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O ESTRANHO CASO DA VELHA CURIOSA / Agatha Christie
O ESTRANHO CASO DA VELHA CURIOSA / Agatha Christie

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O ESTRANHO CASO DA VELHA CURIOSA

 

  Mrs. McGillicuddy seguia arquejando, ao longo do cais, na esteira do carregador que lhe transportava a mala. Mrs. McGillicuddy era baixa e corpulenta, ao passo que o carregador era alto e esgalgado. Além disso, Mrs. McGillicuddy ia carregada com uma quantidade de embrulhos, resultado de um dia de compras para o Natal. Por conseguinte, a corrida era desigual e o carregador dava já a volta ao extremo do cais, quando Mrs. McGillicuddy ia ainda a meio deste.

  Havia pouca gente, naquele momento, no cais n.o 1, pois acabara de partir um comboio, mas do outro lado da linha uma multidão apressada precipitava-se nas direcções do metropolitano, dos depósitos de bagagens, das salas de chá, das agênçias de informações, dos quadros de horários e das duas saídas.

  Mrs. McGillicuddy, depois de receber vários encontrões, conseguiu chegar à entrada do cais n.o 3, onde depositou um embrulho no chão, enquanto rebuscava na mala à procura do bilhete que lhe permitiria passar pelo guarda, de aspecto carrancudo, postado junto à cancela.

  Nesse momento, uma voz, roufenha embora cortês, proferiu por cima da sua cabeça:

- O comboio parado no cais número três parte às quatro horas e cinquenta minutos para Brackhampton, Milchester, Waverton, Entroncamento de Carvil, Roxeter e estações seguintes até Chadmonth. Os passageiros que vão para Brackhampton e Milchester devem viajar na última carruagem do comboio. Os passageiros para Vanequay têm transbordo em Roxeter. - A voz calou-se com um estalido e depois tornou a falar para anunciar a chegada ao cais n." 9, às quatro horas e trinta e cinco minutos, do comboio procedente de Birmingham e de Wolverhampton.

  Mrs. McGillicuddv encontrou o bilhete e apresentou-o. O homem furou-o e murmurou:

- A direita... na última carruagem.

  Mrs. McGillicuddy entrou no cais e encontrou o seu carregador, com um ar aborrecido, a olhar para o ar, à porta de uma carruagem da terceira classe.

- Aqui tem a sua mala.

- Viajo em primeira classe - informou Mrs. McGillicuddy.

- Já mo podia ter dito - resmungou o carregador, olhando desdenhosamente para o casaco de tweed de corte masculino que Mrs. McGillicuddy vestia.

  Mrs. McGillicuddy, embora já lho tivesse dito, não esteve disposta a discutir. Estava completamente sem fôlego.

  O carregador tornou a pegar na mala e caminhou até à carruagem seguinte, onde Mrs. McGillicuddy se instalou num luxuoso compartimento de que era a única ocupante. O comboio das quatro e cinquenta não era muito procurado, pois a clientela da primeira classe preferia o expresso da manhã ou o comboio das seis e

quarenta com vagão-restaurante. Mrs. McGillicuddy estendeu uma gorjeta ao carregador, que a recebeu, desapontado, achando-a mais própria de um passageiro da terceira classe do que da primeira. Mas a idosa senhora, embora disposta a gastar dinheiro para viajar confortavelmente depois de uma noite de viagem, que a trouxera do Norte, e de um dia de compras febril, nunca se mostrava extravagante, em matéria de gorjetas.

  Recostou-se no acolchoado macio do assento, soltando um suspiro, e abriu uma revista. Cinco minutos depois, soaram apitos e o comboio partiu. A revista escorregou da mão de Mrs. McGillicuddy, a cabeça desta pendeu para o lado e três minutos depois a corpulenta dama dormia. O seu sono durou cerca de trinta e cinco minutos. Acordou restaurada. Ajeitando o chapéu, que lhe descaíra para o lado, endireitou-se no assento e contemplou, através da janela, a paisagem que fugia. A essa hora do dia, um dia triste e enevoado de Dezembro - faltavam apenas cinco dias para o Natal -, já estava muito escuro. Londres mostrava-se triste e enevoada e o campo igualmente, embora, de vez em quando, essa monotonia fosse interrompida pelas luzes das cidades e das estações por onde o comboio passava.

- Último serviço de chá - anuiu um empregado, abrindo a porta do corredor.

  Mrs. McGillicuddy já tomara chá num grande estabelecimento e, por conseguinte, naquela altura, achava-se bem alimentada. O empregado prosseguiu o seu caminho pelo corredor fora, proferindo o mesmo aviso numa voz monótona. Mrs. McGillicuddy ergueu o olhar para a rede onde repousavam os seus vários embrulhos e nesse olhar havia uma expressão satisfeita. As toalhas de rosto tinham sido uma compra excelente e eram precisamente o que Margaret desejava, a espingarda de pressão de ar para Mobby e o coelho para Jean eram muito satisfatórios, e o casaquinho curto que comprara para a noite, quente e vistoso, era exactamente o que ela própria queria. A camisola de lã para Hector também... o seu espírito comprazia-se a

reflectir nas compras que fizera.

  O seu olhar satisfeito voltou-se para a janela. Na outra linha férrea passou um comboio com um som áspero e repentino, fazendo vibrar as janelas e sobressaltando Mrs. McGillicuddy. Pouco depois, o comboio em que esta viajava passou por uma estação.

  Depois, subitamente, começou a abrandar a velocidade, em obediênçia ao que parecia a algum sinal. Rodou durante uns minutos, parou e, pouco depois, voltou a avançar. Um outro comboio voltou a ganhar velocidade. Nesse momento, outro comboio que seguia por linha diversa, no mesmo sentido que o de Mrs. McGillicuddy aproximou-se e, durante um momento, os dois correram paralelamente. Mrs. McGillicuddy olhou através das janelas dos dois comboios para as carruagens paralelas. A maior parte das cortinas encontravam-se baixadas, mas alguns ocupantes das carruagens estavam visíveis. O outro comboio não ia muito cheio e levava muitas carruagens vazias.

  No momento em que os dois comboios davam a impressão de estar parados, a cortina de uma das carruagens ergueu-se de repente. Mrs. McGillicuddy olhou para a carruagem iluminada da primeira classe que lhe ficava apenas a alguns metros de distânçia.

  Voltado de costas para ela e encostado à janela estava um homem. As suas mãos envolviam o pescoço de uma mulher, virada para ele, e lentamente, implacavelmente, estrangulavam-na. A mulher tinha o rosto roxo e congestionado e os olhos começavam a sair-lhe das órbitas. Enquanto Mrs. McGillicuddy os observava, fascinada, a cena teve o seu desfecho: o corpo tornou-se frouxo e vergou, sob o aperto das mãos do homem.

  No mesmo momento, o comboio de Mrs. McGillicuddy voltou a abrandar a marcha e o outro ultrapassou-o, desaparecendo da vista, momentos depois.

  Quase automaticamente, a mão de Mrs. McGillicuddy elevou-se até ao cordão de alarme e depois parou irresoluta. No fim de contas, de que valia puxar o cordão de alarme do comboio em que ela viajava? O horror que presenciara a tão pouca distânçia e as circunstânçias fora de comum em que a cena ocorrera, faziam-na sentir-se paralisada. Era necessário agir imediatamente... mas como?

  A porta do seu compartimento abriu-se e um revisor pediu:

- O seu bilhete, por favor.

 

  Mrs. McGillicuddy virou-se para ele com veemênçia:

- Uma mulher acaba de ser estrangulada - informou. - Num comboio que passou por este, agora mesmo. Eu vi.

  O revisor olhou-a com um ar de dúvida:

- Como disse, minha senhora?

- Um homem estrangulou uma mulher! Num comboio. Eu vi... pela janela - acrescentou, apontando para esta.

  O revisor parecia extremamente duvidoso.

- Estrangulou-a? - perguntou, com incredulidade.

- Sim, estrangulou-a! Já lhe disse que vi. O senhor tem de fazer qualquer coisa, imediatamente.

  O revisor pigarreou, como se se desculpasse:

- Não acha possível, minha senhora, que tenha dormitado um pouco e... hum... - calou-se, prudentemente.

- Dormitei, de facto, mas se julga que o que contei foi sonho está muito enganado. Já lhe disse que vi.

  Os olhos do revisor pousaram-se na revista aberta, caída no assento. Na página exposta via-se um homem estrangular uma rapariga, enquanto, junto a uma porta, um outro homem de revólver em punho, ameaçava o par.

  O revisor procurou ser persuasivo.

- Não acha possível, minha senhora, que, depois de ler uma história excitante e de ter adormecido, possa ter acordado um pouco confusa...

  Mrs. McGillicuddy interrompeu-o.

- Eu vi - insistiu. - Estava tão acordada como o senhor o está. Naquele momento olhei através desta janela para a janela do outro comboio e vi um homem estrangular uma mulher. Quero saber se vai tomar as providênçias necessárias.

- Bem... minha senhora...

- Suponho que tenciona fazer alguma coisa, não é verdade?

  O revisor suspirou de modo relutante e consultou o relógio de pulso.

- Chegaremos a Brackhampton exactamente dentro de sete minutos. Participarei o que acaba de contar-me. Em que direcção seguia o comboio que mencionou?

- Na deste mesmo comboio, é evidente. Decerto não supõe que eu pudesse ter visto tudo isso, se esse comboio houvesse passado como uma flecha, em sentido oposto.

  A expressão do revisor dava a entender que este julgava Mrs. McGillicuddy capaz de ver o que quer que fosse onde a fantasia lho ditasse.

- Pode confiar em mim, minha senhora - assegurou. - Participarei a sua informação. Talvez seja melhor dar-me o seu nome e morada... simplesmente para o caso de ser necessário...

  Mrs. McGillicuddy deu-lhe o endereco que teria durante os próximos dias e o seu endereco permanente na Escócia. Depois de anotá-los, o revisor retirou-se com o ar de um homem que cumprira o seu dever e se saíra bem de um incidente com um elemento enfadonho do público viajante.

  Mrs. McGillicuddv ficou de sobrolho franzido e vagamente inquieto. O revisor iria de facto participar o que ela lhe contara? Ou prometera-lho, apenas para acalmá-la?

  Agora, o comboio voltava a abrandar a marcha e atravessava uma grande cidade iluminada.

  Mrs. McGillicuddv abriu a malinha de mão, rebuscou no interior e retirou um recibo, em cujo verso garatujou rapidamente umas palavras. Meteu-o num sobrescrito que, por sorte, levava na mala e escreveu nele qualquer coisa.

  O comboio parou junto a um cais cheio de gente. A habitual voz comum a todas as estações entoava:

- O comboio que acaba de chegar ao cais número   um é o que parte às cinco horas e trinta e oito minutos para Milchester, Waverton, Roxeter e estações seguintes até Chadmonth. Os passageiros que vão para Market Basing seguem no comboio agora parado no cais número três.

  Mrs. McGillicuddy olhou ansiosamente ao longo do cais. Tantos passageiros e tão poucos carregadores! Ah, ali estava um! Chamou-o com uma voz autoritária.

- Carregador! Faça favor de levar isto imediatamente ao chefe da estação.

  Estendeu-lhe o sobrescrito e um xelim.

  Depois, soltando um suspiro, recostou-se no assento. Fizera o que pudera. O seu espírito concentrou-se, por um instante, com desgosto, no xelim... Meio-xelim teria sido suficiente.

  Em seguida, voltou a evocar a cena que presenciara. Horrível, absolutamente horrível... Apesar de ser uma mulher de nervos de aço, estremeceu. Que coisa estranha... que coisa fantástica lhe havia de acontecer, a ela, Elspeth McGillicuddy! Se a cortina da carruagem não se tivesse erguido... Mas isso por certo fora obra da Providência.

  A Providência quisera que ela, Elspeth McGillicuddy, testemunhasse o crime. Os lábios cerraram-se-lhe, numa linha que denotava o horror que sentia.

  Ouviram-se vozes gritando, apitos e portas fechando-se com estrondo. O comboio saiu lentamente da estação, às cinco e trinta e oito. Uma hora e cinco minutos depois parava em Milchester.

  Mrs. McGillicuddy pegou nos embrulhos e na mala, e desceu do comboio. Olhou para ambos os lados do cais. O seu espírito reiterava a opinião anterior: não havia carregadores suficientes. Os que havia pareciam estar ocupados com as malas de correio e com os vagões de bagagens. Parecia que, hoje em dia, competia aos passageiros transportarem a própria bagagem. Mas ela não podia ir carregada com a mala, o guarda-chuva e todos aqueles embrulhos. Esperaria. Por fim, conseguiu arranjar um carregador.

- Táxi?

- Espero que haja qualquer coisa à minha espera - redarguiu.

  Lá fora, à porta da estação de Milchester, um motorista de praça, que estivera a observar a saída das pessoas adiantou-se.

- E Mistress McGillicuddy? - perguntou. – Vai para Saint Mary Mead?

  Mrs. McGillicuddy confirmou a sua identidade, e o carregador foi devidamente recompensado. O carro, transportando Mrs. McGillicuddy, a mala e os embrulhos, afastou-se na noite. Depois de um percurso de quinze quilómetros, o táxi seguiu ao longo da familiar rua da aldeia e acabou por parar. Mrs. McGillicuddy apeou-se e subiu o caminho de tijolos até à porta. Uma criada de meia-idade veio abrir e o motorista pousou a mala e os embrulhos no interior da casa. Mrs. McGillicuddy atravessou o átrio e entrou na sala de estar onde a dona da casa, uma senhora idosa e de aparênçia frágil, aguardava.

- Elspeth!

- Jane!

  Beijaram-se e, sem qualquer preâmbulo, Mrs. McGillicuddy começou a falar.

- Oh, Jane! - gemeu. - Acabo de presenciar um assassinio!

 

  Fiel aos preceitos que lhe tinham sido transmitidos pela avó e pela mãe - entre os quais, a saber: uma verdadeira senhora nunca se pode mostrar chocada nem surpreendida - Miss Marple limitou-se a erguer as sobrancelhas e a menear a cabeça, dizendo:

- Isso é um acontecimento horrível, Elspeth, e deveras invulgar. Creio que será melhor contares-me tudo sem demora.

  Era precisamente isso o que Mrs. McGillicuddy queria fazer. Depois de sentar-se ao lado da amiga, perto da lareira, Mrs. McGillicuddy tirou as luvas e mergulhou na narrativa vivida.

  Miss Marple escutava-a cheia de atenção. Quando, fmalmente, Mrs. McGillicuddy fez uma pausa, para tomar fôlego, Miss Marple falou com decisão.

- Creio que a melhor coisa que tens a fazer, minha boa Elspeth, é ires lá acima, tirares o chapéu e lavares-te. Depois cearemos... e, enquanto o fizermos, não falaremos em nada disto. Depois da ceia, então, sim, poderemos voltar a ocupar-nos do assunto e a discuti-lo, sob todos os aspectos.

  Mrs. McGillicuddy concordou com a sugestão. As duas senhoras cearam, discutindo, enquanto comiam, vários aspectos da vida, na aldeia de St. Marv Mead.

Miss Marple comentou a natural desconfiança que o novo organista despertava, relatou o escândalo recente acerca da mulher do farmacêutico e referiu-se à hostilidade existente entre a mestra-escola e o Instituto Feminino da aldeia. Depois, a conversa versou sobre o jardim de cada uma.

- As peónias - sentenciou Miss Marple, ao levantar-se da mesa - são muitíssimo falsas. Algumas vezes resistem, outras secam. Mas, se chegam a deitar raízes, duram uma vida inteira, como se costuma dizer, e hoje em dia existem variedades verdadeiramente belas.

  Voltaram a instalar-se junto à Iareira, desta vez com dois copos e uma garrafa de leite.

- Esta noite, Elspeth, não tomas café – disse Miss Marple. - Já estás muito excitada, o que não é para admirar, e provavelmente não conseguirás dormir. Receito-te um copo do meu vinho de vaca e, talvez mais tarde, também uma chávena de camomila.

  Mrs. McGillicuddy concordou e Miss Marple encheu-lhe o copo.

- Jane - começou Mrs. McGillicuddy, enquanto bebia um gole -, tu não julgas que o que te contei se trata de um sonho ou de imaginação minha, pois não?

- Decerto que não - assegurou Miss Marple com ardor.

  Mrs. McGillicuddy soltou um suspiro de alívio.

- Esse revisor - continuou -, esse julgou que eu sonhara. Foi muito delicado, mas...

- Acho, Elspeth, que isso foi natural, se atendermos às circunstânçias. Pareceu... e ainda parece...uma história deveras incrível. E tu eras-lhe completamente desconhecida. Não, não tenho dúvida alguma de que viste o que me contaste ter visto. É muito extraordinário... mas de forma alguma impossível. O homem estava virado de costas para ti, segundo dizes. Por conseguinte, não lhe viste a cara?

- Pois não.

- E és capaz de descrever a mulher? Nova, velha?

- Mais nova do que velha, entre os trinta e os trinta e cinco anos.

- Bonita?

- Também não o posso dizer. Bem vês, tinha o rosto convulsionado e...

  Miss Marple apressou-se a dizer:

- Sim, sim, compreendo perfeitamente. Como estava vestida?

- Tinha vestido um casaco de peles, de uma cor pálida. Estava sem chapéu e tinha cabelo loiro.

- Não havia nenhuma nota distintiva no homem de que te possas recordar?

  Mrs. McGillicuddv levou algum tempo a pensar cuidadosamente antes de responder:

- Era alto... e moreno, creio. Trajava um casaco de fazenda grossa e, por conseguinte, não sei bem se era forte ou magro - acrescentou desanimadamente.

- Na realidade, estes dados não são de grande utilidade.

- Já são de alguma - animou Miss Marple. Fez uma pausa e depois perguntou: - Tens a certeza de que a rapariga ficou... morta?

- Absoluta. Tinha a língua toda para fora e... prefiro não falar nisso...

- Claro, claro - apressou-se Miss Marple a concordar. - Amanhã de manhã, espero que saibamos mais coisas.

- Amanhã de manhã?

- Calculo que a notícia venha nos jornais. Depois de esse homem atacar e matar essa mulher, ficou a mãos com um cadáver. Que lhe fez? É de presumir que se apressou a sair do comboio na primeira estação... a propósito, recordas-t e se a carruagem tinha corredor?

- Não, não tinha.

- Isso parece indicar um comboio que não faz um percurso muito longo. E quase certo ter parado em Brackhampton. Digamos que se apeou do comboio em Brackhampton, talvez depois de ter posto o cadáver a um canto do assento, com o rosto escondido pela gola de peles, para, desse modo, retardar a sua descoberta. Sim... Julgo que foi isso que ele fez. Mas o crime não tardará com certeza a ser descoberto... e calculo que a notícia venha publicada nos matutinos de amanhã. Veremos.

 

  Porém, tal não aconteceu.

  Miss Marple e Mrs. McGillicuddy, depois de se certificarem de que a notícia do crime não fora publicada nos jornais, acabaram o pequeno-almoço em silênçio. Estavam ambas imersas em profundas reflexões.

  Depois do pequeno-almoço deram uma volta pelo jardim, mas esse passatempo, em geral absorvente, foi nesse dia um pouco forçado. Miss Marple chamou de facto a atenção da amiga para alguns espécimes raros e novos que adquirira, mas fê-lo distraidamente. E Mrs. McGillicuddy, contra o costume, não ripostou com uma lista das suas recentes aquisições.

- O jardim não está como devia estar – disse Miss Marple, de modo abstracto. - O doutor Haydock proibiu-me terminantemente que me baixasse ou ajoelhasse, mas, na realidade, que pode uma pessoa fazer sem se baixar ou ajoelhar?

- Tens toda a razão - disse Mrs. McGillicuddy. - Comigo, evidentemente que não se passa o mesmo, mas a verdade é que depois das refeições custa-me muito baixar-me.

  Seguiu-se um silênçio que Mrs. McGillicuddy interrompeu, por fim, perguntando:

- Então?

  Apenas uma palavra insignificante que, porém, o tom com que Mrs. McGillicuddy a proferiu tornou muito signifïcativa, e Miss Marple compreendeu perfeitamente o seu significado.

  As duas senhoras entreolharam-se.

- Acho - opinou Miss Marple - que devíamos ir à esquadra falar com o sargento Cornish. É inteligente e paciente, além de que nos conhecemos um ao outro muito bem. Acho que nos dará ouvidos e comunicará o caso para a esquadra devida.

  Em consequênçia disso, cerca de três quartos de hora depois, Miss Marple e Mrs. McGillicuddy conversavam com um homem de rosto severo e barbeado, que aparentava os seus trinta e tal anos e escutava com atenção o que as duas lhe diziam.

  Frank Cornish recebeu Miss Marple com um misto de cordialidade e deferênçia. Ofereceu cadeiras às duas senhoras e perguntou:

- Em que posso ser-lhe útil, Miss Marple?

  Esta retorquiu:

- Gostaria que fizesse o favor de ouvir a história que a minha amiga Mistress McGillicuddy tem para contar-lhe.

  E o sargento ouviu. Depois de Mrs. McGillicuddy ter acabado o seu relato, o sargento ficou calado durante alguns momentos, findo os quais disse:

- Trata-se de uma história muito extraordinária. - Os seus olhos tinham disfarçadamente feito um exame apreciativo de Mrs. McGillicuddy enquanto esta falava.

  Esse exame impressionara-o de maneira favorável. Tratava-se de uma mulher inteligente, capaz de expor devidamente um caso e, pelo que lhe era dado julgar, nada tinha de exagerada ou histérica. Além disso, Miss Marple, segundo parecia, acreditava na veracidade do relato da amiga e ele conhecia muito bem Miss Marple. Todos os habitantes de St. Mary Mead conheciam Miss Marple: de aparênçia bonacheirona, mas de espírito tão vivo e arguto quanto possível.

  Pigarreou e disse:

- Evidentemente que pode ter-se enganado... Note que não digo que se enganou... Mas pode ter-se enganado. Há imensas brincadeiras de mau gosto... e pode não ter sido um caso sério ou fatal.

- Eu bem sei o que vi - insistiu Mrs. McGillicuddy inflexivelmente.

  “E não muda de opinião” pensou Frank Cornish “mas tanto pode ter razão como não”.

  Em voz alta declarou:

- A senhora contou o que viu aos empregados dos caminhos-de-ferro e procurou-me para contar-mo também a mim. Procedeu como devia e pode estar descansada que também mandarei proceder ao devido inquérito.

  Calou-se. Miss Marple meneou a cabeça, satisfeita. Mrs. McGillicuddy não sentia igual satisfação, mas nada disse. O sargento Cornish perguntou a Miss Marple:

- Admitindo que os factos sejam esses, que julga que tenha acontecido ao corpo?

- Parece haver apenas duas possibilidades - respondeu Miss Marple, sem hesitar. - A mais plausivel é, certamente, ter o corpo ficado no comboio, mas isto agora parece improvável, uma vez que deveria ter sido encontrado na noite passada, por outro viajante ou pelo pessoal do caminho-de-ferro, na última estação do itinerário do comboio.

  Frank Cornish meneou a cabeça com um ar aprovador.

- A única outra saída ao dispor do assassino seria atirar o corpo do comboio à linha. Acho que deve estar ainda por descobrir em qualquer ponto do trajecto, embora isso me pareça um pouco improvável. Mas acho que não podia ter uma terceira saída.

- Temos notícias de corpos que são metidos dentro de malões - disse Mrs. McGillicuddy -, mas hoje em dia ninguém viaja com malões e sim com malas pequenas. Ora, não é possível meter um corpo numa mala dessas.

- Sim, concordo com ambas - disse o sargento. - O cadáver, admitindo que existe, a esta hora já devia ter sido descoberto, ou então sê-lo-á muito em breve. Pô-las-ei ao corrente do que souber sobre o caso, embora suponha que o possam ler nos jornais. Há, é claro, a possibilidade de a mulher não ter morrido, apesar de barbaramente atacada. Pode ter sido capaz de sair do comboio pelo seu próprio pé.

- Dificilmente o conseguiria sem ajuda – opinou Miss Marple. - E, nesse caso, teria sido notada a sua saída apoiada a alguém.

- Sim, teria sido notada - concordou Cornish. - E, se alguma mulher foi encontrada desmaiada ou doente, numa carruagem, e transportada para o hospital, isso também teria sido notado. Acho que, muito em breve, ouvirão notícias do caso.

  Mas esse dia e o seguinte passaram sem novidade. Na noite imediata, Miss Marple recebeu um bilhete do sargento Cornish.

  “Em referênçia ao assunto acerca do qual me consultou, foram realizadas averiguações, sem resultado. Não se encontrou qualquer cadáver de mulher. Nenhum hospital dispensou tratamento a uma mulher como descreveu e não se verificou gualquer caso de uma mulher desmaiada ou doente ter saido de uma estação dos caminhos-de ferro, nos braços de um homem. Pode ter a certeza de que foi feita uma investigação. Talvez a sua amiga tenha presenciado uma cena como a que descreveu, mas menos séria do que supôs”.

 

- Menos séria! Tolices! - proferiu Mrs. McGillicuddy. - Foi um assassínio!

  Olhava desafiadoramente para Miss Marple que lhe retribuiu o olhar.

- Vamos, Jane! - incitou Mrs. McGillicuddy. Diz também que foi um engano meu! Diz que foi tudo imaginação minha! E isso o que pensas, não é verdade?

- Qualquer pessoa pode enganar-se – observou Miss Marple com delicadeza. - Qualquer pessoa, Elspeth... até tu. Acho que nunca nos devemos esquecer disso. Mas, sabes, continuo a pensar que é mais provável que não te tenhas enganado... Usas óculos para ler, mas vês muito bem ao longe... e o que viste impressionou-te profundamente. Quando cá chegaste, ainda não te refizeras da comoção.

- Foi uma coisa que nunca esquecerei – afiancou Mrs. McGillicuddy, estremecendo. - O pior é que não sei o que hei-de fazer!

- Não me parece que possas fazer mais alguma coisa do que já fizeste - disse Miss Marple pensativamente. - Participaste o que viste a funcionários do caminho-de-ferro e à Polícia. Não, não podes fazer mais coisa alguma.

- Isso, pelo menos, já é um alívio, porque, como sabes, parto para o Ceilão logo a seguir ao Natal, para passar um tempo em casa de Roderick e não quero adiar essa visita com que ando a sonhar há tanto tempo. É evidente que se o meu dever fosse adiá-la, fá-lo-ia - acrescentou conscientemente.

- Estou certa de que sim, Elspeth, mas, como já te disse, acho que já fizeste tudo quanto te era possível.

- A Polícia é que tem de encarregar-se do caso sentenciou Mrs. McGillicuddy. - E se a Polícia quer ser estúpida...

  Miss Marple abanou a cabeça com decisão.

- Não, não - contrariou -, a Polícia não é estúpida. Isto até torna o caso mais interessante, não achas?

  Mrs. McGillicuddy olhou-a sem compreender, e Miss Marple confirmou a sua opinião de que a amiga era uma mulher de excelentes princípios, mas destituída de imaginação.

- Gostava de saber o que na realidade aconteceu - disse Miss Marple.

- Foi assassinada.

- Sim, mas quem a matou, porquê e o que aconteceu ao corpo? Onde está ele agora?

- Compete à Polícia descobrir tudo isso.

- Exactamente... mas ainda não o descobriu. Isso significa que o homem era inteligente... muito inteligente. Não consigo imaginar - prosseguiu Miss Marple franzindo o sobrolho - como é que se desembaracou do corpo... Assassina-se uma mulher num acesso de fúria... Esse crime não deve ter sido premeditado, pois nunca se escolheria o momento para cometê-lo, nessas circunstânçias, poucos minutos antes de o comboio entrar numa grande estação. Não, deve ter sido uma discussão, por ciúmes... qualquer coisa assim. Estrangulou-a. Que outra coisa poderia fazer a não ser, como eu já disse, pôr o corpo a um dos cantos do assento, como se estivesse a dormir, com o rosto tapado, e depois sair do comboio tão depressa quanto possível? Não vejo outra possibilidade... e, contudo, deve ter havido uma...

  Miss Marple perdeu-se em pensamentos.

  Mrs. McGillicuddy dirigiu-lhe a palavra, por duas vezes, antes de ela responder.

- Estás a ficar surda, Jane.

- Um pouco, talvez. Parece-me que as pessoas não proferem as palavras tão nitidamente como o faziam. Mas o caso agora não foi esse. Creio que não estava a dar-te atenção.

- Estava a falar-te nos comboios que há amanhã para Londres. Achas bem o da tarde? Vou a casa de Margaret e ela não me espera antes da hora do chá.

- Porque não vais antes no das doze e quinze? Poderíamos almoçar mais cedo!

- Certamente e...

  Miss Marple prosseguiu, abafando o som das palavras da amiga:

- Talvez Margaret não se importe que não vás lá lanchar e que só chegues por volta das sete?

  Mrs. McGillicuddy olhou curiosamente para a amiga.

- Qual é a tua ideia, Jane?

- Sugiro, Elspeth, que vamos ambas a Londres e que voltemos a Brackhampton no comboio em que viajaste no outro dia. Depois seguirias de Brackhampton para Londres e eu viria até aqui como tu fizeste. É claro que as despesas de tudo isto correm por minha conta - Miss Marple acentuou bem este ponto da questão.

  Mrs. McGillicuddy ignorou o aspecto fmanceiro.

- Que diabo esperas, Jane? - perguntou. - Outro assassínio?

- Certamente que não - respondeu Miss Marple chocada. - Mas confesso que me agradaria ver eu própria, sob a tua orientação o... o... é na realidade muitíssimo difícil encontrar o termo conveniente... o ambiente do crime.

  Em consequência disso, no dia seguinte, Miss Marple e Mrs. McGillicuddv achavam-se, em frente uma da outra, junto à janela de uma carruagem da primeira classe que saíra de Paddington, Londres, às quatro horas e cinquenta minutos.

  Nessa ocasião, nenhum comboio corria paralelo ao delas. De vez em quando, cruzavam-se com comboios que vinham para Londres. Mrs. McGillicuddy consultava, repetidas vezes, o relógio.

- É difícil dizer em que altura foi... tínhamos passado por uma estação... mas estávamos continuamente a passar por estações.

- Devemos chegar a Brackhampton dentro de cinco minutos - anunciou Miss Marple.

  Um revisor apareceu à entrada do compartimento, Miss Marple ergueu o olhar interrogativamente e Mrs. McGillicuddy meneou a cabeça de um lado para o outro. Não era o mesmo revisor. Este furou os bilhetes e retirou-se, cambaleando um pouco, por o comboio, nessa altura, descrever uma curva apertada. Ao fazê-lo afrouxou de velocidade.

- Calculo que estejamos a chegar a Brackhampton - disse Mrs. McGillicuddy.

- Estamos a entrar nos seus subúrbios - declarou Miss Marple.

  Passavam por luzes, por casas e por ruas e eléctricos. A velocidade do comboio abrandou ainda mais. Começaram a passar cruzamentos de linhas.

- Chegamos dentro de um minuto – anunciou Mrs. McGillicuddy - e, para dizer a verdade, não me parece que este dia tenha sido proveitoso. Sugeriu-te alguma coisa, Jane?

- Não - replicou Miss Marple, numa voz hesitante.

- Foi uma lamentável perda de dinheiro - comentou Mrs. McGillicuddy, embora com menos desgosto do que teria, se o dinheiro fosse seu.

- Apesar disso - declarou Miss Marple -, uma pessoa gosta de ver com os próprios olhos o sítio onde uma coisa aconteceu. Este comboio chegou com um atraso de alguns minutos. Na sexta-feira, o teu chegou a horas?

- Creio que sim, mas, na realidade, não o notei.

  O comboio parou lentamente junto do cais da estação de Brackhampton. Este foi logo invadido por uma multidão de pessoas que se moviam apressadas de um lado para o outro.

  Miss Marple pensou que seria fácil a um assassino meter-se entre a multidão, sair da estação no meio daquela massa de gente que se apertava ou até escolher outra carruagem e continuar no comboio até à última estação do seu destino. Era fácil ser um passageiro entre muitos, mas já não era igualmente fácil fazer desaparecer um cadáver no ar. Esse cadáver devia estar em algum lado.

  Mrs. McGillicuddy descera do comboio e falava agora do cais da estação com a amiga, debruçada à janela do compartimento.

- Tem cuidado contigo, Jane - recomendou. Não apanhes frio. Esta época do ano é muito traiçoeira e já não és tão resistente como eras dantes.

- Bem sei - replicou Miss Marple.

- E não nos preocupemos mais com isto. Fizemos o que podíamos.

  Miss Marple aquiesceu com um movimento de cabeça e aconselhou:

- Não estejas parada aí ao frio, Elspeth. Vê lá se és tu quem se constipa. Vai tomar uma boa chávena de chá ao bufete. Faltam doze minutos para o teu comboio chegar.

- Creio que vou seguir o teu conselho. Adeus, Jane.

- Adeus, Elspeth. Um feliz Natal. Desejo que vás encontrar bem Margaret. Diverte-te em Ceilão e dá lembranças minhas ao querido Roderick... se é que ele ainda se lembra de mim, do que duvido.

- Com certeza que se lembra de ti... muito bem até. Quando ele andava na escola, ajudaste-o num caso qualquer em que desaparecera dinheiro de um armário e ele nunca se esqueceu disso.

  Mrs. McGillicuddy afastou-se, soou um apito e o comboio começou a mover-se.

  Miss Marple não se recostou no assento, quando o comboio começou a ganhar velocidade. Em vez disso, ficou sentada, muito direita, imersa em profunda cogitação. Tinha um problema a resolver, o problema da própria conduta futura, e, talvez por estranha coincidênçia, este apresentou-se-lhe como a Mrs. McGillicuddy, isto é, como uma questão de dever.

  Mrs. McGillicuddy dissera que ambas tinham feito tudo quanto era possível fazer. No que se referia a Mrs. McGillicuddy isso era verdade, mas, pela parte que lhe tocava, Miss Marple não tinha a mesma certeza.

  Com frieza, como um general que planeasse uma campanha, apreciou devidamente os prós e os contras de uma futura atitude. Entre os primeiros contavam-se os seguintes:

 

1. - A minha longa experiênçia da vida e conhecimento da natureza humana.

2. - Sir Henrv Clithering e seu afilhado (agora   creio que na Scotland Yard) que foi tão simpático no caso Little Paddocks.

3. - O filho segundo do meu sobrinho Raymond,   David, que está, tenho quase a certeza, a   trabalhar nos caminhos-de-ferro britânicos.

4. - O Leonardo, da Griselda, que sabe muito de   mapas.

 

  Miss Marple reviu estas anotações e aprovou-as. Eram todas indispensáveis para reforçar a fraqueza do lado dos Deves; em particular, a sua própria fraqueza física.

 “Não posso andar de um lado para o outro”, pensou, a fazer averiguações e a descobrir coisas.

  Sim, a principal objecção era essa - a sua idade e a sua fraqueza, embora, atendendo à idade, a sua saúde fosse boa.

  “Já estou velha para mais aventuras”, considerou, observando distraidamente pela janela, a curva que o comboio descrevia ao longo de uma ravina.

  Uma curva...

  Muito ao de leve algo lhe despontou no espírito... Precisamente o facto de o revisor lhes ter furado os bilhetes...

  Isso sugeriu-lhe uma ideia. Apenas uma ideia. Uma ideia inteiramente diferente...

  “Amanhã de manhã, escreverei a David”, prometeu a si própria.

  E, ao mesmo tempo, outra ideia lhe perpassou pelo espírito. “Certamente. A minha dedicada Florence!”

 

  Miss Marple traçou, de maneira metódica, o seu plano de campanha. Escreveu a David West, seu sobrinho, em segundo grau, a dar-lhe as boas-festas e a pedir-lhe uma informação urgente.

  Por sorte, a exemplo dos anos anteriores, foi convidada a jantar no presbitério, no dia do Natal, e aí pôde conversar acerca de mapas com o jovem Leonard, que fora passar com a família a quadra do Natal.

  A paixão de Leonard eram os mapas de todas as espécies. A razão que levava uma senhora de idade a interrogá-lo acerca de um mapa em grande escala de uma certa área, não lhe despertou a curiosidade. Encontrou o mapa que Miss Marple pretendia, entre os que formavam a sua colecção, e emprestou-o à idosa senhora, que prometeu ter muito cuidado com ele e devolver-lho, logo que fosse possível.

 

- Mapas! - admirou-se Griselda, a mãe de Leonard, que, embora tivesse um filho crescido, parecia muito jovem. - Para que quer ela os mapas?

 

- Não sei - replicou o filho. - Creio que não mo chegou a dizer.

- Gostava de sabê-lo - disse Griselda. – Acho isso muito estranho... Naquela idade, já não se devia meter em coisas dessas.

  Leonard perguntou de que coisa se tratava e Griselda respondeu elucidativamente:

- Meter o nariz em coisas estranhas. Porquê mapas, sempre gostava eu de saber?

  Pouco tempo depois, Miss Marple recebeu uma carta do sobrinho David West.

 

  Querida tia Jane:

  Que anda a fazer? Já tenho a informação que queria. Há apenas dois comboios que correspondem ao que disse: o das quatro horas e trinta e três minutos e o das cinco horas. O primeiro pára em Haling Broadway, Barwell Heath, Brackhampton e estações seguintes até Market Basing. O das cinco horas é o expresso escocês que vai para Cardiff, Newport e Swansea. O primeiro pode ser ultrapassado pelo das quatro horas e cinquenta minutos, embora deva chegar a Brackhampton cinco minutos mais cedo, e o último passa pelo das quatro e cinquenta pouco antes de Brackhampton.

  Devo farejar em tudo isto um escândalo de aldeia? Acaso a tia ao regressar de um dia de compras na cidade, pelo comboio das quatro e cinquenta viu, num outro comboio, o delegado de Saúde beijar a mulher do presidente da Camara? Mas que importa o comboio em que isso aconteceu? Talvez um fim-de-semana em Porthcawl? Obrigado pela camisola. É exactamente o que eu precisava. Como está o jardim? Calculo que, nesta época do ano, não esteja muito bonito.

Seu afeiçoado

  David.

 

  Miss Marple sorriu e considerou a informação que o sobrinho lhe dera. Mrs. McGillicuddy fora bem firme ao dizer que a carruagem não tinha corredor. Por conseguinte, não se tratava do expresso Swansea. Tudo indicava o comboio das quatro e trinta e três.

  Parecia-lhe inevitável uma outra viagem. Miss Marple suspirou, mas fez os seus planos.

  Voltou a Londres como anteriormente, no comboio das doze horas e quinze minutos, porém desta vez não regressou no das quatro e cinquenta, mas sim no das

quatro e trinta e três até Brackhampton. A viagem decorreu sem incidentes, mas Miss Marple registou certos pormenores. O comboio não ia superlotado, pois partira antes da hora do grande movimento. Das carruagens da primeira classe apenas uma tinha ocupante: um senhor muito idoso entretido a ler o New Statesman. Miss Marple viajou num compartimento vazio e, por ocasião das duas paragens, Haling Broadway e Barwell Heath, debrucou-se da janela para observar os passageiros que entravam e saíam do comboio. Um pequeno número de passageiros da terceira classe entraram em Haling Broadway. Em Barwell Heath saíram vários passageiros da terceira classe. Ninguém entrou ou saiu de uma carruagem da primeira classe, excepto o senhor idoso que lia o New Statesman.

  Quando o comboio se aproximava de Brackhampton descrevendo uma curva, Miss Marple pôs-se de pé e postou-se, experimentalmente, de costas viradas para a janela, cuja cortina erguera.

  Sim, era natural que esta se tivesse erguido com facilidade devido ao ímpeto da curva apertada que, decerto, desequilibrara alguém que estivesse de pé e fosse bater na cortina.

  Espreitou para o interior da janela. Lá fora, estava menos escuro do que quando Mrs. McGillicuddy fizera a mesma viagem, mas pouco se via. Teria de fazer a viagem de dia.

  No dia seguinte foi a Londres no comboio da manhã, comprou quatro fronhas de linho, para aliar a investigação à provisão de necessidades domésticas, e regressou num comboio que partia de Paddington às doze e quinze. Voltou a achar-se sozinha numa carruagem da primeira classe.

  “A razão está nestes lançamentos de impostos”, pensou Miss Marple. “Ninguém se permite viajar em primeira classe, a não ser os homens de negócios, nas horas de movimento.”  Cerca de um quarto de hora antes daquela a que o comboio devia chegar a Brackhampton, Miss Marple pegou no mapa que Leonard lhe arranjara e começou a observar a paisagem. Já antes estudara cuidadosamente esse mapa, e depois de notar o nome de uma estação por que tinham passado, em breve pôde identificar o sítio em que se achava, quando o comboio comecou a abrandar a sua marcha, para descrever uma curva. Era uma curva muito apertada. Miss Marple, com o nariz colado ao vidro da janela, estudava o terreno a seus pés, com grande atenção. Dividiu a sua atenção entre o campo lá fora e o mapa, até que, por fim, o comboio entrou em Brackhampton.

  Nessa noite, escreveu e deitou no correio uma carta para Miss Florence Hill, moradora no n.o 4 da Madison Road, em Brackhampton. Na manhã seguinte, ao dirigir-se à Biblioteca Municipal, estudou um guia e um roteiro de Brackhampton.

  Até então, nada contrariara a ideia, ainda mal concretizada, que lhe ocorrera ao espírito. O que ela imaginara era possível.

  Mas o passo seguinte requeria acção, uma boa dose de acção, o género de acção para o qual não se achava fisicamente apta. Precisava do auxílio de outra pessoa. Mas... quem? Miss Marple reviu vários nomes e possibilidades, rejeitando todos com um movimento de cabeça impaciente e mortificado. As pessoas inteligentes em que podia confiar estavam todas muito ocupadas e as que não eram tão bem dotadas de espírito não lhe serviam.

  Depois de chegar a esta conclusão, Miss Marple sentiu-se ainda mais mortificada e perplexa.

  Depois, subitamente, a fronte desanuviou-se-lhe. Proferiu um nome em voz alta:

- Lucy Eyelesbarrow!

 

  O nome de Lucy Eyelesbarrow era muito conhecido em certos círculos.   

   Lucy Eyelesbarrow tinha trinta e dois anos. Licenciara-se em Matemática, com distincão, em Oxford, possuía um espírito brilhante e no seu íntimo esperava seguir uma distinta carreira académica.

  Mas para além disso, Lucy Eyelesbarrow era dotada de uma boa dose de senso comum. Não podia deixar de reconhecer que uma vida, toda ela distinção académica, era singularmente mal recompensada. O professorado não a atraía e tinha prazer em contactar com espíritos muito menos brilhantes que o seu. Em resumo, gostava de contactar com pessoas, com todo o género de pessoas e não sempre com as mesmas. E deve-se dizer também que gostava de dinheiro. Para se ganhar dinheiro deve-se tirar partido das faltas.

  Lucy Eyelesbarrow aproveitou-se imediatamente de uma falta muito séria: a falta de toda a espécie de pessoal doméstico hábil. Com grande espanto dos amigos e colegas, Lucy Eyelesbarrow dedicou-se ao trabalho doméstico.

  O seu êxito foi imediato. Pouco depois, era conhecida em todas as Ilhas Britânicas. Era costume as mulheres dizerem aos maridos: “Pois sim. Já posso acompanhar-te. Tenho Lucy Eyelesbarrow!” Isso devia-se a que, mal Lucy Eyelesbarrow entrava numa casa, acabavam todas as preocupações, aborrecimentos e ansiedades domésticas. Lucy Eyelesbarrow fazia tudo, via tudo, arranjava tudo. Era extraordinariamente competente. Cuidava de pessoas de idade, tomava conta de crianças, tratava dos doentes, cozinhava divinamente, dava-se bem com qualquer membro do pessoal antigo que, por acaso, houvesse nas casas, mostrava-se cheia de tacto nas suas relações com pessoas intratáveis, acalmava os ébrios inveterados e era maravilhosa com os cães.

  Uma das suas regras era nunca aceitar um contrato por tempo determinado. O seu período habitual nunca ia além de quinze dias... quando muito, de um mês, em circunstânçias excepcionais. Mas esses quinze dias saíam os olhos da cara a quem os pagava! Porém, durante esses quinze dias, a vida era um paraíso.

  Lucy Eyelesbarrow leu e releu a carta de Miss Marple. Conhecera esta, dois anos antes, quando trabalhara para o novelista Raymond West, que a incumbira de tratar a velha tia, convalescente de uma pneumonia. Lucy aceitara o lugar e fora para St. Mary Mead. Simpatizara muito com Miss Marple e esta escrevera-lhe agora pedindo-lhe um encontro para discutirem um caso invulgar.

  Lucy Eyelesbarrow franziu o sobrolho, enquanto reflectia. Na realidade, já tinha todo o tempo tomado. Mas a palavra invulgar e a recordação que guardava da personalidade de Miss Marple, decidiram-na a telefonar-lhe logo, explicando não ser possível ir a St. Mary Mead por ter que fazer, naquele momento, e dizendo estar livre das duas para as quatro horas da tarde seguinte e poder então encontrar-se com Miss Marple em qualquer ponto de Londres. Sugeriu o clube de que era sócia, um local que tinha a vantagem de contar vários gabinetes de leitura sombrios e, regra geral, vazios.

  Miss Marple aceitou a sugestão e, no dia seguinte, encontraram-se no sítio combinado.

  Lucy Eyelesbarrow conduziu a visita ao mais sombrio dos gabinetes de leitura e declarou:

- Receio não ter tempo disponível, nesta altura, mas talvez me possa dizer do que pretende encarregar-me.

- Para dizer a verdade, trata-se de um caso muito simples - disse Miss Marple. - Invulgar, mas simples. Quero que descubra um cadáver.

  Por um momento o espírito de Lucy pensou que Miss Marple estivesse mentalmente desequilibrada, mas logo rejeitou essa ideia. Miss Marple era uma pessoa extraordinariamente lúcida de espírito. Sabia muito bem o que dissera.

- Que espécie de cadáver? - perguntou Lucy Eyelesbarrow com admirável compostura.

- Um cadáver de mulher - explicou Miss Marple. - O corpo de uma mulher que foi assassinada, aliás, estrangulada, num comboio.

  Lucy ergueu levemente o sobrolho.

- Trata-se na verdade de um caso invulgar. Fale-me dele.

  Depois de Miss Marple ter acabado de contar os factos, Lucy Eyelesbarrow perguntou:

- Tudo isso depende do que a sua amiga viu... ou julgou ver?...

  Deixou a frase por terminar com um ponto de interrogação no fim.

- Elspeth McGillicuddy não imagina coisas afiançou Miss Marple. - E por isso que acredito no que ela disse. Se tivesse sido Dorothy Cartaright... então o caso seria completamente diferente. Dorothy está sempre a contar histórias que, embora tenham uma certa base de verdade, são bastante imaginosas. Mas Elspeth é o género de mulher que dificilmente acredita em coisas extraordinárias.

- Compreendo - disse Lucy, de modo pensativo. - Qual o meu papel no caso?

- Tenho muita boa impressão a seu respeito declarou Miss Marple -, e, bem vê, hoje em dia não tenho a robustez física necessária para me mexer de um lado para o outro e fazer coisas.

- Quer que eu proceda a averiguações? É isso? Mas a Polícia não as terá já feito? Ou julga que não deram bastante atenção ao caso?

- Não, não é isso. Trata-se do seguinte: tenho uma teoria acerca do corpo da mulher. Tem de estar em qualquer lado. Se não o encontraram no comboio, nesse caso, deve ter sido atirado para fora do comboio; mas tão-pouco o descobriram em qualquer ponto ao longo da linha. Por conseguinte, fiz o mesmo caminho de comboio para ver se haveria algum sítio para onde o corpo pudesse ter sido atirado do comboio, sem ter sido encontrado na linha... e achei. As linhas de caminho-de-ferro descrevem uma longa curva antes de entrarem em Brackhampton, contornando uma alta ravina. Acho que se o corpo tivesse sido lançado fora do comboio quando este descrevia essa curva teria ido parar ao fundo da ravina.

- Mas certamente seria encontrado... mesmo aí.

- Sim. Seria necessário que o levassem... Mas já vamos a isso. Aqui está o local... neste mapa.

  Lucy inclinou-se para estudar o sítio que o dedo de Miss Marple apontava.

- Actualmente fica mesmo à entrada de Brackhampton - explicou Miss Marple -, mas, originariamente, era uma casa de campo com um parque grande e terrenos. Ainda lá está, intacta, rodeada por pequenas casas suburbanas. Chama-se Rutherford Hall. Foi construída, em mil oitocentos e oitenta e quatro, por um riquíssimo industrial, chamado Crackenthorpe. Hoje ainda lá vive, com uma filha, um homem de idade, filho do original Crackenthorpe. O caminho-de-ferro rodeia bem metade da propriedade.

- E quer que eu faça... o quê?

  Miss Marple replicou, com prontidão:

- Quero que arranje emprego nessa casa. Toda a gente se queixa de falta de pessoal doméstico eficiente. Acho que não será difícil.

- Pois não, não creio que seja difícil.

- Creio que Mister Crackenthorpe tem fama de avarento. Se ele lhe pagar um salário baixo, dar-lhe-ei a diferenca para o que suponho esteja acima do que é corrente pagar-se.

- Por causa da dificuldade?

- Mais pelo perigo, do que pela dificuldade. Bem vê, pode ser perigoso. Acho que é meu dever preveni-la.

- Não sei se a ideia de perigo me dissuadirá - retorquiu Lucy pensativamente.

- Acho que não; você não é esse género de pessoa.

- Nesse caso, julga que me atrai? Na minha vida, tem-se-me deparado muito pouco perigo. Mas acha realmente que possa ser perigoso?

- Alguém cometeu um crime - observou Miss Marple. - Não houve alarido, nem se levantaram suspeitas à volta dele. Duas senhoras de idade contaram uma história muito inverosímil. A Polícia investigou, mas nada encontrou que lhe desse consistênçia. Por conseguinte, para o criminoso tudo corre às mil maravilhas.

- Que devo ao certo procurar?

- Quaisquer vestígios ao longo da ravina, um farrapo de roupa, arbustos partidos... esse género de coisas.

  Lucy meneou compreensivamente a cabeça.

- E depois?

- Estarei muito perto de si - continou Miss Marple. - Uma antiga criada minha, a minha dedicada Florence, vive em Brackhampton. Tratou durante anos dos pais, que eram velhos. Estes já morreram, mas ela aceita hóspedes... Todos gente muito respeitável. Olhará por mim, cheia de solicitude, e sinto que me agradará estar perto de si. Sugiro que diga ter uma tia velha, vivendo nas vizinhanças, que deseja arranjar colocação perto dela e que precisa também de algum tempo livre para visitá-la com frequênçia.

  Lucy voltou a aprovar a ideia com um meneio de cabeça.

- Tencionava partir para Taormina, depois de amanhã - anunciou. - Mas as férias podem esperar. Porém, só posso prometer-lhe três semanas. Depois disso, já estou comprometida.

- Três semanas serão suficientes – declarou Miss Marple. - Se dentro de três semanas nada conseguirmos encontrar, podemos pôr o assunto de parte.

  Miss Marple foi-se embora e Lucy, depois de um momento de reflexão, telefonou para a Agênçia de Empregos de Brackhampton, cuja directora conhecia muito bem. Expôs-lhe o seu desejo de arranjar uma colocação nessa terra, para poder ficar perto da “tia”. Depois de ouvir nomear várias casas boas, ouviu, por fim, o nome de Rutherford Hall.

- Acho que essa casa é exactamente o que me convém - declarou Lucy com firmeza.

 

   Ao volante do seu pequeno automóvel, Lucy Eyelesbarrow transpôs um imponente portão de ferro. Mal o fez, deparou-se-lhe o que originariamente fora uma pequena casa de guarda, mas agora completamente em ruínas; era difícil dizer se isso se devia a estragos causados pela guerra ou apenas a negligênçia. Um longo caminho sinuoso, ladeado de ambos os lados por enormes macicos de rododendros, levava até à casa. Lucy soltou uma pequena arfada ao ver que esta era uma espécie de miniatura do Castelo de Windsor. Os degraus de pedra, em frente da casa, requeriam atenção e o saibro estava verde devido a sementes negligenciadas.

  Puxou um sino de modelo antigo e o seu som repercutiu-se no interior da casa. Uma mulher de aspecto desalinhado, e que limpava as mãos ao avental, veio abrir a porta e olhou Lucy com desconfiança.

- Estava à sua espera - disse. - Miss “qualquer coisa... barrow”? A agênçia falou-me de si.

- Muito bem - disse Lucy.

  O interior da casa era terrivelmente frio. A mulher conduziu Lucy ao longo de um corredor sombrio e abriu uma porta à direita. Lucy achou-se, com grande surpresa, numa sala de estar de aspecto muito agradável, em que havia livros e poltronas forradas com chintz.

- Vou anunciá-la - disse a mulher, retirando-se, depois de fechar a porta e de ter olhado para Lucy com profundo desagrado.

  Passados alguns minutos, a porta voltou a abrir-se. Lucy decidiu logo que gostava de Emma Crackenthorpe.

  Era uma mulher de meia-idade, de aspecto vulgar, nem bonita nem feia, enfiada numa saia de tweed e numa camisola, com o cabelo preto puxado para trás, olhos cor de avelã e uma voz muito agradável.

- Miss Eyelesbarrow? - perguntou, estendendo a mão.

  Depois, pareceu hesitante.

- Não sei se este lugar é na verdade o que procura. Compreende, não é bem de uma governanta que preciso, para me olhar pelas coisas, mas sim de uma pessoa que trabalhe.

  Lucy replicou ser isso o que a maioria das pessoas precisava.

  Emma Crackenthorpe prosseguiu, com ar de desculpa:

- Há muitas pessoas que julgam que uma simples limpeza de pó é suficiente... mas isso posso eu fazer.

- Compreendo muito bem o que pretende - interveio Lucy. - Quer uma pessoa que cozinhe, lave, arrume a casa e alimente a fornalha. Muito bem. É isso o que eu faço. O trabalho não me mete medo.

- Receio que ache a casa grande e incómoda. É certo que só habitamos uma parte... o meu pai e eu. Está quase inválido. Vivemos aqui muito sossegadamente. Tenho vários irmãos, mas raramente cá estão. Vêm cá duas mulheres por semana: Mistress Kidder, todas as manhãs, e Mistress Hart, três vezes por semana, para limpar os amarelos e outras coisas no género. Tem carro?

- Sim. Pode ficar ao ar livre se não houver sítio onde arrumá-lo. Já está habituado.

- Oh, há muitos estábulos velhos. Quanto a isso, não há dificuldade. - Ficou por um momento de sobrolho franzido, e depois prosseguiu. - Eyelesbarrow... é um nome pouco vulgar. Uns amigos meus falaram-me numa Lucy Eyelesbarrow... os Kennedy?

- Sim. Estive com eles, em Devonshire Setentrional, quando Mistress Kennedv teve um bebé.

  Emma Crackenthorpe sorriu.

- Disseram-me que nunca tinham passado um tempo tão maravilhoso como aquele em que esteve em casa deles. Mas eu fazia ideia de que o seu ordenado fosse muito elevado. O que eu ofereci...

- Sei isso muito bem - atalhou Lucy -, mas estou interessada em ficar perto de Brackhampton. Tenho lá uma tia velha, muito doente, e quero estar perto dela. Foi por essa razão que aceitei esse salário, contanto que possa ter livre algum tempo, durante a maior parte dos dias.

- Com certeza. Todas as tardes até às seis, se lhe convier.

- Muito bem.

  Miss Crackenthorpe hesitou um momento antes de dizer:

- Meu pai é um homem de idade e, por vezes...um pouco intratável.Tem a mania da economia e, ocasionalmente, diz coisas que sobressaltam as pessoas. Não me agradaria...

  Lucy apressou-se a interromper:

- Estou muito habituada a lidar com pessoas de idade e de todos os géneros. Consigo sempre dar-me bem com elas.

  Emma Crackenthorpe pareceu aliviada.

  Depois de ter conduzido Lucy ao quarto de cama que lhe era destinado, um quarto grande e sombrio, que um pequeno radiador se esforçava em vão por aquecer, mostrou-lhe o resto da casa, vasta e desconfortável. Ao passarem por uma porta que dava para o átrio, uma voz rugiu:

- Es tu, Emma? A rapariga já veio? Trá-la cá. Quero vê-la.

  Emma corou e olhou animadoramente para Lucy.

  As duas mulheres entraram no quarto. Estava ricamente alcatifado, em veludo escuro, e tinha móveis pesados da época vitoriana.

  O velho Mr. Crackenthorpe encontrava-se estendido numa cadeira de inválido, tendo a seu lado uma bengala de castão de prata.

  Era um homem alto, muito magro, cuja carne lhe pendia em pregas flácidas. O rosto assemelhava-se ao de um buldogue e tinha queixo saliente. Possuía ainda cabelo grisalho e olhos pequenos e desconfiados.

- Ora deixe-me cá olhar para si.

  Lucy adiantou-se, com compostura e sorridente.

- Há uma coisa de que deve compenetrar-se antes de mais nada. Lá porque vivemos num casarão, isso não significa que sejamos ricos. Não somos ricos. Vivemos de maneira simples, ouviu bem? De maneira simples! É escusado vir para aqui com fantasias. O bacalhau é tão bom como o rodovalho; não se esqueça disso. Não suporto desperdícios. Vivo aqui porque meu pai construiu esta casa e gosto dela. Depois de eu morrer, poderão vendê-la se quiserem... e suponho que não querem outra coisa. Não têm o sentido da família. Esta casa foi bem construída... é sólida, e tem imenso terreno privativo à volta. Deste modo, podemos sentir-nos retirados do resto do mundo. Se vendêssemos esse terreno para construções, tiraríamos imenso dinheiro, mas tal não acontecerá enquanto eu viver.

  Lancou um olhar feroz à filha.

- A sua casa é o seu castelo - disse Lucy.

- Está a trocar de mim?

- Certamente que não. Acho que é muito excitante ter uma verdadeira casa de campo, rodeada pela cidade.

- Exactamente. Daqui não se avista mais coisa alguma, pois não? Só avistamos campos com vacas...mesmo no seio de Brackhampton. Quando o vento sopra nesta direcção, chega, por vezes, o ruído do trânsito... mas de contrário, é só campo.

  Virou-se para a filha e acrescentou, sem qualquer pausa ou mudança de tom:

- Telefona a esse maldito médico. Diz-lhe que o último remédio não presta para nada.

  Lucy e Emma retiraram-se. Mr. Crackenthorpe gritou:

- E não deixes essa maldita mulher que limpa o pó entrar aqui. Desarrumou-me os livros todos.

- Mister Crackenthorpe está inválido há muito tempo? - perguntou Lucy a Emma.

- Há já alguns anos... Isto aqui é a cozinha.

  Era uma divisão enorme.

  Lucy perguntou as horas das refeições e inspeccionou a despensa. Depois declarou animosamente a Emma:

- Já sei tudo quanto era preciso. Não se incomode. Confie em mim.

  Emma Crackenthorpe soltou um suspiro de alívio, quando nessa noite subiu, para deitar-se.

  “Os Kennedy tinham toda a razão” monologou. “É maravilhosa!”

  Lucy levantou-se às seis horas da manhã seguinte. Arrumou a casa, preparou os vegetais, cozinhou e serviu o pequeno-almoço. Ajudada por Mrs. Kidder, fez as camas e às onze horas sentaram-se ambas na cozinha a tomar chá e biscoitos. Abrandecida por Lucy “não se dar ares” e também pelo chá forte e bem açucarado, Mrs. Kidder entregou-se ao paleio. Era uma mulher baixa e magra, de olhos astutos e lábios finos.

- Um miserável sovina é o que ele é. O que ela tem de aturar-lhe! Apesar disso, ela não se deixa espezinhar. Quando precisa, também sabe impor-se. Quando os senhores cá vêm, ela arranja sempre comida decente.

- Os senhores?

- Sim. Era uma grande família. O mais velho, Mister Edmund, morreu na guerra. Depois é Mister Cedric, que vive no estrangeiro. É solteiro. Pinta quadros. Mister Harold vive em Londres... é casado com a filha de um conde. Depois é Mister Alfred; é simpático mas, mais ou menos, ovelha ronhosa da família. Já esteve em apuros, por uma ou duas vezes. Há também o marido de Miss Edith, Mister Bryan. E uma pessoa muito agradável. Ela morreu há alguns anos, mas ele continuou a fazer parte da família, e, finalmente, há o menino Alexander, filho de Miss Edith. Está internado num colégio, mas vem sempre cá passar parte das férias. Miss Emma gosta muito dele.

  Lucy digeriu todas estas informações, sem deixar de servir chá à sua informadora. Por fim, Mrs. Kidder pôs-se de pé com relutânçia.

- Esta manhã, isto foi um banquete – comentou sonhadoramente. - Quer que a ajude a descascar batatas?

- Já as descasquei, obrigada.

- E única a fazer estas coisas! Visto que não há nada para eu fazer, creio que vou andando.

  Mrs. Kidder foi-se embora e Lucy, que ainda dispunha de tempo à sua frente, esfregou a mesa da cozinha, o que estava desejosa de fazer e ainda não fizera para não ofender Mrs. Kidder, a quem esse trabalho competia. Depois limpou os talheres, até deixá-los reluzentes. Cozinhou o almoço, serviu-o, lavou a louça e às duas horas e meia estava pronta a começar a exploração. Arranjara já o tabuleiro para o lançhe, com sanduíches e pão com manteiga, cobertos por um guardanapo molhado para não secarem.

  Começou pelo jardim, por lhe parecer que esse seria o comportamento natural. A horta estava pobremente cultivada e apresentava pouca variedade de hortaliça. As estufas encontravam-se em ruínas. Por toda a parte os caminhos entre os canteiros estavam cheios de ervas daninhas. Apenas um canteiro, junto da casa, se mostrava limpo dessas ervas, e Lucy calculou que isso se devesse aos cuidados de Emma. O jardineiro era um homem muito velho, um pouco surdo, que apenas fingia trabalhar. Lucy dirigiu-lhe afavelmente a palavra. Vivia numa pequena casa adjacente ao grande estábulo.

  A porta das traseiras deste abria para um caminho, que corria ambos os lados, entre sebes, e cruzava o parque; depois de atravessar um túnel, sobre o qual passava o comboio, ia desembocar numa pequena viela.

  Os comboios sucediam-se com intervalos de poucos minutos sobre o túnel. Lucy viu os comboios abrandarem o andamento enquanto descreviam a curva que contornava a propriedade dos Crackenthorpe. Atravessou o túnel, indo dar à viela. Aquele caminho parecia ser pouco usado. Num dos lados, ficava a ravina ao cimo da qual passavam os comboios e, no outro, um muro elevado que cercava alguns edifícios altos de uma fábrica. Lucy seguiu pela viela e foi ter a uma rua de casas baixas. Chegava-lhe aos ouvidos o ruído, a pouca distânçia, do trânsito na estrada. Olhou para o relógio. Uma mulher saiu de uma casa próxima e Lucy perguntou-lhe onde havia um telefone público, ali perto. Depois de agradecer a informação dirigiu-se a uma casa, meio loja, meio posto de correio. O telefone achava-se numa cabina. Lucy marcou um número e pediu para falar a Miss Marple. Uma voz de mulher redarguiu com aspereza:

- Está a descansar e não vou incomodá-la! Precisa de repouso... é uma senhora de idade. Quem devo dizer que telefonou?

- Miss Eyelesbarrow. Não há necessidade de incomodá-la. Diga-lhe apenas que já cheguei, que tudo corre bem e que lhe darei notícias, mal as tenha.

  Desligou e voltou a Rutherford Hall.

 

- Suponho que não haja inconveniente em que pratique um pouco de golfe no parque, pois não? perguntou Lucy.

- Certamente que não. Gosta de golfe?

- Não sou grande jogadora, mas não quero perder a prática. É uma forma de exercício mais agradável do que andar a pé.

- Fora daqui não há por onde passear - resmungou Mr. Crackenthorpe. - Nada a não ser estradas asfaltadas e casotas miseráveis todas iguais. Eles bem gostariam de deitar mão ao meu terreno, para construírem mais casas. Mas, enquanto eu viver, não o farão. E não tenciono morrer para agradar a quem quer que seja. Note bem! A quem quer que seja.

  Emma Crackenthorpe pediu suavemente:

- Acalme-se, pai.

- Eu bem sei o que eles pensam... e por que esperam. Todos eles. Cedric e esse hipócrita do Harold. Quanto a Alfred, admira-me que ainda não me tenha desfechado um tiro, para se ver livre de mim. Não posso garantir que o não tenha tentado, por alturas do Natal. Foi uma coisa bem estranha a que me aconteceu. O velho Quimper fcou intrigado. Fez-me uma quantidade de perguntas discretas.

- Toda a gente sofre, de vez em quando, de más digestões dessas, pai - observou Emma.

- Pois sim, pois sim, continua a dizer que como demais. Bem te entendo. E porque como demais? Porque havia demasiada comida na mesa. Aquela quantidade de comida era um exagero absurdo. Agora me lembro... pequena. Hoje, ao almoço, mandou cinco batatas enormes para a mesa. Duas batatas chegam para qualquer pessoa. Por conseguinte, daqui para o futuro não mande mais de quatro. A quinta desperdicou-se.

- Não se desperdicou tal, Mister Crackenthorpe. Resolvi empregá-la numa omeleta à espanhola, para esta noite.

- Cos diabos! - Quando Lucy se retirava, levando o tabuleiro com o café, ouviu ainda dizer: - Esta rapariga é uma espertalhona. Tem resposta para tudo. Mas cozinha bem... e é agradável.

  Lucy Eyelesbarrow pegou num dos tacos de golfe, que levara consigo, e foi para o parque.

  Começou a fazer uma série de jogadas. Passados cinco minutos, uma bola aparentemente desviada foi cair na ravina do comboio. Lucy foi à sua procura. Olhou para trás, para a casa. Encontrava-se a uma grande distânçia e ninguém parecia interessado no que ela estava a fazer. Continuou a procurar a bola. Durante essa tarde, pesquisou cerca de um terco da ravina. Nada.

  No dia seguinte, porém, obteve algum resultado. A meio da encosta da ravina, deparou-se-lhe um arbusto partido e, em sua volta, viam-se ramos quebrados. Lucy examinou-o. Agarrado a uma das pontas dos ramos quebrados via-se um farrapo de uma pele. Era quase da mesma cor da madeira, de um castanho-claro. Lucy contemplou-o, por um momento, e depois cortou-o cuidadosamente ao meio com uma tesoura que tirou da algibeira. Meteu a metade que separou dentro de um sobrescrito que também trouxera consigo. Desceu a encosta escarpada procurando fazer mais algum achado. Inspeccionou com atenção as ervas que cobriam o solo. Julgou distinguir uma espécie de rasto deixado por alguém que por ali tivesse passado. Mas era muito leve... muito menos nítido do que o que ela própria deixara. Devia ter sido feito há algum tempo e não era suficientemente nítido para convencê-la de que não se tratava apenas de fantasia da sua parte.

  Começou a pesquisar com cuidado a erva, na base da ravina, no ponto exactamente abaixo do arbusto quebrado. Pouco depois, via recompensados os seus esforços. Encontrou um estojo de pó-de-arroz, um artigo barato. Embrulhou-o num lenço e meteu-o na algibeira. Continuou à procura, mas nada mais achou.

  Na manhã seguinte, meteu-se no carro e foi visitar a tia inválida. Emma Crackenthorpe dissera, amavelmente:

- Não se apresse. Pode regressar apenas à hora do jantar.

- Obrigada, mas voltarei, o mais tardar, às seis horas.

  O n.o 4 da Madison Road era uma pequena casa velha, numa viela suja. Tinha cortinas de renda Nottingham, muito limpas, um degrau de entrada reluzente, de branco que estava, e um puxador de latão, bem lustroso. A porta foi aberta por uma mulher alta e de aspecto carrancudo, vestida de preto, com um carrapito de cabelo grisalho.

  Mirou Lucy, desconfiadamente, enquanto a acompanhava até junto de Miss Marple.

  Esta ocupava a saleta das traseiras da casa, que dava para um pequeno jardim quadrado e bem tratado. Miss Marple estava sentada num cadeirão, junto à lareira, ocupada a fazer croché.

  Lucy entrou e fechou a porta. Sentou-se na cadeira, em frente de Miss Marple.

- Parece que tinha razão! - disse.

  Apresentou os seus achados e deu pormenores sobre a maneira como os encontrara.

  Um leve rubor de satisfação tingiu as faces de Miss Marple.

- Talvez não devesse sentir-me assim - preambulou -, mas dá tanta satisfação a uma pessoa formar uma teoria e provar que está correcta!

  Pegou no pequeno farrapo de pele.

- Elspeth disse que a mulher trajava um casaco de peles, de cor clara. Suponho que o estojo do pó-de-arroz estivesse numa das algibeiras do casaco e tenha caído quando o corpo rolou pela ravina abaixo. Seja como for, não me parece identificável, mas talvez venha a ser útil. Não tirou toda a pele?

- Não, deixei metade no ramo.

  Miss Marple aprovou com um movimento de cabeça.

- Fez muito bem. E uma rapariga muito inteligente. A Polícia há-de querer examinar o local.

- Vai levar essas coisas... à Polícia?

- Bem... por ora, não... - Miss Marple reflectiu. - Acho que seria melhor encontrar, primeiramente, o corpo. Não concorda?

- Sim, mas não acha isso difícil? Isto é, partindo do princípio que a sua teoria está correcta. O assassino empurrou o corpo para fora do comboio, depois, segundo parece, apeou-se em Brackhampton e, mais tarde, provavelmente, nessa mesma noite, foi buscar o corpo ao local para onde o atirara. Mas que aconteceu depois disso? Deve tê-lo levado para qualquer lado.

- Não para qualquer lado - acentuou Miss Marple. - Creio que não viu ainda a conclusão lógica do caso, minha querida Miss Eyelesbarrow.

- Trate-me por Lucy. Porque não em qualquer lado?

- Porque, se assim fosse, ter-lhe-ia sido muito mais fácil matar a rapariga num sítio deserto e ter depois removido dali o corpo. Ainda não apreciou...

  Lucy interrompeu:

- Quer dizer que... que foi um crime premeditado?

- A princípio não julguei isso - retorquiu Miss Marple. - Admiti que se tratasse de uma discussão e que o homem se houvesse exaltado e estrangulado a rapariga, vendo-se depois a braços com um problema, que tinha de resolver em poucos minutos. Mas, na realidade, seria uma coincidênçia muito grande ele ter assassinado a rapariga num acesso de exaltação e ter olhado para fora da janela precisamente quando o comboio descrevia uma curva num local para onde podia atirar o corpo, e aonde sabia que, mais tarde, poderia ir buscá-lo. Se o tivesse atirado para ali por acaso, ter-se-ia contentado com isso e já há muito tempo que o corpo teria sido encontrado.

  Fez uma pausa e Lucy ficou-se a olhá-la com espanto.

- Sabe - prosseguiu Miss Marple pensativamente -, foi na verdade um crime inteligentemente planeado... e creio que também foi cuidadosamente executado. Um crime praticado num comboio reveste-se de um carácter deveras anónimo. Se a tivesse assassinado em casa dela, ou na casa onde vivia, podia alguém tê-lo visto entrar ou sair. Ou, se a houvesse levado de carro para qualquer ponto do campo, podia alguém ter reparado no carro, no número de matrícula e marca. Mas um comboio está cheio de desconhecidos que entram e saem. No compartimento de uma carruagem, sozinho com ela, foi muito fácil, em especial se atendermos a que ele sabia exactamente o que ia fazer em seguida. Sabia, tinha de saber, tudo quanto

dizia respeito a Rutherford Hall, à sua posição topográfica, isto é, ao seu estranho isolamento... uma ilha rodeada por linhas de caminhos-de-ferro.

- E exactamente assim - concordou Lucy. É um anacronismo. A vida urbana agita-se à sua volta, mas não a atinge. Os comerciantes fazem a entrega dos géneros pela manhã, e pronto.

- Por conseguinte, tal como diz, concluímos que o assassino foi a Rutherford Hall nessa noite. Quando o corpo caiu já estava escuro e ninguém deveria descobri-lo antes da manhã seguinte.

- Ninguém, na verdade.

- O assassino iria... como? De carro? Por onde?

  Lucy reflectiu.

- Há uma viela, em mau estado, ao longo do muro de uma fábrica. Se calhar foi por aí, passou pelo túnel, sob a via férrea, e seguiu pelo caminho das traseiras. Depois deve ter prosseguido a pé pela base da ravina, até encontrar o corpo e transportou este para o carro.

- E depois - prosseguiu Miss Marple -, levou-o para algum sítio, escolhido de antemão. Tudo isso foi premeditado. E não creio que o tenha levado de Rutherford Hall, ou se o fez, não o levou para muito longe. Suponho que a coisa mais natural teria sido enterrá-lo nalgum lado.

  Olhou inquiridoramente para Lucy.

- Acho que sim - admitiu Lucy, pensativa -, mas não lhe deve ter sido fácil fazê-lo.

- Não pôde enterrá-lo no parque. É um trabalho árduo que daria nas vistas. Mas talvez nalgum sítio onde a terra já tivesse sido revolvida.

- Talvez na horta, mas esta fica muito perto do jardim. O velho é surdo... mas, apesar disso, seria arriscado.

- Há algum cão?

- Não.

- Nesse caso, talvez num barracão ou numa dependênçia exterior?

- Isso teria sido mais simples e mais rápido... Há muitas dependênçias velhas e fora de uso; estábulos em ruínas, casas de arrecadação, oficinas das quais ninguém se aproxima. Ou talvez sob um maciço de rododendros ou de arbustos, em qualquer lado.

  Miss Marple meneou a cabeça, em sinal de concordânçia.

- Sim, acho isso muito provável.

  Ouviu-se bater à porta e a carrancuda Florence entrou com um tabuleiro.

- Faz-lhe bem ter uma visita - disse a Miss Marple. - Fiz-lhe os biscoitos especiais de que antes tanto gostava.

- Florence sabe fazer uns biscoitos deliciosos.

  Sensibilizada, Florence sorriu inesperadamente e saiu do quarto.

- Creio, minha amiga - disse Niss Marple -, que será melhor não falarmos mais no crime, enquanto tomamos o chá. E um assunto tão desagradável!

 

  Depois de tomar o chá, Lucy levantou-se.

- Vou-me embora - anunciou. - Como já lhe disse, actualmente não vive ninguém em Rutherford Hall que possa ser o homem que procuramos. Vive ali apenas um velho, uma mulher de meia-idade e um jardineiro velho e surdo.

- Eu não disse que ele vivesse lá, actualmente observou Miss Marple. - Julgo que seja uma pessoa que conhece muito bem Rutherford Hall. Mas poderemos ocupar-nos disso, depois de encontrarmos o corpo.

- Parece estar muito certa de que o encontrarei, mas eu não me sinto assim tão optimista – confessou Lucy.

- Tenho a certeza de que será bem sucedida, minha querida amiga, pois sei quanto é eficiente.

- Sob certos aspectos, sim, mas não tenho prática de encontrar cadáveres.

- Estou certa de que, para isso, basta apenas um pouco de senso comum - disse Miss Marple, de modo encorajador.

  Lucy olhou-a e depois riu-se. Miss Marple correspondeu com um sorriso.

  Na tarde seguinte, Lucy entregou-se, metodicamente, ao seu trabalho. Meteu o nariz por todas as dependências exteriores, sondou as sarcas que cercavam os currais para porcos, mas em váo.

   Examinou o terreno em volta dos anexos, vasculhou as roseiras bravas que envolviam o velho chiqueiro, e estava revistando o quartinho da caldeira embaixo da estufa quando ouviu uma tosse seca. Virou-se e deu com o velho Hillman, o jardineiro, olhando-a com desaprovação.

- Tome cuidado para não sair, Srta. – ele advertiu-as. – Esses degraus são perigosos, Vi a Srta. Lá em cima no palheiro, e o assoalho de lá também não está nada firme.

   Lucy yeve o cuidado de não demonstrar embaraço.

 - O senhor deve me achar muito curiosa – ela disse jovialmente. – Mas eu estava pensando que talvez esse lugar pudesse ser aproveitado... talvez pudessem cultivar cogumelos aqui, comercialmente. Tudo isso está tão terrivelmente abandonado.

- A culpa é do patrão, ele não quer gastar nem um centavo aqui. Para manter essa propriedade  direito, ele devia ter dois jardineiros e um ajudante, mas não quer nem ouvir falar nisso. Foi preciso eu gastar muita saliva para ele comprar um cortador de grama elétrico. Ele queria que eu aparasse todo o gramado com um cortador manual.

- Mas com alguns reparos esse lugar não poderia dar lucros?

- Não, não tem jeito, não, está tudo arruinado. E ele não quer modificar nada; tudo que lhe importa é economizar. Ele sabe muito bem o que vai acontecer quando morrer; os jovens senhores vão querer vender o mais rápido possível. Só estão esperando ele bater as botas. Ouvi dizer que herdarão um dinheirão quando ele se for.

- Ele deve ser muito rico, não? – perguntou Lucy.

- Ele é o dono das “Delícias Crackenthorpe”. Foi o pai dele que montou a fábrica. Ele era uma águia, fez fortuna e construiu o casarão. Dizem que era um homem duro, que nunca esquecia uma ofensa. Mas apesar disso era um mão-aberta, não tinha nada de sovina, sabe? Contam que os filhos o desapontaram. Ele lhes deu uma educação muito fina, para que se tornassem uns cavalheiros, mandou-os para Oxford e tudo o mais. E o resultado é que ficaram muito cheios de dedos e não quiseram tomar conta da fábrica. O mais novo casou-se com uma atriz e morreu num acidente quando estava dirigindo embriagado. O mais velho é o meu atual patrão. O pai não fazia muito gosto nele, não. Ele estava sempre viajando e tinha mania de comprar estátuas. Elas estão por aí. Quando era mais novo, não era tão mão-fechada, piorou quando começou a envelhecer. Parece que ele nunca se deu bem com o pai.

   Lucy acolheu estas informações com uma expressão de interesse cortês. O velho jardineiro encostou-se na parede e preparou-se para continuar com a saga dos Crackenthorpe. Era óbvio que achava muito mais divertido falar do que trabalhar.

- O patrão velho morreu antes da guerra. Ele tinha um gênio terrível. Ninguém podia lhe responder, ele ficava uma fera.

- E depois que ele morreu, o atual Sr. Crackenthorpe veio morar aqui?

- É, ele e a família. Os filhos já estavam crescidos naquela época.

- Como assim?... O senhor refere-se à guerra de 1914, não é?

- Não, nada disso. O patrão velho morreu em 1928.

  Lucy refletiu que realmente 1928 fora “antes da guerra”, embora aquela fosse uma forma um tanto estranha de qualificar o ano.

- Bem, o senhor deve estar querendo continuar o seu trabalho. Não deixe que eu o atrapalhe.

- Ah – terucou o velho Hillman sem entusiasmo -, a esta hora não dá para fazer mais nada. A luz está muito fraca. 

  Voltou para casa e encontrou Emma Crackenthorpe, parada, no átrio, a ler uma carta que acabava de ser entreque pela distribuição da tarde.

- Meu sobrinho chega amanhã... com um colega. O quarto de Alexander é o que fica por cima da entrada. O que fica ao lado poderá ser para James Stoddard-West. Utilizarão a casa de banho que fica em frente dos quartos.

- Sim, Miss Crackenthorpe. Vou preparar os quartos.

- Chegarão de manhã, antes do almoço - anunciou. - Calculo que venham cheios de fome.

- Também creio - disse Lucy. - Que me diz a carne assada e a uma torta de mel?

- Alexander é doido por torta de mel.

  Os dois rapazes chegaram na manhã seguinte. Tinham ambos o cabelo bem penteado, rostos suspeitosamente angelicais e maneiras correctas, Alexander Eastley tinha cabelo loiro e olhos azuis e Stoddard-West era moreno e usava óculos.

  Durante o almoço discutiram os acontecimentos mais notórios do desporto mundial. As suas atitudes lembravam as de professores idosos discutindo instrumentos paleolíticos. Em comparação com eles, Lucy sentia-se muito nova.

  O lombo de vaca sumiu-se num instante e não ficou uma migalha de torta.

  Mr. Crackenthorpe resmungou:

- Vocês dois arruinam-me.

  Alexander lançou-lhe um olhar reprovativo.

- Se o avô não nos puder dar carne, comeremos pào com queijo.

- Se não vos puder dar? Posso dar, sim. Mas não gosto de desperdiçar.

- Não desperdiçámos nada Mister Crackenthorpe - assegurou Stoddard-West, olhando para o seu prato que era um bom testemunho desse facto.

- Qualquer de vocês dois come o dobro do que eu como.

- Estamos a crescer - justificou Alexander. Precisamos de ingerir uma grande dose de proteínas.

  O velho resmungou.

  Quando os dois rapazes se levantaram da mesa, Lucy ouviu Alexander dizer, como se se desculpasse, ao amigo:

- Não deves ligar importânçia ao que o avô disse. Está de dieta e isso torna-o um pouco embirrento. É também muitíssimo agarrado. Suponho que se trata de um complexo qualquer.

  Stoddard-West retorquiu compreensivamente:

- Tinha uma tia que estava sempre a pensar que ia ficar falida e, na realidade, nadava em dinheiro. O médico disse que era um caso patológico. Tens aí a bola, Alex?

  Depois de ter levantado a mesa e de ter lavado a loiça, Lucy saiu. Chegava-lhe aos ouvidos as vozes longínquas dos rapazes, no relvado. Seguiu na direcção oposta, descendo o caminho da frente e daí dirigiu-se a um macico de arbustos e rododendros. Comecou a procurar cuidadosamente, afastando as folhas e espreitando para o interior. Examinou metodicamente cada arbusto, revolvendo o seu interior com um taco de golfe, quando a voz delicada de Alexander Eastley a sobressaltou:

- Anda à procura de alguma coisa, Miss Eyelesbarrow?

- De uma bola de golfe - respondeu esta com prontidão. - Aliás, mais do que uma. Tenho andado a praticar golfe quase todas as tardes, e já perdi várias bolas. Resolvi procurar algumas delas.

- Vamos ajudá-la - propôs Alexander.

- Muito obrigada. Julguei que estivessem a jogar futebol.

- Mas não se pode estar muito tempo a jogá-lo - explicou Stoddard-West. - Ficámos cheios de calor. Joga muito o golfe?

- Gosto muito de jogar, mas não tenho muita oportunidade de fazê-lo.

- Calculo. É a senhora quem cozinha, não é verdade?

- Sim.

- Foi quem hoje cozinhou o almoço?

- Fui. Estava bom?

- Simplesmente maravilhoso - declarou Alexander. - A carne que comemos no colégio é seca. Gosto da carne vermelha e em sangue. Aquela torta de mel também estava magnífica.

- Têm de dizer-me os vossos pratos favoritos.

- Seria capaz de fazer-nos merengue de maçã?

- Certamente.

  Alexander suspirou de contentamento.

- Há um saco com tacos de golfe, por baixo das escadas. Que dizes a irmos jogar, Stoddard?

- Esplêndido!

  Encorajados por Lucy, foram jogar. Quando, mais tarde, esta voltou para casa, encontrou-os no relvado discutindo a posição dos números.

- Precisam de uma demão de tinta brança - disse Lucy. - Sacrifiquem uma manhã e pintem-nos.

- Boa ideia - o rosto de Alexande iluminou-se.

- Mas creio que há algumas latas de tinta no Long Barn... Vamos ver?

- O que é o Long Barn? - perguntou Lucy.

  Alexander apontou para uma construção comprida, de pedra, um pouco afastada da casa, perto do caminho das traseiras.

- É muito velho - explicou. - O avô chama-lhe um Leak Barn e diz que é isabelino, mas isso não passa de pretensão. Pertencia à herdade que era isto originariamente. O meu bisavô deitou-a abaixo e em seu lugar construiu esta casa horrível. - Fez uma pausa e acrescentou: - Uma grande parte da colecção do avô está no celeiro. Coisas que ele tinha mandado do estrangeiro quando era rapaz. Na maioria, são também horríveis. Por vezes, o Long Barn serve para partidas de whist (1) e coisas no género, promovidas pelo Instituto Feminino. Venha ver.

  Lucy acompanhou-os de boa vontade.

  O celeiro tinha uma enorme porta de carvalho ornamentada com pregos.

 

(1) Jogo de cartas. (N. do T.)

 

  Alexander ergueu a mão e despendurou uma chave de um prego fixado sob um pouco de hera, precisamente no canto superior direito da porta. Rodou-a na fechadura, empurrou a porta e os três entraram.

  Um primeiro e rápido olhar deu a Lucy a sensação de se encontrar num museu singularmente mau. As cabeças de mármore de dois imperadores romanos olharam-na com ferocidade. Notou também um enorme sarcófago do período decadente greco-romano e uma Vénus sorrindo afectadamente sobre um pedestal e agarrando a roupa. Além destas obras de arte havia duas mesas de armar, algumas cadeiras amontoadas e diversos objectos, tais como uma foice enferrujada, dois baldes, dois assentos de automóvel comidos pelas traças e uma cadeira de ferro pintada de verde e que já perdera uma perna.

- Creio que vi a tinta por aqui - disse Alexander vagamente. Dirigiu-se a um canto, donde retirou duas latas de tinta e uns pincéis de cerdas tesas e secas.

- Precisam realmente de um pouco de aguarrás.

  Os rapazes resolveram ir a casa buscar um frasco de diluente e Lucy incitou-os a fazê-lo. Calculava que se demorassem algum tempo a pintar os números, para o jogo de golfe.

  Foram-se os dois, deixando-a no celeiro.

- Isto precisava de facto de uma limpeza - murmurara Lucy.

- Não vale a pena - aconselhara Alexander. Ainda se alguém o quisesse utilizar para alguma coisa, não diria o contrário, mas nesta época do ano nunca é utilizado.

- Devo pendurar a chave, lá fora? É onde costuma ficar?

- Sim, aqui não há nada que possam roubar. Ninguém quer esses horríveis objectos de mármore e ainda que os quisessem, pesam uma tonelada.

  Lucy concordou com ele. Era-lhe difícil tributar qualquer admiração ao gosto do velho Mr. Crackenthorpe, em matéria de arte. Este parecia possuir um instinto infalível para escolher os piores espécimes de qualquer período.

  Depois de os rapazes partirem, Lucy ficou um momento parada, olhando em volta. Os seus olhos pousaram-se no sarcófago e demoraram-se nele.

  Esse sarcófago...

  O ar no celeiro cheirava levemente a bafio, como se há muito tempo não fosse renovado. Aproximou-se do sarcófago. Era coberto por uma pesada tampa. Lucy observou-a pensativamente.

  Depois saiu, dirigiu-se à cozinha, pegou numa pesada alavança e voltou ao celeiro.

  Não foi uma tarefa fácil, mas Lucy realizou-a com obstinação.

  Lentamente, a tampa começou a levantar-se, soerguida pela alavança.

  Ergueu-se o suficiente para Lucy poder espreitar para o interior.

 

  Passados alguns minutos, Lucy, muito pálida, saiu do celeiro, fechou a porta à chave e pendurou esta no prego.

  Dirigiu-se rapidamente ao estábulo, tirou o carro e, metendo-se nele, seguiu pela estrada das traseiras. Parou em frente à estação dos correios. Entrou na cabina telefónica e marcou um número.

- Desejo falar a Miss Marple.

- Está a descansar. É Miss Eyelesbarrow, não é verdade?

- Sim.

- Agora não vou incomodá-la. É uma senhora de idade e precisa de descansar.

- Mas tem de incomodá-la. É urgente.

- Não...

- Faça o favor de fazer, imediatamente, o que lhe digo.

  Quando queria, Lucy dava à voz uma entoação que a tornava tão incisiva como aco. Florence reconhecia a autoridade, quando a ouvia.

  Pouco depois, a voz de Miss Marple perguntava:

- Está, Lucy?

  Lucy inspirou fundo.

- Tinha toda a razão! - exclamou. - Já o encontrei.

- Um corpo de mulher?

- Sim. Uma mulher, com um casaco de peles. Está dentro de um sarcófago de pedra, numa espécie de celeiro-museu perto da casa. Que quer que eu faça? Creio que devo informar a Polícia.

- Sim. Deve informar a Polícia, sem demora.

- Mas o resto? A senhora? A primeira coisa que a Polícia há-de querer saber é o motivo por que eu levantei uma tampa que pesa toneladas, ao que parece sem razão para o fazer. Quer que invente uma razão? Sou capaz de inventá-la.

- Não - respondeu Miss Marple na sua voz séria e suave. - Acho que a única coisa a fazer é contar a verdade.

- A seu respeito?

- A respeito de tudo.

  Um súbito sorriso quebrou a palidez do rosto de Lucy.

- Isso será muito simples, mas receio que não me acreditem facilmente.

  Desligou, esperou um momento e depois telefonou para a esquadra da Polícia.

- Acabo de descobrir um cadáver, num sarcófago que está no Long Barn, em Rutherford Hall.

- Que disse?

  Lucy repetiu o que dissera e, prevendo a pergunta seguinte, declarou o nome e morada.

  Regressou a casa.

  Parou à entrada, a pensar.

  Depois, com uma sacudidela de cabeça, decidiu-se a entrar na biblioteca, onde Miss Crackenthorpe estava sentada, ajudando o pai a resolver o passatempo das palavras cruzadas do The Times.

- Pode conceder-me um momento de atenção, Miss Crackenthorpe? - pediu.

  Emma ergueu o olhar, com uma expressão levemente apreensiva no rosto. O pessoal doméstico costuma recorrer a tais termos para anunciar a sua partida iminente.

- Ande, fale - incitou irritadamente o velho Mr. Crackenthorpe.

  Lucy declarou a Emma.

- Gostaria de falar-lhe em particular.

- Que disparate - resmungou Mr. Crackenthorpe. - Diga já aqui o que tem a dizer.

- Um momento, pai - interveio Emma, levantando-se e aproximando-se da porta.

- Que disparate! Isso pode esperar! - obstinou-se o velho, com irritação.

- Acho que não pode esperar - declarou Lucy.

- Que impertinênçia! - indignou-se Mr. Crackenthorpe.

  Emma saiu para o átrio e Lucy seguiu-a, fechando a porta da biblioteca.

- Que se passa? - perguntou Emma. - Se acha que os pequenos lhe dão muito que fazer, posso ajudá-la e...

- Não se trata disso - interrompeu Lucy.Não quis falar-lhe diante de seu pai porque é uma pessoa doente e o que tenho a dizer-lhe poderia causar-lhe uma comoção. Acabo de descobrir o corpo de uma mulher assassinada, no sarcófago que está no Long Barn.

  Emma fitou-a, perplexa.

- No sarcófago? Uma mulher assassinada? É impossível!

- Lamento muito, mas é a verdade! Já telefonei à Polícia. Deve estar a chegar, de um momento para o outro.

  Um leve rubor assomou ao rosto de Emma.

- Devia ter-me prevenido primeiro... antes de avisar a Polícia.

- Desculpe.

- Não a ouvi telefonar... - O olhar de Emma desviou-se para o telefone pousado sobre a mesa do átrio.

- Telefonei do posto de correio, à beira da estrada.

- Mas que extraordinário! Porque não telefonou daqui?

  Lucy pensou rapidamente.

- Receei que os pequenos estivessem perto e me ouvissem...

- Compreendo... Sim... Compreendo... Vem aí...a Polícia, não é verdade?

- Já chegou - anunciou Lucy, ao ouvir os travões de um carro em frente da porta.

  Quase no mesmo instante a campainha ressoou no interior da casa.

 

- Custou-me muito, muito... ter de pedir-lhe isto - disse o inspector Bacon.

  Saía do celeiro, segurando uma Emma Crackenthorpe muito pálida, pelo braço. Apesar da expressão do rosto transtornada, Emma Crackenthorpe caminhava com um passo firme e erecta.

- Estou absolutamente certa de nunca ter visto essa mulher na minha vida.

- Estamos-lhe muito gratos, Miss Crackenthorpe. Era tudo quanto desejava saber. Talvez queira ir repousar um pouco?

- Tenho de ir ter com meu pai. Telefonei ao doutor Quimper, mal soube disto, e o médico está neste momento com ele.

  Quando atravessavam o átrio, o Dr. Quimper saiu da biblioteca. Era um homem alto, afável, com uns modos naturais que os doentes achavam muito estimulantes.

  Trocou com o inspector um cumprimento de cabeça.

- Miss Crackenthorpe acaba de desincumbir-se corajosamente de um dever desagradável.

- Muito bem, Emma - felicitou o médico, dando-lhe umas palmadinhas amistosas no ombro.É uma mulher corajosa. Sempre o soube. Seu pai está bem. Vá falar com ele e depois vá à casa de jantar tomar um cálice de aguardente. Trata-se de uma receita

médica.

  Emma sorriu-lhe agradecidamente e entrou na biblioteca.

- Esta mulher vale quanto pesa - elogiou o médico. - É uma pena não se ter casado. É a penalidade de ser a única mulher numa família de homens. A outra irmã já morreu; casou-se aos dezassete anos, segundo creio. Esta é na realidade o que se chama uma esplêndida mulher. Teria dado uma boa esposa e uma boa mãe.

- Creio que é demasiadamente dedicada ao pai - observou o inspector Bacon.

- Na verdade, não o é tanto como parece... mas possui o instinto que algumas mulheres têm de tornar felizes os seus familiares. Compreende que o pai gosta de passar por inválido e, por conseguinte, deixa-o ser um inválido. Procede do mesmo modo para com os irmãos. Cedric julga-se um bom pintor, como diabo se chama... Harold... sabe quanto ela dá ouvidos às suas opiniões... e deixa Alfred impressioná-la com o relato das histórias dos seus expedientes. Oh, sim, é uma mulher inteligente... Não é nenhuma tola. Mas deseja alguma coisa de mim? Quer que vá deitar uma vista de olhos ao cadáver, com que Johnstone está a braços, para ver se se trata de algum erro clínico meu?

- Sim, gostaria que o visse, doutor Quimper. Queremos identificá-la. Suponho que não seja possível pedir o mesmo ao velho Mister Crackenthorpe. Seria uma comoção demasiado violenta?

- Uma comoção violenta? Que disparate. Nunca me perdoaria, nem a si, não o deixarmos dar-lhe uma olhadela. Está muito excitado. Trata-se do acontecimento mais excitante que se lhe deparou nestes últimos quinze anos... e não lhe custará um centavo!

- Nesse caso, não tem nada de grave, pois não?

- Tem setenta e dois anos - replicou o médico. - Na realidade, é esse o seu único mal. Tem umas dores reumáticas... mas quem as não tem? Por conseguinte, chama-lhes artritismo. Tem palpitações depois das refeições e atribui-as ao “coração”. Mas pode sempre fazer o que lhe apetecer! Tenho muitos doentes como ele. Os que estão de facto doentes insistem, desesperadamente, em que estão perfeitamente bem. Ora, vamos lá ver o seu cadáver. Desagradável, não é verdade?

- Johnstone calcula que tenha morrido há duas ou três semanas.

  O médico parou junto do sarcófago e olhou para o interior, com frança curiosidade profissional sem se perturbar com o que classificara de desagradável.

- Nunca a tinha visto. Não era minha doente. Nem sequer me recordo de tê-la visto em Brackhampton. Devia ter sido uma mulher bonita...

  Saíram do celeiro. O Dr. Quimper olhou para este e comentou:

- Encontraram-na no... como lhe chamaram?...no Long Barn... num sarcófago! Fantástico! Quem a encontrou?

- Miss Lucy Eyelesbarrow!

- Ah, a última criada? Mas que andava ela a fazer... a espreitar para dentro do sarcófago?

- Isso - replicou o inspector Bacon, de modo carrancudo - é precisamente o que vou perguntar-lhe. Quanto a Mister Crackenthorpe, quer fazer o favor de?. .

- Vou buscá-lo.

  Mr. Crackenthorpe, embrulhado em xailes, chegou num passo vivo, acompanhado pelo médico.

- Desastroso! - exclamou. - Absolutamente desastroso! Trouxe esse sarcófago de Florença, em...ora, deixem-me ver... deve ter sido em mil novecentos e oito... ou foi em mil novecentos e nove?

- Agora, coragem - incitou o médico. – Não será um espectáculo agradável.

- Pouco importa o meu estado de saúde. Devo cumprir o meu dever, não é verdade?

  Contudo, uma breve visita ao interior do Long Barn foi suficiente. Mr. Crackenthorpe saiu do celeiro, arrastando os pés, com notável tristeza.

- Nunca a tinha visto! - declarou. - Que quer isto dizer? Absolutamente desastroso! Não foi de Florença... agora me recordo... foi de Nápoles. Um espécime muito bonito. E uma idiota vai meter-se lá dentro e deixa que a assassinem!

  Agarrou-se à fazenda do sobretudo, no lado esquerdo do peito.

- Isto é demasiado forte para mim... O meu coração... Onde está Emma? Doutor...

  O Dr. Quimper segurou-o pelo braço.

- Isso já passa - prometeu. - Vou receitar-lhe um pequeno estimulante. Aguardente.

  Regressaram a casa.

- Um momento, por favor.

  O inspector Bacon virou-se. Os dois garotos haviam chegado, ofegantes, de bicicleta. Tinham nos rostos uma expressão ansiosa e implorativa.

- Deixa-nos ver o corpo, senhor?

- Não - retorquiu o inspector.

- Oh, por favor, deixe-nos vê-lo. Nunca se sabe. Talvez soubéssemos quem era. Seja camarada, inspector. Isso não é justo. Houve um crime, mesmo dentro do nosso celeiro. Não é natural que uma oportunidade destas torne a repetir-se. Seja desportista, inspector.

- Vocês dois quem são?

- Eu sou Alexander Eastley e este é o meu amigo James Stoddard-West.

- Alguma vez viram por estes sítios uma mulher loira, com um casaco de peles de esquilo, de tom claro?

- Não me recordo bem - respondeu astutamente. - Se me deixassem ir vê-la...

- Leve-os lá - recomendou o inspector Bacon ao polícia postado à porta do celeiro. - Também já tivemos a idade deles!

- Muito obrigado, inspector - gritaram ambos os rapazes.

  Bacon encaminhou-se para a casa.

- E agora - murmurou, carrancudamente -, uma conversa com Miss Lucy Eyelesbarrow?

 

  Depois de acompanhar os polícias ao Long Barn e de ter feito um breve resumo das suas acções, Lucy retirara-se para segundo plano, mas não tinha a ilusão de que a Polícia já não precisaria dela.

  Acabara de cortar as batatas aos palitos, quando a avisaram de que o inspector Bacon requeria a sua presenca. Pondo de lado a grande tigela de água fria, salgada, em que metera as batatas, Lucy seguiu o polícia até ao sítio onde o inspector a esperava. Sentou-se e aguardou calmamente o interrogatório.

  Declarou o nome... a morada, em Londres, e acrescentou:

- Dar-lhe-ei alguns nomes e moradas de pessoas que poderão fornecer-lhe informações minhas, se assim o desejar.

  Os nomes eram bons. O de um almirante da Armada, do preboste de um colégio de Oxford e de uma dama do Império Britânico. O inspector Bacon não pôde deixar de sentir-se impressionado.

- Ora, Miss Eyelesbarrow, a senhora foi ao Long Barn procurar tinta, não é verdade? Depois de a ter encontrado, foi buscar uma alavança, ergueu a tampa do sarcófago e encontrou o corpo. Que procurava dentro desse sarcófago?

- Andava à procura de um corpo – respondeu Lucy.

- Andava à procura de um corpo... e encontrou-o! Não acha que isso é um facto muito extraordinário?

- Sim, é realmente uma história extraordinária. Se não se importa, explico-lha.

- Certamente, é o melhor que tem a fazer.

  Lucy fez-lhe um relato preciso dos acontecimentos que a tinham levado à sua sensacional descoberta.

  O inspector resumiu-o numa voz afrontada:

- Foi contratada por uma senhora de idade para arranjar colocação nesta casa e rebuscá-la, assim como à propriedade, à procura de um cadáver? É isso?   

- Sim.

- Quem é essa senhora de idade?

- Miss Jane Marple. Presentemente, vive no número quatro da Madison Road.

  O inspector anotou a morada.

- Espera que eu acredite nesta história?

- Talvez só acredite depois de ter conversado com Miss Marple e esta lha confirmar.

- Vou entrevistá-la, sim, mas deve ser maluca.

  Lucy perguntou:

- Que tenciona contar a Miss Crackenthorpe? A meu respeito, isto é.

- Porque o pergunta?

- Porque no que toca a Miss Jane, já fiz o que tinha a fazer, pois encontrei o corpo que ela queria. Mas continuo contratada por Miss Crackenthorpe e há em casa dois garotos cheios de fome e, provavelmente, depois de toda esta agitação, chegarão mais pessoas de família. Miss Crackenthorpe precisa de pessoal. Se o senhor for dizer-lhe que eu apenas quis este lugar para andar à procura de cadáveres, é provável que me mande embora. Se não lho disser, poderei continuar cá na casa, e ser-lhe útil.

  O inspector olhou-a com atenção.

- Por ora, não direi coisa alguma seja a quem for - declarou. - Ainda não verifiquei a sua história. É muito provável que a tenha inventado.

  Lucy levantou-se.

- Obrigada. Nesse caso, voltarei para a cozinha.

 

- E melhor chamarmos a Yard, não acha, Bacon?

  O chefe da Polícia olhava inquiridoramente para o inspector Bacon. Este era um homenzarrão, alto e macico, com uma expressão que parecia dizê-lo terrivelmente desgostoso com a humanidade.

- A mulher não era daqui - declarou. - Há razão para admitir, a julgar pelo vestuário, que fosse estrangeira. Claro que - apressou-se a acrescentar -, por ora, não vou badalar esta opinião. Guardá-la-ei até ao momento do inquérito.

  O chefe da Polícia aprovou, com um movimento de cabeça.

- O inquérito será puramente formal, não é verdade?

- Sim, senhor. Já falei com o coroner.

- E foi marcado... para quando?

- Para amanhã. Suponho que os outros membros da família Crackenthorpe comparecerão. Há a possibilidade de algum deles poder identificá-la. Virão todos.

  Consultou uma lista que tinha na mão.

- Harold Crackenthorpe, desempenha qualquer cargo na City... suponho que seja uma personagem importante. Alfred... não sei bem o que faz. Cedric...é o que vive no estrangeiro. Pinta!

  O inspector proferiu a palavra com uma entoação sinistra e o chefe da Polícia sorriu disfarçadamente.

- Não há qualquer razão para acreditar que a família Crackenthorpe esteja relacionada com o crime, pois não?

- Não, à parte o facto de o corpo ter sido encontrado nesta propriedade - replicou o inspector Bacon.

- E é evidentemente possível que esse artista da família possa identificá-la. O que me dá que pensar é essa extraordinária algaravia acerca do comboio.

- Ah, sim. Já foi visitar essa senhora idosa, essa...hum... - olhou de relançe para a agenda pousada sobre a secretária - Miss Marple?

- Sim, senhor. E mostrou-se absolutamente determinada e precisa quanto ao caso. Se é maluca ou não, ignoro-o, mas sustenta a história... acerca do que a amiga viu e tudo o resto. Quanto a isso, acho que se trata apenas de sugestão... do género de coisas que as senhoras de idade inventam, como verem discos voadores ao fundo do jardim e agentes russos na biblioteca pública. Mas parece não haver qualquer dúvida de que, de facto, contratou essa rapariga, ajudante da dona da casa, para procurar um cadáver... o que a rapariga fez.

- E encontrou-o - observou o chefe da Polícia. Bem, não há dúvida de que se trata de uma história muito original. Marple, Miss Jane Marple... o nome parece-me familiar... Seja como for, vou pedir a intervenção da Yard. Julgo que tem razão, quando não considera este homicídio como sendo um caso de crime local... embora, por enquanto, não possamos dar publicidade a esse facto.

 

  O inquérito revestiu-se de um carácter puramente formal. Ninguém se apresentou a identificar a morta. Lucy foi chamada a declarar como encontrara o corpo, e foi apresentado o testemunho médico, quanto à causa da morte... estrangulamento. O prosseguimento do processo foi, por conseguinte, adiado.

  O dia em que a família Crackenthorpe saiu da sala em que o inquérito fora realizado apresentava-se frio e ventoso. Haviam sido convocados cinco membros da

família. Emma, Cedric, Harold, Alfred e Bryan Eastley, marido da falecida Edith. Também se encontrava presente Mr. Wimborne, advogado de uma firma de solicitadores encarregada dos assuntos legais dos Crackenthorpe. Viera de Londres especialmente para assistir ao inquérito, apesar do grande transtorno que isso lhe causara. Demoraram-se todos, por um momento, no passeio da rua, tiritando com frio. Tinha-se reunido uma grande multidão, pormenores mordazes acerca do “Corpo no Sarcófago” haviam sido prodigalizados tanto pela imprensa de Londres como pela local.

  Um murmúrio correu:

- São eles...

  Emma disse vivamente:

- Vamo-nos embora.

  O grande Daimler de aluguer encostou-se ao passeio. Emma entrou nele e fez um sinal a Lucy para que fizesse o mesmo. Mr. Wimborne, Cedric e Harold seguiram-nas. Bryan Eastley disse:

- Levo Alfred comigo no meu pequeno carro.

  O motorista fechou a porta e o Daimler preparou-se para partir.

- Pare! - gritou Emma. - Vêm aí os pequenos!

  Estes, apesar dos seus protestos ofendidos, tinham sido deixados em Rutherford Hall, mas agora apareciam sorrindo junto ao edifício.

- Viemos nas nossas bicicletas - explicou Stoddard-West. - O polícia foi muito amável e deixou-nos entrar para o fundo da sala. Espero que não fique aborrecida com isso, Miss Crackenthorpe - acrescentou delicadamente.

- É claro que não - respondeu Cedric pela irmã. - Também já fomos novos. E o vosso primeiro inquérito, não é verdade?

- Foi muito decepcionante - lamentou Alexander. - Acabou tudo muito depressa.

- Não podemos ficar aqui a conversar – disse Harold com irritação. - Está uma multidão enorme. E todos esses homens com máquinas fotográficas.

  A um sinal seu, o motorista afastou-se do passeio. Os rapazes acenaram animadamente.

- Acabou tudo muito depressa! - repetiu Cedric. - Isso é o que eles julgam, pobres inocentes! Está apenas no princípio.

- Tudo isto é muito aborrecido. Muitíssimo aborrecido - comentou Harold. - Suponho...

  Olhou para Mr. Wimborne, que cerrou os lábios finos e meneou a cabeça com desagrado.

- Espero - declarou sentenciosamente - que todo este caso termine, em breve, de forma satisfatória. A Polícia é muito eficiente. Todavia, tudo isto, tal como Harold diz, tem sido aborrecidíssimo.

  Enquanto falava olhara para Lucy e nesse olhar era patente o desagrado.

  “Se não tivesse sido essa mulher”, pareciam dizer os seus olhos, “que andou a meter o nariz onde não devia... nada disto teria acontecido. “

  Este sentimento ou um muito semelhante foi traduzido em palavras por Harold Crackenthorpe.

- A propósito... hum... Miss... hum... hum...Eyelesbarrow, o que a levou a espreitar para dentro desse sarcófago?

  Lucy já se perguntara quando é que esse pensamento ocorreria a um dos membros da família. Previra que seria essa a primeira pergunta que a Polícia lhe faria, mas o que a surpreendia era o facto de, até esse momento, parecer não ter ocorrido a mais ninguém.

  Cedric, Emma, Harold e Mr. Wimborne, todos a olhavam.

  A sua resposta já fora preparada, algum tempo antes.

- Na realidade - disse numa voz hesitante -, não o sei bem... Achei que tudo aquilo precisava de ser limpo e arrumado. E... - hesitou - chegou-me um cheiro muito peculiar e desagradável...

  Contara já com um imediato retraimento de toda a gente, perante o aspecto desagradável da ideia...

  Mr. Wimborne murmurou:

- Sim, sim, certamente...já há cerca de três semanas, segundo disse o médico legista... Sabe, acho que todos devemos procurar não deixar os nossos espíritos pensarem nessa coisa -, sorriu encorajadoramente para Emma, que se tornara muito pálida. - Lembre-se - disse - que essa desgraçada nada tinha a ver com qualquer de nós.

- Mas não tem a certeza disso, pois não? - observou Cedric.

  Lucy Eyelesbarrow olhou-o com interesse. Já anteriormente se sentira impressionada pelas diferenças bem nítidas que distinguiam os três irmãos. Cedric era um homem alto, com o rosto curtido pelo ar livre, de cabelo negro e despenteado e modos brincalhões. Chegara do aeroporto, com a barba por fazer, e embora se tivesse barbeado, para comparecer no inquérito, usava as mesmas roupas com que chegara e que pareciam ser as únicas que tinha: umas velhas calças de flanela cinzenta e um casaco cheio de nódoas e muito coçado. Parecia um protótipo da vida boémia e orgulhava-se disso.

  Seu irmão Harold, pelo contrário, era o quadro perfeito do gentleman da City e de um director de companhias importantes. Era de estatura alta e erecta, tinha cabelo negro, levemente ralo nas têmporas, um bigodinho negro e trajava impecavelmente um fato escuro de bom corte, realçado por uma gravata cinzento-pérola. Parecia o que era, um homem de negócios astuto e bem sucedido.

  Criticou asperamente:

- Na realidade, Cedric, isso parece-me uma observação muitíssimo imprópria.

- Porquê? No fim de contas, ela estava no nosso celeiro. Que foi ela lá fazer?

  Mr. Wimborne tossiu e disse:

- Se calhar ia a algum... hum... encontro. Segundo me disseram, toda a gente da terra sabia que a chave desse celeiro estava suspensa de um prego, à entrada.

  O tom com que falou era uma censura à imprudência de tal procedimento. Foi tão nítida que Emma interveio defensivamente:

- Esse costume começou durante a guerra. Por causa das patrulhas contra ataques aéreos. Havia ali uma pequena lamparina de álcool em que preparavam cacau quente. Depois disso, como nada havia ali que pudesse despertar a cobiça de quem quer que fosse, continuámos a pendurar a chave nesse prego. Isso convinha também aos membros do Instituto Feminino. Se a guardássemos connosco, poderia dar-se o caso de precisarem de utilizar-se do celeiro, numa altura em que não estivesse ninguém em casa, e isso seria aborrecido. Apenas com mulheres-a-dias e sem nenhuma criada permanente...

  Calou-se. Falara mecanicamente, dando uma explicação sem interesse, como se o seu espírito estivesse noutro lugar.

  Cedric lançou-lhe um rápido olhar intrigado.

- Pareces preocupada. Que tens?

  Harold cortou, exasperado:

- Realmente, Cedric, ainda o perguntas?

- Pergunto, sim. Todos sabemos que uma desconhecida foi assassinada num celeiro de Rutherfod Hall (parece um melodrama vitoriano) e todos sabemos que Emma sofreu um choque ao ter essa notícia, mas todos nós sabemos também que Emma foi sempre uma rapariga inteligente e, por conseguinte, não compreendo por que razão está ainda preocupada. C'os diabos, as pessoas acostumam-se a tudo.

- Algumas pessoas levam um pouco mais de tempo a habituar-se ao crime do que no nosso caso - observou Harold com mordacidade. - Até parece que em Maiorca os assassínios são um prato de todos os dias...

- Ibiza e não Maiorca - rectificou Cedric.

- É o mesmo.

- De forma alguma... trata-se de uma ilha muito diferente.

  Harold continuou:

- O que pretendo dizer é que, embora os assassínios possam ser uma coisa habitual para ti, que vives no meio de latinos de sangue escaldante, aqui, em Inglaterra, tomamo-los a sério - e acrescentou com irritação crescente: - e, com franqueza, Cedric, compareceres a um inquérito público, com essas roupas...

- Que têm de mal? São confortáveis.

- São impróprias.

- Seja como for, são as únicas que trouxe. Ao correr para junto da família, por causa deste assunto, não me dei ao trabalho de fazer o malão. Sou pintor e os pintores gostam de sentir-se confortáveis dentro do que vestem.

- Nesse caso, continuas a tentar pintar?

- Ouve lá, Harold, quando dizes tentar pintar...

  Mr. Wimborne pigarreou autoritariamente:

- Esta discussão é infrutífera - censurou. – Se houver qualquer maneira de poder ser-lhe útil, minha querida Emma, espero que mo diga antes de eu regressar a Londres.

  A increpação resultou. Emma Crackenthorpe apressou-se a dizer:

- Foi muitíssimo amável da sua parte ter vindo.

- De modo algum. Era aconselhável a presenca, neste inquérito, de uma pessoa que representasse a família. Combinei uma entrevista com o inspector, a realizar em casa. Não tenho qualquer dúvida de que a situação ficará em breve esclarecida. Na minha opinião, parece haver poucas dúvidas quanto ao ocorrido. Como Emma me disse, toda a gente da terra sabia que a chave do celeiro se encontrava pendurada num prego, do lado de fora daquele. Parece, pois, deveras provável que esse celeiro fosse utilizado, durante os meses de Inverno, como ponto de encontro de parzinhos da terra. Sem dúvida, travou-se uma discussão e o rapaz perdeu o domínio dos nervos. Horrorizado com o que fizera o seu olhar pousou-se no sarcófago e achou que este daria um belo esconderijo.

  Lucy pensou:

  “Sim, isso parece plausível. E o que qualquer pessoa pensa.”

  Cedric observou:

- Disse um parzinho da terra... mas ainda ninguém da terra identificou a rapariga.

- Ainda é cedo. Sem dúvida, não tardará que tenhamos essa identificação. E é possível que o homem em questão fosse um residente local e a rapariga tivesse vindo de qualquer outro lado, talvez de qualquer outra parte de Brackhampton. Brackhampton é uma terra grande... tem-se desenvolvido muitíssimo durante os últimos vinte anos.

- Se eu fosse uma rapariga e resolvesse encontrar-me com um homem, não me sujeitaria a que ele me levasse para um celeiro gelado e tão distançiado de qualquer outro sítio - objectou Cedric. – Preferiria passar a tarde confortavelmente abraçada, num cinema, não acha, Miss Eyelesbarrow?

- Há necessidade de continuarmos a falar no assunto? - queixou-se Harold.

  Nesse mesmo momento, o carro parou diante da porta de Rutherford Hall e todos se apearam.

 

  Ao entrar na biblioteca, Mr. Wimborne pestanejou um pouco, quando os seus olhos velhos e perspicazes se desviaram do inspector Bacon, a quem já fora apresentado, para se pousarem no homem loiro e de aspecto simpático que se achava por trás dele.

  O inspector Bacon fez as apresentações.

- Este senhor é o inspector-detective Craddock da New Scotland Yard.

- New Scotland Yard... hum - proferiu Mr. Wimborne, erguendo o sobrolho.

  Dermot Craddock, que tinha modos agradáveis, abordou facilmente o assunto.

- Foi pedida a nossa colaboração neste caso, Mister Wimborne - esclareceu. -  Como representa a família Crackenthorpe, achei de toda a justiça que lhe déssemos uma pequena informação confidencial.

  Ninguém melhor do que o inspector Craddock seria capaz de revelar uma pequena parte da verdade dando a entender que se tratava de toda ela.

- O inspector Bacon com certeza está de acordo - acrescentou, olhando de soslaio para o colega.

  Este concordou com solenidade e sem dar a perceber que tudo isso já fora combinado.

- É o seguinte - declarou Craddock. – Temos razões para acreditar, em virtude de uma informação de que dispomos, que a morta não é natural destes sítios, que veio de Londres até aqui e que chegara há pouco do estrangeiro. Provavelmente de França, embora não tenhamos a certeza disso.

  Mr. Wimborne voltou a erguer o sobrolho.

- De facto?

- Por isso - explicou o inspector Bacon -, o chefe da Polícia achou que a Yard estaria mais indicada para investigar o caso.

- O meu desejo é ver o caso solucionado sem demora. Como, sem dúvida, compreende, todo este assunto tem sido causa de muitos aborrecimentos para esta família. Embora pessoalmente nada tenham a ver com ele, sob qualquer aspecto, sentem-se...

  Fez uma breve pausa a que o inspector Craddock se apressou a pôr termo:

- Não é agradável encontrar-se uma mulher assassinada na nossa casa. Concordo plenamente consigo. Agora gostaria de ter uma breve entrevista com os vários membros da família...

- Para dizer a verdade, não vejo...

- O que possam dizer-me? Se calhar, nada de interesse... mas nunca se sabe. Na minha opinião, o senhor é a pessoa que melhor me pode informar acerca desta casa e da família.

- E que pode ter isso a ver com uma mulher desconhecida, que veio do estrangeiro e foi assassinada aqui?

- Bem, aí é que está a questão - replicou Craddock. - Porque veio ela cá parar? Teria tido, noutros tempos, alguma relação com esta casa? Teria sido, por exemplo, criada da casa, noutros tempos? Talvez criada de quarto. Ou teria cá vindo para se encontrar com um anterior ocupante de Rutherford Hall?

  Mr. Wimborne objectou com frieza que Rutherford Hall fora ocupada pelos Crackenthorpe, desde que Josiah Crackenthorpe a construíra, em mil oitocentos e oitenta e quatro.

- Isso é interessante - comentou Craddock. Se me fizesse um breve resumo da história da família...

  Mr. Wimborne encolheu os ombros.

- Há muito pouco a contar. Josiah Crackenthorpe era um industrial de doçaria e acumulou uma enorme fortuna. Construiu esta casa. Luther Crackenthorpe, seu filho mais velho, reside nela agora.

- Mais algum filho?

- Um outro, Henry, que morreu num desastre de automóvel, em mil novecentos e onze.

- E o actual Mister Crackenthorpe nunca pensou em vender a casa?

- Não o pode fazer - replicou secamente o advogado -, em virtude de uma das cláusulas do testamento de seu pai.

- Talvez me possa dizer alguma coisa acerca desse testamento.

- Porque hei-de fazê-lo?

  O inspector Craddock sorriu.

- Porque, se me apetecer, eu próprio poderei examiná-lo, na Somerset House.

  Contra vontade, Mr. Wimborne esboçou um leve sorriso.

- Muito bem, inspector. Queria apenas dizer que a informação que me pediu é absolutamente irrelevante. Quanto ao testamento de Josiah Crackenthorpe, não há qualquer mistério que o rodeie. Deixou a sua enorme fortuna em depósito, devendo o seu rendimento caber a seu filho Luther, enquanto este viver, e, por morte deste, o capital deve ser dividido, em partes iguais, pelos filhos de Luther: Edmund, Cedric, Harold, Emma e Edith. Edmund morreu na guerra e Edith morreu há quatro anos. Por conseguinte, por morte de Luther Crackenthorpe, o dinheiro será dividido entre Cedric, Harold, Alfred, Emma e Alexander Eastley, fllho de Edith.

- E a casa?

- Será para o filho mais velho de Luther Crackenthorpe, se for vivo, ou para o seu descendente.

- Edmund Crackenthorpe era casado?

- Não.

- Por conseguinte, a casa irá...?

- Para o segundo filho... Cedric.

- Mister Luther Crackenthorpe não pode dispor dela?

- Não.

- E não pode dispor do capital?

- Não.

- Isso não será um pouco estranho? Suponho que o pai não gostava muito dele - observou o inspector astutamente.

- E supõe muito bem - disse Mr. Wimborne.O velho Josiah sentia-se desapontado com o filho, por este não dedicar o mínimo interesse aos assuntos da família, aliás, a assuntos de qualquer natureza. Luther passava o tempo a viajar pelo estrangeiro e a coleccionar objets d'art. O velho Josiah não compreendia esse interesse e, por conseguinte, deixou o dinheiro depositado para a geração seguinte.

- Mas, entretanto, a geração seguinte não tem qualquer rendimento a não ser o que consegue por seus próprios meios ou o que o pai lhes concede, e o pai, embora tenha um rendimento considerável, não pode dispor do capital.

- Exactamente. Mas não consigo relacionar tudo isso com o assassínio de uma desconhecida de origem estrangeira!

- Parece nada ter a ver com o caso - apressou-se a concordar o inspector Craddock -, mas apenas queria indagar todos os factos.

  Mr. Wimborne olhou-o perscrutadoramente e depois, parecendo satisfeito com o resultado do exame, pôs-se de pé.

- Tenciono agora regressar a Londres - declarou. - Há mais alguma coisa que deseje saber? perguntou, olhando para os dois homens.

- Não, obrigado, Mister Wimborne.

  O som do gongo chegou-lhes, fortíssimo, do átrio.

- Valha-me Deus! - exclamou Mr. Wimborne.- Deve ser um dos pequenos, de brincadeira.

  O inspector Craddock ergueu a voz, de modo a dominar aquele clamor.

- Deixaremos a família almoçar em paz, mas o inspector Bacon e eu gostaríamos de voltar depois...digamos às duas e vinte e cinco... para termos uma curta entrevista com cada um dos membros da família.

- Acha isso necessário?

- Bem... - Craddock encolheu os ombros. É apenas uma tentativa. Talvez alguém se lembre de alguma coisa que nos dê uma pista que nos permita descobrir a identidade da mulher.

- Duvido, inspector. Duvido muito, mas desejo-lhe boa sorte. Como há pouco disse, quanto mais depressa este desagradável assunto se esclarecer, tanto melhor para todos.

  Meneando a cabeça, saiu devagar da biblioteca.

 

  Ao regressar do inquérito, Lucy fora logo para a cozinha e preparava o almoço quando Bryan Eastley entrou.

- Posso ajudá-la? - perguntou. - Tenho jeito para serviços de casa.

  Lucy lançou-lhe um olhar rápido, um pouco preocupado. Bryan fora ao inquérito, no seu próprio carro, e, por conseguinte, ainda não tivera muito tempo para apreciá-lo.

  O que viu era bastante agradável. Eastley era um homem de trinta e tal anos de idade, de aspecto simpático, de cabelo castanho, olhos azuis com uma expressão um pouco implorante, e de enorme bigode loiro.

- Os pequenos ainda não voltaram - anunciou, sentando-se a uma das pontas da mesa da cozinha. De bicicleta, precisarão de vinte minutos para cá chegar.

  Lucy sorriu.

- Estavam com certeza resolvidos a não perder pitada.

- Não podemos censurá-los. Trata-se do primeiro inquérito da sua vida jovem e, por assim dizer, no seio da família.

- Importa-se de sair da mesa, Mister Eastley? Preciso de pousar aqui o prato de ir ao forno.

  Bryan obedeceu.

- Vive em Londres? - perguntou Lucy.

- Se isso se chama viver... sim.

  O tom com que respondera à pergunta traduzia desalento. Esteve por um momento a ver Lucy misturar os ingredientes do pudim e depois, soltando um suspiro, comentou:

- Isto é muito agradável.

- O quê... esta cozinha?

- Sim. Lembra-me a cozinha da casa de meus pais, quando eu era garoto.

  Lucy ficou impressionada ao aperceber-se de uma nota de abandono na personalidade de Bryan Eastley. Observando-o com mais atenção notou que era mais velho do que a princípio julgara. Devia ter quase quarenta anos. Custava a crer que fosse pai de Alexander. Recordava-lhe inúmeros pilotos jovens que conhecera, durante a guerra, quando tinha a idade impressionável dos catorze anos. Desenvolvera-se e crescera num mundo de pós-guerra, mas parecia-lhe que Bryan não mudara e que fora ultrapassado pelo correr dos anos. As suas palavras seguintes confirmaram esta impressão. Voltara a sentar-se na mesa.

- É um mundo difícil o nosso, não acha? - perguntou. - Quero dizer, orientarmo-nos nele... não fomos treinados para isso.

  Lucy recordou o que ouvira a Emma.

- Foi piloto de combate, não foi? Recebeu uma medalha de guerra.

- É isso o que nos trama. Recebemos uma condecoração e, em consequênçia disso, as pessoas procuram façilitar-nos a vida. Dão-nos emprego e tudo o mais. E uma atitude muito decente da sua parte, mas todos esses lugares são de cargos de administração, para que não estamos aptos. Passar a vida sentado a uma secretária, a fazer contas. Tive umas ideias, mas não pude sustentá-las. É difícil arranjar uns tipos que estejam dispostos a empatar dinheiro para finançiar a sua execução. Se eu dispusesse de capital...

  Calou-se.

- Não conheceu Edie, pois não? Minha mulher. Não, evidentemente. Era muito diferente de toda esta gente. Por um lado, era mais nova. Estava nas WAAF (1). Dizia sempre que o velhote era “pílulas”.

 

  (1) Women's Auxiliarv Air Force: Corpo Auxiliar Feminino da Força Aérea. (N. do T )

 

E é. É terrivelmente agarrado ao dinheiro, mas não o levará com ele. Por sua morte, será dividido pelos filhos. A parte de Edie caberá a Alexander, mas este só poderá mexer no dinheiro quando tiver vinte e um anos.

- Desculpe, mas é capaz de tornar a sair da mesa?

  Nesse momento, Alexander e Stoddard-West chegaram, com os rostos corados e muito ofegantes.

- Viva, Bryan - disse Alexander ao pai. - Vieste então para aqui. Mas que maravilhoso pudim.

- Saiam-me do caminho - pediu Lucy. – Quero fazer o molho.

- Faça muito molho. Pode encher duas molheiras dele?

- Posso, sim.

- Oh, que bom! - exclamou Stoddard-West.

- É uma cozinheira de estalo - apreciou Alexander, dirigindo-se ao pai.

  Lucy teve a impressão momentânea de que os papéis estavam trocados. Alexander falava com o pai como um pai carinhoso fala ao filho.

- Podemos ajudá-la, Miss Eyelesbarrow? - ofereceu-se Stoddard-West com delicadeza.

- Sim, podem. Alexander, vá bater o gongo. James, é capaz de levar este tabuleiro para a casa de jantar? E o senhor, Mister Eastley quer levar a travessa com a carne? Eu levarei as batatas e o pudim.

- Está cá um agente da Scotland Yard - informou Alexander. - Acha que almoçará connosco?

- Depende do que a sua tia combinar.

- Não creio que a tia Emma se importe... É muito hospitaleira, mas suponho que o tio Harold fique contrariado. - Alexander saiu da cozinha levando a bandeja e acrescentou por cima do ombro: - Mister Wimborne está agora na biblioteca com esse agente da Yard, mas não fica para almoçar. Disse que tinha de regressar a Londres! Vamos, Stoddard. Ah, já foi tocar o gongo.

  Nesse momento o gongo soou. Stoddard-West era um artista. Tocou-o com toda a força de que foi capaz e a conversa tornou-se impossível.

  Bryan levou a travessa com a carne, Lucy seguiu-o com o tabuleiro da verdura e depois voltou à cozinha a buscar as duas molheiras, cheias quase a transbordar.

  Mr. Wimborne achava-se no átrio, a calçar as luvas, quando Emma desceu rapidamente as escadas.

- Tem a certeza de que não pode ficar para almoçar, Mister Wimborne? Vai já para a mesa.

- Não. Tenho uma entrevista importante, em Londres. O comboio tem carruagem-restaurante.

- Foi muito amável em ter vindo - disse Emma, reconhecida.

  Os dois funcionários da Polícia emergiram da biblioteca.

  Mr. Wimborne tomou a mão de Emma na sua.

- Não há qualquer motivo para estar preocupada - assegurou. - Esse senhor é o inspector-detective Craddock, da New Scottland Yard, que vem encarregar-se do caso. Volta às duas e um quarto para pedir-lhes qualquer informação que possa facilitar-lhe o inquérito a que tem de proceder. Mas como já lhe disse, não há razão para estar preocupada. - Olhou para Craddock e perguntou: - Permite-me que repita a Miss Crackenthorpe o que me contou?

- Com certeza.

- O inspector acaba de dizer-me que é quase certo não se ter tratado de um crime local. Supõe-se que a mulher assassinada tenha vindo de Londres e fosse estrangeira.

  Emma Crackenthorpe inquiriu vivamente:

- Estrangeira. Seria francesa?

  Mr. Wimborne julgara que a sua informação contribuísse para acalmar Emma Crackenthorpe e a pergunta desta deixou-o um pouco surpreso. O olhar de Dermot Craddock desviou-se rapidamente dele, para pousar-se no rosto de Emma Crackenthorpe.

  Perguntava-se por que razão ela pensara que a mulher assassinada fosse francesa e por que razão esse pensamento a perturbara tanto.

 

  As únicas pessoas que de facto fizeram justiça ao excelente almoço preparado por Lucy foram os dois garotos e Cedric Crackenthorpe, que parecia não ter sido afectado pelas circunstânçias que tinham determinado o seu regresso a Inglaterra. Na verdade, parecia considerar o caso como uma boa partida de natureza macabra.

  Lucy notou que essa atitude desagradava muitíssimo a seu irmão Harold. Este parecia considerar o crime uma espécie de insulto pessoal à família Crackenthorpe e tão grande era a sua sensação de ultraje que mal almoçou. Emma mostrava-se preocupada e infeliz e também comeu pouco. Alfred parecia embrenhado numa série de pensamentos íntimos e falou muito pouco. Era um homem com bom aspecto, de rosto moreno e comprido com as órbitas muito próximas uma da outra.

  Depois do almoço, os funcionários da Polícia voltaram e, delicadamente, pediram licenca para falar com Mr. Cedric Crackenthorpe.

  O inspector Craddock mostrou-se muito simpático.

- Sente-se, Mister Crackenthorpe. Segundo me disseram acaba de regressar das Baleares, não é verdade? Vive ali?

- Há seis anos. Em Ibiza. Agrada-me mais do que esta terra triste.

- Pelo menos apanha muito mais sol do que nós - comentou o inspector Craddock, de modo afável.

- Esteve aqui há pouco tempo, segundo creio... na quadra do Natal, para ser exacto. O que o fez voltar de novo, depois de um intervalo de tempo tão curto?

- Recebi um telegrama de Emma... é a minha irmã. Foi a primeira vez que se verificou um crime na nossa casa. Não queria perder pitada... e, por conseguinte, vim.

- Interessa-se por criminologia?

- Oh, não há necessidade de recorrermos a termos tão pretensiosos. Acontece apenas que gosto de crimes... de romances detectivescos, nada mais! Um crime-mistério, ocorrido no limiar da família, afigurou-se-me uma oportunidade única. Além disso, achei que a pobre Emma necessitaria de ajuda... para tratar do velhote, da polícia e de tudo o mais.

- Compreendo. Foi um apelo aos seus instintos desportivos e também aos seus sentimentos familiares. Não duvido que sua irmã lhe esteja muito grata... embora os seus outros dois irmãos também tenham vindo pôr-se a seu lado.

- Mas não para a animarem e consolarem - observou Cedric. - Harold está terrivelmente transtornado. Não convém, de forma alguma, a um magnate da City ver-se imiscuído no homicídio de uma mulher de reputação duvidosa.

  Craddock ergueu um pouco o sobrolho.

- Era... uma mulher de reputação duvidosa?

- Bem, nesse aspecto, o senhor é a autoridade, mas a julgar pelos factos, assim me parece.

- Julguei que talvez pudesse fazer uma ideia de quem ela fosse.

- Ora, vamos, inspector, o senhor já sabe... ou então os seus colegas não tardarão a dizer-lho, que eu não pude identificá-la.

- Eu disse “fazer uma ideia”, Mister Crackenthorpe - acentuou Craddock. - Talvez nunca antes tivesse visto essa mulher... mas talvez pudesse fazer uma ideia de quem ela era... ou podia ter sido.

  Cedric meneou a cabeça numa negativa.

- Está a malhar em ferro frio. Não faço a menor ideia. Calculo que o senhor suponha que ela veio ao Long Barn para se encontrar com um de nós, não é verdade? Mas nenhum de nós vive cá. As únicas pessoas que viviam na casa eram uma mulher e um velho. Não julga, decerto, que ela aqui tenha vindo a um encontro com o meu venerando papá, pois não?

- A nossa ideia é... e o inspector Bacon concorda comigo... que essa mulher tenha tido noutros tempos qualquer relação com esta casa. Isso pode ter sido há um considerável número de anos. Procure recordar-se, Mister Crackenthorpe.

  Cedric reflectiu, por alguns momentos, e, depois, voltou a menear negativamene a cabeça.

- Tal como a maioria das pessoas, temos tido algumas criadas estrangeiras, mas não me recorda de nenhuma que corresponda à possibilidade a que se refere. É melhor perguntar aos outros... Sabem mais do que eu.

- Não deixaremos de fazê-lo.

  Craddock encostou-se ao espaldar da cadeira e prosseguiu:

- Como já ouviu, durante o inquérito, o testemunho médico não pode determinar com grande exactidão a hora da morte. Há mais tempo do que duas semanas e há menos do que quatro... o que o situa na quadra do Natal. O senhor disse-me que viera cá passar o Natal. Em que dia chegou a Inglaterra e em que dia partiu?

  Cedric reflectiu.

- Ora, deixe ver... Vim de avião. Cheguei aqui no sábado anterior ao Natal... portanto, deve ter sido no dia vinte e um de Dezembro.

- Fez voo directo desde Maiorca?

- Sim. Parti de lá às cinco da manhã e cheguei aqui ao meio-dia.

- E quando partiu de cá?

- Na sexta-feira seguinte, ou seja, no dia vinte e sete.

- Obrigado.

  Cedric sorriu.

- Infelizmente, isso coloca-me dentro do período provável em que a morte ocorreu. Mas, na realidade, inspector, estrangular jovens não é o meu passatempo favorito do Natal.

- Espero que não, Mister Crackenthorpe.

  O inspector Bacon limitou-se a apresentar uma expressão desaprovadora.

- Uma tal acção na quadra natalícia seria prova de uma extraordinária ausênçia de “paz e de boa vontade”, não acha?

  Cedric dirigira esta pergunta ao inspector Bacon, que apenas emitiu um ruído de desagrado.

  O inspector Craddock disse, com delicadeza:

- Obrigado, Mister Crackenthorpe. É tudo.

- Que pensa dele? - perguntou Craddock, depois de Cedric ter fechado a porta atrás de si.

- Suficientemente pretensioso seja para o que for. É um tipo de homem que me não agrada. Esses artistas são um rancho de vidas perdidas, propensos a darem-se com uma classe de mulheres duvidosas.

  Craddock sorriu.

- Também me não agrada a maneira como se veste - prosseguiu Bacon. - Uma absoluta falta de respeito!... Comparecer a um inquérito vestido daquela maneira. Há muito tempo que não vejo um par de calças tão sujo. Se quer saber a minha opinião, dir-lhe-ei que é do tipo capaz de estrangular com facilidade uma mulher, sem sentir quaisquer rebates de consciênçia.

- Mas não estrangulou esta... se só partiu de Maiorca no dia vinte e um. E isto é uma coisa que podemos sem custo verificar.

  Bacon lançou-lhe um olhar perscrutador.

- Noto que ainda não divulgou a verdadeira data do crime.

- Não, por ora, não a divulgaremos. Gosto sempre de guardar alguns trunfos para mais tarde.

  Bacon meneou a cabeça em sinal de perfeito acordo.

- Jogue-os no momento oportuno - aconselhou.

- É de facto o melhor plano.

- E agora - deliberou Craddock -, vamos ouvir o que o nosso correcto gentleman da City tem para contar.

  Harold Crackenthorpe, de lábios muito finos, tinha muito pouco para contar. Tratava-se de um incidente muito desagradável... muito infeliz. Receava os jornais... Sabia que os repórteres já tinham começado a pedir entrevistas... Tudo isso... era muitíssimo lamentável...

  A série de frases deixadas a meio por Harold terminou. Este encostou-se à cadeira com a expressão de um homem perante um mau cheiro.

  A tentativa do inspector não resultou. Não, Harold não fazia a mínima ideia de quem a mulher fosse. Sim, passara o Natal em Rutherford Hall. Só pudera ir na véspera do Natal... mas ficara lá até ao fim da semana seguinte.

- Muito bem - resumiu o inspector Craddock, sem insistir no interrogatório. Já percebera que Harold Crackenthorpe não o ajudaria.

  Seguiu-se Alfred, que entrou na biblioteca com uma despreocupação que parecia um pouco exagerada.

  Craddock mirou Alfred Crackenthorpe com uma leve sensação de o reconhecer. Certamente já antes vira esse estranho membro da família... Ou teria visto a sua fotografia nos jornais? Nas suas reminiscências acerca de Alfred havia algo desagradável. Perguntou-lhe a profissão e obteve uma resposta vaga.

- Presentemente, trabalho em seguros. Até há pouco tempo, andei interessado em colocar um novo tipo de alto-falante no mercado. Um tipo absolutamente revolucionário e com que, na realidade, ganhei muito dinheiro.

  O inspector Craddock mostrou-se apreciativo... e ninguém poderia imaginar que notava a aparênçia superficialmente elegante do fato de Alfred e calculava sem errar o baixo preço que custara. A roupa de Cedric estava deformada e quase coçada, mas originariamente fora de bom corte e de excelente qualidade. No caso de Alfred, porém, tratava-se de uma elegância  barata que, só por si, bastava para se perceber a sua história. Craddock passou com afabilidade ao interrogatório de rotina. Alfred pareceu interessado... e até um pouco divertido.

- É de facto uma possibilidade ter essa mulher trabalhado aqui, noutro tempo. Em todo o caso, não como criada de quarto... duvido de que minha irmã alguma vez tivesse tido uma criada dessas. E creio que, hoje em dia, ninguém as tem. Mas não há dúvida de que há muito pessoal doméstico estrangeiro. Já tivemos umas polacas... e uma ou duas alemãs cheias de temperamento. Mas como Emma não reconheceu essa mulher, acho, inspector, que pode pôr de parte essa possibilidade. Minha irmã tem muito boa memória para rostos. Se a mulher veio de Londres... A propósito, o que o faz pensar que tenha vindo de Londres?

  Fizera a pergunta com muita naturalidade, mas os seus olhos mostravam-se perscrutadores e interessados.

  O inspector Craddock sorriu e meneou a cabeça.

  Alfred olhou-o atentamente e concluiu:

- Não o quer dizer, hem? Tinha um bilhete de ida e volta na algibeira, não tinha?

- Talvez, Mister Crackenthorpe.

- Bem, admitindo que veio de Londres, talvez o tipo com quem se foi encontrar julgasse ser Long Barn o sítio ideal para cometer calmamente um crime. É evidente que esse tipo conhece a vida cá de casa. No seu lugar, inspector, procurá-lo-ia.

- E o que fazemos - replicou Craddock dando à resposta um tom calmo e confiante.

  Agradeceu a Alfred e mandou-o embora.

- Sabe, já vi este tipo nalgum lado... – observou Craddock a Bacon.

 O inspector proferiu o seu veredicto:

 - Vive de expedientes, mas, por vezes, queima-se.

 

- Não creio que deseje falar comigo – começou Bryan Eastley como se se desculpasse, entrando no aposento e detendo-se à porta deste. - Não pertenço exactamente à família.

- Ora, deixe-me ver. O senhor é Mister Bryan Eastley, o marido de Miss Edith Crackenthorpe, falecida há cinco anos?

- Sou eu mesmo.

- Foi muito amável em procurar-nos, Mister Eastley, em especial se tem conhecimento de qualquer coisa que julga poder ser-nos de alguma utilidade.

- Não sei nada e oxalá soubesse. Tudo isto parece muito estranho, não acha? Ir encontrar-se com um tipo, num celeiro frio e cheio de correntes de ar, a meio do Inverno. Isso a mim não me servia.

- É na realidade um facto muito confuso - concordou o inspector Craddock.

- É verdade que era estrangeira? Parece que é o que corre por aí.

- Esse facto sugere-lhe algo? - perguntou o inspector, olhando perscrutadoramente para Bryan, mas este pareceu amavelmente alheio.

- Não, na realidade, não.

- Talvez fosse francesa - sugeriu o inspector Bacon, desconfiado.

  Bryan denotou uma leve animação. Nos seus olhos azuis transpareceu uma expressão de interesse e cofou o farfalhudo bigode loiro.

- De facto? Gay Paree (1)? - meneou a cabeça para ambos os lados. - No fim de contas, isso parece tornar o caso ainda mais inverosímil, não acha? Refiro-me a uma disputa no celeiro. Suponho que seja a primeira vez que se lhe depara um assassínio num

 

(1) Paris alegre. (N. do T.)

 

celeiro. Deve ter sido um tipo irritado... ou com um complexo? Talvez se julgue Calígula ou qualquer outra personagem semelhante.

  O inspector Craddock nem sequer se deu ao trabalho de repudiar essa sugestão e, em vez disso, perguntou com naturalidade:

- Sabe se alguém da família possui relações... ou conhecimentos franceses?

  Bryan respondeu que os Crackenthorpe não eram muito joviais.

- Harold casou respeitavelmente com uma mulher de cara hipócrita, filha de um nobre arruinado. Não creio que Alfred se preocupe muito com mulheres... Passa a vida a meter-se em negócios escuros, que, por via de regra, acabam mal. Suponho que Cedric seja perseguido por señoritas espanholas em Ibiza. As mulheres apaixonam-se com facilidade por Cedric. Nunca se barbeia e parece estar sempre com a cara por lavar. Não percebo como é que isso pode atrair as mulheres, mas aparentemente é um facto... julgo que não estou a ser-lhe muito útil, pois não?

  Sorriu-lhes.

- É melhor pedirem auxílio a Alexander. Ele e James Stoddard-West andam interessadíssimos à procura de indícios. Aposto que ainda acabam por descobrir alguma coisa.

  O inspector Craddock formulou votos para que isso se verificasse, depois agradeceu a Bryan Eastley e disse-lhe que gostaria de falar com Miss Emma Crackenthorpe.

 

  O inspector Craddock olhou com mais atenção para Emma Crackenthorpe do que anteriormente. Continuava intrigado com a expressão que lhe surpreendera no rosto, antes do almoço.

  Uma mulher calma, que não era estúpida, nem tão-pouco inteligente. Devia ser uma dessas mulheres agradáveis, de presença confortante, na qual os homens se sentiam inclinados a confiar, e que possuíam a arte de transformar uma casa num lar, dando-lhe uma atmosfera de repouso e de calma harmonia.

  As mulheres desse género eram muitas vezes subestimadas. Por trás da sua aparênçia calma, possuíam um carácter firme. Craddock pensou que a chave do mistério da mulher encontrada morta no sarcófago estivesse escondida nos recônditos do espírito de Emma.

  Enquanto estes pensamentos lhe perpassavam pela mente, Craddock ia formulando várias perguntas sem importânçia.

- Não creio que haja muita coisa que já não tenha contado ao inspector Bacon - disse. - Por conseguinte, não a incomodaremos com muitas perguntas.

- Faça favor de perguntar o que quiser.

- Como Mister Wimborne já lhe disse, chegámos à conclusão de que essa mulher morta não era natural desta região. Isso talvez seja um alívio para si... pelo menos Mister Wimborne assim pensou... mas, na realidade, dificulta-nos o caso , pois, sendo assim, menos facilmente a poderemos identificar.

- Mas ela não tinha nada... uma mala? Documentos?

  Craddock meneou a cabeça, numa negativa.

- Não tinha mala, nem quaisquer documentos nas algibeiras? Não tem qualquer ideia do seu nome...ou do sítio donde veio... absolutamente nada?

  Craddock pensou:

  “Ela quer saber... está ansiosíssima por saber...quem a mulher é. Ter-se-á sentido assim, desde o início. Bacon não me deu essa impressão... e é um homem subtil”.

- Nada sabemos a seu respeito - declarou. Foi por isso que esperámos que alguém da família nos pudesse ajudar. Tem a certeza de que não pode? Ainda que não a reconheça... é capaz de lembrar-se de alguém que ela pudesse ser?

  Craddock julgou notar uma ligeira pausa, antes de Emma Crackenthorpe responder:

- Não faço a mínima ideia.

  Imperceptivelmente, a atitude do inspector Craddock mudou. Na sua voz havia agora uma leve dureza:

- Quando Mister Wimborne lhe disse que essa mulher era estrangeira, porque perguntou se seria francesa?

  Emma não ficou desconcertada. Ergueu ao de leve o sobrolho e respondeu:

- Perguntei isso? Ah, sim, creio que sim. Não sei realmente porque o perguntei... a menos que fosse porque nos sentimos sempre inclinados a pensar que os estrangeiros são franceses, até sabermos a sua verdadeira nacionalidade. A maior parte dos estrangeiros que estão no nosso país são franceses, não é verdade?

- Não me parece, Miss Crackenthorpe, que hoje em dia assim seja. Temos cá gente das mais variadas nacionalidades, italianos, alemães, austríacos, escandinavos...

- Sim, suponho que tem razão.

- Não tinha qualquer razão especial para julgar que essa mulher fosse francesa?

  Não se apressou a dizer que não. Pensou por um momento e depois meneou a cabeça para ambos os lados, quase com pena.

- Não, na realidade, não creio - respondeu.

  O seu olhar sustentou calmamente o do inspector. Craddock olhou para o inspector Bacon. Este inclinou-se para a frente e apresentou um pequeno estojo para pó-de-arroz.

- Reconhece isto, Miss Crackenthorpe?

  Emma pegou-lhe e examinou-o.

- Não, não é meu.

- Não faz a menor ideia da pessoa a quem possa ter pertencido?

- Não.

- Nesse caso, julgo que, por agora, não há necessidade de a incomodarmos por mais tempo.

- Obrigada.

  Dirigiu-lhes um breve sorriso, levantou-se e saiu do aposento. Craddock achou que ela se retirara um pouco apressadamente, como que sentindo um certo alívio.

- Julga que ela sabe alguma coisa? – perguntou Bacon.

  O inspector Craddock redarguiu tristemente:

- De certo modo, é-se levado a pensar que toda a gente sabe um pouco mais do que está disposto a dizer.

- Em geral assim é - concordou Bacon, fundamentando-se na sua longa experiênçia. – Mas acrescentou -, muitas vezes o que sabem nada tem a ver com o caso em questão. Trata-se de algum pecadilho familiar ou de alguma tolice que as pessoas receiam que venha a público.

- Sim, bem sei. Pelo menos...

  Mas o inspector Craddock não terminou a frase, porque a porta abriu-se com violênçia e o velho Mr. Crackenthorpe entrou, arrastando os pés e num estado de grande indignação.

- Bela conduta essa da Scotland Yard vir aqui e não ter a cortesia de falar, em primeiro lugar, com o chefe da família! Quem é o dono da casa, sempre gostaria de saber? Quem responde? Quem é o dono da casa?

- Claro que é o senhor, Mister Crackenthorpe - respondeu Craddock em tom conciliador, levantando-se enquanto falava. - Mas como o senhor já tinha declarado ao inspector Bacon tudo quanto sabia e a sua saúde não é boa, não quisemos incomodá-lo uma vez mais. O doutor Quimper disse...

- Ora... ora. Não sou um homem forte, mas... Quanto ao doutor Quimper, é uma verdadeira velha...como médico, muito competente, compreende o meu caso... mas tem a mania de me embrulhar em algodão-em-rama. Tem a mania de não me deixar comer. Por altura do Natal, senti-me um pouco enjoado e não me largou com perguntas. O que tinha eu comido? Quando? Quem tinha cozinhado? Quem servira a comida? Fitas, fitas, fitas! Mas, embora a minha saúde talvez não seja boa, sinto-me perfeitamente bem para dar-lhes todo o auxílio que me for possível. Um assassínio na minha casa... ou antes, no meu celeiro! É um edifício interessante, esse! Isabelino. O arquitecto aqui da terra diz que não... mas o tipo não sabe o que está a dizer. Nem mais um dia depois de mil quinhentos e oitenta... mas não é disto que estamos a falar. Que querem saber? Qual é a vossa actual teoria?

- Por ora, é um pouco cedo para teorias, Mister Crackenthorpe. Andamos ainda a ver se descobrimos a identidade da assassinada.

- Dizem que é estrangeira?

- Julgamos que sim.

- Um agente inimigo?

- Não me parece natural.

- Não lhe parece... não lhe parece! Essa gente pulula por toda a parte! Infiltra-se! O que não percebo é por que razão o Ministério dos Estrangeiros os deixa cá entrar. Aposto que andam a espiar segredos industriais. Era o que ela andava a fazer.

- Em Brackhampton?

- Há fábricas por toda a parte. Há uma, mesmo à saída do portão das traseiras.

  Craddock olhou rapidamente para Bacon, que informou:

- Crackers & Cosy Crisps (1).

- Como sabe que é isso realmente o que andam a fazer? Não posso engolir essa gente. Pois bem, se ela não era uma espia, quem julgam que fosse? Julgam que andava metida com algum dos meus preciosos filhos? Se assim fosse, seria com Alfred. Com Harold, não, esse é muito prudente. E Cedric não está disposto a viver neste país. Sendo assim, seria uma das “saias”

 

(1) Bolachas e Biscoitos. (N. do T. )

 

de Alfred. E um tipo qualquer violento seguiu-a até cá, pensando que ela ia encontrar-se com ele e matou-a. Que diz a isto?

  O inspector Craddock redarguiu, diplomaticamente, que era decerto uma teoria, mas que Mr. Alfred Crackenthorpe não a reconhecera.

- Ora! Tem medo é o que é! Alfred foi sempre um cobarde e foi sempre também um mentiroso! É capaz de nos desmentir na nossa própria cara. Nenhum dos meus filhos presta. São um bando de abutres, à procura que eu morra. É essa a sua verdadeira preocupação na vida - riu-se baixinho. - Mas podem esperar. Não quero que me fiquem a dever um favor. Bem, se não lhes posso ser de maior utilidade... sinto-me cansado. Vou descansar.

  Retirou-se, arrastando os pés.

- Uma “saia” de Alfred? - sublinhou Bacon. Na minha opinião, isso é uma invenção do velho. - Fez uma pausa, hesitou, e acabou por prosseguir. - Pessoalmente, acho Alfred muito bem... talvez um pouco velhaco sob certos aspectos... mas actualmente

não nos dá dores de cabeça. Note... esse tipo da Força Aérea intriga-me um pouco.

- Bryan Eastley?

- Conheci um ou dois tipos como ele. São o que se pode chamar tipos que andam sem governo neste mundo... a vida fê-los conhecer, demasiado cedo, o perigo, a morte e a excitação. Agora, acham a vida calma. Calma e insatisfatória. De certo modo, demos-lhes um osso duro de roer, mas não vejo que outra coisa poderíamos ter feito. Mas agora têmo-los todos eles sem passado e sem futuro. E são do género que não se importa de correr riscos... O tipo vulgar porta-se bem por instinto, mais por prudênçia do que por moralidade. Mas esses tipos não têm medo... Portarem-se “pelo seguro” não faz parte do seu vocabulário. Se Eastley estivesse metido com uma mulher e quisesse matá-la...- calou-se e estendeu uma mão, resignado. – Mas porque havia de querer matá-la? E se a tivesse morto, porque havia de ter ido metê-la no sarcófago do sogro? Não, se quer saber a minha opinião, nenhuma destas pessoas teve qualquer coisa a ver com o crime. Caso contrário, não se teriam dado ao trabalho de pôr o corpo à entrada de casa.

  Craddock concordou que isso era estranho.

- Há mais alguma coisa que queira aqui fazer?

  Craddock respondeu negativamente.

  Bacon sugeriu regressarem a Brackhampton e tomarem uma chávena de chá... mas o inspector Craddock declarou que ia visitar um antigo conhecimento.

 

  Miss Marple, sentada erecta contra um fundo de cães de porcelana e de presentes de Margate, sorriu com aprovação ao inspector Dermot Craddock.

- Sinto-me tão contente por o terem encarregado do caso - confessou. - Tinha esperanças de que assim fosse.

- Quando recebi a sua carta - disse Craddock -, levei-a imediatamente a Sir Henry, da Scotland Yard. Por acaso, ele próprio tinha acabado de saber que a Polícia de Brackhampton pedia a nossa intervenção no caso. Julgavam que não se tratava de um crime local. O chefe ficou muito interessado no que eu lhe contei a seu respeito. Suponho que meu padrinho já lhe tinha falado de si.

- Querido Sir Henry - murmurou Miss Marple, afectuosamente.

- Pediu-me que lhe contasse tudo acerca do caso Little Paddock. Quer saber o que ele disse depois de me ouvir?

- Pois sim, se não for inconfidênçia.

- Disse: “Bem, como isto parece um caso completamente estrábico, descoberto por duas senhoras de idade que provaram, contra toda a probabilidade, terem razão, e visto você já conhecer uma dessas senhoras, vou enviá-lo ali para tratar do caso.” Por conseguinte, aqui estou. E agora, minha querida Miss Marple, aonde vamos? Como provavelmente compreende, a minha visita não tem carácter oficial. Não tenho comigo os meus pajens. Pensei que, em primeiro lugar, talvez pudéssemos conversar um pouco.

  Miss Marple sorriu-lhe.

- Tenho a certeza de que uma pessoa que o conheça apenas oficialmente não calcula como você é tão humano e tão simpático... não core. Ora, agora, diga-me exactamente o que lhe contaram.

- Creio que já me contaram tudo. O depoimento feito pela sua amiga, Mistress McGillicuddy, à Polícia de Saint Mary Mead, a confirmação desse depoimento pelo revisor dos caminhos-de-ferro e também o bilhete, que encontrei, na posse do chefe da estação de Brackhampton. Posso dizer que foram realizadas todas as averiguações de rotina, pelas pessoas competentes...pelo pessoal dos caminhos-de-ferro e pela Polícia. Mas não há dúvida de que a senhora os superou, por meio de um fantástico processo de suposições.

- Não foram suposições - contrariou Miss Marple. - Mas eu tinha uma grande vantagem. Conhecia Elspeth McGillicuddy. Mais ninguém a conhecia. Não existia qualquer confirmação da sua história e se não houvesse participação do desaparecimento de uma mulher, seria muito natural que pensassem que se tratava de simples imaginação de uma senhora de idade... como acontece frequentemente com senhoras de idade...mas não com Elspeth McGillicuddy.

- Não com Elspeth McGillicuddy – concordou o inspector. - Sabe, conto conhecê-la. Oxalá não tivesse ido para Ceilão. A propósito, vamos arranjar maneira de a entrevistarmos ali.

- O meu processo de raciocínio não foi de facto original - disse Miss Marple. - Vem todo ele em Mark Twain. O rapaz que encontrou o cavalo. Limitou-se a pensar aonde iria, se fosse um cavalo, e encontrou o cavalo.

- A senhora imaginou o que faria se fosse um assassino cruel e implacável? - perguntou Craddock, apreciando pensativamente a fragilidade cor-de-rosa e branca da idosa Miss Marple. - Na realidade, o seu espírito é fantástico. Seria capaz de ir um pouco mais longe ao ponto de colocar-se no sítio do assassino e dizer-me onde ele se encontra agora?

  Miss Marple suspirou:

- Quem me dera! Não faço ideia... não faço a mínima ideia. Mas certamente uma pessoa que já lá viveu, ou conhece bem Rutherford Hall.

- Concordo. Mas isso abre-nos um largo campo de especulação. Têm lá trabalhado muitas mulheres-a-dias. Há o Instituto Feminino... e os membros da Defesa Civil. Toda essa gente conhecia o Long Barn, o sarcófago e o lugar onde a chave era colocada. Qualquer pessoa que vivesse ali perto podia ter achado o local conveniente para o seu propósito.

- Sim. Compreendo perfeitamente as suas dificuldades.

- Enquanto não identificarmos o corpo, não podemos descobrir o assassino - disse Craddock.

- E isso também será difícil?

- Acabaremos por lá chegar. Andamos a verificar todas as participações de desaparecimentos de mulheres com aquela idade e aparênçia. Por ora, não há nenhuma que condiga com a nossa assassinada. O “laboratório” calcula que tivesse cerca de trinta e cinco anos, que fosse saudável, provavelmente casada e que tivera um filho, pelo menos. O seu casaco de peles era barato e foi comprado numa loja de Londres. Mas nos últimos três meses foram vendidos centenas de casacos daqueles a cerca de sessenta por cento de mulheres loiras. Nenhuma das empregadas pôde reconhecer a fotografia da morta. As outras peças de roupa parecem ser quase todas de fabrico estrangeiro, na sua maioria compradas em Paris. Não têm marcas de lavandarias inglesas. Já comunicámos com Paris e andam por lá a fazer averiguações por nossa conta. É evidente que, mais tarde ou mais cedo, alguém se apresentará a participar a falta de um parente ou de um hóspede. É apenas uma questão de tempo.

- A caixa de pó-de-arroz não forneceu qualquer indício?

- Infelizmente não. É um género de estojo que se vende às centenas na Rue de Rivoli e é um artigo muito barato. A propósito, devia tê-lo entregue imediatamente à Polícia, sabe... ou antes, era o que Miss Eyelesbarrow devia ter feito.

  Miss Marple meneou a cabeça, numa negativa.

- Mas, nessa altura, não se provara ainda ter sido cometido um crime - observou. - Se uma rapariga que anda a praticar golfe, apanha do chão, no meio da erva alta, um estojo velho de pó-de-arroz, sem valor algum, certamente não vai precipitar-se com ele à Polícia, não acha? - Miss Marple fez uma pausa e depois acrescentou com firmeza. - Achei muito mais sensato encontrar em primeiro lugar o corpo.

  O inspector Craddock ficou embaraçado.

- Parece não ter tido qualquer dúvida de que o corpo seria encontrado?

- Certamente que não. Lucy Eyelesbarrow é uma pessoa muitíssimo eficiente e inteligente.

- Também o acho! E tão eficiente que me assusta. Nenhum homem se atreverá a casar com ela.

- Sabe, não sou dessa opinião... É claro que o homem que casar com ela será de um tipo muito especial. - Miss Marple ponderou nisto um momento e prosseguiu: - Que tal vai ela, em Rutherford Hall?

- Acho que confiam nela inteiramente. A propósito, suponho que ainda não sabiam das relações dela consigo. Nada dissemos a esse respeito.

- Agora, não tem qualquer relação comigo. Já fez o que eu lhe pedira que fizesse.

- Nesse caso, poderia ir-se embora se lhe apetecesse?

- Sim.

- Mas continua lá. Porquê?

- Não me disse quais as razões. É uma rapariga muito inteligente. Suponho que ficou interessada.

- No caso? Ou na família?

- É difícil - admitiu Miss Marple -, fazer uma distincão entre as duas coisas.

  Craddock fitou-a.

- Oh, não... não.

- Ocorreu-lhe algum pensamento especial?

- Creio que foi a si que ocorreu.

  Miss Marple sacudiu a cabeça.

  Dermot Craddock suspirou.

- Nesse caso, tudo quanto posso fazer é “prosseguir o inquérito”, para usar uma frase feita. A vida de um polícia é triste.

- Estou certa de que obterá resultados.

- Tem algumas ideias a sugerir-me? Mais suposições inspiradas?

- Estava a pensar em... companhias teatrais - replicou Miss Marple um pouco vagamente. – Andar de um lado para o outro, talvez com poucos laços familiares. É natural que o desaparecimento de uma rapariga dessas seja muito menos notado.

- Talvez tenha razão nisso. Vamos dedicar uma atenção especial a esse aspecto do caso. - Depois perguntou: - Porque está a sorrir?

- Estava a pensar - redarguiu Miss Marple -, na cara de Elspeth McGillicuddy, quando souber que encontrámos o corpo.

 

-  Ora isto! - proferiu Mrs. McGillicuddy – Ora isto!

  Faltavam-lhe as palavras. Olhou para o jovem simpático que a visitara, munido de credenciais oficiais e depois para as fotografias que ele lhe estendera.

- E efectivamente ela - confirmou. - É ela. Coitada! Ainda bem que encontraram o corpo. Ninguém acreditou numa palavra do que eu disse! Nem a Polícia, nem o pessoal dos caminhos-de-ferro! É muito aborrecido não acreditarem no que dizemos. Seja como for, ninguém pode dizer que não fiz tudo quanto podia fazer.

  O jovem simpático emitiu uns ruídos de concordânçia apreciativos.

- Onde disseram que encontraram o corpo?

- Num celeiro de uma casa chamada Rutherford Hall, mesmo à saída de Brackhampton.

- Nunca ouvi falar nela. Como é que lá foi parar?

  O jovem não replicou.

- Suponho que Jane Marple o encontrou.

- O corpo - declarou o jovem, consultando uns apontamentos -, foi encontrado por uma Miss Eyelesbarrow.

- Também nunca ouvi falar dela - disse Mrs. McGillicuddy. - Todavia continuo a crer que anda aí a mão de Jane Marple.

- Seja como for, Mistress McGillicuddy, a senhora identifica esta fotografia como sendo a da mulher que viu num comboio?

- A ser estrangulada por um homem. Identifico, sim.

- É capaz de fazer uma descrição desse homem?

- Era um homem alto - respondeu Mrs. McGillicuddv.

- Que mais?

- Moreno.

- E que mais?

- É tudo quanto posso dizer-lhe – afirmou   Mrs. McGillicuddy. - Estava virado de costas para mim. Não cheguei a ver-lhe a cara.

- Não faz qualquer ideia da sua idade?

  Mrs. McGillicuddy pensou um momento.

- Não... na realidade, não. Isto é, não sei. Tenho quase a certeza de que não era... muito novo. Os ombros pareciam... bem, colocados no seu lugar, não sei se compreende o que quero dizer. - O jovem meneou compreensivamente a cabeça. - Mais do que trinta anos, mas não posso ser mais precisa. Bem vê, não era para ele que eu olhava, mas sim para ela... com aquelas mãos à volta do pescoço e o rosto... todo azul... Sabe, às vezes ainda sonho com isso...

- Deve ter sido uma prova horrível – comentou o jovem.

  Fechou o bloco e perguntou:

- Quando volta a Inglaterra?

- Não antes de três semanas. Não precisam de mim, pois não?

  O jovem apressou-se a tranquilizá-la:

- Não, não. Presentemente não há nada que possa fazer. Claro que, se prendermos alguém...

  A conversa ficou por aí.

  O correio trouxe uma carta de Miss Marple, dirigida à amiga. A caligrafia era pontiaguda, emaranhada e muito sublinhada, porém uma longa prática permitiu a Mrs. McGillicuddv decifrá-la. Nessa carta Miss Marple fazia à amiga um relato pormenorizado do caso e aquela devorou cada uma das palavras com grande satisfação. Ela e Jane haviam-lhes provado que tinham razão.

 

- Não consigo compreender - declarou Cedric Crackenthorpe, encostando-se ao muro velho de um longo curral para porcos e fitando Lucy Eyelesbarrow.

- O quê que não consegue compreender?

- O que você está cá a fazer.

- Ganho a minha vida.

- Como serva? - perguntou depreciativamente.

- Você está antiquado - ripostou Lucy. - Serva, francamente! Sou uma empregada doméstica, uma doméstica profissional, ou melhor, uma ajudante.

- Você não pode gostar de todos os serviços que tem de fazer... cozinhar, fazer as camas, aspirar o pó e mergulhar os braços até ao cotovelo dentro da água gordurosa.

  Lucy riu-se.

- Talvez os pormenores não me agradem, mas, ao cozinhar, satisfaço os meus instintos criadores e existe algo em mim que na verdade se compraz em esclarecer embrulhadas.

- Eu vivo numa embrulhada permanente - declarou Cedric. - Mas gosto - acrescentou em tom de desafio.

- Dá a impressão disso.

- A minha vivenda em Ibiza é orientada segundo simples linhas rectas. Três pratos, duas chávenas e pires, uma cama, uma mesa e duas cadeiras. Por toda a parte há pó, manchas de tinta e lascas de pedra... além de pintar também esculpo, e ninguém tem autorização para tocar seja no que for. Não quero mulheres nas proximidades de casa.

- Sem excepção para uma determinada função?

- Que quer dizer com isso?

- Julgava que um homem com as suas inclinações artísticas tivesse algum caso amoroso.

- A minha vida amorosa, como você lhe chama, é a minha própria profissão - replicou Cedric com dignidade. - O que nunca admitirei é a interferênçia de uma mulher imbuída de espírito de dona de casa a fazer-me arrumações e limpezas.

- Como gostaria de visitar a sua vivenda – disse Lucy. - Seria um desafio!

- Não terá essa oportunidade.

- Suponho que não.

  Alguns tijolos caíram do muro.

- Por que razão deixaram chegar tudo isto a este estado? Não foi só a guerra, pois não?

- Gostaria de pôr tudo isto em ordem, não é verdade? Que mulher tão intrometida! Já compreendo porque havia de ser você a descobrir o corpo! Não podia sequer deixar um sarcófago greco-romano em paz! - Fez uma pausa e prosseguiu: - Não, não foi apenas a guerra. Foi também meu pai. A propósito, que pensa dele?

- Não tenho tido muito tempo para pensar.

- Não iluda a resposta. E terrivelmente mesquinho e, na minha opinião, também um pouco louco. E evidente que nos odeia a todos com excepção, talvez, de Emma. Isso deve-se à maneira como meu avô o educou.

  Lucy tomou uma expressão inquiridora.

- O meu avô foi quem fez a “massa”. Com os Crunchies, os Craker Jacks e os Cosy Crisps, enfim, com toda a doçaria própria para o chá, e depois, como era um homem de ideias largas, começou logo a fabricar aperitivos de bolacha e queijo e, desse modo, quando há algum cocktail ganhamos sempre muito dinheiro. Ora, chegou uma altura em que o pai achou que o seu espírito era superior aos biscoitos. Andou pela Itália, pelos Balcãs, pela Grécia e intrometeu-se em arte. Meu avô ficou danado. Achou que meu pai não prestava como homem de negócios e era um pobre apreciador de arte, no que tinha razão, e, por conseguinte, deixou todo o seu dinheiro depositado para os netos. O pai recebe o seu usufruto enquanto viver, mas não pode tocar no capital. Sabe o que ele fez? Deixou de gastar dinheiro. Veio para aqui e começou a poupar. Acho que deve ter acumulado uma fortuna quase tão grande como a que meu avô deixou. E, entretanto, todos nós, Harold, eu, Alfred e Emma não recebemos um centavo da fortuna do avô. Eu sou pintor e escultor, Harold faz negócios e é agora uma personagem eminente da City... É o único de nós que tem o condão de fazer dinheiro, embora me tenham chegado rumores de que, ultimamente, anda muito mal de fundos. Alfred... bem, esse é a ovelha ronhosa da família. Ainda não esteve preso, mas foi por pouco. Durante a guerra esteve empregado no Ministério dos Abastecimentos, mas saiu dele, inesperadamente, em

circunstânçias discutíveis. Depois disso, arranjou também complicações com conservas de frutas... e com ovos. Nada de verdadeiramente importante... apenas alguns negócios um pouco irregulares.

- Não acha insensato contar isso a estranhos?

- Porquê? Você é espia da Polícia?

- Talvez.

- Não creio. Antes de a Polícia se interessar por nós, já você cá estava a trabalhar. Acho...

  Calou-se ao ver Emma transpor a cancela da horta.

- Viva, Em! Pareces muito ralada com qualquer coisa.

- Pois estou. Quero falar contigo, Cedric.

- Tenho de voltar para casa - disse Lucy, cheia de tacto.

- Não se vá embora - pediu Cedric. - Este crime torna-a, praticamente, um membro da família.

- Tenho muito que fazer - insistiu Lucy.Vim cá fora para buscar um pouco de salsa.

  Bateu rapidamente em retirada, até à horta. Os olhos de Cedric seguiram-na.

- Bonita rapariga - comentou. - Quem é ela, na realidade?

- É muito conhecida - informou a irmã. – Especializou-se neste género de profissão. Mas não te preocupes com Lucy Eyelesbarrow, Cedric. Estou muito ralada. Ao que parece, a Polícia julga que a morta fosse estrangeira, talvez francesa. Cedric, não achas que podia ser... Martine?

 

  Por momentos, Cedric ficou-se a olhar a irmã, como se a não tivesse compreendido.

- Martine? Mas quem diabo... ah, referes-te à Martine?

- Sim. Achas que...

- Por que diabo, havia de ser Martine?

- Ora, se pensarmos bem, o seu telegrama foi estranho. Deve ter sido, pouco mais ou menos, pela mesma altura... Achas que, no fim de contas, ela sempre tivesse vindo cá e...

- Que tolice! Porque havia Martine de vir cá e de ir logo meter-se no Long Barn? Para quê? Acho isso muitíssimo improvável.

- Achas que conte ao inspector Bacon... ou ao outro?

- Contar o quê?

- Bem... falar-lhe de Martine, da carta que me escreveu.

- Ora, não vás agora complicar as coisas, trazendo à baila uma quantidade de bagatelas que nada têm a ver com tudo isto. No fim de contas, essa carta de Martine nunca me convenceu.

- Pois a mim, sim.

- Tu, minha filha, foste sempre inclinada a acreditar em coisas impossíveis, antes do pequeno-almoço. Se queres o meu conselho, deixa-te estar sossegada e calada. Compete à Polícia identificar o seu precioso cadáver. E aposto que Harold te dirá o mesmo que eu.

- Bem sei que sim e que Alfred também diria o mesmo. Mas sinto-me preocupada, Cedric. Estou de facto preocupada. Não sei o que deva fazer.

- Nada - sentenciou Cedric com prontidão. Deixa-te ficar calada, Emma. Nunca devemos ir ao encontro dos sarilhos, é este o meu motto.

  Emma Crackenthorpe suspirou. Voltou devagar para casa, com o espírito preocupado.

  Quando se aproximava do edíficio, saía o Dr. Quimper e abria a porta do velho Austin. Ao vê-la, parou e foi ao seu encontro.

- O seu pai, Emma, está em esplêndida forma declarou. - O crime fez-lhe bem. Proporcionou-lhe um novo interesse na vida. Tenho de recomendá-lo a mais doentes meus.

  Emma sorriu mecanicamente. O Dr. Quimper era sempre muito rápido a notar reacções.

- Está algo a correr mal? - perguntou.

  Emma olhou-o. Via não apenas o médico, mas um amigo em quem podia confiar.

- Estou preocupada - confessou.

- Quer dizer-me porquê? Se não quiser dizer-mo, não o diga.

- Gostaria de dizer-lho. Parte já é do seu conhecimento. O que me preocupa é não saber o que fazer.

- Acho que a sua opinião é, em geral, a mais digna de confiança. Que se passa?

- Lembra-se do que uma vez lhe contei, acerca do meu irmão... que morreu na guerra?

- Que se casou... ou queria casar com uma francesa? Qualquer coisa assim?

- Sim. Quase logo a seguir a eu receber essa carta, morreu. Nunca soubemos nada dessa rapariga. Tudo quanto na realidade sabíamos, era o seu nome próprio. Sempre esperámos que ela escrevesse ou aparecesse, mas nunca fez uma coisa nem outra. Nunca ouvimos coisa alguma... até há cerca de um mês, precisamente antes do Natal.

- Já me recordo. Recebeu uma carta, não é verdade?

- Sim. Dizia que estava em Inglaterra e que gostaria de vir visitar-nos. Combinou-se tudo e, depois, à última hora, enviou-nos um telegrama a dizer que tinha de regressar inesperadamente a França.

- E então?

- A Polícia julga que essa mulher que foi assassinada... era francesa.

- Julgam isso, não é verdade? A mim, pareceu-me mais do tipo inglês, mas não se pode ter uma certeza. Nesse caso, o que a preocupa é a possibilidade de essa mulher assassinada poder ser a noiva de seu irmão?

- Sim.

- Acho isso deveras improvável - disse o Dr. Quimper, que acrescentou: - Mas, apesar disso, compreendo o que sente.

- Não sei se deva contar à Polícia... tudo isto. Cedric e os outros dizem que é absolutamente desnecessário fazê-lo. Que acha?

- Hum. - O Dr. Quimper apertou os lábios. Ficou calado, por alguns momentos, imerso em profundos pensamentos. - E evidente que é muito mais simples nada dizer. Compreendo o ponto de vista de seus irmãos. Mas, em todo o caso...

- Continue.

  Quimper olhou-a, com uma expressão afectuosa.

- Dir-lho-ia. Se o não fizer, continuará preocupada. Bem a conheço.

  Emma corou um pouco.

- Talvez seja tola.

- Faça o que quiser, minha querida amiga... e não se preocupe com o resto da família. Se for preciso, manter-me-ei a seu lado, contra todos eles.

 

- Pequena! Eh, pequena! Venha cá!

  Lucy virou a cabeça, surpreendida. O velho Mr. Crackenthorpe acenava-lhe, vigorosamente, por trás de uma porta.

- Precisa de mim, Mister Crackenthorpe?

- Não fale tanto. Entre.

  Lucy obedeceu ao dedo imperioso. O velho Mr. Crackenthorpe agarrou-a pelo braço, puxou-a para junto de si e fechou a porta.

- Quero mostrar-lhe uma coisa - disse.

  Lucy olhou em volta. Achavam-se numa pequena divisão destinada a ser utilizada como escritório, mas que parecia ter deixado, há muito, de ser usada para tal fim. Sobre a secretária havia montes de papéis cobertos de pó, e dos cantos do tecto pendiam enormes teias de aranha. O ar cheirava a bafio.

- Quer que limpe este quarto? - perguntou.

  O velho Crackenthorpe sacudiu a cabeça de maneira feroz.

- Não, não o limpará. Mantenho este quarto fechado à chave. Emma bem gostaria de meter aqui o nariz, mas não lho consinto. É o meu quarto. Está a ver estas pedras? São uns espécimes geológicos.

  Lucy olhou para uma colecção de doze ou catorze pedacos de rocha, alguns deles polidos, outros em bruto.

- Encantadores - apreciou. - Muitíssimo interessante.

- Tem toda a razão. São interessantes. Você é uma rapariga inteligente. Não os mostro a qualquer pessoa. Vou mostrar-lhe mais coisas.

- É muito amável, mas, para dizer a verdade, preciso de ir acabar o que estava a fazer. Com seis pessoas em casa...

- A comerem à minha custa... É o que todos eles fazem, quando cá vêm! Comer. Mas não se oferecem para pagar o que comem. Sanguessugas! Estão todos à espera que eu morra. Mas, por ora, não morrerei... por ora, não lhes darei essa satisfação. Sou muito mais forte do que Emma julga.

- Estou certa de que é.

- E também não sou tão velho como isso. Ela faz-me passar por inválido, trata-me como se eu fosse um senil. Você não me acha velho, pois não?

- Certamente que não - respondeu Lucy.

- Uma rapariga inteligente. Venha ver uma coisa - conduziu-a através do quarto até um enorme móvel de carvalho escuro. Lucy sentia-se um pouco inquieta com o aperto daqueles dedos que a seguravam pelo braço. Não havia dúvidas que, nesse dia, o velho Mr. Crackenthorpe nada tinha de débil. - Está a ver isto? Veio de Lushington... da terra da família de minha mãe. É isabelino. São necessários quatro homens para deslocá-lo. Não sabe o que guardo lá dentro, pois não? Quer que lho mostre?

- Pois sim - replicou Lucy delicadamente.

- É curiosa, não é verdade? Todas as mulheres são curiosas. - Tirou uma chave da algibeira e abriu a porta do armário inferior. Deste retirou um cofre com um aspecto surpreendentemente novo. Abriu este, também com uma chave. -  Olhe para aqui, minha filha. Sabe o que é isto?

  Retirou do cofre um pequeno cilindro embrulhado em papel e desfez um dos seus extremos. Caíram-lhe para a mão algumas moedas de oiro.

- Olhe para elas, veja-as bem, toque-lhes. Sabe o que são? Aposto que não. É muito nova. São soberanos. Era o que usávamos, antes de todos esses sujos bocados de papel entrarem na moda. Valem muito mais do que todos os bocados de papel. Há muito que os coleccionei. Mas tenho outras coisas, nesta caixa. Muitas coisas aqui arrumadas. Todas preparadas, para o futuro. Emma não o sabe... ninguém o sabe. E um segredo só de nós dois, está a compreender? Sabe porque lhe disse isto e lhe estive a mostrar estas coisas?

- Porque foi?

- Porque não quero que me julgue um velho doente e inútil. O velho cão tem ainda muita vida. Minha mulher morreu há muito tempo. Estava sempre a levantar objecções a tudo. Não gostou dos nomes que dei aos filhos, uns bons nomes saxões, não tinha o mínimo interesse pela árvore genealógica da família. Nunca fiz muito caso do que ela dizia, pois era um ser muito pobre de espírito, ao passo que você é uma rapariga inteligente. Vou dar-lhe um conselho: não se prenda por um homem novo. Os rapazes novos são tolos! Você precisa de olhar pelo seu futuro. Aguarde...- os seus dedos apertaram o braço de Lucy. Aproximou a boca do ouvido da jovem e segredou: - Não lhe digo mais do que isto: Aguarde. Esses pobres idiotas julgam que não tardarei a morrer, mas enganam-se. Não me admiraria se sobrevivesse a todos eles. Depois veremos! Sim, sim, depois veremos. Harold não tem filhos. Cedric e Alfred são solteiros. Emma...Emma, essa já não casa. Tem um fraco por Quimper... Mas Quimper nunca se lembrará de casar com ela. Há Alexander, evidentemente... Sabe, gosto de Alexander... É estranho, mas é verdade, gosto de Alexander.

  Fez uma pausa durante a qual ficou de cenho franzido, e depois perguntou:

- Então, que tem a dizer? Hem?

- Miss Eyelesbarrow...

  A voz de Emma chegou, abafada, através da porta fechada do escritório. Lucy aproveitou, reconhecidamente, a oportunidade.

- Miss Crackenthorpe está a chamar-me. Tenho de ir. Muito obrigado por tudo quanto me mostrou...

- Não se esqueça... do nosso segredo.

- Não o esquecerei - assegurou Lucy precipitando-se para o átrio, sem perceber muito bem se tinha acabado de receber uma proposta condicional de casamento.

 

Dermot Craddock estava sentado à secretária do   seu gabinete na New Scotland Yard.

  Falava ao telefone, em françês, uma língua em que   era toleravelmente eficiente.

- Foi apenas uma ideia... - disse.

- Mas sempre é uma ideia - replicou a voz no outro extremo do fio, da Prefeitura de Paris. – Já   mandei proceder a um inquérito nesses círculos.

  O meu agente informou que tem duas ou três hipóteses prometedoras, para investigação. A menos que exista algum problema familiar... ou um amante. Essas mulheres desaparecem com facilidade da circulação, sem que alguém se preocupe com isso. Foram dar um passeio, ou existe outro homem. Ninguém se interessa por saber o que lhes aconteceu. É uma pena que a fotografia que me enviou seja tão difícil de reconhecer por quem quer que seja. A morte por estrangulamento não melhora o aspecto. Vou agora estudar o último relatório do meu agente acerca deste assunto. Talvez ressalte alguma coisa. Au revoir, mon cher.

  Enquanto Craddock retribuía delicadamente a despedida, alguém pousou uma folha de papel, à sua frente, sobre a secretária.

  Dizia:

Miss Emma Crackenthorpe.

Deseja falar com o inspector-detective Craddock.

Caso Rutherford Hall.

  Pousou o auscultador no descanso e disse ao polícia:

- Mande entrar Miss Crackenthorpe.

  Enquanto aguardava a chegada desta, recostou-se na cadeira, pensativamente.

  Por conseguinte, não se enganara. Emma sabia alguma coisa... talvez não muita, mas qualquer coisa, possivelmente útil. E resolvera contar-lhe.

  Levantou-se, quando ela entrou, estendeu-lhe a mão, instalou-a numa poltrona e ofereceu-lhe um cigarro, que ela recusou. Depois, seguiu-se uma breve pausa. Craddock calculou que ela procurava as palavras. Inclinou-se para a frente.

- Tem algo a contar-me, Miss Crackenthorpe? Posso ajudá-la? Tem andado preocupada com qualquer coisa, não é verdade? Talvez qualquer coisa de pouca importânçia e que talvez ache nada ter a ver com o caso, mas que, por outro lado, deve mencionar. Vem procurar-me com esse fim, não é verdade? Talvez diga respeito à identidade da morta. Julga saber quem   ela era?

- Não, não, não é bem isso. Para dizer a verdade,   é muito improvável, mas...

- Mas há uma possibilidade que a preocupa. É melhor dizer-me... pois talvez possamos sossegá-la.

  Emma não falou desde logo. Por fim, disse:

- Já conhece três irmãos meus. Tinha outro, chamado Edmund que morreu na guerra. Pouco antes de ter morrido, escreveu-me de França.

  Abriu a bolsa e tirou desta uma carta amarrotada.

  Leu:

  “Espero, Emma, que isto não seja um choque para ti, mas vou casar-me... com uma rapariga francesa. Foi tudo muito rápido... mas sei que gostarás de Martine... e olharás por ela se algo me acontecer. Contar-te-ei todos os pormenores, na minha próxima carta - serei já um homem casado. Dá a noticia com cuidado ao velhote, sim?”

  O inspector Craddock estendeu uma mão. Emma hesitou, mas acabou por entregar-lhe a carta. Continou a falar, rapidamente.

- Dois dias depois de receber essa carta, recebemos um telegrama a dizer que Edmund desaparecera e o julgavam morto. Mais tarde, a sua morte foi anunciada pelas vias oficiais. Foi precisamente antes de Dunquerque... uma época de grande confusão. No exército,  pelo que pude averiguar, não havia qualquer registo   do seu casamento... mas, como já disse, essa época foi   de grande confusão. Nunca tive notícias da rapariga.

  Depois de a guerra acabar, tentei saber alguma coisa acerca dela, mas só lhe conhecia o primeiro nome.

  Além disso, essa parte de França fora ocupada pelos Alemães; era difícil descobrir qualquer coisa sem saber o apelido da rapariga e mais alguns dados a seu respeito. Por fim, concluí que o casamento não chegara a realizar-se e que, provavelmente, ela se casara com outro homem antes do fim da guerra, ou morrera também.

  O inspector meneou a cabeça de modo compreensivo e Emma prosseguiu:

- Imagine-se a minha impressão ao receber uma carta, há coisa de um mês, assinada Martine Crackenthorpe.

- Tem-na consigo?

  Emma tirou do bolso a carta e entregou-a a Craddock. Este leu-a com interesse. Era uma caligrafia francesa, inclinada, que indicava uma pessoa educada.

 

“Querida Senhora:

  Espero que a recepção desta carta não constitua um choque para si. Nem sequer sei se seu irmão Edmund lhe contou que nos tinhamos casado. Disse-me que lho diria, mas morreu poucos dias depois do nosso casamento e, nessa mesma altura, os Alemães ocuparam a nossa aldeia.

Depois de acabada a guerra, resolvi não lhe escrever, nem tentar qualquer aproximação, embora Edmund me tivesse dito que o fizesse. Mas, entretanto, já organizara a minha nova vida e isso não se me afigurou necessário. Porém, agora, a situação mudou. Escrevo-lhe esta carta, por causa do meu filho. Compreende, é filho de seu irmão e eu...eu já não lhe posso proporcionar o bem-estar a que tem direito. Parto para Inglaterra na próxima semana. Quer ter a bondade de dizer-me se consente em receber-me? O meu endereco postal é 126 Elvers Crescent, n. o 10. Espero que tudo isto não seja um grande choque para si.

  Com toda a consideração,

Martine Crackenthorpe”

 

  Craddock ficou calado por alguns momentos. Antes de devolver a carta, tornou a lê-la com atenção.

- O que fez, ao recebê-la, Miss Crackenthorpe?

- Por acaso, o meu cunhado Bryan Eastley estava connosco, nessa altura, e falei-lhe a esse respeito. Depois telefonei a meu irmão Harold, que se encontrava em Londres, e consultei também a sua opinião sobre o assunto. Mostrou-se céptico e recomendou-me a máxima prudênçia.

  Emma fez uma pausa antes de prosseguir:

- É evidente que foi um conselho prudente e concordei que tinha razão. Mas essa rapariga... Se essa mulher fosse na verdade a Martine de que meu irmão Edmund me falara na carta, achei que a devíamos receber com afabilidade. Escrevi para o endereco que ela me indicara, convidando-a a visitar-nos em Rutherford Hall. Alguns dias depois, recebi um telegrama de Londres: “Penalizadissima obrigada regressar França inesperadamente. Martine”. Não tive mais qualquer notícia fosse de que género fosse.

- Quando ocorreu tudo isso?

  Emma franziu o sobrolho.

- Pouco antes do Natal. Sei-o, porque desejava convidá-la a passar o Natal connosco, mas meu pai não aprovou a ideia e, por conseguinte, sugeri que ela lá fosse passar o fim-de-semana a seguir ao Natal, enquanto a família ainda lá estivesse. Julgo que o telegrama a prevenir-nos do seu regresso a França chegou poucos dias antes do Natal.

- E julga que a mulher, cujo cadáver foi encontrado no sarcófago, fosse Martine?

- Não, claro que não. Mas, quando o senhor disse que provavelmente era estrangeira... bem, não pude deixar de pensar... se...

  Calou-se.

  Craddock falou depressa e de modo tranquilizador:

- Fez muito bem em vir contar-me isto. Vamos sondar o caso. Acho quase certo que a mulher que lhe escreveu essa carta tenha voltado, de facto, a França e lá esteja agora de boa saúde e bem. Por outro lado, há uma certa coincidênçia de datas, como a senhora com certeza já notou. Como já ouviu por ocasião do inquérito, de acordo com a opinião do médico legista, a morte da mulher ocorreu há cerca de três ou quatro semanas. Mas não se preocupe, Miss Crackenthorpe e confie em nós - acrescentou com naturalidade.Consultou Mister Harold Crackenthorpe? E seu pai e seus outros irmãos?

- Tive que dizer a meu pai, claro. Ficou muito fora de si - sorriu brandamente. - Ficou convencido de que se tratava de uma artimanha, para nos extorquirem dinheiro. Quando se trata de dinheiro, meu pai excita-se com facilidade. Julga-se, ou melhor, finge julgar que é um homem muito pobre e que, por conseguinte, tem de economizar todos os centavos que pode. Creio que é vulgar as pessoas de idade arranjarem obsessões dessa natureza. Evidentemente que isso não é verdade; tem um rendimento muito grande, de que não chega a gastar a quarta parte... Pelo menos, assim era, até começarem estes impostos tão elevados. É certo que tem muito dinheiro amealhado. - Fez uma pausa e continuou: - Falei também no caso aos meus outros dois irmãos. Alfred parece que considerou o caso uma brincadeira, embora também pensasse ser quase certo tratar-se de uma impostura. Cedric não se mostrou interessado... é muito egoísta. A nossa ideia era receber Martine na presenca do nosso advogado, Mister Wimborne.

- Qual foi a opinião de Mister Wimborne sobre o assunto?

- Não chegámos a discutir o assunto com ele. Tencionávamos fazê-lo quando chegou o telegrama de Martine.

- Não fez qualquer outra diligênçia?

- Sim. Escrevi para o endereco de Londres, pondo no sobrescrito a indicação, Favor fazer seguir, mas não obtive qualquer resposta.

- Um caso bastante curioso... Hum...

  O inspector olhou Emma Crackenthorpe perscrutadoramente e perguntou:

- Qual é a sua opinião sobre o caso?

- Não sei que pensar.

- Quais foram as suas reacções na altura? Achou que a carta fosse genuína... ou concordou com seu pai e seus irmãos? A propósito, qual foi a opinião de seu cunhado?

- Bryan achou que a carta era genuína.

- E a senhora?

- Eu... não tinha a certeza.

- E como aceitava o caso... admitindo que essa rapariga fosse de facto viúva de seu irmão Edmund?

  A expressão de Emma suavizou-se.

- Eu gostava muito de Edmund. Era o meu irmão predilecto. A carta pareceu-me exactamente o género de carta que uma rapariga como Martine escreveria naquelas circunstânçias. Achei perfeitamente natural a série de acontecimentos por ela referidos. Concluí que, depois da guerra acabar, voltara a casar ou se juntara a algum homem que a protegia e ao filho. Depois, talvez esse homem tivesse morrido ou a tivesse abandonado e, nessa altura, Martine devia ter achado justo apelar para a família de Edmund, como ele próprio queria que ela fizesse. A carta pareceu-me genuína e natural, mas Harold fez-me notar que, se a carta fosse obra de um impostor, devia ter sido escrita por uma mulher que conhecera Martine, que estava no conhecimento de todos os factos e, por conseguinte, apta também a escrever uma carta absolutamente plausível. Tive de admitir a verdade disso... mas...

  Calou-se.

- Queria certificar-se? - perguntou Craddock.

  Emma olhou-o, com uma expressão de reconhecimento.

- Sim, queria certificar-me. Ficaria tão contente, se Edmund tivesse deixado um filho.

  Craddock meneou compreensivamente a cabeça.

- Como disse, a carta parece genuína. O que é surpreendente é a sua sequênçia. A abrupta partida de Martine para Paris e o facto de não ter tornado a ter notícias dela. A senhora havia-lhe respondido gentilmente, dizendo-lhe que todos estavam prontos a recebê-la. Porque não tornou a escrever, ainda que tivesse sido obrigada a regressar a França? Se se tratava de uma impostura, o facto tem simples explicação. Pensei que talvez a senhora tivesse consultado Mister Wimborne e que este houvesse procedido a um inquérito que a alarmasse. Mas disse-me que não falou no caso ao seu advogado. No entanto, é possível que algum dos seus irmãos o tenha feito. E possível que essa Martine tenha um passado pouco recomendável e pensasse que trataria apenas com a afeicoada irmã de Edmund e não com homens de negócios, desconfiados. Pode ter esperado extorquir-lhe facilmente dinheiro para a criança, que, aliás, deve ser agora um rapaz de quinze ou dezasseis anos. Mas, em vez disso, deparou-se-lhe uma coisa muito diferente. No fim de contas, creio que seriam levantados sérios aspectos legais. Se Edmund Crackenthorpe deixou um filho, nascido do matrimónio, esse filho seria um dos herdeiros da fortuna de seu avô, não é verdade?

  Emma fez que sim, com a cabeça.

- Além disso, segundo me disseram, na devida altura, herdaria Rutherford Hall e todo o terreno em volta. É provável que se trate de um terreno agora muito valioso para construções.

  Emma pareceu um pouco espantada.

- Sim, não tinha pensado nisso.

- Bem, não se preocupe - tranquilizou o inspector Craddock. - Fez muito bem em vir procurar-me. Procederei a investigações, mas parece-me muito provável que não haja qualquer relação entre a mulher que escreveu a carta (e que provavelmente procurava extorquir-lhe dinheiro por burla) e a mulher cujo corpo foi encontrado no sarcófago.

  Emma levantou-se com um suspiro de alívio.

- Sinto-me satisfeita comigo própria por ter-lhe contado tudo isto, inspector. Foi muito gentil para mim.

  Craddock acompanhou-a à porta.

  Depois telefonou ao sargento-detective Wetherall.

- Bob, tenho um trabalho para si. Vá ao cento e vinte e seis da Elvers Crescent, número dez. Leve consigo fotografias da mulher de Rutherford Hall. Veja o que consegue descobrir acerca de uma mulher que disse chamar-se Mistress Crackenthorpe. Mistress Martine Crackenthorpe, que vivia ali ou recebia ali a correspondênçia, entre, digamos, o dia quinze de Dezembro e o fim desse mês.

- Muito bem.

  Craddock tratou de vários outros assuntos que requeriam a sua atenção e à tarde foi procurar um agente de teatro de quem era amigo. O seu inquérito foi infrutífero.

  Nesse mesmo dia ainda, ao voltar ao seu gabinete, encontrou, sobre a secretária, uma carta de Paris.

  “As indicações que deu podem aplicar-se a Anna Stravinski, do Ballet Maritski. Sugiro a sua vinda. Dessin, Prefeitura”.

  Craddock soltou um profundo suspiro de alívio e a fronte desanuviou-se-lhe.

- Até que enfim!

 

- Foi tão amável em convidar-me para tomar chá consigo - disse Miss Marple a Emma Crackenthorpe.

  Miss Marple parecia uma verdadeira senhora, idosa e terna. O seu olhar rebrilhava, enquanto examinava os presentes à sua volta. Harold Crackenthorpe no seu fato escuro, de bom corte, e Alfred, que oferecia com um sorriso encantador o prato de sanduíches a Cedric, de pé, junto à escarpa da chaminé, num casaco de tweed coçado e olhando carrancudo para o resto da família.

- A sua visita deu-nos muito prazer – replicou Emma, delicadamente.

  Nada deixava perceber a cena que tivera lugar, depois do almoço, quando Emma exclamara:

- Ah, já me esquecia. Disse a Miss Eyelesbarrow que podia convidar, hoje, a velha tia, para tomar chá connosco.

- Manda dizer que não venha - disse Harold, de súbito. - Temos ainda muito que conversar e não queremos a presenca de estranhos.

- Manda-a tomar chá na cozinha, ou noutro sítio qualquer, com a rapariga - sugeriu Alfred.

- Não, não posso fazer isso - redarguiu Emma com firmeza. - Seria uma falta de educação da minha parte.

- Oh, deixem-na vir - propôs Cedric. - Podemos sondá-la um pouco, acerca da maravilhosa Lucy. Gostaria de saber mais coisas a respeito dessa rapariga. Não me merece inteira confiança. Acho-a demasiado esperta.

- Está muito bem relacionada e é absolutamente genuína - declarou Harold. - Tirei informações. Achei estranho que andasse a meter o nariz por todos os cantos e tivesse descoberto o corpo.

- Se ao menos soubéssemos quem essa mulher era - lamentou Alfred.

  Harold acrescentou colericamente:

- Acho, Emma, que não estavas de teu juízo perfeito, quando foste sugerir à Polícia que essa mulher assassinada podia ser a noiva francesa de Edmund. Ficarão convencidos de que cá veio e de que provavelmente um de nós a matou.

- Não, Harold. Não exageres.

- Harold tem toda a razão - interveio Alfred. Não sei o que te passou pela cabeça. Tenho a sensação de que sou seguido, por toda a parte, por agentes à paisana.

- Eu disse-lhe que não o fizesse - declarou Cedric -, mas Quimper concordou com ela.

- Este assunto não lhe diz respeito – observou Harold, irado. - Que trate de pílulas, de pós e da Saúde Pública.

- Parem com a discussão - pediu Emma em tom fatigado. - Estou de facto satisfeita por essa velha Miss Qualquer Coisa vir tomar chá connosco. Far-nos-á bem a presenca de um estranho. Deixaremos, por momentos, de respirar continuamente o mesmo assunto. Vou arranjar-me.

  Saiu da sala.

- Esta Lucy Eyelesbarrow... - começou Harold, parando em seguida. - Como Cedric diz, é de facto estranho que tivesse ido meter o nariz no celeiro e tivesse aberto o sarcófago... o que, na realidade, é um trabalho de Hércules. Talvez devamos fazer qualquer coisa. Achei a sua atitude, durante o almoço, bastante antagónica...

- Deixa-a comigo. Não tardarei a descobrir se anda empenhada nalguma coisa. Porque havia de abrir o sarcófago?!

- Talvez não seja, na verdade, Lucy Eyelesbarrow - sugeriu Cedric.

- Mas qual seria a vantagem... ? - Harold pareceu terrivelmente transtornado. - Oh, c'os diabos.

  Entreolharam-se com uma expressão preocupada no rosto.

- Aí vem essa pestilenta velhota tomar chá. Precisamente quando queríamos pensar.

- Discutiremos o assunto esta tarde – decidiu Alfred. - Entretanto sondaremos a velhota, acerca da sobrinha.

  Por conseguinte, Miss Marple achava-se agora instalada à lareira, sorrindo para Alfred, que lhe oferecera sanduíches.

- Muito obrigada... São...? Ah, sim, ovo e sardinha. Deliciosas. Creio que sou muito gulosa, quando tomo chá. Com a idade, compreende... À noite, tomo apenas uma refeição muito ligeira... Tenho de ter cuidado - virou-se uma vez mais para a sua anfitriã.  Que linda casa a sua! E tem tantas coisas bonitas.

  Aqueles bronzes, por exemplo, recordam-me uns que meu pai comprou... na Exposição de Paris. Deve ser   muito agradável para si ter os seus irmãos consigo. Muitas vezes os membros de uma família estão separados: ou na India, embora me pareça que, por aí, já nada haja a fazer; ou em África... A costa ocidental   tem um clima horrível!...

- Dois dos meus irmãos vivem em Londres.

- Deve ser agradável não os ter muito longe de si.

- Mas meu irmão Cedric é pintor e vive em Ibiza,   uma das ilhas Baleares.

- Os pintores gostam muito de ilhas, não é verdade? Chopin... esteve em Maiorca, não esteve? Mas esse era músico. É em Gauguin que estou a pensar. Uma vida triste... desperdiçada. Eu própria não aprecio quadros de mulheres nativas... e, no entanto, sei que Gauguin é muito apreciado. Nunca gostei muito dessa cor de mostarda acobreada. Quando olhamos para os seus quadros, parece-nos que estamos com icterícia.

  Olhou para Cedric com um ar um pouco reprovativo.

- Fale-nos de Lucy, nos seus tempos de criança, Miss Marple - pediu aquele.

  Ela olhou-o, desvanecida.

- Lucy foi sempre muito inteligente - começou. - Sim, você também, meu filho... mas não interrompa. Em aritmética era extraordinária. Recordo-me de uma vez em que houve um engano na conta do talho e...Miss Marple contou numerosas reminiscênçias da infânçia de Lucy e destas passou a acontecimentos da sua própria vida, na aldeia.

  Foi interrompida pela chegada de Bryan e dos rapazes, muito transpirados e sujos em consequênçia de uma entusiástica procura de pistas. Pouco depois, apareceu o Dr. Quimper, que ergueu levemente o sobrolho, ao olhar à sua volta, depois de ter sido apresentado à velha senhora.

- Espero que seu pai não esteja maldisposto, Emma.

- Não... isto é, esta tarde sentiu-se apenas um pouco cansado...

- Para fugir às visitas, calculo - disse Miss Marple com um sorriso travesso. - Que bem me lembro do meu querido pai. “Estás à espera de todas essas velhotas?”, costumava dizer a minha mãe. “Manda servirem-me o chá no escritório.” Era muito maroto.

- Por favor, não julgue... - começou Emma, mas Cedric interveio.

- Quando os seus queridos filhos cá estão toma sempre o chá no escritório. Do ponto de vista psicológico isso é de esperar, não é verdade, doutor?

  O Dr. Quimper, que devorava sanduíches e uma talhada de bolo de café com a frança apreciação de um homem que dispõe habitualmente de pouco tempo para gastar nas refeições, respondeu:

- A psicologia é uma coisa muito bonita, quando é tratada por psicólogos, mas, hoje em dia, o mal está em que toda a gente é psicóloga amador. Os meus doentes dizem-me, a mim, exactamente os complexos e neuroses de que sofrem, sem me darem oportunidade de ser eu a dizer-lhos. Obrigado, Emma. Tomo outra chávena de chá. Hoje não tive tempo para almoçar.

- Acho que a vida de um médico é tão nobre e tão cheia de abnegação - comentou Miss Marple.

  O Dr. Quimper, depois de engolir uma última porção de bolo, elogiou:

- Que bolo magnífico, Emma. É uma esplêndida doceira.

- Não fui eu quem o fez. Foi Miss Eyelesbarrow.

- Mas você sabe fazê-los igualmente bons - retorquiu o Dr. Quimper com lealdade.

- Quer ir ver o pai?

  Levantou-se e o médico seguiu-a. Miss Marple observou-os enquanto se afastavam.

- Vejo que Miss Crackenthorpe é uma filha muito dedicada.

- Eu próprio não compreendo como ela pode aturar o velhote - disse Cedric.

- Esta casa é muito confortável e o pai é-lhe muito afeicoado - explicou Harold rapidamente.

- Emma sente-se bem. Nasceu para ficar solteirona.

  No olhar de Miss Marple havia um leve fulgor, quando disse:

- Acha isso?

  Harold apressou-se a responder:

- Meu irmão não usou o termo solteirona num sentido depreciativo, Miss Marple.

- Oh, não me ofendi - assegurou Miss Marple. - Estava apenas a pensar se ele teria razão no que disse. Não acho que Miss Crackenthorpe seja o tipo de solteirona. Acho até que é o tipo de mulher que casa tarde... e é feliz com o casamento.

- Vivendo aqui como vive, não é muito natural que isso aconteça - disse Cedric. - Nunca fala com ninguém com quem possa casar.

  O fulgor dos olhos de Miss Marple tornou-se ainda mais acentudado.

- Há sempre sacerdotes e... médicos.

  Os seus olhos, ternos e maliciosos, observaram os irmãos de Emma Crackenthorpe.

  Era óbvio que lhes sugerira uma coisa, que nunca lhes ocorrera e que não achavam sobremaneira agradável.

  Miss Marple levantou-se, deixando cair, ao fazê-lo, um xalezinho de lã e a bolsa.

  Os três irmãos apanharam-nos atenciosamente do chão.

- São muito gentis - agradeceu Miss Marple. Ah, sim, a minha mantazinha azul. Sim, foram muito amáveis em convidarem-me. Tinha estado a pensar como seria a vossa casa... para imaginar Lucy a trabalhar aqui.

- Tem perfeitas condições domésticas... com um assassínio dentro de portas - motejou Cedric.

- Cedric! - exclamou Harold, num tom severo.

  Miss Marple sorriu para Cedric.

- Sabe quem me faz lembrar? O jovem Thomas Eade, filho do nosso director do banco. Sempre pronto a impressionar as pessoas. Está claro que, em círculos bancários, isso não foi bem aceite e, por conseguinte, foi parar às Índias Ocidentais. Regressou à pátria, por morte do pai, e herdou muito dinheiro. Isso foi óptimo para ele, pois teve sempre muito mais jeito para gastar dinheiro do que para ganhá-lo.

 

  Lucy levou Miss Marple a casa. No regresso, uma figura destacou-se da sombra e parou no fulgor dos faróis, precisamente quando ia virar o carro, para entrar pela azinhaga das traseiras. A figura estendeu a mão e Lucy reconheceu Alfred Crackenthorpe.

- Aqui dentro está-se melhor - observou. Brr, lá fora está um frio medonho. Pensei que me seria agradável dar uma volta, mas enganei-me. A sua tia chegou bem a casa?

- Sim. Gostou muito de ter vindo.

- Isso viu-se. E engraçado como as pessoas de idade apreciam as reuniões sociais, por muito monótonas que estas sejam. E, na realidade, nada podia ser mais monótono do que Rutherford Hall. Não posso suportar este ambiente mais do que dois dias seguidos. Como é que você consegue viver aqui, Lucy? Não se importa que a trate por Lucy, pois não?

- Certamente que não. Não acho a vida aqui monótona. Claro está que não vivo aqui a título permanente.

- Tenho estado a observá-la... Você, Lucy, é uma rapariga esperta e mal empregada a cozinhar e a fazer limpezas.

- Obrigado, mas prefiro o serviço de cozinha e as limpezas, ao serviço de escritório.

- Também eu preferiria, mas há outras maneiras de viver. Podia ser independente.

- Já o sou.

- Mas não desta maneira. Quero dizer, trabalhar por sua conta. Não lhe agrada a ideia?

- Talvez.

  Lucy meteu o carro no estábulo.

- Não se quer comprometer?

- Preciso de ficar convencida.

- Sinceramente, minha flor, você podia servir-me. Tem umas maneiras formidáveis... que inspiram confiança.

- Quer que o ajude a vender tijolos de oiro?

- Nada tão arriscado como isso. Apenas um “nadinha” à margem da lei... nada mais. - A sua mão agarrou o braço de Lucy. - Você, Lucy, é uma rapariga muito atraente. Gostaria de tê-la por sócia.

- Sinto-me lisonjeada.

- Quer dizer que não se sente convencida? Pense no que lhe disse. Pense no prazer que tiraria em exceder, em astúcia, todas essas pessoas sensatas que há para aí. A dificuldade está em que é necessário capital.

- Tenho pena, mas não tenho nenhum.

- Oh, isto não foi para a experimentar. Dentro em breve, deitarei mão a algum. O meu respeitável papá não é eterno. É um velho avarento. Quando fechar os olhos, receberei uma boa dose de “massa”. Que me diz a isto, Lucy?

- Quais são as condições?

- Casamento, se quiser. As mulheres parecem de  sejá-lo, sempre! Além disso, as mulheres casadas não podem ser obrigadas a testemunhar contra os maridos.

- Isso já não é tão lisonjeiro!

- Vamos, Lucy. Ainda não compreendeu que estou apaixonado por si?

  Com certa surpresa, Lucy apercebeu-se de uma estranha fascinação. Alfred possuía um certo encanto, devido talvez ao seu magnestismo, nitidamente animal. Riu-se e soltou-se do seu braço envolvente.

- Não é altura para demoras. Tenho de tratar do jantar.

- Pois sim, você é uma cozinheira maravilhosa. Que há para o jantar?

- Espere e verá! Você é tão curioso como os garotos!

  Entraram em casa e Lucy apressou-se a ir para a cozinha. Ficou um pouco surpreendida, ao ser interrompida no seu trabalho por Harold Crackenthorpe.

- Miss Eyelesbarrow, posso falar consigo a respeito de um certo assunto?

- Poderá ser mais tarde, Mister Crackenthorpe? Estou um pouco atrasada.

- Claro, claro. Depois do jantar?

- Pois sim.

  O jantar foi devidamente servido e apreciado. Lucy acabou de lavar a louça e foi encontrar-se com Harold Crackenthorpe, que a esperava no átrio.

- Que deseja, Mister Crackenthorpe?

- Quer entrar para aqui? - perguntou este abrindo a porta da sala de visitas e entrando primeiro. Depois de Lucy entrar, fechou a porta.

- Devo partir amanhã de manhã, muito cedo - explicou -, mas quero dizer-lhe que fiquei muito agradavelmente impressionado com a sua competência.

- Obrigada - disse Lucy, sentindo-se um pouco surpreendida.

- Acho que os seus talentos estão mal empregados aqui... muito mal empregados.

- Acha isso? Pois eu não.

  “Seja como for, este não pode pedir-me em casamento” pensava Lucy. “Já tem mulher.”

- Sugiro que, depois de se ir embora daqui, me vá procurar em Londres. Se quiser telefonar-me a combinar um encontro, deixarei instruções à minha secretária. A verdade é que uma pessoa com a sua capacidade nos seria útil, na firma. Posso oferecer-lhe, Miss Eyelesbarrow, um esplêndido salário e uma perspectiva brilhante. Creio que ficará agradavelmente surpreendida - acrescentou com um sorriso magnânimo.

  Lucy disse, com um ar modesto:

- Obrigada, Mister Crackenthorpe, vou pensar nisso.

- Não leve muito tempo a fazê-lo. Uma jovem ansiosa por arranjar uma boa situação neste mundo não deve perder estas oportunidades.

  Voltou a sorrir.

- Boa noite, Miss Eyelesbarrow, durma bem.

  “Ora, sim senhor...”, pensou Lucy “tudo isto é muito interessante.”

  Ao subir as escadas para ir deitar-se, cruzou-se com Cedric.

- Escute, Lucy, preciso de conversar consigo, acerca de uma coisa.

- Quer que case consigo, que o siga até Ibiza e trate de si?

  Cedric pareceu muito surpreendido e um pouco alarmado.

- Nunca me passou tal coisa pela cabeça.

- Desculpe, enganei-me.

- Queria apenas saber se há um horário dos caminhos-de-ferro, cá em casa.

- Era só isso? Há um em cima da mesa do átrio.

- Sabe - admoestou Cedric -, você não deve julgar que toda a gente quer casar consigo. Você é uma rapariga engraçada, mas não é nenhuma beleza. Há um nome para isso... Para dizer a verdade, você é a rapariga do mundo com quem menos me agradaria casar. Percebeu bem?

- A sério? - perguntou Lucy. - Talvez me prefira como madrasta?

- Que diz? - exclamou Cedric, fitando-a, estupefacto.

- Ouviu muito bem o que eu disse - redarguiu, entrando no quarto e fechando a porta.

 

  Dermot Craddock conversava com Armand Dessin, da Prefeitura de Paris. Os dois homens já se tinham encontrado uma ou duas ocasiões antes e davam-se bem. Como Craddock falava fluentemente  o françês, a maior parte da conversa decorreu nesse   idioma.

- É apenas uma ideia - acentuou Dessin. - Tenho aqui uma fotografia do corpo do ballet. Aqui está  ela. É a quarta a contar da esquerda... Que diz?

- Talvez seja - admitiu -, mas nada mais posso dizer. Quem era ela? Que sabe a seu respeito?

- Quase nada - replicou o outro, com animação.

- Não era uma bailarina de categoria, compreende, e o Ballet Maritski também não é de categoria. Exibe-se nos teatros suburbanos e faz tournées. Não conta nomes famosos. Mas vou levá-lo a Madame Joliet que é a  pessoa que o dirige.

  Madame Joliet era uma senhora francesa, desembaraçada, de olhar astuto, de pequeno bigode e com   boa dose de tecido adiposo.

- A mim a Polícia não me agrada! - declarou, olhando-os, de semblante carrancudo. - Sempre que   podem, causam-me aborrecimentos.

- Não, não, madame, não deve dizer isso  defendeu-se Dessin, que era um homem alto, magro e de aspecto melancólico. - Quando é que eu lhe causei   aborrecimentos?

- Quando aquela idiota bebeu ácido fénico - respondeu Madame Joliet prontamente. - E tudo isso porque se apaixonou pelo chefe de orquestra... que não gosta de mulheres e tem outros gostos. Por causa disso, vocês fizeram um bicho-de-sete-cabeças, o que não é de forma alguma bom para o meu belo ballet.

- Pelo contrário, isso provoca uma série de lotações esgotadas - assegurou Dessin. - Mas isso passou-se há três anos. Não deve ser rancorosa. Queria apenas falar-lhe dessa rapariga, Anna Stravinski.

- Que quer que lhe diga? - perguntou prudentemente.

- É russa? - interessou-se o inspector Craddock.

- Não. Pergunta isso por causa do nome? Todas essas raparigas usam nomes desses. Não era uma figura importante, não dançava bem e não era beleza nenhuma. Elle était assez bien, c'est tout. Dançava razoavelmente em conjunto... mas era incapaz de fazer um solo.

- Era francesa?

- Talvez. Tinha um passaporte françês, mas uma vez disse-me que era casada com um inglês.

- Disse-lhe que era casada com um inglês? Vivo... ou morto?

  Madame Joliet encolheu os ombros.

- Ou morto, ou tinha-a abandonado. Como hei-de sabê-lo? Estas raparigas... arranjam sempre sarilhos com homens...

- Quando a viu pela última vez?

- Esteve com a minha companhia em Londres, durante seis semanas. Representámos em Torquay, em Bournemouth, em Eastbourne, num outro sítio de que não me recordo e em Hammersmuth. Depois regressámos a França, mas Anna... não voltou. Enviou apenas um telegrama a participar que saía da companhia e que ia viver com a família do marido... ou qualquer disparate assim. Eu não acreditei naquilo. Acho mais provável que tenha arranjado um homem.

  O inspector Craddock meneou a cabeça em sinal de concordânçia. Compreendeu ser isso o que Madame Joliet pensava invariavelmente.

- Não me ralei nada com isso. Posso arranjar raparigas tão boas ou melhores do que ela para dançar e, por conseguinte, encolhi os ombros e não voltei a pensar no assunto. Porque havia de me ralar? Essas raparigas são todas as mesmas: perdem a cabeça com os homens.

- Quando foi isso?

- O nosso regresso a França? Foi... no domingo antes do Natal. E Anna deixou-nos dois... ou três dias antes. Não me recordo exactamente.

  Madame Joliet fez uma pausa e depois inquiriu com um súbito fulgor de interesse no olhar:

- Porque pretendem encontrá-la? Herdou alguma fortuna?

- Pelo contrário - replicou o inspector Craddock com delicadeza. - Julgamos que tenha sido assassinada.

  Madame Joliet voltou a mostrar-se indiferente:

- Ça se peut. Acontece. Era uma boa católica. Ia à missa aos domingos e confessava-se.

- Alguma vez lhe falou num filho, madame?

- Num filho? Quer dizer que ela tinha um filho? Acho isso muito pouco provável. Todas essas raparigas conhecem uma morada útil aonde ir. Monsieur Dessin sabe isso tão bem como eu.

- Pode ter tido um filho, antes de haver abraçado a vida de teatro - sugeriu Craddock. - Durante a guerra, por exemplo.

- Ah! Dans la guerre! Isso é sempre possível. Mas, nesse caso, nada sei a esse respeito.

- Quais eram as suas companheiras mais íntimas?

- Posso indicar-lhe dois ou três nomes... mas ela não era muito íntima de nenhuma delas.

  Uma ou duas delas tinham conhecido Anna relativamente bem, mas disseram que esta nunca falava muito de si própria e que, quando o fazia, era para dizer quase tudo mentiras.

- Gostava de inventar coisas... ter sido amante de um grão-duque... ou de um grande financeiro inglês...ou que trabalhara para a Resistênçia durante a guerra. Chegou a inventar que tinha entrado num filme, em Hollywood.

  A entrevista pouco adiantara. Tudo quanto parecia apurar-se é que Anna Stravinski fora uma grande mentirosa, mas tão-pouco havia qualquer razão para acreditar que o seu corpo fora encontrado num sarcófago em Rutherford Hall. A identificação feita pelas raparigas e por Madame Joliet foi muito imprecisa e hesitante. Todas concordaram que parecia ser Anna. Mas, com franqueza! Aquele corpo tão inchado... podia ser qualquer outra pessoa!

  O único facto que se estabeleceu foi que, no dia 19 de Dezembro, Anna Stravinski resolvera não regressar a França e que, no dia 20 de Dezembro, uma mulher com o seu aspecto viajou no comboio das quatro e trinta e três para Brackhampton e fora nele estrangulada.

  Se a mulher encontrada no sarcófago não era Anna Stravinski, onde estava esta agora?

  A isto, Madame Joliet respondeu de modo simples e seguro:

- Está com um homem.

  Craddock admitiu, no íntimo, ser essa a resposta mais provável.

  Havia uma outra possibilidade a considerar, dado que Anna dissera, em certa ocasião, ter um marido inglês.

  Esse marido teria sido Edmund Crackenthorpe?

  Isto parecia-lhe improvável, atendendo à descrição de Anna, que lhe fora feita por aqueles que a conheciam. Era muito mais provável que Anna tivesse conhecido a pequena Martine com suficiente intimidade para estar a par dos necessários pormenores. Podia ter sido Anna quem escrevera aquela carta a Emma Crackenthorpe e, nesse caso, Anna podia ter-se assustado ao ter conhecimento de um inquérito. Pode até ter achado prudente cortar as suas ligações com o Ballet Maritski. Mas onde estava ela agora?

  E, de novo e inevitavelmente, a resposta de Madame Joliet pareceu mais provável.

  Com um homem...

 

  Antes de partir de Paris, Craddock discutiu com Dessin o caso da mulher chamada Martine.

  O último assegurou que a Sûreté faria o possível por descobrir se havia algum registo de casamento realizado entre o tenente Edmund Crackenthorpe, do 4° Regimento do Southshire, e uma jovem francesa de nome Martine, pouco antes da queda de Dunquerque.

 

  De novo no seu gabinete, Craddock ouviu a informação do sargento Wetherall.

- O cento e vinte seis da Elvers Crescent é uma pensão. Muito respeitável.

- Algumas identificações?

- Não, ninguém reconheceu a fotografia como sendo a da mulher que ia buscar a correspondência, mas tão-pouco acho que fossem capazes de reconhecê-la... Já lá vai quase um mês e entra e sai muita gente dessa casa. É uma pensão para estudantes.

- Pode lá ter estado sob outro nome.

- Apesar disso, não a reconheceram pela fotografia. - E acrescentou: - Corremos os hotéis, mas o nome de Martine Crackenthorpe não figura no registo de qualquer deles. De acordo com o seu telefonema de Paris, procedemos a investigações acerca de Anna Stravinski. Esteve registada com outro elemento da companhia num hotel barato de Brook Green. A maioria de gente de teatro vive aí. Desapareceu na noite de terça-feira, dia dezanove, depois do espectáculo.

  Craddock, depois de reflectir uns momentos, telefonou para Wimborne, Henderson & Carstairs a pedir uma entrevista com Mr. Wimborne.

  Pouco tempo depois, foi introduzido num pequeno gabinete, sem ventilação, onde Mr. Wimborne se achava sentado a uma enorme secretária, coberta com montes de papéis poeirentos.

  Mr. Wimborne mirou o visitante com a cautela cortês característica de um advogado de família para com a Polícia...

- Em que posso ser-lhe útil, inspector?

- Esta carta... - Craddock pousou a carta de Martine sobre a secretária.

  Mr. Wimborne tocou-lhe enfastiado com um dedo, mas não lhe pegou. As faces coloriram-se-lhe ao de leve e apertou os lábios.

- Exactamente, exactamente! - proferiu. - Recebi, ontem de manhã, uma carta de Miss Emma Crackenthorpe informando-me da sua visita à Scotland Yard e de... de todas as circunstânçias. Devo dizer que não compreendo por que razão não fui consultado acerca desta carta, mal a receberam! É muitissimo extraordinário! Deviam ter-me informado logo...

  O inspector Craddock procurou acalmá-lo.

- Não fazia a menor ideia quanto ao facto de Edmund ter-se casado - queixou-se Mr. Wimborne, numa voz magoada.

  O inspector Craddock sugeriu o tempo de guerra como desculpa, mas Wimborne atalhou, com aspereza:

- Tempo de guerra! - Depois, considerou e prosseguiu. - Sim, na verdade, quando a guerra estalou, achávamo-nos em Lincoln's Inn Fields e a casa ao lado da nossa foi bombardeada e muitos dos nossos arquivos ficaram destruídos. Não os importantes, pois estes tinham sido transferidos para o campo, como medida de segurança. Mas isso causou uma enorme confusão. Nessa altura, os assuntos dos Crackenthorpe estavam nas mãos de meu pai. Morreu há seis anos. É possível que lhe tenham falado nesse casamento de Edmund, mas, pelo que sabemos, parece que tal casamento nunca se realizou e que, por conseguinte, meu pai não atribuiu importânçia ao caso. Devo dizer que acho tudo isto muito suspeito. Esse envio de notícias, depois de tantos anos, a falar num casamento e num filho legítimo... é, de facto, muito suspeito. Que provas tinha ela, sempre gostava de saber?

- Exactamente - concordou Craddock. – Qual seria a sua posição ou a do filho?

- Suponho que a ideia dela fosse levar os Crackenthorpe a sustentá-la e ao filho.

- Sim, mas, quero dizer, a que teriam legalmente direito... se ela provasse a sua pretensão?

- Ah, compreendo. - Mr. Wimborne pegou nos óculos, que tirara, na sua irritação, e pô-los, olhando com atenção para o inspector Craddock.

- Bem, por ora, nada. Mas se ela conseguisse provar que o rapaz era filho do seu casamento legal com Edmund Crackenthorpe, nesse caso, o rapaz estaria habilitado, por morte de Luther Crackenthorpe, a receber parte do dinheiro deixado por Josiah Crackenthorpe. Além disso, herdaria Rutherford Hall, visto ser filho do seu filho mais velho.

- Alguém quer herdar a casa?

- Para lá viver? Acho que não. Mas essa propriedade, meu caro inspector, vale uma considerável soma de dinheiro. Uma soma muito considerável. E um terreno esplêndido para a construção e fins industriais. É um terreno que fica agora no coração de Brackhampton. Sim, é uma herança considerável.

- Creio que me disse que por morte de Luther Crackenthorpe é Cedric quem a herda, não é verdade?

- Sim, herda a propriedade... por ser o filho mais velho sobrevivente.

- Segundo me deram a entender, Cedric Crackenthorpe não se interessa muito por dinheiro.

  Mr. Wimborne mirou-o com frieza.

- Sim? Pois eu sinto-me inclinado a não dar importânçia a declarações dessa natureza. Não há dúvida de que existem pessoas que são indiferentes ao dinheiro, mas nunca conheci nenhuma.

  Mr. Wimborne sentiu obviamente prazer em fazer esta observação.

  O inspector Craddock apressou-se a aproveitar este raio de sol.

- Parece que Harold e Alfred Crackenthorpe ficaram muito transtornados com a chegada dessa carta.

- E muito natural.

- A sua eventual herança ficaria diminuída?

- Decerto. O filho de Edmund Crackenthorpe, continuando a admitir que existe um filho, teria direito a um quinto do dinheiro depositado, mas isso é um motivo absolutamente inadequado para um assassínio, se é isso que pretende dizer.

- Mas suponho que ambos estão com as finanças muito em baixo - murmurou Craddock, sustentando o olhar penetrante de Mr. Wimborne com absoluta impassibilidade.

- Ah! A Polícia procedeu a inquéritos? Sim, Alfred está quase sempre sem dinheiro. De vez em quando, nada nele durante um breve espaco de tempo... mas depressa se some. Harold, tal como o senhor parece ter descoberto, está neste momento em precária situacão.

- Apesar da sua aparênçia de prosperidade financeira?

- Tudo isso é fachada! Metade dessas empresas nem sequer sabem se são solvíveis ou não. As folhas de balanço podem ser feitas de modo a parecerem correctas a um olho não perito. Mas, quando os activos de uma casa comercial estão registados e não são de facto activos, em que situação se está?

- Naquela em que, provavelmente, Harold Crackenthorpe se encontra, isto é, com grande falta de dinheiro.

- Ora, ele não o obteria se estrangulasse a viúva do irmão - observou Mr. Wimborne. - E ninguém matou Luther Crackenthorpe, o que constituiria o único assassínio que beneficiaria o resto da família. Por conseguinte, inspector, não vejo, de facto, aonde quer chegar.

  O pior é que o próprio inspector Craddock também não o sabia muito bem.

 

  O inspector Craddock combinara uma entrevista com Harold Crackenthorpe no gabinete deste último, e tanto ele como o sargento Wetherall tinham chegado ali pontualmente. O gabinete ficava no quarto andar de um grande edifício de repartições da City. O seu interior denotava em toda a parte prosperidade e o auge do moderno gosto de decoração.

  Uma jovem impecável informou-se do seu nome, falou num murmúrio discreto por um telefone interno e depois, levantando-se, conduziu-os ao gabinete particular de Harold Crackenthorpe.

  Este achava-se instalado a uma enorme secretária de tampo de coiro e tinha o habitual aspecto impecável e confiante. Se se encontrava perto da ruína, nada o denotava.

  Olhou os recém-chegados com um interesse franco e acolhedor.

- Bom dia, inspector Craddock. Suponho que a sua visita signifique que tem finalmente alguma notícia definitiva a dar-nos.

- Lamento, Mister Crackenthorpe, mas não é isso. Trata-se apenas de mais algumas perguntas que gostaria de fazer.

- Mais perguntas? Certamente que já respondemos a todas as perguntas precisas.

- E possível que ache isso, Mister Crackenthorpe, mas trata-se somente de uma questão da nossa rotina habitual.

- Bem, desta vez, o que é? - perguntou, com impaciênçia.

- Gostaria que me dissesse exactamente o que fez na tarde e na noite do dia vinte de Dezembro último...digamos, entre as três horas da tarde e a meia-noite.

  O rosto de Harold Crackenthorpe ficou rubro de cólera.

- Acho essa pergunta muitíssimo extraordinária. Quer fazer o favor de me dizer o que significa?

  Craddock sorriu amavelmente e respondeu:

- Significa apenas que desejo saber onde esteve entre as três horas da tarde e a meia-noite de sexta-feira, dia vinte de Dezembro.

- Porquê?

- A sua resposta facilitará o inquérito.

- Não sei se deva responder à sua pergunta. Isto é, sem estar aqui presente o meu advogado.

- Faça como entender - replicou Craddock. Não é obrigado a responder a quaisquer perguntas e tem todo o direito à presenca de um advogado.

- Não estará a avisar-me, de certa maneira?

- Não, senhor - afiancou o inspector Craddock, mostrando-se chocado. - Nada disso. As perguntas que lhe faço, faço-as também a várias outras pessoas. Trata-se apenas de uma questão de necessidade de eliminacóes.

- Sim, de certo... Tenho todo o desejo de ser tão útil quanto me for possível. Ora, deixe-me ver. A resposta ao que me pergunta não é fácil de dar logo, mas nós, aqui, somos muito ordenados. Espero que Miss Ellis possa ajudar.

  Falou por um dos telefones internos e quase imediatamente uma jovem de linhas aerodinâmicas, num fato de saia e casaco negro, de corte impecável, entrou no gabinete, com um bloco de notas.

- Apresento-lhe a minha secretária, Miss Ellis.  O inspector Craddock. Miss Ellis, o inspector queria saber o que fiz na tarde e na noite de... de que dia disse?

- De sexta-feira, vinte de Dezembro.

- Sexta-feira, vinte de Dezembro. Espero que tenha alguma anotação.

- Com certeza. - Miss Ellis retirou-se para voltar pouco depois com um calendário-memorando que folheou.

- Na manhã do dia vinte de Dezembro, esteve aqui no escritório. Conferenciou com Mister Goldie acerca da fusão de sociedades Cromartie, almoçou com Lord Forthville em Berkeley...

- Sim, sim, foi nesse dia.

- Voltou ao escritório cerca das três horas e ditou meia dúzia de cartas. Depois saiu para ir às salas Sotheby assistir a um leilão de manuscritos em que estava interessado. Não voltou ao escritório, mas tenho aqui indicação para recordar-lhe que nesse dia devia ir jantar ao Catering Club - terminou Miss Ellis erguendo o olhar interrogativamente.

- Obrigado, Miss Ellis.

  A secretária retirou-se do gabinete.

- Recordo-me agora muito bem de tudo isso - disse Harold. - Nessa tarde fui ao Sotheby, mas os manuscritos que eu queria foram leiloados por um preço exagerado. Tomei chá numa pequena casa da Jermyn Street, creio que se chama Russells. Passei cerca de meia hora num teatro de variedades e depois fui para casa... Vivo no número quarenta e três de Cardigan Gardens. O jantar do Catering Club realizou-se às sete e meia no Caterer's Hall e depois disso voltei para casa e deitei-me. Julgo que isto responde às suas perguntas.

- Está tudo muito claro, Mister Crackenthorpe. Que horas eram quando foi vestir-se a casa?

- Não me recordo bem. Creio que foi pouco depois das seis.

- E depois do jantar?

- Creio que eram onze e meia, quando cheguei a casa.

- Foi o seu criado que lhe abriu a porta? Ou foi Lady Alice Crackenthorpe?

- Minha mulher, Lady Alice, está no estrangeiro, no Sul da França, desde o princípio de Dezembro. Eu próprio abri a porta com a chave do trinco.

- Por conseguinte, não há ninguém que possa confirmar a sua chegada a casa, às horas que diz?

  Harold lançou-lhe um olhar frio.

- Acho que os criados me ouviram entrar. Tenho um casal. Mas, na realidade, inspector...

- Por favor, Mister Crackenthorpe, sei muito bem que este género de perguntas é incomodativo, mas estou quase no fim. Tem carro?

- Sim, um Humber Hawle.

- É o senhor que o conduz?

- Sim, raramente o uso, a não ser nos fins-de-semana. Hoje em dia é impossívei conduzir um carro em Londres.

- Presumo que o utiliza quando vai visitar seu pai e irmã, a Brackhampton?

- Só quando lá tenciono fazer uma estada demorada. Se lá vou passar apenas uma noite, como, por exemplo, sucedeu no outro dia, por causa do inquérito, vou sempre de comboio. Há um serviço de comboios excelente e é um meio de transporte muito mais rápido que o automóvel. O carro que a minha irmã aluga vai esperar-me à estação.

- Onde guarda o seu carro?

- Numa garagem que aluguei por trás dos Cardigan Gardens. Mais alguma pergunta?

- Creio que, por ora, é tudo - respondeu o inspector Craddock, sorrindo e pondo-se de pé. - Peço-lhe que me desculpe tê-lo incomodado.

  Quando se encontraram lá fora, o sargento Wetherall, um homem que vivia num estado de permanente desconfiança de tudo, observou significativamente:

- Ele não gostou das suas perguntas... não gostou mesmo nada delas.

- Se uma pessoa não cometeu um crime é natural que fique aborrecida se outra pessoa desconfia que o praticou - explicou amenamente o inspector. E com certeza que um homem ultra-respeitável como Harold Crackenthorpe, estando inocente, deve ficar aborrecidíssimo. Não há mal nenhum nisso. O que agora precisamos de descobrir é se alguém viu de facto Harold Crackenthorpe nesse leilão ou na casa de chá. Podia muito bem ter viajado no comboio das quatro horas e trinta e três minutos, ter atirado essa mulher para fora do comboio e ter-se metido noutro comboio para chegar a Londres a tempo de comparecer ao jantar. Também podia ter lá ido no carro, nessa noite, ter metido o corpo no sarcófago e ter regressado.

- Julga que foi ele?

- Como hei-de sabê-lo? É alto e moreno; podia ter estado nesse comboio e está ligado a Rutherford Hall. Agora, vamos ao mano Alfred.

 

 Alfred Crackenthorpe vivia num apartamento em West Hampstead, num enorme edifício, com parque de estacionamento privativo para automóveis.

  Alfred Crackenthorpe acolheu-os com muita cordialidade, mas o inspector achou-o nervoso.

- Sinto-me intrigado - disse. - Posso oferecer-lhe de beber, inspector Craddock? - perguntou segurando convidativamente várias garrafas.

- Não, obrigado, Mister Crackenthorpe.

- O caso é tão feio como isso? - perguntou e logo se riu do próprio gracejo.

  O inspector declarou o fim da visita.

- O que eu fiz na tarde e na noite do dia vinte de Dezembro. Porque havia de saber? Ora... isso foi... há mais de três semanas.

- Seu irmão Harold soube dar-me uma resposta exacta.

- O mano Harold talvez, mas o mano Alfred não - e acrescentou com uma nota estranha... talvez um pouco maliciosa: - Harold é o membro bem sucedido da família, sempre atarefado, útil, completamente empregado... com tempo para tudo e fazendo tudo com pontualidade. Se tivesse de cometer um... assassínio, por exemplo, seria cuidadosamente pontual e exacto.

- Há qualquer razão especial para se servir desse exemplo?

- Oh, não. Ocorreu-me apenas à ideia... como um supremo absurdo.

- E quanto a si?

  Alfred estendeu as mãos.

- É como lhe digo... não tenho memória para datas e lugares. Se se tratasse do dia de Natal... nesse caso, lembrava-me. Passei-o com meu pai em Brackhampton. Para dizer a verdade, não sei porquê. Está sempre a resmungar por causa do gasto que tem com a nossa presença... mas se lá não fôssemos, resmungaria, porque o subestimávamos. Na realidade, vamos lá para dar satisfação a minha irmã.

- E este ano também lá foi?

- Sim.

- Mas, por infelicidade, seu pai estava doente, não é verdade?

- Adoeceu. Está habituado a viver como um pardal para glória da economia, e nesse dia comeu e bebeu exageradamente. Claro está que sofreu as consequênçias.

- Foi apenas isso, não é verdade?

- Com certeza. Que mais?

- Creio que o médico estava... preocupado.

- Oh, esse tolo do Quimper - proferiu Alfred em tom desdenhoso. - Não vale a pena dar-lhe ouvidos, inspector. É um alarmista da pior espécie.

- A sério? Pois a mim, pareceu-me um homem muito sensato.

- É um rematado idiota. Na realidade, o pai não é inválido algum, não tem nada no coração, mas engana Quimper por completo. Como é natural, quando o pai se sentiu de facto doente, fez uma fita medonha e obrigou Quimper a andar de um lado para o outro, a fazer perguntas e a examinar tudo quanto ele comera e bebera. Tudo isso foi ridículo! - terminou Alfred com invulgar calor.

  Craddock ficou calado por alguns momentos. AIfred, de súbito, olhou-o e perguntou, com petulância:

- Mas que vem a ser tudo isto? Porque querem saber onde estive numa dada sexta-feira, há três ou quatro semanas?

- Nesse caso, recorda-se de que foi a uma sexta-feira?

- Creio que foi o senhor que mo disse.

- Talvez sim - admitiu o inspector. - Seja como for a sexta-feira, vinte, é o dia em questão.

- Porquê?

- Um inquérito de rotina.

- Isso é um disparate. Descobriu mais alguma coisa acerca dessa mulher? De onde veio?

- A nossa informação ainda não está completa.

  Alfred lançou-lhe um olhar perscrutador.

- Espero que não se deixe sugestionar pela tola teoria de Emma, segundo a qual podia tratar-se da viúva de meu irmão Edmund. Isso é um autêntico disparate.

- Essa... Martine, nunca apelou para si?

- Para mim? Não, que ideia. Só por brincadeira.

- Acha mais provável que apelasse para seu irmão Harold?

- Muito mais provável. O seu nome aparece com frequênçia nos jornais. Vive bem. Não me admiraria nada que ela tentasse abordá-lo, mas não levaria nada.

Harold é tão agarrado como o velhote. Emma é evidentemente o anjo bom da família e era a irmã favorita de Edmund. Apesar disso, Emma não é crédula. Admitiu a possibilidade de essa mulher ser uma impostora e já tinha preparado uma recepção de boas-vindas, constituída por toda a família e por um advogado.

- Foi uma medida muito sensata - apoiou Craddock. - Chegaram a marcar alguma data para tal encontro?

- Devia ser pouco depois do Natal... o fim-de-semana do dia vinte sete... - calou-se.

- Ah! - exclamou Craddock prazenteiramente.

- Vejo que certas datas têm um significado para si.

- Não foi marcada qualquer data certa.

- Mas quando falaram acerca disso?

- Não me recordo.

- E não sabe dizer-me o que fez na sexta-feira, dia vinte de Dezembro?

- Desculpe... mas não faço a mínima ideia.

- Talvez as pessoas daqui ou algum amigo possa ajudá-lo a recordar-se...

- Talvez. Hei-de perguntar-lhes. Farei o possível.

    Alfred parecia agora mais seguro de si próprio.

- Não sei dizer-lhe o que fiz nesse dia - disse -, mas posso dizer-lhe o que não fiz. Não assassinei ninguém no Long Barn.

- Porque diz isso, Mister Crackenthorpe?

- Ora, vamos, meu caro inspector. 0 senhor anda a investigar este crime, não é verdade?

- Creio que terá de concluir isso por si próprio - redarguiu o inspector afavelmente.

- A Polícia é tão “caixinhas”.

- Não apenas a Polícia. Creio, Mister Crackenthorpe, que se o senhor quisesse conseguiria recordar-se do que fez nessa sexta-feira. É evidente que pode ter as suas razões para não desejar recordar-se...

- Não me apanhará dessa maneira, inspector.  É de facto muito suspeito, muitíssimo suspeito até que  eu não consiga lembrar-me... mas é a verdade! Um     momento... Nessa semana fui a Leeds... hospedei-me num hotel, perto do Town Hall... não me recordo do  nome... mas não terão dificuldade em achá-lo. Deve     ter sido nessa sexta-feira.

- Verificá-lo-emos - declarou o inspector impassivelmente.

  Levantou-se.

- Lamento, Mister Crackenthorpe, que não tenha podido ser mais cooperante!

- É uma pouca sorte para mim! Cedric tem um bom álibi em Ibiza e Harold esteve sem dúvida ocupado nos seus negócios... ao passo que eu não possuo qualquer álibi. E uma pena. Tudo isto é tão tolo. Já lhe disse que não assassino pessoas. Por que diabo havia de assassinar uma mulher desconhecida? Para quê? Ainda que o cadáver seja o da viúva de Edmund, porque havia algum de nós desejar matá-la? Se ela se tivesse casado com Harold, durante a guerra, e subitamente tivesse reaparecido, nesse caso a situação do meu respeitável mano Harold seria desastrosa... bigamia e tudo o mais. Mas Edmund! Todos nós teríamos feito pressão sobre o pai para que lhe desse uma mesada e enviasse o garoto para um colégio decente. O pai havia de fazer uma cena, mas não poderia recusar-se a resolver a situação. Não quer beber qualquer coisa antes de se ir embora, inspector? A sério? Lamento muito não ter podido ser-lhe útil.

 

  O inspector Craddock olhou para o excitado sargento:

- Que há, Wetherall?

- Já sei quem ele é, senhor inspector. Tenho andado durante todo este tempo a puxar pela memória e de repente ocorreu-me. Esteve metido com Dicky Rogers nesse caso de conservas. Nunca conseguimos nenhuma prova contra ele... é muito esperto. E esteve metido em mais umas embrulhadas do grupo de Soho. Aquele caso dos relógios.

  Craddock compreendia agora por que motivo o rosto de Alfred lhe parecera tão familiar desde o início do caso. Nada daquilo fora importante... não se conseguira provar coisa alguma contra Alfred que apresentara sempre uma razão plausível e inocente para justificar a sua intervenção nos casos. Mas a Polícia tinha a convicção de que a sua inocência não era completa.

- Isto esclarece um pouco as coisas - disse Craddock.

- Julga que foi ele?

- Não creio que seja um tipo capaz de assassinar. Mas isso explica outras coisas... a razão por que não pôde apresentar um álibi.

- Sim, o caso parece estar feio para ele.

- Não, na realidade - contrariou Craddock. É uma atitude inteligente... sustentar firmemente não se lembrar. Há muitas pessoas incapazes de se recordarem do que fizeram e onde estiveram uma semana antes. É uma medida especialmente útil, quando não se quer chamar a atenção para a maneira como se passou o tempo; num interessante rendez-vous com o grupo de Dicky Rogers, por exemplo.

- Nesse caso, julga que não foi ele?

- Por ora não estou preparado para defender a inocênçia de quem quer que seja - redarguiu o inspector Craddock.

  Sentado à secretária e de sobrolho franzido, Craddock começou a escrever:

  Assassino... um homem alto e moreno!!!

  Vitima?. . pode ter sido Martine, noiva ou viúva de Edmund Crackenthorpe.

  Ou pode ter sido Anna Stravinski. Desapareceu da circulação, nessa altura, com a idade, aspecto e vestuário semelhantes ao da morta. Não se sabe de qualquer ligação sua com Rutherford Hall.

  Se fosse uma primeira mulher de Harold? Bigamia!

  Se fosse amante de Harold. Chantagem?!

  Se houvesse ligação com Alfred, podia tratar-se de chantagem. Saberia como mandá-lo para a cadeia?

  Se houvesse ligação com Cedric... tê-lo-ia conhecido no estrangeiro? Paris? Baleares?

  Ou a vitima ser Anna S e dizer-se Martine.

  Ou  a vitima ser uma mulher desconhecida morta por um assassino desconhecido?

  Craddock reflectia tristemente na situação. Não se podia fazer progressos num caso sem se conhecer o motivo.

  Se se tratasse do assassínio do velho Mr. Crackenthorpe... O motivo não faltaria.

  Algo despontou na sua memória...

  Escreveu mais algumas palavras no bloco de notas.

  Consultar o Dr. Q., acerca da doença do Natal.

  Cedric - álibi.

  Consultar Miss Marple acerca da última tagarelice.

 

  Quando Craddock chegou ao n.o 4 da Madison Road encontrou Lucy Eyelesbarrow com Miss Marple.

  Hesitou um momento antes de expor o seu plano de campanha e acabou por decidir que Lucy Eyelesbarrow poderia ser um bom aliado.

  Depois da troca de cumprimentos, Craddock tirou solenemente a carteira da algibeira, extraiu dela três xelins e pousou-os sobre a mesa.

- Que é isso, inspector?

- Os seus honorários pela consulta. Venho consultá-la... sobre assassínio! Pulso, temperatura, reacções locais, possível causa remota do crime, etc. Sou apenas o pobre investigador local vexado.

  Miss Marple olhou-o e piscou o olho. Craddock sorriu-lhes. Lucy Eyelesbarrow sufocou uma exclamação e depois riu-se.

- Ora, inspector Craddock, no fim de contas, o senhor é humano.

- Esta tarde, não me encontro estritamente em serviço.

- Já lhe tinha dito que nos conhecíamos – disse Miss Marple a Lucy. - É afilhado de Sir Henry Clithering... um amigo meu, muito íntimo.

- Quer que lhe conte, Miss Eyelesbarrow, o que meu padrinho disse a respeito dela, quando nos conhemos? Descreveu-a como sendo a melhor detective que Deus deitou ao mundo. Aconselhou-me a nunca desprezar as... - Dermot Craddock fez uma curta pausa para procurar o termo apropriado - .. hum...senhoras de idade. Dizia que estas eram capazes de imaginar o que podia ter acontecido, o que devia ter acontecido e até o que de facto acontecera! E que eram ainda capazes de dizer porque acontecera.

  Miss Marple estava corada e confusa.

- Querido Sir Henry - murmurou -, sempre tão gentil. Na realidade não sou inteligente, mas tenho talvez um leve conhecimento da natureza humana...Como sabe, vivo numa aldeia... - e acrescentou com mais firmeza. - É evidente que me encontro um pouco desfavorecida por não me achar no próprio local.  Acho que é sempre de muita ajuda uma pessoa recordar-nos outra... porque em toda a parte há tipos semelhantes e isso é um guia de grande valor.

  Lucy pareceu não a compreender muito bem, mas Craddock meneou aprovativamente a cabeça.

- Mas foi lá lanchar, não é verdade?

- Sim. Gostei muito. Fiquei um pouco desapontada por não ter visto o velho Mister Crackenthorpe...mas não se pode ter tudo.

- Acha que, se tivesse visto a pessoa que cometeu o crime, teria sabido que era ela? - perguntou Lucy.

- Oh, não digo isso, querida. Tem-se sempre tendênçia para fazer suposições... e, por vezes, em casos graves como um crime sério, essas suposições podem ser perigosas. Tudo quanto se pode fazer é observar as pessoas em causa... Ou que podem estar em causa... e ver quem nos recordam.

- Como Cedric e o director do banco?

  Miss Marple corrigiu:

- O filho do director do banco, querida. Mister Eade, esse era muito mais parecido com Mister Harold...um homem muito observador... mas dando talvez um exagerado apreço ao dinheiro... o género de homem também capaz de tudo para evitar o escândalo.

  Craddock sorriu e perguntou:

- E Alfred?

- Um aldrabão - replicou com prontidão Miss Marple. - Sei que Raymond deixou de trabalhar com ele por causa disso. Quanto a Emma - prosseguiu Miss Marple pensativamente - recorda-me muito Geraldine Webb; sempre muito calma, quase insignificante... e muito dominada pela velha mãe. Por morte desta herdou uma bonita soma de dinheiro e, com grande surpresa de toda a gente, cortou o cabelo, fez uma permanente, partiu num cruzeiro e regressou casada com um simpático advogado. Tiveram dois filhos.

  O paralelo era claro. Lucy perguntou um pouco embaraçada:

- Acha bem ter dito o que disse acerca da possibilidade de Emma casar? Pareceu-me que isso desagradou um pouco aos irmãos.

  Miss Marple meneou afirmativamente a cabeça.

- Sim. Como muitos homens... são incapazes de ver o que se passa à sua frente. Julgo que você também ainda não tinha reparado.

- Pois não - admitiu Lucy. - Nunca pensei nisso. Ambos me pareciam...

- Muitos velhos? - interrompeu Miss Marple, com um leve sorriso. - Mas o doutor Quimper pouco mais conta do que quarenta anos, embora já tenha as têmporas grisalhas e seja óbvio que anseie por ter um lar; e Emma Crackenthorpe tem menos de quarenta anos... está ainda em muito boa idade de casar e de constituir família. Segundo me disseram, a mulher do médico morreu muito nova, de parto.

- Creio que sim. Emma disse qualquer coisa a esse respeito, no outro dia.

- Deve sentir-se só - continuou Miss Marple. Um médico cheio de trabalho precisa de uma esposa...de uma pessoa que o compreenda... não muito nova.

- Oiça, querida - observou Lucy. - Estamos a investigar um crime ou a tratar de casamentos?

  Miss Marple piscou o olho.

- Creio que sou um pouco romântica. Talvez por ser uma solteirona. Sabe, minha filha, pela parte que me diz respeito, o seu contrato está terminado. Se na verdade quer ir passar umas férias no estrangeiro, antes de aceitar um novo contrato, ainda tem tempo para uma breve viagem.

- E deixar Rutherford Hall? Nunca! Agora tornei-me num verdadeiro mastim! Quase tanto como os rapazes. Passam todo o tempo à procura de pistas. Ontem examinaram os recipientes do lixo. Uma coisa muitíssimo desagradável... e, na realidade, não faziam a mínima ideia do que andavam a procurar. Se fossem ter consigo triunfantemente, inspector Craddock, arvorando um bocado de papel dizendo: Martine, se tem apreco à vida afaste-se de Long Barn! Já sabe que tive pena deles e escondi isso no curral dos porcos!

- Porquê nesse sítio, querida? - perguntou Miss Marple interessada. - Tem lá porcos.

- Não, não. Mas... às vezes vou lá.

  Por qualquer razão, Lucy corou e Miss Marple olhou-a com redobrado interesse.

- Quem está agora lá em casa? – perguntou Craddock.

- Cedric e também Bryan, a passarem o fim-de-semana. Harold e Alfred telefonaram hoje a dizer que vêm amanhã. Tenho a impressão de que o senhor, inspector, os alarmou.

  Craddock sorriu.

- Sacudi-os um pouco. Pedi-lhes que me contassem o que tinham feito na sexta-feita, dia vinte de Dezembro.

- E lembravam-se?

- Harold, sim. Mas Alfred não... ou não quis dizer-mo.

- Creio que os álibis devem ser terrivelmente difíceis de arranjar - disse Lucy. - Horas, lugares e datas. Devem também ser difíceis de provar.

- Isso requer tempo e paciência... mas conseguimo-lo. - Consultou o relógio de pulso. - Tenho de ir daqui a pouco a Rutherford Hall falar com Cedric, mas, em primeiro lugar, quero encontrar o doutor Quimper.

- Deve apanhá-lo na boa hora. Deve estar a acabar a consulta. Tenho de regressar para preparar o jantar.

- Gostaria que me desse a sua opinião sobre uma coisa, Miss Eyelesbarrow. Qual é a opinião da família acerca do caso dessa Martine?

  Lucy replicou prontamente:

- Estão todos furiosos com Emma, por ela ter ido falar-lhe nisso... e também com o doutor Quimper, por este a ter encorajado a fazê-lo. Harold e Alfred estão convencidos de que foi uma tentativa de burla, mas Emma não tem a certeza. Cedric também acha o caso estranho, mas não o toma tanto a sério como os outros dois. Por outro lado, Bryan parece absolutamente certo de que é um caso genuíno.

- Porquê?

- Bem, Bryan é assim. Aceita as coisas tais quais elas se apresentam. Pensa que era mulher de Edmund, ou antes, viúva, e que teve de súbito de regressar a França, mas que voltará a dar notícias. O facto de ela não ter escrito a dar, ou ter dado, qualquer sinal, parece-lhe muito natural porque ele nunca escreve. Bryan é muito meigo. Parece um cão que quer que o levem a passear.

- E a minha filha leva-o a passear? – perguntou Miss Marple. - Talvez para o curral dos porcos?

  Lucy olhou-a com vivacidade.

- Há tantos gentlemen nessa casa, a entrarem e a saírem.

  Quando Miss Marple proferia a palavra “gentlemen” dava-lhe todo o seu sabor vitoriano. Tomava-se logo consciênca de homens arrojados, talvez com patilhas, por vezes perversos, mas sempre galanteadores.

- Você é uma rapariga tão engraçada – proferiu Miss Marple. - Calculo que a cumulem de atenções, não é verdade?

  Lucy corou levemente. Certas imagens perpassaram-lhe pelo espírito: Cedric apoiado ao muro do curral; Bryan sentado tristemente na mesa da cozinha; os dedos de Alfred encontrando-se com o seus, enquanto a ajudava a levantar as chávenas do café.

- Os gentemen - prosseguiu Miss Marple, no tom de uma pessoa que falasse de uma espécie perigosa e estranha - são todos muito parecidos, sob certos aspectos... ainda que sejam muitos velhos...

- Há cem anos atrás seria queimada como bruxa! - exclamou Lucy.

  E contou-lhe a proposta de casamento que lhe fizera o velho Mr. Crackenthorpe.

- De facto, todos eles procuram seduzir-me sob certo aspecto. Harold foi muito correcto... ofereceu-me uma boa situação financeira na City. Não suponho que isso se deva à minha atractiva pessoa... Devem pensar que sei alguma coisa.

  Riu-se, mas o inspector Craddock não a imitou.

- Tenha cuidado - recomendou. - Podem matá-la, em vez de tentar seduzi-la.

- Acho que isso seja mais fácil - concordou Lucy.

  Depois estremeceu.

- Acabamos por nos esquecer do caso. Os pequenos têm andado tão divertidos que quase se pensa no assunto como numa brincadeira. Mas não é uma brincadeira.

- Pois não - concordou Miss Marple. - O crime não é uma brincadeira.

  Ficou calada por alguns momentos e depois perguntou:

- Os pequenos não voltarão em breve para o colégio?

- Sim, na próxima semana. Vão amanhã para casa de James Stoddard-West, onde passarão o resto das férias.

- Ainda bem - declarou Miss Marple com ar grave. - Não me agradaria que acontecesse alguma coisa enquanto estivessem aqui.

- Refere-se ao velho Mister Crackenthorpe. Julga que ele seja a próxima vítima?

- Não - respondeu Miss Marple. - Esse não me dá cuidado. Referia-me aos pequenos.

- Aos pequenos?

- Bem, a Alexander.

- Mas com certeza...

 

- Sabe, andam por todos os lados... à procura de pistas. Os rapazes gostam desse género de coisas...mas pode ser muito perigoso.

  Craddock olhou-a pensativamente.

- Não acredita, Miss Marple, que se trate do caso de uma mulher desconhecida assassinada por um homem desconhecido, pois não? Relaciona o caso com Rutherford Hall, não é verdade?

- Sim, acho que existe uma relação definitiva.

- Tudo quanto sabemos a respeito do assassino é que é um homem alto e moreno. Foi a única coisa que a sua amiga pôde dizer. Em Rutherford Hall há três homens altos e morenos. No dia do inquérito oficial, ao sair, vi os três irmãos parados no passeio, à espera do carro. Estavam virados de costas para mim e achei espantoso como, nos seus pesados sobretudos, se assemelhavam tanto entre si. Três homens altos e morenos. E, todavia, na realidade, são três tipos completamente diferentes.

- Tenho estado a pensar... - murmurou Miss Marple -, tenho estado a pensar se, no fim de contas, o caso não é mais simples do que supomos. Os assassínios são muitas vezes simples... e têm um motivo óbvio, um pouco sórdido...

- Acredita na misteriosa Martine, Miss Marple?

- Não me custa nada a acreditar que Edmund Crackenthorpe tivesse casado ou tencionado casar com uma rapariga chamada Martine. Emma Crackenthorpe mostrou-lhe a carta de Edmund, não é verdade? Pelo que conheco de Emma e pelo que Lucy me conta, acho-a absolutamente incapaz de inventar uma coisa dessa natureza... na verdade para que havia de fazê-lo?

- Por conseguinte, acreditando na veracidade de Martine - concluiu Craddock, com um ar pensativo - existe um motivo. O aparecimento de Martine com um filho desferiria um golpe na herança de Crackenthorpe... embora não o bastante para decidir o crime. Todos eles estão muito necessitados de dinheiro...

- Harold também? - perguntou Lucy, incredulamente.

- Até Harold Crackenthorpe, com a sua aparênçia de prosperidade, não é o financeiro calmo e conservador que aparenta. Arriscou-se muito em aventuras indesejáveis. Ora uma boa soma de dinheiro, recebida a tempo, pode muitas vezes evitar um desastre.

- Mas se assim... - começou Lucy, e calou-se.

- Continue, Miss Evelesbarrow... - pediu Craddock.

- Compreendo-a, minha filha - disse Miss Marple. - Quer dizer que a pessoa assassinada não era a indicada, nesse caso.

- Sim. A morte de Martine não traria vantagem a Harold... ou a qualquer dos outros... antes de...

- Antes de Luther Crackenthorpe morrer. Exactamente. Isso já me ocorreu também. Mas, segundo já o médico me disse, a saúde de Mister Crackenthorpe é muito melhor do que se julga.

- Viverá ainda muitos anos - opinou Lucy. Depois franziu o sobrolho.

- Que há? - perguntou Craddock encorajadoramente.

- Por altura do Natal esteve bastante doente - disse Lucy. - Disse que o médico fez um bicho-de-sete-cabeças por causa disso. “Quem o ouvisse havia de ter pensado que me tinham envenenado”. Foram estas as palavras dele.

  Olhou inquiridoramente para Craddock.

- Sim. Na verdade, é a esse respeito que quero falar com o doutor Quimper.

- Bem, tenho de ir-me embora - declarou Lucy.

- Valha-me Deus, já é tão tarde.

  Miss Marple pousou o tricô e pegou no The Times, aberto no passatempo das palavras cruzadas.

- Quem me dera aqui um dicionário - murmurou. - Tontina e Tokay... Confundo sempre estas duas palavras. Creio que uma delas é um vinho húngaro.

- Essa é Tokay - disse Lucy, olhando para trás, já à porta. - Mas uma delas tem cinco letras e a outra tem sete.

- Oh, não vêm nas palavras cruzadas – explicou Miss Marple de um modo vago. - Era cá uma ideia minha.

  O inspector Craddock olhou-a com atenção.

  Depois despediu-se e saiu também.

 

  Craddock teve de esperar alguns minutos, até que Quimper acabasse a consulta.

  O médico parecia cansado e abatido.

  Ofereceu uma bebida a Craddock e, como este a aceitasse, preparou também uma para si.

- Pobres diabos - comentou, sentando-se numa poltrona. - Muito nervosos, muito estúpidos... Tolice. Tive hoje um caso triste. O de uma mulher que devia ter sido operada há um ano. Se nessa altura me tivesse procurado, a operação poderia ter resultado. Agora é demasiado tarde. Sinto-me transtornado com isso. A verdade é que as pessoas são um misto extraordinário de heroísmo e de cobardia. Tinha dores horríveis, mas suportava-as sem se queixar, só porque tinha medo de cá vir e de descobrir ser verdade o que receava. Mas diga-me, inspector, porque veio procurar-me?

- Em primeiro lugar, creio dever-lhe os meus agradecimentos por ter aconselhado Miss Crackenthorpe a levar-me aquela carta que se supunha ser da viúva do irmão.

- Ah, sim? Bem, não a aconselhei exactamente a ir procurá-lo. Ela queria fazê-lo, sentia-se preocupada, mas hesitava porque, claro está, todos os seus queridos irmãos tentavam dissuadi-la de o fazer.

- Porquê?

  O médico encolheu os ombros.

- Suponho que receavam que essa senhora fosse de facto o que dizia ser.

- Julga que a carta fosse autêntica?

- Não faço ideia. Nem sequer cheguei a vê-la. Mas talvez se tratasse de uma pessoa que conhecesse os factos e estivesse apenas a fazer uma experiência, na esperança de explorar os sentimentos de Emma. Mas nisso enganaram-se por completo. Emma nada tem de tola. Não daria lugar no seu coração a uma cunhada desconhecida sem fazer, em primeiro lugar, algumas perguntas práticas.

  E acrescentou com curiosidade:

- Mas porque quer saber a minha opinião? Nada tenho a ver com o assunto.

- Na realidade, vim cá para perguntar-lhe uma coisa muito diferente... mas não sei bem como fazê-lo.

  O Dr. Quimper mostrou-se interessado.

- Creio que não há muito tempo... julgo que foi por altura do Natal... Mister Crackenthorpe adoeceu gravemente.

  Notou logo uma mudança na expressão do médico, que se tornou mais dura.

- Sim.

- Suponho que se tratou de uma perturbação gástrica qualquer?

- Sim.

- Isso é difícil de... Mister Crackenthorpe está sempre a vangloriar-se da sua saúde, dizendo que tenciona sobreviver à maior parte da família. Referiu-se a si... desculpe-me, doutor...

- Oh, não se preocupe por minha causa. Não me magoo com o que os meus doentes dizem de mim!

- Falou de si como se o senhor tivesse feito um bicho-de-sete-cabeças. - Quimper sorriu. – Disse que o senhor lhe tinha feito todo o género de perguntas, para saber o que ele comera, o nome da pessoa que cozinhara a refeição e a servira.

  O médico já não sorria. O seu rosto estava de novo com uma expressão dura.

- Continue.

- Empregou uma frase como... “falou como se julgasse que me tinham envenenado”.

  Fez-se uma pausa.

- Teve... algumas suspeitas desse género?

  Quimper não respondeu logo. Levantou-se e comecou a passear de um lado para o outro. Por fim, virou-se para Craddock.

- Que diabo espera que eu lhe diga? Julga que um médico pode formular acusações de envenenamento, a torto e a direito, sem ter uma prova do que afirma?

- Gostaria apenas de saber, sem carácter oficial, se... essa ideia... lhe passou pela cabeça?

  O Dr. Quimper redarguiu de maneira evasiva:

- Mister Crackenthorpe leva uma vida muito frugal. Quando a família se reúne, é Emma quem prepara as refeições. Resultado... um aborrecido ataque de gastrenterite. Os sintomas indicavam esse diagnóstico.

  Craddock persistiu:

- Compreendo. Ficou plenamente convencido? Não se sentiu... como hei-de dizer... intrigado?

- Está bem, está bem. Sim, fiquei na verdade intrigado! Está satisfeito?

- Interessa-me sabê-lo - redarguiu Craddock. Na realidade, de que suspeitou... ou que receou?

- Os casos gástricos variam, claro, mas havia certos indícios mais indicativos de envenenamento por arsénico do que uma simples gastrenterite. Note que as duas coisas são muito semelhantes. Médicos de categoria maior do que a minha não reconheceram um envenenamento por arsénico... e passaram uma certidão de óbito, com toda a boa-fé.

- E qual foi o resultado do seu inquérito?

- Pareceu que aquilo que eu suspeitava não podia ser verdade. Mister Crackenthorpe garantiu-me que tivera ataques semelhantes a ntes de eu o assistir... e com origem na mesma causa, segundo disse. Todos eles se haviam verificado em ocasiões de refeições mais lautas.

- E isso foi em alturas em que a casa estava cheia de gente? Família ou visitas?

- Sim. Isso pareceu-me razoável, mas, sinceramente, Craddock, não me senti satisfeito. Cheguei a escrever ao velho doutor Morris. Foi meu colega e reformou-se pouco depois de eu trabalhar com ele. Crackenthorpe tinha sido seu doente e interroguei-o acerca desses ataques que o velho tivera.

- E que resposta obteve?

  Quimper sorriu.

- Recebi uma descompostura. Aconselhou-me mais ou menos a não ser louco. - Encolheu os ombros. - Presumivelmente, fui de facto um rematado louco.

- Talvez - admitiu Craddock, pensativo.

  Depois resolveu-se a falar francamente.

- Pondo de parte a discrição, doutor, há duas partes que devem beneficiar consideravelmente com a morte de Luther Crackenthorpe. - O médico meneou a cabeça em sinal de concordânçia. - É um velho... mas são e robusto. É possível que chegue aos noventa e tal anos, não é verdade?

- Muito facilmente. Tem muito cuidado consigo e tem uma boa constituição.

- E os filhos... e a filha... vão vivendo, com muitas dificuldades, não é verdade?

- Não inclua Emma. Essa não é envenenadora nenhuma. Esses ataques apenas se verificam quando os outros cá estão... e não quando ela e o pai estão sozinhos.

  “O que é uma precaução elementar... se for ela a culpada”, pensou o inspector, tendo, porém, o cuidado de não o dizer.

  Fez uma pausa, escolhendo com cuidado as palavras.

- Seguramente que... nestes assuntos sou leigo...mas admitindo a hipótese de haver sido ministrado arsénico na comida... não acha que Crackenthorpe teve muita sorte em não sucumbir?

- Ora isso é que é estranho - replicou o médico.

- E é precisamente esse facto que me leva a acreditar, tal como o velho Morris diz, que fui um rematado tolo. Bem vê, é óbvio que não se trata de um caso de pequenas doses de arsénico ministradas com regularidade... que é o que se pode chamar o método clássico de envenenamento por arsénico. Crackenthorpe nunca sofreu de qualquer perturbação gástrica. De certo modo, é isso o que faz parecer estranhos esses súbitos e violentos ataques. Por conseguinte, admitindo que não se

devem a causas naturais, parece que o envenenador tem sido pouco hábil, de todas as vezes... o que não parece muito lógico.

- Quer dizer que ministrou uma dose insuficiente?

- Sim. Por outro lado, Crackenthorpe tem uma forte constituição física e o que poderia resultar noutro homem, não resultou nele. Há sempre que atender a uma idiossincrasia pessoal. Somos levados a pensar que o envenenador, a menos que seja extraordinariamente tímido, devia ter aumentado a dose. Porque não o teria feito? Isto é - acrescentou -, se existe de facto um envenenador, o que provavelmente não acontece.

- É um problema estranho - concordou o inspector. - Não parece fazer sentido.

- Inspector Craddock!

  Ao ouvir que o chamavam em voz baixa e ansiosa, o inspector sobressaltou-se.

  Ia precisamente nesse momento tocar à porta.

  Alexander e o seu colega Stoddard-West emergiram, cautelosamente, das sombras.

- Ouvimos o seu carro e queríamos falar consigo.

- Então, entremos - disse Craddock, voltando a estender a mão para a campainha, mas Alexander puxou-lhe pelo casaco com a vivacidade de um cão impaciente.

- Encontrámos uma pista - murmurou.

- Sim, encontrámos uma pista – confirmou Stoddard-West.

  “Diabo de rapariga!”, pensou Craddock.

- Esplêndido! - proferiu negligentemente. Entremos e vejamo-la.

- Não - insistiu Alexander. - Hão-de interromper-nos. Venha connosco ao quarto das arrecadações.

  Com um pouco de má vontade, Craddock contornou com eles a casa e atravessou o pátio do estábulo. Stoddard-West abriu uma pesada porta, esticou-se e acendeu uma luz eléctrica de fraca intensidade.

  Aquele quarto servia de depósito a tudo que ninguém queria. Cadeiras de jardim partidas, velhas ferramentas enferrujadas, uma grande e velha segadora-mecânica, colchões de arame, canapés e redes de ténis rotas.

- Vimos muitas vezes para aqui - revelou Alexander. - É um sítio onde podemos estar à vontade.

- E realmente uma pista, senhor – afiancou Stoddard-West, com excitação, os olhos rebrilhando por trás dos óculos. - Encontrámo-la esta tarde.

- Temos andado à procura todos estes dias. Nos arbustos...

- Dentro dos troncos de árvores ocos...

- E revistámos os recipientes das cinzas...

- Por acaso havia lá coisas muito interessantes...

- E depois fomos à casa da caldeira...

- O velho Hillman tem aí um enorme carro galvanizado, cheio de desperdícios de papel...

- Porque, quando a caldeira se apaga e ele quer voltar a acendê-la...

- Qualquer pedaço de papel que ande por aí a voar, agarra-o e mete-o lá dentro...

- E foi aí que nós a encontrámos...

- Encontraram o quê? - perguntou Craddock, interrompendo o dueto.

- A pista. Cuidado, Stoddard, calça as luvas.

  Cheio de importânçia, Stoddard-West, seguindo a tradição do melhor romance detectivesco, calçou um par de luvas bastante sujas e tirou da algibeira uma carteira fotográfica Kodak. Desta retirou com os dedos enluvados e com o maior cuidado um sobrescrito sujo e amarrotado que estendeu, cheio de importânçia, ao inspector.

  Ambos os rapazes sustiveram a respiração, naquele momento de expectativa.

  Craddock pegou-lhe com a devida solenidade. Gostava dos garotos e estava disposto a entrar no espírito da coisa.

  Tratava-se apenas de um sobrescrito rasgado e com o carimbo do correio... dirigido a Mrs. Martine Crackenthorpe, 126 Elvers Crescent, n." 10.

- Está a compreender? - perguntou Alexander excitadamente. - Isso mostra que ela esteve cá... quero dizer a mulher francesa do tio Edmund... aquela que motivou toda esta confusão. Deve ter estado aqui, de facto, e ter deixado cair o sobrescrito em qualquer lado. Não acha?

  Stoddard-West interveio:

- Isto faz pensar que foi ela que assassinaram...isto é, devia ser ela quem estava no sarcófago, não acha, senhor?

  Esperavam com ansiedade uma resposta.

- É possível, muito possível - admitiu Craddock.

- Isto é importante, não acha?

- Vai mandar procurar impressões digitais, não é verdade?

- Com certeza - assegurou Craddock.

  Stoddard-West soltou um profundo suspiro.

- Tivemos uma sorte formidável, não acha? Foi no nosso último dia.

- Ultimo dia?

- Sim. Parto amanhã para casa dos Stoddard, onde passaremos os pouco dias que faltam para as férias acabarem. A casa dos Stoddard é formidável... Queen Anne, não é?

- William e Mary - corrigiu Stoddard-West.

- Julguei que a tua mãe tinha dito...

- A mãe é francesa. Não sabe grande coisa de arquitectura inglesa.

- Mas teu pai disse que foi construída...

  Craddock examinava o sobrescrito.

  Lucy Eyelesbarrow era inteligente. Como conseguira falsificar o carimbo do correio? Examinou-o mais de perto, mas não tinha luz suficiente.

  A seu lado prosseguiu uma acalorada discussão sobre arquitectura. Sem lhe dar atenção, disse:

- Agora vamos para casa. Foram muito úteis.

 

  Craddock entrou em Rutherford Hall pelas traseiras e escoltado pelos dois garotos. Parecia ser essa a entrada de que em regra se serviam. A cozinha era arejada e alegre. Lucy, de enorme avental branco, tendia uma massa com o rolo. Encostado ao guarda-louças e observando-a com uma espécie de atenção canina, achava-se Bryan Eastley.

- Viva, pai - saudou Alexander. - Aqui outra vez?

- Gosto de estar aqui - retorquiu Bryan, que acrescentou: - Miss Eyelesbarrow não se importa.

- Está claro que não me importo - disse Lucy.

- Boa noite, inspector Craddock.

- Vem fazer um inquérito à cozinha? - perguntou Bryan com interesse.

- Não exactamente. Mister Cedric Crackenthorpe ainda cá está, não é verdade?

- Está sim. Quer falar com ele?

- Sim, se faz favor.

- Vou ver se está - ofereceu-se Bryan. – Pode ter ido dar uma volta.

  Desencostou-se do guarda-louças.

- Muito obrigada - disse-lhe Lucy. - Se não tivesse as mãos todas sujas de farinha, eu própria iria.

- Que está a fazer? - perguntou Stoddard-West, com ansiedade.

- Torta de pêssego.

- Que bom!

- Falta pouco tempo para a hora do jantar? perguntou Alexander.

- Não.

- Cos diabos! Estou cheio de fome.

- Há um resto de bolo na despensa.

  Os rapazes precipitaram-se nessa direcção.

- Os meus parabéns - felicitou Craddock.

- Porquê... exactamente?

- Pela sua habilidade.

- Em quê?

  Craddock indicou a carteira de papel que continha o sobrescrito.

- Está perfeito.

- De que está a falar?

- Disto, minha amiga... disto.

  Ela fitou-o sem compreender.

  De súbito, Craddock sentiu-se aturdido.

- Não foi você que forjou isto... e o meteu no quarto da caldeira para que os pequenos o encontrassem? Depressa... responda.

- Não faço a mínima ideia do que está a falar - replicou Lucy. - Quer dizer que...?

  Ao sentir Bryan voltar, Craddock meteu tudo apressadamente na algibeira.

- Cedric está na biblioteca - anunciou. – Pode lá ir.

  Retomou o seu lugar, junto ao guarda-louça. O inspector Craddock dirigiu-se à biblioteca.

 

  Cedric Crackenthorpe pareceu encantado por ver o inspector.

- A fazer um pouco mais de averiguações por aqui? - perguntou. - Descobriu alguma coisa?

- Creio que já adiantámos alguma coisa, Mister Crackenthorpe.

- Já descobriram quem era a mulher?

- Não temos uma identificação definitiva, mas já fazemos uma ideia.

- Ainda bem.

- Em consequênçia de uma última informação recebida, desejamos obter algumas declarações. Vou começar por si, Mister Crackenthorpe, dado que se encontra aqui.

- Não será por muito tempo. Devo partir para Ibiza dentro de um dia ou dois.

- Nesse caso, parece que fiz bem em ter cá vindo hoje.

- Diga o que tem a dizer.

- Gostaria que me fizesse um relato pormenorizado do modo como passou a sexta-feira, vinte de Dezembro último.

  Cedric lançou-lhe um rápido olhar. Depois encostou-se às espaldas da poltrona, bocejou, assumiu um ar de grande despreocupação e fingiu perder-se num esforco de memória.

- Bem, como já lhe disse, estava em Ibiza. O pior é que nessa terra os dias são todos iguais. De manhã pinto e das três para as cinco da tarde faço a sesta. Por vezes, quando há boa luz, faço um esboço. Depois tomo um aperitivo, umas vezes com o presidente da Câmara, outras com o médico, no café Piazza. Depois disso, uma refeição ligeira. Passo a maior parte da noite no Scotty's Bar com uns meus amigos de classe baixa. Está satisfeito?

- Prefiro a verdade, Mister Crackenthorpe.

- Essa observação é muitíssimo ofensiva, inspector.

- Acha isso? O senhor, Mister Crackenthorpe, tinha-me dito que partiu de Ibiza, no dia vinte e um de Dezembro, e que chegou a Inglaterra nesse mesmo dia.

- Exactamente. E então?

  Emma Crackenthorpe entrou na biblioteca e olhou inquiridoramente para o irmão e para Craddock.

- Ouve cá, Em. Por ocasião do Natal... cheguei cá no sábado anterior, não foi? Vim directamente do aeroporto?

- Sim - respondeu Emma surpreendida. - Chegaste cá por volta da hora do almoço.

- Aí tem - disse Cedric ao inspector.

- Considera-nos certamente muito idiotas, Mister Crackenthorpe - observou Craddock, amenamente. - Podemos verificar o que disse. Creio que se me mostrar o seu passaporte...

  Calou-se, numa expectativa.

- Não consigo encontrar essa maldita coisa. Ainda esta manhã andei à procura dele. Queria mandá-lo à Cook.

- Penso que o encontrou, Mister Crackenthorpe, mas na realidade, não é necessário. Os registos provam que o senhor entrou de facto neste país na noite de dezanove de Dezembro. Talvez agora queira contar-me os seus movimentos, desde essa altura até à hora do almoço do dia vinte e um de Dezembro, hora essa a que chegou aqui.

  Cedric pareceu deveras aborrecido.

- A vida, hoje em dia, é insuportável - queixou-se encolerizado. - Todos esses formalismos oficiais e preenchimentos de impressos. É o que se ganha com a burocracia. Já uma pessoa não pode andar por onde lhe apetece! Hão-de acabar sempre por fazer-nos perguntas. Por que razão há toda esta “fita” por causa do dia vinte? Que houve de especial no dia vinte?

- Julgamos que o crime tenha sido cometido nesse dia. É evidente que pode recusar-se a responder-nos, mas...

- Quem lhe disse que me recuso a responder? Dê-me tempo para o fazer. Por ocasião do inquérito, mostrou-se muito vago, quanto à data do crime. Que descobriram desde então?

  Craddock não replicou.

  Cedric perguntou, olhando de soslaio para Emma:

- Podemos ir para outro quarto?

  Emma apressou-se a responder:

- Eu vou-me embora.

  A porta, parou e voltou-se:

- Isto é sério, Cedric. Se o dia vinte foi o dia do crime, tens de contar, exactamente, ao inspector Craddock, o que fizeste nesse dia.

  Saiu, fechando a porta atrás de si.

- Voltemos ao assunto - começou Cedric. Parti, na verdade, de Ibiza, no dia dezanove. Tencionava fazer uma paragem em Paris e passar dois dias a visitar uns amigos meus que vivem em França. Mas a verdade é que nesse avião seguia uma mulher muito interessante... Uma verdadeira beldade! Regressava aos Estados Unidos e tinha de passar duas noites em Londres para tratar duns assuntos. Chegámos a Londres no dia dezanove e instalámo-nos no Kings Way Palace se é que os seus espiões ainda não descobriram isto! Registei-me com o nome de John Brown... nunca é bom dar-se o verdadeiro nome, nestas ocasiões.

- E no dia vinte?

  Cedric fez uma careta.

- Passei toda a manhã com uma enxaqueca horrível.

- E a tarde, das três em diante?

- Ora, deixe-me ver. Andei a vaguear de um lado para o outro, como se costuma dizer. Visitei a National Gallery... Vi um filme... Depois bebi qualquer coisa num bar, fui para o meu quarto e, por volta das dez horas, saí com a minha amiga e andámos por vários dancings... Não me recordo dos nomes, mas ela conhecia-os a todos. Apanhou uma boa bebedeira e, para dizer-lhe a verdade, de pouco mais me lembro,

até que acordei na manhã seguinte... com uma enxaqueca ainda pior do que a da véspera. A minha amiga foi apanhar o avião e eu, depois de despejar água fria pela cabeça abaixo e de ter pedido ao farmacêutico uma mistela horrível, vim para aqui, fingindo ter chegado directamente de Ibiza. Achei que não havia necessidade de ralar Emma. Bem sabe como as mulheres são... Ficam sempre magoadas, se não vamos em linha recta para casa. Tive de pedir-lhe dinheiro emprestado, para pagar o táxi. Estava completamente “nas lonas”. Não serviria de nada pedi-lo ao velhote. Nunca dá nada. É terrivelmente sovina. Está satisfeito, inspector?

- Pode provar alguma coisa do que disse, Mister Crackenthorpe? Digamos, entre as três horas e as sete horas da tarde?

- Acho muito improvável. Na National Gallery os empregados olham-nos com indiferença, além de que havia lá muita gente. Não, não me parece provável.

  Emma voltou. Segurava na mão uma pequena agenda.

- Quer saber o que cada um de nós fez no dia vinte de Dezembro, não é verdade, inspector Craddock?

- Hum... sim, Miss Crackenthorpe.

- Acabo de consultar a minha agenda. No dia vinte fui a Brackhampton tomar parte numa reunião da Restauração dos Fundos Paroquiais. Essa reunião acabou cerca da uma hora menos um quarto; almoçei no Café Cadena com Lady Adington e Miss Bartlett que também haviam ido à reunião. Depois do almoço fiz umas compras para o Natal, no Lyall, no Swift's, no Boot's e provavelmente em várias outras lojas. Lanchei, por volta das cinco menos um quarto, no salão de chá Shamrock e depois fui para a estação, encontrar-me com Bryan, que vinha de comboio. Cheguei a casa por volta das seis horas, e vim encontrar o pai muito maldisposto. Tinha-lhe deixado o almoço pronto, mas Mistress Hart, que devia cá vir de tarde e dar-lhe o chá, não tinha vindo. Estava tão zangado que se fechou no quarto e não me deixou entrar, nem quis falar comigo. Não gosta que eu saia à tarde, mas, por princípio, de vez em quando, faço-o.

- Provavelmente tem razão. Obrigado, Miss Crackenthorpe.

  Não lhe podia dizer que, em virtude de ser mulher, os seus movimentos nessa tarde não tinham importânçia. Em vez disso, observou:

- Os seus outros irmãos, chegaram mais tarde, não é verdade?

- Alfred chegou já ao fim da noite de sábado. Disse que tentou falar comigo ao telefone na tarde em que saí... mas meu pai, se está maldisposto, é incapaz de atender o telefone. Meu irmão Harold só chegou na véspera do dia de Natal.

- Obrigado, Miss Crackenthorpe.

- Suponho que não devo perguntar... – hesitou - o que originou este interrogatório?

  Craddock tirou a carteira da algibeira. Servindo-se apenas da ponta dos dedos, extraiu dela o sobrescrito.

- Não lhe toque, por favor, mas diga-me se o reconhece.

- Mas... - Emma fitou-o, espantada. - Essa letra é minha. Foi a carta que escrevi a Martine.

- Foi o que eu calculei.

- Mas como é que o tem? Foi ela...? Encontrou-a?

- Parece possível que a tenhamos encontrado, mas este sobrescrito vazio foi achado aqui.

- Dentro de casa?

- Na propriedade.

- Nesse caso... ela esteve aqui! Ela... Quer dizer... que era Martine que estava no sarcófago?

- Parece muito provável, Miss Crackenthorpe - admitiu Craddock, com suavidade.

  Isso pareceu-lhe ainda mais provável quando regressou a Londres. Esperava-o uma mensagem de Armand Dessin.

  “Uma das amigas recebeu um postal de Anna Stravinski. Aparentemente a história do cruzeiro era verdadeira!

Chegou a Jamaica e está a passar, tal como você costuma dizer, um tempo maravilhoso”.

  Craddock amachucou o papel em que a mensagem fora escrita e lançou-o para o cesto dos papéis.

 

- Acho que este dia foi o mais formidável de todos - considerou Alexander, sentado na cama e consumindo pensativamente um pau de chocolate. Descobrir uma verdadeira pista!

  A sua voz denotava um misto de admiração e de receio.

- A falar verdade, estas férias têm sido formidáveis. Não creio que nos torne a acontecer uma coisa destas.

- Espero que a mim não volte a acontecer - declarou Lucy, ajoelhada junto a uma mala, onde metia a roupa de Alexander.

- Pois eu preferia não me ir embora. É capaz de aparecer outro cadáver.

- Espero sinceramente que tal não aconteça.

- Pois isso nos livros é frequente. Quero dizer, uma pessoa que viu ou ouviu alguma coisa morre. Pode acontecer-lhe isso a si - acrescentou, preparando-se para comer um segundo pau de chocolate.

- Obrigada.

- Não quero que isso lhe aconteça – declarou Alexander. - Stoddard e eu gostamos muito de si. Achamo-la uma cozinheira extraordinária. Além disso, é muito inteligente.

  Lucy replicou:

- Obrigada. Mas não tenciono deixar que me matem, só para lhes ser agradável.

- Nesse caso, veja se tem cuidado – recomendou Alexander. - Fez uma pausa e prosseguiu: - Se o pai cá vier de vez em quando, trate dele, sim?

- Sim, decerto - prometeu Lucy um pouco surpreendida.

- O mal está em que a vida de Londres não é boa para o pai - informou-a Alexander. - Sabe, anda com um género de mulheres que não convém - abanou a cabeça de maneira preocupada. - Aprecio-o muito, mas acho que precisa de alguém que cuide dele. Foi uma grande pena a mãe ter morrido. Bryan precisa de um lar próprio.

  Olhou solenemente para Lucy e pegou noutro pau de chocolate.

- Não coma mais, Alexander - pediu Lucy. Far-lhe-á mal.

- Não fará tal. Uma vez comi seis, a seguir, e não adoeci. Não sou do tipo bilioso - fez uma pausa e prosseguiu: - Bryan gosta de si, sabe?

- Isso é muito gentil da sua parte.

- Sob certos aspectos é muito burro - acrescentou o filho de Bryan -, mas foi um formidável piloto de combate. É muitíssimo corajoso. E de muito bom feitio.

  Fez uma pausa. Depois, desviando os olhos para o tecto, continuou:

- Sabe, estou convencido de que lhe faria bem tornar a casar-se... com uma pessoa honesta... Por mim, não me importaria nada de ter uma madrasta...contanto que, evidentemente, ela fosse uma pessoa decente...

  Com uma sensação de choque, Lucy compreendeu que na conversa de Alexander havia uma segunda intenção.

- Todas essas tolices acerca das madrastas - prosseguiu Alexander, continuando a olhar para o tecto - estão na realidade fora de moda. Stoddard e eu conhecemos muitos rapazes que têm madrastas... por causa do divórcio dos pais e tudo isso... e dão-se muito bem. Está claro que isso depende da madrasta...fez uma pausa e continuou: - E bom termos o nosso lar e os nossos pais... mas, se a mãe nos morreu...compreende o que eu quero dizer? Se for uma pessoa decente - repetiu Alexander pela terceira vez.

  Lucy sentiu-se comovida.

- Acho que é muito sensato, Alexander. Temos de arranjar uma boa esposa para seu pai.

- Sim - respondeu Alexander, sem muita convicção, e acrescentou de repente: - Achei que devia dizer-lhe isto. Bryan gosta muito de si. Ele próprio me disse...

  “De facto”, pensou Lucy há por aqui muitas pessoas casamenteiras. Primeiro, Miss Marple, e agora, Alexander!   Por qualquer razão, o curral dos porcos veio-lhe à

ideia.   Levantou-se.

- Boa noite, Alexander.

- Boa noite - retribuiu o garoto. Deitou-se, pousou a cabeça na almofada, fechou os olhos, semelhante a um anjo adormecido, e mergulhou imediatamente no sono.

 

- Não é o que se pode chamar conclusivo - comentou o sargento Wetherall com o habitual ar sombrio.

  Craddock lia o relatório acerca do álibi apresentado por Harold Crackenthorpe para o dia 20 de Dezembro.

  Tinham-no visto no Sotheby, cerca das três horas e meia, mas julgava-se que saíra pouco depois disso. No salão de chá Russell não tinham reconhecido a sua fotografia, mas isso não era de surpreender, atendendo a que nesse dia tinham tido a casa muito cheia, e Harold não era um habitué. O criado confirmou o seu regresso a casa às sete horas menos um quarto, para se vestir para o jantar... o que fora um pouco tarde, pois aquele estava marcado para as sete e meia. Não se recordava de tê-lo ouvido entrar nessa noite, mas, como já decorrera algum tempo desde então, não se lembrava bem e, além disso, era frequente não ouvir Mr. Crackenthorpe entrar. Ele e sua mulher gostavam de deitar-se o mais cedo possível. A garagem onde Harold guardava o carro era uma garagem particular que ele alugara e não havia ninguém que reparasse se retirava de lá o carro ou não.

- Tudo negativo - suspirou Craddock.

- Foi jantar de facto no Caterer's, mas partiu bastante antes de os discursos terminarem.

- E as estações dos caminhos-de-ferro?

  Nada também. Tinham-se passado quase quatro semanas e era muito improvável que alguém se lembrasse.

  Craddock voltou a suspirar e estendeu a mão para pegar no relatório acerca de Cedric. Também este era negativo.

- Aqui está o de Alfred - disse o sargento Wetherall. Uma leve entoação diferente, na maneira como o disse, levou Craddock a olhá-lo perscrutadoramente: Wetherall tinha a aparênçia prazenteira de um homem que guardara uma guloseima para o fim. Mas parecia que também este relatório não era de molde a satisfazer o inspector. Alfred vivia sozinho no seu apartamento, de onde saía e para onde entrava a horas não determinadas. Os seus vizinhos não eram curiosos e ,seja como for, eram funcionários que estavam fora de casa durante a maior parte do dia. Mas quando os olhos de Craddock se aproximavam do fim do relatório, o dedo grande de Wetherall indicou o último parágrafo.

  O sargento Leakie, encarregado de um caso de roubo de automóveis, estivera em Load of Bricks, uma estalagem para condutores de automóveis na Waddington - Brackhampton Road, de vigia a uns certos motoristas. Vira, numa mesa próxima da sua, Chick Evans, um dos componentes da quadrilha de Dicky Rogers. Com ele estava Alfred Crackenthorpe, que ele conhecia de vista, por tê-lo visto testemunhar no caso Dicky Rogers. Desconfiara daquele encontro. Isso fora às vinte e uma horas e trinta minutos de sexta-feira, dia 20 de Dezembro. Alguns minutos depois, Alfred Crackenthorpe metera-se num autocarro, que seguia na direcção de Brackhampton. William Baker, empregado da estação de Brackhampton, furara o bilhete do senhor que conhecia de vista como sendo um dos irmãos de Miss Crackenthorpe, precisamente antes de o comboio das vinte e duas horas e cinquenta e cinco minutos partir para Paddington. Recorda-se desse dia por ter sido o mesmo em que uma senhora de idade e tonta jurara ter assistido a um assassínio num comboio dessa tarde.

- Alfred? - proferiu o inspector pousando o relatório sobre a secretária. - Alfred?

- Isto parece indigitá-lo - concluiu Wetherall.

  Craddock concordou com um aceno de cabeça. Sim, Alfred podia ter viajado no comboio das quatro horas e trinta e três minutos para Brackhampton e cometido o crime durante a viagem. Depois, podia ter ido de autocarro até à estalagem Load of Bricks, saindo desta às vinte e uma horas e trinta minutos, tendo assim muito tempo para ir a Rutherford Hall, transportar o corpo, da ravina para o sarcófago, e chegar a Brackhampton a tempo de apanhar o comboio das vinte e duas horas e cinquenta e cinco minutos para Londres. Um dos membros da quadrilha de Dicky Rogers podia até tê-lo ajudado a transportar o corpo, embora Craddock duvidasse disto. Eram umas personagens indesejáveis, mas não eram assassinos.

- Alfred? - repetiu, especulativamente.

 

  A família Crackenthorpe reunira-se em Rutherford Hall. Harold e Alfred tinham chegado de Londres e não tardou a ouvirem-se vozes altas e irritadas.

  Por sua própria iniciativa Lucy preparou um refresco com gelo e levou-o num jarro para a biblioteca. As vozes chegavam com nitidez ao átrio e indicavam uma grande acrimónia contra Emma.

- A culpa foi toda tua, Emma - acusou colericamente a voz grave de Harold. - Espanta-me como pudeste ser tão néscia. Se não tivesses ido com essa carta à Scotland Yard e provocado tudo isto...

  A voz esganiçada de Alfred censurou:

- Devias estar completamente louca!

- Agora, não a aborrecam - disse Cedric.O que está feito, feito está. Seria muito pior que tivessem identificado a morta como sendo Martine e nós nunca lhes houvéssemos dito uma palavra a seu respeito.

- Tu não tens que te preocupar, Cedric - observou Harold, furioso. - No dia vinte não estavas neste país. Mas para Alfred e para mim a situação é muito embaraçosa. Por sorte, eu recordo-me de onde estive, nessa tarde, e do que fiz.

- Não duvido - esclareceu Alfred. - Estou convencido de que se tivesses planeado um crime, Harold, prepararias primeiro um cuidadoso álibi.

- Suponho que não tenhas álibi - ripostou Harold, com frieza.

- Depende. Sempre é melhor não apresentar um álibi à Polícia do que apresentar um que não presta. São muito hábeis a descobri-lo.

- Se estás a insinuar que matei essa mulher...

- Oh, calem-se todos! - gritou Emma. - E evidente que nenhum de vocês matou essa mulher.

- E já agora digo-te que eu não estava ausente de Inglaterra no dia vinte - revelou Cedric. - E a Polícia sabe-o! Por conseguinte, somos todos suspeitos.

- Se não tivesse sido Emma...

- Oh, não começes outra vez, Harold – gritou aquela.

  O Dr. Quimper saiu do escritório, onde estivera encerrado com o velho Mr. Crackenthorpe. O seu olhar pousou-se no jarro que Lucy segurava na mão.

- O que é isso? Um festejo?

- Diga antes que é óleo para deitar no mar encapelado. Estão numa discussão medonha.

- A recriminarem-se?

- Na maior parte contra Emma.

  O Dr. Quimper franziu o sobrolho.

- Isso é verdade?

  Tirou o jarro da mão de Lucy, abriu a porta da biblioteca e entrou.

- Boa noite.

- Ah, doutor Quimper, preciso de falar-lhe - declarou a voz irritada de Harold. - Gostava de saber porque interveio num assunto particular de família e incitou minha irmã a recorrer à Scotland Yard.

  O Dr. Quimper respondeu com serenidade:

- Miss Crackenthorpe solicitou o meu conselho e dei-lho. Na minha opinião, procedeu muito bem.

- Atreve-se a dizer...

- Pequena!

  Era o chamamento do velho Mr. Crackenthorpe. Espreitava pela porta aberta do escritório, mesmo por trás de Lucy.

  Esta virou-se com certa relutânçia:

- Que deseja, Mister Crackenthorpe?

- Que nos dá hoje para jantar? Quero caril. Você faz um caril magnífico. Há anos que não o comia.

- Os garotos não gostam muito de caril...

- Os garotos... os garotos. Que importam os garotos? Quem importa sou eu. E, seja como for, os garotos já se foram embora... Foi um belo desembaraço! Quero uma boa carilada, está a ouvir?

- Pois sim, Mister Crackenthorpe, tê-la-á.

- Muito bem. Você é boa pequena, Lucy. Cuide de mim, que eu cuidarei de si.

  Lucy voltou para a cozinha. Pondo de parte a galinha de fricassé que planeara fazer, começou a reunir os ingredientes para o prato de caril. A porta da rua bateu com estrondo e, através da janela, viu o Dr. Quimper afastar-se desabridamente de casa, meter-se no seu carro e partir.

  Lucy suspirou. Sentia a falta dos rapazes e, de certo modo, sentia também a falta de Bryan.

  Sentou-se e começou a cortar cogumelos.

  De qualquer modo, ia preparar uma bela refeição para a família.

  Eram três horas da manhã quando o Dr. Quimper meteu o carro na garagem, fechou as portas desta e entrou em casa, com ar bastante cansado. Mrs. Josh   Simpkins presenteara a família com um saudável par de gémeos.

  O Dr. Quimper subira para o seu quarto e começara a despir-se. Olhou para o relógio de pulso. Eram agora três horas e cinco da madrugada. A chegada daqueles gémeos a tal hora fora uma boa partida, mas tudo correra bem. Bocejou. Sentia-se cansado, muito cansado. Olhou cobicosamente para a cama.

  O telefone tocou.

  O Dr. Quimper praguejou e atendeu.

- O doutor Quimper?

- E o próprio.

- Fala Lucy Eyelesbarrow, de Rutherford Hall. Acho que é melhor cá vir. Parece que toda a gente adoeceu.

- Adoeceu? Como? Que sintomas apresentam?

  Lucy descreveu-lhos.

- Vou imediatamente. Entretanto... - deu-lhe umas rápidas instruções.

  Depois, tornou a vestir-se com rapidez, preparou o estojo de emergênçia e correu a meter-se no carro.

 

  Tinham passado umas três horas quando o médico e Lucy, ambos exaustos, se sentaram à mesa da cozinha para beberem umas enormes chávenas de café.

  O Dr. Quimper esvaziou a chávena até à última gota e pousou-a no pires.

- Era do que eu precisava. Agora, Miss Eyelesbarrow, vamos esclarecer os factos.

  Lucy olhou-o. Os traços de fadiga delineavam-se-lhe claramente no rosto fazendo-o parecer mais velho e profundas olheiras acentuavam a sua expressão cansada.

- Creio que já não correm perigo - declarou. Mas como sucedeu isto? Quem cozinhou o jantar?

- Fui eu - respondeu Lucy.

- Descreva-mo pormenorizadamente.

- Sopa de cogumelos. Galinha com arroz de caril. Doce de leite.

- Canapés Diane - disse de súbito o Dr. Quimper.

  Lucy sorriu levemente e confirmou:

- Sim, Canapés Diane.

- Muito bem... ora vejamos. Sopa de cogumelos... de lata, não é verdade?

- Claro que não. Fi-la eu.

- Fê-la com quê?

- Com cogumelos, caldo de galinha, leite, manteiga, farinha e sumo de limão.

- Ah! Devem ter sido os cogumelos.

- Não foram os cogumelos, porque eu também comi sopa e sinto-me perfeitamente.

- Sim, você está perfeitamente. Não me esqueci disso.

  Lucy corou:

- Se quer dizer que...

- Não quero dizer tal. Você é uma rapariga muito inteligente. Se eu tivesse pensado o que julgou, a estas horas também você estaria lá em cima a gemer com dores. Seja como for, estou muito bem informado a seu respeito. Dei-me ao cuidado de tirar informações.

- Por que diabo o fez?

  Os lábios do Dr. Quimper uniram-se numa linha fina.

- Porque me empenho em tirar informações de todas as pessoas que vêm viver nesta casa. Você é uma rapariga de bona fide, que ganha a vida com este género de trabalho e parece nunca ter tido qualquer contacto com a família Crackenthorpe, antes de vir para aqui. Por conseguinte, não é uma amiga de Cedric, de Harold ou de Alfred... que estivesse a ajudá-los numa má obra.

- Pensa de facto...?

- Penso uma quantidade de coisas – retorquiu Quimper -, mas tenho de ser prudente. Quando se é médico, o caso torna-se pior. Mas continuemos. Galinha de caril. Comeu disso?

- Não. Depois de se cozinhar um prato de caril, basta-nos o cheiro para já não termos vontade de comê-lo, mas, claro está, que o provei. Comi sopa e doce.

- Como serviu o doce?

- Em taças individuais.

- Onde está a louça suja?

- Já a lavei toda e arrumei.

  O Dr. Quimper murmurou por entre os dentes:

- Um excesso de zelo é por vezes inconveniente.

- Sim, agora vejo que teria sido preferível não o ter feito, mas já é tarde.

- O que é que sobrou?

- Um pouco de caril... Está numa tijela, na despensa. Sobejou também um pouco de sopa, mas o doce comeu-se todo.

- Bem, levarei o caril e a sopa.

  Levantou-se.

- Vou lá acima vê-los uma vez mais. Depois disso, é capaz de aguentar o “forte” até de manhã? É capaz de cuidar de todos eles? Posso mandar para cá uma enfermeira, quando forem oito horas.

- Gostaria que me dissesse com franqueza o que pensa. Acha que se trata de comida em mau estado ou... ou... ou de envenenamento?

- Já lho disse. Os médicos nunca podem achar... Têm de ter a certeza. Se a análise dessa comida der um resultado positivo, poderei formular uma certeza.

Caso contrário...

- Caso contrário? - repetiu Lucy.

  O Dr. Quimper pousou-lhe uma mão no ombro.

- Cuide de duas pessoas, especialmente - recomendou. - Cuide de Emma. Não quero que lhe aconteça nada de mal... - a sua voz traía uma emoção que não conseguia disfarçar. - Ainda nem sequer comecou a viver e, sabe, neste mundo, há poucas pessoas com as qualidades de Emma Crackenthorpe...Emma significa muito para mim. Nunca lho disse, mas dir-lho-ei. Cuide de Emma.

- Esteja descansado - prometeu Lucy.

- E olhe também pelo velho. Não posso dizer que seja o meu doente preferido, mas é meu doente e diabos me levem se permitirei que o matem só porque um ou dois dos seus antipáticos filhos, ou talvez os três juntos, o querem pôr fora do caminho, para poderem deitar mão ao seu dinheiro.

  O Dr. Quimper lançou a Lucy um súbito olhar estranho.

- Falei muito, mas esteja alerta e, incidentalmente, calada.

 

  O inspector Bacon pareceu surpreendido.

- Arsénico? - perguntou. - Arsénico?

- Sim. Estava no caril. Aqui tem o resto do caril... para o seu amigo lá ir. Apenas procedi a um pequeno teste, mas o resultado foi muito conclusivo.

- Nesse caso, há um envenenador em jogo?

- Assim parece - concluiu o Dr. Quimper secamente.

- E todos eles estão doentes... excepto essa Miss Eyelesbarrow.

- Excepto Miss Eyelesbarrow.

- O caso parece um pouco feio para ela...

- Mas que motivo podia ela ter?

- Talvez tenha uma tara - sugeriu Bacon. – Há pessoas que parecem normais e contudo não o são.

- Não é esse o caso de Miss Eyelesbarrow. Falando como médico, Miss Eyelesbarrow parece tão normal como qualquer de nós. Se Miss Eyelesbarrow pôs   arsénico na comida, fê-lo por uma razão. Além disso,como é uma rapariga muito inteligente, havia de ter o cuidado de não ser a única pessoa não afectada. O que   ela faria, o que qualquer envenenador inteligente faria seria ingerir um pouco do caril envenenado e depois exagerar os sintomas.

- E não se descobriria?

- Que ela ingerira menos veneno que as outras pessoas? Provavelmente, não. No fim de contas, as pessoas não reagem todas da mesma maneira... a mesma quantidade de veneno pode afectar umas pessoas mais do que outras. E certo - acrescentou o Dr. Quimper - que, depois da doente morrer, se pode fazer um cálculo muito aproximado da quantidade de veneno ingerida.

- Nesse caso... - o inspector fez uma pausa para consolidar as ideias - nesse caso, pode dar-se o caso de uma das pessoas da família estar a exagerar o seu próprio mal, para evitar ser alvo de suspeitas. Que diz a isto?

- Essa ideia já me ocorreu. E foi por isso que vim procurá-lo. O caso está agora nas suas mãos. Mandei para lá uma enfermeira de confiança, mas não pode estar em todos os sítios ao mesmo tempo. Na minha opinião, ninguém ingeriu uma porção mortal.

- Um erro do envenenador?

- Não. Parece-me mais provável que a ideia fosse lançar veneno no caril em quantidade suficiente para causar sintomas de alimentos em mau estado... que decerto se atribuiriam aos cogumelos. As pessoas julgam sempre que os cogumelos são venenosos. Depois, provavelmente, uma das pessoas sentiria um maior mal-estar e morreria.

- Por ter ingerido uma segunda dose?

  O médico aquiesceu com um movimento de cabeça.

- Foi por isso que vim imediatamente procurá-lo e mandei para lá uma enfermeira especial.

- Ela percebe de arsénico?

- Certamente, e Miss Eyelesbarrow também. O senhor sabe muito bem o que tem a fazer, mas, se eu fosse a si, iria lá e preveni-los-ia de gue foram vítimas de envenenamento por arsénico. E provável que isso alarme o nosso assassino que não se atreverá a levar a cabo o seu plano.

  O telefone, pousado sobre a secretária do inspector, retiniu. Bacon atendeu:

- Okay. Ligue para aqui - e voltando-se para Quimper informou. - É a sua enfermeira. Sim, está?... É o próprio... Que diz? Uma recaída séria...sim... O doutor Quimper está aqui... Se quiser falar com ele...

  Estendeu o auscultador ao médico.

- Fala Quimper... sim... está... Continue. Vou já.

  Pousou o auscultador e virou-se para Bacon.

- Quem foi?

- Alfred - respondeu o médico. - Morreu.

 

  A voz de Craddock chegou através do fio telefónico, com uma nota de viva incredulidade.

- Alfred? - admirou-se. - Alfred?

  O inspector Bacon inquiriu:

- Não esperava por esta, pois não?

- Pois não. Na realidade, era dele que eu desconfiava! Mas enganámo-nos.

  Seguiu-se um momento de silênçio. Depois Craddock perguntou:

- Estava lá uma enfermeira? Como se explica que ela não o tenha salvo?

- Não podemos censurá-la. Miss Eyelesbarrow estava extenuada e tinha ido deitar-se. A enfermeira tinha de tratar de cinco doentes: o velho, Emma, Cedric, Harold e Alfred. Não podia estar em todos os lados ao mesmo tempo. Parece que o velho Mister Crackenthorpe começou a queixar-se muito, a dizer que ia morrer. Ela foi ao seu quarto, acalmou-o e depois foi dar a Alfred um pouco de chá com glucose. Ele bebeu-o e pronto.

- Arsénico?

- Assim parece. Certamente que podia ter sido uma recaída, mas Quimper não é desse parecer e Johnstone tão-pouco.

- Pergunto a mim mesmo se a vítima devia ser Alfred - disse Craddock.

  Bacon pareceu interessado.

- Quer dizer que, ao passo que a morte de Alfred não beneficia ninguém, a do velho os beneficiaria a todos? Pode ter sido um engano... alguém pode ter julgado que o chá era para o velho.

- Têm a certeza de que o veneno foi ministrado no chá?

- Não, claro que não. A enfermeira, como boa profissional, lavou a louça toda, chávenas, colheres, bule... tudo. Mas parece ter sido o único método praticável.

- Quer dizer - perguntou Craddock, pensativamente -, que um dos doentes não estava tão doente como os outros? Que viu uma oportunidade e deitou o veneno na chávena?

- O caso não se repetirá - afiancou o inspector Bacon, sombrio. - Temos lá agora duas enfermeiras, sem contar com Miss Evelesbarrow, e destaquei também dois homens. Vai lá?

- O mais depressa possível!

 

  Lucy Eyelesbarrow atravessou o átrio ao encontro do inspector Craddock. Parecia pálida e extenuada.

- Tem passado um mau bocado – observou Craddock.

- Tem sido como que um longo pesadelo. Para dizer a verdade, na noite passada julguei que todos morriam.

- Esse caril...

- Foi o caril?

- Sim, muito bem ligado com o arsénico... uma obra digna de Bórgia.

- Se isso é verdade... - concluiu Lucy - foi...foi certamente... alguém da família.

- Não há outra possibilidade?

- Não. Bem vê, só começei a preparar esse maldito caril muito tarde... já depois das seis horas... porque Mister Crackenthorpe pediu-me muito que o fizesse. Tive de abrir uma lata com caril em pó... e, por conseguinte, não podia estar envenenado. Calculo que o caril disfarcou o gosto, não é verdade?

- O arsénico não tem gosto - replicou Craddock, absorto. - Mas que oportunidade teve o assassino? Qual deles teve ocasião de envenenar o caril, enquanto estava ao lume?

  Lucy pensou um momento e respondeu:

- Na realidade, qualquer pessoa podia ter entrado na cozinha, enquanto eu punha a mesa.

- Compreendo. Quem estava em casa? O velho Mister Crackenthorpe, Emma, Cedric...

- Harold e Alfred. Tinham chegado de Londres. Oh, e Bryan... Bryan Eastlev. Mas partiu antes do jantar. Tinha de ir a um encontro em Brackhampton.

  Craddock disse pensativamente:

- Isso condiz com a doenca do velho no Natal. Quimper suspeitou que fosse arsénico. Na noite passada, pareceram-lhe todos igualmente doentes?

- Acho que Mister Crackenthorpe-pai estava pior do que os outros. O doutor Quimper não o largou. E um bom médico. Cedric foi quem se queixou mais que todos.

- E Emma?

- Esteve bastante atrapalhada.

- Mas porque atingiriam Alfred? – perguntou Craddock.

- Acha que o veneno ter-lhe-ia sido, de facto, destinado?

- Tem graça que também já fiz a mesma pergunta! - declarou Craddock. - Se, ao menos, pudesse descobrir o motivo de tudo isto. Nada parece fazer sentido. A mulher estrangulada e encontrada no sarcófago era Martine, viúva de Edmund Crackenthorpe. Admitamos isso, pois é quase uma certeza. Tem de haver uma relação entre a sua morte e o envenenamento de Alfred. A explicação está algures, no seio da família. E possível até que um deles seja doido.

- Pois é - concordou Lucy.

- Tenha cuidado consigo - recomendou Craddock. - Lembre-se de que, nesta casa, existe um envenenador e que um dos doentes que está lá em cima provavelmente exagera o seu mal.

  Depois da partida de Craddock, Lucy voltou devagar para a cama. Ao passar pelo quarto do velho Crackenthorpe, uma voz autoritária, embora um pouco enfraquecida pela doenca, chamou:

- Pequena... pequena... é você? Venha cá.

  Lucy entrou no quarto. Mr. Crackenthorpe estava deitado na cama, recostado em almofadas. Lucy achou que para um homem doente o seu aspecto era bastante animoso.

- A casa está cheia de enfermeiras - queixou-se Mr. Crackenthorpe. - Metem o nariz em toda a parte, cheias de importânçia, tiram-me a temperatura, não me deixam comer o que quero... isto vai custar-me não pouco dinheiro. Diga a Emma que as mande embora. Você pode tratar de mim.

- Está toda a gente doente, Mister Crackenthorpe. - disse Lucy. - Não posso tratar de todos, compreende.

- Cogumelos - disse Mr. Crackenthorpe. – Os cogumelos são muito perigosos. Foi essa goma que nós comemos ontem à noite. Foi você que a fez - acrescentou acusadoramente.

- Os cogumelos estavam bons, Mister Crackenthorpe.

- Não estou a censurá-la, pequena, não estou a censurá-la. Não é a primeira vez que uma coisa dessas acontece. Basta irem misturados com um fungo venenoso e pronto. Ninguém tem culpa. Eu bem sei que você é uma boa rapariga. Seria incapaz de fazer isso de propósito. Como está Emma?

- Esta tarde, sente-se melhor.

- Ah. E Harold?

- Está melhor também.

- Que história vem a ser essa de Alfred ter ido desta para melhor?

- Não lhe deviam ter contado isso, Mister Crackenthorpe.

  O velho soltou uma gargalhada forte, de intenso divertimento.

- Ouço coisas - explicou. - Não conseguem esconder nada ao velhote. Eles bem tentam. Por conseguinte, Alfred morreu, não é verdade? Esse já não voltará a sugar-me e a levar-me dinheiro. Todos eles andam à espera que eu morra, sabe... e Alfred ainda mais do que os outros. Agora já morreu. E o que se pode chamar uma boa partida.

- Não lhe fica bem pensar assim, Mister Crackenthorpe - censurou Lucy com severidade.

  Mr. Crackenthorpe voltou a rir.

- Hei-de sobreviver a todos, pequena. Verá.

  Lucy foi para o quarto, pegou no seu dicionário e procurou a palavra tontina. Fechou o livro pensativamente e ficou a olhar o vácuo.

 

- Não percebo porque veio procurar-me - disse, com irritação, o Dr. Morris.

- O senhor conhece a família Crackenthorpe há muito tempo - justificou o inspector Craddock.

- Sim, sim, conheci todos os Crackenthorpe. Lembro-me muito bem do velho Josiah Crackenthorpe. Era um homem rude... mas sagaz. Fez muito dinheiro - mudou de posição na cadeira e olhou por baixo das sobrancelhas espessas para o inspector Craddock. - Por conseguinte, deu ouvidos a esse louco do Quimper. Esses médicos novos, cheios de zelo! Andam sempre com ideias disparatadas! Meteu-se-lhe na cabeça que alguém tentava envenenar Luther Crackenthorpe. Tolice! Melodrama! Certamente que teve ataques gástricos. Tratei-o dessas vezes. Não foram muito frequentes... mas nada tinham de especial.

- O doutor Quimper julgou que sim – observou Craddock.

- Um médico não deve julgar. No fim de contas, espero ainda ser capaz de reconhecer um caso de envenenamento por arsénico.

- Muitos médicos de fama têm-se já deixado iludir, como, por exemplo, no caso Greenbarrow.

- Pois sim, pois sim - admitiu o Dr. Morris -, o senhor está a dizer com isso que eu podia ter-me enganado. Mas eu não creio que me tenha enganado! Fez uma pausa e prosseguiu: - Quem diabo julga Quimper que tenha misturado o arsénico?

- Ignora-o. Está preocupado. Como decerto é do seu conhecimento, há nessa família uma grande quantidade de dinheiro em jogo.

- Sim, sim, bem sei, e por morte de Luther Crackenthorpe os filhos recebê-lo-ão. Sei também que todos eles estão muito necessitados de dinheiro, mas isso não significa que sejam capazes de matar o velho para recebê-lo.

- Não necessariamente - concordou Craddock.

- Seja como for - continuou o Dr. Morris -, tenho por princípio não suspeitar de coisas sem ter um motivo para o fazer. Admito que o que acaba de contar-me deixa-me um pouco abalado. Ao que parece, trata-se de uma grande dose de arsénico... mas continuo sem compreender porque veio procurar-me. Tudo quanto posso dizer-lhe é que não suspeitei dele. Talvez devesse ter suspeitado. Talvez devesse ter dado mais importânçia a essas indisposições gástricas de Luther Crackenthorpe. Mas isso já lá vai, há muito tempo.

  Craddock concordou e disse:

- Do que de facto preciso é de conhecer um pouco mais acerca da família Crackenthorpe. Haverá neles alguma degeneração mental... de qualquer espécie?

  Os olhos por baixo das sobrancelhas espessas fitaram-no com vivacidade:

- Sim, compreendo o que pensa. O velho Josiah era perfeitamente normal. A mulher era uma neurótica, com tendênçia para a melancolia. Morreu pouco depois de ter dado à luz o segundo filho. Creio que Luther herdou dela uma certa... instabilidade. Como rapaz, era igual a muitos outros, mas estava sempre em disputa com o pai. Este sentia-se desiludido com o filho e creio que este se ressentiu com isso e que tal

ressentimento nem sequer lhe passou depois de casado. Se já falou com ele, com certeza notou que tem um profundo desapego por todos os filhos, com excepção das raparigas, Emma e Edie... a que morreu.

- Porque não gosta dos filhos?

- Para compreender isso terá de consultar um desses psiquiatras modernos. Na minha opinião, Luther nunca se achou muito apto como homem e sente-se muito humilhado com a sua posição financeira. Recebe o usufruto da herança, mas não pode tocar no capital. Se pudesse deserdar os filhos é provável que gostasse mais deles. Sente-se humilhado, por não ter poderes para deserdá-los.

- Será por isso que o satisfaz tanto a ideia de sobreviver a todos? - perguntou o inspector Craddock.

- É possível. E também essa a causa da sua avareza. Deve ter economizado uma considerável parte dos seus rendimentos... a maior parte, antes destes impostos todos, claro está.

  Uma nova ideia ocorreu ao inspector Craddock.

- Suponho que tenha deixado essas economias a alguém, em testamento. Isso pode ele fazer.

- Sim, embora só Deus saiba a quem as deixou. Talvez a Emma, mas duvido. Ou a Alexander, o neto.

- Gosta do neto, não é verdade?

- Sim, pelo menos gostava. Era filho da filha e não de um dos filhos. E natural que isso faça diferença. E gostava muito de Bryan Eastley, o marido de Edie. Não conheco bem Bryan e há já alguns anos que não vejo ninguém da família. Mas deu-me a impressão de que esse rapaz havia de sentir-se deslocado depois de a guerra acabar. Possui todas as qualidades requeridas em tempo de guerra: coragem, arrojo e despreocupação pelo futuro, mas não me parece que tenha estabilidade. Provavelmente, não será capaz de aguentar-se num emprego.

- Não há qualquer tara na geração mais nova?

- Cedric é um tipo excêntrico, um desses rebeldes por natureza. Não digo que seja absolutamente normal, mas há alguém que o seja? Harold é bastante ortodoxo, e não o considero uma personagem muito simpática; é frio e calculista. Quanto ao outro, ao que morreu, acho que não se deve falar mal dos mortos.

- E a respeito de... - Craddock hesitou - Emma Crackenthorpe?

- E uma boa rapariga, sossegada, mas nunca se sabe bem no que ela pensa. Tem os seus planos e as suas ideias, mas guarda-as com ela. Tem mais firmeza do que apresenta.

- Conheceu Edmund?

- Sim. Acho que era o melhor do grupo. Simpático, alegre e de bom coração.

- Alguma vez ouviu dizer que ia casar ou casara com uma rapariga francesa, antes de ter morrido?

  O Dr. Morris franziu o sobrolho e respondeu:

- Parece que tenho uma vaga recordação acerca disso, mas já foi há muito tempo.

- Foi no princípio da guerra, não é verdade?

- Foi. Acho que, se não tivesse morrido, ter-se-ia arrependido de ter casado com uma estrangeira.

- Pois há razão para crer que tal casamento se realizou - disse Craddock.

  Em frases breves, fez um relato dos acontecimentos recentes.

- Recordo-me de ter lido qualquer coisa nos jornais acerca de uma mulher que fora encontrada morta num sarcófago. Foi então em Rutherford Hall.

- E há razão para crer que essa mulher era a viúva de Edmund Crackenthorpe.

- Isso parece fantástico. Parece mais uma novela do que um acontecimento da vida real. Mas quem havia de querer matar a desgraçada... isto é, como se relaciona isso com o envenenamento por arsénico da família Crackenthorpe?

- De uma de duas maneiras - respondeu Craddock -, mas qualquer delas é muito rebuscada. Talvez exista uma pessoa ávida de toda a fortuna de Josiah Crackenthorpe.

- Se assim for, é louca - sentenciou o Dr. Morris. - Terá de pagar uns impostos enormíssimos sobre os rendimentos.

 

- Os cogumelos são muito perigosos - monologou Mrs. Kidder.

  Mrs. Kidder já fizera esta observação umas dez vezes, durante os últimos dias. Lucy não replicou.

- Eu cá nunca lhes toco - prosseguiu. - São perigosíssimos. Foi uma mercê da Providênçia só ter havido uma morte. Podiam ter morrido todos, até a senhora, Miss Eyelesbarrow. Teve uma sorte milagrosa, isso é que teve.

- Não foram os cogumelos - esclareceu Lucy. Esses eram bons.

- A senhora não acredita, mas olhe que os cogumelos são muito perigosos. Basta haver entre eles um que seja venenoso e pronto. E engraçado – continuou Mrs. Kidder, de mistura com o barulho dos pratos e travessas no lava-louças - como uma desgraça nunca vem só. O filho mais velho da minha irmã apanhou sarampo, o nosso Ernie caiu e partiu um braço e o meu marido esteve com uma camada de furúnculos. Tudo isto na mesma semana! Custa a acreditar, não é verdade? Aqui aconteceu o mesmo - prosseguiu -, primeiro, esse crime e agora a morte de Mister Alfred, envenenado com cogumelos. Sempre gostava de saber quem será a seguir?

  Lucy pensou, entristecida, que também gostaria de sabê-lo.

  Pegou numa bandeja com chávenas de chá e comecou a subir as escadas.

- O que é isto? - perguntou Mr. Crackenthorpe desaprovadoramente.

- Chá e leite-creme - respondeu Lucy.

- Leve - ordenou Mr. Crackenthorpe. – Não toco nisso. Já disse à enfermeira que queria um bife.

- O doutor Quimper acha que, por ora, não deve comer bifes.

- Já estou praticamente bom – resmungou Mr. Crackenthorpe. - Amanhã, levanto-me. Como estão os outros?

- Mister Harold está muito melhor. Regressa amanhã a Londres.

- Que alívio! - exultou Mr. Crackenthorpe. E Cedric... há alguma esperança de que regresse amanhã à sua ilha?

- Não irá por ora.

- É pena. E Emma? Porque não vem ver-me?

- Está ainda de cama, Mister Crackenthorpe.

- As mulheres são sempre umas piegas. Mas você é uma rapariga forte - acrescentou. - Não pára durante todo o dia, pois não?

- Faco muito exercício.

  O velho Mr. Crackenthorpe meneou a cabeça com aprovação.

- E uma boa rapariga e forte. Não julgue que me esqueci do que lhe disse no outro dia. Não tardará a ver que tenho razão. Emma não poderá fazer eternamente o que quer. E não dê ouvidos aos outros, quando lhe dizem que sou um velho avarento. Tenho cuidado em não malbaratar o meu dinheiro. Tenho de parte uma boa maquia e bem sei quem o vai gastar quando for altura - olhou-a afectuosamente.

  Lucy saiu à pressa do quarto, evitando ser agarrada pela mão de Mr. Crackenthorpe.

  Foi buscar outro tabuleiro e levou-o a Emma.

- Obrigado, Lucy. Já me sinto quase boa. Tenho fome e isso é bom sinal, não é verdade? Sinto-me preocupada por causa de sua tia. Ainda não teve tempo para ir visitá-la, pois não?

- Pois não.

- Tenho receio que ela sinta a sua falta.

- Não se preocupe, Miss Crackenthorpe. Ela é muito compreensiva.

- Tem-lhe telefonado?

- Ultimamente, não.

- Então, telefone-lhe. Telefone-lhe todos os dias. As pessoas de idade gostam tanto de ter notícias.

  Enquanto descia a buscar novo tabuleiro, Lucy decidiu que telefonaria a Miss Marple, depois de levá-lo a Cedric.

  Este, com uma aparênçia incrivelmente asseada, estava sentado na cama a escrever.

- Viva, Lucy! - saudou. - Que maldita mistela me traz hoje? Gostava que me desembaraçasse dessa  enfermeira que se me dirige empregando sempre um nós. ”Como estamos esta manhã? Dormimos bem? Ai, filho, que marotos somos a tirar a roupa da cama” - proferiu, imitando a enfermeira, numa voz falsetto.

- Parece muito bem-disposto - observou Lucy.

- Que está a fazer?

- Planos. Planos para o que hei-de fazer com esta casa quando o velhote fechar o olho. Ainda não sei se a conserve ou se a venda. Tem muito valor para fins industriais. A casa serviria para uma creche ou para uma escola. Talvez venda metade da terra e empregue o dinheiro a fazer algo extravagante com a outra metade. Que acha?

- Ainda não a tem - replicou Lucy, com secura.

- Mas tê-la-ei. Não será dividida como o resto. Recebê-la-ei inteira. Se a vender por bom preço, o dinheiro será capital e não rendimento. Por conseguinte, não terei de pagar impostos sobre ele. Dinheiro para queimar. Pense bem.

- Sempre julguei que desprezasse o dinheiro - observou Lucy.

- Claro que desprezo o dinheiro, quando não o tenho - replicou Cedric. - E a única coisa digna a fazer. Você é uma rapariga encantadora, Lucy. Mas acaso esta impressão se deve ao facto de não ver uma mulher bonita há tanto tempo?

- Espero que seja isso.

- Tem ainda de arranjar alguma coisa ou de fazer arrumações?

- Parece que já alguém esteve a arrumar isto aqui - observou Lucy, olhando-o.

- Foi essa maldita enfermeira. Já realizaram o inquérito acerca de Alfred? Que aconteceu?

- Foi adiado - respondeu Lucy.

- A Polícia está a fazer “caixinha”. Este caso de envenenamento é de assustar - acrescentou. - É melhor ter cuidado consigo, minha filha.

- E o que faço - retorquiu Lucy.

- Alexander já voltou para o colégio?

- Creio que está ainda em casa de Stoddard-West. Segundo ouvi, o colégio só reabre depois de amanhã.   

  Antes de almoçar, Lucy telefonou a Miss Marple.

- Custa-me muito ainda não ter podido ir vê-la, mas tenho tido, de facto, muito que fazer.

- Claro, minha filha, claro. Além disso, por ora, nada se pode fazer. Temos de esperar.

- Sim, mas esperar por quê?

- Elspeth McGillicuddy deve estar de volta, muito em breve - disse Miss Marple. - Escrevi-lhe a pedir que regressasse imediatamente. Disse-lhe que era esse o seu dever. Por conseguinte, não se preocupe, minha filha - acrescentou em tom tranquilizador.

- Não julga que... - começou Lucy, e depois parou.

- Que haja mais mortes? Espero que não, minha flha. Mas, quando nos havemos com uma pessoa má, nunca se sabe, não é verdade?

- Ou maluca - sugeriu Lucy.

- Bem sei que é esse o ponto de vista moderno de considerar as coisas, mas eu não concordo.

  Lucy desligou, voltou para a cozinha e pegou no tabuleiro com o seu almoço. Mrs. Kidder tirara já o avental e preparava-se para partir.

- Sente-se bem, Miss Eyelesbarrow? - informou-se, cheia de solicitude.

- Certamente que sim - retorquiu Lucy com secura.

  Em vez de levar o tabuleiro para a grande e sombria casa de jantar, levou-o para o pequeno escritório. Estava precisamente a acabar de comer, quando a porta se abriu e Bryan Eastley entrou.

- Viva! - saudou Lucy. - Mas que visita inesperada!

- Também creio. Como estão todos?

- Muito melhor. Harold volta para Londres, amanhã.

- Que pensa você do caso? Era na realidade arsénico?

- Era, sim - confirmou Lucy.

- Ainda não veio nada nos jornais.

- Pois não. Creio que a Polícia deseja guardar segredo do acontecido até ao momento que julgar oportuno.

- Mas quem pode ter lançado veneno na comida?

- Suponho que seja eu a pessoa mais indicada - disse Lucy.

  Bryan, ansioso, olhou-a.

- Mas não foi você, pois não? - perguntou, parecendo um tudo nada chocado.

- Não, não fui.

- Porque havia de tê-lo feito, realmente? Eles não lhe são nada, pois não? - e depois acrescentou: Espero que o meu regresso não lhe tenha desagradado.

- Claro que não. Fica cá?

- Bem gostaria, se isso não fosse um grande incómodo para si.

- De forma alguma.

- Bem vê, nesta altura, estou desempregado e...bem, aborreco-me. Tem a certeza de que não se importa?

- Oh, não sou eu quem tem de importar-se. Isso é com Emma.

- Emma não me preocupa - disse Bryan. – Foi sempre muito gentil para mim. A sua maneira, já se sabe. É muito metida consigo. Não sei como consegue viver aqui enterrada a aturar o velhote. É pena não se ter casado. Agora já é tarde.

- Não acho que seja tarde - declarou Lucy.

- Bem... - Bryan reflectiu. - Talvez com um sacerdote. Emma seria muito útil à paróquia e havia de ir de chapéu, aos domingos, à igreja.

- Isso não me parece muito tentador – comentou Lucy, levantando-se e pegando na bandeja.

- Eu levo isso - ofereceu-se Bryan, tirando-lhe o tabuleiro das mãos. Voltaram juntos para a cozinha. Quer que a ajude a lavar a loica? Gosto desta cozinha - acrescentou. - Com efeito, embora reconheça que o meu gosto não é o da maioria das pessoas, esta casa agrada-me. E um gosto estranho, talvez, mas é a verdade. Um avião poderia aterrar com facilidade no parque - acrescentou, entusiasmado.

  Pegou num pano de cozinha e começou a limpar as colheres e os garfos.

- E uma pena que vá parar a Cedric - comentou. - A primeira coisa que fará será vender toda a propriedade e voltar de novo para o estrangeiro. Não compreendo como é que pode haver pessoas que não se sintam bem em Inglaterra. Harold também não teria interesse pela casa e para Emma é demasiado grande. Mas, se fosse parar a Alexander, ele e eu sentir-nos-íamos aqui tão felizes como dois garotos. E certo que seria agradável ter uma mulher em casa – olhou pensativamente para Lucy. - Mas para que estou a falar nisto? Para Alexander receber esta casa, seria necessário que todos eles morressem primeiro que o pai de Emma e isso nào é possível, pois não? Além de que Mister Crackenthorpe me parece estar disposto a chegar aos cem anos, apenas para os arreliar a todos. Não ficou muito afectado pela morte de Alfred, pois não?

- Pois não - replicou Lucy  laconicamente.

- Que velhote irritante! - proferiu Bryan Eastlev, de maneira jovial.

 

- E horrível o que se diz por aí - disse Mrs. Kidder. - Eu só ouço o que não posso deixar de ouvir, mas não acredito em nada daquilo. - Aguardou esperancosamente.

- Calculo.

  A campainha da porta tocou.

- É o médico. Quer que vá abrir a porta?

- Vou eu - declarou Lucy.

  Mas não era o médico e sim uma mulher alta e elegante, num casaco de arminho. No caminho ensaibrado, roncava baixinho um Rolls com um motorista ao volante.

- Posso falar com Miss Emma Crackenthorpe?

  A desconhecida tinha uma voz atraente e carregava levemente nos “RR”. Aparentava trinta e cinco anos, tinha cabelo escuro e estava dispendiosa e magnificamente maquilhada.

- Lamento, mas Miss Crackenthorpe está de cama e não pode receber ninguém.

- Sei que está doente, mas o assunto que aqui me traz é muito importante.

- Receio que... - começou Lucy.

  A visitante interrompeu-a:

- Creio que é Miss Eyelesbarrow, não é verdade? - sorriu-lhe. - Meu filho falou-me de si. Sou Lady Stoddard-West e Alexander está agora em minha casa.

- Ah!

- E preciso na realidade de falar com Miss Crackenthorpe - continuou a outra. - Sei tudo a respeito da sua doenca e garanto-lhe que não se trata de uma visita social. E por causa de uma coisa que os pequenos me contaram... que o meu filho me contou. Creio que é um assunto importante e gostaria de falar a seu respeito com Miss Crackenthorpe. Quer fazer o favor de preveni-la da minha vinda?

  Lucy levou Lady Stoddard-West para a sala de visitas e declarou:

- Vou lá acima prevenir Miss Crackenthorpe.

  Depois de entrar no quarto de Emma anunciou:

- Lady Stoddard-VUest está lá em baixo. Deseja falar-lhe em particular.

- Lady Stoddard-West? - repetiu Emma, surpreendida. Espraiou-se-lhe no rosto uma expressão de alarme. - Terá acontecido alguma coisa aos pequenos... a Alexander?

- Não, não - tranquilizou Lucy. - Estou certa de que os pequenos estão bem. Parece que se trata de uma coisa que os pequenos lhe contaram.

- Ah, bem... - Emma hesitou. - Talvez deva recebê-la. Acha que estou bem, Lucy?

- Está muito bem - garantiu Lucy. - Posso ir buscar Lady Stoddard-West?

- Pois sim.

  Pouco depois, Lady Stoddard-West aproximava-se da cama de Emma Crackenthorpe, de mão estendida.

- Miss Crackenthorpe? Desculpe vir incomodá-la.

  Lady Stoddard-West sentou-se numa cadeira, próximo da cama. Em voz baixa e séria começou:

- Deve achar a minha visita muito estranha, mas tenho uma razão a justificá-la. E creio que se trata de uma razão importante. Os pequenos contaram-me umas coisas. Compreende-se a sua excitação por o crime ter ocorrido aqui e confesso que essa ideia também não me agradou, na altura. Fiquei tão nervosa que quis vir buscar James imediatamente, mas meu marido riu-se de mim e disse ser óbvio o crime nada ter a ver com a casa ou com a família. Além disso, pelo que James escrevia nas cartas, ele e Alexander divertiam-se tanto que teria sido crueldade vir buscá-lo.

  Tenho, porém, de dizer-lhe o que eles me contaram. Disseram-me que a Polícia julgava que essa mulher... a que foi assassinada... fosse uma rapariga francesa que seu irmão mais velho, morto na guerra, conheceu em França. É verdade?

- Somos forçados a considerar essa possibilidade - respondeu Emma.

- Há alguma razão para acreditar que o cadáver fosse o dessa rapariga, dessa Martine?

- Como já lhe disse, é uma possibilidade.

- Mas porque... porque haviam de pensar que era Martine? Tinha algumas cartas entre os seus... papéis?

- Não, nada disso. Mas eu recebera uma carta dessa Martine.

- Recebeu uma carta... de Martine?

- Sim. Uma carta a dizer-me que estava em Inglaterra e gostaria de visitar-me. Convidei-a a cá vir, mas recebi um telegrama dela a anunciar o seu regresso a França. Talvez tenha regressado, talvez não. Ignoramo-lo. Mas, mais tarde, foi encontrado aqui um sobrescrito que lhe era endereçado, o que parece indicar que ela tinha aqui vindo. Mas, de facto, não compreendo...

  Lady Stoddard-West atalhou com vivacidade:

- Não compreende em quê que isso me diz respeito? E muito natural. No seu lugar, eu também não compreenderia. Mas, quando soube disto... tive de vir certificar-me porque...

- Porquê?

- Tenho de dizer-lhe uma coisa que nunca tencionara dizer-lhe. Eu sou Martine Dubois.

  Emma olhou estupefacta para a visitante, como se lhe custasse a perceber o que ouvira.

- A senhora! - exclamou. - A senhora é Martine?

  A outra confirmou meneando energicamente a cabeca.

- Sou, sim. Compreendo que isto a surpreenda, mas é a verdade. Conheci o seu irmão no início da guerra. Estava aboletado em nossa casa. O resto já o conhece. Apaixonámo-nos um pelo outro. Tencionávamos casar, mas depois ocorreu a queda de Dunquerque e Edmund foi dado como morto. Mais tarde, a sua morte foi anunciada oficialmente. Não quero falar-lhe desse tempo. Já passaram muitos anos e tudo passou. Mas digo-lhe que amei muito seu irmão.

  Depois sobrevieram as amargas realidades da guerra. Os Alemães ocuparam a França. Trabalhei na Resistênçia. Competia-me ajudar os Ingleses a atravessarem a França e irem para Inglaterra. Foi desse modo que conheci o meu actual marido. Era um oficial da Força Aérea, lançado de pára-quedas em França, incumbido de realizar uma missão especial. Quando a guerra acabou, casámos. Hesitei uma ou duas vezes em escrever-lhe ou em vir visitá-la, mas resolvi não o fazer. Não serviria de nada avivar recordações tristes. Tenho uma vida nova e não desejo recordar a antiga.

- Fez uma pausa, e depois prosseguiu: - Mas pode crer que me deu um estranho prazer saber que o maior amigo de meu filho no colégio era sobrinho de Edmund. Acho Alexander muito parecido com Edmund.

  Inclinou-se para a frente e pousou a mão no braço de Emma.

- Mas com certeza compreende, minha boa Emma, que, ao ouvir esta história do crime de uma mulher chamada Martine e que Edmund conhecera, me senti no dever de vir procurá-la e contar-lhe a verdade. Uma de nós tem de informar a Polícia do que acabo de dizer-lhe.

- Ainda me custa a crer que seja a Martine de que meu irmão me falou nas suas cartas – suspirou Emma. Abanou a cabeça e depois franziu o sobrolho, perplexamente. - Nesse caso, foi quem me escreveu?

  Lady Stoddard-West sacudiu vigorosamente a cabeca.

- Não, não, claro que não.

- Nesse caso... - Emma calou-se.

- Nesse caso, alguém que se dizia Martine queria extorquir-lhe dinheiro. E o que deve ter sido. Mas quem?

  Emma perguntou, com lentidão:

- Nesse tempo, havia mais alguém a par deste assunto?

  A outra encolheu os ombros.

- E provável, mas não havia nenhuma pessoa que me fosse íntima e com quem eu desabafasse. Além disso, desde que estou em Inglaterra, tão-pouco falei no caso a alguém. E porque esperar todo este tempo? E curioso, muito curioso.

- Não compreendo. Veremos o que o inspector Craddock pensa disto. - De súbito, olhou com afecto para a visitante. - Estou tão contente por tê-la finalmente conhecido...

- E eu também... Edmund falava-me muitas vezes de si. Vivo feliz, mas apesar disso, não o esqueço.

  Emma soltou um profundo suspiro.

- E um alívio enorme - confessou. – Enquanto julgávamos que essa morta pudesse ser Martine... parecia que a família tinha qualquer coisa a ver com o crime. Mas agora... oh, é um autêntico peso que me saiu das costas. Não sei quem essa infeliz era, mas nada pode ter tido a ver connosco!

 

  A secretária aerodinâmica levou a Harold Crackenthorpe a habitual chávena de chá.

- Obrigado, Miss Ellis. Hoje vou mais cedo para casa.

- Acho que ainda não devia ter vindo, Mr. Crackenthorpe - opinou Miss Ellis. - Tem um aspecto muito abatido.

- Sinto-me bem - declarou Harold Crackenthorpe. Na realidade, sentia-se abatido. Não havia dúvida de que vivera um mau bocado, mas felizmente, esse mau bocado já passara.

  Achava extraordinário que Alfred houvesse sucumbido e o mesmo não tivesse acontecido ao velho. No fm de contas, este já tinha... setenta e três anos... ou setenta e quatro anos? Há anos que estava doente. Se havia alguém que devesse morrer, esse alguém era o velho. Mas não. Fora Alfred, um homem novo e saudável. Recostou-se na cadeira, suspirando. Aquela rapariga tinha razão. Ainda não estava capaz de ir ao escritório, mas quisera ver como corriam os negócios. Todo o ambiente à sua volta indicava prosperidade; os móveis de boa madeira polida, as poltronas modernas e caras, tudo enfim. Por ora, ainda não corriam rumores acerca da sua situação financeira. Apesar disso, não poderia evitar o desastre por muito tempo. Se, ao menos, o pai tivesse morrido em lugar de Alfred, como devia ter sido... Praticamente, parecia dar-se bem com o arsénico! Sim, se seu pai tivesse sucumbido...bem, nesse caso, não haveria razões para preocupacões.

  Mas fora Alfred quem morrera! Nunca gostara muito desse irmão e agora que estava fora do caminho, o dinheiro que ele, Harold, herdaria do velho avarento seria sensivelmente aumentado, pois seria dividido apenas por quatro filhos em vez de cinco. Era muito melhor.

  O rosto de Harold animou-se um pouco. Levantou-se, pegou no chapéu e no sobretudo e saiu do escritório. Era melhor repousar ainda um dia ou dois. O carro esperava-o lá em baixo e, pouco depois, circulava pelas ruas de Londres, a caminho de casa.

  Darwin, o criado, abriu-lhe a porta e anunciou:

- A senhora já chegou.

  Harold olhou-o, um momento, sem compreender. Alice! Esquecera-se por completo de que a mulher devia chegar nesse dia. Felizmente, Darwin prevenira-o, porque, caso contrário, ao vê-la, a sua expressão atónita traí-lo-ia. No fim de contas, isso também pouca importânçia teria. Nem ele nem Alice acalentavam muitas ilusões acerca dos sentimentos que nutriam um pelo outro. Talvez Alice gostasse dele... não o sabia.

  Vendo bem as coisas, Alice fora uma grande desilusão. Não se apaixonara por ela, claro, mas, embora fosse uma mulher simples, era simpática, além de que sua fàmília possuía relações que lhe tinham sido indubitavelmente úteis. Não tanto como podiam ter sido, se tivessem filhos. Estes teriam óptimas relações. Mas não os tinham e apenas existiam os dois, ele e Alice, envelhecendo juntos, sem muito que dizer um ao outro e sem qualquer prazer na companhia mútua.

  A mulher passava grande parte do tempo com a família e, chegado o Inverno, partia, em geral, para a Riviera.

  Foi encontrá-la na sala e cumprimentou-a cerimoniosamente.

- Lamento muito não ter ido esperá-la, mas fiquei retido na City. Voltei o mais cedo que me foi possível. Que tal San Raphael?

  Alice respondeu-lhe que San Raphael estava bem. Era uma mulher magra, de cabelo loiro, de nariz bem arqueado e de olhos cor de avelã e vagos. Falava numa voz cansada e monótona, com a entoação “bem”. Fizera uma bela viagem, embora o canal estivesse agitado. Em Dover, a alfândega fora, como de costume, muito aborrecida.

- Devia ter vindo de avião. E muito mais simples.

- Concordo, mas não gosto de voar. Nunca gostei. Fico nervosa.

- Mas poupa-se muito tempo - observou Harold.

  Lady Alice Crackenthorpe não respondeu. Era possível que o seu problema na vida não fosse poupar tempo, mas sim ocupá-lo. Informou-se delicadamente da saúde do marido.

- O telegrama de Emma deixou-me muito alarmada. Estiveram todos doentes, não é verdade?

- Sim - confirmou Harold.

- No outro dia, li no jornal a notícia de um caso de envenenamento de quarenta pessoas num hotel. Estou certa que é dessas comidas guardadas tanto tempo em frigorífcos.

- Talvez - admitiu Harold.

  Hesitava em mencionar a palavra arsénico. Mas, quando olhava para a mulher, sentia-se incapaz de o fazer. Achava que no mundo de Alice, um envenenamento por arsénico não era possível. Era apenas uma coisa que se lia nos jornais e não acontecia na própria família. Contudo, acontecera na família Crackenthorpe.

  A mesa, a conversa manteve o mesmo carácter, delicado, cerimonioso. Alice falou de pessoas conhecidas que encontrara em San Raphael.

- Há uma encomenda para si sobre a mesa do átrio - disse Alice.

- Sim? Não reparei.

- Ouvi dizer que uma mulher tinha sido assassinada e encontrada num celeiro, em Rutherford Hall. Suponho que se trate de outro Rutherford Hall.

- Não, é o mesmo. Na verdade, trata-se do nosso celeiro.

- A sério, Harold? Uma mulher assassinada no celeiro de Rutherford Hall... e nunca me disse nada a esse respeito.

- Bem, em primeiro lugar, isso ainda foi há pouco tempo - justificou-se Harold - e, em segundo, trata-se de um caso muito desagradável. E evidente que nada tem a ver connosco. Fomos obrigados a chamar a Polícia e tudo o mais.

- Que desagradável! Descobriram o criminoso?

- Ainda não.

- Que género de mulher era?

- Ninguém sabe. Ao que parece, era francesa.

- Ah, francesa - repetiu Alice, num tom de voz parecido ao do inspector Bacon. - Deve ter sido muito aborrecido para todos.

  Depois do jantar, Harold foi buscar a encomenda de que a mulher lhe falara. Era um embrulho pequeno, bem feito e lacrado. Abriu-o enquanto se dirigia para a sua cadeira junto à lareira do escritório.

  Dentro do embrulho estava uma caixinha de comprimidos com o rótulo seguinte: “Tomar dois, à noite, ao deitar”. Acompanhava-o um bilhete do farmacêutico de Brackhampton com as palavras: “Enviado, a pedido do Dr. Quimper”.

  Harold Crackenthorpe franziu o sobrolho. Abriu a caixa e olhou para os comprimidos. Sim, pareciam iguais aos que tomara, mas estava certo de que Quimper lhe recomendara que não tomasse mais. “Pare com eles, agora”, dissera-lhe Quimper.

- Que se passa? Parece preocupado.

- Não é nada... são uns comprimidos. Tenho-os tomado à noite, mas estava convencido de que o médico me dissera que não tomasse mais.

  A mulher retorquiu com placidez:

- Provavelmente, disse que não se esquecesse de tomá-los.

- É possível - admitiu Harold, duvidoso.

  Olhou para a mulher. Esta observava-o. Que estaria ela a pensar? Aquele seu olhar sereno nada lhe dizia. Eram uns olhos que se assemelhavam às janelas duma casa vazia. Que pensaria Alice a seu respeito? O que sentiria por ele? Alguma vez o amara? Harold julgava que sim. Ou teria casado com ele na esperança de viver bem e por estar cansada da sua existência pobre? Pois conseguira o que queria. Tinha carro, uma casa em Londres, ia para o estrangeiro quando queria, comprava vestidos caros, embora nela nunca fizessem grande vista. Sim, conseguira o que queria.

  Alice continuava a observá-lo. Aqueles seus olhos pálidos e pensativos causavam-lhe mal-estar.

- Vou deitar-me. Foi hoje o meu primeiro dia na City desde que me recompus.

- Sim, acho que é uma boa ideia. Estou certa de que o médico lhe recomendou prudência.

- Os médicos recomendam-na sempre.

- E não se esqueça dos comprimidos, querido - lembrou Alice, pegando na caixa e dando-a ao marido.

  Despediram-se e Harold foi para cima. Sim, precisava dos comprimidos. Teria sido um erro pô-los de parte tão cedo. Meteu dois na boca e engoliu-os com um copo de água.

 

- Ninguém podia ter feito pior figura do que a minha - lastimou-se Dermot Craddock, tristemente.

  Estava sentado, com as compridas pernas estendidas, na saleta, atravançada de móveis, da dedicada Florence. A sua expressão denotava profundo cansaço e desânimo.

  Miss Marple procurou animá-lo:

- Não, não diga uma coisa dessas. Você fez o que era possível. Fez de facto um bom trabalho.

- Acha que fiz um bom trabalho? Permiti que a família inteira fosse envenenada, que Alfred Crackenthorpe morresse e que acontecesse agora o mesmo a Harold. Que diabo sucederá a seguir? Isso é o que eu gostava de saber.

- Comprimidos envenenados - proferiu Miss Marple, pensativa.

- Sim, o assassino foi de facto de uma subtileza diabólica. Assemelhavam-se exactamente aos comprimidos que ele tinha andado a tomar. Havia um papel junto à caixa que dizia: “Enviado a pedido do Dr. Quimper”.  Ora Quimper não encomendou esses comprimidos e o farmacêutico tão-pouco sabe seja o que for a esse respeito. Não. Essa caixa de comprimidos veio de Rutherford Hall.

- Tem a certeza de que veio de Rutherford Hall?

- Sim. Já procedemos a um inquérito. Com efeito, trata-se da caixa que continha os comprimidos sedativos receitados para Emma.

- Ah, percebo. Para Emma...

- Sim. Tem as suas impressões digitais, as de ambas as enfermeiras e as do farmacêutico que aviou a receita. A pessoa que enviou essa caixa a Harold foi cuidadosa.

- E os comprimidos sedativos tinham sido substituídos por outros?

- Sim. E esse o mal dos comprimidos. Assemelham-se muito uns aos outros.

- Tem toda a razào - concordou Miss Marple.

- De que eram os comprimidos?

- De acónito. E o género de comprimidos venenosos que se dissolvem em água para aplicações exteriores - explicou Craddock.

- E, por conseguinte, Harold tomou-os e morreu - concluiu Miss Marple, pensativamente.

- Mas nem por isso deixo de me ter portado como um imbecil durante todo este caso. O chefe da Polícia daqui apelou para a Scotland Yard e que ganhou ele com isso? Fiz um autêntico papel de asno!

- Não diga isso - procurou amenizar Miss Marple.

- Digo, sim. Ignoro quem envenenou Alfred, ignoro quem envenenou Harold e, para cúmulo, não faço a mínima ideia da identidade da mulher assassinada! Este caso de Martine parecia-me estar quase resolvido, e que aconteceu? A verdadeira Martine aparece e é mulher de Sir Robert Stoddard-West. Por conseguinte, quem era a mulher encontrada no celeiro? Em primeiro lugar, convenço-me de que é Anna Stravinski, e depois verifico que o não é...

  Calou-se ao ouvir o tossicar significativo de Miss Marple.

- Tem a certeza de que não é?

  Craddock fitou-a.

- Ora, esse postal da Jamaica...

- Pois sim - admitiu Miss Marple -, mas isso não constitui uma verdadeira prova, pois não? Não sei se compreende o que quero dizer - acrescentou, olhando significativamente para Dermot Craddock.

- Sim, decerto - replicou Craddock, fitando-a.

- Claro está que teríamos procurado confirmar a veracidade desse postal, se o caso de Martine não parecesse tão genuíno.

- Tão cómodo - corrigiu Miss Marple, baixinho.

- Mas parecia consistente - fez notar Craddock.

- No fim de contas, a carta que Emma recebeu vinha assinada Martine Crackenthorpe. Lady Stoddard-West não a enviou, mas alguém o fez. Alguém que pretendia passar por Martine para tentar extorquir dinheiro. Não pode negar isso.

- Pois não.

- Há ainda o sobrescrito que Emma lhe endereçou para Londres. Foi encontrado em Rutherford Hall, o que prova que ela esteve realmente ali.

- Mas a mulher assassinada não esteve lá - acentuou Miss Marple.

- Pelo menos, não no sentido a que se refere. Ela só veio a Rutherford Hall, depois de estar morta. Foi empurrada para fora do comboio, quando este contornava a ravina.

- Sim, é verdade. Mas o sobrescrito prova, na realidade, que o assassino estava lá. É de presumir que lhe tenha tirado esse sobrescrito juntamente com os outros papéis e coisas que ela levava e deixou-o cair por engano... ou... pergunto agora a mim mesma se teria sido por engano. O inspector Bacon e os seus homens revistaram cuidadosamente toda a propriedade, não é verdade? E não encontraram esse sobrescrito. Este só apareceu mais tarde, na casa da caldeira.

- Isso é compreensível - disse Craddock.O jardineiro tem o costume de apanhar todos os papéis que encontra e de levá-los para ali.

- Mas estava num sítio onde os pequenos podiam encontrá-lo, com facilidade - observou Miss Marple, pensativa.

- Julga que o assassino esperava que encontrássemos esse sobrescrito?

- Não sei bem. No fim de contas, seria fácil calcular os sítios onde os pequenos andariam à procura ou até sugerir-lhos... Isto fê-lo esquecer-se de Anna Stravinski, não é verdade?

- Julga que seja ela?

- Acho que alguém ficou alarmado ao saber que você começara a fazer inquéritos a seu respeito, nada mais... Julgo que esses inquéritos contrariavam alguém.

- Consideremos o caso básico de alguém querer passar por Martine - propôs Craddock. - Esse alguém, por qualquer razão... desistiu desse intento. Porquê?

- Aí está o que se chama uma pergunta muito interessante - apreciou Miss Marple.

- Alguém expediu um telegrama a anunciar o regresso de Martine a França, depois arranjou maneira de fazer a viagem para cá com a rapariga e matou-a, durante o caminho. Até aqui, concorda?

- Não exactamente - respondeu Miss Marple. - Não me parece que esteja a simplificar o caso.

- A simplificá-lo! - exclamou Craddock. A senhora confunde-me - queixou-se.

  Miss Marple afiançou, numa voz triste, não ser essa a sua intenção.

- Ora, diga-me - pediu Craddock -, julga ou não julga saber quem era a mulher assassinada?

  Miss Marple suspirou:

- É difícil dizê-lo. Isto é, não sei guem ela era, mas ao mesmo tempo tenho quase a certeza de quem ela era. Não sei se compreende o que quero dizer.

  Craddock ergueu a cabeça e replicou:

- Se compreendo o que quer dizer? Não faço a mínima ideia. - Olhou pela janela e anunciou: - Aí vem a sua amiga Lucy Eyelesbarrow. Vou-me embora. Esta tarde, o meu amour propre está muito sensível e ver entrar uma rapariga radiante de eficiênçia e de sucesso é superior às minhas forças.

 

- Consultei a palavra tontina no dicionário - declarou Lucy.

- Já calculava - redarguiu Miss Marple.

  Lucy recitou lentamente: - “Lorenzo Tonti, banqueiro italiano, criador, em mil seiscentos e cinquenta e três, de um género de anuidade pela qual a parte dos subscritores que morrem é acrescentada à dos sobreviventes” - fez uma pausa e perguntou. - É isso, não é verdade? Isto ajusta-se perfeitamente ao caso e era no que a senhora pensava, ainda antes de estas duas mortes terem ocorrido.

  Começou a andar de maneira agitada de um lado para outro. Miss Marple observava uma Lucy muito diferente daquela que conhecera.

- Suponho que a causa de tudo está nesse testamento - disse Lucy. - Um testamento dessa natureza, estabelecendo que, no caso de só haver um sobrevivente, este herdaria toda a fortuna. E, contudo, trata-se de uma fortuna tão grande que o que dela caberia a cada um seria mais do que suficiente...

- O mal está na voracidade das pessoas - sentenciou Miss Marple, que se apressou a corrigir: - De algumas pessoas. Muitas vezes é assim que tudo começa. Não se começa por assassinar, nem por querer assassinar, nem por pensar em fazê-lo. Começa-se a ser voraz, a querer mais do que se conta receber. - Pousou o tricô sobre os joelhos e olhou para o espaço à sua frente. - Foi assim que eu conheci o inspector Craddock. Um caso no campo, perto de McDenham Spa. Principiou da mesma maneira, um carácter fraco e amável que queria uma grande quantidade de dinheiro. Parecia tudo tão simples, que não podia haver mal nenhum. É assim que as coisas começam... Mas terminou com três assassínios.

- Tal como este caso - comentou Lucy. - Já foram assassinadas três pessoas. Restam duas, não é verdade?

- Quer dizer que há apenas Cedric e Emma?

- Emma não, pois não é um homem alto e moreno. Não. Refiro-me a Cedric e a Bryan Eastley. Nunca tinha pensado em Bryan porque é loiro. Tem bigode loiro e olhos azuis, mas, sabe... no outro dia... - calou-se.

- Continue - incitou Miss Marple. - Houve alguma coisa que a deixou impressionada, não é verdade?

- Foi quando Lady Stoddard-West se ia embora. Tinha-se já despedido e, quando ia a entrar no carro, virou-se para mim e perguntou: “Quem era aquele homem alto e moreno que estava no terraço, quando entrei?” A princípio, não percebi a quem se referia, porque Cedric ainda estava deitado. Por conseguinte, perguntei, um pouco intrigada: “Refere-se a Bryan Eastley?” E ela respondeu: “Exactamente, pertencia ao

Esquadrão Leader Eastley. Esteve escondido no nosso sótão, em França, durante a Resistênçia. Recordo-me bem da sua figura, dos seus ombros. Gostaria de voltar a vê-lo. Mas não o conseguimos encontrar”.

  Miss Marple permaneceu calada, à espera que Lucy continuasse a falar.

- E depois - prosseguiu esta - olhei para ele...Estava de pé, de costas para mim, e vi o que já antes devia ter visto. Que mesmo quando um homem é loiro, o seu cabelo parece castanho por causa dos cremes que lhe põe. O cabelo de Bryan é de um loiro-acastanhado mas pode parecer nitidamente castanho. Por isso, podia ter sido Bryan o homem que a sua amiga viu no comboio.

- Sim, já me tinha lembrado disso – confessou Miss Marple.

- Lembra-se de tudo! - observou Lucy, amargurada.

- Assim é preciso, minha filha.

- Mas não vejo o que Bryan ganharia com isso. O dinheiro caberia a Alexander e não a ele. Calculo que a vida se lhe tornasse mais fácil, mas não poderia tocar no capital.

- Mas, se algo acontecesse a Alexander antes de ter vinte e um anos, Bryan receberia o dinheiro, na qualidade de pai.

  Lucy lançou-lhe um olhar horrorizado.

- Não seria capaz disso. Nenhum pai o seria...apenas para receber o dinheiro.

  Miss Marple suspirou.

- Engana-se. E um facto muito triste e terrível, mas é uma realidade. As pessoas são capazes de coisas terríveis. Conheco casos muito lamentáveis que bem o atestam. Mas - acrescentou meigamente: - Não deve estar ralada, não deve preocupar-se. Elspeth McGillicuddy não tardará a chegar.

- Não vejo o que isso tenha a ver com o caso.

- Pois não, talvez não, minha filha. Mas eu julgo que isso é importante.

- Não posso deixar de estar ralada – confessou Lucy. - Tenho interesse por essa família.

- Para si tudo isto é muito penoso porque se sente fortemente atraída por eles dois, embora de modos diferentes, não é verdade?

- Que quer dizer? - perguntou Lucy, com vivacidade.

- Referia-me aos dois filhos de Mister Luther Crackenthorpe - exclamou Miss Marple. - Ou antes, ao filho e ao genro. É pena que os dois membros menos agradáveis da família tenham morrido e que os dois mais simpáticos tenham ficado. Não acho Cedric Crackenthorpe muito atraente. Gosta de se mostrar pior do que é e há nele uma nota provocadora.

- Às vezes, desespera-me - confessou Lucy.

- Sim, mas você gosta dele, não é verdade? Você é uma rapariga cheia de vida e aprecia o combate.   Sim, compreendo onde reside essa atracção. E o outro, Mister Eastley é o tipo triste, parece um garoto infeliz. E evidente que isso também atrai.

- E um deles é um assassino - disse Lucy, com amargura. - Tanto pode ser um como outro. Na realidade, nada há que faça parecer um melhor do que o outro. Cedric não ligou a mínima importânçia à morte de Alfred ou de Harold. Está muito bem recostado em almofadas, a planear o que há-de fazer com Rutherford Hall. Claro está que já percebi que é o género de pessoa que exagera a sua insensibilidade. Isso pode ser uma defesa, mas também pode não o ser.

- Minha pobre Lucy, como lamento isto.

- E Bryan - continuou a jovem -, embora pareça extraordinário, mostrou desejar viver aqui. Diz que ele e Alexander levariam aqui uma boa vida e está cheio de planos.

- Está sempre com planos, não está?

- Sim. Todos eles parecem maravilhosos, mas tenho a impressão de que nunca resultarão. Quero dizer, por não serem práticos. A ideia parece boa... mas não creio que ele chegue a considerar as dificuldades que terá de vencer.

- São ideias feitas no ar, não é isso?

- Sim, sob mais do que um aspecto, todas elas são ideias no ar. Talvez um piloto de guerra realmente bom nunca consiga regressar por completo à terra...

- Compreendo, sim, compreendo...

  Depois, com um súbito olhar de soslaio para Lucy, perguntou:

- Mas não é apenas isso, pois não, minha filha? Há mais alguma coisa.

- Sim, há mais alguma coisa. Uma coisa de que só há dois dias me apercebi: Bryan podia ter viajado nesse comboio.

- No das quatro e trinta e três, de Paddington?

- Sim. Emma julgou que teria de fazer um relato dos seus movimentos no dia vinte de Dezembro e, por conseguinte, procurou recordá-los cuidadosamente. De manhã, esteve numa reunião; à tarde, foi fazer compras e lançhou no restaurante Green Shamrock. Depois, disse ela, foi esperar Bryan à estação. Foi esperá-lo no comboio que partiu de Paddington às quatro e cinquenta, mas ele podia ter chegado no comboio anterior e fingido ter vindo naquele. Contou-me, em conversa, que o seu carro tinha tido uma avaria e o mandara para a garagem e que por essa razão viajara de comboio... embora detestasse fazê-lo. Pareceu-lhe muito natural... mas preferia que não tivesse vindo de comboio. Bem sei que isso nada prova. São tudo suspeitas, suspeitas horríveis. Nada sabemos e talvez nunca o saibamos.

- Certamente que acabaremos por sabê-lo - assegurou Miss Marple vivamente. - A Polícia está a fazer o possível... e, o que é ainda mais importante, Elspeth McGillicuddy não tardará a chegar!

 

- Elspeth, compreendeste bem o que pretendo que faças?

- Perfeitamente - assegurou Mrs. McGillicuddy - mas não posso deixar de dizer-te, Jane, que me parece muito estranho.

- Não tem nada de estranho - contrariou Miss Marple.

- Pois eu acho que sim. Chegar a uma casa e pedir, quase imediatamente, para ir... hum... lá acima.

- Está um tempo muito frio - fez notar Miss Marple - e, no fim de contas, podias ter comido alguma coisa que não te assentasse bem no estômago e...precisares de ir lá acima. São coisas que acontecem.

  Recordo-me da pobre Louisa Felby que foi uma vez visitar-me e, durante a meia hora que durou a visita, pediu-me cinco vezes para ir lá acima.

- Se, ao menos, me quisesses dizer qual é a tua ideia.

- E precisamente isso o que eu não quero fazer - disse Miss Marple.

- Es muito irritante, Jane. Em primeiro lugar, obrigas-me a regressar a Inglaterra, antes de ser preciso...

- Desculpa, mas não podia fazer outra coisa. De um momento para o outro, pode ser alguém assassinado. Bem sei que estão todos prevenidos e que a Polícia tomou todas as precauções possíveis, mas há sempre a possibilidade de o assassino chegar para eles todos, em inteligênçia. Por conseguinte, Elspeth, era teu dever regressares. Seja como for, tanto tu como eu fomos ensinadas a cumprir o nosso dever, não é verdade?

- Claro que sim; nos nossos tempos, não havia relaxamentos.

- Por conseguinte, estamos entendidas - concluiu Miss Marple e acrescentou: - O táxi acaba de chegar.

 

- Quem será? - perguntou Emma, espreitando pela janela. - Creio que é a tia de Lucy.

- Que maçada - queixou-se Cedric.

  Estava estendido numa cadeira de repouso a ler um Country Life.

- Diz-lhe que não estás em casa.

- Queres que seja eu a dizer-lhe ou que encarregue Lucy de o fazer?

- Não me tinha lembrado disso - admitiu Cedric.

  Nesse momento, Mrs. Hart abriu a porta e Miss Marple entrou, muito roliça, envolta numa quantidade de xailes e lencos, e seguida de uma figura alta e forte.

- Espero - disse Miss Marple, estendendo a mão a Emma -, que não sejamos intrusas. Mas, sabe, volto para casa depois de amanhã, e não queria deixar de vir despedir-me de todos e agradecer-lhes a bondade com que têm tratado Lucy. Ah, já me esquecia. Dá-me licenca que lhe apresente Mistress McGillicuddy que veio fazer-me companhia?

- Muito prazer - disse Mrs. IVIcGillicuddy, olhando com muita atenção para Emma e desviando depois o olhar para Cedric, que se pusera de pé.

  Lucy entrou nesse momento.

- Tia Jane, não sabia que...

- Vim despedir-me de Miss Crackenthorpe, que tem sido tão gentil para contigo, minha filha - declarou Miss Marple, virando-se para Lucy.

- Lucy é que tem sido gentil para nós – disse Emma.

- É verdade - confirmou Cedric. - Tem sido uma moura de trabalho a tratar dos doentes, a cozinhar dietas, a andar sem parança escada abaixo e escada acima...

- Custou-me tanto saber que estavam doentes. Espero que esteja agora completamente bem, Miss Crackenthorpe.

- Oh, sim. Agora já me sinto perfeitamente bem - afiançou Emma.

- Lucy disse-me que a senhora tinha estado muito mal. Há alimentos que são muito perigosos, não é verdade? Refiro-me aos cogumelos.

- A causa da nossa doenca permanece ainda bastante misteriosa.

- Não acredite nisso - atalhou Cedric. – Aposto que já ouviu o que se diz por aí, Miss... hum...

- Marple - acudiu esta.

- Como digo, com certeza já ouviu os boatos que correm por aí. Não há nada como o arsénico, para criar agitação na vizinhança.

- Cedric - interveio Emma -, bem sabes o que o inspector Craddock disse.

- Ora, toda a gente o sabe. As senhoras também, não é verdade? - perguntou, dirigindo-se a Miss Marple e a Mrs. McGillicuddy.

- Eu cheguei do estrangeiro anteontem - declarou a última.

- Ah, nesse caso, não está a par do escândalo - explicou Cedric. - Foi arsénico no caril. Aposto que a tia de Lucy já o sabia.

- Bem, apenas ouvi qualquer coisa... - confessou Miss Marple -, foi apenas uma insinuação, mas claro está que não queria incomodá-la de modo algum, Miss Crackenthorpe.

- Não deve fazer caso do que meu irmão diz. Gosta de assustar as pessoas - explicou Emma, lançando ao irmão um sorriso afectuoso.

  A porta abriu-se e Mr. Crackenthorpe entrou batendo iradamente com a bengala no chão:

- Onde está o chá? - perguntou. - Porque não está pronto? Eh, pequena! - dirigiu-se a Lucy: Porque não trouxe ainda o chá?

- Já está pronto, Mister Crackenthorpe. Vou já buscá-lo. Estava a pôr a mesa.

  Lucy voltou a sair da sala e Mr. Crackenthorpe foi apresentado a Miss Marple e a Mrs. McGillicuddy.

- Gosto das refeições a horas certas - justificou-se Mr. Crackenthorpe. - Pontualidade e economia são o meu lema.

- Ambas são muito necessárias – concordou Miss Marple -, em especial üos tempos de hoje, em que os impostos são tão elevados.

- Impostos! - resmungou Mr. Crackenthorpe. - Não me fale desses ladrões. Um homem pobre...é o que sou. E isto vai piorar. Espera, meu rapaz - continuou, dirigindo-se a Cedric -, que quando receberes esta casa os socialistas hão-de extorquir-te mil por cento dela e levar-te os rendimentos todos.

  Lucy voltou com o tabuleiro de chá, seguida de Bryan Eastley, que transportava um outro com sanduíches, pão com manteiga e um bolo coberto.

- Que é isto? Que é isto? - admirou-se Mr. Crackenthorpe, inspeccionando o tabuleiro. - Bolo coberto? Hoje temos festa? Ninguém me tinha prevenido.

  Um leve rubor tingiu o rosto de Emma.

- O doutor Quimper vem tomar chá, pai. Faz hoje anos e...

- Faz anos? E para que precisa de festa? As festas de anos sáo apenas para as crianças. Eu nunca conto os anos que faço e não permito que os celebrem.

- Sai muito mais barato - comentou Cedric. Poupa o dinheiro das velas do bolo.

- Cala-te - rugiu Mr. Crackenthorpe.

  Miss Marple apertava a mão a Bryan Eastley.

- Lucy tem-me falado de si. O senhor lembra-me uma pessoa muito conhecida de Saint Mary Mead. E a aldeia onde vivo há muitos anos. Ronnie Wells, o ftlho do solicitador. Quando começou a trabalhar com o pai, parecia náo se adaptar. Partiu para a Africa Oriental e iniciou uma carreira de barcos de carga na regiáo dos Lagos. Mas, coitado, aquilo foi um fracasso e perdeu todo o capital! Foi uma grande infelicidade. Espero que não seja parente seu? A semelhança é tão grande!

- Não, não me parece que tenha alguns parentes chamados Wells - declarou Bryan.

- Estava noivo de uma rapariga muito simpática - prosseguiu Miss Marple. - Muito sensata, também. Procurava dissuadi-lo, mas ele não queria ouvi-la. Fez mal. Sabe, as mulheres têm muito senso, quando se trata de assuntos de dinheiro. Não de altas

finanças, claro está. Nenhuma mulher pode esperar compreender isso, como dizia o meu querido pai. Que panorama maravilhoso se desfruta desta janela - acrescentou, aproximando-se da janela e olhando para fora.

  Emma juntou-se-lhe.

- Que terreno enorme! Acho muito pitoresca a vista do gado entre as árvores. Uma pessoa esquece-se de que está no meio de uma cidade.

- Creio que somos um anacronismo – admitiu Emma. - Se as janelas estivessem abertas, poderíamos ouvir o ruído distante do tráfico.

- Oh, certamente, hoje em dia há barulho por toda a parte. Até em Saint Mary Mead. Ficámos agora muito perto de um campo de aviação e, sabe, o barulho que esses aviões a jacto fazem é de facto assustador! No outro dia, dois vidros da minha estufa partiram-se. Parece que esses aviões ultrapassam a barreira do som - embora eu não saiba o que isso quer dizer.

- E muito simples - disse Bryan, aproximando-se com amabilidade. - E assim.

  Miss Marple deixou cair a bolsa e Bryan apanhou-lha delicadamente. No mesmo instante, Mrs. McGillicuddy aproximou-se de Emma, e murmurou-lhe ao ouvido numa voz angustiada:

- Posso ir lá acima?

- Certamente - respondeu Emma.

- Eu acompanho-a - ofereceu-se Lucy.

  Lucy e Mrs. McGillicuddy saíram juntas da sala.

- Acerca da barreira do som... - disse Bryan, retomando o fio à conversa - é assim... Oh, ali vem Quimper.

  O médico chegou no seu carro. Entrou, esfregando as mãos e aparentando estar cheio de frio.

- Vai nevar - profetizou. - Verão que não me engano. Viva, Emma, como está? Valha-me Deus, que é isto?

- Fizemos-lhe um bolo de aniversário - explicou. - Lembra-se de me ter dito que hoje fazia anos?

- Mas não esperava isto - explicou Quimper. Sabe, já lá vão muitos anos... ora, deixe ver... sim, já lá vão uns dezasseis anos que ninguém se lembra do meu dia de anos. - Parecia muitíssimo comovido.

- Conhece Miss Marple? - perguntou-lhe Emma.

- Conhece, sim - disse aquela. - Já cá o tinha encontrado e, um dia destes, em que eu estava muito constipada, foi ver-me e foi muito simpático para mim.

- Agora sente-se bem, não é verdade? - perguntou o médico.

  Miss Marple afiancou-lhe que se sentia de esplêndida saúde.

- Ultimamente não tem vindo ver-me, Quimper - queixou-se Mr. Crackenthorpe. - Se precisasse dos seus cuidados, já teria morrido.

- Não me parece que, por ora, esteja a morrer - disse o Dr. Quimper.

- Nem tenciono fazê-lo - redarguiu Mr. Crackenthorpe. - Vamos tomar chá. Porque esperamos?

- Oh, faça o favor - instou Miss Marple. – Não esperem pela minha amiga. Ficaria aflitíssima se o fizessem.

  Sentaram-se e começaram a lançhar. Miss Marple começou por aceitar uma fatia de pão com manteiga e depois pegou numa sanduíche.

- São de?... - hesitou.

- De peixe - informou Emma. - Ajudei a fazê-las.

  Mr. Crackenthorpe soltou uma gargalhada e disse:

- Pasta de peixe envenenada. É o que é... Se o quiserem comer, isso é convosco.

- Oh, pai, por favor!

- Nesta casa temos de ter cuidado com o que comemos - explicou Mr. Crackenthorpe a Miss Marple. - Dois dos meus filhos foram assassinados como moscas. Quem é o culpado? Não o sei, mas gostava de sabê-lo.

- Não se assuste - interveio Cedric, estendendo uma vez mais o prato a Nliss Marple. - Um pouco de arsénico até faz bem à pele.

- Come uma, meu rapaz - incitou Mr. Crackenthorpe.

- Quer que eu seja o provador oficial? - perguntou Cedric. - Pois aqui vai.

  Pegou numa sanduíche e meteu-a, inteira, na boca. Miss Marple soltou uma gargalhadinha e tirou uma sanduíche. Mordeu um bocadinho e elogiou:

- São muito corajosos por fazerem espírito com uma coisa destas. Sim, acho de facto que é preciso ter muita coragem. Admiro tanto a coragem!

  Soltou uma arfada e pareceu sufocar.

- Tenho uma espinha - articulou - na garganta.

  Quimper levantou-se lestamente. Aproximou-se de Miss Marple, levou-a para a janela e mandou-lhe abrir a boca. Depois tirou um estojo de algibeira do casaco e daquele retirou um fórceps pequenino. Com destreza profissional examinou a garganta da idosa senhora. Nesse momento, a porta abriu-se e Mrs. McGillicuddy entrou, seguida de Lucy. A primeira soltou um grito, ao observar a cena à sua frente: Miss Marple inclinada para trás e o Dr. Quimper segurando-lhe a garganta.

- Mas é ele! - gritou Mrs. McGillicuddy. - E o homem do comboio...

  Com incrível rapidez, Miss Marple soltou-se das mãos do médico e aproximou-se da amiga.

- Calculava que o reconhecesses, Elspeth! Não, não digas nada. - Miss Marple virou-se triunfantemente para o Dr. Quimper. - Não sabia, pois não, doutor, que uma pessoa o viu estrangular aquela mulher, no comboio? Foi esta minha amiga, Mistress McGillicuddy. Ela viu-o. Está a compreender? Viu-o com os seus próprios olhos. Viajava num comboio que corria paralelo ao seu.

- Que diabo está a dizer? - perguntou o Dr. Quimper, aproximando-se rapidamente de Mrs. McGillicuddy.

Porém, de novo com incrível rapidez, Miss Marple colocou-se entre os dois. - Sim - repetiu Miss Marple. - Ela viu-o e reconheceu-o e está pronta a jurá-lo em tribunal. Creio prosseguiu Miss Marple - que raramente um crime é presenciado por terceiros. Em geral, há uma prova circunstançial, mas, neste caso, as condições eram muito invulgares. I-iouve de facto uma testemunha ocular do crime.

- Sua velha demoníaca! - gritou o Dr. Quimper. Precipitou-se para Miss Marple, mas, desta vez, foi Cedric que o agarrou pelos ombros.

- Com que então o senhor é o assassino? - proferiu Cedric, obrigando-o a voltar-se. - Nunca gostei de si e sempre o achei um patife, mas nunca suspeitei de que fosse assassino!

  Bryan Eastley veio rapidamente em socorro de Cedric. O inspector Craddock e o inspector Bacon entraram na sala.

- Doutor Quimper - disse o último -, devo preveni-lo de que...

- Quero lá saber das suas prevenções - berrou o Dr. Quimper. - Acha que alguém acreditará na palavra de duas velhas tontas? Deu-lhes agora para inventarem toda essa história do comboio!

  Miss Marple declarou:

- Elspeth McGillicuddy participou imediatamente o assassínio à Polícia, no dia vinte de Dezembro, e fez uma descrição do homem.

  O Dr. Quimper encolheu os ombros e perguntou:

- Mas porque havia eu de querer assassinar uma mulher completamente desconhecida?

- Não era uma desconhecida - contrariou o inspector Craddock. - Era sua mulher.

 

- Como vê, tal como eu suspeitara, tudo foi muitíssimo simples - declarou Miss Marple. - Parece que há muitos homens que matam as próprias mulheres.

  Mrs. McGillicuddy olhou para Miss Marple e para o inspector Craddock.

- Gostaria que me pusessem um pouco mais a par do que aconteceu.

- Quimper entreviu a possibilidade de casar com uma mulher rica: Emma Crackenthorpe – explicou Miss Marple. - Mas não podia fazê-lo por já ser casado. Estava separado da mulher há muitos anos, mas ela não queria conceder-lhe o divórcio. Isso condizia muito bem com o que o inspector Craddock me contara dessa rapariga que dizia chamar-se Anna Stravinski. Esta contou a umas amigas que era casada com um inglês e, na opinião destas, ela era uma católica devota. O doutor Quimper não podia arriscar-se a um caso de bigamia casando com Emma e, por conseguinte, desapiedada e friamente planeou o assassínio da mulher. A ideia de matá-la e de, em seguida, meter o seu corpo no sarcófago foi de facto brilhante. Era seu intuito relacionar esse corpo com a família Crackenthorpe. Antes disso, escrevera uma carta a Emma fingindo ser de Martine, a respeito da qual Edmund escrevera à irmã, dizendo ser a rapariga de quem estava noivo. Emma contara tudo isso ao doutor Quimper. Depois, quando se apresentou o momento oportuno, ele encorajou-a a falar à Polícia. Queria que a morta fosse identificada como sendo Martine. Julgo que deve ter sabido que a Polícia procedia a um inquérito em Paris, acerca de Anna Stravinski e, por conseguinte, arranjou aquele postal enviado da Jamaica, dando-a como remetente.

  Foi-lhe fácil encontrar a mulher em Londres, dizer-lhe que desejava uma reconçiliação e apresentá-la à família. Não falaremos do que a seguir aconteceu, porque é muito desagradável. Quimper era, sem dúvida alguma, um homem ávido. Quando se lembrou dos impostos e de quanto teria de pagar sobre os rendimentos, começou a pensar que seria agradável possuir mais capital. Talvez já tivesse pensado nisso antes de decidir matar a mulher. Seja como for, para preparar o terreno, começou a espalhar boatos de que alguém tentava envenenar Mister Crackenthorpe e depois acabou por ministrar arsénico a toda a família. Não em dose elevada, claro está, pois não queria que o velho Mister Crackenthorpe morresse.

- Mas ainda não compreendo como o conseguiu fazer - declarou Craddock. - Ele não estava lá quando prepararam o caril.

- Mas nessa altura o caril não tinha arsénico - fez notar Miss Marple. - Só o ministrou mais tarde, quando levou o caril para análise. E provável que já tivesse lançado algum, no jarro do refresco. Depois foi-lhe muito fácil, como médico assistente, envenenar Alfred Crackenthorpe e também enviar os comprimidos a Harold, tendo-se, previamente, salvaguardado, dizendo a este que não precisava de tomar mais. Todo o seu procedimento foi audacioso, cruel e cúpido, e lamento, na realidade, que tenham abolido a pena capital, porque acho que, se há alguém que devesse ser enforcado, esse alguém é o doutor Quimper. Ocorreu-me - continuou Miss Marple - que, ainda que vejamos uma pessoa de costas, essa visão é característica. Pensei que, se Elspeth visse o doutor Quimper exactamente na mesma posição em que vira o homem do comboio, isto é, de costas para ela e inclinado sobre uma mulher a quem segurasse pelo pescoço, decerto o reconheceria ou soltaria uma exclamação. Foi por essa razão que tracei o meu plano com a ajuda de Lucy.

- Devo dizer que essa cena me impressionou vivamente - admitiu Mrs. McGillicuddy. - Disse “É ele”, sem poder conter-me. E, no entanto, na realidade, nunca lhe vira a cara e...

- Tive um medo terrível de que acrescentasses isso, Elspeth - confessou Miss Marple.

- Está claro que ia dizer que não lhe tinha visto a cara.

- Isso teria sido fatal, porque, bem vês, ele julgou que realmente o tivesses visto. Quer dizer, ele não podia saber que não lhe tinhas visto a cara.

- Nesse caso, foi bom ter ficado calada - concluiu Mrs. McGillicuddy.

- Eu não te teria permitido dizeres uma única palavra mais.

  Craddock soltou uma gargalhada.

- Estas duas senhoras são maravilhosas. E depois, Miss Marple? Qual é o feliz desfecho? O que acontece, por exemplo, a Emma Crackenthorpe?

- Esquecerá o doutor Quimper – profetizou Miss Marple. - E, se o pai morrer em breve... não me parece que seja tão robusto como diz... é possível que ela faça um cruzeiro ou ande pelo estrangeiro, como Geraldine Webb, e aconteça qualquer coisa romântica. Espero que seja um homem melhor que o doutor Quimper.

- E Lucy Eyelesbarrow? Também haverá repicar de sinos?

- Talvez - respondeu Miss Marple. - Não me admiraria.

- Qual deles escolheu? - perguntou Dermot Craddock.

- Não o sabe?

- Não, não o sei. E a senhora?

- Julgo que sim - respondeu Miss Marple, piscando-lhe o olho.

 

                                                                                            Agatha Christie

 

 

                      

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