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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Planeta Topsid Favor Responder / Kurt Brand
Planeta Topsid Favor Responder / Kurt Brand

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Planeta Topsid Favor Responder

 

O ano-novo chegou...

Poucos desconfiam de que tal ano, tão efusivamente comemorado, será um período importante para os destinos da Humanidade. Será o ano da grande decisão...

O Império Solar, que é uma organização minúscula em comparação com o Império dos arcônidas ou com o Universo dos druufs, vê-se literalmente entre dois fogos. Bastava uma fagulha para desencadear a guerra que atingiria o sistema solar. E, por uma falha, esta fagulha já está acesa há 73 anos... e se chama tópsidas!

 

                       

 

Tudo começou a dois dias, na festa do ano-novo.

A morte de Thora ainda lançava sua sombra sobre o reduzido número de homens que comandavam os destinos do Império Solar. No entanto, mesmo estes celebraram a despedida do ano de 2043, embora não o fizessem nos moldes usuais.

E foi durante esses festejos que aconteceu...

Com um movimento infeliz, Reginald Bell derrubou um cálice de conhaque que se encontrava sobre a mesa. O conteúdo esparramou-se e o vidro esfacelou-se no chão. Bell abaixou-se para reunir os cacos e... sofreu um pequeno corte na ponta do polegar esquerdo.

Todos esperavam ansiosos pelo ano-novo. Chupando o dedo ensangüentado e fitando o grande relógio, Bell parecia uma estátua.

— Tomara que isso não signifique uma desgraça — disse, proferindo as palavras com certa dificuldade, porque continuava com o dedo na boca.

Perry Rhodan, Crest, Freyt e Mercant lançaram-lhe um olhar meio alegre, meio irônico. Mas todos se sentiram tocados por essas palavras, pois ninguém estava acostumado a ver Bell acreditar nas feitiçarias astrológicas ou em maus presságios.

A conversa agradável do pequeno grupo foi interrompida pelo incidente. Perry Rhodan também olhou para o relógio.

Dali a três minutos começaria o ano de 2.044; estava na hora de encher os cálices de champanha.

Finalmente Bell tirou o dedo da boca, pegou um lenço muito bem dobrado e enrolou-o.

— Tomara que isso não...

As outras palavras foram abafadas pelo barulho infernal vindo de fora. O ano-novo havia chegado! Para cumprimentá-lo, a cidade de Terrânia, capital do Império Solar, recorreu a tudo que pudesse produzir barulho. As sereias uivaram, as buzinas de alarma começaram a berrar. Os fogos de artifício subiam ao céu límpido, produzindo um barulho infernal. No mesmo instante foram ligados os propulsores de impulsos das naves esféricas, cujo trovejar participou do coro de cumprimentos, enquanto os campos de tração bem regulados mantinham as naves da frota terrana presas ao campo de pouso.

Em meio à atmosfera acolhedora da residência de Rhodan, raras vezes utilizada, cinco homens brindaram a chegada do ano-novo. Não estavam em condições de conversar sobre os sucessos e os fracassos do passado e refestelar-se nas recordações, pois a situação geral não estava para isto. Apesar de tudo, conservavam uma boa dose de otimismo.

A única exceção era Bell, do qual nunca se teria esperado uma atitude desse tipo.

— Você deu para ficar supersticioso, gorducho? — perguntou Rhodan, dirigindo-se ao amigo corpulento, cujos cabelos ruivos e curtos mais uma vez estavam arrepiados.

— Não — respondeu Bell, descansando o copo. — Mas olhem só!

Apontou para os cacos de vidro espalhados pelo chão.

— Este cálice foi feito de vidro inquebrável. E aí estão os cacos de sua indestrutibilidade. Não sou supersticioso. Acontece que estes cacos, que em hipótese alguma deveriam provocar cortes, me feriram o dedo. Isso só pode ser mau sinal.

— E ainda vem me dizer que não é supersticioso? — perguntou Rhodan, sorrindo para seus amigos e colaboradores, que se divertiam com a atitude de Bell.

— Nunca fui! — afirmou o gorducho em tom enérgico.

Bell esteve a ponto de começar tudo de novo, mas nessa altura Allan D. Mercant, chefe do Serviço Solar de Segurança, interveio na palestra.

— Cadê sua lógica, Mister Bell?

O gorducho respondeu prontamente:

— Os maus presságios nunca tiveram lógica!

Perry Rhodan deu uma risada.

— Desisto! — disse. — À saúde do ano de 2.044, gorducho!

Levantou o cálice de champanha e brindou para seu melhor amigo.

Este esvaziou o cálice de um só gole. Ao descansá-lo, disse:

— Só desejo uma coisa: que o ano de 2.044 passe o quanto antes e que estejamos em condições de festejar a próxima passagem de ano.

— Está falando isso só por ter machucado o dedo? — perguntou Rhodan em tom irônico.

Perry usou de certa aspereza, pois Bell estava prestes a espantar a disposição alegre dos convidados. Nessas poucas horas em que os homens que respondiam pelos destinos do Império Solar se reuniam em caráter particular, não se devia falar dos problemas do dia-a-dia. Perry Rhodan dera a entender em termos bem claros que desejava mudar de assunto.

Mas Bell devia ter cera nos ouvidos.

— Não é por isso — disse, voltando ao mesmo assunto. — É porque este copo, que devia ser inquebrável...

— Chega, gorducho! — interrompeu Rhodan. Pegou a garrafa de conhaque, colocou-a à sua frente, enquanto com a outra mão trazia outro cálice, em substituição ao que se quebrara. Depois num tom que quase chegava a ser de comando: — Sirva-se, meu velho. Tome uns tragos. Você está precisando!

 

As primeiras horas do ano foram muito agradáveis a todos.

Mas quando se separaram, pelas três da madrugada, Bell fez questão de dizer a última palavra.

— As coisas irão engrossar, ou então eu não me cortei nestes cacos de vidro inquebrável... Nesse caso, apenas terei sofrido uma alucinação.

Ninguém o contestou. Todos estavam ansiosos por uma boa cama, mas ninguém conseguiu esquecer o súbito pessimismo de Reginald Bell, cujas brincadeiras lhes custaram ao menos uma hora de sono.

 

— Devagar! — gritou O’Keefe, supercansado, para dentro do microfone da estação de transmissão de matéria número D-18, situada no setor lunar Han/456. Dirigia-se ao colega, que operava a estação sincronizada localizada na Terra. — Será que logo no primeiro dia do ano vocês querem quebrar um recorde? Esperem um minuto para mandar a peça 762 da fita rolante. Meus robôs estão esquentando e os campos antigravitacionais começam a transpirar.

É claro que na Lua não havia robôs que esquentassem ou campos antigravitacionais que transpirassem, mas O’Keefe não conseguia acompanhar o ritmo da estação com a qual estava sincronizado. Apesar do cansaço, proveniente de uma animadíssima festa de ano-novo, acabara de constatar que, a dois quilômetros dali, acabara de ocorrer uma pane na montagem da fita rolante número 66. Um espaço oco situado pouco abaixo da superfície lunar ruíra silenciosamente, arrastando e, provavelmente, soterrando parte da estrada rolante e alguns robôs de trabalho.

Naquele instante, viu o sinal vermelho. A estação transmissora de matéria, situada na Terra, foi paralisada.

A central de vigilância positrônica da Lua deu sinal. Esse centro de computação controlava o processo extremamente complicado de montagem. Estava em condições de registrar até 250 mil fatos por segundo, ocorridos nos mais diversos lugares, e compará-los com o cronograma de montagem introduzido em seu setor de programação. Cabia ao centro de computação intervir no caso de uma pane, recorrendo, se fosse o caso, às reservas de robôs de trabalho, a fim de que o atraso no cronograma pudesse ser compensado dentro de duas horas.

A velha lua terrana estava transformada num único canteiro de obras.

E com isso estava perdendo suas feições.

O homem, que habitava a Lua, teve de mudar de residência, pois Perry Rhodan estava tomando seu lugar. O Administrador-Geral via-se numa situação de emergência. Na Terra não havia mais lugar para nada. Não havia onde montar as gigantescas fitas rolantes nas quais se realizava a produção em série de naves esféricas. Ao lado delas ficavam as indústrias acessórias de elevado potencial de produção, nas quais se fabricavam os conjuntos, peças e pecinhas necessárias à fabricação das naves.

Na Lua havia espaços imensos. De início, foram instalados no satélite da Terra grandes estações transmissoras de matéria, sincronizadas com as respectivas estações da Terra. Uma vez concluída essa tarefa, teve início um fluxo de materiais da Terra à Lua. Tal fluxo faria supor que o planeta se privaria de todas as suas indústrias.

O satélite da Terra transformou-se no grande arsenal do Império Solar. Rhodan investira nesse grande centro de produção de armamentos mais de cem milhões de solares.

Naquele momento surgira uma pequena pane durante a construção da fita rolante número 66. Os incidentes desse tipo aconteciam cem vezes por hora e não seriam capazes de perturbar a execução do plano. Mais de cinqüenta faixas rolantes já estavam completamente instaladas. Algumas centenas de milhares de robôs especializados cumpriam seus programas, que previam a construção de naves esféricas destinadas ao Império Solar.

A idéia de transformar todo um mundo num arsenal não fora concebida por Rhodan.

Árcon já a praticara há mais de 15 mil anos. No entanto, não utilizou nenhuma lua, mas um planeta, que foi arrancado de sua antiga órbita e introduzido em outra.

Dezoito minutos depois que a luz vermelha se acendeu no transmissor de matéria da D-18 e na estação sincronizada da Terra — ou seja, dezoito minutos depois do desmoronamento de um espaço oco na altura da linha de montagem avançada da fita rolante 66 — tudo voltara a correr como antes. Uma hora e meia depois disso, o atraso no cronograma foi recuperado, apesar do cansaço de O’Keefe.

Cullins, que naquele momento tinha a seu cargo a produção de sondas-foguete, sentiu-se desesperado.

— Por que é que os druufs e os arcônidas não vão para o inferno? — disse com a voz martirizada, mas logo se esqueceu tanto dos druufs como dos arcônidas.

O que lhe interessava era o pedido lacônico vindo de Terrânia, que solicitava a remessa imediata, pelo transmissor de matéria, de 4.500 sondas-foguete de determinado número, a serem expedidas para o espaçoporto da capital do Império Solar.

Cullins não as tinha. Acontece que junto à zona de descarga havia uma necessidade desesperada das mesmas. A luta rugia sem cessar: arcônidas e druufs procuravam forçar uma decisão. Os veículos espaciais robotizados do Grande Coordenador, o computador-regente de Árcon, faziam caça às sondas-foguete com a mesma energia que os druufs.

Os foguetes-espiões de Perry Rhodan eram derrubados em série. Mas alguns deles retornavam da área de superposição, trazendo informações preciosíssimas às naves terranas estacionadas nas profundezas do espaço, mantendo a Terra cientificada sobre a movimentação das frotas inimigas e sobre o tipo das tripulações. As naves incumbidas das observações eram cruzadores ligeiros da classe Cidade. Tinham uma tripulação bem treinada, mas seu armamento era bastante débil. Em compensação seus mecanismos propulsores eram extremamente fortes, permitindo-lhes que, dentro de cinco minutos, atingissem a velocidade da luz.

Cullins tamborilou sobre a escrivaninha. Imaginava o que aconteceria quando informasse a Terra de que dispunha apenas de pouco menos de 3 mil sondas. A indagação visual só agora lhe trouxe o resultado da consulta formulada ao computador positrônico.

As 1.500 sondas que faltavam só estariam prontas para serem remetidas dali a 27 horas, 42 minutos e 7 segundos. Com um nervosismo tremendo, aguardou a ligação radiofônica com a Terra.

O chefe do depósito H-89, Mister Gibbons, apareceu na tela. Fora ele que pedira o elevado número de sondas.

Exibiu um rosto de jogador de pôquer.

— Pois nesse caso tenho pena do senhor, Cullins, mas não poderei deixar de informar o chefe...

— Informar quem? — disse Cullins, interrompendo o tal do Mister Gibbons que se encontrava na Terra. — Pretende informar Perry Rhodan?

— Quem poderia ser? Pois foi ele que deu ordem para enviar 4.500 sondas-foguete à zona de descarga. Parece que não se trata de um pedido rotineiro. Não é sempre que Rhodan cuida desse tipo de assunto. Ao que parece, o ambiente está “engrossando” em algum lugar e, ao que supomos, eles precisam das sondas para verificar quem será atingido por tal ambiente. Prepare-se para ouvir umas boas, Cullins.

Cullins estremeceu quando o sinal de identificação da Administração surgiu na tela, indicando que um personagem muito importante queria falar com ele.

Mas quando viu o rosto largo de Reginald Bell suspirou aliviado. Ninguém o chamava assim. Todos só o conheciam como Bell, mas isso em nada afetava sua personalidade. Ele mesmo não levava muito a sério as questões de etiqueta, e não se importava se vez por outra alguém soltava um palavrão.

— Cullins — exclamou Bell, sacudindo a cabeça com os cabelos curtos e arrepiados. — Se daqui a duas horas as duas naves-transportadoras com as 4.500 sondas não puderem decolar, eu o cortarei em pedacinhos. Não me venha com desculpas! Não as posso aceitar. Bem que eu imaginava que uma coisa dessas iria acontecer. Não foi por nada que cortei o dedo. Repito: esses foguetes estarão aqui embaixo dentro de uma hora, Cullins!

Cullins prendeu a respiração e gritou com a coragem do desespero:

— Não estarão, Bell...

Acabara de contrariar uma ordem do lugar-tenente de Perry Rhodan, o segundo homem do Império Solar. Reginald Bell nunca lhe perdoaria tamanho atrevimento.

Mas Bell soltou uma gargalhada.

— O que está acontecendo aí em cima? Por que nossos dados não conferem com os de vocês?

A Lua sempre era em cima, onde qualquer homem a via no céu; em conseqüência, a Terra era embaixo.

Quando Cullins ouviu a risada de Reginald Bell, o peso de uma lua parecia cair-lhe em cima. E a pergunta sobre a diferença nos registros deixou-o ainda mais aliviado.

— Acontece que modificamos a linha de produção, Mister Bell. Todo o estoque de sondas foi transformado em sucata, porque eram muito fáceis de serem localizadas. Eu os informei sobre isso pelos canais competentes. Foi há três... não, há quatro dias.

— Pelos canais competentes! — Bell soltou estas palavras num gemido. — Cullins, não posso culpá-lo por isso. Seu procedimento foi absolutamente correto. Acontece que sempre que ouço as palavras “canais competentes” lembro-me de uma tremenda surra que levei de meu pai, porque este soube pelos “canais competentes” que seu filho era o “engraçadinho” que há dois meses fazia aparecer todas as noites um fantasma em nosso bairro. Na oportunidade, meu pai mandou criar um setor especial na polícia, a fim de localizar o autor desse fenômeno, que já provocara a mudança de mais de vinte filhos... Canais competentes! Quando é que poderemos contar com as sondas, Cullins?

— Dentro de vinte e oito horas, Sir.

Reginald Bell fez um gesto de resignação.

— Está bem. Quero ouvir agora os dados mais importantes sobre as novas sondas. Então?

— Até hoje, de cada cem sondas enviadas ao espaço, retornavam na melhor das hipóteses 7,38 peças. Na nova versão essa proporção mudou para 21,83.

— Os engenheiros costumam usar uma linguagem rebuscada — disse Bell, sacudindo levemente a cabeça. — Quer dizer que, com as modificações realizadas nas sondas, costumam retornar vinte e duas de cem, em vez de sete por cem. E o senhor tem em estoque três mil dessas novas sondas?

— Sim senhor. São exatamente três mil sondas.

Bell soltou uma estrondosa gargalhada. Pitou Cullins e sacudiu a cabeça.

— Vocês são de amargar! — disse subitamente com a voz irônica e satisfeita. — Para que vamos querer mais de quatro mil sondas, se o produto novo é três vezes mais eficiente que o antigo? Mande duas mil sondas cá para baixo, Cullins. Elas equivalem a seis mil peças do tipo antigo. Se sua previsão não for correta, acho que o senhor sabe para onde terá de ir, não sabe?

— Mister Bell — disse o homem em sua defesa — as indicações que acabo de fazer provêm de cálculos positrônicos...

— ...e o corte que levei no dedo provém de vidro inquebrável. Desligo.

Cullins suspirou aliviado e enxugou o suor da testa. Lançou um olhar perturbado para a tela que acabara de apagar-se.

— Por todas as estrelas e galáxias! — cochichou. — O que é que um cálculo positrônico tem a ver com uma peça de vidro inquebrável?

Cullins jamais obteria resposta a essa indagação.

Mas, hora e meia depois da palestra entre Cullins e o lugar-tenente de Rhodan, uma moderada nave mercante decolou do espaçoporto de Terrânia, levando a bordo 2 mil sondas-foguete do novo tipo, destinadas ao aprovisionamento dos cruzadores ligeiros da classe Cidade, estacionados nas profundezas da Via Láctea.

A barra realmente estava pesada em determinado ponto da Galáxia. Dentre as inúmeras notícias recebidas havia duas que Rhodan passou a Bell e Atlan, sem dizer uma palavra.

— Acho que isso é apenas um fenômeno isolado — disse Atlan num assomo de otimismo.

— É apenas o começo! — contestou Bell em tom convicto, sem deixar que os rostos de Rhodan e Atlan o fizessem vacilar em sua opinião. — Não posso deixar de pensar em meu dedo.

Perry Rhodan perdeu um pouco de seu admirável autodomínio.

— Deixe-nos em paz com suas infantilidades. Nem mesmo Gucky engoliria uma bobagem dessas. Por que acha que esse acaso representa o início de um processo?

A irrupção temperamental de Rhodan não abalou o homem maciço de cabelos cortados à escovinha.

— Representa um começo porque estamos lidando com o grande Coordenador de Árcon. Como sabemos, é um computador, e nunca me constou que uma máquina desse tipo fosse capaz de deixar-se levar por qualquer das inúmeras fraquezas humanas. Pelo que diz esta notícia, uma das naves do Império, que até aqui tem sido dirigida por robôs, passou a ser guiada por três mercadores galácticos. E a outra notícia diz que o robô-comandante de outra nave foi substituído por um ara. Para mim isso apenas permite uma conclusão: “Sua Majestade, o Grande Coordenador” achou que estava “gastando” muitos robôs. Esse monstro mecânico julga mais vantajoso contar com a previsão humana que com a programação dos robôs que leva a luta até o fim, isto é, até a destruição total da nave. O cérebro positrônico diz: se minhas naves farejarem os druufs...

— Será que não poderíamos usar uma expressão mais elegante? — interveio Rhodan em tom áspero.

Naquela situação não estava disposto para brincadeiras e, além disso, tinha verdadeira alergia pelas expressões grosseiras.

— Podemos, Perry, mas o faro continua a ser um fato. Pois bem. Prossigamos no raciocínio do computador. O mesmo há de dizer o seguinte: se as naves dos druufs forem avistadas, os robôs lutarão para vencer ou perecer, enquanto os condutores humanos, ao perceberem que a situação se tornou desesperadora, procurarão salvar sua pele e, com isso, a nave que comandam.

“Por isso mesmo o conteúdo das duas notícias relativas ao remanejamento da frota arcônida representa o início de uma evolução muito inquietante da situação. O desgaste de material causado pelos autômatos já deixou o computador com o focinho...”

Rhodan interrompeu-o com a voz áspera; seu rosto enrubesceu ligeiramente.

— Caramba, Bell, exijo que você se exprima em melhores termos!

— É claro que você tem razão, Perry — confessou Bell com uma espantosa rapidez. — Somente porque o computador-gigante de Árcon não tem focinho...

Enquanto os dois se digladiavam no duelo verbal, Atlan manteve-se em silêncio.

Naquele instante sentiu inveja porque Perry Rhodan tinha um amigo como Reginald Bell.

Rhodan, um homem disciplinado até a ponta dos dedos e duro para consigo mesmo, sentia-se dominado pela missão de fazer da Humanidade terrana a dominadora do Universo. E esse homem tinha a seu lado um amigo que nunca negligenciava seu dever, mas que sabia recuperar-se das fainas incessantes, apresentando-se como realmente era: generoso, desinibido, mas esquentado. Face a seu gênio impulsivo, não se importava de vez por outra soltar uma expressão pesada. Com isso, não apenas aliviava sua própria tensão. Também proporcionava a Rhodan uma válvula que lhe permitia aliviar a carga psíquica, mesmo que fizesse apenas por meio de uma resposta violenta como a que acabara de dar.

Nessa altura, Atlan interveio nos debates:

— Bárbaro, seu amigo de falas indisciplinadas avaliou a situação melhor que você e eu...

Bell observou, falando de propósito com a voz tão alta que Atlan não poderia deixar de ouvi-lo:

— Um dia eu retribuirei isso, almirantezinho. Continue a falar. Gosto tanto de ouvi-lo!

Atlan não se deixou perturbar pela observação, mas não se esqueceu de registrar a ameaça de Bell. Se havia alguém que costumava cumprir uma promessa desse tipo era o amigo de Rhodan.

— Temos de contar a qualquer momento com a possibilidade de que por alguma circunstância ou coincidência, cujas conseqüências seriam graves para nós, o computador-regente fique sabendo que o Império Solar está por trás dos ataques incessantes dos druufs, e que este Império os induz aos ininterruptos atos de agressão.

Rhodan parecia cético.

— Almirante, não posso concordar com isso porque...

Atlan respondeu em tom grave:

— No episódio de Fera Cinzenta minhas advertências não foram levadas a sério. Se não conservarmos ao menos uma chance de enganar Árcon com um blefe ou um truque, poderemos ter certeza de que, talvez, seis meses após a última batalha junto à área de superposição, as naves de Árcon pousarão neste espaçoporto. Nesse caso, a luz do sol mal conseguirá chegar à Terra, porque algumas dezenas de milhares de naves estarão em torno do planeta...

— Até parece que foi ele que cortou o dedo numa peça de vidro inquebrável...

Com isso conseguiu fazer que até mesmo Atlan se descontrolasse:

— Mister Bell, cale a boca! Caram...

Bell levantou-se devagar, com um sorriso impertinente no rosto. Fez um gesto conciliador para Atlan, que se martirizava com auto-recriminações pelo deslize que acabara de cometer, lançou um olhar para o administrador-geral e dispôs-se a sair.

— Amigos — disse num tom irônico e altivo. — Pela disciplina de nossa linguagem merecemos a nota dez. Porém, se alguém fosse avaliar nosso desempenho em relação ao receio pelo destino do Império Solar, todos receberíamos a nota insuficiente.

Já estava junto à porta. Não ria mais. E também já não falava no dedo cortado. Limitou-se a dizer:

— Graças aos ataques dos druufs, o computador-regente de Árcon hoje é mais forte que nunca. Os povos que compõem o Grande Império, e que são mais de mil, obedecem-lhe sem restrições. Quantas naves tem na frente de luta? Oitenta mil? Cem mil? Pouco importa que até o fim da luta Árcon perca a metade dessas naves. Para nós isso é totalmente indiferente, pois não temos condições de enfrentar cinqüenta mil veículos espaciais, ou dez mil.

“Mas não é isso que me tira o sono. Perry, em certa oportunidade, você e eu deixamos de considerar um fator muito importante. Desde o primeiro dia do ano não consigo livrar-me dessa idéia. E, desde então, fico dando tratos à bola para descobrir o que deixamos de perceber. Ainda não consegui saber. Apenas sei que tem algo a ver com Árcon. Boa noite, Império Solar!

“Não temos motivo para entreter a esperança de dispormos de um prazo de espera até o fim das lutas junto à zona de descarga. É bem verdade que vez por outra tenho chamado o computador-regente de montão de lata. Hoje já sei por que andei fazendo isso. No meu subconsciente sempre tenho certo receio por esse gênio desalmado. Usei a expressão difamatória somente para enganar a mim mesmo. Desde o ano-novo, os dados foram lançados.

“Basta que, entre as centenas de milhões de conjuntos de processamento de dados de que dispõe, o computador positrônico ponha em funcionamento apenas um. Esse conjunto começará a calcular, e todos sabemos que o faz muito depressa. Também sabemos que nunca se esquece de qualquer detalhe. O cérebro registrou a identidade de quem se dispôs a adquirir cem naves esféricas. O cérebro-monstro não levará mais de um segundo para calcular o tamanho de nossa frota espacial, e então as coisas começarão a ficar pretas para nós, mesmo que haja uma guerra galáctica junto à área de superposição.

“De uma hora para outra, as naves arcônidas estarão aqui, e então você e eu, Perry, poderemos fazer continência para os robôs, enquanto uma dessas máquinas transformará o almirante numa nuvem de gás por ver nele um traidor. Isso será inevitável, a não ser que hoje ou amanha descubramos o que nos passou despercebido há certo tempo.

“Até logo mais.”

Perry Rhodan fitou-o pensativo. Atlan não disse uma única palavra. As advertências e as previsões sombrias de Reginald Bell o haviam atingido mais fortemente do que queria dar a perceber.

Depois de algum tempo, Rhodan disse:

— Então este é Bell! Desde a festa de ano-novo transformou-se num pessimista.

— Será que isso realmente não passa de pessimismo?

Rhodan lançou um olhar de surpresa para o arcônida.

— O que quer dizer com isso?

— O que eu quero dizer, Perry, é que sem Reginald Bell você nunca teria criado o Império Solar. Ele tem a sensibilidade correta no momento adequado, e, além disso, tem coragem de dizer que está com medo. Perry, será que um homem que prevê as nossas futuras dificuldades é um pessimista? Ou será um realista?

O administrador-geral refletiu intensamente. Os traços de seu rosto estavam fortemente desenhados. As mãos pousavam suaves sobre as braçadeiras de sua poltrona.

— Por enquanto ainda não sei dizer se ele é um pessimista ou um realista, arcônida. Tenho que dormir sobre isso.

Atlan parecia satisfeito com essa decisão, pois acenou com a cabeça. Mas depois de algum tempo perguntou:

— Perry, será que poderia dizer o que vocês esqueceram ou deixaram de considerar?

O rosto de Rhodan demonstrou uma leve surpresa.

— Será que você também já se impressionou com esse dedo ridículo de Bell? — perguntou em tom indignado.

O arcônida respondeu com a maior calma:

— Ora, bárbaro, acho que essa pergunta ficará sem resposta. Mas não quero fazer pouco das previsões algo confusas de Bell. Devemos preparar-nos para podermos reagir com uma extrema rapidez a qualquer surpresa desagradável com que nos deparemos. Isso se torna necessário à segurança do Império Solar.

— Hum — fez Rhodan. — Sei a que está aludindo: a Fera Cinzenta. Antes da destruição desse mundo, eu deveria ter dado mais importância a seus avisos. Caso dissesse que ninguém poderia prever que uma pane num neutralizador de vibrações fosse apontar o caminho às naves de Árcon, apenas estaria apresentando hoje uma desculpa barata. O.K.? Bell não é nenhum pessimista, mas um realista.

— Seu zombador! — respondeu Atlan.

 

A situação estratégica da Terra piorava a cada dia que passava. Rhodan e seus homens estavam perdendo o controle da situação.

Em virtude da colisão de dois Universos que se distinguiam pela diversidade das dimensões temporais, o Império de Árcon se tornara mais forte que nunca, apesar de toda decadência e dos movimentos de independência das centenas de raças que o compunham. Os ataques incessantes da frota dos druufs, que lançava mão de todos os recursos disponíveis para forçar a penetração no Universo einsteiniano, fizeram com que, depois de cinco mil anos de decadência ininterrupta, o Grande Império governado por um computador positrônico voltasse a alcançar a união.

A frota de guerra de Árcon, até então separada em centenas de pequenos grupos que operavam em todos os setores da Via Láctea, voltara a constituir uma força compacta, que realizava o bloqueio junto à zona de descarga, onde dois Universos se tocavam e se sobrepunham em pequena extensão.

Enquanto duravam as batalhas entre os druufs e os arcônidas, nas quais os gastos eram astronômicos, não havia um perigo imediato para o Império Solar. Acontece que, segundo os cálculos dos peritos em tempo e espaço de Rhodan, a zona de descarga se tornaria instável dentro de uns doze meses. Então a passagem de um Universo para outro seria fechada. Isso representava o alarma máximo para a Terra e uma liberdade de ação absoluta para o Grande Coordenador, que poderia lançar 80 mil naves de guerra para vasculhar a Galáxia à procura do tal Império Solar, que, segundo os cálculos do gigantesco computador, representava uma ameaça mais forte para Árcon que a luta feroz contra os druufs.

Rhodan, que esperara tirar proveito da luta entre os dois gigantes, já se convencera, depois da destruição de Fera Cinzenta, de que isso jamais poderia acontecer.

Todas as precauções destinadas a manter oculta a posição galáctica da Terra já haviam sido tomadas. Depois do episódio da pane do neutralizador de vibrações, ocorrida nas proximidades de Fera Cinzenta, o intercâmbio comercial com outros mundos, que vinha se tornando cada vez mais intenso, fora reduzido a um mínimo. No entanto, Rhodan, Bell e Atlan estavam convencidos de que essas medidas apenas lhes proporcionariam um ganho de tempo. Um belo dia, Árcon descobriria a Terra.

O Marechal Allan D. Mercant, chefe do Serviço Solar de Segurança, que se conservara jovem graças à ducha celular aplicada no planeta artificial Peregrino, estava reunido com John Marshall, chefe do Exército de Mutantes, Perry Rhodan e Atlan.

Allan D. Mercant comparecera à entrevista sem levar qualquer anotação. Neste ponto assemelhava-se a Perry Rhodan, que raramente recorria a dados fixados por escrito, pois preferia buscar, em reuniões como esta, soluções obtidas de improviso.

Apesar dos grandes méritos alcançados nas ações empreendidas a favor da Galáxia, Allan D. Mercant era um homem modesto. Criara um serviço de comunicações que dificilmente encontraria par. Seus agentes estavam espalhados pelos planetas mais importantes do Grande Império, e as mensagens de rádio transmitidas por tais especialistas refletiam a verdadeira situação do Império Arcônida.

Enquanto Mercant apresentava seu relatório, Rhodan e Atlan mantiveram-se em silêncio.

John Marshall parecia distraído. Mas os homens, ali reunidos, já o conheciam bastante para não se deixar iludir pela expressão de seu rosto.

Naquele momento, John Marshall estava captando os pensamentos de Reginald Bell. Ficou sabendo de que forma este se cortara durante a festa de passagem de ano.

Marshall levou o incidente a sério. Lembrou-se da oportunidade em que Bell manifestou ruidosamente sua antipatia instintiva contra o planeta Honur, bloqueado pelos arcônidas. Daquela vez, ninguém, nem mesmo Rhodan, o levara a sério. E, quando a catástrofe desabou sobre a tripulação da Titan, e oitocentas pessoas, entre elas Thora, Crest e Bell tiveram a vida ameaçada por um estado de hipereuforia, já era tarde para dar atenção às advertências de Bell.

Enquanto Mercant prosseguia no seu relatório, Marshall continuava a “ouvir”. “Corremos à velocidade da luz para uma situação que ameaça devorar-nos. Os mutantes devem ser chamados de volta à Terra o mais cedo possível, a fim de que possam intervir nos acontecimentos”, pensava Reginald.

Depois Bell, a alguns andares abaixo do lugar em que estava Mercant, passou a dedicar sua atenção a outros problemas, e o chefe do Exército de Mutantes voltou a participar integralmente da palestra.

A visão do futuro deixava evidente que o Império Solar se encontrava em situação defensiva.

— Se nos limitarmos a esperar, estaremos praticando a política do avestruz — disse Rhodan. — O grande computador deve ser posto fora de ação antes que sejam travadas as últimas batalhas espaciais entre os arcônidas e os druufs...

— Ora, bárbaro! — interrompeu Atlan em tom enérgico. — Justamente isso é impossível. Deixar o Grande Império sem o computador-regente seria a mesma coisa que detonar no grupo estelar M-13 uma bomba de fusão de dimensões galácticas. Assim não é possível. Aliás, seria ocioso discutimos este ponto, pois ainda não encontramos nenhum meio que nos pudesse levar a Árcon III. Estamos... Olhe, o interfone está chamando.

A tela cinzenta tremeluziu ligeiramente e mostrou o rosto do chefe de uma das grandes estações de hiper-rádio de Terrânia.

— Sir, não consegui entrar em contato com Mister Bell. Recebi certas notícias vindas do espaço que, no meu entender, devem ser consideradas imedia...

— Transmita pelo vídeo! — ordenou Rhodan.

O rosto do chefe da estação de hiper-rádio desapareceu da tela. Em seu lugar surgiu um texto.

 

0005-1 ao chefe.

Resumo das observações, após o retorno das sondas-foguete 456-18, 19, 34 e 65. O 82o grupo de naves ligeiras da frota CCDXII de Árcon foi retirado das linhas de combate hoje, às 5h54m34seg tempo de Terrânia. Todos os oficiais robotizados abandonaram suas unidades e foram colocados a bordo da nave de carga H-56 874.

Às 11h3m21seg, tempo de Terrânia, o comando das unidades do 82o grupo de naves ligeiras foi assumido por tópsidas.

Às 14h33m06seg, o grupo voltou à frente de combate.

0005-1 ao chefe.

 

Naquele instante, Perry Rhodan teve a impressão de ver seu Império Solar esfacelar-se sob os golpes de fogo das gigantescas naves de Árcon.

— Obrigado! — disse para dentro do microfone.

— E as outras notícias, Perry? — perguntou o arcônida, um tanto contrariado.

Allan D. Mercant e John Marshall não conseguiram ler a mensagem projetada na tela. Não sabiam do que se tratava.

Rhodan não tomou conhecimento da pergunta de Atlan. Pálido e nervoso, dirigiu-se a Mercant e Marshall.

— O 82o grupo de naves ligeiras da frota CCDXII de Árcon passou a ser tripulado por tópsidas.

O Marechal Allan D. Mercant, que era um exemplo de autocontrole, levantou-se de um salto. A reação de John Marshall não foi tão forte. Pôs as mãos na cabeça e murmurou:

— Tópsidas... tópsidas...!

Atlan fez soar sua voz forte.

— Será que também posso ser informado? Como é que esses lagartos podem tangê-los para dentro das tocas?

Perry Rhodan levou apenas alguns segundos para recuperar sua calma proverbial. Fitou Atlan, que lhe lançava um olhar provocador.

— Os lagartos do planeta Topsid não nos tangerão para as tocas. Mas, com o auxílio de Árcon, que lhes será prestado de boa vontade, eles nos obrigarão a sair do nosso esconderijo. É que os tópsidas conhecem a posição da Terra há mais de setenta anos, com um erro de medição de apenas vinte e sete anos-luz.

— Ora, bárbaro! — revidou Atlan em tom penetrante. — Vocês têm um certo humor grosseiro. Acontece que desta vez minha inteligência arcônida não consegue compreender. Esta piada...

— É uma piada da história, Atlan — completou Rhodan em tom amargurado.

— Será que vocês não me poderiam dizer logo onde está a graça? — perguntou o arcônida em tom áspero. Em seus olhos amarelentos havia um perigoso brilho. — Como é que os lagartos têm conhecimento da posição da Terra, com um erro de apenas vinte e sete anos-luz? Por que ainda estão sentados em seus lugares? Rhodan, será que o que você acaba de dizer não é nenhuma piada? Será que vocês realmente se esqueceram de que os tópsidas conhecem o local aproximado em que a Terra gira em torno do Sol?

— Isso mesmo — confessou Perry Rhodan. — Nestes últimos setenta anos ninguém se lembrou disso. E agora o computador-regente fez dos tópsidas os comandantes de alguns dos couraçados arcônidas. Basta que alguém cite meu nome, para que uma certa lembrança seja despertada. E, com toda certeza, três horas depois, alguns milhares de naves arcônidas vasculharão este setor da Via Láctea, partindo da fixação goniométrica de um ponto situado a vinte e sete anos-luz daqui.

Perry Rhodan apresentou um relato resumido dos acontecimentos anteriores.

Tudo começou quando a nave exploradora de Thora foi obrigada a realizar um pouso de emergência na lua terrana, isso porque os tripulantes degenerados se haviam esquecido de levar certos acessórios.

Uma mensagem de hiper-rádio foi dirigida ao sistema estelar M-13, a fim de informar Árcon, naquele tempo ainda não governado por um computador. Mas Árcon não prestou atenção à mensagem, ou então esta não chegou ao destino, em virtude de um dos raríssimos fenômenos de interferência. Acontece que a raça inteligente de lagartos, que vivia no planeta Topsid, no sistema de Orion-Delta, realizou a localização goniométrica do ponto de expedição da mensagem. No entanto, tal raça não se deu conta de que, em virtude de um erro na determinação da coordenada chi, havia uma divergência de vinte e sete anos-luz.

Logo depois, os lagartos de Topsid foram procurar a Terra e o cruzador arcônida no sistema de Vega, onde encontraram uma raça semelhante aos humanos e aos arcônidas, que eram os ferrônios. Este povo adorável e inofensivo não conseguiu defender-se da invasão vinda de uma distância de cerca de oitocentos anos-luz. Mas Perry Rhodan conseguiu, com uma força extremamente reduzida, infligir uma derrota arrasadora aos tópsidas que se encontravam no setor de Vega. Isso representou um de seus primeiros triunfos, que parecia abrir o caminho à realização do grande objetivo, isto é, um dia transformar-se no soberano do Universo.

— O planeta Topsid fica a oitocentos e quinze anos-luz da Terra, Atlan. O erro de medição que os tópsidas cometeram na coordenada chi é de apenas 3,4 por cento. Bem, no sistema de Betelgeuze tivemos mais um confronto com esses lagartos...

— Isso mesmo — confirmou Atlan. — Naquela oportunidade Árcon, os saltadores e os médicos galácticos acreditaram que a Terra tivesse sido devorada pelo fogo infernal das reações atômicas. Tratava-se de uma Terra que, numa manobra hábil, você “transferiu” para esse lugar. Mas quando chegou a hora de fazer isso, você deveria ter-se lembrado do resultado das medições realizadas pelos tópsidas. Como é que você pôde esquecer uma coisa dessas? É difícil de compreender.

— Acontece que os humanos não são como os arcônidas, almirante — respondeu Perry Rhodan com a voz tranqüila e voltou a dirigir-se ao chefe do Exército de Mutantes. — Chame seu pessoal de volta, John!

— O que pretende fazer? — perguntou Atlan em tom curioso.

— Quero aproveitar a última chance de apagar as conseqüências de nossa omissão, desde que o tempo ainda seja suficiente para isso.

— Quer ir a Topsid, onde estão os lagartos? — perguntou Atlan em tom de surpresa.

Mais uma vez sentiu admiração por esses terranos obstinados, cuja audácia muitas vezes lhes permitia enfrentar problemas que um intelecto arcônida não conseguia compreender.

— Não quero, Atlan, preciso ir para onde estão os tópsidas.

— Hoje em dia, Topsid pertence ao Grande Império — ponderou o arcônida.

— Você também pertence, não pertence? — perguntou Rhodan sem a menor comoção.

Mais uma vez Rhodan não aguardou resposta. Dirigiu-se a Allan D. Mercant.

— Quantos agentes se encontram em Topsid?

— Dois — respondeu Mercant imediatamente. — Ho Kwanto e F. C. Curtiss. O fato de Topsid pertencer ao Império Arcônida é de importância secundária. Os lagartos podem sentir tudo, menos contentamento, quando alguém lhes fala em Árcon. Gostariam de desligar-se o quanto antes do Grande Império.

— Será que é por isso que fornecem os comandantes para um grupo de naves? — perguntou Atlan em tom irônico.

— Não posso contestar o que o senhor acaba de dizer — disse Mercant com um gesto de cortesia. — Acontece que minha afirmativa não envolve qualquer contradição. Caso os tópsidas se tivessem atrevido a não atender à solicitação do regente, que desejava o fornecimento de tripulantes para as naves, o planeta não mais existiria.

Perry Rhodan não participou da discussão.

— Mercant, mande verificar se em Topsid já existem arcônidas. Preciso dessa informação dentro de cinco horas. Mais alguma coisa a discutir, senhores?

Essas palavras representavam o sinal de que a conferência estava terminada.

O administrador-geral viu-se a sós com Atlan.

— Bem — começou Atlan usando, sem que o percebesse, uma expressão a que Bell costumava recorrer. — Até eu já não sei o que dizer. Mas gostaria de repetir a pergunta que acabo de formular. Como foi que todos vocês se esqueceram que os lagartos conheciam, aproximadamente, a posição galáctica da Terra?

Perry Rhodan manteve-se em silêncio.

O arcônida nunca obteria uma resposta.

O fato fora esquecido, e agora os homens do Império Solar teriam de arcar com as conseqüências.

 

Desde o momento em que foi travada a palestra memorável, vinte e quatro horas já se haviam passado. E nessas vinte e quatro horas os mutantes chegavam ininterruptamente a Terrânia.

John Marshall chamou seu pessoal de volta. Quando viram que não eram os únicos que estavam sendo convocados, compreenderam que em algum lugar havia um perigo gravíssimo.

Bell preferiu não falar mais em seu dedo. Nem teve tempo para isso. Na última noite não vira a cama, mas em compensação elaborara um plano detalhado, que provocou uma expressão de perplexidade e pavor em Atlan:

— O quê? Vocês pretendem ir a Topsid disfarçados de arcônidas?

— Será que é tão difícil fazer o papel de um arcônida sonolento e arrogante? — perguntou Bell em tom zombeteiro.

Atlan preferiu não dizer nada; estudou o plano.

Na sala contígua, Rhodan conferenciava com John Marshall. O chefe do Exército de Mutantes anunciou ao administrador do Império Solar que todos os mutantes já se encontravam em Terrânia, com exceção de alguns que não podiam sair do lugar em que se encontravam.

— Harno veio?

— Sim senhor.

— Gucky ainda não se apresentou a mim. Será que não veio?

— Veio. Acontece que há algumas horas está a bordo da Kublai Khan. Ao que parece, o rato-castor mais uma vez anda espionando os pensamentos de alguém.

— Como chegou a essa conclusão, Marshall? — perguntou Rhodan em tom curioso.

Perry fazia questão de que fosse cumprida sua ordem de que, com exceção de John Marshall, ninguém devia ler os pensamentos dos personagens mais importantes de Terrânia. E essa ordem também se aplicava a Gucky.

— Faz uma hora que me encontrei com ele na sala de comando da Kublai Khan. Estava deitado numa poltrona e contemplava suas botas especiais. Quando me viu, disse com a cara mais inocente deste mundo: “John, será que estas botas quadráticas não deveriam ser substituídas por botas aquecidas? Não acredita que depois de concluída esta missão todos estaremos com os pés frios?” Quando ouvi estas palavras da boca de Gucky, compreendi que ele havia arranjado certas informações.

— Quer dizer que descobriu que pretendemos utilizar a Kublai Khan — disse Rhodan em tom pensativo. — Marshall, o senhor estava a sós com Gucky na sala de comando ou...

— Estávamos a sós, Sir.

— Qual foi a resposta que você lhe deu, John?

— Fiquei contrariado, Sir. O pessimismo do rato-castor foi a célebre gota que entornou o caldo. Eu lhe disse em tom indignado: “Se quiser, mande fazer uma calça especial para certas emergências!” Acontece que, com isso, admiti de forma indireta que tínhamos pela frente uma missão arriscada. Gucky sorriu com seu dente roedor e disse: “A barra será pesada como nunca. Quando me lembro do dedo cortado do gorducho, meus pés esfriam logo.” Depois indaguei junto a Mister Bell se havia comentado algo com Gucky, mas ele me disse que não lhe contou nada do dedo machucado. Logo...

Nesse momento, Gucky chamou pelo telecomunicador. Encontrava-se a bordo da Kublai Khan e anunciou, com um atrevimento a toda prova, que escutara a conversa entre Rhodan e Marshall.

— E daí? Muito pior que isso é a porcaria que estão fazendo aqui. Se a Kublai Khan tem de ser transformada num supergigante arcônida, poderíamos esperar ao menos que essa gente dominasse a ortografia arcônida... On-Tharu é escrito com th. É claro que disse umas boas a esses cabeças de minhoca...

Eram as expressões de Reginald Bell, que o rato-castor usava com uma alegria infernal. Mas ao ouvir a expressão “cabeças de minhoca”, Perry Rhodan interrompeu-o em tom áspero.

— Tenente Guck, a situação é séria demais para...

— Bem — interrompeu o rato-castor. — Se você me chama de tenente, a barra realmente deve estar pesada. Mas não acho nada bonito que Marshall tenha feito minha caveira junto a você. Posso ir até aí, Perry?

— Venha imediatamente. Isto é uma ordem.

John Marshall e Perry Rhodan perceberam que o rato-castor não estava mais presente na tela. Já devia estar a caminho num salto de teleportação.

Mas não viram Gucky sair em meio a um tremeluzir do ar. Rhodan mandou que Marshall o procurasse, isto é, que captasse seus impulsos mentais. Depois de alguns minutos, o chefe do Exército de Mutantes teve de confessar que não conseguia encontrá-lo.

— Um dia destes preciso ter uma conversa com Gucky! Desta vez não o tratarei com luvas de pelica — disse o Administrador-Geral em tom contrariado.

Esforçou-se para voltar ao assunto. Ele e John Marshall voltaram a discutir o plano elaborado por Bell, cujo ponto principal residia na utilização dos mutantes.

Marshall teve suas objeções.

— Essa concentração de mutantes não representaria um risco extraordinário? Se alguma coisa nos acontecer, e o senhor não pode desprezar esta possibilidade, poderá ver-se na contingência de ser privado de todo o Exército de Mutantes.

— John — respondeu Perry Rhodan, sacudindo levemente a cabeça. — Acho que você ainda não compreendeu que o pecado que cometemos por omissão nos obriga a adotar este procedimento. Faz apenas setenta anos que se verificou a invasão dos lagartos no setor de Vega. Isso não basta para demonstrar que o perigo de sermos localizados por eles ou pelo computador-regente é muito grande?

“É bem verdade que o ditador que então exercia o governo e os membros de sua junta militar provavelmente já terão morrido. Em compensação deve haver alguns milhares de tópsidas que guardam uma lembrança muito viva dos acontecimentos por que passaram. Além disso, não nos devemos esquecer dos registros. Mesmo que a memória dos tópsidas não represente nenhum perigo, os registros poderão representar nossa desgraça. Para remover esse perigo iminente, temos de lançar mão de todos os recursos, a fim de desenvolvermos em Topsid uma ação que não conste de nenhum documento histórico.

“Sei que estou assumindo um risco muito grande, Marshall. Também sei que o senhor e seu Exército de Mutantes terão uma tarefa muito difícil. Caso apenas um homem falhe, todo o Império Solar estará irremediavelmente perdido. Pois, nesse caso, os arcônidas virão o mais depressa possível.”

Acontece que John Marshall tinha outras objeções contra a utilização maciça dos mutantes. E, graças ao seu senso de responsabilidade, ele as formulou. Perry Rhodan tinha todos os motivos para felicitar-se por ter um comandante do Exército de Mutantes que era incômodo, porém honesto.

— Sir, acaba de dizer que todos os tripulantes da nave serão escolhidos pelo aspecto exterior. Quer dizer que todos devem ser homens cujo corpo se pareça com o dos arcônidas. Acontece que o tamanho da maioria dos mutantes é inferior à média. Peço-lhe que considere este ponto.

— O senhor tem outro plano que seja mais fácil e tenha iguais chances de êxito, Marshall?

— Acho que não seria difícil instalar em Topsid uma rede de emissoras hipnóticos que influencie os lagartos até o momento em que o computador-regente não represente mais nenhum perigo para nós.

— Ora, Marshall! — respondeu Perry Rhodan com certa perplexidade, lançando-lhe um olhar de recriminação. — O senhor sabe perfeitamente qual é minha opinião sobre esse tipo de influência em massa. Só recorro a esse recurso quando não tenho outra alternativa, e mesmo então o faço a contragosto. No presente caso, ainda acontece que nossos dados a respeito dos lagartos são muito escassos. Não sabemos se uma hipnose, que dure algumas semanas ou meses, provocará algum dano em seus cérebros. Será que mais tarde terei de recriminar-me por ser responsável pela doença mental de cem mil lagartos? Afinal, não sou nenhum computador desalmado.

Perry Rhodan nem se deu conta de que, com estas palavras, acabara de passar por uma prova através da qual alcançaria a consagração dos desejos de domínio do Império Solar, enquanto certa construção artificial existente em Árcon III nunca poderia passar de um fenômeno transitório, condenado a desaparecer em pouco tempo.

Antes que Marshall pudesse dar uma resposta, a porta abriu-se e Allan D. Mercant entrou ao lado do rato-castor.

A rigor, Gucky deveria esperar algumas repreensões extremamente duras. No entanto, sorria amavelmente com o dente roedor. Foi saltitando pela sala sobre os pezinhos enfiados em botas especiais e apoiando-se levemente sobre a cauda larga. Com um gesto grandiloqüente, deixou-se cair numa das poltronas.

Rhodan, que recorreu à sua capacidade telepática pouco desenvolvida para ler os pensamentos do rato-castor, encontrou um forte bloqueio. Gucky não permitiria que qualquer espia atingisse seus pensamentos.

— Sinto incomodá-lo, Sir — disse Allan D. Mercant ao entrar. — Gucky me procurou depois de pôr em alarma o Serviço de Segurança. A ação por mim desencadeada ainda está em andamento. Mas espero que seja concluída em breve.

“Gucky impediu Ulbers, o especialista em telecomunicações, e Huang-Lu, o técnico em mecanismos de propulsão, de transmitirem ao grupo estacionado na Lua o sinal convencionado para o lançamento de uma sonda. O Serviço de Segurança já apreendeu essa sonda. Tal aparelho levaria um emissor de hiper-rádio programado para começar a transmitir, cinco minutos após o lançamento, a posição galáctica da Terra.”

Allan D. Mercant, que costumava ser a calma em pessoa, forneceu estas explicações com a voz trêmula. Por um instante Perry Rhodan empalideceu, e John Marshall estremeceu visivelmente.

O rato-castor refestelou-se na poltrona, deixou girar os olhos inteligentes e exibiu o dente roedor num sorriso ainda mais gentil. Encostara a pata dianteira esquerda à braçadeira da poltrona e mantinha a cabeça apoiada na mesma. Estava de olhos fixos no administrador.

Mas Rhodan olhava para além de Gucky. Levou apenas um segundo para absorver a notícia chocante.

— Mercant, por que o senhor supõe que a ação estará concluída dentro de pouco tempo? — perguntou.

— Gucky forneceu ao Serviço Solar de Segurança os nomes de todas as pessoas ligadas à conspiração contra o Império Solar. Ulbers e Huang-Lu haviam sido destacados para servir na Kublai Khan e encontravam-se na nave, mais precisamente na sala de rádio, quando Gucky interveio e os segurou por meio da telecinese. Depois pôs o Serviço de Segurança em alarma e providenciou para que Ulbers e Huang-Lu fossem “recepcionados” pelo pessoal de bordo. Após isso voltou a aparecer à minha frente.

O interfone chamou. A imagem da tela estabilizou-se e um homem, que trazia na lapela do uniforme o pequeno distintivo do Serviço Solar de Segurança, disse em tom lacônico:

— Sir, operação Flauta Mágica concluída. Os dezoito conspiradores estão presos. Fim da mensagem. Alguma pergunta, Sir?

Q chefe do Serviço Solar de Segurança não teve mais nenhuma pergunta, mas Rhodan indagou com certa admiração na voz:

— Por que deu esse nome ao caso?

— Não faço a menor idéia — respondeu Mercant meio embaraçado. — Por que será mesmo?

O rato-castor, que continuava em sua poltrona, piou:

— Por que não iríamos chamar a operação de Flauta Mágica? É claro que, numa questão dessas, devemos dar asas à fantasia. Afinal, essa gente queria chamar os arcônidas com sua flauta. Foi por isso que mobilizei tão depressa seu Serviço de Segurança, Allan. No momento em que berrei para dentro do microfone que a operação Flauta Mágica iria ter início, os sujeitos saíram correndo. Ninguém fez perguntas. Absorveram que nem umas esponjas os endereços que lhes forneci, e a coisa começou a rolar. Acontece que não havia nada de especial em tudo aquilo. Você, John, fez minha caveira junto a Perry. Por isso fiquei com uma tremenda raiva e, para acalmar-me, soltei minha telepatia. Fiz uma visita à sala de rádio e peguei Ulbers e Huang-Lu, quando estes pretendiam levar avante seu plano infame. Foi só isso. Depois os homens da Kublai Khan cuidaram desses porcalhões e...

— Gucky! — interrompeu Perry Rhodan em tom de recriminação e esteve a ponto de dizer mais. Porém o rato-castor retificou-se no mesmo instante e prosseguiu:

— Depois os homens da Kublai Khan cuidaram desses cavalheiros. Eu os coloquei num estado favorável às confissões e retirei de suas vibrações cerebrais os nomes dos cúmplices.

— O que foi que você fez com eles? — perguntou Rhodan.

Gucky continuou acomodado em sua posição. Falando num tom imponente, disse:

— Perry, você é o administrador do Império Solar. Deixe essas ninharias por nossa conta. Não se preocupe com isso. Quando terá início a operação Dentista?

— O que é isso? — perguntou Rhodan com uma contrariedade perceptível.

— Será que essa palavra não é clara, Perry? — perguntou o rato-castor com uma ingenuidade fingida. — Não resolvemos arrancar todos os dentes desses lagartos de Topsid, para que eles não nos possam machucar mais?

— Ponha-se daqui para fora, seu fingido...

O ar começou a tremer em redor da poltrona onde Gucky estava sentado. No mesmo instante, este desapareceu da poltrona e da sala. Ele, que chamava todo mundo de você, sem fazer exceção com relação a Perry Rhodan, percebeu imediatamente que as condições atmosféricas no interior do gabinete de Rhodan pioraram para ele, e então saiu sem despedir-se.

O instrumento de Allan D. Mercant, ou seja, o Serviço Solar de Segurança trabalhou com a precisão de um computador positrônico.

Poucos minutos depois de Gucky ter-se retirado, chegou um relatório pelo interfone, que esclareceu inclusive os motivos da conspiração.

Nos últimos três anos, os dezoito conspiradores haviam sido advertidos, e, em alguns casos, até mesmo punidos por infrações disciplinares dos tipos mais variados. Nunca houve qualquer queixa quanto à eficiência do trabalho deles.

Ulbers chegava mesmo a gozar da fama de ser um dos melhores especialistas em hipercomunicações, e os três aperfeiçoamentos introduzidos por ele no estágio final do aparelho provavam que essa fama tinha sua razão de ser.

Com o correr do tempo sua disposição oposicionista face à política de Rhodan transformara-se em ódio, que o levou a conceber a revelação da posição da Terra aos arcônidas por meio de uma hipermensagem permanente, que seria irradiada por uma sonda disparada para o espaço.

— Uma desgraça quase nunca vem só — disse Rhodan em tom deprimido assim que leu a mensagem. — O que vamos fazer com Gucky? Não posso puni-lo, por ter evitado uma terrível catástrofe. Por outro lado, uma pequena lição não lhe faria mal, pois assim talvez no futuro tenha cuidado e não volte a exorbitar. Por que está rindo, Marshall?

— Sir — disse o telepata. — Gucky sempre vive nos enganando. Isso faz parte de sua personalidade; no dia em que não o fizer mais, deixará de ser Gucky, o rato-castor.

 

Rhodan destacou três mil swoons e igual número de criaturas humanas para a tarefa de, no menor prazo possível, criarem um aparelho que permitisse manter estáveis no hiperespaço gigantescos campos ionizados.

Bell, que também elaborara esta parte do plano contra Topsid, mais uma vez deu prova de que sabia lidar muito bem com gente — ou, se necessário, com os swoons, também conhecidos como homens-pepino.

De início só colheu olhares de perplexidade. Sempre que falava no seu plano de criar gigantescos campos ionizados, defrontava-se com palavras de incompreensão.

Deixou que se divertissem, não se indignou, não fez nenhuma alusão irônica, mas dentro de duas ou três horas voltava a falar com os peritos, debatendo sempre o mesmo problema.

— Preciso de hipercampos de interferência de dimensões astronômicas. Preciso de campos desse tipo que não entrem em colapso em uma hora, nem em cem horas, e nem mesmo em mil horas. Em outras palavras, preciso de aparelhos que me permitam paralisar o tráfego de hiper-rádio de todo um planeta. É bem possível que, se estes aparelhos não forem fornecidos, dentro de um prazo muito curto, os senhores mudem de patrão. É só por isso que acredito que dentro de três dias terei uma série de aparelhos aptos a entrar em funcionamento. Afinal, não há nenhum obstáculo teórico à construção de um aparelho desse tipo.

Até mesmo os swoons, os micromecânicos — verdadeiros gênios em suas especialidades — disseram que a exigência de Bell era impossível de ser atendida. Mas, por isso, tiveram de travar conhecimento com outra faceta da personalidade de Bell: sua teimosia insuperável.

— Meus caros — disse em tom condescendente — não sou nenhum leigo no assunto e sei que minha ordem é quase inexeqüível. Quase... Esta palavrinha deveria servir-lhes de estímulo para procurarem tornar possível o impossível.

“Se partirmos do pressuposto de que, no hiperoscilógrafo, a constante hy e as curvas formam...

Reginald Bell obrigava os peritos a falar de assuntos profissionais. Entendia do assunto, menos que eles, mas o suficiente para estimulá-los. Mas nunca conversava mais de meia hora, pois sabia perfeitamente que o tempo urgia, e que a qualquer momento a desgraça poderia surgir sob a forma de várias esquadrilhas arcônidas que sobrevoassem a Terra.

Terrânia, que, para o observador superficial, era apenas uma metrópole agitada, passou a ser um verdadeiro inferno de apressados preparativos.

As panes surgiam em todos os lugares. Havia incidentes com os quais ninguém contara. Planos detalhados tinham de ser modificados. As ordens eram substituídas por contra-ordens. Um item, que há meia hora ainda figurava da agenda com um grau máximo de urgência, era abruptamente retirado das linhas de produção.

Um pequeno exército de robôs obteve um aspecto arcônida. Toda a programação dos mesmos teve de ser reformulada. A nova programação baseava-se no fato de que o orgulho e a arrogância constituem características fundamentais dos arcônidas.

Os dois mil tripulantes da Kublai Khan foram submetidos a um processo intensivo de aprendizado hipnótico. Apresentar-se-iam como arcônidas no planeta de Topsid, e por isso deveriam ser arcônidas, não só pelo aspecto exterior, mas também pelo gênio e pelas atitudes.

A Kublai Khan, rebatizada com o nome de On-Tharu — o erro de ortografia foi corrigido — não seria a única nave que participaria da operação. Seria acompanhada por oito naves da classe Estado, com cem metros de diâmetro e tripuladas com cento e cinqüenta homens, além de dois cruzadores pesados. Em seus envoltórios esféricos havia letras e cifras arcônidas. Embora não devessem pousar em Topsid, Rhodan não desejava que, na hipótese de um encontro casual com uma nave do Grande Império, algum erro mínimo representasse o princípio do fim.

O plano de Bell, que nas linhas gerais merecera a aprovação de Rhodan, previa quatro dias para os preparativos. Mas quando o segundo dia chegou ao fim, teve-se a impressão de que, nem dali a uma semana, as naves poderiam decolar em direção ao planeta de Topsid, situado no sistema de Orion.

Uma pane sucedia-se à outra.

Novas notícias alarmantes surgiram da zona de descarga, onde as lutas entre os druufs e os arcônidas continuavam a consumir quantidades enormes de materiais.

O computador-regente de Árcon estava mobilizando todos os povos auxiliares do Grande Império e os obrigava a enviar ao front os comandantes espaciais e os oficiais mais competentes.

Só os tópsidas estavam guarnecendo nada menos de dezenove esquadrilhas!

Perry Rhodan avisou Bell, que acabara de suspirar aliviado porque conseguira desatar em três horas de lutas um nó cego de incidentes imprevistos.

— Ah, é? Dezenove esquadrilhas? Todas estão guarnecidas com oficiais tópsidas! Você está só, Perry?

— Estou — respondeu Rhodan.

— Pois então faça-me o favor de não me contar mais nada. Estou com medo. Não sei o que houve comigo. Alguma coisa vem em nossa direção e nos atropelará. Santo Deus, Perry, será que negligenciamos ou esquecemos mais alguma coisa?

Rhodan lembrou-se da pergunta de Atlan, sobre se os pressentimentos desastrosos de Reginald Bell representavam uma atitude pessimista ou realista. Acontece que nunca vira Bell nesse estado. Era bem verdade que, antes do pouso no planeta de Honur, Bell também desempenhara o papel do homem das advertências incessantes, mas as coisas não chegaram ao ponto em que agora estavam alcançando.

— Para a operação especial a ser realizada em Topsid não foi esquecida ou negligenciada coisa alguma — respondeu Rhodan com a voz firme. — O centro de computação de Vênus também realizou seus cálculos a este respeito e, em todos os pontos importantes, chegou à conclusão de que as chances de êxito eram de 85 a 97,5 por cento.

— Ora, o computador — disse Bell fungando. — Minha aversão por esses monstros positrônicos cresce a cada dia que passa. Como instrumentos de cálculos são formidáveis, mas como profetas... Perry, neste ponto eu preferiria que eles fossem para o inferno. Prometi a mim mesmo que durante esta operação seguiria o meu instinto, sem dar qualquer atenção às recomendações do computador positrônico.

— Provavelmente você não terá tempo de desenvolver qualquer atuação positiva, Bell — exclamou Perry Rhodan pelo videofone. — Seu plano sofreu uma única modificação. Nem você, nem Atlan, nem eu dirigiremos oficialmente a operação a ser desenvolvida em Topsid. Isso ficará a cargo de nossos técnicos e mutantes.

Bell soltou um assobio.

— O que restará para nós, Perry?

— Apenas o trabalho miúdo, as filigranas. Temos diante de nós uma tarefa quase insolúvel: devemos tomar todos os preparativos para enganar o computador-regente de Árcon. Você já imaginou o que significa fornecer dados falsos ao gigantesco computador positrônico? Quero ajudá-lo a recuperar a autoconfiança que, pelo que vejo, está profundamente abalada. É bom que saiba o que o centro de computação de Vênus acha de nossos planos. Quando trouxe o resultado, Atlan estava bastante deprimido.

 

É impossível falsificar uma série de fatos incorporados à história, e que o povo tenha vivido em toda a extensão. Os cálculos de probabilidade produziram uma série de resultados situados entre 78 e 98,46 por cento, o que equivale à negativa de uma possibilidade de êxito.

 

“Se admitirmos que a corda bamba pela qual teremos de andar durante a operação Topsid deve ter uma espessura de cem, tal corda em certos lugares está reduzida a 1,54 por cento desse valor. E a esses 1,53 por cento se contrapõem esses 98,46 por cento.”

— Perry — interrompeu Bell em tom enérgico — você nunca se admirou de que no curso dos decênios nós, do Império Solar, nunca sofremos um revés de verdade? E olhe que já o merecemos. Sim, é isso mesmo. Não adianta olhar-me com esse ar de espanto. O que é que costumamos fazer antes de qualquer ação? Procuramos a Pítia moderna e pedimos que ela nos diga em números e frações decimais se nossas chances são boas. Estamos no melhor caminho para transformar-nos em arcônidas. Engolimos sem a menor resistência tudo que um computador construído, segundo a mentalidade arcônida, joga à nossa frente e nos esquecemos de que somos homens, seres pensantes, sensíveis.

“Faça-me o favor de não me vir com o argumento de que a operação de Topsid poderá trazer certas conseqüências graves, e que foi este o motivo de ter sido formulada a consulta ao cérebro positrônico montado em Vênus. Qualquer ato traz suas conseqüências. Está na hora de deixarmos de aceitar o papel de escravos do computador, para voltarmos a ser homens que aproveitam integralmente sua capacidade de agir. Assim seremos superiores a qualquer cérebro positrônico e conseguiremos vencer o desafio que nos espera em Topsid.

“A preguiça mental e a degenerescência dos arcônidas é devido principalmente aos cérebros positrônicos. Será que nossos netos e bisnetos deverão ser tão indolentes como eles? Por isso pouco me interessa o que o grande centro de computação de Vênus tenha dito a respeito da ação que planejamos. Caramba, Perry! Não somos arcônidas, mas homens. E devemos saber agir como seres humanos.”

Perry Rhodan não deu qualquer resposta. Limitou-se a levantar uma folha e colocá-la à frente da lente da objetiva.

Bell leu ao lado da percentagem de 98,47 a seguinte observação manuscrita de Perry Rhodan: “Resultado incorreto. Valores humanos não foram considerados. PR.”

— Por que deixou que eu falasse tanto? — disse Bell com um sorriso largo.

— Porque gostei de ouvi-lo, Bell. Acho que vez por outra temos de chamar à lembrança esse tipo de verdade. Aliás, como vai o projeto de criação de campos de ionização?

— Não poderemos contar com qualquer resultado antes de amanhã de noite. A dificuldade consiste em manter estáveis as camadas de reflexão no hiperespaço. A coisa não quer funcionar. O que sabemos sobre o hiperespaço ainda é pouco. E ainda há um detalhe bastante desagradável, de que só agora tomamos conhecimento. Os hipercampos de interferência permanecem no hiperespaço sob a forma de campos de fuga circulares e giratórios, que, de repente e sem qualquer motivo plausível, se afastam do raio vetor e desaparecem. Será que a idéia dos campos de ionização foi exclusivamente minha, Perry?

— Foi, gorducho. Você pode tirar a patente. Por isso seus problemas não me interessam muito. Quando começará a fabricação em série dos aparelhos de interferência? Amanhã de noite?

— Se houver um milagre, sim; do contrário...

A essa altura, Perry Rhodan mostrou sua impetuosidade!

Com a voz fria e implacável transmitiu sua exigência:

— A produção em série terá de ser iniciada amanhã de noite o mais tardar, Bell. Confio inteiramente em você. Desligo.

Crest, o velho cientista arcônida, entrou no gabinete de Rhodan. Ele e Thora não obtiveram a ducha celular regeneradora do planeta Peregrino. E para Crest, estavam chegando os dias em que um indício após o outro anuncia o fim que se vai aproximando lentamente. Mas sua energia psíquica continuava a ser a mesma dos melhores anos de vida.

Tomou lugar ao lado de Rhodan; demonstrou a calma e a tranqüilidade que Perry e Reginald Bell haviam observado há muitos decênios, quando travaram conhecimento com esse arcônida na Lua.

— Voltei a examinar a lista dos mutantes que deverão participar da operação — principiou. — Não seria recomendável levar para Topsid apenas metade desses elementos insubstituíveis? Atlan não é da mesma opinião que eu; acabo de falar com ele. Mas em John Marshall encontrei maior compreensão. Ele acredita que a utilização maciça de todos os mutantes representa um risco excessivo.

— Crest — respondeu Rhodan em tom resoluto — a operação Topsid tem de ser concluída o mais cedo possível. Não se esqueça de que agora somos obrigados a agir. Avançamos a partir de uma posição defensiva. Isso sempre representa um mau começo... Um instante; a estação de hiper-rádio está chamando.

Mais uma vez chegaram notícias da frente de luta, onde as armadas espaciais dos arcônidas bloqueavam a área de superposição e se envolviam em lutas infindáveis com os druufs.

Rhodan tinha ã sua frente mais de três dezenas de mensagens. Essa torrente de notícias só se tornou possível graças às novas sondas-foguete, difíceis de serem localizadas e derrubadas. Além disso, os aperfeiçoamentos introduzidos na ótica de campos magnéticos, que em seus efeitos tinham uma semelhança espantosa com as lentes de borracha, já superadas, aumentaram em mil por cento o potencial de observações óticas.

— Sir — disse o chefe da estação de hiper-rádio de Terrânia, dirigindo-se a Rhodan. Em sua voz soava um certo orgulho. — Agora já dispomos de uma visão completa de todas as formações de naves arcônidas que se encontram na frente de combate. Apuramos que Árcon mantém em luta oitenta e três mil naves de guerra, sem computar as naus auxiliares e as de aprovisionamento.

“Mais de cinqüenta mil dessas naves já estão sendo pilotadas por criaturas humanóides. A cada hora que passa, mil robôs são substituídos por inteligências vivas. Hoje de noite estará concluída a substituição total do comando de todas as naves de guerra arcônidas.

“Há duas horas chegou um contingente de seis mil lagartos vindos do planeta Topsid. É o terceiro transporte que chega nestas últimas dez horas.

“Ainda não concluímos a interpretação dos dados. Porém, desde já, posso dizer com absoluta segurança que, nos setores em que os lagartos comandam as naves de guerra de Árcon, as perdas materiais são mais reduzidas. De outro lado, os druufs estão sendo rechaçados com uma violência nunca vista.

“Permita, Sir, que lhe forneça as notícias detalhadas...”

Rhodan interrompeu-o e agradeceu. Esta parte do relatório foi suficiente para orientar sua ação.

Desligou. Crest acompanhara a palestra.

— Então — disse, dirigindo-se ao velho arcônida. — Não acha que as coisas estão ruins? A base de Hades e Ellert, o mutante, terão que intervir. O computador-regente não deve ter nenhuma pausa para respirar, pois do contrário, amanhã ou depois, teremos naves arcônidas pousando na Terra...

— O que pretende fazer, Rhodan? — perguntou Crest, que desde o primeiro encontro vinha tributando uma admiração muda a esse terrano.

— Nossa base no Universo dos druufs receberá ordens, por intermédio de uma sonda, para recorrer a todas as possibilidades, especialmente à influência que Ellert pode fazer valer perante os druufs, a fim de que eles continuem a realizar ataques maciços contra as linhas de bloqueio de Árcon. Será que não devemos atirar uma isca aos druufs? Poderíamos fazer chegar-lhes a informação de que, nos próximos dias, o inimigo aparecerá com campos defensivos superpotentes, praticamente indestrutíveis? Crest, quanto tempo será preciso para obter os dados numéricos necessários ao lançamento da isca?

— Três horas, cinco no máximo, Rhodan, mas...

— Perdão, Crest. Neste momento não posso aceitar nenhum “mas” com o sentido que o senhor atribui ao termo. Quer dizer que aguardo os dados por cinco horas. Mais alguma coisa?

Crest respondeu que não e retirou-se.

— Até hoje de noite, o grande cérebro de Árcon colocará inteligências vivas no comando da maior parte de suas naves de guerra, gorducho. Você precisa dar um jeito para que amanhã possamos dispor dos primeiros aparelhos geradores de campos de hiperinterferência, a fim de que as primeiras naves estejam prontas para partir em direção ao planeta Topsid. Não lhe posso conceder prazo maior que este. É só.

Depois Rhodan ligou para Allan D. Mercant.

— Algo de novo sobre Topsid?

— Não senhor. Por enquanto nenhuma nave arcônida apareceu no setor de Orion ou foi anunciada pelo grande computador. Mas meus dois agentes constataram por meio do goniômetro que, nas últimas vinte e quatro horas, o computador-gigante entrou três vezes em contato com os tópsidas. Não foi possível decifrar as mensagens.

— Como está a situação geral, Mercant?

O rosto do interlocutor de Rhodan não anunciava nada de agradável.

— Muito má, Sir. A cada hora que passa, o computador-regente fica mais forte. Nem mesmo na época do apogeu, o Império foi comandado com tamanha energia como agora. Nem os aras se atrevem a levantar a voz, quanto mais os saltadores e os superpesados. Os druufs e seus ataques ininterruptos amalgamaram o Grande Império que se esfacelava. Meus agentes, que não têm uma visão geral da situação, vêem-se diante de um enigma. Os movimentos separatistas, as revoltas contra Árcon e outros acontecimentos semelhantes já não ocorrem no grupo estelar M-13.

— Obrigado, Mercant.

Rhodan redigiu uma ordem que, dentro de duas horas, deveria chegar a Hades, um planeta situado no Universo dos druufs. O tráfego de carga para Hades foi suspenso a partir da destruição da base de Fera Cinzenta. O contato resumia-se às comunicações de rádio. Acontece que Rhodan não gostava de utilizá-las, pois conhecia perfeitamente o risco de uma localização goniométrica. Por isso, preferia transmitir as notícias através de uma sonda, que, na pior das hipóteses, apenas poderia ser derrubada. Jamais alguém poderia apoderar-se dela, porque o aparelho se autodestruiria, sem fornecer a menor indicação sobre a ordem de que era portadora.

Quando o planeta Plutão chamou por outra tela, Rhodan estava transmitindo o texto à estação de hiper-rádio.

— Um momento! — gritou Rhodan; virando-se de lado, concluiu o texto.

A seguir, deu ordem para que este fosse transmitido por intermédio de pelo menos dez estações retransmissoras. Só depois respondeu ao chamado de Plutão.

As estações retransmissoras eram cruzadores de reconhecimento da classe Estado, distribuídos a grandes distâncias pela Galáxia. Estas recebiam, muitas vezes em ziguezague, as mensagens codificadas e condensadas, e as irradiavam no mesmo segundo a outra nave, por uma freqüência diferente. Assim, as mensagens chegavam ao destino com uma demora de cinco segundos. Nenhum serviço goniométrico inimigo conseguiria saber o ponto de partida e de chegada da transmissão.

— Pode falar — disse Rhodan, olhando para a tela na qual se via o rosto do chefe das instalações de Plutão.

— Queira desculpar, Sir...

— O que houve? — perguntou Rhodan em tom impaciente, dando a entender que a interrupção vinha em má hora.

O rosto do chefe da guarnição tornou-se ainda mais frio. Pigarreou e, usando o tom lamentoso que Rhodan não apreciava nem um pouco, disse:

— Sir, há alguns dias o Tenente Thomas Cardif vem tentando...

Rhodan sentiu um calafrio.

— Thomas Cardif — sua voz não traía a emoção que surgia em sua alma quando interrompeu o major da base de Plutão. — O senhor não é o superior imediato do tenente, major? Trate-o da mesma forma que trataria qualquer outro oficial!

— Sir — Perry Rhodan não pôde deixar de notar que o major recorria às últimas reservas de coragem para expor seu problema. — O exame psiquiátrico do tenente levou à conclusão de que, em virtude do ódio que ele tem contra o senhor, o rapaz só tem uma responsabilidade restrita por seus atos. Por isso pediria licença para...

Perry Rhodan inclinou-se para a frente. Subitamente seus olhos cinzentos pareciam expelir chispas. As rugas da testa aprofundaram-se, dando mostras da emoção que sentia. Apenas a voz continuou inalterada, embora nela passasse a vibrar um tom gelado.

— Se o lugar do Tenente Thomas Cardif for um estabelecimento psiquiátrico, ele não poderá continuar a ser um oficial da frota espacial do Império Solar. Caso não esteja doente e só sofra de certos complexos de ódio artificiais, criados por ele mesmo, dê uma ocupação ao jovem, major. O senhor tem filhos?

— Tenho; dois rapazes e uma moça.

— O.K. O que pretende fazer com ele, major?

— O rapaz costuma proferir palavras ofensivas à sua pessoa.

O major ainda não se atrevera a expor ao pai de Thomas Cardif os atos de que este se fizera culpado.

— Isso não é novidade, major. Mas não estou satisfeito com o procedimento do senhor, já que o fato de Thomas Cardif ser meu filho lhe tolhe a liberdade de movimentos. O que quero é que aja livremente. Coloque-o diante de uma corte marcial. Depois que tenha cumprido a pena que lhe venha ser imposta, dê-lhe um tratamento que lhe faça perder a vontade de fazer discursos subversivos.

— Permite mais uma observação, Sir? — perguntou o major.

— Pois não!

— O Tenente Cardif possui a energia do senhor...

Mais uma vez Perry Rhodan interrompeu o major.

— Isso é um fato positivo que me deixa muito satisfeito. Procure conduzir essa energia para canais adequados. Faço votos de que o senhor o consiga, pois isso seria um grande benefício para Thomas Cardif... Bem, major, acho que os filhos vêm ao mundo para dar aborrecimentos aos pais. Obrigado. Desligo.

A ligação entre Plutão, o planeta gelado, e a Terra deixou de existir. Mas os pensamentos de Rhodan, que se encontrava em Terrânia, giraram por alguns minutos em torno do filho, que só em Silico V, uma fortaleza planetária dos arcônidas, ficou sabendo que era filho de Thora e Perry Rhodan. E, desde então, se recusara a renunciar ao nome Cardif, sob o qual fora criado.

Rhodan estava com a alma revolta. Thomas, sempre Thomas, dizia seu pensamento. Perry sabia que o filho não conseguiria romper a herança arcônida que a mãe lhe deixara.

Thomas Cardif, filho único de Perry Rhodan, odiava o pai.

Quando viu Bell entrar em seu gabinete, Rhodan sentiu-se aliviado. O gorducho estacou ao ver o amigo tão abatido.

— Alguma novidade? — perguntou em tom mais cauteloso do que costumava usar.

— Bell, Thomas terá de enfrentar a corte marcial.

— Não diga! — a voz de Bell parecia um toque de atacar. — O que foi que você fez? É claro que concordou, não é, Perry?

— Pois como administrador do Império Solar não poderia...

— Perry! — interrompeu Reginald Bell. — Você é um sujeito formidável, mas como pai não é tanto. Meu pai me esquentava os fundilhos quando fazia alguma coisa que não devia. Porém, mais tarde, se houvesse necessidade, teria ido até o presidente dos Estados Unidos para interceder por mim. E o que é que você está fazendo? Deixe-me usar esse aparelho.

Empurrou Perry para o lado. A tecla fez clique. A estação respondeu. Reginald Bell pediu uma ligação com o major que servia nas instalações de Plutão.

A imagem não demorou a surgir na tela.

— Major — principiou Bell. — Estou chamando por causa de Thomas Cardif. Esse jovem não pode ser colocado diante da corte marcial. Estou falando do mesmo lugar em que o administrador falou com o senhor há pouco. Está sentado a meu lado. Quer dizer que estamos entendidos, não estamos? Se deve dar uma lição a esse jovem? É claro que sim; e que lição? Bem, o senhor entende disso melhor que eu. De qualquer maneira estamos conversados, não estamos?

— Entendi perfeitamente, Mister Bell! — disse a voz vinda de Plutão, com um suspiro de alívio.

— O.K. Desligo, major! — gritou Bell para dentro do microfone e desligou.

Bell não mais tocou no assunto Thomas Cardif. Afinal, não foi por isso que veio falar com Rhodan.

— Amanhã de manhã será iniciada a produção em série dos novos aparelhos, Perry! O trabalho dos especialistas progrediu bem. Agora está na vez de os homens práticos, os técnicos mostrarem o que sabem fazer. Acho que, depois de muito tempo, esta noite será a primeira em que conseguiremos dormir bem.

Enquanto proferia estas palavras examinava o polegar direito, que já sarara da ferida. De qualquer maneira parecia não gostar, pois vivia sacudindo a cabeça.

Perry Rhodan preferiu não perguntar a Bell por que motivo ele vivia sacudindo a cabeça. Não fazia nenhuma questão de voltar a ouvir as previsões sombrias do amigo.

— Bem — disse para desviar a atenção de Bell. — Acho que hoje conseguiremos dormir...

 

Oito cruzadores ligeiros da classe Estado decolaram em direção ao sistema de Orion. Tratava-se de veículos espaciais esféricos de apenas cem metros de diâmetro. Da operação ainda participavam duas naves da classe Terra. O supercouraçado Kublai Khan, que pelo aspecto exterior passara a ser uma nave arcônida com o nome On-Tharu, era o único que se mantinha à espera. Só poderia entrar em ação depois de concluídos os complicados preparativos da visita ao planeta Topsid.

Gallus, principal especialista em campos de ionização no hiperespaço, voava na Burma. Não conseguiu sair de seu minúsculo laboratório, até o momento em que Joe Pasgin, que naquele momento comandava essa nave da classe Estado, o convocara pelo intercomunicador para comparecer à sala de comando.

Gallus era um homem pequeno e franzino, hipersensível e extremamente excitável. Porém possuía uma competência extraordinária em seu setor. Era a primeira vez que se encontrava no espaço. Joe Pasgin sabia disso, e, por esse motivo, quando Gallus entrou na sala de comando, deixou-se ficar à frente da tela de visão global. O técnico não poderia deixar de ver o brilho dos milhares de sóis que se destacavam contra o fundo escuro.

Mas o perito em campos de ionização não deu a menor atenção à imagem do Universo projetada na tela. Só se interessava pelas notícias relativas aos campos de interferência, que agora teriam de passar pelo teste prático.

Pasgin viu-se obrigado a dizer:

— As experiências só serão realizadas quando chegarmos ao setor de Orion. São ordens expressas do chefe, Mr. Gallus. Afinal, não vamos forçar as coisas para trazer os arcônidas à Terra. Está ouvindo a contagem regressiva? Daqui a vinte segundos entraremos em transição para sair no setor de Orion. Acredito que possa ter paciência para esperar mais dois minutos.

 

Oito cruzadores ligeiros e duas naves da classe Terra saltaram sob a proteção dos neutralizadores de vibrações e voltaram ao espaço normal, a uma distância pouco superior a oitocentos anos-luz.

Assim que passou o choque da rematerialização e as dores na nuca cessaram, a Sambo transmitiu o sinal para a primeira experiência a ser realizada com os novos aparelhos, que deveriam gerar e manter estáveis campos de ionização de dimensões astronômicas.

A distância entre a Burma e a Sambo era de 1,1 milhões de quilômetros. Sem o auxílio dos instrumentos uma nave não seria capaz de ver a outra. Mas a Sambo adquiriu existência no interior da sala de comando da Burma, onde Gallus e Pasgin observavam os novos instrumentos acoplados ao receptor de hiper-rádio. Uma curva dupla de formato estranho, que se modificava constantemente na lâmina do oscilógrafo, fez com que Gallus exclamasse:

— Olhe a Sambo!

Joe Pasgin, que não entendia nada dessa técnica de comunicações, limitou-se a fazer um gesto cortês de assentimento. Essas curvas lhe diziam muito pouco, e seu aspecto lhe parecia estranho.

Mas Gallus dedicou-lhes uma atenção entusiástica.

Quando subitamente a lâmina oval negra, junto ao instrumento semelhante a um oscilógrafo, emitiu uma luminosidade verde e, depois de algumas oscilações, passou a brilhar numa intensidade constante, o técnico soltou algumas exclamações de arrebatamento.

Ao que parecia, o operador de rádio da Burma fora instruído antes da decolagem sobre as funções da lâmina oval, pois disse em tom de surpresa:

— Ora vejam! Aqui não se consegue nada com o hipercomunicador. Nunca teria acreditado!

Naquele instante, Gallus era exclusivamente o pesquisador.

— Mantenha o raio direcional! Quero medir os reflexos.

Quase a contragosto Joe Pasgin começou a interessar-se pelas experiências de Gallus. Afinal, a possibilidade de interromper todas as comunicações de rádio com o mundo dos lagartos, a ponto de que este planeta só pudesse receber as mensagens conduzidas através da zona de bloqueio pelas naves terranas, e novamente irradiadas atrás dessa zona, dependeria apenas do resultado dessas experiências.

Enquanto a pequena formação mista da Frota Espacial Terrana se aproximava do mundo dos lagartos, desenvolvendo metade da velocidade da luz, a bordo da Burma e da Sambo, estavam sendo concluídas as últimas experiências.

O pequenino Gallus estava irreconhecível; parecia crescer para além de si mesmo. Com um zelo quase furioso foi ampliando as séries de experiências. Passou a aplicar padrões cada vez mais rigorosos.

Porém por mais que se esforçasse para romper os campos de ionização gerados do hiperespaço, todas as tentativas realizadas para esse fim falharam. O que mais o espantou foi a estabilidade dessas zonas de interferência, e o fato de que tais zonas se deslocavam em sentido horizontal e vertical, sem que para isso se precisasse recorrer a um grande dispêndio de energia.

— O maior efeito útil é alcançado numa distância de vinte e oito a trinta e quatro vírgula cinco minutos-luz — explicou Gallus a Joe Pasgin, que o ouvia atentamente. — Três cruzadores bastarão para interromper todas as comunicações de rádio com o grupo estelar M-13 e as linhas de bloqueio. Caso surja um imprevisto, duas naves terão de ser mantidas de prontidão para logo entrarem em ação.

E constatou em tom quase exultante:

— Mister Pasgin, o chefe ficará satisfeito com nosso trabalho.

Pasgin não tomou conhecimento da observação.

— Como faremos para transmitir as mensagens que os lagartos deverão receber? — indagou.

— Os campos de ionização, que acabam de ser criados por nós, não deixarão passar qualquer mensagem de hipercomunicação, seja qual for a sua potência de irradiação. Afinal, uma das características desses campos de ionização consiste no fato de refletir cem por cento das ondas. É bem verdade que essa característica envolve um perigo...

— Qual é esse perigo? — indagou Joe Pasgin.

— O perigo resultaria o ângulo incorreto da superfície do campo de reflexão em relação ao ângulo de incidência. Neste caso, o mesmo seria facilmente refletido a plena potência para o ponto de saída...

— Por todos os santos da Via Láctea! — exclamou Pasgin em tom de alarma. — Nesse caso, a resposta que o computador-regente receberia a qualquer mensagem seria a própria mensagem.

— Naturalmente! — disse Gallus em tom de espanto, pois não sabia explicar o motivo do espanto do oficial.

— O chefe conhece essa possibilidade, Gallus?

— É claro que não conhece. Como poderia conhecer?

— Ora essa! Só mesmo um cientista que anda com a cabeça nas nuvens seria capaz de criar uma coisa destas! — exclamou Pasgin. — O que acha que o computador fará se em vez de uma resposta receber o texto da indagação que acaba de formular? Enviará uma esquadrilha ao lugar em que foi refletida sua mensagem.

— Para onde? Para o hiperespaço? — perguntou Gallus com a maior ingenuidade. Era um homem sem a menor malícia, cujo único interesse consistia na ciência.

Joe Pasgin procurou dominar-se. Sua voz exprimia o martírio que sentia porque esse cientista não tinha o menor contato com a áspera realidade.

— Não — respondeu. — Mas as naves arcônidas aparecerão no lugar em que se localiza a fonte das interferências no tráfego de hipercomunicações e golpearão implacavelmente. Por isso o chefe terá de ser informado o quanto antes.

O interfone de bordo transmitiu uma mensagem da sala de comando, segundo a qual a formação terrana alcançaria dentro de cinco minutos a posição que lhe fora designada.

O oficial despediu-se apressadamente de Gallus. Quando Pasgin entrou na sala de comando, no interior desta desenvolvia-se uma atividade febril. Os dados e as notícias chegavam ininterruptamente de todos os cantos da nave. Constituíam o prelúdio de uma das manobras mais arrojadas de que lançara mão Perry Rhodan. Vários homens da sala de comando da Burma já tinham participado de outras missões, motivo por que possuíam uma intuição apurada, que lhes dizia se determinada operação era ou não perigosa.

A operação que estavam realizando não era apenas extremamente perigosa; representava um atrevimento elevado à última potência. Nenhum dos presentes desejava um confronto direto com o inimigo, mas o golpe audacioso pelo qual se adiantariam ao computador-regente alegrava todos. Por isso aceitaram prazerosamente o risco ligado à operação.

Essa operação recebera um nome já consagrado em casos dessa natureza: Comando Suicida.

O nome dizia tudo, mas isso pouco importava à equipe de Perry Rhodan. Estavam acostumados às horas de turbulência. Embora a operação em que estavam envolvidos não fosse propriamente um piquenique, não viam nela aquilo que realmente era: uma tentativa desesperada de Rhodan, isto é, desejava salvar o que pudesse ser salvo.

Joe Pasgin foi recebendo as mensagens das outras naves. Examinou os dados relativos à posição e fez um sinal de confirmação em direção ao computador de bordo. Para o oficial de computação, isso significava que as outras naves se encontravam na posição prevista, e que ele poderia dar início a seu trabalho.

Ao contrário das outras naves da classe Estado, a Burma possuía um computador positrônico de tipo especial, cujo forte era a hipermatemática arcônida, que permitia os cálculos relativos ao hiperespaço.

Naquele momento estava ocupado numa operação extremamente complexa: o cálculo do ângulo de incidência do raio direcional do hipertransmissor de Árcon III, que o regente utilizava constantemente. Para cada segundo de operação tinha de ser considerada muita coisa, além das centenas de movimentos que por vezes se desenvolviam em sentido contrário.

O caráter problemático da operação também não resultava do fato de o sistema de Topsid ficar a pouco mais de 33 mil anos-luz do mundo central de Árcon. O principal fator de complicação consistia na necessidade de determinar o ângulo de incidência dentro do hiperespaço, já que, em conformidade com a matemática arcônida, no hiperespaço não havia nada que se assemelhasse ao caráter espaço-temporal normal, e nele não podiam ser aplicados os conceitos que se identificassem com aqueles adotados em nosso Universo.

Se não fosse a máquina positrônica, um homem de nosso sistema solar não se atreveria a iniciar a execução da tarefa. Mas, no interior da Burma, tal missão não infundia o menor receio. Puseram mãos à obra sem a menor hesitação ou constrangimento. Quando a fita perfurada foi expelida pelo computador, Pasgin perguntou:

— Não seria preferível recorrermos ao especialista, Ylers? Há pouco Gallus me falou na possibilidade de um reflexo de cem por cento.

— Pelo amor de Deus, tragam o homem. Não quero assumir o risco sozinho! — exclamou o oficial do computador em tom nervoso, sacudindo a cabeça, num gesto de ceticismo.

Pasgin o observou, enquanto dava ordem para que Gallus fosse chamado à sala de comando.

— Ylers, o senhor não acreditava nesses cem por cento? — perguntou em tom curioso.

Ylers respondeu prontamente:

— Uma reflexão de cem por cento não existe! O processo de retorno das radiações consome certa quantidade de energia.

— Mesmo no hiperespaço? — perguntou Pasgin.

— Ora! — respondeu Ylers. — Com essa o senhor me pegou. Ninguém poderá responder sim ou não a essa pergunta.

— Pare aí, Ylers! Nosso especialista afirma que é assim. Pelo que diz, a retribuição das radiações sem qualquer perda é uma das características do hiperespaço.

— Ele deve saber — confessou Ylers a contragosto.

Não conseguia livrar-se do ceticismo. Gallus entrou.

— Mister Gallus, queira conferir os resultados fornecidos pelo computador.

— Um instante, Mister Pasgin — disse Gallus. — Parece haver um mal-entendido. Não estou em condições de conferir a interpretação fornecida pelo computador de bordo. Nem mesmo um arcônida seria capaz disso. Tudo a respeito do hiperespaço não passa de um cálculo de fatores estranhos que se processa no desconhecido. Mas nem mesmo um arcônida sabe explicar por que o cálculo correto fornece um resultado que revela sua exatidão também no terreno prático, como, por exemplo, numa transição.

— Quer dizer que posso transmitir minha mensagem à Terra para avisar que concluímos nossos preparativos?

— Perfeitamente — disse o perito em ionização. — Não há nenhum inconveniente.

— Pois bem. Nesse caso, o Comando Suicida pode entrar em ação — disse Pasgin, fazendo uma ligação de interfone com a sala de rádio. — Transmita o texto combinado ao chefe, usando as estações retransmissoras. A mensagem será distorcida e condensada. O código já é de seu conhecimento. Solicito confirmação. Câmbio.

A sala de rádio confirmou. No mesmo instante foi expedida a mensagem previamente combinada.

A operação tinha sido iniciada!

 

No dia 6 de janeiro de 2.044, às 23 horas, 31 minutos e 9 segundos, hora de Terrânia, a grande estação de hiper-rádio da metrópole terrana recebeu a mensagem da Burma, que foi retransmitida imediatamente para a Kublai Khan, que se mantinha preparada para decolar a qualquer momento.

Às 23 horas, 35 minutos e 14 segundos decolou o supercouraçado Kublai Khan, que, com exceção da nave capitania Drusus, era o único veículo espacial que dispunha de um transmissor de matéria.

O envoltório esférico de 1.500 metros de diâmetro, feito do melhor aço, abrigava uma tripulação de dois mil homens, que para essa operação não havia sido selecionada com muito rigor. Os uniformes dos homens diziam o suficiente: pareciam disfarces. Só Atlan viu neles algo de familiar e começou a sentir algo parecido com saudades de Árcon. Em qualquer lugar da Kublai Khan se viam os uniformes arcônidas, e em todos os lugares se falava o arcônida ou o intercosmo, que era a língua usada no intercâmbio interestelar.

Os tripulantes da Kublai Khan pareciam não conhecer a língua inglesa.

No dia 7 de janeiro de 2.044, às 02h 01m 34seg o supercouraçado realizou a transição, protegido pelo potente neutralizador de vibrações. Saiu do hiperespaço nas imediações do sistema de Orion e a menos de um minuto-luz do grupo que tinha ido na frente.

Enquanto o doloroso choque do salto ainda maltratava dois mil terranos disfarçados de arcônidas, o transmissor automático forneceu o sinal de identificação ao grupo de naves.

Os membros mais importantes do comando que participaria da operação encontravam-se em companhia de Perry Rhodan, na sala central da Kublai Khan. Naquele momento, ouviam o relato de Joe Pasgin sobre as experiências realizadas com os hipercampos de interferência.

Bell, que em virtude de sua pequena estatura não fazia boa figura no uniforme de membro do estado-maior arcônida, disse em voz baixa:

— Se não houver nenhuma pane com estes campos de ionização, quero chamar-me de Smith. Oh, Via Láctea, como estão nossas perspectivas!

Ninguém o contestou, nem mesmo Gucky, o rato-castor, que se refestelava no sofá e envergava seu uniforme de inspetor arcônida. A seu lado tinha uma esfera. Era Harno, seu novo amigo.

Ao que parecia, só Perry Rhodan e Atlan tinham algo a fazer. Bell, que elaborara o plano de ação contra Topsid, estava reduzido ao papel de espectador, tal qual as outras pessoas que se encontravam na sala de comando. O rato-castor chegou mesmo a bocejar acintosamente, e nem sequer teve o cuidado de cobrir a boca com uma das patas...

O pessoal da sala de rádio estava ocupadíssimo.

As ordens se atropelavam. As naves de Perry Rhodan começaram a promover o fechamento hermético do planeta Topsid contra qualquer tipo de tráfego de rádio.

A criação dos campos de ionização progredia rapidamente.

A uma distância de trinta minutos-luz, uma esfera fechava-se em torno do planeta. Tratava-se de uma esfera que não existia no espaço normal e fazia com que os lagartos não pudessem receber qualquer mensagem vinda do espaço e nem estivessem em condições de fazer chegar um raio direcional a uma distância superior a trinta minutos-luz. Tal raio sempre acabaria atingindo o hipercampo esférico de interferência, que causava seu desvio e reflexão, segundo as leis prevalentes no hiperespaço.

Na sala de rádio da Kublai Khan, que segundo os caracteres arcônidas gravados em seu envoltório esférico passara a chamar-se de On-Tharu, as máquinas complicadíssimas, com regulagens ainda mais complicadas, transformavam simples pios em mensagens de extensão e importância consideráveis. O sistema de intercomunicação de bordo transmitia-as prontamente à equipe que cercava Perry Rhodan.

No dia 7 de janeiro, às 03h 42m 04seg, hora de Terrânia, completou-se o isolamento do mundo dos lagartos. Perry Rhodan já poderia pensar em reparar o erro cometido no passado.

Enquanto a On-Tharu, que desenvolvia metade da velocidade da luz, avançava lentamente em direção ao sistema de sóis germinados de Topsid, o grupo-tarefa da Frota Terrana permaneceu na sua área de atuação, situada antes e depois da zona de interferência. No supercouraçado foram tomados os últimos preparativos para que, por ocasião de seu pouso no mundo dos lagartos, a nave não fosse recebida com disparos dos potentes canhões de radiações.

Rhodan inclinou-se em direção ao microfone e, dirigindo-se à sala de rádio, disse:

— Ligue a faixa de hiperfreqüência do computador-regente e irradie em seu comprimento de onda. Trinta segundos serão suficientes. O regente nunca nos dirigiu qualquer chamado com maior duração.

Quase ao mesmo tempo ouviu atrás de si o passo pesado de um robô.

Atlan exibiu um sorriso forçado, enquanto um sorriso alegre surgia no rosto de Bell, que parecia ter esquecido tudo que se relacionasse com o dedo machucado.

O rato-castor não parecia sentir o nervosismo gerado pela situação. Rolara Harno, o ser esférico, para junto de si e colocara a pata sobre a superfície lisa de seu corpo. Os olhos de Gucky continuavam fechados. Apenas o dente roedor permanecia visível. Dali se concluía que Gucky se sentia à vontade.

O alto-falante do sistema de intercomunicação transmitiu a mensagem:

— Disfarce montado!

Rhodan confirmou o recebimento.

O robô estava parado a seu lado. Parecia ter sido programado especialmente para a situação.

Na tela surgiu o tristemente afamado modelo de ondas do computador-regente de Árcon III.

Nos últimos vinte segundos, esse modelo devia ter ficado visível em algumas telas especiais dos lagartos.

Depois de algum tempo, o mundo dos tópsidas expediu o primeiro sinal de rádio, em resposta à mensagem de comando do Regente de Árcon.

Assim que terminaram os trinta segundos, o robô que se encontrava ao lado de Perry Rhodan começou a falar com sua voz metálica, que tinha uma semelhança espantosa com o órgão vocal do computador-regente:

— Aqui fala o Grande Coordenador. A On-Tharu, comandada por meu representante Attor, pousará ainda hoje em Topsid, a fim de realizar certas investigações no local. Atendam a qualquer pedido, a qualquer ordem, forneçam todo auxílio que lhes seja solicitado. A conseqüência de uma eventual recusa será a destruição do planeta.

A comunicação foi interrompida. Qualquer tópsida acreditaria que o chamado vinha diretamente do Grande Coordenador, sediado em Árcon III.

O robô especialmente preparado para esse tipo de engano desapareceu. A On-Tharu continuava a aproximar-se do sistema de sóis geminados, desenvolvendo a metade da velocidade da luz. Esse sistema, com seus vinte e sete planetas, não poderia ser chamado de pequeno. Quinze desses mundos pertenciam ao grande sol, que emitia uma luz branca e ofuscante e tinha seis vezes o tamanho de seu companheiro violeta.

Seis planetas corriam em torno do astro que emitia uma luz violeta-pálida e, à primeira vista, tinha o aspecto de um anão. A um exame mais detido percebia-se que se tratava de um sol muito quente, de massa reduzida, gravitação insignificante e pequeno diâmetro.

Os seis planetas restantes gravitavam em torno dos dois sóis, e um deles era o mundo central dos lagartos, enquanto outros cinco planetas, situados no mesmo sistema, eram de importância secundária sob todos os pontos de vista.

O enorme computador de bordo de On-Tharu, que recebera seu saber arcônida da velha Titan, estava transmitindo ao sistema de pilotagem da nave os últimos dados sobre a rota do mundo dos tópsidas. Naquele instante, o veículo esférico foi localizado pelas naves de vigilância espacial dos lagartos.

— Localização!

— Abalo estrutural!

— Seis naves no amarelo, duas no verde.

Os três homens ali reunidos, dos quais dependia o êxito ou o fracasso da operação, fitaram-se ligeiramente.

— Sala de comando de artilharia — gritou Atlan pelo intercomunicador, para chamar a gigantesca central de controle de fogo da enorme nave.

— Pois não — respondeu o oficial, mas logo retificou: — Às ordens, almirante!

— Se os lagartos se aproximarem demais, faça um disparo de advertência com todas as armas na frente de sua proa. Não daremos nenhum aviso prévio pelo rádio. Se quisermos afirmar que somos arcônidas, teremos de agir como indivíduos dessa raça. Dispare sem prévio aviso, sem atingir os tópsidas. Entendido?

— Entendido, almirante. Se quisermos fazer o papel de arcônidas, deveremos agir como arcônidas.

Essa resposta causou uma sensação desagradável em Atlan.

Não teve necessidade de olhar para os lados para saber se Rhodan e Bell estavam rindo.

Estavam sorrindo. Procuraram disfarçar, mas não conseguiram.

— Que sujeito insolente! — disse Atlan em tom furioso.

— Não sabia que o homem mais importante do nosso setor de armamentos também é um poeta. Só mesmo um poeta conseguiria exprimir em tão poucas palavras o caráter de um povo, tornando desnecessárias quaisquer perguntas. Atlan, o senhor não acha que estas palavras exprimem tudo?

— Se quisermos fazer o papel de arcônidas, deveremos agir como ar...

Não conseguiu completar a palavra!

A Kublai Khan disparou com todas as armas das duas torres polares, colocando alguns tiros de advertência diante da proa das naves tópsidas. Embora a distância entre as duas torres fosse de pelo menos mil e quinhentos metros, o ruído dos disparos era perfeitamente perceptível na sala de comando.

Assim que o ruído amainou um pouco, Atlan inclinou-se para Bell e cochichou ao ouvido do mesmo:

— Gorducho, ainda direi umas boas a seu poeta e...

Reginald Bell, um homem que apreciava a boa vida, mas nem por isso costumava fugir à aventura, colocou a mão sobre o braço de Atlan.

— Você não vai tratar nosso oficial de artilharia como um arcônida. Apesar de toda compreensão pela Humanidade, você muitas vezes não compreende os homens e sua mentalidade. O Major Crafford, acho que é este seu nome, não teve a intenção de ofendê-lo. Apenas quis ressaltar a enorme tolice e arrogância de seu povo. Almirante Atlan, hoje em dia os arcônidas poderiam ser donos do Universo, se soubessem fazer amigos. Devíamos...

A segunda série de disparos sacudiu a nave sob a forma de várias ondas sonoras. O Major Crafford expediu o segundo aviso sob a forma de alguns feixes de raios mortíferos.

Os alto-falantes transmitiram a mensagem vinda da sala de rádio.

— Os lagartos solicitam o nome da nave, Sir...

Crest aproximou-se rapidamente de Perry Rhodan e esteve a ponto de dizer alguma coisa, quando os alto-falantes transmitiram uma voz potente:

— Localização energética, Sir. No planeta Topsid procuram criar problemas para nós.

A mensagem era pouco clara.

— Problemas? O que quer dizer com isso? — perguntou Rhodan em tom áspero.

No mesmo instante, o alarma de solicitação máxima dos campos defensivos fez soar as sereias. No interior da nave, os conversores começaram a rugir. Uma série de conjuntos de reserva entrou em funcionamento a fim de absorver as energias de características desconhecidas vindas de fora, que investiam contra os campos defensivos superpotentes da Kublai Khan, e conduzi-las através dos conversores para os depósitos vazios.

Tudo não demorou mais de alguns segundos. Mais uma vez, o alto-falante transmitiu notícias vindas da sala de rádio.

— Topsid pede desculpas por não ter reconhecido antes a On-Tharu. Deu ordem a todas as naves para que se afastem de nós.

O comentário de Bell foi o seguinte:

— Isso é uma mentira tola e infame. Devíamos...

Nesse momento houve outro chamado da sala de rádio.

— A estação de hiper-rádio de Topsid está chamando o computador de Árcon.

— Não tome conhecimento do chamado! — ordenou Perry Rhodan. Lembrou-se de que também já chamara em vão o regente de Árcon.

— Sir, existe a zona de interferência...

A zona de interferência era a área esférica de ionização que fechava o sistema dos dois sóis contra o resto do Universo.

— Não tomem conhecimento do chamado. Desligo.

No mesmo instante, Perry Rhodan voltou a falar nos problemas energéticos.

— Então, senhores, será que poderiam fornecer uma explicação sobre o motivo por que nossos campos defensivos quase chegaram a entrar em colapso?

Queria informações precisas. Seus olhos cinzentos brilhavam, exprimindo uma raiva controlada, isto é, o aborrecimento que sentia por ter de formular uma pergunta como esta.

— Sir, aqui fala a Divisão 184/t — disse pelo interfone a central de pesquisa energética, dirigida pelo Dr. Bansfield. O rosto jovem do cientista, que não contava mais de trinta anos, estava marcado pela excitação. — Topsid deve ter descoberto um novo meio de defesa. Se as primeiras interpretações dos fatos forem corretas, devem possuir um tipo de corrente bifásica...

— O que vem a ser isso? — disse Rhodan em tom contrariado.

— Sir, queira desculpar...

— Fale logo! — disse Rhodan em tom impaciente.

— O uso da expressão “corrente bifásica” representa um recurso de emergência. Na realidade, não sabemos como os lagartos conseguiram solucionar o problema extremamente complexo de medir a capacidade de absorção de nossos campos energéticos por meio de um raio-eco. Pelo que pudemos constatar, a energia transportada pelo raio-eco regula sua tensão pela de nossos campos defensivos...

— Isso não passa de uma grande tolice! — interveio Bell. — A tensão dos campos defensivos nunca se mantém constante.

O jovem cientista parecia ter muita certeza do que estava dizendo.

— Foi o que eu pensei, Sir. Porém, quando constatamos que os acumuladores vazios destinados a entrarem em ação no caso de uma solicitação excessiva continuavam vazios, enquanto alguns dos grandes acumuladores perderam mais de vinte por cento de sua carga, e isso em menos de dois segundos, só encontramos uma explicação: os lagartos devem ter descoberto um meio de que os campos defensivos se autodestruam, por meio de uma interferência leve vinda de cima. Ao contrário das experiências anteriores, os mecanismos de absorção não conduziram ao campo defensivo a energia vinda de fora. Entretanto, numa reação verdadeiramente absurda, levaram a esses campos imensas quantidades adicionais de energia dos acumuladores, deixando-os supersaturados em menos de dois segundos e fazendo com que quase entrassem em colapso em virtude de uma reação interna.

Atlan ergueu-se abruptamente. Bell aproximou-se da tela. Rhodan foi o único que permaneceu em sua poltrona.

— Doutor — disse e, como muitas vezes acontecia quando a situação se tornava crítica, sua voz irradiava uma calma fascinante. — Resumindo, deve ser o seguinte: um raio-eco atingiu nosso campo defensivo e mediu sua intensidade. No mesmo instante, a tensão da energia conduzida por esse raio adaptou-se à do nosso campo. Se eu cometer um erro de raciocínio, avise imediatamente. Com isso, aparentemente esses campos são reforçados por meio de um suprimento de energia vindo de fora. Não compreendo como é que os mecanismos de absorção podem inverter sua função de uma hora para outra, conduzindo quantidades adicionais de energia ao campo defensivo, em vez de absorver a energia excessiva.

— Sir — o Dr. Bansfield respirou profundamente. — Depois de identificar-se com os nossos campos, o raio-eco rompeu-os e, conforme se depreende dos diagramas, inverteu os pólos dos conversores dos mecanismos de absorção. É possível que esse fenômeno só encontre explicação no âmbito da hipertórica, que é uma ciência a qual se dedicaram alguns velhos matemáticos arcônidas.

Perry Rhodan, que, tal qual Reginald Bell, recebera um máximo de treinamento hipnótico arcônida, lembrou-se desses cientistas e espantou-se de que o Dr. Bansfield estivesse tão bem informado. Mas não deu a perceber. Agradeceu a Bansfield e animou-o para que prosseguisse com o máximo de dedicação nas suas investigações relativas à nova energia.

— No momento não tenho tempo para cuidar do caso, mas já vimos que o esclarecimento cabal do mesmo é de importância vital para nós. Assim que seja possível, pedir-lhe-ei que me forneça informações mais detalhadas. Posso garantir-lhe uma coisa, doutor. Em Topsid esforçar-nos-emos ao máximo para encontrar a nova arma defensiva. Fico-lhe muito grato. Obrigado.

 

A On-Tharu soltou as colunas de apoio telescópicas, que pareciam verdadeiras torres. O rugido dos propulsores de impulsos, situados na protuberância equatorial da gigantesca nave, foi substituído por um leve trovejar. Os projetores antigravitacionais fizeram com que a nave perdesse o peso.

Quando se encontrava trezentos metros acima do espaçoporto de Kerh-Onf — segundo os catálogos estelares dos arcônidas, esta era a cidade mais importante do sistema de sóis gêmeos e ali ficava o único espaçoporto que permitia o pouso de supernaves, sem que seu pavimento fosse danificado — a On-Tharu começou a descer com uma lentidão encantadora.

Perry Rhodan mandou chamar John Marshall, Gucky e Harno, a criatura esférica. Pediu aos primeiros que recorressem às suas faculdades telepáticas para analisar a disposição de ânimo da multidão de lagartos que os esperava na periferia do campo de pouso, a Harno que fizesse uso de sua faculdade natural — tornando-se televisão — e tentasse localizar o posto de combate que irradiara o raio-eco.

Atlan e Bell pousaram a gigantesca nave, que pelas suas dimensões representava uma expressão condigna da grandeza do Império. Todos os postos de combate estavam guarnecidos. Até mesmo os transmissores de matéria estavam prontos para entrar em ação.

Subitamente o rato-castor exclamou:

— Perry, esses lagartos estão com uma raiva danada. Gostariam de transformar tudo quanto é arcônida num foguete que errasse pelo espaço. E sua opinião sobre o Grande Coordenador é ainda mais desfavorável...

— É verdade! — confirmou Marshall, chefe do Exército de Mutantes. — Com o recrutamento forçado levado a efeito no sistema de Topsid, Árcon perdeu o que ainda lhe restava de simpatia.

Crest resolveu intervir na palestra.

— No curso da história os lagartos têm violado todos os tratados que celebraram com Árcon.

Gucky encostou-se a Perry Rhodan. Era o único que podia permitir-se esse tipo de liberdade. Afinal, não era uma criatura humana, e nem queria ser. Muitas vezes dava a entender que se sentia orgulhoso por seu corpo de animal, embora nessas oportunidades não fizesse propaganda de suas faculdades fenomenais e de sua extraordinária inteligência.

Qualquer pessoa que travasse conhecimento com Gucky teria de libertar-se da idéia de que existe uma ligação entre inteligência e aspecto humanóide.

— Chefe, a delegação do governo está sendo organizada. O nome do primeiro-xeque é Xxal-Ri. Não sei se a pronúncia está correta. Como Xxal-Ri gosta dos arcônidas, e como sua consciência está pesada! Ele só vive pensando nas fraudes cometidas contra o sistema Árcon! O fato de nossa descida ser um tanto demorada deixa-o muito assustado.

Naquele momento, a On-Tharu pousou suavemente. Os ruídos dos propulsores foram cessando, e a intensidade do campo antigravitacional foi diminuindo.

Harno entrou em contato telepático com Rhodan. A criatura esférica parecia flutuar na altura de seu peito e lhe exibia uma estranha posição de artilharia, cujas peças não apresentavam a menor semelhança com desintegradores ou geradores de raios térmicos.

— Perry Rhodan, é este o lugar do qual foi disparado o raio-eco que atingiu a Kublai Khan, — emitiu Harno. — Há alguns minutos os lagartos concluíram, com base nos cálculos por eles realizados, que esse raio seria capaz de eliminar os campos defensivos de nossa espaçonave. Neste momento a notícia está sendo transmitida a alguém.

— Se esses lagartos estivessem em condições de agir segundo sua vontade, eles nos transformariam em espinafre, Perry. Neste momento estão conversando sobre o passado. Comentam os processos criminais a que responderam no sistema de Betelgeuze. Sentem-se como quem está em cima de um coqueiro...

Gucky viu-se interrompido por Bell.

— Em Topsid não existem coqueiros; logo, os tópsidas não poderiam estar em cima de um coqueiro. Está na hora de você procurar exprimir-se com maior precisão. Há pouco você disse que o chefe da delegação dos lagartos é um xeque. Ora, Gucky, um tenente do Exército de Mutantes não deve usar expressões deste tipo.

— Queira desculpar, representante do administrador — piou Gucky em tom tão sério que até Perry Rhodan admirou-se e lançou um olhar interrogativo para o rato-castor.

Não estavam acostumados a vê-lo agir com tamanha moderação. Via de regra defendia-se energicamente assim que era atacado.

— No futuro, eu me guiarei exclusivamente pelo senhor.

O chamado da sala de rádio não permitiu que as gargalhadas surgissem.

— Sir, acabamos de receber uma mensagem da Sambo! — a nave encontrava-se antes da zona de interferência. — Um grupo de naves mercantes tópsidas procura entrar em contato de hiper-rádio com o quarto mundo do sistema de sóis gêmeos.

Rhodan respondeu em tom contrariado:

— Diga à Sambo que não complique desnecessariamente as coisas. Diga-lhes que apliquem imediatamente o sistema de travessia.

Pelo sistema de travessia, uma nave que se encontrasse antes da zona de ionização atravessaria a mesma com a mensagem de qualquer nave espacial, e irradiaria tal mensagem atrás dessa zona, em direção ao ponto de destino. Era um processo bastante complicado. Mas, as cabeças mais competentes de Terrânia não encontraram um meio melhor, motivo por que acabaram concordando com o plano de Bell, embora não o julgassem inteiramente satisfatório.

Nesse meio tempo, no interior da On-Tharu foram tomados todos os preparativos para sair da nave. As mensagens recebidas sucediam-se rapidamente. As coisas corriam às mil maravilhas.

Atlan e Rhodan dispuseram-se a sair da sala de comando.

— E eu? — piou Gucky em tom enérgico. — Pensei que fosse representar o papel principal diante dos lagartos, Perry! Será que sua memória deu para falhar?

— Mensagem urgente para o chefe! Mensagem urgente para o chefe! — berraram os alto-falantes, abafando qualquer palestra que se desenvolvesse no interior da nave.

Depois desse anúncio de emergência, o Tenente Elp, que estava de serviço na sala de rádio, desfiou o texto da mensagem:

— Aviso de F. C. Curtiss, agente do Serviço Solar de Segurança em Topsid. Acabamos de saber que há três dias duas naves robotizadas arcônidas se encontram no planeta, a fim de receber seis mil astronautas tópsidas. Fim da mensagem transmitida por F. C. Curtiss.

Atlan e Rhodan fitaram-se. Bell, que continuava sentado na poltrona, assumiu uma postura tensa. Na gigantesca sala de comando da On-Tharu houve alguns segundos de total silêncio.

Perry Rhodan respirou profundamente, olhou para John Marshall e deu sua ordem:

— Os mutantes entrarão em ação!

Bell contemplou o polegar direito. De repente sentiu-se dominado de novo pela terrível sensação que por pouco não lhe estragou a festa de passagem de ano.

Enquanto Rhodan e Atlan saíam da sala de comando, Gucky aproximou-se lentamente de Reginald Bell e piou-lhe:

— Gorducho, bem que eu deveria ter trazido sapatos quentes, pois nossos pés esfriarão como nunca. Os pés de todos nós! Se acredita que pode resmungar por causa das expressões que uso, devo ponderar com todas as vênias que você sempre vive falando de seus sapatões...

O rato-castor saltou para o lado, desviando-se da mão de Bell. Marshall gritou para Gucky:

— Permaneça em contato com o chefe até que eu esteja de volta!

Saiu da sala de comando para destacar alguns mutantes que deveriam cuidar das duas naves arcônidas. Procurariam saber antes de mais nada qual era a idade-limite dos lagartos astronautas que o computador-regente estava usando na frente. John Marshall não se esquecera do motivo que levara Perry a lançar no último instante essa operação desesperada.

Rhodan e Atlan desceram pelo elevador antigravitacional e chegaram à comporta principal, que ficava bem em frente ao lugar em que se encontrava a delegação dos tópsidas.

Cento e cinqüenta robôs, que pelo aspecto em nada se distinguiam das máquinas de guerra arcônidas, dividiram-se em dois grupos iguais e puseram-se em movimento ao lado de Rhodan e Atlan, enquanto estes desciam pela larga rampa de plástico.

Bem ao longe, as construções da cidade de Kerh-Onf destacavam-se contra a silhueta das grandes montanhas, que tomavam mais da metade da linha do horizonte.

A menos de dois quilômetros, um grupo de mais de duzentos lagartos aguardava-os na periferia do campo de pouso.

Rhodan e Atlan, que envergavam seus vistosos uniformes arcônidas, caminharam em direção a esse grupo, demonstrando orgulho e arrogância. À sua direita e à sua esquerda, cento e cinqüenta robôs de guerra faziam o pavimento de plástico ressoar. Atrás deles veio um grupo de nove pessoas, das quais só três tinham o aspecto de arcônidas. Os seis restantes pareciam ser membros de algum povo colonial arcônida.

Essas pessoas pertenciam ao exército mais estranho da Galáxia: o Exército de Mutantes. Sua missão não consistia em proteger Rhodan e Atlan. Teriam de cumprir a difícil tarefa de, por ocasião do primeiro contato com os lagartos, verificar qual era a lembrança que estes guardavam dos acontecimentos desenrolados há setenta anos no setor de Vega.

Os anfitriões, que se encontravam na periferia do espaçoporto, foram-se aproximando do grupo saído da nave.

Os tópsidas caminhavam como homens. Possuíam mãos e pés, mantinham o corpo ereto e respiravam a mesma mistura gasosa que os homens. Estes eram os únicos pontos de semelhança.

O crânio achatado e pelado, os lábios finíssimos e os olhos salientes davam-lhes um aspecto de animais selvagens. Era difícil acreditar que esses lagartos fossem inteligentes, e ainda mais difícil se tornava acreditar que seu nível de inteligência correspondia à média da inteligência humana. Em seu mundo, os padrões ético-morais aplicados pelo homem não tinham validade. Sua língua não conhecia a palavra compaixão. Mas, em certas áreas estranhas aos conhecimentos dos terranos e dos arcônidas, suas realizações eram importantes.

A pele escamosa marrom-escura que cobria os corpos magros desses seres servia para reforçar seu aspecto medonho. A cabeça de lagarto era outra característica que realçava sua natureza não-humanóide.

Não haveria dificuldades de comunicação. Qualquer tópsida que trabalhasse para o governo devia ter o domínio completo do intercosmo, a língua interestelar. Por isso Rhodan e Atlan preferiram não trazer tradutoras positrônicas. No entanto, antes de decolarem em direção ao sistema dos sóis gêmeos fizeram um curso hipnótico intensivo da língua dos lagartos. Mas pretendiam não informá-los a este respeito.

Os dois grupos encontraram-se a meio caminho.

Onze criaturas humanóides acompanhados de cento e cinqüenta robôs viram-se diante de cerca de duzentos lagartos. Entre os dois grupos havia uma zona neutra de dez metros de largura.

Atlan adiantou-se meio metro. Encarnava o protótipo do arcônida: era orgulhoso, arrogante e insolente.

— Quem é Xxal-Ri? Quero que ele se apresente imediatamente! — disse num tom de voz que, até mesmo em Perry Rhodan, provocou uma sensação desagradável.

Uns duzentos lagartos esguios e imóveis deram mostras de seu nervosismo. Seus olhos grandes e salientes emitiram um brilho frio e giraram para todos os lados.

Um lagarto de uniforme verde-oliva, sem distintivos, adiantou-se.

— Você é Xxal-Ri? Por ordem do Grande Coordenador exijo que seja iniciada imediatamente uma investigação para descobrir quem foi o tópsida que deu ordem de tatear a On-Tharu. Xxal-Ri, você sabe qual é o incidente ao qual me refiro?

— Sei...

No mesmo instante, Atlan lhe fez uma advertência em termos bastante ásperos.

— Quando falar comigo, use sempre o tratamento Alteza, e — apontou para Perry Rhodan — quando falar com o representante do Grande Coordenador, chame-o de Grande Arcônida Attor! Quando me serão apresentados os tópsidas que tiveram a audácia de tatear uma nave do Grande Coordenador? Não esperarei mais de duas horas. Agora quero ir à cidade. Saiam do meu caminho, lagartos...!

Só mesmo um arcônida poderia desempenhar esse papel com a perfeição que Atlan estava demonstrando. Perry Rhodan ouviu às suas costas os suspiros de alívio. Todos os detalhes haviam sido discutidos e todos os mutantes conheciam os arcônidas e seu orgulho misturado com presunção, mas o procedimento de Atlan deixou-os chocados. O mesmo era incompatível com a mentalidade humana. E o tratamento de lagartos, que Atlan acabara de dar aos tópsidas, era a pior ofensa que alguém poderia fazer a esse povo não-humanóide.

Apesar de tudo, porém, os lagartos só esbravejavam em pensamento. Ainda era cedo para um confronto aberto com Árcon.

Os golpes mortais que sua frota espacial recebera no sistema de Betelgeuze ainda ardiam em sua memória, e sua inteligência não lhes permitia praticar qualquer ato de resistência. Caso tentassem opor-se ao domínio de Árcon, seu planeta correria o perigo de ser destruído.

— Sir, não há qualquer indício de uma resistência ativa, mas o tal do Xxal-Ri nem pensa em realizar a investigação exigida por Atlan. Pretende entregar-nos três lagartos já condenados à morte.

A mensagem telepática foi transmitida por Harno.

No mesmo instante, Atlan gritou para Xxal-Ri, que chefiava a delegação:

— Lagarto, se você se atrever a simular que os culpados do rastreamento são três tópsidas condenados à morte, o Grande arcônida Attor solicitará ao Grande Coordenador o envio de três esquadrilhas de couraçados espaciais que varrerão este sistema da Galáxia.

O procedimento de Atlan era chocante, e todos os lagartos acreditaram na arrogância do arcônida. Pela primeira vez Xxal-Ri mostrou que sabia estremecer e abaixar-se de medo, que nem um humanóide. Seus olhos enormes já não giravam; fitavam Atlan com uma expressão de pavor. Perry Rhodan nunca vira uma expressão de medo tão bem marcada como a que se desenhava no “rosto” de Xxal-Ri.

Falando sua língua materna, o lagarto disse:

— O Regente enviou-nos o diabo em pessoa... ele sabe ler pensamentos!

O desassossego passou a dominar o círculo dos tópsidas mais chegados a Xxal-Ri. Rhodan e Atlan não lhes deram oportunidade de fazer crescer esse desassossego. Os cento e cinqüenta robôs aproximaram-se e obrigaram os lagartos a espalhar-se. Os onze homens e sua escolta não demoraram a atingir a periferia do espaçoporto.

De repente Rhodan tocou de leve a mão do arcônida. Atlan acenou discretamente com a cabeça. Estavam recebendo a notícia de Gucky, transmitida por intermédio de Harno, que servia de estação telepática retransmissora:

— Chefe, F. C. Curtiss acaba de avisar que as duas naves arcônidas se aproximam do espaçoporto de Kerh-Onf. Pelo que diz, há cerca de mil e quinhentos lagartos a bordo.

Rhodan respondeu por meio do microfone de pulso. Entrou em contato diretamente com Bell.

— Enquanto for possível, não tome conhecimento das duas espaçonaves tripuladas por robôs. Avise imediatamente a zona de interferência. Desligo.

Atlan, que ouvira a troca de mensagens, lançou um olhar pensativo para Rhodan.

— Bárbaro, receio que uma trovoada esteja para desabar sobre nós. Na minha opinião, a Kublai Khan deveria manter-se preparada para decolar a qualquer momento. Isso representará certa tranqüilidade. De qualquer maneira, ainda ensinarei a esses tópsidas como se deve receber e tratar um grupo de arcônidas que representa o Grande Coordenador...

 

Enquanto Perry Rhodan e Atlan voavam em direção à cidade, acompanhados por dois mutantes e quatro robôs, o arcônida disse em voz baixa, para que só Rhodan o ouvisse:

— Há pouco, quando destratei os lagartos e fiz o papel do arcônida arrogante, tive nojo de mim mesmo. Mas descobri uma coisa, bárbaro: não foi tão difícil desempenhar esse papel...

Um súbito trovejar vindo do céu tópsida, ligeiramente violeta, o interrompeu.

Eram dois couraçados arcônidas que desciam sobre o espaçoporto de Kerh-Onf. Os dois veículos tripulados por robôs vieram a Topsid para recrutar à força seis mil lagartos que tivessem experiência na astronáutica, a fim de levá-los o mais rápido possível à zona de descarga, onde rugia a batalha devoradora de gente e materiais.

Rhodan olhou tranqüilamente em direção às duas naves, enquanto pousavam na extremidade oposta do espaçoporto. Ao contrário de Atlan, acreditava que estas não representavam qualquer risco para a arrojada operação.

Olhou para trás e viu que os outros membros do Exército de Mutantes e os robôs de guerra seguiram-nos em cinco planadores tópsidas.

As bizarras construções da grande metrópole Kerh-Onf foram surgindo em meio à névoa que cobria todo o planeta. Enquanto a Kublai Khan descrevia três círculos em torno do planeta, ela constatara que essa névoa também existia na face noturna do planeta, e que se tratava de neblina, simplesmente.

O eixo polar de Topsid media 14.708 quilômetros, ou seja, dois mil quilômetros mais que o da Terra. Apesar disso, sua gravitação não ultrapassava l,3G. Não se constatara a presença de massas de gelo nas regiões polares. Não havia oceanos de dimensões iguais a dos terranos, mas apenas alguns lagos que se comunicavam por meio de canais artificiais. Quatro gigantescos complexos montanhosos davam a impressão de que Topsid era um planeta entrecortado por montanhas. No entanto, entre esses complexos estendiam-se enormes planícies.

Três luas gravitavam em torno de Topsid. Eram minúsculos satélites, de 600, e 900 quilômetros de diâmetro.

— Diga-me uma coisa, almirante. No seu tempo os tópsidas já eram conhecidos no Grande Império?

— Não, ao menos que eu saiba. O que é isso que vem vindo do espaçoporto? — num gesto nervoso, apontou para a esquerda.

Cinco pequenas naves esféricas de construção arcônida pareciam interpor-se no caminho dos planadores. No mesmo instante o ar começou a tremeluzir à frente de Rhodan e Atlan.

Gucky, o rato-castor, surgiu à sua frente. Segurava Harno, o ser esférico, sob o braço esquerdo.

— Perry — piou antes que Rhodan tivesse tempo para dizer qualquer coisa. — Os tópsidas estão desmontando as instalações de raio-eco. Eu gostaria de ajudá-los nesse trabalho. Você permite?

— Os tópsidas são mais traiçoeiros que o computador-regente! — exclamou Atlan.

— É justamente por isso que quero cuidar para que todas as peças desmontadas cheguem em boas condições à Kublai Khan — disse Gucky, sorrindo com o dente roedor solitário. — Com isso poderemos evitar aborrecimentos.

— Deixe Harno aqui mesmo, Gucky! — ordenou Rhodan. — E não assuma qualquer risco. Entendido?

— Ótimo! — disse o rato-castor em tom de júbilo. — Cuide bem de Harno, chefe.

O ar voltou a tremeluzir, e Gucky desapareceu num salto de teleportação que o levaria ao posto de rastreamento dos tópsidas.

Enquanto falavam com Gucky, Rhodan e Atlan se haviam esquecido das cinco naves arcônidas. Agora Rhodan lembrou-se das mesmas. Naquele instante recebeu o chamado de Bell.

— Três pequenas naves arcônidas estão em cima de nós. Não respondem aos nossos chamados pelo rádio. A On-Tharu está de prontidão para abrir fogo a qualquer momento. Se descerem mais ou pousarem perto de nossa nave, eu lhes darei uma recepção condigna com nosso raio de tração mais potente. De acordo?

— De acordo, mas o raio de tração só deverá ser usado depois que...

— Acho que demos um alarma falso — interrompeu Bell. — As naves se afastam. Por que é que duas delas estão nos calcanhares de vocês? Estão uns seis mil metros acima de vocês. Ainda não as viram?

Bell estava utilizando todos os instrumentos de observação da Kublai Khan. Valendo-se da ampliação positrônica direta, conseguiu um aumento tão grande dos dois pequenos veículos esféricos que os mesmos pareciam estar a três metros de distância.

— Não façam nada! — exclamou Atlan antes que Rhodan dissesse qualquer coisa. — Acabo de ter uma idéia. As cinco naves que vimos estão atrás de tópsidas recrutáveis.

— É uma bela expressão, almirante — disse Bell em tom de escárnio. — Acho que você não consegue esquecer o tempo de serviço militar arcônida. O.K.! Desligo.

Deslocando-se a oitocentos metros de altura, os planadores tópsidas corriam velozmente em direção à grande metrópole.

Atlan fitou com uma expressão de desagrado as construções alongadas e altas.

— Que estilo maluco será este? — perguntou-se.

Perry Rhodan formulara a mesma pergunta há alguns minutos.

Tal qual Rhodan e Atlan, seus companheiros esperavam que a qualquer instante tudo aquilo iria desabar, pois aquele estilo arquitetônico contrariava todas as leis da Estática.

Subitamente Rhodan exclamou:

— São estalagmites! Estalactites! Será que isso constitui uma indicação da procedência dos lagartos?

Por um instante Atlan fitou o terrano com uma expressão de perplexidade.

As construções de Kerh-Onf tinham o mesmo aspecto das colunas de calcário que se formavam no interior das cavernas. Mas nem por isso se explicava como tudo aquilo não desabava à primeira rajada de vento.

— Deve ser um dispositivo antigravitacional que evita o desmoronamento das construções — afirmou Atlan. — Acho que é a única explicação. De qualquer maneira, é uma loucura rematada construir assim.

— Talvez seja o instinto, Atlan. Pode ser uma lembrança inconsciente dos tempos imemoriais em que os tópsidas viviam em cavernas.

— É uma pena que não vivam mais — disse Atlan.

Por acaso o arcônida olhou para baixo através do visor transparente. Seu planador e os outros preparavam-se para pousar junto ao maior edifício de Kerh-Onf.

A uma altura de trinta metros, havia uma plataforma de pouso que circundava o estranho edifício, como se fosse um prato. Mas os dois canhões de radiações que se encontravam junto à grande entrada pela qual saía um grupo de lagartos não poderiam deixar de ser vistos.

Um preciso mecanismo fez pousar os planadores em fila. O desfile de robôs, que pelo aspecto exterior eram máquinas de guerra arcônidas, reforçava o orgulho que Atlan tinha de demonstrar durante sua visita a Topsid. Em seu vistoso uniforme, Atlan chegava a causar melhor impressão que Rhodan. Em cada passo, em cada movimento, havia a expressão da arrogância arcônida. Rhodan teve de forçar sua representação, enquanto Atlan apenas deixava vir à tona uma disposição natural.

Os lagartos, cujo número chegava a aproximadamente quarenta, estavam submetidos à força simbólica, corporificada no representante do Grande Coordenador. De qualquer maneira, eram bastante inteligentes para reconhecer que qualquer resistência só poderia resultar na destruição de seu sistema.

As frases de cumprimento foram trocadas em intercosmo. Rhodan apenas proferiu umas poucas palavras. Na terceira frase de sua fala anunciou o motivo de sua presença em Topsid.

— Exijo que todos os tópsidas que participaram da batalha espacial no setor Vega me sejam apresentados. Além disso, quero examinar todos os documentos relativos ao fato. Agora quero ser conduzido, juntamente com minha delegação, a um recinto condizente com a importância da missão que estou desempenhando. Será que os tópsidas ainda não aprenderam como receber um representante do Grande Coordenador?

Os rostos indiferentes dos lagartos não traíam a impressão causada pelas palavras do arcônida Attor. O tópsida Tgex-Go, cujo uniforme verde-oliva se distinguia dos outros, limitou-se a dizer:

— Queiram seguir-nos.

Quando Perry Rhodan, Atlan e os mutantes deram os primeiros passos, os robôs aproximaram-se e protegeram-nos de todos os lados.

Dali a dez minutos saíram do poço do elevador central e entraram numa grande sala de conferências. Tgex-Go e os outros lagartos continuavam a seguir na frente do grupo. Caminhavam do lado direito do recinto e pararam diante de poltronas feitas especialmente para humanóides.

— Tgex-Go, o senhor é presidente ou ditador? — perguntou Rhodan, depois de sentar-se ao lado de Atlan.

— Altezas — respondeu o lagarto. — O sistema de Topsid já não é oprimido por um ditador; o povo...

— Não quero lições, Tgex-Go — interrompeu Rhodan. — Já que não é o ditador, exerce as funções de presidente?

Os olhos do lagarto começaram a chispar fogo. O tom usado por Rhodan representava uma insolência; no entanto, era este tom que os arcônidas usavam para comunicar-se com os povos coloniais. Quem não gostasse, acabaria sentindo o poderio do Grande Império.

— Alteza...

Mais uma vez, Tgex-Go violara a etiqueta dos arcônidas. Atlan interrompeu-o em tom áspero:

— Já expliquei a seu representante Xxal-Ri, no espaçoporto, que eu devo receber o tratamento de Alteza, e Attor, o representante do Grande Coordenador, o de Grande Arcônida. Será que esse povo de lagartos não é capaz de lembrar-se disso?

Pela primeira vez houve um ligeiro tumulto entre os tópsidas, mas Tgex-Go fez cessar todos os ruídos com um simples movimento de braço.

— Grande Arcônida — principiou sem pronunciar-se sobre as palavras de Atlan. — Não temos nada a esconder perante o Grande Império...

Foi interrompido por Rhodan, que fazia o papel do arcônida Attor.

— Não perca tempo com mentiras, Tgex-Go! Por que é que vocês procuram remover às pressas o novo rastreador capaz de destruir os campos defensivos das naves? Será que não é para esconder esse aparelho de nós?

— Isso, bárbaro! Mostre-lhes! — cochichou Atlan em inglês.

Tgex-Go estremeceu como se fosse um ser humano. A mesma coisa aconteceu com seus companheiros.

— Grande Arcônida...

Mais uma vez não pôde concluir a frase. O pavor fechou-lhe a boca. Subitamente um dos acompanhantes do arcônida colocou-se diante de seu secretário e disse em tom enérgico:

— Durante a grande batalha travada junto ao mundo dos ferrônios você comandou uma nave. Venha comigo, tópsida.

No mesmo instante, dois robôs aproximaram-se. As medonhas máquinas de guerra estenderam as mãos em direção ao lagarto, que “brincava” com a idéia de fuga, e seguraram-no.

O tópsida não se atreveu a fazer o menor movimento.

Os outros também não.

— Sir — dizia uma mensagem telepática reforçada por Harno. — Tgex-Go está pensando num recinto que deve ficar uns cem metros abaixo do lugar em que o senhor se encontra. É lá que se encontram os principais registros sobre a batalha do setor de Vega. O tópsida procura descobrir o motivo do interesse de Árcon por essa velha história. E está apavorado por estarmos informados sobre o segredo do rastreador. Tgex-Go reage muito bem aos fenômenos parafísicos...

Naquele instante, o rádio de pulso de Rhodan começou a chamar. Atlan também recebeu um chamado. Os dois ligaram para a recepção. Reginald Bell estava diante da estação transmissora.

— Faz cinco minutos que John Marshall não consegue entrar em contato com Gucky. Há cinco minutos aconteceu, junto às duas naves robotizadas, uma coisa que não conseguimos explicar. Estou chamando para...

— Um momento! — gritou Atlan para dentro do microfone de pulso.

Entre ele e os tópsidas o ar começou a tremeluzir ligeiramente e Gucky, o rato-castor que Reginald Bell procurava localizar, surgiu à sua frente.

— Que diabo! — gritou Rhodan, mas sua raiva passou logo. — Por que está assim?

O rato-castor, que tinha um metro de altura, procurou ajeitar-se, mas não conseguiu.

— Missão cumprida, chefe. Infelizmente tive problemas com os robôs. Eles estão mais doidos pelo novo aparelho do que nós. Ao que parece, sabiam que fiz desaparecer tudo. De repente procuraram pôr as mãos em mim. Meu aspecto deve ser terrível, Perry. Por pouco não levo a pior sova da minha vida. Atlan, transmita cumprimentos meus ao seu computador-regente e pergunte-lhe quando é que ele vai resolver criar robôs capazes de resistir a uma queda de mil metros. Mandei para o alto quatorze dos dezesseis robôs e deixei-os cair. Arrebentaram que nem tomates maduros. Não consegui agarrar os dois últimos e por isso vim pelo caminho mais rápido. Trata-se de novos tipos, Perry. Esses robôs são muito espertos. Eles...

Bell voltou a chamar pelo rádio de pulso.

— Desta vez, o rato Jerry não contou nenhuma lorota. Lá fora estão oito robôs e exigem que nós os deixemos entrar na nave. Estão transmitindo sua exigência ininterruptamente pelo rádio. Epa! Está chegando outro bando. Quantos são? Uns trinta ou quarenta...

— Deixe isso por minha conta! — piou o rato-castor que se encontrava ao lado de Rhodan.

Antes que Perry tivesse tempo de responder, Gucky teleportou-se. O desaparecimento de uma criatura, que se dissolvia no ar instantaneamente, provocou um calafrio nos lagartos. Quem mais se perturbou foi Tgex-Go, presidente do sistema de sóis gêmeos. Rhodan, que lia seus pensamentos, aproveitou a chance e deixou Tgex-Go ainda mais perturbado ao dizer:

— Presidente, quando chegar a hora você saberá por que o Grande Coordenador de Árcon está interessado nestes fatos. Eu mesmo levarei meu colaborador ao arquivo situado uns cem metros abaixo do lugar em que nos encontramos. No momento, você e seu governo só têm uma coisa a fazer: reunir todos os tópsidas que participaram ativamente desses acontecimentos e trazê-los para Kerh-Onf, onde deverão ficar à minha disposição.

“Exijo, em nome do Grande Coordenador, que dentro de uma hora o governo ordenará que todos os tópsidas nos prestem toda ajuda na busca de documentos e de pessoas que testemunharam os fatos.

“Ainda quero acrescentar uma coisa, Tgex-Go. Minha missão deve ser concluída dentro de dois dias. Se tiver de permanecer por mais tempo em Topsid, cada hora que exceda a esse tempo lhes custará três mil pilotos espaciais experimentados que serão encaminhados imediatamente à frente de combate.”

Era uma ameaça violenta. Rhodan não teve nenhum prazer em proferi-la, mas não havia outro meio de fazer jus à sua aparência de arcônida.

Um arcônida nunca pede; exige!

— Grande Arcônida! — respondeu Tgex-Go, que ainda se sentia abalado pelos misteriosos fenômenos que acabara de presenciar. — O povo e o governo dos tópsidas farão tudo para cumprir o mais rapidamente possível a tarefa que nos foi confiada pelo Grande Coordenador. Permite que me retire com o Conselho do Povo para tomar as necessárias providências?

O aceno de cabeça de Perry Rhodan foi quase imperceptível, mas todos os lagartos o notaram. Dali a pouco, quando Rhodan se viu a sós com Atlan e os mutantes, disse:

— Tenho a impressão de estar sentado em cima de um barril de pólvora!

 

Nas primeiras vinte e quatro horas parecia que a desesperada operação em grande escala que Perry Rhodan lançara em Topsid realmente seria capaz de deter a marcha da história através de uma falsificação que repararia as conseqüências da omissão que acontecera há setenta anos.

Durante as primeiras vinte e quatro horas, tudo correu às mil maravilhas.

Até mesmo os robôs desembarcados das duas naves arcônidas, que tinham vindo ao sistema para recrutar astronautas entre os lagartos, pareciam ter dominado sua curiosidade em relação a isto, mesmo depois de mais trinta e nove desses robôs serem destruídos.

Durante vinte e quatro horas, Gucky, o rato-castor, entregou-se ao deleite indescritível de sentir-se mais forte que as modernas máquinas de guerra de Árcon. Sua fantasia viva exibia-lhe continuamente o espetáculo da eliminação dos robôs por meio de suas capacidades telecinéticas.

Durante vinte e quatro horas, os especialistas da Kublai Khan, com exceção daqueles cuja presença a bordo era indispensável, registraram um êxito após o outro nas ações desenvolvidas sob a direção dos mutantes.

Dos tópsidas que haviam participado ativamente e em posições de destaque da ação no setor de Vega ainda viviam oito. Dois desses oito lagartos pertenciam à equipe de radiogoniometria que na época captou o pedido de socorro da nave de exploração arcônida que realizara um pouso de emergência na Lua.

Mal esses dois tópsidas foram interrogados pelos mutantes, uma gazela voou em direção ao pólo sul do planeta. A estação de goniometria ali localizada foi ocupada numa operação-surpresa e oito terranos disfarçados de arcônidas deixaram o arquivo e o banco de dados de pernas para o ar.

A operação foi dirigida pelo próprio John Marshall.

— Repita a reprodução! — ordenou com a voz rouca, embora tivesse certeza absoluta de ter ouvido bem.

Mais uma vez, o registro foi reproduzido. Uma fita que não media mais de três milímetros de comprimento correu.

A tradutora automática acoplada ao aparelho pronunciou todas as palavras num inglês impecável.

As palavras foram repetidas:

 

— Phi 43:72, 6458... Chi 09:79,3852... Psi 18:00, 9851. Freqüência do hipercomunicador: 4763 0086 a 0999. Faixas das naves exploradoras galácticas. Tempo: 456,7385.886, tempo padrão de Árcon. Margem de tolerância astronômica 0,000.031 ± Intensidade do campo na entrada 3d ± 2. Posição em relação a Topsid: 456,735.886 Phi...

 

— Obrigado — disse Marshall e o Dr. Benthuys desligou apressadamente.

Além de detentor da patente de comandante de cruzadores ligeiros e perito em positrônica dos intervalos, que era uma área fronteiriça da positrônica geral, Benthuys era astronavegador de primeira classe. Seu principal hobby era a hipermatemática dos arcônidas. No entanto, com seu rosto sempre vermelho e a barba malfeita, Benthuys parecia um campônio simplório que, comedor das maiores batatas, saía correndo sempre que alguém pretendia exigir alguma coisa de sua inteligência.

Acontece que aqui o Dr. Benthuys era gênio da Ciência. Sentado ao lado de John Marshall, tinha um bloco antiquado sobre os joelhos e segurava na mão um lápis ainda mais antiquado, com o qual escrevia cifras e fórmulas.

— Marshall — disse, enquanto calculava febrilmente. — Preciso conhecer com urgência a posição da Terra, para...

Antes que pudesse concluir, Marshall ligou o rádio e o próprio Benthuys entrou em contato com a sala de comando da Kublai Khan.

Dali a cinco minutos recebeu os dados que havia solicitado.

— Hum — dizia constantemente, mas não anotou uma única cifra.

Marshall acreditava que os cálculos fossem demorar mais meia hora. Mas subitamente Benthuys levantou-se, arrastou-o para junto do grande mapa estelar, apontou com o lápis para o lugar em que ficava o planeta Topsid e disse:

— É aqui que nós estamos. O senhor ouviu os dados relativos às coordenadas. Uma mensagem de hipercomunicação quase nunca permite a determinação do lugar em que foi expedida, mas esta mensagem irradiada há setenta anos contém todos os elementos necessários a tal determinação. Isso acontece porque os tópsidas conseguiram medir a intensidade do campo de entrada, o que via de regra é impossível. Basta considerar meia dúzia de movimentos e traçar num bom mapa estelar uma reta que, partindo de Topsid, siga na direção correspondente aos dados da goniometria. É isto! Desta forma fomos parar no sistema de Vega, bem próximo à Terra...

Com isso, as vinte e quatro horas durante as quais a missão de Rhodan foi protegida por uma boa estrela chegaram ao fim. Os rádios transmitiram o sinal de alarma.

O Dr. Benthuys ficou calado. Marshall sentou à frente do rádio. O chefe estava junto ao transmissor.

— Quanto tempo deverá demorar, Marshall? — perguntou laconicamente.

— Umas quatro ou seis...

O chefe dos mutantes não conseguiu prosseguir.

— Dou-lhe duas horas, Marshall. Não dispomos de muito tempo. A gazela foi camuflada? Todos colocaram os trajes espaciais?

Ao que parecia, havia um perigo gravíssimo. Se Perry Rhodan falava nestes termos, a situação estava para lá de ruim. O que teria acontecido?

John Marshall preferiu não perguntar. Se o chefe não fornecia as explicações por iniciativa própria era porque não havia tempo para isso. Marshall lançou um olhar indagador para Benthuys. Dependeria exclusivamente do doutor a tarefa ser ou não concluída dentro de duas horas. Benthuys fez que sim.

— O.K., chefe, dentro de duas horas modificaremos tudo. O Dr. Benthuys acredita que conseguirá e...

Mais uma vez foi interrompido por Rhodan.

— Daqui a uma hora coloque a gazela em condições de decolar imediatamente. Repito: coloquem os trajes espaciais. Temos de contar com a possibilidade de ataques vindos do espaço.

— Ataques vindos do espaço? — repetiu Benthuys. — O que é que eu tenho com isso? Meu trabalho consiste em falsificar estes registros. Faça o favor de me avisar quando a barra ficar pesada por aqui, Marshall. E agora não me perturbe mais. Dê o fora com seu rádio. Tenho de concentrar-me. Até logo mais.

 

Mais uma vez Atlan, o almirante arcônida, admirou o terrano Perry Rhodan, enquanto Bell não viu nada de extraordinário na atitude do administrador, pois se estivesse no seu lugar teria agido da mesma forma.

— Vamos aguardar! — acabara de decidir Rhodan. — Aguardar e preparar-nos. É a única coisa que podemos fazer no momento. Daqui a duas horas, Marshall e sua equipe concluirão o trabalho na estação goniométrica polar. Fellmer Lloyd, que está trabalhando em Kerh-Onf, também espera não levar mais de duas horas para destruir ou falsificar os dados do arquivo. Você está rindo, almirante. Há alguma coisa que não lhe agrade?

Atlan nem se dera conta de que estava rindo.

— Ah, então eu ri? Será mesmo? Mas isso aconteceu apenas por causa da ingenuidade infantil de vocês. Acreditam realmente que conseguirão enganar Árcon com suas falsificações grosseiras? Ainda não sabem de que meios dispõe o Grande Império para verificar a autenticidade dos documentos e bancos de dados? Vocês nunca deixarão de ser uns...

Bell lançou um olhar para Atlan; em seu rosto surgiu um sorriso malicioso. O arcônida calou-se. Não iria cometer o erro de subestimar o terrano. Às vezes, essa gente tinha idéias formidáveis.

— Você ainda perderá a vontade de rir, gorducho! — gritou Atlan, já que Reginald Bell não se dispôs a falar. — Será que já se esqueceu do dedo cortado?

Bell, o homem impulsivo, não abandonou a atitude reservada que impusera a si mesmo.

Atlan constatou que Rhodan também não dizia mais nada.

— O que houve com vocês? — perguntou em tom de perplexidade.

— Tenho pena de você, almirante — respondeu Bell. — Apesar dos dez mil anos que você passou com os terranos, continua a viver nas nuvens. Arcônida, seu Grande Império não passa de um conjunto podre de raças e interesses, cuja coesão ainda é mantida em virtude do perigo representado pelos druufs...

— Esses argumentos são de quitandeiro! — interrompeu Atlan em tom áspero. — Não sei qual é a ligação entre seu sorriso não muito inteligente e...

— É verdade! Meu sorriso não foi nada inteligente — interrompeu Bell. — Por ele apenas quis exprimir minha compaixão. Para você, Árcon é e sempre será um non plus ultra. Segundo sua opinião bem fundamentada, nós, os terranos, evidentemente não poderemos enganar o computador-regente. Nem que nos próximos dez anos-novos, eu corte o dedo, estou disposto a apostar, Atlan, que enganaremos seu cérebro positrônico de uma forma que ninguém jamais o enganou. Qualquer um pode mentir e tapear. Qualquer pessoa que mente é tola, e quem tapeia também é. Acontece que nós, os terranos, não queremos fazer nem uma coisa, nem outra. Apenas queremos impedir que as naves arcônidas usem nossa linda Terra como alvo para seus exercícios de tiro. Por isso mesmo neste mundo dos lagartos tudo continuará como antes, com uma pequenina diferença. Todos os elementos, sejam eles quais forem, indicarão de forma precisa o lugar em que fica a Terra que Árcon tanto quer encontrar. Ela fica do outro lado da Via Láctea, dois mil anos-luz para dentro de um braço secundário da grande espiral. É lá que plantaremos a boa Terra, e o computador-gigante ficará azul de tanto procurá-la.

O discurso de Bell foi interrompido pela sala de rádio.

Joe Pasgin, que se encontrava a bordo da Burma, estacionada próxima do hipercampo de interferência, estava chamando.

— Sir, uma nave-correio acaba de trazer a notícia de que três grandes grupos de naves dos mercadores galácticos tentam há algumas horas entrar em contato com Topsid. Uma das naves cilíndricas chamou a estação arcônida G-98765-0 e pediu que investigasse a causa das estranhas interferências.

— A estação G-98765-0 fica a trinta e oito anos-luz deste sistema, na direção do Pequeno Cavaleiro.

— Há mais de vinte minutos G-98765-0 vem bloqueando nossos receptores situados do lado de fora da zona de interferência, usando mais de cem hiperfreqüências. Por enquanto não houve nada de grave. Acontece que a estação arcônida informou os mercadores galácticos de que não havia a menor interferência, e por isso frotas de dois ou três clãs resolveram dirigir-se ao planeta. Aproximam-se à velocidade de 0,8 luz; deverão atingir a zona de interferência dentro de quarenta minutos aproximadamente.

— Quais são as ordens que o senhor tem para nós?

— Deixe-os passar, Pasgin. Providencie para que nenhuma das nossas naves seja descoberta. Mais alguma novidade?

A palestra com a Burma havia chegado ao fim. Outra pessoa já aguardava o momento em que Rhodan pudesse receber sua mensagem.

Era Kitai Ishibashi, o sugestionador, que se encontrava em Din-Kop, a segunda cidade do planeta dos tópsidas. Ficava nas margens do lago Gun-Ki, que era o maior mar mediterrâneo desse mundo. Era o maior centro industrial do sistema.

— Sir — disse a voz do japonês saída do alto-falante. — Acabamos de captar uma mensagem. Três técnicos de rádio demonstram seu espanto por certos fenômenos de interferência; além disso, chegam bem perto da verdade, pois falam numa interdição do tráfego de rádio...

— É só isso, Ishibashi? — interrompeu Rhodan.

— Não senhor — Ishibashi respirou fortemente. — Não terminaremos dentro de uma hora. Tama Yokida e sua equipe descobriram mais de trinta naves de guerra que participaram dos combates no setor de Vega. Nenhuma dessas naves está em condições de voar. Por outro lado, porém, elas não foram transformadas em sucata. São trinta e duas naves com trinta e dois...

— Ras Tschubai ainda está aí, Ishibashi? — perguntou Rhodan.

Numa fração de segundo, Perry reconheceu o perigo representado pela existência dessas naves. Seria impossível que o japonês “trabalhasse” todos os bancos de dados com a pequena equipe de que dispunha, a fim de falsificar os dados astronômicos relativos ao sistema de Vega.

— Sim senhor; Tschubai está aqui...

— Eu lhe mandarei Gucky, que deverá chegar dentro de cinco minutos. Tschubai e Gucky deverão destruir os computadores de bordo das velhas naves. Você fica encarregado de tomar todas as providências para que nenhuma das naves que participaram da ação de setenta anos atrás escape à sua equipe. Sabe perfeitamente quanta coisa depende disso...

— O senhor pode confiar em nós.

— Mantenha-se em recepção. Estou chamando o rato-castor.

Esta criatura era o único membro do Exército de Mutantes que tomava a liberdade de transportar-se ao camarote de Rhodan por meio de um salto de teleportação.

— Chefe — piou Gucky em tom animado e empertigou o corpo no uniforme vistoso e colorido que, agora, já lhe assentava muito bem. — Sei o que fazer. O senhor me dá carta branca?

Não havia nada que Gucky fizesse com tanto prazer como brincar. Pelo que se dizia, havia gente que via em suas brincadeiras apenas uma fúria destrutiva. Mas havia muito mais gente que num aperto desejava um Gucky brincalhão que, como telepata, teleportador e telecineta era o “homem” que possuía maior volume de parafaculdades. Além disso, possuía um bom coração. Ninguém poderia desejar um parceiro melhor que o rato-castor.

— Ah, é? — perguntou Rhodan. — Então você quer carta branca? Olhe que você desobedeceu mais uma vez as minhas ordens expressas, pois acaba de ler meus pensamentos, Tenente Guck.

Sempre que o Y era omitido em seu nome, a barra estava pesada. Mas ao que tudo indicava, hoje o Tenente Guck não parecia importar-se muito com isso. Ria descontraidamente com seu único dente roedor.

— Chefe, a sola dos nossos pés está ardendo. Preciso sair! Está gostando das minhas botas? E você, gorducho? Têm aquecimento elétrico. Quer dizer que não terei pés frios. Bem, então tenho carta branca. Até logo mais.

Mais uma vez, o ar tremeluziu. No mesmo instante em que Gucky, o rato-castor, desaparecia do camarote de Perry Rhodan, materializava-se a 12 mil quilômetros de distância, ao lado do sugestionador japonês Kitai Ishibashi. Piou para o homem alto e magro:

— Pode desligar, Kitai! Onde poderei encontrar... Já estou captando seus pensamentos. Vou...

O último sinal da presença de Gucky foi um ligeiro tremeluzir do ar, que logo se desfez numa tênue nuvem de fumaça.

Reginald Bell levantou-se.

— Que acha da notícia alarmante vinda do espaço? Três couraçados arcônidas dirigem-se ao sistema de Topsid. Nossos homens não costumam enxergar fantasmas...

Esta notícia, recebida há pouco mais de uma hora, fora transmitida por um dos dois cruzadores pesados. Trinta minutos depois veio a retificação, proferida em tom embaraçado, segundo a qual aquilo que se acreditava serem naves arcônidas deviam ser asteróides com um elevado teor de ferro.

Mas ainda não se havia obtido um esclarecimento cem por cento seguro sobre o que realmente teria sido localizado.

— Nossos homens estão sobrecarregados de trabalho — disse Rhodan a título de explicação. — Arcônida, você ainda receia que o computador possa descobrir que manipulamos os dados relativos a Vega?

— Sim. A notícia desagradável que acabamos de receber de Kitai Ishibashi não prova como é fácil negligenciar alguma coisa no curso de uma ação violenta? Continuo a acreditar que um dia a frota de Árcon aparecerá sobre a Terra.

— Almirante, uma pessoa que não está disposta a arriscar alguma coisa jamais alcança nenhuma vantagem. Desejo até que o computador chegue à conclusão de que tentamos falsificar alguns dados, mas também quero que acredite que nos esquecemos de algo importante. Se conseguirmos isso, a operação desesperada que estamos realizando em Topsid terá sido bem sucedida. Nesse caso, o regente não terá outra alternativa senão procurar a Terra em algum lugar na extremidade oposta da Via Láctea. Quanto aos tópsidas que ocuparam funções de destaque durante a batalha no sistema de Vega, tomamos as providências necessárias para que a memória desses fatos fosse apagada em seu cérebro. Os poucos lagartos, que estão nestas condições, não guardarão a menor lembrança do setor de Vega; apenas se lembrarão de urna luta travada com Rhodan há setenta anos, nos confins da Galáxia.

O alto-falante do sistema de intercomunicação de bordo transmitiu o seguinte aviso:

— Sir, nossa frota informa que houve localizações por meio dos medidores de abalos estruturais. Uma frota arcônida aproxima-se do sistema de sóis gêmeos. A chegada está prevista para daqui a trinta e cinco ou quarenta minutos. O grupo é formado por mil ou mil e quinhentas naves de guerra de todas as classes.

— Ai, meu dedo! — observou Bell e fitou o alto-falante como se fosse uma criatura inimiga.

Atlan quis dizer alguma coisa, mas não teve tempo. Sem demonstrar a menor comoção, Perry Rhodan falou para dentro do microfone:

— Alarma para todos! Alarma para todos! Retirar nossas naves. Evitar o combate. Chame Pasgin e peça informações precisas.

Face à atividade febril provocada pelo alarma, a ligação com a sala de rádio da Kublai Khan foi mantida por mais alguns segundos. Os três homens do camarote ouviram o que foi falado no grande recinto.

— Santo Deus, a Via Láctea está conflagrada...! Alô Burma, alô Burma, entre imediatamente em recepção... Alguns milhares de mensagens de hiper-rádio estão cortando o espaço!

— ...Veja só! Os tópsidas já devem ter percebido alguma coisa! São mais de mil naves arcônidas! Nunca vi tamanha salada de mensagens de rádio...

Finalmente a ligação com a sala de rádio foi interrompida. As palavras, que os três homens haviam ouvido, deixaram-nos preocupados, mas ninguém disse nada. Saíram em silêncio.

Quando entraram na enorme sala de comando da Kublai Khan, os preparativos para a decolagem já haviam sido feitos. Perry Rhodan podia confiar, em qualquer situação, nos homens da frota. O trovejar, os zumbidos e os rugidos dos gigantescos mecanismos encheram a nave de mil e quinhentos metros de diâmetro.

John Marshall, que ainda se encontrava, juntamente com sua equipe, na estação goniométrica polar, transmitiu uma mensagem concisa:

— Precisamos de mais dez minutos, chefe! Pedimos seu consentimento.

— De acordo, Marshall, desde que esteja aqui cinco minutos depois de concluído o trabalho. Desligo.

Atlan esteve a ponto de lançar um protesto exaltado contra a decisão de Rhodan, mas sentiu a mão de Bell pousada em seu braço. O homem ruivo lançou-lhe um olhar enérgico, e o arcônida preferiu engolir o protesto. Mas não conseguiu reprimir estas palavras:

— Esta leviandade dos terranos é o diabo!

Joe Pasgin chamou da Burma.

— Sir, somos a última nave que mantém sua posição mediante um forte dispositivo protetor contra a localização. A força de Árcon é composta por duas mil unidades. Procuram bloquear todo o sistema de Topsid. Até agora constatamos a presença de cento e trinta supercouraçados. O número dos cruzadores pesados deve chegar a quinhentos ou seiscentos. Só no verde sessenta e sete e oitenta e cinco resta um corredor de saída, mas esta... Temos de entrar em transição, Sir. Há um ataque maciço vindo de...

Depois de um forte estrondo, as hiper-comunicações entre a Burma e a Kublai Khan cessaram.

Em compensação, o couraçado captou um pedido de socorro vindo de Kerh-Onf. O grupo de vinte homens, que trabalhava no arquivo, estava sendo impedido de deixar o edifício.

Kitai Ishibashi chamou de Din-Kop, uma cidade situada a doze mil quilômetros de distância.

— Iniciaremos vôo de regresso. Os teleportadores Ras Tschubai e Gucky são os únicos que não estão aqui. Irão depois.

O Tenente Gilbert, que estava de serviço no setor de rastreamento, anunciou:

— Um grupo de couraçados tópsidas aproxima-se do amarelo quarenta e três. São dezoito naves...

Rhodan ordenou imediatamente:

— Sala de comando de artilharia. Faça alguns disparos de advertência para obrigar os tópsidas a mudar de rumo. Repito: disparos de advertência.

Bell, que ocupava o assento do co-piloto, ligou para a estação do transmissor de matéria.

— TFM está preparado para entrar em ação?

— Sim senhor.

— Pois fique atento. Daqui a pouco terão muito trabalho.

Atlan sentiu-se como um espectador.

— Estes bárbaros... — disse várias vezes a si mesmo. — Estes terranos... — não podia deixar de admirá-los.

Uma frota arcônida composta de duas mil unidades aproximava-se velozmente, vinda do espaço, e estes homens, que há alguns segundos estelares ainda viviam na Idade da Pedra, faziam de conta que poderiam enfrentar tamanha superioridade de forças ou ao menos enganá-la.

— Seu dedo não está doendo, gorducho? — Atlan não pôde deixar de formular esta pergunta.

Uma salva de advertência dos canhões térmicos da Kublai Khan interpôs-se no caminho da frota tópsida que se aproximava. Em sua trilha, a atmosfera do planeta entrou em ebulição.

O supercouraçado apenas levou uma leve sacudidela. Depois de uma breve pausa disparou a segunda salva.

As naves dos tópsidas já apareciam sob a forma de pontinhos reluzentes na grande tela de visão global da Kublai Khan. Continuavam a demonstrar a mesma falta de manobrabilidade e de aceleração que já haviam dado mostras no setor de Vega.

— Sir, todas as posições de defesa dos tópsidas estão de prontidão — anunciou o posto de rastreamento energético. — Dei ordem para que as gazelas se mantenham sempre a menos de trezentos metros de altitude.

O ar começou a tremeluzir entre Bell e Atlan. Dois teleportadores surgiram ao mesmo tempo. Eram Gucky e Ras Tschubai.

— Perry — disse o rato-castor — os computadores positrônicos dos velhos calhambeques espaciais foram transformados em sucata. Tem mais algum serviço para nós?

Bell dirigiu-se ao rato-castor.

— Entrem em ação em Kerh-Onf, no arquivo histórico. Dêem apoio ao grupo que se encontra lá. Os lagartos estão atacando com armas térmicas e de impulsos. Dentro de dez minutos, o mais tardar, vocês deverão estar aqui juntamente com todo o grupo. Depois daremos o fora...

— Ótimo, gorducho.

Mal Gucky acabou de proferir estas palavras, segurou a mão do africano e desapareceu.

Os hangares da Kublai Khan transmitiam seguidamente várias notícias. As diversas equipes estavam regressando com as gazelas. Faltavam apenas três grupos: o de John Marshall, o de Kitai Ishibashi e o que fora destacado para trabalhar no arquivo histórico.

— Daqui a quinze minutos, a frota arcônida aparecerá nos céus do planeta! — advertiu Atlan.

— Quando isso acontecer, não estaremos mais aqui — respondeu Bell, mas sua voz parecia menos segura e confiante do que costumava ser.

A sala de rádio transmitiu outra notícia:

— Sir, a movimentação da frota foi providenciada pela estação G-98765-0. Neste momento, o computador-regente de Árcon está falando com o presidente de Topsid. Infelizmente ainda não consegui decifrar a mensagem...

O oficial de artilharia Crafford utilizou a linha de emergência e falou em meio à mensagem:

— Chefe, preciso de autorização para abrir fogo! A gazela de Ishibashi poderá ser destruída a qualquer momento. Não conseguirá passar...

— ...mas não quero nenhum impacto direto! — decidiu Rhodan e lançou um olhar rápido para o relógio.

O tempo corria vertiginosamente. A cada segundo que passava, a proximidade da frota de Árcon tornava-se mais ameaçadora.

Onde estava John Marshall e sua gazela? Por que não anunciava sua decolagem da estação polar?

Subitamente, as posições de artilharia estacionaria dos tópsidas, localizadas em torno do espaçoporto, dispararam contra um alvo que não aparecia nas telas de visão global da Kublai Khan.

Outra mensagem foi transmitida pela linha de emergência da sala de comando da artilharia:

— Chefe, estão abrindo fogo.

No mesmo instante, os gigantescos canhões de impulsos começaram a trovejar. Alvejavam as posições de artilharia dos tópsidas.

Um traço reluzente, vindo do alto, atravessou a tela. Seria uma espaçonave derrubada?

A sala de rádio transmitiu uma notícia:

— Marshall anuncia que seu pouso no hangar é iminente, Sir!

Então era a gazela de Marshall que descia em velocidade tresloucada das camadas mais tênues da atmosfera e, desenvolvendo o máximo de aceleração, procurava colocar-se sob a proteção da Kublai Khan.

— A frota dos tópsidas está mudando de rumo, Sir...

Rhodan lançou um olhar para o grande cronômetro.

Dentro de onze minutos, no máximo, as primeiras naves arcônidas apareceriam nos céus de Topsid.

Um objeto em forma de disco aproximou-se velozmente da Kublai Khan.

O hangar 18 anunciou:

— John Marshall e sua equipe acabam de regressar da estação polar!

Dali a três segundos veio outra mensagem:

— Kitai Ishibashi acaba de pousar com a equipe de Din-Kop!

Rhodan limitou-se a olhar para Bell. Este compreendeu. Também não sabia por que Gucky e Ras Tschubai ainda não haviam voltado.

— Sala de rádio... — a voz de Rhodan parecia um tanto rouca. — Procure entrar em contato com o arquivo histórico de Kerh-Onf. Apressem-se.

Nesse instante, o rato-castor piou às costas de Rhodan:

— Não há nenhuma pressa, Perry. Daqui a trinta segundos poderemos dar o fora.

Rhodan virou-se abruptamente na sua poltrona.

— Tenente Guck, poderia fazer o favor de dar uma informação em termos razoáveis?

Seus olhos cinzentos fitavam o rato-castor com uma expressão enérgica.

No mesmo instante, o dente roedor de Gucky desapareceu. O rato-castor esforçou-se para ficar em posição de sentido. A pata direita foi levada apressadamente ao quepe arcônida.

— O Tenente Guck, membro do Exército de Mutantes, acaba de regressar de sua missão. Demos uma boa sova nos tópsidas. Livramos o grupo-tarefa da fria em que se encontrava. Foi uma brincadeira bonita...

Para Perry Rhodan já bastava. Fez um gesto de contrariedade.

Atlan, que há 10 mil anos já exercia as funções de almirante arcônida, e que voara num sem-número de missões, já não suportava a indiferença ostensiva dos terranos.

— Não se esqueçam — observou em tom mordaz — de que, dentro de dez minutos, duas mil naves de guerra estarão acima de nossas cabeças!

Perry Rhodan respondeu com a maior tranqüilidade.

— Acontece que não decolaremos antes que o último homem esteja a bordo. Há dez mil anos não se costumava agir assim na frota arcônida?

— O que acontecerá se durante a decolagem os tópsidas utilizarem o novo rastreador e eliminarem nossos campos energéticos? — objetou Atlan.

— Não poderão fazer isso — piou Gucky. — Os lagartos tinham um único aparelho, e eu lhes tirei o mesmo, quando tentavam levá-lo a outro lugar. Aposto que eles poderão procurá-lo em qualquer lugar, menos nos depósitos da On-Tharu. Afinal, sou um telecineta muito competente e...

O hangar 18 voltou a chamar.

— O grupo do arquivo histórico acaba de chegar. A escotilha da comporta está fechada.

Era o sinal de decolagem.

Os propulsores de impulsos situados na protuberância equatorial da gigantesca Kublai Khan começaram a trabalhar a plena potência. Ao mesmo tempo, entraram em funcionamento os neutralizadores de pressão, os campos antigravitacionais e alguns milhões de relês e dispositivos positrônicos.

De um instante para outro, a Kublai Khan perdeu todo o peso, graças aos dispositivos antigravitacionais. O supercouraçado da frota solar ergueu-se quase imperceptivelmente do espaçoporto de Kerh-Onf. A potência do empuxo foi crescendo cada vez mais. O indicador de aceleração subia aos saltos. O planeta Topsid parecia cair num abismo. A gigantesca nave afastava-se velozmente.

Alguns segundos depois, verificaram-se os primeiros ataques das posições de artilharia dos lagartos.

Quantidades enormes de energia descarregavam-se nos campos defensivos da nave esférica. Cascatas de fogo e de energia eram lançadas para todos os lados e provocavam um rugido no interior da nave. Sob a ação das ondas sonoras, o corpo do supercouraçado começou a trepidar ligeiramente. Mas as forças controladas, que se desenvolviam no interior da gigante solar, eram mais intensas e ruidosas que o inferno crepitante na parte exterior dos campos defensivos.

— As naves tópsidas nos perseguem!

Foi a primeira de uma série de notícias alarmantes.

Rhodan chamou o setor da nave que distinguia a Kublai Khan de todos os veículos espaciais de tipo arcônida que pertencessem à mesma classe.

— Caso a Kublai Khan for atacada, o transmissor de matéria tem permissão para disparar.

Neste instante, o rato-castor disse em voz alta ao ouvido de Bell:

— Vou ligar o aquecimento elétrico das minhas botas. Não quero ficar com os pés frios...

Perry Rhodan não ouviu essa observação supérflua do rato-castor, ou então preferiu fazer de conta que não a ouvira. Sua voz era áspera, mas controlada, quando disse:

— Colocar trajes espaciais!

Isso se aplicava a todos, inclusive a Bell, Atlan e ao rato-castor. Apenas não se aplicava a Harno, a criatura esférica que se encontrava no bolso do uniforme de Rhodan.

A Kublai Khan atravessou as camadas mais elevadas da atmosfera. O uivo enervante das superaquecidas massas de ar foi diminuindo. Em compensação vinha da sala de máquinas o rugido cada vez mais forte dos mecanismos que trabalhavam a toda potência.

De um instante para outro, a imagem projetada na grande tela de visão global do supercouraçado modificou-se.

O negrume do espaço parecia irromper na sala de comando.

Os dois sóis pareciam olhos ofuscantes, nitidamente desenhados. Topsid, o mundo central do povo de lagartos, desaparecera na escuridão do Universo.

— Localização!

As naves de Árcon deveriam chegar dentro de oito minutos!

Os aparelhos de rastreamento da Kublai Khan estabeleceram contato com a frota que se aproximava.

— Localização com o rastreador estrutural.

Isso significava que as naves continuavam a emergir do hiperespaço, a fim de barrar o caminho do misterioso veículo espacial que enganara os tópsidas.

— O que diz o controle das mensagens de rádio?

Rhodan estava interessado em saber se as naves arcônidas que se aproximavam e os tópsidas ainda não sabiam quem fora o autor do blefe.

Os homens da sala de rádio da Kublai Khan eram verdadeiros feiticeiros. Em apenas cinco frases, o Tenente Jouffre forneceu ao administrador do Império Solar um relato minucioso sobre esta interrogação.

Nas mensagens até então captadas, não foi mencionado uma única vez sequer o nome de Perry Rhodan ou o do planeta Terra. O regente de Árcon acreditava tratar-se de um povo colonial que se revoltara e, agora, queria tirar proveito de certos conhecimentos que os tópsidas não vinham utilizando. Mas não foi por isso que o Grande Coordenador resolveu enviar uma gigantesca frota; foi porque alguém usou indevidamente sua faixa de hiperfreqüência.

Face a isso, Árcon não podia deixar de impor ao transgressor um castigo exemplar. E o computador desalmado de Árcon III já demonstrara por mais de uma vez com que disposição sabia golpear.

— Senhor administrador — não era costume usar tal tratamento para com Perry Rhodan. Na situação em que se encontravam, este fazia prever uma notícia alarmante. — Mais de vinte supercouraçados aproximam-se do verde cento e cinqüenta e seis graus.

As torres de canhões das regiões polares da Kublai Khan começaram a disparar. Na tela de visão global surgiram raios verdes, vermelho-pálidos e vermelho-escuros que cortavam o negrume do espaço.

A Kublai Khan disparava todos os tipos de radiações.

Um sol surgiu no céu. Um dos supercouraçados de Árcon foi atingido pelo fogo concentrado e desmanchou-se numa fogueira atômica.

Naquele instante, as energias desencadeadas começaram a rugir em torno da nave terrana. Na sala de comando, as sereias uivaram. Devido ao tamanho da nave, a capacidade dos campos defensivos tinha proporções astronômicas. De qualquer maneira, porém, era limitada, e agora que o campo estava sendo atingido simultaneamente por mais de dez disparos de radiações, ameaçava entrar em colapso.

— Cadê o transmissor de matéria? — gritou Bell para dentro do microfone, dirigindo-se à estação do TFM.

A resposta não veio em forma de palavras. O fim abrupto do ruído das sereias respondia a tudo. O campo energético defensivo voltou a estabilizar-se. O ataque de uma frota de supercouraçados cessou de um instante para outro.

— Metade das naves sumiu! — gritou um dos oficiais do posto de localização.

Rhodan e Bell fizeram um gesto afirmativo. O transmissor de matéria representava a única chance de romper a frente extensa e profunda de naves arcônidas.

— Se estas naves tiverem uma tripulação de robôs, poderemos de qualquer maneira fazer nosso testamento... — cochichou Bell ao ouvido de Perry Rhodan.

O velocímetro da Kublai Khan aproximou-se da marca que indicava metade da velocidade da luz. Não demoraria muito até que pudessem entrar em transição.

Os postos de artilharia de números 35 a 62 começaram a disparar. No interior da nave, os conversores uivaram e os geradores rugiram. Os campos defensivos foram banhados por um mar de fogo. Até mesmo os impactos nesses campos pareciam fazer balançar a Kublai Khan. Evidentemente isso não passava de uma tolice. De qualquer maneira, Atlan observava atento o indicador de capacidade do campo. Noventa e sete por cento...!

— Santo Deus...!

Era mais uma expressão de surpresa infinita, vinda do posto de observação.

Os instrumentos mostravam que algumas das naves inimigas se haviam dissolvido literalmente no nada.

O transmissor de matéria, a arma mais terrível, voltara a golpear.

Essa arma não fora criada por homens. Provinha de Peregrino, um planeta artificial no qual vivia Ele ou Aquilo. Além da Kublai Khan, o transmissor de matéria só era encontrado a bordo da Drusus, nave capitania de Perry Rhodan.

Oitenta e sete por cento da velocidade de transição!

— Conseguiremos! — disse Bell a meia voz. Gucky estava de pé a seu lado. O rato-castor fitava Bell com uma expressão indagadora. Já não sorria com o dente roedor, mas também não demonstrava medo.

A frota arcônida lançou um ataque concentrado. O posto de observação já não conseguia anunciar os grupos que se aproximavam.

Não parecia o fim; realmente era o fim.

Mais de duas mil naves, vindas de todas as direções, aproximaram-se velozmente da rota da Kublai Khan.

Na sala de comando do supercouraçado terrano, soaram alguns gritos. De repente surgiram trezentos, quatrocentos, quinhentos raios destruidores e eliminaram os campos defensivos da Kublai Khan. Assim mesmo a nave de Perry Rhodan não desapareceu.

Porém estava girando em torno de seu próprio eixo!

Sofrerá mais de duas dezenas de impactos.

O posto do TFM não respondia. O posto de artilharia da região polar superior deixara de existir. Os canhões de impulsos, situados no verde, deviam ter desaparecido. Os postos de desintegradores anunciaram uma perda de vinte por cento.

No interior da nave, as sereias de alarma uivaram, anunciando uma situação catastrófica. Os robôs tentavam reparar os gigantescos vazamentos provocados pelos raios energéticos.

— A potência dos neutralizadores de pressão está diminuindo...

Era apenas uma entre cem notícias catastróficas vindas de todos os cantos da nave.

Até mesmo Perry Rhodan empalideceu... A velocidade fora reduzida para 0,48 luz!

— Perdas... Mortos... Feridos... Outra notícia:

— Sir, a terça parte da protuberância equatorial foi destruída...

A Kublai Khan sofreu novos impactos.

Oitenta por cento da sala de máquinas fora destruída por um raio de impulso de trinta metros de diâmetro.

A Kublai Khan era apenas um corpo mutilado.

— Abandonar a nave!

Perry Rhodan repetiu a ordem.

Será que alguém conseguiria sair da nave? Será que o próximo impacto não transformaria a Kublai Khan numa nuvem de gases?

— Abandonar nave! Usar girinos! Abandonar nave! Usar girinos...

Perry Rhodan parecia uma máquina, um robô que só soubesse proferir estas palavras:

— Abandonar nave! Usar girinos!

A grande tela de visão global apagou-se no momento em que oito raios gigantescos fizeram com que a parte inferior da Kublai Khan se volatilizasse numa fração de segundos.

O supercouraçado girava que nem um pião. A cada segundo que passava, os efeitos da força centrífuga se tornavam mais intensos. Dali se concluía que os neutralizadores de pressão já não funcionavam.

Bell continuava sentado ao lado de Perry Rhodan. Gucky estava de pé ao lado de Bell, enquanto na última poltrona estava sentado Atlan, que há 10 mil anos ocupara o posto de almirante.

Eram as últimas pessoas que se encontravam na sala de comando.

Só podiam comunicar-se pelos rádios de capacete. E foi pelos rádios de capacete que ouviram uma das últimas notícias calamitosas:

— Sir, só resta um girino em condições de ser usado. Não conseguimos tirar os outros dos hangares. É impossível abrir as comportas.

Bell gemeu sob o capacete.

Os girinos eram naves de sessenta metros de diâmetro. A Kublai Khan tinha uma tripulação de 2 mil homens. Nem a metade desse número poderia ser abrigada no único girino que estava em condições de ser usado.

Subitamente Atlan, Bell e o rato-castor estremeceram. Rhodan gritou para dentro do microfone de seu rádio de capacete:

— Todos encontraremos lugar no... Rhodan foi interrompido por alguns gritos estridentes.

Vinham de algum lugar no interior do já semidestruído supercouraçado, em cuja construção a Terra gastara anos e anos. Depois de algum tempo, os gritos se tornaram compreensíveis.

A Kublai Khan estava ardendo.

Não se tratava de um fogo comum. Uma série de ocorrências infelizes devia ter deflagrado um incêndio atômico no setor de armazenamento de energia da nave.

— Fora! — gritou Rhodan para Gucky e os dois amigos. — Não digam nada. Deixem a faixa desocupada...

Os elevadores antigravitacionais não estavam funcionando. Tiveram de fazer um tremendo esforço para descer de um convés a outro, utilizando as passagens de emergência. Rhodan transmitia ininterruptamente suas instruções pelo rádio de capacete.

— Não se preocupem com o incêndio. Acho que é nossa última chance. Se não fosse o fogo, já teríamos sido transformados numa nuvem de gases. Deitem no girino que nem sardinhas em lata. Formem uma camada acima da outra e ponham o campo antigravitacional a funcionar suavemente, a fim de que os que ficarem embaixo não sejam esmagados. Tenham cuidado com os feridos!

Gucky poderia teleportar-se. Era uma criatura que não apreciava os movimentos normais, mas agora resolveu permanecer ao lado dos amigos. Nem pensou em adotar outro procedimento. Rhodan, Bell e Atlan acharam apenas natural que Gucky permanecesse a seu lado.

A luz apagou-se. Sentiram-se envoltos numa escuridão ameaçadora. Encontravam-se a oitocentos metros do hangar, no interior do qual quase dois mil homens procuravam enfiar-se num girino que media sessenta metros de diâmetro.

Só agora compreenderem que a Kublai Khan ainda servia de alvo ao fogo do inimigo. Um impacto após o outro atingiu o supercouraçado, que balançava que nem um navio desarvorado com mar grosso. Além disso, girava em torno de seu eixo. Em quase todos os pontos, o grosso revestimento desprendia-se da nave.

— Não conseguiremos... — fungou Bell de repente.

Colocou-se ao lado de Rhodan e apontou para baixo.

Encontravam-se junto a um poço de elevador. Três homens e um rato-castor lançaram os olhos para as profundidades. Lá embaixo rugia o inferno atômico, que prosseguia implacavelmente na sua faina destruidora.

— Vamos andando! Acho que é só por isso que ainda estamos vivos. Provavelmente os arcônidas pensam que a nave foi transformada num mar de chamas.

— Quando você estiver morto, bárbaro — começou Atlan — alguém terá de matar seu otimismo, senão ele continuará a viver. Naquele instante, Gucky parecia adquirir vida.

— Os últimos homens estão entrando no girino, Perry. Vou teleportar-me com Atlan. Depois voltarei para levar o gorducho e, por fim, você. O.K., chefe?

Com estas palavras, Gucky deu a entender que, durante todo o tempo, estivera em contato com um telepata, que se encontrava ao lado do girino. Antes que Atlan tivesse tempo para esboçar um protesto, Gucky agarrou-se nele e “saltou”.

Dali a três minutos, Rhodan já se achava no assento do piloto do girino. Viu na tela à sua frente a escotilha bem aberta da comporta do hangar, que fornecia um recorte do preto aveludado do espaço e dos pontos luminosos nitidamente desenhados. Pela primeira vez teve a impressão de que estes o fitavam com uma expressão de ódio.

No momento em que um impacto esfacelava ainda mais a Kublai Khan, Rhodan fez o girino sair ruidosamente do hangar, acelerando ao máximo. Naquele instante, só desejava uma coisa: que os postos de observação das naves arcônidas o identificassem como sendo um pedaço da nave destroçada, e não como um veículo espacial que se afastava.

Os propulsores, situados na pequena protuberância equatorial, uivavam, dando o máximo de si. Porém Rhodan teve a impressão de que a nave auxiliar se arrastava preguiçosamente.

De súbito surgiram quatro raios, que dividiram o negrume do espaço em compartimentos distintos e passaram a alguns milhares de quilômetros do girino. Atingiram os destroços da Kublai Khan, que se transformou numa bola de fogo alaranjada, passando a emitir um brilho cada vez mais intenso.

— Você estava com a razão, bárbaro — disse o arcônida, sacudindo a cabeça sob o capacete. — Meus patrícios só não nos deram o tiro de misericórdia porque a Kublai Khan parecia um inferno. Caramba, Perry! Onde é que você arranja a sabedoria e o otimismo numa situação infernal como esta?

Rhodan teve tempo para dar uma resposta bem pensada:

— Um ser humano só desiste depois de morto...

E a morte voltara a rondá-los...

Uma espaçonave arcônida localizou o girino e disparou todas as peças de seu costado.

Rhodan praguejou, coisa que não costumava fazer.

Desviou a nave da rota. Pouco importava a direção que tomava, pois o inimigo estaria à espreita em qualquer lugar.

— Chefe! — exclamou John Marshall, que se encontrava junto ao rádio. — Acabo de captar uma mensagem interessante. O computador-regente ordenou à sua frota que capturasse a nave desconhecida e a levasse para Árcon, a fim de descobrir quem está atrás desta operação.

Bell soltou uma risada amarga.

— Um a zero a nosso favor, regente! A ordem chegou tarde!

Atrás deles, o produto de dezesseis anos de trabalho duro dos terranos desmanchou-se numa cascata de fogo.

Com isso queimou-se o único sinal que poderia revelar ao regente quem se atrevera a utilizar sua faixa de hiperfreqüência para pescar em águas turvas.

— Zero vírgula nove! — piou Gucky, que não tirava os olhos do velocímetro. — Faltam...

Um terrível raio de desintegração passou à frente do girino, perdendo-se nas profundezas do espaço.

— Chefe, parece que fomos localizados por dois cruzadores ligeiros, que seguem em...

A suspeita de Marshall transformou-se em certeza.

Subitamente, a nave auxiliar foi atacada de ambos os lados. Perry Rhodan colocou a chave do piloto positrônico na posição “desligado”. Passou à pilotagem manual.

Mais uma vez jogava tudo numa só cartada, como já fizera várias vezes, desde o início da operação. Se não conseguisse escapar, seria o fim...

Os neutralizadores de pressão do girino uivaram, quando arrancou a nave de sua rota. O girino descreveu uma curva fechada. O piloto positrônico foi ligado e pôs em funcionamento o mecanismo de contagem regressiva para a transição.

A morte tentava agarrá-los com seus dedos de radiações. Abriu o campo defensivo do girino e fê-lo desmoronar por alguns segundos!

Mas logo se seguiu a transição.

Com o neutralizador de vibrações ligado, pouco mais de 1.700 sobreviventes transferiram-se para o hiperespaço, que representava a salvação.

 

A operação Topsid custara a vida de duzentos e quarenta e três homens da frota solar. Em comparação com isso, a perda da Kublai Khan e do insubstituível transmissor de matéria não representava nada.

O material sempre é substituível, os homens nunca!

E Atlan respondeu a esta observação.

— Se não nos tivéssemos esquecido tão depressa que o homem é mais importante que a máquina, Árcon hoje dominaria o Universo. Nós mesmos fabricamos nosso destino e não merecemos outra coisa: acabamos dominados pela máquina desalmada... Perry, você tem certeza absoluta de que em Topsid seus homens não se esqueceram de nenhum detalhe?

Lançou-lhe um olhar de expectativa; Rhodan retribuiu com um olhar sério.

— Sim, Almirante, tenho certeza absoluta de que em Topsid não existe mais nenhuma indicação de que o computador possa deduzir o caminho à Terra. Daqui a pouco continuaremos a conversar. Passarei à última transição, que nos levará ao sistema solar. Pronto, Bell?

Bell se encontrava junto ao pequeno computador de bordo, no qual acabara de introduzir os dados para a transição.

— Pronto, Perry... A luz verde já se acendeu!

Mais uma vez, a voz metálica do mecanismo de contagem regressiva começou a desfiar os segundos, em direção ao zero.

Transição e rematerialização!

O choque e o lento despertar de um estado indescritível.

Ouviu-se uma praga.

Foi Bell quem soltou a praga.

Gucky levantou-se, perplexo. Atlan fitou o homem baixo e ruivo com uma expressão de espanto. Rhodan examinou o amigo da cabeça aos pés. Todos tiveram uma sensação desagradável, embora a pequena tela de visão global mostrasse o sol terrano.

Tinham todos os motivos para suspirar aliviados.

Mas ninguém o fez.

Atlan chegou mesmo a dizer:

— Isso ainda pode ficar muito divertido...

Foi o único que abriu a boca. Os outros contentaram-se em olhar o polegar direito de Bell.

Ele o cortara de novo. E estava sangrando...

 

                                                                                            Kurt Brand

 

                      

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