rua. . .

   O problema era esse? Uma semana depois estava sanado. Com a concordância do gerente do banco Dona Cleonice fez chegar à porta da casa da Rua Dr. Satamini um Aero-Willys 65 em estado de novo.

   Agora o negro Lisandro não precisava mais enfrentar a pé as quadras que separavam a casa da zona comercial: ia de carro. E não era carro tirado no Sílvio Santos, como o do Dr. Plácido, era comprado. Depois do carro, os comentários cresceram. Passaram a ser encarados como verdade absoluta. O que falavam!

   — Até carro já deu pro safado.

   — Se deu coisas mais sagradas, quanto mais um carro.

   — Pouca vergonha.

   — Nunca me pareceu ser boa gente. O Heitor me disse que ela chegou a vir com indiretas pro lado dele. É que o Heitor tirou o corpo fora, mas se bobeia. . .

   — Pobre marido.

   — Está vendo, Dudu? Está vendo a nossa vizinhança? Já te falei pra alugar aquele apartamento do teu tio na Cândido Mendes. Vê lá se eu quero que meus filhos cresçam perto dessa. . . dessa. . .

   — Dessa galinha, pode dizer!

   Quem chamava Dona Cleonice de galinha era Plácido, um dos recusados e que, por esta razão, achava que tinha direitos de sobra para encher a boca naquele desqualificante qualificativo.

   — Galinha! Essa é uma que se tomar banho quente vira canja.

   E todos gargalhavam como se ouvissem pela primeira vez a piada macróbia.

   — Já botei gente vigiando. O negro finge que dorme na garagem, mas de noite entra na casa.

   — Ora, Teteca. Vai beber água ou comer alguma coisa.

   — Beber água, acho que não vai; mas comer alguma coisa. . .

   E estouravam as gargalhadas cruéis, comemorando a perfídia. Mentirosos! O negro, depois que entrava na garagem, não saía mais.

   Dona Cleonice é que entrava.

  

   APETITE DE CÃO

   Começo a contar, nestas bem impressas linhas, a estória do homem que jogava pôquer. É uma estória tão estranha que o pôquer, nela, não tem a menor influência ou importância, e nem ao menos seria citado, se o homem da estória, ao chegar em casa, não estivesse voltando de uma rodinha de pôquer à qual comparecia com assiduidade não escolar, cada quinta-feira. Utilizava um dia fixo na semana para dividir, com quatro amigos larápios, cinqüenta por cento do salário que percebia na filial de Copacabana da Barbosa Freitas, onde dava expediente no escritório.

   Então, voltando ao pôquer que jamais será citado, o homem entrou em casa às duas da manhã, horário mais avançado do que o habitual, por ter a rodada de fogo, onde, aliás, o seu dinheiro foi queimado, demorado um pouco mais do que o previsto.

   O homem, que se chamava Barbosa e assim o chamavam, estava com fome e foi ao fogão sobre o qual nada mais achou que duas panelas vazias; no forno, mais vazio ainda, nem saudades de panelas ou pirex. Ele revistou os armários de fórmica da cozinha americana de modo desajeitado, por não saber se as portas abriam no sentido da Mata Machado, ou do Ginásio Gilberto Cardoso. Os armários lembravam um estômago de retirante, de tão sem nada. Nem aquele pão dormido, os míseros farelos de bis-

   coitos, a hoje simpática banana sardenta que costumava repudiar quando a encontrava em meio às apetitosas bananas-prata recém-chegadas da feira. Nem a maçã com uma mordida de arrependimento e subseqüente abandono!

   Foi à geladeira na esperança do pudim pelo meio ou do final de um leitinho na embalagem plástica. A geladeira não exibia mais do que meio pacote de margarina, uma garrafa de água poluída, o papel plastificado que envolvera as fatias de bacon que se comeu no almoço (por que o papel ainda está ali?), uma caixinha de ovos sem os ditos, frascos de conteúdo indesejável que deveriam ser remetidos ao laboratório na manhã seguinte, e mais nada.

   A despensa não era das mais fornidas, convenhamos. Mas a fome, temos que reconhecer, era canina.

   Canina!

   O homem lembrou do cachorro. Pé ante pé, para não acordar o Príncipe Valente, que dormia com um vermelho olho entreaberto, aproximou-se do prato do boxer. Limpo, como a consciência de um santo.

   Correu a área de serviço em busca de uma folha de alface caída na chegada da feira ou de uma laranja ou pêra. Até pêra ele comeria, como se estivesse doente. Mas como podia ter esta esperança, se a feira só seria feita no dia seguinte? O que encontrou foi a ausência total de qualquer coisa mastigável ou ingerível.

   Mas ainda havia uma esperançazinha muito remota: podia tentar o armário onde as vassouras eram guardadas. Podem todos achar que o homem exagerava, mas o que ele fazia era, apenas, pôr-se do tamanho da fome que o martirizava. Abriu o armário das vassouras e lá estava a salvação: os biscoitos do cachorro.

   Não desejo discutir se é salutar ou não um ser humano comer biscoitos de cachorro, mas sou obrigado a admitir que, para quem está a perigo, Maranguape é Nova Iorque.

   Com a avidez dos famintos — grupo em que estava incluído e, por isso mesmo, tinha direito à avidez supracitada — o homem abriu, com a maior prudência possível, para não acordar o boxer que estava sendo roubado, o plástico que abrigava o biscoito, evitando com as mãos postas em concha o sclásct, sclásct do plástico.

   Pôs um biscoito na boca e esperou que o paladar desse o seu parecer. Não houve recusa. Ele comeu outro, mais outro, comeu todos. Com sofreguidão e agrado, gostando até mesmo do último, comido quando a fome já não era tanta.

   Daí, ficou viciado.

   Exigiu que a mulher, a começar do dia seguinte, comprasse carne para o cachorro e biscoitos de cachorro para ele.

   Comia os biscoitos molhando-os no café com leite, pela manhã; no almoço, acompanhando o bife; no lanche (levava-os para o escritório), junto com a vitamina de abacate; e à noite, enquanto acompanhava a novela que a mulher fingia acompanhar, para que o marido ficasse à vontade naquele seu hábito que os amigos julgavam tão feminino.

   Ninguém sabia que o Barbosa era louco por biscoitos de cachorro; só a mulher, que os comprava. A primeira pessoa além do casal a tomar conhecimento deste hábito foi o cara do supermercado.

   — Moço, eu queria biscoitos de cachorro.

   — Aqui nessa prateleira, madame.

   — Mas não tem dos redondos. Meu marido só come dos redondos — informou a mulher, com os olhos postos a correr pelos pacotes quadrados e retangulares.

   — A senhora disse que seu marido não gosta? — desacreditou o vendedor.

   — É, meu marido só come biscoito redondo. E prefere da marca Lulux — respostou a mulher com indiferença.

   — É, Lulux está em falta — desculpou-se o rapaz. — E o seu cachorro. ..

   — Que cachorro, moço? — aparou a mulher, agora fitando firme o olhar incrédulo do vendedor. — Meu cachorro come alcatra. Os biscoitos são para o meu marido.

   — Eu não sabia que havia homens que comessem biscoitos de cachorro.

   — Meu marido come — disse a mulher, olhando por olhar e pegando por pegar uma garrafa de Cinzano, que depois colocou na prateleira fora do lugar. — Há alguma coisa de estranho nisto?

   — Não — respondeu o vendedor. — Isso acontece muito. Eu conheço uma mulher que dá strogonoff aos porcos e come farelo; meu cunhado tem um amigo em Cordovil que almoça alpiste, para que não falte nunca o franguinho de cabidela para o seu sabiá. A pessoa come o que quer.

   — Justamente — aceitou a mulher. — Meu marido come biscoitos de cachorro. Pena que não tenha Lulux.

   — Quem sabe no Disco, aqui perto — lembrou o vendedor, de tal modo surpreso que até indicava um concorrente.

   No Disco também não tinha, como igualmente estava em falta nas Casas Sendas e no Merci. Ela encontrou os biscoitos Lulux nas Casas da Banha do Catete. Comprou um estoque maior para evitar problemas semelhantes no futuro.

   Tempo e trabalho perdidos. Ao chegar em casa, o marido não estava. Tinha sido removido para a capela do Cemitério São Francisco Xavier.

   Morreu, correndo atrás de um carro.

  

   A DECEPCIONANTE ESTÓRIA DE DOIS HOMENS

   Era uma vez uma porção de coisas que acho muito bom que cuidem de não esquecer e que, para isto, as enumero: um bar, um espelho, um gordo homem alto, um copo, um cálice, um magro homem baixo, um garçom, um soco, uma briga, uma cerveja, um conhaque, uma rua, uma mulher, uma bronca, uma paquera, uma agressão, uma pausa, um revide.

   Era uma vez uma porção de coisas que, após enumeradas como o foram, devem imediatamente ser colocadas na ordem justa e devida, para evitar maiores danos à cabeça de quem lê e que, se for desequilibrado como imagino, deve estar roxo para saber o significado do bar, do espelho, do gordo homem alto, do -copo, do cálice, do baixo homem magro, etc.

   Primeiro, tomemos para cenário o bar com o espelho ao fundo e um garçom de intermeio, eliminando, desta forma, três das várias coisas citadas no era-uma-vez da estória.

   Neste cenário entrou o homem alto e gordo que se sentou na cadeirinha do bar, pedindo um conhaque num cálice pequeno, e se escondendo atrás de um jornal que exibia as manchetes habitualmente enganadoras.

   Seguiu-se, então, a entrada do homem baixo e magro que, seguindo o contraste, comandou uma cerveja num copo longo.

   Por minutos nada mais aconteceu naquele bar, a não ser uma imagem que lembrava a pontuação exclamativa espanhola. De um lado, um ponto de exclamação ao inverso: um homem alto tendo, em cima, um pequeno cálice; do outro lado, a pontuação admirativa normalmente posta: um copo longo e, sob ele, o homem curto.

   Então, de repente, surgem na estória vários dos pontos de venda citados no início e que me permito repetir para que não se percam hora alguma: uma rua, uma mulher, uma paquera, uma agressão, uma briga.

   Da briga, cuidamos em seguida. Através do espelho o homem viu, detrás do jornal, o homem enorme. Num pulo de gato arrancou-lhe o jornal da mão, colocando, no nariz do homem enorme, seu pequenino dedo de homem curto.

   — Pensou que nunca ia me encontrar, não é, seu cavalão cretino? — esbravejou o pequenino, sem obter nada em resposta, a não ser uma atenção mais cuidada por parte do garçom que, boquiaberto, não esqueceu de abrir a boca para ficar realmente boquiaberto (uma vez que é muito comum chamarmos de boquiaberto os que estão unicamente estupefatos).

   — Sabe quem eu sou? Não diga que não sabe, que você sabe muito bem quem eu sou — perguntou e respondeu o homem pequenino demonstrando uma auto-suficiência para o diálogo simplesmente alarmante. — Eu sou o Jurinha.

   Como ainda desta vez não tivesse motivado o homem enorme para a briga, o pequenino levantou da alta cadeira em que estava, ficando, assim, menor do que já era, porque, de tão pequeno, ele, sentado, era maior do que em pé.

   — Eu sou o marido da Helena, seu safado — apresentou-se o pequenino na ponta dos pés, posição que não era cômoda, porém facilitava a aproximação do seu dedo em riste se não do nariz do homem enorme, pelo menos do seu umbigo — parte do corpo de aparente inutilidade, mas de periculosidade desmedida. — Pensa que eu não sei o que você anda fazendo, seu palhaço?

   O homem enorme mantinha-se calado como o cálice de conhaque que já nem tocava. E o homem pequenino (incríveis, esses dois homens!) não fazia por onde amortecer sua ira. "Como era possível caber uma cólera tão grande num homem tão pequenino?" devia estar pensando o garçom durante o tempo em que, assistindo à pendenga, limpava o salão porque de noite tinha festa.

   — Minha mulher não pode passar na rua, que você vai atrás dela dizendo gracinhas e fazendo propostas indecentes. Com mulher de homem não se facilita, está ouvindo? Está sabendo, bicho? — perguntou o pequenino, numa inflexão absolutamente Ipanema, que contrastava sobremodo com seu porte Lilliput.

   A cerveja dormia no copo alto, o conhaque esfriava no cálice miúdo, o garçom colocava sob o balcão o produto colhido entre a boca e os olhos, e o homem pequenino, crescente de fúria, cresceu de estatura, subindo no travessão que serve de apoio para os pés. Com isto, conseguia atingir a altura do peito do homem enorme, com seu dedo que nem se via de tanto que se agitava num incitamento exasperado.

   — Vou lhe dar uma surra que você nunca mais vai esquecer. Pensa que só porque você é grande e eu sou pequenininho, você pode fazer e acontecer aqui na rua? Pensa que eu vou botar o galho dentro? Pensa que eu tenho medo de você, seu babaquinha? Pra mim, maior o pau, maior a queda. Dou-lhe um soco só e você, cada vez que lembrar do soco, vai cair de novo! — berrava o homenzinho pequeno de ódio tão comprido. — Fala um troço aí. Diz uma sílaba. Fuma! Pega nesse cálice. Cale-se! — ordenou ao homem enorme que permanecia calado.

   Não era uma cena que se possa ver freqüentemente e, por esta razão, o homem pequenino fez a pausa enumerada no início da estória para conseguir um efeito dramático mais de acordo. Feita a pausa, vamos nós.

   — Mulher do Jurinha ninguém paquera, porque o Jurinha é fogo no jirau. O Jurinha bate por baixo, pra ver você cair de cima. O Jurinha é bom de pernada e de bolacha, ouviu, seu bobo alegre, paspalho, vagabundo, cafajeste, cachorro vira-lata, vaca de presépio, bode expiatório, cavalo de corrida, gato de hotel, mosca morta, galinha comeu, rato de gaveta, rabo de arraia, cabra da peste, leão-de-chácara, vaca foi pro brejo, galo de briga, peru de pôquer, rã à doré, pé de pato, mão de onça, serra das araras.

   Depois das zoológicas ofensas que conseguiu recordar para desfeitear seu êmulo, o homem pequenino calou-se. Das coisas enunciadas, ficou faltando o soco para que a estória se finde.

   Foi o que o homem enorme deu na cabeça do pequenino. Um só, de cima para baixo, que lhe provocou a morte instantânea, por hemorragia interna e fratura do occipital.

   Que estória decepcionante!

  

   TUDO É QUESTÃO DE FÉ

  

   O fato se deu no Irajá, mais precisamente na Rua Calmon Cabral, e merece uma atenção maior. Não apenas por ser verídico, mas por ser insólito. O palco foi uma modesta casa quase na esquina de Monsenhor Félix e encerra alguma coisa de místico ou de sobrenatural — se é que há diferença perceptível entre as duas possibilidades.

   Seja como for, o Sr. João Mendonça Albuquerque de Silva Carvalho, apesar de possuir um nome alexandrínico, como o de Bilac, não tinha uma cultura ao menos parecida com a do Olavo Brás Martins dos Guimarães. Era um homem comum. Tanto que ninguém o apontava ou descobria; pessoa alguma o reconhecia ou recordava. Era quase um anônimo. E tímido, também. A tal ponto que não tinha filhos.

   Trabalhava nos Correios e Telégrafos; não na parte que tem contato com o público, mas lá por dentro, separando as cartas a serem entregues nos diferentes bairros. Enfrentar o público não era tarefa que o Mendonça fosse capaz de realizar. Nunca se dera ao prazer de jogar futebol, quando menino, °u de matar uma aula simplesmente para fazer nada, ou remar na Quinta da Boa Vista, quando rapazola. Sair com pequenas, muito esporadicamente e, assim mesmo, quando era de todo impossível evitar o convite de um amigo mais ousado (e era sempre o Bilu quem propunha) que arranjara uma namorada que tinha amiga.

   — Você vai comigo, Mendonça.

   — Não posso. Tenho que. . . tenho que estudar — inventava de um jeito tão evidente, que a mentira gritava.

   — Que estudar, rapaz. Estudar, você estuda amanhã. A garota é um violão — assegurava o amigo, pois o Bilu era do tempo em que assemelhar-se ao violão marcava vantagem para a mulher.

   Saíam, e não acontecia rigorosamente nada, no que concernia a Mendonça. Nem na mão pegava, enquanto o amigo fazia sua mão viajar pelos paramos indevassáveis (teoricamente) da sua pequena. As moças escaladas para o Mendonça não se davam a reprise.

   — Olha, Bilu. Esse tal de Mendonça, pelo amor de Deus. Tira esse cara da minha vida.

   — O Mendonça é boa gente. É que ele é tímido. Dá uma colher de chá pra ele, Fernandinha.

   — Mas não tem chance MESMO.

   E lá ia o Bilu, desinibido e safado amigo do Mendonça, catar outra pequena a oferecer ao amigo tímido, de nome duodecassilábico e coragem que não passava de um ditongo.

   Foi assim desde menino e seguia sendo agora, homem feito, de bigode aparado e cabelo endurecido pela farta dose de Gumex. Ainda não tinha este bigode nem este cabelo quando se empregou nos Correios. Pegava às oito e largava às seis. Não chegava em casa antes das sete e meia, hora em que ia à igreja.

   A mãe gostava de ter um filho tão católico mas, por dentro, temia um pouco por esse fervor exagerado.

   — Não sei. . . ele vai à igreja demais — comentava com Dona Lurdinha, sua vizinha confidente.

   — Ué. Deixa. Vai ver que ele quer ser padre — admitia Dona Lurdinha, num comentário irônico, visto que, sendo ela umbandista, achava a igreja uma coisa superada, de tal modo que, ao fazer referências ao catolicismo, vivia repetindo que "os padres fazem do altar um balcão e de Deus a fita métrica".

   — É certo a pessoa rezar. Eu mesma, não deixo de ir à minha missa semanal. Mas a missa aos domingos é uma coisa. Igreja todos os dias, todos os dias. . .

   — Sabe de uma coisa, Dona Verônica? Posso ser franca com a senhora? Seu filho precisa se desenvolver. Ele é médio. Eu sinto, quando ele entra. Chega a me arrepiar. Isso é mediunidade. Ou então ele tem algum encosto. Leva ele no centro da Vovó Catarina que a gente tira isso.

   — E a senhora acha que ele vai? Espere sentada.

   — Leva no peito. Tá precisando; tem que ir, leva. Vê o Jorginho, do borracheiro? Vivia enchendo a cara de cachaça, brigando com Deus e o mundo. Pegamos ele no braço, botamos numa roda de pólvora, caiu sete médio. Tinha sete falange de Exu em cima dele. Depois viu como ficou? Tá uma seda. Vocês não acredita porque não quer. Eu sei de mil pra contar. Seu Antônio Português: o táxi dele batia todo santo mês, o dinheiro não parava na mão dele, lembra? Hoje, depois que a vovó deu uns passes, tá com três chevrolés rodando e já faz casa própria em Deodoro; tem mais: o Tatá, aquele rapaz que namorou a Cecilinha, lembra? .

   E Dona Lurdinha desfilava um rosário de exemplos, tentando convencer Dona Verônica a levar, no peito e na raça, o Mendonça ao centro. Ela, com o filho, nem tocava nesse assunto. Pode-se falar de espiritismo a um homem que diariamente vai à igreja e que usa, como livro de cabeceira, a Vida de São João Batista? Para que ele concordasse ou procurasse resolver sua vida por esse lado tinha que ser por conta própria.

   — Uma hora boa — lembrava a vizinha espírita — é quando ele estiver de porre. De porre, não é ele quem fala, é um obsessor que fica falando pela boca dele.

   — Mas porre, como, se Mendonça não bebe? Com o tempo muda, vocês vão ver. Dá tempo ao tempo. De repente dá um. estalo, e Mendonça se dana a atacar as moças por aí. Vamos com calma ao pote. O mundo não acaba hoje. Vocês confundem educação com outras coisas. Quem fala que o Mendonça é fresco tem é inveja de não ter o trato e o preparo que ele tem.

   Podia ser que fosse isto. Mendonça era mesmo de uma cultura exuberante, se levada em comparação à cultura zero dos que moravam na rua. Sabia até fração!

   Mas seus conhecimentos aritméticos não o livraram do apelido.

   — Olha lá o Bichola!

   Mendonça achou ruim, e a reclamação solidificou o apelido. Só tem a alcunha cimentada quem a ela reage. Seu protesto garantiu para todo o sempre o chamamento grotesco e injusto: "Bichola".

   Bem, até que nem era lá muito injusto.

  

   Diná era linda, além de loura. Quando o sol lhe batia nos cabelos até os ombros, parecia estar vindo buscar dourado neles. Lourice autêntica, não como a das moças que, na televisão, fazem reclame de novos xampus. Quando Diná passava, a rapaziada não sabia se era preferível acompanhar os "ir e vir" dos democráticos quadris, ou o macio deslizar dos cabelos de um ombro a outro, como que espanando suas costas descobertas pela caridosa blusa de frente única, que servia, mais que tudo, para realçar o colo tentador. Os galãs da Rua Calmon Cabral davam em cima de Diná as vinte e quatro horas do dia. Não havia imaginação no que diziam, mas o que levava de desejo!

   — Sabe que você é o número que eu calço? Taí, você é o remédio que o doutor me receitou. Tua mãe não quer um netinho? É verdade que você é apaixonada por mim? Com você eu começava pelo pé da cama. Vai ser gostosa assim lá em casa.

   E Diná sacudia os cabelos num gesto impregnado de sexo e caminhava, malvada, mais provocante ainda, quadris indo e vindo, indo e vindo. Isso, todas as vezes, todos os dias. Mas não tinha bola* pra ninguém. Os homens faziam apostas.

   — Bota dez mangos que eu levo ela ao cinema domingo?

   — Tá casado. Dez pratas. O Rubens é testemunha.

   Mais uma aposta perdida. E eles, também, se faziam promessas.

   — Quem comer conta pro outro.

   — Combinado.

   E ninguém tinha o que contar. Diná era um envelope com lacre, caixa-forte de um banco inexpugnável. Indevassável e intocável como os documentos de guerra. Por isso, não apenas a Calmon Cabral, mas todo o subúrbio do Irajá caiu pra trás quando soube que o Mendonça tinha amarrado a Diná.

   — É gozação.

   — Te juro. Viram os dois na Quinta; no trem fantasma e no bicho-da-seda.

   — Amizade, rapaz. Vocês logo maldam. Amizade.

   — Com chupão é amizade? Foi o Piloto quem viu.

   E gritavam pelo Piloto — que assim era chamado porque dirigia o ônibus Nova Iguaçu—Mauá — para que ele, de viva voz, repetisse o que já contara dezenas de vezes. Cansado de tanto descrever o flagrante, ele o narrava num monocórdio automatismo que até tirava um pouco a importância do acontecimento:

   — Poxa, vi, sim. Diná e Mendonça, é. É, na Quinta, trem fantasma, sim. Também. Bicho-da-seda também. E roda gigante.

   — Ah! Até na roda gigante?

   — Tudo. Andaram em tudo. É. Agarrões e chamegos. Estão namorando, poxa. Quem namora não se agarra? Ela não é mulher? E então? Ele não é homem?

   Aí é que estava o galho. Que ele fosse homem, homem mesmo, agora é que se estava sabendo. Ou o Piloto desconhecia o apelido do Mendonça?

   — Sabe o que o Mendonça é? Um enrustido. Tirava onda de boboca mas vai ver, naquela sonsice, bem que ele já andou passando na cara umas e outras. Até minha pequena. Vou falar com a Isolda.

   Ninguém mais podia chamar o Mendonça de Bichola. Quem se atreveria a chamar assim um cara que tinha botado a Diná na rede? Os quadris, agora, iam e vinham exclusivamente para o Mendonça ou, como passaram a chamar, para o Bicheis — modo descoberto de qualificar um ex-bicha.

  

   Casaram na igreja da Penha e foram morar na casa da mãe do Mendonça, na Calmon Cabral, porque a mãe, ficando sozinha, preferiu ir para Caxias, dividir uma meia-água com a irmã solteirona.

   Mesmo após o casamento, dois ou três meses depois, ainda aparecia um que não entendia o sucedido.

   — Até hoje eu estou besta. A Diná desprezou o Jadir, que já tirou até retrato para anúncio de camiseta.

   — O Jadir só? E o Pião, que é bacana — apesar de eu não achar homem bonito — e tem situação: é detetive do 15.°.

   — Jadir, Pião, Helço, Boaventura — aquele subtenente que serve na Vila Militar —, Geraldino. . . Mandar andar todo mundo e casar com o Bicheis. Pode?

   — Posso falar? Pra mim, debaixo desse angu tem lingüiça.

   A lingüiça que estava por baixo do angu chamava-se Luís Paulo. Olhos verdes, como o mar do nordeste, pele queimada pelo sol do Leme, físico modelado por um ginásio de halterofilismo e emoldurado pela camiseta Hering de gola olímpica, que se colava aos músculos, propositadamente, para os realçar.

   Luís Paulo, filho de pai remediado e pilantrinha de carreira, conheceu Diná numa das idas da moça ao Cinema Rian e, do Rian ao seu apartamento na Gustavo Sampaio, não demoraram mais do que uma boa conversa e cinco chopes.

   Foi neste pequeno apartamento que um lençol a mais se tingiu de vermelho. Diná estava meio tocada, mas, mesmo que estivesse lúcida, se teria entregue àquele homem "divino; maravilhoso" — como pensava ao vê-lo. As mãos fortes que a prendiam nos momentos a dois davam-lhe uma agradável sensação de segurança; e era exatamente o oposto que se dava.

   As coisas que Luís Paulo dizia, ela nunca ouvira. Habituada às idiotices da rapaziada da Calmon Cabral, as frases do moço do Leme soavam-lhe como poemas, apesar de serem ainda mais idiotas, porque bestialógicas:

   — Vou te fazer viajar aos infinitos do prazer, Dinazinha. Conhecer ás, comigo, os horizontes perdidos de um dileto amor. É isso aí. Hei de ser o macho que em vão procuras pelo mundo. Falei. Sentir ás, no meu amplexo, o êxtase profundo de um amor insondável. Morou?

   Diná suspirava, fremia, tremia, entregava-se. Tanto e tanto isto aconteceu que, um dia, cinco dias depois do dia, ela sentiu um calor estranho, ao se observar:

   — Está atrasado. Era pra vir dia 15, e hoje é 20. Acho que estou.

   Estava. Luís Paulo foi o primeiro a saber. Ele já desconfiou do problema no telefonema que recebeu. Diná falava com sincero temor que precisava vê-lo hoje, agora, imediatamente, que tinha um negócio muito sério para contar, que ele iria cair duro. Preparado psicologicamente para a notícia, quando esta lhe foi dada ele já tinha engatilhada a resposta.

   — E qual é o grilo? Tira-se.

   Diná pôs a mão no ventre. Segurava o óvulo há cinco dias fecundado como se já fosse um menino que dissesse papai e mamãe.

   — Tirar o meu filho? Matar uma criança? Luís Paulo, pense no que você está dizendo. Você está querendo tirar a vida de um ser? Você quer que eu mate o nosso filho, o seu filho?

   — Que filho? Isso é um erro de cálculo, minha santa. Vai por mim. Isto é apenas um detalhe que perecerá no caminho árduo da existência e que pode ser sutilmente eliminado através de um momento indolor de cirurgia feminina. Tá falado?

   — O quê?

   Era a primeira vez que ela não entendia as tiradas filosóficas do amor querido. Mas, reconheçamos, era a primeira vez que ela ouvia o que ele falava; antes, ela somente escutava.

   — O Toninho conhece uma senhora em Botafogo que quebra esse galho por uma ninharia. A Dolores, que o Toninho levou lá, me contou que na hora dói um bocadinho, mas depois é um banho! Falou?

   — Aborto, né?

   — Não é aborto, linda. É prudência. Ou tu vai querer ter um filho? E teu pai? Vai cair de pau em cima de você. Tua mãe tem um troço. Mãe morre é nessa hora. Aqui na Gustavo Sampaio um dia desses uma coroa deu dessa: soube que a filha estava nessa tua, se jogou do onze. Saca se isso dá pé. Tem que tirar, Dinazinha. Se a gente fosse casado. . .

   — E por que a gente não casa?

   Ela ficou de pé para a pergunta. De pé e com o olho parado naquele olhar agora cinzento como o mar do Maranhão. E repetiu o quanto pôde, num fôlego único.

   — E por que a gente não casa, Luís Paulo? Por que não? A gente pode casar, por que não casa? Por quê? Diz, Luís Paulo. Por que a gente não casa?

   Calou-se quando perdeu o fôlego, sentando para ouvir a resposta do amor amado. Quem levantou desta vez foi Luís Paulo. Amassou o maço de Minister fazendo dele uma bola que chutou para a areia, devolveu ao lugar os cabelos lisos que lhe cobriam o rosto pela metade, deu uma cuspida entre os dentes e expôs sua razão numa resposta interrogativa:

   — Casar, como? De novo? Eu sou casado, Dinazinha. Ou eu nunca te disse? Se não disse foi esquecimento, não leve a mal. Mas eu entrei nessa.

   Não uso aliança porque não me amarro em botar coisa no dedo, mas eu sou casado.

   — Luís Paulo. . .

   Ela murmurou apenas o nome dele por não poder, à falta de forças, perguntar tudo que ele agora respondia, por ter entendido o que ela queria saber.

   — Sou casado e separado. Não deu para ficar junto, morou? Minha senhora era muito devagar. Casei porque meu velho queria e não deu para tirar o corpo fora. Durou seis meses. Ela mora, hoje, em Marquês de Valença. A gente nunca se combinou legal. Eu estava numa, ela estava noutra. E ela se chamava Ofélia, vê se pode.

   Respirou fundo antes de explicar a razão real do desquite:

   — EN-compatibilidade de gênio.

   Diná olhava as ondas. Nem quis saber se daquele casamento existia um filho, nem se ele tinha falado à esposa as coisas tão lindas e poéticas que lhe dissera. Não perguntou mais nada e nem nada falou. Fez sinal para o táxi e se foi, de volta ao Irajá.

   Luís Paulo ficou olhando a praia, parabenizando-se pelo feito, enxugando a testa com a manga da camisa.

   — Se eu não saco essa de ser casado, já era.

  

   Uma senhora de Botafogo, indicada pelo Toninho, fez mais um. Doeu na hora, mas depois não. Era uma dorzinha diferente. Não no local, mas na alma.

   Antes que alguém na Calmon Cabral soubesse da desgraça, a solução seria casar com o primeiro que aparecesse. Mas não podia ser com um dos da rua, os sabidos e malandros que lhe diziam gracinhas. Um bobão. Só servia um bobão a quem fingisse virgindade. De preferência um virgem.

   Foi assim que foi dado ao Mendonça o direito de subir os degraus da Penha solteiro e descer "ligado pelos sagrados laços do matrimônio". A mãe deixar a casa foi ótimo. Era uma chance que ela dava ao filho de esfregar na cara daquela molecada a sua macheza.

   — Falaram, que cansaram, do meu filho, mas taí. Ele tá casado com a moça mais linda do Irajá, e esses bobocas todos no ora veja. Bichas são eles que não arranjam ninguém.

   O casamento não mudou os hábitos do Mendonça. Continuava fervoroso. Já era congregado mariano e até ajudava na missa, quando o sacristão, que era muito dado a ter enxaqueca, não podia auxiliar o padre no ofício religioso.

   Os pais de Diná aceitaram o casamento com alguma surpresa, pouca alegria e acentuada dúvida.

   — Não é o homem que eu sonhava para minha filha, mas deve dar um bom marido. Religioso, prudente, calmo. E o gosto é dela, né?

   — É — dizia o pai —, mas bem que ela podia arranjar coisinha melhor. Aquele cara é muito esquisitinho.

   O pai usava muito o diminutivo, achando que esta era a melhor maneira de frisar os comentários.

   — Quando anda, é de um jeitinho desagradavelzinho. Deus queira que eu me engane, Rosali, mas, pra mim, é afeminadinho.

   — Não fala assim do teu genro, Jeremias!

   — É só um comentariozinho.

   Triste mundo em que a religião e a educação não são entendidas. Pobre mundo em que se confundem as qualidades e os defeitos. Para um sujeito ser bom, quanto pior, melhor. E Mendonça, se não era MELHOR, temos que ser justos: PIOR, também não era. Era meio-termo. Era temperado. Nem quente, nem frio. Mendonça era frapê. Isto. Frapê define bem o frescor do seu temperamento.

  

   — Eu posso ir mais cedo para casa, Seu Evandro? Não estou me sentindo bem — pediu Mendonça ao chefe.

   Era tão raro isto acontecer que Seu Evandro deixou. E ele realmente não se sentia bem. Não. sabia se tinha sido o camarão da véspera, a vitamina de abacate, o calor excessivo. O motivo, não sabia, mas o mal-estar era crescente. Suava frio, no último banco do ônibus que o levava de volta ao lar, três horas e meia antes da hora de chegar a que habituara a mulher. Em casa, não bateu na porta. Nem na de baixo, nem na do quarto. Por isso pegou a mulher deitada, e, sentado na cama, de cueca e meias, um rapaz que morava no Leme e que se chamava Luís Paulo, nosso conhecido.

   — O que é isso?

   Ele perguntava uma coisa inútil. Isso, qualquer marido saberia o que era, sem precisar gastar a pergunta, como Mendonça fizera. Mas, no caso em apreço, foi bom, porque deu tempo a que uma resposta fosse maquinada:

   — É um anjo, Mendonça. Ele é um anjo.

   — Anjo? — balbuciou Mendonça.

   Luís Paulo falou manso e quase em falsete, modo de comprovar o que Diná asseverara.

   — Sim, irmão, eu sou um anjo. Eu se materializei para te ajudar, porque és bom, puro e fervoroso. Tá falado?

   Faladíssimo. Precisava ser acreditado. Houve dez segundos de suspense. O anjo falou e olhou Diná sob os lençóis, aflita. Mendonça era, mesmo, bom, puro e compreensivo. Ajoelhou-se, fez o pelo-sinal e deixou todos tranqüilos, ao rezar o Credo de olhos fechados — tempo que Diná aproveitou para, num pulo, vestir qualquer coisa sobre o corpo nu. Era um vestido, por casualidade, como poderia ser uma camiseta de gola olímpica.

  

   Daí, o anjo passou a freqüentar com assiduidade a casa do Mendonça. Já que lhe tinha sido dado o crédito, deram-lhe a liberdade. De noite, quando voltava dos Correios, não era raro o Mendonça encontrar o anjo, de bermudas, com um copinho de cerveja na mão, vendo televisão, com as pernas repousadas na mesinha de centro, de pé palito. O anjo acompanhava a novela das sete com regularidade, e era ele quem punha o Mendonça a par do que acontecia com os personagens. Além disso, conselheiro eficiente. Não fora ele um anjo. "Faça isso, não faça aquilo, aja assim, aja assado." Mendonça seguia os conselhos do anjo, e sua vida até que melhorara. Aquele lugar de chefe de seção — ninguém lhe tirava da cabeça — era obra de algum trabalho secreto, alguma manobra angelical.

   A vizinhança comentava, mas era inveja. Quem tinha anjo particular? Só ele, Mendonça. Os pais de Diná é que duvidaram um pouco.

   — Anjo? Nem no céu isso existe. É algum cara que está comendinho a Diná. E o marido acredita, aquele bobalhãozinho.

   — Não fala assim, Jeremias.

   — Virou vagabundinha. Você é mãezinha de uma vagabundinha. Era preciso que eu fosse um idiota maior do que o Mendonça para acreditar nesse anjo. Anjo? Aqui, ó! Aquizinho.

   Quem quiser que duvidasse. Mendonça acreditava e pronto. O anjo era anjo mesmo. Sem asas, é claro, porque à paisana o anjo pode trabalhar melhor, sem dar na vista. E aquele era um anjo de acordo com a época. Usava os chinelos do Mendonça com a maior sem-cerimônia e compartilhava dos pijamas, camisas e sapatos, com a mesma naturalidade com que dividiam o direito de usar o lençol. E qualquer coisa que ficasse sobre o lençol. Diná, por exemplo.

   Luís Paulo, desculpem, o anjo, já nem mais vinha ao Leme dia-sim-dia-não, como no começo. Agora já praticamente morava na casa do Mendonça. Qual a necessidade de ficar paquerando na praia, quando tinha ao seu alcance e à hora que quisesse uma mulherzinha loura, de quadris que iam (ao marido) e vinham (ao anjo)? E era, mesmo, na hora em que quisesse, porque se lhe desse vontade de amar no momento em que o marido estava em casa, o anjo afinava a voz, divinizava-se num falsete meio ridículo e dizia:

   — Filha, tenho algo importante e translúcido a te dizer num particular. Segue-me aos infinitos. Falou?

   E trancavam-se no quarto, onde o anjo, sem a bênção do céu, mas com a indispensável aquiescência de Diná. . . mandava ver.

  

   Se dor de barriga não dá uma vez só, por que aquele mal-estar que Mendonça sentira na tarde em que conheceu o anjo seria único? Mais uma ocasião passou mal, pediu e Seu Evandro o deixou sair mais cedo.

   Ele tremia no ônibus. Parecia uma reprise daquela tarde. Mas, desta vez, a Rua Calmon Cabral estava diferente. Não mostrava a tranqüilidade daquela tarde da aparição. Em cada casa as janelas se abriam e mostravam cabeças curiosas. Na casa ao lado da de Mendonça, um bate-boca cerrado; quando, vindos do interior da casa, dois tiros se fizeram ouvir, gerando, na rua, um grito uníssono e, em seguida, o silêncio.

   Da casa vizinha saiu Luís Paulo, cambaleando, mão ao ventre. Deixava um sangue vermelho — como o dos mortais — filtrar-se pelos dedos que trazia apertados ao estômago. Parou no meio da rua e olhou em volta. Ninguém deu um passo em seu socorro. Os rostos parados olhando a cena. Foi Mendonça quem se aproximou, no momento em que Luís Paulo caiu, de cara nas pedras da rua e numa posição esquisita como a dos mortos por bala. Mendonça abaixou-se e, do coração de Luís Paulo, vinha um silêncio maior do que o da rua.

   Luís Paulo estava morto, no calçamento indeciso da Calmon Cabral.

   Mendonça fez o sinal-da-cruz e tremeu mais por dentro, mais sofrido.

   O vizinho jogou no jardim o revólver assassino. Era o Dr. Ivo, médico do bairro que, chegando em casa antes da hora de costume, encontrara sua mulher com Luís Paulo, abraçados, ao som de um bolero, e de lábios colados. Dr. Ivo tinha um olhar misto de arrependimento e prazer.

   A mulher do Dr. Ivo, caída no chão da sala, mordia as unhas, querendo adivinhar o que aconteceria a seguir e sofrendo o remorso de ter permitido a Luís Paulo, somente por um pedaço de tarde, o que Diná permitia o tempo que quisesse, sem nada daquilo se dar. Mas os olhos dele eram tão verdes, as mãos tão fortes, as frases tão lindas. . .

   Mendonça caminhou mais lento do que o habitual. Entrou em casa, sentou à beira do sofá onde Diná se mordia num choro de viúva, passou sua mão branca e azeda naqueles cabelos louros e comentou baixinho, num tom quase de desculpa:

   — Dr. Ivo é ateu.1

  

   O BATIZADO DA VACA

   O lugar era tão bonito, o clima tão bom, as flores tão rosas e as vacas tão bovinas, que o chefe da família achou que valeria a pena comprar ali uma fazenda.

   Consultou a família que, de pronto, foi contra. Isto colaborou demais para que o chefe da família entrasse, imediatamente, em conversações com o proprietário de uma, que se queria desfazer da fazenda, por achar que ela estava num lugar que não era lá essas coisas, o clima era idiota, as flores não fugiam daquela variedade: rosas, rosas, rosas, e as vacas, coitadas, eram simplesmente bovinas — numa total falta de imaginação. Vá-se querer que as vacas tenham isso!

   O negócio foi fechado por um dinheiro grande, e a família tomou posse da propriedade dois dias depois, data que coincidia com a véspera do fim das férias.

   A fazenda ficava num vale e era separada em duas partes por um córrego como o que só corre na infância dos escritores. Tinha matas e vacas, rosas e charcos, galinhas e caseiros.

   — Uma idiotice, comprar essa fazenda — vaticinou a esposa, numa contrariedade de quem faz doze pontos.

   — Comprar terra sempre é bom negócio —

   vibrou o chefe da família, puxando o ar, a encher o peito com um cheiro de estrume que vinha do estábulo. — Olhe em volta. Até onde a vista alcança, tudo é nosso. Está vendo o abacateiro? É nosso; Aquele caqui-chocolate? É nosso. A carreira de jabuticabeiras? Nossa. O mato, a casa, a cocheira, o estábulo, o caminho, tudo é nosso. Esse céu, que cobre a fazenda, é o único pedaço de céu que é nosso, porque o da cidade é do governo. Aqui, mandamos nós, porque aqui tudo é nosso!

   — Pra quê? — sintetizou a mulher, numa pergunta de esposa.

   — Ora — explicou admiravelmente o chefe da família —, para ser nosso. Nossa terra, nosso chão, nosso cantinho, nossas rosas! — e pegou numa, furando o dedo.

   Durante o curativo no dedo magoado um dos trabalhadores da fazenda aproximou-se com uma notícia muito importante: a fazenda acabava de crescer de valor pelo nascimento de uma bezerrinha.

   — Viu? — comentou, vitorioso, o chefe da família, batendo nas costas da esposa, de modo a fazê-la cuspir a primeira jabuticaba que tentava comer. — Nasceu uma vaquinha!

   A notícia correu para os demais da família ao mesmo tempo em que, para os pais, corriam os filhos, estes, sim, felizes, ao saber do nascimento da novilha.

   — É menino ou menina? — perguntou um menino que, de tão longos cabelos, nem se sabia se era menino ou menina.

   — Não é assim que se fala, menino — esclareceu o pai. — A pergunta é: bezerra ou bezerro? É uma bezerrinha.

   — Vamos ver? Vamos ver? — gritavam os filhos a sugestão lógica das crianças que nunca viram vaca a não ser nos desenhos das latas de leite em pó.

   Foram. A vaca não deixou que se aproximassem da cria, que ficou sendo observada a distância pela família encantada e pelo caseiro indiferente e até um pouco irritado por haver uma vaca a mais no seu mundo.

   — Quem é o pai? — perguntou a moça mais taluda.

   — Um boi desses — errou o pai.

   — Um touro! — corrigiu o caseiro, sabedor ele de que o boi é um touro que já era; boi é um touro que perdeu os documentos.

   — Pois é — emendou o pai na mesma veemência —, um tourão danado desses. Olha a carinha dela. Os olhinhos ainda estão fechados.

   — Vamos batizar! — gritou um menino.

   — Boa idéia — concordou o chefe da família. — Quem vai escolher o nome?

   — Eu. Eu. Eu. Eu — disseram, um a cada vez, os quatro filhos do casal.

   E começou a discussão sobre o nome a ser posto na recém-nascida que, indiferente a tudo, mamava na mãe, provando, assim, que ela (a mãe) não era tão vaca quanto julgavam.

   — Aretha Franklin!

   — Janis Joplin.

   — Jimi Hendrix — sugeriu o mais velho —, porque, até que me provem o contrário, essa vaquinha é touro; deixa levantar que vocês vão ver.

   — É fêmea, que o caseiro viu — afirmou o pai, voltando-se para o caseiro, na indagação do que já afirmara: — O senhor não viu?

   — Vi. É fêmea.

   E tome de gritar nome: Califórnia, Disneylândia, Erva Maldita, Otorrinolaringologia. . . Havia os nomes sugeridos a sério e os de gozação. Todos

   os que citei eram os a sério. Finalmente, o bom senso ajudou a solucionar o impasse. Foi a esposa quem sugeriu o nome que lhe pareceu o mais indicado para a novilhazinha que mamava no seio vaquerno: Long Island.

   — Desculpe — desculpou-se o caseiro por não entender.

   — Long Island — repetiu a mulher com uma naturalidade de quem fala "mococa".

   — A senhora podia escrever? — pediu o caseiro, confessando-se incapaz de decorar aquilo.

   Arranjaram uma pequena tábua onde, com um prego, o chefe da família escreveu: LONG ISLAND, tabuazinha que, com o auxílio de um arame, ficou presa no pescoço da novilha para que ninguém, na fazenda, esquecesse que aquela jovem bovina atendia pelo nome de Long Island, nome que fica muito bem para parque de diversões, mas que não é dos mais adequados para quem tem cara de Mimosa, Formosa, Maravilha ou Vaquinha — modo, inclusive, que melhor ajuda o reconhecimento da peça.

   Acabadas as férias, a família voltou à sua poluição metropolitana e só pôde retornar à fazenda dois anos depois.

   Tudo continuava como dantes, com exceção de uma ou outra coisinha em pior estado, uma das quais o geral.

   — Caseiro! — chamou o chefe da família, que não sabia que o caseiro tinha nome: José Caseiro da Silva.

   — Pronto, doutor — obedeceu o caseiro meia hora depois, com a presteza de um favor bancário.

   — Como vai a novilha?

   — Está uma vaca! — elogiou o caseiro de um modo que soou ofensa aos ouvidos da família.

   — Já dá leite? — perguntou um dos filhos.

   — Dá, né? — respondeu o caseiro estranhando a pergunta, pelo fato de saber (ele é acostumado, porque vive ali) que as vacas não dão outra coisa senão leite.

   — Pois eu quero beber um copo de leite da novilha — ordenou a esposa do chefe, madrinha de batismo da vaquinha.

   E o caseiro, sem que a família ouvisse, comandou a um seu auxiliar que tirasse um pouco de leite da vaca "Tabuleta".

  

   O HOMEM DO CHAPÉU DESBOTADO

   O Sargentelli me contou o que eu passo a contar.

   Aquele homem pedia a todos os carros que passavam que parassem. Não era um homem pobre, dos de barba crescida e roupa repulsivamente suja. Tampouco era um mendigo, aos molambos e de cabelos desses que serviram de sugestão aos hippies. Era, apenas, um pobre homem. O chapéu que levava à cabeça já não tinha mais a fita, e o azul-desbotado mostrava que se tratava de um Ramenzoni da safra de 50, com boa vontade. A camisa branca estava rasgada, mas limpa. Os sapatos — um sem cadarço — nunca tinham recebido graxa, era visível. Mas a aparência era agradável. Simpático, ele era.

   E os carros seguiam sempre, sem atender ao apelo daquele braço que se estendia a cada um. Nenhum carro parava, apesar de ele ser simpático, como eu já disse. Até que um parou. Era um táxi.

   — Pra onde vai?

   — Eu não posso pagar a corrida, moço, mas, por favor, me escute.

   O chofer do táxi achou que valia a pena escutar. Era um chofer muito estranho. E a este chofer diferente o homem do chapéu desbotado contou sua estória.

   — O senhor pode nem acreditar. O senhor acredita em sonho?

   — Às vezes.

   — É que eu tive um sonho.

   — Olhe, amigo — cortou o chofer —, eu estou trabalhando. . .

   — Escute. Por favor me escute.

   O chofer tinha prometido escutar, agora sentia-se obrigado a cumprir sua promessa. E, depois, alguma coisa lhe dizia que valeria a pena escutar o caso do homem do chapéu desbotado. Um homem tão simpático!

   — Foi um sonho estranho, sabe? Muito esquisito.

   — Conta.

   — Eu sonhei — narrou o homem — que na Rua Pereira da Silva, em Laranjeiras, no número 157, tem uma casa. O sonho era claro como se eu tivesse vivido tudo. Nítido. Parecia um filme. Aí, eu entrava na casa. O portão da frente estava quebrado. Não era bem quebrado. O portão tinha duas partes. Uma estava em pé, a outra caída, no jardim, feito esses portões de casas abandonadas, que caem e ninguém dá conta. E nem era jardim. Diz que era uma espécie de matagal, capinzal. Aí, eu entrava. Tinha uma torneira pingando sem parar. A porta da casa, a porta mesmo, não o portão, estava só encostada. Aí, eu empurrava a porta que abria rangendo. E eu entrava, o senhor está ouvindo? Está prestando atenção? Eu entrava pela porta da frente e que estava só encostada. Era uma casa abandonada, moço. Mas tinha, num canto, um sofá todo rasgado. Diz que esse sofá era cinzento. Tinha até palha saindo das almofadas. Aí, eu passava pela sala, tinha um corredor com a tinta da parede toda manchada. Sabe, parede que tem infiltração? Era mesmo assim. Aí, eu ia até a cozinha. Na cozinha ainda tinha um fogão. A porta do forno aberta. Em cima do fogão, na parede, não tinha um pedaço assim dos azulejos e ali, moço, bem ali, justamente no lugar onde faltava azulejo, um milhar. Moço, eu lembro de tudo. Só não consigo me lembrar do milhar. Que milhar era, é que eu não me lembro.

   — Tá certo, mas o que é que eu tenho com isso?

   — Eu queria ir lá, moço. Mas não tenho dinheiro, sabe? O senhor podia me levar lá e. . .

   — Ora. E você fez eu parar pra me dizer isso? Eu manjo esse golpe. Você quer ir pra Laranjeiras e não tem grana. Vê se pega outro, meu chapinha.

   E o DKV arrancou, na direção do Túnel Rebouças. Tudo isso aconteceu no Rio Comprido, ali perto da Paulo de Frontin. O chofer reclamava, sozinho, os minutos perdidos ouvindo aquela estória idiota, na qual só mesmo um idiota igual à estória poderia acreditar.

   — Tá cheio de maluco por aí — pensava o chofer enquanto botava cento e dez numa rua onde o máximo permitido era sessenta.

   Quase na boca do túnel a moça fez sinal.

   — Pra onde vai?

   — Laranjeiras, por favor — informou a passageira tomando lugar no banco de trás.

   O DKV atravessou o túnel até a lagoa e, de lá, voltou. Na descida do Cosme Velho o chofer começou a ficar intrigado. E isso aumentou quando a moça respondeu à pergunta do chofer que procurava saber o lugar exato de Laranjeiras para onde ela queria ir.

   — Rua Pereira da Silva, por favor.

   Devia ser coincidência. Mas podia não ser. O chofer era um sujeito como nós, que não cremos em bruxas apesar da certeza que temos de que elas existem. Na entrada da rua a moça deu o número.

   — 155. Número 155, por gentileza.

   A moça ia exatamente para a casa vizinha à do sonho. O chofer hesitou. Devia ter pena de não ter trazido o homem do chapéu desbotado ou foi melhor não ter trazido? Era uma briga surda entre a compaixão e a ganância. "Sei lá. E se aquele negócio do sonho fosse mesmo verdade?" O milhar estaria lá, e ele não dividiria nada com ninguém. "Mas os dois podiam ganhar." O bicheiro pagaria aos dois e o cara, afinal de contas, era o dono do sonho. "Mas quem mandou ser teso?" Mas Deus pode castigar e o milhar não dar. . .

   — O senhor já passou, moço. O 155 é ali atrás.

   Ele já estava no 161. Recuou os trinta metros que os separavam do 155, como quem chora um ás no pôquer. Tentou evitar uma olhada para o 157, mas não deu. A curiosidade sempre vence a sensatez. Lá estava. O portão com uma parte em pé e a outra caída num matagal que certamente um dia fora jardim. Recebeu o dinheiro da passageira, e desligou o motor. Suas pernas tremiam e o seu coração começava uma disritmia muito compreensível. A casa estava abandonada. Tinha que estar, para ficar naquele estado. Já que estava ali, não custava intrometer-se no sonho do homem do chapéu desbotado.

   O chofer passou o portão tombado e sentiu o primeiro arrepio. A torneira do jardim pingava, e cada pingo que caía parecia-lhe sussurrar um "entra. .. entra. . . entra. . ." que nunca mais acabava. A porta (a porta mesmo, não o portão) já estava ao alcance do seu olhar. Ele a fez abrir-se com o empurrar de um dedo. Ela cedeu com um rangido que lhe provocou o segundo arrepio. O homem do chapéu desbotado, naquela hora, deveria estar contando sua estória a alguém, no Rio Comprido. E havia um perigo: quem escutou pode ter acreditado e, mesmo que não traga o homem do chapéu desbotado, ele, que escutou a estória, pode estar vindo para ver se era verdade. Era preciso andar depressa. Mesmo assim, viu o sofá cinzento que cuspia palha por um buraco; seguiu pelo corredor que minava água pela parede e chegou à cozinha. De cabelos em pé, olhou o fogão. A porta do forno aberta, tal qual no sonho do homem, os azulejos faltando, mas, sobre o fogão, no lugar onde já não havia azulejos, nada escrito. Nem milhar, nem dezena.

   — Eu sou um idiota — pensou o motorista encabulado pelo logro. Aquele cara deve ter sido guardador desta casa, por isso sabia tudo. — Claro. Ele trabalhou aqui. E eu pensando que era verdade o sonho. É muito boa. O cara me tomou cinco minutos no Rio Comprido e me fez perder mais cinco aqui. Se eu boto a mão naquele cara um dia, nem sei. . .

  

   O homem do chapéu desbotado não era guardador de casa nenhuma e nunca trabalhara naquela. A verdade era a do chofer, no momento em que o homem lhe contou o sonho: ele, realmente, queria ir para Laranjeiras e inventara aquilo para conseguir uma carona. Era sempre assim que ele fazia. Cada dia inventava uma estória. De vez em quando, dava certo, outras vezes ele tinha que pagar o táxi. Mas esta estória do sonho fora a melhor que o homem do chapéu desbotado inventara. Isto, ele próprio reconhecia. Tanto que das outras estórias inventadas ele esqueceu. Dessa, do casarão abandonado, ele nunca olvidaria.

   A prova é que cinco anos depois de a ter contado ao chofer do táxi, quando já não estava mais desempregado — pelo contrário, estava até muito bem colocado no Banco Andrade Arnaud —, quando

   já não usava mais o chapéu desbotado e tinha os pés calçados por sapatos finos, o homem lembrava de tudo com a nitidez de uma verdade. Como se de fato tivesse sonhado aquilo com a clareza que afirmara ao chofer do táxi.

   Por coincidência pensava nisto quando o gerente do banco lhe fez um pedido para entregar um documento em Laranjeiras. Eram comuns essas solicitações.

   — É na Rua Pereira da Silva. Você não mora ali perto?

   — Moro na Tijuca.

   — Então deixa, que eu peço ao Maurício.

   — Não. Eu vou. Eu vou pelo túnel, não me custa dar uma paradinha lá. Qual é o número?

   — 159.

   O homem do outrora chapéu desbotado sentiu um arrepio. Ele nunca esquecera a estória, mas nunca tinha se preocupado em saber se havia possibilidade de ela ser verdadeira. De um momento para o outro, a oportunidade.

   Às cinco saiu do banco e fez o seu fusca tomar o rumo das Laranjeiras. E se fosse verdade? Aquele fusca, tirado no consórcio, poderia ser vendido e ele compraria um Opala. Ou um Dodge Charger, como o do gerente.

   Entrou na Pereira da Silva e parou defronte ao 157. Nem lembrou do documento que tinha a entregar na casa exatamente vizinha. E tudo o fez tremer, como fizera ao chofer. O portão caído, a torneira que pingava, a porta apenas encostada, o sofá rasgado, a parede molhada, o forno aberto, os azulejos ausentes e lá, sobre a parede desazulejada, o milhar: 0443. Cavalo. E o dia seguinte era 23 de abril. Dia de São Jorge, quando, dizem, Ogum empurra o cavalo para o primeiro prêmio.

   O banco o despediu por ele não ter entregue o documento, que era de capital importância. Mas isto não o abalou nada. O bilhete do cavalo que ele comprou, inteiro, deu no primeiro prêmio, sarava, Ogum! E o dinheiro do jogo do bicho mesmo com o cavalo cotado, pagando menos que o habitual, o fez ficar milionário. Como que achando estar homenageando o chofer do táxi que lhe dera imaginação para inventar uma estória verdadeira, o homem do outrora chapéu desbotado aplicou seu dinheiro na compra de uma frota de táxis.

   Abriu uma garagem em Vila Isabel, onde pernoitavam e faziam manutenção seus trinta fuscas. Todos verdes, como a esperança de que um dia chegassem a ser trezentos.

   Por uma questão de vergonha — "sei lá se vão me chamar de bruxo" — não contou a ninguém a estória inventada. Aquela estória, ele só a contara ao motorista. Exatamente o mesmo que agora entrava na sua sala pedindo emprego.

   — Eu tenho quinze anos de carteira, nunca bati, trabalhei para quatro companhias de táxis, fui motorista particular do Dr. José Hugo Celidônio, estive no Expresso Brasileiro seis meses e quatro na Única. Saí porque a patroa não gostava desse negócio de viver pra cima e pra baixo, na Via Dutra. . .

   Depois de ouvir o curriculum vitae do chofer, o homem do outrora chapéu desbotado falou.

   — Olhe bem para mim. Não lembra de ter visto minha cara antes? Pense bem.

   — Palavra, doutor, que não estou lembrando.

   — Quase na esquina de Paulo de Frontin — ajudou mais.

   — Rio Comprido? Assim de repente não estou recordando.

   — Eu fiz sinal para o seu carro parar e lhe contei um sonho.

   O chofer não podia cumprir o que se prometera no dia que sofrerá o logro. Agora ele estava precisando do trabalho que aquele homem que o gozara poderia lhe dar. E depois, era um homem de esportividade, e o momento era mais do que propício para demonstrar que era de boa paz, motivo que julgava forte para o ajudar a conseguir a vaga de que tanto precisava.

   — Agora lembro. Era o senhor?

   E olhou seu futuro patrão de alto a baixo, indagando, na panorâmica do seu olhar, como aquele homem antes tão miserável pudera, em tempo tão curto, ter melhorado assim de vida. O homem entendeu que o chofer queria saber do seu dinheiro mas não ia dar confiança de explicar essas particularidades a um possível subalterno.

   — Desculpe não ter dado carona naquele dia, doutor — falou o chofer muito acanhado. — É que o carro não era meu, e quando eu trabalho para carro de frota, não posso fazer o que faria se fosse eu o dono.

   — Claro, claro.

   — Agora eu vou contar uma coisa por senhor. Naquela mesma hora. . .

   . . .e contou o que nós já sabemos. A moça, o endereço para onde ela o mandara, o portão, a torneira, a porta da frente, o sofá, a parede, o forno. . .

   — ... só que em cima do fogão, doutor, onde os azulejos tinham caído, não tinha nada escrito. Eu é que, de safadeza, escrevi lá um milhar qualquer. Nem me recordo que milhar eu escrevi. Sei que era um milhar do cavalo, doutor, porque era véspera de Ogum e eu não esqueço da data, porque sou filho do Guerreiro — não sei se o senhor acredita. . .

   — 0443.

   — Como o senhor sabe? — espantou-se muito o chofer.

   — Eu não sei de nada — finalizou o homem. — Estou dizendo por palpite. Mas isso tudo é bobagem. Eu não acredito em sonho, moço.

   — E em Ogum?

   — Em Ogum — hesitou o homem —, em Ogum eu acho que acredito um pouquinho. Ogum, dizem que é forte. Mas sente. Vamos conversar sobre o seu caso.

   E o motorista sentou, colocando sobre o colo um chapéu desbotado enquanto seu futuro patrão, com a mão no bolso, apertava uma pequena imagem onde um santo montado a cavalo levantava uma lança.

  

   A MULHER ATACANTE

   Eram marido e mulher, mas viviam tão brigando, tão discutindo, tão se desentendendo, tão sem chegarem a acordo, que mais pareciam mulher e marido. O casamento não fora na igreja, porque sendo a mulher católica e o marido protestante, mesmo antes de casarem, discutiram sem chegar a nenhuma solução.

   — Caso na igreja! — gritou o noivo protestante.

   — Caso na igreja! — protestou a noiva católica.

   Como cada um se referia à sua igreja particular, acharam por bem não casar em nenhuma. Como também não se tinham casado no civil, o casamento não existia: era uma adorável amigação.

   Ora, se fossem casados, poderiam tentar um desquite — amigável ou litigioso, que era mais o caso —, mas, sendo apenas amigados, de que modo poderiam separar-se? Havia coisas a discutir: com quem fica o filho, com quem a tevê, quem tem direito aos móveis, quem ganha a cama, quem perde a roupa de cama, quem leva o cachorro, etc. Essas coisas, nós sabemos, quem decide é a Justiça. Mas decide, quando o casal é casado. Amigado, tem que resolver particularmente e aquele casal jamais poderia resolver nada, de tanto que brigavam.

   Mas isto não ficou nisto.

   Um dia, o marido acordou, escovou o que lhe restava dos dentes, penteou o fim dos cabelos, olhou a mulher muito profundamente e, num apontar de dedos que era quase acusação, disse seco e frio:

   — Você é um jogador de futebol.

   Ao ouvir esta frase, a mulher olhou para trás, certa de que, às suas costas, estava um desses peles que defendem a seleção canarinho com ponta de bota ou metendo a chanca na bola, segundo uns e outros.

   Atrás dela, apenas a parede.

   — Não queira discutir nem tirar o corpo fora — insistiu o marido, já num tom veemente. — Você é um jogador de futebol.

   — Eu? — sussurrou a mulher, trêmula como as bandeiras em desfile.

   — É, você! — acusou o marido, brandindo os dedos nas ventas da mulher perplexa. — Aliás — continuou —, não é de hoje que eu olho pra você e sinto que a sua cara não me é estranha.

   — Nem pode ser — lembrou a mulher chorosa. — Nós somos casados. Casados! .— exclamou a amigada.

   — Não mude de assunto — grunhiu o marido, numa irritação de quem freqüenta repartições públicas. — Eu estou falando de você, não estou me referindo ao nosso caso particular. O que NÓS somos, não está em discussão. Eu estou falando de você, e você é um jogador de futebol.

   — Dudu, você enlouqueceu — murmurou a mulher, um pouco a medo, porque já meio incrédula no que murmurava.

   — Esta é de cabo-de-esquadra! — monologou o marido. — Você passa anos enrustida, sem me confessar, e, de repente, só porque eu descubro (porque meu olho clínico não falha), você vem me dizer que eu enlouqueci. E sabe do que mais? Seu passe está preso. Seu passe é meu. Com essa você não contava!

   E ele se riu da mulher que, chorando, já saía em busca de uma amiga, a quem telefonou aflita.

   — Margô, o Dudu está dizendo que eu sou jogador de futebol — contou à confidente.

   — De que time? — inquiriu Margô, rubro-negra, temendo que fosse do Flamengo.

   — De que time, o quê? Você não escutou? O Dudu, meu marido, está dizendo que eu sou um jogador de futebol.

   — Escutei. Tanto escutei que perguntei de que time. Entendeu?

   Entender era mais fácil do que explicar; mas nem uma nem outra conseguiu realizar o que se propunha. Foi um conselho de seu cabeleireiro o que de mais aproveitável apareceu.

   — Leva seu marido a um médico de cuca. Seu marido está doidão, queridinha.

   Se não fosse uma solução, poderia ser o começo de uma. Margô prometeu ajudá-la a convencer o marido a ir ao médico.

   — Sabe, Dudu — disse Margô tocando no assunto —, eu, se fosse você, ia a um psicanalista.

   — Cala a boca, Margô — cortou a dela o marido. — Eu estou olhando aqui pra Teteca (a esposa) e estou vendo um troço. Saquei uma, Teteca, você é ponta-de-lança!

   As amigas se entreolharam. Mas Dudu ainda não tinha acabado de falar.

   — Você bate com as duas, pô. Nem o Paulo César joga o que você joga. Quanto custou o Paulo César? Dois bi? Você vale dois e picos. E sabe de quem é essa grana? Minha. Você tem direito a quinze por cento e lamba!

   As amigas se re-entreolharam.

   — Cadê a bola? Quero ver se você é boa de embaixada. E não tou falando de política. Quero ver você dar umas petecadas no balão de couro.

   As amigas se re-re-entreolharam enquanto Dudu ia à loja comprar uma bola para a exibição do jogador com quem se tinha casado, digo, amigado; até eu estou confuso.

   Dona Teteca voltou ao médico, a quem pediu ajuda. Negativo.

   Em casa, tudo conseguia ficar pior. O marido já a obrigava a fazer individuais, teste de Cooper, circuit-training, concentrações.

   Um inferno!

   O psicanalista guardou o segredo que os analistas fingem guardar e deu o caso por encerrado, uma vez que Dona Teteca deixou de aparecer.

   Já se aproximava o Natal quando, uma tarde, no consultório, sem pedir licença à enfermeira, Dona Teteca emburacou pela porta do analista, pálida como os pós-operados. Resfolegava e sofria. Foram necessários tranqüilizantes (em pílulas e ampolas) para que ela pudesse contar o que a levara ali.

   — Seu marido, como vai? — perguntou o analista, sem nenhum interesse.

   — Ele vai bem — respondeu Dona Teteca, com as mãos a cobrir os olhos —,. mas eu estou irremediavelmente perdida.

   — O que houve?

   — Ontem, doutor, ele vendeu o meu passe para o Corínthians, e eu não me dou com o clima de São Paulo.

   O médico aconselhou um terreiro em Anchieta onde, com a ajuda da pombagira, ela conseguiu passe livre.

  

   HOMEM MAGRO DE BIGODE GORDO

   O ônibus, na curva, quebrou a barra de direção e, desgovernado como o Fio dentro da área, saiu insano à procura de qualquer rumo, e só conseguiu parar dentro da farmácia, junto à balança, como se a intenção do motorista fosse comprar comprimido, ou alguém de prestígio dentro do coletivo tivesse pedido para se pesar — coisa de que só lembramos ao ver uma farmácia — e o motorista, momentaneamente lúcido, se dera àquele arroubo de gentileza. Assim, lá estava o ônibus aos pés da máquina de nos informar se devemos comer mais ou necessitamos não comer.

   Como era o Rio e, mais importante, no caso, era um ônibus; como se tratava de ônibus e, mais estranho no evento, tratava-se de um na farmácia, juntou gente. De casas vizinhas e de carros que paravam ao largo da rua, de prédios fronteiriços e de calçadas das travessas, de bares por perto e de outros ônibus que passavam esquisitamente seguindo sua rota normal, vinha gente. Como eu disse, o que aconteceu não teve nada de especial ou diferente. Nem vítimas parecia haver.

   Mas houvera. Um homem magro, de bigode gordo, teve até que ser levado ao nosocômio mais próximo, porque ao hospital vão os doentes; os acidentados em desastres na via pública vão ao nosocômio, pois, em caso contrário, a coisa perde o seu tom policial.

   O motorista do ônibus fugiu para evitar o flagrante e o flagrante ficou eternizado nas fotografias tanto de populares quanto de dois repórteres que chegaram de carona, pois o carro do jornal parou na altura da Praça da Bandeira por entupimento do carburador. O proprietário da farmácia, um brasileiro de barriga portuguesa, com sobrancelhas em circunflexo e se pondo a esticar e soltar o suspensório antigo, limitava-se a dizer:

   — Com o prejuízo eu não fico. Alguém vai ter que pagar — repetindo este aviso num tom que fazia lembrar o dos meninos que, vendo isolada a bola da pelada, ameaçam ao chutador: "Vai pagar outra, vai pagar outra".

   Uma senhora, com o filho ao colo, fazia, com o menino, um dueto de pranto, como se um tivesse perdido o outro, duplo falecimento que não se dera, caso em que nenhum dos dois estaria ali, a incomodar os demais.

   Veio um reboque da empresa e os homens do carro-reboque guincharam o ônibus com tanta naturalidade que até parecia estarem realizando uma manobra comum. Não era comum, porque em farmácia era a primeira vez que um ônibus entrava; mas era habitual porque vários outros da mesma empresa tinham tentado penetrar em fachadas de edifícios, supermercados, escolas estaduais e maternidades.

   Após a evasão do motorista do local do acidente, as fotografias dos amadores bisbilhoteiros e profissionais incompetentes, os disse-me-disse dos que se metiam onde nunca foram chamados, do reboque do ônibus e dos avisos do farmacêutico de que o prejuízo não seria dele, o fato morreu.

   Tudo pareceu ter caído no esquecimento. A companhia a que o ônibus pertencia mandou dois competentes pedreiros restaurarem a fachada destruída da Farmácia Santa Joaquina, inclusive ordenando a colocação de uma nova porta de aço, daquelas de descer — providência tomada no dia seguinte ao "pavoroso desastre que, por pouco, não ceifou a vida de inocentes crianças que, à hora em que se deu o fato, transitavam pela calçada no velocípede ganho no Natal passado".

   Tudo pareceu ter caído no esquecimento. Mas não foi isso que aconteceu.

  

   O homem magro de bigode gordo — que se ficou sabendo tratar-se de Emanuel Pereira — moveu uma queixa-crime contra a empresa, alegando que o acidente o invalidara para a vida normal, obrigando-o, inclusive, a se mover unicamente com a ajuda de uma cadeira de rodas ganha com o auxílio de Sílvio Santos quando sua mulher, obrigada que fora a ficar com a responsabilidade de manter a casa, compareceu para pedir auxílio "àquele homem tão' bom e que tanto ajudava aos necessitados".

   Daí, quando a coisa chegou ao conhecimento dos donos da empresa, duas coisas aconteceram: a surpresa e a dificuldade de descobrir que acidente era aquele ao qual o processo se referia, pois eram tantos os acidentes que isto praticamente os proibia de matar a charada ao primeiro olhar. Fizeram uma reunião os donos e os quase tão importantes quanto eles, na sala do presidente.

   — Que acidente é esse? — vociferava o proprietário, sacudindo a notificação do processo na cara dos circunstantes.

   — Só se for o da bicicleta — aventou o vice-gerente com um olhar que deveria ser igual ao do homem que descobriu a pólvora.

   — Mas no da bicicleta não houve vítimas — lembrou o chefe do almoxarifado, com uma convicção tão grande que merecia promoção a vice-chefe. E insistiu, na defesa de sua memória: "Lembra? Só a bicicleta, que ficou inutilizada, mas bicicleta não é vítima".

   — Não, não é — confirmou o advogado da empresa, dando, ao que dizia, um parecer jurídico.

   — Bicicleta quebrada é perdas e danos.

   — Mas nós demos uma bicicleta nova ao rapaz — alegou o chefe da manutenção levantando não apenas um fato mas também as calças que teimavam em descer em virtude do regime a que se entregava desde o dia em que conheceu uma vedete de teatro a quem mandava flores diariamente — exceto às segundas, folga da companhia. — Demos uma nova, sim. É Caloi, não foi, Rebelo, não foi?

   — pediu a confirmação do vice-diretor de manutenção.

   — Monark — contrariou Rebelo, querendo destruir um pouco o diretor de manutenção, visivelmente de olho no lugar do homem.

   — Caloi ou Monark não está interessando — esbravejou o presidente, mordendo a ponta do charuto quando o que desejava era morder quem o processara. — Quero saber desse — batia no documento com ódio —, desse, é que eu quero saber.

   — Sabe um negócio? — inquiriu o gerente-geral, preparando-se para dizer uma besteira. — Não sei que acidente é esse.

   — Não terá sido o de novembro? — sussurrou o almoxarife num tom de ator desempregado.

   — De novembro, como? — indagou o vice-presidente. — Qual de novembro?

   — O da farmácia — solidificou o almoxarife.

   — É verdade — admitiu o presidente. — Pode ter sido o da farmácia. É preciso dar uma olhada nos arquivos. Onde está o arquivista?

   — Nos arquivos — informou o vice-gerente.

   — Então, vamos aos arquivos — determinou o presidente, descendo o charuto ao cinzeiro e levantando da cadeira o que com que se sentava.

   Para a empresa, a localização daquele acidente era tão impossível como responder o que estávamos fazendo às dezesseis horas do dia 15 de março de 1957. Mas agora, não. Já havia a farmácia como referência e os arquivos comprovaram, em novembro, com a possibilidade de alguém ter-se acidentado, apenas a batida na farmácia. Os outros desastres eram bobos: destruição de três carros estacionados sem passageiros no interior da viatura, quatro postes derrubados com apenas o motorista e o trocador no ônibus, parcial demolição de um muro em Anchieta, tudo coisa menos do que comum: idiota. Mas no da farmácia tinha sido diferente.

   — Até saiu retrato no jornal — recordou o almoxarife, vitorioso na sua descoberta, o que irritava sobremaneira o vice-almoxarife.

   Foram chamados à sala da diretoria o motorista e o trocador do ônibus que, por incrível que lhe pareça, ainda trabalhavam para a empresa.

   O motorista entrou parecendo ter quatro mãos, tanta era a dificuldade de achar um bom sítio onde colocar as duas que possuía. Com ele, o trocador de cabelos crescidos numa tentativa de vir a tê-los black power — o que incomodou um pouco o dono da empresa, já no terceiro charuto do dia.

   — Era você o motorista do 519, no dia em que o ônibus bateu na farmácia? — argüiu o gerente-geral que se tinha arvorado a comandar a acareação.

   — Que farmácia? — indagou o motorista coçando a cabeça com uma das mãos que já pareciam ser seis.

   — Quantas farmácias você derrubou? — gritou o gerente-geral, com uma discreta cuspidinha simultânea que acertou o olho do motorista.

   — Derrubar, nenhuma. Eu dei uma batidinha na Farmácia Santa Joaquina, ali perto do Largo da Segunda-Feira, mas. . .

   — Então é essa! — cortou o gerente-geral tentando novamente o olho do motorista mas só conseguindo aproximação: pegou sob a pálpebra. — Era você o motorista do 519 no dia do fato, não era?

   — Era, doutor, era eu — confirmou o motorista num tom de lamúria. — Mas eu não tive culpa — continuou com o olhar a passar pelos presentes —, a barra de direção quebrou na curva, eu quis segurar o carro, mas como o ônibus ia cheio, não deu. Calcei o freio e...

   — Já sabemos que você não teve culpa — tranqüilizou o presidente apagando o terceiro charuto nas costas da mão do almoxarife. — É que há um processo! — e exibiu as folhas da intimação.

   — Processo? — gaguejou o motorista levando três mãos à cabeça, quatro ao coração e as demais ao estômago.

   PROCESSO era uma palavra que lhe soava como antevisão de cadeia. E ele não lembrava de nada pior que tivesse acontecido e que desse motivo àquela barbaridade.

   — Processo, como? — continuou. — Eu sou um homem pobre, pai de seis filhos, moro num conjunto residencial no Irajá. Eu não tive culpa, tanto que nem me despediram. Todo mundo, no dia, reconheceu que foi culpa da barra de direção — argumentou de olhar no chefe da manutenção, implorando sua concordância.

   — Tenha calma, Tião — sugeriu o chefe da manutenção meio sem vontade.

   — Não vai acontecer nada com você — tranqüilizou o gerente-geral. — O homem — bateu nas folhas do processo mostrando a que homem se referia — está querendo um dinheiro da empresa.

   — O meu dinheiro! — berrou o presidente jogando a cinza do charuto no Gumex do almoxarife.

   — O homem? — murmurou o motorista crendo que isso fosse coisa da sua conta. — Que homem?

   — O aleijado.

   Nasceram mais mãos no motorista perplexo. Então havia um aleijado? Mas não foi batida para isto. Todos lembravam agora. Uma parte da parede, a porta empenada (substituída, inclusive, para evitar problemas futuros) e mais nada. Depois é que o trocador lembrou do homem magro de bigode gordo.

   — E o cara que foi para o Getúlio Vargas?

   — O quê? — estranhou visivelmente irritado o gerente-geral, voltando-se para o trocador imundo e cabeludo. — Houve vítimas?

   — Não era bem uma vítima, mas um dos passageiros disse que estava passando mal, falou-se em hemorragia interna, dores no tórax, e ele fora levado ao hospital.

   — Ao nosocômio — corrigiu o almoxarife ao mesmo tempo em que recebia nas fuças uma baforada do Holandeses que o presidente já gastava quase ao fim.

   A palavra NOSOCÔMIO era um balde d'água que acordava a verdade. Tudo estava claro. Houvera uma vítima. E tudo que esta pobre vítima pedia era uma quantia em dinheiro que lhe daria o direito de comprar alguns milharezinhos de ações do Banco do

   Brasil, dois ou três Camarozinhos, uma humilde coberturazinha na Barão da Torre (devia saber que o Rubem Braga pretendia vender a sua), e o pouco que restasse seria colocado no Fundo Bradesco — sugestão que lhe dera o Ronald Golias num melancólico comercial de tevê, e que ele aceitava sem procurar nada melhor. O homem que processava a empresa contentava-se com muito pouco. Provavelmente já ao sair do nosocômio começara a fazer as contas de quanto valia a sua invalidez.

   — Mas não era caso de invalidez! — protestou o vice-almoxarife, numa tentativa de cair nas graças do patrão e passar a ser ele o obsequiado com a queimadura de charuto que o presidente agora dedicava ao almoxarife com o carinho costumeiro. — Era caso de invalidez, Tião?

   — Não me lembro, doutor — explicou o motorista que, de fato, não podia lembrar de nada, uma vez que ao entrar na farmácia dera no pé, para evitar o flagrante. — O Zeca é quem pode saber.

   Todos olharam o Zeca. que, tentando fazer a mão atravessar aquele cabelo de bombril para cocar o crânio, deu seu parecer:

   — Não sei, doutor. Só lembro que o homem era magro e tinha um bigode gordo. Quanto é que ele está pedindo?

   — Quinhentos milhões — ululou o presidente dando um murro na clavícula do almoxarife que se interpunha à mesa.

   — Dos antigos — apressou-se a explicar o almoxarife com a mão na espádua provavelmente fissurada.

   — Quinhentos milhões — repetiram juntos os da cúpula da empresa, esvaindo-se num suor que deixava em dúvida a competência daquele Westinghouse de dois cavalos que deveria, pelas informações e garantias do vendedor da Casa Garson, estar congelando o ambiente.

   Mas o congelamento era da alma.

   — Quinhentas milhas? Uma nota sentida! — observou o motorista já imaginando que, para conseguir isso, só com treze pontos e poucos acerta-dores.

   — Só se depois o homem teve alguma complicação — alertou o chefe da manutenção, com as mãos nos bolsos a segurar as calças. — Você não soube de mais nada, Tião?

   — Nada, Seu Célio.

   — Nem você, Zeca?

   Zeca negou com um balanço do que ele chamava de cabeça. Ninguém sabia de nada.

   — Incrível — comentou o loquaz advogado. Tudo o que se sabia era que, naquela curva da farmácia, quebraram-se: a barra de direção, uma parte não muito grande da fachada e a porta de aço; e que um homem fora conduzido ao nosocômio mais próximo, de onde, depois de devidamente medicado, voltara à sua residência, no Conjunto Residencial de Parada de Lucas, Rua 7, quadra 15, número 34, apartamento 103.

   — Apartamento 103 — pensou alto o gerente-geral.

   — Mora nos fundos — lembrou o advogado, brilhante causídico de maravilhosos apartes.

   Era um caso para Sherlock Holmes e não para Perry Mason, porque o fato estava muito mais envolvido por mistério do que mesmo por problemas jurídicos.

   — É caso para um advogado — definiu o presidente enquanto pisava o pé do almoxarife. — Telefone para um advogado, Célio, e entregue o caso a ele — finalizou.

   — Mas. . . — tentou o advogado presente, calando-se em seguida com o fulminante olhar do presidente que esmagava o charuto na mesa, visto que o almoxarife já se tinha retirado para cuidados médicos.

  

   Ao advogado contratado nada se escondeu. Tudo lhe foi explicado com minúcias. O ônibus tinha quebrado. Barra de direção. Acidente, como a perícia policial comprovara logo após o fato.

   — Logo após? — perguntou o advogado num tom solene.

   — Logo após. O ônibus bateu às nove horas da manhã e já às quatro da tarde estava liberado.

   — Logo após, então — admitiu o advogado, sabedor de que, para a perícia policial, sete horas são um átimo.

   Contaram da parede e da porta de aço (o homem da farmácia era testemunha), da remoção para o nosocômio, da inércia em que o caso ficou — por óbvios motivos. Depois o advogado pediu um pouco de tempo para se colocar mais a par de tudo e, então, emitir seu parecer.

   Esse pouco tempo foram quatro dias, data em que o advogado tranqüilizou os homens da empresa.

   — É um caso bobo — asseverou. — Não vai dar em nada. Se quiserem, podemos, até, processá-lo por extorsão, porque é um caso típico de extorsão. E, se não for, damos um jeitinho de passar a ser, ou eu não sou um bom advogado?

   — Claro que é! — exaltou o presidente abrindo os braços num gesto suficiente para atingir o malar do vice-almoxarife que, por duas semanas, ocupava interinamente o posto do almoxarife: o tempo em que ele, hospitalizado, cuidava de uma fratura no úmero provocada pelo presidente na penúltima reunião de cúpula.

   O caso foi a julgamento. O suplicante — um homem magro de bigode gordo — deu entrada na sala numa cadeira de rodas onde, no espaldar, discretamente estava colocada uma plaquinha esmaltada onde se lia: "Compre os carnes do Baú da Felicidade". Era empurrado por uma septuagenária senhora que se acreditava ser a mãe do suplicante. Isto pode ter comovido o juiz. Ou talvez o novo advogado tenha-se complicado na defesa. É de se crer, mesmo, que o homem piorara depois de deixar o nosocômio. Falou-se em hemorragia, em derrame, em inutilidade para o trabalho. A acusação foi dramática em muitos momentos.

   — Pode trabalhar um pobre homem entrevado, acorrentado a uma cadeira de rodas, impedido de qualquer movimento? Pensem, senhores, por um momento que seja, na cruciante hora das necessidades fisiológicas! — discursou o advogado de acusação numa comovedora defesa escatológica.

   A bola de neve desceu da montanha da mentira para soterrar a empresa.

   — . . .declara a Empresa de Auto-Ônibus Estrela D'Alva culpada...

   O advogado não entendia. Os homens da empresa entendiam ainda menos. O homem magro de bigode gordo, sem mover um músculo, impossibilitado pela paralisia, parecia não estar presente.

   — . . .pagar ao suplicante a quantia de quinhentos mil cruzeiros como indenização. . .

   A causa perdida tem para o advogado o efeito de uma bala no baço. E se ele sofria o torpor da derrota, os homens da empresa padeciam o tremor do prejuízo. Quinhentos mil cruzeirinhos que iam voar de seus cofres. Já admitiam a exclusão do Tião do quadro de motoristas.

   — E aquele trocador idiota também vai rodar

   — determinou o presidente a meia voz. — Como é o nome dele?

   — Zeca — elucidou o almoxarife de braço engessado.

   — Pois é. Zeca também roda — concluiu o presidente tentando destruir o perônio do almoxarife na violenta cruzada de pernas.

   — ... ser pagos em moeda corrente ou em cheque, cujo número deverá ficar anotado. . .

   Foi em cheque do Itaú-América. O advogado poderia recorrer, apelar, mas nada foi feito. Os homens da empresa pagaram e saíram à procura de Zeca e Tião, trocador e motorista do 431 — ônibus que naquela mesma hora atropelava um transeunte na Avenida Suburbana.

   — Vão os dois para o olho da rua — ameaça com decisão o presidente.

   — De acordo — anuía o almoxarife que, ao seu lado, recebia cotoveladas no duodeno.

   E o advogado também seria despedido. Merecidamente porque sua incompetência profissional ficara acentuadamente demonstrada, para tristeza da empresa e gáudio do ex-advogado a quem substituíra.

  

   A sala onde se realizou o julgamento tem uma porta que dá para o corredor. E neste corredor houve o encontro. De um lado o advogado, perdido e despedido, e, do outro, um pobre homem mais magro de bigode mais gordo, entrevado, acorrentado a uma cadeira de rodas, empurrado por sua septuagenária mãezinha. O advogado mordia a bochecha enquanto falava.

   — Olha, seu palhaço, você não tem nada. Você está igual a mim ou melhor do que eu. Olha pra mim, seu palhaço! Você está fingindo uma paralisia para extorquir. Isso é roubo. Patati, patatá, patati, patatá; vou mover uma ação contra você por minha conta, seu ladrãozinho sacana. Patati, patatá, patati, patatá; vou pedir um bilhão, está ouvindo? Um bilhão redondo e você ainda vai pegar uns bons anos de cana, pra aprender a deixar de ser safado. Patati, patatá, patati, patatá...

   Louve-se, no advogado, a espetacular eloqüência. E que ênfase! Se ele tivesse demonstrado esta flama na hora do julgamento, muito provavelmente a coisa acabaria de modo inverso.

   — Pilantra, é o que você é. Pilantrinha sujo e mentiroso. Patati, patatá, patati, patatá. Por sua causa perdi o emprego, mas você vai pagar dobrado, ouviu? Patati, patatá, patati. Vou botar um cara seguindo você. Um cara, não. Eu! Eu mesmo vou seguir você. Patati, patatá.

   O homem, preso à cadeira de rodas, tinha o olhar vago dos que nada vêem. Sua face não se contraía, e não se notavam esgares no olhar ou ameaças de movimentos nos dedos que, inertes, repousavam mal arrumados no braço da cadeira. Apenas a septuagenária chorava. Chorava a incapacidade de reação do pobre filho imóvel. Era um choro de dor. Ao ouvir as ofensas do advogado, ela não chorava de raiva pelas palavras, mas de piedade pelo filho que, quando são, jamais agüentaria ouvir metade daquilo.

   — Escuta, cretino — insistia o advogado num tom hitleriano. — Se você mover um músculo, um dedo, uma unha, eu vou te meter na cadeia. Patati, patatá.

   No corredor, a platéia, juizes, despachantes, empregados e empregadores, suplicantes e suplicados, contratantes e contratados, desquitantes e desquitados ouviam o monólogo.

   — Patati, patatá. . . patati, patatá. . . patati, patatá. . .

   Então o suplicante, magro e de bigode gordo,

   falou. Sua voz era rouca e doída. Era como se não viesse de outro lugar que do estômago. Uma voz meio tirada a fórceps, Como se ele não falasse, estivesse sendo dublado. A voz parecia não pertencer àquele corpo, porque se pertencesse não poderia existir. Não deve ter voz um corpo que não tem vida.

   — O senhor é um homem mau — silabou o entrevado. — O senhor é perverso e é um homem de pouca fé. Pois eu vou dizer tudo que vai acontecer durante o tempo em que me seguir. E até peço que me siga como prometeu.

   As palavras não foram muitas. Infinitamente menores do que o esforço visível que fazia para falar. Mas não houve rodeios. O inválido quase passava um telegrama.

   — Saio daqui. Banco Itaú. Desconto cheque. Sigo Galeão. Pego avião da TAP. Lisboa. Em Lisboa uma ambulância está me esperando. Fátima. Se em Fátima ainda estiver me seguindo, prepare-se. O senhor vai ser testemunha do maior milagre daquela santa.

   E seguiu, pelo corredor, empurrado pela septuagenária, a caminho da sua via-crúcis: Itaú, Galeão, Lisboa, Fátima, milagre.

  

   É PROIBIDO FALAR AO MOTORNEIRO

   Era muito grande a surpresa do velhote que, ao receber alta após vinte e dois anos acamado (reumatismo infeccioso), pela primeira vez saía à rua.

   Andava pelo Rio como se estivesse fazendo turismo numa cidade a que nunca fora. Tudo mudado, tudo tão lindo e tão diferente. O aterro, os gramados em volta de postes que mais pareciam perna de ema (quando queimar uma luz como é que mudam?), o monumento ao soldado desconhecido, tudo era novidade. Trocaram a roupa da cidade durante sua enfermidade.

   Quis ir à Galeria Cruzeiro tomar um chope no Bar Nacional e lá encontrou uma cidade em pé, de mil andares, e se contentou com uma laranjada no Bob's. O Tabuleiro da Baiana, os bondes, por onde andavam? Estaria perdido? Poderia perder-se numa cidade que era sua apenas por ter ficado tão pouco tempo (vinte e dois anos) com aquele reumatismo idiota? A Rua das Marrecas tinha o nome de um político e havia um prédio encimando o Cine Metro onde ele assistira, quinze vezes seguidas, a Greer Garson em Rosa de esperança. E a Lapa, meu Deus! O que fizeram com a minha Lapa? Pelo menos a igreja está de pé, mas aquilo é novo, aquilo lá não existia, no meu tempo não tinha aquilo, roubaram os trilhos? O que fizeram dos trilhos?

   O homem andava, na sua caminhada de reconhecimento, sem saber se devia aplaudir ou vaiar o progresso, já que em nome do progresso tudo tinha sido feito e modificado. Saía de casa a caminho da casa do amigo Vergara, com quem jogava xadrez nos tempos idos. De sua casa, na Rua Taylor, até a casa do Vergara, na Santo Amaro, costumava ir de bonde (qualquer um servia, porque todos passavam pelo Largo do Machado), mas hoje estava disposto a ir a pé. Sabe lá se não acabaram também com a Praça Paris!

   E o homem ia andando, sempre com o olhar a circular pelos cantos da cidade. O Passeio Público cercado. Se está cercado deixa de ser público!

   Sem menos esperar, quase caiu num buraco. Dentro do buraco um homem, com um capacete prateado na cabeça, usava uma pá com a qual aumentava o buraco, jogando no asfalto a terra que dele tirava.

   — Alô — disse o convalescente.

   — Alô — resmungou, sem muita vontade, o trabalhador.

   — O que é que o senhor está fazendo aí? — perguntou o reumático ao homem que cavava.

   — Cavando — disse o homem ao velho. Vejam só. Além dos muitos buracos que há na cidade, em vez de fechá-los, o governo trata de abrir outros. Então era isso. Os buracos eram feitos com a concordância do governo. Ou talvez por determinação governamental.

   — Fazendo um buraco, não é? — quis certificar-se o reumático.

   — É, um buraco — precisou o cara de capacete metálico.

   Exatamente o que ele pensara. Uma barbaridade. Onde estão as Forças Armadas, que permitem este descalabro? Tiram-se os bondes e dão-se buracos. Bela política, essa!

   — E pra que fazer um buraco, moço?

   — Progresso, né? — rezingou o homem que cavava e cavava, jogando terra, algumas vezes, sobre os sapatos do velho que o aborrecia, olhando-o do alto do buraco.

   Que progresso mais idiota. Depois, aposto que nem põem placas avisando que ali há um buraco, vem uma criança. . .

   — Feche este buraco — ordenou valendo-se do seu título de cidadão.

   — Não chateia! — repeliu o operário.

   — Este buraco é um perigo. É um atentado à segurança pública. Como cidadão, eu ordeno: jogue no buraco esta terra — completou, enquanto empurrava com o pé número 35 um punhado de terra que se espalhou pelo metálico capacete do trabalhador.

   — Pára de jogar terra aqui, cara. Este buraco é para as obras do metrô.

   Foi como se falasse latim ao Lampião. Metrô? Não teria ele querido dizer Metro? Não seria a instalação de mais um cinema?

   — Metrô — interrogou o velho que saía à rua após vinte e dois anos de leito. — Não será Metro?

   — Metrô, cara. Um trem.

   Era o que faltava. Botar um trem ali, em pleno Jardim da Glória. Bolas ao progresso, que tira os bondes, tão fresquinhos e baratos, e, no seu lugar, coloca vastíssimos trens, de ruído insuportável. Agora é que ninguém dorme, da Conde Lage até nem se sabe onde.

   — Que trem é esse? — questionou o homem contra o progresso.

   — Será possível!? — sofreu o operário que cavava às duas da tarde, sob um sol de meio-dia (era janeiro).

   — Diga. Que trem é esse? Na qualidade de cidadão, eu exijo uma explicação — insistiu, zangado, o homem.

   — Olhe, meu amigo. Metrô é um trem que anda por baixo da terra. Faz-se um túnel debaixo do chão, botam-se os trilhos e o trem vai pelos trilhos — explanou o empregado das obras do metrô o melhor que pôde, para encerrar, de uma vez, o assunto.

   — Por baixo da terra? E ninguém respira?

   — Há ventiladores.

   — E a gente entra no trem de que modo?

   — Há entradas. Vai haver uma entrada ali (apontou longe), o senhor compra a passagem, desce as escadas, o trem vem, o senhor entra e vai.

   — Muito bem. É o progresso, não é?

   — É.

   — E, sendo debaixo da terra, não suja a roupa, nem. . . ?

   — É um túnel! — irritou-se o operário. — O trem corre dentro do túnel.

   — Maravilhoso — admitiu. — Maravilhoso!

   — Agora dê licença — pediu o funcionário, voltando a jogar terra sobre o asfalto lá em cima.

   Um trem por baixo da terra. O governo está trabalhando, mesmo. Estava até arrependido de ter pensado as coisas tão antigovernistas que pensara. Ainda bem que ninguém ouviu. Podia ser tomado como um sujeito anarquista.

   — E quando fica pronto?

   — Hein?

   — Esse trem que o senhor falou. Demora para ficar pronto?

   — Um pouco.

   — Mais ou menos quanto tempo?

   — Uns quatro anos.

   — Ah, é muito, não posso esperar.

   E dirigiu-se mesmo a pé para a casa do Vergara, na Rua Santo Amaro.2

  

   PRIMAVERA, CLUBE SOCIAL

   Quando a Fábrica Bom Jesus, de tecidos, fechou suas portas numa falência que deixou falidos mais de cem empregados, aquela mínima cidade escondida na antiga estrada Rio—Petrópolis entrou em coma. O desastre não foi apenas financeiro, mas moral. Como se a alma de cada morador — e todos eram empregados da fábrica — tivesse sido retirada do corpo e nela lhe fosse aplicada uma surra. Uma surra na alma, era o que sentia cada um. Não havia o que fazer, o que tentar. Empregos, onde, se, com exceção da fábrica, a cidade se constituía de praticamente mais nada. O insignificante barzinho onde se vendiam cigarros baratos, cachaça, chocolate Refeição e, naturalmente, Coca-Cola, não podia dar emprego a pessoa alguma além do dono que, sozinho, dava conta do recado com tal facilidade que se podia dar ao salutar hábito de fazer a sesta no próprio bar sem necessidade de fechar as portas. A porta, digo melhor, porque pelo tamanho do bar não havia chance de plural. Entre meio-dia e três, ninguém saía de casa naquela simpática e inexpressiva cidade do meio da serra e que, por sua localização, só não se chamava Meio da Serra porque com esse nome já havia uma — que nem ficava tão meio quanto ela — mas foi a cidadezinha de que lhes falo quem saiu ganhando, pois em vez de se chamar Meio da Serra, nome que é apenas geográfico, ganhou o nome de Hortênsia, que é muito mais lindo e poético, além de cair como uma luva porque, de longe ou de perto, antes de se ver Hortênsia, viam-se as hortênsias enfeitando o caminho.

   Além do bar, a padaria, que só vendia biscoitos, porque desde que um temporal derrubara pedaço do telhado, inutilizando o forno e destruindo parte do depósito, nunca mais se fabricara um pão sequer. Padaria que nem pão faz não poderia ousar ter empregados. Nela funcionavam apenas os proprietários que, à falta de fregueses, jogavam bisca de testa com um velho e encardido baralho que, de tão usado, parecia ser dois, de dez da manhã até o entardecer. Movimento, na padaria, só de sete às nove e um ou outro menino depois das cinco, comprando um pacotinho de Maria ou Maizena. Afora o bar e a padaria, um café de, se muito, doze metros quadrados, um armarinho, onde o dono apenas esperava acabar o estoque comprado anos antes para cerrar a porta e encerrar o negócio. E mais nada.

   O povo de Hortênsia — quase me atrevo a chamar de população — morava num monótono amontoado de casas geminadas, construídas ainda pelo dono da Fábrica Bom Jesus, nos tempos faustosos em que a produção servia inclusive às Casas Pernambucanas. Com a falência da indústria, o dono da fábrica trocou a indenização que cabia a cada funcionário pela cessão definitiva do que o advogado chamou de imóveis. Acordo amigável onde não se fez necessária a intervenção do ministério. Não recebiam dinheiro, mas o teto, tinham garantido. Não era uma solução, visto que, sem emprego, nada podiam comprar para colocar no interior do teto que, dia após dia, menos teto ficava, por vazio de roupas e móveis e alimentos.

   O infalível sol forte da manhã e a indefectível chuva à tardinha ajudavam a destruir a madeira dos caibros, e as telhas quebradas não podiam ser trocadas — por falta de dinheiro e, bem mais, de disposição, porque se a cidade era devagar, o povo era parado. Nem crianças nasciam, coisa louvável, porque os pais, reconhecendo a improbabilidade de uma melhoria de vida, não achavam justo botar no mundo um menino que viesse a ter os problemas que eles não enfrentavam por falta de empenho e de coragem, mas que procuravam suportar, como Deus era servido.

   Hortênsia vivia da caridade de Painho, homem pequeno, de coração maior do que o mundo. Painho tinha emprego fixo em Petrópolis, para onde ia diariamente, levado pelo velho e "único ônibus da linha, de pneus com manchões e pintura mesclada de amarelo e zarcão.

   Painho ganhava oitocentos cruzeiros por mês e, como vivia bem e fartamente com cento e vinte, distribuía o restante com os moradores de Hortênsia. Além desta esmola, cada um, vez por outra, arranjava um biscate no Bingen ou no Meio da Serra e, assim, pra comer, sempre dava para conseguir qualquer coisinha. O teto, a fábrica lhes tinha deixado garantido, com a graça de Deus e a compreensão do Dr. Tibério, morador numa cobertura da Vieira Souto e que, duas vezes por ano, dava uma chegada à cidade com um pouco de dinheiro — que presenteava — e um muito de esperança — que iludia.

   — Acho que dentro de seis meses a fábrica reabre. Estou trabalhando para isso. Tenho falado com gente importante do governo e, até o Natal, se Deus quiser, vamos voltar a funcionar a pleno vapor.

   Dez cruzeiros para um, cinco para outro, vinte para o pai de um afilhado, um pulôver aqui, uma calça usada ali, e Dr. Tibério voltava ao mar de Ipanema deixando Hortênsia sonhando, por seis meses, a reabertura da Fábrica Bom Jesus, quando então, a cidade retornaria à alegria do passado. Falavam em passado sem se dar conta de que tudo o que lhes sobrava era isso. Hortênsia era um passado no presente.

   E o carro do Dr. Tibério, agora mais rico com a falência provocada em seu próprio favor, desaparecia na estrada ladeada de hortênsias. Essas, vivas, porque opostas à verdade da cidade que enfeitavam.

   Fazia oito anos que isso se repetia, e ninguém desconfiava que a fábrica não apenas tinha morrido, mas estava enterrada.

   A Fábrica Bom Jesus, com suas janelas empenadas e seus vidros quebrados, sua superada maquinaria de emperrados teares, jamais voltaria a fazer aquele gostoso e estimulante barulho de vida, de apresentar sintomas de progresso como antigamente. Mesmo o nome mal dava para ser lido sobre o portão antigo que um homem do Rio um dia quis comprar para colocar na sua casa, de tão imponente que era. O silêncio da fábrica era do tamanho da impotência do povo. Voltar como, se havia processo no negócio, se havia quem falasse em falência fraudulenta, em enriquecimento ilícito? A Fábrica Bom Jesus já tinha cumprido com o seu dever.

   Painho sabia disso e, por ter mais cultura que todos, mais se penalizava quando ouvia os comentários otimistas após cada vinda do Dr. Tibério. Por isso, dos oitocentos que ganhava, seiscentos e oitenta distribuía, num gesto de caridade e compaixão. Entretanto, era pela saúde do Dr. Tibério que as mulheres de Hortênsia rezavam, todas as noites, todas as noites, todas as noites.

  

   Não nascia uma criança havia sete anos, mas as que pouco antes disto tinham nascido agora eram rapazes e moças de quinze a dezoito anos e precisavam de distração, que jovem não se contenta com pouco, mesmo tendo nascido e sido criado em Hortênsia.

   — É melhor arranjar distração pra eles, antes que eles se distraiam uns com os outros, não é? — perguntava Osíris, pai da idéia e — mais importante! — pai de duas raparigas de idade perigosa e corpos tentadores, possível distração dos rapazes.

   — É, você tem razão, Osíris — concordou o negro Jesuíno. — Mas distração como? onde? de que jeito?

   Não era um problema de solução imediata. No entanto, no dia seguinte estava achado o remédio para a doença. Foi resolvido que fundariam um clube, que se chamou Primavera, nome de uma estação do ano que parecia ser eterna em Hortênsia.

   — Primavera é um nome muito bonito! — apoiou Painho.

   — E a sede?

   — A gente fala com o Dr. Tibério e faz a sede num pedaço da fábrica — solucionou Painho.

   — E quando a fábrica reabrir?

   — Isso é problema pra depois — encerrou Painho, sabedor, como o Dr. Tibério, de que isso nunca iria acontecer.

   Com a devida licença do dono, a sede social do Primavera ficou sendo o almoxarifado da fábrica, que, varrido e caiado, ficou mesmo uma coisa linda! Media seis por oito e era nesses quarenta e oito metros quadrados de telha vã e chão de vermelhão francês que, nas noites de sábado (soirée) e nas tardes de domingo (vesperal), os vinte e um jovens e a totalidade dos velhos dançavam ao som do conjunto Los Musicais, composto por Bacurau, num semi tonado trombone de pistões, Normandes, num atabaque — o mesmo usado no Centro Espírita Cabocla Jurema —, e Painho, no pandeiro. O trio Los Musicais, para a gente humilde de Hortênsia, tinha som de Ray Conniff.

   Tentaram impor, após a terceira soirée, o pagamento de recibo, coisa muita certa, em se tratando de um clube, mas a idéia foi imediatamente posta de lado.

   — Se é pra pagar, eu saio — ameaçou o Coringa, antigo gerente da fábrica. — Se eu tivesse dinheiro pra pagar cinco mil réis por mês, comprava uma Conga nova, que a minha já deu o que tinha que dar. E tem mais uma coisa: se quer fechar o Primavera, pode fechar. O meu filho é homem, não corre perigo nenhum.

   — Não, Coringa, seu ponto de vista merece consideração.

   — E tem mais! — Coringa ainda não tinha acabado. — Que quem tem filha deve pagar, eu acho justíssimo, que é por causa delas que se fundou o clube. Ou não é? Eu, por mim, nem danço.

   A solução certa foi a que Painho tomou: ou pagam todos ou não paga ninguém.

   Durante toda a semana permaneceu o impasse. Sempre havia uma despesa, por menor que fosse, e o dinheiro não existia. O clube, que havia três semanas fora solução, agora era problema. E então, inesperadamente, pela boca de Urbano, surgiu a salvação: fazer do Primavera não somente o clube social que já era, mas cuidar de uma ampliação que rendesse dinheiro: social-esportivo.

   — Como é isso? — perguntou Painho que era, no fim, quem aprovaria ou não a sugestão.

   E Urbano explicou sua idéia, vendendo-a com a ênfase de um publicitário da J. W. Thompson:

   — A gente faz um time de futebol. E sai jogando por aí: Fragoso, Meio da Serra, Cachoeira, Inhomirim, Piabetá, Raiz da Serra, Pau Grande, Santiago, Retiro. Cada domingo, um amistoso. Com renda dividida — frisava — dividida. O dinheiro da renda vai dar pra sustentar o clube e até é capaz de sobrar uma coisinha pra gente.

   Esta última possibilidade foi que animou o Coringa.

   — Por mim, tá aprovado.

   E não era nada desprezível a hipótese levantada. Restava saber se era realizável. Convocaram uma reunião apenas para os homens no salão nobre do Primavera.

   O salão nobre era o mesmo salão de baile que adquiria este nome pomposo apenas pela retirada do tablado de um palmo de altura onde, quando era de baile, ficava colocado o trio Los Musicais. Cada sócio trouxe uma cadeira de casa e, com Painho como secretário e presidente, foi feita a transformação dos estatutos. De Primavera Clube Social passava a se chamar Primavera Sport Club.

   Daí, com as pequenas e espontâneas ajudas dadas por quem podia, o Primavera Sport Club começou a viver.

   Painho comprou uma bola, Dr. Tibério deu as chuteiras e as camisas, um diretor de cinema que usou a cidade para as cenas externas de um filme colorido e nunca exibido (problemas com a censura) colaborou com trezentos cruzeiros — primeiro dinheiro vivo a bater nos cofres da "novel agremiação", e então combinou-se o dia do primeiro treino.

   — O treino é só de calção, pra não sujar a camisa. E é melhor nem botar o calção. Treina de cueca. É só não deixar as meninas irem ao campo.

   Só que, até aquele momento, não se tinha pensado numa coisa muito importante quando se organiza um time de futebol: alguém sabia jogar futebol?

   Foi surpreendente. Valdemar, que era craque no tear, revelou-se, apesar dos trinta e oito anos, um goleiro-muralha; Balthazar era zagueiro, Urbano, além de pai da idéia (ou por isso mesmo), mostrou-se um meio-campista quase perfeito. Fizeram quatro ou cinco treinos, e o Primavera, de camisa verde como o nome, estava pronto. E com dois times: titulares e reservas.

   O primeiro ofício foi mandado para um clube de Fragoso, onde ficava claro que a renda seria di-vi-di-da — escreveram assim, para evitar qualquer dúvida. Na revanche, inclusive, que seria no campo de terra da fábrica, estádio oficial do Primavera Sport Club.

   O dia do jogo tinha a alegria de uma estréia de circo para qualquer criança normal. O técnico era Painho, escolhido numa homenagem ao presidente do clube, sócio fundador, benemérito honorário e pai adotivo da cidade.

   Um caminhão, alugado em Piabetá, levou até Fragoso o time e a torcida. Não fazia mal que perdessem. O que estava interessando era a renda, que garantiria a continuidade dos bailes e a conseqüente virgindade das moças. O Primavera não disputava pontos, defendia hímens. Já que a vitória era coisa secundária, Painho, o técnico, em vez de ficar no vestiário dando instruções, preferiu permanecer na bilheteria tomando conta dos ingressos para evitar — como tanto se dizia no rádio — evasão de renda.

   Não havia muita gente no campo, tanto que a parte que coube ao Primavera mal deu para pagar o aluguel do caminhão e sobrar menos de uma dezena de cruzeiros para o cofre.

   Mas o maravilhoso foi o jogo! Era uma seleção que estava no campo. Ou parecia ser. Aquela rapaziada, com apenas quatro treinamentos, contando conjunto e individual, parecia jogar junta há milênios. Quando se poderia esperar que Hortênsia tivesse tantos craques? Ganharam de 4 x 0 e, na revanche, no campo do Primavera, fizeram 8 x 1. E o gol sofreram num pênalti, motivo de desespero para Waldemar que, por sua vontade e desejo, jamais seria batido. Em Hortênsia a renda foi menor, é claro. O povo da cidade não foi ao jogo por falta de numerário para comprar a entrada, e a assistência resumia-se aos poucos que tinham vindo de Fragoso, enganados pela esperança de que as coisas "desta vez seriam diferentes". Aliás, foram. Para pior.

   Acertaram, então, que só valia a pena jogar nos campos adversários. Pelo menos até que as finanças dos de Hortênsia melhorassem.

   A cada semana seguiam ofícios para as cidades que ficou resolvido serem chamadas de circunvizinhas. E a cada jogo crescia a fama do Primavera — invicta equipe de Hortênsia, cidade com nome de flor e habitantes de classe.

   Atingindo o décimo jogo sem derrota e construindo suas vitórias com sonoras e inquestionáveis goleadas — na maioria das vezes a zero, para orgulho e glória de Waldemar — o Primavera fez com que as coisas ficassem exatamente invertidas: no lugar de mandarem, passaram a receber os ofícios. O imbatível Primavera já se dera o direito de pequenas exigências:

   — Além da renda dividida, o caminhão fica por conta de vocês — o que era imediatamente aceito porque o jogo era mais uma exibição e quem quer ver exibição tem que pagar. Até um clube de Pati do Alferes quis jogar contra o Primavera. E perdeu, como também perderam os desafiantes de Pedro do Rio, Cascatinha, Santo Aleixo e Falcão. Tinha jogo que dava trinta e cinco contos de renda! Isso, com o caminhão pago pelo adversário, rendeu, na ocasião, o dinheiro bastante para que se trocasse a caiação do salão de baile por duas demãos de Paredex. Verde, como a esperança. Como o Primavera.

   Admitiu-se a hipótese de o Primavera participar do campeonato do Estado do Rio, mas ainda era cedo. Mesmo o empate com o Petropolitano, no campo deles, que poderia servir de teste decisivo para avaliação do poderio do Primavera, foi recebido em Hortênsia com moderadas comemorações.

   — Bom mesmo a gente só está quando jogar pau a pau com o Barbará ou o Central e o Royal, de Barra do Piraí — lembrou Painho que agora, mais técnico do que fiscal de bilheteria, levava a campanha do time tão a sério que passara a ficar no vestiário, deixando Coringa fiscalizando o borderaux. Não eram as instruções de Painho que garantiam as vitórias, porque ele, na preleção antes de cada prélio, repetia, sempre, as mesmas recomendações:

   — Já sabe: a defesa só trac, trac, trac — e acompanhava cada "trac" com um truculento gesto de pontapé — e o ataque só tics, tics, tics — juntando aos "tics", macios e horizontais deslizar de suas mãos estranhamente sedosas.

   Realmente o Central e o Royal seriam a prova maior da força do Primavera, progressista agremiação social-esportiva, de uniforme, eu já disse, verde, cortado na diagonal por uma faixa branca onde se destacava a verde estrela que, no seu interior, levava, em branco, as letras PSC.

   Uma estrela era o escudo de um time de estrelas incontáveis e incontíveis.

   Um dia chegou o dia de não ser mais possível conter a fama do Primavera. O Botafogo, do Rio, com um time mesclado de juvenis e reservas conseguiu, com dificuldade, um empate com o Primavera, o que foi considerado um resultado altamente satisfatório. Ainda mais que até o Quarentinha tinha jogado e, no gol, estava o Oswaldo Baliza. A atuação do time de Hortênsia foi quase perfeita, tanto que foram feitos convites a três ou quatro jogadores do "grêmio esmeraldino" para que realizassem experiência em General Severiano. Convites recusados porque "ou iam todos ou não ia nenhum".

   Não era mais possível evitar que a fama do Primavera chegasse à federação de futebol do Estado do Rio, pois se até no Jornal dos Sports saíra uma fotografia do time, em duas colunas. Era hora da federação mandar alguém observar aquela equipe que, invicta fazia quatro anos, talvez já pudesse ser incluída no campeonato fluminense. Tinha aqueles probleminhas de rotina: saber se o estádio possuía capacidade mínima para tantos torcedores, se existia alambrado, se as acomodações para os atletas eram higiênicas dentro do padrão exigido, o comportamento do povo da cidade — porque essas coisas contam. E o emissário da federação decidiu que assistiria à partida do próximo domingo. Era um jogo fácil, para o Primavera, que iria enfrentar um time da cidade de Pau Grande, equipe de poucos valores individuais onde jogava um rapaz modesto, de pernas incrivelmente tortas e a quem chamavam Mane.

  

   Foi neste domingo que Napoleão conheceu Waterloo. O juiz do encontro deveria ser da federação, mas o carro em que viajava capotou na Raiz da Serra e o time de Pau Grande, numa atitude altamente louvável, sugeriu que arbitrasse a partida o presidente do Primavera. Assim, foi entregue ao Painho o comando da peleja.

   — Painho, se puder, ajuda a gente.

   — Vou apitar nas regras.

   — Tá certo, mas se precisar. . .

   — Já disse que vou apitar nas regras.

   — Oh, Painho, mas uma ajudazinha, no caso de necessidade, não faz mal a ninguém.

   — Eu sou juiz ou sou cachorro? É pra apitar, eu apito nas regras. Ou então bota outro.

   — Não é isso, Painho, é que o homem da federação tá aí. Se a gente perder, se nós fizer feio, ele não bota o Primavera na liga, homem de Deus.

   — E por que a gente vai perder? — revoltava-se Painho. — A gente não perdeu nunca, vai perder hoje? Logo hoje, que o time vai jogar contra um time que tem até aleijado jogando?

   O aleijado a quem Painho se referira provocando risadaria geral era o tal rapaz de pernas absurdamente tortas a quem chamavam Mane.

  

   Estádio lotado. Com as rendas conseguidas pelo Primavera, o dinheiro, se não era farto, pelo menos não era falto, em Hortênsia. Para o tamanho da cidade a platéia era de regular para boa e o tempo apresentava-se propício para a prática do esporte bretão (desculpem eu não ter podido me conter). Havia mais de quinhentos espectadores. A esmagadora maioria portando vistosas bandeirolas verdes com estrela branca.

   O jogo foi surpreendente. O Primavera tentou impor o seu ritmo, mas o rapaz das pernas tortas estava, realmente, com o diabo no corpo. Ameaçava sair por um lado, saía pelo outro, jogava a bola no meio das pernas de Urbano — logo de Urbano, imagine! —, pegava do outro lado. Ao terminar o primeiro tempo o time de Pau Grande levava três gols de vantagem. Waldemar, o goleiro, não queria voltar para o tempo final.

   — Ou vocês acertam aquele tortinho ou eu não volto, que eu sou um homem de idade e não estou aqui pra ser desrespeitado.

   — Aquele cara é um demônio.

   — Se é demônio, manda pro inferno.

   — Calma — pedia Painho, mais preocupado do que todos. — No segundo tempo a gente reage.

   — Só se for no tapa. Com aquele tortinho fazendo o que vem fazendo, isso não acaba nem em sete, nem em oito. A gente apanha é de vinte.

   Severo, a quem cabia a marcação sobre o tal tortinho, já estava de roupa mudada.

   — Botem outro no meu lugar que eu tenho que ir visitar um parente em Piabetá.

   — E o segundo tempo?

   — No primeiro tempo eu joguei os dois — e deu uma banana para os que ficavam. — Aleijado. . . aleijado é vocês! Aquele tortinho é um exu.

   Severo, no entanto, acabou ficando. Bastou Painho impor a força de um argumento para que as idéias se mudassem.

   — Ou volta todo o mundo ou eu fecho o clube e suspendo a ajuda monetária.

   Voltaram. O torto entortou ainda mais. Fez gol de letra, chutou de curva — coisa que até aquele dia nunca se soubera ser possível fazer —, deu passe de calcanhar, meteu gol de córner direto — olímpico, como dizem os locutores de louvável variedade vocabular. Em síntese: um desastre total, catastrófico, apocalíptico, caótico, ridículo. A contagem não chegou a dez por desinteresse do time do tortinho. O representante da federação dava gargalhadas. Devia ter sido brincadeira tudo o que contavam desse time imbatível. Pode ser imbatível um time de onze que perde para um jogador apenas? E um jogador como aquele, de pernas que pareciam não se conhecer, tanto que uma se punha para leste e a outra para oeste? O homem da federação só não achou ter perdido a viagem porque seus olhos, que tinham ido a Hortênsia com a determinação de se pôr no time de verde, por deleite e gozação paravam no rapaz a quem chamavam Mane.

   Ninguém contava com o que aconteceu mas de Painho, em Hortênsia, sempre se esperou tudo. Ele sentiu que a honra do Primavera estava sendo vilipendiada por um "aleijadinho" desajeitado. Tudo era admissível, menos a humilhação. O juiz não é a autoridade máxima? Não tem o comando absoluto? Não é soberana a sua decisão? E o juiz não era ele, Painho? Pois muito bem. Ele iria tomar uma atitude. Espezinhar seu clube, nunca! Tripudiar sobre uma novel agremiação social-esportiva de feitos históricos, jamais! Ninguém perdia por esperar.

   A bola estava na linha média do Primavera, como sempre obediente aos pés de passarinho do rapaz de pernas tortas. E soou o apito do juiz. Ninguém entendeu. Falta, não houvera. Toque, muito menos, que a bola estava amarrada ao pé do tortinho. Pé é pé, mão é mão. Impedimento, nem pensar, se na área do Primavera estavam sete defensores do clube verde, tremendo na expectativa de mais uma arrancada daquele aleijado filho da mãe. Mas o juiz apitou, que todo o mundo ouviu. Mas por quê?

   Painho, passos curtos e decididos, foi ao centro do campo, chamou Urbano, capitão do Primavera, ergueu seu braço como se faz com os boxadores e, fazendo sua voz aguda e penetrante ser escutada em todo o estádio, berrou com certo orgulho e olhar desafiante propositadamente posto no olhar espantado do homem da federação:

   — Primavera ganhou por pontos!

   E todos se retiraram do campo de jogo sem, pelo menos, cumprimentar o homem da federação e, muito menos, o rapaz de pernas tortas chamado Mane, que, antes de se dirigir ao caminhão que o levaria de volta a Pau Grande, sua cidade, num gesto de grande desportividade, fez questão de cumprimentar, um a um seus vencidos adversários:

   Até outro dia, João; até logo, João; desculpe,

   João; obrigado, João; parabéns, João; até mais, João; disponha sempre, João; adeus, João.

   Cara engraçado, esse Mane de pernas tortas! Gente boa. E nunca mais se ouvir falar nele.3

  

   MORRO ACIMA, MORRO ABAIXO

   O rapaz, com uma pasta James Bond, desceu do táxi e levantou a cabeça para olhar o morro que teria de subir. Levantou, levantou, levantou, levan. . . viu o fim do morro.

   O caminho, de terra e capim, espremia-se entre os barracos que, sendo tantos, já tentavam ocupar seu lugar, outrora mais amplo, quase um beco. Quanto aos barracos, pouca novidade: iguais e diferentes, dependurados pela encosta, espetados pelo que pareciam ser palitos de fósforo em tentativas de escora, ou escorados na montanha, os mais preguiçosos, quando não ancorados em outros barracos espetados ou escorados, os aproveitadores.

   Fazia calor e tinha um sol muito azul, porque era uma hora ainda ultravioleta.

   O rapaz, com a pasta nu'a mão e um lenço na outra, começou a ascender a montanha carregando uma e se enxugando com o outro. Passou por moleques e mulatas, em passes de bola e de samba, bebeu um refrigerante no que apelidavam de bar e, afinal, atingiu o topo do morro que vira lá de baixo, no momento em que, ao descer do carro, levantara a cabeça, levantara, levantara, levan. . .

   Descansou a pasta James Bond num monte de terra e o corpo num tijolo esquecido e muito estranho, já que todos os barracos eram de zinco e madeira. Respirou o ar possível para um pulmão cansado, refez-se o que julgou suficiente e, então, propôs-se a dar início à tarefa que o fizera ir ao morro.

   — Por favor — chamou um negro que fumava —, o senhor pode me dar uma ajuda?

   — Depende — admitiu o negro após uma tragada e uma espiada de alto a baixo no rapaz da pasta.

   — Eu sou do instituto — narrou o rapaz ainda sentado no tijolo paradoxal — e estou aqui procurando um homem.

   — Homem aqui tem muitos — disse o negro antes de cuspir. — De que tipo o senhor procura? alto? magro? forte? gordo?

   — Não procuro um homem com tipo que eu possa escolher — elucidou o rapaz acendendo seu cigarro no cigarro do negro. — O homem que eu busco tem nome.

   — E que nome prefere? — desarmou o negro. — Temos aqui homens com vários nomes.

   — Não tenho nenhuma preferência especial — repetiu o rapaz da pasta, já se pondo de pé. — Eu sou do instituto.

   — Isso, o senhor já disse — concluiu o negro, sentando para melhor fumar seu cigarro (única coisa que tinha a fazer naquele resto de dia).

   — Puxa — falou o rapaz —, esta subida é muito grande, eu fiquei meio tonto, não estou conseguindo ser claro.

   — Claro! — admitiu o escuro. — Temos tempo. Tente explicar sem se afobar. Pelo jeito, só vai chover amanhã.

   — E que tem a chuva?

   — É que cada vez que chove, tudo isto cai — disse o negro, apontando todos os barracos do morro.

   — Então, vamos começar antes que aquela nuvem fique mais encorpada. O senhor é daqui do morro?

   — Sou. Moro naquele barraco — indicou o negro, voltando a apontar todos os barracos, para que o rapaz escolhesse um.

   — Já vamos bem — felicitou-se o rapaz. — O instituto me mandou aqui à procura de um homem que se chama. . . que se chama. . . (abriu a pasta de onde sacou vários papéis que consultou apressadamente de início e mais lentamente depois, momento em que se lembrou que só choveria amanhã; provavelmente). O homem se chama Ernesto Pantalão da Silva.

   — Ernesto Pantalão da Silva? — repetiu o negro para mostrar que ouvira muito bem.

   — Pois é. O senhor o conhece?

   — Não, mas isto não tem importância. Ou é necessário que eu conheça algum Ernesto Pantalão da Silva? — temeu o negro, levantando do tijolo.

   — Não, não, de modo algum — tranqüilizou o rapaz, aproveitando o tijolo vago para nele repousar a James Bond. — Quem tem de conhecer esse Ernestino sou eu.

   — E por que não procura, já que essa é a sua obrigação? — inquiriu o negro, que não tinha nenhuma obrigação na vida, a não ser esperar a chuva provável de amanhã.

   — É o que eu estou fazendo; tanto procuro que perguntei ao senhor se o senhor, porventura, conhecia o Ernestino — desculpou-se e explicou-se o rapaz, num tom tão me a culpa que o negro se dispôs a ajudá-lo.

   — Vamos lá — disse o negro —, vamos encontrar esse Ernestino Pantaleão dos Santos.

   — Da Silva — corrigiu o rapaz do instituto.

   — Tanto faz. Achando aqui um Ernestino Pantaleão é difícil que não seja o seu.

   Como mesmo dois Pantaleães seria quase impossível, saíram os dois pelo morro, subindo e descendo, entrando e saindo, em barracos e em bibocas, sempre com a pergunta:

   — O senhor conhece, por aqui, algum Ernestino Pantaleão da Silva?

   E sempre com um "não" como resposta. Correram o morro de norte a sul, de leste a oeste, de cabo a rabo, de seca a meca, de cá pra lá, de topo a sopé. Nem ameaça de Ernestino Pantaleão da Silva ou Ernestino Pantaleão ou de um mero Ernestino, que, àquela hora, já servia até demais.

   Já estava começando a escurecer, e os dois já no asfalto à procura de um táxi para o rapaz do instituto, quando o negro, visível e incrivelmente interessado em colaborar, teve uma idéia:

   — Sabe, moço? — começou na mesma hora em que começava a chover, contrariando sua previsão. — A gente aqui se conhece mais por apelido. Esse Ernesto. . .

   — Ernestino. . . tino — frisou o rapaz, já com os pingos a lhe açoitar a roupa e a pasta jamesbond.

   — Pois é. Esse Ernestino Pantaleão da Silva ou do que seja, não tem apelido?

   O rapaz, avidamente, consultou as folhas que tirou da pasta, verificando essa possibilidade.

   — Tem apelido, sim. Ernestino Pantaleão da Silva — leu — por alcunha: Bicanca.

   — Por que não disse antes? Sou eu. De que se trata?

   E o rapaz não teve tempo de dizer, porque o morro começou a ir caindo, ir caindo, ir caindo. . . e os soterrou.

  

   MINISSAIA, MAXICRIME

   Pior do que ser um cara conhecido, só existe um troço: ser portador de um nome raro. Estou falando sob o ponto de vista de adultério. O marido famoso não pode prevaricar. Poder, pode, mas corre muito perigo. Um cara comum, um José da Silva, funcionário de banco, dono de um Gordini 63, entra num desses kings hotéis, pega um apartamentozinho, cuida dos papéis, toma seu banhozinho, sai e não dá assunto a comentários nem a crônicas. Vai, belisca e volta, na maior tranqüilidade. Seu Gordini pode não subir a Niemeyer com a rapidez de um Mustang, mas a verdade é que essa dificuldade motora é regiamente recompensada pela tranqüilidade de espírito. Daquela dormidinha, ninguém vai ficar sabendo — a não ser os que dela participaram, porque o Gordini não fala. Quase nem anda, como queríamos nós que ele fosse falar?

   José da Silva, dono de um Gordini, funcionário de um banco, pode lanchar fora de casa as vezes que quiser e manter, com o maior tom de verdadeira, a aparência de fidelidade que jamais será possível ao — apenas por exemplo — Roberto Carlos.

   Começa que, em vez de Gordini, é um Jaguar desses que parecem casa provisória de terreno de praia em Cabo' Frio: muita área na frente (o possantíssimo motor) e a construçãozinha lá no fim (os bancos), onde confortavelmente cabe um, já que o outro a caber é o que dirige e, para este, não há conforto. O banco de trás não se deve levar em conta porque este, sabemos todos, serve apenas para as sogras.

   Vá o Roberto tentar isso que, pacata, pacífica e molemente faz o José do Gordini! Em meio ao seu trabalho (dele, Roberto), já o porteiro contou ao gerente, que ligou pra casa, que passou à mulher, que fofocou com a vizinha, e não duvido que o Roberto, ao sair do quarto, já corra o perigo de enfrentar aquela multidão de papelzinho numa mão e Bic (escrita fina) na outra.

   — Roberto!

   — Dá um autógrafo?

   — Assina aqui pro meu filho?

   — Roberto!

   Homem famoso, mulher conhecida, gente que todo mundo manja, pode mandar ver, mas nunca o fará às escondidas.

   Isso acontece, também, com qualquer sujeito de nome estranho. Nome raro é fogo!

  

   Começo a falar agora de São Paulo e de um cara que se chama Carlos, como qualquer Lacerda, Góis, Drummond etc. Carlos, para adultério, é um nome muito legal. Carlos, há aos montões. Até no futebol onde há times que têm três. Mas o Carlos de quem trato tem um sobrenome que lembra piano: Schwartzminn.

   Além do milagre que os latinos jamais conseguirão, apesar de o Vaticano ficar em Roma e não em Bucareste ou Belgrado, o milagre de possuir um nome de doze letras onde só há lugar para duas vogais, o sobrenome do Carlos passava de invulgar: era único.

   É certo que os amigos o chamavam apenas de Carlos. Mas é certo, igualmente, que todos optavam por Carlos por reconhecer que, para pronunciar corretamente aquele Schwartzminn, não é possível a quem tivesse apenas o artigo 99.

   Tente, meu nego. Para falar Schwartzminn como Schwartzminn tem que ser falado, necessário é que, no mínimo, tenha-se trabalhado quatro meses na embaixada da Alemanha, além de um ano de aperfeiçoamento de pronúncia em Munique. E sem conviver com brasileiros, porque brasileiro, no exterior, só capricha na pronúncia quando fala com os da terra.

   Carlos sofria este sobrenome há trinta e oito anos e, apesar dele, tinha conseguido casar. Com dificuldade, porque a incultura do homem da Rua Dom Manoel quase casa a mulher do Carlos com um Schwirtzminn, com um Schwurtzmunn, com um Chivartzmann, e se não fosse a presença do Fernando Sabino no momento, ele nunca teria escrito de maneira correta.

   — Vamos lá — disse Fernando —, letra por letra. S, de Southampton; C, de Churchill; H, de Hampshire; W, de Westminster; A, de Abbie; R, de Rost-beef; T, de Thamez; Z, de Zeeland; M, de Manchester; I, de Ireland; N, de New England e outro N, de Niterói.

   Afinal, se o próprio escritor e cronista e diplomata e mineiro tinha suas pequenas dificuldades, imagine-se o padecimento de José da Silva, funcionário da pretoria e proprietário de um Gordini. Meia dois.

   Carlos Schwartzminn, moreno para contrariar o sobrenome, era casado com Dona Mariana — que tinha nome de rua, mas que era mulher do lar. E era para o lar que os dois viviam, haja vista que, em três anos de casados, tinham três filhos. Um par de gêmeos, não vá alguém pensar que, ao casar, já levavam um no enxoval. Os filhos não tinham o sobrenome do pai. Bem que ele tentara mas, nas duas vezes em que fora fazer os registros, à falta de Fernando Sabino achou melhor desistir.

   Carlos, como eu disse, vivia para o lar. E não importava de quem. Isto eu digo porque o Carlos, sempre que era possível — e era possível muitas vezes, graças à sua aparência de galã —, "almoçava de pensão", modo pouco poético que ele descobrira para definir as constantes prevaricadas. Sabe como é. Às vezes, aparece alguém que quer dar. . . E quando aparecia esta chance, Carlos não dispensava. Só é lamentável que ele tenha esquecido que seu sobrenome era Schwartzminn quando resolveu ir para o Guarujá com a secretária.

   Claro que ele imaginou um crime perfeito.

   — Tenho que fazer tudo sem erro.

   Convidou seu colega de escritório — era advogado, com escritório na Rua Sete de Abril — para co-autor do crime. Tinha que ser um crime que o próprio Maigret não descobrisse. Trancaram-se na sala refrigerada e deram ordem de que ninguém os perturbasse. Aí, então, puseram as cartas na mesa: estudar um modo sem perigo de pôr a secretária na cama.

   — O que é que você sugere, Kleber — começou o Carlos visivelmente emocionado.

   — Sei lá. Leva num HO desses da Rua Paim.

   — E se alguém me vê?

   — Vai na casa dela — sugeriu o amigo desinteressado, principalmente porque fora o Carlos e não ele quem conseguira amarrar a moça.

   — E a mãe dela? — lembrou Carlos num pânico que parecia estar de frente para a mãe da moça e não para o amigo.

   — Que idade tem a mãe dela? — indagou Kleber não escondendo que sua pergunta demonstrava estar pensando em já se enturmar no pecado do outro.

   — Idade, eu não sei. Sei que é uma coroa que pensa que a filha é virgem — desencantou o Carlos numa informação que em nada ajudava, porque todas as mães pensam que as filhas são virgens. E não são. Há muitas de Capricórnio, Sagitário, Áries, Leão, etc.

   — É verdade — assentiu Kleber. — E geralmente por causa dos leões se acabam as virgens. — E sorriu um sorriso de rábula, nunca de advogado.

   — Eu vou com ela para o Guarujá — decidiu Carlos num ímpeto de Ivanhoé.

   — E tua mulher? — falou Kleber numa lembrança e não como a perguntar se também a mulher do Carlos iria.

   — Minha mulher? Bem. . . Minha mulher. . .

   — É. Você leva a menina para o Guarujá mas e a tua mulher, como é que faz?

   — Digo que vou para o Rio. Faço minha mulher ir comigo para o aeroporto, embarco, viajo para o Rio mesmo, desço lá, pego outro avião e volto pra São Paulo. Daqui — esfrega as mãos — direto para o Guarujá.

   Kleber teve que concordar que o crime era perfeito. A mulher veria quando ele entrasse no avião, assistiria ao fechamento da porta, presenciaria o levantar vôo da aeronave (em aviação, avião é aeronave e ele não levanta vôo: alça) e pronto.

   — Não é perfeito? — pergunta Carlos com um sorriso de Al Capone.

   — Perfeito — admitiu Kleber com uma inveja de crítico.

   — Dona Monalisa — comandou pelo interfone —, a reunião está terminada. Traga café, por favor.

   E um café foi servido ao criminoso e seu cúmplice exatamente por Dona Monalisa, o móvel do crime, a secretariazinha que seria devidamente deglutida no Guarujá.

  

   Depois de todas as precauções tomadas e de traçados os planos, Carlos Schwartzminn entrou em casa em frangalhos. A barba que, pela manhã, fizera sem o costumeiro escanhoar, crescera mais do que o comum e os cabelos postos em proposital desalinho, além da gravata estudadamente entreaberta abaixo do colarinho desabo toado, davam-lhe o aspecto que ele queria. O aborrecimento era notório, coisa que quem primeiro constatou foi o cachorro da casa, um fox terrier afastado com o pé ao acenar com o rabinho à chegada do dono.

   — Sai, Bing Crosby, que eu estou por aqui — e fez um gesto de cortar pescoço.

   A contrariedade que dominava seu rosto era de fazer compadecer. Não sentou; desabou sobre a poltrona de braços de onde costumava assistir ao programa da Hebe Camargo e sentiu-se um Paulo Autran na hora em que, representando, disse:

   — Merda!

   Quando, em seu estado normal, ele entraria em casa com essa palavra só usada nas poucas vezes em que ouviu, no rádio do carro, um bolero cantado pela Cláudia Barroso?

   — Que foi, Carlos? — ousou perguntar num sussurro Dona Mariana. — Algum problema sério?

   — Uma merda, só. Sabe o que é uma merda? Uma merda! — repetiu numa agressão premeditada e que estava funcionando melhor do que o pressuposto.

   Dona Mariana botou Bing Crosby — o fox terrier — para a cozinha e se fechou na sala, para saber do marido qual o terrível problema que tanto o afligia.

   — Conta pra mim, Carlos. Conta pra sua Marianinha.

   — Um feriado na sexta-feira — berrou Carlos levantando-se pra abrir a janela — e eu tenho que ir para o Rio.

   A ida à janela fazia parte do que tinha bolado. Diria isto de costas, sem precisar encarar Dona Mariana na hora da mentira maior. Falou e não obteve respostas nem comentários. Insistiu, ainda de costas, fingindo que olhava a rua.

   — Escutou?

   — Escutei — disse a mulher que tinha nome de rua.

   — E o que é que você acha disso? — perguntou já se voltando para ela num giro de corpo que Sérgio Cardoso jamais conseguiria imitar.

   — Que é que eu acho? Uma merda.

   A mulher (que além de Schwartzminn, como o marido, era também Fungler, como o pai) já estava acostumada às idas do Carlos ao Rio mas não pôde receber a notícia com a aparente tranqüilidade com que sempre as recebera. Em véspera de três dias de folga, era a primeira vez que isso acontecia. Geralmente era no meio da semana. Mas, mulher compreensiva, contemporizou.

   — Que é que se há de fazer?

   Carlos é que não se conformava. Esbravejou, praguejou, xingou. Chatice de profissão. Eu devia ser dentista. Vou largar tudo isso. Não agüento mais. E o Kleber não vai nunca. Foi falando as frases que lhe vinham à cabeça numa irritação de Nero.

   — Liga pro Kleber — ordenou num tom grave e metálico. — Liga e diz que eu não vou.

   Dona Mariana ponderou "que não devia fazer isso, que não era aconselhável, que sócio é sócio, que essas coisas acontecem", mas ele foi definitivo.

   — Tou mandando ligar, liga, pô!

   Aí, a mulher telefonou. Não estava ocupado. E nem poderia estar, porque, de acordo com o tratado, o telefonema era parte importante do plano.

   — Kleber? Aqui é Mariana. Como vai a Nair? E as crianças? Não mando nada. Eu estou ligando pra saber se não dá pra você ir ao Rio no lugar do Car. . . sei, sei, entendo. Eu perguntei, Kleber, porque. . . sei, sei, claro. É que sexta-feira é feriado, a gente podia. . . sei, sei, há coisas que não podem ser transferidas, entendo. Você tem razão. É, nesse caso, só ele. Olha, Kleber, não leve a mal eu ter ligado para. . . sei, sei. De qualquer modo desculpe. Dá um beijinho na Nair e nas crianças. Tchau.

   Desligou, desanimada. Tinha que ser o Carlos, mesmo. Esses assuntos muito importantes, só o Carlos. E, de fato, o assunto do Carlos era importantíssimo. A secretária tinha tirado segundo lugar no concurso de rainha do carnaval e era daquelas que quando usam minissaia a gente vê a etiqueta. Chamava-se Monalisa, e não é todo dia que se tem a chance de mastigar o que inspirou Leonardo.

   Crime perfeito. Perfeito porque minuciosa, técnica e prudentemente elaborado. Ah, Hitchcock, quem és tu?

   Enquanto se dirigia, com a mulher ao lado, para o aeroporto de Congonhas, Carlos sentia-se um personagem de Georges Simenon (uso Simenon porque ele próprio pensou em Maigret). Tinha imaginado os últimos detalhes durante a noite, incluindo horários. Exatamente como os criminosos que só são apanhados no fim do livro.

   — Acordo, às 7 e 28, tomo banho; desço para o café às 7 e 42. Saio de casa às 7 e 58, estou no aeroporto às 8 e 23; o avião sai às 9 e 12 — que é a hora em que sai o avião das 8 e 45...

   Tudo cronometrado, milimetrado, ciberneticado. Crime perfeito, se não for perfeito, não passa de um crimezinho idiota. E como pode ser idiota um cara que se chama Carlos Schwartzminn, que vai, estudadamente, morder, em Guarujá (era no Hotel Delfim, já reservado), uma secretária de um metro e setenta e três de altura, com cinturinha cinqüenta e sete e dezenove anos incompletos?

   — Passageiros da VARIG, VÔO 7-0-3, com destino a Recife e escalas no Rio de Janeiro e Salvador. . .

   Aquele beijinho, os avisos de tomar conta das crianças, a lembrança da possibilidade de não ter tempo para telefonar (claro que jamais telefonaria) despedidinhas, abracinhos, até-loguinhos.

   E o avião subiu.

   — 9 horas e 13 minutos — conferiu Carlos, já no avião em vôo. — Por enquanto, só errei por um minuto, e este vai ser o único erro.

   Bateu na própria testa com orgulho: "Cabecinha de Santo Onofre" Não quis lanche a bordo. Pra que comer no avião, se coisa melhor o esperava no Guarujá?

   Às dez e pouco o avião tocou o chão, no Rio. Carlos saltou no Galeão, pegou para a cidade um daqueles táxis que, por este trajeto, cobram quarenta e cinco por cento a mais do que a VARIG por um trecho Rio—São Paulo, foi ao Santos Dumont a tempo de pegar a Ponte Aérea das onze para São Paulo. Tudo como estava planejado.

  

   O Viscount da VASP, procedente do Rio, aterrissou em Congonhas às 11 e 58, trazendo a bordo artistas, bancários, banqueiros, políticos, militares, executivos, executantes, turistas e um certo Carlos Schwartzminn, profissão: criminoso. Criminoso, repito, porém perfeito.

   Às 12 e 20, ele estava na Vila Mariana, onde a secretária morava. Não à porta da casa, mas na esquina, como o combinado. E, como igualmente fora combinado, às 12 e 25 ela apareceu.

   Linda, linda, linda! De cabelos presos e coxas à mostra, graças à microssaia que Carlos lhe comprara na véspera, numa butique na Rua Augusta.

   Saiu do carro para abrir a porta à secretária — coisa que não fazia para a mulher desde alguns meses antes do nascimento do primeiro filho. E o carro, que lhe tinha sido emprestado por um primo do Kleber (se não fosse o Kleber, o que seria dele?), se mandou para o Guarujá.

   Já a viagem foi uma delícia. Uma mão no volante e a outra nas pernas de Monalisa que sorria de lado, como Gioconda. Quanto a ela tinha uma mão no quebra-vento e a outra onde queiram imaginar que a colocaria uma secretária inteligente e precisando de aumento.

   As janelas abertas deixavam entrar o ar puro e fresco, tão comum na estrada de Santos. Os perigos das curvas não existiam. Curvas perigosas eram as que estavam ao seu lado.

   — Essa mulher, não sei, não. Posso ficar parado na dela fácil, fácil — pensava e temia; temia e desejava.

   Os pneus cantavam nas viradas do caminho, o que lhe acrescentava uma sensação de Fittipaldi.

   — Ah, meu bom Jesus — pensou modesto —, obrigado pela soberba inteligência que me foi dada. É preciso ser um crânio para bolar um troço tão certo, tão direito, tão divino!

   E nem se fale do arrepio de corpo inteiro que sentiu quando, pela primeira vez, a secretária, em lugar daquele solene "Dr. Carlos", o chamou com o carinho que ele nem esperava:

   — Está feliz, Carlinhos?

   Há quanto tempo não era Carlinhos. Mas agora era. Podia ser até Caca, se ela quisesse. E ela ia ver quem era o Carlinhos, ia conhecer a força varonil do Caca. Força que só aumentara do Mackenzie para cá. No Mackenzie não era Caca? Pois ali estava o velho Caca do Mackenzie, inteiramente novo, a caminho do pecado. Que pecado? Quem chama isso de pecado nunca tirou um sarro.

  

   Não houve problemas no hotel. Registrou-se como casado, é lógico. E o recepcionista, é lógico, fingiu que acreditou. Aí, aquilo de sempre em casos semelhantes: uisquinho antes, cigarrinho depois, um tempinho de espera, um uisquinho, l’amour, um tem-pinho de espera um pouquinho maior, 1'amore, um uisquinho, um cigarrinho, uma espera um pouco mais longa — Ah, Caca, Caca, você já não é o mesmo do Mackenzie, mas ia bem. Muito bem. Um tremendo barato, bicho.

  

   Mas, já dizia Agatha Christie num momento de lucidez: "Não há crime perfeito".

   Mariana Fungler Schwartzminn, esposa do nosso criminoso-herói, na sua residência da Rua Angatuba, achou que aqueles três dias em São Paulo seriam um saco! E então teve uma idéia que considerou genial: ir com as crianças para o Guarujá.

   Já deu pra sentir?

   A comemoração das crianças foi de emocionar. Bing Crosby, que poderia ser um empecilho, ficaria aos cuidados de uma atriz de televisão, vizinha, que muito gentilmente se prontificou a tomar conta do cachorrinho, sem saber que o fox terrier, apesar de já ter três anos, ainda preferia os tapetes aos postes para suas necessidades menores e optava pelos colchões em desprezo aos gramados, para as outras necessidades.

   Dona Mariana tirou o carro da garagem e o levou, com crianças e babá, exatamente para Guarujá e precisamente para o Hotel Delfim. E se não fosse assim, não teria graça.

   Lá ia o fusca-quatro-portas pela estrada de Santos à procura do Hotel Delfim onde Carlos, com sua falsa esposa, e naquela hora mesmo, pela quinta vez, afogava o anserídeo. Aos que não cultuam o hábito de ler enciclopédia, esclareço que "ave anserídea" é o popular ganso.

   Na recepção do hotel houve um diálogo.

   Se um dia o Roberto Farias pretender fazer dessa estória um episódio de um filme em episódios, pode aproveitar o diálogo, que é autêntico; tanto quanto o episódio em si.

   — Boa tarde — cumprimentou Dona Mariana com os filhos a fazer fila às suas costas.

   — Boa tarde — retribuiu o recepcionista, porque os recepcionistas o mais que fazem é retribuir.

   — Eu queria dois apartamentos, se possível, juntos. Somos eu, meus filhos e a babá.

   — A senhora é uma mulher de muita sorte! — comentou o recepcionista como se alguém lhe tivesse pedido opinião. — O hotel estava inteiramente lotado. Mas tenho dois apartamentos e juntos, como a senhora deseja, porque um alto funcionário da Volkswagen foi chamado urgente a São Paulo e. . .

   — Por favor — atalhou Dona Mariana pouquíssimo interessada no chamamento do homem e louca de vontade de botar maio, vestir maio nas crianças e aproveitar aquele modesto sol que, para quem chega de São Paulo, é meio-dia em Teresina.

   — Pode fazer a ficha, por favor? — perguntou o recepcionista numa ordem.

   Aqui não há diálogo. É o tempo em que ela escreve que se chama Mariana Fungler Schwartzminn, que mora na Rua Angatuba, etc. Ela devolve a ficha e o recepcionista tem a sua atenção chamada para aquele nome raro. Não era bem o nome, mas o sobrenome.

   — Schwartzminn? — perguntou ele sem acertar a pronúncia exata de nenhuma sílaba. — Tem um Schwartzminn no hotel. Carlos Schwartzminn.

   Palmas para a tranqüilidade que Dona Mariana conseguiu manter. Palmas e mais palmas para o sorriso que conseguiu fingir e um troféu para a cara-de-pau que mostrou quando disse:

   — Meu irmão. Carlos Schwartzminn? Meu irmão. Está com a mulher?

   — Sim, está.

   Mais palmas. Dona Mariana, sim, tinha sangue-frio. E, apesar da naturalidade que aparentava, convencendo o recepcionista, falava de um modo que não chamava a atenção das crianças.

   — Em que apartamento? — perguntou num tom que entregava o desejo de lhe fazer uma brincadeirinha. — Vou fazer uma surpresa pra ele.

   — Está no 315, se não estiver na praia.

   Não devia estar na praia. Aquele sol cinzento estava mais para lençol do que para areia.

   Dona Mariana deixou as crianças com a babá e subiu para fazer uma surpresinha ao irmão. Você dirá que não era irmão, mas ninguém duvidará de que seria uma surpresa.

   Elevador, corredor, knock-knock-knock, porta abre.

   A cena era a seguinte: Carlos, de shorte estampado — que o Kleber comprara um número maior e deixara, de véspera, no porta-luvas do carro emprestado —, com um copinho de Campari na mão, chacoalhando artisticamente o gelo e, em segundo plano, Monalisa: deitadinha, sem calcinha, sem bloquinho de tomar anotações e toda preparadinha para fazer mais coisinhas com o patrãozinho.

   Eu não sei o que você faria e, muito menos, o que eu faria, numa situação dessas. Mas, ao ver a mulher na porta, o Carlos só disse uma frase:

   — Estou no Rio, pô!

   Dizem que Dona Mariana acreditou, mas não há nada provado quanto a isto.

  

   MEU FILHO, MEU FILHO!

   Quando Graham Bell inventou o telefone, creio que tenha acreditado que estivesse fazendo um bem à humanidade. Imagino a sua alegria ao comunicar à mulher — certamente a primeira a saber — que descobrira um meio de um homem se comunicar com o outro a distância, sem saber, coitado, que naquele momento criava apenas um tormento a mais a se juntar aos outros tantos que seus colegas benfeitores da humanidade criaram: trem, navio, avião, luz, eletricidade, por exemplo, porque o trem descarrila, o navio encalha, o avião cai, a luz ofusca e a eletricidade dá choque. Parabenizo, porém, Pasteur pela vacina anti-rábica — coisa que penso devia ser obrigatória aos jurados de televisão. A vacina, não o conhecimento de que foi Pasteur quem a descobriu. Ah, os jurados! Esses, sim, descobriram coisa divina: um meio de ganhar dinheiro sem fazer nada.

   O telefone é aquela coisa que era preta e que agora, como a tevê, é a cores, e que, colocado do lado da cama, serve para liquidar, pouco a pouco, uma das mais lindas especialidades da medicina: pediatria.

  

   — Trimmm — fez o telefone à cabeceira do pediatra que se deitara às onze, vindo de um hospital onde atendera o filho de um colega, e após um dia inteiro examinando costinhas e perguntando de cocozinhos.

   — Trimmm — insistiu o telefone ao pé do ouvido do homem que precisava acordar às cinco, por necessidade de estar às seis na maternidade.

   — Trimmm — aporrinhou o telefone, acordando a mulher do pediatra que não tinha culpa nenhuma de o marido ter escolhido a pediatria.

   — Trimmm — metalizou o telefone na sua única idéia. — Trimm. . . trimmm. . . trimmm. . .

   O pediatra abriu o olho possível e consultou o relógio antes de calar o maquiavélico invento de um físico inglês chamado Graham Bell nascido em Edimburgo (1847) e falecido na Nova Escócia (1922). Aberto um olho não era problema dos maiores abrir o outro, ainda mais porque o polegar da mão direita tinha, a auxiliá-lo, o da mão esquerda. O relógio marcava onze e quarenta e cinco. O pediatra dormira, portanto, quarenta e cinco minutos — tempo um pouco menor do que o que viveu Graham Bell, que Deus o tenha.

   — Alô — foi obrigado a dizer, já que pegara o telefone e o colocara na posição habitual, ou seja: o "com que se houve" ao ouvido e o "com que se fala" à boca — posição correta, visto não se tratar de um psiquiatra, mas de um pediatra, como já foi amplamente divulgado nesta estória. Convém esclarecer que pediatra é médico de criança; isto que você está pensando é pedestre.

   — Dr. Castro? — indagou a voz da mulher do outro lado da linha e da cidade: — Meu filho está acordado.

   O pediatra ficou alguns segundos em silêncio e depois falou, mais acordado:

   — Vamos ver se eu percebo. A senhora está me acordando para me informar que seu filho está acordado. É isso?

   — Exatamente! — exultou a mulher. — O que é que o senhor me sugere?

   — Bem — racionalizou o pediatra meio dormitando porém lúcido o bastante para ter uma idéia fantástica —, eu sugiro que ele durma, coisa que, aliás, eu estava fazendo até a senhora me acordar a fim de me informar que seu filho não estava dormindo. Que lhe parece a idéia?

   — Divina, doutor, o senhor é um gênio.

   — Ora, o que é isso? Eu sou apenas um pediatra acordado. Gênio é Graham Bell, que inventou o telefone.

   — Mas. . . e o meu filho? O que faço com ele?

   — Isso depende muito da senhora. Em princípio, a senhora pode fazer o que melhor lhe parecer: entregar a uma tia para criar, rifar, obrigá-lo a ser pediatra (se ele não se comportar bem) — sugeriu o médico.

   — Eu falo pra dormir. Ele tem que dormir, não tem? — reatou a desesperada mãe de um primeiro filho.

   — Tem. Dormir é uma obrigação. Não só das crianças, como também dos pediatras. Desculpe eu me incluir neste grupo.

   — Não, não, o senhor tem razão. Só que o meu filho, pra dormir, precisa de chupeta.

   — Ótimo. A senhora é mãe de uma criança normal. Vamos combinar uma coisa: quando ele, para dormir, precisar de um tanque do exército, a senhora me telefone porque eu tenho um tio major. . .

   — O senhor está brincando, doutor!... — choramingou a mãe extremosa.

   — Não, estou acordado — confessou o pediatra.

   — O negócio é que eu ponho a chupeta na boquinha dele, ele dorme, aí a chupeta cai da boquinha dele, ele acorda. O que acha?

   — Acho — considerou o médico — que ele acorda quando a chupeta cai da boquinha.

   — A chupeta não pode cair, pode?

   — Não pode — afirmou o pediatra, cocando o que gera crianças, para que os pediatras por causa delas acordem. — É um crime que as chupetas caiam. Pretendo até escrever uma tese sobre o assunto e apresentar no próximo congresso de pediatria, em Hong Kong.

   — Tem solução, doutor? Que faria o senhor no meu caso?

   — Imediatamente telefonaria para o pediatra do meu filho.

   — Por isso, eu liguei para o senhor. Felizmente, o senhor é um homem compreensivo. A chupeta cai e ele acorda. O que devo fazer?

   — Que faria a senhora se uma sofredora mãe lhe telefonasse com esta pergunta e a senhora fosse pediatra?

   — Sei lá — ficou em dúvida a mãe do filho, que também era uma filha da mãe —, acho que eu mandava amarrar um cordãozinho na chupeta e prendê-lo ao pescoço do neném. Assim, quando a chupeta caísse, ele, sozinho, poderia. . .

   — Por mim, a idéia está aprovada.

   — Oh, doutor, é isso mesmo. Desculpe incomodar, sim?

   Ela desligou, o pediatra olhou o relógio, pensou em deixar o fone fora do gancho, desistiu em atenção à genitor a de Graham Bell, puxou as cobertas e pensou que dormiu.

   — Trimmm.

   O pediatra conferiu o relógio: duas e vinte. Num esforço de Sansão versus Pilastras, levantou o telefone do gancho.

   — Doutor, é Dona Verinha, mãe do Tadeu. Tadeu, o da chupeta, lembra?

   — Lembro! — gritou o pediatra, pondo-se de pé, pensando num enforcamento com o cordão. — Lembro, lembro. Pode falar, o que houve?

   — Sabe que o senhor tinha razão? Depois do cordão, quando a chupeta cai, ele põe de novo na boquinha e não acordou mais.

   Aí, o pediatra abandonou a profissão e está hoje tentando uma vaga no júri do Flávio Cavalcanti.

  

   A MOÇA DO APARTAMENTO

   Na reunião dos condôminos do Edifício Águia Negra faltou uma coisinha de nada para o pau quebrar em virtude das reclamações que não eram poucas: constante falta de água, encanamentos furados no subsolo que transformavam a garagem numa piscina, elevador de serviço sempre enguiçado, moradores com cachorros que escolhiam a noite para seus latidos que antes eram uivos de famintos lobos, crianças que escreviam suas opiniões sobre as mães de outras crianças na parede de peroba do campo do elevador social, etc.

   O hóspede do apartamento 102 brigava habitualmente com o síndico, reclamando do metralhar de uma máquina de escrever no 202, onde morava um repórter de O Cruzeiro e que, no dizer dele, bem podia escrever de dia, que a noite foi feita para dormir; e o repórter tinha queixas de móveis que eram arrastados de madrugada no 302, que, por sua vez, achava que uma ou outra cadeirinha que mudasse de lugar à noite nada significava em comparação àquele ensurdecedor barulho que vinha do 301. O barulho ensurdecedor era provocado por um aparelhinho transistorizado de sessenta watts de saída, que amplificava a guitarra de um Jimi Hendrix qualquer. Mas o pai do dono do amplificador (Seu Amílcar, do 301) já tinha mil vezes feito queixa da mulher do 402 que chegava de madrugada (sabe-se lá o que fazia até esta hora na rua) e, ao chegar, jogava os sapatos no chão, acordando-o no que ele dizia ser "o melhor do sono".

   — Veja só. Acordar um homem que trabalha e que precisa repousar de noite — acrescentava em sua própria defesa que antes era uma acusação à dona do 402. O síndico já a tinha procurado e ela, Dona Lulita, jurava que nunca jogara nenhum sapato no chão. Pelo contrário. Quando os tirava era mansamente.

   — Ele pensa que eu sou o quê? Eu chego tarde porque trabalho de noite. Na Embratel. Pode telefonar ou ir lá, pra ver se é mentira — desafiava Dona Lulita, visivelmente ofendida pelo que provavelmente o Sr. Amílcar julgava a seu respeito. E também ela tinha queixa. Não do Seu Amílcar (301) mas do velhote de cima (502), que passava a noite dando descarga no banheiro.

   — O que é que esse velho come, pra viver cagando? — perguntava numa irritação que justificava o termo.

   — Dona Lulita, olhe os termos.

   — Ele é que tem que olhar o que come. O velho dá descarga de cinco em cinco minutos. E a descarga parece que é aqui, na cabeceira da minha cama.

   — Desculpe. Eu vou falar com Seu Ernesto (502) sobre o assunto — prometia o síndico já na porta de saída.

   O velho (502) tinha desculpas: sofria do rim e, como medida preventiva, bebia muita água. . . Mas era caso de doença, "o que não se dava com o menino do vizinho (501), que chora desde que anoitece até que amanhece" — acrescentava antes de voltar ao banheiro para mais uma descarga. Ouvindo de um e de outro, contornando um problema hoje, outro depois, acertando aqui, ajeitando ali, o síndico sofria o martírio desta escolha maldita aguardando, a contar os minutos, o dia da reunião que viesse indicar um substituto para o árduo e repudioso cargo.

  

   Era um prédio de doze andares, sem cobertura, na Rua Barata Ribeiro. Sala, dois quartos, banheiro, cozinha, área de serviço, dependências de empregada e garagem. Como nem todos no edifício tinham carro, a maioria dos moradores alugava as vagas a que tinha direito a pessoas que moravam em prédios ao lado ou por perto; e também isso era criticado na reunião.

   — Não tem carro, deixa a vaga vazia — exigia o proprietário de um Galaxie, que, pelo acúmulo de carros, manobrar com o seu na garagem era um suplício diário.

   — A vaga é minha, alugo a quem eu quiser — argumentava um dos proprietários, defendendo os muitos cruzeiros que lhe pagava um médico morador no prédio fronteiriço.

   — Aluga, não. O senhor tem o direito de USAR — voltava o homem do Galaxie enquanto girava o olhar pedindo a concordância dos demais.

   — Posso até vender. O apartamento é meu, meu chefe. Eu comprei o apartamento com garagem. Posso vender a garagem, posso vender a sala, posso vender o que eu quiser — agredia o dono da vaga alugada ao médico.

   — Eu sou contra — brandia, levantando-se, o dono do Galaxie, levantando a mão, incitando os outros à votação.

   — É contra! Dane-se — berrava o dono da vaga alugada, num tom que desestimulava todos a concordar.

   — Vamos ser mais educados. O senhor quer que eu me dane porque não foi o senhor quem teve que ir acordar um cara na Praça Cardeal Arcoverde pra ele tirar o carro, e eu poder sair. Minha mulher indo pra maternidade, eu com uma aflição que qualquer um pode imaginar, tendo que deixar a patroa esperando na garagem até o judeu lá na Cardeal Arcoverde levantar, botar uma roupa e vir. E o cara ainda veio de má vontade, como se não fosse obrigação dele, como se ele fosse o dono da vaga. Vaga não pode ser alugada — repetia agora com veemência.

   — Não pode a sua — açoitava o homem da vaga do médico. — A minha, eu alugo na hora em que bem entender. E tem uma: é só me aporrinhar, eu vendo. Um milhão e meio já me ofereceram por ela. Tá aqui o Miguel de testemunha.

   — Nesse ponto ele tem razão — testemunhava o Miguel enquanto tranqüilamente aparava as unhas com um trim enferrujado.

   Nos doze andares do prédio quarenta e oito apartamentos, já que eram quatro por andar e esta conta eu consigo fazer. Viviam quarenta e oito famílias naquele prédio. Viviam é um verbo utilizado com boa vontade: digladiavam-se. Quando a briga não era de família contra família, a mais comum, era de família contra síndico, a mais normal. Nos dias de sol, o pega-pra-capar era maior. Os meninos que traziam no corpo uma invejável quantidade de areia de Copacabana não respeitavam o claríssimo aviso: "Banhistas, pela entrada de serviço" e invadiam a entrada principal, deixando no chão um pouco de areia e o resto da água salgada que vinha na prancha de isopor coberta de lonita.

   — Banhista é por lá! — berrava o zelador, já sabendo que não seria atendido.

   — Eu não sou banhista, cara; eu sou criança — replicava o menino já entrando no elevador social onde, certamente, ao sair, não esqueceria de apertar todos os botões para que o elevador enchesse bastante o saco de quem o esperasse no térreo.

   Isso de os meninos apertarem os botões do elevador também era tratado na reunião dos condôminos, um verdadeiro sketch. E infinitamente melhor do que muitos dos que a televisão apresenta, por ser real e levado a sério.

   — O primeiro garoto que eu pegar apertando todos os botões do elevador, vou dar um cascudo. Estou avisando — advertiu o dentista proprietário do 704, aproveitando-se do fato de ser, fisicamente, o mais avantajado do edifício.

   — Dá. Agora tem uma coisa: se for o meu filho, eu vou no 704 e te encho de porrada — replicou o pai de um dos meninos habituados a esse delicioso esporte infantil e que à réplica se atrevia por ser faixa marrom da Academia Cordeiro.

   — O caso não se resolve assim — contemporizou um funcionário do Banco do Brasil, morador no 1001 e já temeroso de que o caso aumentasse de proporções e sobrasse alguma coisa para o seu lado. — Vamos com calma. Criança é criança.

   — É que não é na sua porta que eles fazem aquela gracinha de tocar a campainha e correr, como fazem na minha — lembrou o fiscal do INPS, residente no 904.

   — E na minha — acrescentou o 104.

   — E na minha — adicionou o 803.

   — E na minha — obtemperou o 704, professor de português e, por esta razão, único presente com o direito de obtemperar.

   — O primeiro garoto que eu pegar tocando campainha na minha porta, vou dar um cascudo. Estou avisando — reavisava o dentista já avermelhado e em pé de guerra.

   — Dá. Agora tem uma coisa: se for o meu filho, eu vou no 704 e te encho de porrada — falava tranqüilamente o faixa marrom.

   — Sabe o que eu acho? — perguntou o funcionário da CEDAG, morador no 604. — Os pais têm que avisar aos seus filhos que um edifício de apartamentos é um edifício de apartamentos.

   — Bela frase. Posso usar na revista? — gozou o repórter do O Cruzeiro, aparando, com o trim enferrujado, a unha do polegar direito.

   — Não brinca, Miguel, que estou falando sério.

   — Pô. Tu fala que um apartamento é um apartamento e diz que tá falando sério? — reagiu o repórter guardando o trim e soltando a raiva. — Quer falar sério, fala que a portaria é uma porcaria, que entra quem quer e bem entende; que os corredores vivem cheios de vendedores disso e daquilo, aporrinhando a gente; que de noite o vigia não está nunca, que a gente tem que ir buscar o cara no boteco onde ele fica enchendo a cara; fala que o lavador dos carros é bicha e vive com indiretas para os meninos do edifício, que eu já vi...

   — Se ele for com indiretas para o filho do 704, o 704 dá um cascudo nele — zombou o faixa marrom.

   — Essa reunião está uma esculhambação — descobriu o 704. — Eu vim aqui foi para tentar resolver o que fosse preciso, vim para colaborar e se vocês querem só sacanagem, é melhor acabar isso e cada um ir para a sua casa.

   — Pra minha casa agora, é suicídio ir — sofreu o 302 — porque a essa hora a vitrolinha do 301 deve estar derrubando a parede da minha sala.

   — Não é tanto assim, não é tanto assim — murmurou o pai do menino da vitrola.

   — Um momento! — pediu a palavra o inquilino do 1204. — Pra que é que a gente faz essa reunião? Não é para esclarecer, para arrumar, para corrigir, para consertar? Então, vamos tratar de consertar e corrigir. Por exemplo: a lixeira do meu andar está sempre entupida. E olha que é o décimo segundo!

   — Tem um vazamento no 1003 que já está minando no meu teto — queixou-se o 903 enquanto discretamente cocava as partes.

   — Nunca passaram uma vassoura na escada do oitavo andar — emendou o do 801, um ex-produtor de televisão. — Já encontrei ali até camisa-de-vênus.

   — A porta do sétimo andar abre quando o elevador não está. Vem uma criança, abre a porta, e aí é que eu quero ver.

   — A passadeira da entrada social está cheia de buracos. Minha senhora prendeu o salto num, um dia desses, caiu, quase quebrou o braço.

   — Esse negócio de não ter água o dia inteiro também já encheu a minha paciência. No vizinho daqui (apontou o lado direito) tem, no daqui (indicou o lado esquerdo) tem. Por que não tem justamente aqui?

   — Já falei há mil anos que se precisa de uma bomba de mais sucção — falou o síndico pela primeira vez. — Ou bota-se uma bomba que puxe água com vontade ou vai ser isso a vida inteira.

   — Precisa uma bomba maior, compra-se — disse o repórter com mais ironia do que concordância.

   — Só que na hora de fazer a lista — exasperou-se o síndico — Seu Fulano não quer, Seu Sicrano esbraveja, um me chama de ladrão, o outro diz que não tem nada com isso. Aí, eu mando racionar a água, todo mundo bronqueia. Eu sou síndico porque vocês escolheram. Eu fui na casa de alguém pedir para ser síndico? Eu pedi a vaga para alguém? Por mim, eu estava muito satisfeito com o Dr. Habib...

   — . . .pode me esquecer! — gritou o Dr. Habib, completando a frase do síndico atual. — Como síndico, ninguém mais me apanha. Só arranjei inimigos. Eu? Síndico de novo? Aqui, ó!

   Parecia que o Dr. Habib tinha terminado seu pensamento. Ele apenas preparava, numa pausa, a bomba que tinha a soltar. E era a isso que ele se referia:

   — Só que no meu tempo de síndico, não morava nenhuma prostituta aqui no prédio.

   Fez-se um silêncio sepulcral, funéreo. O 704 foi o primeiro a falar depois do impacto que a frase acusativa e denunciadora causara em todos.

   — Repita, por gentileza, Dr. Habib — pediu, dando a impressão de que ouvira mal, mas apenas querendo um videoteipe daquela verdade humilhante.

   — Eu disse, Seu Roberto, que no tempo em que eu era síndico, podia faltar água, o elevador enguiçar, a lixeira do 12 não abrir. . .

   — Vamos ao ponto —, pediu, nervoso, o dentista do 704 já se pondo de pé. — Repita o principal. Quem é que mora aqui, que o senhor disse?

   — Ué, uma prostituta — falou o Dr. Habib aparentando uma naturalidade que lhe ficava forçada como luvas de boxe no Dener. — Apenas uma prostituta.

   Novo silêncio, usado por Seu Roberto do 704, para correr o olhar por todos os condôminos. Um olhar que, ao parar em cada olhar, pergunta subjetivamente: "Ouviu? Ouviu? Ouviu?"

   — Quem é? — perguntou ele próprio (o 704). — Onde mora?

   Apenas Miguel, o repórter, não achava aquilo uma coisa assim tão terrível, tão motivadora de um silêncio e uma surpresa tão enormes.

   — Oh, Seu Roberto, prostituta também é gente. O que é que tem que a moça. . .

   — Moça, não! — vociferou o 704 irritadíssimo, porque com o repórter ele podia, que o repórter não era faixa marrom. — Como moça? O Dr. Habib foi claro. Uma prostituta. Prostituta é moça? Moça é a minha filha, que tem catorze anos e nem sabe o que é esse negócio (entreolhar-se discreto de todos). Moça é a filha do síndico, é a sua irmã. Moça, é virgem, Seu Miguel.

   — Esse conceito de virgindade. . . — tentou falar o repórter, sendo atalhado por um grito do 704.

   — Prostituta! Prostituta é outra coisa. É mulher da vida. Mulherzinha de vida fácil. Senhores — desceu a voz num tom de dramaticidade que até não lhe ficava mal —, temos como vizinha, compartilhando da nossa vida, porque não deixa de ser uma vida em comum. . .

   — De fato, é uma comunidade.

   — . . .comunidade, disse bem aqui o Professor Maurício, uma mulherzinha à-toa. Medite nisto: convive conosco. . .

   — Deixa a mulher viver — sugeriu o repórter cortando o embalo do 704. Ela não incomoda a ninguém.

   — Como não incomoda?

   — Claro que não incomoda — repetiu o repórter já um pouco sem paciência. — Tanto não incomoda que mora aqui há oito meses, e todos vocês só souberam disso hoje. E se o Dr. Habib não desse com a língua nos dentes, nem hoje e nem nunca iriam saber.

   Era uma verdade, mas o 704, o dentista, o Seu Roberto dos prometidos cascudos, já tinha outra coisa a mortificar sua sagrada cabecinha.

   — E o senhor sabe disso há oito meses?

   — Oito, quase nove — explicou melhor o repórter, voltando ao trim enferrujado.

   — E nunca falou?

   — Falar pra quê? Eu sou o fiador da moça.

  

   A moça não tinha inteirado os vinte e um anos. E já era prostituta há quatro. Fizera o curso primário da sua profissão em Bauru, tendo como mestre e iniciador um chofer da Cometa; o admissão, em Belo Horizonte, onde ganhou as maiores notas e recebeu as melhores referências por parte da TFM; O ginasial, em São Paulo, onde perturbou com sua ousada minissaia as noites de várias boates da Rua Major sertero, e, agora, vinha ao Rio para o científico da prostituição. Chamava-se Linda e fazia por merecer o nome. Nome de guerra, não tinha, porque Linda, apesar de lindo, é nome que parece apelido e ela, a conselho de uma colega de Londrina, mantivera, na difícil vida fácil, o nome da certidão.

   Linda conhecera Miguel, o repórter, num coquetel de lançamento de um livro do Millôr Fernandes. Ninguém a convidara, mas coquetel de lançamento de livro em Ipanema sempre tem uma putinha ou outra que penetra, na esperança de achar um intelectual a perigo, que a convide ao Jirau. Linda não conheceu um intelectual como desejava, mas o repórter era quase isso. E era até melhor, porque Miguel tinha sempre uma graça na ponta da língua, uma piada para criticar qualquer situação, fraseado inteligente e um bom humor de contador de anedotas (não confundir com humorista, que humorista é triste). Jantaram no Bistrô, esticaram no Jirau, pararam o carro no Arpoador onde puderam se conhecer e se sentir melhor do que nos lugares públicos. Aqueceram as turbinas e, na hora de alçar vôo, no momento de acertar os ponteiros, a dificuldade. Na casa dela era impossível, porque Linda morava numa vaga, num casarão da Avenida Atlântica (hoje já é edifício, com síndico e tudo) e, lá, só entravam — como dizia ela — meninas. O repórter era menino.

   — E então, como é? — quis saber o repórter já imaginando que, em último caso, teria que quebrar o galho ali no carro mesmo.

   — A gente vai num hotel — foi a sugestão de Linda, indicando assim que o carro ela o encarava apenas como meio de transporte.

   — Hotel? — perguntou Miguel cocando a cabeça. — Hotel?

   Ele iria, se já tivesse recebido o pagamento, mas assim, dia 26, não dava. Ela era testemunha de que ele assinara a nota no Bistrô e no Jirau.

   Resolveram deixar para outro dia, não sem antes Miguel prometer que iria "pensar no caso dela com carinho". E qualquer pessoa de bom coração se prontificaria a pensar naquele problema que Linda apresentava como insolúvel:

   — Ninguém me aluga apartamento. Eu posso pagar quatrocentos por mês. Até quatrocentos e cinqüenta eu chego, mas ninguém aluga. Mulher sozinha sabe como é. Ficam logo pensando coisas.

   Quem pensasse essas coisas, pensaria certo, mas Linda não se considerava enquadrada no time em que a enquadravam. Desde um filme com a Elizabeth Taylor, a que ela assistiu em Belo, no Cine Acaiaca, que se tinha atribuído uma profissão até elegante: call girl.

   — Semana passada eu vi um apartamento que era um amor, na Rua Ihangá, mas o homem, quando soube que eu era solteira, botou areia. Ofereci três meses de depósito, mas não deu jeito.

   — Eu vou quebrar esse teu galho — prometeu o repórter com uma mão no seio dela e outra na sua coisa. — Me dá o telefone de onde você mora.

   Ela deu o telefone, e Miguel, dois dias depois, tinha descoberto que no seu edifício havia um apartamento vago. O zelador foi quem deu o serviço.

   — O 604 está vago. Está precisando de uma pinturinha, mas não é lá essas coisas. O dono está pedindo quatrocentos e oitenta, mas com uma conversa acho que ele deixa por menos. Pra quem é?

   — Minha prima — mentiu o repórter, já acostumado a isso em virtude da profissão que exercia com acentuado brilho, aliás. — Minha priminha chegou de São Paulo e não quer ficar na casa da titia. Sabe? Titia é casada de novo, e o padrasto anda querendo comer minha prima. . .

   . . .e contou uma estória tão grande que deu tempo do elevador subir e descer três vezes, com crianças, parando em todos os andares.

   — Eu tenho aí o cartão do dono. Deixa ver se eu encontro.

   Encontrou. De posse do cartão, Miguel foi ao dono e, com o pistolão do Ricardo Amaral, amigo do dono, conseguiu o apartamento ficando ele, Miguel, como fiador.

   Fiança assinada, chaves entregues, Linda veio para o Edifício Águia Negra. Tinha tão poucos móveis que ninguém notou a mudança, um motivo a mais para explicar que só agora, na reunião dos condôminos, ficavam sabendo da sua existência. E, assim mesmo, graças à denúncia do Dr. Habib para quem ninguém teve a feliz lembrança de pedir uma salva de palmas. Ele merecia.

  

   — Ela tem que se mudar em setenta e duas horas — ladrou o 704 que era, como você pode observar, um chato de galocha.

   — Eu acho muito, setenta e duas horas — ganiu o 1002. — Dá quarenta e oito horas e rua com ela. É muito boa! Minha mulher subindo e descendo com uma prostituta.

   — Tem razão, Dr. Milton — mugiu o 404.

   — Um prazo de quarenta e oito horas é até bem dilatado.

   — Também acho isso — vomitou o 504.

   Por algum tempo ninguém mais falou de lixeiras, elevadores, cascudos em crianças, banhistas, tapetes furados, encanamentos podres nem coisas tão sem importância. Os condôminos pareciam gritar: Go back, Linda, num desumano coro em uníssono, que magoava o repórter, seu único defensor.

   — Isso é uma injustiça, é uma maldade. A moça não traz ninguém aqui.

   — Traz, que eu já flagrei! — relinchou o Dr. Habib, homem que levantara a verdade e agora incrementava o ódio. — Na noite em que eu fiquei na casa do Nagib vendo a luta do Cassius Clay, quando eu cheguei ela estava subindo com um rapaz cabeludo.

   — Não seria o meu filho? — admitiu o 1102 com uma pontinha indisfarçável de um orgulho idiota.

   — Não — explicou o Dr. Habib —, não era o seu filho. Era um cabeludo comum, desses que cheiram maconha.

   E continuou, sem notar que o repórter sorrira

   — e fora o único a sorrir, pois ninguém mais ali parecia saber que maconha não é coisa a ser cheirada.

   — Quando ela me viu ficou dessa cor. O cabeludo escondeu a cara, ficou olhando pra parede. Eu também não disse uma palavra. Nem comentei com a minha mulher, porque a Sarah, vocês conhecem, faria um escândalo.

   — E com razão.

   — Claro.

   — Quem não faria?

   — Certíssimo.

   — Fez muito bem.

   — Então — disse o síndico querendo acabar aquela reunião por já estar na hora da sua novela — ficamos assim: damos um prazo e ela que se mude.

   Não houve argumentos que contornassem a situação. Se era legal ou não, deixou de importar; se tinham ou não este direito, muito menos. Uma semana depois a pouca mudança de Linda era transportada por um caminhão Dodge 1948, para outro apartamento cem cruzeiros mais caro.

   Miguel foi, novamente, seu fiador, e dela se fez amigo. A princípio, porque acabou amante.

  

   Linda já não era call girl e até já admitiam (ela e Miguel) alguma coisa mais séria em suas vidas. Miguel já podia pensar nisso porque, além da revista, escrevia umas fotonovelas e esse dinheirinho extra estava aplicado.

   Eram namorados. Não raro se flagravam de braços dados como os velhos casados de muito a quem tanto criticavam, chamando de caretas. Um namoro bonito, de beijos no cinema, como os de idade menor; de sorvete único, tomado a dois, como se usa nos idílios que ele escrevia para as revistas. Tudo bacana, para os dois.

   Uma noite, depois do cinema de hábito, resolveram voltar para casa caminhando. Ainda não moravam juntos, mas ele chamava o apartamento de Linda de "lá em casa", e ela gostava que fosse assim.

   — Vamos pela Barata Ribeiro — ela pediu num tom que ele aceitou como ordem. Preferia ir pela Nossa Senhora de Copacabana, vendo nas vitrines as coisas que nunca compraria, mas ela pediu

   para ir pela Barata Ribeiro, lá iam os dois. Era um modo de reviver um passado não distante, mas doído. Essa perspectiva fê-la contar coisas que Miguel não sabia. O começo daquela vida errada, os lugares por onde andara, as casas de mulheres que freqüentara, o desgosto que tinha e o amargo que sentia, cada vez que por imposição da dona e obrigação da profissão era forçada a deitar com um homem. Pararam um instante defronte ao Edifício Águia Negra. Colocavam pastilhas na velha fachada.

   — Pelo menos agora tomaram vergonha e estão arrumando esta pocilga — falou o repórter com vontade de cuspir.

   — Sabe, Miguel, eu não gostava de morar aqui.

   — Nem eu. Tanto que você mudou, eu mudei em seguida. O prédio é cheio de galho, muito enguiço.

   — Não falo por isso, que eu não ligava pra essas coisas. É que, durante todo o tempo em que eu vivi aquela vida, só uma vez não consegui, como é que eu vou dizer, só uma vez um homem não. . . me ajuda, Miguel.

   — Só uma vez um homem brochou — ajudou Miguel, meio a contragosto.

   — É isso. Só uma vez. E quando aconteceu isso, eu me senti culpada. Poxa. Eu me senti tão velha. Aquele homem quase estraga a minha vida. Pensei em morrer, te juro. Olha, foi aquele.

   Entrava no prédio o Dr. Habib, novamente síndico do Edifício Águia Negra.

  

   APERTEM OS CINTOS E NÃO FUMEM

   — O avião das dez e meia está no horário? — perguntou o homem de japona ao funcionário da Ponte Aérea, sem poder esconder o desejo de que não estivesse.

   — Não, senhor — respondeu secamente o empregado da ponte, um japonês paulista.

   — Então, eu viajo amanhã — agradeceu o homem de japona, rodando nos calcanhares para voltar ao táxi.

   — Viaja hoje — seguiu o rapaz da companhia aérea, segurando a japona do homem a ponto de o impedir de andar.

   — Hoje, como, se o avião. . .

   — O das dez e meia não vai sair, mas às dez e meia vai sair o das nove que não pôde sair no horário, porque o campo estava fechado — explicou o nipônico de Osasco.

   — Eu não tenho nada a ver com o avião das nove — tentou livrar-se o homem da japona, exibindo, com ar de vitória, o seu bilhete de viagem.

   — Veja aqui. Está claro como água: vôo das vinte e duas e trinta.

   — Isso não interessa.

   — Se não interessa, pra que escrevem aqui?

   — desacatou o homem que não queria viajar.

   — Questão de rotina — disse o nissei sem nada explicar.

   — Essa Ponte Aérea está a mesma bagunça de sempre. Está uma verdadeira esculhambação! — bradou o homem.

   — Está, não! — reagiu o funcionário, numa bela defesa das empresas pras quais trabalha. — Está, não. É! É, faça-me o favor.

   — E que importa a diferença do verbo — inquiriu o homem que por seu gosto a aviação acabava.

   — Minha obrigação é resolver os problemas aeroviários e não os aeronautas ou gramaticais — sentenciou o japonês. — Me dê o seu tíquete.

   — Não dou! — replicou o passageiro, com as mãos nas costas e o bilhete nas mãos.

   — Estou pedindo por bem — avisou o japonês, já soltando a esferográfica no chão e pousando os óculos no balcão.

   — Quero que você se rale. O tíquete é meu e vai ficar comigo. Eu só viajo no avião das dez e meia. Tem? Não tem, que você mesmo disse. Então, eu vou pela Cometa.

   — Olhe, meu amigo — acalmou-se o funcionário da Ponte Aérea, buscando um acordo amigável. — Eu estava aqui no balcão trabalhando quieto (e escondeu um livrinho de palavras cruzadas), o senhor chegou e me perguntou o quê?

   — Perguntei se o avião das dez e meia ia sair — disse o homem da japona.

   — Nan-nan-nan-não. Lembre melhor. Lembre melhor — solicitou o aeroviário. — O senhor perguntou se o avião. . . lembrou?

   — Lembrei. Se o avião das dez e meia estava no horário. E o senhor — subiu a voz o homem — me respondeu que não. Ou é mentira?

   — Não, não é.

   — E como é que vem querer, agora, que eu viaje?

   — Porque (quantas vezes tenho que explicar?) às dez e meia vai sair o avião das nove — repetiu estremunhado o funcionário que, apesar de japonês, não tinha a tradicional calma oriental.

   — E o que é que eu tenho com o avião das nove, amigão? Se eu quisesse viajar no avião das nove, eu ia na agência da Libero Badaró — como fui — e marcava no avião das nove. Se eu marquei no das dez e meia, é porque (vê se entende!) só ME INTERESSA o DAS DEZ E MEIA — gritou o homem de japona já sem a japona.

   A situação não caminhava para um desfecho razoável, pelo menos, nos próximos dois meses. Os dois tinham razão: o homem que se apegava a qualquer motivo para não viajar, e o funcionário que, para justificar seu salário, buscava uma maneira da Ponte Aérea não perder aquele passageiro.

   — Acho melhor chamar o gerente — opinou o funcionário, sentindo-se e declarando-se incapaz de resolver a querela.

   — Chame quem você quiser. Pode chamar o próprio Santos Dumont. A mim, vocês não pegam mais. Eu dei a chance. Fui na agência, marquei a passagem, fiz a mala, vim. . . colher de chá, eu dei. Agora, se vocês não têm competência pra me meter num avião, azar o de vocês.

   — Um momento — pediu o funcionário, afastando-se um metro e meio, para chegar ao gerente que escutara tudo, fingindo nada ouvir, e o convidar a participar da tertúlia. O gerente chegou num sorriso aberto, um sorriso de nove da manhã após noite bem dormida.

   — Diga, diga, cavalheiro.

   — Quem é o senhor? — questionou o ex-futuro passageiro.

   — Sou o gerente — afirmou.

   — Prove. Mostre a carteirinha de gerente. Gerente, em aviação, só aceito com a carteirinha. Está documentado? — desacatou o antiaéreo cavalheiro da japona no braço.

   — Carteira eu não tenho — confessou o gerente, fingindo um sorriso gerencial, mas sem conseguir esconder a humilhação que sofria pela falta de documentação.

   — Então, meu santinho, acabou o papo. Tome o tíquete e passe pra cá o meu dinheiro de volta — encerrou o cara.

   Foi quando o alto-falante soltou a antipática voz do locutor do aeroporto de Congonhas:

   — PASSAGEIROS DA PONTE AÉREA, VÔO DAS VINTE E DUAS E TRINTA. . .

   — Ouviu? Ouviu? — perguntou, exultante, o nipo-brasileiro. — Escutou? vinte e duas e trinta, ouviu o cara falando? É o seu. Confira o seu bilhete. Pode conferir. O que é que está escrito aqui?

   — Vinte e duas e trinta — confessou o passageiro, num fio de voz.

   — E o locutor, o que foi que disse? — matou o moço da Ponte Aérea.

   O locutor repetiu, sem ninguém pedir.

   — . . .VÔO DAS VINTE E DUAS E TRINTA. . .

   QUEIRA DIRIGIR-SE AO EMBARQUE. PORTÃO NÚMERO 1.

   — É o seu vôo, cavalheiro — indicou o gerente, num sorriso gozativo e vitorioso.

   — Quem disse? — tentou o homem.

   — O locutor — seguiu o gerente, apontando largo para onde deveria estar localizado o microfone por onde o locutor falava.

   — Que locutor? Que locutor?

   E o homem da japona, japona num braço, passagem no bolso, saiu pelo aeroporto aos gritos, à procura da sala onde trabalha o locutor.

   — Locutor, como? Cadê a carteirinha? Só vou se ele mostrar a carteirinha de locutor. Que locutor? Ele está documentado?

   Viajou pela Cometa, cujo ônibus bateu num barranco na altura de Barra Mansa.

  

   DEPOIS DA REVOLUÇÃO

   O cartão de visitas garantia laconicamente: Manfredo Duque Passos — artista. Não fora ele, Manfredo, quem o mandara imprimir, mas seu pai que assim resolveu num momento muito comum aos pais que teimam de escolher as carreiras que os filhos jamais seguirão.

   — Quando meu filho crescer vai ser advogado — foi a frase que mais disse o pai do meu mecânico e o que ele advoga hoje é a sua própria causa, quebrando o carburador ao remendar o distribuidor, garantindo, deste modo, a volta do freguês. Não fosse ele um mecânico brasileiro. E o pai do mecânico, ao errar a futura carreira do filho, nada mais fazia do que juntar seu erro aos milhões de erros já cometidos pelos pais que fazem questão de se meter onde não são chamados.

   — Meu filho será médico — ouviu muito do pai um revisor de jornal que conheci na casa de uma moça cuja mãe dizia que a filha (a moça, no caso) seria professora, sem jamais saber que as aulas que a filha viria a dar não seriam de geografia, mas de uma matéria que os colégios não ensinam ou, se ensinam, pelo menos não consta do curriculum escolar. Jamais viria a saber, porque a mãe da filha, conte-se em adendo, morreu de apoplexia — como os personagens de Eça — num dia em que o Fio fez um gol

   de pênalti. A velha torcia pelo Flamengo e o coração não resistiu. A filha, no entanto, não deixava de ser uma mestra na matéria a que se propusera ensinar. E faturava uma nota sentida sem precisar ficar sentada numa cátedra ou de pé atrás de um balcão. Ao contrário. Sua posição era bem mais cômoda, apesar do peso, em músculos masculinos, que lhe cabia suportar. Há muito dessas coisas e há bastante tempo. O pai de Einstein garantia que ele seria farmacêutico, e o de Parke Davis que ele seria ator. O pai de Betty Davis assegurava que ela seria escritora, e o de Pele, que ele seria engenheiro. Claro que os gols que Pele arquiteta não são suficientes para dar ao querido Dondinho o direito de dizer que acertou, nem as fórmulas matemáticas de Einstein podem vir a ser aviadas na Farmácia Santa Clara ou congêneres.

   Há filhos que tentam agradar ao pai, ajudando-o o possível na sua previsão. "Meu pai quer que eu seja médico", pensam, e, em vãs tentativas de fazer com que o desejo do pai seja realizado, tentam e tentam. Esta é a razão pela qual há os que fazem vestibular, inclusive para a Faculdade de Barra Mansa, que nem sei se já existe.

   Foi o que se deu com o dono do cartão de visitas de quem agora tratamos. "Meu filho vai ser artista", adivinhou o velho Passos com uma convicção íntima tão determinada que até mandou imprimir os cartões na gráfica de um amigo, na Rua do Senado, e os entregou ao Manfredo no dia dos seus anos.

   — Tome — dizia com a caixa dos cartões embrulhada em papel de presente — o presente do seu primeiro fã.

   Isto contrariou muito a mãe de Manfredo que não via no filho nada que indicasse a possibilidade de um dia se tornar artista.

   — Passos, você tem a mania de forçar sua opinião. Você pensa que ser artista é assim? — reclamava num sussurro Dona Valentina, mãe do futuro astro.

   — Se o Walter D'Ávila é, por que o Manfredo não pode ser? — respondia o velho Passos, dono do olho clínico. — Artista, Valentina, qualquer um pode ser. Ao Manfredo ser um dentista ou outra coisa, prefiro que seja artista. Já viu o dinheiro que artista ganha? O Oscarito é um. O Grande Otelo é outro. Grande Otelo não é artista? De cinema, até? Então, o Manfredo também vai ser.

   Os exemplos não podiam ser piores. Neste país de noventa e cinco milhões de habitantes não há quinze que possam ter a veleidade de pretender chegar ao ponto que chegaram D'Ávila e Otelo. Mas ao velho Passos importava a opinião do velho Passos.

   Manfredo Duque Passos fazia, naquele dia, vinte e dois anos e de lá para a frente se virou. Fez e desfez, tentou e procurou o quanto lhe permitiam as forças. E o talento, porque, para ser artista, um pouco de talento não faz tanto mal assim. Tinha parado o estudo em meio ao primeiro ginasial e, para obedecer à previsão paterna, largou o emprego na lojinha de consertar rádios e, com a subvenção do velho Passos, pôs-se em busca do lugar ao sol no mundo da arte. A frase não chega a ser tão ridícula quanto sua pretensão.

   Tentou o rádio — mas não tinha a fotogenia necessária; fez teste no teatro — onde não resistiu aos doses; andou pela televisão — mas cadê a expressão corporal? No bale (foi aluno de Wilma Vernon) tirou zero em dicção. Caminhou pelas coxias de circos e tentou ser feito nas conchas (acústicas). O cinema o renegou como diretor, argumentista, roteirista, dialogador, iluminador, câmara e contra-regra, profissões que, nos filmes do Herbert Richers, são ocupadas, todas elas, pelo mesmo Victor Lima. Fez teste como diretor de produção — porque há filmes, creiam, que são produzidos. Fez curso de comunicação na PUC, onde, ao receber pela terceira vez a comunicação de que fora reprovado, desistiu.

   Pobre Manfredo. Já tinha os cabelos crescidos e a barba por fazer; já enxugava seu chopinho no Zepellin — como convém — e discutia Bergman nos bares da moda. Já surrara o suficiente sua calça Lee, com uma modesta ajuda de água sanitária, e a camisa Levi's (leia-se Li-Vais) de colarinho puído e punhos propositadamente desabotoados, completava o tipo exigido pela insensata porém doce previsão paterna.

   O velho Passos, em Aparecida do Norte, fazia, a cada domingo, uma oração mais fervorosa em favor do Manfredo, começando, já, a desconfiar da força da santa solicitada, e nada de sair o nome do filho, mesmo nas revistas especializadas. "O menino tem talento", repetia aos amigos, num tom que mais parecia de súplica por uma concordância. E mandava, pelo correio, mais uma mesada ao incompreendido Manfredo em quem ninguém via o talento recôndito que lhe adivinhara o pai. Talvez por se tratar de um talento recôndito demais.

   As mesadas pararam de vir com a morte do velho Passos. A falta de dinheiro obrigou Manfredo a sair para outra. Teve que se empregar e o que conseguiu foi um lugar numa gráfica da Rua do Senado onde o proprietário, amigo do velho Passos, em vida, mandou que ele "fosse ficando por aí pra depois ver o que podia fazer".

   As amizades conseguidas nos meios artísticos não foram desprezadas e quando um desses amigos soube que Manfredo trabalhava numa gráfica, exultou. Havia uns prospectos que precisavam ser impressos. As gráficas procuradas recusaram por se tratar de um assunto um pouco vermelho demais para o gosto dos proprietários. Mas com a ajuda do Manfredo bem que isto seria facilmente solucionado. Faziam reuniões na casa de um professor de química, de idéias encarnadas, e Manfredo foi convidado para uma delas. Quando viu do que se tratava quis tirar o corpo mas ao lhe ser acenada a possibilidade de, com a causa ganha, lhe ser dado um papel num filme que fariam, topou.

   Na calada da noite, com a direção artística de Manfredo e a participação efetiva de um linotipista procurado pelo DOPS, OS panfletos foram rodados e, no dia seguinte, distribuídos. Não era uma coisa dentro da lei, mas o que um filho faz por um pai, Deus perdoa. Deus, sim; restava saber se o governo participava desta opinião.

   — Este negócio dos panfletos pode dar um rolo pro meu lado — lamentava-se a um companheiro de papo. — Numa dessas, descobrem que eu ando metido nisso e. . .

   — Que rolo? Que rolo? Não tem galho nenhum — garantia o amigo. — E o filme? Sem os panfletos, não tem grana para o filme, meu chapinha — lembrou Peixotinho, o amigo.

   Falar no filme era o modo mais certo de calar Manfredo.

   O tempo passou para nós e para o Manfredo. Já estava casado, de casa montada em Rocha Miranda, com novo emprego, mais manso e mais lucrativo, numa editora, já cortara os cabelos e aparara a barba, deixando apenas um cavanhaque bem-posto que lhe dava um jeitão de Floriano Peixoto. Foi quando aconteceu a revolução. Ele, naquele dia, mantinha uma neutralidade absoluta. Ouvia os noticiários e lia os acontecimentos no jornal com irrestrita isenção de ânimos. Aí, o telefone tocou.

   — Alô — disse Manfredo e repetiu o número naquele monocórdio habitual. A voz, do outro lado da linha, não passava de um sussurro pânico.

   — Manfredo? Não fala, escuta só. Aqui é o Peixotinho.

   — Que Peixotinho?

   — Não fala. Escuta só — insistiu a voz que se elevou para a frase, antes de voltar ao quase murmúrio. — Os homens sabem de você.

   Manfredo não entendia nada e muito menos Dona Magali, sua esposa, que, vendo televisão, bordava, num travesseiro de neném, as iniciais do filho que esperava para daí a dois meses (se fosse menino seria Manfredo, se fosse menina, Marina — que lhe permitia aquele M. P. que bordava).

   — Que homens? Diz direito. Não sei nem quem é você.

   — Deixa de se fazer de besta. Eu sou o Peixotinho, teu amigo. Ou vai dizer que esqueceu de mim, do Partido, dos panfletos? Os panfletos que você — repetiu só para o castigar — que VOCÊ imprimiu? Esqueceu? Esqueceu?

   Tinha esquecido, mas agora lembrava de tudo. A entrada escondida na gráfica, o linotipista míope e de português errado, o texto do panfleto incitando o povo às guerrilhas, o medo que o tomara de assalto, lembrava de tudo, inclusive de ter comentado com o próprio Peixotinho o seu temor e dele ter ouvido frases e mais frases tranqüilizantes. Tentou sair de tudo já com a testa molhada por um suor gelado.

   — Peixotinho, eu não tenho nada com isso.

   — Como é que não tem? Você foi o homem-chave no negócio dos panfletos. Se não fosse você não tinha panfleto — acusou Peixotinho num grito sem metal. A voz do ex-amigo lhe doía. Era como se cada frase, cada palavra, valesse uma estocada. — Não fala, escuta só. Os homens estão com mais de dois mil panfletos apreendidos. Sabem tudo. De mim, do Felinto que escreveu o texto, do Gabriel, que distribuiu, de você, que comandou.

   — Eu não comandei nada.

   — Não fala. Escuta, só.

   — Mas eu não comandei coisa nenhuma. Eu fiz um favorzinho a vocês, em troca de um papel no filme.

   — Que filme?

   Manfredo já estava sentado. Dona Magali já estava em pé. O bordado já tinha sido posto de lado e ela já segurava o ventre. A casa de Rocha Miranda • já estava envolvida por uma atmosfera irrespirável. Peixotinho ia em frente.

   — Eu, por mim, vou dar no pé. Arranjei um amigo que vai me levar para o Uruguai. Estou te telefonando porque sou teu amigo.

   — Peixotinho, eu estou casado. . .

   — Não fala. Você está é caçado, meu chefe. Quando os homens querem encontrar, encontram mesmo. Teu nome está na lista, que o Erasmo soube. Um amigo dele que é do lado dos homens deu o serviço. Tem gente à beca na lista e o teu nome é o primeiro.

   — Meu filho está pra nascer.

   — Dá sumiço na tua mulher. Manda ela pra casa da mãe e você, também, dá um jeito de se mandar. Descobre um buraco por aí e te enfia nele até a coisa esfriar.

   — Peixotinho. Foi pelo filme.

   — Fala em filme de novo eu me encho, ligo prós homens e digo onde você está. Que filme é esse?

   — Você não lembra? O Olegário, quando me pediu para imprimir esse negócio, prometeu que, em troca.. .

   — O Olegário já entrou.

   — Como?

   — O Olegário já foi preso. Pegaram ele num apartamento da Galeria Menescal. Acho que foi o Olegário quem deu o serviço completo para os homens. E tem mais. Não fala. Escuta, só.

   Manfredo nem quis mais escutar coisa alguma. Deixou o telefone caído, de onde se filtrava aquela voz opaca, passou pela mulher sem dizer uma palavra, fechou-se no banheiro e vomitou quinze minutos marcados.

  

   Ninguém mais abriu as cortinas naquela casa de Rocha Miranda. Dona Magali saía às sete da manhã para fazer as compras necessárias e racionadas e antes das oito estava de volta. Não se sabia de Manfredo nem a ele se via. Se os vizinhos perguntavam, Dona Magali tinha preparada uma resposta que dava com a naturalidade que, se Manfredo tivesse, teria sido o artista que o velho Passos desejava.

   — Cadê Seu Manfredo, Dona Magali?

   — Em Curitiba, a negócios.

   E voltava à casa onde Manfredo, trancado no quarto e escondido sob os lençóis, tiritava de frio. Uma febre intermitente que o atacava às seis da manhã e ficava num vaivém mortífero até o anoitecer. O rádio, ligado na Nacional, era escutado sem parar.

   — É agora que falam de mim — pensava a cada intervalo comercial. Pensou em mandar retirar o telefone mas foi desaconselhado por Dona Magali a tomar essa atitude.

   — Fazer isso é quase uma confissão. Ou você tem culpa ou não tem, Manfredo.

   — Claro que eu não tenho. Fiz aquilo por causa do filme.

   — Que filme? Que filme? — perguntava Dona Magali já irritada com a citação constante de uma coisa que não era de ninguém acreditar. — Você imprimiu os panfletos porque quis. Ninguém obriga ninguém a coisa nenhuma. Você era do Partido mesmo e agora quer me convencer do contrário.

   Manfredo sofria pelos dois lados. Os homens que certamente estavam em seu encalço e o descrédito da mulher. A saudade e o respeito que tinha pelo pai falecido deram lugar a um ódio crescente. Quando se lembrava do panfleto, ligava este ato de subversão ao filme, do filme à previsão do velho Passos e aí quase gritava:

   — Velho filho da égua.

   — Que palavras são essas, Manfredo? — estranhava Dona Magali desligando o rádio por um momento.

   — Se não fosse aquele velho meter na minha cabeça essa bosta de ser artista, eu hoje não estava metido nisso.

   — E qual é a culpa do seu pai?

   — Não sei, pô. Mas minha é que a culpa não é! — respondia já ameaçando citar o filme como desculpa, coisa que conseguia evitar. — Liga o rádio, liga o rádio. Sei lá se já estão falando de mim!

   E voltava ao rádio e puxava o lençol até o rosto, deixando de fora apenas os olhos e o nariz — os olhos que não enxergaram o perigo do panfleto e o nariz que não farejara o cano em que ia entrar.

  

   Exatamente no dia 8 de maio a ferida veio a furo. Eram nove horas da noite. Manfredo estava na sala (era uma das suas primeiras saídas do quarto, desde que adoecera com o telefonema do Peixotinho). Dona Magali, deitada no sofá, nem prestava atenção ao programa que a televisão exibia — sem som, para não chamar atenção dos vizinhos e, principalmente, dos homens. Não deviam faltar muitos dias para a chegada do Manfredinho ou da Marininha. O nascimento da criança era a única coisa certa a acontecer naquela casa. No mais, a dúvida. Manfredo, de olhos fundos e dentes que pareciam ter crescido, pelos quinze quilos que perdera, era um espectro. A calça franzida nas costas, pelo cinto que já mudara de furo quatro vezes, lhe dava uma aparência de palhaço.

   — É o que eu sou, um palhaço. Um palhaço, no circo da vida — filosofou com uma lágrima no canto do olho.

   Os passos na calçada pareciam nascer na sua cabeça. A casa sem jardim, porta e janela mesmo na rua, era uma inimiga tão grande quanto a expectativa que o matava aos bocados.

   — Quando o neném nascer... — puxava um assunto Dona Magali, tentando tirar o marido daquele drama.

   — Quando ele nascer eu já estou na ilha Grande — cortava Manfredo puxando um centímetro da cortina da janela onde enfiava o olho para espreitar a rua.

   — O doutor falou que ele nasce antes do dia 15. Hoje é dia 8, falta uma semana, o mais tardar.

   Ela falava, ele olhava pelo buraquinho da cortina. Por esta razão, ela não entendeu nada. Ele vislumbrou, no escuro da rua pouco iluminada, dois vultos. Assim, de longe, pareciam ser dois homens fardados. Dona Magali olhava o plafoniê fechando e abrindo um olho, fazendo desenhos imaginários com a luz que transferia de um lado para o outro, apertando a pálpebra.

   — Acho que o meu parto. . .

   Os vultos estavam mais próximos. Trinta metros, por aí. E eram dois militares. Caminhavam de um modo tão marcial que Manfredo sentiu um frio que lhe subia da espinha.

   — Dona Haydée, do 27, disse que vai comigo pra maternidade, porque ela pensa que você está em Curitiba e que. . .

   Os militares eram um capitão e um subtenente. Pararam a uns cinco metros da sua casa e deram as costas para a janela por onde se insinuava apenas um olho, através de um buraco de dois centímetros quadrados.

   — Se tiver que fazer cesariana, eu faço, ora, porque...

   Os homens consultaram um cartão que tiraram do bolso e olharam em volta. Pararam o olhar na casa dele. Manfredo fechou a cortina às pressas, procurou o ar e reabriu. Viu os homens caminharem decididos em direção à sua porta.

   — ...e me garantiu que dois dias depois eu já posso trazer o neném. Se for mesmo assim, acho. . .

   Bateram na porta. Dona Magali levantou e foi abrir. Eram mesmo um capitão e um sub tenente.

   — Boa noite. É aqui a casa do Sr. Manfredo Duque Passos? — perguntou o capitão, de olhar fixo e forte.

   — Sim, senhor — respondeu o fio de voz de Dona Magali. — Podem entrar.

   — O Sr. Manfredo está?

   Escutou-se o barulho. Manfredo, empurrado pelo medo, caiu no que pensava ser um colapso, envolvendo-se, no tombo, no cortinado que desabou sobre seu corpo. Dona Magali correu para o marido, acreditando-o morto. O capitão, que não entendia bem o que se passava, apressou-se a explicar sua presença:

   — É que meu sogro vai abrir uma gráfica e soube que o Sr. Manfredo tem prática desse serviço,

   que já administrou uma. Foi o dono de uma gráfica na Rua do Senado quem nos indicou. Disse que foi amigo do pai dele e que. . .

   Dona Magali tentava reanimar Manfredo que, desacordado, descansava sob e sobre um cortinado ciclâmen. E urinado.

  

   SILÊNCIO, HOSPITAL

   Nos primeiros tempos de casamento ele aparentava uma saúde de ferro mas, de uns anos pra cá, mostrava-se tão frágil, tão suscetível às doenças, que Dona Belinha, sua esposa, intranqüilizava-se cada vez mais.

   — Qualquer coisinha o Pirilo hospitaliza-se — choramingava às amigas. — Tão frágil, tão doentinho. . .

   E assim era. Por um simples sintoma de gripe ou resfriado, o Pirilo pegava um pijama, escova de dentes, pente e chinelos, metia-os numa maleta branca e hospitalizava-se.

   — O que é que você tem, Pirilo? — perguntava a esposa preocupada, vendo o marido fazer a mala para mais uma ida à casa de saúde.

   — Nada, minha velha.

   — E se não tem nada, por que você vai para o hospital, Pirilo? — insistia Dona Belinha, mais preocupada do que nunca.

   — Com saúde não se facilita. Não tenho nada agora, mas estou esperando uma gripe de uma hora para outra.

   E se internava por quatro, cinco dias. Proibia as visitas e não aceitava flores ou maçãs. "Se eu morrer, não quero ninguém no velório. Na doença e na morte, longe os parentes", era a teoria que defendia e a que a família obedecia.

   — Chama-se isso de hipocondria — explicou um médico a quem Dona Belinha secretamente visitou.

   — Hipocondria?

   — É uma ansiedade habitual relativa à própria saúde — decifrava o médico. — É muito comum, um caso assim. Há pessoas que não vivem sem tomar remédio. Seu marido é um caso desses. Só que em estado mais grave, porque ele chega a ir para o hospital. Mas não se preocupe. Os hipocondríacos são os que vivem mais.

   — Isso pega, doutor? — inquiriu Dona Belinha, quase desejando que sim, para poder acompanhar o marido, de quem sentia muita falta, durante os dias de nosocômio.

   — Pegar, não digo, mas quem convive com um hipocondríaco, sendo de espírito fraco, pode-se contagiar por esta mania.

   E ela muito rezava e pedia que lhe fosse dado este contágio.

   — Belinha, traz a mala.

   — Pra onde você vai, Pirilo?

   — Vou-me hospitalizar.

   — O que é que você está sentindo?

   — Hoje, fazendo as unhas, tirei sangue da cutícula. Isso pode infeccionar, dar tétano, gangrenar, sei lá. Com saúde não se brinca.

   E, de mala branca na mão e infalível chapéu preto à cabeça, lá ia o Pirilo para o Hospital dos Estrangeiros, onde tinha conta corrente (pagava por semestre) e apartamento quase fixo.

   — O apartamento de sempre, Sr. Pirilo? — perguntava a enfermeira, como se aquilo fosse um hotel.

   — Não. Desta vez quero um no terceiro andar, com vista para a encosta.

   E por uma semana, muitas vezes, curtia o seu hospitalzinho, de camisola e tudo, com exames de pressão arterial, termômetros sob a axila, colheita de urina, sangue, fezes, escarro, etc. Uma semana depois, sentindo-se recuperado, voltava ao seio da família, dizendo-se outro homem.

   Ao mesmo tempo em que os filhos cresciam, desenvolvia-se a hipocondria do Pirilo, que se internou pelos motivos mais burlescos, de tão banais: furúnculo, cisco no olho, mau jeito no braço, aerofagia, topada.

   A conselho médico a mulher nem tocava mais no assunto, tentando meter na cabeça do marido que ele não sofria de coisa alguma ("Isso pode piorar, porque ele fica irritado e. . ."). Ao ver Pirilo chegar e entrar em casa sem tirar o chapéu preto, a mulher já sabia que era caso de hospital. E, por conta própria (disso o médico não teve culpa), já até colaborava com a hipocondria do marido.

   — Não está passando bem, Pirilo?

   — Ainda bem que você notou. Hoje arrotei duas vezes, depois de tomar uma Coca-Cola. Faz a mala.

   E o pijama, com pente, chinelo e escova de dentes, era enfiado na mala branca que Pirilo conduzia ao Hospital dos Estrangeiros, onde era mais conhecido do que muitos dos médicos que lá operavam ou davam plantão.

   — Terceiro andar, para a encosta?

   — Segundo andar, de frente.

   — 214 — informava a enfermeira, dando-lhe a chave.

   Tantas foram as vezes que Pirilo se internou que, ultimamente, já ia sozinho da portaria para o quarto. Ir uma enfermeira com ele para quê, se ele conhecia os corredores e apartamentos mais do que a maioria delas? De hospital, ele dava aula. E era um custo para aceitar a alta do médico.

   — Pode ir embora hoje, Sr. Pirilo.

   — De jeito nenhum. Antes de quinta-feira ninguém me tira daqui.

   — Mas o senhor já está bom. Os gases. . .

   — Os gases acabaram, mas. . . e essa unhazinha?

   — Que tem a unha? — perguntava o médico, segurando-lhe a falange do pé que Pirilo lhe exibia.

   — Repare na unha, veja bem.

   — Está bem.

   — Ora, doutor, enganar ao Pirilinho? A unha está encrava, não encrava. Antes de quinta-feira eu não saio, a não ser que a unha se resolva.

   De tanto Pirilo se ausentar para os hospitais, apareceu um arquiteto desquitado com ótimos planos e projetos para Dona Belinha com os quais ela concordou, de tanta distância que já sentia do marido hipocondríaco.

   Saiu ganhando, pois amava agora um homem formado, enquanto Pirilo continuava amante de uma ajudante de enfermeira do Hospital dos Estrangeiros, que um dia dava plantão no terceiro andar, de frente para a encosta, no outro dia no segundo andar, de frente para a frente...

   Os hipocondríacos merecem cuidados!

  

   EPISÓDIO MÉDICO-TURÍSTICO

   O Dr. Pestana era um médico da maior competência. Dos que nunca foram ao pau (nem no terceiro ginasial) e que, no vestibular de antigamente, tinham passado sem susto.

   Cursara a Faculdade da Praia Vermelha, e há quem afirme ter feito curso de aperfeiçoamento em Rochester, na famosa Clínica Mayo. Isto quer dizer que se o Dr. Pestana falasse que alguém estava com amebas, o cliente podia economizar o dinheiro do exame de fezes, porque o que ele tinha eram amebas.

   O Dr. Pestana, com um n apenas, falava e dizia muito mais acertadamente do que o Mário Vianna, com dois nn. E foi o próprio Dr. Pestana quem afirmou, numa frase curta e dolorosa, ao cliente seu amigo:

   — Careca, é câncer.

   Agora, digam se isso é modo de se dar uma notícia! Mesmo que fosse falando de assunto astrológico, essa frase, dita assim a frio, tem o mesmo efeito que um chazinho de formicida ou um delicioso refresco de napalm.

   É verdade que o Dr. Pestana tinha a maior intimidade com o Careca, amigos que eram de jornadas turfísticas, na tribuna especial, e aventuras a muitos numa garçonnière alugada em comum na Galeria Alaska. A intimidade dava ao Dr. Pestana o direito de chamar o Careca de meu chapa, meu faixa, gente boa, amizade, etc, mas eu me recuso a aceitar que ele usasse esse companheirismo de bacanais e hipódromos para nocautear o Careca com uma frase tão desumana:

   — É câncer, meu nego.

   O Careca tremeu mais do que pudim em prato de cego. É que ele sabia que o médico, ao dizer isto, não falava em tom de Omar Cardoso. O câncer em apreço era o próprio: o caranguejo — que em lugar de andar para trás, como fazem normalmente, obrigam a que nossa vida o faça. E o Dr. Pestana ainda completou, com a conhecida frieza médica, aquela indisfarçável e inagüentável indiferença vestida de branco:

   — Eu digo porque sou teu amigo.

   Que Deus me livre desses amigos sinceros e que me reserve, sob o ponto de vista médico, apenas os mais mentirosos. O Careca, em louvável coragem, ainda conseguiu perguntar:

   — Você tem certeza, Pestana?

   — Oh, Careca. Você acha que eu vou te enganar?

   — Não é que você vá me enganar, mas. . . câncer?

   — Tá falando com ele.

   — Mas câncer que você diz é. . .

   — . . .é câncer. O bichão. Eu falo por amizade.

   Essa alegação de amizade na hora errada é que mais irritava o Careca. Nenhum amigo tem o direito de tirar a vida de um amigo, principalmente alegando amizade. É certo que o câncer não fora produzido pelo Dr. Pestana — ele apenas o descobrira —, mas, na opinião do Careca, esta revelação servia como parceirada.

   — Pestana, como é que você me arranja um câncer desses?

   — Calminha. Eu não tenho nada com o teu câncer.

   — Como é que não? Eu venho aqui, na maior boa fé, e você me fulmina, dizendo que eu tenho câncer.

   — Mas, oh, Careca, seja razoável: se é câncer o que você tem, o que é que você quer que eu diga? que você tem pedra na vesícula?

   — Não é isso, é que. . .

   Careca não sabia explicar. O que ele queria dizer é que o Dr. Pestana não tinha a menor necessidade de lhe dizer aquilo. Ele poderia falar, por exemplo, que se tratava de uma úlcera. Úlcera também é chato, mas, úlcera é assim como uma falta fora da área: dá direito à barreira. Podia ser até tiro indireto, que preocupava ainda menos. Câncer, não. Câncer é pênalti com o Pele chutando e o Paulo Mendes Campos no gol.

   Isto, era o que o Careca achava. Só que o Dr. Pestana pensava diferente. Se era amigo, tinha que ser sincero. Estava apenas fazendo um bem ao seu colega de acumuladas e mulheradas.

   — Adivinha quanto tempo você tem de vida, Careca.

   — Três anos — arriscou o Careca a medo.

   — Tá de porre. Seis meses, e olhe lá — disse o Dr. Pestana cortando a dele.

   — Seis meses? Meio ano?

   — Porque eu sou teu amigo. Se você fosse um desconhecido, isso caía pra uns quatro. . . cinco, estourando.

   Careca, estático, pálido como os sacristães, sentiu aquela tremida interior. Agüentou nos calços mas, convenhamos, era muito macho pra continuar de pé, porque a noticiazinha era de lascar. Ainda pensou: "Seis meses. . . vinte e quatro semanas. . . cento e oitenta dias... é de fufa".

   Realmente, isto modificava radicalmente os planos que o Careca tinha feito para o futuro. A Copa do Mundo, na Alemanha, já era. Como Copa do Mundo — pensou — se mesmo o campeonato nacional podia ser riscado da agenda. Em seis meses não nasce uma criança, não se constrói uma casa, não se sabe pra onde vai o Tostão, não dá fruto um mamoeiro. Não acontece nada em seis meses, e seis meses era tudo que lhe restava.

   — Você não está enganado, Pestana?

   — Oh, Careca. Se eu te digo que o cara tem câncer, é câncer o que ele tem. Lembra do Veloso? Falei que ele tinha cirrose. Do que foi que o Veloso morreu?

   — Cirrose — admitiu o Careca.

   — É isso aí. Eu manjo — gabou-se o Dr. Pestana.

   Houve, por um minuto, uma silenciosa pausa de aproximadamente uma hora. E o Careca entendeu. "Foi melhor assim. Se ele me enganasse, o câncer me pegava pelo pé e eu perdia meus últimos seis meses. Assim, pelo menos, eu posso mandar uma brasa nesse tempinho que me sobra." O Careca entendeu. E não tinha mesmo outra saída. Murmurou uma pergunta como na derradeira tentativa de conseguir uma resposta diferente, a seu favor:

   — Meio aninho, né?

   — Daí pra menos.

   Que amigo, meu amigo! Louve-se, no eminente Dr. Pestana, a tranqüilidade de ferro. Jamais um câncer fora tratado assim. Dir-se-ia mesmo que se tratava de um câncer especial, um câncer-gripe, um câncer-cólica, um câncer-espinhela caída. E o Dr. Pestana informou a residência da peça com a naturalidade de quem dá um endereço.

   — É no estômago.

   — Escuta, Pestana, e se operar. . .

   — Não dá, Careca. Vai por mim que eu sei o que estou falando: seis meses, e olhe lá.

   Careca preferiu até mudar de assunto, sair dali antes que com suas perguntas e argumentos tivesse reduzidos seus seis últimos meses para três ou dois — como se o Dr. Pestana (formado na Praia Vermelha e confirmado em Rochester) tivesse o poder de aumentar ou diminuir o tempo de vida de cada um, coisa que só é permissível aos táxis e aos cigarros — principalmente sem filtro. Careca ainda sussurrou um inaudível "muito obrigado", antes de sair. Não tinha o que agradecer, pensando bem.

   Sabedor da limitação de sua vida, Careca fez o que lhe pareceu mais certo: contar tudo à mulher e aproveitarem, os dois, o que lhe restava de dias. Aliás, nessa altura, ele já contava diferente.

   — Ester, estive com o Pestana. Estou bombardeado.

   — Úlcera?

   — Bota úlcera nisso.

   — O quê?

   — Siri. O sirizão me pegou pelo pé.

   — O quê?

   — O crustáceo, minha santa.

   — O quê?

   Dona Ester, realmente, não entendia, razão pela qual só perguntava "o quê?"

   E o Careca, apesar de ser dono de um, evitava dizer a palavra. É que na sua família não se dizia esse nome. Quando alguém estava com câncer, dizia-se de todos os modos, menos o óbvio. Mas como o câncer estava tão avacalhado pela indiferença do Dr. Pestana, Careca atreveu-se, afinal, a mencionar o nome do bruto.

   — Câncer, Ester. Não morou ainda? Estou com câncer no estômago. Olha o tamanho dele! — e fez uma circunferência com os dedos, num exagero de pescador.

   Dona Ester gemeu um "não acredito", já acreditando. E o Careca embalou.

   — O Pestana examinou, radiografou, apertou aqui — doeu paca, e o negócio é esse: pitu.

   — Osvaldo, você está brincando.

   Osvaldo (o Careca tinha nome apesar de apenas Dona Ester o chamar assim) afirmou, confirmou, reafirmou, ameaçou ligar para o Pestana para que o Colombo do seu câncer viesse testemunhar. Tendo o câncer acreditado pela mulher, declarou então sua intenção — que era, de fato, o último desejo, a derradeira pretensão a que tinha direito:

   — Vou vender tudo que tenho.

   Não deixava de ser uma decisão inteligente. E útil. Vendeu as ações da Belgo-Mineira que possuía, torrou a vila de casas em São Cristóvão, o apartamento onde morava (Viveiros de Castro, esquina de Prado Júnior), livrou-se do seu carro, passou adiante os oito táxis que tinha na praça de sociedade com o gerente do Drugstore da lagoa, transformou em dinheiro seus móveis, imóveis e automóveis, enfim.

   Dona Ester, com emprego no INPS e ainda uma pensão que recebia do pai (fingindo continuar solteira), concordou com tudo. E, ainda que não tivesse meios de sobreviver sem a ajuda financeira do Careca (né Osvaldo Heitor dos Santos), concordaria. O dinheiro apurado na queima geral foi para o banco, unindo-se ao economizado, e a soma daquele capital acumulado o Careca já sabia onde aplicar:

   — Vamos fazer uma volta ao mundo.

   Dona Ester, ponderada como todas as mulheres de cancerosos, ainda se permitiu uma observação:

   — Não é melhor pegar esse dinheiro e tentar uma operação nos Estados Unidos?

   A observação procedia porque, na opinião dos doentes, na América morre-se menos ou, pelo menos, demora-se mais a morrer. Imagino — pelo que me é dado observar — que se morre primeiro em Bananal, em Feira de Santana demora-se mais um pouco, no Rio, quase se sobrevive, e nos Estados Unidos a morte é quase proibida. Mas para o Careca isso não tinha a menor valia.

   — Que Estados Unidos! Eu não te disse o que o Pestana falou? Não tem jeito.

   — Mas o Pestana é uma coisa, e os Estados Unidos. . .

   — O Pestana fez curso nos Estados Unidos, Ester. O que eles lá souberem, o Pestana também sabe.

   — Mas os recursos, Osvaldo. Os recursos são outros.

   Essa possibilidade dele viver, que Dona Ester levantava, parecia que irritava o Careca, já agora de interesse muito mais dirigido à viagem.

   — Que recursos? Ester, bota a cabeça no lugar. Marcus Welby existe na televisão. Fora da televisão, qualquer médico de lá sabe tanto quanto o Pestana. Lembra do Veloso? O Pestana falou que ele tinha a cirrose. Do que foi que o Veloso morreu? Tu sabe, que tu foi no velório.

   — Cirrose.

   — É isso aí. Ele manja.

   Dona Ester declarou-se convencida de que o Osvaldo Careca estava certo. Seis meses. Vinte e quatro semanas. Cento e oitenta dias. Quatro mil trezentas e vinte horas. Uma volta ao mundo era, mesmo, uma pedida legal.

   — Já que eu vou pra cucuia, pelo menos aproveito esse restinho de tempo.

   Convenhamos que o Careca não estava dando um fim errado ao dinheiro que juntara. Lembra do filho do Red Skelton? Ele iria dar a si próprio o que Skelton dera ao filho. Seria um autopresente.

   — Mereço ou não mereço?

   Parecia o Chacrinha perguntando se o auditório queria bacalhau. A mulher respondeu com presteza maior do que a do auditório:

   — Mereeeece!

   Felizmente, Dona Ester tinha direito a uma licença-prêmio. E os dois se mandaram. Com passagem de ida e volta, mesmo apenas um tendo certeza do segundo tíquete da Pan American.

  

   Por onde o Careca andou só a Camilo Khan imagina. E sem fotografias, porque não queria que a mulher guardasse nenhuma lembrança da viagem camicase.

   Uma curtição. Museus, palácios, restaurantes, boates, touradas, neve, deserto, sol, fog. Careca e senhora aconteceram e tiraram um sarro total. De vez em quando ele dizia: "vê bem, porque depois dessa, nunca mais!" o que a mulher cortava com uma frase típica das futuras viúvas:

   — Não fala assim, Osvaldo. Deus é grande.

   Careca sorria, como se o tamanho de Deus fosse incomparável ao do seu siri. Sem dizer palavra, apenas fazia, com os dedos, a circunferência do que imaginava ter o diâmetro do câncer do Pestana. Nessa altura o câncer passou a ser chamado como "o câncer do Pestana", como homenagem ao seu descobridor.

  

   Estavam em Madri, penúltima etapa da viagem que terminaria em Lisboa. Era uma tarde de sol, na Plaza de Toros. Don Diego Puerta fazia suas verônicas e manolentinas, enfrentando um toro dei toril de Don Juan Faguncio, quando Careca sentiu a primeira grande dor.

   Dores pequenas ele já as sentira na Praça Vermelha, na Via Condotti, no Chelsea, Place du Tertre, Catedral de Milano e outros lugares de menor importância. Mas dor grande, dorzona mesmo, aquela era a primeira. Nem viu Diego Puerta ser premiado com rabo y pata. A dor era tão intensa que ele chegou a escutar uma voz que parecia dizer:

   — Osvaldo Heitor, é chegada a hora.

   E a hora era chegada. Estava demorando. Já fazia cinco meses e picos que dava uma de turista. O Pestana era mesmo um cobrão. Para quem entende, seis meses são seis meses. Careca decidiu pelo lógico:

   — Vamos cancelar Lisboa. Chegou a hora — disse à mulher na chegada ao hotel na Puerta dei Sol.

   — Osvaldo... — murmurou Dona Ester sem brilho nos olhos — o que é?

   — A patinha do siri está cocando o esôfago.

   — Oh, Osvaldo. . .

   Puxa vida. Diante do que o marido dizia, aquele "Oh, Osvaldo" reticencioso ainda foi uma longa frase, um interminável período.

   — Vamos cancelar Lisboa. Quero morrer no Brasil.

   Para chegar antes, Careca conseguiu trocar sua passagem da Pan Am por um vôo uns dias mais cedo da Swissair e veio morrer no seu canto.

   As malas não traziam maiores contrabandos. Afinal, a viagem era de recreio e o dinheiro não podia ser desperdiçado em Old Bond Street ou ruas semelhantes. Não demorou na alfândega mais do que duas horas. Voltou para casa de táxi. Para a casa da sogra, porque seu apartamento (Viveiros de Castro, esquina de Prado Júnior) já estava habitado, nessa hora, pelo produtor de televisão que o comprara há cinco meses e já devia quatro prestações.

   Na casa da sogra, Careca, sempre educado, só teve tempo de se desculpar:

   — Perdoe, Dona Alberta, ter de morrer aqui. É que o hospital é caro e. . .

   — Ora, Osvaldo, fique à vontade.

   Belo gesto de Dona Alberta. Ah, se todas as sogras fossem assim compreensivas!

   Penteou-se (porque os Carecas são os únicos que usam pentes), vestiu um pijama de seda chinesa, rezou o ato de contrição — aprendido no tempo em que cursou o admissão no Zaccaria —, deu um beijo frio na mulher e deitou, já de mãos cruzadas sobre o peito, como que para dar menos trabalho depois da morte.

   Pelos seus cálculos não faltavam mais do que oito dias. Cento e noventa e duas horas. Onze mil quinhentos e vinte minutos. Já contava os minutos e breve contaria os segundos.

   A luz do lustre foi ficando opaca, um começo de escuridão veio chegando, um perfume de éter pareceu tocar-lhe as narinas, um sono diferente o fez adormecer (dormitar definiria melhor), e Careca apagou.

   Está vivo até hoje, absolutamente teso, morando de favor na casa da sogra e não conheceu Lisboa.

   Pois.

 

                                                                                            Chico Anisio

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades