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FREUD - Volume III (1893-1899)
FREUD - Volume III (1893-1899)

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OBRAS COMPLETAS DO DR. SIGMUND FREUD

Volume III

 

Primeiras Publicações Psicanalíticas

 

NOTA DO EDITOR INGLÊS

PREFÁCIO A SAMMLUNG KLEINER SCHRIFTEN ZUR NEUROSENLEHRE AUS DEN JAHREN

1893-1906

 

(a)EDIÇÕES ALEMÃS:

1906 S.K.S.N., 1, iii. (1911, 2ª ed.; 1920, 3ª ed.; 1922, 4ª ed.)

1925 G.S.,  1, 241-2.

1952 G.W., 1, 557-8.

 

Esta tradução do prefácio por James Strachey parece ser a primeira em inglês.

 

O livro que leva esse prefácio foi o primeiro dos cinco volumes-coletâneas de artigos breves de Freud, tendo os demais aparecido em 1909, 1913, 1918 e 1922. O presente volume da Standard Edition inclui a maior parte do conteúdo dessa primeira coletânea. Entretanto, o primeiro dos artigos em francês, que compara a paralisia orgânica com a histérica (1893c), foi incluído no Volume I da Standard Edition, como pertencendo quase inteiramente à fase pré-psicanalítica. Do mesmo modo, seus três últimos itens (dois artigos que figuram nos volumes de Loewenfeld, 1904a e 1906a, e o artigo “Sobre a Psicoterapia”, 1905a), que têm data posterior aos demais, serão encontrados no Volume VII da Standard Edition. Além do mais, a “Comunicação Preliminar” (1893a), reimpressa em Estudos sobre a Histeria (1895d), está incluída no Volume II da Standard Edition, não se repetindo aqui. No entanto, seu lugar é tomado por uma conferência (1893h) recentemente descoberta, contemporânea da “Comunicação Preliminar” e cobrindo o mesmo campo, da qual há uma transcrição estenografada corrigida por Freud. Este volume contém ainda dois artigos que Freud omitira de sua coletânea: a discussão sobre o esquecimento (1898b), depois desenvolvida no primeiro capítulo de Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana, e o artigo sobre as “Lembranças Encobridoras” (1899a). Inclui também a lista das sinopses dos primeiros trabalhos de Freud (1897b), elaboradas por ele mesmo com vistas a sua pretensão ao cargo de Professor.

Em razão da precedência dada por Freud, entre esses artigos, a seu obituário de Charcot, parece adequado introduzir o presente volume da Standard Edition com uma reprodução da fotografia autografada com que Charcot o presenteou quando ele deixou Paris em fevereiro de 1886.

 

PREFÁCIO DE FREUD À COLETÂNEA DOS ESCRITOS BREVES SOBRE A TEORIA DAS NEUROSES DE 1893 A 1906

 

Atendendo a muitas solicitações que me têm chegado, decidi apresentar a meus colegas, em forma de coletânea, os pequenos trabalhos sobre as neuroses que venho publicando desde 1893. Consistem em quatorze artigos curtos, que em sua maior parte têm o caráter de comunicações preliminares, publicados em boletins científicos ou em periódicos médicos — três deles em francês. Os dois últimos (XIII e XIV), que apresentam em termos sucintos minha atual posição quanto à etiologia e ao tratamento das neuroses, foram extraídos dos conhecidos volumes de Loewenfeld, Die psychischen Zwangserscheinungen |Sintomas Psíquicos Obsessivos|, 1904, e da 4ª edição de Sexualleben und Nervenleiden |Vida Sexual e Doença Nervosa|, 1906, e foram escritos por mim a pedido de seu autor, que é meu amigo. |Ver em. [1].|

Esta coletânea serve como introdução e suplemento a minhas publicações de maior envergadura versando sobre os mesmos tópicos — Estudos sobre a Histeria (com o Dr. J. Breuer), 1895; A Interpretação dos Sonhos, 1900; Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana, 1901 e 1904; O Chiste e sua Relação com o Inconsciente, 1905; Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, 1905; e Fragmento da Análise de um Caso de Histeria, 1905. O fato de ter posto meu Obituário de J.-M. Charcot à frente desta coletânea de artigos de minha autoria deve ser considerado não apenas como o resgate de uma dívida de gratidão, mas também como um marco do ponto em que meu próprio trabalho se separa do trabalho do mestre.

Nenhuma pessoa familiarizada com o processo de desenvolvimento do saber humano ficará surpresa ao constatar que, neste ínterim, ultrapassei algumas das opiniões aqui expressas, ao mesmo tempo que venho modificando outras. Não obstante, consegui manter inalterada a maior parte delas e, de fato, não senti necessidade de eliminar coisa alguma como totalmente errônea ou completamente desprezível.

 

CHARCOT (1893)

 

NOTA DO EDITOR INGLÊS

 

(a) EDIÇÕES ALEMÃS:

1893 Wien. med. Wschr., 43 (37), 1513-20. (9 de setembro).

1906 S.K.S.N., 1, 1-13. (1911, 2ª ed.; 1920, 3ª ed.; 1922, 4ª ed.)

1925 G.S., 1, 243-57.

1952 G.W., 1, 21-35.

 

(b) TRADUÇÃO INGLESA:

“Charcot”

1924 C.P., 1, 9-23. (Trad. de J. Bernays.)

 

Incluído (Nº XXII) na coleção de sinopses dos primeiros trabalhos de Freud elaborada por ele mesmo (1897b). A presente tradução é baseada na de 1924.

 

De outubro de 1885 a fevereiro de 1886, Freud trabalhou na Salpêtrière, em Paris, sob a direção de Charcot. Esse foi o ponto crucial de sua carreira, pois foi durante esse período que seu interesse transferiu-se da neuropatologia para a psicopatologia — da ciência física para a psicologia. Ainda que outros fatores mais profundos possam ter interferido na mudança, o determinante imediato foi, sem sombra de dúvida, a personalidade de Charcot. Como escreveu ele a sua futura esposa, logo após ter chegado a Paris (em 24 de novembro de 1885). “Acho que estou mudando muito. Vou dizer-lhe detalhadamente o que me está afetando. Charcot, que é um dos maiores médicos e um homem cujo senso comum tem um toque de gênio, está simplesmente desarraigando minhas metas e opiniões. Por vezes, saio de suas aulas como se estivesse saindo da Notre Dame, com uma nova idéia de perfeição. Mas ele me exaure; quando me afasto, não sinto mais nenhuma vontade de trabalhar em minhas próprias bobagens; há três dias inteiros não faço qualquer trabalho, e não tenho nenhum sentimento de culpa. Meu cérebro está saciado, como se eu tivesse passado uma noite no teatro. Se a semente frutificará algum dia, não sei; o que sei é que ninguém jamais me afetou dessa maneira...”

Este obituário, escrito poucos dias após a morte de Charcot, é uma evidência adicional da enorme admiração de Freud por ele, admiração que não perdeu até o fim de sua vida. Os ditos de Charcot afloram constantemente nos textos de Freud e, em todos os relatos de seu próprio desenvolvimento, nunca foi esquecido o papel desempenhado por Charcot.

Embora este seja o mais longo estudo de Freud sobre ele, dois ou três outros trabalhos podem complementá-lo: o relatório oficial de Freud às autoridades da Universidade de Viena sobre o curso de seus estudos em Paris (1956a |1886|), fonte de parte do material de tal obituário; a “História do Movimento Psicanalítico” (1914d), Standard Edition, Vol. XIV, (ver em [1]), o Estudo Autobiográfico (1925d), ibid., Vol. XX ( 12-4), e também o primeiro volume da biografia de Ernest Jones (1953, 202-5).

 

CHARCOT

 

A 16 de agosto deste ano, J,-M. Charcot morreu subitamente, sem dor ou doença, após uma vida de felicidade e fama. Nele, prematuramente, a jovem ciência neurológica perdeu seu maior líder, os neurologistas de todos os países perderam seu grande mestre e a França perdeu um de seus mais destacados cidadãos. Tinha apenas sessenta e oito anos; sua força física e seu vigor mental, ao lado das esperanças que ele expressava tão abertamente, pareciam prometer-lhe a longevidade de que desfrutaram não poucos dos intelectuais deste século. Os nove volumes imponentes de suas Oeuvres complètes, em que seus discípulos reuniram suas contribuições à medicina e à neuropatologia, suas Leçons du mardi, os relatórios anuais de sua clínica no Salpêtrière, e outros trabalhos mais — todas essas publicações permanecerão preciosas para a ciência e para seus alunos; mas não podem substituir o homem, que tinha ainda muito mais a dar e a ensinar, e de cuja pessoa e cujos textos ninguém jamais se aproximou sem que aprendesse alguma coisa.

Seu grande sucesso trazia-lhe um honesto e humaníssimo prazer, e ele gostava de conversar sobre o começo de sua trajetória e sobre o caminho já percorrido. Sua curiosidade científica, dizia, cedo fora despertada, quando ele era ainda um jovem interne, pelo abundante material apresentado pelos fatos da neuropatologia, material sequer compreendido àquele tempo. Nessa época, sempre que fazia a ronda com o médico-assistente num dos departamentos do Salpêtrière (instituição hospitalar encarregada de mulheres), em meio a toda a profusão de paralisias, espasmos e convulsões para os quais, há quarenta anos, não havia nome nem compreensão, ele dizia: “Faudrait y retourner et y rester”; e manteve sua palavra. Quando se tornou médecin des hôpitaux, imediatamente providenciou seu ingresso num dos departamentos de pacientes nervosos do Salpêtrière. Tendo-o conseguido, lá permaneceu, ao invés de fazer o que se permitia aos médicos franceses — transferir-se, em sucessão regular, de um departamento para outro e de hospital para hospital, mudando ao mesmo tempo de especialidade.

Assim, sua primeira impressão e a resolução daí resultante foram decisivas para a totalidade de seu desenvolvimento ulterior. Dispor de um grande número de pacientes nervosos crônicos permitiu-lhe utilizar seus próprios dotes especiais. Não era Charcot um homem dado a reflexões excessivas, um pensador: tinha, antes, a natureza de um artista — era, como ele mesmo dizia, um “visuel”, um homem que vê. Eis o que nos falou sobre seu método de trabalho. Costumava olhar repetidamente as coisas que não compreendia, para aprofundar sua impressão delas dia-a-dia, até que subitamente a compreensão raiava nele. Em sua visão mental, o aparente caos apresentado pela repetição contínua dos mesmos sintomas cedia então lugar à ordem: os novos quadros nosológicos emergiam, caracterizados pela combinação constante de certos grupos de sintomas. Os casos extremos e completos, os “tipos”, podiam ser destacados com a ajuda de uma espécie de planejamento esquemático e, tomando esses tipos como ponto de partida, a mente podia viajar pela longa série de casos mal definidos — as “formes frustes” — que, bifurcando-se a partir de um ou outro traço característico do tipo, desvaneciam-se na indistinção. Ele chamava essa espécie de trabalho intelectual, no qual ninguém o igualava, de “nosografia prática”, e se orgulhava dele. Podia-se ouvi-lo dizer que a maior satisfação humana era ver alguma coisa nova — isto é, reconhecê-la como nova; e insistia repetidamente na dificuldade e na importância dessa espécie de “visão”. Costumava indagar por que, na medicina, as pessoas enxergavam apenas o que tinham aprendido a ver. Falava em como era maravilhoso que alguém pudesse subitamente ver coisas novas — novos estados de doença — provavelmente tão velhas quanto a raça humana, e em como tinha que confessar a si mesmo que via agora nas enfermarias hospitalares inúmeras coisas que lhe haviam passado despercebidas durante trinta anos. Não é preciso falar a nenhum médico a respeito da riqueza de formas que a neuropatologia adquiriu através dele, nem do aumento de precisão e segurança de diagnóstico que suas observações tornaram possível. Mas um aluno que passasse com ele muitas horas, acompanhando-o nas inspeções das enfermarias do Salpêtrière — aquele museu de fatos clínicos cujos nomes e características peculiares, em sua maior parte, provieram dele —, haveria de se lembrar de Cuvier, cuja estátua, erguendo-se em frente do Jardin des Plantes, exibe esse grande entendedor e descritor do mundo animal cercado por uma multidão de figuras animais; ou então se lembraria do mito de Adão, que, diante das criaturas do Paraíso que Deus lhe trouxera para serem distinguidas e nomeadas, deve ter experimentado no mais alto grau o prazer intelectual que Charcot tanto louvava, que Deus lhe trouxera para serem distinguidas e nomeadas, deve ter experimentado no mais alto grau o prazer intelectual que Charcot tanto louvava.

De fato, Charcot era infatigável na defesa dos direitos do trabalho puramente clínico, que consiste em observar e ordenar as coisas, contrariando as usurpações da medicina teórica. Em certa ocasião, éramos um pequeno grupo de estudantes estrangeiros que, educados na tradição da fisiologia acadêmica alemã, esgotávamos sua paciência com nossas dúvidas quanto às suas inovações clínicas. “Mas isso não pode ser verdade”, objetou um de nós, “pois contradiz a teoria de Young-Helmholtz”. Ele não retrucou com um “tanto pior para a teoria; primeiro os fatos clínicos”, ou qualquer outra expressão no mesmo sentido; disse-nos, entretanto, uma coisa que nos causou enorme impressão: “La théorie, c’est bon, mas ça n’empêche pas d’exister.”

Por muitos anos Charcot ocupou a Cátedra de Anatomia Patológica em Paris, tendo prosseguido, voluntariamente e como ocupação secundária, em seus estudos e cursos de neuropatologia, que rapidamente o tornaram famoso tanto no exterior quanto na França. Foi um acaso fortuito para a neuropatologia que o mesmo homem pudesse encarregar-se do desempenho de duas funções: por um lado, criou a descrição nosológica através da observação clínica e, por outro, demonstrou que as mesmas mudanças anatômicas subjaziam à doença, quer esta aparecesse como típica, quer como forme fruste. O êxito desse método anátomo-clínico de Charcot é amplamente reconhecido no campo das doenças nervosas orgânicas — tabe, esclerose múltipla, esclerose amiotrófica lateral etc. Freqüentemente foram necessários anos de espera paciente antes que se pudesse comprovar a presença da mutação orgânica nessas moléstias crônicas que não são diretamente fatais, e somente num hospital para casos incuráveis, como era o Salpêtrière, seria possível manter os pacientes em observação por períodos tão longos de tempo. Charcot fez a primeira demonstração desse gênero antes de se encarregar de um departamento. Quando era ainda estudante, aconteceu-lhe contratar uma criada que sofria de um tremor singular e não conseguia arranjar colocação devido à sua falta de jeito. Charcot reconheceu em seu estado uma paralysie choréiforme, enfermidade que já fora descrita por Duchenne, mas cujo fundamento era desconhecido. Charcot conservou essa curiosa criada, embora ela lhe custasse, no correr dos anos, uma pequena fortuna em pratos e travessas. Quando ela finalmente faleceu, ele estava em condições de demonstrar, a partir desse caso, que a paralysie choréiforme era a expressão clínica da esclerose cérebro-espinhal múltipla.

A anatomia patológica deve servir à neuropatologia de duas maneiras. Além de demonstrar a presença de uma alteração mórbida, deve estabelecer a localização dessa mudança; e todos sabemos que, nas duas últimas décadas, a segunda dessas tarefas foi a que despertou maior interesse, sendo a mais ativamente empreendida. Charcot desempenhou também nessa empresa um papel extremamente destacado, embora as descobertas pioneiras não tenham sido feitas por ele. De início ele seguiu a trilha de nosso compatriota Türck, que se diz ter vivido e pesquisado em relativo isolamento entre nós. Quando emergiram as duas grandes inovações — as experiências de estimulação de Hitzig-Fritsch e as descobertas de Flechsig sobre o desenvolvimento da medula espinhal — que anunciaram uma nova época no nosso conhecimento da “localização das doenças nervosas”, as aulas de Charcot sobre esse assunto desempenharam o maior e mais importante papel na aproximação entre as novas teorias e o trabalho clínico, tornando-as frutíferas para este. No que concerne especialmente à relação do aparelho somático muscular com a área motora do cérebro humano, posso lembrar ao leitor o longo período de tempo durante o qual estiveram em questão a natureza mais exata dessa relação, assim como sua topografia. (Haveria uma representação comum de ambas as extremidades nas mesmas áreas? Ou haveria uma representação da extremidade superior na circunvolução central anterior e da extremidade inferior na posterior — isto é, uma disposição vertical?) Afinal, as contínuas observações clínicas e as experiências com estimulação e extirpação em pacientes vivos, durante operações cirúrgicas, decidiram a questão em favor da concepção de Charcot e Pitres, segundo a qual o terço médio das circunvoluções centrais serve principalmente à representação do braço, enquanto o terço superior e a porção medial servem à da perna — ou seja, a disposição da área motora é horizontal.

Uma enumeração das contribuições isoladas de Charcot não nos capacitaria a demonstrar sua importância para a neuropatologia, pois durante as duas últimas décadas não houve tema, qualquer que fosse sua importância, em cuja formulação e discussão a escola do Salpêtrière não tivesse uma significativa participação; e a “escola do Salpêtrière” era, naturalmente, o próprio Charcot, que, com a riqueza de sua experiência, a transparente clareza de suas exposições e a plasticidade de suas descrições, era facilmente reconhecível em todas as publicações da escola. Do círculo de jovens que ele assim reuniu a seu redor e transformou em participantes de suas pesquisas, alguns acabaram adquirindo uma consciência da própria individualidade e conseguiram uma reputação brilhante. Vez por outra, acontecia mesmo a um deles apresentar ao mestre uma asserção que parecia a este mais engenhosa que correta; ele então retorquia com grande sarcasmo em suas conversas e preleções, mas sem causar nenhum prejuízo à relação afetuosa que mantinha com o aluno. De fato, Charcot deixa atrás de si uma legião de discípulos cuja qualidade intelectual e cujas realizações constituem, até agora, uma garantia de que o estudo e a prática da neuropatologia em Paris tão cedo não descerão do alto nível a que Charcot os conduziu.

Em Viena, temos tido freqüentes oportunidades de reconhecer que o valor intelectual de um professor não se combina necessariamente com a influência pessoal direta que ele possa exercer sobre os mais jovens, levando à criação de uma grande e importante escola. Se Charcot foi muito mais afortunado a este respeito, devemos atribuir isso às qualidades pessoais do homem — à magia que emanava de sua aparência e de sua voz, à cordial franqueza que caracterizava seu trato social, tão logo suas relações com alguém transpunham a etapa de constrangimento inicial, à boa vontade com que punha tudo à disposição de seus discípulos e à sua perene lealdade para com eles. As horas que passava em suas enfermarias eram horas de companheirismo e de troca de idéias com a totalidade de sua equipe médica. Lá, nunca se isolava dela. O mais jovem dos médicos recém-graduados, percorrendo as enfermarias, tinha oportunidade de observá-lo em seu trabalho e podia interrompê-lo; e a mesma liberdade era desfrutada pelos estudantes estrangeiros, que, nos últimos anos, nunca estavam ausentes de suas rondas hospitalares. E, por fim, nas noites em que Madame Charcot, auxiliada por uma filha altamente dotada e cada vez mais parecida com o pai, recebia uma seleta sociedade, os convidados encontravam os discípulos e assistentes médicos, sempre presentes, como parte da família.

Em 1882 ou 1883, as circunstâncias da vida e do trabalho de Charcot assumiram sua forma final. As pessoas haviam-se apercebido de que as atividades desse homem faziam parte do patrimônio da “gloire” nacional, que, após a lastimável guerra de 1870-1, era ainda mais zelosamente guardado. O governo, à frente do qual se achava Gambetta, um velho amigo de Charcot, criou para ele uma Cátedra de Neuropatologia na Faculdade de Medicina (para que ele pudesse abandonar a Cátedra de Anatomia Patológica) e também uma clínica, com departamentos científicos auxiliares, no Salpêtrière. “Le service de M. Charcot” agora incluía, além das antigas enfermarias para enfermas crônicas, vários consultórios clínicos onde também eram recebidos pacientes masculinos, um amplo ambulatório para pacientes externos — a “consultation externe” —, um laboratório histológico, um museu, um departamento eletroterapêutico, um departamento de olhos e ouvidos e um estúdio fotográfico especial. Todas essas coisas eram múltiplas maneiras de manter os antigos discípulos e assistentes permanentemente ligados à clínica, em postos seguros. Os edifícios de dois andares, com sua aparência desgastada pelo tempo e seus pátios internos, lembravam vivamente ao estrangeiro nosso Allgemeines Krankenhaus, mas sem dúvida a semelhança não ia além disso. “Aqui pode não ser bonito”, dizia Charcot ao mostrar seus domínios a um visitante, “mas há espaço para fazer tudo o que se quiser.”

Charcot estava bem no auge de sua vida quando essas inúmeras facilidades para o ensino e a pesquisa foram postas à sua disposição. Era um trabalhador infatigável e, creio eu, sempre o mais ocupado de todo o instituto. Suas consultas particulares, às quais ocorriam pacientes “de Samarcândia e das Antilhas”, não conseguiam afastá-lo de suas atividades de ensino ou de suas pesquisas. Sem dúvida, essa multidão não o procurava exclusivamente por ele ser um descobridor famoso, mas também por ser um grande médico e filantropo, que sempre achava a solução dos problemas e era capaz de dar bons palpites nos casos em que o estado atual da ciência não lhe permitia saber. Freqüentemente o censuraram por seu método terapêutico, que, com sua multiplicidade de receitas, não podia deixar de ofender as consciências racionalistas. Mas ele estava apenas dando continuidade aos procedimentos correntes naquela época e lugar, sem se iludir muito quanto a sua eficácia. Contudo, não era pessimista em suas expectativas terapêuticas, e repetidamente se mostrava pronto a experimentar novos métodos de tratamento em sua clínica: os êxitos pouco duradouros destes teriam explicação em outro lugar.

Como professor, Charcot era positivamente fascinante. Cada uma de suas aulas era uma pequena obra de arte em construção e composição; era perfeita na forma e tão marcante que, pelo resto do dia, não conseguíamos expulsar de nossos ouvidos o som de suas palavras nem de nossas mentes a idéia que ele demonstrara. Raras vezes fazia demonstrações com pacientes isolados; antes, expunha uma série de casos similares ou contrastantes e comparava-os entre si. Na sala em que dava suas aulas havia um quadro do “cidadão” Pinel removendo as correntes dos pobres loucos do Salpêtrière. O Salpêtrière, que testemunhara tantos horrores durante a Revolução, foi também cenário da mais humana de todas as revoluções. Nessas aulas, o próprio Mestre Charcot causava uma curiosa impressão. Ele, que noutras ocasiões borbulhava de vivacidade e bom humor, e que tinha sempre uma brincadeira nos lábios, parecia então sério e solene com seu pequeno barrete de veludo verde; de fato, chegava mesmo a parecer mais velho. Sua voz soava abrandada. Quase conseguíamos compreender por que os estranhos mal-intencionados criticavam toda a exposição como sendo teatral. Os que assim falavam estavam sem dúvida acostumados à natureza amorfa das conferências clínicas alemãs, ou então se esqueciam de que Charcot dava apenas uma aula por semana e, portanto, podia prepará-la cuidadosamente.

Nessa exposição formal, em que tudo estava preparado e todas as coisas tinham que ter seu lugar, Charcot indubitavelmente seguia uma tradição profundamente enraizada; mas sentia também necessidade de apresentar a sua audiência um quadro menos esmerado de suas atividades. Esse propósito era cumprido por sua clínica de pacientes externos, da qual se encarregava pessoalmente nas chamadas “leçons du mardi”. Ali levantara casos que lhe eram completamente desconhecidos; expunha-se a todas as casualidades de um exame, a todos os erros de uma primeira investigação; ocasionalmente, punha de lado sua autoridade e admitia, num caso, que não conseguia chegar a qualquer diagnóstico, e noutro, que fora enganado pelas aparências; e nunca parecia maior à sua audiência do que nos momentos em que, fornecendo o mais detalhado relato de seus processos de pensamento e mostrando a máxima franqueza sobre suas dúvidas e hesitações, procurava estreitar dessa forma a distância entre professor e aluno. A publicação dessas aulas improvisadas, dadas nos anos de 1887 e 1888, primeiro em francês e agora também em alemão, ampliou também imensuravelmente o círculo de seus admiradores; nunca antes um trabalho de neuropatologia alcançou tanto sucesso quanto esse junto ao público médico.

Mais ou menos na época em que a clínica foi fundada e em que ele abandonou a cátedra de Anatomia Patológica, houve uma mudança no sentido das investigações científicas de Charcot, fato ao qual devemos o melhor de seu trabalho. Ele declarou que a teoria das doenças nervosas orgânicas estava então bastante completa e começou a voltar sua atenção quase exclusivamente para a histeria, que assim se tornou de imediato o foco do interesse geral. Esta, a mais enigmática de todas as doenças nervosas, para cuja avaliação a medicina ainda não achara nenhum ângulo de enfoque aproveitável, acabara então de cair no mais completo descrédito, e esse descrédito se estendia não só aos pacientes, mas também aos médicos que se interessassem pela neurose. Sustentava-se que na histeria qualquer coisa era possível e não se dava crédito aos histéricos em relação a nada. A primeira coisa feita pelo trabalho de Charcot foi a restauração da dignidade desse tópico. Pouco a pouco, as pessoas abandonaram o sorriso desdenhoso com que uma paciente podia ter certeza de ser recebida naquele tempo. Ela não era mais necessariamente uma simuladora de doença, pois Charcot jogara todo o peso de sua autoridade em favor da autenticidade e objetividade dos fenômenos histéricos. Charcot repetira, em menor escala, o ato de libertação em cuja memória o retrato de Pinel pendia da parede da sala de conferências do Salpêtrière. Uma vez abandonado o temor cego de ser feito de tolo por algum infortunado paciente — medo que até então bloqueara o caminho de um estudo sério da neurose —, podia-se levantar a questão de qual método de abordagem levaria mais rapidamente à solução do problema. Um observador sem nenhum preconceito poderia chegar a esta conclusão: se encontro alguém num estado tal que manifesta todos os sintomas de um afeto doloroso — chorando, gritando e se enfurecendo —, parece provável a conclusão de que está ocorrendo nele um processo mental cuja expressão apropriada são estes fenômenos físicos. Uma pessoa saudável, se indagada, estaria em condições de dizer que impressão a estava atormentando; o histérico, porém, responderia que não sabe. Logo surgiria o problema de saber como é que um paciente histérico é dominado por um afeto em relação a cuja causa afirma nada saber. Se nos ativermos a nossa conclusão de que deve existir um processo psíquico correspondente, e se, ainda assim, acreditarmos no paciente quando ele o nega; se reunirmos as múltiplas indicações de que o paciente se comporta como se de fato soubesse disso; e se penetrarmos na história da vida do paciente e descobrirmos alguma ocasião, algum trauma, que pudesse evocar de maneira adequada exatamente aquelas expressões de sentimento — então tudo apontará para uma solução: a paciente se acha num estado de ânimo especial em que todas as suas impressões, ou suas lembranças das mesmas, não mais se mantêm reunidas numa cadeia associativa, um estado de ânimo em que é possível a uma lembrança expressar seu afeto através de fenômenos somáticos, sem que o grupo dos outros processos mentais, o eu, tome conhecimento disso ou possa interferir para evitá-lo. Se tivéssemos evocado a conhecida diferença psicológica entre o sono e a vigília, a estranheza de nossa hipótese talvez parecesse menor. Ninguém deve objetar que a teoria de uma divisão (splitting) da consciência como solução para o enigma da histeria seja demasiado remota para impressionar um observador destreinado e imparcial, pois, na realidade, ao declarar a possessão demoníaca como causa dos fenômenos histéricos, a Idade Média escolheu essa solução; seria apenas uma questão de trocar a terminologia religiosa daquela era obscurantista e supersticiosa pela linguagem científica de nossos dias.

Charcot, entretanto, não seguiu esse caminho para uma explicação da histeria, embora se valesse copiosamente dos relatos remanescentes de julgamentos de bruxas e de casos de possessão, a fim de mostrar que as manifestações da neurose naquela época eram idênticas às de hoje. Ele tratou a histeria como sendo apenas mais um tópico da neuropatologia; forneceu uma descrição completa de seus fenômenos, demonstrou que estes tinham suas próprias leis e regularidades, e mostrou como reconhecer os sintomas que possibilitam a feitura de um diagnóstico de histeria. As mais trabalhosas investigações, iniciadas por ele mesmo e por seus discípulos, estenderam-se aos distúrbios histéricos da sensibilidade da pele e dos tecidos mais profundos, ao comportamento dos órgãos dos sentidos e às peculiaridades das contraturas e paralisias histéricas, dos distúrbios tróficos e das alterações do metabolismo. Descreveram-se as muitas formas diferentes do ataque histérico e delineou-se um plano esquemático, retratando a configuração típica do grande ataque histérico |“grande hystérie”| como ocorrendo em quatro estágios, o que permitiu rastrear os ataques “menores” comumente observados |“petite hystérie”| até essa mesma configuração típica. Estudaram-se também a localização e a freqüência da ocorrência das chamadas “zonas histerogênicas”, e a relação destas com os ataques, e assim por diante. Uma vez que se chegou a todas essas informações sobre as manifestações da histeria, fez-se uma quantidade de descobertas surpreendentes. Descobriu-se que a histeria nos homens, especialmente nos da classe trabalhadora, era muito mais freqüente do que se esperava; demonstrou-se convincentemente que certos estados atribuídos à intoxicação alcoólica ou ao envenenamento por chumbo eram de natureza histérica; foi possível incluir na histeria um conjunto de afecções até então não compreendidas nem classificadas; e nos casos em que a neurose se juntara a outros distúrbios de modo a formar quadros complexos, foi possível distinguir o papel desempenhado pela histeria. As investigações de maior alcance foram aquelas votadas às doenças nervosas decorrentes de traumas graves — as “neuroses traumáticas” —, a respeito das quais os pontos de vista ainda são controvertidos e em relação às quais Charcot propusera com êxito os argumentos a favor da histeria.

Depois que as últimas extensões do conceito de histeria levaram com tanta freqüência a uma rejeição do diagnóstico etiológico, tornou-se necessário esmiuçar a etiologia da própria histeria. Charcot propôs uma fórmula simples para esta: devia-se considerar a hereditariedade como causa única. Conseqüentemente, a histeria seria uma forma de degeneração, um membro da “famille névropathique”. Todos os outros fatores etiológicos desempenhariam o papel de causas incidentais, de “agents provocateurs”.

Naturalmente, a construção desse grande edifício não foi alcançada sem oposição violenta. Mas foi a oposição estéril de uma velha geração que não queria ter suas convicções mudadas. Os neuropatologistas mais jovens, inclusive os da Alemanha, aceitaram os ensinamentos de Charcot em maior ou menor grau. O próprio Charcot estava absolutamente certo de que suas teorias sobre a histeria triunfariam. Quando se objetou que os quatro estágios da histeria, a histeria masculina etc., não eram observáveis fora da França, ele indicou por quanto tempo essas coisas haviam passado despercebidas para ele próprio, e disse uma vez mais que a histeria era a mesma em todas as épocas e lugares. Era muito sensível à acusação de que a França era uma nação muito mais neurótica que qualquer outra e de que a histeria era uma espécie de mau hábito nacional; e ficou muito satisfeito quando o artigo “Sobre um Caso de Epilepsia Reflexa”, que versava sobre o caso de um granadeiro prussiano, permitiu-lhe fazer um diagnóstico mais abrangente da histeria.

A certa altura de seu trabalho, Charcot elevou-se a um nível mais alto até mesmo do que o de seu tratamento usual da histeria. O passo que deu também lhe assegurou para sempre a fama de ter sido o primeiro a explicar a histeria. Enquanto estava empenhado no estudo das paralisias histéricas decorrentes de traumas, teve a idéia de reproduzir artificialmente essas paralisias, que antes diferenciara das orgânicas com todo cuidado. Para esse propósito, utilizou pacientes histéricos que colocava em estado de sonambulismo, hipnotizando-os. Teve êxito em provar, através de uma sólida cadeia de argumentos, que essas paralisias eram o resultado de idéias que tinham dominado o cérebro do paciente em momentos de disposição especial. Desse modo, o mecanismo de um fenômeno histérico foi explicado pela primeira vez. Essa amostra incomparavelmente arguta de investigação clínica foi depois retomada por seu discípulo, Pierre Janet, assim como por Breuer e outros, que desenvolveram a partir dela uma teoria da neurose que coincidia com a visão medieval — depois de eles terem substituído o “demônio” da fantasia clerical por uma fórmula psicológica.

O interesse de Charcot pelos fenômenos hipnóticos nos pacientes histéricos levou a enormes avanços nessa importante área de fatos até então negligenciados e desprezados, pois o peso de seu nome pôs fim de uma vez por todas a qualquer dúvida sobre a realidade das manifestações hipnóticas. Mas a abordagem exclusivamente nosográfica adotada na escola do Salpêtrière não foi suficiente para um assunto puramente psicológico. A limitação do estudo da hipnose aos pacientes histéricos, a diferenciação entre grande e pequeno hipnotismo, a hipótese sobre os três estágios da “grande hipnose” e a caracterização desses estágios por fenômenos somáticos — tudo isso declinou no conceito dos contemporâneos de Charcot, quando Bernheim, discípulo de Liébeault, passou a elaborar a teoria do hipnotismo a partir de fundamentos psicológicos mais abrangentes e a fazer da sugestão o ponto central da hipnose. Os opositores do hipnotismo, satisfeitos em poder ocultar sua falta de experiência pessoal por trás de um apelo à autoridade, são os únicos que ainda se prendem às asserções de Charcot e gostam de tirar proveito de uma declaração feita por ele em seus últimos anos, na qual negava à hipnose qualquer valor como método terapêutico.

Além disso, as teorias etiológicas sustentadas por Charcot em sua doutrina da “famille névropathique”, base de todo o seu conceito dos distúrbios nervosos, requererá brevemente, sem dúvida, um minucioso exame e algumas retificações. A tal ponto Charcot superestimou a hereditariedade como agente causativo, que não deixou espaço algum para a aquisição da doença nervosa. À sífilis conferiu apenas um modesto lugar entre os “agents provocateurs”; tampouco fez uma distinção suficientemente clara entre as afecções nervosas orgânicas e as neuroses, tanto no que toca a sua etiologia como no que toca a outros aspectos. É inevitável que o avanço da ciência, na medida em que aumenta nosso conhecimento, deva ao mesmo tempo reduzir o valor de inúmeras coisas que Charcot nos ensinou; mas nem os tempos mutáveis nem as concepções mutáveis podem diminuir a reputação do homem que — na França e em toda parte — estamos hoje pranteando.

VIENA, agosto de 1893.

 

SOBRE O MECANISMO PSÍQUICO DOS FENÔMENOS HISTÉRICOS: UMA CONFERÊNCIA (1893)

 

NOTA DO EDITOR INGLÊS

 

ÜBER DEN PSYCHISCHEN MECHANISMUS

HYSTERISCHER PHAENOMENE

 

(a) EDIÇÃO ALEMÃ:

1893 Wien. med. Presse, 34 (4), 121-6 e (5), 165-7. (22 e 29 de janeiro).

 

(b) TRADUÇÃO INGLESA:

“On the Psychical Mechanism of Hysterical Phenomena”

1956 Int. J. Psycho-Anal., 37 (1), 8-13. (Trad. de James Strachey.)

 

O original alemão parece nunca ter sido reeditado. A presente tradução é uma versão levemente corrigida da de 1956.

O original alemão é encabeçado pelas palavras “Pelo Dr. Josef Breuer e Dr. Sigm. Freud de Viena”. Na verdade, porém, está é uma transcrição estenografada de uma conferência proferida por Freud e por este revista. Embora verse sobre o mesmo assunto (e freqüentemente em termos similares) da famosa “Comunicação Preliminar” (1893a), que tem seu lugar próprio no Volume II da Standard Edition no início dos Estudos sobre a Histeria (1895d), esta conferência apresenta todos os indícios de ser um trabalho apenas de Freud.

A “Comunicação Preliminar” de Breuer e Freud foi publicada num periódico de Berlim, o Neurologisches Zentralblatt, em duas partes, a 1º e a 15 de janeiro de 1893. (Imediatamente depois foi republicada em Viena no Wiener medizinische Blaetter de 19 e 26 janeiro.) A conferência aqui publicada foi profetizada por Freud numa reunião do Clube Médico de Viena em 11 de janeiro — isto é, antes que a segunda parte da “Comunicação Preliminar” fosse publicada.

Talvez o aspecto mais notável desta conferência seja a predominância do fator traumático entre as causas presumíveis da histeria. Isso constitui, naturalmente, uma prova da força da influência de Charcot sobre as idéias de Freud. A mudança em direção ao reconhecimento do papel desempenhado pelas “moções pulsionais” estava ainda no futuro.

 

SOBRE O MECANISMO PSÍQUICO DOS FENÔMENOS HISTÉRICOS

 

Senhores: Venho hoje a sua presença com o objetivo de informá-los sobre um trabalho cuja primeira parte já foi publicada no Zentralblatt für Neurologie, assinada por Josef Breuer e por mim. Como se pode depreender do título do trabalho, ele versa sobre a patogênese dos sintomas histéricos e sugere que as razões imediatas do desenvolvimento dos sintomas histéricos devem ser buscadas na esfera da vida psíquica.

Antes de passar ao conteúdo deste trabalho conjunto, entretanto, devo esclarecer a posição que ele ocupa, bem como nomear o autor e a descoberta que, ao menos em substância, tomamos como ponto de partida, embora nossa contribuição tenha-se desenvolvido de modo bastante independente.

Como os senhores sabem, todos os modernos avanços na compreensão e no conhecimento da histeria derivam do trabalho de Charcot. Na primeira metade dos anos oitenta, Charcot começou a voltar sua atenção para a “neurose maior”, que é como os franceses chamam a histeria. Numa série de pesquisas, ele obteve êxito em provar a presença de regularidades e leis onde as observações clínicas insuficientes ou apáticas de outras pessoas viam apenas simulação de doença ou uma intrigante falta de conformidade à regra. Pode-se afirmar, com segurança, que tudo o que se tem aprendido de inédito sobre a histeria nos últimos anos procede, direta ou indiretamente, de suas sugestões. Contudo, entre os numerosos trabalhos de Charcot, nenhum a meu ver é mais valioso do que aquele onde nos ensinou a compreender as paralisias traumáticas que aparecem na histeria; e como este é precisamente o trabalho que o nosso vem continuar, espero que os senhores me permitam apresentar-lhes esse assunto, uma vez mais, com algum detalhe.

Consideraremos o caso de uma pessoa sujeita a um trauma, sem antes ter estado doente e, talvez, mesmo sem ter qualquer predisposição hereditária. O trauma deve satisfazer a certas condições. Deve ser grave — isto é, ser de uma espécie que envolva a idéia de perigo mortal, de uma ameaça à vida. Mas não deve ser grave no sentido de pôr termo à atividade psíquica. De outra forma, não produziria o resultado que esperamos dele. Assim, por exemplo, não deve envolver concussão cerebral ou qualquer ferimento realmente sério. Além disso, o trauma deve ter uma relação especial com alguma parte do corpo. Suponhamos que uma pesada tora de madeira caia sobre o ombro de um trabalhador. O golpe o derruba, mas ele logo verifica que nada ocorreu e vai para casa com uma ligeira contusão. Passadas algumas semanas ou meses, ele acorda certa manhã e observa que o braço submetido ao trauma pende flácido e paralisado, embora, no intervalo, que poderíamos chamar de período de incubação, ele o tenha utilizado perfeitamente bem. Se se tratar de um caso típico, é possível que sobrevenham ataques peculiares — que, depois de uma aura, o sujeito desfaleça repentinamente, fique muito agitado e se torne delirante: e, se falar em seu delírio, sua fala talvez mostre que a cena do acidente está sendo repetida nele, acrescida talvez de vários quadros imaginários. O que estará acontecendo aqui? Como se deve explicar esse fenômeno?

Charcot explica o processo reproduzindo-o, induzindo artificialmente o paciente à paralisia. Para promover isso, ele precisa de um paciente que já se encontre num estado histérico; requer ainda o estado de hipnose e o método da sugestão. Ele hipnotiza profundamente um paciente desse tipo e então golpeia seu braço levemente. O braço pende; fica paralisado e exibe precisamente os mesmos sintomas que ocorrem na paralisia traumática espontânea. O golpe também pode ser substituído por uma sugestão verbal direta: “Veja! Seu braço está paralisado!” Também nesse caso a paralisia apresenta as mesmas características.

Tentemos comparar os dois casos: de um lado, um trauma, de outro, uma sugestão traumática. O resultado final, a paralisia, é exatamente o mesmo em ambos os casos. Se o trauma num deles pode ser substituído, no outro, por uma sugestão verbal, é plausível supor que uma idéia dessa natureza seja responsável pelo desenvolvimento da paralisia também no caso de paralisia traumática espontânea. E, de fato, muitos pacientes relatam que, no momento do trauma, tiveram realmente a sensação de que seu braço estava esmagado. Se assim for, é realmente possível considerar o trauma como equivalente completo da sugestão verbal. Entretanto, para completar a analogia, requer-se um terceiro fator. Para que a idéia “seu braço está paralisado” pudesse provocar uma paralisia no paciente, seria necessário que ele estivesse em estado hipnótico. Mas o trabalhador não se achava em estado hipnótico. Ainda assim, podemos presumir que se encontrasse num estado de espírito especial durante o trauma; e Charcot se inclina a equiparar esse afeto com o estado de hipnose artificialmente induzido. Sendo assim, a paralisia traumática espontânea fica completamente explicada e se torna paralela à paralisia produzida por sugestão; e a gênese do sintoma é determinada de modo inequívoco pelas circunstâncias do trauma.

Além disso, Charcot repetiu a mesma experiência a fim de explicar as contraturas e dores que aparecem na histeria traumática; em minha opinião, dificilmente haverá algum outro ponto em que sua compreensão da histeria tenha avançado mais profundamente. Todavia, sua análise não vai adiante: não ficamos sabendo como são gerados os outros sintomas e, acima de tudo, não aprendemos como os sintomas histéricos aparecem na histeria comum, não-traumática.

Aproximadamente na mesma época, senhores, em que Charcot assim lançava luz sobre as paralisias histerotraumáticas, o Dr. Breuer, entre 1880 e 1882, empreendia o tratamento médico de uma jovem senhora que — com uma etiologia não-traumática — fora acometida de uma histeria aguda e complicada (acompanhada de paralisias, contraturas, distúrbios da fala e da visão e toda sorte de peculiaridades psíquicas) enquanto tratava de seu pai enfermo. Esse caso conservará um lugar importante na história da histeria, já que foi o primeiro em que um médico teve êxito em elucidar todos os sintomas do estado histérico, desvendando a origem de cada sintoma e descobrindo, ao mesmo tempo, os meios de fazer cada sintoma desaparecer. Podemos dizer que foi o primeiro caso de histeria a se tornar inteligível. O Dr. Breuer guardou para si as conclusões derivadas desse caso até certificar-se de que não se tratava de um caso isolado. Depois de retornar, em 1886, de um curso com Charcot, comecei a fazer, com a constante cooperação do Dr. Breuer, observações detalhadas sobre um número bastante grande de pacientes histéricos, examinando-os a partir desse ponto de vista; descobri então que o comportamento dessa primeira paciente fora de fato típico e que as inferências justificadas por aquele caso podiam ser estendidas a um número considerável de pacientes histéricos, se não a todos.

Nosso material consistia em casos da histeria comum, isto é, não-traumática. Nosso procedimento era a consideração de cada sintoma, em separado, e a indagação das circunstâncias em que ele tinha aparecido pela primeira vez; esforçávamos-nos, desse modo, por chegar a uma idéia clara da causa precipitante que talvez tivesse determinado aquele sintoma. Mas não se deve supor que essa seja uma tarefa simples. Para começar, quando interrogamos os pacientes dentro dessa orientação, em geral não obtemos nenhuma resposta. Num pequeno grupo de casos, os pacientes têm suas razões para não dizer o que sabem. Em um número maior de casos, porém, os pacientes não têm qualquer noção do contexto de seus sintomas. O método pelo qual se consegue alguma coisa é árduo. É assim: os pacientes devem ser colocados em hipnose e então indagados sobre a origem de algum sintoma particular — quando apareceu e o que lembram em conexão com ele. Enquanto se acham nesse estado, a memória, que não lhes era acessível no estado de vigília, retorna. Assim aprendemos, para dizê-lo em termos grosseiros, que há uma experiência afetivamente marcante por trás da maioria dos fenômenos da histeria, se não de todos; e mais, que essa experiência é de tal ordem que torna imediatamente inteligível o sintoma com que se relaciona, mostrando uma vez mais, por conseguinte, que o sintoma é inequivocamente determinado. Se os senhores me permitem comparar essa experiência afetivamente marcante com a grande experiência traumática subjacente à histeria traumática, posso desde já formular a primeira tese a que chegamos: “Há uma analogia total entre a paralisia traumática e a histeria comum, não-traumática”. A única diferença é que, na primeira, há um grande trauma em ação, ao passo que, na segunda raramente há um único evento principal a ser assinalado, operando antes uma série de impressões afetivas — toda uma história de sofrimentos. Mas não é nada forçado equiparar essa história, que aparece como o fator determinante nos pacientes histéricos, ao acidente que ocorre na histeria traumática, pois hoje não restam dúvidas de que, mesmo no caso do grande trauma mecânico da histeria traumática, o que produz o resultado não é o fator mecânico, mas o afeto de terror, o trauma psíquico. A primeira coisa que se deduz disso, portanto, é que o padrão da histeria traumática, tal como exposto por Charcot nas paralisias histéricas, aplica-se de maneira geral a todos os fenômenos histéricos, ou pelo menos à sua grande maioria. Na totalidade dos casos, aquilo com que temos de lidar é a atuação de traumas psíquicos, que determinam inequivocamente a natureza dos sintomas emergentes.

Apresentarei agora aos senhores alguns exemplos disso. Primeiro, vejamos um caso de ocorrência de contraturas. Durante todo o período de sua doença, a paciente de Breuer, que já mencionei, exibia uma contratura do braço direito. Durante a hipnose, veio à tona o fato de que, algum tempo antes de adoecer, ela fora submetida ao seguinte trauma: estava sentada, semi-adormecida, ao lado do leito de seu pai enfermo; seu braço direito pendia sobre as costas da cadeira e ficou dormente. Nesse momento, ela teve uma alucinação apavorante; tentou afastá-la com um movimento do braço, mas foi incapaz de fazê-lo. Ela lhe deu um susto violento, mas, de momento, o assunto terminou por ali. Só quando da irrupção da histeria é que se instalou a contratura do braço. Em outra paciente, observei que a fala era interrompida por um “estalido” peculiar da língua, semelhante ao grito de um tetraz-das-serras. Eu já me familiarizara há meses com esse sintoma e o encarava como um tique. Só quando me ocorreu perguntar-lhe sob hipnose sobre a origem dele foi que descobri que o ruído aparecera primeiramente em duas ocasiões. Em cada uma destas, ela tomara a firme decisão de se manter absolutamente silenciosa. Isso lhe ocorreu, numa das vezes, ao cuidar de um de seus filhos, que estava seriamente doente. (Tratar de pessoas doentes é um fator que freqüentemente atua na etiologia da histeria.) A criança adormecera e ela se havia determinado não fazer qualquer barulho que pudesse acordá-la. Mas o medo de fazer barulho transformou-se efetivamente na produção de um ruído — um exemplo de “contravontade histérica”; ela apertou os lábios e fez o estalido com a língua. Muitos anos depois, o mesmo sintoma se manifestou uma segunda vez, novamente numa ocasião em que ela decidira ficar absolutamente quieta, e desde então havia persistido. Muitas vezes, uma única causa precipitante não basta para fixar um sintoma; mas, quando esse mesmo sintoma aparece reiteradamente, acompanhado por um afeto específico, torna-se fixado e crônico.

Um dos sintomas mais comuns da histeria é a combinação de anorexia e vômito. Sei de um grande número de casos em que a ocorrência desse sintoma é explicada de maneira bastante simples. Assim, numa paciente o vômito persistiu depois de ela ter lido uma carta humilhante pouco antes de uma refeição e ter ficado violentamente nauseada com isso. Em outros casos, a repulsa pela comida pode ser claramente relacionada ao fato de que; graças à instituição da “mesa comum”, uma pessoa pode ser compelida a fazer uma refeição em companhia de alguém que detesta. A repulsa é então transferida da pessoa para os alimentos. A mulher com o tique, que mencionei há pouco, era particularmente interessante a esse respeito. Comia excepcionalmente pouco e apenas sob pressão. Ela me informou, sob hipnose, que uma série de traumas psíquicos havia acabado por produzir esse sintoma de repulsa à comida. Quando era ainda criança, sua mãe, muito severa, insistia para que ela comesse toda a carne que tivesse deixado no almoço duas horas depois, quando a carne estava fria e a gordura, toda congelada. Ela o fazia com enorme asco e guardou a lembrança disso; mais tarde, quando já não estava sujeita a essa punição, sentia regularmente enjôo na hora das refeições. Dez anos depois, costumava sentar-se à mesa com um parente tuberculoso que escarrava constantemente, durante as refeições, numa escarradeira postada do outro lado da mesa. Pouco tempo depois, foi obrigada a partilhar suas refeições com um parente que ela sabia ser portador de uma doença contagiosa. Também a paciente de Breuer comportou-se por algum tempo como se sofresse de hidrofobia. Durante a hipnose, revelou-se que ela uma vez surpreendera um cachorro bebendo água em um copo seu.

A insônia ou o sono perturbado são também sintomas usualmente passíveis de uma explicação extremamente precisa. Assim, por anos a fio uma mulher jamais conseguia dormir antes da seis da manhã. Durante muito tempo, dormira num quarto contíguo ao do marido doente, que costumava levantar-se às seis horas. Depois desse horário, ela podia dormir tranqüilamente; e voltou a se comportar da mesma maneira muito anos depois, durante uma doença histérica. Outro caso foi o de um paciente histérico que vinha dormindo pessimamente nos últimos doze anos. Sua insônia, porém, era de um tipo muito especial. No verão, dormia esplendidamente, mas no inverno, muito mal; e em novembro dormia particularmente mal. Não tinha a menor idéia do fator responsável por isso. A investigação revelou que num mês de novembro, doze anos antes, ele passara muitas noites em claro velando junto ao leito de seu filho, que estava acamado com difteria.

A paciente de Breuer, a quem me tenho referido com tanta freqüência, forneceu um exemplo de distúrbio da fala. Por um longo período de sua doença, falava apenas inglês e não conseguia falar nem entender o alemão. Esse sintoma remeteu a um evento que ocorrera antes da irrupção da doença. Em certa ocasião, em estado de grande angústia, ela tentara rezar mas não conseguira encontrar as palavras. Finalmente, ocorreram-lhe algumas palavras de uma prece infantil em inglês. Ao adoecer, posteriormente, o inglês tornou-se a única língua que dominava.

A determinação do sintoma pelo trauma psíquico não é tão transparente em todos os casos. Freqüentemente, só encontramos o que se pode descrever como uma relação “simbólica” entre a causa determinante e o sintoma histérico. Isso se aplica especialmente às dores. Uma paciente, por exemplo, sofria de dores penetrantes entre as sobrancelhas. A razão era que uma vez, quando criança, sua avó lhe dirigira um olhar inquisitório, “penetrante”. A mesma paciente sofreu por algum tempo dores violentas no calcanhar direito, para as quais não havia explicação. Essas dores, ficou-se sabendo, estavam ligadas a uma idéia que ocorrera à paciente quando esta aparecera pela primeira vez em sociedade. Ficara dominada pelo medo de não “acertar o passo” naquele meio. Tais simbolizações foram empregadas por muitos pacientes num enorme conjunto das chamadas nevralgias e dores. É como se houvesse a intenção de expressar o estado mental através de um estado físico; e o uso lingüístico fornece uma ponte pela qual isso pode ser efetuado. No caso, entretanto, daqueles que são afinal os sintomas típicos da histeria — tais como hemianestesia, restrição do campo visual, convulsões epileptiformes etc. — não se pode demonstrar um mecanismo psíquico dessa ordem. Por outro lado, pode-se fazê-lo freqüentemente com respeito às zonas histerógenas.

Esses exemplos, que escolhi entre inúmeras observações, parecem provar que os fenômenos da histeria comum podem ser seguramente considerados como seguindo o mesmo modelo da histeria traumática, e que, portanto, toda histeria pode ser encarada como histeria traumática, no sentido de que implica um trauma psíquico e de que todo fenômeno histérico é determinado pela natureza do trauma.

A questão adicional a que então se deveria responder refere-se à natureza da conexão causal entre o fator determinante que tenhamos descoberto durante a hipnose e o fenômeno que persiste posteriormente como sintoma crônico. Essa conexão pode ser de vários tipos. Pode ser da espécie que descreveríamos como fator “desencadeante”. Por exemplo, quando alguém com predisposição à tuberculose recebe um golpe no joelho, em conseqüência do qual se desenvolve uma inflamação tuberculosa na junta, o golpe é uma simples causa desencadeante. Mas não é isso que ocorre na histeria. Há uma outra espécie de causação — a saber, a causação direta. Podemos elucidá-la tendo por base o quadro de um corpo estranho, que continua a atuar incessantemente como causa estimulante de doença até nos livrarmos dele. Cessante causa cessat effectus. A observação de Breuer mostra-nos que há uma conexão deste segundo tipo entre o trauma psíquico e o fenômeno histérico, pois Breuer aprendeu com sua primeira paciente que a tentativa de descobrir a causa determinante de um sintoma era, ao mesmo tempo, uma manobra terapêutica. O momento em que o médico desvenda a ocasião da primeira ocorrência do sintoma e a razão de seu aparecimento é também o momento em que o sintoma se desfaz. Quando, por exemplo, o sintoma apresentado pelo paciente consiste em dores, e quando lhe indagamos sob hipnose sobre sua origem, ele evoca uma série de lembranças ligadas a elas. Se conseguirmos suscitar nele uma lembrança realmente vívida e se ele vir as coisas diante de si com toda a sua realidade original, observaremos que está completamente dominado por algum afeto. E se então o compelirmos a exprimir verbalmente esse afeto, verificaremos que, ao mesmo tempo em que ele manifesta esse afeto violento, o fenômeno de suas dores desponta marcantemente uma vez mais e, daí por diante, o sintoma, em seu caráter crônico, desaparece. Assim se passaram os fatos em todos os exemplos que mencionei. Foi interessante notar que a lembrança desse acontecimento específico era extraordinariamente mais vívida que a lembrança de quaisquer outros, e que o afeto concomitante era tão intenso, talvez, quanto o fora no momento da ocorrência efetiva do evento. Só restava supor que o trauma psíquico de fato continua a atuar no sujeito e sustenta o fenômeno histérico, sendo eliminado tão logo o paciente fala sobre ele.

Como acabei de dizer, quando, de acordo com nosso procedimento, se chega ao trauma psíquico fazendo perguntas ao paciente sob hipnose, descobre-se que a lembrança envolvida é excepcionalmente forte e preserva a totalidade de seu afeto. A questão que agora se coloca é de que modo um evento ocorrido há tanto tempo — talvez dez ou vinte anos — pode continuar exercendo poder sobre o sujeito, e como foi que tais lembranças não foram submetidas ao processos de desgaste e esquecimento.

Com o objetivo de responder a essa questão, eu gostaria de começar por alguns comentários sobre as condições que regem o desgaste dos conteúdos de nossa vida representativa. Partiremos de uma tese que pode ser formulada nos seguintes termos. Quando uma pessoa experimenta uma impressão psíquica, alguma coisa em seu sistema nervoso, que chamaremos provisoriamente de soma de excitação, aumenta. Ora, em todo indivíduo existe uma tendência a tornar a diminuir essa soma de excitação, a fim de preservar a saúde. O aumento da soma de excitação ocorre por vias sensoriais, e sua diminuição, por vias motoras. Assim, podemos dizer que quando alguma coisa atinge alguém, esse alguém reage de maneira motora. Podemos agora afirmar com segurança que depende dessa reação o quanto restará de uma impressão psíquica inicial. Consideremos isso em relação a um exemplo específico. Suponhamos que um homem seja insultado, esmurrado, ou qualquer coisa desse gênero. Esse trauma psíquico está ligado a um aumento da soma de excitação de seu sistema nervoso. Surge então instintivamente uma inclinação a diminuir de imediato a excitação aumentada. Ele revida a ofensa, e então sente-se melhor; talvez tenha reagido adequadamente — isto é, talvez se haja livrado de tanto quanto foi introduzido nele. Ora, essa reação pode assumir várias formas. Para os aumentos muito ligeiros da excitação, as alterações corporais talvez sejam suficientes: chorar, insultar, esbravejar etc. Quanto mais intenso o trauma, maior a reação suficiente. A reação mais adequada, entretanto, é sempre uma tomada de atitude. Mas como observou espirituosamente um escrito inglês, o primeiro homem a desfechar contra seu inimigo um insulto, em vez de uma lança, foi o fundador da civilização. Portanto, as palavras são substitutas das ações e, em alguns casos (por exemplo, na confissão) as únicas substitutas. Dessa maneira, paralelamente à reação adequada, há aquela que é menos adequada. Quando, porém, não há nenhuma reação a um trauma psíquico, a lembrança dele preserva o afeto que lhe coube originalmente. Assim, quando alguém que foi insultado não pode vingar o insulto com um golpe retaliatório ou uma ofensa verbal, surge a possibilidade de que a lembrança desse evento torne a evocar nele o afeto originalmente presente. Um insulto revidado, mesmo que apenas com palavras, é recordado de maneira muito diversa de outro que tenha sido forçosamente aceito; e o uso lingüístico descreve caracteristicamente o insulto sofrido em silêncio como uma “mortificação” |“Kraenkung”, literalmente, “adoecimento”|. Assim, quando por qualquer motivo não pode haver reação a um trauma psíquico, ele retém seu afeto original, e quando a pessoa não consegue livrar-se do acréscimo de estímulo através de sua “ab-reação”, deparamos com a possibilidade de que o evento em questão permaneça como um trauma psíquico. A propósito, um mecanismo psíquico sadio tem outros métodos de lidar com o afeto de um trauma psíquico mesmo que lhe sejam negadas a reação motora e a reação por palavras — a saber, elaborando-o associativamente e produzindo idéias contrastantes. Mesmo que a pessoa insultada não retribua o golpe, nem retruque com uma grosseira, ela pode ainda assim reduzir o afeto ligado ao insulto pela evocação de idéias contrastantes, tais como a de seu valor pessoal, da indignidade de seu inimigo, e assim por diante. Quer um homem sadio lide com o insulto de um modo ou de outro, ele sempre consegue chegar ao resultado de que o afeto originalmente intenso em sua memória acabe perdendo a intensidade e finalmente, tendo perdido seu afeto, a lembrança caia vítima do esquecimento e do processo de desgaste.      

Ora, descobrimos que não há nos pacientes histéricos nada além de impressões que não perderam seu afeto e cuja lembrança permaneceu vívida. Daí decorre, portanto, que essas lembranças dos pacientes histéricos, que se tornaram patogênicas, ocupam uma posição excepcional com respeito ao processo de desgaste; e a observação mostra que, no caso de todos os eventos que se tornaram determinantes dos fenômenos histéricos, estamos lidando com traumas psíquicos que não foram totalmente ab-reagidos, ou completamente tratados. Podemos, pois, afirmar que os pacientes histéricos sofrem de traumas psíquicos incompletamente ab-reagidos.

Constatamos dois grupos de condições sob as quais as lembranças se tornaram patogênicas. No primeiro, as lembranças a que se podem vincular os fenômenos histéricos têm como conteúdo representações que envolveram um trauma tão grande que o sintoma nervoso não teve forças para manipulá-lo de nenhuma forma, ou representações às quais foi vedada a reação por motivos sociais (isso se aplica amiúde à vida conjugal); ou, por fim, o sujeito pode simplesmente recusar-se a reagir, pode não querer reagir ao trauma psíquico. Neste último caso, o conteúdo dos delírios histéricos freqüentemente revela ser o próprio círculo de representações que o paciente em seu estado normal rejeitou, inibiu e suprimiu com todas as suas forças. (Por exemplo, ocorrem blasfêmias e representações eróticas nos delírios histéricos de freiras.) No entanto, num segundo grupo de casos, a razão da ausência de reação não está no teor do trauma psíquico, mas em outras circunstâncias, pois é muito freqüente constatarmos que o conteúdo e os fatores determinantes dos fenômenos histéricos são eventos em si mesmos bastante triviais, mas que adquiriram alta significação pelo fato de terem ocorrido em momentos especialmente importantes, quando a predisposição do paciente havia aumentado patologicamente. Por exemplo, o afeto de pavor pode assomar no curso de algum outro afeto intenso e por isso adquirir enorme importância. Os estados dessa ordem são de curta duração e estão, por assim dizer, isolados do resto da vida mental do sujeito. Enquanto se encontra num estado de auto-hipnose como esse, ele não consegue livrar-se associativamente de uma representação que lhe ocorra, tal como faria estando acordado. Depois de considerável experiência com esses fenômenos, julgamos provável que em toda histeria estejamos lidando com um rudimento do que é chamado “double conscience” — consciência dupla — e que o fenômeno básico da histeria seja uma tendência para tal dissociação e, com ela, para a emergência de estados da consciência anormais, que propomos chamar de “hipnóides”.

Consideremos agora a maneira como funciona nossa terapia. Ela se coaduna com um dos mais ardentes desejos humanos — o desejo de poder refazer alguma coisa. Alguém experimentou um trauma psíquico sem reação suficiente a ele. Nós o levamos a experimentá-lo de novo, dessa vez sob hipnose, e o forçamos a completar sua reação. Assim ele pode livrar-se do afeto ligado à representação que estava, por assim dizer, “estrangulado”, e uma vez feito isso, põe-se termo à atuação da representação. Desse modo, curamos não a histeria, mas alguns de seus sintomas individuais, fazendo com que uma reação incompleta se conclua.

Os senhores, portanto, não devem supor que se tenha tirado disso um enorme proveito para a terapêutica da histeria. A histeria, como as neuroses, tem causas mais profundas; e são essas causas mais profundas que estabelecem limites, muitas vezes bem apreciáveis, ao sucesso de nosso tratamento.

 

AS NEUROPSICOSES DE DEFESA (1894)

 

DIE ABWEHR-NEUROPSYCHOSEN

 

(a)EDIÇÕES ALEMÃS:

1894 Neurol. Zbl., 13 (10), 362-4, e (11), 402-9. (15 de maio e 1º de junho).

1906 S.K.S.N., l, 45-59. (1911, 2ª ed.; 1920, 3ª ed.; 1922, 4ª ed.)

1925 G.S., l, 290-305.

1952 G.W., l, 59-74.

 

(b)TRADUÇÕES INGLESAS:

“The Defense Neuro-Psychoses”

1909 S.P.H., 121-32. (Trad. de A. A. Brill.) (1912, 2ª ed.; 1920, 3ª ed.)

“The Defence Neuro-Psychoses”

1924 C.P., l, 59-75. (Trad. de J. Rickman.)

 

Incluído (Nº XXIX) na coletânea das sinopses dos primeiros trabalhos de Freud, elaborada por ele mesmo (1897b). A presente tradução, com o título modificado, baseia-se na de 1924

Quando Freud terminou este artigo, em janeiro de 1894, passara-se um ano desde o aparecimento de seu último trabalho psicopatológico — a “Comunicação Preliminar”, escrita juntamente com Breuer. (As únicas exceções foram o artigo sobre as paralisias histéricas, planejado e rascunhado anos antes, e o obituário de Charcot). E mais um ano haveria de passar antes que quaisquer outros fossem publicados. No entanto, os anos de 1893 e 1894 estiveram longe de ser ociosos. Em 1893, Freud estava ainda produzindo intenso trabalho neurológico, enquanto, em 1894, preparava sua contribuição aos Estudos sobre a Histeria. Mas durante esses dois anos, como podemos constatar por suas cartas a Fliess, ele estava profundamente engajado na investigação daquilo que então afastara completamente a neurologia de seu foco de interesse — os problemas das neuroses. Esses problemas enquadravam-se em dois grupos bastante distintos, respectivamente relacionados com o que mais tarde se tornaria conhecido (ver em. [1], adiante) como as “neuroses atuais” e as “psiconeuroses”. Freud não se sentiu preparado para publicarcoisa alguma sobre as primeiras — a neurastenia e os estados de angústia — até o início de 1895. Quanto à histeria e às obsessões, porém, já estava apto a demarcar o campo, daí resultando o presente artigo.

Aqui, é claro, ele tinha ainda um profundo débito para com Charcot e Breuer; entretanto, é possível detectar também um primeiro surgimento de muito do que se iria transformar numa parte essencial de suas próprias concepções. Por exemplo, embora a teoria da defesa tivesse sido mencionada muito brevemente na “Comunicação Preliminar”, ela é aqui longamente discutida pela primeira vez. O próprio termo “defesa” ocorre aqui pela primeira vez (ver em. [1]), o mesmo ocorrendo com “conversão” (ver em. [1]) e “fuga para a psicose” (ver em. [1]). A importância do papel desempenhado pela sexualidade começa a emergir (ver em. [1]); alude-se à questão da natureza do “inconsciente” (ver em. [1]). Talvez o mais importante seja, na segunda seção, o levantamento de toda a teoria fundamental da catexia e sua possibilidade de deslocamento e, no penúltimo parágrafo do artigo, a clara enunciação da hipótese em que se baseou o esquema de Freud. Uma discussão mais completa desse primeiro surgimento das concepções teóricas fundamentais de Freud aparece no Apêndice do Editor Inglês a este artigo, ver. [1] e segs., adiante.

 

AS NEUROPSICOSES DE DEFESA (TENTATIVA DE FORMULAÇÃO DE UMA TEORIA DA HISTERIA ADQUIRIDA, DE MUITAS FOBIAS E OBSESSÕES E DE CERTAS PSICOSES ALUCINATÓRIAS)

 

Depois de fazer um estudo detalhado de diversos pacientes nervosos que sofriam de fobias e obsessões, cheguei a uma tentativa de explicação desses sintomas; e isso me permitiu, posteriormente, chegar com êxito à origem desse tipo de representações patológicas em casos novos e diferentes. Minha explicação, portanto, me parece merecer publicação e um exame mais detido. Simultaneamente a essa “teoria psicológica das fobias e obsessões", minha observação dos pacientes resultou numa contribuição à teoria da histeria ou, antes, numa modificação dela, que parece levar em conta uma importante característica comum à histeria e às neuroses que acabo de mencionar. Além disso, tive a oportunidade de discernir o que sem dúvida constitui uma forma de doença mental e descobri, ao mesmo tempo, que o ponto de vista que eu adotara provisoriamente estabelecia uma conexão inteligível entre essas psicoses e as duas neuroses em questão. Ao final deste artigo, formularei uma hipótese de trabalho da qual me vali em todos os três casos.

 

I

 

Comecemos pela modificação que a teoria da neurose histérica me parece reclamar.

Desde o esplêndido trabalho realizado por Pierre Janet, Josef Breuer e outros, pode-se considerar geralmente aceito que a síndrome da histeria, tanto quanto é inteligível até o momento, justifica a suposição de que haja uma divisão da consciência, acompanhada da formação de grupos psíquicos separados.  As opiniões, entretanto, estão menos firmadasno que concerne à origem dessa divisão da consciência e ao papel desempenhado por essa característica na estrutura da neurose histérica.

De acordo com a teoria de Janet (1892-4 e 1893), a divisão da consciência é um traço primário da alteração mental na histeria. Baseia-se numa deficiência inata da capacidade de síntese psíquica, na estreiteza do “campo da consciência (champ de la conscience)”, que, na forma de um estigma psíquico, evidencia a degeneração dos indivíduos histéricos.

Contrapondo-se à concepção de Janet, que me parece passível de uma multiplicidade de objeções, existe a posição proposta por Breuer em nossa comunicação conjunta (Breuer e Freud, 1893). Segundo ele, “a base e condição sine qua non da histeria” é a ocorrência de estados de consciência peculiares, semelhantes ao sonho, com uma capacidade de associação restrita, para os quais propôs o nome de “estados hipnóides”. Nesse caso, a divisão da consciência é secundária e adquirida: ocorre porque as representações que emergem nos estados hipnóides são excluídas da comunicação associativa com o resto do conteúdo da consciência.

Estou agora em condições de fornecer provas de duas outras formas extremas de histeria, nas quais é impossível considerar a divisão da consciência como primária, no sentido de Janet. Na primeira dessas |duas outras| formas, pude repetidas vezes demonstrar que a divisão do conteúdo da consciência resulta de um ato voluntário do paciente; ou seja, é promovida por um esforço de vontade cujo motivo pode ser especificado. Com isso, é claro, não pretendo dizer que o paciente tencione provocar uma divisão da sua consciência. A intenção dele é outra, mas, em vez de alcançar seu objetivo, produz uma divisão da consciência.

Na terceira forma de histeria, que demonstramos através de uma análise psíquica, de pacientes inteligentes, a divisão da consciência desempenha um papel insignificante, ou talvez nulo. Trata-se dos casos em que aconteceu apenas uma falta de reação aos estímulos traumáticos, e que podem, conseqüentemente, ser resolvidos e curados por “ab-reação”. Estas são as “histerias de retenção” puras.No que tange à conexão com as fobias e obsessões, tratarei apenas da segunda forma da histeria. Por motivos que logo ficarão claros, vou chamar essa forma de “histeria de defesa”, usando tal nome para distingui-la da histeria hipnóide e da histeria de retenção. Posso também, provisoriamente, apresentar meus casos de histeria de defesa “adquirida”, já que neles não se tratava nem de uma grave tara hereditária nem de uma atrofia degenerativa individual.

Esses pacientes que analisei, portanto, gozaram de boa saúde mental até o momento em que houve uma ocorrência de incompatibilidade em sua vida representativa — isto é, até que seu eu se confrontou com uma experiência, uma representação ou um sentimento que suscitaram um afeto tão aflitivo que o sujeito decidiu esquecê-lo, pois não confiava em sua capacidade de resolver a contradição entre a representação incompatível e seu eu por meio da atividade de pensamento.

Nas mulheres, esse tipo de representações incompatíveis assoma principalmente no campo da experiência e das sensações sexuais; e as pacientes conseguem recordar com toda a precisão desejável seus esforços defensivos, sua intenção de “expulsar aquilo para longe”, de não pensar no assunto, de suprimi-lo. Darei alguns exemplos, facilmente multiplicáveis, extraídos de minha própria observação: o caso de uma moça que se culpava porque, enquanto cuidava do pai doente, pensara num rapaz que lhe causara uma leve impressão erótica; o caso de uma governanta que se apaixonara pelo patrão e resolvera expulsar essa inclinação de sua mente por parecer-lhe incompatível com seu orgulho; e assim por diante.

Não posso, naturalmente, afirmar que um esforço voluntário de eliminar da mente coisas desse tipo seja um ato patológico, nem sei dizer se e de que modo o esquecimento intencional é bem-sucedido nas pessoas que, sob as mesmas influências psíquicas, permanecem saudáveis. Sei apenas que esse tipo de “esquecimento” não funcionou nos pacientes que analisei, mas levou a várias reações patológicas que produziram ou a histeria, ou uma obsessão, ou uma psicose alucinatória. A capacidade de promover um desses estados — que estão todos ligados a uma divisão da consciência — através de um esforço voluntário desse tipo deve ser considerada como manifestação de uma disposição patológica, embora esta não seja necessariamente idêntica à “degeneração” individual ou hereditária.

Quanto ao trajeto entre o esforço voluntário do paciente e o surgimento do sintoma neurótico, formei uma opinião que pode ser expressa, em termos das abstrações psicológicas correntes, mais ou menos da seguinte maneira. A tarefa que o eu se impõe, em sua atitude defensiva, de tratar a representação incompatível como “non-arrivé”, simplesmente não pode ser realizada por ele. Tanto o traço mnêmico como o afeto ligado à representação lá estão de uma vez por todas e não podem ser erradicados. Mas uma realização aproximada da tarefa se dá quando o eu transforma essa representação poderosa numa representação fraca, retirando-lhe o afeto — a soma de excitação — do qual está carregada. A representação fraca não tem então praticamente nenhuma exigência a fazer ao trabalho da associação. Mas a soma de excitação desvinculada dela tem que ser utilizada de alguma outra forma.

Até esse ponto, os processos observados na histeria, nas fobias e nas obsessões são os mesmos; daí por diante, seus caminhos divergem. Na histeria, a representação incompatível é tornada inócua pela transformação de sua soma de excitação em alguma coisa somática. Para isso eu gostaria de propor o nome de conversão.

A conversão pode ser total ou parcial. Ela opera ao longo da linha de inervação motora ou sensorial relacionada — intimamente ou mais

frouxamente — com a experiência traumática. Desse modo o ego consegue libertar-se da contradição com a qual é confrontado; em contrapartida, porém, sobrecarrega-se com um símbolo mnêmico que se aloja na consciência como uma espécie de parasita, quer sob a forma de uma inervação motora insolúvel,quer como uma sensação alucinatória constantemente recorrente, que persiste até que ocorra uma conversão na direção oposta. Conseqüentemente, o traço mnêmico da idéia recalcada não é, afinal, dissolvido; daí por diante, forma o núcleo de um segundo grupo psíquico.

Acrescentarei apenas mais algumas palavras a essa concepção dos processos psicofísicos na histeria. Uma vez formado tal núcleo para uma expulsão (splitting-off) histérica num “momento traumático”, ele passa a ser aumentado em outros momentos (que poderiam ser chamados “momentos auxiliares”), sempre que a chegada de uma nova impressão da mesma espécie consegue uma ruptura na barreira erigida pela vontade, suprindo a representação enfraquecida de um afeto renovado e restabelecendo provisoriamente o elo associativo entre os dois grupos psíquicos, até que uma nova conversão estabeleça uma defesa. A distribuição da excitação assim ensejada na histeria usualmente se revela uma distribuição instável. A excitação, forçada a escoar-se por um canal impróprio (pela inervação somática) vez por outra reencontra o caminho de volta para a representação da qual se destacou, e compele então o sujeito a elaborar a representação associativamente ou a livrar-se dela em ataques histéricos — como vemos no conhecido contraste entre os ataques e os sintomas crônicos. A operação do método catártico de Breuer consiste em promover deliberadamente a recondução da excitação da esfera somática para a psíquica, e assim a resolução da contradição, através da atividade de pensamento e da descarga da excitação por meio da fala. Se a divisão da consciência que ocorre na histeria adquirida se baseia num ato voluntário, temos então uma explicação surpreendentemente simples para o notável fato de a hipnose ampliar regularmente a consciência restrita do histérico e permitir acesso ao grupo psíquico que foi expelido (split off). Na verdade, sabemos ser uma peculiaridade de todos os estados similares ao sono que eles suspendam a distribuição da excitação em que se baseia a “vontade” da personalidade consciente.

Assim, vemos que o fator característico da histeria não é a divisão da consciência, mas a capacidade de conversão, e podemos aduzir, como parte importante da predisposição para a histeria — predisposição ainda desconhecida em outros aspectos —, uma aptidão psicofísica para transpor enormes somas de excitação para a inervação somática.

Essa aptidão, por si só, não exclui a saúde psíquica, e só conduz à histeria quando há uma incompatibilidade psíquica ou um acúmulo de excitação. Ao adotarmos essa visão, Breuer e eu nos aproximamos das conhecidas definições da histeria feitas por Oppenheim e Strümpell e divergimos da concepção de Janet, que atribui demasiada importância à divisão da consciência em sua caracterização da histeria. A apresentação aqui fornecida pode sustentar a pretensão de ter tornado inteligível a conexão entre a conversão e a divisão histérica da consciência.

 

II

 

Quando alguém com predisposição à neurose carece da aptidão para a conversão, mas, ainda assim, parece rechaçar uma representação incompatível, dispõe-se a separá-la de seu afeto, esse afeto fica obrigado a permanecerna esfera psíquica. A representação, agora enfraquecida, persiste ainda na consciência, separada de qualquer associação. Mas seu afeto, tornado livre, liga-se a outras representações que não são incompatíveis em si mesmas, e graças a essa “falsa ligação”, tais representações se transformam em representações obsessivas. Essa é, em poucas palavras, a teoria psicológica das obsessões e fobias, mencionada no início deste artigo.

Indicarei agora quais dos vários elementos explicitados nessa teoria podem ser diretamente demonstrados e quais foram supridos por mim. O que se pode demonstrar diretamente, além do produto final do processo — a obsessão —, é, em primeiro lugar, a fonte do afeto agora colocado numa falsa ligação. Em todos os casos que analisei, era a vida sexual do sujeito que havia despertado um afeto aflitivo, precisamente da mesma natureza do ligado à sua obsessão. Teoricamente, não é impossível que esse afeto possa às vezes emergir em outras áreas; resta-me apenas relatar que, até o momento, não deparei com nenhuma outra origem. Ademais, é fácil verificar que é precisamente a vida sexual que traz em si as mais numerosas oportunidades para o surgimento de representações incompatíveis.

 

Além disso, as mais inequívocas declarações dos pacientes evidenciam o esforço de vontade e a tentativa de defesa enfatizados pela teoria; e pelo menos num bom número de casos os próprios pacientes informam-nos que sua fobia ou obsessão apareceu pela primeira vez depois que um esforço de vontade aparentemente atingiu seu objetivo com êxito. “Certa vez me aconteceu uma coisa muito desagradável, e tentei com muito empenho afastá-la de mim e não pensar mais nisso. Finalmente, consegui, mas aí me apareceu essa outra coisa, de que não pude livrar-me desde então.” Foi com essas palavras que uma paciente confirmou os pontos principais da teoria que aqui desenvolvi.

Nem todos os que sofrem de obsessões têm uma idéia tão clara assim sobre sua origem. Em geral, quando se chama a atenção do paciente, para a representação primitiva, de natureza sexual, a resposta é: “Não pode provir daí. Nunca pensei muito nisso. Por um momento fiquei assustado, mas logo desviei o pensamento e, desde então, isso nunca mais me perturbou.” Nessa freqüente objeção temos a prova de que a obsessão representa um substituto ou sucedâneo da representação sexual incompatível, tendo tomado seu lugar na consciência.

Entre o esforço voluntário do paciente, que consegue recalcar a representação sexual inaceitável, e o surgimento da representação obsessiva, que, embora tendo pouca intensidade em si mesma, está agora suprida |ver em. [1]| de um afeto incompreensivelmente forte, subsiste o hiato que a teoria aqui desenvolvida busca preencher. A separação da representação sexual de seu afeto e a ligação deste com outra representação — adequada, mas não incompatível — são processos que ocorrem fora da consciência. Pode-se apenas presumir sua existência, mas não prová-la através de qualquer análise clínico-psicológica. |Cf. em [1].| Talvez fosse mais correto dizer que tais processos não são absolutamente de natureza psíquica, e sim processos físicos cujas conseqüências psíquicas se apresentam como se de fato tivesse ocorrido o que se expressa pelos termos “separação entre a representação e seu afeto” e “falsa ligação” deste último.

Junto aos casos que mostram uma seqüência entre uma representação sexual incompatível e uma representação obsessiva, encontramos vários outros em que as representações obsessivas e as representações sexuais de caráter aflitivo ocorrem simultaneamente.

Não será muito satisfatório chamar estas últimas de “representações obsessivas sexuais”, pois falta-lhes um traço essencial das representações obsessivas: elas se mostram perfeitamente justificadas, ao passo que o caráter aflitivo das representações obsessivas comuns é um problema tanto para o médico quanto para o paciente. Até onde tenho podido explorar o terreno nos casos desse tipo, o que ocorre é que uma defesa perpétua vai-se erigindo contra representações sexuais que reemergem continuamente — ou seja, um trabalho que ainda não chegou a sua conclusão.

Já que os pacientes estão cônscios da origem sexual de suas obsessões, freqüentemente as mantêm em segredo. Quando chegam a se queixar delas, costumam expressar seu espanto por estarem sujeitos ao afeto em questão — por sentirem angústia, ou terem certos impulsos, e assim por diante. Ao médico experiente, pelo contrário, o afeto parece justificado e compreensível; o que ele acha notável é apenas que um afeto desse tipo esteja ligado a uma representação que não o merece. O afeto da obsessão, em outras palavras, parece-lhe estar desalojado ou transposto, e se tiver aceito o que se disse nestas páginas, ele poderá, em diversos casos de obsessões, retraduzi-las em termos sexuais.

Para fornecer essa conexão secundária ao afeto liberado, pode-se utilizar qualquer representação que, por sua natureza, possa unir-se a um afeto da qualidade em questão, ou que tenha com a representação incompatível certas relações que a façam parecer adequada como substituta dela. Assim, por exemplo, a angústia liberada cuja origem sexual não deva ser lembrada pelo paciente irá apoderar-se das fobias primárias comuns da espécie humana, relacionadas com animais, tempestades, escuridão, e assim por diante, ou de coisas inequivocamente associadas, de um modo ou de outro, com o que é sexual — tais como a micção, a defecação ou, de um modo geral, a sujeira e o contágio.

O eu leva muito menos vantagem escolhendo a transposição do afeto como método de defesa do que escolhendo a conversão histérica da excitação psíquica em inervação somática. O afeto de que o eu sofre permanece como antes, inalterado e não diminuído, com a única diferença de que a representação incompatível é abafada e isolada da memória. As representações recalcadas, como no outro caso, formam o núcleo de um segundo grupo psíquico, que, acredito, é acessível mesmo sem a ajuda da hipnose. Se as fobias e obsessões são desacompanhadas dos notáveis sintomas que caracterizam a formação de um grupo psíquico independente na histeria, isto é sem dúvida porque, em seu caso, toda a alteração permaneceu na esfera psíquica, e a relação entre a excitação psíquica e a inervação somática não sofreu qualquer mudança.

Para ilustrar o que foi dito sobre as obsessões, darei alguns exemplos que suponho serem típicos:

(1) Uma jovem sofria auto-recriminações obsessivas. Quando lia alguma coisa nos jornais sobre falsificadores de moedas, ocorria-lhe a idéia de que também ela produzira dinheiro falso; se uma pessoa desconhecida cometia um assassinato, perguntava-se ansiosamente se não teria sido ela a autora daquela ação. Ao mesmo tempo, estava perfeitamente cônscia do disparate dessas acusações obsessivas. Por algum tempo, esse sentimento de culpa adquiriu tal ascendência sobre ela que suas capacidades críticas ficaram embotadas e ela se acusou perante seus parentes e seu médico de ter realmente cometido todos esses crimes. (Eis um exemplo de psicose por simples intensificação — uma “Überwaeltigungspsychose” uma psicose em que o eu é subjugado. Um minucioso interrogatório revelou então a fonte de onde brotava seu sentimento de culpa. Estimulada por uma sensação voluptuosa casual, ela se deixara induzir por uma amiga a se masturbar, e praticara a masturbação durante anos, inteiramente consciente de sua má ação, que era acompanhada das mais violentas, embora inúteis, auto-recriminações. Um excesso a que se entregara depois de ir a um baile havia produzido a intensificação que levou à psicose. Depois de alguns meses de tratamento e da mais estrita vigilância, a jovem se recuperou.

(2) Uma outra moça sofria de um pavor de ser dominada pela necessidade de urinar e de ser incapaz de evitar molhar-se, desde a ocasião em que uma necessidade desse tipo de fato a obrigara a sair de um salão de concerto durante a apresentação. Pouco a pouco, essa fobia a deixara completamente incapaz de se divertir ou de freqüentar a sociedade. Só se sentia bem ao saber que havia um toalete próximo e acessível, que ela poderia atingir discretamente. Não havia sombra de nenhuma enfermidade orgânica que pudesse justificar essa desconfiança em seu poder de controlar a bexiga; quando ela estava em casa, em condições tranqüilas, ou à noite, a necessidade de urinar não assomava. Um exame detalhado mostrou que a necessidade ocorrera primeiramente nas seguintes circunstâncias: no salão de concerto, um cavalheiro ao qual ela não era indiferente tomara assento não longe dela. A moça começou a pensar nele e a imaginar-se sentada a seu lado, como sua esposa. Durante esse devaneio erótico, teve a sensação corporal que é comparável à ereção masculina e que, no caso dela — não sei se é sempre assim —, terminava com uma leve necessidade de urinar. Ficou então muito aterrorizada pela sensação sexual (à qual estava normalmente acostumada), pois tomara a resolução interna de combater aquela preferência específica, assim como qualquer outra que pudesse sentir; no momento seguinte, o afeto se transferira para a necessidade concomitante de urinar e a compelira, depois de agoniada luta, a deixar o recinto. Em sua vida corriqueira, ela era tão pudica que experimentava intenso horror por qualquer coisa relacionada a sexo e não podia contemplar a idéia de vir a casar-se um dia. Por outro lado, era tão hiperestésica sexualmente que, durante qualquer devaneio erótico, ao qual se abandonava prontamente, a mesma sensação voluptuosa aparecia. Em todas as ocasiões a ereção era acompanhada pela necessidade de urinar, embora sem produzir-lhe qualquer impressão até a cena no salão de concerto. O tratamento levou-a a um controle quase completo de sua fobia.

(3) Uma jovem esposa, que tivera apenas um filho em cinco anos de casamento, queixou-se a mim de sentir um impulso obsessivo de se atirar pela janela, ou de uma sacada, e queixou-se também de um temor de apunhalar seu filho, temor que a acometia quando via uma faca afiada. Admitiu que raramente havia relações sexuais conjugais, sempre sujeitas a precauções contra a concepção, mas afirmou não sentir falta delas por não ser de natureza sensual. Nesse ponto, aventurei-me a dizer-lhe que, à vista de um homem, ocorriam-lhe representações eróticas e que, por isso, ela perdera a confiança em si própria e se considerava uma pessoa depravada, capaz de qualquer coisa. A tradução da representação obsessiva em termos sexuais foi um êxito. Em lágrimas, ela imediatamente confessou a precariedade de seu casamento, há muito ocultada; e me comunicou também, mais tarde, representações angustiantes de caráter sexual inalterado, tais como a sensação freqüentíssima de que alguma coisa a forçava por sob sua saia.

Tenho-me valido desse tipo de observações em meu trabalho terapêutico, reconduzindo a atenção dos pacientes com fobias e obsessões às representações sexuais recalcadas, a despeito de todos os seus protestos, e, sempre que possível, estancando as fontes de onde tais representações provieram. Não posso, naturalmente, afirmar que todas as fobias e obsessões emergem do modo que aqui caracterizei. Em primeiro lugar, minha experiência delas inclui apenas um número limitado de casos, em comparação com a freqüência dessas neuroses; e, em segundo lugar, eu mesmo estou ciente de que nem todos esses sintomas “psicastênicos”, como os chama Janet, são equivalentes. Existem, por exemplo, fobias puramente histéricas. Penso, contudo, que será possível mostrar a presença do mecanismo de transposição do afeto na maioria das fobias e obsessões, e portanto insisto em que essas neuroses, que são encontradas isoladamente com tanta freqüência quanto combinadas com a histeria ou a neurastenia, não devem ser indiscriminadamente misturadas com a neurastenia comum, para cujos sintomas básicos não há nenhum fundamento para se pressupor um mecanismo psíquico.

 

III

 

Em ambos os casos até aqui considerados, a defesa contra a representação incompatível foi efetuada separando-a de seu afeto; a representação em si permaneceu na consciência, ainda que enfraquecida e isolada. Há, entretanto, uma espécie de defesa muito mais poderosa e bem-sucedida. Nela, o eu rejeita a representação incompatível juntamente com seu afeto e se comporta como se a representação jamais lhe tivesse ocorrido. Mas a partir do momento em que isso é conseguido, o sujeito fica numa psicose que só pode ser qualificada como “confusão alucinatória”. Um único exemplo pode servir para ilustrar essa asserção:

Uma moça devotara a um homem sua primeira afeição impulsiva e acreditava firmemente que ele lhe retribuía o amor. Na verdade, estava enganada; o rapaz tinha motivos diferentes para visitar sua casa. Não faltaram decepções. A princípio, a jovem se defendeu delas, fazendo uma conversão histérica das experiências em questão, e assim preservou sua crença de que um dia ele pediria sua mão. Ao mesmo tempo, porém, sentia-se doente e infeliz, porque a conversão fora incompleta e ela deparava-se continuamente com novas impressões dolorosas. Por fim, num estado de grande tensão, aguardou a chegada dele em determinado dia, que era de celebração familiar. Mas o dia passou e ele não apareceu. Quando todos os trens em que ele poderia vir já tinham chegado e partido, ela entrou num estado de confusão alucinatória: ele chegara, ela ouviu sua voz no jardim, desceu às pressas, de camisola, para recebê-lo. Daquele dia em diante, durante dois meses, ela viveu um sonho encantador cujo conteúdo era que ele estava presente, ao seu lado, e tudo voltara a ser como antes (antes da época das decepções que ela rechaçara com tanto empenho). Sua histeria e seu desânimo foram superados. Durante a enfermidade, ela silenciou sobre todo o período final de dúvida e sofrimento; ficava feliz desde que não fosse perturbada, e só explodia de ódio quando alguma norma de conduta reiterada pelos que a rodeavam vinha atrapalhá-la em algo que lhe parecia ser uma decorrência lógica de seu abençoado sonho. Essa psicose, que fora ininteligível na época, foi explicada dez anos depois com a ajuda de uma análise hipnótica.|cf.em [1]|.

O fato para o qual desejo agora chamar atenção é que o conteúdo de uma psicose alucinatória desse tipo consiste precisamente na acentuação da representação que era ameaçada pela causa precipitante do desencadeamento da doença. Portanto, é justificável dizer que o eu rechaçou a representação incompatível através de uma fuga para a psicose. O processo pelo qual isso é conseguido escapa, mais uma vez, à autopercepção do sujeito, assim como escapa à análise psicológico-clínica. Deve ser encarado como a expressão de uma predisposição patológica de grau bastante alto e pode ser descrito mais ou menos como se segue. O eu rompe com a representação incompatível; esta, porém, fica inseparavelmente ligada a um fragmento da realidade, de modo que, à medida que o eu obtém esse resultado, também ele se desliga, total e parcialmente, da realidade. Em minha opinião, este último evento é a condição sob a qual as representações do sujeito recebem a vividez das alucinações; assim, quando a defesa consegue ser levada a termo, ele se encontra num estado de confusão alucinatória.

Disponho apenas de muito poucas análises de psicoses dessa natureza. Penso, entretanto, que deparamos aqui com um tipo de enfermidade psíquica muito freqüentemente empregada, pois em nenhum manicômio faltam exemplos que podem ser considerados análogos — a mãe que adoeceu pela perda de seu bebê e que agora embala incessantemente um pedaço de madeira nos braços, ou a noiva rejeitada que, adornada com seus trajes nupciais, espera durante anos pelo noivo.

Talvez não seja supérfluo assinalar que os três métodos de defesa aqui descritos e, juntamente com eles, as três formas de doença a que levam esses métodos podem combinar-se numa mesma pessoa. O aparecimento simultâneo de fobias e sintomas histéricos, freqüentemente observado na prática, é um dos fatores que dificultam uma separação nítida entre a histeria e as outras neuroses e que tornam necessária a postulação da categoria de “neuroses mistas”. É verdade que a confusão alucinatória nem sempre é compatível com a persistência da histeria nem das obsessões, de um modo geral. Por outro lado, não é raro uma psicose de defesa irromper episodicamente no decurso de uma neurose histérica ou mista.

Gostaria, por fim, de me deter por um momento na hipótese de trabalho que utilizei nesta exposição das neuroses de defesa. Refiro-me ao conceito de que, nas funções mentais, deve-se distinguir algo — uma carga de afeto ou soma de excitação — que possui todas as características de uma quantidade (embora não tenhamos meios de medi-la) passível de aumento, diminuição, deslocamento e descarga, e que se espalha sobre os traços mnêmicos das representações como uma carga elétrica espalhada pela superfície de um corpo.

Essa hipótese, que aliás já está subjacente a nossa teoria da “ab-reação” na “Comunicação Preliminar” (1893a), pode ser aplicada no mesmo sentido que os físicos aplicam a hipótese de um fluxo de energia elétrica. Ela é provisoriamente justificada por sua utilidade na coordenação e explicação de uma grande variedade de estados psíquicos.

VIENA, fim de janeiro de 1894.

 

APÊNDICE: O SURGIMENTO DAS HIPÓTESES FUNDAMENTAIS DE FREUD

 

Com esse primeiro artigo sobre as neuropsicoses de defesa, Freud deu expressão pública, se não direta, ao menos implicitamente, a muitas das noções teóricas mais fundamentais sobre as quais se baseou todo o seu trabalho posterior. Não se deve esquecer que o artigo foi escrito em janeiro de 1894 — um ano após a publicação da “Comunicação Preliminar” e um ano antes da conclusão da seção principal dos Estudos sobre a Histeria e das contribuições teóricas de Breuer para aquele volume. À época em que escreveu o artigo, portanto, Freud estava profundamente envolvido em sua primeira série de investigações psicológicas. Destas começavam a emergir diversas inferências clínicas e, por trás delas, algumas hipóteses mais gerais que emprestariam coerência às descobertas clínicas. Mas foi somente passados mais seis meses após a publicação dos Estudos sobre a Histeria — no outono de 1895 — que Freud fez uma primeira tentativa de exposição sistemática de suas concepções teóricas; e tal tentativa (o “Projeto para uma Psicologia Científica”) foi deixada incompleta e não publicada por seu autor. Só viu a luz do dia em 1950, mais de meio século depois. Nesse intervalo, o estudante interessado nas concepções teóricas freudianas tinha que captar o que pudesse das descrições descontínuas, e por vezes obscuras, fornecidas por Freud em vários pontos posteriores de sua carreira. Além disso, sua única discussão extensa de suas teorias em anos posteriores — os artigos metapsicológicos de 1915 — sobreviveu apenas de forma truncada: sete dos doze artigos desapareceram completamente.

Em sua “História do Movimento Psicanalítico” (1914d), Freud declarou que “a teoria do recalcamento”, ou defesa, para dar-lhe seu nome alternativo, “é a pedra angular sobre a qual repousa toda a estrutura da psicanálise” (Edição Standard Brasileira, Vol. XIV, ver em [1], IMAGO Editora, 1974). O termo “defesa” realmente ocorre pela primeira vez no presente artigo (ver em [1]), e é aqui que a teoria recebe sua primeira consideração efetiva, embora uma ou duas frases lhe tivessem sido dedicadas na “Comunicação Preliminar” (Edição Standard Brasileira, Vol. II, ver em [1], 3ª edição, IMAGO, 1995) e na “Conferência” (ver em [1] deste volume).

Entretanto, a própria hipótese clínica da defesa era necessariamente baseada em pressuposições mais gerais, uma das quais é especificada no penúltimo parágrafo deste artigo (ver em [1]). Essa pressuposição pode ser convenientemente designada (embora o nome provenha de data um pouco posterior) como teoria da “catexia” (“Besetzung”). Talvez não haja nenhuma outra passagem, nos escritos publicados de Freud, em que ele reconheça tão explicitamente a necessidade dessa que constitui a mais fundamental de todas as suas hipóteses: “nas funções mentais, deve-se distinguir algo — uma carga de afeto ou soma de excitação — que possui todas as características de uma quantidade… passível de aumento, diminuição, deslocamento e descarga…” A noção de “quantidade deslocável” estivera implícita, é claro, em todas as suas discussões teóricas anteriores. Como ele próprio indica nessa mesma passagem, ela estava subjacente à teoria da ab-reação; foi a base necessária do princípio da constância (que logo será discutido); estava implícita sempre que Freud utilizava expressões como “carregado com uma soma de excitação” (ver em [1]), “suprido com uma carga de afeto” (1893c), “suprido de energia” (1895b), — predecessoras do que logo se converteria no termo padrão “catexizado”. Já no prefácio a sua primeira tradução de Bernheim (1888-9) ele falara em “deslocamentos da excitabilidade no sistema nervoso”.

Esse último exemplo traz-nos à mente, entretanto, uma complicação adicional. Pouco mais de dezoito meses após escrever o presente artigo, Freud enviou a Fliess o notável fragmento conhecido como o “Projeto”, já mencionado acima. Ali a hipótese da catexia é, pela primeira e última vez, integralmente discutida. Mas essa discussão completa traz claramente à luz algo que é esquecido com demasiada facilidade. Durante todo esse período Freud parece ter considerado os processos de catexização como eventos materiais. Em seu “Projeto”, duas pressuposições básicas foram explicitadas. A primeira era a da validade da então recente descoberta histológica de que o sistema nervoso consistia em cadeias de neurônios; a segunda era a idéia de que a excitação dos neurônios devia ser considerada como “uma quantidade sujeita às leis gerais do movimento”. Combinando essas duas pressuposições, “chegamos à idéia de um neurônio ‘catexizado’, cheio de determinada quantidade, embora em outras ocasiões possa estar vazio” (“Projeto”, Parte I, Seção 2). Entretanto, embora a catexia fosse assim definida primariamente como um evento neurológico, a situação não era tão simples. Até muito pouco tempo antes, o interesse de Freud estivera centrado na neurologia, e agora que seus pensamentos estavam sendo cada vez mais desviados para a psicologia, era natural que seu primeiro esforço fosse o de conciliar esses dois interesses. Acreditava ele que devia ser possível postular os fatos da psicologia em termos neurológicos, e seus esforços nesse sentido culminaram precisamente no “Projeto”. A tentativa falhou; o “Projeto” foi abandonado; e nos anos que se seguiram, pouco mais se ouviu sobre a base neurológica dos eventos psicológicos, exceto (como veremos adiante, ver em [1] e seg.) em conexão com o problema das “neuroses atuais”. Contudo, esse repúdio não envolveu nenhuma revolução maciça. O fato, sem dúvida, é que as formulações e hipóteses apresentadas por Freud em termos neurológicos tinham sido efetivamente elaboradas com vistas mais do que parciais aos eventos psicológicos; e quando chegou o momento de abandonar a neurologia, verificou-se que a maior parte do material teórico podia ser entendida como aplicável — a rigor, mais convincentemente aplicável — a fenômenos puramente mentais.

Essas considerações aplicam-se ao conceito de “catexia”, que apresentou um sentido inteiramente não-físico em todos os escritos posteriores de Freud, inclusive o sétimo capítulo teórico de A Interpretação dos Sonhos (1900a). Aplicam-se também à hipótese posterior que utiliza o conceito de catexia de que ficou mais tarde conhecida como “princípio da constância”. Também esta começou como uma hipótese aparentemente fisiológica. O princípio é definido no “Projeto” (Parte I, Seção I) como “princípio da inércia neuronal, que afirma que os neurônios tendem a se desfazer da quantidade”. Foi formulado em termos psicológicos vinte e cinco anos depois, em Além do Princípio do Prazer (1920g), como se segue: “O aparelho mental se esforça por manter a quantidade de excitação nele presente tão baixa quanto possível, ou, pelo menos, por mantê-la constante.” (Edição Standard  Brasileira, Vol. XVIII, pág. [1], IMAGO Editora, 1976). Esse princípio não é explicitamente estabelecido no presente artigo, embora esteja implícito em vários pontos. Já fora mencionado na conferência sobre a “Comunicação Preliminar” (1893h, ver em [1]), embora não na própria “Comunicação Preliminar”, e no artigo em francês sobre as paralisias histéricas (1893c). Fora também formulado com muita clareza num rascunho postumamente publicado da “Comunicação Preliminar” (1940d), datado de “Fim de novembro de 1892”, e citado, antes disso ainda, numa carta de Freud a Breuer datada de 29 de junho de 1892 (1941a), assim como, indiretamente, numa das notas de rodapé de Freud a sua tradução de um volume das Leçons du Mardi, de Charcot (Freud, 1892-94, 107). Nos anos posteriores, o princípio foi repetidamente discutido: por exemplo, por Breuer em sua contribuição teórica aos Estudos sobre a Histeria — (1895d), Edição Standard Brasileira, Vol. II, ver em [1] e [2], 3ª edição, IMAGO, 1995, e por Freud em “Os Instintos (Pulsões) e suas Vicissitudes” (1915c), ibid., Vol. XIV, ver em [1], [2] e [3], ibid., 1974; e em Além do Princípio do Prazer (1920g), Vol. XVIII, ver em [1]., [2] e [3] e seg., ibid., 1976, onde ele lhe deu pela primeira vez a nova denominação de “princípio do Nirvana”.

O princípio do prazer, não menos fundamental que o princípio da constância no arsenal psicológico de Freud, está igualmente presente neste artigo, embora mais uma vez apenas implicitamente. A princípio, Freud considerou os dois princípios intimamente ligados, e talvez idênticos. No “Projeto” (Parte I, Seção 8), escreveu: “Já que temos certo conhecimento de uma tendência da vida psíquica a evitar o desprazer, ficamos tentados a identificá-la com a tendência primária à inércia. Nesse caso, o desprazer coincidiria com um aumento do nível da quantidade… O prazer corresponderia à sensação de descarga.” Só muito mais tarde, em “O Problema Econômico do Masoquismo” (1924c), é que Freud demonstrou a necessidade de distinguir os dois princípios (Vol. XIX, ver em [1], [2] e [3], IMAGO Editora, 1976). O curso das alterações na visão de Freud sobre essa questão é detalhadamente acompanhado numa nota de rodapé do Editor inglês ao artigo metapsicológico sobre “Os Instintos (Pulsões) e suas Vicissitudes” (1915c), Vol. XIV, ver em [1] e [2]., IMAGO Editora, 1974.

Pode-se levantar a questão adicional de até que ponto essas hipóteses fundamentais eram específicas de Freud e até que ponto derivaram de outras influências. Muitas fontes possíveis têm sido sugeridas — Helmholtz, Herbart, Fechner e Meynert, entre outros. Este, contudo, não é o lugar para se introduzir uma questão tão abrangente. Basta dizer que Ernest Jones a examinou exaustivamente no primeiro volume de sua biografia de Freud (1953, 405-15).

Cabe dizer algumas palavras sobre um ponto que se destaca particularmente do penúltimo parágrafo deste artigo — a aparente equivalência dos termos “carga de afeto (Affektbetrag)” e “soma de excitação (Erregungssumme)”. Estará Freud utilizando tais palavras como sinônimos? A descrição que faz dos afetos na Conferência XXV de suas Conferências Introdutórias (1916-17) e seu uso da palavra na Seção III do artigo sobre “O Inconsciente” (1915e), assim como numerosas outras passagens mostram que em geral ele atribuía a “afeto” aproximadamente o mesmo sentido que costumamos dar a “sentimento” ou “emoção”. “Excitação”, por outro lado, é um dos vários termos que ele parece usar para descrever a desconhecida energia da “catexia”. No “Projeto”, como vimos, ele a chama simplesmente de “quantidade. Em outros trechos, utiliza termos como “intensidade psíquica” ou “energia pulsional”. “Soma de excitação” remonta a sua menção ao princípio da constância na carta a Breuer de junho de 1892. Assim, os dois termos parecem não ser sinônimos. Essa opinião é confirmada por uma passagem de Breuer no capítulo teórico dos Estudos sobre a Histeria, onde ele fornece razões para a suposição de que os afetos “acompanham um aumento da excitação”, implicando com isso que se trata de duas coisas diferentes (Edição Standard Brasileira, Vol. II, ver em [1], 3ª edição, IMAGO, 1995). Tudo isso pareceria bastante claro, não fosse por uma passagem no artigo metapsicológico sobre o “Recalcamento” (1915d), Vol. XIV, ver em [1] e segs., IMAGO Editora, 1974. Trata-se da passagem em que Freud mostra que o “representante psíquico” de uma pulsão consiste em dois elementos que têm destinos bem diferentes sob a ação do recalcamento. Um desses elementos é a representação ou grupo de representações catexizadas, e o outro é a energia pulsional nelas investida. “Para esse outro elemento do representante psíquico a expressão carga afetiva tem sido genericamente adotada”. Algumas frases adiante e em vários outros pontos, ele se refere a esse elemento como “fator quantitativo”, mas depois, ainda um pouco além, volta a falar nele como “carga de afeto”. À primeira vista, Freud pareceria estar tratando afeto e energia psíquica como noções sinônimas. Mas esse afinal não pode ser o caso, já que exatamente na mesma passagem ele menciona como um possível destino da pulsão “a transformação em afetos… das energias psíquicas das pulsões” (Edição Standard Brasileira, Vol. XIV, ver em [1], IMAGO Editora, 1974).

A explicação da aparente ambigüidade parece residir na concepção subjacente de Freud sobre a natureza dos afetos. Sua formulação mais clara talvez seja a que se encontra na terceira seção do artigo sobre “O Inconsciente” (1915e), Edição Standard Brasileira, Vol. XIV, ver em [1] e [2], IMAGO Editora, 1974, onde Freud declara que os afetos “correspondem a processos de descarga cujas manifestações finais são percebidas como sentimentos”. De modo similar, na Conferência XXV das Conferências Introdutórias, ele indaga o que é um afeto “no sentido dinâmico” e prossegue: “Um afeto inclui, em primeiro lugar, determinadas inervações ou descargas motoras e, em segundo lugar, certos sentimentos; estes são de dois tipos: as percepções das ações motoras ocorridas e os sentimentos diretos de prazer e desprazer, que, como se costuma dizer, dão ao afeto seu tom predominante.” E, por último, no artigo sobre “O Recalcamento”, do qual partimos, ele escreve que a carga de afeto “corresponde à pulsão na medida em que esta… encontra expressão, proporcional a sua quantidade, em processos que são vivenciados como afetos”.

Assim, é provavelmente correto supor que Freud considerasse a “carga de afeto” como uma manifestação particular da “soma de excitação”. Sem dúvida, é verdade que o afeto era o que estava usualmente envolvido nos casos de histeria e neuroses obsessivas que constituíram o principal interesse de Freud no período inicial. Por essa razão, ele tendia, nessa época, a descrever a “quantidade deslocável” como uma carga de afeto, em vez de descrevê-la, em termos mais gerais, como uma excitação; e esse hábito parece ter persistido mesmo nos artigos metapsicológicos, onde uma diferenciação mais precisa poderia ter contribuído para a clareza de sua tese.

 

 

OBSESSÕES E FOBIAS: SEU MECANISMO PSÍQUICO E SUA ETIOLOGIA (1895 |1894|)

 

NOTA DO EDITOR INGLÊS

 

OBSESSIONS ET PHOBIES

(LEUR MÉCANISME PSYCHIQUE ET LEUR ÉTIOLOGIE)

 

(a) EDIÇÕES EM FRANCÊS:

1895 Rev. Neurol., 3 (2), 33-8. (30 de janeiro).

1906 S.K.S.N., 1, 86-93. (1911, 2ª ed.; 1920, 3ª ed.; 1922, 4ª ed.)

1925 G.S., l, 334-42.

1952 G.W., l, 345-53.

 

(b) TRADUÇÃO INGLESA:

“Obsessions and Phobias”

1924 C.P., l, 128-37. (Trad. de M. Meyer.)

 

Incluído (nº XXX) na coletânea de sinopses dos primeiros trabalhos de Freud elaborada por ele mesmo (1897b). O original está em francês. A presente tradução é uma versão consideravelmente revista da publicada em 1924. Uma tradução alemã, de A.Schiff, sob o título “Zwangsvorstellungen und Phobien”, foi publicada em Wien. klin. Rundsch., 9 (17), 262-3 e (18), 276-8, a 28 de abril de 5 de maio de 1895.

 

Embora este artigo tenha sido publicado quinze dias após o primeiro artigo sobre a neurose de angústia (1895b), foi escrito anteriormente, pois há aqui uma referência (ver em [1]) ao artigo sobre a neurose de angústia como algo que Freud esperava escrever no futuro, e há naquele uma referência ao presente artigo (ver em [1], adiante).

A primeira parte deste artigo é pouco mais que uma repetição da Seção II do primeiro artigo sobre “As Neuropsicoses de Defesa” (1894a), tratando das obsessões. A última parte, relativa às fobias, é discutida no Apêndice do Editor inglês (ver em [1] [2]).

Este é um dos três artigos que Freud escreveu em francês por volta dessa época; o primeiro (1893c), que versa sobre a distinção entre paralisias orgânicas e histéricas, será encontrado no primeiro volume da Edição Standard, e o restante neste volume, em [1] e segs. Em um ou dois casos, os termos franceses selecionados pelo próprio Freud como versões dos termos alemães interessam ao tradutor inglês. Assim, ele sempre traduz “Zwangsvorstellung” pelo francês “obsession”. Isso deve dissipar qualquer sentimento inquietante de que a versão inglesa adequada devesse ser “representação compulsiva” ou coisa semelhante. De fato, parece não ter havido nenhum equivalente em alemão para a palavra francesa e inglesa até que Krafft-Ebing introduziu “Zwangsvorstellung” em 1867 (cf. Loewenfeld, 1904, 8). A palavra inglesa “obsession”, no sentido de idéia fixa, remonta pelo menos ao século XVII. Do mesmo modo, Freud traduz “Zwangsneurose” pelo francês “névrose d’obsessions”. O alemão “Angstneurose” é por ele vertido por “névrose d’angoise”; entretanto, em pelo menos um ponto (ver em [1]), ele traduz “Angst” por “anxieté”, palavra francesa com a mesma conotação da inglesa “anxiety” (Ver em [1] e seg.). Outra palavra que Freud usa com enorme freqüência em seus escritos desse período é “unvertraeglich”, aplicada às representações recalcadas na histeria ou descartadas de outras maneiras na neurose obsessiva. Há uma boa dose de má vontade em aceitar essa palavra como significando “incompatível”. Existe outra palavra alemã com apenas uma letra a menos, “unetraeglich”, que significa “intolerável”. Esta última ocorre algumas vezes, provavelmente por erro de impressão, nas edições alemãs (cf. em [1]), e o termo “intolerável” foi adotado como tradução uniforme na maior parte do primeiro volume dos Collected Papers de 1924. As dúvidas quanto ao sentido pretendido por Freud parecem ter sido dirimidas pelo equivalente francês escolhido por ele — “inconciliable”.

Pode-se acrescentar que, no Volume I das Gesammelte Werke (publicado em 1952), no início do primeiro desses artigos em francês (que é o que foi incluído no Volume I da Edição Standard), lê-se a seguinte nota de rodapé: “Nos três artigos em francês, o texto original foi revisto e corrigido no que concerne aos erros de impressão e erros de francês, embora se tenha respeitado estritamente o sentido.” A maioria das alterações assim efetuadas é puramente verbal, e conseqüentemente não afetou a tradução inglesa. Em alguns casos, porém, neste artigo e no que é reproduzido mais adiante (ver em [1] e segs.), talvez se possa pensar que as modificações foram mais além, embora em duas delas (ver em [1] e [2]) a versão de 1952 de fato remonte à que consta da publicação periódica original. Ao decidir sobre os casos duvidosos, deve-se ter em mente que o próprio Freud muito provavelmente leu por inteiro as reimpressões de 1906 e de 1925, já que acrescentou novas notas de rodapé a esta última (cf. em [1]). As versões de 1906 são as que adotamos usualmente no texto. Em todos os casos fornece-se a alternativa numa nota de rodapé.

 

OBSESSÕES E FOBIAS: SEU MECANISMO PSÍQUICO E SUA ETIOLOGIA

 

Começarei por questionar duas afirmações que têm sido freqüentemente repetidas a respeito das síndromes de “obsessões” e “fobias”. Deve-se dizer, em primeiro lugar, que elas ano podem ser incluídas na neurastenia propriamente dita, já que os pacientes afligidos por esses sintomas são ora neurastênicos, ora não o são; e, em segundo lugar, ano temos justificativa para encará-las como efeito de degeneração mental, pois são encontradas em pessoas ano mais degeneradas do que a maioria dos neuróticos em geral, e porque às vezes elas se recuperam e outras vezes conseguimos até mesmo curá-las.

As obsessões e as fobias são neuroses distintas, com mecanismo e etiologia específicos, que consegui demonstrar num certo número de casos e que, segundo espero, se revelarão semelhantes num número de casos novos.

Quanto à classificação do assunto, proponho, em primeiro lugar, excluir um grupo de obsessões intensas que nada mais são do que lembranças, imagens inalteradas de eventos importantes. Como exemplo, posso citar a obsessão de Pascal: ele sempre achava estar vendo um abismo a sua esquerda, “depois de quase ter sido atirado no Sena em seu coche”. Tais obsessões e fobias, que podem ser chamadas de traumáticas, estão ligadas aos sintomas da histeria.

A parte esse grupo, devemos distinguir: (a) as obsessões verdadeiras; (b) as fobias. A diferença essencial entre elas é a seguinte:

Dois correspondentes são encontrados em toda obsessão: (1) uma representação que se impõe ao paciente; (2) um estado emocional associado. Ora, no grupo das fobias, esse estado emocional é sempre de “angústia”, ao passo que, nas obsessões verdadeiras, outros estados emocionais, como a dúvida, o remorso ou a raiva, podem ocorrer tanto quanto a angústia. Tentarei primeiramente explicar o mecanismo psicológico, realmente notável, das obsessões verdadeiras - um mecanismo bem diferente do das fobias.

 

I

 

Em muitas obsessões verdadeiras, é evidente que o principal é o estado emocional, já que este permanece inalterado, enquanto a representação a ele associada varia. A jovem do Caso 1 citado adiante, por exemplo, sentia um certo grau de remorso por toda sorte de razões - por ter cometido um furto, por ter maltratado as irmãs, por ter fabricado dinheiro falso etc. As pessoas que duvidam têm muitas dúvidas simultânea ou sucessivamente. É o estado emocional que permanece constante nelas; a representação muda. Em outros casos, a representação também parece fixada, como no Caso 4, da menina que perseguia os empregados da casa com um ódio incompreensível, embora modificando constantemente o objeto individual.

Ora, uma cuidadosa análise psicológica desses casos mostra que o estado emocional, como tal, é sempre justificado. A moça do Caso 1, que sofria de remorso, tinha boas razões para isso; a mulher do Caso 3, que duvidava de sua capacidade de resistência à tentação, sabia muito bem por quê. A moça do Caso 4, que detestava os criados, tinha bons motivos para se queixar etc. Só que - e é nessas duas características que reside a marca patológica - (1) o estado emocional persiste indefinidamente e (2) a representação associada não é mais a representação apropriada original, relacionada com a etiologia da obsessão, mas uma representação que a substitui, um sucedâneo dela.

A prova disso é o fato de que sempre conseguimos descobrir, na história prévia do paciente, no início da obsessão, a representação original que foi substituída. Todas as representações substituídas têm atributos comuns; elas correspondem a experiências realmente penosas na vida sexual do sujeito, que ele se esforça por esquecer. Consegue meramente substituir a representação incompatível por uma outra, mal adaptada para se associar com o estado emocional, o qual, por sua vez, permanece inalterado. É essa mésalliance entre o estado emocional e a representação associada que explica os disparates tão característicos das obsessões.

Passo agora a apresentar minhas observações, e concluirei com uma tentativa de explicação teórica.

Caso 1. Uma jovem censurava-se por coisas que sabia serem absurdas: por ter roubado, fabricado dinheiro falso, por envolver-se numa conspiração etc., conforme o que tivesse lido durante o dia.

Reinstauração da representação substituída: Ela se recriminava pela masturbação que vinha praticando em segredo, sem conseguir abandoná-la. Foi curada por uma cuidadosa vigilância, que a impediu de se masturbar.

Caso 2. Um rapaz, estudante de medicina, sofria de obsessão análoga. Recriminava-se por toda sorte de atos imorais: por ter matado o primo, violado a irmã, ateado fogo a uma casa etc. Chegou ao ponto de ter que se voltar na rua para ver se ano tinha assassinado a última pessoa a passar por ele.

Reinstauração: Ficara muito afetado pela leitura, num livro paramédico, de que a masturbação, na qual era viciado, destruía a moral das pessoas.

Caso 3. Várias mulheres queixaram-se de um impulso obsessivo de se atirarem pela janela, ferirem seus filhos com facas, tesouras etc.

Reinstauração: Obsessões baseadas em tentações típicas. Tratava-se de mulheres que, inteiramente insatisfeitas com seus casamentos, tinham de lutar contra os desejos e idéias voluptuosas que constantemente as perturbavam à visão de outros homens.

Caso 4. Uma moça perfeitamente sadia e muito inteligente exibia um ódio incontrolável pelos empregados de sua casa. Este fora deflagrado em conexão com uma criada impertinente e se transferia de criada para criada, a ponto de tornar o serviço doméstico impossível. O sentimento era uma mistura de ódio e repugnância. Ela se justificava dizendo que a grosseria dessas moças arruinava sua representação do amor.

Reinstauração: Essa moça fora testemunha involuntária de uma cena de amor em que sua mãe tomara parte. Escondera o rosto, tapara os ouvidos e fizera o máximo para esquecer a cena, pois ela a repugnava e teria tornado impossível sua permanência com a mãe, a quem ela amava ternamente. Teve êxito em seus esforços, mas a raiva pela maculação de sua representação do amor persistiu dentro dela, e esse estado emocional logo se ligou à representação de alguma pessoa que assumisse o lugar de sua mãe.

Caso 5. Uma jovem se isolara quase completamente por causa de um medo obsessivo da incontinência urinária. Não podia mais sair de seu quarto ou receber visitas sem ter urinado inúmeras vezes. Quando estava em casa ou inteiramente só, o medo não a perturbava.

Reinstauração: Tratava-se de obsessão baseada na tentação ou na desconfiança. Ela não desconfiava de sua bexiga, mas de sua resistência aos impulsos eróticos. A origem da obsessão mostra-o claramente. Uma vez, no teatro, vendo um homem que a atraía, ela sentiu um desejo erótico, acompanhado (como as poluções espontâneas nas mulheres sempre o são) de um desejo de urinar. Foi obrigada a deixar o teatro e, a partir desse momento, viu-se presa do medo de experimentar a mesma sensação, mas o desejo de urinar substituíra o desejo erótico. Ficou completamente curada.

Embora os casos que enumerei mostrem graus variáveis de complexidade, têm em comum o seguinte: a representação original (incompatível) foi substituída por outra representação, a representação substituta. Nos casos que acrescento agora, a representação original foi substituída, mas não por outra representação - foi substituída por atos ou impulsos que serviram originalmente como medidas de alívio ou como procedimentos protetores, e que são agora grotescamente associados a um estado emocional que não lhes é adequado, mas que permaneceu inalterado e continuou a ser tão justificável quanto em sua origem.

Caso 6. Aritmomania obsessiva. - Uma mulher via-se na obrigação de contar as tábuas do assoalho, os degraus da escada etc., atos estes que praticava num ridículo estado de angústia.

Reinstauração: Ela começara a contar para desviar sua mente das representações obsessivas (de tentação). Conseguira fazê-lo, mas o impulso de contar substituíra a obsessão original.

Caso 7. Preocupação e especulação obsessivas. - Uma mulher sofria de ataques dessa obsessão, que só cessavam quando ela adoecia, cedendo então lugar a temores hipocondríacos. O tema de sua preocupação era sempre uma parte ou função de seu corpo; por exemplo a respiração: “Por que preciso respirar? Suponhamos que eu não queira respirar” etc.

Reinstauração: Logo no princípio ela sofrera do medo de enlouquecer - fobia hipocondríaca bastante comum entre mulheres não satisfeitas por seus maridos, como era seu caso. Para se assegurar de que não estava louca, de que estava ainda de posse de suas faculdades mentais, começara a se fazer perguntas e a se interessar por problemas sérios. Isso inicialmente a acalmara, mas, com o tempo, o hábito da especulação substituiu a fobia. Por mais de quinze anos, alternaram-se nela períodos de medo (patofobia) e de especulação obsessiva.

Caso 8. Folie du doute. - Vários casos mostraram os sintomas típicos dessa obsessão, mas foram explicados de forma muito simples. Essa pessoas tinha sofrido ou sofriam ainda de várias obsessões, e o conhecimento de que essas obsessões haviam perturbado todos os seus atos e interrompido muitas vezes o curso de seu pensamento provocava uma dúvida legítima quanto à confiabilidade de sua memória. Todos já tivemos nossa confiança abalada, já fomos forçados a reler uma carta ou refazer um cálculo, quando nossa atenção é dispersada várias vezes durante a realização desse ato. A dúvida é um resultado bastante lógico na presença de obsessões.

Caso 9. Folie du doute. (Hesitação.) - A moça do Caso 4 se tornara extremamente vagarosa na execução de todos os seus atos cotidianos, em especial na de sua toalete. Levava horas para amarrar os sapatos ou limpar as unhas. A guisa de explicação, dizia que não conseguia fazer sua toalete enquanto as representações obsessivas ocupavam sua mente, nem imediatamente após. Assim, acostumara-se a esperar um intervalo definido depois de cada retorno da representação obsessiva.

Caso 10. Folie du doute. (Medo de pedacinhos de papel.) - Uma jovem sofria de escrúpulos após ter escrito uma carta; ao mesmo tempo, juntava todos os pedaços de papel que enxergava. Explicou esse fato confessando um amor que antes se recusara a admitir. Em conseqüência da repetição constante do nome de seu amado, fora dominada pelo medo de que esse nome pudesse ter-lhe escapado da pena, de que pudesse tê-lo escrito em algum pedaço de papel num momento de introspecção.

Caso 11. Misofobia |Medo de sujeira.| - Uma mulher lavava suas mãos constantemente e só tocava os trincos das portas com os cotovelos.

Reinstauração: É o caso de Lady Macbeth. A lavagem era simbólica, destinada a substituir pela pureza física a pureza moral que ela lastimava ter perdido. Atormentavam-na os remorsos pela infidelidade conjugal, cuja lembrança ela resolvera banir da mente. Além disso, costumava lavar seus órgãos genitais.

No que tange à teoria desse processo de substituição, ficarei contente em responder a três perguntas que aqui surgem:

(1)Como se produz a substituição?

Ela parece ser expressão de uma predisposição mental específica herdada. De qualquer forma, a “hereditariedade similar” é encontrada com bastante freqüência nos casos obsessivos, assim como na histeria. O paciente do Caso 2, por exemplo, contou-me que seu pai sofrera de sintomas semelhantes. Certa vez, o rapaz me apresentou a um primo em primeiro grau que tinha obsessões e um tic convulsif, e à filha de sua irmã, de 11 anos, que já dava sinais de obsessões (provavelmente de remorso).

(2)Qual o motivo da substituição?

Penso que ele pode ser considerado como um ato de defesa (Abwehr) do ego contra a representação incompatível. Entre meus pacientes há alguns que se recordam do esforço deliberado de banir a representação ou recordação aflitiva do campo da consciência. (Ver Casos 3, 4 e 11). Em outros casos, a expulsão da representação incompatível é processada de modo inconsciente, que não deixa nenhum traço na memória do paciente.

(3)Por que o estado emocional associado com a representação obsessiva persiste indefinidamente, em vez de se dissipar como outros estados de nosso eu?

Essa questão pode ser respondida com referência à teoria da gênese dos sintomas histéricos, desenvolvida por Breuer e por mim. Aqui observarei apenas que, pelo próprio fato da substituição, torna-se impossível o desaparecimento do estado emocional.

 

II

 

Além desses dois grupos de obsessões verdadeiras, há a classe de “fobias”, que deve ser agora considerada. Já mencionei a grande diferença entre obsessões e fobias: nestas últimas, a emoção é sempre de angústia, de medo. Poderia acrescentar que as obsessões são variadas e mais especializadas, enquanto as fobias aso mais monótonas e típicas. Mas essa distinção não é de importância capital.

Entre as fobias, é também possível diferenciar dois grupos, conforme a natureza do objeto temido: (1) fobias comuns, medo exagerado de coisas que todos detestam ou temem em alguma medida, tais como a noite, a solidão, a morte, as doenças, os perigos em geral, as cobras etc.; (2) fobias contingentes, medo de condições especiais que não inspiram medo ao homem normal: por exemplo, agorafobia e as outras fobias da locomoção. É interessante notar que essas fobias não têm o traço obsessivo que caracteriza as verdadeiras obsessões e as fobias comuns. O estado emocional só aparece, nesses casos, em condições especiais, que o paciente evita cuidadosamente.

O mecanismo das fobias é totalmente diferente do das obsessões. A substituição não é mais o traço predominante nas primeiras; a análise psicológica não revela nelas nenhuma representação incompatível substituída. Nunca se encontra nada além do estado emocional de angústia, que, por uma espécie de processo seletivo, traz à tona todas as representações adequadas para se tornarem alvo de uma fobia. No caso da agorafobia etc., encontramos freqüentemente a recordação de um ataque de angústia; e o que o paciente de fato teme é a ocorrência de tal ataque nas condições especiais em que acredita não poder escapar dele.

A angústia pertinente a esse estado emocional, que subjaz a todas as fobias, não deriva de qualquer lembrança; bem podemos imaginar qual seja a fonte dessa poderosa condição do sistema nervoso.

Espero pode demonstrar, em outra ocasião, que há motivos para se distinguir uma neurose especial, a “neurose de angústia”. cujo principal sintoma é esse estado emocional. Enumerarei então seus vários sintomas e insistirei sobre a necessidade de diferenciar essa neurose da neurastenia, com a qual é agora confundida. As fobias, portanto, fazem parte da neurose de angústia, e aso quase sempre acompanhadas por outros sintomas do mesmo grupo.

Tanto quanto posso perceber, também a neurose de angústia tem uma origem sexual, mas não se prende a representações extraídas da vida sexual; para dizê-lo com propriedade, não tem qualquer mecanismo psíquico. Sua causa específica é a acumulação de tensão sexual produzida pela abstinência ou pela excitação sexual não consumada (usando o termo como fórmula geral para os efeitos do coitus reservatus, da impotência relativa do marido, da excitação não satisfeita dos noivos, da abstinência forçada etc.).

É nessas condições, extremamente freqüentes na sociedade moderna, especialmente entre as mulheres, que se desenvolve a neurose de angústia (da qual as fobias aso uma manifestação psíquica).

Para concluir, posso assinalar que é possível coexistirem combinações de uma fobia com uma obsessão propriamente dita, e essa é de fato uma ocorrência muito freqüente. Podemos constatar que uma fobia se desenvolvera no início da doença como um sintoma de neurose de angústia. A representação que constitui a fobia e que é associada ao estado de medo pode ser substituída por outra representação, ou melhor, pelo procedimento protetor que parecia aliviar o medo. O Caso 7 (especulação obsessiva) fornece um nítido exemplo desse grupo: uma fobia acompanhada de uma obsessão substitutiva verdadeira.

 

APENDICE: AS CONCEPÇÕES DE FREUD SOBRE AS FOBIAS

 

A mais antiga abordagem feita por Freud do problema das fobias foi seu primeiro artigo sobre as psiconeuroses de defesa (1894a); tratou-o de modo bem mais completo, um ano depois, na segunda seção do presente artigo, e voltou a aludir a ele no primeiro artigo sobre a neurose de angústia (1895b), escrito logo depois. Em todas essas primeiras discussões das fobias não é difícil detectar alguma incerteza; de fato, numa outra breve referência à questão, no segundo artigo sobre a neurose de angústia (1895f), Freud qualifica de “obscuro” o mecanismo das fobias (ver em [1] e [2]). No primeiro desses artigos ele atribuíra o mesmo mecanismo à maioria das fobias e obsessões" (ver em [1]), excetuando as “fobias puramente histéricas” (ver em [1]) e “o grupo de fobias típicas das quais um modelo é a agorafobia” (ver em [1]. nota de rodapé 1). Essa última distinção, que ocorre pela primeira vez numa nota de rodapé, iria revelar-se crucial, pois implicava uma distinção entre fobias de base psíquica e fobias (as “típicas”) sem qualquer base psíquica. Assim, essa distinção se ligava à separação entre o que seria posteriormente conhecido como psiconeuroses e “neuroses atuais” (ver adiante, ver em [1]). Nesses primeiros artigos, entretanto, a distinção não era consistentemente traçada. Dessa forma, no presente artigo, ela parece ser feita não entre dois grupos diferentes de fobias (como no texto mais antigo), mas entre, de um lado, as “obsessões” (de base psíquica) e, de outro, as “fobias” (sem base psíquica) sendo estas últimas declaradas “parte da neurose de angústia” (ver em [1], [2], [3] e [4]). Aqui, entretanto, o quadro se confunde pela divisão adicional das fobias em dois grupos, de acordo com a natureza de seus objetos (ver em [1]), e também pela discriminação (como no primeiro artigo) de uma outra classe de fobias “que poderiam se chamadas de traumáticas” e que estão “ligadas aos sintomas da histeria” (ver em [1]). Além disso, no artigo sobre neurose de angústia, a principal distinção não se referia às obsessões e fobias, como aqui, porém, mais uma vez, à distinção entre as fobias pertencentes à neurose obsessiva e as pertencentes à neurose de angústia (ver em [1] e [2]), se bem que, ainda uma vez, a distinção se estabelecesse entre a presença e a ausência de uma base psíquica. Nesses artigos, portanto, permaneceram certos vínculos indeterminados entre as fobias, a histeria, as obsessões e a neurose de angústia.

Com exceção de pouquíssimas alusões aqui e ali, o tema das fobias parece não ter sido discutido por Freud, após o presente grupo de artigos, durante quase quinze anos. Então, no caso clínico do “Pequeno Hans” (1909b), deu-se o primeiro passo em direção ao esclarecimento desses pontos obscuros com a introdução de uma nova entidade clínica - a “histeria de angústia” (Edição Standard Brasileira, Vol. X, ver em [1], [2] e [3]). Naquele texto Freud observou que as fobias “devem ser consideradas apenas como síndromes que podem fazer parte de várias neuroses, e não precisamos classificá-las como um processo patológico independente”; e propôs então o nome “histeria de angústia” para um tipo específico de fobia cujo mecanismo se assemelhava ao da histeria. Foi nesse caso clínico e no caso posterior do “Homem dos Lobos” (1918b |1914|) que Freud forneceu sua mais completa descrição clínica das fobias - ocorrendo ambas, naturalmente, em crianças. Um pouco mais tarde, em seus artigos metapsicológicos sobre “O Recalcamento” e “O Inconsciente” (1915d e e), ele entrou numa discussão detalhada da metapsicologia do mecanismo que produz as fobias, quer relacionadas à histeria ou à neurose obsessiva (Edição Standard Brasileira, Vol. XIV, ver em [1], [2], [3], [4] e [1], [2], [3], [4], [5], IMAGO Editora, 1974). Restou, porém, o problema das fobias “típicas” da neurose de angústia, que remonta ao primeiro do presente conjunto de artigos. Aqui, como vimos, toda a questão das “neuroses atuais” estava envolvida; e esta só seria inteiramente elucidada ainda mais tarde, em Inibição, Sintoma e Angústia (1926d), cujo núcleo é um reexame das fobias do “Pequeno Hans” e do “Homem dos Lobos”.

 

SOBRE OS FUNDAMENTOS PARA DESTACAR DA NEURASTENIA UMA SÍNDROME ESPECÍFICA DENOMINADA NEUROSE DE ANGÚSTIA (1895 |1894|)

 

NOTA DO EDITOR INGLÊS

 

ÜBER DIE BERECHTIGUNG, VON DER NEURASTHENIE EINEN BESTIMMTEN SYMPTOMENKOMPLEX ALS “ANGSTNEUROSE” ABZUTRENNEN

 

(a) EDIÇÕES ALEMÃS:

1895 Neurol. Zbl., 14 (2), 50-66. (15 de janeiro.)

1906 S.K.S.N., 1, 60-85. (1911, 2ª ed.; 1920, 3ª ed.; 1922, 4ª ed.)

1925 G.S., l, 306-33.

1952 G.W., l, 315-42.

 

(b) TRADUÇÕES INGLESAS:

“On the Right to Separate from Neurasthenia a Definite Symptom-Complex as ‘Anxiety Neurosis’"

1909 S.P.H., 133-54. (Trad. de A.A. Brill.) (1912, 2ª ed.; 1920.; 3ª ed.)

“The Justification for Detaching from Neurasthenia a Particular Symptom-Complex as ‘Anxiety Neurosis’"

1924 C.P., l, 76-106. (Trad. de J. Rickman.)

 

Incluído (Nº XXXII) na coletânea de sinopses dos primeiros trabalhos de Freud, elaborada por ele mesmo (1897b). A presente tradução, com um novo título, baseia-se na de 1924.

Pode-se considerar este artigo como o primeiro trecho de uma pista que percorreu, com mais de uma bifurcação e mais de um retorno acentuado, a totalidade dos escritos de Freud. Entretanto, como se verifica pela lista de trabalhos sobre a angústia impressa como apêndice a Inibição, Sintoma e Angústia (1926d) (Edição Standard Brasileira, Vol. XX, ver em [1], IMAGO Editora, 1976), este não é, estritamente falando, o início da pista. Ele foi precedido de várias partidas exploratórias em forma de rascunhos submetidos por Freud a Wilhelm Fliess (particularmente os Rascunhos A, B e E). Assim, na Seção II do Rascunho B, datado de 8 de fevereiro de 1893 (Freud, 1950a), já estão resumidos alguns dos principais pontos do presente artigo. Em especial, insiste-se na necessidade de “destacar” da neurastenia a neurose de angústia, e muitos dos sintomas são enumerados exatamente como aqui. Por outro lado, esse Rascunho não contém nenhuma indicação da etiologia mais profunda da neurose tal como proposta aqui - o acúmulo de excitação sexual que não consegue encontrar descarga no campo psíquico. Para isso temos que recorrer ao Rascunho E, onde a teoria é formulada na íntegra, talvez até com mais clareza do que adiante. Infelizmente, o Rascunho E não está datado. Os editores da correspondência com Fliess atribuem-lhe, por razões não muito convincentes, a data de junho de l894; mas, seja como for, é evidente que ele deve ter sido escrito antes, e não muito antes, deste artigo. Alguns dos pontos obscuros aqui encontrados são esclarecidos pelo Rascunho E, assim como pelo Rascunho G (também sem data, mas com certeza contemporâneo do presente trabalho), que inclui um notável diagrama retratando as idéias de Freud sobre o mecanismo do processo sexual.

É também recomendável ter em mente, ao ler esses primeiros artigos, que Freud, nessa época, estava profundamente empenhado numa tentativa de formular os dados da psicologia em termos neurológicos - tentativa que culminou em seu abortado “Projeto para uma Psicologia Científica” (1950a, escrito no outono de 1895, poucos meses após esses Rascunhos, mas, como eles, só postumamente publicado) e que, daí por diante, soçobrou inteiramente. (Cf. em [1].) Freud ainda não adotara por completo a hipótese da existência de processos mentais inconscientes (como se observa numa frase de seu artigo anterior sobre “As Neuropsicoses de Defesa”, ver em [1]). Assim, neste artigo, ele faz uma distinção entre “excitação sexual somática”, de um lado, e “libido sexual ou desejo psíquico”, de outro (ver em [1]). A “libido” é encarada como algo exclusivamente “psíquico”, embora, mais uma vez, ainda não pareça ter havido uma distinção clara entre “psíquico” e “consciente”. É interessante notar que na sinopse deste artigo, escrita pelo próprio Freud apenas dois anos depois (1897b), ver em [1] e [2], adiante, ele evidentemente já aceita a concepção de libido como algo potencialmente inconsciente, e escreve: “A angústia neurótica é a libido sexual transformada.”

Seja quais forem os termos em que expressou essa teoria, porém, Freud a sustentou durante quase toda a vida, ainda que com várias complicações restritivas. Quanto à longa série de opiniões mutáveis que estavam por vir, um apanhado será feito na Introdução do Editor inglês (no Vol. XX da Edição Standard) ao último dos principais trabalhos de Freud sobre o assunto: Inibição, Sintoma e Angústia (1926d). Nesse intervalo, porém, Freud se viu frente a uma controvérsia imediata com um colega cético - e psiquiatra Loewenfeld, de Munique -, da qual resultou o estudo que se segue a este.

 

SOBRE OS FUNDAMENTOS PARA DESTACAR DA NEURASTENIA UMA SÍNDROME ESPECIFICA DENOMINADA NEUROSE DE ANGUSTIA

 

|INTRODUÇÃO|

 

É difícil fazer qualquer afirmação de validade geral sobre a neurastenia, na medida em que usemos esse nome para abranger todas as coisas que Beard incluiu nele. Em minha opinião, a neuropatologia só terá a ganhar se fizermos uma tentativa de separar da neurastenia propriamente dita todos os distúrbios neuróticos em que, por um lado, os sintomas estão mais firmemente ligados entre si do que aos sintomas típicos da neurastenia (tais como pressão intracraniana, irritação espinhal e dispepsia com flatulência e constipação), e que, por outro lado, exibem diferenças essenciais, em sua etiologia e mecanismo, em relação à neurose neurastênica típica. Se aceitarmos esse plano, logo obteremos um quadro bastante uniforme da neurastenia. Estaremos então em condições de diferenciar da neurastenia genuína, mais nitidamente do que tem sido possível até aqui, várias pseudoneurastenias (tais como o quadro clínico da neurose reflexa nasal, organicamente determinada, os distúrbios nervosos das caquexias e arteriosclerose, os estágios preliminares de paralisia geral dos loucos, e algumas psicoses). Além disso, será possível - como propôs Moebius - eliminar alguns dos status nervosi |estados nervosos| de indivíduos hereditariamente degenerados; e também descobriremos razões pelas quais várias neuroses hoje descritas como neurastenia - em particular, as neuroses de natureza periódica ou intermitente - devem, antes, ser incluídas na melancolia. Contudo, a mais notável de todas as mudanças será introduzida se decidirmos destacar da neurastenia a síndrome que proponho descrever nas próximas páginas e que satisfaz de modo especialmente completo as condições estabelecidas acima. Clinicamente, os sintomas dessa síndrome relacionam-se de modo muito mais estreito entre si do que com os da neurastenia genuína (isto é, freqüentemente aparecem juntos e substituem uns aos outros no curso da enfermidade); e tanto a etiologia como o mecanismo dessa neurose são fundamentalmente diferentes da etiologia e do mecanismo da neurastenia genuína, tal como esta será caracterizada depois de efetuada a referida separação.

Chamo essa síndrome de “neurose de angústia” porque todos os seus componentes podem ser agrupados em torno do sintoma principal da angústia, pois cada um deles mantém com esta última uma relação definida. Eu acreditava que essa concepção dos sintomas da neurose de angústia se tivesse originado em mim, até que me chegou às mãos um interessante artigo de E. Hecker (1893) onde encontrei a mesma interpretação, exposta com toda a clareza e completude que se poderia desejar. Entretanto, embora Hecker reconheça certos sintomas como equivalentes ou como rudimentos de um ataque de angústia, não os separa do campo da neurastenia como me proponho fazer. Mas isso se deve, evidentemente, ao fato de ele não ter levado em consideração a diferença entre os determinantes etiológicos nos dois casos. Quando esta diferença é reconhecida, não há mais necessidade de designar os sintomas de angústia pelo mesmo nome dos legítimos sintomas neurastênicos, pois o objetivo principal de postular o que de outra maneira seria um nome arbitrário é facilitar a enunciação de asserções gerais.

 

I - A SINTOMATOLOGIA CLÍNICA DA NEUROSE DE ANGÚSTIA

 

O que denomino “neurose de angústia” pode ser observado numa forma rudimentar ou totalmente desenvolvida, tanto isoladamente como combinada com outras neuroses. Naturalmente, são os casos até certo ponto completos e ao mesmo tempo isolados que sustentam de maneira especial a impressão de que a neurose de angústia é uma entidade clínica. Em outros casos em que a síndrome corresponde a uma “neurose mista”, defrontamo-nos com a tarefa de distinguir e separar os sintomas que não pertencem à neurastenia ou à histeria etc., mas à neurose de angústia.

O quadro clínico da neurose de angústia abrange os seguintes sintomas:

(1)Irritabilidade geral. Este é um sintoma nervoso comum e, como tal, pertence a outros status nervosi. Menciono-o aqui porque aparece invariavelmente na neurose de angústia e é teoricamente importante. A irritabilidade aumentada aponta sempre para um acúmulo de excitação ou uma incapacidade de tolerar tal acúmulo - isto é, para um acúmulo absoluto ou relativo de excitação. Uma das manifestações dessa irritabilidade aumentada me parece merecer menção especial; refiro-me à hiperestesia auditiva, a uma hipersensibilidade ao ruído - um sintoma indubitavelmente explicável pela íntima relação inata entre as impressões auditivas e o pavor. A hiperestesia auditiva revela-se freqüentemente como sendo causa de insônia, da qual mais de uma forma pertence à neurose de angústia.

(2)Expectativa angustiada. Não conheço melhor maneira de descrever o que tenho em mente senão por esse nome e acrescentando alguns exemplos. Por exemplo, uma mulher que sofre de expectativa angustiada pensará numa pneumonia fatal a cada vez que seu marido tossir quando estiver resfriado, e com os olhos da imaginação assistirá à passagem do funeral dele; se, dirigindo-se a sua casa, observar duas pessoas paradas à porta da frente, não poderá evitar a idéia de que um de seus filhos caiu da janela; quando ouve baterem à porta, imagina que sejam notícias da morte de alguém, e assim por diante - sendo que, em todas essas ocasiões, não há nenhum fundamento específico para exagerar uma mera possibilidade.

Naturalmente, a expectativa angustiada se esmaece e se transforma imperceptivelmente na angústia normal, compreendendo tudo o que se costuma qualificar de ansiedade - ou tendência a adotar uma visão pessimista das coisas; no entanto, em qualquer oportunidade ela ultrapassa a angústia plausível dessa natureza e é freqüentemente reconhecida pelo próprio paciente como uma espécie de compulsão. Para uma das formas da expectativa angustiada - a que se relaciona com a saúde do próprio sujeito - podemos reservar o velho termo hipocondria. O auge alcançado pela hipocondria nem sempre é paralelo à expectativa angustiada geral; requer como precondição a existência de parestesias e sensações corporais aflitivas. Assim, a hipocondria é a forma preferida pelos neurastênicos genuínos quando estes caem presa da neurose de angústia, como ocorre com freqüência.

Outra expressão da expectativa angustiada é sem dúvida encontrada na inclinação para a angústia moral, o escrúpulo e o pedantismo - uma inclinação muitas vezes presente em pessoas com uma dose de sensibilidade moral maior que de costume e que, da mesma forma, varia desde o normal até uma forma exagerada de mania de duvidar.

A expectativa angustiada é o sintoma nuclear da neurose. Também revela abertamente uma parte da teoria da neurose. Talvez possamos dizer que existe nesses casos um quantum de angústia em estado de livre flutuação, o qual, quando há uma expectativa, controla a escolha das representações e está sempre pronto a se ligar a qualquer conteúdo representativo adequado.

(3)Mas a ansiedade - que, embora fique latente a maior parte do tempo no que concerne à consciência, está constantemente à espreita no fundo - tem outros meios de se expressar, além desse. Pode irromper subitamente na consciência sem ter sido despertada por uma seqüência de representações, provocando assim um ataque de angústia. Esse tipo de ataque de angústia pode consistir apenas no sentimento de angústia, sem nenhuma representação associada, ou ser acompanhado da interpretação que estiver mais à mão, tal como representações de extinção da vida, ou de um acesso, ou de uma ameaça de loucura; ou então algum tipo de parestesia (similar à aura histérica pode combinar-se com o sentimento de angústia, ou, finalmente, o sentimento de angústia pode estar ligado ao distúrbio de uma ou mais funções corporais - tais como a respiração, a atividade cardíaca, a inervação vasomotora, ou a atividade glandular. Dessa combinação o paciente seleciona ora um fator particular, ora outro. Queixa-se de “espasmos do coração”, “dificuldade de respirar”, “inundações de suor”, “fome devoradora”, e coisas semelhantes; e, em sua descrição, o sentimento de angústia freqüentemente recua para o segundo plano ou é mencionado de modo bastante irreconhecível, como um “sentir-se mal”, “não estar à vontade”, e assim por diante.

(4)Ora, um fato interessante e de importância desde a perspectiva do diagnóstico é que a proporção em que esses elementos se misturam num ataque de angústia varia em grau notável, e que quase todos os sintomas concomitantes podem constituir o ataque isoladamente, assim como o pode a própria angústia. Há, por conseguinte, ataques de angústia rudimentares e equivalentes de ataques de angústia, todos provavelmente com a mesma significação, exibindo uma grande riqueza de formas até aqui pouco estudada. Um exame mais detalhado desses estados larvares de angústia (como Hecker |1893| os chama) e de sua diferenciação diagnóstica dos outros ataques logo se tornará uma tarefa necessária para os neuropatologistas.

Incluo aqui uma lista que inclui apenas as formas de ataques de angústia que me são conhecidas:

(a)Ataques de angústia acompanhados por distúrbios da atividade cardíaca, tais como palpitação, seja com arritmia transitória ou com taquicardia de duração mais longa, que pode terminar num grave enfraquecimento do coração e que nem sempre é facilmente diferenciável da afecção cardíaca orgânica; e ainda a pseudo-angina do peito - um assunto delicado em termos de diagnóstico!

(b)Ataques de angústia acompanhados por distúrbios respiratórios, várias formas de dispnéia nervosa, acessos semelhando asma e similares. Gostaria de enfatizar que mesmo esses ataques nem sempre vêm acompanhados de angústia reconhecível.

(c)Acessos de suor, geralmente à noite.

(d)Acessos de tremores e calafrios, muito facilmente confundidos com ataques histéricos.

(e)Acessos de fome devoradora, freqüentemente acompanhados de vertigem.

(f)Diarréia sobrevindo em acessos.

(g)Acessos de vertigem locomotora.

(h)Acessos do que se conhece como congestões, incluindo praticamente tudo o que tem sido denominado de neurastenia vasomotora.

(i)Acessos de parestesias. (Estes, porém, raramente ocorrem sem angústia ou uma sensação semelhante de mal-estar.)

(5)O acordar em pânico à noite (o pavor nocturnus dos adultos), que em geral se combina com angústia, dispnéia, suores etc., muitas vezes nada mais é do que uma variante do ataque de angústia. Esse distúrbio é determinante de uma segunda forma de insônia dentro do campo da neurose de angústia. |Cf. em [1].| Além disso, estou convencido de que o pavor nocturnus das crianças também exibe uma forma que pertence à neurose de angústia. O traço de histeria existente nele, a ligação da angústia à reprodução de uma experiência apropriada ou de um sonho, dá ao pavor nocturnus infantil a aparência de alguma coisa especial. O pavor, porém, também pode emergir em forma pura, sem qualquer sonho ou alucinação repetitiva.

(6)A “vertigem” ocupa um lugar preeminente no grupo de sintomas da neurose de angústia. Em sua forma mais branda, sua melhor descrição é a de “tonteira”; em suas manifestações mais intensas, como os “acessos de vertigens” (com ou sem angústia), deve ser classificada entre os sintomas mais graves da neurose. A vertigem da neurose de angústia não é rotatória nem afeta especialmente certos planos ou direções, como a vertigem de Ménière. Pertence à classe da vertigem locomotora ou coordenatória, tal como a vertigem da paralisia oculomotora. Consiste num estado específico de mal-estar, acompanhado por sensações de que o solo oscila, as pernas cedem e é impossível manter-se em pé por mais tempo; enquanto isso, as pernas pesam como chumbo e tremem, ou os joelhos se dobram. Essa vertigem nunca leva a quedas. Por outro lado, gostaria de esclarecer que esse tipo de acesso de vertigem pode ser substituído por um desmaio profundo. Outros estados da natureza do desmaio que ocorre na neurose de angústia parecem depender do colapso cardíaco.

Os acessos de vertigem não raro são acompanhados pelo pior tipo de angústia, freqüentemente combinada com distúrbios cardíacos e respiratórios. De acordo com minhas observações, as vertigens produzidas pela altitude, pelas montanhas e precipícios participam com freqüência da neurose de angústia. Além disso, não estou certo se não seria também correto reconhecer, ao lado destas, uma vertigo a stomacho laeso |de origem gástrica|.

(7)Com base, por um lado, na ansiedade crônica (expectativa angustiada) e, por outro, uma tendência a ataques de angústia acompanhados de vertigem, dois grupos de fobias típicas se desenvolvem, relacionando-se o primeiro com riscos fisiológicos gerais e o segundo com a locomoção. Pertencem ao primeiro grupo o medo de cobras, tempestades, escuridão, vermes, e assim por diante, assim como o típico escrúpulo moral excessivo e algumas formas da mania de duvidar. Aqui, a angústia disponível é empregada simplesmente para reforçar aversões que estão instintivamente implantadas em todas as pessoas. Em geral, porém, uma fobia que atue de modo obsessivo só é formada se se acrescentar a ela a recordação de uma experiência em que a angústia tenha podido manifestar-se - como, por exemplo, depois de o paciente ter vivenciado uma tempestade ao desabrigo. É um erro tentar explicar tais casos como simples persistência de impressões fortes; o que torna essas experiências importantes, e sua lembrança duradoura, é, afinal, apenas a angústia que pôde emergir no momento |da experiência| e que, da mesma maneira, pode emergir agora. Em outras palavras, tais impressões só permanecem poderosas em pessoas com “expectativa angustiada”.

O outro grupo inclui a agorafobia, com todas as suas formas acessórias, todas caracterizadas por sua relação com a locomoção. Muitas vezes constatamos que essa fobia se baseia num acesso de vertigem que a precedeu; não penso, porém, que se possa postular tal acesso na totalidade dos casos. Ocasionalmente, constatamos que, após um primeiro acesso de vertigem sem angústia,a locomoção ainda continua possível sem restrição, embora, daí por diante, seja constantemente acompanhada de uma sensação de vertigem; mas vemos que, em certas condições - como estar sozinho ou numa rua estreita -, a locomoção fica impossibilitada quando a angústia vem somar-se ao acesso de vertigem.

A relação dessas fobias com as fobias da neurose obsessiva, cujo mecanismo esclareci num artigo anterior deste periódico, é da espécie que se segue. O que elas têm em comum é que, em ambas, uma representação torna-se obsessiva em decorrência de estar ligada a um afeto disponível. O mecanismo de transposição do afeto, portanto, é válido em ambos os tipos de fobia. Contudo, nas fobias da neurose de angústia (1) esse afeto tem sempre a mesma tonalidade, que é a da angústia; e (2) o afeto não se origina numa representação recalcada, revelando-se não adicionalmente redutível pela análise psicológica, nem equacionável pela psicoterapia. Portanto, o mecanismo da substituição não é válido para as fobias da neurose de angústia.

Ambas as espécies de fobias (e também as obsessões) freqüentemente aparecem lado a lado, embora as fobias atípicas, baseadas nas obsessões, não precisem brotar, necessariamente, do solo da neurose de angústia. Um mecanismo muito freqüente e aparentemente complicado ocorre quando, no que era originalmente uma simples fobia pertencente a uma neurose de angústia, o conteúdo dessa fobia é substituído por outra representação de modo que o substituto é subseqüente à fobia. Geralmente, o que mais se emprega como substituições são as “medidas protetoras” originalmente usadas para combater a fobia. Por exemplo, a “mania especulativa” é suscitada a partir dos esforços do sujeito para provar que ele não é louco, como lhe afirma sua fobia hipocondríaca; as hesitações e a dúvida, e mais ainda as repetições da folie du doute |mania de duvidar| emergem de uma dúvida justificável quanto à certeza do curso do próprio pensamento, já que se está cônscio do persistente distúrbio deste por representações de tipo obsessivo, e assim por diante. Portanto, podemos afirmar que também muitas das síndromes da neurose obsessiva, como a folie du doute e outras semelhantes, devem ser consideradas, clínica, se não conceitualmente, como pertencentes à neurose de angústia.

(8)As atividades digestivas sofrem apenas alguns distúrbios na neurose de angústia; mas estes são característicos. Sensações como uma inclinação ao vômito e náusea não são raras, e o sintoma da fome devoradora pode, isoladamente ou em conjunto com outros sintomas (como as congestões), suscitar um ataque de angústia rudimentar. Como mudança crônica, análoga à expectativa angustiada, encontramos uma disposição à diarréia, o que tem ocasionado os mais estranhos erros de diagnóstico. Se não me engano, foi para essa diarréia que Moebius (1894) chamou a atenção recentemente num pequeno artigo. Suspeito ainda que a diarréia reflexa de Peyer, que ele deriva de distúrbios da próstata (Peyer, 1893), nada mais é que essa diarréia da neurose de angústia. A ilusão de uma relação reflexa é criada porque os mesmos sintomas que atuam na etiologia da neurose de angústia atuam na deflagração de tais afecções da próstata e distúrbios semelhantes.

O comportamento do aparelho gastrintestinal na neurose de angústia apresenta um agudo contraste com a influência da neurastenia nessas funções. Os casos mistos mostram com freqüência a familiar “alternância entre diarréia e constipação”. Análoga a essa diarréia é a necessidade de urinar que ocorre na neurose de angústia.

(9)As parestesias que podem acompanhar os acessos de vertigem ou angústia são interessantes porque, tal como as sensações da aura histérica, associam-se numa seqüência definida, embora eu considere que essas associações, contrariamente às histéricas, são atípicas e mutáveis. Outra similaridade com a histeria é fornecida pelo fato de que, na neurose de angústia, ocorre uma espécie de conversão para sensações corporais que pode facilmente passar despercebida - por exemplo, para os músculos reumáticos. Grande número do que se conhece como indivíduos reumáticos - que, além disso, se pode demonstrar serem reumáticos - sofre, na realidade, de neurose de angústia. Ao lado desse aumento da sensibilidade à dor, tenho também observado em muitos casos de neurose de angústia uma tendência às alucinações; e estas não podem ser interpretadas como histéricas.

(10)Vários dos sintomas que mencionei, que acompanham ou substituem um ataque de angústia, aparecem também sob forma crônica. Nesse caso, são ainda menos fáceis de reconhecer, pois a sensação ansiosa que os acompanha é menos clara que num ataque de angústia. Isso se aplica particularmente à diarréia, à vertigem e às parestesias. Assim como um acesso de vertigens pode ser substituído por um desmaio, a vertigem crônica pode ser substituídapor uma sensação permanente de grande fraqueza, lassidão e assim por diante.

 

II - INCIDÊNCIA E ETIOLOGIA DA NEUROSE DE ANGÚSTIA

 

Em alguns casos de neurose de angústia não se descobre absolutamente nenhuma etiologia. Vale notar que, em tais casos, raramente há dificuldade em se estabelecerem provas de uma grave tara hereditária.

Mas quando há fundamentos para se considerar a neurose como adquirida, uma cuidadosa investigação orientada nesse sentido revela que um conjunto de perturbações e influências da vida sexual são os fatores etiológicos atuantes. Estes, à primeira vista, parecem de natureza variada, mas logo revelam o caráter comum que explica por que têm um efeito similar no sistema nervoso. Além disso, fazem-se presentes, isoladamente ou em conjunto com outras perturbações de tipo banal (“stock”) às quais podemos atribuir um efeito de contribuição. Essa etiologia sexual da neurose de angústia pode ser demonstrada com tão esmagadora freqüência que me arrisco, no âmbito deste pequeno artigo, a desconsiderar os casos em que a etiologia é duvidosa ou diferente.

A fim de que as condições etiológicas sob as quais ocorre a neurose de angústia possam ser apresentadas com maior precisão, será recomendável considerarmos separadamente homens e mulheres. Nas mulheres - deixando de lado, por ora, sua predisposição inata - a neurose de angústia ocorre nos seguintes casos:

 (a) Como angústia virginal ou angústia nas adolescentes. Inúmeras observações inequívocas me têm demonstrado que a neurose de angústia pode ser produzida, nas meninas que se aproximam da maturidade, por seu primeiro contato com o problema do sexo, por qualquer revelação mais ou menos repentina de algo até então escondido - por exemplo, pela visão do ato sexual ou por conversas ou leituras sobre esse assunto. Tal neurose de angústia combina-se com a histeria de maneira quase típica.

(b) Como angústia da recém-casada. As jovens casadas que permaneceram anestésicas durante suas primeiras coabitações não raro adoecem de neurose de angústia, que volta a desaparecer tão logo a anestesia cede lugar à sensibilidade normal. Já que a maioria das jovens esposas continua saudável quanto há uma anestesia inicial desse tipo, deduz-se daí que, a fim de que esse gênero de angústia possa emergir, outros determinantes são requeridos, e eu os mencionarei mais adiante.

(c) Como angústia nas mulheres cujos maridos sofrem de ejaculação precoce ou de potência marcantemente enfraquecida; e (d) cujos maridos praticam o coito interrompido ou reservatus. Esses casos |(c) e (i)| integram uma mesma classe, pois, analisando um grande número de exemplos, é fácil nos convencermos de que eles dependem simplesmente de a mulher obter ou não satisfação no coito. Se não, deparamos com a condição da gênese de uma neurose de angústia. Por outro lado, ela escapa da neurose quando o marido que sofre de ejaculação precoce consegue repetir o coito imediatamente com maior sucesso. O coitus reservatus através do condom não é nocivo à mulher, desde que esta seja rapidamente excitável e o marido, muito potente; de outro modo, essa espécie de intercurso preventivo não é menos nociva que as demais. O coito interrompido é quase sempre prejudicial. Para a mulher, porém, só o é quando o marido o pratica descuidadamente - isto é, quando interrompe a relação tão logo ele se aproxima da emissão, sem se importar com o curso da excitação nela. Quando, por outro lado, o marido aguarda a satisfação da mulher, o coito corresponde a uma relação normal para ela, mas ele padecerá de neurose de angústia. Coligi e analisei um grande número de observações em que estas asserções se fundamentam.

(e) A neurose de angústia ocorre também como angústia em viúvas e mulheres voluntariamente abstinentes, não raro numa combinação típica com representações obsessivas; e

(f) Como angústia no climatério, durante o último grande aumento da necessidade sexual.

Os casos (c), (d) e (e) abarcam as condições em que a neurose de angústia no sexo feminino surge de maneira mais freqüente e rápida, independentemente da predisposição hereditária. É com referência a esses casos curáveis e adquiridos - que tentarei mostrar que as perturbações sexuais neles descobertas são, na realidade, o fator etiológico da neurose.

Antes de fazê-lo, entretanto, discutirei os determinantes sexuais da neurose de angústia nos homens. Proponho distinguir os seguintes grupos todos os quais têm analogias nas mulheres:

(a) Angústia em homens voluntariamente abstinentes, freqüentemente combinada com sintomas de defesa (idéias obsessivas, histeria). Os motivos responsáveis pela abstinência voluntária implicam que muitas pessoas com predisposição hereditária, excêntricas etc., incluem-se nessa categoria.

(b) Angústia em homens em estado de excitação não consumada (por exemplo, durante o período do noivado) ou naqueles que (por medo das conseqüências da relação sexual) se contentam em tocar ou contemplar as mulheres. Esse grupo de determinantes - os quais, aliás, podem aplicar-se sem alterações ao outro sexo (durante o noivado ou em situações onde se evita a relação sexual) - fornece os casos mais puros da neurose.

(c) Angústia em homens que praticam o coito interrompido. Como se disse, este é nocivo à mulher quando praticado sem respeito a sua satisfação; mas é nocivo ao homem quando este, para proporcionar-lhe satisfação, dirige voluntariamente o coito e adia a emissão. Desse modo, torna-se inteligível por que, quando um casal pratica o coito interrompido, em geral apenas um dos parceiros adoece. Nos homens, além disso, é raro o coito interrompido produzir uma neurose de angústia pura; em geral, produz uma mistura de neurose de angústia e neurastenia.

(d) Angústia em homens senescentes. Há homens que têm um climatério, como as mulheres, e que desenvolvem uma neurose de angústia nessa ocasião de potência decrescente e crescente libido.

Finalmente, devo acrescentar dois outros casos que se aplicam a ambos os sexos:

(ƒÑ)As pessoas que, em decorrência de praticarem a masturbação, tornaram-se neurastênicas, caem vítimas da neurose de angústia tão logo abandonam sua forma de satisfação sexual. Tais pessoas tornaram-se particularmente incapazes de tolerar a abstinência.

Devo assinalar aqui, como um dado importante para a compreensão da neurose de angústia, que qualquer desenvolvimento pronunciado dessa afecção só ocorre entre os homens que continuaram potentes ou entre as mulheres que não são anestésicas. Entre os neuróticos cuja potência já foi severamente comprometida pela masturbação, a neurose de angústia resultante da abstinência é muito leve e geralmente restrita à hipocondria e à vertigem crônica branda. A maioria das mulheres, de fato, deve ser considerada “potente”; a mulher realmente impotente - isto é, realmente anestésica - é similarmente pouco suscetível à neurose de angústia e tolera notavelmente bem as perturbações que descrevi.

Neste artigo, ainda não me agradaria discutir até que ponto, além disso, é justificável postularmos qualquer relação constante entre determinados fatores etiológicos e determinados sintomas no complexo da neurose de angústia.

(ƒÒ) A última das condições etiológicas que tenho a apresentar parece, à primeira vista, não ser de natureza sexual. A neurose de angústia também emerge - em ambos os sexos - como resultado do fator de sobrecarga de trabalho ou esforço exaustivo - como, por exemplo, após noites em claro, atendimento a pessoas doentes, ou mesmo após enfermidades graves.

A principal objeção a meu postulado de uma etiologia sexual na neurose de angústia terá, provavelmente, o seguinte cunho: as condições anormais de vida sexual do tipo que descrevi são constatadas com tão grande freqüência que estamos fadados a encontrá-las sempre que procurarmos por elas. Sua presença nos casos de neurose de angústia que enumerei não prova, portanto, que nelas tenhamos descoberto a etiologia da neurose. Ademais, o número de pessoas que praticam o coito interrompido e coisas semelhantes é incomparavelmente maior que o número das pessoas afligidas pela neurose de angústia, e a grande maioria das primeiras tolera muito bem essa perturbação.

A isso devo responder, em primeiro lugar, que, considerando a freqüência admitidamente enorme das neuroses, sobretudo da neurose de angústia, por certo não seria correto esperar encontrar para elas um fator etiológico de ocorrência rara; em segundo lugar, que um postulado de patologia é efetivamente atendido quando, numa investigação etiológica, é possível demonstrar que a presença de um fator etiológico é mais freqüente do que seus efeitos, já que, para que estes ocorram, talvez seja preciso que existam outras condições adicionais (tais como predisposição, soma de elementos etiológicos específicos, ou reforço por meio de outros fatores banais); e ainda, que uma dissecção detalhada de casos adequados de neurose de angústia comprova sem sombra de dúvida a importância do fator sexual. Aqui, entretanto, vou restringir-me ao fator etiológico isolado do coito interrompido, ressaltando certas observações que o confirmam.

(1)Quando uma neurose de angústia ainda não se estabeleceu numa jovem casada, aparecendo apenas em acessos isolados e logo desaparecendo espontaneamente, é possível demonstrar que cada um desses acessos da neurose é atribuível a um coito de satisfação deficiente. Dois dias após essa experiência - ou, no caso de pessoas de pouca resistência, no dia seguinte -, o ataque de angústia ou de vertigem aparece regularmente, trazendo em sua esteira outros sintomas da neurose. Tudo isso torna a desaparecer, desde que a relação conjugal seja relativamente rara. Um eventual afastamento do marido de casa, ou uma temporada nas montanhas que exija uma separação do casal têm bom efeito. O tratamento ginecológico a que se costuma recorrer é benéfico porque, enquanto dura, a relação sexual é suspensa. Curiosamente, o sucesso do tratamento local é apenas transitório: a neurose se instala de novo na montanha, tão logo o marido inicia também suas férias, e assim por diante. Quando, na qualidade de médico que compreenda essa etiologia, providencia-se a substituição do coito interrompido por uma relação sexual normal - num caso em que a neurose ainda não se tenha estabelecido - obtém-se uma prova terapêutica da afirmação que fiz. A angústia menor é eliminada e - a menos que haja uma nova causa do mesmo tipo - não retorna.

(2)Nas anamneses de muitos casos de neurose de angústia descobrimos, tanto em homens como em mulheres, uma notável oscilação na intensidade de suas manifestações e, a rigor, nas alternâncias de todo esse estado. Um ano, dirão eles, foi quase inteiramente bom, enquanto o ano seguinte foi terrível; numa dada ocasião a melhoria pareceu dever-se a um tratamento específico, que, no entanto, revelou-se inútil no ataque seguinte; e assim por diante. Se indagarmos o número e a seqüência dos filhos e compararmos esse registro do casamento com a história peculiar da neurose, chegaremos à simples conclusão de que os períodos de melhora ou de boa saúde coincidiram com as gestações da esposa, durante as quais, é claro, não havia mais necessidade do coito com medidas preventivas. O marido beneficiou-se do tratamento depois do qual soube que sua mulher estava grávida - quer o tenha recebido do Pastor Kneipp ou de um estabelecimento hidropático.

(3)A anamnese dos pacientes freqüentemente revela que os sintomas da neurose de angústia, em algum período definido, sucederam-se aos sintomas de alguma outra neurose - talvez da neurastenia - e assumiram seu lugar. Nesses casos, pode-se mostrar com grande regularidade que, pouco antes dessa alteração do quadro, ocorrera uma mudança correspondente na forma do fator sexual nocivo.

As observações desse tipo, que podem ser multiplicadas à vontade, decididamente impõem ao médico uma etiologia sexual para certa categoria de casos. E outros casos, que de outra forma permaneceriam ininteligíveis, podem ao menos ser compreendidos e classificados sem incongruência, empregando-se tal etiologia como chave. Tenho em mente os inúmeros casos em que, de fato, acha-se presente tudo o que encontramos na categoria anterior - de um lado, as manifestações da neurose de angústia e, de outro, o fator específico do coito interrompido -, mas em que algo mais também se introduz: a saber, um longo intervalo entre a etiologia presumida e a eclosão de seus efeitos, e talvez também fatores etiológicos que não sejam de natureza sexual. Tome-se, por exemplo, um homem que, ao receber a notícia da morte do pai, tem um ataque cardíaco e, a partir desse momento, cai vítima de uma neurose de angústia. O caso não é compreensível, pois, até então, o homem não era neurótico. A morte do pai, que tinha idade bastante avançada, não ocorreu em circunstâncias nada especiais, e havemos de admitir que o falecimento normal e esperado de um pai idoso não é uma daquelas experiências que costumam fazer com que um adulto saudável adoeça. Talvez a análise etiológica se torne mais clara se eu acrescentar que esse homem vinha praticando o coito interrompido há onze anos, com a devida consideração pela satisfação de sua mulher. Os sintomas clínicos são, no mínimo, exatamente iguais aos que aparecem em outras pessoas logo após uma breve perturbação sexual da mesma espécie, e sem a interpolação de qualquer outro trauma. Uma avaliação similar deve ser feita do caso de uma mulher cuja neurose de angústia eclodiu após a perda de um filho, ou do caso do estudante cujos estudos preparatórios para o exame final foram perturbados por uma neurose de angústia. Penso que, também nesses casos, o efeito não é explicável pela etiologia aparente. Não se fica necessariamente “sobrecarregado” pelo estudo, e uma mãe saudável costuma reagir apenas com uma tristeza normal à perda de um filho. Acima de tudo, entretanto, eu teria esperado que o estudante, em conseqüência de sua sobrecarga de trabalho, adquirisse cefalastenia, e a mãe, em conseqüência de sua aflição, histeria. O fato de ambos terem sido dominados pela neurose de angústia leva-me a atribuir importância ao fato de a mãe ter praticado por oito anos o coito conjugal interrompido e ao fato de o estudante ter tido, durante três anos, um ardente caso amoroso com uma jovem “respeitável” cuja gravidez ele precisara evitar.

Essas considerações levam-nos à conclusão de que a perturbação sexual específica do coito interrompido, mesmo que não consiga, por sua própria conta, provocar uma neurose de angústia no sujeito, ao menos o predispõe a adquiri-la. A neurose de angústia eclode tão logo se adiciona ao efeito latente do fator específico o efeito de outra perturbação banal. Esta última pode atuar quantitativamente no sentido do fator específico, mas não pode substituí-lo qualitativamente. O fator específico permanece sempre decisivo quanto à forma tomada pela neurose. Espero poder provar essa asserção concernente à etiologia das neuroses de maneira também mais abrangente.

Além disso, estes últimos comentários contêm uma suposição que não é em si mesma improvável, no sentido de que uma perturbação sexual como o coito interrompido passa a vigorar por soma. É preciso um tempo mais ou menos longo - dependendo da disposição individual e de quaisquer outras deficiências hereditárias do sistema nervoso - para que o efeito dessa soma se torne visível. De fato, os indivíduos que aparentemente toleram sem prejuízo o coito interrompido ficam por ele predispostos aos distúrbios da neurose de angústia, seja após um trauma corriqueiro que, em condições normais, não seria suficiente para isso; do mesmo modo, por meio da soma, um alcoólatra crônico desenvolverá finalmente uma cirrose ou alguma outra doença, ou ainda, por influência de uma febre, cairá vítima de um delírio.

 

III - PRIMEIROS PASSOS EM DIREÇÃO A UMA TEORIA DA NEUROSE DE ANGÚSTIA

 

A discussão teórica que se segue arroga-se apenas o valor de uma primeira e tateante tentativa; a crítica que se faça dela não deve afetar a aceitação dos fatos que apresentamos acima. Além disso, a avaliação dessa “teoria da neurose de angústia” é ainda mais dificultada por ser ela apenas um fragmento de uma explicação mais abrangente das neuroses.

O que dissemos até aqui sobre a neurose de angústia já fornece alguns pontos de partida para obtermos um discernimento do mecanismo dessa neurose. Em primeiro lugar, havia nossa suspeita de que estávamos diante de um acúmulo de excitação |ver em [1]|; e havia ainda o fato extremamente importante de que não se podia atribuir a nenhuma origem psíquica a angústia que subjaz aos sintomas clínicos da neurose. Tal origem existiria, por exemplo, se ficasse constatado que a neurose de angústia se baseava num único ou repetido terror justificável, e que este supriria desde então a fonte da pronta disposição do sujeito para a angústia. Mas não é assim. A histeria ou uma neurose traumática podem ser adquiridas a partir de um único susto, mas nunca a neurose de angústia. Já que o coito interrompido ocupa lugar tão preeminente entre as causas da neurose de angústia, julguei, a princípio, que a fonte da angústia contínua pudesse residir no medo, reiterado a cada vez que o ato sexual é praticado, de que a técnica falhasse e daí resultasse a concepção. Contudo, descobri que esse sentimento, durante o coito interrompido, tanto no homem como na mulher, em nada influencia a gênese da neurose de angústia; que as mulheres basicamente indiferentes à conseqüência de uma possível concepção são tão suscetíveis à neurose quanto as que estremecem ante essa possibilidade; e que tudo depende simplesmente de qual dos parceiros renuncia à satisfação nessa técnica sexual.

Outro ponto de partida é fornecido pela observação, não mencionada até aqui, de que, em grandes grupos de casos, a neurose de angústia é acompanhada por um decréscimo extremamente acentuado da libido sexual, ou desejo psíquico, de modo que, quando se diz aos pacientes que suas queixas decorrem de “satisfação insuficiente”, eles respondem regularmente que isso é impossível, pois justamente agora toda a sua necessidade sexual se extinguiu. Todas essas indicações - de que estamos diante de um acúmulo de excitação; de que a angústia, provavelmente correspondente a essa excitação acumulada, é de origem somática, de modo que o que se está acumulando é uma excitação somática; e ainda, de que essa excitação somática é de natureza sexual é acompanhada por um decréscimo da participação psíquica nos processos sexuais -, todas essas indicações, dizia eu, levam-nos a esperar que o mecanismo da neurose de angústia deva ser buscado numa deflexão da excitação sexual somática da esfera psíquica e no conseqüente emprego anormal dessa excitação.

Esse conceito do mecanismo da neurose de angústia poderá ser esclarecido se aceitarmos a seguinte concepção do processo sexual, que se aplica, em primeiro lugar, aos homens. No organismo masculino sexualmente maduro produz-se a excitação sexual somática - provavelmente de forma contínua - e, periodicamente, ela se torna um estímulo para a psique. Para firmarmos nossas idéias quanto a esse ponto, acrescentarei, por meio de uma interpolação, que essa excitação somática se manifesta como uma pressão nas paredes das vesículas seminais, que são revestidas de terminações nervosas; assim, essa excitação visceral se desenvolve continuamente, mas tem que atingir uma certa altura para poder vencer a resistência da via de condução intermediária até o córtex cerebral e expressar-se como um estímulo psíquico. Depois que isso acontece, entretanto, o grupo de representações sexuais presente na psique fica suprido de energia e passa a existir um estado psíquico de tensão libidinal que traz em si uma ânsia de eliminar essa tensão. Uma descarga psíquica desse gênero só é possível por meio do que chamarei de ação específica ou adequada. Essa ação adequada consiste, quanto à pulsão sexual masculina, num complicado ato reflexo raquidiano que promove a descarga das terminações nervosas, e em todas as preparações psíquicas que têm que ser feitas para acionar esse reflexo. Qualquer coisa que não a ação adequada seria infrutífera, pois, uma vez que a excitação sexual somática atinja seu valor limite, ela se converte continuamente em excitação psíquica, e é positivamente preciso que ocorra algo que liberte as terminações nervosas da carga de pressão sobre elas - algo que, por conseguinte, elimine a totalidade da excitação somática existente e permita à via de condução subcortical restabelecer sua resistência. Abstenho-me de descrever de maneira similar situações mais complicadas do processo sexual. Afirmarei apenas que, em essência, essa fórmula é também aplicável às mulheres, a despeito da confusão introduzida no problema por todos os retardamentos e tolhimentos artificiais da pulsão sexual feminina. Também nas mulheres devemos postular uma excitação sexual somática e um estado em que essa excitação se transforma num estímulo psíquico - libido - e provoca a ânsia da ação específica a que está ligada a sensação voluptuosa. No que se refere às mulheres, porém, não estamos em condições de dizer qual é o processo análogo ao relaxamento da tensão das vesículas seminais.

Podemos incluir no âmbito dessa descrição do processo sexual não apenas a etiologia da neurose de angústia, mas também a da neurastenia genuína. A neurastenia surge sempre que a descarga adequada (a ação adequada) é substituída por uma menos adequada - por exemplo, quando o coito normal, praticado nas condições mais favoráveis, é substituído pela masturbação ou pela emissão espontânea. A neurose de angústia, por outro lado, é produto de todos os fatores que impedem a excitação sexual somática de ser psiquicamente elaborada. As manifestações da neurose de angústia aparecem quando a excitação somática que foi desviada da psique é subcorticalmente despendida em reações totalmente inadequadas.

Tentarei agora descobrir se as condições etiológicas da neurose de angústia estabelecida acima |ver em [1] e segs.| exibem a característica comum que acabo de lhes atribuir. O primeiro fator etiológico que postulei para os homens foi a abstinência intencional |ver em [1]|. A abstinência consiste no refreamento da ação específica que ordinariamente decorre da libido. Esse refreamento pode ter duas conseqüências. Em primeiro lugar, a excitação somática se acumula; é então desviada por outros canais, que se mostram mais promissores em termos de descarga do que a via que passa pela psique. Assim, a libido termina por soçobrar e a excitação se manifesta subcorticalmente como angústia. Em segundo lugar, quando a libido não diminui, ou quando a excitação somática é despendida, numa espécie de atalho, em emissões, ou quando, por ser forçado a recuar, a excitação realmente cessa, segue-se toda sorte de coisas que não uma neurose de angústia. A abstinência,portanto, leva à neurose de angústia da maneira acima descrita. Mas ela é também o fator atuante em seu segundo grupo etiológico, o da excitação não consumada |ver em [1]|. Meu terceiro grupo, o do coitus reservatus com consideração pela mulher |ibid.|, atua por meio de um distúrbio da prontidão psíquica do homem para o processo sexual, na medida em que introduz, juntamente à tarefa de manejar o afeto sexual, uma outra tarefa psíquica de cunho defletor. Em conseqüência dessa deflexão psíquica, mais uma vez, a libido desaparece gradualmente e o curso subseqüente das coisas é o mesmo que no caso da abstinência. A angústia na senectude (o climatério masculino) |ver em [1]| requer outra explicação. Aqui não há diminuição da libido; no entanto, como no climatério feminino, ocorre um aumento tão grande na produção de excitação somática que a psique se mostra relativamente insuficiente para manejá-lo.

As condições etiológicas aplicáveis às mulheres podem ser incluídas no contexto de meu esquema sem maiores dificuldades do que no caso dos homens. A angústia virginal |ver em [1] [2]| é um exemplo particularmente claro, pois aqui os grupos de representações aos quais a excitação sexual somática deveria ligar-se ainda não estão suficientemente desenvolvidos. Na mulher recém-casada anestésica |ver em [1]|, a angústia só aparece quando as primeiras coabitações despertam uma quantidade suficiente de excitação somática. Quando faltam as indicações locais de tal excitamento (sensações espontâneas de estimulação, desejo de urinar, e assim por diante), a angústia também fica ausente. O caso da ejaculação precoce e do coito interrompido |ibid.| pode ser explicado tal como nos homens, isto é, o desejo libidinal do ato psiquicamente insatisfatório desaparece gradualmente, enquanto a excitação despertada durante o ato é despendida subcorticalmente. A alienação entre as esferas psíquica e somática no rumo tomado pela excitação sexual é mais prontamente estabelecida nas mulheres que nos homens. Os casos de viuvez e abstinência voluntária, e também os do climatério |ver em [1] e segs.| são tratados do mesmo modo em ambos os sexos; contudo, no que se refere à abstinência, não há dúvida de que, no caso das mulheres, existe ainda a questão do recalcamento intencional do círculo às representações sexuais, à qual a mulher abstinente deve estar atenta com freqüência em sua luta contra a tentação. O horror que, na época da menopausa, a mulher em processo de envelhecimento sente diante do aumento indevido de sua libido pode agir de maneira semelhante.

As duas últimas condições etiológicas de nossa lista parecem enquadrar-se sem dificuldade. A tendência à angústia nos masturbadores que se tornaram neurastênicos |vr em [1]| é explicada pelo fato de que lhes é muito fácil passarem a um estado de “abstinência” depois de se terem acostumado por tanto tempo a descarregar até mesmo a menor quantidade de excitação somática, por mais deficiente que seja essa descarga. Finalmente, o último caso - a gênese da neurose de angústia por meio de doença grave, sobrecarga de trabalho, cuidado exaustivo com doentes etc. |ibid.| - encontra uma interpretação fácil ao ser relacionado com os efeitos do coito interrompido. Aqui, a psique, graças a sua deflexão, pareceria não mais ser capaz de manejar a excitação somática, tarefa esta em que, como sabemos, ela está continuamente engajada. Estamos cientes de que uma libido de nível baixo pode soçobrar nessas condições, e temos aí um bom exemplo de neurose que, embora não apresente nenhuma etiologia sexual, apresenta, entretanto, um mecanismo sexual.

A concepção aqui desenvolvida retrata os sintomas da neurose de angústia como sendo, em certo sentido, substitutos da ação específica omitida posteriormente à excitação sexual. Para sustentar ainda mais essa concepção, posso indicar que, também na copulação normal, a excitação é despendida, entre outras coisas, na respiração acelerada, palpitação, transpiração, congestão, e assim por diante. Nos correspondentes ataques de angústia de nossa neurose, defrontamo-nos com a dispnéia, as palpitações etc., da copulação, numa forma isolada e exagerada.

E possível formular mais uma questão. Por que motivo, nessas condições de insuficiência psíquica para manejar a excitação sexual, o sistema nervoso se descobre no peculiar estado afetivo de angústia? Pode-se sugerir uma resposta como se segue. A psique é invadida pelo afeto de angústia quando se sente incapaz de lidar, por meio de uma reação apropriada, com uma tarefa (um perigo) vinda de fora; e fica presa de uma neurose de angústia quando se percebe incapaz de equilibrar a excitação (sexual) vinda de dentro - em outras palavras, ela se comporta como se estivesse projetando tal excitação para fora. O afeto e a neurose a ele correspondente estão firmemente inter-relacionados. O primeiro é uma reação a uma excitação exógena, e a segunda, uma reação à excitação endógena análoga. O afeto é um estado que passa rapidamente, enquanto a neurose é um estado crônico, porque, enquanto a excitação exógena age num único impacto, a excitação endógena atua como uma força constante. Na neurose, o sistema nervoso reage a uma fonte de excitação que é interna, enquanto, no afeto correspondente, ele reage contra uma fonte análoga de excitação que é externa.

 

IV - RELAÇÃO COM OUTRAS NEUROSES

 

Há ainda algumas palavras a dizer sobre as relações da neurose de angústia com as outras neuroses, no que se refere a seu desencadeamento e suas conexões internas.

Os casos mais puros da neurose de angústia costumam ser os mais marcantes. São encontrados em indivíduos jovens e sexualmente potentes, com etiologia não dividida e doença que não data de muito tempo.

Mais freqüentemente, porém, os sintomas de angústia ocorrem ao mesmo tempo que - e em combinação com - os sintomas de neurastenia, histeria, obsessões ou melancolia. Se permitíssemos que uma mistura clínica como essa impedisse nosso reconhecimento da neurose de angústia como entidade independente, deveríamos também, logicamente, abandonar uma vez mais a separação tão arduamente conseguida entre a histeria e a neurastenia.

No intuito de analisar as “neuroses mistas” posso afirmar esta importante verdade: onde quer que ocorra uma neurose mista, será possível descobrir uma mistura de várias etiologias específicas.

Uma multiplicidade de fatores etiológicos como esses, que determinam uma neurose mista, pode ocorrer de maneira puramente fortuita. Por exemplo, uma nova perturbação pode acrescentar seus efeitos aos de um fator nocivo já existente. Assim, uma mulher que sempre foi histérica pode começar, a certa altura de seu casamento, a vivenciar o coitus reservatus; adquirirá então uma neurose de angústia em acréscimo a sua histeria. Ou ainda, um homem que antes se masturbava e que se tornou neurastênico pode ficar noivo e ser sexualmente excitado por sua noiva; a sua neurastenia virá juntar-se então uma nova neurose de angústia.

Em outros casos, a multiplicidade de fatores etiológicos de modo algum é fortuita; um dos fatores desencadeia a atuação de outro. Por exemplo, uma mulher com quem o marido pratica o coitus reservatus sem consideração pela satisfação dela pode sentir-se compelida a se masturbar, a fim de eliminar a excitação aflitiva que se segue a tal ato; como resultado, produzirá não apenas uma neurose de angústia pura e simples, mas uma neurose de angústia acompanhada por sintomas de neurastenia. Outra mulher que sofra desse mesmo fator nocivo pode ter que lutar contra as imagens lascivas de que tenta defender-se, e assim adquirirá, por intermédio do coito interrompido, tanto obsessões quanto uma neurose de angústia. Finalmente, em decorrência do coito interrompido, uma terceira mulher pode perder sua afeição pelo marido e sentir-se atraída por outro homem, circunstância que será cuidadosamente mantida em segredo; em conseqüência, ela apresentará uma mistura de neurose de angústia e histeria.

Numa terceira categoria de neuroses mistas, a interligação dos sintomas é ainda mais íntima, no sentido de que o mesmo determinante etiológico provoca, regular e simultaneamente, ambas as neuroses. Assim, por exemplo, a súbita revelação sexual que vimos estar presente na angústia virginal sempre dá origem também à histeria |assim como à neurose de angústia|; a imensa maioria dos casos de abstinência voluntária liga-se desde o início com idéias obsessivas verdadeiras; o coito interrompido nos homens nunca me pareceu capaz de provocar uma neurose de angústia pura, mas sempre uma mistura desta com a neurastenia.

Com base nessas considerações, parece que devemos ainda distinguir as condições etiológicas de desencadeamento da neurose e seus fatores etiológicos específicos. As primeiras - por exemplo, o coito interrompido, a masturbação ou a abstinência - são ainda ambíguas, e cada qual pode produzir diferentes neuroses. Apenas os fatores etiológicos que nelas podem ser identificados, tais como a descarga inadequada, a insuficiência psíquica ou a defesa acompanhada de substituição, têm uma relação específica e inambígua com a etiologia de cada uma das principais neuroses.

No que concerne a sua natureza íntima, a neurose de angústia apresenta as mais interessantes concordâncias e diferenças em relação às outras neuroses principais, especialmente a neurastenia e a histeria. Partilha com a neurastenia uma característica essencial - a saber, a de que a fonte da excitação, a causa precipitante do distúrbio, reside no campo somático, e não no psíquico,como ocorre na histeria e na neurose obsessiva. Em outros aspectos, constatamos, antes, uma espécie de antítese entre os sintomas da neurose de angústia e os da neurastenia, que poderia evidenciar-se em rótulos como “acúmulo de excitação” e “empobrecimento da excitação”. Essa antítese não impede que as duas neuroses se misturem; mesmo assim, porém, transparece no fato de que as formas mais extremas de cada uma das neuroses são também, em ambos os casos, as mais puras.

A sintomatologia da histeria e a da neurose de angústia mostram muitos pontos em comum, que ainda não foram suficientemente considerados. O aparecimento dos sintomas, seja sob forma crônica ou em ataques, as parestesias, agrupadas como auras, as hiperestesias e pontos de pressão que são encontrados em certos substitutos do ataque de angústia (na dispnéia e nos ataques cardíacos), a intensificação, pela conversão, de dores que talvez tenham justificação orgânica - estes e outros traços que as duas doenças têm em comum permitem até a suspeita de que uma parcela nada insignificante do que se atribui à histeria poderia, com maior justiça, ser posta na conta da neurose de angústia. Quando se penetra no mecanismo das duas neuroses, tanto quanto foi possível descobri-lo até aqui, vêm à tona certos aspectos que sugerem que a neurose de angústia é, realmente, o equivalente somático da histeria. Tanto na segunda como na primeira há um acúmulo de excitação (que talvez seja a base da similaridade entre os sintomas que mencionamos). Tanto na segunda como na primeira constatamos uma insuficiência psíquica, em conseqüência da qual surgem processos somáticos anormais. E ainda, tanto na segunda como na primeira, em vez de uma elaboração psíquica da excitação, há um desvio dela para o campo somático; a diferença está apenas em que, na neurose de angústia, a excitação, em cujo deslocamento a neurose se expressa, é puramente somática (excitação sexual somática), ao passo que, na histeria, ela é psíquica (provocada por um conflito). Assim, não surpreende que a histeria e a neurose de angústia se combinem regularmente uma com a outra, como se vê na “angústia virginal” ou na “histeria sexual”, e que a histeria simplesmente tome de empréstimo à neurose de angústia vários sintomas, e assim por diante. Essas relações íntimas da neurose de angústia com a histeria fornecem, além disso, um novo argumento para se insistir em destacar a neurose de angústia da neurastenia, pois, se essa separação não for admitida, também ficaremos impossibilitados de continuar a manter a distinção entre neurastenia e histeria, que obtivemos com tanto trabalho e que é tão indispensável para a teoria das neuroses.

VIENA, dezembro de 1894.

 

APÊNDICE: O TERMO ANGST E SUA TRADUÇÃO INGLESA

 

Há pelo menos três passagens em que Freud discute as várias nuanças semânticas expressas pela palavra alemã “Angst” e pelos cognatos “Furcht” e “Schreck”. Embora ele acentue o elemento antecipatório e a ausência de objeto em “Angst”, as distinções que traça não são inteiramente convincentes e o uso real que faz do termo está longe de obedecer-lhes invariavelmente. E isso não chega a surpreender, de vez que “Angst” é uma palavra usada comumente na fala alemã usual, não sendo de forma alguma exclusivamente um termo técnico psiquiátrico. Ocasionalmente, pode ser traduzida por qualquer uma dentre meia dúzia de palavras inglesas igualmente comuns — “fear” |medo|, “fright” |pavor ou susto|, “alarm” |sobressalto| e assim por diante —, sendo, portanto, muito pouco prático fixarmo-nos num único termo inglês como sua tradução exclusiva. Entretanto, “Angst” aparece com freqüência como termo psiquiátrico (particularmente em combinações como “Angstneurose” ou “Angstanfall”) e, nessas ocasiões, um equivalente técnico inglês parece fazer-se necessário. A palavra universalmente, e talvez infelizmente, adotada para esse fim foi “anxiety” — infelizmente, já que “anxiety” tem também um sentido corrente de emprego cotidiano, que tem apenas uma remota conexão com qualquer dos usos do alemão “Angst”. Há, entretanto, um consagrado uso psiquiátrico, ou ao menos médico, do termo inglês “anxiety”, que remonta (como nos diz o Oxford Dictionary) à metade do século XVII. Com efeito, o uso psiquiátrico das duas palavras traz à luz suas origens paralelas. “Angst” é aparentado a “eng”, palavra alemã que designa “estreito”, “restrito”; “anxiety” deriva do latim “angere”, “estrangular” ou “apertar”, “estreitar”; em ambos os casos, a referência é aos sentimentos asfixiantes que caracterizam as formas graves do estado psicológico em questão. Um estado ainda mais agudo é descrito em inglês pela palavra “anguish”, que tem a mesma derivação; e convém notar que Freud, em seus artigos em francês, usa a palavra aparentada “angoisse” (assim como seu sinônimo “anxieté”) para traduzir o alemão “Angst”. (Ver em [1].)

O tradutor inglês é assim levado a uma solução de compromisso: deve usar “anxiety” nas acepções técnicas ou semitécnicas e, em outros trechos, escolher qualquer outra palavra do inglês corriqueiro que pareça mais apropriada. Aliás, a solução adotada em muitas das primeiras traduções de Freud, substituindo “Angst” por “ansiedade mórbida”, parece especialmente impensada. Um dos principais problemas teóricos discutidos por Freud é precisamente se, e nesse caso, por que a “Angst” é ora patológica ora normal. (Ver, por exemplo, o Adendo B a Inibição, Sintoma e Angústia, Edição Standard Brasileira, Vol. XX, pág. 189 e segs., IMAGO, Editora, 1976.)

 

RESPOSTA ÀS CRÍTICAS A MEU ARTIGO SOBRE A

NEUROSE DE ANGÚSTIA (1895)

 

NOTA DO EDITOR INGLÊS

 

ZUR KRITIK DER “ANGSTNEUROSE”

 

(a) EDIÇÕES ALEMÃS:

1895 Wien.klin. Rdsch, 9 (27), 417-19, (28), 435-7, (29), 451-2. (7, 14 e 21 de julho.)

1906 S.K.S.N., 1, 94-111. (1911, 2ª ed., 1920, 3ª ed.; 1922, 4ª ed.).

1925 G.S., 1, 343-62.

1952 G.W., 1, 357-76.

 

(b) TRADUÇÃO INGLESA:

“A Reply to Criticisms on the Anxiety-Neurosis”

1924 C.P. 1, 107-27. (Trad. de J. Rickman.)

Incluído (Nº XXXIII) na coleção de sinopses dos primeiros trabalhos de Freud elaborada por ele mesmo (1897b). Esta tradução, com o título modificado, baseia-se na de 1924.

Após a publicação do primeiro artigo de Freud sobre a neurose de angústia em janeiro de 1895, uma crítica de Loewenfeld a ele foi estampada no exemplar de março do Neurologisches Zentralblatt. O artigo aqui reproduzido é a réplica de Freud. Leopold Loewenfeld (1847-1923) era um afamado psiquiatra que clinicava em Munique. Era conhecido de Freud e continuou a manter com ele relações amigáveis. Incluiu capítulos de Freud em dois de seus livros, compareceu aos dois primeiros Congressos Psicanalíticos, em 1908 e 1910, e chegou até a apresentar um estudo (sobre hipnotismo) neste último. Apesar disso, porém, nunca aceitou inteiramente as idéias de Freud. Uma referência ao fato de que a presente controvérsia não afetou as boas relações entre ambos ocorre na Conferência XVI das Conferências Introdutórias (1916-17).

A principal importância deste artigo está na discussão minuciosa do que Freud chama aqui de “equação etiológica — as inter-relações entre as diferentes espécies de causas envolvidas na geração de uma neurose (ou, a rigor, de qualquer outra doença). A questão já fora esboçada numa comunicação a Fliess em 8 de fevereiro de 1893 (Freud, 1950a, Rascunho B) e voltou a ser abordada, mais tarde, no artigo em francês sobre “A Hereditariedade e a Etiologia das Neuroses” (1896a). Uma nova alusão à “equação etiológica”, cujos termos devem ser todos satisfeitos para que uma neurose possa manifestar-se, é feita dez anos depois do artigo sobre a sexualidade nas neuroses (1906a, Edição Standard Brasileira, Vol. VII, ver em [1], IMAGO Editora, 1972, e ela reaparece na comunicação dirigida ao Congresso de Nuremberg (1910d), Edição Standard Brasileira, Vol. XI, ver em [1], IMAGO Editora, 1970. Daí em diante, porém, ela se reduz gradualmente à interação entre hereditariedade e experiência — os dois principais conjuntos de determinantes da neurose — e termina pela introdução do conceito de “séries complementares” nas Conferências XXII e XXIII das Conferências Introdutórias (1916-17). Há uma passagem nos Três Ensaios onde a transição é mostrada claramente. Em algumas frases acrescentadas àquele trabalho em 1915, Freud referiu-se duas vezes a uma “série etiológica”, “em que a intensidade decrescente de um fator é contrabalançada pela intensidade crescente de outro”. Então, em 1920, depois de escrever as Conferências Introdutórias, ele alterou a expressão nos Três Ensaios para “série complementar”; ao menos mudou uma de suas ocorrências, embora a segunda lhe passasse despercebida, de modo que as duas versões do termo são conservadas a poucas linhas uma da outra (Edição Standard Brasileira, Vol. VII, ver em [1] e [2], IMAGO Editora, 1972), revelando a linha de tendência da equação etiológica até a série complementar.

Um breve extrato da tradução anterior (1924) deste artigo foi incluído em A General Selection from the Works of Sigmund Freud (1937, 68-9), de Rickman.

 

RESPOSTA ÀS CRÍTICAS A MEU ARTIGO SOBRE A NEUROSE DA ANGÚSTIA

 

No segundo número do Neurologisches Zentralblatt de Mendel para 1895, publiquei um breve artigo em que me arrisquei a fazer uma tentativa de isolar da neurastenia vários estados nervosos e estabelecê-los como uma entidade independente, sob o nome de “neurose de angústia”. Fui levado a fazê-lo pela presença de uma conjunção constante de certos traços clínicos com outros etiológicos — coisa que em geral nos permite fazer uma separação desse tipo. Descobri — e nisso Hecker  (1893) se antecipara a mim — que todos os sintomas neuróticos em questão podiam ser classificados em conjunto como constituindo expressões de angústia; e meu estudo da etiologia das neuroses permitiu-me acrescentar que essas porções do complexo da “neurose de angústia” exibem precondições etiológicas especiais que são quase o inverso da etiologia da neurastenia. Minhas observações me haviam mostrado que, na etiologia das neuroses (pelo menos na dos casos adquiridos e das formas adquiríveis), os fatores sexuais desempenham um papel predominante, ao qual se tem atribuído pouquíssimo peso; assim, uma asserção como “a etiologia das neuroses reside na sexualidade”, com toda sua inevitável incorreção per excessum et defectum |por excesso ou falta|, mesmo assim está mais próxima da verdade do que as outras doutrinas dominantes no momento. Outra afirmação que minhas observações me forçaram a fazer foi no sentido de que os vários fatores sexuais nocivos não são indiferentemente encontrados na etiologia de todas as neuroses, mas que existem relações especiais inconfundíveis entre determinados fatores nocivos e determinadas neuroses. Desse modo, pude presumir que havia descoberto as causas específicas das várias neuroses. Procurei então formular sucintamente o caráter especial das perturbações sexuais que constituem a etiologia da neurose de angústia, e, com base em minha concepção do processo sexual (ver em [1]), cheguei a esta proposição: a neurose da angústia é criada por tudo aquilo que mantém a tensão sexual somática afastada da esfera psíquica, por tudo o que interfere em sua elaboração psíquica. Ao retrocedermos às circunstâncias concretas em que esse fator se torna atuante, somos levados a afirmar que a abstinência |sexual|, quer voluntária quer involuntária, a relação sexual com satisfação incompleta, o coito interrompido, o desvio do interesse psíquico da esfera da sexualidade e coisas similares são os fatores etiológicos específicos dos estados que denominei de “neurose de angústia”.

Quando publiquei o artigo aqui mencionado, não tinha nenhuma ilusão quanto a seu poder de persuasão. Em primeiro lugar, estava ciente de que a explicação que eu fornecera era apenas uma explicação sumária e incompleta e, em alguns pontos, até mesmo difícil de compreender — talvez apenas o bastante para despertar as expectativas do leitor. Além disso, oferecera também muitos poucos exemplos e nenhuma cifra. Tampouco abordara a técnica de coleta de anamneses ou tomara providências para evitar mal-entendidos. Não levara em conta nada além das objeções mais óbvias e, no tocante à própria teoria, enfatizara apenas sua proposição principal, e não suas restrições. Sendo assim, cada leitor estava de fato livre para formar sua própria opinião quanto à força de sustentação de toda a hipótese. Eu também podia contar com outra dificuldade em sua aceitação. Sei muito bem que, ao expor minha “etiologia sexual” das neuroses, não apresentei nada de novo, e que nunca faltaram correntes não oficiais da literatura médica que levam esses fatos em conta. Sei ainda que, de fato, a medicina acadêmica oficial também tem estado ciente deles. Mas tem agido como se nada soubesse sobre o assunto. Não tem utilizado seus conhecimentos nem extraído deles nenhuma inferência. Tal comportamento deve ter alguma causa profundamente enraizada, talvez oriunda de uma espécie de relutância em enfocar diretamente os assuntos sexuais, ou de uma reação contra as tentativas mais antigas de explicação, consideradas obsoletas. Em todo caso, tem-se que estar preparado para enfrentar resistências quando se arrisca empreender uma tentativa de tornar fidedigno para outras pessoas algo que elas poderiam descobrir por si mesmas, sem nenhuma dificuldade.

Nessas circunstâncias, talvez fosse mais conveniente não responder às objeções críticas até que eu mesmo tivesse expressado meus pontos de vista sobre esse tema complexo com maiores detalhes, tornando-os assim mais inteligíveis. Entretanto, não posso resistir aos motivos que me impelem a dar uma resposta imediata a uma crítica de minha teoria da neurose de angústia recentemente publicada. Faço-o porque o seu autor, L. Loewenfeld, de Munique, autor de Pathologie und Therapie der Neurasthenie, é um homem cujo julgamento decerto tem muito peso junto ao público médico; por causa de uma concepção equivocada que o texto de Loewenfeld me atribui; e finalmente, porque desejo combater de saída a impressão de que minha teoria pode ser tão facilmente refutada pelas primeiras objeções que aparecem.

Com olho infalível, Loewenfeld (1895) detecta a característica essencial de meu artigo — a saber, minha asserção de que os sintomas da angústia têm uma etiologia específica e uniforme, de natureza sexual. Não sendo possível estabelecer isso como um fato, desaparece também a principal razão para se destacar da neurastenia uma neurose de angústia independente dela. Resta, é verdade, uma dificuldade para a qual chamei atenção |ver em [1] e seg.|: o fato de que os sintomas de angústia têm também ligações rigorosamente inequívocas com a histeria, de modo que uma decisão nos termos de Loewenfeld prejudicaria a separação entre neurastenia e histeria. Tal dificuldade, no entanto, é equacionada por um recurso à hereditariedade como causa comum de todas essas neuroses (concepção que examinarei depois).

Que argumentos, pois, Loewenfeld utiliza para fundamentar sua objeção a minha teoria?

 

(1) Enfatizarei, como ponto essencial para a compreensão da neurose de angústia, que a angústia nela ocorrente não permite uma derivação psicológica — isso significa que a pronta disposição para a angústia, que constitui o núcleo da neurose, não pode ser adquirida por um fato isolado ou repetido de pânico psiquicamente justificado. O pânico, sustentei, poderia resultar em histeria ou neurose traumática, mas não numa neurose de angústia. Essa negação, como se percebe facilmente, nada mais é do que a contrapartida de minha afirmação, de cunho positivo, de que a angústia que aparece em minha neurose corresponde a uma tensão sexual somática que foi desviada do campo psíquico — uma tensão que, de outra forma, far-se-ia sentir como libido.

Em oposição a isso, Loewenfeld insiste no fato de que, em muitos casos, “os estados de angústia aparecem imediatamente ou logo após um choque psíquico (apenas pavor ou acidentes acompanhados de pavor), e nessas situações às vezes há circunstâncias que tornam extremamente improvável a atuação simultânea de perturbações sexuais da espécie mencionada”. Ele apresenta em poucas palavras, como exemplo particularmente fecundo, uma observação clínica (servindo por muitas). Esse exemplo concerne a uma mulher de trinta anos, com uma tara hereditária, que estivera casada por quatro anos e que, um ano antes, tivera um primeiro parto muito difícil. Poucas semanas após esse acontecimento, seu marido fora acometido de um ataque de doença que a assustara e, em sua agitação, ela ficara correndo de camisola pelo cômodo frio. Desde essa época, havia adoecido. Primeiro sofrera de estados de angústia e palpitações à noite, depois vieram os acessos de tremores convulsivos, depois fobias, e assim por diante. Era o quadro de uma neurose de angústia plenamente desenvolvida. “Aqui”, conclui Loewenfeld, “os estados de angústia são obviamente de origem psíquica, desencadeados pelo susto isolado.”

Não duvido que meu respeitável crítico possa apresentar muitos casos similares. Eu mesmo posso fornecer uma longa lista de exemplos análogos. Quem não tiver visto tais casos — e eles são extremamente comuns — de eclosão da neurose de angústia após um choque psíquico não pode considerar-se qualificado para tomar parte em discussões sobre a neurose de angústia. A esse respeito, observarei apenas que nem o susto nem a expectativa angustiada precisam ser sempre encontrados na etiologia desses casos; qualquer outra emoção serviria igualmente bem. Rememorando rapidamente alguns casos, lembro-me de um homem de quarenta e cinco anos que teve seu primeiro ataque de angústia (com colapso cardíaco) ao receber a notícia da morte do pai, que era um senhor idoso; daí por diante, desenvolveu uma neurose de angústia típica e completa, acompanhada de agorafobia. Lembro-me também de um rapaz acometido da mesma neurose em virtude de sua agitação diante dos desentendimentos entre sua jovem esposa e sua mãe, e que tinha um novo surto de agorafobia depois de cada discussão doméstica. Havia ainda um estudante, um tanto preguiçoso, que teve seus primeiros ataques de angústia durante um período em que, instigado pelo desagrado paterno, estava arduamente empenhado em se preparar para um exame. Lembro-me também de uma mulher sem filhos que adoeceu em função da angústia ligada à saúde de uma sobrinha pequena. E outros casos similares. Quanto aos fatos em si usados por Loewenfeld contra mim não paira a menor dúvida.

Contudo, há uma dúvida quanto a sua interpretação. Será que devemos aceitar incontinenti a conclusão post hoc ergo propter hoc e abster-nos de qualquer exame crítico do material bruto? Há exemplos suficientes em que a causa desencadeante final não preserva, ante uma análise crítica, sua posição de causa efficiens. Basta pensar, por exemplo, na relação entre o trauma e a gota. O papel de um trauma na estimulação de um ataque de gota no membro afetado provavelmente não difere do papel que ele desempenha na etiologia da tabes e da paralisia geral dos insanos; só que, no caso da gota, fica claro, até para a mais medíocre das capacidades, que é absurdo supor que o trauma tenha “causado” a gota, em vez de tê-la meramente provocado. Há que refletir com cuidado ao nos depararmos com fatores etiológicos dessa natureza — fatores “banais”, como gostaria de chamá-los — na etiologia das mais variadas formas de doença. A emoção, o susto, é também um fator banal desse tipo. O pânico pode provocar coréia, apoplexia, paralisia agitante e muitas outras coisas, assim como pode provocar a neurose de angústia. Não devo, é claro, prosseguir na argumentação de que, graças a sua ubiqüidade, as causas banais não satisfazem a nossos requisitos, e de que deve haver também causas específicas; fazê-lo seria incorrer numa petição de princípio em favor da proposição que quero provar. Mas é justificável que eu extraia a seguinte conclusão: se for possível mostrar que existe uma mesma causa específica na etiologia de todos ou da grande maioria dos casos de neurose de angústia, nossa visão do assunto não precisará ficar abalada pelo fato de a doença só eclodir depois que um ou outro fator banal, tal como a emoção, torna-se atuante.

Foi o que se deu com meus casos de neurose de angústia. Tomemos o homem que |ver em [1]|, após receber a notícia da morte do pai, adoeceu tão inexplicavelmente. (Acrescento “inexplicavelmente” porque a morte não fora imprevista, nem ocorrera em circunstâncias incomuns ou chocantes.) Esse homem praticara por onze anos o coito interrompido com sua mulher, a quem quase sempre tentara satisfazer. Da mesma forma, o rapaz que não suportava as brigas entre a mulher e a mãe havia praticado a retirada do pênis com sua jovem esposa desde o início do casamento, para se livrar do encargo de filhos. Temos então o estudante que contraíra uma neurose de angústia, em vez da esperável neurastenia cerebral, em conseqüência da sobrecarga de trabalho: ele vinha mantendo há três anos uma relação com uma jovem que não lhe era permitido engravidar. Havia ainda a mulher sem filhos que fora acometida de neurose de angústia por causa da doença de uma sobrinha: era casada com um homem impotente e nunca fora sexualmente satisfeita. E assim por diante. Nem todos esses casos são igualmente claros ou igualmente bons como comprovação de minha tese; contudo, quando os junto ao imenso número de casos em que a etiologia só mostra o fator específico, eles se enquadram sem contradição na teoria que formulei e permitem estender nossa compreensão etiológica para além das fronteiras vigentes até aqui.

Se alguém quiser provar-me que, nesses comentários, negligenciei indevidamente a importância dos fatores etiológicos banais, deverá confrontar-me com observações em que meu fator específico esteja ausente — isto é, com casos em que a neurose de angústia tenha emergido após um choque psíquico, embora (de modo geral) o sujeito tenha levado uma vita sexualis normal. Vejamos agora se o caso de Loewenfeld satisfaz a essa condição. É óbvio que meu respeitável oponente não percebeu com clareza a necessidade disso, do contrário não nos teria deixado tão completamente no escuro quanto à vita sexualis de sua paciente. Deixarei de lado o fato de que esse caso da mulher de trinta anos é obviamente complicado por uma histeria sobre cuja origem psíquica não tenho a mínima dúvida; e naturalmente admito, sem levantar qualquer objeção, a presença de uma neurose de angústia ao lado dessa histeria. Mas antes de usar um caso para comprovar ou refutar a teoria da etiologia sexual das neuroses, é preciso, primeiramente, que eu tenha estudado o comportamento sexual do paciente mais de perto do que fez Loewenfeld. Não me contentaria em concluir que, por ter a mulher sofrido seu choque psíquico numa fase imediatamente posterior a um parto, o coito interrompido não poderia ter desempenhado um papel nisso no ano anterior, e que, portanto, as perturbações sexuais estariam excluídas. Sei de casos de mulheres que engravidavam todos os anos e que, apesar disso, sofriam de neurose de angústia, pois — por incrível que pareça — todas as relações sexuais eram suspensas depois do primeiro coito fertilizante, de modo que, a despeito de terem muitos filhos, elas haviam sofrido de privação sexual durante todos esses anos. Nenhum médico ignora o fato de que as mulheres concebem filhos de homens cuja potência é muito reduzida e que não podem proporcionar-lhes satisfação. Por fim (e essa é uma consideração que deve ser levada em conta precisamente pelos defensores de uma etiologia hereditária), há muitas mulheres afligidas por neurose de angústia congênita — isto é, que herdam ou desenvolvem, sem nenhum distúrbio externamente demonstrável, uma vita sexualis idêntica à usualmente adquirida por meio do coito interrompido e de perturbações similares. Em muitas dessas mulheres podemos descobrir uma doença histérica na juventude, desde a qual sua vita sexualis ficou perturbada e se estabeleceu um desvio da tensão sexual para longe da esfera psíquica. As mulheres com esse tipo de sexualidade são incapazes de obter satisfação real, mesmo no coito normal, e desenvolvem uma neurose de angústia, seja espontaneamente, seja depois de sobrevirem outros fatores atuantes. Quais desses elementos estavam presentes no caso de Loewenfeld? Não sei. Mas repito: esse caso só constituirá uma prova contra mim se a mulher que reagiu a um único susto com uma neurose de angústia tiver antes desfrutado de uma vita sexualis normal.

É impossível empreender uma investigação etiológica baseada em anamneses se aceitarmos essas anamneses tais como os pacientes as apresentam, ou se nos contentarmos com o que eles estão dispostos a informar voluntariamente. Se os especialistas em sífilis ainda confiassem no depoimento de seus pacientes para ligar uma infecção inicial da genitália às relações sexuais, poderiam atribuir um respeitável número de cancros em pessoas declaradamente virgens a simples resfriados; e os ginecologistas teriam pouca dificuldade em confirmar o milagre da partenogênese entre suas clientes solteiras. Espero que um dia prevaleça a idéia de que também os neuropatologistas, ao colherem as anamneses das grandes neuroses, podem estar procedendo com base em preconceitos etiológicos de natureza semelhante.

 

(2) Loewenfeld diz ainda que tem visto repetidamente o aparecimento e desaparecimento de estados de angústia em casos em que decerto não ocorreu qualquer mudança na vida sexual do sujeito, mas onde havia outros fatores em jogo.

Eu próprio fiz exatamente a mesma observação, sem contudo deixar-me levar por ela. Também eu fiz desaparecerem ataques de angústia por meio de tratamento psíquico, melhoria da saúde geral do paciente, e assim por diante; mas, naturalmente, não concluí daí que o que causara o ataque de angústia fora uma falta de tratamento. Não que me agrade imputar a Loewenfeld uma conclusão dessa espécie. Meu comentário jogoso tenciona apenas mostrar que o estado de coisas pode facilmente complicar-se o bastante para invalidar por completo a objeção de Loewenfeld. Não acho difícil conciliar o fato aqui apresentado com minha afirmativa de que a neurose de angústia tem uma etiologia específica. Há que admitir prontamente que existem fatores etiológicos que, para surtirem efeito, precisam atuar com certa intensidade (ou quantidade) e durante um certo período de tempo — fatores que, em outras palavras, são somados. Os efeitos do álcool são um exemplo-padrão desse tipo de causação por soma. Deduz-se daí que deve haver um período em que a etiologia específica está em ação, mas no qual seu efeito ainda não é manifesto. Durante essa fase, o sujeito ainda não está doente, mas está predisposto a uma enfermidade particular — em nosso caso, à neurose de angústia—, e então o acréscimo de uma perturbação banal poderá deflagrar a neurose, tal como o faria uma nova intensificação da ação do fator perturbador específico. A situação também pode expressar-se da seguinte maneira: não basta a perturbação específica estar presente; ela também precisa atingir um patamar definido; e, no processo de atingir esse limite, uma quantidade da perturbação específica pode ser substituída por uma dose de perturbações banais. Se estas últimas voltarem a ser eliminadas, ficaremos abaixo de um certo limiar e os sintomas clínicos tornarão a desaparecer. Toda a terapia das neuroses se apóia no fato de que a carga total sobre o sistema nervoso, à qual este sucumbiu, pode ser levada a um nível inferior a esse limiar, influenciando-se de inúmeras maneiras a mistura etiológica. Com base nessas circunstâncias, não podemos tirar nenhuma conclusão quanto à existência ou inexistência de uma etiologia específica. Essas considerações são certamente seguras e incontestáveis. Mas quem quer que não as julgue suficientes poderá ser influenciado pelo seguinte argumento. De acordo com as concepções de Loewenfeld e de inúmeros outros, a etiologia dos estados de angústia deve ser buscada na hereditariedade. Ora, a hereditariedade é certamente imune a alterações; logo, se a neurose de angústia é curável sob tratamento, temos que concluir, segundo a argumentação de Loewenfeld, que sua etiologia não pode residir na hereditariedade.

Quanto ao mais, talvez me fosse poupado ter que me defender dessas duas objeções de Loewenfeld, se meu respeitável oponente tivesse prestado maior atenção a meu artigo. Nele, ambas as objeções foram previstas e respondidas (ver em [1] e segs.). Aqui pude apenas repetir o que disse lá, e cheguei até a reanalisar deliberadamente os mesmos casos outra vez. Além disso, as fórmulas etiológicas que acabo de enfatizar estão contidas no texto de meu artigo |ver em [1]|. Vou repeti-las uma vez mais. Sustento que existe um fator etiológico específico da neurose de angústia que pode ser substituído em sua atuação por uma perturbação banal, em sentido QUANTITATIVO, mas não em sentido QUALITATIVO; sustento ainda que esse fator específico determina primordialmente a FORMA da neurose; a ocorrência ou não da doença neurótica depende da carga total sobre o sistema nervoso (proporcionalmente a sua capacidade de suportar tal carga). Em geral, as neuroses são sobredeterminadas, isto é, vários fatores operaram conjuntamente em sua etiologia.

 

(3) Não há por que me preocupar muito com a refutação dos comentários subseqüentes de Loewenfeld, já que, por um lado, eles afetam muito pouco a minha teoria e, por outro, levantam dificuldades cuja existência reconheço. Loewenfeld escreve: “A teoria freudiana é totalmente insuficiente para explicar o aparecimento ou não-aparecimento dos ataques de angústia em casos isolados. Se os estados de angústia — isto é, os sintomas clínicos da neurose de angústia — ocorressem somente por um armazenamento subcortical da excitação sexual somática e por um emprego anormal desta, todas as pessoas afetadas por estados de angústia deveriam, desde que não ocorresse nenhuma mudança em sua vida sexual, ter de tempos em tempos um ataque de angústia, assim como o epiléptico tem seu ataque de grand e petit mal. Mas isso, como mostras a experiência cotidiana, de modo algum acontece. Os ataques de angústia ocorrem, na grande maioria dos casos, apenas em ocasiões definidas; quando o paciente evita essas ocasiões ou consegue paralisar sua influência por meio de alguma precaução, fica isento dos ataques de angústia, quer se entregue regularmente ao coito interrompido ou à abstinência, quer goze de uma vida sexual normal.”

Há muito a dizer sobre isso. Em primeiro lugar, Loewenfeld impõe à minha teoria uma inferência que ela não é obrigada a aceitar. Supor que na armazenagem de excitação sexual somática ocorre a mesma coisa que na acumulação de estímulo que leva a uma convulsão epiléptica é formular uma hipótese excessivamente minuciosa, e não dei nenhum motivo para isso; nem essa hipótese é a única que se apresenta. Para descartar a alegação de Loewenfeld, basta-me apenas presumir que o sistema nervoso tem o poder de manejar um certo quantum de excitação sexual somática mesmo quando esta última é desviada de seu objetivo, e que os distúrbios só ocorrem quando esse quantum de excitação recebe um súbito acréscimo. Não me arrisquei a estender minha teoria nessa direção, principalmente por não esperar encontrar pontos de apoio sólidos ao longo desse caminho. Gostaria apenas de indicar que não devemos pensar na produção da tensão sexual como algo independente de sua distribuição: que, na vida sexual normal, essa produção, quando estimulada por um objeto sexual, assume uma forma substancialmente diversa da que toma no estado de inércia psíquica (ver ver em [1]) e assim por diante.

Convém admitir que, com toda a probabilidade, a situação aqui difere da que prevalece na tendência às convulsões epilépticas, e que ainda não pode ser sistematicamente deduzida da teoria do acúmulo da excitação sexual somática.

Contrariando a outra afirmação de Loewenfeld — a de que os estados de angústia só aparecem em certas ocasiões e deixam de aparecer quando essas condições são evitadas, independentemente de qual seja a vita sexualis do sujeito — convém assinalar que, nesse ponto, é claro que ele só tem em mente a angústia das fobias, como de fato fica demonstrado pelos exemplos ligados à passagem que citei. Ele não diz absolutamente nada sobre os ataques espontâneos de angústia que tomam a forma de vertigens, palpitações, dispnéia, tremores, transpiração etc. Minha teoria, ao contrário, de modo algum parece incapaz de explicar a emergência ou não-emergência desses ataques de angústia, pois, num grande número desses casos de neurose de angústia, parece efetivamente haver uma periodicidade na emergência dos estados de angústia, semelhante à que se observa na epilepsia, exceto que, nesta última, a periodicidade é mais transparente. Mediante um exame detalhado, descobrimos com grande regularidade a presença de um processo sexual excitatório (isto é, um processo capaz de gerar tensão sexual somática), que, após o decorrer de um intervalo de tempo definido e quase sempre constante, é seguido pelo ataque de angústia. Esse papel |excitatório| é desempenhado, nas mulheres abstinentes, pela excitação menstrual; é ainda desempenhado pelas poluções noturnas, que também se repetem periodicamente. Acima de tudo, esse papel é desempenhado pela própria relação sexual (prejudicial, quando incompleta), que transfere sua própria periodicidade aos efeitos que acarreta, ou seja, aos ataques de angústia. Quando ocorrem ataques de angústia que rompem a periodicidade usual, costuma ser possível atribuí-los a uma causa incidental de ocorrência rara e irregular — a uma experiência sexual isolada, a alguma coisa lida ou vista, e outras situações semelhantes. O intervalo que mencionei oscila de poucas horas a dois dias; é idêntico ao que transcorre em outras pessoas, entre a ocorrência das mesmas causas e o surgimento da conhecida enxaqueca sexual, que tem ligações bem estabelecidas com a síndrome da neurose de angústia.

Há, além disso, inúmeros casos em que um estado isolado de angústia é provocado pela adição extra de um fator banal, por uma excitação de um ou outro tipo. O mesmo se aplica, portanto, à etiologia do ataque de angústia isolado e à causação de toda a neurose. Não é muito estranho que a angústia das fobias obedeça a condições diferentes; elas têm uma estrutura mais complicada que os ataques de angústia puramente somáticos. Nas fobias, a angústia está ligada a um conteúdo representativo ou perceptivo definido, e a estimulação desse conteúdo psíquico é a principal condição para a emergência da angústia. Quando isso ocorre, a angústia é “gerada”, assim como, por exemplo, a tensão sexual é gerada pela excitação de idéias libidinais. Todavia, a conexão desse processo com a teoria da neurose de angústia ainda não foi elucidada.

Não vejo razão por que eu deva tentar esconder as lacunas e pontos fracos de minha teoria. O aspecto principal do problema das fobias parece-me ser que, quando a vita sexualis é normal — quando a condição específica, o distúrbio da vida sexual no sentido de uma deflexão do somático em relação ao psíquico, não é preenchida —, as fobias não aparecem em absoluto. Quaisquer que sejam os demais pontos obscuros quanto ao mecanismo das fobias, minha teoria só poderá ser refutada quando me tiverem mostrado fobias em que a vida sexual seja normal, ou mesmo em que nela haja um distúrbio de tipo inespecífico.

 

(4) Passo agora a um comentário de meu estimado crítico que não posso deixar sem resposta. Em meu artigo sobre a neurose de angústia eu havia escrito (ver em [1]) o seguinte:

“Em alguns casos de angústia não se descobre absolutamente nenhuma etiologia. Vale notar que, em tais casos, raramente há dificuldade em se estabelecerem provas de uma grave tara hereditária.

“Mas quando há fundamento para se considerar a neurose como adquirida, uma cuidadosa investigação orientada nesse sentido revela que um conjunto de perturbações e influências da vida sexual … |são os fatores etiológicos atuantes|.” Loewenfeld cita essa passagem e acrescenta o seguinte comentário: “Parece depreender-se disso que Freud sempre encara uma neurose como “adquirida” quando se encontram causas incidentais para ela.”

Se tal sentido é naturalmente depreendido de meu texto, então este confere uma expressão muito distorcida a minhas idéias. Permitam-me assinalar que, nas páginas precedentes, mostrei-me muito mais rigoroso do que Loewenfeld em minha avaliação das causas incidentais. Se eu próprio tivesse que elucidar o sentido da passagem que escrevi, acrescentaria, depois da oração subordinada “Mas quando há fundamento para se considerar a neurose como adquirida…,” as palavras “por não se evidenciarem as provas (mencionadas na frase anterior) de uma disposição hereditária,…” O que isso significa é que sustento que um caso é adquirido quando não se descobre nele nenhuma hereditariedade. Ao agir assim, comporto-me como todas as outras pessoas, talvez com a pequena diferença de que os outros podem declarar que o caso é determinado pela hereditariedade mesmo quando não há hereditariedade, desconsiderando toda a categoria das neuroses adquiridas. Mas essa diferença depõe a meu favor. Admito, contudo, que eu próprio sou responsável por esse mal-entendido, em virtude da maneira como me expressei na primeira frase: “não se descobre absolutamente nenhuma etiologia.” Decerto serei criticado também por outras fontes e dirão que me criei dificuldades desnecessárias ao procurar as causas específicas das neuroses. Alguns dirão que a verdadeira etiologia da neurose de angústia, assim como das neuroses em geral, já é conhecida: é a hereditariedade. E duas causas reais não podem coexistir. Não neguei, dirão eles, o papel etiológico da hereditariedade; mas, nesse caso, todas as outras etiologias são causas meramente incidentais e equivalentes em valor ou falta de valor.

Não partilho dessa visão do papel da hereditariedade; e, considerando que em meu breve artigo sobre a neurose de angústia foi justamente a esse tema que dediquei menos atenção, tentarei agora compensar parte do que nele omiti e eliminar a impressão de que, ao escrever meu artigo, não atentei para todos os problemas relevantes.

Creio que poderemos chegar a um quadro da situação etiológica, provavelmente muito complicada, que prevalece na patologia das neuroses, se postularmos os seguintes conceitos:

(a) Precondição, (b) Causa Específica, (c) Causas Concorrentes, e, como um termo não equivalente aos anteriores, (d) Causa Precipitante ou Desencadeante.

Para fazer frente a qualquer possibilidade, vamos presumir que os fatores etiológicos que nos interessam são passíveis de mudança quantitativa — isto é, de aumento ou redução.

Aceitando a idéia de uma equação etiológica de vários termos que precisem ser satisfeitos para que o efeito ocorra, podemos caracterizar como causa precipitante ou desencadeante aquela que aparece por último na equação, de modo que precede imediatamente a emergência do efeito. É apenas esse fator cronológico que constitui a natureza essencial da causa precipitante. Qualquer das demais causas também pode, em determinado caso, desempenhar o papel de causa precipitante; e |o fator que desempenha| esse papel pode mudar dentro da mesma combinação etiológica.

Os fatores que se podem descrever como precondições são aqueles em cuja ausência o efeito nunca se manifestaria, mas que são incapazes de produzi-lo por si mesmos, não importando em que quantidade estejam presentes, pois falta ainda a causa específica.

A causa específica é aquela que nunca está ausente em todos os casos em que o efeito se dá e que, além disso, quando presente na quantidade ou intensidade requerida, é suficiente para produzir o efeito, desde que as precondições também sejam cumpridas.

Como causas concorrentes podem considerar os fatores que não estão necessariamente presentes todas as vezes, nem podem, qualquer que seja sua quantidade, produzir o efeito por si mesmos, mas que operam em conjunto com as precondições e a causa específica para satisfazer a equação etiológica.

O caráter distintivo das causas concorrentes ou auxiliares parece claro; no entanto, como distinguir entre precondição e causa específica, já que ambas são indispensáveis mas nenhuma delas, isoladamente, basta para atuar como causa?

As seguintes considerações parecem permitir-nos chegar a uma decisão. Entre as “causas necessárias” encontramos diversas que reaparecem nas equações etiológicas referentes a muitos outros efeitos, e que portanto não apresentam nenhuma relação especial com algum efeito particular. Uma dessas causas, entretanto, destaca-se do resto pelo fato de não ser encontrada em qualquer outra equação etiológica, ou de sê-lo em muito poucas; tem-se assim o direito de chamá-la de causa específica do efeito em questão. Além disso, as preconizações e causas específicas distinguem-se particularmente entre si nos casos em que as precondições têm a característica de serem estados duradouros e pouco suscetíveis à alteração, ao passo que a causa específica é um fator de recente entrada em ação.

Tentarei exemplificar esse quadro esquemático etiológico completo:

Efeito: Tuberculose pulmonar.

Precondição: Predisposição da constituição orgânica, baseada, em sua maior parte, na hereditariedade.

Causa específica: Bacilo de Koch.

Causas auxiliares: Qualquer coisa que diminua a resistência — tanto as emoções como as supurações ou resfriados.

O quadro esquemático da etiologia da neurose de angústia me parece seguir o mesmo padrão:

Precondição: Hereditariedade.

Causa específica: Um fator sexual, no sentido de uma deflexão da tensão sexual para fora do campo psíquico.

Causas auxiliares: Quaisquer perturbações banais — a emoção, o susto, e também o esgotamento físico devido a doenças ou à estafa.

Examinando detalhadamente essa fórmula da neurose de angústia, posso acrescentar os comentários que se seguem. Se uma constituição pessoal especial (não necessariamente produzida pela hereditariedade) é absolutamente necessária para a produção da neurose de angústia, ou se qualquer pessoa normal pode ter uma neurose de angústia devido a algum aumento quantitativo do fator específico, é algo que não posso decidir com certeza; mas inclino-me fortemente para a segunda possibilidade. A predisposição hereditária é a mais importante precondição da neurose de angústia; não é, porém, uma precondição indispensável, já que está ausente num grupo de casos fronteiriços. Pode-se demonstrar com certeza a presença do fator sexual na maioria dos casos. Numa série de casos (congênitos), esse fator não se separa da precondição da hereditariedade, mas é cumprido com a ajuda desta. Isto é, em alguns pacientes, essa peculiaridade da vita sexualis — insuficiência psíquica para manejar a excitação sexual somática — é inata sob a forma de um estigma, ao passo que, comumente, é através dessa peculiaridade que as pessoas adquirem a neurose. Em outra classe de casos fronteiriços, a causa específica está contida numa causa concorrente. Trata-se do caso em que a insuficiência psíquica que acabo de mencionar é acarretada pelo esgotamento ou causas semelhantes. Todos esses casos agrupam-se em classes que se fundem umas nas outras e não formam categorias isoladas. Em todos eles, além disso, verificamos que a tensão sexual sofre as mesmas vicissitudes; e, na maioria, mantém-se a distinção entre precondição, causa específica e causa auxiliar, em conformidade com a solução da equação etiológica dada acima.

Quando consulto minha experiência sobre esse ponto, não consigo ver nenhuma relação antitética, no que concerne à neurose de angústia, entre a predisposição hereditária e o fator sexual específico. Pelo contrário, os dois fatores etiológicos se apóiam e se complementam. O fator sexual só costuma ser atuante nas pessoas que têm também uma tara hereditária inata; a hereditariedade, por si só, usualmente não é capaz de produzir uma neurose de angústia, tendo que aguardar a ocorrência de uma quantidade suficiente da perturbação sexual específica. A descoberta do fator hereditário, por conseguinte, não nos isenta da busca de um fator específico. De sua descoberta, aliás, depende também todo o nosso interesse terapêutico, pois o que podemos fazer terapeuticamente a respeito da hereditariedade enquanto elemento etiológico? Ela sempre esteve no paciente e lá permanecerá até o fim de sua vida. Tomada isoladamente, não pode ajudar-nos a compreender nem o desencadeamento episódico de uma neurose nem a cessação dessa neurose em conseqüência de tratamento. Ela nada mais é do que uma precondição da neurose — uma precondição de indizível importância, é verdade, mas que tem sido superestimada em detrimento da terapia e da compreensão teórica. Para nos convencermos de que a situação é diferente, basta pensarmos nos casos de enfermidades nervosas familiares (tais como a coréia crônica, a doença de Thomsen e outras), nos quais a hereditariedade reúne em si todas as precondições etiológicas.

Concluindo, gostaria de repetir os enunciados com que estou acostumado a expressar as relações recíprocas entre os vários fatores etiológicos, como primeira aproximação da verdade:

(1) Se ocorrerá ou não uma doença neurótica, depende de um fator quantitativo — da carga total sobre o sistema nervoso, comparada à capacidade da resistência deste. Tudo o que consegue manter esse fator quantitativo abaixo de certo valor limítrofe ou restituí-lo a esse nível tem um efeito terapêutico, já que, assim fazendo, mantém a equação etiológica insatisfeita.

O que se deve entender por “carga total” e por “capacidade de resistência” do sistema nervoso poderia sem dúvida ser mais claramente explicado com base em certas hipóteses referentes à função dos nervos.

(2) As dimensões que a neurose atingirá dependem, em primeira instância, da extensão da tara hereditária. A hereditariedade age como um multiplicador introduzido num círculo elétrico, que aumenta muitas vezes o desvio da agulha.

(3) Mas a forma que a neurose assumirá— a direção a ser tomada pelo desvio — é determinada exclusivamente pelo fator etiológico específico procedente da vida sexual.

 

Embora esteja cônscio das muitas dificuldades ainda não resolvidas nessa questão, espero que, no conjunto, minha hipótese sobre a neurose de angústia venha a se mostrar mais fecunda para a compreensão das neuroses do que a tentativa de Loewenfeld de dar conta dos mesmos fatos postulando “uma combinação de sintomas neurastênicos e histéricos sob a forma de um ataque”.

VIENA, começo de maio de 1895.

 

A HEREDITARIEDADE E A ETIOLOGIA DAS NEUROSES (1896)

 

NOTA DO EDITOR INGLÊS

 

L’HÉRÉDITÉ ET L’ÉTIOLOGIE DES NÉVROSES

 

(a) EDIÇÕES EM FRANCÊS:

1896 Rev. neurol., 4 (6), 161-9. (30 de março).

1906 S.K.S.N., 1, 135-48. (1911, 2ª ed.; 1920, 3ª ed.; 1922, 4ª ed.)

1925 G.S., 1, 388-403.

1952 G.W., 1, 407-422.

 

(b)TRADUÇÃO INGLESA:

“Heredity and the Aetiology of the Neuroses”

1924 C.P.,, 1, 138-154. (Trad. de M. Meyer.)

 

Incluído (Nº XXXVII) na coleção de sinopses dos primeiros trabalhos de Freud elaborada por ele mesmo (1897b). O original está em francês. Esta é uma nova tradução de James Strachey.

Este artigo e o seguinte, o segundo sobre as neuropsicoses de defesa (1896b), foram remetidos a seus respectivos editores no mesmo dia — 5 de fevereiro de 1896 —, como relatou Freud em carta a Fliess um dia depois (Freud, 1950a, Carta 40). O artigo em francês foi publicado, no fim de março, cerca de seis semanas antes do outro e, conseqüentemente, tem prioridade sobre ele no que tange à primeira ocorrência publicada da palavra “psicanálise” (ver em [1]). O artigo é um resumo das concepções contemporâneas de Freud sobre a etiologia dos quatro tipos de neuroses que ele então considerava os principais: as duas “psiconeuroses”, histeria e neurose obsessiva, e as duas “neuroses atuais” (como seriam posteriormente denominadas, ver nota de rodapé 2, ver em [1], adiante), neurastenia e neurose de angústia. A primeira parte do artigo é, em grande parte, uma repetição da discussão sobre a etiologia apresentada no segundo artigo sobre neurose de angústia (1895f), enquanto a última parte cobre, muito sucintamente, o mesmo terreno que seu contemporâneo, o segundo artigo sobre as neuropsicoses de defesa (1896b). O leitor, portanto, poderá reportar-se a estes e aos comentários editoriais sobre eles para maiores informações.

 

A HEREDITARIEDADE E A ETIOLOGIA DAS NEUROSES

 

Dirijo-me em particular aos discípulos de J.-M. Charcot, para formular algumas objeções à teoria etiológica das neuroses que nos foi legada por nosso mestre.

O papel atribuído naquela teoria à hereditariedade nervosa é bem conhecido: é a única causa verdadeira e indispensável das afecções neuróticas, podendo as outras influências etiológicas aspirar apenas ao nome de agents provocateurs. Essa era a opinião sustentada pelo próprio grande homem e por seus discípulos, MM. Guinon, Gilles de la Tourette, Janet e outros, a respeito da neurose maior, a histeria; e creio que a mesma visão seja sustenta da na França e na maioria dos outros lugares a propósito das demais neuroses, embora, no que concerne a esses estados análogos à histeria, ainda não tenha sido promulgada de maneira tão solene e decidida.

Por muito tempo tive dúvidas sobre esse assunto, mas tive que esperar pela descoberta de fatos corroborativos em minha experiência cotidiana como médico. Minhas objeções são agora de ordem dúplice: argumentos fatuais e argumentos derivados da especulação. Começarei pelos primeiros, dispondo-os de acordo com a importância que lhes atribuo.

 

I

 

(a) Certas afecções que, muitas vezes, estão bem distantes do domínio da neuropatologia, e que não dependem necessariamente de uma doença do sistema nervoso, têm sido ocasionalmente consideradas como nervosas e como demonstrativas da presença de uma tendência neuropática hereditária. É o que tem ocorrido com as nevralgias faciais autênticas e com muitas dores de cabeça que se acreditava serem nervosas, embora na verdade proviessem de alterações patológicas pós-infecciosas e de supuração nas cavidades faringonasais. Estou convencido de que os pacientes seriam beneficiados se encaminhássemos com mais freqüência o tratamento dessas afecções aos cirurgiões rinológicos.

(b) Todas as afecções nervosas encontradas na família do paciente, sem consideração para com sua freqüência ou gravidade, têm sido aceitas como fundamento para atribuir-lhe uma tara nervosa hereditária. Não implicará esse modo de encarar as coisas o estabelecimento de uma nítida linha divisória entre famílias livres de qualquer predisposição nervosa e famílias sujeitas a ela em grau ilimitado? E será que os fatos não depõem a favor da concepção contrária de que há transições e graus na predisposição nervosa, e de que nenhuma família escapa a ela por completo?

(c) Nossa opinião sobre o papel etiológico da hereditariedade nas doenças nervosas deve decididamente basear-se num exame estatístico imparcial, e não numa petitio principii. Até que se faça tal exame, devemos acreditar que a existência de distúrbios nervosos adquiridos é tão viável quanto a de distúrbios hereditários. Contudo, se houver distúrbios nervosos adquiridos por pessoas sem nenhuma predisposição, não mais se poderá negar que as afecções nervosas encontradas em parentes de nosso paciente talvez tenham surgido, em parte, dessa maneira. Não será mais possível, então, citá-los como prova conclusiva da predisposição hereditária imputada a nosso paciente em razão de sua história familiar, pois é raro conseguir-se fazer com êxito um diagnóstico retrospectivo das doenças dos ancestrais ou dos familiares ausentes.

(d) Os adeptos de M. Fournier e M. Erb quanto ao papel desempenhado pela sífilis na etiologia da tabes dorsal e da paralisia progressiva aprenderam que é preciso reconhecer poderosas influências etiológicas cuja colaboração é indispensável para a patogênese de certas doenças, que não se produziriam apenas pela hereditariedade. Contudo, M. Charcot se manteve, até o fim (sei disso por uma carta particular que recebi dele), estritamente contrário à teoria de Fournier, que no entanto vem ganhando terreno dia a dia.

(e) Não há dúvida de que certos distúrbios nervosos podem desenvolver-se em pessoas perfeitamente sadias cujas famílias estão acima de qualquer recriminação. Esse é um fato cotidianamente constatado nos casos da neurastenia de Beard; se a neurastenia estivesse restrita às pessoas predispostas, nunca teria atingido a importância e a extensão com que estamos familiarizados.

(f) Na patologia nervosa existe a hereditariedade similar e o que se conhece como hereditariedade dissimilar. Não é possível fazer nenhuma objeção à primeira; é realmente notável que, nos distúrbios que dependem da hereditariedade similar (doença de Thomsen, doença de Friedrich, as miopatias, a coréia de Huntington etc.), nunca deparemos com vestígios de qualquer outra influência etiológica acessória. Já a hereditariedade dissimilar, que é muito mais importante do que a outra, deixa lacunas que teriam de ser preenchidas antes que se pudesse chegar a uma solução satisfatória dos problemas etiológicos. A hereditariedade dissimilar consiste no fato de membros de uma mesma família serem afetados pelos mais diversos distúrbios nervosos, funcionais e orgânicos, sem que se possa descobrir qualquer lei determinante da substituição de uma doença por outra ou da ordem de sua sucessão entre as gerações. Ao lado dos membros doentes dessas famílias há outros que permanecem saudáveis; e a teoria da hereditariedade dissimilar não nos diz por que uma pessoa tolera a mesma carga hereditária sem sucumbir a ela, ou por que outra pessoa, doente, opta por uma afecção nervosa específica dentre todas as doenças que compõem a grande família das doenças nervosas, em vez de escolher uma outra — a histeria em lugar da epilepsia ou da insanidade, e assim por diante. Desde que, tanto na patogênese neurótica quanto em qualquer outra área, não se pode falar em acaso, deve-se admitir que não é a hereditariedade que rege a escolha do distúrbio nervoso específico a ser desenvolvido no membro predisposto de uma família, mas que há motivos para se suspeitar da existência de outras influências etiológicas de natureza menos incompreensível, que mereceriam então ser chamadas de etiologia específica dessa ou daquela afecção nervosa. Sem a existência desse fator etiológico especial, a hereditariedade nada poderia ter feito; ter-se-ia prestado à produção de algum outro distúrbio nervoso, caso a etiologia específica em questão tivesse sido substituída por alguma outra influência.

 

II

 

Tem havido pouquíssimas pesquisas sobre essas causas específicas e determinantes dos distúrbios nervosos, pois a atenção dos médicos permaneceu deslumbrada pela grandiosa perspectiva da precondição etiológica da hereditariedade. Tais causas merecem, no entanto, ser objeto de estudo assíduo. Embora seu poder patogênico, em geral, seja apenas secundário ao da hereditariedade, há um grande interesse prático ligado ao conhecimento dessa etiologia específica; ela permitirá que nossos esforços terapêuticos encontrem uma via de acesso, enquanto a predisposição hereditária, previamente fixada para o paciente desde seu nascimento, leva nossos esforços a um impasse com seu poder inacessível.

Há anos me venho empenhando em pesquisas sobre a etiologia das quatro grandes neuroses (estados nervosos funcionais análogos à histeria), e é o resultado desses estudos que me proponho descrever-lhes nas páginas seguintes. Para evitar possíveis mal-entendidos, começarei por fazer dois comentários sobre a nosografia das neuroses e sobre a etiologia das neuroses em geral.

Fui obrigado a começar meu trabalho por uma inovação nosográfica. Julguei razoável dispor ao lado da histeria a neurose obsessiva (Zwangsneurose), como distúrbio auto-suficiente e independente, embora a maioria das autoridades situe as obsessões entre as síndromes constitutivas da degeneração mental ou as confunda com a neurastenia. Por meu lado, examinando o mecanismo psíquico das obsessões, eu havia aprendido que elas estão mais estreitamente ligadas à histeria do que se poderia supor.

A histeria e a neurose obsessiva compõem o primeiro grupo das grandes neuroses por mim estudadas. O segundo contém a neurastenia de Beard, que dividi em dois estados funcionais separados tanto por sua etiologia como por seu aspecto sintomático — a neurastenia propriamente dita e a neurose de angústia (Angstneurose), nome com o qual, diga-se de passagem, eu mesmo não estou satisfeito. Apresentei minhas razões detalhadas para fazer essa separação, que considero necessária, num artigo publicado em 1895 |Freud, 1895b|.

No que se refere à etiologia das neuroses, penso que a teoria deve reconhecer que as influências etiológicas, diferentes entre si tanto em importância quanto na maneira como se relacionam com o efeito que produzem, podem ser agrupadas em três classes: (1) Precondições, que são indispensáveis para produzir o distúrbio em causa, mas que são de caráter geral e igualmente encontráveis na etiologia de muitos outros distúrbios; (2) Causas Concorrentes, que compartilham com as precondições a característica de funcionarem tanto na causação de outros distúrbios quanto na do distúrbio em questão, mas que não são indispensáveis para a produção deste último; e (3) Causas Específicas, que são indispensáveis como as precondições, mas têm natureza limitada e só aparecem na etiologia do distúrbio de que são específicas.

Na patogênese das grandes neuroses, portanto, a hereditariedade preenche o papel de precondição, poderosa em todos os casos e até indispensável na maioria deles. Ela não poderia prescindir da colaboração das causas específicas, mas a importância da predisposição hereditária é comprovada pelo fato de que as mesmas causas específicas, agindo num indivíduo saudável, não produzem nenhum efeito patológico manifesto, ao passo que, numa pessoa predisposta, sua ação provoca a emergência da neurose, cujo desenvolvimento será proporcional em intensidade e extensão ao grau da precondição hereditária.

Assim, a ação da hereditariedade é comparável à de um multiplicador num circuito elétrico, multiplicador este que exagera o desvio visível da agulha, mas não pode determinar sua direção.

Há ainda outra coisa a ser notada nas relações entre a precondição hereditária e as causas específicas das neuroses. A experiência mostra — como se poderia imaginar de antemão — que, nessas questões de etiologia, não se devem desprezar as quantidades relativas, por assim dizer, das influências etiológicas. Mas não se poderia adivinhar o seguinte fato, que parece proceder de minhas observações: a saber, que a hereditariedade e as causas específicas podem substituir uma à outra no que tange à quantidade — que o mesmo efeito patológico é produzido pela coincidência de uma etiologia específica muito grave com uma predisposição moderada, ou de uma hereditariedade nervosa intensamente carregada com uma leve influência específica. E estaremos simplesmente nos deparando com exemplos extremos e esperáveis nessa série, se encontrarmos casos de neurose nos quais procuremos inutilmente qualquer grau apreciável de predisposição hereditária, desde que o que falta seja compensado por uma poderosa influência específica.

Como causas concorrentes (ou auxiliares) das neuroses podemos enumerar todos os agentes banais encontrados em outras situações: perturbação emocional, esgotamento físico, doenças graves, intoxicações, acidentes traumáticos, sobrecarga intelectual etc. Sustento que nenhum desses, nem mesmo o último, integra regular ou necessariamente a etiologia das neuroses, e estou ciente de que expressar essa opinião equivale a ficar em oposição direta a uma teoria considerada universalmente aceita e irrepreensível. Desde que Beard declarou a neurastenia como fruto de nossa civilização moderna, só tem encontrado seguidores; entretanto, acho impossível aceitar essa visão. Um laborioso estudo das neuroses ensinou-me que a etiologia específica das neuroses escapou à observação de Beard.

Não tenho qualquer desejo de depreciar a importância etiológica desses agentes banais. Por serem muito diversificados, ocorrerem com grande freqüência e serem na maioria das vezes nomeados pelos próprios pacientes, eles se tornam mais preeminentes do que as causas específicas das neuroses — uma etiologia que está oculta ou é desconhecida. Com freqüência considerável, cumprem a função de agents provocateurs que tornam manifesta uma neurose antes latente; e há um interesse prático ligado a eles, pois o exame dessas causas banais pode oferecer linhas de abordagem para uma terapia que não tenha como objetivo uma cura radical e se satisfaça em reprimir a doença a seu estado de latência anterior.

Todavia, é impossível estabelecer qualquer relação constante e estreita entre uma dessas causas banais e essa ou aquela forma de afecção nervosa. O distúrbio emocional, por exemplo, encontra-se igualmente na etiologia da histeria, das obsessões e da neurastenia, assim como na da epilepsia, da doença de Parkinson, do diabetes e de muitas outras.

As causas concorrentes banais podem também substituir a etiologia específica com respeito à quantidade, mas nunca tomar seu lugar inteiramente. Há numerosos casos em que todas as influências etiológicas são representadas pela precondição hereditária e pela causa específica, estando ausentes as causas banais. Em outros casos, os fatores etiológicos indispensáveis não são quantitativamente suficientes em si mesmos para acarretar a eclosão da neurose; um estado de aparente saúde pode ser mantido por muito tempo, embora seja, na realidade, um estado de predisposição à neurose. Basta então que uma causa banal entre também em ação para que a neurose se torne manifesta. Mas é preciso assinalar claramente que, nessas condições, a natureza da causa banal que sobrevém é absolutamente indiferente — seja ela uma emoção, um trauma, uma doença infecciosa ou qualquer outra coisa. O efeito patológico não será modificado de acordo com essa variação; a natureza da neurose será sempre dominada pela causa específica preexistente.

Quais são, então, as causas específicas das neuroses? Haverá uma só causa ou várias? E será que é possível estabelecer uma relação etiológica constante entre uma dada causa e um dado efeito neurótico, de tal modo que cada uma das grandes neuroses possa ser atribuída a uma etiologia especial?

Com base num árduo exame dos fatos, afirmo que esta última suposição concorda perfeitamente com a realidade, que cada uma das grandes neuroses que enumerei tem como causa imediata uma perturbação específica da economia do sistema nervoso, e que essas modificações patológicas funcionais têm como fonte comum a vida sexual do sujeito, quer residam num distúrbio de sua vida sexual contemporânea, quer em fatos importantes de sua vida passada.

Esta não é, para dizer a verdade, uma proposição nova e jamais ouvida. Os distúrbios sexuais sempre foram admitidos entre as causas da doença nervosa, mas têm sido subordinados à hereditariedade e coordenados com os demais agents provocateurs; sua influência etiológica tem-se restringido a um número limitado de casos observados. Os médicos haviam até mesmo caído no hábito de não investigá-los, a menos que o próprio paciente os mencionasse. O que confere um caráter distintivo a minha linha de abordagem é que elevo essas influências sexuais à categoria de causas específicas, reconheço sua atuação em todos os casos de neurose e, finalmente, traço um paralelismo regular, prova de uma relação etiológica especial, entre a natureza da influência sexual e a espécie patológica da neurose.

Estou certo de que essa teoria invocará uma tempestade de contestações por parte dos médicos contemporâneos. Mas não é este o lugar para apresentar a documentação e as experiências que me forçaram a minha convicção, nem para explicar o verdadeiro sentido da expressão bastante vaga “distúrbios da economia do sistema nervoso”. Isso será feito mais completamente, espero, num trabalho que estou preparando sobre o assunto. No presente artigo limito-me a relatar minhas descobertas.

A neurastenia propriamente dita, ao destacarmos dela a neurose de angústia, tem um aspecto clínico muito monótono: fadiga, pressão intracraniana, dispepsia flatulenta, constipação, parestesias raquidianas, fraqueza sexual etc. Sua única etiologia específica é fornecida pela masturbação (imoderada) ou pelas emissões espontâneas.

É a ação prolongada e intensa dessa perniciosa satisfação sexual que se revela suficiente, por si mesma, para provocar uma neurose neurastênica, ou que imprime no sujeito a marca neurastênica especial que depois se manifesta sob a influência de uma causa acessória incidental. Deparei também com pessoas, apresentando indicações de uma constituição neurastênica, nas quais não consegui trazer à luz a etiologia que mencionei, mas ao menos mostrei que a função sexual nunca se desenvolvera até seu nível normal nesses pacientes; a hereditariedade parecia tê-los dotado de uma constituição sexual análoga à que se produz no neurastênico em conseqüência da masturbação.

A neurose de angústia exibe um quadro clínico muito mais rico: irritabilidade, estados de expectativa angustiada, fobias, ataques de angústia completos ou rudimentares, ataques de medo e de vertigem, tremores, suores, congestão, dispnéia, taquicardia etc., diarréia crônica, vertigem locomotora crônica, hiperestesia, insônia etc. Ela se revela facilmente como sendo o efeito específico de várias perturbações da vida sexual, todas as quais possuem uma característica comum. A abstinência forçada, a excitação genital não consumada (excitação não aliviada pelo ato sexual), o coito imperfeito ou interrompido (que não termina em gratificação), os esforços sexuais que excedem a capacidade física do sujeito etc. — todos esses agentes, que ocorrem tão freqüentemente na vida moderna, parecem concordar quanto ao fato de que perturbam o equilíbrio das funções psíquicas e somáticas nos atos sexuais, e de que impedem a participação psíquica necessária para libertar a economia nervosa da tensão sexual.

Estes comentários, que talvez contenham o germe de uma explicação teórica do mecanismo funcional da neurose em questão, já levantam a suspeita de que uma exposição completa e verdadeiramente científica do assunto não é possível no momento, e de que seria necessário começar por uma abordagem do problema fisiológico da vida sexual a partir de um novo ângulo.

Direi, finalmente, que a patogênese da neurastenia e da neurose de angústia pode facilmente prescindir da cooperação de uma predisposição hereditária. Este é o resultado da observação cotidiana. Contudo, quando a hereditariedade está presente, o desenvolvimento da neurose é afetado por sua poderosa influência.

No que concerne à segunda classe das grandes neuroses, a histeria e a neurose obsessiva, a solução do problema etiológico é de surpreendente simplicidade e uniformidade. Devo meus resultados a um novo método de psicanálise, o procedimento exploratório de Josef Breuer; é um pouco intrincado, mas insubstituível, tal a fertilidade que tem demonstrado para lançar luz sobre os obscuros caminhos da ideação inconsciente. Por meio desse procedimento — este não é o lugar para descrevê-lo —, os sintomas histéricos são investigados até sua origem, sempre encontrada em algum evento da vida sexual do sujeito, apropriado para a produção de uma emoção aflitiva. Percorrendo retrospectivamente o passado do paciente, passo a passo, e sempre guiado pelo encadeamento orgânico dos sintomas e das lembranças e representações despertadas, atingi finalmente o ponto de partida do processo patológico; e fui obrigado a verificar que, no fundo, a mesma coisa estava presente em todos os casos submetidos à análise — a ação de um agente que deve ser aceito como causa específica da histeria.

Esse agente é, de fato, uma lembrança relacionada à vida sexual, mas que apresenta duas características de máxima importância. O evento do qual o sujeito reteve uma lembrança inconsciente é uma experiência precoce de relações sexuais com excitação real dos órgãos genitais, resultante de abuso sexual cometido por outra pessoa; e o período da vida em que ocorre esse evento fatal é a infância — até a idade de 8 ou 10 anos, antes que a criança tenha atingido a maturidade sexual.

Uma experiência sexual passiva antes da puberdade: eis, portanto, a etiologia específica da histeria.

Acrescentarei sem demora alguns detalhes fatuais e alguns comentários sobre o resultado que anunciei, a fim de combater o ceticismo com que espero deparar-me. Pude efetuar uma psicanálise completa em treze casos de histeria, três dos quais eram combinações efetivas de histeria e neurose obsessiva. (Não me refiro à histeria com obsessões.) Em nenhum desses casos faltou um evento do tipo definido acima. Este era representado quer por um ataque brutal praticado por um adulto, quer por uma sedução menos rápida e menos repulsiva, mas chegando à mesma conclusão. Em sete dos treze casos a relação se dera entre duas crianças — relações sexuais entre uma garotinha e um menino um pouco mais velho (na maioria das vezes, um irmão), que fora por sua vez vítima de sedução anterior. Essas relações por vezes perduraram durante anos, até os pequenos culpados atingirem a puberdade; o menino repetia reiteradamente com a garotinha as mesmas práticas, sem alteração — práticas às quais ele próprio fora submetido por alguma criada ou governanta e que, em virtude de sua origem, eram freqüentemente de natureza repugnante. Em alguns casos, havia a combinação de um ataque com relações entre crianças, ou a repetição de um abuso brutal.

A data dessa experiência precoce era variável. Em dois casos, a série foi iniciada no segundo ano de vida da criaturinha(?);a idade mais comum em minhas observações é o quarto ou quinto ano. Talvez ela seja um tanto acidental, mas formei a opinião, a partir disso, de que uma experiência sexual passiva que só ocorra após a idade de oito a dez anos não pode mais servir como fundação da neurose.

Como é possível ficar convencido da realidade dessas confissões analíticas, que alegam ser lembranças guardadas da mais tenra infância? E como precaver-se contra a tendência a mentir e a facilidade de invenção atribuídas aos sujeitos histéricos? Eu me acusaria de censurável credulidade se não dispusesse de provas mais conclusivas. Mas o fato é que esses pacientes nunca repetem tais histórias espontaneamente, nem jamais apresentam ao médico, repetidamente, no curso do tratamento, a recordação completa de uma cena desse gênero. Só se consegue despertar o vestígio psíquico de um evento sexual precoce sob a mais vigorosa pressão da técnica analítica e vencendo uma enorme resistência. Além disso, a lembrança tem que ser extraída dos pacientes pouco a pouco e, enquanto vai sendo despertada em sua consciência, eles se tornam presa de uma emoção difícil de ser forjada.

No fim, virá a convicção, mesmo que não se seja influenciado pelo comportamento do paciente, desde que se possa acompanhar com detalhes o relato da psicanálise de um caso de histeria.

O evento precoce deixa uma marca indelével na história clínica, sendo nela representado por uma profusão de sintomas e traços especiais que não poderiam ser explicados de nenhum outro modo; é peremptoriamente exigido pelas interconexões sutis, mas sólidas, da estrutura intrínseca da neurose; o efeito terapêutico da análise se retarda quando não se penetra tão fundo, e então não resta outra escolha senão rejeitar ou aceitar o conjunto.

Será compreensível que esse tipo de experiência sexual precoce, sofrida por um indivíduo cujo sexo mal se diferenciou, pode tornar-se fonte de uma anormalidade psíquica persistente como a histeria? E como se enquadraria essa suposição em nossas idéias atuais sobre o mecanismo psíquico daquela neurose? É possível dar uma resposta satisfatória à primeira dessas questões. É precisamente por estar o sujeito em sua primeira infância que a excitação sexual precoce surte pouco ou nenhum efeito na época; mas seu traço psíquico é preservado. Mais tarde, na puberdade, quando as reações dos órgãos sexuais se desenvolvem num nível desproporcional a seu estado infantil, esse traço psíquico inconsciente é de algum modo despertado. Graças à transformação devida à puberdade, a lembrança exibe um poder que esteve totalmente ausente do próprio evento. A lembrança atua como se ele fosse um evento contemporâneo. O que acontece é, por assim dizer, a ação póstuma de um trauma sexual.

Ao que eu sabia, esse despertar de uma lembrança sexual após a puberdade, quando o próprio evento ocorreu muito antes desse período, constitui a única situação psicológica em que o efeito imediato de uma lembrança suplanta o efeito de um evento atual. Mas trata-se de uma constelação anormal, que afeta o lado fraco do mecanismo psíquico e está fadada a produzir um efeito psíquico patológico.

Creio poder constatar que essa relação inversa entre o efeito psíquico da lembrança e o do evento contém a razão pela qual a lembrança permanece inconsciente.

Nesse aspecto chegamos a um problema psíquico muito complexo, mas que, uma vez adequadamente apreciado, promete lançar luz sobre as mais delicadas questões da vida psíquica.

As idéias aqui apresentadas, que têm como ponto de partida a descoberta, pela psicanálise, de que a lembrança de uma experiência sexual precoce é sempre encontrada como causa específica da histeria, não se harmonizam com a teoria psicológica das neuroses sustentada por M. Janet, nem com qualquer outra; concordam perfeitamente, porém, com minhas próprias especulações sobre as “Abwehrneurosen” |neuroses de defesa|, tais como as desenvolvi em outro texto.

Todos os eventos subseqüentes à puberdade a que se deva atribuir influência no desenvolvimento da neurose histérica e na formação de seus sintomas são, de fato, apenas causas concorrentes — “agents provocateurs”, como Charcot costumava dizer, embora, para ele, a hereditariedade nervosa ocupasse o lugar que reivindico para a experiência sexual precoce. Esses agentes acessórios não estão sujeitos às condições estritas impostas às causas específicas; a análise demonstra de modo irrefutável que eles só desfrutam de uma influência patogênica na histeria graças a sua faculdade de despertarem o traço psíquico inconsciente do evento infantil. É também graças à ligação deles com a impressão patogênica primária, e inspirada nela, que a lembrança desses agentes torna-se por sua vez inconsciente e passa a contribuir para o desenvolvimento de uma atividade psíquica retirada do poder das funções conscientes.

A neurose obsessiva (Zwangsneurose) emerge de uma causa específica muito semelhante à da histeria. Também aqui encontramos um evento sexual precoce, ocorrendo antes da puberdade, cuja lembrança torna-se ativa durante ou depois desse período; e os mesmos comentários e argumentos que apresentei em conexão com a histeria se aplicarão as minhas observações sobre a outra neurose (seis casos, três dos quais puros). Há apenas uma diferença que parece capital. Na base da etiologia da histeria encontramos um evento de sexualidade passiva, uma experiência à qual alguém se submeteu com indiferença ou com um pequeno grau de aborrecimento ou medo. Na neurose obsessiva, trata-se, por outro lado, de um evento que proporcionou prazer, de um ato de agressão inspirado no desejo (no caso do menino) ou de um ato de participação nas relações sexuais acompanhado de gozo (no caso da menina). As representações obsessivas, quando seu significado íntimo é reconhecido pela análise, quando se reduzem, por assim dizer, a sua expressão mais simples, nada passam de recriminações dirigidas pelo sujeito a si mesmo por causa desse gozo sexual antecipado, mas recriminações distorcidas por um trabalho psíquico inconsciente de transformação e substituição.

O próprio fato de agressões sexuais desse tipo ocorrerem em tão tenra idade parece revelar a influência de uma sedução prévia, da qual a precocidade do desejo sexual seria uma conseqüência. Nos casos por mim analisados, a análise confirma essa suspeita. Assim se explica um interessante fato que é sempre encontrado nesses casos de obsessão: a complicação regular do quadro de sintomas por certo número de sintomas simplesmente histéricos.

A importância do elemento ativo na vida sexual como causa das obsessões, e da passividade sexual na patogênese das histerias, parece até mesmo desvendar a razão da conexão mais íntima da histeria com o sexo feminino e da preferência dos homens pela neurose obsessiva. Às vezes deparamos com um par de pacientes neuróticos que formaram um casal de pequenos amantes em sua mais remota infância — o homem sofrendo de obsessões e a mulher, de histeria. Quando se trata de irmão e irmã, pode-se cometer o equívoco de tomar como resultado da hereditariedade nervosa o que é, de fato, conseqüência de experiências sexuais precoces.

Há, sem dúvida, casos puros e isolados de histeria ou de obsessões, independentes da neurastenia ou da neurose de angústia; mas essa não é a regra. A psiconeurose aparece mais freqüentemente como um acessório da neurose neurastênica, provocada por esta e acompanhando seu declínio. Isso ocorre porque as causas específicas da neurastenia, as perturbações contemporâneas da vida sexual, atuam ao mesmo tempo como causas auxiliares da psiconeurose, cuja causa específica, a lembrança da experiência sexual precoce, elas despertam e revivem.

No que concerne à hereditariedade nervosa, estou longe de poder estimar corretamente sua influência na etiologia das psiconeuroses. Admito que sua presença é indispensável para os casos graves; duvido que seja necessária para os leves, mas estou convencido de que a hereditariedade nervosa, por si só, é incapaz de produzir as psiconeuroses se faltar sua etiologia específica, isto é, a excitação sexual precoce. Creio mesmo que a decisão quanto ao desenvolvimento de uma das duas neuroses, histeria ou obsessões, em determinado caso, não provém da hereditariedade, mas de uma característica especial do evento sexual na tenra infância.

 

OBSERVAÇÕES ADICIONAIS SOBRE AS NEUROPSICOSES DE DEFESA (1896)

 

NOTA DO EDITOR INGLÊS

 

WEITERE BEMERKUNGEN ÜBER DIE

ABWERHNEUROPSYCHOSEN

 

(a)EDIÇÕES ALEMÃS:

1896 Neurol. Zbl., 15 (10), 434-48. (15 de maio.)

1906 S.K.S.N., 1, 112-34. (1911, 2ª ed.; 1920, 3ª ed.; 1922, 4ª. ed.)

1925 G.S., 1, 363-87.

1952 G.W., 1, 379-403.

 

(b)TRADUÇÕES INGLESAS:

“Further Observations on the Defense Neuropsychoses”

1909 S.P.H., 155-74. (Trad. de A. A. Brill.) (1912, 2ª ed.; 1920, 3ª ed.)

 

“Further Remarks on the Defence Neuro-Psychoses”

1924 C.P., 1, 155-82. (Trad. de J. Rickman.)

Incluído (Nº XXXV) na coleção de sinopses dos primeiros trabalhos de Freud elaborada por ele mesmo (1897b). A presente tradução, com o título modificado, baseia-se na de 1924.

 

Este artigo, como já se explicou na ver em [1], foi enviado por Freud no mesmo dia (5 de fevereiro de 1896) que o artigo em francês sobre “A Hereditariedade e a Etiologia das Neuroses”, mas foi publicado seis semanas depois dele. Quando este artigo chegou a ser incluído nos Gesammelte Schriften, em 1925, Freud acrescentou-lhe duas ou três notas de rodapé. Anteriormente, ele fizera um acréscimo substancial a uma nota de rodapé na tradução inglesa de 1924 (ver em [1], adiante), mas este não foi incluído em nenhuma edição alemã.

Este segundo artigo sobre as “neuropsicoses de defesa” retoma a discussão no ponto em que ela fora deixada no primeiro artigo (1894a), produzido dois anos antes. Muitas das conclusões aqui alcançadas tinham sido brevemente antecipadas pelo artigo contemporâneo em francês sobre a hereditariedade (1896a); a parte essencial do trabalho fora comunicada algumas semanas antes a Fliess, num longo documento intitulado por Freud “Um Conto de Fadas Natalino”, datado de 1º de janeiro de 1896 (Freud, 1950a, Rascunho K). Como seu predecessor de 1894, o presente trabalho é dividido em três seções, que tratam respectivamente da histeria, das obsessões e dos estados psicóticos, sendo-nos apresentados, em cada caso, os resultados de dois anos de investigações adicionais. No artigo anterior, a ênfase já era posta no conceito de “defesa” ou “recalcamento”; aqui há um exame muito mais detalhado daquilo contra o qual a defesa é posta em ação, e conclui-se, em todos os casos, que o fator responsável é uma experiência sexual de caráter traumático — no caso da histeria, uma experiência passiva; no das obsessões, ativa, muito embora, mesmo nesse caso, uma experiência passiva anterior remonte a um plano ainda mais remoto. Em outras palavras, a causa última seria sempre a sedução de uma criança por um adulto. (Cf. “A Etiologia da Histeria”, 1896c, ver em [1], adiante.) Além disso, o evento traumático efetivo sempre ocorreria antes da puberdade, embora a irrupção da neurose ocorresse após a puberdade.

Como se perceberá pela longa nota de rodapé acrescentada por Freud à ver em [1], toda essa posição foi depois abandonada por ele, e tal abandono assinalou uma reviravolta da maior importância em seus pontos de vista. Numa carta a Fliess em 21 de setembro de 1897 (Freud, 1950a Carta 69), Freud revelou que há alguns meses vinha despontando nele a idéia de que era muito difícil acreditar que os atos pervertidos contra as crianças fossem tão generalizados — em especial porque, na totalidade dos casos, o pai era responsabilizado por eles. Só após vários anos, porém, foi que ele deu expressão pública a suas opiniões modificadas. Entretanto, a importante conseqüência dessa percepção foi que Freud se conscientizou do papel desempenhado pela fantasia nos eventos mentais, o que abriu as portas para a descoberta da sexualidade infantil e do complexo de Édipo. Um relato mais minucioso das mudanças em suas concepções sobre o assunto é fornecido na Nota do Editor inglês aos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1950d), Edição Standard Brasileira, Vol. VII, ver em [1] e segs., IMAGO Editora, 1972, enquanto um outro desenvolvimento está registrado no artigo posterior de Freud sobre “Sexualidade Feminina” (1913b) ibid., Vol. XXI, ver em [1], IMAGO Editora, 1974, onde as fantasias primitivas da menina sobre a sedução pelo pai são atribuídas às relações tidas ainda mais cedo com a mãe.

Aliás, o problema de como a lembrança de um trauma infantil podia ter um efeito tão maior do que a experiência real dele na época — problema repetidamente discutido por Freud nesse período e cuidadosamente tratado em sua longa nota de rodapé em [1] — perdeu sentido graças à descoberta da sexualidade infantil e ao reconhecimento da persistência dos movimentos inconscientes.

Talvez seja ainda mais interessante observar a emergência, neste artigo, de vários novos mecanismos psicológicos que viriam a desempenhar um enorme papel nas explicações posteriores de Freud sobre os processos mentais. Especialmente notável é a minuciosa análise dos mecanismos obsessivos, que antecipa muito do que iria aparecer quinze anos depois na seção teórica da análise do “Homem dos Ratos” (1909d). Assim, encontramos as primeiras alusões à concepção das obsessões como auto-acusações (ver em [1]), à noção de sintoma implicando uma falha da defesa e um “retorno do recalcado” (ibid.), e à abrangente teoria de que os sintomas são formações de compromisso entre as forças recalcadas e as recalcadoras (ver em [1] e [2]). Finalmente, na seção sobre a paranóia, o conceito de “projeção” entra em cena pela primeira vez (ver em [1]) e, no conceito de “alteração do ego”, quase ao fim do artigo (conceito já presente no Rascunho K da correspondência com Fliess), podemos ver uma prefiguração de idéias que reaparecem em alguns dos últimos escritos de Freud, como, por exemplo, em “Análise Terminável e Interminável” (1937com).

 

OBSERVAÇÕES ADICIONAIS SOBRE AS NEUROPSICOSES DE DEFESA

 

[INTRODUÇÃO]

 

Num breve artigo publicado em 1894, agrupei a histeria, as obsessões e certos casos de confusão alucinatória aguda sob o nome de “neuropsicoses de defesa” [Freud, 1894a], porque tais afecções revelaram um aspecto comum. Este consistia em que seus sintomas emergiam por meio do mecanismo psíquico de defesa (inconsciente) — isto é, emergiam como uma tentativa de recalcar uma representação incompatível que se opunha aflitivamente ao ego do paciente. Em algumas passagens de um livro posteriormente publicado pelo Dr. J. Breuer e por mim (Estudos sobre a Histeria [1895d), pude elucidar e ilustrar, partindo das observações clínicas, o sentido em que se deve entender esse processo psíquico de “defesa” ou “recalcamento”. Há também ali algumas informações sobre o trabalhoso mas totalmente confiável método da psicanálise, usado por mim no curso daquelas investigações — investigações que também constituem uma técnica terapêutica.

Minhas observações durante os dois últimos anos de trabalho fortaleceram-me a tendência a considerar a defesa como o ponto nuclear no mecanismo psíquico das neuroses em questão, e também me capacitaram a fornecer  uma fundamentação clínica a essa teoria psicológica. Para minha surpresa, cheguei a algumas soluções simples, embora estritamente circunscritas, para os problemas da neurose, e nas páginas seguintes fornecerei um relato breve e preliminar delas. Neste tipo de comunicação é impossível apresentar as provas necessárias para sustentar minhas asserções, mas espero poder mais tarde cumprir com essa obrigação por intermédio de uma apresentação detalhada.

 

I - A ETIOLOGIA ESPECÍFICA DA HISTERIA

 

Em publicações anteriores, Breuer e eu já expressávamos a opinião de que os sintomas da histeria só poderiam ser compreendidos se remetidos a experiências de efeito traumático referindo-se esses traumas psíquicos à vida sexual do paciente. O que tenho a acrescentar aqui, como resultado uniforme das análises efetuadas por mim em treze casos de histeria, diz respeito, por um lado, à natureza desses traumas sexuais e, por outro, ao período da vida em que eles ocorrem. Para causar a histeria, não basta ocorrer em algum período da vida do sujeito um evento relacionado com sua vida sexual e que se torne patogênico pela liberação e supressão de um afeto aflitivo. Pelo contrário, tais traumas sexuais devem ter ocorrido na tenra infância, antes da puberdade, e seu conteúdo deve consistir numa irritação real dos órgãos genitais (por processos semelhantes à copulação).

Descobri um determinante específico da histeria — a passividade sexual durante o período pré-sexual — em todos os casos de histeria (inclusive dois casos masculinos) que analisei. Não é necessário fazer mais do que uma menção ao enorme grau em que ficam diminuídas as alegações em prol de uma predisposição hereditária em face desse estabelecimento de fatores etiológicos acidentais como sendo determinantes. Além disso, fica aberto um caminho para se compreender por que a histeria é tão mais freqüente nos membros do sexo feminino, pois, já na infância, estes são mais suscetíveis de provocar ataques sexuais.

As objeções mais imediatas a essa conclusão serão, provavelmente, que as investidas sexuais contra crianças pequenas ocorrem com demasiada freqüência para terem qualquer importância etiológica, ou que esse tipo de experiências está destinado a não ter efeito, precisamente por acontecer com pessoas não desenvolvidas sexualmente; e ainda, que se deve ter cuidado para não impor aos pacientes supostas reminiscências dessa espécie ao interrogá-los, e para não acreditar nos romances que eles mesmos inventam. Em resposta às últimas objeções, podemos pedir que ninguém forme juízos seguros demais nesse campo obscuro enquanto não tiver utilizado o único método que pode lançar luz sobre ele — o método da psicanálise, com o propósito de tornar consciente o que era até então inconsciente. O essencial nas primeiras objeções pode ser refutado ao se assinalar que não são as experiências em si que agem de modo traumático, mas antes sua revivescência como lembrança depois que o sujeito ingressa na maturidade sexual.

Meus treze casos eram graves, sem exceção; em todos eles a doença vinda de muitos anos, e alguns chegaram a mim após longo e fracassado tratamento institucional. Todos os traumas de infância que a análise descobriu nesses casos agudos tiveram que ser classificados como graves ofensas sexuais; alguns eram positivamente revoltantes. Em primeiro lugar entre os culpados de abusos como esses, com suas significativas conseqüências, estão as babás, governantas e empregadas domésticas, a cujos cuidados as crianças são muito impensadamente confiadas; os professores, ademais, figuram com lamentável freqüência. Em sete dos treze casos, entretanto, revelou-se que os autores das investidas tinham sido inocentes crianças; em sua maioria, eram irmãos que, por anos a fio, tinham mantido relações sexuais com irmãs um pouco mais novas. Sem dúvida, o curso dos acontecimentos, na totalidade dos casos, era semelhante ao que foi possível reconstituir com certeza em alguns casos individuais: em outras palavras, o menino sofrera um abuso por parte de alguém do sexo feminino, de modo que sua libido fora prematuramente despertada, e então, passados alguns anos, cometera um ato de agressão sexual contra sua irmã, com quem repetiu precisamente os mesmos procedimentos a que ele próprio fora submetido.

A masturbação ativa deve ser excluída da minha lista das perturbações sexuais na tenra infância que são patogênicas para a histeria. Embora seja encontrada muito freqüentemente ao lado da histeria, isso se deve à circunstância de que a própria masturbação é uma conseqüência muito mais freqüente do abuso ou da sedução do que se supõe.

Não é nada raro ambas as crianças adoecerem, mais tarde, vítimas de uma neurose de defesa — o irmão com obsessões e a irmã com histeria. Isso naturalmente produz a aparência de uma predisposição neurótica familiar. Ocasionalmente, contudo, essa pseudo-hereditariedade é resolvida de modo surpreendente. Em um de meus casos, um irmão, uma irmã e um primo um pouco mais velho estavam todos doentes. A partir da análise que realizei com o irmão, fiquei sabendo que ele sofria de auto-acusações por ser a causa da doença da irmã. Ele próprio fora seduzido pelo primo, e este último, como era sabido na família, fora vítima de sua babá.

Não sei dizer ao certo qual a idade máxima abaixo da qual a ofensa sexual desempenha um papel na etiologia da histeria; duvido, porém, que a passividade sexual possa resultar em recalcamento depois de uma idade entre oito e dez anos, a não ser que isso seja possibilitado por experiências anteriores. O limite mínimo retrocede tanto quanto a própria memória — isto é, portanto, até a tenra idade de um ano e meio ou dois anos! (Tive dois casos desse tipo.) Em muitos de meus casos, o trauma sexual (ou série de traumas) ocorreu no terceiro ou quarto anos de vida. Eu mesmo não daria crédito a essas extraordinárias descobertas se sua completa confiabilidade não fosse comprovada pelo desenvolvimento da neurose subseqüente. Em todos os casos, diversos sintomas, hábitos e fobias patológicos só podem ser explicados retrocedendo-se a essas experiências na infância, e a estrutura lógica das manifestações neuróticas torna impossível rejeitar essas lembranças fielmente preservadas que emergem da vida infantil. É verdade que seria inútil tentar extrair de um histérico esses traumas de infância interrogando-o fora da psicanálise; os vestígios deles nunca estão presentes na memória consciente, mas apenas nos sintomas da doença.

Todas as experiências e excitações que, no período posterior à puberdade, preparam o caminho ou precipitam a eclosão da histeria, só surtem esse efeito, como se pode demonstrar, por despertarem o traço mnêmico desses traumas de infância, que não se tornam conscientes de imediato, mas levam a uma descarga de afeto e ao recalcamento. Esse papel dos traumas posteriores se adequa bem ao fato de que eles não estão sujeitos às condições estritas que regem os traumas da infância, mas podem variar em intensidade e natureza, desde a efetiva violação sexual até meras investidas sexuais, ou ao testemunho dos atos sexuais de outras pessoas, ou ao recebimento de informações sobre os processos sexuais.

Em meu primeiro artigo sobre as neuroses de defesa |1894a|, não havia nenhuma explicação sobre o modo como os esforços do sujeito até então saudável para esquecer uma experiência traumática como essa podiam ter como resultado a realização efetiva do recalque pretendido, e assim abrir as portas para a neurose de defesa. Isso não poderia estar na natureza das experiências, já que outras pessoas permaneciam saudáveis, apesar de terem sido expostas às mesmas causas precipitantes. Portanto, a histeria não poderia ser inteiramente explicada a partir do efeito do trauma: era preciso reconhecer que a suscetibilidade a uma reação histérica já preexistiria ao trauma.

O lugar dessa predisposição histérica indefinida pode agora ser tomado, inteiramente ou em parte, pela ação póstuma de um trauma sexual na infância. O “recalcamento” da lembrança de uma experiência sexual aflitiva, que ocorre em idade mais madura, só é possível para aqueles em quem essa experiência consegue ativar o traço mnêmico de um trauma da infância.

As obsessões pressupõem, do mesmo modo, uma experiência sexual na infância (embora de natureza diferente da encontrada na histeria). A etiologia das duas neuropsicoses de defesa relaciona-se da seguinte maneira com a etiologia das duas neuroses simples, a neurastenia e a neurose de angústia: os dois últimos distúrbios são efeitos diretos das próprias perturbações sexuais, como demonstrei em meu artigo sobre a neurose de angústia (1895b); ambas as neuroses de defesa são conseqüências indiretas das perturbações sexuais ocorridas antes do advento da maturidade sexual — ou seja, são conseqüência dos traços mnêmicos psíquicos dessas perturbações. As causas atuais que produzem a neurastenia e a neurose de angústia freqüentemente desempenham, ao mesmo tempo, o papel de causas excitantes das neuroses de defesa; por outro lado, as causas específicas de uma neurose de defesa — os traumas da infância — podem ao mesmo tempo constituir a base para um desenvolvimento posterior da neurastenia. Finalmente, também não é raro a neurastenia ou a neurose de angústia serem mantidas, não pelas perturbações sexuais contemporâneas, mas, ao contrário, apenas pelo efeito persistente de uma lembrança de traumas infantis.

 

II - A NATUREZA E O MECANISMO DA NEUROSE OBSESSIVA

 

As experiências sexuais da primeira infância têm na etiologia da neurose obsessiva a mesma importância que na histeria. Aqui, entretanto, não se trata mais de passividade sexual, mas de atos de agressão praticados com prazer e de participação prazerosa em atos sexuais — ou seja, trata-se de atividade sexual. Essa diferença nas circunstâncias etiológicas está relacionada com o fato de a neurose obsessiva mostrar visível preferência pelo sexo masculino.

Além disso, em todos os meus casos de neurose obsessiva, descobri um substrato de sintomas histéricos que puderam ser atribuídos a uma cena de passividade sexual que precedeu a ação prazerosa. Suspeito de que essa coincidência não seja fortuita, e de que a agressividade sexual precoce implique sempre uma experiência prévia de ser seduzido. Entretanto, não posso ainda fornecer uma explicação definitiva sobre a etiologia da neurose obsessiva; tenho apenas a impressão de que o fator decisivo quanto à emergência de histeria ou neurose obsessiva a partir de traumas na infância depende de circunstâncias cronológicas no desenvolvimento da libido.

A natureza da neurose obsessiva pode ser expressa numa fórmula simples. As idéias obsessivas são, invariavelmente, auto-acusações transformadas que reemergiram do recalcamento e que sempre se relacionam com algum ato sexual praticado com prazer na infância. Para elucidar essa afirmação é necessário descrever o curso típico tomado por uma neurose obsessiva.

Num primeiro período — o período da imoralidade infantil — ocorrem os eventos que contêm o germe da neurose posterior. Antes de tudo, na mais tenra infância, temos as experiências de sedução sexual que mais tarde tornarão possível o recalcamento, e então sobrevêm os atos de agressão sexual contra o outro sexo, que aparecerão depois sob a forma de atos que envolvem auto-acusação.

Este período é encerrado pelo advento da “maturação” sexual, freqüentemente precoce demais. Uma auto-acusação fica então ligada à lembrança dessas ações prazerosas; e a conexão com a experiência inicial passiva torna possível |ver em [1]| — muitas vezes, só depois de esforços conscientes e lembrados — recalcá-las e substituí-las por um sintoma primário de defesa. A conscienciosidade, a vergonha e a autodesconfiança são sintomas dessa espécie, que dão início ao terceiro período — período de aparente saúde, mas, na realidade, de defesa bem-sucedida.

O período seguinte, o da doença, é caracterizado pelo retorno das lembranças recalcadas — isto é, pelo fracasso da defesa. Não se sabe ao certo se o despertar de tais lembranças ocorre com maior freqüência de modo espontâneo e acidental, ou em conseqüência de distúrbios sexuais contemporâneos, como uma espécie de subproduto deles. Entretanto, as lembranças reativadas e as auto-acusações delas decorrentes nunca reemergem inalteradas na consciência: o que se torna consciente como representações e afetos obsessivos, substituindo as lembranças patogênicas no que concerne à vida consciente, são estruturas da ordem de uma formação de compromisso entre as representações recalcadas e as recalcadoras.

Para descrever com clareza e provável precisão os processos de recalcamento, o retorno do recalcado e o surgimento de representações patológicas como formações de compromisso, seria necessário optar por pressupostos bem definidos a respeito do substrato dos eventos psíquicos e da consciência. Na medida em que se procure evitar isso, é preciso contentar-se com os comentários que se seguem e que devem ser entendidos de maneira mais ou menos figurada. Há duas formas de neurose obsessiva, conforme a passagem para a consciência seja forçada somente pelo conteúdo mnêmico do ato que envolve auto-acusação, ou também pelo afeto auto-acusador ligado àquele ato.

A primeira forma inclui as representações obsessivas típicas, nas quais o conteúdo retém a atenção do paciente e, à guisa de afeto, ele sente apenas um desprazer indefinido, ao passo que o único afeto adequado à representação obsessiva seria o de uma auto-acusação. O conteúdo da representação obsessiva é distorcido de dois modos em relação ao ato obsessivo da infância. Em primeiro lugar, alguma coisa contemporânea toma o lugar de algo do passado e, em segundo, alguma coisa sexual é substituída por algo não sexual que lhe é análogo. Essas duas alterações são efeito da tendência ainda vigente a recalcar, que atribuiremos ao “ego”. A influência da lembrança patogênica reativada é mostrada pelo fato de que o conteúdo da representação obsessiva é ainda parcialmente idêntico ao que fora recalcado, ou decorre dele por um encadeamento lógico do pensamento. Ao reconstruirmos, com a ajuda do método psicanalítico, a origem de uma representação obsessiva isolada, constatamos que, a partir de uma única impressão atual, dois cursos de pensamento diferentes foram ativados. Aquele que passou pela lembrança recalcada revela-se tão corretamente lógico em sua estrutura quanto o outro, embora seja incapaz de se tornar consciente e não seja passível de retificação. Quando os produtos dessas duas operações psíquicas não se coadunam, o que ocorre não é uma espécie de ajustamento lógico da contradição entre elas; em vez disso, paralelamente ao resultado intelectual normal, introduz-se na consciência, como uma solução de compromisso entre a resistência e o produto intelectual patológico, uma representação obsessiva que parece absurda. Quando os dois cursos de pensamento levam à mesma conclusão, eles se reforçam mutuamente, de modo que o produto intelectual a que se chegou normalmente comporta-se agora, em termos psicológicos, como uma representação obsessiva. Sempre que uma obsessão neurótica emerge na esfera psíquica, ela provém do recalcamento. As representações obsessivas têm, por assim dizer, uma circulação psíquica compulsiva |obsessiva|, não em virtude de seu valor intrínseco, mas em virtude da fonte de que derivam ou que acrescentou uma contribuição a seu valor.

Uma segunda forma da neurose obsessiva manifesta-se quando o que forçou sua representação na vida psíquica consciente não é o conteúdo mnêmico recalcado, mas a também recalcada auto-acusação. O afeto da auto-acusação pode, por meio de algum acréscimo mental, transformar-se em qualquer outro afeto desagradável. Quando isso acontece, não há mais nada que impeça o afeto posto no lugar do primeiro de se tornar consciente. Assim, a auto-acusação (por ter praticado o ato sexual na infância) pode facilmente transformar-se em vergonha (de que alguém o descubra), em angústia hipocondríaca (medo dos danos físicos resultantes do ato que envolve a auto-acusação), em angústia social (medo de ser socialmente punido pelo delito), em angústia religiosa, em delírios de ser observado (medo de delatar-se pelo ato diante de outras pessoas), ou em medo da tentação (justificada desconfiança em relação a seus próprios poderes de resistência), e assim por diante. Além disso, o conteúdo mnêmico do ato envolvido na auto-acusação pode ser representado também na consciência, ou permanecer completamente obscurecido — o que torna o diagnóstico muito mais difícil. Muitos casos que, superficialmente examinados, parecem ser de hipocondria (neurastênica) comum, pertencem a esse grupo de afetos obsessivos; o que se conhece como “neurastenia periódica” ou “melancolia periódica” parece, em particular, decompor-se com inesperada freqüência em afetos obsessivos e idéias obsessivas — uma descoberta que não é insignificante do ponto de vista terapêutico.

Além desses sintomas de compromisso, que significam o retorno do recalcado e, conseqüentemente, um colapso da defesa originalmente alcançada, a neurose obsessiva constrói um conjunto de outros sintomas cuja origem é muito diferente, pois o ego procura rechaçar os derivados da lembrança inicialmente recalcada e, nessa luta defensiva, cria sintomas que poderiam ser conjuntamente classificados como “defesa secundária”. Tudo isso constitui “medidas protetoras” que já prestaram bons serviços na luta contra as representações e afetos obsessivos. Quando esses auxiliares na luta defensiva conseguem genuinamente recalcar mais uma vez os sintomas do retorno |do recalcado| que se impuseram ao ego, a obsessão é transferida para as próprias medidas protetoras e cria uma terceira forma de “neurose obsessiva” — as ações obsessivas. Essas ações nunca são primárias; contêm exclusivamente uma defesa — nunca uma agressão. Sua análise psíquica mostra que, a despeito de sua peculiaridade, elas sempre podem ser inteiramente explicadas ao serem atribuídas às lembranças obsessivas contra as quais estão lutando.

A defesa secundária contra as representações obsessivas pode ser efetuada por um violento desvio para outros pensamentos de conteúdo tão contrário quanto possível. Eis por que a ruminação obsessiva, quando bem-sucedida, versa regularmente sobre coisas abstratas e supra-sensuais, pois as representações recalcadas sempre se referem à sensualidade. Ou então o paciente tenta controlar, ele próprio, cada uma de suas representações obsessivas, exclusivamente pelo trabalho lógico e pelo recurso a suas lembranças conscientes. Isso leva a um pensamento obsessivo, a uma compulsão a testar coisas e à mania de duvidar. A vantagem que a percepção leva sobre a lembrança em tais testes inicialmente impele e depois compele o paciente a colecionar e armazenar todos os objetos com que entra em contato. A defesa secundária contra os afetos obsessivos leva a um conjunto ainda mais vasto de medidas protetoras passíveis de se transformarem em atos obsessivos. Estes podem ser agrupados de acordo com seu objetivo; medidas penitenciais (cerimoniais opressivos, observação de números); medidas de precaução (toda sorte de fobias, superstição, minuciosidade, aumento do sintoma primário de conscienciosidade); medidas relacionadas com o medo de delatar-se (colecionar pedaços de papel, isolar-se), ou medidas para assegurar o entorpecimento |da mente| (dipsomania). Entre esses atos e impulsos obsessivos, as fobias, por restringirem a existência do paciente, desempenham o papel mais importante.

Há casos em que se pode observar como a obsessão é transferida da representação ou do afeto para a medida protetora; outros em que a obsessão oscila periodicamente entre o sintoma do retorno do recalcado e o sintoma da defesa secundária; e ainda outros casos em que nenhuma representação obsessiva é construída, mas, em vez disso, a lembrança recalcada é imediatamente representada pelo que é, aparentemente, uma medida primária de defesa. Aqui atingimos de um salto o estágio que, em outros casos, só encerra o curso percorrido pela neurose obsessiva após a ocorrência da luta defensiva. Os casos graves desse distúrbio terminam na fixação das ações cerimoniais, ou num estado generalizado de mania de duvidar, ou numa vida de excentricidades condicionada pelas fobias.

O fato de as representações obsessivas e o que delas deriva não receberem nenhum crédito |por parte do sujeito| explica-se, sem dúvida, pelo fato de, na época de seu primeiro recalcamento, ter-se formado o sintoma defensivo da conscienciosidade, e por tal sintoma adquirir também uma força obsessiva. A certeza do sujeito de ter vivido uma vida moralmente correta durante todo o período da defesa bem-sucedida torna-lhe impossível acreditar na auto-acusação que sua representação obsessiva implica. Apenas transitoriamente, ao aparecer uma nova representação obsessiva ou, ocasionalmente, em estados melancólicos de esgotamento do ego, é que os sintomas patológicos do retorno do recalcado compelem à crença. O caráter “obsessivo” das formações psíquicas que aqui descrevi geralmente nada tem a ver com a crença que se lhes atribua. Tampouco se deve confundi-lo com o fator que é descrito como “força” ou “intensidade” de uma representação. Sua essência é, antes, a indissolubilidade pela atividade psíquica passível de ser consciente; e esse atributo não sofre nenhuma mudança, quer a representação à qual se liga a obsessão seja mais forte ou mais fraca, mais ou menos intensamente “esclarecida”, ou “investida de energia”, e assim por diante.

A causa dessa invulnerabilidade da representação obsessiva e de seus derivados nada mais é, no entanto, do que sua ligação com a lembrança recalcada da tenra infância. E isso porque, ao conseguirmos tornar tal ligação consciente — e os métodos psicoterápicos já parecem poder fazer isso —, também a obsessão é resolvida.

 

III - ANÁLISE DE UM CASO DE PARANÓIA CRÔNICA

 

Por tempo considerável tenho alimentado a suspeita de que também a paranóia — ou algumas classes de casos que se incluem na categoria de paranóia — é uma psicose de defesa; isto é, que, tal como a histeria e as obsessões, ela provém do recalcamento de lembranças aflitivas, sendo seus sintomas formalmente determinados pelo conteúdo do que foi recalcado. Entretanto, a paranóia deve ter um método ou mecanismo especial de recalcamento que lhe é peculiar, assim como a histeria efetua o recalque pelo método da conversão em inervação somática, e neurose obsessiva, pelo método da substituição (ou seja, pelo deslocamento através de certas categorias de associações). Eu havia observado diversos casos que favoreciam essa interpretação, mas nenhum que a comprovasse; até que, alguns meses atrás, tive a oportunidade, graças à gentileza do Dr. Josef Breuer, de empreender a psicanálise, com propósitos terapêuticos, de uma mulher inteligente de 32 anos em cujo caso não se podia questionar o diagnóstico de paranóia crônica. Relato nestas páginas, sem mais delongas, parte das informações que pude obter a partir desse trabalho, pois não tenho perspectivas de estudar a paranóia exceto em ocasiões muito isoladas, e porque acho possível que meus comentários possam encorajar algum psiquiatra mais bem situado que eu nesse assunto a conferir ao fator da “defesa” seu lugar de direito na discussão sobre a natureza e o mecanismo psíquico. Naturalmente, com base na observação isolada que se segue, não tenho intenção de dizer mais do que: “Este é um caso de psicose de defesa e, muito provavelmente, há outros classificados como ‘paranóia’ que também o são.”

A Sra. P., de 32 anos de idade, é casada há três anos e mãe de uma criança de dois. Seus pais não eram neuróticos, mas seu irmão e sua irmã são, a meu ver, neuróticos como a Sra. P. É duvidoso se ela teria ou não, em alguma época entre seus vinte e trinta anos, ficado temporariamente deprimida e confusa em seus julgamentos. Nos últimos anos, era saudável e capaz, até que, seis meses após o nascimento de seu filho, mostrou os primeiros sinais de sua atual enfermidade. Tornou-se pouco comunicativa e desconfiada, manifestando aversão ao encontrar-se com os irmãos e irmãs do marido, e passou a se queixar de que seus vizinhos, na pequena cidade onde vivia, se estavam comportando para com ela de modo diferente do que faziam antes, sendo grosseiros e sem consideração. Gradualmente, essas queixas foram aumentando de intensidade, embora não em sua clareza. A Sra. P. achava que as pessoas tinham alguma coisa contra ela, embora não tivesse idéia do que fosse; mas não havia dúvida de que todos — parentes e amigos — tinham deixado de respeitá-la e estavam fazendo tudo o que podiam para menosprezá-la. Ela quebrava a cabeça, segundo dizia, para descobrir a razão disso, mas não fazia a menor idéia. Pouco tempo depois, queixou-se de que estava sendo observada, e de que as pessoas liam seus pensamentos e sabiam tudo o que ocorria em sua casa. Uma tarde, repentinamente, ocorreu-lhe que estava sendo observada enquanto se despia, à noite. Desde então, passou a tomar medidas da maior precaução ao despir-se; ia para o cama na escuro e só começava a tirar a roupa quando já estava embaixo das cobertas. Como evitasse todo o contato com outras pessoas, comesse frugalmente e estivesse muito deprimida, mandaram-na, no verão de 1895, a um estabelecimento hidropático. Lá, surgiram novos sintomas e os que ela já tinha aumentaram de intensidade. Já na primavera daquele ano, num dia em que estava sozinha com sua criada, tivera subitamente um sensação em seu baixo abdome e pensara consigo mesmo que a moça, naquele momento, tinha tido uma idéia imprópria. Essa sensação tornou-se mais freqüente durante o verão, até torna-se quase contínua. Ela sentia seus órgãos genitais “como se sente uma mão pesada”. Começou então a ver coisas que a horrorizavam — alucinações de mulheres nuas, especialmente da parte inferior do abdome feminino com os pêlos pubianos e, ocasionalmente, também da genitália masculina. A imagem do abdome com os pêlos e a sensação física em seu próprio abdome costumavam ocorrer juntas. As imagens tornaram-se muito torturantes, pois ocorriam regularmente quando ela estava em companhia feminina e a faziam pensar que estava vendo a mulher num estado indecente de nudez, mas que, simultaneamente, a mulher estava tendo dela o mesmo quadro (!). Ao mesmo tempo que tinha essa alucinações visuais — que se desvaneceram novamente por vários meses, depois de surgirem pela primeira vez no estabelecimento hidropático —, ela começou a ser importunada por vozes que não reconhecia nem conseguia explicar. Quando estava na rua, elas diziam: “Aquela é a Sra. P. — Lá vai ela! Aonde estará indo?” Cada um de seus movimentos e atos era comentado; e ouvia às vezes ameaças e censuras. Todos esse sintomas pioravam quando ela estava acompanhada ou na rua. Por essa razão, recusava-se a sair; dizia que comer a nauseava; e seu estado de saúde deteriorou-se rapidamente.

Obtive todas essas informações por ela mesma, quando veio a Viena tratar-se comigo, no inverno de 1895. Fiz dela uma exposição extensa porque quero transmitir a impressão de que o que temos aqui é, de fato, uma forma bem freqüente de paranóia crônica — conclusão a que veremos que se ajustam os detalhes de seus sintomas e comportamentos que ainda tenho a descrever. Nessa ocasião, ela escondeu de mim os delírios que serviriam para interpretar suas alucinações, ou talvez os delírios de fato ainda não tivessem ocorrido. Sua inteligência não diminuíra; a única coisa estranha de que tomei conhecimento foi que ela havia marcado encontros repetidos com seu irmão, que morava na imediações, para confiar-lhe alguma coisa importante, mas nunca lhe dissera nada. Ela nunca falou sobre suas alucinações e, ao se aproximar o fim, também não dizia mais muita coisa sobre as desfeitas e perseguições a que era submetida.

O que tenho a relatar sobre essa paciente refere-se à etiologia do caso e ao mecanismo das alucinações. Descobri a etiologia quando apliquei o método de Breuer, exatamente como num caso de histeria — em primeiro lugar, para a investigação e eliminação das alucinações. Ao fazê-lo, parti do pressuposto de que nesse caso de paranóia, exatamente como nas outras duas neuroses de defesa com que eu estava familiarizado, devia haver pensamentos inconscientes e lembranças recalcadas que poderiam ser trazidos à consciência do mesmo modo que naquelas neuroses, superando-se uma certa resistência. A paciente imediatamente confirmou minha expectativa, pois comportou-se na análise exatamente como, por exemplo, um paciente histérico; concentrando sua atenção sob a pressão de minha mão, ela produziu pensamentos que não se lembrava de ter tido, que a princípio não entendia e que eram contrários as suas expectativas. A presença de representações inconscientes importantes foi assim demonstrada também num caso de paranóia, e pude ter esperanças de investigar também a compulsão da paranóia até o recalcamento. A única peculiaridade consistia em que os pensamentos que emergiam do inconsciente eram, em sua maior parte, ouvidos interiormente pela paciente ou alucinados por ela, do mesmo modo que suas vozes.

Quanto à origem das alucinações visuais, ou ao menos das imagens nítidas, fiquei sabendo o seguinte: a imagem da parte inferior de um abdome de mulher quase sempre coincidia com a sensação física em seus próprio abdome; esta última, porém, era muito mais constante, e freqüentemente ocorria sem a imagem. As primeiras imagens de um abdome de mulher haviam surgido no estabelecimento hidropático, poucas horas depois de ela ter visto, de fato, diversas mulheres nuas nos banhos; assim, tais imagens revelaram ser simples reproduções de uma impressão real. Era de se presumir, portanto, que essas impressões se haviam repetido apenas por causa de um grande interesse ligado a elas. A Sra. P. me disse que se sentira envergonhada por essas mulheres; ela própria tinha vergonha de ser vista nua desde quando podia lembrar-se. Como estivesse obrigado a encarar a vergonha como alguma coisa obsessiva, concluí, de acordo com o mecanismo de defesa, que deveria ter sido recalcada uma experiência relacionada com algo de que ela não se envergonhara. Assim, pedi-lhe que deixasse emergirem as lembranças pertinentes ao tema de sentir-se envergonhada. Ela prontamente reproduziu uma série de cenas que retrocediam dos dezessete aos oito anos de idade, nas quais se envergonhava de estar nua no banho diante de sua mãe, sua irmã e do médico; mas a série terminou numa cena aos seis anos de idade, na qual ela se despia no quarto das crianças antes de ir para a cama, sem sentir qualquer vergonha diante do irmão que lá estava. Quando a interroguei, tornou-se clara que cenas como essa tinham ocorrido freqüentemente e que, durante anos, irmão e irmã tiveram o hábito de se exibirem nus um para o outro antes de irem para a cama. Compreendi então o sentido de sua idéia repetida de que estava sendo observada ao ir para a cama. Era um fragmento inalterado da antiga lembrança que envolvia uma autocensura, e ela agora estava suprimindo a vergonha que deixara de sentir quando criança.

Minha conjetura de que estaríamos diante de um caso amoroso entre crianças, como se encontra tão freqüentemente na etiologia da histeria, foi reforçada pelo progresso posterior da análise, que, ao mesmo tempo, forneceu soluções para detalhes individuais freqüentemente recorrentes no quadro clínico da paranóia. A depressão da paciente começou na época de uma discussão entre seu marido e seu irmão, em conseqüência da qual este passou a não mais freqüentar sua casa. Ela sempre apreciara muito esse irmão e, nessa ocasião, sentira imensamente sua falta. Além disso, ela falou num certo momento de sua doença em que, pela primeira vez, “tudo ficara claro para ela” — ou seja, em que ela se convencera da verdade de sua suspeita de que todos a desprezavam e a desfeiteavam deliberadamente. Essa certeza lhe viera durante uma visita de sua cunhada, que, no decorrer da conversa, deixara escapar estas palavras: “Quando me acontece alguma coisa desse tipo, eu a trato com descaso.” A princípio, a Sra. P. tomou esse comentário sem desconfianças; depois, porém, quando a visitante já se retirara, pareceu-lhe que essas palavras continham uma censura, como se ela tivesse o hábito de tratar as coisas sérias com descaso; e a partir desse momento, teve certeza de que era vítima da maledicência geral. Quando lhe perguntei sobre o que a fizera sentir-se justificada para aplicar tais palavras a si mesma, respondeu que fora o tom em que a cunhada tinha falado que a convencera disso (embora, é verdade, apenas posteriormente). Esse é um detalhe característico da paranóia. Obriguei-a então a lembrar-se do que a cunhada estivera dizendo antes do comentário de que ela se queixava, e emergiu a resposta de que a cunhada estivera contando como, na casa dos pais dela, tinha havido toda sorte de dificuldades com seus irmãos, e acrescentara o comentário sensato: “Em toda família acontecem coisas sobre as quais se gostaria de pôr uma pedra. Mas quando uma coisa desse tipo acontece comigo, eu a trato com descaso.” A Sra. P. teve então que admitir que sua depressão estava ligada às declarações feitas pela cunhada antes do último comentário. Uma vez que recalcara ambas as afirmações que poderiam ter despertado a lembrança de suas relações com seu irmão, e retivera apenas a última e insignificante afirmação, foi a esta que se viu obrigada a ligar seu sentimento de que a cunhada a estivera censurando; e, já que o conteúdo não oferecia nenhuma base para isso, ela se voltara do conteúdo para o tom em que as palavras tinham sido proferidas. Essa é, provavelmente, uma evidência típica de que as interpretações errôneas da paranóia se baseiam num recalcamento.

A conduta singular de minha paciente, marcando encontros com o irmão nos quais nada lhe dizia, foi também resolvida de maneira surpreendente. Sua explicação foi que ela pensara que, se pudesse apenas olhá-lo, ele estaria fadado a entender seus sofrimentos, uma vez que lhes conhecia a causa. Ora, como esse irmão era, de fato, a única pessoa que poderia saber da etiologia de sua doença, estava claro que ela agira de acordo com um motivo que, embora ela própria não compreendesse conscientemente, seria considerado perfeitamente justificado tão logo lhe fosse dado um sentido derivado do inconsciente.

Consegui então fazê-la reproduzir as várias cenas de seu relacionamento sexual com o irmão (que certamente durara pelo menos dos seis aos dez anos.) Durante esse trabalho de reprodução, a sensação física em seu abdome “participou da conversa”, por assim dizer, tal como se observa regularmente na análise de resíduos mnêmicos histéricos. A imagem da parte inferior do abdome de uma mulher nua (agora reduzido às suas proporções infantis, e sem pêlos) aparecia junto com a sensação, ou permanecia afastada, dependendo de a cena em questão ter ocorrido em plena luz ou no escuro. Sua repugnância em comer também encontrou explicação num detalhe repulsivo desses procedimentos. Depois de percorrermos essa série de cenas, as sensações e imagens alucinatórias desapareceram e (ao menos até o presente) não retornaram.

Assim, eu havia descoberto que essas alucinações nada mais eram que partes do conteúdo de suas experiências infantis recalcadas, ou seja, sintomas do retorno do recalcado.

Voltei-me então para a análise das vozes. Antes de mais nada, era preciso explicar por que um conteúdo tão neutro como “Ali vem a Sra. P.”, ou “Ela agora está procurando uma casa” etc., podia afligi-la tanto; em seguida, por que é que precisamente essas frases inocentes tinham chegado a ser marcadas por um reforço alucinatório. Logo de saída, ficou claro que “as vozes” não poderiam ser lembranças produzidas de modo alucinatório, como as imagens e as sensações, mas eram pensamentos “ditos em voz alta”.

A primeira vez que ela ouviu as vozes foi nas seguintes circunstâncias. Estava lendo com ávido interesse a bela história de Otto Ludwig, Die Heiterethei, e notou que, enquanto lia, iam emergindo pensamentos que reclamavam sua atenção. Logo em seguida, saiu para um passeio por uma estrada campestre e, quando passava por uma pequena casa camponesa, as vozes subitamente lhe disseram: “É assim que era a cabana de Heiterethei! Lá está a fonte e lá estão as moitas! Como ela era feliz, apesar de toda a sua pobreza!” As vozes então lhe repetiram parágrafos inteiros que ela acabara de ler. No entanto, permanecia ininteligível a razão de a cabana de Heiterethei, com as moitas e a fonte, e precisamente as passagens mais banais e irrelevantes da história, serem impostas a sua atenção com uma intensidade patológica. Entretanto, a solução do enigma não foi difícil. Sua análise mostrou que, enquanto estava lendo, ela tivera também outros pensamentos e fora excitada por passagens muito diferentes do livro. Contra esse material — analogias entre o casal da história e ela própria e seu marido, lembranças da intimidade na vida conjugal e de segredos de família —, contra tudo isso levantara-se uma resistência recalcadora, porque o material estava ligado, por associações de pensamentos facilmente demonstráveis, a sua aversão pela sexualidade e assim, em última instância, remontava a sua antiga experiência infantil. Em conseqüência dessa censura exercida pelo recalque, as passagens inócuas e idílicas, que estavam ligadas por contraste e por contigüidade às que tinham sido proscritas, adquiriram a força adicional, em sua relação com a consciência, que tornou possível dizê-las em voz alta. A primeira das representações recalcadas, por exemplo, relacionava-se com a maledicência a que a heroína, que morava sozinha, ficava exposta por parte de seus vizinhos. Minha paciente descobriu facilmente a analogia com ela própria. Também morava num lugarejo, não se encontrava com ninguém e se considerava desprezada pelos vizinhos. Essa desconfiança em relação aos vizinhos tinha um fundamento real. A princípio, ela fora obrigada a se contentar com um pequeno apartamento em que a parede do quarto na qual se encostava a cama de casal era adjacente a um quarto pertencente a seus vizinhos. Com o início do casamento — obviamente pelo despertar inconsciente de seu caso amoroso infantil, onde ela e o irmão brincavam de marido e mulher — ela desenvolveu uma grande aversão à sexualidade. Estava constantemente preocupada com a idéia de que os vizinhos ouvissem palavras e ruídos através da parede comum, e essa vergonha transformou-se em suspeita em relação aos vizinhos.

Assim, as vozes deviam sua origem ao recalcamento de representações que, em última análise, eram de fato auto-acusações por experiências que eram análogas a seu trauma infantil. Por conseguinte, as vozes eram sintomas do retorno do recalcado. Ao mesmo tempo, porém, eram conseqüência de uma formação de compromisso entre a resistência do ego e o poder do retorno do recalcado — uma solução que, nesse exemplo, acarretara uma distorção que eliminava a possibilidade de reconhecimento. Em outras situações em que tive oportunidade de analisar as vozes da Sra. P., a distorção foi menor. Não obstante, as palavras que ela ouvia tinham um braço de diplomática indefinição: a alusão insultuosa era, em geral, profundamente escondida; a conexão entre as frases soltas era disfarçada por uma estranha forma de expressão, por maneirismos incomuns da fala, e assim por diante — características que são comuns às alucinações auditivas dos paranóicos em geral e nas quais percebo os vestígios de distorção pela formação de compromisso. Por exemplo, o comentário “lá vai a Sra. P.; está procurando uma casa na rua” significava uma ameaça de que ela nunca se recuperaria, pois eu lhe prometera que, após o tratamento, ela poderia voltar à cidadezinha onde seu marido trabalhava. (Provisoriamente, alojava-se em Viena por alguns meses.)

Em ocasiões isoladas a Sra. P. recebia também ameaças mais claras — por exemplo, com respeito aos parentes de seu marido; mas havia ainda um contraste entre a maneira reservada como eram expressas e os tormentos que as vozes lhe causavam. Em vista do que se sabe da paranóia além disso, inclino-me a supor que há um gradual comprometimento das resistências que enfraquecem as auto-acusações, de modo que, por fim, a defesa fracassa por completo e a auto-acusação original, o termo real do insulto de que o sujeito vinha tentando poupar-se, retorna em sua forma inalterada. Não sei, entretanto, se esse curso dos acontecimentos é constante, nem se a censura das palavras que envolvem a auto-acusação pode estar ausente desde o início ou persistir até o fim.

Agora, resta-me apenas empregar o que aprendi a partir desse caso de paranóia para fazer uma comparação dela com a neurose obsessiva. Em ambas, mostrou-se que o recalcamento é o núcleo do mecanismo psíquico, e em ambas, o que foi recalcado é uma experiência sexual na infância. Nesse caso de paranóia, além disso, todas as obsessões provinham do recalque; os sintomas da paranóia permitem uma classificação similar à que se mostrou justificada na neurose obsessiva. Parte dos sintomas, ademais, provém da defesa primária — a saber, todas as representações delirantes caracterizadas pela desconfiança e pela suspeita e relacionadas à representação de perseguição por outrem. Na neurose obsessiva, a auto-acusação inicial é recalcada pela formação do sintoma primário da defesa: a autodesconfiança. Com isso, a auto-acusação é reconhecida como justificável; e, para contrabalançá-la, a conscienciosidade que o sujeito adquiriu durante seus intervalos sadios protege-o então de dar crédito às auto-acusações que retornam sob a forma de representações obsessivas. Na paranóia, a auto-acusação é recalcada por um processo que se pode descrever como projeção. É recalcada pela formação do sintoma defensivo de desconfiança nas outras pessoas. Dessa maneira, o sujeito deixa de reconhecer a auto-acusação; e, como que para compensar isso, fica privado de proteção contra as auto-acusações que retornam em suas representações delirantes.

Outros sintomas de meu caso de paranóia devem ser descritos como sintomas de retorno do recalcado, e também eles, como os sintomas da neurose obsessiva, ostentam traços da única formação de compromisso que lhes permite a entrada na consciência. É o caso, por exemplo, da representação delirante de minha paciente de estar sendo observada ao despir-se, de suas alucinações visuais, de suas alucinações de sensação e de sua audição de vozes. Na representação delirante que acabo de mencionar há um conteúdo mnêmico quase inalterado, que só se tornou vago por omissão. O retorno do recalcado em imagens visuais aproxima-se mais na natureza da histeria do que do caráter da neurose obsessiva; a histeria, porém, tem por hábito repetir os símbolos mnêmicos sem alteração, enquanto as alucinações mnêmicas da paranóia sofrem uma distorção similar à da neurose obsessiva: uma imagem moderna análoga toma o lugar da que foi recalcada. (Por exemplo,o abdome de uma mulher adulta aparece no lugar de um abdome infantil, e um abdome onde os pêlos são especialmente distintos, por terem estado ausentes da impressão original.) Uma característica bastante peculiar à paranóia, e sobre a qual esta comparação não pode lançar mais luz, é que as auto-acusações recalcadas retornam sob a forma de pensamentos ditos em voz alta. No decorrer desse processo, eles são obrigados a submeter-se a uma dupla distorção: ficam sujeitos a uma censura, que os leva a serem substituídos por outras representações associadas, ou a serem ocultados por um modo de expressão indefinido, sendo relacionados com experiências recentes que nada mais são do que experiências análogas às antigas.

O terceiro grupo de sintomas encontrados na neurose obsessiva, os sintomas da defesa secundária, não pode estar presente como tal na paranóia, porque nenhuma defesa pode valer contra os sintomas de retorno aos quais, como sabemos, liga-se uma crença. Em lugar disso, encontramos na paranóia uma outra fonte para a formação de sintomas. As representações delirantes que chegam à consciência através de uma formação de compromisso (os sintomas do retorno |do recalcado|) fazem exigências à atividade de pensamento do ego, até que possam ser aceitas sem contradição. Visto que elas próprias não são influenciáveis, o ego precisa adaptar-se a elas; e assim, o que aqui corresponde aos sintomas da defesa secundária na neurose obsessiva é uma formação delirante combinatória— delírios interpretativos que terminam por uma alteração do ego. Nesse aspecto, o caso em discussão não foi completo; na época, minha paciente ainda não apresentava nenhum sinal das tentativas de interpretação que apareceram mais tarde. Mas não tenho dúvidas de que, se aplicarmos a psicanálise também a esse estágio da paranóia, poderemos chegar a outro resultado importante. Dever-se-á então constatar que a chamada fraqueza de memória dos paranóicos é também tendenciosa — isto é, baseia-se no recalque e serve aos fins do recalque. Ocorre um recalcamento e substituição subseqüentes de lembranças que não são nada patogênicas, mas que contradizem a alteração do ego tão insistentemente exigida pelos sintomas do retorno do recalcado.

 

A ETIOLOGIA DA HISTERIA (1896)

 

NOTA DO EDITOR INGLÊS

 

ZUR AETIOLOGIE DER HISTERIE

 

(a) EDIÇÕES ALEMÃS:

1896 Wien. klin. Rdsch., 10 (22), 379-81, (23), 395-7, (24), 413-15, (25), 423-3, e (26), 450-2. (31 de maio, 7, 14, 21 e 28 de junho.)

1906 S.K.S.N., 1, 149-180. (1911, 2ª ed., 1920, 3ª ed., 1922, 4ª ed.)

1925 G.S., 1, 404-38.

1952 G.W., 1, 425-59.

 

(b)TRADUÇÃO INGLESA:

“The Aetiology of Hysteria”

1924 C.P., 1, 183-219. (Trad. de C. M. Baines.)

 

Incluído (Nº XXXVI) na coleção de sinopses dos primeiros trabalhos de Freud elaborada por ele mesmo (1897b). A presente tradução é uma versão modificada da de 1924.

 

Segundo uma nota de rodapé na Wiener klinische Rundschau de 31 de maio de 1896, este artigo se baseia numa conferência proferida por Freud ante a “Verein für Psychiatrie und Neurologie” no dia 2 de maio. A exatidão dessa data, contudo, é questionável. Numa carta não publicada a Fliess, de quinta-feira, 16 de abril, Freud escreveu que, na terça-feira seguinte |21 de abril|, deveria fazer uma conferência diante da “Psychiatrischer Verein” Não especifica o tema, mas, numa outra carta inédita, datada de 26 e 28 de abril de 1896, relatou ter feito perante aquela sociedade uma conferência sobre a etiologia da histeria. Prosseguiu comentando que “os imbecis deram-lhe uma recepção gélida” e que Kraff-Ebing, que estava na presidência, dissera que aquilo soava como um conto de fadas científico. Ainda em outra carta, datada de 30 de maio, dessa vez incluída na correspondência com Fliess (Freud, 1950a, Carta 46), escreveu: “Desafiando meus colegas, redigi toda a minha conferência sobre a etiologia da histeria para Paschkis |o editor da Rundschau|” E sua publicação de fato começou naquele periódico, no dia seguinte. De tudo isso parece depreender-se que a conferência foi realmente proferida a 21 de abril de 1896.

O presente trabalho pode ser considerado uma repetição ampliada da primeira seção de seu predecessor, o segundo artigo sobre as neuropsicoses de defesa (1896b). As descobertas de Freud sobre as causas da histeria são dadas em maior detalhe, com um relato das dificuldades que ele teve de vencer para atingi-las. Muito mais espaço é devotado, especialmente na última parte do artigo, às experiências sexuais na infância, que Freud acreditava estarem por trás dos sintomas posteriores. Como nos artigos anteriores, essa experiências são encaradas como sendo invariavelmente uma iniciativa dos adultos: a percepção da existência da sexualidade infantil repousava ainda no futuro. Há, entretanto, um indício (ver em [1] e [2]) do que seria descrito nos Três Ensaios (1905d), Edição Standard Brasileira, Vol. VII, ver em [1], IMAGO Editora, 1989, como o caráter “perverso polimorfo” da sexualidade infantil. Entre outros pontos de interesse, podemos notar uma crescente tendência a proferir as explicações psicológicas às neurológicas (ver em [1]), bem como uma primeira tentativa de resolver o problema a “escolha da neurose” (ver em [1] e [2]), que viria a ser um tema de discussão constantemente retomado. As variadas concepções de Freud a esse respeito são examinadas na Nota do Editor inglês a “A Predisposição à Neurose Obsessiva” (1913i), Edição Standard Brasileira, Vol. XII, ver em [1] e segs., IMAGO Editora, 1976; de fato, o assunto já fora abordado nos dois artigos a este (ver em [1], [2] e [2]).

 

A ETIOLOGIA DA HISTERIA

 

I

SENHORES:

 

Quando nos dispomos a formar uma opinião sobre a causação de um estado patológico como a histeria, começamos por adotar o método de investigação anamnésica; interrogamos o paciente ou aqueles que o cercam, a fim de descobrir a que influências danosas eles próprios atribuem seu adoecimento e o desenvolvimento desses sintomas neuróticos. O que descobrimos dessa maneira, naturalmente, é falseado por todos os fatores que comumente ocultam de um paciente o conhecimento de seu próprio estado — por sua falta de compreensão científica das influências etiológicas, pela falácia do post hoc, propter hoc, e por sua relutância em pensar, ou mencionar certas perturbações e traumas. Assim, ao fazermos uma investigação anamnésica desse tipo, atemo-nos ao princípio de não adotar a crença dos pacientes sem um minucioso exame crítico, de não lhes permitir que postulem por nós nossa opinião científica sobre a etiologia da neurose. Embora, por um lado, realmente reconheçamos a veracidade de certas asserções constantemente repetidas, tais como a de que o estado histérico é um efeito tardio e duradouro de uma emoção vivida no passado, introduzimos na etiologia da histeria, por outro lado, um fator que o próprio paciente nunca menciona e cuja validade só admite com relutância — a saber, a predisposição hereditária derivada de seus antepassados. Como sabem os senhores, do ponto de vista da influente escola de Charcot, somente a hereditariedade merece ser reconhecida como a verdadeira causa da histeria, enquanto todas as outras perturbações, da mais variada natureza e intensidade, desempenham apenas o papel de causas incidentais, de “agents provocateurs”.

Os senhores hão de admitir prontamente que seria bom dispormos de um segundo método de chegar à etiologia da histeria, um método em que nos sentíssemos menos dependentes das asserções dos próprios pacientes. Um dermatologista, por exemplo, pode reconhecer uma chaga como sendo luética pelo caráter de suas bordas, de sua crosta e de sua forma, sem se deixar enganar pelos protestos do paciente, que nega qualquer fonte dessa infecção; e um médico-legista pode chegar à causa de um ferimento mesmo tendo que prescindir de qualquer informação da pessoa ferida. Também na histeria existe uma possibilidade similar de penetrarmos, a partir dos sintomas, no conhecimento de suas causas. Contudo, para explicar a relação entre o método que temos de empregar para esse fim e o antigo método da investigação anamnésica, eu gostaria de expor aos senhores uma analogia baseada num avanço real efetuado em outro campo de trabalho.

Imaginemos que um explorador chega a uma região pouco conhecida onde seu interesse é despertado por uma extensa área de ruínas, com restos de paredes, fragmentos de colunas e lápides com inscrições meio apagadas e ilegíveis. Pode contentar-se em inspecionar o que está visível, em interrogar os habitantes que moram nas imediações — talvez uma população semibárbara — sobre o que a tradição lhes diz a respeito da história e do significado desses resíduos arqueológicos, e em anotar o que eles lhe comunicarem — e então seguir viagem. Mas pode agir de modo diferente. Pode ter levado consigo picaretas, pás e enxadas, e colocar os habitantes para trabalhar com esses instrumentos. Junto com eles, pode partir para as ruínas, remover o lixo e, começando dos resíduos visíveis, descobrir o que está enterrado. Se seu trabalho for coroado de êxito, as descobertas se explicarão por si mesmas: as paredes tombadas são parte das muralhas de um palácio ou de um depósito de tesouro; os fragmentos de colunas podem reconstituir um templo; as numerosas inscrições, que, por um lance de sorte, talvez sejam bilíngües, revelam um alfabeto e uma linguagem que, uma vez decifrados e traduzidos, fornecem informações nem mesmo sonhadas sobre os eventos do mais remoto passado em cuja homenagem os monumentos foram erigidos. Saxa loquuntur!

Ao tentarmos, de maneira aproximadamente semelhante, induzir os sintomas da histeria a se fazerem ouvir como testemunhas da história da origem da doença, devemos partir da portentosa descoberta de Josef Breuer: os sintomas das histeria (à parte os estigmas) são determinados por certas experiências do paciente que atuaram de modo traumático e que são reproduzidas em sua vida psíquica sob a forma de símbolos mnêmicos. O que temos a fazer é aplicar o método de Breuer — ou algum que lhe seja essencialmente idêntico — de modo a fazer a atenção do paciente retroagir desde seu sintoma até a cena na qual e pela qual o sintoma surgiu; e, tendo assim localizado a cena, eliminamos o sintoma ao promover, durante a reprodução da cena traumática, uma correção subseqüente do curso psíquico dos acontecimentos que então ocorreram.

Não é minha intenção hoje discutir a difícil técnica desse procedimento terapêutico ou as descobertas psicológicas que têm sido obtidas por seu intermédio. Sou obrigado a partir desse ponto apenas porque as análises conduzidas nos termos de Breuer parecem, ao mesmo tempo, abrir caminho para as causas da histeria. Se submetermos a essa análise um número bastante grande de sintomas em inúmeros sujeitos, chegaremos naturalmente ao conhecimento de um número correspondentemente grande de cenas de ação traumatizante. São nessas experiências que as causas eficientes da histeria entram em ação. Assim, esperamos descobrir, partindo do estudo dessas cenas traumáticas, quais são as influências que produzem sintomas histéricos e de que modo o fazem.

Essa expectativa se mostra verdadeira; e nem poderia deixar de fazê-lo, uma vez que as teses de Breuer, quando submetidas à verificação num número considerável de casos, revelaram-se corretas. Mas o caminho que vai dos sintomas da histeria até sua etiologia é mais trabalhoso, e passa por conexões bem diferentes do que se poderia imaginar.

Portanto, vamos esclarecer esse ponto. A atribuição de um sintoma histérico à cena traumática só auxilia nossa compreensão quando a cena atende a duas condições: quando possui a pertinente adequação para funcionar como determinante e quando tem, reconhecidamente, a necessária força traumática. Em vez de uma explicação verbal, aqui vai um exemplo. Suponhamos que o sintoma em exame seja o vômito histérico; nesse caso, consideraremos que nos foi possível compreender sua causação (exceto por um certo resíduo) se a análise atribuir o sintoma a uma experiência que tenha justificavelmente produzido uma alta dose de repugnância — por exemplo, a visão de um cadáver em decomposição. Mas se, em vez disso, a análise nos mostrar que o vômito proveio de um grande susto, como, por exemplo, num acidente ferroviário, ficaremos insatisfeitos e teremos que nos perguntar por que o susto levou ao sintoma específico do vômito. A essa derivação falta a adequação como determinante. Teremos outro caso de explicação insuficiente se o vômito for supostamente proveniente, digamos, de se ter comido uma fruta parcialmente estragada. Aqui, é verdade, o vômito é determinado pela repugnância, mas não podemos compreender como, nesse caso, a náusea ter-se-ia tornado tão poderosa a ponto de se perpetuar num sintoma histérico; falta à experiência força traumática.

Consideremos agora até que ponto as cenas traumáticas da histeria descobertas pela análise preenchem, num grande número de sintomas e casos, os dois requisitos que nomeei. Aqui deparamos com nossa primeira grande decepção. Realmente é verdade que a cena traumática de que se origina o sintoma possui, ocasionalmente, as duas qualidades — adequação como determinante e força traumática — de que precisamos para a compreensão do sintoma. Com muito mais freqüência, porém, com freqüência incomparavelmente maior, encontramos realizada uma de três outras possibilidades muito desfavoráveis à compreensão: ou a cena a que somos conduzidos pela análise e na qual o sintoma apareceu pela primeira vez parece-nos inadequada para determiná-lo, no sentido de que seu conteúdo não tem nenhuma relação com a natureza do sintoma; ou a experiência supostamente traumática, embora tenha de fato uma relação com o sintoma, revela ser uma impressão normalmente inócua e, via de regra, incapaz de produzir qualquer efeito; ou, finalmente, a “cena traumática” nos deixa às escuras em ambos os aspectos, afigurando-se ao mesmo tempo inócua e sem relação com o caráter do sintoma histérico.

(Posso observar aqui, de passagem, que a concepção de Breuer sobre a origem dos sintomas histéricos não é abalada pela descoberta de cenas traumáticas que correspondem a experiências insignificantes em si mesmas. Isso porque Breuer presumiu — seguindo Charcot — que mesmo uma experiência inócua pode ser elevada à categoria de um trauma e desenvolver força determinante, se acontecer com o sujeito num momento em que ele se achar num estado psíquico especial — no que se descreve como estado hipnóide. Considero, porém, que muitas vezes não há nenhum fundamento para se pressupor a presença de tais estados hipnóides. O que permanece decisivo é que a teoria dos estados hipnóides em nada contribui para a solução das outras dificuldades, a saber, que falta freqüentemente às cenas traumáticas adequação como determinantes.)

Além disso, senhores, essa primeira decepção que enfrentamos ao seguir o método de Breuer é imediatamente seguida de outra, que é especialmente dolorosa para nós como médicos. Quando nosso procedimento leva, como nos casos descritos acima, a descobertas que são insuficientes enquanto explicação, tanto no aspecto de sua adequação como determinante quanto no de sua eficiência traumática, também não conseguimos assegurar nenhum proveito terapêutico; o paciente mantém seus sintomas inalterados, a despeito do resultado inicial produzido pela análise. Os senhores podem compreender como é grande a tentação, nesse ponto, de não mais prosseguir no que, de qualquer modo, é um trabalho cansativo.

Mas talvez tudo de que precisamos seja uma idéia nova para nos ajudar a sair de nosso dilema e nos levar a resultados valiosos. A idéia é a seguinte. Como sabemos através de Breuer, os sintomas histéricos podem ser resolvidos quando, partindo deles, conseguimos encontrar o caminho de volta à lembrança de uma experiência traumática. Se a lembrança que descobrimos não atende a nossa expectativa, talvez devamos prosseguir um pouco mais no mesmo caminho; é possível que, por trás da primeira cena traumática, oculte-se a lembrança de uma segunda cena que satisfaça melhor a nossos requisitos e cuja reprodução tenha maior efeito terapêutico; de modo que a cena descoberta em primeiro lugar tem apenas a importância de um elo de ligação na cadeia de associações. E talvez essa situação se repita; cenas inoperantes poderão ser interpoladas mais de uma vez, como transições necessárias no processo de reprodução, até que encontremos finalmente nosso caminho desde o sintoma histérico até a cena que é efetivamente traumatizante e satisfatória em ambos os aspectos, tanto terapêutica como analiticamente. Bem, senhores, essa suposição é correta. Quando a cena inicialmente descoberta é insatisfatória, dizemos a nosso paciente que essa experiência nada explica, mas que por trás dela deve ocultar-se uma experiência anterior significativa; e dirigimos sua atenção, pela mesma técnica, para o fio associativo que liga as duas lembranças — a que foi descoberta e a que ainda está por se revelar. O prosseguimento da análise leva então, na totalidade dos casos, à reprodução de novas cenas do tipo que esperamos. Por exemplo, consideremos mais uma vez o caso de vômitos histéricos que selecionei antes e no qual a análise remontou, primeiro, ao susto decorrente de um acidente ferroviário — uma cena à qual faltava adequação como determinante. A análise posterior mostrou que esse acidente despertara no paciente a lembrança de outro acidente anterior, que, na verdade, ele próprio não vivenciara, mas que lhe dera a oportunidade de ter uma visão medonha e repulsiva de um cadáver. É como se a ação combinada das duas cenas tornasse possível o cumprimento de nossos postulados, com uma experiência suprindo, pelo susto, a força traumática, e a outra, por seu conteúdo, o efeito determinante. O outro caso, em que o vômito foi atribuído ao ato de comer uma maçã parcialmente estragada, foi ampliado pela análise mais ou menos da seguinte maneira. A maçã estragada recordara ao paciente uma experiência anterior: enquanto apanhava frutas derrubadas pelo vento num pomar, ele deparara acidentalmente com um animal morto em estado repugnante.

Não voltarei mais a esses exemplos, pois devo confessar que eles não derivam de nenhum caso da minha experiência, sendo por mim inventados. E além disso, muito provavelmente, mal inventados. Chego até a considerar impossíveis tais soluções dos sintomas histéricos. Mas fui obrigado a criar exemplos fictícios por várias razões, uma das quais posso declarar de imediato. Todos os exemplos reais são incomparavelmente mais complicados: o relato detalhado de um só deles ocuparia todo o tempo desta conferência. A cadeia de associações tem sempre mais do que dois elos; e as cenas traumáticas não formam uma corrente simples, como um fio de pérolas, mas antes se ramificam e se interligam como árvores genealógicas, de modo que, a cada nova experiência, duas ou mais experiências anteriores entram em operação como lembranças. Em suma, fazer um relato da resolução de um único sintoma equivaleria, de fato, à tarefa de relatar um caso clínico inteiro.

Mas não devemos deixar de conferir ênfase especial a uma conclusão a que inesperadamente levou o trabalho analítico ao longo dessas cadeias de lembranças. Aprendemos que nenhum sintoma histérico pode emergir de uma única experiência real, mas que, em todos os casos, a lembrança de experiências mais antigas despertadas em associação com ela atua na causação do sintoma. Se — como acredito — essa proposição se confirmar sem exceções, ela nos mostrará, além disso, a base sobre a qual se deve construir uma teoria psicológica da histeria.

Talvez os senhores suponham que os raros casos em que a análise consegue refazer o trajeto do sintoma, ligando-o diretamente a uma cena traumática inteiramente adequada como determinante e que possui força traumática, e nos quais, ao refazer esse trajeto, ela consegue ao mesmo tempo eliminar o sintoma (da maneira descrita no caso clínico de Anna O., de Breuer) — talvez os senhores suponham que, afinal, esses casos devem constituir objeções poderosas à validade geral da proposição que acabo de formular. Certamente é o que parece. Contudo, devo assegurar-lhes que tenho os melhores fundamentos para presumir que, mesmo nesses casos, há uma cadeia de lembranças atuantes que se estende muito além da primeira cena traumática, ainda que somente a reprodução desta última possa resultar na eliminação do sintoma.

Parece-me realmente assombroso que os sintomas histéricos só possam emergir com a cooperação das lembranças, sobretudo ao refletirmos que, de acordo com os relatos unânimes dos próprios pacientes, essas lembranças não tiveram acesso a suas consciências no momento da primeira aparição do sintoma. Há aqui muita matéria para reflexão, mas esses problemas não devem desviar-nos, neste ponto, de nossa discussão sobre a etiologia da histeria. Devemos, antes, perguntar-nos: a que ponto chegaremos se seguirmos as cadeias de lembranças associadas que a análise desvendou? Até onde elas se estendem? Será que em algum ponto encontram um fim natural? Levarão elas, talvez, experiências de algum modo parecidas, seja em seu conteúdo, seja no período de vida em que ocorrem, de sorte que possamos discernir nesses fatores universalmente similares a etiologia da histeria que estamos procurando?

Os conhecimentos que adquiri até aqui já me habilitam a responder a essas perguntas. Ao considerarmos um caso que apresenta vários sintomas, chegamos, através da análise, partindo de cada sintoma, a uma série de experiências cujas lembranças se ligam em associação. A princípio, as cadeias de lembranças percorrem cursos regressivos independentes, mas, como já disse, ramificam-se. A partir de uma mesma cena, duas ou mais lembranças são atingidas ao mesmo tempo e destas, por sua vez, procedem cadeias laterais cujos elos individuais podem mais uma vez estar associativamente ligados a elos pertencentes à cadeia principal. Na verdade, a comparação com a árvore genealógica de uma família cujos membros também se casassem entre si não é nada má. Outras complicações na vinculação das cadeias emergem da circunstância de que uma única cena pode ser evocada várias vezes na mesma cadeia, apresentando assim múltiplas relações com uma cena posterior e exibindo com ela tanto uma conexão direta quanto uma conexão estabelecida através de laços intermediários. Em suma, a concatenação está longe de ser simples; e o fato de as cenas serem descobertas numa ordem cronológica invertida (fato esse que justifica nossa comparação desse trabalho com a escavação de uma área) certamente em nada contribui para uma compreensão mais rápida do que ocorreu.

Quando a análise vai mais além, surgem novas complicações. As cadeias associativas pertencentes aos diferentes sintomas começam a se relacionar entre si; as árvores genealógicas se interpenetram. Assim, por exemplo, um sintoma específico na cadeia de lembranças relacionada com o sintoma do vômito invoca não apenas os elos anteriores de sua própria cadeia, mas também uma lembrança de outra cadeia, relacionada com outro sintoma, tal como dor de cabeça. Essa experiência, conseqüentemente, pertence a ambas as séries, e portanto constitui um ponto nodal. Vários desses pontos nodais podem ser encontrados em toda análise. Seu correlato no quadro clínico pode ser o fato de, a partir de certo momento, ambos os sintomas aparecerem juntos, simbioticamente, sem terem de fato qualquer dependência interna entre si. Retrocedendo ainda mais, deparamos com pontos nodais de outra espécie. Aqui, as cadeias associativas separadas convergem. Encontramos experiências de que dois ou mais sintomas se originaram; uma cadeia ligou-se a um detalhe da cena, e segunda, a outro.

Mas a descoberta mais importante a que chegamos, quando uma análise é sistematicamente conduzida, é a seguinte: qualquer que seja o caso e qualquer que seja o sintoma que tomemos como ponto de partida, no fim chegamos infalivelmente ao campo da experiência sexual. Aqui, portanto, pela primeira vez, parece que descobrimos uma precondição etiológica dos sintomas histéricos.

Ajulgar pela experiência prévia, antevejo que é precisamente contra essa asserção ou contra sua validade universal que sua objeção, senhores, será dirigida. Talvez fosse melhor dizer, sua inclinação a contestar, pois nenhum dos senhores, sem dúvida, dispõe até o momento de investigações que, baseadas no mesmo procedimento, possam ter produzido um resultado diferente. No que tange ao próprio tema controvertido, farei apenas a observação de que a escolha do fator sexual na etiologia da histeria não procede, pelo menos, de nenhuma opinião preconcebida de minha parte. Os dois investigadores como discípulo dos quais iniciei meus estudos da histeria, Charcot e Breuer, estavam longe de tal pressuposição; de fato, tinham uma prevenção pessoal contra ela, da qual eu originalmente partilhava. Apenas as mais laboriosas e detalhadas investigações converteram-me, e bastante lentamente, à concepção que hoje sustento. Se submeterem ao mais rigoroso exame minha afirmação de que a etiologia da histeria repousa na vida sexual, os senhores verificarão que ela é confirmada pelo fato de que, em dezoito casos de histeria, pude descobrir essa conexão em cada sintoma isolado e, onde o permitiram as circunstâncias, pude confirmá-lo pelo sucesso terapêutico. Sem dúvida, os senhores poderão levantar a objeção de que a décima nona ou a vigésima análise talvez mostre que os sintomas histéricos derivam também de outras fontes, assim reduzindo a validade universal da etiologia sexual a uns oitenta por cento. Mas claro, vamos esperar para ver! No entanto, já que esses dezoito casos são, ao mesmo tempo, todos os casos em que pude realizar o trabalho da análise, e já que não foram selecionados por ninguém visando a minha conveniência, os senhores hão de considerar compreensível que eu não partilhe essa expectativa, mas esteja disposto a deixar minha crença adiantar-se à força comprobatória das observações que fiz até agora. Além disso, sou também influenciado por outro motivo, que no momento é de valor meramente subjetivo. Na única tentativa que pude fazer de explicar o mecanismo filosófico e psíquico da histeria, para correlacionar minhas observações, passei a encarar a participação das forças motivadoras sexuais como uma premissa indispensável.

Eventualmente, portanto, após terem convergido as cadeias de lembranças, chegamos ao campo da sexualidade e a um pequeno número de experiências que ocorrem, em sua maior parte, no mesmo período da vida — ou seja, na puberdade. Ao que parece, é nessas experiências que devemos procurar a etiologia da histeria, e é através delas que aprenderemos a compreender a origem dos sintomas histéricos. Mas aqui encontramos uma nova e seriíssima decepção. É verdade que essas experiências, descobertas com tanta dificuldade e extraídas de todo o material mnêmico, e que pareceriam ser as experiências traumáticas máximas, têm em comum as duas características de serem sexuais e ocorrerem na puberdade; mas em todos os outros aspectos, elas diferem muito entre si, tanto em espécie como em importância. Em alguns casos, sem dúvida, nosso interesse é voltado para experiências que devem ser encaradas como traumas graves — uma tentativa de estupro, talvez, que de um só golpe revela a uma menina imatura toda a brutalidade do desejo sexual, ou o testemunho involuntário de atos sexuais entre os pais, que a um só tempo mostra uma insuspeitada fealdade e fere do mesmo modo a sensibilidade moral e infantil, e assim por diante. Em outros casos, porém, as experiências são surpreendentemente triviais. No caso de uma de minhas pacientes, sua neurose revelou basear-se na seguinte experiência: um menino de seu círculo de relações lhe acariciara ternamente a mão e, em outra oportunidade, pressionara o joelho contra o vestido dela quando ambos se sentavam à mesa lado a lado, com uma expressão no rosto que a fez perceber que ele estava fazendo alguma coisa proibida. No caso de outra moça, o simples fato de ouvir uma charada que sugeria uma resposta obscena foi suficiente para provocar o primeiro ataque de angústia, e, com ele, o início da doença. Tais descobertas obviamente não favorecem a compreensão da causação dos sintomas histéricos. Se tanto os acontecimentos graves quanto os banais, e não apenas as experiências que afetam o próprio corpo do sujeito, mas também as impressões visuais e as informações recebidas pela audição devem ser reconhecidas como traumas últimos da histeria, podemos ser tentados a arriscar a explicação de que os histéricos são criaturas peculiarmente constituídas — provavelmente em virtude de alguma predisposição hereditária ou atrofia degenerativa —, nas quais um retraimento da sexualidade, que normalmente ocorre na puberdade, é elevado a um grau patológico e é permanentemente mantido; são, portanto, por assim dizer, pessoas psiquicamente inaptas para atender às exigências da sexualidade. Essa concepção, é claro, deixa sem explicação a histeria masculina. No entanto, mesmo sem essas objeções flagrantes, dificilmente ficaríamos tentados a nos contentar com essa solução. Estamos cônscios demais de um sentimento intelectual de algo apenas parcialmente entendido, obscuro e insuficiente.

Para a felicidade de nossa explicação, algumas dessas experiências sexuais da puberdade mostram mais uma insuficiência que é a conta certa para nos estimular a prosseguir em nosso trabalho analítico. Pois ocorre que, algumas vezes, também a elas falta adequação como determinante — embora isso ocorra muito mais raramente do que com as cenas traumáticas pertencentes a uma etapa posterior da vida. Assim, por exemplo, tomemos as duas pacientes a quem acabo de me referir como casos em que as experiências da puberdade foram realmente inocentes. Em conseqüência dessas experiências, as pacientes ficaram sujeitas a peculiares sensações dolorosas nos órgãos genitais, que se haviam estabelecido como os principais sintomas da neurose. Não pude encontrar nenhum indício de que tivessem sido determinadas pelas cenas da puberdade ou por cenas posteriores; todavia, certamente não eram sensações orgânicas normais, nem sinais de excitação sexual. Parecia óbvio, portanto, dizer a nós mesmos que deveríamos procurar os determinantes desses sintomas em outras experiências — em experiências que retrocedessem ainda mais — e que deveríamos, pela segunda vez, seguir a salvadora noção que já nos levara das primeiras cenas traumáticas às cadeias de lembranças por trás delas. Ao fazer isso, é claro, chegamos ao período da primeira infância, a um período anterior ao desenvolvimento da vida sexual;e isso pareceria envolver o abandono de uma etiologia sexual. Mas será que não temos o direito de presumir que nem mesmo a infância é desprovida de leves excitações sexuais, e que o futuro desenvolvimento sexual talvez seja decisivamente influenciado pelas experiências infantis? As lesões sofridas por um órgão ainda imaturo, ou por uma função em processo de desenvolvimento, freqüentemente causam efeitos mais graves e duradouros do que causariam em época mais madura. Talvez a reação anormal às impressões sexuais, que nos surpreende nos sujeitos histéricos na fase da puberdade, baseie-se, muito genericamente, nesse tipo de experiências sexuais na infância, caso em que tais experiências deverão ser de natureza uniforme e importante. Se assim for, estará aberta a perspectiva de que o que até agora se atribuiu a uma predisposição hereditária ainda inexplicada possa ser compreendido como algo adquirido em tenra idade. E já que, afinal, as experiências infantis de conteúdo sexual só poderiam exercer efeito psíquico através de seus traços mnêmicos, não seria essa concepção uma ampliação bem-vinda da descoberta da psicanálise que nos diz que os sintomas histéricos só podem emergir com a cooperação de lembranças? |ver em [1] e [2].|

 

II

 

Os senhores, sem dúvida, hão de ter imaginado que eu não teria levado tão longe esta última linha de raciocínio se não quisesse prepará-los para a idéia de que é só essa linha que, após tantas delongas, nós levará a nosso objetivo. Pois agora estamos realmente no fim de nosso cansativo e penoso trabalho analítico, e aqui vemos a realização de todas as pretensões e expectativas em que vínhamos insistindo. Se tivermos a perseverança de avançar na análise até atingir a primeira, retrocedendo até onde a memória humana é capaz de alcançar, invariavelmente levaremos o paciente a reproduzir experiências que, graças a seus traços peculiares e suas relações com os sintomas da doença posterior, devem ser consideradas como a procurada etiologia de sua neurose. Essas experiências infantis são, mais uma vez, de conteúdo sexual, mas de um tipo muito mais uniforme do que as cenas da puberdade anteriormente descobertas. Não se trata mais de temas sexuais que tenham sido despertados por uma ou outra impressão sensorial, mas de experiências sexuais que afetaram o próprio corpo do sujeito — de contato sexual (no sentido mais amplo). Os senhores hão de admitir que a importância dessas cenas dispensa provas adicionais; a isso podemos agora acrescentar que, na totalidade dos casos, os senhores poderão descobrir, nos detalhes das cenas, os fatores determinantes que talvez faltassem às outras cenas — às cenas que ocorreram mais tarde e foram primeiro reproduzidas. |Cf. em [1].|

Exponho, portanto, a tese de que, na base de todos os casos de histeria, há uma ou mais ocorrências de experiência sexual prematura, ocorrências estas que pertencem aos primeiros anos da infância, mas que podem ser reproduzidas através do trabalho da psicanálise a despeito das décadas decorridas no intervalo. Creio que essa é uma descoberta importante, a descoberta de uma caput Nili na neuropatologia; mas é-me difícil saber que ponto de partida devo tomar para o prosseguimento de minha discussão deste assunto. Deverei apresentar-lhes o material real que obtive em minhas análises? Ou deverei primeiro tentar fazer face à multidão de objeções e dúvidas que, como é seguramente acertado supor, deve agora ter-se apossado de sua atenção? Escolherei esse último caminho; talvez possamos então examinar os fatos com mais calma.

(a) Ninguém que se oponha completamente a uma visão psicológica da histeria, que não se disponha a desistir da esperança de que algum dia seja possível reportar seus sintomas a “alterações anatômicas mais sutis” e que tenha rejeitado a concepção de que as bases materiais das mudanças histéricas estão fadadas a ser do mesmo tipo que as de nossos processos mentais normais — ninguém que adote essa atitude, é claro, terá qualquer confiança nos resultados de nossas análises; entretanto, a diferença de princípio entre suas premissas e as nossas dispensa-nos da obrigação de convencê-lo de quaisquer aspectos individuais.

Mas também outras pessoas, ainda que menos avessas às teorias psicológicas da histeria, ficarão tentadas, ao considerarem nossas descobertas analíticas, a indagar sobre o grau de certeza que a aplicação da psicanálise oferece. E não será também possível que o médico imponha tais cenas a seus dóceis pacientes, alegando que elas são lembranças, ou ainda, que os pacientes digam ao médico coisas que imaginaram ou inventaram deliberadamente, e que ele as aceite como verdadeiras? Bem, minha resposta a isso é que a dúvida geral quanto à fidedignidade do método psicanalítico só poderá ser apreciada e eliminada quando se dispuser de uma apresentação completa de sua técnica e seus resultados. As dúvidas quanto à autenticidade das cenas sexuais infantis, entretanto, podem ser rebatidas aqui e agora por mais de um argumento. Em primeiro lugar, o comportamento dos pacientes enquanto reproduzem essas experiências infantis é, sob todos os aspectos, incompatível com a pressuposição de que as cenas não sejam uma realidade sentida com sofrimento e reproduzida com a mais extrema relutância. Antes de entrarem em análise, os pacientes nada sabem sobre essas cenas. Em geral, ficam indignados quando os advertimos de que tais cenas irão emergir. Apenas a intensa compulsão do tratamento consegue induzi-los a embarcar na reprodução delas. Enquanto trazem essas experiências infantis à consciência, eles sofrem as mais violentas sensações, das quais se envergonham e que tentam ocultar; e, mesmo depois de as terem revivido mais uma vez de maneira tão convincente, ainda tentam negar-lhes crédito, enfatizando o fato de que, contrariamente ao que acontece no caso de outros dados esquecidos, eles não têm nenhuma sensação de se lembrarem das cenas.

Esse último detalhe do comportamento parece fornecer provas conclusivas. Por que os pacientes me garantiriam tão enfaticamente sua descrença, se o que querem desacreditar é alguma coisa que — por qualquer motivo — eles próprios inventaram?

É menos fácil refutar a idéia de que o médico impõe esse tipo de reminiscências ao paciente, influenciando-o por sugestão a imaginá-las e reproduzi-las. Contudo, isso me parece igualmente insustentável. Até hoje, jamais consegui impor a um paciente uma cena que eu esperasse descobrir, de tal modo que ele parecesse vivê-la com todos os sentimentos apropriados. Talvez outros tenham mais êxito nisso que eu.

Há, todavia, inúmeras outras coisas que atestam a realidade das cenas sexuais infantis. Em primeiro lugar, há a uniformidade que elas exibem em certos detalhes, o que constitui uma conseqüência necessária, caso as precondições dessas experiências sejam sempre do mesmo tipo, e que, se assim não fosse, levar-nos-ia a crer na existência de um entendimento secreto entre os vários pacientes. Em segundo lugar, os pacientes às vezes descrevem como sendo inofensivos certos eventos cuja importância obviamente não percebem, já que, de outro modo, ficariam horrorizados com eles. Ou então mencionam, sem conferir-lhes qualquer ênfase, detalhes que somente alguém com experiência na vida é capaz de compreender e apreciar como indícios sutis de realidade.

Esse tipo de acontecimento fortalece nossa impressão de que os pacientes devem realmente ter vivenciado aquilo que, sob a compulsão da análise, reproduzem como cenas de sua infância. Mas outra prova ainda mais forte disso é fornecida pela relação das cenas infantis com o conteúdo de todo o restante do caso clínico. É exatamente como montar as peças de um quebra-cabeça infantil: depois de muitas tentativas, ficamos absolutamente certos, no final, de qual das peças se encaixa numa dada lacuna, pois apenas aquela peça completa o quadro e, ao mesmo tempo, permite que suas bordas irregulares se ajustem às bordas das outras peças de modo a não deixar nenhum espaço vazio nem acarretar nenhuma superposição. Do mesmo modo, os conteúdos das cenas infantis revelam-se como complementos indispensáveis à estrutura associativa e lógica da neurose, e sua inserção evidencia pela primeira vez o curso de desenvolvimento da neurose, ou mesmo, como muitas vezes poderíamos dizer, torna-o auto-evidente.

Sem pretender enfatizar especialmente esse ponto, acrescentarei que, em diversos casos, também é possível fornecer provas terapêuticas da autenticidade das cenas infantis. Há casos em que se pode obter uma cura parcial ou completa sem que tenhamos de nos aprofundar nas experiências infantis. E há outros em que não se obtém absolutamente nenhum sucesso até que a análise chegue a seu fim natural, com a descoberta dos traumas mais primitivos. A meu ver, nos primeiros casos, não temos garantia contra as recaídas; e é minha expectativa que uma psicanálise completa implique uma cura radical da histeria. Não devemos, entretanto, ser levados a antecipar as lições da observação.

Haveria outra prova realmente inatacável da autenticidade das experiências sexuais infantis — a saber, se as declarações de alguém que estivesse sendo analisado fossem confirmadas por outra pessoa, em tratamento ou não. Essas duas pessoas deveriam ter tomado parte numa mesma experiência em sua infância — talvez mantido algum relacionamento sexual entre si. Tais relações entre crianças, como os senhores verão num momento |ver em [1]|, não são nada raras. Além disso, é muito freqüente ambas as pessoas envolvidas sofrerem posteriormente de neurose; mas considero um acidente fortuito que, em dezoito casos, eu tenha podido obter em dois uma confirmação objetiva desse tipo. Num dos casos, foi o irmão (que permanecera sadio) que confirmou, voluntariamente não, é verdade, suas experiências sexuais precoces com a irmã (que era a paciente), mas, pelo menos, a existência de cenas desse tipo em época posterior de sua infância, e o fato de ter havido relações sexuais ainda mais cedo. No outro caso, deu-se que duas mulheres que eu estava tratando haviam mantido, na infância, relações sexuais com o mesmo homem, havendo certas cenas ocorrido à trois. Um sintoma específico, derivado desses eventos infantis, havia surgido em ambas as mulheres, como prova de sua experiência em comum.

(b) As experiências sexuais infantis que consistem na estimulação dos órgãos genitais, em atos semelhantes ao coito, e assim por diante, devem portanto ser consideradas, em última análise, como os traumas que levam a uma reação histérica nos eventos da puberdade e ao desenvolvimento de sintomas histéricos. Essa afirmação certamente encontrará duas objeções mutuamente contraditórias, procedentes de diferentes direções. Algumas pessoas dirão que esse tipo de abusos sexuais, sejam eles praticados contra as crianças ou entre elas, são raros demais para que se possa considerá-los como o determinante de uma neurose tão comum quanto a histeria. Outros talvez argumentem que, pelo contrário, tais experiências são muito freqüentes — freqüentes demais para que possamos atribuir a sua ocorrência uma significação etiológica. Sustentarão ainda que é fácil, em se fazendo algumas inquirições, encontrar pessoas que se recordam de cenas de sedução sexual e de abuso sexual nos anos da infância e que, mesmo assim, nunca foram histéricas. Finalmente nos dirão, como um argumento de peso, que, nas camadas mais baixas da população, a histeria certamente não é mais comum do que nas mais altas, ao passo que tudo indica que a injunção da salvaguarda sexual da infância é muito mais freqüentemente transgredida no caso das crianças do proletariado.

Comecemos nossa defesa pela parte mais fácil. Parece-me certo que nossos filhos são muito mais freqüentemente expostos a ataques sexuais do que nos levariam a esperar as escassas precauções tomadas pelos pais a esse respeito. Quando fiz minhas primeiras indagações sobre o que se conhecia do assunto, fiquei sabendo, através de colegas, que existem várias publicações pediátricas estigmatizando a freqüência de práticas sexuais por amas de leite e por babás, realizadas até mesmo com crianças de colo; e há poucas semanas deparei com uma discussão do “Coito na Infância”, do Dr. Stekel (1895), de Viena. Não tive tempo de coligir outras provas publicadas, mas ainda que elas sejam escassas, é de se esperar que uma atenção maior para o assunto venha a confirmar muito em breve a grande freqüência das experiências sexuais e da atividade sexual na infância.

Por último, as descobertas de minha análise estão em condições de falar por si. Em todos os dezoito casos (de histeria pura e histeria combinada com obsessões, abrangendo seis homens e doze mulheres), vim a saber, como já disse, de experiências sexuais desse tipo na infância. Posso dividir meus casos em três grupos, de acordo com a origem da estimulação sexual. No primeiro grupo, trata-se de ataques — de situações únicas ou, pelo menos, isoladas, de abuso praticado, em sua maior parte, em crianças do sexo feminino, por adultos que eram estranhos e que, aliás, sabiam como evitar infligir grandes danos mnêmicos. Nesses ataques, está fora de dúvida que não houve consentimento da criança, e o primeiro efeito da experiência foi preponderantemente de susto. O segundo grupo consiste nos casos muito mais numerosos em que algum adulto que cuidava da criança — uma babá, uma governanta, um tutor ou, infelizmente, com freqüência grande demais, um parente próximo — iniciou a criança no contato sexual e manteve com ela uma relação amorosa regular — uma relação amorosa que teve, além disso, seu lado mental desenvolvido — que, muitas vezes, durou anos. O terceiro grupo, finalmente, contém relações infantis propriamente ditas — relações sexuais entre duas crianças de sexo diferente, em geral um irmão e uma irmã, que se prolongam com freqüência além da puberdade e têm as mais extensas conseqüências para o par. Na maioria de meus casos, verifiquei que havia duas ou mais dessas etiologias em ação ao mesmo tempo; em alguns casos, o acúmulo de experiências sexuais oriundas de fontes diferentes era verdadeiramente impressionante. Contudo, os senhores facilmente entenderão esse traço peculiar de minhas observações ao considerarem que todos os pacientes que eu estava tratando eram casos de neurose grave, que ameaçava tornar a vida impossível.

Nos casos em que tinha havido uma relação entre duas crianças, pude algumas vezes provar que o menino — desempenhando, aqui também, o papel do agressor — fora previamente seduzido por um adulto do sexo feminino, e que depois, sob a pressão de sua libido prematuramente despertada e compelido por sua lembranças, tentara repetir com a garotinha exatamente as mesmas práticas que aprendera com a mulher adulta, sem fazer qualquer modificação por sua conta no caráter da atividade sexual.

Em vista disso, inclino-me a supor que as crianças não sabem chegar aos atos de agressão sexual, a menos que tenham sido previamente seduzidas.Por conseguinte, as bases da neurose seriam sempre lançadas na infância por adultos, e as próprias crianças transferiram umas às outras a predisposição para serem acometidas de histeria posteriormente. Peço-lhes que considerem por mais um momento a especial freqüência com que as relações sexuais na infância ocorrem precisamente entre irmãos, irmãs e primos, em decorrência das oportunidades tão freqüentes de estarem juntos; supondo-se então que, dez ou quinze anos depois, vários membros da geração mais nova da família se revelem doentes, não poderia essa aparência de neurose familiar levar naturalmente à falsa suposição da existência de uma predisposição hereditária quando há apenas uma pseudo-hereditariedade e quando, de fato, o que houve foi uma contaminação, uma infecção na infância?

Voltemo-nos agora para a outra objeção |ver em [1]|, baseada precisamente num reconhecimento da freqüência das experiências sexuais infantis e no fato observado de que muitas pessoas que se recordam de tais cenas não se tornaram histéricas. Nossa primeira resposta é que a freqüência excessiva de um fator etiológico não tem possibilidade de ser usada como objeção a sua importância etiológica. Então não é ubíquo o bacilo da tuberculose, e não é ele inalado por muito mais pessoas do que as que efetivamente adoecem de tuberculose? E será sua importância etiológica diminuída pelo fato de que, obviamente, deve haver também outros fatores em ação para que a tuberculose, que é seu efeito específico, seja evocada? Para se estabelecer o bacilo com etiologia específica, basta mostrar que a tuberculose não tem como ocorrer sem sua atuação. O mesmo se aplica, sem dúvida, a nosso problema. Não importa que muitas pessoas vivenciem cenas sexuais infantis sem se tornarem histéricas, desde que todas as que se tornam histéricas tenham vivenciado cenas dessa ordem. Pode-se admitir livremente que a área de ocorrência de um fator etiológico seja mais ampla que a de seu efeito, mas ela não deve ser mais estreita. Nem todas as pessoas que se aproximam ou que tocam num paciente com varíola contraem a doença; não obstante, a infecção é quase a única etiologia conhecida da varíola.

É verdade que, se a atividade sexual infantil fosse uma ocorrência quase universal, a demonstração de sua presença em todos os casos não teria nenhum peso. Mas, para começar, asseverar tal coisa seria certamente um grande exagero; e, em segundo lugar, as pretensões etiológicas das cenas infantis repousam não apenas na regularidade de seu aparecimento nas anamneses dos histéricos, mas também, acima de tudo, na evidência de haver laços lógicos e associativos entre essas cenas e os sintomas histéricos — evidência que, se lhes fosse apresentado todo o relato de um caso clínico, seria para os senhores tão clara como a luz do dia.

Quais podem ser os outros fatores de que a “etiologia específica” da histeria ainda necessita para produzir realmente a neurose? Esse, senhores, é um tema por si só, que não proponho examinar agora. Hoje preciso apenas indicar o ponto de contato em que as duas partes do tema — a etiologia específica e a auxiliar — se encaixam. Sem dúvida, inúmeros fatores terão que ser levados em conta. Haverá a constituição hereditária e pessoal do sujeito, a importância intrínseca das experiências sexuais infantis e, acima de tudo, seu número — um relacionamento breve com um garoto estranho, que depois se torna indiferente, deixará um efeito menos poderoso numa menina do que relações sexuais íntimas mantidas por vários anos com seu próprio irmão. Na etiologia das neuroses, as precondições quantitativas são tão importantes quanto as qualitativas: há valores liminares que têm que ser transpostos para que a doença possa tornar-se manifesta. Além disso, eu mesmo não considero completa essa série etiológica, nem ela resolve o enigma de por que a histeria não é mais comum entre as classes inferiores. (A propósito, os senhores devem estar lembrados da incidência surpreendentemente grande de histeria relatada por Charcot entre homens da classe trabalhadora.) Posso também recordar-lhes que, há alguns anos, eu próprio apontei um fator, até então pouco considerado, ao qual atribuo o papel principal na provocação da histeria depois da puberdade. Propus então a idéia de que a eclosão da histeria pode ser quase invariavelmente atribuída a um conflito psíquico que emerge quando uma representação incompatível detona uma defesa por parte do ego e solicita um recalcamento. Na época, eu não soube dizer quais seriam as circunstâncias em que um esforço defensivo desse tipo teria o efeito patológico de realmente jogar no inconsciente uma lembrança que fosse aflitiva para o ego e de criar um sintoma histérico em seu lugar. Hoje, porém, posso reparar essa omissão. A defesa cumpre seu propósito de arremessar a representação incompatível para fora da consciência quando há cenas sexuais infantis presentes no sujeito (até então normal) sob a forma de lembranças inconscientes, e quando a representação a ser recalcada pode vincular-se em termos lógicos e associativos com uma experiência infantil desse tipo.

Visto que os esforços defensivos do ego dependem do desenvolvimento moral e intelectual completo do sujeito, o fato de a histeria ser muito mais rara nas classes inferiores do que o justificaria sua etiologia específica deixa de ser inteiramente incompreensível.

Voltemos uma vez mais, senhores, ao último grupo de objeções, cuja resposta já nos levou por um caminho tão longo. Já ouvimos e reconhecemos que há numerosas pessoas com uma recordação muito nítida de experiências sexuais infantis e que, não obstante, não sofrem de histeria. Essa objeção não tem valor; propicia, porém, uma oportunidade para se tecer um valioso comentário. De acordo com nossa compreensão da neurose, as pessoas desse tipo não devem em absoluto ser histéricas, ou pelo menos, não devem ser histéricas em conseqüência das cenas de que se lembram conscientemente. Em nossos pacientes, essas lembranças nunca são conscientes; ao contrário, nós os curamos da histeria, transformando suas lembranças inconscientes das cenas infantis em lembranças conscientes. Nada há que possamos ou precisemos fazer quanto ao fato de eles terem tido tais experiências. Disso os senhores poderão perceber que o problema não é apenas a existência de experiências sexuais, mas que uma precondição psicológica também entra em jogo. As cenas devem estar presentes como lembranças inconscientes; apenas desde que e na medida em que sejam inconscientes é que elas podem criar e manter os sintomas histéricos. Mas o que decide se essas experiências produzirão lembranças conscientes ou inconscientes — se isso é condicionado pelo conteúdo das experiências, pela época em que ocorrem ou por influências posteriores — constitui um novo problema, que prudentemente evitaremos. Deixem-me apenas lembrar-lhes, como primeira conclusão, que a análise chegou à proposição de que os sintomas histéricos são derivados de lembranças que agem inconscientemente.

(c) Sustentamos, portanto, que as experiências sexuais infantis constituem a precondição fundamental da histeria, que são, por assim dizer, a predisposição para esta, e que são elas que criam os sintomas histéricos — mas não o fazem de imediato, permanecendo inicialmente sem efeito e só exercendo uma ação patogênica depois, ao serem despertadas, após a puberdade, sob a forma de lembranças inconscientes. Se mantivermos essa posição, teremos que enfrentar as numerosas observações que mostram que uma doença histérica já pode manifestar-se na infância e antes da puberdade. Essa dificuldade, entretanto, é esclarecida tão logo examinamos mais detidamente os dados procedentes de análises referentes à cronologia das experiências infantis. Verificamos então que, em nossos casos graves, a formação dos sintomas começa — não em casos excepcionais, mas antes, regularmente — na idade de oito anos, e que as experiências sexuais que não apresentam nenhum efeito imediato remontam, invariavelmente, a uma época mais precoce, ao terceiro ou quarto, ou mesmo ao segundo ano de vida. Uma vez que em nenhum dos casos a cadeia de experiências afetivas se interrompe aos oito anos, devo presumir que esse período da vida, a fase do crescimento em que ocorre a segunda dentição, constitui uma linha limítrofe para a histeria, depois da qual a doença não pode ser causada. A partir daí, uma pessoa que não tenha tido experiências sexuais anteriormente não mais pode tornar-se predisposta à histeria; e uma pessoa que tenha tido experiências anteriores já é capaz de desenvolver sintomas histéricos. Os casos isolados de ocorrência da histeria do outro lado da linha limítrofe (isto é, antes da idade de oito anos) podem ser interpretados como um fenômeno de maturidade precoce. A existência dessa linha limítrofe está muito provavelmente ligada aos processos de desenvolvimento do sistema sexual. A precocidade do desenvolvimento sexual somático pode ser freqüentemente observada e é até possível que seja promovida por uma estimulação sexual prematura.

Desse modo obtemos uma indicação de que é necessário um certo estado infantil das funções psíquicas, assim como do sistema sexual, para que uma experiência sexual ocorrida durante esse período produza, mais tarde, sob a forma de lembrança, um efeito patogênico. Não me aventuro ainda, entretanto, a fazer qualquer afirmação mais precisa sobre a natureza desse infantilismo psíquico ou sobre seus limites cronológicos.

(d) Outra objeção poderia ser suscitada pela crítica à suposição de que a lembrança das experiências sexuais infantis produza um efeito patogênico tão imenso, enquanto a própria experiência real não tem qualquer efeito. E é verdade que não estamos acostumados à noção de poderes emanados de uma imagem mnêmica e que tenham estado ausentes da impressão real. Ademais, os senhores poderão notar a consistência com que se mantém na histeria a proposição de que os sintomas só podem proceder de lembranças. Nenhuma das cenas posteriores, nas quais emergem os sintomas, é efetiva; e as experiências que são efetivas não têm, de início, nenhuma conseqüência. Todavia, defrontamo-nos aqui com um problema que podemos, muito justificadamente, manter separado de nosso tema. É verdade que nos sentimos impelidos a fazer uma síntese ao examinarmos o número de condições excepcionais que passamos a conhecer: o fato de que, para a formação de uma sintoma histérico, deve haver um esforço defensivo contra uma representação aflitiva; de que essa representação deve apresentar uma conexão lógica ou associativa com uma lembrança inconsciente através de alguns ou muitos elos intermediários, que também permanecem inconscientes no momento; de que essa lembrança inconsciente deve ter um conteúdo sexual; e de que esse conteúdo deve ser uma experiência ocorrida durante certo período infantil da vida. É verdade que não podemos deixar de nos perguntar como é que essa lembrança de uma experiência que foi inócua na ocasião em que ocorreu poderia produzir, postumamente, o efeito anormal de levar um processo psíquico como a defesa a um resultado patológico, enquanto ela própria permanece inconsciente.

Contudo, teremos que nos dizer que esse é um problema puramente psicológico, cuja solução talvez exija certas hipóteses sobre os processos psíquicos normais e sobre o papel neles desempenhado pela consciência, mas que é um problema que pode permanecer sem solução por ora, sem diminuir o valor do discernimento que obtivemos até aqui acerca da etiologia dos fenômenos histéricos.

 

III

 

Senhores, o problema cuja abordagem acabei de formular refere-se ao mecanismo da formação dos sintomas histéricos. Vemo-nos obrigados, porém, a descrever a causação desses sintomas sem levar em conta esse mecanismo, o que envolve uma perda inevitável de integralidade e clareza em nossa discussão. Voltemos ao papel desempenhado pelas cenas sexuais infantis. Temo que possa tê-los levado a superestimarem erroneamente seu poder formador de sintomas. Permitam-me, pois, frisar mais uma vez o fato de que todos os casos de histeria apresentam sintomas determinados não por experiências infantis, mas por experiências posteriores, muitas vezes recentes. Outros sintomas, é verdade, remontam às primeiríssimas experiências e pertencem, por assim dizer, à mais antiga nobreza. Entre essas últimas se encontram, principalmente, as numerosas e diversas sensações e parestesias dos órgãos genitais e de outras partes do corpo, sendo tais sensações e parestesias fenômenos que simplesmente correspondem ao conteúdo sensorial das cenas infantis, reproduzidas de maneira alucinatória e, muitas vezes,das mesmas experiências infantis e era explicado, sem dificuldade, por certas peculiaridades invariáveis de tais experiências. E isso porque a idéia dessas cenas sexuais infantis é muito repelente para os sentimentos de um indivíduo sexualmente normal; elas incluem todos os abusos conhecidos pelas pessoas depravadas e impotentes, entre as quais a cavidade bucal e o reto são indevidamente usados para fins sexuais. Nos médicos, o espanto diante disso logo cede lugar a um entendimento completo. Das pessoas que não hesitam em satisfazer seus desejos sexuais com crianças não se pode esperar que relutem ante nuanças mais sutis dos métodos para obter essa satisfação; e a impotência sexual inerente às crianças força-as inevitavelmente às mesmas ações substitutivas a que se rebaixam os adultos quando se tornam impotentes. Todas as singulares condições em que esse par inadequado conduz suas relações amorosas — de um lado, o adulto que não consegue escapar de sua parcela na dependência mútua necessariamente implicada por uma relação sexual, mas que, apesar disso, está munido de completa autoridade e do direito de punir, e que pode inverter esses papéis para a satisfação irrestrita de seus caprichos; e de outro lado, a criança, que em seu desamparo fica à mercê dessa vontade arbitrária, que é prematuramente despertada para todo tipo de sensibilidade e exposta a toda sorte de desapontamentos, e cujo desempenho das atividades sexuais que lhe são atribuídas é freqüentemente interrompido pelo controle imperfeito de suas necessidades naturais —, todas essa incongruências grotescas, mas trágicas, mostram-se impressas no desenvolvimento posterior do indivíduo e de sua neurose, em incontáveis efeitos permanentes que merecem ser delineados nos mínimos detalhes. Quando a relação se dá entre duas crianças, o caráter das cenas sexuais não é de espécie menos repulsiva, já que todo relacionamento dessa natureza entre crianças pressupõe a sedução prévia de uma delas por um adulto. As conseqüências psíquicas dessas relações entre crianças são extraordinariamente abrangentes; os dois indivíduos permanecem ligados por um elo invisível durante toda a vida.

Algumas vezes, são as circunstâncias acidentais dessas cenas sexuais infantis que, em anos posteriores, adquirem um poder determinante sobre os sintomas da neurose. Assim, num de meus casos, a circunstância de a criança ter sido solicitada a estimular os órgãos genitais de uma mulher adulta com seu pé foi o bastante para fixar por anos sua atenção neurótica em suas pernas e na função delas, produzindo finalmente uma paraplegia histérica. Em outro caso, uma paciente que sofria de ataques de angústia que tendiam a ocorrer em certas horas do dia só se acalmava quando uma determinada irmã, dentre as muitas que tinha, ficava a seu lado todo o tempo. A razão disso teria permanecido um enigma, se a análise não tivesse mostrado que o homem que atentara sexualmente contra ela costumava indagar, a cada visita, se a tal irmã, que ele temia viesse a interrompê-lo, estava em casa.

Por vezes ocorre que o poder determinante das cenas infantis está tão oculto que, ante uma análise superficial, está fadado a passar despercebido. Nesses casos, imaginamos ter descoberto a explicação de algum sintoma particular no conteúdo de uma das cenas posteriores — até que, no curso de nosso trabalho, deparamos com o mesmo conteúdo numa das cenas infantis, de modo que acabamos sendo obrigados a reconhecer que, afinal, a cena posterior só deve seu poder de determinar sintomas a sua concordância com a cena anterior. Não quero por isso retratar a cena posterior como algo sem importância; se fosse minha tarefa apresentar-lhes as normas que regem a formação de sintomas histéricos, eu teria que incluir como uma delas a de que a representação escolhida para a produção de um sintoma é uma representação evocada pela combinação de vários fatores, e despertada por várias fontes simultaneamente. Num outro trabalho, tentei expressar isso com a seguinte fórmula: os sintomas histéricos são sobredeterminados.

Mais uma coisa, senhores. É verdade que, anteriormente |ver em [1] e seg.|, isolei a relação entre a etiologia recente e a etiologia infantil como um tema separado. Entretanto, não posso abandonar o assunto sem infringir essa resolução ao menos com um comentário. Os senhores concordarão comigo em que há um fato, acima de todos, que nos induz a cometer erros na compreensão psicológica dos fenômenos histéricos, e que nos parece advertir para não aplicarmos a mesma medida aos atos psíquicos dos histéricos e das pessoas normais. Esse fato é a discrepância entre os estímulos psiquicamente excitantes e as reações psíquicas com que deparamos nos sujeitos histéricos. Tentamos dar conta dela admitindo, nos histéricos, a presença de uma sensibilidade anormal generalizada aos estímulos, e muitas vezes nos esforçamos por explicá-la em termos fisiológicos, como se, nesses pacientes, certos órgãos do cérebro que servem para transmitir estímulos se encontrassem num estado químico peculiar (como os centros espinhais de uma rã, por exemplo, ao lhe ser injetada estricnina), ou como se esses órgãos cerebrais tivessem escapado da influência dos centros inibidores superiores (como nos animais submetidos a experiências ou durante a vivissecção). Ocasionalmente, um ou outro desses conceitos pode ser perfeitamente válido como explicação dos fenômenos histéricos; não questiono isso. Mas a parte principal dos fenômenos — da reação histérica anormal e exagerada aos estímulos psíquicos — admite uma outra explicação, confirmada por inúmeros exemplos extraídos das análises dos pacientes. Essa explicação é a seguinte: A reação dos histéricos só é aparentemente exagerada; está fadada a nos parecer exagerada porque só conhecemos uma pequena parte dos motivos dos quais decorre.

Na realidade, essa reação é proporcional ao estímulo excitante e, portanto, é normal e psicologicamente compreensível. Nós o percebemos imediatamente quando a análise acrescenta aos motivos manifestos, dos quais o paciente tem consciência, os outros motivos que estavam em ação sem o seu conhecimento, de modo que ele nada nos podia dizer sobre eles.

Eu poderia gastar horas demonstrando a validade dessa importante asserção para toda a gama de atividade psíquica na histeria, mas devo restringir-me aqui a alguns exemplos. Os senhores decerto se lembrarão da “suscetibilidade” mental que é tão freqüente entre os pacientes histéricos, e que os leva a reagirem ao menor sinal de depreciação como se estivessem recebendo um insulto mortal. O que pensariam então se observassem esse alto grau de inclinação a magoar-se ante a menor ofensa, se o encontrassem entre duas pessoas normais, digamos, entre marido e mulher? Os senhores certamente infeririam que a cena conjugal testemunhada não era exclusivamente resultante dessa ocasião banal recente, mas que o material inflamável vinha-se acumulando há muito tempo e que a pilha inteira fora incendiada pela última provocação.

Eu lhes pediria que transpusessem essa linha de raciocínio para os pacientes histéricos. Não é a última desfeita — em si mesma, mínima — que produz o acesso de choro, a explosão de desespero ou a tentativa de suicídio, desrespeitando o axioma de que um efeito deve ser proporcional a sua causa: a pequena ofensa do momento atual despertou e pôs em ação as lembranças de muitas e mais intensas ofensas anteriores, por trás das quais jaz, além disso, a lembrança de uma grave ofensa na infância que nunca foi superada. Ou ainda, tomemos o exemplo de uma moça que se recrimina terrivelmente por ter permitido que um rapaz acariciasse sua mão em segredo, sendo desde então dominada por uma neurose. Naturalmente, os senhores poderão responder ao quebra-cabeça considerando-a uma pessoa anormal, de inclinações excêntricas e hipersensível; contudo, terão uma idéia diferente quando a análise lhes mostrar que aquele toque na mão a fez lembrar-se de outro toque semelhante, que ocorrera precocemente em sua infância e que integrava um conjunto menos inocente, de modo que suas auto-acusações eram, na verdade, censuras a essa antiga ocasião. Finalmente, o problema dos pontos histerogênicos é da mesma espécie. Ao se tocar determinado ponto, faz-se uma coisa que não se pretendia: desperta-se uma lembrança que pode desencadear um ataque consulsivo e, como não se sabe coisa alguma sobre esse vínculo psíquico intermediário, o ataque é diretamente ligado à ação do contato. Os pacientes acham-se no mesmo estado de ignorância e incidem, portanto, em erros similares. Estabelecem constantemente “falsas ligações” entre a causa mais recente, da qual estão conscientes, e o efeito, que depende de inúmeros elos intermediários. Ao conseguir, entretanto, reunir os motivos conscientes e inconscientes a fim de explicar uma reação histérica, o médico é quase sempre obrigado a reconhecer que a reação aparentemente exagerada é adequada, sendo anormal apenas em sua forma.

Os senhores, entretanto, poderão acertadamente objetar a essa justificação da reação histérica aos estímulos psíquicos e dizer que, ainda assim, a reação não é normal, pois por que razão as pessoas normais se comportam de modo diferente? Por que é que todas as excitações do passado remoto delas não entram em ação tão logo sucede uma nova excitação atual? Na verdade, tem-se a impressão de que, nos pacientes histéricos, todas as suas experiências antigas — às quais eles já reagiram com tanta freqüência e, além disso, com tanta violência — retiveram seu poder efetivo; é como se essas pessoas fossem incapazes de se desfazerem de seus estímulos psíquicos. Com efeito, senhores, deve-se realmente presumir algo dessa natureza. Os senhores não devem esquecer que, nas pessoas histéricas, quando há uma causa precipitante atual, entram em ação as antigas experiências sob a forma de lembranças inconscientes. É como se a dificuldade de se desfazerem de uma impressão atual, a impossibilidade de transformá-la numa lembrança inofensiva, estivesse ligada precisamente ao caráter do inconsciente psíquico. Como os senhores podem ver, o restante do problema repousa uma vez mais no campo da psicologia — e, o que é mais importante, de uma psicologia de um tipo para o qual os filósofos pouco fizeram para nos preparar.

A essa psicologia, que ainda está por ser criada para atender a nossas necessidades — a essa futura psicologia nas neuroses devo também encaminhar os senhores, ao dizer-lhes, em conclusão, algo que a princípio os levará a temer nossa compreensão nascente da etiologia da histeria. E isso porque afirmar que o papel etiológico da experiência sexual infantil não se restringe à histeria, mas se aplica igualmente à notável neurose das obsessões e, a rigor, talvez também às várias formas de paranóia crônica e outras psicoses funcionais. Expresso-me a esse respeito de maneira menos explícita porque, até o momento, analisei menos casos de neurose obsessiva do que de histeria; e, no que tange à paranóia, tenho a meu dispor apenas uma única análise completa e umas poucas fragmentadas. Mas o que descobri nesses casos pareceu fidedigno e me encheu de expectativas confiantes quanto a outros casos. Talvez os senhores se recordem que, já em data anterior, recomendei que a histeria e as obsessões fossem agrupadas em conjunto sob a denominação de “neuroses de defesa, mesmo antes de vir a conhecer a etiologia infantil comum. Devo agora acrescentar que — embora não seja necessário esperar que isso aconteça em geral — todos os meus casos de obsessões revelaram um substrato de sintomas histéricos, principalmente sensações e dores,que remontavam precisamente às primeiras experiências infantis. Portanto, o que é que determina se as cenas sexuais infantis que permanecem inconscientes, irão, mais tarde, quando os outros fatores patogênicos lhes forem acrescentados, suscitar a neurose histérica, a neurose obsessiva, ou mesmo a paranóia? Esse aumento de nosso conhecimento como vêem os senhores, parece prejudicar o valor etiológico das cenas, porquanto elimina a especificidade da relação etiológica.

Ainda não estou em condições de dar aos senhores uma resposta segura a essa pergunta. O número de casos que analisei não é suficientemente grande, nem os fatores determinantes neles têm sido suficientemente variados. Até aqui, observei que se pode mostrar pela análise que as obsessões são, sistematicamente, auto-acusações disfarçadas e transformadas, relativas a atos de agressão sexual na infância, sendo portanto mais freqüentemente encontradas nos homens do que nas mulheres, e desenvolvendo-se neles com mais freqüência do que a histeria. A partir disso eu poderia concluir que o caráter das cenas infantis — se foram experimentadas com prazer ou apenas passivamente — tem uma influência determinante na escolha da neurose posterior; mas não quero subestimar a importância da idade em que essas ações infantis ocorrem, nem a de outros fatores. Apenas uma discussão de outras análises poderá lançar a luz sobre esses pontos. No entanto, quando se tornar claro quais são os fatores decisivos na escolha entre as possíveis formas de neuropsicoses de defesa, a questão de qual é o mecanismo em virtude do qual uma determinada forma se constitui será, mais uma vez, um problema puramente psicológico.

Chego agora ao fim do que tinha a lhes dizer hoje. Embora esteja preparado para fazer face a objeções e descrença, gostaria de dizer mais uma coisa em defesa de minha posição. O que quer que os senhores pensem sobre as conclusões a que cheguei, devo pedir-lhes que não as encarem como o fruto de especulações inúteis. Elas se baseiam num minucioso exame individual dos pacientes, que, na maioria dos casos, consumiu cem ou mais horas de trabalho.O que me é ainda mais importante do que o valor que os senhores possam atribuir a meus resultados é a atenção que dedicarem ao procedimento que empreguei. Esse procedimento é novo e de difícil manejo, mas, apesar disso, é insubstituível para fins científicos e terapêuticos. Os senhores hão de reconhecer, estou certo, que não se poderão propriamente negar as descobertas decorrentes dessa modificação do procedimento de Breuer enquanto ela for posta de lado e se usar apenas o método costumeiro de interrogar os pacientes. Agir desse modo seria o mesmo que tentar refutar as descobertas da técnica histológica com base no exame macroscópico. O novo método de pesquisa dá amplo acesso a um novo elemento no campo psíquico dos eventos, a saber, os processos de pensamento que permanecem inconscientes — os quais, para usar a expressão de Breuer, são “inadmissíveis à consciência”. Assim, tal método nos inspira a esperança de uma nova e melhor compreensão de todos os distúrbios psíquicos funcionais. Não posso acreditar que a psiquiatria se negue por muito tempo a utilizar esse novo caminho de acesso ao conhecimento.

 

SINOPSES DOS ESCRITOS CIENTÍFICOS DO DR. SIGM. FREUD 1877-1897 (1897)

 

NOTA DO EDITOR INGLÊS

INHALTSANGABEN DER WISSENSCHAFTLICHEN

ARBEITEN DES PRIVATDOCENTEN DR. SIGM. FREUD 1877-1897

 

(a) EDIÇÕES ALEMÃS:

1897 Viena: Deuticke. 24 págs. (Edição particular.)

1940 Int. Z. Psychoanal, Imago 25 (1), 69-93.(Com o título “Bibliographie und Inhaltsangaben der Arbeiten Freuds bis zu den Anfaengen der Psychoanalyse” |Bibliografia e Sinopses dos Trabalhos de Freud até os Primórdios da Psicanálise”|.)

1952 G.W. 1, 463-88.

 

(b)TRADUÇÃO INGLESA:

“Abstracts of the Scientific Writings of Dr. Sigm. Freud (1877-1897)”

 

Esta tradução, a primeira em inglês, é de James Strachey.

 

Freud fora nomeado Privatdozent na Universidade de Viena em 1885. (Esse posto era comparável, embora não muito precisamente, à Lectureship |função de conferencista ou lente| das universidades inglesas.) A etapa seguinte seria a nomeação como “Professor Extraordinarius” (grosseiramente equivalente ao Assistant Professor |Professor Assistente|), mas essa nomeação sofreu longos adiamentos, e só doze anos depois foi que Freud soube que seu nome seria proposto ao Conselho da Faculdade por dois homens muito eminentes, Nothnagel e Kraff-Ebing. Esse fato foi relatado numa carta a Fliess de 8 de fevereiro de 1897 (Freud, 1950a, Carta 58). Os pré-requisitos necessários incluíam um “Curriculum Vitae” (ibid., Carta 59, de 6 de abril) e uma sinopse bibliográfica das publicações reeditadas aqui. Ela fora concluída antes de 16 de maio (ibid., Carta 62) e estava evidentemente impressa em 25 de maio (ibid., Carta 63), quando Freud enviou uma cópia a Fliess, descrevendo-a, com uma frase tomada de Leporello, como uma “Lista de todas as belezas etc...” Todos esses preparativos, no entanto, foram em vão, pois embora o Conselho da Faculdade, por voto majoritário, recomendasse a nomeação, o consentimento ministerial, de alçada superior, foi negado em grande parte, sem dúvida por razões anti-semíticas. Somente após cinco anos, em 1902, Freud foi nomeado professor.

Será possível notar, caso se faça uma comparação com a bibliografia completa fornecida no último volume desta edição, que alguns itens foram omitidos da presente lista por Freud. Esses itens ausentes são, em sua maior parte, resenhas, artigos menores, e algumas contribuições não assinadas para obras coletivas. Apenas um único trabalho de certa importância parece ter sido omitido por lapso — uma conferência sobre a cocaína (1885b) —, e parece possível que certos fatores inconscientes tenham participado dessa omissão (Jones, 1953, 106).

A inclusão dessas sinopses na Edição Standard fornece aos leitores um oportuno lembrete de que as “obras psicológicas completas” de Freud estão muito longe de coincidir com as “obras completas” de Freud, e de que os primeiros quinze prolíficos anos de sua atividade foram inteiramente voltados para as ciências físicas. Convém notar que o próprio Freud era às vezes algo inclinado a tecer comentários bastante desdenhosos sobre seus escritos neurológicos, alguns deles citados adiante. Mas outros neurologistas, mais recentes, estão longe de concordar com Freud quanto a isso. (Cf. uma discussão do neurologista suíço Brun, 1936.)

O leitor poderá notar que a ordem em que Freud dispôs os itens, embora seja mais ou menos cronológica, não respeita exatamente a seqüência de redação nem a de publicação.

Somos imensamente gratos ao Dr. Sabine Strich, do Departamento de Neuropatologia no Instituto de Psiquiatria da Universidade de Londres, por ler estas sinopses e orientar a tradução do material neurológico.

 

(A) ANTES DA NOMEAÇÃO COMO PRIVATDOZENT

 

I

“Observações sobre a configuração e a estrutura delicada dos órgãos lobados descritos como testículos nas enguias.” |1877b.|

O Dr. Syrski reconhecera recentemente um órgão disposto aos pares, lobulado e estriado, na cavidade abdominal da enguia, como sendo o órgão sexual masculino do animal, órgão que fora procurado por longo tempo. Por sugestão do professor Claus, investiguei a ocorrência e os componentes tissulares desses órgãos lobados na estação zoológica de Trieste.

 

II

 

“Sobre a origem das raízes nervosas posteriores na medula espinhal dos Ammocoetes (Petromyzon planeri).” |1877a|

(Do Instituto de Fisiologia da Universidade de Viena. Com um clichê.)

A investigação da medula espinhal dos Ammocoetes mostrou que as grandes células nervosas descritas por Reissner como ocorrendo na parte posterior da massa cinzenta (células posteriores) dão origem à fibras radiculares das raízes posteriores. — As raízes espinhais anteriores e posteriores do Petromyzon, pelo menos na região caudal, são deslocadas em suas origens umas em relação às outras e permanecem distintas entre si em seu curso periférico.

 

III

 

“Sobre os gânglios espinhais e a medula espinhal do Petromyzon.” |1878a.|

(Do Instituto de Fisiologia da Universidade de Viena. Com quatro clichês e duas xilogravuras.)

As células ganglionares espinhais dos peixes foram por muito tempo consideradas bipolares, enquanto as dos animais superiores eram consideradas unipolares. No que se refere a estes últimos elementos, Ranvier mostrou que seu processo único ramifica-se em forma de T depois de um pequeno percurso. — Pelo uso de uma técnica de maceração do ouro foi possível fazer um levantamento completo dos gânglios espinhais do Petromyzon; suas células nervosas exibem todas as transições entre bipolaridade e unipolaridade, com ramificação das fibras em forma de T; o número de fibras da raiz posterior é sistematicamente maior que o número de células nervosas no gânglio; assim, há “fibras de passagem” e fibras nervosas “subsidiárias”, as últimas das quais simplesmente se mesclam com os elementos das raízes. — Um elo entre as células ganglionares espinhais e as células posteriores da medula espinhal que foram descritas |por Reissner, ver II acima| é fornecido, no Petromyzon, por elementos celulares expostos na superfície da medula espinhal entre a raiz posterior e o gânglio. Essas células dispersas indicam o caminho tomado pelas células ganglionares espinhais no curso da evolução. — Em relação à medula espinhal do Petromyzon, o artigo descreve ainda a ramificação bifurcada das fibras comissurais anteriores, a intercalação das células nervosas nas porções espinhais das raízes anteriores, e uma rede nervosa muito delicada (que pode ser corada por cloreto de ouro) na pia máter.

 

IV

 

“Nota sobre um método para as preparações anatômicas do sistema nervoso.” |1879a.|

Modificação de um método recomendado por Reichert. — Uma mistura de uma parte de ácido nítrico concentrado, três partes de água, e uma parte de glicerina concentrada, por destruir o tecido conjuntivo e facilitar a remoção de ossos e músculos, é útil para desnudar o sistema nervoso central com suas ramificações periféricas, particularmente em pequenos mamíferos.

 

V

 

“Sobre a estrutura das fibras nervosas e das células nervosas do lagostim-de-rio.” |1882a.|

As fibras nervosas do lagostim-de-rio, quando se examinam os tecidos vivos, apresentam, sem exceção, uma estrutura fibrilar. As células nervosas, cuja sobrevivência pode ser reconhecida pelos grânulos em seus núcleos, parecem ser compostas de duas substâncias. Uma destas é reticular e se prolonga nas fibrilas das fibras nervosas, e a outra é homogênea e se prolonga em sua substância de base.

 

VI

 

“A estrutura dos elementos do sistema nervoso.” |1884f.|

(Conferência proferida ante a Sociedade Psiquiátrica, 1882)

 

Conteúdo como em V.

 

VII

 

“Novo método para o estudo dos tratos nervosos no sistema nervoso central.” (1884d.|

Quando seções finas do órgão central, enrijecidas em cromato, são tratadas com cloreto de ouro, uma solução forte de soda e uma solução de iodeto de cálcio a 10%, obtém-se uma coloração vermelha a azul que afeta as bainhas medulares ou apenas os cilindros do eixo. O método não é mais fidedigno do que outros métodos de coloração com ouro.

 

VIIa

 

“Novo método histológico para o estudo dos tratos nervosos no cérebro e na medula espinhal.” |1884c.|

 

Conteúdo como em VII.

 

VIII

 

“Um caso de hemorragia cerebral com sintomas focais basais indiretos num paciente portador de escorbuto.” |1884a.|

Relatório de um caso de hemorragia cerebral num paciente portador de escorbuto, que teve um rápido desfecho sob observação contínua. Os sintomas são explicados com referência à teoria do efeito indireto das lesões focais, de Wernicke.

 

IX

 

“Sobre a Coca.” |1884e.|

O alcalóide da coca, descrito por Nieman |em 1860|, recebeu na época pouca atenção do ponto de vista dos fins medicinais. Meu trabalho incluiu notas botânicas e históricas sobre a coca, baseadas nas asserções existentes na literatura; confirmou, através de experimentos com sujeitos normais, os notáveis efeitos estimulantes da cocaína, bem como sua ação suspensiva da fome, sede e sono; e se esforçou por fornecer indicações para o uso terapêutico da droga.

Entre essas indicações, assumiu importância, mais tarde, a referência ao possível emprego da cocaína durante a supressão da morfina. A expectativa proclamada ao final do trabalho, de que a propriedade de produção de anestesia local da cocaína encontraria outras aplicações, foi logo depois realizada pelas experiências de K. Koller com a anestesia da córnea.

 

X

“Contribuição para nossos conhecimentos sobre os efeitos da coca.” |1885a.|

Demonstração dinamométrica do aumento da força motora durante a euforia provocada pela cocaína. A força motora (medida pela força do aperto de mão) mostra uma oscilação regular diária (semelhante à da temperatura do corpo).

 

XI

 

“Uma nota sobre o trato interolivar.” |1885d.|

Breves notas sobre as conexões das raízes do nervo auditivo e a conexão entre o trato interolivar e o corpo trapezóide transverso, baseada em preparações humanas incompletamente mielinizadas.

 

XII

 

“Um caso de atrofia muscular com grandes distúrbios da sensibilidade (siringomielia).” |1885c.|

A combinação de uma atrofia muscular bilateral, com distúrbio bilateral da sensibilidade sob a forma de uma paralisia “parcial” e dissociada da sensação, e com distúrbios tróficos na mão esquerda (que também exibia a mais intensa anestesia), juntamente com a restrição dos sintomas patológicos à parte superior do corpo, permitiu, num homem de 36 anos, um diagnóstico in vivo de siringomielia, afecção que na época era considerada rara e difícil de reconhecer.

 

(B) APÓS A NOMEAÇÃO COMO PRIVATDOZENT

 

XIII

 

“Polineurite aguda dos nervos espinhais e cranianos.” |1886a.)

Um rapaz de dezoito anos adoeceu sem febre, mas com sintomas generalizados e dores prolongadas no tórax e nas pernas. Apresentou inicialmente sintomas de endocardite, mas depois as dores aumentaram e surgiu uma suscetibilidade à pressão na coluna vertebral e, localizadamente, na pele, nos músculos e nos troncos nervosos, à medida que a afecção foi tomando uma extremidade após outra: acentuação dos reflexos, acessos de suor, emaciação localizada e, por fim, diplopia, distúrbios da deglutinação, paresia facial e rouquidão. Finalmente, febre, extrema aceleração do pulso e afecção pulmonar. O diagnóstico de polineurite aguda, feito durante o curso da doença, foi confirmado pelas constatações post-mortem, que mostraram que todos os nervos espinhais em suas bainhas estavam injetados, vermelho-acinzentados e como que reunidos em feixes. Alterações semelhantes nos nervos cranianos. Endocardite. — De acordo com o patologista |Kundrat|, essa foi a primeira constatação post-mortem de polineurite a ser feita em Viena.

 

XIV

 

“Sobre a relação do corpo restiforme com a coluna posterior e seu núcleo, com alguns comentários sobre dois campos da medula oblonga.”|1886b.|

Em colaboração com o Dr. L. Darkschewitsch (Moscou).

Pelo estudo de preparações com a medula incompletamente mielinizada pode-se dividir o corpo restiforme em dois componentes: um “núcleo” (corpo restiforme primário) e uma “fímbria” (corpo restiforme secundário). Esta última contém o sistema fibroso olivar, que depois é mielinizado. O corpo restiforme primário, que é mielinizado antes, divide-se numa “porção nuclear” e numa “porção caudal”. O núcleo do corpo restiforme primário procede do núcleo da coluna de Burdach e assim representa uma continuação (em sua maior parte, não cruzada) do trato centrípeto das extremidades até o cerebelo. A continuação correspondente até o cérebro é fornecida por meio das fibras arqueadas originárias desse mesmo núcleo. A porção caudal do corpo restiforme primário é uma continuação direta do trato espinhocerebelar lateral. — O campo lateral da medula oblonga permite uma interpretação uniforme de seus componentes. Contém quatro substâncias cinzentas com os sistemas de fibras delas provenientes, que devem ser considerados mutuamente homólogos como substâncias em que se originam os nervos sensoriais que partem das extremidades, e os nervos trigêmeo, vago e auditivo.

 

XV

 

“Sobre a origem do nervo auditivo.” |1886c.|

Descrição da origem do nervo auditivo, baseada em preparações do feto humano, ilustrada por quatro desenhos de cortes transversais e um diagrama. O nervo auditivo reparte-se em três porções, das quais a mais baixa (mais espinhal) termina no gânglio auditivo e tem continuações através do corno trapezóide e dos tratos do corpo olivar superior; a segunda pode ser acompanhada, como a raiz auditiva “ascendente” de Roller, até o que se conhece como núcleo de Deiters; e a terceira corre para o campo auditivo interno da medula oblonga, de onde procedem as continuações para o cerebelo. São fornecidos detalhes do desenvolvimento posterior desses tratos até onde foi possível segui-los.

 

XVI

 

“Observação de um caso grave de hemianestesia num histérico.” |1886d.|

(O órgão da visão foi examinado pelo Dr. Koenigstein.)

 

Caso clínico de um gravador de 29 anos, com história familiar precária, que adoeceu após uma discussão com seu irmão. O caso proporcionou uma demonstração do sintoma da hemianestesia sensível e sensorial em sua forma clássica. — O distúrbio no campo da visão e no sentido da cor é relatado pelo Dr. Koenigstein.

 

XVII

 

“Comentários sobre a dependência da cocaína e o medo da cocaína.”|1887d.|

(Com referência a uma conferência de W. A. Hammond.)

 

O emprego da cocaína para alívio da abstinência da morfina resultou na má utilização da cocaína e deu aos médicos a oportunidade de observarem o novo quadro clínico da dependência crônica da cocaína. Meu ensaio, apoiado no pronunciamento de um neuropatologista norte-americano, procura mostrar que essa dependência da cocaína só se manifesta em viciados em outras drogas (tais como a morfina), não podendo a própria cocaína ser responsabilizada por isso.

 

XVIII

 

“Sobre a hemianopsia na primeira infância.” |1888a.|

 

Observação do distúrbio em metade do campo visual em duas crianças, uma de vinte e seis meses e outra de três anos e três meses, idade em que o sintoma não fora objeto prévio de registro médico. — Discussão sobre a inclinação lateral da cabeça e dos olhos que seria observada num dos casos, e sobre a localização da lesão suspeita. Ambos os casos devem ser classificados entre as “paralisias cerebrais unilaterais das crianças”.

 

XIX

 

Sobre a Interpretação das Afasias, estudo crítico. |1891b.|

 

Depois que uma base sólida para a compreensão dos distúrbios cerebrais da fala fora estabelecida pela descoberta e pela localização clara de uma afasia motora e uma afasia sensorial (Broca e Wernicke), as autoridades puseram-se a investigar também os sintomas mais sutis da afasia até fatores de localização. Desse modo, chegaram à hipótese de uma afasia de condução, com formas subcorticais e transcorticais, motoras e sensoriais. Esse estudo crítico opõe-se a essa concepção dos distúrbios da fala e procura introduzir, para sua explicação, fatores funcionais em lugar dos topográficos. As formas descritas como subcorticais e transcorticais não são explicáveis por uma localização específica da lesão, mas por condições de capacidade reduzida da condução no aparelho da fala. De fato, não há afasias causadas por lesão subcortical. Discute-se também a justificação para se distinguir uma afasia central de uma afasia de condução. A área da fala no córtex é antes vista como uma região contínua do córtex, inserida entre os campos motores do córtex e os dos nervos ótico e auditivo — uma região em que ocorrem todas as comunicações e associações que servem à função da fala. Os chamados centros da fala revelados pela patologia do cérebro correspondem meramente aos cantos desse campo da fala; não se distinguem, funcionalmente, das regiões anteriores; é apenas graças a sua posição em relação aos centros corticais contíguos que eles produzem os sinais mais óbvios quando ficam perturbados.

A natureza do assunto aqui tratado requereu, em muitos pontos, uma investigação mais detalhada da delimitação entre a abordagem fisiológica e psicológica. As concepções de Meynert e Wernicke sobre a localização das idéias nos elementos nervosos tiveram que ser rejeitadas, e a explicação de Meynert de uma representação do corpo no córtex cerebral exigiu uma revisão. Dois fatos da anatomia cerebral, a saber, (1) que as massas das fibras que penetram na medula espinhal são constantemente diminuídas ao se dirigirem para cima, devido à interposição de massa cinzenta, e (2) que não há vias diretas da periferia do corpo até o córtex — esses dois fatos levaram à conclusão de que uma representação realmente completa do corpo está presente apenas na massa cinzenta da medula (como uma “projeção”), enquanto que, no córtex, a periferia do corpo é apenas “representada” com menos detalhes através de fibras selecionadas, dispostas de acordo com sua função.

 

XX

 

Estudo Clínico das Paralisias Cerebrais Unilaterais das Crianças. |1891a|.

(Em colaboração com o Dr. O. Rie.)

 

(Nº III de Beitraege zur Kinderheilkunde |Contribuições à Pediatria|, organizado pelo Dr. M. Kassowitz.)

 

Monografia descrevendo tal afecção, com base em estudos empíricos no Primeiro Instituto Público de Doenças Infantis de Viena, dirigido por Kassowitz. Trata, em dez seções, de (1) história e literatura das paralisias cerebrais nas crianças; (2) trinta e cinco observações do próprio autor, sumariadas em forma tabular e descritas individualmente; (3) análise dos sintomas individuais do quadro clínico; (4) anatomia patológica; (5) relações da paralisia cerebral com a epilepsia e (6) com a poliomielite infantil; (7) diagnóstico diferencial; e (8) terapia. Uma “paresia coreática” é descrita pelos autores pela primeira vez; distingue-se pelas características peculiares de sua instalação e seu curso, e nela a paresia é representada desde o início pela hemicoréia. Há, além disso, um relato das constatações de uma autópsia (esclerose lobar como conseqüência de uma embolia da artéria cerebral média) de uma paciente descrita na Iconographie de la Salpêtrière |3, 22-30|. Enfatizam-se as estreitas relações entre a epilepsia e as paralisias cerebrais das crianças, em conseqüência das quais alguns casos de aparente epilepsia mereceriam ser descritos como “paralisia cerebral sem paralisia”. Com respeito à tão discutida questão da existência de uma polioencephalitis acuta, que se supõe constituir a base anatômica da paralisia cerebral unilateral e fornecer uma analogia completa com a poliomyelitis infantilis, os autores se opõem a essa hipótese de Strümpell; mas sustentam firmemente a expectativa de que uma concepção modificada da polyomyelitis acuta infantilis permitirá que ela seja equiparada à paralisia cerebral em outros termos. Na seção terapêutica, coligem-se os relatórios até então publicados sobre a intervenção de cirurgiões cerebrais tendo como objetivo a cura da epilepsia genuína ou da epilepsia traumática.

 

XXI

 

“Um caso de cura pelo hipnotismo, com alguns observações sobre a origem dos sintomas histéricos através da ‘contravontade’.” |1892-93.|

Uma jovem mulher, após o nascimento de seu primeiro filho, foi compelida a desistir de amamentá-lo, em virtude de um complexo de sintomas histéricos (perda de apetite, insônia, dores nos seios, falta de leite, agitação). Quando, após o nascimento de um segundo filho, esses obstáculos se repetiram, a hipnose profunda em duas ocasiões, acompanhada de contra-sugestões, conseguiu remover os obstáculos, de modo que a paciente se tornou uma excelente mãe e nutriz. O mesmo resultado foi obtido um ano depois, em circunstâncias similares, após mais duas hipnoses. Acrescentam-se alguns comentários sobre o fato de que é possível se realizarem, nos pacientes histéricos, idéias angustiantes ou antitéticas aflitivas que as pessoas normais são capazes de inibir; várias observações de tique são relacionadas com esse mecanismo de “contravontade”.

 

XXII

 

“Charcot.” |1893f.|

 

Um obituário do mestre da neuropatologia, que morreu em 1893 e entre cujos discípulos o presente autor se enumera.

 

XXIII

 

“Sobre um sintoma que freqüentemente acompanha a enuresis nocturna nas crianças.” |1893g.|

 

Em cerca de metade dos casos de crianças que sofrem de enurese constatamos uma hipertonia das extremidades inferiores cuja importância e implicações não estão explicadas.

 

XXIV

 

“Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos.”

(Comunicação preliminar em colaboração com o Dr. J. Breuer.) |1893a.|

O mecanismo ao qual Charcot reportou as paralisias histerotraumáticas, e cuja pressuposição lhe permitiu provocá-las deliberadamente em pacientes histéricos hipnotizados, pode ser também responsabilizado por numerosos sintomas do que se descreve como histeria não-traumática. Ao hipnotizarmos o histérico e reconduzirmos seus pensamentos até a ocasião em que o sintoma em questão apareceu pela primeira vez, emerge nele com nitidez alucinatória a lembrança de um trauma psíquico (ou de uma série de traumas) ligado àquele tempo, persistindo o sintoma como um símbolo mnêmico do trauma. Assim, os histéricos sofrem principalmente de reminiscências. Quando a cena traumática a que se chegou dessa maneira é vividamente reproduzida, acompanhada por uma geração de afeto, o sintoma, que até ali se mantivera obstinadamente, desaparece. Portanto, devemos supor que a lembrança esquecida estivesse agindo na mente como um corpo estranho, cessando o fenômeno irritante com sua remoção. Essa descoberta, originalmente feita por Breuer em 1881, pode converter-se na base de uma terapia dos fenômenos histéricos que merece ser descrita como “catártica”.

As lembranças reveladas como “patogênicas”, como as raízes dos sintomas histéricos, são sistematicamente “inconscientes” para o paciente. Parece que, por permanecerem inconscientes, elas escapam ao processo de desgaste a que o material psíquico é normalmente submetido. Esse tipo de desgaste é promovido pelo método da “ab-reação”. As lembranças patogênicas evitam ser tratadas pela ab-reação, seja porque as experiências correlatas ocorreram em estados psíquicos especiais a que as pessoas histéricas são intrinsecamente propensas, seja porque tais experiências foram acompanhadas por um afeto que acarreta um estado psíquico especial nas pessoas histéricas. Conseqüentemente, uma tendência à “divisão (splitting) da consciência” é o fenômeno psíquico básico nos casos de histeria.

 

XXV

 

Uma Abordagem das Diplegias Cerebrais na Infância (em Conexão com a Doença de Little). |1893b.|

(Nº III, Nova Série, de Beitraege zur Kinderheilkunde |Contribuições à Pediatria|, organizado pelo Dr. M. Kassowitz.)

Suplemento ao Estudo Clínico das Paralisias Cerebrais Unilaterais das Crianças, resumido antes como XX |ver em [1]|. A história, a anatomia patológica e a fisiologia da afecção são aqui tratadas na mesma ordem que na monografia anterior, e os quadros clínicos pertinentes são ilustrados por cinqüenta e três observações feitas pelo próprio autor. Entretanto, foi necessário levar também em conta a gama de formas que devem ser descritas como “diplegias cerebrais” e assinalar sua semelhança clínica. Em face das diferenças de opinião prevalecentes na literatura sobre esses distúrbios, o autor adotou o ponto de vista de uma autoridade mais antiga, Little, e chegou assim à postulação de quatro tipos principais, descritos como espasticidade geral, espasticidade paraplégica, coréia geral e atetose bilateral, e hemiplegia espástica bilateral (diplegia espástica).

A espasticidade geral inclui as formas a que se costuma fazer referência como “doença de Little”. A espasticidade paraplégica é o nome dado ao que antes se considerava como uma afecção espinhal, tabes spastica infantilis. As diplegias espásticas correspondem muito facilmente a uma duplicação das paralisias cerebrais unilaterais, mas se caracterizam por uma superfluidade de sintomas que encontra explicação na natureza bilateral da afecção cerebral. A justificativa para incluir a coréia geral e a atetose bilateral entre esses tipos é fornecida por numerosas características do quadro clínico e pela existência de muitas formas mistas e transicionais que ligam todos esses tipos.

Segue-se uma discussão das relações desses tipos clínicos com os fatores etiológicos aqui tomados como atuantes e com o número insuficiente de constatações post-mortem que têm sido relatadas. Chega-se às seguintes conclusões:

As diplegias cerebrais podem ser divididas, de acordo com sua origem, em (a) determinadas congenitamente, (b) surgidas no momento do nascimento, e (c) adquiridas depois do nascimento. Mas só muito raramente essa distinção pode ser estabelecida pelas peculiaridades clínicas do caso, não sendo sempre possível fazê-la pela anamnese. Todos os fatores etiológicos das diplegias são enumerados: pré-natais (trauma, doença ou choque afetando a mãe, posição da criança na família); atuantes no momento do nascimento (os fatores enfatizados por Little, a saber, nascimento prematuro, parto difícil, asfixia); e depois do nascimento (moléstias infecciosas, trauma ou choque afetando a criança). Não se pode considerar as convulsões como causas, mas apenas como sintomas da afecção. O papel etiológico da sífilis hereditária é reconhecido como importante. Não há nenhuma relação etiológica exclusiva entre uma dada etiologia entre essas e um dado tipo de diplegia cerebral, mas as relações preferenciais são freqüentemente evidentes. É insustentável a concepção de que as diplegias cerebrais são afecções de etiologia única.

São de muitos tipos as constatações patológicas nas diplegias e, em geral, são as mesmas das hemiplegias; em sua maior parte, têm a natureza de estados terminais, dos quais não é invariavelmente possível inferir as lesões iniciais. Em geral, não permitem uma decisão quanto à categoria etiológica a que um caso deve ser reportado. Tampouco costuma ser possível deduzir o quadro clínico das constatações post-mortem, de modo que se deve rejeitar também a pressuposição de que existam relações íntimas e exclusivas entre os tipos clínicos e as alterações anatômicas.

A fisiologia patológica das diplegias cerebrais tem um vínculo essencial com as duas características pelas quais a espasticidade geral e a paraplégica se distinguem de outras manifestações de doença orgânica cerebral. Pois em ambas essas formas clínicas, a contratura predomina sobre a paralisia e as extremidades inferiores são mais gravemente afetadas do que as superiores. A discussão desse artigo chega à conclusão de que a afecção mais intensa das extremidades inferiores em geral e a espasticidade paraplégica devem ser ligadas à localização da lesão (hemorragia meníngea ao longo da fissura mediana), e a preponderância de contratura deve ser ligada à superficialidade da lesão. O estrabismo das crianças diplégicas, que é particularmente comum na espasticidade paraplégica e quando a etiologia é o nascimento prematuro, é atribuível às hemorragias retinianas em crianças recém-nascidas, descritas por Koenigstein.

Uma seção especial enfoca numerosos casos de ocorrência familiar e hereditária de doenças infantis que apresentam uma afinidade clínica com as diplegias cerebrais.

 

XXVI

 

“Sobre as formas familiares de diplegias cerebrais.” |(1893d.|

 

Observação de dois irmãos, um de seis anos e meio e outro de cinco, cujos pais eram parentes consagüíneos, e que apresentavam um complicado quadro clínico que se desenvolveu gradualmente, num dos casos, desde o nascimento, e no outro, desde o segundo ano de vida. Os sintomas desse distúrbio familial (nistagmo lateral, atrofia do nervo óptico, estrabismo convergente alternante, fala monótona e como que escandida, tremor intencional dos braços, fraqueza espástica das pernas e um alto grau de inteligência) fundamentam a postulação de uma nova afecção, que deve ser considerada uma contraparte espástica da doença de Friedreich e, em vista disso, classificada entre as diplegias cerebrais familiais. Dá-se ênfase à extensa similaridade desses casos com os descritos como esclerose múltipla por Pelizaeus, em 1885.

 

XXVII

 

|“As diplegias cerebrais infantis.” |1893e.|

 

Síntese das constatações da monografia resumida acima, Nº XXV.

 

XXVIII

 

“Considerações para um estudo comparativo das paralisias motoras orgânicas e histéricas.” |1893c.|

 

Comparação entre as paralisias orgânicas e histéricas, feita sob a influência de Charcot a fim de chegar a uma linha de abordagem da natureza da histeria. A paralisia orgânica é perífero-espinhal ou cerebral. Com base nas discussões de meu estudo crítico da afasias |Nº XIX acima|, a primeira é descrita como paralisia de projeção e é uma paralisia en détail, enquanto a segunda é descrita como paralisia de representação e é uma paralisia en masse. A histeria imita apenas esta última categoria das paralisias, mas tem liberdade para se especializar, o que a faz assemelhar-se à paralisia de projeção; ela pode dissociar as áreas de paralisia que ocorrem regularmente nas afecções cerebrais. A paralisia histérica tende a um excessivo desenvolvimento; pode ser extremamente intensa e, no entanto, restringir-se estritamente a uma pequena área, enquanto a paralisia cortical aumenta sistematicamente de extensão paralelamente ao aumento de sua intensidade. A sensibilidade comporta-se de maneira diamentralmente oposta nos dois tipos de paralisia.

As características especiais da paralisia cortical são determinadas pelas peculiaridades da estrutura cerebral e nos permitem inferir a anatomia do cérebro. A paralisia histérica, pelo contrário, comporta-se como se a anatomia cerebral não existisse. A histeria nada sabe sobre a anatomia cerebral. A alteração que subjaz à paralisia histérica não pode ter nenhuma semelhança com as lesões orgânicas, devendo, antes, ser buscada nas condições que regem o acesso a algum círculo específico de representações.

 

XXIX

 

“As neuropsicoses de defesa: tentativa de formulação de uma teoria psicológica da histeria adquirida, de muitas fobias e obsessões e de certas psicoses alucinatórias.” |1894a.|

 

Primeiro de uma série de artigos breves que aparecem em seguida e se voltam para a tarefa de preparar uma exposição geral das neuroses em novas bases agora acessíveis.

A divisão da consciência não é uma característica primária dessa neurose, baseada na fraqueza degenerativa, como insiste Janet. É conseqüência de um processo psíquico peculiar, conhecido como “defesa”, que alguns curtos relatos de análises mostram estar presente não só na histeria, mas também em inúmeras outras neuroses e psicoses. A defesa entra em ação quando surge uma situação de incompatibilidade na vida representativa entre uma determinada representação e o “ego”. O processo da defesa pode ser figurativamente representado como se a carga de excitação fosse extraída da representação a ser recalcada e fosse utilizada de outra maneira. Isso pode ocorrer de vários modos: na histeria, a soma de excitação liberada é transformada em inervação somática (histeria de conversão); na neurose obsessiva,ela persiste no campo psíquico e se vincula a outras representações não incompatíveis em si mesmas e que assim substituem a representação recalcada. A fonte das representações incompatíveis sujeitas à defesa é única e exclusivamente a vida sexual. A análise de um caso de psicose alucinatória mostra que também essa psicose representa um método de chegar à defesa.

 

XXX

 

“Obsessões e fobias: seu mecanismo psíquico e sua etiologia”. |1895c|

As obsessões e fobias devem ser distinguidas da neurastenia como afecções neuróticas independentes. Em ambas |obsessões e fobias| trata-se do vínculo entre uma representação e um estado afetivo. Nas fobias, este último é sempre o mesmo, a saber, a angústia; nas obsessões verdadeiras, o afeto pode ser de vários tipos (autocensura, sentimento de culpa, dúvida etc.). O estado afetivo emerge como o elemento essencial da obsessão, já que permanece inalterado em cada caso, enquanto a representação a ele vinculada se modifica. A análise psíquica mostra que o afeto da obsessão é justificado em todos os casos, mas que a representação a ele vinculada representa um substituto de uma representação derivada da vida sexual, que é mais adequada ao afeto e sucumbiu ao recalcamento. Esse estado de coisas é ilustrado por numerosas análises curtas de casos de folie du doute, mania de lavar, aritmomania etc., nos quais a reinstalação da representação recalcada teve êxito e foi acompanhada de proveitosos efeitos terapêuticos. As fobias, stricto senso, são examinadas no artigo sobre a neurose de angústia (Nº XXXII).

 

XXXI

 

Estudos sobre a Histeria |1895d.|

(Em colaboração com o Dr. J. Breuer.)

Esse volume contém a complementação do assunto aventado na “Comunicação Preliminar” (Nº XXIV), versando sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos. Embora resulte de trabalho conjunto dos dois autores, está dividido em seções separadas, das quais quatro casos clínicos detalhados, juntamente com suas discussões e o ensaio de uma “Psicoterapia da Histeria” constituem minha parte. Nesse livro, o papel etiológico desempenhado pela sexualidade é frisado com maior ênfase do que na “Comunicação Preliminar”, e o conceito de “conversão” é utilizado para lançar luz sobre a formação dos sintomas histéricos. O ensaio sobre psicoterapia procura fornecer alguns esclarecimentos sobre a técnica do procedimento psicanalítico, o único que é capaz de levar à investigação do conteúdo inconsciente da mente, e de cujo emprego também se pode esperar que leve a importantes descobertas psicológicas.

 

XXXII

 

“Fundamentos para destacar da neurastenia uma síndrome específica denominada ‘neurose de angústia’.” |1895b.|

 

A conjunção de um agrupamento constante de sintomas com um determinante etiológico específico possibilita destacar do campo múltiplo da “neurastenia” uma síndrome que merece o nome de “neurose de angústia”, porque todos os seus componentes procedem dos sintomas de angústia. Estes devem ser considerados como manifestações imediatas de angústia ou como rudimentos e equivalentes delas (E. Hecker), e estão freqüentemente em completa oposição aos sintomas que constituem a neurastenia propriamente dita. A etiologia das duas neuroses também aponta para uma oposição desse tipo. Enquanto a neurastenia verdadeira decorre de emissões espontâneas ou é adquirida através da masturbação, os fatores pertinentes à etiologia da neurose de angústia são tais que correspondem a um refreamento da excitação sexual — por exemplo, a abstinência quando a libido está presente, a excitação não consumada e, acima de tudo, o coito interrompido. Na vida real, as neuroses aqui distinguidas costumam aparecer combinadas, embora também seja possível demonstrar casos puros. Quando se submete esse tipo de neurose mista à análise, é possível indicar uma mistura de várias etiologias específicas.

A tentativa de chegar a uma teoria da neurose de angústia leva a uma fórmula segundo a qual seu mecanismo reside no desvio da excitação sexual somática do campo psíquico e num conseqüente emprego anormal dessa excitação. A neurose de angústia é a libido sexual transformada.

 

XXXIII

 

“Resposta às críticas a meu artigo sobre a neurose de angústia.” |1895f.|

 

Réplica às objeções feitas por Loewenfeld ao conteúdo do Nº XXXII. O problema da etiologia da patologia das neuroses é aqui enfocado para justificar a divisão dos fatores etiológicos que aparecem em três categorias: (a) precondições; (b) causas específicas e (c) causas concorrentes ou auxiliares. As chamadas precondições são os fatores que, embora indispensáveis para produzir o efeito, não podem por si mesmos produzi-lo, mas necessitam, adicionalmente, das causas específicas. As causas específicas distinguem-se das precondições pelo fato de figurarem em apenas algumas fórmulas etiológicas, enquanto as precondições desempenham o mesmo papel em numerosas afecções. As causas auxiliares são de tal ordem que nem precisam estar invariavelmente presentes, nem podem, por si mesmas, produzir o efeito em questão. — No caso das neuroses, é possível que a precondição seja a hereditariedade; a causa específica reside nos fatores sexuais; tudo o mais que, afora isso, é apontado como formador da etiologia das neuroses (sobrecarga de trabalho, emoção, doença física), constitui uma causa auxiliar e não pode nunca substituir inteiramente o fator específico, embora sem dúvida possa servir como substituto dele no que concerne à quantidade. A forma de uma neurose depende da natureza da causa sexual específica; a ocorrência efetiva de uma doença neurótica é determinada por fatores que atuam quantitativamente; a hereditariedade funciona como um multiplicador inserido num circuito elétrico.

 

XXXIV

“Sobre o distúrbio de Bernhardt da sensibilidade na coxa.” |1895e.|

 

Auto-observação dessa afecção inofensiva, provavelmente atribuível à neurite local; e relatório sobre alguns outros casos, inclusive bilaterais.

 

XXXV

 

“Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa.” |1896b.|

 

(1) A etiologia específica da histeria. A continuação do trabalho psicanalítico com sujeitos histéricos teve o resultado uniforme de mostrar que os eventos traumáticos suspeitados (como símbolos mnêmicos dos quais os sintomas histéricos persistem) ocorrem na primeira infância dos pacientes e devem ser descritos como abusos sexuais no sentido mais restrito.

(2) A natureza e o mecanismo da neurose obsessiva. As representações obsessivas são, invariavelmente, autocensuras transformadas, que reemergiram do recalcamento e estão sempre relacionadas com algum ato sexual praticado com prazer na infância. Investiga-se o curso tomado por esse retorno do recalcado, bem como o trabalho de defesa primária e secundária.

(3) Análise de um caso de paranóia crônica. Essa análise, relatada em detalhe, indica que a etiologia da paranóia deve ser buscada nas mesmas experiências sexuais da primeira infância, nas quais já fora descoberta a etiologia da histeria e da neurose obsessiva. Os sintomas desse caso de paranóia são detalhadamente reportados às atividades de defesa.

 

XXXVI

 

“A etiologia da histeria.” |1896c.|

 

Relatos mais detalhados das experiências sexuais infantis que se demonstrou constituírem a etiologia das psiconeuroses. Em seu conteúdo, essas experiências devem ser descritas como “perversões”, e os responsáveis devem ser procurados, em geral, entre os parentes mais próximos do paciente. Discussão das dificuldades que têm de ser superadas na descoberta dessas lembranças recalcadas e das objeções que se podem levantar aos resultados assim obtidos. Demonstra-se que os sintomas histéricos são derivados de lembranças que atuam inconscientemente, pois só aparecem em colaboração com tais lembranças. A presença de experiências sexuais infantis é uma condição indispensável para que os esforços defensivos (que ocorrem também em pessoas normais) resultem na produção de efeitos patogênicos — ou seja, de neuroses.

 

XXXVII

 

“A hereditariedade e a etiologia das neuroses.” |1896a.|

 

As constatações a que a psicanálise chegou até agora sobre a etiologia das neuroses são aqui empregadas para criticar teorias atuais da onipotência da hereditariedade na neuropatologia. O papel desempenhado pela hereditariedade tem sido superestimado em vários sentidos. Primeiramente, por incluir entre as doenças neuropáticas hereditárias estados como as dores de cabeça, as nevralgias etc, que são muito provavelmente atribuíveis, em geral, a afecções orgânicas das cavidades cranianas (o nariz). Em segundo lugar, por considerar qualquer enfermidade nervosa que se descubra entre os parentes como evidência de uma tara hereditária, e assim, desde logo, não deixando nenhum espaço para as doenças neuropáticas adquiridas que não possuam força comprobatória similar. Em terceiro lugar, o papel etiológico da sífilis tem sido mal compreendido e as moléstias nervosas dela derivadas têm sido atribuídas à hereditariedade. Mas, além disso, é viável levantar-se uma objeção geral contra uma forma de hereditariedade descrita como “herança dissimilar” (ou herança com modificação da forma da doença), à qual se concede um papel muito mais importante que o atribuído à herança “similar”. Contudo, quando se demonstra uma tara hereditária numa família pelo fato de seus membros serem alternadamente afetados por toda sorte de doenças nervosas — coréia, epilepsia, histeria, apoplexia etc. —, sem qualquer determinante mais preciso, então, ou necessitamos de um conhecimento das leis segundo as quais essas doenças se sucedem, ou fica aberto o espaço para as etiologias individuais que determinam precisamente a escolha do estado neuropático que efetivamente resulta delas. Se existem tais etiologias particulares, são elas as tão almejadas causas específicas das várias formas clínicas diferentes, e a hereditariedade é restituída ao papel de requisito ou precondição.

 

XXXVIII

 

Paralisias Cerebrais Infantis. |1897a.|

 

Esse é um resumo dos dois trabalhos sobre o mesmo tema publicados em 1891 e 1893 |Nos. XX e XXV|, juntamente com os acréscimos e alterações que desde então se fizeram necessários. Estes afetam o capítulo sobre a poliomyelitis acuta, que nesse ínterim foi reconhecida como uma doença não-sistemática, o capítulo sobre a encefalite como um processo inicial de hemiplegia espástica, e o capítulo sobre a interpretação dos casos de espasticidade paraplégica, cuja natureza cerebral tem sido recentemente posta em dúvida. Uma discussão especial refere-se às tentativas de fracionar o conteúdo das diplegias cerebrais em várias entidades clínicas claramente divididas, ou pelo menos de destacar o que se conhece como “doença de Little”, como individualidade clínica, da mistura de formas de afecções similares. As dificuldades em que esbarram tais tentativas são assinaladas, e se sustenta como única posição justificável a de que a “paralisia cerebral infantil” deve ser mantida, no momento, como um conceito clínico coletivo para todo um conjunto de afecções similares com etiologia exógena. O rápido incremento das observações de distúrbios nervosos familiares e hereditários em crianças, que se assemelham em muitos pontos às paralisias cerebrais infantis, tem criado a premência de se coligirem essas novas formas e de se buscar traçar uma distinção fundamental entre elas e as paralisias cerebrais infantis.

 

APÊNDICE

 

A. Obras escritas sob minha influência

 

E. Rosenthal, Contribution à l’étude des diplégies cérébrales de l’enfance. Thèse de Lyon. (Médaille d’argent.) (1892.).

L. Rosenberg, Casuistische Beitraege zur Kenntnis der cerebralen Kinderlaehmungen und der Epilepsie. (Nº IV, Nova Série, de Beitraege zur Kinderheilkunde, organizado por Kassowitz.) (1893.).

 

B. Traduções do francês.

 

J.-M. Charcot, Neue Vorlesungen über die Krankheiten des Nervensystems, insbesondere über Hysterie. (Toeplitz & Deuticke, Viena.)|1886f.|

H. Bernheim, Die Suggestion und ihre Heilwirkung. (Fr. Deuticke, Viena.) |1888-89.| (Segunda edição, 1896.)

H. Bernheim, Neue Studien über Hypnotismus, Suggestion und Psychotherapie. (Fr. Deuticke, Viena.) |1892a.|

J.-M. Charcot, Poliklinische Vortraege. Vol. I. (Leçons du Mardi.) Com notas do tradutor. (Fr. Deuticke, Viena.) |1892-94.|

 

A SEXUALIDADE NA ETIOLOGIA DAS NEUROSES (1898)

 

DIE SEXUALITAET IN DER AETIOLOGIE DER NEUROSEN

(a)EDIÇÕES ALEMÃS:

1898 Wien. klin. Rdsch., 12 (2), 21-2, (4), 55-7, (5), 70-2, (7), 103-5. (9, 23 e 30 de janeiro e 13 de fevereiro.)

1906 S.K.S.N., 1, 181-204. (1911, 2ª ed.; 1922, 4ª ed.)

1925 G.S., 1, 439-64.

1952 G.W., 1, 491-516.

 

(b)TRADUÇÃO INGLESA:

“Sexuality in the Aetiology of the Neuroses”

 

1924 C.P., 1, 220-48. (Trad. de J. Bernays.)

 

A presente tradução é uma versão modificada da publicada em 1924.

 

Este artigo foi concluído em 9 de fevereiro de 1898, como nos informa uma carta a Fliess (Freud, 1950a, Carta 83.) Já fora iniciado um mês antes (ibid., Carta 81) e, em ambas as cartas, Freud o trata desdenhosamente como um artigo “Gartenlaube”. Este era o título (literalmente, “caramanchão”) de uma revista de assuntos domésticos cujo nome se tornara proverbial por suas histórias sentimentais. Mas ele acrescenta que o artigo “é bastante impudente e basicamente destinado a criar caso, no que sem dúvida terá êxito. Breuer dirá que me causei muitos prejuízos.”

Dois anos se haviam passado desde o último artigo de Freud sobre psicopatologia, “A Etiologia da Histeria” (1896c), e durante esses dois anos muita coisa acontecera para ocupar sua mente. Talvez a menos importante (pelo menos do nosso ponto de vista) tenha sido a conclusão, em inícios de 1897, de seu tratado de trezentas páginas sobre as paralisias infantis para a grande enciclopédia de medicina de Nothnagel, no qual estivera ocupado por vários anos, muito a contragosto, e que foi seu último trabalho neurológico. Cf., por exemplo, as cartas a Fliess de 20 e 31 de outubro e 8 de novembro de 1895, 4 de julho e 2 de novembro de 1896, e 24 de janeiro de 1897 (Freud, 1950a, Cartas 32, 33, 35, 47, 50 e 57). Uma vez ultrapassada essa tarefa, ele podia devotar-se mais completamente à psicologia, e logo se envolveu num evento que se revelaria um marco memorável — sua própria auto-análise.Esta começou no verão de 1897 e, já pelo outono, conduzira a algumas descobertas fundamentais: o abandono da teoria traumática da etiologia das neuroses (21 de setembro, Carta 69), a descoberta do complexo de Édipo (15 de outubro, Carta 71) e o reconhecimento gradual da sexualidade infantil como um fato normal e universal (p.ex. 14 de novembro, Carta 75.)

De todos esses desenvolvimentos (e dos avanços paralelos na compreensão de Freud da psicologia do sonho) não há praticamente nenhum vestígio no presente artigo, o que sem dúvida explica o desdém de seu autor por ele. Quanto aos aspectos fundamentais, ele não vai além do ponto atingido dois anos antes: Freud se reservava para seu grande esforço subseqüente, que ocorreria dali a mais dois anos, em A Interpretação dos Sonhos (1900a).

Mas, se a primeira parte do trabalho contém pouco mais que uma reafirmação das concepções anteriores de Freud sobre a etiologia das neuroses, a argumentação também nos apresenta algo de novo — uma abordagem de problemas sociológicos. A crítica sem rodeios aqui feita à atitude da profissão médica em relação aos assuntos sexuais, particularmente à masturbação, ao uso de anticoncepcionais e às dificuldades da vida conjugal, prenuncia toda uma série de restrições posteriores de Freud às convenções sociais da civilização — começando com o artigo sobre “Moral Sexual ‘Civilizada’” (1908d) e findando com O Mal-Estar na Cultura (1930a).

 

A SEXUALIDADE NA ETIOLOGIA DAS NEUROSES

 

Pesquisas exaustivas durante os últimos anos levaram-me a reconhecer que as causas mais imediatas e, para fins práticos, mais importantes de todos os casos de doença neurótica são encontradas em fatores emergentes da vida sexual. Essa teoria não é inteiramente nova. Uma certa dose de importância tem sido concedida aos fatores sexuais na etiologia das neuroses desde tempos imemoriais e por todos os autores que trataram do assunto. Em certas áreas marginais da medicina sempre se prometeu, simultaneamente, a cura das “queixas sexuais” e da “fraqueza nervosa”. Uma vez que a validade da teoria deixe de ser negada, portanto, não será difícil contestar sua originalidade.

Em alguns artigos sucintos que apareceram nos últimos anos no Neurologisches Zentralblatt |1894a, 1895b e 1896b), na Revue Neurologique |1895c e 1896a| e na Wiener Klinische Rundschau|1895f e 1896c| tentei dar uma indicação do material e dos pontos de vista que oferecem apoio científico à teoria da “etiologia sexual das neuroses”. Falta ainda, entretanto, uma apresentação completa, principalmente porque, no esforço de lançar luz sobre o que se reconhece como a situação atual, deparamos sempre com novos problemas para cuja solução ainda não se realizou o trabalho preliminar necessário. Não me parece nada prematuro, porém, tentar dirigir a atenção dos profissionais da medicina para o que acredito serem os fatos, de modo que eles possam convencer-se da verdade de minhas asserções e, ao mesmo tempo, dos benefícios que podem extrair, na prática, do conhecimento delas.

Bem sei que se farão esforços, pelo uso de argumentos com um colorido ético, para impedir o médico de levar o assunto adiante. Quem quer que pretenda certificar-se de que as neuroses de seus pacientes estão ou não realmente ligadas à vida sexual deles não pode evitar interrogá-los sobre sua vida sexual e insistir em receber um depoimento verdadeiro sobre ela. Mas nisso, afirma-se, está o perigo para o indivíduo e para a sociedade. O médico, segundo ouço dizer, não tem o direito de se intrometer nos segredos sexuais de seus pacientes, nem de ferir grosseiramente seu recato (especialmente tratando-se de pacientes do sexo feminino) com interrogatórios desse tipo. Sua mão inábil só conseguirá arruinar a felicidade da família, ofender a inocência dos jovens e usurpar a autoridade dos pais; e no que concerne aos adultos, ele passará a partilhar de conhecimentos incômodos e destruirá suas próprias relações com os pacientes. A conclusão, portanto, é que é seu dever ético manter-se afastado de toda a questão sexual.

A isso se pode muito bem replicar que não passa da expressão de um puritanismo indigno de um médico e que esconde insuficientemente sua fraqueza por trás de argumentos precários. Se os fatores procedentes da vida sexual precisam realmente ser reconhecidos como causas de doença, então, por essa mesma razão, a investigação e a discussão deles incluem-se automaticamente na esfera do dever do médico. A ofensa ao pudor de que ele é culpado nesse caso não é diferente nem pior, como se pode supor, do que sua insistência em examinar os órgãos genitais de uma mulher a fim de curar uma afecção local — pedido em que ele tem o compromisso de insistir por sua própria formação médica. Até hoje se ouve com freqüência mulheres mais velhas que passaram sua juventude nas províncias, contarem como, em curta época, ficaram reduzidas a um estado de esgotamento por hemorragias genitais excessivas porque não conseguiam decidir-se a permitir que um médico contemplasse sua nudez. A influência educativa exercida no público pelo mundo da medicina, no decorrer de uma geração, alterou de tal modo as coisas que uma objeção desse tipo é uma ocorrência extremamente rara entre as jovens de hoje. Se viesse a ocorrer, seria condenada como puritanismo absurdo, como recato fora de lugar. Será que estamos vivendo na Turquia, perguntaria um marido, onde tudo o que uma mulher doente pode mostrar ao médico é seu braços através de um buraco na parede?

Não é verdade que o interrogatório dos pacientes e o conhecimento de suas preocupações sexuais forneçam ao médico um grau perigoso de poder sobre eles. Em épocas anteriores, a mesma objeção pôde ser feita ao uso de anestésicos, que privam o paciente de sua consciência e do exercício de sua vontade, deixando a critério do médico determinar se e quando ele os recuperará. No entanto, hoje em dia, os anestésicos tornaram-se indispensáveis para nós, porque podem, melhor do que qualquer outra coisa auxiliar o médico em seu trabalho; e entre suas várias outras obrigações sérias, ele assume a responsabilidade por seu uso.

Um médico sempre pode causar danos, quando é inábil ou inescrupuloso, e isso não se aplica mais nem menos à investigação da vida sexual dos pacientes do que a outras áreas. Naturalmente, se alguém, após um auto-exame honesto, sentir que não possui o tato, a seriedade e a discrição necessários para interrogar pacientes neuróticos, e se estiver ciente de que as revelações de caráter sexual lhe provocariam arrepios lascivos, em vez de interesse científico, ele estará certo em evitar o tópico da etiologia das neuroses. Tudo o que pedimos, além disso, é que se abstenha também de tratar pacientes nervosos.

Tampouco é verdade que os pacientes levantam obstáculos insuperáveis à investigação de sua vida sexual. Após uma ligeira hesitação, os adultos costumam adaptar-se à situação, dizendo: “Afinal, estou diante do médico; posso dizer-lhe qualquer coisa”. Inúmeras mulheres, que acham bastante difícil passar a vida escondendo seus sentimentos sexuais, ficam aliviadas ao descobrir que, com o médico, nenhuma consideração sobrepuja a de sua recuperação, e lhe são gratas por permitir, ao menos uma vez na vida, que se comportem humanamente em relação às coisas sexuais. O vago conhecimento da esmagadora importância dos fatores sexuais na produção das neuroses (um conhecimento que estou tentando resgatar para a ciência) parece nunca ter passado despercebido à consciência dos leigos. Quantas vezes testemunhamos cenas como essa: um casal em que um dos membros sofre de uma neurose procura-nos para uma consulta. Depois de tecermos inúmeros comentários introdutórios e justificativos, no sentido de que não deve existir nenhuma barreira entre eles e o médico, que quer ser útil em tais casos etc., falamo-lhes de nossa suspeita de que a causa da doença resida na forma antinatural e prejudicial de relações sexuais que eles devem ter escolhido desde o último parto da mulher. Dizemos que os médicos em geral não se interessam por esses assuntos, mas que isso é repreensível neles, mesmo que os pacientes não gostem que lhes falem sobre essas coisas etc. Nisso, um dos cônjuges cutuca o outro e diz: “Está vendo? Eu sempre lhe disse que isso ia me deixar doente”. Ao que o outro responde: “É, eu sei, eu também achava, mas que se há de fazer?”

Em algumas outras circunstâncias, quando se está lidando com mocinhas que, afinal, são sistematicamente educadas para esconderem sua vida sexual, é preciso contentar-se com uma dose muito pequena de sinceridade nas respostas da paciente. Mas aqui entra uma consideração importante — a saber, que o médico experiente nessas coisas não está despreparado ao se defrontar com seus pacientes e, em geral, não precisa pedir-lhes informações, mas apenas uma confirmação de suas suspeitas. Quem seguir minhas indicações de como elucidar a morfologia das neuroses e traduzi-la em termos etiológicos necessitará, além disso, de muito poucas revelações adicionais de seus pacientes; na própria descrição de seus sintomas, que todos estão prontos a fornecer, eles costumam apresentar ao médico, ao mesmo tempo, os fatores sexuais que estão ocultos.

Seria muito vantajoso que as pessoas doentes tivessem maior conhecimento da segurança com que o médico está agora em condições de interpretar suas queixas neuróticas e de inferir delas a etiologia sexual atuante. Sem dúvida, isso estimularia tais pessoas a abandonarem seu sigilo a partir do momento em que se decidissem a buscar ajuda para seus sofrimentos. Além disso, é do interesse geral que se torne um dever, entre homens e mulheres, um grau mais alto de franqueza sobre as coisas sexuais do que se tem esperado deles até agora. Isso só pode constituir-se em benefício para a moral sexual. Em matéria de sexualidade, somos todos, no momento, doentes ou sãos, não mais do que hipócritas. Será muito bom se obtivermos, em conseqüência dessa franqueza geral, uma certa dose de tolerância quanto às questões sexuais.

Os médicos costumam interessar-se muito pouco pelas questões discutidas entre os neuropatologistas com relação às neuroses: se é justificável, por exemplo, estabelecer uma diferenciação estrita entre histeria e neurastenia, se é possível distinguir ao lado delas a histeroneurastenia, se as obsessões devem ser classificadas juntamente com a neurastenia ou reconhecidas como uma neurose distinta, e assim por diante. E a rigor, é bem possível que essas distinções sejam irrelevantes para o profissional, desde que não haja outras conseqüências das decisões a que se tenha chegado — nenhum aprofundamento maior da compreensão e nenhuma indicação para um tratamento terapêutico — e desde que o paciente seja sempre enviado a um estabelecimento hidropático e informado de que não há nenhum problema com ele. A situação será diferente, entretanto, se for adotado nosso ponto de vista sobre as relações causais entre a sexualidade e as neuroses. Nesse caso, um novo interesse será despertado pela sintomatologia dos diferentes casos neuróticos, e passará a ter importância prática que se possa decompor corretamente o complicado quadro em seus componentes, assim como nomeá-los com acerto. E isso porque a morfologia das neuroses pode ser traduzida, com pouca dificuldade, em sua etiologia, e o conhecimento desta última leva, naturalmente, a novas indicações quanto aos métodos de cura.

Assim, a importante decisão que precisamos tomar — e pode-se tomá-la com segurança em todos os casos, se os sintomas forem cuidadosamente avaliados — é se o caso tem as características da neurastenia ou de uma psiconeurose (histeria, obsessões). (Os casos mistos, em que os sinais da neurastenia se combinam com os de uma psiconeurose, são de ocorrência muito freqüente, mas deixaremos sua consideração para mais tarde.) É apenas nas neurastenias que a inquirição do paciente consegue desvendar os fatores etiológicos em sua vida sexual. Esses fatores, é claro, são conhecidos dele e pertencem ao momento atual, ou, mais exatamente, ao período de sua vida que se estende desde a maturidade sexual (embora essa delimitação não cubra todos os casos). Nas psiconeuroses, esse tipo de inquirição traz pouco resultado. Talvez nos forneça um conhecimento dos fatores que devem ser reconhecidos como precipitantes, e que podem estar ou não ligados à vida sexual. Quando essa ligação existe, eles mostram não diferir, quanto a sua natureza, dos fatores etiológicos da neurastenia, isto é, falta-lhes inteiramente qualquer relação específica com a causação da psiconeurose. Não obstante, em todos os casos, a etiologia das psiconeuroses reside também no campo da sexualidade. Por um singular percurso tortuoso de que falarei mais adiante, é possível chegar a um conhecimento dessa etiologia e compreender por que o paciente era incapaz de nos dizer qualquer coisa a esse respeito. Pois os acontecimentos e influências que estão na raiz de toda psiconeurose pertencem, não ao momento atual, mas a uma época da vida há muito passada,que é, por assim dizer, pré-histórica — à época da primeira infância; e eis por que o paciente também nada sabe deles. Ele os esqueceu — embora apenas em determinado sentido.

Assim, em todo caso de neurose há uma etiologia sexual; mas nas neurastenia é uma etiologia de tipo contemporâneo, enquanto nas psiconeuroses os fatores são de natureza infantil. Esse é o primeiro grande contraste na etiologia das neuroses. Um segundo emerge ao considerarmos uma diferença na sintomatologia da própria neurastenia. Aqui, por um lado, encontramos casos em que se destacam certas queixas que são características da neurastenia (pressão intracraniana, propensão à fadiga, dispesia, constipação, irritação espinhal etc.); em outros casos, esses sinais desempenham um papel menor e o quadro clínico se compõe de outros sintomas, apresentando todos uma relação com o sintoma nuclear, o de angústia (ansiedade, inquietação, expectativa angustiada, ataques de angústia completos, rudimentares ou complementares, vertigem locomotora, agorafobia, insônia, maior sensibilidade à dor, e assim por diante). Reservei para o primeiro tipo o nome de neurastenia, mas distingui o segundo como “neurose de angústia”, e forneci as razões para essa separação em outro texto, onde também levei em conta o fato de que, em geral, as duas neuroses aparecem juntas. Para o presente propósito, basta enfatizar que, paralelamente à diferença nos sintomas dessas duas formas de doença, há uma diferença em sua etiologia. A neurastenia sempre pode ser reportada a um estado do sistema nervoso como o que é adquirido pela masturbação excessiva ou decorre espontaneamente de emissões freqüentes; a neurose de angústia revela sistematicamente influências sexuais que têm em comum o fator da continência ou da satisfação incompleta — como o coito interrompido, a abstinência ao lado de uma libido viva, a chamada excitação não consumada, e outros. Em meu breve artigo que tencionou apresentar a neurose de angústia, propus a fórmula de que a angústia é sempre a libido que foi desviada de seu emprego |normal|.

Quando surge um caso em que os sintomas da neurastenia e da neurose de angústia se combinam — ou seja, quando temos um caso misto —, basta nos atermos a nossa proposição empiricamente obtida de que a mistura de neuroses implica a colaboração de vários fatores etiológicos para constatarmos, em todas as situações, a confirmação de nossa expectativa. A freqüência com que esse fatores etiológicos se ligam entre si organicamente, por meio da interação de processos sexuais — por exemplo, coito interrompido ou potência insuficiente no homem, paralelamente à masturbação —, bem merece uma discussão separada.

Depois de diagnosticar com segurança um caso de neurose neurastênica e classificar seus sintomas corretamente, estamos em condições de traduzir a sintomatologia em etiologia; e podemos então, confiantemente, solicitar do paciente a confirmação de nossas suspeitas. Não nos devemos deixar enganar pelas negativas iniciais. Se sustentarmos firmemente aquilo que inferimos, acabaremos por quebrar qualquer resistência, enfatizando a natureza inabalável de nossas convicções. Desse modo, aprendemos sobre a vida sexual de homens e mulheres toda sorte de coisas, que preencheriam um volume útil e instrutivo; e aprendemos também a lamentar, por todos os pontos de vista, que a ciência sexual hoje em dia ainda seja desacreditada. Já que os pequenos desvios de uma vita sexualis normal são por demais comuns para que possamos atribuir qualquer valor a sua descoberta, concederemos peso explicativo apenas às anormalidades sérias e prolongadas na vida sexual de um paciente neurótico. Ademais, a idéia de que se poderia, pela insistência, fazer um paciente psiquicamente normal acusar-se falsamente de delitos sexuais — tal idéia pode seguramente ser descartada como um perigo imaginário.

Ao se proceder dessa maneira com os pacientes, adquire-se também a convicção de que, no que se refere à teoria da etiologia sexual da neurastenia, não há casos negativos. Quando a mim, pelo menos, essa convicção tornou-se tão firme que, nos casos em que a inquirição mostra um resultado negativo, também tiro proveito disso para fins de diagnóstico. Em outras palavras, digo a mim mesmo que tal caso não pode ser de neurastenia. Desse modo, fui levado, em várias oportunidades, a presumir a presença de uma paralisia progressiva em vez de neurastenia, por não ter conseguido comprovar o fato — necessário para minha teoria — de que o paciente se entregava livremente à masturbação; e o curso posterior desses casos confirmou minha posição. Em outro caso, o paciente, que não apresentava nenhuma alteração orgânica evidente, queixava-se de pressão intracraniana, dores de cabeça e dispepsia, mas refutava minhas suspeitas sobre sua vida sexual de maneira franca e com uma certeza inabalável; ocorreu-me então a possibilidade de que ele tivesse uma supuração latente numa de suas cavidades nasais. Um colega meu, especialista nessa área, confirmou a inferência que eu fizera a partir dos resultados sexuais negativos de minha inquirição, retirando o pus da cavidade do paciente e aliviando-o de suas queixas.

Entretanto, a existência aparente de “casos negativos” também pode surgir de outra maneira. Algumas vezes, a interrogação revela a presença de uma vida sexual normal num paciente cuja neurose, num exame superficial, de fato se assemelha estreitamente a uma neurastenia ou uma neurose de angústia. Mas uma investigação mais aprofundada revela, sistematicamente, o verdadeiro estado de coisas. Por trás desses casos, tomados como neurastenia, há uma psiconeurose — histeria ou neurose obsessiva. A histeria, em especial, que imita tantas afecções orgânicas, pode facilmente assumir a aparência de uma das “neuroses atuais”, elevando os sintomas destas à categoria de sintomas histéricos. Tais histerias, sob a forma de neurastenia, não são sequer muito raras. Todavia, recorrer à psiconeurose, quando um caso de neurastenia apresenta um resultado sexual negativo, não é uma saída fácil para o problema: a prova de que estamos certos deve ser obtida pelo único método capaz de desmascarar a histeria com certeza — o método da psicanálise, a que logo nos referiremos.

Entretanto, talvez haja algumas pessoas dispostas a reconhecer a etiologia sexual de seus pacientes neurastênicos, mas que, apesar disso, encaram como parcialidade o fato de não serem solicitadas a prestar atenção também a outros fatores sempre mencionados pelas autoridades como causas da neurastenia. Ora, nunca me ocorreria substituir pela etiologia sexual das neuroses toda e qualquer outra etiologia, e assim afirmar que estas não têm nenhuma força atuante. Isso seria um equívoco. O que penso, antes, é que, além de todos os conhecidos fatores etiológicos já reconhecidos por essas autoridades — provavelmente de forma acertada — como conducentes à neurastenia, os fatores sexuais, que até hoje não foram suficientemente apreciados, também devem ser levados em conta. Em minha opinião, porém, esses fatores sexuais merecem que se lhes conceda um lugar especial na série etiológica. Porque só eles nunca estão ausentes de todos os casos de neurastenia, só eles são capazes de produzir a neurose sem nenhuma ajuda adicional, de modo que os outros fatores parecem reduzir-se ao papel de etiologia auxiliar e complementar, e só eles permitem ao médico reconhecer relações sólidas entre sua natureza diversificada e a multiplicidade dos quadros clínicos. Quando, por outro lado, agrupo todos os pacientes que aparentemente se tornaram neurastênicos por excesso de trabalho, agitação emocional, ou por um efeito posterior da febre tifóide, e assim por diante, eles não me apresentam nada em comum nos seus sintomas. A natureza de sua etiologia não me dá nenhuma idéia de que tipo de sintomas esperar, assim como, inversamente, o quadro clínico por eles apresentado não me faculta inferir a etiologia neles atuante.

As causas sexuais são também as que mais profundamente oferecem ao médico um pouco de apoio para sua influência terapêutica. A hereditariedade é sem dúvida um fator importante, quando está presente; possibilita a manifestação de um forte efeito patológico onde, de outra maneira, o resultado seria apenas um efeito muito fraco. Mas a hereditariedade é inacessível à influência do médico; todos nascem com suas próprias tendências hereditárias à doença e nada podemos fazer para alterá-las. Tampouco devemos esquecer que é precisamente na etiologia das neurastenias que devemos, necessariamente, negar o primeiro lugar à hereditariedade.A neurastenia (em ambas as suas formas) é uma dessas afecções que qualquer um pode facilmente adquirir sem ter nenhuma tara hereditária. Se assim não fosse, o enorme crescimento da neurastenia de que se queixam todas as autoridades, seria impensável. No que se refere à civilização, entre cujos pecados as pessoas tão freqüentemente incluem a responsabilidade pela neurastenia, é bem possível que essas autoridades estejam certas (embora o modo como isso se dá difira bastante, provavelmente, do que elas imaginam). Mas o estado de nossa civilização, mais uma vez, é algo inalterável pelo indivíduo. Além disso, sendo esse um fator comum a todos os membros da mesma sociedade, ele nunca poderá explicar a seletividade da incidência da doença. O médico que não é neurastênico está tão exposto a essa mesma influência de uma civilização supostamente prejudicial quanto o paciente neurastênico de que tem que tratar. Sujeitos a essas limitações, os fatores de estafa retêm sua importância. Mas o elemento do “excesso de trabalho”, que os médicos tanto gostam de apontar a seus pacientes como causa de suas neuroses, é com demasiada freqüência indevidamente usado. É bem verdade que qualquer pessoa que, devido a perturbações sexuais, tenha-se predisposto à neurastenia, tolera mal o trabalho intelectual e as exigências psíquicas da vida; mas ninguém se torna neurótico apenas por efeito do trabalho ou da agitação. O trabalho intelectual é, antes, uma proteção contra a neurastenia; são precisamente os mais incansáveis trabalhadores intelectuais que escapam da neurastenia, e aquilo de que os neurastênicos se queixam como “excesso de trabalho que os faz adoecerem” não merece, em geral, ser chamado de “trabalho intelectual”, seja por sua qualidade, seja por sua quantidade. Os médicos terão que se acostumar a explicar aos empregados de escritório que se “esgotaram” em suas escrivaninhas, ou às donas-de-casa para quem se tornaram pesadas demais as tarefas domésticas, que eles adoeceram, não por terem tentado executar tarefas facilmente realizáveis por um cérebro civilizado, mas porque, durante todo o tempo, negligenciaram e prejudicaram flagrantemente sua vida sexual.

Além disso, somente a etiologia sexual nos possibilita compreender todos os detalhes da história clínica dos neurastênicos, as misteriosas melhoras em meio ao decurso da doença e as deteriorações igualmente incompreensíveis, ambas usualmente relacionadas por médicos e pacientes a qualquer tratamento que tenha sido adotado. Em meus registros, que incluem mais de duzentos casos, há, por exemplo, a história de um homem que, uma vez fracassado o tratamento prescrito pelo médico da família, procurou o pastor Kneipp e, durante um ano após ter sido tratado por ele, apresentou uma extraordinária melhora no meio de sua doença. Mas quando, um ano depois, seus sintomas tornaram a piorar e ele voltou a Woerishofen em busca de ajuda, o segundo tratamento fracassou. Uma olhadela na crônica familiar do paciente resolveu o duplo enigma. Seis meses e meio após seu primeiro retorno de Woerishofen, sua mulher lhe deu um filho. Isso significa que ele a deixara no começo de uma gravidez da qual ainda não estava informado; após seu retorno, pôde praticar o coito natural com ela. Ao fim desse período, que teve nele um efeito curativo, sua neurose ressurgiu por ele ter voltado a recorrer ao coito interrompido; o segundo tratamento estava destinado ao fracasso, já que essa foi a última gravidez de sua esposa.

Houve um caso semelhante em que, mais uma vez, o tratamento teve um efeito inesperado que requeria uma explicação. Esse caso revelou-se ainda mais instrutivo, pois exibia uma enigmática alternância nos sintomas da neurose. Um jovem paciente neurótico fora enviado por seu médico a um conceituado estabelecimento hidropático devido a uma neurastenia típica. Lá, seu estado teve, a princípio, uma melhora constante, de modo que tudo indicava que ele receberia alta como um grato discípulo da hidroterapia. Mas na sexta semana ocorreu uma mudança completa: o paciente “não podia mais tolerar a água”, tornou-se cada vez mais nervoso e, por fim, deixou o estabelecimento após mais duas semanas, não curado e insatisfeito. Quando se queixou a mim dessa fraude terapêutica, fiz-lhe algumas perguntas sobre os sintomas que o tinham acometido em meio ao tratamento. Muito curiosamente, eles haviam sofrido uma mudança completa. O paciente entrara no sanatório com pressão intracraniana, fadiga e dispepsia; os sintomas que o perturbaram durante o tratamento tinham sido agitação, ataques de dispnéia, vertigem ao caminhar e distúrbios do sono. Pude então dizer-lhe “Você está cometendo uma injustiça contra a hidroterapia. Você mesmo sabia muito bem que tinha adoecido em conseqüência da masturbação prolongada. No sanatório, abandonou essa forma de satisfação e, por isso, recuperou-se depressa. Ao sentir-se bem, entretanto, você procurou imprudentemente manter relações com uma dama — uma paciente do mesmo estabelecimento, suponhamos —, o que só podia levar à excitação sem satisfação normal. As belas caminhadas pelas imediações do estabelecimento lhe deram ampla oportunidade para isso. Foi esse relacionamento, e não uma repentina impossibilidade de tolerar a hidroterapia, que o fez adoecer de novo. Além disso, seu atual estado de saúde me leva a concluir que você está continuando a manter esse relacionamento também aqui na cidade.” Posso garantir a meus leitores que o paciente confirmou o que eu dissera, ponto por ponto.

O atual tratamento da neurastenia — que talvez seja executado com mais êxito nos estabelecimentos hidropáticos — tem como objetivo a melhora do estado nervoso através de dois fatores: proteção e fortalecimento do paciente. Nada tenho a dizer contra esse método de tratamento, exceto que ele não leva em conta as circunstâncias da vida sexual do paciente. Segundo minha experiência, é altamente desejável que os diretores médicos de tais estabelecimentos se conscientizem adequadamente de que estão lidando, não com vítimas da civilização ou da hereditariedade, mas — sit venia verbo — com pessoas sexualmente aleijadas. Eles seriam então, por um lado, mais facilmente capazes de explicar seus sucessos e seus fracassos, e, por outro, obteriam novos sucessos, que estiveram até agora à mercê do acaso ou do comportamento espontâneo do paciente. Se afastarmos de casa uma neurastênica que sofra de angústia e a enviarmos a um estabelecimento hidropático, e se lá, liberada de todas as suas obrigações, ela for levada a tomar banhos, fazer exercícios e comer muito bem, certamente nos inclinaremos a pensar que a melhora — freqüentemente brilhante — obtida em algumas semanas ou meses se deve ao repouso de que ela desfrutou e aos efeitos revigorantes da hidroterapia. É possível que seja assim, mas estamos desconsiderando o fato de que seu afastamento de casa implica também uma interrupção das relações conjugais, e que é apenas a eliminação temporária dessa causa patogênica que possibilita a recuperação da paciente com o auxílio do tratamento favorável. O desprezo por esse ponto de vista etiológico é posteriormente vingado, quando o que se afigurava uma cura tão gratificante revela-se uma recuperação muito transitória. Logo depois de o paciente retornar à vida do dia-a-dia, os sintomas da enfermidade reaparecem e o obrigam a passar parte de sua existência improdutivamente, de tempos em tempos, em estabelecimentos desse tipo, ou a dirigir suas esperanças de recuperação para outro lugar. Portanto, está claro que, na neurastenia, os problemas terapêuticos devem ser atacados, não em instituições hidropáticas, mas dentro do contexto da vida do paciente.

Em outros casos, nossa teoria etiológica pode ajudar o médico encarregado da instituição, lançando luz sobre a fonte dos fracassos que ocorrem na própria instituição, e pode sugerir-lhe meios de evitá-los. A masturbação é muito mais comum entre as meninas crescidas e os homens maduros do que se costuma supor, e tem efeito nocivo não só por produzir sintomas neurastênicos, mas também por manter os pacientes vergados sob o peso do que eles consideram ser um segredo vergonhoso. Os médicos não acostumados a traduzir a neurastenia em masturbação explicam o estado patológico do paciente reportando-o a algum rótulo como anemia, subnutrição, excesso de trabalho etc., e esperam então curá-lo aplicando uma terapia projetada para se opor a esses estados. Para seu espanto, contudo, os períodos de melhora se alternam no paciente com períodos em que todos os seus sintomas pioram e são acompanhados de grave depressão. O resultado de tal tratamento é, em geral, duvidoso. Se os médicos soubessem que o paciente estava lutando contra seu hábito sexual, e que estava em desespero por ter sido mais uma vez obrigado a ceder a ele, se compreendessem como extrair dele esse segredo, torná-lo menos grave a seus olhos e apoiá-lo em sua luta contra o hábito, o êxito de seus esforços terapêuticos bem poderia ser assim assegurado.

Arrancar o paciente do hábito da masturbação é apenas uma das novas tarefas terapêuticas impostas ao médico que leva em conta a etiologia sexual dessa neurose; e parece que precisamente essa tarefa, tal como a cura de qualquer outro vício, só pode ser efetuada numa instituição e sob supervisão médica. Entregue a si mesmo, o masturbador está acostumado, sempre que acontece alguma coisa que o deprime, a retornar a sua cômoda forma de satisfação. O tratamento médico, nesse caso, não pode ter nenhum outro objetivo senão o de reconduzir o neurastênico, que agora recobrou suas forças, ao contato sexual normal. Pois a necessidade sexual, uma vez despertada e satisfeita por algum tempo, não pode mais ser silenciada; só pode ser deslocada por outro caminho. Aliás, o mesmo se aplica a todos os tratamentos para romper com um vício. Seu sucesso será apenas aparente enquanto o médico se contentar em privar seus pacientes da substância narcótica, sem se importar com a fonte de que brota sua necessidade imperativa. O “hábito” é uma simples palavra, sem nenhum valor explicativo. Nem todos os que têm oportunidade de tomar morfina, cocaína, hidrato de cloral etc. por algum tempo adquirem dessa forma “um vício”. A pesquisa mais minuciosa geralmente mostra que esses narcóticos visam a servir — direta ou indiretamente — de substitutos da falta de satisfação sexual; e sempre que a vida sexual normal não pode mais ser restabelecida, podemos contar, com certeza, com uma recaída do paciente.

Outra tarefa é colocada para os médicos pela etiologia da neurose de angústia. Consiste em induzir o paciente a desistir de todas as formas prejudiciais de prática sexual e adotar relações sexuais normais. Esse dever, como é compreensível, recai primordialmente sobre o médico de confiança do paciente — seu médico de família; e este infligirá ao paciente um grave dano se se considerar respeitoso demais para interferir nesse campo.

Uma vez que nesses casos trata-se quase sempre de questões conjugais,os esforços do médico logo tropeçam em planos malthusianos para limitar o número de concepções no casamento. Parece-me não haver dúvida de que essas propostas vêm ganhando cada vez mais terreno entre a classe média. Tenho encontrado alguns casais que já começaram a praticar métodos para impedir a concepção tão logo tiveram seu primeiro filho, e outros cujas relações sexuais, desde a noite de núpcias, foram praticadas de modo a atender a esse objetivo. O problema do malthusianismo é extenso e complexo, e não tenho intenção de abordá-lo aqui da maneira exaustiva que seria realmente necessária para o tratamento das neuroses. Examinarei apenas qual a melhor atitude a ser tomada por um médico que reconheça a etiologia sexual das neuroses em face desse problema.

A pior coisa que ele pode fazer, obviamente — sob qualquer pretexto —, é tentar ignorá-lo. Nada que seja necessário pode estar abaixo de minha dignidade como médico; e é necessário fornecer a um casal que tencione limitar o número de seus filhos a assistência da orientação médica, se não se quiser expor um ou ambos os seus membros a uma neurose. Não se pode negar que, em qualquer casamento, as medidas preventivas malthusianas se tornarão necessárias num ou noutro momento; e, do ponto de vista teórico, seria um dos maiores triunfos da humanidade, uma das mais tangíveis liberações das restrições da natureza a que está sujeita a espécie humana, se pudéssemos elevar o ato responsável de procriar filhos ao nível de uma atividade deliberada e intencional, libertando-o de seu embaraçoso envolvimento com a satisfação necessária de uma necessidade natural.

O médico perspicaz tomará a si, portanto, decidir em que condições se justifica o uso de medidas preventivas da concepção e, entre essas medidas, terá que separar as nocivas das inofensivas. Tudo o que impede a ocorrência de satisfação é nocivo. Mas, como se sabe, não possuímos no momento nenhum método de impedir a concepção que preencha todos os requisitos legítimos — isto é, que seja seguro e cômodo, que não diminua a sensação de prazer durante o coito e que não fira a sensibilidade da mulher. Isso impõe aos médicos uma tarefa prática para cuja solução eles poderiam concentrar suas energias com resultados compensadores. Quem preencher essa lacuna em nossa técnica médica terá preservado o prazer da vida e mantido a saúde de inúmeras pessoas, muito embora, é verdade, tenha também preparado o terreno para uma drástica mudança em nossas condições sociais.

Isso não esgota as possibilidades decorrentes do reconhecimento da etiologia sexual das neuroses. O principal benefício que dele extraímos para os neurastênicos reside na esfera da profilaxia. Se a masturbação é a causa da neurastenia na juventude e se, mais tarde, ela adquire importância etiológica também para a neurose de angústia, devido à redução de potência que acarreta, então a prevenção da masturbação em ambos os sexos é uma tarefa que merece mais atenção do que tem recebido até agora. Quando refletimos sobre todos os danos, dos mais graves aos mais insignificantes, que provêm da neurastenia — distúrbio que, segundo dizem, está se tornando cada vez mais freqüente —, verificamos que, positivamente, é de interesse público que os homens ingressem nas relações sexuais com toda a sua potência. Em matéria de profilaxia, entretanto, o indivíduo está relativamente desamparado. Toda a comunidade precisa interessar-se pelo assunto e dar seu apoio à criação de regulamentos genericamente aceitáveis. No momento, estamos ainda muito longe dessa situação que prometeria alívio, e é por esse motivo que podemos justificadamente considerar a civilização como também responsável pela difusão da neurastenia. Muitas coisas teriam que ser mudadas. É preciso romper a resistência de toda uma geração de médicos que já não conseguem lembrar-se de sua própria juventude; o orgulho dos pais, que não se dispõem a descer ao nível da humanidade ante os olhos de seus filhos, precisa ser superado; e o puritanismo insensato das mães deve ser combatido — das mães que consideram um golpe incompreensível e imerecido do destino que “justamente os filhos delas sejam os que se tornam neuróticos”. Mas, acima de tudo, é necessário criar um espaço na opinião pública para a discussão dos problemas da vida sexual. Tem que ser possível falar sobre essas coisas sem que se seja estigmatizado como um arruaceiro ou uma pessoa que tira proveito dos mais baixos instintos. E também aqui há trabalho suficiente para se fazer nos próximos cem anos — nos quais nossa civilização terá que aprender a conviver com as reivindicações de nossa sexualidade.

O valor da elaboração de um diagnóstico correto, separando as psiconeuroses da neurastenia, é também demonstrado pelo fato de que as psiconeuroses requerem uma avaliação prática diferente e medidas terapêuticas especiais. Elas aparecem em conseqüência de dois tipos de determinantes, seja independentemente, seja no rastro das “neuroses atuais” (neurastenia e neurose de angústia). Neste último caso, estamos tratando de um novo tipo de neurose — aliás, muito freqüente —, uma neurose mista. A etiologia das “neuroses atuais” tornou-se uma etiologia auxiliar das psiconeuroses. Surge um quadro clínico em que, digamos, a neurose de angústia predomina, mas que contém também traços de neurastenia pura, de histeria e de neurose obsessiva. Quando nos confrontamos com uma mistura desse tipo, no entanto, não nos será conveniente desistirmos de separar os quadros clínicos próprios de cada doença neurótica, pois, afinal, não é difícil explicar o caso da maneira que se segue. O lugar predominantemente ocupado pela neurose de angústia mostra que a doença surgiu sob a influência etiológica de uma perturbação sexual “atual” |i.e., do momento presente|. Mas a pessoa em questão estava, à parte isso, predisposta a uma ou mais psiconeuroses, devido a uma etiologia especial e seria em algum momento acometida de uma psiconeurose, espontaneamente ou pelo advento de algum outro fator enfraquecedor. Desse modo, a etiologia auxiliar da psiconeurose que ainda falta é suprida pela etiologia atual |corrente| da neurose de angústia.

Nesses casos, a prática terapêutica passou a ser, muito acertadamente, a desconsideração dos componentes psiconeuróticos do quadro clínico, tratando-se exclusivamente da “neurose atual”. Em inúmeros casos é possível superar também a |psico|neurose que aparece concomitantemente, desde que a neurastenia seja efetivamente tratada. Mas deve-se adotar uma visão diferente nos casos de psiconeuroses que aparecem espontaneamente ou que permanecem como uma entidade independente depois de a doença composta de neurastenia e psiconeurose ter percorrido seu curso. Quando falo no aparecimento “espontâneo” de uma psiconeurose, não quero dizer que a investigação anamnésica não nos mostre nenhum elemento etiológico. Sem dúvida, isso pode ocorrer; mas também é possível que nossa atenção seja dirigida para algum fator irrelevante — um estado emocional, uma debilitação devida a uma doença física, e assim por diante. Entretanto, deve-se ter em mente, em todos esses casos, que a verdadeira etiologia das psiconeuroses não se acha nessas causas precipitantes, mas permanece fora do alcance do exame anamnésico comum.

Como sabemos, foi numa tentativa de preenher essa lacuna que se pressupôs uma predisposição neuropática especial (que aliás, se existisse, não deixaria muita esperança de êxito ao tratamento de tais condições patológicas.) A própria predisposição neuropática é encarada como um sinal de degeneração geral, e assim, esse cômodo termo médico veio a ser copiosamente usado contra os pobres pacientes a quem os médicos são inteiramente incapazes de ajudar. Felizmente, a situação é outra. A predisposição neuropática sem dúvida existe, mas devo negar que seja suficiente para a criação de uma psiconeurose. Devo ainda negar que a conjunção de uma predisposição neuropática com as causas precipitantes que ocorrem em épocas posteriores da vida constitua uma etiologia suficiente para as psiconeuroses. Ao reportarmos as vicissitudes da enfermidade de um indivíduo às experiências de seus ancestrais, fomos longe demais; esquecemos que, entre a concepção e a maturidade de um indivíduo, há um longo e importante período da vida — sua infância —, no qual se podem adquirir os germes da doença posterior. E isso é o que efetivamente ocorre com a psiconeurose. Sua verdadeira etiologia é encontrada nas experiências infantis, e mais uma vez — exclusivamente —, nas impressões referentes à vida sexual. Erramos ao ignorar inteiramente a vida sexual das crianças; segundo minha experiência, as crianças são capazes de todas as atividades sexuais psíquicas, e também de muitas atividades somáticas. Assim como a totalidade do aparelho sexual humano não está compreendida nos órgãos genitais externos e nas duas glândulas reprodutoras, também a vida sexual humana não começa apenas na puberdade, como poderia parecer a um exame superficial. Contudo, é verdade que a organização e a evolução da espécie humana se esforçam por evitar uma ampla atividade sexual durante a infância. Aparentemente, no homem, as forças pulsionais sexuais destinam-se a ser armazenadas, de modo que, com sua liberação na puberdade, possam servir a grandes fins culturais. (W. Fliess.) Uma consideração dessa espécie possibilita compreender por que as experiências sexuais na infância estão fadadas a ter um efeito patogênico. Mas, no momento em que ocorrem, elas só produzem efeito em grau muito reduzido; muito mais importante é seu efeito retardado, que só pode ocorrer em períodos posteriores do crescimento. Esse efeito retardado se origina — como não poderia deixar de ser — nos traços psíquicos deixados pelas experiências sexuais infantis. Durante o intervalo entre as experiências dessas impressões e sua reprodução (ou melhor, o reforço dos impulsos libidinais delas provenientes), tanto o aparelho sexual somático como o aparelho psíquico sofrem um importante desenvolvimento; e é assim que a influência dessas experiências sexuais primitivas leva então a uma reação psíquica anormal e à existência de estruturas psicopatológicas.

Nestas breves indicações, não posso fazer mais do que mencionar os principais fatores em que se baseia a teoria das psiconeuroses: a natureza adiada do efeito e o estado infantil do aparelho sexual e do instrumento mental. Para se chegar a uma verdadeira compreensão do mecanismo pelo qual se produzem as psiconeurose, seria necessária uma exposição mais extensa. Acima de tudo, seria indispensável formular como dignas de crença certas hipóteses, que me parecem novas, sobre a composição e o funcionamento do aparelho psíquico. Num livro sobre a interpretação dos sonhos em que estou agora trabalhando, terei oportunidade de tocar nesses elementos fundamentais para uma psicologia das neuroses, pois os sonhos pertencem ao mesmo conjunto de estruturas psicopatológicas que as idées fixes histéricas, as obsessões e os delírios.

Já que as manifestações das psiconeuroses provêm da ação retardada de traços psíquicos inconscientes, elas são acessíveis à psicoterapia. Mas, nesse caso, a terapia deve seguir caminhos diferentes do único até hoje seguido: o da sugestão, com ou sem hipnose. Baseando-me no método “catártico” introduzido por Josef Breuer, elaborei quase completamente, nos últimos anos, um processo terapêutico que proponho descrever como “psicanalítico”. Devo a ele grande número de êxitos, e espero poder ainda aumentar-lhe consideravelmente a eficácia. As primeiras explicações sobre a técnica e o alcance desse método foram fornecidas nos Estudos sobre a Histeria, escritos conjuntamente com Breuer e publicados em 1895. Desde então, creio poder dizer que muita coisa foi alterada para melhor. Enquanto, naquela época, declaramos modestamente que só podíamos encarregar-nos de eliminar os sintomas da histeria, mas não de curar a histeria em si, essa distinção parece-me hoje sem substância, de modo que há uma perspectiva de cura genuína da histeria e das obsessões. Portanto, foi com o mais vívido interesse que li nas publicações de colegas que, “nesse caso, o engenhoso processo concebido por Breuer e Freud fracassou”, ou “o método não realizou o que parecia prometer”. Isso meu deu um pouco da sensação de um homem que lê no jornal seu próprio obituário, mas pode tranqüilizar-se por seu melhor conhecimento dos fatos. Pois o método é tão difícil que, definitivamente, tem que ser aprendido; e não me lembro de um só de meus críticos que tenha expressado o desejo de aprendê-lo comigo. Nem acredito que, como eu, eles se tenham ocupado do método com intensidade suficiente para poderem descobri-lo sozinhos. As observações feitas nos Estudos sobre a Histeria são totalmente insuficientes para permitir ao leitor o domínio da técnica, nem pretendem de modo algum transmitir tal instrução completa.

A terapia psicanalítica não é, no momento, aplicável a todos os casos. Tem, a meu ver, as seguintes limitações. Requer um certo grau de maturidade e compreensão nos pacientes, e portanto não é adequada para os jovens ou os adultos com debilidade mental ou sem instrução. Fracassa também com as pessoas muito idosas porque, devido ao acúmulo de material nelas, o tratamento tomaria tanto tempo que, ao terminar, elas teriam chegado a um período da vida em que já não se dá valor à saúde nervosa. Finalmente, o tratamento só é possível quando o paciente tem um estado psíquico normal a partir do qual o material patológico pode ser controlado. Durante um estado de confusão histérica ou uma mania ou melancolia interpolada, nada se pode fazer por meios psicanalíticos. Tais casos, contudo, podem ser tratados pela análise depois de se acalmarem as manifestações violentas pelas medidas usuais. Na prática atual, os casos crônicos de psiconeurose são muito mais acessíveis ao método do que os casos com crises agudas, nos quais a maior ênfase é posta, naturalmente, na rapidez com que as crises possam ser tratadas. Por essa razão, o campo de trabalho mais favorável a essa nova terapia é proporcionado pelas fobias histéricas e pelas várias formas de neurose obsessiva.

Que o método se restrinja a esses limites se explica, em grande parte, pelas circunstâncias em que tive que elaborá-lo. Meu material consiste, de fato, em casos nervosos crônicos derivados das classes mais cultas. Acho muito provável que seja possível conceber métodos complementares para o tratamento de crianças e das pessoas que recebem assistência médica nos hospitais. Devo também dizer que, até o momento, experimentei meu tratamento exclusivamente em casos graves de histeria e de neurose obsessiva; não sei dizer como ele se sairia nos casos brandos que, ao menos aparentemente, são curados ao cabo de alguns meses por algum tipo de tratamento inespecífico. É fácil compreender que uma nova terapia que exija muitos sacrifícios só pode contar com a procura de pacientes que já tenham tentado sem sucesso os métodos geralmente aceitos, ou cujo estado justifique a inferência de que eles nada poderiam esperar desses procedimentos terapêuticos mais breves e supostamente mais convenientes. Assim, ocorre que fui obrigado a enfrentar de imediato as mais duras tarefas com um instrumento imperfeito. O teste se revelou extramamente convincente.

As principais dificuldades que ainda restam no caminho do método terapêutico psicanalítico não se devem a ele próprio, mas à falta de compreensão, entre médicos e leigos, da natureza das psiconeuroses. Não passa de um corolário necessário dessa completa ignorância que os médicos se sintam justificados para usar as mais infundadas certezas para consolar seus pacientes ou para induzi-los a adotarem medidas terapêuticas. “Venha para meu sanatório por seis semanas”, dizem eles, “e você ficará livre de seus sintomas” (angústia nas viagens, obsessões, e assim por diante). Os sanatórios são, na verdade, indispensáveis para acalmar os ataques agudos que podem surgir no curso da psiconeurose, distraindo a atenção do paciente, alimentando-o e cuidando dele. Mas, quanto à eliminação dos estados crônicos, não conseguem rigorosamente nada: e os melhores sanatórios, supostamente norteados por fundamentos científicos, não fazem mais do que os estabelecimentos hidropáticos comuns.

Seria mais digno, e também mais útil para o paciente — que, afinal, tem que conviver com suas aflições — que o médico dissesse a verdade, tal como a conhece por sua prática diária. As psiconeuroses, enquanto categoria, não são em absoluto doenças brandas. Quando a histeria se instala, ninguém pode prever quando terminará. A maioria de nós se consola com a vã profecia de que “um dia ela desaparecerá repentinamente”. A recuperação, muitas vezes, mostra ser simplesmente um acordo de tolerância mútua estabelecido entre a parte doente do paciente e sua parte sadia, ou então resulta da transformação de um sintoma numa fobia. A histeria de uma menina, dominada com dificuldade, revive nela quando se torna esposa, após o breve intervalo da primeira felicidade conjugal. A única diferença é que a outra pessoa, o marido, é agora movida por seus próprios interesses a guardar silêncio quanto a seu estado. Mesmo quando uma doença desse tipo não acarreta nenhuma incapacidade visível de os pacientes levarem sua vida, ela quase sempre impede o livre desdobramento de seus poderes mentais. As obsessões se repetem por toda a vida deles; e as fobias e outras restrições da vontade têm sido até aqui intratáveis por qualquer tipo de terapia. Tudo isso é ocultado do conhecimento do leigo. Por conseguinte, o pai de uma menina histérica fica horrorizado quando, por exemplo, é solicitado a concordar em que ela receba tratamento por um ano, quando talvez só tenha estado doente por alguns meses. O leigo está, por assim dizer, profundamente convencido de que todas essas psiconeuroses são desnecessárias; portanto, não tem paciência com os processos da doença, nem nenhuma disposição de fazer sacrifícios para seu tratamento. Se, em face de um tifo que dura três semanas, ou de uma perna quebrada que leva seis meses para se curar, ele adota uma atitude mais compreensiva, e se, tão logo seu filho mostra os primeiros sinais de uma curvatura na espinha, ele acha razoável que se deva proceder a um tratamento ortopédico por vários anos, essa diferença de comportamento se deve aos melhores conhecimentos por parte do médico, que são por ele honestamente transmitidos ao leigo. A honestidade por parte do médico e a aquiescência voluntária por parte do leigo hão de ser estabelecidas também para as neuroses, tão logo a compreensão da natureza dessas afecções se transforme num patrimônio comum do mundo da medicina. O tratamento radical desses distúrbios requererá sempre, sem dúvida, uma formação especial, e será incompatível com outros tipos de atividade médica. Por outro lado, a essa classe de médicos, que acredito que se amplie no futuro, abre-se a perspectiva de obter resultados notáveis, assim como um discernimento satisfatório da vida mental da espécie humana.

 

O MECANISMO PSÍQUICO DO ESQUECIMENTO (1898)

 

ZUM PSYCHISCHEN MECHANISMUS DER VERGESSLICHKEIT

 

(a)EDIÇÕES ALEMÃS:

1898 Mschr. Psychiat. Neurol., 4 (6), 436-443. (Dezembro.)

1952 G.W., 1, 519-27.

 

(b)TRADUÇÃO INGLESA:

“The Psychical Mechanism of Forgetfulness”

 

A presente tradução, de Alix Strachey, parece ter sido a primeira para o inglês.

 

O episódio que é objeto deste artigo ocorreu durante a visita de Freud à costa do Adriático em setembro de 1898. Enviou a Fliess uma breve narrativa dele, quando de seu retorno a Viena, em carta datada de 22 de setembro (Freud, 1950a, Carta 96), e relatou, poucos dias depois (27 de setembro, ibid., Carta 91), ter enviado este artigo à revista em que foi publicado logo em seguida. Esta foi a primeira história publicada de um ato falho e Freud a transformou na base do capítulo de abertura de seu trabalho mais longo sobre o assunto, três anos depois (1901b); a Introdução do Editor inglês a este último (Edição Standard Brasileira, Vol. VI, IMAGO Editora, 1976) discute toda essa questão mais minuciosamente. O presente artigo só foi reeditado após a morte de Freud, mais de cinqüenta anos depois de sua primeira publicação. Havia uma pressuposição genérica, com base nas observações de Freud no início do primeiro capítulo de Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana, Ibid., ver em [1], de que este artigo não passasse de um rascunho da versão posterior. A comparação efetiva dos dois trabalhos mostra agora que apenas as linhas principais do tema são as mesmas, que a argumentação está aqui disposta de modo diferente, e que o material é ampliado em um ou dois pontos.

 

O MECANISMO PSÍQUICO DO ESQUECIMENTO

 

O fenômeno do esquecimento, que eu gostaria de descrever e em seguida explicar neste artigo, já foi sem dúvida experimentado por qualquer um em si próprio ou observado em outras pessoas. Afeta, em particular, o uso dos nomes próprios — nomina propria — e se manifesta da seguinte maneira. Em meio a uma conversa, vemo-nos obrigados a confessar à pessoa com quem falamos que não conseguimos descobrir um nome que desejaríamos mencionar naquele momento, o que nos força a pedir sua ajuda — em geral, ineficaz. “Como é mesmo o nome dele? Eu sei tão bem! Está na ponta da língua. De repente, me escapou.” Um inequívoco sentimento de irritação, semelhante ao que acompanha a afasia motora, junta-se então a nossos esforços adicionais para descobrir o nome que sabemos ter estado em nossa mente apenas um minuto antes. Nas situações características, dois traços concomitantes merecem ser notados. Em primeiro lugar, a concentração enérgica e deliberada da função que chamamos de atenção se revela impotente, por mais que persista, para descobrir o nome esquecido. Em segundo lugar, em vez do nome que estamos procurando, surge prontamente um outro nome, que reconhecemos ser incorreto e rejeitamos, mas que insiste em retornar. Ou então, em vez do nome substituto, encontramos em nossa memória uma única letra ou sílaba que reconhecemos ser parte do nome que estamos buscando. Dizemos, por exemplo: “Começa com ‘B’.” Quando finalmente conseguimos, de um modo ou de outro, descobrir o nome buscado, verificamos que, na grande maioria dos casos, este não começa com “B” e nem sequer contém essa letra.

A melhor técnica para captar o nome que falta é, como se sabe, “não pensar nele” — isto é, desviar dessa tarefa a parcela da atenção sobre a qual se exerce controle voluntário. Passado algum tempo, o nome desaparecido “irrompe” na mente; e o sujeito não consegue impedir-se de enunciá-lo em voz alta, para grande espanto do interlocutor, que já se havia esquecido do episódio e que, de qualquer forma, se interessara muito pouco pelos esforços do locutor. “Escute”, é provável que diga, “não faz muita diferença qual é mesmo o nome do homem; continue com sua história”. Durante o tempo todo, até que a questão seja esclarecida, e mesmo depois do desvio intencional |de sua atenção|, a pessoa fica preocupada a um ponto que, a rigor, não pode ser explicado pelo volume de interesse que o caso todo possua.

Em alguns casos em que eu próprio passei por essa experiência de esquecer nomes, consegui, através da análise psíquica, explicar a mim mesmo a seqüência de eventos; e agora descreverei detalhadamente o caso mais simples e nítido desse tipo.

Durante minhas férias de verão, fiz certa vez uma viagem de trem da encantadora cidade de Ragusa até uma cidadezinha próxima, na Herzegovina. A conversa com meu companheiro de viagem girou, como era natural, em torno da situação dos dois países (Bósnia e Herzegovina) e das características de seus habitantes. Eu falava sobre as várias peculiaridades dos turcos que lá viviam, tais como descrevera, anos antes, um amigo e colega que vivera entre eles por muitos anos como médico. Pouco depois, nossa conversa voltou-se para o tema da Itália e das pinturas, e tive oportunidade de recomendar enfaticamente a meu companheiro que algum dia visitasse. Orvieto, para lá contemplar os afrescos do fim do mundo e do Juízo Final com que fora decorada uma das capelas da catedral por um grande artista. Mas o nome do artista escapou-me e não consegui lembrá-lo. Exerci minhas faculdades de recordação, fazendo desfilar pela memória todos os detalhes do dia que passara em Orvieto, e me convenci de que nem sequer a mais íntima parte dele fora obliterada ou se tornara vaga. Pelo contrário, eu era capaz de evocar os quadros com maior nitidez sensorial do que me era comum. Vi diante de meus olhos, com nitidez especial, o auto-retrato do artista — com o rosto sério e as mãos cruzadas —, que ele pusera no canto de um dos quadros, próximo ao retrato de seu predecessor na obra, Fra Angelico da Fiesole; mas o nome do artista, geralmente tão familiar para mim, permanecia obstinadamente oculto, sem que meu companheiro de viagem pudesse me ajudar. Meus esforços contínuos não tiveram nenhum êxito, a não ser pela evocação dos nomes de dois outros artistas, que eu sabia não serem os nomes corretos. Eram eles Botticelli e, em segundo lugar, Boltraffio. A repetição do som “Bo” em ambos os nomes substitutos talvez levasse um neófito a supor que esse som pertencia também ao nome esquecido, mas tomei cuidado de passar ao largo dessa expectativa.

Como não tivesse qualquer acesso a livros de consulta em minha viagem, tive que suportar por vários dias esse lapso de memória e o tormento interno a ele associado, que recorria todos os dias com intervalos freqüentes, até que esbarrei num italiano culto que me libertou desse sofrimento ao dizer-me o nome: Signorelli. Eu próprio pude acrescentar o primeiro nome do artista, Luca. Imediatamente, minha lembrança ultranítida dos traços do mestre, tal como representados em seu retrato, esmaeceu-se.

Que influências me teriam levado a esquecer o nome Signorelli, que me era tão familiar e que se grava tão facilmente na memória? E que caminhos teriam levado a sua substituição por Botticelli e Boltraffio? Uma breve excursão de volta às circunstâncias em que ocorrera o esquecimento bastou para lançar luz sobre ambas as questões.

Pouco antes de chegar ao assunto dos afrescos na catedral do Orvieto, eu estivera contando a meu companheiro de viagem algo que ouvira de meu colega, anos antes, sobre os turcos da Bósnia. Estes tratam os médicos com respeito especial e exibem, em marcante contraste com nosso próprio povo, uma atitude de resignação ante os desígnios do destino. Se um médico tem que informar a um pai de família que um de seus parentes está à morte, a resposta é: “Herr |Senhor|, que se há de fazer? Se houvesse uma maneira de salvá-lo, sei que o senhor o ajudaria.” Outra lembrança próxima disso estava em minha memória. Esse mesmo colega me falara da suprema importância que esses bosnianos atribuem aos prazeres sexuais. Certa vez, um de seus pacientes lhe disse: “Sabe, Herr, se isso acabar, a vida não vale mais nada.” Naquela ocasião, pareceu ao médico e a mim que se podia presumir que os dois traços de caráter do povo bosniano assim ilustrados estivessem estreitamente ligados. Mas, ao relembrar essas histórias em minha viagem para Herzegovina, suprimi a segunda, em que se abordava o tema da sexualidade.Foi logo depois disso que o nome Signorelli me escapou e os nomes Botticelli e Boltraffio apareceram como substitutos.

A influência que tornara o nome Signorelli inacessível à memória, ou, como costumo dizer, aquilo que o “recalcara”, só podia proceder da história que eu havia suprimido sobre o valor atribuído à morte e ao gozo sexual. Se assim fosse, deveríamos poder descobrir as idéias intermediárias que serviram para ligar os dois temas. A afinidade entre o conteúdo deles — de um lado, o Juízo Final, o “Dia do Juízo”, e de outro, a morte e a sexualidade — parece muito superficial; e já que se tratava do recalcamento da lembrança de um nome, era provável, a julgar pelas aparências, que a conexão estivesse entre um e outro nome. Ora, “Signor” significa “Herr |Senhor|”, e “Herr” está também presente no nome “Herzegovina”. Além disso, decerto não era irrelevante que ambos os comentários dos pacientes por mim recordados contivessem um “Herr” como forma de dirigir-se ao médico. A tradução de “Signor” por “Herr” fora, portanto, o meio pelo qual a história que eu havia suprimido arrastara consigo para o recalcamento o nome que eu estava procurando. Todo o processo fora claramente facilitado pelo fato de que, nos últimos dias passados em Ragusa, eu falara italiano continuamente — isto é, acostumara-me a traduzir mentalmente do alemão para o italiano.

Quando tentei recuperar o nome do artista, resgatando-o do recalcamento, a influência do laço em que o nome se enredara no intervalo fez-se inevitavelmente sentir. De fato, descobri o nome de um artista, mas não o correto. Era um nome deslocado, e a orientação do deslocamento fora dada pelos nomes contidos no tema recalcado. “Boticelli”; contém as mesmas sílabas finais que “Signorelli; portanto, as sílabas finais — que, diversamente da primeira parte da palavra, “Signor”, não podiam estabelecer uma ligação direta com o nome “Herzegovina” — tinham retornado; mas a influência do nome “Bósnia”, regularmente associado com o nome “Herzegovina”, evidenciara-se ao dirigir a substituição para dois nomes de artistas que começavam com a mesma sílaba, “Bo”: “Botticelli” e, depois, “Boltraffio”.Verifica-se, pois, que a descoberta do nome “Signorelli” sofrera a interferência do tema que estava por trás dele, no qual apareciam os nomes “Bósnia” e “Herzegovina”.

Para que esse tema pudesse produzir tais efeitos, não seria bastante que eu o tivesse suprimido uma vez na conversa — coisa que se deu por motivos casuais. Devemos, antes, presumir que o próprio tema estivesse também intimamente ligado a fluxos de representações em mim presentes em estado de recalque — isto é, fluxos de representações que, a despeito da intensidade do interesse nelas depositado, deparassem com uma resistência que os impedisse de serem elaborados por uma dada instância psíquica, e portanto, de se tornarem conscientes. Que isso realmente se aplicou, na época, ao tema “morte e sexualidade”, é algo de que tenho muitas provas que não preciso abordar aqui, extraídas de minha própria auto-observação. Mas posso chamar atenção para uma conseqüência dessas representações recalcadas. A experiência ensinou-me a insistir em que todo produto psíquico é elucidável e até mesmo sobredeterminado. Conseqüentemente, pareceu-me que o segundo nome substituto, “Boltraffio”, exigia outra determinação, pois, até ali, apenas suas letras iniciais tinham sido explicadas, por sua assonância com “Bósnia”. Recordei-me então de que essas representações recalcadas nunca me haviam absorvido mais do que algumas semanas antes, depois de ter recebido uma certa notícia. O lugar onde a notícia me chegou chamava-se “Trafoi”, e esse nome é por demais semelhante à segunda metade do nome “Boltraffio” para não ter tido um efeito determinante em minha escolha deste último. No pequeno diagrama esquemático que se segue |Fig. 1|, tentei reproduzir as relações agora trazidas à luz.

 

 

Fig. 1

Talvez não deixe de haver um interesse intrínseco em se poder perscrutar a história de um evento psíquico desse tipo, que está entre os mais triviais distúrbios que podem afetar o controle do aparelho psíquico, e que é compatível com um estado de saúde psíquica sem outras perturbações. Mas o exemplo aqui elucidado ganha um enorme interesse adicional ao sabermos que ele pode servir como nada menos do que um modelo dos processos patológicos a que devem sua origem os sintomas psíquicos das psiconeuroses — histeria, obsessões e paranóia. Em ambos os casos, encontramos os mesmos elementos e a mesma interação de forças entre esses elementos. Do mesmo modo que aqui e por meio de associações superficiais similares, um fluxo de representações recalcado se apodera, na neurose, de uma ingênua impressão recente e a faz imergir com ele no recalque. O mesmo mecanismo que faz os nomes substitutos “Botticelli” e “Boltraffio” emergirem de “Signorelli” (uma substituição por meio de representações intermediárias ou conciliatórias) rege também a formação das representações obsessivas e das paramnésias paranóicas. Além disso, vimos que esses casos de esquecimento têm a característica de liberar um desprazer contínuo até o momento em que o problema é resolvido — uma característica que seria ininteligível a não ser por isso, e algo que |no exemplo que mencionei| foi de fato ininteligível para a pessoa com quem eu estava falando |ver em [1]|; mas há uma completa analogia com isso no modo pelo qual os conjuntos de representações recalcadas ligam sua capacidade de gerar afeto a algum sintoma cujo conteúdo psíquico parece, em nosso julgamento, inteiramente inadequado a tal liberação de afeto. Finalmente, a dissolução de toda a tensão pela comunicação do nome correto por uma fonte externa é, em si mesma, um bom exemplo da eficácia da terapia psicanalítica, que visa a corrigir os recalques e deslocamentos e que elimina os sintomas pela reinstalação do verdadeiro objeto psíquico.

Portanto, entre os vários fatores que contribuem para o fracasso de uma recordação ou para uma perda de memória, não se deve menosprezar o papel desempenhado pelo recalcamento, e isso pode ser demonstrado não só nos neuróticos, mas também (de modo qualitativamente idêntico) nas pessoas normais. Pode-se afirmar, muito genericamente, que a facilidade (e em última instância, também a fidelidade) com que dada impressão é despertada na memória depende não só da constituição psíquica do indivíduo, da força da impressão quando recente, do interesse voltado para ela nessa ocasião, da constelação psíquica no momento atual, do interesse agora voltado para sua emergência, das ligações para as quais a impressão foi arrastada etc. — não só de coisas como essas, mas também da atitude favorável ou desfavorável de um dado fator psíquico que se recusa a reproduzir qualquer coisa que possa liberar desprazer, ou que possa subseqüentemente levar à liberação de desprazer. Assim, a função da memória, que gostamos de encarar como um arquivo aberto a qualquer um que sinta curiosidade, fica desse modo sujeita a restrições por uma tendência da vontade, exatamente como qualquer parte de nossa atividade dirigida para o mundo externo. Metade do segredo da amnésia histérica é desvendado ao dizermos que as pessoas histéricas não sabem o que não querem saber; e o tratamento psicanalítico, que se esforça por preencher tais lacunas da memória no decorrer de seu trabalho, leva-nos à descoberta de que a tarefa de resgatar essas lembranças perdidas enfrenta certa resistência, que tem de ser contrabalançada por um trabalho proporcional a sua magnitude. No caso de processos psíquicos que são basicamente normais, não se pode, naturalmente, alegar que a influência desse fator tendencioso na revivescência das lembranças de algum modo supere, regularmente, todos os outros fatores que devem ser levados em conta.

Como respeito à natureza tendenciosa de nosso recordar e esquecer, vivi, não faz muito tempo, um exemplo instrutivo — instrutivo pelo que traiu —, do qual gostaria de acrescentar um relato. Eu tencionava fazer uma visita de vinte e quatro horas a um amigo que, lamentavelmente, mora muito longe, e estava repleto de coisas para lhe contar. Antes disso, porém, senti-me na obrigação de visitar uma família conhecida em Viena, da qual um dos membros se mudara para a cidade em questão, de modo a levar comigo seus cumprimentos e recados para o parente ausente. Eles me disseram o nome da pension onde ele morava, assim como o nome da rua e o número da casa, e, em vista de minha memória precária, escreveram o endereço num cartão, que coloquei em minha carteira. No dia seguinte, ao chegar à casa de meu amigo, anunciei: “Só tenho um dever a cumprir que pode atrapalhar minha estada com você; é uma visita, e será a primeira coisa que vou fazer. O endereço está em minha carteira”. Para meu espanto, contudo, não o achei lá. Assim, no final das contas, eu tinha que recorrer a minha memória. Minha memória para nomes não é particularmente boa, mas é incomparavelmente melhor do que para números e algarismos. Posso fazer visitas médicas a uma casa por um ano inteiro e, ainda assim, se tiver que ser levado até lá por um cocheiro, terei dificuldade em recordar o número da casa. Nesse caso, porém, eu o gravara especialmente; ele estava ultranítido, como que para zombar de mim — pois nenhum traço do nome da pension ou da rua ficara em minha lembrança. Eu havia esquecido todos os dados do endereço que poderiam servir como ponto de partida para descobrir a pension; e, contrariando muito meu hábito, retivera o número da casa, que era inútil para esse fim. Por conseguinte, não pude fazer a visita. Consolei-me com notável rapidez e dediquei-me inteiramente a meu amigo. Ao retornar a Viena e me postar diante da minha escrivaninha, eu soube, sem um momento de hesitação, o lugar em que, em minha “distração”, eu pusera o cartão com o endereço. O fator atuante em minha ocultação inconsciente da coisa fora a mesma intenção que atuara em meu ato curiosamente modificado de esquecimento.

 

LEMBRANÇAS ENCOBRIDORAS (1899)

 

NOTA DO EDITOR INGLÊS

 

ÜBER DECKERINNERUNGEN

 

(a) EDIÇÕES ALEMÃS:

1899 Mschr. Psychiat. Neurol., 6 (3), 215-30. (Setembro.)

1925 G.S., 1, 465-88.

1952 G.W., 1, 531-54.

 

(b)TRADUÇÃO INGLESA:

“Screen Memories”

1950 C.P., 5, 47-69 (Trad. de James Strachey.)

 

A presente tradução é uma reedição ligeiramente revista da que foi publicada em 1950.

 

Uma carta inédita de Freud a Fliess, de 25 de maio de 1899, narra que, naquela data, este artigo fora enviado ao editor do periódico em que apareceria mais tarde, naquele mesmo ano. Freud acrescenta que ficara imensamente satisfeito durante sua produção, fato que considerava um mau presságio para seu futuro destino.

O conceito de “lembranças encobridoras” foi aqui introduzido por Freud pela primeira vez. Sem dúvida fora trazido à baila por seu exame do caso específico que ocupa a maior parte do artigo, caso esse a que ele aludira numa carta a Fliess de 3 de janeiro de 1899 (Carta 101). Entretanto, esse tema estava intimamente relacionado com vários outros que já vinham ocupando sua mente por muitos meses — de fato, desde que ele se envolvera em sua auto-análise, no verão de 1897 —, problemas referentes ao funcionamento da memória e suas distorções, à importância e raison d’être das fantasias, à amnésia que cobre nossos primeiros anos de vida e, por trás de tudo isso, à sexualidade infantil. Os leitores das cartas a Fliess encontrarão muitas abordagens da presente discussão. Ver, por exemplo, os comentários sobre as fantasias no Rascunho M, de 25 de maio de 1897, e na Carta 66, de 7 de julho de 1897. As lembranças encobridoras analisadas por Freud ao final do Capítulo IV da edição de 1907 de Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901b) remontam a esse mesmo verão de 1897.

É curioso que o tipo de lembrança encobridora predominantemente examinado neste artigo — o tipo em que uma lembrança anterior é usada como uma tela para encobrir um evento posterior — quase desaparece da literatura subseqüente. O que passou desde então a ser considerado como o tipo usual — aquele em que um acontecimento anterior é encoberto por uma lembrança posterior — mal chega a ser mencionado aqui, embora passasse a ser o tipo abordado por Freud, de maneira quase exclusiva, apenas dois anos depois, no capítulo de Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana acima mencionado. (Ver também nota de rodapé, ver em [1].)

O interesse intrínseco deste artigo foi imerecidamente obscurecido por um fato externo a ele. Não era difícil adivinhar que o incidente nele descrito era realmente autobiográfico, o que se converteu numa certeza após o aparecimento da correspondência com Fliess. Muitos dos detalhes, entretanto, podem ser encontrados nos escritos publicados de Freud. Assim, as crianças da lembrança encobridora eram, de fato, seu sobrinho John e sua sobrinha Pauline, que aparecem em vários pontos de A Interpretação dos Sonhos (1900a). (Cf., por exemplo, Edição Standard Brasileira, Vol. V, ver em [1], [2], [3], [4] [5], IMAGO Editora, 1972.) Eram filhos de seu meio-irmão mais velho, mencionado no Capítulo X de Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901b), ibid., Vol. VI, ver em [1], IMAGO Editora, 1976. Esse irmão, depois da dispersão da família em Freiberg, quando Freud tinha três anos, estabeleceu-se em Manchester, onde Freud o visitou aos dezenove anos de idade — e não aos vinte, como implicado aqui (ver em [1]) —, visita essa a que é feita uma alusão na mesma passagem de Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana, e também em A Interpretação dos Sonhos (ibid., Vol. V, ver em [1], IMAGO Editora, 1972). Sua idade na ocasião da primeira volta a Freiberg era também um ano menos do que a aqui indicada. Ele estava com dezesseis anos, como nos diz na “Carta ao Burgomestre de Príbor” (1931e), ibid., Vol. XXI, ver em [1], IMAGO Editora, 1974. Ficamos sabendo, também por essa fonte, que a família com que se hospedou chamava-se Fluss, e uma das filhas dessa família, Gisela, é a figura central da presente história. O episódio é integralmente descrito no primeiro volume da biografia de Ernest Jones (1953, 27-9 e 35-7).

 

LEMBRANÇAS ENCOBRIDORAS

 

No curso de meu tratamento psicanalítico de casos de histeria, neurose obsessiva etc., tenho freqüentemente lidado com recordações fragmentárias dos primeiros anos da infância, que permaneceram na memória dos pacientes. Como mostrei em outros textos, deve-se atribuir grande importância patogênica às impressões dessa época da vida. Mas o tema das lembranças da infância está, de qualquer modo, destinado a ser de interesse psicológico, pois elas põem em notável relevo uma diferença fundamental entre o funcionamento psíquico das crianças e dos adultos. Ninguém contesta o fato de que as experiências dos primeiros anos de nossa infância deixam traços inerradicáveis nas profundezas de nossa mente. Entretanto, ao procurarmos averiguar em nossa memória quais as impressões que se destinaram a influenciar-nos até o fim da vida, o resultado é, ou absolutamente nada, ou um número relativamente pequeno de recordações isoladas, que são freqüentemente de importância duvidosa ou enigmática. É somente a partir do sexto ou sétimo ano — em muitos casos, só depois dos dez anos — que nossa vida pode ser reproduzida na memória como uma cadeia concatenada de eventos. Daí em diante, porém, há também uma relação direta entre a importância psíquica da experiência e sua retenção na memória. O que quer que pareça importante por seus efeitos imediatos ou diretamente subseqüentes é recordado; o que quer que seja julgado não essencial é esquecido. Quando consigo relembrar um acontecimento por muito tempo após sua ocorrência, encaro o fato de tê-lo retido na memória como uma prova de que ele causou em mim, na época, uma profunda impressão. Surpreendo-me ao esquecer uma coisa importante, e talvez me sinta ainda mais surpreso ao recordar alguma coisa aparentemente irrelevante.

É apenas em certos estados mentais patológicos que torna a deixar de aplicar a relação mantida, nos adultos normais, entre a importância psíquica de um evento e sua retenção na memória. Por exemplo, o histérico habitualmente mostra uma amnésia em relação a algumas ou todas as experiências que levaram à instalação de sua doença, as quais, por isso mesmo, tornaram-se importantes para ele, e que, independentemente disso, podem ter sido importantes por si mesmas. A analogia entre esse tipo de amnésia patológica e a amnésia normal que afeta nossos primeiros anos de vida parece-me fornecer um valioso indício da íntima ligação que existe entre o conteúdo psíquico das neuroses e nossa vida infantil.

Estamos tão acostumados a essa falta de lembrança das impressões infantis que tendemos a desconsiderar o problema subjacente a ela, e nos inclinamos a explicá-lo como uma conseqüência óbvia do caráter rudimentar das atividades mentais das crianças. Na verdade, porém, uma criança normalmente desenvolvida de três ou quatro anos já exibe uma ampla margem de funcionamento mental altamente organizado, tanto em suas comparações e inferências quanto na expressão de seus sentimentos; e não há nenhuma razão evidente pela qual a amnésia deva incidir sobre esses atos psíquicos, que não são menos importantes do que os de idade posterior.

Antes de abordarmos problemas psicológicos ligados às mais antigas lembranças da infância, seria essencial, é claro, fazer uma coleta de material, enviando circulares a um número bastante grande de adultos e descobrindo que espécie de recordações eles são capazes de fornecer desses primeiros anos. Um primeiro passo nessa direção foi dado em 1895 por V. e C. Henri, que circularam um formulário de perguntas por eles preparado. Os resultados altamente sugestivos desse questionário, que colheu respostas de cento e vinte e três pessoas, foram publicados pelos dois autores em 1897. Não tenho intenção de discutir, no momento, o assunto como um todo, e assim me contentarei em enfatizar os poucos pontos que me permitirão introduzir a idéia do que denominei de “lembranças encobridoras”.

A idade a que o conteúdo dessas primeiras lembranças da infância costuma remontar é o período entre dois e quatro anos. (Esse é o caso de oitenta e oito pessoas na série observada pelos Henris.) Há alguns indivíduos, entretanto, cujas lembranças recuam ainda mais — até mesmo ao período antes de completarem seu primeiro aniversário; por outro lado, há aqueles cujas recordações mais antigas remontam apenas aos seis, sete ou mesmo oito anos. Não há nada, por ora, que mostre o que mais está relacionado com essas diferenças individuais; mas convém notar, dizem os Henris, que uma pessoa cuja primeira recordação remonta a uma idade muito tenra — ao primeiro ano de vida, talvez — terá também a seu dispor outras lembranças isoladas dos anos seguintes, e poderá reproduzir suas experiências como uma cadeia contínua a partir de um ponto mais recuado no tempo — por exemplo, a partir dos cinco anos — do que é possível para outras pessoas, cuja primeira lembrança data de época posterior. Assim, em casos particulares, não apenas a data do aparecimento da primeira recordação, mas também toda a função da memória, pode ser avançada ou retardada.

Um interesse muito especial prende-se à questão do conteúdo usual dessas primeiras lembranças da infância. A psicologia dos adultos nos levaria necessariamente a esperar que fossem selecionadas como dignas de recordação as experiências que tivessem despertado alguma emoção poderosa ou que, em virtude de suas conseqüências, tivessem sido reconhecidas como importantes logo após sua ocorrência. E, de fato, algumas das observações coligidas pelos Henris parecem atender a essa expectativa. Eles relatam que o conteúdo mais freqüente das primeiras lembranças da infância constitui-se, de um lado, das situações de medo, vergonha, dor física etc. e, de outro, de acontecimentos importantes como doenças, mortes, incêndios, nascimentos de irmãos e irmãs etc. Poderíamos, portanto, inclinar-nos a presumir que o princípio que rege a escolha das lembranças é o mesmo, tanto no caso de crianças quanto de adultos. É compreensível — embora esse fato mereça ser explicitamente mencionado — que as lembranças retidas da infância evidenciem, necessariamente, a diferença entre o que desperta o interesse da criança e o do adulto. Isso explica facilmente por que, por exemplo, uma mulher relata lembrar-se de diversos acidentes ocorridos com suas bonecas quando ela contava dois anos de idade, mas não tem nenhuma recordação dos eventos sérios e trágicos que possa ter observado na mesma época.

Agora, entretanto, estamos diante de um fato diametralmente oposto a nossas expectativas e que fatalmente nos assombra. Somos informados de que há algumas pessoas cujas recordações mais remotas da infância relacionam-se com eventos cotidianos e irrelevantes, que não poderiam produzir qualquer efeito emocional nem mesmo em crianças, mas que são recordados (com demasiada nitidez, fica-se inclinado a dizer) em todos os detalhes, enquanto outros acontecimentos aproximadamente contemporâneos não foram retidos em sua memória, mesmo que, segundo o testemunho de seus pais, tenham-nos comovido intensamente na ocasião. Assim, os Henris mencionam um professor de filologia cuja lembrança mais antiga, situada entre os três e quatro anos, mostrava-lhe uma mesa posta para uma refeição e, sobre ela, uma bacia com gelo. Na mesma época, ocorreu a morte de sua avó, o que, de acordo com seus pais, foi um rude golpe para o garoto. Mas o atual professor de filologia não tem nenhuma recordação dessa perda; tudo de que se lembra daqueles dias é a bacia de gelo. Outro homem relata que sua lembrança mais antiga é um episódio durante um passeio a pé, no qual ele quebrou um galho de árvore. Ele acredita que ainda é capaz de identificar o local onde isso ocorreu. Havia várias outras pessoas presentes, e uma delas o ajudou.

Os Henris descrevem tais casos como sendo raros. Segundo minha experiência, que em sua maior parte, é verdade, baseia-se em neuróticos, eles são bastante freqüentes. Um dos sujeitos da investigação dos Henris fez uma tentativa de explicar a ocorrência dessas imagens mnêmicas cuja inocência as torna tão misteriosas, e sua explicação me parece extremamente pertinente. Ele acha que, nesses casos, a cena relevante pode ter sido retida na memória apenas incompletamente, e essa talvez seja a razão de parecer tão pouco esclarecedora: as partes esquecidas continham, provavelmente, tudo o que era digno de nota na experiência. Posso confirmar a veracidade dessa concepção, embora prefira dizer que esses elementos da experiência foram omitidos, em vez de esquecidos. Tenho conseguido com freqüência, por meio do tratamento psicanalítico, descobrir as partes que faltam numa experiência infantil, provando assim que a impressão da qual não se reteve mais do que um fragmento na memória, uma vez restaurada em sua íntegra, mostra efetivamente confirmar o pressuposto de que as coisas mais importantes é que são recordadas. Isso, entretanto, não fornece nenhuma explicação para a notável escolha feita pela memória entre os elementos da experiência. Devemos primeiro indagar por que se suprime precisamente o que é importante, retendo-se o irrelevante; e não encontraremos uma explicação para isso enquanto não tivermos investigado mais a fundo o mecanismo desses processos. Verificaremos então que há duas forças psíquicas envolvidas na promoção desse tipo de lembranças. Uma dessas forças encara a importância da experiência como um motivo para procurar lembrá-la, enquanto a outra — uma resistência — tenta impedir que se manifeste qualquer preferência dessa ordem. Essas duas forças opostas não se anulam mutuamente, nem qualquer delas predomina (com ou sem perda para si própria) sobre a outra. Em vez disso, efetua-se uma conciliação, numa analogia aproximada com a resultante de um paralelogramo de forças. E a conciliação é a seguinte: o que é registrado como imagem mnêmica não é a experiência relevante em si — nesse aspecto, prevalece a resistência; o que se registra é um outro elemento psíquico intimamente associado ao elemento passível de objeção — e, nesse aspecto, o primeiro princípio mostra sua força: o princípio que se esforça por fixar as impressões importantes, estabelecendo imagens mnêmicas reprodutíveis. O resultado do conflito, portanto, é que, em vez da imagem mnêmica que seria justificada pelo evento original, produz-se uma outra, que foi até certo ponto associativamente deslocada da primeira. E já que os elementos da experiência que suscitaram objeção foram precisamente os elementos importantes, a lembrança substituta perde necessariamente esses elementos importantes e, por conseguinte, é muito provável que se nos afigure trivial.Ela nos parece incompreensível porque nos inclinamos a buscar a razão de sua retenção em seu próprio conteúdo, ao passo que essa retenção se deve, de fato, à relação que existe entre seu conteúdo e um conteúdo diferente, que foi suprimido. Há entre nós um dito corrente sobre as falsificações, no sentido de que, em si mesmas, elas não são feitas de ouro, mas estiveram perto de algo realmente feito de ouro. É bem possível aplicar essa mesma comparação a algumas das experiências infantis retidas na memória.

Há numerosos tipos possíveis de casos em que um conteúdo psíquico aparece em lugar de outro, e estes se manifestam numa multiplicidade de constelações psicológicas. Um dos casos mais simples é obviamente o que ocorre nas lembranças infantis que nos interessam aqui — isto é, o caso em que os elementos essenciais de uma experiência são representados na memória pelos elementos não essenciais da mesma experiência. Trata-se de um caso de deslocamento para alguma coisa associada por continuidade; ou, examinando-se o processo como um todo, de um caso de recalcamento acompanhado de substituição por algo próximo (seja no espaço ou no tempo). Em outra oportunidade tive ocasião de descrever um exemplo muito semelhante de substituição ocorrida na análise de uma paciente que sofria de paranóia. A mulher em questão tinha alucinações com vozes que lhe repetiam longas passagens do romance Die Heiterethei, de Otto Ludwig. Mas as passagens escolhidas pelas vozes eram as mais insignificantes e irrelevantes do livro. A análise mostrou, contudo, que havia outras passagens na mesma obra que tinham suscitado na paciente os mais aflitivos pensamentos. O afeto aflitivo motivara a construção de uma defesa contra essas idéias, mas os motivos para levá-las adiante recusaram-se a ser suprimidos. O resultado foi uma conciliação, pela qual as passagens inocentes emergiam na memória da paciente com força e nitidez patológicas. O processo que aqui vemos em ação — conflito, recalcamento e substituição envolvendo uma conciliação — retorna em todos os sintomas psiconeuróticos e nos fornece a chave para compreendermos sua formação. Portanto, não deixa de ter importância que possamos mostrar o mesmo processo em ação na vida mental de indivíduos normais. O fato de esse processo influenciar, nas pessoas normais, precisamente a escolha de suas lembranças infantis parece proporcionar mais um indício das íntimas relações em que vimos insistindo entre a vida mental das crianças e o material psíquico das neuroses.

Os processos da defesa normal e patológica e os deslocamentos em que resultam são claramente de grande importância. Mas, ao que eu saiba até hoje os psicólogos não fizeram nenhum estudo sobre eles, e resta ainda definir em que camadas da atividade psíquica e em que condições eles entram em ação. É bem possível que a razão dessa negligência esteja no fato de que nossa vida mental, na medida em que é objeto de nossa percepção interna consciente, nada nos mostra desses processos, salvo pelos casos que classificamos de “raciocínio falho” e por algumas operações mentais que visam produzir um efeito cômico. A asserção de que é possível deslocar uma intensidade psíquica de uma representação (que é então abandonada) para outra (que daí por diante desempenha o papel psicológico da primeira) é tão desnorteante para nós quanto certas características da mitologia grega — por exemplo, quando se diz que os deuses vestem alguém de beleza como se esta fosse um véu, enquanto nós pensamos apenas num rosto transfigurado por uma mudança de expressão.

As investigações adicionais dessas lembranças infantis irrelevantes ensinaram-me que elas podem também originar-se de outras maneiras, e que uma insuspeitada riqueza de significados se oculta por trás de sua aparente inocência. Quanto a esse aspecto, porém, não me contentarei com uma simples asserção, mas fornecerei um relato pormenorizado de um caso particular que me parece o mais instrutivo dentre um número considerável de casos similares. Seu valor é seguramente aumentado pelo fato de relacionar-se com alguém que de modo algum é neurótico, ou que só o é muito levemente.

O sujeito dessa observação é um homem de instrução universitária, com trinta e oito anos de idade. Embora sua profissão se situe em campo muito diferente, ele passou a se interessar por questões psicológicas desde a ocasião em que consegui livrá-lo de uma leve fobia por meio da psicanálise. No ano passado, ele me chamou atenção para suas lembranças infantis, que já tinham desempenhado certo papel em sua análise. Após estudar a pesquisa efetuada por V. e C. Henri, ele me forneceu o seguinte relato sumarizado de sua própria experiência.

“Disponho de um bom número de antigas lembranças da infância, que posso datar com grande certeza, pois, por volta dos três anos de idade, deixei o lugarejo onde nascera e me mudei para uma grande cidade; e todas essas minhas lembranças relacionam-se com meu lugar de nascimento e correspondem, portanto, ao segundo e terceiro anos de minha vida. Em sua maioria, são cenas curtas, mas muito bem conservadas e providas de todos os detalhes da percepção sensorial, em completo contraste com minhas lembranças dos anos adultos, às quais falta inteiramente o elemento visual. Dos três anos em diante, minhas recordações tornam-se mais escassas e menos claras; há lacunas nelas que devem cobrir mais de um ano; e creio que é só depois dos seis ou sete anos que o fluxo de minhas lembranças torna-se contínuo. As lembranças anteriores à época em que deixei minha primeira residência dividem-se em três grupos. O primeiro grupo consiste em cenas que meus pais me descreveram repetidamente desde então. Quanto a estas, não sei ao certo se já tinha sua imagem mnêmica desde o início, ou se só a reconstruí depois de ouvir uma dessas descrições. Posso assinalar, entretanto, que há também acontecimentos dos quais não tenho nenhuma imagem mnêmica, apesar de terem sido freqüentemente relatados com minúcias por meus pais. Atribuo mais importância ao segundo grupo. Este compreende cenas que não me foram descritas (pelo menos ao que eu saiba), algumas das quais, na verdade, não poderiam ter-me sido descritas, já que não voltei a encontrar os outros participantes delas (minha babá e meus companheiros de brincadeiras) desde sua ocorrência. Logo chegarei ao terceiro grupo. No que se refere ao conteúdo dessas cenas e à conseqüente razão de serem lembradas, gostaria de dizer que não estou inteiramente perdido. A rigor, não posso sustentar que as lembranças que retive sejam lembranças dos acontecimentos mais importantes desse período, ou dos que eu hoje reputaria como os mais importantes. Não tomei conhecimento do nascimento de uma irmã dois anos e meio mais nova que eu, e minha partida, minha primeira visão da estrada de ferro e a longa viagem de charrete até ela — nada disso deixou qualquer traço em minha memória. Por outro lado, consigo lembrar-me de duas pequenas ocorrências durante a viagem de trem; estas, como o senhor se lembrará, emergiram na análise de minha fobia. Mas o que mais deveria ter-me impressionado foi um ferimento em meu rosto, que causou considerável perda de sangue e devido ao qual um cirurgião teve que me dar alguns pontos. Ainda posso sentir a cicatriz resultante desse acidente, mas não sei de nenhuma lembrança que o aponte, nem direta nem indiretamente. É verdade que eu talvez tivesse menos de dois anos nessa época.

“Decorre daí que não sinto nenhuma surpresa diante dos quadros e cenas desses dois primeiros grupos. Sem dúvida, são lembranças deslocadas cujo elemento essencial, na maioria dos casos, foi omitido. Mas em alguns ele é ao menos sugerido, e em outros, é-me fácil completá-lo seguindo certos indícios. Ao fazê-lo, consigo estabelecer uma sólida conexão entre os fragmentos separados das lembranças e chegar a uma compreensão clara de qual foi o interesse infantil que recomendou essas ocorrências específicas a minha memória. Isso não se aplica, entretanto, ao conteúdo do terceiro grupo, que não discuti até aqui. Vejo-me aí defrontado por um material — uma cena bastante longa e vários quadros menores — com o qual não consigo fazer nenhum progresso. A cena me parece bem irrelevante, e não posso compreender por que se fixou em minha memória. Deixe-me descrevê-la para o senhor. Vejo uma pradaria retangular com um declive bastante acentuado, verde e densamente plantada; no relvado há um grande número de flores amarelas — evidentemente, dentes-de-leão comuns. No topo da campina há uma casa de campo e, frente a sua porta, duas mulheres conversam animadamente — uma camponesa com um lenço na cabeça e uma babá. Três crianças brincam na grama. Uma delas sou eu mesmo (na idade de dois ou três anos); as duas outras são meu primo, um ano mais velho que eu, e sua irmã, que tem quase exatamente a minha idade. Estamos colhendo as flores amarelas e cada um de nós segura um ramo de flores já colhidas. A garotinha tem o ramo mais bonito e, como que por um acordo mútuo, nós — os dois meninos — caímos sobre ela e arrebatamos suas flores. Ela sobe correndo a colina, em lágrimas, e a título de consolo a camponesa lhe dá um grande pedaço de pão preto. Mal vemos isso, jogamos fora as flores, corremos até a casa e pedimos pão também. E de fato o recebemos; a camponesa corta as fatias com uma longa faca. Em minha lembrança, o pão tem um sabor delicioso — e nesse ponto a cena se interrompe.

“Ora, o que há nessa ocorrência para justificar o dispêndio de memória que ela me acarretou? Em vão quebrei a cabeça para descobrir. Será que a ênfase está em nosso comportamento desagradável para com a garotinha? Será que a cor amarela dos dentes-de-leão — uma flor que hoje, é claro, estou longe de admirar — me agradou tanto assim? Ou será que, em conseqüência de minha corrida pela grama, o pão me pareceu tão mais saboroso do que de hábito, a ponto de me deixar uma impressão inesquecível? Também não consigo descobrir nenhuma ligação entre essa cena e o interesse que (como pude descobrir sem qualquer dificuldade) mantinha unidas as outras cenas de minha infância. Grosso modo, parece-me que alguma coisa não está muito certa nessa cena. O amarelo das flores é um elemento desproporcionalmente destacado na situação como um todo, e o gosto saboroso do pão me parece exagerado de maneira quase alucinatória. Não consigo deixar de me lembrar de uns quadros que vi certa vez numa exposição de um teatro de variedades. Certas partes desses quadros, e naturalmente as menos apropriadas, em vez de serem pintadas, destacavam-se em três dimensões — por exemplo, as anquinhas das damas. Bem, o senhor saberia indicar algum meio de encontrar uma explicação ou interpretação para essa lembrança redundante de minha infância?”

Achei recomendável perguntar-lhe desde quando se ocupava com essa recordação: se achava que ela vinha retornando periodicamente a sua lembrança desde a infância, ou se ela teria emergido em alguma ocasião posterior que pudesse ser recordada. Essa pergunta foi tudo o que se fez necessário para que eu contribuísse para a solução do problema; o resto foi descoberto por meu próprio colaborador, que não era neófito em tarefas desse tipo.

—Eu ainda não havia pensado nisso, respondeu ele. — Agora que o senhor levantou a questão, parece-me quase com certeza que essa lembrança infantil nunca me ocorreu em meus primeiros anos. Mas lembro-me também da ocasião que levou à recuperação dessa e de muitas outras recordações de minha tenra infância. Quando tinha dezessete anos e estava na escola secundária, voltei pela primeira vez a minha terra natal para passar férias com uma família que fora nossa amiga desde aquela época remota. Sei muito bem da abundância de impressões que se apossou de mim nessa ocasião. Mas vejo agora que terei que contar-lhe um longo trecho de minha história: ele é pertinente a isso e o senhor mesmo o suscitou com sua pergunta. Portanto, escute. Meus pais eram originalmente pessoas abastadas e que, imagino, viviam com bastante conforto naquele cantinho de província. Quando eu tinha cerca de três anos, o ramo industrial em que meu pai trabalhava sofreu uma catástrofe. Ele perdeu todos os seus bens e fomos forçados a deixar a localidade, mudando-nos para uma cidade grande. Seguiram-se alguns anos longos e difíceis, dos quais, parece-me, nada é digno de ser lembrado. Nunca me senti realmente à vontade na cidade. Acredito agora que nunca me livrei da saudade dos lindos bosques próximos de nossa casa, onde (como me diz uma de minhas recordações daqueles dias) eu costumava fugir de meu pai, quase antes mesmo de aprender a andar. Aquelas férias aos dezessete anos foram minhas primeiras férias no campo e, como já disse, hospedei-me com uma família da qual éramos amigos e que tinha conseguido uma grande ascensão social desde nossa mudança. Pude comparar o conforto reinante por lá com nosso próprio estilo de vida em casa, na cidade. Mas não adianta continuar a fugir do assunto: devo admitir que houve outra coisa que me excitou poderosamente. Eu estava com dezessete anos e na família com que me hospedei havia uma filha de quinze anos, por quem me apaixonei imediatamente. Esse foi meu primeiro amor, e foi bastante intenso, mas eu o mantive em completo segredo. Passados alguns dias, a menina voltou a sua escola (de onde também viera passar férias em casa), e foi essa separação, depois de um contato tão breve, que realmente levou minha saudade ao auge. Passei muitas horas em caminhadas solitárias pelos bosques adoráveis que havia redescoberto, e passava o tempo construindo castelos no ar. Curiosamente, eles não se relacionavam com o futuro, mas procuravam melhorar o passado. Que bom se a bancarrota não tivesse ocorrido! Ah, se eu tivesse ficado e crescido no campo, e me tornado forte como os rapazes da casa, os irmãos de minha amada! E se tivesse seguido a profissão de meu pai, e finalmente casado com ela, pois a teria conhecido intimamente por todos aqueles anos! É claro que eu não tinha a menor dúvida de que, nas circunstâncias criadas por minha imaginação, eu a teria amado tão apaixonadamente quanto de fato me parecia amá-la nessa época. É estranho, porque agora, quando a vejo vez por outra — ela se casou com uma pessoa daqui — ela me é extraordinariamente indiferente. No entanto, lembro-me muito bem que, durante um bom tempo depois disso, eu era afetado pela cor amarela do vestido que ela estava usando quando nos encontramos pela primeira vez, em toda parte onde visse a mesma cor.

Isso soa muito parecido com seu comentário entre parênteses de que você não gosta mais do dente-de-leão comum. Não acha que pode haver uma ligação entre o amarelo do vestido da menina e o amarelo ultranítido das flores em sua cena infantil? |Cf. nota de rodapé 3, ver em [1].|

—É possível, mas não era o mesmo amarelo. O vestido era mais de um marrom-amarelado, mais parecido com a cor do goivo. Mas posso dar-lhe pelo menos uma idéia intermediária que talvez lhe seja útil. Numa ocasião posterior, quando estava nos Alpes, vi como certas flores que têm uma coloração clara nas planícies adquirem tons mais escuros em grandes altitudes. Se não estou muito equivocado, encontra-se freqüentemente, nas regiões montanhosas, uma flor muito semelhante ao dente-de-leão, mas que é amarelo-escura, o que coincidiria exatamente com a cor do vestido da jovem de quem eu tanto gostava. Mas ainda não terminei. Vou lhe falar agora de uma segunda ocasião que avivou em mim certas impressões da infância, e que data de época não muito distante da primeira. Eu tinha dezessete anos quando revi minha cidade natal. Três anos depois, durante as férias, fui visitar meu tio e reencontrei seus filhos, que tinham sido meus primeiros parceiros de brincadeiras — os mesmos dois primos, o menino um ano mais velho que eu a a menina de minha idade, que aparecem na cena infantil com os dentes-de-leão. Essa família deixara minha cidade natal na mesma época que nós e prosperara numa cidade muito distante.

E você voltou a se apaixonar — dessa vez por sua prima —, e se entregou a um novo grupo de fantasias?

—Não, dessa vez as coisas foram diferentes. Nessa época eu estava na universidade e era escravo de meus livros. Não me sobrava nada para minha prima. Tanto quanto posso perceber, não tive nenhuma fantasia semelhante nessa ocasião. Mas creio que meu pai e meu tio haviam arquitetado um plano pelo qual eu deveria trocar o tema obscuro de meus estudos por alguma coisa de maior valor prático, estabelecer-me, depois de concluir meus estudos, no lugar onde meu tio morava, e desposar minha prima. Sem dúvida, quando perceberam o quanto eu estava absorto em minhas próprias intenções, o plano foi abandonado; mas imagino que eu certamente me dera conta de sua existência. Só mais tarde, quando já era um cientista inexperiente, duramente pressionado pelas exigências da vida, e quando tive que aguardar muito tempo até conseguir uma colocação aqui, é que devo ter pensado, algumas vezes, que meu pai tivera boas intenções ao planejar aquele casamento, para compensar a perda em que a catástrofe inicial tinha envolvido toda a minha existência.

Nesse caso, tendo a acreditar que a cena infantil que estamos examinando tenha emergido nessa época, quando você estava lutando pelo pão de cada dia — desde, naturalmente, que você possa confirmar minha idéia de que foi durante esse mesmo período que teve seu primeiro contato com os Alpes.

—Sim, é isso mesmo: o montanhismo era o único divertimento que eu me permitia nessa época. Mas ainda não consigo acompanhar seu raciocínio.

Já chego lá. O elemento que você mais enfatizou em sua cena infantil foi o fato de o pão feito no interior ter um sabor tão delicioso. Parece claro que essa representação, que equivalia quase a uma alucinação, correspondia a sua fantasia na vida confortável que teria levado se tivesse ficado no campo e casado com aquela moça |de vestido amarelo| — ou, em linguagem simbólica, de como seria doce o sabor do pão pelo qual você vinha tendo de lutar tão arduamente nos últimos anos. Também o amarelo das flores aponta para essa mesma moça. Mas há ainda alguns elementos da cena infantil que só podem estar relacionados com a segunda fantasia — a de desposar sua prima. Jogar fora as flores em troca do pão não me parece ser um mau disfarce para o esquema que seu pai lhe tinha preparado: você deveria desistir de suas idéias impraticáveis e dedicar-se a uma ocupação “pão com manteiga”, não é mesmo?

—Então, parece que combinei os dois conjuntos de fantasias sobre como minha vida poderia ter sido mais fácil: de um lado, o “amarelo” e o “pão feito no campo” e, de outro, as flores jogadas fora e as pessoas reais envolvidas.

Sim. Você projetou as duas fantasias uma na outra e fez delas uma lembrança infantil. O elemento das flores alpinas constitui, por assim dizer, um selo indicando a data da fabricação. Posso garantir-lhe que as pessoas muitas vezes constroem essas coisas inconscientemente — quase como obras de ficção.

—Mas, se é assim, não houve nenhuma lembrança infantil, apenas uma fantasia recolocada na infância. No entanto, sinto que a cena é autêntica. Como se explica isso?

Em geral, não há nenhuma garantia quanto aos dados produzidos por nossa memória. Mas estou pronto a concordar com você em que a cena é autêntica. Nesse caso, você a selecionou dentre inúmeras outras da mesma espécie ou não, porque, graças a seu conteúdo (em si mesmo irrelevante), ela se prestava bem para representar as duas fantasias, tão importantes para você. Uma recordação como essa, cujo valor reside no fato de representar na memória impressões e pensamentos de uma data posterior cujo conteúdo está ligado a ela por elos simbólicos ou semelhantes, pode perfeitamente ser chamada de “lembrança encobridora”. De qualquer modo, você deixará de se sentir surpreso pela freqüente repetição dessa cena em sua mente. Ela não pode mais ser considerada inocente, já que, como descobrimos, é a conta certa para ilustrar os mais importantes pontos críticos de sua vida, a influência das duas mais poderosas forças motivacionais — a fome e o amor.

—É, ela representou bem a fome. Mas, e o amor?

No amarelo das flores, a meu ver. Mas não posso negar que, nessa sua cena infantil, o amor é representado com muito menos destaque do que eu poderia esperar com base em minha experiência prévia.

—Não, o senhor está enganado. A essência dela é a representação do amor. Agora estou entendendo pela primeira vez. Pense um instante! Tirar as flores de uma menina significa deflorá-la. Que contraste entre o despudor dessa fantasia e minha timidez na primeira ocasião, e minha indiferença na segunda.

Posso assegurar-lhe que a timidez juvenil costuma ter como complemento esse tipo de fantasias despudoradas.

—Mas, nesse caso, a fantasia que se transformou nessas lembranças infantis não seria uma fantasia consciente de que eu pudesse lembrar-me, e sim uma fantasia inconsciente, não é?

Pensamentos inconscientes que são um prolongamento dos pensamentos conscientes. Você pensa consigo mesmo, “Ah, se eu tivesse casado com fulana”, e por trás desse pensamento há um impulso a formar um quadro daquilo em que realmente consiste esse “estar casado”.

—Agora posso prosseguir sozinho. A parte mais sedutora de todo esse assunto para um molecote é o quadro da noite de núpcias. (Que lhe importa o que vem depois?) Mas esse quadro não pode arriscar-se à luz do dia: a atitude predominante de acanhamento e respeito perante a mocinha o mantém suprimido. Assim, ele permanece inconsciente…

E resvala para uma lembrança infantil. Você tem toda razão. É precisamente o elemento grosseiramente sensual da fantasia que explica por que ela não evolui para uma fantasia consciente, devendo antes contentar-se em se transformar alusivamente e sob um disfarce floreado numa cena infantil.

—Mas o que eu gostaria de saber é por que justamente numa cena infantil?

Por sua inocência, talvez. Você seria capaz de imaginar um contraste maior com essas intenções de agressão sexual grosseira do que uma brincadeira infantil? Entretanto, há fundamentos mais gerais que têm uma influência decisiva na promoção do deslizamento dos pensamentos e desejos recalcados para lembranças infantis, pois você constatará que a mesma coisa acontece invariavelmente nos pacientes histéricos. Além disso, é como se a própria recordação do passado remoto fosse facilitada por algum motivo prazeroso: forsan et haec olim meminisse juvabit.

—Sendo assim, perdi toda a confiança na autenticidade da cena dos dentes-de-leão. Eis como vejo tudo isso: nas duas ocasiões em questão, e com o apoio de motivos realistas muito compreensíveis, ocorreu-me o seguinte pensamento: “Se eu tivesse desposado essa ou aquela moça, minha vida se teria tornado muito mais agradável.” A corrente sensual de minha mente se apossou do pensamento contido na prótase e a repetiu em imagens de um tipo capaz de proporcionar a mesma satisfação sensual atual. Essa segunda versão do pensamento permaneceu inconsciente, graças a sua incompatibilidade com a predisposição sexual dominante; mas o próprio fato de permanecer inconsciente permitiu-lhe persistir em minha mente muito depois de as mudanças na situação real se terem desfeito por completo da versão consciente. Segundo uma lei geral, como diz o senhor, a oração que permanecera inconsciente procurou transformar-se numa cena infantil que, por sua inocência, poderia tornar-se consciente. Para isso, ela teve que sofrer uma nova transformação, ou melhor, duas novas transformações. Uma destas eliminou o elemento passível de objeção na prótase, expressando-o figurativamente; a segunda impôs à apódose uma forma passível de representação visual — usando, para esse fim, as representações intermediárias de “pão” e de “ocupações pão-com-manteiga” |prosaicas|. Vejo que, ao produzir uma fantasia como essa, eu estava promovendo, por assim dizer, a realização dos dois desejos recalcados — de defloramento e de conforto material. Mas agora que dei uma explicação tão completa dos motivos que me levaram à produção da fantasia dos dentes-de-leão, não posso deixar de concluir que estou lidando com uma coisa que nunca aconteceu, mas foi injustificada e sub-repticiamente introduzida em minhas lembranças infantis.

Vejo que preciso tomar a defesa da autenticidade dela. Você está indo longe demais. Aceitou minha afirmação de que toda fantasia suprimida dessa espécie tende a deslizar para uma cena infantil. Mas suponha agora que isso não possa ocorrer, a menos que haja um traço mnêmico cujo conteúdo ofereça à fantasia um ponto de contato — como se andasse meio caminho até ela. Uma vez encontrado um ponto de contato desse tipo — no presente caso, foi o defloramento, o retirar as flores —, o conteúdo remanescente da fantasia é remodelado com a ajuda de todos os pensamentos intermediários legítimos — tome o pão como um exemplo —, até que possa encontrar outros pontos de contato com o conteúdo da cena infantil. É muito possível que, no decorrer desse processo, a própria cena infantil também sofra mudanças; considero certo que também é possível promover falsificações da memória dessa maneira. No seu caso, a cena infantil parece apenas ter tido algumas de suas linhas gravadas mais profundamente: pense na ênfase exagerada no amarelo e na qualidade excessivamente saborosa do pão. Mas a matéria-prima era utilizável. Não fosse por isso, não teria sido possível que essa lembrança particular, em vez de quaisquer outras, ganhasse acesso à consciência. Nenhuma cena desse tipo lhe teria ocorrido como uma lembrança infantil, ou talvez lhe ocorresse alguma outra — pois você sabe como é fácil para nossa engenhosidade construir pontes de ligação entre dois pontos quaisquer.E afora seu sentimento subjetivo, que não estou inclinado a subestimar, há mais uma coisa que depõe a favor da autenticidade de sua lembrança dos dentes-de-leão. Ela contém elementos que não foram solucionados pelo que você me disse e que, a rigor, não se coadunam com o sentido requerido pela fantasia. Por exemplo, seu primo ajudando-o a roubar as flores da garotinha — faz algum sentido para você o pensamento de ser ajudado num defloramento? ou o da camponesa e da babá defronte à casa?

—Não que eu possa perceber.

Logo, a fantasia não coincide completamente com a cena infantil. Baseia-se nela apenas em certos pontos, e isso depõe a favor da autenticidade da lembrança infantil.

—O senhor acha que uma interpretação como essa, de uma lembrança infantil aparentemente inocente, é aplicável com freqüência?

Muito freqüentemente, em minha experiência. Que tal nos divertimos verificando se os dois exemplos dados pelos Henris podem ser interpretados como lembranças encobridoras, ocultando experiências e desejos subseqüentes? Refiro-me à lembrança da mesa posta para uma refeição, com uma bacia de gelo sobre ela, que se supôs ter alguma ligação com a morte da avó do sujeito, e à outra lembrança, de uma criança quebrando um galho de árvore durante um passeio e sendo ajudada por alguém.

Ele refletiu um pouco e respondeu:

—Não consigo deduzir coisa alguma da primeira. É muito provável que se trate de um caso de deslocamento em ação; mas é impossível adivinhar os passos intermediários. Quanto ao segundo caso, eu teria condições de fazer uma interpretação, se a pessoa envolvida não fosse um francês.

Não estou acompanhando seu raciocínio. Que diferença isso faz?

—Muita diferença, já que o passo intermediário entre uma lembrança encobridora e aquilo que ela esconde tende a ser fornecido por uma expressão verbal. Em alemão, “quebrar um galho” é uma expressão vulgar muito comum para designar a masturbação. A cena equivaleria, portanto, a recolocar na primeira infância uma tentação a se masturbar — com a ajuda de alguém — efetivamente ocorrida num período posterior. Mesmo assim, isso não se ajusta, pois na cena infantil havia diversas outras pessoas presentes.

Ao passo que a tentação dele a se masturbar deve ter ocorrido na solidão e em segredo. É justamente esse contraste que me inclina a aceitar sua visão: mais uma vez, ele serve para tornar a cena inocente. Você sabe o que significa vermos, num sonho, “uma porção de estranhos”, como acontece tão freqüentemente nos sonhos de nudez em que nos sentimos tão terrivelmente embaraçados? Nada mais, nada menos, do que o sigilo, que ali se expressa novamente por seu oposto. Entretanto, nossa interpretação permanece como uma brincadeira, já que não sabemos se um francês reconheceria uma alusão à masturbação nas palavras casser une branche d’un arbre ou em alguma expressão apropriadamente retificada.

Essa análise, que reproduzi tão acuradamente quanto possível, terá, espero, esclarecido até certo ponto o conceito de “lembrança encobridora” como aquela que deve seu valor enquanto lembrança não a seu próprio conteúdo, mas às relações existentes entre esse conteúdo e algum outro que tenha sido suprimido. É possível distinguir diferentes classes de lembranças encobridoras, conforme a natureza dessa relação. Encontramos exemplos de duas dessas classes entre o que se descreve como as primeiras lembranças da infância — isto é, se incluirmos na categoria de lembranças encobridoras as cenas infantis incompletas, que são inocentes justamente por sua incompletude. Pode-se prever que as lembranças encobridoras também hão de ser formadas de resíduos de lembranças relativas a etapas posteriores da vida. Quem quer que tenha em mente seu traço característico — a saber, que elas são extremamente bem lembradas, mas seu conteúdo é completamente irrelevante — evocará facilmente vários exemplos dessa espécie de sua própria memória. Algumas dessas lembranças encobridoras, versando sobre eventos posteriores da vida, devem sua importância a uma ligação com experiências da juventude que permaneceram suprimidas. Tal ligação é o reverso da existente no caso que analisei, onde uma lembrança infantil foi explicada por experiências posteriores. A lembrança encobridora pode ser descrita como “regressiva” ou “progressiva”, conforme exista uma ou outra relação cronológica entre o encobrimento e a coisa encoberta. De outro ponto de vista, podemos distinguir as lembranças encobridoras positivas das negativas (ou lembranças refratárias), cujo conteúdo estabelece uma relação antitética com o material suprimido. Todo esse assunto merece um exame mais completo, porém devo contentar-me em assinalar que há processos complicados — processos que, aliás, são inteiramente análogos à formação dos sintomas histéricos — envolvidos na construção de nosso estoque de lembranças.

Nossas primeiras lembranças infantis serão sempre um tema de especial interesse, porque o problema mencionado no início deste artigo (o fato de as impressões de maior importância para todo o nosso futuro geralmente não deixarem quaisquer imagens mnêmicas atrás de si) leva-nos a refletir sobre a origem das lembranças conscientes em geral. A princípio, sem dúvida, tendemos a isolar as lembranças encobridoras que são objeto deste estudo como elementos heterogêneos entre os resíduos das recordações infantis. No que concerne às imagens remanescentes, é provável que adotemos o ponto de vista simplista de que elas emergem simultaneamente a uma experiência, como conseqüência imediata da impressão por ela causada, e que, daí por diante, retornam de tempos em tempos, de acordo com as leis de reprodução conhecidas. Uma observação mais minuciosa, entretanto, revela certos traços que não combinam com essa concepção. Há, sobretudo, o seguinte aspecto: na maioria das cenas infantis importantes e, em outros aspectos, incontestáveis, o sujeito se vê na recordação como criança, sabedor de que essa criança é ele mesmo; no entanto, vê essa criança tal como a veria um observador externo à cena. Os Henris chamam devidamente a atenção para o fato de que muitos dos que participaram de sua pesquisa enfatizaram expressamente essa peculiaridade das cenas infantis. Ora, é evidente que tal quadro não pode ser uma repetição exata da impressão originalmente recebida, pois, na época, o sujeito estava em meio à situação e não prestava atenção a si mesmo, mas sim ao mundo externo.

Sempre que numa lembrança o próprio sujeito assim aparecer como um objeto entre outros objetos, esse contraste entre o ego que age e o ego que recorda pode ser tomado como uma prova de que a impressão original foi elaborada. É como se um traço mnêmico da infância se retraduzisse numa forma plástica e visual em época posterior — na época do despertar da lembrança. Mas nenhuma reprodução da impressão original jamais penetrou na consciência do sujeito.

Há um outro fato que proporciona uma prova ainda mais convincente em favor dessa segunda visão. Dentre várias das lembranças infantis de experiências importantes, todas com nitidez e clareza similares, há algumas cenas que, quando verificadas (por exemplo, pelas recordações dos adultos), revelam ter sido falsificadas. Não que sejam completas invenções; são falsas no sentido de terem transposto um acontecimento para um lugar onde ele não ocorreu — é o caso de um dos exemplos citados pelos Henris —, ou de terem fundido duas pessoas numa só, ou substituído uma pela outra, ou então as cenas como um todo dão sinal de serem combinações de duas experiências separadas. A simples imprecisão da recordação não desempenha aqui um papel considerável, em vista do alto grau de intensidade sensorial de que as imagens são dotadas e da eficiência da função da memória nos jovens; a investigação detalhada mostra, antes, que esses falseamentos das lembranças são tendenciosos — isto é, que servem aos objetivos de recalque e deslocamento de impressões abjetáveis ou desagradáveis. Segue-se, portanto, que essas lembranças falsificadas também devem ter-se originado num período da vida em que se tornou possível conferir um lugar na vida mental a esse tipo de conflitos e aos impulsos ao recalcamento — muito posterior, portanto, ao período a que pertence seu conteúdo. Mas também nesses casos a lembrança falsificada é a primeira de que tomamos conhecimento: a matéria-prima dos traços mnêmicos de que a lembrança foi forjada permanece desconhecida para nós em sua forma original.

O reconhecimento desse fato deve reduzir a distinção que traçamos entre as lembranças encobridoras e outras lembranças derivadas de nossa infância. Com efeito, pode-se questionar se temos mesmo alguma lembrança proveniente de nossa infância: as lembranças relativas à infância talvez sejam tudo o que possuímos. Nossas lembranças infantis nos mostram nossos primeiros anos não como eles foram, mas tal como apareceram nos períodos posteriores em que as lembranças foram despertadas. Nesses períodos de despertar, as lembranças infantis não emergiram, como as pessoas costumam dizer; elas foram formadas nessa época. E inúmeros motivos, sem qualquer preocupação com a precisão histórica, participaram de sua formação, assim como da seleção das próprias lembranças.

 

NOTA AUTOBIOGRÁFICA (1901 |1899|)

 

NOTA DO EDITOR INGLÊS

 

(a) EDIÇÃO ALEMÃ:

1901 Em Biographisches Lexicon hervorragender Aerzte des neuzehnten Jahrhunderts |Léxico Biográfico dos Médicos Eminentes do Século XIX|, de J. L. Pagel, Berlim e Viena, Coluna 545.

 

Parece que essa nota nunca foi reeditada e que esta tradução, de James Strachey, é a primeira em inglês.

 

As evidências internas mostram que esta nota deve ter sido escrita no outono de 1899. É interessante por mostrar a visão que Freud supunha ter adotado sobre suas atividades às vésperas da publicação da obra que iria revolucionar sua posição no mundo científico. As numerosas abreviações do original foram grafadas por extenso.

 

NOTA AUTOBIOGRÁFICA

 

FREUD, SIGM., Viena. Nascido a 6 de maio de 1856, em Freiberg, na Morávia. Estudou em Viena. Aluno de Brücke, o fisiologista. Formatura |grau de médico|, 1881. Aluno de Charcot em Paris, 1885-6. Habilitação |nomeação como Privatdozent|, 1885. Trabalhou como médico e Dozent na Universidade de Viena a partir de 1886. Indicado como Professor Extraordinarius, 1897. Antes disso, Freud produziu textos sobre histologia e anatomia cerebral e, subseqüentemente, trabalhos clínicos sobre neuropatologia; traduziu obras de Charcot e Bernheim. Em 1884, “Über Coca” |“Sobre a Coca”|, artigo que apresentou a cocaína à medicina. Em 1891, Zur Auffassung der Aphasien |Sobre a Interpretação das Afasias|. Em 1891 e 1893, monografias sobre as paralisias cerebrais infantis, que culminaram em 1897 no volume sobre esse assunto no Handbuch de Nothnagel. Em 1895, Studien über Hysterie |Estudos sobre a Histeria| (com o Dr. J. Breuer). Desde então Freud voltou-se para o estudo das psiconeuroses, especialmente da histeria, e numa série de trabalhos mais curtos enfatizou a importância etiológica da vida sexual para as neuroses. Desenvolveu também uma nova psicoterapia da histeria, sobre a qual muito pouca coisa tem sido publicada. Um livro, Die Traumdeutung |A Interpretação dos Sonhos|, está no prelo.

 

BIBLIOGRAFIA E ÍNDICE DE AUTORES

 

|Os títulos de livros e periódicos aparecem grifados; os títulos de artigos, entre aspas. As abreviaturas estão de acordo com a World List of Scientific Periodicals (Londres, 1952). Outras abreviaturas usadas neste volume serão encontradas na Lista ao final desta bibliografia. Os números em negrito referem-se a volumes; os comuns, a páginas. No caso dos títulos de Freud, as letras adicionais às datas de publicação estão de acordo com os títulos correspondentes na bibliografia completa dos escritos de Freud a ser incluída no último volume da Edição Standard Brasileira.

Quanto aos autores não-técnicos e aos autores técnicos dos quais não se menciona nenhuma obra específica, ver o Índice Remissivo.|

 

BEARD, G. M. (1881) American Nervousness, its Causes and Consequences, Nova York.

(1884) Sexual Neurasthenia (Nervous Exhaustion), its Hygiene, Causes, Symptoms and Treatment, Nova York.

BERNHEIM, H. (1886) De la suggestion et de ses applications à la therapeutique Paris.

(1891) Hypnotisme, suggestion et psychothérapie: études nouvelles, Paris.

BREUER, J. e FREUD, S. (1893) Ver FREUD, S. (1893a)

(1895) Ver FREUD, S. (1895d)

BRUN, R. (1936) “Sigmund Freuds Leistungen auf dem Gebiete der organischen Neurologie”, Schweiz. Arch. Neurol. Psychiat., 37, 200.

CHARCOT, J.-M. (1887) Leçons sur les maladies du système nerveux, Vol. III, Paris.

(1888) Leçons du mardi, 1887-8, Paris.

(1889) Leçons du mardi, 1888-9, Paris.

(1886-90) Oeuvres complètes (9 vols.), Paris.

DARKSCHEWITSCH, L. (1886) Ver FREUD, S. (1886b)

ERLENMEYER, F. A. (1885) Crítica das concepções de Freud sobre a cocaína, Zbl. Nervenheilk., 8.

(1886) “Über Cocainsucht”, Wien med. Pr., 27, Col. 918.

(1887) Die Morphiumsucht und ihre Behandlung, 3ª ed., Berlim, Leipzig e Neuwied.

FISHER, J. (1955) Bird Recognition III, Penguin Books.

FLIESS, W. (1892) Neue Beitraege und Therapie der nasalen Reflexneurose, Viena.

(1893) Die nasale Reflexneurose”, Verhandlungen des Kongresses für innere Medizin, Wiesbaden, 384.

FREUD, S. (1877a) “Über den Ursprung der hinteren Nervenwurzeln im Rückenmarke von Ammocoetes (Petromyzon Planeri)”. S. B. Akad. Wiss. Wien (Math.- Naturwiss. Kl.), III Abt., 75, 15.

(1877b) “Beobachtungen über Gestaltung und feineren Bau der als Hoden beschriebenen Lappenorgane des Aals”, S. B. Akad. Wiss. Wien (Math.-Naturwiss.Kl.), I Abt., 75, 419.

(1878a) “Über Spinalganglien und Rückenmark des Petromyzon”, S. B. Akad. Wiss. Wien (Math.-Naturwiss. Kl.), III Abt., 78, 81.

(1879a) “Notiz über eine Methode zur anatomischen Praeparation des Nervensystems”, Zbl. med. Wiss., 17, Nº 26, 468.

(1882a) “Über den Bau der Nervenfasern und Nervenzellen beim Flusskrebs”, S. B. Akad. Wiss. Wien (Math.-Naturwiss, Kl.), III Abt., 85, 9.

(1884a) “Ein Fall von Hirnblutung mit indirekten basalen Herdsymptomen bei Scorbut”, Wien, med. Wschr., 34, Nº 9, 244 e 10, 276.

(1884b) “Eine neue Methode zum Studium des Faserverlaufes im Centralnervensystem”, Zbl, med. Wiss., 22, Nº 11, 161.

(1884c) “A New histological Method for the Study of Nerve-Tracts in the Braim and Spinal Cord” |em inglês|, Brain, 7, 86.

(1884d) “Eine neue Methode zum Studium des Faserverlaufes im Centralnervensystem”, Arch. Anat. Physiol., Lpz., Anat. Abt., 453.

(1884e) “Über Coca”, Zbl. ges. Ther., 2, 289.

|Trad. (resumida): “Coca”, St Louis Med. surg. J., 47, 502.|

(1884f) |1882|) “Die Struktur der Elemente des Nervensystems”, Jb. Psychiat. Neurol., 5, Heft 3, 221.

(1885a) “Beitrag zur Kenntnis de Cocawirkung”, Wien. med. Wschr., 35, Nº 5, 129.

(1885b) “Über die Allgemeinwirking de Cocaiens”, med.-chir. Zbl., 20, Nº 32, 374.

(1885c) “Ein Fall von Muskelatrophie mit ausgebreiteten Sensibilitaetsstoerungen (Syrigomyelie)”, Wien, med. Wschr., 35, Nº 13, 389, e 14, 325.

(1885d) “Zur Kenntnis der Olivenzwischenschicht”, Neurol. Zbl., 4, Nº 12, 268.

(1885e) “Gutachten über das Parke Cocaien”, in Gutt, “Über die verschiedenen Cocaien-Praeparate und deren Wirkung”, Wien. med. Pr., 26, Nº 32, 1036.

(1886a) “Akute multiple Neuritis der spinalen und Hirnnerven”, Wien. med. Wschr., 36, Nº 6, 168.

(1886b) Com DARKSCHEWITSCH, L., “Über die Beziehung des Strickkoepers zum Hinterstrang und Hinterstrangskern nebst Bemerkungen über zwei Felder der Oblongata”, Neurol. Zbl., 5, Nº 6, 121.

(1886c) “Über den Ursprung des Nervus acusticus”, Mschr. Ohrenheilk., Neue Folge, 20, Nº 8, 245, e 9, 277.

(1886d) “Beobachtung einer hochgradien Hemianaesthesie bei einem hysterischen manne (Beitraege zur Kasuistik der Hysterie I)”, Wien. med. Wschr., 36, Nº 49, 1633.

|Trad.: “Observação de um Caso Grave de Hemianestesia num Homem Histérico”. Ed. Standard, 1.|

(1886f) Tradução com Prefácio e Notas de Rodapé de Leçons sur les maladies du système nerveux, Vol. III, de J.-M. Charcot, Paris, 1887, sob o título Neue Vorlesungen über die Krankheiten des Nervensystems insbesonder über Hysterie, Viena.

|Trad.: Prefácio e Notas de Rodapé à tradução das Conferências sobre as Doenças do Sistema Nervoso, de J.-M. Charcot, Ed. Standard, 1.|

(1887d) “Bemerkungen über Cocainsucht und Cocainfurcht, mit Beziehung auf einen Vortrag W. A. Hammonds’s”, Wien. med. Wschr., 37, Nº 28, 929.

(1888a) “Über Hemianopsie im frühesten Kindesalter”, Wien, med. Wschr., 38, Nº 32, 1081, e 33, 1116.

(1888b) “Aphasie”, “Gehirn”, “Hysterie” e “Hysteroepilpsie” em Handwoerterbuch der gesamten Medizin, 1, de Villaret, Stuttgart. (Não assinado, autoria incerta.)

(1888-9) Tradução com Introdução e Notas de De la suggestion et de ses applications à la thérapeutique, de Bernheim, Paris, 1886, sob o título Die Suggestion und ihre Heilwirkung, Viena.

|Trad.: Prefácio à tradução de De la Suggestion, de Bernheim, Ed. Standard, 1.|

(1891a) Com RIE, O., “Klinische Studie über die halbseitige Cerebrallaehmung der Kinder”, Heft III de Beitraege zur Kinderheilkund, org. Kassowitz, Viena.

(1891b) Zur Auffassung der Aphasien, Viena.

|Trad.: On Aphasia, Londres e Nova York, 1953.|

(1892a) Tradução de Hypnotisme suggestion et psychothérapie: études nouvelles, de Bernheim, Paris, 1891, sob o título Neue Studien über Hypnotismus, Suggestion und Psychotherapie, Viena.

(1892-3) “Ein Fall von hypnotischer Heilung nebst Bemerkungen über die Entstehung hysterischer Symptome durch den ‘Gegenwillen’”, G. S., 1, 258; G. W., 1, 3.

|Trad.: “A Case of Successful Treatment by Hypnotism”, C. P., 5, 33; “Um Caso de Cura pelo Hipnotismo”, Ed., Standard, 1.|

(1892-4) Tradução com Prefácio e Notas de Rodapé de Leçons du mardi (1887-8), de J.-M. Charcot, Paris, 1888, sob o título Poliklinische Vortraege, 1, Viena. |Trad.: Prefácio e Notas de Rodapé à tradução de Leçons du mardi, de Charcot, Ed. Standard, 1.|

(1893a) Com BREUER, J., “Über den psychischen Mechanismus hysterischer Phaenomene: Vorlaeufige Mitteilung”, G. S., 1, 7; G. W., 1, 81.

|Trad.: “Sobre o Mecanismo Psíquico dos Fenômenos Histéricos: Comunicação Preliminar”, Ed. Standard, 2.|

(1893d) “Zur Kenntnis der cerebralen Diplegien des Kindesalters (im Anschluss an die Little’sche Krankheit)”, Heft III, Neue Folge, de Beitraege zur Kinderheilkunde, org. Kassowitz, Viena.

(1893c) “Quelques considérations pour une étude comparative des paralysies motrices organiques et hystériques” |em francês|, G. S., 1, Nº 8, 1-7.

|Trad.: “Some Points for a Comparative Study of Organic and Hysterical Motor Paralyses”, C. P. 1, 42; “Considerações para um Estudo Comparativo das Paralisias Motoras Orgânicas e Histéricas”, Ed. Standard, 1.|

(1893d) “Über familiaere Formen von cerebralen Diplegien”, Neurol. Zbl., 12, Nº 15, 512, e 16, 542.

(1893e) “Les diplégies cérébrales infantiles” |em francês|, Rev. neurol., 1, Nº 8, 177.

(1893f) “Charcot”, G. S., 1, 243; G. W., 1, 21.

|Trad.: “Charcot”, C. P. 1, 9; Ed. Standard, 3.|

(1893g) “Über ein Symptom, das haeufig die Enuresis nocturna der Kinder begleitet”, Neurol. Zbl., 12, Nº 21, 735.

(1893h) Vortrag “Über den psychischen Mechanismus hysterischer Phaenomene” |relatório taquigrafado revisto pelo conferencista|, Wien. med. Pr., 34, Nº 4, 121, e 5, 165.

|Trad.: Conferência “On the Psychical Mechanism of Hysterical Phenomena”, Int. J. Psycho-Anal., 37, 8; “Sobre o Mecanismo Psíquico dos Fenômenos Histéricos: Uma Conferência”, Ed. Standard, 3.|

(1894a) “Die Abwehr-Neuropsychosen”, G. S., 1, 290; G. W., 1, 59.

|Trad.: “The Neuro-Psychoses of Defence”, C. P., 1, 59; “As Neuropsicoses de Defesa”, Ed. Standard, 3.|

(1895b) |1894| “Über die Berechtigung, von der Neurasthenie einen bestimmten Symptomenkomplex als ‘Angstneurose’ abzutrennen”. G. S. 1, 306; G. W., 1, 315.

|Trad.: “On the Grounds for Detaching a Particular Syndrome from Neurasthenia under the Description ‘Anxiety Neurosis”, C. P. 1, 76, “Fundamentos para Destacar da Neurastenia uma Síndrome Específica Denominada ‘Neurose de Angústia’.” Ed. Standard, 3.|

(1895c) |1894|) “Obsessions et phobies” |em francês|, G. S., 1, 334; G. W., 1, 345.

|Trad.: “Obsessions and Phobias”, C. P., 1, 128; “Obsessões e Fobias”. Ed. Standard, 3.|

(1895d) Com BREUER, J., Studien über Hysterie, Viena. G. S., 1, 3; G. W., 1, 77, (omitindo as contribuições de Breuer).

|Trad.: Estudos sobre a Histeria, Ed. Standard, 2. Incluindo as contribuições de Breuer.|

(1895e) “Über die Bernhardt’sche Sensibilitaetsstoerung am Oberschenkel”, Neurol. Zbl., 14, Nº 11, 491.

(1895f) “Zur Kritik der ‘Angstneurose’”, G. S., 1, 343; G. W., 1, 357.

|Trad.: “A Reply to Criticisms of my Paper on Anxiety Neurosis”, C. P., 1, 107; “Resposta às Críticas a meu Artigo sobre a ‘Neurose de Angústia’”, Ed. Standard, 3.|

(1896a) “L’hérédité et l’étiologie des névroses” |em francês|, G. S., 1, 388; G. W., 1, 407.

|Trad.: “Heredity and the Aetiology of the Neuroses”, C. P, 1, 138; “A Hereditariedade e a Etiologia das Neuroses”, Ed. Standard, 3.|

(1896b) “Weitere Bemerkungen über die Abwehr-Neuropsychosen”, G. S., 1, 363; G. W., 1, 379.

|Trad.: “Further Remarks on the Neuro-Psychoses of Defence”, C. P., 1, 155; “Observações Adicionais sobre as Neuropsicoses de Defesa”, Ed. Standard, 3.|

(1896c) “Zur Aetiologie der Hysterie”, G. S., 1, 404; G. W., 1, 425.

|Trad.: “The Aetiology of Hysteria”, C. P., 1, 183; “A Etiologia da Histeria”, Ed. Standard, 3.|

(1897a) Die infantile Cerebrallaehmung, II Theil, II Abt. de Specielle Pathologie und Therapie, 9, de Nothnagel, Viena.

(1897b) Inhaltsangaben der wissenschaftlichen Arbeiten des Privatdozenten Dr. Sigm. Freud (1877-1897), Viena. G. W., 1, 463.

|Trad.: Sinopses dos Escritos Científicos do Dr. Sigm. Freud (1877-1897), Ed. Standard, 3.|

(1898a) “Die Sexualitat in der Aetiologie der Neurosen”, G. S., 1, 439; G. W., 1, 491.

|Trad.: “Sexuality in the Aetiology of the Neuroses”, C. P., 1, 220; “A Sexualidade na Etiologia das Neuroses”, Ed. Standard, 3.|

(1898b) “Zum psychischen Mechanismus der Vergesslichkeit”, G. W., 1, 519.

|Trad.: “O Mecanismo Psíquico do Esquecimento”, Ed. Standard, 3.|

(1899a) “Über Deckerinnerungen”, G. S., 1, 465; G. W., 1, 531.

|Trad.: “Screen Memories”, C. P., 5, 47; “Lembranças Encobridoras”, Ed. Standard, 3.|

(1900a) Die Traumdeutung, Viena. G. S., 2-3; G. W., 2-3.

|Trad.: The Interpretation of Dreams, Londres e Nova York, 1955; A Interpretação dos Sonhos, Ed. Standard, 4-5.|

(1901b) Zur Psychopathologie des Alltagslebens, Berlim, 1904, G. S., 4, 3;G. W., 4. |Trad.: Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana, Ed. Standard, 6.|

(1901c |1899|) Nota Autobiográfica em Biographisches Lexicon hervorragender Aerzte des neuzehnten Jahrhunderts, de J. L. Pagel, Berlim.

|Trad.: Ed. Standard, 3.|

(1904a) “Die Freud’sche psychoanalytische Methode”, G. S., 6, 3; G. W.., 5, 3.

|Trad.: “Freud’s Psycho-Analytic Procedure”, C. P., 1, 264; “O Método Psicanalítico de Freud”, Ed. Standard, 7.|

(1905a) “Über Psychotherapie”, G. S., 6, 11; G. W., 5, 13.

|Trad.: “On Psychotherapy”, C. P., 1, 249; “Sobre a Psicoterapia”, Ed. Standard, 7.|

(1905c) Der Witz und seine Beziehung zum Unbewussten, Viena. G. S., 9. 5; G. W., 6.

|Trad.: O Chiste e sua Relação com o Inconsciente, Ed. Standard, 8.|

(1905d) Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie Viena. G. S., 5, 3; G. W., 5, 29.

|Trad.: Three Essays on the Theory of Sexuality, Londres, 1949; Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, Ed. Standard, 7.|

(1905e) |1901|) “Bruchstück einer Hysterie-Analyse”, G. S., 8, 3; G. W., 5, 163.

|Trad.: “Fragment of an Analysis of a Case of Hysteria”, C. P., 3, 13; “Fragmento da Análise de um Caso de Histeria”, Ed. Standard, 7.|

(1906a) “Meine Ansichten über die Rolle der Sexualitaet in der Aetiologie der Neurosen”, G. S., 5, 123; G. W., 5, 149.

|Trad.: “My Views on the Part played by Sexuality in the Aetiology of the Neuroses”, C. P., 1, 272; “Minha Visão do Papel desempenhado pela Sexualidade na Etiologia da Neurose”, Ed. Standard, 7.|

(1906b) Prefácio a Sammlung kleiner Schriften zur Neurosenlehre aus dens Jahren 1893-1906, de Freud, G. S., 1, 241; G. W., 1, 557.

|Trad.: Prefácio aos Escritos Breves de Freud de 1893 a 1906, Ed. Standard, 3.| (1906c) “Tatbestandsdiagnostik und Psychoanalyse”, G. S., 10, 197; G. W., 7, 3.

|Trad.: “Psycho-Analysis and the Establishment of the Facts in Legal Proceedings”, C. P. 2, 13; “A Psicanálise e a Determinação dos Fatos nos Processos Jurídicos”, Ed. Standard, 9.|

(1908d) “Die ‘kulturelle’ Sexualmoral und die moderne Nervositaet”, G. S., 5, 143; G. W., 7, 143.

|Trad.: “’Civilized’ Sexual Morality and Modern Nervous Illness”, C. P., 2, 76; “Moral Sexual ‘Civilizada’ e Doença Nervosa Moderna”, Ed. Standard, 9.|

(1909a) “Allgemeines über den hysterischen Anfall”, G. S., 5, 255; G. W., 7, 235.|Trad.: “Some General Remarks on Hysterical Attacks”, C. P., 2, 100; “Observações Gerais sobre os Ataques Histéricos”, Ed. Standard, 9.|

(1909d) “Analyse der Phobie eines fünfjaehrigen Knaben”, G. S., 8, 129; G. W., 7, 243.

|Trad.: “Analysis of a Phobia in a Five-Year-Old Boy”. C. P., 3, 149; “Análise de uma Fobia num Menino de Cinco Anos”, Ed. Standard, 10.|

(1909d) “Bemerkungen über einen Fall von Zwangsneurose”, G. S., 8, 269; G. W., 7, 381.

|Trad.: “Notes upon a Case of Obessional Neurosis”, C. P., 3, 293; “Notas sobre um Caso de Neurose Obsessiva”, Ed. Standard, 10.|

(1910a |1909|) Über Psychoanalyse, Viena. G. S., 4, 349; G. W., 8, 3.

|Trad.: “Five Lectures on Psycho-Analysis”, Amer. J. Psychol., 21 (1910), 181; “Cinco Lições de Psicanálise”. Ed. Standard, 11.|

(1910d) “Die zukünftigen Chancen der psychoanalytischen Therapie”, G. S., 6, 25; G. W., 8, 104.

|Trad.: “The Future Prospects of Psycho-Analytic Therapy”, C. P., 2, 285; “Perspectivas Futuras da Terapia Psicanalítica”, Ed. Standar, 11.|

(1910k) “Über ‘wilde’ Psychoanalyse”, G. S., 6, 37; G. W., 8, 118.

|Trad.: “’Wild’ Psycho-Analysis”, C. P.., 2, 297; “Psicanálise ‘selvagem’”, Ed. Standard, 11.|

(1911b) “Formulierungen über die zwei Prinzipien des psychischen Geschehens”, G. S., 5, 409; G. W., 8, 230.

|Trad.: “Formulations on the Two Principles of Mental Functioning”, C. P., 4, 13; “Formulações sobre os Dois Princípios do Funcionamento Psíquico”, Ed. Standard, 12.|

(1912f) “Zur Onanie-Diskussion”, G. S., 3, 324; G. W., 8, 332.

|Trad.: “Contribuições para um Debate sobre a Masturbação”, Ed. Standard, 12.|

(1913i) “Die Disposition zur Zwangsneurose”. G. S., 5, 277; G. W., 8, 442.

|Trad.: “The Disposition to Obsessional Neurosis”, C. P., 2, 122; “A Predisposição à Neurose Obsessiva”, Ed. Standard, 12.|

(1914c) “Zur Einführung des Narzissmus”, G. S., 6, 155; G. W., 10, 138.

|Trad.: “On Narcissism: and Introduction”, C. P., 4, 30; “Sobre o Narcisismo: Introdução”. Ed. Standard, 14|.

(1914d) “Zur Geschichte der psychoanalytischen Bewegung”, G. S., 4, 411; G. W., 10, 44.

|Trad.: “On the History of the Psycho-Analytic Movement”, C. P., 1, 287; “Sobre a História do Movimento Psicanalítico”, Ed. Standard, 14.|

(1915c) “Triebe und Triebschicksale”, G. S., 5, 443; G. W., 10, 210.

|Trad.: “Instincts and their Vicissitudes”, C. P., 4, 60; “As Pulsões e suas Vicissitudes”, Ed. Standard, 14.|

(1915d) “Die Verdraengung”, G. S., 5, 466; G. W., 10, 248.

|Trad.: “Repression”, C. P., 4, 84; “O Recalcamento”, Ed. Standard, 14.|

(1915e) “Das Unbewusste”, G. S., 5, 480; G. W., 10, 264.

|Trad.: “The Unconscious”, C. P., 4, 98; “O Inconsciente”, Ed. Standard, 14.|

(1916-17) Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse, Viena. G. S., 7; G. W., 11.

|Trad.: Introductory Lectures on Psycho-Analysis, ed. revista, Londres, 1929 (A General Introduction to Psychoanalysis, Nova York, 1935); Conferências Introdutórias sobre Psicanálise, Ed. Standard, 15-16.|

(1918b |1914|) “Aus der Geschichte einer infantilen Neurose”, G. S., 8, 439; G. W., 12, 29.

|Trad.: “From the History of an Infantile Neurosis”, C. P., 3, 473; “História de uma Neurose Infantil”, Ed. Standard, 17.|

(1920g) Jenseits des Lustprinzips, Viena. G. S., 6, 191; G. W., 13, 3.

|Trad.: Beyond the Pleasure Principle, Londres, 1961; Além do Princípio do Prazer, Ed. Standard, 18.|

(1921c) Massenpsychologie und Ich-Analyse, Viena. G. S., 6, 261; G. W., 13, 73.

|Trad.: Group Psychology and the Analysis of the Ego, Londres, 1959; Nova York, 1960; Psicologia das Massas e Análise do Ego, Ed. Standard, 18.|

(1923a) “’Psychoanalyse’ und ‘Libido Theorie’”, G. S., 11, 201; G. W., 13, 211.

|Trad.: “Two Encyclopaedia Articles”, C. P., 5, 107; “Dois Verbetes de Enciclopédia”, Ed. Standard, 18.|

(1923b) Das Ich und das Es, Viena. G. S., 6, 353; G. W., 13, 237.

|Trad.: The Ego and the Id, Londres, 1927; O Ego e o Id, Ed. Standard, 19.|

(1923c) “Bemerkungen zur Theorie und Praxis der Traumdeutung”, G. S., 3, 305; G. W., 13, 301.

|Trad.: “Remarks on the Theory and Practice of Dream-Interpretation“, C. P., 5, 136; “Observações sobre a Teoria e a Prática da Interpretação do Sonho”, Ed. Standard, 19.|

(1923d) “Eine Teufelsneurose im siebzehnten Jahrhundert”, G. S., 10, 409; G. W., 13, 317.

|Trad.: “A Seventeenth Century Demonological Neurosis”, C. P., 4, 436; “Uma Neurose Demoníaca do Século XVII”, Ed. Standard, 19.|

(1924a) Carta |em francês| a le Disque Vert, G. S., 11, 266; G. W., 13, 446. |Trad.: Ed. Standard, 19.|

(1924b) “Neurose und Psychose”, G. S., 5, 418; G. W., 13, 387.

|Trad.: “Neurosis and Psychosis”, C. P., 2, 250; “Neurose e Psicose” Ed. Standard, 19.|

(1924c) “Das oekonomische Problem des Masochismus”, G. S., 5, 374; G. W., 13, 371.

|Trad.: “The Economic Problem of Masochism”, C. P., 2, 255; “O Problema Econômico do Masoquismo”, Ed. Standard, 19.|

(1924e) “Die Realitaetsverlust bei Neurose und Psychose”, G. S., 6, 409; G. W., 13, 363.

|Trad.: “The Loss of Reality in Neurosis and Psychosis”, C. P., 2, 277; “A Perda da Realidade na Neurose e na Psicose”, Ed. Standard, 19.|

(1925d) |1924|) Selbstdarstellung, Viena, 1934. G. S., 11, 119; G. W., 14, 33.

|Trad.: An Autobiographical Study, Londres, 1935 (Autobiography, Nova York, 1935); “Um Estudo Autobiográfico”, Ed. Standard, 20.|

(1926d) Hemmung, Symptom und Angst, Viena. G. S.., 11, 23; G. W., 14, 113.

|Trad.: Inhibitions, Symptoms and Anxiety, Londres, 1960 (The Problem of Anxiety, Nova York, 1936); Inibição, Sintoma e Angústia, Ed. Standard, 20.|

(1926e) Die Frage der Laienanalyse, Viena. G. S., 11, 307; G. W., 14, 209.

|Trad.: The Question of Lay Analysis, Londres, 1947; A Questão da Análise Leiga, Ed. Standard, 20.|

(1926f) Artigo na Encyclopaedia Britannica |publicado como “Psycho-Analysis: Freudian School”|, Encyclopaedia Britannica, 13ª ed., Novo Vol. 3, 253, “Psicanálise”, Ed. Standard, 20.|

|Texto alemão: “Psycho-Analysis”, G. S., 12, 372; G. W., 14, 299. Original alemão publicado pela primeira vez em 1934.|

(1927e) “Fetischismus”, G. S., 11, 395; G. W., 14, 311.

|Trad.: “Fetishism”, C. P., 5, 198; “Fetichismo”, Ed. Standard, 21.|

(1930a) Das Unbehagen in der Kultur, Viena. G. S., 12, 29; G. W., 14, 421.

|Trad.: Civilization and its Discontents, Londres e Nova York, 1930;  O Mal Estar na Cultura, Ed. Standard, 21.|

(1931b) “Über die weibliche Sexualitaet”, G. S., 12, 120; G. W., 14, 517.

|Trad.: “Female Sexuality”, C. P. 5, 252; “Sexualidade Feminina”, Ed. Standard, 21.|

(1931e) Carta ao Burgomestre de Príbor, G. S., 12, 414; G. W., 14, 561.

|Trad.: Ed. Standard, 21.|

(1937c) “Die endliche und die unendliche Analyse”, G. W., 16, 59.

|Trad.: “Analysis Terminable and Interminable”, C. P., 5, 316; “Análise Terminável e Interminável”, Ed. Standard, 23.|

(1937d) “Konstruktionen in de Analyse”, G. W., 16, 43.

|Trad.: “Constructions in Analysis”, C. P., 5, 358, “Construções em Análise”, E. Standard, 23.|

(1940d |1892|) Com BREUER, J., “Zur Theorie des hysterischen Anfalls”, G. W., 17, 9.

|Trad.: “Ons the Theory of Hysterical Attacks”, C. P., 5, 27; “Sobre a Teoria dos Ataques Histéricos”, Ed. Standard, 1.|

(1940e) |1938|) “Dei Ichspaltung im Abwehrovorgan”, G. W., 17, 59.

|Trad.: “Splitting of the Ego in the Process of Defence”, C. P., 5, 372; “A Divisão do Ego no Processo de Defesa”, Ed. Standard, 23.|

(1941a) |1892|) Carta a Josef Breuer, G. W., 17, 5.

|Trad.: C. P., 5, 25; Ed. Standard, 1.|

(1941b |1892|) “Notiz ‘III’”, G. W., 17, 17.

|Trad.: “III”, C. P., 5, 31; Ed. Standard, 1.|

(1950a |1887-1902|) Aus den Anfaengen der Psychoanalyse, Londres. Inclui “Entwurf einer Psychologie” (1895).

|Trad.: The Origins of Psycho-Analysis, Londres e Nova York, 1954. (Em parte, incluindo o “Projeto para uma Psicologia Científica“, in Ed. Standard, 1.|

(1955a |1907-8|) Relatório Original do Caso de Neurose Obsessiva (o “Homem dos Ratos”, Ed. Standard, 10. Texto alemão não publicado.

(1956a |1886|) “Report on my Studies in Paris and Berlin, on a Travelling Bursary Granted from the University Jubille Fund, 1885-6”, Int. J. Psycho-Anal., 37, 2; “Relatório sobre meus Estudos em Paris e Berlim”, Ed. Standard, 1. |Texto alemão (não publicado): “Bericht über meine mit Universitaets-Jubilaeums Reisestipendium unternommene Studienreise nach Paris und Berlin”.|

(1960a) Briefe 1873-1939 (org. E. L. Freud), Berlim.

|Trad.: Letters 1873-1939 (org. E. L. Freud) (trad. de T. e J. Stern), Nova York, 1960; Londres, 1961.|

GÉLINEAU, J. B. É. (1894) Des peurs maladives ou phobies, Paris.

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ICONOGRAPHIE DE LA SALPÊTRIÈRE, 3 (1879-80), Paris.

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(1893) “Quelquer définitions récentes de l’hystérie”, Arch. neurol., 25, 417, e 26, 1.

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(1955) Sigmund Freud: Life and Work, Vol. 2, Londres e Nova York.

KAAN, H. (1893) Der neurasthenische Angstaffekt bei Zwangsvorstellungen und der primordiale Grübelzwang, Viena.

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KRAFFT-EBING, R. VON (1867) Beitraege zur Erkennung und richtigen forensischen Beurteilung krankhafter Gemütszustaende für Aerzte, Richter und Verteidiger, Erlangen.

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(1904) Die psychischen Zwangserscheinungen, Wiesbaden.

(1906) Sexualleben und Nervenleiden, 4ª ed., Wiesbaden.

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LISTA DE ABREVIATURAS

G.S.    = Freud, Gesammelte Schriften (12 vols.), Viena, 1924-34.

G.W.   = Freud, Gesammelte Werke (18 vols.), Londres, a partir de 1940.

C.P.    = Freud, Collected Papers (5 vols.), Londres, 1924-50.

Ed. Standard            = Freud, Edição Standard (24 vols.), Rio de Janeiro, a partir de       1970.

S.K.S.N.        = Freud, Sammlung kleiner Schriften zur Neurosenlehre (5 vols.),

            Viena, 1906-22.

S.P.H.            = Freud, Selected Papers on Hysteria and Other Psychoneuroses,

            Nova York, 1909-20.

 

                                                                              

                      

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