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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O Inimigo Oculto / Kurt Mahr
O Inimigo Oculto / Kurt Mahr

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O Inimigo Oculto

 

Com o descobrimento na Lua de uma espaçonave arcônida acidentada foram lançados os alicerces para a unificação de toda a Humanidade terrana e, desta unificação, surgiu o Império Solar. Ninguém podia supor, nem mesmo Perry Rhodan, quantos esforços e firmeza de ânimo seriam necessários, no correr dos anos, para manter este Império frente aos ataques internos e externos.

A mais séria ameaça à Humanidade, que teve seu clímax na invasão dos druufs e na batalha em defesa do Império Solar, pôde ser debelada graças ao eficaz auxílio de Árcon. E a crise na política interna, provocada pelo desertor e traidor Thomas Cardif foi removida por Gucky.

Porém, um desenvolvimento constante da Humanidade só será possível quando houver uma paz definitiva na Galáxia — e até lá, parece haver ainda um longo caminho...

O próprio Atlan, o imortal, que há pouco tempo substituiu a gigantesca máquina eletrônica que costumava sufocar no nascedouro, com suas frotas robotizadas, qualquer tentativa de revolução contra o poder central de Árcon, é o primeiro a desejar a paz.

Atlan, agora com o nome de Imperador Gonozal VIII e Perry Rhodan, o administrador do Império Solar, já por simples instinto de conservação, se apóiam mutuamente em suas aspirações.

Não faz muito tempo, foi assinado um pacto de assistência mútua entre Árcon e a Terra. Assim, as velozes espaçonaves do Império Solar estão preparadas para entrarem em ação em qualquer lugar da Galáxia, onde a paz e a ordem forem perturbadas.

Desta vez, é um pedido de socorro — um governador arcônida em perigo de vida — recebido via telecom, que faz com que a Finmark, um cruzador da classe Estado se desloque para o mundo das águas Opghan E o Major Thomea Untcher, com toda a sua tripulação, dá de encontro com O Inimigo Oculto.

 

                                              

 

Com a expressão de abstraído num grande pensamento, Pthal fitava a singular formação daquela canácea, da família das gramíneas, que subia elegante até desaparecer no forro do aposento; ocupava tão densamente o orifício por onde passava, que não havia perigo de penetração da água da chuva.

Pthal era um daqueles indivíduos, dos quais se podia esperar que jamais chegassem ao estado de travarem verdadeiros monólogos. Porém, era o que estava fazendo naquele momento:

— Planta interessante, esta canácea.

Foi neste exato momento que a porta se abriu, entrando um homem que Pthal jamais havia visto. Sobre suas intenções, não podia pairar dúvida. Empunhava uma pistola de cano curto e logo começou a dispará-la.

Pthal foi atingido. O disparo paralisou seu estranho sistema nervoso. Em estado de completa consciência, sem porém sentir dores, dobrou os joelhos e caiu no chão.

O estranho, parado junto à porta, detonou mais uma vez, mas devido à brusca queda de Pthal, não atingiu o alvo. A parede atrás de Pthal produziu um chiado esquisito e, quase instantaneamente, a matéria plástica derretida escorria no soalho em camadas incandescentes. As hastes da canácea começaram a se contorcer.

Pthal aproveitou o tempo para estudar o estranho invasor e assassino. Sabia que não ia escapar vivo daquele ferimento que, certamente, em pouco tempo o levaria à morte. Não podia fazer outra coisa, do que obedecer aos seus deveres. Captou bem a imagem do estranho com seus grandes olhos, tentando conservar cada detalhe em sua descomunal memória.

O invasor teve tempo de corrigir a pontaria, em compensação levou mais tempo para fixar a fisionomia de Pthal, cujo maior dom era reagir de modo barbaramente rápido. Resolveu então, antes que o estranho adversário pudesse disparar pela terceira vez, que o melhor castigo a ser-lhe imputado devido à agressão insidiosa teria de ser a morte. Escolheu a mais potente de suas armas e abateu o inimigo desconhecido em meio ao clarão ofuscante de uma explosão.

Após isto, Pthal deitou-se de lado. O movimento consumiu boa parte de suas forças e sentiu que lhe restavam poucos instantes de vida. Começou a “lembrar-se” do estranho que matara há pouco. Isto é, evocou em sua memória as impresões ali armazenadas, tentando transmiti-las, sem usar uma só palavra, para o local onde esta mensagem seria recebida com muito interesse e onde seriam iniciadas as providências para se localizar o foco de inquietação em Opghan.

Se lhe fosse possível ter sentimentos, Pthal estaria agora se lamentando pelo fato de não conseguir mais pôr em prática o que pretendia. Seu ferimento foi de gravidade maior do que ele mesmo “pensava”. Não lhe foi possível medir bem as conseqüências do ferimento, exatamente por não possuir os órgãos necessários para isto. Mal iniciou os primeiros sinais de sua mensagem, as forças lhe faltaram. Mas, mesmo neste transe, cumpriu com o seu dever. No derradeiro bruxulear de suas forças, ainda conseguiu transmitir os sinais do código que significavam que nem tudo estava em ordem em Opghan.

Depois, só restou um Pthal inerte — um robô que foi destruído no cumprimento de seu dever.

 

Em Árcon III, foram captados não somente os sinais em código, significando anormalidade no ambiente de Opghan, mas também alguns impulsos indecifráveis que os precederam. Sabia-se que Pthal queria iniciar um relatório, mas foi impedido de fazê-lo. A maneira pela qual fora impedido era mais do que evidente, pois os robôs só costumavam emitir este tipo de alarme, no momento em que eram destruídos.

A morte de Pthal provocou muita inquietação, pois era o funcionário mais categorizado do Império, no sistema de Ep-Hog, no seu segundo planeta, Opghan.

Opghan era um mundo situado na periferia da zona de influência arcônida. Não era nada improvável que o inimigo oculto, depois que Sua Majestade Gonozal VIII assumiu o poder, acreditasse que haviam voltado àqueles tempos em que o imperador e seus funcionários eram incapazes de empreender ações que sufocassem rebeliões ou desordens.

Era indispensável um processo criminal para abrir inquérito sobre a morte de Pthal e se poder chegar ao responsável pelo atentado.

Sua Majestade Atlan, que com o nome de Gonozal VIII imperava no Império de Árcon, encaminhou à Terra um pedido de apoio. A seguir, recebeu do Império Solar a promessa de que tudo seria feito de acordo com seus propósitos.

 

O sargento Loodey era um homem cuja figura imponente, misturada com a expressão de infinita seriedade em seu semblante carrancudo, impunha respeito a todo mundo. O fato de que o homem, de estatura relativamente baixa, que neste momento se encaminhava na direção de Ran Loodey, não demonstrasse nenhum sinal do costumeiro respeito, irritou profundamente o sargento, fazendo com que este desse um passo à frente, antes da hora conveniente. Estava agora diante da entrada para o patamar que conduzia, quase no mesmo nível, do oitavo andar do edifício da administração para uma nave esférica estacionada no espaçoporto. Tal patamar terminava numa abertura bem iluminada da grande comporta de carga, mais ou menos na altura do primeiro terço inferior da grande nave.

O baixote parecia não haver reparado em Ran Loodey. Olhava simplesmente para a frente, monologando com gestos nervosos. Loodey não tinha a menor idéia de como ele chegara até ali em cima. Estava à paisana e a entrada nos andares mais elevados era estritamente proibida a estranhos ao serviço. A estupefação de Loodey se transformou em cólera, quando viu que o baixo-te, sem olhar para ele, tentou evitá-lo e seguiu na direção do patamar, sem se incomodar com as formalidades obrigatórias.

— Pare! — gritou ele, dando um passo à frente no sentido do patamar. — Que está procurando?

O baixote olhou-o, confuso. Fez depois um movimento nervoso com a mão, apontando para o espaçoporto lá embaixo.

— Aquilo lá — respondeu afobado. — Aquilo, como é que chama mesmo?

Ran Loodey acenou gravemente com a cabeça.

— Ah! Sei, a nave, mas qual delas?

O baixote replicou:

— Meu Deus, como há gente boba neste mundo. Aquela ali, naturalmente. Aqui por perto não há outra, ou você está vendo alguma?

Loodey não perdeu a calma.

— E o que você pretende fazer naquela nave, meu amigo?

O baixote piscou os olhos.

— Primeiramente, não sou seu amigo.

Pelo menos não, enquanto você me tratar assim. Segundo, a pergunta está errada. Eu não pretendo fazer nada naquela nave, eu quero é dormir, estou muito cansado.

Loodey quase perdeu o fôlego. Quando se controlou, gritou para o baixote:

— Será que você acredita que as naves da Frota Solar são um asilo para os desabrigados? Vamos parar por aqui, por favor.

O baixote atendeu, protestando; e por mais “desajeitados” que fossem seus movimentos de protesto contra a ira de Ran Loodey, tornaram-se suficientes para obrigá-lo a ficar quieto. O homenzinho tinha algo que deixava Loodey confuso: autoridade.

— Pare de gritar — pediu ele com voz muito fraca. — Você me faz sentir mal e eu não sou surdo.

— Está certo — disse Loodey, já cedendo um pouco. — Então vou lhe dizer bem baixinho: você deve desaparecer daqui. Entendeu?

— Não! — foi a resposta. — Por que tenho que desaparecer?

— Porque não tem nada a procurar por aqui, entendeu agora?

— Como é que você sabe disso? Meu nome é Thomea Untcher.

Apesar de toda sua ira, Ran Loodey começou a rir.

— Não deixa de ser um nome bonito, soa até muito bem, meu caro. Mas, mesmo com um nome tão bonito assim, tenho que...

Seu semblante se transtornou de repente, podia-se ver que sua memória o estava traindo. Nervoso, perguntou em voz baixa:

— Como é mesmo seu nome, senhor?

O baixote começou a rir.

— Thomea Untcher, sargento.

O rosto de Ran Loodey de vermelho passou a pálido.

— Perdão, senhor — disse sem jeito — estou realmente obrigado a pedir sua identificação, o senhor compreende, não é?

Untcher concordou com um sorriso afável. Enfiou a mão no bolso interno do casaco, depois no de fora, sem nada encontrar. Tirou o casaco e recomeçou a operação nos bolsos da jaqueta. Demorou um pouco, até que apareceu o cartão de plástico. Loodey o pegou respeitosamente, introduzindo-o na fenda do aparelho de controle, instalado em sua mesa de trabalho. Sabia agora que tinha perdido a parada, mesmo antes do sinal afirmativo uma luz verde acendeu-se.

O cartão plastificado saltou do aparelho. Loodey o entregou ao baixote com uma saudação sincera e um pedido de desculpa.

Untcher respondeu com um afável, mas distraído aceno de mão.

— Não se preocupe. Não foi nada.

E dizendo isto encaminhou-se para o patamar. A esteira rolante o levou, através da densa cortina de ar quente, que isolava o interior do edifício do frio da noite, para o hall da escotilha bem iluminada da Finmark.

Ran Loodey não acreditava mais tornar a ver o rosto daquele homem; ficou surpreso quando, antes de entrar na escotilha da grande nave, o baixote lhe acenou. Loodey olhou contente, até que Untcher sumiu de vista. Sacudiu a cabeça pensativo. Conhecia muita gente notável, mas comandante como Thomea Untcher nunca vira antes.

 

No momento em que Nathael viu acender o ponto verde da grande tela de rastreamento, teve plena certeza de que o plano não seria executado como ele pretendia. A chegada daquela nave era a melhor prova de que a morte de Pthal ia dar pano para muita manga.

Nathael, cansado, passou a mão pela testa e, olhando mais uma vez para a grande tela, ligou o aparelho para o registro automático. Ele não estava muito interessado na rota da grande nave. O que ainda se podia fazer para salvar a situação, ele só podia começar depois da aterrissagem.

Nathael se levantou e saiu da sala onde os aparelhos continuavam funcionando. Lá fora, ofuscou-o a luz amarelada do sol, que entrava diretamente pelas grandes janelas. Parou um instante indeciso, virando-se depois para os três homens que estavam sentados comodamente perto da porta, apesar de um deles não dar impressão de pertencer ao grupo que o esperava.

— Já estão chegando — disse Nathael, na língua que todos entendiam.

Os homens se assustaram.

— Quem é que está chegando?

Nathael fez um gesto com a palma da mão esquerda, como para indicar que não sabia de nada.

— Não sei e não tem mesmo nenhuma importância quem sejam eles. Vêm aqui, a fim de sondar as coisas e isto não nos pode interessar muito.

Um deles, parecendo ser o mais jovem, dono de uma barba copiosa, fez um gesto de desprezo.

— Nada nos poderá acontecer, pois assim que descerem, nós...

Irritado, Nathael bateu com o pé no chão.

— Nem uma palavra mais! — gritou ele. — Tenho impressão de que nossos pequenos sucessos subiram à cabeça de vocês, a ponto de esquecerem as mais primitivas normas de segurança. Parecem crianças inexperientes.

O jovem barbudo não se deixou impressionar com tais palavras.

— Estou me perguntando, Nathael, já há algum tempo — disse ele, medindo-o dos pés à cabeça — se o seu sistema nervoso não ficou demasiadamente abalado em conseqüência dos acontecimentos das últimas semanas. Você está preocupado demais com a segurança.

— Você acha, é? Então permita-me dizer-lhe — continuou Nathael — que você é um grande garganta, que não tem a mínima noção da capacidade e da riqueza de idéias do serviço secreto do nosso adversário. Basta uma palavra dita sem muita cautela... e Opghan vira uma fogueira.

Nathael tinha nos lábios um sorriso amargo, quando concluiu:

— E sua barba postiça será a primeira a pegar fogo.

O jovem não disse nada. Não gostava que tocassem no assunto de sua barba artificial, que realmente lhe dava uma bela aparência. Não podia ter barba natural, pois tinha pele muito frágil. Sua cabeleira também era postiça, mas Nathael sabia que a palavra barba o atingia profundamente.

O segundo homem entrou também na conversa:

— Terminaremos tudo a tempo. Quanto tempo gastarão até a aterrissagem?

Nathael queria fazer de novo o gesto de incerteza, interrompeu-se, porém, dizendo:

— Três ou quatro dias de décimos, penso eu.

— Isto basta para nós. Estaremos prontos, quando descobrirem um local para aterrissar. Não vão ter muita escolha. Depois, em poucas horas...

Dizendo isto, virou-se para o terceiro, que até então permanecera calado.

— Já está tudo pronto, não é, Chchaath?

Chchaath apenas fez um gesto afirmativo, acompanhado por um sorriso de seus lábios finos. Depois disse:

— Está tudo pronto, sim — falava como se tivesse a boca cheia d’água. — Estamos preparados até para receber uma frota inteira.

— Então siga seu caminho! — ordenou-lhe Nathael.

Chchaath se levantou, continuando a sorrir. Depois passou por uma grande janela e contemplou por um instante a superfície das águas que chegavam até aos alicerces do edifício. E com o reflexo das ondas, refulgiam as escamas lisas de sua pele.

 

Perplexo, Ran Loodey olhava para a tela do rastreador.

— Pelos deuses do espaço! Nada mais do que água, somente água!

Do fundo da central se ouviu a voz do Major Untcher:

— O que você queria? Esperava que fosse uísque?

— Nada disso, Sir, quase não penso nos meus prazeres... O que quero dizer é que teremos dificuldade em encontrar um lugar para aterrissar.

Untcher sacudiu a cabeça.

— A superfície de Opghan se compõe de noventa e nove por cento de água, minto, de noventa e nove vírgula cinco por cento — disse com firmeza. — Neste meio por cento, puxa vida, temos de encontrar um cantinho para aterrissar.

Mas Ran Loodey tinha lá suas dúvidas, isto é, não acreditava na existência deste meio por cento, pois tudo que via da superfície do planeta era somente água.

Uma visão única, talvez impossível em outra parte!

A Finmark já estava tão próxima de Opghan, que a enorme curvatura do planeta começou a ultrapassar os limites da grande tela. Aproximavam-se da metade iluminada, tendo já o sol amarelado pelas costas. Os últimos raios do sol poente se espalhavam num lindo dourado pela imensa face líquida e seus revérberos afogueados davam a Opghan como que uma auréola de glória.

Além dos reflexos do sol, a água parecia tingir-se de um preto denso. Do outro lado do horizonte, porém, brilhava a atmosfera numa coloração de um amarelo quente.

Era mesmo um quadro singular, verdadeiramente impressionante, jamais visto por ninguém da tripulação da Finmark. Com exceção de Thomea Untcher. Este mal olhava para a tela panorâmica, tão preocupado estava com outra coisa que lhe parecia muito mais importante.

A Finmark já havia superado o difícil vôo e já se encontrava na fase das manobras de descida. Não faltava mais nada para descerem em Opghan. A dificuldade, notada de início por Ran Loodey, isto é, a falta de terras, fora superada.

Thomea Untcher pouco se preocupara com as manobras das últimas três horas. Depois de uma viagem de três dias, a tripulação já estava acostumada com seu modo de comandar e não estranhava mais. O próprio oficial da radiogoniometria, cujo trabalho, por razões para ele incompreensíveis, estava sendo feito pelo comandante, ficava até contente com este descanso inesperado.

Thomea Untcher se mantinha em silêncio. Não disse uma palavra sobre se tinha descoberto alguma coisa importante, nas diversas telas e escalas de medição do grande aparelho de rastreamento. Estava tomando nota de tudo e, de vez em quando, sem causar sensação, lembrava o primeiro-oficial de estar atento.

Isso foi tudo. Ninguém supunha que tivesse notado alguma coisa diferente. Até o momento em que se levantou — e isto coincidiu exatamente com a hora em que Ran Loodey percebeu um ponto mínimo de uma ilhota no meio da imensidão das águas — e com uma displicência que estava em contraste com sua fisionomia preocupada, disse:

— Fomos localizados, meus senhores. Os instrumentos estão registrando a seqüência dos impulsos que nos localizam no espaço. Considerando que o robô Pthal, na qualidade de primeira autoridade do planeta, era o responsável por todas as instalações positrônicas de Opghan, temos de admitir que, depois da morte de Pthal, alguém se apoderou dos instrumentos e os está usando. Sargento Loodey, qual é sua opinião?

Era um de seus hábitos, perguntar a outras pessoas coisas, sobre as quais já tinha uma idéia formada.

— Isto quer dizer que — respondeu Loodey prontamente — que... que... — e começou a gaguejar.

— Você tem plena razão — disse-lhe Untcher com benevolência. — Já que os nativos de Opghan estão muito atrasados tecnicamente e, por certo, não estariam em condições de operar com um aparelho de rastreamento, isto significa que em Opghan existe pelo menos um estrangeiro experimentado e... provavelmente este será o homem que motivou nossa vinda para cá.

E antes que alguém compreendesse melhor a seriedade desta conclusão, Thomea Untcher completou a confusão, explicando o seguinte:

— A partir deste momento a Finmark está em estado de alarme de grau um. Todos estejam atentos em seus postos. Lenzer, cuide para que todas as torres de artilharia pesada estejam equipadas com dois homens. Vamos ao trabalho, minha gente. Loodey descobriu uma ilhota. Vamos aterrissar. Que estão esperando? Isto aqui não é uma excursão de fim de semana.

E, de uma hora para a outra, aquele baixote franzino se transformou numa fonte de energia e determinação, contaminando beneficamente todos os homens da tripulação, preparando-os moralmente para o que desse e viesse.

 

Com paciência verdadeiramente de Jó, peculiar à sua raça, Chchaath esperava, sentado diante do aparelho, pela última e definitiva mensagem. Quando ela finalmente chegou, fazia mais da metade de um dia de décimo, que estava ali sentado.

No mostrador do instrumento apareceu um número de quatro algarismos da escrita arcônida. Chchaath o leu e o guardou na memória. Depois desligou o aparelho e se levantou.

No fundo do grande aposento, onde se encontrava Chchaath, havia uma espécie de armário. Chchaath abriu uma de suas portas e tirou de uma gaveta, com o máximo de cuidado, um pequeno cilindro de metal brilhante. Pesou-o numa das mãos, dizendo um palavrão.

1358. Não poderiam ter escolhido lugar pior do que este, pois em menos de meio dia de um décimo, o sol se punha sobre 1358. Neste curto espaço de tempo, os homens tinham que dar conta do recado. Quando se conscientizou de que não poderia perder nem um décimo de milésimo de tempo, fechou abruptamente a porta do armário, botou o cilindro metálico debaixo do braço e tratou de sair dali.

Sair de casa era uma das coisas que ainda há uns dez dias atrás, lhe causava medo, ao observar como a gente se movia lá fora. E dez dias era muito pouco tempo, embora Chchaath já estivesse acostumado a grandes mudanças. Tinha se habituado, por exemplo, com os olhares hostis que recebia, ao passar pelas ruas. Não havia nelas mais o movimento de antes, quando Chchaath era um dos muitos que costumavam ficar parados pelas esquinas, batendo um papo com algum conhecido.

Agora, as pessoas permaneciam mais tempo em suas casas. Chchaath sabia como isto lhes devia custar sacrifício. Os habitantes de Ephog sempre cultivaram a sociabilidade em alta escala. Pertenciam a uma pequena comunidade, sendo que nenhuma cidade era tão grande que um habitante não conhecesse bem o outro.

Agora, no entanto, preferiam ficar parados em casa, quando não estavam trabalhando lá fora nas plantações de psimo. Odiavam os estrangeiros e sabiam o porquê.

Chchaath pessoalmente não odiava os estrangeiros e levava vantagem nisso. Mas os olhares, saturados de ódio, de seus velhos amigos o incomodavam muito.

Chchaath estava com muita pressa, andando a passos rápidos, não por saber que, em menos de meio dia de um dia de décimo, o sol estaria desaparecendo sobre 1358. Mas sim porque queria ver-se livre daquelas ruas cheias de olhares rancorosos. Por isso, percorreu o trecho de sua casa até o portão da comporta em quatro vezes menos tempo do que normalmente fazia.

Ao vê-lo, o vigia do portão da comporta o cumprimentou com muita atenção. Chchaath agradeceu e esperou, pacientemente, uma parte da comporta abrir-se para o lado.

Entrou com passos rápidos na grande comporta, bem iluminada. Ali, já fora o ponto de encontro mais importante da vida urbana. Havia constantemente centenas de pessoas que não faziam outra coisa senão olhar o embarque e desembarque de passageiros e de mercadorias, ou trocar idéias sobre a agilidade dos pilotos ou sobre o modo de vestir das pessoas.

Agora tudo era diferente. Os barcos não chegavam nem partiam mais, com exceção dos poucos que levavam ou traziam os trabalhadores para as plantações. Ninguém, fora alguns privilegiados, tinha autorização de penetrar no patamar da comporta. Não havia mais nenhum sinal de vida. O que restava, eram as extensas instalações do cais e a luz penetrante do sol amarelado, que fazia arder a vista.

O estado de espírito de Chchaath, no momento, não era de querer perder tempo com pessimismo. Olhou por toda a comporta e, não achando o que procurava, começou a gritar. Sua voz soava abafada e com sons guturais dentro do grande recinto. Com o eco veio a resposta do fundo de algum barco.

Chchaath virou-se para lá. Já havia caminhado a metade do trecho, quando surgiu na beira do cais a figura de um homem alto e magro. O desconhecido parou para esperar, enquanto Chchaath se aproximava.

— Estivemos um pouco sumidos — disse se desculpando — e você esteve muito tempo fora. Enquanto esperávamos, chegou algo dos planetas. Pensávamos que não seria de todo necessário que o pessoal nos visse, mesmo se houvesse vigias por perto.

“É sempre a mesma coisa”, pensava Chchaath desanimado. “Agora estão um pouco melhor do que estiveram antes. Possuem tudo o que precisam e se quiserem mais alguma coisa, os estrangeiros lhes darão. Mas têm muito medo de sua própria gente, que eles traíram. E você não tem necessidade de se excluir. Não são eles, somos nós.”

— Está bem — respondeu Chchaath, com um movimento indeciso de seu braço coberto de escamas. — O objetivo é treze cinqüenta e oito. Não podemos perder tempo. Num quarto de décimo, a nave deve estar desligada.

Desceu a escada de pedra que levava do cais ao nível da água. O barco ali estava, parecendo uma mancha escura na água tranqüila. Abriu-se uma porta e Chchaath entrou. O homem alto e magro de fisionomia triste, com as escamas escuras que se destacavam da pele, seguiu-o passo a passo.

O interior do barco não era outra coisa senão bancos. Estava escuro e Chchaath sentiu mais o cheiro dos homens do que os viu propriamente.

— Vamos embora, piloto! — soou sua voz na escuridão. — O destino é treze cinqüenta e oito. Acelere o máximo que puder.

Sentou-se e levantou com cuidado o braço, sob o qual segurava o cilindro de metal. Os olhos se foram adaptando à escuridão.

— Não temos um segundo a perder — explicou, enquanto o motor do barco rugia forte, iniciando o movimento da embarcação. — O sol logo irá pôr-se. Vocês já têm tudo à mão, prontos para entrar em ação?

Ouviu-se um sim abafado, que vinha de todos os cantos. Pegando na mão direita o cilindro de metal, disse:

— Aqui está o negócio — disse, passando o objeto metálico para o que estava sentado mais próximo. — Esvaziem-no, mas com cautela.

 

— Com os diabos! Sei que não há muita coisa para ver, mas gostaria de dar uma olhada lá embaixo. Será que sua cabeça dura pode compreender isto?

Ran Loodey já estava perdendo a mania de se sentir ofendido com as expressões um tanto grosseiras de seu comandante. Piscando o olho, mas com expressão séria no rosto, respondeu:

— Talvez, com o correr do tempo, Sir.

Untcher soltou um suspiro e dirigindo-se a seu primeiro-oficial disse, simulando um desespero cômico:

— Stowes, preste atenção a este homem aí. Não lhe dê nunca um posto de responsabilidade, pelo amor de Deus, pois ele só vê o inimigo, quando seu pescoço está sendo cortado.

Stowes bateu uma continência brincando:

— Às ordens, Sir!

Untcher fez um sinal para o segundo-oficial:

— Lenzer, vamos sair. Mantenha a arma de prontidão.

Encaixou e atarraxou o capacete em seu uniforme espacial. Já era um costume para ele, e não esperava que ninguém o imitasse. A atmosfera de Opghan era rarefeita como nas altas montanhas da Terra, mas bem respirável. Não havia realmente nenhuma razão para alguém ter de proteger-se com o uniforme espacial num ambiente daquele. Mas Thomea Untcher tinha como princípio, em qualquer oportunidade, usar de toda garantia, por mais exagerada que parecesse. Por exemplo, quando entrava por uma porta fazia-o lentamente, com toda cautela. E agora lá estava ele, na sua saída de inspeção da minúscula ilha, após a aterrissagem da Finmark, com o pesado uniforme espacial.

Já o Tenente Lenzer se contentava em puxar o capacete só até a testa, de maneira que, mesmo assim, podia se utilizar do micro transmissor e do receptor. Ia bem perto de Untcher e tomou a esteira rolante que passava pelo corredor central até a escotilha menor. Em pensamento, estava caçoando das exageradas medidas de precaução de seu chefe.

Thomea Untcher passou pela pequena abertura, sem parar. Da soleira da escotilha externa, a pouco mais de meio metro do chão, saltou cuidadosamente, como se tivesse medo de levar um tombo. Olhou em volta.

Os raios fortes do sol castigavam o pequeno trecho de terra, com suas plantas exóticas em forma de pequenas touceiras. Do chão fértil, brotavam folhas carnudas de um verde-claro, que rodeavam num círculo protetor uma haste cor-de-rosa, quase tão grossa quanto um galho, que se elevava a uns três metros de altura, tendo no alto uma flor de um amarelo-forte, parecendo muito com o girassol. Mas a planta em seu todo se assemelhava mais a uma gigantesca boca-de-leão.

“Que coisa esquisita”, pensava Untcher, “e não se pode esquecer que todas estas plantas exuberantes têm somente cem horas de vida...”

Levantou o braço e consultou o relógio.

— Têm ainda só quatro horas de vida. Vão morrer de frio durante a noite. E cem horas depois, quando o sol surgir novamente, de suas sementes conservadas pelo frio vingarão novas plantas, que em duas horas atingem o tamanho e a pujança destas que aqui estão — monologou.

Aproximou-se de uma delas, observou-a atentamente de todos os lados e abanou a cabeça:

— Coisa singular, como a natureza é pródiga!

Lenzer não estava interessado em ver bocas-de-leão de três metros de altura, mas se sentia no dever de dizer alguma coisa.

— Quero saber se quando a gente quebra-lhe uma haste os dedos ficam com uma mancha preta.

Untcher olhou para ele.

— Meu jovem, você tem uma pobreza franciscana no tocante à inspiração romântica. Não se preocupe com seus dedos. Ponha as luvas. E agora vamos continuar nosso giro.

Lenzer o seguiu. Untcher esgueirou-se por entre aquelas plantas maravilhosas, procurando atingir a margem. Não poderia ser difícil, tomando-se em consideração as pequenas dimensões da ilhota. Mas devido às enormes e altas folhas das touceiras, podia-se perder a direção.

Assim aconteceu que Thomea Untcher só percebeu o pequeno braço de mar que penetrava ilha adentro, quando seu pé já estava n’água. Assustado, puxou-o para fora, apoiando-se numa das grandes folhas da boca-de-leão, para não perder o equilíbrio.

Lenzer sorriu. Neste momento, Untcher olhou para trás e percebeu a expressão no rosto de Lenzer.

— Não há motivo para caçoar, amigo. Acho que você deve saber, não melhor do que eu, que nestas águas estranhas há tão grande quantidade de animais de todos os tipos, que os catálogos arcônidas não são unânimes a respeito.

Lenzer não acreditava que numa água de um palmo de fundura pudesse haver tanta coisa assim. Mas, preferiu calar. Conhecia bem a capacidade de Thomea Untcher de, no seu modo aparentemente distraído e despreocupado de falar, confundir qualquer interlocutor, mormente quando não era da mesma opinião que ele. A pessoa acabava não sabendo mais o que tinha dito antes.

Sem largar a enorme folha, Untcher se inclinou, para poder ver melhor o mar.

— Incrível, como pode haver tanta água — comentou sério.

Lenzer concordou com entusiasmo:

— Mas isso não é só aqui, é em toda parte.

— É verdade — disse Untcher, retirando-se da água com um galeio elegante. — Estou vendo que você é tão inteligente como eu. Um dia você ainda...

Alguma coisa o fez interromper a frase. A água do pequeno braço de mar começou a se movimentar. Naquele trecho, surgiram pequenas ondas que vinham se quebrar na margem. Thomea Untcher contemplava o fenômeno com expressão de perplexidade no rosto.

Neste momento, a superfície líquida se fendeu ao meio e apareceu uma cabeça. Que cabeça! Uma coisa de pele esverdeada, sem pêlos, estranhamente redonda, com dois olhos enormes, cujas pupilas pareciam escondidas atrás de uma cortina meio opaca, comum nariz pequeno demais e com o focinho largo de beiços finos. O animal a quem pertencia a cabeça, se movia muito rapidamente.

Não eram decorridos ainda cinco segundos desde o início das ondas, quando aquele estranho corpo coberto de escamas pulou para fora da água, não deixando nenhuma dúvida de que via os dois terranos como inimigos de sua segurança.

— Cuidado, Lenzer! — exclamou Untcher.

 

Kayne Stowes estava convencido de que não poderia haver nesta ilhota nenhum perigo para a Finmark, mas apesar disso não deixou de cumprir seu dever, com muita atenção. A todo momento, seu olhar parava na tela panorâmica, que mostrava todo o espaço em volta da nave, permitindo-lhe uma visão ampla da ilha. De vez em quando, via a figura franzina de Thomea Untcher ou o alto e espadaúdo Phil Lenzer caminhando entre a densa ramagem.

Uma calma de sono e de solidão se espalhava sobre a tela, que ainda refletia a luz viva do sol. Os minutos iam se passando e Kayne Stowes começou a acreditar que estava ouvindo o zumbir de abelhas. Sentiu então uma vontade irresistível de abandonar seu posto para dar um giro lá fora e deitar um pouco no capim, sob aquele céu de um azul diferente.

A mesma coisa parecia acontecer com Ran Loodey. Estava sentado diante dos aparelhos de rádio e dava a impressão de saber exatamente que nas próximas horas não teria nada para fazer. Kayne ouvia de vez em quando o espreguiçar do colega e tinha a impressão de que Loodey queria despertar sua compaixão, para conseguir uma hora ou mais de descanso lá fora no ar puro.

Mas a Finmark ainda estava em estado de alarme. Nos ninhos de artilharia pesada, com tripulação reforçada, cada um achava-se mais atento que o outro. Havia muita gente acreditando que Thomea Untcher podia expressar sua exagerada mania de segurança de uma maneira mais útil e não sobrecarregar uma tripulação já com estafa, cansada de três dias de viagem ininterrupta, exatamente naquele mundo subdesenvolvido. Ali não havia nenhum perigo, e a primeira preocupação do comandante deveria ser de mandar todos dormirem pelo menos dez horas ininterruptas.

Mas as ordens de Thomea Untcher tinham muito prestígio. Ninguém ousaria abandonar seu posto. Ficavam de olhos fixos na mira automática, nas telas dos rastreadores e nos demais instrumentos de medição, até que a vista lhes começava a arder. Então convocavam seus substitutos, para descansarem um momento, todos, porém, convencidos de que faziam uma prontidão inútil.

Até que viram realmente que acontecia alguma coisa diferente lá fora.

Kayne Stowes acordou repentinamente de seu cismar, quando viu, por trás das grandes touceiras, um movimento quase fantasmagórico. Sabia perfeitamente que Untcher e Lenzer tinham se dirigido para outra direção. O que observara, não podia ser, portanto, nenhum dos dois.

Segundos depois, não tinha mais certeza se avistara mesmo alguma coisa. Fora tudo tão rápido, que podia crer num reflexo de seu esgotado sistema nervoso. Era um movimento de uma única folha da gigantesca boca-de-leão, embora a aerometria confirmasse que não havia vento nenhum lá fora. Mas isto não era propriamente uma prova.

No entanto, estava despertada a curiosidade de Kayne Stowes. Começou a prestar mais atenção nos movimentos em torno da nave, através da tela. Tentou medir a velocidade do objeto desconhecido — fosse o que fosse — e em que lugar haveria de surgir novamente. Constatou-se que ele errara redondamente. O objeto desconhecido era muito mais veloz do que poderia supor. Quando se mostrou pela segunda vez, os efeitos foram tão nítidos que Kayne não pôde deixar de vê-lo.

Lá estava um estranho diante da nave. Saíra de entre as touceiras. Estava agora no espaço livre que o campo de propulsão da Finmark produzira, arrancando da terra e atirando para mais longe os arbustos da tal boca-de-leão.

Kayne Stowes examinava a estranha criatura. Sabia existir em Opghan uma raça muito singular, à primeira vista com a aparência de humanóides. Um exame mais demorado, porém, indicava algumas transformações interessantes, provenientes de um contato permanente com o mar durante muitos milênios. Apesar disso, a primeira impressão foi chocante e o assustou bastante. O homem, de pé diante da nave, era de estatura normal. Como indumentária não trazia no corpo mais do que se esperava de um habitante da África Central há alguns anos. Seu corpo reluzia e a água escorria em pequenos filetes de todos os seus membros. Uma pele, constituída por grandes escamas, completavam a estranha figura.

Kayne Stowes deixou a mão escorregar para frente e apertar o botão de alarme geral, num movimento mecânico, impensado. As sirenes soaram em toda a grande Finmark. Como se tivesse ouvido o forte apito, o estranho desapareceu no mesmo momento, num movimento tão rápido que dava a impressão de poder se dissolver no nada.

O sargento Loodey estava muito assustado.

— Prepare um grupo de vinte homens e desçam logo para a ilha — ordenou ele. — Alguma coisa de anormal se passa lá embaixo e eu quero saber exatamente o que é.

Todo o cansaço e sonolência desapareceram de repente de Loodey. Já enquanto estava dando a ordem, escolhia mentalmente os homens que ia levar. Stowes, apenas virou-se para trás e pegou o microfone do intercomunicador para dizer os nomes dos homens.

Kayne Stowes estava a par da situação melindrosa em que se encontravam Thomea Untcher e Phil Lenzer. Havia seres estranhos na ilha e sua atitude não era de gente pacífica. Opghan era uma colônia arcônida. Os éfogos, por mais primitivos que fossem, sabiam o que era uma espaçonave. Portanto, o estranho não se assustara com a aparência da Finmark. Queria esconder-se.

Stowes apanhou o microfone que o ligava diretamente com Untcher e Lenzer. Mas antes de poder dizer as primeiras palavras, ouviu a voz forte de Untcher em tom de comando:

— Defenda-se Lenzer, cuidado!

Os pensamentos lhe giravam em remoinho na cabeça. Que havia acontecido com Untcher e Lenzer? Onde estavam? Quem os atacava?

Não teve mais tempo de se preocupar com isto. De um momento para o outro, o local onde a Finmark descera estava lotado de seres com a pele em forma de escamas esverdeadas. Atacavam a espaçonave. Mas era um espetáculo ridículo. Não tinham arma de espécie alguma, carregavam apenas um pequeno cilindro metálico que brilhava no ar. As portas blindadas das comportas estavam tão bem fechadas que nada poderiam fazer, a não ser que dispusessem de um canhão térmico.

Mas na cabeça de Kayne Stowes continuava a suspeita de que os estranhos sabiam o que estavam fazendo. Eram seres primitivos, mas conheciam de sobra uma espaçonave e não iriam atacar um colosso de metal, com apenas um pequeno cilindro metálico. A situação parecia irreal e Kayne Stowes não sabia mesmo o que fazer. Além de tudo, atacavam por baixo a Finmark, escapavam, logo depois, pela parte inferior da curvatura, das objetivas e ninguém mais podia saber o que estavam fazendo.

Na cabeça de Stowes passou o pensamento de se utilizar dos canhões pesados, a fim de livrar as imediações da Finmark de qualquer perigo. Mas o alcance da artilharia era forte demais para a diminuta ilha. E ninguém podia garantir que os disparos não atingiriam também a Untcher e Lenzer.

Neste meio tempo, Ran Loodey reunira seu grupo de ação. Nenhum deles tinha a menor idéia do que acontecera. Loodey os instruiu com poucas palavras:

— Vamos prender os estranhos ou expulsá-los daqui.

À frente dos seus, deixou a sala de comando, percorrendo o mesmo caminho até a comporta menor, por onde Thomea Untcher e Phil Lenzer haviam saído.

Ran Loodey era um homem que não conhecia a palavra hesitação. Deram-lhe uma missão — expulsar das imediações da Finmark os seres estranhos com pele escamosa e exatamente isto ele faria.

Seria ridículo acreditar que aqueles estranhos estivessem em condições de resistir. Provavelmente teriam que ferir alguns deles com suas poderosas armas, a fim de assustar os demais e convencê-los da inutilidade de resistir. Depois exigir que se entregassem pacificamente.

Estava tão certo de que liquidaria sua missão em poucos segundos, que nem perdeu tempo de puxar o capacete para frente e atarraxá-lo com a peça do ombro. De arma em punho, o sargento pulou da escotilha externa para o chão macio da ilha e seus homens o imitaram com a mesma agilidade.

O inimigo estava presente em toda parte. Ran Loodey não podia saber o que os estranhos estavam procurando achar nas paredes externas da Finmark e para que serviam as pequenas “garrafas térmicas”, que estavam manejando. Mas foi somente o fato de alguém estar mexendo em qualquer coisa da Finmark, sem a devida autorização, que fez o espírito disciplinado de sargento se revoltar em Loodey. Com uma voz de trovão, comandou:

— Atacar, rapaziada!

O pele-escamada mais próxima distava três ou quatro passos de Ran Loodey. Estava ajoelhado no chão, com o corpo apoiado, de tal modo que se adaptava às formas externas da grande nave, tinha na mão o pequeno cilindro de metal, sobre cuja função ninguém estava certo. Aparentemente, o pele-escamada o esfregava nas chapas de aço da Finmark. Viu que Loodey se aproximava, mas não se mexeu. Num movimento muito rápido, o sargento meteu a arma na cintura de novo, esticou os braços e pegou o éfogo pela cabeça. Com forte puxão, botou-o de pé, bem na sua frente e lhe deu um soco tão bem dado no queixo, que não tinha mais dúvida de que este adversário iria descansar ali pelo menos duas horas.

A luta se desenrolava por todos os cantos. Os homens de Loodey se abstiveram de fazer uso de suas pistolas. Os peles-escamadas não possuíam nenhuma arma e era contra a mentalidade terrana lutar contra um adversário desarmado, usando qualquer tipo de arma. Estavam lutando realmente só com as mãos. E como se dedicavam de corpo e alma ao que estavam fazendo, não demorou a se ouvir em toda a ilha os gritos de dor dos éfogos. Os nativos não foram tratados com muita brandura.

Depois que o próprio sargento havia deixado fora de combate quatro adversários, com seus poderosos punhos, não achou mais graça na luta tão fácil.

— Parar! — reboou seu forte comando. — Isto não é luta para nós. Deixem que eles fujam.

Demorou uns instantes até que todos obedecessem. Quando os peles-escamadas foram liberados da pancadaria terrana e fugiram, restaram apenas sete ou oito, que não podiam se mover.

Ran Loodey se afastou sem dar maior importância ao adversário ou aos cilindros de metal, que estavam no chão por toda parte. Acudiu-lhe então o pensamento de que Kayne Stowes não procedera corretamente, dando a ele esta missão. De repente começou a ter pena dos nativos. Ficou ali parado, olhando para os pobres coitados. Causava-lhe grande alegria quando um ou outro voltava a si e começava a se mexer. Aos poucos, todos recobrariam os sentidos e haveriam de ir embora.

Ran Loodey resolveu então falar bem francamente com Kayne Stowes sobre aquela desagradável missão que lhe fora confiada.

 

Untcher se adaptou instantaneamente às novas condições. Antes mesmo que Phil Lenzer compreendesse o que estava se passando, Untcher já tinha revidado o primeiro ataque do ser desconhecido. Agora tentava obrigá-lo a voltar para a água. Lenzer queria vir ajudá-lo, mas não foi mais necessário. Com uma agilidade, que ninguém acreditaria existir nele, Untcher foi ao encalço do pele-escamada. Aí então não tinha mais importância alguma que ele entrasse ou não na água. Foi tocando o adversário para longe, até chegar com a água à altura do joelho. Depois armou o braço para um tremendo soco, atingindo em cheio o pele-escamada.

Ainda teve a calma de vê-lo cair na água com os olhos revirando. O éfogo afundou imediatamente, mas Thomea Untcher não tinha intenção de matá-lo ou deixar que se afogasse. Curvou-se e com o braço esticado apalpou o fundo do mar, naquela água turva, à procura do corpo do pobre inconsciente. Ficou surpreso em não encontrá-lo. Procurou mais uma vez, esquadrinhando o lugar. O braço de mar, naquele trecho tinha a largura de apenas um metro e meio. Não havia pois lugar para alguém se esconder, muito menos uma pessoa inconsciente.

Perplexo, Untcher foi andando mar a dentro, mas sem nenhum resultado. O major terrano continuou procurando, até que, de repente, já bem mais afastado da praia, emergiu a mesma cabeça que ele vira, há minutos atrás, surgindo ali no braço de mar. Untcher teve a impressão de que o estranho estava sorrindo. Viu que ele levantou o braço, como se quisesse abanar a mão e ouviu-o balbuciar qualquer som ininteligível. Depois disso, desapareceu e o mar voltou à sua calma de antes.

Em compensação, lá dos fundos, vinha uma grande gritaria. Ouviam-se gemidos e comandos gritados em inglês. Thomea Untcher pisou em terra firme. Voltaria para a Finmark. Tinha já esquecido o singular homem-peixe, que, ao ser projetado na água, recuperara os sentidos. Com uma voz dura, determinada, bem diferente de seu tom brincalhão, perguntou através do micro-rádio do capacete:

— Stowes! Que está acontecendo?

Automaticamente, Phil Lenzer puxou o capacete para cobrir toda a cabeça, fechando-o totalmente. Ouviu a voz nervosa de Kayne Stowes responder:

— Nativos atacam nossa nave, Sir. O sargento Loodey, com um punhado de homens, está lá fora tentando expulsá-los. Quase não opõem resistência. Loodey, aparentemente...

Untcher o interrompeu:

— Dê ordem para que todos vistam o uniforme espacial completo, independente de estar dentro ou fora da nave. Entendido?

— Perfeitamente, Sir... — respondeu Stowes hesitante, pois não compreendeu o significado da ordem.

— Façam isso depressa, não temos tempo a perder. Fora disso, a situação não parece muito perigosa. Estamos indo para a Finmark. Fim.

Depois, esgueirando-se por entre as touceiras das grandes plantas, caminhava tão depressa, que Phil Lenzer não conseguia acompanhá-lo.

— Perdão, Sir. — disse resfolegante, assim que o alcançou. — O senhor tem suspeita de algum perigo iminente... estou perguntando isto devido à ordem de vestirem o uniforme espacial.

— Nada de especial — respondeu Untcher em tom seco, sem diminuir o ritmo de seus passos. — Você reparou no ser contra quem lutei?

— Claro que reparei.

— Bom! Mas que foi que você reparou de estranho nele?

Lenzer gaguejou.

— Que sua pele era esverdeada e tinha escamas.

— Homem inteligente! — disse irônico. — Nada mais do que isto?

— Não, não notei nada, não, senhor.

— É o fato de ele trazer sempre um cilindro de metal debaixo do braço esquerdo e por este motivo não o suspendia, pois tinha medo de perder o tal cilindro... percebeu?

Lenzer confessou não ter reparado neste detalhe.

— Você tem que desenvolver seu senso de observação, meu jovem — censurou-o Untcher. — Você pensa que os peles-escamadas levam seu café do lanche por aí, principalmente quando atacam uma espaçonave?

Lenzer ouvia meio assustado.

— Quem sabe, estes homens-peixe conhecem algum tipo de gás venenoso por meio do qual esperam deixar fora de combate a tripulação da Finmark. É uma possibilidade. De qualquer maneira, temos de estar de olho.

Neste momento, penetraram no recinto de touceiras que circundavam a grande nave. Não havia mais sinal de Ran Loodey e de sua gente. O próprio inimigo também fugira. Apenas o chão muito pisoteado testemunhava a batalha aí travada.

“Loodey provavelmente os aprisionou”, pensava ele, “e os levou para dentro da nave. Podia ter se lembrado de outra coisa melhor. Quem sabe os rapazes não estavam preparados para outra coisa...”

Pelo micro transmissor do capacete, deu ordem a Kayne Stowes para abrir a escotilha menor e pulou para dentro, assim que a comporta deslizou para o lado.

— Loodey já está aí com os prisioneiros? — perguntou a Stowes.

A resposta de Stowes parecia esquisita:

— Ele está aqui a meu lado, mas não fez nenhum prisioneiro. E devo dizer-lhe que seu comportamento está meio esquisito.

— Esquisito? — perguntou Untcher admirado.

— Sim, Sir, ele me está incriminando de...

— Está bem — interrompeu-o Untcher. — Já estou chegando.

A passos largos, caminhou na esteira rolante que funcionava no corredor central, para não perder nenhum segundo. Phil Lenzer o seguiu, perguntando a si mesmo de onde o baixote tirava tanta força assim, para andar tão depressa.

O quadro oferecido a Thomea Untcher, quando chegou à sala de comando, era mesmo singular!

Kayne Stowes não exagerara. O próprio Stowes estava de uniforme completo, com o capacete atarraxado, junto da poltrona do piloto. Perto dele, estava Ran Loodey e num grande círculo em volta dele conversavam alguns rapazes que tomaram parte na pancadaria e na expulsão dos homens-peixe. Ninguém do grupo de Loodey, nem mesmo o sargento estava de capacete fechado. Loodey parecia irritado, seu rosto afogueado indicava que a chegada de Untcher interrompera sua frase no meio.

Thomea Untcher foi até ao meio da sala. De um momento para o outro, não era mais o homem nervoso, alquebrado, nem o brincalhão que caçoava de todos e não levava nada a sério. O semblante e os olhos inteligentes inspiravam respeito. Sua voz foi rude, quando se dirigiu a Loodey, perguntando-lhe:

— Dei ordem, sargento, para que todos usassem o uniforme corretamente. Por que seu capacete não está fechado?

Ran Loodey piscou os olhos e, por uns instantes, não sabia de que forma ia responder. Finalmente deu um passo à frente, na direção de Untcher, e disse com a maior desfaçatez:

— O que eu faço com meu capacete não é da sua conta, Untcher. O senhor, Stowes e Lenzer não vão mais me dar ordem nenhuma. Somente eu é que...

Ia continuar no embalo, mas Untcher, com sua voz tranqüila, lhe cortou a palavra.

— Muito bem, sargento, e como é que você chegou a esta resolução tão drástica?

Thomea Untcher estava com os olhos semicerrados, como se quisesse ler os pensamentos do sargento. Phil Lenzer podia observá-lo bem por sobre os ombros dos que o rodeavam. Estava admirado com a mudança que se registrara naquele homem simples e brincalhão. Sabia que, daí para frente, nunca mais iria zombar das atitudes de Untcher, por mais brincalhonas que fossem.

— Isto também não é da sua conta, Untcher! — gritou Loodey furioso. — Já estou farto de ser comandado a vida toda. Agora sou eu quem mando em mim mesmo.

— Venha aqui, sargento! — ordenou-lhe Untcher.

A ordem foi tão peremptória, tão categórica, que Loodey obedeceu sem se lembrar que antes dissera que seria o dono de si mesmo. Parou a um passo de Untcher, que o ficou observando por uns instantes, olhando diretamente nos seus olhos, como se esperasse descobrir alguma coisa que pudesse explicar o comportamento desconcertante de Ran Loodey.

Depois, com a maior calma deste mundo, disse:

— Você está preso, sargento. Deponha suas armas.

Loodey parecia perplexo. Depois começou a rir. Gargalhava tanto, a ponto de arquear o corpo para trás, jogando a cabeça na nuca. Não parava mais de rir.

De repente Thomea Untcher se projetou para frente. Ninguém viu exatamente o que ele fez. Parecia ter atingido o pescoço de Loodey. A gargalhada de Ran Loodey parou num som gutural. Seu corpanzil avantajado bamboleou e se precipitou no chão com um baque surdo. Deu um suspiro e ficou inerte.

Thomea Untcher não se preocupou mais com ele. Agora olhava para os homens, que estavam ali de pé, entre ele e Phil Lenzer. Notou que intencionavam atacá-lo. Leu a irritação na fisionomia deles e sabia que estavam do lado do sargento.

Phil Lenzer ainda não reparara isto. E, se todos aqueles homens atacassem ao mesmo tempo, Untcher iria sofrer um bocado. Untcher sacou a arma e a apontou para o grupo de Loodey, dizendo quase amavelmente:

— Sei o que vocês estão pensando, minha gente, mas garanto que não vão chegar a isto.

Sua voz mudou de tom:

— Deponham as armas, imediatamente!

Os homens hesitaram. Eram oito e tinham contra si apenas três. Mas Untcher, o mais perigoso dos três, esticou o braço, apontando a arma para o peito do mais próximo do grupo de Loodey.

— Vou contar até três... meus amigos.

E começou. Não tinha ainda acabado de pronunciar o dois, quando todas as pistolas foram atiradas no chão e, sem que Untcher o tivesse exigido, todos ergueram os braços.

Enfiou a arma novamente na cintura. Ninguém notou qualquer reação em sua fisionomia. Ordenou a Phil Lenzer que levasse o pessoal para prendê-los num local seguro, bem como o sargento Ran Loodey, que ainda estava sem sentidos.

Depois perguntou a Stowes:

— Onde estão os outros homens que se achavam com Loodey lá fora, durante a peleja com os nativos?

— Todos voltaram a seus postos, Sir.

— Isto você está dizendo, mas quero saber de fato onde estão todos.

E dizendo isto Untcher olhou em volta.

— Convoque todos eles — ordenou a Stowes — de convés em convés e em todos os ninhos de artilharia.

Como se estivesse sonhando, Stowes ligou o intercomunicador. Começou pelo convés A, num ninho de metralhadora pesada, equipado com reforço, desde que a Finmark entrara em estado de alarme.

O quadro, oferecido pela tela panorâmica, foi simplesmente assustador. Os homens estavam deitados pelo chão, fumando, em meio a acalorada discussão. Nenhum deles, mas nenhum mesmo, estava sentado no lugar onde devia.

Kayne Stowes levou bom tempo para dominar a algazarra com sua voz estridente, tal era o berreiro lá dentro. Ninguém deles se deu ao trabalho de se levantar. Um deles, depois de compreender a ordem de Stowes, exclamou:

— Mais tarde, passaremos por aí, agora temos coisa mais importante para discutir.

Foi tudo. E por mais que Stowes esbravejasse e gritasse, não conseguiu nada com os homens.

Desligou o intercom e virou-se para Untcher, branco como cera e de olhos arregalados. Os lábios se moviam, sem produzir nenhum som, como se Stowes não tivesse mais força para formar palavras. Untcher veio em seu auxílio.

— Eu disse “todos” — repetiu com calma — de convés em convés e em todos os ninhos de artilharia...

Stowes se virou de novo para religar o intercom, mas se deteve de repente, interrompendo o que ia fazer. E erguendo os braços na direção de Untcher, gritou com voz histérica:

— Que é isto, Sir? Será que o diabo entrou no corpo desta gente?

Thomea Untcher apenas sorriu.

— Não lhe posso dizer, Stowes — respondeu ele. — Há uma coisa estranha, misteriosa. Temos de descobri-la.

 

Mas o que acharam foi coisa bem diferente.

De toda a tripulação da Finmark, apenas quatorze homens estavam dispostos a obedecer às ordens de seus oficiais superiores. Os demais, a maioria, apresentavam uma atitude de renitência, até mesmo de rebeldia, de tal maneira que Thomea Untcher receava, com razão, que, dentro de pouco tempo, chegariam à idéia de se apossarem da nave.

Já que, pelo menos no momento, ainda não estava bem claro sobre o que pretendiam fazer, Untcher aproveitou a ocasião e travou, por meio da ligação de emergência, todas as escotilhas da Finmark. Em seguida, mandou injetar, através dos tubos de aeração, dióxido de carbono nos aposentos onde se encontravam os amotinados. Assim, em poucos minutos, conseguiu afastar o perigo iminente. Mas com a testa banhada em suor, Untcher não se esquecia de que, nestes minutos, a Finmark estava quase indefesa e de que o inimigo desconhecido teria tempo para atacar uma segunda vez.

Porém os minutos se passavam, sem que nada acontecesse. Num trabalho cansativo e paciente, os homens que causaram perturbações foram abrigados um por um na sala dos oficiais, e ali aprisionados com todo conforto. Untcher lhes deixou a possibilidade de entrarem em contato com a sala de comando, pelo intercom, e isto tinha sua importância, caso mudassem de idéia e resolvessem portarem-se como soldados responsáveis.

Depois mandou investigar quantos médicos havia entre os quatorze. Havia apenas o Dr. Dunyan. O comandante encarregou-o de fazer um exame no sargento Loodey. Dunyan era muito competente e Untcher podia se dar por feliz pelo fato de o médico não estar entre as vítimas do estranho fenômeno.

Dunyan começou seu trabalho, primeiramente examinando o ar a bordo da Finmark. Abstraindo-se, porém, da elevada concentração de dióxido de carbono, não se constatou nenhum elemento estranho. Estava então quase certo de que os amotinados tinham sido de fato vítimas de um gás desconhecido, pois os dezessete restantes, que, cumprindo as normas gerais e as ordens expressas do comandante, usaram o uniforme com o capacete fechado, achavam-se livres do mal, exatamente pelo uso do capacete atarraxado ao uniforme espacial.

No entanto, as medições do Dr. Dunyan pareciam querer refutar esta teoria.

O exame minucioso procedido em Ran Loodey também não apresentou resultados sensacionais. O sargento estava sem sentidos e não apresentava outros sintomas, a não ser os que são normais num homem atingido por uma forte e bem centrada cutilada. A única coisa que Dunyan podia dizer de positivo era que Loodey, quando voltasse a si, teria dificuldade para engolir.

— Quanto tempo o senhor leva para fazer um exame profundo, doutor? — foi a pergunta de Untcher, depois de ouvir o seu relatório. — Digo “profundo”, no sentido de que o senhor possa indicar o que corre nas veias do sargento e qual a razão de seu procedimento maluco.

Dunyan fez um cálculo de quatro para cinco horas. Untcher ordenou-lhe que começasse imediatamente, mas reduzisse o prazo para duas ou três horas. Dos quatorze homens que restavam, selecionou dois para auxiliar Dunyan. Os outros, ele os reuniu na sala de comando, para trocar idéias.

Lá fora o sol se punha. A temperatura começou a cair assustadoramente. A fina atmosfera de Opghan fazia o calor, que fora acumulado durante o dia pelo imenso oceano, desaparecer. A água do oceano era extremamente pobre em sal. Uma hora após o pôr do sol, o oceano, que cobria 99,5% de todo o planeta, começava a gelar e a ilhota, onde estava a Finmark, ficava então cercada por gelo.

 

Durante a noite, o medo se apoderava dos seres cobertos de escamas esverdeadas, no fundo do mar. Há muitos séculos atrás, nos primórdios de sua história, não conheciam cidades fixas e fugiam assim da noite, quando esta se abatia sobre o mar. Corriam sempre para o oeste, atrás do sol. Quem ficasse para trás, morreria, pois o éfogo, por natureza, não tinha condições de descer para as profundezas do oceano, onde não haveria mais a grande diferença de temperatura e a água não congelaria.

A princípio eram eternos nômades.

Num período de sua existência um éfogo dava, pelo menos, dez voltas em torno de seu planeta. A primeira, no cesto flutuante de sua mãe; as outras, com as próprias forças. As minúsculas ilhas pelo gigantesco mar — ao todo, três mil seiscentas e trinta e quatro — eram o ponto de encontro e de repouso, na contínua marcha atrás do sol.

Depois chegou o tempo em que apareceu o motor. A partir daí, os éfogos não precisavam mais fugir do frio nadando na direção do poente. Atravessavam o mar em grandes barcos e sua vida estava livre de tantos perigos. No seu subconsciente, porém, persistia o fantasma do medo. Quando o sol iniciava sua retirada, começavam a tremer, com pavor de ficarem para trás e morrerem congelados. O éfogo podia suportar uma forte pressão da água em mar fundo, não suportava, porém, temperaturas abaixo de duzentos e cinqüenta graus absolutos.

A época dos barcos a motor não foi muito longa, como se podia imaginar, porque os éfogos fizeram a maior descoberta de toda a sua história. Vieram a conhecer as canáceas, plantas semi-inteligentes da família das gramíneas, cujas hastes ocas penetravam até as profundezas do oceano. Constataram que estas canáceas misteriosas estavam dispostas a viverem em harmonia com os éfogos, podendo lhes ser muito úteis, com a condição de que os nativos se comprometessem a não permitir que suas raízes fossem vítimas das poderosas mandíbulas dos hchour, peixes selvagens do mar.

A cooperação mútua se desenvolveu para o bem dos dois lados. Os ferozes hchour eram, também, inimigos dos navegantes éfogos, pois não havia salvação para quem fosse vítima de seus dentes afiados.

Os éfogos começaram a construir suas cidades no fundo do mar e as canáceas lhes forneciam o ar necessário. Estas gramíneas maravilhosas faziam um sinal especial, sempre que surgisse por perto um peixe hchour, e os éfogos saíam logo em grupo para matá-lo ou afugentá-lo. Por cinco longos anos de Opghan, esta operação se repetiu com tal eficiência, que estes peixes selvagens não mais se atreviam a chegar perto das cidades submarinas. Descreviam uma grande volta, assim que vissem o grupo de nativos.

Continuava, porém, uma fobia quase que hereditária nos éfogos, era o medo da escuridão. As canáceas, cujos talos e raízes penetravam bem para o fundo do mar, e sentiam os efeitos da mudança radical do dia para a noite, trocavam de cor, assim que o sol desaparecia. Os éfogos logo compreenderam o motivo desta alteração: a planta passava para um outro tipo de metabolismo que lhe permitia suportar, nas partes mais elevadas de sua vegetação, o frio horrível da noite ou a forte pressão do gelo, sem se prejudicar.

Quando os talos das plantas, que através dos tetos, penetravam nas moradias dos éfogos, passavam do verde para o azul-turquesa e, finalmente, para o roxo, os homens-peixe sabiam, sem consultar o relógio, que lá em cima, na superfície, o sol descambara no poente e a água do mar começava a gelar. Era nesta hora que lhes sobrevinha o medo, o velho e invencível pavor da criatura inteligente diante das forças da natureza. Medo este que perdura, até hoje, nos mais elevados estágios da civilização.

Naquela tarde, a situação não era diferente.

Grghaok, o ancião que os estranhos peles-escamadas não quiseram receber, por lhes parecer demasiadamente alquebrado, estava sentado em seu diminuto aposento. Observava, com medo, a grossa haste da canácea que se tornava cada vez mais escura, até que, devido à deficiente iluminação do quarto, parecia completamente preta. Nos tempos de sua juventude, havia presenciado e tomado parte nos grupos de éfogos que nadavam, tentando acompanhar a direção que o sol tomava. Lembrava-se mesmo de ter dado volta pelo planeta no cesto flutuante de sua mãe. Mais tarde, vieram os barcos a motor e ele, já crescido, não teve mais de cansar os músculos.

Grghaok acendeu uma outra luz e teve medo. Olhou para a haste da planta, no trecho em que varava o teto, esperando que o talo preenchesse todo o espaço da abertura. Assim não sentiria frio e nem veria a escuridão, que reinava lá fora.

Grghaok lembrou-se da observação que fizera na tarde daquele dia.

“Coisa estranha”, pensava ele, “quando me lembro de Chchaath, me vem à cabeça a idéia de escuridão.”

Vira-o, quando este passava pela rua com o cilindro metálico debaixo do braço, dirigindo-se para a grande comporta. Grghaok possuía a curiosidade infantil, característica dos anciãos. Interessava-se loucamente por saber o que pretendia Chchaath com aquele cilindro. Tinha, porém, plena certeza de que o vigia o impediria de entrar.

A esperança do velho era que Nrrhooch soubesse de alguma coisa, embora não pudesse compreender bem de que maneira Nrrhooch podia receber estas informações. Seu amigo trabalhava nas plantações lá fora, onde as novidades custam a chegar.

Com o passar do tempo, a curiosidade do ancião aumentava incrivelmente. Nervoso, começou a andar no quarto de um lado para o outro, soltando umas palavras um tanto pesadas, quando tropeçou numa cadeira. No momento em que Nrrhooch chegou, estava tremendo de ansiedade.

Que Nrrhooch estava muito cansado, via-se facilmente em seus traços fisionômicos. As escamas estavam tão separadas umas das outras, que pareciam poder cair a qualquer momento. Jogou-se na cama com um suspiro de cansaço, cruzou os braços sobre o peito, fechando os olhos, ainda com a respiração apressada.

Grghaok sabia que lhe teria de dar uns minutos, até poder iniciar qualquer conversa. Os estrangeiros obrigavam os homens a um trabalho muito duro e, ai daquele que não desse a um homem como Nrrhooch ocasião de distender um pouco os músculos e os nervos, depois de tantas horas de trabalho.

Após alguns minutos, quando Nrrhooch levantou-se e espreguiçou-se para preparar sua refeição, Grghaok lhe perguntou:

— Você ouviu alguma coisa sobre Chchaath?

Nrrhooch se irritou com a pergunta.

— Que os peixes carnívoros, os hchour, o devorem inteirinho. Não, não sei de nada. Será que há alguma coisa para se comer?

Grghaok sorriu.

— Não se preocupe com sua refeição, meu jovem. Já deixei pronta para você. Está aí atrás no fogão. Tire e coma. Vai se admirar de que...

Surpreso, encaminhou-se para o fogão. Abriu a tampa do forno, que impedia a saída do calor e puxou com os dedos o recipiente metálico, abrindo-o em seguida. Cheirou antes e arregalou os olhos de admiração.

— Barbatana de lkhregh! — disse surpreso. — Couve-flor! Grghaok, você está gastando demais nosso pouco dinheiro, hein?

Parecia não estar preocupado com o lado da economia. Seu rosto indicava grande contentamento. Grghaok se defendeu:

— Não custou tanto assim, não. Arranjei isto bem barato. Sabia que você ia gostar muito.

— ...e assim concordar mais facilmente com você, não é? — disse rindo. — Não é isso? O que você está querendo, hein?

Grghaok sentou-se na cama, onde Nrrhooch estivera deitado há pouco.

— Está para acontecer alguma coisa, Nrrhooch — disse em voz mais baixa. — Muito raramente, Chchaath aparece aqui na cidade. Se quisermos fazer alguma coisa para recuperarmos a liberdade, temos de fazê-lo agora, antes que Chchaath fique para sempre na cidade, com intuito de observar todos os nossos passos.

Nrrhooch não se deixou interromper e continuou gulosamente a saborear o bom prato, quase sem mastigar. De repente fez um gesto com a mão e disse:

— Você sabe, tão bem como eu, Grghaok, que não podemos fazer simplesmente nada. Enquanto não possuirmos as armas dos estrangeiros e morrermos de medo por qualquer coisinha, como uma porta que se abre automaticamente ou uma lâmpada que acende, sem que se aperte o interruptor, não teremos nenhuma chance.

Grghaok inclinou o corpo mais para frente.

— É isto mesmo, Chchaath não está aqui. Pelo que sei, vai ficar muito tempo fora. Podemos penetrar em sua casa e olhar o que há lá dentro.

Nrrhooch arregalou os olhos.

— Entrar na casa de Chchaath? Você está maluco? Se o guarda perceber, seremos expulsos da cidade e nenhum outro lugar vai nos querer aceitar.

Grghaok fez um gesto com a mão.

— Se perceber!? Mas isto não vai acontecer.

— E, como é que sabe disso? Grghaok virou-se para trás, dizendo:

— Lchox, saia daí!

Moveu-se alguma coisa na parede. Uma chapa de material plástico soltou-se e bateu no chão com barulho. Surgiu uma abertura.

Um homem-peixe de rosto enrugado e amarelado, da mesma idade de Grghaok, olhava-os.

Nrrhooch deu um pulo.

— Que é isto? Vocês dois estão loucos? Se...

Lchox saiu do esconderijo e alisou as escamas.

— Se... Se... — interrompeu Grghaok com desdém. — Se no nosso tempo de jovens tivéssemos repetido tantas vezes o “se”, ainda estaríamos nadando atrás do sol, ao invés de morarmos em cidades quentes e seguras.

Com gesto autoritário, que parecia não combinar com sua figura pequena, quase raquítica, apontou para a abertura na parede.

— Enquanto vocês trabalhavam lá fora para os estrangeiros, nós, os velhos, chegamos à conclusão de que ainda podemos fazer alguma coisa. Cavamos um túnel que vai desta casa para a moradia de Chchaath. E hoje de noite vamos dar uma chegada até lá, a fim de ver qualquer coisa.

Nrrhooch estava parado, perplexo e, repentinamente, disse:

— E se Chchaath voltar de repente? — ponderou assustado.

Lchox fez um gesto de irritado.

— De novo, este negócio de “se”. É por este motivo que o levamos conosco. Se Chchaath aparecer, você vai ser homem bastante para, quando ele menos esperar, receber no pescoço uma cutilada magistral, que o deixe descansando por muito tempo, sem nos incomodar.

Nrrhooch já mais calmo, mantinha ainda a fisionomia séria.

— E depois que voltar a si, haverá de investigar como conseguimos penetrar em sua casa. Então irá achar o túnel que vocês cavaram, que vai dar direto em nossa casa. Com os instrumentos de que os estrangeiros dispõem, não é nenhuma obra de arte descobrir estas coisas.

Grghaok, que há muito tempo não dizia nada, deu um grande suspiro e virou-se para Lchox.

— Temos que ir sozinhos, meu amigo — disse triste. — Este jovem é muito medroso.

Lchox, não obstante sua pequena estatura, parecia um homem de ação. Virou-se para trás e enfiou-se novamente no buraco da parede.

— Então, vamos embora — disse, já no interior da abertura.

Grghaok o seguiu. Parado e sem dizer uma palavra, o jovem Nrrhooch ficou sozinho no quarto. Ouvia o ruído causado pelos dois velhos que se arrastavam pelo túnel, pois suas escamas esfregavam nas paredes. Depois percebeu que os ruídos iam diminuindo.

— Parem! — gritou ele de repente. — Vou com vocês. Não posso deixá-los sozinhos na desgraça.

— Está certo, Nrrhooch — ecoou a voz abafada do velho Grghaok do fundo do túnel. — Apague as luzes, para que pensem que não estamos em casa e atarraxe bem a chapa que cobre o buraco na parede. Há dois ganchos que correspondem aos ilhoses na parede.

Nrrhooch fez como lhe disseram. Depois que a chapa encaixou no lugar certo, a escuridão passou a ser total no túnel e ele ficou com medo. Arrastando-se de marcha à ré, pois não havia espaço para se virar, apressou-se em acompanhar Grghaok e Lchox, usando de todas as suas forças.

O estreito corredor era muito sinuoso, ora para cima ou para baixo, à esquerda ou à direita. Nrrhooch começou a se perguntar onde é que os dois velhos haviam atirado todo o material da grande escavação. Estava para lhes fazer esta pergunta, quando seu pé se chocou contra Grghaok e ouviu a voz de Lchox:

— Silêncio, já chegamos. Nrrhooch prendeu a respiração. Provavelmente, havia na outra extremidade do túnel um tipo de fechamento idêntico ao da entrada.

A escuridão, porém, ainda era a mesma. Na casa de Chchaath as trevas residiam.

A pressão que retinha os pés de Nrrhooch cedeu. Grghaok já estava mais para frente e o jovem o seguiu. Chegou a um ponto em que seus pés não encontraram apoio. Mas uma voz a seu lado disse-lhe:

— Atenção, aqui há uma descida! Com todo cuidado, Nrrhooch esticou a perna, atingiu o chão com a ponta do pé e abandonou o túnel. Na escuridão, Lchox disse:

— Vamos deixar o buraco aberto. Antes de mais nada devemos iluminar o local.

Nrrhooch queria propor que acendessem uma lanterna portátil, ao invés de ligarem toda a luxuosa instalação de luz da rica mansão de Chchaath. Mas, neste momento, aconteceu uma coisa que fez gelar o sangue nas veias de Nrrhooch e dos dois velhos. Os três perceberam que tinham poucos instantes de vida.

No meio da escuridão, surgiu de repente o vulto de Chchaath. Ninguém podia saber como chegara até ali. Mas tinha chegado. Um tipo estranho de claridade envolvia seu corpo. Levantou o braço e apontou diretamente para Nrrhooch, gritando:

— Que procuram aqui, malandros? Vou cuidar para que sejam expulsos da cidade.

 

— Dois motivos — dizia Thomea Untcher, depois de num longo suspiro, como se estivesse cansado de dizer todas as coisas duas ou três vezes. — Dois motivos me levam a não interromper a “expedição”. Primeiro existe uma convenção entre o Império Solar e Árcon pela qual nós terranos, comprometemo-nos prestar auxílio a Árcon, com naves e tripulação, sempre que formos solicitados para isto. Seremos como patrulheiros espaciais. Ações policiais são empreendimentos executados com menos de quatro espaçonaves, e nunca a tripulação pode ultrapassar a dois mil homens. Nossa missão aqui cai, sem dúvida alguma, nesta categoria.

“O segundo motivo, meus senhores, é que eu não interrompo uma ação, quando me restam ainda dezesseis homens sadios e valorosos.”

Com um sorriso, ainda acrescentou: — No momento em que só restarem três ou quatro, pedirei reforço à Terra. Até lá podemos fazer muita coisa boa, isto é, um bom trabalho.

“Em outras palavras: meu plano continua de pé. Se quisermos saber o que se passa em Opghan, temos de procurá-lo debaixo d’água. Nas minúsculas ilhas do continente, os éfogos não têm outra coisa a não ser local de descanso provisório. Seu verdadeiro ambiente é o mar. Vamos visitá-los e conversar com eles. Tenho certeza de que o inimigo oculto espera por nós em qualquer lugar lá embaixo. Está contando com que nós vamos descer, certamente já com a armadilha pronta. Vamos dar uma olhada lá embaixo, ou não vamos? Este é o risco que temos de correr.”

Virou-se para trás e caminhou um pouco, pensativo. De repente, parou e disse por sobre os ombros:

— Preparem-se, meus amigos, partiremos em meia hora.

 

Via-se claramente que Nathael estava muito preocupado. Seu rosto estava afogueado e gesticulava muito nervoso.

— Eu já sabia que íamos ter muita dificuldade — resmungou cabisbaixo e zangado. — Foi uma idéia errada, termos liquidado Pthal logo no começo.

Echnatal teve que engolir esta frase. Echnatal era o jovem de cuja barba artificial Nathael já tinha feito muita caçoada.

— Idéia errada? — repetiu o jovem. — Quando lhe propus isto, você não teve nada contra.

— Sim, é verdade, porque estava certo de que, apesar de toda pressa, você iria usar de certas providências acauteladoras e não simplesmente mandar para lá um homem que mata Pthal e, ao mesmo tempo, é morto por ele.

Virou o rosto para o outro lado, como se não pudesse suportar o olhar de Echnatal. Olhava para a parede porque não tinha outro lugar melhor. Ele odiava lugares sem janelas e só gostava de janelas amplas. Estava habituado a olhar para longe, ter um amplo ângulo de visão, como acontecia nas telas panorâmicas de suas espaçonaves. Naturalmente, os éfogos não iriam compreender seus anseios de amplos descortínios, criados e alimentados em muitos anos de experiências e vivências. Em suas habitações, os éfogos tinham apenas uma janela, isto é, na parede mais próxima da rua. Olhou para a rua lá fora, pessimamente iluminada. Nathael suportava mais a visão da via deserta do que a do edifício tipo galeria, com os móveis redondos, esquisitos, em que o chefe da cidade dava suas audiências rotineiras.

— Esforcei-me ao máximo para fazer tudo que podia — continuou Echnatal ainda irritado. — O senhor me disse que não tinha um minuto para perder. Deveria pois, agir depressa.

O terceiro homem fez um gesto de quem não queria mais ouvir discussão:

— Parem com este bate-boca estéril. Estava sentado a uma escrivaninha, numa poltrona bem confortável. Em contraste com Nathael e Echnatal, parecia muito tranqüilo e desinteressado da discussão.

— Não compreendo por que vocês dois estão quebrando a cabeça — disse tão calmamente, que Nathael e Echnatal tiveram de fazer esforço para entendê-lo. — O nosso primeiro golpe parece ter dado resultado, pelo menos parcial e assim que os terranos se atreverem a descer, vamos cobrar nossas dívidas.

Com uma expressão de ironia no rosto, Nathael soltou o ar pelos dentes, produzindo um longo chiado.

— Cobrar nossas dívidas, como? Simplesmente como? Parece tão fácil, não é? Você já tratou diretamente com terranos, Aktar?

Aktar olhou surpreso. Na luz fraca do aposento, sua barba castanha tinha um brilho estranho.

— Não, naturalmente não. Você sabe disso.

— Sim — respondeu Nathael — e se não soubesse, teria notado agora. Vingar-se dos terranos... Você acha que eles estão esperando por isto, que venha alguém para os deter e prender?

Aktar esqueceu seu conforto. Descolou-se do cômodo encosto e comprimindo os olhos falou:

— Você tem um alto conceito dos terranos, Nathael, não é verdade?

Nathael abanou a cabeça confirmando:

— E como o tenho! Você segura um terrano na mão, assim, por exemplo — ele apertou a mão como se quisesse esmagar alguma coisa. — Você está certo de que ele nunca mais escapará. Mas, de repente sua mão está vazia e o terrano já está atrás de você. Antes de ter tempo de virar-se, já leva uma tremenda pancada na cabeça que o deixará desacordado por muito tempo. Assim são os terranos, Aktar.

Este ia responder, mas antes que começasse a despejar seu ódio contra os terranos, a porta dos fundos se abriu e surgiu a figura de Chchaath. Todos os olhares convergiram para ele. Chchaath era o homem que trazia sempre as novidades.

— Os terranos estão a caminho — disse com sua voz molhada. — Deixaram treze cinqüenta e oito numa espécie de barco e vão para o fundo do mar.

Sem dizer uma palavra, Nathael se virou, olhando para Aktar. Levantou as sobrancelhas, e Aktar sabia muito bem o que ele teria dito, se abrisse a boca.

Chchaath esperou pela reação de suas palavras.

— Continue — exigiu Nathael. — Como é que você soube disso?

O homem-peixe mudou a expressão preocupada para um sorriso.

— Meus barcos estão por toda parte — disse com orgulho.

— Seus barcos!... Diga-me uma coisa, você mandou barcos ao encontro dos terranos?

Visivelmente assustado, Chchaath chegou a gaguejar:

— Nã... não. Mandei que se dispersassem e dei ordem para que não se aproximassem do inimigo.

Nathael chegou rente a ele:

— Mas tão perto que podiam ver o inimigo — disse gritando. — Com a pouca visibilidade, devia ser uma distância de cem metros. E os instrumentos de rastreamento dos terranos alcançam pelo menos cem vezes isto.

Chchaath recuou uns passos e não respondeu nada. Conhecia Nathael já há alguns dias e sabia que sua cólera aumentava com a discussão.

Pela segunda vez, Nathael se dirigiu a Aktar.

— Já lhe disse que tudo está saindo errado. Colocamos nas mãos deste pele-escamada ignorante todos os tipos de instrumentos, e ensinamos-lhe a manejá-los. Tais instrumentos nos serviriam, e a ele também, para avisar com alguma certeza a aproximação dos terranos. E agora, além de não usarem os aparelhos, ainda mandaram seus barcos embora! Aposto todas as naves da minha estirpe contra um fio de sua barba, que os terranos estão morrendo de rir da nossa estupidez.

Aktar levantou a mão, para falar:

— Nem tudo está tão ruim como você pensa, Nathael. Depois do ataque à sua nave, os terranos já deviam ter pensado em nos visitar aqui no fundo do mar.

— É, mas agora não se trata mais de pensar em visitar, eles vêm mesmo e isto é certo.

Com os olhos dirigidos para o chão, andava de um lado para o outro. Tremendo de cólera, seus passos eram tão fortes que faziam estremecer as paredes, enquanto que o talo roxo da canácea, a planta semi-inteligente, que entrava pelo teto da casa, de tanto medo, começava a emitir um leve zumbido. De cabeça caída, dava voltas em torno de Chchaath. De repente, estacou e perguntou em voz alta:

— Você tem em sua casa, em Bchacheeth, alguns instrumentos importantes e de grande valor. Sabe como o povo anda falando de você. Já tomou providências para que ninguém entre em sua casa, enquanto você está aqui, e os roube?

Chchaath sentiu-se mais aliviado com esta pergunta. Já que tinha errado muito na outra questão, aqui não havia perigo. Estava por dentro do assunto.

— Sobre isto, você não precisa se preocupar — disse apressado. — O gravador e o projetor que vocês me deram estão ligados constantemente. Uma vez em cada quatro décimos de milésimo, eles passam a funcionar automaticamente.

Deu uma gargalhada boba.

— Gostaria de conhecer algum éfogo que agüente uma descarga com esta voltagem, sem sair correndo feito um louco e passar um dia inteiro, sem poder abrir os olhos.

 

Nrrhooch viu-se atropelado. Alguma coisa macia, mas pesada atingiu-o com a impetuosidade de um hchour, quando este ataca. Cambaleou e só não caiu porque a parede o amparou. Algo se chocara contra suas pernas e parecia debater-se. Talvez estivesse tentando atingir o túnel secreto.

Nrrhooch teria mentido a si mesmo, caso dissesse que não ficou com medo na hora da aparição de Chchaath, com sua voz de trovão. Mas quando notou que aquilo que se debatia próximo de suas pernas não era outro senão Grghaok e que Lchox o seguia desvairado, começou a dar gargalhada. Pegou Grghaok pelas pernas e o puxou para fora. Lchox tremia feito vara verde e Grghaok começou a gritar e com tanta força que Nrrhooch teve de usar de energia com ele:

— Cale a boca, você vai acordar os guardas. Tudo não passou de um truque.

Grghaok se acalmou num instante.

— Um truque? — perguntou admirado. — Que tipo de truque?

— Os estrangeiros possuem aparelhos onde podem armazenar a voz de um homem e depois reproduzi-la à vontade. Têm também dispositivos com os quais produzem imagens que se movem. O que vocês ouviram, foi a voz armazenada de Chchaath e o que viram era um pedaço de filme fotográfico.

Os dois estavam quase de respiração presa, devido à emoção. Mas... Grghaok não estava acreditando muito.

— Esperem, vou mostrar para vocês — interrompeu-o Nrrhooch. — Onde está mesmo o interruptor da luz?

— Ali na parede — disse Lchox, empurrando o rapaz na direção certa.

Nrrhooch achou o interruptor e o ligou. Uma luz amarelada, suave, iluminou o ambiente. Apesar de tudo que falavam contra Chchaath, ele não havia aceitado a luz branca e azulada dos estrangeiros, aquela luz que causava dor nos olhos.

— Olhem ali! — exclamou Nrrhooch. — Aquela coisa que parece uma tela, recebeu a imagem de Chchaath — virou-se para o outro lado. — E ali está o instrumento que produz a imagem e ao lado o aparelho que guarda a voz de Chchaath — virou-se de novo para o projetor. — Ali, ao lado da tela, está dependurado o alto-falante, de onde sai a voz de Chchaath. Vocês estão vendo que...

Foi interrompido. De repente, em conseqüência da luz acesa, apareceu de novo a imagem de Chchaath e seu vozeirão gritou outra vez as mesmas palavras:

— Que procuram aqui, malandros? Vou cuidar para que sejam expulsos da cidade.

Os dois velhos começaram a rir, apertando a boca para não fazerem muito ruído.

— É um truque formidável — concordou Grghaok, reconhecendo o papelão que haviam feito na primeira investida.

Levantou-se e limpou sua roupa empoeirada.

— Vamos começar então, agora — continuou ele — você, Nrrhooch, que entende tanto destas coisas estrangeiras, pode nos explicar alguma coisa. Ali ainda existem mais instrumentos. Fale-me deles.

Estava apontando para uma mesa maior, ao lado da tela semitransparente de projeção. A mesa — fora do armário que estava no canto — era o único móvel no grande aposento. Grghaok chegou à conclusão de que Chchaath já havia assimilado muita coisa dos costumes estrangeiros, pois os éfogos tinham o hábito de entupir seus cômodos de tantos móveis, que mal se podiam locomover.

Nrrhooch estava feliz. Encaminhou-se para a mesa e deu uma olhada nos muitos aparelhos ali reunidos.

— Este aqui — disse apontando para uma caixa, não muito grande, tendo no centro uma chapa de vidro fosco — é um aparelho para falar e ver a pessoa ao mesmo tempo.

— Ah!... é? — acudiu Lchox prontamente. — Quer dizer então que, se eu estiver em minha casa e você ficar aqui, podemos nos falar e ver nossa imagem ao mesmo tempo? Coisa formidável.

— Sim, com a condição de que você tenha também um aparelho igual ao meu, do contrário não posso me ligar com você.

— É verdade, já vi os estrangeiros fazendo isto. Um deles tinha um aparelho deste no carro.

— Está bem, mas então ligue agora este aparelho.

— Está louco? — respondeu Nrrhooch. — No outro lado, em qualquer parte do planeta, está sentado outro estrangeiro e, quando nos perceber aqui, compreenderá o que estamos fazendo.

— Chiii... — fez Grghaok com o dedo indicador fechando a boca — isto é verdade. Mas eu não saio daqui, sem ver este negócio funcionar.

Nrrhooch ficou pensativo. Fez um grande esforço mental, pois não era muito inteligente e, além do mais, não entendia quase nada daqueles aparelhos. Apenas vira uma vez como o estrangeiro apertava um botão aqui ou ali, aparecendo primeiro uns riscos confusos no vidro leitoso.

— Quem sabe... espere um pouco... vou experimentar.

Sentou-se na única cadeira que havia na frente da mesa, e ficou olhando longamente para o videofone. Tentou se lembrar do modo como procedera o estrangeiro, há um dia de Opghan. Titubeante, Nrrhooch apertou um botão. O aparelho respondeu com um fraco zumbido, que o deixou mais animado, pois já o conhecia. Apertou outro botão e, no mesmo instante, a tela se iluminou. Viu os mesmos rabiscos e cintilações, como na outra vez, com o estrangeiro. Suspirou mais aliviado. Podia até ser que, de repente, surgisse ali o rosto barbudo de um estrangeiro.

— Assim é que o negócio funciona — explicou aos dois velhos curiosos. — Se continuar girando este botão, surgirá um estrangeiro na tela e me perguntará o que quero. E se eu fosse Chchaath, poderia lhe responder.

Lchox e Grghaok olhavam fascinados para o quadro de vidro fosco. Grghaok deu um passo para frente, postando-se bem rente do aparelho. Nrrhooch ficou olhando para ele, esperando que dissesse alguma coisa. Com isto, não reparou na mão do velho nem notou que ele estava girando o botão. Nrrhooch apenas reparou o que estava se passando, quando a tela aumentou sensivelmente a luminosidade e uma voz estranha começou a falar numa língua estrangeira.

Nrrhooch levou um susto. No vidro fosco surgiu o rosto de um homem desconhecido. Estava mesmo certo de que nunca vira uma criatura deste tipo. O estrangeiro não usava barba. Tinha acabado de falar e olhava atento para Nrrhooch.

Tomado de pânico, este queria desligar o aparelho ou pelo menos girar para trás o botão traiçoeiro. Mas desta vez foi o próprio Grghaok quem manteve o sangue-frio. Segurou Nrrhooch pelos braços e lhe cochichou no ouvido:

— Espere, este não é nenhum dos estrangeiros que nos oprimem!

No mesmo instante, o homem da tela começou a falar. Desta vez, porém, usando a mesma língua dos estrangeiros, que era muito semelhante à dos éfogos, de tal maneira que os homens-peixe a entendiam sem dificuldades.

— Rapazes, não tenham medo de nós, quem são vocês? — falou o homem sem barba.

Grghaok puxou Nrrhooch de lado e sentou-se na cadeira em frente ao aparelho.

— Somos Nrrhooch, Lchox e Grghaok de Bchacheeth, estrangeiro. E você quem é?

O estrangeiro arregalou os olhos:

— Santo Deus! Que tipo de língua é esta? Você não pode tirar um pouco da água que tem na boca?

Grghaok estava quase querendo se irritar com a observação, mas o estrangeiro continuou:

— Não me leve a mal, amigo, terei de me acostumar com a sua linguagem. Onde fica Bchacheeth?

— Entre Xchaghacht e Pchchogh — respondeu Grghaok. — Uma viagem de um décimo de Xchaghacht e de um décimo e meio de Pchchogh.

O estrangeiro, pela expressão do rosto, deve ter ficado na mesma.

— Não tem maior importância — continuou ele — procuraremos depois no mapa. Mas diga-me uma coisa: assassinaram seu funcionário mais importante, não é verdade?

Grghaok levantou os braços para confirmar.

— Sim, isto foi há quatro dias e, desde então, os estrangeiros estão aqui nos oprimindo.

— De quem você está falando?

— Dos nossos opressores. Vieram para cá há quatro dias, afastaram nossos funcionários e tomaram o governo. Estão nos obrigando a trabalhar nas plantações e...

— Devagar — interrompeu-o o homem sem barba — não estou compreendendo tudo de uma só vez, mas percebo que vocês estão em dificuldade. Precisam de auxílio?

— Sim, naturalmente — disse Grghaok com sua voz molhada. — O mais depressa possível. Odiamos os estrangeiros e...

— Então é necessário que eu saiba mais alguma coisa. É muito perigoso falarmos pelo telecom. É bom que eu chegue até vocês. Será que a gente pode penetrar na cidade, sem que os estrangeiros percebam?

— Não, pelo amor das santas águas — disse Grghaok assustado. — Impossível para quem não conhece as comportas clandestinas e, além disso, só com um barco muito pequeno.

— Sei. E vocês podem sair da cidade?

— Sim e não. Eu e talvez Lchox podemos. Mas Nrrhooch daria muito na vista a sua ausência nos trabalhos da plantação.

— Se vocês conseguirem encontrar-se comigo, ele não precisa mais se preocupar com os trabalhos na plantação. Depressa, diga-me um lugar onde eu possa encontrá-los com segurança.

Grghaok hesitou por uma fração de segundo.

— Em Pchchogh — disse um tanto excitado. — É uma velha cidade abandonada, onde apenas algumas casas ainda estão inteiras. Existem por lá algumas canáceas que nem mesmo os hchour querem mais.

O homem sem barba franziu a testa de uma hora para a outra.

— Canáceas? — repetiu ele — hchour... onde fica mesmo esta Pchchogh?

— Um décimo e meio de viagem daqui, já disse — respondeu o velho.

— Em que direção?

— Na direção do sol poente.

— E não há nada entre Bchacheeth e Pchchogh?

— Apenas umas duas ou três colinas de bem pouca altura.

— Está bem. Haveremos de estar em Pchchogh e aguardá-los.

— Sim, espere um pouco, quem são vocês?

O estrangeiro sem barba sorriu.

— Terranos — respondeu com firmeza.

Desligou depois seu aparelho e, no vidro fosco do receptor de Chchaath, não havia mais nada a não ser rabiscos e cintilações. Grghaok levantou-se solenemente, olhou triunfante para Lchox e para Nrrhooch.

— Vocês ouviram? São os terranos.

 

Thomea Untcher, por alguns instantes, ficou com os olhos presos na tela panorâmica que acabara de desligar. Depois, virando-se para Phil Lenzer que estava a seu lado, na poltrona do piloto, disse ainda mergulhado em seus pensamentos:

— Coincidência das coincidências! Que coisa misteriosa! Parece que estavam brincando com as freqüências e foram parar casualmente na nossa.

Lenzer não respondeu nada no momento. Estava prestando atenção na grande tela, que lhe fazia as vezes de janela, tentando penetrar na penumbra cinzenta, que invadia o mar a uma profundidade de quase dois mil metros. Phil Lenzer era o responsável pela vida e pela segurança de seis homens, sem contar com a sua própria, de seis homens que confiaram plenamente numa embarcação anfíbia e em sua competência, para chegarem até as profundezas do oceano. Tentariam caçar o inimigo oculto.

O veículo anfíbio voara da ilhota, onde estava a Finmark, na direção do poente até alcançar o sol, ou seja a face iluminada do planeta. E depois de ultrapassar a faixa divisória do gelo, imergiu no oceano. Já havia uma hora que o veículo anfíbio perseguia uma rota em linha reta, num ângulo de trinta graus em relação à superfície do mar.

— O que eu acho esquisito é que recebemos este apelo, somente no momento em que o rastreador não podia mais localizar nenhum destes minibarcos que nos perseguiam até então — disse Lenzer.

Thomea Untcher cocou a cabeça.

— Você tem razão, Phil. Eu também estaria inclinado a tomar tudo como uma cilada, se não tivesse visto as caras assustadas destes três rapazes, que surgiram na tela de repente. E mesmo que não tivesse visto... Não, Phil, eles estão mesmo em apuros. Não é uma cilada, não.

Phil continuava cético. Estava concentrado na tela panorâmica. A penumbra cinzenta não era absolutamente conseqüência da falta da luz do sol. Esta luz solar não chegava de maneira alguma às profundezas de dois mil metros. Não só Lenzer, como o próprio Untcher eram unânimes em explicar a parca luz difusa naquela profundidade, como conseqüência de peixes fosforescentes que fugiam ante a aproximação do veículo anfíbio, formando um grande círculo em torno do misto de avião com submarino.

Os homens atrás de Untcher e de Lenzer estavam calados. Além de um ou outro suspiro ou de algum bocejo ruidoso, provenientes mais da tensão nervosa do que da monotonia reinante, nenhum deles, com exceção do rastreador, tinha dito uma só palavra desde o momento em que imergiram no oceano.

Este mundo submarino não fora feito para eles. Estavam acostumados com a amplidão e a claridade do espaço e com a imensidão de terras áridas em outros mundos, mas não com os abismos do mar. Viagens submarinas a grandes profundidades faziam parte do programa de sua formação na Academia Espacial de Terrânia; mas esta parte do programa nunca tivera valor objetivo para eles, convencidos que estavam de que, daí para frente, só teriam sob os pés as placas plásticas das poderosas espaçonaves.

Desde a hora em que mergulharam, o rastreador percebeu pequenos objetos semimetálicos, que se moviam nas proximidades do veículo anfíbio. Moviam-se de tal forma que não podiam ser outra coisa a não ser veículos teleguiados. Com toda a energia concentrada no intercom, Thomea Untcher tentou entrar em contato com um ou outro, não recebendo, porém, resposta.

De repente, estes miniveículos desapareceram, como se alguém tivesse ordenado sua retirada. Isto foi pela profundidade de mil e quinhentos metros. Depois disso, o veículo anfíbio se deslocara mais quinhentos metros para frente e tudo voltara à calma... até que veio o singular diálogo com os três homens-peixe de nomes impronunciáveis.

Thomea Untcher virou-se para trás e perguntou:

— Rastreador, já tem algum resultado novo?

O homem sentado rente às paredes laterais da nave anfíbia, tendo à frente os complicados aparelhos, nem mexeu a cabeça ao responder:

— Num instante, Sir! O cálculo não está terminado.

Untcher olhou para a grande tela. A monotonia da penumbra cor de cinza o levou a soltar as rédeas de sua fantasia. Começou por repetir o diálogo mantido com os três homens-peixe de Bchacheeth. Phil Lenzer tinha razão. Qualquer um, em sua posição, haveria de considerar o apelo de auxílio como uma cilada, e das bem palpáveis. Teria por finalidade atrair os terranos para um certo local, onde o inimigo oculto pudesse concentrar com antecedência suas forças de ataque e assim, sem dificuldade, se ver livre do indesejável intruso.

Afinal de contas, ele mesmo, Thomea Untcher, usara há quinze minutos atrás o argumento de que os éfogos não possuíam nenhum tipo de telecomunicador. Como é que os três estavam se utilizando de um aparelho assim? Tinha que ser mesmo uma cilada, bem primitiva aliás.

E apesar de tudo...! Thomea Untcher mesmo não sabia o que o levava a confiar tanto naqueles três homens. Mas confiava. Sem nenhuma hesitação. Estava resolvido a ir para Pchchogh para encontrar-se com eles. Naturalmente, observando certas normas de segurança, inerentes a um homem de responsabilidade.

Foi então que o rastreador se apresentou:

— Treze quilômetros o vetor radial, Sir. Fi, cento e sessenta e oito e Teta, cento e três.

Thomea Untcher fez então o que costumava fazer sempre em tais situações, tal maneira de proceder tornava-se ridícula num comandante espacial do gabarito de um Untcher. Esticou as duas mãos no sentido indicado pelos dados do rastreamento, procurando assim traduzir concretamente os resultados da orientação.

— Baixo — disse ele — muito baixo. Qual é a profundidade da água abaixo de nós?

— Cerca de dois mil metros — respondeu Phil Lenzer. — Estamos, mais ou menos, no meio do oceano.

— Bem, você sabe a direção. Pchchogh, conforme os dados dos éfogos, está exatamente a oeste deste ponto. Não se aproxime demais da cidade. Receio que por lá estão nadando certas pessoas, que não nos são muito simpáticas. Não há perigo nenhum para nós, entrarmos em contato com os desconhecidos, antes de falarmos com os éfogos.

— Se é que chegaremos mesmo a falar com eles... — respondeu Lenzer.

 

Ao voltar, Aktar explicou que havia feito todos os preparativos possíveis.

— Fizemos o que foi possível — garantiu ele. — Infelizmente não somos tantos e não podemos contar muito com o pessoal de Chchaath.

Nathael concordou, com expressão de seriedade no rosto.

— Faz muito bem, meu amigo. Mas o que que há com a gente de Plougal?

Aktar franziu a testa.

— Você sabe como se comporta Plougal e sua gente. São apenas cientistas. Vivem e morrem só para a ciência. Não servem para o combate.

Sorriu um pouco.

— Realmente não poderia imaginá-los em combate. São tão bem dispostos que qualquer vento fraco pode atirá-los no chão.

Nathael não concordou:

— Não se engane! Já vi muitas vezes os homens de Plougal lutando. São adversários perigosos.

— Sim... quando conseguem empregar seus métodos traiçoeiros e outras coisinhas mais. Fora disso, não são de nada.

— Você não tem o direito de caçoar de seus métodos. Você mesmo se utilizou de um de “seus meios traiçoeiros”, para desativar a grande nave terrana.

— Naturalmente — disse Nathael impaciente — pois não me restava outro meio. E você viu então o que aconteceu. Fizemos com que os terranos ficassem cada vez mais prevenidos.

— Felizmente eles não são numerosos. Do contrário não teriam vindo só com um veículo anfíbio.

Fazendo um gesto afirmativo, Nathael levantou os braços, como se quisesse falar.

— Você tem razão — respondeu ele. — Apesar de tudo isto, o negócio não me agrada. Até que ponto podemos confiar, por exemplo, nos dados de Chchaath? Está assim tão certo de que os terranos vão atingir o fundo do mar, entre esta cidade e Bchacheeth. Podemos acreditar cegamente que vão manter a rota? Nossos instrumentos foram construídos somente para o espaço. Perceberemos o veículo dos terranos, somente quando estiver a pouco quilômetros de nós. E agora, eu lhes pergunto: estamos seguros ou não?

Aktar estava hesitante. — Somos apenas duzentos homens, a tripulação de uma nave. Poderemos controlar apenas um pequeno setor do fundo do mar. Por outro lado, temos uma flagrante superioridade numérica em relação aos terranos. A questão toda se resume em descobrirmos seu paradeiro. Se o conseguirmos, o resto é uma brincadeira. Nós os capturaremos, antes que...

— Não diria isto — interrompeu Nathael, sorrindo. — Já falei a vocês dos terranos. Eu daria graças aos deuses do espaço se os pegarmos. Agora falar que isto é uma brincadeira, não sei não.

— Está bem — respondeu Aktar. — Vamos de qualquer maneira...

Interrompeu sua frase, porque a porta se abriu. Era Echnatal que estava entrando, visivelmente excitado.

— Chchaath localizou o barco dos inimigos. Os instrumentos o registraram por uns segundos a noroeste daqui, até que sumiu novamente.

Nathael e Aktar estavam igualmente desconcertados.

— Noroeste... quer dizer então que alteraram sua rota?

Echnatal ergueu a mão para confirmar:

— Aparentemente.

— Em que direção se dirigem?

— Para o oeste.

Nathael apoiou o queixo com a mão esquerda e ficou pensativo, resmungando qualquer coisa ininteligível. Depois ergueu o rosto e fitou Aktar:

— Eu sei que vai parecer cômico. Mas por que estão indo para Pchchogh?

 

Kayne Stowes despertou de seus pensamentos, quando acendeu a luz do intercom.

— Atenção, Sir — disse uma voz forte — o sargento Loodey acaba de voltar a si e deseja falar com o senhor.

Kayne Stowes ficou perplexo.

— Para me dizer de novo as mesmas grosserias de antes? Faça-o saber que pode ir para os quintos dos infernos. Não falarei com ele a não ser que passe umas três semanas num bom hospício da Terra.

O homem da tela tentou ocultar um leve sorriso.

— Perdoe-me, Sir, mas Loodey está melhor. Disse que lamenta o que aconteceu. Faz questão de se desculpar com o senhor, embora não queira com isso abrandar seu relatório disciplinar ao Serviço de Pessoal da Frota Espacial.

— Relatório disciplinar... o quê? Não tive nem tempo de pensar nisso. Loodey tem uma ligação com o intercom em seu camarote, não é? Diga-lhe que ligue para mim.

O sentinela interrompeu a conversa. Stowes aguardava com grande curiosidade. Trinta segundos depois o intercom chamou. Quando Stowes atendeu, desta vez, viu o rosto largo de Ran Loodey. Parecia estar consciente de seu erro.

— Sir — começou Loodey. — Estou envergonhado de tudo que fiz. Não posso compreender como cheguei a...

— Esqueça isto, sargento — interrompeu-o Stowes — como se sente agora?

— Muito bem, obrigado, Sir. Quando recuperei os sentidos, o Dr. Dunyan estava perto de mim e, com alguns remédios, me pôs de pé. Estou rouco, como o senhor está notando e minha garganta dói um pouco. Fora disso, não sinto nada. Quis falar-lhe porque, devido à falta de técnicos e combatentes, o senhor pode precisar de mim e...

Fez uma pausa... como se não encontrasse a palavra certa, para descrever a situação da maioria da tripulação. Tinha tocado diretamente no assunto, sobre o qual Stowes refletia já há mais tempo. A Finmark encontrava-se com tripulação mais que desfalcada. Ele mesmo não se atrevera a dar uma garantia de que a nave estava em condições de resistir a um ataque maciço. E um ataque podia surgir a qualquer momento.

— Se você já está em condições, Loodey — respondeu Stowes sem hesitar — venha então para a sala de comando. Você me será muito útil. Aliás, onde está o Dr. Dunyan no momento? Está aí perto de você?

— Não, Sir — foi a resposta imediata de Loodey. — Saiu daqui há uns vinte minutos, disse que tinha coisa importante a resolver no laboratório.

Stowes olhou para o relógio. Se Dunyan Unha alguma coisa a fazer no laboratório, não devia tirá-lo de lá. Mais tarde perguntaria o que havia constatado em Ran Loodey.

— Então pode vir logo — disse ao sargento.

— Estou indo, Sir.

Stowes interrompeu a ligação, apertando um botão. Recostou-se na poltrona e começou a refletir:

“Agora que Loodey melhorou e está de volta, a situação da Finmark pode melhorar...”

Na outra extremidade da ligação, na cabina onde o haviam detido, Ran Loodey se aprontava para sair. Vestiu o uniforme que o Dr. Dunyan lhe tirara. Postou-se diante do espelho e tentou ajeitar os cabelos.

Contente consigo mesmo, já estava para bater na porta da cabina, a fim de que o guarda a abrisse, mas resolveu fazer qualquer coisa antes. Puxou a porta do armário da parede, onde há pouco se contemplara no espelho. Com cuidado, afastou as peças de roupa que cobriam o fundo do armário.

O que se viu então foi o corpo inerte do Dr. Dunyan. Loodey o examinou e achou muito bom o modo como o havia amarrado e amordaçado.

 

Nrrhooch esgueirou-se através da penumbra. Não estava vendo o sentinela, mas ouvia seus passos no cimento. Sabia que estaria perdido, caso o guarda não se virasse e se afastasse no mesmo instante, mas sabia também que era loucura esperar por uma coisa desta.

Os éfogos, que se baldeavam para o lado dos estrangeiros, eram piores que os próprios estrangeiros. Mostravam-se maus para com seus irmãos de raça, e, nos últimos tempos, era muito difícil acontecer que um deles se descuidasse de seus deveres. Nrrhooch estava tremendo, embora sentisse calor e as escamas estivessem recobertas de suor. O esconderijo não o abrigava muito bem.

Se o sentinela tivesse chegado só um décimo de milésimo mais tarde, já teria desaparecido há tempo na comporta menor e ninguém mais o pegaria.

Censurava a si mesmo por ter sido tão bobo, a ponto de ter aceito os planos de Grghaok e de Lchox. Mas agora, era impossível voltar atrás. Lá estava o sentinela. A última lâmpada da rua fazia-lhe a sombra crescer grotescamente no chão. Haveria de pegar Nrrhooch, prendê-lo e os estrangeiros o obrigariam a trabalhar o dia inteiro nas plantações

Soltou, de repente, todo o ar acumulado no pulmão, produzindo um chiado forte pela boca, a fim de executar seu plano e se entregar voluntariamente ao guarda, antes que este tivesse a idéia de puxar a poderosa arma para matá-lo.

Mas a ação tomou um rumo bem diferente.

O sentinela ouviu o forte chiado, mas devido ao eco, não sabia de onde vinha.

Confuso, ficou olhando para todos os lados. De repente virou-se e passou a observar a rua deserta.

Nrrhooch o podia ver agora. Notou que lhe virará as costas. Por um instante ficou petrificado, esquecido do que planejara antes. Mas, então, compreendeu a chance que se lhe oferecia.

Com a força e a agilidade que conquistara no árduo trabalho do campo da plantação, saltou do esconderijo e, com um salto elástico atravessou a calçada e foi parar nos ombros do sentinela. Agiu movido pelo instinto e não houve raciocínio. Com força imensa, comprimiu a palma da mão direita contra a nuca do traidor, enquanto com o braço esquerdo o pegava por debaixo do braço, puxando-o contra si, de modo que o guarda estava impossibilitado de mover-se.

O sentinela foi preso tão de surpresa, que não pôde esboçar a menor reação. O pobre do guarda soltou apenas um longo gemido, não agüentando o peso de Nrrhooch. Enquanto isto, com a mão direita tentava estrangular o tubo de respiração, um órgão esquisito que os éfogos possuíam nas costas. Tal órgão ajudava-os a respirar, quando submersos. Este tubo de respiração era o ponto mais sensível dos éfogos e Nrrhooch sabia o que estava fazendo, no momento em que pulou nos ombros do guarda.

A estranha luta não durou muito. O sentinela perdeu logo os sentidos e caiu inerte na calçada. O éfogo idealista o deixou, sem lhe fazer mal maior, apenas o puxando para o esconderijo onde o próprio Nrrhooch estivera antes. Perplexo, ofegante, contemplou por uns segundos o pobre guarda e compreendeu o que havia feito por instinto. Dominara à força física um sentinela de serviço. Quando os estrangeiros soubessem disso, haveriam de prendê-lo e matá-lo.

Mas não teve medo. A alegria de seu sucesso foi grande demais. Tinha agora uma nova arma, poderosa, como só os estrangeiros e traidores a possuíam. E Grghaok e Lchox não precisavam mais esperar no esconderijo, até que o ar estivesse limpo, mas podiam vir imediatamente com ele, para se dirigirem a Pchchogh, onde se encontrariam com os outros amigos que lhes prometeram auxílio. Grghaok tinha uma boa impressão destes homens, só porque eram terranos.

Ainda fascinado por sua façanha, Nrrhooch abriu a portinhola da comporta. Olhou em volta e puxou para dentro o guarda inconsciente.

É claro que acabariam achando o sentinela, na hora do revezamento. Iriam procurar primeiro no seu local de trabalho, na pequena e deserta rua. Depois, não o encontrando, iriam dar uma olhada na comporta e achá-lo, caso ele não voltasse a si antes disso. Haveriam então de pôr toda a cidade em polvorosa acabando por descobrir que Grghaok, Lchox e Nrrhooch, durante o período reservado ao descanso noturno, tinham desaparecido da cidade. Portanto, seriam os culpados. Logo seriam perseguidos. Mas até lá, já estariam a caminho de Pchchogh e ninguém conhecia os abismos e cavernas ocultas do fundo do mar tão bem como o velho Grghaok.

Nrrhooch fez questão de constatar que a arma tomada do sentinela estava de fato na sua cintura e saiu correndo pela rua. Depois de ter corrido umas duas quadras, percebeu que haveria de dar muito na vista andar daquele jeito e moderou os passos, como um homem cansado que vai dormir.

Lchox morava um pouco acima da comporta, portanto bem perto. Mas para Nrrhooch, aquela distância parecia muito grande. Mal bateu a porta atrás de si, gritou nervoso:

— Venham depressa, deixei o guarda inconsciente. Temos agora uma arma e a comporta está livre.

Do fundo da casa se ouviram passos apressados. Abriu-se a porta e os dois anciãos surgiram.

— O que você andou fazendo? — perguntou Grghaok ofegante.

— Dominei um guarda e o deixei sem sentidos.

— Dominou um guarda? — repetiu Lchox atônito.

— Deixem de perguntas, por enquanto. O caminho está livre, mas não por muito tempo. Já estão prontos? Vamos embora.

Saíram. A rua ainda estava vazia. A iluminação fraca da longa noite espalhava uma luz amarelada e toda a cidade parecia dormir. Nrrhooch olhou rapidamente para a fila de janelas ovais que corria ao longo da viela. Todas as residências estavam de luz apagada, mas isto não queria dizer que um curioso qualquer não estivesse postado atrás de uma janela. Isto, porém, não preocupava muito Nrrhooch, pois os habitantes de Bchacheeth tinham todos o mesmo ódio contra os estrangeiros. Se houvesse alguém que não pensasse assim, já estaria trabalhando para eles. Portanto, se alguém, através das janelas apagadas os estivesse vendo não haveria de denunciá-los às autoridades estrangeiras.

— Venha, Nrrhooch, não perca tempo.

Mesmo os dois velhos desciam a rua a passos rápidos, rumo ao portão da pequena comporta que, desde a chegada dos estrangeiros a Bchacheeth, não estava sendo usada.

Nrrhooch abriu-o e logo verificou que o guarda inconsciente ainda estava no mesmo local. Depois que os velhos entraram, ainda olhou para a viela, antes de fechar o portão. Continuava sem nenhum sinal de vida. Desapareceram então todos no interior escuro da comporta.

— Grghaok, você tem certeza de que achará ainda seu velho barco?

— Claro que sim — respondeu o velho. — É verdade que já faz muito tempo que o escondi lá atrás. Mas não me esqueci do lugar, não. Um barco ninguém esquece...

— Então vamos embora. O tempo é pouco e passa depressa.

Na comporta havia um único cais. Lchox desceu depressa a escada escorregadia, acionando o dispositivo que controlava a abertura do portão. Nrrhooch ouviu o marulhar e tomou uma posição quase de sentido. Desde criança conhecia a estranha sensação de presenciar a abertura de uma comporta. O ar ficava mais pesado; tão pesado que mal se podia fazer um movimento. Os ouvidos começariam a zumbir e, por um certo tempo, não se ouviria outra coisa, a não ser o zumbido. O tubo de respiração, órgão característico dos homens-peixe, haveria de doer por uns instantes, até se adaptar às novas condições. Uma sensação de cansaço o invadiria. Depois diminuiria paulatinamente — sinal de que seu corpo já estava preparado para entrar na água e mover-se com mais agilidade do que um hchour, o terrível peixe selvagem daqueles mares.

Através do ruído das águas, ouviu-se a voz de Lchox:

— Vamos, o reservatório está cheio.

Nrrhooch se moveu, a princípio um tanto pesadamente, mas cada vez mais firme. Seu tubo de ar deixou de doer e cessou também o zumbido nos ouvidos. Estava quase preparado para nadar.

A água estava com uma claridade fraca e opaca, diminuindo assim a escuridão da comporta. Nrrhooch sabia desde criança, como todo éfogo, aliás, que a água do mar tinha brilho próprio e nunca estranhara isto. Tinha, porém, ouvido dizer que os estrangeiros não compreendiam isto e afirmavam que as águas eram habitadas por animais minúsculos, produtores desta claridade.

Cauteloso Nrrhooch desceu os degraus, sentindo prazer em penetrar na água até os joelhos. Depois deu um mergulho e afundou. Tentava assim experimentar o tubo de respiração. Quando emergiu de novo, estava ao lado de Grghaok e de Lchox. Começaram a nadar. Comprido e estreito, o cais dos barcos se estendia abaixo dos paredões da comporta. Chegou o lugar mais fundo do cais e Nrrhooch, mergulhando totalmente desenvolveu toda sua agilidade de moço. Ouviu, porém, o apelo de Grghaok:

— Mais devagar, meu jovem! Permita que nós o acompanhemos.

E sua voz tinha o som típico de quem fala dentro d’água.

Em pouco tempo chegaram ao fundo do cais. A grande comporta estava aberta, atravessaram-na nadando e já estavam agora no mundo maravilhoso, quase que lendário, do fundo do mar.

Por um triz que um lkhregh não dá de encontro com Nrrhooch. O peixe, lindo e elegante, que devia estar descansando no fundo do cais, ao ver os três homens se assustara, e não tivera mais espaço para fazer uma curva maior. Numa graciosa manobra, afastou-se e, de longe, se virou para olhar mais uma vez os invasores de seu habitai. Nrrhooch riu e o esbelto peixe continuou seu caminho.

Grghaok tomou a dianteira. Passou agilmente por cima de uma pequena elevação e mergulhou de novo no fundo do vale, nadando bem no fundo. Um dos lados do vale era bem íngreme. Nrrhooch começou então a pensar que o velho Grghaok guardara o barco em uma caverna por ali. Apreensivo, procurou por sua arma. Estava no lugar de sempre. Mas Nrrhooch se lembrou então que aquela arma dos estrangeiros certamente não funcionaria debaixo d’água. Os estrangeiros não viviam dentro d’água como eles. Queria alertar Grghaok do perigo de haver, naquelas cavernas escuras da colina, insidiosos e terríveis chchrorl e mesmo os hchour, que eram realmente perigosos. Porém, neste momento, Grghaok dobrou para o lado e, depois de uma saliência no paredão, notou um vão largo e escuro do lado direito.

Seguindo seus velhos costumes, Grghaok se deteve na entrada da caverna, soltando uns gritos e roncos atroadores, para assustar os animais que, por acaso, poderiam estar lá dentro e mandá-los para fora. Mas o que apareceu mesmo foi uma meia dúzia de nchchrachl, uma espécie de peixe-espada, de brilho prateado nas escamas.

A caverna era bem profunda e lá no fundo estava o velho barco de Grghaok. Ele abriu a escotilha e mandou Lchox entrar.

— Depressa — murmurou — meu ar está acabando!

Lchox fechou a escotilha atrás de si. Agora, pelo borbulhar da água e pela lama que se levantava, notava-se que a escotilha estava sendo aberta por Lchox, sem perda de tempo.

Quando a escotilha se reabriu, Lchox já tinha desaparecido. Agora era a vez de Grghaok. Nrrhooch lhe disse que não se afobasse, pois sua reserva de ar dava para mais tempo.

O último a entrar foi Nrrhooch. Depois de esvaziar o espaço diante da escotilha, botou na boca o tubo de ar e soprou o resto de ar, que não lhe ia mais servir. Só depois é que penetrou no interior do barco. Os dois velhos lhe tinham reservado o lugar do piloto. Sentou-se e deu partida no motor. Agiu com muita cautela para retirar o barco da caverna e pediu que Grghaok lhe fosse indicando o caminho.

— O melhor é mantermos sempre a direita — disse o velho.

— Mas então passaremos muito perto das plantações — ponderou Lchox.

— Isto não tem importância. O setor oeste das plantações ainda não está maduro para a colheita. Lá, no meio dos ramos de psimo estamos mais seguros do que em qualquer outro lugar. Os estrangeiros só irão para lá, quando chegar o tempo da colheita.

O barco deixou o vale e tomou mais uma vez a direção do lado direito. Nrrhooch imprimia toda força no motor. Tinha pressa de chegar a Pchchogh e ver de novo os estrangeiros amigos.

— Quem são propriamente estes terranos? Você já ouviu alguma coisa sobre eles, Grghaok?

— Claro — disse o velho. — Falei com Pthal a respeito deles. O espaço inteiro está cheio de histórias sobre eles. Ah! Deuses do espaço, que pena que Pthal tenha desaparecido tão depressa. Era um bom...

— Você ia me contar alguma coisa sobre os terranos — lembrou-lhe Nrrhooch.

— Ah! É verdade! Os terranos, ainda há pouco tempo, eram um povo pequeno e de nenhuma importância, morando lá longe num mundo desconhecido. Mas começaram a construir espaçonaves que lhes permitiam penetrar pelo espaço afora e, em pouco tempo, todo o universo começou a tecer-lhes comentários respeitosos. Penetraram no grande Império dos arcônidas e dominaram a situação por lá. Os arcônidas quiseram expulsá-los ou destruí-los, mas não o conseguiram. São uma raça de lutadores e, já por muitas vezes, vieram em socorro de povos oprimidos. Estou certo de que nos vão ajudar.

— Os deuses o ouçam — disse Nrrhooch cético. — Se eles não nos ajudarem, estamos perdidos, principalmente nós três. Não podemos mais voltar para Bchacheeth o mesmo em qualquer outro lugar seremos presos.

— Podemos ficar em Pchchogh — disse Lchox. — Algumas casas ainda estão inteiras.

— Em Pchchogh! — disse Grghaok temeroso. — Jamais iria a Pchchogh, caso não soubesse que os estrangeiros lá estão à nossa espera.

— Por que não? Por causa dos phchauchol?

— Naturalmente que é por causa dos phchauchol. Não acredita neles? São invisíveis enquanto andam em volta da gente e só os sentimos depois, quando já estão agarrados na gente, sugando nosso sangue. Claro que é por causa dos phchauchol. Acha que haveria outro motivo para os próprios habitantes abandonarem uma cidade tão agradável?

— Não sei, não. Só acreditarei num phchauchol, quando o vir de fato diante de mim.

— Então será tarde demais — continuou Grghaok com convicção. — Já estará grudado nas suas costas, sugando seu sangue.

— Ou o seu — caçoou Lchox. — Quando estiver grudado em suas costas, eu também o verei.

Nrrhooch interrompeu os dois:

— Não percam tempo com discussão boba. Aí estão as plantações diante de nós, vamos passar através delas. É melhor assim. Aqui está a extremidade oeste, onde ninguém nos verá.

Os dois velhos inclinaram-se para frente e através da clarabóia de plástico transparente olhavam para fora. Poucos metros na frente do barco, ainda bem visível apesar da penumbra, começava a floresta de psimo. Eram plantas exóticas, nem árvores nem arbustos, de um vermelho-claro, que subiam do chão, com seus inúmeros galhos e hastes, porém sem folhagem e tão altas que do barco não se via sua extremidade superior. Nas pontas dos galhos e hastes crescia uma pequena touceira de fios amarelados e longos, que se balançavam preguiçosamente na água. Um dia, resplandeceriam com todas as cores e encheriam as profundidades do mar com sua luz mágica. Seria então o tempo da colheita. Estes fios dourados das extremidades seriam colhidos e armazenados em grandes recipientes à margem da plantação, e de lá, os estrangeiros os levariam para qualquer lugar.

Até então, os éfogos não haviam se interessado pela floresta de psimo, a não ser para se deliciarem com a exuberância de suas cores na época da maturação. Não sabiam o que os estrangeiros faziam com estas plantas esquisitas. Sabiam apenas que os invasores estavam em Opghan somente por causa desta planta, que sua flor era a origem da escravização do povo.

Nrrhooch aproveitou a primeira abertura no emaranhado das plantas e penetrou com o barco. Manobrava com muito cuidado entre as hastes. Seria de todo desaconselhável ir de encontro a um tronco de psimo. Eram extremamente duros e um choque mais ou menos forte podia abalar perigosamente a estrutura do barco.

Os velhos olhavam curiosos para as plantas avermelhadas, procurando descobrir por que exatamente estas plantas eram a causa de tanta desgraça para Opghan. Nrrhooch, porém, não pensava em nada disso, atento que estava na pilotagem do barco. Aliás, não precisava mesmo ficar olhando para estas plantas, pois as via durante todo seu árduo trabalho de escravo. Refletia nestas plantas o mesmo grande ódio que tinha contra os estrangeiros, pois, se não existissem estas plantas de psimo, os estrangeiros não estariam em sua terra.

De uma hora para a outra, os arbustos começaram a rarear, formando uma grande clareira no meio da floresta. Nrrhooch olhava para frente, procurando no outro lado uma abertura para prosseguirem a viagem. Mas antes de conseguir localizar uma passagem adequada, uma das grandes árvores à sua esquerda deu um estalo e caiu lentamente, produzindo um remoinho de lama.

Nrrhooch quedou estarrecido. Que monstro seria este, capaz de derrubar um pé de psimo?

Perplexo, ficou com os olhos presos no remoinho da lama do fundo da água, esperando surgir de repente um monstruoso hchour ou outro peixe ainda mais monstruoso.

Mas não surgiu nenhum monstro. O que Nrrhooch viu, foi tão somente uma ponta metálica esguia, de muito brilho, que rapidamente tomou a forma de um grande barco.

O sangue lhe gelou nas veias. Tais embarcações, os éfogos não possuíam.

Era um barco dos estrangeiros!

 

Kayne Stowes aguardava a chegada de Ran Loodey com grande ansiedade. Mas quando o sargento penetrou na sala de comando, foi uma surpresa decepcionante e horrível, totalmente ao contrário do que esperava.

E a desgraça de Stowes foi que estava sozinho no posto de comando. Loodey estava com a pistola térmica, que havia tirado do Dr. Dunyan, engatilhada na mão direita, não deixando a menor chance para o piloto. Desarmou o primeiro-oficial e, com uma coronhada, o deixou sem sentidos.

Rápido e com determinação, começou seu trabalho. Do posto de comando, destravou a escotilha central do salão dos oficiais e ficou observando no intercom, cheio de satisfação, como a leva dos trancafiados, que aos poucos recuperava os sentidos, se abatia sobre os poucos guardas, desarmando-os e os trancafiando.

O resto foi muito fácil. Todos os postos na nave estavam ocupados apenas por um homem. Havia quatro deles, três nos importantes ninhos de artilharia. Ran Loodey deus as primeiras instruções aos homens recém-liberados, através do intercom, muito alegre por saber que estava com o comando absoluto da Finmark em mãos.

Não confiou a ninguém o que pretendia. Supunha, naturalmente, que todos já soubessem, pois estava convencido de que pensavam como ele. Mandou-os para seus postos, recomendando-lhes que ficassem atentos. Após algumas horas de plena calma, parecia que tudo na Finmark havia voltado ao ponto de partida, isto é, o momento da aterrissagem. A nave estava em estado de alarme total... só que o inimigo agora era outro.

Ran Loodey dava mostras de que o comando da Finmark não iria mais escapar-lhe das mãos, embora entre seus comandados, houvesse dois tenentes e cinco membros do Corpo de Mutantes, também oficiais. Ninguém fez objeção quanto a isto. Loodey deu ordem para que dois mutantes e um tenente viessem ter com ele no posto de comando. E, enquanto estes homens estavam a caminho, enviou para a Terra o radiograma mais memorável de toda história da Galáxia. O rádio tinha o seguinte teor:

 

Finmark em Opghan. Em Opghan tudo tranqüilo. Nenhum sinal de rebelião. Os éfogos felizes. Tudo em paz. Não podem compreender a razão do estado de sítio decretado por Árcon. Quem sabe se trata de um rádio extraviado? Voltaremos daqui a cinco dias, para novas observações. Fim.

 

Ouvia-se nitidamente a voz de Thomea Untcher nos mini-receptores do capacete de sua gente.

— Estou aqui — explicava Untcher em seu tom filosófico — eu, velha raposa do espaço, depois de ter viajado milhares de anos-luz pelas Galáxias, tenho de confessar que nunca vi coisa tão sensacional como esta cidade.

O baixote Thomea Untcher, apesar de metido dentro de um uniforme espacial à prova de pressão, não melhorava em nada sua aparência franzina. E lá estava ele, no meio das ruínas de uma cidade já há muito abandonada, de pé na calçada de uma velha rua, por entre cujas fendas penetravam as grotescas plantas-animais das profundezas do mar. A sonolenta luz amarela de uma lanterna, que há muitos séculos ninguém mais esperava encontrar e apesar de tudo continuava sendo útil, iluminava o local.

Era um quadro para inspirar a fantasia de um pintor surrealista. Não era necessário o recurso aos peixes coloridos e fosforescentes, que assustados, descreviam grandes voltas em torno de Untcher, para dar o toque de irrealidade. Muros e paredes destruídos dos dois lados da rua. Através das aberturas ovais das janelas, o olhar penetrava na penumbra cinzenta do interior das casas. Às vezes surgiam os contornos indecisos de objetos estranhos, recobertos de musgo, talvez restos de móveis antigos.

A fila de lâmpadas continuava ao longo da rua. Os intervalos entre os postes eram grandes, como se antigamente os éfogos não precisassem de muita luz. Nenhuma delas, porém, estava queimada.

“É inexplicável!”, pensou o comandante admirado.

Untcher caminhou bem para frente. Lembrou-se de que os éfogos lhe haviam dito que, no meio das ruínas, havia moradias ainda inteiras e ele se perguntava como seria isto possível no meio de tanta destruição provocada pelos séculos. À boa altura, usando agora a lanterna de seu capacete, viu as ruínas do terraço da cidade, que protegia os éfogos contra a terrível pressão da coluna de água. As bordas do terraço estavam “cortadas”, dando a impressão de que esta camada protetora da cidade tinha sido parcialmente destruída à força.

Por um daqueles buracos no teto, o veículo anfíbio penetrara na casa. Thomea Untcher não se dera ao trabalho de procurar uma comporta, com seu funcionamento complicado e seu mecanismo de abertura tão pesado, quando havia meios mais simples. Parou diante da janela oval, completamente escura, olhando para a residência abandonada e cheia d’água. Procurou se livrar da angústia que se abatera sobre ele, desde o momento em que deixara o barco anfíbio e saíra sozinho. Não sabia explicar aquele sentimento. Talvez fosse a visão tétrica daquela cidade, ou mesmo um medo inconsciente de monstros marinhos, naquela profundeza.

Não sabia mesmo a causa de seu abatimento moral. O fato é que não conseguia livrar-se do medo.

De repente, assustadas pela súbita luz do farolete, duas ou três enguias, com seu corpo serpentiforme, se atiraram para fora da janela, passando rente ao seu rosto. Untcher quase desmaiou de pavor.

Depois, envergonhado, percebeu que havia feito papel de bobo, enquanto seu coração ainda batia muito forte. Mas, mesmo com esta confissão, sua situação não melhorava. A cada movimento que fazia, vinha-lhe a impressão de que teria de enfrentar um novo e inesperado adversário.

Apesar de tudo, continuou seu caminho. Achou, sem esperar, um lugar de onde saía uma viela, que dobrava para a direita, isto naturalmente lhe provocou a curiosidade. Não tinha mais de dois metros da largura e terminava quase ali mesmo. Mas a parede que a interrompia, indo de uma casa próxima até o outro lado, parecia muito estranha e não combinava com a construção em volta, dando impressão de ser bem mais recente do que as velhas e amareladas paredes dos éfogos.

Cauteloso, Thomea Untcher foi seguindo a ruela, enquanto a iluminação das ruas ficava mais para trás. Teve de usar o farolete do capacete com sua luz mais forte. Então descobriu um grande número de fendas regulares que percorriam a estranha parede formando um retângulo de dois metros e meio de altura por um de largura.

Mas uma coisa chamou a atenção de Untcher: o chão da ruazinha estava livre de qualquer planta marinha. Enquanto nas outras ruas, as plantas cresciam por toda parte, chegando mesmo a trincar e esfacelar a pedra com o correr dos séculos, aqui o piso da ruela estava liso e muito bem conservado.

Com as grossas luvas, à prova de pressão, Untcher apalpou a parede misteriosa. Desta vez, não se espantou tanto, quando o trecho retangular, formado pelas fendas, fez de repente um movimento de recuo, deixando livre uma espécie de entrada. Houve apenas uma pequena correnteza, quase imperceptível. Isto significava que o cômodo atrás daquela entrada ou estava cheio de água ou tornou-se cheio na hora em que Untcher, sem querer, tocou no mecanismo invisível.

Untcher se pôs em contato com o barco anfíbio:

— Encontrei uma espécie de comporta. Acho que não é sensato andar sozinho por aqui. Estou precisando de alguns de vocês que queiram repartir o medo comigo.

Thomea Untcher era um dos poucos comandantes espaciais que podiam tomar a liberdade de falar abertamente de seu medo, sem perder o respeito de que gozava. Sabiam que ele devia estar sujeito ao medo, mas sabiam também que teria condições de enfrentar qualquer situação, realizando verdadeiras proezas, se necessário fosse.

Untcher se aproximou da pequena abertura, na esperança de bloquear o mecanismo de esvaziamento. Mas esperou até a chegada de seus companheiros. Colocou a cabeça de tal modo que o farolete do capacete penetrasse no aposento escuro, vendo então que o cômodo tinha uns nove metros quadrados, com uma altura de três metros. Na parede fronteiriça havia também um retângulo de fendas, o que fez com que Thomea Untcher chegasse à conclusão de que se tratava mesmo de uma comporta.

O compartimento da eclusa estava vazio e Untcher não pôde localizar o mecanismo que conseguia neutralizar a fantástica pressão da água, no fundo do oceano, a mais de quatro mil metros de profundidade. As paredes eram lisas e não lhe deixavam perceber nada.

Na esquina da ruela, já definiam-se os vultos dos homens que Untcher havia chamado. Envolvidos pelo halo de suas lanternas de capacete, pareciam verdadeiros fantasmas dentro d’água; os corpos muito inclinados para frente, numa posição em que, em condições normais, já teriam caído no chão. Assim é que eles tinham que caminhar para poder vencer a terrível pressão da água. Untcher os esperava ansioso. Eram três homens e juntos entrariam na câmara da eclusa. Era importante que assim fosse, pois não sabiam o que os esperava do outro lado da comporta.

— Não preciso dizer a vocês que devem permanecer com as armas engatilhadas — disse Untcher, depois que todos penetraram na câmara da eclusa. — Atrás desta porta, é a terra de ninguém e pode ser que quem for mais rápido no tiro, tenha mais chance.

Depois deixou o lugar que ocupava sob a entrada e, como havia previsto, na mesma hora a comporta se fechou. O trecho da parede, que havia deslizado para o lado, movimentou-se, indo de encontro à abertura, fechando-a hermeticamente.

Thomea Untcher estava quebrando a cabeça para compreender como os éfogos chegaram a construir uma tecnologia tão avançada. Observara nas residências dos éfogos que para o fechamento das portas de suas casas, havia uma barra de ferro que puxavam para o lado, empurrando depois a porta para dentro. Portanto, na tecnologia dos homens-peixe, não havia possibilidade de fechos automáticos nas comportas.

Curioso e tenso ao mesmo tempo, aguardava o que estava para vir. Seu olhar estava em movimento contínuo, a fim de não perder o momento em que as águas começariam a fluir, sob a pressão das bombas invisíveis.

Quando notou o que estava de fato acontecendo, teve momentaneamente aceleradas as batidas do coração. Percebeu que uma parte da câmara ficou de repente vazia, sem que tivesse havido o menor movimento na massa líquida. Pensou a princípio que se tratava de um erro óptico, devido à pouca visibilidade. Mas o “fenômeno” continuou e, quando a outra parte da câmara também se esvaziou, sem que ninguém pudesse dizer para onde ia toda aquela água, tornou-se impossível negar a existência de alguma coisa terrivelmente misteriosa...

Podia-se ver como a água corria para a direita, para o portão de fora. Via-se a coluna de água que se levantava do chão, chegando até o teto da comporta, zombando de todas as leis da natureza. Esta coluna d’água se movia e era o único movimento que se podia ver. Movia-se para dentro da comporta, como se deslizasse sobre rodas e como se houvesse alguém encarregado de tocá-la para frente — este alguém naturalmente seria invisível! Sendo que em tudo isto não se ouvia o menor ruído. Tudo se fazia num silêncio tétrico, deixando Untcher e seus três comandados apavorados e boquiabertos.

Untcher ainda estava imóvel, estarrecido, quando a última gota já havia desaparecido da comporta. Mecanicamente, sem estar consciente do que fazia, levantou o braço esquerdo e consultou os instrumentos de medição que lhe estavam no local do relógio de pulso. O manômetro indicava uma pressão de uma atmosfera e meia. A comporta estava cheia de um gás e a uma pressão facilmente suportáveis para os terranos.

Thomea Untcher notou como seus pensamentos se tornavam cada vez mais independentes, e como, sob o impacto de coisas nunca vistas, também lhe escapava o controle do raciocínio frio e objetivo. Teve de repente uma idéia a qual lhe podia servir de chave para explicar os fenômenos presenciados.

Lembrou-se dos resultados da moderna teoria de campo, um ramo das ciências naturais, que muito tinha ajudado no descobrimento dos transmissores ferrônios de matéria. Não lhe parecia agora impossível que a água pudesse ser tocada para fora da comporta por intermédio de um campo transportador, como também a introdução de gás, pela mesma via. E quanto mais pensava a respeito, enquanto seus comandados pareciam petrificados, tanto mais lhe parecia ser esta a única explicação possível. Suas conseqüências, porém, não lhe agradavam muito.

Um campo de transporte era uma coisa, para cuja produção seria necessário conhecimento profundo da teoria energética pentadimensional.

Não havia dúvida de que os habitantes de Opghan podiam ser criaturas adoráveis, com dotes esquisitos, às vezes mesmo admiráveis. Mas, da teoria energética penta-dimensional, certamente não entendiam nada.

Aquela comporta fora construída pelos estrangeiros, cuja tecnologia era, pelo menos, equivalente à dos terranos.

Olhando para cima, Thomea Untcher constatou que a comporta interna se movia lentamente. Ainda não conseguia ver o que havia lá fora. Sacou a arma porque estava convencido de que nos próximos minutos tinha que resolver muita coisa séria.

 

Nrrhooch sentia-se tão horrorizado, que no momento não pôde mover-se. O pequeno e velho barco estava no meio da rota do grande barco dos estrangeiros e, além disso, este último se movia tão rápido que por mais imediata que fosse a reação de Nrrhooch, não havia nenhuma possibilidade de se evitar o choque.

Mas aconteceu um quase milagre. Quando o barco dos estrangeiros surgiu à tona, rompendo a nuvem de lama, provocada pela queda do tronco de psimo, a proa pontiaguda irrompeu vertical, como se estivesse apenas esperando por esta abertura para escapar do emaranhado vermelho da floresta.

A quilha do barco dos estrangeiros passou raspando no pequeno bote dos homens-peixe. Nrrhooch até julgou ter ouvido o ruído leve do raspão.

Estupefato, ele viu como o veículo de proa pontiaguda deu uma guinada para o alto até desaparecer totalmente na penumbra leitosa das águas profundas. Nrrhooch não acreditou no que seus olhos viram. Os estrangeiros estiveram tão perto que poderia tocar no moderno barco. O mais esquisito é que foram eles mesmos que proibiram os éfogos de se utilizarem de qualquer tipo de embarcação. Se os tivessem visto, os teriam detido e apreendido o velho barco de Grghaok.

Certamente nem chegaram a ver a pequena embarcação dos éfogos e continuaram sua viagem.

Nrrhooch olhou para os dois velhos e soltou um grito de alegria. Era visível a felicidade estampada no semblante de Grghaok.

— Para frente! — ordenou Nrrhooch. — Não podemos parar, o mar está sendo nosso amigo. Em pouco tempo estaremos em Pchchogh e nos encontraremos com os terranos.

 

Ran Loodey não tinha nada contra o fato de os estrangeiros quererem vir a bordo da Finmark. Eram de boa estatura, musculosos e espadaúdos; seis ao todo e, desde o começo, se comportaram de tal modo como se a nave lhes pertencesse. Ran Loodey parecia estar de acordo. Tinha pessoalmente a opinião de que os invasores barbudos eram os legítimos donos da Finmark e... estava tudo muito bem. Indiferente, nem quis saber quem eram aqueles estrangeiros, de onde vinham e o que pretendiam. Sentia-se até mais aliviado porque o comando da espaçonave havia passado às mãos dos invasores. Parece que todos os amigos do sargento pensavam do mesmo modo.

Nesta pronunciada apatia, ninguém reparou que os estrangeiros traziam pequenos cilindros metálicos, e os escondiam cuidadosamente por todos os cantos da Finmark, de tal maneira que não seriam encontrados facilmente. Porém, mesmo que Ran Loodey tivesse notado qualquer coisa, não ia fazer nenhuma objeção e concordaria com tudo.

Finalmente, um dos corpulentos estrangeiros penetrou na sala de comando e ordenou a Loodey que preparasse a espaçonave para partir imediatamente.

— Vocês retornarão imediatamente à Terra, pelo caminho mais curto — ordenou o gigante barbudo.

 

O único que não estava satisfeito com sua situação era o Dr. Teodoro Dunyan.

Quando voltou a si, sentiu uma coisa fibrosa na boca, não conseguindo nem mover a língua. A cabeça lhe doía tremendamente por deficiência de respiração. Também não enxergava nada, pois em cima dele havia uma série de cobertores, roupas e coisas semelhantes que o isolavam do ambiente externo. Não podia nem mover os braços. O malandro do Loodey o havia amordaçado e amarrado com técnica de mestre.

Por falar em Ran Loodey... O Dr. Ted Dunyan descobrira finalmente a causa da estranha alteração no comportamento de Loodey e de alguns membros da tripulação. O resultado das pesquisas foi tão surpreendente e ao mesmo tempo incrível, que Dunyan a princípio julgou ter sido vítima de algum erro, e tal dúvida obrigou-o a repetir os exames.

Com a confirmação do primeiro resultado, Dunyan teve um grande choque emocional, ao perceber que havia descoberto uma coisa importantíssima para a Humanidade.

Loodey tinha voltado a si e agia com a naturalidade de quem é dono de todas as suas faculdades. Disse com toda autenticidade que lamentava tudo que fizera contra a disciplina e não queria outra coisa, a não ser dirigir-se diretamente ao comandante, para desculpar-se.

Dunyan tinha previsto esta fase no processo do misterioso mal. E o fato de ela ter se concretizado era mais uma prova da veracidade de suas descobertas. Fez tudo que pôde para que Loodey não percebesse que estava sendo observado e que ele, Dunyan, sabia do estado semi-hipnótico que perdurava em Loodey.

Mas, de alguma maneira Dunyan se traíra, ou então Loodey chegara à conclusão de que um adversário a menos era sempre melhor. O fato foi que, quando o médico estava ocupado com seus instrumentos, Loodey saltou de repente contra ele. O Dr. Dunyan ainda guardou a expressão fria do rosto de Loodey. E a partir deste momento, o médico não sabia de mais nada. Quando voltou a si, sentia uma enorme falta de ar e percebeu que estava amarrado e amordaçado.

Ted Dunyan era acima de tudo cientista. Ainda rapaz, com vinte e poucos anos, entrara para a Frota Solar por estar convencido de que nas viagens pelos confins das Galáxias teria oportunidade de ampliar seus conhecimentos.

Agora, somente a preocupação com sua vida não lhe teria dado forças para escapar das mordaças e dos laços bem dados. Mas a consciência de estar de posse de uma importantíssima descoberta e ficar ali preso, lutando para respirar, ao invés de voltar à Terra e expor a todos o que acabara de descobrir, o fez converter toda sua ira inteligente em força física, a fim de libertar-se das amarras.

Ficou mais esperançoso, quando ouviu vozes. Pensou que Loodey estivesse voltando para ver seu estado, mas notou que as pessoas falavam o arcônida.

Ficou naturalmente mais curioso. Não fez mais nenhum movimento para não fazer barulho e ser descoberto. Ouviu como um dos interlocutores desconhecidos ria bem alto e afirmava:

— Até que a Terra tenha notado que o negócio se espalhou por toda a sua atmosfera, não estarão mais em condições de se protegerem.

E seu companheiro o acompanhou na estrondosa gargalhada.

Ted Dunyan sabia a respeito de que os dois arcônidas estavam falando. Era o único terrano que sabia o que os estrangeiros pretendiam dizer com a palavra “negócio”. Assim que as vozes emudeceram e os passos se afastaram, como um louco, começou a forçar suas amarras, usando uma força que não era sua, mas do conhecimento do perigo iminente que a Terra corria.

 

Atrás da comporta, a ruazinha continuava. E continuava igual ao trecho lá de fora, com a diferença apenas de que as casas, de ambos os lados eram agora bem conservadas e, ao invés da água turva e leitosa do mar, estavam cheias de um ar claro e puro.

Thomea Untcher não teve mais tempo de olhar para cima, a fim de constatar que o terraço, que protegia as casas contra a incrível pressão da água, estava inteiro, enquanto do outro lado, havia mais buracos do que espaços cobertos. Não teve tempo nem mesmo de sacar a arma, embora se esforçasse ao máximo para estar sempre preparado. Isto porque não via o inimigo. A ruela jazia tranqüila e vazia, sob os reflexos da luz amarelada. Convencido de que seu temor era exagerado, Untcher avançou uns passos sozinho.

Foi então que, de repente, uma pancada forte e atordoante o atingiu em cheio. Estava andando até então lentamente e com muita cautela, estudando os passos. Mas aquilo que o atingira de supetão tinha qualquer semelhança com uma muralha de aço.

Bamboleou e caiu. Recebeu mais uma pancada de algo ou de alguém invisível, perdendo então os sentidos.

 

O clarão amarelado de todos os dias, surgia da escuridão leitosa da velha cidade. A respiração de Norrhooch estava acelerada, pois só pensava que, em alguns décimos de milésimos, haveria de encontrar-se com os terranos, os estrangeiros que protegiam os povos oprimidos, de quem Grghaok contava maravilhas. Depois, seus pensamentos se volveram para o episódio com a estranha viatura dos estrangeiros que quase os atropelara e matara. Que estariam eles fazendo por aqueles lados das plantações de psimo? Não era ainda tempo de colheita.

Depois de superar com galhardia o primeiro momento difícil, Nrrhooch estava sentindo o gosto pela aventura e, se não fosse o encontro marcado com os terranos, teria certamente continuado no encalço do estranho veículo anfíbio.

Fez uma curva acentuada, dirigindo-se à cidade. Ao norte havia uma comporta aberta e, além disso, do norte para o centro de Pchchogh, onde ainda havia casas aproveitáveis, o caminho tornava-se mais curto.

Com o máximo de cuidado, seguindo as constantes admoestações dos dois anciãos, Nrrhooch mergulhou para o fundo da primeira abertura que encontrou, ao invés de continuar na mesma altura em que estava. Depois que a proa varou aquela passagem e ele pôde ver alguma coisa, notou pela segunda vez o elegante barco dos estrangeiros. Fosse por mera questão de subconsciente, que, sem ele perceber, guiava seus movimentos ou fosse pela sensação excitante da proximidade do perigo, estava imbuído de uma coragem que o capacitava para executar coisas com que nunca sonhara. E, desta vez não havia nele a menor sombra de pânico. A gravidade do momento não bloqueou seus movimentos, muito menos seu sangue-frio. Mais depressa do que os velhos poderiam supor, antes mesmo que tivessem notado a presença do barco dos estrangeiros, Nrrhooch desligou o motor. Deixou que seu barco caísse lentamente na mesma abertura do chão, pela simples força da gravidade.

Nrrhooch estava de ouvidos atentos. Lá embaixo estava tão escuro que não dava para ver nada. Mas não tinha dúvidas de que ouviria o movimento da água, caso os estrangeiros se aproximassem.

Por enquanto, não ouvia nada. Deixou passar algum tempo, enquanto os dois velhos, muito nervosos cochichavam qualquer coisa, com o terror estampado nos olhos. Teve então a coragem de ligar de novo o motor e subir lentamente pela abertura.

Viu o halo luminoso da velha cidade abandonada, viu o fundo do mar, liso e aberto diante de si. A viatura dos estrangeiros desaparecera. Tinha, pois, escapado pela segunda vez das garras daqueles homens barbudos.

Não podia fazer a mínima idéia do que pretendiam eles em Pchchogh. Nrrhooch era um homem sensato e começou então a refletir se os phchauchol, dos quais Grghaok tinha tanto medo e em quem Lchox nem queria acreditar, não estavam mancomunados com os estrangeiros barbudos, que por um ou outro motivo tinham grande interesse em que Pchchogh continuasse abandonada e vazia.

Quem sabe estaria em Pchchogh o quartel-general dos estrangeiros! Ninguém em Opghan sabia realmente onde eles moravam. Estava ora aqui, ora ali... mas onde residiam? Será que seu domicílio era mesmo Pchchogh?

Em Pchchogh havia realmente casas intactas; muitos éfogos, apesar das histórias horripilantes dos sanguinários phchauchol, haviam penetrado na cidade e viram muita coisa. É claro que nenhum deles ficara tempo demais na cidade abandonada e tão pouco se arriscara a penetrar em qualquer casa. E se os estrangeiros realmente tinham a intenção de permanecer ocultos, podiam fazê-lo facilmente. Mas será que não passavam de simples vítimas todos aqueles que não regressavam de Pchchogh e cujo desaparecimento ou morte era atribuído aos phchauchol?

E como se estivesse tendo uma visão, Nrrhooch percebeu que os estrangeiros realmente residiam em Pchchogh e tal qual os chchrorl sanguinários, que viviam nas cavernas e com seus possantes tentáculos, pegavam sempre suas vítimas desprevenidas. De lá do fundo do mar, em Pchchogh, é que tramavam tudo para subjugar facilmente aquela gente sofredora e mantê-la em escravidão.

E mais uma coisa espantosa, estava ele vendo naquele momento: os novos estrangeiros, os terranos, como Grghaok os chamava, corriam perigo iminente, pois não sabiam dos mistérios que se escondiam em Pchchogh.

 

Ted Dunyan desmaiou diversas vezes, antes de conseguir qualquer resultado. A luta desesperada contra as amarras e a mordaça custava-lhe muito ar, e era exatamente isto que o Dr. Dunyan não tinha. Constantemente estava vendo estrelas girarem diante de seus olhos, ficando ali desacordado, antes de voltar a si para recomeçar seus ingentes esforços.

Mas, de repente, como se tivesse vencido a maior batalha de sua vida, conseguiu liberar um braço. Uma larga tira de pano estava ainda presa no pulso, mas isto não o impediu em nada. Removeu primeiro a mordaça, depois atirou para o lado os pesados cobertores e panos velhos, onde estava “sepultado”. A seguir, sorveu com satisfação o ar fresco, num verdadeiro exercício de respiração.

Por último, desatou os pés e levantou-se, abrindo as portas do armário, movendo-se um pouco de um lado para o outro, na antiga cabina de Loodey, evitando naturalmente qualquer ruído. Estava com isto reativando a circulação sangüínea. Achava-se consciente de que corria grande perigo. Do posto de comando, Loodey podia ligar qualquer aparelho do intercomunicador. Caso se lembrasse de ligar para esta cabina, Ted Dunyan estaria perdido, antes de começar a executar seus planos.

Assim que diminuiu um pouco a dor lancinante do reinicio do funcionamento normal da circulação do sangue, Ted Dunyan achou que seu organismo estava preparado para os esforços que iria enfrentar. Abriu com cuidado a porta da cabina e deu uma olhada no corredor.

Estava vazio. A uns dez metros à esquerda, dava para o corredor central do convés, servido por uma esteira transportadora, que proporcionava maior rapidez. Ted resolveu fazer uma tentativa, embora não soubesse se Loodey havia colocado guardas por ali. Chegou sem ser percebido até o início do corredor central. Ouvia apenas o inevitável zumbido de todo interior da espaçonave e a vibração surda da esteira transportadora. Em todo o corredor central não se via ninguém.

Ted Dunyan não podia desejar coisa melhor. Seu plano continuava firme. Depois de ter andado uns trinta metros no corredor central, sentia-se mais seguro. Nos caminhos tortuosos e escuros por onde teria de andar daí para frente, certamente não encontraria ninguém.

Nem uma só vez passou pela cabeça de Ted Dunyan que seria rematada loucura querer conquistar uma espaçonave totalmente tripulada, sozinho e desarmado.

 

Thomea Untcher abriu os olhos e viu diante de si três seres estranhos, postados como estátuas, numa posição de curiosidade Ma e científica.

Como se um véu lhe saísse de repente dos olhos, quando notou melhor os estranhos percebeu imediatamente de onde vinha o complô, que se encenava em Opghan, e compreendeu o alcance do que estava se passando naquele momento.

Dois dos homens eram espadaúdos e de boa estatura, ambos de barba completa, embora a barba do mais moço parecesse postiça. O terceiro era um modelo de feiúra. Maior que os outros dois e terrivelmente magro, seco. Sua cabeça estreita, abobadada e sem cabelo era dominada por dois olhos inteligentes e cruéis. Lábios estreitos e austeramente unidos. O pescoço sobressaía dos ombros estreitos.

Os aras tinham a mesma origem dos saltadores e dos arcônidas. Partindo da crença de que uma força invisível criara o Universo com o único fim de que os aras viajassem por ele para desvendar seus mistérios, acabaram se transformando numa raça de cientistas. Cientistas estes que buscavam a ciência pela ciência e não tinham a menor consideração diante dos direitos de outra gente.

As maiores conquistas científicas dos aras eram no domínio de medicina e da biofísica. Não havia médicos iguais em toda a Galáxia, embora muitos de seus pacientes, independentes de suas vontades, tivessem sido retalhados em pedaços, somente para que eles, os aras, estudassem o mistério da vida humana. Subjugaram muitos planetas por meio de seus medicamentos e os psicotrópicos e narcóticos de sua fabricação eram disputados a bom preço em toda a Galáxia. Agora já produziam até monstros artificiais em suas retortas, e estes terríveis produtos humanos de laboratório começavam a inquietar a Segurança Terrana.

Os aras tinham se enquistado em Opghan. Thomea Untcher, neste momento, não podia fazer outra coisa, senão sentir compaixão dos éfogos. Esta pobre raça estava já condenada à estagnação, pelo simples interesse dos aras por eles.

Os outros dois homens eram saltadores, descendentes daquela raça nômade, que se consideravam agrupamentos de comerciantes. Acreditavam que Deus criara, em especial para eles, o monopólio comercial. Alguns comandantes saltadores de maior prestígio foram às vezes aliados de Perry Rhodan, nunca, porém, seus verdadeiros amigos. Em suas relações com os povos das Galáxias, a Terra tivera, mais de uma vez, sérias encrencas com os chamados comerciantes das Galáxias. Era bem recente a história do patriarca Cokaze, cuja pretensão era ocupar definitivamente a Terra, já que não conseguira dela o tratado de monopólio comercial no sistema solar.

De qualquer maneira, não era a primeira vez que aras e saltadores se uniam para uma ação em conjunto contra a Terra, como também contra o Império Arcônida.

Depois de selecionar seus pensamentos, Untcher começou a interessar-se mais por sua própria situação. Não estava amarrado, apenas sentado numa cadeira. Porém, sem poder fazer nenhum movimento. Os únicos músculos que obedeciam ao seu comando eram os das pálpebras, da boca e os que facultavam o processo de respiração. Estava se recordando agora dos dois terríveis impactos que recebera, sabendo que fora atingido por arma de descarga elétrica. A paralisia era conseqüência do choque nervoso e haveria de desaparecer com o tempo.

Seus dois companheiros não estavam mais à vista. O aposento parecia-lhe muito espaçoso e equipado apenas com instrumentos medicinais. Era um gabinete como se esperaria numa cidade dos aras. Estava, pois, mais do que claro que os aras tinham também uma colônia, ou melhor, um ponto de apoio em Pchchogh. Foram eles que construíram a eclusa que tornava uma parte da cidade habitável. E Thomea Untcher foi um marinheiro de primeira viagem que caiu como um patinho na armadilha. Era o que mais irritava o velho comandante.

Os três estrangeiros em torno dele notaram que voltara a si. Um deles, o saltador com a barba verdadeira, deu um passo à frente e declarou em arcônida:

— Sou Nathael, patriarca da minha estirpe. Quem quer que o senhor seja, poderia ter feito coisa melhor do que meter o nariz em coisas que não são de sua conta.

— Não se trata de coisas que não me dizem respeito — respondeu Thomea Untcher calmo, num tom de voz ponderado, como se estivesse sentado numa sala de conferência e conversasse com pessoas de alto nível intelectual. — O Império Arcônida nos solicitou a cooperação numa ação policial em Opghan e, a partir deste momento, isto é um assunto de nossa competência. A Terra mantém com Árcon um tratado de cooperação mútua que nos obriga a prestar auxílio em casos como este. E os senhores sabem que nós cumprimos nossos tratados.

Parece que Nathael não deu muita importância à indireta sobre a falta de responsabilidade de seu povo. Pelo contrário, passou para o tom banal de conversa e respondeu:

— Aqui se trata de um negócio, meu amigo.

— Meu nome é Untcher, Thomea Untcher, só para que você não esteja obrigado a me chamar de “meu amigo”.

Nathael ficou um pouco embaraçado. Depois continuou:

— Trata-se, como já disse, de um negócio. E estes negócios são assuntos exclusivamente nossos. Não podemos tolerar nenhuma interferência de fora e, em virtude de o senhor não ter respeitado este nosso direito, vai pagar com a vida, ou no mínimo com sua vontade...

Thomea Untcher viu nestas palavras uma possível alusão aos estranhos fatos ocorridos com a tripulação da Finmark.

— Ah! É isto? E como é que conseguirão destruir nossa vontade?

Nathael deu um sorriso malicioso e fez um gesto para o ara.

— Muito simples. Nosso amigo Plougal trabalha já há muito tempo no desenvolvimento de um novo hormônio, cujos componentes básicos se encontram no embrião de uma planta nativa de Opghan, chamada de psimo. Conseguiu há pouco produzir este hormônio na sua fórmula mais eficaz... e o resultado disso o senhor já viu a bordo de sua própria nave.

Untcher concordou.

— Você acha que os homens continuarão para sempre neste estado em que se encontram? O hormônio não perde o efeito com o passar do tempo?

— Não automaticamente — respondeu Nathael. — O hormônio contém neo-amino-disprosionato. Este componente pode ser neutralizado através de irradiações com nêutrons térmicos, fazendo com que os efeitos desapareçam e o neoamino seja aos poucos eliminado do organismo. Acho, pois, que somente a irradiação com nêutrons térmicos será capaz de afastar os efeitos do hormônio.

— E você me descreve isto assim tão abertamente? — perguntou Untcher.

Nathael respondeu com um gesto displicente:

— Você não terá oportunidade de fazer proveito destes conhecimentos.

— Quer apostar? — disse Untcher. Nathael franziu a testa.

— Como? Ah, sim! — e começou a gargalhar estrondosamente. — Você não teria mais nem tempo para pagar a aposta perdida.

— É lamentável, mas isto não tem maior importância. Agora, diga-me só uma coisa. Como é que vocês descobriram Opghan e quais são seus planos daqui para frente?

Nathael estava sentindo gosto no seu papel de superioridade e quis bancar o soberano condescendente, respondendo todo bonachão:

— Já há muitos milênios que Opghan é um campo de pesquisa de nossos amigos da estirpe de Plougal. Começaram estudando os seus habitantes, os éfogos. Você já deve ter notado que eles têm uma série de características, segundo as quais temos que classificá-los como descendentes de emigrados arcônidas. Por outro lado, nenhum tipo de arcônida, mesmo vivendo num mundo quase só de água, como este, desenvolveu nadadeiras e tubos de respiração. Os fatos são contraditórios. O enigma se resolve, quando se sabe que a estirpe de Plougal, logo depois da chegada dos arcônidas a Opghan, fundou aqui uma colônia.

“Naturalmente, de início vieram apenas duas naves de Plougal, pois mais gente não iria caber nas três mil e tantas ilhotas. Esta gente pesquisadora de Plougal logo percebeu que era um contra-senso um punhado de homens viverem encurralados em ilhas-miniatura, quando Opghan oferecia lugar folgadamente para milhões e milhões de emigrantes, caso estes emigrantes soubessem adaptar-se ao meio ambiente, ou seja, aos fatores ecológicos.

“E os aras levaram avante este plano, parte com a cooperação dos próprios emigrantes. E assim, no correr de muitos séculos e muitas gerações, criaram uma nova raça, a raça dos éfogos, dos homens-peixe. Você sabe como é esta gente dos Plougal. Fazem qualquer sacrifício pela ciência. A experiência durou praticamente mil anos, mas seu esforço foi coroado de êxito. Haviam criado uma raça para as condições do planeta.”

Thomea Untcher fez qualquer movimento na cadeira. Constatou que seus músculos e nervos já lhe estavam obedecendo.

— Para os primeiros emigrantes devia ter sido um grande choque — afirmou ele — presenciarem que seus filhos passavam a ter nadadeiras e trombas para respiração.

— É claro que no princípio não foi muito agradável — respondeu Nathael sorrindo — mas os aras, em benefício da ciência, sacrificam a felicidade e até a vida se necessário for.

Untcher já podia mover a cabeça. Concentrou os olhos no rosto de Plougal, procurando descobrir seu pensamento. Mas Plougal não movia um só músculo. A descrição dos atos desumanos de seus irmãos de raça não o alterava em nada.

Com Nathael já não era assim. Parece que ele se empolgava com o som de suas palavras. E, neste tom, continuou falando:

— Durante séculos e séculos os aras tinham aqui apenas um pequeno núcleo de colonização. Você compreende, as conseqüências de uma tal experiência devem ser acompanhadas com cuidado e escrúpulo. Em todo este tempo do longo trabalho científico, não podiam esperar que Opghan lhes trouxesse qualquer vantagem material. Descobriram então o hormônio do psimo e a partir daí, surgiu, de um momento para o outro, um grande interesse em Opghan.

“Fizeram algumas experiências que acabaram dando excelentes resultados. Os aras pensaram então em explorar a plantação espontânea das florestas de psimo no fundo do mar. Mas, para isto, precisavam do trabalho dos éfogos e já que eles, por sua vontade, jamais trabalhariam com compromisso de horário, tinham de ser obrigados a fazê-lo. Você conhece o modo de pensar dos homens da estirpe de Plougal.”

Esticou os braços para um gesto bem largo, como se falasse a um amigo sobre outro amigo, cujo erro procurava justificar.

— São incapazes de cometer violências e, por outro lado, não possuíam ainda a quantidade de hormônio necessária para dominar completamente os éfogos. Ofereceram-nos interesse comercial e nós aceitamos e executamos este trabalho para eles. Em poucos dias, não se esqueça de que um dia neste maravilhoso planeta dura quase nove dos seus dias da Terra, será produzido tanto hormônio que transformaremos estes éfogos em simples máquinas de trabalho, quase gratuitas. Então começará um comércio maravilhoso para nós, com um lucro tremendo...

Thomea Untcher não quis mais responder. Estava literalmente saturado, pois há um limite para tudo. Apesar de ser um espírito liberal, tolerante, sem preconceito de espécie alguma, não suportava mais a nojenta frivolidade e o cinismo de seu interlocutor. Já sabia bastante da história lamentável dos pobres éfogos. Eram descendentes dos velhos arcônidas, mas com as experiências degradantes dos aras sofreram grandes alterações biológicas, regredindo para uma fase de primitivismo da qual os arcônidas se haviam liberado já há muitos milênios. Sabia também que uma parte dos conhecimentos técnicos e científicos continuava preservada entre os mais bem dotados, de maneira que os éfogos estariam em condições de, dentro de alguns séculos, erguerem uma nova civilização, de valor apreciável. Assim se explicava também uma certa contradição neste povo singular: possuíam, por exemplo, submarinos para qualquer profundidade oceânica, melhores que os da Terra de antes da Primeira Guerra Mundial. Por outro lado, não sabiam o que era um rádio e ainda praticavam a pesca submarina com arpões de ar comprimido, ao invés de usarem armas de fogo.

Untcher compreendia tudo agora. Viu como seus homens, na Finmark, entraram em total dependência mental, sob os efeitos da droga contida nos cilindros metálicos. Sabia muito bem que, com uma arma deste tipo nas mãos, os saltadores seriam uma desgraça para todo o Universo. Certamente, sua primeira vítima seria naturalmente a Terra. Os saltadores eram tão inescrupulosos como os aras. A única diferença: o objetivo dos aras era científico, enquanto que os comerciantes das Galáxias visavam exclusivamente aos lucros materiais.

— Há apenas uma coisa que me interessa saber — disse Untcher. — Que aconteceu com meus homens?

— Oh! Não se preocupe com eles — respondeu o cínico Nathael. — Estão conosco, vieram à sua procura, quando você demorou a aparecer. Caíram na mesma cilada que você. Estão bem guardados. Há muitos séculos, os aras expulsaram os éfogos desta cidade no fundo do mar, inventando para isto histórias macabras de assombração e simulando ataques de monstros submarinos. Tudo isto para convertê-la em sua base de operação. Dispõem aqui de mais de duzentas habitações intactas e luxuosas, servindo de residências particulares a cada um de seus homens.

Untcher ouvia silencioso. Sabia que, ao menos no momento, não lhe restava nenhuma esperança. Se conseguisse sair de Pchchogh, haveria de fazer muita coisa.

Uma parcela de seu desânimo parecia se refletir em seu rosto e Nathael que considerava o abatimento moral do prisioneiro muito importante para seus intuitos, continuou desfilando o rosário de coisas desagradáveis:

— Não é apenas isso, Untcher. Estamos também de posse de sua nave. Nossos homens estiveram a bordo da Finmark e deram ordem ao sargento Loodey de regressar imediatamente à Terra. É claro que Loodey obedecerá. Em poucas horas, a nave estará a caminho da Terra, com uma carga perigosíssima a bordo, como lembrança de Opghan.

Untcher não tinha a menor dúvida da veracidade das palavras de Nathael. Procurou esconder a grande aflição que lhe ia no íntimo, mas não foi de todo possível. Não queria, de maneira alguma, dar esta alegria ao saltador, de vê-lo abatido e conturbado. Ficou, pois, mais alegre, quando percebeu qualquer movimento atrás dele e Nathael, o outro saltador e Plougal se entreolharam estupefatos.

— Que que há, Aktar? — ouviu ele a pergunta de Nathael.

— Três éfogos abateram um guarda na comporta de Bchacheeth e deixaram a cidade — falou numa voz muito excitada. — Chchaath já enviou todos os homens disponíveis em seu encalço. Veio para cá o mais depressa possível. Persiste a possibilidade de os fugitivos estarem a caminho de Pchchogh.

Nathael ainda estava confuso e, para despistar, perguntou:

— Vocês ainda se preocupam com estes miseráveis éfogos?

— Eu não me preocuparia tanto — respondeu Aktar, como se estivesse se desculpando. — Mas Chchaath afirma que um deles, um tal de Grghaok conhece todos os cantos e recantos de Opghan. Chchaath acha que este éfogo é capaz mesmo de penetrar nesta cidade submarina, sem ser percebido.

 

— Sim — disse Grghaok com segurança — eu sei um caminho.

Nrrhooch e Lchox olharam-no com admiração e com muito respeito.

— Você sabe...! — sussurrou Nrrhooch.

Grghaok fez um simples gesto de confirmação.

— Quando era ainda rapaz — explicou o velho — interessava-me muito pelas coisas mais misteriosas. Pchchogh era uma delas. Conheço esta cidade melhor do que ninguém.

— Mas os phchauchol? — interrompeu Nrrhooch. — Você não tem medo deles? Você não confessou isso uma vez?

— Claro que tenho medo. Já me defrontei uma vez com um deles e não foi brincadeira.

— Como foi isto? — perguntaram Nrrhooch e Lchox a uma só voz.

Grghaok esticou as palmas da mão para cima.

— Tão exatamente, não posso me lembrar assim. Já faz tanto tempo. Lembro-me de ter levado um tremendo choque por trás. Foi como se o phchauchol tivesse avançado contra mim. Depois não me recordo de mais nada, até o momento em que recuperei os sentidos e reparei que estava deitado no meio da rua.

— Na água? — perguntou Nrrhooch espantado.

— Claro que não. Estava na parte intacta e boa da cidade. Do contrário teria me afogado. Ninguém tem reserva de ar para tanto tempo, para agüentar um longo período desacordado dentro d’água.

— Grghaok, se eu entendi bem, você nem chegou a ver o phchauchol direito, não é? — perguntou Lchox.

— Não, não cheguei a vê-lo mesmo não. Apenas senti.

— Então — continuou o mesmo Lchox — pode ser que quem lhe deu o choque foram os estrangeiros que vivem em Pchchogh, como acredita Nrrhooch.

— Pode ser mesmo — concedeu Grghaok. — Talvez consigamos botar isso em pratos limpos, dentro de pouco tempo.

Levantou-se e abriu a pequena escotilha do barco.

— Vamos sair, minha gente — propôs ele. — Quem sabe os terranos estão de fato em perigo.

O mais moço, Nrrhooch, desceu na frente. O pequeno barco estava perto das ruínas da velha carcaça de pedra artificial que circundava toda a cidade, resguardando-a da pressão d’água. Esta carcaça grossa e muito forte tinha sido arrebentada de propósito em vários lugares e podia-se penetrar na cidade, sem se fazer uso de comportas. E mesmo, muitas das comportas já estavam há muito fora de uso e não passavam de meros buracos, como por exemplo a eclusa do norte, que não estava longe.

Grghaok foi conduzindo os dois éfogos para a parte inundada de Pchchogh. O velho era muito cauteloso em seus movimentos, nadando com muita agilidade. Seus amigos o seguiam com as mesmas precauções.

Nrrhooch não deixou de ficar apreensivo, quando o viu penetrando por uma janela numa casa completamente escura. Mas seguiu seu guia, porém, já com a arma que tirara do guarda na mão, esperando nervosamente que ela funcionasse mesmo dentro da água.

De repente, no meio das trevas, ouviu-se a voz de Grghaok.

— Por algum motivo que desconheço, esta casa tem uma comporta especial. Quem sabe seu dono era um homem muito precavido que já antevia que a carcaça de proteção seria um dia rompida. Queria ter uma saída garantida para tal emergência. De qualquer maneira, aquela escotilha da comporta leva para a parte seca de Pchchogh. Quando estive aqui pela última vez, isto foi há uns quinhentos dias, os estrangeiros ainda não haviam descoberto esta comporta. Constatei tal fato por uns sinais que fiz nela e não foram apagados.

Uma luz amarelada, muito fraca, entrava pela janela vazia. Os olhos de Nrrhooch tinham que se adaptar primeiro à escuridão. Depois foi vendo como Grghaok fazia alguma coisa na parede dos fundos do aposento. Nadou até lá para ajudá-lo e juntos começaram a mover uma trave que fechava a escotilha, trave esta conservada perfeita, apesar dos muitos séculos de mergulhada na água.

O compartimento atrás dela era muito pequeno. Foi-lhes um pouco difícil caberem os três ali dentro. Trancaram a porta, esperando que as bombas começassem a funcionar. No primeiro instante nada aconteceu. Enquanto isto, Grghaok estava de novo mexendo na porta externa e examinando os sinais que fizera há muitos dias atrás.

— Ainda não a descobriram! — exclamou contente.

“Isto não nos vai adiantar muita coisa”, pensava triste Nrrhooch, “se as bombas não funcionarem...”

Mas no mesmo momento, as águas começaram a mover-se em remoinho e a espumar. Uma possante sucção as puxava para os fundos da comporta, fazendo-as desaparecer no funil das bombas. Após dois décimos de milésimo, a comporta estava sem água e limpa, cheia de ar respirável.

Abriram a porta externa. Estava tão dura que foi necessário o esforço dos três. Uma luz mais clara e mais amarela penetrou pela abertura, lá fora havia uma rua bem conservada e seca da velha cidade. As casas ao longo desta rua davam a impressão de que os habitantes de Pchchogh ainda estivessem vivos.

Nrrhooch foi o primeiro a dar um passeio na rua. Sentiu-se, porém, um pouco tolhido no silêncio sepulcral que inundava a cidade. A mão direita, com as nadadeiras transparentes entre os dedos, apertava a arma de fogo do guarda abatido.

Os dois velhos vinham conversando atrás. Parecia que roncavam mais do que falavam. Nrrhooch queria aconselhá-los a manterem mais silêncio, mas antes que o pudesse fazer, viu uma coisa que lhe prendeu a atenção.

A porta de uma das residências mais para baixo começara a se mover. Fazia-o lentamente, centímetro por centímetro, como se não quisesse mostrar os segredos que havia por detrás dela. Nrrhooch viu o brilho de uma luz azul-clara, através da fenda da porta. Aproximou-se dos dois velhos e lhes deu uma cotovelada para lhes chamar a atenção. Com dois ou três passos silenciosos, se retiraram para a parede da habitação mais próxima e procuraram se esconder do melhor modo possível nos nichos da construção.

A porta da casa mais abaixo se abriu de todo e, por alguns momentos, Nrrhooch não via outra coisa a não ser uma abertura retangular cheia de uma claridade quase ofuscante. Depois surgiram no fundo duas figuras: uma de estatura normal, a outra muito alta e magra. Nrrhooch acreditou a princípio que a distância e a luz amarelada tivessem lhe causando uma ilusão óptica, pois uma figura assim não podia existir. Mas os dois indivíduos eram reais e saíram para a rua e um deles continuava tremendamente alto e magro.

Nrrhooch teve um calafrio ao reconhecer o outro homem. Sua pele tinha um brilho esverdeado e estava coberta de escamas. Sua cabeça redonda e sem cabelos brilhava como se estivesse molhada. Chchaath e seu companheiro muito alto vinham pela rua, exatamente na direção dos três éfogos, dos nichos na parede da casa, onde estavam escondidos.

Nrrhooch reparou como Grghaok, que estava encostado nele, começou a tremer. Ouviu gemidos de medo por parte de Lchox. Sabia que tinha de fazer alguma coisa, caso não quisesse que todos caíssem nas mãos assassinas de Chchaath e do outro estrangeiro. Por um instante, Nrrhooch julgou que o homem alto tinha de ser o terrano, pois, fora dos barbudos, não havia outros estrangeiros em Opghan. Mas depois, acudiram-lhe as dúvidas, pois Grghaok fizera tantos elogios aos terranos que seria impossível que estes se aliassem a um tipo como Chchaath.

O jovem Nrrhooch levantou a arma. Fê-lo com tanto cuidado que o cano continuou escondido no nicho da parede e ninguém o podia ver. O coitado do rapaz não tinha a menor idéia de como a arma funcionava. Felizmente tinha só um botão e ele esperava que desse resultado, quando o apertasse.

Chchaath e o horrendo gigante seco estavam já a poucos passos, quando Nrrhooch comprimiu o botão. O resultado ultrapassou de muito sua expectativa.

Num forte e seco estampido, saiu um raio ofuscante do cano da arma. Nrrhooch viu um caudal incandescente que varreu a rua e atingiu as paredes das casas do outro lado. Estupefato, ficou olhando para o rombo aberto na parede e para a pedra derretida que rolava pelo chão, enquanto se elevava uma fumaça de cheiro horrível.

Chchaath e seu companheiro ficaram parados, olhando a parede que ardia. Nrrhooch percebeu que não os atingira e corrigiu a pontaria de sua pistola de raios energéticos. Chchaath e seu colega queriam correr. Gritando loucamente, iam se esgueirando pela parede. Logo depois correram rua abaixo. Mas a terrível arma de Nrrhooch foi mais rápida que eles. O caudal ofuscante de raios interrompeu sua desabalada carreira.

Nrrhooch, admirado, depois de alguns instantes de susto, reparou que acabaria destruindo toda a cidade se continuasse atirando. De Chchaath e de seu colega, não restava mais nada. O fogo consumira tudo.

Nrrhooch olhou em volta. A extensão dos estragos que causara pareceu-lhe incrível. Desejava não ser mais necessário fazer uso de uma arma tão poderosa.

Por enquanto ainda necessitava dela. Ninguém poderia saber quantos inimigos abrigavam as belas casas daquele trecho de Pchchogh.

 

Thomea Untcher ouviu os dois tremendos estampidos. Sentiu o ar quente que entrou em lufada por alguma parede rebentada na vizinhança... e tratou de agir.

O saltador Nathael ficara sozinho com ele naquele compartimento, pois o homem de barba postiça, a quem chamavam de Echnatal, saíra já antes. Para onde, Untcher não sabia. Depois disso, o ara e o éfogo traidor também deixaram a casa e finalmente, o velho saltador Aktar também se despedira.

O que quer que estivesse acontecendo lá fora, não estava nas previsões de Nathael. Com um grito de horror, o saltador virou para trás e ficou olhando para a porta... e Thomea Untcher não perdeu a oportunidade!

Desprezando as grandes dores que sentia em todo o corpo maltratado, saltou de sua cadeira. Nathael ouviu o ruído atrás de si e ia se virando com a mão sacando a pistola. Mas Untcher foi bem mais rápido e, ligeiro, saltou nas costas do corpulento e barrigudo saltador, antes que este percebesse o que estava se passando. Untcher era mestre neste tipo de ataque. E com duas pancadas bem seguras, dadas com o canto da mão espalmada, na nuca do adversário, deixou-o estendido no chão, sem sentidos. Apanhou a arma, ainda quando o corpo estava caindo e saiu porta afora.

Aquela porta dava para um outro compartimento e lá estava o pobre Phil Lenzer, sentado também numa cadeira. Seu estado parecia bem mais grave, devia ter sofrido muito com os choques e exatamente por este motivo não havia guarda para vigiá-lo. Untcher gastou uns dois minutos para fazer com que Lenzer conseguisse ficar de pé. Fazendo-lhe massagens e, com palavras de estímulo, conseguiu colocar seu comandado em condições de reagir.

Enquanto isso, lá fora, em qualquer lugar da vizinhança, o barulho continuava, sem que Untcher pudesse saber de onde vinha.

Já acompanhado de Lenzer penetrou no próximo cômodo. Lá encontraram mais dois dos seus, sob a guarda do saltador com barba postiça. Echnatal também estava a caminho da porta, também assustado com o ruído. Ao abri-la, os dois terranos deram de cara com o saltador. Thomea Untcher, enfurecido, avançou contra ele, atirando-o inconsciente no chão.

Os terranos eram agora quatro e empunhavam duas boas armas. Podiam se atrever a penetrar mais na cidade desconhecida, a fim de libertar seus outros colegas.

Acharam-nos na próxima casa, vigiados por dois aras, que infelizmente estavam bem longe da porta de entrada, de maneira que os terranos não tinham possibilidade de travar uma luta corporal com eles. Assim que compreendeu a situação, Thomea Untcher começou a atirar, liquidando os dois guardas.

Imediatamente se dirigiu ao grupo de terranos.

— Temos de voltar imediatamente para a Finmark — ordenou ele. — Cada um de nós quatro está agora com uma arma. Caso alguém queira barrar nosso caminho, temos de atirar. Vamos embora.

Não sabiam por qual das muitas portas se chegava à rua. Tentaram três vezes, na quarta deram com a rua, saindo daquela claridade exuberante da base submarina dos aras para a iluminação fraca e amarelada das velhas e abandonadas vielas.

A rua parecia ter sofrido há pouco um grande terremoto. Na parede de uma das casas havia um grande rombo e massa de pedra derretida se espalhava pelo chão. Fumaça de cheiro penetrante ainda estava no ar e, através dela, Untcher percebeu os vultos dos três éfogos.

Parou e começou a chamá-los. Os éfogos se viraram e vieram vagarosos em seu encontro. Untcher não sabia bem por que estava desperdiçando seu tempo. Mas acreditava que aqueles três fossem os homens-peixe com os quais falara da Finmark e aos quais havia prometido auxílio. Não, não podia deixá-los na mão, embora isto lhe custasse um tempo precioso.

Quando distavam ainda alguns metros, Untcher lhes gritou em arcônida:

— Vocês são os homens de Bchacheeth? Nrrhooch, Grghaok e Lchox?

Palavras de confirmação vieram através da fumaça e os éfogos começaram a correr.

— Somos os terranos. Os estrangeiros nos prenderam, mas nós nos libertamos. Como poderemos sair depressa da cidade?

— Há uma comporta velha e abandonada — começou um dos homens-peixe a explicar em sua linguagem molhada, como se falassem com a boca cheia d’água — nós entramos por ela.

Untcher se dirigiu aos seus:

— Atarraxem os capacetes, rapazes, temos que passar por uma comporta ali na frente.

Sem dizer uma palavra, os éfogos os acompanharam. A comporta era muito pequena para todos passarem ao mesmo tempo. Foram abandonando a velha cidade de quatro em quatro. Thomea Untcher e Nrrhooch ficaram entre os últimos.

Dos saltadores e dos aras não se via nem sinal. Para se compreender sua reação, tinha-se que conhecer a mentalidade dos aras. Certamente ouviram os tiros e o barulho todo e sabiam que alguma coisa não estava dando certo. Mas, se nesse momento estivessem ocupados com algum estudo sério, com alguma experiência, era para eles mais do que natural não se deixarem perturbar. Continuariam sentados diante de seus microscópios ou de outros instrumentos de medição, e não se incomodariam nem mesmo se o exército inimigo invadisse a cidade.

Quanto aos saltadores, o fato de não se manifestarem, Untcher explicava isto como conseqüência de que ali em Pchchogh só estavam os três: Nathael, Echnatal e Aktar. Os dois primeiros achavam-se desacordados e Aktar certamente já tinha deixado a cidade.

Untcher reparou na pistola térmica no cinturão de Nrrhooch e começou a entender como se originou toda aquela confusão em Pchchogh; os tremendos estampidos, o rombo na parede e o chão da rua todo estourado e derretido. Tudo isto porque um rapaz inexperiente apertou um botão de disparo de uma arma, cuja reserva energética ele desconhecia por completo. Thomea Untcher passou a ter grande respeito aos éfogos. Aquela gente era simples, mas destemida.

Após o tempo determinado, dando ainda uma pequena pausa de segurança, Nrrhooch abriu a portinhola da comporta e encontrou a câmara completamente vazia. Untcher, Nrrhooch e dois dos homens de Untcher foram os últimos a deixarem a cidade. Esperavam impacientes até que a câmara se enchesse e a pressão fosse a mesma do fundo do mar. Depois abriram a escotilha interna e saíram nadando pelo cômodo escuro da casa, passando pela rua iluminada, onde se encontraram com Grghaok, Lchox e os homens do grupo de Untcher, que já os esperavam.

Somente fazendo com que Grghaok encostasse a cabeça no seu capacete, Untcher conseguiu comunicar-se com o velho para lhe explicar como era o local onde havia deixado seu veículo anfíbio. O chefe dos éfogos se mostrou pronto para conduzi-los até lá. Untcher não estava certo se os aras não haviam danificado seu barco anfíbio, mas tinham pelo menos que procurá-lo e, com o auxílio do éfogo, vencerem aquele paredão de quatro mil metros de água.

Grghaok teve de reduzir seu ritmo de natação, pois os terranos, com pouca experiência do fundo do mar, moviam-se lentamente. Isto deixava Grghaok um tanto preocupado. Ele estava nadando rente ao teto de proteção da cidade e mostrava aos terranos como se utilizar das raízes das canáceas para se apoiar e dar bons impulsos para frente.

Apesar disso, levaram meia hora até chegar ao barco anfíbio. Estava onde o haviam deixado e não se notava indício de que alguém houvera penetrado nele.

O embarque foi rápido e sem dificuldade. Com os três éfogos como tripulação extra, não sobrava mais espaço no seu interior. Mas os homens de Thomea Untcher estavam acostumados a não medir sacrifícios para obterem sucesso. Queriam escapar dos aras e chegar salvos à superfície da água.

O próprio Untcher tomou o lugar do piloto. Numa ampla curva fez com que o barco iniciasse a subida, passando por uma grande fenda da pedra artificial que protegia a cidade de Pchchogh. A seguir, acelerou ao máximo. Estava preocupado com a frase de Nathael de que a Finmark já estava nas mãos dos saltadores, pois sabia que o patriarca não precisava mentir.

 

Ted Dunyan atingira seu objetivo. Estava sentado num reduzido compartimento onde se concentravam todas as válvulas das instalações de aeração da Finmark. Desta maneira, poderia controlar a nave e quando dessem por sua ausência, ninguém o viria procurar neste recanto esquecido.

Havia, porém, um grande ponto de interrogação no empreendimento técnico-científico do Dr. Dunyan: através do controle dos tubos de aeração da espaçonave, podia injetar qualquer quantidade de gás entorpecente para toda a nave. Mas não sabia quantos do grupo de Ran Loodey estavam de uniforme completo e assim não seriam atingidos pelo gás sonífero. E o pior ainda era que o próprio Dr. Dunyan também estava sem o uniforme e o capacete, arrancados por Loodey, antes de seu “sepultamento” no armário. Assim o médico seria a primeira vítima de seu plano para neutralizar os amotinados de Loodey.

Sua iniciativa só teria êxito se soubesse a hora exata em que Thomea Untcher voltaria de sua expedição. Se soubesse isso, Untcher, ao penetrar na Finmark, encontraria apenas um grande número de pessoas inconscientes a bordo, sem que houvesse perigosa resistência física. Supondo-se, naturalmente, que ninguém do grupo de Loodey estivesse com o capacete atarraxado.

O Dr. Dunyan necessitava, pois, de uma tela de rastreador para ver o que se passava em torno da Finmark. Sabia que lá fora continuava a grande noite, nove vezes mais longa que a noite da Terra. Mas esperava que as estrelas no céu claro e sem nuvens de Opghan dessem uma claridade suficiente para se ver alguma coisa lá embaixo. No pequeno compartimento das válvulas de aeração, não havia nenhuma tela de rastreador. Mas no posto de comando havia duas, e o compartimento das válvulas era uma dependência do posto de comando. Existia o perigo de ser visto pela tripulação, o que estragaria os planos de Dunyan. Mas tinha de ser assim mesmo, e ficou ali olhando para a tela, esperando a chegada de Untcher.

Passaram-se algumas horas, até que viu na tela a sombra do barco anfíbio, irrompendo da camada de gelo que cobria o mar. Voltou para o compartimento das válvulas e começou a injetar na espaçonave uma substância inodora, oraldin, e um entorpecente sem maior perigo, que, conforme o Dr. Dunyan esperava, agiria tão rapidamente, que não daria tempo para ninguém notar. No tocante a si mesmo, estava muito contente com o efeito do entorpecente, que ele seria o primeiro a experimentar. De fato, assim que acionou os registros, os contornos do pequeno compartimento se lhe desapareceram dos olhos e o doutor perdeu os sentidos. Merecia bem um repouso, depois de tantas horas de horrível tensão nervosa.

 

Thomea Untcher chegara na hora certa. Aproximou-se cautelosamente da nave, com seus homens, tendo o cuidado de deixar lá fora, no barco anfíbio, os três éfogos que tremiam de frio. Abriu uma das escotilhas laterais e foi entrando. Estranhou não encontrar nenhuma recepção, até que um de seus homens desatarraxou o capacete. E, no mesmo instante, cambaleou e caiu. Em menos de três segundos ficou inconsciente.

O mistério estava decifrado. Untcher constatou que o estado de inconsciência era geral em toda a nave, e localizou Ted Dunyan sem sentidos no compartimento de aeração. Antes de mais nada, mandou recolher a bordo o barco anfíbio e depois ordenou aos seus homens que levassem para a sala de oficiais todos os inconscientes afetados com o extrato de psimo, isto é, os “companheiros” de Ran Loodey.

Thomea Untcher sabia que, para a segurança da Finmark e de todos os seus comandados, não podia fazer coisa melhor do que sair de Opghan. Pois os saltadores, a estas horas, deviam ter voltado a si e, devido aos altos lucros que esperavam do narcótico extraído da planta maravilhosa, não iam permitir que os terranos espalhassem seu segredo pelas Galáxias.

Ran Loodey já havia deixado a Finmark em condições de partir, quando, manipulado pelos saltadores, dera esta ordem. Thomea Untcher estava se arriscando a uma catástrofe, pois só havia dezessete homens aptos a bordo. Mesmo assim deu a ordem de partida. Previa que os saltadores haviam pedido reforço para atacá-los e destruí-los. Com os dezessete homens, que mal bastavam para os serviços de comando da nave, não podia usar suas salas de artilharia, caso quisesse defender-se de um ataque.

Prevendo todas estas dificuldades, transmitiu um hiper-rádio para a Terra, pedindo socorro. Não sabia nada da singular mensagem que muitas horas antes, Loodey enviara e da confusão causada por esta. Deixou passar meia hora, enquanto Ted Dunyan, com o auxílio dos inexperientes éfogos que insistiam em ser úteis injetou uma grande quantidade de ar fresco para dentro da nave. O grande interesse dos três éfogos em injetar ar para dentro da Finmark tinha sua explicação pelo fato de estarem com os pesados uniforme terranos, que lhes era muito incômodo.

Além de tudo que já fizera, o Dr. Dunyan estava preparando uma experiência muito importante. Não tivera tempo ainda de comunicar sua descoberta ao comandante Untcher, embora soubesse que Untcher, até certo ponto, estava informado sobre as propriedades psicotrópicas da misteriosa psimo, pois fora o próprio comandante que lhe dissera que os efeitos da droga podiam ser combatidos com irradiações de nêutrons térmicos. Ted Dunyan preparou uma mistura de rádio gaseificado com berilo hexafluorídrico, injetou-a também na tubulação de ar que penetrava na sala dos oficiais.

O rádio em composição com o berilo formava uma ótima fonte de nêutrons. Dunyan estava crente de que os móveis e as guarnições da sala dos oficiais, feitos de hidrocarbonetos, haveriam de termalizar os nêutrons produzidos tão rapidamente e, com isso, apressar o êxito da operação. De uma coisa estava certo: no máximo, dentro de dez horas ou teria alcançado pleno êxito ou interromperia a experiência. Pois, ao fim deste período, os homens já teriam recebido a dose total que podiam suportar. Uma irradiação mais prolongada lhes poderia prejudicar a saúde.

Depois de Ted Dunyan ter iniciado sua terapia de irradiação de nêutrons, com os homens de Ran Loodey na sala dos oficiais, e quando o interior da Finmark já estava livre do gás entorpecente oraldin, Thomea Untcher deu a partida. Os aparelhos de rastreamento não indicavam nada. Mas, depois que a nave ultrapassou os horizontes do planeta Opghan, já em pleno espaço, o oficial rastreador anunciou a presença de cinco objetos desconhecidos a uma distância de oito minutos-luz.

Eram os saltadores que se preocupavam com o que iria acontecer com o novo e promissor mercado de tóxicos.

 

A confusão na Terra durou somente até que Perry Rhodan pessoalmente tomou a iniciativa de apurar os fatos. Não podia saber o que estava se passando em Opghan, a 10.383 anos-luz da Terra. Mas estava mais que evidente: a primeira mensagem não era verdadeira e somente a segunda, de Thomea Untcher, podia ser tomada a sério.

Desde este momento, até a partida do supercouraçado Barbarossa, com o próprio Perry Rhodan a bordo, não se passaram mais do que trinta minutos.

Numa única transição, Rhodan chegou até o ponto combinado com Thomea Untcher. Este ponto não distava mais de um ano-luz do sistema Ep-Hog e Rhodan supunha que a intenção do Major Untcher era atacar diretamente o planeta Opghan.

A Finmark já estava a postos e, em redor dela, as cinco naves cilíndricas dos saltadores prontas para destruí-la. Foi-lhes uma surpresa desagradável o aparecimento da gigantesca e poderosa Barbarossa. Três das naves cilíndricas inimigas foram abatidas, as outras duas preferiram a fuga desabalada a uma inútil demonstração de coragem. A estação de rastreamento da Barbarossa assinalou que as duas naves, ao invés de retornarem para Opghan, fizeram uma curva de noventa graus. Dava a impressão de que os saltadores iriam fazer uma revisão nos seus planos a respeito de Opghan, pois a pressão de fora era muito forte.

Perry pediu ao Major Untcher que comparecesse a bordo da Barbarossa. O comandante levou o Dr. Dunyan, que lhe havia dito mais de uma vez, ter uma comunicação muito importante a fazer.

— Tive oportunidade de observar, por muitas horas seguidas — explicava Ted Dunyan — uma das vítimas dos gases inoculados na Finmark, isto é, o sargento Ran Loodey. Encontrei o agente patológico em seu sistema nervoso. Sua composição era relativamente simples, de maneira que a análise de início não ofereceu dificuldade. O quadro foi totalmente diverso, quando repeti o exame para confirmar meu julgamento. A composição tinha se alterado substancialmente, de maneira que este agente patológico passou a provocar uma nova reação...

“Isto me levou a suspeitar de outra coisa. Nesta droga não havia apenas um agente que produz um determinado efeito e com isso encerra seu ciclo de ação, e sim um que conserva esta ação indefinidamente. Normalmente, Loodey e os demais atingidos pelo agente, se amotinariam e não passaria disso. Poderiam se rebelar contra as ordens de seus superiores, mas nunca tomar iniciativas por conta própria. Mas exatamente isto é que eles fizeram. Ran Loodey é um exemplo vivo disso.

“Um outro fato esclarece mais ainda. Quando examinamos o ar de respiração na Finmark, logo depois que Loodey e os rapazes apontaram os sintomas do envenenamento, não havia mais nenhum sinal do agente patológico. Tínhamos, pois, a certeza de que o tóxico entrara a bordo através de um gás.

“As micro partículas do gás se difundiram com incrível mobilidade, inclusive através das paredes externas da nave. Desta feita os pobres éfogos, manipulados pelos saltadores, não precisavam fazer outra coisa do que desatarraxar um pouco o cilindro metálico que traziam sob o braço, para o gás penetrar na Finmark. Se fosse um gás pesado, mesmo dias após o ataque, sobrariam vestígios dele a bordo. Este não era o caso. O fato de que este gás tinha muita afinidade com o corpo humano e era por ele assimilado integralmente é a prova objetiva. E assim que atingia uma pessoa, começava seu efeito.”

Ted Dunyan encostou-se no espaldar da cadeira e enxugou o suor da testa. Agora, que estava começando a dizer o que sabia, o suor lhe vinha ao rosto. Suor do medo, talvez se tivesse enganado, talvez houvesse outra explicação para os fatos, ou uma outra maneira de combater os efeitos da droga do psimo.

— Compreendo muito bem como se deve sentir, doutor — disse-lhe Rhodan amigavelmente. — Fale sem receio nenhum. A Galáxia certamente já viu coisas tão admiráveis como este gás inteligente.

Dunyan perguntou, quase gaguejando:

— Como é que o senhor sabe disso?

— É a conclusão lógica de tudo que o senhor expôs, doutor. O senhor disse que o agente patológico, por si mesmo tinha a capacidade de se adaptar às situações, não é verdade?

Ted Dunyan admirado fez um gesto afirmativo.

— Lamento — continuou Perry Rhodan — que nenhuma de nossas línguas evoluiu ao ponto de arranjar uma outra palavra em lugar de inteligente, neste caso. Claro que é um erro considerar cada molécula do agente intoxicante como um ser inteligente. A faculdade de adaptar-se às diferentes circunstâncias, persistindo sempre no objetivo central, que deve ter parecido aos produtores do gás, os aras, como o mais importante no tóxico, é certamente uma obra-prima da química orgânica. Mas a molécula não pensa. Possui apenas uma faculdade, uma faculdade estatística, porque não são todas as moléculas, mas algumas, talvez até a maioria, que reagem corretamente na hora certa, podendo alterar-se de acordo com o fim, sem que haja uma ação externa para isto.

Olhou para Ted Dunyan, que concordou sorrindo.

— Por mais que falemos a respeito — concluiu Rhodan — para tomar o mistério mais compreensível, é e continuará sendo uma descoberta maravilhosa dos aras, de sua dedicação à ciência. Devia servir para objetivos mais nobres e não cair nas mãos mercenárias dos saltadores, que vão utilizá-la para fins condenáveis.

Isto queria dizer que Perry Rhodan resolvera terminar de uma vez por todas com a operação Opghan.

 

Poucas horas depois, as duas naves, a gigantesca e poderosa Barbarossa e a pequena Finmark voltavam para Opghan. As experiências do Dr. Dunyan tiveram sucesso total. Depois de permanecerem quase cinco horas inconscientes no salão dos oficiais, as vítimas da ação entorpecente do psimo voltaram a si, normais, sem sentir mais nada.

Não sem constrangimento, estes homens que se lembravam com toda lucidez do período de insubordinação, voltaram para seus lugares. Thomea Untcher dera ordem de que, até o término da operação Opghan, não se tocasse no assunto da droga do psimo e de seus efeitos.

No período de um dia de Opghan, Perry Rhodan executou com sucesso o que pretendia naquele planeta. Os saltadores, certamente temendo o poderio bélico terrano, abandonaram Opghan e jamais pensariam em voltar a seus negócios escusos.

A base dos aras em Pchchog também foi abandonada. Os aras acabaram confessando que possuíam em Opghan apenas o pequeno grupo de experiência em Pchchogh. Rhodan lhes deu oportunidade de entrar em contato com sua pátria e pedir uma nave para vir buscá-los.

Perry embargou e requisitou a cidade submarina de Pchchogh. Foi o único favor que ele solicitou aos éfogos recém-liberados. Tal pedido foi aceito sem a mínima oposição. O velho Grghaok viu confirmadas suas palavras de estima e de alto elogio que fizera aos terranos, mesmo antes de conhecê-los e passou a gozar de grande prestígio entre seu povo. Ao lado de Nrrhooch e de Lchox, foi celebrado como o homem que iniciara a luta pela libertação dos éfogos.

Perry Rhodan não perdeu nenhuma palavra sobre o fato de que a descoberta do entorpecente contido no psimo representava um avanço fantástico na defesa do Império Solar.

 

A bordo de uma espaçonave cilíndrica, neste momento já a mil anos-luz de Opghan, um barbudo corpulento cocava o pescoço, dizendo para um outro, cuja barba, porém, devia ser postiça, embora fosse muito bonita:

— Sabia que o negócio ia acabar mal. Quando os terranos metem o nariz em nossos interesses comerciais, saímos sempre levando na cabeça.

E o de barba postiça respondeu, ura tanto abatido:

— Temos de fazer um pouco de higiene mental pára nos livrarmos do complexo de inferioridade com relação aos terranos. ;

— E você acha que venceremos este complexo?

 

Todo perfilado, o sargento Ran Loodey fez a continência para o Major Thomea Untcher, que à paisana entrava no posto de comando. Olhou para Loodey, desconfiado, e disse:

— Como é? Desta vez você não faz nenhuma referência ao “asilo dos desabrigados”?

— Não, major! Durante muitas horas, eu é quem merecia ir para uma clínica de neurologia.

 

                                                                                            Kurt Mahr  

 

                      

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