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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ENÍGMA DAS CARTAS ANÔNIMAS / Agatha Christie
O ENÍGMA DAS CARTAS ANÔNIMAS / Agatha Christie

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O ENÍGMA DAS CARTAS ANÔNIMAS

 

Quando finalmente me tiraram o gesso, e os médicos me viraram do avesso à vontade, e as enfermeiras me persuadiram a usar os membros com prudência, e eu me senti nauseado por elas falarem comigo praticamente como se fala com um bebê, Marcus Kent disse-me que eu devia ir viver para o campo. Bom ar, uma vida calma, nada para fazer: é o que lhe receito. A sua irmã vai cuidar se si. Coma, durma e tente imitar o mais possível o reino vegetal.

Não lhe perguntei se alguma vez poderia voltar a voar. Há perguntas que não se fazem com medo das respostas. Foi por essa razão que nos últimos cinco meses nunca perguntei se estava condenado a passar toda a minha vida deitado de costas. Temia uma resposta tranqüilizadora e hipócrita da enfermeira-chefe: Ora, ora, que pergunta! Não permitimos que os nossos pacientes falem dessa maneira!.

Por isso, não perguntei - e correu tudo bem. Não ia ser um inválido desamparado. Podia mexer as pernas, firmar-me nelas e finalmente dar alguns passos - e se me sentia um pouco como um bebê aventureiro a aprender a andar, com joelhos vacilantes e solas de algodão em rama nos pés... bem, isso era apenas fraqueza e falta de uso e acabaria por passar.

Marcus Kent, que é um médico muito honesto, respondeu à pergunta que eu não fizera.

- Vai recuperar completamente - disse ele. - Tivemos dúvidas até terça-feira passada, quando o examinamos a última vez, mas agora posso afirmar-lho peremptoriamente. Porém... vai ser um trabalho longo. Um trabalho longo e, se me permite, fastidioso. Quando se trata de curar os nervos e os músculos, o cérebro tem de ajudar o corpo. Qualquer impaciência, qualquer inquietação o fará regredir. E, faça o que fizer, não se obstine em melhorar depressa. Qualquer coisa desse gênero, e dará consigo de novo numa casa de saúde. Tem de levar a vida lenta e brandamente, a marcação do tempo é Legato. Não é só o seu corpo que tem de recuperar; os seus nervos também estão debilitados porque tivemos de o manter sob medicação durante muito tempo.

É por isso que lhe digo: vá para o campo, alugue uma casa, interesse-se pela política e pelos escândalos locais, pelos mexericos da aldeia. Interesse-se indiscreta e apaixonadamente pelos seus vizinhos. Se me permite uma sugestão, vá para uma parte do mundo onde não tenha amigos espalhados pelas imediações.

Acenei que sim com a cabeça. - já tinha pensado nisso - disse eu.

Não me ocorria nada mais insuportável do que membros do nosso próprio grupo a aparecerem inesperadamente, cheios de comiseração e de problemas particulares.

“Jerry, estás com ótimo aspecto... não está? Absolutamente. Querido, tenho de te contar... Que achas que o Buster fez agora?”

Não, isso não era para mim. Os cães é que sabem. Arrastam-se para um canto sossegado para lamberem as feridas e só voltam ajuntar-se ao mundo quando estão recuperados.

E foi assim que a Joanna e eu, ao ordenarmos ao acaso os elogios acalorados dos agentes imobiliários a propriedades espalhadas pelas Ilhas Britânicas, escolhemos Little Furze, em Lymstock, como uma das possíveis a ser vista, principalmente porque nunca tínhamos estado em Lymstock e não conhecíamos ninguém nessa zona.

E quando a Joanna viu Little Furze decidiu logo que era exatamente aquela a casa que queríamos. Ficava a oitocentos metros dos limites de Lymstock na estrada que levava às charnecas. Era uma casa branca, baixa e simples, com uma varanda vitoriana inclinada, pintada de verde desbotado. Tinha uma vista agradável sobre uma encosta de terra coberta de urze, com a ponta da torre da igreja de Lymstock em baixo, à esquerda.

Pertencera a uma família de senhoras solteiras, as Misses Barton, das quais só restava uma, a mais nova, Miss Emily.

Miss Emily Barton era uma velhinha encantadora que se assemelhava incrivelmente à casa. Numa voz afável e apologética explicou à Joanna que nunca tinha alugado a casa antes, na verdade, nunca pensara em tal coisa, “mas está a ver, minha querida, atualmente, as coisas são diferentes - os impostos, claro, e depois os meus valores de bolsa, que sempre imaginei tão seguros, e de fato, foi o gerente do banco em pessoa que recomendou alguns, parece que hoje em dia não rendem absolutamente nada... estrangeiros, claro! E isso torna tudo muito difícil. Uma pessoa não gosta (tenho a certeza de que me compreende, minha querida, e que não vai ofender-se, parece tão amável) da idéia de alugar a casa própria a desconhecidos... mas tenho de fazer alguma coisa e, na verdade, agora que a vi vou ficar bastante satisfeita por pensar em si aqui... sabe, a casa precisa de juventude. E confesso que até me arrepiei, com a idéia de ter aqui homens!”.

Neste ponto, a Joanna teve de lhe dar a notícia da minha existência. Miss Emily recuperou bem do choque.

- Oh, meu Deus! Sim, estou a ver. Que pena! Um acidente de aviação? São tão corajosos estes jovens! Por outro lado, o seu irmão vai estar praticamente inválido...

A idéia pareceu acalmar a amável senhora. Presumivelmente, eu não iria entregar-me às grosseiras atividades masculinas que Emily Barton temia. Perguntou timidamente se eu fumava. salientou.

- Como uma chaminé - disse a Joanna. - Mas eu também fumo.

- Claro, claro. Que estupidez a minha! Sabe, receio não ter avançado com os tempos. As minhas irmãs eram todas mais velhas do que eu, e a minha querida mãe viveu até aos noventa e sete anos - imagine! - e era muito exigente. Sim, sim, hoje em dia, toda a gente fuma. 0 único problema é que não há cinzeiros na casa.

A Joanna disse-lhe que traríamos muitos cinzeiros, e acrescentou com um sorriso: - Prometo-lhe que não vamos pousar pontas de cigarro em cima dos seus lindos móveis. Nada me irrita mais do que ver as pessoas a fazerem isso.

Assim, ficou resolvido que alugaríamos Little Furze por um período de seis meses, com uma opção de mais três, e Emily Barton explicou à Joanna que ela própria ficaria muito confortável, porque ia para aposentos mantidos por uma velha criada de sala, “a minha fiel Florence, que se casara depois de estar quinze anos conosco. Uma rapariga muito simpática, e o marido está no ramo da construção civil. Têm uma boa casa na High Street e dois belos quartos no andar de cima, onde ficarei muito confortável, e a Florence está muito satisfeita por me ir ter lá”.

Por conseguinte, tudo parecia muito satisfatório, o contrato foi assinado e, na altura devida, a Joanna e eu chegamos e instalamo-nos, e como a Partridge, a criada de Miss Emily Barton, concordara em ficar, fomos muito bem tratados com a ajuda de uma rapariga que vinha todas as manhãs e que parecia ser meio pateta, mas amável.

A Partridge, uma mulher de meia-idade, magra e austera, cozinhava admiravelmente, e embora discordasse de jantares tardios (Miss Barton costumava comer apenas um ovo cozido ao jantar), adaptou-se aos nossos hábitos e chegou mesmo ao ponto de admitir que bem via que eu precisava de retemperar as forças.

Quando já estávamos instalados em Little Furze havia uma semana, Miss Emily Barton apareceu e deixou o seu cartão-de-visita. 0 seu exemplo foi seguido por Mrs. Symmington, a mulher do advogado, Miss Griffith, a irmã do médico, Mrs. Dane Calthrop, a mulher do vigário, e Mr. Pye, de Pryor's End.

A Joanna ficou muito impressionada.

- Não sabia - disse ela numa voz horrorizada - que as pessoas faziam mesmo visitas... com cartões.

- Isso, minha menina, é porque não sabes nada sobre o campo – disse eu.

- Que disparate! Passei montes de fins-de-semana com pessoas.

- Isso não é de forma nenhuma a mesma coisa - disse eu.

Sou cinco anos mais velho do que a Joanna. Lembro-me da casa branca, grande e em mau estado, que tínhamos quando eu era miúdo, com os campos que se estendiam até ao rio. Lembro-me de rastejar debaixo das redes de framboeseiras sem ser visto pelo jardineiro, e do cheiro do pó branco no pátio dos estábulos, e de um gato cor-de-laranja a atravessá-lo, e do ruído de cascos de cavalos aos coices nos estábulos.

Mas quando eu tinha sete anos e a Joanna dois, fomos viver para Londres com uma tia, e depois disso as nossas férias de Natal e de Páscoa eram passadas lá, com pantomimas e teatros e cinemas e excursões aos Kensington Gardens com barcos e, mais tarde, a rinques de patinagem. Em Agosto levavam-nos para um hotel, algures no litoral.

Ao refletir sobre isto, e com um sentimento de pesar ao tomar consciência do inválido egoísta e egocêntrico em que me transformara, disse pensativamente à Joanna:

- Receio que isto vá ser bastante desagradável para ti. Vais sentir tanto a falta de tudo!

Porque a Joanna é muito bonita, e muito alegre, e gosta de dançar, e de cocktails, e de aventuras amorosas, e de correr de um lado para o outro em carros de grande potência.

A Joanna riu-se e disse que não se importava nada.

- Na realidade, estou contente por me afastar de tudo. Estava farta daquela gente toda, e embora não estejas solidário comigo, fiquei muito magoada por causa do Paul. Vou levar muito tempo para me recompor.

Quanto a isso, eu tinha as minhas dúvidas. Os casos amorosos da Joanna desenrolam-se sempre da mesma forma. Apaixona-se loucamente por um jovem completamente mole, que é um gênio incompreendido. Escuta atentamente as suas queixas intermináveis e trabalha a bom trabalhar para conseguir que ele seja reconhecido. Depois, quando ele é ingrato, fica profundamente magoada e diz que tem o coração despedaçado... até aparecer o jovem melancólico seguinte, o que em geral acontece cerca de três semanas depois!

Por isso não levei muito a sério o coração partido da Joanna. Mas via que, para a minha atraente irmã, viver no campo era como um novo jogo.

- Em todo o caso - disse ela -, estou bem, não estou?

Estudei criticamente a minha irmã e não pude concordar. A Joanna estava vestida (por Mirotin) para le Sport. Isto é, vestia uma saia colante, de xadrez extravagante e disparatado. E na parte de cima trazia uma ridícula e pequena camisola de manga curta com um efeito tirolês. Tinha meias de seda muito fina e uns sapatos irrepreensíveis, novinhos em folha.

- Não - disse eu -, estás toda mal. Devias estar com uma velha saia de tweed, de preferência em verde insípido ou castanho desbotado. Devias usar uma bonita camisola de caxemira a condizer e talvez um casaco de malha, e devias pôr um chapéu de feltro, meias grossas e sapatos velhos. Nessa altura, e só nessa altura, passarias despercebida na High Street de Lymstock e não sobressairias como acontece presentemente. A tua cara também está mal - acrescentei.

 - Que mal tem? Pus a minha maquiagem Bronzeado Campestre.

- Exatamente - disse eu. - Se vivesses em Lymstock, só terias posto um pouco de pó-de-arroz para tirar o brilho do nariz e talvez um pouco de batom, não muito bem aplicado, e quase de certeza que terias as sobrancelhas inteiras, em vez de apenas um quarto.

A Joanna deu um gritinho gutural e pareceu muito divertida.

- Achas que vão pensar que eu sou horrível? - disse ela.

- Não - disse eu. - Só excêntrica.

A Joanna tinha recomeçado a estudar os cartões deixados pelas visitas. Só a mulher do vigário tinha tido a sorte, ou talvez a pouca sorte, de apanhar a Joanna em casa.

A Joanna murmurou:

- É um tanto como o jogo das Famílias Felizes, não é? Mrs. Legal, a mulher do advogado, Miss Dose, a filha do médico, etc. - Acrescentou com entusiasmo: - Acho que esta é realmente uma terra agradável, Jerry. Tão amável, e cômica, e à moda antiga. Não conseguimos pensar em nada de desagradável a acontecer aqui, pois não?

E apesar de saber que o que ela estava a dizer era um disparate, concordei com ela. Num lugar como Lymstock, não podia acontecer nada de desagradável. É estranho pensar que recebemos a primeira carta apenas uma semana depois.

 

Estou a ver que comecei mal. Não fiz qualquer descrição de Lymstock e sem se perceber como é Lymstock é impossível compreender a minha história.

Para começar, Lymstock tem as suas raízes no passado. Por altura da Conquista Normanda era um lugar de importância. Uma importância principalmente eclesiástica. Lymstock tinha um priorado e teve uma longa sucessão de ambiciosos e poderosos priores. Os lordes e os barões da região rural circundante punham-se a bem com o Céu, deixando algumas das suas terras ao priorado. 0 Priorado de Lymstock tornou-se rico e influente e, durante muitos séculos, foi um poder na região. Contudo, na devida altura, Henrique VIII obrigou-o a partilhar do destino dos seus contemporâneos. A partir daí, um castelo dominava o burgo. Ainda era importante. Tinha direitos, privilégios e riqueza.

E depois, algures em mil setecentos e qualquer coisa, a maré de progresso arrastou Lymstock para o remanso. 0 castelo desmoronou-se. Nem o caminho-de-ferro, nem as estradas principais chegaram perto de Lymstock. Transformou-se numa pequena cidade mercantil provinciana, insignificante e esquecida, com uma extensão de charneca elevando-se por trás dela, e quintas e campos plácidos a rodeá-la.

Uma vez por semana realizava-se lá uma feira e, nesse dia, podia encontrar-se gado nas veredas e nas estradas. Duas vezes por ano havia uma pequena corrida, onde só se apresentavam os cavalos menos conhecidos. Tinha uma High Street encantadora, com casas nobres recuadas, que pareciam ligeiramente incongruentes com as janelas do rés-do-chão a exibirem pãezinhos de leite, legumes ou fruta. Tinha uma grande loja de fazendas e miudezas isolada, uma pomposa loja de ferragens, uma estação dos correios pretensiosa, e uma fila de lojas indeterminadas dispersas, dois talhos rivais e uma sucursal da International Stores. Tinha um médico, uma firma de solicitadores, Messrs. Galbraitk Galbraith & Symmington, uma igreja datada de 1420, bonita e inesperadamente grande, com algumas ruínas saxônicas incorporadas, uma medonha escola moderna e dois bares.

Era assim Lymstock, instadas por Emily Barton, todas as pessoas importantes vieram visitar-nos e, na devida altura, depois de ter comprado um par de luvas e de ter posto uma boina de veludo bastante gasta pelo uso, a Joanna saiu para retribuir as visitas.

Para nós, era tudo novidade e diversão. Não estávamos ali para toda a vida. Para nós, era um interlúdio. Preparei-me para seguir as instruções do meu medico e interessar-me pelos meus vizinhos.

Eu e a Joanna achávamos tudo muito divertido.

Lembrava-me, suponho, das instruções de Marcus Kent para me deleitar com os escândalos locais. Claro que eu não suspeitava da forma como iria tomar conhecimento desses escândalos.

0 mais estranho foi que a carta, quando chegou, nos divertiu mais do que qualquer outra coisa.

Lembro-me de que chegou ao pequeno-almoço. Virei-a ociosamente, como se faz quando o tempo passa lentamente e cada acontecimento tem de ser prolongado ao máximo. Vi que era uma carta local com a morada datilografada.

Abri-a antes das outras duas com carimbos de Londres, já que uma delas era uma conta, e a outra de um primo muito maçador.

Lá dentro, palavras e letras recortadas e coladas numa folha de papel. Durante um minuto ou dois olhei para as palavras sem as perceber. Depois respirei com dificuldade.

A Joanna, que franzia o sobrolho enquanto via umas contas, ergueu o olhar.

- Olá - disse ela -, que foi? Pareces espantado.

Usando termos dos mais grosseiros, a carta exprimia a opinião do autor de que eu e a Joanna não éramos irmãos.

- É uma carta anônima particularmente obscena - disse eu. Ainda estava em estado de choque. Por qualquer razão, uma pessoa não esperava esse tipo de coisa no plácido remanso de Lymstock A Joanna mostrou logo um vivo interesse.

- Não! O que diz?

Reparei que, nos romances, as cartas anônimas de tipo infame e repugnante nunca são mostradas, se possível, às mulheres. Dá-se a entender que as mulheres devem ser protegidas a todo o custo do choque que elas produziriam nos seus delicados sistemas nervosos.

Lamento dizer que nunca me ocorreu não mostrar a carta à Joanna. Entreguei-lha imediatamente. Ela justificou a minha crença na sua firmeza de espírito, não traindo qualquer outra emoção além de divertimento.

- Que coisa nojenta! Sempre ouvi falar de cartas anônimas, mas nunca tinha visto nenhuma. São sempre assim?

- Não sei dizer-te - disse eu. - Também é a minha primeira experiência. A Joanna começou a dar risadinhas.

- Devias ter razão quanto à minha maquiagem, Jerry. Acho que pensam que eu não devo passar de uma mulher devassa.

- Isso - disse eu - aliado ao fato de o nosso pai ser um homem alto, moreno, de rosto chupado, e a nossa mãe uma criaturinha de cabelo claro e olhos azuis, e de eu me parecer com ele e tu com ela.

A Joanna anuiu pensativamente.

- Sim, não somos nada parecidos. Ninguém nos tomaria por irmão e irmã.

- Há alguém que não toma - disse eu com emoção.

A Joanna disse que achava tudo horrivelmente cômico. Balouçou a carta pensativamente por uma ponta e perguntou o que íamos fazer com ela.

- Creio que o procedimento correto - disse eu - é deitá-la à lareira com uma viva exclamação de nojo. Pus em prática o que disse, e a Joanna aplaudiu.

- Fizeste isso lindamente - acrescentou ela. - Devias ter sido ator uma sorte ainda haver lareiras, não é?

- O cesto dos papéis seria muito menos dramático - concordei. Claro que eu podia ter-lhe pegado fogo com um fósforo e ter ficado vagarosamente a vê-Ia arder... ou a vê-Ia arder vagarosamente.

- As coisas nunca ardem quando nós queremos - disse a Joanna. Apagam-se. Provavelmente ias ter de acender fósforo atrás de fósforo.

Levantou-se e foi até à janela. Depois virou a cabeça bruscamente.

- Gostava de saber quem a escreveu - disse ela.

- Provavelmente nunca saberemos - disse eu.

- Não, suponho que não. - Ficou calada um momento e depois disse: - Pensando bem, não tem graça nenhuma. Sabes, eu achava que eles... que eles gostavam de nós.

- E gostam - disse eu. - Isto é só um cérebro tresloucado no limite da sanidade.

- Suponho que sim. Ui! Que desagradável!

Quando ela saiu para a luz do sol, e enquanto fumava o meu cigarro pós pequeno-almoço, pensei para comigo que ela tinha razão. Era bastante desagradável Alguém estava ressentido com a nossa vinda para cá, alguém se ressentia da beleza viva, jovem e sofisticada da Joanna... alguém queria magoar. Reagir a isto com uma gargalhada talvez fosse a melhor maneira, mas lá no fundo não tinha graça nenhuma...

O Dr. Griffith veio naquela manhã. Tínhamos combinado ele examinar-me todas as semanas. Gostava de Owen Griffith. Era moreno, desajeitado, com uma estranha forma de se mexer e umas mãos hábeis muito leves. Tinha uma maneira sacudida de falar e era muito tímido.

Anunciou-me que os progressos eram encorajadores. Depois, acrescentou:

- Sente-se bem, não sente? É imaginação minha, ou está um pouco abatido esta manhã?

- Não exatamente - disse eu. - Chegou uma carta anônima particularmente grosseira com o café da manhã, e fiquei com um travo desagradável na boca. Ele deixou cair a maleta ao chão. O seu rosto magro e moreno estava excitado.

- Quer dizer que também recebeu uma?

 Fiquei interessado.

- Nesse caso, andam a circular por aí?

- Sim. já há algum tempo.

- Oh! - disse eu - estou a ver Estava com a impressão de que se ressentiam da nossa presença aqui como forasteiros.

- Não, não tem nada a ver com isso. É só... - Fez uma pausa e depois perguntou:

- Que dizia? Pelo menos... - corou, subitamente embaraçado - talvez não devesse perguntar.

- Conto-lhe com prazer - disse eu. - Só dizia que a pega de luxo que eu trouxe para cá comigo não é minha irmã, longe disso! E esta, digamos, é uma versão censurada.

O seu rosto moreno corou colericamente.

- Que abominável! A sua irmã não... não está transtornada, espero?

- A Joanna - disse eu - parece-se um pouco com o anjo no topo da árvore de Natal, mas é eminentemente moderna e muito forte. Achou o caso muito divertido. Nunca lhe tinha acontecido uma coisa destas.

- Espero que não - disse Griffith vivamente.

- E seja como for - disse eu com firmeza -, é a melhor maneira de levar isto, penso eu. Como uma coisa absolutamente ridícula.

- Sim - disse Owen Griffith. - Simplesmente...

- De acordo - disse eu. - Simplesmente é a palavra!

- O problema - disse ele - é que este gênero de coisa quando começa, aumenta.

- Imagino que sim.

- É patológico, evidentemente.

Acenei que sim com a cabeça. - Tem alguma idéia de quem está por trás disto? - perguntei.

- Não, quem me dera ter. Bem vê, a praga das cartas anônimas tem origem numa de duas causas. Ou é particular, dirigida a uma pessoa ou grupo de pessoas em especial, quer dizer, motivada, é alguém que tem um ressentimento específico (ou pensa que tem) e que escolhe um modo particularmente desagradável e dissimulado para descarregar. E uma coisa mesquinha e repugnante, mas não necessariamente louca e, em geral, é bastante fácil seguir a pista do autor: uma criada despedida, uma mulher ciumenta, etc. Mas se é geral, e não particular, então o caso é mais grave. As cartas são enviadas indiscriminadamente e servem para o autor se livrar de alguma frustração. Como digo, é nitidamente patológica. E a mania aumenta. No fim, claro, apanhamos a pessoa em questão: é muitas vezes alguém extremamente improvável, e pronto. Houve um surto do gênero no outro lado do condado no ano passado; descobriu-se que fora a chefe da secção de chapéus de senhora de um grande armazém. Uma mulher calma e distinta... estava lá há anos. Lembro-me de uma coisa semelhante quando exerci clínica no norte, antes de vir para cá... mas acabou por ser despeito puramente pessoal. Como digo, já assisti a qualquer coisa deste gênero, e, com toda a franqueza, isto assusta-me!

- Já dura há muito tempo? - perguntei.

- Não me parece. É difícil dizer, claro, porque as pessoas que recebem estas cartas não andam por aí a anunciar o fato. Deitam-nas à lareira.

Fez uma pausa.

Eu próprio recebi uma. O Symmington, o solicitador, recebeu uma. E um ou dois dos meus doentes mais pobres falaram-me delas.

- Todas mais ou menos do mesmo gênero?

- Sim. Uma insistência maçadora no tema do sexo. É sempre uma característica importante. - Sorriu ironicamente. - O Symmington foi acusado de relações ilícitas com a amanuense, a pobre Miss Ginch, que tem pelo menos quarenta anos, lunetas e dentes de coelho. O Symmington levou logo a dele à Polícia. As minhas cartas acusavam-me de violar o decoro profissional com as minhas doentes, salientando os pormenores. São todas muito infantis e absurdas, mas terrivelmente venenosas. - O seu rosto alterou-se, tornou-se sério. - Mas apesar disso, tenho medo. Estas coisas podem ser perigosas, sabe?

 - Suponho que sim.

- Veja bem - disse ele -, embora se trate de um rancor imaturo e infantil, mais cedo ou mais tarde uma destas cartas vai acertar no alvo. E nessa altura, sabe Deus o que pode acontecer! Também tenho medo do efeito delas nas mentes estúpidas, desconfiadas e ignorantes. Ao verem uma coisa escrita, acreditam que é verdade. Podem surgir todo o tipo de complicações.

- Era um tipo de carta iletrada - disse eu pensativamente -, diria que foi escrita por uma pessoa quase analfabeta.

- Era? - disse o Owen, e foi-se embora.

Ao refletir nisso depois, achei aquele “Era?” muito perturbador

Não vou fingir que a chegada da nossa carta anônima não deixou um travo desagradável na boca. Deixou. Ao mesmo tempo, depressa me esqueci dela. Naquela altura não a levei a sério, percebem? Acho que me lembro de dizer para comigo que, provavelmente, estas coisas acontecem com bastante freqüência em aldeias remotas. Por trás disso, devia estar uma mulher histérica com propensão para dramatizar. Seja como for, se as cartas eram todas tão infantis e tolas como a que nós recebêramos, não podiam fazer muito mal.

O incidente seguinte, se assim lhe posso chamar, ocorreu cerca de uma semana mais tarde, quando a Partridge, de lábios bem cerrados, me informou que a Beatrice, a mulher a dias, não viria nesse dia.

- Parece-me, sir - disse a Partridge -, que a rapariga está Indisposta.

Eu não tinha bem a certeza do que é que a Partridge estava a insinuar, mas diagnostiquei (erradamente) uma indisposição de estômago demasiado embaraçosa para a Partridge aludir a ela mais diretamente. Disse que lamentava e que esperava que ela melhorasse depressa.

- A rapariga está de perfeita saúde, sir - disse a Partridge. - Está Indisposta nos Sentimentos.

- Ah! - disse eu ambiguamente.

- Por causa de uma carta que recebeu - continuou a Partridge. - Pelo que percebi, a fazer Insinuações.

A severidade do olhar da Partridge, aliado ao óbvio ”I” maiúsculo das “Insinuações”, fez-me recear que as ditas estivessem relacionadas comigo. Uma vez que mal reconheceria a Beatrice se a encontrasse na povoação, tão alheio estava à sua pessoa, senti uma contrariedade perfeitamente natural. Um inválido a manquejar por aí, apoiado em duas bengalas, dificilmente pode desempenhar o papel de sedutor de raparigas de aldeia. Disse com irritação:

- Que disparate!

- Foi o que eu disse à mãe da rapariga, sir - disse a Partridge. – “Leviandades nesta casa”, disse-lhe eu, nunca houve nem nunca haverá, enquanto for eu a mandar. Quanto à Beatrice, disse eu, “hoje em dia, as raparigas são diferentes, e não posso dizer nada quanto a Leviandades noutros sítios”. Mas a verdade, sir, é que o amigo da garagem, com quem a Beatrice sai, também recebeu uma dessas cartas desagradáveis e não está a agir de forma nada razoável.

- Nunca na vida ouvi nada tão disparatado - disse eu iradamente.

- Em minha opinião, sir - disse a Partridge -, devíamos ver-nos livres da rapariga. O que eu digo é que ela não reagia assim se não houvesse alguma coisa que não quer que se descubra. Não há fumo sem fogo, é o que eu digo.

Eu não fazia a menor idéia de como me iria fartar daquela expressão particular.

 

Naquela manhã, à laia de aventura, ia descer a pé até à aldeia. (Eu e a Joanna chamávamos-lhe sempre aldeia, embora tecnicamente fosse incorreto, e se Lymstock nos ouvisse ficaria aborrecida.)

O sol brilhava, o ar estava fresco e tonificante e tinha a suavidade da Primavera. Peguei nas minhas bengalas e parti, negando-me com firmeza a deixar que a Joanna me acompanhasse.

- Não - disse eu -, não quero um anjo-da-guarda a coxear comigo e a dar estalinhos encorajadores com a língua. Um homem desloca-se mais depressa se se deslocar sozinho, lembra-te disso. Tenho muitos assuntos para tratar. Vou à Galbraith Galbraith & Symmington assinar a transferência de ações, tenho de passar pela padaria para me queixar do pão de passas, e vou devolver o livro que pedimos emprestado. Também tenho de ir ao banco. Deixa-me ir, mulher, que a manhã passa depressa.

Ficou combinado que a Joanna iria buscar-me, para me trazer de carro pela colina acima a tempo para o almoço.

- Deve dar-te tempo para cumprimentares toda a gente em Lymstock - Tenho a certeza - disse eu - de que a essa hora já terei visto todas as pessoas importantes. Porque a manhã na High Street era uma espécie de ponto de encontro dos compradores, onde se trocavam as novidades.

 

Afinal, não fui sozinho até à povoação. Tinha andado uns duzentos metros quando ouvi atrás de mim a campainha de uma bicicleta, seguida de um ranger de travões, e depois Megan Hunter caiu da máquina mais ou menos aos meus pés.

- Olá! - disse ela ofegante, enquanto se levantava e sacudia o pó. Eu gostava muito da Megan e sempre senti, estranhamente, pena dela. Era a enteada do Symmington, o advogado, filha de um primeiro casamento de Mrs. Symmington. Ninguém falava muito de ME (ou capitão) Hunter, e eu deduzi que achavam que ele estava melhor esquecido. Constava que tratara Mrs. Symmington muito mal. Ela divorciara-se dele um ano ou dois depois do casamento. Era uma mulher com fortuna própria e, “para esquecer”, fixara residência em Lymstock com a filhinha e acabara por casar com o único celibatário aceitável da localidade, Richard Symmington. Havia dois rapazes do segundo casamento a quem os pais eram dedicados, -e eu imaginava que, às vezes, a Megan se sentia a mais naquela casa. Não se parecia nada com a mãe, que era uma mulher pequena e anêmica de uma beleza emurchecida e que falava, numa voz fina e melancólica, de dificuldades com as criadas e da sua saúde.

A Megan era uma rapariga alta e desajeitada, e embora na realidade tivesse vinte anos, parecia mais uma estudante de dezesseis. Tinha um emaranhado de cabelo castanho desalinhado, olhos castanhos-esverdeados, um rosto ossudo e delicado e um sorriso enviesado, inesperadamente encantador. As roupas eram insípidas e pouco atraentes, e usava geralmente meias de fio da Escócia esburacadas.

Parecia, decidi nessa manhã, muito mais um cavalo do que um ser humano. De fato, com alguns cuidados seria um cavalo muito bonito. Falou, como de costume, com uma espécie de precipitação ofegante.

- Estive na quinta (sabe, a do Lasher) para ver se tinham ovos de pato. Têm uma quantidade de porquinhos lindos. Tão amorosos! Gosta de porcos? Eu até do cheiro gosto.

- Porcos bem tratados não deviam ter cheiro - disse eu.

- Não? Todos têm cheiro aqui nas redondezas. Vai a pé até à povoação? Vi que estava sozinho, por isso pensei parar e caminhar consigo, só que estaquei muito bruscamente.

- Rasgaste a meia - disse eu.

A Megan olhou pesarosamente para a perna direita.

- Pois foi. Mas já tinha dois buracos, por isso não tem muita importância, pois não?

- Nunca remendas as tuas meias, Megan?

- Certamente. Quando a mamã me apanha. Mas ela não presta muita atenção àquilo que eu faço... o que de certa forma é uma sorte, não é?

- Parece que ainda não tomaste consciência de que já és adulta - disse

- Quer dizer que eu devia ser mais como a sua irmã? Toda aperaltada? Fiquei melindrado com esta descrição da Joanna.

- Ela tem uma aparência limpa, e cuidada, e agradável à.vista - disse eu.

- É muito bonita - disse a Megan. - Não se parece nada consigo, pois não? Por quê?

- Os irmãos e as irmãs nem sempre são parecidos.

- Não. Claro que não. Não me pareço muito com o Brian ou com o Colin. E o Brian e o Colin não se parecem um com o outro. - Fez uma pausa e disse: - É muito estranho, não é?

- O quê? A Megan respondeu sumariamente: - As famílias.

- Acho que sim - respondi pensativamente.

Gostava de saber o que estava a passar pela cabeça dela. Caminhamos em silêncio por um minuto ou dois, depois a Megan disse numa voz muito tímida:

- É aviador, não é?

- Sou.

- Foi assim que se feriu?

- Foi, despenhei-me.

- Aqui ninguém sabe pilotar.

- Não - disse eu. - Suponho que não. Gostavas de andar de avião, Megan?

- Eu? - A Megan pareceu surpreendida. - Santo Deus, não! Enjoava. Até num comboio enjôo. Fez uma pausa, e depois perguntou com a franqueza característica das crianças:

- Vai ficar bom e vai poder voar outra vez, ou vai ficar um cangalho para sempre?

- O meu médico diz que eu vou ficar bem.

- Sim, mas ele é do gênero de homem que mente?

- Acho que não - respondi. - Na verdade, tenho a certeza de que não. Confio nele.

- Então está bem. Mas há muita gente que diz mentiras.

Aceitei esta inegável declaração de fato em silêncio.

A Megan disse de forma desprendida e judiciosa:

- Ainda bem. Receava que parecesse mal-humorado por estar incapaz para o resto da vida... mas se é assim naturalmente, é tudo diferente.

- Eu não sou mal-humorado - disse eu friamente.

- Bem, então irritadiço.

- Ando irritadiço porque estou impaciente por ficar bom outra vez... e estas coisas não podem ser apressadas.

- Então, porque se enerva?

Comecei a rir.

- Minha querida, nunca ficas impaciente por que certas coisas aconteçam? A Megan pensou na pergunta. Disse:

- Não. Por que havia de ficar? Não há nada para me fazer ficar impaciente. Nunca acontece nada.

Fiquei impressionado com o laivo de desespero nas suas palavras e disse meigamente: - Em que te ocupas aqui? Ela encolheu os ombros. - Que há para fazer? - Não tens passatempos? Praticas desportos? Tens amigos nas vizinhanças?

- Sou uma desajeitada em desportos. E não gosto muito. Não há muitas raparigas por aqui, e não gosto das que há. Elas acham-me horrível.

- Que disparate! Por que haviam de achar isso?

A Megan abanou a cabeça.

- Não freqüentaste nenhuma escola?

- Sim. Voltei há um ano.

- Gostaste da escola?

- Não foi mau. Mas ensinavam as coisas de uma maneira absolutamente disparatada.

- Que queres dizer com isso?

- Bem... eram só ninharias. Sempre a mudarem de uma coisa para a outra. Era uma escola barata, sabe, e as professoras não eram muito boas. Nunca sabiam responder adequadamente às perguntas.

- Poucos professores sabem - disse eu.

- Por quê? Têm obrigação de saber.

Concordei.

- É claro que sou bastante estúpida - disse a Megan. - E há muitas coisas que me parecem uma parvoíce. História, por exemplo. Varia de livro para livro!

- É aí que está o seu verdadeiro interesse - disse eu.

- E a gramática - continuou a Megan. - E aquelas composições idiotas. E todas aquelas futilidades que o Shelley escreveu, aquela algaraviada toda sobre rouxinóis, e o Wordsworth apaixonado por uns narcisos patetas. E o Shakespeare...

- Que é que o Shakespeare tem de errado? - perguntei com interesse. - A retorcer-se todo para dizer coisas de uma maneira tão difícil que não se consegue perceber o que ele quer dizer. Contudo, gosto de um Shakespeare.

- Ele ia ficar muito contente por o saber, tenho a certeza - disse eu. A Megan não se apercebeu do sarcasmo. Disse, com o rosto animado:

- Gosto da Gonerfl e da Regan, por exemplo.

- Por que dessas duas?

- Oh! não sei. De certa forma, são satisfatórias. Por que acha que elas eram assim?

- Assim como?

- Como eram. Quero dizer, alguma coisa as deve ter tornado  assim.

Pus-me a pensar nisso pela primeira vez. Sempre aceitara as filhas mais velhas do rei Lear como duas mulheres maldosas e tinha ficado por aí. Mas o fato de a Megan procurar uma causa primeira interessou-me.

- Vou pensar nisso - disse eu.

- Oh! na verdade, não importa. Só gostava de saber. Seja como for, é só Literatura Inglesa, não é?

- Claro, claro! Não gostaste de nenhuma matéria?

- Só de Matemática.

- Matemática? - perguntei muito surpreendido.

O rosto da Megan tinha-se animado.

- Adorei Matemática. Mas não era muito bem ensinada. Gostava que me tivessem ensinado Matemática muito bem. É divinal. Em todo o caso, acho que há qualquer coisa de divino nos números, não acha?

- Nunca senti isso - disse eu com honestidade.

Estávamos a entrar na High Street. A Megan disse bruscamente:

- Vem ali Miss Griffith. Mulher odiosa.

- Não gostas dela?

- Odeio-a. Está sempre a apoquentar-me para eu entrar para as suas detestáveis Guias. Detesto as Guias. Para quê andarmos fantasiadas, e em bando, e pormos distintivos em nos próprias por uma coisa que na verdade não aprendemos a fazer convenientemente? Acho tudo isso uma parvoíce.

De um modo geral, eu concordava com a Megan. Mas Miss Griffith caiu sobre nós, antes de eu poder dizer que concordava.

A irmã do médico, que respondia pelo nome particularmente inadequado de Aimée, tinha toda a segurança que faltava ao irmão. Era uma mulher atraente, de um modo masculino e curtido pelo vento e pelo sol, de voz grave e cordial.

- Olá aos dois - berrou-nos ela. - Está uma manhã esplêndida, não está? Megan, era mesmo contigo que eu queria falar. Quero que me ajudes a endereçar envelopes para a Associação Conservadora.

A Megan murmurou uma evasiva qualquer, apoiou a bicicleta contra a berma e mergulhou na International Stores cheia de determinação.

- Que criança extraordinária! - disse Miss Griffith, seguindo-a com o olhar - Preguiçosa até à medula dos ossos. Passa o tempo a devanear. Deve ser uma grande provação para a pobre Mrs. Symmington. Sei que a mãe tentou, mais do que uma vez, convencê-la a dedicar-se a qualquer coisa: estenodatilografia, sabe, ou culinária ou criação de coelhos angorá. Ela precisa de um interesse na vida.

Pensei que isso era provavelmente verdade, mas senti que, no lugar da Megan, também eu resistiria firmemente a qualquer das sugestões de Aimée Griffith, pela simples razão de que a sua personalidade agressiva me irritava.

- Não acredito na ociosidade - continuou Miss Griffith. - E decididamente não para os jovens. Ainda se a Megan fosse bonita ou atraente ou qualquer coisa do gênero.Às vezes penso que a rapariga é louca. Uma grande desilusão para a mãe. Como sabe, o pai - baixou a voz ligeiramente - era decididamente má rês. Receio que a filha saia a ele. É penoso para a mãe. Oh! bem, é preciso de tudo para fazer um mundo, é o que eu digo.

- Felizmente - respondi eu.

Aimée Griffith deu uma gargalhada “bem-disposta”.

- Sim, se fôssemos todos feitos com o mesmo molde não resultava. Mas desagrada-me ver uma pessoa a desaproveitar a vida. Gosto muito da vida e quero que toda a gente goste. As pessoas dizem-me:”Deves aborrecer-te de morte por viver no campo o ano todo.” “Nem um pouco”, digo eu. Estou sempre ocupada, sempre feliz! Está sempre a acontecer qualquer coisa no campo. Ocupo o meu tempo com as minhas Guias, e com o Instituto, e com várias comissões... para não falar de que tenho de tratar do Owen.

Neste momento Miss Griffith viu uma pessoa conhecida no outro passeio e, soltando um grito de reconhecimento, saltou para o outro lado da rua, deixando-me livre para continuar o meu caminho até ao banco.

Sempre achei Miss Griffith muito opressiva, embora admirasse a sua energia e vitalidade, e me agradasse ver que ela ostentava sempre uma satisfação radiante com a sua sorte na vida, o que contrastava agradavelmente com as lamúrias reprimidas de tantas mulheres.

Depois de tratar satisfatoriamente do meu assunto no banco, segui para os escritórios de Messrs. Galbraith, Galbraith & Symmington. Não sei se existiam alguns Galbraiths. Nunca vi nenhum. Fui conduzido ao gabinete de Richard Symmington, que cheirava ao bafio agradável de um escritório de advogados há muito estabelecido.

Grandes quantidades de caixas com documentos, rotuladas Lady Hope, Sir Everard Carr, William Yatesby-Hoares, Esq., Falecido, etc., davam a indispensável atmosfera de dignas famílias antigas e de uma firma legítima estabelecida há muito tempo.

Ao estudar Mr. Symmington, enquanto ele se debruçava sobre os documentos que eu trouxera, ocorreu-me que, se Mrs. Symmington fora infeliz no primeiro casamento, tinha sem dúvida jogado pelo seguro no segundo. Richard Symmington era o cúmulo da respeitabilidade tranqüila, o tipo de homem que nunca daria à mulher um momento de ansiedade. Um pescoço comprido com uma maçã-de-adão pronunciada, um rosto ligeiramente cadavérico e um nariz fino e comprido. Um homem amável, sem dúvida, um bom marido e pai, mas não do tipo capaz de acelerar loucamente as pulsações.

Pouco depois, Mr Symmington começou a falar. Falava de modo claro e pausado, dando a sua opinião com muita sensatez e uma perspicácia contundente. Resolvemos o assunto de que estávamos a tratar e eu levantei-me para sair, observando ao mesmo tempo:

- Desci a colina com a sua enteada.

Por um momento, Mr. Symmington pareceu não saber quem era a enteada, depois sorriu.

- Oh! sim, a Megan, claro. Ela... hum!... voltou da escola há algum tempo. Estamos a pensar em procurar qualquer coisa para ela fazer... sim, fazer. Mas claro que ainda é muito nova. E atrasada para a idade, é o que dizem. Sim, é o que me dizem.

Saí. Na recepção estava um homem idoso, sentado num banco, a escrever lenta e laboriosamente, um rapaz de ar atrevido e uma mulher de meia-idade, com cabelo frisado e lunetas, que escrevia à máquina com muita velocidade e energia.

Se esta era Miss Ginch, concordei com Owen Griffith que era muito improvável que houvesse uma aventura amorosa entre ela e o patrão.

Fui à padaria dar a minha opinião sobre o pão de passas. Foi recebida com as exclamações e incredulidade próprias da ocasião, e obrigaram-me a aceitar, em substituição do outro, um novo pão de passas “acabado de sair do forno” - como provava o seu calor voluptuoso contra o meu peito.

Saí da padaria e olhei para os dois lados da rua na esperança de ver a Joanna com o carro. A caminhada tinha-me cansado muito, e não me dava jeito andar com as bengalas e com o pão de passas.

Mas ainda não havia sinal da Joanna.

De repente, os meus olhos detiveram-se, incrédulos e agradavelmente surpreendidos.

Pelo passeio fora, e na minha direção, vinha uma deusa a flutuai: flutuando com graciosidade. Na verdade, não há outra palavra para ela. O rosto perfeito, o cabelo louro bem ondulado, o corpo alto elegantemente modelado! E ela caminhava como uma deusa, sem esforço, aproximando-se como se flutuasse. Uma rapariga gloriosa, incrível, de cortar a respiração! Na minha intensa excitação, alguma coisa tinha de cair. E o que caiu foi o pão de passas. Escorregou-me das mãos. Eu mergulhei atrás dele e perdi a bengala, que caiu estrondosamente no passeio, e escorreguei, e quase caí. Foi o braço forte da deusa que me agarrou e segurou. Comecei a gaguejar:

- Mui-muitíssimo obrigado, lamento imenso.

Ela tinha recuperado o pão e entregou-mo, juntamente coma bengala. E depois sorriu com amabilidade e disse animadamente:

- Não tem de quê. Não foi incômodo nenhum, garanto-lhe. - E a magia extinguiu-se por completo perante a voz monótona e competente.

A Joanna tinha parado na berma junto a mim, sem eu dar conta da sua chegada. Perguntou-me se tinha acontecido alguma coisa.

- Tive um choque - disse eu. - Fui transportado para Tróia e voltei

- Que lugar tão singular para fazer isso - disse a Joanna. - Estavas muito esquisito, aí de pé a agarrar o pão de passas de encontro ao peito e de boca escancarada.

- Sabes quem é? - acrescentei, indicando umas costas que se afastavam, outra vez. Ao olhar para a jovem, a Joanna disse que era a preceptora dos Symmingtons.

- Foi ela que te deixou embasbacado? - perguntou ela. - É atraente, mas um bocado sensaborona.

- Nada - disse eu, recompondo-me. - Estava a refletir sobre Helena de Tróia e outras mulheres. A Joanna abriu a porta do carro, e eu entrei.

- É esquisito, não é? - disse ela. - Algumas pessoas têm muito boa aparência, mas absolutamente nenhum poder de sedução. É o que acontece com aquela rapariga. É uma pena. Eu disse que se ela era preceptora, talvez fosse melhor assim.

- Eu sei - disse eu. - É só uma rapariga bonita e amável. E eu tinha pensado que ela era Afrodite.

Uma rapariga bem constituída e de aspecto saudável, nada mais.

Comecei a refletir sobre o que teria acontecido se os deuses tivessem dado exatamente aquelas inflexões monótonas a Helena de Tróia. Era estranho que uma rapariga pudesse perturbar-nos até ao mais íntimo da nossa alma se se mantivesse de boca fechada, e que o fascínio se desvanecesse, como se nunca tivesse existido, no momento em que falava.

Contudo, eu sabia que o contrário também acontecia. Tinha conhecido uma mulher triste e com cara de macaco para quem ninguém olhava duas vezes. Depois ela abrira a boca e subitamente o encanto tinha nascido, e desabrochado, e Cleópatra lançara outra vez o seu feitiço.

 

Naquela tarde fomos tomar chá com Mr. Pye.

Mr. Pye era um homenzinho roliço, muito efeminado, devotado às suas cadeiras petit point, às suas pastoras de Dresden e à sua coleção de bricabraque. Vivia em Priors Lodge, em cujos terrenos estavam as ruínas do velho Priorado.

Sem dúvida que Priors Lodge era uma casa muito bonita e, sob os cuidados amorosos de Mr. Pye, mostrava-se na sua melhor forma. Cada peça de mobiliário estava polida e colocada exatamente no lugar que melhor lhe convinha. As cortinas e almofadas tinham tonalidades e cores requintadas e eram confeccionadas em sedas das mais caras.

Dificilmente podia ser considerada uma casa de homem, e ocorreu-me que viver lá devia ser como morar numa sala de um museu. O maior prazer que Mr. Pye tinha na vida era mostrar a casa a toda a gente. Nem as pessoas completamente insensíveis àquilo que as rodeia conseguiam escapar Nem sequer as que eram tão empedernidas a ponto de considerarem um rádio, um bar, uma banheira e uma cama, rodeados pelas indispensáveis paredes, as coisas essenciais da vida. Mr. Pye não perdia a esperança de as conduzir até coisas melhores.

Enquanto descrevia os seus tesouros, as mãos pequenas e rechonchudas estremeciam de emotividade, e o seu tom de voz subia até um guincho de falsete ao contar em que excitantes circunstâncias trouxera de Verona a armação italiana da sua cama.

Como eu e a Joanna gostávamos ambos de antiguidades e de móveis de estilo, fomos aprovados.

- É realmente um prazer, um grande prazer, ter uma aquisição destas na nossa pequena comunidade. A boa gente de cá, sabem, tão penosamente bucólica (para não dizer provinciana) não sabe nada. Vândalos, perfeitos vândalos! E os interiores das casas... fá-la-iam chorar, minha querida senhora, garanto-lhe que a fariam chorar. Talvez já tenha acontecido?

A Joanna disse que não tinha chegado tão longe.

- Mas percebe o que eu quero dizer? Misturam terrivelmente as coisas! Vi, com os meus próprios olhos, uma peça Sheraton absolutamente deliciosa (delicada, perfeita, uma peça de colecionador, sem dúvida) e junto a ela, uma mesinha vitoriana ou, muito possivelmente, uma estante rotativa de carvalho escurecido... sim, até isso: carvalho escurecido.

Estremeceu, e murmurou de um modo queixoso:

- Por que é que as pessoas são tão cegas? Concordam Comigo, tenho a certeza de que concordam, que a beleza é a única coisa para que vale a pena viver Hipnotizada pela sua veemência, a Joanna disse que sim, sim, que era verdade.

- Então - perguntou Mr. Pye -, por que é que as pessoas se rodeiam de fealdade? A Joanna disse que era muito estranho.

- Estranho? É criminoso! É o que eu lhe chamo: criminoso! E as desculpas que dão! Dizem que uma coisa qualquer é confortável. Ou que é curiosa. Curiosa! Que palavra horrível.

- A casa que alugaram - continuou Mr. Pye -, a casa de Miss Emily Barton. Essa sim, é encantadora, e ela tem algumas peças muito bonitas. Muito bonitas. Uma ou duas são realmente esplêndidas. E também tem gosto... embora eu já não tenha tanta certeza disso como antes. As vezes receio que, na verdade, seja sentimentalismo. Gosta de conservar as coisas como eram, mas não pelo bon motif, não pela harmonia resultante... mas porque era assim que a mãe as tinha.

Transferiu a sua atenção para mim e a sua voz alterou-se. Passou da voz de artista arrebatado para a voz do mexeriqueiro inato.

- Não conheciam a família? Não, claro... sim, através de agentes imobiliários. Mas, meus caros, devam ter conhecido aquela família! Quando vim para cá, a velha mãe ainda era viva. Uma pessoa incrível, absolutamente incrível! Um monstro, se percebem o que quero dizer. Positivamente um monstro. O antiquado monstro vitoriano que devorava as crias. Sim, era praticamente isso. Ela era monumental, percebem, devia pesar mais de cem quilos, e as cinco filhas revoluteavam em torno dela. “As pequenas”! Era assim que se lhes referia sempre. As pequenas! E nessa altura a mais velha á passara dos sessenta. “Aquelas pequenas estúpidas!”, era como às vezes lhes chamava. Escravas negras, era o que elas eram, a fazerem recados e a concordarem com ela. As dez em ponto tinham de ir para a cama e nem sequer podiam acender a lareira no quarto, e quanto a convidarem os amigos para irem lá a casa, isso teria sido inaudito. Ela desprezava-as, sabem, por não se terem casado, contudo, planeou as vidas delas de tal forma, que era praticamente impossível elas conhecerem alguém. Creio que a Emily, ou talvez tenha sido a Agnes, teve um romance com um vigário. Mas a família dele não era suficientemente boa, e a Mamã depressa pôs um fim àquilo.

- Parece um romance - disse a Joanna.

- Oh! minha querida, e foi mesmo. E depois a velha horrorosa morreu, mas é claro que nessa altura já era tarde de mais. Continuaram apenas a viver lá e a falarem em voz baixa das coisas que a pobre Mamã teria desejado. Até mudar o papel de parede do quarto dela lhes parecia um sacrilégio. Contudo, divertiam-se calmamente na paróquia... Mas nenhuma delas era muito resistente, e morreram uma a uma. A gripe levou a Edith, a Minnie foi operada e não recuperou, e a pobre Mabel teve uma trombose (a Emily tratou dela com toda a dedicação). Na verdade, nos últimos dez anos a pobre mulher não fez mais nada senão tratar de doentes. Uma criatura encantadora, não acham? Como uma peça de Dresden. É uma pena ter problemas financeiros, mas claro que todos os investimentos se desvalorizaram.

- Sentimo-nos mal por estarmos em casa dela - disse a Joanna.

- Não, não, minha querida senhora. Não devem sentir isso. A sua querida Florence é-lhe muito dedicada, e ela mesma me disse que está muito feliz por ter uns inquilinos tão simpáticos. - Aqui, Mr Pye fez uma pequena vênia. - Disse-me que tinha tido muita sorte.

- A casa tem uma atmosfera muito reconfortante - disse eu. Mr. Pye lançou-me um olhar rápido.

- A sério? Acha que sim? Isso é muito interessante. Surpreende-me, sabem? Sim, surpreende-me.

- Que quer dizer, Mr. Pye? - perguntou a Joanna.

Mr Pye estendeu as mãos rechonchudas.

- Nada, nada. Uma pessoa fica a pensar, é tudo. Acredito em atmosferas, sabem? Os pensamentos e os sentimentos das pessoas. Imprimem a sua impressão às paredes e aos móveis.

Fiquei calado por uns momentos. Estava a olhar à minha volta e a perguntar-me como descreveria a atmosfera de Prioís Lodge. Pareceu-me que o curioso é que não tinha qualquer atmosfera! Era realmente muito singular.

Fiquei tanto tempo a refletir sobre isso, que não ouvi nada da conversa entre a Joanna e o seu anfitrião. Contudo, voltei a mim quando ouvi a Joanna proferir os preliminares das despedidas. Despertei do meu sonho e juntei a minha quota-parte.

Saímos todos para o hall. Quando nos dirigíamos para a porta da frente, uma carta passou pela caixa do correio e caiu no tapete.

- Distribuição da tarde - murmurou Mr. Pye ao apanhá-la. - Agora, meus queridos jovens, hão-de voltar cá, não é verdade? É um prazer tão grande conhecer pessoas de vistas mais largas, se percebem o que quero dizer. Pessoas que apreciam a Arte. Por certo sabem que quando se menciona , “Ballet” diante desta boa gente, o que lhes vem à idéia é piruetas em pontas de pés, e saias de tule e cavalheiros idosos com binóculos de teatro da última década do século XIX. Estão cinqüenta anos atrasados, é assim que os considero. Um país maravilhoso, a Inglaterra. Tem bolsas. Lymstock é uma delas. Interessante do ponto de vista de um colecionador (sinto sempre que me meti voluntariamente numa redoma quando estou cá). O remanso tranqüilo onde nunca nada acontece.

Depois de nos apertar as mãos mais duas vezes, ajudou-me a entrar para o carro com um cuidado exagerado. A Joanna sentou-se ao volante, contornou cuidadosamente um pedaço de relvado impecável, e depois, com um caminho direito pela frente, levantou a mão para acenar um adeus ao nosso anfitrião parado nos degraus da casa. Inclinei-me para frente para fazer o mesmo.

Mas o nosso gesto de despedidas passou despercebido. Mr. Pye tinha aberto a carta.

Estava de pé a olhar para a folha desdobrada que tinha na mão.

A Joanna descrevera-o uma vez como um querubim rosado e rechonchudo. Continuava rechonchudo, mas agora não se parecia nada com um querubim. O seu rosto roxo e congestionado estava contorcido de raiva e surpresa.

- Como te digo, têm um parafuso solto. Deve satisfazer algum anseio ardente, suponho. Se alguém é humilhado, ou ignorado, ou está frustrado, e a sua vida é muito monótona e vazia, suponho que tem uma sensação de poder ao magoar às cegas pessoas que estão felizes e que se divertem.

Nesse momento apercebi-me de que havia algo de familiar no aspecto daquele envelope. Na altura, não me apercebera - de fato, era uma daquelas coisas que notamos inconscientemente sem sabermos que as notamos.

A Joanna estremeceu. - É desagradável.

- Sim, é desagradável. Imagino que as pessoas nestas localidades do campo tendam a ser consangüíneas, e por isso deve haver bastante gente esquisita.

- Credo! - disse a Joanna. - Que bicho lhe mordeu?

- Tenho a impressão - disse eu - de que é a Mão Misteriosa a atacar de novo.

- Uma pessoa, suponho eu, muito ignorante e que se exprime mal?

Ela virou para mim um rosto espantando, e o carro guinou para o lado.

- Cuidado, rapariga! - disse eu.

A Joanna voltou a fixar a atenção na estrada. Estava carrancuda.

- Referes-te a uma carta como a que tu recebeste?

- É o que suponho.

Ao passarmos de carro pela povoação, antes de subirmos pela estrada da colina, olhei com curiosidade para as poucas pessoas que passavam na High Street.

- Que lugar é este? - perguntou a Joanna. - Parece o pedacinho da Inglaterra mais inocente, sonolento e inofensivo que imaginar se possa e a ... 

A Joanna não acabou a frase e eu não disse nada.

Andaria uma daquelas robustas mulheres do campo, cheia de rancor e malícia por trás do rosto plácido, a planear, talvez neste momento, mais uma descarga de rancor vingativo?

- Onde, para citar Mr. Pye, nunca nada acontece - interrompi eu. - preciso circular por aí... Escolheu o momento errado para dizer aquilo. Alguma coisa aconteceu. Mas eu continuava a não levar a coisa a sério.

- Mas quem escreve estas coisas, Jerry?

Encolhi os ombros.

- Minha querida, como hei-de saber? Um imbecil local com um parafuso solto, suponho eu.

- Mas por quê? Parece tão idiota.

- Tens de ler o Freud e o Jung e os outros todos para descobrires. Ou pergunta ao Dr. Owen. A Joanna sacudiu a cabeça.

- O Dr. Owen não gosta de mim.

- Ainda mal te viu.

- Ao que parece, viu o bastante para atravessar para o outro lado se me vê aproximar na High Street.

- Uma reação muito invulgar - disse eu com ternura. - E à qual não estás habituada.

A Joanna estava carrancuda outra vez.

- Não, mas a sério, Jerry, porque é que as pessoas escrevem cartas anônimas?

Dois dias mais tarde fomos a uma reunião de bridge em casa dos Symmingtons.

Era uma tarde de sábado - os Symmingtons faziam sempre as reuniões de bridge aos sábados, porque nessa altura o escritório estava fechado.

Havia duas mesas. Os jogadores eram os Symmingtons, nós, Miss Griffith, Mr Pye, Miss Barton e um coronel Appleton, que nós ainda não tínhamos conhecido, e que vivia em Combeacre, uma aldeia a cerca de onze quilômetros de distância. Era um espécime perfeito do tipo Blimp(1); tinha cerca de sessenta anos, gostava de jogar aquilo a que chamava um “jogo resoluto” (que geralmente resultava em totais imensos, acima da linha dos pontos ganhos pelos seus adversários), e ficou tão intrigado com a Joanna, que praticamente não tirou os olhos de cima dela durante a tarde toda. Fui forçado a reconhecer que a minha irmã devia ser a coisa mais atraente que se via em Lymstock há muito tempo.

 

(1) Coronel Blimp ou apenas Blimp, personagem inventada pelo cartunista David Low (1891) e que passou a representar o tipo de ex-militar pomposo e reacionário. (N. da T)

 

Quando chegamos, Elsie Holland, a preceptora das crianças, procurava marcadores extra numa velha escrivaninha ornamentada. Deslizava pelo soalho da mesma forma celestial que eu notara da primeira vez, mas o feitiço não podia surtir efeito uma segunda vez. Era exasperante que assim fosse um desperdício de uma figura e de um rosto absolutamente adoráveis. Mas reparei, agora distintamente, nos dentes brancos excepcionalmente grandes, como lápides, e na forma como mostrava as gengivas quando se ria. Era, infelizmente, uma tagarela.

- São estes, Mr. Symmington? Que estupidez a minha não me lembrar do sítio onde os pusemos da última vez. Receio que a culpa tenha sido minha. Tinha-os na mão, depois o Brian chamou-me porque a locomotiva tinha ficado presa, e eu corri lá para fora, e com uma coisa e outra devo tê-los encafuado algures num lugar estúpido. Estes não são os adequados, vejo agora que estão um pouco amarelecidos nas pontas. Digo à Agnes para servir o chá às cinco? Vou levar os miúdos a Long Barrow, por isso não vai haver barulho.

Uma rapariga simpática, amável e esperta. Atraí a atenção da Joanna. Ela estava a rir-se. Olhei para ela friamente. A Joanna sabe sempre o que me passa pela cabeça, maldita seja.

Instalamo-nos para o bridge.

Depressa iria saber com exatidão a categoria do bridge de toda a gente em Lymstock Mrs, Symmington era uma jogadora muito boa e uma grande entusiasta do jogo. Como muitas mulheres decididamente pouco intelectuais, não era estúpida e tinha uma considerável argúcia natural. O marido era um jogador bom e correto, um pouco cauteloso demais. Mr Pye pode ser melhor descrito como brilhante. Tinha um fraco inquietante por leilões psíquicos. Eu e a Joanna, uma vez que a reunião era em nossa honra, jogamos numa mesa com Mrs. Symmington e Mr. Pye. O Symmington tinha a incumbência de deitar água na fervura e de, através do exercício do tacto, reconciliar os outros três jogadores da sua mesa. O coronel Appleton, como disse, estava habituado a jogar “um jogo resoluto”. A pequena Miss Barton era, indiscutivelmente, a pior jogadora de bridge com quem já me cruzei e divertia-se sempre muitíssimo. Lá conseguia jogar uma carta do mesmo naipe, mas tinha as idéias mais fantásticas acerca da força da sua mão, nunca sabia a pontuação, começava a jogar na mão errada, era incapaz de contar trunfos e esquecia-se muitas vezes do naipe dos mesmos. O jogo de Aimée Griffith pode ser resumido nas suas próprias palavras: “Gosto de um bom jogo de bridge sem despropósitos - e não me sirvo de nenhuma dessas convenções disparatadas. Eu digo o que quero dizer: E nada de discussões sobre a mão anterior! No fim de contas, é só um jogo!”. Portanto, como se vê, a tarefa do anfitrião não era muito fácil.

O jogo avançou com bastante harmonia, não obstante os esquecimentos ocasionais da parte do coronel Appleton, porque ficava a olhar fixamente para a Joanna.

O chá foi servido na sala de jantar, à volta de uma grande mesa. Quando estávamos a acabar, dois rapazinhos impetuosos e excitados entraram de roldão e foram-nos apresentados, Mrs. Symmington a irradiar orgulho maternal, tal como o pai.

Depois, quando estávamos mesmo a acabar, uma sombra escureceu o meu prato; virei a cabeça e vi a Megan de pé junto à porta envidraçada.

- Oh! - disse a mãe. - Cá está a Megan.

A voz dela tinha uma nota levemente surpreendida, como se se tivesse esquecido de que a Megan existia.

A rapariga entrou e apertou-nos a mão, desajeitadamente e sem qualquer graça.

- Receio ter-me esquecido do teu lanche, querida - disse Mrs. Symmington. -

Miss Holland e os rapazes levaram o deles para o passeio, por isso hoje não há lanche no quarto das crianças. Esqueci-me de que não estavas com eles. A Megan acenou com a cabeça.

- Não faz mal. Eu vou à cozinha.

Arrastou-se para fora da sala. Como de costume, estava desleixadamente vestida e tinha buracos nos dois calcanhares.

- Minha pobre Megan - disse Mrs. Symmington com um sorrisinho apologético.

- Está na idade ingrata, sabem. As raparigas são sempre tímidas e desajeitadas, quando acabam de sair da escola e ainda não estão completamente desenvolvidas.

Vi a cabeça loira da Joanna dar um sacão para trás, naquilo que eu sabia ser um gesto bélico.

- Mas a Megan tem vinte anos, não tem? - disse ela.

- Oh! sim, sim. Lá ter, tem. Mas é claro que ela é muito imatura para a idade. Ainda é muito criança. É muito bom, penso eu, que as raparigas não cresçam demasiado depressa. - Riu-se novamente. - Suponho que todas as mães querem que os filhos permaneçam bebês.

- Não vejo por que - disse a Joanna. - No fim de contas, devia ser um bocado esquisito ter um filho que ficasse com a idade mental de seis anos enquanto o seu corpo crescia.

- Oh! não deve tomar as coisas tão à letra, Miss Burton - disse Mrs. Symmington.

Ocorreu-me naquele momento que não gostava muito de Mrs. Symmington. Aquela beleza anêmica, débil e emurchecida escondia, pensei eu, uma natureza egoísta e gananciosa. E ainda antipatizei mais com ela, quando disse:

- Minha pobre Megan. Receio que seja uma miúda muito difícil. Tenho tentado descobrir qualquer coisa para ela fazer, creio que há várias coisas que se podem aprender por correspondência. Desenho e costura... ou talvez possa tentar aprender estenografia e datilografia.

A Joanna ainda tinha nos olhos o lampejo de cólera. Quando nos sentamos de novo à mesa de bridge, disse:

- Suponho que ela há-de ir a festas e a esse tipo de coisas. Vai dar um baile em honra dela?

- Um baile? - Mrs. Symmington pareceu surpreendida e divertida. Oh! não, aqui não fazemos coisas dessas.

- Estou a ver Só partidas de tênis e coisas do gênero.

- O nosso campo de tênis não é usado há anos. Nem eu, nem o Richard jogamos. Suponho que, mais tarde, quando os rapazes crescerem... Oh! a Megan vai descobrir bastantes coisas para fazer Ela fica muito feliz só por vaguear por aí sem fazer nada, sabe. Vejamos, fui eu que dei as cartas? Dois Sem Trunfos.

Quando voltávamos para casa, a Joanna disse, com uma violenta pressão no acelerador que fez o carro saltar para a frente:

- Tenho uma pena horrível daquela miúda.

- Da Megan?

- Sim. A mãe não gosta dela.

- Ora, Joanna, a situação não é tão má como isso.

- É sim. Há muitas mães que não gostam dos filhos. A Megan, imagino eu, é um tipo de criatura incômoda para se ter em casa. Altera o padrão; o padrão Symmington. É uma unidade completa sem ela, e essa é uma sensação muito triste para uma criatura sensível... e ela é sensível.

- Sim - disse eu -, acho que é.

Fiquei um momento calado.

De repente, a Joanna desatou a rir maliciosamente.

- Que pouca sorte a tua com a preceptora!

- Não sei a que te referes - disse eu com dignidade.

- Tolice! Tinhas despeito masculino escrito no rosto sempre que olhavas para ela. Concordo contigo. É um desperdício.

- Não sei de que estás a falar.

- Mas mesmo assim estou encantada. É o primeiro sinal da vida que renasce. Estava muito preocupada contigo na casa de saúde. Nem sequer olhaste para aquela enfermeira extraordinariamente bonita que tinhas. Uma sirigaita atraente... absolutamente um presente de Deus para um homem doente.

- Acho a tua conversa muito vulgar, Joanna.

A minha irmã continuou, sem dar a mínima atenção às minhas observações.

- Por isso fiquei muito aliviada por ver que ainda deitavas um olho a um bom rabo de saias. Ela é bonita. É estranho que o poder de sedução tenha sido completamente esquecido. É esquisito, sabes, Jerry. Que é que algumas mulheres têm e outras não? Que é que torna uma mulher tão atraente, ainda que só diga, “Que tempo desagradável!”, que todos os homens em redor queiram aproximar-se e falar do tempo com ela? Suponho que de vez em quando a Providência comete um erro ao expedir a encomenda. Um rosto e figura de Afrodite, um temperamento idem. E alguma coisa se extravia, e o temperamento de Afrodite vai para uma criaturinha de cara vulgar, e então todas as outras mulheres perdem simplesmente a cabeça e dizem: “Não percebo o que os homens vêem nela. Nem sequer é bonita!”.

- Já acabaste, Joanna?

- Bem, concordas, não concordas?

 Sorri ironicamente.

- Admito que fiquei desapontado.

Depois disse:

- É capaz de haver qualquer coisa naquela tua idéia.

- Que idéia?

 A Joanna respondeu:

- Não vejo por que é que um homem há-de atravessar deliberadamente a rua para me evitar. Além do mais é indelicado.

- Estou a ver - disse eu. - Vais perseguir o homem a sangue frio até o apanhares.

- Bem, não gosto de ser evitada.

- Deixa o pobre diabo em paz - disse eu severamente.

- E não vejo mais ninguém para ti aqui. Vais ter de recorrer a Aimée Griffith.

- Deus me livre! - disse eu.

- Ela é muito bonita, sabes.

- É Amazona demais para mim.

- Realmente, parece gostar da vida que tem - disse a Joanna. - Absoluta e desagradavelmente vigorosa, não é? Não me surpreendia nada se tomasse um banho frio todas as manhãs.

Saí lenta e cuidadosamente do carro, e equilibrei-me nas bengalas. Depois dei um conselho à minha irmã.

- Deixa-me que te diga isto, minha menina. Owen Griffith não é um dos teus jovens artistas, submissos e lamurientos. Se não tiveres cuidado, vais arranjar lenha para te queimares. O homem pode ser perigoso.

- Como é que ele se atreveu a atravessar a rua quando me viu aproximar?

- E que vais fazer por ti mesma? - perguntei eu.

- Por mim?

- Sim. Se bem te conheço, vais precisar de uma distraçãozinha aqui.

- E agora quem é que está a ser vulgar? Além disso, estás a esquecer-te do Paul.

- Não vou esquecer-me dele tão depressa como tu. Daqui a uns dez dias vais dizer: “Paul? Que Paul? Nunca conheci Paul nenhum”.

- Ooh! achas que sim? - perguntou a Joanna com todos os sintomas de prazer diante da perspectiva. A Joanna deu um suspiro não muito convincente.

- Achas que eu sou completamente volúvel - disse a Joanna.

- Quando as pessoas em questão são como o Paul, fico muito satisfeito por seres.

- Nunca gostaste dele. Mas ele era meio gênio. Seja como for, pelo que ouvi dizer os gênios são pessoas com quem devemos antipatizar de todo o coração. - disse a Joanna.

- A propósito, por aqui não vais encontrar gênios. Também vais ter a Mana Aimée a fazer fogo contra ti, se não estou em erro.

- Ela já não gosta de mim - Falou pensativamente, mas com uma certa satisfação.

- É possível, embora eu duvide.

- Viemos para cá para termos paz e sossego e tenciono fazer com que os tenhamos. disse eu severamente

Mas paz e sossego eram as últimas coisas que iríamos ter.

- Vais ter de recorrer a Owen Griffith - disse eu. - É o único homem disponível da localidade. A menos que contes o velho coronel Appleton. Esteve a maior parte da tarde a olhar para ti como um cão de caça esfomeado.  A Joanna riu-se. - Esteve, não esteve? Foi muito embaraçoso. 

- Não finjas. Tu nunca ficas embaraçada.

A Joanna ficou a pensar por um momento, com a cabeça inclinada para um lado.

- Receio que não - disse ela pesarosamente.

A Joanna conduziu o carro em silêncio através do portão e até à garagem.

Foi cerca de uma semana mais tarde, acho eu, que a Partridge me informou que Mrs. Baker gostaria de falar comigo por uns momentos, se eu tivesse a amabilidade de a receber.

O nome Mrs. Baker não me dizia absolutamente nada.

- Quem é Mrs. Baker? - disse eu desorientado. - Ela não pode falar com Miss Joanna? Mas parecia que era a mim que ela desejava ver. Fiquei ainda a saber que Mrs. Baker era a mãe da empregada Beatrice.

Tinha-me esquecido da Beatrice. Há quinze dias que me apercebera de uma mulher de meia-idade com madeixas de cabelo grisalho, que estava geralmente de joelhos e que, quando eu aparecia, recuava como um caranguejo do quarto de banho, e das escadas, e dos corredores, e depreendi, suponho, que ela era a nossa nova Mulher a Dias. Fora isso, a complicação da Beatrice tinha-se desvanecido do meu espírito.

Não pude recusar receber a mãe da Beatrice, principalmente quando soube que a Joanna tinha saído, mas fiquei, devo confessar, um pouco nervoso com a perspectiva. Esperava sinceramente não ser acusado de ter brincado com os sentimentos da rapariga. Amaldiçoei para comigo as atividades rancorosas dos autores de cartas anônimas, ao mesmo tempo que, em voz alta, mandei que trouxessem a mãe da Beatrice à minha presença.

Mrs. Baker era uma mulher grande, cheia e de tez tisnada, com uma rápida fluência de discurso. Fiquei aliviado ao notar que não havia sinais de ira nem de acusação.

- Espero, sir - disse ela, começando logo que a porta se fechou atrás da Partridge -, que me perdoe a liberdade que tomei ao vir falar consigo. Mas pensei que o senhor era a pessoa certa a quem recorrer, e ficar-lhe-ia muito grata se me dissesse o que devo fazer nestas circunstâncias, porque na minha opinião, sir, alguma coisa tem que ser feita, e eu nunca fui pessoa de perder tempo, e o que eu digo é que não vale a pena lamentarmo-nos e gemermos mas sim “levantarmo-nos e agirmos” como disse o vigário ainda no sermão de há duas semanas.

Fiquei levemente desorientado e pensei que me tinha escapado alguma coisa essencial da conversa.

- Certamente - disse eu. - Não quer... hum!... sentar-se, Mrs. Baker? Com certeza que terei muito prazer em... hum... a ajudar, se puder...  Detive-me, expectante.

- Obrigada, sir - Mrs. Baker sentou-se na beira de uma cadeira. - É muita bondade sua, com certeza. E ainda bem que vim falar consigo, eu disse à Beatrice, estava ela a gritar e a chorar na cama, Mr. Burton vai saber o que fazer, disse eu, por ser um cavalheiro de Londres. E alguma coisa tem que ser feita, com os rapazes novos tão impetuosos e sem darem ouvidos à razão, e sem escutarem uma palavra que seja do que uma rapariga diz e, seja como for, se fosse comigo, disse eu à Beatrice, pagava-lhe na mesma moeda, e então a rapariga lá do moinho?

Fiquei mais confuso do que nunca.

- Lamento - disse eu. - Mas não estou a perceber. O que é que aconteceu?

- São as cartas, sir. Cartas malévolas... indecentes também, a usarem palavras daquelas e tudo. Ainda piores do que as que já li na Bíblia.

Sem prestar muita atenção ao que aqui poderia ter sido um desvio interessante na conversa, disse desesperadamente:

- A sua filha tem recebido mais cartas?

- Não, sir. Ela só recebeu aquela. Aquela na altura em que saiu daqui.

- Não havia razão absolutamente nenhuma... - comecei eu, mas Mrs. Baker interrompeu-me, firme e respeitosamente:

- Não precisa de me dizer, sir, que aquilo que escreveram eram tudo mentiras maldosas. Tenho a palavra de Miss Partridge quanto a isso, e de fato eu sabia por mim. O senhor não é esse tipo de cavalheiro, isso sei eu bem, e ainda por cima inválido e tudo. Eram mentiras maldosas e falsas, mas mesmo assim eu disse à Beatrice que era melhor ir-se embora, sabe como são os falatórios, sir. Não há fumo sem fogo, é o que as pessoas dizem. E uma rapariga tem de ter muito cuidado. E além disso a própria rapariga sentiu vergonha por causa do que foi escrito, por isso eu disse “Muito bem” à Beatrice quando ela disse que não voltava cá, embora ambas lamentemos o incômodo tão...

Incapaz de encontrar uma saída para esta frase, Mrs. Baker respirou fundo e recomeçou.

- E isso, esperava eu, acabaria com os falatórios maldosos. Mas agora o George da garagem, é com ele que a Beatrice anda, recebeu uma. A dizer coisas horríveis sobre a nossa Beatrice, e que ela anda com o Tom do Fred Ledbetter, e eu posso garantir-lhe, sir, que a rapariga só é delicada com ele e só lhe dá os bons-dias, por assim dizer

Fiquei com a cabeça a andar à roda com esta nova complicação do Tom de Mr. Ledbetter

- Deixe-me ver se percebi - disse eu. - O rapaz da Beatrice recebeu uma carta anônima a fazer acusações sobre ela e outro rapaz?

- Isso, sir, e escrito de uma forma nada agradável... usaram palavras horríveis e isso fez enlouquecer o George, fez mesmo, e ele veio dizer à Beatrice que não tolerava aquele tipo de coisas da parte dela, e que não ia permitir que ela andasse com outros homens nas costas dele, e ela disse que era tudo mentira, e ele disse que não há fumo sem fogo, disse ele, e saiu de roldão, furioso, e a Beatrice afligiu-se muito, pobre rapariga, e eu disse que ia pôr o meu chapéu e vim falar logo consigo, sir.

Mrs. Baker fez uma pausa e olhou para mim, expectante, como um cão à espera de recompensa depois de ter feito um truque particularmente inteligente.

- Mas por que veio ter comigo? - perguntei.

- Soube, sir, que também recebeu uma dessas cartas maldosas, e pensei, sir, que sendo um cavalheiro de Londres, saberia o que fazer sobre elas.

- Se fosse a si - disse eu -, iria à Polícia. Tem de se acabar com este tipo de coisas. Mrs. Baker pareceu profundamente chocada.

- Oh! não, sir. Eu não posso ir à Polícia.

- Por que não?

- Nunca estive envolvida com a Polícia, sir Nunca nenhum de nós esteve.

- Provavelmente não. Mas só a Polícia pode resolver este tipo de coisas. É o seu trabalho.

- Ir falar com Bert Rundle?

Eu sabia que Bert Rundle era o polícia.

- Deve haver, certamente, um sargento ou um inspetor na esquadra de polícia.

- Eu, a entrar numa esquadra?

A voz de Mrs. Baker exprimia censura e incredulidade. Comecei a ficar aborrecido.

- É o único conselho que posso dar-lhe.

Mrs. Baker ficou calada, obviamente pouco convencida. Ansiosa e veemente, disse:

- É preciso fazer parar estas cartas, sir, é preciso fazê-las parar. Mais cedo ou mais tarde vão fazer estragos.

-  Parece-me que já fizeram - disse eu.

- Eu quero dizer, violência, sir. Estes jovens ficam violentos nos seus sentimentos... e os mais velhos também. Perguntei:

- Há muitas destas cartas a circular?

Mrs. Baker acenou que sim.

- Está a ficar cada vez pior, sir. Mr. e Mrs. Beadle do Blue Boar, foram sempre tão felizes, e agora esta carta chega e fá-lo pensar em coisas... coisas que não são assim, sir.

- Mrs. Baker - inclinei-me para a frente - tem alguma idéia, uma idéia que seja, de quem anda a escrever estas cartas abomináveis? Para grande surpresa minha, ela acenou afirmativamente com a cabeça.

- Temos a nossa idéia, sir. Sim, temos todos uma idéia bastante clara.

- Quem é?

Eu supusera que ela teria relutância em mencionar um nome, mas replicou prontamente:

- É Mrs. Cleat, é o que todos achamos, sir. É Mrs. Cleat de certeza. Escutara tantos nomes nessa manhã, que fiquei muito confuso. Perguntei:

- Quem é Mrs. Cleat?

Descobri que Mrs. Cleat era a mulher de um jardineiro idoso. Vivia numa casa na estrada que ia dar ao Moinho. As minhas perguntas posteriores só tiveram respostas pouco satisfatórias. Quando lhe perguntei por que é que Mrs. Cleat escreveria estas cartas, Mrs. Baker só disse vagamente “Tá a dar com ela”.

Finalmente deixei-a ir-se embora, repetindo mais uma vez o conselho de que devia ir à Polícia, conselho que Mrs. Baker, pelo que vi, não iria seguir. Fiquei com a impressão de que a tinha desapontado.

Pus-me a refletir sobre o que ela tinha dito. Por muito vagas que fossem as provas, decidi que se a aldeia toda concordava que Mrs. Cleat era a culpada, isso era provavelmente verdade. Decidi ir consultar o Griffith sobre o assunto. Era de presumir que ele conhecesse a tal mulher Cleat. Se ele achasse aconselhável, ele ou eu podíamos sugerir à Polícia que era ela a causa desta contrariedade crescente.

Decidi chegar mais ou menos na altura em que calculava que o Griffith estaria a acabar as consultas. Quando o último doente saiu, entrei no consultório.

- Olá! É você, Burton.

Descrevi-lhe em linhas gerais a minha conversa com Mrs. Baker, e transmiti-lhe a convicção de que Mrs. Cleat era a responsável. Deixando-me um tanto desapontado, o Griffith abanou a cabeça.

- Não é tão simples como isso - disse ele.

- Não acha que essa tal Cleat é a responsável?

- Pode ser. Mas acho muito improvável.

- Então, por que é que todos pensam que é ela?

 Ele sorriu.

- Oh! - disse ele - não percebe? Mrs. Cleat é a bruxa local.

- Credo! - exclamei eu.

- Sim, parece muito estranho hoje em dia, mas no fundo é isso. Sabe ainda sobrevive o sentimento de que há certas pessoas, certas famílias, por exemplo, a quem não é prudente ofender. Mrs. Cleat veio de uma família de “feiticeiras”. E receio que ela se tenha esforçado seriamente para cultivar a lenda. É uma mulher excêntrica, com um sentido de humor sardônico e acutilante. Se uma criança fazia um golpe num dedo, ou caía, ou adoecia com papeira, bastava-lhe acenar afirmativamente com a cabeça e dizer “Sim, ele roubou-me maçãs a semana passada” ou “Puxou o rabo ao meu gato”. Depressa as mães afastavam os filhos, e outras mulheres traziam mel ou um bolo feito por elas para darem a Mrs. Cleat, a fim de se manterem nas suas boas graças e ela não lhes “desejar mal”. É uma superstição e uma tolice, mas acontece. Por isso é natural que agora pensem que ela está na origem disto.

- Mas não é?

- Oh, não! Ela não é o tipo. Não é... não é tão simples como isso.

- Tem alguma idéia? - olhei para ele com curiosidade. Ele abanou a cabeça, mas os seus olhos estavam ausentes.

- Não - disse ele. - Não faço a mínima idéia. Mas não me agrada esta situação, Burton... algum mal há-de surgir disto.

 

Quando voltei para casa, encontrei a Megan sentada nos degraus da varanda com o queixo pousado nos joelhos. Cumprimentou-me com a sua sem-cerimônia habitual.

- Olá! - disse. - Acha que posso almoçar cá?

- Com certeza - disse eu.

- Se forem costeletas ou qualquer coisa embaraçosa desse gênero e não chegar para todos, diga-me e pronto - gritou a Megan quando eu me virei para ir avisar a Partridge de que seríamos três para almoçar.

Creio que a Partridge fungou. Sem dúvida que conseguiu transmitir, sem dizer palavra de espécie nenhuma, que não tinha grande consideração por essa Miss Megan. Voltei para a varanda.

- Pode ser? - perguntou a Megan ansiosamente.

- Com certeza - disse eu. - Estufado de carneiro.

- Oh! bem, isso é mais ou menos como um jantar de cão, não é? Quero dizer, é principalmente batatas e aroma.

- Pois é - disse eu. Peguei na cigarreira e ofereci um cigarro à

Megan. Ela corou.

- Que gentileza a sua!

- Não queres um?

- Não, acho que não, mas foi muito gentil da sua parte oferecer-mo... como se eu fosse uma pessoa autêntica.

- Não és uma pessoa autêntica? - disse eu divertido.

A Megan abanou a cabeça; depois, mudando de assunto, estendeu uma perna comprida e poeirenta para eu inspecionar.

- Passajei as minhas meias - anunciou orgulhosamente.

Não sou uma autoridade em passajar, mas ocorreu-me que aquele estranho borrão pregueado, de lã violentamente contrastante, talvez não fosse um resultado muito bom. É muito mais desconfortável do que o buraco - disse a Megan. Tem ar disso - concordei.

- A sua irmã é boa a passajar?

Tentei lembrar-me se alguma vez observara algum trabalho manual da Joanna nesse âmbito.

- Não sei - tive de confessar.

Bem, que faz ela quando tem um buraco nas meias? Acho - disse eu com relutância - que as deita fora e compra outro par.

- Muito sensato - disse a Megan. - Mas eu não posso fazer isso. Agora tenho uma mesada: quarenta libras por ano. Não dá para grande coisa. Concordei.

- Se ao menos eu usasse meias pretas, podia pintar as pernas - disse a Megan tristemente. - Era o que eu fazia sempre na escola. Miss Batworthy (1), a professora que verificava os nossos remendos, era como o nome: via mal como um morcego. Era muito útil.

 

(1) O nome Batworthy é composto de bat (morcego) e worffiy (digno); traduzido à letra seria “digno de um morcego”. (N. da T)

 

- Devia ser - disse eu. Ficamos em silêncio enquanto eu fumava o meu cachimbo. Era um silêncio muito amistoso. A Megan quebrou-o para dizer, súbita e violentamente:

- Suponho que me acha horrível, como toda a gente?

Fiquei tão surpreendido que o cachimbo me caiu da boca. Era um espuma de mar que começava a adquirir uma cor bonita, e partiu-se. Colericamente, disse à Megan:

- Olha o que fizeste.

Em vez de ficar incomodada, aquela miúda incompreensível limitou-se a sorrir de orelha a orelha.

- Gosto de si - disse ela.

Foi uma observação muito calorosa. É a observação que uma pessoa imagina, talvez erroneamente, que um cão faria se pudesse falar Ocorreu-me que a Megan, apesar de se parecer com um cavalo, tinha o caráter de um cão. Inteiramente humana não era de certeza.

- Que disseste antes da catástrofe? - perguntei, apanhando cuidadosamente os fragmentos do meu querido cachimbo.

- Disse que supunha que me achava horrível - disse a Megan, mas não no mesmo tom em que falara antes.

- Por que havia de achar?

- Porque sou - disse a Megan solenemente.

- Não sejas estúpida - disse-lhe com brusquidão.

A Megan abanou a cabeça.

- É precisamente isso. Na verdade, não sou estúpida. As pessoas acham que sim. Não sabem que, cá dentro, eu sei exatamente como elas são e que as odeio o tempo todo.

- Odeia-as?

- Sim - disse a Megan.

Os seus olhos, aqueles olhos melancólicos e muito pouco infantis, fitaram os meus a direito, sem pestanejarem. Foi um olhar longo e desolado.

- Também odiaria as pessoas, se fosse como eu - disse ela. - Se não fosse desejado.

- Não achas que estás a ser um pouco mórbida? - perguntei.

- Sim - disse a Megan. - É o que as pessoas dizem sempre quando dizemos a verdade. E é verdade. Não sou desejada e não percebo por que. A mamã não gosta de mim nem um bocadinho. Faço-lhe lembrar, acho eu, o meu pai, que foi cruel com ela e que, pelo que ouço dizer, era muito desagradável. Só que as mães não podem dizer que não querem os filhos e irem-se embora, e pronto. Nem podem comê-los. Os gatos comem as crias de que não gostam. É muitíssimo sensato, acho eu. Sem desperdícios nem porcaria. Mas as mães humanas têm de ficar com os filhos e de cuidar deles. Não foi muito mau enquanto puderam mandar-me para a escola, mas sabe, do que a mamã gostava realmente era que fosse só ela e'o meu padrasto e os rapazes.

- Continuo a achar que estás a ser mórbida, Megan - disse devagar -, mas admitindo que uma parte do que disseste é verdade, por que não te vais embora para viveres a tua vida?

Ela sorriu-me de um modo muito pouco infantil.

- Quer dizer que devia seguir uma carreira? Ganhar a minha vida?

- Sim.

- Em quê?

- Podias preparar-te para qualquer coisa, suponho eu. Estenodatilografia, contabilidade. Não creio que conseguisse. Sou estúpida para fazer coisas. E além disso...

- Então?

Ela virara o rosto, e agora voltava a virá-lo lentamente. Estava enrubescido e havia lágrimas nos seus olhos. Agora falava, de novo com toda a infantilidade na voz.

- Por que haveria de partir? E ser forçada a partir? Eles não me querem, mas eu vou ficar. Vou ficar e vou fazer com que se arrependam. Porcos odiosos! Detesto toda a gente de Lymstock. Acham todos que sou estúpida e feia. Hei-de mostrar-lhes. Hei-de mostrar-lhes. Eu vou...

Era uma fúria infantil, singularmente patética.

Ouvi passos no cascalho, mesmo na esquina da casa.

- Levanta-te - disse eu rudemente. - Entra em casa pela sala de visitas. Sobe ao primeiro andar e vai ao quarto de banho. É ao fundo do corredor Lava a cara. Depressa.

Ela levantou-se desajeitadamente e desapareceu através da porta envidraçada no momento em que a Joanna contornava a esquina da casa.

- Ufa, estou cheia de calor - gritou ela. Sentou-se ao pé de mim e refrescou-se com o lenço tirolês que antes trazia enrolado na cabeça. - Contudo, acho que estou a amaciar estes malditos sapatos. Andei quilômetros. Aprendi uma coisa, os sapatos não deviam ter estes buracos de fantasia. Os picos das giestas entram por eles dentro. Sabes, Jerry, devíamos arranjar um cão.

- Também acho - disse eu. - A propósito, a Megan vem almoçar.

- Vem? Que bom!

- Gostas dela? - perguntei.

- Acho que é uma criança trocada ao nascer - disse a Joanna. - Uma coisa que foi deixada numa soleira, sabes, enquanto as fadas levavam a genuína com elas. É muito interessante encontrar uma criança trocada. Ufa, tenho de ir lá cima refrescar-me.

- Ainda não - disse eu -, a Megan está lá.

- Oh! ela também foi caminhar? A Joanna pegou no espelho e observou o rosto, longa e cuidadosamente. - Acho que não gosto deste batom - anunciou pouco depois.

A Megan saiu pela porta envidraçada. Estava calma, medianamente limpa, e não mostrava sinais da tempestade recente. Olhou com hesitação para a Joanna.

- Olá! - disse a Joanna, ainda preocupada com o rosto. - Ainda bem que vieste almoçar. Meu Deus! tenho uma sarda no nariz. Tenho de fazer qualquer coisa. As sardas são tão determinadas e escocesas!

A Partridge veio cá fora e disse com frieza que o almoço estava servido.

- Vamos - disse a Joanna, levantando-se. - Estou a morrer de fome. Deu o braço à Megan, e entraram juntas em casa.

 

Estou a ver que houve uma omissão na minha história. Até agora, ainda quase não mencionei Mrs. Dane Calthrop, nem o Rev. Caleb Dane Calthrop.

E, no entanto, tanto o vigário como a mulher eram personalidades únicas. O próprio Dane Calthrop talvez fosse o ser mais alheado da vida de todos os dias que eu já conheci. A sua existência centrava-se nos livros e no seu gabinete de trabalho e nos seus extensos conhecimentos da história da Igreja primitiva. Mrs. Dane Calthrop, por outro lado, estava aterradoramente a par de tudo. Talvez tenha adiado mencioná-la intencionalmente, porque fiquei a temê-la um pouco desde o princípio. Ela era uma mulher de caráter e de conhecimentos quase olímpicos. Não era, de modo nenhum, a esposa típica de um vigário - mas agora que escrevo isto, pergunto a mim próprio: que sei eu de esposas de vigários?

A única de que lembro bem era uma criatura sossegada e apagada, dedicada a um marido grande e forte que pregava de um modo magnético. Tinha tão pouca conversa geral, que era um enigma saber como manter uma conversação com ela.

Fora isso, eu dependia da descrição de esposas de vigários da ficção, caricaturas de mulheres a meterem o nariz em tudo e a proferirem banalidades. Provavelmente, é um tipo que não existe.

Mrs. Dane Calthrop nunca metia o nariz em lado nenhum, contudo, tinha um inquietante dom de saber coisas, e depressa descobri que quase toda a gente da aldeia a temia um pouco. Não dava conselhos e nunca interferia, no entanto, para uma consciência que não estivesse tranqüila representava a Divindade personificada.

Nunca vi mulher mais indiferente às coisas materiais que a rodeavam. Em dias quentes, andava de um lado para o outro a passos largos, vestida de tweed Harris, e debaixo de chuva e até de granizo, vi-a descer distraidamente a rua da aldeia a toda a velocidade, com um vestido de algodão estampado com papoulas. Tinha uma cara comprida e magra como um galgo, e uma sinceridade de discurso absolutamente devastadora.

Fez-me parar na High Street no dia a seguir àquele em que a Megan almoçou conosco. Tive a habitual sensação de surpresa, porque a marcha de Mrs. Dane Calthrop mais parecia uma corrida do que uma caminhada e os seus olhos se fixavam sempre no horizonte distante, de forma que ficávamos com a certeza de que o seu objetivo real estava a cerca de dois quilômetros e meio de distância.

- Oh! - disse ela. - Mr Burton! Disse-o triunfalmente, como faria alguém que tivesse resolvido um enigma especialmente inteligente.

Admiti que era Mr. Burton, Mrs. Dane Calthrop deixou de se concentrar no horizonte e, em vez disso, pareceu tentar concentrar-se em mim.

- Por que seria - disse ela - que eu queria falar consigo?

Quanto a isso, não podia ajudá-la. Ficou parada a franzir o sobrolho, profundamente perplexa.

- Era qualquer coisa muito desagradável - disse ela.

- Lamento muito - disse eu, espantado.

- Ali! - gritou Mrs. Dane Calthrop. - Odeio o meu amor com um H. É isso. Cartas anônimas! Que história é essa das cartas anônimas que trouxe para cá?

- Não fui eu que as trouxe - disse eu. - já cá estavam.

- Contudo, até o senhor chegar ninguém recebera carta nenhuma disse Mrs. Dane Calthrop acusadoramente.

- Receberam sim, Mrs. Dane Calthrop. O problema já tinha começado.

- Oh, meu Deus! - disse Mrs. Dane Calthrop. - Isto não me agrada nada. Ficou ali parada, com os olhos ausentes e, mais uma vez, distantes. Disse:

- Não consigo deixar de pensar que está tudo errado. Aqui não somos assim. Inveja, claro, e malícia, todos os pecadilhos mesquinhos e malévolos, mas nunca pensei que houvesse alguém que pudesse fazer isto... Não, de fato, nunca pensei. E isso aflige-me, porque eu devia saber.

Os seus olhos bonitos regressaram do horizonte e encontraram-se com os meus. Estavam preocupados e pareciam conter a perplexidade genuína de uma criança.

- Como é que havia de saber?

- Em geral, sei. Sempre achei que é essa a minha função. O Caleb prega uma boa e sólida doutrina e administra os sacramentos. É essa a obrigação de um sacerdote, mas se se admite o casamento a um sacerdote, então acho que é dever da esposa saber o que as pessoas sentem e pensam, ainda'que não possa fazer nada sobre o assunto. E eu não faço a menor idéia de quem é a mente que está...

Não acabou a frase, e acrescentou distraidamente:

- E são cartas tão absurdas!

- Recebeu... hum... alguma?

Hesitei em perguntar, mas Mrs. Dane Calthrop respondeu de forma perfeitamente natural, abrindo um pouco mais os olhos:

- Oh! sim, duas... não, três. Esqueci-me do que diziam exatamente. Qualquer coisa absurda sobre o Caleb e a professora, acho eu. Completamente absurdo, porque o Caleb não tem inclinação absolutamente nenhuma para a fornicação. Nunca teve. O que é uma sorte, sendo clérigo.

- Certamente! - disse eu. - Certamente!

- O Caleb seria um santo - disse Mrs. Dane Calthrop se não fosse um bocadinho intelectual de mais.

Não me senti qualificado para responder a esta crítica, e, seja como for, Mrs. Dane Calthrop continuou, saltando, de forma muito confusa, do marido para as cartas.

- Há tantas coisas que as cartas podiam dizer, mas não dizem! É isso que é tão curioso.

- Só muito dificilmente eu acharia que elas pecavam por comedimento - disse eu amargamente.

- Mas parece que não sabem nada. Nada sobre as coisas verdadeiras.

- Que quer dizer?Os seus olhos bonitos e vagos encontraram-se com os meus.

- Bem, é claro que há cá bastante adultério... e tudo o resto. Uma quantidade de segredos escandalosos. Por que é que o autor não os usa? - Fez uma pausa e depois perguntou abruptamente: - Que diziam na sua carta?

- Sugeriam que a minha irmã não é minha irmã.

- E é? Mrs. Dane Calthrop fez a pergunta com um interesse amigável e despreocupado.

- Sem dúvida que a Joanna é minha irmã.

Mrs. Dane Calthrop acenou que sim com a cabeça.

- Isso mostra-lhe o que eu quero dizer. Atrevo-me a dizer que há outras coisas...

Os seus olhos claros e desinteressados fitaram-me pensativamente e, de repente, percebi por que é que Lymstock temia Mrs. Dane Calthrop.

Na vida de todas as pessoas há capítulos escondidos, que elas esperam nunca sejam conhecidos. Tive a impressão de que Mrs. Dane Calthrop os conhecia.

Pela primeira vez na minha vida, fiquei positivamente encantado quando a voz cordial de Aimée Griffith ressoou:

- Olá, Maud! Ainda bem que te apanhei. Quero sugerir uma alteração da data para a Venda de Caridade. Bom dia, Mr. Burton. Continuou:

- Tenho de entrar na mercearia para deixar a minha encomenda, depois vou ao Instituto. Convém-te?

- Sim, sim, está muito bem - disse Mrs. Dane Calthrop.

Aimée Griffith entrou na International Stores.

- Coitada! - disse Mrs. Dane Calthrop. Fiquei perplexo. Com certeza que ela não podia estar com pena da Aimée!

Seja como for, continuou:

- Sabe, Mr. Burton, tenho muito medo...

- Por causa deste assunto das cartas?

- Sim, percebe, isto quer dizer... deve querer dizer... - Fez uma pausa, perdida em pensamentos, com os olhos semicerrados. Depois disse lentamente, como alguém que resolve um problema. - Ódio cego... sim, ódio cego. Mas até um homem cego pode apunhalar no coração por mero acaso... E que aconteceria depois, Mr. Burton?

Viríamos a sabê-lo antes que outro dia tivesse passado.

Foi a Partridge que trouxe as noticias da tragédia. A Partridge adora calamidades. O nariz dela contorce-se sempre estaticamente quando tem de dar más notícias de qualquer tipo.

Entrou no quarto da Joanna com o nariz a trabalhar horas extraordinárias, os olhos brilhantes e a boca puxada para baixo numa tristeza exagerada. 

- Há notícias terríveis esta manhã, miss - observou ela ao subir os estores. Com os seus hábitos londrinos, a Joanna precisa de um minuto ou dois para ficar completamente consciente de manhã.  Disse: - Hum! Ah! - e virou-se na cama sem mostrar muito interesse. A Partridge pousou junto dela o tabuleiro com o chá matinal e recomeçou:

- Foi terrível! Chocante! Nem queria acreditar quando soube.

- O que é que foi terrível? - disse a Joanna, esforçando-se por despertar:

- A pobre Mrs. Symmington. - Fez uma pausa dramática. - Morta.

- Morta? - a Joanna sentou-se na cama, agora completamente acordada.

- Oh, não, Partridge! A Joanna estava verdadeiramente chocada.

- Mrs. Symmington não era, nem de longe, o tipo de pessoa que se associa a tragédias.

- Sim, miss, é verdade. Fê-lo deliberadamente. Contudo, foi levada a isso, a pobrezinha.

- Levada a isso? - nessa altura, a Joanna teve uma suspeita da verdade.

Um momento depois, disse:

- Não? Os seus olhos interrogaram a Partridge, e a Partridge acenou afirmativamente.

- Exatamente, miss. Uma daquelas cartas indecentes!

- Que dizia? Mas isso, para tristeza sua, a Partridge não conseguira saber.

- São coisas abomináveis - disse a Joanna. - Mas não percebo porque fariam alguém querer matar-se. A Partridge fungou e depois disse intencionalmente:

- A não ser que fossem verdadeiras, miss.

- Oh! - disse a Joanna. Quando a Partridge saiu do quarto, ela bebeu o chá, vestiu um roupão e foi ter comigo para me dar a notícia.

Pensei naquilo que Owen Griffith tinha dito. Mais cedo ou mais tarde, o tiro no escuro acertaria no alvo. Acontecera com Mrs. Symmington. Ela, aparentemente a mais improvável das mulheres, tivera um segredo

Era verdade, refleti, que apesar de toda a sua argúcia não era uma mulher com grande resistência. Era do tipo anêmico e possessivo que se vai abaixo facilmente. A Joanna deu-me uma cotovelada e perguntou-me em que estava a pensar. Repeti-lhe o que o Owen tinha dito.

- É claro - disse a Joanna abespinhada - que ele tinha de saber tudo Li sobre o assunto. Aquele homem pensa que sabe tudo.

- Ele é esperto - disse eu.

- É pretensioso - disse a Joanna. E acrescentou: - Abominavelmente pretensioso! Passado um momento, disse:

- Que horror para o marido, e para a miúda! O que achas que a Megan vai sentir? Eu não fazia a mínima idéia e disse-lho. Era curioso que nunca conseguíssemos calcular o que a Megan iria pensar ou sentir. A Joanna anuiu e disse:

- Não, com crianças trocadas nunca se sabe. - Eu estava a pensar se ela gostaria de ficar conosco um dia ou dois. É um grande choque para uma rapariga daquela idade.

- Podíamos ir lá sugerir isso - concordei.

- As crianças ficam bem - disse a Joanna. - Têm aquela preceptora. Mas parece-me que ela é o gênero de pessoa que faria enlouquecer alguém como a Megan. Eu achava que era muito possível. Era capaz de imaginar Elsie Holland a proferir banalidade atrás de banalidade e a sugerir inúmeras chávenas de chá. Um criatura amável, mas não, pensava eu, a pessoa indicada para uma rapariga sensível. Eu próprio tinha pensado em afastar a Megan, e fiquei satisfeito por a Joanna ter pensado nisso espontaneamente, sem ser instada por mim. Depois do pequeno-almoço descemos até à casa dos Symmingtons. Estávamos ambos um pouco nervosos. A nossa chegada podia parecer pura curiosidade macabra. Felizmente, encontramos Owen Griffith a sair pelo portão. Parecia preocupado e absorto. Cumprimentou-me, contudo, com algum entusiasmo.

- Oh! olá, Burton. Ainda bem que o encontro. Aconteceu o que eu temia que, mais cedo ou mais tarde, acontecesse. Um caso terrível!

- Bom dia, Dr. Griffith - disse a Joanna, usando a voz que guarda para uma das nossas tias surdas. O Griffith estremeceu e corou.

- Oh... oh! bom dia, Miss Burton.

- Pensei que talvez não me tivesse visto - disse a Joanna.

Owen Griffith ficou ainda mais corado. A sua timidez envolvia-o como uma capa.

- Estou... estou tão pesaroso... absorto.

A Joanna continuou implacavelmente: - No fim de contas, sou de tamanho natural.

- Meramente um busto - disse-lhe eu num aparte severo. Depois continuei:

- Griffith, eu e a minha irmã estávamos a pensar se seria bom para a miúda ficar conosco um dia ou dois. Que acha? Não quero intrometer-me, mas deve ser muito difícil para a pobrezinha. Que acha que o Symmington pensaria disto?

O Griffith considerou a idéia por uns momentos.

- É uma excelente idéia - disse finalmente. - Ela é uma rapariga estranha e nervosa, e seria bom afastá-la de tudo aquilo. Miss Holland está a fazer maravilhas, tem cabeça, mas já tem muito que fazer com as duas crianças e o próprio Symmington. Ele está muito abatido, desnorteado.

- Foi... - hesitei - suicídio? O Griffith acenou que sim.

- Oh! sim. Um acidente está fora de questão. Ela escreveu “Não posso continuar” num pedaço de papel. A carta deve ter chegado no correio da tarde de ontem. O envelope estava caído no chão, junto à cadeira dela, e a carta foi amarfanhada numa bola e atirada à lareira.

- Que... Parei, muito escandalizado comigo mesmo.

- Peço-lhe desculpa - disse eu. O Griffith deu um sorriso breve e infeliz.

- Nem precisava de perguntar. A carta vai ter de ser lida no inquérito. Não há como evitar, o que é uma pena. Era o gênero de coisa habitual, expressa no mesmo estilo revoltante. A acusação específica era que o segundo rapaz, o Colin, não é filho do Symmington.

- Acha que é verdade? - exclamei com incredulidade.

O Griffith encolheu os ombros.

- Não tenho meios para formar uma opinião. Só aqui estou há cinco anos. Pelo que pude ver, os Symmingtons eram um casal sereno e feliz, dedicados um ao outro e aos filhos. É verdade que o rapaz não se parece especialmente com os pais (para começar, tem cabelo ruivo claro), mas muitas vezes, uma criança parece-se a um avô ou avó.

- Pode ter sido essa falta de semelhança que instigou a acusação específica. Um tiro no escuro, revoltante e muito inoportuno.

- Muito possivelmente. De fato, é muito provável. Não tem havido um conhecimento muito preciso por trás destas cartas anônimas, só malevolência e malícia descontroladas.

- Mas acontece que acertaram no alvo - disse a Joanna. - No fim de contas, no caso contrário ela não se teria matado, pois não? Hesitante, o Griffith disse:

- Não tenho assim tanta certeza disso. Ela andava doente há algum tempo, neurótica, histérica. Estava a tratá-la dos nervos. É possível, acho eu, que o choque de receber uma carta assim, expressa naqueles termos, lhe tenha provocado um tal estado de pânico e desânimo que ela tenha decidido matar-se. Pode ter-se convencido de que o marido talvez não acreditasse nela se negasse a história, e a vergonha e o desgosto podem tê-la dominado tão intensamente que lhe desequilibraram temporariamente o juízo.

- Suicídio num momento de desequilíbrio mental - disse a Joanna.

- Exatamente. Justifica-se perfeitamente, acho eu, que eu apresente esse ponto de vista no inquérito.

- Estou a perceber - disse a Joanna. Houve qualquer coisa na voz dela que fez o Owen dizer:

- É perfeitamente justificado! - e numa voz zangada acrescentou: Não concorda, Miss Burton?

- Oh! sim, concordo - disse a Joanna. - No seu lugar, faria exatamente o mesmo. O Owen olhou para ela hesitante, depois afastou-se devagar pela rua abaixo. Eu e a Joanna seguimos e entramos na casa. A porta da frente estava aberta e pareceu-nos mais fácil do que tocar à campainha, principalmente porque ouvimos a voz de Elsie Holland lá dentro. Estava a falar com Mr Symmington que, encolhido numa cadeira, parecia completamente aturdido.

- Não, a sério, Mr Symmington, tem de comer qualquer coisa. Não tomou o pequeno-almoço, aquilo a que eu chamo um pequeno-almoço decente, e não comeu nada ontem à noite, e com o choque e tudo isso, ainda adoece e vai precisar de todas as suas forças. Foi o que o doutor disse antes de se ir embora.

O Symmington disse numa voz apática: É muito amável, Miss Holland, mas... Uma bela chávena de chá quente - disse Elsie Holland, impelindo com firmeza a beberagem na direção dele. Pessoalmente teria dado ao pobre diabo um whisky forte com soda. Parecia estar a precisar Contudo, ele aceitou o chá e disse, olhando para Elsie Holland:

- Não sei como agradecer-lhe o que fez e o que está a fazer, Miss Holland. Tem sido absolutamente magnífica. A rapariga corou e pareceu satisfeita.

- É muito amável da sua parte dizer isso, Mr. Symmington. Tem de me deixar fazer tudo o que puder para ajudar Não se preocupe com as crianças, eu cuido delas, e já acalmei as criadas, e se puder fazer alguma coisa, escrever cartas ou fazer telefonemas, não hesite em me pedir.

- É muito amável - disse o Symmington de novo.

Ao virar-se, Elsie Holland viu-nos e veio apressadamente até à entrada.

- Não é terrível? - disse ela num sussurro.

Olhando para ela, pensei que era de fato uma rapariga muito bonita. Amável, competente, eficaz numa emergência. Os seus magníficos olhos azuis estavam levemente orlados de cor-de-rosa, mostrando que tinha um coração suficientemente sensível para chorar pela morte da patroa.

- Podemos falar consigo um momento? - pediu a Joanna. - Não queremos incomodar Mr. Symmington.

Elsie Holland acenou que sim compreensivamente e conduziu-nos à sala de jantar no outro lado do hall.

- Tem sido horrível para ele - disse ela. - Foi um grande choque! Quem havia de pensar que podia acontecer uma coisa destas? Claro que agora me apercebo que ela andava estranha há já algum tempo. Muito nervosa e chorosa. Pensei que era por razões de saúde, embora o Dr. Griffith dissesse sempre que ela não tinha nada. Mas estava nervosa e irritadiça, e havia dias em que uma pessoa não sabia como lhe agradar.

- Na verdade - disse a Joanna -, viemos cá para saber se poderíamos levar a Megan para passar uns dias conosco, isto é, se ela quiser ir. Elsie Holland pareceu muito surpreendida.

- A Megan? - disse hesitante. - Realmente, não sei. Quero dizer é muito amável da vossa parte, mas ela é uma rapariga tão estranha! Nunca se sabe o que vai dizer ou sentir sobre as coisas.

A Joanna disse de modo bastante vago:

- Pensamos que talvez fosse uma ajuda.

- Oh! sim, quanto a isso, era com certeza. Quero dizer, tenho de cuidar dos rapazes (neste momento estão com a cozinheira), e o pobre Mr. Symmington ... precisa tanto que cuidem dele como qualquer outra pessoa, e tenho tanto que fazer e de que me ocupar. De fato, não tenho muito tempo para tratar da Megan. Acho que ela está lá em cima no antigo quarto das crianças, no último andar. Parece querer afastar-se de toda a gente. Não sei se...

A Joanna lançou-me um olhar vago. Esgueirei-me apressadamente do compartimento e subi as escadas.

O antigo quarto das crianças ficava lá em cima de tudo. Abri a porta e entrei. A sala lá de baixo dava para o jardim das traseiras, e os estores não tinham sido descidos. Mas neste quarto, virado para a rua, eles estavam decorosamente puxados para baixo.

Na penumbra indistinta, vi a Megan. Estava encolhida num divã  colocado contra a parede mais afastada, e fez-me lembrar imediatamente um animal aterrorizado a esconder-se. Parecia petrificada de medo.

- Megan - disse eu.

Avancei e adotei, inconscientemente o tom que adotamos quando queremos confortar um animal assustado. Na verdade, até me espanta não lhe ter estendido uma cenoura ou um bocado de açúcar. Era o que me apetecia.

Ela fitou-me, mas não se mexeu, e a sua expressão não se alterou.

- Megan - disse eu de novo. - Eu e a Joanna viemos perguntar-te se gostarias de ficar conosco algum tempo. A voz dela veio abafada da penumbra indistinta.

- Ficar convosco? Na vossa casa?

- Sim.

- Quer dizer que vai levar-me daqui?

- Sim, minha querida. Anda daí.

De repente, começou a tremer toda. Era assustador e muito comovente.

- Oh, leve-me daqui! Por favor. É horrível estar aqui e sentir-me tão má.

Aproximei-me dela e as suas mãos prenderam-me a manga do casaco.

- Sou uma grande covarde. Não sabia que era tão covarde.

- Não faz mal, cara linda - disse eu. - Estas coisas abalam um pouco.

- Podemos ir já? Sem esperar um minuto?

- Bem, tens de juntar algumas coisas, suponho.

- Que tipo de coisas? Por quê?

- Minha querida - disse eu. - Podemos providenciar-te uma cama e uma banheira e tudo o resto, mas diabos me levem se te empresto a minha escova de dentes. Deu uma risadinha fraca.

- Percebo. Acho que hoje estou estúpida. Não ligue. Vou pôr umas coisas numa mala. Não se vai embora? Espera por mim?

- Estarei na entrada.

- Obrigada. Muito obrigada. Desculpe eu ser tão estúpida. Mas é horrível quando a nossa mãe morre.

-Eu sei - disse eu. Dei-lhe uma palmadinha amistosa nas costas e ela lançou-me um olhar agradecido e desapareceu num quarto. Desci as escadas.

- Encontrei a Megan - disse eu. - Ela vem.

- Oh! ora, isso é muito bom - exclamou Elsie Holland. - Vai distrair-se. É uma rapariga muito nervosa, sabem. Muito difícil. Vai ser um alívio sentir que não tenho de me preocupar com ela, além de tudo o resto. E muito amável da sua parte, Miss Burton.

- Oxalá ela não seja um incômodo. Meu Deus! É o telefone. Tenho de ir atender. Mr. Symmington não está em condições.

Precipitou-se para fora da sala.

- Um verdadeiro anjo auxiliador! - disse a Joanna.

- Disseste isso de uma maneira muito desagradável - observei eu. - Ela é uma rapariga simpática, amável e obviamente muito eficiente.

- Muito. E ela sabe-o.

- Isto é indigno de ti, Joanna - disse eu.

- Queres dizer “por que é que a rapariga não há-de fazer o que lhe compete”?

- Exatamente.

- Nunca suportei ver pessoas satisfeitas com elas mesmas - disse a Joanna. - Faz despertar todos os meus piores instintos. Como é que encontraste a Megan?

- Encolhida num quarto escurecido, parecia uma gazela ferida.

- Pobre miúda. Vem de bom grado?

- Aproveitou logo a oportunidade.

Uma série de ruídos surdos na entrada anunciaram a descida da Megan e da mala. Fui lá fora e tirei-lha. A Joanna, atrás de mim, disse insistentemente:

- Vamos lá. Já recusei duas vezes um chazinho quente.

Fomos para o carro. Aborreceu-me que tivesse de ser a Joanna a atirar com a mala lá para dentro. Agora já podia andar com uma bengala, mas não conseguia fazer proezas atléticas.

- Entra - disse eu à Megan. Ela entrou. Eu segui-a.

A Joanna pôs o carro em movimento e partimos.

Chegamos a Little Furze e fomos para a sala de visitas.

A Megan deixou-se cair numa cadeira e desatou a chorar. Chorava com o fervor sentido de uma criança - berrava, acho que é a palavra certa. Saí da sala, em busca de um remédio. A Joanna olhava, sentindo-se bastante impotente, acho eu. Passado pouco tempo, ouvi a Megan dizer numa voz rouca e sufocada:

- Desculpe-me por fazer isto. Parece uma idiotice.

A Joanna disse amavelmente: - De modo nenhum. Toma outro lenço. Deduzo que lho tenha fornecido.

Reentrei na sala e dei à Megan um copo cheio  até à borda.

- Que é isto?

- Um cocktail - disse eu.

- É? A sério? - as lágrimas da Megan secaram instantaneamente. - Nunca tomei um cocktail.

- Há uma primeira vez para tudo - disse eu.

A Megan bebericou cautelosamente; depois, um sorriso radiante espalhou-se-lhe pelo rosto, ela inclinou a cabeça para trás e engoliu a bebida de uma assentada.

- É uma delícia - disse ela. - Posso tomar outro?

- Não - disse eu.

- Por que não?

- Daqui a dez minutos já deves saber.

- Oh! A Megan transferiu a atenção para a Joanna.

- Lamento muito se a incomodei ao berrar daquela maneira. Não consigo imaginar por que o fiz. Parece uma idiotice, uma vez que estou tão contente por estar aqui.

- Não tem importância - disse a Joanna. - Estamos muito satisfeitos por te termos cá.

- Não podem estar a sério. É só amabilidade da vossa parte. Mas agradeço.

- Por favor, não agradeças - disse a Joanna. - Vou ficar embaraçada. Eu disse a verdade ao dizer que estávamos contentes por te termos cá. Eu e o Jerry já gastamos toda a nossa conversa. já não nos lembramos de mais nada para dizermos um ao outro.

- Mas agora - disse eu - vamos poder ter todo o tipo de discussões interessantes sobre a Goneril e a Regan e coisas no gênero. O rosto da Megan iluminou-se.

- Estive a pensar nisso e acho que já sei a resposta. Era por causa daquele horrível pai velho que elas tinham, sempre a insistir naquelas adulações todas. Quando tem de se estar sempre a dizer obrigada, e que amável e essas tretas todas, deve-se ficar um bocado reles e esquisito cá por dentro, e ansiar por ser desagradável, só para variar e quando se tem uma oportunidade, provavelmente descobre-se que ela subiu à cabeça e que se foi longe demais. O velho Lear era horrível, não era? Quero dizer, ele mereceu a afronta que a Cordelia lhe fez.

- Estou a ver que vamos ter muitas discussões interessantes sobre o Shakespeare -disse eu.

Estou a ver que as vossas conversas vão ser muito intelectuais – disse a Joanna. - Receio ter achado sempre o Shakespeare muito aborrecido. Todas aquelas longas cenas em que está toda a gente bêbeda e que é suposto serem engraçadas.

Por falar em beber - disse eu, virando-me para a Megan. - Como é que te sentes?

- Bastante bem, obrigada.

- Não sentes vertigens? Não vês duas Joannas ou coisa assim parecida?

- Não. Só me apetece falar muito.

- Ótimo - disse eu. - É óbvio que és uma das nossas bebedoras natas. Isto é, se aquele foi realmente o teu primeiro cocktail.

- Oh! foi sim.

- Uma cabeça boa e forte é uma vantagem para qualquer ser humano - disse eu.

A Joanna levou a Megan para cima para desfazer a mala.

A Partridge entrou, parecendo mal disposta, e disse que só tinha feito duas taças de leite-creme para o almoço e que não sabia como resolver o problema.

 

O inquérito teve lugar três dias mais tarde. Foi tudo feito o mais decorosamente possível, mas houve uma grande assistência e, como a Joanna observou, deu motivo a muito falatório.

A hora da morte de Mrs. Symmington foi calculada entre as três e as quatro horas. Ela estava sozinha em casa, o Symmington fora para o escritório, as criadas estavam de folga, Elsie Holland e as crianças tinham ido dar um passeio, e a Megan fora dar uma volta de bicicleta.

A carta deve ter chegado no correio da tarde. Mrs. Symmington deve ter pegado nela, lera-a, e depois, num estado de perturbação, deve ter ido à estufa buscar um pouco do cianeto que lá estava guardado para destruir vespeiros, diluindo-o em água e bebendo-o, depois de escrever as suas últimas palavras perturbadas: “Não posso continuar...”.

Owen Griffith deu o seu depoimento médico e insistiu no ponto de vista, que já nos descrevera em linhas gerais, do estado de nervos e da falta de resistência de Mrs. Symmington. O juiz de instrução foi cortês e discreto. Censurou friamente as pessoas que escrevem coisas desprezíveis como cartas anônimas. Quem quer que tivesse escrito aquela carta vil e mentirosa era moralmente culpado de homicídio, disse ele. Esperava que a Polícia descobrisse rapidamente o culpado e que tomasse medidas contra ele ou ela. Um exemplo tão covarde e malicioso de malevolência merecia ser castigado com o máximo rigor da lei. Orientado por ele, o júri trouxe o veredicto inevitável. Suicídio num momento de loucura.

O juiz fizera o melhor que podia - Owen Griffith também, mas depois, comprimido no meio da multidão de mulheres da aldeia ansiosas, escutei o mesmo sussurro sibilante e odioso que começava a conhecer tão bem: “Não há fumo sem fogo, é o que eu digo!”. “Devia haver alguma coisa, de certeza. Caso contrário, ela nunca faria aquilo...”. Por um momento, detestei Lymstock a sua pequenez, e as suas mulheres mexeriqueiras e maledicentes.

É difícil recordar as coisas na sua ordem cronológica exata. O acontecimento importante seguinte foi, claro, a visita do superintendente Nash. Mas foi antes disso, creio eu, que recebemos visitas de vários membros da comunidade, cada um deles interessante à sua maneira o que lançou alguma luz sobre os temperamentos e personalidades das pessoas envolvidas.

Aimée Griffith veio na manhã seguinte ao inquérito. Estava, como sempre, resplandecente de saúde e energia e conseguiu, também como de costume, irritar-me quase imediatamente. A Joanna e a Megan tinham saído, por isso fiz eu as honras.

- Bom dia - disse Miss Griffith. - Constou-me que têm cá a Megan Hunter?

 - Temos.

- Muito generoso da vossa parte, com certeza. Deve ser um incômodo para vós. Vim cá dizer que, se quiserem, ela pode ir para nossa casa. Creio bem que hei-de arranjar maneira de a tornar útil lá.

Olhei para Aimée Griffith com aversão.

- Que amabilidade a sua! - disse eu. - Mas nós gostamos de a ter cá. Anda muito feliz a vaguear por aí sem fazer nada.

- Creio bem que sim. Gosta demasiado de desperdiçar tempo, essa miúda. Por outro lado, suponho que não pode evitá-lo, já que é praticamente imbecil.

- Eu acho que é uma rapariga muito inteligente - respondi.

Aimée Griffith lançou-me um olhar duro.

- É a primeira vez que ouço alguém dizer isso - observou. - Quando falamos com ela, atravessa-nos com o olhar como se não compreendesse o que estamos a dizer!

- Talvez não esteja interessada, e pronto - disse eu.

- Nesse caso, é muito malcriada - disse Aimée Griffith.

- Isso, talvez. Mas não imbecil.

Miss Griffith declarou rispidamente:

- Na melhor das hipóteses, é distraída. Do que a Megan precisa é de trabalho duro, uma coisa que lhe dê um interesse na vida. Não faz idéia da importância que isso tem na vida de uma rapariga. Sei muita coisa sobre raparigas. Ficaria surpreendido se soubesse como e importante para elas o fato de se tornarem Guias. A Megan já é velha de mais para passar o tempo a vaguear por aí sem fazer nada.

- Até agora, tem sido muito difícil para ela fazer qualquer outra coisa disse eu. - Mrs. Symmington deu-me sempre a impressão de que julgava que a Megan tinha cerca de doze anos.

Mrs. Griffith bufou.

- Eu sei. Essa atitude dela impacientava-me. Claro que agora está morta, pobre mulher, por isso não se deve falar muito, mas ela era um exemplo perfeito daquilo a que eu chamo o tipo doméstico pouco inteligente. Bridge e mexeriquice e os filhos, e até desses era aquela rapariga Holland que cuidava. Receio nunca ter tido muita consideração por Mrs. Symmington, embora nunca tenha suspeitado da verdade.

- A verdade? - disse eu bruscamente.

Miss Griffith corou.

- Tive muita pena do Dick Symmington, por tudo aquilo se ter tornado público no inquérito - disse ela. - Foi horrível para ele.

- Mas certamente que o ouviu dizer que não havia uma palavra verdadeira naquela carta, que ele tinha a certeza absoluta disso?

- É claro que disse. Com toda a razão. Um homem tem de defender a mulher. Foi o que ele fez. - Fez uma pausa e depois explicou: - Sabe, conheço o Dick Symmington há muito tempo. Fiquei um pouco surpreendido.

- A sério? - disse eu. - O seu irmão deu-me a entender que só tinha comprado a clínica há alguns anos.

- Oh! sim, mas o Dick Symmington ia muitas vezes lá para os nossos lados, no norte. Conheço-o há anos.

As mulheres tiram conclusões precipitadas que os homens não tiram. Contudo, o tom subitamente enternecido da voz de Aimée Griffith pôs-me, como diria a nossa velha ama, idéias na cabeça.

Olhei para Aimée com curiosidade. Ela continuou - ainda naquele tom suave:

- Conheço muito bem o Dick... É um homem orgulhoso e muito reservado. Mas é o tipo de homem que pode ser muito ciumento.

- Isso pode explicar - disse eu deliberadamente - por que é que Mrs. Symmington teve medo de lhe mostrar a carta ou de lhe falar nela. Temeu que ele, por ser um homem ciumento, não acreditasse nos desmentidos dela.

Miss Griffith olhou para mim, irada e desdenhosamente.

- Santo Deus! - disse ela - acha que alguma mulher engoliria uma data de cianeto de potássio por uma acusação que não fosse verdadeira?

- Ao que parece, o juiz achou isso possível. O seu irmão também...  Aimée interrompeu-me.

- Os homens são todos iguais. Tudo para salvaguardar os bons costumes. Mas a mim não me apanha a acreditar nisso. Se uma mulher inocente recebe uma carta anônima revoltante, ri-se e deita-a fora com desprezo. Eu... - fez subitamente uma pausa e depois rematou - faria isso.

Mas eu reparei na pausa. Tive quase a certeza de que o que ela estivera prestes a dizer fora “Eu fiz isso”.  Decidi atacar.

- Estou a perceber - disse eu, jovialmente. - Então, também recebeu uma?

Aimée Griffith era o tipo de mulher que despreza a mentira. Hesitou por um instante, corou, e disse:

- Bem, sim. Mas não deixei que me perturbasse.

- Desagradável? - perguntei por simpatia para com uma companheira de desdita.

- Naturalmente. Estas coisas são sempre desagradáveis. Delírios de um doido. Li umas palavras, apercebi-me do que era e deitei-a logo para o cesto dos papéis.

- Não pensou em a levar à Polícia?

- Nessa altura, não. Quanto menos se falar melhor, foi o que eu achei.

Senti-me impelido a dizer solenemente: “Não há fumo sem fogo!”, mas contive-me. Para evitar a tentação, regressei à Megan.

- Faz alguma idéia da situação financeira da Megan? - perguntei.

- Não é uma curiosidade vã da minha parte. Gostava de saber se ela vai ter realmente necessidade de ganhar a vida.

- Não acho que seja absolutamente necessário. A avó paterna deixou-lhe um pequeno rendimento, creio eu. E, seja como for, o Dick Symmington dar-lhe-ia sempre um lar e cuidaria dela, mesmo que a mãe não lhe tenha deixado nada imediatamente. Não, é o princípio da coisa.

- Que princípio?

- O trabalho, Mr: Burton. Não há nada como o trabalho, para homens e mulheres. O único pecado imperdoável é a ociosidade.

- Sir Edward Grey - disse eu -, posteriormente nosso ministro dos Negócios Estrangeiros, foi expulso de Oxford por preguiça incorrigível. Ouvi dizer que o Duque de Wellington era mole e desatento nos estudos.

- Tenho uma teoria - disse eu, entusiasmando-me com o tema - de que devemos à ociosidade a maioria das nossas grandes invenções e a maior parte das realizações de gênio. A mente humana prefere ser alimentada à colher com os pensamentos dos outros, mas, privada de um alimento, começa, relutantemente, a pensar por si mesma, e essa reflexão, não se esqueça, é uma reflexão original e pode ter resultados preciosos.

Levantei-me e tirei da minha escrivaninha, uma fotografia da minha pintura chinesa preferida. Representa um velho, sentado debaixo de uma árvore, a brincar à cama do gato nos dedos das mãos e dos pés com um pedaço de fio.

- Estava na exposição chinesa - disse eu. - Fascinou-me. Permita-me que lha apresente. Chama-se “velho a Desfrutar do Prazer da Ociosidade”. Aimée Griffith não se impressionou com a minha encantadora pintura.

 Aimée disse:

- Oh! bem, todos sabemos como são os chineses!

- Não gosta? - perguntei.

- Receio não me interessar por arte. A sua atitude, Mr. Burton, é típica da maioria dos homens. Não lhe agrada a idéia de as mulheres trabalharem, de competirem.  Fiquei surpreendido por me encontrar inesperadamente com a Feminista.

- Lamento se a ofendi - disse eu. - De fato, não era aí que eu queria chegar. Aimée ia lançada, tinha a face corada.

- Para vós, é inconcebível que as mulheres queiram uma carreira. Era inconcebível para os meus pais. Eu estava ansiosa por estudar medicina. Eles nem quiseram ouvir falar em pagarem as propinas. Mas pelo Owen, pagaram-nas prontamente. Contudo, eu teria dado uma médica melhor do que o meu irmão.

- Tenho muita pena - disse eu. - Deve ter sido duro para si. Se uma pessoa quer fazer uma coisa... 

Ela continuou muito depressa: - Oh! já superei isso. Tenho muita força de vontade. A minha vida é ativa. Sou uma das pessoas mais felizes de Lymstock Tenho muito que fazer Mas revolto-me contra o preconceito antiquado e absurdo de que o lugar das mulheres é sempre o lar.

- Não vejo, de modo nenhum, a Megan num papel doméstico.

- Não, pobre miúda. Receio que seja uma inadaptada em qualquer parte. - Aimée acalmara-se. Estava outra vez a falar normalmente. - Sabe,o pai dela...

Hesitou, e eu disse abruptamente: - Não sei. Todos dizem “o pai dela” e baixam a voz, e pronto. Que é que o homem fez? Ainda está vivo?

- Na verdade, não sei. E receio que o que eu própria sei seja muito vago. Mas ele era, decididamente, má rês. Prisão, creio eu. E vestígios de anormalidade muito forte. É por isso que não me surpreenderia se a Megan não tivesse em plena posse das suas faculdades, e, “o juízo todo”.

- A Megan - disse eu - como já disse antes, considero-a uma miúda inteligente. A minha irmã também pensa o mesmo. A Joanna é muito amiga dela.

- Receio que a sua irmã ache isto aqui muito enfadonho. 

E quando ela disse aquilo, fiquei a saber outra coisa. Aimée Griffith não gostava da minha irmã. Era o que transparecia dos tons afáveis e convencionais da sua voz.

- Todos nos perguntamos como é que ambos suportaram enterrar-se num lugar tão remoto. Era uma pergunta, e eu respondi.

- Ordens do médico. Eu devia ir para um sítio muito sossegado, onde nunca acontecesse nada. - Fiz uma pausa e acrescentei: - Coisa que neste momento não é verdade em Lymstock.

- Não, realmente não.

Parecia preocupada e levantou-se para se ir embora. Então, disse:

- Sabe, tem de se pôr um fim a... toda esta bestialidade! Não podemos deixar que continue.

- A Polícia não está a fazer qualquer coisa?

- Presumo que sim. Mas acho que devíamos encarregar-nos nós da investigação.

- Não estamos tão bem equipados como ela.

- Disparate! Provavelmente, temos muito mais senso e inteligência! Só é preciso um pouco de determinação.

Despediu-se abruptamente e foi-se embora.

Quando a Joanna e a Megan voltaram do passeio, mostrei à Megan a minha pintura chinesa. O seu rosto animou-se. Disse: - É linda, não é?

- Essa é a minha opinião.

Estava a enrugar a testa daquela maneira que eu tão bem conhecia.

- Mas iria ser difícil, não iria?

- Ser ocioso?

- Não, não é ser ocioso, mas gozar os prazeres de não ter que o fazer. Teríamos de ser muito velhos... Fez uma pausa e eu disse: - Ele é um velho.

- Não quero dizer velho nesse sentido. Não na idade. Quero dizer velho em... em...

- Queres dizer - disse eu - que teríamos de alcançar um estado de civilização muito elevado para a coisa se nos apresentar dessa forma, um requintado momento de sofisticação? Acho que vou completar a tua educação, Megan, lendo-te cem poemas traduzidos do chinês.

No mesmo dia, mas mais tarde, encontrei o Symmington na povoação.

- Importa-se que a Megan fique conosco algum tempo? - perguntei. - Faz companhia à Joanna, ela às vezes sente-se só sem nenhuma das suas amigas.

- Oh!... hum... a Megan? Oh! sim, é muita amabilidade da vossa parte.

Nessa altura fiquei com uma aversão ao Symmington que nunca cheguei a superar. Era óbvio que se esquecera completamente da Megan. Não me teria importado, se ele antipatizasse ativamente com a miúda - às vezes um homem pode ter ciúmes do filho de um primeiro marido - mas ele não antipatizava com a Megan, pura e simplesmente, não reparava nela. Sentia por ela o que sente um homem, que não gosta muito de cães, por um cão que está lá em casa. Repara no cão quando tropeça nele e lhe roga pragas, e quando lhe dá uma palmadinha vaga se ele pede para ser afagado. A completa indiferença do Symmington pela enteada aborreceu-me muito.

- Que está a planear fazer com ela? - perguntei-lhe.

- Com a Megan? - pareceu muito surpreendido. - Bem, vai continuar a viver lá em casa. Quero dizer, naturalmente, é a casa dela.

A minha avó, de quem eu gostava muito, costumava cantar canções fora de moda acompanhada à viola. Lembrei-me de que uma delas terminava assim: “Oh, donzela, muito amada, eu não estou aqui Não tenho lugar, nem função, já não moro junto ao mar nem à praia, Mas só no teu coração”. Fui para casa a cantarolá-la entre dentes.

 

Emily Barton chegou logo depois da mesa do chá ter sido levantada.

Queria conversar sobre o jardim. Falamos do jardim durante cerca de meia hora. Depois voltamos para trás em direção a casa.

Foi nessa altura que, baixando a voz, ela murmurou:

- Espero que a miúda ... que ela não tenha ficado muito perturbada com todo este assunto horrível.

- Refere-se à morte da mãe?

- Também, claro. Mas referia-me, de fato, aos... aos dissabores que estão por trás. Fiquei curioso. Queria a reação de Miss Barton.

- Que pensa disso? Era verdade?

- Oh! não, não, certamente que não. Tenho a certeza de que Mrs. Symmington nunca... de que ele não era... Emily Barton estava corada e confusa. - Quero dizer, é mentira, embora, claro, possa ter sido um castigo.

- Um castigo? - disse eu, de olhos arregalados. Emily Barton estava muito corada, muito parecida com uma pastora de porcelana de Dresden.

- Não consigo deixar de sentir que todas estas cartas medonhas, a mágoa e o sofrimento que causaram, podem ter sido enviadas com uma finalidade.

- Sem dúvida que foram enviadas com uma finalidade - disse eu, sombriamente.

- Não, não, Mr. Burton, compreendeu-me mal. Não estou a falar da criatura desencaminhada que as escreveu, deve ser uma pessoa muito perversa. Quero dizer que elas foram permitidas ... pela Providência! Para tomarmos consciência das nossas imperfeições.

- Certamente que o Todo-Poderoso podia escolher uma arma menos repugnante - disse eu. Miss Emily murmurou que Deus agia de forma misteriosa.

- Não - disse eu. - Há uma tendência demasiado grande para atribuir a Deus os males que o homem faz de sua livre vontade. O Diabo, ainda admito. Na verdade, Deus não precisa de nos punir, Miss Barton. Nós já estamos muito ocupados a punir-nos a nós mesmos.

- O que não consigo perceber é o motivo por que alguém há-de querer fazer uma coisa destas. Encolhi os ombros.

- Uma mentalidade pervertida.

- Parece muito triste.

- A mim, não me parece triste. Parece-me apenas diabólico. E não peço desculpa pela palavra. É exatamente isso que penso. O rubor desaparecera da face de Miss Barton. Estava agora branca como a cal.

- Mas por que, Mr. Burton, por quê? Que prazer pode alguém tirar disso? - Não é coisa que eu e a senhora possamos compreender, graças a Deus. Emily Barton baixou a voz.

- Falam na tal Mrs. Cleat, mas na verdade não consigo acreditar nisso. Abanei a cabeça. Ela continuou, de modo excitado:

- Nunca tinha acontecido nada deste gênero, nunca, que eu me lembre. Tem sido uma pequena comunidade tão feliz! O que diria a minha querida mãe? Bem, temos de dar graças por ela ter sido poupada a isto.

De tudo o que ouvira dizer sobre a velha Mrs. Barton, achava que ela teria sido suficientemente forte para suportar qualquer coisa, e que provavelmente se teria divertido com esta comoção toda.

 Emily continuou:

- Isto aflige-me profundamente.

- A senhora não... hum... recebeu nada?

- Oh! não... oh! não, de verdade. Oh! isso seria horrível.

Pedi-lhe apressadamente desculpa, mas ela foi-se embora parecendo muito perturbada.

Entrei em casa. A Joanna estava de pé junto à lareira da sala de visitas, que acabara de acender, porque as noites ainda eram frias.

Tinha uma carta aberta na mão.

Virou rapidamente a cabeça quando eu entrei.

- Jerry! Encontrei isto na caixa do correio, metida lá pessoalmente. Começa com, “Sua rameira pintada”...

- Que mais diz?

A Joanna fez uma grande careta.

- A mesma porcaria do costume.

Largou-a na lareira. Com um gesto rápido que me fez doer as costas, puxei-a bruscamente antes de se incendiar

- Não faças isso - disse eu. - Podemos precisar dela.

- Precisar dela?

- Para a Polícia.

O superintendente Nash veio falar comigo na manhã seguinte. Simpatizei muito com ele logo que o vi. Era o protótipo do superintendente do C.I.D.(1) do condado. Alto, marcial, com olhos calmos e pensativos e uma conduta franca e despretensiosa.

 

(1) C.I.D. - Ramo de investigação criminal da Polícia do Reino Unido. (N. da T)

 

- Bom dia, Mr. Burton, suponho que calcula o motivo por que vim falar consigo.

- Acho que sim. Este assunto das cartas.

- Parece que recebeu uma?

- Sim, pouco depois de termos chegado cá.

- Que dizia exatamente?

Fiquei um momento a pensar, depois, repeti-lhe conscienciosamente o enunciado da carta com o máximo rigor possível.

O superintendente escutou com um rosto impassível, sem mostrar sinais de qualquer tipo de emoção. Quando acabei, disse:

Não guardou a carta, Mr Burton?

- Lamento. Não a guardei. Pensei que era só um exemplo isolado de rancor contra recém-chegados à localidade. O superintendente inclinou a cabeça compreensivamente.

- Que pena! - disse laconicamente.

- Contudo - disse eu -, a minha irmã recebeu uma ontem. Impedi-a a tempo de a deitar à lareira.

- Obrigado, Mr. Burton, foi muito previdente.

Fui até à minha escrivaninha e abri a gaveta onde a tinha fechado à chave.

Entreguei-a ao Nash. Ele leu-a até ao fim. Depois, ergueu o olhar e perguntou-me:

- Tem o mesmo aspecto da última?

- Acho que sim, tanto quanto me lembro.

- A mesma discrepância entre o envelope e o texto?

- Sim - disse eu. - O envelope era datilografado. A carta propriamente dita tinha palavras impressas coladas numa folha de papel. O Nash acenou afirmativamente e meteu-a no bolso. Depois, disse:

- Gostava de saber, Mr. Burton, se se importaria de ir até à esquadra comigo. Podíamos ter lá uma reunião, o que pouparia uma grande quantidade de tempo e de repetições.

- Certamente - disse eu. - Quer que vá já?

Ele acenou afirmativamente.

- Se não se importa.

Estava um carro da Polícia à porta. Fomos para baixo nele.

Eu disse:

- Acha que vai conseguir descobrir o responsável? O Nash acenou afirmativamente, com uma confiança natural.

- Oh! sim, vamos descobrir o responsável, sem dúvida. É uma questão de tempo e de rotina. Estes casos são lentos, mas são muito seguros. É uma questão de restringir as coisas.

- Compreendo. 

- Sim. E rotina geral.

Vigiar caixas de correio, examinar máquinas de escrever, impressões digitais, e tudo isso?

- Eliminação? - disse eu.

Sorriu. - É como diz.

Na esquadra, descobri que o Symmington e o Griffith já lá estavam. Fui  apresentado a um homem à paisana, alto e de queixo saliente, o inspetor Graves.

O inspetor Graves - explicou o Nash - veio de Londres para nos ajudar. É um perito em casos de cartas anônimas.

O inspetor Graves sorriu pesarosamente. Fiquei a meditar que uma vida passada na perseguição de autores de cartas anônimas devia ser particularmente deprimente. O inspetor Graves, contudo, revelava uma espécie de entusiasmo melancólico.

- São todos iguais, estes casos - disse ele numa voz profunda e lúgubre, como um sabujo desanimado. - Ficariam surpreendidos. A linguagem das cartas e as coisas que dizem.

- Tivemos um caso precisamente há dois anos - disse o Nash. - O inspetor Graves ajudou-nos nessa altura.

Vi que algumas das cartas estavam espalhadas na mesa diante de Graves. Estivera, evidentemente, a examiná-las.

- A dificuldade - disse o Nash - é conseguirmos as cartas. As pessoas ou as deitam à lareira, ou não admitem ter recebido nada do gênero. São estúpidas, percebe, e receiam envolver-se com a Polícia. Esta gente é retrógrada.

- Contudo, já temos uma boa quantidade para darmos prosseguimento ao caso - disse Graves. O Nash tirou do bolso a carta que eu lhe dera e atirou-a a Graves.

Este deu-lhe uma vista de olhos, colocou-a junto às outras e observou, aprovador:

- Muito boa, realmente muito boa.

Não seria essa a forma que eu escolheria para descrever a epístola em questão, mas os peritos, suponho eu, têm o seu próprio ponto de vista. Ainda bem que aquela ladainha de calúnias injuriosas e obscenas dava prazer a alguém.

- Acho que temos material suficiente para prosseguirmos - disse o inspetor Graves -, e peço-lhes, meus senhores, que se receberem mais algumas cartas as tragam cá imediatamente. Se souberem de alguém que tenha recebido uma (especialmente o doutor, entre os seus pacientes), também lhes peço que façam o possível para convencer a pessoa a traze-la cá. Tenho - escolheu com dedos hábeis entre as provas - uma do Mr. Symmington, recebida há dois meses, uma do Dr. Griffith, uma da Miss Ginch, uma escrita a Mrs. Mudge, a mulher do homem do talho, uma a Jennifer Clark, empregada de bar no Three Crowns, a recebida por Mrs. Symmington, agora esta para Miss Burton... oh! sim, e uma do gerente do banco.

- Uma coleção muito representativa - observei eu.

- E todas elas se assemelham às dos outros casos! Esta aqui é praticamente idêntica a uma escrita por aquela modista de chapéus. Esta é parecida com as de um surto em Northumberland, tinham sido escritas por uma estudante. Posso dizer-lhes, meus senhores, que às vezes gostava de ver qualquer coisa nova em vez do mesmo velho ramerrão.

- Não há nada de novo debaixo do sol - murmurei.

- Exatamente, sir. Saberia o que isso é, se tivesse a nossa profissão.

O Nash suspirou e disse: - Sim, é verdade.

O Symmington perguntou:

- Chegaram a alguma opinião definitiva quanto ao autor das cartas?

O Graves aclarou a voz e fez uma pequena preleção.

- Há certas semelhanças entre todas estas cartas. Vou enumerá-las, meus senhores, para o caso de elas lhes sugerirem alguma coisa. O texto das cartas é composto por palavras feitas com letras individuais recortadas de um livro impresso. É um livro antigo, impresso, diria eu, por volta do ano de 1830. Isto foi obviamente feito para evitar o perigo de reconhecimento através da caligrafia que é, como a maioria das pessoas sabe atualmente, uma questão muito simples... a chamada dissimulação da letra não tem grande significado quando submetida aos testes dos peritos. Não há impressões digitais de caráter distintivo nem nas cartas, nem nos envelopes. Isto quer dizer que foram manuseadas pelas autoridades postais, pelo destinatário, e que há outras impressões digitais acidentais mas nenhum conjunto comum a todas, o que mostra, por isso, que a pessoa que as montou teve o cuidado de usar luvas. Os envelopes foram datilografados numa máquina Windsor 7, muito usada, com o a e o t fora do alinhamento. A maior parte delas foi posta no correio local, ou metida pessoalmente nas caixas de correio das casas. É por isso evidente que são de proveniência local. Foram escritas por uma mulher, em minha opinião de meia-idade ou mais velha, e é provável, embora não certo, que não seja casada.

Mantivemo-nos num silêncio respeitoso durante uns momentos. Depois eu disse:

- A máquina de escrever é a vossa melhor aposta, não é? Não deve ser muito difícil num lugar pequeno como este. O inspetor Graves abanou a cabeça tristemente e disse:

- Aí é que se engana, sir

- A máquina de escrever - disse o superintendente Nash - é infelizmente fácil de mais. É uma velha máquina do escritório de Mr. Symmington, oferecida por ele ao Instituto das Mulheres onde, posso afirmar. ela é de muito fácil acesso. As senhoras daqui vão todas frequentemente ao Instituto.

- Não podem dizer nada de definitivo a partir do... hum ... do batimento das teclas, ou como lhe chamam? Mais uma vez, o Graves acenou afirmativamente.

- Sim, isso pode fazer-se, mas estes envelopes foram todos datilografados por uma pessoa a usar só um dedo.

- Consequentemente, é uma pessoa que não está habituada a escrever à máquina?

- Não, não diria isso. É uma pessoa que sabe datilografar, mas que não oficio.

- Seja quem for, a pessoa que escreveu estas coisas é muito astuta disse eu lentamente.

- É sim, sir, é sim - disse o Graves. - É capaz de todos os truques do quer que saibamos disso.

- Não imaginava que uma destas bucólicas mulheres daqui tivesse inteligência

para isso - disse eu. O Graves tossiu.

- Receio não me ter explicado bem. Aquelas cartas foram escritas por uma mulher educada.

- O quê? Por uma senhora?

A palavra escapou-me involuntariamente. Não usava o termo “senhora” há anos. Mas agora veio-me automaticamente aos lábios, ecoando dias muito longínquos e a voz fraca e inconscientemente arrogante da minha avó a dizer: “claro que ela não é uma senhora, querido”.

O Nash percebeu imediatamente. A palavra senhora ainda significava qualquer coisa para ele.

- Não necessariamente uma senhora - disse ele. - Mas sem dúvida que não é uma aldeã. A mulheres daqui são, na sua maioria, bastante iletradas, não sabem soletrar, e certamente que não sabem exprimir-se com fluência.

Fiquei calado, porque tinha tido um choque. A comunidade era tão pequena! Inconscientemente, tinha visualizado a autora das cartas como uma Mrs. Cleat ou uma mulher do gênero, uma idiota astuta e rancorosa.

O Symmington pôs os meus pensamentos em palavras. Disse bruscamente:

- Mas isso restringe as coisas a meia dúzia ou a uma dúzia de pessoas na localidade toda!

- Exatamente.

- Não posso acreditar nisso.

Depois, com um pequeno esforço, e olhando a direito para a frente como se o mero som das suas palavras fosse desagradável, disse:

- Escutaram o meu depoimento no inquérito. No caso de poderem ter pensado que esse depoimento foi movido por um desejo de proteger a memória da minha mulher, gostaria de repetir agora que estou firmemente convencido de que o conteúdo da carta que a minha mulher recebeu era absolutamente falso. Eu sei que era falso. A minha mulher era muito sensível, e... hum... bem, sob alguns aspectos, podíamos chamar-lhe pudica. Uma carta daquelas seria um grande choque para ela, e ela não estava bem de saúde.

O Graves respondeu imediatamente.

- É muito provável que tenha razão, sir. Nenhuma destas cartas mostra quaisquer sinais de conhecimento íntimo. São apenas acusações às cegas. Não houve nenhuma tentativa de chantagem. E não parece tratar-se de qualquer preconceito religioso, como às vezes acontece. É apenas sexo e malevolência! E isso vai dar-nos uma boa indicação da autora.

O Symmington levantou-se. Por muito seco e fleumático que o homem fosse, tinha os lábios a tremer

- Espero que encontrem em breve o diabo que as escreveu. Ela assassinou a minha mulher tão seguramente como se lhe tivesse espetado uma faca. - Fez uma pausa.

- Gostava de saber como se sentirá agora. Saiu, deixando a pergunta sem resposta.

- Como é que ela se sente, Griffith? - perguntei. Pareceu-me que a resposta era da competência dele.

- Sabe Deus! Talvez cheia de remorsos. Por outro lado, pode ser que esteja a gostar do poder que tem. A morte de Mrs. Symmington pode ter-lhe alimentado a loucura.

- Espero que não - disse eu, com um leve arrepio. - Porque nesse caso, irá... Hesitei, e o Nash concluiu a frase por mim.

- Irá tentar de novo? Para nós, Mr Burton, isso seria a coisa melhor que podia acontecer Lembre-se de que tantas vezes vai o cântaro à fonte...

- Seria louca, se continuasse com isto - exclamei.

- Vai continuar - disse o Graves. - Continuam sempre. É um vício, sabe, não conseguem deixá-lo. Abanei a cabeça com um estremecimento. Perguntei se ainda precisavam de mim, queria sair e apanhar ar. A atmosfera parecia impregnada de mal.

- Já acabamos, Mr. Burton - disse o Nash. - Mantenha os olhos abertos e faça o máximo de propaganda possível, quero dizer, insista com as pessoas para que nos informem de qualquer carta que recebam.

Acenei afirmativamente.

- Suponho que, nesta altura, já toda a gente da terra recebeu uma dessas coisas infames disse eu.

- Duvido - disse o Graves. Inclinou a sua cabeça triste um pouco para o lado e perguntou: - Não sabe, com toda a certeza, de alguém que não tenha recebido uma carta?

- Que pergunta extraordinária! É muito improvável que a população em geral me conte os seus segredos.

- Não, não, Mr. Burton, não queria dizer isso. Só gostava de saber se sabe de qualquer pessoa que, ao que saiba, com alguma certeza, não tenha recebido uma carta anônima. 

- Bem, na realidade - hesitei - de certo modo, sei. E repeti a minha conversa com Emily Barton e o que ela me dissera. O Graves recebeu a informação com um rosto inexpressivo e disse: - Bem, isso pode ser de utilidade, vou tomar nota. Saí para o sol da tarde com o Owen Griffith. Uma vez na rua, praguejei.

- Ouça, Griffith, eles sabem alguma coisa? Têm alguma idéia?

- Não sei. Têm uma técnica maravilhosa, os polícias. São aparentemente muito francos e não nos dizem nada.

- Sim. O Nash é um tipo simpático.

- E muito competente.

- Se está alguém louco nesta terra, você devia saber - disse eu, acusadoramente.

O Griffith abanou a cabeça. Parecia desanimado. Mas parecia mais do que isso - parecia preocupado. Perguntei a mim próprio se ele não teria uma idéia de qualquer tipo.

Seguíamos a pé pela High Street fora. Parei à porta da agência imobiliária.

- Acho que vou pagar a segunda prestação da renda antecipado. Estou decidido a pagá-la e a fugir daqui com a Joanna imediatamente. Perco o direito ao resto do arrendamento.

- Não vá - disse o Owen.

- Por que não?Ele não respondeu. Disse, devagar, uns momentos depois:

- No fim de contas - atrevo-me a dizer que tem razão. Neste exato momento Lymstock não está saudável. Pode fazer-lhe mal a si ou à sua irmã.

Nada faz mal à Joanna - disse eu. - Ela é forte. Eu é que sou o fraco. De certo modo, este assunto dá-me náuseas.

- Dá-me náuseas a mim - disse o Owen.

Empurrei a porta da agência imobiliária e entreabri-a.

- Mas não vou - disse eu. - A curiosidade vulgar é mais forte do que a covardia. Quero saber a solução.

Entrei.

Uma mulher que estava a escrever à máquina levantou-se e dirigiu-se a mim em voz alta: - Que terra é esta para um homem vir deitar-se ao sol a curar as feridas? Tinha cabelo frisado e um sorriso afetado, mas achei-a mais inteligente do que a jovem de óculos que antes dirigia a recepção.

- Está cheia de veneno contaminante, esta terra, e parece tão pacífica e inocente como um jardim do Éden.

- Até lá - disse o Owen secamente - havia uma serpente.

Uns instantes mais tarde tomei consciência de alguma coisa de familiar nela. Era Miss Ginch, até recentemente amanuense do Symmington. Comentei o fato.

- Trabalhava na Galbraith, Galbraith & Symmington, não é verdade? - disse eu.

- Sim. Sim, de fato. Mas achei melhor sair. Este emprego é bastante bom, embora não paguem tão bem. Mas há coisas que valem mais do que o dinheiro, não acha?

- Sem dúvida - disse eu.

- Aquelas cartas horríveis - disse Miss Ginch num sussurro sibilante. - Recebi uma medonha. Sobre mim e Mr. Symmington... oh!, era terrível, dizia coisas horríveis! Sabia qual era o meu dever e levei-a à Polícia, embora, claro, isso não fosse exatamente agradável para mim, pois não?

- Não, não, muito desagradável.

- Mas eles agradeceram-me e disseram que eu agira muito bem. Mas depois daquilo, eu achei que se as pessoas falavam (e evidentemente deviam falar, ou de onde é que o autor das cartas tiraria a idéia?), então eu devia evitar até a aparência do mal, embora nunca tenha havido nada de errado entre mim e Mr. Symmington.

Senti-me muito embaraçado.

- Mas as pessoas têm espíritos muito maldosos. Sim, ai de mim! Espíritos muito maldosos!

Tentei nervosamente evitar o olhar dela, mas apesar disso os meus olhos cruzaram-se com os seus, e fiz uma descoberta muito desagradável. Miss Ginch estava a divertir-se muito. Já hoje me cruzara com uma pessoa que reagira com prazer às cartas anônimas. O entusiasmo do inspetor Graves era profissional. Achei a satisfação de Miss Ginch meramente provocadora e repugnante. Pelo meu espírito surpreendido passou uma idéia súbita.

Teria a própria Miss Ginch escrito estas cartas?

 

Quando cheguei a casa, encontrei Mrs. Dane Calthrop sentada a falar com a Joanna. Parecia, pensei eu, pálida e doente.

- Foi um choque terrível para mim, Mr. Burton - disse ela. - Coitadinha, coitadinha!

- Sim - disse eu. - É horrível pensar que uma pessoa foi levada a suicidar-se. Oh! refere-se a Mrs. Symmington?

- A senhora não?

Mrs. Dane Calthrop abanou a cabeça.

- Não, não, claro que não. - Claro que é digna de pena, mas isso ia fatalmente acontecer, não ia?

- Ia? - disse a Joanna secamente.

Miss Dane Calthrop virou-se para ela.

- Oh! acho que sim, querida. Se o suicídio é a idéia que se tem para fugir aos problemas, não importa muito qual é o problema. Sempre que ela tivesse de enfrentar um choque muito desagradável, teria feito a mesma coisa. Tudo se resume ao fato de ela ser esse tipo de mulher. Não quer dizer que alguém pudesse imaginar tal coisa. Ela sempre me pareceu uma mulher egoísta e muito estúpida, com muito apego à vida. Não se pensaria que fosse do tipo que entra em pânico, mas começo a aperceber-me de que realmente conheço pouco as pessoas.

- Ainda estou curioso sobre a quem se referia quando disse “Coitadinha” - observei.

Ela olhou-me fixamente.

- À mulher que escreveu as cartas, claro.

- Não creio - disse eu secamente - que vá desperdiçar simpatia com ela.

Mrs. Dane Calthrop inclinou-se para a frente. Pousou uma mão no meu joelho.

- Mas não percebe... não sente? Use a imaginação. Pense em como uma pessoa deve sentir-se desesperada e violentamente infeliz para se sentar a escrever estas coisas. Tão solitária, tão alienada da espécie humana! Completamente envenenada por uma escura torrente de veneno que encontra um escape desta forma. É por isso que me censuro a mim mesma. Uma pessoa da localidade tem sido torturada por esta infelicidade terrível, e eu não fazia a mínima idéia. E devia fazer. Não podemos interferir nos atos, eu nunca o faço. Mas essa negra infelicidade íntima, fisicamente como um braço septicêmico todo negro e inchado... se pudéssemos decepá-la e deixar sair o veneno, ele correria para fora de modo inofensivo. Sim, pobre alma, pobre alma.

Levantou-se para se ir embora. Não me apetecia concordar com ela. Não tinha qualquer simpatia pela nossa autora de cartas anônimas. Mas perguntei com curiosidade:

- Faz alguma idéia, Mrs. Calthrop, de quem é esta mulher?

Ela virou para mim os seus belos olhos perplexos.

- Bem, posso imaginar - disse ela. - Mas posso estar enganada, não posso?

Saiu rapidamente pela porta, espreitando outra vez para dentro para perguntar:

- Diga-me, Mr Burton, por que é que nunca se casou?

Noutra pessoa qualquer isto teria sido uma impertinência, mas em Mrs. Dane Calthrop tinha-se a impressão de que a idéia lhe surgira subitamente e que ela queria realmente saber.

- Digamos - disse eu, a zombar - que nunca encontrei a mulher certa.

- Podemos dizer isso - disse Mrs. Dane Calthrop -, mas não seria uma resposta muito boa, porque é óbvio que muitos homens casaram com a mulher errada. Desta vez, foi-se mesmo embora. A Joanna disse:

- Sabes, tenho a impressão de que ela é de fato louca. Mas gosto dela. As pessoas cá da aldeia temem-na.

- Eu também, um pouco.

- Porque nunca se sabe o que vem a seguir?

- Sim. E porque há uma inteligência descuidada nas suas suposições.

- Achas realmente que a pessoa que escreveu as cartas é mui to infeliz? - disse a Joanna lentamente.

- Ignoro o que essa maldita bruxa pensa ou sente! E não me interessa. É das vítimas dela que eu tenho pena.

Neste momento, parece-me curioso que nas nossas especulações sobre a disposição mental da Autora das Cartas Anônimas tivéssemos deixado passar a mais óbvia. O Griffith descrevera-a como possivelmente exultante. Eu imaginava-a cheia de remorsos, aterrada com o resultado da sua obra. Mrs. Dane Calthrop via-a a sofrer.

Contudo, não consideramos a reação óbvia e inevitável - ou talvez devesse dizer, eu não a considerei. Essa reação era Medo.

Porque com a morte de Mrs. Symmington, as cartas tinham passado de uma categoria para outra. Desconheço qual era a posição legal - o Symmington sabia, suponho, mas era evidente que, com uma morte como conseqüência, a situação da autora das cartas era muito mais grave. Agora já não se punha a questão de deixar passar a coisa como uma brincadeira, se a identidade da autora fosse descoberta. A Polícia estava ativa, fora chamado um perito da Scotland Yard. Agora era vital para a autora anônima permanecer anônima.

E admitindo que o Medo era a reação principal, outras coisas se seguiriam. Também não me apercebi dessas possibilidades. Contudo elas deviam, sem dúvida, ter sido óbvias.

 

Na manhã seguinte, eu e a Joanna descemos bastante tarde para o pequeno­-almoço. Isto é, tarde pelos padrões de Lymstock. Eram nove e meia, hora em que, em Londres, a Joanna estaria a abrir uma pálpebra, e as minhas, provavelmente, ainda se manteriam bem fechadas. Seja como for, quando a Partridge dissera “pequeno-almoço às oito e meia ou às nove?”, nem eu nem a Joanna tivéramos coragem de sugerir uma hora mais tardia.

Para aborrecimento meu, Aimée Griffith estava de pé na entrada a falar com a Megan.

Quando nos viu, gritou com a sua habitual energia:

- Olá, seus preguiçosos! Estou a pé há horas.

Isso, claro, era problema dela. Sem dúvida que um médico tem de tomar pequeno-almoço cedo, e uma irmã atenciosa está lá para lhe servir o chá ou café. Mas isso não é desculpa para ela se meter na vida de vizinhos mais sonolentos. Nove e meia da manhã não são horas para uma visita matinal.

A Megan escapou-se para dentro de casa e para a sala de jantar, onde, deduzi eu, tivera de interromper o pequeno-almoço.

- Eu disse que não entrava - disse Aimée Griffith, embora eu ignore o motivo por que é mais meritório obrigar as pessoas a virem falar conosco à porta do que falar com elas dentro de casa. - Só queria perguntar a Miss Burton se pode dispensar alguns legumes para a nossa barraca da Cruz Vermelha, na estrada principal. Se puder, mando o Owen buscá-los no carro. Começa a sua atividade muito cedo - disse eu. Quem cedo madruga, Deus o ajuda - disse Aimée. - Há mais probabilidades de encontrar as pessoas a esta hora do dia. A seguir vou a casa de Mr Pye. Tenho de ir a Brenton esta tarde. Guias.

- A sua energia cansa-me muito - disse eu, e naquele momento tocou o telefone e eu retirei-me para a parte de trás do hall para atender, deixando a Joanna a murmurar, hesitante, qualquer coisa sobre ruibarbo e feijão-verde e a revelar a sua muito ignorância sobre a horta.

- Estou? - disse eu para o bocal do telefone.

Um ruído confuso de respiração forte chegou do outro lado do fio, e uma hesitante voz feminina disse: - Oh!

- Estou? - disse outra vez, encorajadoramente.

- Oh! - disse de novo a voz, e depois inquiriu, a falar pelo nariz: -Fala, quero dizer, fala de Little Furze?

- Aqui é Little Furze.

- Oh! - este era obviamente um início já batido para todas as frases. A voz inquiriu cautelosamente: - Posso falar um momento com Miss Partridge?

- Com certeza - disse eu. - Quem devo anunciar?

- Oh! diga-lhe que é a Agnes, por favor. Agnes Waddle.

- Agnes Waddle?

- Exatamente.

Resistindo à tentação de dizer “Para si, Pato Donald”, pousei o auscultador e chamei para o cimo das escadas, onde podia ouvir o barulho das atividades da Partridge.

- Partridge! Partridge!

A Partridge apareceu ao cimo das escadas, com um comprido esfregão numa mão e um ar de “Que foi agora?” perfeitamente discernível por trás da sua conduta invariavelmente respeitosa.

- Sim, sir?

- Agnes Waddle quer falar consigo ao telefone.

- Desculpe, sir? Levantei a voz. - Agnes Waddle. Escrevi o nome como ele se me apresentou ao espírito. Mas agora vou escrevê-lo como se escreve realmente.

- Agnes Woddell, que será que ela quer agora? Muito desconcertada, a Partridge abandonou o esfregão e desceu as escadas com um ruge-ruge do vestido de chita que estalava com a agitação.

Bati discretamente em retirada para a sala de jantar, onde a Megan devorava rins com toucinho fumado. A Megan, ao contrário de Aimée Griffith, não exibia um “glorioso rosto matutino”. Na realidade, respondeu bruscamente às minhas saudações matinais e continuou a comer em silêncio.

Abri o jornal da manhã e um momento mais tarde entrou a Joanna, parecendo um pouco abalada.

- Uf - disse ela. - Estou tão cansada! E acho que revelei a minha absoluta ignorância sobre as coisas que crescem e quando. Não há feijões-carrapato nesta altura do ano?

- Agosto - disse a Megan.

- Bem, em Londres há em qualquer altura - disse a Joanna na defensiva.

- Enlatados, sua tonta - disse eu. - E guardados em frigoríficos, em navios dos confins remotos do império.

- Como marfim, macacos e pavões? - perguntou a Joanna.

- Exatamente. Eu gostava de ter um macaco como animal de estimação - disse a Megan.

- Preferia ter pavões - disse a Joanna pensativamente.

Descascando meditativamente uma laranja, a Joanna disse:

- Pergunto a mim mesma qual seria a sensação de ser Aimée Griffith, a rebentar de saúde, e de energia, e de prazer pela vida. Achas que alguma vez se sente cansada, ou deprimida, ou... ou melancólica?

Eu disse que tinha a certeza de que Aimée Griffith nunca estava melancólica, e segui a Megan até à varanda através da porta envidraçada. Estava lá de pé a encher o meu cachimbo, quando ouvi a Partridge entrar na sala de jantar e a voz dela dizer sombriamente:

- Posso falar consigo um momento, miss? Valha-me Deus!, pensei. Oxalá a Partridge não queira despedir-se. Emily Barton vai ficar muito aborrecida conosco, se isso acontecer

A Partridge continuou: - Peço desculpa, miss, por me terem telefonado. Isto é, a jovem que ligou tinha obrigação de saber comportar-se. Nunca tive o hábito de usar o telefone, nem de permitir que as minhas amigas me telefonem, e lamento muito, de verdade, que isto tenha acontecido, e por ter sido o patrão a atender e tudo.

- Ora, não faz mal, Partridge - disse a Joanna, brandamente. - Por que é que as suas amigas não hão-de usar o telefone, se querem falar consigo?

Embora não o visse, senti que o rosto da Partridge ficou mais severo do que nunca, enquanto respondia friamente:

- Não é o tipo de coisa que alguma vez se tenha feito nesta casa. Miss Emily nunca o permitiria. Como disse, lamento que tenha acontecido, mas Agnes Woddell, a rapariga que telefonou, estava perturbada, e também é muito nova, e não sabe o que é próprio na casa de um cavalheiro.

Toma lá, que já almoçaste, Joanna, pensei com satisfação.

- Esta Agnes que me telefonou, miss - continuou a Partridge esteve cá a servir sob as minhas ordens. Tinha dezesseis anos nessa altura e veio direta do orfanato. Como não tem casa, nem mãe, nem parentes que a aconselhem, tem o hábito de vir ter comigo, percebe? Eu digo-lhe como são as coisas, percebe?

- Sim? - disse a Joanna e esperou. Era óbvio que havia mais.

- Por isso tomo a liberdade de lhe pedir, miss, que permita que a Agnes venha cá esta tarde tomar chá na cozinha. É o dia de folga dela, percebe, e quer consultar-me, sobre uma preocupação qualquer que tem. Não sonharia sugerir tal coisa em circunstâncias normais.

A Joanna disse, desconcertada:

- Mas por que é que não há-de receber alguém para tomar chá consigo?

A Partridge empertigou-se, disse-me depois a Joanna, e tinha de fato um ar formidável ao replicar:

- Nunca foi costume Desta Casa, miss. A velha Mrs. Barton nunca permitia visitas na cozinha exceto no nosso dia de folga, em que tínhamos licença para recebermos as amigas aqui em vez de sairmos, mas fora isso, nos dias normais, não. E Miss Emily segue os costumes antigos.

A Joanna é muito simpática com as criadas, e a maioria gosta dela, mas nunca conseguiu impressionar a Partridge.

- Não serve de nada, miúda - disse eu, quando a Partridge se foi embora e a Joanna se juntou a mim lá fora. - A tua simpatia e brandura não são apreciadas. Para a Partridge, bons e velhos costumes autoritários e as coisas feitas como devem ser feitas na casa de um cavalheiro.

- Nunca tinha ouvido tamanha tirania, não permitirem que as amigas as visitem - disse a Joanna. - Está tudo muito bem, Jerry, mas elas não podem gostar de ser tratadas como escravas negras.

- É evidente que gostam - disse eu. - Pelo menos, as Partridges deste mundo gostam.

- Não consigo imaginar por que é que não gosta de mim. A maioria das pessoas gosta.

- Provavelmente despreza-te por seres uma dona de casa inadequada. Nunca passas a mão por uma prateleira para ver se tem vestígios de pó. Não olhas para debaixo dos tapetes. Não perguntas o que aconteceu aos restos do soup de chocolate, e nunca mandas fazer um bom pudim de pão.

- Ui! - disse a Joanna.

Prosseguiu tristemente. - Hoje, sou um fracasso completo. Desprezada pela nossa Aimée devido à minha ignorância sobre o reino vegetal. Censurada pela Partridge por ser um ser humano. Agora vou para o jardim comer lagartas.

- A Megan já lá está - disse eu.

Porque a Megan tinha-se afastado havia uns minutos e estava agora de pé, sem objetivo, no meio de um pedaço de relvado, parecendo um pássaro meditativo à espera de alimento.

Contudo, voltou para junto de nós e disse abruptamente:

- Olhem, tenho de voltar hoje para casa.

- Quê? - fiquei consternado.

- Foram muito bons em me terem tido cá, e devo ter causado imensos incômodos, mas gostei imenso, só que agora tenho de voltar, porque, no fim de contas, bem, é a minha casa, e não posso ficar cá para sempre, por isso acho que vou esta manhã.

Tanto eu como a Joanna tentamos fazê-la mudar de idéias, mas ela foi inflexível; por fim, a Joanna tirou o carro da garagem e a Megan foi ao andar de cima e voltou uns minutos mais tarde com os seus pertences novamente emalados.

A única pessoa satisfeita parecia ser a Partridge, que quase tinha um sorriso na cara carrancuda. Nunca gostara muito da Megan. Eu estava de pé no meio do relvado quando a Joanna regressou. Perguntou-me se eu achava que era um relógio de sol.

- Por quê?

- Estás aí de pé como um ornamento de jardim. Só que em ti, não se pode pôr a legenda de que só marcas as horas de sol. Parecias uma trovoada!

- Esgotei o meu humor. Primeiro, Aimée Griffith “Meu Deus!” murmurou a Joanna entre parênteses, “tenho de ir falar dos legumes!” e depois a Megan a desaparecer. Tinha pensado levá-la a passear até Legge Tor.

- Com coleira e trela, suponho? - disse a Joanna.

- Quê?

A Joanna repetiu alto e bom som, enquanto desaparecia na esquina da casa em direção à horta:

- Disse “com coleira e trela, suponho?”. O dono perdeu o cão, é isso que se passa contigo. Estava irritado, tenho de confessar, com a forma abrupta como a Megan nos deixara. Talvez se tivesse subitamente aborrecido de nós. No fim de contas, não era uma vida muito divertida para uma rapariga. Em casa, tinha os miúdos e Elsie Holland. Senti a Joanna voltar e mudei rapidamente de posição, não fosse ela fazer mais observações ofensivas sobre relógios de sol. O Owen Griffith apareceu de carro mesmo antes da hora do almoço, e o jardineiro estava à espera dele com os necessários produtos hortícolas. Enquanto o velho Adams os arrumava no carro, eu trouxe o Owen para dentro para tomarmos uma bebida. Ele não queria ficar para almoçar. Quando entrei com o xerez, descobri que a Joanna tinha começado a fazer das dela.

Agora não dava sinais de animosidade. Tinha-se enroscado num canto do sofá e estava positivamente a ronronar, ao fazer perguntas ao Owen sobre o seu trabalho. Gostava de ser médico de clínica geral? Não preferia ter tirado uma especialidade? Ela achava que exercer medicina era uma das coisas mais fascinantes do mundo.

Digam o que disserem da Joanna, ela é uma ouvinte adorável, excepcionalmente dotada. E depois de escutar tantos aspirantes a gênios dizerem que não eram reconhecidos, ouvir o Owen Griffith era fácil. Quando íamos no terceiro copo de xerez, o Griffith falava-lhe, em termos tão científicos, de uma reação ou lesão obscura, que ninguém, a não ser um colega médico, teria percebido uma palavra.

A Joanna estava com um ar inteligente e profundamente interessado.

Senti uma apreensão momentânea. Era uma grande maldade da Joanna. O Griffith era um indivíduo bom de mais para brincarem com os seus sentimentos. As mulheres eram realmente uns demônios.

Depois vislumbrei o perfil do Griffith, com o seu longo queixo resoluto e a atitude inflexível dos lábios, e não tive tanta certeza de que, no fim de contas, a Joanna conseguisse o que pretendia. E seja como for, um homem não tem o direito de permitir que uma mulher o engane. Se permitir, isso é lá com ele.

Então a Joanna disse:

- Mude de idéias e fique para almoçar conosco, Dr. Griffith - e o Griffith corou um pouco e,disse que almoçava, só que a irmã estava à espera dele...

- Vamos telefonar-lhe a explicar - disse a Joan a rapidamente, e saiu para o hall para o fazer. Achei que o Griffith parecia um pouco inquieto, e passou-me pela cabeça que, provavelmente, temia um pouco a irmã.

A Joanna voltou a sorrir e disse que estava tudo bem.

E o Owen Griffith ficou para almoçar, e parece que se divertiu. Falamos de livros, e de peças de teatro, e de política mundial, e de música, e de pintura, e de arquitetura moderna.

Não falamos de Lymstock nem de cartas anônimas, nem do suicídio de Mrs. Symmington.

Evitamos tudo isso, e acho que Owen Griffith estava feliz. O seu rosto triste animou-se, e ele revelou-se um espírito interessante.

Quando se foi embora, eu disse à Joanna:

- Aquele tipo é bom de mais para os teus truques.

A Joanna disse:

- Isso é o que tu dizes! Vocês, homens, defendem-se sempre uns aos outros!

- Por que te deste ao trabalho de lhe passar a mão pelo pêlo, Joanna? Vaidade ferida?

- Talvez - disse a minha irmã.

 

Nessa tarde íamos tomar chá com Miss Emily Barton nos seus aposentos na aldeia.

Deambulamos a pé até lá, porque já me sentia suficientemente forte para conseguir subir a colina no regresso.

Devemos ter dado uma margem de tempo demasiado grande e chegamos lá cedo, porque a porta foi aberta por uma mulher alta, muito magra e de aspecto feroz, que nos disse que Miss Barton ainda não tinha chegado.

- Mas eu sei que os espera, por isso podem subir e esperar, por favor.

Esta era evidentemente a Fiel Florence.

Seguimo-la pelas escadas acima, e ela escancarou uma porta e mandou--nos entrar numa sala de estar muito confortável, ainda que um pouco atravancada. Algumas coisas, suspeitei, tinham vindo de Little Furze. A mulher estava obviamente orgulhosa da sua sala.

- É muito bonita, não é? - perguntou.

- Muito bonita - disse a Joanna vivamente.

- Dou-lhe o máximo conforto possível. Não que eu possa fazer por ela tudo aquilo que gostaria, e que ela devia ter. Ela devia estar na sua própria casa, como deve ser, não exilada em aposentos alugados.

A Florence, que era claramente um dragão, olhou para cada um de nós acusadoramente. Não era, senti, o nosso dia de sorte. A Joanna fora repreendida por Aimée Griffith e pela Partridge, e agora estávamos ambos a ser censurados pelo dragão Florence.

- Fui criada de sala lá durante quinze anos - acrescentou ela.

A Joanna, picada pela injustiça, disse:

- Bem, Miss Barton queria alugar a casa. Registrou-a na agência imobiliária.

- Foi forçada a isso - disse a Florence. - E ela levava uma vida tão frugal e cuidadosa. Mas nem assim o governo a deixa em paz! Tem de ter a sua libra de carne na mesma.

Abanei a cabeça tristemente.

- No tempo da velha senhora, havia muito dinheiro - disse a Florence. - E depois morreram todas, uma a uma, pobres meninas. Miss Emily tratou delas, umas a seguir às outras. Esfalfou-se, e sempre muito paciente e resignada. Mas isso afetou-a, e ainda por cima ter de se preocupar com dinheiro! As ações não rendem o que rendiam, é o que ela diz, e eu gostava de saber por quê. Deviam ter vergonha deles mesmos. Intrujar uma senhora como ela que não tem cabeça para contas e que não pode fazer frente aos embustes deles.

- Praticamente toda a gente foi atingida dessa forma - disse eu, mas a Florence permaneceu implacável.

- Está tudo bem para algumas pessoas que sabem cuidar delas mesmas, mas não para ela. Precisa de que cuidem dela, e enquanto estiver comigo não deixarei que abusem dela ou que a incomodem seja como for Faria qualquer coisa por Miss Emily.

E olhando ferozmente para nós por uns momentos, para vincar bem o que dissera, a indômita Florence saiu do compartimento, fechando cuidadosamente a porta atrás de si.

- Sentes-te como uma sanguessuga, Jerry? inquiriu a Joanna. - Porque eu sinto. Que se passa conosco?

- Parece que não estamos a ser muito bem acolhidos - disse eu. - A Megan cansa-se de nós, a Partridge não gosta de ti, a fiel Florence não gosta de nenhum de nós. A Joanna murmurou - Por que será que a Megan se foi embora?

- Aborreceu-se.

- Não me parece. Gostava de saber... Jerry, achas que pode ter sido alguma coisa que Aimée Griffith disse?

- Referes-te a esta manhã, quando estiveram a falar à porta?

- Sim. Não houve muito tempo, claro, mas...

Eu acabei a frase.

- Mas aquela mulher tem a subtileza de um elefante! Pode ter...

A porta abriu-se e Miss Emily entrou. Estava corada, um pouco ofegante e parecia excitada. Tinha os olhos muito azuis e brilhantes.

- Valha-me Deus! Lamento muito ter-me atrasado. Fui só fazer umas compras à vila, e os bolos da Blue Rose não me pareceram muito frescos, por isso fui à Mrs. Lygon. Gosto de comprar sempre os bolos em último lugar porque assim apanhamo-los a sair do forno e não nos impingem os do dia anterior. Mas estou desolada por os ter feito esperar, é realmente imperdoável...

A Joanna interrompeu-a. - A culpa foi nossa, Miss Barton. Nós é que chegamos cedo. Viemos a pé, e o Jerry agora anda tão depressa que chegamos a todo o lado cedo de mais.

- Nunca é cedo de mais, querida. Não diga isso. Sabe, quando uma coisa é boa nunca é de mais.

E a velha senhora deu uma palmadinha afetuosa no ombro da Joanna.

A Joanna animou-se. Finalmente, assim parecia, estava a ser um sucesso. Emily Barton alargou o sorriso para me incluir a mim, mas com uma leve timidez, um tanto como alguém a aproximar-se de um tigre devorador de homens, que, por enquanto, afirmam ser inofensivo.

- É muita bondade sua vir a uma refeição tão feminina como o chá, Mr. Burton.

Emily Barton, acho eu, imagina os homens a consumirem interminavelmente whiskies com soda e a fumarem charutos e, nos intervalos, a desaparecerem para seduzirem algumas donzelas de aldeia, ou para terem uma ligação amorosa com uma mulher casada.

Quando mais tarde disse isto à Joanna, ela respondeu que era provavelmente um desejo oculto, que Emily Barton teria gostado de encontrar um homem assim, mas que, ai dela!, nunca o encontrara.

Entretanto, Miss Emily andava atarantada à volta da sala, a arranjar mesinhas pequenas para mim e para a Joanna e a providenciar cuidadosamente cinzeiros, e um minuto mais tarde a porta abriu-se e a Florence entrou, trazendo um tabuleiro de chá com umas belas chávenas Crown Derby, que, imaginei eu, Miss Emily trouxera consigo. O chá da China era delicioso, e havia pratos com sandes e finas fatias de pão com manteiga e uma quantidade de bolinhos.

A Florence estava agora sorridente, e olhava para Miss Emily com uma espécie de satisfação maternal, como se olhasse para uma filha preferida a divertir-se com um chá de bonecas.

Eu e a Joanna comemos muito mais do que queríamos, já que a nossa anfitriã insistia conosco com muita veemência. Emily Barton estava claramente a divertir-se com o seu chá, e eu percebi que, para ela, eu e a Joanna éramos uma grande aventura, duas pessoas do mundo misterioso de Londres e da sofisticação.

Naturalmente, a nossa conversa depressa caiu nos temas locais. Miss Barton falou calorosamente do Dr. Griffith, da sua gentileza e da sua habilidade como médico. Mr. Symmington também era um advogado muito esperto e tinha ajudado Miss Barton a reaver algum dinheiro do imposto sobre rendimentos, do qual ela nunca teria tido conhecimento. Ele era muito bom para os filhos, muito dedicado a eles e à mulher - interrompeu-se. Pobre Mrs. Symmington, é tão horrivelmente triste aquelas crianças tão novas ficarem sem mãe. Nunca foi, talvez, uma mulher muito forte, e não andava bem de saúde ultimamente. Um acesso de loucura momentâneo,é o que deve ter sido. Li sobre isso no jornal. As pessoas não sabem realmente o que fazem~ nessas circunstâncias. E ela não podia saber o que estava a fazer, ou ter-se-ia lembrado de Mr. Symmington e das crianças.

- Aquela carta anônima deve tê-la abalado muitíssimo - disse a Joanna. Miss Barton corou. Com uns laivos de censura na voz, disse:

- Não é uma coisa muito bonita para se discutir, não acha, querida? Sei que tem havido... hum... cartas, mas não vamos falar sobre elas. Coisas desagradáveis. Acho que é melhor ignorá-las e pronto.

Bem, talvez Miss Barton fosse capaz de as ignorar, mas para algumas pessoas não era tão fácil. Contudo, mudei obedientemente de assunto e falamos sobre Aimée Griffith.

- Maravilhosa, absolutamente maravilhosa - disse Emily Barton. Tem uma energia e uma capacidade de organização realmente magníficas. Também é muito boa para as raparigas. E é tão eficaz e atualizada em todos os aspectos! É muito bonito ver tanta dedicação entre irmão e irmã.

- Ele não a achará às vezes um pouco opressiva? - perguntou a Joanna. Emily Barton fitou-a de um modo surpreendido.

- Ela sacrificou muita coisa por causa dele - disse, com um toque de dignidade reprovadora. Vislumbrei um Ai Sim? nos olhos da Joanna e apressei-me a desviar a conversa para Mr. Pye.

Emily Barton estava hesitante em relação a Mr. Pye.

A única coisa que conseguiu dizer, repetida com muita hesitação, foi que ele era muito amável... sim, muito amável. E também abastado e muito generoso. As vezes tinha visitas muito estranhas, mas por outro lado ele tinha viajado muito.

Concordamos que viajar não só proporcionava largueza de espírito, como também tinha ocasionalmente como conseqüência travarem-se conhecimentos estranhos.

- Eu própria desejei muitas vezes fazer um cruzeiro - disse Emily Barton ardentemente. - Lemos sobre eles nos jornais e parecem muito atrativos.

- Por que não vai? - perguntou a Joanna.

Esta transformação de um sonho em realidade parecia alarmar Miss Emily. - Oh! não, não, isso seria absolutamente impossível.

- Mas por quê? São bastante baratos.

- Oh! não é só a despesa. Mas não gostaria de ir só. Viajar sozinha ia parecer muito estranho, não acha?

- Não - disse a Joanna. Miss Emily olhou para ela com hesitação.

- E não sei como me arranjaria com a bagagem, e a desembarcar em portos estrangeiros, e com todas aquelas moedas estrangeiras...

Um sem-número de perigos imprevistos pareciam surgir diante do olhar assustado da senhora, e a Joanna apressou-se a acalmá-la com uma pergunta sobre uma festa ao ar livre e uma venda de caridade que se realizariam em breve. Isto conduziu-nos muito naturalmente a Mrs. Dane Calthrop.

Um espasmo indistinto apareceu por um instante no rosto de Miss Barton.

- Sabe, querida - disse ela -, ela é realmente uma mulher muito estranha. As coisas que diz às vezes! Perguntei que coisas.

- Oh! não sei. Coisas muito inesperadas. E a forma como olha para nos, como se não fôssemos nós que estivéssemos lá, mas sim outra pessoa ... estou a exprimir-me mal, mas é tão difícil transmitir a impressão que tenho. E depois, ela não... bem, não interfere de modo nenhum. Há tantos casos em que a mulher de um vigário podia aconselhar e... talvez admoestar. Repreender as pessoas, sabe, e fazer com que se emendem. Porque as pessoas escutá-la-iam, tenho a certeza, todas elas a temem. Mas ela insiste em ficar impassível e distante, e tem um hábito muito curioso de ter pena das pessoas que menos merecem.

- Isso é interessante - disse eu, trocando um olhar rápido com a Joanna.

- Contudo, ela é uma mulher muito bem-educada. Era uma Miss Farroway de Bellpath, uma família muito boa, mas estas velhas famílias às vezes são um pouco estranhas, creio eu. Mas ela é dedicada ao marido, que é um homem com um intelecto superior, receio que desperdiçado, às vezes, nesta sociedade de província. Um homem bom e muito sincero, mas acho sempre um pouco confuso o seu hábito de citar em latim.

- Apoiado! - disse eu ardentemente.

- O Jerry teve uma dispendiosa educação de colégio particular, por isso não reconhece latim quando o ouve - disse a Joanna. Isto conduziu Miss Barton a um novo tópico.

- A professora de cá é uma jovem muito desagradável - disse ela. Receio que bastante Vermelha. - Baixou a voz na palavra “Vermelha”. Mais tarde, ao voltarmos a pé para casa pela colina acima, a Joanna disse-me:

- É amorosa.

 

Naquela noite, ao jantar, a Joanna disse à Partridge que esperava que o chá dela tivesse sido um sucesso.

A Partridge corou muito e empertigou-se ainda mais.

- Obrigada, miss, mas a Agnes afinal não apareceu.

- Oh! lamento.

- Eu não me importei - disse a Partridge.

Estava tão indignada com a afronta que condescendeu em desabafar conosco.

- Não fui eu que tive a idéia de a convidar! Ela é que me telefonou a dizer que estava preocupada com uma coisa e se podia vir cá, já que era o dia de folga dela. E eu disse que sim, dependendo da permissão dos senhores, que obtive. E depois disso nem sinal dela! E nem uma palavra de desculpa, embora espere receber um postal amanhã de manhã. Hoje em dia, estas raparigas não sabem qual é o seu lugar não fazem idéia de como devem comportar-se.

A Joanna tentou acalmar os sentimentos feridos da Partridge.

- Talvez não se sentisse bem. Não telefonou a saber?

A Partridge empertigou-se outra vez.

- Não, não telefonei, miss. De fato, não telefonei. Se a Agnes gosta de se comportar indelicadamente, isso é lá com ela, mas quando nos virmos hei-de ralhar-lhe.

A Partridge saiu da sala, ainda muito indignada, e eu e a Joanna rimo-nos.

- Provavelmente era um caso para os “Conselhos da Coluna da Tia Nancy” - disse eu. – “O meu namorado anda muito frio comigo, que devo fazer?”. Na falta da Tia Nancy, era a Partridge a consultada, mas em vez disso deve ter havido uma reconciliação, e espero que, neste momento, a Agnes e o namorado sejam um daqueles pares silenciosos, unidos num abraço, que encontramos subitamente de pé junto a uma sebe escura. Ficamos muito embaraçados ao vê-los, mas eles não se constrangem conosco.

A Joanna riu-se e disse que esperava que fosse isso. Começamos a falar das cartas anônimas e a perguntarmo-nos se o Nash e o melancólico Graves estariam a fazer progressos.

- Faz hoje exatamente uma semana - disse a Joanna - que Mrs. Symmington se suicidou. É de crer que nesta altura já tenham descoberto alguma coisa. Impressões digitais, ou a letra, ou qualquer coisa.

Respondi-lhe distraidamente. Algures no meu subconsciente crescia uma estranha inquietação. De certa forma, estava ligada à frase – “exatamente uma semana” que a Joanna usara.

Atrevo-me a dizer que devia ter tirado conclusões mais cedo. Talvez, inconscientemente, o meu espírito já estivesse desconfiado. Seja como for, o fermento estava a levedar. A inquietação estava a crescer, a chegar a um ponto crítico. A Joanna notou, subitamente, que eu não estava a prestar atenção ao seu relato animado de um encontro na aldeia.

- Que se passa, Jerry.?

Não respondi, porque o meu espírito estava ocupado a coordenar as coisas.

O suicídio de Mrs. Symmington... Estava sozinha em casa naquela tarde...

Sozinha em casa, porque as criadas estavam de folga... Há exatamente uma semana...

- Jerry, que...  Interrompi-a.

- Joanna, as criadas têm folga uma vez por semana, não é?

- E domingos alternados - disse a Joanna. - Que...

- Deixa lá os domingos. Elas saem no mesmo dia todas as semanas?

- Sim. Costuma ser assim.

A Joanna fitava-me com curiosidade. O seu espírito não seguira o mesmo caminho que o meu. Atravessei a sala e toquei à campainha. A Partridge veio.

- Diga-me uma coisa - disse eu. - Essa Agnes Woddell está a servir?

- Sim, sir. Em casa de Mrs. Symmington. Em casa de Mr Symmington, é assim que devo dizer agora. Nessa altura, soube que a minha suspeita estava certa. Respirei fundo. Olhei para o relógio. Eram dez e meia.

- Acha que já terá voltado?A Partridge tinha um ar reprovador.

- Sim, sir. As criadas têm de voltar por volta das dez. Eles são antiquados. Eu disse: - Vou telefonar

Saí para o hall. A Joanna e a Partridge seguiram-me. A Partridge estava nitidamente furiosa. A Joanna estava perplexa. Enquanto eu tentava obter o número, disse:

- Que estás a fazer, Jerry? A Partridge fungou. Fungou apenas, nada mais. Mas não me importei nada com as fungadelas da Partridge. Elsie Holland atendeu o telefone do outro lado.

- Desculpe estar a telefonar - disse eu. - Fala Jerry Burton. A... a... a vossa criada Agnes já está em casa?

Só depois de ter dito isto é que me senti um pouco tolo. Porque se a rapariga tivesse chegado, e estivesse tudo bem, como iria explicar o telefonema e a pergunta? Teria sido melhor ter deixado a Joanna fazer a pergunta, embora mesmo assim fosse necessário dar uma explicação. Previ o início de uma nova senda de mexericos em Lymstock tendo no centro a minha pessoa e a desconhecida Agnes Woddell.

Elsie Holland pareceu, naturalmente, muito surpreendida.

- A Agnes? Oh! a esta hora já deve estar em casa.

Senti-me um tolo, mas prossegui.

- Importa-se de ir ver se ela já chegou, Miss Holland?

Há uma coisa a dizer a favor de uma preceptora; está habituada a fazer coisas quando a mandam. Não lhe compete discutir os porquês! Elsie Holland pousou o auscultador e foi-se embora.

Dois minutos mais tarde, ouvi voz dela.

- Está aí, Mr. Burton?

- Sim.

- Na realidade, a Agnes ainda não chegou.

Escutei vagamente um ruído de vozes no outro lado, depois o Symmington em pessoa falou.

- Olá, Burton, que se passa?

- A sua criada Agnes ainda não voltou?

- Não. Miss Holland foi agora ver Que se passa? Não houve um acidente, pois não?

- Um acidente, não - disse eu.

- Quer dizer que tem razões para crer que aconteceu alguma coisa à rapariga? Eu disse sombriamente: - Não me surpreendia nada.

- Gostava de ter a certeza de que a rapariga chegou bem.

 

Naquela noite dormi mal. Tenho a impressão de que, mesmo então, havia peças do quebra-cabeças a flutuarem no meu espírito. Creio que, se me tivesse dedicado a isso, podia ter resolvido tudo naquela altura. Senão, por que é que aqueles fragmentos me perseguiam tão persistentemente?

Que sabemos nós em qualquer momento? Muito mais, ou assim creio, do que aquilo que julgamos que sabemos! Mas não conseguimos penetrar nesse conhecimento subterrâneo. Está lá, mas não conseguimos alcançá-lo.

Fiquei deitado na minha cama, a remexer-me com inquietação, e só surgiam pedaços indefinidos do quebra-cabeças para me torturarem.

Existia um padrão, se ao menos eu conseguisse agarrá-lo... Eu devia saber quem escreveu aquelas malditas cartas. Havia algures uma pista, se ao menos conseguisse segui-Ia...

À medida que adormecia, tinha palavras a dançarem irritantemente no meu espírito sonolento.

“Não há fumo sem fogo.” Não há fogo sem fumo. Fumo... Fumo? Cortina de fumo... Não, isso era na guerra, uma expressão da guerra. Guerra. Pedaço de papel... Só um pedaço de papel. Bélgica, Alemanha...

Adormeci. Sonhei que levava Mrs. Dane Calthrop, que se transformara num galgo, a dar um passeio com coleira e trela.

 

Foi o toque do telefone que me despertou. Um toque persistente.

Sentei-me na cama, olhei para o relógio. Eram sete e meia. Ainda não me tinham acordado. O telefone estava a tocar lá em baixo no hall.

Saltei da cama, vesti um roupão e corri lá para baixo. 

Cheguei, por pouco, antes da Partridge, que vinha da cozinha pela porta de serviço. Levantei o auscultador

- Estou?

- Oh! - Era um suspiro de alívio. - É o senhor! - A voz da Megan.

A voz da Megan indescritivelmente desamparada e assustada.

- Oh! venha, por favor... venha. Oh! por favor, venha. Vem?

- Vou imediatamente - disse eu. - Estás a ouvir? Imediatamente.

Subi as escadas duas a duas e entrei no quarto da Joanna.

- Olha, Jô, vou a casa dos Symmingtons. 

A Joanna levantou a cabeça loura e encaracolada da almofada e esfregou os olhos como uma criança. 

- Por que, que aconteceu?

- Não sei. Era a miúda, a Megan, Parecia completamente exausta. 

- Que achas que aconteceu?

- A criada Agnes, se não me engano. 

Quando ia a sair pela porta, a Joanna chamou-me:

- Espera. Eu levanto,-me e levo-te de carro.

- Não é preciso. Eu conduzo.

- Não podes conduzir o carro.

- Posso sim.

E podia. Provocava dores, mas não demasiadas. Lavei-me, barbeei-me, vesti-me, tirei o carro da garagem e conduzi-o até casa dos Symmingtons em meia hora. Não foi nada mal. A Megan devia estar atenta à minha chegada. Saiu de casa a correr e agarrou-se a mim. O seu rostinho abatido estava pálido e crispado. 

- Oh! veio... veio!

- Coragem, cara linda - disse eu. - Vim, sim. O que foi?

Começou a tremer. Envolvi-a com o meu braço.

- Eu... eu encontrei-a.

- Encontraste a Agnes? Onde? O tremor aumentou. 

- Debaixo das escadas. Há lá um armário. Tem canas de pesca e tacos de golfe, e essas coisas. Sabe como é. Acenei afirmativamente. Era o armário habitual. A Megan continuou.

- Ela estava lá toda comprimida, e... e fria, horrivelmente fria. Estava... estava morta, sabe! Perguntei com curiosidade: - Que te levou a ver lá?

- Não... não sei. O senhor telefonou ontem à noite. E começamos todos a perguntar-nos onde estaria a Agnes. Esperamos a pé durante algum tempo, mas ela não veio, e por fim deitamo-nos. Não dormi muito bem e levantei-me cedo. Só estava a Rose (a cozinheira, sabe) a pé. Estava muito zangada por a Agnes não ter voltado. Disse que já antes tinha estado num sítio qualquer onde uma rapariga fugiu assim. Bebi um pouco de leite e comi pão com manteiga na cozinha... e de repente a Rose entrou com um ar esquisito e disse que as roupas de sair da Agnes ainda estavam no quarto dela. As roupas melhores, com que ela saía. E eu comecei a pensar se... se ela teria chegado a sair de casa, e comecei a procurar, e abri o armário debaixo das escadas e... e ela estava lá...

- Alguém telefonou à Polícia, suponho?

- Sim, estão cá agora. O meu padrasto telefonou logo. E depois, eu... eu achei que não agüentava e telefonei-lhe a si. Não se importa?

- Não - disse eu. - Não me importo.

Olhei para ela com curiosidade.

- Deram-te um pouco de conhaque, ou café ou chá depois - depois de a teres encontrado?

A Megan abanou a cabeça.

Amaldiçoei todo o ménage Symmington. O emproado do Symmington não pensou em mais nada senão na Polícia. Nem Elsie Holland, nem a cozinheira pareciam ter pensado no efeito da terrível descoberta numa miúda sensível.

- Anda daí, cara linda - disse eu. - Vamos à cozinha.

Contornamos a casa até à porta das traseiras e entramos na cozinha. Rose, uma mulher de quarenta anos, rechonchuda e com cara de lua-cheia, estava a beber chá forte junto à lareira da cozinha. Saudou-nos com uma torrente de palavras e com a mão no coração.

Ficara muito indisposta, disse-me ela, com umas palpitações horríveis! Só de pensar que podia ter sido ela, podia ter sido qualquer uma delas a ser assassinada na cama, podia sim.

- Sirva uma boa chávena desse chá a Miss Megan - disse eu. - Ela sofreu um choque, sabe. Lembre-se de que foi ela que encontrou o corpo.

A mera alusão a um corpo quase disparou a Rose outra vez, mas eu pus fim a isso com um olhar duro e ela deitou o líquido escuro numa chávena.

- Aqui tens, miúda - disse eu à Megan. - Bebe tudo. Presumo que não tem um pouco de conhaque, Rose?

A Rose disse, de modo hesitante, que tinha sobrado uma gota do conhaque para culinária dos pudins do Natal.

- Serve - disse eu, e pus um bocado na chávena da Megan. Pelo olhar da Rose, vi que ela achara aquilo uma boa idéia. Disse à Megan que ficasse com a Rose.

- Posso confiar em si para cuidar de Miss Megan? - disse eu, e a Rose replicou satisfeita: - Oh! sim, sir

Entrei dentro de casa. Se eu bem conhecia a Rose e o seu tipo, em breve acharia necessário revigorar as forças com um pouco de alimento, e isso também ia ser bom para a Megan. Que raio de gente! Por que é que não cuidavam da miúda?

Intimamente furioso, encontrei Elsie Holland na entrada. Não pareceu surpreendida por me ver. Suponho que a terrível excitação da descoberta fazia com que as pessoas não prestassem atenção a quem entrava e saía. O polícia, Bert Rundle, estava junto à porta da frente.

Elsie Holland disse com voz entrecortada:

- Oh! Mr. Burton, não é horrível. Quem pode ter feito uma coisa tão medonha?

- Então, foi assassínio?

- Oh! sim. Bateram-lhe na parte de trás da cabeça. É só sangue e cabelo... oh! é horrível, e enfiaram-na naquele armário. Quem pode ter feito uma coisa tão perversa? E por quê? Pobre Agnes, tenho a certeza de que ela nunca prejudicou ninguém.

- Não - disse eu. - Alguém cuidou prontamente para que isso não acontecesse.

Ela olhou-me fixamente. Não era, pensei eu, uma rapariga esperta. Mas tinha bons nervos. Como de costume, estava levemente corada com a excitação, e até imaginei que, de um modo macabro, e apesar de ter um coração naturalmente bondoso, ela estava a divertir-se com o drama.

Disse apologeticamente: - Tenho de ir ver os miúdos. Mr Symmington não quer que eles tenham um choque. Quer que os mantenha afastados de tudo.

- Soube que foi a Megan que encontrou o corpo - disse eu. - Espero que esteja alguém a tratar dela. Devo dizer a favor de Elsie Holland que pareceu arrependida.

- Oh! valha-me Deus - disse. - Esqueci-me completamente dela. Oxalá esteja bem. Tenho estado tão atarefada, sabe, e a Polícia e tudo... mas foi um descuido da minha parte. Coitada da miúda, deve estar a sentir-se mal. Vou vê-la imediatamente.

 Compadeci-me.

- Ela está bem - disse eu. - A Rose está a olhar por ela. Vá ter com os miúdos.

Ela agradeceu-me com um sorriso de dentes brancos como lápides e precipitou-se pelas escadas acima. No fim de contas, a obrigação dela eram os rapazes e não a Megan - a Megan não era obrigação de ninguém. A Elsie era paga para cuidar dos malditos fedelhos do Symmington. Dificilmente se podia censurá-la por fazer isso.

Enquanto ela se precipitava pela curva das escadas, fiquei de respiração suspensa. Por um instante vislumbrei uma Vitória de Samotrúcia, imortal e incrivelmente bela, em vez de uma preceptora conscienciosa.

Nessa altura abriu-se uma porta e o superintendente Nash saiu para o hall com o Symmington atrás dele.

- Oh! Mr Burton - disse ele. - Ia agora telefonar-lhe. Ainda bem que está aqui.

Não me perguntou - nessa ocasião - por que é que eu estava ali.

Virou a cabeça e disse ao Symmington:

- Vou usar esta sala, se me der licença.

Era uma saleta com uma janela para a frente da casa.

- Com certeza, com certeza.

O Symmington estava bastante sereno, mas parecia desesperadamente cansado. O superintendente Nash disse com amabilidade:

- No seu lugar, ia tomar o pequeno-almoço, Mr Symmington. O senhor, Miss Holland e Miss Megan vão sentir-se muito melhor depois de tomarem café e comerem uns ovos com toucinho fumado. O assassínio é um assunto desagradável com o estômago vazio.

Falou ao jeito confortador de um médico de família.

O Symmington fez uma tímida tentativa para sorrir e disse:

- Obrigado, superintendente, vou seguir o seu conselho. Segui o Nash até à saleta e ele fechou a porta. Depois disse:

- Chegou aqui muito depressa. Como soube?

Contei-lhe que a Megan me telefonara. Sentia-me bem disposto em relação ao superintendente Nash. Pelo menos não se tinha esquecido de que a Megan também tinha necessidade de tomar o pequeno-almoço.

- Constou-me que telefonou para cá a noite passada, Mr. Burton, a perguntar por esta rapariga? Por que fez isso? Suponho que parecia estranho. Contei-lhe o telefonema da Agnes para a

Partridge e que ela não chegara a aparecer. Ele disse: - Sim, estou a perceber... Disse aquilo lenta e ponderadamente, a coçar o queixo.  Depois, suspirou:

- Bem - disse ele. - Agora trata-se de assassínio, sem sombra de dúvida. Ação física direta. A questão é: que sabia a rapariga? Disse alguma coisa a essa Partridge? Alguma coisa definida?

- Não me parece. Mas pode perguntar-lhe.

- Sim. Irei lá falar com ela quando acabar aqui.

- Que aconteceu exatamente? - perguntei. - Ou ainda não sabe?

- Mais ou menos. Era o dia de folga das criadas...

- De ambas?

- Sim. Parece que estiveram cá duas irmãs que gostavam de sair juntas, e por isso Mrs. Symmington planeou as coisas assim. Depois, quando vieram estas duas, ela seguiu o mesmo arranjo. Deixavam um jantar frio pronto na sala de jantar, e Miss Holland preparava o chá.

- Percebo.

- Está tudo muito claro até certo ponto. A cozinheira, Rose, é de Nether Mickford, e para ir lá no dia de folga tem de apanhar o autocarro das duas e meia. Por isso a Agnes tinha de arrumar sempre as coisas do almoço. A Rose costumava lavar a louça do jantar à noite, para equilibrar as coisas.

- Foi o que aconteceu ontem. A Rose saiu às duas e vinte e cinco para apanhar o autocarro, o Symmington foi para o escritório às três menos vinte e cinco. Elsie Holland e as crianças saíram às três menos um quarto. Megan Hunter saiu de bicicleta cerca de cinco minutos mais tarde. Nessa altura, a Agnes estaria sozinha em casa. Tanto quanto percebi, ela saía normalmente de casa entre as três e as três e meia.

- E nessa altura a casa ficava vazia?

- Oh! aqui, não se preocupam corri isso. Nesta região não se fecham as casas. Como digo, às três menos dez a Agnes estava sozinha em casa. É óbvio que não chegou a sair, porque ainda estava de touca e avental quando encontramos o corpo.

- Presumo que pode determinar a hora aproximada da morte.

- O Dr. Griffith não quer comprometer-se. Entre as duas horas e as quatro e meia é a sua opinião médica oficial.

- Como é que foi morta?

- Primeiro foi atordoada por uma pancada na parte de trás da cabeça. Depois, enfiaram-lhe um vulgar espeto de cozinha, com a ponta bem aguçada na base do crânio, provocando morte instantânea.

Acendi um cigarro. Não era uma descrição agradável.

- Muito cruel - disse eu.

- Oh! sim, sim, isso foi mencionado.

Aspirei o ar profundamente.

- Quem foi? - disse eu. - E por quê?

- Não creio - disse o Nash lentamente - que alguma vez saibamos exatamente por que. Mas podemos adivinhar.

- Ela sabia alguma coisa?

- Ela sabia alguma coisa.

- Não deu a entender nada a ninguém daqui?

- Tanto quanto percebi, não. Estava nervosa, é o que diz a cozinheira, desde a morte de Mrs. Symmington, e segundo essa Rose foi ficando cada vez mais preocupada e dizia que não sabia o que havia de fazer.

Deu um breve suspiro exasperado.

- É sempre assim. Não vão ter conosco. Têm um preconceito enraizado contra o fato de “se envolverem com a Polícia”. Se ela tivesse vindo contar-nos o que a preocupava, hoje estaria viva.

- Não deu a entender nada à outra mulher?

- Não, ou é o que a Rose diz, e estou inclinado a acreditar nela. Porque, se o tivesse feito, a Rose teria deixado escapar tudo imediatamente, com uma data de enfeites da sua autoria.

- Não saber - disse eu - é de enlouquecer.

- Contudo, podemos conjecturar, Mr. Burton. Para começar, não pode ser nada de muito definido. Tem de ser o tipo de coisa sobre a qual se reflete, e à medida que se reflete sobre ela, vai crescendo a inquietação. Percebe o que quero dizer?

- Sim.

- Na verdade, acho que sei o que foi. Olhei para ele com respeito.

- Bom trabalho, superintendente.

- Bem, Mr. Burton, sei uma coisa que o senhor não sabe, compreende? Na tarde em que Mrs. Symmington se suicidou, ambas as criadas deviam ter saído. Era o dia de folga delas. Mas na verdade a Agnes voltou para casa.

- Sabe isso?

- Sim. A Agnes tinha um namorado, o jovem Rendell da peixaria. A quarta-feira é o dia em que ele fecha cedo, e vinha ter com a Agnes, e iam passear, ou ao cinema se estivesse a chover. Nessa quarta-feira tiveram uma discussão praticamente logo que se encontraram. A nossa autora de cartas anônimas tinha estado ativa, sugerindo que a Agnes andava ocupada com coisas mais importantes, e o jovem Fred Rendell estava furioso. Discutiram violentamente e a Agnes voltou precipitadamente para casa. Disse que não saía, a não ser que o Fred pedisse desculpa.

- E então?

- Então, Mr. Burton, a cozinha dá para as traseiras da casa, mas a copa está voltada para onde estamos a olhar agora. Só há um portão. Entra-se por ele, tanto para se ir para a porta da frente como para se seguir pelo caminho ao lado da casa até à porta de serviço.

Fez uma pausa.

- Agora vou dizer-lhe uma coisa. A carta que veio para Mrs. Symmington naquela tarde, não veio pelo correio. Tinha um selo colado nela, e o carimbo postal falsificado, muito convincentemente, com negro-de-fumo para parecer que tinha sido entregue pelo carteiro com as cartas da tarde. Mas, na realidade, não passara pelo correio. Percebe o que isso quer dizer?

Eu disse lentamente: - Quer dizer que foi deixada pessoalmente, metida na caixa do correio, algum tempo antes de a correspondência da tarde ser entregue, para poder estar entre as outras cartas.

- Exatamente. O correio da tarde chega por volta das quatro menos um quarto. A minha teoria é esta: a rapariga estava na copa a olhar através da janela (está disfarçada por arbustos, mas vê-se bastante bem através deles) para ver se o namorado aparecia para pedir desculpa.

- E viu a pessoa que entregou o bilhete? - disse eu

-É o que eu suponho, Mr Burton. Posso estar enganado, claro.

- Não creio que esteja... É simples, e convincente... e implica que a Agnes sabia quem era a autora de cartas anônimas..

- Sim.

- Mas então por que é que ela não... Hesitei, franzindo o sobrolho.

O Nash disse muito depressa:

- Segundo me parece, a rapariga não se apercebeu do que tinha visto. Não a princípio. Alguém deixara uma carta em casa, sim, mas esse alguém não era uma pessoa que ela sonhasse sequer ligar às cartas anônimas. Era alguém, desse ponto de vista, acima de qualquer suspeita.

 Mas, quanto mais pensava nisso, mais inquieta ficava. Talvez devesse contar a alguém. Na sua perplexidade, lembrou-se da Partridge de Miss Barton, que deve ser, imagino eu, uma personalidade um tanto dominadora, e cuja opinião a Agnes aceitaria sem hesitar. Decidiu perguntar à Partridge o que devia fazer.

- Sim - disse eu pensativamente. - Encaixa tudo bastante bem. E seja como for, a Autora das Cartas Anônimas descobriu. Como é que ela descobriu, superintendente?

- Não está habituado a viver no campo, Mr. Burton. É uma espécie de milagre a forma como as coisas se espalham. Antes de mais nada, há a chamada telefônica. Quem a escutou do seu lado?

Pus-me a pensar

- Fui eu que atendi o telefone. Depois, chamei a Partridge para o cimo das escadas.

- Mencionou o nome da rapariga?

- Sim... sim, mencionei.

- Alguém ouviu?

- A minha irmã ou Miss Griffith podem ter ouvido.

- Ah! Miss Griffith. Que fazia ela lá? Eu expliquei.

- Ela ia voltar para a aldeia?

- Primeiro ia a casa de Mr. Pye.

O superintendente Nash suspirou.

- São dois meios para a coisa se ter espalhado por toda a povoação. Não quis acreditar.

- Quer dizer que tanto Miss Griffith como Mr Pye se dariam ao trabalho de repetir uma informação absurda como essa?

- Tudo é novidade num lugar como este. Ficaria surpreendido. Se dói um calo à mãe da modista, toda a gente fica a saber! E depois há este lado. Miss Holland, a Rose, podiam ter escutado o que a Agnes disse. E há Fred Rendell. Pode ter sido ele a espalhar que a Agnes voltou para casa naquela tarde.

Estremeci ligeiramente. Estava a olhar lá para fora pela janela. Diante de mim havia um quadrado de relva bem arranjado, e um caminho, e o portão pequeno e vulgar.

Alguém abrira o portão, caminhara muito correta e silenciosamente até à casa, e enfiara uma carta na caixa do correio. Vi, indistintamente, com os olhos do espírito, aquela vaga forma de mulher. A cara estava em branco, mas devia ser uma cara que eu conhecia...

O superintendente Nash estava a dizer:

- Mesmo assim, isto restringe as coisas. É sempre assim que, no fim de contas, os apanhamos. Com uma eliminação perseverante e paciente. Já não há assim muita gente que pudesse ter sido.

- Quer dizer...?

- Ficam postas de parte todas as mulheres empregadas que estiveram nos seus trabalhos toda a tarde de ontem. Fica posta de parte a professora... Estava a dar aulas. E a enfermeira domiciliária. Sei onde ela estava ontem. Não que alguma vez tivesse pensado que podia ser qualquer uma delas, mas agora temos a certeza. Percebe, Mr. Burton, agora temos dois períodos de tempo s obre os quais podemos concentrar-nos: a tarde de ontem e a da semana anterior. No dia da morte de Mrs. Symmington, desde, digamos, as três e um quarto (não era possível a Agnes ter voltado para casa mais cedo do que isso depois da discussão) e as quatro horas, hora a que o correio deve ter vindo (mas posso fixar isso com mais exatidão através do carteiro). E ontem, das três menos dez (altura em que Miss Megan Hunter saiu de casa) até às três e meia ou, mais provavelmente, três e um quarto, uma vez que a Agnes ainda não começara a mudar de roupa.

- Que acha que aconteceu ontem?

O Nash fez uma careta.

- Que acho? Acho que uma certa senhora caminhou até à porta da frente e tocou à campainha, muito calma e sorridente, a visita da tarde... Talvez tenha perguntado por Miss Holland, ou por Miss Megan, ou talvez tenha trazido uma encomenda. Seja como for, a Agnes virou-se para ir buscar uma salva de prata para cartões-de-visita, ou para levar a encomenda, e a nossa distinta visitante bateu-lhe na parte de trás da sua cabeça confiante.

- Com quê?

O Nash disse:

- Em geral, as senhoras daqui trazem sacos de mão enormes. É impossível saber o que poderá haver lá dentro.

- E depois apunhalou-a na nuca e enfiou-a dentro do armário? Não é um trabalho pesado para uma mulher? O superintendente Nash olhou para mim com uma expressão bastante esquisita.

- A mulher que perseguimos não é normal, longe disso, e esse tipo de instabilidade mental é acompanhado de uma força surpreendente. A Agnes não era uma rapariga grande.

Fez uma pausa, depois perguntou: - Que levou Miss Megan Hunter a pensar em espreitar para dentro daquele armário? Mero instinto -.disse eu.

Depois perguntei: - Por que arrastar a Agnes para dentro do armário? Que pretendiam?

- Quanto mais tempo passasse antes de o corpo ser encontrado, mais difícil seria determinar a hora da morte com exatidão. Se, por exemplo, Miss Holland descobrisse o corpo logo que entrou, um médico poderia fixá-la em menos de dez minutos, ou coisa assim, o que podia ser incômodo para a nossa amiga.

Eu disse, carrancudo:

- Mas se a Agnes suspeitava dessa pessoa...

O Nash interrompeu-me:

- Não suspeitava. Não chegava ao ponto de suspeita definitiva. Ela só achava aquilo “esquisito”. Era uma rapariga estúpida, imagino eu, e só estava vagamente desconfiada, com uma sensação de que alguma coisa estava errada. Sem dúvida que não suspeitava que estava a enfrentar uma mulher capaz de assassinar

- O senhor suspeitava disso? - perguntei.

O Nash abanou a cabeça.

- Devia ter sabido. Aquela história do suicídio, percebe, assustou a Autora das Cartas Anônimas. Assustou-se. O medo, Mr. Burton, é uma coisa instável - disse com emoção.

- Sim, medo. Era essa a coisa que devíamos ter previsto. Medo, num cérebro lunático...

- Percebe? - disse o superintendente Nash, e de certo modo as suas palavras fizeram com que tudo aquilo parecesse absolutamente horrível. Estamos a enfrentar uma pessoa que é respeitada e estimada; de fato, alguém de boa posição social!

Passado pouco tempo, o Nash disse que ia interrogar a Rose mais uma vez. Perguntei-lhe, bastante acanhado, se também podia ir Para surpresa minha, ele concordou cordialmente.

- Tenho muito prazer na sua cooperação, Mr. Burton, se assim me posso exprimir.

- Isso parece suspeito - disse eu. - Nos livros, quando um detetive aceita a ajuda de alguém, esse alguém é em geral o assassino.

O Nash deu uma gargalhada e disse: - Dificilmente o senhor seria o tipo de escrever cartas anônimas, Mr. Burton.

- Sinceramente, pode ser-nos muito útil - acrescentou.

- Ainda bem, mas não vejo como.

- É um estranho aqui, é por isso. Não tem idéias preconcebidas sobre as pessoas de cá. Mas ao mesmo tempo tem a oportunidade de ficar a saber coisas de um modo a que eu chamaria social.

- A assassina é uma pessoa de boa posição social - murmurei.

- Exatamente.

-Vou ser o espião dentro de portas?

- Tem alguma objeção?

Refleti sobre o assunto.

- Não - disse eu -, para ser sincero, não. Se há por aí uma doida perigosa a levar mulheres inofensivas a suicidarem-se e a dar pancadas na cabeça de pobres criaditas, não me oponho a fazer um pouco de trabalho sujo para que essa doida seja internada.

- É muito sensato da sua parte. E deixe-me que lhe diga, a pessoa que procuramos é perigosa. Tão perigosa como uma cascavel, e uma cobra-capelo, e uma mamba-preta combinadas numa só.

Tive um leve arrepio. Disse:

- De fato, temos de nos apressar.

- Exatamente. Não pense que estamos inativos, na Polícia. Não estamos.

- Estamos a trabalhar em várias linhas diferentes.

Disse isto sombriamente.

Tive uma visão de uma teia de aranha fina e extensa...

O Nash queria voltar a ouvir a história da Rose porque, como me explicou, ela já lhe tinha contado duas versões diferentes, e quantas mais versões obtivesse dela, mais provável era que alguns grãos de verdade fossem incorporados.

Encontramos a Rose a lavar a louça do pequeno-almoço, e ela parou imediatamente, e revirou os olhos, e agarrou-se ao coração, e explicou de novo que se sentira esquisita a manhã toda.

O Nash foi paciente com ela, mas firme. Da primeira vez fora condescendente, como ele me contou, e da segunda peremptório, e agora empregou uma combinação das duas coisas.

A Rose alargou-se prazenteiramente sobre os pormenores da semana anterior, sobre como a Agnes tinha andado com um medo terrível, e como tremera, e dissera “Não me pergunte” quando a Rose a instara a dizer o que se passava. - Seria a morte, se me contasse, foi o que ela disse - acabou a Rose, revirando os olhos com satisfação.

- A Agnes não dera nenhuma pista sobre o que a perturbava?

- Não, a não ser que temia pela sua vida.

O superintendente Nash suspirou e abandonou o assunto, contentando-se em extrair um relato exato das atividades da Rose na tarde anterior.

Este, descrito com simplicidade, foi que a Rose apanhara o autocarro das duas e trinta e passara a tarde e a tardinha com a família, tendo regressado no autocarro das oito e quarenta de Nether Mickford. O relato complicou-se com os extraordinários pressentimentos de mal que a Rose tivera toda a tarde, e com o fato de a irmã ter comentado isso, e de ela nem sequer ter conseguido tocar num pedaço de bolo de sementes.

Da cozinha, fomos à procura de Elsie Holland, que superintendia as lições das crianças. Como sempre, Elsie Holland foi competente e prestável. Levantou-se e disse:

- Agora, Colin, tu e o Brian vão fazer estas três somas e vão ter as respostas prontas quando eu voltar.

Depois levou-nos para o quarto das crianças. - Pode ser aqui? Pensei que seria melhor não falarmos diante dos miúdos.

- Obrigado, Miss Holland. Diga-me só, mais uma vez, se tem a certeza absoluta de que a Agnes nunca se referiu ao fato de estar preocupada com qualquer coisa... isto é, depois da morte de Mrs. Symmington.

- Não, nunca me disse nada. Era uma rapariga muito calada, sabe, e não falava muito.

- O oposto da outra, então.

- Sim, a Rose fala de mais. Às vezes tenho de lhe dizer que não seja impertinente.

- Pode dizer-me exatamente o que aconteceu ontem à tarde? Tudo aquilo de que se lembre.

- Bem, almoçamos como de costume. À uma hora, e apressamo-nos um pouco. Não deixo os rapazes mandriarem. Deixe-me ver Mr Symmington voltou para o escritório, e eu ajudei a Agnes a pôr a mesa para o jantar... os rapazes andaram a correr lá fora no jardim até eu estar pronta para os levar.

- Onde foram?

- Na direção de Combeacre, pelo caminho do campo; os miúdos queriam pescar. Esqueci-me da isca e tive de voltar para vir buscá-la.

- A que horas foi isso?

- Deixe ver, saímos por volta das três menos vinte, ou pouco depois. A Megan era para vir conosco, mas mudou de idéias. Ia sair de bicicleta. Tem uma paixão por andar de bicicleta.

Quero dizer, que horas eram quando voltou pela isca? Entrou em casa?

- Não. Tinha-a deixado na estufa, nas traseiras. Não sei que horas eram nessa altura... deviam ser umas três menos dez.

- Viu a Megan ou a Agnes?

- A Megan já devia ter saído, creio eu. Não, não vi a Agnes. Não vi ninguém.

- E depois disso, foram pescar?

- Sim, seguimos junto do riacho. Não pescamos nada. Quase nunca pescamos nada, mas os miúdos divertem-se. O Brian molhou-se muito. Tive de lhe trocar a roupa quando chegamos.

- Serve o chá à quarta-feira, não é?

- Sim. Está tudo pronto na sala de estar para Mr. Symmington. Só faço o chá quando ele chega a casa. Eu e as crianças tomamos o nosso na sala de aulas... e a Megan, claro. Tenho o meu próprio serviço de chá e tudo no armário lá da sala.

- A que horas chegaram?

- As cinco menos dez. Levei os rapazes para cima e comecei a pôr a mesa do chá. Depois, quando Mr. Symmington chegou às cinco, desci para fazer o chá dele, mas ele disse que o tomava conosco na sala de aula. Os miúdos ficaram muito contentes. Depois jogamos às cartas. Parece tão horrível pensar nisso agora, com a pobre rapariga no armário o tempo todo.

- Normalmente iria alguém àquele armário?

- Oh! não, só é usado para guardar coisas velhas. Os chapéus e casacos estão pendurados no pequeno guarda-roupa à direita de quem entra pela porta da frente. Podiam passar meses até alguém ir ao outro armário.

- Percebo. E quando voltou, não notou nada de invulgar, nada de anormal? Os olhos azuis abriram-se muito.

- Oh! não, inspetor, absolutamente nada. Estava tudo exatamente como de costume. É isso que é horrível.

- E na semana anterior?

- Refere-se ao dia em que Mrs. Symmington... Sim.

- Oh! isso foi terrível, terrível!

- Sim, sim, eu sei. Também esteve fora a tarde toda?

- Oh! sim, saio sempre com os miúdos à tarde, se o tempo está razoável. Temos as  aulas de manhã. Lembro-me de que fomos até à charneca, fica bastante longe. Ao voltar, tive medo de estar a chegar atrasada, porque quando cheguei ao portão avistei Mr Symmington na outra extremidade da rua, a voltar do escritório, e eu nem sequer tinha posto a chaleira ao lume, mas só eram cinco menos dez.

- Não subiu para ver Mrs. Symmington?

- Oh! não. Nunca o fazia. Ela descansava sempre depois do almoço. Tinha ataques de nevralgia, que costumavam sobrevir depois das refeições. O Dr. Griffith dera-lhe umas cápsulas para tomar Costumava deitar-se e tentar dormir.

O Nash disse numa voz casual:

- Então ninguém lhe levou o correio ao andar de cima?

- O correio da tarde? Não, eu via a caixa do correio e punha as cartas na mesa da entrada quando chegava. Mas muitas vezes Mrs. Symmington descia e ia ela buscá-las. Não dormia a tarde toda. Em geral, estava a pé por volta das quatro.

- Não pensou que acontecera alguma coisa, por ela não estar levantada naquela tarde?

- Oh! não, nunca pensei em tal coisa. Mr. Symmington estava a pendurar o casaco na entrada, e eu disse “O chá ainda não está pronto, mas a chaleira está quase a ferver”, e ele acenou afirmativamente e chamou: “Mona, Mona!”, e depois, como Mrs. Symmington não respondeu, foi ao andar de cima, ao quarto dela, e deve ter tido um choque terrível. Chamou-me, e eu fui ter com ele, e ele disse “Mantenha as crianças afastadas”, e depois telefonou ao Dr. Griffith, e esquecemo-nos da chaleira, e o fundo queimou-se! Meu Deus! Foi horrível, e ela tinha estado tão feliz e animada ao almoço. O Nash disse abruptamente: - Qual é a sua opinião sobre a carta que Mrs. Symmington recebeu, Miss Holland?

- Oh! acho que era perversa... perversa!

- Sim, sim, não me refiro a isso. Acha que era verdadeira?

Elsie Holland disse, indignada:

- Não, de fato, não acho. Mrs. Symmington era muito sensível, realmente muito sensível. Tinha de tomar todo o gênero de coisas para os nervos. E era muito, bem, miudinha. - Elsie corou. - Qualquer coisa daquele gênero desagradável, quero eu dizer, seria um grande choque para ela. Estava muito indignada com isso. Gostaria de beber o sangue da autora.

O Nash ficou calado por um momento, depois perguntou:

- Como sabe?

- Foi aquele dragão dedicado onde ela está hospedada que me disse, a antiga criada de sala ou cozinheira. Florence Elford.

- Recebeu alguma carta dessas, Miss Holland?

- Não, não recebi nenhuma.

- Tem a certeza? Por favor - levantou uma mão - não responda apressadamente. Não são coisas agradáveis de receber, eu sei. E às vezes as pessoas não gostam de admitir que as receberam. Mas neste caso é muito importante que saibamos. Estamos conscientes de que as afirmações feitas nelas são apenas um amontoado de mentiras, por isso não precisa de se sentir constrangida.

- Mas eu não recebi nada, superintendente. Na verdade, não recebi. Estava indignada, quase a chorar, e os seus desmentidos pareciam bastante genuínos.que

Quando ela voltou para junto das crianças, o Nash ficou a olhar lá para fora pela janela.

- Bem - disse ele -, acabou-se! Ela diz que não recebeu nenhuma carta destas. E parece que está a dizer a verdade.

- Com certeza que disse. Tenho a certeza de que disse.

- Hum! - disse o Nash. - Então, o que eu quero saber é por que diabo não recebeu? Ela é a segunda pessoa - disse eu. - Há Emily Barton, não se esqueça. O Nash soltou um risinho abafado.

- Não devia acreditar em tudo o que lhe dizem, Mr. Burton. Miss Barton recebeu mais do que uma, mais do que uma.

- Por que é que Miss Emily disse que não tinha recebido nenhuma?

- Pudor. A linguagem das cartas não é bonita. Miss Barton passou a vida a evitar as coisas grosseiras e vulgares.

- Que diziam as cartas?

- O habitual. No caso dela, era muito ridículo. E incidentalmente insinuavam que ela envenenara a velha mãe e a maioria das irmãs! Nada do gênero.  Incrédulo, disse:

- Quer dizer que na verdade temos uma doida perigosa à solta e não podemos descobri-la imediatamente?

- Havemos de a descobrir - disse o Nash, e a sua voz era ameaçadora. - Ela vai escrever uma carta a mais.

- Mas, meu Deus, homem, ela não vai continuar a escrever estas coisas, não agora.

Ele olhou para mim.

- Oh! sim, vai escrever. Agora ela não consegue parar, compreende? É um desejo mórbido. As cartas vão continuar, não tenha dúvidas. Prosseguiu com impaciência enquanto eu o fitava.

- É uma rapariga bonita, não é?

- Bastante, mais do que bonita.

- Exatamente. Na realidade, é invulgarmente bonita. E é jovem. De fato, ela é exatamente a vítima de que um autor de cartas anônimas gostaria. Então, porque foi deixada de fora?

Abanei a cabeça.

- É interessante, sabe. Tenho de falar disto ao Graves. Ele perguntou se podíamos informá-lo com toda a certeza de alguém que não tivesse recebido uma.

Fui procurar a Megan antes me ir embora. Estava no jardim e parecia quase recuperada. Saudou-me, bastante animada. Sugeri que voltasse para nossa casa por algum tempo, mas depois de uma hesitação momentânea abanou a cabeça.

- É muita gentileza da sua parte, mas acho que vou ficar aqui. No fim de contas  é, bem, suponho que é a minha casa. E atrevo-me a dizer que posso ajudar um pouco com os miúdos.

- Bem - disse eu -, como queiras.

- Então, acho que fico. Posso, posso...

- Sim? - instiguei.

- Se se acontecer alguma coisa horrível posso telefonar-lhe, não posso, e o senhor vem? Fiquei enternecido. - Claro. Mas que coisa horrível achas que pode acontecer?

- Oh! não sei. - Pareceu indecisa. - Neste momento, parece que as coisas estão assim, não parece? O Nash olhou para ela de modo interrogador, mas ela não o esclareceu.

- Por amor de Deus! - disse eu. - Não descubras mais corpos! Não te faz bem. Ela deu-me um sorrisinho.

- Não, não faz. Fez-me sentir muito mal.

Não me agradava muito deixá-la lá, mas, no fim de contas, como ela dissera, era a sua casa. E eu imaginava que agora Elsie Holland iria sentir-se mais responsável por ela.

Eu e o Nash fomos juntos para Little Furze. 

 

Enquanto eu fazia um relato dos acontecimentos da manhã à Joanna, o Nash dedicou a sua atenção à Partridge. Reuniu-se a nós, com um ar desanimado.

- Não foi de grande ajuda. Segundo esta mulher, a rapariga só disse que estava preocupada com qualquer coisa, e que não sabia o que fazer, e que gostava que Miss Partridge a aconselhasse.

- A Partridge mencionou esse fato a alguém? - perguntou a Joanna.

- Sim, pelo que pude deduzir disse a Mrs. Emory (a vossa mulher a dias) qualquer coisa deste gênero: que havia algumas jovens que estavam dispostas a pedir conselhos aos mais velhos e que não pensavam que podiam resolver logo tudo sozinhas! A Agnes podia não ser muito inteligente, mas era uma rapariga boa e respeitosa e que sabia comportar-se.

O Nash acenou afirmativamente, com um ar carrancudo.

- Na verdade, é a Partridge a vangloriar-se - murmurou a Joanna.

- E Mrs. Emory pode ter espalhado isso pela cidade?

- Exatamente, Miss Burton.

- Há uma coisa que me surpreende bastante - disse eu. - Por que é que eu e aminha irmã fomos incluídos entre as pessoas que receberam cartas anônimas? Éramos estranhos aqui, ninguém podia ter má vontade contra nós.

- Não está a tomar em consideração a mentalidade de uma Autora de Cartas Anônimas: tudo lhe serve. Pode dizer-se que a má vontade é contra a humanidade. Suponho que era isso que Mrs. Dane Calthrop queria dizer - disse a Joanna pensativamente.

O superintendente disse:

- Não sei se por acaso olhou com atenção para o envelope da carta que recebeu, Miss Burton. Se olhou, deve ter notado que, na verdade, ele estava endereçado a Miss Barton, e que o a foi depois alterado para um u.

Esta observação, devidamente interpretada, devia ter-nos dado uma pista sobre todo este assunto. Mas na verdade nenhum de nós viu qualquer significado nela. O Nash foi-se embora e eu fiquei com a Joanna. - Não achas que aquela carta estava destinada a Miss Emily, pois não? - disse ela. Dificilmente podia começar por “Sua rameira pintada” - salientei, e a Joanna concordou. Depois ela sugeriu-me que fosse à cidade. - Devias ouvir o que as pessoas dizem. Deve ser o assunto da manhã! Sugeri-lhe que viesse também, mas para grande surpresa minha a Joanna recusou. Disse que ia dedicar-se ao jardim. Hesitei na entrada e disse, baixando a voz:

- Suponho que a Partridge está inocente?

- A Partridge!

O espanto na voz da Joanna fez com que me envergonhasse da minha idéia. Disse apologeticamente: - Só estava a pensar comigo mesmo Ela é bastante “esquisita” em certos aspectos; uma solteirona mal-humorada, o tipo de pessoa que pode ter uma obsessão religiosa.

- Isto não é obsessão religiosa, ou pelo menos foi o que me disseste que o Graves disse.

- Bem, obsessão sexual. Parece que estão intimamente ligadas. Ela é reprimida e respeitável, e esteve aqui fechada anos a fio com uma data de mulheres idosas.

- Que é que te pôs essa idéia na cabeça? Eu disse lentamente:

- Bem, só temos a palavra dela sobre o que a Agnes lhe disse, não é verdade? Supõe que a Agnes perguntou à Partridge por que foi deixar um bilhete naquele dia... e que a Partridge lhe disse que aparecia à tarde para lhe explicar.

- E depois camuflou a coisa, vindo ter conosco e perguntando se a rapariga podia vir cá?

-Sim.

- Mas a Partridge não saiu naquela tarde.

- Não sabemos isso. Nós saímos, lembras-te?

- Sim, é verdade. É possível, suponho. - A Joanna meditou sobre o assunto. - Mas mesmo assim acho que não. Não me parece que a Partridge tenha inteligência para ocultar as pistas das cartas. Para limpar impressões digitais e tudo isso. Não se trata só de astúcia, mas de conhecimento. Não me parece que ela o tenha. Suponho - a Joanna hesitou, depois disse lentamente - que eles têm a certeza de que é uma mulher, não têm?

- Estás a pensar que é um homem?! - exclamei incredulamente.

- Não, não um homem comum... mas um certo tipo de homem. Na verdade estou a pensar em Mr. Pye.

- Então o Pye é a tua escolha?

- Não achas que é uma possibilidade? É o tipo de pessoa que pode sentir-se só, e infeliz... e rancorosa. Toda a gente se ri dele, percebes? Não consegues vê-lo a odiar secretamente toda a gente normal e feliz, e a ter um estranho e perverso prazer artístico no que andava a fazer?

- O Graves falou numa solteirona de meia-idade.

- Mr. Pye - disse a Joanna - é uma solteirona de meia-idade.

- Um inadaptado - disse eu lentamente.

- Precisamente. É rico, mas o dinheiro não ajuda. E tenho a impressão de que pode ser desequilibrado. Na verdade, é um homenzinho bastante assustador.

- Ele próprio recebeu uma carta, não te esqueças.

- Não sabemos isso - realçou a Joanna. - Só pensamos que sim. E, seja como for, ele podia estar a fingir.

- Para nos enganar?

- Sim. É suficientemente esperto para pensar nisso, e para não exagerar.

- Deve ser um ótimo ator.

- Mas é claro, Jerry, que quem anda a fazer isto tem de ser um ótimo ator. Até certo ponto, é aí que entra o prazer.

- Por amor de Deus, Joanna, não fales com tanta compreensão! Fazes-me ter a impressão de que... de que compreendes a mentalidade.

- Acho que compreendo. Consigo mesmo entrar nesse estado de espírito. Se eu não fosse a Joanna Burton, se não fosse jovem e razoavelmente atraente e capaz de me divertir, se eu estivesse... como hei-de dizer?... atrás de grades, a observar as outras pessoas a gozarem a vida, subiria em mim uma obscura tendência maldosa que me faria querer magoar, torturar... até destruir?

- Joanna! - peguei-lhe pelos ombros e sacudi-a. - Ela deu um pequeno suspiro, e estremeceu, e sorriu-me.

- Assustei-te, não foi, Jerry? Mas tenho a impressão de que é esta a maneira certa de resolver este problema. Temos de ser a pessoa, saber como sente e o que a faz agir, e depois... e depois talvez saibamos o que ela vai fazer a seguir.

- Oh! que diabo! - disse eu. - E vim eu para cá para vegetar e me interessar por todos os pequenos e encantadores escândalos locais! Pequenos e encantadores escândalos locais! Calúnia, difamação, linguagem obscena e assassínio!

 

A Joanna tinha razão. A High Street estava cheia de grupos interessados. Eu estava decidido a obter, à vez, as reações de toda a gente.

Primeiro encontrei o Griffith. Parecia terrivelmente doente e cansado. De tal maneira, que fiquei intrigado. Certamente que assassínio não é tudo no dia de trabalho de um médico, mas a sua profissão prepara-o para enfrentar a maioria das coisas, incluindo sofrimento, o lado feio da natureza humana e o fato da morte.

- Parece exausto - disse eu.

- Pareço? - foi vago. - Oh! Tive alguns casos preocupantes ultima mente.

- Incluindo a nossa doida à solta?

- Isso, sem dúvida. 

Desviou o olhar de mim para o outro lado da rua. Vi um nervo fino contrair-se-lhe na pálpebra.

- Não tem suspeitas sobre quem é?

- Não. Não. Quem me dera ter.

Perguntou abruptamente pela Joanna e disse, hesitante, que tinha umas fotografias que ela devia gostar de ver. Ofereci-me para lhas levar.

- Oh! não tem importância. Na verdade vou passar por aqueles lados ao fim da manhã.  Comecei a recear que o Griffith estivesse apaixonado. Maldita Joanna! O Griffith era um homem bom de mais para ser brandido como um troféu. Deixei-o partir, porque vi a irmã dele aproximar-se e queria, só por esta vez, falar com ela. Aimée Griffith começou, por assim dizer, no meio de uma conversa.

- Absolutamente chocante! - gritou. - Ouvi dizer que esteve lá muito cedo?

Havia uma pergunta implícita, e os seus olhos brilharam ao realçar a palavra “cedo”. Eu não ia dizer-lhe que a Megan me tinha telefonado. Em vez disso, disse:

- Sabe, fiquei um pouco inquieto a noite passada. A rapariga devia ter ido tomar chá a nossa casa e não apareceu.

- E por isso temeu o pior? Foi muito inteligente!

- Sim - disse eu. - Sou um autêntico sabujo humano.

- Foi o primeiro assassínio que tivemos em Lymstock Há uma agitação enorme. Oxalá a Polícia saiba tratar deste assunto como deve ser.

- Eu não me preocupava - disse eu. - É um grupo de homens eficientes. 

- Nem sequer me lembro de como era a rapariga, embora suponha que ela me abriu a porta dúzias de vezes. Uma coisinha sossegada e insignificante. Agredida na cabeça e depois apunhalada na nuca, foi o que o Owen me disse. Parece coisa de namorado. Que acha?

- É essa a sua solução?

- Parece a mais provável. Tiveram uma desavença, imagino eu. Por estes lados as pessoas são muito consangüíneas, má hereditariedade, muitas delas. 

Fez uma pausa, e depois prosseguiu: - Consta que a Megan Hunter encontrou o corpo? Deve ter sido um choque para ela.

- Foi - respondi laconicamente.

- Imagino que não lhe deve ter feito muito bem. Na minha opinião, ela não é muito boa da cabeça, e uma coisa dessas pode deixá-la completamente pateta. Tomei uma decisão repentina. Tinha de saber uma coisa.

- Diga-me, Miss Griffith, foi a senhora que persuadiu a Megan a regressar a casa ontem?

- Bem, não diria exatamente que persuadi.

 Não cedi.

- Mas disse-lhe alguma coisa?

Aimée Griffith assentou bem os pés no chão e fitou-me nos olhos. Estava um pouco na defensiva. Disse:

- Não é bom que essa jovem se esquive às suas responsabilidades. É nova e não sabe como são as más-línguas, por isso senti-me na obrigação de lhe fazer uma sugestão.

- Más-línguas...? - Parei de falar porque estava irritado de mais para continuar.

Aimée Griffith prosseguiu com aquela autoconfiança exasperantemente complacente que era a sua característica principal:

- Oh! atrevo-me a dizer que o senhor não ouve os mexericos todos que correm por aí. Eu ouço! Sei o que as pessoas andam a dizer. Repare, nem por um momento acredito que haja alguma coisa, nem por um momento! Mas sabe como as pessoas são: se puderem dizer alguma coisa maldosa, dizem-na! E é uma pouca sorte para a rapariga, que precisa de ganhar a vida.

- De ganhar a vida? - disse eu, confuso.

 Aimée prosseguiu:

- É uma situação difícil para ela, naturalmente. E eu acho que ela fez o que devia. Quero dizer, não podia ir-se embora sem aviso prévio e deixar as crianças sem ninguém para cuidar delas. Ela tem sido esplêndida, absolutamente esplêndida. Digo isso a toda a gente! Mas aí tem, é uma situação desagradável e as pessoas falam.

- Está a referir-se a quem? - perguntei.

- A Elsie Holland, claro - disse Aimée Griffith com impaciência. Em minha opinião, ela é uma rapariga muito simpática que só tem estado a cumprir o seu dever.

- E que andam as pessoas a dizer?

Aimée Griffith riu-se. Foi, pensei eu, um riso muito desagradável.

- Andam a dizer que ela já está a pensar na possibilidade de se tornar na Mrs. Symmington Número Dois, que está desejosa de consolar o viúvo e de se tornar indispensável.

- Mas, santo Deus! - disse eu chocado - Mrs. Symmington só morreu há uma semana! Aimée Griffith encolheu os ombros.

- Claro. É absurdo! Mas sabe como as pessoas são! Elsie Holland é nova e bonita, é quanto basta. E'repare, ser preceptora não é um grande futuro para uma rapariga. Não a censurava se ela quisesse um lar seguro, e um marido, e se explorasse a situação do modo adequado.

- É claro que - continuou ela - o coitado do Dick Symmington não faz a menor idéia de tudo isto! Ainda está completamente arrasado com a morte da Mona Symmington. Mas sabe como são os homens! Se uma rapariga está sempre ali, a tratar do seu conforto, a cuidar dele, a mostrar-se dedicada aos filhos... bem, ele acaba por ficar dependente dela.

Eu disse calmamente:

- Então acha que Elsie Holland é uma mulher leviana e astuta?

Aimée Griffith corou.

- De maneira nenhuma. Tenho pena da rapariga, com as pessoas a dizerem coisas desagradáveis! Foi por isso que eu disse mais ou menos à Megan que devia ir para casa. Parece melhor do que ter o Dick Symmington e a rapariga sozinhos em casa.

Comecei a perceber as coisas.

Aimée Griffith deu uma gargalhada divertida.

- Está chocado, Mr Burton, com o que a nossa pequena vila mexeriqueira pensa.

Posso dizer-lhe isto: pensam sempre o pior! Riu-se, e acenou com a cabeça, e afastou-se a passos largos.

 

Encontrei Mr. Pye junto à igreja. Estava a falar com Emily Barton, que parecia corada e excitada.

Mr Pye saudou-me com todas as demonstrações de prazer.

- Ah! Mr Burton, bom dia, bom dia! Como está a sua encantadora irmã. Disse-lhe que a Joanna estava bem.

- Mas não se junta ao nosso parlamento da aldeia? Estamos todos perturbados com as notícias. Assassínio! Um verdadeiro assassínio de jornal de domingo entre nós! Receio que não tenha sido o mais interessante dos crimes. Um tanto sórdido. O assassínio brutal de uma criadinha de servir. Não há subtileza no crime, mas ainda assim é indiscutivelmente uma novidade.

Miss Barton disse timidamente:

- É chocante, muito chocante.

Mr. Pye virou-se para ela.

- Mas a senhora está a gostar, minha querida senhora, está a gostar. Confesse lá. Desaprova, lamenta, mas há a excitação. Insisto, há a excitação!

- Tão boa rapariga - disse Emily Barton. - Veio para minha casa do St. Clotilde Home. Era bastante inexperiente. Mas aprendia com muita facilidade. Transformou-se numa criadinha muito boa. A Partridge estava muito satisfeita com ela.

Eu disse muito depressa:

- Ela ia tomar chá com a Partridge ontem à tarde. - Virei-me para o Pye. - Suponho que Aimée Griffith lhe contou.

Falei num tom muito casual. O Pye respondeu, aparentemente sem suspeitar de nada: - Falou nisso, sim. Disse, estou a lembrar-me, que era uma novidade as criadas fazerem telefonemas dos telefones dos patrões.

- A Partridge nunca sonharia em fazer uma coisa dessas - disse Miss Emily -, e surpreende-me muito que a Agnes o tenha feito.

- Está desatualizada, minha querida senhora - disse Mr. Pye. - Os meus dois terrores usam constantemente o telefone e fumavam na casa toda até eu me opor Mas uma pessoa nem se atreve a falar de mais. O Prescott e um excelente cozinheiro, embora temperamental, e Mrs. Prescott é uma criada admirável.

- Sim, de fato, todos achamos que tem muita sorte.

Intervim, uma vez que não queria que a conversa se tornasse puramente doméstica.

- A notícia do assassínio espalhou-se muito depressa - disse eu.

- Claro, claro - disse Mr. Pye. - O homem do talho, o padeiro, o fabricante de castiçais. Entra em cena o Rumor, abundantemente colorido pelas línguas! Lymstock, ai de mim! está a estragar-se. Cartas anônimas, assassínios, uma grande quantidade de tendências criminosas.

Emily Barton disse nervosamente: - Eles não acham, não consta que... que as duas coisas estejam relacionadas? Mr. Pye apoderou-se da idéia.

- Uma conjectura interessante. A rapariga sabia alguma coisa, por conseguinte, foi assassinada. Sim, sim, muito promissora. Que inteligente da sua parte pensar nisso!

- Eu... eu não agüento isto! Emily Barton falou abruptamente e afastou-se, a andar muito depressa.

O Pye ficou a olhar para ela. O seu rosto de querubim estava zombeteiramente franzido. Virou-se para mim e abanou a cabeça devagar

- Uma alma sensível. Uma criatura encantadora, não acha? Absolutamente uma peça de época. Sabe, ela não é da geração dela, é da geração anterior. A mãe deve ter sido uma mulher com um caráter muito forte. Eu diria que manteve o tempo da família a rolar por volta de 1870. A família toda conservada dentro de uma redoma. Gosto de encontrar este gênero de coisas.

Eu não queria falar sobre peças de época.

- Que pensa realmente de todo este assunto? - perguntei.

- A que se refere?

- Às cartas anônimas, ao assassínio...

- A nossa vaga de crimes locais? Que pensa o senhor?

- Perguntei primeiro - disse eu jocosamente.

Mr. Pye disse devagar:

- Sabe, sou um estudioso de anormalidades. Interessam-me. Pessoas aparentemente improváveis a fazerem as coisas mais fantásticas. Veja o caso de Lizzie Borden. Não há, de fato, uma explicação razoável para aquilo. Neste caso, o meu conselho para a Polícia seria: estudem o caráter. Deixem as impressões digitais e a comparação de caligrafia e os microscópios. Em vez disso, reparem no que as pessoas fazem com as mãos, e nos seus pequenos artifícios de comportamento, e na forma como comem, e se às vezes se riem sem razão aparente.

Fiquei desconcertado. - Uma louca? - disse eu.

- Completamente louca - disse Mr. Pye e acrescentou -, mas ninguém diria.

- Quem?

Os seus olhos encontraram-se com os meus. Ele sorriu.

- Não, não, Burton, isso seria difamação. Não podemos acrescentar difamação a  tudo o mais. Fugiu literalmente pela rua abaixo.

 

Enquanto eu o seguia com o olhar, a porta da igreja abriu-se e o Rev. Caleb Dane Calthrop saiu.

Dirigiu-me um sorriso vago.

- Bom... bom dia, Mr... hum... hum!...

Ajudei-o: - Burton.

- É claro, claro, não pense que não me lembro de si. 0 seu nome escapou-se-me momentaneamente da memória. Lindo dia.

- Sim - disse eu laconicamente.

 Ele observou-me.

- Mas alguma coisa... alguma coisa... ah! sim, aquela pobre criança que estava a servir nos Symmingtons. Custa-me a acreditar, confesso, que tenhamos uma assassina entre nós, Mr... hum... Burton.

- Parece um pouco incrível - disse eu.

- Chegou-me outra coisa aos ouvidos. - Inclinou-se na minha direção. - Fiquei a saber que têm circulado por aí umas cartas anônimas. Ouviu rumores de coisas dessas?

- Ouvi - disse eu.

- Coisas covardes e ignóbeis. - Fez uma pausa e citou uma enorme torrente de latim. - Estas palavras de Horácio são muito apropriadas, não acha? - disse ele.

- Absolutamente - disse eu.

 

Parecia não haver mais ninguém com quem valesse a pena falar, por isso fui para casa, comprando de passagem tabaco e uma garrafa de xerez, para conseguir algumas opiniões mais humildes sobre o crime.

“Um vagabundo maldoso” parecia ser o veredicto.

“ ... Aparecem à porta, aparecem mesmo, e lastimam-se e pedem dinheiro, e depois, se há uma rapariga sozinha em casa, tornam-se desagradáveis. A minha irmã Dora, lá para os lados de Combreacre, teve uma experiência desagradável um dia. Bêbado, era o que ele estava, e a vender aqueles pequenos poemas impressos...”

A história prosseguiu, acabando com a intrépida Dora a bater com a porta na cara do homem, e a refugiar-se, e a barricar-se num esconderijo incerto que, pelo pudor com que foi mencionado, eu conclui que devia ser o lavabo. E lá ficou até a patroa voltar para casa.

Cheguei a Little Furze apenas uns minutos antes da hora do almoço. A Joanna estava à janela da sala de visitas sem fazer absolutamente nada e com ar de quem tem os pensamentos a quilômetros de distância.

- Que estiveste a fazer? - perguntei.

- Oh! não sei. Nada de especial.

Saí para a varanda. Havia duas cadeiras junto a uma mesa de ferro e dois cálices de xerez vazios. Noutra cadeira estava um objeto para o qual olhei com perplexidade durante algum tempo.

- Que diabo é isto?

- Oh! - disse a Joanna - acho que é uma fotografia de um baço doente ou coisa assim. Parece que o Dr. Griffith achou que eu estaria interessada em a ver.

Examinei a fotografia com algum interesse. Cada homem tem os seus próprios meios de cortejar o sexo feminino. Eu não escolheria fazê-lo com fotografias de baços doentes ou sãos. Contudo, sem dúvida que a Joanna procurara sarna para se coçar! -

- Tem um aspecto muito desagradável - disse eu.

A Joanna disse que sim, que tinha.

- Como estava o Griffith? - perguntei.

- Parecia cansado e muito infeliz. Acho que está preocupado com qualquer coisa.

- Um baço que não cede ao tratamento?

- Não sejas tolo. Refiro-me a uma coisa real.

- Eu diria que o homem te tem a ti na cabeça. Quem me dera que o deixasses em paz, Joanna.

- Oh! cala-te. Eu não fiz nada.

- As mulheres dizem sempre isso.

A Joanna deu meia-volta e saiu da sala furiosa.

0 baço doente estava a começar a encaracolar ao sol. Peguei-lhe por uma ponta e levei-o para a sala de visitas. Pessoalmente, não lhe tinha qualquer afeto, tuas parti do princípio de que era um dos tesouros do Griffith.

Inclinei-me e puxei um livro grosso da prateleira inferior da estante para achatar de novo a fotografia entre as suas páginas. Era um pesado volume de sermões.

0 livro abriu-se-me nas mãos de uma forma muito surpreendente. Num instante, percebi por que. Do meio dele, tinham sido cuidadosamente cortadas uma quantidade de páginas.

 

Fiquei a olhar para aquilo. Examinei o frontispício do livro. Tinha sido publicado em 1840.

Não podia haver qualquer dúvida. Eu estava a olhar para o livro de cujas páginas tinham sido formadas as cartas anônimas. Quem as cortara?

Bem, para começar, podia ter sido a própria Emily Barton. Ela talvez fosse a pessoa óbvia a considerar. Ou podia ter sido a Partridge.

Mas havia outras possibilidades. As páginas podiam ter sido cortadas por qualquer pessoa que tivesse ficado só nesta sala, uma visita, por exemplo, que tivesse ficado à espera de Miss Emily. Ou até uma pessoa que tivesse vindo em trabalho.

Não, isso não era tão provável. Tinha reparado que numa ocasião em que um empregado do banco viera falar comigo, a Partridge o levara para o gabinete pequeno nas traseiras da casa. Era esse obviamente o hábito da casa.

Uma visita, então? Alguém de “boa posição social”. Mr Pye? Aimée Griffith? Mrs. Dane Calthrop?

0 gongo soou, e fui almoçar Mais tarde, na sala de visitas, mostrei à Joanna o meu achado.

Debatemo-lo sob todos os aspectos. Depois levei-o à esquadra de polícia.

Ficaram entusiasmados com a descoberta, e eu recebi palmadinhas nas costas por uma coisa que foi, no fim de contas, o mais puro golpe de sorte.

0 Graves não estava lá, mas o Nash sim e telefonou ao inspetor. Iriam examinar o livro em busca de impressões digitais, embora o Nash não tivesse grandes esperanças de encontrar alguma coisa. Posso dizer que não encontrou. Havia as minhas, as da Partridge e as de mais ninguém, o que provava apenas que a Partridge limpava o pó conscienciosamente.

 0 Nash foi a pé comigo pela colina acima. Perguntei-lhe se estava a fazer progressos. - Estamos a restringir os suspeitos, Mr Burton. Eliminamos as pessoas que não podiam ter sido.

- Ali! - disse eu. - E quem resta?

- Miss Ginch. Ela tinha combinado encontrar-se com um cliente numa casa, ontem à tarde. A casa não fica longe da Combeacre Road, que é a rua que passa pelos Symmingtons. Ela teria de passar pela casa, tanto à ida como à vinda... na semana anterior, o dia em que a carta anônima foi entregue e Mrs. Symmington se suicidou, foi

o seu último dia no escritório do Symmington. A princípio, Mr. Symmington pensava que ela não saíra do escritório a tarde toda. Ele teve Sir Henry Lushington consigo toda a tarde, e tocou várias vezes a chamar Miss Ginch. Contudo, descobri que ela saiu do escritório entre as três e as quatro. Foi comprar uma série de selos caros de que tinham falta. 0 paquete podia ter ido, mas Miss Ginch preferiu ir ela, dizendo que tinha uma dor de cabeça e que gostaria de apanhar ar. Não se demorou muito.

- Mas o tempo suficiente?

- Sim, o tempo suficiente para se apressar até ao outro lado da aldeia, enfiar a carta na caixa do correio e regressar depressa. Contudo, devo dizer que não consigo encontrar ninguém que a tivesse visto perto da casa do Symmington.

- Alguém notaria?

- Talvez sim, ou talvez não.

- Quem mais tem no saco?

0 Nash olhou para a frente bem a direito.

- Compreende que não podemos excluir ninguém, absolutamente ninguém.

- Sim - disse eu. - Compreendo.

Ele disse gravemente: - Miss Griffith foi ontem a Brenton para uma reunião das Guias. Chegou bastante tarde.

- Não acha...

- Não, não acho. Mas não sei, Miss Griffith parece uma mulher eminentemente saudável e de espírito são, mas eu não sei.

- E na semana anterior? Ela podia ter enfiado a carta na caixa do correio?

- É possível. Andou às compras na vila nessa tarde. - Fez uma pausa. - 0 mesmo se aplica a Miss Emily Barton. Saiu para fazer compras no início da tarde de ontem, e na semana anterior foi dar um passeio para visitar uns amigos na rua que passa pela casa dos Symmingtons.

Abanei a cabeça incredulamente. A descoberta do livro cortado em Little Furze, sabia-o bem, voltaria fatalmente as atenções para a proprietária daquela casa, mas quando me lembrei de Miss Emily a chegar ontem, tão animada e feliz e excitada...

Que diabo... excitada... Sim, excitada, faces coradas, olhos brilhantes, certamente não por que... não por que... - Este assunto é mau para uma pessoa. Vêem-se coisas, imaginam-se coisas... - disse eu lentamente.

- Sim, não é muito agradável considerar os nossos semelhantes como possíveis loucos criminosos. Fez uma pausa por um momento, depois prosseguiu:

- E há Mr Pye... Eu disse bruscamente: - Então tomou-o em consideração?

0 Nash sorriu.

- Oh! sim, tomamo-lo em consideração, sim. Um caráter muito curioso, um caráter não muito simpático, devo dizer Não tem álibi. Estava no jardim, sozinho, nas duas ocasiões.

- Então não suspeita só de mulheres?

- Penso que não foi um homem que escreveu as cartas, de fato, tenho a certeza, e o Graves também... isto é, contando sempre com o nosso Mr. Pye, que tem um traço anormalmente feminino no seu caráter Mas investigamos toda agente em relação à tarde de ontem. Trata-se de um caso de assassínio, percebe. 0 senhor está livre de suspeitas - sorriu -, e a sua irmã também, e Mr. Symmington não saiu do escritório depois de lá ter chegado, e o Dr. Griffith andava a fazer a ronda dos doentes na outra direção, e eu investiguei as visitas dele.

Fez uma pausa, voltou a sorrir, e disse: - Como vê, somos minuciosos. Eu disse lentamente: - Então o seu caso está reduzido àqueles quatro: Miss Ginch, Mr Pye, Miss Griffith e a pequena Miss Barton?

- Oh! não, não, temos mais alguns... além da mulher do vigário.

- Pensaram nela?

- Pensamos em toda agente, mas Mrs. Dane Calthrop é ostensivamente um pouco doida de mais, se e que percebe o que quero dizer. Contudo,podia tê-lo feito. Estava numa mata a observar pássaros ontem à tarde... e os pássaros não podem falar a favor dela.

Virou-se bruscamente quando o Owen Griffith entrou na esquadra.

- Olá, Nash. Constou-me que andou a perguntar por mim esta manhã. Alguma coisa importante?

- Inquérito na sexta-feira, se lhe convier, Dr. Griffith.

- Está bem. Eu e o Moresby vamos fazer a autópsia esta noite.

0 Nash disse:

- Há só mais uma coisa, Dr. Griffith. Mrs. Symmington andava a tomar umas cápsulas, pós ou coisa assim, que lhe receitou... Deteve-se.

- Sim? - disse o Owen Griffith em tom inquiridor

- Uma dose excessiva dessas cápsulas seria fatal?

0 Griffith disse secamente:

- Certamente que não. A não ser que ela tivesse tomado cerca de vinte e cinco!

- Mas uma vez o senhor preveniu-a de que não devia exceder a dose, foi o que Miss Holland me disse.

- Oh! isso, sim. Mrs. Symmington era o tipo de mulher que exagerava em tudo o que lhe davam: imaginava que se tomasse o dobro lhe faria o dobro do bem, e não quero que ninguém exagere, nem sequer com fenacetina ou aspirina, faz mal ao coração. E seja como for não há dúvida absolutamente nenhuma quanto à causa da morte. Foi cianeto.

- Oh! eu sei isso, não percebeu o que eu quis dizer. Só pensei que quando alguém se suicida é preferível tomar uma dose excessiva de um soporífero do que tomar ácido prússico.

- Oh! absolutamente. Por outro lado, o ácido prússico é mais dramático, e é quase certo que é bem sucedido. Com os barbitúricos, por exemplo, pode reanimar-se a vítima, se o espaço de tempo decorrido for curto.

- Estou a ver, obrigado, Dr. Griffith.

0 Griffith saiu e eu despedi-me do Nash. Segui vagarosamente pela colina acima em direção a casa. A Joanna tinha saído - pelo menos, não havia sinal dela, e estava um memorando enigmático rabiscado no bloco do telefone, provavelmente para orientação da Partridge ou minha.

Se o Dr. Griffith telefonar não posso continuar na terça, mas consigo na quarta ou na quinta

Ergui o sobrolho e fui para a sala de visitas. Sentei-me na poltrona mais confortável - (nenhuma delas era muito confortável, tendiam a ter costas direitas e faziam lembrar a falecida Mrs. Barton) - estendi as pernas e tentei refletir em todo este assunto.

Com um súbito aborrecimento, lembrei-me de que a chegada do Owen interrompera a minha conversa com o inspetor, e que ele acabara de mencionar mais duas pessoas como sendo possibilidades.

Gostava de saber quem eram.

Talvez a Partridge, para começar? No fim de contas, o livro cortado foi encontrado nesta casa. E a Agnes pode ter sido agredida, sem suspeitar, pela sua conselheira e mentora. Não, não se podia eliminar a Partridge.

Mas quem era a outra?

Talvez alguém que eu não conhecia? Mrs. Cleat? A suspeita local original?

Fechei os olhos. Considerei quatro pessoas, pessoas estranhamente improváveis,

uma de cada vez. A Emily Barton, frágil e delicada? Que pontos havia realmente contra ela? Uma vida carente? Dominada e reprimida desde a mais tenra infância? Terem-lhe exigido demasiados sacrifícios? 0 seu curioso horror a discutir qualquer coisa “não muito agradável”? Seria isso de fato um sinal de preocupação interior precisamente com esses temas? Estaria eu a ficar freudiano demais? Lembrei-me de um médico me ter dito uma vez que, sob o efeito de uma anestesia, os murmúrios das senhoras solteiras eram uma revelação. - Ninguém imaginaria que elas conhecessem semelhantes palavras!

Aimée Griffith? Sem dúvida que não havia nada de reprimido ou “inibido” em relação a ela. Alegre, masculinizada, bem sucedida. Uma vida cheia e atarefada. Contudo, Mrs. Dane Calthrop tinha dito: - Coitada!

E havia qualquer coisa - qualquer coisa - uma recordação... Ah! lembrei-me. 0 Owen Griffith dissera qualquer coisa como “Tivemos um surto de cartas anônimas lá no norte, onde eu exercia medicina”.

Também teria sido obra de Aimée Griffith? Certamente que era uma coincidência e tanto. Dois surtos da mesma coisa.

Pára aí um instante, tinham descoberto a autora dessas cartas. 0 Griffith assim o dissera. Uma estudante.

Subitamente, arrefeceu - devia ser uma corrente de ar, da janela. Virei-me desconfortavelmente na minha cadeira. Por que é que me sentia de repente tão esquisito e tão nervoso?

Continua a pensar... Aimée Griffith? Teria sido Aimée Griffith e não a outra rapariga? E Aimée viera para cá e recomeçara as suas proezas. E era por isso que o Owen Griffith parecia tão infeliz e atormentado. Ele suspeitava. Sim, suspeitava...

Mr. Pye? Não era, de certo modo, um homenzinho muito simpático. Conseguia imaginá-lo a encenar esta situação toda ... a rir-se...

Aquela mensagem no bloco do telefone, no hall ... porque continuava eu a pensar nela? 0 Griffith e a Joanna - ele estava a apaixonar-se por ela... Não, não era por isso que a mensagem me preocupava. Era outra coisa...

Os meus sentidos flutuavam, o sono estava muito próximo. Repeti estupidamente para comigo: Não há fumo sem fogo. Não há fumo sem fogo... É isso ... tudo se conjuga...

E depois ia a descer a rua com a Megan e Elsie Holland passou. Estava vestida de noiva, e as pessoas murmuravam:

“Vai finalmente casar-se com o Dr. Griffith. É claro que há anos que estão secretamente noivos ...”.

Lá estávamos nós, na igreja, e Dane Calthrop estava a realizar a cerimônia religiosa em latim.

E no meio da cerimônia Mrs. Dane Calthrop levantou-se de um salto e gritou energicamente:

- Tem de ser pôr fim a isto, é o que lhe digo. Tem de se pôr fim a isto!

Por uns momentos fiquei sem saber se estava acordado ou a dormir. Depois o meu cérebro desanuviou-se e eu apercebi-me de que estava na sala de visitas de Little Furze, e que Mrs. Dane Calthrop tinha acabado de entrar pela porta envidraçada e estava diante de mim a dizer com uma violência nervosa:

- Tem de se pôr fim a isto, é o que lhe digo.

Levantei-me de um salto. Disse: - Perdão. Receio ter adormecido. Como disse?

Mrs. Dane Calthrop bateu furiosamente com um punho na palma da outra mão.

- Isto tem de acabar. Estas cartas! Assassínio! Não podemos continuar a deixar que matem pobres criancinhas inocentes como a Agnes Woddell!

- Tem toda a razão - disse eu. - Mas como se propõe atacar a situação? Mrs. Dane Calthrop disse:

- Temos de fazer qualquer coisa!

Eu sorri, talvez de uma maneira arrogante.

- E que sugere que façamos?

- Fazer com que tudo isto se esclareça! Eu disse que esta terra não era má.

Estava enganada. É sim. Fiquei aborrecido. Não muito educadamente, disse:

- Sim, minha querida senhora, mas que é que vai fazer? Mrs. Dane Calthrop disse: - Pôr um ponto final nisto tudo, é claro.

- A Polícia está a fazer o melhor que pode.

- Se a Agnes pôde ser morta ontem, o melhor deles não basta.

- Então a senhora sabe mais do que eles?

- De maneira nenhuma. Eu não sei absolutamente nada. É por isso que vou chamar um especialista. Abanei a cabeça.

- Não pode fazer isso. A Scotland Yard só se encarrega do caso a pedido do chefe da polícia do condado. Na verdade, mandaram o Graves.

- Não me refiro a esse tipo de especialista. Não me refiro a uma pessoa que saiba de cartas anônimas ou até de assassínio. Refiro-me a alguém que conheça as pessoas. Não percebe? Queremos alguém que saiba muito sobre maldade!

Era um ponto de vista singular. Mas, de certo modo, estimulante. Antes de eu poder dizer mais alguma coisa, Mrs. Dane Calthrop acenou-me afirmativamente com a cabeça e disse num tom de voz despachado e confiante:

- Vou tratar disso imediatamente.

E saiu de novo pela porta envidraçada.

 

A semana seguinte, acho eu, foi um dos períodos mais esquisitos por que já passei. Teve uma estranha qualidade onírica. Nada parecia real.

Realizou-se o inquérito sobre Agnes Woddell, e os curiosos de Lymstock compareceram en masse. Não vieram a lume fatos novos, e foi pronunciado o único veredicto possível: “Assassínio por pessoa ou pessoas desconhecidas”.

Por conseguinte, a pobrezinha da Agnes Woddell foi devidamente sepultada no velho e tranqüilo adro da igreja, depois de ter tido a sua hora de notoriedade e a vida em Lymstock prosseguiu como antes.

Não, esta última afirmação não é verdadeira. Não como antes...

Havia um brilho meio-assustado, meio-ansioso no olhar de quase toda a gente. 0 vizinho olhava para o vizinho. Uma coisa ficara bem clara no inquérito - era muito improvável que tivesse sido um estranho a matar Agnes Woddell. Não tinham sido notados, nem referidos, vagabundos, nem homens desconhecidos no distrito. Portanto, algures em Lymstock, a descer a High Street, a fazer compras, a dar os bons-dias, havia uma pessoa que esmagara o crânio de uma rapariga indefesa e lhe cravara um espeto afiado no cérebro.

E ninguém sabia quem era essa pessoa.

Como digo, os.dias passavam numa espécie de sonho. Olhava para toda a gente que encontrava sob uma nova luz, sob a luz de um Possível assassino. Não era uma sensação agradável!

E à noite, com o cortinado corrido, eu e a Joanna sentávamo-nos a falar, a falar, a discutir, a examinar detalhadamente, uma a uma, as várias possibilidades que ainda pareciam tão fantásticas e incríveis.

A Joanna mantinha-se inabalável na sua teoria de Mr. Pye. Eu, depois de hesitar um pouco, voltara à minha suspeita original, Miss Ginch. Mas examinávamos repetidamente os nomes possíveis.

Mr. Pye?

Miss Ginch?

Mrs. Dane Calthrop?

Aimée Griffith?

Emily Barton?

Partridge?

E durante o tempo todo esperávamos, nervosa e apreensivamente, que acontecesse alguma coisa.

Mas não acontecia nada. Ninguém, tanto quanto sabíamos, recebera mais cartas. 0 Nash aparecia periodicamente na vila, mas eu não fazia idéia do que ele andava a fazer, nem das armadilhas que a Polícia estava a montar 0 Graves tinha partido de novo.

Emily Barton veio tomar chá. A Megan veio almoçar. 0 Owen Griffith ocupava-se da clínica. Fomos tomar um xerez com Mr. Pye. E fomos tomar chá ao vicariato.

Fiquei satisfeito ao descobrir que Mrs. Dane Calthrop não exibia nenhuma da ferocidade militante que demonstrara por ocasião do nosso último encontro. Acho que se esquecera dele.

Parecia agora principalmente preocupada com a destruição das borboletas brancas, para preservar as couves-flores e os repolhos.

A nossa tarde no vicariato foi, na verdade, uma das mais tranqüilas que passamos. Era uma casa antiga e atraente e tinha uma grande sala de visitas, confortável e em mau estado, com cretone rosa-pálido. Os Dane Calthrops tinham com eles uma visita, uma amável senhora idosa que tricotava qualquer coisa com uma lã branca felpuda. Para o chá tivemos scones quentes muito bons, o vigário chegou, e sorria placidamente enquanto prosseguia com a sua afável conversação erudita. Foi muito agradável.

Não quero dizer com isto que fugimos do tópico do assassínio, porque não fugimos.

Miss Marple, a visita, estava naturalmente entusiasmada com o assunto. Como disse apologeticamente: - Temos tão pouco de que falar no campo! - Tinha decidido que a rapariga morta devia ser exatamente como a Edith dela.

- Uma criadinha tão simpática, e tão solícita, mas às vezes um pouco lenta a compreender as coisas.

Miss Marple também tinha uma prima que tinha uma sobrinha cuja cunhada tivera muitos aborrecimentos com cartas anônimas, por isso as cartas também interessavam muito à encantadora velhota.

- Mas diz-me, querida - disse ela a Mrs. Dane Calthrop -, que dizem as pessoas da aldeia, quero dizer, as pessoas da vila? Que pensam elas?

- Ainda em Mrs. Cleat, suponho eu - disse a Joanna.

- Oh! não - disse Mrs. Dane Calthrop. - Agora não. Miss Marple perguntou quem era Mrs. Cleat.

A Joanna disse que ela era a bruxa da aldeia.

- É verdade, não é, Mrs. Dane Calthrop?

0 vigário murmurou uma longa citação em latim sobre, acho eu, a perniciosa influência das bruxas, que todos escutamos num silêncio respeitoso e ignorante.

- Ela é uma mulher muito tola - disse a mulher - Gosta de se exibir. Vai apanhar ervas e coisas assim na lua cheia e tem o cuidado de fazer com que toda a gente fique a saber.

- E as raparigas tontas vão consultá-la, suponho? - disse Miss Marple.

Vi o vigário preparar-se para descarregar mais latim sobre nós, e perguntei abruptamente: - Mas por que é que as pessoas já não suspeitam dela em relação ao assassínio? Achavam que as cartas eram obra dela.

Miss Marple disse: - Oh! Mas a rapariga foi morta com um espeto, foi o que me constou (muito desagradável!). Bem, naturalmente, isso afasta todas as suspeitas dessa Mrs. Cleat. Porque, percebe, ela podia deitar-lhe mau-olhado, para que a rapariga definhasse e morresse de causas naturais.

- É estranho como as velhas crenças perduram - disse o vigário. Nos tempos primitivos do Cristianismo, as superstições locais foram, sensatamente, incorporadas nas doutrinas cristãs e os seus atributos mais desagradáveis gradualmente eliminados.

- Não é a superstição que temos de enfrentar aqui - disse Mrs. Dane Calthrop -, mas os fatos.

- E fatos muito desagradáveis - disse eu.

- É como diz, Mr. Burton - disse Miss Marple. - Agora, o senhor (perdoe-me se estou a ser muito pessoal) é um estranho cá ria terra, e tem conhecimento do mundo e de vários aspectos da vida. Parece-me que devia ser capaz de descobrir uma solução para este desagradável problema.

Eu sorri. - A melhor solução que descobri foi num sonho. No meu sonho, tudo se encaixava e resultava maravilhosamente. Infelizmente, quando acordei aquilo era tudo um disparate!

- Que interessante, apesar disso. Conte-me esse disparate!

- Oh! Tudo começou com uma frase idiota. “Não há fumo sem fogo.” As pessoas têm dito isso ad nauseam. E depois misturei-a com expressões de guerra. Cortinas de fumo, pedaço de papel, mensagens telefônicas... Não, isso foi outro sonho.

- E como foi esse sonho?

A velhota estava tão ansiosa por saber, que tive a certeza de que ela era uma leitora secreta do Livro de Sonhos de Napoleão, que fora o arrimo da minha velha ama.

- Oh! era só Elsie Holland, a preceptora dos Symmingtons, sabe, a casar-se com o Dr. Griffith, e aqui o vigário estava a realizar a cerimônia em latim (- Muito apropriado, querido -, sussurrou Mrs. Dane Calthrop ao marido) e depois Mrs. Dane Calthrop levantou-se e impediu o casamento e disse que tinha de se pôr termo àquilo!

- Mas essa parte - acrescentei com um sorriso - era verdade. Acordei e descobri­a de pé debruçada sobre mim a dizer isso.

- E eu tinha toda a razão - disse Mrs. Dane Calthrop, mas muito amenamente, notei com prazer.

- Mas onde entrava a mensagem telefônica? - perguntou Miss Marple, franzindo o sobrolho.

- Receio estar a ser muito estúpido. Isso não estava no sonho. Foi imediatamente antes dele. Entrei no hall e reparei que a Joanna tinha escrito,uma mensagem para ser transmitida a uma pessoa, se ela telefonasse...

Miss Marple inclinou-se para a frente. Tinha uma mancha cor-de-rosa em cada bochecha. - Achar-me-ia muito indiscreta e muito indelicada se lhe perguntasse o que dizia a mensagem? - Lançou uma olhadela à Joanna. Peço-lhe desculpa, minha querida.

A Joanna, contudo, estava muito divertida.

- Oh! não me importo - garantiu ela à velhota. - Não me lembro de nada disso, mas talvez o Jerry se lembre. Deve ter sido uma coisa muito banal . Solenemente, repeti a mensagem o melhor que pude, muitíssimo divertido com a profunda atenção da velhota.

Eu receava que as palavras verdadeiras a desapontassem, mas talvez ela tivesse uma idéia sentimental de um romance, porque acenou afirmativamente com a cabeça, e sorriu, e pareceu satisfeita.

- Percebo - disse ela. - Estava a pensar que devia ser uma coisa desse gênero. Mrs. Dane Calthrop disse bruscamente: - De que gênero, Jane?

- Uma coisa bastante vulgar - disse Miss Marple.

Olhou pensativamente para mim por uns instantes; depois disse inesperadamente:

- Estou a ver que é um jovem muito inteligente... mas não tem muita confiança em si próprio. Devia ter! A Joanna deu uma gargalhada.

- Por amor de Deus, não o encoraje a sentir-se assim. Ele já se tem em muito boa conta.

- Cala-te, Joanna - disse eu. - Miss Marple compreende-me.

Miss Marple retomara o seu tricô felpudo. - Sabe - observou ela pensativamente -, cometer um assassínio bem sucedido deve ser mais ou menos como levar a cabo um truque de prestidigitação.

- A rapidez da mão ilude o olho?

- Não é só isso. É preciso fazer com que as pessoas olhem para a coisa errada e no lugar errado. Orientação errada, é como lhe chamam, creio eu.

- Bem - observei -, até agora, parece que toda a gente tem procurado a nossa doida à solta no lugar errado.

- Pela minha parte - disse Miss Marple -, inclinava-me a procurar uma pessoa muito sã de espírito.

- Sim - disse eu pensativamente. - Foi o que o Nash disse. Lembro-me de que também realçou a respeitabilidade.

- Sim - concordou Miss Marple. - Isso é muito importante.

Bem, parecia que estávamos todos de acordo.

Dirigi a palavra a Mrs. Calthrop. - 0 Nash acha que vai haver mais cartas anônimas - disse eu. - Que pensa disso? Ela disse devagar: - Pode haver, suponho.

- Se a Polícia pensa isso, terá de haver, sem dúvida - disse Miss Marple. Eu continuei obstinadamente a falar com Mrs. Dane Calthrop.

- Ainda tem pena da autora de cartas anônimas?

Ela corou. - Por que não?

- Não me parece que concorde contigo, querida - disse Miss Marple. - Não neste caso.

Eu disse calorosamente: - Levaram uma mulher ao suicídio e provocaram angústia e ressentimentos incalculáveis.

- Recebeu uma, Miss Burton? - perguntou Miss Marple à Joanna. A Joanna deu um gritinho gutural - Oh! sim. Dizia coisas tremendas.

- Receio - disse Miss Marple - que as pessoas novas e bonitas sejam mais susceptíveis a serem escolhidas pela autora.

- E por isso que eu acho estranho que Elsie Holland não tenha recebido nenhuma - disse eu.

- Deixe-me ver - disse Miss Marple. - Essa é a preceptora dos Symmingtons... a tal com quem sonhou, Mr. Burton?

- Sim.

- Provavelmente recebeu uma e não diz - disse a Joanna.

- Não - disse eu -, acredito nela. E o Nash também.

- Valha-me Deus! - disse Miss Marple. - Isso é muito interessante.  É a coisa mais interessante que ouvi até agora.

 

Ao voltarmos para casa, a Joanna disse-me que eu não devia ter repetido o que o Nash dissera sobre a chegada de mais cartas.

- Por quê?

- Porque Mrs. Dane Calthrop pode ser a responsável.

- Não acreditas realmente nisso!

- Não tenho a certeza. Ela é uma mulher esquisita.

Mais uma vez, começamos a nossa discussão sobre as pessoas prováveis.

Foi duas noites mais tarde que eu voltei de carro de Exhampton.

Tinha jantado lá e depois meti-me ao caminho para regressar e já estava escuro quando cheguei a Lymstock.

Os faróis do carro não estavam a funcionar devidamente, e depois de me abrandar e de os acender e apagar, saí finalmente do carro para ver o que podia fazer. Remexi neles durante um pedaço, mas por fim consegui conserta-los.

A rua estava completamente deserta. Em Lymstock, ninguém sai depois de escurecer. As primeiras casas estavam logo adiante, entre elas, o feio edifício com frontão do Instituto das Mulheres. Avultava-se à luz indistinta das estrelas, e alguma coisa me impeliu a ir dar uma vista de olhos. Não sei se vi de relance uma figura furtiva a fugir através do portão - sendo assim, deve ter sido uma coisa tão vaga que não se fixou no meu consciente, mas senti, subitamente, uma espécie de curiosidade exagerada pelo local.

0 portão estava ligeiramente entreaberto e eu empurrei-o e entrei. Um caminho curto e quatro degraus levavam à porta.

Fiquei lá um momento, hesitante. Que fazia eu ali realmente? Não sabia, e então, de repente, muito próximo, ouvi um ruge-ruge. Parecia o som de um vestido de mulher. Contornei rapidamente a esquina da casa e dirigi-me para o sítio de onde vinha o som.

Não vi ninguém. Continuei e contornei outra esquina. Estava agora nas traseiras da casa e, repentinamente, vi uma janela aberta a dois passos de mim.

Aproximei-me silenciosamente e pus-me à escuta. Não consegui ouvir nada, mas estava plenamente convencido de que havia alguém dentro de casa.

As minhas costas ainda não estavam boas para acrobacias, mas consegui içar-me e saltar para dentro por cima do peitoril. Infelizmente, fiz barulho.

Fiquei quieto junto à janela, à escuta. Depois, avancei, de braços estendidos. Foi então que ouvi um som indistinto à minha frente, à direita. Tinha uma lanterna no bolso e acendi-a. Imediatamente, uma voz baixa e autoritária disse:

- Apague isso. Obedeci logo, já que nesse mesmo instante reconhecera a voz do superintendente Nash.

Ele pegou-me pelo braço e levou-me para um corredor, através de uma porta. Aqui, onde não havia nenhuma janela que traísse a nossa presença para alguém que estivesse no exterior, ele acendeu uma luz e olhou-me mais pesaroso do que irritado.

- Tinha de aparecer neste preciso momento, Mr. Burton.

- Peço desculpa - disse eu. - Mas tive um palpite de que ia descobrir alguma coisa.

- E provavelmente ia. Viu alguém?

Hesitei. - Não tenho a certeza - disse eu, devagar. - Tive uma vaga sensação de ter visto alguém esgueirar-se através do portão da frente, mas na realidade, não vi ninguém. Em seguida ouvi um ruge-ruge do outro lado da casa.

0 Nash acenou afirmativamente.

- É verdade. Alguém contornou a casa à sua frente. Hesitou à janela e depois prosseguiu muito depressa; deve tê-lo ouvido a si, suponho. Pedi desculpa de novo. - Qual é a idéia? - perguntei. 0 Nash disse:

- Estou a apostar no fato de que uma autora de cartas anônimas não pode parar de as escrever. Pode saber que é perigoso, mas tem de o fazer. É como um desejo insaciável por álcool ou drogas.

Anuí.

- Percebe agora, Mr. Burton, a autora, seja ela quem for, vai tentar que as cartas tenham um aspecto o mais idêntico possível ao das outras. Ela tem as páginas cortadas daquele livro e pode continuar a recortar delas as letras e as palavras. Mas os envelopes apresentam uma dificuldade. Vai querer batê-los na mesma máquina de escrever. Não pode arriscar-se a usar outra, ou a sua própria caligrafia.

- Acha realmente que ela vai continuar o jogo? - perguntei incredulamente.

- Acho que sim. E aposto o que quiser em como está confiante. Estas pessoas são vaidosas como uns pavões! Daí, pensei que a autora, seja ela quem for, viria ao Instituto depois de escurecer para chegar à máquina de escrever.

- Miss Ginch - disse eu.

- Talvez.

- Ainda não sabe?

- Não sei.

- Mas suspeita?

- Suspeito. Mas é alguém muito astuto, Mr. Burton. Alguém que conhece todos os truques. Podia imaginar uma parte da rede espalhada pelo Nash em diferentes direções. Não tinha dúvidas de que todas as cartas escritas por um suspeito e postas no correio, ou entregues pessoalmente, eram imediatamente inspecionadas. Mais cedo ou mais tarde, a criminosa cometeria um deslize, tomar-se-ia cada vez mais imprudente. Pedi desculpa pela terceira vez pela minha presença zelosa e indesejada.

- Oh! bem - disse o Nash filosoficamente. - Não se pode remediar. Melhor sorte da próxima vez.

Saí para a noite. Uma figura indistinta estava de pé junto ao meu carro.

Para grande espanto meu, reconheci a Megan.

- Olá! - disse ela. - Tive a impressão de que era o seu carro. Que andou a fazer?

- Que andas tu a fazer é o que interessa - disse eu.

- Vim dar um passeio. Gosto de passear à noite. Ninguém nos faz parar e diz imbecilidades, e gosto das estrelas, e as coisas cheiram melhor, e as coisas banais parecem misteriosas.

- Concordo sinceramente com tudo isso - disse eu. - Mas só os gatos e as bruxas passeiam no escuro. Lá em casa devem estar ansiosos por saber onde estás.

- Não estão nada. Nunca querem saber onde estou ou o que estou a fazer

- Como tens passado? - perguntei.

- Bem, suponho.

- Miss Holland tem cuidado de ti e tudo isso?

- A Elsie é boa pessoa. Não pode evitar o fato de ser completamente idiota.

- Pouco amável... mas provavelmente verdade - disse eu. - Salta cá para dentro, que eu levo-te a casa. Não era bem verdade que não tivessem dado pela falta da Megan. 0 Symmington estava à porta, quando nos aproximamos.

Espreitou para dentro do carro. - Olá, a Megan está aí?

- Sim - disse eu. - Trouxe-a a casa.

0 Symmington disse rispidamente:

- Não devias desaparecer sem dizer nada, Megan. Miss Holland tem estado muito preocupada contigo. A Megan murmurou qualquer coisa, passou por ele e entrou em casa. 0 Symmington suspirou.

- Uma rapariga crescida é uma grande responsabilidade quando não há uma mãe para olhar por ela. Já ultrapassou a idade de ir para a escola, suponho eu. Olhou-me com desconfiança.

- Suponho que a tenha levado a passear? Achei melhor deixar as coisas nesse pé.

 

No dia seguinte, enlouqueci. Olhando para trás em retrospectiva, é essa, de fato, a única explicação que encontro.

Tinha de ir à minha visita mensal a Marcus Kent... Fui de comboio. Para grande surpresa minha, a Joanna preferiu ficar Geralmente estava ansiosa por ir, e costumávamos ficar uns dias.

Desta vez, contudo, tencionava voltar no mesmo dia no comboio da noite, mas ainda assim fiquei espantado com a Joanna. Disse apenas, enigmaticamente, que tinha muito que fazer, e por que razão iria passar horas num comboio desagradável e abafado se estava um dia lindo no campo?

É claro que isso era inegável, mas não parecia nada próprio da Joanna.

Ela disse que não queria o carro, por isso eu iria nele até à estação e deixá-lo-ia lá estacionado até ao meu regresso.

Por alguma razão obscura, só conhecida das companhias de caminhos-de-ferro, a estação de Lymstock está situada a uns bons oitocentos metros de Lymstock propriamente dita. A meio do caminho ultrapassei a Megan, que se arrastava pela estrada fora sem objetivo. Parei o carro.

- Olá, que andas a fazer?

- Só vim dar um passeio.

- Mas não aquilo a que eu chamo um bom passeio enérgico, presumo. Vinhas a rastejar pela estrada fora como um caranguejo desanimado.

- Bem, não ia a lado nenhum em especial.

- Então é melhor vires despedir-te de mim à estação.

Abri a porta do carro e a Megan entrou.

- Aonde vai? - perguntou.

- A Londres. Vou ao meu médico.

- Não está pior das costas, pois não?

- Não, já estão praticamente boas outra vez. Estou a contar que ele fique muito satisfeito com isso.

A Megan acenou afirmativamente.

Abrandamos na estação. Estacionei o carro, entrei e comprei o meu bilhete na bilheteira. Havia pouca gente na plataforma, e ninguém que eu conhecesse.

- Não quer emprestar-me um penny, por favor? - disse a Megan. - É para comprar um chocolate na maquina.

- Aqui tens, querida - disse eu, entregando-lhe a moeda em questão. - De certeza que não queres também gomas transparentes ou pastilhas para a garganta?

- Gosto mais de chocolate - disse a Megan sem desconfiar do sarcasmo. Foi até à máquina e eu fiquei a olhar para ela com um sentimento de irritação crescente.

Trazia uns sapatos muito usados, e meias grosseiras e pouco atraentes, e uma camisola e uma saia especialmente disformes. Não sei por que é que tudo aquilo me enfurecia, mas enfurecia.

Quando ela voltou, eu disse zangado:

- Por que usas essas meias nojentas?

- Que mal têm?

- Têm tudo mal. São repugnantes. E por que usas uma camisola que parece uma couve podre?

- É perfeita, não é? Tenho-a há anos.

- Devia imaginar. E por que é que tu...

Nesse momento chegou o comboio, interrompendo o meu sermão irritado.

Entrei numa carruagem vazia de primeira classe, baixei o vidro da janela e debrucei-me para fora, para continuar a conversa. A Megan estava abaixo de mim, com o rosto virado para cima. Perguntou-me por que estava tão zangado.

- Não estou zangado - disse eu falsamente. - Só me enfurece ver-te tão descuidada e tão pouco preocupada com a tua aparência.

- Seja como for, não conseguiria ficar bonita, por isso que é que importa?

- Meu Deus! - disse eu. - Gostava de te ver convenientemente vestida. Gostava de te levar a Londres e de te vestir da cabeça aos pés.

- Quem me dera que pudesse - disse a Megan.

0 comboio começou a deslocar-se. Olhei para baixo para o rosto ansioso da Megan, virado para cima.

E depois, como disse, tive um ataque de loucura.

Abri a porta, agarrei a Megan com um braço e icei-a, positivamente, para dentro da carruagem.

Ouviu-se um grito ultrajado de um carregador, mas a única coisa que ele pôde fazer foi voltar a fechar habilmente a porta. Levantei a Megan do chão, onde aterrara com o meu gesto impetuoso.

- Para que diabo fez isto? - perguntou ela, esfregando um joelho.

- Cala-te - disse eu. - Vens comigo a Londres, e quando eu acabar de tratar de ti, nem te vais reconhecer. Vou mostrar-te o aspecto que podes ter, se tentares. Estou farto de te ver a vadiar por aí toda desmazelada e de qualquer maneira.

- Oh! - disse a Megan, num sussurro extasiado.

Veio o revisor e eu comprei um bilhete de ida e volta para a Megan. Ela sentou-se no seu canto a olhar para mim com uma espécie de respeito temeroso.

- Olhe cá! - disse ela, quando o homem se foi embora. - 0 senhor é intempestivo, não é?

- Muito - disse eu. - É de família.

Como é que ia explicar-lhe o impulso que sentira subitamente? Ela parecera um cão triste a ser abandonado. Agora tinha no rosto o prazer incrédulo do cão que afinal fora levado a passear.

- Suponho que não conheces Londres muito bem? - disse eu.

- Conheço sim - disse a Megan. - Passava sempre por lá à ida para a escola. E fui lá ao dentista e a uma pantomima.

- Esta - disse eu - vai ser uma Londres diferente.

Chegamos meia hora antes da minha consulta em Harley Street. Apanhei um táxi e fomos diretos à Mirotin, a costureira da Joanna. A Mirotin é, em pessoa, uma mulher de quarenta e cinco anos, viva e pouco convencional, Mary Grey. É uma mulher esperta e uma ótima companhia. Sempre gostei dela. Eu disse à Megan: - És minha prima.

- Por quê?

- Não discutas - disse eu.

Mary Grey estava a ser inflexível com uma judia corpulenta que se encantara por um colante vestido de noite azul de esmalte. Chamei-a e puxei-a para um lado.

- Ouça - disse eu. - Trouxe uma priminha comigo. A Joanna era para vir, mas surgiu um impedimento. Mas disse que eu podia deixar tudo nas suas mãos. Está a ver a aparência que a miúda tem agora?

- Meu Deus! estou sim - disse Mary Grey com emoção.

- Bem, quero-a conveniente e minuciosamente arranjada da cabeça aos pés. Carte blanche. Meias, sapatos, roupa interior, tudo! A propósito, o homem que arranja o cabelo da Joanna é perto daqui, não é?

- 0 Antoine? Ao virar da esquina. Eu também trato disso.

- É uma mulher como há poucas.

- Oh! vou gostar de fazer isto; sem falar no dinheiro, que hoje em dia não é para se desprezar... metade das minhas malditas clientes nunca pagam as contas. Mas como digo vou gostar, - Lançou um olhar rápido e profissional à Megan que estava um pouco afastada. - Tem uma figura encantadora.

- Deve ter olhos de raios X - disse eu. - A mim, parece-me completamente disforme. Mary Grey riu-se.

- São estas escolas - disse ela. - Parece que se orgulham de transformarem raparigas que se vestem bem em raparigas com um aspecto inverossímil. Chamam a isso ser-se amorosa e pouco sofisticada. As vezes é precisa uma estação inteira para elas se recomporem e parecerem humanas. Não se preocupe, deixe tudo comigo.

- Está bem - disse eu. - Venho buscá-la por volta das seis.

 

Marcus Kent ficou satisfeito comigo. Disse-me que eu tinha superado todas as suas expectativas.

- Deve ter a constituição de um elefante - disse ele -, para ter recuperado desta maneira. Oh! bem, é maravilhoso o que o ar do campo e a ausência de noitadas e de agitação fazem por um homem, se ele conseguir agüentar.

- Concedo-lhe as duas primeiras - disse eu. - Mas não acho que o campo esteja livre de agitação. Pela parte que me toca, temos tido muita.

- Que espécie de agitação?

- Assassínio - disse eu. Marcus Kent franziu os lábios e assobiou.

- Uma bucólica tragédia amorosa? 0 agricultor que mata a namorada? - De maneira nenhuma. Um assassino lunático, astuto e determinado. - Não li nada sobre isso. Quando é que o prenderam?

- Ainda não prenderam, e é uma mulher!

- Safa! Duvido que Lymstock seja o lugar adequado para si, meu velho. Eu disse com firmeza:

- É sim. E não vai conseguir afastar-me de lá.

Marcus Kent tem uma mente obscena. Disse imediatamente:

- Então é isso! Encontrou uma loura?

- De maneira nenhuma - disse eu, com a consciência pesada por causa de Elsie Holland. - É simplesmente a psicologia do crime que me interessa muito.

- Oh! está bem. Até agora ainda não lhe fez mal nenhum, mas veja lá se o seu assassino lunático não o faz desaparecer a si.

- Não há perigo - disse eu.

- Quer jantar comigo esta noite? Podia contar-me tudo acerca do seu assassínio repugnante.

- Lamento, mas estou comprometido.

- Um encontro com uma senhora, não é? Sim, está decididamente a recuperar-se.

- Suponho que lhe pode chamar isso - disse eu, muito divertido com a idéia da Megan nesse papel.

Cheguei à Mirotin às seis da tarde, quando o estabelecimento estava oficialmente a fechar. Mary Grey veio receber-me ao cimo das escadas, do lado de fora do salão de desfiles. Levou o dedo aos lábios.

- Vai ter um choque! Embora seja eu a dizer isto, fiz um bom trabalho. Entrei no grande salão de desfiles.

A Megan estava de pé, diante de um espelho comprido, a olhar para o seu reflexo. Garanto que quase não a reconheci! Por um instante, fiquei sem respirar. Alta e esbelta como um salgueiro, com tornozelos e pés delicados realçados por meias de seda e sapatos bem feitos. Sim, pés e mãos adoráveis, ossos pequenos, qualidade e distinção em cada traço. 0 cabelo fora aparado e moldado à cabeça e brilhava como uma castanha polida. Tinham tido o bom senso de não lhe tocar no rosto. Não estava maquiada, ou se estava, era uma maquiagem tão leve e delicada que não se notava. A boca não precisava de batom.

Além disso, havia qualquer coisa nela que eu nunca vira antes, um orgulho novo e inocente na curva do pescoço. Olhou para mim com um ar sério e um sorrisinho tímido.

- Estou... muito bonita, não estou? - disse a Megan.

- Bonita? - disse eu. - Bonita não é a palavra. Vamos jantar fora, e se um em cada dois homens não se virar para te olhar, vou ficar muito surpreendido. Vais meter todas as outras raparigas num chinelo.

A Megan não era bonita, mas tinha uma aparência atraente e invulgar Tinha personalidade. Entrou no restaurante à minha frente, e, quando o chefe de mesa se precipitou para nós, senti o orgulho idiota que um homem sente quando tem com ele alguém fora do vulgar.

Primeiro, tomamos cocktails e fizemo-los render. Depois jantamos. E mais tarde dançamos. A'Megan gostava de dançar e eu não quis desapontá-la, mas, por uma razão ou outra, nunca pensei que ela dançasse bem. Mas dançava. Era leve como uma pena nos meus braços, e o seu corpo e os seus pés acompanhavam o ritmo na perfeição.

- Caramba! - disse eu. - Sabes dançar!

Ela pareceu um pouco surpreendida. 

- Bem, é claro que sei. Na escola tínhamos aulas de dança todas as semanas.

- Não bastam aulas de dança para fazer um bailarino - disse eu. Voltamos para a nossa mesa.

- Esta comida é magnífica, não é? - disse a Megan. - E tudo o resto!

Soltou um suspiro deliciado.

- É exatamente isso que eu sinto - disse eu.

Foi uma noite delirante. Continuava louco. A Megan trouxe-me de volta à terra, ao dizer hesitante:

- Não devíamos voltar para casa?

Caiu-me a alma aos pés. Sim, estava decididamente louco. Tinha-me esquecido de tudo! Estava num mundo longe da realidade, onde existia, apenas eu e a criatura que eu criara.

- Meu Deus! - disse eu. Apercebi-me de que o último comboio já partira.

- Fica aqui - disse eu. - Vou telefonar. Telefonei para a Llewellyn Hire e pedi-lhes que me mandassem, o mais depressa possível, o carro maior e mais rápido que tivessem.

Voltei para junto da Megan. - 0 último comboio já partiu - disse eu. - Por isso vamos para casa de carro.

- Vamos? Que divertido! Que miúda encantadora ela era, pensei eu. Tão satisfeita com tudo, tão sem objeções, aceitando todas as minhas sugestões sem problemas nem aborrecimento. 0 carro chegou e era grande e rápido, mas mesmo assim já era muito tarde quando chegamos a Lymstock De repente, cheio de remorsos, eu disse: - Devem ter andado à tua procura! Mas a Megan parecia estar tranqüila. Disse vagamente:

- Oh! não me parece. Muitas vezes saio e não vou a casa almoçar.

- Pois sim, minha querida, mas não foste lanchar, nem jantar.

Contudo, a sorte estava do lado da Megan. A casa estava às escuras e em silêncio. A conselho da Megan, contornamos a casa até às traseiras e atiramos pedras à janela da Rose.

Pouco depois a Rose espreitou e, com muitas exclamações reprimidas e muitas palpitações, desceu para nos abrir a porta.

- Ora esta! e eu a dizer que estava a dormir no seu quarto. 0 patrão e Miss Holland - (uma leve fungadela depois do nome de Miss Holland) jantaram cedo e foram dar uma volta de carro. Eu disse que tomava conta dos meninos. Pensei tê-la ouvido entrar quando estava no quarto dos rapazes a tentar acalmar o Colin, que estava muito irrequieto, mas a menina não estava aqui quando eu desci e por isso pensei que tinha ido deitar-se. E foi isso que eu disse, quando o patrão chegou e me perguntou por si.

Interrompi a conversa, observando que era o que a Megan devia fazer agora.

- Boa noite - disse a Megan -, e muitíssimo obrigada. Foi o dia mais encantador que já tive.

Fui para casa de carro ainda ligeiramente estonteado e dei uma gorjeta generosa ao motorista, oferecendo-lhe uma cama se ele quisesse. Mas ele preferiu regressar de noite.

A porta do hall entreabrira-se durante o nosso diálogo, e quando ele arrancou abriu-se completamente e a Joanna disse:

- Então, és finalmente tu?

- Estavas preocupada comigo? - perguntei, entrando e fechando a porta.

A Joanna entrou na sala de visitas e eu segui-a. Havia uma cafeteira de café na trempe e a Joanna fez café para ela, enquanto eu me servia de whisky com soda.

- Preocupada contigo? Não, claro que não. Pensei que tinhas decidido ficar na cidade e fazer uma farra.

- Fiz uma... espécie de farra.

Dei um sorriso de orelha a orelha e depois comecei a rir-me.

A Joanna perguntou de que é que me estava a rir e eu contei-lhe.

- Mas, Jerry, deves ter ficado louco, completamente louco!

- Creio que sim.

- Mas, meu caro, não podes fazer coisas dessas, não numa terra como esta. Amanhã a notícia vai correr por Lymstock inteira.

- Suponho que sim. Mas, no fim de contas, a Megan é só uma criança.

- Não é. Tem vinte anos. Não podes levar uma rapariga de vinte anos a Londres e comprar-lhe roupas sem provocar um escândalo horrível. Santo Deus! Jerry, provavelmente vais ter de casar com a miúda.

A Joanna falou meio a sério, meio a rir.

Foi nesse instante que fiz uma descoberta muito importante.

- Diabo! - disse eu.

- Não me importo nada. De fato, até gostava.

Uma expressão muito esquisita atravessou o rosto da Joanna. Levantou-se e disse secamente, enquanto se dirigia para a porta:

- Sim, já sei isso há algum tempo...

Deixou-me lá especado, de copo na mão, aterrado com a minha nova descoberta.

 

Desconheço as reações habituais de um homem que vai pedir alguém em casamento.

Nos romances, sente a garganta seca e o colarinho apertado de mais e fica num estado de nervos lastimoso.

Eu não me sentia, de maneira nenhuma, assim. Como pensava que era uma boa idéia, só queria resolver tudo o mais depressa possível. Não via nenhuma necessidade especial para constrangimentos.

Dirigi-me para casa do Symmington por volta das onze horas. Toquei à campainha, e quando a Rose veio perguntei por Miss Megan. Foi o ar de entendida que a Rose pôs que me fez sentir, pela primeira vez, um pouco tímido.

Ela levou-me para a saleta, e, enquanto estava lá à espera, desejei com inquietação que não tivessem atormentado a Megan.

Quando a porta se abriu e eu dei meia-volta, fiquei instantaneamente aliviado. A Megan não parecia nada tímida, nem nervosa. A cabeça dela ainda parecia uma castanha lustrosa, e exibia o ar de orgulho e amor-próprio que adquirira no dia anterior Estava de novo com as suas roupas velhas, mas conseguira fazer com que parecessem diferentes. É maravilhoso o que o conhecimento do seu próprio encanto pode fazer a uma rapariga. Apercebi-me subitamente de que a Megan crescera.

Creio que, de fato, devia estar muito nervoso, senão não teria começado a conversa, dizendo afetuosamente: - Olá, miúda! - Naquelas circunstâncias, dificilmente seria uma saudação de apaixonado.

Mas parece que agradou à Megan. Ela sorriu e disse: - Olá!

- Olha! - disse eu. - Espero que não tenhas apanhado uma descompostura por causa de ontem.

A Megan disse com segurança: - Oh, não! - Depois pestanejou e disse  vagamente: - Sim, creio que apanhei. Quero dizer, disseram uma data de coisas, e parece que acharam tudo muito estranho, mas depois, sabe como são as pessoas, e o alvoroço que fazem por ninharias.

Fiquei aliviado por descobrir que as censuras escandalizadas não tinham tido qualquer efeito na Megan.

- Vim cá esta manhã - disse eu - porque tenho uma sugestão a fazer-te. Gosto muito de ti, e acho que tu gostas de mim.

- Imensamente - disse a Megan com um entusiasmo muito inquietante.

- E damo-nos muito bem, por isso acho que seria boa idéia se nos casássemos.

Parecia surpreendida. Apenas isso. Não parecia alarmada. Nem chocada. Apenas moderadamente surpreendida.

- Quer dizer que quer realmente casar comigo? - perguntou com o ar de quem quer esclarecer bem uma coisa.

- Mais do que qualquer outra coisa no mundo - disse eu, e estava a falar a sério.

- Quer dizer que está apaixonado por mim?

- Estou apaixonado por ti. Os olhos dela estavam firmes e sérios. Disse:

- Acho que o senhor é a melhor pessoa do mundo mas não estou apaixonada por si.

- Eu farei com que me ames.

- Isso não resultaria. Não quero ser forçada... Fez uma pausa, e depois disse gravemente: - Não sou o gênero de mulher que lhe convém. Sou melhor a odiar do que a amar.

Disse aquilo com uma intensidade fora do comum.

Eu disse: - O ódio não dura. O amor sim.

- Isso é verdade?

- É o que eu creio. Mais uma vez, fez-se silêncio. 

- Então, é “Não”, não é?

- Sim, é não.

- E não me encorajas a ter esperança?

- Oh! - disse a Megan. - Que vantagem haveria nisso?

- Absolutamente nenhuma - concordei -, de fato, seria uma redundância porque vou ter esperança, quer me digas para ter, quer não.

Bem, foi tudo. Afastei-me da casa sentindo-me ligeiramente aturdido, mas irritantemente consciente de que era seguido pelo olhar apaixonadamente interessado da Rose.

A Rose tivera muito que dizer antes de eu me conseguir escapar. Que nunca mais se sentira a mesma depois daquele dia horrível! Que não teria ficado, se não fosse por causa das crianças e por ter pena do coitado do Mr. Symmington. Que não ficaria se não arranjassem depressa outra criada, e que não era provável que a conseguissem arranjar, já que tinha havido um assassínio lá em casa! Que estava muito bem aquela Miss Holland dizer que entretanto faria ela o trabalho da casa. Ela era muito amável e prestável - Oh! Sim -  mas o que ela desejava era ser um dia a dona da casa! Mr. Symmington, pobre homem, nunca via nada - mas uma pessoa sabe como é um viúvo, uma pobre criatura desamparada, convertida em presa de uma mulher astuta. E se Miss Holland não tomasse o lugar da patroa morta, não seria por não tentar!

Concordei mecanicamente com tudo, ansiando por fugir e incapaz de o fazer porque a Rose segurava firmemente no meu chapéu, enquanto dava largas à sua torrente de despeito.

Perguntei a mim mesmo se haveria alguma verdade no que ela dissera.

Teria Elsie Holland encarado a possibilidade de se tornar a segunda Mrs. Symmington? Ou era apenas uma rapariga decente e de bom coração que estava a fazer o melhor que podia para cuidar de um lar enlutado? Em qualquer dos casos, o resultado iria provavelmente ser o mesmo. Depois eu disse:

- E por que não? Os filhos pequenos do Symmington precisavam de uma mãe - a Elsie era uma alma decente (além de ser indecentemente bonita, um ponto que um homem deve apreciar mesmo um tipo presumido como o Symmington!).

Pensei em tudo isto, eu sei, porque estava a tentar evitar pensar na Megan.

Podem dizer que eu fora pedir à Megan que casasse comigo numa disposição de espírito absurdamente complacente e que mereci o que tive - mas na verdade não foi assim. É que estava tão convencido, tão seguro, de que a Megan me pertencia... de que tinha direitos sobre ela, de que cuidar dela, e torná-la feliz, e defendê-la do mal era para mim o único modo de vida certo e natural, que estava à espera que também ela sentisse que pertencíamos um ao outro.

Mas eu não ia desistir. Oh! não. A Megan era a minha mulher, e eu ia tê-la.

Depois de pensar um momento, fui ao escritório do Symmington. A Megan podia não prestar atenção a críticas ao seu comportamento, mas eu gostava de esclarecer as coisas.

Disseram-me que Mr. Symmington estava disponível, e fui conduzido ao seu gabinete. Pelos lábios comprimidos e por uma rigidez adicional no comportamento, percebi que naquele momento eu não era exatamente popular.

- Bom dia - disse eu. - Receio que esta visita não seja profissional, mas sim pessoal. Vou falar com toda a franqueza. Atrevo-me a dizer que já deve ter percebido que estou apaixonado pela Megan. Pedi-lhe que casasse comigo, e ela recusou. Mas não aceito a resposta como definitiva.

Vi a expressão do Symmington mudar, e li o que lhe ia no espírito com uma facilidade ridícula. A Megan era um elemento desarmonioso em casa dele. Ele era, com certeza, um homem justo e bondoso, e nunca lhe passaria pela cabeça não dar um lar à filha da falecida mulher. Mas o casamento dela comigo seria, sem dúvida, um alívio. 0 bloco de gelo descongelou. Dirigiu-me um sorriso mortiço e cauteloso.

- Sabe, Burton, para ser franco, não fazia a menor idéia. Sei que lhe tem dado muita atenção, mas sempre a consideramos uma criança.

- Ela não é uma criança - disse eu laconicamente.

- Não, não, não em idade.

- Ela poderá assumir a idade que tem, quando lhe permitirem que o faça - disse eu levemente irritado. - Ainda não tem vinte e um anos, bem sei, mas vai ter daqui a um ou dois meses. Eu forneço-lhe todas as informações que quiser sobre mim. Vivo bem, e tenho levado uma vida bastante decente. Vou cuidar dela e fazer tudo o que puder para a tornar feliz.

- Muito bem, muito bem. Contudo a Megan é que decide.

- Na altura própria, ela vai ceder - disse eu. - Mas achei melhor esclarecer tudo consigo.

Ele disse que agradecia, e separamo-nos amigavelmente.

Encontrei-me lá fora com Miss Emily Barton. Ela tinha no braço um cesto de compras.

- Bom dia, Mr. Burton, ouvi dizer que ontem foi a Londres.

Sim, ouvira bem. Os seus olhos, achei eu, eram compreensivos, mas também estavam cheios de curiosidade.

- Fui ver o meu médico - disse eu.

Miss Emily sorriu.

Aquele sorriso fazia pouco caso de Marcus Kent. Murmurou:

- Constou-me que a Megan quase perdeu o comboio. Entrou, já o comboio estava em andamento.

- Ajudada por mim - disse eu. - Icei-a lá para dentro.

- Foi uma sorte o senhor estar lá. Caso contrário, podia ter havido um acidente. É extraordinário como uma velhinha solteirona, amável e curiosa, pode fazer com que um homem se sinta um idiota chapado.

Fui poupado a mais sofrimentos pela investida de Mrs. Dane Calthrop. Trazia a reboque a sua própria velhota, solteirona e submissa, mas foi ela mesma a açambarcar os comentários diretos.

- Bom dia - disse ela. - Ouvi dizer que obrigou a Megan a comprar roupas decentes? Muito sensato da sua parte. É preciso um homem para pensar numa coisa realmente prática como essa. Há muito tempo que ando preocupada com essa miúda. As raparigas com miolos estão sujeitas a transformarem-se em débeis mentais, não estão?

Com esta extraordinária afirmação, precipitou-se para dentro da peixaria. Miss Marple, que ficou ao pé de mim, piscou um pouco os olhos e disse:

- Mrs. Dane Calthrop é uma mulher muito fora do vulgar, sabe. Tem quase sempre razão.

- 0 que a torna muito alarmante - disse eu.

- A sinceridade tem esse efeito - disse Miss Marple.

Mrs. Dane Calthrop precipitou-se outra vez para fora da peixaria e juntou-se a nós. Segurava numa grande lagosta vermelha.

- Já viram alguma coisa menos parecida com Mr Pye? - disse ela. Muito viril e elegante, não é?

 

Estava um pouco nervoso por ir encontrar-me com a Joanna, mas quando cheguei a casa descobri que não precisava de me ter preocupado. Ela tinha saído e não voltou para o almoço. Isto ofendeu muito a Partridge, que disse amargamente, ao apresentar-me duas costeletas num prato de entrada: - Miss Burton avisou-me especialmente que vinha almoçar.

Comi as duas costeletas, numa tentativa de expiar a pequena falta da Joanna. Mesmo assim, fiquei a pensar onde estaria a minha irmã. ultimamente andava muito misteriosa em relação ao que fazia.

Eram três e meia quando a Joanna irrompeu na sala de visitas. Ouvi um carro parar lá fora e estava à espera de ver o Griffith, mas o carro arrancou e a Joanna entrou sozinha.

Tinha o rosto muito corado e parecia transtornada. Apercebi-me de que acontecera alguma coisa.

- Que se passa? - perguntei.

A Joanna abriu a boca, voltou a fechá-la, suspirou, sentou-se pesadamente numa cadeira e ficou a olhar fixamente para a frente. Disse:

- Tive um dia pavoroso.

- Que aconteceu?

- Fiz uma coisa incrível. Foi horrível...

- Mas que...

- Só tencionava dar um passeio, um passeio normal... fui pela colina acima até à charneca. Caminhei quilômetros, foi a impressão que tive. Depois, caí num buraco. Há lá uma quinta. Um lugar remoto e solitário. Tinha sede e perguntei a mim mesma se teriam leite ou qualquer coisa. Por isso atravessei o pátio da quinta e depois a porta abriu-se e o Owen saiu.

- Sim?

- Ele pensava que eu era a enfermeira domiciliária. Havia lá uma mulher a ter um bebê. Ele estava à espera da enfermeira e tinha-a mandado trazer outro médico. Aquilo... as coisas estavam a correr mal.

- Sim?

- Então, ele disse-me... a mim. “Venha, você serve, é melhor do que nada.” Eu disse que não era capaz e ele perguntou que é que eu queria dizer? Eu disse que nunca tinha feito nada do gênero, que não sabia nada...

- Ele disse para que diabo importava isso. E depois foi horrível. Virou-se contra mim. Disse “É uma mulher, não é? Suponho que é capaz de fazer tudo o que puder por outra mulher”. E continuou a barafustar comigo. Disse que eu falava como se estivesse interessada em exercer medicina e que tinha dito que queria ser enfermeira. “tudo conversa fiada, suponho! Não estava a falar a sério, mas isto é sério, e vai comportar-se como um ser humano decente e não como uma imbecil inútil e ornamental!”

- Fiz as coisas mais incríveis, Jerry. Peguei em instrumentos, e fervi-os, e entreguei-lhe coisas. Estou tão cansada que mal me agüento em pé. Foi horrível. Mas ele salvou-a, e ao bebê. Nasceu vivo. A certa altura ele pensou que não ia poder salva­-lo. Valha-me Deus!

A Joanna cobriu a cara com as mãos. Contemplei-a com alguma satisfação e tirei, mentalmente, o chapéu ao Owen Griffith. Por essa vez, ele obrigara a Joanna a encarar a realidade de frente. Eu disse: - Há uma carta para ti no hall. Do Paul, creio eu.

- Hum! - Fez uma pausa por um momento e depois, disse: - Não fazia idéia, Jerry, do que os médicos têm de fazer. 0 sangue-frio que têm de ter!

Fui ao hall e trouxe a carta à Joanna. Ela abriu-a, olhou vagamente para o seu conteúdo e deixou-a cair.

- Ele foi... realmente... maravilhoso! A forma como lutou, a forma como não se deixou vencer! Foi grosseiro e horrível comigo, mas foi maravilhoso.

Observei a carta menosprezada do Paul com alguma satisfação. A Joanna estava, obviamente, curada do Paul.

 

As coisas nunca acontecem quando são esperadas.

Estava concentrado nos meus problemas pessoais e nos da Joanna, e, na manhã seguinte, fui apanhado de surpresa quando a voz do Nash me disse ao telefone: - Apanhamo-la, Mr. Burton!

Fiquei tão espantado que quase deixei cair o auscultador.

- Refere-se à...  Ele interrompeu-me.

- Podem ouvir o que diz, no sítio onde está?

- Não, não me parece... bem, talvez...

Pareceu-me que a porta que dá para a cozinha se entreabrira.

- Talvez não se importe de vir à esquadra?

- Com certeza que vou. Imediatamente.

Cheguei à esquadra da Polícia pouco depois. 0 Nash e o sargento Parkins estavam juntos numa sala interior. 0 Nash estava sorridente e radiante.

Foi uma longa perseguição - disse ele. - Mas chegamos finalmente ao fim.

Deslizou uma carta ao longo da mesa. Desta vez, estava toda datilografada. Era, no seu gênero, bastante suave.

“Não vale a pena pensares que vais tomar o lugar de uma morta A povoação inteira troça de ti. Vai-te já embora Em breve, será tarde de mais. Isto é um aviso. Lembra-te do que aconteceu à outra rapariga Vai-te embora e não voltes”.

Acabava com uma linguagem moderadamente obscena.

- Isso chegou às mãos de Miss Holland esta manhã - disse o Nash.

- Acho estranho ela não ter recebido nenhuma carta antes - disse o sargento Parkins. Quem a escreveu? - perguntei. Parte do regozijo desvaneceu-se do rosto do Nash. Pareceu cansado e preocupado. Disse ponderadamente:

- Lamento muito tudo isto, porque vai atingir duramente um homem decente, mas é assim. Talvez ele já suspeitasse.

- Quem a escreveu? - repeti.

- Miss Aimée Griffith.

Naquela tarde, o Nash e o Parkins foram a casa do Griffith com um mandato de captura. A convite do Nash, fui com eles.

- 0 doutor - disse ele - simpatiza muito consigo. Ele não tem muitos amigos nesta terra. Se não lhe custar muito, Mr Burton, creio que o senhor talvez possa ajudá-lo a resistir ao choque.

Eu disse que iria. Não me agradava muito a missão, mas pensei que podia ser de alguma utilidade.

Tocamos à campainha e perguntamos por Miss Griffith e fomos conduzidos à sala de visitas. Elsie Holland, a Megan e o Symmington estavam lá a tomar chá.

0 Nash comportou-se de um modo muito discreto.

Perguntou a Aimée se podia dar-lhe uma palavra em particular.

Ela levantou-se e dirigiu-se a nós. Pareceu-me ver uma leve expressão acossada nos seus olhos. Se assim foi, desapareceu de novo. Estava perfeitamente normal e cordial.

- Quer falar comigo? Espero não estar de novo com problemas por causa dos faróis do carro. Levou-nos para fora da sala de visitas e através do hall até a um pequeno gabinete.

Quando fechei a porta da sala de visitas, vi a cabeça do Symmington erguer-se com um movimento brusco e sacudido. Presumo que a sua formação legal o pusera em contacto com casos policiais, e que notara qualquer coisa no comportamento do Nash. Semiergueu-se.

Foi tudo o que vi, antes de fechar a porta e de seguir os outros.

0 Nash disse o que tinha a dizer Foi muito calmo e correto. Avisou-a dos seus direitos e depois disse-lhe que tinha de lhe pedir que o acompanhasse. Tinha um mandato de captura para a deter e leu-lhe a acusação em voz alta-..

Esqueci-me dos termos legais exatos. Tratava-se das cartas e não do assassínio, por enquanto.

Aimée Griffith levantou violentamente a cabeça e desatou a rir. Gritou - Que disparate ridículo! Como se eu fosse escrever um maço de coisas indecentes como essa. Deve estar louco. Nunca escrevi uma palavra desse gênero.

0 Nash mostrara-lhe a carta dirigida a Elsie Holland. Disse:

- Nega ter escrito isto, Miss Griffith?

Se hesitou, foi apenas por uma fração de segundo.

- Claro que nego. Nunca vi isto antes.

0 Nash disse calmamente: - Tenho de lhe dizer, Miss Griffith, que foi vista a datilografar esta carta no Instituto das Mulheres, entre as onze e as onze e meia da noite de anteontem. Ontem entrou no correio com um maço de cartas na mão...

- Nunca meti esta carta no correio.

- Não, a senhora não meteu. Enquanto estava à espera dos selos, deixou-a cair ao chão sem dar nas vistas para que alguém se apressasse a apanhá-la e a metê-la no correio sem suspeitar de nada.

- Eu nunca... A porta abriu-se e o Symmington entrou. Disse: - Que se passa? Aimée, se se passa alguma coisa, deves ser representada legalmente. Se quiseres que eu...

Nessa altura ela foi-se abaixo. Cobriu o rosto com as mãos e foi a cambalear até uma cadeira. Disse:

- Vai-te embora, Dick vai-te embora. Tu não! Tu não!

- Precisas de um advogado, minha cara.

- Tu não. Eu... eu não suportaria isso. Não quero que saibas... tudo isto. Talvez ele tenha compreendido nessa altura. Disse calmamente:

- Vou tentar falar com o Mildmay, de Exhampton. Pode ser ele? Ela acenou afirmativamente. Estava agora a soluçar. 0 Symmington saiu da sala. A porta, chocou com o Owen Griffith.

- Que é isto? - disse o Owen violentamente. - A minha irmã...

- Lamento muito, Dr. Griffith. Lamento muito. Mas não temos alternativa...

- Acha que ela... foi responsável por essas cartas?

- Receio que não haja dúvidas quanto a isso, doutor - disse o Nash. Virou-se para Aimée: - Agora tem de vir conosco, por favor, Miss Griffith; vai ter todas as oportunidades para falar com um advogado.

0 Owen gritou: - Aimée?

Ela passou-lhe ao lado sem olhar para ele e disse: - Não fales comigo. Não digas nada. E por amor de Deus, não olhes para mim! Saíram. 0 Owen ficou como se estivesse em transe. Esperei um pouco, depois aproximei-me dele.

- Se houver alguma coisa que eu possa fazer, Griffith, diga-me. Ele disse como num sonho:

- A Aimée? Não acredito.

- Pode ser um engano - sugeri debilmente. Ele disse devagar: - Ela não teria reagido assim, se fosse um engano. Mas eu nunca poderia acreditar. Não acreditar

Deixou-se cair numa cadeira. Tornei-me útil, encontrando uma bebida forte e levando-lha. Ele engoliu-a, e parece ter-lhe feito bem.

- Não consegui acreditar, a princípio - disse Owen. - Agora estou bem.

Obrigado, Burton, mas não pode fazer nada. Ninguém pode fazer nada. A porta abriu-se e a Joanna entrou. Estava branca como a cal. Aproximou-se do Owen e olhou para mim.

- Sai, Jerry. Isto agora é comigo.

Ao sair pela porta, vi-a ajoelhada junto à cadeira dele.

Não consigo contar coerentemente os acontecimentos das vinte e quatro horas seguintes. Há vários incidentes que se destacam, sem relação com outros incidentes.

Lembro-me de a Joanna voltar para casa, muito branca e cansada, e de eu tentar animá-la dizendo:

- E agora, quem está a ser um anjo auxiliador?

E de a Joanna sorrir de um modo lamentável e desfigurado e de dizer:

- Ele diz que não me quererá, Jerry. É muito, muito orgulhoso e inflexível!

E de eu dizer: - A minha miúda também não me quer...

E de ficarmos ali sentados durante algum tempo, e de a Joanna dizer por fim:

- Neste momento, a família Burton não está exatamente com grande procura!

E de eu dizer: - Deixa lá, minha querida, ainda nos temos um ao outro. - E de a Joanna dizer: - De uma forma ou de outra, Jerry, isso não me conforta muito neste preciso momento...

 

0 Owen apareceu no dia seguinte e dissertou de uma forma muito exagerada sobre a Joanna. Ela era maravilhosa, extraordinária! 0 modo como fora ter com ele, o modo como se dispusera a casar com ele - imediatamente, se ele quisesse. Mas ele não ia permitir que ela fizesse isso. Não, ela era boa de mais, delicada de mais, para estar associada ao gênero de confusão que iria surgir logo que os jornais obtivessem as notícias.

Eu gostava muito da Joanna e sabia que ela era do tipo que fica bem quando está a apoiar alguém com problemas, mas fiquei muito aborrecido com todas estas tolices ridículas. Muito irritado, disse ao Owen que não fosse tão abominavelmente nobre.

Desci até à High Street e descobri que estava toda a gente a falar pelos cotovelos. Emily Barton afirmava que nunca confiara realmente em Aimée Griffith. A mulher do merceeiro dizia com satisfação que sempre achara que Miss Griffith tinha uma expressão esquisita no olhar...

Tinham completado o caso contra Aimée, soube pelo Nash. Uma busca à casa trouxera à luz as páginas cortadas do livro de Emily Barton – no armário debaixo das escadas, onde nunca se pensaria, embrulhadas num velho rolo de papel de parede.

- E que lugar fantástico - disse o Nash apreciativamente. - Nunca se sabe quando uma criada curiosa irá forçar uma escrivaninha ou uma gaveta fechada, mas os armários de tralha, cheios de bolas de tênis do ano anterior e de papel de parede velho, nunca são abertos, a não ser para enfiar mais qualquer coisa lá dentro.

- Parece que a senhora tinha uma predileção por esse esconderijo específico - disse eu.

- Sim. A mente criminosa raramente é muito variada. A propósito, por falar na rapariga morta, temos um fato em que podemos basear-nos. Desapareceu uma mão de almofariz, grande e pesada, do dispensário do doutor Aposto o que quiser em como a rapariga foi atordoada com ela.

- Uma coisa muito incômoda para levar de um lado para o outro protestei.

- Não para Miss Griffith. Ela ia às ' Guias naquela tarde, mas no caminho ia levar flores e legumes à barraca da Cruz Vermelha, por isso tinha com ela um cesto enorme.

- Não encontrou o espeto?

- Não, e não vou encontrai: A pobre coitada pode ser louca, mas não suficientemente louca para guardar um espeto manchado de sangue só para nos facilitar a vida, quando lhe bastava lavá-lo e devolvê-lo a uma gaveta de cozinha.

- Suponho - admiti - que não se pode ter tudo.

0 vicariato fora um dos últimos sítios a saber as novidades. A velha Miss Marple ficou muito angustiada com elas. Falou muito seriamente comigo sobre o assunto.

- Não é verdade, Mr. Burton. Tenho a certeza de que não é verdade.

- Receio que seja. Fizeram-lhe uma emboscada, sabe. Viram-na, de fato, a escrever aquela carta à máquina.

- Sim, sim - talvez tenham visto. Sim, posso compreender isso.

- E as páginas impressas de onde as cartas foram recortadas foram encontradas em casa dela, no lugar onde ela as escondera. Miss Marple fitou-me. Depois disse, num tom de voz muito baixo: Mas isso é horrível... realmente perverso. Mrs. Dane Calthrop apareceu de repente e juntou-se a nós e disse- Que se passa, Jane? Miss Marple murmurou impotentemente:

- Valha-me Deus! valha-me Deus! que se pode fazer?

- Por que estás transtornada, Jane?  Miss Marple disse: - Deve haver alguma coisa. Mas sou tão velha e tão ignorante e receio que muito tola. Senti-me muito embaraçado e fiquei satisfeito quando Mrs. Dane Calthrop levou a amiga com ela. Contudo, voltaria a ver Miss Marple naquela tarde. Muito mais tarde, quando regressava a casa. Ela estava junto da pequena ponte na extremidade da aldeia, perto da casa de Mrs. Cleat, a falar justamente com a Megan. Eu queria falar com a Megan. Tinha querido falar com ela o dia todo. Apressei o passo. Mas ao chegar junto delas, a Megan virou-se e foi-se embora na outra direção. Fiquei irritado e queria ir atrás dela, mas Miss Marple bloqueou-me o caminho.

- Queria falar consigo - disse. - Não, não vá atrás da Megan agora. Não seria sensato. Ia dar uma resposta desabrida, quando ela me desarmou, dizendo:

- Aquela miúda tem muita coragem... uma grande dose de coragem. Eu ainda queria ir atrás da Megan, mas Miss Marple disse:

- Não tente falar com ela agora. Sei o que estou a dizer Ela tem de conservar a coragem intacta. Houve qualquer coisa na afirmação da velha senhora que me gelou. Era como se ela soubesse alguma coisa que eu desconhecia.

Tinha medo e não sabia por que o tinha.

Não fui para casa. Voltei para a High Street e andei para cima e para baixo sem destino. Não sei do que estava à espera, nem no que estava a pensar... Fui apanhado por aquele velho maçador do coronel Appleton. Como de costume, perguntou-me pela minha encantadora irmã, e depois perguntou:

- Que é isso da irmã do Griffith ser louca? Dizem que está por trás da história das cartas anônimas, que foram uma maldita maçada para toda a gente. A princípio, não acreditei, mas dizem que é verdade.

Eu disse que era verdade.

- Bem, bem... tenho de dizer que a nossa Polícia é, em geral, muito boa. Dêem-­lhes tempo, eis tudo, dêem-lhes tempo. Um caso singular, essa história das cartas anônimas... são sempre estas solteironas secas que tomam parte nisso, embora a Griffith não fosse feia, apesar de ter os dentes um bocado grandes. Mas nesta parte do mundo não há raparigas de aparência decente, com exceção daquela preceptora dos Symmingtons. Merece que se olhe para ela. E também é uma rapariga amável. Reconhecida, se alguém faz qualquer coisa por ela. Encontrei-a por acaso, não há muito tempo, quando fazia um piquenique com os miúdos. Eles andavam a brincar na urze e ela estava a tricotar, muito aborrecida porque tinha ficado sem lã. “Bem”, disse eu, “quer que a leve a Lymstock? Tenho de ir lá buscar uma cana de pesca. Não levo mais de dez minutos para a ir buscar e depois trago-a outra vez”. Ela hesitou em deixar os miúdos. “Eles ficam bem”, disse eu. “Quem é que vai fazer-lhes mal?” Eu não ia levar os rapazes conosco, nem pensar! Por isso levei-a, deixei-a na loja das lãs, fui buscá-la mais tarde, e foi tudo. Agradeceu-me muito gentilmente. Muito grata e tudo isso. Rapariga simpática.

Consegui escapar-me.

Foi depois disso que avistei Miss Marple pela terceira vez. Vinha a sair da esquadra da Polícia.

Donde vêm os nossos medos? Onde tomam forma? Onde se escondem antes de se manifestarem abertamente?

Apenas uma curta frase. Escutada e registrada e nunca realmente ignorada:

- Leve-me daqui... é tão horrível estar aqui... a sentir-me tão má...

Por que é que a Megan dissera aquilo? Que motivos tinha para se sentir má?

Não podia haver nada na morte de Mrs. Symmington que fizesse a Megan sentir-se má.

Por que é que a miúda se sentira má? Por quê? Por quê?

Seria porque, de algum modo, se sentia responsável?

A Megan? Impossível! A Megan não podia ter tido nada a ver com aquelas cartas... aquelas revoltantes cartas obscenas.

0 Owen Griffith soubera de um caso no norte

Que dissera o inspetor Graves?

Qualquer coisa sobre uma mente adolescente...

Inocentes senhoras de meia-idade nas mesas de operações a balbuciarem palavras que mal conheciam. Rapazinhos a escreverem coisas a giz nas paredes.

Não, não, a Megan não.

Hereditariedade? Mau sangue? Uma herança inconsciente de qualquer coisa anormal? Desgraça sua, não culpa sua, uma praga lançada sobre ela por uma geração passada?

“Não sou a mulher que lhe convém. Sou melhor a odiar do que a amar.”

Oh! a minha Megan, a minha menina. Isso não! Qualquer coisa, menos isso. E aquela velha Mexeriqueira anda atrás de ti, suspeita de ti. Ela diz que tens coragem. Coragem para fazer o quê?

Foi só um acesso de loucura momentâneo. Passou. Mas eu queria ver a Megan - queria muito vê-Ia.

Às nove e meia daquela noite saí de casa, e desci à povoação, e fui até à casa dos Symmingtons.

Foi nessa altura que uma idéia completamente nova me veio à cabeça. A idéia de uma mulher em quem ninguém pensara nem por momento.

(Ou o Nash pensara nela?)

Muitíssimo improvável, muitíssimo improvável, e, até hoje, eu também teria dito impossível. Mas não era. Não, não era impossível.

Acelerei o passo. Porque agora era ainda mais premente que eu falasse imediatamente com a Megan.

Transpus o portão dos Symmingtons e dirigi-me à casa. Estava uma noite escura e carregada de nuvens. Começava a cair uma chuva miudinha. A visibilidade era má.

Vi uma risca de luz numa das janelas. A saleta?

Hesitei por um momento, depois, em vez de ir até à porta da frente, mudei de direção e arrastei-me sem fazer barulho até à janela, contornando um arbusto e escondendo-me.

 

A luz vinha de uma abertura nas cortinas que não estavam completamente corridas. Era fácil olhar através dela e ver.

Era uma cena estranhamente tranqüila e doméstica. 0 Symmington numa grande poltrona, e Elsie Holland, de cabeça inclinada, a remendar uma camisa de rapaz rasgada.

Além de ver, eu também conseguia ouvir, porque a janela estava aberta em cima.

Elsie Holland estava a falar

- Mas eu acho, de fato, Mr Symmington, que os rapazes já estão suficientemente crescidos para irem para um colégio interno. Não é que não me custe deixá-los, porque custa. Gosto tanto dos dois!

0 Symmington disse: - Acho que é capaz de ter razão em relação ao Brian, Miss Holland. Já decidi que ele começa no próximo período em Winhays, o meu velho colégio. Mas o Colin ainda é muito pequeno. Preferia que ele esperasse mais um ano.

- Bem, percebo o que quer dizer E o Colin é capaz de ser um pouco imaturo para a idade... Uma tranqüila conversa doméstica - uma tranqüila cena doméstica e uma cabeça loira curvada sobre um trabalho de costura.

Então, a porta abriu-se e a Megan entrou.

Ficou muito direita no vão da porta, e eu notei logo que ela estava um pouco ansiosa e concentrada. Tinha a pele do rosto tensa e abatida, e os seus olhos estavam brilhantes e resolutos. Esta noite, não havia nela qualquer insegurança ou infantilidade. Dirigindo-se ao Symmington, mas sem lhe chamar nada (e de repente refleti que nunca a ouvi chamar-lhe nada. Dirigia-se a ele como pai, ou Dick ou quê?), disse:

- Gostava de falar consigo, por favor A sós. 0 Symmington pareceu surpreendido e, julguei eu, não muito satisfeito. Franziu o sobrolho, mas a Megan levou a sua avante com uma determinação invulgar nela. Virou-se para Elsie Holland e disse:

- Importa-se, Elsie?

- Oh! claro que não - Elsie Holland levantou-se de um salto. Parecia surpreendida e um pouco atrapalhada.

Dirigiu-se à porta e a Megan avançou para a Elsie passar

Por um momento, a Elsie ficou parada no vão da porta a olhar por cima do ombro.

Com os lábios cerrados, ficou completamente imóvel, uma mão estendida, a outra a segurar o trabalho de costura contra ela.

Fiquei sem fôlego, subjugado pela sua beleza.

Quando penso nela agora, penso nela assim - em movimento suspenso, com aquela perfeição imortal e incomparável que pertencia à Grécia antiga.

Depois saiu e fechou a porta.

0 Symmington disse de mau humor:

- Então, Megan, que é? Que queres?

A Megan tinha avançado até à mesa. Ficou lá a olhar para baixo para o Symmington. Fiquei de novo impressionado com a determinação resoluta do seu rosto e com mais qualquer coisa - uma firmeza nova para mim.

Então abriu os lábios e disse uma coisa que me chocou profundamente.

- Quero algum dinheiro - disse ela.

0 pedido não melhorou o mau humor do Symmington. Disse bruscamente:

- Não podias esperar até amanhã de manhã? Que se passa? Achas que a tua mesada é insuficiente? Um homem justo, pensei eu mesmo então, aberto à razão embora não ao apelo emocional. A Megan disse: - Quero muito dinheiro. 0 Symmington endireitou-se na cadeira. Disse friamente:

- Daqui a uns meses atinges a maioridade. Nessa altura, o dinheiro que a tua avó te deixou ser-te-á entregue pelo curador público.

A Megan disse:

- Não compreende. Quero dinheiro seu. - Prosseguiu, falando mais depressa. - Nunca ninguém me falou muito do meu pai. Não queriam que eu soubesse nada sobre ele. Mas eu sei que ele foi para a prisão e sei por quê. Foi por chantagem! Fez uma pausa.

- Bem, sou filha dele. E talvez me pareça com ele. Seja como for, estou a pedir-lhe que me dê dinheiro, porque se não der - ela parou e depois prosseguiu muito lenta e tranquilamente - se não der... vou contar o que o vi fazer à cápsula naquele dia, no quarto da minha mãe.

Houve uma pausa. Depois o Symmington disse, numa voz completamente impassível.

- Não sei a que te referes. A Megan disse: - Acho que sabe.

E ele sorriu. Não foi um sorriso agradável.

0 Symmington levantou-se. Dirigiu-se à escrivaninha. Tirou um livro de cheques do bolso e preencheu um cheque. Secou cuidadosamente a tinta com o mata-borrão e depois voltou. Entregou-o à Megan.

- Já és crescida - disse ele. - Compreendo que deves querer comprar qualquer coisa especial, no tocante a roupas e tudo isso. Não sei do que estás a falar. Não prestei atenção. Mas aqui tens um cheque.

A Megan olhou para ele, depois disse:

- Obrigada. Serve para começar.

Virou-se e saiu da sala. 0 Symmington ficou a olhar fixamente para ela e para a porta fechada, depois deu uma volta, e quando vi o rosto dele, fiz um movimento rápido e descontrolado para a frente.

Foi reprimido da forma mais extraordinária. 0 arbusto grande que eu notara junto à parede deixou de ser um arbusto. Os braços do superintendente Nash envolveram-me, e a voz do superintendente Nash sussurrou-me ao ouvido:

- Quieto, Burton. Por amor de Deus. Depois, com uma cautela infinita, bateu em retirada, o seu braço impelindo-me a acompanhá-lo.

Depois de contornarmos o lado da casa, ele endireitou-se e limpou a testa. É claro - disse ele - que o senhor tinha de se intrometer.

A miúda não está em segurança - disse eu insistentemente. - Viu a cara dele? Temos de a tirar dali.

0 Nash agarrou-me firmemente no braço.

- Ouça, Mr. Burton, tem de me escutar.

 

Bem, eu escutei.

Não me agradou - mas acedi.

Mas insisti em estar no local e jurei cumprir implicitamente as ordens.

Foi assim que entrei em casa, com o Nash e o Parkins, pela porta das traseiras que não estava fechada à chave.

E esperei com o Nash no patamar do andar de cima, atrás do cortinado de veludo que disfarçava o recanto da janela, até que os relógios da casa deram as duas, e a porta do Symmington se abriu, e ele atravessou o patamar e entrou no quarto da Megan.

Não me mexi nem fiz nenhum movimento, porque sabia que o sargento Parkins estava lá dentro, escondido pela porta aberta, e porque sabia que o tal Parkins era um bom homem, e que conhecia o seu oficio, e porque sabia que não teria podido confiar em mim para ficar calado e não me manifestar.

E enquanto esperava ali com o coração a bater, vi o Symmington sair com a Megan nos braços e levá-la para baixo, e eu e o Nash seguimos atrás dele a uma distância discreta.

Levou-a até à cozinha, e tinha acabado de a arranjar confortavelmente com a cabeça no forno de gás e de ligar o gás, quando eu e o Nash entramos pela porta da cozinha e acendemos a luz.

E foi o fim de Richard Symmington. Foi-se abaixo. Vi-o sucumbir, mesmo enquanto puxava a Megan para fora e desligava o gás. Nem sequer tentou lutar. Sabia que jogara e perdera.

No andar de cima, sentei-me junto à cama da Megan, à espera que ela recuperasse os sentidos e a amaldiçoar ocasionalmente o Nash.

- Como sabe que ela está bem? Foi um risco demasiado grande.

0 Nash foi muito confortador.

- Foi só um soporífero no leite que ela tinha sempre junto à cama. Nada mais. É evidente que ele não podia correr o risco de ela ser envenenada. No que lhe dizia respeito, o caso ficou concluído com a detenção de Miss Griffith. Ele não podia dar-se ao luxo de haver uma morte misteriosa. Nada de violência, nada de venenos. Mas se uma rapariga muito infeliz cismasse com o suicídio da mãe e acabasse por enfiar a cabeça no forno a gás... bem, as pessoas só iam dizer que ela não era inteiramente normal e que o choque da morte da mãe acabara com ela.

Eu disse, observando a Megan:

- Está a demorar muito tempo a vir a si.

- Ouviu o que o Dr. Griffith disse? 0 coração e o pulso estão muito bem: só vai dormir e acordar naturalmente. É uma droga que ele dá a muitos doentes, diz ele. A Megan mexeu-se. Murmurou qualquer coisa. Discretamente, o superintendente Nash saiu do quarto. Passado pouco tempo, a Megan abriu os olhos. - Jerry.

- Olá, querida.

- Portei-me bem?

- Podias ter andado a fazer chantagem desde o berço.

A Megan voltou a fechar os olhos. Depois, murmurou:

- A noite passada... estava a escrever-te, para o caso de alguma coisa... correr mal. Mas estava sonolenta de mais para acabar. Está além. Dirigi-me à secretária. Numa pasta pequena e muito usada, encontrei a carta inacabada da Megan.

“Meu querido Jerry”, começava com formalidade:

“Estava a ler o meu Shakespeare da escola e o soneto que começa:

Tu és para os meus pensamentos como o alimento é para a vida Ou como os aguaceiros da doce estação são para a terra - e percebi que, no fim de contas, estou apaixonada por ti, porque é isso que eu sinto...”

 

- Como vêem - disse Mrs. Dane Calthrop - tive razão em chamar um especialista.

Fitei-a. Estávamos todos no vicariato. Lá fora chovia a cântaros, e havia uma agradável lareira, e Mrs. Dane Calthrop acabara de vaguear pela sala, de bater numa almofada do sofá e de a colocar, por qualquer razão só dela conhecida, em cima do piano de cauda.

- Mas chamou? - disse eu surpreendido. - Quem era? Que é que ele fez?

Com um gesto largo, indicou Miss Marple. Miss Marple tinha acabado o trabalho de malha felpuda e estava agora ocupada com uma agulha de crochê e um novelo de algodão.

- Eis a minha perita - disse Mrs. Dane Calthrop. - Jane Marple. Olhem bem para ela. É o que lhes digo, essa mulher sabe mais sobre os diferentes tipos de maldade humana do que qualquer outra pessoa que eu tenha conhecido.

- Não me parece que devas pôr isso nesses termos, querida - murmurou Miss Marple.

- Mas tu sabes.

- Uma pessoa que viva numa aldeia o ano todo compreende muita coisa da natureza humana - disse Miss Marple placidamente.

Depois, parecendo pressentir o que esperavam dela, pousou o crochê, e fez uma dissertação pudica sobre o assassínio.

- 0 importante nestes casos de crime é conservar um espírito absolutamente aberto. A maioria dos crimes, percebem, são tão absurdamente simples! Este era. Muito racional e fácil de compreender, e muito inteligível... de uma forma desagradável, claro.

- Muito desagradável!

- A verdade era realmente muito óbvia. 0 senhor viu-a, sabe, Mr Burton. 

- Na verdade, não vi.

- Viu sim. Indicou-me tudo a mim. Percebeu perfeitamente a relação entre uma coisa e as outras, mas não teve confiança suficiente em si para compreender o significado das suas impressões. Para começar, aquela maçadora frase “Não há fumo sem fogo”. Imitou-o, mas continuou, muito corretamente, a rotulá-la como aquilo que era: uma cortina de fumo. Ilusão, percebe, toda a gente a olhar para a coisa errada, as cartas anônimas, mas a questão essencial é que não houve nenhumas cartas anônimas!

- Mas minha querida Miss Marple, asseguro-lhe que houve. Eu recebi uma.

- Oh! sim, mas não eram de maneira nenhuma autênticas. Aqui a querida Maud apercebeu-se disso. Até na pacífica Lymstock há muitos escândalos, e garanto-lhes que qualquer mulher que viva na povoação os conhece e os usaria. Mas um homem, percebem, não se interessa da mesma maneira por mexericos, principalmente um homem distante e lógico como Mr. Symmington. Uma autora genuína das cartas tomá-las-ia muito mais pertinentes.

- Por isso, percebem, se ignorarmos o fumo e chegarmos ao fogo, sabemos onde estamos. Chegamos justamente aos verdadeiros fatos daquilo que aconteceu. E se pusermos de lado as cartas, só aconteceu uma coisa: Mrs. Symmington morreu.

- De modo que, naturalmente, pensamos em quem podia querer que Mrs. Symmington morresse, e receio que, num caso assim, a primeira pessoa em quem pensamos é no marido, claro. E perguntamo-nos se há alguma razão, algum motivo... por exemplo, outra mulher.

- É a primeira coisa que ouço é que há lá em casa uma preceptora jovem e muito atraente. Tão óbvio, não é? Mr. Symmington, um homem muito frio, reprimido e fleumático, preso a uma mulher lamurienta e neurótica e, então, subitamente, surge esta criatura jovem e radiosa.

- Sabem, receio que os cavalheiros, quando se apaixonam com uma certa idade, sejam gravemente atacados pela doença. É verdadeiramente uma loucura. E, tanto quanto percebo, Mr Symmington nunca foi realmente um homem bom: não era muito amável, nem muito afetuoso, nem muito compreensivo, as suas características eram todas negativas, e por isso não teve forças para lutar contra a loucura. E num lugar como este, só a morte da mulher resolveria o seu problema. Queria casar com a rapariga, percebem? Ela é muito respeitável, e ele também. E além disso, ele é dedicado aos filhos e não queria desistir deles. Queria tudo, o lar, os filhos, respeitabilidade e Elsie. E o preço que teria de pagar por isso era o assassínio.

- Escolheu, acho eu, um meio muito inteligente. Sabia muito bem, devido à sua experiência de casos criminais, que quando uma mulher morre inesperadamente, a suspeita recai rapidamente sobre o marido, e que existe a possibilidade da exumação em caso de envenenamento. Por isso criou uma morte que parecia apenas inerente a outra coisa. Criou uma autora de cartas anônimas inexistente. E fê-lo com tanta esperteza, que a Polícia estava determinada em suspeitar de uma mulher.. e de certo modo tinha razão. Todas as cartas eram cartas de mulher; ele plagiou-as com muita inteligência das cartas do caso do ano passado e de um caso de que o Dr. Griffith lhe falou. Não quero dizer que ele tenha sido tão grosseiro a ponto de reproduzir qualquer carta textualmente, mas retirou delas frases e expressões e misturou-as, e o resultado final foi que as cartas representavam nitidamente uma mente de mulher, uma personalidade reprimida meio-demente.

-Ele conhecia todos os truques que a Polícia utiliza, testes de caligrafia e datilografia, etc.. Andava a preparar o crime já há algum tempo. Datilografou todos os envelopes antes de dar a máquina de escrever ao Instituto das Mulheres, e é provável que tenha cortado as páginas do livro há bastante tempo em Little Furze, num dia em que esteve à espera na sala de visitas. As pessoas não abrem livros de sermões com freqüência!

- E finalmente, depois de ter a sua falsa autora de cartas anônimas bem estabelecida, ele encenou a situação genuína. Numa bela tarde, quando a preceptora e os rapazes e a enteada tinham saído, e as criadas estavam de folga. Não podia prever que a criadinha Agnes ia discutir com o namorado e voltar para casa.

A Joanna perguntou:

- Mas que é que ela viu? Sabe?

- Não sei. Só posso imaginar. Palpita-me que não viu nada.

- Que foi tudo um logro?

- Não, não, minha querida, quero dizer que ela ficou à janela da copa a tarde toda, à espera que o rapaz fosse fazer as pazes, e que, muito literalmente, não viu nada. Isto é, não foi absolutamente n~m lá a casa, nem o carteiro, nem qualquer outra pessoa.

- Como era de compreensão lenta, levou algum tempo a aperceber-se de como isso era estranho, porque, aparentemente, Mrs. Symmington tinha recebido uma carta anônima naquela tarde.

- Não recebeu? - perguntei eu, perplexo.

- Mas é claro que não! Como disse, este crime é muito simples. 0 marido limitou-se a pôr o cianeto na cápsula do medicamento que ela tomava à tarde, quando a ciática atacava depois do almoço. 0 Symmington só tinha de chegar a casa antes de Elsie Holland, ou ao mesmo tempo que ela, chamar a mulher, não obter resposta, subir ao quarto dela, deitar um pouco de cianeto no copo de água natural que ela usara para engolir a cápsula, deitar a carta anônima amarrotada para a grelha e pôr-lhe na mão o pedaço de papel com “não posso continuar” escrito nele.

Miss Marple virou-se para mim.

- Também tinha toda a razão em relação a isso, Mr Burton. Um “pedaço de papel” soava mal. As pessoas não deixam bilhetes de suicídio em pedacinhos de papel rasgados. Usam uma folha de papel, e muito frequentemente também um envelope. Sim, um pedaço de papel estava errado, e o senhor sabia.

- Está a dar-me demasiada importância - disse eu. - Eu não sabia nada.

- Sabia sim, sem dúvida que sabia, Mr Burton. Senão, por que se impressionaria logo com a mensagem que a sua irmã deixou rabiscada no bloco do telefone? Repeti lentamente: “Digam que não posso continuar na sexta-feira”... estou a perceber! Não posso continuar? Miss Marple dirigiu-me um sorriso.

- Exatamente. Mr. Symmington encontrou uma mensagem semelhante e apercebeu-se das suas possibilidades. Rasgou as palavras que queria para quando chegasse a altura: uma mensagem genuína com a letra da mulher.

- Houve mais rasgos de inteligência da minha parte? - perguntei.

Miss Marple piscou-me o olho.

- Pôs-me na pista, sabe? Reuniu-me os fatos, em seqüência, e ainda por cima disse-me a coisa mais importante de todas: que Elsie Holland nunca recebera quaisquer cartas anônimas.

- Sabe - disse eu - que,~ noite passada pensei que era ela a autora das cartas, e que era por isso que não recebera cartas?

- Valha-me Deus, não! A pessoa que escreve cartas anônimas também as envia quase sempre a ela mesma. Faz parte da... bem, da excitação, suponho. Não, não, o fato interessou-me por outra razão muito diferente. Foi, de fato, a única fraqueza de Mr Symmington, compreendem? Não conseguiu escrever uma carta obscena à rapariga que amava. É uma informação fortuita muito interessante sobre a natureza humana e, de certo modo, uma coisa a seu favor... mas foi aí que ele se denunciou.

A Joanna disse:

- E matou a Agnes? Mas isso era, sem dúvida, completamente desnecessário.

- Talvez fosse, mas o que não percebe, minha querida (como nunca matou ninguém), é que depois o raciocínio fica distorcido e tudo dá uma impressão exagerada. Ele escutou, certamente, a rapariga a telefonar à Partridge e a dizer que estava preocupada desde a morte de Mrs. Symmington, e que havia uma coisa que ela não compreendia. Ele não podia correr riscos: a rapariga estúpida e tonta vira alguma coisa, sabia alguma coisa.

- Contudo, ao que parece, ele esteve no escritório essa tarde toda. Imagino que a matou antes de sair. Miss Holland estava na sala de jantar e na cozinha. Ele limitou-se a ir ao hall, abriu e fechou a porta da frente como se tivesse saído, depois esgueirou-se para dentro do pequeno vestiário, saiu por trás dela e bateu-lhe na cabeça quando ela estava a abrir a porta da frente, e depois de enfiar o corpo no armário precipitou-se para o escritório, chegando apenas ligeiramente atrasado, se por acaso alguém reparasse nisso, mas provavelmente não repararam. Percebem, ninguém suspeitava de um homem.

- Bruto abominável - disse Mrs. Dane Calthrop.

- Não está com pena dele, Mrs. Dane Calthrop? - perguntei.

- De maneira nenhuma. Por quê?

- Fico contente em saber, é tudo.

- Mas por que Aimée Griffith? - disse a Joanna. - Sei que a Polícia encontrou a mão de almofariz tirada do dispensário do Owen, e o espeto também. Suponho que repor coisas nas gavetas da cozinha não seja tão fácil para um homem. E adivinhem onde estavam. 0 superintendente Nash disse-me agora, quando o encontrei ao vir para cá. Numa das velhas e bafientas caixas de documentos do escritório dele. Bens de Sir Jasper Harrington-West, falecido.

- Pobre Jasper - disse Mrs. Dane Calthrop. - Era meu primo. Um rapaz tão correto! Teria ficado horrorizado.

- Não foi uma loucura guardar as coisas? - perguntei.

- Provavelmente, deitá-las fora era uma loucura maior - disse Mrs. Dane Calthrop. - Ninguém tinha quaisquer suspeitas sobre o Symmington.

- Ele não a atacou com a mão de almofariz - disse a Joanna. - Também lá havia um peso de relógio, com cabelos e sangue. Eles acham que ele roubou a mão de almofariz no dia em que Aimée foi detida, e que escondeu as páginas do livro em casa dela. E isso leva-me de novo à minha pergunta inicial. E Aimée Griffith? A Polícia viu-a realmente escrever aquela carta.

- É claro que sim - disse Miss Marple. - Ela escreveu essa carta.

- Mas por quê?

- Oh! minha querida, certamente que se apercebeu de que Miss Griffith esteve a vida toda apaixonada pelo Symmington.

- Coitadinha! - disse Mrs. Dane Calthrop mecanicamente.

- Foram sempre bons amigos, e atrevo-me a dizer que, depois da morte de Mrs. Symmington, ela pensou que um dia, talvez... bem... - Miss Marple tossiu delicadamente. - E depois os mexericos sobre Elsie Holland começaram a espalhar-se, e imagino que isso a tenha perturbado muito. Ela considerava a rapariga uma sirigaita astuta, a insinuar-se nos afetos do Symmington, e indigna dele. Por que não acrescentar mais uma carta anônima, para afugentar a rapariga da terra? Deve ter-lhe parecido bastante seguro, e tomou, achava ela, todas as precauções.

- Então? - disse a Joanna. - Acabe a história.

- Palpita-me que - disse Miss Marple lentamente -, quando Miss Holland mostrou a carta ao Symmington, ele percebeu imediatamente quem a escrevera, e viu uma oportunidade de acabar com o caso de uma vez por todas, e de ficar em segurança. Desagradável, sim, desagradável, mas ele estava assustado, percebem? A Polícia não ficaria satisfeita até apanhar a autora das cartas anônimas. Quando levou a carta à Polícia, e descobriu que, de fato, tinham visto Aimée a escrevê-la, achou que tinha uma hipótese em mil de acabar com tudo aquilo.

- Levou a família a tomar chá lá naquela tarde e, como veio do escritório com a pasta, pôde levar facilmente as páginas rasgadas do livro para esconder debaixo das escadas e encerrar o caso. Escondê-las sob as escadas foi um retoque engenhoso. Fazia lembrar a disposição do corpo da Agnes e, do ponto de vista prático, foi muito fácil para ele. Bastaram-lhe um ou dois minutos ao passar no hall quando seguiu atrás de Aimée e da Polícia.

- Mesmo assim - disse eu -, há uma coisa que não posso perdoar-lhe, Miss Marple: ter aliciado a Megan.

Miss Marple pousou o crochê que tinha retomado. Olhou para mim por cima dos óculos, e os seus olhos estavam implacáveis.

- Meu querido jovem, alguma coisa tinha de ser feita. Não havia provas contra este homem muito esperto e sem escrúpulos. Eu precisava de alguém que me ajudasse, alguém com muita coragem e bons miolos. Encontrei a pessoa de que precisava.

- Foi muito perigoso para ela.

- Sim, foi perigoso, mas não fomos postos neste mundo, Mr. Burton, para evitar o perigo quando está em jogo a vida de um nosso semelhante. Compreende? Eu compreendi.

 

Manhã na High Street.

Miss Emily Barton saiu da mercearia com o saco das compras. Tinha as faces coradas e os olhos excitados.

- Valha-me Deus, Mr. Burton, estou tão agitada! Pensar que vou finalmente fazer um cruzeiro!

- Espero que se divirta.

- Oh! tenho a certeza que sim. Nunca me atreveria a ir sozinha. Parece tão providencial a forma como tudo se resolveu. Há muito tempo que sentia que devia desfazer-me de Little Furze, porque tinha demasiadas dificuldades financeiras, mas não suportava a idéia de estranhos lá dentro. Mas agora, que o senhor a comprou e vai viver lá com a Megan, é muito diferente. E depois, a querida Aimée, que não sabia o que fazer da vida após a sua terrível provação e com o irmão a casar-se (que bom pensar que ambos se estabeleceram aqui conosco!), concordou em ir comigo. Tencionamos estar fora durante bastante tempo. Talvez até possamos - Miss Emily baixou a voz - dar a volta ao mundo! E a Aimée é tão magnífica e tão prática. Acho de fato, o senhor não acha, que tudo acabou por correr pelo melhor.

Por um breve instante apenas, pensei em Mrs. Symmington e em Agnes Woddell nas suas sepulturas no adro da igreja, e perguntei a mim mesmo se elas concordariam, e depois lembrei-me de que o namorado da Agnes não lhe tivera muita afeição, e que Mrs. Symmington não fora muito boa para a Megan e, que diabo!, todos temos de morrer um dia! E concordei com a feliz Miss Emily que tudo se resolvera pelo melhor, no melhor dos mundos possíveis.

Segui pela High Street até ao portão dos Symmingtons e a Megan saiu ao meu encontro. Não foi um encontro romântico, porque um enorme cão de cauda curta saiu de casa com a Megan e quase me derrubou com a sua exuberância intempestiva.

- Não é adorável? - disse a Megan.

- É um bocadinho avassalador É teu?

- Sim, é um presente de casamento da Joanna. Temos tido presentes de casamento bonitos, não temos? Aquela coisa de lã felpuda que não sabemos o que é, de Miss Marple, e o lindo serviço de chá Crown Derby de Mr Pye, e a Elsie mandou-me um porta-torradas...

- Que típico! - disse eu num aparte.

- E ela arranjou emprego num dentista e está muito feliz. E ... onde é que eu ia?

- A enumerar os presentes de casamento. Não te esqueças de que, se mudares de idéias, vais ter de os devolver.

- Não vou mudar de idéias. Que mais recebemos? Oh! sim, Mrs. Dane Calthrop mandou um escaravelho egípcio.

- Uma mulher original - disse eu.

- Oh! Oh! mas não sabes o melhor A Partridge mandou-me realmente um presente. É a toalha de chá mais medonha que já vi na vida. Mas acho que ela já deve gostar de mim, porque diz que a bordou toda com as próprias mãos.

- Com um desenho de uvas verdes e cardos, suponho?

- Não, com símbolos de amor fiel.

- Valha-me Deus! - disse eu. - A Partridge está a progredir.

A Megan tinha-me arrastado para dentro de casa. Disse:

- Só há uma coisa que não consigo perceber. Além da coleira e da trela do cão, a Joanna mandou uma coleira e uma trela a mais. Para que achas que são?

- Isso - disse eu - é uma brincadeirinha da Joanna.

 

                                                                                            Agatha Christie

 

 

                      

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