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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O BISTURI MÁGICO / Frank Slaughter
O BISTURI MÁGICO / Frank Slaughter

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O BISTURI MÁGICO

Parte I

 

Há homens, há classes de homens que dominam o comum do rebanho: o soldado, o marinheiro, e, muitas vezes, o pastor; raramente o artista, mais raro ainda o homem de Igreja; o médico, quase sempre...

Tem o médico uma generosidade tal que só é possível aos que praticam uma arte, nunca aos que exploram um comércio; a discrição e o discernimento, postos à prova por mil e uma dificuldades e perplexidades; e - o que é mais importante uma alegria e uma coragem particulares...

Robert-Louis Stevenson

 

Taumukappa desempenhava nesse dia as funções de hospedeira em presença da classe que, no dia seguinte, ia receber os diplomas de fim de estudos no Colégio Médico (2) de Lakeview. O cheiro do tabaco e do álcool e a natureza das conversas tornavam pesado o ar. O ensino médico não comporta qualquer curso de delicadeza mundana ou de conversação e não inclina quem o recebe nem às graças da linguagem, nem às suas ternuras, nem à sua subtil leveza. Um grupo pouco musical elevou vozes inspiradas pela cerveja e fez ouvir, com a mínima suavidade possível, o Sing, o Singl

- a romança de Lydia Pinkham.

Entraram dois retardatários: um volumoso irlandês de guedelhas ruivas, abundantes e desordenadas, olhar sagaz, e um rapazola moreno, menos maciço que o companheiro, mas compacto, musculoso, espadaúdo, que, sobre um corpo de atleta, trazia o rosto cansado de um sábio. Saudaram-nos exclamações de boas-vindas, e de vários sítios os convidaram ao mesmo tempo para uma meia dúzia de mesas:

- Tim Brennan! Ih! Ran Warren! Dêem lugar ao grande homem! Cerveja para aqui, para este jovem cortador de tripas, para o quase doutor Warren!

Pee Wee, assim chamado por causa da sua aparência anafada, das duzentas libras de bom peso e da voz esganiçada, agitou uma garrafa.

- Eh, senhores! Por aqui! Guardámos-lhes dois lugares!

com os ombros, Ran Warren abriu caminho para si e para o amigo. Alguém lhes estendeu canecas de cerveja. De um gole, Tim bebeu mais de metade da sua.

- Eh lá, seu beberrão! - admirou-se Harter. - Aí está ela, a verdadeira preparação para uma existência de frugalidade e de nobres pensamentos!

- Pois sim! - concordou o irlandês com gravidade. - Mas amanhã tudo isso pertencerá ao passado e nós... nós seremos doutores em Medicina, tudo o que há de mais doutores em Medicina!

- Discípulos de Galeno, legítimos e com todo o direito - confirmou Harter. - Que sensação lhe dá isso, Ran?

- Uma sensação esquisita - respondeu lacònicamente Warren.

- Lembre-se do caminho iminente - aconselhou Tim. - Levá-lo-ia quase a pensar que sabe alguma coisa, se não soubesse tão bem que nada sabe, a não ser que pertence a um grupo de ignorantes.

- Pode-se sempre emoldurar a pele de burro e oferecê-la aos olhares do querido e velho público - notou alguém.

- Deus o abençoe! - rosnou Tim. - Que faríamos nós sem este querido e velho público, sem as suas queridas dorzinhas de barriga a dois dólares por cólica?

- Olhem, vejam acolá o Prather a provar e a saborear a respeitosa admiração dos seus benjamins preferidos!

com o olhar, indicava Ran um homem de mais idade no meio dum círculo de estudantes. O único comentário de Tim foi uma exclamação zombeteira, mas prolongada.

- Não o tomariam pelo chefe mexicano em pessoa? Ele próprio se esquece de que não é mais do que um assistente vulgar, com mais cunhas do que cérebro. É pouco civilizado, ainda por cima!

- Quantos de nós estaremos fora de trabalhos daqui a cinco anos? - perguntou lugubremente Paul Talbot.

Preparava-se para a carreira de médico missionário, mas, no decorrer dos estudos, não tinha vivido lá muito à altura deste ideal.

Durante alguns momentos, o improvisado coral afogou as conversas nos acordes duma velha canção dos estudantes de Medicina:

 

Quando lá na mesa a tua anatomia

Se estende, eu para o ar, visível a todos,

Estás bom para a prostatectomia.

 

Distraiu os espíritos o “pum!” impressionante duma rolha de champanhe.

- Quem é que se dá ao luxo?

- O Larry Wilson. E é uma das grandes!

- É o que eu chamo um homem com o pé na escada.

- Oh!... O devasso médico das senhoras elegantes de Washington... - disse Brennan.

- Está bem, Tim. Não insista! - advertiu secamente Ran.

- Bom. Se assim quer... - murmurou o irlandês. - Mas é um mulherengo, nascido, criado e lançado no mundo com um físico tal, que se pode dizer que a coisa não lhe sai cara.

- Se eu tivesse o aspecto dele, a sua natureza calorosa e dada ao amor, orientar-me-ia para o exército ou para a marinha. O mulherio é doido por fardas! - concluiu Talbot.

Pee Wee arrancou a sua massa ao sofá em que se encaixava:

- Quem vai ao bailarico do Clube das Enfermeiras? Ando com ideias de lá aparecer.

- Então eu vou consigo - anunciou o missionário.

- Que pensa dele? - perguntou, ao vê-los partir juntos, Trask, homem de boa situação, à espera dum lugar na clínica Mayo. - Dele, quero dizer, do Harter.

Responderam simultaneamente duas ou três vozes:

- O tipo mais porreiro do curso!

- Oh! A popularidade, ao que vejo - disse Trask, desdenhoso. - Neste sentido, não esperava nada dele, e de resto não o pretendia. Queria eu dizer: como valor profissional?

Tim insistiu:

- Bem vê, não se obtém a popularidade do Pee Wee sem merecer. Tem qualquer coisa a seu favor, este rapaz.

- Personalidade, concedo.

Ran interveio:

- Carácter. Acima de tudo, carácter. Não é um génio. Precisa de muitas canseiras, para lá chegar. Mas, à força de estudo e de trabalho, vai lá. Tem... como se diz?... - Procurou os termos que lhe fugiam: - Tem... uma profunda sinceridade de alma. Não é esta a frase exacta, mas é o que eu quero dizer. Instalar-se-á numa pequena cidade e aí será muito mais útil do que muitos garotos que se julgam dez vezes mais fortes do que ele, por causa das suas notas. Você não, Trask. Sei que você não tem inveja dele. Mas não compreende o seu tipo.

- Talvez tenha razão.

- Um pássaro que, pela minha parte, eu não compreendo

- observou Tim - é o nosso futuro mensageiro do Evangelho junto dos pagãos.

- É curioso o que o ensino médico lhe faz! - comentou Ran. - Lembra-se de como ele era quando veio daquela Escola Presbiteriana Azul do Domingo, que se intitula Colégio, lá no Oeste?

- Se me lembro! - disse Tim. - Se alguma vez houve um Cristóforo em nome do mundo, era decerto ele. Simplesmente, foi sol de pouca dura. Há-os a quem isso toca assim, bruscamente.

- O que é que você acha que pode tê-lo feito descambar?

- Não sei. Talvez as horas, esta grande liberdade da noite. Talvez porque aqui ninguém se preocupa com saber se eles continuam ou não no caminho estreito e recto. Não há muitas virtudes artificiais num sítio como este. Bebemos o nosso licor e dormimos com as nossas mulheres; desde que os estalidos do colchão não incomodem os vizinhos, ficam todos encantados!

Sugeriu então um membro do Círculo:

- Essa cabra da médica que cá temos bem ajudou a desemburrá-lo. A certa altura, andava mesmo perdido por ela.

- Deixe-a fora do diagnóstico - aconselhou Trask, com voz seca.

Recomeçou mais brandamente, enquanto Tim piscava o olho para Ran:

- O rapazinho não era capaz de aguentar, é o que é.

- Perdeu o sentido das medidas e das proporções - precisou Ran. - Quase todos nós tínhamos iniciado já a nossa carreira, antes de virmos para aqui. Tínhamos experiência. Ele não. A ele, a descoberta atingiu-o em cheio e fê-lo vacilar.

- Mas acha que ele se sairá bem?

- Pode ser que sim, pode ser que não. Pode fazer-lhe bem, torná-lo mais humano, mais compreensivo - disse Tira.

- Mas também pode ter-lhe entrado no sangue, para nunca mais sair. Não deixa de ter os seus perigos adquirir uma religião demasiado cedo e uma experiência demasiado tarde.

- A verdade é que, na carreira de missionário, a gente sabe para onde empurra a árvore de pão e donde vêm as compotas - disse Ran. - Está garantido sobre fome. Por pouco o invejaria.

Tim aconselhou, pacificamente:

- Não fale antes de tempo! Quem nos diz que daqui a alguns anos não havemos de estar todos a trabalhar para o governo, fazendo um pormenorizado relatório de três páginas, em triplicado, todas as vezes que dermos um comprimido de aspirina?

- Acha - perguntou Trask - que o médico de hoje se preocupa ainda com a ética que o velho Hipócrates nos legou?

- com certeza. Em parte nenhuma você encontrará mais importante percentagem de corajosos e laboriosos realistas do que na profissão médica. Suando e penando dia e noite quase sempre, e muitas vezes ganhando menos do que um mecânico, menos decerto do que se tivessem abraçado a engenharia ou a advocacia... Mas as pessoas não escolhem o médico pelo que ele vale. Escolhem-no pela maneira de apertar a mão ou de passar a bandeja das esmolas na igreja.

- Pareceria lógico, todavia - disse Ran - que cada qual quisesse saber da formação e das capacidades do médico a quem se entrega.

- Não se corre o mais pequeno risco de que assim seja. Quanto melhor te vestires, quanto mais gentilmente apertares a mão à mulher que te vem contar como está nervosa, mais depressa colherás os frutos do teu labor, sejas tu médico ou cirurgião. E, se quiseres realmente triunfar na vida, dá-lhe pancadinhas nas costas, murmurando: “Então como está?” Rapazolas como o seu amiguinho Larry Wilson, Ran, têm a técnica espontânea, inata, congénita.

Mas Ran objectou vigorosamente:

- Sentir-me-ia um perfeito imbecil se me pusesse a... a dar pancadinhas nas costas das mulheres!

- Mal estiver no banho, meu filho, você perguntará a si próprio se, de qualquer maneira, não é completamente imbecil. Mas isso não deve abatê-lo: há inúmeras compensações e você vai encontrar um punhado de homens extraordinários que dedicam a vida a conservar a medicina à altura, com exactidão, ou que, pelo menos, fazem por isso o que podem. Dê ao paciente quanto tiver de melhor, faça escorregar com um pouco de óleo, e chegará onde pretende.

Num grande bruaá, animava-se, elevava-se o tom das conversas. Dumas e doutras ouviam-se frases soltas. Na mesa vizinha, alguém dizia:

- Um caso sério para o Alec Porcher, seja como for!

De longe, Ran informou-se:

- Que lhe aconteceu?

- Esgotado!

Tim evocou então uma recordação:

- Lembra-se da resposta que ele deu um dia que o Paddy Ryan - Deus abençoe os seus veneráveis favoritos! - pedia ao curso um exemplo de instabilidade psicológica? A voz do Alec Porcher ergueu-se, toda aflautada: “Um homem entre dois copos, tentando enfiar uma agulha durante um tremor de Terra”. O Paddy riu tanto que é capaz de ter rebentado todos os botões!

Doutra mesa, onde se discutia animadamente, ergueu-se uma voz lastimosa:

- Ora! Que vão para o diabo o Stokoff e todas as suas aldrabices!

- O crânio mais ricamente mobilado de toda a América!

- Seja. Mas não é caso para se ser arrogante ao mais pequeno erro dos outros!

- Por isso ele não o é. Se você lhe mostrar qualquer coisa que valha a pena, ele é espantoso. Mas, se quiserem dar graxa e andarem sempre a brincar durante o curso, vão ter com o Crittenden.

,- O Crittenden é um génio!

- O Crittenden é o génio do rendimento: anda no encalço do dólar! A mais pequena inflamação na língua dum milionário, e este filho da... tira-lhe tudo pela raiz, e a nota de cinco mil dólares chega-lhe no correio da manhã. Cancro, chama ele a isso. Ora! Cancro dos meus... Eu cá me entendo!

- Que é que você sabe a esse respeito? Passa o tempo a lamber as botas do velho Stoky!

- Alto! Nada de grossarias, nem de zaragatas!

- Isto está-se a tornar muito gasoso, aqui - disse Tim a Ran. - Ponhamo-nos ao fresco.

- De acordo. Mas para onde vamos?

- Porque não havemos de ir ver as enfermeirazinhas nas suas inocentes brincadeiras?

- É pouco demais para mim. Não há tempo para mulheres.

- O quê? Mulheres não?

- Oh! Não tenho nada de misógino, mas ando com o espírito demasiadamente preocupado para me ir dar ares.

- Perfeito! Será muito mais duramente atingido, quando isso vier - prometeu Tim. - Eu, olhe: as minhas glândulas endócrinas funcionam com tanta regularidade como uns intestinos bem condicionados. Vou apanhar no ar uma enfermeirazinha e ver até onde levou ela a sua prática. Não lhe fará mal nenhum seguir o mesmo caminho... De resto, que fica você a fazer daqui até ir-se deitar?

- Bem. Concordo. Mas você fala deste baile como de algo que se parece com um sítio de recrutamento, com uma casa de passe!

- Oh, de maneira nenhuma! Tão confortável e decente como o Inferno. Não. Eu sou muito optimista!

Ao chegarem ao limiar da Fraternidade, viram, apressado, um colega que não participara de nenhuma das festividades da noite.

- Olá, Ike! Porque é que não tem estado lá dentro?

O outro parou, incerto, erguendo para eles um rosto delgado e sensível:

- Não faço parte desta roda.

’- E isso que tem, hoje? Eles achá-lo-iam no seu perfeito lugar. Perguntaram vários por si - disse Tim.

- Então venha, Ike - insistiu Ran. - Venha, que nós voltamos consigo para a sala.

- Não, sinceramente, não.

Nos olhos negros de Ike havia um pouco de melancolia, mas também um pouco de provocação:

- Obrigado, à mesma. Vê-lo-ei no dia 1 de Julho, Warren.

- Lá estaremos. Felicidades.

Miraram a silhueta que se afastava:

- Não é cómico, no fundo, ser judeu.

~ Há judeus e judeus - disse Ran. - Em todo o curso, não há tipo mais dotado do que ele.

- Sim. Nem por isso hâ-de encontrar na prática menos antagonismos, diversos e variados. Espero que possa aparar os golpes sem recuar. Um tipo engraçado, apesar de tudo, em certas coisas. Acha que ele tem vergonha de ser judeu?

- com certeza que não. Até se orgulha disso. Mas sofre por saber que, na casa, alguns dos inferiores, é claro o desprezam. Que sentiria você, no fundo de si mesmo, Tim, se fosse desprezado e repelido por uma coisa contra a qual nada pudesse?

- Rebentava-lhes as goelas - respondeu Tim, com simplicidade.

- O Ike está a estagiar na ginecologia; já isso devia testemunhar a seu favor: de todos os serviços do hospital, é o mais difícil de se lá entrar.

- Você está a fazer o seu estágio em cirurgia: isso não é nada! Você, e o Pee Wee, e o Ike Steinert, e o Larry Wilson, todos designados por Lakeview. Feliz reunião de família. Como eu gostava - e Tim suspirou - como eu gostava de ter trabalhado mais! Mais um bocadinho. Ou então de estar um pouco menos preso. Poderia aterrar ao mesmo tempo. Enfim... Vamos!

A vasta sala do Clube do Bairro das Enfermeiras estava repleta de raparigas em vestido de noite e homens em trajo também de noite, em fato completo, ou com o uniforme de serviço. No seu fato pesado, quente, brilhante nas costuras, Ran sentia-se deslocado.

- Vá à frente e trate de aproveitar - disse ele ao colega. - Eu vou escolher um sítio para fazer ofício de corpo presente.

Como um meteoro passou Larry Wilson, entregando-se com habilidade a sábias evoluções, na companhia duma jovem, miudinha e transparente, cuja agilidade igualava ou talvez ultrapassasse a dele. No momento em que volteavam à sua frente, Ran sentiu uma impressão de encanto e vida, à passagem dos cabelos de um cobre escuro e dos olhos castanho dourado, que se detiveram nele um momento, para irem pousar mais longe, numa indiferença total. A boca era grande e alegre, sólido o modelo do rosto. Emanava dela um aroma de juventude e alegria. Ran perguntava a si próprio se teria a sorte de lhe ser apresentado.

- Nada má, hem?

Era a voz sardónica de Trask, junto dele. - Quem é ela?

- Uma enfermeira de fora, creio eu. Não lhe conheço o nome. Cronologicamente, o último dos bateres de coração do Wilson. Conte com ele para esgotar o número mais sensacional de todos.

Verificou Ran, não sem surpresa, que o seu interlocutor trazia um fato de cerimónia:

- Não sabia que você é uma borboleta mundana, Trask.

Os olhos pálidos deste observavam pormenorizadamente a multidão. Ran compreendeu e sofreu por ele. Estava ali para ver Sybilla Barr. A Dra. Sybilla Barr. Era, pelo menos, o que ela seria no dia seguinte, visto que receberia o seu grau ao mesmo tempo que eles, tendo mantido até ao fim um nível de estudos mais que mediano, única médica entre eles. O entusiasmo de Trask pela alta, brusca e linda loira tinha sido fonte de muita e indecorosa alegria para todos os impenitentes. Vigiara-a, resolvera-lhe os problemas, ajudara-a nos passos difíceis, e ela absorvera tudo com tranquila aceitação, bom humor fácil, suas qualidades particulares. Que ela lhe tivesse ou não testemunhado - e provado - gratidão, era assunto que ficara no vago, aberto a discussões, objecto de muitos debates. A alta Sybilla, roufenha e sanguínea, era, em matéria de moral sexual, uma anarquista convicta. Todavia, as relações amorosas que lhe haviam divertido e variado a carreira situaram-se sempre em plano de tal franqueza, honestidade e simples querer bem, que nem os colegas nem a Faculdade jamais a ridicularizaram ou desonraram. Pee Wee Harter fora um dos seus apaixonados aceites, e, por pouco tempo, talvez igualmente Talbot, o missionário em germe. Tim Brennan tentara a sorte, mas ela respondera-lhe: “Não, Tim, você é um colega demasiado distinto para que eu o perca!” Após o que se instalaram em plano de sólida amizade. Em conversa, falara-se de um membro muito capaz da Faculdade, o qual lhe propusera casamento, mas a quem ela tratou com radical indiferença. De modo nenhum tentavam Sybilla os viscosos e pesados laços do matrimónio; era inteiramente partidária da independência, além do intenso trabalho de cardiologia. De todas as fêmeas - vocábulo que se usava sem qualquer sentido pejorativo, apenas por oposição aos machos da espécie - que com sua graça haviam florido os estudos, era ela a que deixara nos colegas impressão mais forte, provavelmente por ser a mais atípica.

Uma interrupção da música deixou à frente de Ran e Trask um par de bailarinos. Trask dirigiu-se à rapariga, fazendo-lhe ardentes perguntas. Ran apanhou no ar o nome de Libby.

- Ela não veio mesmo, esta noite?

- A Sybilla? Não. Nem sei mesmo para onde pode ter ido. Estou certa de que há-de vir.

- Assim o espero.

Ela mandou-lhe um sorrisozinho, cheio de compreensão e compaixão. Entretanto, Ran observava-a pormenorizadamente. Emanava dela um calor calmo. Os seus cabelos cinzentos, tranquilos, afastados, eram dominados por uma fronte lisa, já por si encimada pelas vagas de uma cabeleira mais luminosa pelo brilho do que pela cor. Trazia um vestido cinzento, ao qual a inexperiência de Ran não soube dar o verdadeiro valor, que era elevado. A voz leve e clara acrescentava-lhe à linguagem uma nota de puritanismo, um tudo-nada de preciosismo. Trask, notando o interesse de Ran, apresentou-lhe o colega, que apanhou de novo o nome de Libby e percebeu, desta vez, que era apelido.

- Não é daqui, pois não, Miss Libby?

- Eu? Sou. Vivo em Baltimorc.

- Quero dizer aqui. Não é estudante?

- Não.

~ Posso ir buscar-lhe qualquer coisa? Um gelado? Uma limonada? Não penso que haja algo mais forte.

- Há: chá gelado. Era o que me convinha.

Pouco depois, encontravam-se sentados lado a lado.

- Você é que é Randolph Warren?

- Sou.

Olhou-a interrogativamente.

- Ouvi a Sybilla falar de si.

- A Sybilla Barr? É sua amiga?

- Prima em segundo grau. Gosto muito dela.

- É muito simpática. E vai ser uma excelente médica.

- É o que ela diz de si. Pensa que você há-de ir longe. A menos que...

- A menos que...

- A menos que escorregue nos seus próprios princípios e parta uma perna...

Enviou-lhe um sorriso, fitando-o nos olhos com perfeita franqueza, e concluiu:

- Na verdade, não sei mesmo porque é que lhe conto isto.

- É muito amável, Miss Libby.

- Mrs. - rectificou ela. - Mrs. Frances Libby. Há um “ex” no meu passado.

Ele ficou surpreendido ao ouvi-la acrescentar:

- com certeza que lhe hei-de contar a história um dia destes.

De excelente aspecto, vestido com gosto, com o seu mais alegre sorriso na face, chegou Larry Wilson:

- Mrs. Frances! - exclamou ele. - Porque a não teria eu visto mais cedo? Não sabia que conhecia este velho Ran. Vai dançar a próxima comigo? Conto com ela.

- Não. Danço com o Dr. Warren. Tenho muita pena. Não vê nisso inconveniente? - perguntou a Ran, enquanto Larry se afastava com um gesto de constrangimento.

- É que eu sou um dançarino perigoso... - advertiu Ran.

- Então podemos sentar-nos a conversar. Ou prefere ir-se sentar e ficar a pensar sozinho?

- Está a troçar de mim?

- Não. Mas parece-me ser um sujeito que se governa às mil maravilhas apenas com a companhia de si próprio.

~ É uma forma de vaidade, não acha?

- Espero que não - respondeu ela, gravemente. - Eu própria sou assim.

- E de que coisas que lhe interessassem poderia eu falar? - inquiriu ele, em voz alta.

- Das pessoas. Há alguma coisa mais apaixonante?

Percebeu que ela conhecia grande número dos seus condiscípulos. Senão explicitamente, parecia ao menos implicitamente que tinha vagas relações com o estabelecimento, ainda que não conseguisse deslindar quais e nem sequer o perguntasse. Era fácil conversar com ela, ouvinte atenta; até os seus comentários eram breves, ao mesmo tempo astutos e plácidos. Divertiu-o uma observação que fez a propósito de Larry Wilson:

- Dá à mulher a sensação de ser caça perseguida.

- O Larry é um dos meus melhores amigos.

- Sim. Ouvi dizer.

Aproximava-se agora um homem de porte distinto, muito preocupado consigo, de meia idade, já grisalho nas têmporas:

- Ah, Frances!

Pensou Ran que o cumprimento era um nadinha pomposo.

- Não é seu costume estar sentada enquanto os outros dançam, pois não?

- Estou a discutir a natureza humana com o Dr. Warren, Conhece-o? O senhor Robert Mayfield.

- É dos que acabam de ser nomeados para o nosso hospital, não é verdade? - perguntou o recém-chegado.

- Sou. E o senhor é o benemérito do laboratório Mayfield?

- Na realidade, benemérito parcial. Frances, está pronta para partir?

- Estou, se você quiser.

Enquanto Robert Mayfield se virava para responder a um membro da Faculdade, Frances Libby disse a Ran, com aquela mesma tranquila convicção que já antes o intrigara:

- Penso que nos veremos outra vez.

Não se tratava de um convite para ir visitá-la. Era antes uma espécie de exploração num futuro indefinido. Quando ela pôs a mão no braço de Mayfield, para partirem, Ran tentou descobrir o que poderiam ser eles um ao outro. Primos? Tio e sobrinha? Perguntou-o a Tim. Este não sabia, mas piscou o olho:

- Interessado?

- É muito inteligente.

Encontravam-se de pé, à porta. Houve um rebuliço e entrou Sybilla Barr. Trask, que estava à espreita, precipitou-se para ela com Pee Wee Harter; Larry Wilson e vários outros seguiam-na de perto. Várias vozes perguntaram... numa só vez:

- Quem a demorou?

- Fui ver o Alec Porcher.

- Esse baboso! ~- comentou alguém. - Está desfeito, coitado.

- Já há muito tempo que ele devia ter visto que não podia passar - disse Ran.

- Nunca se sabe antes de lá chegar.

- Por isso você ficou ao pé dele, a segurar-lhe a mão para lhe conservar o moral. Hum, Syb? Isso é muito seu.

A voz de Vilson tinha uma entoação trocista. - Que eles vão para o diabo! Bem podiam dar-lhe uma probabilidade!

- De qualquer maneira, nunca poderia fazer nada de bom - notou Tim Brennan. - Foi um erro tentar.

Ela retorquiu asperamente:

- Seria médico. E foi para isso que suou, e gelou, e se privou de tudo, e se tem feito em bocados de há quatro anos para cá. Alguns de vocês não ficariam prejudicados se lhe tivessem dado a mão!

- Ele nunca nos pediu nada - respondeu Ran, indisposto.

- Ah, sim, Warren?! Isso é assim! É preciso pedir? com toda a humildade necessária, estou a ver. Lindo cirurgião que você vai ser, por esse princípio!

- Oh! Vejamos, oiça... - começou Ran, que reflectiu duas vezes e achou preferível não ir mais longe. Afinal de contas, Sybilla Barr tinha algo que lhe dava direito a criticar. Varreu o grupo com o olhar:

- Qual é o único, de todo o curso, que o visitou no tugúrio onde ele vive?

A pergunta era um desafio a todos os outros.

- Naturalmente você - admitiu Trask.

Por um momento, os olhos dele serenaram, ao fitá-la.

- Não. Antes de eu chegar.

- Talvez o tesoureiro do curso, de passagem, para recolher fundos - sugeriu Larry, que acrescentou: - Não deve ter junto grande coisa.

Sybilla lançou-lhe um olhar de desprezo:

- Um. Só um, em todo o curso: o Pee Wee Harter.

- Oh, diga! - pediram alguns. O rapaz protestava, penalizado.

- Eu estava precisamente naquele extremo da cidade...

- De visita aos avós, não era? - gracejou Sybilla.

O senhor Deveaux Padelford Harter era - todos o sabiam - o aristocrata do curso, e as suas origens tão distintas como democráticos os costumes.

-- bom, está bem. Não tinha nada que fazer nessa tarde...

- Não tinha nada que fazer!

Dirigia-se a todos os colegas a linda, alta e veemente criatura:

- É claro que todos vocês sabem como o tempo é elástico para o Pee Wee Harter, de maneira que ele não tem onde aplicá-lo. Mas, felizmente, lembrou-se de um vencido. Tentou até emprestar-lhe dinheiro. O pobre do Porcher chorou, ao contar-me isso.

- Acha que ele já estará deitado?

A voz de Tim parecia ter mudado de timbre.

- Quando o deixei, ficou a pôr os papéis em ordem. Sabe Deus porquê!

- Amanhã podíamos passar por lá, a caminho da estação, Ran.

Ran disse que sim com a cabeça e ficou ainda um momento a olhar vagamente para quem dançava, amimando a esperança inconfessa de outros encontros análogos ao que tivera com Frances Libby. Como esta esperança não se concretizou, pôs-se a considerar as suas próprias perspectivas e os seus problemas pessoais para os anos seguintes. Estes deixavam-no sem ilusões; seriam difíceis e obrigá-lo-iam a dar-se plenamente. com sóbria satisfação, reviu todos os seus trunfos. O seu corpo era duro e limpo. Estavam bem repartidas por uma ossada grande e forte as cento e cinquenta libras de peso que, após quatro anos de vida frugal e copioso trabalho, lhe restavam das cento e sessenta e cinco que tinha à partida. Desde a época em que começara resolutamente a construir o físico no colégio, este físico servira-o bem: levara-o a fazer parte da equipa de boxe; no último ano, conduzira a de futebol a lutas vitoriosas contra competidores mais pesados. A sua digestão dava para tudo. Tinha um sólido dom de sono e, fosse onde fosse e de acordo com as necessidades do momento, podia dormir um quarto de hora e acordar bem disposto, ou dar a volta a todo o mostrador, se nada o impedisse.

Examinou o espírito. Também não ia mal. Nem rápido nem brilhante, e talvez sem rica originalidade. Mas fizera tudo quanto até então lhe haviam pedido. As capacidades digestivas da sua inteligência eram idênticas às do corpo a que se unira. Do ponto de vista moral, Ran sabia que não era um santo, mas também não tinha muito que se censurar. com tempo, não o teria tentado a dissipação. Os seus raros desvios do caminho da castidade pura e simples não prejudicaram ninguém - nem a si próprio nem aos outros.

Não deixara que nenhuma das suas distracções, fossem elas de que natureza fossem, influísse sobre o seu objectivo essencial. Era característica sua nunca se preocupar com aparências. Muito admirado ficaria se, nessa mesma noite, tivesse ouvido Frances Libby dizer em casa a Robert Mayfield, entre uma queijada e um copo de cerveja inglesa:

- Como é pouco vulgar a cara daquele Dr. Warren! Aproxima-se muito da beleza.

- Sim? - respondeu negligentemente Robert Mayfield. - Achei-o muito parecido com um gato tostado ao lume!

Ora, não era o rosto de Frances Libby que assediava a memória de Ran, mas sim o daquela criaturazinha tão viva que por ele passara o olhar, sem o ver, enquanto girava nos braços de Larry Wilson.

 

Estava calor na grande sala de conferências, um destes calores húmidos e pegajosos próprios de Baltimore, em princípios de Junho. Os pensamentos de Ran seguiam o fluxo e refluxo das ondas de humidade que enchiam o edifício. O trajo grosso e escuro, de capelo bordado a verde, não tornava mais suportável a temperatura. Nem o pesado capelo. Porque não teria ele tirado o casaco antes de enfiar aquela coisa insuportável? Larry Wilson apresentava-se elegante e fresco num palm beach, enquanto ele trazia ainda o fato velho do Inverno, de alguns Invernos já; havia quatro anos que lhe era obrigatoriamente fiel, sem remissão, ao passo que Larry Wilson adquiria sempre o que existia de melhor. No Inverno, o sobretudo de Warren era tão fino que ele até tremia. Filho de senador. Bolseiro dum orfanato. Quatro anos passados a governar caldeiras, a administrar o clube onde os estudantes podiam jantar, a fazer o que calhava: bom exercício para a alma, mas difícil de suportar. Servir de “cobaia” para as experiências correntes, andar constantemente cheio de vacinas várias ou de raios ultravioletas. Passar uma noite inteira em claro, à cabeceira de uma macaca que ia ser mãe, para obter um filme no momento exacto em que ela tivesse o bebé, e passar pelo sono na altura em que se desse o facto, o que fazia quase estragar toda a história. Estudar como um perdido, com uns olhos que se recusavam a conservar-se abertos, problemas relativos à concentração dos irónios de hidrogénio. E depois de ver Larry Wilson, no regresso de certa aventura amorosa, copiar os problemas e receber modestamente os parabéns do professor. Ser, quatro anos a fio, o rebocador de Larry V/ilson, apenas por causa da amizade que tinha a este sorridente preguiçoso.

Um após outro, chegavam os membros da Faculdade, e o estrado ia-se enchendo. O verde e o encarnado dos capelos animavam com o seu brilho a aparência escura das vestes. Primeiro, o presidente da Universidade: não tinha importância nenhuma. Nunca ninguém reparava nele. Depois, o decano Withers, seguido dos grandes pretensiosos, seguidos dos pequenos, seguidos dos que não eram de todo pretensiosos. Lá estava Power, com a sua pançazinha, a que, a rir, chamava o seu cofre. Stanley, da ginecologia, de cabelos ondulados e finos traços. E o velho Paddy Ryan, que parecia a porta duma drogaria. Havia já muito que Paddy deixara de ter consideração por todos os títulos honoríficos que sobre ele pesavam. Paddy era muito boa pessoa, e a escola não contaria tão cedo com outro como ele.

Levantou-se o decano Withers. E desceu o silêncio. Sobre a multidão dos estudantes, sobre suas famílias, sobre os diplomados de todos os graus nesse dia vindos para reviver um pouco os bons tempos antigos e embriagarem-se à noite, como dantes nas fraternidades. Withers apresentou o orador, um inglês que inventara nova operação contra o cancro. Ran lembrou-se de que a haviam experimentado, na última semana, na clínica de Powers. A voz do orador, com aquele enfadonho ressaibo britânico, flutuou por sobre as filas de cabeças cobertas de barretes de magistrado, de capelos quadrados, de borlas de passamanaria.

- A profissão do médico encontra-se hoje no cruzamento...

com certeza! No cruzamento. Em cem escolas de medicina, num milhar de sociedades provinciais, erguiam-se oradores, que aclaravam a voz e colocavam a profissão do médico no cruzamento. No último ano era o cruzamento a que conduzia a descoberta da nova quimicoterapia das sulfamidas. Há dez anos, o princípio da toracoplastia. Hoje, a medicina do Estado. Mas não se podia falar da medicina estadualizada. Tinham de se contentar com o aludir-lhe, como um rapazinho contando furtivamente, por trás da meda de palha, a outro rapazinho furtivo, o que acabava de descobrir acerca dos mistérios do sexo. Se se falasse disso sem cerimónia, era-se taxado de herético. Talvez até condenado por bruxaria pela Associação Médica Americana. “Porquê continuar a girar à roda da panela?” - a si próprio perguntava Ran. Durante a última crise industrial e comercial, estivera o governo à beira de se intrometer na medicina. Na próxima, o governo teria mesmo de se intrometer. Intrometer, porque as pessoas não possuiriam dinheiro para pagar a médicos que as tratassem e os médicos não podiam viver sem honorários.

Fosse como fosse, não o inquietaria, pelo período de um ano ou até mais, o problema dos honorários. Dentro de três semanas, ia começar o seu estágio de cirurgia, que o alimentaria, vestiria de cotim branco engomado, lhe daria uma cama estreita num quarto estreito, sem contudo lhe garantir momentos certos para a gozar e nela descansar: cerca de vinte horas de trabalho quotidiano assegurar-lhe-iam estas diversas vantagens materiais, além de uma retribuição mensal de dez dólares líquidos. Após isso, se fosse um estagiário prudente e correcto, se todas as manhãs desse os bons dias ao superior com aquele trémulo respeito que era necessário na voz, e se falasse a todos os assistentes com um tudo-nada de mais deferência do que era obrigado pela sua posição, podia ter esperança de vir também a ser assistente no ano seguinte, o que lhe abriria perspectivas de dois anos ainda de trabalho, ao fim dos quais receberia o título de residente. A residência é a terra da promissão que todo o bom estagiário traz sempre debaixo de olho, muito antes de se aproximar dela: vinte e cinco dólares por mês, se se conseguir uma combinação convenientemente doseada de lacaio, mordomo e semideus.

O inglês voltou a sentar-se e ouviram-se aplausos corteses. Ninguém prestara grande atenção às suas palavras. O decano Withers levantou-se mais uma vez, segurando na mão um rolo de pergaminho desbotado: Ran sabia que era o texto do juramento de Hipócrates.

- Membros do curso que vai sair - a sua voz era espantosamente sonora para um homem tão pequeno - : nesta cerimónia da entrega de diplomas, é nosso hábito ler também o juramento que, ao longo dos séculos, chegou até nós, como a mais densa e completa expressão do código moral que liga quantos têm a profissão de médicos. Primeiramente proposto pelo pai da medicina moderna, Hipócrates, aplica-se este juramento a nós, médicos de hoje, tão bem como aos estudantes dessa remota época. Meus senhores: vamos repetir em conjunto o juramento de Hipócrates.

Em conjunto, senão em uníssono, soaram, e balbuciaram, e murmuraram as vozes: “Juro por Apolo - físico, e por Esculápio, Higeia e Panaceia, e por todos os deuses e deusas, e deles faço meus juizes, que este juramento, que é meu, conservá-lo-ei, e desempenharei as devidas obrigações, enquanto para tal tiver poder e discernimento...”

Acabara. Ran sentia grande vontade de limpar o rosto, mas era-lhe impossível encontrar o lenço, debaixo daquela pesada e negra veste. É certo que havia a grande manga flutuante, mas repugnava-lhe servir-se dela para esse fim, com receio de que estivesse com pó. Iria com bom aspecto, se se apresentasse de rosto sujo a receber o diploma de médico!

- Os diplomas vão ser entregues aos interessados pelo Dr. Charles Ryan.

Paddy Ryan levantou-se e avançou. Começou a ler os nomes duma grande lista. com afectuosa irreverência, Ran disse para consigo próprio, pela centésima vez, que ele se parecia com uma cabra mansa, com aquela sua barbicha e o grande promontório saliente do nariz.

Ia seguindo a lista, linha por linha: Arnold, Sybilla Barr, Brennan, Bukhardt, Calder, Grant, Harter, Janssen, Knight, Mund, Paterson. Mas que acontecia? Paddy começava “Alexandre Por...”, mas depois parava. Não estava lá Porcher. Ran sentiu um impulso de piedade pelo lutador magro, mal vestido, insuficientemente alimentado, de espírito indómito, cheic de originalidade, que lutara galhardamente ao longo de quatro anos contra as desvantagens da instabilidade mental e duma preparação inicial miserável, para o reprovarem à chegada.

Finalmente, Randolph Warren.

Ran levantou-se. Pensou para consigo que era estranho, na verdade, não se sentir nada mudado. Segundos antes, era Randolph Warren estudante. E neste preciso segundo escutava aquelas poucas palavras estereotipadas que faziam dele o Dr. Randolph Warren. Parecia pouco de mais, para exigir quatro anos de trabalho. Devia sentir-se diferente, mas não. Talvez isso ainda chegasse. Por agora, o certo era não sentir absolutamente nada. Quando muito, um leve desapontamento.

Waters, Laurence Wilson. Ran resistiu à tentação de estender a mão e de dar pancadinhas amigas a Larry, no alto daquela cabeça loira e ondulada. Isso é que o faria rebentar: Larry detestava tudo que pudesse recordar-lhe a sua figura. E isso explicaria talvez, em grande parte, a sua arrogância, a sua maneira de ser enfatuado. Os homens pequenos são muitas vezes levados a curvar-se voluntariamente e a pôr-se em bicos de pés, sobretudo perante as mulheres. E Larry, sem sombra de dúvida, não andava positivamente no chão durante a dança. Mais de uma linda criança perdera por ele a cabeça e até outra coisa, que achara por bem guardar com mais atenção.

Paddy sentou-se. O órgão cantou o hino da despedida. A Faculdade, em fila, deixou o estrado. Os novos médicos desceram os degraus, atrás. Para Ran quebrava-se o encanto do momento. A pesada veste incomodava-o cada vez mais. Gostou de se levantar, de desfilar, de descobrir o seu diploma na pilha de pergaminhos amontoados na mesa, cada um deles ligado ao meio pelas fitas azul e ouro. Sentiu o súbito mas urgente desejo de se ir embora sozinho. Lá fora, esperava os novos diplomados uma parentela entusiástica: irmãs e amigas alegremente vestidas, mães emotivas, pais que se esforçavam por não ostentar demasiadamente o seu orgulho. Ninguém estava à espera de Ran. Por um momento achou-se um pouco solitário, mas já havia muito que se protegera deste sentimento. O abandono, a ausência de laços, eram, no fim de contas, uma vantagem. Ganhava em contar apenas consigo mesmo. No que dizia respeito à sua competência na luta pela vida, não tinha de que se atormentar. Mas seria ele capaz de viver à altura do que de si próprio esperava? Do que o velho Paddy Ryan esperava dele, deles todos, dos que os haviam precedido, dos que haviam de se lhes seguir? Ambições nobres, tão frequentemente desfeitas, às vezes tão magnificamente realizadas.

Não havia meio de se ir embora. Esperava-o Larry, o qual o obrigara a prometer que cumprimentaria o senador seu pai. Poderia ser-lhe útil mais tarde - insinuava ele - conhecer uma estrela ascendente no céu da política nacional.

- Pai: aqui está o Ran Warren. Todos pensam que ele há-de ir longe.

O sujeito atarracado, gorducho, de pele rosada, cabelos grisalhos e cortados à escovinha, boca fácil de orador exercitado, deixou cair as lunetas na ponta da fita negra e estendeu uma pesada mão:

- Estou encantado por o encontrar, Warren. Hoje é um grande dia.

Ran tagarelou durante alguns momentos, e foi-se. O cornboio partia dentro de três horas, o que lhe dava tempo de sobra para emalar o pouco que ia levar, uma vez que, três semanas depois, estaria de regresso a Baltimore.

- Eh, Ran!

Os braços nervosos de Tim Brennan abraçaram Warren.

- Você é dos nossos, esta noite.

- Não, Tim. Tenho um compromisso de três semanas num campo de escutismo, na Carolina do Norte. O que quer dizer: comboio das quatro e quarenta e quatro.

- Não conte com isso. Quem sabe quando voltaremos a encontrar-nos? A maneira conveniente de inaugurar uma carreira cirúrgica é, está-se mesmo a ver, esterilizar-se a álcool. Confie em mim. Vá emalar as coisas, leve-as para minha casa, e garanto-lhe que há-de tomar o comboio da meia-noite, morto ou vivo, bom ou tocado. Esta noite deve ser a noite das noites.

- Combinado! Uma vez não são vezes.

A assembleia que o acolheu em casa do amigo mostrava-se barulhenta e excitada, feliz de toda a sua reacção contra a solenidade da cerimónia da tarde. Às onze horas, Tim declinou um copo.

- É preciso ficar bom e lúcido.

- Aí está uma ideia nova para você, Tim! -~ notou Ran.

- Donde virá ela?

- Acabo agora mesmo de pensar em alguma coisa. No Alec Porcher.

Ran levantou-se. Esta evocação dissipou só por si o calor do copo que bebera talvez a mais.

- Vamos! - disse ele. - Oxalá não se tenha ainda deitado.

Não havia luz nenhuma nas janelas da sinistra casa onde Porcher achara alojamento pouco dispendioso. Havia por ali restos da noite.

- Porcher!

Olharam uns para os outros. Um deles gracejou:

- Operou-se a si próprio, e bem.

- O quê? Como? Que diz você?

Era Tim quem fazia as perguntas, como se estivesse a ladrar.

- Os dois punhos e a garganta. E com uma lâmina de barbear, que é melhor. Devia-se ver o quarto. Morreu a caminho do hospital.

No carro, Tim gemeu:

- Ah! Como eu queria poder dormir esta noite tão bem como o Pee Wee Harter!

- Oh! Meu Deus! - murmurou Ran, à beira das lágrimas.

Na estação, procuraram Larry Wilson. Este anunciara com firmeza que lá estaria, que iria apertar a mão ao velho Ran, ao seu caro Ran. Mas não se via Larry era parte nenhuma. Encontrara algo de mais importante para fazer, sem dúvida. Era assim mesmo Larry. Um rapaz que se devia aceitar tal qual era. Isso pertencia ao seu encanto próprio. Fazia sempre sinceras tenções de executar o prometido. Mas ninguém devia arriscar-se a apostar que ele realmente o cumpriria. Onze e cinquenta. com todas as probabilidades, devia estar a voltar costas àquela bailarina ruiva com quem andara na véspera. Voltar-lhe-ia as costas ou não? Não: ela não parecia uma rapariga que... De maneira nenhuma... “Que vá para o diabo!” pensou Ran. Que sabia ele acerca dela, no fim de contas? Ao certo, houvera apenas uma olhadela rápida.

Em todo o caso, tornaria a ver Larry em menos de um mês e só Deus sabia quando veria de novo Tim. Não era este muito forte em promessas nem profissões de fé, mas aparecia mais ou menos sempre que, onde, quando, e como precisassem dele.

- Boas noites, meu rapaz! Não aceite moedas talsas.

- Boas noites! Se não puder ser ajuizado, seja ao menos

prudente.

Cobriam estas banalidades o sentimento, que lhes era comum, de abandono.

Ran trepou para o compartimento cheio de pó e esperava vir a ter sono. Assaltava-o a lembrança de Alec Porcher. A primeira tragédia. Quantas mais se seguiriam, quando os seus colegas enfrentassem a prova? Como resistiria ele mesmo a tal golpe do destino? Mas, graças a Deus, estava ali Ran Warren.

Mais valia não aprofundar o caso. Enquanto o comboio ia seguindo a sua barulhenta correria, Ran esforçou-se por se concentrar na própria carreira. Agora, que adquirira o diploma, sentia-se desocupado. Era um sentimento que experimentava sempre que lutava por alguma coisa e ganhava enfim. A sua vida - bem percebia - fora, desde a infância, um contínuo e perpétuo combate para ganhar algo. Luta para chegar à cabeça do orfanato. Luta para trilhar caminho ao longo dos anos de colégio. Luta pelo diploma à saída da Escola de Medicina. Dentro de três semanas começaria o estágio, e viria então a luta pela residência e pela formação cirúrgica. Depois disso, nova luta para se instalar e arranjar clientela. Tornara-se a sua segunda natureza, este perpétuo combate em busca de qualquer coisa. E aí estava como ele compreendia agora não se satisfazer com os trofeus conquistados. Haveria sempre nova batalha em perspectiva. Sempre uma nova colina, ao cimo da qual tinha de trepar.

Que dizia o velho “Powsie” Powers? Citava constantemente o ensaio de Huxley sobre a educação médica: “O degrau da escada não foi inventado para nele se descansar, mas somente para sustentar o pé do homem o tempo necessário para ele pousar o outro pé um pouco mais acima”. bom evangelho, esse!

Ran tinha a ambição sã e normal de triunfar. Mas, acima e para lá dela, desejava servir um ideal, ainda imperfeitamente formulado, mas que sentia no seu fundo e estava de acordo com uma frase pronunciada por Paddy Ryan na sua breve exortação, frase que ao menos um ouvinte conservava a um canto da memória: “que ninguém atravesse a vida, miseravelmente mutilado, se for possível curá-lo e salvá-lo; que, graças aos vossos afeiçoados desvelos, ninguém morra inutilmente, imperdoàvelmente...”

 

Do meio de uma bruma feita de fadigas, de excesso de trabalho, de sonos breves e entrecortados, de refeições irregulares ou suprimidas, de chamadas urgentes, de tensão, de penúria crónica e da esperança perpetuamente renovada de tirar o melhor partido possível da mais pequena oportunidade - do meio desta bruma, que era a substância mesma do seu estágio, emergiam alguns pontos brilhantes para iluminar e dar alegria ao Dr. Randolph Varren, do estado-maior do hospital de Lakeview. Por exemplo: as visitas ocasionais de Tim Brennan, que, médico provisório numa fábrica perto de Vilmington, aí ia triunfando admiravelmente. Ou ainda as noites passadas entre homens, em redor de tardias canecas de cerveja, com Ike Steinert, Larry Wilson, Pee Wee Harter, e alguns novos amigos que arranjara. Havia também a inesgotável variedade das chamadas de urgência, que nunca chegavam a perder a novidade, pois, se todas lhe traziam uma experiência inédita e muitas o enriqueciam de útil documentação, às vezes preciosa, que lhe aumentava a confiança, outras, pelo contrário, por acabarem desastradamente, abalavam-lha, a pontos de o levarem a duvidar da sua competência na profissão escolhida.

com sacrifício e aos poucos, começou a prover-se da aparelhagem profissional. Arranjou também um estetoscópio em segunda mão, pipetas, lamelas, e outras coisas mais pequenas, compradas ou roubadas, conforme as oportunidades. O mais pesado foi a campana de cinquenta dólares, adquirida pelo preço suplementar de um vivo sobressalto de consciência pois ele bem sabia que era uma arriscada loucura: este veículo de modelo antigo, e desprovido de graça, ainda era capaz de ter alguma utilidade. com optimismo, podia-se pensar que, lançado do cume duma montanha, partiria sem se fazer muito rogado. Em certa ocasião memorável, tinha realmente partido sozinho, graças a deplorável distracção dos travões, enquanto o proprietário se encontrava ausente e ocupado com outras coisas; isso arrancara a roda suplementar, colocada atrás, da magnífica limusina pertencente ao respeitável e irado Dr. Powers. O palavreado que nessa altura Powers empregou trouxe ao sítio uma multidão de membros do estado-maior e de enfermeiras, e a consequente análise que ele fez do carácter de Ran é ainda considerada pelos entendidos como um dos seus rasgos mais brilhantes. Mas recusou bruscamente a oferta que Ran lhe fez de pagar o conserto, e, por qualquer motivo ignoto, passou a manifestar particular interesse pelo trabalho do rapaz. Era uma grande ajuda.

Embora o orgulho da propriedade incitasse, claro, o novo automobilista a alargar o círculo das suas relações sociais, procurou sempre resistir a tentações superiores a tão pequeno orçamento. Não se pode levar uma rapariga ao cinema por dois patacos! O lado espartano da sua existência levou-o, por reacção, a aproveitar temerosamente a oportunidade de realizar uma operação de que nunca qualquer interno se devesse encarregar. Era, como ele devia lembrar-se anos depois, a noite em que Ike Steinert - o calmo, o reservado Ike Steinert - se desorientara. Ike andava “corn sorte de interno”; quer dizer que, durante duas semanas, não tivera sequer uma vez duas horas seguidas de sono e por isso passara pelo que o estado-maior chama irreverentemente “insónia de Lakeview”. Reunidos numa salinha lá de cima, onde as janelas abertas apenas captavam lufadas de brisas quentes de Maio, jogavam as cartas vários internos. Sujos e amarrotados, encontravam-se abandonados em cima da cama os uniformes brancos. Bevans e outro interno da ginecologia haviam despido a camisa, e Charles Ward, da clínica geral, exibia, num tronco sem vergonha, os traços típicos do sol apanhado no último fim-de-semana. O chão do corredor tremeu aos passos certos e violentos de alguém; os jogadores puseram-se à escuta.

- É um evadido da sala dos doidos - sugeriu um deles.

Ran e mais dois dirigiram-se para a porta. Galopou para eles uma silhueta vestida de branco.

- Meu Deus, é o Ike Steinert! - exclamou outro.

Steinert agitava, como asas, as mangas do pijama!

- Posso voar! - gritou ele. - Posso voar, mas não posso dormir.

Agarraram-no ao passar.

- Calma, Ike. Vamos! - interrompeu secamente Ran.

- Não compreende. Eu ia trepar ao telhado para partir. Convenceram-no a voltar para a cama, deram-lhe no braço uma injecção para o acalmarem, fecharam-no à chave, e foram outra vez jogar.

- Como é que não se há-de enlouquecer aqui, se estão 42 graus lá fora, à meia-noite?

- Apenas um antegozo do que nos espera no Verão - disse Ran.

Enxugou o rosto com um quadrado de gaze que tirou da algibeira e considerou, não sem pena, o ás de copas e o rei e a rainha de espadas, que o vizinho teve o mau gosto de lhe passar.

- Não há remédio a não ser transpirar! - concluiu.

Um interno, aflito com os seus doentes, tinha de dar a sua sentença; deu-a, não sem um sorriso trocista:

- Não há remédio? Não pensaria assim, com certeza, se caísse na equipa Stokoff. Não teria muito tempo para abandonar os aparelhos! Que o Stokie ponha apenas a mão num bom caso cerebral e verá as brocas voarem pelo ar fora!

- Não as deixa você meter na caixa, caro colega - respondeu Ran. - Faça o que tem para fazer, faça-o como deve, e o Stokoff há-de tratá-lo bem.

- Isso é muito fácil de dizer - protestou sem força Ward. - Você conseguiu apanhar-lhe o lado fraco, se assim posso dizer. Mas aposto que estava terrificado que nem uma lebre, da primeira vez que o ouviu chamá-lo. Irra! Duas copas, duas ignóbeis e desavergonhadas copas que tenho na mão...

- Onde está o Royce?

Ran apanhava, contrariado, uma série de copas que lhe custavam três mil e quinhentos, um pouco mais do que o seu pão quotidiano.

Hayes, radiologista moço e muito capaz, ergueu os olhos da mão, que estudava atentamente antes de jogar:

- Então, não ouviu falar dele?

^- Não.

^- O idiota do técnico mostrou-lhe hoje à tarde a chapa.

~- Peito? - perguntou logo Bevans.

- Pois. Cavidade à ponta direita.

- Bem dizia eu que aquela vermelhidão localizada significava qualquer coisa - disse Ran. - Custa muito !

- Não está certo! - comentou o homem da clínica geral.

- com este, é o terceiro dos nossos, desde o Verão. Qual é a média normal de tuberculose nos internos? com certeza que não pode ser assim tão alta.

- Anda pelos dez por cento - volveu Janssen. - Mas acho que as autoridades não querem que se divulgue.

- Que vai ele fazer, o desgraçado?

- Vai, com todas as probabilidades, para Saranac.

- E tentará obter emprego vitalício em qualquer sanatório - concluiu amargamente o ginecologista. - E para isso ainda terá de vencer os micróbios. É o melhor que pode esperar.

Ran reflectiu; no fundo, era bem duro consagrar os melhores anos da vida à preparação de uma carreira, apenas para tudo ser varrido duma só vez. Por causa de certa manchazinha vermelha num escarro. Agradeceu aos seus antepassados desconhecidos o terem-lhe legado um corpo sólido, e, apanhando as novas cartas, dispôs por ordem a variedade de dois, de quatros, de valores pequenos e médios, felizmente desprovida de ases e figuras, que acabava de lhe ser distribuída. O telefone escolheu este minuto para tocar afrontosamente.

- Aborrecimentos para algum - disse Ward, ao levantar o auscultador. - “O Dr. Warren? Está?” - É o Harter à sua procura, Ran.

- Está, Pee Wee?

Ouviu a voz do amigo:

- É você, Ran? Estou nas urgências. Pode vir já?

- Está bem, mas que há?

- Uma coisa que tem todas as aparências duma osteomielite aguda. Acaba de chegar.

Ran falou do residente, titular da cirurgia:

- Era melhor chamar o Donaldson.

- Foi por lá que comecei. Mas ele saiu, anda na estróina com a miúda com quem vai casar.

- Ah! Então... o Parker.

- Não consigo encontrá-lo.

A voz de Pee Wee tornava-se cada vez mais persuasiva:

- Tem de ser você, Ran.

- Dê-me apenas três minutos.

Desta vez acabava a volta maravilhosamente, livre da mais pequena copa:

- É melhor não contarem comigo para recomeçar o jogo, amigos. Faz-se tarde.

- com certeza que não, se é uma osteomielite. Acha que tem de operar?

- Basta darem-me oportunidade.

Na sala das urgências, encontrou Pee Wee curvado para um rapaz pálido, de rosto abatido, grande nariz, que ocupava todo o meio da face, magra e angulosa. A um canto chorava uma mulher gorda. Ao ver Warren, os soluços dela aumentaram.

- É Abie Bloomsburg, Dr. Warren - disse Pee Wee. Ran deu pancadinhas no ombro do rapaz:

~- Qual é a história dele, Dr. Harter?

- Sofrimento vivo desde ontem. Inchaço e vermelhidão hoje. É no extremo superior da tíbia direita. Provavelmente na articulação do joelho.

- Dói, Abie?

Ran apertava ao de leve o sítio vermelho e inchado, precisamente por baixo do joelho do pequeno, que tremeu:

- Um bocadinho - admitiu ele.

- Dá quinze mil glóbulos brancos - disse Pee Wee. Diferencial, noventa por cento, e um deslize para a esquerda no cálculo de Schilling. Temperatura: 39,5.

- Que diz o Raio X?

- Não mostra nada.

- Bem. Já esperava que não houvesse por enquanto osteomielite aguda. Levou a chapa à luz:

- Talvez pouco nítido à volta da tíbia. É possível que o periósteo já esteja levantado.

- Acha então que é realmente osteomielite?

Pee Wee Harter mostrava-se todo orgulhoso do seu diagnóstico.

- Não podia ser outra coisa, Pee Wee. Era bom chamar

outra vez o Phil.

Dirigiu-se ao telefone do átrio e pediu o apartamento de Phil Donaldson.

- Uma osteomielite aguda, Phil; no alto da tíbia.

A informação de Ran era sucinta e precisa.

~- com certeza?

- Absoluta. Quer que se prepare a sala de operações?

Houve uma curta pausa, e depois:

- É que eu estou estafado! Acha que é preciso operar ainda esta noite?

- Quanto mais depressa melhor. Tem de ser, e qualquer demora significaria aumento da destruição óssea.

- Pois, eu sei. (Pausa.) Porque não se mete você mesmo a operar?

- Eu? - perguntou Ran, sem poder respirar. - Quer dizer que eu posso operar?

- com certeza. É capaz, não?

- Ah, sim, naturalmente!

- Então, a isso. E se alguém lhe perguntar qualquer coisa, diga que eu estou doente.

Ran desligou e quis arranjar uma voz indiferente e natural para dizer:

- Prepare tudo na sala de operações, Pee Wee. Vamos abrir.

- O Phil vem?

- Você e eu vamos fazer o necessário.

- Oh! Então!

O rosto de Pee Wee iluminou-se.

- Oh, então!... É espantoso!

Ran dirigiu-se à mãe:

- Há aqui pus, à volta do osso. Temos de o operar.

Ela aquiesceu com um gesto, confiante. Muitos anos de visita àquela clínica gratuita haviam-na convencido de que aqueles moços de branco eram capazes e mereciam confiança.

- Isto não faz doer, Abie - disse Ran à criança, que passava por ele, numa maca, e cuja boca tremia, apesar de todos os esforços para se não desfazer em lágrimas.

“Não faça demais! Drene o pus e desapareça!” Acorriarn-lhe as palavras como uma inspiração e uma garantia, enquanto ia vendo Pee Wee pintar com anti-séptico a perna do garoto.

E supondo que não se encontra pus? Admitindo que a infecção se ache realmente na articulação? Talvez devesse lá meter a agulha duma seringa. Sim; mas isso traria talvez o risco de estender a infecção. Existiria ali mesmo ao pé algum nervo ou vaso sanguíneo importante? Teria de ser extremamente prudente e ter o cuidado de não tocar, de maneira nenhuma, na cápsula sinovial. No espírito de Ran atropelavam-se mil e uma ideias, enquanto estendia os braços à enfermeira, para ela lhe enfiar as mangas. Espreitar-lhe-iam as enfermeiras com atenção os movimentos, para ver se a mão dele ia ou não deslizar? A enfermeira responsável da aparelhagem lançou-lhe da mesa dos instrumentos, perto da qual se encontrava, um sorriso encorajador. Havia anos que ela pertencia à equipa da noite; vira mais de um moço ganhar os galões debaixo daquelas luzes brancas e a tais horas. Essas horas da madrugada, em que os “assistentes” não tinham tanta ânsia de lançar mão de todas as boas operações que apareciam no hospital, essas horas - durante as quais duplicava a fadiga - eram quase as únicas em que os novos cirurgiões podiam fazer por si próprios trabalho grande, sem terem perpetuamente às costas um dos mais velhos, cumulando-os de instruções e conseguindo apenas com isso enervá-los.

- Pronto? - perguntou à anestesista, que aquiesceu com a cabeça.

Pegou num escalpelo. Do outro lado da mesa, Pee Vee Harter tentava recuperar a calma e o equilíbrio, apertando uma esponja. A perturbação de Harter, ao ver-se primeiro-assistente, tranquilizou ^Warren. Afinal de contas, tinha atrás de si uma sólida formação. E, se tudo corresse bem, não teria de esperar tanto tempo para ser nomeado residente e operar várias vezes ao dia. Pelo menos, contava que seriam várias vezes ao dia. com efeito, não era particularmente perigoso abrir uma osteomielite. Mais ou menos o mesmo que abrir um abcesso, em suma. Mas com a diferença de que, às vezes, era necessário perfurar o osso.

Cortou o inchaço com a mão firme. Para a esponja, que segurava na mão, saltou uma mistura de pus e sangue. Estava pois perfurado o córtex. Não era preciso fazer mais nada. “Drene o pus e desapareça! Não faça demais!” Ocorreram-lhe ainda as palavras de prudência ditas por Powsie num dos seus cursos. Encheu a ferida de gaze e cobriu-a com um penso.

^- E é tudo, por agora. Depois tentaremos arranjar isto, de maneira que fique como novo. Ainda havemos de te ver jogar futebol, Abie!

- bom trabalho, Dr. Warren - disse a enfermeira.

Por um momento, perguntou a si próprio se ela estava a ser irónica, mas um simples olhar para os seus olhos sorridentes provou-lhe o contrário. Durante os anos de salas de operações, aprendiam muita coisa, as enfermeiras. Aquela sabia que ele fizera exactamente o necessário, não cortando demais, pois com isso poderia alargar a infecção e destruir um osso ao qual restava ainda uma possibilidade de se refazer e durar, uma vez suprimida a pressão do pus.

Em seguida, no vestiário, sentiu-se lamentavelmente vulgar: aquela excitação, aquele imenso tremor, a sua primeira operação de verdade, feitas bem as contas, acabara numa incisão de uma drenagem. Nada de incidentes dramáticos, nada de injecções súbitas de estimulantes, enquanto lutasse por manter a vida num corpo flácido e enfraquecido, nada de lindas enfermeiras de graça fácil e flexível, de olhos admiradores cheios de mudo louvor. Nada mais do que ele e Pee Wee Harter, uma enfermeira de cabelos grisalhos e uma anestesista de cara vulgar... a rápida incisão num inchaço •e pronto ! Todavia ficavam com ele a tranquila satisfação de ter sabido o que havia de fazer e a outra, não menos importante, de ter sabido o que não devia fazer.

Enquanto despia a roupa de trabalho e sentia o corpo distender-se-lhe, ia dizendo para consigo que, afinal, o encontrar-se pela primeira vez sozinho a braços com uma operação era como obter o diploma de fim de curso: uma série de cerimónias, muita antecipação, uma excitação extrema, e depois a reacção. E perguntava se seria sempre assim, quando tivesse arranjado clientela sua, se à desordem se seguiria sempre aquela reacção. Achava-se profundamente feliz de não haver sentido qualquer hesitação, qualquer dúvida, ao ter tido de enfrentar a prova. Devia ser melhor do que o comum dos internos, sem o quê nunca Phil Donaldson arriscaria um êxito nas mãos dele.

Enquanto pensava, encheu o cachimbo, achando que seria bonito chegar a assistente, atingir depois o último degrau e ler na sua porta: “Dr. Randolph Warren, cirurgião residente”. Para lá se encaminhavam os seus bem duros anos de prática. Se falhasse... Não, nem sequer queria pensar nisso! E quando triunfasse? Depois! Oh! Bem! No futuro desenvencilhar-se-ia bem sozinho. Agora estava-se no presente. Fora um trabalho árduo, impiedoso, e precisava de trabalhar muito. Mas não sofrera com isso.

Foi talvez esta confiança em si próprio, de novo descoberta, que induziu Ran a divertir-se um pouco. Não procurou saber por que motivo era um dos seis ou sete felizes internos que receberam um lindo bilhete de convite para a inauguração oficial do Laboratório Mayfield e para a recepção que se lhe devia seguir. Podia aparecer decentemente vestido, pois o seu magro salário mensal de dez dólares continha inapreciável vantagem: grande provisão de uniformes de cotim branco, lavados e engomados à vontade, a expensas do hospital. A silhueta atlética de Varren e o seu aspecto desempenado ligavam muitíssimo bem com o dito trajo.

- Noite na cidade, hem? - perguntou Larry Wilson, que o encontrou na escada e lhe dedicou um radioso sorriso: ele próprio se encontrava em trajo de noite e com gravata preta.

- Sim, uma vez. A falar verdade, não sei bem porquê. - Vai ao Mayfield?

- Vou.

Arredondaram-se os cintilantes olhos de Larry.

- Recebeu convite? com que cunha?

- Se quiser saber, tem de procurar, porque eu não faço a mais pequena ideia.

- Eu só passo por lá; fico um minuto e saio logo, pois tenho um encontro no Country-Club.

Era ostensivo o seu tom de desdém. Procurava Larry acentuar que as cerimónias oficiais não tinham grande lugar no seu plano geral de existência. com facilidade arranjara lugar na vida mundana da cidade.

Ran ia quase a perguntar a Larry se ele levava a ruiva da noite do baile no Clube das Enfermeiras, mas a timidez deteve-lhe a pergunta; Larry era reservado no respeitante às suas actividades sociais extra-hospitalares, não por pedantismo, mas porque vivia num mundo que não era o da maioria dos seus colegas.

Assinalaram a cerimónia discursos monótonos, e apenas a peroração inaugural de cinco minutos, pronunciada por Paddy Ryan, a animou. Robert Mayfield leu uma dedicatória longa e solene, que pareceu aborrecê-lo muito mais a ele do que aos ouvintes, atentos e simpáticos não só por causa da sua generosa doação, mas porque era do domínio público que a mulher dele, nevropata incurável, ia enlouquecendo lentamente num dos quartos mais caros do outro lado da rua. Foi no meio desta conferência que Ran descobriu Frances Libby entre os convidados de honra, no estrado. Estava de frente. A si próprio perguntou se a rapariga se lembraria dele. Dissiparam-se-lhes as dúvidas quando a viu sorrir-lhe na recepção que se seguiu, e dirigiu-se-lhe.

- Que prazer em encontrá-lo! - disse-lhe ela, com acento meigo, ligeiramente exótico, na voz.

Ran galanteou:

- Eu não sabia porque é que tinha vindo. Agora já sei.

- Você veio, suponho, porque recebeu um convite particular. Ou estarei enganada?

- Recebi um bilhete muito elegante. Seria particular? E, se era, porquê para mim?

- O seu nome entrou na lista a meu pedido.

Ele estudou-lhe o rosto pensativo, de olhos calmos:

- Continuo sem perceber porquê - confessou, delicadamente.

- Então é estúpido - volveu ela, subitamente animada - Eu bem lhe tinha dito que havíamos de tornar a ver-nos.

- É encantador e muito agradável para mim - retorquiu, exprimindo o que realmente pensava.

- Gostava de receber boas notícias a seu respeito?

- Todos gostam de receber boas noticias a seu respeito.

- Você está no grupo dos propostos para assistente-residente.

- A sério? Você sabe- Como é que sabe?

Sem responder, Frances considerou-o com um olhar impenetrável, que o fez corar.

- Desculpe. Mas isso interessa-me, naturalmente...

- Não peça desculpa, é bem normal - replicou ela, tranquila. - Bem sabe que se apanham informações por aqui e por ali. Esta é autêntica.

- Assim rogo a Deus - exclamou ele, com fervor. Ela sorriu, com um sorriso meditativo, ao responder:

- É mesmo excitante encontrar alguém capaz dum interesse absorvente, nestes dias sombrios e tristes.

- Você disse sombrios e tristes?

- Admira-se?

Ele considerou a sua elegância delicadamente polida, com o suave brilho de alguma porcelana velha e preciosa:

- Não consigo compreender que a vida seja sombria e triste para você...

- Não consegue? Pense melhor. (Que palavra tão estranha na boca dela!) Ou então... nem pense. Sempre é preferível.

Depois, mudando completamente de tom, acrescentou:

- Vem aí o Dever. com D grande. Algumas pessoas para quem tenho de me mostrar polida. Não voltamos a encontrar-nos esta noite. Até depois.

Só lá fora notou Warren que aquele “Até depois” fora dito intencionalmente. Pelo menos, assim esperava. Que sabia ela, na verdade, acerca das suas possibilidades de ir a assistente-residente? Falara disso como se estivesse realmente certa. Mas, ainda então, fazia parte da sua personalidade aquela tranquila confiança. Falava, actuava, evolucionava, com uma espécie de segurança calma, que se sentia - compreendia ele vagamente - inclusive na sua atitude e maneira de vestir. Como o acolheria ela, se lhe telefonasse numa das próximas noites? Achou que mais valia não telefonar. De Frances Libby emanava algo de inexplicável, que aconselhava a deixá-la jogar ela a própria a cartada, se esta tivesse de existir.

bom. De uma coisa havia a certeza: de que convinha uma noite de repouso. Apresentavam-se magras as possibilidades: era sábado, e, a partir da meia-noite, os arrabaldes começariam a enviar o seu contingente hebdomadário habitual. Desde esse momento, haveria um atroz programa de formação prática.

- Curiosa aventura - pensava ele, ao aproximar-se lentamente do quarto, no edifício da Administração - a maneira como o hospital se apoderava do homem. Alimentava-o, cobria-o, concedia-lhe dez miseráveis dólares por mês, em troca dum trabalho diurno e nocturno, raramente interrompido, e do constante risco de contrair qualquer doença infecciosa, por exemplo ao operar membros inchados ou empolados por gangrena gasosa, em que o mais pequeno escorregar do escalpelo podia introduzir-lhe o germe no sangue e enviá-lo em cheio, sem mais demoras, para a morte. Lá estava Bentley, que, ao salvar uma mulher de cor, se picara com a agulha da seringa e nada notara de anormal. A não ser quando, meses depois, lhe apareceu na pele uma ferida que não queria curar-se. A prova de Kahn revelou a desastrosa verdade. Mas, então, já havia meses que os minúsculos espírilos podiam multiplicar-se e espalhar-se à vontade por todo o indivíduo. Eram portanto necessários dois anos de tratamento, com injecções intravenosas, semanais, de neoarsfenamina, e de todas as vezes ele perguntava se ia aparecer a terrível dermatite arsfenaminosa e se iria perder lentamente toda a pele, não como uma cobra, mas como um leproso, pedaço a pedaço, placa a placa, sofrendo ininterruptamente como um condenado. Entre as sérias, haveria injecções subcutâneas de bismuto, nas coxas. Segundo todas as probabilidades, curar-se-ia, mas o intervalo de vários meses decorrido antes de se reconhecer a doença aumentava as possibilidades de complicações. E, passados anos sobre a cura, ainda Bentley seria temido, com receio de contaminar a rapariga com quem casasse, ou com o de ver os olhos perderem progressivamente a acuidade, à medida que a doença fosse minando o nervo óptico. Aos cinquenta anos, poderia traçar magníficos desenhos sobre o cometa, preparar grandiosos projectos sem qualquer relação com a realidade, descobrir em si próprio, de repente, dons ilusórios e poderes imaginários, instalar-se satisfeito no mundo feliz do simular, no mundo do tabético “Eu sou a Universabilidade”. Examiná-lo-iam especialistas, que lhe analisariam o sangue, puncionariam a espinal medula, tentariam a prova do ouro coloidal e trocariam olhares entendidos. “Dê-lhe febre artificial” ou “Talvez se obtenham bons resultados com o tratamento da malária”. Nos intervalos lúcidos, cada vez mais breves e raros, Bentley notaria que estava irremediavelmente perdido, que a vida se lhe acabara por causa duma picadela de agulha recebida ao tentar facilitar e tornar menos doloroso o parto de uma mulher, cujo rebento, oriundo talvez de crime ou estupro, custava nesse tempo alguns milhares de dólares ao Estado.

Por vezes, Ran perguntava a si próprio se, no fim de contas, valeria a pena, se daria a mecha para o sebo. Verdade seja que tais pensamentos só lhe ocorriam quando o trabalho fora demasiado duro, quando se encontrava esgotado de corpo e espírito, quando acabava de perder algum doente por quem suara até ao último minuto, na esperança de conservar viva a chama.

Valeria tudo isso, realmente, os longos anos de trabalho passados nas escolas médicas? E depois ainda outros anos para arranjar clientela: começava-se sempre pelas visitas que os outros médicos não queriam, por saberem que nunca receberiam os honorários. Por fim, atingia-se o objectivo, apesar de tudo; inscrevia-se no Country-Club local e conseguia-se ser rotário. Era-se eleito para o estado-maior, às vezes para o conselho de administração do hospital mais importante. comprava-se uma linda casa e arranjava-se uma esposa cara. A partir desse momento, começava-se a vigiar a costa, a espiar qualquer cirurgião que abrisse reluzente e novo consultório, e, nas reuniões médicas, falasse de operações antiquadas para a época, e procurava-se saber quantos o trocariam por ele. Todas as operações com êxito seriam consideradas acasos, mas as falhadas tornar-se-iam o principal assunto de conversa no clube de bridge de quinta-feira à tarde.

Num destes acessos de depressão, assinalados por hipersensibilidade, seguia Ran ao longo do mal iluminado corredor do hospital, naquela manhã em que não conseguira salvar uma fractura de crânio; lembrava-se de que, na véspera, à noite, apenas ingerira meio jantar, mas entendeu ser o sono preferível à alimentação. Além disso, ainda não teria aberto o refeitório, mas ele poderia encher o depósito, de passagem, no aparador onde havia sempre cereais à disposição dos trabalhadores tardios.

De tantos em tantos metros, um corredor lateral, que levava a algum outro departamento do grande edifício, desembocava no principal, onde andava em grandes passadas, meditabundo, um Randolph Warren esgotado. Passara a desordem das sete horas, das enfermeiras que se dirigiam para o serviço ou dele regressavam, e, nos corredores, havia pouca gente. Passou por ele uma maca, deslizando em silenciosos pneus, acompanhada da anestesista, que seguia à cabeça e inclinada para o corpo envolto em coberturas.

Uma silhueta branca e esbelta, que passou agilmente, lançou-se em cheio para Warren, deu-lhe um violento encontrão, e depois virou-se para se afastar. Ele fez um movimento involuntário com a mão, como para se agarrar, e recebeu no punho um salpico a ferver da solução de ácido bórico que ela levava. Não lhe melhorou isso o estado de espírito.

- Vá para o diabo! Porque é que não olha para a frente?

- E porque não olha o senhor? - replicou a rapariga.

O espírito da resposta, senão a própria letra, era tão profano como o de Ran.

Baixou os olhos para uma touca imaculada, hirta, com uma fita preta ao alto, e notou que não era a de bordos em canudo, usada em Lakeview. A touca engomada encaixava as ondulações cuidadas de uma cabeleira ruiva, e, aqui e ali, uma argolinha viva dava certa nota diferente e pessoal. O seu olhar encontrou uns olhos castanhos e quentes, que o ardor da batalha nesse momento alumiava.

- Oh! - exclamou ele. E, demasiadamente estupidificado para escolher as palavras, acrescentou: - Você é a amiga de Larry Wilson...

Uma das vozes mais intransigentes que já alguma vez gelaram o ouvido humano disse secamente:

- Eu não sou amiga de Larry Wilson.

Ran, com esforço, tornou a cair em si e balbuciou:

- Não. Eu sei. Queria dizer: é a rapariga que eu vi a dançar com Larry Wilson no baile das enfermeiras.

- Não me lembro de o ter lá encontrado.

A sua maneira de proceder mostrava claramente que não tinha pena dele e se encontrava disposta a retardar indefinidamente o tão relativo prazer que poderia dar-lhe ao desfazer esse esquecimento.

- Ainda não... -disse o interno, simulando um sorriso. Ela pôs a bandeja em ordem:

- bom dia, doutor - e foi-se embora, de queixo inutilmente erguido.

“Que génio de demòniozinho!”, pensou Ran. Tomar assim calor, sendo ela a culpada, pois se atirou para ele... Talvez, afinal, a culpa fosse em parte também dele: prestara atenção de mais à maca que passou e de menos ao corredor donde vinha a enfermeira. Não seria má ideia procurá-la para lho dizer. Mas onde a encontraria? A indumentária indicava que ela não era de Lakeview, mas sim, com certeza, uma externa em serviço geral. Havia sempre determinado número delas no hospital. Poderia contar o choque a Larry absolutamente à vontade. Talvez Larry desabafasse. Talvez não. Era caso para ver. No fundo, isso não faria grande diferença. Randolph Warren andava excessivamente ocupado para ter tempo para as enfermeiras e era demasiado pobre para ter o dinheiro necessário para levá-las a passear. Não podia, contudo, nem sequer desejava, esquecer que a tinha encontrado de novo, cerca de quinze meses depois, com uma impressão tão viva como da primeira e tão fugitiva ocasião. Estando as coisas como estavam, que daria um novo encontro? Mais valia evitá-lo.

Que diabo! Não ia tornar-se romântico por uma atraente ruiva, de carácter ainda mais atraente, lhe haver dado um encontrão! Do que ele precisava era de comer.

 

Ann Trent afastou do rosto, com enfado, uma madeixa ondulada e vermelha. Estava quente naquela sala fechada, o ar quase tão quente como deviam vir, ao sair da estufa, os montes de toalhas que, nessa altura, ela lançava para um cesto: na manhã seguinte, o serviço de esterilização levaria toalhas, roupa de partos, lençóis grandes e pequenos, cada peça obrigatoriamente marcada com as iniciais O. O. S., e, após trinta minutos de permanência na grande autoclave, a roupa sairia de lá perfeitamente esterilizada, sem que nela ficasse o mais pequeno perigo de se transmitir qualquer infecção a algum bebé recém-nascido ou a nova parturiente.

Em frente, do outro lado da mesa, luzia de suor o rosto sem beleza de Mary Robie, e os espessos vidros dos seus óculos estavam cobertos de tal vapor de água que, para o atravessar, os olhos tinham de fechar-se quanto podiam e de dar a maior intensidade possível. Mary era meiga, atenta e certa. Embora com uma vez e meia a idade de Ann, fora sua colega no curso de enfermeiras e considerava-se muito feliz por haver conseguido entrar em Lakeview. Quanto a Ann, que no Hospital de Catonsville seguira os cursos de obstetrícia e ginecologia (sete horas e meia de trabalho diário, além dos extras), fora agregada ao Serviço Geral de Lakeview, por alguma misteriosa vontade de potências que ela não compreendia completamente, mas que parecia em estrita, apesar de obscura, correlação com Larry Wilson e família. Para a prosaica Mary Robie, era Ann a própria imagem do encanto e da sedução romanesca.

- Mais devagar, querida - disse ela. - Você está pálida.

- É do calor. Além disso, tive pouco mais de seis horas de sono. Depois, não sei ao certo que faço aqui. Há uma grande noite de dança, a que eu tinha uma grande probabilidade de assistir!

- com o Dr. Wilson? - aventurou a amiga.

Ann abanou a cabeça afirmativamente, depois suspirou.

- É indubitável que eu tenho uma grande ânsia da vida... E, em vez de apanhar o que ela pode dar-me normalmente, todos os anos volto a assinar novo contrato para novo ano, que se passará como o anterior, a raspar madeira branca, a esfregar costas menos brancas, e a ouvir observações desagradáveis de vigilantes que andam e ficam crônicamente furiosas por nenhum médico olhar para elas segunda vez.

- Mesmo assim, para você ainda eles olham muitas vezes!

Ann fungou de desprezo:

- Internos! Bem se vê o que eles esperam de nós mesmo antes de nos terem levado a passear. vou comprar um revólver!

- Oh! Não digo que sejam todos feitos pelo mesmo modelo - afirmou Robie, conciliante.

-- Aponte-me um que seja diferente. Ainda hoje um tipo me deu um encontrão no átrio.

- Quem foi?

- Não lhe perguntei. Alto, magro, esguio, faces cavadas. Bonitos olhos, com a breca! - admitiu ela. - E um destes ares...

- Tinha cachimbo?

- Cheirava a ele... - respondeu Ann, simplesmente.

- Devia ser o Dr. Warren. O Dr. Randolph Warren. É o homem que vai subindo no batalhão dos novos cirurgiões. Dizem que dorme com aquele cachimbo.

- Pela minha parte, não vejo nisso qualquer inconveniente e o cachimbo pode conservar o privilégio - disse Ann, impudentemente tranquila.

Adorava escandalizar Robie, que, pelo seu lado, se excitava toda à ideia de que a escandalizassem.

- Ladrou atrás de mim, e eu não gosto de que esses cães por desmamar ladrem atrás de mim. Quantos embrulhos ainda temos de fazer esta noite?

- É o último. Depois deste acaba o trabalho.

Ann apanhou o quadrado de pano, ligeiramente húmido por numerosas esterilizações, aqui e além coçado nos bordos: sabia que os hospitais mantidos por dotes precisam de fazer durar todo o material o mais possível.

Lançando no cesto o embrulho que acabavam de fazer, Ann levantou-se e espreguiçou-se:

,- Apetece-me fumar.

- Podemos ir para a sala de descanso.

Na sala, mobilada com simplicidade, achavam-se reunidas uma dúzia de enfermeiras de diferentes especialidades e categorias, conversando, fumando, trincando bombons. Por outra porta, entrou, ao mesmo tempo que Ann e Mary, uma loira alta e robusta, rosto sombreado pela raiva, murmurando imprecações entre dentes. Uma das jogadoras ergueu os olhos das cartas:

- Que bicho mordeu a nossa Gracie?

- Irra! Para o diabo! - exclamou a recém-chegada. - Não sei mesmo como o suporto.

- Como todas nós o suportamos. Vamos! Conte o que aconteceu.

- Acabo de ouvir dizer o que um destes doutorecos pensa das enfermeiras em geral, e de mim em particular, porque cheguei dois minutos atrasada à chamada.

- Não repita - disse, indolente, a jogadora. - Nós já temos ouvido, já sabemos de cor.

Era adoràvelmente linda, tipo de ingénua, carinha de gato.

- Então tape os ouvidos, Snyder - replicou Gracie. - Proponho um debate a este respeito: “Porque estamos nós aqui?”

- É muito fácil - disse, em certo tom, uma jovem estagiária. - Somos obrigadas a ganhar a vida.

- E tentamos ganhá-la no caminho para que nos sentimos chamadas.

- Sei tudo o que se pode dizer acerca deste assunto elevado e nobre - replicou Gracie. - Vê-se um filme que mostra Florence Nightingale, sai-se de lá arrebatada, a arder, e que acontece? Mergulha-se a cabeça numa vida de sacrifício e dedicação e sai-se com um esquentador na mão.

- Porque é - sugeriu a beldade, bocejando para mostrar os dentes brancos e regulares - que não se há-de dizer a verdadeira razão?

- Qual? - inquiriu Ann, curiosa.

- É o caminho mais curto e mais rápido para esse velho altar tão favoravelmente visto e apreciado. É a primeira e melhor posição no mercado do casamento. Sei duma data de enfermeiras que casaram com grandes fortunas. É tão simples! Eclipsamos mesmo os modelos e manequins. Vocês haviam de ver o meu álbum...

- Em resumo, você procura elaborar uma técnica, Snyder - verificou Mary Robie com o seu tranquilo sorriso.

- Exactamente - admitiu a outra.

- Todas as boas enfermeiras acabam por casar com médicos - cacarejou Gracie.

- Eu não - garantiu a moreninha. - Você casa com um médico, ele arrranja uma clientela de clínica geral, e você que ganha com isso? Um lugar vazio na cama, enquanto o marido anda por fora, a tomar o pulso a qualquer outra fêmea da espécie.

- Nesse ponto estou de acordo consigo, Miss Feltus disse Ann. - Porque trocar um R. N., adquirido com tanto custo, por um Mrs., se podemos ganhar a vida por nós próprias?

- Que género de vida? E onde é que isso nos leva? - objectou a beldade. - Não: escolha um doente bom e amável, muito rico, e conquiste-o. Aí tem feita uma carreira!

- Eu, por mim, escolhia um de meia idade - disse Gracie, interessada. - São os que casam com mais facilidade.

- Para mim, queria um velho. Morrem mais depressa - sugeriu a estagiária.

- Se eu tivesse o seu tipo, Snyder - aconselhou a moreninha - tentaria o Robert Mayfield.

- Você escandaliza-me, Feltus! - volveu a outra, com uma piscadela. - O senhor Mayfield é casado. E eu tenho sido, até aqui, uma pessoa respeitável.

- O quê, aquilo? - disse Gracie, que prestara serviço, uma noite, junto de Mayfield. - Uma destas manhãs mais próximas vai para a glória. É neurótica, esclerótica, e igualmente tabélica, ao que sei.

- Por favor! - protestou Mary Robie. - Como pode você dizer coisas dessas?

- Mesmo que ela se deixe ir, há aquela sedutora viúva - advertiu a estagiária. ’- Como se chama ela?

- Mrs. Libby. Não é parente ou qualquer coisa no

género?

- “Ou qualquer coisa no género”, exactamente, ia jurar - zombou a beldade - Não posso concorrer... Dizem que ele anda completamente embeiçado.

- Donde vem ela, afinal? - indagou alguém. - Do povo?

- Tinha um emprego na cidade, segundo dizem. Esteno-dactilógrafa ou coisa parecida. Até que apareceu o milionário Mayfield.

- A história de um êxito - troçou a estagiária.

- pela aparência, acho-a um peixe em conserva - decidiu Wilkes.

- Ah, ah!

A moreninha abanou a cabeça sagaz:

- Examinem aquela sua boca. E aqueles traços escuros por baixo dos olhos... No que respeita a temperamento, ela tem qualquer coisa que nunca o velho Mayfield aquecerá.

- Talvez o consiga o jovem Warren - sugeriu Gracie. A um tempo, e imediatamente, fervilharam perguntas:

- Hem?

- Quê?

- Que estão a dizer do Dr. Warren?

- Digo eu - explicou Gracie, encantada com o efeito produzido - que os vi a conversar, os dois, na recepção do Laboratório Mayfield.

- É a primeira vez que o Ran Warren permite supor que sabe que uma mulher pode não ser necessariamente “um caso” - declarou a beldade, a qual acrescentou, a rir: - Se há alguém que o saiba, sou eu. Tentei mostrar-lhe a luz.

- Se eu caçasse em território local, não seria o Warren quem eu tentaria apanhar - explicou Feltus.

- Não? Então quem? - inquiriu a estagiária.

- O Larry Wilson. É um rapaz que tem tudo por ele.

- Ouvi dizer que tem mesmo uma paixão... - completou Snyder, dirigindo um grande sorriso para Ann.

Ann levantou-se:

- Estou com fome; venha, Mary. Vamos comer um hatnburger ao “Grego”.

A caminho do seu restaurante preferido, Mary perguntou sem cerimónia:

- É verdade que o Dr. Wilson meteu uma cunha para você ser transferida para aqui?

Apesar de toda a sua insignificância, ou talvez por causa dela, Mary arranjava sempre maneira de saber as coisas.

- Se é que é verdade, nunca lhe pedi que se interessasse por mim. Mas estou muito contente por me encontrar em Lakeview!

- Qual é o jogo dele?

- Ele diz que tem em vista o sagrado matrimónio - respondeu Ann, com um sorrisozinho de modéstia. - Mas tentou todo o resto.

~- Alguns destes médicos supõem que, a partir do momento em que uma rapariga veste o uniforme, ficam abolidas todas as regras - comentou com severidade Mary. - Você já o conhecia, não?

- Já, pois. As nossas famílias andam ligadas. Mas a dele tem dinheiro. A minha teve-o. Isso cria grandes diferenças, especialmente em Washington.

Dobrada a esquina da rua, abria-se um estabelecimento muitíssimo bem iluminado, onde vendiam sodas, sanduíches e hamburgers, simpática combinação esta bem conhecida, durante gerações de estudantes e enfermeiras, pelo nome de “a loja do Grego”. Ao passarem pela porta, acolheu-as o zumbido das conversas, salpicadas de gargalhadas. Agora, ao bater das dez, a sala estava cheia de estudantes, de internos, de enfermeiras e de encontros. Aos cantos, viam-se pares, com as mãos por baixo das mesas. Algumas enfermeiras, de serviço na equipa das onze às sete, olhavam para o relógio da parede e calculavam, segundo por segundo, o tempo de que necessitavam para vestir o uniforme azul e apresentar-se à chamada. com intervalos de poucos minutos, tocava o telefone, e desaparecia à pressa um ou outro interno, vestido de branco, para corresponder a uma chamada de urgência aos acidentes ou à sala da cirurgia, ou ainda para ir apoiar um último estetoscópio a qualquer coração já aliviado do fardo da vida.

Ann e Mary arranjaram mesa e encomendaram dois hamburgers. Alguém meteu um níquel na fenda do aparelho eléctrico, que desatou numa rouca e barulhenta música de swing, e, por momentos, ficou afogado o barulho das conversas. Vários pares se levantaram e foram dançar.

Ann sempre gostara daquele sítio. Havia lá alegria a alta pressão, própria dos arredores dos hospitais e escolas de medicina. Os fatos brancos dos internos faziam salientar a cor dos vestidos das raparigas que não estavam de uniforme. O hospital onde estudara Ann era um pequeno estabelecimento, incomparável, na sua atmosfera, a Lakeview. Talvez tudo aquilo não passasse de esplendor; talvez o importante hospital não valesse mais do que aquele de onde ela vinha. A rápida troca de conversas, com as graças a respeito de audaciosas operações, a propósito de cirurgia cerebral e de outras coisas que ela nunca vira, era provavelmente ouropel destinado a cobrir o trabalho de médicos conscienciosos, que não se preocupavam muito com as jactâncias publicitárias que inevitavelmente acompanham a vida das grandes clínicas, e que ficavam contentes quando cumpriam o dever o melhor que podiam. Não fazia diferença. Ela sempre o desejara. E agora queria fazer parte disso, inserir-se aí verdadeiramente, até poder sentir-se tão sofismada, tão cosmopolita como quem quer que fosse, e fosse em qual fosse daqueles grupos de tagarelas.

Entrou um rapaz alto, vestido de branco e amarrotado, que logo se chegou ao balcão. A volta dos olhos tinha traços vincados pela fadiga, e trazia os cabelos desgrenhados. comprou uma caixa de tabaco, abriu-a e encheu um cachimbo.

- Foi aquele que me deu o encontrão - disse Ann.

- com certeza, é o Dr. Warren. Não podia haver enganos, pela descrição.

Ele não tinha tão mau ar como isso, pensava Ann; parecia antes um jovem fatigado a quem nada poderia dar mais prazer do que vinte e quatro horas de sono ininterrupto e cuidadosamente protegido do telefone e das salas de acidentes.

- Olhe para todas essas estagiárias que o devoram com o olhar! - murmurou Mary. - Até parece o Clark Gable!

- Ele achará que o é?

- Ah, meu Deus! Não. Não pense mal dele.

Ran dirigiu-se para a porta. De longe, chamou-o outro interno. Ao virar-se, viu as duas enfermeiras abancadas em frente dos hamburgers e deteve-se uma fracção de segundo antes de continuar. Ouviram-no elas responder a uma pergunta:

- Irremediavelmente perdido. Não passará desta noite. Pouca sorte. Mas você não teve culpa nenhuma, Bev, pode estar certo.

Depois, ei-lo diante delas, curvado:

- Olá, Miss Robie!

Lembrava-se de a ter tido na sala de operações no Inverno passado; ela mostrara-se conscienciosa e capaz na mesa de sutura.

- Boa noite, Dr. Warren.

Fitava Ann com um olhar interrogativo, enquanto ela, pensativa, ia mexendo o chocolate.

- Boa noite, Miss...?

O ponto de interrogação ficou suspenso.

- ...Trent - completou Mary. - Ann Trent. Veio para aqui transferida de Cotonsville.

- Estou a ver - disse Ran.

Parecia esperar outra coisa, mas Ann não lhe deu qualquer entrada. Apenas um negligente sorriso. Não estava com disposição para fazer concorrência às adoráveis estagiárias.

- Que tem o doutor no pulso? Não é nenhuma infecção, pois não?

Falava ainda Mary, que havia atentado na ligadura.

- Oh, não! Apenas a solução quente de alguém que passou por mim.

- Esta gente anda tão desleixada...

- Anda, anda! - aprovou Ran, gravemente. Era demais para Ann, que sugeriu:

- Talvez o desleixo tenha sido da parte do Dr. Warren...

- Era no que eu estava a pensar ao vir para aqui. Sim, acho que foi.

Sentindo que já podia dar-se ao luxo de ser generosa, Ann rectificou:

- Eu também não ia a olhar para a frente.

- Oh! - exclamou Mary, subindo de entoação.

- Sim - disse Ann. - Mas não sabia da queimadura. Lamento.

- Se ela supurar, vou tratar-me consigo.

Ran não estava lá muito certo de que essa tentativa de leviandade obtivesse êxito incontestável. Se alimentasse essa ilusão, logo lha tirariam!

- Não sou eu quem poderá tratar de uma autoridade tão eminente no campo cirúrgico - disse a rapariga.

Estaria ela a troçar? Pois bem: ele mostrar-lhe-ia. Aliás, seria incidentalmente, ao mostrá-lo a toda a gente Que espere um bocadinho, e vai ver. E toda a gente também.

Convidado a sentar-se por Mary Robie, trocou algumas palavras, sobretudo com ela. Ann estava muito à vontade, simples, sem qualquer espécie de afectação, mas conservava uma atitude independente, impessoal, se assim se pode dizer. Como era bela! Que cor, que calor! Ran sentia grande desejo de a convidar para um dos próximos dias. Para o cinema, ou mesmo para jantar. Mas isso obrigaria a convidar Mary Robie, e as suas finanças eram incapazes de suportar o alargamento do convite a uma segunda pessoa.

Depois de ele se ter ido embora, Mary perguntou, num tom cheio de ansiedade e esperança:

- Você não gosta dele?

- Não sei. Ele tem uma opinião bastante lisonjeira a respeito de si próprio, não tem?

- Está senhor de si, e tem o direito de o estar. É muito distinto. Nas suas maneiras, talvez haja um certo jogo para encobrir a timidez. Havia de o ver no trabalho, você.

- É pouco provável. Os nossos serviços nunca se encontram.

- Nesta profissão, nunca se sabe - lembrou avisadamente Mary.

Lendo, na cama, como era seu costume quando não tinha sono, algumas páginas do American Journal of Surgery, verificou Ran que a sua atenção esquecia os mais recentes processos utilizados para conservar uma rótula. Havia no seu espírito uma distracção feminina. Ann Trent não se parecia com a “hulha bruta” do hospital. Encontrava-se Ran imunizado contra todos os processos das futuras enfermeiras desejosas de atrair atenções. Aquela rapariga era diferente. Nada deixava saber se preferia ser ou não notada.

Fosse como fosse, exigia a prudência que a expulsasse do seu campo sentimental. Não tinha direito de atulhar de sonhos o cérebro já sobrecarregado de trabalho. Por qualquer lado que a examinassem, Ann era um luxo. Desde que se conhecia, habituara-se Warren a não pensar em coisas sem as quais tivesse de passar. Teria com certeza de passar sem Ann, podia com certeza passar sem ela. Arreda, feiticeira! Afasta-te, bruxa!

De tempos a tempos, durante os meses seguintes, foi-a vendo num corredor do hospital, no Clube das Enfermeiras, ou no “Grego”, que, por causa dela, acabou por abandonar. É que percebeu que, depois de cada encontro, precisava de a fazer sair do espírito, antes de se pôr a trabalhar.

O que lhe custava muito.

 

Atarracado, gorducho, ofegante do esforço despendido a subir um lanço de escadas, o Dr. Alden Powers encontrou Ran no patamar e deteve-o. Ran sabia de onde ele vinha: de uma reunião das autoridades do hospital, no decorrer da qual se haviam discutido importantes problemas.

- Eh, rapaz!

- Diga.

- Acabo de percorrer alguns relatórios a seu respeito.

O pulso de Warren batia mais depressa: talvez estivesse em causa a sua possibilidade de chegar a assistente-residente. Não porque isso fosse um título impressionante, mas o feliz eleito podia considerar-se um dos três a quem ficava aberta a esperança de obter a residência.

- Você é um rapaz persistente, Warren. Isso traz contrariedades...

O pulso de Warren passou a bater mais devagar, e o desapontamento substituiu o optimismo.

- É o Dr. Prather? - aventurou ele.

- O Prather não tem grande opinião a seu respeito. Você não... não absorve as ideias dele com aquela piedosa fé que se espera...

Ran defendeu-se:

- Se me interrogam sobre um diagnóstico ou um tratamento a aplicar, tenho de expor os meus pontos de vista tais quais eles são... .

- E é isso o que você faz?

Sondavam-lhes os olhos, uns outros olhos penetrantes e cheios de experiência.

- E se você se engana? Então?

- Terei, com certeza, de continuar a cometer os meus erros até descobrir a verdade e fazer melhor - disse melancolicamente Ran.

- Mais vale cometer os próprios erros do que os do vizinho. E, de resto, não os comete demais. Compreende alemão, Warren?

- Muito pouco.

- Pena! Houve em tempos um homem, que valia mais do que nós dois, o qual disse mais ou menos o que você acaba de afirmar. Tinha de expor a verdade tal qual a via. Para ele não existia nenhum outro caminho, embora se lhe escancarasse aos pés o Inferno inteiro.

- Quem era?

- O Dr. Martinho Lutero. Não era um doutor do nosso tipo. Mas possuía aquilo de que todos nós necessitamos: Ich Kann nicht anders, dizia ele. É uma das maiores profissões de fé deste mundo. Não consegue ouvi-lo resmungar na barba pouco eclesiástica, enquanto os grandes bonzos esperavam pelo instante de o fazerem subir à fogueira? Não tinha outra possibilidade, senão a de dizer a verdade tal qual a via. As palavras mais destemidas, mais desesperadas talvez, que já caíram de lábios humanos. Você não é um Lutero. Mas concluiu com assombrosa falta de transição - vai ser assistente-residente. Parabéns!

- Obrigado, doutor.

Era uma pobre, fraca e bem inadequada expressão do que Warren sentia.

- Sabe porquê?

com um largo sorriso, o outro soltou espontaneamente uma resposta arrojada:

- Porque eu depenei as traseiras do seu carro! O senhor tem sido extraordinário para mim, desde então.

- Acusa-me de favoritismo, meu rapaz. Não tem nada uma coisa com a outra. Apanhou o emprego por nós sabermos que você não hesitará em dar-lhe o que tem de melhor. E, se não continuar a progredir, se não chegar a cirurgião-residente, desiludir-me-á muito.

Ao afastar-se, ocorreram à memória de Ran palavras de profecia: como é que Frances Libby tinha conseguido saber? Ou teria sido simples suposição dela?

Só Tim Brennan podia decentemente participar na celebração da grande nova. De espírito opulento, graças à perspectiva de vinte e cinco dólares por mês, Ran deu-se ao luxo de uma chamada telefónica para longe. Poderia Tim vir no sábado seguinte? Tim não podia. Naquela semana, não. Mas, dentro de três semanas, havia um festim organizado pela Associação dos Antigos, e a noite valeria a viagem. Até lá, Ran seria investido das suas honras mais recentes e encontrar-se-ia de posse de ordenado reforçado. Podia esperar Tim para o jantar, e Tim preferia advertir o novo recipiendário de que ia custar-lhe dinheiro.

Fiel à data, Brennan chegou e quase partiu a clavícula de Warren, no exuberante entusiasmo das felicitações.

- Você vem dançar comigo esta noite, pois vem?

- Não, Tim. Acho que não.

- Porquê? Não há rapariga?

- Não se trata disso. Estou cansado e...

- Deixe-se disso! Que direito tem um mandrião como você de estar cansado?

- Lutamos com faltas na cirurgia, agora. Apenas admitiram metade do número habitual de internos. Foi-nos muito difícil, ao Ward e a mim, formá-los e afiná-los. Se quiser alguém que vá ao baile, tem o Larry Wilson. É raríssimo ele faltar a um.

Tim fez uma careta engraçada; mas já Ran o deixara para ir ao telefone. Pouco depois, apareceu Larry Wilson, tão janota como de costume. Vinha corado e de olhos brilhantes.

- Oh! Quem havia de ser senão o nosso velho Tim Brennan! - exclamava, efusivamente. - Como tem passado, seu menino dos campos?

-- Menos mal, Larry.

Apertaram a mão um ao outro, mas, daquele encontro, nada testemunhava o vivo e sincero prazer que haviam sentido, ao encontrar-se, Tim e Ran.

- O mesmo Larry de sempre!

- Se por essas palavras entende que eu estou bêbedo como de costume - disse o outro, sorridente - está a humilhar-me ! Apenas cá tenho quatro, e aguento o álcool tão bem como os outros.

.- Que pensa o Larry do nosso “sempre pronto para o trabalho”, que ganha o prémio de assistente-residente?

Sabendo, de rumores públicos, que Larry, por muito inteligente que fosse, não dava grande coisa, aproveitou Tim cravar alegremente a sua ferroadazinha, contando com a inveja para introduzir o veneno.

- Oh! Magnífico! Perfeito! - disse Larry, distraído. É um dos rapazes mais brilhantes.

Ran, que o observava discretamente, mas com atenção, sentiu-se pouco à vontade e informou-se:

- Esta noite você não está inscrito para as chamadas exteriores, Larry?

- com certeza, com certeza! As chamadas exteriores ser-me-ão feitas para o baile. De resto, as coisas estão a correr bem. E não acho que um médico parteiro de verdade deva sair. Os partos na cidade, acho que lhes falta dignidade. É isso mesmo: falta-lhes dignidade.

- Mas que faz se, apesar de tudo, o chamarem para assistir a um parto fora?

- Assistir-lhe-ei, então! com o meu habitual brio. O Wilson nunca falha. O Wilson tira sempre o bebé vivo!

Tim Brennan interveio:

- Muito gostaria de o ver assistir a um parto de fórceps em cima duma mesa de cozinha, nos confins do campo, a vinte e cinco quilómetros de tudo!

- Você está demasiado “de molho” para poder ir a qualquer chamada - observou Ran. E acrescentou, a modos de advertência: - O que deve fazer é ir tomar um duche frio e desembriagar-se.

- O escutista Ran! - volveu Wilson.

A sua voz estava cheia de malícia e troça. Passou pela porta, mas a cambalear muito.

Até às oito horas, deteve-os o jantar num restaurante italiano - bebendo, comendo, conversando. Tim declarou-se então pronto para as festividades organizadas por Tau Mu Kappa. Uma vez mais, insistiu por que Ran o acompanhasse. Far-lhe-ia bem. Acalmá-lo-ia. Demais, ainda tinham muito que contar um ao outro.

Não. Ran tinha muita pena, mas, de facto, não podia. Muito trabalho no hospital. Supondo que, após o baile, tivesse o peito ainda pesado e cheio de conversa não despejada para ouvidos atentos, supondo igualmente que então estivesse bastante sóbrio ainda para retomar o curso da dita conversa, Tim poderia voltar para o pé dele. Tim mandou-o para o diabo e foi-se aos seus interesses mundanos.

O novo assistente, após ter conservado abertos os olhos até depois da meia-noite, perdeu a resistência e adormeceu. À uma e um quarto, o telefone tocou violentamente. Resmungou e estendeu a mão para a cabeceira, à procura da pêra da luz. Ainda não a tinha encontrado e já a campainha soava de novo.

- Já vai! - gritou ele, irritado.

Pegou no auscultador e pô-lo ao ouvido, pestanejou, com as pupilas contraídas na súbita claridade: “Está o Dr. Warren ao telefone!”

- Eh, Ran! (Era Tim Brennan.) Parecia-me que nunca mais era capaz de o acordar.

- Olá, Tim! Onde está?

- Aqui, no baile. Que grande bronca!

- Que foi?

- Oh! O Larry! Este palerma está um autêntico bêbedo e o hospital requisita-o para um parto exterior.

- Procurou encontrar o Steinert?

- Pois claro que procurei! Já tinha havido uma chamada também à noite, mas mais cedo; foi o Steinert, que ainda lá está. Não há uma só alma em todo o serviço para assistir a este parto, a não ser o Larry. E o imbecil está a morrer de bêbedo, não há maneira de o tirar dali!

- Deixe-me pensar um minuto!

Ran coçou a cabeça. Aquela história podia ocasionar uma série de complicações. Como todos os outros serviços do hospital, a secção de obstetrícia andava entalada com carência de fundos. Tinham assistido no domicílio a todos os partos possíveis. Se ninguém tomasse conta daquele caso externo, as coisas correriam mal para Larry. Mesmo com todas as suas influências, ser-lhe-ia difícil explicar ao estado-maior por que motivo se encontrava bêbedo quando devia satisfazer a qualquer chamada que viesse. Havia uma possibilidade de salvar a situação: podia lá ir o próprio Ran. Passara três meses no serviço de obstetrícia, no quarto ano do curso, e muitas vezes se dirigira a miseráveis tugúrios para ajudar um bebé a entrar no mundo.

- vou eu próprio tratar disso! - anunciou ele.

- Será um refinadíssimo parvo se o fizer - murmurou Tim. - Suponha que corre alguma coisa mal, que tudo se complica, e que você deixa perder a mãe ou o filho, ou mesmo os dois! Ah! Havia de passar um excelente quarto de hora, tentando mostrar aos poderosos porque é que se metera a assistir a um parto exterior - você que, sabe-se lá desde quando, não colhe um bebé. Por mim, deixaria o Larry queimar-se com a própria lenha.

- Não sou capaz disso!

- Ele é o seu menino querido, não é o meu! - respondeu Tim, aborrrecido. - Sirva-lhe de ama quando e como quiser.

- É possível que seja um alarme falso ou qualquer coisa no género! - disse Warren, optimista. - Meta o Larry num táxi e traga-o para o hospital. Apalpe o Hanson, residente dos serviços médicos, e obtenha dele um certificado de que o Larry está indisposto, tão doente que não pode sair. Isso dar-lhe-á tempo para voltar ao estado normal.

- Combinado! -- exclamou Tim, resignando-se. - Você está a cavar o seu próprio túmulo. O tratamento que eu daria a este desavergonhado, já, sem demoras, se fosse possível segurá-lo em pé, seria um soco no focinho.

E o telefone tilintou secamente.

Ran desligou e começou a vestir-se: de noite, punha sempre a roupa nas costas duma cadeira, perto da cama; pronta como as botas do bombeiro. Lançou um olhar curioso para o manual de obstetrícia, que se encontrava na prateleira. Não. Não podia ser. Parecia mal um médico chegar à pressa a um parto com a Obstetrícia de Williams debaixo do braço.

Ao pé do telefone central, no átrio de baixo, encontrou um pequeno italiano todo agitado, passeando dum lado para o outro, mãos na pança.

- Dotor? Você o dotor? Virá depressa, peço, depressa. Maria tem dor. -- Apertou ainda com mais força a rotunda pança e revirou uns olhos brancos, como se estivesse, ele, agonizante: - Sés bambinos, Maria tem já sés. Mas nenhum fez dor como este.

- Perfeitamente, Tony - volveu Ran, cordial. - Pegue nos sacos e galope. A enfermeira e eu estaremos lá dentro de um minuto.

Ao lado da telefonista havia dois sacos preparados pela urgência. O maior continha um maço de roupa esterilizada, o mais pequeno um par de fórceps igualmente esterilizados e enrolados numa capa também esterilizada, anestesias, estimulantes, tudo o que podia ser necessário a um parto vulgar. Havia até um frasquinho de solução salina estéril, para o caso de uma súbita hemorragia - ou um choque que causasse estado inquietante de prostração - exigir imediatamente fluido nas veias, de maneira a aumentar a pressão sanguínea e a reanimar a circulação enfraquecida.

Era hábito, no hospital, mandar seguir os sacos por quem quer que viesse notificar ao serviço que o trabalho começara.

Tony apanhou o saco e desatou a correr.

- Não sabia que o Dr. Warren era parteiro - observou-lhe a telefonista, curiosa.

- O Dr. Wilson achou-se repentinamente indisposto há minutos - respondeu Ran. - Não está em condições de sair. Por isso vou eu substituí-lo.

- Ah! - exclamou, afastando os olhos; mas nos seus lábios flutuava um sorriso, e Warren compreendeu que ela não era parva.

,- Chamou a enfermeira?

~- Aí vem ela.

Uma silhueta esguia - manto escuro, chapéu de veludo, sapatos de salto raso - veio até à telefonista e estendeu-lhe a mão, para pegar num bilhete tirado do arquivo, o qual continha um resumo do caso de que eles iam ocupar-se, bem como as conclusões do exame feito antes de aparecerem as dores. Virou-se, deu com Ran, e endireitou-se, exclamando:

- Oh!

- Boa noite, Miss Trent - disse Warren. - Está pronta?

Ela continuava sem perceber; interrogou a telefonista:

- É o caso do Dr. Wilson ou do Dr. Steinert?

- É o meu caso - abreviou Ran.

Era desagradável sentir-se ignorado da sorte. No fim de contas, as enfermeiras eram obrigadas a certo respeito profissional.

A telefonista explicou:

- O Dr. Wilson está indisposto.

- Indisposto? Mas eu supunha-o no baile...

- Perguntei-lhe se estava pronta, menina - interrompeu Warren, irritado.

Ah, sim?! Ele contava mostrar a sua recentíssima autoridade? A sério? Ann tinha ideias sobre o caso.

- Sim, Dr. Warren - disse ela, com uma atitude repentinamente impecável de correcção e em tudo impessoal.

- Vamos no meu carro.

- Sim, Dr. Warren.

Ele mirou-a com um olhar desconfiado, ia quase para falar. Reflectiu e mordeu a ponta do cachimbo. Ao chegarem à desengonçada “chocolateira”, permitiu-se Ann a sombra dum sorriso, mas, mal ele lhe ordenou, não sem brusquidão, que subisse, obedeceu sem demora, repetindo o seu modesto “Sim, Dr. Warren”.

Obedecendo à imperiosa lei da gravidade, a campana lá desceu a colina e pegou com o número habitual de falhas de motor, mas não mais. Ran virou para a estrada.

- A paciente já tem seis filhos. Tem de correr tudo sem embaraços.

- Sim, Dr. Warren.

- Então, fale, explique-se; que diabo!

Ann achava-se satisfeita por ter sido ele o primeiro a irritar-se:

- Vire à esquerda, siga ao longo da água, vire à direita; é a meio do quarteirão.

Falava como poderia falar um roteiro, se tivesse cordas vocais.

Ran fez parar o carro de encontro ao passeio. No fundo dum corredor, saltou ao encontro deles o homenzinho de havia pouco.

- Onde estar tão tempo? - perguntou ele, com uma voz petulante. - O bambino já está ali!

- Não temos essa sorte! - segredou Warren.

Treparam dois lanços de escada até um quartinho lá do fundo. Numa cama que rangia, via-se a enorme italiana gemendo e debatendo-se, como se cada uma das suas respirações devesse ser a última. Ran tomou-lhe o pulso: o bater era regular e forte, um pouco precipitado. Passou-lhe pelo abdome a mão entendida e disse:

- Parece excelente. vou lavar as mãos e veremos em que ponto de dilatação está ela.

Ann já empregava a tranquila actividade de pessoa para quem a cena não oferece qualquer imprevisto. Mandou para fora do quarto o marido e vários filhos de cabelo escuro. Ao pé da cama aglomeravam-se diversas mulheres, esperando alegremente participar da operação necessária para trazer ao mundo um bebé e da inevitável comezaina que se seguiria. Ann encarregou uma de ir ferver água, outra de juntar uns tantos jornais para os pôr debaixo da paciente, e outra de meter as crianças na cama.

Depois, tirou de um embrulho certa escova esterilizada, que deu a Ran juntamente com um bocado de sabão verde.

- Porta da cozinha. Pode lavar as mãos ali na pia.

Quando ele acabava de o fazer, apareceu Ann.

- Como está ela?

- Acalmou muito. No intervalo de duas dores dorme um bocadinho.

- É o que acontece muitas vezes. Basta chegar o médico

para cessarem as dores. Aprendi-o no quarto ano, ainda me lembro. O Dr. Witridge costumava repetir muitas vezes: “Meus senhores: o melhor meio para resolver o trabalho é aparecer!”

Ann abriu’lhe a porta, para ele não ter de mexer em nada. A parturiente ressonava baixinho. Ran tirou uma toalha esterilizada da mesa de instrumentos que a enfermeira habilmente improvisara com a cobertura duma velha mala. Os pacotes eram feitos precisamente a prever situações como aquela. O invólucro exterior, aberto, formava toalha na mala, cómoda, toucador, ou qualquer outro móvel empregado como substituto das mesas esmaltadas de branco do hospital.

- Quer que lhe dê pituitrina?

Ran pegou na bolsa de talco, que se encontrava dentro do embrulho com as luvas esterilizadas, polvilhou muito bem as mãos, e calçou as ditas luvas. Enfiou a seguir as mangas da camisola branca esterilizada, que Ann pusera na mesa, e estendeu-lhe os cordões, para ela lhos apertar nas costas.

- Emprega-se pituitrina nestes casos? Se não me falham as recordações do quarto ano, não se deve utilizá-la antes de o bebé nascer.

- Larr... O Dr. Wilson recorre geralmente a ela quando está com pressa. Diz que uma pequena dose subcutânea não faz mal nenhum e activa as dores.

- Não faço tenções de passar aqui a noite inteira, mas não quero precipitar as coisas sem necessidade.

- Sim, Dr. Warren.

- Cale-se com isso!

Desta vez, ela rendeu-se à evidência: Ran não era visivelmente daqueles que se podem empurrar para longe demais.

Ele vergou-se e ela ajustou-lhe à cabeça o estetoscópio obstétrico, cujas extremidades lhe meteu nos ouvidos. Presa à testa a campânula do estetoscópio por uma fita metálica, qual lâmpada de mineiro, bastava ao nosso médico inclinar-se e colocar o aparelho em qualquer ponto do ventre da italiana para poder vigiar o coração do bebé, que batia a cento e trinta, ou mais, por minuto. E esta vigilância podia prolongar-se no decorrer de todo o parto, sem ele desesterilizar as mãos.

Pela maneira como Ann segurava no relógio, Ran podia vê-lo enquanto ia contando as rápidas pulsações. Ao erguer a cabeça, carregou o sobrolho:

- Rápido demais. Quase cento e cinquenta. Era melhor limpá-la e examiná-la.

Quando se endireitou de novo, após o exame, Ann inquiriu:

- Alguma coisa que não está bem?

A mulher lamentou-se e cerrou os punhos. De repente, o abdomen tornou-se-lhe duro como madeira e conservou-se assim durante quase um minuto.

- Uma boa dor, aquela - observou Ran. - Esperemos um pouco.

Tirou de cima da mesa um par de luvas sem dedos, bastante grandes para lhe permitirem introduzir nelas as mãos já enluvadas. Fora do hospital, serviam-se muito delas os parteiros, quando esperavam por bebé que não tinha pressa de vir ao mundo. Preservavam as luvas, que se conservavam estéreis, sem que os médicos ficassem obrigados a estar de mãos no ar, para evitar contaminações.

Warren sentou-se na cadeira que Ann lhe empurrou, enquanto ela própria se acomodava o melhor possível num banquinho, perto da cama, o que, de tempos a tempos, e sem incómodos, lhe permitia tomar o pulso a Maria.

- Quanto? - perguntou Warren.

- Cento e vinte.

- Já que teve seis filhos, e sem dificuldades, não há razão aparente para complicações tardias - calculou ele, em voz alta.

- Que pode acontecer?

- Estava precisamente a ver se encontrava na memória o que sabia, há alguns anos, acerca das complicações.

Reuniram as experiências de ambos, as suas leituras e instrução relativa às dificuldades que poderiam sobrevir. Insensivelmente, estabeleceu-se uma atmosfera de camaradagem. Chegaram à mesma conclusão.

- Não há nada a fazer senão esperar.

Minutos depois, ele inclinou-se e aplicou o estetoscópio à pele escura. Ao levantar-se, tinha o rosto ainda mais consternado.

- Continua a subir: o coração do feto está em cento e sessenta.

- Cento e trinta e oito para ela.

^- Não estou a gostar nada disto. A cabeça ainda está muito alta. Isso tornava praticamente impossível o emprego dos fórceps, se tivéssemos de trabalhar à pressa para a salvarmos. vou romper a membrana.

Tirou as luvas exteriores, pegou no gancho de membranas, de longo cabo e curvazinha embotada na outra ponta. Após um instante de trabalho atento, exclamou, aliviado:

- Pronto!

- Talvez isto arranje as coisas.

^- Mesmo assim, é bom verificar o pulso, de tempos a tempos.

- É muito possível que, mesmo depois de nascer, este bebé nos dê trabalho. Talvez fosse bom preparar uma seringa e uma ampola de qualquer estimulante.

- Que estimulante quer?

- Nisso, sabe você melhor do que eu. Não tenho tido oportunidade de dar estimulantes a recém-nascidos, há mais de três anos. Que se emprega hoje em dia?

- Sobretudo adrenalina.

- Pronto. Prepare-a para qualquer eventualidade.

Gradualmente, ia-se dando uma modificação em Maria. Ao passo que, havia pouco, dormia, calma, entre duas contracções, agitava-se presentemente sem interrupção. Mostrava um olhar inquieto, o olhar vago do animal que sente o perigo e busca alguém mais forte que o proteja. Na testa e sobre o lábio superior, escorriam-lhe gotas de suor.

- Dou-lhe cinco minutos - decidiu Ran.

Ambos se conservaram, um grande bocado, atentos e silenciosos. Ran sentia que Ann se esforçava por tomar uma decisão, que realmente tomou:

- Dr. Warren!

- Diga.

- O Larry estava embriagado?

- Eu não vi o Larry.

- Estava embriagado? A mim pode dizer.

- Estava.

- Obrigada.

Carregou instintivamente o sobrolho e murmurou:

- Era o que eu receava.

O seu olhar passava, para além dele, direito a qualquer perturbação e longínqua conjectura.

- Se alguma coisa correr mal aqui, também corre mal para o Larry.

- É o que eu receio.

Ran dizia para consigo mesmo que, com todas as possibilidades, aquilo correria ainda pior para si. Ela não pensava nisso, aparentemente. E porque havia de pensar?

Voltou a mostrar-se puramente profissional, olhos no relógio e dedos perspicazes e sensíveis no punho da paciente.

- Cento e trinta. Mais fraco.

Debaixo do estetoscópio de Ran, batia em andamento louco o outro coração, o pequenino. Dois sinais de perigo!

- Precisamos depressa desta criança, ou então perdemo-la.

- - Quer clorofórmio?

- Não. Éter. Sabe dar éter? - Já dei uma vez.

Observou-lhe o rosto e achou-o pálido, mas calmo e resoluto.

- Há-de conseguir - disse ele. - Receio que tenhamos necessidade de operar um reviramento. Sabe? Vire o corpo da criança para a fazer sair pelos pés. Assim como está não posso agarrá-la com o fórceps.

Ann cortou o alto do recipiente de éter e depois pôs-lhe uma rolhazinha com uma fenda lateral a toda a altura; na fenda colocou uma mecha de algodão, ao longo da qual escorreria regularmente o éter para a máscara com que cobria a boca e o nariz de Maria. Esta murmurou, roncou, tossiu, mal lhe penetraram nos pulmões os vapores irritantes.

- Tem de deitar bastante - explicou Ran. - Se a for sempre vigiando, não há grande risco de lhe dar demais.

Durante alguns momentos, que pareceram intermináveis, apenas se ouviu na sala semi-iluminada a respiração profunda e regular da mulher adormecida. Ann instalou a pilha eléctrica aos pés da cama, de maneira a projectar luz - apesar de fraca, regular - sobre as roupas esterilizadas.

Warren apoiou uma vez mais o estetoscópio ao ventre da mãe:

-- O bebé encontra-se num estado lastimoso. Luvas para o reviramento.

A sua maneira de falar adquirira a brevidade da decisão.

Deixando no rosto da parturiente a máscara de éter, Ann abriu um pacote donde tirou luvas de borracha até ao cotovelo. Ran enfiou-as. Uma vez que começasse a fazer descer a cabeça, teria de ir até ao fim. Por agora, ainda podia telefonar para lhe mandarem a ambulância e transferir assim o caso para o hospital. Era o mais fácil, mas isso provocaria decerto a morte da criança e grave perigo para a mãe, que estava em riscos de sofrer uma hemorragia. Habituara-se Ran a nunca escolher o meio mais fácil. Havia ainda outra solução - o expediente clássico do parteiro inábil, incapaz, ou negligente: podia tirar o bebé, lentamente, e, uma vez morto, declará-lo nado-morto, impressionar a família explicando que fora necessário escolher entre a mãe e o filho, e assim se sairia airosamente. Não. Por amor de Deus, não! Metera-se em apuros: iria até ao fim, o melhor que pudesse.

Oito minutos. Era, agora, o prazo máximo que ainda ousava admitir. Depois, seria naturalmente impossível fazer respirar a criança. A partir de então, começou a lutar com o tempo. Introduziu-se-lhe no espírito, e correu num ritmo alucinante, uma frase absurda, desesperada, incôngrua: “O tempo é essência do contrato... O tempo é essência do contrato...” Que infernal contrato esse em que ele se deixara embrenhar! Se falhasse, teria duas férias na equipa do hospital de Lakeview. Os jovens Drs. Wilson e Warren andariam em busca duma situação - com atestados de serviço sujos. Oito minutos decidiriam. Oito minutos entre a vida e a morte. “O tempo é essência...”

- Olhe para o relógio, Miss Trent.

- Sim, Dr. Warren.

- Daqui a cinco minutos avise-me.

- Sim, Dr. Warren.

Já não havia sombra de troça na repetição, mas a resposta pronta, vinda da disciplina, vinda da subordinada bem educada. Ele continuou o trabalho.

Apareciam agora as pequeninas costelas, a pele que as cobria, muito escura por falta de oxigénio. Onde estariam os braços? Se estivessem estendidos ao lado da cabeça, era o desastre. Trabalhando sem interrupções, remexia o cérebro para encontrar as directivas do manual acerca do melhor que se podia fazer nestes casos. O corpo ia descendo devagar. Costela por costela. Bem se via o sítio onde a pele estivera muito apertada à caixa torácica. Pela testa de Ran deslizava suor, que lhe embebia a máscara e o bivaque; ele bem o sentia.

Ann vigiava o tiquetaque regular do éter a escorrer do recipiente. Minuto a minuto, a sua mão esquerda deslizava pela fronte de Maria, procurando com um dedo a rápida pulsação da artéria temporal, contando as pancadas do coração sobrecarregado, avaliando-lhe o poder de resistência.

- Cinco minutos - disse ela. A ele já pareciam vinte.

- Um pouco de pressão aqui.

No silêncio que enchia o quarto, a sua voz parecia, de repente, alta e dura.

Ann fez um sinal de aquiescência. Apertando o recipiente do éter entre os dedos indicador e máximo, e com os outros dois da mão esquerda conservando a máscara no devido sítio, estendeu a mão direita e fez pressão, ao de leve. Agora, já Ran se lembrava da técnica, tal qual a formulava o manual. Se pudesse trabalhar com a rapidez necessária!... “O tempo é essência...” Oh! Maldita repetição! Ann leu-lhe no rosto uma pergunta ansiosa e respondeu, espontaneamente:

- Já lá vai mais um minuto.

Os braços e as mãos já estavam livres. Tratava-se de trazer à boca o ar, para que a respiração pudesse encher os pulmões torturados pela falta do oxigénio vivificante. Ran afastou os pequenos maxilares e não teve como resposta a aspiração do ar atraído aos pulmões. O pequeno organismo estava excessivamente esgotado para que os seus músculos respiratórios pudessem funcionar sozinhos. A menos que Warren acabasse depressa o parto e pudesse começar a respiração artificial, a criança morreria. Ou estaria já morta?

- Ainda temos um minuto - anunciou a voz, nada calma, de Ann.

A pequenina forma deslizava lentamente para baixo e para fora. Súbito, a cabeça escorregou para trás e tornou a cair, liberta: a criança estava solta!

Ran, que detinha a respiração havia já certo tempo, soltou um suspiro de alívio. O peito do bebé não se agitava de contracções espasmódicas, como devia.

^- Prepare um estimulante.

Enquanto ele praticava os movimentos de respiração artificial naquele corpo que não reagia, Ann abriu uma ampola de adrenalina e passou-a à seringa. Sem perturbar Warren, que continuava metodicamente os movimentos rítmicos donde devia renascer a vida, espetou a agulha e carregou no êmbolo, sem que se desse qualquer reacção. Todavia, fraco mas ininterrupto, continuava perceptível o coração. Se conseguissem “desamarrar” o automatismo respiratório, ainda a criança tinha probabilidade de vida, mas vida presa apenas por um fio.

- Sucção - decidiu ele. - Vigie a Maria; vou tentar encher os pulmões.

Pousou o bebé na mesa dos instrumentos. Antes de se aproximar da italiana, Ann tirou a máscara ao médico, que, desdobrando à pressa uma esponja de gaze estéril, a aplicou na boquinha. Curvou-se depois para a criança, colocou a sua boca na desta, e, muito devagarinho, exalou-lhe o seu ar para os canais. Em seguida, levantou-se e, sempre ao de leve, comprimiu, para de lá expulsar o ar, o peito agora repleto, mas ainda inerte. Esperou angustiosamente pelo arquejo, pelo grito indicador de que o centro respiratório do recém-nascido entrara em funções e dirigia o trabalho dos músculos. Mas não sobreveio esse arquejo. Procurou a fraca palpitação do pulso: continuava a bater. Curvou-se de novo para a criança e recomeçou. Mais uma vez, e mais outra ainda, forçou o ar nos pulmões e obrigou-os a esvaziarem-se de seguida.

E eis que na cor do bebé se deu feliz alteração, empalidecendo o azul escuro da cianose. Notou que um pouco de oxigénio da sua própria respiração era absorvido pelo sangue da criança. Mas não bastava isso: era absolutamente necessário que os centros respiratórios se pusessem a trabalhar por si, sem o que se achariam irreparàvelmente comprometidas as estruturas do cérebro.

Ann aproximou-se da mesa e ficou ali, de pé, considerando com olhar ansioso o corpinho inerte, estendido na toalha esterilizada. Súbito, um ligeiro arquejo, depois outro, depois o choro violento por que eles esperavam. Deformaram-se os traços do bambino, que gritava alegremente. Os pés agitaram-se-lhe; esperneou de felicidade, à medida que os pulmões se lhe enchiam de ar fresco, enviando até à última célula do corpo o oxigénio cuja falta quase o matara. Agora, desaparecia rapidamente a mancha azul e a epiderme adquiria a aparência normal de uma pele de recém-nascido. Esfregavam as pupilas inchadas uns punhos minúsculos, muito vermelhos.

- Até que enfim ! Vimo-la bonita! - exultou Ran.

- Obrigada pelo “vimos” - respondeu Ann.

Pensava-o. Experimentava por ele um sentimento caloroso, que nada devia ao sexo nem a galantarias: provinha da instintiva camaradagem que une aqueles que disputaram e ganharam juntos um combate duro. Algo de semelhante - pensava ela - ao que devia sentir o soldado pelo companheiro.

- De nada. Você é uma boa colaboradora. Como vai a mãe?

Maria respirava com barulho, roncando a cada inspiração. Mas tinha a pele do rosto quase normal.

- Pulso um bocadinho rápido, mas não parece perder muito sangue.

- Deve estar, com certeza, debaixo do efeito do choque. Seria bom dar-lhe uma ampola de pituitrina.

Ann seguiu pronta e rigorosamente as instruções. Desde que a droga estimulou as fibras musculares à contracção, acabou depressa o resto do parto. Enquanto Maria repousava, imóvel, exalando em cada expiração lufadas ácidas de éter, Warren dirigiu a atenção para o bebé, já calmo e respirando regularmente. Para as mãos enluvadas do médico lançou Ann óleo estéril; ele limpou o pequerrucho, que deu um vigoroso grito de protesto quando Ann o envolveu na coberta e o deitou no berço.

Após isso, verificou mais uma vez o pulso da mãe.

- bom?

- Não. Fraco e rápido demais.

- Conviria dar-lhe uma intravenosa. Tem à mão qualquer solução salina, não é verdade?

Desfez-se das luvas e da camisola e ocupou, à cabeceira da cama, o lugar da rapariga, que desempacotou o tubo estéril e aqueceu o frasco de solução numa tina de água quente, encontrada na cozinha. Ran observou-lhe os movimentos precisos e prontos das mãos, enquanto ela ia ajustando ao frasquinho o tubo donde cuidadosamente expulsava o ar. Este, se ficasse lá, poderia ser injectado na veia, juntamente com a solução, e, viajando pelo corpo como um coágulo, correria o risco de bloquear, com desastrosas consequências, qualquer artéria vital do coração, do cérebro ou dos pulmões.

Por duas vezes verificou a perfeita expulsão do ar, e depois estendeu para Warren a seringa fixa na ponta do tubo. Apertou uma ligadura à volta do braço de Maria, desinfectou com iodo e álcool a parte interior do cotovelo, e segurou ao alto o frasco de solução salina, enquanto Ran espetava a agulha na pele, na fina parede da veia (que a pressão do torniquete enchera de sangue) e a fazia penetrar cerca de um quarto de polegada. Quando retirou o êmbolo, a seringa encheu-se.

- Está calma - disse ele, ao tirar a ligadura. - É pena não ter um gancho para pendurar este frasquinho.

- Eu posso segurar nele.

Em silêncio, viram baixar regularmente o nível da solução salina, enquanto o fluido, penetrando nas veias, era transportado pela circulação a todo o corpo. Ann já sentia o pulso de Maria ganhar mais amplitude, uma cadência mais regular, e perder a rapidez errante que indicava o choque e anunciava a próxima derrocada.

- Melhor?

Ann fez um sinal afirmativo.

- Ainda teremos algumas horas de sono, esta noite.

- Bem preciso - admitiu ela.

Entraram na veia as últimas gotas da solução salina. A italiana gemia e mudava a cabeça dum sítio para o outro. Tinha o pulso calmo, regular, facilmente perceptível. A criança, tranquila, ia dormindo. Enquanto Ann estendia um pano no chão e começava a juntar nele o material, Warren abriu a porta do quarto vizinho.

De lá saiu um burburinho de excitação, mal os parentes e vizinhos reunidos compreenderam que mais uma vez se realizara o velho milagre do nascimento. Nenhum deles adivinhou que roçara pela mãe e pelo filho a asa da tragédia, nem que a persistente coragem do médico e da enfermeira haviam ganho bem critica batalha.

- Tem um rapazão, Tony - disse Ran ao pai, pálido pela angústia da espera.

- Esteve mal?

- Um bocado. Mas agora tudo está óptimo. Quando a Maria se levantar, naturalmente dói-lhe o coração, mas mais nada.

Na face morena do italiano abriu-se um sorriso. Precipitou-se para dentro a toda a pressa e a toda a pressa voltou, com uma barriguda garrafa e três copos:

- Vinho! - Estava radiante. - Um pouco de vinho sobre o bambino.

- Obrigada, que tudo acabe bem! - disse Ann, com um trémulo suspiro. - Tive um medo louco, durante um bom bocado.

O rosto de Ran perdeu a alegria. Acabava de se lembrar de qualquer coisa:

- É verdade, você estava particularmente interessada na aventura.

- Estava? Porquê?

A voz de Ann punha-a na defensiva, mas, ao mesmo tempo, continha um desafio.

- Estava preocupada com o Larry Wilson, não é verdade? Seria mau para ele, se tivéssemos falhado. “

- Muito pior para si, doutor - respondeu ela, olhar leal e aberto fixo nele. - E não teria culpa nenhuma. Passaria o pior quarto de hora da vida a explicar aos pontífices como é que um assistente-residente de cirurgia se designara a si próprio para efectuar uma operação magna de obstetrícia. Não acha?

Ran sentiu-se levado à temeridade e indagou sem rodeios:

- Está noiva do Larry?

- Isso só a mim diz respeito, Dr. Warren.

- Óptimo. Procedi mal.

Acabaram o empacotamento e desceram para o frio e para as trevas exteriores. Após certo tempo preliminar, empregue a tossir, a cuspir e a falhar, o motor pegou ruidosamente. Atravessaram ruas desertas; só o toque-toque do cavalo do leiteiro evocava o próximo fim da noite. Acumuladas a sul, por cima da ribeira, velavam a Lua negras nuvens de temporal. Mas, aqui e além, brilhava no escuro uma estrela audaciosa. - Passámos lá quase toda a noite - observou Ran.

- O sono que pudermos dormir não nos será com certeza pesado!

- Francamente, não nego que foi uma experiência bem estimulante esta minha pequena incursão no campo da obstetrícia. Se alguém me tivesse dito que, antes de amanhecer, eu haveria de operar um reviramento e uma extracção, chamava-lhe doido!

- Isto tem ao menos uma coisa boa: nunca se sabe o género de surpresas que o minuto seguinte pode trazer-nos.

O carro chegou esfalfado à última curva, na alameda circular diante do hospital, e deixou-se escorregar no plano inclinado que levava ao parque, onde se instalou com uma espécie de suspiro de alívio, como se se felicitasse de ter realmente chegado ao poiso. Por um momento, nenhum dos dois ocupantes fez qualquer movimento para sair.

- Você ajudou-me muito - declarou finalmente Ran. Fazemos uma equipa muito razoável, não acha?

“Este terceiro copázio de vinho devia ser animado por um traço de perigoso experimentalismo”, pensou Ann.

- Sim, Dr. Warren - respondeu ela.

- Oh, meu Deus! Voltámos a esse ponto?

- Sim, Dr. Warren.

- E todo o tempo os seus olhos disseram: “Vá para o diabo, Dr. Warren! Bolas!”- Apanhou-a pelos ombros e beijou-a com firmeza. - Aí tem, para lhe ensinar a dizer sim! Mudaram-se as coisas?

- Não, Dr. Warren.

Mas - disso tinha ele a certeza - durante um minuto, antes de ela se afastar, haviam-se enternecido nos seus os lábios da rapariga.

- E não quer dizer-me o que há entre você e o Larry?

Ann recuperou senso e razão:

- Não. Não quero. Mas digo-lhe o seguinte: sou enfermeira. Trabalho rijo para ser boa enfermeira. Gosto disto. Nos meus projectos, não há tempo nem lugar para romances. Se quiser que sejamos amigos, com este princípio, de acordo. Tenho de ser honesta e franca consigo, porque o acho franco e honesto. Uma pessoa fina.

- Combinado. Aceito o princípio.

E ficou muito admirado ao ouvir-se acrescentar:

- Mas hâ-de ser muito duro.

Ela também se admirou um pouco com a séria tranquilidade da afirmação.

 

Nessa noite, Ran teve muito pouco tempo para dormir. Às oito horas já se encontrava na principal sala de operações. Passava do meio-dia quando, terminada a última operação inscrita, ele pôde deixar as luvas e despir a camisola. Encontrou Tim Brennan no grande corredor que levava à sala de jantar.

- Já a pé! Não esperava vê-lo fora da cama antes do almoço, após uma noite de reinação e orgia!

- Tenho de apanhar o comboio! É esse o veneno duma situação como a minha: não há possibilidade de se estar ausente vinte e quatro horas! Se por acaso tal acontece, a primeira coisa que se sabe, ao voltar, é que uma mãe, cujo parto se esperava para muito mais tarde, se lembrou de dar à luz o descendente antes do que devia, de maneira que se perderam trinta dólares limpinhos!

- Como correu a noite?

- Extraordinariamente, se não tivesse sido preciso vir cá trazer aquele piolho e metê-lo na cama.

- Não teve dificuldades no parto?

- Ainda assim, não. Apenas uma separação da placenta, além de um reviramento e uma extracção.

- Mais nada ? Acabou em bem?

- No fim de contas, acabou. Mas o bebé precisou de respiração artificial durante alguns minutos, e a mãe de mil centímetros cúbicos de solução salina intravenosa.

- Empregou todo o seu talento duma só vez, homem! Tem mesmo de ser o último dos idiotas para se mostrar tão banana com o Larry Wilson! Foi uma sorte para os dois as coisas terem corrido bem. Mas, a correrem mal, não seria o Larry quem sofreria o pior. Ao Dr. Randolph Warren é que cortariam as pernas. Profissionalmente falando.

Ran aquiesceu com um gesto. Não havia discussão possível.

Tim passou afectuosamente o braço pelos ombros do amigo e disse, num tom mais sério:

- O que há de grave, Ran, é você pensar sempre em aguentar com as dificuldades dos outros. Esse espírito de cruzada não o levará longe. As pessoas a quem ajuda serpentearão atrás de si para lhe morder. Quando se tratar de arranjar clientela, há-de ver que consigo só você se preocupa. O tipo do lado anda muito atarefado com a vida dele, e não se preocupa com a do Ran!

- A filosofia do “duro de roer”, exposta pelo mais terno de todos os animais do mundo! Essa não pode vender-ma, Tim! Experimente outra.

Tim resmungou:

- Que tenciona fazer quando acabar isto?

- Não faço a mais pequena ideia. Se me pusesse a sonhar, até daria a camisa para me agregar como cirurgião a qualquer grupo clínico...

- Grande obra, se conseguir meter-se lá! Mas há tantos candidatos a esses empregos, que não lhes pagam o suficiente para garantir a subsistência duma pulga.

- O salário não tem muita importância. Desde que me dê para viver, não peço mais. O que me seduz nesta ideia de grupo clínico, é cada um poder limitar-se àquilo para que se considera mais apto, mais preparado, àquilo para que nasceu. Se tal se mostrar impossível, acho que começo por abrir um consultório de clínica geral para, gradualmente, ir chegando à cirurgia.

- Eu decidi, mais ou menos, ver o que pode dar aquela coisa de Georgie, de que lhe falei. Se por lá ouvir falar de qualquer situação boa, antes de você deixar isto para se meter em trabalhos de que não percebe nada...

- Você ficaria admirado se visse o que eu aprendi esta noite! Obstetrícia bastante para dispensar um curso completo.

- ...dir-lho-ei - concluiu plàcidamente Tim. - Até à vista, pobre diabo!

 

As visitas às salas e ao serviço das urgências ocuparam Ran até às nove da noite. Não tinha nenhum motivo particular para ir à clínica das mulheres, mas, sem saber bem porquê, achou-se de pé frente à porta aberta da sala onde trabalhavam as enfermeiras dos serviços exteriores de obstetrícia.

Sobre uma mesa, debruçava-se Ann, preparando o que havia para esterilizar. Tirara a touca e os cabelos estavam todos revoltos pelo calor. Ergueu a cabeça, levantou-se, e estendeu a mão para a touca.

- Não vale a pena - declarou Ran. - Visita não oficial. Ouviu alguma coisa a respeito da Maria?

- Foi lá a enfermeira de dia dar banho à criança. Mãe e filho vão bem. O Tony espalha por toda a parte o evangelho do melhor médico-parteiro, que lhe salvou a mulher e o bambino.

- Aí está a glória! - lamentou-se Ran. -- Passo anos e anos a querer fazer-me cirurgião, e ninguém dá por isso. Arrisco-me a querer passar por obstetra e, pronto!, tenho a reputação feita!

Ann sorriu e retomou o trabalho.

- Você e eu resolvemos ser amigos - recomeçou o visitante.

- com certas reservas - acentuou ela.

- Ficou-lhe, contudo, uma segunda intenção, que eu não adivinho. A mim próprio pergunto: que tem contra mim?

Ann estudou-o e depois:

- Quer que seja franca?

- Não. Mas, a título documental, faça como se eu quisesse.

- Pois bem! Acho-o muito vaidoso!

- Não sou! - disse ele, honestamente ferido.

- É. Tenho muito medo que o seja. O facto de todos os internos e todas as enfermeiras o considerarem com um santo terror levou-o a achar que tudo lhe é devido.

.- Acha que tenho o complexo de Jesus Cristo? - perguntou ele.

Era assim que os estudantes diziam: maneira científica de traduzir “considerar-se Deus”. Os cirurgiões novos passavam por lhe ser particularmente susceptíveis.

- Sim, um pouco.

- Seja. Mais nada?

- Mais. Falta-lhe cortesia e delicadeza.

- Por exemplo?

- Você entra aqui e enche a sala de fumo de cachimbo, sem sequer perguntar se isso me incomoda.

- São maus hábitos que tenho. Vêm-me naturalmente. Isso não quer dizer nada.

- Não tem importância - disse ela, detendo-o, ao vê-lo ir despejar o cachimbo para a pia. - Mas há uma coisa que tem importância: é o resmungar com as enfermeiras.

- Apenas quando elas pretendem dizer-me o que eu devo fazer ou quando me passam tesouras que eu não quereria nem sequer para desenterrar batatas.

Isso fê-la rir. Mas continuou:

- Em geral não gosto dos internos.

- Eu não sou exactamente um interno.

- O princípio é o mesmo. Cada rapariga que encontram lhes parece apenas uma nova aventura.

- Se isso é uma advertência - disse ele, brandamente - torna-se inútil. Se ultrapassei um bocadinho os limites, ontem à noite, é que a Ann foi bastante provocante, bem sabe.

- Sim, Dr. Warren - admitiu ela, submissa.

- Posso enganar-me nos outros pontos, mas não sou nenhum Casanova - volveu ele, dirigindo-lhe um olhar rude, que ela teve a prudência de não devolver. - Todavia, se lhe agrada muito, posso oferecer-lhe um apito de polícia como instrumento de protecção, no caso de sairmos juntos.

- É um convite?

- Podia vir a ser. Quais são as suas preferências em matéria de cinema? E quando...?

- Muito bem, sim, senhor! - disse, da porta, uma voz alegre e divertida. - A esperança do meu coração com o meu colega! Há quanto tempo chegaram as coisas a esse ponto? Entrava Larry Wilson, despreocupadamente. Mesmo a esta tardia hora, tinha perfeitamente o ar do médico de família. Ran apelou para o testemunho dele:

- Eu sou rabugento, Larry?

- Quem disse? A Ann?

- Ou aproximadamente.

- Pois bem! Pode vir a ser melhor!

Larry apoiou judiciosamente a sua opinião:

- Os rapazes da cirurgia dizem que você se está a tornar tão nervoso como o próprio Stokie. E ainda não é o Stokoff, bem sabe - acrescentou, com o seu sedutor sorriso. - A propósito: muito obrigado por ter pegado em armas por mim, ontem à noite.

- Não pense mais no caso. Sem isso, eu não poderia experimentar fazer equipa com Miss Trent.

- Ah, é assim?

De um para o outro iam uns olhos vivos e claros.

- Não sabia que a Ann e eu somos, por assim dizer, amigos de infância, pois não? Já agora, vamos os três ao “Grego”, beber uma soda.

O alto-falante do corredor lançou um ruidoso apelo: “Dr. Warren, Dr. Randolph Warren, Dr. Warren”.

- Assim, está dada a minha resposta - disse Ran, desolado, ao levantar o auscultador. - É talvez ainda aquela insuportável sala dos acidentes! Procurarei encontrá-los mais logo.

A chamada era de pouca importância e demorou pouco.

Dirigia-se ele para a saída mais próxima da loja do “Grego”, assobiando, quando surgiu uma interrupção que lhe eliminou da ideia o “Grego”, a sala, Larry, e mesmo Ann Trent. Gray, o radiólogo, quase lhe ia dando um encontrão, ao dobrar rapidamente a esquina.

- Exactamente o homem que eu queria encontrar!

- Pois bem! Aqui estou, infelizmente.

- Entre por aqui.

Ran seguiu-o até ao laboratório. O radiólogo colocou à frente dele, no observador brilhantemente iluminado, várias chapas e afastou-se para lhe permitir observá-las à vontade. Não havia engano possível quanto ao que se passava, no osso tão claramente representado. Aquela superfície rendilhada mesmo por cima do joelho, aquelas espículas irradiantes, que davam ao conjunto a aparência de estrela, só podiam significar uma coisa:

- - Sarcoma - pronunciou ele. - Osteogénica. Típica e verdadeiramente interessante.

- Ainda ficará mais interessado daqui a pouco - comentou melancolicamente o homem dos raios X- A quem acha que pertence esta perna?

- Não faço ideia nenhuma.

- Ao Pee Wee Harter.

- Meu Deus!

Foi a força do horror que o sacudiu que arrancou a Warren aquela exclamação.

- Que diz você?

- Talvez haja uma possibilidade... Poderíamos operar... Chamaria o Powers. Há sempre uma possibilidade. A não ser... a não ser que...

Para fazer a pergunta, teve Warren de se vencer. Ter-se-ia estendido, espalhado naquele corpo indefeso o cancro mortal?

- A não ser que... Tem outras chapas?

- Quer dizer: chapas doutros pontos do corpo? Do peito?

Ran limitou-se a responder com um gesto afirmativo.

- Ainda não. Só hoje conseguimos esta. Como vi que o Pee Wee coxeava, arranjei as coisas para ele entrar. Riu-se de mim, mas veio.

- Ele suspeita?

- Não, absolutamente de nada! Pelo menos, acho que não. Bem sabe como é o Pee Wee: sempre tão metido com os seus “casos” que nem pensa nele próprio.

- Vê alguma possibilidade de terapia profunda, de amputação?

- Nenhuma. Avançado de mais para isso.

- Então - murmurou a custo Ran - sou eu que tenho de... Obrigado, Jim.

Ao dirigir-se, a passos largos, para o seu gabinete, ia dizendo para consigo que, se alguma vez abandonasse a cirurgia, seria por uma razão daquele género. Semelhante prova arrancava qualquer coisa. Nada valia para um homem ter assim o coração mordido de compaixão, ler numa chapa o inevitável e fatal destino dum amigo, ver apagar-se uma vida boa, prestável, limpa, útil, que no nosso coração ganhara vasto e profundo lugar, e ficar-se inútil, inerte, ineficaz, quando muito em condições de amaldiçoar a ciência médica pelo que ela ainda não descobriu:

Como poderia ele informar Pee Wee da morte inevitavelmente próxima?

A primeira impressão foi desembaraçar-se logo da horrível missão. Acabar com ela. Afastou selvagemente a tentação. Porquê infligir ao pobre diabo uma noite suplementar de angústia? Para Ran, também não foi agradável nem repousante aquela noite: nenhum caso lhe veio ocupar as mãos ou o espírito; couberam-lhe horas de inactividade completamente desabitual, que lhe deixaram todo o tempo para sofrer. Nunca desejara tanto urgências, a fim de encher a vista com outras imagens, diferentes daquele horror tão delicadamente esbatido na chapa.

A manhã veio encontrá-lo amarelado e deprimido. Às dez horas, entrou alegremente Pee Wee. Vinha todo satisfeito com um deslocamento da espinal-medula, entusiasmado porque havia operado com anestesia local, por causa de más condições cardíacas.

- E diabos me levem - exclamou ele, seduzido - se não acertámos em cheio num cancro! Que sorte a daquele pássaro em termos chegado a tempo!

Durante alguns segundos, Ran sentiu-se à beira duma náusea. Recompôs-se e obrigou-se a seguir a linha traçada durante a insónia.

- Há quanto tempo coxeia você assim, Pee Wee?

- Não sei. Não faço mesmo ideia. Já há algum tempo. Não tem importância. Oiça: mal injectámos a novocaína...

- Sofre?

- Tão pouco que nem vale a pena falar nisso. Como eu ia a dizer, o velho Powsie estava espantoso. Mal ele...

- Desculpe, deixe o Powers. Estamos a falar do Pee Wee. Nunca feriu essa perna?

- Feri-a a jogar futebol, em tempos... Mas não abandonei a equipa mais de uma semana. Esta manhã, mal o Powsie viu a induração...

- Mande a induração para o diabo! Alguém lhe observou recentemente a perna?

- Observaram.

- Quem e quando?

- Há talvez dois meses. Tinha eu ido a Nova Iorque ver a Sybilla Barr. Tem uma boa situação na policlínica feminina. Ficou muito perturbada por eu ter perdido peso. Expliquei-lhe que isso se devia a uma vida activa, consagrada a trabalho duro e honesto, ao que se acrescentavam ainda os seus processos de negreiro. (O seus referia-se a Ran.) Não bastou isso: não sossegou enquanto eu não fui visto por um tipo. Um passarão chamado Fisher Browne.

- É bom, eu conheço-o.

- Pois bem! - disse, triunfante, Pee V/ee. - Corre tudo bem. Ele não encontrou mesmo nada.

Ran achou a coisa muito provável; muitas vezes o exame prematuro corre o risco de não mostrar nada.

- Não o mandou fazer raios X?

- Ora, bem me falou deles. Mas eu andava muito ocupado para poder pensar nisso, até que ontem o Jim Gray me obrigou a passar lá pelo aparelho.

Ran pousou a mão no braço dele:

- Eu vi a chapa, Pee Wee...

O rapaz encarou-o, surpreso. A cor abandonou-lhe, pouco a pouco, as faces. Pôs-se a tossir nervosamente. O ataque de tosse atingiu logo tal paroxismo, que toda a carcaça se agitava. Tacteou, procurou pelas algibeiras, encontrou enfim um lenço, apertou-o à boca. E tirou-o, sujo de sangue.

- Há quanto tempo dura isso? - perguntou logo Ran.

- Já tusso há algumas semanas.

- Sangue?

- Muito pouco. Uma ou duas vezes, não mais.

Parecia desculpar-se, defender-se, suplicar a Ran que o não censurasse: não podia evitar.

- E não fez nada para isso?

- É claro que fiz! - retorquiu o outro. - Tirei uma análise. Absolutamente negativa! Nem um micróbio... Acha-me tuberculoso, Ran?

- Não é tuberculose, meu caro. Quem me dera que fosse! Quem dera!

A grande mão de Pee Wee desceu até ao joelho dorido, apalpou-o, deteve-se nele. Os lábios endureceram-se-lhe numa palavra sem som. Ran abanou a cabeça afirmativamente. Metástase!: davam a volta ao corpo células cancerosas, vagabundas mortais, já separadas do núcleo original. Logicamente, deveriam atacar primeiro os pulmões, visto que todo o sangue lá passa, forçosamente, várias vezes por minuto. Era muito provável que já tivessem imigrado para outros pontos. Fechando os olhos, Ran via, tão claramente como se tivesse à frente uma imagem radioscópica, as zonas de destruição na profundidade dos pulmões, semelhantes a bolas de neve de contornos esbatidos.

Agora estava a falar Pee Wee, com voz calma:

- Quanto tempo, Ran?

- Como hei-de saber? Você é robusto e...

- Pois sim! (Abandonou-o a calma.) É espantoso, hem? Seria uma grande batalha médica! “Combate, combate, soldado cristão!”

- Devagar, meu velho.

- Lastimo, Ran. Não tenho qualquer intenção de ser mau para você. A consideração científica tem os seus direitos.

Conseguiu esboçar um magro sorriso.

- É o problemazinho do sofrimento. Se bem me recordo do texto do manual, não tem grandes probabilidades de diminuir.

- Acha que não?

- Que pensa? Encarrega-se do caso?

- vou consultar o Dr. Powers.

- Não, não vai.

- Conhece alguém melhor?

- Não há ninguém melhor que o Powers. É precisamente por isso. Ele procuraria conservar-me a vida o mais possível.

- E então?

- Eu sou um cobarde, Ran.

- É sobretudo um mentiroso, Pee Wee.

- Não posso, Ran. Não posso receber isso. Bem vê que eu sei muito bem. E, afinal, para quê?

Ran caminhou até à janela e olhou para fora. Seguia-o a voz implorante de Pee Wee.

- Que vai fazer por mim, Ran? (Pausa.) Bem sabe que eu faria o mesmo por si. Bem sabe!

Warren dirigiu-se outra vez para o pé dele. Tirando um bloco-notas da algibeira, disse com uma voz voluntariamente profissional e seca:

- vou passar uma receita: “Solução de Schlesinger... 100 cm3”; e a posologia: “10 gotas, de quatro em quatro horas, se a dor for forte”.

Estendeu-lhe o papel, que Pee Wee segurou, olhos iluminados pelo brilho antigo:

- Obrigado, Ran!

- Compreende... Bem sabe que é um produto extraordinariamente activo. Se ultrapassar a dose...

Deixou suspensa a frase.

- Compreendo. E... Ran...

- Que é?

- Não diga nada aos outros.

- com certeza, se assim prefere.

’- Não há necessidade nenhuma de se afligirem antes de tempo - disse Pee Wee, racionalmente.

- vou prevenir o Jim Gray que ponha uma rolha. E inscrevo-o na lista dos doentes.

- Combinado. Boa noite!

Muito custou a Ran não deixar transparecer a emoção que o dominava, ao ver com que coragem Pee Wee procurava não coxear, quando se foi embora: as tradições hospitalares não admitem grandes exibições sentimentais.

Meteram Pee Wee na cama. Dois dias depois, de manhã, achava-se Warren com Steinert, examinando um ponto discutível de ginecologia cirúrgica, quando a telefonista deu com ele:

- Uma chamada de fora, Dr. Warren. Chamam-no de Nova Iorque. A chamada vem dum hospital, mas não consegui perceber o nome.

Após os preliminares do costume, disse muito claramente uma voz feminina:

- É o Dr. Warren? Viva, Ran!

- Viva! Quem fala?

- Barr. A Sybilla Barr.

- Ah! Viva, Syb! Tenho muito prazer em ouvi-la.

Mas pesava-lhe o coração, apreensivo.

- Recebi uma carta do Pee Wee, no correio desta manhã.

Pronto! Já estava! Se ela fizesse perguntas, teria de lhe responder... de dizer a verdade,..

- Sim?

- Que é que lhe aconteceu? Amor contrariado, ou quê?

- Você deve saber melhor do que ninguém - retorquiu Warren, demorando a custosa e inevitável necessidade.

- Oh! Hoje somos apenas camaradas. Mas, vindo do Pee Wee, era uma carta estranha. Qualquer coisa como um “adeus, ó terra dos homens!”, uma espécie de perfume de açucena murcha, sabe? E como não consegui falar com ele, chamei-o a si.

- Que diz? - A voz de Ran era cortante, devido à inquietação: - Não pôde falar com ele? Espere um instante. Não desligue. - Tapou o bocal com a mão e, dirigindo-se ao seu hóspede: - Ike! Quer ir até ao quarto do Pee Wee? Não conseguem falar com ele. Talvez esteja doente.

Steinert aquiesceu com um gesto e partiu. A longínqua voz impacientou-se:

- Enfim, que há, Warren?

- Más notícias, Syb.

Um suspiro, e depois:

- Tinha esse pressentimento, eu. Vamos.

- Observou-lhe a perna, da última vez que ele esteve em Nova Iorque?

- Notei o aspecto geral. E não me mostrou nada de bom. Fale, sim?

- Cancro osteogénico.

Um pequeno gemido, e depois:

- Alguma esperança?

- Não. Os pulmões estão atacados.

- Estou a ver. Quem o trata?

- Eu.

- Que tratamento?

Ran respondeu claramente, distintamente:

^ Solução de Schlesinger.

Longa pausa.

- bom Schlesinger! Você... não foi muito... económico na dose?

- Não. Espere um momento. Não desligue.

No vão da porta encontrava-se Steinert. Concentravam-se, com visível esforço, os seus olhos negros, pesados daquele olhar estranho, semi-inquisidor, da raça e da tragédia da raça. Levou a mão ao queixo lívido, havia pouco rapado, como para o impedir de tremer.

- Cheguei demasiado tarde - informou ele.

- Está? Está? Syb... Acabam de o encontrar... - Não houve resposta. Julgou que ela não tinha ouvido: - Syb! Não me ouve? Acabam de...

Uma voz muito baixa:

^- Eu ouvi. Que Deus o abençoe, Ran.

A mão de Ike Steinert pousava-lhe no ombro:

- Seria melhor ir uma ou duas horas para o seu quarto, Ran.

Era exactamente o que ele também achava. Perturbava-se-lhe o espírito. Estava tudo em ordem, mesmo tudo. Oficialmente, chamar-se-ia àquilo uma morte acidental, devido a uma ingestão demasiado forte de morfina. De facto, era, sem tirar nem pôr, um crime. E o criminoso era ele. Cúmplice dum suicídio. Sabia-o Sybilla Barr. Suspeitava-o, sem dúvida, Ike Steinert. O mesmo fariam talvez outros mais. Ran não se preocupava com isso. Para evitar ao amigo semanas, talvez meses, de lenta e incurável agonia, violara o juramento de Hipócrates, aquele mesmo juramento que, com tão grande e sincero fervor, repetira depois de Paddy Ryan. Muito bem: nas mesmas circunstâncias, Paddy teria feito exactamente o mesmo. E Hipócrates também, sem dúvida, se era o homem que Warren supunha. Sybilla Barr invocara para ele a bênção divina, por ele haver posto fim (era isso, realmente!) a uma vida, após ter jurado defender toda e qualquer vida. Precisava desse reconforto e de tal apoio.

Coisa curiosa, conflito profundo, essa elevada profissão: a profissão médica.

 

Por muito cordiais que possam ser as suas intenções, quem trabalha num hospital apenas tem limitadas oportunidades de vida social. Ran fez surgir as ocasiões o melhor que pôde, levando Ann ao cinema, quando as suas horas de folga coincidiam, encontrando-se com ela no “Grego”. Uma ou duas vezes convidou até a rapariga para jantar, o que os meios não lhe permitiam. Juntos, conversavam acerca da profissão, comparavam recordações e convicções, e aventuravam-se em algumas incursões nos domínios das letras e da vida. Menos atento e menos analítico que o de Ran, era o espírito de Ann rápido, agudo, estimulante. Ran encontrava nele um excitante, um complemento, que se exercia precisamente na direcção que mais necessária lhe era.

Pelo seu lado, Ann adquiria consciência de um respeito cada vez maior pela austera integridade, pela simplicidade, pela habilidade técnica do companheiro. Tinham conseguido estar absolutamente à vontade um ao pé do outro. Uma vez, uma só, deixara ela ver o lado emotivo, sensível, da sua natureza: no funeral de Pee Wee Harter, antes de o corpo ser enviado à família para as exéquias. Ran não se virara para ver quem se dirigia ao banco onde ele se encontrava, ao fundo da igreja, até que a voz de Ann, mesmo ao ouvido, lhe murmurou num tom de sincera compaixão:

- Era muito amigo dele, não é verdade?

- Era.

- Mal o conheci, mas sei que ele era bom e corajoso. Por isso vim, para estar com o doutor.

- Isso consola-me.

Ela levou os dedos, lentamente, para as mãos do rapaz e deixou-os lá ficar durante todo o tempo do breve ofício. No fim, disse Ran:

- Nunca esquecerei isto, Ann.

Fez um sinal amigo com a cabeça e partiu.

Após isso, parecia incrível a sua querela. Abominável. Seria, propriamente, uma querela? Ou algo pior? Podem resolver-se as querelas entre amigos. Aquilo era uma ruptura, surgida de trivial divergência sobre problemas puramente exteriores, a qual foi aumentando até que todo o edifício da sua camaradagem, da sua amizade, se desuniu e desmoronou nas próprias funções. Uma tempestade num copo de água.

Por acordo tácito, reservaram uma noite por semana para expedições ao mundo exterior. Naquela sexta-feira, parara, como de costume, no pavilhão das enfermeiras, mas para saber que Miss Trent saíra com licença especial. Não, não havia qualquer recado para o Dr. Warren.

Na manhã seguinte, recebeu notícias pelo telefone. Ann encontrava-se na cidade, com certa tia de idade, que, nessa mesma noite, dava um “party”: reservar-se-ia um camarote no teatro para os convidados de Mrs. Gallaudet - a tia. Ora, um destes convidados não podia aparecer, e Ann teve licença para levar um substituto de sua escolha. Aceitaria Ran ir? Sim? Óptimo! Jantariam cedo, para não perderem o princípio. Seis e meia. Deu a morada, número tal de Vernon Place. Nem a morada nem o nome da tia impressionaram de qualquer modo Ran: o seu conhecimento geográfico e social da cidade ficava pelas instituições de caridade, subúrbios inferiores, e doentes de graça.

À tarde - já não era cedo - achou-se muito empenhado no exame do seu melhor casaco. Ser-lhe-ia fácil examinar as nódoas. Mas que tratamento daria força e juventude a mangas tão lustrosas e desbastadas de epiderme que até brilhavam com a luz eléctrica? Tinta? Graxa? Sobre este ponto, discutiram acerbamente duas maneiras de pensar. Pelo seu lado, o tecido reagia de modo que deixava Ran melancólico e perplexo. Estava a meditar neste triste problema, quando Larry Wilson bateu à porta e entrou. O seu olhar observador logo reparou na camisa lavada e no colarinho engomado estendidos na cama.

- Eh, Ran! Uma saltada ao mundo do prazer?

- Olá, Larry. Sim, esta noite saio.

- Um “party”? - Larry tinha uma sã e alegre curiosidade, que muito raramente continha. - Onde?

- Mount Vernon Place. Escrevi o número não sei onde...

- Olá! Vai a trepar, meu caro! Não será talvez em casa da velha Mrs. Gallaudet?

O olhar tornara-se-lhe inquisidor. Ran respondeu logo, cheio de esperança:

- Isso mesmo. Você também vai?

- Não; esta noite não - disse ele com voz ligeiramente acerba. - É claro que também lá vou às vezes, muitas vezes até. Agora é que me lembro: a Ann Trent perguntou-me, há já algum tempo, se eu estava disponível neste fim de semana. Tive de lhe responder que não.

- Então, é provável que seja eu o seu substituto - admitiu calmamente Ran.

Preferia, é claro, que Ann o houvesse escolhido em primeira mão. Mas não podia esperar precedência sobre o elegante, o brilhante Larry.

- Diga-me uma coisa, Larry: acha que faria bem tinta aqui?

- Por amor de Deus!

Larry não fazia nada por dissimular o escandalizado horror.

- Não vai levar essa coisa a uma festa em casa de Mrs. Gallaudet, acho eu...

- Então! Não posso levar os brancos: à noite há teatro.

- Fato de noite, ao menos. É muitíssimo provável que os outros vão todos de smoking e gravata branca.

- É isto o que eu tenho de melhor.

- Impossível. Emprestava-lhe o meu smoking, se você lá coubesse... Vejamos... Quem é que conhece bem, que tenha a sua estatura e lhe possa emprestar um? Talvez o Marley, da ginecologia.

- Não o conheço bastante bem para ir passear nas calças dele! Irei como estou, com o que é meu! Acho que não vão pôr-me no olho da rua...

- Ah, isso com certeza que não! - admitiu o amigo, com curiosas inflexões na voz. - Não, com certeza. A senhora é tudo quanto há de mais fino.

Na carripana, Ran ia meditando no incontestável dom que Larry tinha para, o mais sorridentemente possível, fazer penetrar nos outros a dúvida e a inquietação. Depois, censurou-se a si próprio pela sua falta de lealdade perante o amigo. Era absolutamente simples e natural Larry esperar que as pessoas das suas relações se vestissem todas pelos cânones mundanos em uso. Durante toda a vida vivera da sorte, num mundo correcto - o mesmo, pensou de súbito Ran, de Ann. Fora, pois, por instinto e por tradição que Larry fizera o reparo, espontaneamente vindo até aos lábios. Mais do que as convenções, foi a amizade que lhe inspirou a crítica. Era mais que evidente não poder Ran viver nesse regime, nesse nível, de acordo com as exigências desse meio. Nem sequer tentaria, aliás. Experimentou, todavia, uma sensação nova para ele, uma espécie de leve desmoronamento interior, quando, ao arrumar a sua relíquia das antigas idades automobilísticas, a comparou aos objectos de luxo, soberbamente estofados e polidos, alinhados ao longo do passeio. Desmoronamento interior esse, que cresceu à medida que a noite ia avançando, depressa adquiriu peso de chumbo, lhe fez soçobrar o desembaraço já abatido, e acabou por provocar a catástrofe com que terminou aquele nefasto dia. Pode transformar-se em verdadeira tragédia a primeira ferida infligida ao amor próprio e à confiança dum rapaz novo!

Mais tarde, passando revista, com um sentimento de amarga tristeza, aos factos que haviam assinalado aquelas horas sombrias, decidiu Ran que o seu erro capital consistira em não ter desaparecido à procura de refúgio na escuridão protectora da noite, seguindo assim o impulso que o atirava para fora, no momento exacto em que vira aparecer Ann, resplendente no seu vestido de noite.

- Em que me meti eu? - perguntava miseravelmente. - Aonde me deixei arrastar? Parecia-me nunca a ter visto, não a conhecer...

Após uma olhadela involuntária ao fato dele, Ann procurou pô-lo à vontade, dizendo num sorriso:

- Que isso o não afecte de mais! Bem sabe que eu não passo duma parente pobre.

Mas, aos olhos atónitos do visitante, parecia ela a rainha da festa, o centro de atracção, à volta do qual se aglomerava uma dúzia de homens, apresentáveis e de todas as idades. A tia - maciça, atarracada, gorda, ofegante e formidável num sumptuoso amálgama de cetim, coberta de jaca e azeviche - era uma imagem perfeita da dignidade simples e cordial, no meio da sumptuosidade algo murcha do cenário. Embora - como aliás todos os outros - ela tivesse ficado satisfeita de o ver lá, Ran sentiu desde o princípio o mal-estar que ataca toda a pessoa conscientemente deslocada. Começou por se fechar em si próprio, calou-se, primeiro susceptível e por fim contrariado.

Do outro lado da mesa, podia ver Ann observá-lo com crescente embaraço, com ansiedade, depois com um espanto ferido, magoado, até que deixou de todo de olhar para ele. Ficou enfurecido. Sabia-se puerilmente injusto, mas não podia ser doutro modo. Era, pelo menos, essa a desculpa que a si mesmo dava.

O teatro deu-lhe certo alívio. Esforçou-se por se absorver e esquecer na peça. Mas tudo quanto podia ver era o rosto perturbado de Ann. Foi provavelmente o menos atento de todos os espectadores que assistiram à engraçada comédia.

Após isso, surgiu a necessidade de regressar a casa de Mrs. Gallaudet para jantar. Não podia evitar de ir lá, por causa do carro. Mas projectava imediata evasão. E, com o pretexto de ter trabalho no hospital, cumprimentou a senhora e despediu-se. Já ia na porta quando Ann o apanhou.

- Mas, afinal, que é que não está bem?

- Nada. Não é capaz de perceber?

Era amarga a sua expressão. Embora irritada, Ann compreendia-o, em certa medida, e teve a generosidade de o consolar.

- A culpa foi minha. Devia ter-lhe dito que era um “party”.

- Eu sabia - retorquiu ele, secamente. - Aflige-me pensar que posso tê-lo estragado.

- Oh! Isso não tinha importância!

E ele sentiu-se ainda mais miserável do que antes.

- Mas, se... Oh! Afinal!...

Ela fez um gesto que varria a pergunta, que punha ponto final na discussão.

- Desculpe, continue. Já agora podemos ir ao âmago das coisas.

Ela respondeu com voz justamente indignada:

- Você fala como se fosse eu a culpada, como se tivesse que me repreender! Ia a dizer que é disparate fazer tanto caso de pequeninos nadas. Afinal, não é tão difícil adaptarmo-nos às circunstâncias. Temos de aceitar as coisas como elas são e o mundo como ele é.

- Este mundo, não. Podemos abandoná-lo, se quisermos. Não é o meu, e tenho lucidez bastante para o admitir.

Ela mirou-o, não sem piedade:

- Quanto tempo dormiu a última noite?

- Estou bem acordado e na posse de todas as minhas faculdades, creia.

- Julgava gostar muito de si - replicou ela. E depois, lentamente, com crescente pesar: - Enganei-me.

- com certeza! Como podia ser doutro modo? Não vimos do mesmo lado da via férrea.

- Acha-me então uma rapariga tão pretensiosa? A mim própria pergunto que opinião tem a seu respeito.

- Não muito brilhante! Boa noite. Adeus!

Ela afastou-se. Ran não a encarou: não teve coragem.

De regresso, um polícia mandou-o parar, por excesso de velocidade, mas deixou-o logo seguir, ao ver-lhe o caduceu no radiador.

Dias depois, Larry Wilson encontrou Ann no “Grego”.

- Como correu a noite?

- Qual noite?

- A de sábado passado. Em casa da sua venerável tia. Que, entre parêntesis, se esqueceu de me convidar.

- Imperdoável falta da parte dela. Como soube então que tinha lá havido uma festa?

- Surpreendi o nosso amigo Ran Warren nas angústias dos últimos preparativos. Como se saiu ele?

- Atrozmente. Veio com o fato de todos os dias e portou-se como um grosseirão. Não consigo compreender que teria ele na cabeça.

.- Consigo eu: consciência do seu fato. Os primeiros sintomas são estranhos. E custam...

- Então, porque é que ele não foi convenientemente vestido, como toda a gente?

- Não podia, minha querida menina. Não tem nada melhor para vestir. Ao menos, não comeu com a faca?

Larry teve um sorriso cruel. Mas Ann foi áspera na resposta:

- com certeza que não! A maneira de ele estar à mesa é pelo menos tão correcta como a sua, Larry!

- Não admira. São coisas que tiveram de lhe ensinar.

- Tiveram? Quem é que teve? Detesto-o, Larry, quando você fala por charadas.

- Então? Não sabe nada do Ran Warren?

- Não.

- Ah! Foi educado num orfanato. Não tenho sequer a certeza de que saiba qualquer coisa da família. Foi ele que se fez, partindo do nada.

- O quê? Porque é que eu não havia de o ter sabido?! Oh, Larry! Mas isso é trágico!

- Que tem isso de trágico? Se me perguntar que penso a tal respeito, dir-lho-ei: que ele conseguiu triunfar muito bem...

- Sim, mas... Não vê na minha cara?... Quando o vi chegar a casa da tia Lydia daquela maneira, achei que era descuido dele, até mesmo uma espécie de fanfarronice estudantil, de desafio à independência. Ele é independente, sabe? Não me ocorreu que pudesse não ter trajo de noite. Porque não mo teria dito? ’

- O Ran é assim. Para ele, não há explicações.

- Continuo a achar que é de uma obstinação totalmente estúpida. Mas custa-me pensar que posso tê-lo ferido.

Desenhou-se-lhe na testa uma leve ruga de aborrecimento, encheram-se-lhe os olhos de perturbações. com força bem desagradável, abalou-o uma conclusão:

- Diga-me, minha jóia, você não se interessa por esse tipo, pois não?

A pergunta continha implícita a censura.

- Não. Sim. Não sei. Ann era rapariga de extraordinária, de excepcional honestidade.

A resposta fulminou-o:

- Meu Deus! Mas isso não podia ser de modo nenhum. Não que o Ran não seja muito fino, em certa medida. Mas é doutro meio. Deve compreender que isso não podia ser, de modo nenhum!

- Não - admitiu ela. - Não podia ser. - Depois, inflamando-se subitamente: - Mas não por esse motivo!

- Perfeitamente. Mas que motivo?

- Você pensa que ele não serve para mim.

- Pois com certeza que não serve. Então? Nem eu estou certo de servir! - E sorriu, acrescentando: - O que não me apaga a ardente e firme ambição de casar consigo, um dia destes.

- Eu não caso com ninguém um dia destes - garantiu ela, febrilmente. - Demais, se casasse, não seria com um médico. Gostava que fossem autómatos a dirigir os hospitais. Os homens só servem para complicar a vida.

- O Ran já alguma vez lhe falou da vida dele?

- Não.

- É curioso. Para mim, nunca guardou segredo das suas origens e educação. Possui uma fotografia do orfanato, em cujas costas escreveu: “Antigo solar de R. W.”

- As personalidades não são assunto da nossa conversa.

- Ficou no plano espiritual, hem? Aí está o perigo. Será capaz de ouvir um conselho prudente?

- Ouvi-lo-ei com educação.

- Afaste-se durante algum tempo desse homem.

- Acho que seria razoável. Mas não seria bom escrever-lhe e explicar-lhe... o que diz respeito a sábado passado?

- Eu não o fazia. Conheço o Ran melhor que você. Deixe-o dar o primeiro passo.

- Acho que nunca mais terá vontade de dar com os olhos em mim! - suspirou ela.

- Para lhe falar com toda a franqueza, foi com essa impressão que eu fiquei.

Larry não falava com toda a franqueza. É verdade que Ran invectivara aquela noite. Mas o que ele incriminava era a sua própria e patética obstinação. Foi por acaso que se pronunciou o nome de Ann, se é que o pronunciou - ainda que por trás daquele autodesdém estivesse, evidentemente, ela. Até ao momento, porém, eram puras as intenções de Larry. Encontrava-se realmente convencido de que não poderia resultar qualquer ligação da camaradagem entre ela e Ran. Larry era rapaz que facilmente se convencia... por si próprio.

Tudo o que Ann agora desejava era esquecer a desastrosa noite. Mas não lhe foi possível.

Mrs. Gallaudet chamou-a ao telefone:

^- Era um rapaz bem estranho, aquele que a Ann trouxe

cá a casa.

- Que fez ele mais? - perguntou, apreensiva.

- Mandou-me um encantador bilhetinho com as suas desculpas e com um ramo de rosas magníficas.

- Oh, tia Lydia!

- Muitas vezes desejo que a menina seja menos explosiva. Porquê essa exclamação jaculatória?

- Ele é tão pobre, tia Lydia!

- Isso não é um crime. A maioria das nossas melhores famílias são pobres. E excêntricas, além disso. Randolph Warren? Será da estirpe dos Randolph de Roanoke?

- Julgo que não, tia Lydia. Sempre supus que o John Randolph era solteiro.

- Ha? O quê? Ah, sim! Pois com certeza, com certeza. Esse rapaz escreve como quem escreve!... Deve ter sangue nas veias. Respondi-lhe que viesse visitar-me.

- Não vai - disse Ann.

Mas foi. Cortesmente. Uma vez. Só uma. A senhora era-lhe muito simpática, mas ele não pôde comprometer-se a voltar. Conservavam-se muito pungentes as recordações.

 

Após ter oprimido todos e cada um durante o tempo que quis, o Verão deixou Baltimore lassa, murcha, esgotada. O vento frio e os frios chuviscos anunciaram a chegada do Inverno. Por sua vez, a neve cobriu as ruas com uma brancura suave, depressa varrida para o rio, onde se conservou bastante tempo, acinzentada, suja, dura. As mulheres-a-dias lavavam ainda os degraus de mármore branco que brilhavam nos passeios, mas, corridas pela brisa que vinha soprando da ribeira, já não ficavam a conversar ao portal.

Ann, que terminara o curso superior de obstetrícia, passou para a secção de pediatria, para lá seguir os cursos e fazer um estágio de quatro meses. Gostava daquilo, mas não se sentia completamente satisfeita. Como gostaria de poder falar com Ran acerca deste novo trabalho, do interesse que para ela tinha, do entusiasmo que lhe despertava! Mas já não podia contar com Ran para a troca de pontos de vista, ideias, ou opiniões. Faltava-lhe hoje o estímulo que outrora lhe vinha daquele espírito incisivo, rápido, de vistas largas. No fundo de si própria, admitia, por vezes, ser mesquinha e estúpida aquela separação. Mas dizia-lhe uma voz interior não existir outro caminho para a prudência e segurança. Não podia impedir-se de inquirir a si mesma como suportaria Ran a ruptura.

Sentia-a ele mais dolorosamente que ela. Mas nenhum homem absorvido pelo trabalho pode ser constantemente infeliz: falta-lhe tempo para se ver sofrer. Tornara-se intermitente o desejo de Ann, que, primeiro, fora para Ran um vazio continuamente sentido. Ela faltava-lhe sempre, nunca deixaria de lhe faltar - pensava ele. Raro se sentem solitárias as pessoas dotadas de forte vida interior, que se bastam a si próprias, aquelas a quem a força das circunstâncias obriga a viver muito sozinhas. Defendem-se da necessidade de companhia, de associação.

Ran estava a fazer uma experiência, para ele nova: nada existia na vida que pudesse substituir a viva e alegre rapariga coroada de cabelos de fogo. E era-lhe a mais difícil consequência da ruptura essa sensação de solitude que frequentemente experimentava.

Quase não viu Ann nos meses que se seguiram à festa em casa de Mrs. Gallaudet. E, quando a encontrou, foi por mero acaso. A natureza humana, vinda deste todo que é a natureza em geral, tem horror ao vácuo. Aplicando-se ainda mais às suas obrigações, procurou Ran encher o vácuo de que sofria.

Ia ser nomeado residente-titular de cirurgia: já não tinha dúvida. Quando se anunciou a promoção, as primeiras felicitações que recebeu foram pronunciadas ao telefone por uma voz clara e pausada:

- Serei eu profetisa?

- Quem fala? Oh! É a Frances, perdão, Mrs. Libby.

- Frances serve muito bem.

- Obrigado por se interessar...

- Interesso-me sempre pelas pessoas que enfrentam a vida.

- Porque nunca teve de a enfrentar.

--Ah, isso!... Ainda não me conhece... Até à próxima. Boa noite e boa sorte!

“Ainda não”, disse ela; “ainda não”. Nessas palavras continha-se implícita a promessa de outros encontros. Recordando os olhos cinzentos e tranquilos de Frances, os seus modos delicados e corteses, a sua linguagem suave e calma, lastimou que tivessem diminuído as relações entre ambos. Mas que poderia fazer para o evitar? com secreta esperança e aparente desinteresse, falou dela, um dia, a Larry V/ilson. Sorriu este mundanamente, como de costume:

- Deixe isso, Ran.

- Porquê? Gostava de tornar a vê-la.

- Ela pretende caça mais choruda.

Ligeiramente aborrecido com o tom do amigo, Ran respondeu:

- Francamente, não consigo imaginá-la caçadora.

- No fundo, tem razão. É a caça choruda que a persegue.

Não acrescentou mais nenhum informe, e uma reticência muito natural impediu Ran de continuar a indagação.

com o título de cirurgião-residente, cada vez Ran tinha menos tempo e mais trabalho. Abrira, havia pouco, novo serviço de cirurgia geral. E, vestido de branco, todas as manhãs Ran se encontrava pronto para o trabalho desde as oito horas. Às vezes, como assistente do Dr. Powers. E outras vezes - que ele preferia - para operar os seus próprios doentes. Eram geralmente casos descobertos entre os que não podiam pagar, casos que ele próprio examinara, diagnosticara, e enviara para a sala de operações. Tendo como assistente Ward, que substituíra Pee Wee Harter, podia proceder segundo a sua própria técnica, pois - ele bem sabia - nada forma um novo cirurgião com tanta segurança como o facto de operar ele mesmo, uma vez dada a prova das suas aptidões para o fazer.

Dia importante dos importantes foi aquele em que fez uma lobectomia, ablação de parte do pulmão, de um lobo.

- Belo trabalho, Dr. Warren - disse uma voz feminina por trás, quando, ao terminar a última parte da operação, ele unia, com a ajuda de tendões esterilizados, por meio de minúsculas pinças de metal, os bordos da pele.

Virou-se:

- Como então! Syb... Dra. Barri... - exclamou, esquecido por um instante das requeridas formas de correcção. - Que a traz por cá?

- Uma pequena visita. Ouvi falar da lobectomia, e vim ver como trabalha um entendido.

- Está a querer fazer-me vaidoso...

- Tinha direito de o ser. Nem o próprio Powsie faria melhor. Vá visitar-me.

- Onde? Quando?

- Esta noite ou nunca: tenho de estar de regresso amanhã.

Deu-lhe uma morada.

- Estou em casa da minha prima Frances Libby. Lembra-se dela?

- Com certeza! Ainda um dia destes estive a pensar nela.

- Por qualquer razão inexplicável, a sua carreira interessa-lhe muito a ela. A menos que seja você...

- Nunca me deu ocasião de tornar a vê-la.

Sybilla hesitou um momento; depois:

- A Frances não é muito... mundana... muito sociável. Sai pouco e dá-se com pouca gente.

A casa em frente da qual Ran parou o velho estropiado que lhe servia de automóvel não se parecia nada com a imagem que ele criara da morada de Frances Libby. Era uma casinha de alvenaria, sem aparência, quase lastimosa, em rua de pouco movimento, na orla de um bairro negro. Mas, no interior, descobriu o luxo delicado e discreto que associava à imagem da ocupante. Um pouco por toda a parte, encontravam-se espalhadas as mais recentes revistas. O piano era de categoria. A todo o comprimento de três paredes, a vasta e agradável sala onde o introduziram estava coberta de prateleiras cheias de livros escolhidos com gosto por alguém muito cultivado, e entre os quais figuravam obras francesas e alemãs.

A dona da casa notou a curiosidade que o animava e disse, sorrindo:

- Foi absolutamente justo eu ter nascido nesta terra. As duas mulheres prepararam uma excelente bebida, após o que ficaram os três a conversar cordialmente. Os dois médicos trocaram impressões profissionais, é claro, e a hóspeda ia intercalando reflexões negligentes, mas muitas vezes astuciosas e divertidas. Por muito desejoso que se encontrasse de colher informações acerca da rapariga, Ran apenas soube que ela vivia com a mãe, uma inválida que nunca sairia da cama, e, calculou ele, intelectualmente debilitada.

Como de costume, não tinha sono, após uma noite curta e um dia esgotante. Todavia, quando o relógio bateu as onze, quase não acreditou. Categórica e franca, como era hábito, Sybilla declarou:

- O almoço às sete horas para mim. Você pode ficar a conversar com a Frances, se ela lho permitir, Warren. Por mim, boa noite!

- Oh! Mas eu tenho de me ir embora. Não pensava que já fosse tão tarde.

- Dê-me quinze minutos, mais quinze minutos. Quem sabe? Pode ser que eu me mostrasse mais uma vez boa profetisa...

Fazia a sugestão numa voz tranquila e lenta, como sempre. E com essa mesma voz, em vez de profetizar, fez perguntas acerca dos trabalhos do seu convidado, dos seus projectos para o futuro. Passara meia hora quando ele se levantou, pedindo desculpa por haver ultrapassado o estabelecido.

- Achei por bem que assim fosse - respondeu aquela voz quente.

- Tornarei a vê-la?

- Tem a certeza de que deseja ver-me?

Fez a pergunta sem a mais pequena galantaria, e era evidente que Frances esperava uma resposta reflectida, fosse qual fosse.

,- Absoluta. Ardentemente.

^ Nesse caso, vou emprestar-lhe alguns livros, que virá cá trazer um dia.

,- Bem sabe, eu não tenho muito tempo para ler senão livros de medicina...

- Não é isso, talvez, o mais sensato, não acha?

- Porque não?

- Tenciona não ser senão médico?

^- Que se pode ser de melhor?

- Nada. Alguma coisa de mais vasto, talvez.

com a delicada mão, fez um gesto lento, que lhe ampliava a ideia.

- Estou a ver. Sinto-me perfeitamente estúpido! Quer escolhê-los por mim?

- Levá-lo-ão para longe dos seus caminhos habituais - prometeu ela.

Reflectindo, escolheu três volumes nas bem fornecidas prateleiras: Juventude, de Conrad; Henrique VIII, de Francis Hackett; e a admirável tradução de Gilbert Muray das Bacantes, provavelmente devidas a Eurípedes.

- Está a sondar-me a inteligência? - perguntou Ran.

- Os gostos. Da inteligência estou certa.

- Quando poderei trazer-lhe estes livros?

- Espere que eu lhe telefone.

Ia a estender-lhe a mão, mas logo, retirando-a, a levou aos ombros do rapaz, pôs-se em bicos de pés e, ao de leve, tocou com a boca na de Ran.

- Frances!

- Não!

Apoiou devagarinho a ponta dos dedos nos lábios dele:

- Boa noite, querido.

Esperou com impaciência que ela desse sinal de vida. Os dias tornaram-se numa quinzena, a quinzena estendeu-se, e passaram-se três semanas até ele ouvir na outra extremidade do fio aquela voz quente e calma.

- Frances! Julguei que se tinha esquecido de mim!

- Estive fora. Nem sempre se pode encher o tempo como se quer - respondeu a voz, no mesmo tom.

- Quando a verei?

- É por isso que telefono. Amanhã à noite estou livre.

- Oh, que sorte! Não estou de serviço! Jantamos os dois?

- Talvez fosse melhor. Oito horas. Será tarde?

- Abrevia a noite. Mas apanharei o que puder.

- Ainda haverá outras noites - respondeu, calma.

Foi ela quem lhe abriu a porta.

- As bebidas estão na cozinha. Venha cá.

- Onde quer jantar?

Prejudicando o equilíbrio do seu magro orçamento, juntara uma nota de cinco dólares ao dólar, aos dois dólares que, quando muito, trazia habitualmente consigo.

- Posso fazer-lhe uma pergunta? Não me leva a mal a indiscrição, pois não?

- com certeza: diga!

- Não tem muito dinheiro, não é verdade?

- O meu sumptuoso vencimento... Cinquenta dólares por mês.

- Deixe-me pagar parte da despesa desta noite!

- Não!

- Para ser franca, não tinha grande esperança em que você aceitasse. Bem. Vamos a um restaurantezinho que eu conheço, onde os preços são razoáveis, a cozinha boa, e o serviço demorado: teremos tempo de sobra para conversar.

Instalados a uma mesa do fundo, no restaurantezinho alemão, muito asseado, com cervejaria a todo o comprimento duma das paredes, ele lembrou:

- Prometeu-me um dia falar de si.

- Assim o farei. Mas não é já.

- Ainda bem. Porque significa que hei-de vê-la muito, acho eu...

- Porque não? Bebamos por esse futuro - e levantou a caneca de cerveja: - Prós!

Pronunciou a fórmula latina numa só sílaba, à maneira do continente, com um sorriso nos olhos.

- É alemão?

- Alsaciano. O meu pai era professor de ciências económicas. Arranjou aborrecimentos e veio para este país, onde cedo morreu. Era miudinho e mau. Eu não gostava dele; desagrada-lhe?

- Não. Porque é que havia de desagradar?

- É de regra mostrar piedade filial. Convencionalmente falando, é assim. Mas eu não estabeleci a minha vida de acordo com as convenções.

Ele replicou gravemente:

- Eu não julgo.

- Agrada-me não estar pronto para se escandalizar respondeu ela com uma serenidade que o impressionou, como parte essencial da sua individualidade. - Da primeira vez que o vi, você interessou-me por me lembrar uma pessoa que eu conheci.

- Posso saber quem?

- Engana-se - disse ela, abanando a cabeça. - Nada do que julga. Muito diferente. Conhece o retrato de Lincoln, feito por Durer?

- Não. Qual Durer?

- Albrecht. O grande gravador de madeira.

- Vejamos... -murmurou Ran, perplexo.- Eu julgava que ele tinha vivido em mil quinhentos e tal... Como é que podia...

- Não podia, evidentemente. Mas pode muito bem ter sido uma previsão, uma projecção imaginativa interior; compreende o que eu quero dizer? Um dia, hei-de mostrar-lhe uma cópia que possuo, muito linda e muito rara, do quadro dele “O Cavaleiro, a Morte e o Diabo”. Se você não gostar dele, ser-me-á muito difícil gostar de si. O cavaleiro é Abraham Lincoln, com tanta verdade, com tanta exactidão, como se tivesse sido pintado pelo modelo; parecido que nem uma fotografia. É a concepção, a encarnação da coragem, da nobreza e dos pensamentos elevados, feita por um grande humanista. - Falava com evidente fervor. - Da primeira vez que o vi, você estava de perfil para mim. Talvez tenha perguntado por que motivo eu olhava tanto para si...

- Mas, Frances, eu não me pareço com Lincoln - protestou ele, absolutamente estupefacto.

- Não. É muito melhor do que ele. E é pena! - disse ela, com o seu tranquilo sorriso. - Mas na estrutura das faces, no modelo do maxilar, na disposição dos olhos, é exacto. Até conseguir identificá-lo, assediava-me a perplexidade...

Ao falar, ia desenhando traços no ar, com o indicador.

- É artista?

- Gostava muito de ser... Não sou nada de particular...

Era evidente que não estava ainda pronta a dar-se. Perguntou com uma espécie de contida ansiedade:

- De qual dos meus livros gostou mais?

- De todos. O Conrad abriu-me perspectivas para coisas em que eu nunca pensara. Henrique VIII... gostava de tornar a lê-lo daqui por uns seis meses, e ler, até lá, uma dúzia de outros livros que me escolhesse. Mas foi o Eurípedes que me introduziu noutra existência, em algo tão novo que eu ainda hesito...

- Novo? É o que existe de mais velho no mundo, tão velho que nem os sábios mais sábios conhecem a profundura das suas raízes. Pode ficar com esse; ofereço-lho.

A conversa foi-se estendendo bastante entre assuntos diversos e muitas vezes desprovidos de qualquer relação uns com os outros. Ao discurso de Frances dava vivíssimo encanto a extrema receptividade da sua inteligência, a forma curiosamente letrada da sua linguagem.

Olhou para o pequeno e elegante relógio de pulso e disse:

- Mais um copo de cerveja, e depois temos de nos ir. Preciso de estar em casa às onze horas, por causa duma chamada telefónica de fora.

A carripana andou devagar no regresso. Custou-lhes a chegar ao fim. Mal Frances abriu a porta, o telefone desencadeou o convite:

- Entre - disse ela.

Não pôde deixar de ouvir parte da conversa. Reflectindo, pareceu-lhe que era isso exactamente o que ela queria.

”- “Sim... sim, Robert. Sim, estou bem, estou. Não, ninguém. Não tenha tanta imaginação... Sim, acabo de voltar agora mesmo. Oh! com uns amigos que não conhece. Sim... naturalmente... Bem sabe... Boa noite, querido... Obrigada pelo telefonema...”

Pousou o aparelho e voltou para junto de Ran, que reflectia.

- Não tive remédio senão ouvir.

- Foi para isso mesmo que lhe pedi que entrasse... Era o Robert Mayfield.

^- Que hei-de responder?

- Apenas “boa noite”.

^- Boa noite, então. Mas hei-de voltar, sabe?

- Mas não antes de eu dizer.

- Não demore muito.

Quanto tempo ela demoraria, se o acaso não tivesse intervindo, nunca ele soube. Eram dez horas da noite de terça-feira seguinte quando ela o chamou ao telefone.

- Fala Frances Libby. Pode vir imediatamente a minha casa?

- Tenho imensa pena, mas estou com uma urgência.

- Mas isto é uma urgência!

Ele ouviu vagamente um grito agudo, seguido de gemidos.

- É sua mãe?

- Não. Ó Ran! Venha depressa, estou com medo.

- Bem. Dentro de cinco minutos estarei aí. Dê-me o seu número de telefone.

Sabia que este não se encontrava na lista. Deixou o número à telefonista de serviço, e pediu a um colega que o substituísse.

No passeio defronte da pequena casa, estava um grupo de pessoas muito excitadas, à escuta. Para o agrupamento e para o barulho dirigia-se um polícia.

- Dr. Warren, do hospital de Lakeview. Acabam de me chamar. Dir-lhe-ei se é útil a sua presença. Não se afaste.

- Está bem, doutor - disse o agente.

Em casa vibrava uma tremura de voz, enquanto Frances abria a porta. Levou Ran a um quarto do segundo andar, onde, vestidos semiarrancados, se encontrava estendida uma lindíssima mulher, rígida e cataléptica, maxilar para a frente, olhos de tal modo erguidos que mal se percebia o bordo da íris. Rosto deformado pela inquietação, curvava-se para ela um rapaz anafado, de smoking.

- Digam-me o que aconteceu - pediu Ran, tomando o pulso à doente.

- Jantámos num restaurante - respondeu o rapaz. - Ela bebeu demais. Houve uma zaragata. Trouxemo-la. No táxi, teve uma convulsão. Ela vai morrer, doutor?

- Não. Vá buscar água.

O homem apressou-se a obedecer.

- Estávamos mesmo ao pé dela, quando teve este espasmo. Que é, Ran?

- Histeria. Está grávida?

- É possível.

Na cama, o corpo começou a contorcer-se. O rapaz voltou com uma panela cheia de água, à falta de melhor recipiente, pousou-a e correu para a cama, para ajudar a segurar na rapariga.

- Deixe-a - ordenou Ran.

O rosto da paciente contorceu-se, deformou-se numa careta. Abriu-se-lhe a boca, enquanto o diafragma se enchia numa respiração profunda, e preparava-se para saltar um urro feroz quando Ran o deteve, com uma pancada seca da mão, no maxilar:

- É na minha mulher que está a bater, seu bruto!

O homem agarrou no braço de Ran, mas achou-se imediatamente preso.

- Se se mete nisto, atiro-o pelas escadas abaixo! Está ou não está quieto?

- Es... es... estou...

- Está um agente à porta. Desça e diga-lhe que disperse a multidão, que tudo vai voltar à normalidade.

- Está fora de perigo? - suplicou o marido.

- Completamente.

Passada a cólera, Ran tornava-se compassivo. Dirigiu-se à rapariga e perguntou-lhe:

- E a senhora, agora, vai portar-se bem?

Como única resposta, obteve um terrível gorgolejo.

- Caso contrário, aplico-lhe um duche.

Tinha Ran as suas ideias, e muito precisas, sobre a água fria como remédio para a cataplesia voluntária. Não percebeu se a rapariga ouviu ou não a ameaça; fosse como fosse, não se impressionou, dados os seus arquejos e grunhidos.

- Dê-me a panela, por favor.

Foi Frances quem lha levou. A paciente retesou-se de novo e começou um “ia...i...i...e...e...” que prometia, mas que terminou num breve balbucio meio afogado, em cuspinhagens, e depois numa espécie de efervescência.

Quando a libertou, tinha ela uma expressão de surpresa, de inquietude e de raciocínio que lhe apagava do rosto a deformação caricata nele impressa pelos minutos passados.

- Agora isto vai! - decidiu o administrador do heróico tratamento. - Ela pode passar aqui a noite?

- com certeza - disse Frances.

- A ele, é melhor mandá-lo para casa. Só pode enervá-la. Pode vê-la durante alguns minutos, depois de eu lhe dar uma injecção. Quando acordar, terá vergonha, calculo. Quem é ela? Uma mimalhas?

- Sim. Dinheiro a mais. Adulação a mais.

- São males para que eu não tenho remédio.

Ran deu uma injecção à paciente, dominada e submissa, e foi ter com o marido.

- Três minutos o máximo. E depois o senhor volta para casa. Pode vir buscá-la amanhã. Está grávida, não acha?

- Que eu saiba, não.

- Sobretudo, não se mostre preocupado. Não lhe diga que se afligiu. Aconselhá-lo-ia a dar-lhe umas bofetadas à primeira vez que ela começasse com uma crise, se o julgasse capaz disso. Previna Mrs. Libby de que eu lhe vou dar instruções sobre o que há-de fazer, quando sua mulher se levantar amanhã de manhã.

Desceu para a sala dos livros, instalou-se num divã, e pôs-se a dormir calmamente.

Foi assim que o encontrou Frances. Levantou-se resoluto, mas sem sacrifício. Ela mirava-o cheia de comiseração no olhar:

- Há quanto tempo não tem uma verdadeira noite de repouso?

- Uma verdadeira noite de repouso? Que é isso?

- A Sybilla contou-me como é a sua vida. Quantas horas dormiu, na noite passada?

- Quatro. Se não foram mesmo quatro, foram quase.

- E na outra?

- Essa foi menos confortável. Foi uma desordem lá no hospital por causa do incêndio daquela casa para alugar...

A sua linguagem pesava de cansaço.

- Que daria por oito horas de sono seguido?

- Ó meu Deus! - exclamou ele numa voz ardente. - Isso são coisas que não acontecem nos hospitais!

- Vão acontecer. E já. Aqui mesmo. Está pronto o pequeno quarto do terceiro andar.

- Mas, Frances, eu não posso. O hosp...

- vou telefonar para o hospital.

- Não. Não faça isso. Eles sabem em que número podem encontrar-me. vou estender-me aqui e dormir uma hora.

- Isso não serve de nada. Assim, não consegue descansar. Suba. Dispa-se. Se quiser um roupão, tem-no no quarto de banho.

- Não posso - gemeu ele. - Não devo!

Pôs-se de pé e viu que titubeava.

- Está a ver o que eu lhe dizia? Não o deixo sair. São dez e meia. As seis e meia, acordo-o. Oito horas completas.

A sua voz era inflexível. Ele não podia recusar: na terrível tentação do sono, evaporavam-se-lhe todas as resoluções. Nunca o haviam dominado tanto nem a fome, nem a sede, nem o desejo. Deixou-se vencer.

- Mas se chamarem do hospital...

- Está bem, eu venho cá dizer-lhe...

Ele duvidava. Mas que importância tinha isso? Nada lhe interessava mais do que o esgotamento e a magnífica promessa de repouso. Ao fundo da escada, Frances deu-lhe as boas noites, a sorrir. E Ran subiu para o terceiro andar. Deitou-se logo, nu, na carícia fresca do lençol. E afundou-se, afundou-se milhares de léguas, afundou-se no nada.

Após um período longo e incalculável, emergiu de profunda submersão - lânguido, perdido, assustado pelas paredes desconhecidas, por um leve perfume de feminilidade que flutuava no ar. Lembrou-se de tudo, num relâmpago, ao ver Frances sorrir-lhe de cima.

.- Seis e meia - informou ela, meiga. - Não conseguia decidir-me a acordá-lo.

Através da bruma da leve camisa de noite, ele podia discernir-lhe a silhueta esbelta e graciosa.

- Acho que são horas de me ir - disse ele, vagarosamente, estupidamente.

- Nem mais um minuto? Tem mesmo de ser?

Coloria-lhe a voz e o sorriso uma troça afável.

- Não - replicou ele.

- É tão pequena, a cama! - murmurou ela.

O Dr. Carskaldden Bassett, médico e velho patife, cínico e ex-devasso, costumava dizer aos alunos:

“Meus senhores: o amor idealista é uma pressão patogénica no gânglio nervoso da imaginação. Combate-se, com muita eficácia, por meio de qualquer preocupação diversa e, de preferência, mais vilmente material”.

Nunca a aventura com Frances afastou completamente Ann das profunduras imaginativas de Warren. Quando muito, atenuou o surdo e constante sofrimento que nele abrira a ruptura daquela amizade. Não estava apaixonado por Frances como estivera pela rapariga. E não procurou de qualquer modo julgar o contrário. De momento, contentou-se com hesitar.

Foi Frances quem definiu os limites das relações entre ambos. Às vezes, não o via durante oito ou dez dias. Outras vezes, almoçavam ou jantavam os dois com intervalos muito curtos, regressando depois a casa dela, onde nunca se via a mãe inválida. Certa vez foram passar um fim de semana a um hotel. Ela contou-lhe toda a sua vida com inteira franqueza.

- Quero que me conheça completamente. É um dos meios de que a mulher dispõe para se dar.

Tinha dezoito anos quando lhe morreu o pai, que a deixou a ela e à mãe quase pobres. Frequentou um curso comercial em Filadélfia e arranjou emprego numa firma importadora:

- Eu era bonita, e nem sequer sabia o que devem saber as raparigas que o não são.

A firma era uma casa de família, dirigida por um tio, de quarenta e cinco anos, e um sobrinho, quinze anos mais novo. O sobrinho apaixonou-se por ela, que foi contudo a presa do tio, segundo as melhores tradições do melodrama: presentes, atenções, almoços com champanhe em sala privada... Ignorante como era, havia pouco que durava a aventura e já estava grávida. Aborto. Doença comprida e grave. Deixou o emprego e o apaixonado, o qual insistiu em dar-lhe uma pensão. O sobrinho procurou-a, encontrou-a, e insistiu, uma vez mais, em casarem. Ela recusou, explicando porquê; nem por isso ele abandonou a ideia, e de tal modo que, após muita resistência, acabou por a vencer. Só muito tarde Frances descobriu que ele era secretamente alcoólico e nunca moderado: perdeu o lugar na firma e, por fim, desapareceu da vida dela.

- Nunca o amei. Mas fui para ele tão boa esposa como pude. O curioso foi que o outro, o tio, morreu, deixando-me um rendimento suficiente para eu e minha mãe podermos viver. Dinheiro de remorsos, acho eu. Eu não tinha talento nenhum, mas sim gosto pela música, pela arte, e - por muito pretensioso que pareça, era mesmo o que eu sentia - pela cultura. E dei-me então ao trabalho de completar o que o meu pai começara a fazer por mim, isto é, ao trabalho de terminar a minha educação. Viemos instalar-nos em Baltimore, quando começaram a decrescer as faculdades intelectuais da mãe. E por cá ficámos. (Pausa.) Encontrei então o Robert Mayfield... Você nunca me fez perguntas acerca dele...

- Nunca me senti no direito de as fazer.

- Mas compreendeu, decerto, a situação. Fala bastante alto para se ouvir. Amo muito o Robert, de certo modo. Sem isso, nada poderia acontecer. É claro que tem quase o dobro da minha idade. Mas é bom e generoso; temos muitos gostos comuns. Fui para ele amante fiel, até ao dia em que encontrei o Ran. Porque a você desejei-o eu desde o primeiro minuto que o vi. Acho que não ficou prejudicado em nada...

Sorria, com ligeira ansiedade, ao falar.

- Meu Deus! - suspirou ele.

- Você é um homem sério - disse ela, gravemente. - Sério demais. Por esse lado, eu fui-lhe útil.

Ele mirou-a, invadido de súbita apreensão:

- Fala como se tudo tivesse acabado!

- Oh, não! Ainda não! - suspirou devagar. - Ainda não!

- Nunca, se depender de mim, Frances.

Para as férias de Verão, o Dr. Powers ofereceu a Ran a sua casa de campo, em qualquer sítio perdido de Severn. Que alegria estar duas semanas inteiras longe das insistentes chamadas telefónicas, das insuportáveis enfermeiras-chefes, dos estudantes amorudos, dos perus género Prather, cheios de arrogância e pouco ricos de verdadeira autoridade e valor natural, longe das inquietas e excessivas perguntas com que o assaltavam pais ansiosos, a propósito dos doentes, longe de tudo, de todos e de cada um! com excepção de Frances. Sim. Enfim, que ia ela decidir? Comunicou-lhe o oferecimento.

- Maravilhoso! Exactamente aquilo de que estava a precisar. Mas... e você?

tem?

- Eu... o quê? - perguntou ela, como que

- Sim. Mas... e você?

- Que tem? Eu... o quê?-perguntou ela, como que arreliada.

- Pode ir lá ver-me?

- Posso...

- Quantas vezes?

- Não poderei ser eu a governar-lhe a casa?

- Está a troçar de mim! Não, isso não podia ser, acho eu... - disse ele, gritando no meio da excitação.

- Porque não? A modos que eu também tenho férias. Em fins de Junho.

Carregou-se o rosto de Ran, como acontecia sempre que se fazia qualquer alusão a Mayfield, por muito indirecta que fosse. Mas, perante a alegria de Frances, ele conseguiu vencer aquele súbito mau humor.

Passaram uma quinzena viva e despreocupada, pescando, explorando os arredores, arranjando conhecimentos entre os pássaros, patinhando nos lagos, fazendo pequenas e imprevistas viagens aond,e a velha e desmantelada carripana achava por bem levá-los, lendo enfim muito em conjunto.

Era a primeira experiência de vida doméstica de Ran, .sedução perigosa. Em fins de licença, uma vez que saíram às compras, agarrou Frances num jornal qualquer de Baltimore e percorreu-o enquanto ele juntava as coisas.

- Quer passar uma vista de olhos pelo Sun, Ran? - perguntou-lhe quando ele se sentou de novo ao volante.

- Não. Para quê?

- Não lhe interessa o que vai pelo mundo?

- Nada! Temos o nosso pequeno mundo, que eu acho magnífico. Para quê deixar penetrar nele as trevas exteriores?

Ela atirou para a estrada o jornal, que uma rabanada de vento levou para longe.

Nessa noite, choveu. Ran acendeu lume na sala, e ambos se estenderam nas almofadas que ela arranjava de um modo muito seu. Foi Frances quem quebrou o silêncio:

- Ran!

- Amor?

- vou partir em breve.

- Quando?

Ele já se habituara àquelas inexplicadas ausências.

- Mal acabarem estas férias, julgo eu.

- Mas não por muito tempo?

- Parece-me bem que sim. Suponho que vou à Europa.

Ele levantou-se, como que sacudido:

- À Europa? Meu Deus! Frances, vai fazer-me uma destas faltas... Vai ser o diabo!

- Acredito. De certa maneira.

- Você conhece-me melhor do que isso. De todas as maneiras.

- É verdade: isto foi bom e agradável de todas as maneiras.

- Isto foi... Que quer dizer, Frances?

Sentia subir nele a apreensão.

- Não há bem que sempre dure...

- Não diga loucuras! Porque é que isto não havia de durar?

Como ela fugia a responder, estendeu-lhe o braço por trás e apertou-a a si:

- Aconteceu qualquer coisa. Que foi?

- Morreu ontem a mulher do Mayfield.

- Foi isso que leu no jornal! Parecia-me estranhamente calma. - Digeriu a notícia e depois: - Que diferença nos fará isso?

- Muito tempo antes de conhecer o Ran, já eu tinha prometido casamento ao Robert, quando ele ficasse livre.

- Por amor de Deus, não faça isso - gritou ele, furioso. -- Se casar com alguém, será comigo.

Ela apoiou a face na mão do rapaz:

- Isso faz-me sofrer - disse, meigamente - porque gostava imenso de lho ouvir dizer; todavia, sei como seria mau.

- Mau? Porque é que havia de ser mau? Então isto é mau?

A voz tremia-lhe, provocante. Frances sorriu:

- Muita gente lhe responderia que sim. Eu não acho. Mas... Ran... sabe a minha idade?

- Não; mas que pode ter isso?

- vou fazer trinta anos.

- Estou-me nas tintas para isso!

- Nem sempre havia de pensar assim. Terei eu de ser ponderada pelos dois?

- Não tem melhor argumento do que esse da idade?

- Oh, sim! O melhor!... Se o Ran estivesse verdadeiramente apaixonado por mim, eu deixaria tudo e, com ou sem casamento, só a si me prenderia. Mas não é esse o caso. Não, não proteste. - Era lamentável o seu sorriso: - Ama-me muito. Precisava de mim. Gosto de pensar nisso, de o dizer para comigo. Mas não me deixo iludir. É próprio dos homens iludirem-se a si mesmos, voluntariamente. Tornei-me importante para si, adquiri um lugar na sua vida, mas isso não é o amor. E eu não podia contentar-me com menos. Talvez haja alguém. Muitas vezes me ocorreu isto, ao vê-lo melancólico e sonhador. Não falemos mais no caso. Fez-me muito feliz. Não vou ficar triste demais. Isto não há-de matar-me. Valia bem a pena ! Oh, se valia!

- É com ele que vai à Europa? - inquiriu Ran, de ciúmes na voz.

- Não. Sozinha. Tenho de me desligar de si antes de casar com o Robert. Ainda temos... quanto tempo? Dois, três, quatro dias e quatro noites. (Contou-as pelos dedos.) Quer esquecer tudo isto e aproveitar o melhor possível o que nos resta?

- Pois sim! Estou a ver que aceita as coisas muito bem! - acusou Ran.

De manhã, ao curvar-se sobre ela, para a acordar com beijos, Ran viu-lhe o rosto inchado pelas lágrimas da noite.

 

Ontem, Ann; hoje, Frances. Ran sentia-se muito propenso a supor que deuses injustos lhe deitavam mau olhado.

Partira Frances. Pelo que ouvia, estava de regresso. Warren considerava difícil cumprir a promessa que ela lhe arrancara: não a procurar de maneira nenhuma.

-- Mereço-lhe isso - dissera-lhe com a sua tão pessoal tranquilidade.

E não havia remédio senão aquiescer.

Foi muito dura uma crise que atacou Lakeview: os membros restantes de um estado-maior consideràvelmente reduzido acharam-se sobrecarregados de trabalho. Pelo seu lado, Ran ficou contentíssimo: dispunha assim de poucas noites vazias para meditar tristemente nos seus males. Veio a seguir o conjunto de circunstâncias que reconduziu Ann à sua órbita e - quase ao mesmo tempo - ia marcando o desmoronar da

sua carreira de hospital.

 

Estendido num banco, o rapazinho moreno abrigou a cabeça, com mais conforto, no grande colo materno. Ao fundo da perna direita tinha um trapo nojento, aqui e ali amareladamente manchado de pus escorrente da ferida que, nas profundidades da carne, atingia o osso. Passava das cinco horas e já a secretária da clínica fechara a escrivaninha.

Por certa porta, assinalada pelo letreiro “PROIBIDA A ENTRADA AO PÚBLICO”, entrou uma enfermeira angulosa, hirta no uniforme e na touca. O seu rosto ostentava aquela expressão rígida, vazia e gelada que as enfermeiras adquirem após longa carreira nos dispensários de beneficência. Olhou desaprovadoramente para os dois do banco e, para se dirigir à mulher, revestiu um ar petulante:

- Devia saber que hoje não é dia de consulta gratuita.

A criança pegou nas muletas, rodou sobre si mesma, e desceu do banco:

- Então já cá não está o Dr. Warren?

- O Dr. Warren está muito ocupado^ E a hora da consulta já lá vai.

- Ele disse que, se eu voltasse, me arranjava a perna, e que, por ser um caso especial, me via a qualquer hora - afirmou Abie, improvisando com facilidade.

A enfermeira duvidava. Mas os cirurgiões têm sempre favoritos. com o carácter do Dr. Warren, o melhor era não se aventurar. Decidiu que o mais seguro ainda seria telefonar.

Um minuto depois, chegou o doutor:

- Que há, miss Blore?

Miss Blore desejou - em vão - não ter telefonado. E defendeu-se:

- Eu bem disse que não era dia de consulta, doutor.

A mulher levantou-se: parecia cansada e doente.

- Seria talvez melhor voltarmos amanhã...

Mostrava toda a resignada paciência dos indigentes tratados de graça.

- Eh, doutor! Não se lembra de mim?

- És o meu velho amigo! A minha primeira operação a sério. E ainda à socapa! - explicou à enfermeira.

Agora, já miss Blore estava contente de haver telefonado.

- Como vai isso, Abie?

- Estou farto destas muletas - respondeu o miúdo numa voz suplicante.

- Porque é que não voltaste seis meses depois?

- Mudámo-nos. As coisas estavam a correr mal. Correram ainda pior em Elgin, para onde fomos. Foi então que voltámos. Continua a correr tudo mal.

Ia contando a sua história com precoce solenidade.

- Diga-me uma coisa, doutor: vai tirar agora este osso morto?

Ran carregou o sobrolho, pensativo. Era certo ter prometido à criança que, dentro de seis meses ou um ano, lhe seria possível fazer a segunda parte da operação: tirar o bocado do osso que a osteomielite matara e à volta do qual se formara novo osso. Uma vez extraído o sequestro - o resíduo atacado de necrose - escorreria o pus da cavidade, que um tecido ósseo depois encheria progressivamente, após o que a perna ficaria sólida de todo.

- O senhor doutor prometeu-me arranjar tudo de maneira que eu ainda pudesse jogar futebol - lembrou o garoto, olhos cheios de esperança.

- Não estávamos então tão cheios de trabalho no hospital como agora, meu filho. Nesta altura só aceitamos os doentes para quem é caso de vida ou morte. Quem pode esperar, como tu, fica para depois.

As lágrimas brilharam nos olhinhos da criança:

- O que é que isso quer dizer: “Quem pode esperar?” - Abie lamentava-se. - Quer dizer que o senhor doutor também já andou de muletas um ou dois anos, não é verdade?

- É um argumento! - admitiu Ran, num sorriso.

- A perna não melhora, doutor! - Era a mãe que vinha em socorro.

- Não. Mas também não piora. E não tem perigo, pelo menos durante algum tempo. Não está inflamada. Se estivesse, o pequeno havia de sofrer imenso.

- Quer dizer que a perna me doía, se estivesse mal? - perguntou a criança, com a inteligência e a atenção estampadas no rosto.

- O bastante para exigir uma operação imediata, sim.

A enfermeira, que não gostava dos casos gratuitos, fungou e disse:

- Temos cá dezenas de casos mais graves do que este.

Mrs. Bloomburg suspirou.

- Se já não precisa mais de mim, Dr. Warren, posso ir-me embora, por hoje?

- com certeza. Boa noite, Miss Blore. - E depois, numa voz encorajante, dirigiu-se ao lamentoso Abie: - Talvez não demore tanto como julgas, meu filho. Logo que isto por cá esteja um bocado mais livre, pegamos em ti e - vais ver! - esse osso será partido mais depressa do que o diabo esfrega um olho.

- Pois sim, senhor doutor. Cá voltarei.

Por cima da porta, o alto-falante desfiava aquela horrível e já familiar ladainha: “Dr. Warren, Dr. Warren, Dr. Randolph Warren...”

- O Dr. Warren ao telefone.

A ponta das muletas de Abie pousou no chão, caminhou, passou a porta, perdeu-se...

- Sala das urgências, Dr. Warren. Esperam por si.

- Subo já.

Mais uma tarde igual a todas as outras, pensava ele. Desordens de bêbedos e facadas. Em procissão quase ininterrupta. E, de quando em quando, um desastre de automóvel. Felizmente, largava o serviço às oito da noite, hora a que Ward pegaria e seria responsável pelo serviço até de manhã.

Na marquesa dos acidentes, encontrava-se estendido um estivador, que se lamentava, enquanto duas enfermeiras lhe punham no peito pensos esterilizados. Escorria-lhe sangue, em torrentes, de uma enorme e horrível chaga, devida a um bocado de vidro que penetrara e fora parar de encontro às costelas.

Mal deitara uma olhadela e já Ran despia o casaco.

- Chamem uma anestesista - ordenou ele.

Era aquele género de coisas que o prendiam ao trabalho por sólidos liames de dedicação, aquela constante rivalidade entre as armas da ciência e os minúsculos mas infatigáveis e invisíveis bandos dados à destruição. De manhã, não seria capaz de nada, nem sequer de cortar as unhas a um gato. E depois? Apareceriam outros desafios. E ele retornaria as armas e a luta.

Fosse como fosse, tinha direito a um pouco de descanso. Voltou-se para Ward, seu assistente, e disse-lhe:

- Não conte comigo, Charley. Deixe-me em paz. Se alguém me chama esta noite sem ter uma desculpa rigorosamente impermeável, furo-lhe a pele com uma sonda infectada!

Dormia ele tranquilamente quando...

-- Chamada de urgência. Chamada de urgência, Dr. Warren...

- Que trovão infernal! É você, Vard?

- Sou. Está pronta a sonda infectada?

- Posso prepará-la. Vão ser espírilos, se é uma chamada de patifaria.

- Não é. Está aqui um dos seus predilectos. Garante que você e o Pee Wee lhe fizeram uma operação maravilhosa. Quando lhe contei a sorte do Pee Wee, pôs-se a chorar.

Tremia de emoção a voz de Ward.

- Não me diga que é o Abie Bloomburg! - exclamou Ran. - Ainda ontem ao fim da tarde o vi.

- É mesmo o Abie. Começou a sofrer extraordinariamente, e por isso a mãe trouxe-o a toda a pressa.

- Curioso ! Onde lhe dói?

- Na mesma perna. Estão-lhe a fazer raios X, mas é provável que não revelem infecção aguda.

Quando Ran entrou, estava Abie estendido na marquesa das urgências. Brilhavam nele as luzes do tecto. Tinha o rosto pálido, e no rosto e lábio superior escorriam-lhe gotas de suor.

- Que há, Abie?

- Dói-me a perna! - gemeu ele.

A mãe avançou:

- Sofre horrivelmente, senhor doutor! Começou ao jantar.

- Ele jantou?

- Um rico jantar, que comeu muito bem. Depois, quando o chamei para me ir ajudar a lavar a louça, respondeu-me com gemidos.

Ran deitou uma olhadela ao relógio.

- Há já muitas horas. Dói-te sempre da mesma maneira?

O rapaz estremeceu, como subitamente picado.

- Cada vez mais, senhor doutor. Sempre. Pode-me operar?

- Vai-se ver, depois. Por agora, o que é preciso é verificar se está outra vez inflamado.

O Dr. Ward já retirara o penso que envolvia a parte de baixo da perna, onde aparecia, bem visível, a grande cicatriz da primeira operação. Duas estreitas aberturas na fenda penetravam até ao fundo. Divisava-se uma lascazinha óssea. Ran explorou a pele, percorrendo-a desde o tornozelo até ao joelho, e carregando ao de leve. Não se descobria qualquer dilatação, qualquer engrossamento indicativo de um tipo superficial de infecção, como a celulite, que viaja nas camadas inferiores da pele. Mas isso não significava que, mais abaixo, não existisse algum foco de inflamação aguda, quer no periósteo, quer no próprio osso. Carregou um bocado mais na extremidade superior da tíbia, mesmo por baixo do joelho; Abie estremeceu e retirou a perna.

.- É aqui que te dói?

Abie respondeu afirmativamente, com um sinal, e mordeu os lábios.

- Parece haver uma área de sensibilidade localizada ao alto da tíbia, exactamente na articulação do joelho - disse Ward. - Mas não tem febre e não é grande a redução de células brancas. Apenas seis mil.

Ran levantou bem acima do joelho a calça esfarrapada da criança: a articulação não estava inchada, e, quando ele a dobrou, lentamente, Abie não se queixou.

- Não é com certeza artrite aguda. A chapa?

Ward trouxe uma chapa ainda húmida, pô-la no aparelho, e acendeu a lâmpada que, por trás, a iluminou. Ran observou-a cuidadosamente, com Ward e a enfermeira das urgências dobrados sobre os seus ombros, e depois, pensativo, carregou o sobrolho.

- Acha que há alguma área nova? - perguntou Ward.

Ran abanou a cabeça:

- Vê-se perfeitamente o velho sequestro. Está completamente separado do resto do osso. Mas não descubro nenhuma nova destruição óssea, nem no sítio onde parece localizado o sofrimento nem em qualquer outro.

Voltou para o pé da criança e carregou novamente no ponto suspeito. Abie gritou e afastou a mão do médico:

- Oh, como isto dói! Não vai deixar a minha perna tornar-se outra vez toda má, pois não, senhor doutor?

- Não, se pudermos evitar.

- Que pensa? - perguntou Ward, pondo outra vez a chapa no banho de água.

- Parece-me que há sintomas bastantes para se operar. Era melhor chamarmos o Prather.

O Dr. Marius Prather chegou com todo o furor de um vento de Março. Vinha em trajo de noite e até à ponta dos cabelos e das unhas era o grande cirurgião muito ocupado.

- Então, Warren, que há? Que é que não está bem? - Falava com uma voz impaciente e seca.

Ran começou a fornecer-lhe os pormenores da história, as informações do laboratório, e a radiografia negativa.

- Aqui está o nosso caso de osteomielite. Queríamos a sua opinião, doutor.

- Hum!

com um dedo céptico, Prather carregou na perna de Abie:

- Não há febre. Não há leucocitose. Na verdade, estou admirado consigo, Warren.

Passou para o lavabo e, ostensivamente, pareceu lavar as mãos de toda aquela história.

- Mas a dor... Mas...

Prather interrompeu logo a Ran:

- Já devia saber que não nos podemos fiar no que as crianças dizem, Warren. Boa noite!

- Que tipo encantador, este Prather! - disse Ward, com um leve sorriso. - Miss Snyder: vá buscar um saco de gelo para o Dr. Warren, que está ameaçado de apoplexia.

A empregada começou um cacarejo alegre, deitou um olhar a Ran, e obedeceu ao segundo movimento, que lhe aconselhava silêncio.

- Então? Que fazemos da criança?

- Pomo-la em observação.

- Que há-de dizer o Prather?

- Eu tinha vergonha de repetir!

Eram as pessoas do género de Prather que transformavam num inferno a vida dos residentes. Nascido com montes de dinheiro, casado com outros montes de dinheiro na pessoa de uma esposa munida, além do mais, de muita influência, mas de quem, a acreditar nas vozes públicas, ele não gostava, nunca precisara de trabalhar para abrir caminho. Ran respeitá-lo-ia, porém, por muito antipática que se mostrasse a sua maneira de ser, se ele possuísse uma capacidade, um valor verdadeiro. Mas era de todo o ponto certo que, presentemente, Warren sabia muito mais de cirurgia do que Prather sempre soubera e saberia.

Ran voltou para a cama, mas não conseguiu readormecer. Foi para ele um alívio a voz de Ward, outra vez ao telefone:

- Custa-me incomodá-lo, Ran, mas o pobre do Bloomburg parece muito mal.

Ia talvez dar o troco a Prather, mais depressa do que supunha. Tal ideia fez-lhe percorrer nas veias um calor agradável, enquanto se apressava pelos corredores desertos.

O rapaz agitava-se na cama. Ran carregou ao alto da perna, ao que logo respondeu um grito doloroso, como se a vítima sofresse horrivelmente.

- Parece realmente verdade - observou Ward. - Quer que eu mande preparar a sala de operações?

- vou dar uma apitadela ao Prather.

Mas a telefonista respondeu que o Dr. Prather não estava em casa e não deixara o número de onde se encontrava. No subconsciente, Ran já esperava que o cirurgião não estivesse disponível.

- É a altura de nos vingarmos daquele pedaço de asno! - disse alegremente a Ward. - Vamos a isto!

Não era passada ainda uma hora e - de branco, máscara, luvas, tudo devidamente esterilizado - já ele observava Abie Bloomburg, que dormia tranquilamente, estendido na marquesa e vestido com roupa também esterilizada.

- Continua certo de que é osteomielite aguda? - perguntou a Ward, de pé do outro lado da marquesa, perto das pinças e da esponja, já prontas para servirem.

- Se assim não for, quem paga as favas sou eu.

O escalpelo fez uma incisão hábil e precisa de cada lado da antiga cicatriz e logo tirou esta mesma. Naquele ponto, a tíbia estava muito perto da pele. Ran dissecou os tecidos subcutâneos e o músculo que rodeava o osso. Depois, com a ajuda do elevador periostal, ergueu o próprio periósteo, fibra externa do osso, e fez aparecer este, cuja extremidade superior cuidadosamente explorou.

Não havia o menor sinal de inflamação aguda.

- Favas! - disse Ran.

- É comê-las enquanto podemos - respondeu tristemente o outro. - Tenho a impressão de que o Prather vai tratar de nos fazer perder o apetite.

- Vejamos a medula, já agora.

Brocaram o exterior do osso, até à medula, com a aparência levemente amarelada, própria de toda e qualquer medula sã.

- O último a rir é o que ri melhor. E desta vez o último a rir vai ser o pedaço de asno - comentou Ward.

- Já que abrimos a perna, podemos tirar-lhe o osso morto: ao menos isso será bem feito.

Tirou o grande bocado de osso atacado de necrose, com toda a habilidade. com a tesoura, cavou a abertura até ela ter forma de prato, conhecido processo que permite aos músculos e à gordura voltar ao espaço vazio e obliterá-lo. Pegou depois em grandes bocados de gaze impregnada de vaselina, e, do osso até à pele, encheu com ela a ferida, conscienciosamente. Sem a fechar, cobriu-a com pensos, e depois rodeou tudo com gesso. Dentro de cinco ou seis semanas tiraria este, e, entretanto, ocupar-se-iam germes benignos de limpar a infecção, de a reduzir, de eliminar os últimos resíduos do velho osso. Tirariam a gaze depois do gesso, quando já em parte tivessem enchido a ferida granulações sãs, róseas, limpas. Após isso, seria rápida e completa a cura.

- Daqui por seis meses, há-de jogar futebol - profetizou o cirurgião.

- Sim?

O assistente mostrava certo desinteresse:

- E nós, a que jogaremos, nessa altura? A agitar bebidas alcoólicas, a servir sodas por trás dum balcão?

Ward tentava sorrir, mas era uma tentativa fraca; apenas foi capaz de uma careta e gemeu:

- Tenho horror ao mundo lá de fora, frio, cheio de trevas, horror até de pensar nele.

- Então, não pense.

- Não atulhemos o crânio, Ran. Depois disto, o Prather será veneno puro. O estado-maior não gosta dos erros de cirurgia. Não estamos com sorte, nós.

- Nós? - Ran deitou-lhe um olhar frio e acrescentou: - Este caso pertence-me, Ward. Compreenda que é assim. Não tem qualquer responsabilidade.

- Talvez, Ran. Mas fui eu que...

- Foi você que assistiu. Fui eu que me encarreguei, decidi e responsabilizei. Não tem discussão possível.

- Oh, santo Deus! Você é formidável, Ran! - Ward falava com sincera gratidão. - Que espiga que este miúdo nos arranjou! Devia ir representar. Para o palco.

Lá fora, esperava-os um pequeno e nervoso judeu. Agarrou em Ran e perguntou-lhe:

- O senhor é que é o médico do Abie Bloomburg?

- Acabo de o operar. Está tudo a correr bem.

- E quem paga? Eu não. Não posso.

- E alguém lhe pediu qualquer coisa?

Foi cortante a resposta de Warren: entre todos os flagelos, não há peste mais desesperadora do que os doentes gratuitos, cheios de tal apreensão perante a ideia de terem de gastar algum dinheiro, que adquirem o tom da censura e do ressentimento.

Bloomburg continuava nos seus agressivos lamentos:

- Se eu pudesse pagar, pagava. Mas não posso. E não quero que me mandem a conta.

- Ninguém lhe manda a conta.

- Hum! Acho que o hospital lhe paga bastante bem e que não tem de que se lamentar.

Ran começava a divertir-se. Que queria o homenzinho?

- Não, não me lamento. Bloomburg pacificou-se:

- O meu Abie disse-me que o senhor o tratou às mil maravilhas, quando ele cá veio. Nunca me esqueci disso. Talvez o senhor se instale aqui, em Baltimore, como médico, e eu lhe possa mandar alguns doentes.

Tornara-se protector.

- É uma grande amabilidade da sua parte, senhor Bloomburg - respondeu Warren, sorrindo.

Virou-se para o deixar e deu um encontrão a Ann, que saía nesse mesmo instante.

- O quê? Outra vez! - exclamou ela. E ambos se puseram a rir nervosamente.

- Que faz por aqui? Julgava que...

- Serviço temporário. Substituição.

- Estou a ver. - Ele hesitava: - Ann...

- Que é?

- Vamos...

Ela sorria-lhe com toda a franqueza.

- Ann - disse ele, impulsivo - : recomecemos de princípio !

Teve isso o efeito imediato de a acalmar.

- Nunca ninguém o pode fazer - disse ela. - Boa noite e boa sorte.

Ran admitiu o desmoronar duma ilusão: convencera-se a si próprio de estar curado de Ann, de Frances Libby o ter curado desse amor. Mas, agora, via as coisas de frente: a ligação com Frances fora um paliativo. Não uma cura.

 

Por inúmeras e misteriosas correntes, circulam nos hospitais os mais variados rumores, verdadeiros ou falsos. Os médicos comparam suas notas; as enfermeiras mexericam; de cama para cama, os doentes trocam boatos locais; e até os criados tagarelam. Ainda antes de as coisas atingirem conclusão oficial, toda a comunidade de Lakeview sabia que ia rebentar um grave conflito entre o Dr. Prather, chefe de serviço com as costas quentes, mantido por importantes relações, e o Dr. Warren, assistente-residente sem qualquer protecção, sem qualquer apoio além do apreço de seu trabalho e do respeito de mestres e iguais. Conhecendo a susceptível vaidade de Prather, Ran sabia que ele havia de fazer o maior barulho e mal possíveis. Além disso, era tecnicamente inatacável a sua posição. Ran prestara-se à censura, pelo erro de diagnóstico e por uma operação que constituía declarado desafio à opinião do superior.

“Cá está!”, pensou Ran, ao chamá-lo o telefone interior. E estava, com efeito.

- O Dr. Powers deseja falar-lhe no gabinete, Dr. Warren - disse o operador.

Ao chegar à antecâmara de Powers, Warren ouviu, ao longe, a voz ácida de Prather. O secretário fez-lhe sinal para que entrasse.

- Olá, Warren!

Powers acolhia-o com um sorriso.

- Bons dias, doutor. Bons dias, Dr. Prather.

Prather respondeu com um cumprimento carrancudo.

- Diz-me o Dr. Prather que você operou, contrariamente à opinião por ele expressa, um doente que ele tinha visto na véspera à noite.

- Sim, senhor.

.- E sem o consultar.

- Não foi bem assim - respondeu Ran, sem alterar a voz. - Tentei encontrar o Dr. Prather. A telefonista não conseguiu descobri-lo em sítio nenhum. O doente queixava-se de dores extremas, e eu tive medo de o deixar assim toda a noite.

- Apesar de eu o ter prevenido da sua excessiva facilidade em aceitar o que as crianças dizem acerca dos males próprios - interveio Prather. - Não pode negar.

- Não. Não nego.

- Não havia febre. Radiografia negativa. Não havia leucocitose - insistia Prather. - Mesmo assim, resolveu operar, desprezando os factos e a minha expressa opinião.

- Nestes casos, as condições evolucionam rapidamente - notou Ran. - Pensei que podia ter aparecido uma inflamação aguda.

Era inadequada a defesa; mas foi a melhor que lhe ocorreu ao espírito.

Powers fez a pergunta exacta:

- Descobriu alguma inflamação aguda, Dr. Warren?

- Não, senhor doutor.

- Pode explicar o seu erro?

- A criança estava a representar uma comédia. Contava com uma promessa antiga, que eu lhe fiz quando da primeira operação: que, depois da segunda, ficaria a perna como nova. Fingiu a dor para obter a operação.

- Fez-lhe uma sequestrotomia?

- Fiz, sim, doutor. Enchi a ferida com gaze vaselinada e meti a perna em gesso.

Powers aprovou:

- O tratamento Qarr. É, mais ou menos, o que de melhor se faz para a osteomielite crónica. Não acha, Prather?

- Incontestavelmente. Mas isso nada tira à inconveniência profissional do Dr. Warren.

- Oh! - exclamou o mais velho, num tom de conciliação.

- Inconveniência é bastante forte! Erro de juízo. Eu também os cometi.

Prather levantou-se:

- Deixo o caso nas suas mãos, Dr. Powers. - E acrescentou, com um expressivo subentendido: - Ao menos por agora.

Ran levantou-se ao mesmo tempo, mas deteve-o Powers:

- Só um minuto, Dr. Warren. Há outro assunto de que lhe quero falar.

Fechada a porta, voltou ao caso Prather:

- Apoquenta-me o facto de você lhe ter posto o pêlo em pé, Warren.

- Também a mim. Mas, em idênticas circunstâncias, eu procederia amanhã do mesmo modo.

- Provavelmente. Provavelmente. Todavia, esta história é séria. Ficaria desolado se o perdesse.

- É assim tão grave? - perguntou Warren, mudando de cor.

- O Dr. Prather ameaça-nos de levar o caso a conselho. Como sabe, o tio dele é o nosso presidente. Em rigor, eu podia pôr a questão de confiança. Mas tivemos recentemente algumas vivas arrelias acerca do andamento do hospital, e hesito em excitá-lo ainda mais.

- Nem me passava pela cabeça pedir-lho!

- Qual foi a parte do Dr. Ward neste malfadado caso?

- Nenhuma. Absolutamente nenhuma. Trabalhou inteiramente debaixo das minhas ordens.

- Hum! Teve uma grande sorte, não teve? - e o amável velhote permitiu-se um sorriso. - O outro assunto que me preocupa, e de que eu lhe queria falar, é o Laurence ^Vilson. Seu amigo, creio.

- Sim.

- Aceitaria ele da sua parte uma repreensão categórica?

Ran hesitou:

- O Larry não aprecia muito críticas nem censuras. Ouso dizer que estamos todos nas mesmas circunstâncias.

- Ele bebe demais. Passa as noites fora. E tudo o que daí advém. Este estabelecimento não é pensionato de crianças, bem entendido, mas há certos limites.

Ran ia para dizer qualquer coisa, mas ele interrompeu-o com um gesto e continuou:

- Não quero dizer com isto que vá para o serviço em estado de embriaguez, pois, nesse caso, eu procederia imediatamente. Mas tenho a impressão de que comparece muitas vezes no trabalho em más condições físicas. Não gosto de que os meus médicos operem com as mãos a tremer, Warren.

- É natural, doutor.

- Pois bem! Acha que pode fazer-lhe uma alusão amiga? Como vinda de mim, se isso lhe parece preferível.

- vou fazer o que puder.

Falava em ar dubitativo, pois a missão era ingrata e, com todas as probabilidades, vã.

- bom! Pelo meu lado, vou fazer o que puder por si. Mas não construa muito na areia. Talvez tenha qualquer outra coisa debaixo de vistas. Neste mundo, não deixa de ser aconselhável uma âncora sólida do lado do vento!

Ran voltou para o quarto, maçado. Poderia ser aquilo o fim? Não contaria mesmo nada todo o seu trabalho desinteressado em Lakeview, só porque desagradou a um mau piolho como Prather? Que podia ele mostrar por aqueles anos de serviço? Que lhe restava nas mãos? Experiência, sim. Mas esta ficaria mais que contrabalançada pela nódoa da demissão. Era mais que provável que Powers arranjaria um meio honroso para lhe garantir a partida, a possibilidade de salvar as aparências, deixando-o pedir a demissão. Mas todos saberiam como as coisas eram. E depois? Nunca, desde os dias do orfanato, a vida fora fácil para Ran. Mas aquilo era a primeira ameaça real, o primeiro aviso de mau agoiro para a sua carreira.

 

No pavilhão das enfermeiras, Robie e Trent davam-se ao prazer duma chávena de chá, enquanto iam comparando os apontamentos tirados no decorrer duma conferência, havia pouco finda. Bateram à porta, e a sedutora Hermione Snyder lançou um olhar pedinchão. Era fácil a hospitalidade de Robie.

- Tem ouvido falar desta porcaria? - inquiriu a recém-chegada. - O Warren não está seguro.

- Por causa do escândalo do Prather? É uma vergonha - declarou Robie, convicta.

- Tem a certeza? - perguntou, ansiosamente, Ann. A coisa ainda não se divulgou, pois não?

- Não. T. S. F. interior. De notoriedade pública. Sabem que tive uma paixoneta por ele?

- Não me parece nada ser o seu tipo, Snyder - observou Robie, com judiciosa austeridade.

- Foi exactamente o que ele pensou de mim! Tenho uma vaga suspeita de que você é que era a mosca no doce, Trent.

Ann desprezou a ferroada e declarou:

- com que prazer eu envenenaria esse Prather!

Snyder pousou delicadamente a chávena, e pelos olhos passou-lhe uma expressão de sonho, dando ao rosto encantador um reflexo celeste.

- Prather! - disse ela, brandamente. - O Prather! Essa lesma viscosa! Se o Ran Warren soubesse tudo o que eu sei, podia fazê-lo calar.

- Conte-nos isso! - pediu avidamente Robie. - Estamos entre amigas. Ia apostar que ele lhe atirou uma estocada. Foi?

- Uma estocada? Maior do que num torneio de esgrima. Mas eu não ia deixar-me ferir, vocês calculam. Pouco Prather para mim, obrigada!

- E então? Que prova isso? - informou-se Robie.

- Querem uma prova? Tenho guardado na lavandaria um bilhetinho que mostra qualquer coisa. Oh! Não passa duma recordação.

- Que quer em troca? - Ann tremia: - Dou-lhe o meu relógio de pulso de noite.

,- O quê? Qual é o seu interesse?

^- Podia servir-me dele. Bastava-me uma cópia.

- Sim? Que tem então contra o Prather?

- Quer impedi-lo de levar a sua avante - explicou Miss Robie. - Acho que deve ser possível. Diga que sim, Snyder, vamos

Insistiram com argumentos e promessas. Era a oportunidade de porem um pau nas rodas de Prather e de salvar o melhor homem do estabelecimento e - Miss Snyder podia confiar nelas! - arranjariam maneira de não a comprometerem. Esta não deixava de se mostrar apreensiva, mas começava a ceder. Actuava sobre ela a perspectiva de deitar abaixo Prather, que desprezava, juntamente com a de salvar Ran, que admirava, e a agradável impressão de sentir em si uma potência oculta, movendo os cordelinhos da política hospitalar.

- Para o diabo !

Capitulava:

- Sou uma fraca. Vão ter o que querem. Mas arranjem-se de maneira que mo devolvam inteiro: posso vir a precisar dele, mais cedo ou mais tarde. Para o emoldurar. Vale qualquer coisa, como certificado!

 

Charley ^Vard ficou muito surpreendido ao receber a visita da enfermeira Trent. Após breves preliminares, muito breves mesmo, ela estendeu-lhe o meigo bilhete Prather-Snyder. Ele pôs-se a assobiar.

- Qual é a sereia?

- Não precisa de saber, pois não, Dr. Ward?

- Não, realmente não preciso. Sabe-o muito bem o Dr. Prather. Como acha que melhor podíamos servir-nos deste bilhete?

- Não me parece justo que o Dr. Prather possa pôr na rua o Dr. Warren.

- E a mim também não, é claro. E daí?

- Se eu pudesse chamar discretamente a atenção do Dr. Prather para este bilhete...

- Estou a ver. Uma chantagenzinha muito disfarçada. Não há dúvida sobre a autenticidade do documento, pois não?

- Nenhuma.

Ao encontrar o olhar dele, Ann corou:

- Não sou eu a destinatária.

- Se fosse, não podia eu censurar o Prather .- respondeu ele, com ênfase. - É então pelo Dr. Warren que a menina faz o que faz? Porque não lhe envia o bilhete?

- Ele recusar-se-ia a tocar-lhe.

- Estou a ver. Princípios nobres, não? - E sorriu. - Julga que não são os meus?

Ann discutiu:

- Não é a mesma coisa. Ele não podia utilizá-lo por si próprio. Mas um amigo pode utilizá-lo a favor dele.

- Você devia pertencer à diplomacia.

- Obrigada, Dr. Ward - agradeceu modestamente Ann.

- Tenho de reflectir um bocado sobre a maneira de conduzir o caso. Mas o Dr. Prather pode estar certo de que lhe meterão no peito o temor de Deus e da Sua justiça! Quando eu disser ao Ran...

- Oh, não! Não se deve dizer. Nunca ele consentiria na utilização deste bilhete!

- Exacto. Nós, os que fazemos a chantagem, temos de trabalhar na sombra e sem a ajuda do interessado.

- Farei tudo que o doutor me disser. Mas - peço-lhe! - não quereria de maneira nenhuma que ele viesse a saber ter-me eu ocupado desta aventura.

- A menina é o capitão. É quem comanda.

- Tenha o cuidado de não largar esse bilhete das mãos.

- Boa ideia. vou copiá-lo. Valerá o mesmo. E, se quer a minha opinião, Ann Trent, você merece a medalha de reconhecimento deste hospital.

Durante uma semana, viveu Ran num nevoeiro de espera ansiosa e de miserável inquietação. Mostrava absoluto cepticismo.

- Está a tremer, Larry!

- Estou de tal modo furioso que só me apetecia ir dar um pontapé nos dentes daquele pulha. Ouviu o que ele disse de mim?

- O Steinert não é um pulha. É um dos nossos melhores médicos e uma das melhores índoles que cá temos. E o Larry devia estar-lhe reconhecido por ele o ter salvo de embaraços.

- Por esse lado tem você razão, sem dúvida - admitiu o outro, com uma daquelas alterações de fisionomia que o caracterizavam.

Supôs Ran que ele iria, com efeito, pagar a sua dívida de gratidão e que seria tão encantador ao fazê-lo que o próprio judeu austero se amansaria.

- A verdade é que ontem à noite carreguei um bocado nos líquidos.

Ran viu a entrada:

- Ó Larry, porque é que não diminui as suas libações nocturnas?

- Para quê? O homem precisa de um pouco de prazer neste mundo cá de baixo!

- Arranje-se então de maneira que fique em bom estado. Pediu-me o Powers que lhe falasse nisso.

Carregou-se o lindo rosto de Larry.

- O palerma! Você é um dos seus favoritos, não é? Pois olhe: não será ele quem me dará ordens.

Chegaram juntos ao átrio, quando Ann Trent vinha em sentido inverso. Larry chamou-a:

- Eh lá, Ann! Os Robbs convidam-na para o fim de semana com baile no Clube da Caça. Venha! Eu encontro-me entre os presentes.

- Sim, eles telefonaram-me. vou fazer por lá ir, uma noite.

- Óptimo! Guarde dez danças para mim.

E desapareceu. Ann esperou por Ran:

- Espero que tudo corra bem para si. Quero dizer: no caso Prather.

- Que sabe você do caso Prather?

- Em todo o hospital não se fala doutra coisa.

- Se me perguntasse o que penso eu a tal respeito, dizia-lhe que me sinto perdido. Cumprimenta-a quem vai morrer. Súplica in extremis: jantemos uma última vez um com o outro, comendo o que houver de melhor, e vamos depois ao cinema. Vamos, Ann, tivemos momentos tão bons...

Ela examinou-lhe o rosto, de olhos turvos e velados, e, por fim, disse:

- Está bem. Ser-me-á muito agradável.

- Sábado à noite?

- É a noite do baile...

- Nesse caso, evidentemente...

- Não. Prefiro ir consigo.

Ran caminhou pelo corredor, andando sobre nuvens. Parou em frente do gabinete de Steinert e entrou.

- O Wilson veio cá pedir desculpa e agradecer - disse o ginecologista.

- Eu já esperava. Ele é muito como deve ser, no fundo. Pareceu a Ran já várias vezes ter feito tal afirmação.

E tal defesa.

 

Ao olhar para trás e reviver em imaginação os quatro anos decorridos desde aquele dia em que, no grande auditório, ouvira Paddy Ryan, maravilhava-se Ran de eles terem podido passar tão depressa, sendo todavia tão cheios de riquezas. Encontrava-se presentemente no segundo ano de residente, adquirindo aquele género de experiência cirúrgica que ambicionava possuir, aprendendo tudo quanto podia ser-lhe útil e dar-lhe a prática necessária a não se sentir inferior a ninguém.

A sua resistência física, bem como a inflexível decisão, haviam-lhe permitido não sucumbir a uma prova que tinha queimado outros. Prova dura, na verdade. Contou os que, por serem fracos de mais, haviam caído pelo caminho: duas tuberculoses, dois esgotamentos de nervos, três demissões, Uma das quais imposta. Para fazer um médico, não bastam a inteligência e o dinheiro...

No decurso desses anos, vira Ann Trent transformar-se, e, de encantadora rapariguinha, passar a ser uma mulher intangível e apetecida. Obstinadamente esperançosos, todos os seus projectos para o futuro incluíam Ann. Mas esse futuro encontrava-se em perigo: se Prather atingisse os seus fins, ele, Ran, ficava fora de jogo. Seria a primeira batalha perdida. Sempre tivera de abrir caminho à sua força, e ainda lhe restava alguma disponível. Mas essa demora na escuridão arrasava-lhe os nervos. Porque não ouviria ele falar de nada?

Sobreveio-lhe uma diversão, que era também a primeira recompensa do exterior. Deixara-o primeiro perplexo um bilhete, assinado por Carson Wright: precisou dum grande bocado para identificar o signatário como o marido da linda mulher de quem tratara em casa de Frances Libby, naquela noite em que...

Ao que parecia, muito grato ficaria o jovem Wright ao Dr. Warren, se este lhe telefonasse para o escritório. O que Ran fez. Soube que a senhora se encontrava presentemente grávida e num estado de nervos lamentável. Quereria ir vê-la o Dr. Warren?

- Mas eu sou cirurgião - objectou Ran. - Não sou neurologista nem ginecologista.

- Assim está muito bem. Você conhece as mulheres a palmo!... Que diz?

- Nada, nada - respondeu logo o jovem médico, o qual murmurara para consigo que bem desejaria ser isso verdade. - vou esta noite.

À encantadora e sedutora mimalhas fez Ran um discurso em que a conselhos de bom senso se aliava a simpatia pessoal, e ela aceitou tudo muito docilmente.

- Quanto lhe devo, doutor? Incluindo o tratamento anterior.

- O tratamento não era completamente profissional. Além disso, eu não tenho o direito de receber honorários.

- Então não é médico inscrito? com licença para exercer a profissão onde quer que seja?

- com certeza, é claro que sou. Mas o pessoal ligado ao hospital e lá residente é pago por este.

- Compreendo. Mas suponhamos que eu quero oferecer-lhe um novo microscópio... ou periscópio - ou lá como se chama esse instrumento com que o senhor ausculta os doentes - e que lhe envio um cheque para o doutor o adquirir. Seria um presente. Não se lhe podem chamar honorários!

- Não - admitiu Ran - não; acho que não.

Não havia efectivamente qualquer motivo para recusar aquele dinheiro. Era hábito os clientes ricos, hóspedes dos quartos particulares dos hospitais, oferecerem presentes a este ou àquele membro do pessoal a quem mais apreciavam.

- Então, bebamos - disse Wright. - Tem visto recentemente Frances Libby?

- Não.

- Voltou há pouco da Califórnia. Adquiriu o gosto das viagens, sabe? Vai-se casar com Robert Mayfield, em princípios do Inverno.

.- Sim? .- respondeu Ran, vagamente.

O correio levou-lhe o cheque de Wright: era de cinquenta dólares. Transportado, Ran imaginou para essa soma mil e um empregos diferentes. A melhor inspiração foi a última: ia mostrar a Ann Trent um Randolph Warren completamente novo. Após uma expedição longa e complicada através dos armazéns, voltou para casa proprietário orgulhoso de um jaquetão para noite, de bom corte, acompanhado das respectivas calças (por quarenta dólares), e de uma camisa e de um laço preto que elevavam a despesa ao grandioso total de sessenta dólares e cinquenta cêntimos. Nunca ele gastara tanto dinheiro duma só vez! Mas era com motivo justo. Se continuasse a arranjar cinquenta dólares por mês, poderia dar-se a esse luxo. Se ficasse sem emprego, teria ao menos acabado com uma boa acção.

Quando estava a experimentar o conjunto, entrou Charley Ward:

- Divina bondade, Ran!

- Que foi? Dei mal o nó?

É que Ran tinha sofrido muito na luta com o nó do laço.

- Não. Estou apenas encantado ao ver com que elegância você hasteia a bandeira de guerra. Está um belo rapaz!

Ran sentiu que devia encontrar-se no bom caminho. “Conhece as mulheres a palmo”, dissera Carson Wright; e agora “Está um belo rapaz!”, disse Charley Ward. E este era um rapaz normal, geralmente brusco e bruto, sem qualquer propensão para lisonjas. Esperava Ran que, na noite do próximo sábado, Ann ficasse igualmente bem impressionada.

Chegou na quinta-feira a convocação para o gabinete de Powers. Uma olhadela para a expressão deste, cintilante e risonha, ao encará-lo, e tanto bastou para acalmar a ansiedade do visitante:

- Sente-se, Warren. Acenda o cachimbo, se quiser. Powers fez estalar o isqueiro e depois aspirou vigorosamente o cigarro.

- com que é que detém o Prather? - perguntou, de repente.

- Deter o Prather? - repetiu Warren, confuso. - De modo nenhum, doutor.

- Há alguém que o detém de qualquer modo. Sem dúvida. Meteu para dentro os paus como o caracol que tocou em sal.

Powers expeliu com força o fumo.

- Conhece Robert Mayfield?

- Já o encontrei.

- Ele conhece-o a si, Warren. Interessa-se pelo caso. Veio cá dizer que você é alguém. Por isso, tudo corre convenientemente.

- Penso que o devo a si, doutor - disse Ran, grato.

- Não. A mim não. Mas a alguém que, suponho eu, tinha possibilidade de deter a corrida do Prather. Há nisso um certo sabor a chantagem - acrescentou, com um sorriso de satisfação. - O Prather não é boa peça. E há alguém que não só o sabe, como sabe igualmente onde se enterra o cadáver. Se se trata dum enigma e você não sabe responder, não sou eu que sei.

- com certeza que não! Diz o doutor que o Dr. Prather retirou a acusação?

- Abandonou-a. De repente! Nem sequer assistiu à segunda reunião. Nem palavra. Nada. Por isso lhe perguntei como é que o detinha. Não tem importância. Acabou tudo. Pronto!

Encostou-se confortàvelmente, juntou as mãos à frente, examinou o tecto. Quando, um minuto depois, voltou a falar, foi no tom de quem comunica com recordações:

.- Quando eu era residente, tinha um chefe de serviço de quem não gostava. Uma vez, trouxeram-me um homem que, na minha opinião, estava perfurado. O chefe disse que não. Nesse tempo, eu tinha a cabeça leve: operei mesmo. - Olhou para Ran e sorriu: - Mas tive mais sorte do que você: ele estava perfurado!

Ran corou e depois também sorriu. Sentia-se mais ou menos no estado de espírito da criança que vê o professor descobrir-lhe na algibeira um sapo.

- É também interessante a cirurgia - explicou Powers. Seguiu com o olhar o fumo do cigarro a subir para o tecto.

- Precisamente quando achamos que tínhamos começado a compreender, dá-se um facto com que não contáramos e que nos atira ao ar. O novo cirurgião deve aprender duas coisas: uma, é fazer o melhor possível o que tiver para fazer e aceitar as consequências como elas vierem, se vierem; a outra, é que muitas vezes é precisa mais coragem e mais inteligência para não operar quando não se tem a certeza de existirem realmente os sintomas.

- Parece-me que estou a aprender - volveu Ran, com esperança.

- Não há dúvida. Eu não lhe daria trabalho pessoal para fazer, se não estivesse certo de que você tem os dois pés solidamente presos ao chão. Pelo menos reconhece os seus erros. É característica do verdadeiro cirurgião. Isso, e ainda a faculdade de aproveitar a experiência.

- O que me arrepia é não poder avançar decidido e fazer o necessário por pessoas como o Bloomburg. Porque havia ele de ficar doente, só por a família não ter posses para lhe pagar o tratamento que o curaria? Vivemos na mais rica nação de todo o mundo, e há pessoas que têm de morrer ou ficar estropiadas por não serem tão ricas que possam assegurar cuidados médicos e lugares nos hospitais!

- Não parece possível esperar grandes modificações nesta ordem de coisas, no estado actual da organização. Talvez venham próximos os tempos de ela se alterar. Há certo número de homens de valor que começam a levantar a voz, a criticar o facto de os pobres, e até a classe média, terem de esperar da caridade particular os cuidados médicos indispensáveis. O governo gasta milhões com a polícia, todos os anos. com a polícia, no que ela tem de mais miúdo, de mais mesquinho: ponha o carro no parque, deixe-o lá dez minutos além do que o que pagou, e lá aparece o “xui” mais depressa do que o diabo esfrega um olho. Porque é que nos preocupamos tanto com ninharias destas e não havemos de gastar uns cobres por aqueles que, se estiverem doentes, mal podem comprar uma aspirina? Há no país médicos mais que suficientes para tratar de toda a população. Porque é que o governo não paga a alguns que se ocupem das pessoas que têm necessidade deles?

- Não sei.

- Na verdade, são numerosos os que hoje em dia se preocupam com este género de problemas. Mas- não conseguimos nada. O corpo médico organizado receia as ingerências governamentais. Todas as vezes que um professor, seja em que escola de medicina for, se ergue e pergunta por que motivo o governo não tira, ou não assume mesmo, uma parte da carga que pesa sobre os ombros dos médicos e das fundações particulares, cai sobre ele a Associação Médica Americana, acusando-o de idealista desprovido de sentido prático. Dizem que tal método destruiria a individualidade do médico e desnaturaria as relações que deve haver entre ele e o doente.

- Eu sei - disse Ran. - A Associação Médica Americana parece-me tão interessada em gritar “A ele! A ele!”, sempre que ouve, reunidas na mesma frase, as palavras medicina e governo, que fica sem tempo para examinar o problema a fundo.

Levantou-se e guardou o cachimbo na algibeira.

- Desculpe, doutor. Acho que estou a falar sem dever. Os novos não podem hoje permitir-se certas opiniões. Nem exprimi-las!

- Não estou tão certo como isso. Todos os anos, vocês, rapazes novos, me ensinam qualquer coisa. O médico, ao envelhecer, vai-se atolando. Precisa da concorrência e das ideias frescas e arejadas das gerações novas, para se conservar em terreno seguro.

- Parece então que nós sempre somos úteis em qualquer coisa...

-- Procure conservar o mais possível o seu idealismo, o seu entusiasmo médico. Mais do que uma vez tive vontade de deixar tudo, e você há-de sentir o mesmo desejo quando sair daqui e deparar com certos problemas que na prática se levantam. Perante a clientela particular, as coisas são muito diversas do que são nos estabelecimentos dotados de todas as comodidades profissionais e de todos os meios que ajudam a elaborar e verificar um diagnóstico. É-nos muito fácil sermos intolerantes para com os erros e enganos do vizinho, mas devemos lembrar-nos sempre de que talvez fizéssemos ainda pior do que ele, se fôssemos obrigados a trabalhar nas mesmas condições. Por isso é que, entre nós, membros das gerações mais antigas, poucos há a advogarem a causa de uma reorganização da medicina. Bem vemos os defeitos do sistema actual, mas ensinou-nos a experiência que nada se pode alterar num abrir e fechar de olhos.

- Acredito, na verdade - admitiu Ran.

- A propósito: tem algum projecto para o próximo ano?

- Naturalmente, procurarei descobrir uma cidade favorável, e depois lanço-me nela como os outros. A clientela particular não há-de representar, é claro, um mar de rosas, mas, mesmo assim, espero sair-me menos mal.

- Como eu gostava de ter maneira de o conservar aqui, como instrutor de serviço!

Na voz de Powers havia sincera pena.

-- Parece que não temos necessidade de instrutores: baixaram trinta por cento os pedidos de admissão à escola.

“Não deixa de ser uma consolação!”, pensou Ran, ao passar a porta. “Quanto menos pessoas se diplomarem, menos concorrência haverá”.

Se gostava de ficar instrutor! Mas era tempo de ceder o lugar a Ward: Charley bem o merecia. Ceder o lugar, sim. Mas para ir para onde? Talvez para muito longe de Baltimore. E - perturbante ideia! - para longe de Ann. Fosse como fosse, não era para já. Por agora, o que podia fazer de melhor era telefonar a Ann e contar-lhe a boa notícia que trazia do gabinete de Powers.

- Como fico contente - exclamou ela.

.- Leve a roupa melhor que tiver! Vai ser uma grande alegria.

- Pode dar-se a esse luxo?

- Não. Mas será como se pudesse.

Na sua voz, havia algo que surpreendeu Ann, sonhadora ao deixar o telefone. Aquando do último encontro, ele parecera indiferente, privado daquela tranquila confiança em si próprio, característica da sua atitude profissional. No sábado à noite, quando foi buscá-la, confirmou-se imediatamente a vaga impressão que ela sentira ao telefone.

- Oh! Como vem elegante! - disse ele, com calor.

- Foi o que se combinou, não acha? Onde vamos nós?

- Ao Belvedere.

- Não faça isso ! É terrivelmente caro !

- É lá mesmo que vamos. E, Ann...

- Diga.

- Da primeira vez que saímos juntos, você pôs uma condição. Lembra-se?

- Não...

- Disse ser proibido o romance.

- Pois é. Temo-nos entendido assim muito bem, acho eu.

- Espere um minuto. Sou eu que ponho uma condição, agora.

- Ah, sim?!

- Eis a grande condição: o romance readquire os seus direitos. Nunca será proibido. É muito pouco para mim. De acordo?

- Sim, mas...

- É essa a base fundamental. Que pensa?

- Que assim talvez seja muito bem para si. Mas para mim? Se você é romântico, eu sou sensata: como se há-de combinar isto?

- Você nada sabe antes de experimentar.

- A caminho. Quero eu dizer: não vai meter o carro a caminho?

- Agora, que tudo ficou bem compreendido e entendido, sim, meto...

Ela mirou-o e depois perguntou curiosamente:

- E se eu me tivesse recusado a aceitar como fundamental a sua base, que fazia?

- Pedia-lhe que descesse e seguisse a pé - respondeu ele, alegre.

- Muito bem. Mas, mesmo assim, serei sensata. Por dois.

De caminho perguntou Ann:

- Que fez ao Larry Wilson?

- Nada.

- Deve haver qualquer coisa. Ele está magoado. Diz que o Ran lhe fez um sermão acerca dos pecados dele.

- Não tem qualquer direito para o estar.

Ran contou então a mensagem de Powers para Larry.

- Teve razão, acho eu. Mas ele nunca lhe perdoará.

- Que ideia! O Larry não é desses.

- O Larry é um sedutor. Mas se se lhe toca na vaidade...

- Ann: o Larry ainda lhe interessa?

- Já lhe disse que a minha divisa é: “não há romance”. Isso não vale para si. Vale para o Larry e para todos os novos, se aparecerem. Serei enfermeira.

À frente estava temporariamente impedida a transversal, por uma discussão de prioridade entre um camião e uma limusina. Aquecia mal o velho e cansado motor do carro de Ran. Este desabotoou o sobretudo. A companheira deixou escapar uma exclamação:

- Que foi?

- Traz fato de noite?

- Trago. Que mal tem isso?

- Nenhum. Mas julguei que não o tinha.

- Era verdade até ontem. É hoje a sua primeira saída.

- Isso impressiona-me. Mas, conte...

Ran virou-se para ela:

- Lembra-se duma ocasião em que eu não o levava? O resultado foi tal que...

- Deixe isso - ordenou ela, logo.

- Não. Você tinha razão. Procedi como um saguim. Este fato constitui as minhas desculpas. Gosto de ver que lhe agrada.

- Oh, Ran! Como é criança.

Começou por rir, mas a sua alegria enrouquecía e depressa amorteceu, porque ela enfiava o nariz no ombro vestido de retratação em forma de fato de noite...

Um momento depois, ele fez notar:

- É a segunda vez que a beijo.

Ao que ela respondeu:

- Pois sim. Mas não recomece. Pelo menos agora. Estamos na via pública.

Foi um grande êxito, o jantar. Falharia o filme que se lhe seguiu, se os dedos de Ann não tivessem encontrado lugar na mão de Ran e se o seu corpo esbelto e macio não se lhe tivesse apertado um pouco mais talvez do que a conformação dos lugares exigia. Voltaram por um vasto circuito e pararam numa rua escura.

- Agora, vamos ver qual dos dois pontos de vista está certo, nesta história do romance: o seu ou o meu - disse ele, numa voz clara e decidida.

Ela atirou-se-lhe para os braços, como se esse fosse o seu lugar, o seu único lugar desde sempre, que nunca devesse deixar. Erguendo a cabeça, Ran adquiriu tom austero e solene:

- O que é que a leva a beijar-me assim, se não me ama?

- Não foi de propósito. Não tencionava.

- O quê?

- Amá-lo. Não pude evitar.

- Não há romance. Os romances estão proibidos - gracejou ele, beijando-a uma vez mais e por mais tempo. - Isso altera-lhe as intenções acerca do nosso casamento?

- Não - respondeu ela, numa voz miserável. - É isso o pior de tudo. Não quero casar-me. Nem sequer consigo, querido. E... não quero correr riscos... noutro caminho...

- E quem é que lho propõe?

Ann endireitou-se e pôs os cabelos em ordem:

- De resto, eu desvairo! E por culpa sua - acusava-o, com uma espécie de amoroso ressentimento. - E, depois, dói-me a cabeça, e quero voltar para casa, e amo-o, e tudo isto é confusão!

- Mais tarde voltaremos a falar do caso - disse ele severamente. - A pergunta importante, por agora, é esta: “Quando torno a vê-la?”

- Amanhã - respondeu Ann, sem sombra de hesitação.

A partir desse momento, aproveitaram todas as oportunidades para estarem juntos. Ran nunca era enfadonho, mas quase a terrificava a sua tranquila certeza de um futuro comum. Pensava ela que, sem dúvida, é esse género de atitude que triunfa da resistência feminina. Mas não. À partir do momento que podia ver Ran todos os dias, nem que fosse por alguns furtivos minutos, achava a vida mais satisfatória. Não de todo satisfatória; nem ia ao ponto de o querer. Mas o bastante. com o fácil optimismo da juventude, ela não via o que poderia impedir de se prolongar o statu quo. Todos sabiam que o velho Powers só jurava por Ran e desejava vivamente conservá-lo, pelo menos ainda durante um ano, fosse a que título fosse. Quando Ann sugeria esta solução como de todo desejável, ele atirava-lhe um olhar estranho e mudo.

Mrs. Gallaudet mandou a sobrinha fazer uma viagem de duas semanas; durante esta quinzena, sofreu Ann de grande nostalgia: fazia-lhe uma falta terrível aquele velho e querido Lakeview. Seria só isso? Pouco importava: estava decidido a não permitir que nada, que ninguém lhe travasse a vocação escolhida. Por sua vez, Ran levou-a a jantar. Não ao Belvedere, porém: ela banira-o por inconsideradamente dispendioso.

- Já ouviu falar da activa, industrial, viva, agitada cidade do Sul que se chama Farmington?

- Não.

- Eu também não, até a estes últimos dias.

- Então?

- É uma cidade próspera, em plena expansão, que conta duzentos mil habitantes. No mais importante hospital municipal, está livre o lugar de cirurgião-director do dispensário e chefe de serviços exteriores. Falando a sério, parece-me uma boa oportunidade: ficam disponíveis as tardes para a clínica particular. O Tim Brennan está instalado a cinquenta milhas de lá. Recomendou-me para o emprego.

- A que distância fica daqui?

- Seiscentas ou setecentas milhas.

- Oh! - exclamou Ann.

E Ran mostrou-lhe uma carta:

- Leia.

Caro doutor Warren:

Apresentei ao conselho do nosso pessoal executivo o seu pedido de admissão ao lugar de director do dispensário para o serviço exterior de doentes, do nosso hospital.

Tendo parecido absolutamente satisfatórios ao Conselho de Administração os seus títulos, encarregam-me de lhe oferecer este lugar; a nomeação efectiva-se a partir de 1 de Julho. O ordenado é de duzentos dólares mensais, e não se prevê que viva no hospital.

Peço-lhe queira dar-me a conhecer, sem demora, a sua decisão, e creia-me,

sinceramente seu,

Robert-J. Knott, médico

Director-geral, Hospital Municipal de Farmington.

- Respondeu? - perguntou Ann, com um desinteresse cuidadosamente calculado.

- Respondi.

- O quê?

- Que aceitava.

- Seiscentas ou setecentas milhas - disse ela, pensativa. - Fez bem, claro.

- Não precisarei de muito tempo para me estabelecer. Ann: quer esperar por mim?

- Não.

- Olhe para mim. Não quer?

- Não. Eu... eu não tenho... vontade... que você parta...

Ele endireitou-se: exprimia decepção o seu olhar endurecido.

- vou partir.

- Quando?

- Para a semana.

- Leve-me! - pediu ela, desesperada.

Casaram-se três dias antes da data de Warren entrar em funções. Foi testemunha Charley Ward, em substituição de Larry Wilson, impedido de comparecer. De qualquer maneira, Ann não desejava que ele lá estivesse.

 

 

- Sinto que vou gostar de Farmington - afirmou Ann, que acabava de lá passar as primeiras vinte e quatro horas. - Temos dinheiro?

- Não - disse Ran.

- E de que vamos nós viver?

- De crédito, até arranjarmos. Nunca na minha vida tive cem dólares duma vez.

- Eu tenho algum, que a tia Gallaudet me deu. Presente de casamento.

- Guarda-o. Podes vir a precisar dele.

- Por enquanto, não. Para aquilo em que estás a pensar, não. vou empregá-lo, pelo menos em parte, a alugar um apartamento. Não me sentirei respeitàvelmente casada enquanto não tivermos um. Vem, vamos à procura da nossa caverna.

- Obrigado pelo que isso implica de lisonjeiro. Mas o teu homem das cavernas tem de ir ao hospital descobrir o que há.

No hospital municipal de Farmington, encontrou-se com o Dr. Knott, que o esperava. Era o director-geral um homem esguio, afável, esmagado ao peso de uma preocupação perpétua, a propósito de coisas que em nada podia alterar, o que lhe dava ao rosto uma expressão furtiva e alucinante. Dispensou ao novo médico um acolhimento reservado, mas amigo. Encorajado, procurou logo Warren obter algumas informações úteis.

- Dr. Knott: muito lhe agradeceria algumas indicações. É preciso desconfiar aqui dos companheiros?

- Oh! Companheiros! - protestou o outro, chocado, ou querendo parecê-lo. - É uma palavra descortês, essa. Alguns membros do pessoal trabalham em comum, se é isso o que tem no espírito.

- Por exemplo? - insistiu o rapaz.

- O Dr. Metzger, nosso cirurgião-chefe, é genro do Dr. Miller, presidente da comissão municipal; por isso se encontra bastante próximo do grupo Bayner, que dirige efectivamente o partido democrático e a máquina local.

- Não é nada desagradável para ele - comentou tranquilamente Ran.

O Dr. Knott deitou um olhar angustiado para a porta entreaberta.

- O Dr. Miller, da medicina orgânica, é o chefe dos nossos serviços médicos. Ele e o Dr. Metzger colaboram estritamente e entendem-se muitíssimo bem, assim como com o Dr. Sarnov, chefe do serviço de obstetrícia. Tenciona abrir consultório na cidade?

- Tenciono. Nas horas normais da tarde. Gastarei provavelmente os fundilhos à espera de doentes. Mas é preciso tentar voar com as próprias asas, mais cedo ou mais tarde.

- com certeza.

O Dr. Knott interrompeu-se e, após curta pausa, prosseguiu, com visível constrangimento.

- Eu não devia dizer-lhe isto, sem dúvida, mas você parece-me de categoria muito superior à dos homens que até aqui se têm apresentado para este cargo; espero que fique por cá. No seu lugar, eu seria circunspecto ao começar.

- Circunspecto a fazer o quê? Ao aparecer? Ao formar?

- Sim. O Dr. Metzger e o seu grupo têm considerável influência. Seria uma loucura feri-los, ser-lhes antagónico. E todavia...

Mais uma vez se interrompeu. O outro acabou, sorrindo:

- Faria melhor evitando-os profissionalmente.

- bom. Quer dizer que...

- Porque havia eu de acertar o passo a quem quer que seja?

- Não deve fazê-lo. Nada o obriga a isso. Todavia, fá-lo a maior parte dos novos. Uma só palavra de homem importante como o Dr. Metzger influiu notavelmente na situação dum médico em princípios de vida.

- De modo que, muito naturalmente, os ambiciosos fazem o seu jogo.

- Não é necessário. O Dr. Mark Riley, como verá, é da espécie independente. Mas o maior número deles consideram útil dar prova de tacto.

- Não há um grupo de primeira classe numa cidade desta importância? - perguntou Warren, decidido.

- Sim, há um: o do hospital Saint-Francis. O Dr. Matthews, chefe do pessoal médico, dirige na cidade um verdadeiro grupo. Sem dúvida nenhuma, devia ir procurá-lo. Pois bem, Dr. Warren, fico contente por o saber aqui. O seu antecessor não satisfazia. É claro que isto é confidencial.

- Eu aprendi a guardar a língua! - garantiu Warren. - E fico-lhe grato pelas indicações.

O Dr. Metzger dera a entender que gostaria de encontrar o novo recruta. Conduziram, pois, Ran à sala onde um homem de grande estatura, pança saliente, modos violentos de dinamismo, se ocupava activamente a dirigir um interno, ocupado, por sua vez, a inserir uma agulha no tronco de um pleurético, ao mesmo tempo que vigiava um segundo médico novo, este procedendo à redução duma fractura de pulso. O cirurgião-chefe levantou os olhos, e Ran achou-se perante um rosto ossudo, a que grande nariz em bico de águia dava uma expressão de arrogância e de autocontentamento, que devia ser característica da personagem. Todavia, respondeu com urbanidade ao recém-vindo:

- É de Lakeview, não é, Dr. Warren?

- Sou. Acabei no mês passado o meu tempo de residência.

- Eu conhecia lá o Powers. Andámos juntos na escola.

- Ele falou-me do doutor - declarou Ran. - Quando o informei de que vinha instalar-me aqui, disse-me supô-lo para estes lados.

Metzger inchou-se todo, à ideia de que o conhecidíssimo Powers se lembrasse dele. Ran alterara discretamente as palavras exactas de Powers, a saber: “Há lá para esses lados um odre cheio de vento, chamado Metzger. Andava dois anos atrasado em relação a mirn, na escola médica, e acabou por passar por um triz!”

- Opero uma vesícula biliar lá em cima, depois do almoço - disse Metzger, - Se isso lhe interessa, apareça. Talvez tenha alguma sugestão para apresentar. Aqui, gostamos sempre de acolher ideias novas.

O esboço de sorriso que acompanhava esta afirmação cheia de modéstia confirmou Ran no que este julgava haver já compreendido: que Metzger não era pessoa a quem pudesse apresentar-se qualquer sugestão.

- Obrigado. vou fazer por me despachar do dispensário a tempo de lá ir.

Em Baltimore, vira Ran dias cheios nos dispensários de cirurgia para doentes externos, mas nada que se parecesse com o “Serviço de Doentes Externos” do hospital municipal de Farmington. Das dez às catorze horas, regurgitava de pessoas, anormalizadas pelo esgotante esforço mental que despendiam para tentar viver, quando não havia mais nada de que lançar mão, por não vir já dinheiro das fiações encerradas: era uma multidão barulhenta, indisciplinada, que se lastimava do serviço ineficaz e lento. com dois ajudantes, tinha Ran de examinar e classificar estes casos, de afastar os que podiam ser tratados por uma operação menor e benigna ou contentados com um remédio que lhes permitisse esperar que a natureza efectuasse sozinha a cura. Os casos puramente médicos, ou que exigiam tratamento especial, deviam ser diagnosticados o mais rápido possível, segundo magras indicações, e depois enviados ao dispensário respectivo para a visita da tarde; aí se encarregariam deles especialistas dos mais diversos ramos, que todas as semanas dedicavam algumas tardes à caridade.

Cerca da hora e meia, reinava no Serviço uma espécie de ordem em lugar do caos inicial: já todos os doentes haviam sido mandados ou para casa, com o devido medicamento, ou para o respectivo dispensário. No pequeno laboratório, alinhavam-se, sobre uma mesa, filas e filas de tubos de sangue, que, dentro em pouco, partiriam para o laboratório principal.

Ran almoçou na sala de jantar do hospital, deserta àquela hora tardia; só lá estavam ele e os dois internos ajudantes.

Era a mesma alimentação em toda a parte - alimentação de comunidade, que, com ligeiras variantes, se encontrava de hospital para hospital; nem melhor nem pior. Depois do almoço, foi ao gabinete do Dr. Knott, que, sentado à secretária, ia escrevendo um relatório qualquer. Levantou os olhos e sorriu, quando Warren bateu à porta:

- Entre, Dr. Warren. Como correu tudo no seu Serviço?

- Lá me desenvencilhei. Tem sempre tanta gente como hoje?

O rosto de Knott adquiriu de novo expressão de tormento:

- Cada vez temos mais doentes de que não podemos cuidar. No Inverno, quando trabalham as fiações, a maior parte daquela gente tem dinheiro para pagar os tratamentos. Mas agora, se não nos ocuparmos deles de graça, por caridade, têm de passar sem cuidados médicos.

- E a hospitalização? Depressa vi que não se podem admitir no hospital todos os doentes que precisariam mesmo de entrar.

O director pareceu mais deprimido que nunca:

- Nesta altura, temos à espera uma lista de várias centenas de doentes. Não são urgências, claro. Procuramos tratar deles à medida que chegam, mas criam-nos um problema muito difícil de resolver, se é que tem solução!

- E os da classe média? Não se recebem, calculo eu, os que podem pagar ao médico?

- Não. Procuramos fazer uma discriminação cuidada. O serviço social informa-se de todos os casos que aqui aparecem. Se podem pagar, enviamo-los ao seu médico de família, para que os trate convenientemente. Mas de ano para ano aumenta o número dos que não podem pagar!

- É assim por toda a parte. Quando deixei Baltimore, ficaram cheias as salas gratuitas; punham-se doentes em toda a parte!

- É o mais grave de todos os nossos problemas. Mesmo aqui, em Farmington, onde a proporção dos impostos canalizados para os serviços médicos ultrapassa a da maioria das outras cidades do Sul (não pode ser maior, porque não temos o direito de pedir mais ao contribuinte), mesmo aqui, ia eu a dizer, não há possibilidade de tratamento. Agora era bom subir ao anfiteatro, para a vesícula biliar do Dr. Metzger.

Quando Ran chegou à minúscula galeria de observação, já Metzger tinha aberto o abdome e exposto o órgão do doente.

- Ainda bem que pôde vir, Dr. Warren - disse ele. Trata-se dum caso particularmente interessante. Parece que há aqui uma pedra no canal biliar.

Metzger era “O” cirurgião. Dos pés à cabeça. Estava cercado pelos assistentes, pela enfermeira dos instrumentos (atenta à mais pequena necessidade do mestre), pela vigilante da sala de operações, de pé, à cabeceira, alerta, toalha na mão, pronta para enxugar a primeira gota de suor que deslizasse pelo rosto do operador.

Quando, estendendo a mão, Metzger berrou violentamente “Tesouras, peço-lhe!”, Ran pensou para consigo mesmo: “Dir-se-ia uma operação no cinema!”

Um “plop” seco e preciso, e caíram as tesouras na mão enluvada. com um trejeito espectacular, mergulhou na incisão e cortou a aderência que retinha a vesícula e a impedia de se soltar e vir para fora. Continuou a ablação de toda a região doente: os seus movimentos eram seguros e Warren pensou que ele talvez fosse mais e melhor do que um cirurgião vulgar. Todavia, o olhar exercitado do jovem verificava certa rudeza, certa falta de delicadeza no manejar dos tecidos, que estava para a técnica fácil, desembaraçada, perfeita, do Dr. Powers, como os entalhes vigorosos do lenhador para a habilidade do ebanista.

Em bicos de pés, entrou uma enfermeira:

’- O senhor é que é o Dr. Warren? - murmurou.

Ele respondeu com a cabeça.

- Uma chamada telefónica para si.

Saiu e foi para o vestiário dos médicos.

- Olá, querido ! - soou-lhe aos ouvidos a voz de Ann.

- Tencionas passar aí o dia inteiro?

- Estava a ver o Dr. Metzger extrair uma vesícula biliar.

Breve pausa e depois:

- O essencial é um bom começo, não achas? Parabéns ao chefe desde o primeiro dia de entrada em funções.

- Ah! Então! Um poucachinho mais de respeito, hem? Estás a falar com o Dr. Randolph Warren, do hospital muni...

- Ah, sim? Pois bem, Dr. Warren: está a falar com certa enfermeira arruivada, a quem fazia a corte, em tempos, aquando da sua ardente juventude. Acho que lhe arranjei um apartamento.

- Onde?

- A dois passos do hospital. Velho, mas asseado. Que dizes se eu fosse buscar-te?

- Óptimo. Vem daqui por vinte minutos.

- Olha para o relógio. Agora vai e passa ainda a mão pelas costas do chefe máximo. Durante algum tempo precisaremos do maior número possível de cunhas.

Metzger havia dissecado a vesícula e, quando Ran voltou, estava a tirar um cálculo que obstruía o canal biliar. Levantou os olhos e o seu olhar testemunhava indubitável desaprovação. O grande pontífice da cirurgia não estava habituado a que médicos novos se permitissem abandonar o lugar enquanto ele procedesse a um trabalho importante e instrutivo. Mas, uma vez fechada a incisão, Ran arranjou as coisas dirigindo-lhe algumas palavras de desculpa e de elogio pela técnica. O recém-chegado fazia a aprendizagem prática de tacto e habilidade sugerida pelo seu conselheiro, Dr. Knott.

À porta encontrou Ann, que o esperava impacientemente no carro e fervia por o levar ao 2043 da Amaranth Avenue. A antiga habitação estava presentemente reduzida ao papel de casa para alugar. Alugavam-se mobilados os seus apartamentos. O segundo andar encontrava-se provido de móveis desbotados, mas sólidos, estilo vitória: o único quarto de cama continha um grande leito para duas pessoas; a sala comum ostentava mobiliário um tanto bafiento. Havia uma casa de banho e uma cozinha aceitáveis. Ficava o edifício numa pequena elevação de terreno, de modo que, se, por acaso, se fizesse sentir uma lufada de ar, não se perdia lá a brisa agradável.

- Não parece mal, tudo isto. Excederá os nossos meios?

- A trinta dólares por mês, não temos meio que não esteja dentro dos nossos meios! - volveu Ann. - Além disso, somos ricos. Ou, pelo menos, havemos de ser, quando os teus duzentos dólares mensais começarem a afluir. E depois, ó querido!, tenho tanta vontade, tanta necessidade de me instalar em qualquer sítio.

Perseguiu um grão de poeira vagabundo, apanhou-o e, ao fazê-lo, levantou outros.

Com o olho prático de dona de casa, inspeccionou e mediu a alcova.

- Sabes o que podemos fazer disto?

- Não. Mas sou acessível às sugestões.

- Arranjamos um cortinado e pomos do lado de lá a outra cama.

- Tem graça! - disse Ran, falando antes de reflectir. Tem graça e... Mas que estás tu a dizer? A que te queres referir com isso da outra cama? Nós temos uma cama.

- Era - explicou modestamente Ann - no caso de tu desejares... camas à parte...

- E para que havia eu de querer um disparate desses?

- Foi só uma ideia.

- Ideia estúpida. Ideia ridícula. Ideia absurda. Ideia indigna. Não tem pés nem cabeça, nem sentido moral, essa ideia! Nunca encontrei outra que tanto me desagradasse!

- Sim? Eu não a julgo assim. Queria apenas dar prova de um espírito grande. Em todo o caso, é bom possuir uma cama a mais, para o caso de termos de hospedar qualquer amigo, por exemplo o Tim Brennan.

- Bem, isso é outra coisa. Tinha no hospital uma carta de Tim. Deve vir um dia destes.

- Ficarei muito contente por vê-lo. É um tipo como deve ser, o Tim. E este apartamento, é como deve ser?

- Arrematado!

Ann espreguiçou-se com a volúpia dum gato e declarou:

- Farmington vai-se tornar um sítio magnífico. Tudo se vai tornar magnífico! O casamento é magnífico. Isto agrada-me. Ter um apartamento nosso, é magnífico. A vida é magnífica. Um magnífico e doce refrão. com trinados.

- Quem disse? - informou-se Ran, deixando-se ir preguiçosamente para o único sofá de que a casa se orgulhava - Ebbert Hubbard?

- Não, pateta! Tennyson. A menos que tenha sido Charles Kingsley.

- És espantosa, à procura de alojamentos, sabes? Tenho trinta e sete dólares líquidos na algibeira. Quanto tempo podemos viver com sete dólares, se eu pagar o aluguer de uma só vez?

- Já está pago. Eu tinha apostado que tu ias gostar. Se recusasses, eu arranjava um apartamento com três camas. Agora, anda e procura consultório. Já tenho informações de uma enfermeira para ti.

- Tens informações? Decididamente, admiro a tua audácia.

- Hás-de gostar dela. É agradável. E não é feia. Muito asseada e inteligente. Dá pelo nome de Ann.

- Arrematada!

 

Por muito desejoso que estivesse por arranjar clientela particular, Ran encontrou todas as energias empregues no trabalho do hospital. Todas as manhãs estava inscrito para operações de clínica gratuita, das oito às dez. Significava isso que ele pouco passava de um homem para tudo, encarregado dos casos que Metzger e os outros consideravam insignificantes ou desprovidos de interesse. Tanto pior! Era preciso alguém que desentulhasse os resíduos!

Estas clínicas quotidianas irritavam profundamente os instintos profissionais e a consciência médica de Ran. Detestava o trabalho aldrabado. Toda a sua natureza e formação protestavam contra aqueles métodos apressados, concluídos num momento, que só davam alguns minutos breves e insuficientes ao exame superficial de casos que requeriam uma hora de atenta consideração. Tinha de ouvir, sem poder verificá-la, a história magramente contada pelo doente, auscultá-lo a toda a pressa e mandá-lo de novo para casa, tranquilo com a receita de xarope de Brown e cloreto de amoníaco, que lhe acalmariam a tosse sem de qualquer modo lhe atingirem as causas profundas. Percorrendo as pastas do dispensário, que lhe afluíam ao gabinete, verificava que muitas vezes o seu predecessor nem chegara a fazer o mais banal diagnóstico. Só uma palavra amável e uma promessa. Afinal, que se podia fazer melhor, num tempo horrorosamente limitado e com multidões invasoras todas as manhãs?

Ninguém tinha culpa, claro! Por muito magnânimo que fosse o orçamento do hospital em comparação com o de instituições análogas, era impossível ter bastante pessoal médico, equipamento cirúrgico, instalações. Era o Dr. Knott funcionário competente e consciencioso. Mas afligiam-no e limitavam-no as manobras de política intramuros praticadas pelo Dr. Metzger e satélites.

Pelas conversas dos internos e pela atmosfera da casa, deduzia Ran o estado das coisas e percebia claramente a direcção que o seu interesse devia levá-lo a seguir, se quisesse orientar caminho para avançar rápido.

Como senhor, reinava Metzger. Era evidente. Fora, também era real a sua influência numa poderosa roda médica. Se se vigiasse, se lisonjeasse a vaidade do cirurgião-chefe, se parecesse aquiescer a todas as suas ideias, Ran poderia lucrar muito. Talvez até uma situação à cabeça de qualquer serviço, num ou noutro hospital da cidade.

Em resumo, se jogasse com inteligência, se dirigisse a partida com habilidade, poderia colocar-se num círculo lucrativo, onde se transmitia o paciente de mão em mão, de especialista para especialista, cobrando cada qual os honorários a que tinha direito pelos serviços prestados - espécie de cadeia sem fim, funcionando, bem entendido, com o maior lucro para o doente, que gozava assim de um exame completo, radical, minucioso, feito por médicos considerados capazes. Infelizmente, por muito benéfico que pudesse ser para a saúde do doente, tal exame era, sobretudo e incontestavelmente, a ruína da sua bolsa. Infelizmente ainda, nem sempre os membros dessas meritórias e bem montadas organizações eram os ases das respectivas especialidades. Aliás, dera-lho a entender o Dr. Knott. Mas tinham-se organizado. Ran pensava na vantagem que há em jogar à bola num grupo bem organizado.

Acolá, em Baltimore, de onde vinha, na enorme clínica, ricos e pobres, pequenos e grandes, todos eram tratados da mesma maneira. Uma manhã podia a sala de operações ver um famoso cirurgião operar o presidente de grande companhia de caminhos de ferro. Duas horas depois, o mesmo mestre, na mesma sala, faria a ressecção do estômago canceroso de qualquer caixeiro. Cinco mil dólares pela primeira operação. Nem um centavo pela segunda. Todavia, ambos teriam direito aos mesmos cuidados essenciais, teriam glucose intravenosa ou transfusão de sangue, se necessárias, um balão de oxigénio, se surgisse qualquer pleurisia pós-operatória. Assim é que devia praticar-se a medicina. Assim devia compreender-se a cirurgia. Assim vira sempre fazer Ran Warren. Nunca conhecera outro método. E o que ali se utilizava diferia muito. Haveria, indubitavelmente, casos em que, sem nada poder fazer, ele visse um cirurgião inábil, incompleto, tomar nas mãos inexperientes um órgão humano e colocá-lo de novo no seu lugar, irreparàvelmente estragado. Casos em que ele ficaria atado, preso pelo código de ética médica, de moral profissional, que impede o clínico de intervir no tratamento dum doente por qualquer colega, salvo se for convocado pelo dito colega ou pelo doente.

Pelas consequências implícitas do segredo profissional, Ran seria cúmplice dos delitos do sistema médico que se ligava nas próprias cadeias, porque, há milhares de anos, alguém disse: “O doente é livre de escolher o seu médico”. Sem saber como escolher, sem ter maneira de conhecer o valor nem as habilitações do homem que preferia para manejar a faca que lhe ia abrir o corpo. E o pobre diabo entregar-se-ia, inconscientemente, mas com toda a confiança, nas mãos de qualquer charlatão que, diplomado por uma escola de medicina de segunda ordem, por haver conseguido passar - tenta-te, Maria, não caias! - no exame final, se encontrava assim ao nível dos maiores médicos ou cirurgiões, que haviam consagrado anos e anos de vida a aperfeiçoarem-se. E, como Ran, estes grandes médicos só tinham o direito de se calarem, ao passo que o charlatão operava e recebia honorários pela segurança do doente.

No espírito de Ran, tinha o senso comum uma palavra para dizer. Porque havia ele de partir, qual cruzado solitário, contra sistema tão frutuoso, tão respeitável (por o respeitarem), tão perfeitamente fortificado? Não poderia ele, ao menos, até se sentir bem fixo na sua base, contentar-se com dar aos clientes toda a sua habilidade e dedicação, fruto de anos passados à cabeceira de doentes, junto das mesas de operações, e nos laboratórios, olho fixo no microscópio? Não faria ele quanto se lhe podia exigir, se prestasse assistência a todos, sem distinções, de graça aos pobres nos hospitais e dispensários de caridade? Se percorresse o seu caminho a direito, vivendo em harmonia com os seus pares e observando fielmente o código moral que recebera intacto através de gerações médicas?

Pois bem: não!

Não, isso não seria assim. Nem para ele nem para a mulher com quem casara. Não mais poderia olhar de frente para Ann. Sabia como ela era idealista, por trás da sua atitude prática. Nunca talvez se tivesse pronunciado entre eles a palavra “idealismo”, a não ser com um sorrisozinho: nunca a haviam decerto aplicado. Contudo, Ran não tinha dúvidas de que fora isso que os aproximara e unira. Para ele havia apenas um processo: o processo como as coisas deviam ser feitas. E triunfaria, ou cairia, com aquele princípio, por aquele princípio.

Não encontrou dificuldades em obter a autorização necessária para exercer clínica. Mas gastou cinquenta dólares, o que abriu grande rombo no já instável edifício financeiro. Ann amuou e disse ao marido que era preciso apertar os cordões à bolsa para viverem até chegar o cheque do mês.

- Tu és a senhora incontestada nesse campo - disse ele.

- O dinheiro e eu temos andado sempre de mal, digamos mesmo, praticamente estranhos um ao outro.

- Felizmente - disse Ann, baixando modestamente os olhos - eu sou um génio em finanças.

- Ah, sim?! Não vejo pendurado na tua parede nenhum diploma de ciências económicas...

- Se eu não tivesse nascido financeira, como poderíamos nós ainda comer?

- É um facto. Pois bem: aqui tens uma ocasião para brincares com os números. Aqueles ladrões da Casa das Artes Médicas pedem setenta e cinco dólares por uma casa tão pequena que eu precisaria de alugar um bocado do patamar para aumentar o espaço vital, se tivesse mais de um doente ao mesmo tempo.

- Não te rales. Isso não há-de acontecer. Alugaste-a?

- Antes do dia 1, não, com certeza.

- Ah, ah ! Já pensaste nos instrumentos?

- Já tenho o estetoscópio, o microscópio, o aparelho para medir a tensão, lamelas de vidro, pipetas, e... oh, inúmeras coisas!

- Pois, pois, perfeito! - disse Ann, troçando. - E eu tenho dois novelos de linha e um dedal, e amanhã vou instalar uma casa de costura.

Ran defendeu-se:

- Podia comprar o que falta aos poucos.

- com quem julgas tu que estás a falar? com uma amadora? Precisas dos instrumentos para começares. Quanto não vai isso custar? Vai ditando, que eu escrevo.

Ran foi dizendo. A lista era grande. A sua figura alongava-se ao mesmo tempo que a lista, quando terminou o penoso recitativo.

- bom. Agora falemos do meu equipamento - disse Ann.

- Para que queres tu um equipamento?

- O meu trabalho, então! Pensaste em mobilar o sítio? Onde vou eu trabalhar? No chão? Onde nos vamos sentar? No tecto? Para onde vai a máquina de escrever? Pendura-se na parede?

- Sinto-me afogado, aterrado.

- Máquina de escrever e gabinete para mim. Gabinete para ti. Biblioteca. Vitrina. Cadeiras e cortinas. E os etc. com contas apertadas, comprando barato, acho que podemos adquirir tudo com, mais ou menos, cento e cinquenta dólares. Quanto à tua lista, parece-me que precisamos, pelo menos, de trezentos ou trezentos e cinquenta. Onde vamos buscar o dinheiro?

Ran arvorou uma expressão de límpida candura.

- Há um tipo que veio ver-me na semana passada. Era para te dizer, mas passou-me. Estava um degrau acima de mim, em Baltimore. Agora está numa casa de aparelhagem cirúrgica.

- A prestações? - perguntou Ann, suspeitosa.

- Em parte. É absolutamente legítimo. Sem isso, como podia um novo começar?

- Tenho horror às dívidas. Que condições pôs o amigo vendedor?

- Isso é o mais curioso. Habitualmente, faz-se o contrato por cento e cinquenta dólares de entrada e vinte por mês. Ele propôs-me trinta dólares mensais, sem entrada.

- Porquê? Qual é a armadilha?

- Armadilha? Não é nenhuma. Tens uma natureza mesquinha e desconfiada. Disse o Carling que viram as minhas quotas na escola e que estão dispostos a responsabilizarem-se por mim. Parece crerem que hei-de ir longe. Não sei onde foram buscar esta ideia, mas, pensando que ela vem duma firma onde se tem a cabeça fria e dura, parece-me ainda mais encorajante. Não achas?

- Sabes, Ran - disse ela, olhando-o meigamente - gosto mesmo muito de ti!

- Sim? A que vem esse certificado súbito e não pedido?

- Não compreenderias. Regresso aos negócios sérios. Como enfermeira-secretária, que ordenado contas tu dar-me?

Ran mostrou uma incredulidade escandalizada:

- Queres ordenado?

- Conto com ele. Porque não? Em casa, sou tua mulher; no consultório, sou uma mercenária. E, com a breca, é barato! vou fazer um preço para começar: trinta dólares por mês.

- Mas Ann...

- Bem, procura outra! Vais ver o que ela te custa.

- Vejamos, Ann...

- Ouve, querido, eu conheço-te. É o único meio que temos de poupar algum dinheiro. Cada dólar do ordenado que puder economizar vai para o banco, para fazer face aos imprevistos, que são, em geral, urgentes. Depressa a clientela há-de invadir o patamar e os corredores, e o meu preço vai subindo proporcionalmente. Não ficarei surpreendida se ganhar trinta dólares por semana, no fim do ano.

De rosto aflito, Ran fez um último cálculo:

- Se este querido público do diabo soubesse o que custa só o começar a ser efectivamente médico, recalcitraria menos perante as nossas contas!

Súbito, entusiasmada, Ann profetizou:

- Que nos dêem apenas a partida, e não terão maneira de nos deter!

 

Naquele dia, no 12º andar da casa das Artes Médicas, viu-se aparecer, numa tabuleta de vidro, semelhante a quase todas as outras, a seguinte inscrição:

RANDOLPH WARREN

MÉDICO Consultas das 14 às 17 h.

E viu-se chegar Ann, máquina de escrever na mão, com o ar mais profissional possível, e com a bata que trouxera de Baltimore. Ia toda janota!

- Temos de dar a impressão de intensa actividade - dissera ela. - Aqui está o quadro: enfermeira capaz, dactilografando a história dos casos durante toda a manhã, para formar as pastas, enquanto o médico se encontra extremamente ocupado a operar, aqui, ali, dentro e fora da cidade. Gostava de que esta máquina fizesse um barulho mais impressionante. Mas há solução: posso deixar a porta aberta.

Ficavam admirados com o bater das teclas os que passavam nos corredores - médicos que se dirigiam para os gabinetes ou doentes que se dirigiam ao médico - enquanto ela copiava poemas, escrevia grandes cartas a correspondentes imaginários e melhorava a técnica, repetindo incansavelmente, a velocidade cada vez maior, a fórmula deste velho e nobre sentimento patriótico: “Chegou a hora de todos voarem em ajuda do Partido”.

Além do hospital municipal, existiam em Farmington duas grandes instituições, duas organizações não comerciais, dotadas de pessoal variável no sentido de que, sem lhes pertencerem sempre, podiam oferecer-lhes concurso intermitente, mas gratuito, todos os cirurgiões aceites.

Quem fosse admitido gozava do privilégio de poder operar lá os seus doentes particulares. Por isso, Ran pediu que o inscrevessem tanto na lista de Homestead como na de Saint-Francis. com mais de mil operações importantes realizadas no tempo de Lakeview, não encontrou a mais pequena dificuldade em satisfazer às exigências da direcção. Enquanto lá estava, visitava igualmente vários estabelecidos.

- Não gosto nada destas angariações! - disse ele a Ann. Mas, doutro modo, como podiam eles esperar que se acendesse no horizonte a sua estrela cirúrgica?

O primeiro amigo que ele arranjou no hospital foi Mark Riley. Era diplomado por uma grande escola e de tal modo superior a Metzger e satélites que Warren se admirou de o encontrar entre o pessoal.

Certa noite, chegaram quase ao mesmo tempo duas urgências importantes. Riley, que tomou conta do primeiro caso, pediu a um interno que chamasse Ran, para este se encarregar do outro - o de um negro que tinha uma chaga má na axila. Depois de ligar um vaso que sangrava perigosamente, dirigiu-se ^Varren ao vestiário, onde logo apareceu Riley, limpando o rosto com uma toalha, após o que acendeu um cigarro.

- Caso difícil? - informou-se Ran.

- Bala no abdome. Dez perfurações no intestino grosso.

- Linda brincadeira!

- Espero que tenhamos encontrado todos os buracos! - disse Riley. - Custou-me muito incomodá-lo com o outro caso, mas, pelo que o interno me explicou, pareceu-me que a artéria axilar estava tocada.

- Não. A axilar, não. Mas estava cortado em duas partes distintas um dos dois ramais. Foi difícil apanhar o vaso.

- E esse trabalho da clínica, como vai?

- Chega-me para viver. - Ran hesitou um momento, e depois arriscou: - Sei que isso não me diz respeito, mas... porque está o doutor aqui nas urgências?

Riley sorriu:

- Você já observou, com certeza, que, em Farmington, os médicos estão divididos em dois grupos.

- Não é preciso muito tempo para o observar.

- Ora bem: acontece que eu não pertenço nem a um nem a outro. Quando meti o meu pedido, aqui há uns anos, mandaram-me para as urgências.

- Estou a ver. Como não tiveram a ousadia de despedir um homem do seu valor, fizeram o pior que lhes restava: deixaram-no no emprego mais indesejável do hospital.

<- Não é tão indesejável como julga - respondeu o outro, substituindo por sapatos as alpercatas de ténis salpicadas de sangue que usava na sala de operações. - Isso foi de considerável valor para mim. Quando os internos acabam a formatura, instalam-se para arranjarem clientela, aqui, na própria cidade, ou nas aldeolas dos arredores. Chegaram-me muitos e bons clientes, enviados por homens que se fizeram cá no hospital.

- É um prisma por que eu não tinha encarado o caso!

Saíram do vestiário para verem as enfermeiras activamente ocupadas na limpeza da sala de operações e a separar os objectos que passariam ao esterilizador. Acabando de lavar a máscara de borracha, a anestesista verificou os reservatórios do seu aparelho, para ter a certeza de que nenhum corria o risco de se esvaziar durante uma operação.

Chegou um interno do serviço de obstetrícia.

- Quem vai operar, Prizer? - perguntou Riley.

- O Dr. Sarnov - respondeu Prizer, estugando o passo. Ríley baixou a voz.

- Interessa-lhe ver o César daqui executar o seu número?

- César? - e Warren tentava interpretar o estranho sorriso do interlocutor. - César? Oh! Caesar, os que vão morrer saúdam-te...” É essa a ideia?

- Não é bem assim. O Sarnov é o mais caloroso detentor local da cesariana. Não está lá muito convencido de que a natureza saiba como devem nascer os bebés. Prefere fazer ele uma abertura para os apanhar.

- Gostava bastante de ver! Há anos que não vejo uma cesariana!

- Oh, então, se cá ficar, há-de ver muitas mais do que desejaria. - E, como o interno regressava, acrescentou: - Quantas cesarianas anuais, Prizer?

- Vinte e cinco ou trinta, mais ou menos.

- Deve dar uns dez por cento do total dos nascimentos.

- Dez por cento!

Ran não se refazia da surpresa, nem sequer tentava escondê-la:

- Em Lakeview, não chegavam a um por cento!

- Um por cento - recomeçou Riley - é a média aproximada das melhores clínicas.

Ran ia a responder, quando apareceu Sarnov. Era alto, amarelado, olhos azuis, modos breves, que não deixavam adivinhar o que se passava por dentro daquele exterior refrigerante. Cumprimentou Riley, mas dirigiu a palavra a Ran:

- Trabalho, esta noite, doutor?

- Só uma urgência, Dr. Sarnov. Incomodo-o, se assistir?

A expressão glacial de Sarnov não se alterou:

- De maneira nenhuma. Mas duvido de que isso possa despertar-lhe qualquer interesse. É a rotina de todos os dias, sabe? Emperrada, transversalmente, com um braço para trás: criança morta.

Quando Ran o viu trabalhar, observou logo quão notável era a sua habilidade. Ao pegar no escalpelo, logo que a anestesista anunciou que a paciente estava pronta, tinha a mão perfeitamente segura. com uma incisão precisa, atravessou a espessa parede muscular do útero, e, entrando na cavidade, começou a extrair a criança pela abertura artificial. A mãozinha e o bracinho tombados para trás, que saíam pelo orifício natural, foram aproximados do corpo do bebé, levados primeiro para o canal, depois para o abdomen materno, e, em último lugar, saíram pela incisão. Ran observou o traço fatal da infecção que a mãozinha semeava a cada contacto com as paredes de passagem e do peritoneu, solo fértil.

Sarnov depositou o corpinho na mesa dos instrumentos: era de todo evidente que seria inútil qualquer esforço para reanimar o cadáver. A criança morrera havia horas. com a mão hábil, Sarnov introduziu a placenta e as membranas, injectou uma seringa cheia de pituitrina nos músculos da matriz, para obrigar a contrair-se o saco vazio de conteúdo, e começou a suturar a incisão uterina com grandes pontos de corda de tripa cromada.

Horrorizado, o espectador queria poder gritar, praguejar, amaldiçoar o operador e chamar-lhe tarado, assassino: ao fechar a abertura, Sarnov encerrara lá dentro venenos quase indubitavelmente mortais e - era quase certo! - suprimira a última probabilidade de vida que restava à mãe. Custava a crer feita tal operação num hospital moderno, por um ginecologista considerado competente.

Furioso, Ran saiu, com medo de ter de falar àquele aldrabão. Levava a sensação de culpabilidade impotente, por haver assistido, sem protestar, a um assassínio operatório. Por ter visto actuar um cirurgião que, em grande hospital, ocupava importante cargo de confiança, uma posição que, automaticamente, garantia a sua ciência e honorabilidade aos olhos inocentes do homem médio; um cirurgião que, praticando a sua especialidade em operação tecnicamente linda, deixara um mínimo de probabilidades de sobrevivência à paciente - se é que deixara algumas.

Lá fora, ao volante do carro, estava Mark Riley à espera. Chamou Warren:

-- Então, que pensa?

Ran disse-lho em termos específicos.

- Belo operador, o Sarnov - comentou Riley, que, inteiramente de acordo, ouviu a segunda explosão de furor de Ran. E quando este acabou: - Muito bem! Que teria feito você?

- Uma embriotomia, sem dúvida: a criança estava morta. Cortava o corpo em bocados e fazia-o sair pela passagem natural. A mão e o braço, que já estavam de fora, tirados imediatamente, não podiam provocar qualquer infecção.

- Oh! Mas isso é um processo demorado, aborrecido, fatigante. Leva um tempo precioso. E, além disso, não dá ocasião de brilhar ao extraordinário génio do Sarnov. Recorreu ao meio mais fácil. Então! Não lhe falta muito para se considerar inventor da cesariana.

- Esse homem é um maldito, um perigoso ignorante! - fulminou Ran.

- Olhe que se engana. É um homem habilidoso. Esse método traz consequências de ordem económica.

Warren arregalou os olhos:

- Porquê? A paciente não paga.

- com certeza. Nem todas são assim. O Sarnov estabeleceu a sua fama de especialista. Há certas mulheres atraídas por este processo que, segundo se ouve, evita sofrimentos, complicações, riscos. Quanto acha que ele pode pedir por um parto normal, quando, nem pela persuasão nem pelo terror, consegue decidir a mãe a sujeitar-se ao outro processo?

- Não sei. Cem dólares?

- Sim, o máximo. Mais não, com certeza. Ao passo que, pela cesariana, obtém quinhentos. Aí tem a resposta.

- Não consigo acreditar!

- Então, ainda não aprendeu tudo o que eu julguei que ia aprender quando para cá entrou, Warren. Boas noites!

Pela simples maneira de ver o marido entrar, adivinhou Ann que havia qualquer coisa que não corria bem. Habitualmente, ele surgia a assobiar, levantava-a nos braços para a beijar, às vezes para a levar para o outro canto da sala. Deixou-se cair para uma cadeira e fechou os olhos, procurando tirar da ideia aquele bracinho, pendente do corpo materno, apertando no punho os germes que, necessariamente, se o levassem para dentro, semearia no organismo indefeso.

- Que foi, querido? Perdeste algum doente?

- Não. Pior do que isso.

E contou a vergonhosa história.

- E tive de assistir a tudo, calado!

- É horrível! O Sarnov devia ser preso. Mas não podias falar tu aos internos, para que façam eles qualquer coisa que neutralize a infecção e evite que ela se propague?

Ele gemeu:

- O quê? Num estado de adiantamento daqueles? É impossível evitar que os micróbios penetrem na circulação.

Dois dias depois, realizavam-se as suas piores previsões. Todas as tardes, subia brutalmente o mapa das temperaturas. Quatro dias após, a despeito das transfusões, das sulfamidas e de todas as armas do arsenal médico, a mãe falecia.

Durante algum tempo, Ran perguntou a si próprio se não preferiria deixar o hospital a trabalhar com Sarnov. Depois, em momentos mais calmos, via as privações e dificuldades que tal resolução lhes acarretaria - a Ann e a ele. O seu autodomínio foi posto à prova uma manhã, ao encontrar no átrio Sarnov, que parou junto dele. A menos que fosse voluntàriamente insultuoso, deliberadamente ofensivo, Ran não podia continuar a andar.

- Perdemos a mulher que viu operar há dias, Dr. Warren. Deve ter havido, na técnica da sala de operações, qualquer descuido que permitiu que a infecção se espalhasse.

Ran mastigou algumas palavras ininteligíveis e seguiu.

Vendo-o absorvido em tal recordação, começou Ann a inquietar-se.

- Estás a deixar-te desmoralizar por esta história - disse ela. - Não me comprometi a viver com um rabugento, quando casei contigo.

- Eu sou rabugento? - perguntou Ran, arrependido. - Perdoa.

- Custa-me imenso ver-te assim inquieto, querido. Mas sei duma coisa que vai alegrar-te: o Tim Brennan está na cidade.

- O quê? O Tim? Porque não mo teria dito?

- Disse, sim. Almoçamos com ele, ao meio-dia. E também o Dr. Riley e dois dos médicos mais novos, que têm consultório perto do teu. O Tim englobou-me no convite, por causa - e ela tossiu - das minhas capacidades profissionais.

- Fez bem! Que alegria em ver o velho Tim!

Os dois convidados que não haviam sido nominalmente designados eram o Dr. Howard Dater, jovem especialista de medicina orgânica, e cuja carreira se mostrava excelente, e o Dr. William (por razões íntimas, mas obscuras, conhecido pelo nome de Porky) McNab, otorrinolaringologista que, por baixo duma aparência de enfezado, escondia, além de alegre natureza, um alto grau de competência profissional.

Tim cumprimentou Ran com um vigoroso soco no peito, apertou Ann ao coração, e encomendou as bebidas.

- Estes devassos - explicou ele, englobando num gesto os outros três convidados - podem informá-lo de todas as obscuras e fugidias manobras do corpo médico daqui.

- E você? Como é que as conhece tão bem? - inquiriu Ann. - Eu supunha que Gray’s Run ficava a cinquenta milhas de Farmington.

- Oh! Ele aparece por cá de tempos a tempos e pela calada leva-nos as clientes impressionáveis, elegantes e sensíveis - explicou Dater. - Até ameaça abrir consultório aqui mesmo.

- Sim - completou Riley. - O nosso Tim tornou-se, realmente, uma espécie de domador, de domesticador de animais. Empurra-os e eles vão-lhe comer à mão. A crer nas informações da boa sociedade de cá, nunca teria havido diagnosticadores antes dele.

- Mesmo assim há o Barkett - sugeriu McNab. E os outros puseram-se a rir.

Dirigindo-se a Ran, Dater perguntou-lhe:

- Já teve oportunidade de o encontrar?

- Não.

- Há-de encontrá-lo. Está no andar acima do seu. Muito afável, modos de sociedade... Ele vai visitá-lo um dia.

- Quem é ele?

- Um diagnosticador... - disse Riley.

- com uma clientela quase tão distinta como a do Dr. Brennan - acrescentou Dater.

- Vocês morrem todos mas é de inveja - observou calmamente Tim. - Não há então entre vocês outro que dê consulta?

- Meu Deus! - e Dater levantou-se dum salto. - São quase duas e meia!

Dispersou-se logo o grupo.

- Você passa a noite connosco, Tim - disse Ann. - Temos lá uma cama de propósito para si.

- Eu tinha de voltar hoje à noite - respondeu o irlandês. - Mas, se puder sair amanhã de manhã, bastante cedo, está bem; gostava de passar uma daquelas velhas noites de rapaz com o Ran...

- É exactamente disso que ele precisa. O pobre vai vendo que a prática médica não se encontra exclusivamente nas mãos de altruístas nobres, com asas nos ombros, e isso faz-lhe mal.

- Tem de se habituar. Todos nós nos habituamos!

Ann obrigou o orçamento da casa a cobrir a despesa de uma dúzia de cervejas. Bebeu uma, em companhia dos dois homens, antes de se retirar, com a mais perfeita discrição conjugal, para os deixar conversar intimamente.

- Não mudou nada, Tim - disse Ran, afectuoso.

- Não. Só o estômago é que está um pouco menos estável: é tudo.

- Uma destas manhãs, fazemos uma reacção gástrica.

- A mim não. Nunca em dias da minha vida. Melhoro, tomo juízo. Gradualmente. Tenho de viver à altura da minha clientela feminina.

- Decide-se então pela clínica geral? Não pratica cirurgia nenhuma, lá?

- Bem, um pouco. De tempos a tempos, aqui ou além. Eu dizia como você ao princípio, naturalmente: a cirurgia ou nada. Mas, um dia, lembrei-me de calcular onde podia levar-me a preparação em cirurgia. Pelo que observei, vi que, se ficasse nos hospitais, isso impedia-me de ganhar muito do dinheiro que doutra maneira podia obter. Além do que, segundo todas as probabilidades, ao fim de três anos, tinha de voltar exactamente ao princípio. Pareceu-me que não era este o número da sorte.

- Sim? Mas você adapta-se perfeitamente à clínica geral. Eu não fui criado para ela. Não tenho nada do necessário. Durante quatro anos, formei-me exclusivamente em cirurgia. Se começasse a tratar bebés com cólicas e adultos com pneumonias, faria provavelmente uma grande baralhada de tudo. É o inconveniente da especialização. Acaba-se por se saber como se faz uma coisa e fica-se a zero com todas as outras.

- Aposto que havia de curar qualquer pneumonia na perfeição e sem demora. Pelo menos tão bem como a maioria dos médicos. A natureza ajuda-nos, sabe? Prende-se o doente à cama com um pouco de morfina e muita tisana, e ele cura-se, se estiver escrito que deve curar-se. É a boa uix mediatrix natural: a velha mamã Natureza cura, sempre que pode. Fará até o possível por corrigir os nossos erros. Se nós os cometermos!...

- Na cirurgia, não! - sublinhou Ran.

- Não. Na cirurgia, se nos enganarmos, é o diabo. Mesmo assim, há uns tratantes que mal sabem distinguir uma ponta do escalpelo da outra, e atiram-se a tudo que aparece. Outro dia, vi um a tentar abrir um crânio. Tinha conseguido fazer um lindo buraco na cabeça do tipo, depois teve medo, e achou que era melhor ficar por ali. Gostava de contar isso ao Stokoff, para o ouvir gritar! “Que aconteceu ao paciente?”

- Ora! O Senhor deve olhar por estes tipos. Aquele só precisava de descompressão. O facto de se tirar uma ponta de osso tirou também a pressão. Agora todos os parentes e amigos cantam as maravilhas deste esculápio, explicando a quantos aparecem quem é ele. Isso vai encorajá-lo a continuar. E agora, falando de pássaros que não precisam de ser muito encorajados para se lançarem: não tem tido notícias recentes do amigo Wilson?

- Desde o nosso casamento, não. Enviou um presente à Ann.

- Nem há-de ter. Mas pode muito bem vê-lo chegar um destes dias.

- Aqui?

- Aqui, ali, a outro sítio, seja onde for. Tem um segundo cargo ao lado da clientela, que é restrita, mas elegante: Viaja pela Corporação Médica.

- É a nossa secção da Associação Médica Americana, não é?

- É. Secção de “Propaganda”. A especialidade do Larry é estimular o sentimento profissional. Estimular os outros, claro. Deve servir para isso. A menos que tenha mudado.

- Você nunca gostou do Larry.

- Nem dele nem do papá dele. Esse senador merecia um bocadinho de vigilância. Em Washington, faz um tráfico de primeira. Que bem pode chegar à fiscalização da medicina pelo Estado!

- Então, que tinha o Larry com a Corporação Médica Americana, que nitidamente se opõe à medicina do Estado, seja em que forma for, e tomou a esse respeito posição declarada?

Tim piscou o olho:

- Não é impossível pai e filho trabalharem dos dois lados da rua - disse ele. Espreguiçou-se e bocejou prodigiosamente. Depois: - Onde está então essa cama de que, há bocado, a Ann se orgulhava?

 

Vieram meses pobres.

Dia a dia, morto de fadiga por haver operado até às dez horas no hospital municipal e atendido depois o bando dos doentes do dispensário até às treze ou catorze, chegava Ran à Casa das Artes Médicas sem ter almoçado, por falta de tempo. E também por falta de dinheiro, pois o seu orçamento não era tão elástico que lhe permitisse comer ao meio-dia.

Deixava-se cair pesadamente para a cadeira da secretária e acendia o cachimbo, enquanto Ann continuava a malha que começara para matar o tempo, durante as infindáveis horas da manhã, cuja monotonia só raramente era interrompida por uma chamada telefónica, quase sempre de engano.

Pelas dezasseis horas, metia-se ela no autocarro e ia para casa preparar o jantar. Ran, que não podia correr o risco de perder o eventual doente que o acaso talvez lhe enviasse, ficava no consultório até às dezassete e trinta.

Os começos de Setembro reanimaram o comércio nas lojas da cidade, graças à abertura de dois mercados de Outono: o do algodão e o do tabaco. O dinheiro corria para os campos, refluía depois para a cidade, embora as fiações ainda não trabalhassem e se dissesse que não chegariam a fazê-lo durante todo o Inverno. De tempos a tempos, aparecia um doente no consultório de Ran. A princípio, só teve casos de pouca importância. Depois, começou a operar nos outros dois hospitais. Dele falavam a amigos doentes que operara no hospital municipal, e desses amigos aparecia-lhe, de tempos a tempos, um. Infelizmente, nem sempre eram casos de cirurgia, e Ran tinha de enviar o visitante a um dos jovens médicos que, no mesmo edifício, lutavam também pela vida, embora com certa vantagem em relação a ele.

Os confrades que com mais frequência via eram Howard Dater, McNab, um radiologista novo e brilhante, Philippe Vcrney, e depois, pertencentes ao hospital, Mark Riley, o Dr. Knott e William Williams, interno de medicina muito entendido, de carácter demasiado independente para gozar de favor junto da clínica Metzger.

O dinheiro! O dinheiro!! O dinheiro!!! Ran era o menos avarento dos homens, mas os nervos começavam a desgastar-se-lhe após intermináveis, inúmeras semanas em que mal ganhava para fazer face às despesas fundamentais. Mais do que uma vez, quando Ann estava à vontade e a sua aparente e corajosa despreocupação a abandonava por momentos, Ran descobriu um véu de angústia apagar-lhe a alegre beleza.

Depois, certo dia, acenou o dinheiro: aceno equívoco, como o da prostituta à esquina do passeio.

Já era tarde, quase dezassete horas. Ann saíra para ir aquecer os restos da véspera. Abriu-se a porta do gabinete, e entrou um homem afável, de majestosa corpulência. Cabeleira abundante, à inglesa curta, sobrolho pálido, olhos grandes e cândidos, de um azul infantil. Ran lembrou-se de o ter visto várias vezes no elevador, sem chapéu. Era, pois, locatário do prédio: talvez dentista, talvez massagista...

- Dr. Warren? Eu sou o Dr. Peter Barkett.

- Ah, sim !... Sente-se, Dr. Barkett. Tenho ouvido falar de si.

Mas a quem? De que modo? Não conseguia lembrar-se. O Dr. Barkett pestanejou:

- Ah, sim!?

A sua voz denotava perplexidade. Observou o rosto de Ran, e depois decidiu sentar-se. O aroma do seu charuto carregou a atmosfera.

- Donde vem o doutor?

- Da Carolina do Norte, em princípio. Para aqui, vim de Baltimore.

- Aluno de Lakeview, não?

- Sim.

- Um sobrinho meu, Billy Matson, é interno do hospital municipal. Falou-me de si um dia destes.

Rebuscando na memória, Warren colheu a imagem borbulhenta de um rapaz incolor e perguntou a si próprio o porquê de tanta cordialidade.

- Tenciona limitar-se à cirurgia?

- Espero que sim. Até aqui, não tenho tido muito que limitar.

- Oh! Todos os médicos, ao princípio, têm de passar por isso! - e agitava o charuto, num ar superior e independente. ’- Há-de vir por si, a clientela. Já entra nos hospitais?

- Já. Nos dois. Homestead e Saint-Francis.

Ran percebia que a conversa, sinuosa e aparentemente descosida, de Barkett se orientava para um fim, o qual, todavia, ainda não se vislumbrava.

- Às vezes, aparecem-me alguns casos. É claro que não opero. Já sou muito velho, já não tenho a vista que tinha dantes.

- É muito mais vasto o campo na medicina que na cirurgia - disse Warren.

- Pois é. Isso mesmo. Muitas vezes penso que a nossa época dá importância de mais à cirurgia. Apesar de todos os processos modernos, ainda pode servir o bom e velho médico de família.

Barkett expeliu um rolo de fumo e viu-o subir ao tecto. Quando voltou a falar, a sua voz tinha um tom de falaz indiferença:

- A verdade é que todos nós somos obrigados a recorrer de tempos a tempos à cirurgia. Em caso de necessidade, eu poderia ajudar um novo.

- Muitíssimo obrigado.

Ran começava a pensar se não teria prejudicado o outro, atribuindo à sua visita motivos interessados.

- Quer dizer, se pudermos chegar a um acordo.

Warren teve um sobressalto:

- Desculpe...

Iria aquele estranho, aquele desconhecido, propor-lhe friamente a dicotomia?

- Ia eu a dizer que podia enviar clientes a um novo, desde que... se tomassem... disposições... lógicas.

Ran corou muito. Não ficavam dúvidas, agora, quanto à visita aparentemente cordial do vizinho. Mas de nada serviria encolerizar-se, gritar. Pelo contrário, seria interessante procurar saber como era organizada aquela coisa da dicotomia.

- Bem sabe que eu estou aqui instalado de novo. Há muito que fazer, agora?

- Muito, meu rapaz. Imenso. Tenho um cirurgião muito hábil, que trabalha há anos comigo. - Baixou a voz e acrescentou: - O nosso acordo baseia-se numa percentagem de 25 % dos honorários da operação. Mas agora ele tentou reduzir a minha parte.

- A menos de 25 %?

Barkett disse que sim com a cabeça e depois:

- Ora, eu não acho isso justo. No fim de contas, os doentes são meus! Vão à procura do cirurgião que eu lhes recomendo. E eu comecei por gastar certo tempo a examiná-los, às vezes a acompanhá-los durante dias, a fazer várias visitas de diagnóstico. Sim: parece-me justo ficar, mais ou menos, com um terço. Não lhe parece razoável e legítimo?

- Não sei que lhe diga. E como é isso pago?

- Oh! Nunca lhe pediria que me mandasse a minha parte antes de ter recebido os seus honorários. De facto, pelo que a mim diz respeito, pode muito bem juntar os meus honorários aos seus, fazer a conta metendo, por exemplo, as despesas do assistente, da anestesista.

- É esse o seu único desacordo com o cirurgião? Quero eu dizer: a questão financeira?

Antes de responder, como que estudando-o, Barkett examinou-o demoradamente:

- Não vou dizer a toda a gente, mas, se você e eu devemos trabalhar juntos, é justo, e indispensável até, tê-lo a par do caso. Sabe?: aparecem-me algumas doentes que têm às vezes pequenos aborrecimentos. É muito frequente vir uma ou outra que precisa duma raspagem. O dito cirurgião fá-las no consultório dele. E depois, como pensa que ele procede? Na vez seguinte, opera directamente, por sua deliberação, e não me dá contas de nada. Pois bem, diga-me, Dr. Warren: isso é moral? Logo que acabou de tratar a minha doente, devia mandar-ma outra vez: é minha.

Ao ouvir esta cândida exposição da moral do outro, Ran quase desatou a rir na cara do interlocutor.

- A sério? Pois bem: não me interessa nada a sua proposta, Dr. Barkett.

Warren falava com absoluta calma.

- Acha talvez que um terço é demais?

- Não só é demais um terço, mas é demais seja o que for. Se lhe convém enviar-me os seus casos cirúrgicos, tratarei deles de boa vontade. E devolvê-los-ei logo que terminar a operação para que mos enviou. Mas nunca lhe darei um centavo de percentagem. E quanto às suas meninas aborrecidas, por nada tratarei delas.

Barkett levantou-se e agitou o charuto.

- É um grande erro que faz, meu amigo. Muitos homens que valem tanto como você, e até mais, se agarrariam à minha proposta.

- Gostaria muito de os conhecer. É que esta conversa interessou-me bastante. Foi muito instrutiva. Barkett mudou de cor:

- Aconselho-o a não fazer lá fora qualquer comentário relativo aos abortos. A si é que isso poderia trazer aborrecimentos.

Ran levantou-se por sua vez:

- Ameaça-me, Dr. Barkett?

- Não, não, não leve as coisas para esse lado. Dirigindo-se para a porta, acrescentou numa voz que testemunhava o desapontamento:

- Sem qualquer rancor. Adeus!

Ran seguiu com um olhar desgostoso a partida deste exemplo de certa escola de prática médica. Recordou o último dia de Lakeview, a altura moral da dedicação à vocação médica, as palavras nobremente inspiradas: “puro, inocente e consagrado”. Também, em tempos, este Barkett jurara fidelidade a um ideal de honra e dedicação. E tornara-se o Dr. Barkett, médico, profissional do aborto...

Com Outubro, entrou o fresco na cidade seca e mirrada.

Ran estava esgotado com o excesso de trabalho e de calor do Verão. Começou a readquirir peso com a chegada do Outono. Mas Ann parecia cansada, com instantes de distracção, que não pertenciam à sua natureza. A tarde, quando ele regressava do consultório, voltava a si própria, animada e alegre, mas, de manhã, andando dum lado para o outro na minúscula cozinha, mostrava-se pálida, com rugas acentuadas. Por uma ou duas vezes, levantou-se subitamente da mesa, foi a correr para a casa de banho, fechando precipitadamente a porta. Aconteceu, certa manhã, que não teve tempo de se fechar completamente, e assim chegaram a Ran sons estrangulados, que traíam os vómitos. Apareceu logo ao pé da mulher, que encontrou pálida, desfigurada, gotas de suor na raiz dos cabelos. Amparou-a até cessarem e depois inquiriu:

- Que há, querida?

- Que pensas tu? - perguntou-lhe, não sem alguma aspereza na voz.

- Não vais dizer... Ann!

- Ah! Lindo médico que tu és!- disse, com uma careta amiga. - Um lindo médico, que nem sabe sequer diagnosticar a causa das perturbações matinais da sua própria mulher!

- Porque é que não me disseste?

- Digo-te agora. Não é assim que estes anúncios surgem nos romances - comentou ela, com uma ponta do seu humor sarcástico de outrora. - Devia pegar-te pela mão, delicadamente, com todo o mistério, levar-te para um sofá - para o sofá! - e murmurar-te ao ouvido o amoroso segredo. Mas, agora, estou muito doente: o teu ouvido não ficaria seguro!

- Tens a certeza?

- Tê-la-ei por completo dentro de oito ou dez dias, mas espero que tudo isto não seja apenas energia perdida e agitação vã.

Ran olhava-a com adoração, hesitante em admitir o milagre:

- Não consigo acreditar!

Ela franziu o narizinho impertinente e fez-lhe uma careta cómica:

- Não, de facto, não consegues! Mas isto acontece a muita gente. É o que pode chamar-se uma consequência natural. Não temos levado uma vida exactamente monástica, pois não?

- Não. Mas, mesmo assim...

Um sorriso adoçou no rosto de Ann a tensão devida à náusea:

- Bem sei, querido. Espero que seja um rapaz. Pode vir a parecer-se contigo, quando for grande. com esses teus olhos negros e lindos cabelos ondulados.

- Mas há-de ter o teu carácter. Vais ver!

- Uma criatura tão teimosa como eu? Nada feito!

Ajoelhando-se o marido perto da cadeira para onde ela se deixara cair, Ann pousou a cabeça no peito dele e, sonhadora, passou os dedos pelas vagas daquela negra cabeleira.

- Quero que seja exactamente igual a ti. Que sorria ao dormir, que venha a ser um célebre cirurgião, professor de grande escola de medicina.

- Nesse caso - decidiu Ran, prático e resoluto - o que tenho de fazer é mexer-me para ganhar dinheiro. Vou-me embora.

Beijou-a, e o seu beijo era novo. Como se ela se tivesse transformado em algo de frágil e precioso, em tesouro raro que fosse preciso defender do mundo. E isso sugeriu-lhe uma ideia:

- Agora não deves ir ao consultório. Arranjo alguém que lá vá de manhã.

- Vai passear! - disse ela, com vigor. - E deixa-me em paz! Podes meter esse projecto no saco. Descendo duma linha de mulheres que tinham os filhos normalmente e tratavam da casa enquanto os traziam com elas. Não te aflijas!

- Em todo o caso, tem cuidado, ao subir e descer nos autocarros.

Quando chegou ao consultório, à tarde, Ann parecia uma mulher que nem sequer suspeita da existência duma náusea: ria alegremente com Howard Dater e certa mulher, dos seus trinta anos, vestida com toda a elegância, de rosto gracioso e animado. Dater fez as apresentações:

- Aqui está Mrs. Mclntyre. O marido ia comigo noutro dia, quando encontrei o Ran; lembra-se?

- Lembro, lembro.

Robert Mclntyre, advogado próspero, homem cuja influência nos negócios da cidade crescia de dia para dia, não era pessoa que se esquecesse com facilidade, pois o seu encanto era real e viva a inteligência. Popular entre os lares novos de Farmington, considerava-se o casal modelo de amor conjugal.

- Esta senhora - disse Dater - foi vítima dum acidente de automóvel, há três anos, e fracturou a pélvis. Grávida há quatro meses, queria ter a certeza de que ela está perfeita e não pode prejudicar a vinda do bebé. Como isso se encontra mais dentro da sua especialidade do que da minha, viemos cá.

- A obstetrícia não é a minha especialidade, mas posso dizer-lhe realmente se há ou não, em virtude do desastre, qualquer contracção que reduza as dimensões da bacia.

- É isso o que nos interessa.

Ran examinou-a com a maior atenção, tirando todas as medidas e comparando-as com as dimensões-tipo do velho manual de anatomia.

- Está tudo perfeitamente normal - disse ele a Mrs. Mclntyre, quando ela acabou de se arranjar. - Não terá a mais pequena dificuldade no parto.

- Fui muito bem tratada depois do tal acidente, de que nunca me ressenti. E não pensava ter qualquer deformação, mas preferimos ficar plenamente tranquilos.

- Que diz o seu médico-parteiro?

- Ainda não escolhemos ninguém: estive fora durante algum tempo. O nosso médico foi tratando de mim, examinando a tensão e fazendo diversas análises. Tenciono ir ter com o Dr. Sarnov.

Ran exclamou, surpreendido:

- Sar-nov?

- Sim. - E, levantando para ele uns olhos espantados, acrescentou: - Conhece-o, não?

- Sim, sim! Eu conheço o Dr. Sarnov.

-- Uma amiga minha utilizou os serviços dele e tudo correu magnificamente. Fez-lhe uma cesariana.

- Mas a senhora não tenciona fazer uma cesariana, penso eu...

Ran lançou a pergunta sem reflectir. O seu olhar encontrou o de Dater.

- Nunca pensei nisso - respondeu ela.

Dater interveio:

- E não haveria razão nenhuma para tal, depois do exame que o Dr. Warren acaba de fazer.

Ann apontou a visita na agenda, com a indicação dos honorários: cinco dólares. Havia poucas lá marcadas, e ao acabar a maioria delas, Ran nem sequer se dera ao trabalho de fixar preço.

Enquanto Ann preparava a conta a enviar a Mrs. mclntyre pelo correio da manhã, Ran acendeu o cachimbo e sentou-se para reflectir. Qual era o seu dever? Devia chamar Mclntyre e preveni-lo? Seria violação directa da moral médica. Além disso, talvez fosse injusto para com Sarnov, condenando-o por um caso único. Mas esse caso representava uma falta tão flagrante a todas as regras!...

Supondo que ele se cala e as coisas correm mal? Poderia escapar à responsabilidade moral de ter guardado o que sabia e os interessados não podiam conhecer? Afinal, não seria o caso mais de Howard Dater do que dele? Sim: mas, se Dater conhecia a reputação de Sarnov, não tinha qualquer prova directa da sua voluntária e perigosa mania. Ran sentia às costas o terrível peso da decisão, de uma decisão que podia causar a vida ou a morte. Ele responsabilizara-se no caso de Pee Wee Harter... e ainda agora perguntava se teria feito bem ou mal... Esse juramento que fizera, o antigo juramento de Hipócrates, como devia interpretar-se no actual caso? Onde se encontrava o dever?

Juro por Apoio, e por Esculápio, e por Higeia, e Panaceia, e por todos os deuses, e por todas as divindades...

É este juramento a base em que assenta todo o código médico que conduz as relações mútuas entre os que praticam a mais nobre profissão, e um dos artigos de tal código estipula formalmente que nenhum médico dirá mal doutro perante qualquer doente. Sarnov tinha tanto direito como Ran ao título de médico. Era diplomado por uma escola de medicina acreditada, licenciado pelo Gabinete Estadual dos Examinadores de Medicina, membro das associações médicas do seu estado e da nação.

Mas então lembrou-se Ran doutro passo do juramento:

Por tudo que depender de mim, desde que para tanto eu tenha discernimento e possibilidades, procederei pelo maior bem dos doentes, e preservá-los-ei do perigo e do mal...

Não seria preservar os doentes do perigo e do mal o impedi-los de se entregarem a médico sem escrúpulos?

Levantou os olhos para Ann, que o mirava curiosa:

- Vais-lhe dizer?

- Não sei que faça.

- Sempre o código de moral médica!

- É preciso haver um código a que os médicos possam reportar-se e com que se conformem. O que nos guia data de há mais de mil anos. Não há outra profissão cujos membros vivam em conjunto, se auxiliem mutuamente, preocupando-se cada qual com os seus assuntos particulares, tanto como nós, em medicina. Que aconteceria se cada médico resolvesse denegrir os confrades perante os doentes? Depressa degeneraríamos e cairíamos numa concorrência que muito se assemelharia a um valhacoito...

No rosto de Ànn luzia uma chama teimosa:

- Faze o que quiseres, mas eu, por mim, não me deixaria prender por qualquer ética, médica ou não, numa circunstância destas.

Assaltou-o um alarme súbito:

- Ouve, Ann: não deves meter-te nisto. Não te diz respeito a ti.

Nunca, até aí, ele fora tão longe na expressão da sua autoridade. Apenas esperava, do fundo do coração, que Ann compreendesse ser aquela uma afirmação profissional e de modo algum pessoal.

- Eu não passo de empregada de consultório - respondeu ela com uma calma que não o iludiu. - Mas há qualquer coisa que me diz que Rena Mclntyre e eu vamos ser amigas. Ela é adorável. Encontrámos uma na outra várias afinidades.

- Zanga-te, se me esqueço de que tu pertences à mesma classe social, querida.

Ela ameaçou-o, de punho cerrado:

- Nada de reflexões dessas, Ran. Para onde eu Vou, irás tu, desde que esteja a questão social em causa. É-te bom para os assuntos e excelente para a alma. Podes por isso escovar cuidadosamente o smoking, porque terás de o levar na próxima semana a casa dos Mclntyre. Estamos convidados para uma grande recepção em casa deles. E não precisas de te mostrar contrariado por isso!

- Oh! Não é por isso. É porque tremo ao pensar que tu podes deixar escapar alguma coisa a respeito do Sainov.

- Só se ela me perguntar... O que não é provável...

Foi quanto pôde arrancar-lhe. Já não era mau: a viva e alegre Mrs. Mclntyre não tinha decerto qualquer dúvida acerca do valor do especialista a quem ia confiar a vida do filho e a sua própria.

 

Com que surpresa Ran sorveu o ar e exclamou:

- Que oferenda florida é esta?

- Olá, querido!

A voz de Ann respondia do fundo da cozinha ao marido, que vinha a entrar.

- Acabo de ser “enramada”. Deita uma vista de olhos à sala.

Na mesa, um impressionante ramo de rosas, e, ao peso das flores esplêndidas, curvavam-se os grandes caules.

’- com a breca! E quem é o opulento amigo?

- Vai-te arranjar! - ordenou a voz distante. - Jantamos com o Dr. Larry Wilson, do distrito de Colômbia.

- O quê? O Larry está cá? Formidável! Que faz ele por aqui?

- Qualquer serviço. Importante. Pelo menos, o Larry é importante ao telefone. Ele há-de contar-to, não tenhas medo.

Belo, elegante como sempre, cheio de autoconfiança, transpirando êxito por todos os poros, recebeu-os Larry Wilson com bebidas no seu apartamento do Metrópole.

-- Ando a fazer uma espécie de inquérito para a Corporação Médica - explicou ele a Ran, após as habituais congratulações:

- Estado da nação? - perguntou Warren.

- Não. Estado da medicina. Podemos ter de intervir na legislação. vou apalpando o terreno.

- Que trabalho é esse? - inquiriu Ran, perplexo. - Trabalho de corredor?

-- O Larry não é um rato desses! - indignou-se Ann.

- Podia muito bem ser, por uma boa causa - respondeu o visitante, sorridente. - Começa a preocupar-nos o incremento, na profissão, de certas ideias socialistas, mal esclarecidas, parvas, e inoportunas: seguros contra todos os riscos, tratamentos baratos pelos médicos-cirurgiões, e tudo o mais.

- Receio muito pertencer aos parvos mal esclarecidos, Larry.

- Oh, não! - e a voz fazia-se-lhe indulgente e tolerante.

- Você sempre empunhou a lança pelo idealismo.

- E espero que continue - declarou calorosamente Ann. - É perfeito para o indivíduo - concordou Larry - mas, para o conjunto da profissão, temos de olhar pelos nossos interesses. Nem você imagina quantas e quão poderosas forças trabalham para conseguirem uma fiscalização governamental do exercício da medicina.

- É precisamente por isso que eu sou a favor de uma socialização mais completa da medicina dentro da própria profissão, como único meio de afastar essa ameaça.

- Apesar disso, estou de acordo com o Larry - disse Ann. - O médico tem o direito de ganhar a vida. Sabe Deus o que ele trabalha para o conseguir!

- Visito os estados do Sul para sondar as opiniões e fazer certa organização provisória. Mais tarde, hei-de voltar, para ver se arranjo uma espécie de congresso, quando vocês cá tiverem uma assembleia médica. Aproveite então, Ran, se tiver ideias.

- Tenho. Desde que aqui cheguei, ando a estudar um plano...

- Nunca me disseste nada! - exclamou Ann, ciumenta.

- Ainda não está estabelecido. Alguns de nós já se têm farto de trabalhar para ele. Talvez nos arrisquemos a comunicá-lo a uma das nossas pequenas reuniões profissionais, mas tenho a impressão de que faria um grande barulho! Que desordem aí vem!

- O Ran adora barulhos e desordens - explicou a mulher. - São as suas grandes especialidades.

- Vamos jantar - disse Larry. - Nunca a vi tão bonita, Ann. O Ran deve tratá-la bem: você engordou.

- É a felicidade que faz isto - retorquiu ela, com o seu sorriso característico.

- Mas o Ran emagreceu.

- Trabalha demais. E isso não compensa o bastante.

- Recompensa do idealismo! Temos de fazer qualquer coisa. Vamos, Ran: trabalhe, ponha em dia o plano, e trataremos dele quando eu voltar. Havemos de ter algumas noites agradáveis, hem, Ann?

- Aprecio as noites agradáveis.

com a consciência ao de leve beliscada, notou Ran que, para uma mulher que apreciava as noites agradáveis e não se escondia delas, não eram muitas as vezes em que Ann sentia tal satisfação. Por influência dessa pequena e passageira alegria, ela expandia-se realmente. com evidente admiração, Larry mirava-lhe o rosto animado e os olhos brilhantes.

- Esta noite é minha - disse ele. - Vamos dançar a qualquer lado?

- Não! - declarou Ran, mais brusco do que desejaria. Ela olhou-o caprichosamente:

- Quem diz isso: é o médico ou o marido?

Ran já se tinha recomposto:

- Achei que não era boa ideia, muito simplesmente. Mas vão os dois. Por mim, estou cansado, e acho que volto para casa.

- com certeza que estás cansado! - exclamou a rapariga, logo arrependida. - Eu também volto. Muito obrigada, Larry, por esta noite tão agradável.

- Há-de haver outras, já que os encontrei - garantiu Larry, arvorando o seu sorriso franco e encantador.

Ao voltar para casa, Ran explicou com ternura:

- Eu não queria ser egoísta. Mas não gosto de que te canses demais.

Agora, já a gravidez não deixava dúvidas. Mas haviam desaparecido as crises de náuseas matinais. Ela parecia e sentia-se na melhor das formas.

- Tudo vai pelo melhor - foi quanto disse. - Não me amimes demais, porque, senão, apenas terás nos braços uma neurasténica.

Tanto por Ran como por si própria, Ann mostrava-se satisfeita ao ver-se de robustez normal. Esta era-lhe fonte de perpétua alegria, que contrabalançava as crises de desencorajamento de que ele padecia, embora procurasse escondê-las.

Ran precisava daquele bom humor crepitante, daquela vitalidade, daquela vivacidade. É que as coisas não lhe corriam bem no hospital. Lutava sem esmorecimento para manter o trabalho ao nível que ele próprio determinara, mas tinha de se contentar com o esforço feito para se aproximar desse nível, sem pensar em atingi-lo; e, mesmo assim, quando, à tarde, chegava ao consultório, ia já esgotado pelo trabalho da manhã.

Para cada qual dos casos que lhe apareciam nas multidões diárias, tentava Ran fazer um estudo, pelo menos, aceitável. E isso era trabalho sobre-humano. Tinha igualmente de rever a medicina, pois os cinco anos apenas consagrados à cirurgia haviam-no feito esquecer bastantes coisas, ao passo que iam aparecendo muitas outras, novas para ele, ou com as quais, pelo menos, não estava familiarizado.

Certa tarde, remexendo a cómoda de Ann à procura dum lenço, caiu-lhe nas mãos um livrinho preto. Abriu e leu aí os pormenores das difíceis e pequenas economias feitas pôr Ann: iam de doze dólares (duma só vez) a quarenta cêntimos. O total atingia cento e quinze dólares e cinquenta cêntimos.

- Que vem a ser isto?

Ann teve um sobressalto:

- Onde o encontraste?

- Na tua cómoda. Qual é a tua ideia?

- É a minha conta no Banco. Bisbilhoteiro! - disse ela, com desaprovação na voz.

- Então tu burlas-me? Ou casei com uma avarenta?

Ela enxugou as mãos no avental e tirou-lhe o livrinho.

- É o meu dinheiro - explicou. - Poupado no salário que me concede um patrão exigente.

- Tencionas comprar aquele casaco de peles, não é?

Lançara Ann olhares de concupiscência a certo casaco, exposto numa loja do rés-do-chão da Casa das Artes Médicas.

- Não se trata de qualquer casaco de peles. São fundos para o bebé. A Primavera vem longe e, de cada vez que me sobra algum dinheiro, vou depositá-lo. Há-de ser muito útil quando eu for para o hospital.

- Setenta e cinco dólares pagam tudo.

- Sim; mas há a roupa. E ainda outra coisa: no próprio dia em que ele nascer, vais começar-lhe um dote, para ter dinheiro quando entrar no colégio e para poder tirar o curso de medicina.

- Entretanto, nós vamos comendo erva.

- No mês passado, quase pagámos as despesas com a instalação do consultório. Não me admiro se este mês ficar tudo liquidado. Nesse caso, que havia de querer para o Natal o raiozinho de sol? O que pode esperar obter efectivamente - acrescentou ela, triste - é um pau de açúcar de cevada corado!

- Isso é só comigo - disse ele, alegremente.

- Mas não! - protestou Ann. - Deixa-te de preocupações e dá campo à imaginação.

- Nesse caso, compro uma máquina de ondas curtas.

- Ah, sim?! Compras? E quanto é que isso não custa?

- Podia arranjar qualquer coisa de bom por cento e cinquenta dólares.

- Tu e mais ninguém! Não preferias o Capitólio de Washington?

- Ouve... foste tu que pediste! Disseste que o desejasse. O desejo não custa nada.

A pergunta de Ann, por muito despreocupada que parecesse, tinha origem e fim definidos. Ann não contara a Ran a visita, que nessa mesma manhã recebera, de um cavalheiro expedito, polido, corpulento, de meia idade, contente de si e muito afável, que se apresentara com a clássica fórmula: “O meu nome é Felschicker”.

Quase sem dar por isso, recordou e identificou um parente que Ran tinha em Baltimore. “Como vai o doutor por aqui?”, informara-se o indivíduo.

Ela explicou as dificuldades que surgem no caminho dum jovem cirurgião em cidade desconhecida. O senhor Felschicker ouvia, com simpáticos meneios de cabeça. “Mas levava o doutor muito caro?”

- Não é mais caro do que merece um trabalho de primeira categoria.

- Quanto custaria, por exemplo, salvar o braço ou a perna a um indivíduo?

Ann olhou Felschicker nos olhos:

- Aonde quer chegar com isso, senhor Felschicker?

- vou dizer-lhe exactamente do que se trata.

Durante uns cinco minutos, contou o visitante a sua história e projectos, que Ann ouviu primeiro com espanto, depois com receio, por fim com interesse e satisfação. Concluindo, ele perguntou, transbordante de desejo e cuidado:

- Então? Acha que chegavam duzentos dólares?

- com certeza. Mas há um escolho, senhor Felschicker: o meu marido não aceitaria dinheiro.

- Não aceitaria? - inquiriu o homem, incrédulo e escandalizado. - Qualquer pessoa aceita dinheiro honestamente ganho.

- Ele diria que o não tinha ganho. Não seria correcto.

Felschicker parecia completamente deprimido:

- Que vou eu fazer então? Talvez não saiba, minha senhora, mas eu sou judeu. Nós, os judeus, não gostamos de ter dívidas pelos nossos.

Impressionada por esta boa vontade, Ann reflectiu:

- Podia oferecer-lhe um presente. Parece-me que, se a coisa fosse convenientemente arranjada, ele era capaz de aceitar.

O rosto de Felschicker iluminou-se:

- E que há-de ser? Um lindo relógio e respectiva corrente?

- Não. Acho que ele preferia qualquer coisa para o consultório.

Saiu da sala e voltou com um catálogo de objectos cirúrgicos, que os dois observaram. Apontaram-se alguns artigos como referências.

-- vou sondá-lo, e depois comunico-lhe o resultado, senhor Felschicker.

Quatro dias depois, chegava um caixote à Casa das Artes Médicas, Farmington, dirigido ao Dr. Randolph Warren. Nos quatro lados, a Sociedade de Instrumentos Cirúrgicos Acme pedia a todos o maior cuidado ao mexer no objecto.

- Assine aqui - pediu o distribuidor.

- Leve isso - respondeu Ran. - Não encomendei nada à Sociedade Acme.

- O senhor é ou não o Dr. Randolph Warren?

- Sou. Mas, de qualquer modo, há um equívoco.

- Oh, é verdade! Já me ia esquecendo de que veio no correio de ontem uma carta que pode esclarecer o assunto. Assina, e depois abrimos o caixote.

Tiraram a embalagem. Quando acabaram de o fazer, viram um aparelho de metal preto e esmalte branco, cuja frente era coberta por impressionante série de mostradores; tinha metros e metros de tubuladora de borracha e, na tampa, estranhos objectos de baquelite.

Ran excitou-se e exclamou, admirado e febril:

- É o que se faz de melhor e mais caro! Não há nada superior no mercado! Mas que quererá isto dizer?

Ann passou-lhe para a mão o bilhete. O espanto de Ran ia crescendo à medida que decifrava a letra:

O rapazinho joga de novo ao futebol, como o senhor lhe prometeu. Talvez eu possa mandar-lhe outros clientes; tenho amigos que viajam e ficam às vezes em Farmington. Este aparelho tem garantia. Portanto, por agora, não escrevo mais.

Respeitosamente, Hermann Felschicker

- E quem é então este Hermann Felschicker? - perguntou violentamente Ran.

- O tio do Abie.

- E quem é, com mil diabos, o Abie?

- Esqueceste-te do rapazinho, do judeu de Lakeview, que tão bem representou para que lhe operasses a perna? Aí tens o pão deitado à água, que te volta pelo tio Hermann.

Ela fechou os olhos, para os fazer pequeninos, imitando graciosamente a visita do outro dia:

- Nós, os judeus, não gostamos de ter dívidas pelos nossos. - E concluiu: - Quem disse que já não havia Pai Natal?

 

Antes da noite passada com Larry Vilson, teria Ran decerto recusado o convite para jantar que lhes foi feito pelos Mclntyre. Mas a noite do Metrópole abrira-lhe uma clareira na fome de alegria, de prazeres sociais, no gosto das coisas agradáveis da vida, que, leal e corajosamente, Ann se esforçava por abafar no coração, apesar de a sua origem social lhe garantir o acesso a elas. Os divertimentos no plano do círculo dos Mclntyre ultrapassavam indubitavelmente as possibilidades orçamentais de Warren. Assim, quando Ann lhe apresentou o bilhete amigo de Rena Mclntyre, ele inquiriu:

- Gostavas de lá ir, não é verdade?

- E tu, não?

- Gostava.

- Mentiroso!

Ela levantou-se e deu a volta à mesa, para beijar o marido.

- O meu smoking serve?

- com certeza. Tem de servir. Não podemos comprar uma casaca...

- Sempre gostei dele, desde que te ganhou para a minha causa.

- De certo modo, é verdade - admitiu ela. - Vai-te fazer muito bem encontrar pessoas diferentes desses curandeiros. E pode dar-te impulso favorável ao consultório, aumentar a clientela... Ou estarei eu enganada?

- Muito me havia de divertir! - garantiu Ran.

Chegados o dia e a hora, examinou Ann o marido com atenção e aprovou:

- Tens um ar inegavelmente distinto, querido. Mas solene. Precisas de sacudir isso.

- Vais ver. Quando lá estivermos. Pelo que respeita a jovialidade, ficarei muito acima de qualquer gato em liberdade com um novelo de lã.

- Óptimo!

Sentia-se Ran à vontade ao pé de Rena Mclntyre, depois do seu primeiro encontro no consultório. Começava a ostentar-se a gravidez da senhora, mas mantinham-se intactos a graça, o encanto e a alegria. Gostaria de ficar sentado ao pé dela, mas depressa se esvaneceu tal esperança.

- vou colocá-lo num sítio perigoso, Dr. Warren - disse ela.

- Isso vai representar um esforço! Sou tímido, como sabe.

-- Tímido? Não é essa a sua fama.

- Qual é, então?

- De provocador. A seu modo - acrescentou ela, sorrindo - Graeme Ellice também o é. Ela há-de agradar-lhe. Como a todos os homens.

Uma rapariga muito morena, baixa, galante, pousou a bebida ao ver aproximar-se a dona da casa, que rebocava Ran, a quem ela estendeu a mão, acolhedora. Dizia Rena:

-- Graeme: o Dr. Warren. Convido-a a servir-lhe o seu melhor palavreado.

A outra estudou demoradamente o rapaz, com atenção e franqueza. Nos lábios lindos e sensuais fixou-se-lhe um vinco divertido.

- Não creio que o meu palavreado possa interessar ao Dr. Warren...

- Já alguém afirmou que ele é a parte de baixo da pele da História.

- Bem dito! -exclamou Graeme Ellice.’-Ou não é? Elucide-me. Eu não sou inteligente.

- É uma atitude, Dr. Warren - advertiu a dona da casa.

- Não se deixe cair na armadilha.

- Seja gentil para comigo durante o jantar. O meu outro vizinho é Howard Dater, que não me aprecia.

- Porquê? - inquiriu Ran, distraído, enquanto Rena Mclntyre ia cumprir outros deveres de cortesia.

- Quero eu dizer: do ponto de vista médico. Pensa que sou hipocondríaca.

- E é verdade?

- Então!... É essa a sua maneira de ser gentil? É claro que não sou. Mas os médicos são estúpidos.

- Agradeço-lhe em nome de todos os da profissão.

- Talvez você seja excepção. Qual é a sua outra vizinha?

- Não faço a mais pequena ideia. Nem procurei sabê-lo.

- Mas procurou sabê-lo por mim. A Rena é uma aborrecida. Sou amiga dela.

- Esse parece-me o sentimento geral. Que gostam dela, claro.

- Exactamente. É, por assim dizer, o que se faz de melhor. Embora ela não pense o mesmo a meu respeito.

Ran já percebera que, com Graeme Ellice, fosse que conversa fosse tendia a dirigir-se ao assunto fascinante entre todos: ela própria. Ran não via nisso, porém, qualquer inconveniente; estava mesmo disposto a jogar dessa forma.

- Gostava de saber porquê... Ela encolheu os ombros:

- Há muita gente assim. Às vezes, eu própria não penso muito bem de mim. Acha que podemos conquistar segundo aperitivo?

De caminho para esse serviço, foi Ran interceptado e apresentado à outra vizinha de mesa: Mrs. Traynor Smith, de meia-idade, bem vestida, rosto agradável e franco. Ao regressar com os copos, encontrou três homens assenhoreados do terreno, e a jovem Ellice galanteando-os a todos, despreocupada e imparcialmente.

- Também posso ser franca consigo - começou ela. - Tenho ordens precisas; estou encarregada de fornecer um relatório completo a seu respeito.

- Fornecer a quem?

- Isso não faz parte das instruções.

- Então, como hei-de saber qual das minhas qualidades superiores devo fazer brilhar? Ela riu:

- Bem pensava eu que você ia agradar-me. Agora, tenho a certeza.

- Esta nota há-de figurar no relatório?

- Colorindo-a decentemente.

- Não responderei a nenhuma pergunta que me incrimine, degrade, ou prejudique de qualquer maneira. O seu marido não é advogado?

- Coitadinho dele! Não. O Fanshawe não passa dum marido muito amável, de um encantador bode expiatório. É o segundo homem à esquerda de sua mulher. O que está a rir. Costuma rir, ele.

- Isso deve facilitar a existência.

- Nem sempre.

Como entreacto, seguiu-se uma troca de impressões com Mrs. Smith, acerca de política mundial. Warren regressou depois à vizinha da direita, que disse:

-- Pensando bem, acho que devo dizer-lhe para quem estabeleço a sua ficha. Mas não por enquanto. Será essa a isca que há-de aproximá-lo de mira, depois do jantar.

A maioria dos convidados jogava bridge. Errante no salão, contente, no fundo, por lá estar, achou-se Ran no vão duma janela, por trás duma mesa a que estava sentada Ellice, defronte dele, aparentemente pouco interessada na mão do parceiro de jogo.

Na sua expressão, algo lhe deteve o fugitivo olhar que deixou escorregar para ela. Nesse momento, Graeme pareceu definitivamente afastada de toda aquela pândega. Virou a cabeça, fixou o olhar, e teve um sobressalto. Desconcertado, como se indiscretamente houvesse penetrado um pensamento interdito, Ran desviou a vista, embora tivesse sido incapaz de explicar a sua impressão.

Mais longe, jogava Ann. Como se equilibraria a balança? E se ela perdesse? Bob Mclntyre, um dos seus adversários, olhou para Ran:

- A sua encantadora esposa está a fazer um jogo brilhante. Até agora, já ganhou cinco dólares. Deviam inscrever-se ambos no nosso clube da quarta-feira à noite!

- Eu não, muito obrigado! Já tenho muitas dificuldades!

De pé, ao seu lado, encontrava-se Graeme Ellice. Numa voz lenta e confidencial, segredou: ;

- Já chega. Já é mesmo de mais. Peguemos em dois copos

e sentemo-nos a um canto, sossegados.

Conduziu-o para uma salinha ao lado, fracamente iluminada, e suspirou:

- Oh, como me aborreço! Nunca saberá como pude maçar-me tanto. Agora, já tenho oportunidade de lhe dizer qualquer coisa. Faça perguntas.

- Quem foi?

- A Frances Mayfield.

Ele desviou o olhar. Subitamente evocado, o passado causou-lhe uma espécie de choque.

- Onde a conheceu?

- Os Mayfield são primos da minha mãe. A Frances é encantadora, não acha?

- Acho.

- Conheceu-a antes de ela se casar, não é verdade?

- Conheci. Estava eu no hospital de Lakeview.

Ao certo, que sabia aquela sorridente rapariga? Ou que suspeitava? Afinal, que interessava isso? Tudo pertencia ao passado bem passado. Ann apagara tudo.

- Vocês devem ter sido bons amigos. Ela quer saber tudo quanto lhe diz respeito. Que hei-de contar-lhe?

Ele respondeu acanhadamente:

- Que corre tudo muito bem.

- Mais nada? - Sem esperar resposta, continuou, nervosa: - Há outra coisa. Durante toda a noite, desejei falar a sós consigo.

- Há alguma coisa que eu possa fazer? - interrogou, com calma.

Graeme estudou-lhe o rosto e murmurou:

- Você parece bom.

- Nem sempre os médicos podem ser bons.

- Não. Sabem ser brutais.

- Muitas vezes é exactamente quando são bons que parecem brutais.

- Vi-o a olhar para mim, há bocado. - Não é costume - e sorriu.

- Em que estava a pensar? Não - e, para arredar as palavras que ocorriam, fez um gesto, um gesto sombrio - Em que estava realmente a pensar?

- Que você estava com medo.

- Estou.

- De quê?

- É impossível dizer-lho aqui. Posso passar amanhã pelo seu consultório?

- Não me parece muito fácil, Mrs. Ellice. Quem é o seu médico assistente?

- Tenho tido tantos! Agora, não tenho nenhum. Está lá de manhã?

- Não. Só de tarde: das duas às cinco.

 - Estarei lá às duas horas. - E, inclinando-se para Ran: ^-Será honesto e sincero para comigo quando... se... eu... lá for?

- Serei.

- Boa noite e obrigada. Tem de ir a nossa casa com sua mulher.

No carro, Ann observou:

- Pareces-me agradar muito à sereia, hem!

- A quem? Ah! A Mrs. Ellice!

- É terrivelmente bonita.

- A sério?

- Não achas?

Ele respondeu com uma verdade incontestável:

- Não és tu.

Ann apertou-se mais ao marido:

- Aguenta essa ideia, querido! Que tal este primeiro mergulho na vida mundana?

- Nada mau. Mas sai muito caro, não achas?

- Como a maioria das coisas que se apreciam.

- Pediram-me que fizesse parte dum pequeno clube.

- Encantada! Precisas duma distracção desse género.

- É muito caro. vou recusar o convite.

- Que clube? Que preço? Quem faz parte?

Preferiu começar por responder à última pergunta:

- Sobretudo médicos: o Howard, o Porky, o Dr. Matthews, do hospital de Saint-Francis (é o único de mais idade), o Mark Riley, e o Bill Williams, do hospital municipal; o Joe Pound, o oficial de saúde e meia dúzia de médicos novos, instalados na Casa das Artes Médicas. Também vem às reuniões o Tim Brennan, quando pode. Lista dos profanos: Bob Mclntyre, o Harvey Brown, da Segurança Social, o Reddy Peters, e alguns outros.

- O Peters? O que dirige o semanário amarelo?

- Sim. Terceiro Alerta. Amarelo claro. Mas útil; exuma os cadáveres em que os quotidianos têm medo de tocar.

- Como funciona o Clube?

- Cerveja e toda a espécie de aperitivos. Chama-lhe o Toma e Dá. Já fui convidado umas duas ou três vezes.

- Então, vais inscrever-te. Não se pensa na despesa. Quanto custa isso?

- Quinze dólares, pelo menos, quando chega a vez de pagar a cervejaria.

- Chegar-te-á a ti!- disse Ann, descendo do carro. - Hei-de ter sempre quinze dólares para uma causa tão boa como essa.

Na sua qualidade de último membro inscrito, devia Ran apresentar, na reunião seguinte, um assunto destinado a ser objecto de discussão espontânea, sem plano pré-estabelecido. Mas, antes de chegar a sua vez de falar, surgiram as complicações perante certa pergunta do jornalista - homem novo, de aspecto saturnino, cabelos de fogo, palavra despreocupada e como que adormecida. Um dos seus princípios consistia em que cada número do hebdomadário devia pôr uma dúzia de assinantes, ou mais, num estado tal de fúria e desespero que os levasse a tentar desancar o chefe de redacção, ou pelo menos a ameaçá-lo de que o fariam. Sem isso, o número considerar-se-ia insípido, sem valor, sem interesse, sem eficácia.

- Digam-me então vocês - pediu Peters - o que há de tal modo terrível na medicina do Estado.

Responderam os médicos, em coro:

- A fiscalização política.

- E que acham da escolha livre do médico?

- Que é um caso de relação entre médico e doente.

- Isso transformaria o médico num fanático político.

O Dr. Matthews, único membro sempre escutado com respeito total, respondeu:

- O que na profissão se receia, se a medicina fosse estadualizada, é que a política interviesse no sistema a ponto de nos baixar o nível moral. É o que em toda a parte acontece, sempre que a política invade qualquer terreno.

- Eu trabalho para o governo do estado, doutor - disse Pound. - Pode ser que me engane, mas suponho que me desempenho do meu cargo tão bem como a maioria dos médicos independentes, relativamente à sua clientela particular. Não é por ter um ordenado fixo, em vez de cobrar honorários a um doente de cada vez que lhe ponho no peito o estetoscópio, que eu faço má cara ao trabalho.

- Nem todos são tão conscienciosos como tu, Joe - disse Bill Williams. - Apesar disso, ia apostar que, mesmo no emprego, tens de conservar a vista aberta para a política.

- É claro que depende do governador a nomeação dos oficiais de saúde. Mas é um homem de primeiríssima categoria.

- Ele, talvez - afirmou Dater. - Mas... o que vier depois? Como pode você ter a certeza de que não há-de vir um zero à esquerda, ignorante de tudo quanto lhes disser respeito?

- Sim, não é impossível - admitiu Pound.

- Ninguém critica o enorme exército de oficiais de saúde, que realizam quase todos um trabalho excelente - apaziguou Matthews. - O perigo consiste em que, se cai nas mãos do Estado a totalidade da prática médica, o mecanismo tornar-se-á simultaneamente pesado, enfadonho e impessoal. Daqui por alguns anos, talvez degenerasse em organização de pipas de vinho bem montada, sendo as vidas humanas o objecto do negócio.

- Todavia, não pode negar - interveio Mclntyre, dirigindo-se ao Dr. Matthews - que a medicina, tal qual hoje se pratica, é demasiado cara para a maioria das bolsas.

- Que ideia é essa?! - exclamou Porky, indignado. Quase todos nós temos de nos fartar de lutar para arranjarmos com que viver!

- Quando você quiser, posso mostrar-lhe, nesta mesma cidade, inúmeros homens que, graças à medicina, arranjam proventos fabulosos, e a grande parte dos quais eu não confiaria uma doidivanas grávida - disse o editor, tranquilo e seguro de si.

- Você o disse, meu caro - aquiesceu Howard Dater.

- Grande parte do corpo médico desta cidade até cheira mal à distância; nunca o Governo colocaria nada de semelhante.

- Pois bem! Então - comentou calmamente Brown - se a profissão médica deixa trabalhar homens incompetentes e os autoriza a estabelecerem tarifas que representam insuportável fardo para o comum dos doentes, não compreendo por que se indignam ao pensarem que o Governo possa tomar conta das coisas.

- As alterações não podem fazer-se duma só vez - interveio Ran. - Temos de examinar projectos vários, experimentar certas ideias, descobrir o mais válido, antes de decidir qualquer coisa. É evidente que grande número dos reaccionários se recusam a encarar a mais pequena hipótese de qualquer modificação.

Mclníyre perscrutou-lhe o rosto, com atenção:

- Parece-me que você já pensou no caso. Qual é, na sua opinião, a melhor maneira de o solucionar?

- Mostre de que é capaz a sua massa cinzenta, Ran! - encorajou Dater, sorrindo.

Ran tomou fôlego e principiou:

- O trabalho de grupo. Só os grupos organizados podem reduzir as despesas gerais, assegurar todos os cuidados nas melhores condições, e, ao mesmo tempo, garantir a vigilância e evicção dos incompetentes.

- Não vejo como é que esse sistema reduziria as despesas. Já temos alguns grupos organizados, e saem muito caro.

- Se saem! - exclamou Tim Brennan, vigoroso. - Tendo chegado tarde, acabava de mergulhar o rosto corado numa caneca de cerveja, donde emergiu para intervir na discussão:

- Para ter a certeza, basta considerar a habilidade com que os membros de certos grupos locais passam o doente duns para os outros, como no jogo do anel. “Eu cedo-te, tu passas-lho, e todos nós queremos um bocado”. São grupos, isso? Bandos é que são. E, realmente, organizados.

- Bem dirigido, bem administrado, o trabalho de grupo pode diminuir as despesas do doente - explicou Ran. - O diagnóstico claro, completo, seguro, pode fazer-se sem ajudas exteriores e com o máximo de garantia, porquanto o possível erro de um é rectificado pelo contra-exame de outro. E é um estímulo para os vários membros, que ficam obrigados a manter-se a par do progresso científico. Ó Howard: quanto gasta o indivíduo atingido por uma doença relativamente obscura, para saber o que não tem?

- Quer você dizer: um diagnóstico eliminatório? - Ran aquiesceu, e Dater calculou: - Consideremos um caso duvidoso de dores abdominais. Se o doente se dirigir a qualquer especialista de primeira categoria, isso importa numa centena de dólares. Por esse preço, pode ele ficar com a quase certeza de saber o que não tem, e nós com algumas possibilidades de adivinhar o que ele tem.

- O meu grupo podia fazer o mesmo por uns vinte dólares - afirmou Ran.

- E isso é apenas o diagnóstico! - sublinhou Mclntyre.

- Quando chegarmos ao tratamento, cirúrgico ou não, onde vamos nós parar? Os grupos têm de ser pagos. E, mesmo com despesas reduzidas, como é que o nosso homem médio pode aguentar tal esforço financeiro?

Ran respirou fundo:

- Seguro sanitário: é a outra metade do meu plano.

- Obrigatório? - inquiriu logo Harvey Brown.

- Obrigatório para a classe mais necessitada dos cuidados médicos que, com o actual sistema, não pode obter.

- Radical, não? - quis saber Joe Pound.

- São precisas medidas radicais para corrigir os erros económicos da medicina.

- Que história é essa de classes? Divide o público em secções? - informou-se, por sua vez, Dater.

- Divido. Em três. Os economicamente fracos serão tratados de graça, como hoje. com a simples diferença de que serão encaminhados para determinada clínica.

- E quem paga a clínica?

- A municipalidade. com a ajuda dos impostos.

- Socialismo puro!

- E quem é que hoje paga para os doentes tratados nas casas de caridade? Quem, senão a municipalidade? - Ran ia aquecendo. - A cidade não mantém os hospitais, as clínicas gratuitas e os dispensários? Graças aos impostos. O meu plano não seria mais do que uma concordância financeira diferente. Custaria um pouco mais caro, mas o público ficaria muito mais bem servido.

- Admitamo-lo, pelo que respeita aos pobres - disse Porky McNab. ^- E quanto aos doentes ricos, que, infelizmente, são tão raros?

- Os ricos continuariam, como hoje, escolhendo à vontade o médico, o cirurgião, a clínica. Era preciso encorajá-los a fazer seguros de doenças nas companhias particulares. Assim ganhariam os mais eficazes cuidados pelos preços menos elevados, resultantes do grupo. Mas não são os ricos os mais importantes. O que há de importante é a imensa classe média: as pessoas cujos proventos anuais vão de mil a quatro mil dólares, medicamente falando, são as mais desfavorecidas. Para a maioria delas, uma doença prolongada, uma operação importante significam praticamente a ruína, ou pelo menos, uma dívida que leva tempo a pagar, e que as prenderá vários anos. Para elas, arranjaria eu um sistema de seguros médicos, cobrados como impostos e administrados por uma comissão especial, de orientação médica. Estes seguros cobririam as despesas de hospitalização, de remédios, de soro, de medicina e cirurgia, além dum subsídio eventual a favor daqueles cujo ganha-pão ficasse imobilizado. Estes iriam à clínica que escolhessem.

- Mas a clientela gratuita não? - inquiriu Brown.

- Não. Esses não pagarão nada, mas dirigir-se-ão à clínica ou hospital que lhes for designado, o que sempre se escolherá de acordo com a natureza do seu mal. Serão mandados aonde o seu caso particular for mais bem tratado: beneficiarão de tratamento tão delicado, tão atento, tão completo como a classe média ou os milionários.

- E qual é o lugar do Departamento Sanitário do Estado, no seu plano? - perguntou o oficial de saúde.

- Funcionaria como até aqui, com o encargo de despistar as doenças e de lhes impedir o desenvolvimento epidémico. Mas, para os cuidados e tratamentos, os doentes seriam automaticamente enviados às clínicas ou hospitais. Assim se evitariam os atritos que, hoje em dia, tantas vezes surgem entre o serviço de saúde e o médico particular.

- Isso é verdade - admitiu Pound. - É evidente que vocês, médicos, estão bastante longe de defender os seus interesses; mas nós, os do serviço de saúde, estamos cheios da quase perpétua oposição médica que encontramos. Vocês podiam contudo ajudar-nos muito, com esse sistema de grupo, se nós soubéssemos, por exemplo, onde encontrar, com certeza e sem demora, em caso de epidemia ou catástrofe, uma assistência de primeira ordem, voluntária, organizada, competente.

- E porque não? Podia prever-se isso com facilidade no plano geral; não trazia complicações.

- Se desejarem, ou, pelo menos, admitirem, meus senhores, a opinião dum leigo - falava Bob Mclntyre - direi que o podre da medicina actual consiste na conspiração que vocês organizam contra o doente.

Interveio o Dr. Matthews, austero:

- Conspiração organizada! É dura a expressão! Pede pelo menos que se justifique!

- Talvez seja um pouco dura, realmente, mas é muito claro o que eu tenho no espírito: o doente não está de qualquer modo protegido do físico a que se entrega. Legalmente, tem direito a um advogado, nos tribunais. Mas todos os médicos se associam contra ele. Se um cirurgião incompetente ou temerário praticar um erro qualquer, por exemplo, e se chamar a seguir outro especialista, este reparará o mal, se puder, mas sempre cobrindo e dissimulando o melhor possível o erro do colega, que ficará absolutamente à vontade para recomeçar. Acho que os senhores chamam a isto a ética, a moral médica. Por mim, estou convencido de que a minha nomenclatura - conspiração organizada - não é em nada menos certa.

Ran olhou-o, com medo interior. Como mostrar-lhe que ele acabava de traçar a sua própria situação, ou, melhor, a da mulher?

- Há sem dúvida uma certa verdade no que diz, Bob - concedeu Howard Dater - ; mas a sua conclusão é muito exagerada.

- Aí é que o plano do Warren seria útil e eficaz na protecção ao doente - observou Pound. - Em grupo, os médicos vigiar-se-iam mutuamente, e não apareceria qualquer problema de ética que pudesse impedir o segundo de dizer ao primeiro: “Você enganou-se”. Se houvesse divergência de opiniões, decidiria a maioria. Não seria cem por cento perfeito, de acordo, mas já se melhorava muito.

- Acho bem - aprovou Peters.

- É pouco verosímil que o geral da profissão reaja de maneira tão favorável. Ganhou raízes entre os médicos mais experientes um conservantismo rigoroso, embora nem sempre salutar.

 

Dias depois, chegaram aos ouvidos de Warren ecos dessa noite, rumores acerca do seu plano. E concretizaram-se até, quando Howard Dater entrou no consultório, exibindo um exemplar do Terceiro Alerta, de tinta ainda mal seca.

- Viva, meu caro! Deu um salto para a glória!

- Que fiz, então?

Estendeu-lhe Howard o hebdomadário com o título vulgar, mas desafiador, em maiúsculas:

FORA com OS VELHOS QUADROS! DERRUBA-OS O PLANO WARREN PARA A MEDICINA SOCIALIZADA!

- Ouso dizer que isto não é nada. O Ruivo explorou o caso.

- Não me tinha lembrado de que falava para o público!

Leu toda a folha, resmungando de tempos a tempos.

- Parece ter caçado os pontos principais.

- És capaz de me ligar para o Jim Peters, Ann? Para a redacção do Terceiro Alerta.

Ouviu-se a voz satisfeita do jornalista:

- Então, que tal?

- Acho que você tem de dar algumas explicações.

- Porquê? Não se especificou de modo nenhum que era confidencial a conversa...

Puxando o aparelho para si, disse Howard Dater:

- Seu parasita! Tratava-se duma reunião de clube. De clube particular. Fácil, portanto, de ver que era confidencial o que lá se dissesse!

- Já havia bastantes reuniões que não me ameaçavam de me expulsarem - disse o outro, calmo e despreocupado. - Talvez se pudesse submeter o caso a discussão. Fiz um bom número de jornal, não é verdade?

- Lá isso é verdade... - concedeu Ran. - Mas a publicidade pessoal...

- Ora... Vá passear com essa história da ética e da moral - e Peters denotava o risonho desprezo dos jornalistas por todo o código moral que não seja o deles. ^- Os nossos mais célebres discípulos de Esculápio passam o nome ao jornal sempre que podem, nem que seja por ocasião duma partida de bridge em casa da senhora Fulana de Tal. Não tem importância. E eram coisas que se deviam dizer, estas. Disse-as você. Eu reproduzi-as. Prestámos ambos serviço à colectividade. Além disso, vendo este número que é um nunca descansar. Você pode ficar ferido com a coisa, mas não pode conseguir que eu também fique. Adeus.

- A meu ver - disse Ann, que aprontara o ouvido - ele tem razão. Se existe maneira de enfrentar a ameaça da medicina do Estado, os médicos é que devem encontrá-la. Pode valer a pena mostrarem à clientela e ao público em geral que alguns de vocês não se preocupam apenas com juntar, apoiados na ética médica, o maior número possível de dólares.

Primeiro, foi o ponto de vista de Peters que pareceu triunfar, e dir-se-ia confirmada pelos factos a sua teoria relativa à publicidade: aumentou o número de visitas ao consultório de Ran. Pouco, mas inegavelmente. Houve quem fosse lá dizer-lhe que ele estava no bom caminho, enquanto os velhos fósseis estagnavam. Reconfortava, em suma, ver que era muito mais importante o número de pessoas interessadas pelo lado económico e social da medicina.

Nitidamente menos favorável foi a reacção profissional. A maioria dos confrades disseram-lhe que ele se enganava. Não se admirou muito. Atacando a ordem estabelecida, censurando o modo de tratar a clientela particular, tornou-se réu de heresia.

Uma semana depois da publicação do artigo, estava Warren a trabalhar no dispensário quando tocou o telefone:

- É o Dr. Warren?

- Sou.

- Daqui, Dr. Metzger. Gostava de me encontrar consigo imediatamente, no gabinete do Dr. Knott.

Era uma ordem. Não um “peço-lhe”, nem um “se faz favor”. Ran não apreciava aquele tom, mas não tinha remédio senão obedecer.

- Lá vou - disse ele.

Metzger encontrava-se sentado à secretária de Knott. O Dr. Knott, esse, recostava-se numa cadeira. Quando entrou Randolph Warren, fez o gesto de sair.

- Deixe-se estar, Dr. Knott - pediu Metzger. - Quero que oiça o que vou dizer ao Dr. Warren.

Knott obedeceu. Ran puxou uma cadeira. E Metzger começou num tom oficial e gélido:

- Suponho que sabe o motivo por que o chamei...

- O artigo do jornal?

- Precisamente. Nós - e acentuou voluntariamente, com ênfase, o pronome - concedemos-lhe o benefício da dúvida, presumindo que o artigo se publicou sem sua conivência.

- Sem eu saber - rectificou Warren.

- Não será necessário mostrar-lhe o erro que cometeu ao expor ideias tão fantásticas num sítio que lhe dava o perigo da divulgação pública.

- Contesto que sejam fantásticas - respondeu friamente Ran - mas reconheço o meu erro em não ter previsto que a discussão, mais ou menos particular, podia tornar-se pública.

- Nesse caso, uma retratação, cuja linha geral...

- Lamento - interrompeu o moço - ; mas não é por terem sido impressas que vou retirar as minhas opiniões honestas.

Metzger corou.

- Opiniões subversivas. Opiniões perigosas. Temeridade inútil, que só pode prejudicá-lo.

Ran obstinava-se no seu silêncio. Apenas contava com uma coisa: ver-se imediatamente despedido. Pela moderação de que se revestiam, espantavam-no as palavras de Metzger:

- Insistimos em que se abstenha, neste hospital, de toda e qualquer propaganda das suas teorias.

- com certeza. Isso posso eu prometer - respondeu Ran, aliviado.

- Nesse caso, óptimo. - Metzger levantou-se. - Discutimos o caso em conselho da Direcção. A opinião geral é a de que, se você cometeu erro grave, foram a juventude e o entusiasmo deslocado que o alucinaram. Estamos dispostos a passar por cima desta infracção, desde que se não dê nada de semelhante enquanto estiver no hospital.

Quando o cirurgião-chefe se retirou, disse o Dr. Knott, numa dissimulação amiga:

- Escapou à justiça, hem!

- Escapei. E sem saber ao certo porquê. Parecia a porta...

- Eu digo-lhe porquê. - Knott rebuscou a gaveta e tirou de lá uma grande folha coberta de números. - Aqui tem o relatório financeiro do serviço dos doentes exteriores. Durante estes meses em que você se tem ocupado deles, houve mais cerca de vinte e cinco por cento de casos tratados e um total de despesas de metade. Há muita gente a par deste resultado, todos sabem que a honra dele é sua.

- Acha que, para o Metzger, pesaria isso mais do que a aversão que ele me tem?

- Este hospital é politicamente vigiado - observou Knott. - Já lhe falei, em tempos, das relações do Dr. Metzger com importantes forças políticas. Mas também importa o ponto de vista económico: no conselho, há um elemento económico muito activo, e portanto embaraçador. Se um serviço ultrapassar o orçamento, podem levantar-se problemas aborrecidos. O Dr. Metzger entende que se deve ser um não-te-rales, para não acordar os gatos que estão a dormir.

Neste ponto olhou o director, instintivamente, para a porta e continuou:

- Eu creio que ele tem muito que dizer em apoio das suas teorias, meu rapaz.

- vou fazer aqui uma profecia - disse então Ran. - Se alguma vez cairmos na medicina do Estado (e isso é mais que provável, se uma maioria dos médicos tiverem as vistas curtas de mais ou se se encontrarem demasiado presos ao dinheiro, ou ainda se estiverem excessivamente condicionados pela política para impedir a estadualização), vai ver que, à nossa cabeça, teremos tipos como o Metzger, potências ocultas como os membros da sua clínica.

Nem ele sabia até que ponto eram proféticas as suas palavras.

 

Como pudera ele deixar-se intrujar por um aldrabão da medicina tão notório como o Dr. Peter Barkett? Ficava sem resposta esta pergunta, que Ran punha a si próprio pela centésima vez, mas fazia-a passar por alternativas de angústia, de furor, de desgosto e de desprezo de si próprio. Nunca se julgara tão imbecil. E agora esperavam-no, talvez, graves aborrecimentos.

Barkett fora absolutamente plausível, correcto, cortês, desculpando-se do “pequeno mal-entendido” (Ran murmurou qualquer coisa que em nada o comprometia) que assinalara o encontro precedente. Desejava que Ran se encarregasse de uma doente sua: estava ausente da cidade o Dr. Bill, que se encarregava dos seus casos cirúrgicos. Tratava-se - podia o Dr. Warren ter a certeza - dum caso muito nítido de apendicite, com irregularidades menstruais relativamente frequentes: era provável que bastassem uma dilatação vulgar e uma simples raspagem. Não se levantava o problema da divisão de honorários, e o Dr. Warren podia muito bem cobrar cem dólares a Miss Leopold.

Perspectiva que retinia agradavelmente aos ouvidos de Ran: Ann estava grávida e aproximava-se o Natal.

Por mais que procurasse, por mais que examinasse o caso, nada encontrou Warren que não condissesse com o relatório do Dr. Barkett. A doente - jovem dos seus trinta anos, do tipo fraco, pálido e passivo - fornecera indicações satisfatórias: três crises de apendicite, a clássica história do sofrimento seguido de náuseas e de sensibilidade local durante vários dias. As hemorragias uterinas pareciam banir qualquer possibilidade de gravidez. Ran preparou-se para operar em Saint-Francis. Miss Leopold perguntou o preço e passou o cheque. Ran voltou para casa, caminhando nas nuvens. Ann estava a ler na cama.

- Adivinha o que eu trago.

- Algum gelado? - respondeu ela, entusiasmada.

- Melhor do que qualquer gelado. Olha para isto!

E pôs-lhe debaixo dos olhos o cheque.

,- Cem dólares? Cem dólares lindos! O cheque é válido?

- Tão válido como dinheiro líquido.

Contou-lhe a entrevista com o Dr. Barkett. Ann carregou o rosto, que se transformou em máscara de dúvida.

- Tens a certeza de que não há nada de equívoco?

Ran coçou a cabeça, perplexo:

- Se há, não consigo encontrar. E sabe Deus como procurei !

- Dá-mo - disse ela, estendendo a mão.

- Para? Fundos do bebé?

- Não temos essa sorte. Dívidas.

- Dívidas! Tu deves dinheiro, Ann?

- Eu? Oh, não! Tu! Dívidas do consultório. Pequenas, mas aos montes.

- Porque não tinhas dito nada?

- Para que te havia eu de preocupar quando não tinhas por onde pagar? Isto vai liquidar tudo, ou quase tudo. Tenho horror a dever.

Depois, na sala de operações, tudo se explicou. Mal tinha começado a raspagem, já sabia do que se tratava: “Passado pequeno feto com placenta”.

Logo que a paciente voltou a si, perguntou-lhe:

’- Há quanto tempo sabia que estava grávida?

- Há cerca de duas semanas. - Examinou a cara do médico e o seu próprio rosto se cobriu de contrariedade:

- O Dr. Barkett não o tinha avisado?

- Não.

- Eu pensava, evidentemente, que o doutor sabia. Ele disse-me que estava tudo de acordo, mas que mais valia não falar nisso. Desde que lhe paguei os honorários, declarou que ficava fora de tudo e que o caso só ao doutor dizia respeito.

- E quanto lhe deu?

- Cem dólares, como a si. Disse-me que dividem sempre a meias.

Lindo! Transformara-se ele, Dr. Warren, em abortador e dicotomista. Nem sequer podia ir partir a cara a Barkett, pois o escândalo não deixaria de chegar aos ouvidos de Metzger. É claro que podia explicar tudo. Mas de que lhe valeria a explicação?

Ficava-lhe mesmo interdita a duvidosa satisfação de devolver o cheque: guardara-o sem demora Ann, e, também sem demora, fora o dinheiro distribuído pelos credores.

Sábado, à noite, a hora incerta, tocou o telefone. Ran deu uma volta na cama, protestando:

- Para o diabo o tal Bell!

- Quem é o Bell? - indagou Ann, adormecida, ou quase.

- Algum doente de graça?

- Não. Um inventor. Alexandre Graham.

- Ah, esse! Não vais atender?

- Estou hesitante. Tenho medo de me decidir. Não falha: é uma senhora lá em cascos de rolha, que sente as costelas comprimidas por gases!

- Não és médico de clínica geral - lembrou Ann.

- Quer dizer que só faço isto! Todos me garantem que não conseguem encontrar um médico. E eu deixo-me comover. E Vou. Se ao menos também for para o céu, talvez S. Pedro se incline para mim e me pergunte confidencialmente: “Diga-me, doutor, não conhece nada que alivie os gases do estômago?” - E resmungou, estendendo o braço para o aparelho: - Está? Fala o Dr. Warren.

- Viva! Daqui, Brown. Em Milltown, como sabe.

Sabia. Mary Brown fora a sua primeira cliente particular. Apendicite. O pai, embora desempregado, juntara dez dólares - sabe-se lá à custa de quantas dificuldades e privações! e enviara-lhos pelo correio com um bilhete: “Ao menos, para as despesas da gasolina”. Os médicos têm sempre um fraco sentimental pelos homens deste calibre.

- Pode vir cá - perguntou Brown - ver alguém que anda muito mal vestido, doutor?

- De que se trata?

- Deve ser uma pneumonia. É o cunhado do Mike Towers. Está aqui de visita, à procura de trabalho.

- Porque não procura um médico?

- Já tentei. Chamei dois, mas, ao saberem que não teriam honorários, recusaram-se. O doutor não pode vir? Temos tanta confiança em si...

Ran olhou para o relógio e ficou surpreendido ao ver que ainda não eram onze horas. Bem. Só alguns minutos e estaria lá, a auscultar o peito do doente e deixar-lhe bastante codeína para o acalmar.

O doente encontrava-se num leito de ferro desconjuntado, em quarto estreito. Era horrivelmente magro. Sem dúvida, os olhos, ardentes e em contínuo movimento, procuravam por toda a sala, procuravam ainda trabalho, inconscientemente, já que todo o resto da sua personalidade se encontrava mergulhado em coma. A gravidade do seu estado tornara-se evidente pelos movimentos rápidos e pouco profundos da respiração e também pela subida da coluna de mercúrio, que ultrapassava os 40 °.

- Quando é que isto o atacou?

Pequena e cinzenta como um rato, reapareceu a mulher, que, à chegada de Ran, se eclipsara para um segundo plano:

- Eu sou a mulher. Queixou-se de dores de cabeça ontem de manhã. A noite, teve arrepios. Depois, começou a tossir e a queixar-se duma dor no lado direito. Demos-lhe aspirina, pusemos-lhe uma cataplasma de farinha de mostarda, e dormiu um pouco.

- Há quanto tempo delira?

- Começou a não raciocinar e a falar por volta do meio-dia.

- E, quando tosse, cospe?

- Parecia poeira de tijolo. Guardei para lhe mostrar.

Qualquer médico sabia o que aquilo significava; pneumonia. E até, provavelmente, pneumonia do lobo. A invasão em massa, completa, dum lobo, talvez dum pulmão inteiro, por bactérias e pelo produto da infecção. Bilhões de germes, anafados, ovóides, pneumococos aos pares, às cadeias ou em grupos, que projectavam veneno, toxinas, e dominavam a resistência do corpo. Uma forma virulenta de germes, além disso, pois a infecção não tinha dois dias completos, e já se generalizara a toxemia.

Sentado à beira da cama, Ran desabotoou o casaco de pijama do homem, puxou-o para trás, para lhe descobrir inteiramente o peito. Qualquer operador superficial, fosse ele qual fosse, verificaria, ao primeiro olhar, que a amplitude respiratória era muito mais fraca do lado esquerdo. Diferença de profundidade e de ritmo nos movimentos, a cada inspiração, sufocada e áspera. A superfície, abaixo do mamilo esquerdo, havia entre duas costelas uma pulsação rápida e notória, e, no dedo apoiado, brusca pressão a cada bater do coração, cujas dimensões, pelo que ele observou, ultrapassavam seu tanto as normais. O que podia significar princípio de dilatação cardíaca, em consequência do envenenamento dos músculos do coração por toxinas, sinal incontestavelmente desfavorável. Transferiu então as pancadinhas para a direita: nítida, a diferença. Desaparecera a nota baixa, ressonante, que se observava no pulmão são. Deste lado, nota alta mais fraca, sem ressonância, como se com o dedo se batesse num tampo de mesa: o pulmão direito estava quase inteiramente solidificado pelos produtos da infecção pneumónica. Fazendo girar o homem sobre o lado, confirmou o diagnóstico por um exame dorsal.

Embora não precisasse dele, pegou no estetoscópio. Um século antes, já Laênnec teria podido diagnosticar aquele caso, muito tempo antes de se inventarem os estetoscópios. Pôs o médico nos ouvidos a ponta dos tubos de escuta, aplicou o aparelho ao peito do homem, na região onde fora fraca e sem ressonância a nota de percussão. Um som agudo e claro marcava com duplo assobio a entrada e saída do ar. Normalmente, a expiração apenas devia produzir um som quase imperceptível, até completa ausência de barulho. Mas, presentemente, alterara-se a estrutura normal do pulmão, havia milhões de saquinhos de ar que já não o continham, mas, amontoados, apertados, micróbios no fluido infeccioso. Só os brônquios se conservavam abertos, e eram eles que davam tal assobio expiratório, sinal infalível de pulmão compacto. De quando em quando, ouvia-se um estertor produzido por minúsculas bolhas húmidas nos pulmões, como chumbo para pardais agitado em tubo de metal.

- É mau, doutor? - inquiriu, tímida e ansiosa, a esposa.

- É. Temos de o levar para o hospital.

- Não sei como vai ser isso - inquietou-se Mike Towers. - Acha que podemos transportá-lo sem risco?

- Tem de ser. Devemos fazê-lo. Precisa de glicose, de oxigénio.

Começaram a arroxear-se os lábios do homem.

- Não tem dinheiro, mesmo nenhum.

- vou tentar que o aceitem no hospital municipal. Onde é o telefone?

- Vai ter de utilizar o meu - disse Brown.

Saiu com Ran para uma morrinha que anunciava o regelo e começara enquanto eles estavam em casa. Do hospital municipal, quem respondeu foi a vigilante da noite.

- Daqui fala o Dr. Warren. Tenho um doente no bairro das fiações; um caso mau de pneumonia. Podem recebê-lo aí?

- Estamos cheios. Temos poucas camas e o Dr. Knott insiste para que eu conserve sempre uma ou duas disponíveis, se puder. É doente da cidade?

- Não. De visita a uns parentes.

- Isso afasta-o, Dr. Warren. Não temos autorização para receber casos vindos doutros pontos - disse a voz, imperiosa e precisa. - Experimente o Socorro Social: podem ajudar a que o admitam num dos outros estabelecimentos. vou dar-lhe o número do telefone do director.

- Daqui, o Dr. Warren - anunciou ele. - Tenho um caso crítico de pneumonia. Um homem que não é da cidade. Precisa de hospitalização urgente. Pode recebê-lo?

- Ele pode pagar?

- Não. Desempregado.

Pausa. Tão longa que, por um momento, Ran julgou que haviam desligado sem mais nada. E depois:

- Talvez se arranje. Dê-me o nome e a morada. Faremos um inquérito na segunda-feira.

- Ora! Na segunda-feira já ele terá morrido.

Teve, de repente, consciência de haver elevado a voz até o ponto de gritar, e reconduziu-a a um diapasão normal.

- Se puder ter oportunidade de lutar pela vida, é esta noite mesmo que deve entrar no hospital.

- Lastimo, doutor.

Conservava-se a voz inalterada, sem pressas, sem qualquer perturbação, como se o anúncio de uma morte iminente não tivesse mais importância do que uma fórmula oficial, como se tivesse até menos.

- É a regra que o Governo nos impõe.

Ran desligou o telefone e limpou a testa. Regra imposta pelo Governo! Linda coisa! Prometia belos dias para o circo, quando - se é que isso devia acontecer - a medicina se encontrasse de todo nas mãos do Estado. Esperar duas noites, para se fazer paciente e meticuloso inquérito, com cotas e referências, enquanto a vida, ardendo até ao fim, deixava morrer a sua última chama. O que interessava assegurar era a indispensável proporção de burocracia, o desejado cubo de papelada, enquanto a morte, essa, continuava a sua tarefa. Bela organização, não se podia negar!

Assim haviam, pois, decidido: ao cunhado de Mike Towers só restava morrer. Não, por amor de Deus! Não sem luta. Soro! Soro! E jogava-se a cartada. Começou o cérebro de Ran a rever a toda a pressa o que conhecia do problema. Casos daquele género cediam muitas vezes ao soro, sobretudo se administrado nos três dias seguintes a declarar-se o mal. Ainda estavam nos limites do terceiro dia. Vejamos, esta nova maneira de descobrir o tipo do pneumococo, este método que levava alguns minutos enquanto o antigo exigia horas.

com certeza que Bill Williams o conhecia. bom tipo, o Bill Williams, interno do hospital municipal. Ran pegou no auscultador e ligou para o hospital, apressado:

- Ligue-me ao Dr. Williams, se faz favor. - Depois, quando lhe soou ao ouvido a voz lenta de Williams: - Olá, Bill. Não há um sistema rápido e breve para se identificarem os pneumococos? Que leva só uns minutos?

- Há, pois. A reacção Neufeld, aperfeiçoada por Sabin. - Sabe fazê-la?

- Naturalmente que sei. Qualquer idiota a faz.

- Então prepare tudo o que for preciso: dentro de um quarto de hora estou aí com os escarros.

Quando chegou ao hospital, Bill tinha preparado seis lamelas. Pegou numa, colocou nela o cuspo, com as devidas preparações, aplicou-lhe o microscópio, e, durante um momento, estudou o resultado. Assobiou entre dentes e acrescentou:

- Aí tem os seus insectos. E se os há! Pneumococos. Veja.

Ran inclinou-se para o microscópio e ajustou o aparelho, de modo que desse todo o relevo às bactérias, as quais, acusadas pela solução azul, se salientavam vigorosamente, no fundo iluminado da baixela de vidro. Relativamente grandes, tinham forma ovóide, aos pares ou em curtas cadeias. Algumas pareciam dotadas de leves cápsulas.

- Temos agora de ensaiar as reacções às diversas misturas de soros - explicava Williams, enquanto ia trabalhando com rapidez e pegava noutras lamelas. - Há umas trinta variedades deste animaliculo activo. Quando o escarro que contém determinada variedade entra em contacto com o soro oposto, as cápsulas dilatam-se nitidamente. No caso contrário, nada se produz.

Após vários minutos de transferências atentas e minuciosas manipulações, afirmou Williams, não sem viva satisfação profissional:

- Cá temos! Tipo nº 1. Tão visível como o nariz no meio da cara.

Era o culpado evidente, aquele tipo nº 1. À volta de cada germe formara-se uma cápsula, com uma zona clara separando do núcleo azul-escuro o azul-pálido do fundo geral. Era notável o efeito da reacção. Ali se exibia cada grupo de pneumococos, como banhado em minúsculo lago branco. Ran olhou para o relógio. Quase não acreditava em que se encontrava no laboratório havia apenas meia hora. O rosto tornou-se-lhe grave:

- O problema seguinte é encontrar soro. - Eles podem pagar?

-- Duvido. Andam à pendura, tesos. Quanto acha você que isso pode custar?

<- São precisas, pelo menos, cento e vinte mil unidades. Vai aos cem dólares, ou quase.

- Ah, é muito dinheiro para uma pessoa qualquer!

Chamou Brown ao telefone:

- Há uma possibilidade de o salvar. Um soro combinado com esta droga nova, a sulfapiridina.

- Pode-se arranjar?

- Poder, pode. Mas sai muito caro. Cerca de cem dólares.

Houve conciliábulo na outra ponta do fio. Depois a voz de Brown, cujas vibrações ficavam amortecidas pela angústia:

- Não há a mais pequena esperança, doutor. O Mike nem sequer tem dez dólares seus. Eu ajudava-o, se pudesse, mas também nada tenho.

- Bem sei que você o faria. vou ver se no Socorro Social ajudam, e dir-lhe-ei qualquer coisa. Entretanto, procure aí ao pé se há alguém que saiba tratar um doente e possa ocupar-se dele.

E voltou a ligar para o Socorro Social:

- Daqui Dr. Warren. Telefonei-lhe há uns três quartos de hora a propósito dum caso grave e urgente de pneumonia.

- Sim.

Era a mesma voz impessoal.

- Fez-se a análise. O doente sofre uma infecção de pneumococos do tipo nº 1. É o tipo que melhor corresponde à acção do soro, e parece haver assim uma possibilidade de o salvar. Pode comprar este soro para ele?

- Lastimo, doutor. O Governo não nos concede qualquer crédito para a compra de soro. Além disso, não podemos encarar auxílio.a qualquer doente sem inquérito preliminar. Talvez, se quiser falar-nos na seg...

Ran desligou com violência.

- Isso é que é falar! - aprovou Williams. - E agora, que vai você fazer?

Ran pegou no livro de cheques: restavam-lhe vinte e dois dólares. Nem um quarto do que era necessário. Lembrou-se depois das economias. O total devia atingir, naquela data, uns cento e cinquenta dólares. Felizmente, Ann abrira no Banco uma conta em nome dele, precisando que depois se podia acrescentar “Júnior”. Ann havia de compreender que ele não podia ficar, de braços cruzados, à espera de que aquele desgraçado morresse, se o soro deteria a constante pressão, a proliferação das bactérias, e as impediria de continuar a produção das toxinas que invadiam o pulmão. Afinal, quando estava em jogo a vida dum homem, o dinheiro pouco significava.

- Pago eu próprio o soro - decidiu Ran. - Você vai ajudar-me a dar-lho?

- De acordo. Se o Ran dá o dinheiro, eu bem posso dar o tempo.

Pararam numa farmácia e compraram sete ampolazinhas, cada uma com vinte mil unidades de soro antitipo 1 de pneumococo e uma caixa de sulfapiridina. Custou tudo cento e cinco dólares. Ran tirou o cheque à conta das economias.

Em casa de Mike Towers, encontraram, no quarto do doente, uma rapariga delgada e morena, que se levantou quando eles entraram e se apresentou de tal modo que Ran compreendeu ser ela enfermeira:

- Sou Margaret Herpel. Mike Towers criou-me, por assim dizer. Quando soube que ele precisava de alguém, vim logo. Vi o Dr. Warren em Saint-Francis.

- Apresento-lhe o Dr. V/illiams. Como está o doente?

- Extremamente intoxicado. Tirei-lhe a temperatura: 40. Respiração: 28. Pulso: 120.

Ran aprovou:

- Pois bem, vamos a isto. Pode começar o soro, Bill. Ou o melhor seria dar-lhe antes a primeira dose de sulfapiridina, já que conhece a dose.

Williams esmagou a sulfapiridina na água, antes de a administrar, porque o doente tinha, agora, enorme dificuldade em engolir. Preparou-se a seguir para administrar o soro e disse:

- Verifiquei a sensibilidade cutânea. Vamos dar-lhe uma intravenosa de um centímetro cúbico; se não houver reacção contrária, podemos continuar.

Para alívio de ambos, não se produziu qualquer reacção, e Williams injectou lentamente nas veias sessenta mil unidades - quase metade - do soro viscoso. Depois, Ran e a enfermeira passaram por Peters a esponja alcoolizada, para diminuir a temperatura.

E era tempo de recorrer à segunda dose de sulfapiridina, pois lançavam-se nesta direcção sabendo que, se quisessem salvar o doente, só o conseguiriam pelo emprego de decisões heróicas.

Terminaram o soro. Continuaram de seguida a trabalhar naquela sala grande como uma caixa, dando tisanas, banhos de álcool, sulfapiridina, experimentando todos os truques que conheciam para aguentar e estimular a circulação atrasada, dar força ao coração terrivelmente intoxicado.

Logo que a temperatura começou a baixar, desceu verticalmente. Tinham visto tal efeito do soro quando era utilizado nas primeiras vinte e quatro horas, mas, tão tarde como agora, nunca, até então: o que esperavam de melhor era um abaixamento gradual, não esta luta dramática, maravilhosa, miraculosa. O doente recuperava forças, ali, à vista deles.

O pulso diminuía, tornava-se mais firme. A respiração era mais profunda e regular.

- É um remédio verdadeiramente poderoso - comentou Williams, sacudindo o termómetro, onde acabava de se registar uma temperatura próxima da normal. - Pode orgulhar-se da sua luta pela vida.

- Graças a você e a Miss Herpel. - Virou-se então para a enfermeira: - Parece-me agora que a reconheço. Não a vi numa operação do Dr. Sarnov?

- Viu. Infelizmente.

Ran ficou surpreendido. Permitir-se uma enfermeira criticar um cirurgião, era quase faltar à etiqueta. com um cacarejo de alegria, sublinhou Williams:

- Não gosta dele, hem?

- Não. Nem dos seus métodos.

- Eu também não - admitiu Bill. - Mas você parece-me uma rapariga muito independente.

- Sei que falei quando não devia - reconheceu ela - e que não me conservei no meu lugar. Mas, depois de ver os doutores trabalharem, esta noite, tenho a certeza de que não vão trair-me. Gostava mais de trabalhar de graça com os senhores do que com o Dr. Sarnov a salário duplo.

- Deus nos abençoe! - disse Williams a rir. - Vamos.

Cantavam os galos quando eles emergiram no frio da manhã.

 

Ran penetrou em casa com o mínimo possível de barulho. Deitada de lado, dormia Ann, com um braço estendido para o lugar dele. Cabelos puxados para trás e face rosada no travesseiro, parecia uma criança, e isso maravilhava-o. Talvez o bebé, ainda que viesse rapaz, se parecesse com a mamã. Ela virou-se, abriu um olho mal desperto e olhou para o marido, sem compreender:

- Que estás tu a fazer, já a pé? - E depois, lembrando-se do que acontecera, inquiriu: - Que horas são?

- Seis.

Sentou-se logo na cama:

- Que significa isto, Ran Warren? Onde passou você a noite?

- Ao lado do meu caso de pneumonia. Tentei conseguir que o aceitassem em qualquer hospital. Nada feito. Acabámos por lhe dar em casa soro pneumónico combinado com essa droga nova, a sulfapiridina.

- Nós? Quem?

- O Bill Williams foi-me ajudar.

Ann bocejou com preguiça:

- E o doente viverá?

- Quando o deixámos, era o que parecia. Havias de ver como se recompôs logo a seguir ao tratamento! Antes, agonizava. Vimo-lo tornar à vida, ali, perante os nossos olhos.

- Ainda bem que hoje é domingo. Podes dormir ainda um bocado, de manhã.

- É verdade. E se estou a precisar de dormir!

Agora, que terminara a bruxaria da batalha, começava Ran a ficar apreensivo quanto ao esgotamento das economias. Ann compreenderia, evidentemente. Compreenderia, de facto? De qualquer maneira, estava cansado de mais para falar do assunto da conta, também esgotada. Ficaria para depois.

Levantou-se, passava do meio-dia. O cheiro do toucinho frito e do café aromatizava o ambiente. Ran tomou o seu chuveiro, cantando mal, mas com enorme entusiasmo, vestiu outra vez o pijama, enfiou depois o sobretudo - que servia igualmente de roupão - e saiu da casa de banho, gritando:

- Depressa o almoço, chefe de mesa.

- Já vai, doutor.

No limiar da porta surgiu Ann, que ele achou linda. Dava-se bem com ela a gravidez. Os olhos eram alegres, a pele fresca e macia, não se alterara a graciosa figura, os movimentos conservavam a destreza e agilidade habituais, enquanto ela ia e vinha, segundo as necessidades. Ran comia com satisfação próxima da beatitude, quando uma pergunta muito simples lhe fez perder o apetite:

- Sabes, querido, a quanto montam agora os fundos do bebé?

Havia orgulho indissimulável na pergunta. O garfo parou a meio caminho da boca do esfomeado. E esta?

^- Receio que o total seja menos do que tu supões.

- Como podia ser isso? Tenho todos os pormenores na mão...

- Ann... Fui obrigado a passar um cheque por esta conta.

Os lábios da rapariga entreabriram-se de surpresa:

- Porquê?

- Soro.

- Soro ?

- Sim. Para o tal caso de pneumonia.

- Quanto?

Desta vez, a pergunta não passava dum murmúrio.

- Cento e cinco dólares. Eram precisos, sem a mais pequena demora.

- Ran! Mexeste nesse dinheiro? No dinheiro do meu bebé?

- Do nosso bebé - rectificou ele, meigo. Ann teve um pequeno gesto de desespero. - Tratarei de pagar-te duma maneira ou doutra.

- Pensas que pagas? Mas... oh! Ran...

Ele discutiu:

- Põe-te no meu lugar, querida. Como podia eu ficar impassível a ver morrer aquele homem?

- Porque havias tu de tomar a responsabilidade pessoal de todos esses casos que os outros médicos e os próprios hospitais rejeitam? Que tens tu com eles? Não está certo. Não é justo. Nem para ti nem para mim.

- Não te compreendo, Ann! És enfermeira. Perdeste tão depressa o teu ponto de vista?

- Se querias que eu conservasse o meu ponto de vista de enfermeira, não me tivesses dado um filho. Isto altera tudo!

Gritava a sua indignação, e eram ardentes e estranhos, quase hostis, os olhos que lhe deitou.

com os seus botões, ele pensou que devia mostrar-se indulgente para com o nervosismo próprio da gravidez, cuja primeira manifestação aparecia.

Sem falar, sem o olhar, passou diante dele, mas não direita ao quarto. Ran ouviu bater a porta da escada. Indo à janela, viu-a partir rapidamente, sem chapéu, rosto desfigurado. Esforçou-se por crer que só lhe faria bem andar um bocado sozinha e deixar evaporar assim as suas emoções. Apesar do que, enquanto se sentava ia sentindo difusa inquietação.

Ainda não se vestira quando ouviu lá fora passos indistintos. Dois homens, dois desconhecidos, seguravam Ann, pálida e visivelmente atordoada. Ran empurrou um deles e substituiu-o.

- Que aconteceu?

- Atropelada por um carro.

- Estás ferida, amor?

- Não... acho que não...

- Ajude-me a levá-la lá para dentro - pediu a um dos homens, depois do que disse ao outro: - Faça o favor de chamar o Dr. Matthews. O telefone está ali. Diga que a mulher do Dr. Warren teve um desastre e peça-lhe que venha já.

Cuidadosamente, despiu Ann, que continuava passiva.

- Nada partido?

- Não.

- Dói-te muito?

- Um bocado. Estou muito dorida por dentro.

Quando ela se estendia, notou que os joelhos lhe subiam:

mau sinal. Na origem de abortos estavam choques menos violentos do que aquele. Apalpando, deu por uma contracção muscular.

- Deita-te de lado e levanta mais os joelhos - aconselhou. - Isso pode atenuar o sofrimento.

Quando ela se virou, aumentaram os receios: não havia dúvidas com aquela mancha púrpura.

- vou dar-te uma injecção de codeína.

Depois de administrar o medicamento, foi ter com os dois desconhecidos:

- Ainda não lhes agradeci. Foram muito amáveis e úteis. Algum dos senhores viu o acidente?

- Vi eu - respondeu um rapaz alto e magro. - Foi atropelada pelo guarda-lamas. Caiu, mas não foi arrastada. Bateu na borda do passeio.

- O carro ia a dobrar a esquina, devagar - disse o outro.

- A sua mulher parece que não o viu e foi direita a ele.

Ran perguntou, furioso:

- E o motorista não parou?

- Parou, parou. Logo. Desceu e veio ter com a senhora; ela disse que não estava ferida e que, de qualquer maneira, a culpa era sua. Então ele voltou para o carro e seguiu.

- Tirei-lhe o número.

- Esqueça-o!-aconselhou o outro. - Era Marty Bayner.

- E quem é esse Marty Bayner? - perguntou Ran.

- Um dos nossos políticos do futuro. Irmão do grande chefe, o Bayner da Câmara. Só por si já tem muita influência. Não gostava de me meter com ele.

Chegou o Dr. Matthews e os dois homens foram-se embora.

- Se pudermos ser úteis em alguma coisa, estamos ao seu dispor.

- Fazemos votos por que tudo corra bem.

- Boa sorte!

Ann interrogou, sem apreensões, o rosto do velho médico:

- Acha que vou ter um aborto?

Antes de responder, o Dr. Matthews apalpou-lhe o abdome com minuciosa atenção, observando as contracções que a faziam tremer.

- Não lhe digo que não seja nada - concluiu ele. - Ninguém poderia pronunciar-se por enquanto. O que vamos fazer é dar-lhe repouso e pô-la em observação.

- Acha que ela fica melhor no hospital? - perguntou Ran.

- Acho - murmurou ela. - Sentir-me-ei mais tranquila.

O Dr. Matthews levantou-se:

- Se quiser, trato eu disso. Vou-lhe mandar vir a ambulância. E torno a ir vê-la à noite.

Eram dez e meia quando chegou ao hospital. Concluído o exame, Ran acompanhou-o até o corredor.

- Não estou a gostar nada da maneira como as coisas se apresentam - confessou Matthews. - Depois do calmante, diminuiu o sofrimento, mas não as contracções nem a hemorragia.

- Acha que mais vale operar já?

Pensativo, o Dr. Matthews coçou o queixo:

- Tenho visto casos mais graves do que este, em que se leva o bebé ao fim.

- É claro que me atormenta a ideia de arriscar de qualquer modo a vida de Ann. Mas não queria de maneira nenhuma influenciar o doutor. E sei que a Ann não podia estar mais bem entregue.

O outro sorriu:

- Obrigado, Warren. Vou-lhe dizer o que havemos de fazer: eu fico lá em baixo a ler alguns jornais. Daqui por uma hora veremos como vão as coisas. Se se vir inquieto até lá, mande-me chamar.

- Que pensa ele? - murmurou Ann, logo que Ran se debruçou sobre ela.

- Vai observar-te durante algum tempo. Esperemos que tudo corra bem.

- Não o deixes tirar-me o meu bebé! - suplicou ela. - Tenho tantos projectos para ele!

Antes de sair do hospital, Ran pediu a um interno que lhe analisasse o sangue. Ann parecia melhorar, mas ele sabia por experiência que nunca era mau prever uma eventual transfusão e queria estar pronto para a manhã seguinte, em caso de necessidade.

Passava muito das nove quando se levantou. Furioso por ter dormido tanto, depois de haver prometido estar ao pé da mulher às oito horas, precipitou-se para o telefone.

Às suas perguntas ansiosas, respondeu a enfermeira que “Mrs. Warren estava muito bem”.

Ann passou cinco dias no hospital. Cinco dias durante os quais a consideraram uma doente modelo, dócil, corajosa e com bom moral. Mas, quando Ran chegava, ela parecia retirar-se para o mais fundo de si mesma, tornar-se apática e triste, perder a vontade de falar, desejar dormir.

A certa altura, Ran surpreendeu-lhe o olhar fixo nele um olhar que não dava nada, um olhar desprendido, fechado, que o gelou. Subitamente angustiado, pensou: “Nunca me perdoará! E se nunca me perdoar?”

Não. Era inconcebível. Não, Ann! Não, após tudo o que haviam sido um para o outro! Era uma reacção nervosa, uma fase da gravidez, uma obsessão que não correspondia a qualquer sentimento verdadeiro.

Na véspera de a rapariga deixar o hospital, à noite, o Dr. Matthews encontrou-se com Ran à cabeceira dela e disse:

- Ainda bem que o encontro, Warren. Gostava de falar com os dois em conjunto.

- Que há? - interrogou Ann. - Portei-me mal? Ou quê?

- Não, de maneira nenhuma. Portou-se muito bem. Mas, esta manhã, mandei um interno fazer-lhe uma análise de sangue: o teor de hemoglobina é muito fraco. Queria saber se você estava em boa condição física quando se deu o desastre.

- Trabalhava demais - volveu Ran. - Metade do dia no consultório e além disso todo o trabalho da casa.

Matthews abanou a cabeça.

- Que diria a senhora a uma ausência de dois meses em repouso total?

- Seria muito agradável - retorquiu Ann, com rapidez tal que Ran sentiu viva dor.

com que facilidade se decidia ela a deixá-lo! Precisava de mostrar boa cara à má sorte:

- A tua tia Gallaudet anda sempre a convidar-te para ires ter com ela à Florida. Eis uma ocasião.

- Era exactamente o que convinha! - disse o Dr. Matthews. - O sol há-de fazê-la arribar de tal modo que o bebé virá um gigante.

Três dias depois, Ran conduzia Ann à estação e metia-a no comboio.

- Espero que te saias bem - declarou ela, beijando-o conscienciosamente no minuto da partida.

- com certeza. Há-de correr tudo bem. Trata-te: é o essencial.

É claro que tudo correria bem. Dois meses sem Ann, todavia, representavam amarga perspectiva.

Não ousara confessar-lhe uma coisa: morrera o cunhado de Mike Towers. Depois de ter vencido o melhor possível a pneumonia, sucumbira a uma crise cardíaca, quando o estado geral parecia normalizado. Não. Não conseguira decidir-se a contá-lo à rapariga. Era uma ironia demasiado negra.

No consultório, foi ocupar o lugar de Ann uma enfermeira feia e pálida, por um ordenado superior às posses de Ran. No dia seguinte à partida de Ann, recebeu a substituta uma chamada telefónica pedindo, da parte de certo senhor Harniss, um encontro (“motivo rigorosamente particular”), depois da hora da consulta. Na clínica geral, não são raros os casos “rigorosamente particulares”. Ran marcou o encontro para as cinco e dez. À hora exacta, apareceu um sujeito baixo, cabelos de prata, voz argentina, tão amável, tão melífluo nos modos, até mesmo tão pio na aparência, que Ran sentiu desvanecerem-se-lhe as suspeitas venéreas que concebera.

Ofereceu-lhe o visitante um charuto de qualidade superior, acendeu-o juntamente com o seu, e expirou para o tecto alguns anéis perfeitos, antes de se recostar no sofá.

- Motivo rigorosamente particular, Dr. Warren.

- Entendido. Diga.

- Julgo ter compreendido que almoçou ontem com o senhor Mclntyre, da firma Forsythe, Mclntyre õ Reed...

Levado pela curiosidade, resistiu Warren ao desejo de perguntar a Harniss que tinha ele com isso, e disse simplesmente:

- Sim...

- Reunião profissional?

- De modo nenhum. Não sou médico do senhor Mclntyre.

- Eu devia ter-me explicado melhor: reunião profissional pelo que diz respeito a ele.

- De modo nenhum. O senhor Mclntyre não é meu advogado.

O visitante fez um trejeito de incredulidade.

- Qual vem a ser a sua ideia, senhor Harniss?

- Sou muito mais velho do que o Dr. Warren. E tenho do mundo e seus costumes muito mais experiência do que o senhor. Permite-me um conselho de amigo?

- Sem dúvida. Diga.

O visitante tirou da algibeira uma carteira, sóbria e rica ao mesmo tempo, de ouro e platina, e, da carteira, um bilhete que estendeu a Ran.

HARNISS & HALE

ADVOGADOS

Berwick-Coates Building, 405-6

- Sim. E então?

- Conhece, creio eu, o senhor Martin Bayner...

- Não. - Atravessou o espírito de Ran uma vaga lembrança. - Ouvi falar nesse nome.

- Então, não ignora que é um homem influente, posso mesmo dizer um homem poderoso, na nossa vida municipal...

- Sei que lhe atribuem úteis relações políticas.

- É um homem que seria inábil, posso mesmo dizer imprudente, alienar.

Ran levantou as pestanas, sem comentários.

- Não sei se me faço compreender... - inquiriu o advogado, após haver esperado por uma resposta.

- Não muito bem. Continue.

- Aceito a sua declaração de que não consultou profissionalmente o senhor Mclntyre?

- No seu lugar, eu não faria nada. Pois, que eu saiba, não declarei nada de semelhante.

Isto, que se destinava a fazer falar Harniss, estimulou-o, realmente:

- Ah! Então sempre o consultou profissionalmente...

Como não era uma pergunta, mas sim uma conclusão, Ran nada respondeu.

- Muito bem. Perfeito. Não preciso então de ir por caminhos travessos, e falo abertamente consigo. Se pretende continuar a exercer a medicina em Farmington, será melhor abandonar o projecto de acção judicial baseado no pequeno desastre que aconteceu a sua esposa.

- É o melhor aviso que o senhor pode dar-me, não é verdade?

- O melhor. Declinamos toda e qualquer responsabilidade, moral ou legal. Não se segue daí que nos recusemos a encarar o pagamento duma indemnização razoável, que cubra as despesas que teve.

- Bem! Isso é muito liberal e generoso da sua parte. - Ran abriu a porta e chamou: - Miss Gerbig!

-- Senhor doutor?

- Chame o senhor Martin Bayner ao telefone, faz favor.

- Sim, senhor doutor.

- É absolutamente inútil - protestou o visitante. - Estou aqui a representar o senhor Martin Bayner e tenho plenos poderes dele.

- Senhor Bayner? Daqui o Dr. Warren.

Respondeu uma voz calma e prudente:

- Sim.

- Está no meu consultório o senhor Harniss.

- De acordo.

- Foi o senhor que o mandou cá.

- Naturalmente. E depois?

- E depois, olhe: da próxima vez que tenha uma proposta duvidosa para me fazer, não mande um dos seus ratos brancos. - Harniss fez uma chiadeira de protesto, que parecia mesmo um grito de rato. - Venha você mesmo.

- Isso é assim? - Agora, era nitidamente truculenta a voz. - Quanto tempo ainda está aí?

- Espero por si.

- Devo adverti-lo - disse Harniss, quando Ran desligou - de que o senhor Bayner é um homem jovem, vigoroso, de humor violento.

- A sério? Então, o melhor que o senhor pode fazer é desaparecer. Pode-se ir embora, Miss Gerbig.

Saíram juntos, ela e ele. Presumiu Ran, contudo, que o advogado ia esperar pelo cliente, para lhe desaconselhar a violência. Pela sua parte, Ran gostaria duma pequena rixa. Já havia muito que se continha.

A nova visita era um homem dos seus trinta e cinco anos, seco, corado, movimentos expeditos, incontestavelmente um atleta que se conservava em boa forma. Não estendeu a mão e sentou-se, mal entrou, sem esperar pelo convite.

- Primeiro os negócios, depois o prazer - disse ele logo.

- Qual a sua proposta?

- Nenhuma.

Bayner reflectiu durante certo tempo.

- Bem; então qual é a sua ideia?

- Tenho de lhe perguntar uma coisa, senhor Bayner: dou-lhe a impressão de ser homem fácil de lograr?

O outro considerou-o atentamente:

- Não parece.

- Então, óptimo. É tudo. Fuja!

com um movimento rápido, Bayner abandonou o sofá. Tinha os punhos cerrados. Mas conteve-se:

- Espere um instante, antes de mais. Que lhe disse Harniss?

- Ameaças. Não gosto de que me ameacem, senhor Bayner. Nem directa nem indirectamente.

- Não posso deixar de lhe dar razão. - Nos olhos hostis acendia-se um olhar de perplexa curiosidade. - Tenho uma vaga ideia de que teria sido melhor vir logo eu.

- É um bocado tarde para pensar nisso, não acha?

- Tratemos em conjunto deste pequeno caso. Que recompensa consideraria justa?

- Nada.

Bayner rebaixou-se:

- Você pode ir ao tribunal, se quiser, mexer lama, desde que isso lhe dê prazer; mas não arranjará nada: tenho alguns bons amigos entre os juizes! Então, vamos, porque é que não diz nada?

- Porque nada há que dizer. Você não compreenderia. Não o mandei cá vir para o pôr a cantar.

- Já tenho cantado muitas vezes. Não pode calcular toda a música que as pessoas propõem a um tipo que tem dinheiro. Ou que se julga ter - rectificou, prontamente.

- Procure meter isto na cabeça, senhor Bayner: se mo oferecesse numa bandeja, eu não queria um centavo de todo o seu dinheiro!

- Não? - interrogou o político. - E porquê?

- Porque o desastre não lhe é imputável. Disse-o muito explicitamente minha mulher. Se tivesse vindo ter comigo como um homem, um verdadeiro homem, em vez de...

- Engana-se! Como está Mrs. Warren?

- Podia ter começado por informar-se disso... - Bayner fez-se da cor do tomate. - Foi descansar.

- É uma mulher que tem coragem, se é que já alguma a teve - declarou o outro, com entusiasmo. - Nunca vi ninguém mais calmo. Diga-me uma coisa: enquanto eu a segurava... pareceu-me... pela maneira como ela se agarrava... Diga... Não está...

- Está.

- Oh! Jesus! - exclamou Bayner, aflito. - Isso faz-me ficar doente! Sem consequências, não?

- Esperemos que não, que tudo há-de correr bem.

- Meu Deus! Eu também espero. Ah! Como eu não ficaria, se... Quer que telefone para saber notícias?

- Pois sim. Mas não fique aflito, aconteça o que acontecer.

- Não. Mas mesmo assim...- Fitou Ran demoradamente, e depois estendeu a mão, que foi apertada. - Adeus. De qualquer maneira, tenho de lho dizer, doutor: se, um dia, tiver qualquer aborrecimento, se se vir em apuros, corra ao telefone mais próximo e chame pelo Martin Bayner. Felicidades, doutor. As minhas lembranças, as minhas melhores lembranças a sua senhora.

Ran ganhara um amigo.

 

                                                                               CONTINUA

 

 

                      

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