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OS PILARES DA TERRA Volume II / Ken Follett
OS PILARES DA TERRA Volume II / Ken Follett

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS PILARES DA TERRA Volume II

 

     1140 - 1142

      A prostituta que William escolheu não era muito bonita, mas tinha seios grandes e sua imensa cabeleira crespa o atraíra. Circulou em torno dele, balançando as cadeiras, e William viu que era um pouco mais velha do que pensara, talvez vinte e cinco ou trinta anos, e, embora sua boca sorrisse inocentemente, tinha olhos duros e calculistas.

      Walter escolheu a outra. Preferiu uma garota pequena que parecia vulnerável, com corpo de garoto, de peito chato. Depois que William e Walter fizeram sua escolha, os outros quatro cavaleiros entraram.

      William os trouxera ao bordel porque precisavam se aliviar de algum modo. Não participavam de uma batalha há meses e estavam se tornando descontentes e brigões.

      A guerra civil que irrompera um ano antes, entre o rei Estêvão e sua rival Matilde, chamada de Imperatriz, atingira um intervalo de calmaria. William e seus homens seguiram Estêvão por todo o sudoeste da Inglaterra. A estratégia dele era enérgica mas caprichosa. Atacava uma das fortalezas de Matilde com tremendo entusiasmo, mas se não conquistasse logo uma vitória, rapidamente se cansava do sítio, e seguia em frente. A liderança militar dos rebeldes não cabia a Matilde, e sim a seu meio irmão Robert, conde de Gloucester; e até aquele momento Estevão não conseguira forçá-lo a um confronto. Era uma guerra indefinida, com muito movimento e pouco combate de verdade, e assim os homens ficavam inquietos.

      O prostíbulo era dividido por biombos em pequenos aposentos, com um colchão de palha em cada um. William e seus cavaleiros levaram as mulheres que escolheram para esses quartinhos. A de William ajustou o biombo para assegurar sua privacidade e arriou a parte de cima da camisa, expondo os seios. Eram fartos, como William vira antes, mas tinham os mamilos grandes e as pequenas veias de uma mulher que amamentara, e ele ficou um pouco desapontado. Mesmo assim, puxou-a para junto de si e os tomou nas mãos, apertando-os e beliscando os mamilos.

      - Devagar - disse ela, num tom de suave protesto. Depois o abraçou e puxou-lhe os quadris, esfregando-se contra ele. Após alguns momentos enfiou a mão por entre os corpos unidos e procurou seu membro.

      William resmungou uma praga. Seu corpo não estava reagindo.

      - Não se preocupe - murmurou ela. Seu tom condescendente o enfureceu, mas ele nada disse quando a mulher se soltou do seu abraço e, ajoelhando-se, ergueu a parte da frente da sua túnica e começou a trabalhar com a boca.

      A princípio a sensação lhe agradou, e ele pensou que tudo fosse dar certo, mas logo perdeu o interesse de novo. Olhou para o rosto dela, coisa que às vezes o inflamava, mas que agora só serviu para se lembrar do papel nada admirável que estava fazendo. Começou a se sentir furioso, o que fez seu pênis encolher mais ainda.

      A mulher parou.

      - Tente relaxar - disse, mas quando começou de novo, chupou com tanta força que o machucou. Ele recuou, e os dentes dela arranharam a pele delicada da glande, fazendo-o gritar. Com as costas da mão deu uma bofetada no seu rosto. Ela arquejou e caiu de lado.

      - Puta desajeitada! - rosnou William. A mulher ficou deitada no colchão a seus pés, olhando-o receosamente. Ele deu-lhe um pontapé ao acaso, mais de irritação que de maldade. Pegou na barriga. Foi com mais força do que tencionara, e ela se dobrou ao meio de dor.

      William percebeu que seu membro finalmente estava reagindo.

      Ajoelhou-se, rolou o corpo dela para que ficasse de costas e montou. A mulher fitou-o com dor e medo nos olhos. William puxou-lhe a saia até a cintura. O pêlo entreas pernas era grosso e crespo. Ele gostou disso. Acariciou a si próprio enquanto olhava para o seu corpo. A ereção ainda não estava completa. O medo começava a desaparecer dos olhos dela. Ocorreu-lhe que podia estar deliberadamente se esquivando, tentando esvaziar seu desejo para não ter que servi-lo.

      A ideia o enfureceu. Cerrou o punho e deu-lhe um soco com força no rosto.

      Ela gritou e tentou sair de baixo dele. William descansou o peso sobre a mulher, prendendo-a no chão, mas ela continuou a lutar e a gritar. Agora o pênis estava totalmente ereto. Tentou abrir-lhe as coxas à força, mas ela resistiu.

      O biombo foi empurrado para um lado e Walter entrou, usando apenas as botas e a camisa de baixo, com o membro duro lembrando um mastro de bandeira. Dois outros cavaleiros o seguiram: Gervase Feio e Hugh Machado.

      - Segurem-na para mim, rapazes - ordenou William. Os três cavaleiros ajoelharam-se em torno da mulher e a imobilizaram.

      William colocou-se em posição para penetrá-la e parou, desfrutando a expectativa.

      - O que aconteceu, milorde? - perguntou Walter.

      - Mudou de ideia quando viu o tamanho dele - disse William, com um sorriso.

      Todos caíram na gargalhada. William penetrou-a. Gostava quando tinha gente olhando. Começou a se mover para dentro e para fora.

      - Você me interrompeu quando eu ia enfiar o meu - disse Walter.

      William pôde ver que Walter ainda não ficara satisfeito.

      - Pois enfie o pau na boca desta aqui - disse. - Ela gosta.

      - Vou experimentar. - Walter mudou de posição e agarrou a mulher pelos cabelos, levantando sua cabeça. A essa altura estava assustada o bastante para fazer qualquer coisa, e cooperou prontamente. Gervase e Hugh não eram mais necessários para segurá-la, mas ficaram para assistir. Pareciam fascinados. Provavelmente nunca tinham visto uma mulher servindo a dois homens ao mesmo tempo. William também nunca vira. Havia algo curiosamente excitante naquilo. Walter parecia sentir o mesmo, porque após alguns momentos começou a respirar com força e a se mexer mais e mais, até que gozou. Vendo-o, William gozou também um segundo ou dois mais tarde.

      Um instante depois eles se levantaram. William ainda se sentia excitado.

      - Por que vocês dois não trepam com ela? - disse a Gervase e a Hugh. Agradava-lhe a ideia de assistir à repetição do espetáculo.

      Eles não se mostraram entusiasmados, contudo.

      - Tenho uma bonequinha me esperando - disse Hugh.

      - E eu também - disse Gervase.

      A mulher se levantou e ajeitou o vestido. A expressão do seu rosto era imperscrutável.

      - Não foi tão ruim, foi? - perguntou-lhe William.

      Ela parou na sua frente, encarou-o por um momento, contraiu os lábios e cuspiu. William sentiu o rosto coberto por um líquido quente e viscoso: ela retivera o sêmen de Walter na boca. Aquilo toldou-lhe a vista. Furioso, ergueu a mão para bater nela, mas a mulher fugiu, esgueirando-se por entre os biombos. Walter e os outros cavaleiros caíram na risada. William não achou nada engraçado, mas não podia correr atrás dela com o rosto coberto de sêmen, e concluiu que o único modo de preservar a dignidade era fingir que não se importava, de modo que riu também.

      - Bem, milorde - disse Gervase Feio -, espero que não vá ter um bebê de Walter agora! - E todos caíram na gargalhada mais uma vez. Até mesmo William achou engraçado.

      Saíram juntos do pequeno reservado, apoiando-se uns nos outros e esfregando os olhos. As outras mulheres os olhavam, ansiosas; tinham ouvido o grito da que estava com William e sentiam medo. Um ou dois clientes olharam curiosamente de seus compartimentos.

      - Primeira vez que vejo aquele tipo de coisa cuspido por uma mulher! - disse Walter, fazendo com que todos começassem a rir novamente.

      Um dos escudeiros de William estava de pé junto à porta, parecendo ansioso. Não passava de um rapazinho, e provavelmente nunca estivera num bordel. Sorriu, nervoso, sem saber se tinha direito de se associar às gargalhadas.

      - O que você está fazendo aqui, seu cara de tacho? - perguntou William.

      - Chegou uma mensagem para o senhor, milorde - disse o escudeiro.

      - Bem, não perca tempo, diga-me o que é!

      - Sinto muito, milorde - disse o menino. Estava tão assustado que William achou que ia se virar e sair correndo.

      - O que você sente tanto, seu monte de estrume? - vociferou o lorde. - Passe-me a mensagem!

      - Seu pai está morto - deixou escapar o rapaz, caindo no choro.

      William arregalou os olhos, estupefato. Morto?, pensou. Morto?

      - Mas ele está em perfeito estado de saúde! - gritou estupidamente. Era verdade que seu pai já não era capaz de lutar num campo de batalha, mas isso não era de espantar num homem de quase cinquenta anos. O escudeiro continuou a chorar. William rememorou a aparência de seu pai na última vez em que o vira: corpulento, o rosto vermelho, vigoroso e irascível, tão cheio de vida quanto um homem poderia ser, e isso apenas há... William percebeu, com um pequeno choque, que já fazia quase um ano que não via o pai.

      - O que aconteceu? - perguntou ao escudeiro. - O que aconteceu a ele?

      - Teve um ataque, milorde - soluçou o escudeiro.

      Um ataque. A notícia começou a ser digerida. Seu pai estava morto. Aquele homem grande, forte, dado a rompantes, irritadiço, estava deitado impotente e frio sobre uma laje de pedra.

      - Tenho que ir para casa - disse William, de súbito.

      - Primeiro vai ter que pedir ao rei para liberá-lo - lembrou Walter delicadamente.

      - Sim, sim, tem razão - concordou ele, meio confuso. – Tenho que pedir permissão. - Não conseguia pensar direito.

      - Devo dar dinheiro à cafetina? - perguntou Walter.

      - Sim. - William entregou-lhe sua bolsa. Alguém pôs a capa dele sobre os seus ombros. Walter murmurou qualquer coisa para a cafetina e lhe deu dinheiro. Hugh abriu a porta para William.Todos saíram.

      Atravessaram as ruas da cidadezinha em silêncio. William se sentia alheio, como se estivesse observando tudo de cima. Não podia aceitar o fato de que seu pai já não existia. Quando se aproximou do quartel-general, tentou recuperar o controle.

      O rei Estêvão instalara sua corte na igreja, pois não havia castelo ou prefeitura ali. Era uma igreja pequena e simples, de pedra, com as paredes internas pintadas de vermelho, azul e laranja brilhantes. Um fogo fora aceso no meio do chão. O rei, um homem bonito, de cabelo castanho-alourado, estava sentado perto do fogo num trono de madeira, com as pernas esticadas na posição em que costumava relaxar. Usava roupas de soldado, botas altas e túnica de couro, mas tinha uma coroa em vez de um elmo. William e Walter abriram caminho por entre a multidão de peticionários nas proximidades da porta da igreja, balançaram a cabeça para os guardas que mantinham o público em geral a distância e entraram. Estêvão conversava com um conde recém-chegado, mas viu William e interrompeu imediatamente.

      - William, meu amigo. Você já soube...

      William fez uma reverência.

      - Majestade.

      Estêvão levantou-se.

      - Lamento por você - disse. Abraçou William por um momento.

      Sua solidariedade trouxe as primeiras lágrimas aos olhos do lorde.

      - Tenho que lhe pedir licença para ir à minha casa - disse ele.

      - Concedida de boa vontade, embora não alegremente – disse o rei. - Sentiremos falta de seu forte braço direito.

      - Muito obrigado, majestade.

      - Concedo-lhe também a custódia do condado de Shiring, e todas as rendas por ele geradas, até que a questão da sucessão seja decidida. Vá para casa, enterre seu pai e volte para nós o mais cedo que puder.

      William fez outra reverência e retirou-se. O rei retomou à sua conversa. Cortesãos acercaram-se de William para lhe apresentar os pêsames. Foi nessa hora que o significado do que o rei lhe dissera o atingiu. Ele dera a William a custódia do condado até que a questão da sucessão fosse decidida. Que questão? William era filho único. Como poderia haver uma questão? Olhou para os rostos à sua volta e se deteve num jovem padre que era o mais inteligente dos clérigos do rei. Puxou-o para junto de si e perguntou baixinho:

      - Que diabo ele quis dizer com a "questão" da sucessão, Joseph?

      - Há outro pretendente ao condado - respondeu Joseph.

      - Outro pretendente? - repetiu William, atônito. Não tinha meios irmãos, irmãos ilegítimos, primos...  - Quem é?

      Joseph apontou para um vulto de costas para eles. Estava com os recém-chegados. Usava traje de escudeiro.

      - Mas ele não é nem sequer cavaleiro! - disse William, em voz alta. - Meu pai era o conde de Shiring!

      O escudeiro o ouviu e se virou.

      - Meu pai também era o conde de Shiring.

      A princípio William não o reconheceu. Era um rapaz bonito, de ombros largos, de cerca de dezoito anos, bem-vestido para um escudeiro, e com uma bela espada. Havia confiança e até mesmo arrogância na sua atitude. O mais impressionante de tudo era que o olhava com tanto ódio que William se encolheu.

      O rosto era muito familiar, mas mudado. Ainda assim, não conseguiu se lembrar de quem era. Depois viu que havia uma feia cicatriz na orelha direita do escudeiro, onde o lobo fora cortado. Num lampejo vívido da memória ele viu um pedacinho de carne branca caindo no peito arfante de uma virgem aterrorizada, e ouviu o grito de dor de um menino. Aquele era Richard, o filho do traidor Bartholomew, irmão de Aliena. O garotinho que tinha sido forçado a assistir a dois homens estuprando sua irmã, crescera e se tornara um homem temível, com o brilho da vingança nos olhos azul-claros. William sentiu-se, de repente, terrivelmente amedrontado.

      - Você se lembra, não se lembra? - perguntou Richard, num tom delicado que não disfarçou o frio ódio que sentia.

      - Eu me lembro. - assentiu William.

      - Eu também, William Hamleigh - disse Richard. - Eu também.

     

      William estava sentado na cadeira grande, à cabeceira da mesa, onde seu pai costumava sentar-se. Sempre soubera que ocuparia aquele lugar um dia. Imaginara que se sentiria imensamente poderoso quando o fizesse, mas na verdade estava um pouco assustado. Tinha medo de que dissessem que ele não era o homem que seu pai fora e que o desrespeitassem.

      Sua mãe ficava à sua direita. Frequentemente a observara, com seu pai sentado à cabeceira, e vira o modo como jogava com os medos e fraquezas do marido para conseguir o que queria. Estava determinado a não deixar que fizesse o mesmo com ele.

      À sua esquerda estava sentado Arthur, um homem grisalho e de maneiras conciliadoras que tinha sido alcaide de Bartholomew. Depois que se tornara conde, Percy contratara Arthur por ter um bom conhecimento da propriedade. William sempre tivera suas dúvidas quanto a esse argumento. Os empregados de outras pessoas sempre tendem a se manter aferrados aos hábitos do antigo empregador.

      - O rei Estêvão não pode fazer de Richard o conde - estava dizendo sua mãe furiosamente. - Ele não passa de um escudeiro!

      - Não compreendo nem como conseguiu ser escudeiro – disse William, irritado. - Pensei que tinha ficado completamente sem dinheiro. Mas estava bem-vestido e com uma boa espada. Onde arranjou o dinheiro?

      - Ele se estabeleceu como mercador de lã - disse Regan.

      - Tem muito dinheiro. Ou melhor, sua irmã tem; soube que é Aliena que dirige o negócio.

      Aliena. Então ela estava por trás daquilo. William nunca a esquecera, mas ela não atormentava tanto os seus pensamentos desde que a guerra irrompera, até que tinha encontrado Richard. Desde então estivera em sua lembrança continuamente, tão jovem e bonita, tão frágil e desejável como sempre. William a odiava pelo poder que exercia sobre ele.

      - Então Aliena está rica agora? - perguntou, afetando indiferença.

      - Sim. Mas você combateu pelo seu rei durante um ano. Ele não pode recusar sua herança.

      - Parece que Richard lutou corajosamente também - disse William. - Fiz investigações. Pior ainda, sua coragem chegou ao conhecimento do rei.

      A expressão de sua mãe mudou do escárnio colérico para um ar pensativo.

      - Então ele realmente tem uma chance.

      - Receio que sim.

      - Certo. Então temos que repeli-lo.

      - Como? - perguntou William automaticamente. Tinha resolvido não deixar sua mãe assumir o comando, mas acabara de lhe dar mais uma oportunidade.

      - Você precisa voltar para junto do rei com um maior efetivo de cavaleiros, novas armas e melhores cavalos, e com muitos escudeiros e homens de armas.

      William teria gostado de discordar, mas viu que ela estava com a razão. No final o rei provavelmente daria o condado ao homem que prometesse ser seu partidário mais efetivo, a despeito do que fosse certo ou errado no caso.

      - E isso não é tudo - prosseguiu sua mãe. - Você deve se cuidar para ter atitudes e aparência de um conde. Assim o rei começará a ver sua designação como algo inevitável.

      A despeito de si próprio, William ficou intrigado.

      - E como um conde deve parecer e agir?

      - Diga mais o que pensa. Tenha uma opinião a respeito de tudo: como o rei deveria conduzir a guerra, a melhor tática para cada batalha, a situação política no norte e - especialmente isto - a capacidade e a lealdade dos outros condes. Fale com um homem sobre o outro. Diga ao conde de Huntingdon que o conde de Warenne é um grande combatente; diga ao bispo de Ely que não confia no xerife de Lincoln. As pessoas dirão ao rei: "William de Shiring está na facção do conde de Warenne", ou "William de Shiring e seus seguidores são contra o xerife de Lincoln". Se você parecer poderoso, o rei se sentirá à vontade lhe dando mais poder.

      William tinha pouca fé em tamanha sutileza.

      - Acredito que o tamanho do meu exército terá mais importância. - Ele se virou para o alcaide. - Quanto há no meu tesouro, Arthur?

      - Nada, milorde - respondeu Arthur.

      - Que diabo é isso que você está falando? - perguntou William de modo áspero. - Tem que haver alguma coisa. Quanto é?

      Arthur tinha um ar ligeiramente superior, como se não tivesse nada a temer de William.

      - Milorde, não há dinheiro algum no tesouro.

      William teve ímpetos de estrangulá-lo.

      - Isto aqui é o condado de Shiring! - exclamou, alto o bastante para fazer os cavaleiros e os funcionários do castelo sentados mais longe levantarem a cabeça. - Tem que haver dinheiro!

      - O dinheiro entra o tempo todo, milorde, é claro - disse Arthur, maneirosamente. - Mas sai de novo, sobretudo em tempo de guerra.

      William examinou o rosto pálido e barbeado. Arthur era por demais pretensioso. Seria honesto? Não havia como dizer. Gostaria de ter olhos capazes de enxergar o coração de um homem.

      Regan sabia o que o filho estava pensando.

      - Arthur é honesto - disse, sem se importar com a presença do homem ao seu lado. - Está velho, é indolente e teimoso, mas é honesto.

      William ficou desolado. Acabara de se sentar naquela cadeira e seu poder já estava encolhendo, como que por mágica. Sentiu-se amaldiçoado. Parecia haver uma lei dizendo que William seria sempre um menino entre os homens, não importa quão velho ficasse.

      - Como foi que isso aconteceu? - perguntou debilmente.

      - Seu pai esteve doente a maior parte do ano antes de morrer - disse a mãe. - Vi que estava deixando as coisas se descontrolarem, mas não pude fazer com que tomasse uma providência qualquer.

      Era novidade para William que sua mãe não fosse onipotente. Jamais a vira antes incapaz de conduzir os acontecimentos ao seu modo. Virou-se para Arthur:

      - Temos algumas das melhores fazendas do reino aqui. Como podemos estar sem dinheiro?

      - Algumas das fazendas passam por dificuldades, e diversos arrendatários estão em atraso com suas contribuições.

      - Mas por quê?

      - Uma das razões que ouço frequentemente é que os rapazes não querem trabalhar na terra; preferem ir para as cidades.

      - Então temos que detê-los!

      Arthur deu de ombros.

      - Uma vez que um servo tenha vivido numa cidade por um ano, torna-se um homem livre. É a lei.

      - E o que me diz dos rendeiros que não pagaram? O que fez com eles?

      - O que se pode fazer? Tirando seu ganha-pão, jamais serão capazes de pagar. Temos então que ser pacientes, e esperar que uma boa colheita os capacite a pagar o que devem.

      Arthur estava alegre demais com sua incapacidade para resolver qualquer problema, pensou William furioso; porém, conteve a irritação por aquele momento.

      - Bem, se todos os rapazes estão indo para as cidades, o que há com os aluguéis das casas de nossa propriedade em Shiring? Devia entrar algum dinheiro por aí.

      - Pode parecer estranho, mas não tem entrado nada - disse Arthur. - Há muitas casas vazias em Shiring. Os jovens devem estar indo para algum outro lugar.

      - Ou as pessoas estão mentindo para você - disse William.

      - Suponho que vá dizer que a receita do mercado de Shiring e da feira de lã também caiu?

      - Sim...

      - Então por que não aumenta os aluguéis e os impostos?

      - Já aumentamos, milorde, seguindo ordens do seu falecido pai, mas assim mesmo a receita continuou caindo.

      - Com uma propriedade tão improdutiva, como Bartholomew conseguia sobreviver? - exclamou William, exasperado.

      Arthur tinha uma resposta até mesmo para isso.

      - Ele também tinha a pedreira. Gerava uma grande soma de dinheiro, antigamente.

      - E agora está nas mãos daquele maldito monge! - William estava abalado. Justamente quando precisava fazer uma dispendiosa exibição, diziam-lhe que não tinha dinheiro.

      A situação era muito perigosa. O rei apenas lhe concedera a custódia de um condado. Era uma espécie de prova. Se retornasse à corte com um exército diminuto, pareceria ingrato, até mesmo desleal.

      Além disso, o quadro que Arthur pintara não podia ser inteiramente verdadeiro. William tinha certeza de que as pessoas o estavam enganando - e que provavelmente riam às suas costas, também. A ideia o enfureceu. Não iria tolerar aquilo. Mostraria a eles. Haveria sangue derramado antes que aceitasse a derrota.

      - Você tem uma desculpa para tudo - disse a Arthur. – A verdade é que deixou esta propriedade se deteriorar durante a doença do meu pai, quando deveria ter sido mais cuidadoso.

      - Mas, milorde...

      - Cale a boca ou mandarei açoitá-lo - disse William, erguendo a voz.

      Arthur empalideceu e ficou em silêncio.

      - A partir de amanhã - disse William -, vamos percorrer o condado. Visitaremos todas as aldeias de minha propriedade, e vamos sacudi-las. Você pode não saber como lidar com camponeses chorões e mentirosos, mas eu sei. Verificaremos quanto o meu condado está empobrecido. E, se você tiver mentido, juro por Deus que será o primeiro de muitos enforcados.

     

      Juntamente com Arthur, ele levou seu criado Walter, e os outros quatro cavaleiros que haviam combatido com ele no último ano: Gervase Feio, Hugh Machado, Gilbert de Rennes e Miles Dados. Eram todos homens grandes, violentos, que se enfureciam rapidamente e estavam sempre prontos para lutar. Montaram seus melhores cavalos e se armaram até os dentes, para assustar os camponeses. William acreditava que um homem era impotente a menos que o temessem.

      Era um dia quente do final do verão, e o trigo podia ser visto empilhado em feixes volumosos no campo. A abundância daquela riqueza visível enfureceu William mais ainda. Alguém tinha que estar roubando o condado de Shiring. Era preciso que ficassem tão assustados que não se atrevessem a roubá-lo. Sua família ganhara o condado quando Bartholomew caíra em desgraça, e no entanto ele estava sem dinheiro, enquanto o filho de Bartholomew tinha muito! A idéia de que o estivessem roubando e rindo de sua ignorância ingênua assaltou-o como uma dor de estômago, e ele ficou ainda mais furioso à medida que prosseguia a viagem.

      Decidira começar por Northbrook, uma pequena aldeia um tanto afastada do castelo. Os aldeões eram uma mistura de servos com homens livres. Os servos eram propriedade de William, e não podiam fazer nada sem a sua permissão.

       Eles lhe deviam um certo número de dias de trabalho em determinadas épocas do ano, mais uma fração daquilo que colhiam. Os homens livres só lhe pagavam aluguel, em dinheiro ou em espécie. Cinco deles estavam atrasados. William achava que eles pensavam que ficariam impunes, por causa da grande distância do castelo. Talvez fosse um lugar bom para começar a acertar as coisas.

      Era uma longa jornada, e o sol estava alto quando se aproximaram do vilarejo. Havia vinte ou trinta casas cercadas por três campos extensos, todos agora ceifados.

      Perto das casas, na orla de um dos campos, havia um grupo de três grandes carvalhos. Quando William e seus homens se aproximaram, viram que a maioria dos aldeões parecia estar sentada à sombra dos carvalhos, comendo. Esporeou seu cavalo, diminuindo o galope nas últimas centenas de jardas, e os outros o seguiram. Pararam em frente aos aldeões, em meio a uma nuvem de pó.

      Enquanto estes se punham de pé apressadamente, engolindo o pão de massa grossa e tentando impedir que a poeira lhes entrasse nos olhos, o olhar desconfiado de William acompanhou um curioso pequeno drama. Um homem de meia-idade de barba preta falou baixo mas com premência com uma garota de cara vermelha e gorda, que tinha no colo um bebê também gordo e de bochechas vermelhas. Um rapaz juntou-se a eles e foi afastado pelo homem mais velho. Então a garota saiu na direção das casas, aparentemente sob protesto, e desapareceu na poeira. William ficou intrigado. Havia algo de furtivo naquela cena, e ele gostaria que sua mãe estivesse presente para interpretá-la.

      Decidiu nada fazer por ora. Dirigiu-se a Arthur falando alto o bastante para que todos o ouvissem:

      - Cinco dos meus arrendatários livres aqui estão atrasados no pagamento, está correto?

      - Sim, milorde.

      - Quem é o pior?

      - Athelstan não paga há dois anos, mas tem tido muita falta de sorte com seus porcos...

      William falou por cima de Arthur, interrompendo-o.

      - Qual de vocês é Athelstan?

      Um homem alto, de ombros curvados e cerca de quarenta e cinco anos, adiantou-se. Seu cabelo era ralo, e os olhos lacrimosos.

      - Por que você não me paga o aluguel? - indagou William.

      - Milorde, é uma pequena propriedade arrendada, e não tenho ninguém para me ajudar, agora que meus filhos foram trabalhar na cidade, e houve a febre suína...

      - Espere um pouco - interrompeu William. - Para onde seus filhos foram?

      - Para Kingsbridge, lorde, trabalhar na obra da nova catedral, pois querem se casar, como todos os rapazes, e minha terra não dá para sustentar três famílias.

      William guardou num canto da memória, para reflexão futura, a informação de que os rapazes tinham ido trabalhar na Catedral de Kingsbridge.

      - A sua terra é suficiente para sustentar uma família, de qualquer modo, mas ainda assim você não paga o que deve.

      Athelstan começou a falar sobre os porcos de novo. William fixou nele um olhar malévolo, sem ouvir o que falava. Eu sei por que você não pagou, pensou ele; você sabia que o seu lorde estava doente e decidiu enganá-lo enquanto ele era incapaz de fazer valer seus direitos. Os outros quatro delinquentes pensaram da mesma forma.

      Vocês nos roubam quando estamos fracos!

      Por um momento ele se encheu de autocomiseração. Os cinco haviam rido um bocado, exultantes com a sua esperteza, não tinha dúvida. Pois bem, agora aprenderiam sua lição.

      - Gilbert e Hugh - disse serenamente. - Peguem este camponês e o imobilizem.

      Athelstan ainda estava falando. Os dois cavaleiros desmontaram e se aproximaram dele. Sua história de febre suína deu em nada. Os cavaleiros o seguraram pelos braços.

      Ele ficou branco de medo.

      William dirigiu-se a Walter no mesmo tom de voz sereno.

      - Trouxe suas luvas de cota de malha?

      - Sim, milorde.

      - Calce-as. Dê uma lição em Athelstan. Mas assegure-se de que ele viva, para espalhar a notícia.

      - Sim, milorde. - Walter apanhou no alforje um par de manoplas de couro com uma fina malha de ferro costurada nos nós e na parte de trás dos dedos. Calçou-as lentamente.

      Todos os aldeões assistiam, aterrorizados, e Athelstan começou a gemer de medo.

      Walter desmontou, aproximou-se do camponês e deu-lhe um soco no estômago com punho de ferro. O barulho foi incrivelmente alto. Athelstan dobrou-se ao meio, tão sem ar que não pôde gritar. Gilbert e Hugh o puseram na vertical, e Walter acertou-lhe o rosto.

      O sangue jorrou da sua boca e do nariz. Um dos observadores, uma mulher, que presumivelmente era sua esposa, pulou em cima de Walter, gritando:

      - Pare! Deixe-o! Não o mate!

      Walter empurrou-a para longe, e duas outras mulheres a agarraram e puxaram para trás. Ela continuou a lutar e a gritar. Os outros camponeses observaram em silêncio revoltado Walter surrar Athelstan sistematicamente até que seu corpo arriou, o rosto coberto de sangue e os olhos fechados, inconscientes.

      - Soltem-no - disse William por fim.

      Gilbert e Hugh o largaram. Ele caiu no chão e ficou imóvel. As mulheres soltaram a esposa dele, e ela correu, soluçando, indo ajoelhar-se ao seu lado. Walter tirou as manoplas e limpou o sangue e os pedaços de carne que tinham ficado presos na malha.

      William já perdera o interesse em Athelstan. Correndo os olhos pela aldeia, viu uma estrutura de madeira que parecia nova, com dois andares, erguida às margens de um regato. Apontou para ela e perguntou a Arthur:

      - O que é aquilo?

      - Ainda não tinha visto, milorde - respondeu Arthur, nervosamente.

      William achou que ele estava mentindo.

      - É um moinho d'água, não é?

      Arthur deu de ombros, mas sua indiferença não foi convincente.

      - Não posso imaginar o que mais poderia ser, estando ali na margem do riacho.

      Como podia ser tão insolente, quando acabara de ver um camponês ser espancado quase até a morte por sua ordem? Quase em desespero, William perguntou:

      - Os meus servos podem construir moinhos sem a minha permissão?

      - Não, milorde.

      - Sabe por que isso é proibido?

      - Para que eles tenham que levar seu cereal aos moinhos do lorde e paguem pela moagem.

      - E com isso o lorde lucra.

      - Sim, milorde. - Arthur falou no tom condescendente de quem explica alguma coisa elementar a uma criança. - Mas se pagarem uma multa pela construção do moinho, o lorde lucrara do mesmo modo.

      William achou seu tom de voz exasperador.

      - Não, ele não lucrará a mesma coisa. A multa nunca representa o mesmo que os camponeses teriam que pagar de outro modo. É por isso que eles adoram construir moinhos. E é por isso que meu pai nunca lhes concedeu permissão. - Sem dar a Arthur uma chance para replicar, William esporeou o cavalo e foi até o moinho. Seus cavaleiros o seguiram, e os aldeões vieram atrás, um bando esfarrapado.

      William desmontou. Não havia dúvida do que era a construção. Uma grande roda de moinho girava sob a pressão da rápida correnteza do riacho. A roda acionava um eixo que atravessava a parede lateral do moinho. Era uma sólida construção de madeira, feita para durar. Quem quer que a tivesse levantado, esperava claramente ser livre para usá-la por muitos anos.

      O moleiro ficou parado do lado de fora da porta aberta, exibindo uma expressão ensaiada de inocência ofendida. No aposento às suas costas havia sacos de grão em pilhas bem arrumadas. O moleiro fez uma reverência polida, mas não haveria um quê de escárnio no seu olhar? Mais uma vez William teve a penosa sensação de que aquela gente pensava que ele era um joão-ninguém, e sua incapacidade de impor sua vontade fazia com que se sentisse impotente. A indignação e a frustração o dominaram e ele gritou com o moleiro furiosamente:

      - O que o fez pensar que conseguiria sair impune com isso? Imagina que sou estúpido? É isso? É isso o que pensa? Nesse momento ele deu um soco na cara do homem.

      O moleiro deu um grito exagerado de dor e caiu no chão desnecessariamente.

      William passou por cima dele e entrou. O eixo da roda do moinho estava ligado, por um conjunto de engrenagens de madeira, ao eixo da pedra do moinho no andar de cima. O grão moído caía por uma calha na eira, no nível do solo. O segundo andar, que tinha que sustentar o peso da pedra de amolar, era escorado por quatro vigas grossas (tiradas da floresta de William sem permissão, indubitavelmente). Se as vigas fossem cortadas, toda a construção desmoronaria.

      William saiu. Hugh carregava a arma que lhe dera o nome, amarrada na sela.

      - Dê-me seu machado de batalha - disse William. O cavaleiro obedeceu. William entrou de novo e começou a dar machadadas nas vigas que sustentavam o andar de cima.

      Deu-lhe grande satisfação ouvir o barulho surdo da lâmina do machado batendo na construção que os camponeses tinham levantado tão cuidadosamente, na sua tentativa de fraudá-lo, não pagando as taxas de moagem. Não estão rindo de mim agora, pensou, furioso.

      Walter entrou e ficou olhando. O lorde abriu uma incisão profunda em um dos suportes e partiu para outro. A plataforma acima, que sustentava o peso enorme da pedra do moinho, começou a tremer.

      - Arranje uma corda - disse William. Walter saiu.

      O lorde cortou mais duas vigas tão profundamente quanto se atreveu. A construção estava pronta para ruir. Walter voltou com um pedaço de corda. William amarrou a corda a uma das vigas e carregou a outra ponta para fora, atando-a ao pescoço do seu cavalo de batalha.

      Os camponeses assistiram a tudo em taciturno silêncio.

      - Onde está o moleiro? - perguntou William, quando a corda foi amarrada.

      O moleiro se aproximou, ainda tentando parecer uma pessoa que estava sendo tratada injustamente.

      - Gervase - disse William -, amarre-o e coloque-o lá dentro.

      O moleiro tentou fugir, mas Gilbert o derrubou e se sentou em cima dele; Gervase amarrou-lhe as mãos e os pés com tiras de couro. Os dois cavaleiros o levantaram.

      Ele começou a lutar e a suplicar misericórdia.

      - Você não pode fazer isto - disse um dos aldeões, destacando-se da multidão. - É assassinato. Nem mesmo um lorde pode cometer assassinatos.

      William apontou um dedo trêmulo para ele.

      - Se você abrir de novo a boca eu o porei lá dentro com ele. Por um momento o homem pareceu disposto a continuar desafiando William; depois pensou melhor e desistiu, afastando-se.

      Os cavaleiros saíram do moinho. William fez seu cavalo adiantar-se até esticar a corda. Bateu na garupa do animal e ele começou a puxar.

      Dentro do moinho, o moleiro começou a gritar. O barulho era pavoroso, de um homem tomado por terror mortal, um homem que sabia que dentro de momentos seria esmagado até morrer.

      O cavalo balançou a cabeça, tentando afrouxar a corda passada no seu pescoço. William gritou e bateu na sua garupa para obrigá-lo a puxar, depois gritou com os cavaleiros:

      - Puxem a corda, homens!

      Os quatro agarraram a corda e puxaram juntamente com o cavalo. Os aldeões gritaram, protestando, mas estavam por demais apavorados para interferir. Arthur ficou de lado, parecendo nauseado.

      Os gritos do moleiro ficaram mais agudos. William imaginou o terror cego que devia estar se apoderando do homem enquanto aguardava sua morte horrorosa. Nenhum daqueles camponeses jamais se esquecerá da vingança dos Hamleighs, pensou.

      A viga rangeu ruidosamente; em seguida houve um forte estalo quando quebrou. O cavalo deu um pulo para a frente e os cavaleiros largaram a corda. Um canto do telhado cedeu. As mulheres começaram a gemer. As paredes de madeira do moinho pareceram estremecer; os gritos do moleiro ficaram mais altos; houve um estrondo violento quando o andar de cima cedeu; e os gritos cessaram abruptamente quando a pedra caiu no andar térreo. As paredes se estilhaçaram, o telhado desabou e, num instante, o moinho não passava de uma pilha de lenha com um homem morto embaixo.

      William começou a sentir-se melhor.

      Alguns aldeões correram e começaram a cavar freneticamente por entre os escombros. Se esperavam encontrar o moleiro vivo, ficariam desapontados. Seu corpo seria uma visão medonha. Tanto melhor.

      Olhando em torno, William localizou a garota de rosto vermelho com o bebê de rosto também vermelho, bem atrás da multidão, como se tentasse passar despercebida.

      Lembrou-se de como o homem da barba escura - presumivelmente seu pai insistira para que se mantivesse escondida. Decidiu resolver aquele mistério antes de deixar o vilarejo. Seu olhar encontrou o dela, e fez um sinal para que se aproximasse. Ela olhou para trás, na esperança de que William estivesse indicando outra pessoa.

      - Você - confirmou William. - Venha cá.

      O homem de barba preta a viu e deixou escapar um grunhido de exasperação.

      - Quem é o seu marido, garota? - perguntou William.

      - Ela não tem...  - começou o pai.

      Era tarde demais, contudo, pois a garota respondeu:

      - Edmund.

      - Então você é casada. Mas quem é o seu pai?

      - Sou eu - disse o homem da barba preta. - Theobald.

      William virou-se para Arthur.

      - Theobald é um homem livre?

      - É um servo, lorde.

      - E quando a filha de um servo se casa, o lorde não tem o direito, como seu dono, de desfrutá-la na noite de núpcias?

      Arthur ficou chocado.

      - Milorde! Esse costume primitivo não tem sido obedecido nesta parte do mundo há tanto tempo que não há lembrança de quando era!

      - É verdade - concordou William. - Em vez disso, o pai paga uma multa. Quanto foi que Theobald pagou?

      - Ele ainda não pagou, milorde, mas. ..

      - Não pagou! E ela com um filho gordo de cara vermelha!

      - Nunca tivemos o dinheiro - disse Theobald -, e ela ficou grávida de Edmund e quis se casar, mas agora podemos pagar, pois a safra já foi colhida.

      William sorriu para a garota.

      - Deixe-me ver o bebê.

      Ela o encarou medrosamente.

      - Venha. Dê-me a criança.

      Ela estava com medo, mas não foi capaz de resistir. William adiantou-se e pegou a criança delicadamente. Os olhos da mulher encheram-se de terror, mas ela não foi capaz de fazer nada.

      O bebê começou a gritar. William segurou-o por um momento, depois o agarrou pelos tornozelos com uma das mãos e, com um movimento rápido, atirou-o no ar, o mais alto que pôde.

      A mãe berrou como uma alma do outro mundo anunciando uma morte e ficou olhando para cima, vendo o bebê voar para o alto.

      O pai correu com os braços estendidos para pegá-lo quando caísse.

      Enquanto a garota olhava o que acontecia com seu filho e gritava, William agarrou um pedaço do seu vestido e o rasgou. Seu corpo era redondo, cor-de-rosa.

      O pai pegou o bebê em segurança.

      A garota virou-se para correr, mas William pegou-a e atirou-a ao chão.

      Edmund entregou o bebê a uma mulher e virou-se para encarar William.

      – Como não me foi dado o devido na noite de núpcias, e a multa não foi paga, tomarei o que me é devido agora.

      O pai correu para cima dele.

      William desembainhou a espada.

      O pai se deteve.

      O lorde olhou para a garota, caída no chão, tentando cobrir a nudez com as mãos. O medo dela o excitou.

      - E quando eu tiver acabado, meus cavaleiros a possuirão também - disse, com um sorriso satisfeito.

     

      Em três anos Kingsbridge mudara ao ponto de não poder ser reconhecida.

      William não ia lá desde o domingo de Pentecostes, quando Philip e seu exército de voluntários frustraram o esquema de Waleran Bigod. Havia então umas quarenta ou cinquenta casas de madeira agrupadas em torno do portão do priorado e espalhadas ao longo da trilha lamacenta que levava à ponte. Agora, ele podia ver, ao se aproximar da aldeia atravessando os campos ondulados, que havia um número de casas três vezes maior, no mínimo. Formavam uma orla marrom à volta do muro cinzento de pedra, e enchiam por completo o espaço entre o priorado e o rio. Diversas casas pareciam grandes. No interior do adro havia novas construções de pedra, e as paredes da igreja pareciam estar subindo depressa. Havia dois novos embarcadouros na margem do rio. Kingsbridge tornara-se uma cidade.

      A aparência do lugar confirmou uma suspeita que viera aumentando na sua cabeça desde que voltara da guerra. Ao percorrer o condado, cobrando aluguéis em atraso e aterrorizando servos desobedientes, sempre ouvia falar em Kingsbridge. Rapazes sem terra iam para lá, a fim de trabalhar; famílias prósperas mandavam os filhos estudarem na escola do priorado; pequenos arrendatários vendiam ovos e queijos aos homens que trabalhavam no canteiro da obra; e todos que podiam iam lá nos dias santos, muito embora não houvesse uma catedral. Aquele era um dia santo - dia de São Miguel, que, naquele ano, caíra num domingo. Era uma manhã de início de outono, com uma temperatura agradável para viajar, de modo que devia encontrar uma boa multidão. William esperava descobrir o que atraía toda aquela gente a Kingsbridge.

      Seus cinco sequazes o acompanhavam. Tinham feito um excelente trabalho nas aldeias. A notícia da viagem de William pelo condado espalhou-se com fantástica rapidez, e depois dos primeiros dias, todos sabiam o que esperar. Quando o lorde se aproximava mandavam as crianças e as mulheres novas se esconderem nos bosques. Agradava a William causar medo no coração daquela gente. Sem dúvida nenhuma agora sabiam quem estava no comando!

      Quando o grupo se aproximou de Kingsbridge, ele esporeou o cavalo, passando para um trote, e os outros o imitaram. Chegar numa andadura mais rápida era sempre mais impressionante. As pessoas se encolhiam do lado da estrada ou pulavam no mato, para sair da frente dos enormes cavalos.

      Atravessaram ruidosamente a ponte de madeira, ignorando o posto de pedágio mas a rua estreita adiante deles estava bloqueada por uma carroça carregada de barris de cal e puxada por uma parelha de bois enormes e lentos; os cavalos foram forçados a reduzir a marcha de maneira abrupta.

      William olhou em torno enquanto subiam a elevação atrás do carro de boi. Casas novas, construídas apressadamente, enchiam os espaços entre as antigas. Notou uma locanda, uma cervejaria, um ferreiro e um fabricante de calçados. O ar de prosperidade era inconfundível. William sentiu inveja.

      Não havia muita gente na rua, contudo. Talvez todos estivessem no priorado.

      Com os cavaleiros à sua retaguarda, ele seguiu o carro de boi quando passou pelo portão do priorado. Não era o tipo de entrada que preferia, e sentiu uma pontada de ansiedade, com medo de que notassem sua presença e rissem dele, mas por sorte ninguém sequer olhou.

      Por contraste com a cidade deserta do lado de fora das muralhas, o adro fervilhava de atividade.

      William sofreou sua montaria e deu uma olhada em torno, tentando registrar tudo. Havia tanta gente, e tanta coisa estava acontecendo, que a princípio achou tudo aquilo estonteante. Depois a cena pôde ser classificada em três seções.

      Bem perto dele, na extremidade oeste do adro, havia um mercado. As bancas eram dispostas em fileiras no sentido norte-sul, e centenas de pessoas circulavam por entre elas, comprando comida e bebida, chapéus e sapatos, facas, cintos, patinhos, cachorrinhos, panelas, brincos, lã, linha, corda, e dúzias de outras necessidades e luxos. Não havia dúvida de que o mercado era muito próspero, e o dinheiro que trocava de mãos ali devia constituir uma grande soma.

      Não era de admirar, pensou William amarguradamente, que o mercado de Shiring estivesse em declínio, quando havia uma alternativa florescente ali em Kingsbridge.

      Os aluguéis das bancas, o pedágio cobrado dos fornecedores e os impostos sobre as vendas deviam estar enchendo as burras do priorado de Kingsbridge.

      Mas um mercado precisava de uma licença do rei, e William tinha certeza de que o prior Philip não possuía essa licença. Provavelmente planejava requerê-la assim que fosse apanhado, como o moleiro de Northbrook. Lamentavelmente não seria tão fácil para William dar-lhe uma lição, como acontecera com o moleiro.

      Após o mercado havia uma zona de tranquilidade. Do lado do claustro, onde era antes a ínterseção da nave com os transeptos da igreja velha, havia um altar sob um dossel, com um monge de cabelos brancos em frente, lendo qualquer coisa que estava num livro. Do lado mais distante do altar, monges dispostos em fileiras precisas cantavam hinos, embora a distância seu canto desaparecesse com o barulho do mercado. A congregação era pequena; com certeza eram as nonas, um culto que só dizia respeito aos monges, pensou William; todo o trabalho e as vendas no mercado seriam interrompidos pelo culto principal de São Miguel, claro.

      Na ponta mais longíqua do adro, a extremidade leste da catedral estava sendo construída. Era ali que o prior Philip gastava o lucro imerecido que tinha com o mercado, pensou William, amargurado. As paredes estavam com trinta ou quarenta pés de altura, e já era possível ver o contorno das janelas e dos arcos. Trabalhadores fervilhavam por toda parte. William estranhou a aparência deles, e após um momento se deu conta de que era a roupa colorida. Não eram trabalhadores regulares, claro o efetivo que trabalhava por dinheiro certamente estaria de folga. Eram voluntários.

      Não esperava que houvesse tantos. Centenas de homens e mulheres carregavam pedras e madeira, rolavam barris e empurravam carroças de areia da margem do rio, todos trabalhando por nada, a não ser a remissão dos pecados.

      O astuto prior tinha um esquema tão astuto quanto ele, observou William invejosamente. As pessoas que vinham trabalhar na catedral gastavam dinheiro no mercado.

      As pessoas que iam ao mercado davam algumas horas de trabalho à catedral, pelos seus pecados. Uma mão lavava a outra.

      Esporeou o cavalo e atravessou o cemitério, curioso para ver mais de perto o canteiro da obra.

      Os oito maciços pilares da arcada situavam-se de ambos os lados, em quatro pares opostos. A distância, William pensara ter visto os arcos redondos unindo uma pilastra com a seguinte, mas agora percebia que ainda não haviam sido construídos - o que vira eram moldes de madeira, feitos com a mesma forma, sobre os quais as pedras descansariam enquanto os arcos eram edificados e a massa secava. O molde não se apoiava no solo, e sim nos capitéis.

      Paralelas às arcadas, erguiam-se as paredes externas, com espaços regulares para as janelas. A meio caminho entre a abertura de cada uma, um arcobotante projetava-se da linha da parede. Olhando as extremidades abertas das paredes inacabadas, William pôde ver que não eram de pedra sólida; na verdade eram paredes duplas, com um espaço no meio. A cavidade parecia ter sido enchida com fragmentos de pedras e massa.

      O andaime era feito de sólidas vigas amarradas por cordas, com cavaletes de arbusto flexíveis e caniços entrelaçados por entre elas.

      Muito dinheiro tinha sido gasto ali, observou William.

      Contornou a parte externa do coro, seguido por seus cavaleiros. De encontro às paredes havia galpões de meia-água, que serviam como oficinas e depósitos para os artesãos. A maioria estava trancada, pois naquele dia não havia pedreiros assentando pedras ou carpinteiros fazendo formas - eles estavam dirigindo o trabalho dos voluntários, dizendo onde empilhar as pedras, a madeira, a areia e a cal que traziam da margem do rio.

      William contornou a extremidade leste da igreja seguindo para o lado sul, onde seu caminho foi bloqueado pelas construções monásticas. Voltou então, maravilhado com a esperteza do prior Philip, que tinha seus mestres artesãos ocupados num domingo e os operários trabalhando de graça.

      Ao refletir no que estava vendo, pareceu-lhe devastadoramente claro que o prior Philip era o grande responsável pelo declínio do condado de Shiring. As fazendas estavam perdendo seus braços jovens para a obra da catedral nova, e Shiring a pérola do condado - começava a ser eclipsada pela crescente e nova cidade de Kingsbridge.

      Os residentes ali pagavam o aluguel a Philip e não a William, e as pessoas que compravam e vendiam bens naquele mercado geravam renda para o priorado, e não para o condado.

      E Philip tinha a madeira, os pastos de carneiros e a pedreira que antes enriqueciam o conde.

      William e seus homens atravessaram o adro de volta na direção do mercado. Decidiu olhar mais de perto. Meteu o cavalo no meio da multidão. O cavalo avançou com dificuldade. As pessoas não se espalhavam apavoradas, saindo do caminho. Quando o animal encostava nelas, olhavam para William com irritação e aborrecimento, em vez de medo, e saíam da frente quando bem entendiam, com uma expressão condescendente. Ninguém ali tinha medo dele. E isso o deixou nervoso. Se as pessoas não tinham medo, era impossível dizer o que seriam capazes de fazer.

      Desceu por uma passagem e subiu pela seguinte, com os cavaleiros à retaguarda. Ficou frustrado com o movimento vagaroso da multidão. Haveria sido mais rápido caminhar; mas então, tinha certeza, aquela insubordinada gente de Kingsbridge provavelmente seria atrevida o bastante para empurrá-lo.

      Percorrera a metade do caminho de volta quando viu Aliena.

      Deteve o cavalo de súbito e olhou-a fixamente, imóvel.

      Não era mais a garota magra, tensa e assustada, calçando tamancos, que vira num domingo de Pentecostes, três anos antes. Seu rosto, desfigurado naquele tempo pela tensão, ficara cheio de novo, e a aparência dela era feliz e saudável. Seus olhos escuros brilhavam de alegria, e os cachos balançavam em torno do seu rosto quando sacudia a cabeça.

      Estava tão bonita que William sentiu uma vertigem de desejo.

      Vestia um manto vermelho, ricamente bordado, e suas mãos expressivas cintilavam com vários anéis. Havia uma mulher mais velha com ela, um pouco para o lado, como uma criada. "Muito dinheiro", dissera sua mãe; tinha sido assim que Richard conseguira tornar-se escudeiro e integrar o exército do rei Estêvão equipado com boas armas. Maldita. Fora deixada sem dinheiro, impotente, desvalida - como conseguira enriquecer?

      Ela estava numa banca que vendia agulhas de osso, linha de seda, dedais de madeira e outros artigos de costura, e discutia animadamente com o judeu baixinho e de cabelos escuros que os vendia. Sua atitude era positiva, e ela estava relaxada e autoconfiante. Havia recuperado a pose que tinha como filha do conde.

      Parecia-mais velha. Estava mais velha, claro: se William tinha vinte e quatro anos, ela devia ter agora vinte e um. Mas parecia ser mais velha. Não havia mais nada de criança em Aliena. Era uma mulher madura.

      Ela ergueu a cabeça e encontrou seu olhar.

      Da última vez em que a encarara, ficara ruborizada de vergonha e fugira. Dessa vez sustentou sua posição e o encarou.

      Ele tentou um sorriso elegante.

      Uma expressão de cáustico desprezo surgiu no rosto dela.

      William sentiu que ruborizava. Aliena ainda era arrogante como sempre fora, e o menosprezava tal como cinco anos antes. Ele a humilhara e a estuprara, mas ela não tinha mais medo dele. Teve vontade de lhe falar e dizer que poderia fazer de novo tudo o que fizera antes, mas não estava disposto a gritar isso por cima da multidão de cabeças. O olhar firme de Aliena o fez sentir-se pequeno. Tentou sorrir com uma expressão escarninha, mas não conseguiu, e não teve dúvida de que estava fazendo uma careta ridícula. Na agonia do embaraço que sentiu, virou-se e esporeou o cavalo; mesmo assim, a multidão o reteve, e o olhar fulminante de Aliena ficou queimando um ponto da sua nuca enquanto se afastava poucas e penosas polegadas.

      Quando por fim emergiu do mercado, defrontou-se com o prior Philip.

      O galês de baixa estatura estava com as mãos nas cadeiras e o queixo projetado de maneira agressiva para a frente. Não era mais tão magro como antes, e o pouco cabelo que tinha estava ficando prematuramente grisalho. Também não parecia mais tão jovem para o cargo. Seus olhos azuis faiscavam de raiva.

      - Lorde William! - exclamou em tom desafiador. William obrigou-se a esquecer Aliena e lembrou que tinha uma acusação a fazer contra Philip.

      - Que bom encontrá-lo aqui, prior!

      - O mesmo digo eu - disse Philip, irritado; porém a sombra de uma dúvida cruzou-lhe a fisionomia.

      - Estou vendo que tem um mercado aqui - disse William acusadoramente.

      - E daí?

      - Não creio que o rei Estêvão jamais tenha licenciado um mercado em Kingsbridge, nem tampouco qualquer outro rei, que seja do meu conhecimento.

      - Como se atreve? - disse Philip.

      - Eu ou qualquer pessoa...

      - Você! - gritou Philip, mais alto do que ele. - Como se atreve a vir aqui falar em licença? Você, que no mês passado atravessou este condado incendiando, roubando, estuprando e cometendo pelo menos um assassinato!

      - Isso não tem nada a ver...

      - Como se atreve a entrar num mosteiro e falar de licença? -  gritou Philip. Adiantou-se, sacudindo um dedo para William, e o seu cavalo andou de lado, nervosamente. A voz do prior era mais aguda que a de William, que não conseguia fazer ouvir uma só palavra. Bandos de monges, trabalhadores voluntários e fregueses do mercado começaram a se juntar, assistindo à briga. Nada era capaz de deter Philip. - Depois do que fez, só há uma coisa que deveria dizer: "Padre, pequei!" Devia ajoelhar-se neste priorado! Devia implorar perdão para os seus pecados, se é que quer escapar das chamas do inferno!

      William ficou lívido. Mencionar o inferno o enchia de terror incontrolável. Tentou desesperadamente interromper a torrente de palavras de Philip, dizendo:

      - E o seu mercado? E o seu mercado?

      O prior mal o ouvia, tomado por um acesso de fúria.

      - Implore perdão pelas coisas horríveis que fez! - gritou. - De joelhos! De joelhos, se não quiser arder no inferno!

      William estava tão assustado que quase acreditou que iria mesmo para o inferno se não se ajoelhasse e rezasse na frente de Philip ali mesmo. Sabia que já devia ter se confessado, pois matara muita gente na guerra, para não falar nos pecados que cometera durante a inspeção do condado. E se ele morresse antes de se confessar?

      Começou a se sentir muito inseguro ao pensar nas chamas eternas e nos demônios com suas facas amoladas.

      - De joelhos! - gritou Philip, apontando o dedo e avançando sobre ele.

      O lorde fez o cavalo recuar. Olhou à sua volta desesperadamente. A multidão o cercou. Seus cavaleiros estavam atrás dele, parecendo achar graça: não podiam decidir como lidar com uma ameaça espiritual vinda de um monge desarmado. William não podia mais aguentar tanta humilhação. Depois de Aliena, aquilo era demais. Sofreou as rédeas, fazendo o imponente cavalo de batalha recuar. A multidão afastou-se ante seus cascos poderosos. Quando as patas dianteiras tocaram no chão de novo, William esporeou o animal com força e ele deu um pulo para a frente. Os observadores se dispersaram. Repetiu a dose e o cavalo rompeu num pequeno galope. Ardendo de vergonha, fugiu rapidamente pelo portão do priorado, seguido pelos cavaleiros, como um bando de cachorros, rosnando mas perseguidos por uma velha com uma vassoura.

     

      William confessou os pecados, apavorado e trêmulo, sobre o chão de pedra fria da capelinha do pulado do bispo. Waleran escutou em silêncio, o rosto numa máscara de aversão, enquanto o lorde desafiava a lista das mortes, surras e estupros de que era culpado. Mesmo enquanto se confessava, William sentia ódio do arrogante bispo, com suas mãos brancas e limpas entrelaçadas sobre o coração e as translúcidas narinas também muito brancas ligeiramente abertas, como se sentisse mau cheiro no ar poeirento. Afligía-o pedir a Waleran sua absolvição, mas os pecados que cometera eram tão graves que nenhum padre comum poderia perdoá-los. Assim ele se ajoelhou, tomado de medo, e Waleran mandou que acendesse uma vela perpetuamente na capela de Earlscastíe, e disse que seus pecados estavam perdoados. O medo foi desaparecendo lentamente, como neblina. Saíram da capela para a enfumaçada atmosfera do salão grande e se sentaram junto ao fogo. O outono estava se transformando em inverno e fazia frio na grande casa de pedra. Um ajudante de cozinha trouxe pão quente temperado, feito com mel e gengibre. William começou a se sentir bem, por fim. Então se lembrou dos seus outros problemas. O filho de Bartholomew, Richard, estava pleiteando o condado, e William, com pouco dinheiro, não tinha como organizar um exército grande o bastante para impressionar o rei. Conseguira recolher uma quantia considerável no mês anterior, mas ainda não era suficiente.

      - Aquele maldito monge está sugando o sangue do condado de Shiring - disse, suspirando.

      Waleran pegou um pedaço de pão com a mão pálida, de dedos compridos, que lembrava uma garra.

      – Eu estava me perguntando quanto tempo você levaria para chegar a essa conclusão.

      Claro que o bispo teria resolvido o problema muito antes de William. Ele era tão superior!... O lorde preferia não ter que lhe falar, mas queria a opinião do bispo sobre um ponto legal.

      - O rei já licenciou algum mercado em Kingsbridge?

      - Que eu saiba, não.

      - Então Philip está contrariando a lei.

      - Sem garantir que seja uma coisa importante, está.

      Waleran parecia desinteressado, mas William insistiu.

      - Ele devia ser detido.

      O bispo deu um sorriso de superioridade.

      - Você não pode lidar com ele do mesmo modo como lida com um servo que casou a filha sem sua permissão.

      William ficou vermelho: ele se referia a um dos pecados que acabara de confessar.

      - Como se pode lidar com ele, então?

      Waleran pensou um pouco.

      - Mercados são uma prerrogativa do rei. Em tempos mais pacíficos ele provavelmente cuidaria disso em pessoa.

      O sorriso do lorde foi escarninho. Apesar de toda a sua esperteza, o bispo não conhecia o rei tão bem quanto ele.

      - Nem mesmo em tempos de paz o rei me agradeceria por me queixar de um mercado sem licença.

      - Bem, então o seu representante, para tratar dos problemas locais, é o xerife de Shiring.

      - O que ele pode fazer?

      - Pode apresentar um mandado contra o priorado no tribunal do condado.

      William sacudiu a cabeça.

      - Isso é a última coisa que quero. O tribunal imporia uma multa, e o mercado continuaria. Seria quase o mesmo que conceder uma licença.

      - O problema é que, na verdade, não há motivo para não deixar que Kingsbridge tenha um mercado.

      - Há, sim! - exclamou o lorde, indignado. - Rouba os negócios do mercado de Shiring.

      - Shiring fica a um dia inteiro de viagem de Kinsgbridge.

      - As pessoas andarão essa distância.

      O bispo deu de ombros novamente. William percebeu que ele fazia esse gesto quando discordava.

      - A tradição - disse Waleran - afirma que um homem gasta um terço do dia andando até o mercado, um terço do dia no mercado e um terço andando de volta para casa. Assim sendo, um mercado serve para as pessoas que estão a uma distância de um terço de dia de viagem, ou seja, cerca de sete milhas. Se dois mercados se encontram separados mais de catorze milhas, suas áreas de influência não se sobrepõem. Shiring fica a vinte milhas de Kingsbridge. De acordo com a regra, Kingsbridge tem direito a um mercado, e o rei deverá conceder sua permissão.

      - O rei faz o que bem entender - esbravejou William, mas estava preocupado. Não conhecia aquela regra. Ela deixava o prior Philip numa posição mais forte.

      - De qualquer forma - disse o bispo -, não estaremos tratando com o rei, e sim com o xerife. - Ele fechou a cara.

      - O xerife poderia simplesmente ordenar que o priorado desistisse de manter um mercado sem licença.

      - Seria perda de tempo - disse o lorde desdenhosamente.

      - Quem dá atenção a uma ordem que não seja reforçada por uma ameaça?

      - Philip poderia dar.

      William não acreditou.

      - Por que haveria ele de atender a uma ordem dessas?

      Um sorriso zombeteiro brincou nos lábios descorados de Waleran.

      - Não sei se sou capaz de lhe explicar - disse. - Philip acredita que a lei deve reinar.

      - Uma ideia estúpida - comentou William. - Quem reina é o rei.

      - Eu disse que você não entenderia.

      Seu ar de sapiência enfureceu William, que se levantou e foi até a janela. Podia ver do lado de fora, no topo da elevação vizinha, o movimento de terra no lugar onde Waleran começara a construir seu castelo quatro anos antes. O bispo esperara pagá-lo com a receita do condado de Shiring. Philip frustrara os planos dele, e o capim crescera em cima dos montes de terra e espinheiros enchiam a vala seca. William lembrou que Waleran tivera esperanças de usar na construção a pedra a ser retirada do condado. Agora Philip tinha a pedreira.

      - Se eu recuperasse minha pedreira - disse William, pensativo, poderia usá-la como garantia e levantar o dinheiro necessário para armar um exército.

      - Então por que não a toma de volta? - perguntou Waleran.

      O lorde sacudiu a cabeça.

      - Já tentei.

      - E Philip manobrou de modo a passá-lo para trás. Mas não há monges lá agora. Você poderia mandar uma esquadra de homens para despejar os operários.

      - E como impediria Philip de voltar, como da última vez?

      - Construa uma cerca alta em torno da pedreira e deixe uma guarda permanente.

      Era possível, pensou William, animado. E resolveria seu problema de um golpe. Mas qual seria o motivo pelo qual o bispo sugeria aquilo? Sua mãe o advertira para ter cuidado com aquele homem inescrupuloso. "A única coisa que você precisa saber sobre Waleran Bigod", disse ela, "é que tudo o que faz é cuidadosamente calculado. Nada espontâneo, nada descuidado, nada casual, nada supérfluo. Acima de tudo, nada generoso." Mas Waleran odiava Philip, e tinha jurado impedi-lo de construir a catedral. Era motivo suficiente.

      William olhou-o pensativamente. A carreira dele estava estagnada. Fora nomeado bispo muito jovem, mas Kingsbridge era uma diocese insignificante e pobre, e Waleran certamente tencionara transformá-la num degrau para maiores conquistas. No entanto, era o prior e não o bispo quem estava ganhando fortuna e fama. Estava definhando à sombra de Philip tanto quanto William. Ambos tinham motivo para querer destruí-lo.

      O lorde decidiu, ainda uma vez, vencer a aversão que sentia por Waleran em benefício de seus interesses de longo prazo.

      - Muito bem - disse. - Pode ser que funcione. Mas suponha que Philip se queixe ao rei?

      - Você dirá que agiu assim em represália ao mercado sem licença de Philip - sugeriu Waleran.

      - Qualquer desculpa serve, desde que eu volte para a guerra com um exército suficientemente grande.

      Os olhos de Waleran faiscaram de maldade.

      - Tenho a impressão de que Philip não poderá construir a catedral se tiver que comprar pedra a preços de mercado. E se ele parar a obra, Kingsbridge entrará em declínio. Isso poderá resolver todos os seus problemas, William.

      Hamleigh não ia mostrar gratidão.

      - Você realmente odeia Philip, não é?

      - Ele está no meu caminho - disse Waleran, mas por um momento William vislumbrou toda a crueldade existente por baixo dos modos frios e calculistas do bispo.

      O lorde voltou a tratar de assuntos práticos.

      - Deve haver uns trinta operários lá, alguns com mulheres e filhos - disse.

      - E daí?

      - Pode haver derramamento de sangue.

      O bispo levantou as sobrancelhas negras.

      - É mesmo? Então lhe darei a absolvição.

     

      Quando saíram ainda estava escuro, a fim de chegarem ao raiar do dia. Carregavam archotes acesos, o que deixava os cavalos nervosos.

      Além de Walter e dos outros quatro cavaleiros, William levou seis homens de armas. À retaguarda seguiam doze camponeses que cavariam a trincheira e construiriam a cerca.

      William acreditava firmemente em planejamento militar cuidadoso - motivo pelo qual ele e seus homens eram tão úteis ao rei Estêvão -, mas naquela oportunidade não tinha um plano de batalha. Era uma operação tão fácil que seria aviltante fazer preparativos como se fosse um combate de verdade. Uns poucos operários cortadores de pedra e suas famílias não poderiam apresentar oposição muito forte; e, de qualquer maneira, William lembrava que tinham lhe contado que o líder deles, o nome era Otto? Sim, Otto Cara Preta - se recusara a lutar, no primeiro dia em que Tom Construtor levara seus homens à pedreira.

      Raiou um dia frio de dezembro, com trapos e frangalhos de neblina parecendo pender das árvores, como roupa lavada de gente pobre. William não gostava daquela época do ano. Era frio de manhã e escurecia cedo; além disso o castelo estava sempre úmido. Era servida uma quantidade excessiva de carne e peixe salgados. Sua mãe ficava irritadiça, e os criados, mal-humorados. Seus cavaleiros brigavam a toda hora. Aquele pequeno combate faria bem a eles. Seria bom também para os Hamleighs: William já arranjara um empréstimo de duzentas libras com os judeus de Londres dando a pedreira como garantia. Ao fim daquele dia o seu futuro estaria assegurado.

      Quando estavam a uma milha da pedreira, William parou, escolheu dois homens e mandou-os à frente, a pé.

      - Pode ser que haja uma sentinela, ou cachorros - advertiu. - Tenham um arco à mão, com uma flecha pronta para ser disparada.

      Um pouco depois a estrada fazia uma curva para a esquerda, e terminava de repente junto a um morro mutilado. Era a pedreira. Tudo estava quieto. Ao lado da estrada, os homens de William seguravam um garoto apavorado - presumivelmente um aprendiz que fora mandado atuar como sentinela - e a seus pés havia um cão sangrando até a morte com uma flecha atravessada no pescoço.

      O destacamento atacante deteve os cavalos, sem fazer esforço algum para guardar silêncio. William também parou e examinou a cena. Grande parte do morro desaparecera desde a última vez que o vira. O andaime subia até áreas inacessíveis, e descia numa escavação profunda aberta ao pé do morro. Blocos de pedra de diferentes formas e tamanhos se empilhavam do lado da estrada, e havia dois enormes carros de madeira, com imensas rodas, carregados de pedra pronta para ser levada. Tudo estava coberto de pó cinzento, inclusive arbustos e árvores. Uma grande área do bosque tinha sido derrubada - Meu bosque, pensou William, furioso, e havia umas dez ou doze construções de madeira, algumas com pequenas hortas e uma com um chiqueiro. Era uma pequena aldeia.

      A sentinela provavelmente estivera dormindo - e seu cachorro também.

      - Quantos homens há aqui, rapaz?

      O garoto podia estar assustado, mas era corajoso.

      - Você é lorde William, não é?

      - Responda à pergunta, menino, ou lhe cortarei a cabeça com esta espada.

      Ele ficou branco de medo, mas replicou, com uma voz de trêmulo desafio:

      - Está tentando roubar esta pedreira do prior Philip? O que será que há comigo?, pensou William. Não consigo sequer assustar uma criança magrela, imberbe? Por que as pessoas pensam que podem me desafiar?

      - Esta pedreira é minha! - disse, por entre os dentes. – Esqueça o prior Philip; ele não pode fazer nada por você agora. Quantos homens?

      Em vez de responder, o garoto atirou a cabeça para trás e começou a gritar:

      - Socorro! Cuidado! Ataque! Ataque!

      William levou a mão à espada, mas hesitou, olhando para as casas. Um rosto assustado apareceu num portal. Decidiu esquecer o aprendiz. Pegou uma tocha com um dos seus homens e esporeou o cavalo.

      Galopou na direção das casas, carregando a tocha bem alto, e ouvindo seus homens atrás. A porta da cabana mais próxima se abriu e um homem de olhos vermelhos e camisa de baixo apareceu. William atirou a tocha em chamas por cima dele. Caiu no chão, às suas costas, e incendiou imediatamente a palha. William soltou um grito de vitória e seguiu em frente.

      Avançou por entre o pequeno grupo de casas. Às suas costas, seus homens gritavam e atiravam as tochas nos telhados de palha.

      Todas as portas se abriram, e homens aterrorizados, mulheres e crianças começaram a surgir, gritando e tentando se desviar dos cascos dos cavalos. Ficaram rodando em pânico, enquanto as chamas progrediam. William parou o cavalo na orla da confusão e ficou olhando por um momento. Os animais domésticos, se soltaram, e um porco desesperado começou a girar cegamente, enquanto uma vaca ficava parada no meio de tudo, a cabeça estúpida balançando de um lado para o outro, espantada. Até mesmo os homens mais moços, normalmente o grupo mais beligerante, estavam confusos e amedrontados. A madrugada era de fato a melhor hora para aquele tipo de luta: havia qualquer coisa quanto a estar meio nu que eliminava a agressividade das pessoas.

      Um homem moreno, de cabeleira negra, saiu de uma das cabanas, com as botas calçadas, e começou a dar ordens. Devia ser Otto Cara Preta. William não podia ouvir o que estava dizendo. Mas pelos gestos podia adivinhar que Otto mandava que as mulheres pegassem as crianças e se escondessem na floresta; porém, o que estaria falando  com os homens? Um momento depois William descobriu. Dois rapazes correram até um galpão separado dos outros e abriram a porta, que estava trancada pelo lado de fora.

      Entraram e saíram logo depois com os pesados martelos usados na extração de pedras. Otto mandou que outros homens fossem até a mesma barraca, que obviamente era o depósito de ferramentas. Eles iam resistir.

      Três anos antes Otto se recusara a lutar por Philip. O que o fizera mudar de ideia?

      Fosse o que fosse, ia lhe custar a vida. William sorriu tristemente e desembainhou a espada.

      Havia agora seis ou oito homens armados com marretas e machados de cabo comprido. William esporeou o cavalo e avançou contra o grupo reunido em torno do depósito  de ferramentas. Os homens se dispersaram, fugindo do seu caminho, mas ele brandiu a espada e conseguiu pegar um deles com um corte profundo no braço. O homem largou  o machado.

      William afastou-se galopando e depois virou o cavalo. Respirava fundo e se sentia bem: no calor da batalha não havia medo, só excitação. Alguns de seus homens tinham  visto o que estava acontecendo e olharam para William, em busca de orientação. Fez um sinal para que o seguissem, e carregou contra os operários de novo. Eles não podiam se esquivar de seis cavaleiros tão facilmente quanto de um. William pegou dois, e diversos outros caíram sob as espadas dos seus homens, embora ele estivesse  se movendo depressa demais para ver se estavam mortos ou apenas feridos.

      Ao se virar de novo, Otto estava reunindo as forças. Quando os cavaleiros carregaram, os operários se dispersaram por entre as cabanas em chamas. Foi uma tática inteligente, lastimou William. Os cavaleiros o seguiram, mas era mais fácil para os operários se esquivarem, estando separados, e os cavalos se amedrontaram com as chamas. William perseguiu um homem de cabelos grisalhos com uma marreta e deixou de acertá-lo por muito pouco diversas vezes, até que ele fugiu, metendo-se numa casa cujo telhado pegava fogo.

      O lorde percebeu que o problema era Otto. Não só dava coragem para os seus homens como também os organizava. Assim que caísse, os outros desistiriam. Ele conteve  o seu cavalo e procurou o homem moreno. Todas as mulheres e crianças haviam desaparecido, exceto por duas crianças de cinco anos, no meio do campo de batalha, de mãos dadas e chorando. Os cavaleiros de William galopavam por entre as casas, caçando os operários. Para sua surpresa, viu que um dos seus homens de armas fora derrubado, e jazia no chão, gemendo e chorando. Ficou atônito. Não antecipara baixas do seu lado.

      Uma mulher desesperada entrava e saía das casas em chamas, gritando qualquer coisa que William não conseguia distinguir. Estava procurando alguém. Finalmente viu as duas crianças e pegou uma com cada braço. Quando correu, quase esbarrou em um dos cavaleiros de William, Gilbert de Rennes. Gilbert levantou a espada para golpeá-la.

      De repente, Otto pulou de trás de uma cabana e atirou um machado de cabo comprido. O lançamento foi feito com extrema perícia e a lâmina do machado atravessou a coxa de Gilbert, ficando presa na madeira da sela. A perna cortada caiu no chão, e o cavaleiro gritou e caiu.

      Nunca mais lutaria.

      Gilbert era um cavaleiro valoroso. Cheio de ódio, William esporeou seu cavalo. A mulher com as crianças desaparecera. Otto lutava para arrancar a lâmina do seu machado da sela de Gilbert. Levantou a cabeça e viu William se aproximando. Se tivesse corrido naquele momento poderia ter escapado, mas ficou às voltas com o machado. Conseguiu liberá-lo quando o lorde estava quase em cima dele. O cavaleiro levantou a espada. Otto sustentou sua posição e levantou o machado. Só no último momento William percebeu que o machado seria usado contra o cavalo, e Otto poderia estropiar o animal antes que ele pudesse se aproximar o bastante para derrubá-lo. Puxou as rédeas desesperadamente, e o cavalo escorregou mas parou, empinando, e assim afastou a cabeça. O golpe pegou em cheio o pescoço do animal, com a lâmina do machado entrando fundo nos músculos poderosos. O sangue jorrou como de um chafariz, e o cavalo caiu. William desmontou antes que o corpo gigantesco caísse no chão.

      Estava furioso. O cavalo de batalha custara uma fortuna e sobrevivera com ele um ano de guerra civil; era de enlouquecer de raiva perdê-lo para o machado de um trabalhador de pedreira. Pulou por cima do seu corpo e arremeteu furiosamente contra Otto.

      O mestre não era uma vítima fácil. Segurou o machado com ambas as mãos e usou seu cabo de carvalho muito duro para aparar os golpes da espada de William. Este investiu cada vez com mais força, obrigando-o a recuar. A despeito da idade, Otto era um homem de músculos poderosos, e os golpes de Hamleigh praticamente não tinham  efeito sobre  ele.  William empunhou a espada com ambas as mãos e bateu mais forte. O cabo do machado aparou o golpe novamente, mas agora a lâmina ficou presa na madeira.

      Otto passou à ofensiva, com o lorde recuando. William estava quase em cima dele. De repente, Hamleigh temeu pela própria vida. Otto levantou o machado. William esquivou-se, para trás. Seu calcanhar prendeu em alguma coisa, e ele caiu sobre o corpo do cavalo. Mergulhou numa poça de sangue quente, mas conseguiu continuar empunhando a espada. Otto parou em cima dele, com o machado no ar. Quando a ferramenta desceu, William rolou freneticamente para o lado. Sentiu o vento da lâmina cortando o ar junto ao rosto; então pôs-se de pé de um pulo e investiu com a espada contra Otto.

      Um soldado teria se desviado para um lado antes de libertar a arma presa no chão, sabendo que um homem é mais vulnerável quando acaba de desfechar um golpe e errar; porém Otto não era soldado, só um tolo corajoso, e estava de pé com uma das mãos no cabo do machado e o outro braço esticado, para se equilibrar, tornando assim todo o seu corpo um alvo fácil. A estocada de William foi às cegas, mas, mesmo assim, acertou o alvo. A ponta da espada perfurou o tórax de Otto. William empurrou com mais força e a lâmina deslizou por entre as costelas do homem. O mestre largou o cabo do machado, e no seu rosto surgiu uma expressão que William conhecia bem.

      Os olhos demonstravam surpresa, a boca abriu-se como se fosse gritar, embora não saísse som algum, e sua pele ficou repentinamente acinzentada. Era a expressão de um homem ferido mortalmente. O lorde empurrou mais a espada, para evitar dúvidas, e depois a puxou. Os olhos de Otto giraram para cima das órbitas, uma mancha vermelha viva apareceu na sua camisa, alargando-se logo, e ele caiu.

      William olhou em torno, examinando a cena. Viu dois operários fugirem correndo, presumivelmente por causa da morte do seu líder. Ao correrem, gritaram para os outros.

      O combate transformou-se numa retirada. Os cavaleiros perseguiram os fugitivos.

      Ele ficou parado, respirando com dificuldade. Os malditos tinham resistido! Olhou para Gilbert. Jazia imóvel, numa poça de sangue, os olhos fechados. Pôs a mão no seu peito: o coração não batia. Estava morto.

      Deu uma volta por entre as casas ainda em chamas, contando os corpos. Três operários estavam mortos, mais uma mulher e uma criança que pareciam ter sido pisoteados pelos cavalos. Três dos homens de armas de William estavam feridos, e quatro cavalos mortos ou estropiados.

      Quando completou a contagem, veio parar junto ao corpo do seu cavalo. Gostara dele mais do que da maioria das pessoas. Após uma batalha normalmente se sentia animado, mas agora estava deprimido. Aquilo fora uma carnificina. Era para ter sido uma operação simples, destinada a expulsar um grupo de operários desarmados de uma pedreira, mas se transformara numa batalha campal, com grande número de baixas.

      Os cavaleiros perseguiram os fugitivos até o bosque, mas ali os cavalos não seriam úteis, de modo que voltaram. Walter foi ao lugar onde estava William e viu Gilbert morto no chão. Fez o Sinal-da-Cruz e disse:

      - Gilbert matou mais homens que eu.

      - Não há muitos iguais a ele, para que eu possa me dar ao luxo de perdê-lo numa disputa com um maldito monge – disse William amargamente. - Para não falar dos cavalos.

      - Que resultado mais inesperado! - comentou Walter. – Essa gente lutou com mais empenho que os rebeldes de Robert de Gloucester!

      William balançou a cabeça, revoltado.

      - Não sei - disse, olhando para os corpos. - Por que diabo eles pensavam que estavam combatendo?

     

      Logo após o amanhecer, quando a maioria dos irmãos estava na cripta para o serviço das primas, havia apenas duas pessoas no dormitório: Johnny Oito Pence, varrendo o chão num canto do salão comprido, e Jonathan, brincando de escola no outro.

      O prior Philip parou à porta e observou Jonathan. Estava quase com cinco anos e era um garoto esperto e confiante, com uma gravidade infantil que encantava a todos.

      Johnny ainda o vestia com uma miniatura de hábito de monge. Ele estava fazendo de conta que era o mestre dos noviços, dando aulas para uma fileira imaginária de alunos.

      - Está errado, Godfrey! - disse severamente para o banco vazio. - Não vai ter jantar se não aprender os bervos! Ele queria dizer "verbos". Philip sorriu, afetuoso.

      Não poderia ter amado mais a um filho. Jonathan era a única coisa na vida que lhe dava uma alegria absolutamente pura.

      A criança corria por todo o priorado como um cachorrinho de estimação, protegido e mimado por todos os monges. Para a maioria deles era mesmo como um animalzinho, um brinquedo divertido; porém, para Philip e Johnny, era mais. Este o amava como uma mãe; e aquele, embora procurasse ocultá-lo, se sentia como o pai do menino. Ele próprio tinha sido criado desde muito novo por um abade bondoso, e lhe parecia a coisa mais natural do mundo desempenhar o mesmo papel com Jonathan. Não lhe fazia cócegas ou corria atrás dele do jeito como faziam os outros monges, mas narrava-lhe histórias da Bíblia, brincava de contar e ficava de olho em Johnny.

      Entrou no dormitório, sorriu para o monge e sentou-se no banco junto com os alunos imaginários.

      - Bom dia, padre - disse Jonathan, solene. Oito Pence o ensinara a ser cuidadosamente polido.

      - Você gostaria de ir para a escola? - perguntou Philip.

      - Já sei latim - gabou-se Jonathan.

      - É mesmo?

      - É. Ouça: omnius pluvius buvius tuvius nomine patri amen.

      Philip tentou não rir.

      - Isso parece mas não é bem latim. O irmão Osmund, o mestre dos noviços, ensinará você a falar latim direito.

      Jonathan ficou um pouco sem graça por descobrir que afinal não sabia latim.

      - De qualquer modo - disse ele -, posso correr muito, muito depressa, olhe! - E correu em alta velocidade de um lado para o outro do dormitório.

      - Maravilhoso! - aplaudiu Philip. - Você corre realmente muito depressa.

      - Sim, e posso correr ainda mais depressa...

      - Agora não - disse Philip. - Ouça-me por um instante. vou me afastar por algum tempo.

      - Volta amanhã?

      - Não, não voltarei tão depressa.

      - Semana que vem?

      - Nem mesmo a semana que vem.

      Jonathan ficou atônito. Não podia conceber um tempo além de uma semana. Outro mistério ocorreu-lhe:

      - Mas por quê?

      - Tenho que falar com o rei.

      - Oh! - Isso também não tinha grande significado para Jonathan.

      - E gostaria que você fosse para a escola enquanto eu estiver fora. Você gostaria de ir?

      - Sim!

      - Você já tem quase cinco anos. Seu aniversário é na semana que vem. Veio para nós no primeiro dia do ano.

      - De onde foi que vim?

      - De Deus. Todas as coisas vêm de Deus. Jonathan sabia que aquilo não era resposta.

      - Mas onde eu estava antes?

      - Não sei.

      43

      Jonathan franziu a testa. Era engraçado ver aquilo numa carinha tão despreocupada.

      - Eu tinha que estar em algum lugar.

      Um dia, Philip sabia disso, alguém teria que contar a Jonathan como os bebês nasciam. Fez uma careta ante essa idéia. Ainda bem que não era agora. Mudou de assunto.

      - Enquanto eu estiver fora, quero que aprenda a contar até cem.

      - Sei contar - disse Jonathan: - um dois três quatro cinco seis sete oito nove dez onze doze treze catorze catorze cinco quinze seis dezessete oito.. .

      - Nada mal - disse Philip -, mas o irmão Osmund vai lhe ensinar mais. Você tem que se sentar quieto na sala de aula e fazer tudo que ele mandar.

      - Vou ser o melhor da escola! - disse Jonathan.

      - Veremos. - Philip examinou-o por mais algum tempo. Fascinava-o o desenvolvimento da criança, o modo como aprendia as coisas e as fases que atravessava. A atual insistência em saber falar latim, contar ou correr depressa era curiosa; seria um prelúdio necessário ao verdadeiro aprendizado? Devia atender a algum propósito nos planos de Deus. E um dia Jonathan se tornaria um homem. Como seria ele? O pensamento fez Philip ficar impaciente para que Jonathan crescesse. Mas isso levaria tanto tempo quanto a construção da catedral.

      - Dê-me um beijo, então, e diga adeus - disse Philip.

      O menino levantou o rosto e Philip beijou a bochecha macia.

      - Adeus, padre.

      - Adeus, meu filho.

      Ele apertou afetuosamente o braço de Johnny Oito Pence e saiu.

      Os monges estavam saindo da cripta e se dirigindo para o refeitório. Philip foi no rumo contrário, e entrou na cripta para rezar pelo sucesso da sua missão.

      Ficara profundamente desgostoso quando lhe contaram o que acontecera na pedreira. Cinco pessoas mortas, uma delas uma garotinha! Cinco integrantes do seu rebanho, dizimados por William Hamleigh e seu bando de animais. Philip conhecera todos: Harry de Shiring, que tinha sido o capataz de lorde Percy; Otto Cara Preta, o homem de pele escura encarregado da exploração da pedreira desde o primeiro dia; o bonito filho de Otto, Mark; a mulher de Mark, Alwen, que tocava músicas nas sinetas dos carneiros à noite; e a pequena Norma, a neta de sete anos de Otto e sua favorita. Gente trabalhadora, de bom coração e temente a Deus, que tinha o direito de esperar paz e justiça dos seus lordes. William os trucidara como uma raposa mata galinhas. Aquilo com certeza fizera chorar os anjos.

      Philip se mortificara por eles, e depois fora a Shiring exigir justiça. O xerife se recusara, sem a menor cerimônia, a fazer qualquer coisa. "Lorde William tem um pequeno exército, como eu poderia prendê-lo?", dissera o xerife Eustace. "O rei precisa de cavaleiros para lutar contra Matilde. O que dirá se eu encarcerar um de seus melhores homens? Se eu acusar William de assassinato, ou serei morto imediatamente pelos seus cavaleiros ou enforcado como traidor mais tarde pelo rei Estêvão."

      A primeira baixa numa guerra civil era a justiça, constatou Philip.

      Em seguida o xerife lhe dissera que William apresentara uma reclamação formal contra o mercado de Kingsbridge.

      Era ridículo, claro, que ele pudesse sair impune de um homicídio e ao mesmo tempo acusasse Philip de não cumprir uma tecnicidade; mas o prior se sentiu impotente.

      Era verdade que não possuía permissão para ter um mercado, que estava errado, falando num sentido estrito. Entretanto não podia permanecer em erro. Era o prior de Kingsbridge. Tudo o que tinha era sua autoridade moral. William podia convocar um exército de cavaleiros; o bispo Waleran podia usar os seus contatos nas altas esferas; o xerife podia alegar a autoridade real; mas tudo o que Philip podia fazer, porém, era dizer que isto era certo e aquilo errado; se fosse abdicar dessa posição realmente ficaria desamparado. Por isso mandara suspender o mercado.

      O que o deixou numa posição verdadeiramente desesperadora.

      As finanças do priorado tinham melhorado de modo impressionante, graças, por um lado, aos controles mais estritos, e, por outro, às receitas sempre maiores do mercado e da criação de carneiros; mas Philip sempre gastara cada penny na construção, e se endividara pesadamente com os judeus de Winchester, um empréstimo que ainda tinha que pagar. Agora, de um golpe só, perdera seu suprimento de pedras grátis e a receita gerada pelo mercado, e seus voluntários - a maioria dos quais tinha um interesse maior pelo mercado - provavelmente diminuiriam de número.

      Perguntou-se se a crise seria culpa sua. Fora confiante demais, ambicioso demais? O xerife Eustace não fizera por menos. "Você quer voar alto demais, Philip", dissera, irritado. "Dirige um mosteiro pequeno e não passa de um priorzinho, mas quer mandar no bispo, no conde e no xerife. Pois muito bem, não pode. Somos poderosos demais paravocê. A única coisa que pode fazer é causar encrenca." Eustace era um homem feio, estrábico e com dentes irregulares, e estava vestindo um manto amarelo sujo; porém, por menos impressionante que fosse a aparência dele, suas palavras tinham apunhalado Philip no coração. O prior sentia-se dolorosamente convicto de que aquelas cinco pessoas não teriam morrido se ele não houvesse feito de William Hamleigh um inimigo. Só que não podia ser outra coisa senão inimigo do lorde. Se desistisse, mais pessoas ainda iriam sofrer, gente como o moleiro que ele matara e a filha do servo que ele e seus cavaleiros haviam estuprado. Philip precisava continuar sua luta.

      E isso significava que teria de ir ver o rei. Detestava a idéia. Aproximara-se do rei uma vez, em Winchester, quatro anos antes, e embora tivesse obtido o que desejava, sentira-se horrivelmente mal na corte. Estêvão era cercado por pessoas astuciosas e sem escrúpulos que disputavam sua atenção e lutavam por seus favores, e Philip considerou-as desprezíveis. O que tentavam era conseguir uma riqueza e uma posição que não mereciam. Não compreendia verdadeiramente seu jogo: no seu mundo, o melhor modo de conseguir alguma coisa era fazer por merecer, e não bajular o doador. Entretanto, agora não tinha alternativa senão entrar naquele mundo e jogar aquele jogo.

      Somente o rei poderia conceder-lhe permissão para ter um mercado. Só o rei poderia salvar a catedral.

      Terminou as preces e deixou a cripta. O sol estava nascendo e havia um leve tom de rosa nas paredes cinzentas de pedra da catedral em construção. Os operários, que trabalhavam do raiar ao pôr-do-sol, estavam começando, abrindo seus galpões e amolando as ferramentas, ou misturando a primeira massa. A perda da pedreira ainda não afetara a obra: sempre a haviam explorado mais depressa do que poderiam usar as pedras, e agora tinham um estoque que duraria muitos meses.

      Era hora de Philip partir. Todas as providências haviam sido tomadas. O rei estava em Lincoln. O prior teria um companheiro de viagem: Richard, o irmão de Aliena.

      Após combater por um ano como escudeiro, ele fora sagrado cavaleiro pelo rei. Tinha ido para casa se reequipar e agora se reintegraria ao exército real.

      Aliena se saíra estupendamente bem como comerciante de lã. Não vendia mais para Philip, negociando direto com os compradores flamengos.

      Na verdade, naquele ano ela quisera comprar toda a produção do priorado. Teria pago menos que os flamengos, mas o prior receberia o dinheiro antes. Ele não aceitara sua oferta. O simples fato de haver feito tal proposta, contudo, era uma boa medida do seu sucesso.

      Ela estava no estábulo com o irmão, foi o que Philip viu quando atravessou o pátio. Uma multidão havia se formado para dizer adeus aos viajantes. Richard estava montado num cavalo de batalha castanho que devia ter custado a Aliena vinte libras. Ele se transformara num bonito rapaz de ombros largos, as feições regulares prejudicadas apenas por uma feia cicatriz na orelha direita; o lobo fora cortado, sem dúvida num acidente de esgrima. Estava esplendidamente vestido de vermelho e verde, e equipado com nova espada, lança, machado de batalha e adaga. Sua bagagem era carregada por um segundo cavalo que puxava por uma correia. Com ele seguiam dois homens de armas, montados em corcéis, e um escudeiro, num cavalo robusto e de pernas curtas.

      Aliena desmanchava-se em lágrimas, embora Philip não pudesse dizer se lamentava ver o irmão partir, se estava orgulhosa por vê-lo tão bonito ou se tinha medo de que ele pudesse não voltar. Todas as três coisas, talvez. Alguns aldeões haviam vindo para se despedir, inclusive a maioria dos rapazes e meninos. Sem dúvida Richard era o herói deles. Todos os monges estavam presentes também, a fim de desejar a seu prior uma viagem em segurança.

      Os cavalariços trouxeram dois cavalos, um palafrém arriado para Philip e um cavalinho baixo carregado com sua bagagem modesta - basicamente comida para a viagem.

      Os operários descansaram as ferramentas e se aproximaram, liderados por tom e seu ruivo enteado, Jack.

      Philip abraçou formalmente Remigius, seu subprior, despediu-se de maneira calorosa de Milius e Cuthbert, e por fim montou. Estaria sentado naquela sela dura por longo tempo, pensou, com tristeza. Da sua posição elevada abençoou a todos. Os monges, trabalhadores e aldeões acenaram e gritaram suas despedidas enquanto ele e Richard saíam lado a lado pelos portões do priorado.

      Desceram a rua estreita que atravessava a aldeia, acenando para as pessoas que olhavam das portas de suas casas, e, transpondo ruidosamente a ponte de madeira, pegaram a estrada que seguia por entre os campos. Um pouco mais tarde, Philip olhou para trás, por cima do ombro, e viu o sol nascente brilhando através do espaço da janela na face leste semiconstruída da nova catedral. Se falhasse em sua missão, a obra talvez nunca fosse terminada. Depois de tudo por que passara para chegar àquele ponto, não podia tolerar a idéia de derrota agora. Virou-se de novo e concentrou a atenção na estrada à frente.

      Lincoln era uma cidade que ficava em cima de uma elevação. Philip e Richard aproximaram-se dela pelo sul, numa estrada antiga e movimentada chamada Ermine Street.

      Mesmo de longe podiam ver, lá em cima, as torres da catedral e as ameias do castelo. Mas ainda se encontravam a três ou quatro milhas de distância, quando, para assombro de Philip, chegaram a um portão da cidade. Os subúrbios devem ser imensos, pensou; e a população deve atingir milhares de pessoas.

      No Natal a cidade fora tomada por Ranulf de Chester, o homem mais poderoso no norte da Inglaterra, e parente de Matilde. O rei Estêvão retomara a cidade, mas as forças de Ranulf ainda estavam de posse do castelo. Ao se aproximarem mais, Philip e Richard souberam que Lincoln estava na posição peculiar de ter dois exércitos rivais acampados dentro das muralhas. Philip não simpatizara com Richard nas quatro semanas que haviam passado juntos. O irmão de Aliena era um jovem revoltado, que odiava os Hamleighs e estava decidido a se vingar; falava como se o prior sentisse do mesmo modo. Mas havia uma diferença. Philip detestava os Hamleighs pelo que tinham feito a seus vassalos: sem eles o mundo seria um lugar melhor. Richard só poderia fazer as pazes consigo próprio quando tivesse derrotado os Hamleighs: seu motivo era inteiramente egoísta. O cavaleiro, fisicamente corajoso e sempre pronto para lutar, era, sob outros aspectos, contudo, fraco. Confundia seus homens de armas, tratando-os às vezes como seus iguais e em outras ocasiões dando-lhes ordens como se fossem criados comuns. Nas tavernas tentava impressionar pagando cerveja para estranhos. Fingia saber o caminho, quando na realidade não tinha certeza, e às vezes fazia o grupo se perder, porque era incapaz de admitir que cometera um erro. Quando chegaram a Lincoln, Philip estava convencido de que Aliena valia dez Richards.

      Passaram por um lago cheio de barcos; depois, ao pé da colina, cruzaram o rio que formava a fronteira sul da cidade propriamente dita. Lincoln, era óbvio, vivia de atividades relacionadas com o rio. Ao lado da ponte havia um mercado de peixe.

      Atravessaram outro portão guardado por sentinelas. A partir desse portão, deixaram para trás a vasta extensão dos subúrbios e entraram na cidade fervilhante. Uma rua estreita, apinhada de gente, subia a colina bem em frente a eles. As casas, erguidas lado a lado em ambas as calçadas, eram parcial ou totalmente de pedra, sinal de considerável riqueza. A colina era tão íngreme que a maioria das casas tinha o andar principal vários pés acima do nível do solo num lado e abaixo do outro. A área situada na parte de baixo era, invariavelmente, uma oficina de um artesão ou uma loja. Os únicos espaços abertos eram os cemitérios perto das igrejas, e em cada um havia um mercado, onde se vendiam cereais, aves, lã, couro e outros. Philip e Richard, juntamente com a escolta deste, tiveram que lutar para abrir caminho por entre a densa multidão de moradores comuns, homens de armas, animais e carroças. Philip percebeu, com assombro, que havia pedras sob seus pés. A rua era toda pavimentada! Que fortuna deve haver aqui, pensou, para calçar as ruas com pedras, como se fosse um palácio ou uma catedral. O piso ainda era um pouco escorregadio, por causa do lixo e do estrume dos animais, mas mesmo assim era muito melhor que o rio de lama em que se transformavam as ruas da maioria das cidades no inverno.

      Atingiram a crista da elevação e passaram por mais um portão. Entravam agora na parte mais central da cidade e, de repente, a atmosfera se modificou por completo: ficou mais silenciosa, e contudo tensa. Imediatamente à esquerda ficava a entrada do castelo. A grande porta guarnecida de ferro na passagem em arco estava trancada.

      Vultos obscuros moviam-se atrás das seteiras, e sentinelas de armadura patrulhavam as fortificações providas de ameias, o sol fraco rebrilhando nos elmos polidos.

      Philip observou-os andando de um lado para o outro. Não havia conversa entre eles, nada de troças e risadas, ou de se debruçar na balaustrada a fim de assobiar para as garotas que passavam: estavam alerta, atentos e cautelosos.

      À direita de Philip, a não mais de um quarto de milha do portão do castelo, ficava a fachada oeste da catedral, e Philip viu imediatamente que a despeito de sua proximidade do castelo ela estava sendo usada como quartel-general do rei. Uma linha de sentinelas barrava a estreita rua entre a casa do cabido e a igreja. Além das sentinelas, cavaleiros e homens de armas entravam e saíam pelas três portas da catedral. O cemitério era um acampamento militar, com barracas, cozinhas e cavalos pastando. Não havia prédios monásticos: a Catedral de Lincoln não era administrada por monges, mas por padres denominados cônegos, que moravam em casas comuns nas proximidades da igreja.

      O espaço entre a catedral e o castelo estava vazio, exceto por Philip e seus companheiros. De repente o prior percebeu que estavam merecendo toda a atenção dos guardas do lado do rei e das sentinelas nas ameias opostas. Ele se encontrava numa terra de ninguém entre os dois campos armados, provavelmente o ponto mais perigoso em Lincoln. Olhando em torno, viu que Richard e os outros tinham seguido em frente e apressou-se a alcançá-los.

      As sentinelas do rei deixaram-nos entrar de imediato: Richard era bem conhecido. Philip admirou a fachada oeste da catedral. Tinha um arco de entrada enormemente alto e dois outros arcos auxiliares, um de cada lado, da metade da altura do central mas mesmo assim imponentes. Parecia o portão do céu - o que era mesmo, de certa forma. Decidiu no mesmo instante que queria arcos altos na fachada oeste de sua catedral.

      Deixando os cavalos com o escudeiro, Philip e Richard atravessaram o acampamento e entraram na igreja. Estava ainda mais apinhada do lado de dentro do que de fora.

      Os corredores tinham sido transformados em estábulos, e centenas de cavalos estavam amarrados nas colunas da arcada. Homens armados aglomeravam-se na nave, e aqui e ali havia fogos acesos para preparação de comida e acomodações para dormir. Alguns falavam inglês, outros francês e uns poucos flamengo, a língua gutural dos mercadores de lã de Flandres. De modo geral, os cavaleiros estavam no interior da igreja e os homens de armas, do lado de fora. Philip lamentou ver diversos homens jogando o jogo das nove pedras a dinheiro, e ficou ainda mais perturbado com a aparência de algumas mulheres, vestidas muito sumariamente para o inverno e parecendo estar flertando com os homens quase, pensou ele, como se fossem pecadoras, ou mesmo, santo Deus, prostitutas.

 

      A fim de não olhar para elas, ergueu os olhos para o teto. Era de madeira e lindamente pintado com tintas de cores vivas, mas representava um terrível risco de incêndio, com toda aquela gente cozinhando na nave. Seguiu Richard por entre a multidão. Ele parecia à vontade ali, seguro e confiante, cumprimentando barões e lordes e dando tapinhas nas costas de cavaleiros.

      A interseção e a extremidade leste estavam demarcadas com cordas. A extremidade leste parecia ter sido reservada para os padres - Eu faria o mesmo, pensou Philip -, e a interseção passara a ser o alojamento do rei.

      Havia outra linha de guardas atrás da corda, depois um grupo de cortesãos, e por fim um círculo mais fechado de condes, com Estêvão ao centro, sentado num trono de madeira. O rei envelhecera desde a última vez em que o vira, em Winchester, há cinco anos. Havia agora rugas de ansiedade no seu rosto bonito e fios brancos no cabelo alourado; além disso, um ano de guerra fizera com que emagrecesse. Parecia estar tendo uma discussão amável com os condes, discordando, mas sem raiva. Richard caminhou até a orla do círculo mais fechado e fez uma larga reverência cerimonial. O rei olhou-o e, reconhecendo-o, disse numa voz retumbante:

      - Richard de Kingsbridge! Que bom tê-lo de volta!

      - Muito obrigado, majestade - disse Richard.

      Philip colocou-se ao lado dele e fez uma reverência igual.

      - Trouxe um monge como seu escudeiro? - disse Estêvão, fazendo rir todos os cortesãos.

      - Este é o prior de Kingsbridge, majestade - disse Richard. Estêvão o fitou de novo, e Philip viu o brilho do reconhecimento nos seus olhos.

      - Claro, conheço o prior... Philip - disse, mas seu tom de voz não foi mais tão caloroso como quando cumprimentara Richard. - Veio combater por mim? - Os cortesãos riram mais uma vez.

      Philip ficou satisfeito com o fato de o rei ter se lembrado do seu nome.

      - Estou aqui porque a obra divina de reconstrução da Catedral de Kingsbridge precisa da ajuda urgente de vossa majestade.

      - Tenho que saber de tudo a esse respeito - interrompeu Estêvão apressadamente. - Venha me ver amanhã, quando teremos mais tempo. - com isso ele se virou de novo para os condes e retomou a conversa, agora num tom de voz mais baixo.

      Philip não falou com o rei Estêvão no dia seguinte, nem no outro dia e tampouco no que se seguiu.

      Na primeira noite ficou numa cervejaria, mas se sentiu oprimido com o cheiro constante de carne assando e com a risada das mulheres da vida. Infelizmente não havia um mosteiro na cidade. Normalmente o bispo lhe teria oferecido acomodações, mas o rei estava morando no palácio do bispo e todas as casas em torno da catedral estavam superlotadas com membros da comitiva real. Na segunda noite Philip saiu da cidade e se dirigiu para além do subúrbio de Wigford, onde havia um mosteiro que mantinha um asilo para leprosos. Ali teve pão de massa grossa e cerveja aguada na ceia, um colchão duro no chão, silêncio do pôr-do-sol até a meia-noite, cultos religiosos na madrugada e um desjejum de mingau ralo sem sal, e se sentiu feliz.

      Philip ia à catedral todos os dias, de manhã bem cedo, levando a preciosa carta régia que dava ao priorado o direito de explorar a pedreira. Dia após dia o rei não notava a sua presença. Enquanto os outros peticionários conversavam entre si, discutindo quem estava e quem não estava nas graças do rei, Philip se mantinha alheado.

      Sabia por que o faziam esperar. Toda a Igreja estava tendo uma rixa com o rei. Estêvão não cumprira as promessas generosas que lhe haviam extraído no início do reinado. Fizera do próprio irmão, o astuto bispo Henry de Winchester, um inimigo, por dar seu apoio a outro, para o cargo de arcebispo de Canterbury; o que também desapontara Waleran Bigod, que queria subir agarrado à batina de Henry. Mas o maior pecado de Estêvão, aos olhos da Igreja, tinha sido prender o bispo Roger de Salisbury e dois sobrinhos seus, que eram os bispos de Lincoln e Ely, todos no mesmo dia, sob a acusação de estarem construindo castelos sem licença. Um coro de reclamações se fizera ouvir, partindo das catedrais e dos mosteiros de todo o país, contra aquele sacrilégio. Estêvão ficara magoado. Como homens de Deus, os bispos não precisavam de castelos, disse; e se os construíam, não podiam esperar ser tratados puramente como homens de Deus. Era sincero, embora ingênuo.

      O rompimento fora remendado, mas Estêvão não se mostrava mais ansioso por ouvir as petições de religiosos, de modo que Philip teve que esperar. Aproveitou a oportunidade para meditar. Era uma coisa para a qual tinha pouco tempo, como prior, e de que sentia falta. Agora, de repente, não tinha nada para fazer por horas a fio, e passava o tempo imerso em meditações.

      Os outros cortesãos foram deixando um espaço à sua volta, tornando-o bastante conspícuo, e devia ter sido cada vez mais difícil para Estêvão ignorá-lo. Estava profundamente mergulhado na contemplação do sublime mistério da Santíssima Trindade, na manhã do seu sétimo dia em Lincoln, quando percebeu que havia alguém bem à sua frente, olhando-o e falando com ele, e que essa pessoa era o rei.

      - Está dormindo com os olhos abertos, homem? - dizia Estêvão, com um tom de voz entre irritado e divertido.

      - Desculpe, majestade, eu estava pensando - disse Philip, fazendo uma reverência tardia.

      - Não faz mal. Quero suas roupas emprestadas.

      - O quê? - Philip ficou surpreso demais para se preocupar com as boas maneiras.

      - Quero dar uma olhada no castelo, e se eu for vestido de monge eles não atirarão flechas em mim. Venha; entre numa das capelas e tire o hábito.

      Philip estava só com uma camisa por baixo.

      - Mas, majestade, o que irei vestir?

      - Esqueci como vocês monges são recatados. - Estêvão estalou os dedos para um jovem cavaleiro. - Robert, empreste-me sua túnica, rápido.

      O cavaleiro, que estava conversando com uma garota, tirou a túnica com um movimento rápido, deu-a ao rei com uma reverência e fez um gesto vulgar para a garota.

      Seus amigos riram e aplaudiram.

      O rei Estêvão entregou a túnica a Philip.

      O prior meteu-se na pequenina capela de São Dunstan, pediu perdão ao santo com uma prece rápida, depois tirou o hábito e vestiu a túnica escarlate e curta do cavaleiro.

      Pareceu-lhe verdadeiramente muito estranho: usava roupas monásticas desde os seis anos de idade, e não poderia ter se sentido mais esquisito nem se tivesse se vestido de mulher. Saiu da capela e entregou o hábito a Estêvão, que o enfiou pela cabeça rapidamente.

      - Venha comigo, se quiser - disse o rei, surpreendendo-o. - Poderá me falar a respeito da Catedral de Kingsbridge.

      Philip ficou atônito. Seu primeiro instinto foi recusar. Uma sentinela do castelo poderia se ver tentada a dar-lhe uma flechada, já que não estaria protegido pelo traje religioso. Mas estava lhe sendo oferecida uma oportunidade de ficar inteiramente a sós com o rei, com tempo bastante para explicar as questões da pedreira e do mercado. Talvez nunca mais tivesse uma chance como aquela.

      Estêvão apanhou seu manto, que era púrpura com uma guarnição de pele branca na gola e na bainha.

      - Use isto - disse a Philip. - Você atrairá o fogo inimigo, desviando-o de mim.

      Os outros cortesãos ficaram quietos, observando, perguntando-se o que aconteceria.

      O rei queria demonstrar algo, pensou Philip. Estava dizendo que o prior não tinha nada que fazer ali, num campo armado, e não podia esperar que lhe concedessem privilégios às custas de homens que arriscavam a vida pelo rei. Não era injusto. Entretanto, Philip sabia também que, se aceitasse esse ponto de vista, podia muito bem voltar para casa e desistir de retomar a pedreira ou de reabrir o mercado. Precisava aceitar o desafio.

      - Talvez seja vontade de Deus que eu morra para salvar a vida do rei - disse, respirando fundo, e colocou o manto púrpura.

      Houve um murmúrio de surpresa na multidão, e o próprio Estêvão deu a impressão de ter se espantado. Todos esperavam que Philip recuasse. Quase imediatamente ele desejou que o tivesse feito. Mas agora já se comprometera.

      Estêvão virou-se e caminhou na direção da porta norte. Philip o seguiu. Diversos cortesãos fizeram menção de acompanhá-los, mas o rei os dispensou, dizendo:

      - Até mesmo um monge pode atrair a atenção, se for seguido por toda a corte real. - Depois cobriu a cabeça com o capuz do hábito de Philip e os dois passaram para o cemitério.

      O rico manto real atraiu olhares de curiosidade quando atravessaram o acampamento: os homens presumiram que ele fosse um barão e ficaram intrigados por não reconhecê-lo.

      Os olhares fizeram-no sentir-se culpado, como se fosse um impostor. Ninguém olhou para Estêvão.

      Não foram diretamente para o portão principal do castelo. Seguiram por um labirinto de vielas muito estreitas e foram sair ao lado da Igreja de St.-Paul-in-the-Bail, em frente ao canto nordeste do castelo. As muralhas do castelo se erguiam sobre vastas rampas de terra, e um fosso seco as cercava. Havia um espaço limpo de cinquenta jardas de largura entre a orla do fosso e as construções mais próximas. Estêvão pisou na grama e começou a caminhar no rumo oeste, estudando a muralha norte do castelo, permanecendo junto dos fundos das casas na orla externa do espaço limpo. O prior o acompanhou. O rei o fez caminhar à sua esquerda, entre ele e o castelo. O espaço aberto estava ali a fim de dar aos arqueiros um bom campo de tiro para flechar quem se aproximasse das muralhas, claro. O prior não tinha medo de morrer, mas temia sentir dor, e o pensamento predominante na sua cabeça era quanto doeria uma flecha.

      - Com medo, Philip? - perguntou Estêvão.

      - Apavorado - respondeu ele, com sinceridade; em seguida, o medo tornando-o atrevido, acrescentou: - E você?

      O rei riu da audácia dele.

      - Um pouco - admitiu.

      Philip se lembrou de que aquela era a sua chance de falar a respeito da catedral. Mas não podia se concentrar, com sua vida correndo tanto perigo. Seus olhos desviavam-se constantemente para o castelo, e ele esquadrinhava a muralha, na expectativa de ver um homem manejando um arco.

      O castelo ocupava todo o canto sudoeste da parte central da cidade, e sua muralha oeste fazia parte da muralha da cidade, de modo que, se alguém caminhasse o tempo todo em torno dele, teria que sair da cidade. Estêvão levou Philip a cruzar o portão oeste, e então eles passaram para o subúrbio chamado Newland. Ali as casas pareciam choças de camponeses, feitas de taipa, com grandes pomares, como era característico numa aldeia. Um cortante vento frio soprava da direção dos campos abertos além das casas. Estêvão virou para o sul, ainda margeando o castelo. Apontou para uma portinha na muralha.

      - Foi por ali que Ranulf de Chester fugiu quando tomei a cidade, presumo - disse.

      Philip estava menos assustado ali. Havia outras pessoas no caminho, e as fortificações daquele lado eram menos fortemente defendidas, pois os ocupantes do castelo temiam um ataque vindo da cidade, não do campo. Philip respirou fundo e perguntou, impulsivamente:

      - Se eu morrer, você dará um mercado a Kingsbridge e fará William Hamleigh devolver a pedreira?

      Estêvão não respondeu de imediato. Desceram a colina até o canto sudoeste do castelo e olharam para cima, examinando a fortaleza. Da posição em que estavam, parecia magnificamente inexpugnável. Logo abaixo daquele canto passaram por outro portão e entraram na parte baixa da cidade, seguindo agora ao longo do lado sul do castelo.

      Philip sentiu-se em perigo de novo. Não seria difícil para alguém no interior do castelo deduzir que os dois homens que faziam um circuito em torno das muralhas deveriam estar numa expedição de reconhecimento, e, dessa forma, eram alvos legítimos, sobretudo o de manto púrpura. Para esquecer o medo, resolveu estudar a fortaleza.

      Havia pequenos buracos na muralha, que serviam para escoar as latrinas, e o lixo e a sujeira resultantes das lavagens simplesmente iam se amontoando e ficavam ali até que apodrecessem. Não era de admirar aquele fedor. Philip tentou não respirar fundo, e os dois homens se apressaram.

      Havia outra torre menor no canto sudeste. Philip e Estêvão já tinham percorrido três lados do quadrilátero. O prior perguntou-se se o rei esquecera sua pergunta. Sentia-se apreensivo, para repeti-la. Estêvão podia achar que estava sendo pressionado e se ofender.

      Chegaram à rua principal, que cortava o meio da cidade, e viraram de novo, mas antes que Philip tivesse tempo de se sentir aliviado, passaram por outro portão e entraram na parte mais central da cidade; momentos depois, estavam na terra de ninguém entre a catedral e o castelo. Para horror de Philip, o rei se deteve ali.

      Ele parou para falar com o prior, colocando-se de tal modo que podia examinar o castelo por cima do ombro de Philip. Suas costas vulneráveis, cobertas de arminho e púrpura, estavam expostas ao portão, que fervilhava de sentinelas e arqueiros. O prior ficou imóvel como uma estátua, esperando uma flecha ou uma lança nas costas a qualquer momento. Começou a suar, apesar do vento frio.

      - Dei-lhe a pedreira há alguns anos, não foi? - disse o rei Estêvão.

      - Não exatamente - respondeu Philip, com os dentes rangendo. - Ganhamos o direito de explorar a pedreira para a construção da catedral. Mas ela foi entregue a Percy Hamleigh. Agora o filho de Percy, William, expulsou de lá os meus homens, matando cinco pessoas, inclusive uma mulher e uma criança e se recusa a nos dar acesso.

      - Ele não devia fazer essas coisas, especialmente se quer que eu o faça conde de Shiring - disse Estêvão pensativamente. Philip animou-se. Mas um momento depois o rei disse: – Diabos me levem se consigo ver um jeito de entrar nesse castelo!

      - Por favor, faça William reabrir a pedreira! - pediu Philip. - Ele o está desafiando e roubando de Deus.

      Estêvão pareceu não ouvir.

      - Não creio que eles tenham muitos homens aí dentro disse ele, no mesmo tom pensativo. - Suspeito que quase todos estejam na muralha, para uma exibição de força. O que disse sobre um mercado?

      Aquilo tudo era parte do teste, decidiu Philip; fazê-lo ficar em campo aberto, de costas para um bando de arqueiros. Enxugou a testa com o arminho do punho do manto do rei.

      - Majestade, todos os domingos vem gente de toda parte para assistir ao culto em Kingsbridge e para trabalhar, de graça, no canteiro de obra da catedral. Quando começamos, uns poucos homens empreendedores apareceram para vender tortas de carne, vinho, chapéus e facas para os voluntários. Assim, gradualmente se formou um mercado.  E agora estou lhe pedindo para licenciá-lo.

      - Você pagará pela licença?

      Um pagamento era normal, Philip sabia, mas também podia ser dispensado, quando se tratava de uma organização religiosa.

      - Sim, milorde, eu pagarei... a menos que seja sua vontade nos conceder a licença sem pagamento, pela maior glória de Deus.

      Estêvão o encarou diretamente pela primeira vez.

      - Você é um homem corajoso, para ficar aí, com o inimigo às costas, e barganhar comigo.

      Philip o encarou com igual franqueza.

      - Se Deus decidir que minha vida deve acabar, nada poderá me salvar - disse, parecendo mais corajoso do que se sentia. - Mas se Deus quiser que eu viva e construa a Catedral de Kingsbridge, nem dez mil arqueiros poderão me abater.

      - Muito bem dito! - exclamou Estêvão, e batendo com a mão no ombro de Philip, virou-se na direção da catedral. Fraco, de tão aliviado, o prior caminhou ao lado dele, sentindo-se melhor a cada passo que o afastava mais do castelo. Parecia ter passado no teste. Mas era importante conseguir uma declaração direta do rei. A qualquer momento ele lhe escaparia no meio dos cortesãos novamente. Ao passarem pela linha de sentinelas, Philip reuniu toda a coragem e disse:

      - Majestade, se escrever uma carta para o xerife de Shiring.

      Foi interrompido. Um dos condes aproximou-se correndo, parecendo perturbado.

      - Robert de Gloucester se aproxima daqui, majestade – disse ele.

      - O quê? A que distância?

      - Está perto. Um dia, no máximo...

      - Por que não fui alertado? Coloquei homens por toda parte!

      - Eles vieram pela via do fosso e saíram da estrada para se aproximarem através do campo.

      - Quem está com ele?

      - Todos os condes e cavaleiros que perderam suas terras nos últimos dois anos. Ranulf de Chester também o acompanha...

      - Claro! Cão traiçoeiro...

      - Ele trouxe todos os seus cavaleiros de Chester, mais um bando de galeses selvagens e gananciosos.

      - Quantos homens ao todo?

      - Cerca de mil.

      - Maldito! Cem a mais do que tenho.

      A essa altura diversos barões tinham se reunido em torno do rei.

      - Majestade - disse um deles -, se ele está se aproximando através do campo, vai ter que atravessar o rio no vau...

      - Bem pensado, Edward! - disse Estêvão. - Leve os seus homens para o vau e veja se consegue detê-lo. Precisará de arqueiros, também.

      - A que distância eles estão daqui, alguém sabe? - perguntou Edward.

      Foi o primeiro conde que trouxera a notícia quem respondeu.

      - Muito perto, segundo o mensageiro. Pode ser que cheguem ao vau antes de você.

      - Irei imediatamente - afirmou Edward.

      - Bom homem! - disse o rei Estêvão. Cerrou o punho direito e deu um soco na palma da mão esquerda. - Finalmente vou me encontrar com Robert de Gloucester no campo de batalha. Só quisera dispor de mais homens. Ainda assim... uma vantagem de cem não é muito.

      Philip ouviu tudo aquilo em amargurado silêncio. Tinha certeza de que estivera quase conseguindo a concordância de Estêvão. Agora a cabeça do rei estava em outra coisa. O prior, contudo, não se sentia pronto para desistir. Ainda vestia o manto do rei. Tirou-o de cima dos ombros e o levantou, dizendo:

      - Talvez devêssemos voltar a ser o que somos, majestade.

      Estêvão concordou distraidamente. Um cortesão adiantou-se e ajudou-o a tirar o hábito do monge. Philip entregou o manto real e disse:

      - Majestade, achei-o inclinado a conceder meu pedido.

      Estêvão deu a impressão de ficar irritado por ser lembrado.

      Enfiou o manto e estava a ponto de falar quando uma nova voz foi ouvida.

      - Majestade!

      Philip reconheceu a voz. Seu coração desfaleceu. Virou-se e deu com William Hamleigh.

      - William, meu garoto! - exclamou o rei, no tom de voz cordial que usava com seus guerreiros. - Chegou bem a tempo!

      O lorde fez uma reverência.

      - Majestade - disse, – trouxe cinquenta cavaleiros e duzentos homens do meu condado.

      As esperanças de Philip se desfizeram em pó. Estêvão ficou visivelmente jubiloso.

      - Que homem bom você é! - exclamou de maneira calorosa. - Isso nos dá vantagem sobre o inimigo! - Passou um braço pelos ombros de William e caminhou com ele na direção da catedral.

      Philip ficou parado onde estava, olhando os dois se afastarem. Estivera incrivelmente perto do sucesso, mas no fim o exército de William fora mais importante que a justiça, pensou, amargurado. O cortesão que ajudara o rei a tirar o hábito de Philip entregou-o de volta. Philip o apanhou; seguiu o rei e o seu séquito e todos entraram na catedral. O prior vestiu o hábito monástico. Estava profundamente decepcionado. Olhou para os três imensos portais em arco da catedral. Tivera esperança de construir arcos como aqueles em Kingsbridge. Mas Estêvão ficara do lado de William Hamleigh. O rei se defrontara com um dilema onde só havia duas alternativas: a justiça do caso apresentado por Philip ou a vantagem representada pelo exército de William. O prior falhara no seu teste.

      Restava-lhe apenas uma única esperança: que o rei Estêvão fosse derrotado na batalha que se aproximava.

     

      O bispo rezou a missa na catedral quando o céu estava começando a mudar de preto para cinzento. A essa altura os cavalos já estavam selados, os cavaleiros envergavam a cota de malha, os homens de armas tinham sido alimentados, e uma medida de vinho forte fora servida a todos para dar coragem.

      William Hamleigh ajoelhou-se na nave com outros cavaleiros e condes, enquanto os cavalos de batalha batiam os cascos e bufavam nos corredores, e foi perdoado por antecedência pela matança que realizaria mais tarde.

      O medo e a excitação deixaram-no um pouco aturdido. Se o rei conquistasse uma vitória naquele dia, o nome de William estaria associado para sempre a ela, pois diriam que ele trouxera os reforços que haviam desequilibrado a balança.

      Se o rei perdesse... qualquer coisa poderia acontecer. Estremeceu sobre o chão frio de pedra.

      O rei estava na frente, num manto branco de tecido leve, com uma vela na mão. Quando a hóstia foi elevada, a vela se partiu e a chama apagou. William tremeu de medo: era um mau agouro. Um padre trouxe uma vela nova e levou embora a quebrada. Estêvão riu indiferentemente, mas a sensação do horror sobrenatural permaneceu com William, que, ao olhar em torno, pôde dizer que os outros sentiam a mesma coisa.

      Após o culto o rei vestiu sua armadura, ajudado por um valete. Tinha uma cota de malha da altura do joelho feita de couro com anéis de ferro costurados. O casaco era aberto até a cintura na frente e atrás, para que pudesse montar. O valete o apertou com força no pescoço. Depois ele colocou um gorro justo onde estava preso um capuz comprido de malha, cobrindo o cabelo alourado e protegendo o pescoço. Por cima do gorro pôs um elmo de ferro com um protetor de nariz. Suas botas de couro tinham enfeites de malha e esporas pontudas.

      Quando Estêvão pôs a armadura, os condes se reuniram à sua volta. William seguiu o conselho da mãe e agiu como se já fosse um deles, abrindo caminho por entre a multidão para se juntar ao grupo em torno do rei. Após escutar por um momento, percebeu que estavam tentando persuadir o rei a bater em retirada e deixar Lincoln com os rebeldes.

      - Você tem mais território que Matilde; pode montar um exército maior - disse um homem mais velho, que William reconheceu como lorde Hugh. - Vá para o sul, consiga reforços, volte e lute com efetivo maior que o deles.

      Após o augúrio da vela partida, Hamleigh quase desejava bater em retirada, ele mesmo; o rei porém, não tinha tempo para esse tipo de conversa.

      - Somos fortes o bastante para batê-los agora - disse animadamente. - Onde está sua fibra? - Afivelou um cinto com uma espada de um lado e uma adaga do outro, ambas com bainhas de madeira e couro.

      - Os exércitos estão praticamente com a mesma força disse um homem alto, de cabelo grisalho e barba aparada rente: – o conde de Surrey. - É arriscado demais.

      Aquele argumento era muito fraco para usar com Estêvão, e William sabia disso: o rei era um cavaleiro de verdade, nobre e audaz.

      - A mesma força? - repetiu com escárnio. - Pois prefiro um combate justo. - Calçou as manoplas com malha na parte de trás dos dedos. O valete lhe entregou um escudo comprido, de madeira coberta com couro. William prendeu o tirante do escudo no pescoço e segurou-o com a mão esquerda.

      - Temos pouco a perder, nos retirando neste ponto - insistiu Hugh. - Não estamos sequer de posse do castelo.

      - Eu perderia a chance de me encontrar com Robert de Gloucester no campo de batalha - disse Estêvão. - Há dois anos ele me evita. Agora que tenho uma oportunidade para acabar com o traidor de uma vez por todas, não vou retrair só porque temos efetivos praticamente iguais!

      Um cavalariço trouxe o seu cavalo, já arreado. Quando Estêvão estava prestes a montar, houve uma movimentação na porta da fachada oeste da catedral, e um cavaleiro avançou correndo pela nave, coberto de lama e sangue. William teve uma premonição de que trazia uma má notícia. Quando fez uma reverência para o rei, reconheceu-o como sendo um dos homens de Edward, que fora mandado para defender o vau.

      - Chegamos tarde demais, majestade - disse ele, ofegante. - O inimigo atravessou o rio.

      Era outro mau sinal. William de repente sentiu frio. Agora não havia senão campo aberto entre o inimigo e Lincoln.

      Estêvão também pareceu abatido por um momento, mas recuperou a compostura rapidamente.

      - Não faz mal! - disse. - Nós os encontraremos mais cedo! - E montou seu cavalo de batalha.

      O rei tinha um machado de guerra amarrado na sela. O valete entregou-lhe uma lança de madeira com uma ponta de ferro brilhante, completando seu armamento. Estêvão estalou a língua, e o cavalo, obediente, deslocou-se para a frente.

      À medida que ia progredindo pela nave, os condes, barões e cavaleiros montaram e seguiram à sua retaguarda, e assim todos deixaram a catedral em procissão. No lado de fora, os homens de armas se incorporaram. Aquela era a hora em que os homens começavam a sentir medo e a procurar uma chance para fugir; porém, seu ritmo digno e a atmosfera quase cerimonial, com os habitantes da cidade observando, tornava muito difícil a fuga para os fracos de coração.

      Seu efetivo foi aumentado por uma centena ou mais de habitantes da cidade, padeiros gordos, tecelões míopes e cervejeiros rubicundos, mal armados e montando cavalinhos de perna curta ou animais bem mansos. A presença daquela gente era um sinal da impopularidade de Ranulf.

      O exército não poderia passar pelo castelo, pois os homens ficariam expostos aos tiros dos arqueiros, de modo que deixaram a cidade pelo portão norte, que era chamado de Arco Newport, e viraram para oeste. Era ali que a batalha seria travada.

      William estudou o terreno com um olhar penetrante. Embora a colina do lado sul da cidade mergulhasse subitamente no rio, a oeste a elevação era suave, até se confundir com a planície. Viu imeditamente que Estêvão escolhera a posição correta para defender a cidade, pois fosse qual fosse o modo como o inimigo se aproximasse, estaria sempre num plano inferior ao do exército do rei.

      Quando Estêvão estava a um quarto de milha de distância da cidade, dois batedores subiram a elevação, a galope. Localizaram o rei e foram diretamente até ele. William  juntou-se ao grupo que queria ouvir seu relatório.

      - O inimigo está se aproximando depressa, majestade – disse um dos batedores.

      William dirigiu o olhar para a planície. Sem dúvida, podia ver uma massa negra a distância, deslocando-se lentamente na direção onde eles se encontravam: o inimigo.

      Sentiu um calafrio de medo. Sacudiu-se, mas o medo persistiu. Desapareceria quando a batalha tivesse início.

      - Qual é o dispositivo deles? - perguntou o rei Estêvão.

      - Ranulf e os cavaleiros de Chester formam o centro, majestade - começou o batedor. - Estão a pé.

      William perguntou-se como o batedor teria sabido daquilo. Devia ter entrado no campo inimigo e ouvido as ordens de combate serem dadas. Exigia muita coragem e frieza.

      - Ranulf no centro? Como se ele fosse o líder, e não Robert?

      - Robert de Gloucester está no seu flanco esquerdo, com um exército de homens que se autodenominam os Deserdados - prosseguiu o batedor. William sabia por que usavam aquele nome: todos tinham perdido suas terras desde que a guerra civil começara.

      - Robert então deu a Ranulf o comando da operação – disse Estêvão pensativamente. - Uma pena. Conheço bem Robert - praticamente fui criado com ele -, e poderia adivinhar sua tática. Ranulf é um estranho para mim. Não faz mal. Quem está na direita?

      - Os galeses, majestade.

      - Arqueiros, suponho. Os homens de Gales do Sul têm boa reputação como arqueiros.

      - Não são esses - contrapôs o batedor. - No caso é uma multidão de loucos furiosos, de rosto pintado, cantando canções bárbaras e armados de martelos e porretes. Muito poucos têm cavalos.

      - Devem ser de Gales do Norte - ponderou Estêvão. – Acredito que Ranulf lhes tenha prometido o fruto da pilhagem. Que Deus ajude Lincoln se conseguirem entrar na cidade. Mas não entrarão! Qual é o seu nome, batedor?

      - Roger, chamado de Sem-Terra - respondeu o homem.

      - Sem-Terra? Você terá dez acres por esse trabalho.

      O homem ficou entusiasmado.

      - Muito obrigado, majestade!

      - Agora... - Estêvão virou-se e olhou para os seus condes. Estava prestes a tomar decisões. William ficou tenso, perguntando-se qual seria o papel que o rei lhe designaria. – Onde está o meu lorde Alan da Bretanha?

      Alan fez seu cavalo adiantar-se. Ele liderava uma força de mercenários bretões, homens sem raízes, que combatiam por dinheiro e cuja única lealdade era para com eles próprios.

      - Terei você e os seus bravos bretões na linha de frente, à minha esquerda - disse-lhe Estêvão.

      William percebeu a sabedoria daquela ordem: mercenários bretões contra aventureiros galeses, indignos de confiança versus indisciplinados.

      - William de Ypres! - exclamou Estêvão.

      - Majestade...  - Um homem moreno, num cavalo de batalha negro, levantou a lança. Aquele William era o líder de outra força de mercenários, homens flamengos, pouco mais confiáveis que os bretões, segundo o que se dizia.

      - Você também irá à minha esquerda - disse Estevão, – mas à retaguarda dos bretões de Alan.

      Os dois líderes mercenários fizeram uma volta e retornaram para junto dos seus homens, a fim de organizá-los. William perguntou-se onde seria colocado. Não tinha a menor vontade de estar na linha de frente. Já fizera bastante para se distinguir, trazendo seu exército. Uma posição segura e tranquila na retaguarda seria bem-vinda.

      - Meus lordes de Worcester, Surrey, Northampton, York e Hertford, com seus cavaleiros, formarão o meu flanco direito.

      Uma vez mais William reconheceu o bom senso das disposições de Estêvão. Os condes e seus cavaleiros, a maioria a cavalo, enfrentariam Robert de Gloucester e os nobres "deserdados" que o apoiavam, que, na maioria, estariam montados também.

      Entretanto, William ficou desapontado por não ter sido incluído no grupo dos condes. Teria o rei se esquecido dele?

      - Ficarei no centro, desmontado, com soldados a pé - disse Estêvão.

      Pela primeira vez William desaprovou uma decisão sua. Sempre era melhor ficar montado o maior tempo possível. Mas Ranulf, à frente do exército adversário, estava a pé, segundo as informações, e o espírito cavalheiresco de Estêvão o compelia a enfrentar o inimigo em igualdade de condições.

      - Comigo no centro terei William de Shiring e seus homens - disse o rei.

      William não sabia se ficava emocionado ou apavorado. Era uma grande honra ser escolhido para ficar ao lado do rei - sua mãe teria se sentido gratificada, mas essa escolha o colocava na mais perigosa das posições. Pior ainda, estaria a pé. O que significava também que o rei poderia vê-lo e julgar seu desempenho. Teria que aparentar não ter medo e se antecipar, levando o combate ao inimigo, em vez de se manter fora de problemas e combater só quando se visse forçado, como era sua tática favorita.

      - Os leais cidadãos de Lincoln comporão a retaguarda – disse Estêvão, no que era uma mistura de compaixão e bom senso militar. Os cidadãos não seriam de muita utilidade em parte alguma, mas na retaguarda poderiam causar menos prejuízo e sofreriam menos baixas.

      William levantou o estandarte do conde de Shiring. Tratava-se de outra idéia de sua mãe. No sentido estrito, ele não tinha direito ao estandarte, porque não era o conde; porém, os homens que o acompanhavam estavam acostumados a seguir o estandarte de Shiring - ou pelo menos era o que diria, se houvesse comentários. E, ao final do dia, se a batalha fosse bem-sucedida, ele poderia ser conde.

      Seus homens reuniram-se em torno dele. Walter ao seu lado, como sempre, uma presença forte e tranquilizadora. Da mesma forma Gervase Feio, Hugh Machado e Miles Dados.

      Gilbert, que morrera na pedreira, tinha sido substituído por Guillaume de St. Clair, um jovem de ar petulante e caráter perverso.

      Olhando à sua volta, William ficou furioso ao ver Richard de Kingsbridge usando uma reluzente armadura nova e montado num esplêndido cavalo de batalha. Estava com o conde de Surrey. Não trouxera um exército para o rei, como William, mas impressionava - rosto jovem, vigoroso, bravo, e se fizesse grandes coisas naquele dia poderia ganhar os favores reais. As batalhas eram imprevisíveis, assim como os monarcas.

      Por outro lado, talvez Richard viesse a perder a vida. Com um pouco de sorte, era o que aconteceria. William desejou a morte do irmão de Aliena mais do que jamais desejara uma mulher.

      Olhou para oeste. O inimigo estava mais próximo.

     

      Philip estava no telhado da catedral e podia ver Lincoln como num mapa. A cidade velha cercava a catedral no topo da colina. Tinha ruas retas, jardins e pomares bem tratados e o castelo no canto sudoeste. A parte nova, barulhenta e superpovoada, ocupava a parte mais íngreme ao sul, entre a cidade velha e o rio Witham. Aquela região normalmente fervilhava de atividade comercial, mas naquele dia estava coberta por um silêncio temeroso, como um pano mortuário, e as pessoas tinham ido para cima dos telhados a fim de assistir à batalha. O rio vinha do leste, corria ao longo do sopé da elevação, e depois se alargava num grande porto natural chamado Brayfield Pool, cercado de atracadouros e cheio de navios e barcos. Um canal chamado Fosdyke corria na direção oeste a partir de Brayfield Pool até o rio Trent, segundo o que haviam dito a Philip. Ali de cima, Philip maravilhou-se ao constatar como seguia reto por milhas e milhas. Dizia-se que fora construído nos tempos antigos.

      O canal formava o limite do campo de batalha. Philip viu o exército do rei Estêvão marchar para fora da cidade, uma multidão esfarrapada, e lentamente se organizar em três colunas sobre a colina. O prior sabia que Estêvão colocara os condes à sua direita porque eram os mais coloridos, com suas túnicas vermelhas e amarelas e seus estandartes vistosos. Eram também os mais ativos, indo e vindo em seus cavalos, dando ordens, consultando uns e outros e fazendo planos. O grupo à esquerda do rei, na parte da colina que descia até o canal, vestia-se de cinza e marrom, tinha menos cavalos e se agitava menos, economizando energia - deviam ser os mercenários.

      Além do exército de Estêvão, onde a linha do canal se tornava indistinta e se confundia com a vegetação da margem, o exército rebelde cobria os campos como um enxame de abelhas. A princípio parecia estar parado; porém, quando se olhava de novo após algum tempo, via-se que tinha se aproximado mais; agora, prestando bastante atenção, já dava para distinguir o movimento. Gostaria de saber seu efetivo. Todas as indicações eram de que os dois lados estavam bem equilibrados.

      Não havia nada que Philip pudesse fazer para influenciar o resultado - uma situação que detestava. Tentou acalmar o espírito e ser fatalista. Se Deus quisesse uma nova catedral em Kingsbridge, faria com que Robert de Gloucester derrotasse o rei Estêvão hoje, de modo que Philip pudesse pedir à vitoriosa Matilde para que o reintegrasse na posse da pedreira e o deixasse reabrir o mercado. E se Estêvão viesse a derrotar Robert, Philip teria que aceitar a vontade de Deus, desistir dos seus planos ambiciosos e deixar Kingsbridge mais uma vez mergulhar na sua sonolenta obscuridade.

      Por mais que se esforçasse, não conseguia pensar desse jeito. Queria que Robert vencesse.

      Um vento forte soprou sobre as torres da catedral e ameaçou derrubar os espectadores mais frágeis de cima das folhas de chumbo do telhado e atirá-los no cemitério ali embaixo. O vento era cortantemente frio. Philip estremeceu e se enrolou com mais força na capa.

      Os dois exércitos estavam agora a uma milha de distância.

     

      O exército rebelde parou quando estava a uma milha da linha de frente do rei. Era uma verdadeira tortura ser capaz de ver a massa do exército deles, mas não conseguir distinguir os detalhes. William queria saber quão bem armados estavam, se se mostravam determinados e agressivos ou cansados e relutantes, e até mesmo qual seria sua altura. Continuaram a avançar lentamente, enquanto os que se encontravam à retaguarda, motivados pela mesma ansiedade que William estava sentindo, pressionavam para a frente a fim de ver o inimigo.

      No exército de Estêvão, os condes e seus cavaleiros alinharam-se nos cavalos, com as lanças em posição de combate, como se estivessem num torneio, prontos a dar início à justa. Relutantemente, William mandou todos os cavalos do seu contingente para a retaguarda. Disse aos escudeiros que não voltassem à cidade com os animais, mas sim que os segurassem mantendo-os disponíveis para o caso de serem necessários - para fugir, foi o que pensou, embora não tivesse falado. Quando se perdia uma batalha, era melhor fugir do que morrer.

      Houve uma calmaria, quando teve a impressão de que o combate jamais começaria. O vento cedeu e os cavalos se acalmaram, embora os homens não. O rei Estêvão tirou o elmo e coçou a cabeça. William ficou desassossegado. Combater não era problema, mas pensar no combate o deixava nauseado.

      Então, sem nenhum motivo aparente, a atmosfera tornou-se tensa de novo. Um grito de batalha subiu aos céus. Todos os cavalos de repente ficaram irritadiços. Um grito de encorajamento teve início, quase que instantaneamente abafado pelo tropel dos cascos. A batalha começava. William sentiu o cheiro azedo e suado do medo.

      Olhou em torno de si, desesperado, tentando descobrir o que estava acontecendo, mas tudo era uma grande confusão e, estando de pé, só conseguia enxergar o que o cercava mais de perto. Os condes à sua direita pareciam ter iniciado a batalha, carregando contra o inimigo. Presumivelmente, as forças que se antepunham a eles, o exército de nobres deserdados do conde Robert, reagiam do mesmo modo, atacando em formação. Quase que ao mesmo tempo ouviu um grito à esquerda; virou-se e viu os mercenários bretões que estavam montados esporearem os cavalos. Com isso, um horrendo som ergueu-se da seção correspondente do exército inimigo - a horda galesa, ao que parecia. Não deu para ver quem levou vantagem.

      William perdera Richard de vista.

      Dúzias de flechas, como um bando de pássaros, vieram de trás das linhas inimigas e começaram a cair em torno dele. O lorde segurou o escudo acima da cabeça. Odiava flechas - matavam aleatoriamente.

      O rei Estêvão urrou o seu grito de guerra e investiu. William desembainhou a espada e precipitou-se para a frente, gritando para que seus homens o seguissem. Entretanto, os cavaleiros tinham se aberto em leque quando partiram para o ataque, colocando-se entre ele e o inimigo.

      Da sua direita veio o barulho ensurdecedor de ferro batendo em ferro, e o ar se encheu com um cheiro metálico que ele conhecia muito bem. Os condes e os Deserdados tinham entrado na batalha. Ele só conseguia ver homens e cavalos colidindo, girando, investindo, caindo. O relinchar dos animais era indistinguível dos gritos de guerra dos homens, e em algum lugar, em meio a todo aquele barulho, William ouviu os gritos pavorosos, de congelar os ossos, dos homens feridos que agonizavam. Esperava que Richard fosse um dos que estavam gritando.

      Olhou para a esquerda e ficou horrorizado ao ver que os bretões recuavam ante os porretes e os machados dos selvagens galeses; estes, tomados de fúria cega, gritavam, berravam e se atropelavam na ânsia de atacar o inimigo. Talvez estivessem sôfregos para pilhar a rica cidade. Os bretões, sem nada mais que a perspectiva de outra semana de pagamento para estimulá-los, lutavam defensivamente, cedendo terreno. William ficou enojado.

      Sentiu-se frustrado por não ter desferido ainda um único golpe. Estava cercado pelos seus cavaleiros, e mais adiante se encontravam os cavalos dos condes e dos bretões.

      Adiantou-se, colocando-se ligeiramente à frente e ao lado do rei. Havia luta por toda parte: cavalos tombados, homens brigando corpo a corpo com a ferocidade de leões, o retinir ensurdecedor das espadas e o cheiro enjoativo de sangue; William e o rei Estêvão, porém, estavam naquele momento presos numa zona morta.

      Philip podia ver tudo, mas não entendia nada. Não tinha ideia do que estava acontecendo. Era tudo uma confusão: lâminas faiscando, cavalos investindo, estandartes voando e caindo, e o barulho da batalha, carregado pelo vento, abafado pela distância. Era enlouquecedoramente frustrante. Alguns homens caíam e morriam, outros venciam e continuavam lutando, mas ele não podia dizer quem estava ganhando e quem estava perdendo.

     

      - O que é que está acontecendo? - perguntou-lhe um padre a seu lado, com uma capa de pele.

      - Não sei dizer - respondeu Philip, sacudindo a cabeça.

      Entretanto, no próprio momento em que falava ele conseguiu discernir um movimento. À esquerda do campo de batalha, alguns homens desciam correndo a colina na direção do canal. Tratava-se de mercenários vestidos com roupas pardacentas e, pelo que Philip podia dizer, eram os homens do rei que fugiam e os da tribo galesa de rosto pintado que os perseguiam. Os gritos vitoriosos dos galeses podiam ser ouvidos dali de cima. Philip se encheu de esperanças: os rebeldes estavam vencendo!

      Houve então uma transformação no outro lado. À direita, onde os homens montados estavam engajados, o exército do rei parecia recuar. O movimento a princípio foi insignificante, depois firme e por fim rápido; e enquanto Philip olhava, a retirada transformou-se numa debandada, e inúmeros homens do rei viraram o cavalo e começaram a fugir do campo de batalha.

      Philip ficou exultante: aquela devia ser a vontade de Deus!

     

      Poderia estar terminando tão rapidamente? Os rebeldes avançavam, mas o centro ainda se mantinha firme. Os homens à volta do rei Estêvão lutavam mais impetuosamente que os dos lados. Seriam capazes de deter o fluxo? Talvez Estêvão e Robert de Gloucester lutassem um com o outro: o combate entre dois líderes às vezes podia resolver a questão independentemente do que estivesse acontecendo no resto do campo de batalha. Ainda não terminara.

      A maré virou com horrível velocidade. Num momento os dois exércitos estavam em igualdade de condições, e no momento seguinte os homens do rei recuavam depressa.

      William sentiu-se profundamente desalentado. À sua esquerda, os mercenários bretões desciam correndo a colina, perseguidos até o canal pelos galeses; e, à direita, os condes, com seus cavalos de batalha, viravam de costas e tentavam fugir na direção de Lincoln. Só o centro sustentava sua posição: o rei Estêvão estava onde a luta era mais renhida, dando golpes de espada a torto e a direito, com os homens de Shiring à sua volta como uma alcatéia. Mas a situação era instável. Se os flancos continuassem a se retrair, o rei terminaria cercado. William queria que Estêvão recuasse. Mas o rei era mais corajoso que sábio, e continuou lutando.

      O lorde sentiu que toda a batalha dava uma guinada para a esquerda. Olhando à sua volta, viu que os mercenários flamengos vinham de trás e caíam sobre os galeses, que foram forçados a parar de perseguir os bretões na encosta da colina para se defenderem. Por um momento houve uma tremenda confusão. Em seguida, os homens de Ranulf de Chester, no meio da linha de frente do inimigo, atacaram os flamengos, que assim se viram espremidos entre os homens de Chester e os galeses.

      Ao ver a incursão inimiga, o rei Estêvão instou a seus homens para que pressionassem mais frontalmente. William achou que Estêvão tinha cometido um erro. Se as forças do rei pudessem estreitar contato com os homens de Ranulf, seria este quem se veria encurralado entre dois lados.

      Um dos cavaleiros de William caiu na frente dele, que subitamente se viu no meio do combate.

      Um nortista musculoso, com sangue na espada, investiu contra ele. O lorde aparou o golpe facilmente: estava descansado, e seu antagonista, pelo contrário, já bastante fatigado. William procurou atingir a cara do homem, errou, e teve que aparar outro golpe. Então levantou a espada bem alto, abrindo a guarda deliberadamente; quando o outro adiantou-se com outra estocada, William esquivou-se e, segurando a espada com as duas mãos, acertou o ombro. O golpe partiu-lhe a armadura, quebrando a clavícula, e ele caiu.

      O lorde desfrutou um momento de júbilo. Seu medo desaparecera.

      - Venham, seus cachorros! - trovejou.

      Dois outros homens tomaram o lugar do cavaleiro caído e atacaram William simultaneamente. Ele os manteve afastados mas foi forçado a ceder terreno.

      Houve um movimento maior à direita, e um dos seus oponentes teve que se virar e se defender de um homem de rosto vermelho armado com uma machadinha, e que parecia um açougueiro enlouquecido. Isso deixou apenas um antagonista para Hamleigh. Ele sorriu selvagemente e pressionou. Seu oponente entrou em pânico e arremeteu desvairado contra a cabeça de William. Este desviou e acertou o homem na coxa, logo abaixo da franja da sua jaqueta curta de malha. A perna vergou e o homem caiu.

      Uma vez mais William não tinha com quem lutar. Ficou imóvel, ofegante. Por um momento pensara que o exército do rei seria destroçado, mas suas fileiras tinham se reorganizado, e agora nenhum dos dois lados parecia ter vantagem. Olhou para o lado direito, perguntando-se o que teria destruído um dos seus dois adversários. Para seu assombro, viu que os habitantes de Lincoln apresentavam uma resistência ferrenha ao inimigo. Talvez fosse porque estivessem defendendo as próprias casas. Mas quem os organizara, depois que os condes naquele flanco tinham batido em retirada? A pergunta foi prontamente respondida: para seu espanto, viu Richard de Kingsbridge, em seu cavalo de batalha, insistindo que os moradores de Lincoln persistissem. O coração de William desfaleceu. Se o rei visse sua bravura, poderia pôr a perder todo o trabalho de Hamleigh. Deu uma olhada em Estêvão. Justo naquele instante o rei surpreendeu o olhar de Richard e acenou, encorajando-o. William deixou escapar uma praga de ressentimento.

      A pressão dos habitantes de Lincoln aliviou a situação do rei, mas Apenas por um momento. À esquerda, os homens de Ranulf tinham desbaratado os mercenários flamengos, e agora Ranulf se voltou contra a posição central das forças defensivas. Ao mesmo tempo, os chamados Deserdados investiram contra Richard e os habitantes de Lincoln, e o combate tornou-se furioso.

      William foi atacado por um homem imenso armado com um machado de guerra. Esquivou-se, desesperado, receando pela própria vida. A cada golpe ele pulava para trás, e constatava, apavorado, que o grosso do exército do rei estava recuando no mesmo ritmo. À sua esquerda, os galeses retomaram ao topo da colina e, inacreditavelmente, começaram a jogar pedras. Era ridículo mas efetivo, pois agora William tinha que, ao mesmo tempo, ficar de olho nas pedras e se defender do gigante com a machadinha.

      Parecia haver um número muito maior de inimigos agora do que antes, e William sentiu, em desespero, que o efetivo do rei fora suplantado. Um terror histérico subiu-lhe pela garganta ao constatar que a batalha estava praticamente perdida e ele se encontrava em perigo mortal. O rei deveria fugir agora. Por que ainda estava lutando?

      Era insano; ele seria morto... Todos seriam mortos! O adversário de William levantou o machado bem alto. Os instintos de guerreiro de Hamleigh o dominaram por um instante, e em vez de recuar, como vinha fazendo antes, pulou para a frente e arremeteu contra a cara do homem enorme. A ponta da sua espada entrou no pescoço dele logo abaixo do queixo. William imprimiu força à estocada. Os olhos do homem se fecharam, proporcionando-lhe um momento de grato alívio. Em seguida ele puxou a espada e pulou para trás, agora para escapar do machado que caía das mãos do morto.

      Deu uma rápida olhada no rei, algumas jardas à sua esquerda. Enquanto olhava, Estêvão baixou a espada com força no elmo de um homem e ela se partiu em duas, como um galho seco. Pronto, pensou William com alívio; a batalha estava acabada. O rei recuaria e se pouparia para combater em outra ocasião. Mas a esperança foi prematura.

      Hamleigh começara a se virar, pronto para correr, quando um habitante de Lincoln ofereceu ao rei um machado de lenhador, de cabo comprido. Para assombro de William, Estêvão o aceitou e continuou a combater.

      Hamleigh sentiu-se tentado a fugir. Mas olhando para a sua direita, viu Richard a pé, lutando como um louco, pressionando, dando um golpe atrás do outro com a espada, abatendo homens à esquerda, à direita e no centro. William não podia retrair enquanto seu rival ainda estava lutando.

      Foi atacado de novo, dessa vez por um homem de baixa estatura que se movia muito rapidamente, a espada faiscante à luz do sol. Quando suas armas se chocaram, percebeu que estava se defrontando com um combatente temível. Mais uma vez se viu na defensiva e receando pela própria vida; saber que a batalha estava perdida minava sua vontade de lutar. Aparou as rápidas estocadas que lhe foram dirigidas, querendo poder encaixar um golpe com força bastante para atravessar a armadura do homem. Viu uma chance e investiu. O outro esquivou-se e arremeteu também - William sentiu o braço ficar dormente. Tinha sido ferido. Ficou nauseado de tanto medo. Continuou a recuar ante o assalto do outro, sentindo-se estranho e desequilibrado, como se o chão estivesse se mexendo sob seus pés. Seu escudo ficou pendurado no pescoço, solto: não era capaz de segurá-lo firmemente com seu braço esquerdo inútil. O baixinho pressentiu a vitória e intensificou o ataque. Hamleigh anteviu seu fim e encheu-se de pavor mortal.

      De repente Walter apareceu ao seu lado.

      William recuou. Seu cavaleiro brandiu a espada, segurando-a com as duas mãos. Pegando o baixinho de surpresa, cortou-o como um arbusto. William subitamente sentiu-se tonto de alívio. Pôs uma das mãos no ombro do companheiro.

      - Perdemos! - gritou Walter. - Vamos dar o fora!

      Recobrou a calma. O rei ainda lutava, embora a batalha estivesse perdida. Se ao menos ele desistisse agora, e tentasse fugir, poderia deslocar-se para o sul e montar outro exército. Mas quanto mais ficasse ali lutando, maior a probabilidade de ser capturado ou morto, o que poderia significar apenas uma única coisa: Matilde seria a rainha.

      William e Walter deslocaram-se imperceptivelmente para trás. Por que o rei estava sendo tão tolo? Tinha que provar coragem. A galanteria seria sua morte. Uma vez mais William sentiu-se tentado a abandonar o rei. Mas Richard de Kingsbridge ainda estava ali, mantendo o flanco direito com a firmeza de uma rocha, brandindo a espada e derrubando inimigos como se fosse uma ceifadeira.

      - Ainda não! - exclamou William para Walter. - Observe o rei!

      Recuaram passo a passo. O combate tornou-se menos feroz quando os homens perceberam que o resultado já estava decidido e que não adiantava nada se arriscar. William e Walter cruzaram espadas com dois cavaleiros, mas, como estes se contentaram em forçá-los a recuar, aqueles lutaram defensivamente. Golpes fortes eram trocados, mas ninguém se expunha ao perigo.

      William recuou dois passos e arriscou olhar para o rei. Naquele exato momento uma pedra atravessou o campo de luta e acertou o elmo de Estêvão. O rei cambaleou e caiu de joelhos.

      O adversário de William virou a cabeça para ver o que este estava olhando. O machado caiu das mãos de Estêvão. Um cavaleiro inimigo correu e tirou-lhe o elmo.

      - O rei! - gritou, triunfante. - Eu tenho o rei!

      William, Walter e todo o exército real se viraram e saíram correndo.

     

      Philip sentiu-se jubiloso. A retirada começou no meio do exército do rei e espalhou-se como uma onda para os flancos. Em questão de momentos todo o exército real estava batendo em retirada. Era a recompensa do rei Estêvão pela injustiça praticada.

      Os atacantes perseguiram os fugitivos. Havia quarenta ou cinquenta cavalos na retaguarda do exército do rei, seguros por escudeiros, e alguns dos fugitivos montaram neles e saíram galopando, não na direção da cidade de Lincoln, mas buscando campo aberto.

      Philip perguntou-se o que teria acontecido a Estêvão.

      Os cidadãos de Lincoln deixaram apressadamente os telhados. Crianças e animais foram recolhidos. Algumas famílias desapareceram dentro de casa, fechando as janelas e trancando as portas. Houve uma certa agitação nos barcos do lago: alguns cidadãos tentavam fugir usando o rio. As pessoas começaram a se dirigir à catedral, buscando refúgio.

      Em cada entrada da cidade, corria gente para fechar os imensos portões guarnecidos de ferro. De repente, os homens de Ranulf de Chester irromperam do castelo. Dividiram-se em grupos, decerto seguindo um plano previamente combinado, e cada grupo foi para um portão. Enérgicos, investiram contra os cidadãos, derrubando-os à direita e à esquerda, e reabriram os portões para admitir os rebeldes vitoriosos.

      Philip decidiu sair de cima do telhado da catedral. Os outros que estavam com ele, em sua maior parte cônegos, tiveram a mesma idéia. Todos se abaixaram para passar pela pequena porta que dava na torre. Ali encontraram o bispo e os arcediagos, que tinham ficado numa posição mais alta. Philip achou que o bispo Alexander parecia assustado. Era uma pena: ele precisaria de coragem para compartilhar com os outros naquele dia.

      Todos desceram cuidadosamente a comprida e estreita escada em espiral, indo sair na nave da igreja, do lado oeste. Já havia cerca de cem cidadãos ali dentro, e não parava de chegar mais gente pelas três grandes portas. Enquanto Philip estava olhando, dois cavaleiros entraram no pátio da catedral, manchados de sangue e enlameados, galopando; obviamente vinham da batalha. Os dois entraram direto na igreja sem desmontar. Ao verem o bispo, um deles gritou:

      - O rei foi capturado!

      O coração de Philip deu um salto. O rei não só fora derrotado, como também aprisionado! As forças leais a Estêvão em todo o reino certamente cairiam. As implicações se atropelaram umas sobre as outras na imaginação do prior, mas antes que pudesse ordená-las, ouviu o bispo Alexander gritar:

      - Fechem as portas!

      Philip mal pôde acreditar no que ouvia.

      - Não! - gritou, por sua vez. - Não pode fazer isso!

      O bispo o encarou, branco de medo. Não tinha certeza de quem era Philip. O prior lhe fizera uma visita formal, por cortesia, mas não se falavam desde então. Foi com visível esforço que Alexander se lembrou dele.

      - Esta não é a sua catedral, prior Philip, é a minha. Fechem as portas! - Diversos padres foram cumprir o que ele ordenara.

      Philip ficou horrorizado com aquela demonstração de egoísmo da parte de um clérigo.

      - Não pode trancar as pessoas do lado de fora! - gritou, furioso. - Podem ser mortas!

      - Se não trancarmos as portas nós todos seremos mortos! - berrou histericamente Alexander.

      Philip agarrou-o pela parte da frente do hábito.

      - Lembre-se de quem você é - disse, por entre os dentes. - Não se espera que tenhamos medo, especialmente da morte. Controle-se!

      - Façam com que ele me largue! - gritou Alexander. Vários cônegos puxaram Philip, afastando-o do bispo.

      - Não vêem o que ele está fazendo? - perguntou-lhes Philip.

      - Se é tão corajoso - disse um dos cônegos, – por que não vai lá fora e os protege você mesmo?

      Philip libertou-se das mãos dos cônegos.

      - É exatamente o que vou fazer - disse.

      Virou-se. A grande porta central estava sendo fechada. Correu pela nave. Três padres empurravam a porta, enquanto mais gente lutava para ver se conseguia entrar pela passagem cada vez mais estreita. Espremendo-se, Philip conseguiu sair pouco antes do fechamento.

      Nos momentos seguintes, uma pequena multidão havia se reunido na entrada da catedral. Homens e mulheres batiam e gritavam, pedindo que os deixassem entrar, mas não havia resposta dentro da igreja.

      Subitamente Philip sentiu medo. O pânico no rosto daquelas pessoas trancadas ali fora o assustou. Sentiu que tremia. Defrontara-se com um exército vitorioso quando tinha seis anos de idade, e o horror que sentira então voltou agora. O momento em que os homens de armas invadiram a casa de seus pais foi evocado tão vividamente como se tivesse acontecido na véspera. Ficou imobilizado no lugar onde estava, tentando parar de tremer, enquanto a multidão fervilhava à sua volta. Fazia muito tempo que não era atormentado por aquele pesadelo. Viu a avidez por sangue estampada no rosto dos homens, o modo como a espada transfixara sua mãe, a visão horrível das vísceras do seu pai saltando do abdómen, e sentiu de novo aquele mesmo terror histérico, insano, incompreensível, esmagador. Então viu um monge entrar com uma cruz na mão; os gritos cessaram. O monge ensinou a ele e a seu irmão como fechar os olhos da mãe e do pai, para que pudessem dormir o longo sono. Philip se lembrou, como se tivesse acabado de acordar de um sonho, que não era mais uma criança assustada, que era um homem adulto e um monge; e assim como o abade Peter salvara a ele e a seu irmão naquele dia horrível, vinte e sete anos antes, o homem-feito Philip, hoje fortalecido pela fé e protegido por Deus, iria em auxílio daqueles que tinham medo.

      Obrigou-se a dar um passo à frente; uma vez feito isso, o segundo passo seria um pouco menos difícil, e o terceiro quase fácil.

      Quando chegou à rua que seguia na direção do portão oeste quase foi derrubado por uma multidão de fugitivos: homens e mulheres carregando fardos com suas preciosas propriedades, velhos arquejando, garotas gritando, mulheres com crianças esquálidas nos braços. A pressão daquela gente o empurrou de volta algumas jardas, mas depois ele lutou contra o fluxo. As pessoas se encaminhavam para a catedral. Queria lhes dizer que estava fechada, e que eles deveriam ficar quietos em suas casas e trancarem as portas. Entretanto, todos estavam gritando e ninguém estava ouvindo.

      Progrediu vagarosamente ao longo da rua, deslocando-se no sentido contrário ao do fluxo das pessoas. Avançara apenas algumas jardas quando apareceu um grupo de quatro cavaleiros, a galope. Eram eles a causa da correria. Algumas pessoas se achatavam de encontro às paredes das casas, mas outras não podiam sair da frente a tempo e muitas caíam sob as patas dos cavalos. Philip ficou horrorizado, mas não havia nada que pudesse fazer, e se meteu numa viela para não se tornar uma vítima. Um momento mais tarde os cavaleiros haviam passado e a rua ficou deserta.

      Diversos corpos ficaram no chão. Quando Philip saiu da viela viu um deles se mover: um homem de meia-idade, de casaco vermelho, tentava se arrastar, a despeito de uma perna ferida. O prior atravessou a rua, tencionando carregar o homem; antes que chegasse ali, porém, apareceram dois soldados de elmo de ferro e escudo de madeira.

      - Aquele ali está vivo, Jake - disse um deles.

      Philip estremeceu. Teve a impressão, pelas maneiras dos soldados, por suas vozes e roupas, e até mesmo pela expressão do rosto, que eram os mesmos homens que haviam matado seus pais.

      - Ele vai render um resgate: olhe aquele casaco vermelho - disse o que se chamava Jake e, virando-se, pôs os dedos na boca e deu um assobio. Um terceiro homem apareceu correndo. - Leve o Casaco Vermelho ali para o castelo e o amarre.

      O terceiro homem passou os braços pelo tórax do cidadão ferido e o arrastou. Quando suas pernas machucadas começaram a bater nas pedras, ele gritou de dor.

      - Parem! - ordenou Philip. Todos pararam por um momento, olharam para ele e riram; depois prosseguiram.

      Philip gritou de novo, mas eles o ignoraram. Ficou observando, impotente, vendo-o  ser levado embora. Outro homem de armas saiu de uma casa, vestido num casaco de pele comprido e com seis pratos de prata debaixo do braço. Jake viu e reparou no produto da pilhagem.

      - Essas casas são ricas - disse ao companheiro. - Devíamos entrar numa delas e ver o que podemos encontrar. - Eles subiram até a porta de uma casa de pedra e a atacaram com um machado de guerra.

      Philip sentia-se inútil, mas não estava disposto a desistir. No entanto, Deus não o pusera naquela posição para defender as propriedades dos ricos, e ele deixou Jake e seus companheiros e apressou-se na direção do portão oeste. Mais homens de armas surgiram correndo ao longo das ruas. Em meio a eles havia diversos homens morenos, baixos, de rosto pintado, vestidos com casacos de pele de carneiro e armados com porretes. Eram os selvagens galeses, percebeu Philip, envergonhando-se por ser da mesma terra que aqueles brutos. Encostou-se a uma parede e tentou passar despercebido.

      Dois homens saíram de uma casa de pedra arrastando pelas pernas um homem de barba branca e solidéu. Um deles espetou uma faca no pescoço do homem e perguntou:

      - Onde está seu dinheiro, judeu?

      - Não tenho dinheiro - lamentou-se o homem. Ninguém acreditaria naquilo, pensou Philip. A fortuna dos judeus de Lincoln era famosa; e, de qualquer forma, o homem morava numa casa de pedra.

      Outro homem de armas apareceu, arrastando uma mulher pelos cabelos. Era de meia-idade, e devia ser a esposa do judeu. O primeiro homem gritou:

      - Diga onde está o dinheiro, ou enfio a lâmina na boceta dela. - Ergueu a saia da mulher, expondo seus pêlos púbicos grisalhos, e apontou uma adaga comprida.

      Philip estava a ponto de intervir, mas o velho cedeu imediatamente.

      - Não a machuquem, o dinheiro está nos fundos - disse, nervoso. - Está enterrado na horta, perto da pilha de lenha. Por favor, soltem-na.

      Os três homens correram para os fundos da casa. A mulher ajudou o homem a se pôr de pé. Outro grupo de cavaleiros surgiu galopando na rua estreita, e Philip saiu da frente mais que depressa. Quando se ajeitou de novo, os judeus tinham sumido.

      Viu um rapaz de armadura correndo para salvar a vida, com três ou quatro galeses no seu encalço. Eles o alcançaram justamente quando emparelhou com Philip. O perseguidor que ia mais à frente brandiu a espada e tocou na barriga da perna do rapaz. Não pareceu a Philip uma ferida profunda, mas foi o suficiente para fazer o jovem tropeçar e cair no chão. Outro galês correu até ele e levantou um machado. com o coração na boca, o prior deu um passo em frente:

      - Pare! - gritou ele.

      O homem levantou mais ainda o machado.

      Philip correu em sua direção.

      O homem brandiu o machado, mas o prior o empurrou no último instante. A lâmina da arma bateu ruidosamente no pavimento de pedra a um pé da cabeça da vítima. O atacante recuperou o equilíbrio e olhou atônito para Philip. O religioso o encarou também, tentando não tremer, querendo poder se lembrar de uma ou duas palavras de galês.

      Antes que qualquer um deles se mexesse, os outros dois perseguidores chegaram aonde eles estavam, e um tropeçou em Philip, derrubando-o - o que provavelmente salvou sua vida, conforme percebeu um momento depois. Quando se recuperou, todos o tinham esquecido.  Estavam chacinando o pobre rapaz com inacreditável selvageria. Philip conseguiu se levantar, mas já era tarde demais: seus martelos e machados estavam golpeando um cadáver. Philip olhou para o céu e gritou, furioso:

      - Se não posso salvar ninguém, por que me mandou para cá?

      Como que em resposta a sua pergunta, ouviu um grito vindo de uma casa próxima. Era uma construção de pedra e madeira, de um só andar, não tão cara quanto as que a cercavam. A porta estava aberta. Philip entrou correndo. Havia dois cômodos separados por um arco, e palha no chão. Uma mulher com dois filhos pequenos estava encolhida num canto, aterrorizada. Três homens de armas no meio da casa confrontavam-se com um homem pequeno e calvo. Uma jovem de cerca de dezoito anos jazia no chão. Seu vestido fora rasgado e um dos três soldados estava ajoelhado sobre o seu tórax, mantendo as coxas dela abertas. Era evidente que o careca tentava evitar que estuprassem a filha. Quando Philip entrou, atirou-se contra um dos homens de armas, que o empurrou para um lado. O careca recuou, cambaleando. O soldado enfiou a espada na sua barriga. A mulher no canto gritou como uma alma perdida.

      - Parem! - gritou o prior.

      Todos olharam para ele como se fosse maluco.

      - Vocês todos irão para o inferno se fizerem isto! - disse Philip, no seu tom de voz mais autoritário.

      O tipo que matara o careca levantou a espada para Philip.

      - Espere um minuto - disse o homem no chão, ainda segurando as pernas da garota. - Quem é você, monge?

      - Sou Philip de Gwynedd, prior de Kingsbridge, e ordeno em nome de Deus que deixem essa garota em paz, se têm amor a sua alma imortal.

      - Um prior! Logo vi! - disse o homem no chão. - Vale um resgate.

      - Vá para o canto com a mulher, que é o seu lugar - disse o primeiro homem, embainhando a espada.

      - Não ponha as mãos no hábito de um monge - disse Philip, tentando parecer perigoso, mas percebendo muito bem a nota de desespero que havia em sua voz.

      - Leve-o para o castelo, John - disse o homem que estava sentado em cima da garota. Ele parecia ser o líder.

      - Vá para o inferno - disse John. - Quero trepar com ela primeiro. - Ele agarrou Philip pelos braços, e antes que pudesse resistir, jogou-o no canto. O prior caiu no chão ao lado da mulher.

      O homem chamado John ergueu a parte da frente da túnica e atirou-se sobre a garota. Sua mãe virou de lado e começou a soluçar.

      - Não vou assistir a isto! - exclamou Philip. Levantou-se e agarrou o estuprador pelo cabelo, afastando-o da garota. O homem grunhiu de dor.

      O terceiro homem levantou um porrete. O prior viu o golpe se aproximando, mas já era tarde demais. O porrete atingiu sua cabeça. Sentiu uma dor agonizante por um momento, depois tudo escureceu, e ele perdeu a consciência antes de cair no chão.

      Os prisioneiros foram levados ao castelo e trancados em celas. Estas eram sólidas estruturas de madeira, como casas em miniatura, com seis pés de comprimento e três de largura, e apenas um pouco mais altas que a cabeça de um homem. Em vez de paredes inteiriças tinham barras verticais não muito espaçadas, que possibilitavam ao carcereiro ver o lado de dentro. Em tempos normais, quando eram usadas para confinar ladrões, assassinos e hereges, havia apenas uma ou duas pessoas por cela.

      Naquela oportunidade, os rebeldes puseram oito ou dez em cada uma, e ainda havia mais prisioneiros. Os cativos excedentes foram amarrados com cordas e arrebanhados para um canto do conjunto. Poderiam ter escapado facilmente, mas não o fizeram, decerto porque estavam mais seguros ali do que do lado de fora, na cidade.

      Philip sentou-se no canto de uma cela, com uma terrível dor de cabeça, sentindo-se tolo e fracassado. No fim ele tinha sido tão inútil quanto o covarde bispo Alexander.

      Não salvara uma única vida; nem sequer impedira um só golpe. Os cidadãos de Lincoln não teriam estado em pior situação sem ele. Ao contrário do abade Peter, ele fora impotente para deter a violência. Simplesmente não sou o homem que o abade Peter era, pensou ele.

      Pior ainda: em sua vã tentativa de ajudar os moradores de Lincoln ele provavelmente tinha jogado fora a chance de conseguir as concessões que queria, se Matilde se tornasse rainha. Agora era prisioneiro do exército dela. Assim, presumiriam que estivera com as forças do rei Estêvão. O priorado de Kingsbridge teria que pagar um resgate pela sua libertação. Era bem provável que a coisa toda chegasse aos ouvidos de Matilde; nesse caso ela tomaria posição contra Philip. Sentiu-se nauseado, desapontado e cheio de remorsos.

      Mais prisioneiros foram trazidos durante o dia. O fluxo terminou por volta do anoitecer, mas o saque da cidade prosseguiu fora das muralhas do castelo: Philip podia ouvir os gritos, brados e demais sons da destruição. Ao se aproximar a meia-noite o barulho diminuiu, presumivelmente quando os soldados ficaram tão bêbados com o vinho roubado e tão saciados de estupros e violência que não mais puderam causar danos. Um número pequeno deles voltou cambaleando para o castelo, jactando-se dos seus triunfos, discutindo e brigando uns com os outros e vomitando no capim; acabaram por cair no chão, insensíveis, e dormiram.

      Philip adormeceu também, embora não tivesse espaço suficiente para deitar e precisasse se encolher no canto com as costas apoiadas nas barras de madeira da cela.

      Acordou de madrugada, tremendo de frio, mas a dor aguda na cabeça abrandara, misericordiosamente, transformando-se numa dor mais difusa. Levantou-se para esticar as pernas e bateu com os braços do lado do corpo para se aquecer. Todos os prédios do castelo estavam superlotados. Os estábulos, com a parte da frente aberta, revelavam homens dormindo nas baias, enquanto os cavalos haviam sido amarrados do lado de fora. Pares de pernas saíam pela porta da padaria e da cozinha. A pequena minoria de soldados armara barracas. Havia cavalos por toda parte. No canto sudeste do conjunto do castelo ficava a fortaleza, um castelo dentro de um castelo, construído sobre uma alta elevação, com as poderosas muralhas de pedra circundando meia dúzia ou mais de construções de madeira. Os condes e cavaleiros do lado vencedor estariam ali dentro dormindo após as comemorações.

      A cabeça de Philip voltou-se para as implicações da batalha da véspera. Aquilo significava que a guerra terminara? Provavelmente. Estêvão tinha uma esposa, a rainha Matilda, que podia continuar a luta: ela era a condessa de Boulogne, e com seus cavaleiros franceses tomara o Castelo de Dover no início da guerra e agora controlava grande parte de Kent em nome do marido. No entanto, encontraria dificuldade para conseguir apoio dos barões enquanto Estêvão estivesse na prisão. Poderia manter Kent por algum tempo, mas era improvável que obtivesse mais vitórias.

      O fato é que os problemas de Matilde ainda não estavam terminados. Tinha ainda que consolidar sua vitória militar, ganhar a aprovação da Igreja e ser coroada em Westminster. No entanto, com determinação e um pouco de sabedoria, provavelmente teria êxito.

      E isso seria uma boa notícia para Kingsbridge; ou poderia ser, se Philip pudesse sair dali sem ser considerado partidário de Estêvão.

      Não havia sol, mas esquentou um pouco quando o dia clareou. Os companheiros de prisão de Philip foram acordando gradualmente, gemendo de dor: a maioria tinha, no mínimo, sofrido equimoses, e se sentiam pior após uma noite fria, com apenas a proteção mínima do teto e das barras da cela. Alguns eram cidadãos ricos; outros, cavaleiros aprisionados na batalha. Quando a maioria havia acordado, Philip perguntou:

      - Alguém viu o que aconteceu com Richard de Kingsbridge? - Ele esperava que Richard tivesse sobrevivido, pelo bem de Aliena.

      - Ele lutou como um leão - disse um homem com uma atadura ensanguentada na cabeça. - Liderou os habitantes da cidade quando as coisas ficaram feias.

      - Viveu ou morreu?

      O homem sacudiu a cabeça ferida lentamente.

      - Não o vi no final.

      - E William Hamleigh? - Seria uma bênção se William tivesse ficado no campo de batalha.

      - Esteve junto do rei a maior parte do tempo. Mas fugiu no fim; eu o vi num cavalo, a galope, bem à frente de todos.

      - Ah! - O restinho de esperança desapareceu. Os problemas de Philip não seriam resolvidos tão facilmente.

      A conversa cessou e a cela ficou em silêncio. Do lado de fora, os soldados já se mexiam, tratando de sua ressaca, verificando o que tinham pilhado, certificando-se de que os prisioneiros ainda permaneciam em cativeiro, pegando o desjejum na cozinha. Philip perguntou-se se os prisioneiros seriam alimentados. Era preciso, pensou, pois de outro modo morreriam e não haveria resgates; mas quem assumiria a responsabilidade de alimentar toda aquela gente? Esse tipo de idéia o fez começar a pensar no período de tempo que ficaria ali. Seus captores teriam que mandar uma mensagem a Kingsbridge, exigindo um resgate. Os irmãos precisariam mandar um deles para negociar sua libertação. Quem seria? Milius seria o melhor, mas Remigius, como subprior, era o encarregado na ausência de Philip, e poderia mandar um de seus amigos ou até mesmo vir em pessoa. Remigius faria tudo lentamente: era incapaz de ação pronta e decisiva, mesmo no seu próprio interesse.

      Poderia levar meses. Philip ficou ainda mais abatido.

      Outros prisioneiros tinham mais sorte. Logo após o raiar do sol, suas esposas, filhos e parentes começaram a aparecer no castelo, temerosos e hesitantes a princípio, depois com mais confiança, para negociar o resgate. Barganhariam com os captores por algum tempo, alegando falta de dinheiro, oferecendo jóias baratas ou outros bens; por fim chegariam a um acordo, voltariam a suas casas e retornariam um pouco mais tarde com o resgate que tivesse ficado acertado, normalmente em espécie.

      O butim ficaria cada vez mais alto, e as celas iriam se esvaziando.

      Pelo meio-dia metade dos prisioneiros já se fora. Philip presumiu que se tratava de gente da localidade. Os remanescentes, provavelmente cavaleiros aprisionados durante a batalha, deviam ser de cidades distantes. A impressão foi confirmada quando o guardião do castelo apareceu e perguntou os nomes de todos os prisioneiros: a maioria era de cavaleiros do sul. Philip notou que em uma das celas havia um único homem, preso numa espécie de tronco, como se alguém quisesse ter certeza absoluta de que não poderia fugir. Após observar o prisioneiro especial por alguns minutos, Philip percebeu de quem se tratava.

      - Vejam! - disse aos três homens da sua cela. - Aquele homem ali, sozinho. É mesmo quem estou pensando que é?

      Os outros olharam.

      - Por Cristo, é o rei! - disse um deles, e os outros concordaram.

      O prior ficou olhando para o homem enlameado, de cabelos alourados e mãos e pés desconfortavelmente presos nos estreitos orifícios do tronco. Parecia ser igual aos demais. Ainda na véspera era o rei da Inglaterra, e recusara conceder a Kingsbridge uma licença para o funcionamento de um mercado. Nesse dia não poderia sequer se levantar sem que alguém lhe desse licença. O rei tivera o que merecera, mas mesmo assim Philip sentiu pena dele.

      No início da tarde deram comida aos prisioneiros. Eram restos mornos do jantar servido aos combatentes, mas eles se atiraram àquela comida sofregamente. O prior relutou em servir-se, deixando que os outros tivessem a maior parte, porque, além de considerar a fome uma fraqueza básica contra a qual, de vez em quando, se devia resistir, via qualquer jejum forçado como uma oportunidade para mortificar a carne.

      Quando os prisioneiros raspavam as tigelas, houve uma agitação na fortaleza, e entrou um grupo de condes. Enquanto desciam as escadas e atravessavam o conjunto do castelo, Philip observou que dois iam à frente dos demais e eram tratados com deferência. Deviam ser Ranulf de Chester e Robert de Gloucester, mas Philip não sabia quem era quem. Eles se aproximaram da cela de Estêvão.

      - Bom dia, primo Robert - disse Estêvão, enfatizando fortemente a palavra "primo".

      Foi o mais alto dos dois homens quem respondeu.

      - Não era minha intenção que você passasse a noite preso no tronco. Mandei que o tirassem, mas a ordem não foi obedecida. No entanto, parece que sobreviveu.

      Um homem em trajes religiosos separou-se do grupo e dirigiu-se à cela de Philip. A princípio, este não lhe deu atenção, porque Estêvão estava perguntando o que iria ser feito com ele, e Philip queria ouvir a resposta; porém, o padre perguntou:

      - Qual de vocês é o prior de Kingsbridge?

      - Eu - respondeu Philip.

      - Solte-o - disse o religioso para um dos homens de armas que haviam aprisionado Philip.

      O prior ficou assombrado. Nunca vira aquele padre na vida. Era evidente que seu nome fora descoberto na lista preparada pelo guardião do castelo. Mas por quê? Ficaria contente em sair da cela, mas não era hora de se rejubilar - não sabia o que o aguardava.

      O homem de armas protestou.

      - Ele é meu prisioneiro!

      - Não é mais - retrucou o padre. - Solte-o!

      - Por que eu deveria libertá-lo sem receber um resgate? - contestou o homem beligerantemente.

      O padre replicou com igual energia.

      - Primeiro, porque ele não é nem um combatente do exército do rei nem um cidadão desta cidade, de modo que você cometeu um crime aprisionando-o. Segundo, porque é monge, e você é culpado de sacrilégio por ter posto as mãos num homem de Deus. Terceiro, porque o secretário da rainha Matilde diz que você tem que libertá-lo, e se se recusar terminará preso nessa cela, mais depressa que um piscar de olhos, de modo que é bom que seja rápido.

      - Está bem - resmungou o homem.

      Philip ficou consternado. Havia nutrido uma leve esperança de que Matilde não tomasse conhecimento de sua prisão. Mas se o secretário da rainha pedira para vê-lo, essa esperança estava perdida. Sentindo-se como se tivesse atingido o fundo do poço, saiu da cela.

      - Venha comigo - disse o padre. Philip seguiu-o.

      - Vou ser libertado? - perguntou.

      - Imagino que sim. - O padre pareceu surpreso com a pergunta. - Não sabe quem vai ver agora?

      - Não tenho a menor idéia.

      O padre sorriu.

      - Vou deixar que ele lhe faça uma surpresa.

      Atravessaram o conjunto até a fortaleza e subiram a longa escadaria que galgava o aterro e dava no portão. Philip fez um esforço enorme, mas não conseguiu adivinhar por que um secretário de Matilde estaria interessado nele.

      Seguiu o padre, passando pelo portão. O forte de pedra, que era circular, tinha casas de dois andares construídas de encontro à muralha. No meio havia um pátio minúsculo com um poço. O religioso reconduziu Philip ao interior de uma dessas casas.

      Dentro dela havia outro padre, de pé ante o fogo e de costas para a porta. Era baixo e esguio como Philip e tinha o mesmo cabelo preto, mas sem tonsura nem fios brancos. De costas, era muito familiar. Philip mal pôde crer na sua sorte. Um largo sorriso iluminou-lhe o rosto.

      O padre virou-se. Tinha olhos azuis brilhantes, como os do prior, e também estava sorrindo. Estendeu os braços.

      - Philip!

      - Deus seja louvado! - exclamou Philip,  atônito.  – Francis!

      Os dois irmãos se abraçaram, e os olhos do prior encheram-se de lágrimas.

     

      A recepção real no Castelo de Winchester foi bem diferente. Os cachorros desapareceram, da mesma forma como o trono simples de madeira do rei Estêvão, os bancos e as peles de animais penduradas nas paredes. Em vez disso agora havia cortinas bordadas,  tapetes ricamente coloridos, grandes taças cheias de confeitos e cadeiras pintadas. O salão cheirava a flores.

      Philip nunca se sentia à vontade na corte real, e uma corte feminina, foi o suficiente para pô-lo em estado de palpitante ansiedade. Matilde representava sua única esperança de reaver a pedreira e reabrir o mercado, mas não confiava na justiça daquela mulher soberba e voluntariosa.

      A Imperatriz, de vestido azul, sentou-se num trono dourado, delicadamente entalhado. Era alta e magra, com orgulhosos olhos escuros e cabelo preto liso e brilhante.

      Sobre o vestido usava uma pelica, uma capa de seda comprida até os tornozelos, com a cintura justa e a saia larga - um estilo não muito visto na Inglaterra até a sua chegada, mas agora muito imitado. Fora casada com o primeiro marido por onze anos e com o segundo por catorze, mas ainda parecia ter menos de quarenta anos de idade. Todos falavam com entusiasmo de sua beleza. Para Philip parecia um tanto angulosa e antipática; porém, ele era mau juiz dos encantos femininos, sendo mais ou menos indiferente a eles.

      Philip, Francis, William Hamleigh e o bispo Waleran fizeram uma reverência e esperaram. Ela os ignorou por algum tempo, e continuou conversando com uma dama de companhia. O assunto parecia ser bastante frívolo, pois ambas riam muito; Matilde, contudo, não interrompeu a conversa para cumprimentar os visitantes.

      Francis trabalhava intimamente com a rainha, e a via quase todos os dias, mas não eram grandes amigos. Robert, irmão de Matilde e antigo senhor de Francis, o cedera a ela por ocasião de sua chegada à Inglaterra, pois precisava de um secretário de primeira classe. No entanto, não fora esse o único motivo. O religioso agia como elo de ligação entre irmão e irmã, e ficava atento à impetuosa Matilde. Não tinha grande importância que irmãos se traíssem, naquela vida falsa da corte real, e o verdadeiro papel de Francis era tornar difícil para a rainha fazer qualquer coisa furtivamente. Matilde sabia disso e aceitava a situação, mas mesmo assim seu relacionamento com Francis era difícil.

      Fazia dois meses desde a batalha de Lincoln, e nesse período tudo correra bem para Matilde. O bispo Henry lhe dera as boas-vindas em Winchester (traindo desta forma o irmão dele, Estêvão) e convocara um grande conselho de bispos e abades que a aceitara como rainha; agora ela estava negociando com a comuna de Londres sua coroação em Westminster. O rei David, da Escócia, que por acaso era seu tio, estava a caminho para lhe fazer uma visita oficial, de um soberano para outro.

      O bispo Henry era fortemente apoiado pelo bispo Waleran de Kingsbridge; e, de acordo com Francis, Waleran persuadira William Hamleigh a trocar de lado, jurando-lhe fidelidade. Agora o lorde viera buscar sua recompensa.

      Os quatro homens esperaram: William com o homem que o apoiava, o bispo Waleran, e Philip com seu protetor, Francis. Era a primeira vez que o prior punha os olhos em Matilde. A aparência dela não o tranquilizou: a despeito do seu ar soberano, achou-a volúvel.

      Quando a rainha terminou a conversa, virou-se para eles com uma expressão de triunfo na fisionomia, como se dissesse: Vejam como vocês têm pouca importância, até mesmo minha dama de companhia tem prioridade sobre os seus assuntos. Ela encarou Philip firmemente, até deixá-lo embaraçado, e disse então:

      - Bem, Francis. Você me trouxe seu irmão gémeo?

      - Um tanto velho e grisalho para ser gémeo, majestade – disse o prior, fazendo uma nova reverência. Era o tipo da observação trivial, de autocondenação, que os cortesãos pareciam achar divertida, mas ela lançou-lhe um olhar glacial e o ignorou. Ele decidiu abandonar qualquer tentativa de ser agradável.

      Matilde virou-se para William.

      - É Sir William Hamleigh, que combateu corajosamente contra o meu exército na batalha de Lincoln, mas que agora reconheceu seus erros.

      William fez uma reverência, e, sabiamente, manteve a boca fechada.

      Ela se voltou de novo para Philip.

      - Você me pede que lhe conceda uma licença para o funcionamento de um mercado.

      - Sim, majestade.

      - A renda do mercado será toda gasta na construção da catedral, majestade - disse Francis.

      - Em que dia da semana você quer seu mercado?

      - Domingo.

      Ela ergueu as sobrancelhas depiladas.

      - Vocês, homens santos, geralmente se opõem a mercados dominicais. Não afastam as pessoas da igreja?

      - Não no nosso caso - disse Philip. - As pessoas vão trabalhar na obra e assistir à missa, e também compram e vendem suas coisas.

      - Então você já está operando um mercado? - perguntou ela asperamente.

      Philip percebeu que havia cometido um erro grosseiro. Teve vontade de dar um pontapé na própria canela. Francis o salvou.

      - Não, majestade, o mercado não está funcionando nos dias de hoje - disse. - Começou informalmente, mas o prior Philip ordenou sua extinção até que fosse concedida a licença.

      Era verdade, mas não totalmente. Matilde, contudo, pareceu aceitá-la. Philip rezou para que Francis fosse perdoado.

      - Não há outro mercado na região? - perguntou Matilde. Foi William quem respondeu.

      - Há, sim, em Shiring; e a feira de Kingsbridge veio roubando negócios de Shiring.

      - Mas Shiring fica a vinte milhas de Kingsbridge! - disse Philip.

      - Majestade - disse Francis -, a lei diz que os mercados devem estar separados pelo menos por catorze milhas. Por esse critério, Kingsbridge e Shiring não competem.

      Ela aquiesceu, aparentemente disposta a aceitar a informação prestada por Francis a respeito de matéria legal. Até aqui, pensou Philip, está se encaminhando para o nosso lado.

      - Você também pede o direito de explorar a pedreira do conde de Shiring - disse Matilde.

      - Tivemos esse direito por muitos anos, mas há pouco tempo William expulsou de lá os nossos homens, matando cinco...

      - Quem lhe deu esse direito? - interrompeu ela.

      - O rei Estêvão.

      - O usurpador!

      - Majestade - apressou-se a dizer Francis -, o prior Philip naturalmente aceita o fato de que nenhum dos decretos do pretendente Estêvão vigora, a menos que validados pela senhora.

      Philip não aceitava aquilo, mas viu que não seria sábio dizê-lo.

      - Fechei a pedreira como contrapartida ao seu mercado ilegal! - explodiu William.

      Era impressionante, pensou Philip, como um caso evidente de injustiça podia parecer tão equilibrado quando discutido na corte.

      - Toda essa briga aconteceu porque a decisão original de Estêvão foi tola - disse Matilde.

      O bispo Waleran falou pela primeira vez.

      - Nesse ponto concordo com vossa majestade de todo o coração - disse servilmente.

      - Era querer causar problemas, dar uma pedreira a uma pessoa e o direito de exploração a outra - disse ela. - A pedreira deve pertencer a um ou a outro.

      Era verdade, pensou Philip. E se ela fosse seguir o espírito da decisão original de Estêvão, a pedreira pertenceria a Kingsbridge.

      - Minha decisão - disse Matilde - é que a pedreira pertencerá a meu nobre aliado, Sir William.

      Philip ficou desolado. A construção da catedral não poderia ter progredido tão bem sem livre acesso à pedreira. Agora precisaria andar mais devagar, esperando pelo dinheiro que ele pudesse arranjar para comprar pedra. E tudo por causa do capricho daquela mulher! Philip teve um acesso de cólera.

      - Muito obrigado, majestade - disse William.

      - No entanto - prosseguiu Matilde -, Kíngsbridge terá tanto direito de explorar um mercado quanto Shiring.

      Philip animou-se de novo. O mercado não pagaria inteiramente a pedra, mas já seria uma grande ajuda. Significava que teria que brigar por dinheiro em toda parte, como no princípio, mas também que poderia tocar a obra.

      Matilde dera a cada um uma parte do pleiteado. Talvez não fosse tão tola, afinal.

      - Direitos de mercado iguais aos de Shiring, majestade?

      - Foi o que eu disse.

      Philip não estava certo quanto ao motivo pelo qual Francis repetira aquilo. Era comum que as licenças se referissem a direitos desfrutados por outras cidades: tratava-se de uma questão de justiça e de economia de trabalho de quem tivesse de redigir o decreto. Philip precisaria verificar o que dizia exatamente a carta régia de Shiring.

      Poderia haver restrições ou privilégios extras.

      - Dessa forma - disse Matilde -, os dois saíram ganhando. William fica com a pedreira, e o prior Philip, com o mercado. Em troca cada um me pagará cem libras. É só. - Ela se afastou.

      Philip ficou estupefato. Cem libras! O priorado não tinha cem libras no momento. Como levantaria tanto dinheiro? O mercado levaria anos para gerar cem libras. Era um golpe devastador que faria o programa de construção estagnar em caráter permanente. Ele a encarou, mas ela aparentemente voltara a se envolver numa animada conversa com sua dama de companhia. Francis lhe deu uma cotovelada. Philip abriu a boca para falar. Seu irmão levou um dedo aos lábios.

      - Mas... - começou o prior. Francis sacudiu a cabeça, nervoso.

      Philip sabia que Francis estava com a razão. Deixou cair os ombros, derrotado. Aturdido, virou-se e retirou-se da presença real.

     

      Francis ficou impressionado quando Philip correu com ele o priorado de Kingsbridge.

      - Estive aqui há dez anos, e era uma pocilga - disse irreverentemente. - Você deu mesmo vida a isto aqui.

      Ele gostou muito da sala de escrita, que tom terminara enquanto Philip estava em Lincoln. Era um pequeno prédio ao lado da casa do cabido, com grandes janelas, lareira com chaminé, uma fila de mesas para escrever e um grande armário de carvalho para os livros. Quatro irmãos já a estavam utilizando, de pé ante as altas escrivaninhas, trabalhando com penas em folhas de pergaminho. Um copiava os Salmos de Davi, outro, o Evangelho de São Mateus, e o terceiro, a Regra de São Bento.

      Além deles, o irmão Timothy estava escrevendo uma história da Inglaterra; entretanto, por ter começado com a criação do mundo, Philip receava que o bom monge não fosse ter tempo para terminá-la. Apesar de pequena - Philip não quisera desviar muitas pedras da catedral -, a sala era seca, quente e bem iluminada: exatamente do que precisavam.

      - Desgraçadamente o priorado tem poucos livros, e como eles são muito caros para serem comprados, este é o único modo de aumentar nossa coleção - explicou Philip.

      Na cripta sob a sala, havia uma oficina onde um velho monge ensinava dois jovens a esticar a pele de um carneiro para preparar pergaminho, a fazer tinta e a encadernar as folhas para fazer o livro.

      - Você poderá vender livros também - comentou Francis.

      - Oh, sim. A sala de escrita pagará muitas vezes o que custou.

      Eles deixaram o prédio e atravessaram o claustro. Era hora de estudo. A maioria dos monges lia. Uns poucos meditavam, atividade suspeitamente parecida com cochilar, conforme Francis observou, cético. No canto noroeste havia vinte garotos recitando verbos em latim. Philip parou e apontou.

      - Está vendo aquele garotinho na ponta do banco?

      - Escrevendo numa lousa, com a língua de fora?

      - É o bebê que você encontrou na floresta.

      - Mas é tão grande!

      - Tem cinco anos e meio, e é precoce.

      Francis balançou a cabeça, admirado.

      - O tempo passa tão depressa! Como vai ele?

      - É mimado pelos monges, mas sobreviverá. Você e eu sobrevivemos.

      - Quem são os outros alunos?

      - Noviços, ou filhos de mercadores e da pequena nobreza local aprendendo a ler e contar.

      Deixaram o claustro e passaram para o canteiro da obra. Agora, mais da metade do braço leste da nova catedral estava construída. A grande fileira dupla de enormes colunas tinha quarenta pés de altura, e todos os arcos entre elas estavam prontos. Acima da arcada, a galeria da tribuna ia tomando forma. De cada um dos lados, erguiam-se as paredes mais baixas da nave lateral, com seus arcobotantes salientes. Ao contornarem a obra, Philip viu que os pedreiros estavam trabalhando nos meios arcos que ligariam o topo dos arcobotantes ao topo da galeria da tribuna, permitindo que estes sustentassem o peso do telhado.

      - Você fez tudo isso, Philip - disse Francis, quase reverente. - A sala de escrita, a escola, a igreja nova, até mesmo todas aquelas casas novas na cidade. Está tudo aí porque você fez acontecer.

      O prior ficou comovido. Ninguém jamais lhe dissera aquilo. Se lhe perguntassem, diria que Deus abençoara seus esforços. Mas bem no fundo do coração sabia que o que Francis dissera era verdade: aquela cidade florescente e fervilhante era sua criação. O reconhecimento causou-lhe um cálido rubor, especialmente por vir do seu irmão mais moço, cínico e sofisticado.

      Tom Construtor os viu e se aproximou.

      - Você conseguiu um progresso maravilhoso - disse-lhe Philip.

      - Sim, mas olhe só para aquilo. - Tom apontou para o canto nordeste do adro, onde era empilhada a pedra. – Havia normalmente centenas de pedras arrumadas em fileiras, mas agora não passavam de umas vinte e cinco, espalhadas pelo chão. Lastimavelmente, esse maravilhoso progresso significa que usamos nosso estoque de pedras.

      O entusiasmo de Philip desvaneceu-se. Tudo o que obtivera estava em perigo, graças à impiedosa decisão de Matilde.

      Eles foram caminhando ao longo do lado norte do canteiro da obra, onde os pedreiros mais talentosos trabalhavam em suas bancadas, lavrando as pedras com seus martelos e cinzéis. Philip parou atrás de um artesão e estudou seu trabalho. Era um capitel, a pedra larga e saliente que sempre ficava no topo de uma coluna. Usando um martelo leve e um cinzel pequeno, o artesão estava cinzelando um desenho de folhas. As folhas eram cortadas fundo, num trabalho delicado. Para surpresa de Philip, viu que o artesão era o jovem Jack, o enteado de Tom.

      - Pensei que Jack fosse ainda um aprendiz - disse.

      - E é. - Tom seguiu andando, e quando não mais podiam ser ouvidos, disse: - O garoto é notável. Há homens aqui que vêm cinzelando pedra desde que Jack nasceu, e nenhum consegue se igualar a ele. - Riu, ligeiramente embaraçado. - E não é nem mesmo meu filho!

      O filho de Tom, Alfred, era mestre pedreiro e tinha o próprio grupo de aprendizes e serventes, mas Philip sabia que eles não executavam o trabalho delicado. Gostaria de saber como o construtor se sentiria a esse respeito, no fundo do seu coração.

      A cabeça de Tom retornara ao problema do pagamento da licença.

      - Certamente o mercado vai gerar um bocado de dinheiro - disse.

      - Sim, mas não o suficiente. Serão cerca de cinquenta libras por ano no princípio.

      Tom aquiesceu, melancólico.

      - Será quase que exatamente o que teremos de pagar pela pedra.

      - Poderíamos dar um jeito, se eu não precisasse pagar a Matilde cem libras.

      - E a lã?

      A lã que estava se amontoando nos depósitos de Philip seria vendida na Feira de Lã de Shiring em poucas semanas, e representava cerca de cem libras.

      - É esse dinheiro que vou usar para pagar à rainha. Mas então não me sobrará nada para pagar aos operários nos próximos doze meses.

      - Não pode pedir emprestado?

      - Já pedi. Os judeus não me emprestarão mais. Perguntei, quando estava em Winchester. Eles não emprestam dinheiro se acham que você não pode pagar.

      - E Aliena?

      Philip se espantou. Não tinha pensado em pedir-lhe dinheiro emprestado. A jovem tinha ainda mais lã que ele em seus depósitos. Após a feira poderia ter duzentas libras.

      - Mas ela precisa do dinheiro para viver. E cristãos não podem cobrar juros. Se ela me emprestar o dinheiro não vai ter como negociar. No entanto...  - enquanto falava, Philip começou a ter uma nova ideia. Lembrou-se de que Aliena quisera comprar toda a sua produção de lã do ano. Talvez eles pudessem encontrar uma solução.

      - Acho que falarei com ela, de qualquer modo - disse Philip. - Será que está em casa agora?

      - Acho que sim, eu a vi hoje de manhã.

      - Vamos, Francis. Você vai conhecer uma jovem notável.

      Os dois irmãos deixaram Tom e saíram apressadamente do adro, indo para a cidade. Aliena tinha duas casas, uma do lado da outra, encostadas no muro oeste do priorado. Morava numa e usava a outra como depósito. Estava muito rica. Tinha que haver um modo de poder ajudar o priorado a pagar a extorsiva taxa que Matilde cobrara para conceder a licença. Uma vaga idéia começou a tomar forma na cabeça de Philip.

      Aliena estava no depósito, supervisionando a descarga de um carro de boi carregado com uma pilha enorme de sacos de lã. Usava uma capa de brocado, como a que Matilde vestira na audiência, e seu cabelo estava preso numa touca branca. Tinha um ar autoritário, como sempre, e os dois homens que descarregavam o carro de boi obedeciam às suas ordens sem questionamentos. Todos a respeitavam, embora - o que era estranho - não tivesse amigos íntimos. Cumprimentou Philip calorosamente.

      - Quando soubemos da batalha ficamos com medo de que você pudesse ter morrido! - disse. Havia real preocupação em seus olhos, e Philip ficou comovido ao pensar que havia pessoas que tinham se afligido por sua causa. Apresentou-a a Francis.

      - Conseguiu obter justiça em Winchester? - perguntou Aliena.

      - Não exatamente - respondeu Philip. - A rainha nos concedeu o mercado, mas negou a pedreira. Um compensa relativamente o outro. Porém, me cobrou cem libras pela licença do mercado.

      Aliena ficou chocada.

      - Que horror! Você lhe disse que a renda se destina à construção da catedral?

      - Oh, sim.

      - Mas onde vai arranjar cem libras?

      - Achei que você podia ajudar.

      - Eu? - Aliena levou um susto.

      - Dentro de poucas semanas, depois que vender sua lã para os flamengos, terá duzentas libras ou mais.

      Aliena ficou perturbada.

      - E eu as daria para você alegremente, mas vou precisar delas para comprar mais lã no ano que vem.

      - Lembra que queria comprar minha lã?

      - Sim, mas é demasiado tarde agora. Quis comprá-la no início da estação. Além disso, você mesmo poderá vendê-la em breve.

      - Eu estava pensando... - disse Philip. - Poderia lhe vender a lã do próximo ano?

      Ela franziu a testa.

      - Mas você ainda não a tem!

      - Não posso vendê-la antes de tê-la?

      - Não vejo como.

      - Simples. Você me dá o dinheiro agora. Eu lhe dou a lã dentro de um ano.

      Evidentemente Aliena não sabia o que dizer daquela proposta: era diferente de qualquer maneira conhecida de fazer negócio. Era nova para Philip também: ele acabara de inventá-la.

      - Eu teria que lhe oferecer um preço um pouco menor do que o que você poderia obter, para compensar a espera - disse Aliena, lenta e pensativamente. - Além disso, talvez o preço suba até o próximo verão - como tem acontecido todos os anos, desde que estou neste negócio.

      - Então perderei um pouco e você ganhará um pouco disse Philip. - Mas serei capaz de tocar a obra por mais um ano.

      - E o que fará no outro?

      - Não sei. Talvez lhe venda antecipadamente a nossa lã mais uma vez.

      Aliena aquiesceu.

      - Tem sentido.

      Philip segurou-lhe as mãos e fitou-a nos olhos.

      - Se fizer isso, Aliena, salvará a catedral - disse fervorosamente.

      Ela assumiu uma expressão muito solene.

      - Você me salvou uma vez, não foi?

      - Foi.

      - Então farei o mesmo por você.

      - Deus a abençoe! - Num excesso de gratidão ele a abraçou; depois lembrou que se tratava de uma mulher e afastou-se rapidamente. - Não sei como lhe agradecer - disse. - Já estava começando a perder o juízo.

      Aliena riu.

      - Não estou certa se mereço tanta gratidão. Provavelmente me sairei muito bem com esse trato.

      - Espero que sim.

      - Vamos beber um copo de vinho juntos para selar o compromisso - disse ela. - Só vou pagar ao carroceiro.

      O carro de boi estava vazio, e a lã, empilhada cuidadosamente. Philip e Francis saíram, enquanto Aliena acertava as contas com o carroceiro. O sol estava se pondo e os trabalhadores na construção retornavam para suas casas. A animação de Philip voltou. Encontrara um modo de continuar, apesar de todos os percalços.

      - Graças a Deus por Aliena! - disse.

      - Você não me disse que ela era tão bonita - comentou Francis.

      - Bonita? Suponho que seja. Francis riu.

      - Philip, você é cego! Ela é uma das mulheres mais bonitas que já vi na vida. Bonita a ponto de fazer um homem desistir do sacerdócio.

      Philip lançou um olhar severo para Francis.

      - Você não devia falar assim.

      - Desculpe.

      Aliena saiu também e trancou o depósito; depois foram todos para a sua casa. Era grande, com um salão principal e um quarto de dormir separado. Havia um barril de cerveja a um canto, um presunto inteiro pendurado no teto e uma toalha de linho branco estendida em cima da mesa. Uma criada de meia-idade serviu vinho para os convidados em cálices de prata. Aliena vivia confortavelmente. Se é tão bonita, pensou Philip, por que não tem marido? Não havia falta de pretendentes: já fora cortejada por todos os homens do condado em condições de se casar, mas repelira a todos. Philip se sentia tão agradecido que queria que ela fosse feliz.

      A cabeça da jovem ainda estava ocupada com assuntos práticos.

      - Não terei o dinheiro senão depois da Feira de lã de Shiring - disse, depois que brindaram ao acordo.

      Philip virou-se para Francis.

      - Matilde esperará?

      - Quanto tempo?

      - A feira é três semanas depois da quinta-feira. Francis fez que sim.

      - Eu lhe falarei. Ela esperará.

      Aliena desamarrou a touca da cabeça e soltou o cabelo escuro ondulado. Deixou escapar um suspiro de cansaço.

      - Os dias são demasiadamente curtos! Não consigo dar conta de tudo o que tenho para fazer. Quero comprar mais lã, mas tenho que achar carroceiros em número suficiente para transportar tudo para Shiring.

      - E no ano que vem vai ter mais ainda - disse Philip.

      - Gostaria que pudéssemos fazer os flamengos virem aqui para comprar. Seria muito mais fácil para nós do que levar toda a lã para Shiring.

      - Mas vocês podem - interpôs Francis. Ambos olharam para ele.

      - Como? - perguntou Philip.

      - Façam sua própria feira de lã.

      Philip começou a ver aonde ele queria chegar.

      - Podemos?

      - Matilde lhe deu os mesmos direitos que Shiring. Fui eu mesmo que escrevi a carta régia. Se Shiring pode organizar uma feira de lã, Kingsbridge também pode.

      - Puxa, seria maravilhoso! - disse Aliena. - Não teríamos que transportar toda essa lã a Shiring. Faríamos todos os negócios aqui e despacharíamos a lã diretamente para Flandres.

      - E isso para não falar no resto - disse Philip, entusiasmado. - Uma feira de lã faz tanto dinheiro numa semana quanto um mercado funcionando aos domingos num ano inteiro. Isso não acontecerá este ano, é claro - ninguém terá conhecimento da nossa feira. Mas podemos espalhar a notícia por ocasião da Feira de Shiring, assegurando-nos de que todos os compradores saibam a data...

      - Fará muita diferença para Shiring - comentou Aliena.

      - Você e eu somos os maiores vendedores de lã do condado, e se ambos nos retirarmos, a feira deles se reduzirá a menos da metade do seu atual tamanho.

      - William Hamleigh perderá dinheiro - disse Francis. Vai ficar furioso como um touro.

      Philip não pôde evitar um estremecimento de irritação. Um touro furioso era exatamente o que William era.

      - E daí? - disse Aliena. - Se Matilde nos deu permissão, podemos ir em frente. Não há nada que William possa fazer, há?

      - Espero que não - disse Philip fervorosamente. - Espero que não.

     

      O trabalho terminou ao meio-dia no dia de santo Agostinho. A maioria dos operários saudou o sino com um suspiro de alívio. Normalmente trabalhavam do raiar ao pôr-do-sol, seis dias por semana, e precisavam do descanso que tinham nos dias santos. Jack, contudo, estava por demais absorvido no trabalho para ouvir o sino.

      Fascinava-o o desafio de gravar formas macias e arredondadas na pedra dura. A pedra tinha vontade própria; se tentasse fazer algo que ela não queria, lutaria contra ele, e o cinzel lhe escaparia da mão, ou se enterraria com demasiada força, estragando as formas. Mas uma vez que conseguisse conhecer o pedaço de pedra à sua frente, seria capaz de transformá-la. Quanto mais difícil a tarefa, mais fascinado se sentia. Começou a achar que a talha decorativa imaginada por tom era fácil demais.

      Ziguezagues, losangos, dentículos, espirais e volutas o entediavam; até mesmo aquelas folhas eram um tanto desgraciosas e repetitivas. Queria entalhar folhagem com aspecto natural, flexível e irregular, e copiar as diferentes formas de folhas reais, de carvalho, freixo e bétula, mas tom não deixava. Desejava acima de tudo gravar cenas de histórias bíblicas. Adão e Eva, Davi e Golias e o dia do Juízo Final, com monstros, demônios e gente nua, mas não se atrevia a pedir.

      Algum tempo depois Tom o fez parar.

      - É feriado, rapaz - disse. - Além disso, você ainda é meu aprendiz e quero que me ajude a arrumar tudo. Todas as ferramentas têm que estar guardadas antes da refeição.

      Jack guardou o martelo e os cinzéis e depositou cuidadosamente a pedra em que estivera trabalhando no galpão de Tom; depois foi percorrer a obra com ele. Os outros aprendizes estavam arrumando tudo e varrendo os fragmentos de pedra, areia, torrões de massa seca e cavacos de madeira que juncavam o chão. tom apanhou seus compassos e o nível, Jack, as medidas de comprimento menores e os fios de prumo, e, juntos, os dois levaram tudo para o depósito.

      Era ali que Tom guardava suas varas de medida. Eram barras de ferro de seção quadrangular e absolutamente retas, todas exatamente do mesmo tamanho. Eram guardadas num suporte especial de madeira, que estava trancado.

      Enquanto continuavam a caminhar pela obra, apanhando pranchas de mexer massa e pás, Jack pensava nelas.

      - Qual é o tamanho de uma vara? - perguntou. Alguns pedreiros ouviram e deram risada. Frequentemente achavam engraçadas as perguntas de Jack.

      - Uma vara é uma vara - disse Edward Baixo, um homem pequeno de pele enrugada e nariz torto. Todos riram de novo.

      Eles gostavam de provocar os aprendizes, sobretudo quando tinham chance de exibir seu conhecimento. Jack detestava que rissem dele, mas aguentava firme porque era muito curioso.

      - Não compreendo - disse pacientemente.

      - Uma polegada é uma polegada, um pé é um pé e uma vara é uma vara - disse Edward.

      Então a vara era uma unidade de comprimento.

      - E quantos pés há numa vara?

      - Ah! Isto depende. Dezoito, em Lincoln. Dezesseis, na Anglia Oriental.

      Tom interrompeu para dar uma resposta sensata.

      - Nesta obra uma vara tem quinze pés.

      - Em Paris não usam a vara, só a medida de uma jarda - disse uma mulher de meia-idade, que também trabalhava na construção.

      Tom dirigiu-se a Jack.

      - Todo o projeto da igreja é baseado em varas. Apanhe uma para mim que lhe mostrarei. Está na hora de você entender essas coisas. - Deu uma chave a Jack.

      O rapaz foi até o depósito e apanhou uma vara na prateleira. Era bastante pesada. Tom gostava de dar explicações, e Jack adorava ouvir. A organização do canteiro da obra tinha um padrão intrigante, como a trama de um casaco de brocado, e quanto mais entendia, mais fascinado ficava.

      Tom o esperava na extremidade aberta do coro semiconstruído, onde seria a interseção da nave com os transeptos. Ele pegou a vara e a colocou no chão, de modo a atravessar todo o corredor.

      - Da parede externa até a metade do pilar da arcada é uma vara. - Ele virou o instrumento. - Dali até o meio da nave é uma vara. - Ele o virou mais uma vez, alcançando a metade do pilar oposto. - A nave tem duas varas de largura. - Tom repetiu a operação e dessa vez foi até a parede da nave lateral mais afastada. - A igreja toda tem quatro varas de largura.

      - Sim - disse Jack. - E cada intercolúnio tem que ter uma vara de comprimento.

      Tom pareceu ficar ligeiramente irritado.

      - Quem foi que lhe disse isto?

      - Ninguém. Os intercolúnios são quadrados, de modo que, se têm uma vara de comprimento, têm que ter uma vara de largura. E os intercolúnios da nave são do mesmo tamanho dos das naves laterais, é claro.

      - Evidentemente - concordou Tom. - Você devia ser filósofo. - Na sua voz havia uma mistura de orgulho e irritação. Gostava que Jack fosse rápido para entender, e se irritava ao ver os mistérios do seu ofício serem entendidos com tanta facilidade por um mero garoto.

      Jack estava demasiado absorvido pela esplêndida lógica de tudo aquilo para prestar atenção às suscetibilidades de Tom.

      - Então o coro tem quatro varas de comprimento - disse. - E a igreja, quando pronta, terá doze. - Outra ideia lhe ocorreu. - Quanto terá de altura?

      - Seis varas. Três para a arcada, uma para a galeria e duas para o clerestório.

      - Mas qual a vantagem de planejar tudo medido por varas? Por que não construir de qualquer maneira, como numa casa.

      - Primeiro porque é mais barato assim. Todos os arcos da arcada são idênticos, e assim podemos reutilizar as formas de madeira. Quanto menos tamanhos diferentes e formatos de pedras, menos gabaritos terei que fazer. E assim por diante. Segundo, simplifica cada um dos aspectos daquilo que estamos fazendo, desde a planta baixa original - onde tudo é baseado numa vara quadrada - até a pintura das paredes - será mais fácil estimar de quanta cal precisaremos. E quando as coisas são simples, menos erros são cometidos. O que mais encarece uma construção são os erros. Terceiro, quando tudo é baseado no comprimento de uma vara, a igreja parece simplesmente certa. A proporção é a essência da beleza.

      Jack assentiu, encantado. O esforço para controlar uma operação tão ambiciosa e complicada quanto a construção de uma catedral era interminavelmente fascinante.

      A noção de que os princípios da regularidade e da repetição podiam simplificar a construção e resultar numa obra harmoniosa era sedutora. Mas não estava convicto de que a proporção fosse a essência da beleza. Gostava de coisas selvagens, que se espalhassem, desordenadas: altas montanhas, velhos carvalhos, e o cabelo de Aliena.

      Comeu ávida mas rapidamente e depois foi para a aldeia, na direção norte. Era um dia quente de início de verão, e estava descalço. Desde que ele e sua mãe tinham ido morar em Kingsbridge definitivamente e começara a trabalhar, gostava de voltar à floresta de vez em quando. A princípio passava o tempo liberando a energia que sobrava, correndo e pulando, trepando em árvores e matando patos com sua funda. Isso enquanto estava se acostumando com seu novo corpo, mais alto e mais forte.

      A novidade acabara por cansar. Agora, quando ia à floresta, pensava em coisas: por que a proporção devia ser bonita, como os edifícios não caíam, e que tal seria acariciar os seios de Aliena.

      Há anos a adorava a distância. A visão permanente que tinha dela era a da primeira vez em que a encontrara, descendo a escada no castelo em Earlscastle, e ele pensara que devia ser a princesa de uma história. Aliena continuara sendo uma figura remota. Falava com o prior Philip, com Tom Construtor, com o judeu Malachi e com outras pessoas ricas e poderosas de Kingsbridge; porém, Jack nunca tivera um motivo para lhe dirigir a palavra. Simplesmente a observava, rezando na igreja, ou atravessando a ponte montada no seu palafrém, sentada ao sol, do lado de fora da sua casa; usando peles caras no inverno e os mais finos linhos no verão, com o cabelo rebelde emoldurando o lindo rosto. Antes de dormir pensava em como seria tirar suas roupas, vê-la nua e beijar-lhe delicadamente a boca.

      Nas últimas semanas tornara-se insatisfeito e deprimido com esses devaneios sem esperança. O fato de vê-la a distância, ouvir suas conversas com os outros e imaginar-se fazendo amor com ela não mais o satisfazia. Precisava de coisas concretas.

      Havia diversas garotas de sua própria idade que poderiam lhe dar coisas concretas. Entre os aprendizes havia muita conversa sobre quais das jovens de Kingsbridge eram lascivas e sobre o que exatamente cada uma delas deixava um rapaz fazer.

      A maioria estava determinada a permanecer virgem até o casamento, de acordo com os ensinamentos da Igreja, mas havia certas coisas que se podiam fazer e ainda assim se continuar virgem, ou pelo menos era o que os aprendizes diziam. Todas as garotas achavam Jack um pouco estranho - e provavelmente estavam certas, na opinião dele próprio, mas uma ou duas haviam considerado tal estranheza atraente. Um domingo, após a missa, ele ficara conversando com Edith, irmã de um colega; porém, quando dissera quanto gostava de cinzelar pedra, ela caíra na risada. No domingo seguinte fora passear nos campos com Ann, a loura filha do alfaiate. Não lhe dissera muitas coisas, mas a beijara e depois sugerira que se deitassem num campo de cevada. Então a beijara outra vez, passara a mão nos seus seios, e ela retribuíra o beijo entusiasticamente; após algum tempo, contudo, afastara-se e perguntara: "Quem é ela?" Jack estava pensando em Aliena naquele exato momento e ficou estupefato. Tentou fingir que não ligara e quis beijá-la de novo, mas ela virou o rosto e disse: "Quem quer que seja, é uma garota de sorte". Voltaram juntos para Kingsbridge, e quando se separaram, Ann disse: "Não perca seu tempo tentando esquecê-la.

      É uma causa perdida.

      É ela quem você quer, de modo que o melhor é tentar conquistá-la". Ela sorriu afetuosamente e acrescentou: "Você tem o rosto bonito. Pode ser que não seja tão difícil quanto pensa".

      Sua delicadeza fez com que ele se sentisse mal, ainda mais porque, sendo uma das garotas que os aprendizes diziam ser libidinosa, ele dissera a todo mundo que ia tentar apalpá-la. Agora isso lhe parecia tão juvenil que se retorceu de raiva. Mas se lhe houvesse dito o nome da mulher em que pensava, talvez não tivesse se mostrado tão encorajadora. Jack e Aliena eram o casal mais improvável que se podia conceber. Aliena tinha vinte e dois anos, e ele, dezessete; ela era filha de um conde, e ele, bastardo; ela era uma rica comerciante de lã, e ele, um aprendiz sem dinheiro. Pior ainda, ela era famosa pelo número de pretendentes que rejeitara. Todos os jovens lordes apresentáveis do condado e os primogénitos dos comerciantes mais prósperos tinham ido a Kingsbridge para lhe fazer a corte, e todos voltaram a suas casas desapontados. Que chance haveria para Jack, sem nada para oferecer, a não ser o "rosto bonito"?

      Ele e Aliena tinham uma coisa em comum: gostavam da floresta. Eram diferentes, nesse aspecto: a maioria das pessoas preferia a segurança dos campos e das aldeias, e mantinha-se distante das florestas. Mas Aliena frequentemente ia caminhar num bosque perto de Kingsbridge, onde havia um lugar afastado em que gostava de parar e se sentar. Jack a vira ali uma ou duas vezes. Aliena não o tinha visto: ele caminhava silenciosamente, como aprendera em criança, no tempo em que era preciso encontrar seu almoço na floresta.

      Dirigia-se para a tal clareira sem a menor ideia do que faria se a encontrasse. Sabia qual era seu desejo: deitar-se ao seu lado e acariciar-lhe o corpo. Podia lhe falar, mas o que iria dizer? Era fácil conversar com garotas da sua idade. Brincara com Edith, dizendo: "Não acredito em nenhuma das coisas terríveis que seus irmãos contam de você", e é claro que ela quisera saber que coisas terríveis eles falavam. com Ann fora direto: "Você gostaria de passear comigo nos campos, hoje à tarde?" Entretanto, quando tentara imaginar uma frase de abordagem para Aliena, dera um branco na sua cabeça. Não podia deixar de pensar nela como pertencendo a uma geração mais velha. Era tão séria e responsável! Não fora sempre assim, ele sabia; com dezessete anos Aliena gostava de brincar. Sofrera terríveis problemas desde então, mas a garota brincalhona ainda devia se esconder em algum lugar no interior da mulher solene. Para Jack isso a tornava ainda mais fascinante.

      Faltava pouco para o lugar favorito de Aliena. A floresta estava quieta, na hora mais quente do dia. Jack deslocou-se silenciosamente por baixo das árvores. Queria vê-la antes que ela o visse. Ainda não estava seguro se teria coragem para abordála. Acima de tudo temia ofendê-la. Falara com ela no primeiro dia do seu retorno a Kingsbridge, no domingo de Pentecostes em que todos os voluntários foram trabalhar na obra da catedral, e lhe dissera a coisa errada; por isso ele mal lhe dirigira de novo a palavra naqueles quatro anos. Não queria cometer um erro tão grosseiro quanto aquele agora.

      Poucos momentos depois se escondeu atrás do tronco de uma faia e a viu.

      Aliena escolhera um lugar extraordinariamente bonito. Havia uma pequena queda d'água escorrendo para um laguinho fundo cercado de pedras cobertas de limo. o sol brilhava nas suas margens, mas uma ou duas jardas atrás havia a sombra das arvores. Aliena estava sentada ao sol, lendo um livro.

      Jack ficou atônito. Uma mulher? Lendo um livro? Ao ar livre? As únicas pessoas que liam livros eram os monges, e mesmo assim muitos nada liam a não ser os textos dos cultos. Era um livro pouco comum também - muito menor que os tomos que havia na biblioteca do priorado, como se tivesse sido feito especialmente para uma mulher, ou para alguém que o quisesse carregar. Ficou tão espantado que se esqueceu de ser tímido. Abriu caminho por entre os arbustos e apareceu na clareira, perguntando:

      - O que você está lendo?

      Ela se sobressaltou e encarou-o com terror nos olhos. Jack percebeu que a assustara. Sentiu-se muito desajeitado, com medo de mais uma vez ter começado com o pé esquerdo. Aliena levou depressa a mão direita à manga esquerda. Ele se lembrou que antigamente era onde carregava uma faca - talvez ainda fosse. No momento seguinte

      Aliena o reconheceu, e seu medo desapareceu com a mesma rapidez com que surgira. Pareceu aliviada, e, logo em seguida - para mortificação de Jack -, levemente irritada. Sentiu que não era bem-vindo e teve vontade de se virar e desaparecer na floresta. Mas como isso tornaria muito difícil falar com ela outra vez, ele ficou, enfrentando seu olhar nada amistoso, e disse:

      - Desculpe por ter assustado você.

      - Você não me assustou - contrapôs Aliena rapidamente. Jack sabia que não era verdade, mas não ia discutir. Repetiu a pergunta inicial:

      - O que está lendo?

      Ela deu uma olhada no livro sobre os joelhos e a expressão do seu rosto se modificou de novo: ficou tristonha.

      - Meu pai me trouxe este livro de sua última viagem à Normandia. Poucos dias depois foi preso.

      Jack aproximou-se mais e deu uma olhada na página aberta.

      - É em francês! - exclamou.

      - Como você sabe? - quis saber ela, espantada. - Sabe ler?

      - Sei, mas pensava que todos os livros fossem em latim.

      - Quase todos. Este é diferente. É um poema chamado O romance de Alexandre.

      Consegui, estou falando com ela!, pensava Jack. É maravilhoso! Mas o que vou dizer a seguir? Como sustentar esta conversação?

      - Hum, bem...  de que se trata? - perguntou.

      - É a história de um rei chamado Alexandre, o Grande, e de como ele conquistou terras maravilhosas no Oriente, onde as pedras preciosas crescem em videiras e as plantas podem falar.

      Jack ficou suficientemente intrigado para esquecer a ansiedade.

      - Como as plantas falam? Elas têm boca?

      - Aqui não diz.

      - Você acha que a história é verdadeira?

      Ela o fitou, com interesse, e ele se perdeu naqueles lindos olhos escuros.

      - Não sei - respondeu. - Sempre fico pensando se as histórias são verdadeiras ou não. A maioria das pessoas não liga, simplesmente gosta delas.

      - Exceto os padres. Eles acham sempre que as histórias sagradas são verdadeiras.

      - Bem, mas é claro que essas são verdadeiras.

      Jack era cético em relação à veracidade das histórias sagradas tanto quanto em relação às demais; mas sua mãe, que o ensinara a ser cético, o ensinara também a ser discreto, de modo que não discutiu. Estava tentando não olhar para o colo de Aliena, bem no limite de sua visão; claro que se baixasse os olhos ela saberia o que estaria fitando. Tentou pensar em outra coisa qualquer para dizer.

      - Sei um bocado de histórias - afirmou. - Sei A canção de Rolando, e A peregrinação de Guilherme de Orange...

      - O que quer dizer com saber essas histórias?

      - Sou capaz de recitá-las.

      - Como um menestrel?

      - O que é um menestrel?

      - Um homem que anda por aí contando histórias. Era uma ideia nova para Jack.

      - Nunca ouvi falar em homens assim.

      - Há muitos na França. Eu costumava ir à França com meu pai quando era criança. Adorava os menestréis.

      - Mas o que eles fazem? Ficam parados no meio da rua e falam?

      - Depende. São admitidos nas casas dos lordes em dias de festa. Apresentam-se em mercados e feiras. Entretém os peregrinos do lado de fora das igrejas. Os grandes barões às vezes têm o seu próprio menestrel.

      Ocorreu a Jack que não apenas estava conversando com ela, mas que aquela conversa não seria possível com nenhuma outra garota de Kingsbridge. Tinha certeza de que ele e Aliena eram as únicas pessoas na cidade, com exceção de sua mãe, que conheciam os poemas românticos franceses. Tinham um interesse em comum e estavam conversando sobre ele. A ideia o entusiasmou tanto que ele perdeu o fio da meada, esqueceu o que estava dizendo e se sentiu confuso e estúpido.

      Por sorte ela prosseguiu.

      - Geralmente o menestrel toca um violino enquanto recita a história. Toca rápido e alto quando fala numa batalha, baixo e devagar quando duas pessoas estão apaixonadas, aos saltos nas partes engraçadas.

      Jack gostou da idéia: música de fundo para sublinhar os pontos altos da história.

      - Eu gostaria de saber tocar violino - disse ele.

      - Você sabe mesmo recitar histórias?

      Ele mal podia crer que ela estivesse realmente interessada, fazendo perguntas a seu respeito. E o seu rosto era ainda mais lindo quando animado pela curiosidade.

      - Minha mãe me ensinou - disse. - Nós morávamos na floresta, só nós dois. Ela me contou as histórias um sem-número de vezes.

      - Mas como você consegue se lembrar delas? Algumas levam dias para chegarem ao fim.

      - Não sei. É como aprender um caminho na floresta. Você não guarda toda a floresta na cabeça, mas, em qualquer lugar que esteja, sabe aonde ir em seguida. - Dando uma olhada no texto do livro dela, Jack percebeu uma coisa. Sentou-se na grama ao lado de Aliena para olhar mais de perto. - As rimas são diferentes - disse.

      Ela não entendeu direito o que ele quis dizer.

      - De que maneira?

      - Essas são melhores. Em A canção de Rolando a palavra "espada" rima com "cavalo", ou "perdido", ou "baile". No seu livro, "espada" rima com "fada", mas não com "fala"; com "nada", mas não com "ninguém"; com "amada", mas não com "amor". É um modo completamente diferente de rimar. Mas é muito, muito melhor. Gosto dessas rimas.

      - Será que você... - ela interrompeu-se, hesitante. - Você me contaria um pedaço da Canção de Rolando!

      Jack mudou de posição um pouco para poder fitá-la. A intensidade do seu olhar e o brilho da ansiedade naqueles olhos fascinantes quase o deixaram sem poder respirar.

      Engoliu em seco e começou.

     

      "O lorde e rei de toda a França, Carlos, o Grande,

      Passou sete longos anos lutando na Espanha.

      Conquistou as montanhas e a planície.

      Diante dele nem um único forte fica de pé,

      Nenhuma cidade ou muralha a ele resiste,

      A não ser Saragoça, numa montanha alta,

      Governada pelo rei Marsilly, o Sarraceno.

      Ele serve a Maomé e reza a Apolo,

      Mas mesmo ali nunca estará em segurança."

     

      Jack fez uma pausa.

      - Você sabe! Você sabe mesmo! Igualzinho a um menestrel!

      - Entendeu o que falei sobre as rimas, não?

      - Sim, mas não faz mal; é a história que gosto. Os olhos dela cintilaram de felicidade.

      - Conte-me mais.

      Jack teve a impressão de que ia desmaiar de felicidade.

      - Já que você quer... - disse, baixinho. Fitou-a nos olhos e começou a segunda estrofe.

     

      A primeira brincadeira da festa que celebrava a véspera do solstício de verão era comer o pão do quantos. Como muitos desses jogos, tinha um travo de superstição que deixava Philip contrafeito. No entanto, se tentasse banir todos os rituais derivados das antigas religiões, metade das tradições do povo seria proibida, e, de qualquer forma, todos o desafiariam; assim, tolerava discretamente a maioria das coisas e controlava com firmeza um ou dois excessos.

      Os monges tinham instalado mesas no gramado situado na extremidade ocidental do adro. Ajudantes de cozinha já carregavam caldeirões fumegantes. O prior era o lorde da propriedade, de modo que tinha a responsabilidade de servir um banquete para os seus inquilinos nos feriados importantes. A política de Philip era ser generoso com a comida e mesquinho com a bebida, e por isso servia cerveja aguada e nenhum vinho. Mesmo assim, havia cinco ou seis incorrigíveis que conseguiam beber até desmaiar em todos os dias de festa.

      Os principais cidadãos de Kingsbridge se sentavam à mesa de Philip: Tom Construtor e sua família; os mestres artesãos mais velhos, entre eles o filho de Tom, Alfred; e os comerciantes, inclusive Aliena, mas não Malachi, o Judeu, que se incorporaria às festividades mais tarde, após o culto religioso.

      Philip pediu silêncio e deu graças; depois entregou o pão do quantos a Tom. À medida que os anos se passavam, mais e mais Philip valorizava o construtor. Não havia muitas pessoas que diziam o que pensavam e que faziam o que diziam. Tom reagia a surpresas, crises e desastres analisando com calma as consequências, avaliando os danos e planejando a melhor reação. Philip olhou para ele afetuosamente. Tom se tornara bem diferente do homem que aparecera no priorado cinco anos antes implorando trabalho. Naquele dia estava exausto, perturbado, e tão magro que seus ossos pareciam prestes a furar a pele curtida. Desde então ele ganhara peso, especialmente depois que sua mulher voltara. Não estava gordo, mas agora via-se carne na sua grande estrutura, e há muito tempo o desespero desaparecera dos seus olhos. Estava dispendiosamente vestido, de túnica verde de Lincoln, sapatos de couro macio e cinto com fivela de prata.

      Philip tinha que fazer a pergunta que seria respondida pelo pão do quantos:

      - Quantos anos vai levar para terminar a catedral?

      Tom deu uma mordida no pão. Ele era assado com sementes pequenas e duras, e quando Tom as cuspiu na mão, todos contaram em voz alta. Às vezes, quando o número de sementes era muito elevado, os circunstantes não sabiam contar tudo; porém não havia mais perigo de ocorrer isso, com todos os comerciantes e artesãos presentes.

      A resposta foi trinta. Philip fingiu ficar consternado.

      - Vou ter que viver um bocado de tempo! - disse Tom, e todos riram.

      O construtor passou o pão para sua mulher, Ellen. O prior desconfiava muito daquela mulher. Como Matilde, Ellen tinha poder sobre os homens, um tipo de poder com que Philip não podia competir. No dia em que fora expulsa do priorado, ela fizera uma coisa horrorosa, uma coisa a respeito da qual o prior ainda não podia nem pensar.

      Presumira que jamais a veria de novo, mas para seu horror ela voltara e Tom lhe implorara para perdoá-la. Astutamente, ele argumentara que se Deus podia perdoar seu pecado, Philip não tinha o direito de recusar-lhe a absolvição. O prior suspeitava que ela não se arrependera muito. Entretanto, Tom lhe fizera o pedido no dia em que os voluntários tinham aparecido e salvado a catedral, e Philip acabara cedendo, contrariando todos os seus instintos. Haviam se casado na igreja da paróquia, uma pequena construção de madeira na aldeia, mais antiga que o priorado. Desde então Ellen se comportara e não dera motivo a Philip para se arrepender da decisão.

      Mesmo assim, ela o deixava inquieto.

      - Quantos homens a amam? - perguntou Tom.

      Ela deu uma mordida minúscula no pão, o que fez todo mundo rir de novo. Naquele jogo as perguntas tendiam a ser levemente sugestivas. Philip achou que se não estivesse presente eles se comportariam com mais irreverência.

      Ellen contou três sementes. Tom fingiu estar se sentindo ultrajado.

      - Eu lhe direi quem são os meus três amantes - disse Ellen. Philip torceu para que ela não dissesse nada ofensivo. - O primeiro é Tom. O segundo, Jack. E o terceiro, Alfred.

      Houve uma salva de palmas pela saída inteligente, e o pão foi passado adiante. A seguir era a vez de Martha, a filha de Tom. Estava com doze anos de idade e era tímida. O pão predisse que teria três maridos, o que era altamente improvável.

      Martha passou o pão para Jack, e nessa hora Philip viu um brilho de adoração nos olhos da garota; não havia dúvida de que idolatrava o filho da madrasta como quem adorava um herói.

      Jack intrigava o prior. Fora uma criança feia, de cabelo cor de cenoura, pele branca e olhos azuis arregalados, mas agora era um rapaz cujas feições tinham se harmonizado, e seu rosto era tão atraente que fazia estranhos se virarem para olhá-lo. Mas de temperamento era tão selvagem quanto a mãe. Tinha muito pouca disciplina e nenhuma idéia de obediência. Como servente de pedreiro fora quase inútil, pois em vez de assegurar um fluxo contínuo de massa e pedras, tentava empilhar o suprimento de um dia e ia fazer outra coisa qualquer. Estava sempre desaparecendo. Um dia decidiu que nenhuma das pedras que havia ali no canteiro da obra servia para um determinado trabalho de cinzelagem que estava fazendo, e, sem falar com ninguém, fora até a pedreira escolher uma de que gostasse. Trouxe-a num pônei emprestado, dois dias mais tarde. Mas desculpavam suas transgressões, em parte porque ele era verdadeiramente um gravador excepcional, e em parte porque era uma pessoa de quem todos gostavam - uma característica que, em definitivo, não herdara da mãe, na opinião de Philip. O prior andara pensando no que Jack faria da vida. Se entrasse para a igreja poderia facilmente terminar como bispo.

      - Quantos anos se passarão até você se casar? - perguntou Martha a Jack.

      O rapaz deu uma mordida pequena: aparentemente estava interessado em se casar. Philip perguntou-se se teria alguém em mente. Para clara consternação dele, sua boca se encheu de sementes, e quando foram contadas, seu rosto se transformou numa máscara de indignação. O total foi trinta e um.

      - Estarei com quarenta e oito anos de idade! - protestou. Todos acharam muito engraçado, exceto Philip, que fez o cálculo, achou correto e maravilhou-se com o fato de Jack tê-lo realizado tão depressa. Nem mesmo Milius, que tomava conta do dinheiro do priorado, seria capaz daquilo.

      Jack estava sentado ao lado de Aliena. Philip se deu conta de que tinha visto os dois juntos diversas vezes naquele verão. Provavelmente era por serem tão inteligentes.

      Não havia muitas pessoas em Kingsbridge que pudessem conversar com Aliena no nível dela; e Jack, apesar de seus modos rebeldes, era mais amadurecido que os outros aprendizes. Ainda assim, sentiu-se intrigado com a amizade deles, pois, naquela idade, cinco anos faziam uma grande diferença.

      Jack passou o pão para Aliena e lhe fez a pergunta que Martha lhe fizera:

      - Quantos anos se passarão até você se casar? Todos resmungaram, reclamando, pois era muito fácil repetir uma pergunta. O jogo visava ser uma prova de inteligência, dando ensejo a muitas zombarias. Mas Aliena, que era famosa pelo número de pretendentes que rejeitara, fez com que todos rissem dando uma mordida enorme no pão, indicando assim que não queria se casar. Entretanto, seu truque não teve êxito: cuspiu apenas uma semente.

      Se ela fosse se casar no ano seguinte, pensou Philip, o noivo ainda não fizera sua entrada em cena. Claro que ele não acreditava no poder de predição do pão. Provavelmente morreria solteirona - mas não virgem, de acordo com os boatos, pois fora seduzida ou estuprada por William Hamleigh, segundo dizia o povo.

      Aliena passou o pão para Richard, seu irmão, mas o prior não ouviu o que lhe perguntou. Ainda estava pensando nela. Inesperadamente, tanto Aliena quanto o próprio Philip não tinham vendido toda a lã naquele ano. A sobra não fora grande - menos de um décimo do estoque do prior, e uma proporção   , menor ainda para Aliena -, mas mesmo assim era desencorajador. Depois disso, Philip receara que Aliena não cumprisse o trato referente à lã do ano seguinte; ela porém lhe pagara cento e sete libras.

      A grande notícia na Feira de Lã de Shiring fora o anúncio feito por Philip de que no ano seguinte Kingsbridge teria sua própria feira. A maioria das pessoas gostara da idéia, pois os aluguéis e taxas cobrados por William Hamleigh eram extorsivos, e o prior planejava cobrar preços muito mais baixos. Até agora o conde Williamnão dera a conhecer sua reação.

      De um modo geral, Philip achava que as perspectivas do priorado eram muito mais brilhantes agora do que haviam sido seis meses antes. Sobrepujara o problema causado pelo fechamento da pedreira e derrotara a tentativa de William de fechar o seu mercado. O mercado de domingo agora prosperava de novo e gerava dinheiro suficiente para comprar uma pedra cara, extraída em Marlborough. Durante toda a crise, a construção da catedral continuara inalterada, embora praticamente sem sobras. A única ansiedade remanescente de Philip era Matilde ainda não ter sido coroada. Embora fosse indiscutível que estivesse no comando, tendo sido aprovada pelos bispos, a autoridade dela se apoiava exclusivamente no seu poder militar, até haver uma coroação adequada. A mulher de Estêvão ainda controlava Kent, e a comuna de Londres não se definira. Um único golpe de azar ou uma decisão errada poderia derrubá-la, como a batalha de Lincoln destruíra Estêvão, e então haveria anarquia de novo.

      Philip disse a si próprio para não ser pessimista. Olhou para as pessoas sentadas à mesa. O jogo terminara e estavam comendo. Eram homens e mulheres honestos e de bom coração, que trabalhavam duro e iam à igreja. Deus olharia por eles. A comida era sopa de verduras, peixe assado temperado com pimenta e gengibre, pato e um creme habilmente colorido com listras vermelhas e verdes. Após o jantar todos carregaram seus bancos para a igreja inacabada, a fim de assistir à peça.

      Os carpinteiros tinham feito dois biombos, que foram colocados nas naves laterais, fechando o espaço entre a parede e a primeira pilastra da arcada, de modo que escondiam efetivamente o último intercolúnio de cada nave lateral. Os monges que representariam os papéis já estavam atrás dos biombos, aguardando o momento de entrar no meio da nave e encenar a história. O que faria o papel de santo Adolfo, um noviço imberbe de rosto angelical, estava deitado sobre uma mesa no lado mais afastado da nave, enrolado numa mortalha, fingindo estar morto e se esforçando para não rir.

      A mesma dúvida que assaltava Philip com relação ao pão do quantos o assaltava também com relação a representações teatrais: era possível escorregar facilmente para a irreverência e a vulgaridade. Mas todos gostavam tanto que, se não permitisse, representariam sua própria peça, longe da igreja, e aí sim, livres da supervisão dele, a coisa ficaria mesmo indecente. Além disso, quem mais gostava do teatro eram os monges que trabalhavam como atores. Vestir roupas diferentes, fingir ser outra pessoa e agir de modo extravagante - até mesmo sacrílego parecia lhes servir de válvula de escape, provavelmente por passarem o resto da vida sendo tão solenes.

      Antes da peça tiveram um culto regular, que o sacristão tornou bastante breve. Em seguida Philip fez um relato sucinto da vida imaculada e dos milagres de santo Adolfo. Depois sentou-se junto com a plateia para assistir ao espetáculo.

      De trás do biombo do lado esquerdo surgiu uma figura grande, vestida com o que parecia ser um traje sem forma e alegremente colorido, mas que, se examinado com mais atenção, não passava de pedaços de pano coloridos enrolados em torno do seu corpo e presos com alfinetes. Seu rosto estava pintado, e carregava uma bolsa de dinheiro bojuda. Era o bárbaro rico. Houve um murmúrio de admiração pela composição do ator, seguido por risadas quando a plateia descobriu quem estava por baixo da roupa do personagem: o gordo irmão Bernard, o cozinheiro, que todos conheciam e amavam.

      Ele desfilou de um lado para o outro diversas vezes, a fim de que todos pudessem admirá-lo, e correu na direção de umas criancinhas na primeira fila, causando gritinhos de medo; depois esgueirou-se na direção do altar, olhando em torno como que para se certificar de que estava sozinho, e colocou a bolsa de dinheiro atrás dele. Virou-se para a platéia, lançou um olhar de soslaio e disse, bem alto:

      - Esses tolos cristãos vão ficar com medo de roubar minha prata, porque imaginam que está protegida por santo Adolfo. Ah! - E com isso desapareceu atrás do biombo.

      Do lado oposto entrou um grupo de fora-da-lei, vestindo roupas esfarrapadas, com espadas e machadinhas de madeira, as caras sujas de fuligem e giz. Andaram pela nave, parecendo atemorizados, até que um deles viu a bolsa de dinheiro atrás do altar. Seguiu-se uma discussão: deveriam furtá-la ou não? O bom Fora-da-Lei alegou que a bolsa certamente lhes traria má sorte; o Mau Fora-da-Lei disse que um santo morto não lhes poderia causar mal algum. No final eles pegaram a bolsa e se retiraram para um canto a fim de contar o dinheiro.

      O bárbaro reapareceu e, depois de procurar seu tesouro em toda parte, afastou-se num ataque de raiva. Foi até o túmulo e amaldiçoou santo Adolfo por não ter protegido o seu dinheiro.

      Nesse ponto, o santo levantou-se da tumba.

      O bárbaro tremeu violentamente de medo. O santo ignorou-o e aproximou-se dos proscritos. Dramaticamente, derrubouos um por um, apenas apontando para eles, que simularam as convulsões da agonia, rolando no chão de forma grotesca e fazendo caretas horrorosas.

      Foi poupado apenas o bom Fora-da-Lei, que pôs o dinheiro de volta atrás do altar. com isso, o santo se virou para a audiência e disse:

      - Cuidado, todos vocês que duvidam do poder de santo Adolfo!

      A platéia gritou entusiasmada e bateu palmas. Os atores ficaram no meio da nave por algum tempo, exibindo sorrisos alvares. O propósito do drama era sua moral, claro, mas Philip sabia que as partes de que todos gostavam mais eram as grotescas, o ataque de raiva do bárbaro e as convulsões da morte dos fora-da-lei.

      Quando os aplausos cessaram, Philip levantou-se, agradeceu aos atores e anunciou que as corridas começariam dentro de pouco tempo no pasto ao lado do rio.

      Foi naquele dia que Jonathan, aos cinco anos de idade, descobriu que não era, afinal, o corredor mais veloz de Kingsbridge. Entrou na corrida infantil, envergando seu hábito de monge em miniatura, e fez com que todos caíssem na gargalhada quando o enrolou na cintura e expôs o traseiro minúsculo ao mundo. Estava, contudo, competindo entre crianças mais velhas e terminou entre os últimos. Sua expressão quando percebeu que tinha perdido foi de tão grande desapontamento que Tom morreu de pena e o pegou no colo para consolá-lo.

      O relacionamento especial entre Tom e o órfão do priorado intensificara-se gradualmente, e ninguém na aldeia se perguntava se não haveria uma razão secreta para aquilo. O construtor passava o dia inteiro no adro, onde Jonathan corria de um lado para o outro em liberdade, de modo que era inevitável que se vissem muito; e Tom estava naquela idade em que os filhos são muito velhos para serem engraçadinhos mas ainda não deram netos ao pai, que às vezes se interessa pelos filhos dos outros. Pelo que sabia, ninguém jamais suspeitara que ele fosse o pai de Jonathan. Se houvesse alguma suspeita, seria de Philip ser o pai verdadeiro do garoto. Uma suposição muito mais natural - embora o prior, sem dúvida, ficaria horrorizado se tomasse conhecimento dela.

      Jonathan localizou Aaron, o filho mais velho de Malachi, e livrou-se dos braços de Tom para ir brincar com seu amigo, o desapontamento esquecido.

      Enquanto as corridas dos aprendizes estavam sendo disputadas, o prior sentou-se na grama ao lado de Tom. Era um dia quente e ensolarado, e a tonsura de Philip estava coberta de gotas de suor. A admiração de Tom por ele crescia de ano para ano. Olhando em torno, os rapazes correndo, os velhos cochilando à sombra, as crianças chapinhando no rio, ele pensou que era Philip quem conservara tudo aquilo junto. Ele governava a aldeia, distribuindo justiça, decidindo onde deveriam ser construídas as casas novas e resolvendo brigas; empregava também a maior parte dos homens e das mulheres, como operários da obra ou como criados do priorado; e administrava o mosteiro, que era o coração de tudo. Lutou com barões ambiciosos, negociou com reis, e manteve o bispo a distância. Todas aquelas pessoas bem alimentadas, divertindo-se ao sol, deviam sua prosperidade, de alguma maneira, a ele. O próprio Tom era um magnífico exemplo.

      Tom era perfeitamente cônscio da profundidade da clemência de Philip ao perdoar Ellen. Era uma coisa extraordinária para um monge perdoar o que ela fizera. E o significado fora tão grande para ele!

      Quando Ellen partiu, a sua alegria por estar construindo a catedral fora toldada pela solidão. Agora que ela estava de volta, sentia-se completo. Ainda era caprichosa, irritante, brigona e intolerante, mas, de alguma forma, essas coisas não tinham importância: havia uma paixão em Ellen que queimava como uma vela e iluminava sua vida.

      Tom e Philip assistiram a uma corrida em que os garotos precisavam se apoiar nas mãos, de cabeça para baixo. Jack ganhou.

      - Aquele menino é excepcional - disse Philip.

      - Não são muitas as pessoas capazes de andar tão depressa se apoiando nas mãos - disse Tom.

      Philip riu.

      - É verdade, mas eu não estava me referindo a suas habilidade acrobáticas.

      - Eu sei. - Há muito tempo a inteligência de Jack era, simultaneamente, uma fonte de alegria e dor para Tom. O garoto tinha viva curiosidade quanto a construções - uma coisa que Alfred nunca tivera, e Tom gostava de lhe ensinar os truques da profissão. Entretanto Jack não tinha tato, e discutia com os mais velhos. Sempre era melhor ocultar a própria superioridade, mas ele ainda não aprendera isso, nem mesmo após tantos anos de perseguição de Alfred.

      - Esse garoto devia receber educação - prosseguiu Philip. Tom franziu a testa, sem entender. Jack estava sendo educado. Era um aprendiz.

      - O que você está querendo dizer?

      - Devia aprender a escrever bem, estudar gramática latina e ler os filósofos antigos.

      Tom ficou ainda mais intrigado.

      - Com que finalidade? Ele vai ser pedreiro. Philip o encarou bem nos olhos.

      - Tem certeza? - perguntou. - Jack é um garoto que nunca faz o que se espera.

      Tom nunca tinha pensado naquilo. Havia jovens que desafiavam as expectativas: filhos de condes que se recusavam a combater, filhos de reis que ingressavam em mosteiros, camponeses bastardos que se tornavam bispos. Sim, era verdade, Jack era daquele tipo.

      - Bem, o que você pensa que ele fará?

      - Depende do que aprender - respondeu Philip. - Mas o quero para a Igreja.

      Tom ficou surpreso: Jack parecia um clérigo muito pouco provável. E, estranhamente, ficou também um pouco magoado. Estava ansioso para que Jack viesse a ser mestre pedreiro, e ficaria terrivelmente desapontado se o menino escolhesse outro rumo para sua vida.

      - Deus precisa que os rapazes melhores e mais inteligentes trabalhem para Ele - continuou Philip, sem perceber a tristeza de Tom. - Olhe só esses aprendizes, competindo para ver quem pula mais alto. Todos são capazes de se tornar carpinteiros, pedreiros ou cortadores de pedra. Mas quantos poderiam ser bispos? Somente um: Jack.

      Aquilo era verdade, pensou Tom. Se o rapaz tivesse chance para uma carreira na Igreja, com um protetor poderoso em Philip, provavelmente a aproveitaria, pois poderia ganhar muito mais dinheiro e poder do que como simples pedreiro. Foi com relutância que Tom perguntou:

      - O que você está pensando, exatamente?

      - Quero que Jack se torne um monge noviço.

      - Um monge! - No caso de Jack parecia ainda mais improvável do que ser padre. O garoto se impacientava com a disciplina de um canteiro de obra - como iria tolerar a regra monástica?

      - Ele passaria a maior parte do tempo estudando - disse Philip. - Aprenderia tudo o que nosso mestre de noviços pode ensinar, e eu também lhe daria aulas.

      Quando um menino ia ser monge, era normal que seus pais fizessem uma doação generosa ao mosteiro. Tom perguntou-se quanto lhe custaria essa proposta.

      Philip adivinhou seus pensamentos.

      - Eu não ia esperar que você desse um presente ao priorado - disse. - Basta que dê um filho a Deus.

      O que Philip não sabia era que Tom já dera um filho ao priorado: o pequeno Jonathan, que agora estava brincando na água, na margem do rio, mais uma vez com o pequeno manto amarrado na cintura. No entanto, Tom sabia que tinha de reprimir o que sentia a esse respeito. A proposta de Philip era generosa: obviamente ele queria muito Jack. A oferta era uma tremenda oportunidade para o rapaz. Qualquer pai daria o braço direito para capacitar um filho a tal carreira. Tom sofreu uma pontada de ressentimento por ser a seu enteado, e não a Alfred, que aquela oportunidade maravilhosa estava sendo oferecida. Mas era um sentimento indigno e ele o abafou. Devia ficar alegre e esperar que o rapaz se adaptasse ao regime monástico.

      - Deve ser feito logo - acrescentou Philip. - Antes que ele se apaixone por alguma garota.

      Tom assentiu. Na campina, a corrida das mulheres chegava ao ponto culminante. Tom ficou olhando, pensativo. Após um momento percebeu que Ellen estava na dianteira.

      Aliena a perseguia muito de perto, mas quando cruzaram a linha de chegada, Ellen ainda estava um pouco à frente. Ela ergueu as mãos num gesto de vitória.

      Tom apontou para ela.

      - Não sou eu que tem de ser persuadido - disse para Philip. - É ela.

     

     

      Aliena ficou surpresa por ter sido vencida por Ellen. Embora esta fosse muito moça para ter um filho de dezessete anos, mesmo assim devia ser pelo menos dez anosmais velha que a garota. Sorriram uma para a outra, ofegantes e suando, na linha de chegada. Aliena observou que Ellen tinha pernas esguias, musculosas e bronzeadas e corpo compacto. Todos aqueles anos na floresta a haviam tornado vigorosa.

      Jack apareceu para congratular sua mãe pela vitória. Eles gostavam muito um do outro, Aliena não tinha a menor dúvida. Os dois diferiam muito: Ellen era uma morena bronzeada, de olhos dourados, fundos, e Jack era ruivo, de olhos azuis. Devia ser parecido com o pai, pensou Aliena. Nada jamais fora dito a respeito do pai de Jack, o primeiro marido de Ellen. Talvez tivessem vergonha dele.

      Vendo os dois juntos, ocorreu a Aliena que Jack devia lembrar a Ellen o marido que perdera. Devia ser por isso que gostava tanto dele. Talvez o filho fosse tudo o que restava de um homem a quem adorara. A semelhança física podia ser excessivamente poderosa num caso desses. Richard às vezes fazia com que Aliena se lembrasse do pai, e era nessas oportunidades que sentia uma onda de afeto pelo irmão, embora isso não a impedisse de desejar que fosse mais parecido com o pai no caráter.

      Sabia que não devia se sentir insatisfeita com Richard. Ele fora à guerra e lutara corajosamente, e isso era tudo o que era exigido dele. Mesmo assim, andava desgostosa.

      Tinha riqueza e segurança, uma casa e criados, roupas finas, lindas jóias e uma posição de respeito na cidade. Se alguém lhe perguntasse, teria dito que se sentia feliz. Mas sob a superfície havia uma inequívoca inquietude. Nunca perdera o entusiasmo pelo trabalho, mas em algumas manhãs se perguntava se tinha importância que vestido poria ou se usaria jóias ou não. Ninguém se importava com sua aparência, então por que ela deveria importar-se? Paradoxalmente, tomara mais consciência do corpo. Ao caminhar, podia sentir o balanço dos seios. Quando descia para a praia das mulheres a fim de tomar banho, sentia-se embaraçada por ser muito peluda.

      Montada, era perfeitamente consciente das partes do corpo que tocavam na sela. Era algo esquisito. Como se um voyeur a observasse o tempo todo, tentando enxergar através de suas roupas para vê-la nua, e esse voyeur fosse ela mesma, invadindo sua própria privacidade.

      Deitou-se na grama, sem fôlego. O suor corria por entre seus seios e pela parte interna das coxas. Impaciente, desviou a atenção para um problema mais imediato.

      Não tinha vendido toda a lã naquele ano. A culpa não fora sua; com a maior parte dos comerciantes acontecera o mesmo, assim como com o prior Philip. Este mostrava-se muito calmo, mas Aliena estava ansiosa. O que ia fazer com toda aquela lã? Podia guardá-la até o ano seguinte, claro. Mas e se não conseguisse vendê-la de novo?

      Não sabia quanto tempo a lã crua levava para se deteriorar. Tinha a impressão de que talvez ressecasse, tornando-se quebradiça e difícil de trabalhar.

      Se as coisas saíssem muito mal seria incapaz de sustentar Richard. Ser cavaleiro era um negócio muito dispendioso. O cavalo, que custara vinte libras, perdera a coragem após a batalha de Lincoln e agora era praticamente inútil; em breve ele iria querer outro. Aliena poderia comprá-lo, mas faria um enorme rombo nas suas finanças.

      Richard não se sentia à vontade por depender dela - não era a situação usual para um cavaleiro, e esperara ganhar bastante com as pilhagens para se sustentar, mas nos últimos tempos havia estado do lado perdedor. Se era para Richard recuperar o condado, Aliena teria que continuar a prosperar.

      No seu pior pesadelo, ela perdia todo o dinheiro, e os dois voltavam a ser miseráveis, presa fácil de padres desonestos, nobres devassos e fora-da-lei sanguinários; e terminariam na masmorra fedorenta em que vira seu pai pela última vez, acorrentado à parede e moribundo.

      Para contrastar com esse pesadelo, tinha um sonho de felicidade. Nele, ela e Richard moravam juntos no castelo, sua antiga casa. Richard governava tão sabiamente quanto Bartholomew, e Aliena o ajudava como ajudara o pai, recebendo convidados importantes, assegurando hospitalidade a todos e sentando-se à sua esquerda na mesa do jantar. Mas até mesmo esse sonho a estava deixando descontente.

      Sacudiu a cabeça, para dissipar aquela onda de melancolia, e pensou de novo na lã. O modo mais simples de lidar com o problema seria não fazer nada. Podia armazenar o excesso até o ano seguinte, e então, se não conseguisse vendê-la, assumiria o prejuízo. Era possível assumi-lo. Havia, contudo, o perigo remoto de que o mesmo acontecesse no outro ano, dando início a uma tendência declinante; tinha que tentar arranjar outra solução. Tentara vendê-la para um tecelão de Kingsbridge, mas ele já havia comprado tudo de que precisava.

      Ocorreu-lhe agora, olhando para as mulheres de Kingsbridge, enquanto elas voltavam à calma após a corrida, que praticamente todas sabiam tecer a partir da lã crua.

      Era um negócio tedioso, mas simples: os camponeses faziam isso desde Adão e Eva. A lã tinha que ser lavada, depois penteada com um pente de cardar, para ficar desemaranhada, e então era tecida em fio. O fio depois era urdido e transformado em pano. Por fim, frouxamente tecido, era feltrado ou pisoado, encolhendo e engrossando, transformando-se assim em algo que podia ser usado na confecção de roupas. As mulheres da cidade provavelmente estariam dispostas a fazer isso por um penny por dia. Mas quanto tempo seria necessário? E que preço alcançaria a lã transformada em tecido?

      Teria que experimentar o plano com uma pequena quantidade. Depois, se desse certo, poderia arranjar diversas pessoas para fazer o serviço durante as longas noites de inverno.

      Sentou-se direito, animada com a nova idéia. Ellen estava deitada ao seu lado. Jack, sentado do outro lado da mãe, sorriu timidamente e desviou o rosto, como se houvesse ficado envergonhado por ter sido apanhado olhando para ela. Era um garoto engraçado, com a cabeça cheia de idéias. Aliena se lembrava dele quando era pequeno, com uma aparência esquisita, sem saber como as crianças eram concebidas. Mal percebera quando ele viera morar em Kingsbridge, contudo. E agora parecia tão diferente, uma pessoa tão completamente nova, que era como se tivesse surgido do nada, uma flor que desabrocha uma manhã onde na véspera havia apenas terra nua. Para começar, sua aparência não era mais estranha. Na verdade, pensou Aliena, examinando-o com um leve sorriso, as garotas decerto o consideravam terrivelmente bonito. Claro que tinha um lindo sorriso. A jovem não se preocupava muito com a aparência dele, mas ficava um pouco intrigada com sua estonteante imaginação. Descobrira que não só sabia diversas narrativas completas - algumas com milhares e milhares de versos -, como também podia inventar o que dizia, quando recitava, de tal modo que Aliena nunca tinha certeza se estava se recordando ou improvisando. E as histórias não eram a única coisa surpreendente nele. Jack era curioso a respeito de tudo e se intrigava com coisas que todas as pessoas tomavam como certas e definitivas. Um dia perguntara de onde vinha toda a água do rio. "A cada hora, milhares e milhares de galões de água passam por Kingsbridge, dia e noite, o ano inteiro. Tem sido assim desde antes de nascermos, de antes de nossos pais nascerem, ou de os pais dos nossos pais terem nascido. De onde vem toda essa água? Existe algum lago imenso que alimenta o rio? Esse lago então deve ser do tamanho de toda a Inglaterra! E se um dia secar?" Jack estava sempre dizendo coisas desse tipo, algumas menos fantasiosas, o que fazia com que Aliena percebesse quanto ansiava por uma conversa inteligente. Quase todo mundo em Kingsbridge só era capaz de falar sobre agricultura e adultério, assuntos que não a interessavam. O prior Philip era diferente, claro, mas não era com frequência que se entregava a conversas ociosas: estava sempre ocupado, vendo coisas no canteiro da obra, às voltas com os monges ou com a cidade.

      Aliena suspeitava que Tom Construtor também fosse muito inteligente, mas era do tipo que pensava mais que falava. Jack era o primeiro amigo verdadeiro que fizera.

      Uma descoberta maravilhosa, apesar da sua pouca idade. Na verdade, quando se afastava de Kingsbridge, surpreendia-se às vezes ansiosa por voltar a fim de conversar com ele.

      Gostaria de saber de onde viriam suas idéias. Esse pensamento fez com que reparasse na mãe dele. Que mulher estranha devia ser, para criar um filho na floresta!

      Aliena conversara com Ellen e encontrara nela um espírito parecido com o seu, uma mulher independente e auto-suficiente, de certa forma ressentida com o modo como a vida a tratara. Cedendo a um impulso, Aliena perguntou:

      - Ellen, onde você aprendeu as histórias?

      - Com o pai de Jack - respondeu ela sem pensar. Uma expressão reservada toldou-lhe a fisionomia e Aliena percebeu que não devia fazer mais perguntas.

      Outro pensamento lhe ocorreu.

      - Você sabe tecer?

      - Claro - disse Ellen. - Todo mundo sabe.

      - Gostaria de tecer por dinheiro?

      - Talvez. Em que você está pensando?

      Aliena explicou. Ellen não precisava de dinheiro, claro, mas era Tom quem o ganhava, e Aliena suspeitava que ela podia querer ganhar o seu próprio.

      A suspeita estava correta.

      - Sim, vou fazer uma tentativa - disse ela.

      Naquele momento, Alfred, enteado de Ellen, apareceu. Como o pai, Alfred era um gigante. A maior parte do seu rosto se ocultava atrás de uma barba cerrada, mas os olhos acima dela eram implantados muito próximos um do outro, dando-lhe um ar interessante. Sabia ler, escrever e fazer contas, mas a despeito disso era bastante estúpido. Não obstante ele prosperara, e tinha o seu próprio grupo de pedreiros, aprendizes e serventes. Aliena observara que homens grandes com frequência conquistavam posições de poder, independentemente de sua inteligência. Como capataz Alfred tinha outra vantagem, claro: podia ter certeza de conseguir sempre trabalho para os seus operários, pois o pai era mestre construtor da Catedral de Kingsbridge.

      Alfred sentou-se na grama ao lado dela. Tinha pés enormes, metidos em botas de couro cinzentas de tanto pó de pedra. Aliena raramente lhe dirigia a palavra. Deviam ter muita coisa em comum, pois eram os únicos jovens pertencentes à nata de Kingsbridge, a classe que vivia nas casas mais próximas do muro do priorado; Alfred contudo parecia sempre tão sem graça!

      - Devia haver uma igreja de pedra - disse ele abruptamente, após um momento.

      Era evidente que os outros tinham que descobrir o contexto a que se aplicava aquela observação. Aliena pensou um pouco e disse:

      - Você está se referindo à igreja da paróquia?

      - Sim - disse ele, como se fosse óbvio.

      A igreja da paróquia agora era muito usada, pois a cripta da catedral, utilizada pelos monges, era apertada e abafada, e a população de Kingsbridge crescera. No entanto, era uma construção de madeira com telhado de palha e chão de terra.

      - Você tem razão - disse ela. - Deveríamos ter uma igreja de pedra.

      Alfred olhava para ela, ansioso. Aliena perguntou-se o que estaria querendo que dissesse.

      - Em que está pensando, Alfred? - perguntou Ellen, que provavelmente estava acostumada a fazer com que ele se expressasse de modo compreensível.

      - Como é que se começa a construir igrejas, afinal? - perguntou ele. - O que quero saber é: se queremos uma igreja de pedra, o que fazemos?

      Ellen deu de ombros.

      - Não tenho a menor idéia. Aliena parou para pensar.

      - Você podia formar uma associação paroquial - sugeriu. Ela se referia a uma associação de pessoas que davam banquetes de vez em quando e arrecadavam dinheiro entre elas próprias, geralmente a fim de comprar velas para a sua igreja, ou de ajudar viúvas e órfãos da vizinhança. Algumas aldeias não tinham associações, mas Kingsbridge não era mais uma aldeia.

      - Como é que funcionaria? - perguntou Alfred.

      - Os membros da associação arcariam com as despesas da nova igreja - disse Aliena.

      - Então deveríamos fundar uma associação - disse Alfred. A jovem perguntou-se se não teria se enganado a respeito dele. Nunca lhe parecera ser do tipo piedoso, mas ali estava ele tentando levantar dinheiro para construir uma igreja nova. Talvez tivesse facetas ocultas.

      Só então se lembrou de que Alfred era o único empreiteiro de Kingsbridge, de modo que estava certo de que lhe incumbiria o trabalho de construção. Podia não ser inteligente, mas era bastante esperto.

      Mesmo assim, ela gostou da idéia. Kingsbridge estava se transformando numa cidade, e as cidades sempre têm mais que uma igreja. com uma alternativa para a catedral, a cidade não seria dominada tão completamente pelo mosteiro. Naquele momento Philip era o lorde e senhor inconteste ali. Era um tirano benevolente, mas Aliena podia antever uma época em que poderia atender aos interesses dos comerciantes a existência de uma igreja alternativa.

      - Você explicaria essa coisa da associação para alguns dos outros? - perguntou Alfred.

      Aliena recuperara o fôlego após a corrida. Relutava em trocar a companhia de Ellen e Jack pela de Alfred, mas estava um bocado entusiasmada com a idéia dele, e, de qualquer modo, teria sido um pouco grosseiro recusar.

      - Será um prazer - disse, e saiu com ele.

      O sol estava se pondo. Os monges tinham acendido a fogueira e serviam a tradicional cerveja temperada com gengibre. Jack queria fazer uma pergunta à sua mãe, agora que se encontravam sozinhos, mas estava nervoso. Então alguém começou a cantar, e como sabia que ela cantaria também a qualquer momento, deixou escapar:

      - Meu pai era menestrel?

      Ela o encarou. Estava espantada, mas não zangada.

      - Quem lhe ensinou essa palavra? Você nunca viu um menestrel.

      - Aliena. Ela costumava ir à França com o pai.

      Sua mãe olhou na direção da fogueira, no outro lado da campina escura.

      - Sim, era menestrel. Foi ele quem me ensinou todos aqueles poemas, exatamente como os ensinei a você. Você agora os está recitando para Aliena?

      - Sim. - Jack se sentiu um pouco sem graça.

      - Você a ama de verdade, não é?

      - É tão evidente assim?

      Ela sorriu afetuosamente.

      - Só para mim, creio. Ela é muito mais velha que você.

      - Cinco anos.

      - Mas você a conquistará, mesmo assim. Você é como seu pai. Ele podia conquistar qualquer mulher que quisesse.

      Jack estava embaraçado de falar sobre Aliena, mas entusiasmado por saber coisas a respeito do pai, e ansioso por mais informações; para seu enorme aborrecimento, porém, Tom surgiu naquele exato instante e sentou-se com eles. Começou a falar imediatamente.

      - Estive conversando com o prior Philip a respeito de Jack - disse. O tom de sua voz era leve, mas o rapaz percebeu que havia nele uma certa tensão, e viu que vinha problema. - Philip diz que o garoto deveria ser educado.

      A reação de Ellen foi previsivelmente indignada.

      - Ele é educado - disse. - Sabe ler e escrever em inglês e francês, conhece números, é capaz de recitar livros inteiros de poesia...

      - Não me entenda mal deliberadamente - disse Tom, com firmeza. - Philip não disse que Jack é ignorante. Muito pelo contrário. O que está dizendo é que ele é tão inteligente que deveria ter mais instrução.

      O rapaz não ficou satisfeito com aqueles elogios. Ele partilhava das suspeitas que a mãe nutria com relação a religiosos. Decerto tinha uma armadilha qualquer escondida naquela conversa.

      - Mais? - contrapôs Ellen ironicamente. - O que mais aquele monge quer que ele aprenda? Eu lhe digo. Teologia. Latim. Retórica. Metafísica. Estrume de vaca. Bobagens.

      - Não faça pouco de tudo tão rapidamente - disse Tom, com brandura. - Se Jack aceitar a oferta de Philip e for para a escola aprender a escrever com rapidez e a boa caligrafia de um secretário, estudar latim, teologia e todos os outros assuntos que você chama de estrume de vaca, poderá trabalhar para um conde ou para um bispo, e acabar sendo um homem rico e poderoso. "Nem todos os barões são filhos de barões", como diz o ditado.

      Ellen semicerrou os olhos perigosamente.

      - Se ele aceitar a oferta de Philip, foi o que você disse. E qual é a oferta de Philip, exatamente?

      - Que Jack se torne um monge noviço...

      - Só por cima do meu cadáver! - gritou Ellen, pondo-se de pé com um salto. - A maldita Igreja não vai levar o meu filho! Aqueles padres mentirosos e traiçoeiros me tiraram o pai dele mas não vão me tirar Jack. Antes enfiarei uma faca na sua barriga, juro por todos os deuses!

      Tom já vira Ellen ter ataques como aquele antes, de modo que não ficou tão impressionado como ficaria, se fosse novidade.

      - Que diabo há com você, mulher? - perguntou calmamente. - Ofereceram ao garoto uma magnífica oportunidade.

      O que deixou Jack mais intrigado foi a frase: "Aqueles padres mentirosos e traiçoeiros me tiraram o pai dele". O que ela teria querido dizer com aquilo? Sentiu vontade de perguntar, mas Ellen não lhe deu oportunidade.

      - Ele não vai ser monge! - berrou ela.

      - Se ele não quiser ser monge, não terá que ser monge.

      Ellen pareceu ficar emburrada.

      - Aquele prior ardiloso sempre dá um jeito de no fim conseguir o que deseja - disse ela.

      Tom se virou para Jack.

      - Está na hora de dizer alguma coisa, rapaz. O que você quer fazer da sua vida?

      Jack nunca pensara naquilo, mas a resposta veio sem hesitação, como se tivesse se decidido muito tempo antes.

      - Vou ser mestre construtor, como você - disse ele. vou construir a mais linda catedral que o mundo já viu.

      As franjas vermelhas do sol mergulharam debaixo do horizonte e a noite caiu. Hora do último ritual da véspera do solstício de verão: pedidos flutuantes. Jack já tinha um toco de vela e um pedaço de madeira. Ele olhou para Ellen e Tom. Ambos o encaravam, de certa forma perplexos: a convicção com que se manifestara sobre seu futuro os surpreendera. Bem, não era de admirar: surpreendera também o próprio Jack.

      Vendo que nada mais tinham a dizer, o garoto ficou de pé de um pulo e correu para a fogueira. Acendeu um galhinho seco no fogo, derreteu um pouco a base da vela e prendeu-a no pedaço de madeira, acendendo-a. A maioria dos aldeões estava fazendo o mesmo. Os que não podiam comprar uma vela faziam uma espécie de barquinho com capim seco e torciam o capim na parte central para fazer um pavio.

      Jack viu que Aliena estava bem do seu lado. Seu perfil era delineado pelo clarão da fogueira, e ela parecia imersa em profunda meditação. Cedendo a um impulso, ele perguntou:

      - Qual é o seu pedido, Aliena?

      - Paz - respondeu ela, sem parar para pensar. Depois, parecendo assustada, virou o rosto.

      Jack perguntou-se se não seria maluco por amar Aliena. Ela gostava dele, sem dúvida - tinham se tornado amigos, mas a idéia de se virem nus, deitados lado a lado, acariciando a pele quente um do outro, estava tão longe do coração dela quanto perto do seu.

      Quando todos estavam prontos, ajoelharam-se à margem do rio ou entraram dentro d'água, nas partes mais rasas. Segurando as velas bruxuleantes, fizeram um pedido.

      Jack fechou os olhos com força e visualizou Aliena, deitada numa cama, com os seios nus para fora da colcha, abrindo os braços para ele e dizendo: "Faça amor comigo, marido". Depois todos colocaram cuidadosamente suas velas sobre a água. Se o barquinho afundasse ou o fogo se apagasse, o pedido jamais seria atendido. Assim que Jack largou o seu, e a pequenina embarcação se afastou, a base de madeira tornou-se invisível, e apenas a chama pôde ser vista. Ele permaneceu olhando intensamente para ela durante algum tempo, e depois a perdeu entre as centenas de luzes que dançavam, boiando na superfície da água, trêmulos pedidos descendo a correnteza, até que desapareceram na curva do rio e não mais puderam ser vistos.

     

      Todo aquele verão, Jack contou histórias a Aliena.

      Eles se encontravam aos domingos, a princípio ocasionalmente e depois com regularidade, na clareira perto da pequena queda-d'água. Ele lhe falou sobre Carlos Magno e seus cavaleiros, e Guilherme de Orange e os sarracenos. Jack ficava completamente absorto nas histórias quando as estava contando. Aliena gostava de ver como as expressões mudavam no seu rosto jovem. Mostrava-se indignado com a injustiça, horrorizado com a traição, emocionado com a coragem de um cavaleiro e comovido até as lágrimas com uma morte heróica; e, como suas emoções eram contagiosas, ela também ficava comovida. Alguns dos poemas eram longos demais para serem recitados numa tarde, e quando ele tinha que contar uma história em capítulos, interrompia sempre num momento de tensão, de modo que Aliena passava a semana inteira imaginando o que aconteceria a seguir.

      Ela nunca falou a ninguém sobre aqueles encontros. Não sabia ao certo por quê. Talvez os outros não fossem entender o fascínio das histórias. Qualquer que fossea razão, deixou que pensassem que estava saindo na sua costumeira caminhada dos domingos, e, sem consultá-la, Jack fez o mesmo; assim, chegaram a um ponto onde já não poderiam contar a ninguém sem que dessem a impressão de estar confessando algo de que se sentiam culpados. Dessa forma, quase que por acidente, os encontros se tornaram secretos.

 

      Um domingo Aliena leu O romance de Alexandre para ele, só para variar. Diferentemente dos poemas de Jack, de intriga nas cortes, política internacional e morte súbita no campo de batalha, o romance de Aliena tratava de casos de amor e magias. Jack ficou muito impressionado com esses novos elementos, e no domingo seguinte deu início a um novo romance de sua própria invenção.

      Era um dia quente, no final de agosto. Aliena, de sandálias, trajava um vestido leve de linho. A floresta estava em silêncio, a não ser pelo rumorejar da água e a modulação da voz de Jack, ora mais alta, ora mais baixa. A história começou do modo convencional, com a descrição de um bravo cavaleiro, grande e forte, poderoso nas batalhas e armado com uma espada mágica, a quem fora ordenada uma tarefa difícil: viajar até um distante país no oriente e trazer uma videira que desse rubis.

      Mas ele rapidamente a desviou do padrão comum. O cavaleiro foi morto e o foco passou para o seu escudeiro, um bravo mas pobre jovem de dezessete anos perdidamente apaixonado pela filha do rei, uma linda princesa. O escudeiro jurou cumprir a missão dada a seu amo, muito embora fosse jovem e inexperiente e tivesse apenas um cavalinho malhado e um arco.

      Em vez de vencer o inimigo com um tremendo golpe de uma espada mágica, como o herói costumava fazer nessas histórias, o escudeiro lutava desesperadamente e ganhava suas batalhas apenas por sorte ou esperteza, quase sempre escapando da morte por um triz. com frequência tinha medo dos inimigos com que se defrontava - ao contrário dos cavaleiros destemidos de Carlos Magno, mas nunca se desviava de seu compromisso. Mesmo assim, tanto a missão quanto seu amor pela princesa pareciam não ter esperanças.

      Aliena descobriu que ficava mais cativada pela bravura do escudeiro que pela força do seu amo. Mordia os nós dos dedos de ansiedade quando ele cavalgava pelo território inimigo, assustava-se quando a espada de um gigante por pouco não o acertava e suspirava quando ele deitava a cabeça solitária para dormir e sonhar com a distante princesa. Seu amor por ela parecia ser da mesma qualidade da constância do seu espírito. No final, o escudeiro trouxe a videira que produzia rubis, espantando toda a corte.

      - Mas não se importou muito - afirmou Jack, estalando desdenhosamente os dedos - no que dizia respeito a todos aqueles barões e condes. Estava interessado numa pessoa apenas. Naquela noite conseguiu entrar no quarto dela, usando um brilhante ardil que aprendera na viagem ao oriente. Até que por fim se viu de pé ao lado da cama da princesa, olhando para o seu rosto. - E Jack olhou dentro dos olhos de Aliena. - Ela acordou imediatamente, mas não teve medo. Ele adiantou-se e, com delicadeza, segurou-lhe a mão. - Jack representou a história, pegando a mão de Aliena e segurando-a entre as suas. Ela estava fascinada pela intensidade do seu olhar e pelo poder do amor do jovem escudeiro, e mal sentiu que ele estava segurando sua mão. - O escudeiro lhe disse: "Eu a amo muito", e beijou-a nos lábios. -Jack inclinou-se e beijou Aliena. Seus lábios tocaram nos dela tão suavemente que Aliena mal sentiu. Aconteceu muito depressa, e ele retomou a narrativa prontamente: - A princesa dormiu - continuou. E Aliena pensou: Isto realmente aconteceu? Jack me beijou mesmo? Mal podia crer, mas ainda sentia o toque da boca dele na sua. - No dia seguinte, o escudeiro perguntou ao rei se podia se casar com a princesa, como recompensa por ter trazido a videira que produzia rubis. - Jack me beijou sem pensar, decidiu Aliena. Era só parte da história. Ele nem mesmo sabe que o fez. vou simplesmente esquecer o que houve. - O rei não consentiu. O escudeiro ficou com o coração partido. Todos os cortesãos riram. Naquele dia mesmo o escudeiro deixou aquele reino, montado no seu cavalinho malhado; porém, jurou que voltaria, e que no dia de seu regresso desposaria a linda princesa. - Jack calou-se e largou a mão de Aliena.

      - E o que aconteceu depois?

      - Não sei - respondeu Jack. - Ainda não pensei.

     

      Todas as pessoas importantes de Kingsbridge entraram para a associação da paróquia. A idéia era nova para a maioria, mas gostaram de ver que Kingsbridge agora era uma cidade, e não mais uma aldeia, e sua vaidade sensibilizou-se com o apelo feito a eles para que, como cidadãos importantes, doassem uma igreja de pedra.

      Aliena e Alfred recrutaram os membros e organizaram o primeiro jantar da associação em meados de setembro.

      Os grandes ausentes foram o prior Philip, que de certa forma era hostil ao empreendimento, embora não o bastante para proibi-lo; Tom Construtor, que declinou, devido ao modo de pensar de Philip; e Malachi, excluído pela sua religião.

      Nesse espaço de tempo, Ellen tecera um rolo de fazenda com Lã da sobra de Aliena. Era áspera e sem cor, mas boa o bastante para confeccionar hábitos de monge, e o despenseiro do priorado, Cuthbert Cabeça Branca, a comprara. Embora fosse barata, ainda tinha o dobro do preço da lã crua, e mesmo depois de haver pago um penny por dia a Ellen, Aliena lucrara, meia libra. Cuthbert foi perspicaz o bastante para comprar mais tecido àquele preço, de modo que Aliena comprou a sobra de lã de Philip, a fim de aumentar seu estoque, e arranjou mais doze pessoas, a maioria mulheres, para fazer o serviço de tecelagem. Ellen concordou em fazer outro fardo de tecido, mas não em pisá-lo, já que, conforme alegou, o trabalho era muito duro. Aliena disse a suas tecelãs que fossem em frente e fizessem um pano frouxamente tecido; depois contrataria homens para pisá-lo ou venderia para um mestre pisoeiro em Winchester.

      O almoço da associação foi na igreja de madeira. Aliena organizou-o. Dividiu a responsabilidade da preparação com os outros membros, a maioria dos quais tinha pelo menos uma criada doméstica. Alfred e seus homens construíram uma mesa comprida de tábuas, apoiada em cavaletes. Compraram cerveja forte e um barril de vinho.

      Sentaram-se dos dois lados da mesa, sem ninguém nas cabeceiras, pois todos eram iguais dentro da associação. Aliena pôs um vestido de seda vermelho-escuro, ornamentado por um broche de ouro com rubis, e uma capa comprida cinza-escura com mangas largas, como era moda. O pároco deu graças: é claro que estava deleitado com a idéia da associação, pois uma nova igreja aumentaria seu prestígio e multiplicaria sua renda.

      Alfred apresentou um orçamento e um cronograma para a construção da nova igreja. Falou como se tudo fosse fruto do seu trabalho, mas Aliena sabia que Tom fizera quase todos os cálculos. A obra levaria dois anos e custaria noventa libras, e Alfred propôs que cada um dos quarenta membros da associação desse seis pence por semana.

      Era um pouco mais do que alguns tinham imaginado, Aliena podia assegurar, examinando-lhes o rosto. Todos concordaram, mas a jovem achou que a associação podia prever  uma ou duas desistências.

      Ela poderia dar aquela contribuição com facilidade. Olhando para as pessoas sentadas em torno da mesa, constatou que provavelmente era a pessoa mais rica presente. Estava numa pequena minoria de mulheres: as únicas outras eram uma cervejeira com fama de fabricar uma boa cerveja forte, uma alfaiata que empregava duas costureiras e algumas aprendizes, e a viúva de um sapateiro, que administrava o negócio deixado pelo marido. Aliena era a mais jovem, sendo mais jovem também que todos os homens, exceto Alfred, um ou dois anos mais moço que ela.

      Aliena sentiu falta de Jack. Ainda não ouvira o segundo capítulo da história do jovem escudeiro. Aquele dia era feriado, e seria bom se tivesse ido encontrá-lo na clareira. Talvez ainda fosse, mais tarde. À mesa conversavam sobre a guerra civil. A mulher de Estêvão, a rainha Matilda, apresentara uma resistência mais forte do que se esperara: recentemente tomara Winchester e capturara Robert de Gloucester. Robert era irmão de Matilde, a Imperatriz, e comandante-chefe de suas forças militares. Algumas pessoas diziam que ela era apenas testa-de-ferro, e que Robert era o verdadeiro líder da rebelião. De qualquer modo, a captura dele fora quase tão ruim para Matilde quanto a de Estêvão para os legalistas, e todo mundo tinha uma opinião sobre o rumo que a guerra tomaria a seguir.

      A bebida era muito mais forte que a habitualmente servida pelo prior Philip, e, à medida que a refeição progredia, os convivas iam falando mais alto. O pároco não exerceu uma influência restritiva, provavelmente por estar bebendo tanto quanto os demais. Algo parecia preocupar Alfred, sentado ao lado de Aliena, mas o rosto dele também estava congestionado. Quanto a Aliena, não gostava de bebidas fortes e tomou um copo de sidra com o seu jantar.

      Quando a maior parte da comida tinha sido consumida, alguém propôs um brinde a Alfred e Aliena. Alfred ficou radiante de satisfação. Depois que o canto começou, Aliena começou a se perguntar em quanto tempo conseguiria dar o fora.

      - Nós nos saímos bem juntos - disse-lhe Alfred.

      Aliena sorriu.

      - Vamos ver quantos deles ainda estarão pagando seis pence por semana dentro de um ano.

      Alfred não queria saber de apreensões ou dúvidas.

      - Nós nos saímos bem - repetiu. - Somos uma boa equipe. - Ergueu o copo na direção dela e bebeu. - Não acha que somos uma boa equipe?

      - Certamente que sim - respondeu, para agradar Alfred.

      - Gostei disso - prosseguiu ele. - Quero dizer, de fazer isso com você, organizar a associação.

      - Também gostei - disse ela polidamente.

      - É mesmo? Isso me faz muito feliz.

      Ela o fitou com mais cuidado. Por que estaria sendo tão insistente? Sua fala era clara e precisa, não exibia sinais de embriaguez.

      - Foi agradável - disse ela, procurando manter um tom neutro.

      Ele pôs uma das mãos sobre o seu ombro. Aliena detestava ser tocada, mas treinara não se esquivar, porque os homens ficavam ofendidos.

      - Diga-me uma coisa - disse ele, baixando a voz para um Tom mais íntimo. - O que você está procurando num marido?

      Espero que ele não vá me pedir em casamento, pensou Aliena, desolada. Deu sua resposta padronizada.

      - Não preciso de marido. Meu irmão já me dá bastante trabalho.

      - Mas precisa de amor - disse ele. Ela gemeu no íntimo.

      Estava prestes a responder quando ele ergueu a mão para silenciá-la - um hábito masculino que achava particularmente irritante.

      - Não me diga que não precisa de amor - disse. - Todo mundo precisa.

      Ela o encarou com firmeza. Sabia que havia algo de diferente em si: a maioria das mulheres gostava da idéia de se casar, e se ainda estavam solteiras, como Aliena, aos vinte e dois anos de idade, mostravam-se mais que interessadas - desesperadas para se casar. Alfred era jovem, saudável e próspero: metade das garotas de Kingsbridge gostaria de se casar com ele. Por um momento brincou com a idéia de dizer sim. Mas a idéia de morar com Alfred, almoçar com ele todos os dias, cear todas as noites, ir à missa em sua companhia e ter os seus filhos era aterrorizante. Preferia ficar sozinha. Sacudiu a cabeça.

      - Esqueça, Alfred - disse resolutamente. - Não preciso de marido, por amor ou por qualquer outra coisa.

      Ele não se desencorajou.

      - Eu a amo, Aliena - disse. - Trabalhando com você me senti verdadeiramente feliz. Preciso de você. Quer ser minha mulher?

      Pronto, ele concretizara o pedido. Era uma pena, porque agora precisava rejeitá-lo formalmente. Aprendera que não adiantava tentar proceder com delicadeza nesses casos: os homens tomavam uma recusa bondosa como sinal de indecisão e pressionavam mais ainda.

      - Não, não quero - disse ela. - Não o amo, não gostei muito de ter trabalhado em sua companhia e não o desposaria nem que fosse o último homem na face da terra.

      Alfred ficou ofendido. Devia ter pensado que suas chances eram boas. Aliena tinha certeza de que nada fizera para encorajálo. Tratara-o como um sócio, em igualdade de condições, ouvindo quando falava, falando com ele franca e diretamente, cumprindo suas responsabilidades e esperando que Alfred cumprisse as dele. Só que alguns homens encaram essas coisas como sinal de encorajamento.

      - Como você pode dizer isso? - gaguejou Alfred.

      Ela suspirou. Estava magoado, e tinha pena dele; mas dentro de um instante se mostraria indignado, e agiria como se tivesse sido acusado injustamente; por fim se convenceria de que ela o insultara sem motivos, e se tornaria ofensivo. Nem todos os pretendentes rejeitados se comportavam assim, mas um certo tipo sempre repetia tal padrão, e Alfred era desse tipo. Ia ter que se retirar.

      Ela se levantou.

      - Respeito sua proposta e agradeço a honra que me concede - disse. - Por favor, respeite minha recusa, e não me peça de novo.

      - Suponho que você esteja saindo para correr ao encontro daquele desprezível garotinho que é o filho da minha madrasta - disse Alfred grosseiramente. - Não posso imaginar que Jack seja capaz de lhe dar uma boa trepada.

      Aliena corou, envergonhada. Então estavam começando a notar sua amizade com Jack. Podia contar com Alfred para uma interpretação obscena. Pois bem, estava correndo mesmo para ir ver Jack, e não ia deixar que Alfred a impedisse. Abaixou-se e quase encostou o rosto ao dele. O rapaz ficou espantado. Calma e deliberadamente, ela disse:

      - Vá para o inferno.

      Então se virou e foi embora.

     

     

      O prior Philip instalava um tribunal na cripta uma vez por mês. Antes o fazia uma vez por ano, e mesmo assim raramente tomava o dia inteiro. Mas a população triplicara, e o número de violações da lei decuplicara.

      A natureza das transgressões mudara também. Antes a maior parte tinha a ver com a terra, as colheitas ou o gado. Um camponês ambicioso tentava subrepticiamente mudar o limite de um campo para expandir sua terra à custa de um vizinho; um trabalhador furtava um saco de milho da viúva que o empregara; uma mulher pobre com muitos filhos ordenhava uma vaca que não era sua. Agora a maior parte dos casos envolvia dinheiro, pensou Philip, enquanto atuava na sua corte, naquele primeiro dia de dezembro.

      Aprendizes furtavam dinheiro dos mestres, um marido roubava as economias da mulher, comerciantes passavam dinheiro falso e mulheres ricas pagavam quantias miseráveis às suas criadas ignorantes, que mal sabiam contar os salários semanais. Não havia crimes desse tipo em Kingsbridge cinco anos antes, porque naquele tempo ninguém tinha muito dinheiro em espécie.

      Philip arbitrava para quase todas as violações uma multa. Podia também mandar açoitar, prender no tronco ou aprisionar na cela que ficava sob o dormitório dos monges, mas essas punições estavam ficando cada vez mas raras, reservadas basicamente para crimes violentos. Ele tinha o direito de enforcar ladrões, e o priorado era dono de uma forca de madeira bastante forte; porém ele nunca a usara, e tinha a secreta  esperança de que jamais a usaria. Os crimes mais sérios - assassinato, abate de um dos deados do rei e roubo em estradas - eram julgados pela corte real em Shiring, presidida pelo xerife Eustace, que já enforcava mais do que o suficiente.

      Nesse dia Philip tivera sete casos de moagem de grãos sem autorização. Deixou todos para o fim, para resolvê-los juntos. O priorado construíra um novo moinho de água para funcionar juntamente com o velho - Kingsbridge agora precisava de dois. Mas o mais recente tinha que ser pago, o que significava que todos precisavam levar seus grãos para o moinho do priorado. Falando num sentido estrito, a lei sempre fora assim, em cada grande propriedade no país: os camponeses não eram autorizados a moer seus grãos em casa; tinham que pagar ao seu lorde para fazer isso por eles. Nos últimos anos, quando a cidade crescera e o velho moinho começara a quebrar com frequência,

      Philip fizera vista grossa ao número crescente de moagens ilícitas, mas agora precisava pôr fim àquilo.

      Mandou que escrevessem os nomes dos transgressores numa lousa e os leu em voz alta, um por um, começando pelo mais rico.

      - Richard Longacre, você tinha um moinho grande operado por dois homens, segundo o irmão Franciscus. - Franciscus era o moleiro do priorado.

      Um pequeno proprietário rural de aparência próspera adiantou-se.

      - Sim, milorde prior, mas já o quebrei.

      - Pague sessenta pence. Enid Brewster, você tinha um moinho manual na sua cervejaria. Eric Enidson foi visto utilizando o, de modo que ele também é acusado.

      - Sim, milorde - disse Enid, uma mulher de rosto vermelho e ombros vigorosos.

      - E onde está o moinho agora?

      - Joguei-o no rio, milorde.

      Philip não acreditou, mas não havia muito que pudesse fazer.

      - Multada em vinte e quatro pence, e doze pelo seu filho. Walter Curtidor?

      Philip foi até o fim da lista, multando as pessoas de acordo com a escala de suas operações ilegítimas, até que chegou à última e mais pobre. - Viúva Goda?

      Uma mulher de aparência miserável, com roupas pretas desbotadas, adiantou-se.

      - O irmão Franciscus diz que a viu moendo grão com uma pedra.

      - Eu não tinha um penny para o moinho, milorde - disse ela, ressentida.

      - Mas teve o penny para comprar o grão - disse Philip.

      - Será punida como todos os outros.

      - Vai querer que eu morra de fome? - retrucou ela desafiadoramente.

      Philip suspirou. Gostaria que o irmão Franciscus tivesse fingido não ver Goda violando a lei.

      - Quando foi a última vez em que alguém morreu de fome aqui em Kingsbridge? - Olhou para os cidadãos ali reunidos. - Alguém aqui se lembra de quando foi a última vez em que alguém morreu de fome na nossa cidade? - Parou por um momento, como que esperando uma resposta, e depois disse:

      - Acho que vão descobrir que foi antes do meu tempo.

      - Dick Casa Pequena morreu no inverno passado - disse Goda.

      Philip se lembrava do homem, um mendigo que dormia nos chiqueiros e estábulos.

      - Dick desmaiou de tanta bebida na rua, à meia-noite, e morreu congelado quando nevou - disse. - Não morreu de fome, e se estivesse sóbrio o bastante para caminhar até o priorado, tampouco teria morrido de frio. Se você tiver fome, não tente me enganar - vá me procurar e conte com a nossa caridade. E se for orgulhosa demais para isso, e preferir violar a lei, vai ter que ser punida como todos os outros. Está me ouvindo?

      - Sim, milorde - disse a mulher, emburrada.

      - Multada em uma farthing - disse Philip. - A corte está encerrada.

      Ele se levantou e saiu, subindo a escada que levava da cripta ao andar térreo.

      O trabalho na nova catedral tivera seu ritmo reduzido de maneira drástica, como sempre acontecia mais ou menos um mês antes do Natal. As superfícies laterais e a parte de cima das pedras colocadas mais recentemente eram cobertas com palha e estrume recolhido dos estábulos do priorado - para evitar o efeito do frio. Os pedreiros não podiam construir no inverno, devido ao frio intenso, segundo diziam. Philip perguntara por que não podiam descobrir as paredes todas as manhãs e cobri-las de novo à noite; com frequência não fazia tanto frio assim durante o dia. Tom disse que as paredes construídas no inverno caíam. Philip acreditava, mas não achava que fosse por causa do frio. O motivo verdadeiro talvez fosse o de que a massa levasse alguns meses para endurecer apropriadamente. A pausa do inverno permitia que isso acontecesse, antes que novas pedras fossem colocadas. Isso explicaria também a superstição dos pedreiros de que dava má sorte construir mais que vinte pés de altura num único ano; se excedessem isso as fileiras mais baixas seriam deformadas com o peso colocado por cima antes de a massa secar.

      Philip ficou surpreso ao ver todos os pedreiros ao ar livre, onde seria o coro da igreja. Foi verificar o que estavam fazendo.

      Tinham construído um arco semicircular de madeira e colocado na vertical, sustentando-o em ambos os lados por estacas. Philip sabia que o arco de madeira era uma peça daquilo que chamavam de forma: sua finalidade era escorar o arco de pedra enquanto este estivesse sendo construído. Agora, contudo, os pedreiros estavam montando o arco de pedra no nível do solo, sem massa, para verificar se as pedras se ajustavam perfeitamente. Aprendizes e serventes erguiam as pedras e as colocavam na forma, sob a supervisão dos pedreiros.

      - Para que é isto? - perguntou Philip, depois de atrair a atenção de Tom.

      - É um arco para a galeria da tribuna.

      Philip ergueu os olhos pensativamente. A arcada fora completada no último ano e a galeria sobre ela ficaria pronta no ano seguinte. Então, o último nível, o do clerestório, ficaria para ser construído antes que o telhado tivesse início. Agora que as paredes haviam sido cobertas para o inverno, os pedreiros cortavam as pedras para o trabalho do ano seguinte. Se aquele arco estivesse correto, as pedras para todos os outros seriam cortadas de acordo com os mesmos padrões.

      Os aprendizes, entre os quais Jack, o enteado de Tom, montaram o arco começando de ambos os lados, com pedras em forma de cunha, chamadas de aduelas.

      Embora o arco fosse destinado a ficar numa parte alta da igreja, teria elaborados trabalhos de cinzelagem; assim, cada pedra exibiria na superfície visível uma linha de grandes dentículos, outra de pequenos medalhões e uma terceira, por baixo, de volutas, ou espirais simples.

      Quando as pedras estivessem dispostas em seus lugares, o trabalho de cinzelagem ficaria perfeitamente alinhado, formando três arcos contínuos, com cada um daqueles motivos.

      Isso dava a impressão de que ele era feito de diversos arcos semicirculares de pedra, um em cima do outro, mesmo que, na verdade, consistisse em pedras em forma de cunha colocadas lado a lado. No entanto, tinham que ficar perfeitamente ajustadas, pois de outro modo as cinzeladuras não se alinhariam e a ilusão se perderia.

      Philip observou Jack baixando a pedra central para colocála em posição. Agora o arco estava completo. Quatro pedreiros pegaram marretas e derrubaram as cunhas que sustentavam a forma de madeira algumas polegadas acima do chão. De uma forma impressionante, o suporte de madeira caiu. Mas, embora não houvesse massa entre as pedras, o arco resistiu de pé. Tom Construtor deixou escapar um grunhido de satisfação.

      Alguém puxou a manga de Philip. Ele se virou e viu que era um jovem monge.

      - Visita para o senhor, padre. Está esperando na sua casa.

      A visita era seu irmão, Francis. Philip o abraçou calorosamente. Francis parecia ansioso.

      - Já lhe ofereceram algo para comer? - perguntou Philip.

      - Você está com ar fatigado.

      - Trouxeram-me pão e carne, obrigado. Passei o outono percorrendo a cavalo o caminho entre Bristol, onde o rei Estêvão estava aprisionado, e Rochester, onde conde

      Robert era prisioneiro.

      - Você usou o verbo no passado.

      Francis aquiesceu.

      - Negociei uma troca: Estêvão por Robert. Foi concretizada no Dia de Todos os Santos. O rei Estêvão está agora de novo em Winchester.

      Philip ficou surpreso.

      - Parece-me que Matilde ficou com a pior parte da barganha - deu um rei para ganhar um conde.

      Francis sacudiu a cabeça.

      - Matilde nada podia fazer sem Robert. Ninguém gosta dela, ninguém confia nela. O apoio de que dispunha estava entrando em colapso. Precisava recuperá-lo. A rainha

      Matilda foi esperta. Não aceitava nada menos que o rei Estêvão para ceder Robert.

      Agarrou-se a essa posição e no fim conseguiu o que queria.

      Philip foi até a janela. Começara a ventar e a chover, uma chuva fria que escurecia as paredes altas da catedral e gotejava dos telhados baixos de palha dos galpões dos artesãos.

      - O que significa isto? - perguntou.

      - Significa que Matilde mais uma vez não passa de uma pretendente ao trono. Afinal de contas, Estêvão foi coroado, enquanto ela nunca chegou a sê-lo, propriamente.

      - Mas foi Matilde quem licenciou meu mercado.

      - Sim. Isso pode vir a ser um problema.

      - Minha licença perdeu o valor?

      - Não. Ela foi concedida de forma adequada por um governante legítimo que tinha sido aprovado pela Igreja. O fato de não ter sido coroada não faz a menor diferença, mas Estêvão pode cancelá-la.

      - O mercado é que está pagando a pedra - disse Philip ansiosamente. - Não posso construir sem ele. Isso foi mesmo uma má notícia.

      - Sinto muito.

      - E as minhas cem libras? Francis deu de ombros.

      - Estêvão lhe dirá para recebê-las de Matilde. Philip ficou angustiado.

      - Todo aquele dinheiro!...   Era dinheiro de Deus, e o perdi.

      - Você ainda não o perdeu - contrapôs Francis. - Pode ser que Estêvão não revogue sua licença. De um modo ou de outro, ele nunca demonstrou muito interesse em mercados.

      - O conde William pode pressioná-lo.

      - William trocou de lado, lembra? Apostou tudo em Matilde. lá não terá muita influência sobre Estêvão.

      - Espero que tenha razão - disse Philip fervorosamente.

      - Espero em Deus que você esteja com a razão.

     

      Quando ficou frio demais para se sentar na clareira, Aliena passou a visitar a casa de Tom Construtor todas as noites. Alfred estava normalmente na cervejaria, de modo que a família consistia em Tom, Ellen, Jack e Martha. Agora que Tom estava indo tão bem, tinham cadeiras confortáveis, um bom fogo e muitas velas. Ellen e Aliena trabalhavam, tecendo. Tom desenhava planos e diagramas, riscando pedaços de lousa polida com uma pedra aguçada. Jack fingia fazer um cinto, amolar facas ou trançar um cesto, embora passasse a maior parte do tempo contemplando furtivamente o rosto de Aliena iluminado pelas velas, observando seus lábios se moverem quando falava ou estudando seu alvo pescoço quando bebia um copo de cerveja.

      Riram muito naquele inverno. Jackamava fazer Aliena rir.

      Ela em geral era tão controlada e reservada que era uma alegria vêla se soltar, quase como se a vislumbrasse nua. Ele estava constantemente pensando em coisas para dizer que a divertissem. Fazia imitações dos artífices que trabalhavam no canteiro da obra, reproduzia o sotaque de um pedreiro parisiense ou o caminhar das pernas arqueadas de um ferreiro. Uma vez inventou uma narrativa cômica da vida com os monges, dando a cada um pecados plausíveis - orgulho para Remigius, gula para Bernard Cozinheiro, embriaguez para o encarregado da hospedaria e luxúria para Pierre Circuitor. Martha quase sempre não se aguentava de tanto rir e até mesmo o taciturno Tom arriscava um sorriso.

      - Não sei se vou conseguir vender todo este tecido - disse Aliena numa dessas noites.

      De certa forma eles ficaram espantados.

      - Então por que estamos tecendo? - perguntou Ellen.

      - Não abandonei a esperança - respondeu Aliena. - Só tenho um problema.

      Tom levantou os olhos da lousa.

      - Pensei que o priorado estivesse ansioso para comprar seu tecido.

      - O problema não é esse. Não consigo encontrar quem faça o trabalho de pisoar, e o priorado não quer o tecido frouxo - ninguém quer.

      - É um trabalho exaustivo - disse Ellen. - Não admira que ninguém queira fazê-lo.

      - Você não consegue homens para o pisoamento? - sugeriu Tom.

      - Não aqui, na próspera Kingsbridge. Todos os homens têm bastante trabalho. Nas grandes cidades há pisoeiros profissionais, mas a maioria trabalha para tecelãos e estão proibidos de pisoar para os rivais dos seus empregadores. De qualquer modo, custaria muito caro o transporte de ida e volta para Winchester.

      - De fato é um problema - reconheceu Tom, e voltou ao seu trabalho.

      Jack foi assaltado por uma idéia.

      - É uma pena que não possamos dar esse trabalho para os bois fazerem.

      Os outros riram.

      - Você bem que poderia ensinar bois a construir igrejas - disse Tom.

      - Ou um moinho - persistiu Jack. - Geralmente há maneiras fáceis de fazer o trabalho mais duro.

      - Ela quer pisoar o tecido, não moê-lo - disse Tom.

      Jack não estava ouvindo.

      - Nós usamos equipamento especial e sarilhos para levantar as pedras até a parte superior dos andaimes.

      - Oh, se houvesse algum mecanismo engenhoso para pisoar tecidos seria uma maravilha - disse Aliena.

      Jack pensou em como ela ficaria satisfeita se pudesse resolver aquele problema. Decidiu que tinha que achar um jeito.

      - Já ouvi falar de um moinho de água usado para acionar o fole de uma forja, mas nunca o vi - disse Tom pensativamente.

      - Aí está! - exclamou Jack. - Prova que é possível a minha idéia!

      - Um moinho gira circularmente - disse Tom, e a mó também, de modo que um pode acionar o outro; mas o bastão do pisoeiro sobe e desce. Você não pode fazer um moinho acionar um bastão de pisoeiro.

      - Mas o fole tem movimento vertical - ele sobe e desce.

      - É verdade, é verdade; porém, nunca vi essa forja, só ouvi falar que existia.

      Jack tentou visualizar a maquinaria de um moinho. A força da água acionava a roda. O eixo dessa roda era conectado a outra roda dentro do moinho. A roda interior, que era vertical, tinha dentes engrazados com os dentes de outra roda que girava na horizontal. Esta última roda girava a pedra do moinho.

      - Uma roda vertical pode fazer girar uma roda horizontal - murmurou Jack, pensando em voz alta.

      Martha riu.

      - Jack! Pare! Se os moinhos pudessem pisoar tecidos, as pessoas espertas já teriam pensado nisso.

      Jack ignorou-a.

      - Os bastões podiam ser fixados ao eixo da roda do moinho - disse. - O tecido podia ficar na horizontal onde os bastões caíssem.

      - Mas os bastões bateriam uma vez e ficariam presos - disse Tom. - E a roda pararia. Eu lhe disse: rodas giram, mas bastões têm que subir e descer.

      - Deve haver um jeito - disse Jack obstinadamente.

      - Não há - disse seu padrasto, no tom de voz que usava para encerrar conversas.

      - Mesmo assim, aposto que há - resmungou Jack, rebelde; e Tom fingiu que não escutou.

     

      No domingo seguinte, Jack desapareceu.

      Foi à igreja de manhã e comeu em casa, como sempre; mas não apareceu na hora da ceia. Aliena estava na sua cozinha, preparando um caldo grosso de presunto e repolho com pimenta, quando Ellen apareceu procurando por ele.

      - Não o vejo desde a missa - disse Aliena.

      - Desapareceu depois do jantar - disse Ellen. - Achei que estivesse com você.

      Aliena ficou um pouco envergonhada por ela ter feito aquela suposição tão prontamente.

      - Está preocupada? Ellen deu de ombros.

      - Mães sempre se preocupam.

      - Ele brigou com Alfred? - perguntou Aliena, nervosa.

      - Fiz a mesma pergunta. Alfred diz que não. - Ellen suspirou. - Não acho que tenha lhe acontecido algum mal. Já fez isso antes e me atrevo a dizer que fará de novo. Nunca lhe ensinei a cumprir horários.

      Mais tarde, pouco antes da hora de dormir, Aliena passou pela casa de Tom para ver se Jack reaparecera. Não. Foi para a cama preocupada. Richard estava fora, em

      Winchester, de modo que se encontrava sozinha. Ficou pensando que Jack podia ter caído no rio e morrido afogado, ou qualquer coisa assim. Como devia ser terrível para Ellen: Jack era seu único filho! Os olhos de Aliena encheram-se de lágrimas quando imaginou a dor de Ellen por perder Jack. Aquilo era estupidez, pensou: Estou chorando por causa da dor de outra pessoa causada por uma coisa que não aconteceu. Controlou-se e tentou pensar no trabalho. A sobra de tecido era seu grande problema.

      Normalmente podia ficar metade da noite pensando em negócios, mas daquela vez não conseguia esquecer Jack. E se ele houvesse quebrado a perna, e estivesse na floresta, incapaz de se mover?

      Acabou caindo num sono que não lhe possibilitou descansar. Acordou à primeira luz da madrugada, ainda se sentindo cansada. Enfiou a capa pesada por cima da camisa de dormir, calçou as botas guarnecidas de pele e saiu para procurá-lo.

      Ele não estava atrás da cervejaria, onde os homens em geral caíam dormindo e eram salvos do congelamento pelo calor da fétida pocilga. Desceu até a ponte e caminhou, cheia de medo, ao longo da margem, até uma curva onde o lixo era despejado. Uma família de patos ciscava por entre os pedaços de madeira, sapatos usados, facas enferrujadas e ossos apodrecidos. Jack não estava ali, graças a Deus.

      Subiu de novo a colina e entrou no priorado, onde os operários que construíam a catedral começavam o dia de trabalho. Encontrou Tom no seu depósito.

      - Jack já voltou? - perguntou esperançosamente. Tom sacudiu a cabeça.

      - Ainda não.

      Quando ia saindo, o mestre carpinteiro apareceu, preocupado.

      - Todos os nossos martelos desapareceram - disse a Tom.

      - Engraçado - disse Tom. - Eu estava procurando um martelo e não consegui achar nenhum.

      A seguir foi a vez de Alfred aparecer na porta e perguntar:

      - Onde estão as talhadeiras dos pedreiros?

      Tom coçou a cabeça.

      - Parece que todos os martelos da obra desapareceram murmurou, desconcertado. Depois sua expressão se modificou e ele disse: - Aquele garoto, Jack, está por trás disso, sou capaz de apostar.

      Claro, pensou Aliena. Martelos. Pisoar. O moinho.

      Sem dizer o que estava pensando, deixou o galpão de Tom, atravessou apressadamente o adro, passando pela cozinha, na direção do canto sudoeste, onde um canal desviado do rio  acionava dois moinhos, um velho e um novo. Como suspeitara, a roda do velho estava girando. Entrou no seu interior.

      O que viu a deixou confusa e assustada a princípio. Havia uma fila de martelos presos numa vara horizontal. Parecendo ter vontade própria, os martelos ergueram a cabeça, como cavalos levantando o focinho. Depois desceram, todos juntos, e bateram simultaneamente com um estrondo tão forte que fez seu coração parar.

      Deu um grito de espanto. Os martelos ergueram de novo a cabeça, como se a tivessem ouvido, e desfecharam outro golpe. Estavam batendo num pedaço do seu tecido frouxo, imerso em uma ou duas polegadas de água, num cocho raso de madeira do tipo usado pelos preparadores de massa no canteiro da obra. Os martelos estavam pisoando o tecido, Aliena se deu conta, e não teve mais medo, embora parecessem assustadoramente vivos. Mas como aquilo era feito? Viu que a vara onde haviam sido presos corria paralela ao eixo da roda do moinho. Uma tábua fixa no eixo girava quando ele girava. Num determinado ponto da sua volta, ela se conectava aos cabos dos martelos, empurrando-os para baixo, de modo que as cabeças subiam. Quando a tábua continuava a rodar, os cabos eram liberados. Então caíam e batiam no tecido, dentro do cocho. Exatamente o que Jack dissera naquele domingo: um moinho podia pisoar tecidos.

      Ouviu a voz dele:

      - Os martelos deveriam ser mais pesados para cair com mais força. - Aliena virou-se e o viu, cansado mas triunfante.

      - Acho que resolvi seu problema - disse, com um sorriso encabulado.

      - Estou tão feliz por ver que você está bem! Estávamos preocupados por sua causa! - exclamou ela. Sem pensar, atirou os braços em torno dele e o beijou. Foi um beijo muito rápido, quase não passando de um beijinho estalado; mas depois, quando seus lábios se separaram, os braços de Jack a envolveram pela cintura, segurando-lhe o corpo delicada mas firmemente, e Aliena teve que fitá-lo nos olhos. Só conseguia pensar em como se sentia feliz por ele estar vivo e inteiro. Deu-lhe um abraço afetuoso.

      De repente, porém, teve consciência da própria pele; sentiu a aspereza do tecido da camisa de baixo e a maciez do pêlo que forrava as botas, assim como sentiu também o bico dos seios comprimidos de encontro ao peito dele.

      - Estava preocupada comigo? - perguntou Jack, admirado.

      - Claro! Nem consegui dormir direito!

      Aliena sorria, alegre, mas a expressão dele era de uma terrível solenidade, e, após um momento, seu estado de espírito sobrepôs-se ao dela, que se sentiu estranhamente perturbada. Ouviu o coração bater, a respiração se acelerar. Às suas costas, os martelos, em uníssono, sacudiam a estrutura de madeira do moinho com cada golpe, e Aliena teve a impressão de sentir aquela vibração no seu íntimo.

      - Estou bem - disse ele. - Está tudo bem.

      - Estou tão feliz! - repetiu ela, dessa vez num sussurro. Aliena viu Jack fechar os olhos, inclinar o rosto na direção do seu, e, em seguida, sentiu o contato da sua boca. O beijo de Jack foi delicado. Seus lábios eram cheios e a barba, macia, de adolescente.

      Fechou os olhos para se concentrar na sensação. A boca de Jack moveu-se contra a sua e pareceu-lhe natural entreabrir os lábios. De repente sua boca se tornou ultra-sensível, e ela foi capaz de sentir o mais leve dos toques, o menor dos movimentos. A ponta da língua de Jack acariciou a parte interna do seu lábio superior. Aliena sentiu-se tão feliz que teve vontade de chorar. Estreitou o corpo dele, comprimindo os seios macios de encontro ao seu peito musculoso, sentindo-lhe os ossos dos quadris na barriga. Não estava mais simplesmente aliviada por vê-lo são e salvo, e feliz por tê-lo ali. Agora sentia uma emoção nova. Sua presença física a encheu com uma sensação de êxtase que a deixou ligeiramente tonta. Abraçando-lhe o corpo, quis tocá-lo mais, senti-lo mais, chegar ainda mais perto. Esfregoulhe as costas com as mãos. Queria sentir sua pele, mas as roupas dele a frustraram. Sem pensar, abriu a boca e empurrou a língua entre seus lábios. Ouviu um som vindo da garganta de Jack, como um abafado gemido de prazer.

      A porta do moinho se abriu, com uma batida. Aliena afastou-se de Jack.

      Subitamente se sentiu aturdida, como se estivesse dormindo e alguém a tivesse esbofeteado para que acordasse. Ficou horrorizada com o que estavam fazendo - beijando-se e esfregando-se como uma prostituta e um bêbado num bordel!

      Recuou e virou-se. Entre todas as pessoas do mundo, o intruso era Alfred, o que a fez se sentir pior. Ele a pedira em casamento três meses antes, e ela o rejeitara desdenhosamente. Agora ele a vira como uma cadela no cio. Parecia, de certa forma, hipócrita. Corou, envergonhada. Alfred a olhava fixamente, a expressão uma mistura de luxúria e desprezo que a fez se recordar de William Hamleigh. Ficou enojada de si própria por ter dado razão a Alfred para desprezá-la, e furiosa com Jack por sua participação.

      Desviou o olhar de Alfred e virou-se para Jack. Quando os olhos dele encontraram os seus, ele registrou o choque. Aliena percebeu que a raiva que sentia estava expressa no seu rosto, mas nada pôde fazer. A expressão de Jack de aturdida felicidade transformou-se em confusão e mágoa.

      Normalmente isso a teria feito ceder, mas agora estava demasiadamente irritada. Odiouo pelo que lhe tinha feito fazer. Rápida como um raio, deu-lhe uma bofetada no rosto. Jack não se mexeu, mas havia agonia no seu olhar...

      O rosto do rapaz ficou vermelho no lugar atingido. Ela não aguentou ver a dor nos seus olhos e obrigou-se a virar o rosto.

      Não podia ficar ali. Correu para a porta com o incessante barulho dos martelos nos seus ouvidos. Alfred saiu da frente depressa, parecendo quase assustado. Passou por ele correndo e cruzou a porta. Tom Construtor estava do lado de fora, com uma pequena multidão de operários.

      Todos haviam se dirigido ao moinho para descobrir o que estava se passando. Aliena passou correndo por eles, sem falar nada. Um ou dois a olharam com curiosidade, fazendo-a arder de vergonha; porém, estavam mais interessados no barulho das marteladas vindo do moinho. A parte friamente lógica da cabeça de Aliena lembrou que Jack tinha resolvido o problema de pisoar o seu tecido; mas a  idéia de que ele ficara acordado a noite inteira fazendo algo para ela só serviu para que se sentisse pior. Passou pelo estábulo, atravessou o portão do priorado e seguiu pela rua, as botas escorregando e deslizando na lama, até chegar em casa.

      Quando entrou, encontrou Richard. Estava sentado à mesa da cozinha, com um pedaço de pão e uma jarra de cerveja.

      - O rei Estêvão está em marcha - disse. - A guerra começou de novo. Preciso de outro cavalo.

     

      Nos três meses seguintes Aliena mal falou duas palavras seguidas com Jack.

      Ele se sentiu profundamente pesaroso. Ela o beijara como se o amasse, não havia engano quanto a isso. Quando Aliena saíra do moinho, ele estava certo de que se beijariam daquele jeito de novo muito em breve.

      Andara por toda parte numa espécie de deslumbramento erótico, pensando: Aliena me ama! Aliena me ama! Ela acariciara suas costas, pusera a língua dentro de sua boca e pressionara os seios contra ele.

      Não podia fingir que não o amava após aquele beijo. Esperou que ela vencesse a timidez. com a ajuda do carpinteiro do priorado fez um mecanismo de pisoar mais forte e permanente para o moinho velho, e Aliena teve o seu tecido pisoado. Ela lhe agradeceu com sinceridade, mas também com frieza na voz e fugindo do seu olhar.

      Quando a coisa continuou assim não apenas por uns poucos dias, mas por diversas semanas, ele foi forçado a admitir que havia algo seriamente errado. Uma onda de desilusão o envolveu e foi como se estivesse se afogando em tristeza. Ficou aturdido.

      Desejou angustiadamente ser mais velho; queria ter mais experiência com as mulheres, para poder dizer se Aliena era normal ou diferente, e se deveria ignorá-la ou se defrontar com ela.

      Estando incerto, e também temendo dizer a coisa errada e piorar tudo, acabou não fazendo nada; depois o constante sentimento de rejeição começou a importuná-lo, e ele se sentiu inútil, estúpido e impotente. Pensou em como era tolo por ter imaginado que a mulher mais desejável e inalcançável do condado pudesse se apaixonar por ele, um mero garoto. Ele a divertira por algum tempo, com suas histórias e anedotas, mas assim que a beijara como um homem ela fugira. Que tolo fora por ter esperanças de qualquer outra coisa!

      Após uma ou duas semanas dizendo a si próprio que era um idiota, começou a ficar furioso. Irritava-se no trabalho e os outros começaram a tratá-lo com cautela.

      Foi perverso com Martha, magoando-a quase tanto quanto Aliena o magoara. Nas tardes de domingo, gastava o dinheiro que ganhava jogando em brigas de galo.

      Toda a sua paixão se expressava através do seu trabalho. Estava cinzelando modilhões, pedras salientes que dão a impressão de suportar arcos ou colunas que não chegam ao chão.

      Frequentemente eram decorados com folhas, mas uma alternativa tradicional era cinzelar um homem que parecesse estar segurando o arco com as mãos ou escorando-o nas costas.

      Jack alterou só um pouco o padrão costumeiro, mas o efeito foi mostrar uma figura humana perturbadoramente retorcida, com uma expressão de dor, condenada à eterna agonia de sustentar o imenso peso da pedra. Jack sabia que seu trabalho era brilhante: ninguém mais era capaz de gravar uma figura que parecesse estar sentindo dor.

      Quando Tom o viu, sacudiu a cabeça, sem saber se se maravilhava com a expressividade da cinzelagem ou se desaprovava sua heterodoxia. Philip ficou muito emocionado.

      Jack não se importou com o que pensavam: achava que quem não gostasse daquilo era cego.

      Uma segunda-feira, na Quaresma, quando todo mundo estava irritadiço por não comer carne há três semanas, Alfred foi trabalhar com uma expressão de triunfo na fisionomia.

      Estivera em Shiring na véspera. Jack não sabia o que fora fazer ali, mas era claro que estava satisfeito.

      Na pausa da metade da manhã, quando Enid Brewster punha um barril de cerveja no meio do coro e vendia aos operários, Alfred pegou um penny e gritou:

      - Ei, Jack, filho de Tom, apanhe um pouco de cerveja para mim.

      Já sei que vai falar algo a respeito do meu pai, pensou Jack. Ignorou Alfred.

      - É melhor fazer o que lhe mandam, garoto - disse um dos carpinteiros, um homem mais velho chamado Peter. - Um aprendiz sempre devia obedecer a um mestre.

      - Não sou filho de Tom - disse Jack. - Tom é meu padrasto, e Alfred sabe disso.

      - Faça o que ele manda, mesmo assim - insistiu Peter, num Tom de voz conciliador.

      Relutantemente, Jack pegou o dinheiro de Alfred e entrou na fila.

      - O nome de meu pai era Jack Shareburg - disse, em voz alta. - Vocês todos podem me chamar de Jack, filho de Jack, se quiserem fazer uma diferença entre mim e Jack Ferreiro.

      - Jack Bastardo seria mais conveniente - disse Alfred.

      - Alguma vez já procuraram descobrir por que Alfred não amarra as botas? - perguntou Jack. Todos olharam para os pés de Alfred. Sim, suas botas pesadas e cheias de lama, que eram para ser amarradas até em cima, estavam abertas. - É para poder ver rapidamente os dedos dos pés, no caso de precisar contar acima de dez. - Os artesãos sorriram e os aprendizes gargalharam. Jack entregou o penny de Alfred a Enid e pegou um caneco de cerveja. Levou-o para Alfred e o entregou com uma pequena reverência satírica. O outro ficou aborrecido, mas não muito; ainda tinha um trunfo escondido na manga. Jack afastou-se e foi beber sua cerveja com os aprendizes, esperando que Alfred desistisse.

      Mas não haveria desistências. Poucos momentos depois ele o seguiu e disse:

      - Se Jack Shareburg fosse meu pai eu não diria a todo mundo tão depressa. Você não sabe o que ele era?

      - Menestrel - disse Jack, procurando dar um Tom de confiança à voz, mas com medo do que Alfred ia dizer. - Não creio que saiba o que quer dizer "menestrel".

      - Ele era ladrão - disse Alfred.

      - Oh, cale a boca, seu cabeça de merda. - Jack virou-se e tomou um gole da cerveja, mas quase não pôde engolir. Alfred tinha algum motivo para dizer aquilo.

      - Você não sabe como foi que ele morreu? - insistiu Alfred.

      Aí está, pensou Jack; foi isso que ele soube ontem em Shiring; é este o motivo pelo qual está exibindo esse sorriso idiota. Virou-se, relutantemente, e encarou Alfred.

      - Não, não sei como meu pai morreu, Alfred, mas acho que você vai me contar.

      - Ele foi enforcado, por ser um ladrão sujo.

      Jack soltou um grito involuntário de angústia. Sabia intuitivamente que era verdade. Alfred estava tão absolutamente seguro de si que não poderia ter inventado aquilo.

      E, num relâmpago, Jack viu que assim se explicava a reticência de sua mãe. Há anos ele temia secretamente algo assim. O tempo todo fingira que não havia nada de errado, que não era bastardo, que tinha um pai de verdade com um nome de verdade. Mas sempre temera que houvesse alguma desgraça envolvendo seu pai, que os insultos tivessem base real, que existisse mesmo algo de que se envergonhar. lá estava por baixo: a rejeição de Aliena o deixara se sentindo indigno e desprezível. A verdade sobre seu pai o atingiu como uma bofetada.

      Alfred ficou parado, sorrindo, extremamente satisfeito consigo mesmo: o efeito daquela revelação o deleitara. Sua expressão enfureceu Jack.

      Já era bastante ruim o fato de seu pai ter sido enforcado. O fato de Alfred se sentir feliz por causa disso, então, era demais para tolerar. Sem pensar, atirou a cerveja no seu rosto sorridente.

      Os outros aprendizes, que assistiam satisfeitos à discussão entre o filho e o enteado de Tom Construtor, recuaram depressa um ou dois passos. Alfred limpou a cerveja dos olhos, urrou de raiva e lançou à frente o punho enorme, num movimento surpreendentemente rápido para um homem tão grande. O soco atingiu o rosto de Jack com tanta força que, em vez de causar dor, provocou amortecimento.

      Antes que tivesse tempo de reagir, o outro punho de Alfred o acertou no meio do corpo. Esse soco doeu terrivelmente. Jack achou que nunca mais fosse respirar de novo. Encolheu-se e caiu no chão. Em seguida, Alfred lhe deu um pontapé na cabeça e Jack por um momento nada viu, exceto uma luz branca.

      Rolou no chão, às cegas, e lutou para se levantar. Mas Alfred ainda não estava satisfeito. Assim que Jack ficou de pé, sentiu que fora agarrado. Começou a debater-se.

      Estava assustado agora. Alfred não teria piedade. Seria espancado e reduzido a nada, se não conseguisse fugir. Por um momento Alfred segurouo com muita força e Jack não conseguiu se libertar, mas então recuou um dos punhos enormes para dar mais um  soco, e nesse instante Jack caiu fora.

      Disparou como uma flecha e Alfred correu atrás dele. Jack desviou-se de um barril de cal, puxando-o para que ficasse no caminho de Alfred e derramando cal no chão.

      Alfred pulou por cima do barril mas bateu num tonel de água que também derramou. Quando a água entrou em contato com a cal esta ferveu e chiou. Alguns operários, vendo o desperdício do dispendioso material, gritaram protestos, mas Alfred estava surdo a eles e Jack não podia pensar em nada a não ser fugir de Alfred. E seguiu correndo, ainda dobrado ao meio de dor e meio cego devido ao pontapé na cabeça.

      Alfred estava tão junto dele que esticou um pé e o derrubou. Jack se estatelou no chão. vou morrer, pensou, enquanto rolava de lado; Alfred vai me matar agora. Parou debaixo de uma escada encostada a um andaime que ia até a parte mais alta da obra.

      Alfred lançou-se sobre ele. Jack sentiu-se como um coelho encurralado. A escada o salvou. Quando Alfred passou por trás dela, Jack esquivou-se pela parte da frente e pulou nos degraus. Subiu a escada como um rato numa vala de lixo.

      Sentiu a escada balançar quando Alfred subiu no seu encalço. Normalmente era mais rápido que ele, mas ainda estava meio tonto e recurvado. Chegou ao topo da escada e passou para o andaime. Tropeçou e caiu contra a parede. As pedras tinham sido assentadas naquela manhã e a massa ainda estava úmida.

      Quando Jack as percorreu, toda uma seção deslocou-se e três ou quatro pedras escorregaram de lado e caíram. Pensou que fosse cair junto delas. Oscilou em cima da parede e, quando olhou para baixo, viu as  grandes pedras rolando sobre si próprias enquanto caíam mais de oitenta pés em cima dos telhados de meia-água dos galpões, construídos ao pé da parede.

      Endireitou-se, esperando que não houvesse ninguém nos galpões. Alfred acabou de subir a escada e avançou na sua direção por cima do instável andaime.

      Ele estava vermelho e ofegante, com os olhos cheios de ódio. Jack não tinha dúvida de que, naquele estado, era capaz de matar. Se me pegar, pensou, vai me atirar lá embaixo. Á medida que Alfred avançava, Jack recuava. Tropeçou em algo macio e percebeu que era um monte de massa. Inspirado, abaixou-se rapidamente, pegou um punhado e atirou com precisão nos olhos de Alfred.

      Cego, Alfred parou de avançar e sacudiu a cabeça, tentando se livrar da massa. Finalmente Jack tinha uma chance de fugir. Correu para a outra ponta da plataforma, tencionando descer, fugir do priorado o mais depressa possível e passar o resto do dia escondido na floresta. Mas, para seu horror, não havia escada na outra ponta. Não podia descer o andaime, pois este não chegava ao chão; era construído sobre travessas enfiadas em buracos na parede. Estava perdido.

      Olhou para trás. Alfred recuperara a visão e avançava.

      Não havia outro jeito de descer.

      Na parte inacabada da parede, onde o coro se encontraria com o transepto, cada carreira de pedras tinha a metade do comprimento da inferior criando um lance íngreme de degraus estreitos, às vezes usados pelos serventes mais ousados como meio alternativo de subir na plataforma.

      Com o coração na boca, Jack subiu, cuidadosa mas rapidamente, tentando não ver o tamanho do tombo que levaria caso escorregasse. Parou no topo e olhou para baixo.

      Chegou a ficar um pouco tonto. Olhou para trás. Alfred vinha vindo, sobre a parede. Ele desceu.

      Jack não conseguia entender por que Alfred estava tão destemido: nunca fora muito corajoso. Era como se o ódio tivesse amortecido sua noção de perigo. Enquanto desciam os degraus assustadoramente íngremes, ele se aproximou. Encontravam-se ainda a mais de doze pés do chão quando Jack percebeu que Alfred estava muito perto. Em desespero, saltou sobre o telhado de palha do galpão dos carpinteiros. Pulou para o chão, mas caiu de mau jeito, torcendo um tornozelo e levando um tombo.

      Cambaleando, pôs-se de pé. Os segundos que perdera caindo tinham possibilitado a Alfred chegar ao chão e correr para o galpão. Por uma fração de segundo Jack ficou de costas para a parede, e Alfred parou, esperando para ver em que direção ele pularia.

      Jack sofreu um momento de aterrorizada indecisão; depois, inspirado, deu um pulo e entrou no galpão.

      Não havia ninguém ali, pois todos estavam à volta do barril de Enid. Sobre os bancos havia os martelos, serrotes e formões dos carpinteiros, assim como as peças em que estavam trabalhando. No meio do chão havia um pedaço grande de uma forma nova, para ser usada na construção de um arco; no fundo, junto à parede da igreja, crepitava um fogo, alimentado pelas aparas e sobras de madeira.

      Não havia saída.

      Jack virou-se para enfrentar Alfred. Estava encurralado. Por um momento ficou paralisado de medo. Então o medo cedeu lugar à raiva. Não importa que eu morra, pensou, desde que faça Alfred sangrar antes. Não esperou que Alfred atacasse. Baixou a cabeça e arremeteu. Estava com tanta raiva que nem mesmo usou os punhos. Simplesmente se atirou contra ele com toda a força.

      Foi a última coisa pela qual Alfred esperava. A testa de Jack bateu na sua boca. O rapaz era duas ou três polegadas mais baixo e muito mais leve, mas assim mesmo o choque fez Alfred recuar. Quando Jack recuperou o equilíbrio, viu sangue nos lábios do outro e ficou satisfeito.

      Por um momento, o filho de Tom ficou surpreso demais para reagir. E foi nesse mesmo instante que Jack percebeu uma grande marreta de madeira encostada a um banco.

      Quando Alfred se recuperou e avançou, Jack levantou a marreta e a brandiu selvagemente com toda a força no golpe; novamente não atingiu Alfred; atingiu, contudo, a viga que sustentava o telhado do galpão.

      O galpão não era solidamente construído. Ninguém morava dentro dele.

      Sua única função era capacitar os carpinteiros a trabalhar em dias de chuva. Quando Jack atingiu a viga com a marreta, a viga se deslocou. As paredes eram frágeis painéis de ramos entrelaçados, e não participavam da sustentação do telhado, que cedeu. Alfred olhou para cima, atemorizado. Jack levantou a marreta. O filho de Tom recuou pela porta. Jack foi atrás dele de novo. Alfred recuou e, tropeçando numa pilha de madeira de pouca altura, caiu sentado pesadamente. Jack ergueu a marreta bem alto para desferir o golpe de misericórdia. Nesse momento seu braço foi fortemente imobilizado.

      Ele olhou para trás e viu o prior Philip, com uma expressão que não podia ser mais ameaçadora. Este torceu sua mão e o fez largar a marreta.

      Por trás do prior, o telhado do galpão desmoronou. Jack e Philip olharam. Quando caiu em cima do fogo, a palha seca se incendiou imediatamente e no momento seguinte o fogo já estava bem alto.

      Tom apareceu e apontou para os três operários mais próximos.

      - Você, você e você: tragam aquela pipa d'água que está em frente à ferraria. - Em seguida, virou-se para três outros:

      - Peter, Rolf, Daniel, apanhem baldes. Vocês, aprendizes, joguem terra em cima do fogo. E depressa com isso!

      Nos minutos que se seguiram todos se concentraram no incêndio, e Jack e Alfred fora esquecidos. O mais jovem saiu do caminho e ficou olhando, atônito, incapaz de fazer qualquer coisa. O filho de Tom se manteve a uma certa distância. Eu ia realmente esmagar a cabeça dele com uma marreta?, pensou Jack, incrédulo. A coisa toda parecia irreal. Ainda se encontrava em estado de choque quando a combinação de água e terra apagou as chamas.

      O prior Philip parou, contemplando toda aquela confusão, ofegante após tanto exercício.

      - Olhe só para isto! - exclamou para Tom, furioso. - Um galpão arruinado. O trabalho dos carpinteiros perdido. Um barril de cal desperdiçado e toda uma seção de pedras recém assentadas destruída.

      Jack percebeu que Tom estava encrencado; era sua obrigação manter a ordem no canteiro da obra, e Philip o responsabilizava pelo prejuízo. O fato de os culpados serem os filhos dele ainda piorava tudo.

      - A associação dos pedreiros resolverá o problema - disse com brandura, pondo a mão no braço do prior.

      Philip não estava disposto a ceder.

      - Eu trato disso - retrucou. - Sou o prior e todos vocês trabalham para mim.

      - Então permita que os pedreiros deliberem antes de tomar sua decisão - disse Tom, numa voz calma e ponderada.

      - Podemos sugerir uma solução que seja do seu agrado. Caso contrário, terá liberdade de fazer o que quiser.

      Philip relutava visivelmente em deixar a iniciativa sair de suas mãos, mas a tradição estava do lado de tom: os pedreiros se autodisciplinavam.

      - Muito bem - disse o prior após uma pausa. - Mas seja qual for a decisão de vocês, não aceitarei que seus dois filhos continuem trabalhando nesta obra. Um deles terá que ir embora. - Ainda fervendo de raiva, afastou-se com largas passadas.

      Lançando um olhar sombrio a Jack e Alfred, Tom afastou-se e entrou no maior galpão dos pedreiros.

      Seguindo Tom, Jack sabia que se metera em uma encrenca feia. Geralmente, quando os pedreiros puniam um deles, era por transgressões como beber no trabalho e furtar material de construção. O mais comum dos castigos era a aplicação de uma multa. Briga entre aprendizes costumava resultar em os dois brigões sendo postos num tronco por um dia, mas claro que Alfred não era aprendiz, e, de qualquer modo, brigas não causavam tantos danos. A associação podia expulsar quem trabalhasse por menos que o salário mínimo combinado. Podia também punir o membro que houvesse cometido adultério com a mulher de outro pedreiro, embora Jack nunca tivesse visto esse tipo de coisa. Teoricamente, os aprendizes podiam ser chicoteados; no entanto, embora às vezes houvesse a ameaça, Jack também nunca vira isso acontecer.

      Os mestres pedreiros encheram o galpão de madeira, sentados nos bancos e encostados à parede dos fundos, que, na realidade, era uma das laterais da igreja.

      - Nosso empregador está furioso, e com razão - disse Tom, quando todos entraram. - Esse incidente causou um bocado de danos. Pior ainda, trouxe desonra para nós, pedreiros. Temos que ser firmes com os culpados. Será o único modo de recuperar nossa boa reputação de operários orgulhosos e disciplinados, homens tão senhores de si próprios quanto do ofício que exercem.

      - Muito bem dito - aprovou Jack Ferreiro, e houve um murmúrio de concordância.

      - Só vi o fim da briga - prosseguiu Tom. - Alguém viu o começo?

      - Alfred atacou o rapaz - disse Peter Carpinteiro, o tal que havia aconselhado Jack a ser obediente e ir buscar a cerveja de Alfred.

      - Jack jogou cerveja na cara de Alfred - disse um jovem pedreiro que se chamava Dan e trabalhava para Alfred.

      - Mas Jack foi provocado - disse Peter. - Alfred insultou o pai natural do rapaz.

      Tom olhou para Alfred.

      - Isso é verdade?

      - Eu disse que o pai dele era ladrão - respondeu Alfred. - É verdade. Foi enforcado por roubo em Shiring. O xerife Eustace me disse ontem.

      Jack Ferreiro deu sua opinião.

      - Vai ser terrível se um mestre artesão tiver que conter a língua, temendo que o aprendiz não goste do que diz.

      Houve um murmúrio de aprovação. Jack percebeu, desanimado, que, o que quer que acontecesse, não ia conseguir se livrar daquela facilmente. Talvez meu destino seja me tornar um criminoso, como meu pai, pensou; talvez eu também termine na forca.

      - Ainda assim - retrucou Peter Carpinteiro, que estava assumindo o papel de defensor de Jack, afirmo que faz diferença se o artesão se dá ao trabalho de ir enfurecer o aprendiz.

      - Continua sendo necessário punir o aprendiz - disse Jack Ferreiro.

      - Não digo o contrário - retrucou Peter. - Só acho que o artesão precisa ser punido também. Os mestres artesãos têm que usar a sabedoria da sua idade para trazer paz e harmonia ao canteiro de obra. Se provocarem brigas estarão deixando de cumprir seu dever.

      Pareceu haver alguma concordância quanto a isso, mas Dan, que apoiava Alfred, disse:

      - É um princípio perigoso perdoar o aprendiz porque o mestre foi mau. Os aprendizes sempre acham que os mestres são maus. Desse jeito vamos terminar com os mestres sem nunca falar com os aprendizes, com medo de que os agridam devido a uma descortesia.

      Esse argumento teve acalorada aprovação, para revolta de Jack. Só demonstrava que a autoridade do mestre tinha que ser protegida, sem se dar importância a quem pudesse ter a razão em cada caso. Perguntou-se qual seria seu castigo. Não tinha dinheiro para pagar uma multa. Odiava a idéia de ser posto num tronco: o que Aliena pensaria? Mas o pior seria o açoitamento. Achava que ia querer esfaquear quem tentasseaçoitá-lo.

      - Não podemos nos esquecer - disse Tom - de que o nosso empregador também tem uma forte posição a respeito disso. Diz que não terá Alfred e Jack trabalhando na obra ao mesmo tempo. Um deles terá que ir embora.

      - Ele poderá ser convencido a desistir dessa posição? - perguntou Peter.

      Tom ficou pensativo.

      - Não - respondeu, após uma pausa.

      Jack ficou chocado. Não tomara o ultimato do prior Philip a sério. Mas Tom, sem dúvida, tomara.

      - Se um deles tem que ir embora - disse Dan, acredito que não haja dúvida quanto a quem será. - Dan era um dos pedreiros que trabalhava para Alfred, e não para o priorado, e se Alfred fosse embora provavelmente ele também precisaria ir.

      Mais uma vez Tom ficou pensativo e mais uma vez disse:

      - Não, não há dúvida. - Ele olhou para o enteado. - Jack vai ter que ir embora.

      Jack se deu conta de que subestimará fatidicamente as consequências da briga. No entanto, mal podia crer que fossem pôlo para fora. Como seria a vida se não trabalhasse na Catedral de Kingsbridge? Desde que Aliena se recolhera à sua concha, a catedral era tudo o que lhe importava. Como poderia ir embora?

      - O priorado poderia ceder e aceitar um compromisso disse Peter Carpinteiro. - Jack seria suspenso por um mês.

      Sim, por favor, pensou Jack.

      - Fraco demais - disse Tom. - Temos que ser vistos agindo decisivamente. O prior Philip não aceitará nenhuma solução branda.

      - Então, que seja assim - disse Peter, desistindo. - Esta catedral perde o mais talentoso jovem cinzelador que a maioria de nós já viu, só porque Alfred não consegue manter a maldita boca fechada. - Diversos pedreiros exprimiram sua aprovação a esse sentimento. Encorajado, Peter continuou: - Eu o respeito, Tom Construtor, mais do que respeitei qualquer outro mestre para quem tenha trabalhado, mas é preciso que se diga que é cego no que diz respeito a esse teimoso do seu filho.

      - Nada de injúrias, por favor - disse Tom. - Vamos nos ater aos fatos do caso.

      - Está bem - anuiu Peter. - Digo então que Alfred deve ser punido.

      - Por quê? - indagou Alfred, indignado. - Por ter batido num aprendiz?

      - Ele não é seu aprendiz, é meu - disse Tom. - E você fez mais que bater nele. Você o perseguiu por todo o canteiro da obra. Se o tivesse deixado fugir, a cal não teria sido derramada, o trabalho de cantaria, danificado, e o galpão dos carpinteiros, incendiado; e você poderia ter resolvido o caso com ele quando voltasse. Não havia necessidade de fazer o que fez.

      Os pedreiros concordaram.

      Dan, que parecia ter se tornado o porta-voz dos pedreiros de Alfred, disse:

      - Espero que você não proponha a expulsão de Alfred da associação. Eu, por exemplo, lutaria contra isso.

      - Não - disse Tom. - Já é bastante ruim perder um aprendiz talentoso. Não quero perder também um bom pedreiro, que chefia um grupo confiável. Alfred deve ficar, mas penso que deve ser multado.

      Os homens de Alfred pareceram aliviados.

      - Uma multa pesada - disse Peter.

      - Uma semana de salário - propôs Dan.

      - Um mês; duvido que o prior Philip se satisfaça com menos.

      - Sim - concordaram diversos homens.

      - Estamos todos pensando da mesma forma a esse respeito, irmãos pedreiros? - perguntou Tom, usando uma fórmula costumeira.

      - Sim - todos votaram, concordando.

      - Então comunicarei ao prior a nossa decisão. E quanto a vocês, é melhor que retornem ao trabalho.

      Jack, desconsolado, ficou observando os homens saírem, um após o outro. Alfred, cheio de si, lançou-lhe um olhar triunfante. Tom esperou que todos tivessem saído e se virou para Jack:

      - Fiz o melhor que pude por você. Espero que sua mãe veja isso.

      - Você nunca fez nada por mim! - explodiu Jack. - Não podia me alimentar, vestir ou me dar uma casa para morar. Éramos felizes até você aparecer, e então passamos fome!

      - Mas no fim...

      - Você nem sequer me protegeu desse bruto irracional que chama de seu filho!

      - Eu tentei...

      - Você nunca teria conseguido esse emprego se eu não tivesse incendiado a velha catedral!

      - O que foi que você disse?

      - Sim, eu incendiei a velha catedral. Tom ficou pálido.

      - Aquilo foi um relâmpago...

      - Não houve relâmpago. Era uma noite linda. E ninguém tinha acendido nada na catedral. Fui eu que incendiei o telhado.

      - Mas por quê?

      - Para que você pudesse arranjar trabalho. De outro modo minha mãe teria morrido na floresta.

      - Ela não...

      - Sua primeira mulher morreu, não foi?

      Tom ficou branco. De repente, pareceu muito mais velho. Jack percebeu que o ferira profundamente. Ganhara a discussão, mas decerto perdera um amigo. Sentiu-se amargurado e triste.

      - Dê o fora daqui - sussurrou Tom.

      Jack saiu.

      Afastou-se das imponentes paredes da catedral quase chorando. Sua vida fora devastada em poucos momentos. Era inacreditável que estivesse se afastando daquela igreja para sempre. No portão do priorado ele parou e se virou. Havia tantas coisas que estivera planejando!

      Queria cinzelar um portal inteiro sozinho, e persuadir Tom a ter anjos no clerestório; tinha um desenho inovador para a arcatura nos transeptos, que ainda não mostrara a ninguém. Agora nunca mais faria nenhuma dessas coisas. Era tão injusto! Seus olhos encheram-se de lágrimas.

      Voltou para casa com a visão enevoada. Sua mãe e Martha estavam sentadas à mesa da cozinha. Ellen estava ensinando a garota a escrever com uma pedra aguçada e uma lousa. Ficaram surpresas ao vê-lo.

      - Não pode ser hora do jantar - disse Martha. Ellen leu a expressão do filho.

      - O que foi?

      - Tive uma briga com Alfred e fui expulso do canteiro da obra - disse ele, carrancudo.

      - Alfred não foi expulso? - quis saber Martha.

      Jack balançou a cabeça.

      - Não é justo! - exclamou Martha.

      - Por que brigaram desta vez? - perguntou Ellen, cansada daquele tipo de coisa.

      - Meu pai foi enforcado em Shiring por roubo? - perguntou Jack.

      Martha levou um susto. Ellen pareceu triste.

      - Ele não era ladrão. Mas é verdade que foi enforcado em Shiring.

      Jack estava farto de declarações enigmáticas acerca de seu pai, e exclamou, brutalmente:

      - Por que você nunca me diz a verdade?

      - Porque ela me faz sentir muita tristeza!

      Para horror de Jack, sua mãe começou a chorar. Ele nunca a vira derramar uma lágrima sequer. Sempre fora tão forte! Quase cedeu também. Engoliu em seco e insistiu.

      - Se não era ladrão, por que foi enforcado?

      - Não sei! - exclamou Ellen. - Nunca soube. Tampouco ele soube o motivo. Disseram que roubou um cálice ornamentado com pedrarias.

      - De onde?

      - Daqui, do priorado de Kingsbridge.

      - Kingsbridge! Foi o prior Philip quem o acusou?

      - Não, não, foi muito tempo antes de Philip. - Ela fitou Jack com os olhos cheios de lágrimas. - Não comece a me perguntar quem o acusou e por quê. Não se deixe prender nesta armadilha. Você poderia passar o resto da vida tentando consertar um erro cometido antes de ter nascido. Não criei você para se vingar. Não faça disso a sua vida.

      Jack gostaria de saber mais alguma coisa a respeito do que ela estava dizendo; mas naquele exato momento só queria que parasse de chorar. Sentou-se ao lado dela no banco e passou um braço pelos seus ombros.

      - Bem, parece que a catedral não será mais a minha vida.

      - O que você vai fazer, Jack? - perguntou Martha.

      - Não sei. Não posso viver em Kingsbridge, posso?

      Martha ficou profundamente agitada.

      - Mas por que não?

      - Alfred tentou me matar e Tom me expulsou. Não vou morar com eles. De qualquer forma, sou homem. Tenho que deixar minha mãe.

      - Mas o que você vai fazer?

      Jack deu de ombros.

      - A única coisa que sei tem a ver com construção.

      - Você poderia trabalhar em outra igreja.

      - Suponho que eu seja capaz de amar outra catedral tanto quanto esta - disse ele, desanimado. Na verdade estava pensando: Mas nunca amarei outra mulher como amo Aliena.

      - Como foi que Tom fez isso com você? - indagou Ellen. Jack suspirou.

      - Não creio que fosse sua vontade. O prior Philip disse que não aceitaria ter Alfred e eu trabalhando ao mesmo tempo na obra.

      - Então aquele maldito monge está por trás disso! - exclamou sua mãe, furiosa. - Juro que...

      - Ele ficou muito zangado com o estrago que causamos.

      - Eu só queria saber se ele se deixaria convencer pela lógica.

      - O que você quer dizer com isso?

      - Dizem que Deus é misericordioso... Os monges talvez devessem ser misericordiosos também.

      - Você acha que eu deveria implorar a Philip? - perguntou Jack, de certa forma surpreso com o rumo do pensamento de sua mãe.

      - Eu estava pensando em falar com ele - disse ela.

      - Você! - Aquilo era ainda mais estranho. Para Ellen estar disposta a pedir misericórdia a Philip, devia estar terrivelmente perturbada.

      - O que você acha? - ela lhe perguntou.

      Tudo indicava que Tom pensara que Philip não seria misericordioso, rememorou Jack. Mas naquele momento, a principal preocupação de Tom fora conseguir que a decisão partisse da associação dos pedreiros. Tendo prometido a Philip que seriam firmes, Tom não podia pedir misericórdia. Ellen não se encontrava na mesma posição. Jack começou a se sentir um pouco mais esperançoso. Podia ser que não tivesse que ir embora, afinal de contas. Talvez pudesse ficar em Kingsbridge, perto da catedral e de Aliena.

      Não tinha mais esperanças de que ela o amasse, mas mesmo assim odiava a idéia de ir embora e nunca mais vê-la de novo.

      - Está bem - disse ele. - Vamos pedir ao prior Philip. Nada temos a perder senão o nosso orgulho.

      Ellen enfiou a capa e eles saíram juntos, deixando Martha sentada sozinha na mesa, ansiosa.

      Entraram no adro e foram direto para a casa do prior. Ellen bateu à porta e entrou. Tom estava ali com o prior Philip. Jack soube imediatamente, pela expressão deles, que Tom não contara a Philip que fora ele, Jack, quem incendiara a velha igreja.

      Sentiu-se aliviado. Provavelmente nunca mais contaria. Esse segredo estava salvo.

      Tom pareceu ansioso, se é que não um pouco amedrontado, quando viu Ellen. Jack recordou o que ele dissera: Fiz o melhor que pude por você. Espero que sua mãe veja isso. Tom estava se lembrando da última vez em que Jack e Alfred tinham brigado. Em consequência disso, Ellen o deixara. Tinha medo de que ela o deixasse agora.

      Philip não parecia mais furioso, na opinião de Jack. Talvez a decisão da associação de pedreiros o tivesse deixado satisfeito. Podia inclusive estar se sentindo um pouco culpado por causa da sua dureza.

      - Vim aqui para lhe suplicar que seja misericordioso, prior Philip - disse Ellen.

      Tom imediatamente pareceu aliviado.

      - Estou ouvindo - disse Philip.

      - Você está propondo mandar meu filho para longe de tudo o que ele ama - sua casa, sua família e seu trabalho.

      E a mulher que ele adora, pensou Jack.

      - Estou? - disse Philip. - Pensei que simplesmente o estivesse dispensando do seu trabalho.

      - Jack nunca aprendeu outro tipo de trabalho senão este, e não há outro canteiro de obra em Kingsbridge com serviço para ele. E o desafio de construir a imensa igreja entrou no seu sangue. Jack irá para onde quer que alguém esteja construindo uma catedral. Irá para Jerusalém, se lá houver pedra para ser cinzelada com anjos e demônios. - Como é que ela sabe?, pensou Jack. Ele próprio mal pensara naquilo. Mas era verdade. Ela continuou: - Pode ser que nunca mais eu o reveja. - Sua voz tremeu um pouco no fim da frase, e Jack pensou, admirado, que ela devia amá-lo muito. Sabia que nunca suplicara em seu próprio benefício daquele jeito.

      Philip pareceu compreensivo, mas foi Tom quem respondeu:

      - Não podemos ter Jack e Alfred trabalhando na mesma obra - disse obstinadamente. - Eles vão brigar de novo. Você sabe disso.

      - Alfred podia ir embora - disse Ellen.

      Tom ficou triste.

      - Alfred é meu filho.

      - Mas tem vinte anos de idade, e é ruim como um urso! - Embora ela falasse em tom afirmativo, seu rosto estava molhado de lágrimas. - Ele não liga para a catedral mais do que eu, e se sentiria perfeitamente feliz construindo casas para açougueiros e padeiros em Winchester e Shiring.

      - A associação não pode expulsar Alfred e ficar com Jack - disse Tom. - Além disso, a decisão já foi tomada.

      - Mas é a decisão errada!

      - Pode ser que haja outra resposta - disse Philip.

      Todos olharam para ele.

      - Pode ser que haja um jeito para Jack permanecer em Kingsbridge e se devotar à catedral, sem esbarrar em Alfred.

      Jack perguntou-se o que estava por vir. Aquilo era bom demais para ser verdade.

      - Preciso de alguém para trabalhar comigo - continuou Philip. - Gasto muito tempo tomando decisões parceladas sobre a obra. Preciso de uma espécie de assistente, que preencha o papel de encarregado da construção. Deverá resolver a maior parte dos problemas, trazendo-me apenas as questões mais importantes. Terá também que controlar o dinheiro e a matéria-prima, efetuando os pagamentos aos fornecedores e aos carroceiros, e encarregando-se também dos salários. Jack sabe ler e escrever, e é capaz de fazer contas mais depressa do que qualquer pessoa que eu já tenha conhecido...

      - E compreende cada um dos aspectos da construção da catedral - interrompeu Tom. - Eu me responsabilizo por isso.

      A cabeça de Jack estava girando a toda a velocidade. Ia poder ficar, afinal! Seria o escrevente da obra. Não faria trabalho de cinzelagem, mas supervisionaria todo o projeto em nome de Philip. Era uma proposta estonteante. Lidaria com Tom de igual para igual. Mas sabia que era capaz. E Tom sabia, também.

      Havia um obstáculo. Jack o expressou em voz alta:

      - Não posso mais morar na mesma casa que Alfred.

      - Já está na hora de Alfred ter uma casa - disse Ellen. - Se nos deixasse, talvez se dedicasse mais à procura de uma mulher.

      - Você não pára de imaginar razões para se livrar de Alfred! - exclamou Tom, furioso. - Não vou atirar meu filho para fora de minha casa!

      - Vocês não me entenderam, nenhum de vocês - disse Philip. - Não compreenderam totalmente minha proposta. Jack não estaria vivendo em sua companhia.

      Ele fez uma pausa. Jack adivinhou o que estava por vir, e foi o último e maior choque do dia.

      - Jack teria que morar aqui no priorado - disse Philip. Ele olhou para os três com a testa ligeiramente franzida, como se não tivesse conseguido perceber por que não tinham compreendido o que quisera dizer.

      Jack compreendera. Lembrou-se de Ellen dizendo, na véspera da entrada do verão, no ano anterior: Aquele prior ardiloso sempre dá um jeito de no fim conseguir o que deseja. Ela estava com a razão. Philip renovava agora a proposta que lhes tinha feito então. Mas dessa vez era diferente. A alternativa com que Jack se defrontava agora era desoladora. Sair de Kingsbridge e abandonar tudo o que amava. Podia também ficar, e perder a liberdade.

      - Meu escrevente da obra não pode ser leigo, é claro - concluiu Philip, num tom de voz de quem estava afirmando o óbvio. - Jack terá que se tornar monge.

     

      Na noite anterior à Feira de Lã de Kingsbridge, o prior Philip ficou acordado após os serviços da meia-noite, como sempre; mas em vez de ler e meditar em sua casa, deu uma volta pelo priorado. Era uma noite quente de verão, de céu claro e enluarada, e podia enxergar sem a ajuda de um lampião.

      Todo o adro fora tomado pela feira, com exceção dos prédios monásticos e do claustro, que eram sagrados. Em cada um dos quatro cantos fora escavada uma imensa latrina, para que o resto do adro não ficasse inteiramente sujo, e as latrinas foram protegidas com biombos, a fim de salvaguardar a sensibilidade dos monges.

      Literalmente centenas de bancas haviam sido construídas. As mais simples não passavam de balcões de madeira crua, apoiados em cavaletes. A maioria deles era um pouco mais elaborada: tinham uma placa com o nome do comerciante que a ocuparia, um desenho dos seus artigos, uma mesa separada para fazer as pesagens, e um armário ou depósito. Algumas bancas incorporavam barracas, fosse como defesa da chuva, fosse para realizar negócios em separado. As mais elaboradas eram pequenas casas, com grandes áreas de armazenamento, diversos balcões, mesas e cadeiras, onde o comerciante poderia oferecer sua hospitalidade aos fregueses importantes. Philip se espantara quando o primeiro carpinteiro dos comerciantes chegara, uma semana antes da feira, e exigira que lhe mostrassem o lugar onde construiria sua banca. Entretanto, a estrutura que ele erigira levara quatro dias para ser feita e dois para ser abastecida.

      Philip planejara inicialmente a disposição das bancas em duas avenidas largas, seguindo a mesma configuração do mercado semanal, mas logo percebeu que não seria suficiente. As duas avenidas de bancas corriam agora também ao longo do lado norte da igreja, virando depois para leste, até a casa de Philip; e havia inclusive estandes dentro da igreja inacabada, nos corredores entre os pilares. Os arrendatários não eram, de modo algum, exclusivamente mercadores de lã; tudo era vendido na feira, desde pão de massa grossa a rubis.

      Philip seguiu ao longo das fileiras de bancas iluminadas pelo luar. Estavam todas prontas agora, claro: nenhuma outra construção seria autorizada no dia da feira.

      A maioria já estava com os produtos que seriam vendidos. O priorado, até agora, recolhera mais de dez libras em taxas e direitos. As únicas coisas que poderiam ser trazidas naquele dia eram comidas recém preparadas, pão, tortas quentes e maçãs assadas. Até mesmo os barris de cerveja tinham sido trazidos na véspera.

      Enquanto Philip seguia seu caminho, era observado por dúzias de olhos semi-abertos, e cumprimentado por diversos grunhidos sonolentos. As pessoas que tinham montado estandes não iriam deixar seus preciosos artigos sem uma guarda: a maioria dormira neles, e os mais ricos deixaram criados tomando conta.

      Ele ainda não estava certo de quanto dinheiro faria com a feira, mas o sucesso dela estava virtualmente garantido, e Philip confiava em atingir sua estimativa original de cinquenta libras. Tinha havido momentos, naqueles últimos meses, em que temera que a feira não fosse se realizar. A guerra civil se arrastara, sem que Matilde ou Estêvão conseguissem superioridade um sobre o outro, mas sua licença não fora revogada. William Hamleigh tentara sabotar a feira de diversos modos. Dissera ao xerife que a interditasse, mas o xerife pedira uma ordem de um dos dois monarcas rivais, que, no entanto, não fora expedida. William proibira os moradores de suas propriedades de vender lã em Kingsbridge; porém, de qualquer forma a maioria deles já tinha o hábito de vender para mercadores como Aliena em vez de comerciá-la pessoalmente, de modo que o principal efeito da sua determinação fora criar mais negócios para ela.

      Por fim ele tinha anunciado que ia reduzir as taxas de aluguel e impostos da Feira de Lã de Shiring para os níveis que Philip estava cobrando; mas seu comunicado chegou muito tarde para fazer diferença, pois os grandes compradores e vendedores já haviam feito seus planos.

      Agora, com o céu ficando perceptivelmente mais claro no oriente, na manhã do grande dia, William não podia fazer mais nada. Os vendedores ali se encontravam com seus artigos, e em em breve os compradores estariam começando a chegar. Philip achava que William acabaria por descobrir que a feira de Kingsbridge iria prejudicar a de Shiring menos do que ele temia. As vendas de lã pareciam crescer todos os anos, sem falhar: O volume dos negócios era suficiente para duas feiras.

      Ele fizera a volta completa em torno do adro até o canto sudoeste, onde ficavam os moinhos e o lago dos peixes. Parou um pouco, observando a água correr silenciosamente pelos dois moinhos. Um agora era usado apenas para pisoar tecidos, e rendia um bocado de dinheiro. O jovem Jack era o responsável por isso. Tinha um cérebro engenhoso. Ele ia ser uma tremenda vantagem para o priorado.

      Parecia ter se acomodado bem como noviço, embora tendesse a considerar os serviços religiosos como uma distração da obra da catedral, em vez de ser o contrário.

      No entanto, aprenderia. A vida monástica era uma influência santificante. Philip achava que Deus tinha um propósito para Jack. No fundo, bem no fundo do coração, ele nutria uma esperança secreta para o futuro distante: que um dia Jack tomasse o seu lugar como prior de Kingsbridge.

      Jack se levantou de madrugada e esgueirou-se para fora do dormitório antes do serviço da prima para fazer uma última inspeção do canteiro da obra. O ar da manhã era frio e claro, como a água pura de uma nascente. Seria um dia quente e ensolarado, bom para os negócios, bom para o priorado.

      Contornou as paredes da catedral, certificando-se de que todas as ferramentas e peças em processo de confecção tivessem sido seguramente trancadas dentro dos galpões.

      Tom construíra leves cercas em torno das pilhas de madeira e pedra, a fim de protegê-las de danos acidentais causados por visitantes descuidados ou bêbados.

      Não queriam que indivíduos mais afoitos resolvessem galgar a estrutura da obra, de modo que todas as escadas foram escondidas, e as escadas em espiral embutidas nas grossas paredes fechadas com portas temporárias.

      Da mesma forma, as extremidades inacabadas das paredes, que podiam servir de degraus, foram obstruídas por blocos de madeira. Alguns dos mestres artesãos estariam patrulhando o canteiro da obra o dia inteiro, para não ter dúvida de que não haveria danos.

      Jack conseguia escapulir de um grande número de serviços, de um jeito ou de outro. Havia sempre algo a ser feito na obra. Não tinha o ódio da sua mãe pela religião cristã, mas era mais ou menos indiferente. Não sentia entusiasmo, mas estava disposto a fazer o que era esperado, se isso atendesse às suas conveniências. Fazia questão de comparecer a um serviço por dia, geralmente um a que comparecesse também ou o prior Philip ou o mestre dos noviços, que eram os dois monges decanos que mais provavelmente notariam sua presença ou sua ausência.

      Não daria para aguentar se tivesse que comparecer a tudo. Ser monge era o modo de vida mais estranho e pervertido que ele podia imaginar. Os monges passavam metade da vida submetendo-se a dores e desconfortos que poderiam evitar, com facilidade, e a outra metade resmungando uma algaravia sem sentido em igrejas vazias a todas as horas do dia e da noite. Abstinham-se deliberadamente de tudo o que fosse bom - garotas, esportes, boa comida e vida em família. Jack notara, no entanto, que os mais felizes entre eles tinham, em geral, encontrado alguma atividade que lhes dava profunda satisfação: ilustrar manuscritos, escrever história, cozinhar, estudar filosofia, ou - como Philip - transformar Kingsbridge numa cidade próspera com uma catedral.

      Jack não gostava do prior, mas gostava de trabalhar com ele. Não simpatizava com religiosos profissionais mais que sua mãe. Sentia-se embaraçado com a piedade de Philip; não gostava de sua inocência ingênua; e desconfiava da sua tendência de crer que Deus cuidaria de tudo o que ele, Philip, não conseguisse resolver. Mesmo assim, era bom trabalhar com ele. Suas ordens eram claras, deixava espaço para Jack decidir sozinho, e nunca culpava os outros pelos seus erros.

      Jack era noviço há três meses, de modo que não lhe pediriam que fizesse os votos senão dentro de nove meses. Os três votos eram pobreza, celibato e obediência. O voto de pobreza não era bem o que parecia. Os monges não tinham propriedades pessoais ou dinheiro, mas viviam mais como lordes que como camponeses - tinham boa comida, roupas quentes e belas casas de pedra para morar. O celibato não era problema, pensou Jack com amargura. Sentira uma certa satisfação ao contar pessoalmente a Aliena que ia entrar para o mosteiro. Ela lhe parecera abalada e culpada. Agora, sempre que sentia a irritabilidade advinda da falta de companhia feminina, pensava em como Aliena o tratara - os encontros secretos na floresta, as noites de inverno, as duas vezes em que a beijara - e depois se lembrava de como de repente ela se tornara fria como gelo e dura como uma rocha. Pensar nisso o fazia sentir que jamais iria querer ter coisa alguma com as mulheres. No entanto, o voto de obediência seria difícil de cumprir, podia afirmar desde já. Gostava de receber ordens de Philip, que era inteligente e organizado; porém, era difícil obedecer ao idiota do subprior, Remigius, ou ao bêbado do mestre dos noviços, ou ainda ao pomposo sacristão.

      Mesmo assim, estava pensando em fazer os votos. Não tinha que cumpri-los. Tudo o que lhe importava era a construção da catedral. Os problemas de suprimento, construção e administração eram absorventes e nunca terminavam. Um dia podia ter que ajudar Tom a imaginar um método para se assegurar de que o número de pedras que chegavam ao canteiro da obra fosse igual ao número que saía da pedreira - um problema complexo, porque o tempo de viagem variava de dois a quatro dias, de modo que não era possível ter um simples registro diário.

      Outro dia os pedreiros podiam se queixar de que os carpinteiros não estavam fazendo as formas adequadamente. Os problemas que representavam o maior desafio eram os de engenharia, tais como descobrir o modo de levantar toneladas de pedras até o topo das paredes, usando equipamento improvisado preso em andaimes frágeis. Tom Construtor discutia esses problemas com Jack de igual para igual. Parecia ter perdoado aquele seu discurso furioso, em que afirmara que Tom nunca tinha feito nada por ele. E agia como se tivesse esquecido a revelação de que Jack ateara fogo à velha catedral. Trabalhavam juntos entusiasmadamente, e os dias passavam voando. Até mesmo durante os tediosos cultos religiosos, a mente de Jack estava ocupada com alguma questão complicada de construção ou planejamento.

      Seu conhecimento estava se ampliando com rapidez. Em vez de passar anos cinzelando pedras, estava aprendendo a construir uma catedral. Dificilmente poderia haver melhor treinamento para quem queria ser mestre construtor. Para ter isso, Jack estava preparado para bocejar durante qualquer número de matinas rezadas à meia-noite.

      O sol estava aparecendo sobre a muralha leste do adro. Tudo estava em ordem no canteiro da obra. Os comerciantes que tinham passado a noite nas bancas começavam a dobrar e guardar os colchões e arrumar seus artigos. Os primeiros fregueses logo chegariam. Um padeiro passou por Jack carregando uma bandeja de pães recém-assados. O cheiro do pão quente fez Jack salivar. Virou-se e voltou para o mosteiro, dirigindo-se para o refeitório, onde em breve serviriam o desjejum.

     

      Os primeiros fregueses foram as famílias dos comerciantes e os habitantes da cidade, todos curiosos para ver a primeira Feira de Lã de Kingsbridge, nenhum deles muito interessado em comprar. As pessoas econômicas tinham enchido a barriga em casa com pão e mingau, de modo que não se sentiriam tentadas pelas ofertas muito temperadas e coloridas das bancas de comida. As crianças andavam por toda parte com os olhos arregalados, aturdidas com a exibição de tantas coisas desejáveis. Uma prostituta madrugadora e otimista, com lábios e botas vermelhas, saracoteava de um lado para o outro, sorrindo esperançosamente para os homens de meia-idade, mas não havia fregueses àquela hora.

      Aliena a tudo assistia do seu estande, que era um dos maiores. Nas semanas anteriores recebera todo o produto do rebanho do priorado, a lã pela qual pagara cento e sete libras no último verão.

      Comprara também de fazendeiros, como sempre fazia - esse ano houvera mais vendedores que o comum, porque William Hamleigh proibira seus arrendatários de vender na feira de Kingsbridge, de modo que eles tinham vendido tudo para os comerciantes.

      E, entre eles, coubera a Aliena a maior parte dos negócios, por ser baseada em Kingsbridge, onde a feira seria realizada.

      Saíra-se tão bem que ficara sem dinheiro para continuar comprando, e pedira quarenta libras a Malachi para tocar o negócio. Agora, no depósito que formava a parte de trás do seu estande, tinha cento e sessenta sacos de lã crua, o produto de quarenta mil carneiros, que lhe tinham custado mais de duzentas libras, mas que venderia por trezentas, dinheiro suficiente para pagar os salários de um pedreiro qualificado por mais de um século. A escala do seu negócio a assombrou, quando repassou os números.

      Não esperava ver seus compradores senão ao meio-dia. Seriam apenas cinco ou seis. Todos se conheceriam, e ela conheceria quase todos dos anos anteriores. Daria a cada um um copo de vinho, se sentaria e conversaria um pouco. Depois mostraria sua lã.

      O comprador lhe pediria para abrir um saco ou dois - nunca o de cima da pilha, claro. Enfiaria a mão no fundo do saco e traria um punhado de lã. Esticaria os fios, para determinar seu comprimento, esfregaria entre o indicador e o polegar para testar a maciez e cheiraria. Por fim proporia a compra de todo o estoque por um preço ridiculamente baixo, que Aliena recusaria. Ela lhe diria o preço que desejava, e ele sacudiria a cabeça. Os dois tomariam outro copo de vinho.

      Aliena passaria pelo mesmo ritual com os outros compradores. Daria almoço a todos que ali estivessem ao meio-dia. Alguém lhe ofereceria comprar uma grande quantidade de lã por um preço não muito acima do que ela pagara. Ela faria uma contraproposta, abaixando seu preço um pouquinho. No início da tarde começaria a fechar negócios. Sua primeira venda seria a um preço mais baixo. Os outros mercadores exigiriam que fizesse esse negócio com eles pelo mesmo preço, mas se recusaria. Seu preço iria subindo no decurso da tarde. Se subisse rápido demais, as transações seriam lentas, enquanto os comerciantes calculavam quanto tempo levariam para preencher suas cotas em outra parte.

      Se pedisse menos do que eles estavam dispostos a pagar, ela saberia, pela relativa rapidez com que chegassem a um acordo.

      Fecharia os negócios um por um, e seus criados iriam dando início ao carregamento dos carros de boi com suas enormes rodas de madeira, e Aliena pesaria o dinheiro.

      Não tinha dúvida de que nesse dia ganharia mais do que nunca. Tinha uma quantidade duas vezes maior para vender, e os preços da lã estavam subindo. Planejava comprar a produção de Philip novamente com um ano de antecedência, e tinha um plano secreto para construir uma casa de pedra, com depósitos espaçosos para armazenar lã, um salão elegante e confortável e um lindo quarto no segundo andar só para ela. Seu futuro estava seguro, e tinha confiança de que seria capaz de sustentar Richard enquanto ele precisasse dela. Tudo estava perfeito.

      Por isso mesmo era tão estranho que se sentisse tão completamente infeliz.

     

      Fazia quatro anos, quase que exatamente, que Ellen retornara a Kingsbridge, e tinham sido os melhores quatro anos da vida de Tom.

      A dor pela morte de Agnes já não era tão aguda. Ainda o acompanhava, mas não tinha mais aquela sensação embaraçosa de que ia irromper em lágrimas a qualquer instante, sem um motivo aparente. Ainda travava conversas imaginárias com ela, nas quais lhe falava sobre as crianças, o prior Philip e a catedral, mas eram menos frequentes. Sua agridoce lembrança não matara o amor que tinha por Ellen. Era capaz de viver com o presente. Ver Ellen e tocá-la, falar-lhe e dormir com ela eram as alegrias da sua vida.

      Ficara profundamente sentido no dia da briga de Jack com Alfred, porque seu enteado dissera que nunca tomara conta dele; essa acusação ofuscara inclusive a terrível revelação de que fora Jack quem ateara fogo à velha catedral. Sofrera com aquilo por diversas semanas, mas no fim decidira que o rapaz estava errado. Fizera o máximo que pudera, e nenhum homem poderia ter feito mais. Tendo chegado a essa conclusão, parara de se preocupar.

      Construir a Catedral de Kingsbridge era o trabalho mais satisfatório que jamais fizera. Era o responsável pelo projeto e pela execução. Ninguém interferia em suas decisões e não havia ninguém mais para culpar se algo saísse errado. À medida que as imponentes paredes subiam, com seus arcos cheios de ritmo, suas cornijas graciosas e seus trabalhos de cinzelagem, ele podia contemplar tudo e pensar: Fiz isto, e fiz bem.

      O pesadelo de que se veria de novo na estrada, sem dinheiro, sem trabalho, sem meios de alimentar as crianças, parecia muito afastado, agora que tinha uma arca reforçada cheia até a boca com pennies de prata enterrada no chão da cozinha. Ainda estremecia quando se lembrava daquela noite extremamente fria em que Agnes dera à luz Jonathan e morrera; mas achava que nada assim tão ruim iria acontecer de novo.

      Às vezes se perguntava por que ele e Ellen não haviam tido filhos. Ambos tinham sido comprovadamente férteis no passado, e não faltavam oportunidades para ela engravidar - ainda faziam amor quase todas as noites, mesmo após quatro anos. Não era, contudo, causa de grande mágoa. O pequenino Jonathan era a menina dos seus olhos.

      Tom sabia, de experiência passada, que o melhor modo de aproveitar uma feira era com uma criancinha, e por isso procurou Jonathan na metade da manhã, quando as multidões começavam a chegar. O menino era quase uma atração por si só, vestido com o seu hábito pequenino. Ultimamente pedira que lhe raspassem a cabeça; Philip consentira - o prior gostava tanto do garotinho quanto Tom, e o resultado era que agora se parecia mais que nunca com um monge em miniatura. Havia diversos anões de verdade no meio da multidão, fazendo truques e mendigando, e eles fascinaram Jonathan. Tom teve que fazê-lo sair correndo de perto de um que atraíra um bando de gente ao expor seu pênis avantajado.

      Havia malabaristas, acrobatas e músicos se exibindo e pedindo dinheiro a quem assistia a eles; adivinhos, cirurgiões e prostitutas procurando aliciar fregueses; provas de força, competições de luta e jogos de azar. Todos usavam suas roupas mais coloridas, e quem podia tinha se banhado de perfume e passado óleo nos cabelos. Todos pareciam ter dinheiro para gastar, e o que mais se ouvia era o retinir das moedas de prata.

      Jonathan nunca vira um urso e ficou fascinado com o esporte que estava por se iniciar. Tratava-se de açular cães contra um urso acorrentado. O pêlo castanho-acinzentado do urso tinha cicatrizes em diversos pontos, indicando que sobrevivera pelo menos à prova anterior. Uma corrente pesada fora passada na sua cintura e presa numa estaca enterrada fundo no chão. O urso caminhava de quatro no limite da corrente, olhando colérico para a multidão que aguardava. Tom teve a impressão de distinguir um brilho de astúcia nos olhos da fera. Fosse um jogador, teria apostado no urso.

      Os latidos frenéticos vinham de uma caixa fechada nas proximidades. Os cães estavam ali dentro e podiam sentir o cheiro do seu inimigo. De vez em quando o urso parava de andar de um lado para o outro, olhava para a caixa e grunhia; então o ladrar se intensificava até chegar às raias da histeria.

      O proprietário dos cães e guardião do urso estava aceitando apostas. Jonathan ficou impaciente e Tom já estava prestes a ir embora quando ele finalmente destrancou a caixa. O urso ficou de pé nas patas de trás, no limite máximo da corrente, e rosnou.

       O homem gritou qualquer coisa e escancarou a porta da caixa.

      Cinco galgos pularam de dentro dela. Eram leves e se moviam rapidamente; as bocas abertas exibiam dentes pequenos e agudos. Todos correram na direção do urso, que os golpeou com as imensas patas. Acertou num cachorro e o atirou no ar; os outros recuaram.

      A multidão comprimiu-se, querendo aproximar-se mais. Tom avaliou a posição de Jonathan; o garoto estava na frente, mas ainda bem longe do alcance do urso. Este foi bastante esperto, recuou para junto da estaca, fazendo com que a corrente ficasse frouxa. Desse modo não seria detido assim que arremetesse contra algum cachorro.

      Mas os cães também foram espertos. Depois do frustrado ataque inicial, eles se agruparam e se dispuseram em círculo. O urso, agitado, começou a rodar, tentando ver todos ao mesmo tempo.

      Um dos cachorros atirou-se contra o urso, latindo ferozmente. A fera foi ao seu encontro e atacou. O cachorro se retraiu e os outros quatro adiantaram-se correndo, vindo de todas as direções. O urso girou, procurando varrê-los. A multidão urrou quando três deles enfiaram os dentes na carne das suas ancas. Ele se levantou nas patas traseiras com um urro de dor, sacudindo-os, e eles se espalharam de qualquer maneira, fugindo ao seu alcance.

      Os cachorros repetiram a tática. Tom pensou que o urso fosse cair na esparrela de novo. O primeiro cão se lançou, colocando-se ao alcance da fera, que reagiu, fazendo-o recuar; mas quando os outros cães avançaram, o urso estava preparado - virou-se rapidamente, atacou o mais próximo e deu-lhe uma patada na ilharga. A multidão se entusiasmou tanto com o urso quanto antes com os cachorros. As garras afiadas do animal deixaram três riscos de sangue na pele sedosa do cão, que ganiu e retirou-se da briga para lamber as feridas. A multidão vaiou sua retirada.

      Os quatro cães restantes circulavam em torno do urso cautelosamente, encenando o ataque ocasional mas recuando bem antes do ponto perigoso. Alguém começou a bater palmas devagar. Um cão executou um ataque frontal.

      Avançou com a rapidez de um relâmpago, esgueirou-se por baixo da trajetória das patadas do urso e saltou no seu pescoço. A multidão enlouqueceu. O cachorro mergulhou os dentes pontiagudos no pescoço possante do urso. Os outros atacaram. O urso ficou de pé, batendo no que estava preso ao seu pescoço, depois desceu e rolou no chão. Por um momento Tom não foi capaz de dizer o que estava acontecendo: era só uma confusão de pêlos. Até que três cachorros pularam fora e o urso se endireitou e ficou em cima das quatro patas, deixando o cão que o mordera esmagado no chão, morto.

      A multidão ficou tensa. O urso eliminara dois cachorros, deixando três; mas sangrava nas costas, pescoço e patas traseiras, e parecia assustado. O ar estava impregnado pelo cheiro de sangue e do suor de toda aquela gente. Os cachorros haviam parado de latir e circulavam em torno do urso silenciosamente. Também pareciam assustados, mas tinham provado o gosto de sangue e queriam matar.

      Seu novo ataque começou do mesmo modo: um deles avançou e se retraiu rapidamente. Sem muita convicção, o urso lhe deu uma patada e se virou para encarar o segundo cachorro. Mas dessa vez este também recuou depressa e colocou-se fora do alcance; depois o terceiro fez o mesmo. Os cães surgiam e sumiam como flechas, um de cada vez, mantendo o urso em constante movimento. Em cada corrida se aproximavam mais da fera, bem como as garras desta se aproximavam mais deles. Os espectadores perceberam o que estava acontecendo e a excitação da turba aumentou. Jonathan ainda estava na frente, a poucos passos de Tom, parecendo atemorizado. Este olhou de novo para a briga no momento em que as garras do urso atingiam um cão, e outro avançava por entre as patas traseiras da enorme fera e mordia sua barriga macia.

      O urso produziu um barulho que parecia um grito. O cão recuou velozmente e conseguiu escapar. Outro cachorro atacou. O urso reagiu, errando por polegadas; então o mesmo cão o atacou na parte inferior da barriga. Dessa vez, quando fugiu, deixou a fera com uma enorme ferida sangrando no abdómen. O urso levantou-se e voltou a ficar sobre as quatro patas. Por um momento Tom pensou que o animal estivesse liquidado, mas se enganou: ainda era capaz de lutar. Quando foi atacado, reagiu com uma débil patada, virou a cabeça, viu o segundo cão se aproximando, girou com rapidez surpreendente e o atingiu com um golpe poderoso que o mandou longe, voando pelos ares. A multidão urrou, deleitada.

      O animal caiu ao chão como um saco de carne. Tom observou-o por um momento. O cão estava vivo, mas parecia incapaz de se mover. Talvez tivesse quebrado a espinha. O urso o ignorou, pois estava fora de alcance e de ação.

      Agora só havia dois cachorros remanescentes. Ambos atacaram e recuaram diversas vezes, com velocidade, até que suas arremetidas se tornaram perfunctórias; então começaram a circular em torno do urso, sempre mais e mais depressa. O urso girava, tentando não perdê-los de vista.

      Exausto e sangrando copiosamente, mal conseguia ficar de pé. Os cães prosseguiram o movimento giratório, com círculos cada vez menores. A terra embaixo das poderosas patas do urso tinha virado lama, de tanto sangue. De um modo ou de outro, o final estava à vista. Enfim os dois cachorros atacaram ao mesmo tempo. Um a garganta, e o outro, a barriga. com uma última e desesperada patada, o urso acertou o que o pegara no pescoço. O sangue saiu em jorro. A turba berrou sua aprovação.

      A princípio Tom pensou que o cão matara o urso, mas foi o contrário: o sangue vinha do galgo, que caiu no chão com a garganta aberta. Seu sangue bombeou mais um pouco, e depois parou. Estava morto. Mas nesse meio tempo o último cão rasgara a barriga do urso, cujas tripas estavam caindo. A fera tentava se defender, sem forças, mas o cão se evadia facilmente e atacava de novo, mordendo seus intestinos.

      O urso oscilou e pareceu que ia cair. O rugido da multidão foi aumentando. As vísceras do animal exalavam um fedor repugnante. Ele reuniu o resto de suas forças e atacou de novo. A pancada pegou no cachorro, que pulou de lado, com sangue escorrendo de uma ferida nas costas; porém, era uma coisa superficial, e o cão sabia que o urso estava liquidado, de modo que voltou imediatamente à ofensiva, mordendo as tripas dele até que, por fim, o grande animal fechou os olhos e desabou no chão, morto.

      O dono do urso adiantou-se e pegou o cão vitorioso pela coleira. O açougueiro de Kingsbridge e seu aprendiz avançaram e começaram a cortar o urso, para aproveitar sua carne: Tom supôs que tivessem combinado um preço antecipadamente. Os que tinham ganho suas apostas exigiram pagamento. Todos queriam fazer festa no cão sobrevivente. Tom procurou Jonathan. Não conseguiu vê-lo.

      A criança estivera apenas a algumas jardas de distância durante toda a briga. Como conseguira desaparecer? Devia ter acontecido nos momentos mais emocionantes, em que Tom se concentrara no espetáculo. Agora estava com raiva de si próprio. Procurou-o no meio da multidão. Tom era umas oito polegadas mais alto que todo mundo, e Jonathan podia ser facilmente localizado, com seu hábito de monge e sua cabeça raspada, porém não conseguia vê-lo em parte alguma.

      A criança não tinha muito o que temer no priorado, mas era bem possível que deparasse com coisas que o prior Philip preferia que não visse: prostitutas atendendo a seus clientes junto ao muro, por exemplo. Olhando à sua volta, Tom viu um andaime bem alto, encostado à obra da catedral; levantando a cabeça, distinguiu em cima dali um pequeno vulto vestido de monge.

      Teve um momento de pânico. Quis gritar: Não se mexa., você vai cair!, mas suas palavras teriam se perdido no barulho da feira. Abriu caminho através da multidão, na direção da catedral. Jonathan estava correndo ao longo do andaime, absorto em alguma brincadeira imaginária, sem tomar conhecimento do perigo de escorregar e cair de oitenta pés de altura para a morte...

      Tom sufocou o terror que subia como bílis para a sua boca.

      O andaime não repousava no solo, e sim em cima de vigas pesadas, inseridas em buracos construídos para isso, bem no alto das paredes. Elas se projetavam da parede cerca de seis pés. Estacas bem sólidas eram colocadas sobre as vigas e amarradas. Depois se colocavam em cima das estacas painéis de colmo entrelaçado e galhos flexíveis. Normalmente ia-se para o andaime pelas escadas em espiral embutidas nas paredes.

      Mas essas escadas estavam fechadas nesse dia, por causa da feira. Então, como Jonathan subira? Não havia escadas - Tom verificara, e depois Jack se certificara novamente. O garoto devia ter trepado pelo lado não concluído da parede. As seções inacabadas, que formavam naturalmente uma espécie de escada, haviam sido bloqueadas; Jonathan, porém, podia ter escalado justo os blocos de madeira.

      O menino tinha muita autoconfiança - mesmo que levasse um tombo por dia, no mínimo.

      Tom chegou junto à parede e olhou para cima, apavorado. Jonathan estava brincando alegremente a oitenta pés de altura. O medo apertou o coração de Tom com garras de gelo, e ele berrou com toda a força:

      - Jonathan!

      As pessoas à sua volta se espantaram e olharam para cima, querendo saber com quem estava gritando. Quando localizaram uma criança no andaime, apontaram para que os amigos também a vissem. Uma pequena multidão se reuniu.

      Jonathan não escutou. Tom pôs as duas mãos em torno da boca, em forma de concha, e gritou de novo:

      - Jonathan! Jonathan!

      Dessa vez o menino ouviu. Olhou para baixo, viu Tom e acenou.

      - Desça! - gritou Tom.

      O menino parecia prestes a obedecer, mas olhou a parede em cima da qual teria que caminhar e o íngreme lance de degraus que precisaria descer, e mudou de idéia.

      - Não posso! - gritou, em resposta, e sua voz aguda veio flutuando até as pessoas que estavam ali embaixo, olhando para ele.

      Tom percebeu que ia ter de subir para pegá-lo.

      - Fique onde está até que eu o apanhe! - gritou. Empurrou para longe os blocos de madeira que obstruíam os degraus mais baixos e subiu por cima da parede.

      Ela media cerca de quatro pés na base, mas se estreitava à medida que ficava mais alta. Tom subiu com calma. Teve ímpetos de correr, mas se controlou. Ao olhar para cima viu Jonathan sentado na beira do andaime, balançando as perninhas curtas sobre o espaço vazio.

      No topo a parede tinha apenas dois pés de espessura. Mesmo assim, era larga o bastante para que uma pessoa andasse por cima, desde que tivesse nervos fortes, e Tom os tinha. Progrediu ao longo da parede, pulou para o andaime e pegou Jonathan no colo.

      O alívio que sentiu foi imenso.

      - Seu bobo - disse, mas sua voz estava cheia de amor, e Jonathan o abraçou com força.

      Após um momento Tom olhou para baixo de novo. Viu um mar de rostos: mais de cem pessoas assistiam a tudo. Provavelmente pensavam que fosse outro espetáculo, como o do urso e dos cachorros.

      - Tudo bem - disse Tom para Jonathan. - Vamos descer agora. - Colocou o menino em cima da parede. - Estarei logo atrás de você, de modo que não precisa se preocupar.

      Jonathan não se convenceu.

      - Estou com medo - disse. Levantou os bracinhos para ser apanhado no colo e, quando Tom hesitou, desatou a chorar.

      - Não faz mal, eu carrego você - disse Tom. Não ficou muito satisfeito, mas do jeito que Jonathan estava não se podia confiar nele. Adiantou-se, ajoelhou-se ao seu lado, pegou-o no colo e se levantou.

      Jonathan se segurou com força. com o menino no colo, Tom não conseguiu ver as pedras que estavam diretamente sob seus pés. Mas não tinha outro jeito. com o coração na boca, caminhou cautelosamente, colocando os pés devagar sobre a parede, um na frente do outro. Não tinha medo por si, mas, com o garoto nos braços, estava aterrorizado. Finalmente viu o início dos degraus. Não era mais largo no princípio, mas de certa forma parecia menos íngreme. Começou a descida, agradecido. A cada passo se sentia mais calmo. Quando atingiu o nível da galeria e a parede alargou-se para quase três pés, parou para esperar que o coração batesse mais devagar.

      Olhou para fora, para além do adro, por cima de Kingsbridge, e viu algo que o intrigou nos campos que precediam a cidade: uma nuvem de poeira sobre a estrada que levava ao priorado, a quase uma milha de distância.

      Após um momento percebeu que estava olhando para o efetivo de uma grande tropa a cavalo, aproximando-se da cidade a trote. Tentou descobrir de que se tratava.

      A princípio pensou que podia ser um comerciante muito rico, ou um grupo de mercadores, com uma grande comitiva, mas eles eram numerosos, e de certa forma não pareciam gente dedicada a atividades comerciais.

      Quando se aproximaram, viu que muitos montavam cavalos de batalha, a maioria usava elmos, e todos estavam armados até os dentes.

      De repente teve medo.

      - Jesus Cristo, quem são aquelas pessoas? - exclamou, em voz alta.

      - Não diga o nome de Cristo - repreendeu-o Jonathan. Quem quer que fossem, representavam encrenca.

      Tom desceu correndo o resto dos degraus. A multidão bateu palmas quando pulou no chão. Ignorou todas aquelas pessoas, preocupado em descobrir onde estariam Ellen e as crianças. Não as viu por perto.

      Jonathan tentou se libertar dos seus braços. Tom o segurou com força. Como estava com seu caçula ali, a primeira coisa que tinha a fazer era colocá-lo em algum lugar seguro. Depois podia procurar os outros. Abriu caminho por entre a multidão até a porta que dava para o claustro. Estava fechada por dentro, a fim de preservar a privacidade do mosteiro durante a feira. Tom bateu nela e gritou:

      - Abram! Abram!

      Nada aconteceu.

      Não tinha certeza de que havia alguém no claustro, mas não havia tempo para especular. Recuou, pôs Jonathan no chão, levantou o pé direito enorme, calçado com uma bota, e chutou a porta. A madeira em torno da fechadura se lascou. Chutou de novo, com mais força. A porta se escancarou. Logo do outro lado estava um monge já velho, parecendo atônito. Tom pegou Jonathan e o colocou no interior do claustro.

      - Prenda-o aí dentro - disse para o velho monge. - Vai haver confusão.

      O monge assentiu silenciosamente e pegou a mão de Jonathan.

      Tom fechou a porta.

      Agora precisava encontrar o resto de sua família numa multidão de mais de mil pessoas.

      A quase impossibilidade da tarefa o assustou.

      Não localizou um rosto conhecido. Subiu num barril de cerveja vazio para ver melhor. Era meio-dia e a feira estava no auge. A multidão se deslocava como um rio vagaroso pelas avenidas por entre os estandes, e havia remoinhos em torno dos vendedores de comida ou bebida,  onde se formavam filas para comprar o almoço.

      Tom examinou aquela gente toda, mas não pôde ver ninguém da sua família. Ficou desesperado. Olhou por cima dos telhados das casas. Os cavaleiros estavam quase na ponte, e tinham passado a galopar. Eram homens de armas, todos eles, e carregavam archotes. Tom ficou horrorizado. Haveria um massacre.

      De repente viu Jack ao seu lado, fitando-o com uma expressão divertida.

      - Por que está aí em cima desse barril? - perguntou ele.

      - Vai haver problema! - disse Tom nervosamente. - Onde está sua mãe?

      - No estande de Aliena. Que tipo de problema?

      - Coisa séria. Onde estão Alfred e Martha?

      - Martha está com mamãe. Alfred, nas brigas de galo. O que é?

      - Veja você mesmo - Tom deu a mão para ajudar Jack, que se equilibrou precariamente na borda do barril, em frente a ele. Os cavaleiros atravessavam a ponte a galope e entravam na aldeia.

      - Cristo Jesus! - disse Jack. - Quem são eles?

      Tom examinou o líder, um homem grande num cavalo de batalha. Reconheceu o cabelo louro e o corpanzil.

      - É William Hamleigh - disse.

      Quando os cavaleiros atingiram a região construída atiraram os archotes nos telhados, ateando fogo à palha.

      - Estão queimando a cidade! - explodiu Jack.

      - Vai ser pior ainda do que eu pensava - disse Tom. - Desça.

      Os dois pularam para o chão.

      - Vou buscar mamãe e Martha - disse Jack.

      - Leve-as para o claustro - disse Tom, aflito. - Será o único lugar seguro. Se os monges reclamarem, mande-os à merda.

      - E se eles trancarem a porta?

      - Acabei de arrombar o fecho. Vá depressa! Vou buscar Alfred. Ande!

      Jack saiu correndo. Tom dirigiu-se para a rinha de galos, empurrando rudemente quem estivesse à sua frente. Alguns homens não gostaram, mas ele os ignorou, e todos se calaram ao ver seu tamanho e a férrea determinação expressa no seu rosto. Não se passou muito tempo e a fumaça das casas incendiadas chegou ao priorado. Tom sentiu o cheiro e notou uma ou duas pessoas fungando o ar, curiosas. Tinha apenas alguns momentos antes de o pânico se apoderar de todos.

      A rinha ficava perto do portão do priorado. Havia uma multidão barulhenta em torno dela. Tom abriu caminho à força, procurando Alfred. No meio da multidão havia um buraco raso com uns poucos pés de diâmetro. No centro desse buraco, dois galos se rasgavam mutuamente em tiras com o bico e as esporas. Havia penas e sangue por toda parte. Alfred estava perto da primeira fila, observando atentamente, gritando a plenos pulmões, encorajando uma ou outra das infortunadas aves.

      Tom forçou o caminho e agarrou Alfred pelo ombro.

      - Venha! - gritou.

      - Estou com seis pence no preto! - respondeu Alfred, com outro grito.

      - Temos que sair daqui! - berrou Tom. Aquela altura uma nuvem de fumaça passou por cima da rinha. - Não está sentindo o cheiro do fogo?

      Um ou dois espectadores ouviram a palavra "fogo" e lançaram um olhar de curiosidade para Tom. O cheiro veio de novo, e eles o sentiram. Alfred também sentiu.

      - O que está acontecendo?

      - A cidade está pegando fogo! - respondeu Tom.

      De repente todo mundo quis ir embora. Os homens se dispersaram em todas as direções, se empurrando e se acotovelando. Na rinha, o galo preto matou o marrom, mas ninguém se importou. Alfred partiu na direção errada. Tom o agarrou.

      - Vamos para o claustro - disse. - É o único lugar seguro.

      A fumaça começou a chegar em grandes nuvens, e o medo se espalhou pela multidão. Todo mundo ficou agitado, mas ninguém sabia o que fazer. Olhando por cima da cabeça dos outros, Tom viu que estavam procurando sair pelo portão do priorado; porém o portão era estreito e, de qualquer forma, não estariam mais seguros do lado de fora do que ali.

      Mesmo assim, mais e mais pessoas tiveram a mesma idéia, e Tom e Alfred de súbito se viram lutando contra uma onda de gente seguindo freneticamente na direção oposta.

      Depois, ainda mais súbito, a maré virou, e todos passaram a querer ir na mesma direção que eles. Tom olhou para trás a fim de descobrir a razão da mudança, e viu que o primeiro dos homens a cavalo entrara no adro.

      Nesse ponto a multidão se transformou numa turba. Os cavaleiros constituíam uma visão aterradora. Seus imensos cavalos, quase tão amedrontados quanto as pessoas, arremetiam, empinavam e avançavam, derrubando gente por todos os lados. Os cavaleiros armados e protegidos por elmos se atiravam sobre o povaréu com porretes e archotes, derrubando homens, mulheres e crianças, e ateando fogo nos estantes, nas roupas e nos cabelos das pessoas. Todo mundo gritava. Mais cavaleiros passaram pelo portão, e mais gente desapareceu sob as patas gigantescas. Tom gritou no ouvido de Alfred:

      - Vá para o claustro! Quero me certificar de que os outros conseguiram sair. Corra! - E empurrou o filho, que saiu correndo.

      Tom disparou para o estande de Aliena. Quase que no mesmo instante, tropeçou em alguém e caiu no chão. Praguejando, ficou de joelhos mas antes que pudesse pôr-se de pé viu um cavalo de batalha caindo sobre ele. As orelhas do animal estavam projetadas para trás, e suas narinas, dilatadas; Tom pôde ver o branco dos seus olhos aterrorizados. Acima da cabeça do cavalo, Tom viu o rosto gordo de William Hamleigh, retorcido numa careta de ódio e triunfo. Como um relâmpago, passou pela sua cabeça a idéia de que seria bom ter Ellen nos braços uma vez mais. Nesse instante uma pata enorme o acertou no centro exato da testa, ele sentiu uma dor horrível e assustadora, quando seu crânio pareceu abrir-se, e o mundo inteiro ficou preto.

     

      A primeira vez em que Aliena sentiu o cheiro de fumaça, pensou que viesse da refeição que estava servindo.

      Três compradores flamengos estavam sentados na mesa ao ar livre, em frente ao seu depósito. Eram homens corpulentos e de barba negra, que falavam inglês com forte sotaque germânico e usavam roupas de tecido requintadamente fino. Tudo ia correndo bem.

      Estava prestes a dar início às vendas, e decidira servir primeiro a refeição a fim de dar aos compradores tempo para ficarem ansiosos. Não obstante isso, ficaria contente quando aquela fortuna em lã passasse para as mãos de outra pessoa. Colocou a travessa de costelas de porco tostadas na frente deles e as examinou criticamente.

      A carne tinha sido assada ao ponto, com a beira de gordura crocante e dourada. Serviu o vinho. Um dos compradores fungou, procurando sentir o cheiro, e depois todos olharam ansiosos.

      Aliena sentiu-se de repente apavorada. O fogo era o pesadelo do comerciante de lã. Olhou para Ellen e Martha, que a estavam ajudando a servir a comida.

      - Estão sentindo cheiro de fumaça? - perguntou. Antes que elas pudessem responder, Jack apareceu. Aliena ainda não se habituara a vê-lo vestido de monge, com o cabelo cor de cenoura raspado na parte superior da cabeça. Havia uma expressão agitada no seu rosto doce.

      Sentiu ímpeto de toma-lo nos braços e fazer aquela ruga de preocupação desaparecer da sua testa com um beijo. Mas virou-se rapidamente, lembrando como ele se decepcionara com ela no moinho velho, seis meses antes. Ainda ficava ruborizada sempre que rememorava o incidente.

      - Há problemas - gritou ele, nervoso. - Temos que nos refugiar no claustro.

      Ela o encarou.

      - O que está acontencendo? É um incêndio?

      - É o conde William e seus homens de armas - disse ele. Aliena se sentiu rapidamente tão fria quanto um túmulo.

      William. De novo.

      - Eles tocaram fogo na cidade - disse Jack. - Tom e Alfred estão indo para o claustro. Venha comigo, por favor.

      Sem a menor cerimônia, Ellen largou a tigela de legumes que carregava em cima da mesa, em frente a um assustado comprador flamengo.

      - Certo - disse ela. Agarrou Martha pelo braço. - Vamos.

      Aliena lançou um olhar de pânico para o seu depósito. Tinha centenas de libras em lã crua ali dentro e era preciso protegê-la do fogo - mas como? Olhou para Jack.

      Ele a fitava, cheio de expectativa. Os compradores deixaram a mesa apressadamente. Aliena disse a Jack:

      - Vá. Tenho que tomar conta do meu estande.

      - Jack - disse Ellen. - Vamos!

      - Já vou - respondeu ele, e se voltou para Aliena.

      A jovem viu que Ellen hesitava. Estava claramente dividida entre salvar Martha e esperar por Jack. Mais uma vez ela chamou:

      - Jack! Jack!

      - Mãe! Leve Martha! - disse ele, virando-se.

      - Está bem! - disse ela. - Mas por favor, ande depressa!

      Ela e Martha foram embora.

      - A cidade está em chamas - disse Jack. - O claustro será o lugar mais seguro: é feito de pedra. Venha comigo, rápido!

      Aliena podia ouvir gritos vindos da direção do portão do priorado. De repente a fumaça estava por toda parte. Ela olhou em torno, tentando fazer uma idéia do que estava acontecendo. Tinha a sensação de que suas vísceras estavam cheias de nós, de tanto medo. Tudo aquilo por que trabalhara durante mais de seis anos estava empilhado ali no depósito.

      - Aliena! - gritou Jack. - Vamos para o claustro; estaremos a salvo lá!

      - Não posso! Minha lã!

      - Ao inferno com a sua lã!

      - É tudo o que tenho!

      - De nada vai adiantar se você estiver morta!

      - É fácil para você dizer isso, mas levei todos esses anos até chegará posição em que estou...

      - Aliena! Por favor!

      De repente, as pessoas logo ali perto do estande estavam gritando, mortalmente aterrorizadas. Os cavaleiros haviam entrado no adro e arremetiam contra a multidão, indiferentes a quem derrubavam, ateando fogo aos estandes. As pessoas, apavoradas, se esmagavam umas às outras, em suas desesperadas tentativas para sair da frente das patas dos cavalos e dos archotes.

      A frágil Cerca de madeira que formava a frente do estande de Aliena, pressionada pela multidão, logo cedeu e foi derrubada. Homens e mulheres espalharam-se no espaço aberto à frente do depósito e viraram a mesa com seus pratos de comida e copos de vinho.

      Jack e Aliena se viram forçados a recuar. Dois cavaleiros carregaram sobre o estande, um deles brandindo aleatoriamente um porrete e o outro, um archote flamejante. Jack colocou-se na frente de Aliena, protegendo-a. O porrete desceu sobre a cabeça dela, mas Jack ergueu o braço e recebeu o impacto no pulso. A jovem sentiu o vento produzido pelo golpe e quando levantou a cabeça viu o rosto do segundo cavaleiro.

      Era William Hamleigh.

      Aliena gritou.

      Ele olhou para ela por um momento, com o archote ardendo na mão e o brilho do triunfo cintilando nos olhos. Depois esporeou o cavalo e o obrigou a entrar no depósito.

      - Não! - gritou Aliena.

      Ela lutou para se libertar de todos aqueles empurrões, murros e acotovelamentos que a cercavam, inclusive de Jack. Finalmente conseguiu e correu para o depósito.

      William continuava montado, mas se abaixara para encostar o archote nos sacos de lã.

      - Não! - gritou ela de novo. Atirou-se sobre ele e tentou arrancá-lo de cima do cavalo. William a empurrou e Aliena caiu no chão. Ele encostou o archote nos sacos de lã novamente. A lã pegou fogo com uma forte crepitação. O cavalo recuou e gritou, aterrorizado com as chamas. Subitamente Jack apareceu e tirou Aliena do caminho. William fez sua montaria girar e saiu depressa do depósito. A jovem levantou-se.

      Pegou um saco vazio e tentou abafar as chamas com ele.

      - Aliena, você vai morrer! - gritou Jack.

      O calor ficou insuportável. Ela agarrou um saco que ainda não incendiara e tentou puxá-lo. De repente percebeu um barulho junto aos ouvidos e sentiu um calor intenso no rosto; percebeu, apavorada que seu cabelo pegara fogo.

      No instante seguinte Jack jogou-se de encontro a ela, passando os braços em torno da sua cabeça e puxando-a com força de encontro ao próprio corpo. Ambos caíram no chão. Ele ainda a segurou com força por um momento e depois reduziu a pressão.

      O cabelo de Aliena cheirava a chamuscado mas já não estava em chamas. Ela viu que o rosto de Jack estava queimado e suas sobrancelhas tinham desaparecido. Ele a agarrou por um tornozelo e arrastou-a porta afora. Continuou puxando, a despeito da reação dela, até que estavam a salvo.

      A área do estande se esvaziara. Jack largou-a. Ela tentou se levantar, mas ele a agarrou de novo e forçou-a a ficar abaixada. Aliena continuou a lutar, olhando fixa e furiosamente para o fogo que estava consumindo todos os seus anos de trabalho e preocupações, toda a sua riqueza e segurança, até que não teve mais energia para lutar com Jack. Então se deixou ficar ali sentada e gritou.

     

      Philip estava no depósito embaixo da cozinha do priorado, contando dinheiro com Cuthbert Cabeça Branca, quando ouviu o barulho. Ele e Cuthbert se entreolharam, preocupados, e depois se levantaram para ver o que estava acontecendo.

      Ao atravessarem a porta, deram com um tumulto.

      Philip ficou horrorizado. As pessoas corriam em todas as direções, se empurrando, caindo e tropeçando umas nas outras. Homens e mulheres gritavam e crianças choravam.

      O ar estava impregnado de fumaça. Todo mundo parecia querer fugir do priorado. A não ser pelo portão principal, a única saída era pelo intervalo entre as construções da cozinha e o moinho. Não havia parede ali, mas uma vala funda que conduzia água do lago do moinho para a cervejaria. Philip quis gritar, avisando que tivessem cuidado com a vala, mas ninguém estava ouvindo ninguém.

      A causa da correria era obviamente um incêndio, e de grandes proporções. O ar estava denso de fumaça. Philip encheu-se de medo. com tanta gente reunida ali, a tragédia poderia ser horrível. O que havia a fazer?

      Primeiro tinha que descobrir o que estava acontecendo exatamente. Subiu correndo a escada da porta da cozinha para ter uma visão melhor. O que viu o encheu de terror.

      Toda a cidade de Kingsbridge estava em chamas.

      Um grito de horror e desespero escapou de sua garganta.

      Como aquilo poderia estar ocorrendo?

      Foi então que viu os cavaleiros galopando por entre a multidão com seus archotes e percebeu que não fora um acidente. Sua primeira idéia foi de que estava se travando ali uma batalha entre os dois lados da guerra civil. Mas os homens de armas atacavam os cidadãos, e não uns aos outros. Aquilo não era uma batalha: era um massacre.

      Philip viu um homem grande e louro, montado num imenso cavalo de batalha, esmagando a multidão. Era William Hamleigh.

      O ódio subiu à garganta de Philip. Pensar que todas aquelas mortes e tanta destruição eram causadas deliberadamente, por orgulho e ambição, deixou-o meio enlouquecido.

      Gritou com toda a força dos pulmões:

      - Estou vendo você, William Hamleigh!

      William ouviu seu nome por cima dos gritos da multidão. Sofreou o cavalo e encarou Philip.

      - Você irá para o inferno por causa disto! - gritou Philip.

      A sede de sangue congestionara o rosto de William. Nem mesmo a ameaça daquilo que mais temia fez efeito sobre ele. Parecia um louco. Brandiu o archote no ar como uma bandeira.

      - O inferno é isto aqui, monge! - retrucou, com outro grito. Depois girou o cavalo e foi embora.

     

      De repente tudo desaparecera, tanto os cavaleiros quanto toda aquela gente. Jack soltou Aliena e levantou-se. Sua mão direita estava dormente. Lembrou-se de que recebera o golpe destinado à cabeça dela. Ficou satisfeito porque sua mão doía. Seria bom que doesse por muito tempo, para relembrá-lo.

      O depósito de lã era um verdadeiro inferno de chamas, com incêndios menores por toda parte. O chão estava juncado de corpos, uns se mexendo, outros sangrando, e outros ainda imóveis. A não ser pelo crepitar das chamas, tudo estava em silêncio. A multidão se retirara, de um modo ou de outro, deixando para trás seus mortos e feridos. Jack sentiu-se atordoado. Nunca vira um campo de batalha, mas imaginava que deveria ser algo assim.

      Aliena começou a chorar. Jack pôs uma das mãos em seu ombro, querendo consolá-la. Ela a afastou. Salvara sua vida, mas isso não importava; a única coisa que tinha importância era sua maldita lã, agora irrecuperavelmente transformada em fumaça. Fitou-a por um momento, sentindo-se triste. A maior parte do seu cabelo queimara, e sua aparência já não podia ser considerada bonita; no entanto, amava-a assim mesmo. Magoava-o vê-la sofrer tanto e não ser capaz de fazer nada por ela.

      Jack tinha certeza, de que ela não tentaria entrar no depósito agora. Estava preocupado com o resto de sua família, de modo que deixou Aliena.

      Seu rosto doía. Tocou-o com a mão, o que foi muito doloroso. Devia ter se queimado também. Olhou para os corpos no chão. Queria fazer algo pelos feridos, mas não sabia como começar. Procurou rostos familiares no meio de tanta gente estranha, na esperança de não achar nenhum. Sua mãe e Martha haviam ido para o claustro muito tempo antes da multidão.

      E Tom, teria encontrado Alfred? Virou-se na direção do claustro. Foi então que viu o padrasto.

      Seu corpo muito alto estava esticado no chão lamacento. Absolutamente imóvel. O rosto era reconhecível, e tinha mesmo uma expressão de tranquilidade, até as sobrancelhas; mas a testa estava aberta e o crânio, completamente esmagado. Jack ficou horrorizado. Não podia aceitar o que via. Não era possível que Tom estivesse morto. Mas aquele homem não podia estar vivo. Desviou o olhar, e examinou de novo.

      Era Tom, e estava morto.

      Jack ajoelhou-se ao lado do corpo. Ansiava por fazer algo, ou por dizer qualquer coisa, e pela primeira vez entendeu por que as pessoas gostavam de rezar pelos mortos.

      - Mamãe vai sentir muito a sua falta! - exclamou. Lembrou-se do discurso furioso que lhe fizera, no dia da briga com Alfred. - A maior parte daquilo não era verdade - disse, e as lágrimas começaram a correr. - Você não falhou. Você me alimentou, tomou conta de mim e fez minha mãe feliz, verdadeiramente feliz.

      Entretanto, havia algo mais importante que tudo aquilo, pensou. O que Tom lhe dera não era nada tão comum quanto alimento e abrigo. Era algo único, que nenhum outro homem tinha, que nem mesmo seu próprio pai poderia ter lhe dado; uma paixão, uma técnica, uma arte, um modo de ganhar a vida.

      - Você me deu a catedral - sussurrou para o homem morto. - Muito obrigado.

 

     1142 - 1145

      O triunfo de William foi arruinado pela profecia de Philip; em vez de se sentir satisfeito e exultante, ficou aterrorizado porque iria para o inferno devido ao que fizera.

      Respondera corajosamente a Philip, mas na excitação do combate. Quando este acabou, e ele levou seus homens para longe da cidade em chamas, quando a andadura dos cavalos e o ritmo dos corações ficaram mais lentos, quando teve tempo para rememorar a incursão e pensar em quantas pessoas havia ferido, queimado e matado, então se lembrou do rosto colérico de Philip, do seu dedo apontando diretamente para as profundezas da terra, e das palavras fatídicas: "Você irá para o inferno por causa disto!"

      No começo da noite estava completamente deprimido. Seus homens de armas queriam falar sobre a operação, revivendo os pontos altos e deleitando-se com a matança, mas logo se contaminaram com o seu estado de espírito e caíram em melancólico silêncio.

      Passaram aquela noite na propriedade de um dos mais importantes arrendatários de William.

      Na hora da ceia, os homens beberam, carrancudos, até perderem os sentidos. O dono da casa, sabendo como normalmente os homens se sentem após uma batalha, trouxe algumas prostitutas de Shíring; mas elas fizeram pouco negócio. William ficou acordado a noite inteira, apavorado com a perspectiva de morrer durante o sono e ir direto para o inferno.

      Na manhã seguinte, em vez de retornar a Earlscastle, foi ver o bispo Waleran. Ele não estava no palácio quando chegaram, mas o deão Baldwin lhe disse que era esperado naquela tarde. William aguardou na capela, olhando fixamente para a cruz no altar e tremendo, apesar do calor de verão.

      Quando afinal Waleran chegou, William teve ímpetos de beijar-lhe os pés.

      O bispo entrou na capela, vestido de negro, e perguntou com frieza:

      - O que você está fazendo aqui?

      William levantou-se, tentando esconder seu terror abjeto atrás de uma fachada de autocontrole.

      - Acabei de queimar a cidade de Kingsbridge.

      - Eu sei - interrompeu Waleran. - Não ouvi outra coisa o dia inteiro. O que deu em você? Ficou maluco?

      Aquela reação tomou William completamente de surpresa. Não discutira a operação com Waleran antes por estar certo de que ele aprovaria: o bispo odiava tudo o que dissesse respeito a Kingsbridge, em especial ao prior Philip. Esperara que ele se mostrasse satisfeito, quando não exultante.

      - Acabei de arruinar o seu maior inimigo. Agora preciso confessar meus pecados.

      - Não me surpreende - disse Waleran. - Dizem que mais de cem pessoas morreram queimadas. - Ele estremeceu. - Uma maneira horrível de morrer.

      - Estou pronto para confessar - disse William.

      Waleran sacudiu a cabeça.

      - Não sei se posso lhe dar a absolvição.

      Um grito de medo escapou dos lábios de William.

      - Por que não?

      - Você sabe que o bispo Henry de Winchester e eu passamos para o lado do rei Estêvão novamente. Não creio que o rei aprove o fato de eu absolver um partidário da rainha Matilde.

      - Maldito seja, Waleran! Foi você quem me convenceu a mudar de lado!

      - Mude de novo - retrucou o bispo, dando de ombros. William percebeu que era aquele o objetivo de Waleran.

      Queria que William retornasse para o lado de Estêvão. O horror do bispo com relação ao incêndio de Kingsbridge fora simulado. Apenas estivera estabelecendo uma base para a barganha. Tal percepção trouxe enorme alívio para Hamleigh, pois significava que Waleran não se opunha irremediavelmente a absolvê-lo. Mas queria ele mudar de lado mais uma vez? Por um momento não disse nada, tentando pensar com calma.

      - Estêvão tem obtido vitórias todo o verão - continuou Waleran. - Matilde está implorando ao marido para que venhã da Normandia a fim de ajudá-la, mas ele não virá. A maré está a nosso favor.

      Uma perspectiva horrível abriu-se diante de William: a Igreja se recusava a absolvê-lo de seus crimes; o xerife o acusava de homicídio; um vitorioso rei Estêvão apoiava o xerife e a Igreja; e William era julgado e enforcado...

      - Faça como eu, e siga o bispo Henry: ele sabe de que lado sopra o vento - instou Waleran. - Se tudo der certo, Winchester será promovida a arquidiocese, e Henry será o arcebispo de Winchester, no mesmo nível do de Canterbury. E quando Henry morrer, quem sabe? Poderei ser o arcebispo seguinte. Após isso... bem. lá existem cardeais ingleses; um dia poderá haver um papa inglês...

      William olhou para o bispo, fascinado, a despeito do medo que sentia, pela ambição revelada na fisionomia normalmente inexpressiva do bispo. Waleran como papa? Tudo era possível. Mas as consequências imediatas das aspirações do bispo eram mais importantes.

      William podia ver que era um peão em seu jogo. Waleran ganhara prestígio com o bispo Henry, pela sua capacidade de fazer William e os cavaleiros de Shiring trocarem de lado na guerra civil. Era o preço que William tinha de pagar para que a Igreja  fechasse os olhos para os seus crimes.

      - Você está querendo dizer...  - Sua voz estava rouca. Tossiu e tentou outra vez. - Você está querendo dizer que ouvirá minha confissão se eu jurar fidelidade a Estêvão e voltar para o seu lado?

      O brilho desapareceu dos olhos de Waleran e seu rosto ficou inexpressivo de novo.

      - É exatamente o que quis dizer - confirmou. William não tinha escolha, mas de qualquer modo não via razão para recusar. Passara para o lado de Matilde quando tudo indicava que ela estava vencendo, e se dispunha a trocar mais uma vez agora que Estêvão parecia estar levando vantagem. De qualquer modo, teria consentido em fazer qualquer coisa para se livrar daquele horrível terror do inferno.

      - Aceito, então - disse, sem mais hesitações. - Só quero que ouça minha confissão, depressa.

      - Muito bem - disse Waleran. - Oremos.

      À medida que cumpriam as formalidades do sacramento, William foi sentindo o fardo da culpa ficar mais leve, e gradualmente começou a se sentir satisfeito com o seu triunfo. Quando emergiu da capela seus homens puderam ver a mudança de estado de espírito que se operara, e logo se entusiasmaram. William lhes disse que mais uma vez estavam lutando do lado do rei Estêvão, de acordo com a vontade de Deus, assim expressa pelo bispo Waleran, e eles usaram a notícia como desculpa para uma celebração. Waleran pediu vinho.

      - Agora Estêvão deve me confirmar no meu condado - disse William, enquanto esperavam o jantar.

      - Deve - concordou Waleran. - Mas não quer dizer que o fará.

      - Mas voltei para o lado dele!

      - Richard de Kingsbridge nunca saiu.

      William permitiu-se um sorriso pretensioso.

      - Acho que liquidei a ameaça da parte de Richard.

      - Sim? Como?

      - Richard nunca teve terras. Só tem sido capaz de manter seus homens, como cavaleiro, usando o dinheiro da irmã.

      - Não é ortodoxo, mas até aqui tem dado certo.

      - Mas agora sua irmã não tem mais dinheiro. Toquei fogo no seu depósito de lã ontem. Ela não tem mais nada como também Richard.

      Waleran balançou a cabeça.

      - Nesse caso é apenas uma questão de tempo ele sair de cena. Então, acho que eu poderia dizer que o condado será seu.

      O jantar foi servido. Os homens de armas de William se sentaram ao lado dos criados e seus dependentes e flertaram com as lavadeiras do palácio. William ficou à cabeceira da mesa, com Waleran e seus arcediagos. Agora que estava relaxado, invejou os homens com as lavadeiras; arcediagos eram uma companhia muito monótona.

      O deão Baldwin ofereceu a William um prato de ervilhas.

      - Lorde William, como impedirá uma pessoa de fazer o que o prior Philip tentou, ou seja, ter sua própria feira de lã? - perguntou ele.

      William ficou surpreso com a pergunta.

      - Ninguém se atreveria!

      - Outro monge talvez não; mas um conde poderia.

      - Precisaria de uma licença.

      - Poderia conseguir, se tivesse lutado por Estêvão.

      - Não neste condado.

      - Baldwin está certo, William - disse o bispo Waleran.

      - Em toda a volta dos limites do seu condado, há cidades que poderiam abrigar uma feira de lã: Wilton, Devizes, Wells, Marlborough, Wallingford...

      - Queimei Kingsbridge, posso queimar qualquer lugar - disse William, irritado. Tomou um gole de vinho. Enfurecia-o ter sua vitória diminuída.

      Waleran pegou um pedaço de pão fresco e o partiu, sem comer.

      - Kingsbridge é um alvo fácil - ponderou. - Não tem muralha, castelo, nem mesmo uma igreja grande para as pessoas se refugiarem no seu interior. E é governada por um monge que não tem cavaleiros ou homens de armas. Kingsbridge é indefesa. A maioria das cidades não é.

      - E quando a guerra civil terminar - acrescentou o deão Baldwin, - seja quem for que vença, não será possível queimar uma cidade como Kingsbridge impunemente. Seria violar a paz real. Nenhum rei deixaria de tomar providências em épocas normais.

      William entendeu o argumento deles e ficou furioso.

      - Então tudo o que foi feito talvez tenha sido inútil - disse. Pôs de lado a faca. A tensão revirava seu estômago e ele não pôde comer mais.

      - É claro que se Aliena estiver arruinada - disse Waleran, abriu-se uma espécie de lacuna.

      William não entendeu.

      - O que está querendo dizer?

      - A maior parte da lã neste condado foi vendida a ela este ano. O que acontecerá no ano que vem?

      - Não sei.

      Waleran continuou, no mesmo jeito pensativo.

      - Exceto pelo prior Philip, todos os produtores de lã em muitas e muitas milhas ocupam terras do condado ou do bispado. Você é o conde, em tudo menos no título, e eu, o bispo. Se forçarmos os nossos rendeiros a nos vender sua lã, controlaremos dois terços do comércio do condado. E venderemos na feira de Shiring. Aí não haverá negócios suficientes para justificar outra feira, mesmo que alguém consiga uma licença.

      Uma idéia brilhante, William viu imediatamente.

      - E ganharemos tanto dinheiro quanto Aliena - ressaltou.

      - Sem dúvida. - Waleran serviu-se de um delicado pedacinho de carne e mastigou, pensativamente. - Assim, você incendiou Kingsbridge, arruinou seu pior inimigo e estabeleceu uma nova fonte de renda para si. Nada mal para um dia de trabalho.

      William tomou um gole avantajado de vinho e sentiu um calor no estômago. Olhou para a outra extremidade da mesa e se deteve numa garota gordinha e de cabelos escuros que sorria coquetemente para dois de seus homens. Talvez trepasse com ela à noite. Sabia como seria. Quando a encurralasse, a jogasse no chão e levantasse sua saia, se lembraria do rosto de Aliena e de sua expressão de terror e desespero ao ver a lã consumida pelas chamas; então ele seria capaz de possuí-la. Sorriu com a perspectiva, e pegou outra fatia do pernil de veado.

     

      O prior Philip foi profundamente abalado pelo incêndio de Kingsbridge. A surpresa da ação de William, a brutalidade do ataque, as cenas horríveis da multidão em pânico, a matança pavorosa e sua completa impotência, tudo combinado o deixou atônito.

      O pior mesmo fora a morte de Tom Construtor. Um homem no auge do seu talento, mestre de todos os aspectos da sua profissão, Tom deveria continuar como encarregado da construção da catedral até o seu término. Era também o mais íntimo amigo de Philip fora do claustro. Conversavam pelo menos uma vez por dia, e se esforçavam juntos na busca de soluções para a interminável variedade de problemas com que se defrontavam no seu imenso projeto. Tom tinha uma rara combinação de sabedoria e humildade que tornava um prazer trabalhar com ele. Parecia impossível que houvesse morrido.

      Philip achava que não compreendia mais nada, que não tinha nenhum poder de verdade e que não era competente para tomar conta de um curral, muito menos de uma cidade do tamanho de Kingsbridge. Sempre acreditara que, se fizesse o melhor que podia e confiasse em Deus, tudo acabaria dando certo no fim.

      O incêndio de Kingsbridge parecia ter provado que estava enganado. Perdera toda a motivação, ficando sentado em sua casa no priorado o dia inteiro, observando a vela queimando no pequeno altar, às voltas com pensamentos desconexos e desolados, sem nada fazer.

      Foi o jovem Jack que tratara do que tinha de ser feito. Providenciara para que os mortos fossem levados para a cripta, pusera os feridos no dormitório dos monges e organizara um esquema de alimentação de emergência para os vivos na campina do outro lado do rio. O tempo estava quente, e todos dormiam ao ar livre. No dia seguinte ao do massacre, organizara os aturdidos moradores em equipes de trabalho e os fizera limpar as cinzas e escombros do adro do priorado, enquanto Cuthbert Cabeça Branca e Milius Tesoureiro encomendavam comida nas fazendas próximas. No segundo dia enterraram os mortos em cento e noventa e três sepulturas novas no lado norte do adro.

      Philip simplesmente expediu as ordens propostas por Jack. Este argumentara que a maioria dos cidadãos sobreviventes ao incêndio perdera muito pouca coisa de valor material - só uma choça e uns poucos móveis vagabundos, na maioria dos casos. As safras ainda estavam nos campos, e as economias onde haviam sido enterradas, em geral sob as lareiras da casa, bem fundo, a salvo das chamas que varreram a cidade. Os mercadores cujos estoques haviam pegado fogo foram os maiores sofredores: alguns estavam arruinados, como Aliena; outros tinham parte de sua fortuna em prata, bem enterrada, e seriam capazes de começar de novo. Jack propôs reconstruir a cidade de imediato.

      Por sugestão dele, Philip concedeu uma permissão extraordinária para cortar árvores gratuitamente nas florestas do priorado, com o objetivo de construir casas, mas apenas por uma semana. Em consequência, Kingsbridge ficou deserta por sete dias, enquanto todas as famílias selecionavam e derrubavam as árvores que empregariam em suas novas casas. Durante essa semana, Jack pediu a Philip que desenhasse uma planta da nova cidade.

      A idéia incendiou a imaginação do prior e ele saiu de sua depressão.

      Trabalhou no plano, sem parar, por quatro dias. Haveria casas grandes em toda a volta dos muros do priorado, para os artesãos e comerciantes ricos. Lembrava-se do padrão das ruas de Winchester, e planejou uma nova Kingsbridge na mesma base.

      Ruas retas,largas o bastante para permitir a passagem de duas carroças, desceriam até o rio, com as ruas transversais mais estreitas. O love seria padronizado na largura de vinte e quatro pés, o que era uma ampla frente para uma casa na cidade.

      Cada love teria  cento e vinte pés de comprimento, proporcionando espaço para um quintal decente com uma latrina, uma horta e um estábulo ou pocilga.

      A ponte se incendiara, e outra seria construída em posição mais conveniente, no fim da nova rua principal. A estrada que passava pela cidade agora subiria diretamente a colina, a partir da ponte, e passaria pela catedral, saindo do outro lado, como em Lincoln. Outra rua larga ligaria o portão do priorado a um novo cais na margem do rio, seguiria na mesma direção da correnteza a partir da ponte e contornaria a curva do rio. Desse modo, os suprimentos em grosso poderiam chegar ao priorado, sem usar a principal rua do comércio.

      Haveria um distrito inteiramente novo de casas pequenas em torno do cais a ser construído: os pobres ficariam a jusante do priorado e seus hábitos sujos não poluiriam o suprimento de água do mosteiro.

      Planejar a reconstrução tirou Philip do seu transe, mas toda vez que levantava os olhos dos desenhos era invadido por uma onda de raiva e de dor pelas pessoas que tinham morrido. Perguntava-se se William Hamleigh seria de fato o demônio encarnado: causava mais sofrimento do que seria humanamente possível. Philip via sempre a mesma mistura de esperança e aflição no rosto dos moradores da cidade, ao voltarem da floresta com seus carregamentos de madeira. Jack e os outros monges balizaram o plano da nova cidade no chão, com estacas e cordas, e ao escolher o love, de vez em quando alguém dizia melancolicamente: "De que adianta? Pode ser incendiada de novo no ano que vem!" Se houvesse qualquer esperança de justiça, alguma expectativa de que os malfeitores seriam punidos, talvez não se sentissem tão inconsoláveis; mas embora Philip tivesse escrito a Estêvão, a Matilde, ao bispo Henry, ao arcebispo de Canterbury e ao papa, sabia que em tempo de guerra havia pouca chance de que um homem tão poderoso e importante quanto William fosse levado a julgamento.

      Os lotes maiores do plano de Philip foram muito procurados, a despeito dos aluguéis mais caros, de modo que ele alterou o plano a fim de permitir um número maior.

      Quase ninguém quis construir no bairro mais pobre, mas Philip decidiu deixar a planta como estava, para uso futuro. Dez dias após o incêndio, novas casas de madeira estavam subindo na maior parte dos lotes, e em mais uma semana a maioria delas estava terminada. Uma vez que as casas foram construídas, o trabalho recomeçou na catedral. Os operários foram pagos e quiseram gastar seu dinheiro; as lojas reabriram, e os pequenos agricultores trouxeram seus ovos e cebolas para a cidade; as copeiras e lavadeiras recomeçaram a trabalhar para os comerciantes e artesãos; assim, dia a dia, a vida material em Kingsbridge voltou ao normal.

      Mas havia tantos mortos que parecia uma cidade de fantasmas. Cada família perdera pelo menos um membro: uma criança, a mãe, o marido, uma irmã. Não se usavam distintivos de luto, mas as rugas nos rostos exibiam a mágoa tão perfeitamente quanto as árvores nuas denunciavam o inverno. Um dos mais atingidos foi o pequeno Jonathan, com seis anos. Ele se arrastava pelo adro do mosteiro como uma alma perdida, e Philip acabou por perceber que sentia a falta de Tom, que, ao que parecia, passara mais tempo com o menino do que qualquer pessoa tivesse notado. Quando o prior se deu conta disso, fez questão de reservar uma hora por dia para Jonathan, durante a qual lhe narrava histórias, brincava de contar e ouvia sua volúvel tagarelice.

      Philip escreveu aos abades de todos os principais mosteiros beneditinos da Inglaterra e França, perguntando se podiam recomendar um mestre construtor para substituir Tom. Um prior na posição de Philip normalmente consultaria seu bispo a esse respeito, pois os bispos viajavam muito e tinham possibilidade de tomar conhecimento de bons construtores, mas o bispo Waleran não o ajudaria. O fato de os dois estarem em  constante desavença tornava o cargo de Philip ainda mais solitário do que deveria ser.

      Enquanto o prior aguardava as respostas dos abades, os artífices instintivamente se voltaram para Alfred, em busca de liderança. Ele era filho de Tom e mestre pedreiro, e já há algum tempo vinha conduzindo sua equipe semi-autônoma no canteiro da obra. Não tinha o cérebro do Tom, infelizmente, mas era instruído e tinha autoridade, de modo que aos poucos foi preenchendo o vazio deixado pela morte do pai.

      Parecia haver muito mais problemas e dúvidas a respeito da obra que no tempo de Tom, e Alfred dava a impressão de sempre aparecer com uma pergunta quando não se podia encontrar Jack em parte alguma. Sem dúvida, aquilo era natural: todos em Kingsbridge sabiam que os dois se odiavam. O resultado final, contudo, foi que Philip se viu mais uma vez atormentado por intermináveis questões relativas a detalhes.

      Mas à medida que as semanas passavam, Alfred foi ganhando confiança, até que um dia procurou Philip e perguntou:

      - Não preferia que a catedral tivesse um teto de pedra abobadado?

      O projeto de Tom previa um teto de madeira no centro da igreja, e tetos de pedra abobadados nas naves laterais mais estreitas.

      - Sim, preferia - respondeu Philip. - Mas decidimos por um teto de madeira para economizar dinheiro.

      Alfred assentiu.

      - O problema é que um teto de madeira pode pegar fogo. Uma abóbada de pedra, não.

      Philip examinou-o por um momento, perguntando-se se teria subestimado Alfred. Não imaginava que ele apresentasse uma variação do projeto do pai; aquilo era mais o tipo de coisa que se podia esperar que Jack fizesse. Mas a idéia de uma igreja à prova de fogo era tentadora, especialmente depois que a cidade fora incendiada.

      - A única construção que ficou de pé na cidade após o incêndio foi a igreja nova da paróquia - acrescentou Alfred, seguindo a mesma linha de raciocínio.

      E a igreja nova da paróquia - construída por Alfred - tinha um teto abobadado de pedra, pensou Philip. Mas lhe ocorreu uma dificuldade.

      - As paredes, do jeito que estão, aguentariam o peso extra de um teto de pedra?

      - Teríamos que reforçar os arcobotantes. Ficariam um pouco mais salientes do lado de fora, mais nada.

      Ele já pensara naquilo, percebeu Philip.

      - E o custo?

      - Vai custar mais caro a longo prazo, é claro, e a igreja precisará de mais três ou quatro anos para ficar pronta, mas não fará diferença no seu desembolso anual.

      Philip gostava cada vez mais da idéia.

      - Mas isso significará esperar mais um ano para usar o coro nos serviços?

      - Não. Madeira ou pedra, não podemos começar a trabalhar no teto senão na próxima primavera. O clerestório precisa endurecer antes que se ponha qualquer peso sobre ele. O teto de madeira é mais rápido de construir, por alguns meses; mas, de qualquer modo, o coro estará coberto no final do ano que vem.

      Philip ficou pensativo. Era uma questão de pesar a vantagem de um teto à prova de fogo contra a desvantagem de outros quatro anos de obra - e de gastos. O custo extra parecia estar bastante longe, no futuro. E o lucro em segurança era imediato.

      - Acho que discutirei o assunto com os irmãos no cabido. - disse. - Mas me parece uma boa idéia.

      Alfred agradeceu-lhe e saiu, e depois que foi embora Philip continuou sentado, olhando para a porta, perguntando-se se afinal precisava realmente procurar um novo mestre construtor.

      Kingsbridge fez uma brava exibição no dia em que se comemorava a colheita. De manhã cada casa da cidade preparou um pão - a safra estava começando, e a farinha de trigo era barata e abundante. Os que não tinham forno em casa assaram o seu na casa de um vizinho, ou nos grandes fornos pertencentes ao priorado ou aos dois padeiros da cidade, Peggy Baxter e Jack-atte-Noven. Por volta do meio-dia o ar recendia a pão fresco, deixando todo mundo com fome. Os pães foram exibidos em mesas arrumadas no gramado do outro lado do rio, e todos caminhavam por entre elas, admirando-os. Não havia dois iguais. Muitos continham frutas ou especiarias: havia pães com ameixas, passas, gengibre, açúcar, cebola, alho e muitos mais. Outros tinham sido coloridos de verde com salsa, de amarelo com gema de ovo, de vermelho com sândalo ou de púrpura com tomassol.

      Havia vários de formas estranhas: viam-se triângulos, cones, bolas, estrelas, ovais, pirâmides, flautas, rolinhos e até mesmo oitos. Alguns eram mais ambiciosos: pães em forma de coelhos, ursos, macacos e dragões. Havia casas e castelos de pão. O mais magnífico, contudo, na opinião de todos, foi o de Ellen e Martha, que era uma representação da catedral, baseada no projeto do seu falecido marido, Tom.

      A dor de Ellen tinha sido terrível de ver. Chorara como uma alma atormentada, noite após noite, e ninguém fora capaz de consolá-la. Mesmo agora, dois meses depois, ainda estava pálida e com os olhos fundos; porém, ela e Martha pareciam capazes de se ajudar, e fazer o pão com a forma da catedral lhes proporcionara um pouco de consolo.

      Aliena passou longo tempo contemplando o trabalho de Ellen. Gostaria de ter uma atividade que lhe trouxesse conforto. Não sentia entusiasmo por nada. Quando começaram as provas, foi para a mesa apaticamente, sem comer. Nem mesmo havia tido vontade de construir outra casa, até que o prior Philip a instigou a reagir e Alfred lhe trouxe a madeira e designou alguns homens para ajudá-la. Ainda estava comendo no mosteiro todos os dias, pelo menos quando se lembrava de comer. Não tinha energia. Quando lhe ocorria a idéia de fazer qualquer coisa para si mesma - um banco de cozinha com sobras da madeira, ou o acabamento às paredes da casa, tapando as fendas com lama do rio, ou ainda uma armadilha para pegar pássaros, de modo que pudesse se alimentar, ela se lembrava de como trabalhara duro para chegar a uma boa posição como mercadora de lã, e de como rapidamente tudo se arruinara, e perdia o entusiasmo. Assim ia vivendo dia a dia, sem planos, acordando tarde, indo ao mosteiro almoçar se tivesse fome, contemplando quase que o tempo todo o fluir das águas do rio e indo dormir na palha da casa nova quando escurecia.

      A despeito da sua prostração, sabia que aquele festival que celebrava a colheita não passava de uma farsa. A cidade fora reconstruída, e as pessoas se dedicavam aos seus trabalhos como antes, mas era comprida a sombra projetada pelo massacre, e ela podia perceber, sob a aparência de bem-estar, uma profunda sensação de medo. A maioria das pessoas estava melhor do que Aliena, agindo como se tudo corresse bem, mas na verdade todos se sentiam do mesmo modo que ela, achando que aquilo não podia durar e que tudo o que construíssem seria destruído de novo.

      Enquanto estava ali olhando apaticamente para as pilhas de pão, Richard chegou. Atravessou a ponte, vindo da cidade deserta, puxando o cavalo. Tinha estado fora, combatendo por Estêvão, desde antes do massacre, e ficou atônito com o que encontrou.

      - Que diabo aconteceu aqui? - perguntou. - Não consigo encontrar nossa casa; a cidade toda mudou!

      - William Hamleigh apareceu no dia da feira de lã, com uma tropa de homens de armas, e incendiou a cidade - disse Aliena.

      Richard empalideceu com o choque e a cicatriz na sua orelha direita ficou lívida.

      - William! - exclamou. - Aquele demônio!

      - Temos uma casa nova, contudo - disse Aliena inexpressivamente. - Os homens de Alfred construíram para mim. Mas é muito menor, e fica perto do novo cais.

      - O que aconteceu com você? - disse ele, examinando-a. - Está praticamente careca e sem sobrancelhas.

      - Meu cabelo pegou fogo.

      - Ele não...

      Aliena sacudiu a cabeça.

      - Desta vez não.

      Uma das garotas trouxe pão de sal para Richard provar. Ele pegou um pedaço mas não comeu. Parecia atônito.

      - De qualquer forma, estou satisfeita por vê-lo bem - disse Aliena.

      Ele assentiu.

      - Estêvão está marchando sobre Oxford, onde Matilde se encontra entocada. A guerra poderá terminar em breve. Mas preciso de uma espada nova; vim buscar dinheiro. - Ele comeu o pão. A cor voltou ao seu rosto. - Por Deus, que gosto bom! Você pode cozinhar um pouco de carne para mim mais tarde.

      De repente, teve medo dele. Sabia que ia ficar furioso e não tinha forças para enfrentá-lo.

      - Não tenho carne.

      - Então compre no açougueiro.

      - Não fique zangado, Richard. - Ela começou a tremer.

      - Não estou zangado - disse ele, irritado. - O que há com você?

      - Toda a minha lã foi queimada no incêndio - respondeu Aliena, com os olhos fixos no irmão, esperando que explodisse.

      Ele franziu a testa, olhou para ela, engoliu e jogou fora a casca do pão.

      - Toda?

      - Toda.

      - Mas você ainda deve ter algum dinheiro.

      - Nenhum.

      - Por que não? Sempre teve um cofre cheio de dinheiro enterrado no chão...

      - Não em maio. Eu tinha gasto tudo em lã... até o último penny. E pedi quarenta libras ao pobre Malachi, que não posso pagar. É claro que não posso lhe comprar uma nova espada. Não posso nem mesmo comprar um pedaço de carne para a sua ceia. Estamos completamente sem dinheiro.

      - Então como vou poder continuar? - gritou ele, furioso. Seu cavalo levantou as orelhas e se mexeu, inquieto.

      - Não sei! - disse Aliena, lacrimosa. - Não grite, está assustando o cavalo. - Ela começou a chorar.

      - William Hamleigh fez isto - disse Richard, por entre os dentes. - Um dia desses vou esquartejá-lo como um porco gordo, juro por todos os santos.

      Alfred apareceu nessa hora, com a barba espessa cheia de migalhas e uma fatia de pão de ameixa na mão.

      - Experimente este - sugeriu a Richard.

      - Não estou com fome - disse o rapaz, rudemente.

      - O que há? - perguntou Alfred, olhando para Aliena. Richard respondeu a pergunta.

      - Ela acaba de me dizer que não temos um penny.

      Alfred assentiu.

      - Todos perderam alguma coisa, mas Aliena perdeu tudo.

      - Você entende o que isso significa para mim - disse Richard, falando com Alfred mas olhando acusadoramente para Aliena. - Estou liquidado. Se não posso substituir armas, pagar meus homens e comprar cavalos, então não posso combater pelo rei Estêvão. Minha carreira como cavaleiro está terminada...  e jamais serei o conde de Shiring.

      - Aliena podia se casar com um homem rico - disse Alfred.

      Richard riu sarcasticamente.

      - Ela rejeitou todos!

      - Um deles pode pedi-la em casamento de novo.

      - Sim. - O rosto de Richard se contorceu num sorriso cruel. - Poderíamos mandar cartas a todos os pretendentes rejeitados, dizendo que ela perdeu todo o dinheiro e que está disposta a reconsiderar...

      - Chega - disse Alfred, segurando o braço de Richard, que se calou. Virou-se depois para Aliena. - Lembra-se do que eu lhe disse, um ano atrás, no primeiro jantar da associação da paróquia?

      O coração dela angustiou-se. Não podia acreditar que Alfred fosse começar com aquilo outra vez. Não tinha forças para enfrentar sua insistência.

      - Eu me lembro - disse ela. - E espero que você se lembre da minha resposta.

      - Eu ainda a amo.

      Richard ficou espantado.

      - Ainda quero me casar com você, Aliena - continuou Alfred. - Quer ser minha mulher?

      - Não! - exclamou ela. Queria falar mais, acrescentar algo que tornasse sua resposta definitiva e irreversível, mas estava muito cansada. Olhou de Alfred para Richard e deste novamente para Alfred, e súbito não aguentou mais. Afastou-se dos dois, saiu caminhando depressa e atravessou a ponte para a cidade.

      Ficou zangada com Alfred por ter repetido sua proposta na frente de Richard. Preferia que seu irmão não tomasse conhecimento dela. Tinham se passado três meses desde o incêndio por que Alfred nada falara até agora? Era como se tivesse aguardado a chegada de Richard para executar sua jogada.

      Ela foi caminhando pelas ruas novas, desertas. Todos estavam na festa, provando pão. A casa de Aliena ficava no bairro pobre, perto do cais. O aluguel era barato, mas mesmo assim não tinha idéia de como poderia pagar.

      Richard a alcançou, desmontou e foi caminhando ao seu lado.

      - Toda a cidade cheira a madeira nova - disse ele, em tom de conversa. - E tudo é tão limpo!

      Aliena já se acostumara com a nova aparência da cidade, mas ele a estava vendo pela primeira vez. Era artificialmente limpa. O incêndio tinha acabado com a madeira podre e úmida das construções mais velhas, com os telhados de palha grossos da fuligem de anos e anos de fumaça de cozinha, com os imundos estábulos antigos e com as fétidas esterqueiras. Havia um cheiro de novo por toda parte: madeira nova, palha nova nos telhados e no chão, e até mesmo caiação nova nas paredes das residências mais ricas. O fogo parecia ter enriquecido o solo, e flores silvestres cresciam em cantos estranhos.

      Alguém observara que um número muito pequeno de pessoas caíra doente desde o incêndio, e pensava-se que isso confirmava a teoria, defendida por muitos filósofos, de que as doenças eram disseminadas por vapores malignos.

      Sua mente estava longe. Richard dissera qualquer coisa.

      - O quê? - perguntou ela.

      - Eu disse que não sabia que Alfred a pedira em casamento no ano passado.

      - Você tinha coisas mais importantes em que pensar. Foi no tempo em que prenderam Robert de Gloucester.

      - Alfred foi bom, construindo uma casa para você.

      - Sim, foi. E aqui está ela. - Aliena olhou para Richard enquanto ele olhava a casa. Estava desconcertado. Teve pena do irmão: nascera no castelo de um conde, e até mesmo a casa grande que tinham antes do incêndio significara um rebaixamento para ele.

      Agora tinha que se acostumar com o tipo de casa em que moravam operários e viúvas.

      Aliena segurou as rédeas do seu cavalo.

      - Venha. Há espaço para o cavalo nos fundos. - Ela conduziu o enorme animal por dentro da casa de um cômodo e saiu pela porta dos fundos. Havia cercas rústicas e baixas separando os quintais. Amarrou o cavalo numa viga da cerca e começou a tirar a pesada sela de madeira. Vindas não se sabe de onde, grama e ervas nasciam na terra calcinada. Quase todos tinham escavado uma privada, plantado verduras e construído uma pocilga ou um galinheiro no quintal, mas o de Aliena permanecia intocado.

      Richard ficou dentro da casa, mas não havia muito para ver e, após um momento, seguiu Aliena no quintal.

      - A casa está um pouco vazia, sem móveis, pratos, tigelas...

      - Não tenho dinheiro - disse Aliena, apática.

      - Não plantou nada também - disse ele, olhando à sua volta desgostosamente.

      - Não tenho energia - disse ela, irritada. Entregou-lhe a sela enorme e entrou.

      Ela se sentou no chão, com as costas para a parede. Estava frio ali dentro. Dava para ouvir Richard tratando do cavalo no quintal. Após ter ficado sentada imóvel por alguns momentos viu um rato pôr o focinho para fora da palha. Milhares de ratos e camundongos deviam ter morrido no incêndio, mas agora começavam a ser vistos de novo. Procurou alguma coisa com que pudesse matá-lo, mas não havia nada à mão, e de qualquer modo o bicho sumiu outra vez.

      O que vou fazer?, pensou ela. Não posso ficar assim o resto da vida. Mas a simples idéia de dar início a um novo negócio a deixava exausta. Salvara a si própria e a seu irmão da penúria uma vez, mas o esforço gastara todas as suas reservas, e era incapaz de repetir a dose. Teria que descobrir algum tipo de vida passiva, controlada por alguém, para que pudesse viver sem tomar decisões ou iniciativas.

      Pensou na mulher chamada Kate, de Winchester, que beijara seus lábios e lhe apertara os seios, dizendo que nunca mais sentiria falta de dinheiro ou de qualquer outra coisa, e que se trabalhasse para ela as duas ficariam ricas. Não, pensou, aquilo não; nunca mais.

      Richard entrou carregando seus alforjes.

      - Se você não pode cuidar de si própria, é melhor encontrar alguém que possa.

      - Sempre tive você.

      - Não posso tomar conta de você! - protestou ele.

      - Por que não? - Uma minúscula centelha de raiva se acendeu dentro dela. - Cuidei de você por seis longos anos!

      - Estive combatendo numa guerra, e só o que fez foi vender lã.

      E esfaquear um fora-da-lei, pensou ela; e atirar um padre desonesto no chão; e alimentar, vestir e proteger você, que não era capaz de fazer nada senão roer os nós dos dedos e tremer de medo. Mas a centelha se apagou e a raiva esmoreceu; ela limitou-se a dizer que estava brincando.

      Richard resmungou, sem saber ao certo se deveria se sentir ofendido com a observação da irmã, até que sacudiu a cabeça, irritado.

      - De qualquer modo - disse ele, - você não devia ser tão rápida em rejeitar Alfred.

      - Oh, pelo amor de Deus, cale-se!

      - O que é que há de errado com ele?

      - Não há nada de errado com ele. Será que você não entende? Há algo de errado comigo.

      Ele deixou a sela no chão e apontou-lhe um dedo.

      - É isso mesmo, e eu sei o que é. Você é completamente egoísta. Só pensa em si própria.

      Aquilo era tão monstruosamente injusto que ela foi incapaz de sentir raiva. As lágrimas transbordaram dos seus olhos.

      - Como pode dizer isso? - protestou, angustiada.

      - Porque tudo se ajeitaria com você desposando Alfred, em vez de recusá-lo.

      - Meu casamento com Alfred não ajudaria você.

      - Claro que ajudaria.

      - Como?

      - Alfred disse que poderia me financiar, se eu fosse seu cunhado. Eu teria que cortar um pouco as despesas, ele não pode pagar todos os meus homens de armas, mas me prometeu o suficiente para um cavalo de batalha, novas armas e meu próprio escudeiro.

      - Quando? - perguntou Aliena, atônita. - Quando foi que ele disse isso?

      - Agora mesmo. Lá no priorado.

      Aliena sentiu-se humilhada, e Richard teve a consideração de parecer um pouco envergonhado. Os dois homens tinham negociado Aliena como negociantes de cavalos. Ela se levantou, e sem mais uma palavra retirou-se.

      Voltou ao priorado e entrou no adro pelo lado sul, pulando a vala junto do velho moinho d'água. O moinho estava em silêncio, já que era feriado. Não teria andado naquela direção se estivesse funcionando, pois o estrondo dos martelos pisoando o tecido sempre lhe dava dor de cabeça.

      O adro estava deserto, conforme antecipara. No canteiro da obra havia silêncio. Aquela era a hora em que os monges estudavam ou descansavam, e o resto das pessoas estava na festa. Aliena vagou pelo cemitério no lado norte da obra. As sepulturas cuidadosamente tratadas, com as cruzes de madeira bem-feitas e as flores frescas, diziam a verdade: a cidade ainda não se recuperara do massacre. Parou ao lado do túmulo de Tom, adornado com um anjo de mármore simples, esculpido por Jack. Sete anos atrás, pensou, meu pai arranjou um casamento perfeitamente razoável para mim. William Hamleigh não era velho, não era feio e não era pobre. Teria sido aceito com um suspiro de alívio por qualquer outra garota em minha posição.

      Mas o recusei, e veja só os problemas que se seguiram: nosso castelo atacado, meu pai aprisionado, meu irmão e eu completamente sem dinheiro - até mesmo o incêndio de Kingsbridge e a morte de Tom são consequências da minha obstinação.

      De algum modo a morte de Tom parecia pior que todas as outras tristezas, talvez porque ele tivesse sido amado por tanta gente, talvez por ter sido o segundo pai que Jack perdera.

      E agora estou rejeitando outra proposta perfeitamente razoável, pensou ela. O que me dá o direito de ser tão exigente? A dificuldade que tenho de me satisfazer já  causou muitos problemas.

      Eu deveria aceitar Alfred, e ser grata por não ter que trabalhar na casa de mulheres da senhora Kate.

      Afastou-se da sepultura de Tom e caminhou na direção da obra. Parou no que iria ser a interseção e olhou para o coro. Estava pronto, exceto pelo telhado, e os operários se preparavam para a fase seguinte, os transeptos; a planta baixa já tinha sido balizada no chão, com estacas e cordéis, em ambos os lados, e os homens haviam começado a escavar os alicerces. As altas paredes à sua frente projetavam sombras compridas no sol de fim de tarde. A temperatura naquele dia era amena, mas na catedral fazia frio. Aliena olhou por longo tempo as fileiras de arcos redondos, grandes no nível do solo, pequenos em cima e médios na parte central. Havia algo profundamente satisfatório naquele ritmo regular de arco, pilar, arco, pilar.

      Se Alfred estava mesmo disposto a financiar Richard, Aliena ainda tinha uma chance de cumprir o juramento que fizera ao pai, de cuidar de Richard até ele reconquistar o condado. No fundo do coração sabia que teria que desposar Alfred, embora fosse uma coisa que não tivesse coragem de enfrentar.

      Caminhou ao longo da nave lateral sul, arrastando a mão na parede, sentindo a textura áspera das pedras, passando as unhas nos sulcos rasos feitos pelos dentes da talhadeira do pedreiro. Ali nas naves laterais, sob as janelas, a parede era decorada com arcaturas, uma séria de arcos falsos, sem nenhum outro objetivo senão o de aumentar o senso de harmonia que Aliena sentia ao olhar para a obra. Na catedral de Tom tudo parecia ter um objetivo. Talvez sua vida também fosse assim, com tudo predeterminado num grande projeto, e ela agisse como um construtor estúpido que quisesse uma queda-d'água no coro.

      No canto sudeste da igreja, uma porta baixa levava a uma estreita escada em espiral. Num impulso, Aliena passou pela porta e subiu a escada. Ao perder a entrada de vista e ainda assim não haver chegado ao topo, teve uma sensação esquisita, com a impressão de que aquela escadaria não ia terminar nunca. Então viu a luz do sol; era uma janelinha estreita na parede da torre, posta ali para iluminar a escada.

      Após algum tempo chegou à larga galeria sobre a nave. Não tinha janelas que dessem para o exterior, mas no interior dava para a igreja sem telhado. Sentou-se na soleira de um dos arcos interiores, encostando-se ao pilar. A pedra fria acariciou-lhe o rosto. Perguntou-se se teria sido Jack quem cortara aquela pedra. Ocorreu-lhe que se caísse dali poderia morrer. Mas não era bastante alto na realidade: poderia apenas quebrar as pernas e ficar no chão, em agonia, até que os monges viessem e a achassem.

      Decidiu subir até o clerestório. Voltou à escada do torreão e prosseguiu a escalada. O estágio seguinte era mais curto, mais ainda assim achou assustador, deixando-a com o coração batendo ruidosamente na hora em que alcançou o topo. Entrou na passagem do clerestório, um túnel estreito dentro da parede. Esgueirou-se ao longo da passagem até que deu no peitoril interno de uma das janelas. Segurou-se no pilar que a dividia. Quando olhou para baixo, de uma altura de mais de setenta e cinco pés, começou a tremer.

      Aliena ouviu passos na escada do torreão. Começou a respirar com dificuldade, como se tivesse corrido. Não havia ninguém mais à vista quando subira. Será que alguém a seguira? Os passos vinham do corredor estreito que acabara de percorrer. Largou o pilar e ficou na beirada, trêmula. Um vulto apareceu na soleira. Era Jack. O coração de Aliena batia tão alto que ela era capaz de ouvi-lo.

      - O que está fazendo? - perguntou ele cautelosamente.

      - Eu...  eu estava vendo como sua catedral está indo.

      Jack apontou para o capitel acima da cabeça dela.

      - Fui eu que fiz.

      Aliena ergueu os olhos. Fora esculpida na pedra a figura de um homem que parecia estar sustentando o peso do arco nas costas. O corpo dele era retorcido, como se agonizasse de tanta dor. Aliena o contemplou por algum tempo. Nunca vira nada parecido.

 

      Sem pensar, disse:

      - É assim que me sinto.

      Quando olhou de novo para Jack, ele estava do seu lado, segurando-lhe o braço, delicada mas firmemente.

      - Eu sei - disse ele.

      Aliena olhou para baixo. A idéia de cair deixou-a doente de medo. Jack puxou-lhe o braço. Ela deixou-se ser conduzida para a passagem.

      Desceram a escada sem paradas, até o chão. Aliena sentia-se fraca. Jack virou-se e lhe disse, em Tom de conversação:

      - Eu estava lendo no claustro, olhei para a igreja e vi você no clerestório.

      Aliena fitou seu rosto jovem, tão cheio de preocupação e ternura, e se lembrou do motivo pelo qual fugira de todo mundo e buscara a solidão dali. Teve vontade de beijá-lo, e viu a mesma vontade em seus olhos. Seu corpo inteiro lhe dizia para atirar-se nos seus braços, mas ela sabia o que tinha a fazer. Queria dizer: Eu o amo como uma trovoada, como um leão, como uma fúria desorientada, mas, em vez disso, suas palavras foram:

      - Acho que vou me casar com Alfred.

      Ele a encarou. Parecia atônito. Então seu rosto ficou triste, com uma tristeza sábia e antiga, que excedia em muito a sua idade.

      Aliena pensou que fosse chorar, mas não. No lugar de lágrimas, havia raiva nos seus olhos. Jack abriu a boca para falar, mudou de idéia, hesitou e por fim se resolveu.

      - Seria melhor se você tivesse pulado do clerestório - disse, numa voz fria como o vento norte.

      Afastou-se dela e retornou para o mosteiro. Perdi-o para sempre, pensou Aliena, sentindo que seu coração ia se partir.

     

      Jack foi visto fugindo do mosteiro no dia da festa da colheita. Não era uma transgressão grave, por si só, mas ele já fora apanhado diversas vezes antes, o fato de ter saído para falar com uma mulher que não era casada tornava a coisa mais séria.

      Sua transgressão foi discutida no cabido no dia seguinte e ele recebeu ordem para ficar confinado.

      Isso significava que estava restrito aos edifícios monásticos, o claustro e a cripta, e que cada vez que fosse de um prédio para outro teria que ser acompanhado.

      Ele mal se deu conta da restrição. Ficara tão devastado com a notícia dada por Aliena que nada mais fazia muita diferença. Sua impressão era de que, se houvesse sido açoitado em vez de apenas confinado, teria sido igualmente indiferente.

      Não havia qualquer dúvida quanto ao seu trabalho na catedral, claro; porém, grande parte do prazer desaparecera desde que Alfred se tornara o encarregado. Agora passava as tardes livres lendo. Seu latim melhorara a passos largos e já era capaz de ler qualquer coisa, mesmo que lentamente; e como se esperava que lesse para aperfeiçoar seu latim, e não para qualquer outro propósito, lhe era permitido pegar qualquer livro que quisesse. Embora a biblioteca fosse pequena, tinha diversas obras de filosofia e matemática, nas quais mergulhou com entusiasmo.

      Muito do que leu era desapontador. Havia páginas de genealogias, narrativas repetitivas de milagres realizados por santos mortos há muito tempo e interminável especulação teológica. O primeiro livro que realmente prendeu a atenção de Jack contava toda a história do mundo desde a Criação até a fundação do priorado de Kingsbridge, e depois que o leu achou que sabia tudo o que já acontecera. Percebeu, após algum tempo, que a pretensão do livro de contar todos os acontecimentos era implausível, pois, afinal de contas, as coisas estavam acontecendo em toda parte o tempo todo, não apenas em Kingsbridge e na Inglaterra, como também na Normandia, Anjou, Paris, Roma, Etiópia e Jerusalém, de modo que o autor devia ter deixado um bocado de coisas fora. De qualquer modo, o livro deu a Jack uma sensação que nunca tivera, de que o passado era como uma história, na qual uma coisa levava a outra, e que o mundo não era um mistério infinito, mas sim uma coisa finita que podia ser compreendida.

      Mais intrigantes ainda eram os quebra-cabeças. Um filósofo perguntava por que um homem fraco era capaz de deslocar uma pedra pesada com uma alavanca. Aquilo nunca parecera estranho a Jack antes, mas agora a questão o atormentava. Passara diversas semanas na pedreira numa ocasião e se lembrava de que quando uma pedra não podia ser deslocada com uma alavanca de um pé de comprimento, a solução geralmente era usar uma de dois. Por que motivos o mesmo homem incapaz de deslocar a pedra com uma alavanca mais curta podia fazê-lo com outra mais comprida? Essa questão levava a outras. Os operários da obra na catedral usavam uma imensa roda para içar pedras grandes e vigas até o teto. O peso na extremidade da corda era demasiado para um homem erguer com as mãos, mas o mesmo homem podia girar a roda que enrolava a corda, içando a carga. Como isso era possível?

      Tais especulações o distraíam por algum tempo, mas seus pensamentos voltavam sempre para Aliena. Às vezes estava no claustro, de pé defronte da estante onde havia um livro volumoso, e se lembrava daquela manhã no velho moinho quando a beijara. Podia recordar cada instante daquele beijo, desde o toque macio dos lábios até a arrebatadora sensação da língua da jovem na boca. O corpo de Jack comprimira o de Aliena das coxas aos ombros, de modo que podia sentir os contornos dos seus seios e quadris. A lembrança era tão intensa que era como experimentar tudo aquilo de novo.

      Por que Aliena mudara? Ele acreditava que o beijo fosse verdadeiro e sua subsequente frieza, falsa. Achava que a conhecia. Era amorosa, sensual, romântica, imaginativa e ardente. Também era inconsiderada e autoritária, e aprendera a ser dura; mas não era fria, cruel ou sem coração. Não combinava com o seu caráter se casar por dinheiro com um homem a quem não amava. Seria infeliz, se arrependeria, adoeceria de tanto sofrimento; ele sabia disso e, no seu coração, ela também.

      Um dia, quando estava na sala de escrita, um criado do priorado que varria o chão parou para descansar, apoiou-se na vassoura e disse:

      - Grande festa na sua família.

      Jack estava estudando um mapa do mundo desenhado numa grande folha de papel velino. Ergueu a cabeça. Quem falara era um velho torto, fraco demais para serviços pesados.

      Provavelmente confundira Jack com alguém.

      - O que é, Joseph?

      - Você não sabia? Seu irmão vai se casar.

      - Não tenho irmãos - disse Jack automaticamente, mas seu coração congelou-se.

      - O filho do seu falecido padrasto, então - disse loseph.

      - Não, eu não sabia. - Jack teve que fazer a pergunta. Cerrou os dentes: - Com quem ele vai se casar?

      - Com aquela tal de Aliena.

      Então ela estava determinada a ir até o fim. Jack entretivera uma secreta esperança de que fosse mudar de idéia. Desviou o rosto para que loseph não pudesse ver seu desespero.

      - Ora, ora - disse, tentando fazer com que sua voz não traduzisse nenhuma emoção.

      - Isso mesmo, com aquela que era arrogante até perder tudo no incêndio.

      - Você disse...  você disse que será quando?

      - Amanhã. Eles vão se casar na nova igreja da paróquia que Alfred construiu.

      No dia seguinte!

      Aliena ia se casar com Alfred no dia seguinte. Até então não acreditara realmente que fosse acontecer. A realidade explodiu em cima dele como um raio. Aliena ia se casar no dia seguinte. A vida de Jack ia terminar no mesmo dia.

      Olhou para o mapa em cima da estante. O que interessava se o centro do mundo fosse em Jerusalém ou Wallingford? Seria mais feliz se soubesse como as alavancas funcionavam?

      Dissera a Aliena que seria melhor que ela saltasse do clerestório do que se casasse com Alfred. Deveria ter dito era que ele, Jack, é que podia muito bem pular lá de cima.

      Desprezava o priorado. Ser monge era uma coisa estúpida. Se não pudesse trabalhar na catedral e Aliena se casasse com outro, não teria mais motivo para viver.

      O que tornava tudo pior era saber que Aliena sofreria horrivelmente se desposasse Alfred. Havia algumas garotas que podiam se sentir contentes casadas com Alfred: Edith, por exemplo, aquela que rira quando Jack lhe falara como gostava de trabalhar cinzelando pedra.

      Edith não esperaria muito de Alfred, e ficaria satisfeita de lisonjeá-lo e obedecê-lo desde que ele continuasse próspero e gostasse dos seus filhos. Mas Aliena odiaria cada minuto. Detestaria a grossura física, o desprezaria pelo seu jeito agressivo, ficaria enojada com sua perversidade e consideraria irritante sua lentidão de raciocínio. O casamento com Alfred seria o inferno para ela.

      Por que Aliena não era capaz de ver isso? Jack não conseguia entender. O que estava se passando na sua cabeça? Certamente que qualquer coisa seria melhor do que se casar com um homem a quem não amava. Causara sensação recusando-se a desposar William Hamleigh sete anos antes, e no entanto agora aceitava, passiva, uma proposta de uma pessoa igualmente inadequada. O que estaria pensando?

      Jack tinha que saber.

      Precisava falar com ela, e ao inferno com o mosteiro.

      Enrolou o mapa, recolocou-o no armário e foi até a porta. loseph ainda estava apoiado na vassoura.

      - Está saindo? - perguntou ele. - Pensei que tivesse que ficar aqui até que o encarregado da disciplina viesse buscá-lo.

      - Ele que vá à merda - disse Jack, e saiu.

      Quando saiu na calçada leste do claustro, atraiu a atenção do prior Philip, que vinha do canteiro da obra, ao norte. Virou-se rapidamente, mas Philip gritou:

      - Jack! O que está fazendo? Você deveria estar confinado!

      Jack não tinha paciência para a disciplina monástica naquela hora. Ignorou Philip e seguiu no rumo contrário, na direção da passagem entre a calçada sul e as casas pequenas em torno do novo cais. Mas não era seu dia de sorte. Naquele momento, o irmão Pierre, que era o encarregado da disciplina, veio andando pela passagem, seguido por seus dois assistentes. Viram Jack e ficaram imóveis. Uma expressão de atônita indignação espalhou-se pelo rosto redondo de Pierre.

      - Detenha esse noviço, irmão! - gritou Philip.

      Pierre ergueu uma das mãos para segurar Jack. Este o empurrou de lado. O encarregado da disciplina ficou vermelho e agarrou o braço do rapaz que conseguiu libertar-se e lhe deu um soco no nariz. O monge gritou, mais de ultraje que de dor. Então seus dois assistentes pularam em cima do noviço.

      Jack lutou como um louco, e quase conseguiu escapar, mas quando Pierre se recuperou do soco no nariz e se juntou a eles, os três conseguiram derrubá-lo e conservá-lo deitado. Ele continuou a lutar, furioso por ver que aquela bobagem monástica o estava impedindo de algo realmente importante, ou seja, falar com Aliena. Repetiu inúmeras vezes:

      - Soltem-me, seus idiotas!

      Os dois assistentes se sentaram em cima dele. Pierre levantou-se, esfregando o sangue do nariz na manga do hábito. Philip apareceu ao seu lado.

      A despeito da própria raiva, Jack viu que Philip também estava furioso, mais furioso do que jamais o vira.

      - Não vou tolerar esse comportamento em ninguém - disse ele, numa voz dura como ferro. - Você é um noviço e vai me obedecer. - Ele se virou para Pierre. - Ponha-o na sala de obediência.

      - Não! - gritou Jack. - Você não pode!

      - Certamente que posso - disse Philip, indignado.

      A sala de obediência era uma cela pequena e sem janela na cripta sob o dormitório, na extremidade sul, perto das latrinas. Era usada principalmente para deter transgressores da lei aguardando julgamento na corte do prior, ou transferência para a prisão do xerife em Shiring; porém, prestava serviços ocasionais como cela de punição para monges que tivessem cometido sérias transgressões disciplinares, como, por exemplo, atos impuros com criados do priorado.

      Não era o confinamento solitário que assustava Jack, e sim o fato de não poder sair para ver Aliena.

      - Você não compreende! - gritou com Philip. - Tenho que falar com Aliena!

      Era a pior coisa que poderia ter dito. Philip ficou ainda mais furioso.

      - Foi por falar com ela que você foi confinado! - disse irritado.

      - Mas preciso falar com ela!

      - A única coisa que você precisa é aprender a temer a Deus e obedecer a seus superiores.

      - Você não é meu superior, seu imbecil! Você não é nada para mim! Soltem-me, seus malditos!

      - Levem-no daqui - disse Philip, inflexível.

      Uma pequena multidão tinha se reunido àquela altura, e diversos monges ergueram Jack pelos braços e pernas. Agitou-se como um peixe apanhado num anzol, mas eles eram em grande número. Não podia acreditar que aquilo lhe estivesse acontecendo. Carregaram-no; ele deu pontapés e bracejou até a porta da sala de obediência. Alguém a abriu. Ouviu a voz do irmão Pierre, vingativa:

      - Joguem-no lá dentro!

      Eles balançaram Jack uma vez para fora e depois o soltaram no ar. Caiu de qualquer maneira, no chão de pedra. Levantou-se, com a ajuda das mãos, insensível a seus ferimentos, e correu, mas a porta foi trancada no momento exato em que bateu nela, e no instante seguinte a pesada barra de ferro foi ruidosamente passada do outro lado e a chave girou na fechadura.

      Jack socou a porta com toda a sua força.

      - Deixem-me sair! - berrou, histérico. - Tenho que impedi-la de se casar com ele! Soltem-me! - Contudo não havia nenhum barulho do lado de fora. Continuou gritando, mas suas exigências se transformaram em súplicas, e sua voz tornou-se um gemido e depois um murmúrio, e ele derramou muitas lágrimas de raiva frustrada.

      Por fim seus olhos secaram e Jack não pôde chorar mais.

      Afastou-se da porta. A cela não era escura como breu: passava um pouco de luz por baixo da porta e era possível ter uma idéia de onde se encontrava. Deu uma volta acompanhando as paredes, sentindo-as com as mãos. Pelo padrão das marcas de cinzel nas pedras soube que a cela fora construída muito tempo antes. Era um cômodo praticamente  desprovido de características especiais. Parecia ser um quadrado com cerca de seis pés de lado, uma coluna num canto e teto de arco: evidentemente fora parte de um cômodo maior, emparedado para ser usado como prisão. Em uma parede havia o que fora a abertura para uma seteira, mas estava compactamente tapada, e mesmo que não estivesse, teria sido pequena demais para permitir a passagem de uma pessoa. O chão de pedra era úmido. Jack percebeu um barulho constante e se deu conta de que o canal que atravessava o priorado do lago do moinho para as latrinas devia passar por baixo da cela. Isso explicaria por que o chão era de pedra em vez de terra batida.

      Sentiu-se exausto. Sentou-se no chão, com as costas na parede e o olhar fixo na fresta de luz sob a porta, torturante lembrete de onde desejava estar. Como se metera naquela confusão? Nunca acreditara no mosteiro, nunca tencionara dedicar sua vida a Deus - nunca acreditara realmente em Deus.

      Tornara-se um noviço como solução de um problema imediato, um recurso para permanecer em Kingsbridge, perto do que amava. Tinha pensado: Sempre poderei ir embora quando quiser. Mas agora que queria mesmo ir, mais do que qualquer outra coisa que jamais imaginara, não podia: era prisioneiro. Vou estrangular o prior Philip assim que sair daqui, pensou, nem que seja enforcado depois.

      Aquilo fez com que ele começasse a pensar quando seria libertado. Ouviu o sino anunciando a ceia. Certamente tencionavam deixá-lo ali a noite inteira. Talvez estivessem discutindo seu caso naquele exato momento. Os piores monges diriam que precisava ficar preso por uma semana - ele podia ver Remigius e Pierre defendendo uma disciplina férrea. Outros, que gostavam dele, poderiam dizer que uma noite era punição suficiente. E o que Philip diria? Ele gostava de Jack, mas estava terrivelmente furioso, sobretudo depois que Jack dissera: Você não é meu superior, seu imbecil! Você não é nada para mim! O prior se sentiria tentado a deixar o pessoal da linha dura sair ganhando daquela vez. A única esperança era de que quisessem botar Jack para fora do mosteiro imediatamente, o que para eles seria uma sentença mais severa. Desse modo conseguiria falar com ela antes do casamento. Mas Philip seria contrário, Jack não tinha dúvida. Veria sua expulsão como uma admissão de derrota.

      A luz sob a porta estava ficando mais fraca. Escurecia lá fora. Jack perguntou-se como os prisioneiros deviam satisfazer suas necessidades. Não havia um vasilhame na cela. Não era característico dos monges passar por cima de um detalhe como esse: eles acreditavam em limpeza, mesmo para os pecadores.

      Examinou o chão de novo, polegada por polegada e encontrou um buraco pequeno perto de um dos cantos. O barulho da água era mais alto ali, e ele presumiu que fosse dar no canal subterrâneo. Aquilo era, presumivelmente, sua latrina.

      Pouco depois dessa descoberta, o postigo se abriu. Jack pôs-se de pé num pulo. Uma tigela e um pedaço de pão foram postos no peitoril. Jack não pôde ver o rosto do homem que os colocou ali.

      - Quem é? - perguntou.

      - Não tenho permissão para conversar com você - disse o homem, numa voz monótona. Mesmo assim, Jack o reconheceu: era um velho monge chamado Luke.

      - Luke, eles disseram por quanto tempo eu vou ficar aqui?

      Ele repetiu a fórmula:

      - Não tenho permissão para conversar com você.

      - Por favor, Luke, diga-me se você sabe! - implorou Jack, sem se importar em quão patético pudesse parecer.

      - Pierre disse uma semana - respondeu o monge num sussurro -, mas Philip decidiu dois dias. - O postigo foi fechado com um estrondo.

      - Dois dias! - disse Jack desesperadamente. - Mas ela estará casada em dois dias!

      Não houve resposta.

      Jack pemaneceu imóvel, olhando para o nada. A luz que entrara pela pequena abertura fora forte, em comparação com a escuridão quase total do interior da cela, e não pôde ver .por uns momentos, até que sua vista se readaptou à obscuridade; então seus olhos se encheram com novas lágrimas, e ele ficou cego de novo.

      Deitou-se no chão. Não havia mais nada a ser feito. Estava trancado ali até segunda-feira, e na segunda-feira Aliena já seria mulher de Alfred, acordando na cama de Alfred, com o sémen de Alfred dentro dela. A idéia o deixou nauseado.

      Em breve ficou escuro como breu. com dificuldade, Jack deslocou-se até o peitoril e tomou o conteúdo da tigela. Era água pura. Pegou um pedacinho de pão e pôs na boca, mas não estava com fome e mal pôde engolir. Bebeu o resto da água e deitou de novo.

      Não dormiu, mas caiu numa espécie de sonolência, quase que um transe, em que reviveu, como num sonho ou visão, as tardes de domingo que passara com Aliena no verão anterior, quando lhe contara a história do escudeiro que amava a princesa e que viajara ao Oriente em busca da videira que dava pedras preciosas.

      O sino da meia-noite o despertou. Estava acostumado ao horário monástico, e se sentia bem desperto à meia-noite, embora com frequência precisasse dormir de tarde, especialmente se tivesse comido carne. Os monges deveriam estar se levantando da cama e formando filas para a procissão do dormitório à igreja. A posição deles era imediatamente acima da de Jack, mas não era possível ouvir nada: a cela era à prova de som. Pareceu-lhe que foi logo depois, quando o sino soou de novo para as laudes, ou seja, uma hora após a meia-noite. O tempo estava passando depressa, depressa demais, pois no dia seguinte Aliena estaria casada.

      Nas primeiras horas da madrugada, a despeito do seu sofrimento, ele adormeceu.

      Acordou com um sobressalto. Havia alguém na cela com ele.

      Ficou aterrorizado.

      A cela estava escura como breu. O barulho da água parecia mais alto.

      - Quem é? - perguntou, com a voz trêmula.

      - Sou eu. Não tenha medo.

      - Mãe! - Ele quase desmaiou, aliviado. - Como soube que eu estava aqui?

      - O velho Josephfoi me contar o que tinha acontecido - respondeu ela, num Tom de voz normal.

      - Fale baixo! Os monges poderão ouvir você!

      - Não, não ouvem. Pode-se cantar e berrar aqui dentro sem ser ouvido lá fora. Eu sei; já fiz isso.

      A cabeça dele estava tão cheia de perguntas que nem sabia o que perguntar primeiro.

      - Como foi que entrou aqui? A porta está aberta? - Ele se adiantou na direção da mãe, com os braços estendidos. - Oh, você está molhada!

      - O canal passa aqui embaixo. Há uma pedra solta no chão.

      - Como sabia?

      - Seu pai passou dez meses nesta cela - respondeu Ellen, e na sua voz havia a amargura do tempo.

      - Meu pai? Esta cela? Dez meses?

      - Foi quando me ensinou todas aquelas histórias.

      - Mas por que ele estava aqui?

      - Nunca descobrimos - disse ela, ressentida. - Ele foi sequestrado, ou preso, nunca descobrimos qual dos dois, na Normandia, e trazido para cá. Não falava inglês ou latim e não tinha idéia de onde se encontrava. Trabalhou nos estábulos mais ou menos por um ano; foi como o conheci. - A voz dela suavizou-se, nostálgica. - Amei-o desde o momento em que pus os olhos nele. Era delicado, e parecia tão assustado e infeliz, e mesmo assim cantava como um passarinho. Ninguém lhe falava há meses. Ficou tão satisfeito quando lhe dirigi umas poucas palavras em francês que acho que se apaixonou por mim só por isso. - A raiva endureceu de novo a voz de Ellen. - Após algum tempo o puseram nesta cela. Foi quando descobri como entrar aqui.

      Ocorreu a Jack que deveria ter sido concebido ali mesmo, naquele chão de pedra fria. A idéia o deixou envergonhado, e ficou contente por estar escuro demais para que ele e a mãe se vissem.

      - Mas meu pai deve ter feito algo para ser preso desse jeito.

      - Ele não fazia a menor idéia do motivo. E no fim inventaram um crime. Alguém lhe deu uma taça cravejada de pedras e lhe disse para ir embora. A poucas milhas daqui ele foi preso e acusado de ter furtado a taça. Enforcaram-no por isso. - Ela estava chorando.

      - Quem fez tudo isso?

      - O xerife de Shiring, o prior de Kingsbridge...  não interessa quem.

      - E a família de meu pai? Ele deve ter tido pais, irmãos e irmãs...

      - Sim, ele tinha uma família grande, na França.

      - Por que não fugiu e voltou para lá?

      - Ele tentou uma vez, mas o pegaram e trouxeram de volta. Foi quando o puseram nesta cela. Podia ter tentado de novo, claro, uma vez que tínhamos descoberto como sair daqui. Mas seu pai não sabia o caminho de volta para a França, não conhecia uma palavra de inglês e não tinha uma única moeda. Suas chances eram mínimas. Deveria ter tentado de qualquer modo, sabemos agora; mas naquele tempo nunca imaginamos que fossem enforcá-lo.

      Jack a envolveu com os braços, para confortá-la. Ellen estava encharcada e tremendo. Precisava sair dali e se secar. Jack percebeu, com um choque, que se ela pudera entrar, ele poderia sair. Por alguns momentos quase se esquecera de Aliena, enquanto sua mãe falava a respeito de seu pai; mas agora se dava conta de que seu desejo fora atendido: poderia falar com Aliena antes do casamento.

      - Mostre-me a saída - disse abruptamente.

      Ellen fungou e engoliu as lágrimas.

      - Segure meu braço.

      Os dois atravessaram a cela, e Jack sentiu que a mãe se abaixava.

      - Basta deixar o corpo cair no canal - disse ela. - Respire fundo e mergulhe. Depois engatinhe contra a correnteza. Não siga no sentido da água, ou terminará na latrina dos monges. Vai se sentir quase sem fôlego quando estiver chegando, mas mantenha a calma e continue engatinhando que conseguirá. Ela se abaixou mais ainda e desapareceu.

      Jack encontrou o buraco e desceu. Seus pés encostaram na água quase que imediatamente. Quando pisou no fundo, os ombros ainda estavam na cela. Antes de se abaixar mais, recolocou a pedra no lugar, pensando com malícia que os monges ficariam desorientados quando encontrassem a cela vazia.

      A água estava fria. Ele respirou fundo, abaixou-se e ficou sobre os joelhos e as mãos. Progrediu o mais rápido que pôde, na direção contrária à correnteza. À medida que avançava, ia imaginando os edifícios que estavam por cima dele. Primeiro a passagem, depois o refeitório, a cozinha e a padaria. Não era longe, mas pareceu levar uma eternidade. Tentou a superfície, mas bateu com a cabeça no teto do túnel. Entrou em pânico, mas se lembrou do que sua mãe dissera. Estava quase chegando. Poucos momentos depois viu luz à sua frente. O dia devia ter nascido enquanto conversavam na cela. Continuou até ficar sob a luz, quando se levantou e respirou fundo, aliviado.

      Depois de recuperar o fôlego, escalou a vala.

      Sua mãe já trocara de roupa. Estava com um vestido limpo e seco e torcia o molhado. Trouxera roupas secas para ele também. Empilhadas cuidadosamente sobre a margem da vala, Jack viu roupas que não usava há um ano e meio: uma camisa de linho, uma túnica verde de lã, meias cinzentas e botas de couro. Sua mãe se virou de costas e Jack despiu o hábito monástico, tirou as sandálias e vestiu rapidamente as próprias roupas.

      Jogou o hábito dentro da vala. Nunca mais o usaria de novo.

      - O que fará agora? - quis saber Ellen.

      - Vou procurar Aliena.

      - Neste instante? É cedo.

      - Não posso esperar.

      Ela assentiu.

      - Seja delicado. Ela está magoada.

      Jack inclinou-se para beijá-la e, impulsivamente, abraçou-a.

      - Você me tirou de uma prisão - disse, e deu uma risada. - Que mãe! ...

      Ellen sorriu, mas seus olhos estavam úmidos.

      Jack fez-lhe um último carinho e afastou-se.

      Embora o dia já estivesse inteiramente claro, não havia ninguém no caminho, porque não se trabalhava no domingo e as pessoas aproveitavam a oportunidade para dormir após o nascer do sol. Jack não tinha certeza se deveria temer ser visto. Será que o prior Philip tinha o direito de perseguir um noviço fugitivo e forçá-lo a voltar para o mosteiro? Mesmo que tivesse esse direito, iria querer exercê-lo? Jack não saberia responder. De qualquer maneira, Philip era a lei em Kingsbridge e Jack o desafiara, de modo que era bem provável que houvesse um problema qualquer. Fosse como fosse, naquela hora ele não estava preocupado com outra coisa que não os próximos minutos.

      Chegou à casa de Aliena. Ocorreu-lhe que Richard poderia estar. Esperava que não. Mas se estivesse, não havia nada que pudesse fazer. Subiu até a porta e bateu delicadamente.

      Inclinou a cabeça e prestou atenção. Ninguém se mexeu dentro da casa. Bateu de novo, com mais força, e dessa vez foi recompensado com o barulho da palha, provocado por alguém se mexendo.

      - Aliena! - sussurrou, o mais alto que pôde. Ouviu-a aproximando-se. E uma voz assustada:

      - Sim?

      - Abra a porta!

      - Quem é?

      - Eu, Jack.

      - Jack!

      Houve uma pausa. Jack esperou.

      Aliena fechou os olhos, em desespero, e curvou-se para a frente apoiando-se na porta, com a testa na madeira áspera. Não, Jack, pensou; hoje não, agora não.

      A voz dele fez-se ouvir de novo, num sussurro baixo, nervoso, intenso.

      - Aliena, por favor, abra a porta, depressa! Se me pegarem vão me prender na cela de novo!

      Ela soubera da sua prisão - toda a cidade soubera. Obviamente ele fugira. E viera direto procurá-la. Seu coração acelerou. Não podia mandá-lo embora.

      Ergueu a tranca e abriu a porta.

      O cabelo cenoura de Jack estava encharcado de água, como se tivesse acabado de tomar banho. Usava roupas comuns, não o hábito de monge. Sorriu para ela, como se vê-la fosse a melhor coisa que já tivesse lhe acontecido na vida. Depois ficou sério.

      - Você andou chorando - disse ele.

      - Por que veio aqui? - perguntou Aliena.

      - Eu tinha que vê-la.

      - Vou me casar hoje.

      - Eu sei. Posso entrar?

      Seria errado deixá-lo entrar, ela sabia; mas ocorreu-lhe então que no dia seguinte já seria mulher de Alfred, de modo que aquela podia ser a última vez em que pudesse conversar com Jack a sós. Pensou: Não me importo se for errado. Abriu mais a porta. O rapaz entrou, e ela passou a tranca de novo.

      Os dois se encararam. Agora Aliena se sentiu envergonhada. Ele a fitou com um desejo desesperado, do jeito como um homem morrendo de sede olha para uma cascata.

      - Não me olhe assim - disse, e se afastou.

      - Não se case com ele - disse Jack.

      - Tenho que me casar.

      - Você vai sofrer muito.

      - Já sofro agora.

      - Olhe para mim, por favor.

      Ela virou o rosto para ele e ergueu os olhos.

      - Por favor, diga-me por que está fazendo isso - pediu Jack.

      - Por que devo lhe dizer?

      - Por causa do modo como me beijou no moinho velho.

      Ela baixou o olhar e sentiu que corava violentamente. Traíra-se naquele dia e sentia vergonha de si própria desde então. Agora ele usava aquilo contra ela. Nada disse. Não tinha defesa.

      - Depois daquilo, você ficou fria.

      Ela manteve os olhos baixos.

      - Nós éramos tão amigos! - prosseguiu ele impiedosamente. - Aquele verão inteiro, na sua clareira, perto da queda d'água...  minhas histórias... Éramos tão felizes! Eu a beijei uma vez, lembra?

      Ela se lembrava, claro, embora sempre fizesse de conta que não tinha acontecido. A lembrança comoveu seu coração, e ela o fitou com os olhos marejados de lágrimas.

      - Então dei um jeito para o moinho pisoar seu pano - disse ele. - Fiquei tão satisfeito em poder ajudá-la no seu negócio! Você ficou entusiasmada quando viu aquilo. E nos beijamos de novo, mas não foi um beijinho, como o primeiro. Dessa vez foi um... beijo apaixonado. - Oh, meu Deus, foi apaixonado sim, pensou ela, e corou de novo, começando a respirar depressa; quis que ele parasse, mas ele continuou:

      - Nós nos abraçamos com força. Nós nos beijamos por longo tempo. Você abriu a boca...

      - Pare! - exclamou Aliena.

      - Por quê? - indagou ele brutalmente. - O que há de errado nisso? Por que ficou fria?

      - Porque estou apavorada! - disse ela sem pensar e rompeu a chorar. Enfiou o rosto nas mãos e soluçou. Um momento depois sentiu as mãos dele nos ombros encolhidos.

      Não fez nada, e logo Jack a tomou delicadamente nos braços. Aliena tirou as mãos do rosto e chorou na túnica verde dele.

      Após algum tempo passou os braços pela cintura de Jack.

      Ele encostou o rosto no seu cabelo - feio, curto, sem forma, ainda não recuperado do incêndio - e a afagou como se fosse um bebê. Ela gostaria de ficar assim para sempre. Mas Jack se afastou, para poder olhar para ela, e perguntou:

      - O que a deixa tão amedrontada?

      Ela sabia, mas não podia dizer. Sacudiu a cabeça e recuou um passo; ele segurou-lhe os pulsos, conservando-a junto de si.

      - Escute, Aliena - disse Jack. - Quero que saiba como isto tem sido terrível para mim. Primeiro você parecia me amar, depois me odiar, e agora vai se casar com o filho do meu padrasto. Não compreendo. Não sei nada a respeito dessas coisas. Nunca estive apaixonado antes. Só sei que machuca demais. Não sei quais são as palavras para descrever como tudo isto é ruim. Não acha que devia pelo menos tentar me explicar por que tenho que sofrer tanto?

      Ela se sentiu cheia de remorsos. Pensar que o magoara tão profundamente quando o amava tanto! Envergonhou-se de como o tratara. Ele nada lhe tinha feito senão coisas boas, e ela arruinara sua vida. Tinha direito a uma explicação. Procurou se fortalecer.

      - Jack, aconteceu uma coisa comigo muito tempo atrás, uma coisa verdadeiramente horrível, algo que me fez esquecer de mim mesma por muitos anos. Nunca mais quis pensar nisso, mas quando você me beijou daquele jeito tudo voltou à minha cabeça e não consegui suportar.

      - O que aconteceu? Que coisa foi essa?

      - Depois que meu pai foi aprisionado, ficamos morando no castelo, Richard, eu e um criado chamado Matthew; e uma noite William Hamleigh apareceu e nos expulsou de lá.

      Jack semicerrou os olhos.

      - E aí?

      - Mataram o pobre Matthew.

      Ele sabia que Aliena não estava lhe contando toda a verdade.

      - Por quê?

      - O que você quer saber?

      - Por que mataram o seu criado?

      - Porque ele tentou detê-los. - As lágrimas corriam pelo seu rosto, e um nó constrangia sua garganta sempre que tentava falar, como se as palavras a sufocassem.

      Sacudiu a cabeça, impotente, e tentou se virar, mas Jack não a soltou.

      - Ele queria impedi-los de fazer o quê? - perguntou ele, numa voz delicada como um beijo.

      De repente ela soube que podia lhe contar e saiu tudo de uma vez.

      - Eles me forçaram - disse. - O criado de William me prendeu no chão e William montou em cima de mim, mesmo assim não deixei, e então eles cortaram um pedaço da orelha de Richard e disseram que cortariam mais. - Ela soluçou, extraordiariamente   aliviada por ser afinal capaz de contar aquilo. Fitou Jack nos olhos e disse: - Aí abri as pernas e William fez aquilo comigo, enquanto o criado dele forçava Richard a olhar.

      - Sinto muito - murmurou Jack. - Eu tinha ouvido boatos, mas nunca pensei...  Querida Aliena, como eles foram capazes?

      Era preciso lhe contar tudo.

      - Depois que William acabou, foi a vez do criado.

      Jack fechou os olhos. Seu rosto estava branco e tenso. Aliena continuou.

      - Veja então: quando você e eu nos beijamos, quis fazer aquilo com você, e isso me fez pensar em William e no seu criado; e me senti horrível, e assustada, e fugi correndo. Essa foi a razão  pela  qual  fui tão  má  com  você,  e  o  fiz sofrer. Desculpe-me.

      - Eu a perdôo - sussurrou ele. Puxou-a para junto de si, e Aliena deixou mais uma vez que a abraçasse. Era tão reconfortante!

      Sentiu que ele estremecia.

      - Eu o deixo enojado? - perguntou, ansiosa. Jack fitou-a.

      - Eu a adoro - disse. Ele inclinou a cabeça e beijou sua boca.

      Ela gelou. Não era aquilo que queria. Ele afastou-se um pouco e a beijou de novo. O contato com seus lábios era muito suave. Sentindo-se agradecida e amiga dele, contraiu os lábios, só um pouquinho, depois relaxou de novo, num débil eco do seu beijo. Encorajado, Jack moveu os lábios de encontro aos dela mais uma vez. Aliena podia sentir seu hálito quente no rosto. Ele abriu a boca, uma coisa mínima. Ela recuou rapidamente.

      Jack pareceu magoado.

      - É assim tão ruim?

      Na verdade, Aliena não estava mais assustada que da outra vez. Contara-lhe a horrível verdade a seu respeito e ele não se afastara enojado; na verdade, mostrava-se tão terno e gentil como sempre. Inclinou a cabeça e ele a beijou de novo. Aquilo não era assustador. Não havia nada ameaçador, nada violentamente incontrolável, nem força, ódio ou dominação; apenas o contrário. Aquele beijo era um prazer compartilhado.

      Os lábios dele se abriram e ela sentiu a ponta da sua língua. Ficou tensa. Ele insistiu e fez com que Aliena abrisse a boca. Ela relaxou de novo. Ele sugou delicadamente seu lábio inferior. Ela se sentiu um pouco tonta.

      - Você faria o que fez da última vez? - perguntou ele.

      - O que fiz?

      - Eu lhe mostrarei. Abra a boca, só um pouquinho.

      Fez o que Jack pediu, e sentiu de novo a língua dele roçando-lhe os lábios, passando por entre os dentes e explorando-lhe a boca até encontrar sua língua. Afastou-se.

      - É isso - disse ele. - Foi o que você fez.

      - Fiz mesmo? - Ela estava chocada.

      - Fez. - Ele sorriu e, de repente, assumiu um ar solene.

      - Se fizesse de novo, compensaria todo o meu sofrimento dos últimos nove meses.

      Aliena inclinou a cabeça de novo e fechou os olhos. Após um momento sentiu sua boca na dela. Abriu os lábios, hesitou, depois nervosamente enfiou a língua na boca dele. Ao fazê-lo se lembrou da outra vez, no moinho velho, e a mesma sensação de êxtase a assaltou. Invadiu-a uma intensa necessidade de segurá-lo, acariciar-lhe a pele e o cabelo, sentir-lhe os músculos e os ossos, estar dentro dele e tê-lo dentro de si. Sua língua encontrou a de Jack, e em vez de experimentar vergonha ou uma leve repugnância, sentiu-se excitada por estar fazendo uma coisa tão íntima.

      Os dois agora estavam respirando com dificuldade. Jack segurou-lhe a cabeça com ambas as mãos. Aliena acariciou-lhe os braços, as costas e por fim os quadris, sentindo-lhe os músculos tensos. O coração dela batia com força. Por fim interrompeu o beijo, sem fôlego.

      Aliena o fitou. Jack estava vermelho e ofegante, e seu rosto brilhava de desejo. Após um momento ele se inclinou para a frente de novo, mas em vez de beijar-lhe a boca, ergueu-lhe o queixo e beijou a pele delicada do pescoço. Aliena ouviu seu próprio gemido de prazer. Jack abaixou mais a cabeça e roçou os lábios sobre os seus seios. Os mamilos, sob o tecido áspero da camisa de dormir, tinham aumentado de volume e estavam insuportavelmente sensíveis. Os lábios de Jack fecharam-se sobre um deles. Ela sentiu o calor do seu hálito na pele.

      - Devagarzinho - sussurrou, temerosa.

      Ele beijou o bico do seu seio através da fazenda, e embora houvesse sido incrivelmente gentil, a sensação de prazer que a invadiu foi tão pungente como se a tivesse mordido.

      Então Jack ajoelhou-se diante dela.

      Ele comprimiu o rosto no seu colo. Até aquele momento, a sensação se concentrara nos seios, mas agora, de repente, sentiu a vibração passar para entre as pernas.

      Jack pegou a bainha da camisa e levantou-a até a cintura. Ela o observou, com medo da sua reação; sempre se sentira envergonhada por ser tão peluda. Mas ele não sentiu repugnância; na verdade, inclinou-se e beijou-a delicadamente, bem ali, como se fosse a coisa mais bonita do mundo.

      Aliena deixou-se cair sobre os joelhos, na frente dele. Sua respiração agora era aos arrancos, como se tivesse corrido uma milha. Sua garganta estava seca, de tanto desejo. Pôs as mãos nos joelhos dele, depois escorregou uma delas por baixo da sua túnica. Nunca tocara no pênis de um homem. Era quente, seco e duro como um pedaço de ferro. Jack fechou os olhos e gemeu, quando ela explorou sua extensão com a ponta dos dedos. Aliena ergueu-lhe a túnica, abaixou-se e o beijou. Exatamente como ele a beijara, um delicado roçar de lábios. A glande estava crescida, com a pele esticada como um tambor e umedecida por um líquido qualquer.

      Aliena viu-se dominada pelo súbito desejo de lhe mostrar os seios. Endireitou o corpo. Ele abriu os olhos. Fitando-o, ela puxou depressa a camisola por cima da cabeça e a pôs de lado. Agora estava nua. Tinha uma aguda consciência de si mesma, mas era uma sensação boa, deliciosamente indecente. Jack olhou fascinado para os seus seios.

      - São lindos - disse.

      - Acha mesmo? Sempre pensei que fossem grandes demais.

      - Grandes demais! - repetiu Jack, como se ela tivesse dito algo ultrajante. Adiantou-se e tocou no seu seio esquerdo com a mão direita. Acariciou-lhe a pele delicadamente, com a ponta dos dedos. Ela baixou a cabeça, para acompanhar o que estava fazendo. Logo quis que ele fosse mais firme. Pegou ambas as mãos de Jack com as suas e comprimiu-as de encontro aos seios.

      - Com mais força - pediu, a voz rouca. - Quero sentir mais você.

      As palavras de Aliena o inflamaram. Apertou-lhe os seios, depois pegou os mamilos e os beliscou de leve, o suficiente para doer um pouco. A sensação deixou-a maluca.

      Parou inteiramente de raciocinar e deixou-se dominar pela sensação do corpo dele e do seu próprio.

      - Tire a roupa - disse. - Quero ver você.

      Ele tirou a túnica e a camisa de baixo, as botas e as meias, e ajoelhou-se de novo em frente a ela. Seu cabelo cenoura ia secando em cachos indisciplinados. O corpo era esguio e branco, de ombros e ancas ossudas. Parecia rijo e ágil, jovem e sadio. O pênis era uma árvore levantando-se em meio à floresta ruiva de pêlos. De repente ela quis beijar-lhe o peito. Inclinou-se e roçou os lábios nos seus mamilos chatos de homem. Eles se contraíram, exatamente como os dela. Aliena sugou-os com delicadeza, querendo que ele tivesse o mesmo prazer que lhe dera. Jack acariciou-lhe o cabelo.

      Aliena o desejou dentro dela, rapidamente.

      Dava para ver que ele não estava certo sobre o que fazer a seguir.

      - Jack - perguntou -, você é virgem?

      Ele fez que sim, sentindo-se meio bobo.

      - Que bom! - disse ela ardorosamente. - Fico tão feliz!

      Pegou a mão de Jack e a pôs entre suas pernas. Estava sensível e um pouco inchada, e o contato da mão dele foi um choque.

      - Toque-me - disse. Ele mexeu os dedos, explorando. - Toque-me lá dentro. - Hesitantemente, Jack enfiou um dedo dentro dela. Estava molhada de desejo. - Aí - aprovou Aliena, com um suspiro de satisfação -, é aí que ele tem que entrar. - Largou a mão dele e deitou-se para trás, na palha.

      Jack deitou-se sobre Aliena e, apoiando-se num dos cotovelos, beijou-lhe a boca. Ela sentiu que ele a penetrava um pouco e parava.

      - O que há? - perguntou.

      - Parece muito pequena. Estou com medo de machucar você.

      - Meta com força - disse ela. - Eu o quero tanto que não me importo se doer.

      Sentiu Jack arremeter. Doeu mais do que antecipara, mas apenas por um momento, e logo se sentiu maravilhosamente completada. Ele recuou e avançou um pouco. Ela sorriu.

      - Nunca pensei que fosse tão bom - suspirou, sonhadora. Fechou os olhos, como se não aguentasse tanta felicidade.

      Jack começou a arremeter ritmadamente. As estocadas constantes impuseram um ritmo de prazer em algum lugar dentro dela. Aliena ouviu-se dando gritinhos de satisfação cada vez que seus corpos se aproximavam. Ele abaixou-se, para que seu peito pudesse encontrar os seios dela, fazendo-a sentir seu hálito quente. Aliena cravou os dedos com força nas suas costas. Seus arquejos transformaram-se em gritos. De repente precisou beijá-lo. Beijou-lhe os lábios com força e enfiou a língua na sua boca, aumentando cada vez mais o ritmo. Ter o pênis de Jack dentro de si e a própria língua na boca dele foi uma coisa que a descontrolou, de tanto prazer. Sentiu um grande espasmo de gozo sacudi-la tão violentamente que foi como cair de um cavalo e bater no chão. Gritou bem alto. Abriu os olhos, disse seu nome, e outra onda a engolfou, e mais outra. Então sentiu o corpo dele se convulsionar. Jack gritou e Aliena sentiu um jato quente esguichando no seu íntimo, o que a inflamou mais ainda, a tal ponto que estremeceu de prazer tantas vezes que perdeu a conta, até que por fim a última sensação se desvaneceu e ela foi ficando gradualmente imóvel.

      Estava cansada demais para falar ou se mexer, mas podia sentir o peso de Jack, os quadris ossudos sobre os seus, o peito chato esmagando-lhe os seios macios, a boca junto ao seu ouvido, os dedos entrelaçados no seu cabelo. Uma parte de sua cabeça pensou vagamente: Então é assim que deve ser entre homem e mulher; é por isso que todos fazem tanta confusão a esse respeito; e é esse o motivo pelo qual marido e mulher se amam tanto.

      A respiração de Jack passou a ser leve e regular, e seu corpo relaxou até ficar completamente imóvel. Ele dormiu.

      Aliena virou a cabeça e beijou-lhe o rosto. Jack não era muito pesado. Queria que ficasse ali para sempre, dormindo em cima dela.

      Esse pensamento a fez lembrar.

      Aquele era o dia do seu casamento.

      Meu Deus, o que fiz?

      Começou a chorar.

      Após um momento, Jack acordou.

      Beijou as lágrimas do seu rosto com uma ternura intolerável.

      - Oh, Jack, quero me casar com você.

      - Então será o que faremos - disse ele, numa voz de profunda satisfação.

      Ele a entendera mal, o que piorou tudo mais ainda.

      - Mas não podemos - disse ela, as lágrimas correndo mais depressa.

      - Mas depois disso...

      - Eu sei...

      - Depois disso você tem que se casar comigo!

      - Não podemos nos casar. Perdi todo o meu dinheiro e você não tem nada.

      Ele se levantou, apoiado nos cotovelos.

      - Tenho as minhas mãos! - exclamou, arrebatado. - Sou o melhor cinzelador em muitas milhas.

      - Você foi mandado embora...

      - Não faz diferença. Posso conseguir trabalho em qualquer canteiro de obra no mundo.

      Ela sacudiu a cabeça angustiadamente.

      - Não basta. Tenho que pensar em Richard.

      - Por quê? - indagou ele, indignado. - O que isso tudo tem a ver com Richard? Ele é capaz de cuidar de si próprio.

      De repente Jack pareceu meio infantil, e Aliena sentiu a diferença de idade que havia entre eles: Jack era cinco anos mais moço e ainda pensava que tinha o direito de ser feliz.

      - Jurei para o meu pai, quando ele estava morrendo, que cuidaria de Richard até que ele se tornasse o conde de Shiring.

      - Mas pode ser que isso não aconteça nunca!

      - Mas um juramento é um juramento!

      Jack ficou perplexo. Rolou de cima dela. Seu pênis mole escorregou para fora de Aliena, que experimentou uma dolorosa sensação de perda. Nunca mais o sentirei dentro de mim, pensou, angustiada.

      - Você não pode estar falando sério - disse ele. - Um juramento são apenas palavras! Não é nada, comparado com isto! Isto é real, é você e eu. - Jack olhou para os seus seios e acariciou o pêlo crespo entre suas pernas. Foi tão pungente que Aliena sentiu o contato da mão dele como uma chicotada. Ele a viu estremecer e parou.

      Por um momento Aliena esteve prester a dizer: Sim, está bem, vamos fugir agora, e o teria feito se ele continuasse acariciando-a; mas a razão retornou, e ela disse:

      - Vou me casar com Alfred.

      - Não seja ridícula.

      - É o único jeito.

      Ele a encarou.

      - Eu simplesmente não acredito em você.

      - É verdade.

      - Não posso desistir de você. Não posso, não posso. - A voz dele falhou e Jack sufocou um soluço.

      Aliena tentou ponderar, argumentando tanto consigo quanto com ele:

      - De que adianta quebrar um juramento que fiz a meu pai, para fazer outro a você no casamento? Se quebro o primeiro, o segundo nada vale.

      - Não me interessa. Não quero seus juramentos. Só quero que estejamos juntos o tempo todo e que possamos fazer amor sempre que tivermos vontade.

      Era uma visão do casamento típica de quem tinha dezoito anos, pensou Aliena, mas não disse nada. Teria aceitado aquela visão de bom grado, caso fosse livre.

      - Não posso fazer o que quero - disse tristemente. - Não é o meu destino.

      - O que você está fazendo é errado - disse ele. - É uma coisa má. Desistir da felicidade deste modo é como atirar jóias no mar. É muito pior do que qualquer pecado.

      Inesperadamente, veio à cabeça de Aliena a idéia de que sua mãe teria concordado com aquilo. Não estava certa sobre como ela própria se sentia.

      - Eu não poderia ser feliz nunca, nem mesmo com você, se tivesse que viver sabendo ter quebrado uma promessa feita a meu pai.

      - Você se importa mais com seu pai e com seu irmão do que comigo - disse Jack, levemente petulante pela primeira vez.

      - Não...

      - O que é então?

      Ele estava apenas querendo discutir, mas ela considerou a pergunta seriamente.

      - Suponho que o juramento que fiz a meu pai é mais importante para mim do que o amor que sinto por você.

      - É mesmo? De verdade?

      - Sim, é - respondeu ela, com o coração pesado. Suas palavras soaram como um sino fúnebre.

      - Então não há mais nada a ser dito.

      - Só que...  só que sinto muito.

      Ele se levantou. Virou as costas para ela e apanhou a camisa de baixo. Aliena contemplou seu rosto comprido e esbelto. Havia um bocado de pêlos vermelho-dourados nas suas pernas. Ele vestiu a camisa e a túnica, depois calçou as meias e enfiou as botas. Tudo muito depressa.

      - Você vai se sentir terrivelmente infeliz - disse Jack. Tentava ser desagradável com ela, mas a tentativa foi um fracasso, pois Aliena detectou compaixão em sua voz.

      - Sim, vou - disse. - Mas você pelo menos... pelo menos diria que me respeita pela decisão que tomei?

      - Não - respondeu ele sem hesitar. - Não a respeito. Eu a desprezo pela sua decisão.

      Ela permaneceu sentada, nua, olhando para ele, e começou a chorar.

      - É melhor que eu vá embora - disse Jack, e sua voz falhou na última palavra.

      - Sim, vá - soluçou ela. Ele foi até a porta. - Jack!

      Ele se voltou.

      - Deseja-me boa sorte, Jack?

      Ele levantou a tranca.

      - Boa... - parou, incapaz de falar. Olhou para o chão e para ela de novo. Dessa vez sua voz saiu num sussurro. - Boa sorte - disse.

      Então saiu.

     

      A casa que fora de Tom agora era de Ellen, mas também de Alfred, e naquela manhã estava cheia de gente preparando o banquete de casamento, organizado por Martha, a filha de treze anos de Tom, com a mãe de Jack a tudo assistindo desconsoladamente. Alfred estava com uma toalha na mão, pronto a descer até o rio - as mulheres se banhavam uma vez por mês, e os homens, na Páscoa e no dia de são Miguel, mas era tradicional tomar banho também no dia do casamento. Todos ficaram em silêncio quando Jack entrou.

 

      - O que você quer? - perguntou Alfred.

      - Que você cancele o casamento - respondeu Jack.

      - Dê o fora.

      Jack percebeu que começara mal. Tinha que tentar não transformar aquilo numa provocação. O que propunha era também do interesse de Alfred, e tinha que tentar fazê-lo entender.

      - Alfred, ela não o ama - disse Jack, o mais delicadamente que pôde.

      - Você não sabe de nada, garoto.

      - Sei, sim - insistiu ele. - Ela não o ama. Está se casando por causa de Richard. Ele é o único que ficará feliz com este casamento.

      - Volte para o mosteiro - disse Alfred desdenhosamente. - A propósito, onde está seu hábito?

      Jack respirou fundo. Nada havia a fazer senão lhe contar a verdade.

      - Alfred. Ela me ama.

      Esperava que Alfred fosse ficar enfurecido, mas, ao contrário, foi a sombra de um sorriso dissimulado que apareceu no seu rosto. Jack ficou perplexo. O que significava aquilo? Gradualmente, a explicação se fez clara na sua cabeça.

      - Você já sabia! - exclamou, incrédulo. - Sabe que ela me ama e não se importa! Você a quer de qualquer maneira, não importa se o ame ou não. Só quer que seja sua.

      O sorriso furtivo de Alfred tornou-se mais visível e malicioso, e Jack viu que tudo o que estava dizendo era verdade; entretanto havia algo mais, outra coisa qualquer a ser lida na expressão de Alfred. Uma suspeita inacreditável surgiu na cabeça de Jack.

      - Por que você a quer? Será que só quer se casar com Aliena para tirá-la de mim? - A raiva aumentou o volume da sua voz. - Será que a está desposando por despeito?

      Uma expressão ardilosa de triunfo espalhou-se na cara de parvo de Alfred, e mais uma vez Jack viu que tinha razão. Ficou desolado. A idéia de que o outro estivesse fazendo aquilo tudo, não devido a um compreensível desejo arrebatado por Aliena, mas de pura maldade, era intolerável.

      - Maldito seja, é melhor tratá-la bem! - gritou.

      Alfred riu.

      A suprema perversidade contida no objetivo de Alfred atingiu Jack com a força de um soco. Ele não ia tratá-la bem. Seria a vingança final dele contra Jack. Ia se casar com Aliena e fazê-la sofrer.

      - Seu lixo! - disse Jack amargamente. - Seu lodo humano. Seu merda. Seu retardado, estúpido, feio, malvado, asqueroso.

      Sua insolência finalmente atingiu Alfred, que deixou cair a toalha e avançou, com a mão cerrada. Jack estava preparado e adiantou-se, disposto a bater primeiro.

      Mas a mãe de Jack meteu-se entre os dois, e a despeito de ser menor que ambos, deteve-os com uma palavra.

      - Alfred. Vá tomar seu banho.

      O enteado acalmou-se rapidamente. Sabia que ganhara o dia sem ter que brigar com Jack, e seus pensamentos foram revelados por uma expressão de quem se sentia muito satisfeito consigo próprio. Deixou a casa.

      - O que você vai fazer, Jack? - perguntou Ellen.

      O rapaz descobriu que estava tremendo de raiva. Teve que respirar fundo diversas vezes para poder falar. Não podia cancelar o casamento, admitiu. Mas tampouco poderia assistir a ele.

      - Tenho que deixar Kingsbridge.

      Ele viu uma sombra de tristeza cruzar o seu rosto, mas ela assentiu.

      - Eu receava que você fosse dizer isso. Mas acho que está com a razão.

      Um sino começou a tocar no priorado.

      - A qualquer momento vão descobrir que fugi.

      Ela baixou a voz.

      - Vá rapidamente, mas se esconda perto do rio, num lugar de onde possa ver a ponte. Vou levar umas coisas para você.

      - Está bem. - Ele se virou.

      Martha colocou-se entre ele e a porta com as lágrimas correndo pelo rosto. Ele a abraçou. Ela o apertou com força. Seu corpo de menina era chato e ossudo, como o de um garoto.

      - Volte um dia - disse impetuosamente. Ele a beijou uma vez, depressa, e saiu.

      Havia muita gente na rua agora, apanhando água ou aproveitando a manhã amena de outono. A maior parte das pessoas sabia que ele entrara para o mosteiro como noviço - a cidade ainda era pequena o bastante para que todos soubessem da vida uns dos outros -, e seus trajes leigos atraíram olhares, embora ninguém chegasse a lhe perguntar nada. Desceu rapidamente a colina e atravessou a ponte, caminhando ao longo da margem do rio até encontrar uma moita de juncos. Agachou-se ali atrás e ficou olhando para a ponte, esperando a mãe.

      Não tinha idéia de para onde estava indo. Talvez andasse em linha reta até chegar a uma cidade onde estivessem construindo uma catedral e parasse lá. Estava falando sério, quando dissera a Aliena que encontraria trabalho: sabia que era bastante bom para ser empregado em qualquer lugar. Mesmo que o canteiro de obras estivesse com o efetivo de operários completo, teria apenas que mostrar ao mestre construtor como sabia cinzelar e seria aproveitado. Mas não adiantava mais nada. Nunca mais amaria outra mulher depois de Aliena, e se sentia do mesmo modo em relação à Catedral de Kingsbridge. Queria trabalhar numa obra ali, e não em qualquer parte.

      Talvez simplesmente entrasse na floresta, se deitasse e morresse. Pareceu-lhe uma boa idéia. A temperatura era agradável, as árvores estavam verdes e douradas; teria um fim cheio de paz. Sua única mágoa seria não ter descoberto mais coisas sobre seu pai antes de morrer.

      Estava se imaginando deitado num leito de folhas de outono e mergulhando delicadamente nos braços da morte, quando viu sua mãe atravessar a ponte. Ela puxava um cavalo.

      Levantou-se e correu até ela. O cavalo, na verdade era a égua alazã que sempre montava.

      - Quero que você leve minha égua - disse. Ele apertou-lhe a mão, agradecido.

      Os olhos de Ellen encheram-se de lágrimas.

      - Nunca tomei conta de você muito bem - disse. - Primeiro o criei na floresta. Depois quase o deixei morrer de fome com Tom. E depois o fiz viver com Alfred.

      - Você tomou conta de mim muito bem, mãe - disse ele. - Fiz amor com Aliena hoje de manhã. Agora posso morrer feliz.

      - Menino bobo! Exatamente como eu. Se não pode ter o amante que quer, não se interessa por mais ninguém.

      - É assim que você é?

      Ela balançou a cabeça.

      - Depois que seu pai morreu, preferi viver sozinha, em vez de aceitar um pretendente qualquer. Nunca quis outro homem até ver Tom. E isso foi onze anos depois. - Ela retirou a mão da sua. - Estou lhe dizendo isso por uma razão: pode ser que demore onze anos, mas você amará outra mulher um dia; eu lhe garanto.

      Ele sacudiu a cabeça.

      - Isto não parece possível.

      - Eu sei. - Ela olhou nervosamente por cima do ombro, na direção da cidade. - É melhor você ir.

      Jack encaminhou-se para a égua. Estava carregada com dois alforjes muito cheios.

      - O que há nesses sacos? - perguntou.

      Um pouco de comida, dinheiro e vinho, neste aqui - respondeu ela. - O outro tem as ferramentas de Tom.

      Jack ficou comovido. Sua mãe insistira em guardar as ferramentas de Tom, depois de ele morrer, como lembrança. Agora as estava dando para ele. Abraçou-a.

      - Muito obrigado.

      - Para onde você irá? - perguntou ela.

      Ele pensou de novo no pai.

      - Onde os menestréis contam suas histórias?

      - Na estrada dos peregrinos de Santiago de Compostela.

      - Acha que os menestréis se lembrarão de Jack Shareburg?

      - É possível. Diga que se parecia com você.

      - Onde fica Santiago de Compostela?

      - Na Espanha.

      - Então vou para a Espanha.

      - É uma longa viagem, Jack.

      - Tenho bastante tempo.

      Ela passou os braços em volta do filho e o abraçou com força. Jack perguntou-se quantas vezes ela fizera aquilo nos seus dezoito anos de vida, consolando-o por causa de um joelho ralado, um brinquedo perdido, um desapontamento infantil... e agora por uma dor essencialmente adulta. Pensou nas coisas que ela fizera, desde criá-lo na floresta até tirá-lo da cela. Sempre estivera disposta a lutar pelo filho como uma leoa. Doía ter que deixá-la.

      Ela o libertou. Ele montou.

      Jack olhou para Kingsbridge. Era uma aldeia atrasada, com uma catedral em ruínas quando chegara ali. Ateara fogo à velha catedral, embora ninguém soubesse disso. Agora Kingsbridge era uma cidadezinha operosa, que se atribuía bastante importância. Bem, havia outras cidades. Abandonar Kingsbridge era uma separação dolorosa, mas ele estava no limiar do desconhecido, prestes a embarcar numa aventura, e isso amenizava a dor de abandonar tudo o que amava.

      - Volte um dia, por favor, Jack - pediu Ellen.

      - Eu voltarei.

      - Promete?

      - Prometo.

      - Se ficar sem dinheiro antes de encontrar trabalho, venda o cavalo, não as ferramentas - disse ela.

      - Eu a amo, mãe.

      Os olhos dela se encheram de lágrimas.

      - Tome cuidado, filho.

      Ele bateu com os calcanhares na montaria e foi embora. Virou-se e acenou. Ela acenou também. Então ele forçou a égua a trotar e depois não olhou mais para trás.

     

      Richard chegou em casa justo a tempo para o casamento.

      Estêvão lhe dera, generosamente, dois dias de licença, explicou. O exército do rei estava em Oxford, sitiando o castelo onde tinham encurralado Matilde, de modo que não havia muita coisa para os cavaleiros fazerem.

      - Eu não podia perder o casamento da minha irmã - disse Richard, fazendo Aliena pensar, amargamente: Você só queria ter certeza absoluta de que o trato era cumprido, para poder receber o que Alfred lhe prometeu.

      Ainda assim, ficou contente porque ele estava ali para entrar com ela na igreja e entregá-la ao noivo. De outro modo não teria ninguém.

      Vestiu uma camisa de baixo nova, de linho, e um vestido branco no estilo mais recente. Não havia muito que pudesse fazer com seu cabelo mutilado, mas mesmo assim trançou as partes mais compridas e as prendeu com elegantes lenços brancos de seda. Uma vizinha emprestou um espelho. Estava pálida, e seus olhos mostravam que passara a noite em claro. Bem, não havia nada que pudesse fazer a esse respeito. Richard a observava. Sua expressão era vagamente envergonhada, como se se sentisse culpado, e ele se remexia sem parar. Talvez tivesse medo que ela fosse cancelar tudo no último minuto.

      Havia momentos em que se sentia inclinada a fazer justamente isso. Imaginava-se saindo de Kingsbndge de mãos dadas com Jack, a fim de começar vida nova em algum outro lugar, uma vida simples de trabalho honesto, livre dos grilhões de antigos juramentos e pais mortos. Mas era um sonho tolo. Nunca poderia ser feliz se abandonasse o irmão.

      Ao chegar a essa conclusão, imaginou-se descendo até o rio e atirando-se nas suas águas, e chegou a ver seu corpo imóvel, o vestido do casamento encharcado, descendo a correnteza, o rosto virado para cima, o cabelo flutuando em torno da cabeça; então concluiu que se casar com Alfred era melhor que aquilo e voltou para o ponto inicial, considerando o casamento como a melhor solução disponível para a maioria dos seus problemas.

      Como Jack faria pouco de um pensamento desses!

      O sino da igreja soou.

      Aliena se levantou.

      Ela nunca visualizara o dia do seu casamento daquele jeito. Quando pensava nele, nos tempos de menina, imaginava-se de braço com o seu pai, caminhando da fortalezado castelo pela ponte levadiça até a capela no pátio inferior, com os cavaleiros e homens de armas, criados e moradores amontoados por toda parte para gritar vivas e lhe desejar felicidades. O rapaz à sua espera na capela sempre fora indistinto no seu devaneio, mas sabia que a adorava e a fazia rir e que o achava maravilhoso.

      Bem. Nada em sua vida acontecera do jeito que esperara. Richard manteve aberta a porta da sua pequena casa de um único cómodo e ela saiu.

      Para sua surpresa, alguns vizinhos esperavam do lado de fora de suas portas para vê-la passar. Diversas pessoas exclamaram: "Deus a abençoe!" e "Boa sorte!" quando apareceu. Sentiu-se terrivelmente grata a elas. Jogaram-lhe milho enquanto subia a rua. Milho era para sua fertilidade. Teria filhos, e eles a amariam.

      A igreja da paróquia ficava do outro lado da cidade, no bairro rico, onde passaria a morar a partir daquela noite. Passaram pelo mosteiro. Os monges estariam realizando um dos seus serviços naquele momento, mas o prior Philip prometera aparecer no banquete nupcial e abençoar o feliz casal. Aliena esperava que ele fosse mesmo. Ele tinha sido uma força importante na sua vida, desde aquele dia, seis anos antes, quando comprara lã para ela em Winchester.

      Chegaram à igreja nova, construída por Alfred com a ajuda de Tom. Havia uma multidão do lado de fora. O casamento seria celebrado na varanda, em inglês; haveria depois uma missa em latim no interior da igreja. Todos que trabalhavam para Alfred estavam ali, da mesma forma como a maioria das pessoas que haviam tecido para Aliena nos velhos tempos. Todos aplaudiram quando ela chegou.

      Alfred estava aguardando, com a irmã, Martha, e um dos seus pedreiros, Dan. Envergava uma túnica escarlate nova e botas limpas. Seu cabelo era comprido e brilhante, como o de Ellen. Aliena percebeu que ela não estava. Ficou desapontada. Ia perguntar a Martha onde se encontrava sua madrasta quando o sacerdote apareceu e a cerimônia começou.

      Aliena se lembrou de que sua vida tomara um novo rumo seis anos antes, quando fizera um juramento para o pai, e de que agora uma nova era se iniciava com outro juramento a um homem. Raramente fazia algo para si. A exceção chocante fora aquela manhã, com Jack. Ao rememorar o que fizera, mal pôde crer. Parecia um sonho, ou uma das histórias fantásticas de Jack, algo sem ligação com a vida real. Jamais contaria o que se passara. Seria um segredo lindo que guardaria para si própria e de que se lembraria de vez em quando, como um avarento contando um tesouro oculto na calada da noite.

      Estavam chegando aos votos. Seguindo a indicação do padre, Aliena disse:

      - Alfred, filho de Tom Construtor, eu o tomo como marido e juro ser fiel para sempre. - Ao dizer isso teve vontade de chorar.

      Alfred fez seu juramento em seguida. Ouviu-se um barulho entre as pessoas mais afastadas enquanto ele falava, e uma ou duas pessoas olharam para trás. Aliena atraiu a atenção de Martha, que lhe cochichou:

      - É Ellen.

      O padre fez uma expressão de desagrado.

      - Alfred e Aliena estão agora casados aos olhos de Deus - disse ele -, e possa a bênção...

      Nunca concluiu a frase. Uma voz alta fez-se ouvir às costas de Aliena.

      - Eu amaldiçoo este casamento!

      Era Ellen.

      Um frêmito de horror escapou da boquiaberta congregação. O padre tentou continuar.

      - E possa a bênção. .. - Mas se calou, pálido, e fez o sinalda-cruz.

      Aliena se virou. Ellen estava de pé, à sua retaguarda. A multidão se afastara, abrindo-lhe espaço. Ela segurava um galo vivo numa das mãos e uma faca comprida na outra. Havia sangue na faca e sangue jorrando do pescoço da ave.

      - Amaldiçôo este casamento com infortúnio - disse, e suas palavras gelaram o coração de Aliena. - Amaldiçôo este casamento com esterilidade. Amaldiçôo este casamento com amargura, ódio, com a angústia causada pela privação e pelo arrependimento. Eu o amaldiçôo com a impotência. - Quando ela disse a palavra "impotência", arremessou o galo sangrando no ar. Diversas pessoas gritaram e recuaram, amedrontadas. O galo voou, esparzindo sangue, e pousou em Alfred, que deu um pulo para trás, aterrorizado.

      Aquela coisa horrenda caiu no chão, ainda sangrando.

      Quando todos levantaram a cabeça, Ellen tinha ido embora.

     

      Martha trocara os lençóis e pusera um novo tapete de lã na cama, a grande cama de penas que fora de Ellen e Tom e que agora era de Alfred e Aliena. Sua madrasta não fora vista desde a cerimônia do casamento. O banquete fora uma coisa contida, como um piquenique num dia frio, com todo mundo executando melancolicamente o ritual de comer e beber, porque não havia mais nada a fazer. Os convidados tinham ido embora ao pôr-do-sol, sem nenhuma das habituais e grosseiras piadas sobre a primeira noite dos recém-casados. Martha foi para sua caminha no outro quarto. Richard retornara à pequenina casa de Aliena, que agora seria dele.

      Alfred estava falando em construir uma casa de pedra para eles no verão seguinte. Estivera se gabando dela com Richard, durante o banquete. "Terá um quarto de dormir, um salão e uma galeria", dissera. "Quando a mulher de John Prateiro a vir vai querer uma igual. Logo, logo, todos os homens prósperos de Kingsbridge vão querer uma casa de pedra."

      "Você já fez o projeto?", perguntara Richard, e Aliena percebera em sua voz uma ponta de ceticismo, embora ninguém mais parecesse ter notado.

      "Tenho alguns desenhos antigos de meu pai, feitos a tinta em velino. Um desses desenhos é a casa que começamos a construir para Aliena e William Hamleigh, há muito tempo. Eu o tomarei como base."

      Aliena afastara-se deles, enojada. Como poderia alguém ser tão grosso ao ponto de mencionar aquilo no dia do seu casamento? Alfred andara fanfarronando a tarde inteira, servindo vinho, contando piadas e trocando piscadelas maliciosas com os seus colegas. Parecia feliz.

      Agora estava sentado na beirada da cama, descalçando as botas. Aliena tirou as fitas do cabelo. Não sabia o que pensar quanto à maldição de Ellen. Aquilo a deixara chocada, e não tinha idéia do que ela teria em mente, mas, fosse como fosse, não se apavorara como a maioria das pessoas.

      O mesmo não podia ser dito de Alfred. Quando o galo ensanguentado batera nele, o rapaz desandara a falar de forma incompreensível e sem parar, até que Dan literalmente o arrancara daquele estado, segurando-o pela parte da frente da túnica e sacudindo-o. Ele se recuperara bastante depressa, contudo, e desde então o único indício do seu medo tinha sido sua excessiva animação, bebendo sofregamente cerveja e mostrando-se amistoso demais.

      Aliena sentia uma estranha calma. Não gostava do que estava prestes a fazer, mas pelo menos não estava sendo forçada, e, embora pudesse ser um pouco desagradável, não seria humilhante. Haveria apenas um único homem e ninguém mais olhando.

      Tirou o vestido.

      - Por Cristo, é uma faca comprida - disse Alfred.

      Ela desamarrou a tira que prendia a faca ao antebraço esquerdo e foi para a cama com a camisa.

      Alfred por fim tirou as botas, tirou as meias e pôs-se de pé. Lançou-lhe um olhar lúbrico.

      - Tire a roupa de baixo - disse. - Tenho o direito de ver os peitos de minha mulher.

      Aliena hesitou. Relutou em ficar nua, fosse qual fosse o motivo. Mas seria tolice negar-lhe a primeira coisa que queria. Obediente, sentou-se e tirou a camisa de baixo, puxando-a pela cabeça e procurando suprimir com energia a lembrança de como havia se sentido de modo diferente quando fizera a mesma coisa, ainda naquela manhã, para Jack.

      - Que par de belezas! - disse Alfred. Ele aproximou-se, parou do lado da cama e segurou o seio direito. A pele das suas mãos enormes era áspera, com sujeira embaixo das unhas. Ele apertou com força demais e ela estremeceu. Alfred riu e soltou-a. Recuou, tirou a túnica e pendurou-a num gancho. Voltou para a cama e tirou a coberta de cima dela.

      Aliena engoliu em seco. Sentia-se vulnerável daquele jeito, nua e examinada por ele.

      - Meu Deus - disse Alfred - como é peluda! - Ele abaixou-a e pôs a mão entre suas pernas. Ela retesou-se, mas depois se obrigou a relaxar e abriu os joelhos. - Boa garota - disse ele, e enfiou um dedo dentro dela. Doeu; Aliena estava seca. Ela não conseguiu entender; ainda naquela manhã, com Jack, estivera molhada e escorregadia.

      Alfred resmungou e enfiou o dedo com mais força.

      Aliena teve vontade de chorar. Sabia que não ia gostar, mas não esperava que ele fosse ser tão insensível. Nem a beijara ainda. Ele não me ama, pensou; nem mesmo gosta de mim. Sou um cavalo bonito que está prestes a montar. Na verdade trataria um cavalo melhor que isso: daria palmadinhas no animal e o afagaria, para que pudesse se acostumar com ele, e falaria baixinho para acalmá-lo. Esforçou-se para conter as lágrimas. Fui eu que escolhi isso, pensou; ninguém me obrigou a casar com ele, de modo que agora tenho que aguentar.

      - Seca como pó de serragem - resmungou Alfred.

      - Sinto muito - sussurrou ela.

      Ele tirou a mão, cuspiu nela por duas vezes e esfregou a saliva entre suas pernas. Pareceu uma coisa horrivelmente desrespeitosa. Ela mordeu o lábio e desviou os olhos.

      Alfred abriu suas coxas. Aliena fechou os olhos, mas se obrigou a fitá-lo pensando: Vá se acostumando com isso, porque é o que vai fazer o resto da vida.

      Alfred foi para a cama e ajoelhou-se entre as suas pernas. A sombra de uma preocupação cruzou-lhe o rosto. Pôs uma das mãos entre as coxas dela, abrindo-a mais, e enfiou a outra sob a própra camisa de baixo. Ela pôde ver que a mão dele se movimentava sob o pano. A preocupação dele agravou-se.

      - Cristo Jesus! - murmurou. - Você é tão sem vida que me deixa desinteressado; é como estar apalpando um cadáver.

      Pareceu-lhe profundamente injusto que ele a culpasse.

      - Não sei o que devo fazer! - exclamou, em lágrimas.

      - Algumas garotas gostam.

      Gostam! Impossível! Depois se lembrou de como, naquela manhã mesmo, gemera e gritara de prazer. Mas era como se não houvesse ligação entre o que fizera de manhã e o que estava fazendo agora.

      Aquilo era tolice. Alfred estava se esfregando por baixo da camisa.

      - Deixe comigo - disse ela, enfiando a mão por entre as pernas dele. Seu pênis estava mole e sem vida. Não tinha certeza do que fazer. Apertou com delicadeza, depois fez carinho com a ponta dos dedos. Examinou o rosto dele, em busca de uma reação. Alfred só parecia furioso. Continuou, mas não fez diferença.

      - Faça com mais força - disse ele.

      Ela começou a esfregar vigorosamente. O pênis continuou mole, mas Aliena mexeu os quadris, como se estivesse gostando. Encorajada, esfregou com mais força. De repente ele deu um grito de dor e se afastou.

      - Sua vaca estúpida! - disse, e bateu-lhe no rosto, com o dorso da mão, tão violentamente que a fez girar de lado.

      Aliena deixou-se ficar deitada na cama, chorando de dor e de medo.

      - Você não presta, está amaldiçoada! - disse ele furiosamente.

      - Fiz o melhor que pude!

      - Você não funciona como mulher! - exclamou, com veemência. - Sua boceta está morta! - Ele a segurou pelos braços, obrigou-a a sentar-se e empurrou-a para fora da cama. Ela caiu na palha que havia sobre o chão. - Aquela bruxa queria que isso acontecesse - disse ele. - Sempre me odiou.

      Aliena rolou e ajoelhou-se no chão, olhando para ele. Não parecia que fosse bater nela de novo. Não estava mais com raiva, só amargurado.

      - Pode ficar aí mesmo - disse ele. - Você não me serve como mulher, de modo que pode ficar fora da minha cama. Como um cachorro, pode dormir no chão! - Fez uma pausa. - Não suporto que fique olhando para mim! - exclamou, com uma nota de pânico na voz. Procurou o lampião e, ao encontrá-lo, apagou-o com um sopro e derrubou-o no chão.

      Aliena ficou imóvel na escuridão. Ouviu Alfred se mexer no colchão de penas, deitando-se, puxando o cobertor e trocando os travesseiros. Tinha medo até de respirar.

      Ele ficou irrequieto por longo tempo, mexendo-se e virando na cama, mas não se levantou de novo, nem falou com ela. Acabou por ficar imóvel, com a respiração uniforme.

      Quando teve certeza, de que ele estava dormindo, rastejou pelo chão, tentando fazer a palha não estalar, e encontrou o caminho para um canto.

      Encolheu-se ali e permaneceu inteiramente acordada. Com o tempo, acabou por chorar. Tentou conter-se, com medo de acordá-lo, mas não foi possível segurar as lágrimas, e soluçou baixinho. Se o barulho o acordou, ele não deu sinal. Aliena ficou deitada sobre a palha do chão, num canto do quarto, chorando, até que por fim dormiu.

     

      Aliena esteve doente todo aquele inverno.

      Dormiu mal todas as noites, enrolada na sua capa no chão, ao pé da cama de Alfred, e durante o dia era dominada por uma lassidão contra a qual nada conseguia fazer.

      Com frequência se sentia enjoada, e por isso comia muito pouco, mas assim mesmo parecia ganhar peso; tinha certeza de que seus seios e seus quadris estavam maiores, e sua cintura, mais grossa.

      Deveria estar dirigindo a casa de Alfred, mas era Martha quem na verdade fazia a maior parte do trabalho. Os três moravam juntos num triste arremedo de família.

      Martha jamais gostara do irmão, e Aliena agora o abominava com todas as forças, de modo que não era de estranhar que ele passasse a maior parte do tempo possível longe da casa, no trabalho durante o dia e na cervejaria todas as noites. Martha e Aliena compravam os gêneros e faziam comida sem o menor entusiasmo; à noite, costuravam.

      Aliena ansiava pela chegada da primavera, quando a temperatura mais uma vez seria quente o bastante para ir visitar sua clareira secreta nas tardes de domingo. Ali poderia ficar em paz e pensar em Jack.

      Por enquanto, seu consolo era Richard. Ele tinha um corcel negro fogoso, uma espada nova e um escudeiro com um pônei, e mais uma vez lutava pelo rei Estêvão, embora com um grupo reduzido. A guerra se arrastava por mais um ano: Matilde fugira do Castelo de Oxford e escapara novamente das mãos de Estêvão; o irmão dela, Robert de Gloucester, reconquistara Wareham, e assim tinha prosseguimento a velha gangorra, com cada lado ganhando um pouco e perdendo logo em seguida. Mas Aliena estava cumprindo sua palavra, e podia encontrar satisfação nisso, mesmo que nada mais a deixasse feliz.

      Na primeira semana do ano Martha teve a primeira menstruação. Aliena a fez tomar uma bebida quente feita com ervas e mel para abrandar as cólicas, respondeu a suas perguntas sobre o assunto e foi pegar a caixa de panos que tinha para as suas regras. A caixa, contudo, não estava em casa, e constatou que não a trouxera quando se casara. Mas isso fora há três meses.

      O que significava que não menstruava há três meses. Desde o dia do seu casamento. Desde que fizera amor com Jack.

      Deixou Martha sentada junto do fogo da cozinha, tomando sua bebida de mel e brindando aos dedos dos pés, e atravessou a cidade até sua antiga casa. Richard não se encontrava, mas Aliena tinha uma chave. Encontrou a caixa sem nenhuma dificuldade, mas não voltou na mesma hora. Sentou-se em frente à lareira apagada, embrulhada na sua capa, imersa em profunda meditação.

      Tinha se casado com Alfred no dia de são Miguel, 29 de setembro. Agora já passara o Natal. Decorrera um quarto de ano. Três luas novas. Deveria ter menstruado três vezes. No entanto, sua caixa de panos estava na prateleira mais alta, junto com a pedra que Richard usava para amolar as facas de cozinha. Aliena estava com a caixa no colo. Passou um dedo pela madeira áspera. O dedo ficou sujo. A caixa estava coberta de poeira.

      O pior de tudo era que nunca fizera amor com Alfred. Depois daquela horrível primeira noite, ele tentara de novo três vezes: uma, na noite seguinte, depois uma semana mais tarde, e novamente após um mês, numa noite em que chegara em casa mais bêbado que de costume. Mas sempre se mostrara incapaz. A princípio Aliena o encorajara, por sentimento de dever; cada fracasso, porém, o deixava mais furioso que da última vez, e ela acabou por se amedrontar. Parecia mais seguro ficar fora do seu caminho e usar roupas não atraentes, deixando que ele se esquecesse. Agora se perguntava se deveria ter tentado mais. Na verdade, contudo, sabia que não faria diferença.

      Não sabia ao certo por quê - talvez pela praga de Ellen, talvez pela possibilidade de Alfred ser simplesmente impotente, ou talvez por causa da lembrança de Jack -, mas tinha certeza de que o marido nunca iria fazer amor com ela.

      Claro que ele ia saber que o bebê não era seu.

      Desolada, olhou fixamente para as cinzas velhas e frias na lareira de Richard, perguntando-se por que tivera tanta falta de sorte. Estava tentando fazer o melhor que podia de um mau casamento e tinha o azar de ser engravidada por outro homem, após uma única relação.

      Não adiantava ter autopiedade. Precisava decidir o que fazer.

      Repousou a mão no ventre. Sabia agora por que estava ganhando peso, por que vivia se sentindo enjoada, por que estava sempre tão cansada. Havia uma pequena pessoa dentro dela. Sorriu para si própria. Seria bom ter um filho.

      Sacudiu a cabeça. Não seria bom coisa alguma. Alfred ficaria furioso como um touro. Impossível antecipar o que faria - matá-la, expulsá-la de casa, matar a criança... teve uma premonição terrível e repentina de que ele tentaria fazer mal ao bebê ainda não nascido chutando sua barriga. Enxugou a testa: estava suando frio.

      Não direi a ele, pensou.

      Poderia conservar a gravidez em segredo? Talvez. Já estava acostumada a usar roupas sem forma, que mais pareciam sacos. Talvez seu ventre não crescesse muito - isso acontecia com algumas mulheres. Alfred era o menos observador dos homens. Sem dúvida, as mulheres mais espertas da cidade iriam adivinhar, mas provavelmente podia confiar que guardassem o que descobrissem para si próprias, ou que pelo menos não falassem com os homens a esse respeito. Sim, decidiu, talvez fosse possível esconder a gravidez dele até que o bebê nascesse.

      E depois? Bem, pelo menos o pequenino teria sido trazido em segurança a este mundo. Alfred não poderia matá-lo chutando Aliena. Mas ainda continuaria sabendo que não era seu filho. com certeza iria odiar o pobrezinho: representaria um estigma permanente sobre a sua virilidade. Seria um inferno.

      Aliena não era capaz de pensar com tanta antecedência. Decidira-se pela linha de ação mais segura nos seis meses seguintes. Nesse meio tempo tentaria imaginar o que fazer após o nascimento do bebê.

      Eu gostaria de saber se é menino ou menina, pensou.

      Levantou-se com a sua caixa de panos limpos para a primeira menstruação de Martha. Tenho pena de você, Martha, pensou, fatigada; tem tudo isso à sua frente.

     

      Philip passou aquele inverno ruminando sobre seus problemas.

      Tinha ficado horrorizado com a praga pagã de Ellen, proferida numa igreja durante uma cerimônia religiosa. Não havia agora a menor dúvida em sua cabeça de que ela era uma feiticeira. Só lamentava sua tolice por tê-la perdoado pelo insulto à Regra de São Bento, muito tempo antes. Deveria ter visto que uma mulher capaz de fazer uma coisa daquelas nunca se arrependeria realmente. No entanto, uma feliz consequência de todo aquele negócio horrível fora Ellen ter deixado Kingsbridge mais uma vez, não sendo vista desde então. Philip tinha ardentes esperanças de que jamais voltasse.

      Aliena era visivelmente infeliz como mulher de Alfred, embora Philip não acreditasse que a causa fosse a praga. O prior não sabia quase nada a respeito da vida de casado, mas podia adivinhar que uma pessoa inteligente, culta e cheia de vida como Aliena teria que ser infeliz com alguém de raciocínio tão lerdo e obtuso quanto Alfred, fossem marido e mulher ou qualquer outra coisa.

      A jovem deveria ter se casado com Jack, claro. Philip podia ver isso agora, e se sentia culpado por ter se dedicado tanto a seus planos para o rapaz que não se dera conta do que ele realmente precisava. Jack não fora talhado para a vida no claustro e Philip agira mal, pressionando-o. Agora o brilho da sua inteligência e a sua energia estavam perdidos para Kingsbridge.

      Tudo parecia ter saído errado desde o desastre da feira de lã. O priorado devia mais do que nunca. Philip demitira metade do efetivo de operários por não ter mais dinheiro para o pagamento dos salários. Em consequência, a população da cidade se reduziu, e portanto o mercado de domingo tornou-se menor e a renda dos aluguéis também diminuiu. Kingsbridge seguia por uma espiral descendente.

      O coração do problema era o moral dos habitantes. Embora tivessem reconstruído suas casas e reiniciado seus pequenos negócios, as pessoas não tinham confiança no futuro. O que quer que planejassem ou construíssem poderia ser destruído num dia por William Hamleigh, se ele resolvesse atacar de novo. Essa insegurança estava presente no pensamento de todos e paralisava qualquer empreendimento.

      Com o tempo Philip viu que tinha de fazer algo para interromper o declínio. Precisava de um gesto dramático para dizer ao mundo em geral, e ao povo de Kingsbridge em particular, que a cidade estava reagindo. Passou muitas horas em meditação e prece tentando decidir que gesto poderia ser.

      O que precisava realmente era de um milagre. Se os ossos de santo Adolfo curassem uma princesa atacada da praga ou fizessem com que um poço de água salobra passasse a dar água potável, haveria grandes peregrinações a Kingsbridge. Mas o santo não realizava milagres há anos. Philip às vezes se perguntava se os seus métodos firmes e práticos de administrar o priorado desagradariam ao santo, pois os milagres pareciam acontecer mais frequentemente em lugares onde se exercesse o poder com menos sensatez e a atmosfera estivesse embebida de fervor religioso, quando não de rematada histeria. Mas Philip aprendera numa escola mais terra-a-terra. Padre Peter, o abade do seu primeiro mosteiro, costumava dizer: "Reze por milagres, mas plante repolhos".

      O símbolo da vida e do vigor de Kingsbridge era a catedral. Se ao menos ela pudesse ser terminada por milagre! Uma vez ele rezara a noite inteira pedindo por um, mas de manhã o coro ainda estava sem telhado e sujeito ao tempo e as paredes altas continuavam sem ter acabamento nos pontos onde se encontrariam com as paredes dos transeptos.

      Philip ainda não contratara um novo mestre construtor. Ficara chocado ao saber quanto exigiam de salário: nunca se dera conta de como Tom cobrava pouco. De qualquer modo, Alfred estava dirigindo a reduzida força de trabalho sem muita dificuldade. O rapaz tornara-se um tanto taciturno após o casamento, como um homem que derrota muitos rivais para ser rei e depois descobre que a coroa é um fardo extremamente tedioso. No entanto, tinha autoridade e era decidido, e os outros homens o respeitavam.

      Mas Tom deixara um vácuo que não podia ser preenchido. Philip sentia falta dele pessoalmente, não só como mestre construtor.

      Tom era uma pessoa que se interessava em por que as igrejas tinham de ser construídas de um jeito e não de outro, e o prior gostava de especular, juntamente com ele, sobre os motivos pelos quais alguns edifícios ficavam de pé enquanto outros caíam. Não fora um homem excepcionalmente devoto, mas de vez em quando fazia a Philip perguntas sobre teologia que demonstravam que dirigia uma parte substancial da sua inteligência à religião, do mesmo modo como à construção. A cabeça do construtor se assemelhava à de Philip. O prior era capaz de conversar com ele de igual para igual. Havia poucas pessoas assim na vida do religioso. Jack fora uma delas, apesar da pouca idade; Aliena era outra, mas ela desaparecera, com o seu lamentável casamento. Cuthbert Cabeça Branca estava ficando velho, e Milius Tesoureiro passava a maior parte do tempo longe do priorado, visitando as fazendas de criação de ovelhas, contando acres, ovelhas e sacos de lã. com o tempo, um priorado cheio de vida e atividades numa próspera cidade que tivesse uma catedral atrairia estudiosos, do mesmo modo como um exército conquistador atrai combatentes. Philip ansiava para que chegasse esse tempo. Só que nunca chegaria, se não encontrasse um modo de instilar novamente energia em Kingsbridge.

      - Este inverno está sendo brando - disse-lhe Alfred uma manhã, logo após o Natal. - Podemos começar mais cedo que o usual.

      Isso fez com que Philip começasse a pensar. A abóbada do teto seria construída naquele verão. Quando estivesse pronta, o coro teria condições de ser usado, e Kingsbridge já não seria uma cidade sem catedral. O coro era a parte mais importante da igreja: também chamado de "santuário", era reservado ao clero. O altar-mor e as relíquias sagradas ficavam na extremidade leste, chamada de "presbitério" ou "capela-mor", e a maior parte dos serviços tinham lugar no coro propriamente dito, onde se sentavam os monges. Só nos domingos e dias santos o resto da igreja era usado. Uma vez que o coro tivesse sido consagrado, aquilo que era um canteiro de obras passaria a ser uma igreja, mesmo que inacabada.

      Era uma pena que tivessem de esperar quase um ano para que isso acontecesse. Alfred prometera concluir o teto no final da estação de construção, ou seja, em novembro, dependendo do tempo. Mas quando Alfred disse que seria possível começar mais cedo, Philip começou a especular se não haveria uma chance de terminar mais cedo também.

      Todo mundo ficaria surpreso se a igreja pudesse ser inaugurada naquele verão. Era a espécie de coisa pela qual andara esperando; algo que espantasse todo o condado e espalhasse a mensagem de que Kingsbridge não podia ser esmagada por muito tempo.

      - Pode terminar antes de Pentecostes? - perguntou Philip impulsivamente.

      Alfred inspirou o ar através dos dentes e ficou pensando.

      - A construção de abóbadas é o trabalho mais especializado de todos - disse. - Não pode ser apressado, e não se pode deixar que aprendizes o façam.

      Seu pai teria respondido sim ou não, pensou Philip, irritado.

      - E se eu lhe desse mais gente para trabalhar... monges? Quanto isso significaria, em termos de ajuda?

      - Pouco. Na verdade preciso de mais pedreiros.

      - Eu poderia lhe dar mais um ou dois - disse Philip precipitadamente. Um inverno brando significava tosquia antecipada, de modo que podia esperar começar a vender lã mais cedo que o normal.

      - Não sei. - Alfred ainda estava pessimista.

      - Suponha que eu ofereça aos pedreiros uma gratificação - disse Philip. - Uma semana extra de salários se a abóbada estiver pronta no Domingo de Pentecostes.

      - Nunca ouvi falar numa coisa dessas - disse Alfred, dando a impressão de ter acabado de tomar conhecimento de uma sugestão inconveniente.

      - Bem, há uma primeira vez para tudo - disse Philip, irritado. A cautela do rapaz estava lhe dando nos nervos. - O que você me diz?

      - Não posso dizer sim ou não a isso - respondeu Alfred, impassível. - Vou colocar a questão para os homens.

      - Hoje? - perguntou Philip, impaciente.

      - Hoje.

      Philip tinha que se satisfazer com isso.

     

      William Hamleigh e seus cavaleiros chegaram ao palácio do bispo Waleran logo atrás de um carro de boi carregado com uma pilha muito alta de sacos de lã. A nova estação de tosquia começara. Como William, Waleran estava comprando lã dos fazendeiros aos preços do ano anterior na expectativa de vender por um valor consideravelmente maior. Nenhum dos dois tivera muito problema para obrigar seus locatários a vender-lhes: uns poucos camponeses que os haviam desafiado tinham sido expulsos das terras que ocupavam, e as casas em que moravam, queimadas; após isso não houve mais rebeldes.

      Ao passar pelo portão, William ergueu os olhos para o topo da colina. As muralhas do castelo, que tinham sido apenas iniciadas sete anos antes, lá estavam, inacabadas, como um lembrete permanente do castelo que o bispo nunca chegara a construir e de como fora derrotado pela esperteza do prior Philip. Assim que Waleran começasse a colher os frutos do negócio da lã, provavelmente recomeçaria a obra. No tempo do velho rei Henrique, um bispo não precisava de mais defesas que uma frágil cerca de estacas de madeira por trás de uma pequena vala ao redor do palácio. Agora, após cinco anos de guerra civil, homens que nem mesmo eram condes ou bispos estavam construindo castelos formidáveis.

      As coisas estavam indo bem de novo para Waleran, pensou William amargurado quando desmontou no estábulo. Permanecera leal ao bispo Henry de Winchester através de todas as suas mudanças de lado, e como resultado tornara-se um dos mais íntimos aliados de Henry. Com o decorrer dos anos, Waleran enriquecera com um fluxo contínuo de propriedades e privilégios e visitara Roma por duas vezes.

      William não tivera tanta sorte - daí seu mau humor. A despeito de ter acompanhado Waleran em todas as suas trocas de lealdade, e a despeito também de ter fornecido grandes exércitos a ambos os lados na guerra civil, ainda não fora confirmado como conde de Shiring. Estivera ruminando a esse respeito durante uma pausa nos combates e ficara tão furioso que decidira ter um confronto com Waleran.

      Subiu as escadas para o salão, seguido por Walter e os outros cavaleiros. O camareiro de guarda do outro lado da porta estava armado, outro sinal dos tempos. O bispo Waleran encontrava-se sentado numa cadeira grande no meio da sala, como sempre, com os braços e pernas ossudos em todos os ângulos, como se tivesse sido largado ali de qualquer maneira. Baldwin, agora arcediago, de pé ao lado dele, dava a impressão de que poderia estar aguardando instruções, pela sua atitude. O bispo estava olhando para o fogo, imerso em seus pensamentos, mas ergueu a cabeça rapidamente quando William se aproximou.

      Hamleigh sentiu a repulsa de sempre quando cumprimentou Waleran e se sentou. As mãos suaves e finas do bispo, seu cabelo preto escorrido, a pele branca como a de um defunto e os olhos mortiços e malignos faziam-no arrepiar-se. Era tudo o que William odiava: insincero, fisicamente fraco, arrogante e inteligente.

      Podia afirmar que Waleran se sentia de modo muito parecido a seu respeito. Ele jamais escondera toda a aversão que sentia quando William entrava. O bispo sentou-se direito e cruzou os braços, seus lábios retorceram-se um pouco e ele franziu ligeiramente a testa: podia estar sentindo um início de indigestão.

      Falaram sobre a guerra por algum tempo. Foi uma conversa difícil, contrafeita, e William ficou aliviado quando foi interrompida por um mensageiro com uma carta escrita num rolo de pergaminho e selada com lacre. Waleran mandou que o mensageiro se dirigisse à cozinha, a fim de comer qualquer coisa. Não abriu a carta.

      William aproveitou a oportunidade para mudar de assunto.

      - Não vim aqui para trocar notícias sobre batalhas. Vim para lhe dizer que minha paciência se esgotou.

      Waleran ergueu as sobrancelhas e nada disse. Silêncio era a sua resposta a assuntos desagradáveis.

      - Faz três anos, quase - prosseguiu William, com dificuldade -, que meu pai morreu, mas o rei Estêvão ainda não me confirmou como conde. É ultrajante.

      - Concordo inteiramente - disse Waleran, apático. Brincou com a carta, examinando o lacre e mexendo na fita.

      - É bom que ache - retrucou Hamleigh -, porque vai ter que fazer alguma coisa a esse respeito.

      - Meu caro William, não posso nomeá-lo conde.

      O lorde antecipara que Waleran tomaria aquela atitude e estava determinado a não aceitá-la.

      - Você é ouvido pelo irmão do rei.

      - Mas o que vou dizer a ele? Que William Hamleigh serviu bem ao rei? Se for verdade, o rei sabe, e se não for, também.

      William não era páreo para o bispo em questões de lógica, de modo que simplesmente ignorou os argumentos.

      - Você me deve isso, Waleran Bigod.

      O bispo pareceu ficar ligeiramente aborrecido. Apontou para William com a carta.

      - Não lhe devo nada. Você sempre atendeu aos seus próprios objetivos, mesmo quando fez o que eu queria. Não há dívidas de gratidão entre nós.

      - Só lhe digo que não vou esperar mais.

      - E o que pretende fazer? - perguntou Waleran, com uma ponta de desdém.

      - Bem, primeiro eu mesmo irei ver o bispo Henry.

      - E depois?

      - Direi a ele que você tem sido surdo às minhas súplicas e que, em consequência, passarei para o lado de Matilde, a Imperatriz. - William ficou gratificado ao ver a expressão de Waleran mudar: ele empalideceu um pouquinho mais e pareceu um quase nada surpreso.

      - Mudar de novo? - disse Waleran ceticamente.

      - Só uma vez a mais que você - retrucou William, obstinado.

      A arrogante indiferença do bispo foi abalada, mas não muito.

      Sua carreira tinha sido grandemente beneficiada pela capacidade de fazer com que William e seus cavaleiros lutassem do lado que o bispo Henry estivesse favorecendo: seria um golpe para ele se de repente Hamleigh resolvesse ser independente embora não um golpe fatal. William examinou a fisionomia de Waleran enquanto este ponderava sobre tal ameaça. Foi capaz de ler os pensamentos do outro: o bispo estava pensando que queria conservar sua lealdade, mas que devia ver até que ponto teria de se esforçar.

      Para ganhar tempo, Waleran quebrou o selo da carta e a desenrolou. Enquanto a lia, um tênue rubor de cólera apareceu nas suas faces muito brancas.

      - Maldito! - exclamou, por entre os dentes.

      - O que é? - perguntou William. Waleran lhe passou a carta. Hamleigh examinou as letras.

      - À sua...  excelência...  reverendíssima...  o bispo...

      Waleran pegou o pergaminho de novo, impaciente com a leitura lenta de William.

      - É do prior Philip - disse. - Está me informando que o coro da nova catedral estará concluído no Domingo de Pentecostes, e tem o atrevimento de me suplicar para oficiar a missa.

      William ficou surpreso.

      - Mas como foi que ele conseguiu? Pensei que tivesse demitido metade dos operários!

      Waleran sacudiu a cabeça.

      - Não importa o que acontece, ele não afunda. - Lançou a William um olhar especulativo. - Ele o odeia, claro. Pensa que é o demônio reencarnado.

      William perguntou-se o que estaria se passando na mente tortuosa de Waleran.

      - E daí? - perguntou.

      - Seria um golpe e tanto para Philip se você fosse confirmado como conde de Shiring no Domingo de Pentecostes.

      - Você não faria isso por mim, mas para prejudicar Philip, claro - resmungou William, rabugento, mas na verdade cheio de esperanças.

      - Não posso fazer o que me pede, de modo algum. Mas falarei com o bispo Henry. - Ergueu os olhos para William, aguardando.

      O lorde hesitou. Por fim, relutantemente, resmungou:

      - Muito obrigado.

     

      A primavera foi fria, melancólica e até mesmo lúgubre naquele ano, e na manhã de Pentecostes estava chovendo. Aliena acordou no meio da noite com dor nas costas, que ainda a incomodava com uma pontada terrível de vez em quando. Sentou-se na cozinha fria, trançando o cabelo de Martha antes de irem para a igreja, enquanto Alfred comia um belo desjejum de pão branco, queijo macio e cerveja forte. Uma pontada particularmente aguda nas costas fez com que parasse e estremecesse. Martha percebeu e perguntou:

      - O que há?

      - Dor nas costas - respondeu Aliena, lacônica. Não queria discutir aquilo, pois a causa certamente era dormir no chão, no quarto dos fundos cheio de correntes de ar, e ninguém estava a par disso, nem mesmo Martha.

      A garota levantou-se e apanhou uma pedra quente no fogo. Aliena sentou-se. Martha embrulhou a pedra num pedaço velho de couro e a segurou de encontro às costas da cunhada. Aliena sentiu um alívio imediato. Martha começou a trançar-lhe o cabelo, que crescera de novo após ter sido queimado e se transformara numa massa indisciplinada de cachos escuros. Aliena sentiu-se mais calma.

      Ela e a cunhada tinham se tornado muito íntimas desde que Ellen se fora. Pobre Martha; primeiro perdera a mãe e depois a madrasta. Aliena se considerava uma pobre substituta para uma mãe. Além disso, era apenas dez anos mais velha que a cunhada. Na verdade, desempenhava o papel de irmã mais velha. O estranho naquilo tudo era que a pessoa cuja falta Martha mais sentia fosse Jack.

      No entanto, todo mundo sentia falta de Jack.

      Aliena perguntava-se por onde ele andaria. Podia estar bem perto, trabalhando numa catedral em Gloucester ou Salisbury. O mais provável é que tivesse ido para a Normandia. Mas poderia ter prosseguido para muito mais longe: Paris, Roma, Jerusalém ou Egito. Rememorando as histórias que os peregrinos contavam sobre tais lugares distantes, visualizava Jack num deserto, cinzelando pedras para uma fortaleza sarracena, sob um sol ofuscante. Estaria pensando nela agora?

      Seus pensamentos foram interrompidos por um tropel de cascos, e um momento depois Richard entrava, puxando o cavalo. Tanto ele quanto o animal estavam encharcados de suor e cobertos de lama. Sua irmã pegou um pouco de água quente no fogo para que lavasse o rosto e as mãos, e Martha levou o cavalo para o quintal. Aliena colocou pão e carne fria sobre a mesa da cozinha e serviu um copo de cerveja.

      - Quais são as notícias da guerra? - perguntou Alfred. Richard enxugou o rosto com um pedaço de pano e sentou-se para comer.

      - Fomos derrotados em Wilton - disse.

      - Estêvão foi capturado?

      - Não, escapou, assim como Matilde fugiu de Oxford. Estêvão agora está em Winchester, e Matilde em Bristol. Ambos lambem as feridas e consolidam seu poder nas áreas que controlam.

      As notícias pareciam sempre as mesmas, pensou Aliena. Um lado ou outro conquistava uma pequena vitória ou sofria uma pequena perda, mas nunca havia perspectiva alguma de fim da guerra.

      Richard olhou para ela.

      - Você está engordando - observou ele.

      Aliena aquiesceu e nada disse. Estava com oito meses de gravidez, mas ninguém sabia. Foi uma sorte que tivesse feito frio, permitindo-lhe continuar a usar várias camadas de roupas largas de inverno, ocultando as formas. Em mais algumas semanas o bebê nasceria, e a verdade viria à tona. Ainda não tinha idéia do que iria fazer então.

      O sino tocou, convocando os habitantes da cidade para a missa. Alfred enfiou as botas e lançou um olhar indagador para Aliena.

      - Não acho que possa ir - disse ela. - Sinto-me terrível.

      Ele deu de ombros indiferentemente e virou-se para seu irmão.

      - Você deveria ir, Richard. Todo mundo vai estar presente hoje; é a primeira missa na nova igreja.

      Richard ficou surpreso.

      - Você já acabou o teto? Pensei que fosse ser preciso o resto do ano.

      - Nós corremos. O prior Philip ofereceu aos homens uma semana extra de salários se pudessem terminar o serviço hoje. É impressionante como trabalharam depressa. Mesmo assim, só há pouco terminamos; retiramos as formas hoje de manhã.

      - Tenho que ver isso - disse Richard. Enfiou na boca o último pedaço de pão e de carne e se levantou.

      - Quer que eu fique com você? - perguntou Martha a Aliena.

      - Não, obrigada, estou bem. Vá você. Vou me recostar um pouco.

      Os três vestiram as capas e saíram. Aliena foi para o quarto dos fundos, levando consigo a pedra quente em seu envoltório de couro. Deitou-se na cama de Alfred com a pedra sob suas costas. Tornara-se terrivelmente letárgica desde que se casara. Antes, dirigia sua própria casa, ao mesmo tempo em que era a mais operosa mercadora de lã do condado; agora, tinha problemas em tomar conta da casa de Alfred, muito embora nada mais houvesse a fazer.

      Deixou-se ficar ali deitada, sentindo pena de si mesma por algum tempo, desejando dormir um pouco. De repente, sentiu um fio de água quente na parte interna da coxa.

      Ficou chocada. Era quase como se estivesse urinando, só que não estava, e um momento depois o fio se transformou num intenso fluxo. Sentou-se. Sabia o que aquilo significava. A bolsa d'água se rompera. O bebê estava nascendo.

      Ficou apavorada. Precisava de ajuda. Gritou pela sua vizinha com toda a força dos pulmões:

      - Mildred! Mildred, venha cá! - Só então lembrou que ninguém estava em casa - todos tinham ido à igreja.

      O fluxo de água foi reduzido, mas a cama de Alfred ficou encharcada. Ele ia ficar furioso, pensou, cheia de medo; depois se lembrou de que Alfred ia ficar furioso de qualquer maneira, pois saberia que a criança não era seu filho, e pensou: Oh, Deus, que hei de fazer?

      A dor nas costas voltou, e ela constatou que aquilo devia ser o que chamavam de dores do parto. Esqueceu-se de Alfred. Ia dar à luz. Estava assustada demais para passar por aquilo sozinha. Queria que alguém a ajudasse. Decidiu ir para a igreja.

      Girou as pernas para fora da cama. Outro espasmo a assaltou e teve que parar, o rosto contraído de dor, até que passou. Então saltou da cama e saiu da casa.

      Sentiu a mente num torvelinho, quando seguiu caminhando, com dificuldade, ao longo da rua lamacenta. Quando estava no portão do priorado, a dor voltou, e teve que se encostar a uma parede e cerrar os dentes até que passasse.

      Ao se aproximar cambaleando da catedral, viu o bispo, Waleran Bigod, levantar-se para falar. Viu também, como que num pesadelo, que William Hamleigh estava de pé ao lado dele. As palavras do bispo Waleran se fizeram ouvir através da barreira da sua dor.

      - ...  com grande prazer e orgulho devo lhes dizer que o rei Estêvão confirmou lorde William como conde de Shiring.

      A despeito da dor e do medo que sentia Aliena ficou horrorizada ao ouvir aquilo. Durante seis anos, desde o terrível dia em que tinha visto seu pai na cadeia de Winchester, dedicara a vida à reconquista da propriedade da família. Ela e Richard haviam sobrevivido a ladrões e estupradores, incêndio e guerra civil. Por diversas vezes o objetivo parecera ao alcance das suas mãos. Mas agora tinham perdido.

      A congregação murmurou furiosamente. Todos tinham sofrido nas mãos de William e ainda viviam com medo dele. Não se sentiam felizes por vê-lo honrado pelo rei que deveria protegê-los. Aliena olhou em torno, procurando Richard, para ver como estava recebendo aquele golpe final, mas não conseguiu localizá-lo.

      O prior Philip ergueu-se com uma cara medonha e começou o hino. Os fiéis o seguiram, sem grande entusiasmo. Aliena encostou-se a uma coluna quando teve outra contração.

      Estava atrás de todo mundo, e ninguém percebeu sua presença. De certa forma, as más notícias a acalmaram. Estou apenas tendo um filho, pensou; acontece todos os dias. Só preciso encontrar Martha ou Richard e eles tomarão conta de tudo.

      Quando a dor passou, ela forçou caminho por entre a multidão, procurando Martha. Havia um grupo de mulheres no túnel baixo do corredor norte, e dirigiu-se para elas.

      As pessoas a fitaram com olhares de curiosidade, mas sua atenção foi distraída por outra coisa: um barulho estranho, como um estrondo. A princípio mal se podia distingui-lo do canto, mas este rapidamente silenciou, quando o estrondo aumentou de volume.

      Aliena chegou junto ao grupo de mulheres. Olhavam para toda parte, procurando a causa do barulho. Aliena tocou no ombro de uma delas e perguntou:

      - Você viu Martha, a minha cunhada?

      A mulher olhou para ela, e Aliena reconheceu a esposa do curtidor, Hilda.

      - Acho que Martha está do outro lado - disse; depois o estrondo tornou-se ensurdecedor e ela desviou os olhos.

      Aliena seguiu seu olhar. No meio da igreja, todos estavam olhando para cima, na direção do topo das paredes. As pessoas nas naves laterais esticaram o pescoço para espiar por entre os arcos da arcada. Alguém gritou. Aliena viu uma rachadura aparecer, correndo entre duas janelas vizinhas no clerestório. Enquanto olhava, diversos pedaços imensos de pedra caíram entre a multidão, no meio da igreja. Todos gritaram e se voltaram para fugir.

      O chão sob seus pés tremeu. No momento em que tentou abrir caminho para fora da igreja, teve consciência de que as altas paredes estavam se separando no topo e que a abóbada do teto rachava.

      Hilda, a mulher do curtidor, caiu em frente a ela e Aliena tropeçou no seu corpo estendido, caindo também. Uma chuva de pedrinhas a atingiu ao tentar levantar-se.

      Então o teto baixo rachou e ruiu; alguma coisa bateu na sua cabeça e tudo escureceu.

     

      Philip começara a missa sentindo-se orgulhoso e grato. Fora difícil, mas o teto tinha sido terminado a tempo. Na verdade, só três dos quatro intercolúnios do coro haviam sido concluídos a tempo, já que o quarto não podia ser feito enquanto a interseção não estivesse construída e as paredes do coro, unidas aos transeptos. No entanto, as três eram suficientes. Todo o equipamento dos operários fora impiedosamente afastado: ferramentas, pilhas de pedra e madeira, vigas e painéis dos andaimes, montes de entulho. O coro fora varrido escrupulosamente. Os monges tinham caiado as pedras e pintado de vermelho a massa, melhorando bastante o aspecto de tudo, de acordo com o costume. O altar e o trono do bispo haviam sido trazidos da cripta. Os ossos do santo, contudo, na sua tumba de pedra, ainda estavam ali embaixo: transferi-los seria uma cerimónia solene, chamada de "traslado", a qual seria o clímax da função daquele dia. Quando o ofício começara, com o bispo no seu trono, os monges em hábitos novos, enfileirados atrás do altar, e os habitantes da cidade concentrados no corpo da igreja e nos corredores, Philip sentira-se gratificado e agradecera a Deus por tê-lo levado com sucesso ao fim do primeiro e crucial estágio na reconstrução da catedral.

      No momento em que Waleran fez o anúncio a respeito de William, Philip ficara furioso. Aquilo fora evidentemente calculado para arruinar o seu momento de triunfo e lembrar aos habitantes da cidade que ainda se encontravam à mercê do seu cruel suserano. Philip estava procurando desesperadamente uma resposta adequada quando o estrondo surdo começara.

      Foi como um pesadelo que o prior tinha às vezes, em que estava caminhando sobre um andaime muito alto, perfeitamente confiante na sua segurança, quando notava um nó solto nas cordas que uniam as estacas do andaime - nada de muito sério; - quando se abaixava para refazer o nó, porém, o painel de vimes entrelaçados sobre o qual se encontrava inclinava-se um pouco, não muito a princípio, mas o bastante para fazê-lo tropeçar, e a seguir, num relâmpago, caía lá de cima, numa queda desesperadoramente rápida, consciente de que estava prestes a morrer.

      O barulho no princípio foi desorientador. Por um momento ou dois pensou que fosse um trovão; depois aumentou tanto que todos pararam de cantar. Ainda assim, Philip imaginou que fosse algum estranho fenômeno, que logo seria explicado e cuja pior consequência seria interromper a missa. Então olhou para cima.

      No terceiro intercolúnio, onde as formas tinham sido retiradas ainda naquela manhã, estavam aparecendo rachaduras no trabalho de cantaria, bem no alto, ao nível do clerestório. Elas apareciam subitamente e riscavam a parede de uma janela para a outra, como cobras. A primeira reação de Philip foi de desapontamento: ficara feliz com a conclusão do coro, e agora precisaria fazer reparos; além disso, todas aquelas pessoas que tinham se impressionado com o trabalho dos pedreiros diriam que não deveria ter sido feito tão depressa, lembrando que "devagar se vai ao longe". Quando a parte superior das paredes pareceu se inclinar para fora, ele viu, horrorizado, que aquilo não iria meramente interromper a missa, mas que seria uma catástrofe.

      Apareceram rachaduras no teto abobadado. Uma grande pedra se destacou da trama de cantaria que o formava e veio caindo lentamente. Todos começaram a gritar e a tentar sair de baixo. Antes que Philip pudesse verificar se alguém tinha se ferido seriamente, mais pedras começaram a cair. A congregação entrou em pânico, com as pessoas se empurrando e pisoteando umas às outras na tentativa de se esquivar das pedras que ruíam. Por um instante o prior teve a louca idéia de aquilo ser um ataque desfechado por William, mas então viu o conde, na frente da congregação, investindo contra as pessoas que o cercavam, numa tentativa apavorada para fugir, e ponderou que ele não iria fazer uma coisa dessas a si próprio.

      A maioria das pessoas tentava se afastar para longe do altar e sair da catedral pela extremidade oeste, que estava aberta. Mas era justamente a ponta mais a oeste do edifício, o lado aberto, que ruía. O problema era no terceiro intercolúnio. No segundo, onde estava Philip, a abóbada do teto parecia estar se aguentando; e atrás dele, o primeiro, onde os monges se encontravam enfileirados, parecia bastante sólido. Naquele lado as paredes opostas eram conservadas juntas pela fachada leste.

      Viu Jonathan e Johnny Oito Pence encolhidos na ponta do corredor norte. Estavam mais seguros ali do que em qualquer outra parte, decidiu Philip; e então percebeu que deveria tentar conduzir o resto do seu rebanho para a segurança.

      - Por aqui! - gritou. - Todo mundo! Venham por aqui! - Quer o tenham ouvido ou não, ninguém o atendeu.

      No terceiro intercolúnio, a parte superior das paredes desmoronou, caindo para fora, e toda a abóbada ruiu; pedras pequenas e grandes tombaram, como uma tempestade de granizo letal, sobre a congregação histérica. Philip pulou para a frente e agarrou um cidadão.

      - Volte! - gritou, empurrando-o para o lado leste. O homem, muito assustado, viu os monges agrupados de encontro à parede e saiu correndo para se juntar a eles.

      Philip fez o mesmo com duas mulheres. As pessoas que estavam com elas viram aquilo e se deslocaram para leste sem que fosse preciso empurrá-las. Outras pessoas começaram a seguir a idéia, e um movimento geral para o lado leste teve início entre aqueles que se encontravam à frente da congregação. Olhando para cima por um instante,

      Philip ficou horrorizado ao ver que o segundo intercolúnio também ia ceder: as mesmas rachaduras cortavam o clerestório e a abóbada diretamente sobre sua cabeça.

      Continuou a conduzir as pessoas para a segurança do lado leste, sabendo que cada uma que deslocasse podia ser uma vida salva. Uma chuva de pedaços de massa atingiu sua cabeça tonsurada, e logo em seguida as pedras começaram a cair. As pessoas se espalharam. Umas foram se refugiar nas naves laterais; outras, entre as quais o bispo Waleran, se amontoaram junto à parede leste; outras ainda tentavam fugir pelo lado oeste, arrastando-se por cima dos escombros e dos corpos no terceiro intercolúnio.

      Uma pedra bateu no ombro de Philip. Foi de raspão, mas doeu. Ele pôs as mãos por cima da cabeça e olhou à sua volta, aflito. Encontrava-se sozinho no meio do segundo intercolúnio: todos os demais estavam em torno da orla da zona de perigo. Fizera tudo o que estava a seu alcance. Correu para o lado leste.

      Ali se virou de novo e olhou para cima. O clerestório do segundo intercolúnio estava ruindo e a abóbada caindo no coro, numa réplica exata do que acontecera na terceira; só que dessa vez houve menos vítimas, porque as pessoas tinham tido chance de se afastar, e também porque os tetos das naves laterais pareciam estar resistindo, ao passo que haviam cedido no terceiro intercolúnio. Todo mundo situado na extremidade leste recuou, comprimindo-se contra a parede, o rosto virado para cima, observando a abóbada para ver se o colapso se transmitiria ao primeiro intercolúnio. O impacto das pedras caindo pareceu menos barulhento, mas uma nuvem de pó e de pedrinhas encheu o ar e por alguns momentos ninguém pôde ver nada. Philip conteve a respiração. A nuvem se dispersou e ele conseguiu ver o teto de novo. Ruíra até a orla do primeiro intercolúnio, mas agora parecia firme.

      A poeira assentou. Tudo ficou em silêncio. Horrorizado, Philip contemplou as ruínas da sua igreja. Somente o primeiro intercolúnio permaneceu intato. As paredes do segundo continuaram de pé até o nível da galeria, mas no terceiro e no quarto só ficaram de pé as naves laterais, e seriamente danificadas. O chão da igreja era uma pilha de escombros, sobre os quais se viam os corpos de muitos mortos e feridos. Sete anos de trabalho e centenas de libras em dinheiro tinham sido destruídos em poucos e terríveis momentos. O coração de Philip confrangeu-se pelo trabalho desperdiçado e pelas pessoas mortas, e pelas viúvas e órfãos sobreviventes; e seus olhos se encheram de amargas lágrimas.

      Uma voz áspera soou junto ao seu ouvido:

      - Tudo isto se deve à sua maldita arrogância, Philip!

      Virou-se para ver o bispo Waleran, as roupas negras cobertas de poeira, olhando para ele triunfantemente. Philip sentiu-se como se tivesse sido apunhalado. Assistir a uma tragédia daquelas era de cortar o coração, mas ser culpado por ela era insuportável. Quis dizer: Só tentei fazer o melhor que podia!, mas as palavras não saíram; sua garganta parecia ter-se fechado e não conseguiu falar.

      Seus olhos deram com Johnny Oito Pence e o pequenino Jonathan emergindo do abrigo da nave, e subitamente se lembrou de suas responsabilidades. Haveria tempo de sobra mais tarde para se pensar no culpado. Naquele exato instante havia dezenas de pessoas feridas e muitas outras presas nos escombros. Precisava organizar a operação de resgate. Lançou um olhar feroz para o bispo Waleran e disse furiosamente:

      - Saia da minha frente. - O assustado bispo afastou-se para o lado, e Philip pulou para cima do altar. - Atenção! - gritou, o mais alto que pôde. - Temos que cuidar dos feridos, resgatar as pessoas que estão presas nos escombros, enterrar os mortos e rezar pela alma deles. Vou designar três pessoas para organizarem isso. - Examinou os rostos que o cercavam, para ver quem estava vivo e bem. Localizou Alfred. - Alfred Construtor fica encarregado de remover os escombros e resgatar as pessoas presas, e quero que todos os pedreiros e carpinteiros trabalhem com ele. - Olhando para os monges, ficou aliviado ao ver Milius, o confidente em quem tanto se fiava, são e salvo.

      - Milius Tesoureiro é o responsável pela remoção dos mortos e feridos, e vai precisar de ajudantes fortes e jovens. Randolph Enfermeiro cuidará dos feridos, uma vez que estejam fora desta confusão, e os mais velhos poderão ajudá-lo, especialmente as mulheres mais velhas. Tudo certo? Vamos começar. - Pulou do altar. Ouviram-se as vozes de pessoas começando a dar ordens ou a fazer perguntas.

      Philip aproximou-se de Alfred, que tinha uma aparência trêmula e amedrontada. Se havia alguém a culpar era ele, como mestre construtor, mas aquela não era hora para recriminações.

      - Divida seus homens em equipes - disse Philip - e dê a cada uma delas uma área separada para trabalhar.

      Alfred ficou apatetado por um momento; depois sua expressão clareou.

      - Sim. Certo. Começaremos no lado oeste e levaremos os escombros para o ar livre.

      - Ótimo. - Philip deixou-o e abriu caminho até Milius. Ouviu suas palavras.

      - Levem os feridos para bem longe da igreja e os deixem no gramado. Os corpos dos mortos vão para o lado norte.

      Philip afastou-se, satisfeito, como sempre, por ter confiado no monge para fazer o que fosse certo. Viu Randolph Enfermeiro escalando um monte de escombros e apressou-se a segui-lo. Os dois conseguiram sair da igreja, no lado oeste, onde havia uma multidão composta por pessoas que tinham conseguido sair antes do pior, escapando incólumes.

      - Use essa gente - disse para Randolph. - Mande alguém à enfermaria buscar equipamento e suprimentos. Faça alguns irem pegar água quente na cozinha. Peça ao despenseiro vinho forte para os que precisarem ser reanimados. Certifique-se de que deita os mortos e os feridos em linhas bem organizadas, com espaço entre eles, para que seus ajudantes não caiam sobre os corpos.

      Ele olhou em torno. Os sobreviventes estavam começando a trabalhar. Muitos dos que haviam sido protegidos pelo lado leste intato seguiram Philip através dos escombros e já removiam os corpos. Um ou dois entre os feridos, que tinham ficado apenas aturdidos, puseram-se de pé sem ajuda. Philip viu uma velha sentada no chão, estonteada. Reconheceu-a; era Maud Silver, viúva de um paieiro. Ajudou-a a levantar-se e conduziu-a através dos escombros.

      - O que aconteceu? - perguntou ela, sem fitá-lo. - Não sei o que aconteceu.

      - Nem eu, Maud - disse ele.

      Ao voltar para ajudar outra pessoa, as palavras do bispo Waleran soaram de novo na sua mente: Tudo isso se deve à sua maldita arrogância, Philip! A acusação o atingira de modo tão profundo porque o prior achava que poderia ser verdadeira. Estava sempre forçando, querendo mais, melhor e mais depressa. Forçara Alfred a concluir a abóbada, da mesma forma como forçara a criação de uma feira de lã e a obtenção da pedreira do conde de Shiring. Em todos os casos, o resultado fora trágico: a morte dos operários da pedreira, o incêndio de Kingsbridge e agora aquilo. Claramente era a ambição que devia ser culpada. Os monges fariam melhor se vivessem uma vida de resignação, aceitando as atribulações e os reveses deste mundo como lições de paciência, ensinadas por Deus todo-poderoso.

      Enquanto o prior ajudava a retirar das ruínas os mortos e feridos, resolveu que no futuro deixaria a ambição e os empreendimentos por conta de Deus; ele, Philip, aceitaria passivamente o que quer que acontecesse. Se Deus quisesse uma catedral, proporcionaria uma pedreira; se a cidade tinha sido queimada, devia aceitar o fato como um sinal de que Deus não desejava uma feira de lã; e agora que a igreja ruíra, Philip não a reconstruiria.

      Quando chegou a essa decisão, viu William Hamleigh.

      O novo conde de Shiring estava sentado no chão no terceiro intercolúnio, perto do corredor norte, o rosto lívido, tremendo de dor, o pé preso sob uma grande pedra.

      Philip perguntou-se, enquanto ajudava a rolá-la, por que Deus escolhera deixar tantas pessoas de bom coração morrerem e poupara um animal como William.

      Hamleigh fazia muito espalhafato por causa da dor no pé, mas, a não ser por isso, estava bem. Ajudaram-no a se levantar. Ele se apoiou no ombro de um homem enorme, quase do seu tamanho, e se afastou, mancando. Foi então que um bebê chorou.

      Todo mundo ouviu. Não havia bebês à vista. Todos olharam em torno, assombrados. O choro foi ouvido de novo, e Philip percebeu que vinha de baixo de uma grande pilha de pedras na nave.

      - Ali! - exclamou. Atraiu a atenção de Alfred e fez um gesto, chamando-o. - Há um bebê vivo ali embaixo - disse.

      Todos ouviram o choro. Parecia de uma criança bem pequena, com menos de um mês de vida.

      - Tem razão - disse Alfred. - Vamos tirar algumas dessas pedras grandes. - Ele e seus auxiliares começaram a retirar entulho de cima de uma pilha que bloqueava completamente o arco do terceiro intercolúnio. Philip incorporou-se ao trabalho. Não conseguia fazer idéia de qual das habitantes da cidade dera à luz nas últimas semanas. É claro que um nascimento poderia não ter sido do seu conhecimento: embora a cidade tivesse diminuído de tamanho no último ano, ainda era bastante grande para que ele perdesse um evento tão comum.

      O choro parou de repente. Todos ficaram imóveis e prestaram atenção, mas não começou de novo. Com a expressão sombria, recomeçaram a retirada das pedras. Era algo perigoso, pois a remoção de uma pedra podia fazer com que as outras caíssem. Por isso Philip designara Alfred como encarregado do serviço. No entanto, ele não era tão cauteloso quanto Philip gostaria, e parecia estar deixando todo mundo fazer o que bem entendesse, retirando pedras sem nenhum planejamento geral. Em dado momento

      a pilha toda balançou perigosamente, e Philip exclamou:

      - Esperem!

      Todos pararam. Philip convenceu-se de que Alfred estava por demais chocado para organizar a contento o pessoal que o ajudava. Ele próprio teria que fazê-lo.

      - Se há alguém vivo aí embaixo - disse Philip -, deve ter sido protegido por alguma coisa; se deixarmos a pilha se mover, talvez a proteção se perca e esse alguém

      morra devido a nossos esforços. Vamos trabalhar cuidadosamente. - Apontou para um grupo de pedreiros, - Vocês três, escalem o monte e tirem pedras do topo. Em vez

      de carregá-las, passem cada pedra para nós, que as levaremos daqui.

      Recomeçaram a trabalhar de acordo com o plano de Philip. Parecia não só mais rápido como mais seguro.

      Agora que o bebê parara de chorar não sabiam exatamente qual a direção a seguir, de modo que limparam uma área ampla, quase toda a largura do intercolúnio. Parte dos escombros era o que caíra da abóbada, mas parte do teto da nave também ruíra, de modo que havia vigas e telhas de ardósia juntamente com pedras e massa.

      Philip trabalhou de modo incansável. Queria que o bebê sobrevivesse. Muito embora soubesse que havia dezenas de pessoas mortas, de algum modo o bebê lhe parecia mais importante. Sentia que se ele pudesse ser salvo, ainda haveria esperança para o futuro. À medida que ia levantando as pedras, tossindo e meio cego pela poeira, orava fervorosamente para que o bebê fosse encontrado vivo.

      Em dado momento, pôde ver, acima do monte de escombros, a parede externa da nave e parte de uma janela. Parecia haver um espaço atrás da pilha. Talvez alguém estivesse vivo ali. Um pedreiro galgou cuidadosamente o monte de entulho e olhou para baixo.

      - Jesus! - exclamou ele.

      Daquela vez Philip ignorou a blasfémia.

      - O bebê está bem? - perguntou.

      - Não dá para dizer - foi a resposta do pedreiro.

      O prior teve vontade de perguntar o que o pedreiro vira, ou, melhor ainda, dar uma olhada ele mesmo, mas o homem recomeçou a trabalhar com vigor renovado, e nada havia a fazer senão continuar ajudando, febrilmente curioso.

      A altura da pilha diminuiu depressa. Havia uma grande pedra quase no nível do chão que exigiu três homens para ser removida. Quando foi rolada para um lado, Philip viu o bebê.

      Estava nu e era recém-nascido. Sua pele branca estava suja de sangue e pó, mas deu para ver que tinha a cabeça recoberta de um cabelo de uma chocante cor de cenoura.

      Olhando mais de perto, Philip viu que era um menino. Estava aconchegado ao peito de uma mulher, sugando-lhe o seio. A criança estava viva, sem dúvida, e seu coração pulou de alegria. Então olhou para a mulher. Ela também estava viva. Atraiu a atenção dele e dirigiu-lhe um sorriso débil e feliz.

      Era Aliena.

      Aliena nunca mais voltou à casa de Alfred.

      Ele dizia a todo mundo que o filho não era seu, e como prova mostrava a cor do seu cabelo, exatamente da mesma cor do de Jack; mas não tentou fazer mal algum nem ao bebê nem a Aliena, à parte ter dito que não os receberia na sua casa.

      Ela voltou ao quarteirão pobre, para a casa de um cômodo onde morava com o irmão Richard. Sentiu-se aliviada pela vingança de Alfred ser tão branda. Era bom saber que não mais precisaria dormir no chão ao pé da sua cama, como um cachorro. Mas sobretudo se sentiu emocionada e orgulhosa com seu lindo bebê. Ele tinha cabelo cor de cenoura, olhos azuis e pele branca e perfeita, fazendo-a lembrar-se vividamente de Jack.

      Ninguém sabia por que a igreja ruíra. Havia muitas teorias, contudo. Uns diziam que Alfred não tinha capacidade para ser mestre construtor. Outros culpavam Philip, por haver apressado o trabalho, querendo a abóbada pronta no dia de Pentecostes. Alguns pedreiros disseram que a forma fora retirada antes de a argamassa estar apropriadamente seca. Um velho pedreiro afirmou que as paredes não haviam sido planejadas para sustentar uma abóbada de pedra.

      Setenta e nove pessoas morreram, inclusive as que não resistiram aos ferimentos. Todo mundo disse que o número teria sido maior se o prior Philip não tivesse obrigado tanta gente a ir para o lado leste. O cemitério do priorado já estava lotado por causa do incêndio na feira de lã, no ano anterior, e a maior parte dos mortos foi enterrada no cemitério da igreja da paróquia. Um bocado de gente disse que a catedral estava amaldiçoada.

      Alfred levou todos os seus pedreiros para Shiring, onde estava construindo casas de pedra para as pessoas ricas. Os outros artesãos afastaram-se de Kingsbridge.

      Ninguém foi demitido, na verdade, e Philip continuou a pagar os salários, mas não havia nada para fazerem a não ser a remoção dos escombros, e após algumas semanas todos tinham ido embora. Nenhum voluntário vinha mais trabalhar aos domingos, o mercado foi reduzido a umas poucas e desanimadas bancas, e Malachi pegou a família e tudo o que tinha, pôs num carro puxado por quatro bois e deixou a cidade, em busca de pastagens mais verdes.

      Richard alugou seu belo garanhão negro a um fazendeiro e, junto com Aliena, passou a viver dos rendimentos. Sem o apoio de Alfred não podia continuar como cavaleiro, e de qualquer modo isso não adiantava nada, agora que William fora confirmado como conde de Shiring. Aliena ainda se sentia presa ao juramento que fizera ao pai, mas parecia não haver nada que pudesse fazer para cumpri-lo. Richard mergulhou em letargia. Levantava-se tarde, ficava sentado ao sol a maior parte do dia e passava as noites na cervejaria.

      Martha ainda morava na casa grande, acompanhada apenas por uma velha criada. Passava, contudo, a maior parte do tempo com Aliena: adorava ajudar a cuidar do bebê, especialmente por ele se parecer tanto com seu adorado Jack. Queria que a cunhada lhe desse o nome de Jack, mas, por razões que a própria Aliena não entendia muito bem, ela relutava.

      Para Aliena o verão passou em intenso deslumbramento maternal. Mas quando chegou a estação da colheita e a temperatura baixou um pouco, as noites ficaram mais curtas e ela foi se sentindo descontente.

      Sempre que pensava sobre o seu futuro, Jack vinha à sua mente. Não tinha idéia de para onde fora, e provavelmente nunca mais voltaria, mas ainda permanecia com ela, dominando seus pensamentos, cheio de vida e energia, tão nítido e forte para Aliena como se o tivesse visto ainda na véspera. Pensou em se mudar para outra cidade e fingir que era viúva; considerou a possibilidade de tentar persuadir Richard a ganhar a vida fazendo qualquer coisa; contemplou a idéia de trabalhar em tecelagem, ou de lavar roupa, ou ainda de se tornar uma criada para uma das poucas pessoas da cidade que ainda dispunham de dinheiro suficiente para contratar empregados; cada nova idéia era saudada por uma risada escarninha do Jack imaginário em sua cabeça, que dizia: "Nada dará certo sem mim". Fazer amor com ele na manhã do seu casamento com Alfred fora o maior pecado que jamais cometera, e não tinha dúvida de que agora estava sendo punida por isso. No entanto, ainda havia ocasiões em que achava que fora a única coisa boa que fizera em toda a vida, e quando olhava para o seu bebê, não podia se obrigar a se arrepender do que fizera. Mesmo assim, sentia-se irrequieta. Um bebê não era suficiente. Sentia-se incompleta, irrealizada. Sua casa parecia pequena demais, e Kingsbridge, meio morta; a vida era muito monótona.

      Tornou-se impaciente com o bebê e rabugenta com Martha.

      No fim do verão o fazendeiro trouxe o cavalo de volta: já não era necessário, e de repente Richard e Aliena se viram sem renda. Um dia, no início do outono, o rapaz foi a Shiring vender sua armadura. Enquanto estava fora e Aliena comia maçãs na refeição para economizar dinheiro, a mãe de Jack entrou na sua casa.

      - Ellen! - Aliena estava mais do que assustada. Havia pavor na sua voz, pois a mãe de Jack amaldiçoara um casamento religioso e o prior Philip ainda poderia puni-la por isso.

      - Vim ver meu neto - disse Ellen calmamente.

      - Mas como você soube... ?

      - A gente sabe das coisas, mesmo na floresta. - Foi até o berço, num canto, e contemplou a criança adormecida. Seu rosto suavizou-se. - Ora, ora. Não há dúvida de quem é filho. Está se alimentando bem?

      - Nunca houve nada de errado com ele: é pequeno mas resistente - disse Aliena, orgulhosa. E acrescentou: - Como a avó. - Examinou Ellen. Estava mais magra do que quando partira, queimada de sol, e usava uma túnica curta de couro que revelara a barriga das pernas bronzeadas. Estava descalça. Parecia jovem e saudável: a vida na floresta certamente a favorecia. Aliena calculava que devia estar com cerca de trinta e cinco anos.

      - Você está ótima.

      - Sinto falta de vocês todos - disse Ellen. - Sinto falta de você, de Martha e até mesmo do seu irmão Richard. Tenho saudade do meu Jack. E do meu Tom. - Ela parecia triste.

      Aliena continuava preocupada com a segurança de Ellen.

      - Alguém a viu chegando? Os monges ainda podem querer puni-la.

      - Não há um monge em Kingsbridge que tenha coragem de me prender - disse ela, com um sorriso largo. - Mas de qualquer modo fui muito cuidadosa: ninguém me viu. - Houve uma pausa. Ellen encarou fixamente Aliena, que se sentiu um pouco desconfortável sob a força penetrante dos seus estranhos olhos cor de mel. Afinal Ellen disse:

      - Você está desperdiçando sua vida.

      - O que você quer dizer com isso? - perguntou Aliena, embora as palavras da outra tivessem instantaneamente tocado um ponto em seu íntimo.

      - Você devia ir procurar Jack.

      Aliena sentiu uma pontada de deliciosa esperança.

      - Mas não posso - disse.

      - Por que não?

      - Para começar, não sei onde se encontra.

      - Eu sei.

      O coração de Aliena bateu mais depressa. Pensara que ninguém sabia para onde Jack fora. Era como se tivesse desaparecido da face da terra. Mas agora seria capaz de imaginá-lo num lugar específico e real. Isso mudava tudo. Talvez estivesse em algum lugar próximo. Poderia mostrar-lhe seu bebê.

      - Pelo menos sei para onde ele se dirigiu - acrescentou Ellen.

      - Para onde? - perguntou Aliena, aflita.

      - Santiago de Compostela.

      - Oh, Deus! - Seu coração confrangeu-se. Sentia-se desesperadamente desapontada. Santiago de Compostela era a cidade da Espanha onde o apóstolo Tiago fora enterrado.

      Implicava uma viagem de diversos meses. Era o mesmo que Jack estar no fim do mundo.

      - Ele tinha esperança de descobrir alguma coisa a respeito do pai conversando com os menestréis na estrada.

      Aliena assentiu desconsoladamente. Fazia sentido. Jack sempre se ressentira de saber tão pouco a respeito do pai. Mas era bem possível que jamais voltasse. Numa cidade tão grande decerto encontraria a catedral em que queria trabalhar e nela se estabeleceria. Por ter ido procurar o pai provavelmente perdera o filho.

      - É tão longe! - disse Aliena. - Eu gostaria de poder ir atrás dele.

      - Por que não? - perguntou Ellen. - Milhares de pessoas vão para lá em peregrinação. Por que você não poderia ir?

      - Jurei a meu pai cuidar de Richard até que ele se tornasse o conde de Shiring - disse a Ellen. - Não poderia deixá-lo.

      Ellen pareceu cética.

      - Exatamente como você imagina que o está ajudando neste momento? - perguntou. - Não tem dinheiro e William é o novo conde. Richard perdeu qualquer chance que pudesse ter tido para recuperar o condado. Você não é mais útil para ele aqui em Kingsbridge do que seria em Santiago de Compostela. Dedicou a vida àquele juramento desgraçado. Mas agora não há mais nada que possa fazer. Não vejo como seu pai pudesse reprová-la. Se me perguntasse, eu lhe diria que o maior favor que pode fazer a Richard seria abandoná-lo por algum tempo e dar-lhe uma chance para aprender a ser independente.

      Era verdade, pensou Aliena, que não tinha utilidade para Richard naquele momento, quer permanecesse em Kingsbridge, quer não. Seria possível que agora estivesse livre - livre para ir procurar Jack? A mera idéia fez seu coração disparar.

      - Mas não tenho dinheiro para sair em peregrinação -disse.

      - O que aconteceu com aquele cavalo enorme?

      - Ainda o temos...

      - Venda-o.

      - Como? É de Richard.

      - Pelo amor de Deus, quem diabos o comprou? - retrucou Ellen, furiosa. - Foi Richard quem trabalhou duro anos a fio para construir um comércio de lã? Foi Richard quem negociou com camponeses gananciosos e compradores flamengos inflexíveis? Foi Richard quem arrecadou a lã e montou uma banca no mercado para vendê-la? Não venha me dizer que o cavalo é de Richard!

      - Ele ficaria tão furioso...

      - Ótimo. Esperemos que fique furioso o bastante para trabalhar um pouco pela primeira vez na vida.

      Aliena chegou a abrir a boca para retrucar, mas desistiu. Ellen tinha razão. Richard sempre dependera dela para tudo. Enquanto ele estivera lutando pelo seu patrimônio, ela fora obrigada a sustentá-lo. Mas agora não estava lutando por nada. Não podia exigir mais nada.

      Imaginou-se encontrando Jack de novo. Imaginou seu rosto sorrindo para ela. Eles se beijariam. Sentiu um arrepio de prazer. Percebeu que estava ficando molhada só de pensar nele. Sentiu-se embaraçada.

      - Viajar é uma atividade arriscada, claro - disse Ellen.

      Aliena sorriu.

      - Isso é algo com que não me preocupo. Venho viajando desde os meus dezessete anos. Sei tomar conta de mim.

      - De qualquer forma, haverá centenas de pessoas na estrada para Santiago de Compostela. Você pode se juntar a um grupo grande de peregrinos. Não terá que viajar sozinha.

      Aliena suspirou.

      - Sabe, se eu não tivesse o bebê acho que iria mesmo.

      - Mas é por causa do bebê que você tem que ir - retrucou Ellen. - Ele precisa de um pai.

      Aliena não encarara a coisa daquele jeito: pensara na viagem como algo puramente egoísta. Via agora que a criança precisava tanto de Jack quanto ela. Na sua obsessão com os cuidados cotidianos do filho não pensara no futuro dele. Súbito pareceu-lhe terrivelmente injusto que crescesse sem conhecer o gênio adorável, brilhante e único que era seu pai.

      Percebeu que estava se convencendo a ir, e sentiu um arrepio de apreensão.

      Ocorreu-lhe uma dificuldade.

      - Eu não poderia levar o bebê para Santiago de compostela.

      Ellen deu de ombros.

      - Ele não saberá a diferença entre Espanha e Inglaterra. Mas você não precisa levá-lo.

      - O que mais poderia fazer?

      - Deixá-lo comigo. Eu o alimentaria com leite de cabra e mel silvestre.

      Aliena sacudiu a cabeça.

      - Não toleraria separar-me dele. Eu o amo demais.

      - Se o ama - disse Ellen -, vá procurar seu pai.

     

      Aliena arranjou um navio em Warenham. Quando fizera a travessia para a França, ainda garota, na companhia do pai, haviam embarcado num dos navios de guerra normandos, embarcações compridas e estreitas cujas laterais se curvavam para cima, numa ponta aguda, na frente e atrás. Tinham fileiras de remos de cada lado e uma vela quadrada de couro. O navio que a levaria à Normandia agora era similar, só que mais largo no meio e mais fundo, a fim de transportar mais carga. Viera de Bordeaux, e ela vira os marinheiros descalços descarregarem barris de vinho destinados às adegas dos ricos.

      Aliena sabia que deveria deixar o bebê, mas estava desolada.

      Sempre que olhava para ele passava em revista todos os argumentos e decidia novamente que tinha de ir; mesmo assim, não fazia diferença: não queria se separar dele.

      Ellen a acompanhara a Warenham. Lá Aliena juntara-se a dois monges da Abadia de Glastonbury, que iam visitar sua propriedade na Normandia. Três outras pessoas seriam passageiras no navio: um jovem escudeiro que passara quatro anos com um parente inglês e agora retornava para seus pais, em Toulouse, e dois jovens pedreiros que tinham ouvido dizer que os salários eram mais altos e as garotas, mais bonitas, do outro lado do canal. Na manhã em que deveriam zarpar, esperaram na cervejaria enquanto a tripulação carregava o navio com pesados lingotes de estanho da Cornualha. Os pedreiros beberam diversos jarros de cerveja mas não pareceram ficar embriagados.

      Aliena abraçou o bebê e chorou silenciosamente.

      Por fim o navio ficou pronto para partir. A vigorosa égua cinzenta que Aliena comprara em Shiring nunca vira o mar, e se recusou a subir pela prancha de embarque.

      No entanto, o escudeiro e os pedreiros colaboraram entusiasticamente e acabaram conseguindo pôr o animal a bordo.

      Aliena estava cega pelas lágrimas quando deu seu bebê a Ellen. Ela o pegou, mas disse:

      - Você não pode fazer isto. Errei ao fazer tal sugestão.

      Aliena chorou mais.

      - Mas há Jack - soluçou. - Não posso viver sem Jack, sei que não posso. Tenho que procurá-lo.

      - Oh, sim - disse Ellen. - Não estou sugerindo que desista da viagem. Mas não pode deixar o bebê para trás. Leve-o consigo.

      Aliena sentiu-se inundada de gratidão e chorou mais ainda.

      - Acha mesmo que ele estará bem?

      - O bebê não poderia ter estado mais feliz na viagem até aqui. O resto será igual. E ele não gosta muito de leite de cabra.

      - Vamos, senhoras - disse o capitão do navio -, a maré está para mudar.

      Aliena pegou o bebê e beijou Ellen.

      - Muito obrigada. Sinto-me muito feliz.

      - Boa sorte - disse Ellen.

      Aliena virou-se e subiu a prancha.

      Partiram imediatamente. Aliena acenou até que Ellen não passasse de um pontinho no cais. Estavam saindo do porto quando começou a chover. Não havia abrigo na parte de cima, de modo que Aliena se sentou no fundo, junto com a carga e os cavalos. O convés parcial em que os remadores se sentavam, acima da sua cabeça, não a protegia completamente da chuva, mas era possível conservar o bebê seco por dentro da capa. O balanço do navio pareceu agradar-lhe, e o menino dormiu. Quando caiu a noite e a âncora foi lançada, Aliena juntou-se aos monges em suas preces. Após as orações cochilou intermitentemente, sentada com o bebê nos braços.

      Desembarcaram em Barfleur no dia seguinte e Aliena encontrou acomodações na cidade mais próxima, Cherbourg. Gastou outro dia rodando pela cidade, perguntando a estalajadeiros e construtores se tinham visto um jovem pedreiro inglês com o cabelo cor de cenoura, flamejante. Ninguém o vira. Havia inúmeros normandos ruivos, de modo que poderiaml não ter reparado em Jack. Ou ele talvez tivesse se destinado a outro porto. Aliena não esperara, realisticamente, encontrar indícios de Jack tão cedo, mas mesmo assim ficou desanimada. No dia seguinte seguiu viagem, no rumo sul. Teve como companhia um vendedor de facas, sua esposa gorda e cordial e quatro crianças. Eles se deslocavam bem devagar, e Aliena se sentiu feliz por poder acompanhar seu ritmo, poupando as forças da égua, que ainda teria que carregá-la num longo trajeto.

      A despeito da proteção que significava estar viajando com uma família, conservou a faca comprida e afiada amarrada no antebraço esquerdo, por baixo da manga. Não parecia rica: suas roupas eram quentes, mas não luxuosas, e o cavalo forte, mas muito manso. Tinha o cuidado de conservar umas poucas moedas à mão, dentro de uma bolsa, e nunca mostrar a ninguém o pesado cinto com moedas amarrado na sua cintura por baixo da túnica. Alimentava o bebê discretamente, sem deixar que homens estranhos vissem os seus seios.

      Naquela noite Aliena se sentiu bastante animada por um golpe esplêndido de sorte. Pararam numa aldeia minúscula chamada Lessay, e ali Aliena encontrou um monge que se recordava vivamente de um jovem pedreiro inglês que ficara fascinado pelo revolucionário método novo de construir a abóbada da igreja da abadia usando um arcabouço de vigas, como nervuras. Aliena exultou. O monge ainda se lembrava de Jack dizendo ter desembarcado em Honfleur, o que explicava não haver traços de sua passagem por Cherbourg. Embora houvesse decorrido um ano, o homem falou prolixamente sobre Jack, e ficou óbvio que se deixara fascinar por ele. Aliena ficou muito animada por conversar com alguém que o vira. Era a confirmação de que estava no caminho certo.

      Após algum tempo, deixou o monge e foi se deitar no chão da casa de hóspedes da abadia. Estava caindo no sono quando abraçou o menino com força e sussurrou, com os lábios colados na sua orelhinha cor-de-rosa:

      - Vamos encontrar o seu papai.

      O bebê adoeceu em Tours.

      A cidade era rica, suja e superpovoada. Os ratos corriam em bandos por entre os grandes trapiches de cereais à margem do rio Loire. Estava cheia de peregrinos. Tours era o tradicional ponto de partida para a peregrinação a Santiago de Compostela. Além disso, o dia de são Martinho, primeiro bispo de Tours, era iminente, e muitos tinham ido à igreja da abadia para visitar seu túmulo. São Martinho era famoso por ter cortado sua capa em duas para dar metade a um mendigo nu. Por causa do dia do santo, as estalagens e albergues de Tours estavam superlotados. Aliena foi obrigada a aceitar o que pôde conseguir, e ficou numa taverna em pedaços junto ao cais, dirigida por duas irmãs velhas e frágeis demais para conseguir manter o lugar limpo.

      A princípio não passou muito tempo na taverna. Com o bebê nos braços, explorou as ruas, perguntando por Jack. Logo percebeu que a cidade estava tão constantemente cheia de visitantes que os estalajadeiros não seriam capazes de se lembrar nem dos hóspedes da semana anterior, de modo que seria inútil fazer-lhes indagações sobre alguém que poderia ter estado ali um ano antes. Deteve-se, no entanto, em todos os canteiros de obras para perguntar se não haviam empregado um jovem pedreiro inglês com o cabelo cor de cenoura, chamado Jack. Ninguém havia.

      Ficou desapontada. Não tinha nenhuma notícia de Jack desde Lessay. Se ele tivesse se mantido fiel ao seu plano de ir a Santiago de Compostela, quase certamente teria vindo a Tours. Começou a temer que ele pudesse ter mudado de idéia.

      Foi à Igreja de São Martinho, como todo mundo, e ali viu uma equipe de operários engajados num extenso trabalho de recuperação. Procurou o mestre, um homem baixo e mal-humorado, de cabelo rarefeito, e perguntou se ele havia empregado um pedreiro inglês.

      - Nunca emprego ingleses - disse ele abruptamente, antes que ela pudesse concluir o que começara a dizer. - Os pedreiros ingleses não são bons.

      - Esse é muito bom - disse ela. - E fala bem francês, de modo que você pode não ter percebido que era inglês. Tem o cabelo cor de cenoura...

      - Não, nunca o vi - disse o mestre rudemente, indo embora.

      Aliena voltou para o quarto meio deprimida. Ser destratada sem motivo algum era muito desestimulante.

      Naquela noite teve um desarranjo intestinal e não dormiu nada. No dia seguinte sentiu-se doente demais para sair, e passou o dia todo deitada na cama, na taverna, com o fedor do rio entrando pela janela e o cheiro do vinho derramado e do óleo de cozinha subindo pela escada. Na manhã seguinte o bebê estava doente.

      Acordou com ele chorando. Não era o choro forte, intenso e exigente de sempre, e sim um débil queixume. Estava com o mesmo desarranjo que Aliena tivera, mas apresentava também um quadro de febre. Seus olhos azuis, normalmente atentos, estavam fechados com o desconforto, e as mãozinhas, cerradas. Sua pele, congestionada, tinha manchas.

      Ele nunca estivera doente antes, e Aliena não sabia o que fazer.

      Deu-lhe o seio. Ele sugou avidamente por algum tempo, chorou de novo e voltou a sugar. O leite passou direto através dele e não pareceu lhe dar conforto algum.

      Havia uma simpática e jovem camareira trabalhando na taverna, e Aliena pediu que fosse à abadia e comprasse um pouco de água benta. Pensou em mandar buscar um médico, mas os médicos sempre queriam sangrar os pacientes, e ela não podia crer que ajudasse o bebê ser sangrado.

      A criada voltou com sua mãe, que queimou uma porção de ervas secas numa tigela de ferro. Elas produziram uma fumaça acre que pareceu absorver os cheiros ruins do lugar.

      - O bebê terá sede; dê-lhe o seio sempre que ele quiser - disse ela. - Beba bastante água também, para ter leite suficiente. É tudo o que pode fazer.

      - Ele vai ficar bom? - perguntou Aliena ansiosamente. A mulher a fitou com comiseração.

      - Não sei, querida. Quando eles são tão pequenos não se pode dizer. Geralmente sobrevivem a coisas desse tipo. Às vezes, não. É o seu primeiro?

      - Sim.

      - Lembre-se de que sempre poderá ter outros.

      Aliena pensou: Mas este filho é de Jack, que perdi. Guardou os pensamentos para si própria, agradeceu à mulher e pagou-lhe as ervas.

      Depois que elas se foram, diluiu a água benta em água comum, mergulhou um pano e esfriou a cabeça do bebê.

      Ele pareceu piorar à medida que o dia passava. Aliena lhe deu o seio quando chorou, cantou para ele quando esteve acordado e o refrescou com água fria quando dormiu.

      Ele mamou o tempo todo, mas intermitentemente. Por sorte, Aliena tinha muito leite - sempre tivera. Ela própria ainda estava doente e se alimentando de pão seco e vinho aguado. Com o passar das horas veio a odiar o quarto em que estava, com suas paredes imundas nuas, o chão de tábuas rústicas, a porta malfeita e uma janelinha horrível. Tinha precisamente quatro peças de mobília: a cama desconjuntada, um banco de três pernas, uma vara para pendurar roupas e um castiçal de pé com três pontas mas uma vela só.

      Quando caiu a noite a criada veio e acendeu a vela. Olhou para o bebê, que estava deitado na cama, balançando braços e pernas e choramingando.

      - Pobrezinho - disse ela. - Não entende por que se sente tão mal.

      Aliena saiu do banco e foi para a cama, mas deixou a vela acesa, a fim de poder ver o bebê. Durante toda a noite os dois cochilaram intermitentemente. Por volta da madrugada a respiração do menino tornou-se superficial, e ele parou de chorar e de se mexer.

      As lágrimas começaram a correr pelo rosto de Aliena. Perdera a trilha de Jack e seu bebê ia morrer ali, num lugar cheio de estranhos, em uma cidade tão longe de casa. Nunca mais haveria outro Jack, e ela nunca mais teria outro filho. Talvez morresse também. Seria o melhor. Talvez fosse o melhor.

      Ao amanhecer, apagou a vela com um sopro e caiu num sono exausto.

      Um barulho alto vindo do andar de baixo despertou-a de súbito. O sol estava alto, e a margem do rio embaixo da sua janela apresentava-se ruidosamente atarefada.

      O bebê estava imóvel, com o rosto tranquilo, afinal. A mão fria do medo comprimiu-lhe o coração. Pôs a mão no seu peitinho: não estava nem quente nem frio. Ela ofegou, assustada. Então, estremecendo-se todo, ele soltou um suspiro fundo e abriu os olhos. Aliena quase desmaiou de alívio.

      Agarrou-o, abraçando-o com força. O bebê rompeu no choro. Percebeu que ele estava bem de novo; sua temperatura era normal e ele não estava com dores. Ofereceu-lhe o seio e ele sugou avidamente. Em vez de virar o rosto depois de alguns momentos, ele continuou e, quando um seio secou, mamou todo o leite do outro. Então mergulhou num sono profundo e satisfeito.

      Aliena deu-se conta de que seus sintomas também haviam desaparecido, embora se sentisse exausta. Dormiu ao lado do bebê até o meio-dia, depois o amamentou de novo; em seguida se dirigiu ao salão de refeições da taverna e almoçou queijo de cabra e pão fresco com um pouco de bacon.

      Talvez fosse a água santa de são Martinho que tivesse curado o bebê. Naquela tarde voltou à igreja para dar graças ao santo na sua tumba.

      Enquanto estava na igreja da grande abadia, observou os operários trabalhando e pensou em Jack, que afinal ainda não vira o próprio filho. Gostaria de saber se ele teria se desviado da rota que tencionara seguir. Talvez estivesse trabalhando em Paris, cinzelando pedras para alguma nova catedral. Enquanto pensava nele, seus olhos se fixaram num modilhão que estava sendo instalado pelos operários. Havia sido cinzelada nele a figura de um homem que parecia estar sustentando o pilar nas costas. Ela ofegou. Soube instantaneamente, sem sombra de dúvida, que aquela figura retorcida e angustiada fora cinzelada por Jack. Então ele estivera ali!

      Com o coração batendo em disparada, ela se aproximou dos homens que estavam fazendo o trabalho.

      - Aquele modilhão... - disse, sem fôlego. - O homem que o esculpiu era inglês, não era?

      Foi um velho trabalhador com o nariz quebrado quem respondeu:

      - Isso mesmo. Foi Jack Fitzjack que esculpiu. Nunca vi nada parecido em minha vida.

      - Quando foi que ele esteve aqui? - perguntou Aliena. Prendeu a respiração enquanto o velho coçava a cabeça branca por cima de um gorro sebento.

      - Já deve estar fazendo quase um ano. Não ficou por muito tempo, se me entende. O mestre não gostou dele. - Abaixou o Tom de voz. - Jack era bom demais, se quer saber a verdade. Expôs as deficiências do mestre. Então teve que ir embora. - com essas palavras, colocou um dedo por cima do nariz, num gesto de confidência.

      - Ele disse para onde estava indo? - perguntou Aliena excitadamente.

      O velho olhou para o bebê.

      - O filho é dele, não é?... Se é que o cabelo quer mesmo dizer alguma coisa...

      - Sim, é dele.

      - Você acha que Jack vai gostar de vê-la?

      Aliena percebeu que o velho achava que Jack poderia estar fugindo dela. Deu uma risada.

      - Oh, sim! Vai ficar muito satisfeito por me ver.

      Ele deu de ombros.

      - Disse que estava indo para Santiago de Compostela, pelo menos foi o que afirmou.

      - Muito obrigada! - exclamou Aliena, feliz, e para assombro e deleite do velho, beijou-o.

      As trilhas de peregrinos atravessavam a França e convergiam em Ostabat, ao sopé dos Pireneus. Ali o grupo de cerca de vinte peregrinos com quem Aliena viajava aumentou para setenta. Era um grupo com os pés doloridos mas alegre: alguns cidadãos prósperos, outros provavelmente fugindo da justiça, uns bêbados e diversos monges e padres.

      Os religiosos estavam ali por razões de fé, mas os outros pareciam dispostos a se divertir. Diversas línguas eram faladas, inclusive o flamengo, uma língua germânica e um dialeto do sul da França chamado "oc". Não obstante, não havia falta de comunicação entre eles e, enquanto atravessavam os Pireneus, cantavam, brincavam, contavam histórias e - em diversas ocasiões - tinham casos de amor.

      Depois de Tours, lamentavelmente, Aliena não mais encontrou pessoas que se lembrassem de Jack. No entanto, não havia tantos menestréis quanto imaginara ao longo da rota pela França. Um dos peregrinos flamengos, um homem que já fizera a viagem antes, disse que haveria mais do lado espanhol das montanhas.

      Ele estava certo. Em Pamplona, Aliena ficou animada ao descobrir um menestrel que se recordava de ter conversado com um jovem inglês de cabelo cor de cenoura que lhe perguntara acerca do pai.

      À medida que os cansados peregrinos se deslocavam lentamente pelo norte da Espanha em direção à costa, ela foi encontrando diversos menestréis, e a maioria se lembrava de Jack. Constatou, com crescente excitação, que todos diziam ter ele afirmado estar se dirigindo para Santiago de Compostela, e ninguém o encontrara retornando.

      Isso significava que Jack ainda estava lá.

      Quanto mais seu corpo ficava doído, mais animada ela se sentia. Mal pôde conter o otimismo nos últimos dias da jornada. Já estavam no inverno, mas o tempo era ensolarado e a temperatura, amena. O bebê, agora com seis meses, parecia saudável e feliz. Tinha certeza de que encontraria Jack em Santiago de Compostela.

      Chegaram lá no dia de Natal.

      Foram direto para a catedral e assistiram à missa. A igreja naturalmente estava superlotada. Aliena deu uma porção de voltas por entre os fiéis, examinando-lhes o rosto, mas Jack não se encontrava ali. Claro, não era muito devoto; na verdade nunca ia à igreja, a não ser para trabalhar. Quando encontrou acomodações, já estava escuro. Foi para a cama, mas quase não conseguiu dormir de excitação, sabendo que Jack provavelmente estaria a poucos passos de onde se encontrava, e que no dia seguinte o veria, o beijaria e lhe mostraria o filho.

      Acordou à primeira luz do dia. O bebê sentiu sua impaciência e mamou um tanto irritado, mordendo o mamilo com as gengivas. Ela o lavou apressadamente e saiu com ele nos braços.

      Caminhando pelas ruas poeirentas, esperava ver Jack ao dobrar cada esquina. Como ele ficaria assombrado ao vê-la! E como ficaria satisfeito! No entanto, não o viu nas ruas, e começou a visitar as estalagens. Assim que as pessoas se puseram a trabalhar, foi aos canteiros de obras e falou com os pedreiros. Sabia as palavras para "pedreiro" e "ruivo" em castelhano, e os habitantes de Santiago de Compostela estavam acostumados com estrangeiros, de modo que conseguiu se comunicar; porém, não encontrou nenhum indício de Jack. Começou a se preocupar. Deveriam conhecê-lo. Não era o tipo de pessoa que podia passar facilmente despercebida, e devia ter vivido ali diversos meses. Ficou também atenta para ver se encontrava outro trabalho de cinzelagem característico dele, mas não viu nenhum.

      Pelo meio da manhã encontrou uma estalajadeira de meia-idade, de rosto vermelho, que falava francês e se lembrava de Jack.

      - Um belo rapaz... é seu? De qualquer maneira, nenhuma das garotas da cidade conseguiu nada com ele. Esteve aqui no verão, mas não ficou muito tempo, o que foi uma pena. Não disse para onde ia. Gostei dele. Se encontrá-lo, dê-lhe um grande beijo meu.

      Aliena voltou para o seu quarto e deitou-se, olhando para o teto. O bebê choramingou, mas daquela vez ela o ignorou. Estava exausta, desapontada e saudosa de casa.

      Não era justo: seguira-o até Santiago de Compostela, mas ele tinha ido para outro lugar qualquer!

      Como não voltara aos Pireneus, e como não havia nada a oeste de Compostela a não ser uma faixa estreita de litoral e o oceano que ia até o fim do mundo, Jack deveria ter seguido no rumo sul. Teria que partir de novo, na sua égua cinzenta, com o bebê nos braços, para o interior da Espanha.

      Gostaria de saber quão distante de casa teria que ir antes de sua peregrinação chegar ao fim.

     

       Jack passou o dia de Natal com seu amigo Raschid Alharoun em Toledo. Raschid era um sarraceno batizado que fizera fortuna importando especiarias do Oriente, especialmente pimenta. Encontraram-se na missa de meio-dia e foram caminhando ao cálido sol do inverno, pelas ruas estreitas e pelo mercado, caracteristicamente oriental e extremamente fragrante, até o bairro rico.

      A casa de Raschid era feita de uma deslumbrante pedra branca e construída em torno de um pátio com um chafariz. Suas arcadas sombrias faziam com que Jack se lembrasse do claustro do priorado de Kingsbridge. Na Inglaterra elas davam proteção contra o vento e a chuva, mas aqui sua finalidade era reduzir o calor do sol.

      Raschid e seus hóspedes sentaram-se em almofadas sobre o chão e jantaram com a comida posta numa mesa baixa. Os homens eram servidos por sua esposa e filhas e várias criadas, cuja posição na casa era, de certa forma, duvidosa: como cristão, Raschid só podia ter uma mulher, mas Jack suspeitava que disfarçadamente ele passasse por cima da proibição de concubinas decretada pela Igreja.

      As mulheres eram a maior atração da hospitaleira casa de Raschid. Todas eram bonitas. Sua esposa era uma mulher escultural e graciosa, com a pele moreno-escura muito lisa, o cabelo negro lustroso e brilhantes olhos castanhos. Suas filhas eram versões mais esbeltas. Havia três delas. A mais velha estava noiva de outro convidado, o filho de um mercador de seda da cidade.

      - Minha Raya é a filha perfeita - disse Raschid, enquanto ela circulava em torno da mesa com uma grande taça de água perfumada para os convidados mergulharem as mãos. - É atenciosa, obediente e linda. Josef é um homem de sorte. - O noivo baixou a cabeça, confirmando suas palavras.

      A segunda filha era orgulhosa, até mesmo arrogante. Deu a impressão de ficar ressentida com o elogio dirigido à irmã. Lançou um olhar de superioridade a Jack quando lhe serviu uma bebida, enchendo seu cálice com uma jarra de cobre.

      - O que é isto? - perguntou ele.

      - Licor de menta - respondeu ela desdenhosamente. Não gostava de servi-lo, pois era filha de um grande homem, e ele, um vagabundo sem dinheiro.

      Era da terceira irmã, Aysha, que Jack mais gostava. Nos três meses em que ali estava, viera a conhecê-la bastante bem. Tinha quinze ou dezasseis anos, era pequena e cheia de vida e estava sempre sorrindo. Embora fosse três ou quatro anos mais moça que ele, não parecia infantil. Tinha a inteligência viva, cheia de curiosidade.

      Fazia-lhe intermináveis perguntas sobre a Inglaterra e o modo de vida inglês. Frequentemente fazia pouco dos costumes da sociedade de Toledo - o jeito esnobe dos árabes, as cansativas exigências dos judeus e o mau gosto dos novos ricos cristãos -, fazendo às vezes Jack ter ataques de riso. Embora fosse a mais jovem, parecia a menos inocente das três: alguma coisa no modo como olhava para Jack, quando se debruçava à sua frente para colocar um prato de camarões apimentados na mesa, revelava, sem sombra de dúvida, um traço licencioso. Ela atraiu a atenção dele e disse "Licor de menta" numa imitação perfeita do jeito arrogante da irmã, e Jack teve que rir. Quando estava com Aysha quase sempre podia esquecer Aliena por algumas horas.

      Mas quando estava longe daquela casa, Aliena se fazia presente na sua cabeça com tanta intensidade como se a houvesse visto ainda na véspera. A lembrança que tinha dela era dolorosamente vívida, embora não a visse há mais de um ano. Era capaz de relembrar qualquer uma de suas expressões quando bem entendesse: risonha, pensativa, desconfiada, ansiosa, satisfeita, atônita e, com mais clareza, que qualquer uma das outras, apaixonada. Não se esquecera de nada acerca do seu corpo, e ainda podia ver a curva do seu seio, sentir a suavidade da pele da parte interna da sua coxa, o sabor do seu beijo, o cheiro do seu desejo. com muita frequência a desejava.

      Para se curar desse infrutífero desejo, às vezes imaginava o que Aliena devia estar fazendo. Via-a descalçando as botas de Alfred no fim do dia, sentando-se para comer a seu lado, beijando-o, fazendo amor com ele e dando o seio para um bebê que era a cara de Alfred. Tais visões o torturavam, mas não o impediam de desejá-la.

      Nesse dia, de Natal, Aliena assaria um cisne e o enfeitaria com suas próprias penas para servi-lo, e haveria para beber uma mistura preparada com cerveja, ovos e noz-moscada. A comida colocada à frente de Jack não poderia ser mais diferente. Havia pratos de carneiro temperado de modo estranho, arroz misturado com nozes e saladas com molho de azeite e sumo de limão. Levara algum tempo para Jack se acostumar com a cozinha da Espanha. Eles nunca serviam grandes pedaços de carne de boi, pernis de porco ou de veado, sem os quais nenhum banquete seria completo na Inglaterra, nem tampouco consumiam grossas fatias de pão. Não tinham as opulentas pastagens capazes de sustentar imensos rebanhos de gado, ou um solo rico que produzisse grandes quantidades de trigo. Compensavam as quantidades relativamente pequenas de carne com maneiras engenhosas de cozinhá-la com todo tipo de especiarias, e no lugar do trivial pão da Inglaterra, dispunham de uma ampla variedade de frutas e verduras.

      Jack estava morando com um pequeno grupo de clérigos ingleses em Toledo. Faziam parte de uma comunidade internacional de estudiosos, que incluíam judeus, muçulmanos e cristãos árabes. Os ingleses se ocupavam traduzindo obras de matemática do árabe para o latim, para que pudessem ser lidas por cristãos. Havia uma atmosfera de febril excitação entre eles, na descoberta e exploração do tesouro da sabedoria árabe; deram, com naturalidade, as boas-vindas a Jack como estudante: admitiam em seu círculo qualquer um que entendesse o que faziam e compartilhasse do seu entusiasmo.

      Eram como camponeses que tivessem trabalhado durante anos para arrancar suas colheitas de um solo árido e que subitamente tivessem se mudado para um rico vale aluvial.

      Jack abandonara a construção pelo estudo da matemática. Ainda não precisara trabalhar por dinheiro: os clérigos lhe deram uma cama e todas as refeições que quisesse, e lhe dariam novo hábito e sandálias se precisasse. Raschid era um dos seus patrocinadores. Sendo comerciante internacional, era poliglota e cosmopolita em suas atitudes. Em casa falava castelhano, o idioma da Espanha cristã, e não árabe. Sua família toda falava também francês, a língua dos normandos, que eram importantes comerciantes. Embora fosse mercador, tinha inteligência vigorosa e extensa curiosidade. Adorava conversar com os eruditos sobre suas teorias. Gostara imediatamente de Jack, e este jantava em sua casa diversas vezes por semana.

      - O que foi que os filósofos nos ensinaram nesta semana? - perguntou Raschid quando começaram a comer.

      - Estou lendo Euclides. - Seu livro Elementos fora um dos primeiros traduzidos.

      - Euclides é um nome esquisito para um árabe - disse Ismail, irmão de Raschid.

      - Ele era grego - explicou Jack. - Viveu antes do nascimento de Cristo. Seu trabalho foi perdido pelos romanos mas preservado pelos egípcios; por isso chega até nós em árabe.

      - E agora os ingleses o estão traduzindo para o latim! - disse Raschid. - Isso me diverte.

      - Mas o que você aprendeu? - quis saber Josef, o noivo de Raya.

      Jack hesitou. Era difícil de explicar. Tentou ser prático.

      - Meu padrasto, o construtor, ensinou-me a realizar certas operações em geometria: como dividir exatamente uma linha em duas partes, como desenhar um ângulo reto e como desenhar um quadrado dentro de outro de modo que o menor tenha a metade da área do maior.

      - Qual o propósito de saber essas coisas? - interrompeu Josef. Havia uma nota de escárnio em sua voz. Via Jack como um arrivista e tinha ciúme da atenção que Raschid lhe dispensava.

      - Essas operações são essenciais quando se projeta um prédio - respondeu Jack amavelmente, fingindo não perceber o tom de voz do outro. - Dê uma olhada neste pátio. A área das arcadas cobertas em torno do seu perímetro é exatamente a mesma da área descoberta central. A maior parte dos pequenos pátios é construída dessa forma, incluindo-se os claustros dos mosteiros. É porque essas proporções são mais agradáveis. Se a parte central for maior, vai ficar parecendo com uma praça de mercado, e se for menor, poderá parecer um buraco no telhado. Mas para conseguir exatamente isso, o construtor tem que ser capaz de desenhar a parte descoberta no meio de modo que tenha precisamente metade da área de todo o conjunto.

      - Eu não sabia disso! - exclamou Raschid triunfantemente. Não havia nada de que ele gostasse mais do que aprender algo novo.

      - Euclides explica por que essas técnicas funcionam - prosseguiu Jack. - Por exemplo, as duas partes da linha dividida são iguais porque formam os lados correspondentes de triângulos coincidentes.

      - Coincidentes? - estranhou Raschid.

      - Exatamente iguais.

      - Ah, sim, agora entendo.

      Jack podia garantir que ninguém mais tinha entendido.

      - Mas você era capaz de realizar todas essas operações geométricas antes de ler Euclides - disse Josef -, de modo que não vejo por que estaria em melhores condições agora.

      - Um homem sempre melhora de condições quando compreende alguma coisa! - protestou Raschid.

      - Além disso - acrescentou Jack -, agora que entendo os princípios da geometria, posso ser capaz de imaginar soluções para novos problemas que teriam deixado meu padrasto frustrado. - Na verdade, era Jack quem estava se sentindo frustrado com aquela conversa: Euclides chegara até ele com o clarão ofuscante de uma revelação, mas não estava conseguindo comunicar a emocionante importância dessas novas descobertas. Mudou um pouco sua abordagem. - É o método de Euclides que é o mais interessante - disse. - Ele pega cinco axiomas - verdades auto-evidentes - e deduz tudo mais a partir delas, num exercício de lógica.

      - Dê-me o exemplo de um axioma - pediu Raschid.

      - Uma linha pode ser prolongada indefinidamente.

      - Não pode, não - disse Aysha, que servia uma travessa de figos.

      Os convidados ficaram um tanto espantados ao ver uma garota entrar numa discussão, mas Raschid riu indulgentemente: Aysha era sua favorita.

      - E por que não? - perguntou ele.

      - Porque uma hora ela tem que terminar - respondeu Aysha.

      - Mas na sua imaginação ela poderia prosseguir indefinidamente - disse Jack.

      - Na minha imaginação, o rio pode subir a montanha e os cachorros falarem latim - retorquiu ela.

      Sua mãe entrou na sala e ouviu sua réplica.

      - Aysha! - exclamou severamente.  - Fora!

      Todos os homens riram. Aysha fez uma careta e saiu.

      - Quem quer que se case com ela vai ter muito trabalho! - disse o pai de Josef. Todos riram de novo. Jack riu também; só depois notou que todos o olhavam, como se a piada tivesse sido dirigida a ele.

      Após o jantar, Raschid exibiu sua coleção de brinquedos mecânicos. Ele tinha um tanque em que se podia misturar água e vinho e do qual as duas bebidas saíam separadamente; um maravilhoso relógio movido a água, que marcava todas as horas do dia com fenomenal precisão; um jarro que se recompletava mas nunca derramava; e uma pequena estátua de madeira de uma mulher, cujos olhos eram feitos de uma espécie de cristal que absorvia água no calor do dia e que a vertia no frio da noite, de modo que parecia estar chorando. Jack compartilhava com Raschid o fascínio por aqueles brinquedos, mas o que mais o intrigava era a estátua que chorava, pois enquanto os mecanismos dos outros eram simples, uma vez explicados, ninguém entendia realmente como a estátua funcionava.

      À tarde sentaram-se nas arcadas em torno do pátio, disputando jogos, cochilando ou conversando preguiçosamente. Jack gostaria de ter pertencido a uma família grande assim, com irmãos, tios e afins, e com uma casa que todos pudessem visitar, bem como uma posição de respeito numa pequena cidade. Subitamente rememorou a conversa que tivera com a mãe na noite em que ela o libertara da cela do priorado. Ele lhe perguntara sobre os parentes do pai e ela lhe dissera: Sim, ele tinha uma grande família, lá na França. Tenho uma família como esta em algum lugar, pensou Jack. Os irmãos e irmãs de meu pai são meus tios e tias. Pode ser que eu tenha primos da minha idade. Será que vou chegar a conhecê-los?

      Sentia-se à deriva. Podia sobreviver em qualquer lugar mas não pertencia a lugar nenhum. Havia sido cinzelador, construtor, monge e matemático, e não sabia qual deles era o verdadeiro Jack, se é que existia um Jack de verdade. Às vezes se perguntava se não deveria ser menestrel como o pai, ou proscrito, como a mãe. Estava com dezenove anos, não tinha lar, família, raízes ou um objetivo na vida.

      Jogou xadrez com Josef e ganhou; depois Raschid se aproximou.

      - Dê-me sua cadeira, Josef - pediu ele; - quero saber mais sobre Euclides.

      Josef obedientemente deu sua cadeira ao futuro sogro e se afastou - já tinha ouvido tudo o que jamais ia querer saber a respeito de Euclides. Raschid sentou-se e perguntou a Jack:

      - Você está se divertindo?

      - Sua hospitalidade é inigualável - disse Jack polidamente. Tinha aprendido maneiras refinadas em Toledo.

      - Muito obrigado. Mas eu estava querendo saber se você estava aproveitando bem o estudo de Euclides.

      - Sim, contudo acho que não obtive êxito ao explicar a importância do livro. Você vê...

      - Acho que compreendo você - interrompeu Raschid. - Também amo o saber pelo próprio saber.

      - Sim.

      - Mesmo assim, todo homem tem que ganhar a vida.

          Jack não apreendeu a pertinência da observação, e ficou esperando que Raschid dissesse mais alguma coisa. No entanto, o sarraceno ficou sentado com os olhos semicerrados, aparentemente satisfeito por desfrutar do companheirismo daquele momento de silêncio. Jack começou a se perguntar se Raschid não o estaria reprovando por não trabalhar. E acabou por dizer:

      - Espero um dia voltar a trabalhar em construção.

      - Ótimo.

      Jack sorriu.

      - Quando deixei Kingsbridge, montado no cavalo da minha mãe, com as ferramentas de meu padrasto num saco pendurado no ombro, pensava que só havia um modo de construir uma igreja: paredes grossas com arcos redondos e janelinhas encimadas por um teto de madeira ou uma abóbada de pedra. As catedrais que vi no meu caminho de Kingsbridge a Southampton provaram o contrário. Mas a Normandia mudou a minha vida.

      - Posso imaginar - disse Raschid sonolentamente. Não estava muito interessado, e Jack rememorou aqueles dias em silêncio...

      Horas depois de ter desembarcado em Honfleur estava contemplando a igreja da Abadia de Jumièges. Era a mais alta que já vira, mas tinha os usuais arcos redondos e teto de madeira - exceto na casa do cabido, onde o abade Urso construíra um revolucionário teto de pedra. Em vez de uma superfície cilíndrica contínua e lisa, ou de uma abóbada de arestas, esse teto tinha nervuras, como costelas, que saíam do topo das colunas e se encontravam na sua parte mais alta. Eram grossas e fortes, e as seções triangulares do teto entre elas eram delgadas e leves. O monge zelador da obra explicou a Jack que era mais fácil construir daquele modo: as vigas eram colocadas primeiro, e as seções intermediárias, que vinham depois, tornavam-se mais simples de fazer. Aquele tipo de teto era mais leve. O monge estava na esperança de ouvir de Jack notícias sobre as inovações técnicas na Inglaterra, e o rapaz teve que desapontá-lo. No entanto, sua evidente admiração pelo novo tipo de teto agradou muito o religioso, que lhe disse haver uma igreja em Lessay, não muito distante, cujo teto era daquele jeito.

      Jack foi para Lessay no dia seguinte, e gastou toda a tarde na igreja, admirando extasiado a abóbada. O mais impressionante, concluiu por fim, era o modo como as nervuras, descendo da parte mais alta do teto até os capitéis no topo das colunas, pareciam dramatizar o fato de o peso do telhado estar sendo sustentado pelos seus integrantes mais fortes. Elas tornavam visíveis a lógica da construção.

      Jack viajou para o sul, para o condado de Anjou, e conseguiu trabalho na igreja da Abadia de Tours, fazendo reparos. Não teve problema em convencer o mestre a aceitá-lo para uma experiência. As ferramentas que trazia consigo mostravam que era pedreiro, e após um dia de trabalho o mestre viu que era dos bons. Àquilo de que se jactara com Aliena, de que era capaz de arranjar trabalho em qualquer parte do mundo, não era inteiramente infundado.

      Entre as ferramentas que herdara de Tom, estava a régua de um pé. Somente mestres construtores tinham essa régua, e quando os outros descobriram que ele possuía uma perguntaram-lhe como havia se tornado mestre com tão pouca idade. Seu primeiro desejo foi explicar que não era na realidade mestre construtor, mas depois decidiu dizer que era. Afinal de contas, dirigira efetivamente o canteiro de obra de Kingsbridge no tempo em que era monge, e podia desenhar plantas tão bem quanto Tom.

      Mas o mestre com quem estava trabalhando ficou aborrecido ao descobrir que contratara um possível rival. Um dia Jack sugeriu uma modificação ao monge encarregado da obra, e desenhou o que queria dizer no chão. Foi esse o início dos seus problemas. O mestre construtor se convenceu de que Jack estava querendo o seu lugar. Começou a descobrir defeitos no que fazia e o incumbiu da tarefa monótona de cortar blocos de pedra.

      Pouco tempo depois Jack seguiu viagem novamente. Foi para a Abadia de Cluny, a sede de um império monástico que se estendia por toda a cristandade. Fora a ordem ali sediada que iniciara e patrocinara a agora famosa peregrinação ao túmulo de são Tiago, em Compostela. Ao longo de toda a extensão da estrada de Compostela havia igrejas dedicadas a são Tiago e mosteiros geridos pela ordem com a finalidade de cuidar dos peregrinos. Como o pai de Jack fora um menestrel na rota dos peregrinos, parecia provável que tivesse visitado Cluny.

      No entanto, não tinha. Não havia menestréis em Cluny. Jack nada descobriu a respeito de seu pai ali.

      Mesmo assim, a viagem não foi absolutamente inútil. Todos os arcos que Jack vira até o momento em que entrou na igreja da Abadia de Cluny eram semicirculares, e todos os tetos abobadados ou eram cilíndricos, como uma longa sucessão de arcos redondos colados uns nos outros, ou de arestas, como um cruzamento onde dois cilindros se encontravam. Os arcos de Cluny não eram semicirculares.

      Eles se erguiam até um ponto.

      Havia arcos ogivais nas arcadas principais; as abóbadas de arestas das naves laterais tinham arcos ogivais; e - o mais espantoso de tudo - acima da nave principal havia um teto de pedra que só podia ser descrito como uma abóbada. Jack sempre aprendera que um círculo era forte por ser perfeito, e um arco redondo também era forte por ser parte de um círculo. Ele teria pensado que arcos ogivais fossem fracos. Na verdade, disseram-lhe os monges, os arcos ogivais eram consideravelmente mais fortes que os antigos arcos redondos. A igreja de Cluny parecia ser uma prova disso, pois, a despeito do grande peso da cantaria na sua abóbada ogival, era muito alta.

      Jack não ficou muito tempo em Cluny. Continuou para o sul, seguindo a estrada dos peregrinos, desviando-se sempre que um capricho o levava a se desviar. No início do verão havia menestréis ao longo de toda a estrada, nas grandes cidades e nas proximidades dos mosteiros da ordem de Cluny. Eles recitavam suas narrativas em versos para as multidões de peregrinos em frente às igrejas e santuários, às vezes acompanhando-se ao alaúde, exatamente do modo como Aliena lhe contara. Jack a todos abordou, perguntando se tinham conhecido Jack Shareburg. Todos disseram que não.

      As igrejas que viu no seu caminho através do sudoeste da França e do norte da Espanha continuaram a assombrá-lo. Eram todas muito mais altas que as catedrais inglesas.

      Algumas tinham abóbadas cilíndricas cintadas. Essas cintas, ou braçadeiras, ligavam uma pilastra à outra cruzando a abóbada da igreja e tornavam possível construir por estágios, intercolúnio por intercolúnio, em vez de todos ao mesmo tempo. Mudavam também a aparência da igreja. Ao enfatizar a divisão entre os intercolúnios, revelavam que os edifícios eram uma série de unidades idênticas, como um pão cortado em fatias, e dessa forma impunham ordem e lógica ao vasto espaço interior.

      Esteve em Santiago de Compostela em pleno verão. Nunca soubera que houvesse lugares tão quentes no mundo. A igreja da cidade também era incrivelmente alta, e a nave, ainda em construção, tinha, da mesma forma, uma abóbada cintada. Dali seguiu para o sul.

      Os reinos espanhóis tinham estado sob domínio muçulmano até pouco tempo; na verdade, a maior parte do território ao sul de Toledo ainda se encontrava sob dominação islâmica. A aparência das construções sarracenas fascinou Jack: seus interiores altos e frios, suas arcadas, o emprego de pedra ofuscantemente branca à luz do sol.

      Mas o mais interessante de tudo foi descobrir que tanto as abóbadas providas de nervuras quanto os arcos ogivais apareciam na arquitetura muçulmana. Talvez tivesse sido ali que os franceses houvessem aprendido suas novas idéias.

      Nunca mais poderia trabalhar em outra igreja como a Catedral de Kingsbridge, pensou, naquela quente tarde espanhola, ouvindo vagamente as risadas das mulheres vindas de algum ponto longínquo da grande e fria casa. Ainda desejava construir a catedral mais bonita do mundo, mas não seria uma estrutura maciça, sólida, lembrando uma fortaleza. Queria usar as novas técnicas, os tetos com nervuras e os arcos em ponta. Pensava, contudo, que não as empregaria do jeito como até então haviam sido usadas. Nenhuma das igrejas que vira explorara ao máximo suas possibilidades. Uma imagem da sua igreja começou a se formar na sua cabeça. Os detalhes ainda pareciam indistintos, mas o esboço geral era muito forte: seria uma construção espaçosa e arejada, com a luz do sol atravessando suas imensas janelas e uma abóbada arqueada tão alta que daria a impressão de atingir o céu.

      - Josef e Raya precisarão de uma casa - disse Raschid subitamente. - Se você a construir, outras obras se seguirão.

      Jack ficou surpreso. Não pensara em construção de casas.

      - Acha que vão querer que eu construa a casa deles? - perguntou.

      - É possível.

      Seguiu-se outro longo silêncio, durante o qual Jack meditou na hipótese de ser construtor de casas para os mercadores abastados de Toledo.

      Raschid pareceu acordar completamente. Sentou-se direito e abriu mais os olhos.

      - Gosto de você, Jack - disse ele. - É um homem honesto, com quem vale a pena conversar, o que é muito mais do que pode ser dito em favor da maioria das pessoas que conheço. Espero que sejamos sempre amigos.

      - Eu também - disse Jack, meio espantado com o elogio inesperado.

      - Sou cristão, de modo que não conservo as minhas mulheres trancadas, como fazem alguns dos meus irmãos muçulmanos. Por outro lado, sou árabe, o que significa que não lhes dou bastante aquilo... perdoe-me a liberdade...  com que as outras mulheres estão acostumadas. Permito que conheçam e que conversem com os convidados masculinos da casa. Permito até mesmo que amizades se desenvolvam. Mas no ponto onde a amizade começa a se transformar em algo mais - como acontece naturalmente entre gente jovem -, espero então que o homem assuma uma atitude formal. Qualquer outra coisa seria um insulto.

      - Naturalmente - concordou Jack.

      - Eu sabia que você concordaria. - Raschid se levantou e pôs uma das mãos afetuosamente no ombro de Jack. - Nunca fui abençoado com um filho; mas se houvesse sido, acho que seria como você.

      - Mais moreno, espero - disse Jack, cedendo a um impulso.

      Raschid não reagiu por um instante, mas logo caiu na gargalhada, atraindo a atenção dos outros convidados espalhados em torno do pátio.

      - Sim! - concordou alegremente. - Mais moreno! - E entrou na casa, ainda rindo.

      Os convidados mais velhos começaram a ir embora. Jack ficou sentado sozinho, pensando no que lhe fora dito, à medida que a tarde esfriava. Fora oferecido a ele um trato, quanto a isso não tinha a menor dúvida. Se desposasse Aysha, Raschid o lançaria como construtor de casas entre os abastados de Toledo. Havia também uma advertência: se não tencionasse se casar com ela, deveria se manter afastado. As pessoas na Espanha tinham maneiras mais requintadas que os ingleses, mas eram capazes de deixar bem claro o que queriam dizer, quando necessário.

      Ao refletir naquela situação por diversas vezes Jack achou-a inacreditável. Será que sou eu mesmo?, pensou. Será que este é o Jack, filho bastardo de um homem que foi enforcado, criado na floresta, aprendiz de pedreiro, monge fugitivo? Estão mesmo me oferecendo em casamento a linda filha de um rico mercador árabe, além de um modo seguro de ganhar a vida como construtor nesta cidade tão agradável? Parece bom demais para ser verdade. Eu até mesmo gosto da garota!

      O sol estava se pondo e o pátio mergulhara na sombra. Só haviam restado duas pessoas na arcada - ele e Josef. Estava imaginando se aquela situação poderia ter sido planejada, quando Raya e Aysha apareceram, comprovando que sim. A despeito da rigidez teórica relativa ao contato físico entre moças e rapazes, a mãe delas sabia exatamente o que estava acontecendo, e decerto também Raschid. Proporcionaria aos namorados alguns momentos de isolamento; depois, antes que houvesse tempo para acontecer algo sério, ela apareceria no pátio, fingindo-se ultrajada, e mandaria que as garotas entrassem.

      Do outro lado do pátio Josef e Raya começaram imediatamente a se beijar. Jack levantou-se quando Aysha se aproximou dele. Estava usando um vestido branco que arrastava no chão, feito de algodão egípcio, um tecido que Jack nunca vira antes de vir à Espanha. Mais macio que a lã e mais fino que o linho, colava nas suas pernas quando andava, e no crepúsculo o branco parecia adquirir brilho próprio, fazendo seus olhos castanhos parecerem quase negros. Parou junto de Jack, sorrindo maliciosamente.

      - O que foi que ele lhe disse? - perguntou. Jack viu que se referia ao pai.

      - Ofereceu-me uma posição de construtor de casas.

      - Que dote! - exclamou ela desdenhosamente. - Não posso acreditar! Pelo menos poderia ter oferecido dinheiro.

      Aysha não tinha paciência com os tradicionais rodeios árabes, observou Jack. Gostava da franqueza dela.

      - Não creio que eu queira construir casas.

      Ela ficou solene de repente.

      - Você gosta de mim?

      - Você sabe que eu gosto.

      Aysha deu um passo à frente, ergueu o rosto, fechou os olhos, ficando na ponta dos pés, e beijou-o. Ela cheirava a almíscar e âmbar-gris. Abriu a boca e meteu a língua por entre os lábios dele. Os braços de Jack a envolveram quase que involuntariamente. Suas mãos a cingiram pela cintura. O algodão era muito fino: parecia que lhe tocava a pele nua. Ela pegou-lhe a mão e a pôs sobre o seio. O corpo de Aysha era esbelto e rígido e seu seio, pouco volumoso, um montinho firme com um bico duro e minúsculo na ponta. Ela moveu o peito para cima e para baixo, ao se excitar. Jack ficou chocado ao sentir a mão dela entre suas pernas. Apertou o bico do seio com a ponta dos dedos. Ofegante, ela afastou-se. Ele baixou as mãos.

      - Machuquei você? - murmurou.

      - Não! - exclamou ela.

      Jack pensou em Aliena e sentiu-se culpado; viu depois que estava sendo tolo. Por que deveria se sentir como se estivesse traindo uma mulher que tinha se casado com outro homem?

      Aysha o fitou por um momento. Estava quase escuro, mas podia ver que seu rosto estava tomado de desejo. Ela ergueu-lhe a mão e colocou-a novamente no seio.

      - Aperte de novo, com mais força - disse excitada. Ele pegou o bico do seio e inclinou-se para beijá-la, mas ela o empurrou para ficar vendo seu rosto enquanto a acariciava. Jack tocou-o delicadamente a princípio, e depois, obediente, o apertou com força. Ela arqueou tanto as costas que os seios chatos ficaram salientes e os bicos formaram pequenas pregas no tecido do vestido. Jack baixou a cabeça e fechou os lábios em torno de um deles, através do algodão. Então, cedendo a um impulso, tomou-o entre os dentes e mordeu-o. Ouviu Aysha respirar fundo.

      Sentiu que o corpo dela estremecia. Aysha ergueu a cabeça e se comprimiu contra ele. Jack colou o rosto ao dela. A garota o beijou freneticamente, como se quisesse cobrir-lhe o rosto com a boca, e puxou o corpo dele de encontro ao seu, soltando abafados gemidos de medo. Jack estava excitado, assustado e até mesmo um pouco temeroso: nunca tinha visto nada assim. Achou que ela estava quase gozando. Então foram interrompidos.

      A voz da mãe dela fez-se ouvir, vinda do portal.

      - Raya! Aysha! Entrem imediatamente!

      Aysha olhou para Jack, ofegante. Após um momento beijou-o de novo, com tanta força que machucou seus lábios. Só então afastou-se.

      - Eu o amo - murmurou, entre os dentes. E aí entrou correndo na casa.

      Jack acompanhou-a com o olhar. Raya a seguiu, com um passo mais calmo. A mãe delas lançou um olhar desaprovador para ele e Josef e foi atrás das filhas, batendo a porta decididamente. Jack fixou a porta fechada, imaginando o que fazer de tudo aquilo.

      Josef atravessou o pátio e interrompeu seu devaneio.

      - Que garotas lindas, as duas! - comentou, com uma piscadela conspiratória.

      Jack assentiu distraidamente e foi se dirigindo para a saída. Quando passaram sob o arco, um criado materializou-se nas sombras e fechou o portão.

      - O problema de ser noivo - disse Josef - é que deixa a gente com os ovos doendo. - Jack não disse nada. - Acho que vou até a Fátima para me aliviar - Fátima era o bordel. A despeito do nome mouro, quase todas as mulheres do bordel tinham a pele clara, e as poucas prostitutas árabes eram muito valorizadas. - Quer ir? - convidou Josef.

      - Não - respondeu Jack. - Estou com um tipo diferente de dor. Boa noite. - Afastou-se depressa. Josef não era sua companhia favorita nas melhores ocasiões, e naquela noite o estado de espírito de Jack era, no mínimo, rancoroso.

      O ar da noite esfriou enquanto retornava para o colégio onde tinha uma cama dura no dormitório. Sentia que atingira um ponto crítico. Estava sendo oferecida a ele uma vida calma e próspera, tudo o que tinha a fazer era esquecer Aliena e abandonar a aspiração de construir a mais bela catedral do mundo.

      Naquela noite sonhou que Aysha se aproximava, o corpo nu escorregadio com óleo perfumado, e se esfregava nele, mas não deixava que fizesse amor com ela.

      Quando acordou pela manhã, tinha tomado sua decisão.

     

      Os criados não deixaram Aliena entrar na casa de Raschid Alharoun. Provavelmente parecia uma mendiga, pensou, parada do lado de fora do portão, metida numa túnica poeirenta e botas gastas, com o bebê nos braços.

      - Diga a Raschid Alharoun que estou procurando o amigo dele chamado Jack Fitzjack, da Inglaterra - disse em francês, perguntando-se se os criados de pele morena poderiam compreender uma única palavra. Após algumas consultas cochichadas na língua deles, um dos criados, um homem alto de pele negra como carvão e cabelo encarapinhado como o pêlo de um carneiro, entrou dentro da casa.

      Aliena esperou impacientemente, enquanto os demais criados a encaravam, sem disfarce. Não aprendera a ter paciência, nem mesmo naquela interminável peregrinação.

      Após o desapontamento de Santiago de Compostela, seguira a estrada que demandava o interior da Espanha, para Salamanca. Ali ninguém se lembrava de um rapaz ruivo interessado em catedrais e menestréis, mas um monge bondoso lhe disse que havia uma comunidade de estudiosos ingleses em Toledo. Parecia uma débil esperança, mas Toledo não ficava muito longe, e assim ela seguira pela estrada poeirenta.

      Outro terrível desapontamento a esperava ali. Sim, Jack estivera em Toledo - que sorte! -, mas já fora embora. Estava se aproximando: agora só se encontrava um mês atrás dele. Só que, uma vez mais, ninguém sabia para onde tinha ido.

      Em Santiago de Compostela pudera adivinhar que ele devia ter ido para o sul, porque ela própria viera do leste e porque havia mar ao norte e a oeste. Ali, infortunadamente, havia mais possibilidades. Jack poderia ter ido para o nordeste, voltando para a França; para oeste, rumo a Portugal; ou para o sul, na direção de Granada; e na costa da Espanha poderia pegar um navio para Roma, Tunísia, Alexandria ou Beirute.

      Aliena decidira desistir da busca se não conseguisse uma forte indicação do rumo que Jack tomara quando saíra dali. Restavalhe muito pouca energia e determinação, e não podia mais enfrentar a idéia de prosseguir sem dispor de nada além de uma vaga esperança de sucesso. Estava pronta para fazer meia-volta e retornar para a Inglaterra, procurando esquecer Jack para sempre.

      Apareceu outro criado, saído da casa branca. Este vestia roupas mais caras e falava francês. Olhou para Aliena cautelosamente, mas foi polido ao lhe perguntar:

      - A senhora é amiga do senhor Jack?

      - Sim, uma velha amiga da Inglaterra. Gostaria de falar com Raschid Alharoun.

      O criado deu uma olhada no bebê.

      - Sou parente de Jack - disse Aliena, e não era mentira; embora separada, era casada com Alfred, filho do padrasto de Jack, o que não deixava de ser um parentesco.

      O criado abriu mais o portão.

      - Por favor, acompanhe-me - pediu ele.

      Aliena entrou, grata. Se houvesse sido barrada ali, teria sido o fim de tudo.

      Seguiu o criado através de um pátio agradável e passou por um chafariz. Gostaria de saber o que atraíra Jack à casa de um rico comerciante. Parecia uma amizade improvável.

      Teria recitado narrativas em versos à sombra daquelas arcadas?

      Entraram na casa. Era uma residência palaciana, com aposentos altos e frescos, piso de pedra e mármore e mobília elaboradamente entalhada, estofada com ricas fazendas.

      Passaram por dois arcos e uma porta de madeira, e Aliena teve a impressão de que estava ingressando na parte destinada às mulheres. O criado fez um gesto para que esperasse, e pigarreou com delicadeza.

      Um momento depois uma mulher alta, sarracena, vestida com um manto negro, entrou silenciosamente no aposento, segurando uma ponta do seu traje em frente à boca, e numa pose que era insultuosa em qualquer linguagem. Olhou para Aliena e perguntou em francês:

      - Quem é você?

      Aliena empertigou-se, para ficar mais alta.

      - Lady Aliena, filha do falecido conde de Shiring - disse, o mais sobranceiramente que pôde. - Creio que tenho o prazer de estar me dirigindo à mulher de Raschid, o vendedor de pimenta. - Ela sabia jogar aquele jogo tão bem quanto qualquer outra pessoa.

      - O que deseja aqui?

      - Vim para ver Raschid.

      - Ele não recebe mulheres.

      Aliena deu-se conta de que não havia como obter a cooperação daquela criatura. No entanto, como não tinha outro lugar para ir, continuou tentando.

      - Pode ser que ele receba uma amiga de Jack - insistiu.

      - Jack é seu marido?

      - Não - respondeu Aliena, hesitante. - É meu cunhado. A mulher assumiu uma expressão de ceticismo. Como a maioria das pessoas, provavelmente presumiu que Jack engravidara Aliena, a abandonara e agora ela o perseguia com objetivo de forçá-lo a desposá-la e sustentar o filho.

      A mulher fez meia-volta e exclamou algo num idioma que Aliena não entendeu. Um momento depois três mulheres jovens entraram. Era óbvio, pela sua aparência, que se tratava de suas filhas. Dirigiu-se a elas na mesma língua e todas encararam Aliena. Seguiu-se uma rápida conversa em que o nome de Jack foi repetido inúmeras vezes.

      Aliena sentiu-se humilhada. Estava tentada a girar nos calcanhares e ir embora, mas isso significaria desistir também de encontrar Jack. Aquelas pessoas horríveis eram a sua última esperança. Ergueu a voz, interrompendo a conversa, e perguntou:

      - Onde está Jack? - Tencionava ser autoritária, mas, para sua aflição, a voz dela pareceu apenas suplicante.

      As irmãs fizeram silêncio.

      - Não sabemos onde ele está - disse a mãe.

      - Quando o viram pela última vez?

      Ela hesitou. Não queria responder, mas não poderia fingir que não sabia quando o vira pela última vez.

      - Ele deixou Toledo no dia seguinte ao Natal - respondeu relutantemente.

      Aliena forçou um sorriso amistoso.

      - Lembra-se de ele ter dito qualquer coisa a respeito do lugar para onde podia estar indo?

      - Eu já lhe disse que não sei onde ele se encontra.

      - Talvez tenha dito ao seu marido.

      - Não, não disse.

      Aliena se desesperou. Teve a intuição de que aquela mulher sabia de algo. Era claro, no entanto, que não ia revelar o que sabia. De repente sentiu-se fraca e amedrontada.

      Foi com lágrimas nos olhos que disse:

      - Jack é o pai do bebê. Acham que ele não gostaria de ver o próprio filho?

      A mais moça das três irmãs começou a dizer qualquer coisa, mas a mãe a interrompeu. Houve uma discussão rápida e violenta: mãe e filha tinham o mesmo temperamento forte. Mas no fim a filha se calou.

      Aliena aguardou, mas nada mais foi dito. As quatro se limitaram a encará-la. A atitude delas era inquestionavelmente hostil, mas sua curiosidade era tanta que não tinham pressa de vê-la ir-se. Contudo Aliena nada ganharia, ficando. O melhor a fazer era sair, voltar para o seu quarto e preparar-se para a longa viagem de volta para Kingsbridge. Respirou fundo e disse com voz fria e firme:

      - Agradeço pela sua hospitalidade...

      A mãe teve a delicadeza de ficar ligeiramente envergonhada.

      Aliena deixou o aposento.

      O criado esperava do lado de fora, e a acompanhou através da casa. Aliena conteve as lágrimas. Era intoleravelmente frustrante saber que toda a sua viagem fracassara por causa da maldade de uma mulher.

      O criado acompanhou-a na travessia do pátio. Ao chegarem ao portão, Aliena ouviu o barulho de uma pessoa correndo. Olhou para trás para ver a filha mais moça vindo na sua direção. Parou e esperou. O criado ficou inquieto.

      A garota era baixa e esbelta, e muito bonita, com a pele dourada e os olhos tão escuros que pareciam pretos. Usava um vestido branco e fez com que Aliena se sentisse suja e poeirenta. Falava francês, embora sem fluência.

      - Você o ama? - foi perguntando.

      Aliena hesitou. Chegou à conclusão de que não lhe sobrara dignidade para ser perdida.

      - Sim, eu o amo - confessou.

      - Ele a ama?

      Estava prestes a dizer que sim, mas se lembrou de que não o via há mais de um ano.

      - Ele me amava - respondeu.

      - Acho que ele a ama - disse a garota.

      - O que a faz dizer isso?

      Os olhos da outra encheram-se de lágrimas.

      - Eu o queria para mim. E quase o consegui. - Fitou o bebê. - Olhos azuis e cabelo ruivo. - As lágrimas escorreram pelo seu rosto moreno de pele macia.

      Aliena a fitou espantada. Aquilo explicava a recepção hostil. A mulher de Raschid queria que Jack se casasse com aquela garota, que não poderia ter mais que dezesseis anos, mas cuja aparência sensual a fazia parecer mais velha. Aliena gostaria de saber exatamente o que acontecera entre eles.

      - Você disse que "quase" o conseguiu?

      - Sim - respondeu a garota desafiadoramente. - Eu sabia que ele gostava de mim. Partiu meu coração quando foi embora. Mas agora compreendo. - Ela perdera a compostura e seu rosto estava contorcido de dor.

      Aliena podia entender uma mulher que amara Jack e o perdera. Tocou no ombro da garota, num gesto reconfortante. Mas havia algo mais importante que compaixão.

      - Sabe para onde ele foi?

      Ela ergueu a cabeça e fez que sim, soluçando.

      - Diga-me!

      - Paris - disse ela. - Paris!

      Aliena ficou entusiasmada. Estava de volta à estrada. Paris ficava longe, mas a viagem seria, em sua maior parte, em uma terra com que estava familiarizada. E Jack só tinha um mês de vantagem sobre ela. Sentiu-se revigorada. No fim o encontrarei, pensou; sei que o encontrarei!

      - Você vai para Paris agora? - perguntou a garota.

      - Oh, sim - respondeu Aliena. - Já vim tão longe, não vou parar agora. Muito obrigada por me dizer, muito obrigada.

      - Quero que ele seja feliz - disse a garota com simplicidade.

      O criado remexeu-se, insatisfeito. Dava a impressão de achar que poderia se meter em encrenca por causa daquilo.

      - Ele disse algo mais? Que estrada tomaria, ou algo que pudesse me ajudar?

      - Ele quer ir para Paris porque alguém lhe disse que estão construindo lindas igrejas lá.

      Aliena assentiu. Poderia ter adivinhado isto.

      - E ele levou a dama que chora.

      Aliena não entendeu.

      - A dama que chora?

      - Meu pai lhe deu a dama que chora.

      - Uma dama?

      A garota sacudiu a cabeça.

      - Não sei as palavras certas.  Uma dama.  Chora.  Os olhos...

      - Você se refere a uma pintura? Uma dama pintada?

      - Não compreendo - disse a garota. Ela olhou por cima do ombro, ansiosa. - Tenho que ir.

      Fosse o que fosse a tal dama que chorava, não parecia importante.

      - Muito obrigada por me ajudar - disse Aliena.

      A garota inclinou-se e beijou a testa do bebê. Suas lágrimas caíram nas bochechas redondas dele. Aysha olhou para Aliena:

      - Eu queria ser você. - com essas palavras, virou-se e foi correndo para dentro da casa.

     

      O quarto de Jack ficava na Rue de la Boucherie, num subúrbio de Paris à margem esquerda do Sena. Selou seu cavalo ao raiar do dia. No fim da rua virou à direita e passou pela torre do portão que guardava a Petit Pont, que levava à cidade na ilha no meio do rio.

      As casas de madeira de ambos os lados projetavam-se sobre as orlas da ponte. Nos intervalos entre elas havia bancos de pedra onde, pela manhã, mais tarde, professores famosos dariam aulas ao ar livre. A ponte conduziu Jack à Juiverie, a principal rua da ilha. As padarias estavam cheias de estudantes que compravam seu desjejum.

      Jack escolheu um pastel recheado com enguia cozida.

      Virou à esquerda em frente à sinagoga, depois à direita no palácio do rei e cruzou a Grand Pont, que levava à margem direita. As lojas pequenas e bem construídas dos cambistas e ourives, em ambos os lados, começavam a abrir as portas. No final da ponte passou por outro portão e entrou no mercado de peixe, onde o movimento já era intenso. Abriu caminho por entre a multidão e tomou a estrada lamacenta que levava a Saint-Denis.

      Quando ainda estava na Espanha, tomara conhecimento, através de um pedreiro viajante, de um tal abade Suger e da nova igreja que estava construindo em Saint-Denis.

      Enquanto viajava na direção norte através da França, trabalhando por alguns dias sempre que precisava de dinheiro, ouvia o nome de SaintDenis mencionado com frequência.

      Parecia que os construtores estavam usando as duas técnicas novas, abóbadas com vigas e arcos ogivais, e a combinação era notável.

      Jack cavalgou por mais de uma hora através de campos e videiras. A estrada não era pavimentada, mas tinha marcos que indicavam sua extensão. Passou pela colina chamada Montmartre, com as ruínas de um templo romano no topo, e atravessou a aldeia de Clignancourt. Quase cinco milhas após, chegou à pequena cidade murada de Saint-Denis.

      São Dionísio(1) fora o primeiro bispo de Paris. Decapitado em Montmartre, caminhara, carregando nas mãos a cabeça, até aquele ponto no meio do campo, onde finalmente caíra. Uma mulher piedosa o enterrara, e um mosteiro fora construído sobre seu túmulo. A igreja passara a ser o local onde eram enterrados os reis de França.

      (1) Saint Denis, em francês. (N. do E.)

     

      O abade atual, Suger, era um homem poderoso e cheio de ambição que reformara o mosteiro e que agora estava modernizando a igreja.

      Jack entrou na cidade e parou o cavalo no meio da praça do mercado para olhar a fachada oeste da igreja. Não havia nada de revolucionário ali. Era uma fachada reta e antiquada com torres gêmeas e três portas de arcos redondos. Gostou do jeito um tanto agressivo como as pilastras se projetavam das paredes, mas não teria viajado oito milhas para ver aquilo.

      Amarrou o cavalo numa grade em frente à igreja e aproximou-se mais. A escultura em torno dos três portais era muito boa: motivos vigorosos, trabalho de cinzelagem preciso. Jack entrou.

      Dentro a mudança foi imediata. Antes da nave propriamente dita, havia uma entrada baixa, chamada nártex, uma espécie de vestíbulo ou pórtico. Olhando para o teto, Jack foi invadido por uma onda de entusiasmo. Os construtores tinham usado as técnicas dos tetos abobadados com nervuras e arcos ogivais combinadas, e Jack viu, de pronto, que elas harmonizavam perfeitamente. A graça do arco ogival era acentuada pelas nervuras que seguiam seu desenho.

      Havia mais. Entre as vigas que compunham a estrutura do arco, em vez do usual trançado de massa e cacos de pedra, o construtor pusera pedras cortadas, como numa parede. Sendo mais forte o arco, a camada de pedra provavelmente podia ser mais fina, e assim, mais leve, pensou Jack.

      Enquanto olhava para cima, torcendo o pescoço até doer, Jack compreendeu outra característica notável daquela combinação. Dois arcos ogivais de diferentes larguras poderiam atingir a mesma altura, simplesmente ajustando-se a curva do arco. Isso daria ao intercolúnio um aspecto mais regular. Não poderia ser feito com arcos redondos, claro: a altura de um arco semicircular era sempre a metade de sua largura, de modo que o mais largo devia ser mais alto que o mais estreito. Desse modo, se o intercolúnio - espaço entre as colunas - fosse retangular, os arcos estreitos deveriam ter início de pontos na parede mais altos que os arcos largos, a fim de que os topos ficassem no mesmo nível e o teto fosse reto. O resultado era sempre algo enviezado. Esse problema agora desaparecia.

      Jack baixou a cabeça para descansar o pescoço. Sentia-se tão jubiloso como se tivesse sido coroado rei. Era daquele modo, pensou, que iria construir a sua catedral.

      Examinou o corpo principal da igreja. A nave propriamente dita era, claro, bastante velha, embora comprida e larga: fora construída muitos anos antes, por outra pessoa que não o atual mestre, e era bastante convencional. Mas na interseção, ou cruzeiro, parecia haver uma escada para baixo, sem dúvida levando à cripta e aos túmulos reais, e outra para cima, levando ao coro. A impressão era de que o coro flutuava um pouco acima do chão. A estrutura era obscurecida, daquele ângulo, pela ofuscante luz do sol que entrava pelas janelas do lado leste, com tanta intensidade que Jack chegou a pensar que as paredes não estariam concluídas e o sol passava pelos claros.

      Foi caminhando ao longo da nave lateral sul na direção do cruzeiro. Ao se aproximar do coro, sentiu que havia algo de realmente notável à sua frente. A luz do sol jorrava para dentro da igreja, mas a abóbada do teto estava completa e não havia falhas nas paredes. Quando terminou de percorrer a nave e pisou na interseção, viu que a luz passava através de uma série de janelas altas, algumas feitas de vidros coloridos, e que toda aquela claridade parecia encher o vazio da igreja de calor e luz. Jack não pôde entender como tinham conseguido uma área tão grande de janelas: parecia haver mais janelas que paredes. Ficou atônito. Como aquilo poderia ter sido feito, senão por mágica?

      Sentiu um arrepio de medo supersticioso ao subir os degraus que levavam ao coro. Parou no topo da escada, contemplando a confusão de raios de luz colorida e de pedra à sua frente. Percebeu que já vira alguma coisa assim antes, mas na sua imaginação. Aquela era a igreja que sonhara construir, com suas imensas janelas e abóbadas altas, uma estrutura de luz e ar que parecia sustentada por encanto.

      Um momento depois sua visão se modificou. Tudo se acomodou nos respectivos lugares subitamente, e, numa espécie de revelação, Jack viu o que o abade Suger e seu construtor tinham feito.

      O princípio das abóbadas com nervuras era construir o teto usando umas poucas vigas fortes, preenchendo os espaços entre elas com material leve. Tinham aplicado aquele princípio a toda a igreja. A parede do coro consistia em umas poucas pilastras fortes ligadas pelas janelas. A arcada que separava o coro das naves laterais não era uma parede, mas uma série de pilares unidos por arcos ogivais, deixando espaços largos através dos quais a luz das janelas podia atingir o meio da igreja.

      A própria nave era dividida em duas por uma fileira de finas colunas.

      Arcos ogivais e a técnica da abóbada estruturada em vigas tinham sido combinados ali da mesma forma como no pórtico de entrada, mas agora ficava claro que ali fora feita uma experiência cautelosa da nova tecnologia. Comparado com aquilo, ele era grosseiro, as vigas pesadas demais, os arcos muito pequenos. Ali tudo era delgado, leve, delicado, gracioso. As molduras com ornatos simples, em forma de espiral, eram todas estreitas, e as colunetas, compridas e delgadas.

      Teria parecido demasiado frágil para ficar de pé, a não ser pelo fato de as vigas mostrarem com tanta clareza como o peso da construção era sustentado pelas pilastras e colunas. Ali estava uma demonstração visível de que um edifício grande não precisava de paredes grossas com janelas minúsculas e pilastras volumosas. Desde que o peso fosse distribuído precisamente sobre um esqueleto capaz de sustentá-lo, o resto da obra podia ser de cantaria leve, vidro ou espaço vazio. Jack estava fascinado.

      Euclides fora uma revelação, mas aquilo era mais que uma revelação, porque também era bonito. Tivera visões de uma igreja como aquela, e agora a estava contemplando, podia tocar nela, encontrava-se sob sua abóbada da altura do céu.

      Caminhou em êxtase até o lado leste, que era curvo, com os olhos fixos na abóbada da nave dupla. As vigas arqueavam-se sobre sua cabeça como galhos numa floresta de árvores de pedra perfeitas. Ali, tal como no nártex da entrada, o espaço entre as vigas do teto fora preenchido com pedra cortada unida por argamassa, em vez da mais fácil e mais pesada mistura de cacos de pedra com massa. O lado externo da nave tinha pares de janelas grandes com os topos pontudos, para se harmonizar com os arcos. A arquitetura revolucionária era perfeitamente complementada pelos vitrais. Jack nunca vira vitrais na Inglaterra, mas encontrara diversos exemplos na França; no entanto, nas janelinhas de uma igreja de estilo antigo eles não podiam atingir todo o seu potencial. Ali, o efeito do sol da manhã se derramando através das janelas ricamente coloridas era mais que bonito, era fascinante.

      Porque a igreja terminava em curva, as naves laterais também faziam uma curva para se encontrarem na extremidade leste, formando uma galeria semicircular. Jack percorreu todo o meio círculo, virou-se e voltou, ainda maravilhado. Retornou ao ponto de partida.

      Ali viu uma mulher.

      Reconheceu-a.

      Ela sorriu.

      O coração dele parou.

      Aliena protegeu os olhos. A luz que vinha através dos vitrais do lado leste da igreja a cegou. Como uma visão, um vulto caminhou para onde estava, emergindo daquele esplendor colorido. Seu cabelo parecia em chamas. Ele chegou mais perto. Era Jack.

      Aliena achou que fosse desmaiar.

      Jack adiantou-se e parou à sua frente. Estava magro, terrivelmente magro, mas seus olhos brilhavam com intensa emoção. Os dois se encararam em silêncio por um momento.

      Quando ele falou, sua voz estava rouca.

      - É você mesmo?

      - Sim - disse ela. Sua voz não passou de um murmúrio. - Sim, Jack, sou eu.

      A tensão foi demasiada, e Aliena começou a chorar. Ele a abraçou, com o bebê a separá-los, e deu umas palmadinhas nas suas costas, dizendo: "Calma, calma", como se faz com as crianças. Ela apoiou-se nele, sentindo seu cheiro familiar, ouvindo sua voz querida a acalmá-la, deixando as lágrimas caírem no seu ombro magro.

      Por fim ele a encarou.

      - O que você está fazendo aqui?

      - Procurando você.

      - Você estava me procurando? - perguntou incrédulo. - Então. ..  como foi que me achou?

      Ela enxugou os olhos e fungou.

      - Eu o segui.

      - De que modo?

      - Perguntei às pessoas se o tinham visto. Pedreiros, principalmente, mas também alguns monges e estalajadeiros.

      Ele arregalou os olhos.

      - Quer dizer que... você esteve na Espanha?

      Ela assentiu.

      - Santiago de Compostela, depois Salamanca e Toledo.

      - Há quanto tempo está viajando?

      - Há nove meses.

      - Mas por quê?

      - Por que o amo.

      Ele ficou aturdido pela emoção. Seus olhos se encheram de lágrimas.

      - Também a amo.

      - Ama, mesmo? Ainda me ama?

      - Oh, sim!

      Aliena podia garantir que ele estava sendo sincero. Ergueu o rosto. Jack inclinou-se, por cima do bebê, e a beijou delicadamente.

      O contato dos seus lábios deixou-a tonta.

      O bebê chorou.

      Ela interrompeu o beijo e o embalou um pouco; ele se acalmou.

      - Qual é o nome do bebê? - perguntou Jack.

      - Ainda não lhe dei um nome.

      - Por que não? Ele já deve ter um ano!

      - Queria consultar você.

      - Eu? - Jack franziu a testa, sem entender. - E Alfred? E o pai... - Ele se interrompeu. - Por quê?... Ele... Ele é meu filho?

      - Olhe para ele - foi a resposta de Aliena.

      Jack o olhou.

      - Cabelo ruivo... Já deve fazer um ano e nove meses desde que...

      Aliena assentiu.

      - Meu Deus! - exclamou Jack, assombrado. - Meu filho!

      - Engoliu em seco.

      Ela observou ansiosamente seu rosto para ver como ele recebia a notícia. Veria aquilo como o fim da sua juventude e liberdade? A expressão dele tornou-se solene.

      Normalmente o homem tem nove meses para se acostumar com a idéia de ser pai. Jack teve que se acostumar de imediato. Olhou de novo para o bebê e por fim sorriu.

      - Nosso filho - disse. - Sinto-me tão feliz!

      Aliena suspirou de felicidade. Tudo estava bem, afinal. Outra idéia ocorreu a Jack.

      - E Alfred? Ele sabe... ?

      - Claro. Só teve que olhar para a criança. Além disso... - Ela se sentiu embaraçada. - Além disso, sua mãe amaldiçoou o casamento, e Alfred nunca foi capaz, você sabe, de fazer qualquer coisa.

      Jack deu uma risada.

      - Isso é o que se chama justiça - disse.

      Aliena não gostou da satisfação com que ele declarou aquilo.

      - Foi muito difícil para mim - disse, em tom de suave reprovação.

      A expressão dele logo se alterou.

      - Sinto muito. O que foi que Alfred fez?

      - Quando viu o bebê, me expulsou de casa.

      Jack ficou furioso.

      - Ele a machucou?

      - Não.

      - É um porco, assim mesmo.

      - Sinto-me feliz porque nos expulsou. Foi por causa disso que vim procurar você. E agora o encontrei. Estou tão feliz que não sei o que fazer!

      - Você foi muito corajosa - disse Jack.

      - É difícil de acreditar. Você me seguiu desde lá!

      - Faria tudo de novo - garantiu ela ardorosamente. Ele a beijou de novo.

      - Se vocês insistem em se comportar libidinosamente na igreja - ouviram em francês, - por favor, permaneçam na nave.

      Era um jovem monge.

      - Desculpe, padre - disse

      Jack, pegando o braço de Aliena. Desceram a escada e atravessaram o transepto sul.

      - Fui monge durante algum tempo - acrescentou Jack. - Sei como é duro para eles verem amantes felizes se beijando!

      Amantes felizes, pensou Aliena. É o que somos. Atravessaram toda a extensão da igreja e saíram na movimentada praça do mercado. Aliena mal podia crer que estivesse ao sol com Jack do seu lado. Era quase felicidade demais para aguentar.

      - Bem - disse ele, o que vamos fazer?

      - Não sei - respondeu ela, sorrindo. - Vamos comprar um pão e um frasco de vinho e seguir até o campo para comer. - Parece o paraíso.

      Foram ao padeiro e ao negociante de vinhos, e depois compraram um naco de queijo de uma mulher no mercado. Logo depois estavam saindo a cavalo da aldeia e entrando no campo.

      Aliena tinha que ficar olhando para Jack a fim de se certificar de que ele estava ali mesmo ao seu lado, respirando e sorrindo.

      - Como Alfred está tocando a obra? - quis saber ele.

      - Oh, não lhe contei! - Ela se esquecera de que Jack estava fora há muito tempo. - Houve um desastre terrível. O teto ruiu.

      - O quê? - A exclamação de Jack foi tão alta que assustou o cavalo. Ele o acalmou. - Como aconteceu?

      - Ninguém sabe. Completaram o teto de três intercolúnios para a festa de Pentecostes, e caiu tudo durante a missa. Foi terrível; setenta e nove pessoas morreram.

      - Que horror! - Jack ficou abalado. - Como o prior Philip reagiu?

      - Pessimamente. Desistiu de prosseguir a obra. Parece ter perdido toda a energia. Não faz nada, atualmente.

      Jack achou difícil imaginar Philip naquele estado - ele sempre fora tão cheio de entusiasmo e determinação!

      - E o que aconteceu com os artífices?

      - Todos foram embora. Alfred mora em Shiring, e constrói casas.

      - Kingsbridge deve estar meio vazia.

      - Está voltando a ser uma aldeia, como antigamente.

      - O que será que Alfred fez de errado? - perguntou Jack, mais para si mesmo. - A abóbada de pedra nunca fez parte do projeto de Tom, mas Alfred reforçou os arcobotantes para que pudessem aguentar o peso, de modo que não devia ter dado problema.

      A notícia o entristeceu um pouco, e os dois prosseguiram em silêncio. Mais ou menos a duas milhas de Saint-Denis, amarraram os cavalos à sombra de um olmo e se sentaram num campo de trigo verde, ao lado de um pequeno regato, para comer. Jack tomou um  gole de vinho e estalou os lábios.

      - A Inglaterra não tem nada que se compare ao vinho francês - disse.

      Partiu o pão e deu um pedaço a Aliena. Timidamente ela abriu a frente rendada do vestido e deu o seio ao bebê. Surpreendeu Jack olhando-a e corou. Pigarreou e disse, meio sem graça, para disfarçar a vergonha que sentia:

      - Sabe como gostaria de chamá-lo? Jack, talvez?

      - Não sei - disse ele, pensativo. - Jack foi o pai que nunca conheci. Poderia ser má sorte dar o mesmo nome ao nosso filho. A pessoa mais parecida com um pai que tive foi Tom Construtor.

      - Você gostaria de chamá-lo de Tom?

      - Acho que sim.

      - Tom era um homem tão grande! Que tal Tommy?

      Jack aquiesceu.

      - Tommy será seu nome.

      Indiferente ao significado do momento, Tommy caíra no sono, com a barriga cheia. Aliena o deitou no chão com um lenço dobrado sob a cabeça servindo de travesseiro. Depois olhou para Jack. Estava meio desconcertada. Queria fazer amor, ali mesmo sobre a grama, mas estava certa de que ele se sentiria chocado se lhe pedisse, de modo que limitou-se a ficar encarando o e esperar.

      - Se eu lhe disser uma coisa - disse ele, você promete que não vai pensar mal de mim?

      - Claro.

      - Desde quando a vi - continuou Jack, embaraçado, - não consigo pensar em mais nada senão no seu corpo nu debaixo do vestido.

      Aliena sorriu.

      - Não penso mal de você - disse. - Estou feliz. - Ele a fitou avidamente. - Adoro quando você me olha assim - disse ela.

      Jack engoliu em seco. Aliena estendeu as mãos, e ele adiantou-se, abraçando-a. Fazia quase dois anos desde a última e única vez em que tinham feito amor.

      Naquela manhã haviam se deixado arrastar pelo desejo e depois pelo arrependimento. Agora eram apenas dois amantes no campo. Subitamente Aliena sentiu-se ansiosa. Tudo sairia bem? Seria terrível se algo saísse errado, após tanto tempo. Deitaram-se na grama, lado a lado, e se beijaram.

      Ela fechou os olhos e abriu a boca. Sentiu a mão dele no corpo, explorando tudo ansiosamente. Sua excitação aumentou. Ele beijou-lhe as pálpebras e a ponta do nariz e disse:

      - Todo esse tempo, todos os dias, ansiei por você.

      Ela o abraçou com força.

      - Estou tão contente por tê-lo encontrado! Fizeram amor, feliz e suavemente, ao ar livre, banhados pela luz do sol e com o regato rumorejando a seu lado; Tommy dormiu o tempo todo, e acordou quando tudo já estava acabado.

     

      A estátua de madeira da dama não chorava desde que deixara a Espanha. Jack não compreendia como funcionava, de modo que não sabia ao certo por que o fenômeno não ocorrera longe do seu país de origem. Tinha, no entanto, a idéia de que as lágrimas que corriam ao cair da noite eram causadas pelo súbito resfriamento do ar; notara que o pôr-do-sol era gradual nos territórios ao norte, e suspeitava que o problema tinha a ver com o anoitecer mais lento.

      Ainda conservava a estátua, contudo. Era um tanto desconfortável ter que carregá-la, pelo seu tamanho, mas representava uma lembrança de Toledo, e o fazia recordar Raschid, e também (embora não dissesse isso a Aliena) Aysha. Mas quando um pedreiro em Saint-Denis quis um modelo para uma estátua da Virgem, Jack levou a dama de madeira para o galpão dele e a deixou ali. Jack fora contratado pelo abade para trabalhar na reconstrução da igreja. O novo coro, que tanto o impressionara, não estava inteiramente completo, e tinha que ser terminado para a cerimônia de consagração, no início do verão; o enérgico abade, porém, já estava se preparando para reconstruir a nave no mesmo estilo revolucionário, e Jack foi contratado para ir adiantando o trabalho de cantaria.

      A abadia alugou-lhe uma casa na aldeia, onde se instalaram; e na primeira noite Jack e Aliena fizeram amor cinco vezes. Viver juntos como marido e mulher parecia a coisa mais natural do mundo. Poucos dias depois Jack tinha a impressão de que sempre haviam morado juntos. Ninguém lhes perguntou se sua união havia sido abençoada pela Igreja.

      O mestre construtor de Saint-Denis era certamente o maior pedreiro que Jack já conhecera. Enquanto terminavam o coro novo e se preparavam para reconstruir a nave, Jack observava-o e absorvia tudo o que dizia. Os avanços técnicos ali eram dele, e não do abade. Suger era favorável a novas idéias, de modo geral, mas estava mais interessado em ornamentos do que na estrutura. Seu projeto favorito era uma nova tumba para os restos de são Dionísio e seus dois companheiros, Rústico e Eleutério.

      As relíquias eram conservadas na cripta, mas Suger planejava levá-las para o novo coro, de modo que todo mundo pudesse vê-las. Os três esquifes descansariam numa tumba de pedra guarnecida de mármore negro. Seu topo era uma igreja em miniatura, de madeira dourada; na nave central e nas naves laterais da miniatura havia três caixões vazios, um para cada mártir. A tumba ficaria no meio do novo coro, junto à parte de trás do novo altar-mor. Tanto o altar quanto a sua base já se encontravam no lugar, e a igreja em miniatura estava no galpão dos carpinteiros, onde um meticuloso artesão cuidadosamente dourava a madeira com uma caríssima tinta de ouro.

      Suger não era homem de fazer as coisas pela metade.

      O abade era um formidável organizador; Jack observou bem isso à medida que os preparativos para a cerimônia de consagração se aceleravam. Convidou todo mundo que fosse importante, destacando-se o rei e a rainha de França, e dezenove arcebispos e bispos, inclusive o de Canterbury. Esses fragmentos de notícias eram recolhidos pelos artesãos que trabalhavam na igreja. Jack o via com frequência, com seu hábito de lã grosseira, caminhando energicamente pelo mosteiro, dando instruções a um bando de monges que o seguiam como patinhos. Fazia com que Jack se lembrasse de Philip de Kingsbridge. Como o prior, Suger tinha origem pobre e fora criado no mosteiro.

      Como Philip, reorganizara as finanças e apertara as rédeas da administração das propriedades do mosteiro de modo a fazer com que produzissem muito mais renda; e como Philip, estava gastando o dinheiro extra numa obra. Finalmente, assim como Philip, era operoso, enérgico e decidido.

      Só que Philip não era mais nada disso, segundo Aliena.

      Jack achava difícil imaginar uma coisa dessas. Um Philip inerte era tão pouco provável quanto um Waleran Bigod bondoso. No entanto, sofrera uma série de desapontamentos terríveis. Primeiro fora o incêndio da cidade. Jack estremecia ao relembrar aquele dia horroroso: a fumaça, o medo, os terríveis cavaleiros com seus archotes flamejantes e o pânico cego da multidão histérica. Talvez tivesse sido ali que Philip perdera o ânimo. Certamente a cidade perdera a coragem depois. Jack se lembrava muito bem: a atmosfera de medo e insegurança que impregnara tudo, como o cheiro ainda pouco intenso mas inconfundível de podridão. Sem dúvida o prior tencionara que a cerimônia de inauguração do coro fosse um símbolo de nova esperança. Depois, com a festa se transformando em outro desastre, devia ter desistido.

      Agora os operários tinham ido embora, o mercado declinara e a população estava diminuindo. Os jovens começavam a se mudar para Shiring, dissera Aliena. Era apenas um problema de ânimo, é claro: o priorado ainda tinha todas as suas propriedades, inclusive os imensos rebanhos de carneiros que geravam centenas dê libras anualmente.

      Se fosse apenas uma questão de dinheiro, com certeza Philip teria condições de recomeçar a obra, em alguma escala. Não seria fácil, claro; os pedreiros eram supersticiosos para trabalhar numa igreja que já ruíra uma vez, e seria difícil despertar o entusiasmo do povo novamente. Mas o principal problema, a julgar pelo que Aliena contara, era Philip ter perdido a vontade. Jack gostaria de poder fazer alguma coisa para ajudar.

      Nesse meio tempo, os bispos, arcebispos, duques e condes começaram a chegar a Saint-Denis, dois ou três dias antes da cerimônia. Todos os notáveis foram levados a fazer uma visita acompanhada à igreja. Suger em pessoa acompanhava os visitantes de maior importância, enquanto os dignitários menores eram conduzidos por monges ou artesãos. Todos ficavam assombrados com a leveza da nova construção e o efeito da claridade do sol nos imensos vitrais. Como praticamente todos os importantes líderes religiosos da França estavam vendo aquilo, ocorreu a Jack que era bem possível que o novo estilo viesse a ser largamente imitado; na verdade, os pedreiros que pudessem dizer que haviam trabalhado ali passariam a estar em grande demanda. Vir para Saint-Denis fora um lance inteligente, mais do que imaginara: aumentara grandemente suas chances de projetar e construir uma catedral.

      O rei Luís chegou no sábado, com a mulher e a mãe, instalando-se na casa do abade. Naquela noite as matinas foram cantadas desde o lusco-fusco até a madrugada. Ao raiar do sol havia uma multidão de camponeses e cidadãos de Paris do lado de fora da igreja, aguardando aquilo que prometia ser a maior assembléia de religiosos e homens de poder que a maioria deles jamais vira. Jack e Aliena juntaram-se à multidão assim que Tommy foi alimentado. Um dia, pensou Jack, direi a Tommy: "Você não se lembra, mas quando tinha um ano de idade viu o rei de França".

      Levaram pão e sidra para o desjejum e comeram enquanto esperavam que o espetáculo tivesse início. O povo não tinha permissão para entrar na igreja, é claro, e os homens de armas do rei mantinham as pessoas a distância; no entanto, as portas estavam abertas, e todos se aglomeravam onde podiam enxergar alguma coisa. A nave estava superlotada de lordes e ladies. Felizmente o coro ficava um pouco acima do nível do solo, por causa da grande cripta existente sob ele, e Jack pôde assistir à cerimônia assim mesmo.

      Houve uma agitação na extremidade mais longínqua da nave, e de repente todos os nobres inclinaram a cabeça, reverentes. Por sobre as cabeças, Jack viu o rei entrar na igreja, vindo do lado sul. Não dava para distinguir as feições dele, mas sua túnica púrpura era uma mancha intensa de cor quando se deslocou para o centro da interseção e se ajoelhou ante o altar-mor. Os bispos e arcebispos vieram imediatamente depois. Envergavam ofuscantes hábitos brancos bordados a ouro, e cada bispo portava o seu báculo cerimonial. O báculo representava o cajado de um pastor, mas alguns eram ornamentados com jóias fabulosas, a tal ponto que a procissão cintilava como as águas de um regato nas montanhas ao sol.

      Todos atravessaram vagarosamente a igreja e subiram os degraus do coro, dirigindo-se a lugares predeterminados em torno da pia, na qual - Jack sabia porque assistira aos preparativos - havia diversos galões de água benta. Seguiu-se então uma calmaria, durante a qual se proferiram orações e se entoaram hinos. A multidão ficou inquieta, e Tommy impaciente. Então os bispos saíram de novo em procissão.

      Deixaram a igreja pela porta sul e desapareceram no claustro, para grande desapontamento dos espectadores; porém, emergiram depois dos prédios monásticos e desfilaram pela frente da igreja. Cada bispo carregava um pequeno instrumento chamado de aspersório e um receptáculo com água benta; ao caminharem, cantando, mergulhavam os instrumentos na água e aspergiam as paredes da igreja. A multidão comprimiu-se, tentando se adiantar, as pessoas suplicando uma bênção e tentando tocar no hábito imaculadamente branco dos santos homens. Os homens de armas do rei batiam no povo com bastões. Jack deixou-se ficar para trás. Não queria bênção e preferia ficar longe daqueles bastões.

      A procissão prosseguiu, majestosa, pelo lado norte da igreja, e a multidão foi atrás, pisoteando as sepulturas do cemitério. Alguns espectadores tinham se posicionado ali antecipadamente e resistiram à pressão dos recém-chegados. Houve uma ou duas brigas.

      Os bispos passaram pelo pórtico norte e continuaram, contornando o semicírculo da face leste, a parte nova. Era ali que as oficinas dos artífices tinham sido construídas, e a multidão se lançou por entre as barracas, ameaçando derrubar as frágeis construções de madeira. Quando os líderes da procissão começaram a desaparecer no interior da abadia, os membros mais histéricos da multidão ficaram desesperados e pressionaram com mais determinação. Os homens do rei reagiram com maior violência.

      Jack começou a se sentir ansioso.

      - Não estou gostando disso - disse para Aliena.

      - Eu ia dizer o mesmo - respondeu ela. - Vamos dar o fora.

      Antes que pudessem se mover, irrompeu um tumulto entre os homens do rei e um grupo de jovens que estavam na frente. Os homens de armas bateram com força, mas os rapazes, em vez de se acovardarem, reagiram. O último bispo entrou depressa no claustro, aspergindo de forma nitidamente superficial a última parte do coro. Quando os religiosos saíram de vista, a turba concentrou sua atenção nos homens de armas. Alguém atirou uma pedra que acertou bem na testa de um deles. A multidão urrou quando ele caiu. As lutas corporais espalharam-se rapidamente. Homens de armas vieram correndo do lado oeste para defender seus companheiros.

      O tumulto estava se transformando num pandemônio.

      Não havia esperança de que a cerimônia atraísse a atenção das pessoas nos minutos seguintes. Jack sabia que os bispos e o rei naquele momento deviam estar descendo para pegar na cripta os restos mortais de são Dionísio. Eles os carregariam em torno do claustro, mas não os levariam para o lado de fora. Os dignitários não deveriam aparecer novamente enquanto o serviço religioso não terminasse. O abade Suger não antecipara o tamanho da multidão de espectadores, nem tomara providências para conservá-los felizes. Agora estavam insatisfeitos, acalorados - o sol já estava bem alto àquela hora, e queriam dar vazão às emoções.

      Os homens do rei estavam armados, mas os espectadores não, e a princípio os primeiros levaram a melhor - até que alguém teve a brilhante idéia de arrombar os galpões dos artífices em busca de armas. Dois rapazes derrubaram a pontapés a porta do galpão dos pedreiros e surgiram momentos depois com martelos nas mãos. Havia pedreiros no meio da multidão, e alguns forçaram caminho por entre a turba até o galpão, numa tentativa de impedir que as pessoas entrassem; porém, foram incapazes de sustentar suas posições e acabaram empurrados para um lado.

      Jack e Aliena tentaram recuar, mas as pessoas que estavam atrás pressionavam para a frente, nervosas, e eles se viram presos numa armadilha. Jack manteve Tommy fortemente grudado a seu peito, protegendo-lhe as costas com os braços e cobrindo sua cabecínha com as mãos; ao mesmo tempo tinha que lutar para ficar junto de Aliena. Viu um homem pequeno, de aspecto furtivo, sair do galpão com a estátua de madeira da dama que chorava. Nunca mais a verei de novo, pensou Jack, com uma pontada de arrependimento; contudo, estava por demais ocupado tentando evitar que o esmagassem para se preocupar com o fato de estar sendo roubado.

      O galpão dos carpinteiros foi arrombado a seguir. Os artesãos já haviam desistido de defender os galpões, e não tentaram deter a multidão. A oficina do ferreiro era forte demais, mas a turba irrompeu pela frágil parede do galpão dos telhadores e pegou as ferramentas pesadas e perigosamente afiadas usadas para cortar e aparar as folhas de chumbo do telhado, e Jack pensou: Alguém ainda vai ser morto antes que isto acabe.

      A despeito de todos os seus esforços, foi empurrado para a frente, na direção do pórtico norte, onde o combate era mais feroz. A mesma coisa acontecia com o ladrão de barba negra, notou Jack: o homem tentava fugir com o fruto do seu roubo, abraçado com a grande estátua do mesmo modo como Jack carregava Tommy, mas ele também estava sendo forçado cada vez mais para dentro da confusão pelo aperto da turba.

      De repente Jack teve uma inspiração súbita. Entregou Tommy a Aliena, dizendo:

      - Fique perto de mim.

      Agarrou o pequeno ladrão e puxou a estátua de suas mãos. O homem resistiu por um momento, mas Jack era maior, e de qualquer modo o ladrão estava agora mais preocupado em salvar a própria pele do que em roubar a estátua, e um momento depois desistiu.

 

      Jack ergueu a estátua acima da cabeça e começou a gritar:

      - Respeitem Nossa Senhora!

      A princípio ninguém notou. Depois uma ou duas pessoas olharam para ele.

      - Não toquem em Nossa Senhora! - gritou Jack, com toda a força dos pulmões. As pessoas que estavam por perto recuaram supersticiosamente, abrindo espaço à sua volta. Ele começou a trabalhar mais seu tema: - É um pecado profanar a imagem da Virgem! - Segurou a estátua bem alto e seguiu em frente na direção da igreja. Aquilo podia funcionar, pensou, com uma vaga esperança. Mais gente parou de brigar para ver o que estava ocorrendo.

      Jack deu uma olhada para trás. Aliena o estava seguindo, incapaz de fazer qualquer outra coisa por causa da pressão exercida pela multidão. No entanto, o distúrbio estava rapidamente se acalmando. Todos se deslocavam junto de Jack, e houve quem começasse a repetir suas palavras, num murmúrio reverente:

      - É a Mãe de Deus...  Ave, Maria... Abram caminho para a imagem da Virgem Santíssima...

      Tudo O que queriam era um espetáculo, e agora que Jack lhes estava proporcionando um, a confusão acabou quase completamente, com apenas duas ou três brigas continuando na periferia. Jack marchou adiante, solene. A facilidade com que pusera fim ao tumulto o assombrou. A multidão à sua frente afastou-se e ele atingiu o pórtico norte da igreja. Ali colocou a estátua no chão, com grande reverência, na sombra fria do portal. A imagem tinha pouco mais de dois pés de altura, e parecia menos impressionante ali no chão.

      A multidão se aglomerou em torno da porta, na expectativa do que aconteceria a seguir. Jack não sabia o que fazer. Provavelmente queriam um sermão. Agira como um clérigo, levantando a estátua no alto e proferindo sonoras advertências, mas aquele era o limite de suas habilidades religiosas. Sentiu receio: o que aquela gente poderia fazer com ele, caso se sentisse desapontada?

      De repente, houve uma exclamação coletiva de espanto.

      Jack olhou para trás. Alguns dos nobres da congregação se reuniram no transepto norte, espiando o que ocorria do lado de fora, mas não havia nada que justificasse o aparente assombro da multidão.

      - Milagre! - exclamou alguém. E outros logo gritaram:

      - Milagre! Milagre!

      Jack olhou para a estátua e então compreendeu. Água gotejava dos seus olhos. A princípio ficou tão assombrado quanto os outros, mas depois se lembrou de sua teoria de que a estátua chorava quando havia uma súbita alteração de temperatura, do quente para o frio, como acontecia ao anoitecer mais ao sul. A estátua acabara de ser removida do calor do dia para o frescor da sombra do pórtico norte. Isso explicaria as lágrimas. Só que a multidão não sabia, é claro. Tudo o que viam era uma estátua chorando, e se maravilhavam.

      Uma mulher que estava bem na frente jogou uma moedinha de prata, chamada denier, que equivalia ao penny inglês, aos pés da estátua. Jack teve ímpetos de dar uma risada. De que adiantava dar dinheiro a um pedaço de madeira? Mas as pessoas haviam sido tão doutrinadas pela Igreja que sua reação automática a qualquer coisa sagrada era dar dinheiro, e diversas outras seguiram o exemplo da mulher.

      Jack nunca pensara que o brinquedo de Raschid pudesse fazer dinheiro. Na verdade, não podia fazer dinheiro para ele, a multidão não daria nada se achasse que o dinheiro ia para o seu bolso. Mas valeria uma fortuna para qualquer igreja.

      E quando se deu conta disso, viu subitamente o que tinha a fazer.

      Foi uma inspiração repentina, e ele começou a falar antes mesmo de ver todas as implicações: as palavras foram saindo ao mesmo tempo em que ia tendo as idéias.

      - A Madona que Chora não me pertence, e sim a Deus - começou. A multidão fez silêncio. Aquele era o sermão que esperavam. Atrás de Jack, os bispos cantavam no interior da igreja, mas ninguém estava interessado neles, agora. - Durante centenas de anos ela definhou em terras dos sarracenos - prosseguiu Jack. Não tinha idéia de qual seria a história da estátua, mas não parecia ter importância: os próprios padres nunca examinavam muito detidamente a veracidade das histórias de milagres e de relíquias sagradas. - Ela já viajou muitas milhas, sua jornada ainda não terminou. Seu destino é a Catedral de Kingsbridge, na Inglaterra.

      Jack atraiu a atenção de Aliena. Ela o fitou assombrada. Ele teve que resistir à tentação de piscar-lhe o olho para antecipar o que estava por dizer.

      - É minha santa missão levá-la para Kingsbridge. Lá, ela encontrará seu descanso. Lá, ela estará em paz. - Ao olhar para Aliena, no final teve a mais brilhante das inspirações e disse:

      - Fui designado mestre construtor da nova igreja de Kingsbridge.

      O queixo de Aliena caiu. Jack teve que desviar os olhos.

      - A Madona que Chora ordenou que uma igreja nova e mais gloriosa lhe seja construída em Kingsbridge, e com a sua ajuda construirei para ela um santuário tão bonito quanto o novo coro que foi erguido aqui para os sagrados despojos de são Dionísio.

      Ele baixou a cabeça, e o dinheiro no chão forneceu a idéia para o toque final.

      - As suas moedas serão usadas para a nova igreja - disse. - A Madona abençoa todo homem, mulher ou criança que a ajude a construir sua nova casa.

      Houve um momento de silêncio; os ouvintes depois começaram a atirar moedas no chão, em torno da base da estátua. Cada pessoa dizia em voz alta, qualquer coisa, ao fazer a oferta. Uns exclamavam "Aleluia" ou "Deus seja louvado", e outros pediam uma bênção, ou um favor mais específico. "Faça Robert ficar bom", ou "Que Anne possa conceber um filho", ou "Dê-nos uma boa colheita". Jack examinou-lhes o rosto: estavam excitados, transfigurados, felizes. Empurravam-se, ansiosos por doar seu dinheiro à Madona. Jack baixou os olhos e observou, maravilhado, a pilha de dinheiro aumentar como um monte de neve em torno dos seus pés.

     

      A Madona que Chora teve o mesmo efeito em todas as cidades e aldeias na estrada para Cherbourg. Quando caminhavam em procissão ao longo da rua principal, uma multidão se reunia; depois que paravam em frente à igreja a fim de dar tempo a toda a população de se reunir, transferiam a estátua para a parte sombreada e fria do prédio, fazendo-a chorar. Por fim as pessoas caíam umas sobre as outras, na ânsia de dar seu dinheiro para a construção da Catedral de Kingsbridge.

      Quase a perderam, logo no início. Os bispos e arcebispos examinaram a estátua e a declararam genuinamente miraculosa. O abade Suger quis que ficasse em Saint-Denis.

      Oferecera a Jack uma libra, depois dez e finalmente cinquenta. Quando viu que ele não estava interessado em dinheiro, ameaçou-o de tirar a estátua à força; porém o arcebispo Theobald de Canterbury o impediu. Theobald também enxergou o potencial de fazer dinheiro que tinha a estátua e quis que ela fosse para Kingsbridge, situada na sua arquidiocese. Suger desistira de má vontade, fazendo grosseiras reservas quanto à genuinidade do milagre.

      Jack disse aos artífices que trabalhavam em Saint-Denis que contrataria qualquer um deles que resolvesse segui-lo até Kingsbridge. Suger não gostou disso, tampouco.

      Na verdade, a maior parte dos seus operários ficaria onde estava, com base no princípio de que mais vale um pássaro na mão do que dois voando. Entretanto, havia uns poucos que eram ingleses e que podiam se sentir tentados a voltar para sua terra, e os outros espalhariam a notícia, pois era dever de cada pedreiro dizer a seus irmãos onde haviam novos canteiros de obra. Dentro de poucas semanas, artesãos de toda a cristandade começariam a surgir em Kingsbridge, do mesmo modo como Jack aparecera em seis ou sete canteiros diferentes nos últimos dois anos. Aliena perguntou-lhe o que faria se o priorado de Kingsbridge não fizesse dele o mestre construtor. Jack não tinha idéia. Tudo o que dissera fora por impulso e não tinha planos de emergência para o caso de as coisas saírem erradas.

      O arcebispo Theobald, tendo requisitado a Madona que Chora para a Inglaterra, não deixou Jack sair impune.

      Mandou dois padres de sua comitiva, Reynold e Edward, acompanharem Jack e Aliena na viagem. Jack ficou aborrecido a princípio, mas logo veio a gostar deles. Reynold era um jovem saudável e questionador, dono de um cérebro perceptivo, e se mostrou muito interessado na matemática que Jack aprendera em Toledo. Edward era mais velho, de maneiras gentis, e gostava de comer bem. A principal função deles era garantir que nenhuma das doações fosse para o bolso de Jack, é claro. Na verdade, os religiosos gastavam livremente os donativos para pagar suas despesas de viagem, enquanto Jack e Aliena pagavam tudo com o próprio dinheiro, de modo que o arcebispo teria saído ganhando se houvesse confiado em Jack.

      Foram para Cherbourg no seu caminho para Barfleur, onde tomariam um navio para Wareham. Jack percebeu que havia algo errado muito antes de chegarem ao centro da pequena cidade do litoral. As pessoas não olhavam para a Madona.

      Olhavam para Jack.

      Os padres notaram o que se passava após algum tempo. Carregavam a estátua numa armação de madeira, como sempre faziam ao entrar numa cidade. Quando a multidão começou a segui-lo, Reynold cochichou para Jack:

      - O que está acontecendo?

      - Não sei.

      - Eles estão mais interessados em você do que na estátua! Já esteve aqui antes?

      - Nunca.

      - São os mais velhos que olham para Jack - disse Aliena.

      - Os jovens olham para a estátua.

      Ela estava com a razão. As crianças e os jovens reagiam à estátua com a curiosidade normal. Eram os de meia-idade que olhavam espantados para Jack. Ele tentou encará-los também, e descobriu que se assustavam. Um chegou a fazer o sinal-da-cruz.

      - O que terão contra mim? - perguntou-se, em voz alta.

      A procissão atraiu seguidores tão rapidamente como sempre, no entanto, e quando chegaram à praça do mercado tinham uma grande multidão atrás de si. Puseram a Madona no chão, em frente à igreja. O ar cheirava a água salgada e peixe fresco. Diversos habitantes da cidade entraram na igreja. O que acontecia normalmente era o clero local sair e vir conversar com Reynold e Edward. Havia discussões e explicações, e por fim a estátua era carregada para o interior da igreja, onde chorava. A Madona falhara uma única vez: num dia frio, quando Reynold insistira em cumprir a rotina a despeito da advertência de Jack de que não funcionaria. Agora respeitavam seu conselho.

      A temperatura estava certa naquele dia, mas havia alguma outra coisa errada. Era possível reconhecer a expressão de medo supersticioso no rosto castigado pelo vento dos marinheiros e pescadores espalhados por toda parte. Os jovens sentiam a inquietude dos velhos e toda a multidão se mostrava desconfiada e vagamente hostil. Ninguém se aproximou do pequeno grupo para fazer perguntas sobre a estátua. Permaneceram a distância, falando baixo, esperando que algo acontecesse.

      Finalmente o padre apareceu. Nas outras cidades os padres se aproximavam com uma atitude de cautelosa curiosidade, mas este surgiu parecendo um exorcista, segurando uma cruz à sua frente como um escudo e carregando um cálice de água benta na outra mão.

      - O que ele pensa que vai fazer? Expulsar demônios? - perguntou Reynold.

      O padre aproximou-se, entoando qualquer coisa em latim, e abordou Jack em francês.

      - Eu vos ordeno, espírito do mal, que retorne ao Lugar dos Espíritos! Em nome do...

      - Não sou um espírito, maldito idiota! - explodiu Jack, enervado.

      - Do Pai, do Filho e do Espírito Santo...

      - Estamos aqui cumprindo uma missão para o arcebispo de Canterbury - protestou Reynold. - Fomos abençoados por ele.

      - Ele não é um espírito - afirmou Aliena. - Eu o conheço desde que tinha doze anos de idade!

      O padre começou a parecer inseguro.

      - Você é o fantasma de um homem desta cidade que morreu há vinte e quatro anos - disse. Diversas pessoas na multidão exprimiram sua concordância, e o padre recomeçou sua cantoria.

      - Só tenho vinte anos de idade - disse Jack. - Talvez apenas me pareça com o homem que morreu.

      Alguém se destacou no meio da turba.

      - Você não apenas se parece com ele - disse. - Você é ele; não difere nem um pouco dele, no dia em que morreu.

      Ouviu-se um murmúrio de temor supersticioso. Jack, meio desencorajado, examinou a pessoa que falara. Era um homem de barba grisalha, com roupas características de um artesão bem-sucedido ou de um pequeno mercador. Não era do tipo histérico. Jack dirigiu-se a ele com a voz trêmula.

      - Meus companheiros me conhecem - afirmou. - Dois deles são padres. A mulher é minha esposa. O bebê é meu filho. Eles também são fantasmas?

      O homem ficou incerto.

      - Você não me conhece, Jack? - perguntou uma mulher de cabelos brancos, que estava a seu lado.

      Jack deu um pulo como se tivesse sido flechado. Agora estava assustado.

      - Como sabe meu nome? - perguntou.

      - Porque sou sua mãe - disse ela.

      - Não! - exclamou Aliena, e Jack percebeu uma nota de pânico em sua voz. - Conheço a mãe dele, e não é você! O que está acontecendo aqui?

      - Magia negra! - respondeu o padre.

      - Espere um minuto - disse Reynold. - Jack pode ser parente do homem que morreu. Ele tinha filhos?

      - Não - disse o homem de barba grisalha.

      - Tem certeza?

      - Nunca se casou.

      - Não é o mesmo.

      Uma ou duas pessoas deram risadinhas. O padre as fulminou com um olhar.

      - Mas ele morreu há vinte e quatro anos - retrucou o homem de barba grisalha -, e este Jack diz que tem apenas vinte.

      - Como ele morreu? - quis saber Reynold.

      - Afogado.

      - Você viu o corpo?

      Houve silêncio. Finalmente o homem de barba grisalha respondeu:

      - Não, nunca vi o corpo.

      - Alguém viu? - perguntou Reynold, elevando a voz ao pressentir vitória.

      Ninguém disse nada. Reynold virou-se para Jack.

      - Seu pai está vivo?

      - Morreu antes de eu nascer.

      - O que ele era?

      - Menestrel.

      Um murmúrio de espanto escapou da multidão, e a mulher de cabelos brancos disse:

      - O meu Jack era menestrel.

      - Mas este Jack é pedreiro - disse Reynold. - Vi o seu trabalho. No entanto, ele pode ser o filho de Jack. - Reynold virou-se para Jack. - Como o seu pai era chamado? Jack Menestrel, suponho.

      - Não. Chamavam-no de Jack Shareburg.

      O padre repetiu o nome, pronunciando-o de modo ligeiramente diferente:

      - Jacques Cherbourg?

      Jack ficou atônito. Nunca entendera direito o nome de seu pai, mas agora estava claro. Como muitos viajantes, era chamado pelo nome da cidade de onde vinha.

      - Sim - disse Jack pensativamente. - Claro, Jacques Cherbourg. - Finalmente encontrava uma pista de seu pai, tanto tempo depois de ter desistido de procurar. Seguira até a Espanha, mas o que queria estava ali mesmo, na costa da Normandia. Vencera seu desafio. Sentiu-se cansado mas satisfeito, como quem arria no chão uma carga pesada após tê-la levado nas costas por um longo trajeto.

      - Então está tudo claro - disse Reynold, encarando triunfantemente a multidão. - Jacques Cherbourg não morreu afogado, sobreviveu. Foi para a Inglaterra, viveu por lá durante algum tempo, engravidou uma garota e morreu. A garota deu à luz um menino e lhe deu o nome do pai. Este Jack tem vinte anos agora, e se parece exatamente como o pai, vinte e quatro anos atrás. - Reynold olhou para o padre. - Não é necessário exorcismo algum, padre. É só uma reunião de família.

      Aliena passou o braço pelo de Jack e apertou-lhe a mão. Ele estava estupefato. Havia centenas de perguntas que queria fazer e não sabia por qual começar. Fez a primeira que lhe veio a cabeça:

      - Por que estavam tão seguros de que ele tinha morrido?

      - Todos no White Ship morreram - respondeu o homem da barba grisalha.

      - White Ship?

      - Lembro-me do White Ship - disse Edward. - Foi um naufrágio famoso. O herdeiro do trono morreu afogado. Então Matilde passou a ser a herdeira, e é esta a razão pela qual agora temos Estêvão.

      - Mas por que ele estava num navio?

      Foi a mulher idosa que falara antes quem respondeu.

      - Era para entreter os nobres durante a viagem. - Ela olhou para Jack. - Você deve ser filho dele, então. Meu neto. Desculpe ter pensado que fosse um espírito. Você se parece muito com ele.

      - Seu pai era meu irmão - disse o homem da barba grisalha. - Sou seu tio Guillaume.

      Jack constatou, intensamente satisfeito, que aquela era a família por que tanto ansiara, os parentes de seu pai. Não estava mais sozinho no mundo. Finalmente encontrara suas raízes.

      - Bem, este é o meu filho Tommy - disse. - Olhe só seu cabelo ruivo.

      A mulher de cabeça branca contemplou afetuosamente o bebê.

      - Oh, meu Deus, sou bisavó! - disse com a voz trêmula. Todos riram.

      - Como meu pai terá conseguido chegar à Inglaterra? exclamou Jack.

     

      - E assim Deus disse para o Demônio: "Olhe para meu servo, de nome Jó. Olhe só para ele. Lá está um homem bom, se é que existe um homem bom". - Philip fez uma pausa, para reforçar o efeito. Aquilo não era uma tradução, é claro, e sim uma maneira de contar a história em estilo livre. - "Diga-me se não é homem perfeito e reto, que teme seu Deus e não comete o mal." O Demônio então disse: "Claro que ele adora você. Você lhe deu tudo. Olhe só para ele. Sete filhos e três filhas. Sete mil carneiros e três mil camelos, quinhentos pares de bois e quinhentos jumentos.

      É por isso que ele é um homem bom". Então Deus disse: "Está bem. Pode tirar tudo dele para ver o que acontece". E foi o que o Demônio fez.

      Enquanto Philip pregava, sua cabeça insistia em vagar, lembrando uma carta que o deixara aturdido, recebida naquela manhã do arcebispo de Canterbury. Começava congratulando-se com ele por ter obtido a miraculosa Madona que Chora. Philip não sabia o que era uma madona que chora, mas estava bastante seguro de que não tinha uma. O arcebispo estava satisfeito por ter sabido que Philip ia recomeçar a construção da nova catedral. O prior não estava fazendo nada disso. Aguardava um sinal de Deus para fazer qualquer coisa, e enquanto aguardava, celebrava as missas de domingo na pequena igreja nova da paróquia. Finalmente o arcebispo Theobald elogiava sua argúcia por ter designado um novo mestre construtor que trabalhara no coro novo de Saint-Denis. Philip ouvira falar da Abadia de Saint-Denis, é claro, e do famoso abade Suger, o mais poderoso homem da Igreja no reino da França; porém, nada sabia a respeito de um coro novo lá, e não contratara um mestre construtor oriundo de parte alguma. Philip achava que a carta provavelmente fora destinada a outra pessoa e remetida a ele por engano.

      - Agora, o que foi que Jó disse, quando perdeu toda a sua fortuna e seus filhos morreram? Amaldiçoou Deus? Adorou Satanás? Não! Eis o que ele disse: "Nasci nu e nu hei de morrer. O Senhor dá e o Senhor tira - abençoado seja o nome do Senhor". Foi isso o que Jó afirmou. E então Deus se virou para Satanás. "O que foi que ele disse?" O Demônio, porém, não se deu por vencido: "Está bem, mas ele ainda tem uma boa saúde, não tem? Um homem pode aguentar qualquer coisa quando tem boa saúde".

      E Deus viu que tinha que deixar Jó sofrer mais para provar o que queria, de modo que disse: "Pois tire também sua saúde, e veja só o que acontece". Assim, Satanás fez Jó adoecer, e ele teve bolhas em todo o corpo, desde a cabeça até a sola dos pés.

      Os sermões estavam se tornando mais comuns nas igrejas. Eram raros no tempo em que Philip era garoto. O abade Peter sempre fora contra, dizendo que representavam uma tentação para o padre favorecer a si próprio. A visão antiga era de que os membros da congregação deveriam ser meros espectadores, testemunhando silenciosamente os misteriosos ritos sagrados, ouvindo as palavras latinas sem entendê-las, confiando cegamente na eficácia da intercessão do padre. Mas as idéias mudaram. Os pensadores progressistas já não viam os fiéis como observadores mudos de uma cerimônia mística. A Igreja deveria ser uma parte integrante da vida deles, presente desde o batizado, passando pelo casamento e nascimento dos filhos, até a extrema-unção e o enterro em solo consagrado. Deveria ser a dona de suas terras, seu juiz, empregador ou comprador.

      Esperava-se que as pessoas, cada vez mais, fossem cristãs todos os dias, e não apenas aos domingos. Precisavam mais do que simples rituais, de acordo com o moderno ponto de vista: queriam explicações, ordens, encorajamento, exortações.

      - Agora, acredito que Satanás teve uma conversa com Deus a respeito de Kingsbridge - continuou Philip. - Acredito que Deus disse para Satanás: "Olhe para o meu povo em Kingsbridge. Não são bons cristãos? Veja como trabalham duro a semana toda em seus campos e oficinas, e depois passam o domingo inteiro construindo uma nova catedral para Mim. Diga-me que não são boas pessoas, se puder!" E o Demônio retorquiu: "Eles são bons porque estão se saindo bem. Você lhes deu boas safras, bom tempo, fregueses para suas lojas e proteção contra condes perversos. Mas tire tudo isso deles, e verá como virão para o meu lado". Deus então perguntou: "O que você quer fazer?" Satanás respondeu: "Queimar a cidade". Deus concordou: "Está bem, pode queimá-la, e veja o que acontece". Então Satanás mandou William Hamleigh incendiar a nossa feira de lã. Philip encontrava grande consolo na história de Jó. Como Jó, trabalhara duro toda a vida para cumprir a vontade de Deus com o melhor da sua capacidade; e, como Jó, fora recompensado com má sorte, fracasso e ignomínia. Mas o objetivo do sermão era levantar o moral dos habitantes da cidade, e Philip pôde ver que não estava funcionando. A história, contudo, ainda não acabara.

      - Então Deus disse para Satanás: "Veja agora! Você queimou a cidade, destruindo tudo, mas ainda assim eles estão construindo uma nova catedral para Mim. Diga-me agora se não são boas pessoas!" Mas o Demônio não se deixou vencer e retrucou: "Fui muito bonzinho com eles. A maior parte escapou do incêndio. E logo todos reconstruíram suas casinhas de madeira. Deixe-me mandar-lhes um desastre de verdade, para ver o que acontece". Deus suspirou e disse: "O que vai querer agora?" O Demônio respondeu imediatamente: "Vou derrubar o telhado da nova igreja em cima da cabeça deles". E foi o que ele fez, como todos nós sabemos.

      Olhando para a congregação, Philip viu muito poucas pessoas que não tivessem perdido um parente naquele terrível desastre. Ali estava a viúva Meg, que tinha um bom marido e três filhos fortes, os quais haviam morrido; desde então ela não pronunciara mais uma só palavra, e seu cabelo ficara branco. Outros tinham sido mutilados.

      A perna direita de Peter Pônei fora esmagada, e agora ele mancava; antes Peter trabalhava capturando cavalos, mas agora ajudava o irmão a fabricar selas. Dificilmente se encontrava uma família na cidade que tivesse escapado. Sentado no chão, bem na frente, estava um homem que perdera o uso das pernas. Philip estranhou - quem era ele? Não tinha se machucado no desabamento do telhado - o prior nunca o vira antes. Lembrou-se então de ter ouvido que havia um aleijado esmolando na cidade e dormindo nas ruínas da catedral. Philip ordenara que lhe dessem uma cama na hospedaria.

      Sua mente estava divagando de novo. Retornou ao sermão.

      - Agora, o que foi que Jó fez? Sua mulher lhe disse: "Amaldiçoe Deus e morra". Mas foi isso que ele fez? Claro que não. Perdeu sua fé? Mais uma vez não. Satanás ficou desapontado com Jó. E lhes digo... - Philip levantou a mão dramaticamente, para enfatizar seu ponto. - E lhes digo que Satanás vai ficar desapontado com o povo de Kingsbridge! Pois continuamos a venerar o verdadeiro Deus, exatamente como Jó fez durante todas as suas tribulações.

      Fez nova pausa, para deixar que digerissem o que dissera, mas podia assegurar que não conseguira comover ninguém. Os rostos erguidos para ele estavam interessados, mas não inspirados. Na verdade, ele não era um orador inspirado. Era um homem prático. Não era capaz de cativar uma congregação com a força da sua personalidade.

      As pessoas tornavam-se intensamente leais a ele, mas isso não ocorria de imediato: o processo era lento, acontecia com o tempo, quando vinham a entender como vivia e o que conseguia fazer. Seu trabalho às vezes inspirava as pessoas - pelo menos nos velhos tempos -, mas não suas palavras.

      No entanto, a melhor parte da história ainda estava por vir.

      - O que aconteceu a Jó, depois que Satanás lhe causou tanto mal? Muito bem, Deus lhe deu tudo o que tinha no princípio - em dobro! Onde levava para pastar sete mil carneiros, tinha agora catorze mil. Os três mil camelos foram substituídos por seis mil. E ele teve mais sete filhos e três filhas.

      Os fiéis continuaram indiferentes. Philip insistiu.

      - E Kingsbridge irá prosperar de novo um dia. As viúvas se casarão de novo e os viúvos encontrarão esposas; e aqueles cujos filhos morreram conceberão de novo; e nossas ruas se encherão de gente, nossas lojas terão amplos estoques de pão e vinho, couro e metal, fivelas e sapatos; e um dia reconstruiremos nossa catedral.

      O problema era que não estava seguro de que acreditava em suas próprias palavras. Não era de admirar que a congregação não se tocasse.

      Baixou os olhos para o livro grosso à sua frente e traduziu do latim:

      - "E Jó viveu por mais cento e quarenta anos, e viu seus filhos, netos e bisnetos. Só então morreu, muito velho." - Fechou o livro.

      Houve uma perturbação na parte de trás da pequena igreja. Philip ergueu os olhos, irritado. Estava consciente de que seu sermão não tivera o efeito que esperara, mas mesmo assim queria uns poucos momentos de silêncio no final. A porta da igreja foi aberta, e todos os que estavam no fundo olharam para fora. Philip pôde ver na rua uma boa multidão - deviam estar ali todas as pessoas que não se encontravam dentro da igreja. O que estaria acontecendo?

      Diversas possibilidades passaram pela sua cabeça - briga, incêndio, a notícia de que alguém estava morrendo, ou de que uma grande tropa de homens a cavalo se aproximava -, mas estava completamente despreparado para o que aconteceu. Primeiro entraram dois padres carregando a estátua de uma mulher sobre uma tábua forrada por uma toalha bordada de altar. A solenidade do comportamento deles sugeria que a estátua representava uma santa, presumivelmente a Virgem, Atrás dos padres caminhavam duas pessoas, e foram elas que lhe proporcionaram a surpresa maior: uma era Aliena, outra, Jack.

      Philip contemplou o rapaz. No seu olhar havia ternura, mas também uma certa irritação. Aquele garoto... No dia em que aparecera, a velha catedral se incendiara, e desde então nada relacionado a ele fora normal. Mas ficou mais satisfeito que aborrecido com a entrada de Jack. A despeito de todos os problemas que o menino causara, ele tornara a vida interessante. Menino? Philip olhou para ele de novo. Jack não era mais um menino. Estivera fora dois anos, mas envelhecera dez. Havia cansaço e sabedoria em seus olhos. Por onde tinha andado? E como Aliena o encontrara?

      A procissão deslocou-se para o meio da igreja. Philip decidiu não fazer nada e ver o que aconteceria. Um murmúrio de excitação espalhou-se quando o povo reconheceu Jack e Aliena. Logo em seguida o murmúrio se modificou, passando a ser de reverente temor, e alguém disse:

      - Ela chora!

      Outros repetiram, como numa litania:

      - Ela chora! Ela chora!

      Philip examinou a estátua. Sem dúvida nenhuma, havia água saindo de seus olhos. Subitamente se lembrou da misteriosa carta do arcebispo a respeito da Madona que Chora. Quanto a ser ou não um milagre, Philip julgaria depois. Podia ver que os olhos pareciam ser feitos de pedra, enquanto o resto da estátua era de madeira: isso podia estar relacionado com as lágrimas.

      Os padres se viraram e depositaram a tábua no chão, de modo que a Madona ficasse de frente para a congregação. Então Jack começou a falar.

      - A Madona que Chora veio às minhas mãos num país muito distante - começou ele. Philip ficou ressentido com a interrupção da missa, mas decidiu não agir precipitadamente: deixaria Jack falar. De qualquer forma, estava curioso.

      - Um sarraceno batizado a deu para mim - prosseguiu Jack. A congregação deixou escapar um murmúrio de surpresa. Nas histórias, os sarracenos eram geralmente o inimigo bárbaro de pele negra, e poucas pessoas sabiam que alguns deles eram cristãos. - A princípio não entendi por que ele a entregou para mim. Mesmo assim, carreguei-a por muitas milhas. - Jack fascinara os fiéis. Ele é melhor pregador que eu, pensou Philip, pesaroso; posso sentir a tensão aumentando. - Finalmente comecei a perceber que ela queria ir para casa. Mas onde era sua casa? Até que atinei com a resposta: ela queria ir para Kingsbridge.

      Os fiéis não contiveram os comentários, espantados. Philip mostrou-se cético. Havia uma diferença entre o modo como Deus operava e o de Jack, e aquilo tinha todo o jeito de coisa de Jack. Mas Philip permaneceu em silêncio.

      - Mas então pensei: para onde a estou levando? Que santuário terá em Kingsbridge? Em que igreja descansará? - Ele relanceou os olhos pelo interior simples e caiado da igreja da paróquia, como se dissesse: Isto aqui obviamente não servirá.

      - E foi como se ela falasse em voz alta e me dissesse: Você, Jack, fará um santuário e construirá uma igreja para mim.

      Philip começou a entender o que Jack queria. A Madona seria a centelha que reacenderia o entusiasmo do povo para construir uma nova catedral. Faria o que o sermão de Philip sobre Jó não fizera. Mas Philip não pôde deixar de se perguntar se aquilo seria a vontade de Deus ou a de Jack.

      - Assim, perguntei a ela: "com quê? Não tenho dinheiro". E ela disse: "Proverei o dinheiro". Então iniciamos a viagem, com a bênção do arcebispo Theobald de Canterbury.

      Jack lançou um olhar para Philip quando pronunciou o nome do arcebispo. Ele está me dizendo qualquer coisa, pensou Philip; está dizendo que tem um forte apoio para isto.

      Jack correu o olhar pela congregação.

      - E ao longo do caminho, a partir de Paris, por toda a Normandia, atravessando o mar e no trajeto até Kingsbridge, cristãos devotos deram dinheiro para a construção do altar da Madona que Chora. - com essas palavras, Jack chamou com um gesto alguém que estava do lado de fora.

      No momento seguinte dois sarracenos de turbante entraram solenemente na igreja, carregando nos ombros uma arca guarnecida de ferro.

      Os fiéis recuaram, amedrontados. Até mesmo Philip ficou assombrado. Sabia, em teoria, que os sarracenos tinham a pele escura, mas nunca vira um antes e a realidade era espantosa. Suas roupas brilhantemente coloridas e amplas também eram impressionantes. Eles marcharam por entre a congregação aterrada e ajoelharam-se ante a Madona, colocando, reverentes, a arca no chão.

      Quando Jack abriu a arca com uma imensa chave e levantou a tampa, houve um silêncio em que ninguém respirou. Todos esticaram o pescoço para tentar ver o que continha.

      De repente, o rapaz virou-a de cabeça para baixo.

      Ouviu-se um barulho que lembrava uma cascata, quando uma torrente de moedas de prata se espalhou. Eram centenas, milhares de moedas. Todos se aproximaram, curiosos; nenhuma daquelas pessoas jamais vira tanto dinheiro.

      Jack levantou a voz para ser ouvido, não obstante as exclamações do povo.

      - Trouxe-a para casa, e agora a dou para a construção da nova catedral. - Nesse ponto virou-se, encarou Philip e inclinou a cabeça numa pequena reverência, como se dissesse: Agora é com você.

      Philip detestava ser manipulado daquele modo, mas ao mesmo tempo tinha que reconhecer o modo magistral como a coisa fora feita. O povo podia aclamar a Madona que Chora, mas somente Philip poderia decidir se ela seria autorizada a permanecer na Catedral de Kingsbridge ao lado dos ossos de santo Adolfo. E ele ainda não estava convencido.

      Alguns dos aldeões começaram a fazer perguntas aos sarracenos. Philip desceu do púlpito e aproximou-se mais para ouvir.

      - Venho de um país muito, muito distante - um deles estava dizendo, Philip ficou surpreso ao perceber que falava inglês exatamente como um pescador de Dorset, mas a maior parte das pessoas nem mesmo sabia que os sarracenos tinham um idioma próprio.

      - Qual é o nome do seu país? - perguntou alguém.

      - África - respondeu o sarraceno. Havia mais que um país na África, claro, como Philip sabia - embora a maior parte dos aldeões não -, e o prior perguntou-se de onde viria aquele sarraceno. Seria muito interessante se fosse de um lugar mencionado na Bíblia, como o Egito ou a Etiópia.

      Uma garotinha levantou um dedo e tocou na mão de pele escura. O mouro sorriu para ela. A não ser pela cor, ele não parecia diferente do resto das pessoas. Encorajada, a garota perguntou:

      - Como é a África?

      - Há grandes desertos e figueiras.

      - O que é uma figueira?

      - Uma árvore que dá figos. O figo é uma fruta que parece um morango e tem gosto de pêra.

      Philip de repente foi assaltado por uma horrível suspeita.

      - Diga-me, sarraceno, em que cidade você nasceu?

      - Damasco - disse o homem.

      A suspeita do homem foi confirmada. Ficou furioso. Tocou no braço de Jack e puxou-o de lado. Num tom de voz furioso, mas falando baixo, perguntou:

      - Que negócio é esse que você está armando?

      - O que você quer dizer com essa pergunta? - retrucou Jack, bancando o inocente.

      - Esses dois não são sarracenos. São pescadores de Wareham com tinta escura no rosto e nas mãos.

      Jack não pareceu se aborrecer por ver que seu logro fora descoberto.

      - Como foi que você adivinhou? - perguntou, sorrindo.

      - Não creio que aquele homem jamais tenha visto um figo, e Damasco não fica na África. Qual é o significado desta desonestidade?

      - É um ardil inofensivo - disse Jack, exibindo seu sorriso cativante.

      - Não existe ardil inofensivo - retrucou Philip glacialmente.

      - Está bem. - Jack notou que Philip estava furioso e ficou sério. - O objetivo é o mesmo de uma ilustração numa página da Bíblia. Não é a verdade, é uma ilustração. Meus homens de Dorsetshire pintados dramatizam o fato verdadeiro de que a Madona que Chora vem de uma terra sarracena.

      Os dois padres e Aliena destacaram-se da multidão em torno da Madona e juntaram-se a Philip e Jack. O prior ignorou-os e disse a Jack:

      - Você não fica com medo do desenho de uma cobra. Uma ilustração não é uma mentira. Os seus sarracenos não são ilustrações, são impostores.

      - Arrecadamos muito mais dinheiro depois que usamos os sarracenos - disse Jack.

      Philip deu uma olhada no dinheiro derramado no chão.

      - O povo da cidade provavelmente pensa que isso é o bastante para construir uma catedral - disse. - Tenho para mim que aí deve haver umas cem libras. Você sabe que não dá para pagar nem um ano de trabalho.

      - O dinheiro é como os sarracenos - disse Jack. - É simbólico. Você sabe que tem o dinheiro para dar início à construção.

      Era verdade. Não havia nada que impedisse Philip de recomeçar a catedral. A Madona era exatamente o que precisava para trazer Kingsbridge de volta à vida. Atrairia gente à cidade - peregrinos, estudiosos e também simples curiosos. Daria novo ânimo a seus habitantes. Seria vista como um bom presságio. Philip estivera aguardando um sinal de Deus, e queria muito acreditar que era aquele. Mas tinha a sensação de que não era. Tinha todo o jeito de ser um truque de Jack.

      - Sou Reynold e este é Edward - disse o mais jovem dos dois padres. - Trabalhamos para o arcebispo de Canterbury. Ele mandou que acompanhássemos a Madona que Chora.

      - Se tinham a bênção do arcebispo, por que precisaram de dois falsos sarracenos para legitimar a Madona?

      Edward pareceu ficar um pouco envergonhado, mas Reynold disse:

      - Foi idéia de Jack; porém, confesso que não vi mal nisso. Certamente você não suspeita da Madona, não é, Philip?

      - Pode me chamar de "padre" - retrucou Philip secamente. - Trabalhar para o arcebispo não lhe dá o direito de desrespeitar seus superiores. A resposta à sua pergunta é sim, duvido da Madona. Não vou colocar essa estátua na Catedral de Kingsbridge enquanto não estiver convencido de que se trata de um objeto santo.

      - Uma estátua de madeira que chora - disse Reynold. - Que coisa mais milagrosa que isto deseja?

      - O choro é inexplicável. Mas isso não o torna um milagre. A transformação da água líquida em gelo sólido também é inexplicável, mas não é miraculosa.

      - O arcebispo ficaria muito desapontado se a Madona não fosse aceita. Ele teve que travar uma verdadeira batalha para impedir que o abade Suger ficasse com ela para Saint-Denis.

      Philip viu que estava sendo ameaçado. O jovem Reynold terá que se esforçar muito mais que isso para me intimidar, pensou ele.

      - Tenho absoluta certeza de que o arcebispo não ia querer que eu aceitasse a Madona sem fazer algumas perguntas de rotina acerca de sua legitimidade - retrucou ele secamente.

      Nesse instante houve um movimento aos pés deles. Philip baixou os olhos e viu o aleijado que notara antes. O infeliz se arrastava, esfregando as pernas paralisadas no chão, tentando se aproximar da estátua. Para qualquer lado que se virasse, estava bloqueado pela multidão. Automaticamente, Philip chegou para um lado a fim de deixá-lo passar. Os sarracenos impediam que as pessoas tocassem na estátua, mas o aleijado escapou de sua vigilância. O prior viu que o homem levantava a mão. Normalmente teria impedido que alguém tocasse numa relíquia sagrada, mas como ainda não aceitara aquela estátua como santa, nada fez. O aleijado tocou na barra do vestido de madeira. De repente deixou escapar um grito de vitória.

      - Eu sinto! Eu sinto! Todos olharam para ele.

      - Sinto a força voltando!

      Philip olhou para o homem incredulamente, sabendo o que aconteceria a seguir. O homem curvou-se sobre uma das pernas, depois sobre a outra. Houve um arquejo coletivo dos assistentes. Ele esticou a mão e alguém a pegou. Com esforço, conseguiu ficar em pé.

      A multidão produziu um barulho que lembrou um grunhido de paixão.

      - Tente andar! - gritou alguém.

      Ainda segurando a mão da pessoa que o ajudara, o aleijado experimentou dar um passo, depois outro. Todos observaram em silêncio mortal. No terceiro passo ele tropeçou, e a assistência suspirou. Mas o homem recuperou o equilíbrio e continuou andando.

 

      Todos aplaudiram.

      O homem percorreu a nave seguido pela multidão. Após mais alguns passos desatou a correr. Os aplausos entusiasmados se intensificaram quando atravessou a porta da igreja e saiu para o sol da rua, sendo acompanhado pela maior parte da congregação.

      Philip olhou para os dois padres. Reynold estava atemorizado, e lágrimas corriam pelo rosto de Edward. Evidentemente eles não haviam tomado parte naquilo. Philip virou-se para Jack e exclamou, furioso:

      - Como se atreve a tentar um truque desses?

      - Truque? - disse Jack. - Que truque?

      - Aquele homem nunca tinha sido visto por aqui até alguns dias atrás. Em mais um ou dois dias desaparecerá, para nunca mais ser visto de novo, com os bolsos cheios do seu dinheiro. Sei como essas coisas são feitas, Jack. Você não é a primeira pessoa a forjar um milagre, lamentavelmente. Nunca houve nada de errado com as pernas dele, não é verdade? Não passa de outro pescador de Wareham.

      A acusação foi confirmada pela expressão de culpa de Jack.

      - Jack - disse Aliena -, eu lhe disse para não tentar isso.

      Os dois padres estavam estupefatos. Haviam sido completamente enganados. Reynold ficou furioso e aproximou-se de Jack.

      - Você não tinha o direito! - esbravejou.

      Philip ficou triste e também zangado. No fundo do coração tivera esperanças de que a Madona fosse legítima, pois podia ver como a usaria para revitalizar o priorado e a cidade. Mas não seria assim. Deu uma olhada na pequena igreja. Só tinham permanecido uns poucos fiéis, de olhos fixos na estátua.

      - Desta vez você foi longe demais - disse o prior para Jack.

      - As lágrimas são reais, não há truque nisso - disse Jack. - Mas o aleijado foi um erro, admito.

      - Foi pior que um erro - disse Philip, furioso. - Quando as pessoas souberem da verdade terão a fé abalada em todos os milagres.

      - Por que precisam saber da verdade?

      - Porque terei que lhes explicar o motivo pelo qual a Madona não será entronizada na catedral. Não há dúvida quanto à minha aceitação da estátua agora, é claro.

      - Acho que é um pouco precipitado - disse Reynold.

      - Quando quiser sua opinião, rapaz, eu a pedirei - retorquiu Philip, interrompendo-o.

      Reynold calou-se, mas Jack insistiu.

      - Está certo de que tem o direito de privar o povo da sua Madona? Olhe para essa gente - exclamou, indicando o punhado de crentes que haviam ficado para trás. Entre eles via-se a viúva Meg. Ela estava ajoelhada em frente à estátua, com as lágrimas escorrendo pelo rosto. Jack não sabia, lembrou Philip, que Meg perdera toda a família no desmoronamento do telhado de Alfred. A emoção dela o comoveu, e ele perguntou-se se Jack afinal não teria razão. Por que tirar aquilo do povo? Por ser desonesto, relembrou a si próprio, severamente. Eles acreditavam na estátua por terem visto um falso milagre. Endureceu o coração.

      Jack ajoelhou-se ao lado de Meg e falou com ela.

      - Por que você está chorando?

      - Ela é muda - disse-lhe Philip.

      - A Madona sofreu como eu - disse-lhe então Meg. - Ela compreende.

      Philip ficou assombrado.

      - Está vendo só? - disse Jack. - A estátua ameniza o sofrimento dela. O que é que você está olhando?

      - Ela é muda - repetiu Philip. - Não pronuncia uma única palavra há mais de um ano.

      - Isso mesmo! - exclamou Aliena. - Meg ficou muda depois que seu marido e seus filhos morreram no desabamento do telhado.

      - Esta mulher? - disse Jack. - Mas ela acaba de...

      Reynold estava abismado.

      - Você quer dizer que isto é um milagre? De verdade? - Philip examinou o rosto de Jack. Ele estava mais chocado do que qualquer um. Não havia truque ali.

      O prior sentia-se profundamente comovido. Vira a mão de Deus se mover e operar um milagre. Estava um pouco trêmulo.

      - Bem, Jack... - disse, com a voz insegura. - A despeito de tudo o que você fez para desacreditar a Madona que Chora, parece que Deus tenciona operar milagres com ela de qualquer modo.

      Daquela vez Jack ficou sem palavras. Philip afastou-se dele e foi até Meg. Segurou-lhe as mãos e, delicadamente, ajudou-a a se levantar.

      - Deus a fez ficar boa de novo, Meg - disse, a voz trêmula de emoção. - Agora pode começar uma nova vida. - Lembrou que fizera um sermão sobre a história de Jó. As palavras voltaram: - E assim Deus abençoou o fim da vida de Jó mais do que o seu princípio...  - Dissera ao povo de Kingsbridge que o mesmo seria verdade para eles. Eu gostaria de saber, pensou, observando o êxtase estampado no rosto repleto de lágrimas de Meg, se isto poderá ser o começo de tudo.

     

      Houve um clamor no cabido quando Jack apresentou sua planta para a nova catedral.

      Philip o advertira para esperar encrenca. Vira os desenhos antes, claro. Jack os levara à casa do prior uma manhã bem cedo - uma planta e uma projeção vertical, riscadas em gesso emoldurado em madeira. Eles as haviam apreciado juntos, à clara luz da manhã, e Philip dissera: "Jack, esta será a igreja mais bonita da Inglaterra... mas vamos ter problemas com os monges".

      Jack sabia, desde os tempos de noviço, que Remigius e seus amigos ainda se opunham rotineiramente a qualquer plano que fosse caro ao coração de Philip, muito embora houvessem decorrido oito anos desde que este o vencera na eleição. Eles raramente conseguiam apoio dos demais, mas nesse caso Philip estava inseguro: eram todos tão conservadores que poderiam se assustar com o projeto revolucionário. No entanto, nada havia a fazer senão lhes mostrar os desenhos e tentar convencê-los. Philip certamente não poderia seguir em frente e construir a catedral sem o apoio sincero da maioria dos seus monges.

      No dia seguinte Jack compareceu ao cabido e apresentou seus planos. Os desenhos foram colocados sobre um banco encostado à parede, e os monges se agruparam para examiná-los. À medida que tomavam conhecimento dos detalhes, o murmúrio foi aumentando rapidamente até se transformar numa algazarra. Jack se sentiu desencorajado: o tom era desaprovador, quase ultrajado. O barulho ficou ainda maior quando começaram a discutir entre si, alguns atacando o projeto e outros defendendo-o.

      Após algum tempo Philip chamou-os à ordem e eles se aquietaram. Milius Tesoureiro fez uma pergunta previamente combinada:

      - Por que os arcos ogivais?

      - É uma nova técnica que estão usando na França - respondeu Jack. - Vi em diversas igrejas. O arco ogival é mais forte. Isso me possibilitará construir a igreja muito alta. Provavelmente será a nave mais alta de toda a Inglaterra.

      Gostaram da idéia, Jack podia assegurar.

      - As janelas são tão grandes! - comentou alguém.

      - Paredes grossas são desnecessárias - disse Jack. - Provaram isso na França. São os pilares que sustentam a construção, especialmente com o teto de vigas. E o efeito das janelas grandes é emocionante. Em Saint-Denis o abade pôs vidros coloridos com desenhos nas janelas. A igreja se torna um lugar ensolarado e arejado, em vez de sombrio e abafado.

      Diversos monges balançaram a cabeça, aprovando. Talvez não fossem tão conservadores quanto pensara. Mas foi Andrew Sacristão quem falou a seguir.

      - Há dois anos você era um noviço entre nós. Foi castigado por atacar o prior, escapou da cela e fugiu do convento. Agora volta nos dizendo como construir nossa igreja.

      Antes que Jack pudesse falar, um dos monges mais jovens protestou:

      - Isso não tem nada a ver com nossa discussão! Estamos examinando o projeto, não o passado de Jack!

      Diversos monges tentaram falar ao mesmo tempo, alguns deles aos gritos. Philip fez com que todos se calassem e pediu a Jack que respondesse.

      O rapaz esperara por algo assim e estava preparado.

      - Fiz uma peregrinação a Santiago de Compostela como penitência por esse pecado, padre Andrew, e espero que o fato de ter trazido a Madona que Chora para o mosteiro possa ser considerado como uma compensação pelo meu mau comportamento - afirmou docilmente. - Posso não ser destinado a me tornar monge, mas espero que possa servir a Deus de um modo diferente: como seu construtor.

      Eles pareceram aceitar aquilo. Andrew, contudo, não terminara.

      - Qual é a sua idade? - perguntou, embora certamente soubesse a resposta.

      - Vinte anos.

      - É muito pouco para ser mestre construtor.

      - Todos os presentes me conhecem. Morei aqui desde menino. - Desde que incendiei sua velha igreja, pensou ele, culpadamente. - Fiz meu aprendizado com o primeiro mestre construtor. Vocês viram meu trabalho de cinzelagem na pedra. Quando fui noviço trabalhei com o prior Philip e com Tom como encarregado da obra. Peço humildemente aos irmãos que me julguem pelo meu trabalho, e não pela minha idade.

      Foi outro discurso preparado. Mas Jack viu um dos irmãos sorrir quando ouviu a palavra "humildemente" e se deu conta de que podia ter sido um pequeno erro; todos sabiam que, fossem quais fossem suas qualidades, não se podia dizer que entre elas estivesse a humildade.

      Andrew mais que depressa aproveitou-se do lapso.

      - Humildemente? - repetiu, e seu rosto começou a ficar vermelho quando ele simulou estar se sentindo muito ultrajado. - Não foi muita humildade da sua parte anunciar aos pedreiros de Paris três meses atrás que já tinha sido designado mestre construtor aqui em Kingsbridge.

      Mais uma vez ouviu-se um alarido de reações indignadas partindo dos monges. Jack resmungou intimamente. Como diabo Andrew viera a saber daquilo? Reynold ou Edward deviam ter contado. Tentou se desculpar.

      - Eu estava tentando atrair alguns daqueles artesãos para Kingsbridge - disse, quando o barulho diminuiu. - Eles serão úteis, não importa quem seja designado mestre construtor. Não creio que minha presunção tenha causado mal algum... - Tentou um sorriso cativante. - Mas sinto muito por não ser mais humilde. - A desculpa não desceu bem.

      Milius Tesoureiro salvou-o, com outra pergunta arranjada.

      - Qual é a sua proposta para o coro, que ruiu parcialmente?

      - Eu o examinei com cuidado - respondeu Jack. - Pode ser reparado. Se me designarem mestre construtor hoje, eu o deixarei em condições de ser usado novamente dentro de um ano. Por fim, quando a nave estiver terminada, proponho demolir o coro e construir outro no estilo do resto da nova igreja.

      - Mas como você sabe que o coro antigo não vai cair novamente? - quis saber Andrew.

      - O desmoronamento foi causado pela abóbada de pedra de Alfred, que não estava no projeto original. As paredes não eram fortes o bastante para sustentá-lo. O que proponho é voltar ao desenho de Tom e construir um teto de madeira.

      Houve um murmúrio de surpresa. A questão do motivo pelo qual o telhado ruíra fora razão de controvérsia.

      - Mas Alfred aumentou o tamanho dos arcobotantes para sustentar o peso extra.

      Aquilo intrigara Jack também, mas ele pensava ter encontrado a resposta.

      - Ainda assim, eles não eram bastante fortes, particularmente na parte de cima. Se examinarem as ruínas, poderão ver que a parte da estrutura que cedeu foi o clerestório. O reforço foi insuficiente nesse nível.

      Eles pareceram ficar satisfeitos com aquilo. Jack sentiu que sua capacidade de dar uma resposta confiante elevara seu status como mestre construtor.

      Remigius levantou-se. Jack estivera se perguntando quando ele faria a sua contribuição.

      - Eu gostaria de ler um versículo da Sagrada Escritura para os irmãos no cabido - disse, um tanto teatralmente. Olhou para Philip, que balançou a cabeça, dando o seu consentimento.

      Remigius caminhou até o púlpito e abriu a imensa Bíblia. Jack examinou o homem. Sua boca de lábios finos movia-se nervosamente e seus olhos azul-claros, um tanto arregalados, lhe davam uma expressão de permanente indignação. Era o retrato do ressentimento. Anos atrás viera a crer que seu destino era ser líder de homens, mas na verdade tinha o caráter fraco, e estava condenado a viver em contínuo desapontamento, causando problemas para homens melhores.

      - O Êxodo - entoou ele, virando as páginas de pergaminho. - Capítulo 20. Versículo 14. - Jack perguntou-se que raio de coisa estaria por vir. Remigius leu: - "Não cometerás adultério". - Fechou o livro com força e retornou a seu lugar.

      - Talvez pudesse nos dizer, irmão Remigius, por que fez questão de ler esse curto versículo no meio de nossa discussão dos planos de construção da nova catedral - interveio Philip, num Tom de voz que revelava mediana exasperação.

      Remigius apontou um dedo acusador para Jack.

      - Porque o homem que deseja ser o nosso mestre construtor está vivendo em estado de pecado! - trovejou.

      Jack não pôde acreditar que ele estivesse falando sério, e retrucou, indignado:

      - É verdade que a nossa união não foi abençoada pela Igreja, devido a circunstâncias especiais, mas nos casaremos quando quiser.

      - Não podem - disse Remigius triunfantemente. - Aliena já é casada.

      - Mas a união dela jamais foi consumada.

      - Mesmo assim, a cerimônia foi realizada, numa igreja.

      - Mas se não me deixam casar com ela, como posso evitar cometer adultério? - exclamou Jack, furioso.

      - Chega! - era a voz de Philip. Jack olhou para ele. Parecia furioso. Perguntou: - Jack, você está vivendo em pecado com a mulher do seu irmão?

      Jack ficou estupefato.

      - Você não sabia?

      - Claro que não! - explodiu Philip. - Acha que eu teria permanecido em silêncio se soubesse?

      Ninguém falou nada. Não era costumeiro Philip gritar. Jack percebeu que estava metido num problema sério. Seu pecado era uma tecnicalidade, claro, mas esperava-se que os monges fossem rigorosos acerca dessas coisas. Lamentavelmente, o fato de Philip não ter sabido que estava vivendo com Aliena tornara as coisas muito piores.

      Permitira a Remigius pegar o prior de surpresa e obrigá-lo a fazer papel de tolo. Agora ele teria que ser firme, para provar que era rigoroso.

      - Mas vocês não podem construir o tipo errado de igreja só para me punir - disse Jack, angustiado.

      - Você terá que deixar aquela mulher - disse Remigius com enorme satisfação.

      - Não amole, Remigius - retrucou Jack. - Ela tem um filho meu, com um ano de idade!

      Remigius voltou a se sentar, com uma expressão de felicidade na fisionomia.

      - Jack - disse Philip -, se falar desse modo no cabido, terá que se retirar.

      Jack sabia que precisava se acalmar, porém não conseguiu.

      - Mas é um absurdo! Você está me dizendo para abandonar minha mulher e nosso filho! Isso não é moralidade, é uma sutileza bizantina!

      A raiva de Philip diminuiu, de algum modo, e Jack viu o brilho mais familiar da compreensão dos seus olhos azul-claros.

      - Jack - disse ele -, a sua abordagem das leis de Deus pode ser mais pragmática, mas nós preferimos ser rígidos; é por isso que somos monges. E não podemos tê-lo como construtor enquanto viver em adultério.

      Jack lembrou-se de uma frase das Escrituras.

      - Jesus disse: "Aquele dentre vós que não tiver pecado, que atire a primeira pedra".

      - Sim - replicou Philip -, mas também disse para a adúltera: "Vá e não peque mais". - Ele se virou para Remigius.

      - Acredito que você não se oporá mais se o adultério cessar.

      - Claro! - respondeu o subprior.

      A despeito da sua raiva e angústia, Jack notou que Philip fora mais esperto que Remigius. Fizera do adultério a questão decisiva, desviando assim a questão do novo projeto. Mas Jack não estava disposto a aceitar aquilo, e disse:

      - Não vou deixá-la!

      - Pode ser que não seja por muito tempo.

      Jack parou. A afirmativa de Philip pegou-o de surpresa.

      - Não entendi.

      - Você pode se casar com Aliena se o primeiro casamento dela for anulado.

      - E isso pode ser feito?

      - Deve ser automático, se, como diz, a união nunca tiver se consumado.

      - O que tenho a fazer?

      - Recorrer a um tribunal eclesiástico. Normalmente seria o do bispo Waleran, mas neste caso você provavelmente terá que recorrer ao arcebispo de Canterbury.

      - E o arcebispo deverá concordar?

      - Para fazer justiça, sim.

      Jack percebeu que não se tratava de uma resposta totalmente inequívoca.

      - Mas teremos que viver separados nesse meio tempo?

      - Se você quiser ser designado mestre construtor da Catedral de Kingsbridge, sim.

      - Você está me pedindo para escolher entre as duas coisas que mais amo neste mundo.

      - Não por muito tempo.

      A voz de Philip fez Jack de súbito erguer os olhos; havia real compreensão nela. Ele viu que Philip se sentia genuinamente pesaroso por ter que fazer aquilo. Sentiu-se menos furioso e mais triste.

      - Por quanto tempo? - perguntou.

      - Talvez por um ano.

      - Um ano!

      - Vocês não precisam viver em cidades diferentes - disse Philip. - Continuará podendo ver Aliena e a criança.

      - Sabe que ela foi à Espanha para me procurar? - perguntou Jack. - Pode imaginar uma coisa dessas? - Entretanto, os monges não tinham idéia do que era o amor. Acrescentou amargamente: - Agora vou ter que lhe dizer que seremos obrigados a viver separados.

      Philip levantou-se e pôs uma das mãos sobre o ombro de Jack.

      - O tempo passará mais depressa do que imagina, eu lhe prometo. E você estará ocupado, construindo a nova catedral.

      A floresta crescera e mudara em oito anos. Jack pensara que nunca poderia se perder num território que conhecera como a palma da mão, mas se enganara. As trilhas antigas estavam cobertas de mato, novas trilhas tinham sido abertas sob as árvores pelos javalis, veados e póneis selvagens, regatos haviam alterado seus cursos, velhas árvores tinham caído e novas árvores estavam mais altas. Tudo diminuíra - as distâncias pareciam menores, e as colinas, menos altas. O mais surpreendente de tudo é que ele se sentia como um estranho. Quando um filhote de veado o encarou, espantado, do outro lado de uma clareira, Jack não conseguiu adivinhar a que família pertencia ou onde estaria sua mãe. Quando um bando de patos levantou vôo, não conseguiu saber instantaneamente de que curso de água haviam saído e por quê.

      E também estava nervoso, porque não tinha idéia de onde estariam os fora-da-lei.

      Viera a cavalo desde Kingsbridge, mas tivera que desmontar assim que deixara a estrada principal, pois as árvores sobre a trilha eram muito baixas. Retornar aos lugares em que vivera na infância o deixara irracionalmente triste. Nunca apreciara, por nunca ter percebido, como a vida era simples naquele tempo. Sua maior paixão eram os morangos, e em todos os verões, sempre soubera que por alguns dias haveria todos os que conseguisse comer, crescendo no solo da floresta. Agora tudo era problemático: sua combativa amizade com o prior Philip; seu amor frustrado por Aliena; sua enorme ambição de construir a mais bonita catedral do mundo; seu desejo veemente de descobrir a verdade sobre o pai.

      Não sabia quanto sua mãe mudara nos dois anos em que estivera fora. Estava muito ansioso por revê-la. Saíra-se perfeitamente bem sozinho, claro, mas era bom ter uma pessoa sempre disposta a defendê-lo, e sentira falta desse sentimento reconfortante.

 

      Gastara o dia inteiro para chegar à parte da floresta onde costumavam viver. Agora a curta tarde de inverno escurecia rapidamente. Logo teria que desistir de procurar a velha caverna e dedicar-se a encontrar um lugar abrigado onde pudesse passar a noite. Ia fazer frio. Por que estou preocupado?, pensou. Eu costumava passar todas as noites na floresta.

      No fim foi ela quem o encontrou.

      Estava a ponto de desistir. Uma trilha estreita, quase invisível através da vegetação, provavelmente usada apenas por raposas e texugos, desembocava numa moita cerrada.

      Nada havia a fazer senão voltar atrás. Virou o cavalo e quase esbarrou em Ellen.

      - Você se esqueceu de como deslocar-se em silêncio na floresta - disse ela. - Ouvi-o esmagando o mato a milhas de distância.

      Jack sorriu. Ela não mudara.

      - Olá, mãe - disse. Beijou-a no rosto, e, cedendo à emoção, abraçou-a.

      Ela tocou no seu rosto.

      - Você está mais magro que nunca.

      Jack a examinou. Ellen estava bronzeada e saudável, o cabelo ainda grosso e escuro, sem nenhum fio branco. Seus olhos tinham a mesma cor dourada, e ainda pareciam enxergar através dele.

      - Você não mudou - disse.

      - Aonde você foi? - perguntou ela.

      - A Santiago de Compostela, e mais além, até Toledo.

      - Aliena foi à sua procura...

      - E me encontrou. Graças a você.

      - Fico feliz. - Ela fechou os olhos, como se dissesse intimamente uma prece de agradecimento. - Muito feliz.

      Ela o conduziu através da floresta até a caverna, que ficava só a cerca de uma milha de distância: sua memória não estava tão ruim, afinal. Ellen tinha um fogo alto crepitando e três velas acesas. Serviu-lhe uma caneca de sidra que preparara com maçãs silvestres e mel, e assaram algumas castanhas. Jack se lembrava dos artigos que um morador da floresta não podia fabricar, e trouxera para a mãe facas, corda, sabão e sal. Ela começou a esfolar um coelho.

      - Como vai, mãe? - perguntou ele.

      - Bem - respondeu Ellen; depois olhou para o filho e viu que estava mesmo interessado em saber. - Sinto falta de Tom - acrescentou. - Mas ele morreu, e não estou interessada em outro marido.

      - E afora isso está feliz aqui?

      - Sim e não. Estou acostumada a viver na floresta. Gosto de solidão. Nunca me habituei a ter padres intrometidos dizendo como devo me comportar. Mas sinto falta de você, de Martha e de Aliena, e gostaria de poder ver mais vezes o meu neto. - Ela sorriu. - No entanto, nunca poderei voltar a viver em Kingsbridge, não após ter amaldiçoado um casamento cristão. O prior Philip nunca me perdoará. No entanto, valeu a pena, se consegui unir você e Aliena finalmente. - Ela ergueu os olhos com um sorriso satisfeito. - Então, está gostando da vida de casado?

      - Bem - respondeu ele, hesitante -, não estamos casados. Aos olhos da Igreja, Aliena ainda está casada com Alfred.

      - Não seja tolo; o que a Igreja sabe a esse respeito?

      - Bem, eles sabem quem casou, e não me deixariam construir a nova catedral enquanto eu estivesse vivendo com a mulher de outro homem.

      Os olhos dela fuzilaram de raiva.

      - Então você a deixou?

      - Sim. Até que Aliena consiga uma anulação.

      Ellen pôs a pele do coelho de lado. com uma faca afiada nas mãos sangrentas começou a esquartejar a carcaça, deixando os pedaços caírem na panela que borbulhava no fogo.

      - O prior Philip fez isso comigo uma vez, quando eu estava com Tom - disse, cortando em fatias a carne com golpes rápidos. - Sei por que ele fica frenético com gente que faz amor. É porque se ressente da liberdade das outras pessoas de fazer o que lhe é proibido. Claro que não há nada que possa fazer quando se trata de um casamento celebrado na Igreja. Mas quando não é o caso, ele tem uma chance de estragar tudo, o que o faz se sentir melhor. - Ela cortou os pés do coelho e os atirou num balde de madeira cheio de lixo.

      Jack assentiu. Aceitara o inevitável, mas todas as vezes que dava boa-noite a Aliena e afastava-se de sua porta sentia raiva de Philip e compreendia o persistente ressentimento de sua mãe.

      - Não é para sempre, contudo - disse.

      - Como Aliena se sente?

      Jack fez uma careta.

      - Não gosta da idéia. Mas acha que a culpa é dela, por ter se casado com Alfred.

      - É verdade. E também é sua, por querer construir igrejas.

      Era lamentável que ela não compartilhasse do seu ponto de vista.

      - Mãe, não vale a pena construir outra coisa. As igrejas são maiores, mais altas, mais bonitas e mais difíceis de construir, e têm mais ornamentos e esculturas do que qualquer outro tipo de prédio.

      - E você não se satisfará com menos.

      - Certo.

      Ela sacudiu a cabeça, perplexa.

      - Nunca saberei de onde você tirou a idéia de que era destinado à grandeza. - Ellen jogou o resto do coelho na panela e começou a limpar a parte interna da pele, para poder usá-la depois. - Certamente não herdou isso de seus ancestrais.

      Esta foi a deixa pela qual ele estivera esperando.

      - Mãe, quando estive no exterior, descobri mais um pouco acerca dos meus ancestrais.

      Ela parou de raspar a pele do coelho e olhou para ele.

      - O que você está querendo dizer?

      - Encontrei a família de meu pai.

      - Meu Deus! - Ela deixou cair a pele do coelho. - Como conseguiu? Onde moram? Como são?

      - Há uma cidade na Normandia chamada Cherbourg. Foi de lá que ele veio.

      - Como pode estar tão seguro?

      - Pareço tanto com ele que pensaram que eu fosse um fantasma.

      Ellen deixou-se sentar pesadamente num banco. Jack sentiu-se culpado por tê-la chocado tanto, mas não esperara que fosse ficar tão abalada com a notícia.

      - Como...  como é que eles são? - perguntou ela.

      - O pai dele já morreu, mas a mãe ainda está viva. Foi boa comigo, depois que se convenceu de que eu não era um fantasma. O irmão mais velho de meu pai é carpinteiro, e tem mulher e três filhos. Meus primos. - Ele sorriu. - Não é ótimo? Temos parentes.

      Tal pensamento pareceu perturbá-la, e Ellen ficou inquieta.

      - Oh, Jack, sinto muito por não tê-lo criado normalmente!

      - Pois eu não sinto - disse ele, bem-humorado. Ficava embaraçado sempre que a mãe demonstrava sentir remorso: não combinava com ela. - Mas fiquei contente por ter conhecido meus primos. Mesmo que nunca mais os veja de novo, é bom saber que estão lá.

 

      Ela aquiesceu tristemente.

      - Compreendo.

      Jack tomou fôlego.

      - Eles achavam que meu pai tinha morrido afogado num naufrágio há vinte e quatro anos. Ele estava a bordo de uma embarcação chamada White Ship, que afundou ao largo de Barfleur. Pensaram que todos tivessem se afogado. Obviamente meu pai sobreviveu. Mas nunca souberam disso, porque ele não voltou a Cherbourg.

      - Ele foi para Kingsbridge.

      - Mas por quê?

      Ela suspirou.

      - Agarrou-se a um barril e foi lançado numa praia, perto de um castelo. Foi ao castelo relatar o naufrágio. Havia diversos barões poderosos ali, que demonstraram grande espanto ao vê-lo. Fizeram-no prisioneiro e o trouxeram aqui para a Inglaterra. Após algumas semanas, ou meses - ele não sabia bem, porque ficou um tanto confuso -, terminou em Kingsbridge.

      - Ele disse alguma coisa sobre o naufrágio?

      - Só que o navio afundou muito depressa, como se tivesse sido esburacado.

      - Parece que eles precisavam conservá-lo fora do caminho.

      Ela concordou.

      - E depois, quando perceberam que não poderiam mantê-lo preso para sempre, mataram-no.

      Jack ajoelhou-se diante dela e forçou-a a encará-lo. Com a voz trêmula de emoção, perguntou:

      - Mas quem eram eles, mãe?

      - Você já me perguntou isso antes.

      - E você nunca me contou.

      - Porque não quero que passe o resto da vida tentando vingar a morte do seu pai!

      Ela ainda o tratava como se fosse uma criança, negando-lhe informações que podiam não ser boas para ele. Jack tentou ser calmo e adulto.

      - Vou passar a vida construindo a Catedral de Kingsbridge e fazendo filhos com Aliena. Mas quero saber por que enforcaram meu pai. E as únicas pessoas que têm essa resposta são as que prestaram falso testemunho contra ele. Por isso tenho que saber quem eram.

      - Naquele tempo eu não sabia o nome deles.

      Jack notou que Ellen estava sendo evasiva, e isso o enfureceu.

      - Mas agora você sabe!

      - Sim, sei - disse ela, chorosa, e Jack percebeu que aquilo era tão doloroso para sua mãe quanto para ele. - É, vou lhe dizer, porque posso ver que nunca vai desistir de perguntar.

      Ela fungou e enxugou os olhos.

      Ele esperou, ansioso.

      - Havia três deles: um monge, um padre e um cavaleiro.

      Jack lançou-lhe um olhar duro.

      - Seus nomes.

      - Você vai lhes perguntar por que mentiram sob juramento?

      - Sim.

      - E espera que lhe digam?

      - Talvez não. Olharei nos seus olhos quando lhes perguntar, e pode ser que isso me diga o que quero saber.

      - Mesmo isso poderá ser impossível.

      - Quero tentar, mãe!

      Ela suspirou.

      - O monge era o prior de Kingsbridge.

      - Philip!

      - Não, não era Philip. Isso foi antes do tempo dele. Foi seu predecessor, James.

      - Mas ele está morto.

      - Eu lhe disse que podia ser impossível interrogá-los.

      Jack semicerrou os olhos.

      - Quem eram os outros?

      - O cavaleiro era Percy Hamleigh, o conde de Shiring.

      - O pai de William?

      - Sim.

      - Ele também está morto!

      - Sim.

      Jack teve a terrível impressão de que todos os três estavam mortos, e o segredo enterrado com seus ossos.

      - Quem era o padre? - perguntou, nervoso.

      - Seu nome era Waleran Bigod. Agora é o bispo de Kingsbridge.

      Jack deu um suspiro de profunda satisfação.

      - E ainda está vivo - disse.

     

      O castelo do bispo Waleran foi concluído no Natal. William Hamleigh e sua mãe cavalgaram até lá numa bela manhã, logo no início do Ano-Novo. Eles o viram a distância, do outro lado do vale. Era o ponto mais alto da colina oposta, dominando a paisagem com seu aspecto desagradável.

      Ao atravessarem o vale passaram pelo velho palácio. Agora era usado como depósito de lã. A renda advinda da lã estava pagando quase todas as despesas do novo castelo.

      Subiram trotando a elevação suave do outro lado do vale e seguiram a estrada que atravessava as fortificações de terra e um fosso seco e fundo. com elas, o fosso e uma muralha de pedra, aquele era um castelo altamente seguro, superior ao de William e a muitos dos castelos de propriedade do rei.

      O pátio interno era dominado por uma imponente fortaleza de três andares de altura, que tornava minúscula a igreja de pedra que ficava ao seu lado. William ajudou a mãe a desmontar. Deixaram por conta dos cavaleiros a tarefa de estabular os cavalos e subiram a escada que levava ao salão principal.

      Era meio-dia, e os criados de Waleran arrumavam a mesa. Alguns de seus arcediagos, deões, empregados e parasitas aguardavam o almoço. William e Regan aguardaram, enquanto um camareiro subia aos aposentos privados do bispo para anunciar sua chegada.

      William se consumia de ciúme feroz e torturante. Aliena estava apaixonada, e todo o condado sabia. Dera à luz um filho do seu amante e o marido a pusera para fora de casa. Com o bebê nos braços, fora procurar o homem a quem amava e o encontrara depois de procurar em meia cristandade. A história estava sendo contada e recontada em todo o sul da Inglaterra. William ficava doente de ódio cada vez que a ouvia. Mas imaginara um modo de se vingar.

      Subiram a escada e foram levados ao quarto de Waleran. Encontraram-no sentado a uma mesa com Baldwin, agora arcediago.

      Os dois clérigos contavam dinheiro sobre um pano xadrez, fazendo pilhas de doze pennies de prata e deslocando-as dos quadrados pretos para os brancos. Baldwin levantou-se, fez uma reverência para Lady Regan e rapidamente sumiu com o pano e as moedas.

      Waleran levantou-se e foi sentar-se na cadeira ao lado do fogo. Moveu-se rapidamente, como uma aranha, e William sentiu a antiga e costumeira aversão por ele. Não obstante, resolveu ser melífluo. Soubera recentemente da horrível morte do conde de Hereford, que brigara com o bispo e morrera excomungado. O corpo dele fora enterrado em solo não consagrado. Quando William imaginou seu corpo jazendo em terra indefesa, vulnerável a todos os monstros e demônios que habitam as profundezas, estremeceu de medo. Jamais brigaria com o seu bispo.

      Waleran estava magro e pálido como sempre, e seu manto negro lembrava uma roupa secando numa árvore. Nunca parecia mudar. William sabia que ele próprio estava bastante diferente. Comida e vinho eram seus principais prazeres, e a cada ano ficava um pouco mais corpulento, a despeito da vida ativa que levava, de modo que a dispendiosa cota de malha feita para ele quando completara vinte e um anos já fora trocada duas vezes nos sete anos subsequentes.

      Waleran acabava de regressar de York. Estivera fora por quase meio ano, e William, polidamente, perguntou:

      - Teve êxito na sua viagem?

      - Não - foi a resposta dele. - o bispo Henry me mandou lá para ver se resolvia uma controvérsia que já dura quatro anos acerca de quem deve ser o arcebispo de York. Falhei. A rixa continua.

      Quanto menos fosse dito sobre aquilo, melhor, pensou William, que comentou:

      - Enquanto você esteve fora, muita coisa aconteceu por aqui. Especialmente em Kingsbridge.

      - Em Kingsbridge? - Waleran ficou surpreso. - Pensei que esse problema tivesse sido resolvido de uma vez por todas.

      William sacudiu a cabeça.

      - Eles têm a Madona que Chora.

      Waleran irritou-se.

      - Que diabo de história é essa?

      Foi a mãe de William quem respondeu.

      - É uma estátua de madeira da Virgem que usam em procissões. Em certas ocasiões, sai água dos seus olhos. O povo pensa que é milagrosa.

      - É milagrosa! - afirmou William. - Uma estátua que chora!

      Waleran dirigiu-lhe um olhar escarninho. Regan prosseguiu.

      - Milagrosa ou não, milhares de pessoas foram vê-la nos últimos meses. Nesse meio tempo, o prior Philip recomeçou a construção. Estão reparando o coro e pondo um novo teto de madeira. Também começaram o resto da igreja. As fundações da interseção já foram escavadas, e alguns novos pedreiros chegaram de Paris.

      - Paris? - estranhou Waleran.

      - A igreja agora vai ser construída no estilo da de Saint-Denis, seja o que for que isso signifique.

      Waleran aquiesceu.

      - Arcos ogivais. Ouvi falar a respeito disso em York.

      William não se importava com o estilo em que a catedral de Kingsbridge seria construída.

      - A questão - disse - é que os rapazes abandonam as minhas terras para se mudar para Kingsbridge e trabalhar como serventes, o mercado abre todos os domingos mais uma vez, tirando negócios de Shiring... É a mesma velha história de sempre! - William relanceou os olhos para a mãe e o bispo, perguntando-se se não teriam suspeitado de que tinha um motivo oculto; porém, nenhum dos dois parecia desconfiado.

      - O pior erro que já cometi - disse Waleran - foi ajudar Philip a se tornar prior.

      - Eles vão aprender que simplesmente não podem fazer isso - disse William.

      O bispo olhou para ele pensativamente.

      - O que você quer fazer?

      - Vou saquear a cidade de novo. - E quando o fizer, matarei Aliena e seu amante, pensou; olhou para o fogo, a fim de que sua mãe não o encarasse e pudesse ler seus pensamentos.

      - Não estou seguro de que você possa fazê-lo - disse Waleran.

      - Já fiz isso antes; por que não deveria fazer de novo?

      - Da última vez você tinha um bom motivo: a feira de lã.

      - Agora é o mercado. Eles nunca tiveram permissão do rei Estêvão para o mercado.

      - Não é a mesma coisa. Philip estava forçando sua sorte com aquela feira de lã, e você atacou imediatamente. O mercado de domingo já vem funcionando em Kingsbridge há seis anos, e de qualquer modo fica a quase vinte milhas de Shiring, de maneira que deve ser licenciado.

      William conteve a raiva. Tinha vontade de dizer a Waleran para não ficar bancando uma frágil velhinha; entretanto, nunca faria uma coisa dessas.

      Enquanto estava engolindo seu protesto, um camareiro entrou e ficou parado em silêncio junto à porta.

      - O que é? - perguntou Waleran.

      - Há um homem aí que insiste em vê-lo, milorde bispo. O nome é Jack. Um construtor, de Kingsbridge. Devo mandá-lo embora?

      O coração de William disparou. Era o amante de Aliena. Como acontecera de vir justamente quando tramava sua morte? Talvez tivesse poderes sobrenaturais. O conde deixou-se dominar pelo pavor.

      - De Kingsbridge? - perguntou Waleran, com interesse.

      - É o novo construtor lá - disse Regan; - foi ele quem trouxe a Madona que Chora da Espanha.

      - Interessante - comentou Waleran. - Vamos dar uma olhada nele. - Dirigiu-se ao camareiro: - Mande-o entrar.

      William ficou com os olhos fixos na porta, com terror supersticioso. Esperava que entrasse um homem alto, assustador, de capa negra, que apontasse diretamente para ele um dedo acusador. Mas quando Jack passou pela porta, ficou chocado com a sua juventude. O amante de Aliena não podia ter muito mais que vinte anos. Tinha cabelo ruivo e vivos olhos azuis que passaram por William, fizeram uma pausa em Regan - cujas horríveis ulcerações no rosto prendiam o olhar de qualquer pessoa que não estivesse acostumada - e se detiveram em Waleran. O construtor não estava muito intimidado por se encontrar na presença dos dois homens mais poderosos do condado, porém, a não ser pela sua surpreendente indiferença, não parecia inspirar medo.

      Como William, Waleran sentiu a atitude insubordinada do jovem construtor, e reagiu com uma voz glacialmente arrogante:

      - Bem, rapaz, qual o assunto que deseja tratar comigo?

      - A verdade - respondeu Jack. - Quantos homens já viu serem enforcados?

      William conteve a respiração. A pergunta era chocante e insolente. Olhou para os outros. Sua mãe tinha se inclinado para a frente, olhando atentamente para Jack, como se pudesse tê-lo visto antes e estivesse tentando se lembrar de onde. Waleran parecia friamente divertido.

      - O que é isto? Alguma adivinhação? - perguntou Waleran. - Já vi mais homens serem enforcados do que pude contar, e haverá mais um na lista se você não falar respeitosamente.

      - Peço-lhe desculpas, milorde bispo - disse Jack, mas ainda não deu mostras de estar assustado. - Lembra-se de todos eles?

      - Acho que sim - respondeu Waleran, parecendo intrigado, apesar do esforço para se controlar. - Suponho que haja um em particular no qual você esteja interessado.

      - Há vinte anos, em Shiring, você testemunhou o enforcamento de um homem chamado Jack Shareburg.

      William ouviu sua mãe ofegando.

      - Era um menestrel - continuou Jack. - Lembra-se dele?

      O conde Hamleigh percebeu que a atmosfera na sala de repente ficara tensa. Havia algo de amedrontador em Jack que não era natural; devia haver, para que ele causasse aquele efeito sobre sua mãe e Waleran.

      - Penso que talvez me lembre - respondeu Waleran, e William detectou na sua voz a tensão do autocontrole. O que estaria acontecendo?

      - Imagino que se lembre, sim - disse Jack, insolente de novo. - O homem foi condenado com base no depoimento de três pessoas. Duas estão mortas. Você era a terceira.

      Waleran assentiu.

      - Ele havia roubado algo do priorado de Kingsbridge: um cálice ornamentado com pedras preciosas.

      Uma expressão insensível surgiu nos olhos azuis de Jack.

      - Ele não fez nada disso.

      - Eu mesmo o peguei, com o cálice.

      - Você mentiu.

      Houve uma pausa. Quando Waleran falou de novo, sua voz soou brandamente, mas a expressão do seu rosto era dura como aço.

      - Posso fazer com que lhe cortem a língua - disse.

      - Só quero saber por que você fez isso - disse Jack, como se não tivesse ouvido a terrível ameaça. - Pode ser sincero aqui. William não representa nenhuma ameaça para você, e a mãe dele parece já saber de tudo.

      William olhou para a mãe. Era verdade; o ar dela era de quem tinha conhecimento do que se passara. Quanto a ele, estava completamente estupefato. Parecia - mal se atrevia a acreditar - que a visita de Jack nada tinha a ver com seus planos secretos para matar o amante de Aliena.

      - Você está acusando o bispo de perjúrio! - disse Regan a Jack.

      - Não repetirei a acusação em público - disse Jack, com frieza. - Não tenho provas, e de qualquer modo não estou interessado em vingança. Só queria entender porque enforcaram um homem inocente.

      - Dê o fora daqui - ordenou Waleran glacialmente.

      Jack aquiesceu, como se não houvesse esperado outra coisa. Embora não tivesse conseguido respostas para as suas perguntas, o ar de satisfação que ostentava dava a entender que suas suspeitas, de algum modo, haviam sido confirmadas.

      William ainda estava desconcertado com aquele diálogo. Cedendo a um impulso, disse:

      - Espere um momento.

      Jack virou-se, à porta, e o fitou com seus zombeteiros olhos azuis.

      - Qual é...  - William engoliu e conseguiu controlar a voz. - Qual é o seu interesse nisto? Por que veio aqui fazer tais perguntas?

      - Porque o homem que enforcaram era meu pai - disse Jack, e saiu.

      A sala ficou envolta em silêncio. Então o amante de Aliena, o mestre construtor de Kingsbridge, era o filho de um ladrão que fora enforcado em Shiring. William pensou:nE daí? Mas Regan parecia ansiosa, e Waleran estava realmente abalado.

      - Aquela mulher me atormenta há vinte anos - disse amargamente o bispo, ao cabo de algum tempo. E ele era normalmente tão reservado que William ficou chocado ao vê-lo deixar os sentimentos transparecerem.

      - Ela desapareceu depois que a catedral caiu - disse Regan. - Pensei que nunca mais fôssemos vê-la.

      - Agora seu filho volta para nos assombrar. - Havia algo parecido com o medo da verdade na voz de Waleran.

      - Por que não o põe a ferros por acusá-lo de perjúrio? - perguntou o conde.

      Waleran lançou-lhe um olhar de desprezo.

      - Seu filho é um maldito tolo, Regan - disse ele. William percebeu que a acusação de perjúrio devia ser verdadeira. E se ele foi capaz de perceber isso, Jack também fora.

      - Alguém mais sabe?

      - O prior James confessou seu perjúrio, antes de morrer, ao subprior Remigius. Mas Remigius sempre esteve do nosso lado contra Philip, de modo que não representa perigo. A mãe de Jack conhece um pouco da história, mas não toda; de outro modo já teria usado a informação. Entretanto, Jack andou viajando por aí; pode ter descoberto algo que sua mãe não saiba.

      William viu que aquela estranha história do passado poderia ser usada em seu benefício. Como se acabasse de lhe ocorrer a idéia, sugeriu:

      - Então vamos matar Jack.

      Waleran limitou-se a sacudir a cabeça desdenhosamente.

      - Só serviria para atrair a atenção sobre ele e suas acusações.

      William ficou desapontado. Parecera quase providencial.

      Pensou um pouco, enquanto o silêncio na sala se arrastava.

      - Não obrigatoriamente.

      Ambos olharam para ele com ceticismo.

      - Jack pode ser morto sem que se atraia a atenção de ninguém para ele - insistiu William obstinadamente.

      - Está bem, conte-nos o que está pensando - disse Waleran.

      - Ele pode ser morto num ataque a Kingsbridge. - William teve a satisfação de ver o mesmo ar de respeito e espanto no rosto de ambos.

     

      Jack percorreu o canteiro da obra com o prior Philip no final da tarde. As ruínas do coro tinham sido removidas, e os escombros formavam dois montes enormes no lado norte do adro. Novos andaimes haviam sido erguidos, e os pedreiros estavam reconstruindo as paredes ruídas. Ao longo da enfermaria fora arrumado o estoque de madeira.

      - Você está agindo rapidamente - disse Philip.

      - Não tão depressa quanto gostaria - replicou Jack.

      Inspecionaram as fundações dos transeptos. Quarenta ou cinquenta serventes estavam metidos nos buracos fundos, enchendo com suas pás os baldes de lama, enquanto outros, no nível do solo, operavam os guinchos que içavam os baldes para fora do buraco. Imensos blocos de pedras que seriam usados para os alicerces estavam empilhados nas proximidades.

      Jack conduziu Philip até a sua oficina. Era muito maior que a de Tom. Um lado era completamente aberto, para melhor iluminação. Metade da área estava ocupada pelos seus desenhos. Ele cobrira o chão com tábuas que cercara com uma moldura de madeira de algumas polegadas de altura e depois derramara gesso até a borda. Quando o gesso secou, estava duro o bastante para que se caminhasse em cima, mas era possível desenhar nele com um pedaço pequeno de arame com a ponta aguçada. Era ali que Jack desenhava os detalhes. Usava compassos, régua e esquadro. Os traços se mostravam brancos e claros assim que eram traçados, mas escureciam bem depressa, o que significava que novos desenhos podiam ser feitos em cima dos antigos, sem confusão. Era uma idéia que ele aprendera na França.

      A maior parte do resto do galpão estava tomada pela bancada sobre a qual Jack trabalhava em madeira, fazendo os gabaritos que mostrariam aos pedreiros como trabalhar as pedras. A luz estava acabando; não mais poderia continuar o trabalho. Começou a guardar as ferramentas.

      Philip pegou um gabarito.

      - Para que é isto?

      - O plinto de uma coluna.

      - Você prepara tudo com bastante antecipação.

      - Não consigo ver a hora de começar a construir direito.

      Naqueles dias as conversas dos dois eram tensas e objetivas. Philip deixou o gabarito onde o achara.

      - Tenho que ir para as completas.

      - E tenho que ir visitar minha família - disse Jack acidamente.

      Philip parou, virou-se como se fosse falar, o rosto triste, e foi embora.

      Jack trancou a caixa de ferramentas. Aquela observação fora tola. Tinha aceitado o trabalho nas condições de Philip, e era inútil reclamar agora. Mas se sentia constantemente furioso com o prior e nem sempre conseguia conter-se.

      Deixou o priorado ao lusco-fusco e dirigiu-se à pequena casa no bairro pobre onde Aliena vivia com o irmão, Richard. Ela sorriu satisfeita quando Jack entrou, mas não se beijaram; nunca se tocavam naqueles tempos, com medo de se excitarem e depois terem que se separar, frustrados, ou de quebrar a promessa feita a Philip, cedendo à luxúria.

      Tommy brincava no chão. Estava com um ano e meio, e sua atual obsessão era colocar coisas dentro de outras coisas. Tinha quatro ou cinco terrinas diante de si, e punha incessantemente as menores dentro das maiores, assim também como tentava fazer o contrário. Jack ficou muito impressionado ao ver que o filho não sabia instintivamente que uma terrina grande não cabia numa menor; era algo que os seres humanos tinham que aprender. Tommy estava lutando com as relações espaciais do mesmo modo como Jack, quando tentava visualizar algo como a forma de uma pedra numa abóbada.

      Tommy fascinava Jack e o deixava ansioso também. Até então Jack nunca se preocupara com sua capacidade para encontrar trabalho, permanecer num emprego e sustentar-se.

      Lançara-se à travessia da França sem pensar por um único momento na possibilidade de vir a ficar inteiramente sem recursos e passar fome. Mas agora queria segurança.

      A necessidade de tomar conta de Tommy era muito mais compulsiva que a necessidade de cuidar de si próprio. Pela primeira vez na vida tinha responsabilidades.

      Aliena pôs um jarro de vinho e bolo com especiarias na mesa e sentou-se em frente a Jack. Ele serviu-se de um copo de vinho e bebeu, satisfeito. Aliena pôs um pedaço de bolo na frente do filho, mas ele não estava com fome e o espalhou em pedaços na palha do chão.

      - Jack, preciso de mais dinheiro - disse Aliena. Jack ficou surpreso.

      - Eu lhe dou doze pennies por semana. E só ganho vinte e quatro.

      - Desculpe - disse ela -, mas você mora sozinho, não precisa tanto.

      Jack achou aquilo um tanto irracional.

      - Mas um servente só ganha seis pence por semana, e alguns têm cinco ou seis filhos!

      Aliena irritou-se.

      - Jack, não sei como as mulheres dos serventes cuidam de suas casas; nunca aprendi. E não gasto tudo comigo. Mas você vem jantar aqui todos os dias. E há Richard...

      - Bem, o que há com Richard? - perguntou Jack, furioso. - Por que ele não se sustenta?

      - Ele nunca se sustentou.

      Jack achou que Aliena e Tommy eram um encargo suficiente para ele.

      - Não sabia que sou eu que tenho de cuidar de Richard!

      - Bem, ele é minha responsabilidade - disse ela serenamente. - Quando você me aceitou, aceitou Richard também.

      - Não me lembro de ter concordado com isso! - exclamou ele, furioso.

      - Não se irrite.

      Tarde demais: Jack já estava irritado.

      - Richard tem vinte e três anos de idade, dois a mais que eu. Como é possível que eu sustente um homem mais velho? Por que devo comer pão duro de manhã e pagar o toucinho de Richard?

      - De qualquer forma, estou grávida de novo.

      - O quê?

      - Vou ter outro filho.

      A raiva de Jack desvaneceu-se. Ele segurou a mão de Aliena.

      - Que maravilha!

      - Você está satisfeito? Pensei que fosse se zangar.

      - Zangar-me! Estou entusiasmado! Não vi Tommy quando ele era pequenino; agora vou descobrir o que perdi.

      - Mas o que me diz da responsabilidade extra, e do dinheiro?

      - Oh, ao inferno com o dinheiro! Só estou de mau humor porque temos de viver separados. Temos dinheiro suficiente. Mas outro bebê! Tomara que seja uma menina. - Lembrou-se de alguma coisa e franziu a testa. - Mas quando... ?

      - Deve ter sido um pouco antes de o prior Philip nos obrigar a viver separados.

      - Talvez na festa da véspera do Dia de Todos os Santos. - Ele sorriu. - Lembra-se daquela noite? Você montou em mim como numcavalo...

      - Eu me lembro - disse ela, ruborizada. Ele a fitou afetuosamente.

      - Gostaria de fazer aquilo agora.

      Ela sorriu.

      - Eu também.

      Eles se deram as mãos por cima da mesa. Richard chegou.

      Ele manteve a porta aberta e entrou, afogueado e poeirento, puxando um cavalo suado.

      - Tenho más notícias - disse, ofegante.

      Aliena pegou Tommy, tirando-o da frente dos cascos do cavalo.

      - O que aconteceu? - perguntou Jack.

      - Todos nós temos que sair de Kingsbridge amanhã - disse ele.

      - Mas por quê?

      - William Hamleigh vai queimar a cidade de novo no domingo.

      - Não! - exclamou Aliena.

      Jack gelou. Viu de novo a cena passada há três anos, quando os cavaleiros de William tinham invadido a feira de lã, com seus archotes e seus porretes brutais.Recordou o pânico, os gritos, o cheiro de carne queimada. Reviu o corpo do padrasto, sua testa esmagada. Sentiu revolta no coração.

      - Como você sabe? - perguntou a Richard.

      - Eu estava em Shiring, e vi alguns dos homens de William comprando armas na oficina do armeiro.

      - Isto não significa que...

      - Há mais. Segui-os até uma cervejaria e ouvi o que conversavam. Um deles perguntou que defesas Kingsbridge tinha e o outro respondeu que nenhuma.

      - Oh, meu Deus - disse Aliena -, é verdade! - Ela olhou para Tommy e pôs a mão na barriga, onde a nova criança crescia. Levantou a cabeça e deu com os olhos de Jack.

      Os dois estavam pensando na mesma coisa.

      Richard continuou.

      - Mais tarde fui conversar com alguns dos mais jovens, que não me conhecem. Eu lhes falei sobre a batalha de Lincoln, e assim por diante, e disse que estava procurando um bom combate. Eles me disseram para ir a Earlscastle, mas teria que ser hoje, pois partiriam amanhã e a batalha seria no domingo.

      - Domingo - repetiu Jack, assustado.

      - Peguei o cavalo e fui até Earlscastle, para me certificar.

      - Isso foi perigoso, Richard - disse Aliena.

      - Todos os sinais estavam lá: mensageiros indo e vindo, armas sendo amoladas, cavalos sendo trabalhados, selas e apetrechos sendo limpos...  não havia dúvida alguma. - Numa voz cheia de ódio, Richard concluiu: - Nenhuma quantidade de maldade jamais satisfará aquele demônio do William: ele sempre quer mais. - Richard levou a mão à orelha direita e tocou na cicatriz num gesto nervoso inconsciente.

      Jack examinou Richard por um momento. Podia ser preguiçoso e perdulário, mas numa área seu julgamento era digno de confiança: a militar. Se dizia que William estava planejando um ataque, provavelmente tinha razão.

      - Vai ser uma catástrofe - disse Jack, meio para si próprio. Kingsbridge começava a se recuperar. Há três anos a feira de lã tinha sido incendiada, há dois a catedral caíra sobre a congregação, e agora aquilo. Todos diriam que a má sorte de Kingsbridge voltara. Mesmo que conseguissem evitar derramamento de sangue, a cidade ficaria arruinada. Ninguém ia querer viver ou trabalhar ali, ou mesmo ir ao mercado. Até a construção da catedral poderia ser interrompida.

      - Temos que contar ao prior Philip - disse Aliena. - Imediatamente.

      Jack concordou.

      - Os monges estarão ceando. Vamos.

      Aliena pegou Tommy e os três subiram depressa a colina na direçào do mosteiro, em meio ao lusco-fusco.

      - Quando a catedral estiver terminada, o mercado poderá ser montado no seu interior, e todos estarão protegidos de ataques.

      - Mas até lá precisamos da renda do mercado para pagar a construção da catedral.

      Richard, Aliena e Tommy esperaram do lado de fora, enquanto Jack entrava no refeitório. Um jovem monge lia em voz alta um texto em latim, enquanto os demais comiam em silêncio. Jack reconheceu uma passagem obscura do Apocalipse. Parou à porta e atraiu a atenção de Philip. Este ficou surpreso ao vê-lo, mas se levantou e saiu imediatamente.

      - Más notícias - disse Jack, amargurado. - Vou deixar Richard contar.

      Eles conversaram na semi-obscuridade do coro reconstruído. Richard deu os detalhes em poucas sentenças. Quando terminou, Philip disse:

      - Mas não estamos realizando nenhuma feira, só um pequeno mercado!

      - Pelo menos temos a chance de evacuar a cidade amanhã - disse Aliena. - Ninguém precisa se machucar. E podemos reconstruir nossas casas, como fizemos da última vez.

      - A menos que William decida perseguir os fugitivos - disse Richard com tristeza. - Não duvido que o faça.

      - Mesmo que todos fujamos, acho que será o fim do mercado - disse Philip melancolicamente. - As pessoas terão medo de instalar seus estandes em Kingsbridge depois disto.

      - Pode significar o fim da catedral - disse Jack. - Nos últimos dez anos a igreja primeiro pegou fogo e depois desmoronou. Muitos pedreiros morreram quando a cidade foi incendiada. Outro desastre seria o último, penso eu. Todos diriam que é má sorte.

      Philip parecia alquebrado pela idade. Ainda não tinha quarenta anos, mas seu rosto estava ficando enrugado, e havia mais fios brancos que pretos, ao redor da tonsura.

      Não obstante isso, havia um brilho perigoso nos seus olhos azul-claros quando ele disse:

      - Não vou aceitar isto. Não creio que seja a vontade de Deus.

      Jack perguntou-se de que estaria ele falando. Como poderia "não aceitar" aquilo? As galinhas podiam se cansar de dizer que não aceitavam a raposa, que não faria a menor diferença para o seu destino.

      - O que você vai fazer então? - perguntou Jack ceticamente. - Rezar para que William caia da cama e quebre o pescoço?

      Richard animou-se com a idéia de resistir.

      - Vamos lutar - disse. - Por que não? Há centenas de nós. William trará cinquenta homens, cem, no máximo; poderíamos ganhar pela pura força dos números.

      - E quantos dos nossos seriam mortos? - protestou Aliena.

      Philip estava sacudindo a cabeça.

      - Monges não lutam - disse pesarosamente. - E não posso pedir às pessoas da cidade que dêem a vida quando não estou preparado para arriscar a minha.

      - Não conte com meus pedreiros, tampouco - disse Jack. - Não faz parte do trabalho deles.

      Philip olhou para Richard, que era a pessoa que mais se assemelhava a um perito militar de que dispunham.

      - Há algum modo de defender a cidade sem uma batalha campal?

      - Não, por causa da falta de muralhas. Não temos nada a pôr na frente do inimigo senão nosso corpo.

      - Muralhas - repetiu Jack pensativamente.

      - Poderíamos também desafiar William a decidir a questão por um único combate: uma luta entre campeões. Mas não creio que aceitasse tal desafio.

      - Uma muralha em volta da cidade serviria? - perguntou Jack.

      - Poderia nos salvar em outra ocasião - respondeu Richard impacientemente -, mas não agora. Não podemos construir uma muralha da noite para o dia.

      - Não podemos?

      - Claro que não, não seja...

      - Cale-se, Richard - disse Philip energicamente. Olhou para Jack, esperançoso. - Em que você está pensando?

      - Uma muralha não é difícil de construir - disse Jack.

      - Continue.

      A cabeça de Jack estava girando a toda a velocidade. Os outros prestavam atenção, mal respirando.

      - Não há arcos, abóbadas, janelas, telhado... - disse ele. - Uma muralha pode ser construída da noite para o dia, se você tiver os homens e o material.

      - Com que material nós a construiríamos? - indagou Philip.

      - Olhe à sua volta - respondeu Jack. - Temos aqui blocos de pedra já cortados prontos para os alicerces. E uma pilha de madeira mais alta que uma cama. No cemitério há um monte de escombros do desmoronamento. Lá embaixo, na margem do rio, há outra imensa pilha de pedra. Não há escassez de material.

      - E a cidade está cheia de operários - disse Philip.

      Jack assentiu.

      - Os monges podem trabalhar na organização, e os operários, fazer o trabalho especializado. E como serventes teremos toda a população da cidade. - Ele estava pensando rapidamente. - A muralha terá que acompanhar toda a margem mais próxima do rio. Desmontaremos a ponte. Então teremos que subir a colina ao longo do bairro pobre e uni-la à parede leste do priorado... até o norte... e descer até a margem do rio de novo. Não sei se temos pedra suficiente para isso...

      - Não precisa ser de pedra para ser eficiente - disse Richard. - Uma simples trincheira, com uma plataforma feita com a lama escavada da trincheira, serve para o objetivo que desejamos, especialmente num lugar onde o inimigo estiver atacando de baixo para cima.

      - Certamente pedra será melhor.

      - Melhor, mas não essencial. O objetivo de uma muralha é obrigar o inimigo a se retardar numa posição em que esteja exposto, e possibilitar ao defensor bombardeá-lo de uma posição abrigada.

      - Bombardeá-lo? Com quê? - perguntou Aliena.

      - Pedras, óleo fervente, setas, há um arco praticamente em todas as casas da cidade.

      Aliena estremeceu.

      - E assim terminaríamos combatendo, afinal - disse ela.

      - Mas não corpo a corpo.

      Jack sentia-se dividido. A linha de ação mais segura, com toda a certeza, era todos se refugiarem na floresta, na esperança de que William se satisfizesse em queimar as casas. Mesmo assim, havia o risco de que ele e seus homens os perseguissem.

      O perigo seria maior se ficassem ali, atrás de uma muralha? Se algo saísse errado, e William e seus homens encontrassem uma brecha para transpor a muralha, a carnificina seria horrível. Jack olhou para Aliena e Tommy e pensou na criança que crescia dentro dela.

      - Haverá uma solução intermediária? - perguntou. - Poderíamos evacuar as mulheres e crianças e os homens podiam ficar e defender a cidade.

      - Não, obrigada - disse Aliena firmemente. - Seria a pior das soluções. Não teríamos nem muralha nem homens para lutar por nós.

      Ela estava com a razão, concedeu Jack. A muralha de nada adiantaria sem gente para defendê-la, e não seria possível deixar as mulheres e crianças indefesas na floresta: William poderia deixar a cidade de lado e ir matá-las.

      - Jack - disse Philip -, você é o construtor. Podemos construir uma muralha num dia?

      - Nunca construí uma - disse Jack. - Não é necessário desenhar projetos, claro. Temos que designar um artífice para cada seção e deixar que ele use sua iniciativa. A argamassa não estará seca na manhã de domingo. Será a muralha mais malconstruída de toda a Inglaterra. Mas, sim, podemos levantá-la.

      Philip voltou-se para Richard.

      - Você já viu batalhas. Se construirmos uma muralha, poderemos deter William?

      - Certamente - respondeu Richard. - Ele virá preparado para um ataque rápido, e não para um cerco. Se encontrar uma cidade fortificada, não haverá nada que possa fazer.

      Finalmente Philip voltou-se para Aliena.

      - Você é uma das pessoas vulneráveis, com uma criança para proteger. O que acha? Deveremos fugir correndo para a floresta e esperar que William não nos persiga, ou ficar aqui e construir uma muralha para mantê-lo do lado de fora?

      Jack prendeu a respiração.

      - Não é só uma questão de segurança - disse Aliena após uma pausa. - Philip, você dedicou a vida ao priorado. Jack, a catedral é o seu sonho. Se fugirmos, perderão tudo por que viveram. E, quanto a mim... Bem, tenho um motivo especial para querer ver o poder de William Hamleigh refreado. Digo que devemos ficar.

      - Está bem - disse Philip. - Construiremos a muralha.

     

      Ao cair da noite, Jack, Richard e Philip percorreram os limites da cidade com lampiões, decidindo onde a muralha deveria ser construída. A cidade se erguia numa elevação de pequena altura e o rio fazia uma curva, envolvendo-a por dois lados. Suas margens não podiam sustentar uma muralha de pedra sem bons alicerces, de modo que Jack propôs que ali se construísse uma cerca de madeira. Richard deu-se por satisfeito. O inimigo não poderia investir contra a cerca exceto do rio, o que era quase impossível.

 

      Nos outros dois lados, alguns trechos da muralha seriam simples plataformas de terra com uma vala. Richard declarou que isso bastaria onde o terreno fosse em aclive e o inimigo tivesse que atacar de baixo para cima. No entanto, onde o terreno fosse plano, uma parede de pedra seria necessária.

      Depois do exame, Jack foi para a aldeia reunir seus homens, tirando-os de suas casas - das próprias camas, em alguns casos - e da cervejaria. Explicou a emergência e o modo como a cidade iria reagir; em seguida, percorreu os limites da cidade com eles, designando uma seção da muralha para cada homem: a cerca de madeira para os carpinteiros, a muralha de pedra para os pedreiros e as plataformas de terra para os aprendizes e serventes. Pediu que cada um deles marcasse o seu trecho com estacas e cordas antes de ir para a cama e pensasse um pouco na hora de dormir sobre o modo como iria trabalhar. Logo o perímetro da cidade ficou marcado por uma linha pontilhada de luzes que piscavam, enquanto os artesãos faziam suas marcações à luz de lanternas. O ferreiro acendeu seu fogo e acomodou-se para passar o resto da noite fazendo pás. A insólita atividade realizada após o escurecer perturbou os rituais da hora de dormir da maioria das pessoas, e os artesãos gastaram um bocado de tempo explicando o que faziam a sonolentos curiosos. Só os monges, que tinham ido para a cama ao cair da noite, continuaram dormindo em abençoada ignorância.

      Â meia-noite, porém, quando os operários estavam concluindo seus preparativos e a maior parte dos habitantes da cidade já se retirara - nem que fosse para comentar excitadamente as notícias debaixo dos cobertores -, os monges foram acordados. Cancelou-se o serviço religioso e lhes serviram cerveja e pão no refeitório, enquanto Philip os instruía. Seriam os organizadores do dia seguinte. Foram divididos em equipes, cada equipe trabalhando para um construtor. Receberiam ordens dele e supervisionariam a escavação, a busca e o transporte das coisas. Sua prioridade, conforme Philip enfatizou, era assegurar que o construtor nunca deixasse de dispor do suprimento de matéria-prima de que necessitasse: pedras e massa, madeira e ferramentas.

      Enquanto Philip falava, Jack pensou no que William Hamleigh estaria fazendo. Earlscastle ficava a um dia de exaustiva viagem a cavalo de Kingsbridge, mas William não tentaria cobrir o percurso num só dia, porque seu exército chegaria exausto. Deixariam Earlscastle ao raiar do dia. Não sairiam todos juntos, e sim separados, e cobririam suas armas e armaduras enquanto viajassem, para evitar que fosse dado o alarme. Eles se encontrariam discretamente de tarde, em algum ponto a uma ou duas horas de Kingsbridge, decerto na propriedade de um dos mais abastados arrendatários de William. De noite beberiam cerveja e afiariam as lâminas das armas, contando uns aos outros histórias medonhas de vitórias anteriores, de jovens mutilados, velhos esmagados sob os cascos dos cavalos de batalha, garotas estupradas e mulheres sodomizadas, crianças decapitadas e bebês espetados na ponta das espadas, enquanto suas mães gritavam angustiadas. Atacariam na manhã do dia seguinte. Jack estremeceu de medo.

      Mas desta vez nós vamos detê-los, pensou. Mesmo assim, estava apavorado.

      Cada equipe de monges localizou seu trecho da muralha e sua fonte de matéria-prima. Depois, quando os primeiros indícios da madrugada clarearam o oriente, foram percorrer o conjunto de casas que lhes havia sido destinado, batendo nas portas, acordando todo mundo, enquanto o sino do mosteiro tocava incessantemente.

      Quando o sol nasceu a operação já se desenrolava a todo o vapor. Homens e mulheres mais jovens trabalhavam como serventes, enquanto os mais velhos forneciam comida e bebida e as crianças faziam pequenos serviços e trabalhavam como mensageiros. Jack percorria o canteiro da obra incessantemente, acompanhando o progresso com enorme ansiedade. Disse a um dos homens para usar menos cal, a fim de fazer com que a argamassa secasse mais depressa. Viu um carpinteiro fazendo uma cerca com postes de andaimes, e disse aos serventes dele que cortassem madeira de outra pilha do estoque. Certificou-se de que as diferentes seções da muralha iam se encontrar em pontos de junção bem definidos. E brincava, sorria e encorajava as pessoas o tempo todo.

      O sol subiu num céu claro e azul. O dia seria quente. A cozinha do priorado supriu barris de cerveja, mas Philip ordenou que fosse misturada com água, o que Jack aprovou, pois as pessoas que estavam trabalhando duro iriam beber muito com aquele tempo, e ele não queria que ninguém dormisse.

      A despeito do perigo iminente e terrível, havia por toda parte um incompreensível clima de jovialidade. Parecia um feriado, quando toda a cidade fazia alguma coisa junta, como no 1º de agosto, a festa da colheita, quando todos faziam pão, ou como a véspera do primeiro dia do verão, quando lançavam barquinhos com velas acesas no rio. Era como se tivessem esquecido o perigo que era a razão de sua atividade. Philip, contudo, viu algumas pessoas saindo discretamente da cidade. Ou iam se arriscar na floresta, ou, o que era mais provável, tinham parentes nas aldeias vizinhas que os acolheriam. Não obstante isso, quase todos ficaram.

      Ao meio-dia Philip acionou o sino novamente, e o trabalho foi suspenso para o almoço. Ele e Jack percorreram o perímetro enquanto os trabalhadores comiam. A despeito de toda a atividade, não pareciam ter progredido muito. As paredes de pedra tinham chegado ao nível do solo, as plataformas não passavam de pequenos montes de terra e ainda havia vastos intervalos na cerca de madeira.

      No fim da inspeção, Philip perguntou:

      - Vamos terminar a tempo?

      Jack fora propositadamente animado e otimista durante toda a manhã, mas agora se obrigou a fazer uma avaliação realista.

      - Neste ritmo, não - respondeu, abatido.

      - O que podemos fazer para andar mais depressa?

      - A única maneira de construir mais depressa normalmente é construir pior.

      - Então vamos construir pior, mas como?

      Jack considerou a pergunta.

      - Neste momento temos pedreiros construindo muros, carpinteiros construindo cercas, serventes movimentando terra e os habitantes da cidade buscando coisas e carregando. Mas a maioria dos carpinteiros é capaz de construir uma parede vertical, e a maioria dos serventes é capaz de construir uma cerca de madeira. Vamos então fazer que os carpinteiros ajudem os pedreiros no trabalho de cantaria e que os serventes construam as cercas, deixando o povo da cidade cavar a vala e erguer as plataformas. E assim que a operação estiver correndo bem, os monges mais jovens poderão esquecer a organização e ajudar no trabalho.

      - Está bem.

      Deram as novas ordens quando as pessoas terminaram de comer. Aquela muralha não seria apenas a mais mal construída da Inglaterra, como também provavelmente a de vida mais curta. Se ainda estivesse de pé dentro de uma semana, seria por milagre.

      Durante a tarde as pessoas começaram a se sentir cansadas, sobretudo as que tinham trabalhado à noite. A atmosfera de feriado evaporou-se e os trabalhadores tornaram-se sombriamente determinados. A muralha de pedra subiu, a vala ficou mais funda e os buracos na cerca começaram a se fechar. Pararam para cear, e quando o sol mergulhou na direção do horizonte ocidental começaram de novo.

      À noite a muralha não estava completa.

      Philip montou uma vigilância, ordenando que todos, exceto os guardas, tivessem algumas horas de sono, e disse que tocaria o sino à meia-noite. Os exaustos habitantes da cidade foram para a cama.

      Jack dirigiu-se para a casa de Aliena. Ela e Richard ainda estavam de pé.

      - Quero que você e Tommy se escondam na floresta - disse Jack.

      A idéia estivera em sua mente o dia inteiro. A princípio ele a rejeitara; com o passar do tempo, porém, foi se lembrando mais e mais vezes daquele dia horrível em que William incendiara a feira de lã, e por fim decidira mandá-la embora.

      - Prefiro ficar - disse ela firmemente.

      - Aliena, não sei se isto vai dar certo, e não quero que você esteja aqui se William Hamleigh conseguir passar pela muralha.

      - Mas não posso fugir enquanto você está organizando todas as outras pessoas para que fiquem e lutem - ponderou ela com sensatez.

      Há muito tempo ele parara de se preocupar com o que era sensato.

      - Se você for agora ninguém vai saber.

      - Acabarão sabendo.

      - Então tudo estará terminado.

      - Mas pense só na vergonha.

      - Ao inferno com a vergonha! - gritou ele. Estava louco de raiva por não ser capaz de encontrar as palavras que a persuadissem. - Quero vê-la em segurança!

      Sua voz irada acordou Tommy, que começou a chorar. Aliena o pegou no colo e o embalou.

      - Não tenho tanta certeza de que seria mais seguro esconder-me na floresta.

      - William não irá vasculhar a floresta à procura de ninguém. Ele está interessado na cidade.

      - Pode ser que esteja interessado em mim.

      - Você poderia se esconder na sua clareira. Nunca ninguém vai até lá.

      - William pode encontrá-la por acaso.

      - Ouça o que estou lhe dizendo. Você estará mais segura lá do que aqui.

      - Mesmo assim quero ficar.

      - Não a quero aqui - disse ele asperamente.

      - Bem, vou ficar, de qualquer modo - retrucou ela, com um sorriso, ignorando a deliberada rudeza de Jack.

      Ele conteve uma praga. Não adiantava discutir com Aliena uma vez que ela tivesse tomado uma decisão: era teimosa como uma mula. Resolveu suplicar:

      - Aliena,  estou  com  medo  do  que  poderá acontecer amanhã.

      - Também estou - disse ela -, e acho que devíamos sentir medo juntos.

      Jack sabia que devia desistir, mas estava muito preocupado.

      - Dane-se, então - disse, furioso, e saiu, pisando duro. Ficou parado do lado de fora, respirando o ar da noite. Após alguns momentos se acalmou. Estava terrivelmente preocupado, mas era tolice brigar com ela; os dois podiam morrer na manhã seguinte.

      Entrou novamente. Aliena estava de pé, no mesmo lugar onde a deixara, com ar triste.

      - Eu a amo - disse. Os dois se abraçaram e permaneceram assim por longo tempo.

      Quando Jack saiu de novo a lua estava brilhando no céu. Acalmou-se pensando que Aliena poderia estar com a razão; talvez estivesse mais segura ali do que na floresta.

      Assim pelo menos saberia se tivesse problemas e poderia fazer o melhor que estivesse a seu alcance para protegê-la.

      Jack sentia que não ia dormir, mesmo que fosse para a cama. Tinha o medo tolo de que todos continuassem dormindo a meia-noite e só fossem acordar de madrugada, quando os homens de William chegassem destruindo tudo. Caminhou incessantemente em torno da orla da cidade. Estranho: Kingsbridge nunca possuíra um perímetro fortificado até aquele dia. As paredes de pedra tinham a altura da cintura de um homem, o que não era suficiente. As cercas estavam altas, mas ainda havia brechas com largura suficiente para permitir em poucos momentos a passagem de centenas de homens a cavalo. As plataformas de terra ainda não estavam tão altas que um bom cavalo não as galgasse. Havia muito que fazer.

      Ele parou onde antes ficava a ponte. Ela fora desmontada, e seus pedaços haviam sido levados para o priorado. Olhou por cima da água enluarada. Viu uma figura sombria aproximar-se ao longo da linha da cerca de madeira, e sentiu um calafrio de supersticiosa apreensão, mas era apenas o prior Philip, tão insone quanto Jack.

      Naquele instante, o ressentimento de Jack contra Philip foi sobrepujado pela ameaça representada por William, e o rapaz não se sentiu inamistoso para com o prior.

      - Se sobrevivermos a isto, deveremos reconstruir a muralha, trecho por trecho - disse.

      - Concordo - disse Philip fervorosamente. - Poderíamos traçar como objetivo ter uma muralha de pedra em volta da cidade dentro de um ano.

      - Bem aqui, onde a ponte atravessa o rio, eu poria um portão e uma barbacã, de modo que pudéssemos conter as pessoas e não permitir sua entrada na cidade sem ter que desmontar a ponte.

      - Organizar as defesas de uma cidade não é o tipo de coisa em que nós monges somos bons.

      Jack aquiesceu. Os monges não deviam se envolver em qualquer tipo de violência.

      - Mas se você não organizar, quem o fará?

      - Que tal o irmão de Aliena, Richard?

      Jack espantou-se com a idéia, mas um momento de reflexão o levou a concluir que era brilhante.

      - Ele se sairá bem; isso o manterá longe da ociosidade e eu não terei mais que sustentá-lo - disse, entusiasmado. Olhou para Philip com relutante admiração. - Você nunca pára, não é mesmo?

      Philip deu de ombros.

      - Quisera que todos os nossos problemas pudessem ser resolvidos com tanta simplicidade.

      A cabeça de Jack voltou à muralha.

      - Suponho que agora Kingsbridge será uma cidade fortificada para sempre.

      - Não para sempre, mas certamente até que Jesus volte a este mundo.

      - Nunca se sabe - disse Jack especulativamente. - Poderá haver um tempo em que selvagens como William Hamleigh não estejam no poder, as leis protejam as pessoas comuns, em vez de escravizá-las, e o rei faça a paz, e não a guerra. Pense nisso: um tempo em que as cidades da Inglaterra não precisem de muralhas!

      Philip sacudiu a cabeça.

      - Que imaginação! Isto não acontecerá antes do dia do Juízo Final.

      - Acho que não.

      - Deve ser quase meia-noite. Tempo de começar de novo.

      - Philip. Antes de você ir...

      - Que é?

      Jack respirou fundo.

      - Ainda há tempo de mudar nosso plano. Poderíamos evacuar a cidade agora.

      - Está com medo, Jack? - perguntou Philip, compreensivo.

      - Sim. Mas não por minha causa. Pela minha família.

      Philip aquiesceu.

      - Veja as coisas do seguinte modo: se você fugir agora, provavelmente estará seguro... amanhã. Mas William poderá vir outro dia. Se deixarmos que faça o que bem entender amanhã, viveremos sempre apavorados. Você, eu, Aliena, e o pequeno Tommy também: ele crescerá com medo de William, ou de alguém como William.

      Ele tinha razão, pensou Jack. Para crianças como Tommy crescerem livres, seus pais precisavam parar de fugir de William. Jack suspirou.

      - Está bem.

      Philip afastou-se para tocar o sino. Ele era um governante que mantinha a paz, administrava a justiça e não oprimia os pobres, pensou Jack. Mas seria realmente preciso ser solteiro para fazer isso?

      O sino começou a tocar. Lampiões foram acesos nas casas fechadas, e os artesãos se levantaram tropeçando, esfregando os olhos e bocejando. Começaram a trabalhar lentamente, e houve alguns diálogos mal-humorados entre as pessoas; porém, Philip tinha feito a padaria do priorado dar início às operações, e logo foram servidos pão quente e manteiga fresca e todos se animaram.

      De madrugada Jack fez outra inspeção com Philip, ambos examinando ansiosamente o horizonte escuro, procurando sinais de cavaleiros. A cerca que acompanhava o rio estava quase completa, com todos os carpinteiros trabalhando juntos para completar as últimas jardas. De ambos os lados, as fortificações de terra tinham agora a altura de um homem, e a profundidade da vala do lado de fora acrescia-lhes cerca de quatro pés; um homem poderia galgá-las, com dificuldade, mas precisaria desmontar. A muralha também tinha a altura de um homem, mas as últimas três ou quatro fileiras de pedras estavam completamente fracas, porque a massa ainda não secara. No entanto, o inimigo não descobriria isso enquanto não tentasse escalar a muralha, e até esse ponto ela teria servido muito bem para o fim a que se destinava.

      A não ser pelas brechas na cerca de madeira, o trabalho estava terminado, e Philip deu novas ordens. Os cidadãos mais velhos e as crianças iriam para o mosteiro e se refugiariam no dormitório. Jack ficou entusiasmado: Aliena teria que ficar com Tommy, e os dois estariam bem à retaguarda da linha de frente. Os artesãos continuariam construindo, mas agora alguns de seus serventes formariam esquadrões militares, sob o comando de Richard. Cada grupo era responsável por defender a seção da muralha que construíra. Os habitantes - homens e mulheres - que tivessem arcos se disporiam junto à muralha, prontos para lançar flechas contra o inimigo. Os que não tivessem armas arremessariam pedras, e deviam começar a preparar seus estoques. Água fervente era outra arma útil, e caldeirões foram aquecidos e colocados em condições de ser lançados sobre o inimigo, em pontos estratégicos. Diversos habitantes da cidade tinham espadas; porém, eram as menos úteis das armas: se chegasse a haver combate corpo a corpo, o inimigo teria entrado, e a construção da muralha haveria sido em vão.

      Jack estava sem dormir há quarenta e oito horas seguidas. Sentia a cabeça doer e os olhos arderem. Sentou-se no telhado de palha de uma casa perto do rio e ficou observando os campos, enquanto os carpinteiros se apressavam em concluir a cerca. De repente percebeu que os homens de William poderiam atirar setas incendiárias por cima da muralha, numa tentativa de queimar a cidade sem ter que abrir uma brecha em suas defesas. Exausto, pulou do telhado e subiu correndo a colina até o priorado.

      Ali descobriu que Richard tivera a mesma idéia e conseguira que alguns monges colocassem barris e baldes de água em pontos estratégicos em torno dos limites da cidade.

      Estava deixando o priorado quando ouviu o que lhe pareceram gritos de advertência.

      O coração disparado, trepou no telhado do estábulo e examinou os campos a oeste. Na estrada que levava à ponte, a uma milha de distância, uma nuvem de poeira anunciava a chegada de um grande grupo de cavalarianos.

      Até aquele instante houvera um elemento de irrealidade em tudo aquilo; contudo, agora os homens que queriam queimar Kingsbridge estavam logo ali, cavalgando na estrada, e de repente o perigo se tornou assustadoramente real.

      Jack sentiu um ímpeto de procurar Aliena, mas não havia tempo. Pulou de cima do telhado e desceu correndo a colina até a margem do rio. Um bando de homens estava reunido em torno da última brecha. Enquanto observava, eles enfiaram estacas no chão, enchendo o espaço, e rapidamente pregaram as duas últimas traves, concluindo o trabalho. A maioria dos habitantes estava ali; o restante se havia refugiado no refeitório. Poucos momentos depois da chegada de Jack, Richard desceu correndo e gritando:

      - Não há ninguém do outro lado! Pode ser que haja outro grupo tentando invadir a cidade nas nossas costas! Voltem para seus postos, depressa! - Quando eles começaram a se deslocar, Richard murmurou para Jack: - Não há disciplina, não há a menor disciplina!

      Jack ficou com os olhos fixos no campo, enquanto a nuvem de poeira se aproximava e os vultos dos cavaleiros se tornavam mais visíveis. Eram como monstros do inferno, pensou, insanamente dedicados à morte e à destruição. Existiam porque condes e reis sentiam necessidade deles. Philip podia ser um maldito idiota em questões como amor e casamento, pensou Jack, mas pelo menos descobrira um jeito de governar uma comunidade sem a ajuda de selvagens como aqueles.

      Era um estranho momento para tais reflexões. Seria o tipo de coisa que os homens pensam quando estão prestes a morrer?

      Os cavaleiros se aproximaram mais. Eram em número maior que os cinquenta que Richard antecipara. Para Jack, deviam ser quase cem. Dirigiram-se para o lugar onde antes ficava a ponte e então começaram a reduzir a marcha. Jack animou-se quando viu que se detinham na campina do outro lado do rio. Quando olharam espantados para a muralha recém-construída, alguém perto de Jack começou a rir. Logo outra pessoa riu também, e o riso se espalhou como fogo na palha, e em instantes eram cinquenta, cem, duzentos homens e mulheres gargalhando, rindo dos embaraçados homens de armas presos na margem errada do rio sem ter com quem lutar.

      Diversos cavaleiros desmontaram e se reuniram numa conferência. Espiando através da leve neblina da manhã, Jack pensou ter visto o cabelo louro e o rosto vermelho de William Hamleigh no centro do grupo, mas não podia estar seguro.

      Após algum tempo voltaram para seus cavalos, reagruparam-se e afastaram-se. O povo de Kingsbridge gritou de satisfação. Mas Jack não achava que William já tivesse desistido. Não estavam voltando pelo mesmo caminho. Em vez disso, subiram o rio, ao longo da margem. Richard colocou-se ao lado de Jack e disse:

      - Estão procurando uma passagem a vau. Atravessarão o rio e cruzarão a floresta para nos atacar pelo outro lado. Espalhe isso por aí.

      Jack percorreu rapidamente a muralha, transmitindo a previsão de Richard. A norte e a leste, a muralha era de pedra ou terra, mas não havia o rio no caminho. Naquele lado ela se confundia com a parede leste do priorado, apenas a uns poucos passos do refeitório onde Aliena e Tommy tinham se refugiado. Richard colocara Oswald, o mercador de cavalos, e Dick Richards, o filho do curtidor, no telhado da enfermaria, com seus arcos e flechas: eram os melhores atiradores da cidade. Jack foi até o canto nordeste e subiu na plataforma de terra, atento ao bosque de onde emergiriam os homens de William.

      O sol já estava bem alto. Mais um dia quente e sem nuvens. Os monges percorreram a muralha levando pão e cerveja. Jack perguntou-se até que ponto William subiria o rio. A uma milha havia um lugar que um bom cavalo podia atravessar a nado, mas pareceria muito arriscado a um estranho, de modo que William provavelmente cavalgaria mais algumas milhas, até onde havia um vau bem raso.

      Jack gostaria de saber como Aliena estava se sentindo. Queria ir até o refeitório e vê-la, mas relutava em deixar a muralha. Se o fizesse, outros iriam querer sair também, e a muralha ficaria indefesa.

      Enquanto resistia à tentação, ouviu-se um grito e os cavaleiros reapareceram.

      Eles saíram do bosque vindos do leste, de modo que Jack tinha o sol nos olhos quando os fitou: sem dúvida aquilo era intencional. Após um momento percebeu que não apenas estavam se aproximando, como também atacavam. Deviam ter apeado na floresta, fora das vistas de todos, reconhecido o terreno e planejado o ataque. Jack sentiu-se tenso de medo. Não iriam só olhar para a muralha e ir embora: tentariam abrir uma brecha.

      Os cavalos galoparam, atravessando o campo. Um ou dois habitantes da cidade atiraram flechas. Richard, do lado de Jack, gritou, furioso:

      - Cedo demais! Cedo demais! Esperem até que cheguem à vala. Aí não poderão errar! - Poucas pessoas o ouviram, e uma chuva de flechas desperdiçadas caiu no campo de cevada. Como força militar não temos esperança, pensou Jack; só a muralha pode nos salvar.

      Ele tinha uma pedra numa das mãos e uma funda na outra, exatamente igual à que usava quando criança na caça de patos para o jantar. Não sabia se sua pontaria ainda era boa. Percebeu que apertava suas armas com toda a força que tinha e obrigou-se a relaxar. Pedras eram eficientes contra patos, mas pareciam terrivelmente frágeis contra homens protegidos por armaduras e montados em cavalos enormes que se aproximavam ruidosamente cada vez mais. Jack engoliu em seco. Alguns dos inimigos tinham arcos e flechas em chamas, dava para ver; no momento seguinte percebeu que os homens com arcos se dirigiam para a muralha de pedra, e os outros para as fortificações de terra. Isso significava que William decidira que não podia abrir uma brecha na muralha de pedra. Não percebera que a massa estava tão fresca que a muralha poderia ser derrubada a mão. Fora enganado. Jack desfrutou um pequeno momento de triunfo.

      Os atacantes chegaram à muralha.

      Os aldeões dispararam loucamente, e uma chuva impetuosa de flechas abateu-se sobre os cavaleiros. A despeito da pontaria deficiente, não puderam deixar de fazer algumas vítimas. Os cavalos atingiram a vala. Uns empacaram e outros pisaram no fundo e pularam para o outro lado. Imediatamente em frente à posição de Jack, um homem enorme protegido por uma velha cota de malha fez seu cavalo saltar para a margem mais baixa da fortificação e continuou a subir. Jack carregou a funda e atirou a pedra.

      Sua mira era tão boa quanto sempre fora: a pedra atingiu o cavalo em cheio no focinho. Debatendo-se desajeitamente na terra fofa, ele relinchou de dor, empinou e virou-se. Foi embora em galope curto, mas seu cavaleiro escorregou da sela e desembainhou a espada.

      A maioria dos cavalos fizera meia-volta, ou por vontade própria ou obedecendo a seus cavaleiros; contudo, diversos homens atacavam a pé, e outros estavam se virando de novo para carregar mais uma vez. Olhando por cima do ombro, Jack viu que diversos telhados de palha estavam queimando, a despeito dos esforços dos bombeiros - as jovens mulheres da cidade - para apagar as chamas. Como um raio, passou-lhe pela mente a horrível idéia de que aquilo não ia dar certo.

      A despeito do esforço heróico das últimas trinta e seis horas, aqueles selvagens cruzariam a muralha, queimariam a cidade e devastariam tudo, aniquilando o povo.

      A perspectiva do combate corpo a corpo o aterrorizou. Nunca aprendera a lutar, jamais usara uma espada - nem mesmo tinha uma - e sua única experiência no assunto era quando Alfred o espancara. Sentiu-se impotente.

      Os cavaleiros carregaram de novo e os atacantes que tinham perdido suas montarias galgaram as fortificações defensivas a pé. Pedras e flechas choviam sobre eles.

      Jack acionava sua funda sistematicamente, carregando e disparando, carregando e disparando como uma máquina. Diversos atacantes caíram sob a chuva de projéteis.

      Bem em frente a Jack um cavaleiro caiu do cavalo e perdeu o elmo, revelando o cabelo louro: era William, em pessoa.

      Nenhum dos cavalos conseguiu chegar ao topo da rampa de terra, mas alguns homens a pé conseguiram, e, para horror de Jack, os habitantes da cidade foram forçados a lutar com eles, contrapondo às espadas e lanças dos atacantes varas e machados. Alguns dos inimigos conseguiram passar por cima da muralha e Jack viu três ou quatro aldeões caírem. Seu coração encheu-se de horror: os habitantes de Kingsbridge estavam perdendo.

      Mas oito ou dez aldeões cercaram cada um dos atacantes que conseguiam passar para o lado de dentro, bateram neles com varas e os atacaram impiedosamente com machados.

      Embora diversos cidadãos tivessem sido feridos, todos os atacantes foram logo mortos. Então os aldeões começaram a fazer os outros recuarem, descendo a rampa. A carga fracassou. Os atacantes ainda montados rodavam incertamente, e ainda havia algumas escaramuças nas rampas. Jack descansou por um momento, respirando fundo, grato pela trégua, esperando com medo o próximo passo do inimigo.

      William ergueu a espada e gritou para chamar a atenção dos seus homens. Fez um círculo com a espada no ar, para reuni-los, e depois apontou para a muralha. Eles se reagruparam e se prepararam para mais uma carga.

      Jack viu uma oportunidade.

      Pegou uma pedra, carregou a funda e apontou cuidadosamente para William.

      A pedra voou através do ar tão reta quanto uma linha de pedreiro e atingiu o conde bem no meio da testa, com tanta força que Jack ouviu o barulho surdo da pedra no osso.

      William caiu no chão.

      Seus homens hesitaram, e a carga falhou.

      Um homem grande e moreno desmontou e correu para o lado de William. Jack achou que era o ex-criado de William, Walter, que sempre cavalgava a seu lado. Sem largar a rédea, ele ajoelhou-se ao lado do corpo estirado do conde. Por um momento Jack teve esperança de que este tivesse morrido. Mas então ele se mexeu e Walter ajudou-o a ficar de pé. William parecia aturdido. Em ambos os lados da batalha todos observaram os dois homens. Por um momento a chuva de pedras e flechas parou.

      Ainda inseguro, William montou no cavalo de Walter, ajudado pelo ex-criado, que depois montou na garupa. Houve um momento de hesitação quando todos se perguntaram se o conde seria capaz de continuar com o ataque. Walter fez com a espada o sinal circular para reunir a tropa; em seguida, para indizível alívio de Jack, apontou para o bosque.

      Walter esporeou o cavalo e eles se afastaram a galope.

      Os outros cavaleiros os seguiram. Os que estavam ainda combatendo nas rampas desistiram, recuaram e correram atrás do seu líder. Algumas pedras e flechas os caçaram no campo de cevada.

      O povo da cidade gritou alegremente.

      Jack olhou à sua volta, meio aturdido. Estava tudo acabado? Mal podia crer. Os incêndios haviam sido apagados - as mulheres tiveram êxito na tarefa de mantê-los sob controle. Os homens dançavam em cima das rampas, abraçando-se. Richard aproximou-se e bateu nas suas costas.

      - Foi a muralha que conseguiu, Jack - disse. - A sua muralha.

      Os aldeões e os monges aglomeraram-se na frente dos dois, todos querendo se congratular com Jack e uns com os outros.

      - Eles foram embora mesmo? - perguntou o construtor.

      - Oh, sim - respondeu Richard. - Não voltarão mais, agora que descobriram que estamos determinados a defender a muralha. William sabe que não se pode tomar uma cidade murada se o povo estiver determinado a resistir; não sem um grande exército e um sítio de seis meses.

      - Então está acabado - disse Jack estupefato.

      Aliena abriu caminho por entre a multidão, com Tommy nos braços. Jack abraçou-a, feliz. Estavam vivos e juntos, e ele era grato por isso.

      De repente sentiu o efeito dos dois dias sem dormir, e quis se deitar. Mas não foi possível. Dois jovens pedreiros o agarraram e o levantaram nos ombros. A multidão o saudou alegremente. Eles se deslocaram, arrastando o povo. Jack queria dizer que não fora ele quem os salvara, e sim eles próprios; mas sabia que não o ouviriam, porque desejavam um herói. À medida que a notícia se espalhou e toda a cidade soube da vitória, o clamor do povo aumentou de intensidade. Há anos viviam com medo de William Hamleigh, pensou Jack, mas naquele dia haviam conquistado sua liberdade. Foi carregado pela cidade numa procissão triunfal, acenando e sorrindo, e ansiando pelo momento em que poderia encostar a cabeça e fechar os olhos num sono abençoado.

     

      A Feira de Lã de Shiring estava maior e melhor do que nunca. A praça em frente à igreja paroquial, onde se realizavam os mercados e as execuções, assim como a feira anual, estava superlotada de bancas e gente. Lã era o principal artigo, mas havia também em exibição tudo mais que podia ser comprado e vendido na Inglaterra: faiscantes espadas novas, selas decorativamente trabalhadas, porquinhos gordos, botas vermelhas, bolos de gengibre e chapéus de palha. Enquanto caminhava em torno da praça na companhia do bispo Waleran, William calculou que ia ganhar mais dinheiro que das outras vezes. Mesmo assim, não sentiu nenhum prazer com essa constatação.

      Ainda se sentia humilhado por sua derrota em Kingsbridge. Esperara atacar sem oposição e incendiar a cidade, mas acabara perdendo homens e cavalos e retirara-se sem conseguir nada. O pior era saber que a construção da muralha fora organizada por Jack, o amante de Aliena, o homem a quem desejara matar.

      Não conseguira matar Jack, mas ainda estava determinado a se vingar.

      Waleran também estava pensando em Kingsbridge.

      - Ainda não sei como construíram a muralha tão rapidamente - disse o bispo.

      - Provavelmente não era muito sólida - disse William.

      Waleran concordou.

      - Mas tenho certeza de que o prior Philip já está tratando de aperfeiçoá-la. Se fosse ele eu a tornaria mais resistente e mais alta, construiria uma barbacã e designaria um sentinela noturno. Seus dias de ataque a Kingsbridge estão terminados.

      William concordava, mas fingia o contrário.

      - Ainda posso sitiar a cidade.

      - Isso já é diferente. Uma incursão rápida pode ser ignorada por Estêvão. Um sítio prolongado, durante o qual os habitantes sempre podem mandar uma mensagem ao rei, suplicando-lhe proteção, pode ser arriscado.

      - Estêvão não agirá contra mim - disse William. - Precisa dos meus serviços. - Ele não estava discutindo com convicção, contudo. No fim planejava ceder aos argumentos do bispo. Mas queria que Waleran se esforçasse bastante na defesa de seu ponto de vista, para depois ficar lhe devendo um pequeno favor. Então William faria o pedido que tanto o preocupava.

      Uma mulher feia e magra adiantou-se, empurrando à sua frente uma bonita garota de cerca de treze anos, presumivelmente sua filha. Puxou para um lado a parte de cima da roupa da garota a fim de desnudar seus seios pequenos e imaturos.

      - Sessenta pence - sibilou a mãe.

      William sentiu-se excitado, mas sacudiu a cabeça, recusando, e seguiu em frente.

      A jovem prostituta o fez pensar em Aliena. Ela era pouco mais que uma criança quando a estuprara. Aquilo se passara há quase uma década, mas não podia esquecê-la.

      Talvez nunca mais a possuísse; entretanto podia impedir qualquer outro de tê-la.

      Waleran estava pensativo. Parecia nem olhar por onde andava, mas as pessoas saíam da sua frente, como se temessem ser tocadas pela fímbria do seu hábito negro.

      - Soube que o rei tomou Faringdon? - perguntou o bispo, após um momento.

      - Eu estava lá.

      Aquela fora a vitória mais decisiva de toda a longa guerra civil. Estêvão capturara centenas de cavaleiros e um grande número de armas. Também obrigara Robert de Gloucester a recuar até o território oeste. Fora tão crucial a vitória que Ranulf de Chester, o velho inimigo de Estêvão ao norte, depusera as armas e jurara fidelidade ao rei.

      - Agora que Estêvão está mais seguro - disse Waleran -, não será mais tão complacente com as guerras particulares de seus barões.

      - Talvez - disse William. Perguntou-se se aquele seria o momento de concordar com Waleran e fazer o seu pedido. Hesitou: estava embaraçado. Ia revelar um pouco de sua alma, e odiava fazer isso a um homem tão desumano quanto Waleran.

      - Você deveria deixar Kingsbridge em paz, pelo menos por algum tempo - continuou o bispo. - Tem a feira de lã e o mercado semanal, ainda que menor que antes. Tem o negócio da lã. E também a terra mais fértil do condado, diretamente sob o seu controle ou trabalhada pelos seus rendeiros. Minha situação também está melhor que antes. Aumentei minha propriedade e racionalizei minhas concessões. Construí meu castelo. Está se tornando menos necessário lutar com o prior Philip no exato momento em que isso passa a ser politicamente perigoso.

      Em toda a praça havia gente fazendo e vendendo comida, e o ar estava impregnado: cheirava a sopa apimentada, pão fresco, confeitos açucarados, presunto cozido, toucinho frito, torta de maçã. William sentiu-se nauseado.

      - Vamos para o castelo - disse.

      Os dois homens deixaram a praça do mercado e subiram a colina. No portão do castelo o conde se deteve.

      - Talvez você tenha razão a respeito de Kingsbridge - disse.

      - Fico satisfeito de vê-lo compreender isso.

      - Mas ainda quero minha vingança de Jack, filho de Jack, e você poderá me dar o que quero. Só depende de sua vontade.

      Waleran ergueu uma eloquente sobrancelha. Sua expressão dizia que se sentia fascinado por ouvir William, mas não considerava ter nenhuma obrigação de atendê-lo.

      William continuou, com dificuldade.

      - Aliena solicitou à Igreja a anulação do casamento.

      - Sim, sei disso.

      - O que você acha que vai acontecer?

      - Aparentemente o casamento nunca chegou a se consumar.

      - Isso é tudo o que interessa?

      - Provavelmente. De acordo com Graciano - um estudioso a quem, a propósito, conheci pessoalmente -, o que constitui um casamento é o consentimento mútuo das duas partes; mas ele afirma também que o ato da união física "completa" ou "aperfeiçoa" o casamento. Diz que se um homem se unir matrimonialmente a uma mulher mas não copular com ela, e depois se casar com outra com quem tenha conjunção carnal, então será o segundo dos dois casamentos o válido. Isso é o mesmo que dizer que só vale o que se consumou. A fascinante Aliena sem dúvida terá mencionado isso no seu pedido, se é que foi bem aconselhada, o que imagino que foi, da parte do prior Philip.

      William ficou impaciente com tanta teoria.

      - Então eles vão conseguir a anulação.

      - A menos que alguém desenvolva o argumento contrário ao de Graciano. Na verdade, há dois: um teológico e outro prático. O argumento teológico é de que a definição de Graciano denigre o casamento de José e Maria, desde que não foi consumado. O argumento prático é que por razões políticas, ou para fundir duas propriedades, os casamentos são com muita frequência arranjados entre duas crianças incapazes fisicamente de consumá-los. Se o noivo ou a noiva morrerem antes da puberdade, o casamento seria invalidado, de acordo com a definição de Graciano, e poderia haver consequências desastrosas.

      William era incapaz de seguir aquelas confusas disputas clericais, mas tinha uma boa idéia de como eram resolvidas.

      - O que você quer dizer é que pode ser resolvido de um jeito ou de outro.

      - Sim.

      - E que a solução depende de quem está pressionando.

      - Sim. Nesse caso, não há um problema maior a ser decidido - propriedade, lealdade, aliança militar. Contudo, se houvesse mais coisas em jogo, e alguém - um arcediago, por exemplo - forçasse o argumento contra Graciano, a anulação do casamento provavelmente seria recusada. - Waleran dirigiu a William um olhar sagaz que fez com que este se enraivecesse.

      - Acho que sei o que você vai me pedir agora.

      - Quero que se oponha à anulação.

      Waleran estreitou os olhos.

      - Não consigo saber se você ama aquela pobre mulher ou se a odeia.

      - Não - disse William. - Nem eu consigo.

     

      Aliena sentou-se na grama, na sombra esverdeada sob a imponente faia. A queda-d'agua jogava gotículas que pareciam lágrimas nas pedras aos seus pés. Aquela era a clareira em que Jack lhe contara todas aquelas histórias. Fora ali que lhe dera o primeiro beijo, tão casual e rapidamente que ela fingira que nunca acontecera. Fora ali que se apaixonara por ele, e se recusara a admiti-lo, inclusive para si própria. Agora desejava de todo o coração que tivesse se entregado a ele totalmente naquele tempo, desposando-o e tendo os seus filhos; agora, fosse o que fosse que houvesse acontecido, seria sua mulher.

      Deitou-se para descansar as costas, que doíam. Era alto verão, e o ar estava quente e parado. Aquela gravidez estava sendo muito penosa, e ainda tinha pelo menos seis semanas pela frente. Achava que talvez fosse ter gêmeos, só que sentia os pontapés apenas em um lugar. E quando Martha pusera o ouvido na sua barriga, ouvira somente as batidas de um único coração.

      Martha ficara tomando conta de Tommy naquela tarde de sol, de modo que Aliena e Jack poderiam se encontrar nos bosques, ficando sozinhos por algum tempo para conversar sobre seu futuro. O arcebispo recusara a anulação, aparentemente porque o bispo Waleran fora contra. Philip dissera que podiam requerer de novo, mas por enquanto tinham que viver separados. Philip concordava que era injusto, mas dizia que devia ser a vontade de Deus. A Aliena mais parecia a vontade do demônio.

      A amargura do arrependimento era um peso que carregava consigo, como a gravidez. Às vezes a sentia mais pungente, às vezes quase a esquecia, mas estava sempre lá.

      Doía, muitas vezes, mas era uma dor familiar. Arrependia-se de ter magoado Jack, arrependia-se do que havia feito a si própria, arrependia.se inclusive dos sofrimentos do desprezível Alfred, que agora morava em Shiring e nunca mostrava a cara em Kingsbridge. Casara-se com Alfred por um único motivo: apoiar Richard em sua tentativa de reconquistar o condado. Não conseguira atingir seu propósito, e o amor verdadeiro que sentia por Jack fora frustrado. Tinha agora vinte e seis anos de idade, sua vida estava arruinada e a culpa fora inteiramente sua.

      Pensou com nostalgia naqueles primeiros dias com Jack. Quando o conhecera ele não passava de um garotinho, mesmo que fosse um menino diferente dos demais. Depois que crescera, continuara a vê-lo como um menino. Era por isso que ele se colocara sob sua guarda. Ela desprezara todos os pretendentes, mas não pensara em Jack como num deles, e assim deixara que a conhecesse. Não sabia por que fora tão resistente ao amor. Adorava Jack e não havia prazer na vida como o de estar com ele; e no entanto, houve uma vez em que deliberadamente fechara os olhos a tanta felicidade.

      Quando relembrava o passado, sua vida antes de Jack parecia vazia. Mantivera-se freneticamente atarefada, construindo seu negócio de lã, mas agora aqueles dias de tanto trabalho pareciam sem alegria, como um palácio vazio, ou uma mesa cheia de pratos de prata e cálices de ouro, mas sem comida.

      Ouviu passos e sentou-se rapidamente. Era Jack. Magro e gracioso, parecia um gato. Ele se sentou a seu lado e beijou-lhe a boca suavemente. Cheirava a suor e a pó de pedra.

      - Está tão quente! - disse. - Vamos tomar banho no regato.

      A tentação era irresistível.

      Jack tirou a roupa. Ela ficou observando, com os olhos sequiosos fixos nele. Há meses não via seu corpo nu. Ele tinha muitos pêlos ruivos nas pernas mas nenhum no peito. Fitou-a, esperando que se despisse. Aliena intimidou-se: ele nunca vira seu corpo quando grávida. Desamarrou lentamente a gola do vestido de linho, e o puxou pela cabeça. Observou a expressão dele ansiosamente, com medo de que odiasse seu corpo inchado, mas Jack não demonstrou aversão; pelo contrário, a expressão que surgiu no seu rosto foi de afeto. Eu deveria ter sabido, pensou ela; deveria ter sabido que ele me amaria do mesmo modo.

      Com um rápido movimento Jack se ajoelhou no chão em frente a Aliena e beijou a pele distendida da sua barriga. Ela deu uma risada envergonhada. Ele tocou no seu umbigo.

      - Ele está tão projetado! - disse.

      - Eu sabia que você diria isso!

      - Antes parecia uma covinha, agora parece um mamilo.

      - Vamos tomar banho - disse Aliena timidamente. Ela se sentiria menos envergonhada quando entrasse na água.

      Perto da cascata, a água ficava represada num remanso com cerca de três pés de profundidade. Aliena mergulhou. O contato era deliciosamente frio na pele quente, e ela estremeceu de prazer. Jack mergulhou a seu lado. Não havia espaço para nadar, naquela represa com poucos pés de extensão. Ele pôs a cabeça sob a pequena queda-d'agua e lavou o cabelo, cheio de pó de pedra. Aliena sentiu-se bem dentro da água: aliviava o peso da gravidez. Mergulhou a cabeça para lavar o cabelo.

      Ao emergir para respirar, Jack beijou-a.

      Ela riu, sem fôlego, meio engasgada, esfregando os olhos. Jack beijou-a de novo. Aliena levantou os braços para se firmar, e sua mão fechou-se no pênis duro que se erguia entre as pernas de Jack como um mastro de bandeira. Arquejou de prazer.

      - Senti falta disto - disse Jack no seu ouvido, a voz rouca de desejo e alguma outra emoção, tristeza, talvez.

      A garganta de Aliena estava seca de desejo.

      - Vamos quebrar nossa promessa? - perguntou.

      - Agora e sempre.

      - O que você está querendo dizer?

      - Não vamos mais viver separados. Vamos deixar Kingsbridge.

      - Mas o que você vai fazer?

      - Vou para uma cidade diferente, construir outra catedral.

      - Mas você não será o mestre. O projeto não será seu.

      - Um dia poderei ter outra chance. Sou moço.

      Era possível, mas muito difícil. Aliena o sabia, e Jack também. O sacrifício que ele estava fazendo por ela comoveu-a até as lágrimas. Ninguém nunca a amara tanto.

      Ninguém jamais a amaria daquele modo. Mas não queria que ele desistisse de tudo.

      - Não vou - disse ela.

      - O que você está querendo dizer?

      - Não vou deixar Kingsbridge.

      Ele ficou furioso.

      - Por que não? Em qualquer outro lugar poderemos viver como marido e mulher e ninguém se importará. Poderemos até mesmo nos casar numa igreja.

      Ela tocou no seu rosto.

      - Eu o amo demais para tirá-lo da Catedral de Kingsbridge.

      - Isto cabe a mim decidir.

      - Jack, eu o amo pelo que acaba de propor. O fato de estar disposto a desistir do trabalho de sua vida para viver comigo é... Quase parte meu coração saber que você me ama tanto. Mas não quero ser a mulher que tirou você do trabalho que adorava. Não estou disposta a acompanhá-lo nessas condições. Projetará uma sombra sobre toda a nossa vida. Você poderá me perdoar por isso, mas eu mesma jamais me perdoarei.

      Jack ficou triste.

      - Sei muito bem que não adianta discutir com você depois que toma uma decisão. Mas o que faremos?

      - Tentaremos de novo a anulação. Viveremos separados.

      A cara dele era de desespero.

      - E viremos aqui todos os domingos e quebraremos nossa promessa - concluiu ela.

      Jack apertou-a com força e Aliena sentiu que ele estava novamente excitado.

      - Todos os domingos?

      - Sim.

      - Você pode ficar grávida de novo.

      - Correremos o risco. E vou começar a fabricar tecido de novo, como fazia antigamente. Mais uma vez comprei de Philip a lã que ele não vendeu, e vou organizar o pessoal da cidade para tecê-la. Depois faço o acabamento no moinho de pisoar.

      - Como você pagou a Philip? - perguntou Jack, surpreso.

      - Ainda não lhe paguei. Vou pagar a ele em fardos de tecido, quando estiverem prontos.

      Jack assentiu.

      - Ele aceitou o negócio porque quer que você fique - disse amargamente. - Assim eu também continuo em Kingsbridge.

      Aliena concordou.

      - E ele ainda sai da transação levando tecido barato.

      - Maldito Philip! Sempre consegue o que quer.

      Aliena viu que ganhara. Beijou-o.

      - Amo você - disse ela.

      Ele retribuiu seu beijo, correndo as mãos por todo o seu corpo, tocando ardorosamente seus lugares secretos. Então parou e disse:

      - Mas quero estar com você todas as noites, e não somente aos domingos.

      Ela beijou-lhe a orelha.

      - Um dia será assim - sussurrou. - Eu lhe prometo.

      Jack deslocou-se para trás de Aliena e puxou-a, de modo que suas pernas ficaram por baixo do corpo dela. Aliena abriu as coxas e desceu, flutuando suavemente, sobre o colo de Jack. Ele acariciou os seios volumosos e brincou com os mamilos inchados. Por fim a penetrou e ela estremeceu de prazer.

      Fizeram amor lenta e delicadamente na água fria da represa, com o rumorejar da queda-d'agua nos ouvidos. Jack passou os braços em torno de sua barriga, e com as mãos experientes acariciou-a entre as pernas, apertando e afagando enquanto se mexia, entrando e saindo. Nunca tinham feito amor daquele jeito, com ele acariciando-a ao mesmo tempo nos seus pontos mais sensíveis, e foi muito diferente, um prazer mais intenso, da mesma forma como uma dor aguda difere de uma dor imprecisa. Mas talvez fosse porque se sentia tão triste, pensou Aliena. Após algum tempo ela se entregou àquela sensação. Sua intensidade aumentou tão de repente que o clímax a pegou de surpresa, quase a assustando, e foi tomada por espasmos de prazer tão convulsivos que gritou.

      Jack permaneceu dentro dela, duro, insatisfeito, enquanto Aliena recuperava o fôlego. Estava quieto e imóvel, mas ela percebeu que ele não atingira o clímax. Após algum tempo Aliena começou a se mexer de novo, mas Jack não reagiu. Ela virou a cabeça e beijou-o, por cima do ombro. As gotas d'agua no seu rosto estavam mornas.

      Jack chorava.

 

     1152 - 1155

      Após sete anos Jack concluíra os transeptos - os dois braços da igreja em forma de cruz -, e eles eram exatamente o que esperara que fossem. O mestre construtor aperfeiçoara as idéias de Saint-Denis, fazendo tudo mais alto e mais estreito: janelas, arcos e a própria abóbada. Os grupos de fustes que compunham as colunas erguiam-se graciosamente através da galeria e transformavam-se nas nervuras de sustentação do teto, curvando-se para se encontrarem no meio dele, e pelas altas janelas ogivais a luz do sol inundava o interior. As cornijas eram finas e delicadas, e a decoração, uma orgia de folhagens cinzeladas na pedra.

      E apareceram rachaduras no clerestório.

      Ele se deteve na alta passagem do clerestório, os olhos fixos no vazio do outro lado do transepto norte, meditando, numa clara manhã de primavera. Ficou chocado e frustrado. Segundo toda a sabedoria dos pedreiros a estrutura era forte; mas uma rachadura demonstrava fraqueza. Seu teto era muito mais alto do que qualquer outro que já tivesse visto, mas não tão mais alto. Ele não cometera o erro de Alfred, pondo uma abóbada de pedra sobre uma estrutura incapaz de sustentar seu peso. No entanto, apareceram rachaduras no clerestório, aproximadamente no mesmo lugar onde o trabalho de Alfred apresentara defeito. Alfred errara os cálculos, mas Jack estava certo de não ter se enganado. Algum fator novo aluava na construção, e ele não sabia o que era.

      Não se tratava de coisa perigosa, pelo menos a curto prazo. As rachaduras foram preenchidas com massa e não reapareceram. A construção estava a salvo. Mas era fraca; e, para Jack, a fraqueza a estragava. Queria que sua igreja durasse até o dia do Juízo Final.

      Deixou o clerestório e desceu a escadaria do torreão até a galeria, onde preparara o chão onde desenhava, no canto em que havia boa iluminação, vinda de uma das janelas do lado norte. Começou a desenhar o plinto de um pilar da nave. Desenhou um losango, depois um quadrado dentro do losango e por fim um círculo dentro do quadrado. Os fustes principais da pilastra teriam origem nos quatro cantos do losango, subiriam pela coluna e em cima se dividiriam na direção dos quatro pontos cardeais para se tornarem arcos ou nervuras. Fustes secundários, originando-se nos cantos do quadrado, ergueriam-se para se tornarem nervuras atravessando em diagonal a abóbada da nave num lado e da nave lateral do outro. O círculo do meio representava o núcleo do pilar.

      Todos os desenhos de Jack eram baseados em formas geométricas simples e em algumas proporções não tão simples, tais como a razão da raiz quadrada de dois para a raiz quadrada de três. Jack aprendera a extrair raiz quadrada em Toledo, mas a maioria dos pedreiros não era capaz de fazê-lo, e, em vez de calcular, usavam construções geométricas simples. Sabiam que se um círculo fosse traçado tangenciando por fora os quatro cantos de um quadrado, o diâmetro do círculo excederia o lado do quadrado na razão da raiz quadrada de dois para um. Tal proporção, a raiz de dois para um, era a mais antiga das fórmulas dos pedreiros, pois numa construção simples era a razão da largura externa para a interna, e, dessa forma, dava a grossura da parede.

      O trabalho de Jack foi muito complicado pelo significado religioso de vários números. O prior Philip planejava consagrar a igreja à Virgem Maria, porque a Madona que Chora operava mais milagres que o túmulo de santo Adolfo, e em consequência, queria que Jack usasse os números 9 e 7, que eram os de Maria. Jack projetara a nave com nove intercolúnios e o novo coro, a ser construído quando tudo mais estivesse pronto, com sete. A arcana simulada, entrelaçada nas naves laterais, teria sete arcos por intercolúnio, e a fachada oeste teria nove janelas estreitas e pontiagudas. Jack não tinha opinião firmada sobre o significado teológico dos números, mas sentia, instintivamente, que se os mesmos números fossem usados com bastante coerência, deveriam contribuir para a harmonia do prédio.

      Antes que pudesse terminar o desenho do plinto, foi interropido pelo mestre do telhado, que estava às voltas com um problema e queria que Jack o resolvesse.

      Seguiu o homem na escada do torreão, depois pelo clerestório, e por fim os dois entraram no espaço entre o teto e o telhado. Atravessaram as cúpulas arredondadas que eram o lado superior da abóbada. Acima deles, os operários especializados em telhado desenrolavam grandes folhas de chumbo e as pregavam nos caibros, começando pela parte de baixo e depois subindo, a fim de que as folhas superiores se sobrepusessem às inferiores e conservassem de fora a água da chuva.

      Jack viu o problema imediatamente. Ele pusera um pináculo decorativo na ponta da interseção de duas seções de telhado, mas deixara o desenho por conta de um mestre pedreiro, e este não previra a passagem da água, através ou por baixo do pináculo. O pedreiro teria que fazer uma alteração. Disse ao mestre do telhado para repassar a instrução para o pedreiro e retornou ao seu desenho.

      Ficou atônito ao encontrar Alfred esperando-o ali.

      Não falava com Alfred há dez anos. De vez em quando o via a distância, em Shiring ou Winchester. Aliena não punha os olhos nele há nove anos, muito embora ainda estivessem casados, de acordo com a Igreja. Martha ia visitá-lo em sua casa de Shiring cerca de uma vez por ano. Trazia sempre as mesmas notícias: ele estava prosperando, construindo casas para os burgueses de Shiring; morava sozinho; era o mesmo de sempre.

      Mas Alfred não parecia nada próspero. Jack achou que aparentava cansaço e derrota. Sempre fora grande e forte, mas agora estava magro e curvado: seu rosto estava mais fino, e a mão que tirava o cabelo dos olhos era ossuda, e não musculosa como antes.

      - Olá, Jack! - disse Alfred.

      Sua expressão era agressiva, mas seu Tom de voz cativante - uma mistura nada atraente.

      - Olá, Alfred - disse Jack cautelosamente. - A última vez em que o vi, estava usando uma túnica de seda e tinha engordado bastante.

      - Isso foi há três anos, antes da primeira das más colheitas.

      - É mesmo. - Três colheitas fracas em seguida tinham causado uma crise. Servos tinham morrido, muitos rendeiros perderam tudo, e presumivelmente os burgueses de Shiring não podiam mais pagar por esplêndidas casas novas de pedra. Alfred sentia o aperto. - O que o traz a Kingsbridge depois de tanto tempo? - perguntou Jack.

      - Ouvi falar dos seus transeptos e vim dar uma olhada. - Seu tom de voz era de relutante admiração. - Onde você aprendeu a construir desse jeito?

      - Paris - respondeu Jack laconicamente. Não queria discutir aquele período de sua vida com Alfred, que fora o responsável pelo seu exílio.

      - Bem... - Alfred parecia sem graça, mas acabou dizendo, com rebuscada indiferença: - Eu gostaria de trabalhar aqui, só para aprender um desses novos truques.

      Jack ficou pasmo. Será que Alfred tinha realmente coragem de lhe pedir um emprego? Querendo ganhar tempo, ele perguntou:

      - E o seu grupo?

      - Estou sozinho agora - respondeu Alfred, ainda tentando fingir que estava muito à vontade. - Não havia trabalho suficiente para um grupo.

      - Não estamos contratando ninguém, de qualquer forma - disse Jack, procurando também parecer natural. - Temos o efetivo completo.

      - Mas você sempre pode usar um bom pedreiro, não pode?

      Jack percebeu uma leve nota de súplica, e deu-se conta de que Alfred estava desesperado. Decidiu ser sincero.

      - Depois da vida que tivemos, sou a última pessoa a quem você devia pedir ajuda.

      - E você é mesmo o último - disse Alfred, com franqueza. - Tentei em toda parte. Ninguém está contratando. É a crise.

      Jack pensou em todas as vezes em que Alfred o maltratara, atormentara, espancara. Alfred forçara-o a ingressar no mosteiro e depois o afastara da sua casa e da sua família. Não tinha razão para ajudá-lo: na verdade, tinha motivo para se regozijar com a desgraça dele.

      - Não o contrataria nem se estivesse precisando de gente - disse.

      - Achei que você talvez pudesse fazê-lo - disse Alfred, com persistência bovina. - Afinal, meu pai ensinou tudo o que sabe. É por causa dele que você é mestre construtor. Não me ajudará em homenagem a ele?

      Por Tom, de repente, Jack sentiu uma pontada de remorso. A seu modo,

      Tom tentara ser um bom padrasto. Não fora delicado ou compreensivo, mas tratara os próprios filhos do mesmo modo como o tratara, e fora paciente e generoso ao transmitir seu conhecimento e habilidades. Também fizera feliz sua mãe, a maior parte do tempo. E, afinal de contas, pensou Jack, aqui estou eu, um mestre construtor bem-sucedido e próspero, a caminho de realizar a ambição de construir a mais bela catedral do mundo, e aí está Alfred, pobre, com fome e sem trabalho. Já não é vingança suficiente?

 

      Não, não é.

      Em seguida ele cedeu.

      - Está bem - disse. - Por Tom, você está contratado.

      - Muito obrigado - disse Alfred. Sua expressão era imperscrutável. - Devo começar imediatamente?

      Jack fez que sim.

      - Estamos assentando as fundações da nave. Incorpore-se ao pessoal.

      Alfred estendeu a mão. Jack hesitou momentaneamente, depois aceitou-a. O aperto de mão do filho de Tom era forte como sempre.

      Alfred desapareceu. Jack permaneceu contemplando seu desenho. Era de tamanho natural, de modo que quando estivesse terminado um mestre carpinteiro poderia fazer um gabarito de madeira diretamente sobre ele. O gabarito depois seria usado pelos pedreiros a fim de marcar o corte das pedras.

      Teria tomado a decisão correta? Lembrou-se de que a abóbada dele ruíra. Não o usaria, contudo, em trabalhos difíceis como abóbadas ou arcos: paredes retas e pisos eram o seu campo.

      Enquanto Jack ainda estava ponderando, o sino do meio-dia tocou para o almoço. Pôs de lado o pedaço de arame pontiagudo com que desenhava e desceu a escada até o nível do solo.

      Os pedreiros casados iam comer em casa, e os solteiros, no galpão. Em alguns canteiros de obras era fornecido o almoço, como um meio de evitar atrasos na parte da tarde, absenteísmo e alcoolismo; porém, a porção que os monges serviam quase sempre era espartana, e a maior parte dos operários preferia levar sua própria comida.

      Jack estava morando na velha casa de Tom Construtor com Martha, a quem considerava como irmã, e que fazia as vezes de sua governanta. Martha também cuidava de Tommy e da segunda filha de Jack, uma garota a quem tinham chamado Sally, quando Aliena estava ocupada. Martha geralmente preparava o jantar para Jack e as crianças, e Aliena às vezes se juntava a eles.

      Ele deixou o priorado e caminhou decididamente para casa. No meio do trajeto uma idéia o assaltou. Será que Alfred esperava voltar a morar na sua casa com Martha?

      Ela era sua irmã natural. Jack não pensara nisso quando lhe dera o emprego.

      Era um medo tolo, decidiu, um momento depois. Os dias em que Alfred podia intimidá-lo tinham ficado para trás. Agora era o mestre construtor de Kingsbridge, e se dissesse que Alfred não podia se mudar para aquela casa, ele não se mudaria.

      Jack chegara a esperar encontrar Alfred sentado à mesa da cozinha, e ficou aliviado ao não vê-lo ali. Aliena cuidava das crianças, que comiam, e Martha mexia uma panela no fogo. O cheiro do ensopado de carneiro era de dar água na boca.

      Deu um beijo rápido na testa de Aliena. Ela estava agora com trinta e três anos, mas tinha a mesma aparência dos vinte e três: o cabelo volumoso, castanho-escuro e cheio de cachos, a mesma boca generosa e os lindos olhos castanhos. Somente quando nua mostrava os efeitos do tempo e da maternidade: os seios maravilhosos estavam mais caídos, as cadeiras, mais largas, e a barriga nunca mais voltara a ser chata e rígida como antes.

      Jack contemplou afetuosamente os frutos do corpo de Aliena: Tommy, um saudável garoto de cabelos ruivos, com nove anos, grande para a sua idade, e que enfiava o ensopado de carneiro na boca como se não comesse há uma semana; e Sally, de sete anos, cabelos castanho-escuros como os da mãe, sorrindo alegremente e exibindo uma falha nos dentes da frente, tal como Martha, quando Jack a vira pela primeira vez, dezessete anos antes. Tommy ia para a escola no priorado todas as manhãs, para aprender a ler e escrever, mas como os monges não aceitavam meninas, era Aliena quem ensinava Sally.

      Jack sentou-se, e Martha tirou a panela do fogo e colocou-a em cima da mesa. Era uma garota estranha. Já passava dos vinte anos de idade, mas não demonstrava interesse em se casar. Sempre fora ligada a Jack, e agora parecia perfeitamente feliz em ser sua governanta.

      Jack era, sem dúvida, o chefe da família mais estranha do condado. Ele e Aliena eram dois dos cidadãos mais importantes de Kingsbridge: ele, o mestre construtor da catedral, e ela, a maior fabricante de tecido fora de Winchester. Todos os tratavam como marido e mulher, embora fossem proibidos de passar as noites juntos e morassem em casas separadas, Aliena com o irmão e Jack com Martha. Todas as tardes de domingo, e todos os feriados, eles desapareciam, e todo mundo sabia o que estavam fazendo, exceto, é claro, o prior Philip. Enquanto isso, a mãe de Jack morava numa caverna na floresta porque achavam que fosse uma feiticeira.

      De vez em quando ele se enfurecia por não poder desposar Aliena. Ficava acordado, na cama, ouvindo o ressonar de Martha no quarto ao lado, e pensava: Tenho vinte e oito anos de idade; por que estou dormindo sozinho? No dia seguinte mostrava-se mal-humorado com o prior Philip, rejeitando todas as sugestões ou pedidos do cabido como impraticáveis ou muito dispendiosos, recusando-se a discutir alternativas ou soluções de compromisso, como se houvesse um único modo de construir uma catedral e esse modo fosse o dele. Philip resolvia então se afastar do construtor por uns dias e deixar a tempestade passar.

      Aliena também se sentia infeliz e descontava em Jack. As vezes ficava impaciente e intolerante, criticando tudo o que ele fazia, pondo as crianças na cama assim que chegava, dizendo que não sentia fome quando ele comia. Após um ou dois dias nesse estado de espírito, desandava a chorar, dizia que sentia muito e que eles seriam felizes de novo, até a próxima vez em que a tensão se tornasse insuportável.

      Jack pegou uma concha e serviu um pouco de ensopado numa tigela.

      - Adivinhe quem apareceu na obra hoje - disse, começando a comer. - Alfred.

      Martha deixou cair uma tampa de ferro na pedra do fogão. Jack olhou para ela e viu medo estampado no seu rosto. Virou-se para Aliena e viu que ela ficara lívida.

      - O que ele está fazendo em Kingsbridge? - perguntou ela.

      - Procurando trabalho. A crise empobreceu os mercadores de Shiring, creio, e eles não estão construindo casas de pedra como antes. Alfred demitiu seus homens e não consegue encontrar trabalho.

      - Espero que você o tenha posto para fora - afirmou Aliena.

      - Ele disse que eu deveria lhe dar um emprego em nome de Tom - disse Jack nervosamente. Não tinha antecipado uma reação tão forte das duas mulheres. - Afinal de contas, devo tudo a meu padrasto.

      - Grande merda - disse Aliena, e Jack pensou que ela aprendera aquela expressão com sua mãe.

      - Bem, de qualquer forma o contratei - disse ele.

      - Jack! - gritou Aliena. - Como foi capaz de fazer isso? Não pode deixar que aquele demônio volte para Kingsbridge!

      Sally começou a chorar. Tommy arregalou os olhos para a mãe.

      - Alfred não é nenhum demônio - disse Jack. - É um homem faminto e sem dinheiro. Eu o salvei em memória do pai dele.

      - Você não sentiria pena se ele o tivesse forçado a dormir ao pé de sua cama como um cachorro por nove meses.

      - Ele fez coisas piores comigo, pergunte a Martha.

      - E comigo também - disse Martha.

      - Decidi que vê-lo daquele jeito era vingança suficiente para mim.

      - Pois não o é para mim! - esbravejou Aliena. - Por Cristo, Jack, filho de Jack, você é um maldito idiota. Às vezes agradeço a Deus não ter me casado com você.

      Jack desviou o olhar, magoado. Sabia que ela não falara a sério, mas o simples fato de ter dito aquilo, mesmo num rompante de raiva, já era bastante ruim. Pegou a colher e começou a comer. Foi difícil de engolir.

      Aliena fez um carinho na cabeça de Sally e pôs um pedaço de cenoura na sua boca. Sally parou de chorar.

      Jack olhou para Tommy, que ainda fitava a mãe com uma expressão de pavor no rostinho.

      - Coma, Tommy - disse Jack. - Está gostoso.

      Terminaram o jantar em silêncio.

     

      Na primavera daquele ano os transeptos ficaram prontos. O prior Philip fez uma inspeção nas propriedades do mosteiro ao sul. Após três anos ruins ele precisava de uma boa safra, e queria verificar em que estado se encontravam as fazendas.

      Levou Jonathan consigo. O órfão do priorado era agora um rapaz muito alto, desajeitado e inteligente, com dezesseis anos. Como Philip, na mesma idade, não pareceu ter um momento de dúvida sobre o que queria da vida: completara seu noviciado, fizera os votos e agora era o irmão Jonathan. Também como Philip, interessava-se pelo lado material do serviço de Deus, e trabalhava como substituto de Cuthbert Cabeça Branca, o idoso despenseiro. Philip sentia orgulho do menino: era devoto, trabalhador e todos gostavam dele.

      Os dois eram escoltados por Richard, irmão de Aliena. Richard tinha por fim encontrado seu lugar em Kingsbridge. Após a construção da muralha da cidade, Philip sugerira à Sociedade da Paróquia que designasse Richard chefe da vigilância, responsável pela segurança da cidade. Ele organizara os sentinelas noturnos e providenciara a manutenção e aperfeiçoamento dos muros da cidade, e nos dias de mercado e dias santos tinha poderes para prender desordeiros e bêbados. Essas tarefas, que tinham se tornado essenciais com a transformação da aldeia numa cidade, eram coisas que não se esperava que um monge fizesse; assim, a associação da paróquia, que Philip a princípio vira como uma ameaça à sua autoridade, terminara afinal por ser útil. E Richard se sentia feliz. Estava com cerca de trinta anos agora, mas a vida ativa o mantinha com aparência jovem.

      Philip gostaria que a irmã de Richard também tivesse acertado sua vida. Se havia uma pessoa com quem a Igreja falhara era Aliena. Jack era o homem a quem amava e o pai dos seus filhos, mas a Igreja insistia que estava casada com Alfred, mesmo que não tivesse conhecimento carnal dele; e era incapaz de conseguir uma anulação por causa da má vontade do bispo. Uma vergonha, e Philip se sentia culpado, embora não fosse o responsável.

      Já no fim da jornada, quando atravessavam a floresta no caminho de casa, numa clara manhã de primavera, o jovem Jonathan disse:

      - Eu gostaria de saber por que Deus faz as pessoas morrerem de fome.

      Era uma pergunta que todo jovem monge fazia, mais cedo ou mais tarde, e havia muitas respostas para ela.

      - Não ponha a culpa desta crise em Deus - disse Philip.

      - Mas Deus fez o tempo que causou as más colheitas.

      - A fome não é devida apenas a más colheitas - retrucou o prior. - Sempre há más colheitas, de vez em quando, mas as pessoas não morrem de fome. O que é especial nesta crise é que sobrevêm após muitos anos de guerra civil.

      - E que diferença isso faz?

      Foi Richard, o soldado, quem respondeu:

      - A guerra é ruim para as fazendas. O gado é abatido para alimentar os exércitos, as safras são queimadas para que não cheguem às mãos do inimigo, e as propriedades são negligenciadas enquanto os cavaleiros estão combatendo.

      - E quando o futuro é incerto - acrescentou Philip -, as pessoas não se mostram dispostas a investir tempo e energia preparando novos terrenos, aumentando seus rebanhos, cavando valas e construindo celeiros.

      - Nós não paramos de fazer esse tipo de trabalho - disse Jonathan.

      - Mosteiros são diferentes. Mas a maioria dos fazendeiros comuns deixa suas propriedades decaírem durante a guerra, de modo que quando vem o mau tempo eles não se encontram em boas condições para vencê-lo. Os monges vêem mais longe. Mas temos outro problema. O preço da lã caiu por causa da crise.

      - Não vejo a ligação - disse Jonathan.

      - Suponho que seja porque pessoas famintas não compram roupas. - Era a primeira vez, na lembrança de Philip, que o preço da lã deixara de crescer anualmente. Vira-se forçado a diminuir o ritmo da construção da catedral, a não receber noviços e a eliminar vinho e carne da alimentação dos monges. Lastimavelmente, significa que estamos economizando justo quando mais e mais gente miserável aparece em Kingsbridge procurando trabalho.

      - E terminam fazendo fila no portão do priorado para ganhar um pouco de sopa e pão de massa grossa - disse Jonathan.

      Philip assentiu tristemente. Quebrava seu coração ver homens fortes tendo que implorar comida por não conseguirem encontrar trabalho.

      - Mas lembre-se, a causa disso é a guerra, não o tempo.

      - Espero que haja um lugar especial no inferno para os condes e reis que causam tanta miséria - disse Jonathan, com o arrebatamento dos jovens.

      - Espero que sim... Os santos nos protejam, o que é isso? Uma estranha figura irrompera de sob as árvores correndo a toda a velocidade na direção do prior. Suas roupas eram trapos, seu cabelo estava em desordem, e o rosto, preto de sujeira. Philip achou que o pobre homem devia estar fugindo de um javali enfurecido ou até mesmo de um urso fugido.

      Mas então o homem deu um pulo e se atirou sobre Philip.

      O prior ficou tão espantado que caiu do cavalo.

      Seu atacante caiu por cima dele. O homem cheirava como um animal, e também soava como um: grunhia sem parar. Philip se contorcia e dava pontapés. O homem parecia querer se apoderar da sacola de couro que o prior carregava a tiracolo. Não havia nada nela exceto um livro, A canção de Salomão. Philip travou uma luta desesperada para se libertar, não porque nutrisse especial dedicação ao livro, mas porque o ladrão era revoltantemente sujo.

      Entretanto, o religioso estava preso na tira da sacola e o ladrão não desistia. Rolaram pelo chão duro, Philip tentando se libertar e o fora-da-lei querendo pegar a sacola. Tinha uma vaga idéia de que seu cavalo disparara.

      De repente o ladrão foi afastado bruscamente por Richard. Philip rolou e sentou-se, mas por um momento não conseguiu ficar de pé. Estava um pouco aturdido. Respirou o ar puro, aliviado por estar livre do pernicioso abraço do assaltante.

      Apalpou seus ferimentos. Nada quebrado. Voltou a atenção para os demais.

      Richard obrigara o ladrão a se estirar no chão e estava com um pé sobre suas omoplatas e a ponta da espada na nuca. Jonathan segurava os dois cavalos remanescentes e parecia desnorteado.

      Philip levantou-se num movimento súbito, mas sentindo-se fraco. Quando eu tinha a idade de Jonathan, pensou, podia cair do cavalo e montar de novo imediatamente.

      - Se ficar de olho neste ladrãozinho barato - disse Richard - pegarei seu cavalo. - E ofereceu a espada ao prior.

      - Está bem - concordou Philip, afastando a arma com um gesto. - Mas não vou precisar disso.

      Richard hesitou, e em seguida embainhou a espada. O ladrão ficou imóvel. Suas pernas eram finas como palitos, e da mesma cor; estava descalço. Philip não tinha chegado a correr nenhum risco: aquele pobre-diabo estava fraco demais até mesmo para torcer o pescoço de uma galinha. Richard saiu em busca do cavalo do prior.

      O atacante viu o rapaz afastar-se, e seu corpo ficou tenso. Philip percebeu que estava prestes a tentar fugir. Deteve-o com uma pergunta.

      - Gostaria de comer alguma coisa?

      O ladrão levantou a cabeça e olhou para o religioso como se o achasse louco.

      Philip caminhou até o cavalo de Jonathan e abriu um alforje. Pegou um pão, partiu-o ao meio e ofereceu metade ao assaltante. O homem agarrou o pão, incrédulo, e enfiou-o quase todo na boca.

      O prior sentou-se no chão, observando-o. O homem comia como um animal, tentando engolir o máximo possível antes que pudessem tirar-lhe o alimento. A princípio Philip pensara tratar-se de um velho, mas agora que podia observá-lo melhor percebeu que o fora-da-lei era jovem, cerca de vinte e cinco anos.

      Richard voltou, puxando o cavalo de Philip. Indignou-se ao ver o ladrão sentado, comendo.

      - Por que lhe deu nossa comida? - perguntou ao prior.

      - Porque ele está faminto - respondeu Philip. Richard nada disse, mas percebia-se por sua expressão que achava os monges malucos.

      - Qual é o seu nome? - Perguntou o prior, após o homem ter comido o pedaço de pão.

      Ele hesitou, cautelosamente. Philip teve a impressão de que havia algum tempo que não falava com outro ser humano. Finalmente respondeu:

      - David.

      Pelo menos não estava louco, pensou Philip.

      - O que aconteceu a você, David? - perguntou.

      - Perdi minha fazenda depois da última safra.

      - De quem arrendava a fazenda?

      - Do conde de Shiring.

      William Hamleigh. O prior não se surpreendeu.

      Milhares de fazendeiros não tinham conseguido pagar o aluguel de suas terras após três safras ruins. Quando isso acontecia com Philip, ele simplesmente perdoava a dívida, já que, de qualquer modo, se as pessoas perdessem tudo acabariam indo ao priorado implorar caridade. Outros proprietários, destacando-se o conde William, aproveitavam-se da crise para expulsar seus posseiros e reapossar-se de suas fazendas. O resultado foi um grande aumento no número dos fora-da-lei refugiados nas florestas, assaltando viajantes. Era por isso que Philip precisava levar Richard para toda parte, como guarda-costas.

      - E a sua família? - perguntou Philip ao ladrão.

      - Minha mulher pegou o bebê e voltou para a casa da mãe. Mas não havia lugar para mim.

      Uma história corriqueira.

      - É pecado atacar um monge, David, e é errado viver de furtos.

      - Mas como poderei viver? - exclamou o homem.

      - Se vai ficar na floresta é melhor que pegue aves e pesque.

      - Não sei caçar nem pescar!

      - Você é um fracasso como ladrão - disse o prior. - Que chance de sucesso tinha, sem arma, sozinho contra nós três, e com Richard armado até os dentes?

      - Eu estava desesperado.

      - Bem, na próxima vez em que ficar desesperado, vá a um mosteiro. Sempre há alguma coisa para um pobre comer. - Philip levantou-se. Sentia na boca o gosto amargo da hipocrisia. Sabia que os mosteiros não tinham condições de alimentar todos os fora-da-lei. Para a maioria não restava mesmo outra alternativa senão roubar. Mas seu papel era aconselhar a vida virtuosa, e não arranjar desculpas para o pecado.

      Não havia mais nada que pudesse fazer por aquele pobre coitado. Pegou as rédeas do seu cavalo das mãos de Richard e montou. Percebeu que os ferimentos resultantes da queda iriam doer por algum tempo.

      - "Siga seu caminho e não peque mais" - disse, citando Jesus. Depois tocou o cavalo.

      -  Você é muito bom - disse Richard, quando se afastaram. Philip sacudiu a cabeça tristemente.

      - O problema verdadeiro é que não sou o bastante.

     

      No domingo que antecedia a festa de Pentecostes, William Hamleigh se casou.

      Foi idéia de sua mãe.

      Regan o vinha importunando há anos para encontrar uma mulher e providenciar um herdeiro, mas ele sempre adiava. As mulheres entediavam-no e, de um modo que não compreendia e no qual não queria pensar, deixavam-no ansioso. Vivia dizendo à sua mãe que logo se casaria, mas nunca fazia nada para isso.

      Ela acabou por encontrar uma noiva para ele.

      Chamava-se Elizabeth, e era filha de Harold de Weymouth, um cavaleiro rico, poderoso partidário de Estevão. Como Regan explicara ao filho, com um pouco de esforço ele poderia ter conseguido um melhor partido - até mesmo a filha de um conde -, mas como não se interessava pelo assunto, Elizabeth serviria.

      William a vira na corte do rei em Winchester, e Regan reparara que seu olhar se fixara nela. Tinha o rosto bonito, cabelo cacheado castanho-claro, busto grande e quadris estreitos exatamente o tipo de William.

      A garota estava com catorze anos. Quando William a vira, imaginara encontrando-a numa noite escura e possuindo-a à força nas vielas de Winchester: casamento fora uma coisa que não passara pela sua cabeça. No entanto, sua mãe rapidamente descobriu que o pai dela estava de acordo, e que Elizabeth era uma filha obediente que faria o que lhe ordenassem. Tendo assegurado a William que não haveria uma repetição do ultraje que Aliena impusera à família, Regan arranjara um encontro.

      O conde sentira-se nervoso. A última vez em que fizera aquilo, não passava de um rapaz inexperiente de vinte anos de idade, filho de um cavaleiro, encontrando-se com uma arrogante jovem dama da nobreza. Mas agora era um homem com experiência de muitos combates e já fazia dez anos que era o conde de Shiring. Tolice ficar nervoso por causa de um encontro com uma garota de catorze anos.

      Só que ela estava mais nervosa ainda. E também desesperada para agradar-lhe. Falou excitadamente sobre sua casa e sua família, seus cavalos e cachorros, parentes e amigos. William permaneceu sentado silenciosamente, observando-lhe o rosto, imaginando como seria nua.

      O bispo Waleran os casou na capela de Earlscastle, e houve um grande banquete que durou o resto do dia. Pelo costume, todas as pessoas eminentes do condado deviam ser convidadas, e William passaria vergonha se não servisse um farto banquete. Assaram três bois inteiros e dúzias de carneiros e de porcos, e os convidados esvaziaram as adegas do castelo, embebedando-se com cerveja, sidra e vinho. A mãe de William presidiu as festividades com um ar de triunfo no rosto desfigurado. O bispo Waleran achava aquelas celebrações vulgares, desagradáveis, e saiu quando o tio da noiva começou a contar histórias engraçadas sobre recém-casados.

      A noiva e o noivo retiraram-se para seus aposentos ao cair da noite, deixando os convidados se regalando. William já comparecera a um número suficiente de casamentos para saber o que passava pela cabeça dos convidados mais moços, de modo que colocou Walter do lado de fora do quarto e trancou a porta para impedir interrupções.

      Elizabeth tirou a túnica e os sapatos, e ficou só com a camisa de linho.

      - Não sei o que fazer - disse, com simplicidade. - Você terá que me mostrar.

      Aquilo não era bem o que William imaginara. Aproximou-se dela. Ergueu-lhe o rosto e beijou seus lábios suaves. De alguma forma, o beijo não gerou nenhum calor.

      - Tire a camisa e deite-se na cama - disse ele.

      Ela puxou a camisa por cima da cabeça. Era bem roliça. Os seios grandes tinham minúsculos mamilos recolhidos. Uma penugem clara cobria-lhe o púbis. Obedientemente, ela caminhou até a cama e deitou-se de costas.

      William livrou-se das botas. Sentou-se na cama ao seu lado e apertou-lhe os seios. Sua pele era macia. Aquela garota meiga, submissa e sorridente não tinha nada a ver com a imagem que fizera sua garganta secar, de uma mulher nas garras da paixão, gemendo e suando embaixo dele, e William sentiu-se frustrado.

      Pôs a mão entre suas coxas, e a garota abriu as pernas imediatamente. Enfiou um dedo dentro de Elizabeth, que gemeu de dor, mas disse depressa:

      - Está bem, não me incomodo.

      Ele perguntou-se por um instante se não estaria procedendo de um modo completamente errado. Teve uma visão momentânea de uma cena diferente, em que os dois se deitavam lado a lado, acariciando-se e conversando, conhecendo-se aos poucos. No entanto, afinal sentiu uma pontada de desejo, quando Elizabeth gemeu de dor. Deixou de lado as dúvidas e meteu o dedo com mais força. Ficou observando seu rosto enquanto ela lutava para suportar a dor em silêncio.

      Ajoelhou-se entre suas pernas. Não estava ainda totalmente excitado. Esfregou-se para ver se o pênis ficava mais ereto, mas o efeito foi pequeno. Era aquele maldito sorriso dela que o deixava impotente, tinha certeza. Enfiou dois dedos, e a garota deu um gritinho de dor. Assim era melhor. Então a cadela idiota começou a sorrir de novo. Ele percebeu que tinha de arrancar aquele sorriso da sua cara. Esbofeteou-a com força. Ela gritou, e seu lábio começou a sangrar. Assim era muito melhor.

      Atingiu-a de novo.

      Elizabeth começou a chorar.

      Tudo deu certo.

     

      No domingo seguinte era a festa de Pentecostes, quando uma imensa multidão compareceria à catedral. O bispo Waleran presidiria a cerimónia. Haveria ainda mais gente que o normal, porque todos estavam querendo ver os novos transeptos, recentemente concluídos. Diziam que eram deslumbrantes. William exibiria sua noiva ao povo do condado naquele culto. Não ia a Kingsbridge desde que tinham construído a muralha, mas Philip não podia impedi-lo de ir à igreja.

      Dois dias antes de Pentecostes, sua mãe morreu.

      Regan contava cerca de sessenta anos. Foi tudo repentino. Sentiu falta de ar após o jantar, na sexta-feira, e deitou-se cedo. Sua criada acordou William um pouco antes do amanhecer, para dizer-lhe que sua mãe estava passando mal. Ele levantou-se e, aos tropeções, dirigiu-se ao quarto dela, esfregando o rosto. Encontrou-a arquejando horrivelmente, sem conseguir respirar, incapaz de proferir uma palavra sequer, com uma expressão de terror nos olhos.

      William ficou assustado com sua respiração convulsiva, que lhe sacudia o corpo, e com seu olhar fixo. Não tirava os olhos de cima dele, como se esperasse que fizesse alguma coisa. O conde ficou tão atemorizado que decidiu ir embora, e virou-se; então viu a criada à porta e teve vergonha de sua reação. Obrigou-se a olhar para sua mãe de novo. O rosto dela parecia mudar de forma continuamente à luz bruxuleante de uma vela. Sua respiração rouca e entrecortada foi ficando cada vez mais alta, até que pareceu encher toda a cabeça de William. Ele não podia entender como aquilo não acordava todo o castelo. Pôs as mãos nos ouvidos, para ver se se livrava do barulho, mas não adiantou, continuou ouvindo tudo. Era como se ela estivesse gritando com ele, do modo como fazia quando era garoto, um ataque destemperado de raiva; seu rosto também parecia furioso, a boca aberta, os olhos arregalados, o cabelo despenteado. A convicção de que estava exigindo alguma coisa aumentou, e ele se sentiu cada vez menor e mais jovem, até que se viu dominado por um terror cego que não sentia desde a infância, um terror que vinha de saber que a única pessoa a quem amava era um monstro furioso. Sempre fora assim; ela mandava que ele se aproximasse, ou se afastasse, ou fosse apanhar seu pônei, ou desse o fora; ele custava a obedecer, e ela gritava; depois ele ficava tão apavorado que não conseguia entender o que ela queria que fizesse; então havia um impasse histérico, com ela gritando cada vez mais alto e ele ficando cada vez mais cego, surdo e mudo de pavor.

      Mas dessa vez foi diferente.

      Dessa vez ela morreu.

      Primeiro seus olhos se fecharam. William começou a se acalmar. Gradualmente a respiração dela foi ficando mais leve. O rosto adquiriu um tom acinzentado, a despeito da ulceração da pele. Até mesmo a vela deu a impressão de passar a arder mais devagar, e as sombras oscilantes já não amedrontaram William. Por fim ela simplesmente parou de respirar.

      - Pronto - disse o conde; - ela está bem agora, não está?

      A criada desatou a chorar.

      William sentou-se na beirada da cama olhando o rosto imóvel da mãe. A criada trouxe o padre.

      - Por que não me chamou mais cedo? - perguntou ele, furioso. William praticamente não o ouviu. Permaneceu com ela até o sol nascer; então as criadas pediram que saíssem para que pudessem "prepará-la". Desceu para o salão, onde os habitantes do castelo - cavaleiros, homens de armas, clérigos e criados - faziam um moderado desjejum. Sentou-se à mesa ao lado da sua jovem mulher e bebeu um pouco de vinho. Um ou dois dos cavaleiros e o mordomo se dirigiram a ele, mas o conde não respondeu.

      Após algum tempo Walter entrou e sentou-se ao seu lado. Estava com ele há muitos anos e sabia quando devia guardar silêncio.

      - Os cavalos estão prontos? - perguntou William, ao cabo de alguns minutos.

      Walter pareceu surpreso.

      - Para quê?

      - Para a viagem a Kingsbridge. Leva dois dias. Temos que partir esta manhã.

      - Não pensei que fôssemos, dadas as circunstâncias... Por algum motivo aquilo enfureceu William.

      - Eu disse que não iríamos?

      - Não, milorde.

      - Então vamos!

      - Sim, milorde. - Walter levantou-se. - Providenciarei tudo imediatamente.

      Partiram no meio da manhã, William, Elizabeth e a escolta habitual de cavaleiros e criados. O conde tinha a impressão de estar num sonho. A paisagem parecia deslocar-se e passar por ele, e não o contrário. Elizabeth cavalgava ao seu lado, quieta e magoada. Quando paravam Walter cuidava de tudo. Em cada refeição William comia um pouco de pão e bebia diversos copos de vinho. De noite, seu sono foi irrequieto.

      Viram a catedral a distância, atrás dos campos verdes, quando se aproximaram de Kingsbridge. A catedral antiga era uma construção atarracada e larga, com pequenas janelas que lembravam olhos de contas sob sobrancelhas arqueadas. A nova igreja era radicalmente diferente, muito embora ainda não estivesse acabada. Alta e esguia, com janelas tão grandes que pareciam impossíveis. Ao se aproximarem mais, William viu que ultrapassava em muito a altura dos demais prédios do priorado, como a antiga catedral nunca fizera.

      A estrada estava cheia de cavaleiros e pedestres, todos se dirigindo a Kingsbridge: a festa de Pentecostes era muito popular, pois se realizava no início do verão, quando o tempo estava bom e as estradas, secas. Naquele ano havia mais gente que o normal: as pessoas haviam sido atraídas pela novidade da catedral.

      William e seu grupo venceram a última milha em galope curto, dispersando pedrestes incautos, e atravessaram ruidosamente a ponte levadiça de madeira que cruzava o rio. Kingsbridge era agora uma das cidades mais fortificadas da Inglaterra. Tinha um sólido muro de pedra provido de ameias, e ali, onde antes a ponte levava direto à rua principal, o caminho fora barrado por uma barbacã de pedra com portas guarnecidas de ferro muitíssimo pesadas, e que, se naquela hora estavam abertas, sem a menor dúvida eram fechadas à noite. Não creio que eu consiga incendiar de novo esta cidade, pensou William vagamente.

      As pessoas o olhavam, enquanto ele subia a rua principal na direção do priorado. Era natural, claro; William era o conde. Todos estavam interessados também na jovem noiva que cavalgava do seu lado esquerdo. À direita ia Walter, como sempre.

      Entraram no adro e desmontaram junto ao estábulo. William deixou o cavalo com Walter e foi olhar a igreja. A extremidade leste, a parte superior da cruz, ficava do outro lado e portanto não era visível dali. O lado oeste, a parte inferior da cruz, ainda não estava construído, mas sua forma fora delineada no chão com estacas e cordas, e algumas das fundações já tinham sido lançadas. Entre um e outro ficava a parte nova, os braços da cruz - os transeptos norte e sul -, com o espaço entre eles que era chamado de "cruzeiro". As janelas eram mesmo tão grandes quanto haviam parecido a distância. William nunca vira um edifício como aquele na sua vida.

      - É fantástico - disse Elizabeth, rompendo seu silêncio submisso.

      Ele arrependeu-se de não tê-la deixado em casa.

      Um tanto intimidado, subiu lentamente a nave, por entre as linhas de estacas e cordas, com Elizabeth atrás de si. O primeiro intercolúnio da nave fora parcialmente construído, e parecia sustentar o imenso arco ogival que formava a entrada oeste do cruzeiro. O conde passou por baixo daquele arco incrível e foi se juntar à multidão que se encontrava no cruzeiro.

      O novo prédio parecia quase irreal: era demasiado alto, esguio, gracioso e frágil para ficar de pé. Como se não tivesse paredes, nada para sustentar o teto a não ser uma fileira de pilares altos e delgados que se lançavam eloquentemente para cima. Como todos que o cercavam, William esticou o pescoço a fim de olhar para cima, e viu que os pilares continuavam no teto curvo para se encontrarem na parte mais alta do teto, como uma abóbada formada pelos galhos de velhas árvores na floresta.

      A missa teve início. O altar fora instalado na parte mais próxima do coro, com os monges na parte de trás, de modo que o cruzeiro e os dois transeptos ficaram disponíveis para os fiéis, mas mesmo assim muitas pessoas tiveram de ficar na nave por construir. William abriu caminho até a frente, como era sua prerrogativa, e deteve-se perto do altar, com os outros nobres do condado, que o cumprimentaram, balançando a cabeça, e cochicharam entre si.

      O teto de madeira pintada do velho coro estava desgraciosamente justaposto ao alto arco leste do cruzeiro. Sem dúvida, o construtor tencionava no futuro demolir o coro e reconstrui-lo em harmonia com o novo estilo.

      Um momento depois que esse pensamento passou pela cabeça de William, seu olhar se deteve no construtor em questão, Jack. Era um rapaz muito bonito, com sua cabeleira ruiva; usava uma túnica vermelho-escura, bordada na bainha e na gola, exatamente como um nobre. Parecia bastante satisfeito consigo próprio, sem dúvida por ter construído os transeptos tão depressa e por ver que todos estavam assombrados com o seu projeto. Segurava a mão de um menino de uns nove anos que era a sua cara. William constatou, com um choque, que devia ser o filho de Aliena, e sentiu uma pontada dolorida de inveja. Um momento depois viu a própria Aliena. Estava ao lado de Jack, mas um pouco atrás, com um tímido sorriso de orgulho nos lábios. O coração do conde bateu mais depressa: estava linda como sempre. Elizabeth era uma mera substituta, uma pobre imitação da verdadeira Aliena. Nos seus braços, havia uma garotinha de cerca de sete anos, e William lembrou que ela tivera uma segunda criança de Jack, embora não fossem casados.

      Examinou-a mais detidamente. Não estava tão bonita quanto antes, afinal: havia rugas de tensão em torno dos seus olhos, e seu sorriso escondia uma ponta de tristeza.

      Depois de todos aqueles anos ainda não podia desposar Jack, pensou William, satisfeito: o bispo Waleran mantivera sua promessa e repetidamente negara a anulação.

      Esse pensamento, com frequência, consolava William.

      Era Waleran, constatou no mesmo momento, quem estava no altar, erguendo a hóstia acima da cabeça para que toda a congregação pudesse vê-la. Centenas de pessoas ajoelharam-se.

      O pão se transmudou em Cristo naquele instante, uma transformação que assombrava William mesmo que não tivesse idéia do que estava envolvido nela.

      Concentrou-se na missa por algum tempo, observando os gestos místicos dos padres, ouvindo as frases latinas sem sentido e murmurando fragmentos familiares das respostas.

      A sensação de atordoamento que o acompanhara no último dia persistiu, e a mágica igreja nova, com a luz do sol brincando em suas colunas impossíveis, servia para intensificar a sensação de que vivia um sonho.

      A missa chegou ao fim. O bispo Waleran virou-se para dirigir-se à congregação.

      - Rezaremos agora pela alma da condessa Regan Hamleigh, mãe do conde William de Shiring, que morreu na noite de sexta-feira.

      Houve um zumbido de comentários quando o povo ouviu a notícia, mas William estava com os olhos fixos no bispo, horrorizado. Percebera finalmente o que sua mãe tentava dizer enquanto morria. Estava pedindo um padre... mas William não mandara buscá-lo. Ele a vira perder as forças, seus olhos se fecharem, sua respiração parar, e deixara que morresse sem ser absolvida. Como fora capaz de uma coisa dessas? Desde a noite de sexta-feira sua alma estava no inferno, sofrendo os tormentos que lhe descrevera tão vivamente inúmeras vezes, sem preces que lhe trouxessem alívio! Cheio de culpa, sentiu o coração confranger-se de tal forma que teve a impressão de que o ritmo de suas batidas se reduzia, e por um momento achou que também morreria. Como deixara que fosse se consumir naquele lugar tão terrível, com a alma tão desfigurada por pecados quanto o rosto pela doença, enquanto ansiava pela paz do céu?

      - O que vou fazer? - perguntou em voz alta, fazendo as pessoas à sua volta o fitarem espantadas.

      Quando a prece terminou e os monges se retiraram um atrás do outro, William permaneceu de joelhos ante o altar. O resto da congregação espalhou-se ao sol, ignorando-o, com exceção de Walter, que ficou próximo, observando e esperando. O conde rezou com toda a sua força, conservando a imagem da mãe na cabeça, enquanto repetia o padre-nosso, e todos os outros fragmentos de orações de que podia se lembrar. Após algum tempo, deu-se conta de que havia outras coisas a seu alcance. Podia acender velas; podia pagar a padres e monges para dizer missas por ela regularmente; podia até mesmo mandar construir uma capela especial pela sua alma. Mas tudo em que pensava parecia insuficiente. Era como se pudesse vê-la, sacudindo a cabeça, magoada e desapontada com ele, perguntando: "Por quanto tempo você deixará sua mãe sofrer?"

      William sentiu a mão de alguém no ombro e levantou a cabeça. Waleran parou na frente dele, ainda envergando o suntuoso hábito vermelho que usara para a festa de Pentecostes. Seus olhos negros se detiveram nos do conde, e este sentiu que não era possível guardar segredos para aquele olhar penetrante.

      - Por que chora? - perguntou o bispo.

      William percebeu que seu rosto estava molhado de lágrimas.

      - Onde ela está? - perguntou.

      - Ela morreu para ser purificada pelo fogo.

      - Sofre?

      - Terrivelmente. Mas podemos fazer com que a alma das pessoas a quem amamos saia mais depressa daquele lugar horrível.

       - Farei qualquer  coisa! - exclamou William. - Basta que me diga o que fazer!

      Os olhos de Waleran brilharam de cobiça.

      - Construa uma igreja - disse. - Exatamente como esta. Mas em Shiring.

     

      Uma verdadeira fúria se apossava de Aliena sempre que ela viajava pelas propriedades que tinham feito parte do condado do seu pai.

      As valas bloqueadas, cercas quebradas e currais desmantelados a irritavam; os campos estragados a deixavam triste; e as aldeias desertas partiam-lhe o coração. Não eram só as más colheitas. O condado poderia ter alimentado seus habitantes, inclusive naquele ano, se a administração houvesse sido correta. Mas William Hamleigh não tinha noção de como administrar a terra. Para ele, o condado era uma arca do tesouro que lhe pertencia, e não uma propriedade que alimentava milhares de pessoas.

      Quando seus servos não tinham comida, morriam de fome. Quandos seus rendeiros não lhe podiam pagar, ele os expulsava das suas terras. Desde que se tornara conde a área cultivada diminuíra de tamanho, porque as terras de alguns rendeiros expulsos haviam retornado ao seu estado natural. E ele não tinha cérebro para ver que aquilo, a longo prazo, não era do seu interesse.

      O pior era que Aliena se sentia parcialmente responsável. A propriedade era de seu pai, e ela e Richard não haviam conseguido recuperá-la para a família. Desistiram quando William se tornara conde e Aliena perdera todo o seu dinheiro; o fracasso, porém, ainda envenenava seu espírito, e ela não esquecera a promessa feita ao pai.

      Na estrada de Winchester para Shiring, com uma carroça cheia de fio e um carroceiro musculoso de espada na cinta, lembrou-se de quando percorria a mesma estrada, a cavalo, com o pai. Ele aumentava constantemente a área cultivada, derrubando florestas, drenando pântanos ou arando encostas de colinas. Nos anos ruins sempre punha de lado sementes para suprir as necessidades daqueles que eram imprevidentes demais - ou apenas muito famintos - para guardar as suas. Nunca forçava ninguém a vender seus animais ou arados para pagar as dívidas, pois sabia que, se o fizessem, não poderiam cultivar a terra no ano seguinte. Tratara a terra bem, conservando sua capacidade de produção, do modo como um bom fazendeiro cuida de sua vaca leiteira.

      Sempre que pensava nos velhos tempos, no pai orgulhoso, inteligente e rígido ao seu lado, sentia a dor da perda como uma ferida. A vida começara a dar errado quando ele fora levado embora. Tudo o que fizera desde então parecia, em retrospectiva, ter sido sem valor: viver no castelo com Matthew, num mundo de sonho; ir a Winchester na vã esperança de ver o rei; até mesmo lutar para sustentar Richard enquanto ele combatia na guerra civil. Conseguira aquilo que as outras pessoas viam como sucesso: tornara-se uma próspera mercadora de lã. Mas isso lhe trouxera apenas uma aparência de felicidade. Encontrara um modo de viver e um lugar na sociedade que lhe conferiam segurança e estabilidade, mas no íntimo ainda se sentia magoada e perdida - até que Jack aparecera em sua vida.

      A impossibilidade de desposá-lo frustrara tudo desde então. Viera a odiar o prior Philip, a quem antes admirava e via como seu salvador e mentor. Não conversava alegre e amavelmente com ele há anos. Claro que Philip não tinha culpa por não conseguir a anulação; porém, fora ele quem insistira para que morassem separados, e Aliena não podia deixar de se ressentir com isso.

      Amava os filhos, mas se preocupava com eles, sendo criados numa casa tão diferente, com um pai que ia embora na hora de dormir. Até então, por sorte, não exibiam consequências daninhas: Tommy era um menino forte e bonito que gostava de futebol, de correr e de brincar de soldado; e Sally, uma menina meiga e gentil, que contava histórias para as bonecas e adorava ver o pai desenhando. Suas necessidades constantes e a simplicidade do seu amor eram o único elemento solidamente normal na vida excêntrica de Aliena.

      Ainda tinha o seu trabalho, claro. Vinha trabalhando como comerciante a maior parte de sua vida adulta. Atualmente dúzias de homens e mulheres em diversas aldeias estavam fiando e tecendo para ela em suas casas. Alguns anos antes eram centenas, mas sentia agora os efeitos da crise como todos os outros, e não adiantava fabricar mais pano do que era capaz de vender. Mesmo que houvesse se casado com Jack ainda ia querer ter seu próprio trabalho independente.

      O prior Philip vivia dizendo que a anulação poderia ser concedida a qualquer dia, mas Aliena e Jack já estavam suportando aquela vida irritante por sete longos anos, comendo juntos, criando os filhos e dormindo separados.

      Sentia a tristeza de Jack mais dolorosamente que a própria. Ela o adorava. Ninguém sabia quanto o amava, exceto talvez a mãe dele, Ellen, que a tudo acompanhara.

      Aliena o amava porque ele a trouxera de volta à vida. Até Jack ela fora uma lagarta num casulo - ele a tirara lá de dentro e lhe mostrara que era uma borboleta.

      Teria passado a vida inteira indiferente às alegrias e dores do amor se ele não houvesse aparecido na sua clareira secreta e lhe contado suas canções de gesta e a beijado tão delicadamente, despertando depois, lenta e gentilmente, o amor que jazia adormecido no seu coração. Fora paciente e tolerante, apesar de sua juventude.

      Por causa disso sempre o amaria.

      Ao atravessar a floresta, perguntou-se se por acaso encontraria Ellen. Eles a viam ocasionalmente, na feira em uma das cidades, e cerca de uma vez por ano ela se esgueirava para o interior de Kingsbridge e passava a noite com os netos. Aliena sentia afinidade com Ellen: as duas eram diferentes, mulheres que não se ajustavam ao molde comum. Entretanto, saiu da floresta sem tê-la visto.

      Enquanto percorria as terras plantadas, observava a safra que amadurecia no campo. Seria uma boa safra, segundo sua estimativa. O verão não fora bom, pois chovera um pouco e fizera frio. Mas não tinha havido as inundações e as pragas responsáveis pela perda das três últimas colheitas. Aliena ficou satisfeita. Havia milhares de pessoas vivendo à beira da inanição, e outro mau inverno mataria a maior parte delas.

      Parou para dar água aos bois num tanque no meio de uma vila chamada Monksfield, que era parte da propriedade do conde. Era um lugar razoavelmente grande, cercado por terras que estavam entre as mais férteis do condado, e tinha seu próprio padre e uma igreja de pedra. No entanto, somente metade dos campos que cercavam Monksfieldfora plantada naquele ano. Cobriam-se agora de trigo dourado, enquanto o resto era só mato verde.

      Dois outros viajantes pararam no reservatório de água para saciar a sede dos cavalos. Aliena observou cautelosamente. As vezes era bom se juntar a outras pessoas, para proteção mútua; mas também podia ser arriscado, para uma mulher. Aliena descobrira que um homem como o seu carroceiro estava perfeitamente disposto a fazer o que ela lhe ordenasse quando se encontravam sozinhos, mas se houvesse outros homens presentes seria bem possível que se insubordinasse.

      No entanto, um dos dois viajantes era mulher. Aliena examinou-a mais detidamente e revisou a primeira idéia. Não era uma mulher, e sim uma garota. Reconheceu-a.

      Ela a vira na Catedral de Kingsbridge no domingo de Pentecostes. Era a condessa Elizabeth, mulher de William Hamleigh.

      Seu aspecto era de quem sofria muito e se sentia acovardada. Com ela encontrava-se um grosseiro homem de armas, obviamente seu guarda-costas. Esse poderia ter sido meu destino, pensou Aliena, se tivesse me casado com William. Graças a Deus me rebelei.

      O homem de armas balançou a cabeça cumprimentando o carroceiro e ignorou Aliena. Ela decidiu não sugerir que viajassem juntos.

      Enquanto descansavam, o céu escureceu e começou a soprar um vento forte.

      - Tempestade de verão - disse o carroceiro de Aliena laconicamente.

      - É melhor ficarmos um pouco aqui - disse a jovem condessa para seu guarda-costas.

      - Não podemos - retrucou ele bruscamente. - Ordens do chefe.

      Aliena sentiu-se ultrajada ao ouvir o homem falar com a garota daquele jeito.

      - Não seja tolo! - exclamou ela. - Sua obrigação é proteger a sua senhora!

      O guarda olhou-a espantado.

      - O que você tem com isso? - disse rudemente.

      - Vai cair uma tempestade, seu idiota - disse Aliena, em sua voz mais aristocrática. - Não se pode pedir a uma dama que viaje com um tempo desses. O seu amo o açoitará por sua estupidez. - Virou-se para a condessa Elizabeth. A garota a fitava ansiosamente. Era visível sua satisfação por ver alguém enfrentando o truculento homem de armas. Começou a chover intensamente. Aliena tomou uma decisão rápida. - Venha comigo - disse para Elizabeth.

      Antes que o homem pudesse fazer qualquer coisa, ela pegou a garota pela mão e se afastou. A condessa a acompanhou de bom grado, sorrindo como uma criança quando sai da escola. Aliena achou que o homem de armas poderia segui-las e levá-la, mas naquele momento houve um relâmpago e a chuva se transformou numa tempestade. Aliena pôs-se a correr, puxando Elizabeth, e assim, juntas, as duas atravessaram o cemitério e se dirigiram a uma casa de madeira do lado da igreja.

      A porta estava aberta. Elas entraram, ainda correndo. Aliena presumira que devia ser a casa do padre, e estava certa. Um homem com ar mal-humorado, de túnica preta e com uma pequena cruz pendurada ao pescoço, levantou-se.

      Aliena sabia que o dever da hospitalidade era um fardo pesado para muitos padres, sobretudo naqueles tempos. Antecipando resistência, disse firmemente:

      - Meus companheiros e eu precisamos de abrigo.

      - Sejam bem-vindos - disse o padre, por entre os dentes cerrados.

      Era uma casa de dois cômodos, com uma meia-água ao lado para os animais. Não era muito limpa, apesar de os animais ficarem do lado de fora. Havia um barril de vinho em cima da mesa. Um cachorrinho latiu agressivamente para elas quando se sentaram.

      Elizabeth apertou o braço de Aliena.

      - Muito obrigada - disse. Havia lágrimas de gratidão nos seus olhos. - Ranulf me teria feito prosseguir. Ele nunca me ouve.

      - Não foi nada - disse Aliena. - Esses grandalhões no fundo são covardes. - Examinou Elizabeth e percebeu, horrorizada, que a pobre garota parecia consigo. Já era bastante ruim ser mulher de William; mas ser sua segunda escolha devia ser o inferno na terra.

      Elizabeth apresentou-se.

      - Sou Elizabeth de Shiring. Quem é você?

      - Meu nome é Aliena. Sou de Kingsbridge. - Aliena conteve a respiração, sem saber se Elizabeth reconheceria o nome e se lembraria de que se tratava da mulher que rejeitara William Hamleigh.

      Mas Elizabeth era jovem demais para se lembrar do escândalo, e limitou-se a dizer:

      - Que nome diferente!

      Uma mulher desmazelada, de rosto comum e braços gordos e nus veio do quarto dos fundos, com um ar de desafio, e ofereceu um copo de vinho. Aliena supôs que fosse a mulher do padre. Ele provavelmente a chamaria de governanta, já que o casamento clerical era proibido, em teoria. As mulheres de padres causavam intermináveis problemas. Obrigar o religioso a expulsar sua mulher era uma crueldade, e geralmente trazia vergonha para a Igreja. E embora muita gente afirmasse, de um modo geral, que os padres deviam ser castos, a atitude adotada nesses casos costumava ser de tolerância, justamente porque as pessoas conheciam a mulher. E a Igreja fingia não ver ligações como estas. Aliena pensou: Seja agradecida, mulher; pelo menos você está vivendo com o seu homem.

      O homem de armas e o carroceiro entraram, com o cabelo molhado. Ranulf parou diante de Elizabeth.

      - Não podemos parar aqui - disse ele.

      Para surpresa de Aliena, Elizabeth cedeu na mesma hora.

      - Está bem - disse, levantando-se.

      - Sente-se - disse a outra, puxando-a. Ela parou diante de Ranulf e sacudiu o dedo na sua cara. - Se eu ouvir sua voz outra vez, chamarei os aldeões para virem em socorro da condessa de Shiring. Se não sabe como tratar sua senhora, eles sabem muito bem.

      Ela viu Ranulf pesando as possibilidades. Em caso de confronto, ele era capaz de dar um jeito em Elizabeth e Aliena, no carroceiro e também no padre; porém, estaria encrencado se os aldeões acudissem.

      - Talvez a condessa prefira continuar a viagem - acabou por dizer, e olhou para Elizabeth agressivamente.

      A garota pareceu ficar aterrorizada.

      - Bem - disse Aliena -, senhora condessa, Ranulf humildemente deseja saber sua vontade.

      Elizabeth olhou para ela.

      - Diga-lhe o que quer - insistiu Aliena encorajadoramente. - A obrigação dele é fazer a sua vontade.

      A atitude de Aliena deu-lhe coragem. Elizabeth respirou fundo e disse:

      - Descansaremos aqui. Vá providenciar o que for necessário para os cavalos, Ranulf.

      Ele resmungou sua concordância e saiu.

      - Vai chover o diabo - disse o carroceiro.

      O padre fechou a cara ao ouvir a expressão profana.

      - Tenho certeza de que será a chuva costumeira - disse, numa voz afeminada.

      Aliena não pôde conter uma risada, e Elizabeth riu também. A impressão que teve foi de que a garota não ria com frequência.

      O barulho da chuva se transformou num tamborilar ruidoso. Aliena deu uma olhada pela porta aberta. A igreja ficava a poucas jardas, mas já não podia ser vista. Ia ser um temporal e tanto.

      - Você deixou a carroça coberta? - perguntou Aliena ao carroceiro.

      Ele fez que sim.

      - Com os animais.

         - Ótimo. Não quero meu fio emaranhado pela água.

      Ranulf voltou, encharcado.

      Houve um clarão de relâmpago seguido por um demorado estrondo de trovão.

      - Isto não fará bem nenhum à safra - disse o padre lugubremente.

      Ele tinha razão, pensou Aliena. O que precisavam era de três semanas de sol quente.

      Seguiu-se outro relâmpago e um trovão ainda mais demorado, e uma rajada de vento sacudiu a casa de madeira. Aliena sentiu água fria na cabeça e olhou para cima - era uma goteira no telhado de palha. Mudou de lugar para sair de baixo dela. A chuva entrava pela porta, mas ninguém parecia querer fechá-la; Aliena preferia contemplar o temporal, e, ao que parece, os outros se sentiam do mesmo modo.

      Olhou para Elizabeth. A garota estava lívida. Aliena passou um braço pelos seus ombros. Ela estava trêmula, embora não estivesse fazendo frio. Aliena abraçou-a.

      - Estou amedrontada - sussurrou Elizabeth.

      - É só uma tempestade - retrucou a outra.

      Escureceu muito do lado de fora. Aliena achou que devia estar quase na hora da ceia; percebeu então que ainda não almoçara. Só era meio-dia. Levantou-se e foi até a porta; o céu estava cinzento. Nunca vira um tempo daqueles no verão. O vento soprava com força. Um relâmpago iluminou numerosos objetos soltos ao passar pela porta: um cobertor, um arbusto, uma tigela de madeira, um barril vazio.

      Aliena voltou, com a expressão sombria. Estava ficando preocupada. A casa sacudiu de novo. O mastro central que sustentava a cumeeira estava vibrando. Se uma das casas mais bem construídas na aldeia não era segura, refletiu, algumas das mais pobres deviam estar em perigo de ruir. Olhou para o padre.

      - Se piorar vamos ter que convocar os aldeões para que se abriguem na igreja - disse.

      - Não vou sair nessa chuva - respondeu o padre, com uma risadinha.

      Aliena o fitou incredulamente.

      - Eles são o seu rebanho - disse. - Você é o seu pastor.

      O padre a encarou insolentemente.

      - Obedeço ao bispo de Kingsbridge e não a você, e não vou bancar o idiota só porque quer.

      - Pelo menos traga os bois do arado - insistiu Aliena. Os bens mais preciosos de uma aldeia eram os oito bois que puxavam o arado. Sem eles os camponeses não podiam cultivar a terra. Nenhum camponês sozinho podia ter uma junta de bois - tinha que ser propriedade comum. O padre certamente saberia dar valor aos animais, já que sua prosperidade dependia deles.

      - Nós não temos bois para o arado - disse o padre.

      Aliena ficou estupefata.

      - Por quê?

      - Tivemos que vender quatro deles para pagar o arrendamento da terra; depois matamos os outros para termos carne no inverno.

      Aquilo explicava os campos plantados pela metade, pensou Aliena. Só tinham conseguido cultivar o solo mais leve, usando cavalos ou força humana para puxar o arado.

      A história a enfureceu. Além de perverso, William demonstrava ser burro, fazendo aquela gente vender seus bois, pois assim eles teriam dificuldade em pagar suas dívidas naquele ano também, muito embora o tempo houvesse sido bom. Teve ganas de estrangular William.

      Outra violenta lufada de vento sacudiu a casa de estrutura de madeira. De repente, um lado do telhado começou a se deslocar; depois se levantou algumas polegadas, separando-se da parede, e pelo buraco Aliena viu o céu preto e os raios se sucedendo. Ficou de pé de um pulo quando o vento parou e o telhado caiu estrepitosamente sobre seus suportes. Aquilo estava ficando perigoso. Gritou para o padre, fazendo-se ouvir, apesar da tempestade:

      - Pelo menos vá abrir a porta da igreja!

      Ele ficou ressentido, mas obedeceu. Pegou uma chave na arca, enfiou uma capa, saiu e desapareceu na chuva. Aliena começou a organizar os outros.

      - Cárter, leve minha carroça e os bois para dentro da igreja. Ranulf, pegue os cavalos. Elizabeth, venha comigo.

      Puseram a capa e saíram. Era difícil caminhar em linha reta por causa do vento, e elas se deram as mãos para aumentar sua estabilidade. Foi com esforço que atravessaram o cemitério. A chuva virou granizo, e grandes pedras de gelo batiam nas lápides. Num canto Aliena viu uma macieira tão nua quanto no inverno; suas folhas e frutos haviam sido arrancados dos galhos pelo vento. Não haveria muitas maçãs no condado naquele inverno, pensou.

      Um momento depois atingiram a igreja e entraram. Fez-se um silêncio tão súbito que pareceu-lhes ter perdido a audição. O vento ainda uivava, a chuva tamborilava no telhado e a toda hora soava um trovão, mas tudo desapareceu de uma só vez. Alguns dos aldeões já estavam ali, as capas encharcadas. Tinham trazido consigo seus objetos de valor: as galinhas dentro de sacos, os porcos amarrados, as vacas em tirantes. Estava escuro dentro da igreja, a cena era iluminada pelos relâmpagos.

      Após alguns momentos, o carroceiro trouxe o carro de bois de Aliena, e Ranulf o seguiu com os cavalos.

      - Vamos pôr os animais no lado oeste e as pessoas no leste - disse Aliena ao padre -, antes que a igreja comece a parecer um estábulo. - Todos agora pareciam ter aceitado que Aliena assumisse o comando, e ele assentiu, balançando a cabeça. Os dois se afastaram, o padre falando com os homens e Aliena com as mulheres. Gradualmente as pessoas se separaram dos animais. As mulheres levaram as crianças para o pequeno coro, e os homens amarraram os animais nas colunas da nave. Os cavalos estavam assustados, girando os olhos, levantando e dobrando as patas dianteiras e baixando a garupa. Todas as vacas se deitaram. Os aldeões dispuseram-se em grupos familiares e começaram a servir comida e bebida. Tinham vindo preparados para uma longa estada.

      A tempestade era tão violenta que Aliena pensara ser passageira; porém, ficou ainda pior. Ela foi até uma janela. Claro que as janelas não eram de vidro, mas de linho fino e translúcido, agora esfrangalhado nas molduras. Aliena levantou o corpo até o peitoril, mas só conseguiu ver chuva.

      O vento ficou mais forte, soprando ruidosamente em torno das paredes da igreja, e ela começou a se perguntar se até mesmo aquela construção seria segura. Discretamente, deu uma volta. Passara bastante tempo com Jack para saber reconhecer a diferença entre um bom e um mau trabalho de cantaria, e sentiu-se aliviada ao ver que ali tudo era bem-feito. Não havia rachaduras. O prédio não era de cascalho, e sim de blocos de pedras cortadas, e parecia sólido como uma montanha.

      A governanta do padre acendeu uma vela, e foi nesse momento que Aliena percebeu que a noite caía lá fora. O dia fora tão escuro que a diferença era pouca. As crianças se cansaram de correr para cima e para baixo, embrulharam-se nas capas e foram dormir. As galinhas enfiaram a cabeça debaixo da asa.

      Elizabeth e Aliena sentaram-se lado a lado, com as costas apoiadas na parede.

      Aliena se consumia de curiosidade a respeito daquela pobre garota que assumira o papel de mulher de William, o papel que ela própria recusara há dezessete anos.

      - Conheci William quando era garota - disse, incapaz de conter-se. - Como ele é agora?

      - Eu o detesto - disse Elizabeth arrebatadamente. Aliena sentiu profunda comiseração por ela.

      - Como foi que você o conheceu? - quis saber a garota. Aliena deu-se conta de que se denunciara.

      - Para ser sincera, quando eu era mais ou menos da sua idade, esperavam que me casasse com ele.

      - Não! E como conseguiu não se casar?

      - Recusei-me a fazê-lo, e meu pai me apoiou. Mas houve uma confusão terrível... Causei um grande derramamento de sangue. No entanto, tudo agora faz parte do passado.

      - Você o recusou! - Elizabeth estava emocionada. - Você é tão corajosa! Queria ser como você...  - De repente ela pareceu deprimida de novo. - Mas não consigo me fazer respeitar nem pelos criados.

      - Mas poderia, sabe?

      - Como? Eles nem tomam conhecimento de minha existência, porque só tenho catorze anos.

      Aliena considerou o assunto com cuidado.

      - Para começar - respondeu -, você tem que se tornar a intérprete dos desejos do seu marido. De manhã, pergunte-lhe o que gostaria de comer naquele dia, quem gostaria de ver, que cavalo gostaria de montar, qualquer coisa em que possa pensar. Depois procure o cozinheiro, o mordomo, o cavalariço, e lhes dê as ordens do conde. Seu marido ficará agradecido a você, e furioso com quem quer que seja que a ignore. Assim as pessoas se acostumarão a fazer o que disser. Anote depois quem lhe obedecer de boa vontade e quem o fizer relutantemente. Assegure-se de que as pessoas que a ajudem sejam favorecidas - dê-lhes os trabalhos que preferirem -, e faça com que os que não forem prestativos recebam todo o trabalho sujo. Assim todos perceberão que vale a pena satisfazer a condessa. E também a amarão muito mais que a William, que não é mesmo fácil de ser amado. Um dia você acabará tendo o seu próprio poder, como acontece com a maioria das condessas.

      - Você faz parecer tão fácil!... - disse Elizabeth melancolicamente.

      - Não, não é fácil, mas se você for paciente e não se desencorajar com facilidade, será capaz de conseguir.

      - Acho que sim - disse ela com determinação. - Realmente acho que posso.

      Ao cabo de algum tempo as duas começaram a cochilar. De vez em quando, o vento soprava com mais força e acordava Aliena. Olhando em torno, à luz inconstante do lampião, viu que a maioria dos adultos estavam fazendo a mesma coisa, sentados, cochilando um pouco, acordando de repente.

      Deve ter sido por volta da meia-noite que acordou com um sobressalto e percebeu que dormira por uma hora ou mais daquela vez. Quase todo mundo à sua volta dormia a sono solto. Mudou de posição, deitando-se, e embrulhou-se na capa. A tempestade não cedera, mas a necessidade de sono das pessoas sobrepujara sua ansiedade. O barulho da chuva de encontro às paredes da igreja lembrava o barulho de ondas quebrando numa praia, e ao invés de conservá-la acordada fez com que dormisse.

      Mais uma vez acordou com um sobressalto. Quis saber o que a perturbara. Prestou atenção: silêncio. A tempestade cessara. Uma débil luz acinzentada se infiltrava através das janelas. Todos os aldeões dormiam profundamente.

      Aliena se levantou. O movimento que fez perturbou Elizabeth, que acordou instantaneamente.

      Ambas tiveram a mesma idéia. Dirigiram-se à porta da igreja, abriram-na e saíram.

      A chuva cessara, e o vento não passava de uma brisa. O sol ainda não nascera, mas o céu estava cinza-perolado. Aliena e Elizabeth olharam para um lado e para o outro, à luz clara e suave da madrugada.

      A aldeia desaparecera.

      Com exceção da igreja, não restara uma única construção de pé. Toda a área fora arrasada. Umas poucas vigas mais grossas estavam encostadas à parede da igreja, mas a não ser por isso, apenas as pedras das lareiras pontilhavam o mar de lama, mostrando onde antes houvera casas. Na periferia do que fora a vila, havia cinco ou seis árvores adultas, carvalhos e castanheiros, ainda de pé, embora todas parecessem ter perdido diversos galhos. Não havia sobrado nenhuma árvore menor.

      Atônitas com a extensão da ruína, Aliena e Elizabeth caminharam ao longo do que fora a rua. O chão estava juncado de pedaços de madeira e pássaros mortos. Elas chegaram ao primeiro dos campos de trigo. A impressão que dava era de que um rebanho enorme estivera preso ali a noite toda. Os pendões dos trigos que vinham amadurecendo tinham sido arrancados e levados embora pela enxurrada. A terra estava toda revolvida e encharcada.

      Aliena ficou horrorizada.

      - Meu Deus! - murmurou. - O que é que essa gente vai comer?

      Elas atravessaram o campo. Os danos eram os mesmos por toda parte. Galgaram uma colina baixa e examinaram a região lá de cima. Em todas as direções que olhavam viam colheitas arruinadas, carneiros mortos, árvores caídas, campinas alagadas e casas desmoronadas. A destruição era assustadora, e causou a Aliena uma terrível sensação de tragédia. Parecia, pensou, que a mão de Deus descera sobre a Inglaterra e se abatera sobre ela, destruindo tudo o que o homem construíra, exceto as igrejas.

      A devastação chocou também Elizabeth.

      - É terrível! - disse. - Não posso acreditar. Não sobrou nada!

      Aliena assentiu tristemente.

      - Nada - repetiu. - Não haverá colheita este ano.

      - O que o povo fará?

      - Não sei. - Sentindo um misto de compaixão e medo, Aliena acrescentou: - Vai ser um verão sangrento.

     

      Uma manhã, quatro semanas após a grande tempestade, Martha pediu mais dinheiro a Jack. Jack ficou surpreso. Já dera os seis pence da semana para as despesas da casa, e sabia que Aliena dava o mesmo. com esse dinheiro Martha tinha que alimentar quatro adultos e duas crianças, e suprir duas casas com lenha e palha; porém, havia um bom número de famílias grandes em Kingsbridge que dispunham apenas de seis pence por semana para tudo: roupa, comida e aluguel também. Perguntou porque precisava de mais.

      Martha ficou embaraçada.

      - Todos os preços subiram. O padeiro quer um penny por um pão de quatro libras, e...

      - Um penny! Por um pão de quatro libras? - Jack sentiu-se ultrajado. - Deveríamos construir um forno e assar nossos pães.

      - Bem, de vez em quando eu preparo um pão aqui em casa.

      - É mesmo. - Jack se lembrou de que na última semana tinham comido pão feito em casa dois ou três dias.

      - Mas o preço da farinha também subiu, de modo que não economizamos muito.

      - Deveríamos então comprar o trigo e moê-lo nós mesmos.

      - Não é permitido. Teríamos que usar o moinho do priorado. De qualquer forma, o trigo também está caro.

      - Naturalmente. - Jack reconheceu que estava sendo tolo. O pão estava caro porque a farinha estava cara, e a farinha estava cara porque o trigo estava caro, e o trigo estava caro porque a tempestade arruinara a safra, e não havia saída. Viu que Martha parecia transtornada. Ela sempre ficava muito perturbada ao achar que ele não estava satisfeito. Jack sorriu para demonstrar que tudo ia bem e bateu carinhosamente no seu ombro.

      - A culpa não é sua - disse.

      - Você parece tão aborrecido!

      - Não com você. - Ele se sentiu culpado. Sabia que Martha preferiria cortar a mão a enganá-lo. Não entendia realmente por que era tão devotada a ele. Se fosse por amor, certamente já teria se cansado, pois ela e o resto do mundo sabiam que Aliena era a paixão da sua vida. Uma vez chegara a pensar em mandá-la embora, para forçá-la a sair da rotina: desse modo talvez se apaixonasse por um homem adequado. Mas no íntimo sabia que iria ser uma atitude inútil e que só iria servir para torná-la desesperadamente infeliz. Por isso, deixou tudo como estava.

      Enfiou a mão dentro da túnica para pegar a bolsa e tirou três pennies de prata.

      - É melhor que você disponha de doze pence por semana. Veja se consegue resolver o problema com esse dinheiro - disse. Parecia muito. Seu salário era de apenas vinte e quatro pennies por semana, embora recebesse também benefícios eventuais, velas, mantos e botas.

      Engoliu o resto de um caneco de cerveja e saiu. Fazia um frio excepcional para o início do outono. O tempo ainda estava estranho. Percorreu a rua com passos rápidos e entrou no priorado. Ainda era madrugada e somente um punhado de artesãos se encontrava ali. Percorreu a nave, olhando as fundações. Estavam quase prontas, o que era uma sorte, pois o trabalho com argamassa provavelmente teria que ser interrompido mais cedo naquele ano por causa do tempo frio.

      Levantou os olhos para os novos transeptos. O prazer que sentia com sua própria criação era frustrado pelas rachaduras que tinham reaparecido no dia seguinte ao da grande tempestade. Jack ficou terrivelmente desapontado. Claro que fora uma tempestade fenomenal, mas sua igreja fora projetada para sobreviver a uma centena de tempestades daquelas. Sacudiu a cabeça, perplexo, e galgou a escada para a galeria. Gostaria de conversar com alguém que tivesse construído uma igreja similar, mas não havia ninguém na Inglaterra, e mesmo na França não tinham ido tão alto.

      Num impulso, não foi para a sala onde desenhava no chão; em vez disso, continuou subindo até o telhado. O chumbo fora todo colocado, e o pináculo que estivera bloqueando a vazão da água da chuva tinha agora uma generosa passagem correndo pela sua base. Ventava muito ali no telhado, e ele precisava segurar-se em alguma coisa sempre que se aproximava da beirada: não seria o primeiro construtor a morrer, derrubado do telhado por uma lufada de vento. O vento sempre parecia mais forte lá em cima do que no chão. Na verdade parecia aumentar desproporcionalmente à medida que se subia...

      Jack ficou parado, o olhar fixo no espaço. O vento aumentava desproporcionalmente à medida que se subia... Aí estava a resposta ao seu quebra-cabeça. Não era o peso da abóbada que estava causando as rachaduras, e sim sua altura. Construíra a igreja forte o bastante para sustentar o peso, estava seguro; mas não pensara no vento. Aquelas paredes tão altas eram constantemente fustigadas pelo vento, cuja força era suficiente para rachá-las. De pé em cima do telhado, sentindo a força do vento, podia imaginar o efeito que causava na estrutura tão tensamente equilibrada. Conhecia o edifício tão bem que quase podia sentir a resistência do material, como se as paredes fizessem parte do seu corpo. O vento empurrava a igreja de lado, tal como fazia com ele; e porque a igreja não podia ceder, rachava.

      Tinha certeza de que encontrara a explicação; mas o que ia fazer? Precisava reforçar o clerestório de modo que ele aguentasse o vento. Mas como? Construir volumosos arcobotantes de encontro às paredes destruiria o assombroso efeito de leveza e graça que conseguira com tanto êxito.

      Mas se isso era necessário para que o prédio se conservasse de pé, teria que fazê-lo.

      Desceu a escada de novo. Não se sentia rnais animado, embora tivesse finalmente compreendido o problema, pois parecia que a solução destruiria seu sonho. Talvez eu tenha sido arrogante, pensou. Estava tão seguro de que era capaz de construir a catedral mais bonita do mundo! Por que imaginei que podia me sair melhor do que qualquer outro construtor? O que me fez pensar que eu fosse especial? Eu devia ter copiado o projeto de outro mestre e ficado contente.

      Philip esperava por ele na sala de desenho. Havia uma expressão preocupada na fisionomia do prior, e o cabelo grisalho em torno da tonsura estava desarrumado. Tinha-se a impressão de que passara a noite toda acordado.

      - Temos que reduzir nossos gastos - disse, sem preâmbulos. - Simplesmente não dispomos de dinheiro para continuar a obra no ritmo atual.

      Jack receara aquilo. O furacão destruíra a colheita de quase todo o sul da Inglaterra: certamente teria consequências nas finanças do priorado. Cortes de despesas constituíam um assunto que o deixava ansioso. No íntimo achava que se a construção fosse tocada muito devagar ele poderia não viver para ver sua catedral pronta.

      Mas não deixou o medo transparecer.

      - O inverno vem aí - disse, em tom casual, - O trabalho sempre é reduzido no inverno, de qualquer modo. E o inverno vai chegar mais cedo este ano.

      - Não o bastante - disse Philip, melancólico. - Quero cortar nossas despesas pela metade, imediatamente.

      - Pela metade! - Parecia impossível.

      - A dispensa de inverno começa hoje.

      Aquilo era pior do que Jack antecipara. Os trabalhadores de verão normalmente iam embora nos primeiros dias de dezembro. Passavam os meses de inverno construindo casas de madeira ou fazendo arados e carroças, para suas famílias ou para ganhar dinheiro. Naquele ano suas famílias não ficariam satisfeitas ao vê-los.

      - Sabe que os está mandando para casas onde as pessoas já estão passando fome?

      Philip limitou-se a encará-lo, furioso.

      - Claro que sabe - disse Jack. - Desculpe ter perguntado.

      - Se eu não fizer isso agora - disse Philip enfaticamente -, num sábado, no meio do inverno, toda a força de trabalho entrará em fila para receber seu pagamento e mostrarei uma arca vazia.

      Jack deu de ombros.

      - Não há argumento contra isso.

      - E não é tudo - advertiu Philip. - De agora em diante não haverá mais contratações, nem mesmo para substituir gente que saia.

      - Há meses não fazemos contratações.

      - Você contratou Alfred.

      - Aquilo foi diferente - disse Jack, embaraçado. - De qualquer modo, nada de contratações.

      - Nem de promoções.

      Jack aquiesceu. De vez em quando um aprendiz ou servente pedia para ser promovido a pedreiro ou a cortador de pedras. Se os outros artesãos julgassem sua competência satisfatória, o pedido seria concedido e o priorado teria que lhe pagar um salário mais elevado.

      - As promoções - lembrou Jack - são prerrogativa da associação de pedreiros.

      - Não estou tentando alterar isso - disse Philip. - Só estou pedindo que os pedreiros adiem todas as promoções até que a crise passe.

      - Colocarei o seu pedido para eles - disse Jack, evitando comprometer-se. Tinha a impressão de que aquilo poderia causar problemas.

      Philip continuou a pressioná-lo.

      - De agora em diante não haverá trabalho nos dias santos. Havia um número excessivo de dias santos. Em princípio eram feriados, mas se os trabalhadores eram pagos ou não nos feriados era uma questão de negociar-se. Em Kingsbridge a regra era que, quando dois ou mais dias santos caíssem na mesma semana, o primeiro seria um feriado pago e o segundo, um dia de folga opcional não pago. A maioria dos homens preferia trabalhar no segundo. Agora, contudo, não teriam mais essa opção. O segundo dia santo passava a ser um feriado obrigatório sem direito a pagamento.

      Jack estava se sentindo pouco à vontade ante a perspectiva de explicar aquelas mudanças ao pessoal.

      - Essas determinações seriam mais bem aceitas se eu pudesse apresentá-las como assunto para discussão, em vez de algo já decidido.

      O prior sacudiu a cabeça.

      - Então eles pensariam que há abertura para negociações e que algumas propostas poderiam ser atenuadas. Iriam sugerir que se trabalhasse na metade dos feriados e que fosse permitido um número limitado de promoções.

      Ele estava certo, claro.

      - Mas não seria razoável? - perguntou Jack.

      - Claro que é razoável - respondeu Philip, irritado. - Só que não há margem para ajustamentos. Já estou preocupado, com medo de que essas medidas não sejam suficientes; não posso fazer concessão alguma.

      - Está bem - concordou o mestre construtor. Philip estava claramente disposto a não transigir naquele instante. - Há mais alguma coisa? - perguntou cautelosamente.

      - Sim. Pare de comprar material. Acabe com seu estoque de pedra, ferro e madeira.

      - A madeira é de graça! - protestou Jack.

      - Mas precisamos pagar o carreto até aqui.

      - É verdade. Está bem. - Jack foi até a janela e deu uma olhada nas pedras e nos troncos de árvores estocados no adro. Tratava-se de um ato reflexo: ele já sabia quanto tinha armazenado.

      - Isso não será problema - disse, após um instante de reflexão. - Com a força de trabalho reduzida temos material até o próximo verão.

      Philip suspirou, cansado.

      - Não há garantia de que empregaremos trabalhadores no próximo verão - disse. - Depende do preço da lã. É melhor avisá-los.

      Jack assentiu.

      - A situação está mesmo ruim, não é?

      - Pior do que jamais vi - disse Philip. - O que este país precisa é de três anos de bom tempo. E de um novo rei.

      - Amém - concordou Jack.

      Philip retornou à sua casa. O mestre construtor passou a manhã pensando em como enfrentar as mudanças. Havia dois modos de se construir uma nave: um intercolúnio de cada vez, começando no cruzeiro e trabalhando na direção oeste; ou camada por camada, assentando a base de toda a nave primeiro e depois subindo. O segundo processo era mais rápido, mas requeria mais pedreiros. Era o método que Jack tencionara usar. Agora reconsiderou. Construir um intercolúnio de cada vez era mais adequado a uma força de trabalho reduzida. Tinha outra vantagem, também: quaisquer modificações que introduzisse no projeto para levar em conta a resistência do vento poderiam ser testadas aos poucos.

      Jack ponderou também sobre os efeitos a longo prazo da crise financeira. O trabalho poderia ter seu ritmo reduzido cada vez mais, ao longo dos anos. Melancolicamente, viu-se ficando velho, fraco e de cabelo branco, sem concretizar a ambição da sua vida, acabando por ser enterrado no cemitério do priorado, à sombra de uma catedral não terminada.

      Quando o sino do meio-dia soou ele foi até o galpão dos pedreiros. Os homens estavam sentados para comer seu queijo com cerveja, e ele notou pela primeira vez que muitos não tinham pão. Pediu aos pedreiros que normalmente iam comer em casa que ficassem por um momento.

      - O priorado está ficando sem dinheiro - disse.

      - Nunca vi um priorado que não ficasse sem dinheiro um dia - disse um dos mais velhos.

      Jack olhou para ele. Era chamado de Edward Dois Narizes porque tinha no rosto uma verruga quase tão grande quanto o nariz. Era um bom cinzelador, com um talento especial para curvas exatas, e Jack sempre o usava para cilindros e fustes.

      - Vocês têm que admitir - disse o mestre construtor - que este lugar administra seu dinheiro melhor do que a maioria. Mas o prior Philip não pode impedir que haja temporais e safras ruins, e agora ele precisa reduzir seus gastos. Eu lhes falarei a respeito disso enquanto vocês comem. Em primeiro lugar, não vamos mais comprar suprimentos de pedra ou madeira.

      Os demais artífices vieram de seus galpões para escutar.

      - A madeira que temos não vai durar este inverno - disse Peter, um dos velhos carpinteiros.

      - Vai durar, sim - disse Jack. - Construiremos mais devagar, porque teremos menos artífices. A dispensa de inverno começa hoje.

      Ele viu na mesma hora que dera o aviso erradamente. Houve protestos de todos os lados, com vários homens falando ao mesmo tempo. Eu deveria ter dado a notícia aos poucos, pensou. Mas não tinha experiência com aquele tipo de coisa. Já era mestre há sete anos, mas nunca enfrentara uma crise financeira.

      A voz que se fez ouvir em primeiro lugar foi de Pierre Paris, um dos pedreiros que tinham vindo de Saint-Denis. Após seis anos em Kingsbridge o inglês que falava ainda não era perfeito, e a raiva acentuou mais o seu sotaque, porém ele não se desencorajou.

      - Você não pode dispensar os homens numa terça-feira - disse.

      - Isso mesmo - apoiou Jack Ferreiro. - Você tem que lhes dar até o fim da semana, no mínimo.

      Alfred concordou vivamente.

      - Lembro quando meu pai estava construindo uma casa para o conde de Shiring, e Will Hamleigh veio e demitiu todo mundo. Meu pai lhe disse para pagar a cada um dos homens o salário de uma semana e segurou a cabeça do seu cavalo até que ele deu o dinheiro.

      Obrigado por nada, Alfred, pensou Jack.

      - É bom que ouçam o resto - prosseguiu obstinadamente. - De agora em diante, não há trabalho nos dias santos nem promoções.

      Aquilo os enfureceu mais ainda.

      - Inaceitável - disse alguém.

      - Inaceitável, inaceitável - repetiram diversos outros.

      Jack se enfureceu.

      - De que estão falando? Se o priorado não tem dinheiro, não vão ser pagos. De que adianta ficar entoando "Inaceitável", "Inaceitável", como uma classe de garotos aprendendo latim?

      Edward Dois Narizes manifestou-se novamente.

      - Não somos uma classe de garotos e sim uma associação de pedreiros - disse. - A associação tem o direito de promoção, e ninguém pode tirá-lo.

      - E se não houver dinheiro para o pagamento do acréscimo correspondente à promoção? - retrucou Jack, irritado.

      - Não acredito nisso - disse um dos pedreiros mais jovens. Era Dan Bristol, um dos trabalhadores de verão. Não era habilidoso no corte das pedras, mas sabia assentá-las com muita precisão e ligeireza.

      - Como você pode  dizer que não  acredita nisso? - perguntou-lhe Jack. - O que sabe a respeito das finanças do priorado?

      - Sei o que vejo - disse Dan. - Os monges estão passando fome? Não. Há velas na igreja? Sim. Há vinho nos depósitos? Sim. O prior está descalço? Não. Então há dinheiro. Ele só não quer nos dar.

      Diversas pessoas concordaram em voz alta. Na verdade, ele estava enganado pelo menos num item, que era o do vinho; porém, ninguém acreditaria em Jack nesse momento - ele se tornara o representante do priorado. Aquilo não era justo: não podia ser o responsável pelas decisões de Philip.

      - Olhem - disse -, só estou repetindo o que o prior me disse. Não garanto que seja verdade. Mas se ele nos diz que não há dinheiro, e não acreditamos, o que podemos fazer?

      - Podemos todos parar de trabalhar - disse Dan. - Imediatamente.

      - Isso mesmo - disse outra voz.

      Aquilo estava ficando fora de controle, constatou Jack, em pânico. Procurou desesperadamente algo para dizer que esfriasse os ânimos.

      - Vamos voltar para o trabalho agora - disse -, e esta tarde tentarei persuadir o prior Philip a moderar seus planos.

      - Não acho que vá dar certo - disse Dan.

      Jack não podia acreditar que aquilo estivesse acontecendo. Antecipara muitas ameaças à construção da igreja dos seus sonhos, mas não previra que os artífices fossem sabotá-la.

      - Por que não deveríamos trabalhar? - indagou, incrédulo. - De que adiantaria?

      - Do jeito que as coisas estão, a metade de nós não tem certeza sequer de receber seu pagamento até o fim da semana.

      - O que é contra todo o costume e praxe - disse Pierre Paris. A expressão "costume e praxe" era muito usada nos tribunais.

      - Pelo menos trabalhem enquanto tento convencer Philip - disse Jack, desesperado.

      - Se trabalharmos - indagou Edward Dois Narizes -, você pode garantir que todos serão pagos a semana inteira?

      Jack sabia que não podia oferecer aquela garantia, com Philip no seu atual estado de espírito. Mas passou pela sua cabeça dizer sim de qualquer maneira, e pagar com seu próprio dinheiro, se necessário; contudo, percebeu imediatamente que nem todas as suas economias seriam suficientes para cobrir uma semana de salários.

      - Farei o melhor que puder para persuadi-lo, e acho que ele concordará.

      - Não é suficientemente bom para mim - disse Dan.

      - Nem para mim - disse Pierre.

      - Sem garantia, sem trabalho - declarou Dan.

      Para o desalento de Jack, todos pensavam da mesma forma. Percebeu que, se continuasse a se opor, perderia o resto de autoridade que lhe restava.

      - A associação deve agir como um homem só - disse, repetindo uma forma de falar muito usada. - Estamos todos a favor de parar com o trabalho?

      Houve um coro de assentimento.

      - Então, que assim seja - disse Jack melancolicamente. - Vou falar com o prior.

     

      O bispo Waleran entrou em Shiring seguido por um pequeno exército de criados. O conde William esperava por ele na entrada da igreja que dava para a praça do mercado.

      Hamleigh franziu a testa, intrigado: esperara um encontro para decidir sobre um canteiro de obras, não uma visita formal. O que estaria querendo agora aquele tortuoso bispo?

      Com Waleran estava um estranho, montado num animal castrado. Alto e esguio, tinha sobrancelhas negras e grossas e nariz grande, aquilino. A expressão escarninha do seu rosto parecia permanente. Cavalgava ao lado de Waleran, como se fossem iguais, mas não usava hábito de bispo.

      Quando desmontaram, Waleran apresentou o estranho.

      - Conde William, este é Peter de Wareham, um arcediago a serviço do arcebispo de Canterbury.

      Nenhuma explicação do que esse Peter está fazendo aqui, pensou William. Waleran trama alguma coisa. O arcediago fez uma reverência.

      - O seu bispo me falou sobre sua generosidade para com a Santa Madre Igreja, lorde William.

      Antes que William pudesse responder, Waleran apontou a igreja paroquial.

      - Aquele prédio será derrubado a fim de dar lugar à nova igreja, arcediago - disse ele.

      - Você já designou um mestre pedreiro? - perguntou Peter.

      William perguntou-se por que um arcediago de Canterbury estaria tão interessado na igreja paroquial de Shiring, mas achou que ele talvez estivesse apenas sendo polido.

      - Não, ainda não encontrei nenhum - disse Waleran. - Há muitos construtores procurando trabalho, mas não consigo encontrar ninguém de Paris. Parece que o mundo inteiro deseja igrejas como as de Saint-Denis, e os pedreiros que conhecem o estilo estão sob intensa demanda.

      - Isso pode ser importante - disse Peter.

      - Há um construtor que talvez seja capaz de ajudar; ele está esperando para nos ver mais tarde.

      Mais uma vez William ficou um pouco intrigado. Por que Peter achava importante construir no estilo de Saint-Denis?

      - A nova igreja será muito maior, é claro. Vai se projetar muito mais para a praça.

      William não gostou do ar de proprietário que Waleran estava assumindo.

      - Não posso ter a igreja incrustada na praça do mercado - interrompeu ele.

      Waleran pareceu ficar irritado, como se o conde tivesse falado fora de hora.

      - E por que não?

      - Cada polegada da praça faz dinheiro nos dias de mercado.

      Waleran estava disposto a discutir, mas Peter disse, com um sorriso:

      - Não podemos bloquear a fonte do dinheiro!

      - Isso mesmo - disse William. Era ele quem arcaria com os custos da construção da igreja. Por felicidade, a quarta má colheita fizera pouca diferença para a sua renda. Os camponeses mais humildes pagaram em espécie, e muitos deles tinham dado a William seu saco de trigo e um par de gansos, muito embora estivessem vivendo de sopa de bolota de carvalho. Além disso, o saco de trigo valia dez vezes mais que cinco anos antes, e o aumento de preço mais do que compensava os rendeiros que não haviam pago e os servos que tinham morrido de fome. Ele ainda tinha recursos para financiar a nova obra.

      Contornaram a igreja. Na parte de trás havia um conjunto de casas que gerava uma renda mínima.

      - Podemos avançar sobre este lado - disse William -, derrubando todas essas casas.

      - Mas são em sua maioria residências clericais - objetou Waleran.

      - Encontraremos outras casas para os religiosos.

      Embora Waleran parecesse ter ficado aborrecido, nada mais disse a respeito disso.

      No lado norte da igreja um homem de ombros largos e de cerca de trinta anos de idade fez uma reverência a eles. Pelo traje, William achou que fosse um artífice.

      O arcediago Baldwin, o colega mais íntimo do bispo, disse:

      - Este é o homem de quem lhe falei, milorde bispo. Seu nome é Alfred de Kingsbridge.

      À primeira vista não era um homem muito simpático: parecia mais um tipo bovino, grande, forte e burro. Contudo, examinando-se mais atentamente, percebia-se um ar de esperteza na sua cara, fazendo pensar num indivíduo astucioso ou dissimulado.

      - Alfred é o filho de Tom Construtor, o primeiro mestre de Kingsbridge - disse o arcediago Baldwin. - Ele próprio foi mestre por algum tempo, até que o irmão usurpou seu lugar.

      O filho de Tom Construtor. O homem que se casara com Aliena, lembrou William. Mas que nunca consumara o casamento.

      Olhou-o com agudo interesse. Nunca teria pensado que aquele homem fosse impotente. Parecia saudável e normal. Mas Aliena podia provocar estranhos efeitos num homem.

      - Você trabalhou em Paris, e aprendeu o estilo de SaintDenis? - estava perguntando o arcediago Peter.

      - Não...

      - Mas precisamos de uma igreja construída no novo estilo.

      - Estou trabalhando atualmente em Kingsbridge, onde meu irmão é o mestre. Ele trouxe o novo estilo de Paris, e o aprendi com ele.

      William perguntou-se como Waleran teria conseguido subornar Alfred sem despertar suspeitas; depois se lembrou de que o subprior de Kingsbridge, Remigius, era homem de Waleran. Remigius deveria ter feito a abordagem inicial..

      Lembrou-se de algo mais a respeito de Kingsbridge.

      - Mas o seu telhado desmoronou - disse a Alfred.

      - A culpa não foi minha - retrucou o filho de Tom. - O prior Philip insistiu numa mudança do projeto.

      - Conheço Philip - disse Peter, e havia veneno na sua voz. - Um homem teimoso e arrogante.

      - Como você o conhece? - perguntou Hamleigh.

      - Há muitos anos eu era monge no Mosteiro de St.-Johnin-the-Forest, quando Philip era o encarregado lá - disse Peter, com amargura. - Critiquei sua administração negligente e ele me nomeou esmoler para me tirar do caminho. - O ressentimento de Peter ainda era muito intenso, sem dúvida. Claro que se tratava de um fator importante no que quer que Waleran estivesse planejando.

      - Seja como for - disse William -, não quero contratar um construtor cujos telhados desmoronam, não importa quais sejam suas desculpas.

      - Sou o único mestre construtor em toda a Inglaterra que já trabalhou numa igreja do novo estilo, à exceção de Jack.

      - Não me importo com Saint-Denis - disse William. - Acredito que a alma de minha pobre mãe estará bem servida da mesma forma com uma igreja de desenho tradicional.

      Waleran e Peter trocaram um olhar.

      Após um instante o bispo dirigiu-se a William, falando baixo:

      - Um dia esta igreja poderá ser a Catedral de Shiring.

      Tudo se tornou claro para William. Muitos anos antes Waleran tramara a mudança da sede da diocese de Kingsbridge para Shiring, mas o prior Philip conseguira vencê-lo.

      Agora revivia o plano. Dessa vez, ao que parecia, resolvera seguir um caminho mais tortuoso. Antes simplesmente pedira ao arcebispo de Canterbury que atendesse seu pedido. Agora ia começar pela construção de uma nova igreja, grande e prestigiosa o bastante para ser uma catedral, e ao mesmo tempo cultivaria aliados como Peter dentro do círculo do arcebispo, antes de fazer seu pedido. Aquilo tudo estava bem planejado, mas William só queria construir uma igreja em memória da mãe, a fim de facilitar a passagem de sua alma pelo fogo eterno, e ressentiu-se com a tentativa de Waleran para usar tal idéia em benefício próprio. Por outro lado, seria tremendamente importante Shiring ter uma catedral, e William lucraria com isso.

      - Há algo mais - Alfred estava dizendo.

      - Sim? - disse Waleran.

      William olhou para os dois homens. Alfred era maior, mais forte e mais moço que o bispo, e poderia derrubá-lo com uma das suas mãos enormes atadas nas costas; no entanto, agia como se fosse ele a parte fraca naquele confronto. Anos antes William teria se encolerizado por ver um padre efeminado, de pele muito branca, dominando um homem forte, mas agora não se aborrecia mais com essas coisas; concluíra que o mundo era assim mesmo.

      Alfred baixou a voz.

      - Posso trazer toda a força de trabalho de Kingsbridge comigo - disse ele.

      Subitamente os três homens prestaram atenção.

      - Diga isso de novo - disse Waleran.

      - Se me contratarem como mestre construtor, trarei todos os artífices de Kingsbridge comigo.

      Waleran mostrou-se cauteloso.

      - Como podemos saber que está falando a verdade?

      - Não peço que confiem em mim - disse Alfred. - Dêem-me o emprego condicionalmente. Se não fizer o que estou prometendo, irei embora sem receber nada.

      Por razões diferentes, todos os três odiavam o prior Philip, e ficaram imediatamente encantados com a perspectiva de lhe aplicar tamanho golpe.

      - Alguns pedreiros trabalharam em Saint-Denis - acrescentou Alfred.

      - Mas como você pode trazê-los? - perguntou Waleran.

      - Isso interessa? Digamos que eles me preferem a Jack.

      William achou que o construtor estava mentindo, e Waleran pareceu pensar o mesmo, pois o fitou longamente. No entanto, aparentemente dissera a verdade antes. Qualquer que fosse razão, estava convencido de que poderia trazer os artífices de Kingsbridge consigo.

      - Se todos vierem com você - disse William -, o trabalho vai parar completamente em Kingsbridge.

      - Sim - concordou Alfred -, vai.

      William olhou para Waleran e Peter.

      - Precisamos conversar mais a esse respeito. É melhor que ele jante conosco.

      Waleran balançou a cabeça, concordando.

      - Siga-nos até a minha casa - disse a Alfred. - Fica no outro lado da praça do mercado.

      - Eu sei - disse Alfred. - Fui eu que a construí.

     

      Durante dois dias o prior Philip recusou-se a discutir a greve. Ficou sem fala, de tanta raiva, e sempre que via Jack simplesmente fazia uma volta e seguia na direção contrária.

      No segundo dia chegaram três carroças cheias de farinha de trigo de um dos moinhos externos do priorado. Vieram escoltadas por homens de armas: o trigo era tão precioso quanto ouro, naqueles dias. O carregamento foi recebido pelo irmão Jonathan, que era o assistente do despenseiro, trabalhando com o velho Cuthbert Cabeça Branca.

      Jack observou Jonathan contando os sacos. Achava que havia qualquer coisa de familiar no rosto do monge, como se ele se parecesse com alguém que Jack conhecia bem.

      Era alto e desengonçado, de cabelo castanho-claro - bem diferente de Philip, que era baixo, franzino e de cabelo preto; mas em todos os outros aspectos que não o físico, Jonathan era parecido com o homem que desempenhava o papel de seu pai: o rapaz tinha princípios e era determinado e ambicioso. Todos gostavam dele, a despeito de sua atitude um tanto rígida no que concernia à moralidade - tal como sentiam acerca de Philip.

      Com o prior se recusando a falar, uma palavra com Jonathan seria a segunda melhor coisa a fazer.

      Jack observou enquanto o monge pagava aos homens de armas e aos carroceiros. Era de uma eficiência serena, e quando os carroceiros pediram mais do que tinham direito, como sempre faziam, recusou calma mas firmemente. Ocorreu a Jack que uma educação monástica era uma boa preparação para a liderança.

      Liderança. As deficiências de Jack nessa área tinham sido plenamente reveladas. Deixara que um problema se transformase numa crise por ter lidado mal com seus homens. Todas as vezes em que pensava naquela reunião amaldiçoava sua inépcia.

      Quando os carroceiros se afastaram, resmungando, Jack caminhou casualmente lado a lado com Jonathan.

      - Philip está terrivelmente furioso com a greve - disse ele. Por um momento Jonathan deu a impressão de que falaria algo desagradável - ele próprio estava claramente furioso -, mas por fim seu rosto relaxou.

      - Ele parece furioso - comentou ele -, mas na verdade está magoado.

      Jack assentiu.

      - Ele leva o caso em nível pessoal.

      - Sim. Acha que os artífices o abandonaram em um momento crítico.

      - Suponho que foi mesmo o que fizeram, de certo modo - disse Jack. - Mas Philip cometeu um grande erro de julgamento tentando alterar o costume dos trabalhadores por decreto.

      - Que mais poderia ter feito? - retorquiu Jonathan.

      - Ter discutido a crise com eles, em primeiro lugar. Talvez houvessem sugerido algumas medidas econômicas. Mas não estou em condições de acusar o prior, porque cometi o mesmo erro.

      Isso aguçou a curiosidade de Jonathan.

      - Como?

      - Transmiti o programa de cortes aos homens da mesma maneira brusca e sem tato como Philip me comunicou.

      O jovem monge tinha vontade de se sentir ultrajado, tal qual o prior, pondo a culpa da greve na perfídia dos homens; porém, relutantemente, estava vendo o outro lado da moeda. Jack decidiu não falar mais nada. Plantara uma semente.

      Deixou o monge e retornou ao local onde desenhava. O problema, refletiu, enquanto apanhava os instrumentos de trabalho, é que o pacificador da cidade era Philip.

      Normalmente, era ele o juiz dos transgressores da lei e árbitro das controvérsias. Era desconcertante vê-lo como parte numa briga, furioso, amargo e inflexível.

      Outra pessoa teria que fazer as pazes daquela vez. E a única pessoa que Jack podia imaginar era si mesmo. Como mestre construtor, era o intermediário que podia falar com ambas as partes, e tinha uma motivação inquestionável - queria continuar construindo.

      Passou o resto do dia pensando em como deveria realizar aquela tarefa, e a pergunta que fez a si próprio vezes sem conta foi: O que Philip iria fazer?

      No dia seguinte sentiu-se pronto para defrontar-se com o prior.

      Era um dia frio e ventoso. Jack ficou rondando o canteiro de obras deserto no início da tarde, com o capuz da capa puxado para se manter seco, fingindo estudar as rachaduras do clerestório (um problema ainda não resolvido), e esperou até ver Philip sair do claustro e dirigir-se apressadamente para a sua casa. Quando entrou, Jack foi ao seu encontro.

      A porta estava sempre aberta. O mestre construtor bateu e entrou. Philip estava de joelhos em frente ao pequeno altar no canto. Era de pensar que já rezasse bastante, na igreja, a maior parte do dia e metade da noite, foi a idéia que veio à cabeça de Jack. Não havia fogo: o prior estava economizando. O construtor esperou silenciosamente até ele levantar e virar-se.

      - Isso tem que terminar - disse então.

      O rosto normalmente amável de Philip apresentou uma expressão dura.

      - Não vejo dificuldade alguma - declarou glacialmente. - Eles podem voltar ao trabalho a qualquer hora que queiram.

      - Nos seus termos.

      Philip limitou-se a fitar Jack.

      - Eles não vão voltar nos seus termos, e não vão esperar a vida inteira para que você veja a razão. - Jack apressou-se a acrescentar: - Ou o que pensam que é a razão.

      - Não vão esperar a vida inteira? Para onde irão quando se cansarem de esperar? Não vão encontrar trabalho em parte alguma. Pensam que este é o único lugar que está sofrendo com a crise? Pois ela assola toda a Inglaterra. Todos os canteiros de obras foram desativados.

      - Então você vai esperar que eles retornem rastejando, implorando perdão.

      Philip desviou o olhar.

      - Não quero fazer ninguém rastejar. Acredito que jamais tenha lhe dado motivo para esperar tal comportamento da minha parte.

      - Não, e é por isso que vim procurá-lo - disse Jack.  - Sei que  na verdade você não deseja humilhar aqueles homens; não é da sua natureza. E, além disso, se retornarem vencidos e ressentidos, trabalharão mal nos próximos anos. Então, tanto do meu ponto de vista quanto do seu, devemos permitir que saiam disso com a cabeça erguida... O que implica fazer concessões.

      Jack conteve a respiração. Fizera o seu grande discurso, e aquele era o momento decisivo. Se o prior não cedesse agora, o futuro seria negro.

      Philip fitou severamente Jack por um longo momento. Este viu a razão lutando com a emoção no rosto do prior. Finalmente sua expressão suavizou-se e ele disse:

      - É melhor sentarmos.

      Jack conteve um suspiro de alívio quando se sentou. Planejara o que diria a seguir: não ia repetir a espontânea falta de tato que exibira com os operários.

      - Não há necessidade de modificar a interrupção de compra de material - começou. - Da mesma forma, a suspensão da contratação de novos empregados pode ser mantida - ninguém faz objeções. Acho também que eles podem ser persuadidos a aceitar que não haverá trabalho nos dias santos, se ganharem concessões em outras áreas. - Parou para deixar que o prior digerisse suas palavras. Até então, dera tudo e não pedira nada.

      Philip assentiu.

      - Que concessões?

      O construtor respirou fundo.

      - Eles ficaram profundamente ofendidos com a sua proposta de proibir as promoções. Acham que está usurpando uma antiga prerrogativa da associação.

      - Expliquei a você que não foi essa minha intenção - disse o prior, num tom de voz exasperado.

      - Sim, sei disso - apressou-se a dizer Jack. - Claro que me explicou. E acreditei em você, mas eles não. - Pela expressão de Philip, via-se que ficara ofendido. Como uma pessoa podia não acreditar nele? Jack teve que se apressar novamente: - Mas isso pertence ao passado. Vou propor uma solução de compromisso que não lhe custará nada.

      O prior pareceu interessado.

      - Deixe que continuem a aprovar requerimentos de promoção - prosseguiu o construtor -, mas adie o pagamento correspondente por um ano. - E pensou: Ache alguma objeção a isso, se puder.

      - Eles aceitarão? - perguntou Philip ceticamente.

      - Vale a pena tentar.

      - E se eu continuar não podendo pagar os aumentos daqui a um ano?

      - Só atravesse a ponte quando chegar ao rio.

      - Você quer dizer renegociar dentro de um ano. Jack deu de ombros.

      - Se necessário.

      - Entendo - disse Philip. Indiferente. - Alguma coisa mais?

      - O maior obstáculo é a demissão dos trabalhadores de verão - Estava sendo completamente franco agora. Aquele assunto não podia ser abrandado. - A demissão imediata nunca foi permitida em nenhum canteiro de obras da cristandade. O prazo mínimo é o fim da semana. - Para ajudar Philip a se sentir menos tolo, acrescentou: - Eu devia ter-lhe avisado.

      - Então tudo o que tenho a fazer é empregá-los por mais dois dias?

      - Não creio que seja suficiente agora - disse Jack. - Se tivéssemos agido diferentemente desde o princípio, poderíamos nos safar com isso, mas agora eles vão querer mais, num acordo.

      - Sem dúvida você tem algo específico em mente.

      Jack tinha, e era a única concessão de verdade que pediria.

      - Estamos no começo de outubro. Normalmente demitimos os trabalhadores de verão no princípio de dezembro. Vamos atendê-los parcialmente e efetuar as demissões no início de novembro.

      - Isso só me dá metade do que preciso.

      - Mais que a metade. Você ainda se beneficia da liquidação dos estoques, do adiamento dos pagamentos relativos às promoções e dos dias santos.

      - Essas coisas são perfumaria.

      Jack recostou-se à cadeira, acabrunhado. Fizera o melhor possível. Não tinha mais argumentos para colocar perante Philip, nenhum outro recurso de persuasão, nada mais a dizer. Disparara sua flecha. E o prior ainda estava resistindo. O construtor preparou-se para reconhecer a derrota. Fitou o rosto impassível de Philip e aguardou.

      O religioso olhou para o altar por um longo momento. Finalmente voltou-se de novo para Jack.

      - Terei que apresentar essa questão ao cabido.

      O mestre construtor chegou a perder as forças, tão aliviado ficou. Não era uma vitória, mas chegava perto. Philip não pediria aos monges que decidissem sobre algo que ele próprio não aprovava, e com frequência eles faziam o que o prior queria.

      - Espero que aceitem - disse Jack, baixinho.

      Philip ergueu-se e pôs uma das mãos no ombro de Jack. Sorriu pela primeira vez.

         - Se eu apresentar o caso tão persuasivamente quanto você, eles aceitarão.

      Jack ficou surpreso com a súbita mudança de atitude.

      - Quanto mais cedo acabar, menos efeitos a longo prazo a greve terá - disse ele.

      - Eu sei. Isso tudo me deixou furioso, mas não quero brigar com você. - Inesperadamente, estendeu a mão.

      O construtor a apertou e sentiu-se bem.

      - Devo dizer aos homens que se reunam pela manhã, a fim de tomar conhecimento do veredicto do cabido?

      - Sim, por favor.

      - Farei isso agora. - E virou-se para sair.

      - Jack.

      - Sim?

      - Muito obrigado.

      O construtor balançou a cabeça e saiu. Caminhou pela chuva sem pôr o capuz. Sentia-se feliz.

      Naquela tarde, foi à casa de todos os artesãos e disse que haveria uma reunião pela manhã. Os que não estavam em casa - os solteiros e os trabalhadores de verão, principalmente -, encontrou na cervejaria. Sóbrios, contudo, pois o preço da cerveja subira juntamente com tudo mais, e ninguém podia se dar ao luxo de ficar bêbado. O único artesão que não pôde encontrar foi Alfred, que não era visto há cerca de dois dias. Mas acabou aparecendo ao crepúsculo. Entrou na cervejaria com uma expressão estranhamente triunfante na cara bovina. Não disse onde estivera, nem Jack perguntou. Este o deixou bebendo cerveja com os outros homens e foi cear com Aliena e as crianças.

      Na manhã seguinte, deu início à reunião antes que o prior Philip aparecesse. Queria cuidar das preliminares. Mais uma vez preparara o que tinha a dizer muito cuidadosamente, para se assegurar de que não perderia a questão por falta de tato. Mais uma vez tentou manejar as coisas como Philip teria feito.

      Todos os homens chegaram cedo. Seu meio de vida estava em jogo. Um ou dois dos mais jovens estavam com os olhos vermelhos: Jack supôs que a cervejaria ficara aberta até tarde na noite anterior, e alguns deles esqueceram sua pobreza por algum tempo. Os jovens e os trabalhadores temporários de verão eram os que mais provavelmente se mostrariam difíceis. Os operários mais idosos costumavam enxergar mais longe. A pequena minoria de mulheres era sempre cautelosa e conservadora, apoiando qualquer tipo de acordo.

      - O prior Philip vai nos pedir que voltemos ao trabalho e nos oferecer concessões para chegarmos a um acordo - começou Jack. - Antes de ele chegar, devemos discutir o que podemos estar preparados para aceitar, o que rejeitaremos em carater definitivo e o que estaremos dispostos a negociar. Precisamos  mostrar a Philip uma frente unida. Espero que todos vocês concordem.

      Umas poucas cabeças balançaram, em assentimento.

      Jack adotou um tom de voz ligeiramente irritado.

      - Do meu ponto de vista - disse ele - devemos recusar em caráter absoluto a demissão instantânea. - Deu um soco na bancada para enfatizar sua inflexibilidade. Diversas pessoas exprimiram sua concordância em voz alta. O construtor sabia que Philip certamente não faria aquela exigência. Queria que os mais exaltados se ocupassem defendendo aquela prática antiga, de modo que, quando Philip cedesse nesse ponto, eles se acalmassem.

      - Devemos também preservar o direito da associação de fazer promoções, pois apenas artesãos podem julgar se um homem tem ou não capacidade para ser promovido. - Mais uma vez ele estava sendo dissimulado. Procurava concentrar a atenção deles no aspecto não financeiro da promoção, na esperança de que quando ganhassem esse ponto estivessem prontos a transigir com os pagamentos.

      - Quanto ao trabalho nos dias santos, estou dividido entre duas idéias. Os feriados normalmente são negociados - não há um comportamento padronizado quanto a eles, que eu saiba. - Virou-se para Edward Dois Narizes e perguntou: - Qual é a sua opinião a respeito disso, Edward?

      - A maneira de proceder varia em cada canteiro de obra - respondeu ele, satisfeito por ter sido consultado. Jack balançou a cabeça, encorajando-o. Edward começou a recordar diversas maneiras de resolver a questão dos dias santos. A reunião estava se desenrolando exatamente como Jack queria. Uma discussão extensa de um ponto que não era muito controverso entediaria os homens e minaria suas energias para um confronto.

      Mas o monólogo de Edward foi interrompido por uma voz no fundo.

      - Tudo isso é irrelevante.

      Jack viu que quem falara fora Dan Bristol, um trabalhador de verão.

      - Um de cada vez, por favor - disse ele. - Vamos ouvir o que Edward tem a dizer.

      Dan não era afastado tão facilmente.

      - Nada disso interessa - disse ele. - O que queremos é um aumento.

      - Um aumento? - Jack ficou irritado com aquela pretensão absurda.

      Para sua surpresa, contudo, Dan tinha seguidores. Foi Pierre quem disse:

      - Isso mesmo, um aumento. Olhe: um pão de dois quilos custa um penny. Uma galinha, que antes custava oito pence, agora está por vinte e quatro! Aposto como nenhum de nós aqui bebe cerveja forte há semanas. Os preços estão subindo, mas quase todos ainda ganhamos o mesmo salário pelo qual fomos contratados, ou seja, doze pence por semana. Temos que alimentar nossa família com isso.

      Jack sentiu o coração ficar pequeno. Tinha conduzido tudo corretamente, mas aquela interrupção arruinara sua estratégia. Conteve-se, no entanto, evitando opor-se a Dan e a Pierre, porque sabia que teria mais influência se parecesse ser compreensivo.

 

      - Concordo com vocês dois - disse, para evidente surpresa de ambos. - A questão é: que chance temos de persuadir Philip a nos dar um aumento quando o priorado está sem dinheiro?

      Ninguém respondeu.

      - Precisamos de vinte e quatro pence por semana para permanecermos vivos - disse Dan -, e mesmo assim ainda estaremos em piores condições do que antes.

      Jack ficou atônito: por que a reunião estava fugindo ao seu controle?

      - Vinte e quatro pence por semana - repetiu Pierre, e diversos outros balançaram a cabeça, concordando.

      Ocorreu a Jack que ele podia não ser a única pessoa que viera à reunião com uma estratégia preparada. Olhando duro para Dan, perguntou:

      - Vocês discutiram esse assunto antes?

      - Sim, ontem à noite, na cervejaria - respondeu Dan desafiadoramente. - Há algo de errado nisso?

      - Certamente que não. Mas em benefício dos que não tiveram o privilégio de comparecer a essa reunião, você poderia resumir suas conclusões?

      - Muito bem. - Os homens que não tinham estado na cervejaria pareceram ficar ressentidos, mas Dan não demonstrou o menor arrependimento. No instante exato em que abriu a boca, Philip entrou. Jack dirigiu-lhe um rápido olhar e viu que o prior parecia feliz. Ele balançou a cabeça quase imperceptivelmente. Jack sentiu-se exultante: os monges tinham aceitado as condições do acordo. Abriu a boca para impedir que Dan falasse, mas atrasou-se por um segundo. - Queremos vinte e quatro pence por semana para os artífices - disse Dan, alto e claro. - Doze pence para os serventes e quarenta e oito para os mestres.

      Jack olhou de novo para Philip. A alegria desaparecera, e mais uma vez seu rosto exibia a expressão dura do confronto anterior.

      - Espere um momento - disse Jack. - Essa não é a opinião da associação como um todo. É uma exigência tola inventada por uma facção de bêbados na cervejaria.

      - Não, não é - disse uma nova voz. Era Alfred. - Acho que você vai descobrir que a maioria dos trabalhadores apoia a exigência de dobrar o salário.

      Jack o encarou furioso.

      - Há poucos meses você me implorou um emprego - disse. - Agora está exigindo o salário em dobro. Eu devia ter deixado que morresse de fome!

      - É o que vai acontecer com todos vocês, se não ouvirem a voz da razão! - exclamou Philip.

      Jack tentara desesperadamente evitar observações desafiadoras, mas agora não via alternativa: sua estratégia falhara por completo.

      - Não voltaremos ao trabalho por menos de vinte e quatro pence e pronto - disse Dan.

      - Isso está fora de questão - disse Philip. - É um sonho tolo. Não vou nem mesmo discuti-lo.

      - E nós também não vamos discutir mais nada - disse Dan.

      - Não trabalharemos por menos, sejam quais forem as circunstâncias.

      - Mas isso é estupidez! - exclamou o construtor. - Como você pode ficar aí sentado e dizer que não trabalhará por menos? Não trabalhará de modo algum, seu idiota. Vocês não têm outro lugar para onde ir!

      - Não temos? - contrapôs Dan. Todos ficaram em silêncio.

      Oh, Deus, pensou Jack, desesperado. É isso; eles têm uma alternativa.

      - Nós temos outro lugar para onde ir - disse Dan, levantando-se. - E, quanto a mim, estou indo para lá agora.

      - De que você está falando? - perguntou Jack. A expressão de Dan era de triunfo. - Recebi uma oferta para trabalhar em Shiring. Na construção da nova igreja. A vinte e quatro pence por semana.

      Jack relanceou os olhos por todos.

      - Alguém mais recebeu a mesma oferta?

      Eles baixaram a cabeça, envergonhados.

      - Todos nós recebemos - disse Dan.

      O mestre construtor sentiu-se devastado. A coisa toda tinha sido organizada. Ele fora traído. Sentiu-se tão tolo quanto injustiçado. Enganara-se completamente ao avaliar a situação. A mágoa se transformou em raiva, e ele procurou alguém a quem culpar.

      - Qual de vocês? - gritou. - Qual de vocês é o traidor? - Poucos foram capazes de encará-lo, mas a vergonha deles não lhe serviu de consolo. Sentia-se como um amante traído. Quem trouxe essa oferta de Shiring? - gritou.

      - Quem vai ser o mestre construtor em Shiring? - Seu olhar examinou um por um e veio pousar em Alfred. Claro. Sentiu-se enojado. - Alfred? - perguntou sarcasticamente. - Vocês estão me deixando para trabalhar com Alfred?

      Silêncio.

      - Sim, estamos - disse Dan finalmente.

      Jack reconheceu que fora derrotado.

      - Então, que seja assim - disse, amargurado. - Vocês me conhecem e conhecem meu irmão, e preferiram Alfred. Vocês conhecem o prior Philip e conhecem o conde William, e preferiram William. Só me resta dizer que merecem tudo o que vão conseguir.

     

      - Conte-me uma história - pediu Aliena. - Você nunca mais me contou histórias. Lembra como antigamente você contava?

      - Lembro - disse Jack.

      Os dois estavam em sua clareira secreta, na floresta. Era final de outono, de modo que em vez de se sentarem à sombra, ao lado do regato, tinham acendido uma fogueira no abrigo de uma rocha. A tarde estava fria, cinzenta e escura, mas fazer amor os aquecera e o fogo crepitava alegremente. Ambos estavam nus sob as capas.

      Jack abriu a capa de Aliena e tocou no seu seio. Ela achava que tinha os seios grandes demais, e se sentia triste por ver que não eram mais tão altos e firmes como antes de ter as crianças, mas Jack parecia gostar deles do mesmo modo, o que era um grande alívio.

      - Era uma vez uma princesa que vivia no topo de um grande castelo - disse ele, tocando delicadamente no mamilo. - E um príncipe, que vivia no topo de outro grande castelo. - E tocou no outro. - Todos os dias eles se olhavam das janelas de suas prisões, e ansiavam por cruzar o espaço que os separava. - A mão dele descansou entre os seios e deslocou-se subitamente para baixo. - Mas todas as tardes de domingo eles se encontravam na floresta! - Ela gritou, assustada, e depois riu de si própria.

      Aquelas tardes de domingo eram os momentos dourados de uma vida que se desmoronava rapidamente.

      A safra ruim e o colapso do preço da lã causaram uma devastação econômica. Mercadores se viram arruinados, os habitantes da cidade perderam seus empregos, e os camponeses passavam fome. Jack ainda ganhava um salário, afortunadamente: com um punhado de artífices estava construindo aos poucos o primeiro intercolúnio da nave. Mas Aliena suspendera quase que inteiramente a fabricação de tecidos. E as coisas eram piores ali do que no resto do sul da Inglaterra, devido ao modo como William estava reagindo à crise.

      Para Aliena aquele era o aspecto mais doloroso da situação. Hamleigh desejava gananciosamente dinheiro para construir a nova igreja em Shiring, a igreja dedicada à memória da sua mãe, a perversa e meio louca Regan Hamleigh. Expulsara tantos rendeiros por atraso no pagamento que algumas das melhores terras do condado não eram mais cultivadas, o que agravava a falta de cereais. Ele próprio, contudo, estocara trigo para fazer o preço subir ainda mais. Tinha poucos empregados e ninguém para alimentar, de modo que lucrava com a crise, a curto prazo. Mas a longo prazo estava causando um dano irreparável à propriedade e à sua capacidade de alimentar as pessoas que ali habitavam. Aliena se lembrava do condado sob o governo de seu pai, um condado rico de terras férteis e cidades prósperas, e essa lembrança lhe partia o coração.

      Por alguns anos quase tinha se esquecido dos votos que formulara, junto com o irmão, perante o pai moribundo. Desde que William Hamleigh fora nomeado conde e ela tivera seu primeiro filho, a idéia de Richard reconquistar o condado havia se tornado uma fantasia remota. O próprio Richard se adaptara às funções de chefe da vigilância.

      Tinha inclusive se casado com uma garota da cidade, a filha de um carpinteiro, embora lamentavelmente a pobrezinha, que não desfrutava de boa saúde, houvesse morrido no ano anterior sem lhe ter dado filhos. Desde o início da crise, Aliena começara a pensar de novo no condado. Sabia que, se Richard fosse o conde, com sua ajuda poderia fazer muita coisa para aliviar o sofrimento geral. Mas era um sonho: William era bastante favorecido pelo rei Estêvão, que estava levando vantagem na guerra civil, e não havia perspectiva de mudanças.

      No entanto, todos aqueles desejos contrariados se desvaneciam na clareira secreta, quando Aliena e Jack se deitavam na grama para fazer amor. Desde o início eles tinham sido ávidos do corpo um do outro - Aliena jamais se esqueceria de como ficara chocada com sua própria luxúria, no começo -, e mesmo agora, quando já estava com trinta anos e a maternidade alargara seus quadris e tornara flácida sua barriga, Jack ainda sentia tanto desejo por ela, que faziam amor três ou quatro vezes cada domingo.

      Agora o gracejo dele a respeito da floresta se transformou numa carícia deliciosa, e Aliena puxou-lhe o rosto para beijá-lo; então ouviu uma voz.

      Ambos ficaram imóveis. A clareira se encontrava a uma certa distância da estrada, escondida por uma moita densa: nunca eram interrompidos, a não ser por um cervo ocasional ou uma raposa afoita. Contiveram a respiração, atentos. A voz se fez ouvir de novo, e foi seguida por outra diferente. Aguçando mais a audição, perceberam um burburinho, como se houvesse um grande grupo de homens se deslocando através da floresta.

      Jack encontrou suas botas, que estavam no chão. Deslocando-se silenciosamente, foi até o regato, a poucos passos, encheu uma delas com água e esvaziou-a na fogueira.

      As chamas desapareceram com um chiado e uma nuvem quase insignificante de fumaça. Jack desapareceu sem um ruído por entre a vegetação, engatinhando.

      Aliena vestiu a camisa de baixo, a túnica e as botas, e depois se embrulhou de novo na capa.

      Jack retornou tão silenciosamente quanto se fora.

      - São fora-da-lei - disse.

      - Quantos? - sussurrou ela.

      - Uma porção. Não pude ver todos.

      - Para onde estão indo?

      - Kingsbridge. - Ele ergueu uma das mãos. - Ouça.

      Aliena inclinou a cabeça. Muito ao longe, ouviu o sino do priorado batendo rápida e incessantemente, avisando o perigo. O coração dela falhou uma batida.

      - Oh, Jack! As crianças!

      - Poderemos chegar antes dos fora-da-lei se cruzarmos o Muddy Bottom e vadearmos o rio perto do bosque de castanheiras.

      - Vamos depressa, então!

      Jack a conteve, segurando-a pelo braço, e escutou por um instante. Na floresta sempre conseguia ouvir coisas que Aliena não ouvia. Afinal, fora criado ali. Ela aguardou.

      - Acho que todos já passaram - disse ele, afinal.

      Deixaram a clareira. Em poucos momentos chegaram à estrada. Não havia ninguém à vista. Atravessaram-na e passaram por dentro da floresta, seguindo uma trilha quase imperceptível. Aliena deixara Tommy e Sally com Martha, brincando de jogo das nove pedras em frente a um belo e reconfortante fogo.

      Não tinha bem certeza de qual seria o perigo, mas seu pânico era de que pudesse acontecer alguma coisa antes de retornar para junto das crianças. Correram quando possível, mas para frustração de Aliena o terreno era quase todo muito irregular, de modo que o melhor que podia fazer era trotar enquanto Jack se deslocava com largas passadas. Aquele caminho era muito mais difícil que a estrada por onde costumavam se deslocar, mas era muito mais rápido.

      Desceram escorregando a encosta íngreme do Muddy Bottorn. Forasteiros descuidados ocasionalmente morriam naquele lodaçal, mas não havia perigo em atravessá-lo para quem conhecia o caminho. Mesmo assim, a lama pareceu agarrar os pés de Aliena, retendo-a longe de Tommy e Sally. Na extremidade do Muddy Bottom havia um vau. A água fria subiu-lhe até os joelhos e lavou-lhe a lama dos pés.

      Dali em diante o caminho era reto. O sino de alarme soava cada vez mais alto, à medida que se aproximavam da cidade. Qualquer que fosse o perigo representado pelos fora-da-lei, pelo menos Kingsbridge tinha sido alertada com antecedência, pensou Aliena, tentando se animar. Quando ela e Jack saíram da floresta na campina entre o rio e Kingsbridge, vinte ou trinta jovens que haviam estado jogando futebol numa aldeia próxima chegaram ao mesmo tempo, gritando estridentemente e suando apesar do frio.

      Atravessaram a ponte correndo. O portão já estava fechado, mas as pessoas que guarneciam as fortificações os tinham visto e reconhecido, e, quando se aproximaram, uma portinhola foi aberta. Jack fez valer sua posição e obrigou os garotos a deixar que ele e Aliena entrassem em primeiro lugar. Baixaram a cabeça e passaram pela pequena porta. Aliena sentiu-se profundamente aliviada por ter voltado à cidade antes da chegada dos fora-da-lei.

      Ofegando com o exercício, subiram correndo a rua principal. Os habitantes da cidade se dirigiam para as muralhas com lanças, arcos e pilhas de pedras para serem arremessadas. As crianças estavam sendo cercadas e levadas para o priorado. Martha já deveria ter ido para lá, com Tommy e Sally, decidiu Aliena. Ela e Jack foram direto para o adro.

      No pátio da cozinha, Aliena viu - para seu assombro Ellen, a mãe de Jack, esbelta e bronzeada como sempre, mas com o cabelo comprido grisalho e rugas em torno dos olhos, aos quarenta e quatro anos de idade. Estava conversando animadamente com Richard. O prior Philip encontrava-se a uma certa distância, dirigindo as crianças para a casa do cabido. Não parecia ter visto Ellen.

      Nas proximidades estavam Martha com Tommy e Sally. Aliena suspirou aliviada e abraçou as duas crianças.

      - Mãe! - exclamou Jack. - Por que está aqui?

      - Vim avisar vocês que um bando de fora-da-lei está a caminho. Vão atacar a cidade.

      - Nós os vimos na floresta - disse Jack. Richard teve sua atenção despertada.

      - Você os viu? Quantos homens?

      - Não estou bem certo, mas parecia muita gente, pelo menos umas cem pessoas, talvez mais.

      - Que tipo de armas?

      - Porretes. Facas. Uma machadinha ou duas. Principalmente porretes.

      - Que direção?

      - Ao norte daqui.

      - Obrigado! vou dar uma olhada da muralha.

      - Martha - disse Aliena -, leve as crianças para a casa do cabido. - Ela seguiu Richard, tal como Jack e Ellen.

      Enquanto percorriam apressadamente as ruas, todos perguntavam a Richard:

      - O que é?

      - Fora-da-lei - respondia ele sucintamente, sem diminuir o passo.

      Aqueles eram os melhores momentos de Richard, pensou Aliena. Se lhe pedissem que saísse e ganhasse o pão de cada dia, seria um inútil; mas numa emergência militar era frio, controlado e competente.

      Chegaram à parede norte da cidade e galgaram a escada para o parapeito. Havia montes de pedras para serem jogadas nos atacantes, colocados a intervalos regulares.

      Habitantes da cidade armados de arcos e flechas já tomavam posição nas ameias. Algum tempo antes Richard persuadira o conselho da cidade a realizar exercícios de emergência uma vez por ano. Houvera muita resistência à idéia no princípio, mas se tornara um ritual, como as festas de entrada do verão, e todos gostavam. Agora os seus verdadeiros benefícios estavam aparecendo: o povo da cidade reagira rápida e confiantemente ao som do alarme.

      Aliena, atemorizada, olhou por cima dos campos, na direção da floresta. Não podia ver nada.

       - Vocês devem ter chegado aqui muito antes deles - disse Richard.

      - Por que estão vindo para cá? - perguntou sua irmã.

      - Os depósitos do priorado - respondeu Ellen. - Este é o único lugar em muitas milhas onde há comida.

      - Sim, claro! - Os fora-da-lei eram pessoas famintas, expulsas de suas terras por William, sem ter outro meio de vida senão o roubo. Nas aldeias indefesas pouco ou nada havia para roubar: os camponeses não estavam em muito melhor situação que os fora-da-lei. Somente nos celeiros dos proprietários da terra havia alimentos em quantidade.

      Enquanto pensava nisso, ela os viu.

      Emergiram da orla da floresta como ratos abandonando uma pilha de feno em chamas. Espalharam-se pelo campo na direção da cidade, vinte, trinta, cinquenta, uma centena deles, um pequeno exército. Provavelmente tinham esperado pegar a cidade desprevenida e passar pelos portões, mas quando ouviram o sino tocando o alarme perceberam que estavam sendo esperados. Mesmo assim prosseguiram, com o desespero dos famintos. Um ou dois arqueiros arremessaram suas flechas prematuramente, e Richard mandou que esperassem, para não desperdiçá-las.

      Na última vez em que Kingsbridge fora atacada, Tommy estava com dezoito meses de idade e Aliena esperava Sally. Refugiara-se no priorado, junto com os mais velhos e as crianças. Dessa vez ficaria nas ameias e ajudaria a rechaçar o perigo. A maior parte das outras mulheres se sentia do mesmo modo: havia quase tantas mulheres quanto homens na muralha.

      Mesmo assim, Aliena sentiu-se dividida quando os fora-da-lei se aproximaram. Estava perto do priorado, mas era possível que os atacantes conseguissem romper a defesa em algum outro ponto da muralha e chegassem ao priorado antes dela. Ou podia se ferir no combate e ficar impossibilitada de socorrer os filhos. Jack estava lá, e Ellen também; se fossem mortos, restaria apenas Martha para tomar conta de Tommy e Sally. Aliena hesitou, indecisa.

      Os proscritos estavam quase na muralha. Uma chuva de flechas caiu sobre eles, e dessa vez Richard não disse aos arqueiros que esperassem. Os atacantes foram dizimados.

      Não tinham armaduras para se proteger. Não havia também organização alguma. Ninguém planejara o ataque. Eram como animais disparados, lançando-se contra a muralha.

      Quando chegavam junto a ela, não sabiam o que fazer. Os habitantes da cidade os bombardearam com pedras, de cima das ameias. Diversos fora-da-lei atacaram o portão norte com porretes. Aliena sabia como era grossa aquela porta de carvalho guarnecida de ferro: seria preciso toda uma noite para derrubá-la. Enquanto isso, Alf Açougueiro e Arthur Seleiro levavam um caldeirão de água fervente da cozinha de alguém para a muralha, acima do portão.

      Diretamente abaixo de Aliena, um grupo de fora-da-lei começou a formar uma pirâmide humana. Jack e Richard se puseram imediatamente a jogar pedras neles. Pensando nos filhos, Aliena fez o mesmo, e Ellen a imitou. Os desesperados fora-da-lei aguentaram a chuva de pedras por algum tempo; depois, alguém foi atingido na cabeça, a pirâmide ruiu e eles desistiram.

      Ouviram-se gritos de dor um momento mais tarde, quando a água fervente foi despejada sobre a cabeça dos homens que atacavam a porta.

      Então alguns dos proscritos perceberam que seus camaradas mortos e feridos eram presa fácil, e começaram a desnudar-lhes o corpo. Irromperam brigas com aqueles que não estavam tão seriamente feridos, e grupos rivais de saqueadores disputaram as coisas dos mortos. Uma carnificina, pensou Aliena; uma carnificina revoltante e vergonhosa. Os habitantes da cidade pararam de jogar pedras quando o ataque terminou, e os atacantes brigaram entre si como cães por causa de um osso.

      Aliena voltou-se para Richard.

      - Eles são desorganizados demais para representarem uma verdadeira ameaça - disse.

      Ele concordou.

      - Com um pouco de ajuda poderiam ser muito perigosos, porque estão desesperados. Mas do jeito como se encontram, não têm liderança.

      Aliena teve uma súbita idéia.

      - Um exército esperando por um líder - disse. Richard não reagiu, mas ela ficou animada. Seu irmão era um bom líder que não tinha exército. Os fora-da-lei eram um exército sem líder. E o condado estava se desmoronando...

      Alguns dos defensores continuaram a atirar pedras e a lançar flechas nos proscritos, e mais alguns deles foram derrubados. Aquele foi o desencorajamento final, e eles começaram a bater em retirada, como uma matilha de cães com o rabo entre as pernas, olhando por cima dos ombros pesarosamente. Alguém abriu então o portão norte, e uma multidão de rapazes, brandindo espadas e machados, saiu correndo atrás dos retardatários. Os fora-da-lei procuraram fugir, mas alguns foram alcançados e chacinados.

      Ellen virou-se, enojada.

      - Você devia ter impedido aqueles rapazes de perseguir os atacantes - disse ela a Richard.

      - Os jovens precisam ver um pouco de sangue, após um combate como este - retrucou ele. - E, além do mais, quanto mais matarmos agora, menos nos atacarão da próxima vez.

      Era uma filosofia de soldado, pensou Aliena. No tempo em que tinha sua vida ameaçada todos os dias, provavelmente seria como aqueles rapazes, e correria atrás dos fora-da-lei a fim de matá-los. Agora desejava terminar com as causas daquela situação, e não com os fora-da-lei propriamente ditos. Além disso, imaginara um modo de usá-los.

      Richard mandou que alguém tocasse o sinal de fim de alarme no sino do priorado e deu instruções para que fosse dobrada a vigilância durante a noite, com patrulhas de guardas além das sentinelas. Aliena dirigiu-se ao priorado e recolheu Martha e as crianças. Todos foram se encontrar de novo na casa de Jack.

      Ficou satisfeita por estarem todos juntos: ela, Jack, seus filhos, a mãe de Jack, Richard e Martha. Quase como uma família comum; por pouco Aliena poderia esquecer que seu pai morrera numa masmorra, que era legalmente casada com o filho do padrasto de Jack, que Ellen era uma fora-da-lei, e...

      Balançou a cabeça. Não adiantava fingir que se tratava de uma família normal.

      Jack apanhou uma jarra de cerveja no barril e a serviu em copos grandes. Todos se sentiam tensos e excitados após o perigo. Ellen atiçou o fogo, e Martha cortou nabos numa panela, começando a fazer uma sopa para a ceia. Um dia eles poriam meio porco no fogo para uma ocasião como aquela.

      Richard bebeu uma cerveja num longo gole e, enxugando a boca, disse:

      - Vamos ver ainda mais desse tipo de coisa antes do fim do inverno.

      - Eles deviam assaltar os depósitos de víveres do conde William, e não os do prior Philip - afirmou Jack. - Foi William quem deixou essas pessoas sem recursos.

      - Não terão mais sucesso contra William do que tiveram contra nós, a menos que aperfeiçoem suas táticas. São como uma matilha de cães.

      - Precisam de um líder - disse Aliena.

      - Reze para que nunca o tenham! - disse Jack. - Então seriam realmente perigosos.

      - Um líder poderia fazê-los atacar a propriedade de William em vez da nossa - afirmou Aliena.

      - Não estou entendendo - disse  Jack. - Um líder iria fazer isso?

      - Iria, se fosse Richard.

       Todos ficaram em silêncio.

      A idéia se desenvolvera na mente de Aliena e agora ela estava convicta de que daria certo. Poderiam cumprir o prometido com Richard destruindo William e tornando-se conde, e o condado poderia ter restauradas sua paz e prosperidade... Quanto mais pensava nisso, mais animada ficava.

      - Havia mais de uma centena de homens naquela turba que nos atacou hoje - disse, virando para Ellen. - Quantos mais há na floresta?

      - Não dá para contar - respondeu Ellen. - Centenas. Milhares.

      Aliena inclinou-se sobre a mesa da cozinha e encarou Richard.

      - Seja o líder deles - disse convictamente. - Organize-os. Ensine-os a lutar. Faça planos de ataque. Depois os faça entrar em ação...  contra William.

      Enquanto falava, dava-se conta de que estava lhe dizendo para pôr sua vida em perigo, e tremeu de medo. Em vez de reconquistar o condado, ele podia ser morto.

      Mas Richard não teve tais receios.

      - Por Deus, Allie, talvez você tenha razão! Eu poderia ter um exército meu e liderá-lo contra William.

      A irmã viu em seu rosto o ressurgir de um ódio alimentado há muito tempo, e notou novamente a cicatriz na sua orelha esquerda, onde o lobo fora cortado. Reprimiu a lembrança infame que ameaçava lhe assomar à mente.

      Richard estava se entusiasmando com a idéia.

      - Eu poderia atacar os rebanhos de William - disse, com satisfação. - Roubar suas ovelhas, caçar seus cervos, arrombar seus celeiros, apossar-me de seus moinhos. Meu Deus, eu poderia fazer aquele canalha sofrer, se tivesse um exército.

      Richard sempre fora um soldado, pensou Aliena: era a sua sina.

      A despeito do medo que sentia pela segurança do irmão, emocionava-se com a perspectiva de que ainda podia ter outra chance para cumprir seu destino.

      Ele se lembrou de um problema.

      - Mas como posso encontrar os fora-da-lei? Eles sempre se escondem.

      - Posso responder a isso - disse Ellen. - Seguindo-se pela estrada de Winchester há uma trilha fora de uso que dá numa antiga pedreira. É onde se escondem. Antes era chamada de Pedreira de Sally.

      A pequena Sally, com sete anos, reclamou:

      - Mas não tenho nenhuma pedreira!

      Todos riram.

      Em seguida ficaram em silêncio novamente. Richard estava exuberante e determinado.

      - Muito bem - disse, com firmeza. - A Pedreira de Sally.

     

      - Nós tínhamos trabalhado duro a manhã inteira, arrancando um enorme toco de árvore em cima de uma colina - disse Philip. - Quando voltamos, meu irmão Francis estava no cercado das cabras, segurando você no colo. Tinha um dia, apenas.

      A expressão de Jonathan era grave. Aquele era um momento solene para ele. Philip examinou o Mosteiro de St.-John-in-the-Forest. Não havia muita floresta à vista agora: através dos anos os monges haviam derrubado muitos acres, e a construção era cercada por campos. Havia mais edifícios de pedra - a casa do cabido, um refeitório e um dormitório -, além de uma porção de celeiros e cocheiras de madeira, menores. Nem de longe se parecia com o lugar de onde saíra havia dezessete anos. As pessoas eram diferentes, também. Diversos jovens monges daquele tempo agora ocupavam posições de responsabilidade. William Beauvis, que causara problema jogando cera quente na careca do mestre dos noviços, tanto tempo antes, agora era o prior ali. Alguns tinham ido embora: o encrenqueiro Peter de Wareham estava em Canterbury, trabalhando para um ambicioso jovem arcediago chamado Tomás Becket.

      - Eu gostaria de saber como eles eram - disse Jonathan. - Refiro-me a meus pais.

      O prior sentiu comiseração por ele. Também perdera os pais, mas quando tinha seis anos, e podia se lembrar de ambos bastante bem: sua mãe, calma e amorosa, seu pai, alto, de barba negra e - pelo menos para Philip - corajoso e forte. Jonathan não tinha nem mesmo isso. Tudo o que sabia sobre os pais é que não o tinham desejado.

      - Podemos adivinhar muita coisa sobre eles - disse o prior.

      - É mesmo? - perguntou o jovem ansiosamente. - O quê?

      - Eram pobres - disse Philip. - Gente rica não tem motivo para abandonar os filhos. Não tinham amigos: amigos sabem quando se está esperando um filho, e fazem perguntas se uma criança desaparece. Estavam desesperados. Só pessoas desesperadas podem suportar a dor de perder um filho.

      O rosto de Jonathan estava tenso com as lágrimas que não derramava. Philip quis chorar por ele, aquele menino que todos diziam - era tão parecido consigo. Queria poder dar-lhe algum consolo, dizer-lhe alguma coisa calorosa e animadora sobre seus pais; mas como poderia afirmar que tinham amado o menino, se o haviam deixado para morrer?

      - Por que Deus faz essas coisas? - perguntou o jovem monge.

      Philip viu sua oportunidade.

      - Quando se começa a fazer esse tipo de pergunta, termina-se sem saber de nada, confuso. Neste caso, porém, penso que a resposta seja clara. Deus queria você.

      - Acha mesmo?

      - Nunca lhe disse antes? Pois sempre acreditei nisso. Foi o que declarei aos monges aqui, no dia em que você foi encontrado. Disse que Deus o mandara com um objetivo que só Ele sabia, e que era nosso dever criá-lo no seu serviço para que você tivesse condições de cumprir a tarefa que Ele designara.

      - Gostaria de saber se minha mãe sabe disso.

      - Se ela está com os anjos, sabe.

      - O que acha que poderá ser minha tarefa?

      - Deus precisa de monges que sejam escritores, ilustradores, músicos e fazendeiros. Precisa de homens que desempenhem funções absorventes, como despenseiro, prior ou bispo. E também de homens capazes de negociar com lã, curar doentes, educar meninos e construir igrejas.

      - É difícil imaginar que Ele tenha uma tarefa específica para mim.

      - Pois não posso pensar que Ele fosse despender tanta energia com você se não tivesse - assegurou Philip, com um sorriso. - No entanto, pode ser que não seja um papel grande ou proeminente em termos mundanos. Ele pode querer que você seja um desses monges quietos, um homem humilde que devota a vida à prece e à contemplação.

      Jonathan ficou desapontado.

      - Acho que sim.

      Philip riu.

      - Mas não creio. Deus não ia fazer uma faca com madeira, ou a camisa de uma dama com couro de sapato. Você não e o material certo para uma vida de contemplação, e Deus sabe disso. Meu palpite é que quer que você lute por Ele, e não que cante para Ele.

      - Certamente espero que assim seja.

      - Mas neste exato momento Ele quer que você vá ver o irmão Leo e descubra quantos queijos tem para o despenseiro de Kingsbridge.

      - Certo.

      - Vou conversar com meu irmão na casa do cabido. E lembre-se: se qualquer dos monges lhe falar a respeito de Francis, diga o mínimo que puder.

      - Nada direi.

      - Vá andando.

      Jonathan atravessou o pátio rapidamente. Seu ar solene já o abandonara, e sua natural exuberância retornara antes que chegasse à leiteria. Philip observou-o até que ele desaparecesse dentro da construção. Eu era exatamente assim, pensou, só que talvez não tão esperto.

      O prior seguiu na direção oposta até a casa do cabido. Francis mandara uma mensagem pedindo-lhe que se encontrasse com ele discretamente. No que dizia respeito aos monges de Kingsbridge, Philip estava fazendo uma visita de rotina a um pequeno mosteiro. O encontro não podia ser escondido dos monges dali, é claro, mas eles eram tão isolados que não tinham a quem contar. Somente o prior do mosteiro ia a Kingsbridge, e Philip o fizera jurar segredo.

      Ele e Francis tinham chegado pela manhã, e embora não pudessem alegar que o encontro fora acidental, estavam fingindo que fora organizado apenas pelo prazer de se verem um ao outro. Ambos haviam assistido à missa e depois jantado com os monges. Agora era a primeira chance que tinham para conversar a sós.

      Francis estava aguardando na casa do cabido, sentado num banco de pedra de encontro à parede. Philip quase nunca via sua própria imagem - não havia espelhos em um mosteiro -, de modo que avaliava seu envelhecimento através das mudanças no irmão, que era apenas dois anos mais moço. Francis, aos quarenta e dois, tinha uns poucos fios prateados no cabelo negro, e uma porção de rugas de fadiga em torno dos brilhantes olhos azuis. Estava muito mais volumoso no pescoço e na cintura do que na última vez em que o irmão o vira. Provavelmente estou com mais cabelos brancos e menos quilos em excesso, pensou Philip; mas qual de nós terá mais rugas de preocupação?

      Sentou-se ao lado do irmão, de frente para o salão octogonal vazio.

      - Como vão as coisas? - perguntou Francis.

      - Os selvagens estão por cima novamente - disse Philip. - O priorado está ficando sem dinheiro e praticamente paramos de construir a catedral, Kingsbridge está declinando, metade do condado morre de fome e não é seguro viajar.

      Francis assentiu.

      - Acontece o mesmo em toda a Inglaterra.

      - Talvez os selvagens fiquem para sempre no controle da situação - disse o prior melancolicamente. - Talvez a cobiça sempre tenha mais valor que a sabedoria nos conselhos dos poderosos; talvez o medo sempre ultrapasse a piedade na mente de um homem com uma espada na mão.

      - Você geralmente não é tão pessimista.

      - Fomos atacados por muitos fora-da-lei algumas semanas atrás. Foi lastimável: nem bem os defensores da cidade tinham matado uns poucos deles, os fora-da-lei começaram a brigar entre si. Mas quando bateram em retirada, os nossos rapazes perseguiram os pobres coitados e chacinaram todos os que puderam pegar. Revoltante.

      Francis sacudiu a cabeça.

      - É difícil de entender.

      - Acho que consigo - disse o prior. - Eles estavam assustados, e só conseguiram exorcizar o medo que sentiam derramando o sangue das pessoas que os tinham assustado. Vi isso nos olhos dos homens que mataram nossos pais. Mataram porque estavam assustados. Mas o que pode afastar o seu medo?

      Seu irmão suspirou.

      - Paz, justiça, prosperidade... coisas difíceis de conseguir.

      Philip concordou.

      - Bem, o que você está querendo?

      - Estou trabalhando para o filho de Matilde. Seu nome é Henrique.

      Philip já ouvira falar desse Henrique.

      - Como é ele?

      - Um rapaz muito inteligente e determinado. Seu pai está morto, de modo que é o conde de Anjou. Também é o duque da Normandia, por ser o neto mais velho do velho Henrique, que foi rei da Inglaterra e duque da Normandia. E se casou com Alienor de Aquitânia, de modo que também é o duque de Aquitânia.

      - Governa um território maior que o rei da França.

      - Exatamente.

      - Mas como é ele?

      - Educado, trabalhador, ativo, irrequieto, voluntarioso. Tem um temperamento assustador.

      - Às vezes eu gostaria de ter um temperamento assim - disse Philip. - Faz com que todo mundo obedeça sempre. Mas como não há quem não conheça minha ponderação, nunca sou obedecido com a mesma presteza que se dedica a um prior que pode explodir a qualquer instante.

      Francis riu.

      - Continue do jeito que você é - disse, e ficou sério de novo. - Henrique me fez perceber a importância da personalidade do rei. Olhe só para Estêvão: sua capacidade de julgamento é fraca; é determinado apenas por curtos espaços de tempo, e depois desiste; é corajoso ao ponto de cometer tolices, e perdoa os inimigos o tempo todo. As pessoas que o traem arriscam muito pouco: sabem que podem contar com sua condescendência. Consequentemente, luta há dezoito anos sem sucesso para governar uma terra que era um reino unido quando ele assumiu o poder. Henrique já conseguiu mais controle sobre sua coleção de ducados e condados anteriormente independentes do que Estêvão jamais teve.

      Philip foi assaltado por uma idéia.

      - Por que Henrique mandou você à Inglaterra?

      - Para examiná-la.

      - E o que encontrou?

      - Um reino que não tem lei e passa fome, abatido por tempestades e devastado pela guerra.

      Philip concordou pensativamente. O jovem Henrique era o duque da Normandia porque era o filho mais velho de Matilde, a única filha legítima do velho rei Henrique, que fora duque da Normandia e rei da Inglaterra.

      Por essa linha dinástica, o jovem Henrique podia também pretender o trono da Inglaterra.

      Sua mãe apresentara a mesma pretensão, mas não tivera êxito por ser mulher e ter como marido um angevino. Mas o jovem Henrique não apenas era homem com também tinha o mérito adicional de ser ao mesmo tempo normando (por parte de mãe) e angevino (por parte de pai).

      - Henrique vai se candidatar ao trono da Inglaterra? - perguntou Philip.

      - Depende do meu relatório - respondeu Francis.

      - E o que você lhe dirá?

      - Que nunca haverá uma época melhor do que a atual.

      - Que Deus seja louvado - disse o prior.

     

      No caminho para o castelo do bispo Waleran, o conde William parou no Moinho Cowford, de sua propriedade. O moleiro, um severo homem de meia-idade chamado Wulfric, tinha o direito de moer todo o grão produzido em onze aldeias próximas. Em troca, ficava com duas sacas em cada vinte: uma para si e outra para William.

      Hamleight dirigiu-se para lá a fim de receber o que lhe era devido. Normalmente não fazia isso em pessoa, mas aqueles não eram tempos normais. Agora era preciso providenciar uma escolta armada para cada carroça que transportasse farinha ou qualquer coisa comestível. A fim de usar sua gente do modo mais ecônomico, adquirira o hábito de levar consigo uma ou duas carroças, sempre que se deslocava com seu bando de cavaleiros, para cobrar o que fosse possível.

      O aumento no crime era uma consequência secundária lamentável da sua política firme com maus rendeiros. Gente sem terra frequentemente se voltava para o roubo. De um modo geral, não eram mais eficientes como ladrões do que tinham sido como fazendeiros, e William esperara que a maioria desistisse durante o inverno. A princípio, suas expectativas haviam sido correspondidas: os fora-da-lei ou atacavam viajantes solitários que pouco tinham para ser roubado, ou desfechavam ataques mal organizados contra alvos bem defendidos. Ultimamente, contudo, as táticas deles haviam se aperfeiçoado. Agora sempre atacavam pelo menos com o dobro do efetivo da força defensora.

      Apareciam quando os celeiros estavam cheios, sinal de que faziam reconhecimentos cuidadosos. Seus ataques eram repentinos e rápidos, e tinham a coragem do desespero.

      No entanto, não ficavam para combater: cada homem fugia assim que conseguia pôr as mãos numa ovelha, num presunto, num queijo, num saco de farinha ou de prata. Não adiantava persegui-los, pois se dispersavam na floresta, dividindo-se e fugindo em todas as direções. Alguém os estava comandando, e o fazia exatamente do modo como William o teria feito.

      O sucesso dos fora-da-lei humilhou o conde. Fez com que ele parecesse um bufão incapaz de policiar o próprio condado. Para piorar a situação, raramente roubavam qualquer coisa de outra pessoa. Parecia que deliberadamente o estavam desafiando. Não havia nada que William detestasse mais que a sensação de que estivessem rindo dele às suas costas. Passara a vida forçando as pessoas a respeitá-lo e à sua família, e aquele bando de proscritos estava desfazendo todo o seu trabalho.

      Especialmente humilhante para Hamleigh era o que estavam dizendo dele: que era bem feito, que tratara impiedosamente os arrendatários de suas terras e que agora estavam se vingando, que fora ele o causador do que agora lhe acontecia. Esse tipo de conversa o deixava cego de raiva.

      Os aldeões de Cowford ficaram assustados e temerosos quando William e seus cavaleiros chegaram. O conde olhou ameaçadoramente os rostos magros e apreensivos que surgiam nos portais e desapareciam rapidamente. Aquelas pessoas tinham mandado o padre para pedir que fossem autorizadas a moer seu próprio grão naquele ano, dizendo que não teriam condições de dar um décimo ao moleiro. William sentira-se tentado a arrancar a língua do padre pela insolência.

      O tempo estava frio, e havia gelo na orla da represa do moinho. A roda estava parada, e a mó, silenciosa. Uma mulher saiu da casa ao lado do moinho. William sentiu uma pontada de desejo quando a viu. Tinha cerca de vinte anos, rosto bonito e uma linda cabeleira escura cacheada. A despeito da crise, seus seios eram grandes e as coxas, fortes. Ao aparecer, mostrava um ar atrevido, mas a visão dos cavaleiros de William apagou-o do seu rosto e ela se enfiou dentro de casa.

      - Não se agradou de nós - disse Walter. - Deve ter visto Gervase. - Era uma piada antiga, mas eles riram assim mesmo. Amarraram os cavalos. Não era o mesmo grupo que William reunira em torno de si quando a guerra civil terminara. Walter ainda estava com ele, claro, assim como Gervase e Hugh; mas Gilbert morrera na batalha inesperadamente sangrenta com os operários da pedreira, e tinha sido substituído por Guillaume; e Miles perdera um braço numa luta de espada por causa do jogo de dados numa cervejaria de Norwich, e Louis ingressara no grupo. Não eram mais garotos, mas falavam e agiam como se fossem, rindo e bebendo, jogando e frequentando bordeis.

      William perdera a conta das cervejarias quebradas, dos judeus atormentados e das virgens defloradas pelo bando.

      O moleiro apareceu. Sem dúvida a sua expressão azeda era devida à perene impopularidade dos moleiros. A cara emburrada tinha também um ar de ansiedade. Isso agradava ao conde, que gostava que as pessoas ficassem ansiosas quando aparecia.

      - Eu não sabia que tinha uma filha, Wulfric - disse William, com olhar lúbrico. - Você a esteve escondendo de mim.

      - Aquela é Maggie, minha mulher - disse ele.

      - Mentira. Sua mulher é uma velha ruiva esmirrada; eu me lembro dela.

      - Minha May morreu no ano passado, milorde. Casei-me de novo.

      - Seu cachorrão velho e sujo! - disse William, sorrindo. - Essa deve ser trinta anos mais moça que você!

      - Vinte e cinco...

      - Chega desta conversa. Onde está minha farinha? Um saco em vinte!

      - Tudo aqui, milorde. Se fizer o favor de entrar...

      O caminho para o moinho passava por dentro da casa. William e os cavaleiros seguiram Wulfric no interior do cômodo único. A jovem nova mulher do moleiro estava ajoelhada diante do fogo, pondo umas achas de lenha. Ao inclinar-se a túnica ficou esticada na parte de trás. Hamleigli observou que tinha os quadris cheios. A mulher do moleiro era a última pessoa a passar fome numa crise, claro.

      O conde parou, olhando para o seu traseiro. Os cavaleiros riram e o moleiro remexeu-se, inquieto. A garota olhou para trás, percebeu que a observavam e levantou-se envergonhada.

      William piscou para ela.

      - Traga-nos um pouco de cerveja, Maggie - disse ele; - somos homens sedentos.

      Atravessaram a porta que dava no moinho. A farinha estava em sacos empilhados em torno da parte externa da eira circular. Não havia muitos. Normalmente as pilhas eram mais altas que um homem.

      - Isto é tudo? - perguntou o conde.

      - Foi uma safra muito fraca, milorde - disse Wulfric, nervosamente.

      - Onde está a minha parte?

      - Aqui, milorde. - Ele apontou para uma pilha de oito ou nove sacos.

      - O quê? - William sentiu o rosto ficar congestionado. - Tenho duas carroças aí fora e você me oferece isso?

      O rosto de Wulfric tomou um ar ainda mais aflito.

      - Sinto muito, milorde.

      Hamleigh contou os sacos.

      - São apenas nove!

      - É só o que há - afirmou Wulfric, quase chorando. - Veja só os meus ao lado dos seus, a mesma coisa...

      - Seu cão mentiroso! - esbravejou William. - Você a vendeu...

      - Não, milorde - insistiu Wulfric. - Isso é tudo o que sempre houve.

      Maggie apareceu no portal com seis canecos de cerveja numa bandeja. Estendeu-a a cada um dos cavaleiros. Todos apanharam um caneco e beberam, sequiosamente. William ignorou-a. Estava irritado demais para beber. Ela permaneceu aguardando, com o caneco remanescente na bandeja.

      - O que é tudo isso aí? - perguntou William, apontando para o resto dos sacos, uns vinte e cinco ou trinta empilhados de encontro às paredes.

      - Estão para ser apanhados, milorde. Pode ver a marca do proprietário nos sacos...

      Era verdade: cada saco era marcado por uma letra ou símbolo. Podia ser um truque, claro, mas não havia meios de Hamleigh descobrir a verdade. Achava aquilo extremamente irritante. Mas não era próprio dele aceitar aquele tipo de situação.

      - Não acredito em você - disse. - Andou me roubando.

      Wulfric foi respeitosamente insistente, muito embora sua voz tremesse.

      - Sou honesto, milorde.

      - Ainda está para nascer um moleiro honesto.

      - Milorde - o moleiro engoliu em seco -, nunca roubei nem um grão do seu trigo...

      - Aposto como esteve me roubando descaradamente.

      O suor escorreu pelo rosto de Wulfric, apesar do tempo frio.

      Ele enxugou a testa com a manga.

      - Estou pronto a jurar por Jesus e todos os santos...

      - Cale a boca.

      O moleiro ficou em silêncio.

      William estava ficando cada vez mais furioso, mas ainda não decidira o que fazer. Queria dar um susto e tanto em Wulfric, talvez deixar que Walter o surrasse com suas luvas de cota de malha, possivelmente levar um pouco ou toda a farinha do moleiro. - Então seu olhar pousou em Maggie, que segurava a bandeja com o último caneco de cerveja, o rosto bonito rígido de medo, os seios grandes e jovens estourando na túnica florida, e pensou na punição perfeita para o moleiro.

      - Agarre à mulher - disse para Walter, com o canto da boca. E para Wulfric: - vou dar-lhe uma lição.

      Maggie viu Walter deslocando-se, mas não teve tempo de fugir. Quando se virou, ele agarrou-lhe o braço e a puxou. A bandeja caiu ruidosamente e a cerveja derramou-se no chão. Walter torceu-lhe o braço nas costas e segurou-a. Ela tremia de medo.

      - Não, largue-a, por favor! - implorou o marido, em pânico.

      William balançou a cabeça, satisfeito. Wulfric ia ver sua jovem mulher ser estuprada por diversos homens e seria impotente para salvá-la. Da próxima vez teria grão suficiente para satisfazer seu lorde.

      - Sua mulher está engordando com pão feito de farinha roubada, Wulfric - disse o conde -, enquanto o resto de nós passa necessidade. Vamos dar uma olhada para ver se está mesmo muito gorda, está bem? - Ele fez um sinal para Walter.

      O cavaleiro agarrou a gola da túnica de Maggie e puxou-a com força para baixo. A roupa rasgou e caiu. Por baixo ela usava uma camisa de linho que ia até os joelhos.

      Seus seios amplos subiam e desciam, arfando de medo. William adiantou-se, em frente a ela. Walter torceu-lhe o braço com mais força, fazendo-a arquear as costas com a dor e empinar mais os seios. O conde olhou para Wulfric e agarrou-os, massageando-os. Eram macios e pesados.

      O moleiro deu um passo à frente.

      - Seu demônio...

      - Agarrem-no - ordenou William secamente. Louis segurou Wulfric por ambos os braços e o manteve imóvel.

      Hamleight rasgou a camisa de baixo da garota. Ficou com a boca seca ao contemplar seu voluptuoso corpo branco.

      - Não, por favor - pediu o moleiro.

      William sentiu seu desejo crescendo.

      - Deitem-na.

      Maggie começou a gritar.

      O conde desafivelou o cinto da espada e deixou-o cair no chão, enquanto os cavaleiros pegavam Maggie pelos braços e pernas. Ela não tinha esperança de resistir a quatro homens fortes, mas assim mesmo não parava de se debater e gritar.

      William gostava daquilo. Os seios dela balançavam com o movimento, e as coxas se abriam e se fechavam, alternadamente ocultando e revelando seu sexo. Os quatro cavaleiros a prenderam deitada na eira.

      Hamleigh ajoelhou-se entre as pernas de Maggie e ergueu a túnica. Olhou para Wulfric. Ele estava tresloucado. Contemplava a cena com os olhos arregalados e fixos, horrorizado, e murmurava pedidos de misericórdia que não podiam ser ouvidos por causa dos gritos da sua mulher. William desfrutou o momento: a mulher aterrorizada, os cavaleiros mantendo-a deitada no chão à força, o marido assistindo a tudo. Então os olhos de Wulfric se desviaram. O conde sentiu o perigo. Todos ali dentro estavam olhando para ele e para a garota. A única coisa que poderia distrair a atenção do moleiro era a possibilidade de socorro. Virou a cabeça na direção da porta.

      Nesse momento alguma coisa pesada e dura o atingiu com força na cabeça.

      Ele urrou de dor e caiu em cima de Maggie. Seu rosto bateu no dela. Subitamente ouviu homens gritando, muitos homens. com o canto do olho viu Walter cair, como se também tivesse sido atingido por um golpe. Os cavaleiros largaram a garota. William olhou para o seu rosto e viu choque e alívio. Ela começou a se contorcer para sair de baixo dele. O conde deixou-a e afastou-se rolando rapidamente para o lado.

      A primeira coisa que enxergou sobre si foi um homem de aspecto selvagem com um machado de lenhador, e pensou: Pelo amor de Deus, quem é ele? O pai da garota? Viu Guillaume levantar e virar-se, e no instante seguinte o machado se abateu com violência sobre o pescoço desprotegido do cavaleiro, a lâmina afiada cortando fundo a carne. Guillaume caiu em cima de William, morto. O sangue dele esguichou em toda a túnica do conde.

      Hamleigh empurrou o cadáver. Quando conseguiu enxergar de novo, viu que o moinho fora invadido por uma multidão de homens esfarrapados, descabelados e sujos, armados com porretes e machados. Havia uma porção deles. Não havia dúvida de que estava em dificuldades. Os aldeões teriam ido salvar Maggie? Que atrevimento! Haveria alguns enforcamentos na aldeia antes que a noite caísse. Enfurecido, conseguiu levantar-se e levou a mão ao punho da espada.

      Não tinha espada. Deixara cair o cinturão para poder estuprar a garota.

      Gervase e Louis combatiam ferozmente aquilo que parecia um imenso bando de mendigos. Havia diversos camponeses mortos no chão; não obstante isso, os três cavaleiros estavam sendo lentamente forçados a recuar, William viu Maggie, nua e gritando, abrindo caminho desesperadamente, a fim de dirigir-se para a porta, e mesmo na sua confusão e medo sentiu desejo por aquele traseiro redondo e branco. Depois viu que Wulfric brigava com alguns atacantes. Por que o moleiro estaria lutando com os homens que tinham vindo salvar sua mulher? Que diabo estava acontecendo?

      Desnorteado, procurou o cinturão da sua espada. Estava no chão, quase a seus pés. Pegou-o, desembainhou a espada e deu três passos para trás, a fim de continuar fora da briga por mais um momento. Olhando além da confusão, viu que a maior parte dos atacantes não estava lutando - apanhavam sacos de farinha e fugiam. William começou a entender. Aquilo não era uma operação de socorro realizada por aldeões ultrajados. Era um grupo atacante de fora. Não estavam interessados em Maggie nem tinham sabido que o conde e seus cavaleiros estavam ali no moinho. Só queriam roubar sua farinha.

      Era óbvio quem deviam ser os atacantes: proscritos. Sentiu um ímpeto de cólera. Era sua chance de contra-atacar aquele bando de fanáticos que vinha aterrorizando o condado e esvaziando seus celeiros.

      Seus cavaleiros estavam esmagadoramente ultrapassados em efetivo. Havia pelo menos vinte atacantes. William ficou atônito com a coragem dos fora-da-lei. Camponeses normalmente se espalhariam como galinhas ante um bando de cavaleiros, mesmo que tivessem duas ou dez vezes o seu número. Mas aquela gente lutava duro, e não se desencorajava quando um caía. Pareciam prontos a morrer, se necessário. Talvez fosse porque iriam morrer de qualquer maneira, de fome, se não roubassem aquela farinha.

      Louis estava lutando contra dois homens ao mesmo tempo quando um terceiro veio por trás e atingiu-o com um martelo de cabeça de ferro, de carpinteiro. O cavaleiro caiu e permaneceu caído. O homem largou o martelo e pegou sua espada. Agora havia dois cavaleiros contra vinte fora-da-lei. Mas Walter estava se recuperando da pancada que levara na cabeça e puxou a espada, entrando na confusão. O conde fez o mesmo.

      Os quatro compunham uma formidável equipe de combate, os fora-da-lei foram forçados a recuar, aparando desesperadamente o golpe das espadas muito rápidas com seus porretes e machados. William começou a pensar que o moral deles podia ceder, e talvez debandassem. Então um dos fora-da-lei gritou:

      - O conde legítimo!

      Era uma espécie de grito de guerra. Os outros se reanimaram e os fora-da-lei lutaram mais vigorosamente. O grito repetido "O conde legítimo! O conde legítimo!" gelou o coração de William, mesmo quando lutava pela própria vida. Significava que quem quer que com andasse aquele exército de proscritos estava de olho no seu título.

      Quanto a este, lutou com mais energia, como se o resultado daquela refrega pudesse determinar o futuro do condado.

      Somente metade dos fora-da-lei combatiam realmente os cavaleiros, constatou William. O resto transportava a farinha. O combate acomodou-se numa troca regular de golpes e esquivas, estocadas e paradas. Como soldados que sabem que a retirada está próxima, os fora-da-lei passaram a adotar um estilo defensivo, cauteloso.

      Por trás dos proscritos que combatiam, os demais carregavam as últimas sacas de farinha para fora do moinho. Os fora-da-lei começaram a se retrair, passando pelo portal que separava o moinho da casa. Hamleigh deu-se conta de que, de qualquer maneira, eles fugiriam com quase toda a farinha. Em pouquíssimo tempo todo o condado saberia que o roubo fora realizado bem debaixo do seu nariz. Iria ser o motivo de riso de todos. A idéia o enfureceu tanto que o conde pressionou ferozmente seu adversário e atingiu o homem no coração com uma estocada clássica.

      Nesse momento um fora-da-lei pegou Hugh com um golpe de sorte e cravou a espada no seu ombro direito, pondo-o fora de ação. Agora havia dois deles na porta, mantendo afastados os três cavaleiros sobreviventes. Aquilo, por si só, já era humilhante; mas depois, com monumental arrogância, um dos proscritos mandou, com um gesto, que o outro fosse embora. O homem desapareceu, e o último fora-da-lei recuou um passo, no cômodo único da casa do moleiro.

      Somente um cavaleiro cabia no portal para combater o proscrito. William adiantou-se, empurrando para o lado Walter e Gervase: queria aquele homem para si. Quando suas espadas se tocaram, o conde percebeu de imediato que aquele homem não era nenhum camponês desvalido: tratava-se de um combatente experimentado, como ele próprio.

      Pela primeira vez o encarou, e o choque foi tão grande que quase deixou cair a espada. Seu adversário era Richard de Kingsbridge.

      O rosto de Richard ardia de ódio. William podia ver a cicatriz na sua orelha mutilada. A força do rancor de Richard amedrontou o conde mais que sua coruscante espada.

      Hamleigh pensara haver esmagado o adversário, mas ele estava de volta, à testa de um exército maltrapilho que o fizera de tolo.

      Richard investiu violentamente contra o conde, tirando vantagem do seu choque momentâneo. William desviou uma estocada, ergueu a espada, aparou outro golpe e recuou.

      O líder dos fora-da-lei pressionou, mas agora o conde estava parcialmente protegido pelo portal, que restringia a capacidade de ataque do adversário a um único tipo de estocada. Mesmo assim, William foi obrigado a recuar mais ainda, até ficar em cima da eira do moinho, com Richard no portal. No entanto, Walter e Gervase correram sobre ele, que ante a pressão dos três voltou a recuar. Assim que ultrapassou o portal, os dois cavaleiros ficaram para trás, permanecendo de novo William contra  Richard.

      O conde percebeu que o adversário estava numa posição péssima. Quando ganhava terreno via-se lutando contra três homens. Quando William se cansava podia dar lugar a Walter. Era quase impossível para Richard manter os três a distância indefinidamente. Estava travando uma batalha perdida. Talvez naquele dia, afinal, Hamleigh não saísse humilhado. Talvez matasse seu mais antigo inimigo.

      Richard devia estar pensando mais ou menos o mesmo, e presumivelmente chegara a conclusão similar. No entanto, não havia aparente perda de energia ou determinação.

      Olhou para William com um esgar selvagem que este achou enervante, e adiantou-se, caindo a fundo. O conde desviou-se e tropeçou. Walter adiantou-se para defendê-lo do golpe de misericórdia - mas, ao invés de arremeter, Richard girou nos calcanhares e fugiu. Hamleigh levantou-se e Walter tropeçou nele, enquanto Gervase tentava se espremer para passar entre os dois. Foi preciso um momento para os três se desvencilharem uns dos outros, e Richard aproveitou esse momento para cruzar o pequeno aposento, esgueirar-se para o lado de fora e bater a porta. William correu atrás dele e a abriu. Os fora-da-lei estavam fugindo - e, num humilhante golpe final, usavam os cavalos dos homens de William. Quando este irrompeu de dentro da casa, viu sua própria montaria, um soberbo cavalo-de-batalha que lhe custara o resgate de um rei, com Richard na sela. O cavalo obviamente fora solto e seguro para ele. William foi assaltado pelo mortificante pensamento de aquela ser a segunda vez que seu maior inimigo roubava um cavalo-de-batalha seu. Richard bateu nele com os calcanhares e o animal empinou - não era manso com estranhos -, mas o rapaz era bom cavaleiro e manteve-se na sela. Puxou as rédeas com força, alternadamente  para um e outro lado, e o cavalo baixou a cabeça. Nesse instante William atirou-se para a frente e deu uma estocada; o animal, porém, estava corcoveando e a espada foi espetar a parte de madeira da sela. Em seguida o cavalo disparou, descendo a rua da vila atrás dos outros fora-da-lei fugitivos.

      O conde os observou com a morte no coração.

      O conde legítimo, pensou. O conde legítimo.

      Virou-se. Walter e Gervase estavam atrás dele. Hugh e Louis tinham sido feridos, ele não sabia com que seriedade, e Guillaume estava morto, seu sangue manchando toda a frente da túnica de William. Este sentia-se completamente humilhado. Era com dificuldade que conseguia manter a cabeça erguida.

      Por sorte a aldeia estava deserta: os camponeses haviam fugido, preferindo não esperar para ver a ira do conde. O moleiro e sua mulher tinham desaparecido, claro.

      Os proscritos levaram as montarias de todos os cavaleiros, deixando apenas as duas carroças e seus respectivos bois.

      William olhou para Walter.

      - Você viu quem era aquele último?

      - Sim.

      O cavaleiro tinha o hábito de usar o menor número de palavras possível quando seu senhor estava com raiva.

      - Era Richard de Kingsbridge - disse Hamleigh. Walter assentiu.

      - E eles o chamaram de conde legítimo - finalizou William.

      O cavaleiro nada disse.

      O conde voltou para o moinho, atravessando a casa. Hugh estava se sentando; sua mão esquerda apertava o ombro direito. Tinha o rosto pálido.

      - Como está? - perguntou Hamleigh.

      - Não é nada. Quem eram aquelas pessoas?

      - Um bando de fora-da-lei - respondeu William laconicamente. Olhou em torno. Havia sete ou oito proscritos mortos ou feridos no chão. Localizou Louis deitado de costas, com os olhos abertos. A princípio pensou que o homem estivesse morto; então Louis piscou.

      - Louis - disse o conde.

      O cavaleiro levantou a cabeça, mas parecia confuso. Ainda não se recuperara.

      - Hugh - ordenou William -, ajude Louis a subir em uma das carroças. Walter, ponha o corpo de Guillaume na outra. - Ele os deixou e saiu.

      Nenhum dos aldeões teria cavalos, mas o moleiro tinha um pequeno cavalo malhado que pastava a grama rala da margem do rio. William encontrou a sela e arriou o animal.

      Pouco depois se afastava a cavalo de Cowford, com Walter e Gervase conduzindo os carros de boi.

      Sua fúria não arrefeceu na jornada até o castelo do bispo Waleran. Na verdade, quanto mais pensava no que descobrira, mais furioso ficava. Era bastante ruim que os fora-da-lei tivessem sido capazes de desafiá-lo; pior era serem liderados pelo seu velho inimigo Richard, e intolerável que chamassem seu líder de "conde legítimo".

      Se não fossem derrotados definitivamente, muito em breve ele os usaria para desfechar um ataque direto contra William. Seria totalmente ilegal a conquista do condado dessa maneira, claro; mas o conde tinha impressão de que reclamações contra a ilegalidade de um ataque, partidas dele, poderiam não ser ouvidas com simpatia. O fato de Hamleigh ter sido emboscado, vencido e roubado pelos fora-da-lei, e que todo condado estaria em breve rindo da sua humilhação, não era o pior dos seus problemas.

      De repente, o poder que exercia sobre o condado estava sendo seriamente ameaçado.

      Precisava matar Richard, é claro. A questão era como encontrá-lo. Ficou ruminando o assunto todo o caminho até o castelo, e quando lá chegou, decidira que o bispo provavelmente tinha a chave do problema.

      Entraram no castelo de Waleran como uma cômica procissão numa feira, o conde num cavalinho de pernas curtas, e seus cavaleiros conduzindo carros de boi. William urrou ordens peremptórias para os homens do bispo, mandando um buscar um enfermeiro para Hugh e Louis e outro, um padre para rezar pela alma de Guillaume. Gervase e Walter foram para a cozinha, em busca de cerveja, e o conde entrou na fortaleza e foi admitido nos aposentos privados de Waleran. Hamleigh detestava ter que pedir qualquer coisa a ele, mas precisava da sua ajuda para localizar Richard.

      O bispo estava lendo uma lista de contas, uma relação interminável de números. Ergueu a cabeça e viu o ódio no rosto de William.

      - O que aconteceu? - perguntou, no tom ligeiramente divertido que sempre enfurecia o conde. Hamleigh cerrou os dentes.

      - Descobri quem está organizando e liderando esses malditos fora-da-lei.

      Waleran ergueu uma sobrancelha.

      - É Richard de Kingsbridge.

      - Ah! - fez Waleran, balançando a cabeça. - Claro. Faz sentido.

      - É perigoso - disse William, furioso. Ele odiava quando o bispo se mostrava reflexivo e frio. - Chamam-no de "conde legítimo". - Apontou um dedo para Waleran. - Você certamente não quer aquela família de volta ao poder neste condado; eles o odeiam, e estão do lado do prior Philip, seu velho inimigo.

      - Está bem, acalme-se - disse Waleran, condescendente. - Você está certo, não posso ter Richard de Kingsbridge como conde.

      William sentou-se. Seu corpo começava a doer. Agora ele sentia as consequências de uma luta de um modo como nunca acontecera. Tinha os músculos tensos, as mãos doídas, ferimentos onde recebera golpes ou batera no chão ao cair. Só tenho trinta e sete anos, pensou; será que é agora que começa a velhice?

      - Preciso matar Richard - disse. - Depois que ele morrer, os proscritos voltarão a ser uma turba inofensiva.

      - Concordo.

      - Matá-lo será fácil. O problema é encontrá-lo. Mas você pode me ajudar com isso.

      Waleran esfregou o nariz adunco com o polegar.

      - Não vejo como.

      - Escute, se eles estão organizados, têm que estar sediados em algum lugar.

      - Não sei o que você quer dizer. Eles estão na floresta.

      - Normalmente não se pode encontrar proscritos na floresta, porque ficam espalhados por toda parte. A maioria não passa duas noites seguidas no mesmo lugar. Acendem o fogo num ponto qualquer, e dormem em árvores. Mas se você quer organizar essa gente, tem que fazer com que todos durmam juntos. É preciso ter um esconderijo permanente.

      - Então temos que descobrir a localização do esconderijo de Richard.

      - Exatamente.

      - Como você propõe que façamos isso?

      - É aí que você entra.

      Waleran fez uma expressão cética.

      - Aposto como metade da população de Kingsbridge sabe onde ele está - disse William.

      -  Mas não nos dirão. Todo mundo em Kingsbridge nos odeia.

      - Nem todo mundo - contrapôs William. - Nem todo mundo.

     

      Sally adorava o Natal.

      A comida típica era doce, em sua maior parte: bonecas feitas de pão de gengibre, manjar de trigo preparado com mel e ovos; perada, o doce vinho de pêra que a fazia dar risadinhas; e miúdos de veado, tripas cozidas durante horas e depois assadas numa torta doce. Havia menor quantidade naquele ano, por causa da crise, mas Sally gostava de tudo assim mesmo.

      Gostava de decorar a casa com azevinhos e de pendurar o ramo dos beijos, embora estes a fizessem rir ainda mais que o vinho de pêra. O primeiro homem a atravessar a soleira da porta trazia sorte, desde que tivesse cabelo preto: o pai de Sally tinha que ficar dentro de casa toda a manhã do Natal, pois seu cabelo ruivo traria má sorte às pessoas. Ela adorava a representação teatral da Natividade na igreja. Gostava de ver os monges vestidos como reis orientais, anjos e pastores, e tinha ataques de riso quando todos os falsos ídolos caíam com a chegada da Sagrada Família ao Egito.

      Mas o melhor de tudo era o menino bispo. No terceiro dia do Natal os monges vestiam o noviço mais moço com trajes de bispo e todos tinham que lhe obedecer.

      A maior parte dos habitantes da cidade esperava no adro do priorado que o menino bispo saísse. Inevitavelmente ele ordenava aos cidadãos mais velhos e dignos que fizessem tarefas subalternas como buscar lenha ou lavar pocilgas. Dava-se também ares exagerados e insultava as pessoas investidas de autoridade. No ano anterior fizera o sacristão depenar uma galinha e o resultado fora hilariante, pois o religioso não tinha idéia do que fazer e as penas se espalharam por toda parte.

      Ele apareceu em clima de grande solenidade, um menino com cerca de doze anos de idade e um sorriso traquinas, vestido com um manto de seda púrpura, carregando um báculo de madeira e transportado nos ombros de dois monges, seguido pelo resto do mosteiro. Todos batiam palmas e gritavam. A primeira coisa que ele fez foi apontar para o prior Philip e dizer:

      - Você, rapaz! Vá até o estábulo e escove o jumento!

      Todos caíram na gargalhada. O velho jumento era notoriamente mal-humorado, e nunca era escovado.

      - Sim, milorde bispo - assentiu o prior, com um sorriso cordial, e foi cumprir sua tarefa.

      - Adiante! - ordenou o bispo menino. A procissão deslocou-se para fora do adro, sendo seguida pelos habitantes da cidade. Algumas pessoas escondiam-se e trancavam as portas, com medo de ser escolhidas para alguma tarefa desagradável; mas então perdiam o divertimento. Toda a família de Sally viera: sua mãe e seu pai, o irmão Tommy, a tia Martha e até mesmo o tio Richard, que voltara inesperadamente para casa na noite anterior.

      O menino bispo levou-os primeiro para a cervejaria, como era tradicional. Ali exigiu cerveja de graça para si e para todos os noviços. O cervejeiro serviu a todos de boa vontade.

      De repente Sally viu-se sentada num banco ao lado do irmão Remigius, um dos monges mais velhos. Era um homem alto e inamistoso, e ela nunca falara com ele antes, mas agora Remigius lhe dirigiu um sorriso e disse:

      - Que bom que o seu tio Richard tenha vindo para casa no Natal!

      - Ele me deu um gato de madeira que talhou com sua faca.

      - Que bom! Ele vai ficar muito tempo, desta vez?

      Sally franziu a testa.

      - Não sei.

      - Acho que vai ter que voltar logo?    

      - Sim. Ele mora na floresta agora.

      - Você sabe onde?

      - Sei. É num lugar chamado Pedreira de Sally...  Que é o meu nome! - Ela deu uma risada.

      - É mesmo. Que interessante!

      - E agora - disse o menino bispo, depois que tinham bebido -, Andrew Sacristão e o irmão Remigius lavarão as roupas da viúva Poli.

      Sally deu uma risada e bateu palmas. A viúva Poll era uma mulher rotunda, de cara vermelha, que lavava roupa para fora. Os dois monges exigentes iriam odiar o trabalho de lavar as camisas de baixo e as meias fedorentas daquela gente que mudava de roupa de seis em seis meses.

      A multidão deixou a cervejaria e carregou o menino bispo em procissão até a casa de Poli, de um único cômodo, que ficava perto do cais. A viúva teve um ataque de riso e ficou ainda mais vermelha quando lhe disseram quem ia lavar sua roupa.

      Andrew e Remigius carregaram uma pesada cesta de roupa da casa até a margem do rio. Andrew abriu a cesta, e Remigius com uma expressão de total repugnânncia no rosto, tirou a primeira peça.

      - Cuidado com esta aí, irmão Remigius, que é a minha camisola - gritou atrevidamente uma mulher.

      Remigius corou e todos riram. Os dois monges de meia-idade resolveram encarar com coragem a tarefa e começaram a lavar as roupas na água do rio, com os habitantes da cidade gritando conselhos e encorajamentos. Andrew estava aborrecido, Sally podia ver, mas Remigius tinha um ar estranhamente contente.

     

      Uma imensa bola de ferro pendurada por uma corrente numa armação de madeira, como a corda de uma forca num patíbulo. Além da corrente havia também uma corda amarrada na bola. A corda subia e passava por uma polia instalada num poste do andaime, de onde descia para o chão, onde dois serventes a seguravam. Quando puxavam a corda, a bola era erguida e subia até tocar na polia; a corrente ficava na horizontal, ao longo do braço da armação de madeira.

      A maior parte da população de Shiring estava assistindo. Os homens largaram a corda. A bola de ferro caiu e balançou, batendo na parede da igreja. Houve um estrondo terrível; a parede estremeceu e William sentiu o impacto do chão sob seus pés. Pensou em como gostaria de ver Richard amarrado na parede bem no ponto onde a bola batera. Ficaria esmagado como uma mosca.

      Os serventes puxaram a corda de novo. William se deu conta de que estava contendo a respiração quando a bola parou lá em cima. Os homens largaram; a bola balançou, e dessa vez abriu um buraco na parede de pedra. A multidão aplaudiu. Era um mecanismo engenhoso.

      William sentiu-se feliz por ver o trabalho progredindo no local onde construiria a nova igreja, mas tinha assuntos mais urgentes na cabeça. Olhou em torno, procurando o bispo Waleran, e localizou-o conversando com Alfred Construtor. William aproximou-se e puxou o bispo de lado.

      - O homem já está aí?

      - É possível - respondeu Waleran. - Venha até a minha casa.

      Atravessaram a praça do mercado.

      - Você trouxe seus soldados? - perguntou o bispo.

      - Claro. Duzentos. Estão esperando num bosque, logo na saída da cidade.

      Entraram na casa. William sentiu cheiro de presunto cozinhando e sua boca se encheu de água, a despeito da pressa que tinha. A maioria das pessoas estava restringindo a comida naquele tempo, mas com Waleran parecia uma questão de princípio não deixar que a crise modificasse seu estilo de vida. O bispo nunca comia muito, mas gostava que todos soubessem que era por demais rico e poderoso para ser afetado por meras colheitas.

      A casa de Waleran era típica, com a frente estreita, um salão na frente, uma cozinha atrás e um quintal nos fundos com uma latrina, uma colmeia e um chiqueiro. O conde sentiu-se aliviado ao ver um monge esperando no salão.

      - Bom dia, irmão Remigius - disse Waleran.

      - Bom dia, milorde bispo. Bom dia, lorde William.

      William olhou ansiosamente para o monge. Era um homem nervoso, de rosto arrogante e olhos azuis proeminentes. Seu rosto era vagamente familiar, como uma das muitas cabeças tonsuradas que chefiavam serviços em Kingsbridge.

      Há anos Hamleigh vinha ouvindo falar nele, como espião de Waleran no campo do prior Philip, mas era a primeira vez que falava com o homem.

      - Você tem alguma informação para mim? - perguntou.

      - Possivelmente - respondeu Remigius.

      O bispo tirou a capa guarnecida de pele e aproximou-se do fogo para aquecer as mãos. Um criado trouxe vinho quente de baga de sabugueiro em cálices de prata. O conde pegou um e bebeu, aguardando impacientemente que o criado se fosse.

      Waleran tomou um gole do seu vinho e lançou um olhar duro a Remigius. Quando o criado saiu, o bispo perguntou a ele:

      - Qual foi a desculpa que você deu para sair do priorado?

      - Nenhuma - replicou o monge.

      Waleran ergueu uma sobrancelha.

      - Não vou voltar. - disse Remigius desafiadoramente.

      - Como assim?

      O monge respirou fundo.

      - Você está construindo uma catedral aqui.

      - É só uma igreja.

      - Vai ser muito grande. Você está planejando torná-la, um dia, uma catedral.

      Waleran hesitou:

      - Suponhamos, para prosseguir com a conversa, que você esteja certo.

      - A catedral terá que ser governada por um cabido, seja de monges, seja de cônegos.

      - E daí?

      - Quero ser o prior.

          Aquilo fazia sentido, pensou William.

      - E você está tão confiante de que conseguirá o cargo que deixou Kingsbridge sem a permissão de Philip e sem uma desculpa - disse o bispo causticamente.

      Remigius ficou sem graça. William teve pena dele. Quando Waleran queria ser mordaz, qualquer um ficava desarvorado.

      - Espero que não esteja sendo excessivamente confiante - disse Remigius.

      - Presumivelmente você pode nos levar a Richard.

      - Sim.

      - Bom homem! - interrompeu o conde, excitadamente.

      - Onde ele está?

      O monge permaneceu em silêncio e olhou para o bispo.

      - Vamos, Waleran - disse William -, dê-lhe o cargo, pelo amor de Deus!

      Ainda assim o bispo hesitou. Hamleigh sabia que ele odiava ser coagido. Por fim veio a resposta:

      - Pois muito bem. Você será o prior.

      - E agora, onde está Richard? - perguntou William. Remigius continuou a olhar para Waleran: - A partir de hoje?

      - A partir de hoje.

      Remigius virou-se para o conde.

      - Um mosteiro não é apenas uma igreja e um dormitório. Precisa de terras, fazendas, igrejas que paguem dízimos.

      - Diga-me onde está Richard, e lhe darei cinco aldeias com suas igrejas paroquiais, só para começar - disse William.

      - A fundação do cabido precisará de um documento apropriado.

      - Você o terá, não tema.

      - Vamos, homem - insistiu Hamleigh -, tenho um exército aguardando fora da cidade. Onde é o esconderijo de Richard?

      - Um lugar chamado Pedreira de Sally, num desvio da estrada de Winchester.

      - Eu a conheço! - William teve que se conter para não dar um grito de triunfo. - É uma pedreira abandonada. Ninguém mais vai lá.

      - Eu me lembro - disse Waleran. - Não é explorada há anos. É um bom esconderijo; você não saberia que era lá a menos que descobrisse por acaso.

      - Mas é também uma armadilha - disse o conde, com júbilo selvagem. - As encostas que foram exploradas são perpendiculares em três lados. Ninguém escapará. Também não vou fazer prisioneiros. - Sua excitação aumentou ao imaginar a cena. - Vou acabar com todos. Será como matar galinhas num galinheiro.

      Os dois religiosos olharam para ele com estranheza.

      - Está se sentindo um pouco enjoado, irmão Remigius? - perguntou William sarcasticamente. - A idéia de um massacre o repugna, milorde bispo? - Ele tinha razão nas duas vezes, podia dizer pela expressão deles. Eram grandes planejadores, aqueles religiosos, mas quando se tratava de derramamento de sangue ainda tinham que confiar nos homens de ação. - Sei que vocês estarão rezando por mim - disse ironicamente, indo embora.

      Seu cavalo estava amarrado do lado de fora, um garanhão negro, que substituíra - embora não igualasse - o cavalo de batalha roubado por Richard. Montou e saiu da cidade. No caminho, conteve a excitação e tentou pensar friamente nas questões táticas.

 

      Imaginou quantos fora-da-lei haveria na Pedreira de Sally. Eles tinham desfechado ataques com mais de cem homens de cada vez. Deviam ser pelo menos duzentos, então, ou talvez quinhentos. O efetivo de William poderia ser suplantado, de modo que precisava se aproveitar ao máximo de todas as vantagens. Uma delas era o fator surpresa.

      Outra era o armamento: a maior parte dos fora-da-lei só dispunha de porretes, martelos ou, na melhor das hipóteses, machados, e nenhum tinha armadura. Contudo, a mais importante das vantagens de que William dispunha eram os homens a cavalo. Os proscritos tinham poucos cavalos e não era provável que muitos estivessem arriados justamente no momento em que atacasse. Para desequilibrar as coisas um pouco mais a seu favor, decidiu mandar alguns arqueiros subir os dois lados do morro para disparar suas armas na pedreira, poucos momentos antes do ataque principal.

      O mais importante era impedir qualquer dos fora-da-lei de fugir, até que pelo menos estivesse certo de Richard ter sido capturado ou morto. Decidiu determinar a um punhado de homens de confiança que ficassem por trás dos atacantes que estivessem executando o assalto principal e pegassem os proscritos que tentassem escapar.

      Walter estava esperando com os cavaleiros e homens de armas onde William os deixara umas duas horas antes, mas estavam ansiosos, e seu moral era alto: antecipavam uma vitória fácil.

      Pouco tempo depois saíram trotando ao longo da estrada de Winchester.

      Walter seguiu ao lado do conde, sem falar. Um dos seus grandes trunfos era a capacidade de permanecer em silêncio. Hamleigh achava que a maioria das pessoas falava com ele constantemente, mesmo quando nada havia para dizer, decerto por nervosismo. Walter respeitava William, mas não ficava nervoso por sua causa: estavam juntos há muito tempo.

      O conde sentia uma mistura familiar de ansiedade e medo mortal. Lutar era a única coisa no mundo que lhe fazia bem, e em todas as lutas arriscava a vida. Mas essa incursão era especial. Teria uma chance de destruir o homem que era um espinho em sua carne há quinze anos.

      Perto do meio-dia pararam numa vila grande o bastante para ter uma cervejaria. William comprou pão e cerveja para os homens, e deram água aos cavalos. Antes de se deslocarem novamente, deu instruções a todos.

      Poucas milhas depois desviaram-se da estrada de Winchester. Seguiram por uma trilha quase invisível, e Hamleigh não a teria notado se não estivesse procurando por ela. Uma vez na trilha podia segui-la observando a vegetação: havia uma faixa de quatro ou cinco jardas sem árvores maduras.

      Mandou os arqueiros seguirem na frente e, para dar-lhes uma vantagem, fez os homens reduzirem o ritmo por alguns momentos. Era um dia claro de janeiro, e as árvores desfolhadas praticamente não filtravam a luz fria do sol. William não ia à pedreira há muitos anos, e não estava certo da distância a que se encontraria. No entanto, mais ou menos duas milhas depois de ter saído da estrada, começou a ver sinais de que a trilha estava sendo usada: vegetação pisoteada, arbustos quebrados e lama remexida. Ficou satisfeito por ver confirmada a informação de Remigius.

      Sentia-se tenso como a corda de um arco. Os sinais começaram a se tornar muito mais evidentes: capim fortemente pisoteado, estrume de cavalo, dejetos humanos. No fundo da floresta os fora-da-lei não tinham sequer tentado ocultar sua presença. Não havia mais dúvida. Os proscritos estavam ali. A batalha estava prestes a começar.

      O esconderijo deveria ser bem próximo. William aguçou audição. A qualquer momento seus arqueiros iniciariam o ataque, e haveria berros e pragas, gritos de agonia e o relinchar dos cavalos aterrorizados.

      A trilha levava a uma vasta clareira, e o conde viu, a umas duzentas jardas adiante, a entrada da Pedreira de Sally. Não havia barulho. Algo saíra errado. Seus arqueiros não estavam atirando. Hamleigh sentiu um tremor de apreensão. O que acontecera? Teriam seus homens sido emboscados e silenciosamente liquidados pelas sentinelas?

      Nem todos, certamente.

      Mas não havia tempo para pensar: estava quase em cima da posição dos fora-da-lei. Esporeou o cavalo, fazendo-o galopar. Seus homens o seguiram, e todos dispararam na direção do esconderijo, estrepitosamente. O medo de William evaporou-se na animação da carga.

      A entrada da pedreira era uma pequena ravina em curva, e o conde não pôde ver nada ao aproximar-se dela. Erguendo os olhos, viu alguns dos arqueiros de pé no topo do penhasco, olhando para dentro. Por que não estavam disparando suas flechas? Teve uma premonição de desastre, e teria parado e se virado se os cavalos em plena carga pudessem ser detidos. com a espada na mão direita, segurando as rédeas com a esquerda, o escudo pendurado ao pescoço, entrou a galope na pedreira abandonada.

      Não havia ninguém ali.

      O anticlimax o atingiu com a força de um golpe. Quase chorou. Todos os sinais estavam visíveis: ele se sentira absolutamente seguro. Agora a dor da frustração retorceu suas vísceras.

      Quando os cavalos reduziram o passo, viu que aquele lugar fora o esconderijo dos fora-da-lei não muito tempo antes. Havia abrigos improvisados feitos com galhos e palha, restos de fogueiras utilizadas na preparação de comida e uma esterqueira. Um canto da área fora cercado e usado como curral para os cavalos. Aqui e ali William via o lixo resultante da ocupação humana: ossos de galinha, sacos vazios, um sapato gasto, uma panela quebrada. Uma das fogueiras parecia ainda soltar fumaça.

      Teve uma súbita esperança: talvez eles tivessem acabado de sair e ainda pudessem ser apanhados! Então viu um vulto de cócoras junto ao fogo. Aproximou-se. O vulto ergueu-se. Era uma mulher.

      - Ora, ora, William Hamleigh - disse ela. - Atrasado, como sempre.

      - Sua vaca insolente, cortarei sua língua por causa disso! - disse ele.

      - Você não tocará em mim - replicou ela calmamente. - Já amaldiçoei homens melhores que você - prosseguiu, levando a mão ao rosto num gesto de três dedos, como uma feiticeira.

        Os cavaleiros recuaram, encolhendo-se, e o conde se persignou protetoramente. A mulher o encarou, atrevida, com um par de surpreendentes olhos dourados.

      - Você não me conhece, William? Uma vez quis me comprar por uma libra. - Ela riu. - Sorte sua não ter conseguido.

      Hamleigh lembrou-se daqueles olhos. Era a viúva de Tom Construtor, a mãe de Jack, a bruxa que vivia na floresta. Ficou realmente satisfeito por não tê-la comprado naquela vez. Queria dar o fora dali o mais depressa possível, mas tinha que interrogá-la primeiro.

      - Está bem, bruxa - disse. - Richard de Kingsbridge esteve aqui?

      - Até dois dias atrás.

      - E para onde ele foi, você pode me dizer?

      - Oh, sim, posso - disse ela. - Ele e seus fora-da-lei foram combater por Henrique.

      - Henrique? - repetiu William. Teve a horrível sensação de que sabia a que Henrique ela se referia. - O filho de Matilde?

      - Exatamente - confirmou ela.

      Hamleigh gelou. O enérgico jovem duque da Normandia poderia ter êxito onde sua mãe falhara - e se Estêvão fosse derrotado agora, William poderia cair com ele.

      - O que aconteceu? - perguntou, nervoso. - O que Henrique fez?

      - Atravessou o canal com trinta e seis navios e desembarcou em Wareham - replicou a bruxa. - Trouxe um exército de três mil homens, segundo o que dizem. Fomos invadidos.

      Winchester estava superpovoada, tensa e perigosa. Ambos os exércitos estavam ali: as forças legais do rei Estêvão, aquarteladas no castelo, e os rebeldes do duque Henrique - incluindo Richard e seus fora-da-lei -, acampados do lado de fora das muralhas da cidade, na colina de Saint Giles, onde se realizava a feira anual. Os soldados de ambos os lados foram banidos da cidade propriamente dita, mas muitos deles desafiavam o banimento e passavam as noites nas cervejarias, rinhas de galo e bordéis, onde se embebedavam, abusavam de mulheres e se matavam uns aos outros por causa de jogos de dados e jogos das nove pedras.

      Toda a combatividade de Estêvão desaparecera no verão, quando seu filho mais velho morrera. Agora ele estava no castelo real enquanto o duque se alojara no castelo do bispo, com as conversações de paz sendo conduzidas pelos seus representantes, o arcebispo Theobald de Canterbury falando pelo rei, e o antigo intermediário dos poderosos, o bispo Henry de Winchester, pelo duque Henrique. Todas as manhãs o arcebispo e o bispo conferenciavam no palácio deste. Ao meio-dia o duque Henrique atravessava a pé as ruas de Winchester, com seus lugares-tenentes, inclusive Richard, e ia para o castelo almoçar. A primeira vez que Aliena viu o duque Henrique não pôde acreditar que aquele homem governasse um império do tamanho da Inglaterra. Tinha apenas cerca de vinte anos de idade e pele bronzeada e sardenta de um camponês.

      Vestia uma túnica escura simples, sem bordados, e o cabelo arruivado cortado curto. Lembrava o filho de um pequeno proprietário rural e tinha o aspecto de quem trabalhava duro. No entanto, após algum tempo, constatou que ele tinha uma certa aura de poder. Era entroncado e musculoso, de ombros largos e cabeça grande; porém, a impressão de força física bruta se modificava pelos olhos penetrantes e atentos, acinzentados; as pessoas que o cercavam nunca se aproximavam demais, mas o tratavam com cautelosa familiaridade, como se receassem que ele pudesse exceder-se rudemente a qualquer momento.

      Aliena achava que os jantares no castelo deviam ser desagradavelmente tensos, com os líderes dos exércitos adversários sentados em torno da mesma mesa. Não sabia como Richard podia se sentar com o conde William. Teria enfiado a faca nele, em vez de lhe passar a carne de veado. Ela própria via Hamleigh apenas de longe, e rapidamente.

      Parecia ansioso e mal-humorado, o que era bom sinal.

      Enquanto condes, bispos e abades se encontravam na fortaleza, a pequena nobreza se reunia no pátio do castelo: cavaleiros e xerifes, barões menos importantes, magistrados e castelões; gente que não podia ficar longe da capital enquando seu futuro e o futuro do reino estava sendo decidido. Aliena encontrava o prior Philip ali quase todas as manhãs. Sempre havia dúzias de boatos diferentes. Um dia todos os condes que apoiavam Estêvão seriam degradados (o que significaria o fim de William); no seguinte, todos reteriam suas posições, o que liquidaria com as esperanças de Richard. Todos os castelos de Estêvão seriam derrubados, depois todos os dos rebeldes, depois os de todos, depois nenhum. Um boato dizia que os seguidores de Henrique seriam recompensados com o grau de cavaleiro e cem acres. O irmão de Aliena não queria isso, queria o condado.

      Richard não tinha idéia de quais boatos seriam verdadeiros, se é que algum seria. Embora fosse um dos lugares-tenentes de Henrique de mais confiança, no campo militar, não era consultado quanto a detalhes das negociações políticas. Philip, contudo, parecia saber o que estava ocorrendo. Não dizia onde obtinha suas informações, mas Aliena se lembrava de que ele tinha um irmão que visitava Kingsbridge de vez em quando e que tinha trabalhado para Robert de Gloucester e para Matilde; talvez trabalhasse agora para o duque Henrique.

      O prior contou que os negociadores estavam perto de chegar a um acordo. O trato era que Estêvão continuaria a ser rei até morrer, mas Henrique seria seu sucessor.

      Isso deixou Aliena ansiosa. O rei poderia viver por mais dez anos. O que aconteceria nesse ínterim? Os condes de Estêvão certamente não seriam depostos enquanto ele continuasse a reinar. Como então aqueles que tinham apoiado Henrique - como Richard ganhariam suas recompensas? Teriam de aguardar?

      Philip soube a resposta num final de tarde, quando havia já uma semana que todos estavam em Winchester. Mandou um noviço como mensageiro para chamar Richard e Aliena.

      Enquanto percorriam as ruas movimentadas até o adro da catedral, o lugar-tenente se sentia cheio de incontrolável ansiedade, enquanto sua irmã tremia de medo.

      O prior os estava esperando no cemitério, e foi por entre as lápides que conversaram enquanto o sol se punha.

      - Eles chegaram a um acordo - disse Philip, sem preâmbulos. - Mas é um bocado confuso.

      Aliena não podia aguentar a tensão.

      - Richard será conde? - perguntou, aflita.

      Philip balançou a mão de um lado para o outro, num gesto que queria dizer talvez sim, talvez não.

      - É complicado. Eles chegaram a um compromisso. As terras que foram tomadas por usurpadores serão devolvidas às pessoas que as possuíam no tempo do velho rei Henrique.

      - É tudo o que preciso! - exclamou Richard imediatamente. - Meu pai era conde naquele tempo.

      - Cale-se, Richard - ordenou Aliena. Virou-se para Philip. - Então, qual é a complicação?

      - Não há nada no acordo que obrigue Estêvão a cumpri-lo. Provavelmente não haverá mudança até que ele morra e Henrique se torne rei.

      Richard ficou desacorçoado.

      - Mas isso cancela tudo!

      - Não inteiramente - retrucou Philip. - Significa que você é o legítimo conde.

      - Mas tenho que viver como fora-da-lei enquanto Estêvão não morrer... com aquele animal do William morando no meu castelo - esbravejou Richard, furioso.

      - Não fale tão alto! - protestou Philip, quando um padre passou por perto. - Tudo isso ainda é segredo.

      Aliena estava irada.

      - Não aceito isso - disse. - Não estou preparada para esperar que Estevão morra. Há dezessete anos que espero! Basta!

      - Mas o que você pode fazer? - perguntou o prior.

      Aliena dirigiu-se a Richard.

      - Praticamente todo o país o aclama legítimo conde. Estêvão e Henrique reconheceram agora que o direito é seu. Você deve tomar o castelo e governar como o legítimo conde que é.

      - Não posso tomar o castelo. William o tem sempre bem defendido.

      - Você possui um exército, não? - exclamou ela, deixando-se levar pela força da sua raiva e frustração. - Você tem o direito ao castelo e a força para tomá-lo.

      Richard sacudiu a cabeça.

      - Em quinze anos de guerra civil, sabe quantas vezes vi um castelo ser tomado mediante um ataque frontal? Nenhuma. - Como sempre, ele parecia ganhar autoridade e maturidade assim que começava a falar em assuntos militares. - Quase nunca acontece. Uma cidade, talvez, mas não um castelo. Os castelos podem se render após um cerco, ou serem salvos ao receber reforços; já vi castelos serem tomados graças a atos de covardia, a truques ou a traições; mas não pela força bruta.

      Aliena ainda não estava pronta para aceitar aquilo. Tal opinião lhe pareceu fruto da desesperança. Não podia se conformar com a idéia de aguardar não sabia quantos anos mais.

      - O que aconteceria então se você levasse seu exército ao castelo de William? - perguntou ela.

      - Eles ergueriam a ponte levadiça e fechariam os portões para que não pudéssemos entrar. Acamparíamos do lado de fora. Então William contra-atacaria com o seu exército e arremeteria sobre o nosso acampamento. Só que, mesmo que o vencessemos não teríamos o castelo. Castelos são difíceis de atacar e fáceis de defender - é a vantagem deles.

      Enquanto falava, a idéia foi germinando na cabeça de Aliena.

      - Covardia, truques ou traição - disse.

      - O quê?

      - Você viu castelos serem tomados graças a atos de covardia, a truques ou traições.

      - Oh, sim.

      - O que foi que William usou, quando nos tomou o castelo tanto tempo atrás?

      - Aqueles tempos eram diferentes - interrompeu Philip. - O país vivera em paz, sob o velho rei Henrique, por trinta e cinco anos. William venceu seu pai pela surpresa.

      - Ele usou um truque. Entrou no castelo sub-repticiamente, com um punhado de homens, antes de o alarme ser acionado. Mas o prior tem razão: não se conseguiria fazer uma coisa dessas atualmente. Hoje em dia as pessoas são muito mais cautelosas.

      - Eu poderia entrar - disse Aliena confiantemente, embora ao pronunciar as palavras seu coração disparasse de medo.

      - Claro que poderia; você é uma mulher - disse Richard. - Mas não poderia fazer nada, uma vez que estivesse lá dentro. O que explica por que a deixariam entrar. É inofensiva.

      - Não seja tão malditamente arrogante! - explodiu ela. - Já matei para protegê-lo, o que é muito mais do que você jamais fez por mim, seu porco ingrato, de modo que não se atreva a me chamar de inofensiva.

      - Está bem, você não é inofensiva - concedeu ele, enraivecido. - O que faria, uma vez no interior do castelo?

      A fúria de Aliena desvaneceu-se. O que eu iria fazer?, pensou, amedrontada. Ao inferno com isso, tenho pelo menos tanta coragem e determinação quanto aquele animal do Hamleigh.

      - O que William fez?

      - Manteve a ponte levadiça abaixada e o portão aberto tempo suficiente para a força do ataque principal entrar,

      - Então é o que farei - disse Aliena, com o coração na boca.

      - Como? - perguntou Richard ceticamente.

      Aliena lembrou-se de ter tranquilizado uma garota de catorze anos com medo de uma tempestade.

      - A condessa me deve um favor - disse. - E ela odeia o marido.

     

      Cavalgaram a noite inteira, Aliena, Richard e cinquenta dos seus melhores homens, e atingiram a vizinhança de Earlscastle pela madrugada. Detiveram-se na floresta, na orla dos campos que cercavam o castelo. Aliena desmontou, despiu sua capa de lã de Flandres e descalçou as botas de couro macio. Isso feito, cobriu-se com um cobertor de lã áspera, dos usados pelos camponeses, e calçou um par de tamancos. Um dos homens entregou-lhe uma cesta com ovos frescos acondicionados em palha, que ela enfiou no braço.

      Richard examinou-a de alto a baixo.

      - Perfeito - disse ele. - Uma jovem camponesa levando ovos para a cozinha do castelo.

      Aliena engoliu em seco. Na véspera estava cheia de ímpeto e ousadia, mas agora que estava prestes a executar seu plano sentia-se apavorada.

      - Quando eu ouvir o sino - disse seu irmão, beijando-a no rosto -, rezarei um padre-nosso devagar e em seguida a vanguarda sairá. Tudo o que tem a fazer é induzir os guardas a uma falsa sensação de segurança, de modo que dez dos meus homens possam atravessar o campo e entrar no castelo sem causar alarme.

      Aliena assentiu.

      - Só quero que você não deixe a força principal aparecer antes de a vanguarda atravessar a ponte.

      Ele sorriu.

      - Estarei comandando o grupo principal. Não se preocupe. Boa sorte.

      - Para você também.

      Ela afastou-se.

      Aliena deixou a floresta e pôs-se a atravessar o campo aberto na direção do castelo que deixara naquele dia horrível, dezesseis anos antes. Ao ver o lugar de novo, teve a lembrança vívida e aterrorizante daquela outra manhã, o ar úmido depois da tempestade, os dois cavalos galopando através do portão e cruzando o campo encharcado - Richard no cavalo de batalha e ela no corcel de menor tamanho, ambos mortos de medo. Ia negando o que acontecera, deliberadamente esquecendo, repetindo para si própria ao ritmo do tropel dos cascos do cavalo:

      Não posso lembrar, não posso lembrar, não posso, não posso, não E dera certo: por um longo período fora incapaz de rememorar o estupro; lembrava que alguma coisa horrível tinha contecido, mas jamais revivia os detalhes. Só quando se apaixonara por Jack é que tudo lhe voltara à memória; e então a lembrança a deixara tão apavorada que fora incapaz de reagir ao seu amor. Graças a Deus ele fora tão paciente. Foi como soube quanto seu amor era forte: por ter tolerado tanta coisa e ainda assim continuado a amá-la.

      Ao aproximar-se do castelo, invocou algumas lembranças boas, para acalmar os nervos. Morara ali quando criança, com seu pai e Richard. Eram ricos e desfrutavam de segurança. Brincara nas fortificações do castelo com o irmão, transitara muito pela cozinha, surripiando pedacinhos de doce, e sentara-se ao lado do pai no jantar servido no grande salão. Eu não sabia que era feliz, pensou. Não tinha idéia de quanto afortunada era por não ter nada a recear.

      Aqueles bons tempos começarão de novo hoje, disse para si própria, se ao menos eu fizer isto direito.

      Dissera, confiantemente: A condessa me deve um favor. E ela odeia, o marido, mas enquanto cavalgavam durante a noite, pensara em todas as coisas que podiam sair erradas.

      Primeiro, talvez nem sequer conseguisse entrar no castelo: havia a possibilidade de alguma coisa ter posto a guarnição em alerta; de os guardas se mostrarem desconfiados; ou de simplesmente ter a má sorte de esbarrar numa sentinela que resolvesse atrapalhar. Segundo, quando se encontrasse no interior do castelo poderia não ser capaz de persuadir Elizabeth a trair o marido. Fazia um ano e meio que a encontrara na tempestade: com o tempo, as mulheres às vezes se habituam com os homens mais perversos, e a garota podia ter-se resignado ao seu destino. Terceiro, mesmo que Elizabeth estivesse disposta, talvez não tivesse autoridade ou coragem para fazer o que Aliena queria. Era uma garotinha assustada quando a vira da última vez, e podia ser que a guarda do castelo se recusasse a obedecê-la.

      Aliena estava extraordinariamente alerta quando atravessou a ponte levadiça: podia ver e ouvir tudo com uma clareza anorrnal. A guarnição estava acordando. Uns poucos guardas de olhos injetados espreguiçavam-se, bocejando e tossindo, e um cachorro velho, sentado na entrada, se coçava. Puxou o capuz para a trente a fim de ocultar o rosto, para o caso de alguém ser capaz de reconhecê-la, e passou sob o arco.

      Havia uma sentinela de serviço no portão, um tipo desmazelado sentado num banco comendo um pedaço imenso de pão. Sua roupa estava em desalinho, e o cinturão da espada pendia de um gancho nos fundos do aposento. Com o coração na boca e um sorriso que disfarçava o medo, Aliena mostrou-lhe a cesta de ovos.

      Ele mandou que entrasse, com um gesto impaciente. Ela passara o primeiro obstáculo.

      A disciplina estava relaxada. Era compreensível: aquilo era uma força simbólica, deixada para trás enquanto os melhores homens tinham ido para a guerra. Toda a agitação acontecia em outros lugares. Até esse dia.

      Por enquanto, tudo ia bem. Aliena atravessou o pátio mais baixo com os nervos tensos. Era muito esquisito ser uma estranha entrando no lugar onde morara, estar se infiltrando onde antes tinha o direito de ir aonde bem entendesse. Olhou à sua volta, tomando cuidado para não deixar muito evidente sua curiosidade. A maioria das construções de madeira mudara; os estábulos eram maiores, a cozinha fora transferida e havia um novo depósito de armas, de pedra. Tudo parecia mais sujo do que no seu tempo. Mas a capela ainda estava lá, a capela onde ela e Richard tinham se abrigado daquela horrível tempestade, chocados, tontos e quase congelados. Um punhado de criados dava início às tarefas matinais. Um ou dois homens de armas se deslocavam pelo conjunto de edificações. Achou que tinham aspecto ameaçador, mas talvez fosse porque sabia que a matariam, caso soubessem o que ia fazer.

      Se seu plano desse certo, à noite seria novamente a senhora daquele castelo. A idéia era excitante mas irreal, como um sonho maravilhoso e impossível.

      Entrou na cozinha. Um garoto estava atiçando o fogo, e uma garota cortava cenouras. Aliena sorriu alegremente para eles.

      - Vinte e quatro ovos frescos - disse ela, pondo a cesta em cima da mesa.

      - O cozinheiro ainda não acordou - disse o garoto. - Você vai ter que esperar pelo seu dinheiro.

      - Posso arranjar um pedaço de pão para o meu desjejum?

      - No salão grande.

      - Obrigada. - Ela deixou a cesta e saiu de novo. Aliena cruzou a segunda ponte levadiça para o conjunto de cima. Sorriu para o guarda do segundo portão. Ele estava despenteado e com os olhos injetados. Olhou-a de cima a baixo e disse:

      - Aonde é que você está indo? - A voz dele era desafiadoramente brincalhona.

      - Vou comer qualquer coisa - disse ela, sem parar.

      Ele lançou um olhar lúbrico.

      - Tenho um negócio aqui para você comer - disse, às suas costas.

      - Cuidado que posso cortar fora com uma mordida! - disse ela por cima do ombro.

      Não suspeitaram de Aliena por um só momento. Não lhes ocorria a possibilidade de uma mulher ser perigosa. Como eram tolos. As mulheres podiam fazer a maior parte das coisas que os homens faziam. Quem cuidava de tudo quando os homens iam combater nas guerras, ou partiam nas cruzadas? Havia mulheres carpinteiras, tingidoras, curtidoras, padeiras e cervejeiras. A própria Aliena era uma das mais importantes mercadoras do condado. Os deveres de uma abadessa, dirigindo um convento, eram exatamente os mesmos de um abade. Ora, tinha sido uma mulher, a rainha Matilde, que causara a guerra civil que já se prolongava há quinze anos! No entanto, aqueles homens de armas idiotas não esperavam que uma mulher fosse um agente inimigo porque não era normal que fosse.

      Subiu correndo os degraus da fortaleza e entrou no salão principal. Não havia nenhum camareiro à porta. O que se justificava, presumiu Aliena, pelo fato de o senhor estar ausente. No futuro me assegurarei de que haja sempre alguém cuidando da entrada, pensou Aliena, quer o senhor esteja presente, quer não.

      Quinze ou vinte pessoas estavam tomando o desjejum em torno de uma pequena mesa. Uma ou duas levantaram os olhos para ela, mas ninguém lhe deu maior atenção. O salão estava bastante limpo, observou Aliena, e havia um ou dois toques femininos: paredes recentemente caiadas, e ervas de doce fragrância misturadas com as palhas do chão. Elizabeth deixara sua marca, de algum modo. Era um bom indício.

      Sem falar com as pessoas sentadas em torno da mesa, Aliena atravessou o salão até a escadaria num canto, tentando aparentar ter todo o direito de estar ali, mas esperando ser detida a qualquer momento. Chegou ao patamar da escada sem chamar a atenção de ninguém. Só depois, quando subiu depressa na direção dos apartamentos privados do andar de cima, ouviu alguém dizer:

      - Não pode subir aí! Ei, você! - Mas ignorou a voz. Ouviu alguém seguindo-a.

      Chegou ao andar de cima ofegante. Elizabeth dormiria no quarto principal, aquele que o pai de Aliena ocupara? Ou teria uma cama só para si no quarto que fora dela?

      Hesitou por um instante, o coração batendo com força. Supôs que àquela altura William teria se cansado de dormir com a mulher todas as noites, e provavelmente permitira que tivesse um quarto só para ela. Aliena bateu à porta do quarto menor e abriu-a.

      Acertou em sua suposição. Elizabeth estava sentada junto ao fogo de camisola, escovando o cabelo. Ergueu os olhos, franziu a testa e reconheceu Aliena.

      - É você! - exclamou. - Que surpresa! - Parecia satisfeita.

      Aliena ouviu passos pesados na escada, à sua retaguarda.

      - Posso entrar? - perguntou ela.

      - Claro! E seja bem-vinda!

      Aliena entrou e fechou a porta rapidamente. Atravessou o quarto até onde Elizabeth se encontrava. Um homem irrompeu porta adentro, dizendo:

      - Ei, você, quem pensa que é? - E avançou em sua direção, como se fosse prendê-la.

      - Fique onde está! - ordenou ela, na sua voz mais autoritária. - Ele hesitou. - Vim ver a condessa, com uma mensagem do conde William, e você teria sabido disso mais cedo se estivesse guardado a porta em vez de estar se entupindo de pão.

      Ele fez uma expressão culpada.

      - Está bem, Edgar - disse Elizabeth. - Conheço esta lady.

      - Muito bem, condessa - disse ele, saindo e fechando a porta.

      Consegui, pensou Aliena. Estou aqui dentro.

      Olhou à sua volta, enquanto o coração retornava ao ritmo normal. O quarto não estava muito diferente do que era no seu tempo. Havia pétalas secas numa tigela, uma bela tapeçaria na parede, alguns livros e uma arca para roupas. A cama se encontrava no mesmo lugar - na verdade era a mesma -, e em cima do travesseiro havia uma boneca de pano exatamente igual a uma que Aliena tivera. Aquilo a fez sentir-se velha.

      - O meu quarto era aqui - disse ela.

      - Eu sei.

      Aliena ficou surpresa. Não tinha lhe falado a respeito do seu passado.

      - Descobri tudo a seu respeito após aquela terrível tempestade - explicou Elizabeth. E acrescentou: - Admiro muito você. - Seus olhos tinham o brilho de quem estava diante de uma heroína.

      O que era um bom sinal.

      - E William? - perguntou Aliena. - Sente-se mais feliz vivendo com ele?

      Elizabeth desviou os olhos.

      - Bem - disse -, agora tenho um quarto só para mim, e ele passa muito tempo fora. Na verdade, tudo está muito melhor. - E começou a chorar.

      Aliena sentou-se na cama e passou os braços em torno da garota. Elizabeth chorou, com soluços fundos e arrebatados, as lágrimas escorrendo pelo rosto. Entre um soluço e outro, arquejava:

      - Eu...   odeio...   William!. ..   Queria...   poder... morrer!

      Sua angústia era tão digna de pena, e ela era tão jovem, que Aliena estava quase chorando também. Sentia-se dolorosamente consciente de que a sina de Elizabeth poderia ter sido a sua. Deu umas palmadinhas nas costas da garota como teria feito com Sally.

      Aos poucos a condessa foi se acalmando. Enxugou o rosto molhado com a manga da camisola.

      - Tenho tanto medo de ter um filho! - disse, angustiadamente. - Estou aterrorizada porque sei como ele maltrataria a criança.

      - Compreendo - disse Aliena. Um dia sentira verdadeiro pavor de estar grávida de um filho dele.

      Elizabeth fitou-a com os olhos arregalados.

      - É verdade o que dizem sobre... o que ele fez com você?

      - Sim, é verdade. Eu tinha sua idade quando aconteceu.

      Por um momento elas se encararam, aproximadas pela repulsa a William, partilhada por ambas. De repente Elizabeth não mais parecia uma criança.

      - Você poderia se livrar dele se quisesse - disse Aliena. - Hoje.

      A garota fitou-a espantada.

      - É verdade? - perguntou, com deplorável ansiedade. - É verdade?

      Aliena fez que sim.

      - É por isso que estou aqui.

      - Eu poderia ir para casa? - perguntou Elizabeth, os olhos cheios de novas lágrimas. - Eu poderia ir para Weymouth, para a casa da minha mãe? Hoje?

      - Sim. Mas você terá que ser corajosa.

      - Farei qualquer coisa - assegurou ela. - Qualquer coisa! Basta que me diga o quê.

      Aliena relembrou o que lhe explicara a respeito de como podia adquirir autoridade com os empregados do marido e quis saber se Elizabeth fora capaz de seguir seus conselhos e colocá-los em prática.

      - Os criados ainda tentam intimidá-la? - perguntou, sem rodeios.

      - Tentam.

      - Mas você não permite.

      Ela pareceu embaraçada.

      - Bem, às vezes sim. Mas estou com dezesseis anos agora, e já sou condessa há dois anos quase...  Tenho tentado seguir seus conselhos, e eles realmente funcionam!

      - Deixe-me explicar - começou Aliena. - O rei Estêvão fez um pacto com o duque Henrique. Todas as terras serão devolvidas às pessoas que eram suas proprietárias no tempo do velho rei. Isso significa que meu irmão se tornará o conde de Shiring...   um dia. Mas ele quer sê-lo agora.

      Elizabeth estava de olhos arregalados.

      - Richard vai guerrear com William?

      - Richard está muito próximo daqui neste momento, com um pequeno grupo de homens. Se puder tomar o castelo hoje, será reconhecido como conde, e William estará liquidado.

      - Não posso crer - disse a condessa. - Não posso crer que seja realmente verdade. - Seu otimismo súbito era ainda mais aflitivo que o abjeto desespero de há pouco.

      - Tudo o que você tem a fazer é deixar Richard entrar pacificamente - disse Aliena. - Então, quando tudo estiver terminado, nós a levaremos para casa.

      Elizabeth pareceu temerosa de novo.

      - Não sei se os homens farão o que eu mandar.

      Era essa a preocupação de Aliena.

      - Quem é o capitão da guarda?

      - Michael Armstrong. Não gosto dele.

      - Mande chamá-lo.

      - Certo. - A condessa assoou o nariz, levantou-se e foi até a porta. - Madge! - exclamou, numa voz aguda. Aliena ouviu uma resposta longínqua. - Vá buscar Michael. Diga-lhe que venha imediatamente, porque quero vê-lo com urgência. Depressa, por favor.

      Ela voltou e começou a se vestir rapidamente, enfiando uma túnica por cima da camisa de dormir e amarrando as botas. Aliena instruiu-a depressa.

      - Mande Michael tocar o sino grande a fim de convocar todo mundo ao pátio. Diga que recebeu uma mensagem do conde William e que quer falar com toda a guarnição, homens de armas, criados e todo o resto. Quer que três ou quatro homens montem guarda, enquanto os demais se reúnem no pátio de baixo. Diga-lhe também que está esperando a qualquer momento a chegada de um grupo de dez ou doze homens com outra mensagem, e que eles devem ser trazidos à sua presença assim que chegarem.

      - Espero conseguir lembrar de tudo isso - disse Elizabeth, nervosa.

      - Não se preocupe; se você se esquecer, eu a ajudarei.

      - Isso me faz sentir melhor.

      - Como é esse tal de Michael Armstrong?

      - Fedorento, emburrado e forte como um touro.

      - Inteligente?

      - Não.

      - Quanto mais burro melhor.

      Um momento depois chegou o homem. Tinha uma expressão mal-humorada, o pescoço curto e ombros poderosos, e trouxe com ele o odor de um chiqueiro. Lançou um olhar indagador a Elizabeth, dando a impressão de que se ressentira por ter sido perturbado.

      - Recebi uma mensagem do conde - começou a garota.

      Michael estendeu a mão.

      Aliena ficou horrorizada ao ver que não tomara a precaução de dar uma carta a Elizabeth. Toda a farsa podia fracassar logo no princípio por causa de um erro tolo.

      A condessa lançou-lhe um olhar de desespero. Aliena procurou com empenho imaginar algo para dizer. Finalmente teve uma inspiração.

      - Você saber ler, Michael?

      Ele pareceu ficar ressentido.

      - O padre lerá para mim.

      - A sua lady pode ler.

      - Eu mesma lerei a mensagem para toda a guarnição -, disse Elizabeth, embora parecesse apavorada. - Toque o sino e reuna todos no pátio. Mas assegure-se de deixar três ou quatro homens de guarda.

      Como Aliena temera, Michael não gostou de ver a condessa assumindo o comando daquele modo. Seu ar era de rebeldia.

      - Por que não me deixa falar com eles?

      Aliena deu-se conta, cheia de ansiedade, de que talvez não fosse capaz de persuadir aquele homem: era demasiado estúpido para ouvir a razão.

      - Trouxe à condessa notícias momentosas de Winchester. Ela própria quer dá-las à sua gente.

      - Bem, que notícias são essas?

      Aliena nada disse e olhou para Elizabeth. Mais uma vez ela parecia apavorada. Na verdade, não lhe dissera qual seria o teor da tal mensagem fictícia, de modo que era impossível para a condessa aceder ao pedido de Michael. No fim ela simplesmente continuou como se Michael não tivesse aberto a boca.

      - Diga aos guardas que esperem por um grupo de dez ou doze homens, a cavalo. O líder deles terá notícias recentes do conde William, e deve ser trazido imediatamente à minha presença. Agora toque o sino.

      Michael estava claramente disposto a contestar. Ficou parado, franzindo a testa, enquanto Aliena prendia a respiração.

      - Mais mensageiros - disse, como se fosse algo difícil de entender. - Esta lady com uma mensagem, e doze cavaleiros com outra.

      - Sim. Agora você poderia tocar o sino, por favor? - pediu Elizabeth. Aliena pôde perceber o tremor da sua voz:

      O capitão da guarda deu a impressão de ter sido derrotado. Não podia entender o que estava acontecendo, mas tampouco via algo a objetar:

        - Muito bem, milady - resmungou finalmente e saiu.

      Aliena respirou de novo.

      - O que vai acontecer? - perguntou Elizabeth.

      - Quando estiverem reunidos no pátio, você lhes falará sobre a paz negociada entre Estêvão e Henrique - respondeu Aliena. - Isso distrairá a todos. Enquanto estiver falando, Richard mandará um destacamento de vanguarda com dez homens. Os guardas, no entanto, pensarão que são os mensageiros do conde William que estamos esperando, de modo que não entrarão em pânico e levantarão a ponte. Você tem que manter todos interessados no que estiver dizendo, enquanto o destacamento da vanguarda se aproxima do castelo. Tudo bem?

      Elizabeth parecia nervosa.

      - E depois? - quis saber.

      - Quando eu lhe avisar, diga que se rendeu ao conde legítimo, Richard. Então o exército de Richard abandonará seu esconderijo e atacará o castelo. A essa altura Michael perceberá tudo. Mas os homens dele ficarão em dúvida a respeito de quem merecerá sua lealdade - por você lhes ter dito que se rendessem e por haver chamado Richard de conde legítimo -, e ademais, o destacamento de vanguarda estará no interior do castelo para impedir qualquer pessoa de fechar os portões. - O sino começou a tocar. O estômago de Aliena contraiu-se de medo.

      - Não temos mais tempo. Como se sente?

      - Apavorada.

      - Eu também. Vamos.

      Elas desceram a escada. O sino da torre do portão estava tocando como nos tempos em que Aliena era uma garota sem problemas. O mesmo sino, o mesmo som, outra Aliena, pensou ela. Sabia que ele podia ser ouvido através dos campos, até a orla da floresta. Richard estaria naquele instante rezando o padre-nosso lentamente, para medir o tempo que tinha de esperar para despachar o destacamento da vanguarda.

      Aliena e Elizabeth afastaram-se da fortaleza pela ponte levadiça interna, em direção ao pátio inferior. A condessa estava branca de medo, mas tinha os lábios cerrados numa expressão determinada. Aliena sorriu para ela a fim de lhe dar coragem e puxou o capuz de novo. Até então não tinha visto ninguém familiar, mas seu rosto era muito conhecido em todo o condado, e alguém com certeza iria reconhecê-la mais cedo ou mais tarde. Se Michael Armstrong descobrisse quem ela era, poderia suspeitar de alguma coisa, por mais obtuso que fosse. Diversas pessoas lhe lançaram olhares de curiosidade, mas ninguém lhe dirigiu a palavra.

      Ela e Elizabeth foram até o meio do pátio inferior. Graças a elevação do terreno, Aliena podia ver, por cima das cabeças e através do portão principal, o campo que cercava o castelo. A vanguarda já deveria estar praticamente entrando em ação, mas não conseguia localizar sinais deles. Oh, Deus, espero que não haja um atraso, pensou temerosamente.

      A condessa precisava subir em alguma coisa para quando fosse se dirigir àquela gente. Aliena disse a um criado que apanhasse um bloco de montaria no estábulo. Enquanto esperavam, uma mulher idosa olhou para ela.

      - Ora, é Lady Aliena! - exclamou. - Que bom vê-la!

      O coração de Aliena ficou apertado. Reconheceu a mulher como uma cozinheira que trabalhara no castelo antes da chegada dos Hamleighs.

      - Olá, Tilly, como vai você? - cumprimentou-a, forçando um sorriso.

      Tilly deu uma cotovelada na vizinha.

      - Ei, é Lady Aliena, de volta após todos esses anos. Vai ser a senhora do castelo de novo, milady?

      Aliena não queria que aquele pensamento ocorresse a Michael. Olhou ansiosamente à sua volta. Por sorte, ele não estava a uma distância de onde pudesse escutar. Um de seus homens de armas, contudo, ouviu o diálogo e a estava olhando com a testa franzida. Aliena devolveu o olhar com ar de simulada despreocupação. O homem só tinha um olho - o que, sem dúvida, era o motivo pelo qual fora deixado para trás em vez de seguir para a guerra com William -, e subitamente pareceu estranho a Aliena estar sendo encarada por um homem de um olho só; ela teve que conter uma risada. Reconheceu que estava ficando ligeiramente histérica.

      O criado voltou com o bloco de madeira. O sino parou de tocar. Aliena procurou acalmar-se quando Elizabeth subiu no bloco de montaria e a multidão se aquietou.

      - O rei Estêvão e o duque Henrique chegaram a um acordo de paz - disse a condessa.

      Ela fez uma pausa e a multidão deu um viva. Aliena estava com os olhos fixos no portão. Agora, Richard, pensou; tem que ser agora, não deixe para quando for demasiado

      tarde!

      Elizabeth sorriu, deixando que as manifestações prosseguissem.

      - Estêvão permanecerá como rei até sua morte - continuou depois -, quando será substituído por Henrique.

      Aliena examinou os guardas nas torres e no portão. Pareciam despreocupados. Onde estava Richard?

      - O tratado de paz trará muitas modificações à nossa vida.

      Aliena percebeu que os guardas mudavam de atitude. Um deles pôs a mão em pala sobre os olhos para observar o campo, enquanto o outro se virou para o pátio a fim de ver se conseguia atrair a atenção do seu com andante.

      Mas Michael Armstrong estava ouvindo atentamente as palavras de Elizabeth.

      - Os reis atuais e futuros concordaram que todas as terras devam ser restituídas aos seus proprietários no tempo do velho rei Henrique.

      Essa notícia causou muitos comentários, com as pessoas especulando se o condado de Shiring seria afetado. Aliena reparou que Michael Armstrong parecia pensativo. Através do portão finalmente ela viu os cavalos do destacamento de vanguarda de Richard. Depressa, pensou, depressa! Maseles se aproximavam a trote, num ritmo firme e constante, para não alarmar os guardas.

      - Todos nós devemos dar graças a Deus por este tratado de paz - estava dizendo Elizabeth. - Devemos rezar para que o rei Estêvão governe com sabedoria nos seus últimos anos de vida, e que o jovem duque mantenha a paz até que Deus leve o rei... - Ela estava se saindo magnificamente, mas já começava a parecer perturbada, como se sentisse estar prestes a ficar sem mais nada a dizer.

      Todos os guardas olhavam atentamente para fora, examinando o grupo que se aproximava. Haviam lhes dito que deviam esperar um grupo como aquele, e tinham instruções de levar o líder imediatamente à presença da condessa, de modo que não se esperava que agissem, mas estavam curiosos.

      O zarolho virou-se, mirou através do portão e encarou Aliena de novo. Ela supôs que estava meditando sobre o significado da sua presença ali e a aproximação de uma tropa de homens a cavalo.

      Um dos guardas em cima da muralha pareceu chegar a uma decisão e desapareceu descendo uma escada.

      A multidão estava ficando um pouco inquieta. A condessa esticara muito bem o seu discurso, mas todos aguardavam, impacientemente, notícias concretas.

      - Esta guerra começou no ano em que nasci, e como muitas pessoas igualmente jovens em todos os cantos do reino, sinto-me ansiosa para saber como é a paz.

      O guarda que estava em cima da muralha reapareceu na base de uma torre, atravessou com passadas bruscas o conjunto e falou com Michael Armstrong.

      Através do portão Aliena viu que os cavaleiros de Richard ainda se encontravam a umas duzentas jardas de distância. Não era o bastante. Teve ímpetos de gritar, tamanha foi a frustração que sentiu. Não seria capaz de continuar controlando aquela situação por muito mais tempo.

      Michael Armstrong virou-se e olhou através do portão, a testa franzida. Então o zarolho puxou-lhe a manga e disse algo, apontando para Aliena.

      Ela teve medo de que Michael fechasse os portões e erguesse a ponte levadiça antes que Richard pudesse entrar, mas não sabia o que fazer para impedi-lo. Perguntou-se se teria coragem suficiente para atirar-se sobre ele antes que desse a ordem. Ainda usava o punhal amarrado no braço esquerdo: podia até mesmo matá-lo. Ele virou-se decisivamente.

      Aliena inclinou-se e tocou no cotovelo de Elizabeth:

      - Detenha Michael! - sussurrou.

      A condessa abriu a boca para falar, mas não produziu nenhum som. Estava petrificada de medo. Então sua expressão mudou. Respirou fundo, ergueu a cabeça e disse com uma voz carregada de autoridade: - Michael Armstrong!

      O capitão da guarda virou-se.

      Aliena deu-se conta de que dali em diante não havia volta. Richard não se encontrava bastante perto, mas seu tempo acabara.

      - Agora! - disse para Elizabeth. - Conte-lhes agora!

      - Entreguei este castelo ao legítimo conde de Shiring, Richard de Kingsbridge.

      Michael arregalou os olhos para ela, incrédulo.

      - Não pode fazer isso! - berrou.

      - Ordeno que todos deponham as armas - disse ela. - Não deverá haver derramamento de sangue.

      - Levantem a ponte! - gritou Michael, virando-se. - Fechem os portões!

      Os homens de armas saíram para cumprir suas ordens, mas ele hesitara demais, mesmo que por um só momento. Quando seus homens se aproximaram das maciças portas guarnecidas de ferro que fechavam o arco de entrada, o destacamento de vanguarda de Richard passou pela ponte e entrou no conjunto. A maioria dos homens de Michael estava sem armadura, e alguns nem sequer traziam suas espadas, e se espalharam ante os cavaleiros.

      - Fiquem todos calmos! - gritou Elizabeth. - Estes mensageiros confirmarão minhas ordens.

      Ouviu-se um grito vindo da muralha: um dos guardas pôs as mãos em concha na boca e gritou:

      - Michael! Ataque! Estamos sendo atacados! Centenas de homens!

      - Traição! - urrou Michael, e puxou da espada. Mas dois dos homens de Richard lançaram-se imediatamente sobre ele, com a lâmina das espadas falseando. O sangue jorrou; Michael caiu. Aliena desviou o olhar.

      Alguns dos homens de Richard apoderaram-se da casa da guarda e do aposento onde ficava a roldana que levantava a ponte.

      Dois deles dirigiram-se para a muralha, e os guardas de Michael se renderam.

      Através do portão Aliena viu a força principal atravessando a galope o campo que circundava o castelo, e seu ânimo retornou com a força do sol quente de verão após uma pancada de chuva.

      Elizabeth, gritou com toda a força.

      - Ninguém vai ser ferido, prometo. Basta que fiquem onde estão.

      Todos permaneceram imóveis, atentos ao tropel do exército de Richard, cada vez mais próximo. Os homens de armas de Michael pareciam confusos e incertos, mas nenhum deles fez nada: seu comandante tombara, e a condessa lhes dissera que se rendessem. Os criados do castelo estavam paralisados pela rapidez dos acontecimentos.

      Nesse instante Richard atravessou o portão no seu cavalo de batalha.

      Foi um grande momento, e o coração de Aliena inchou de tanto orgulho. Richard era bonito, sorridente e triunfante.

      - O conde legítimo! - gritou ela.

      Os homens que entraram no castelo atrás de Richard responderam ao grito, que foi repetido também por algumas pessoas entre as que se encontravam no pátio - a maioria delas não tinha o menor amor por William. Richard conduziu o cavalo numa volta pelo conjunto, acenando e agradecendo os vivas. Aliena pensou em tudo que enfrentara para chegar àquele momento. Estava com trinta e quatro anos e passara metade da vida lutando por aquilo. Toda a minha vida adulta, pensou; foi o que dei. Lembrou-se de quando enfiava lã dentro de sacos, até suas mãos ficarem vermelhas, inchadas e sangrando. Rememorou os rostos que vira nas estradas, rostos cobiçosos, cruéis e lascivos de homens que a teriam matado se tivesse dado o menor sinal de fraqueza. Pensou em como endurecera o coração contra seu querido Jack, casando-se com Alfred; relembrou os meses em que dormira no chão, ao pé da cama dele, como um cão - tudo porque prometera pagar as armas e o equipamento de que Richard precisava para lutar pela recuperação daquele castelo.

      - Aí está, pai! - exclamou. Ninguém a ouviu: todos gritavam, saudando Richard. - Era isto que você queria - disse ao pai morto, e no seu coração tanto havia amargura quanto triunfo. -  Eu lhe prometi isto, e cumpri minha promessa. Tomei conta de meu irmão, ele lutou todos esses anos; agora finalmente estamos em casa de novo, e Richard é o conde. Agora... Sua voz ergueu-se até se transformar num grito, mas todos também gritavam, e ninguém notou as lágrimas quelhe corriam pelo rosto: - Agora, pai, que já fiz o que queria, volte para seu túmulo e me deixe viver em paz!

     

      Remigius era arrogante, mesmo na penúria. Entrou no solar de madeira da aldeia de Hamleigh com a cabeça erguida, olhando com desprezo as vigas recurvadas que sustentavam o teto, as paredes de taipa e o fogo - sem chaminé - aceso no meio do chão de terra batida.

      William observou-o entrando. Posso estar em fase de má sorte, pensou, mas não estou tão mal quanto você. Impossível deixar de reparar nas sandálias já consertadas tantas vezes do monge, o hábito imundo, a barba por fazer no queixo e o cabelo desalinhado. Remigius nunca fora um homem gordo, mas agora estava mais magro do que nunca. A expressão arrogante fixa no seu rosto não ocultava as rugas de exaustão ou as olheiras escuras da derrota. O monge ainda não fora esmagado, mas estava duramente batido.

      - Deus o abençoe, meu filho - disse ele.

      William não estava com disposição para aquele tipo de coisa.

      - O que você quer, Remigius? - perguntou, insultando deliberadamente o monge por não chamá-lo de "padre" ou "irmão".

      Remigius encolheu-se como se tivesse levado um soco. Hamleigh supôs que ele devia estar sofrendo golpes desse tipo desde que saíra do mosteiro.

      - As terras que você me deu como deão do cabido de Shiring foram recuperadas pelo conde Richard.

      - Não me surpreende - replicou William. - Tudo deve ser restituído aos proprietários do tempo do velho rei Henrique.

      - Mas isso me deixa sem meios para me sustentar.

      - Você e um bocado de outras pessoas - disse Hamleigh indiferentemente. - Terá que voltar para Kingsbridge.

      O rosto do monge empalideceu de raiva.

      - Não posso fazer isso - disse, falando baixo.

      - Por que não? - perguntou William, atormentando-o.

      - Você sabe por quê.

      - Será que Philip diria que não se devem arrancar segredos de garotinhas? Ele pensa que você o traiu, por me contar onde era o esconderijo dos fora-da-lei? Será que está furioso com você por se tornar deão de uma igreja que deveria substituir a catedral dele? Bem, se é assim, suponho que você não deve voltar mesmo.

      - Dê-me alguma coisa - suplicou Remigius. - Uma aldeia. Uma fazenda. Uma igrejinha!

      - Não há recompensas para quem perde, monge - disse William asperamente. Ele estava gostando daquilo. - No mundo de verdade, fora do mosteiro, ninguém toma conta de você. Os patos engolem as minhocas, as raposas comem os patos, os homens matam as raposas e o demônio caça os homens.

      A voz do monge tornou-se um sussurro.

      - O que devo fazer?

      Hamleigh sorriu.

      - Esmole.

      Remigius girou nos calcanhares e saiu da casa. Ainda orgulhoso, pensou William. Mas não por muito tempo. Você esmolará.

      Ficara satisfeito por ver alguém que levara um tombo maior do que o seu. Jamais se esqueceria do sofrimento cruciante que fora estar diante do portão do próprio castelo e não o deixarem entrar. Ficara desconfiado quando soubera que Richard e alguns de seus homens tinham deixado Winchester; depois, no momento em que o acordo de paz fora anunciado, sua desconfiança transformara-se em alarme, e ele pegara seus cavaleiros e homens de armas e cavalgara o mais depressa possível para Earlscastle.

      Deixara uma força reduzida guardando o castelo, de modo que esperara encontrar Richard acampado, iniciando um cerco. Quando tudo parecera tão calmo, sentira-se aliviado e se recriminara por ter exagerado na reação ao desaparecimento súbito de Richard.

      Ao ter-se aproximado, vira que a ponte estava levantada. Detivera o cavalo na margem do fosso e gritara: "Abram o portão para o conde!"

      Então Richard aparecera em cima da muralha e dissera: "O conde está no castelo!"

      Foi como se o chão tivesse cedido sob os pés de William. Ele sempre tivera medo de Richard, sempre o considerara como um rival perigoso, mas não tinha se sentido especialmente vulnerável naquela ocasião. Achara que o perigo verdadeiro viria quando Estêvão morresse e Henrique subisse ao trono, o que podia acontecer num prazo de cerca de dez anos. Agora, instalado naquela medíocre casa senhorial, ruminando os erros cometidos, constatava amargurado que Richard, na verdade, fora muito inteligente.

      Aproveitara uma brecha estreitíssima. Não podia ser acusado de romper a paz do rei, por agir com a guerra ainda em andamento. Sua pretensão ao condado fora legitimada pelos termos do tratado de paz. E a Estêvão, idoso, cansado e derrotado, não restava energia para outras batalhas.

      Richard, magnanimamente, libertara os homens de armas de William que quiseram continuar a seu serviço. Waldo Zarolho contara como o castelo fora tomado. A traição de Elizabeth o enfurecera, mas para William a parte desempenhada por Aliena fora mais humilhante. A garotinha desamparada que ele estuprara, atormentara e atirara para fora de casa tanto tempo antes voltara para colher sua vingança. Todas as vezes que pensava nisso seu estômago ardia como se tivesse bebido vinagre. Seu primeiro ímpeto fora lutar contra Richard. Poderia ter conservado seu exército, vivido no campo e extorquido impostos e suprimentos dos camponeses, prosseguindo na luta com seu rival. Mas Richard tinha a posse do castelo - e o tempo estava ao seu lado, já que Estêvão, o protetor de William, estava velho e liquidado - e o apoio do jovem duque, que um dia seria coroado como o rei Henrique II.

      Assim, William decidira cortar seu prejuízo. Retirara-se para a aldeia de Hamleigh e se mudara para a casa onde fora criado. Hamleigh, assim como as aldeias que ficavam em torno, fora concedida a seu pai trinta anos antes. Era uma propriedade que nunca fizera parte do condado, de modo que Richard não podia reivindicá-la.

      William esperava que, se mantivesse a cabeça baixa, Richard se daria por satisfeito com a vingança e o deixaria em paz. Até então dera certo. No entanto, William odiava a aldeia de Hamleigh. Odiava as casinhas arrumadas, os patos irritadiços no lago, a igreja de pedra cinza-clara, as crianças de faces vermelhas como maçãs, as mulheres de quadris largos e os homens fortes e ressentidos. Odiava Hamleigh por ser humilde, feia e pobre, e porque simbolizava a queda de sua família do poder. Ao observar os camponeses começarem a arar a terra na primavera, estimara qual seria sua participação na safra do verão e a considerara reduzida. Fora caçar na floresta, não conseguira achar nenhum veado, e o guarda lhe dissera: "Só se encontram agora javalis; os fora-da-lei acabaram com os veados durante a crise". Instalara a corte no salão grande da casa, com o vento assobiando através dos buracos das paredes de taipa; pronunciou sentenças duras, impôs multas elevadas e decidiu de acordo com seu capricho; mas pouca satisfação lhe trouxera tudo aquilo. Abandonara a construção da grande igreja de Shiring, claro. Se não podia enfrentar os gastos com uma casa de pedra para si próprio, o que diria de uma igreja. Os operários haviam cessado de trabalhar quando parara de efetuar os pagamentos, e o que lhes acontecera depois ele não sabia; talvez tivessem voltado todos para Kingsbridge, a fim de trabalhar para o prior Philip.

      Entretanto, agora ele estava tendo pesadelos. Eram sempre iguais. Via a mãe no lugar dos mortos. Sangrava dos ouvidos e dos olhos, e quando abria a boca para falar, mais sangue jorrava. A visão o enchia de terror mortal. À luz clara do dia não era capaz de dizer o que havia no sonho que tanto o amedrontava, pois ela não o ameaçava de modo algum. Mas à noite, quando o procurava, o medo se apoderava totalmente dele, um pânico irracional, histérico e cego. Uma vez, quando menino, atravessara um lago que súbito ficara mais fundo, e se vira debaixo da superfície e incapaz de respirar; a esmagadora necessidade de ar que se apossara dele era uma das lembranças indeléveis da sua infância; aquele pesadelo, porém, era dez vezes pior. Tentar fugir do rosto sangrento de sua mãe era como tentar correr em areia movediça. William acordava como se tivesse sido jogado de um lado para o outro do quarto, suando, gemendo, em violento estado de choque, o corpo retesado pela agonia de tanta tensão.

      Walter aparecia ao lado da sua cama - Hamleigh dormia no salão, separado dos homens por um biombo, pois não havia quarto de dormir na casa. "O senhor gritou, milorde", murmurava ele. William respirava fundo, contemplando a cama verdadeira, a parede verdadeira e o Walter verdadeiro, enquanto o poder do pesadelo lentamente desaparecia, até o ponto em que não mais sentia medo. Então ele dizia: "Não foi nada, só um sonho, vá embora", mas ficava com medo de voltar a dormir. E no dia seguinte os homens olhavam para ele como se estivesse enfeitiçado.

      Poucos dias depois da conversa com Remigius, estava sentado,   na mesma cadeira dura, junto ao mesmo fogo enfumaçado, quando o bispo Waleran entrou.

       William assustou-se. Ouvira o tropel de cavalos, mas presumira que fosse Walter, de volta do moinho. Não soube o que fazer quando viu o bispo. Waleran sempre fora arrogante e superior, e em várias oportunidades fizera com que Hamleigh se sentisse tolo, inepto e grosso. Era humilhante que visse agora o ambiente humilde em que vivia.

      William não se levantou para cumprimentar seu visitante.

      - O que é que você quer? - perguntou laconicamente. Não tinha razão para ser polido: queria que o bispo desse o fora o mais cedo possível.

      Waleran ignorou sua rudeza.

      - O xerife está morto - disse.

      A princípio Hamleigh não viu aonde o outro estava querendo chegar.

      - O que é que eu tenho com isso?

      - Haverá um novo xerife.

      William estava prestes a dizer E daí?, mas interrompeu-se. Waleran estava preocupado com quem seria o novo xerife. E viera falar com ele a esse respeito. Isso só podia significar uma coisa, não? A esperança inflou seu peito, mas ele a reprimiu energicamente: quando Waleran estava envolvido, grandes esperanças com frequência terminavam em frustração e desapontamento.

      - Quem você tem em mente? - perguntou.

      - Você.

      Era a resposta pela qual William não se atrevera a esperar. Quisera poder acreditar. Um xerife esperto e impiedoso podia ser quase tão importante e influente quanto um conde ou bispo. Podia ser o seu caminho de volta para a fortuna e o poder. Obrigou-se a considerar os pontos negativos.

      - Por que o rei Estêvão me designaria?

      - Você o apoiou contra o duque Henrique e, como resultado, perdeu o condado. Imagino que ele gostaria de recompensá-lo.

      - Ninguém faz nada por gratidão - disse William, repetindo uma frase da mãe.

       - Estevão não pode estar satisfeito em ter como conde de Shiring um homem que lutou contra ele. Pode querer que o seu xerife seja uma força que se contraponha a Richard.

      Isso agora fazia mais sentido. William sentiu-se animado contra sua própria vontade. Começou a crer que podia realmente sair daquele buraco chamado Hamleigh. Teria novamente uma força respeitável de cavaleiros e homens de armas, em vez do lastimável punhado de gente que atualmente sustentava. Presidiria a corte do condado em Shiring, e frustraria a vontade de Richard.

      - O xerife reside no Castelo de Shiring - disse desejosamente.

      - Você seria rico de novo - acrescentou Waleran.

      - Sim. - Adequadamente explorado, o cargo de xerife podia ser muitíssimo lucrativo. William poderia fazer quase tanto dinheiro quanto no tempo em que era conde.

      Mas perguntou-se por que o bispo teria falado naquilo.

      No momento seguinte Waleran respondeu à sua indagação.

      - Você seria capaz de financiar a construção da nova igreja. Então era isso. O bispo nunca fazia nada sem uma segunda intenção. Queria que William fosse o xerife para construir-lhe uma igreja. Mas este sentiu-se disposto a seguir adiante com o plano. Se pudesse terminar a igreja em memória de sua mãe, talvez os pesadelos cessassem.

      - Acha mesmo que será possível? - perguntou, ansioso.

      Waleran assentiu.

      - Custará dinheiro, claro, mas acho que pode ser feito.

      - Dinheiro? - perguntou William, com súbita ansiedade.

      - Quanto?

      - É difícil dizer. Num lugar como Lincoln ou Bristol, um cargo de xerife lhe custaria por volta de quinhentas ou seiscentas libras; os xerifes dessas cidades, porém, são mais ricos que cardeais. Numa pequena localidade como Shiring, se você for o candidato da vontade do rei - coisa de que posso me encarregar -, provavelmente conseguirá a nomeação em troca de umas cem libras.

      - Cem libras! - As esperanças de William ruíram. Receara desapontar-se, desde o princípio. - Se eu tivesse cem libras não estaria vivendo deste jeito! - exclamou amarguradamente.

      - Você pode arranjar o dinheiro - disse o bispo, despreocupado.

      - Com quem? - Hamleigh foi assaltado por uma idéia. - Você me daria?

      - Não seja estúpido - disse Waleran, com enraivecedora condescendência. - É para isso que existem os judeus.

      William constatou, com uma mistura familiar de esperança e ressentimento, que mais uma vez o bispo estava certo.

     

      Fazia dois anos desde que as primeiras rachaduras tinham aparecido, e Jack ainda não encontrara a solução do problema, pior ainda, rachaduras idênticas apareceram no primeiro intercolúnio da nave. Havia algo crucialmente errado no seu projeto. A estrutura era forte o bastante para sustentar o peso da abóbada, mas não para resistir aos ventos que sopravam com tanta força de encontro às altas paredes.

      Ele estava em cima de um andaime, muito longe do chão, examinando de perto as novas rachaduras, meditando. Precisava pensar num modo de reforçar a parte superior na parede para que ela não cedesse ao vento.

      Refletiu sobre o modo como a parte inferior fora reforçada. Na parede externa da nave lateral havia pilares grossos e fortes, ligados à parede da nave por meios arcos escondidos no teto da nave lateral. Os meios arcos e os pilares escoravam a parede a distância, como remotos arcobotantes. Por serem ocultas as escoras, a nave parecia leve e graciosa.

      Precisava inventar um sistema similar para a parte superior da parede. Podia fazer uma nave lateral com dois andares, e simplesmente repetir a solução de baixo; mas isso bloquearia a luz que entrava pelo clerestório - e toda a idéia do novo estilo de construção era fazer entrar mais luz nas igrejas.

      Claro que não era a nave lateral por si só que fazia o trabalho: o apoio vinha dos pesados pilares na parede lateral e dos meios arcos de ligação. A nave lateral ocultava aqueles elementos estruturais. Se ao menos ele pudesse construir pilares e meios arcos para sustentar o clerestório sem incorporá-los numa nave lateral, poderia resolver o problema definitivamente. Uma voz o chamou lá de baixo.

      Jack irritou-se. Sentia que estava prestes a chegar a uma solução antes de ser interrompido, mas agora ela lhe escapara. Olhou para o chão. Philip o estava chamando.

      Entrou no torreão e desceu pela escada em espiral. O prior o esperava. Estava tão furioso que chegava a ferver de raiva.

      - Richard me traiu! - exclamou, sem preâmbulos.

      Jack ficou surpreso.

      - Como?

      Philip não respondeu à pergunta de imediato.

      - Depois de tudo o que fiz por ele! - bufou. - Comprei a lã de Aliena quando todo mundo estava querendo prejudicála - se não fosse por mim ela podia nem ter começado seu negócio. Depois, quando o comércio de lã acabou, arranjei para ele o cargo de chefe da vigilância. E, em novembro, adiantei-lhe o teor do tratado de paz, capacitando-o a tomar Earlscastle. E agora que reconquistou o condado e está governando com toda a pompa, virou as costas para mim.

      Jack nunca vira Philip tão lívido. A tonsura raspada a navalha estava vermelha de indignação, e ele chegava a lançar perdigotos ao falar.

      - Como foi que Richard o traiu? - quis saber Jack. Mais uma vez o prior ignorou a pergunta.

      - Sempre soube que Richard tinha caráter fraco. Pouco apoio deu a Aliena, no decorrer de todos esses anos - tirava dela o que queria e jamais considerava as necessidades da irmã. Mas não achava que fosse um rematado vilão.

      - O que exatamente ele fez?

      - Recusou-se a nos dar acesso à pedreira - contou finalmente Philip.

      Jack ficou chocado. Tratava-se de um ato de assombrosa ingratidão.

      - Mas como ele se justifica?

      - Espera-se que tudo reverta aos antigos proprietários do tempo do primeiro rei Henrique. E a pedreira nos foi concedida pelo rei Estêvão.

      A ambição de Richard era notável, mas Jack não conseguiu se sentir tão furioso quanto Philip. Já tinham construído meia catedral a maior parte com pedra pela qual haviam pago, e dariam um jeito de continuar com a obra.

      - Bem, suponho que Richard esteja certo, falando num sentido estrito - argumentou o construtor.

      O prior sentiu-se ultrajado.

      - Como você pode dizer uma coisa dessas?

      - É um pouco como o que você fez comigo - disse Jack.

      - Depois que eu lhe trouxe a Madona que Chora, criei um projeto maravilhoso para a sua catedral e construí uma muralha para protegê-lo contra William, você declarou que eu não podia viver com a mulher que é a mãe dos meus filhos. Foi uma ingratidão.

 

      Philip ficou chocado com a comparação.

      - Mas é algo completamente diferente! - protestou. - Não quero que vocês vivam separados. É Waleran quem tem bloqueado a anulação. Mas a lei de Deus diz que você não deve cometer adultério.

      - Tenho certeza de que Richard diria algo similar - persistiu Jack. - Não foi ele quem ordenou a reversão da propriedade. Só está cumprindo a lei.

      O sino do meio-dia tocou.

      - Há uma diferença entre as leis de Deus e as leis dos homens - disse Philip.

      - Mas temos que viver segundo ambas - contrapôs Jack. - E agora vou almoçar com a mãe dos meus filhos.

      Ele se afastou e deixou o prior ali parado, parecendo bastante furioso. Na realidade não considerava Philip tão ingrato quanto Richard, mas aliviava seus sentimentos fingir que achava. Decidiu perguntar a Aliena sobre a pedreira. Podia ser que Richard se deixasse convencer a cedê-la. Ela saberia.

      Jack deixou o priorado e percorreu as ruas até a casa onde morava com Martha. Aliena e as crianças estavam na cozinha, como sempre. A crise terminara no ano anterior, com uma boa colheita, e os alimentos já não eram desesperadamente escassos: havia pão de trigo e carneiro assado na mesa.

      Jack beijou as crianças. Sally deu-lhe um meigo beijo infantil, mas Tommy, agora com onze anos de idade e impaciente para crescer, ofereceu o rosto e exibiu um ar embaraçado. O pai sorriu mas nada disse: lembrava-se de quando achava que beijar era uma bobagem.

      Aliena estava com um ar perturbado. Jack sentou-se no banco ao seu lado.

      - Philip está furioso porque Richard não lhe quer dar a pedreira - disse ele.

      - Que coisa terrível! - comentou ela, com moderação. - Richard está sendo ingrato.

      - Acha que ele pode ser persuadido a mudar de idéia?

      - Sinceramente não sei - respondeu Aliena, distraída.

      - Você não parece muito interessada no problema - comentou Jack.

      Ela o encarou desafiadoramente.

      - Não, não estou.

      Ele conhecia aquele jeito.

      - É melhor você me dizer o que a está preocupando.

      Aliena levantou-se.

      - Vamos para o quarto dos fundos.

      Lançando um olhar comprido à perna de carneiro, Jack deixou a mesa e seguiu-a até o quarto de dormir. Deixaram a porta aberta, como usualmente faziam, para evitar suspeitas se chegasse alguém de repente. Aliena sentou-se na cama e cruzou os braços.

      - Tomei uma decisão importante - começou.

      Seu aspecto era tão sério que Jack se perguntou que diabos poderia ser.

      - Vivi a maior parte da vida adulta debaixo de duas sombras - começou ela. - Uma foi a promessa que fiz a meu pai moribundo. A outra é o meu relacionamento com você.

      - Mas você cumpriu o prometido ao seu pai - disse Jack.

      - Sim. E agora quero me livrar também do outro fardo. Decidi deixá-lo.

      Jack teve a impressão de que o coração ia parar. Sabia que ela não dizia coisas assim levianamente: estava falando a sério. Contemplou-a, sem fala. Sentia-se desorientado com a notícia: nunca sonhara que Aliena pudesse deixá-lo. Como aquela coisa horrível insinuou-se na sua mente? Disse a primeira coisa que lhe veio à cabeça:

      - Há outro homem?

      - Não seja idiota.

      - Então, por quê?

      - Porque não aguento mais - disse ela, os olhos se enchendo de lágrimas. - Esperamos há dez anos pela anulação. Ela não virá nunca, Jack. Estamos destinados a viver deste modo para sempre - a não ser que nos separemos.

      - Mas... - ele procurou alguma coisa que pudesse dizer. A declaração dela fora tão devastadora, que discutir parecia inútil, como tentar fugir de um furacão. Mesmo assim, ele tentou: - O que temos não é melhor do que nada, melhor do que uma separação?

      - No fim, não.

      - Mas como a sua partida poderá mudar alguma coisa?

      - Pode ser que eu encontre outra pessoa, me apaixone de novo e viva uma vida normal - disse ela, mas estava chorando.

      - Você ainda estará casada com Alfred.

      - Mas ninguém saberá ou se importará. Eu poderia ser casada por um padre que nunca tivesse ouvido falar de Alfred Construtor, e que não considerasse o casamento válido se soubesse dele.

      - Não acredito que você esteja dizendo isso. Não posso aceitar.

      - Dez anos, Jack. Estou esperando há dez anos para ter uma vida normal com você. Não vou esperar mais.

      As palavras caíram sobre ele como pedras. Ela continuou falando, mas Jack não mais compreendeu o que dizia. Sóconseguia pensar na vida sem ela. Interrompeu-a.

      - Nunca amei outra mulher, Aliena.

      Ela estremeceu, como se estivesse sentindo muita dor, mas continuou o que estava dizendo.

      - Preciso de algumas semanas para providenciar tudo. Vou arranjar uma casa em Winchester. Quero que as crianças se acostumem com a idéia, antes que a nova vida delas comece...

      - Você vai levar meus filhos - disse ele estupidamente.

      Ela balançou a cabeça.

      - Sinto muito - disse. Pela primeira vez sua determinação pareceu fraquejar. - Sei que sentirão sua falta. Mas eles também precisam de uma vida normal.

      Jack não pôde aguentar mais. Virou-se.

      - Não me deixe - disse  Aliena. - Precisamos conversar um pouco mais. Jack...

      Ele saiu sem responder. Ouviu Aliena gritar seu nome:

      - Jack!

      Ele atravessou a sala sem olhar para as crianças, e deixou a casa. Foi numa espécie de transe que caminhou de volta para a catedral, sem saber para onde mais poderia ir. Os operários ainda estavam almoçando. Não foi capaz de chorar: aquilo era ruim demais para meras lágrimas. Sem pensar, subiu a escada do transepto norte, até o topo, e passou para cima do telhado. Soprava um vento forte lá em cima, embora ao nível do solo mal se notasse. Jack olhou para baixo. Se caísse dali iria bater no telhado de meia-água da nave lateral que corria ao longo do transepto. Decerto morreria, mas não tinha certeza. Caminhou até o cruzeiro e se deteve onde o telhado se interrompia de súbito. Se a catedral levantada no novo estilo não fosse estruturalmente sólida e Aliena o deixasse, não lhe restaria nenhum motivo para continuar vivendo.

      A decisão dela não fora tão repentina quanto parecera, claro. Já vinha se sentindo descontente há anos - ambos vinham. Mas tinham se acostumado com a infelicidade.

      A reconquista de Earlscastle sacudira o torpor de Aliena, fazendo-a lembrar que era a responsável pela sua vida. Desestabilizara uma situação que já era instável - do mesmo jeito como a tempestade causara rachaduras nas paredes da catedral.

      Jack olhou para a parede do transepto e para o telhado da nave lateral. Dava para ver os maciços arcobotantes projetando-se para fora da parede da nave lateral, e ele podia visualizar o meio arco debaixo do telhado, conectando o arcobotante ao pé do clerestório. O que resolveria o problema, era o que pensava pouco antes de Philip interrompê-lo de manhã, seria um arcobotante mais alto, talvez com mais vinte pés, com um segundo meio arco fazendo a ligação com o ponto da parede onde as rachaduras estavam aparecendo. O arco e o arcobotante alto escorariam a metade superior da igreja e manteriam a parede rígida quando o vento soprasse.

      Isso provavelmente resolveria o problema. A questão era que, se construísse uma nave lateral de dois andares para esconder a extensão do arcobotante, perderia luz; e se não construísse...

      E se não construísse?

      Estava possuído pela sensação de que nada importava muito, já que sua vida estava se desmoronando; e, nesse estado de espírito, não podia ver nada de errado com arcobotantes aparentes. De pé, ali em cima do telhado, podia imaginar com facilidade como seria. Uma linha de vigorosas colunas de pedra se ergueria da parede externa da nave lateral. Partindo do topo de cada coluna, um meio arco cruzaria o espaço vazio até o clerestório. Talvez pusesse um pináculo decorativo sobre cada coluna, acima do ponto de origem do arco. Sim, desse jeito ficaria melhor.

      Era uma idéia revolucionária, construir grandes elementos estruturais destinados a reforçar a obra de modo a ficarem totalmente visíveis. Mas era parte do novo estilo mostrar como o prédio era sustentado.

      De qualquer maneira, seu instinto lhe dizia que estava certo.

      Quanto mais pensava, mais gostava da idéia. Visualizou a igreja vista do oeste. Os meios arcos lembrariam as asas de um bando de aves, todas em linha, prontas para levantar vôo. Não precisariam ser grossos. Desde que fossem bem feitos, poderiam ser esbeltos e elegantes, leves porém fortes, exatamente como a asa de um pássaro.

      Arcobotantes alados, para uma igreja tão leve que poderia voar.

      Só queria saber, pensou, só queria saber se ia funcionar.

      Uma lufada de vento subitamente o desequilibrou. Ele balançou na beirada do telhado. Por um instante pensou que fosse cair e morrer. Depois recuperou o equilíbrio e recuou, o coração disparado.

      Lenta e cuidadosamente, refez o caminho ao longo do telhado até a porta do torreão e desceu.

     

      O trabalho cessara por completo na igreja de Shiring. Philip surpreendeu-se exultando um pouco com isso. Depois de todas as vezes que olhara desconsoladamente um canteiro de obras deserto, não podia deixar de se sentir satisfeito ao ver o mesmo acontecer a seus inimigos. Alfred Construtor só tivera tempo para demolir a velha igreja e assentar as fundações do novo coro antes de William ser deposto e o dinheiro acabar. O prior disse a si próprio que era pecado alegrar-se com a ruína de uma igreja. No entanto, era óbvio que a vontade divina era que a catedral fosse construída em Kingsbridge, não em Shiring - a má sorte que perseguia o projeto de Waleran parecia um sinal bem claro das intenções divinas.

      Agora que a maior igreja da cidade fora derrubada, a corte do condado era realizada no grande salão do castelo. Philip subira a colina a cavalo, com Jonathan a seu lado. Fizera do rapaz seu assistente pessoal, na movimentação que se seguira à defecção de Remigius. O prior, embora chocado, ficara contente por vê-lo pelas costas.

      Desde que o vencera na eleição, Remigius fora um espinho encravado na sua carne. O priorado era agora um lugar melhor para se viver, depois de sua partida.

      Milius era o novo subprior. Continuava, contudo, a desempenhar as funções de tesoureiro, e tinha uma equipe de três pessoas sob suas ordens na tesouraria. Desde que Remigius se fora, ninguém conseguira imaginar o que costumava fazer o dia inteiro.

      Philip sentia profunda satisfação em trabalhar com Jonathan. Gostava de explicar-lhe como o mosteiro era governado, educá-lo nas coisas do mundo e mostrar-lhe quais os melhores modos de lidar com as pessoas. O rapaz geralmente era benquisto, mas às vezes podia ser agressivo, e facilmente irritava pessoas destituídas de autoconfiança.

      Precisava aprender que as pessoas que o tratavam com hostilidade o faziam por serem fracas. Ele via a hostilidade e reagia furiosamente, em vez de perceber a fraqueza e retribuir com segurança.

      Jonathan tinha a inteligência rápida, e com frequência surpreendia Philip pela presteza com que entendia as coisas. O prior as vezes se pegava cometendo o pecado do orgulho, pensando em como o rapaz era parecido consigo.

      Trouxera Jonathan consigo naquele dia para que aprendesse como funcionava o tribunal do condado. Philip ia pedir ao xerife que mandasse Richard abrir a pedreira ao priorado. Estava certo de que o novo conde cometia um erro legal. A nova lei a respeito da restauração da propriedade aos titulares do tempo do velho rei Henrique não afetava os direitos do priorado. Seu objetivo era permitir ao duque substituir os condes de Estêvão pelos seus, e assim recompensar pessoas que haviam lutado por ele. Obviamente não se destinava a ser aplicada aos mosteiros. Philip confiava em ganhar sua causa, mas havia um fator desconhecido: o velho xerife morrera, e seu substituto seria anunciado naquele dia. Ninguém sabia quem seria, mas todos presumiam que fosse um dos três ou quatro cidadãos mais importantes de Shiring: Davi Mercador, o vendedor de seda; Rees, o Galês, um padre que trabalhara na corte real; Giles Coração de Leão, um cavaleiro cujas terras ficavam nas vizinhanças da cidade; ou Hugh, o Bastardo, o filho ilegítimo do bispo de Salisbury. Philip esperava que fosse Rees, não por ser seu conterrâneo, mas por ser, presumivelmente, favorável à igreja. Porém não estava muito preocupado: confiava que qualquer um dos quatro decidisse em seu favor.

      Entraram no castelo. Não era muito fortificado. Tendo em vista que o conde de Shiring tinha um castelo separado fora da cidade, há diversas gerações que Shiring escapava da guerra. Ali era mais um centro administrativo, com escritórios e alojamentos para o xerife e seus homens, e masmorras para os transgressores. Philip e Jonathan deixaram os cavalos no estábulo e entraram na maior de todas as construções, o grande salão.

      As mesas de cavalete que normalmente formavam um T tinham sido rearranjadas. A parte superior do T continuava, erguida acima do nível do resto do salão por um estrado; as outras foram encostadas às paredes, de modo que os querelantes antagónicos pudessem se sentar bem afastados, evitando-se a tentação da violência física.

      O salão já estava cheio. O bispo Waleran encontrava-se presente, com seu ar malévolo. Para surpresa de Philip, William estava a seu lado, conversando com o bispo com o canto da boca, enquanto observavam as pessoas que entravam. O que Hamleigh estaria fazendo ali? Durante nove meses ele estivera praticamente escondido, mal saindo de sua aldeia, e o prior assim como muitos outros habitantes do condado - tivera a esperança de que pudesse permanecer assim para sempre. Mas ali estava ele, sentado no banco como se ainda fosse o conde. Philip gostaria de saber que esquema ganancioso, perverso e mesquinho o trouxera ali.

      Philip e Jonathan se sentaram a um lado e aguardaram o início das atividades. O ambiente era otimista, dinâmico. Agora que a guerra terminara, a elite do país voltara suas atenções para a questão de criar riquezas. A terra era fértil e rapidamente recompensou seus esforços: uma safra recorde era esperada para aquele ano. O preço da lã subira. Philip readmitira quase todos os empregados que haviam partido no auge da crise. Por toda parte, os sobreviventes eram as pessoas mais jovens, fortes e saudáveis, que agora se encontravam cheias de esperanças, o que aparecia ali, no grande salão do Castelo de Shiring, no modo como inclinavam a cabeça, no volume de suas vozes, nas botas novas dos homens e nos belos adornos de cabeça das mulheres, assim como o fato de estarem prósperos o bastante para serem proprietários de algo cuja posse valesse a pena discutir na corte.

      Levantaram-se quando o assistente do xerife entrou com o conde Richard. Os dois homens subiram no tablado e, ainda de pé, o assistente começou a ler o decreto real designando o novo xerife. Enquanto estava nas fórmulas iniciais, Philip deu uma olhada nos quatro presumíveis candidatos. Esperava que o vencedor tivesse coragem: ia precisar, para fazer valer a lei ante os poderosos locais, gente como o bispo Waleran, o conde Richard e lorde William. O candidato vitorioso devia saber que fora designado - não havia razão para guardar segredo -, mas nenhum dos quatro parecia muito animado. Normalmente o designado ficaria de pé junto ao assistente enquanto a proclamação era lida, mas as únicas pessoas ali com ele eram Richard, Waleran e William. A aterrorizante idéia de que o bispo poderia ter sido nomeado xerife cruzou a mente do prior. Mas ele ficou mais horrorizado ainda quando ouviu:

      - ... Designo para exercer as funções de xerife de Shiring o meu súdito William de Hamleigh, e ordeno a todos os homens que o ajudem...

      Philip olhou para Jonathan.

      - William!

      Houve murmúrios indicando surpresa e desaprovação entre os habitantes da cidade.

      - Como ele conseguiu? - perguntou Jonathan.

      - Deve ter pago.

      - E como conseguiu o dinheiro?

      - Pediu emprestado, suponho.

      William deslocou-se para o trono de madeira no meio da mesa principal, sorridente. Philip se lembrava de que ele fora um rapaz bonito. Ainda não completara quarenta anos, mas parecia mais velho. Seu corpo estava pesado demais, e a pele vermelha denunciava o excesso de vinho; a força alegre e o otimismo que torna as faces jovens atraentes haviam desaparecido, substituídos por uma aparência de dissipação. Quando Hamleigh se sentou, Philip ergueu-se.

      - Estamos indo? - cochichou Jonathan, levantando-se também.

      - Siga-me - respondeu o prior, por entre os dentes. Fez-se completo silêncio. Todos os olhos se fixaram neles, enquanto atravessavam a sala de sessões. A multidão se afastou para deixá-los passar. Um murmúrio generalizado fez-se ouvir quando a porta se fechou.

      - Não tínhamos chance de sucesso com William sentado naquela cadeira - disse o jovem monge.

      - Pior que isso - redarguiu Philip. - Se tivéssemos insistido, poderíamos ter perdido outros direitos.

      - Pela minha alma, nunca pensei nisso.

      Philip assentiu melancolicamente.

      - Com William como xerife, Waleran como bispo e o desleal Richard como o conde, é completamente impossível para o priorado de Kingsbridge obter justiça neste condado. Eles podem fazer tudo o que quiserem conosco.

      Enquanto um servente do estábulo arriava seus cavalos, Philip disse:

      - Vou fazer uma petição ao rei para que promova Kingsbridge à condição de burgo. Desse modo poderemos ter nosso próprio tribunal e pagar os impostos diretamente ao rei. Na verdade, estaremos fora da jurisdição do xerife.

      - Você sempre foi contra isso, no passado - lembrou Jonathan.

      - Eu era contra porque a cidade ficaria tão poderosa quanto o priorado. Mas agora acho que devemos aceitar, como o preço da independência. A alternativa é William.

      - Será que o rei Estêvão nos dará o status de burgo?

      - Pode ser que sim, mediante o pagamento do seu preço. Caso contrário, talvez Henrique o faça quando se tornar rei.

      Os dois montaram em seus cavalos e atravessaram a cidade, derrotados.

      Passaram pelo portão e pelo depósito de lixo que ficava nas proximidades. Umas poucas pessoas examinavam o refugo procurando algo para comer, usar ou queimar como combustível. Philip as viu, sem interesse, mas uma daquelas pessoas atraiu sua atenção. Um vulto alto e familiar se debruçava sobre uma nilha de trapos. O prior conteve sua montaria. Jonathan parou ao seu lado.

      - Olhe - disse Philip.

      O jovem monge seguiu o seu olhar.

      - Remigius - disse baixinho, após um momento.

      O prior ficou observando-o. Waleran e William, evidentemente, tinham se livrado de Remigius algum tempo antes, quando os recursos para a construção da nova igreja haviam desaparecido. Não precisavam mais dele. O monge traíra Philip, traíra o priorado e traíra Kingsbridge, tudo na esperança de se tornar o deão de Shiring; mas o seu prêmio se transformara em cinzas.

      Philip fez seu cavalo sair da estrada e atravessar o depósito de lixo até o ponto onde Remigius estava. Jonathan o seguiu., O mau cheiro parecia se levantar do chão como neblina. Ao aproximar-se viu que o monge estava cadavericamente magro. Seu hábito estava imundo, e ele tinha os pés descalços. Estava com sessenta anos, e tinha passado em Kingsbridge toda a vida adulta: ninguém jamais lhe ensinara como viver na dificuldade. O prior viu-o puxar um par de sapatos de couro de dentro do lixo.

      Tinham buracos imensos nas solas, mas Remigius os olhou com o ar de um homem que acabara de encontrar um tesouro enterrado. Quando estava prestes a experimentá-los, viu Philip.

      Endireitou-se. O rosto dele mostrava a luta que travavam a vergonha e a rebeldia em seu coração. Após um momento, perguntou:

      - Vieram tripudiar sobre mim?

      - Não - respondeu Philip suavemente. Seu velho inimigo era uma visão tão digna de pena que o prior não sentia nada a não ser compaixão por ele. Desmontou e apanhou um cantil no alforje. - Vim lhe oferecer um gole de vinho.

      O monge não queria aceitar, mas estava demasiadamente faminto para recusar. Hesitou só por um momento, e pegou o cantil. Cheirou o vinho desconfiadamente e levou-o à boca. Uma vez que começou a beber, não foi capaz de parar. Havia apenas cerca de um copo, que ele bebeu em poucos segundos. Abaixou o cantil e tremeu um pouco.

      Philip pegou o cantil de volta e o recolocou no alforje.

      - É melhor que você também coma um pouco - disse, apanhando um pedaço de pão.

      Remigius pegou o pão oferecido e começou a enfiá-lo na boca. Obviamente não comia nada há dias, e com certeza não fazia uma refeição decente há semanas. Podia estar perto da morte, pensou Philip com tristeza; se não de fome, pelo menos de vergonha.

      O pão foi deglutido depressa.

      - Você quer voltar? - perguntou o prior.

      Ele ouviu Jonathan respirar fundo. Como quase todos os monges, Jonathan esperava nunca mais rever Remigius. Provavelmente achou que Philip estivesse louco, por se oferecer a aceitá-lo de volta.

      Um indício do antigo Remigius apareceu por um momento, e ele perguntou:

      - Voltar? Em que posição?

      Philip sacudiu a cabeça pesarosamente.

      - Você nunca mais desempenhará uma função de qualquer tipo no meu priorado, Remigius. Volte como um monge simples e humilde. Peça a Deus que perdoe seus pecados, e viva o resto dos seus dias em prece e contemplação, preparando a alma para o céu.

      Remigius inclinou a cabeça para trás, e o prior esperou uma recusa escarninha; porém, nunca chegou a ouvi-la. Ele abriu a boca para falar e fechou-a de novo. Philip permaneceu imóvel e calado, observando, perguntando-se o que aconteceria. Houve um longo momento de silêncio. Conteve a respiração. Quando o monge ergueu a cabeça de novo, seu rosto estava molhado de lágrimas.

      - Sim, por favor, padre - disse. - Quero ir para casa.

      Philip sentiu o intenso ardor do júbilo.

      - Vamos, então. Monte no meu cavalo.

      Remigius ficou estupefato.

      - Padre! O que está fazendo? - perguntou Jonathan.

      - Vamos, faça o que falei - disse Philip para Remigius. O jovem monge continuava horrorizado.

      - Mas padre, como você vai viajar?

      - Caminharei - respondeu o prior alegremente. - Um de nós vai ter que caminhar.

      - Pois que Remigius vá a pé! - exclamou Jonathan, ultrajado.

      - Que ele vá a cavalo - disse Philip. - Hoje ele contentou a Deus.

      - E você? Já não contentou a Deus mais do que Remigius?

      - Jesus disse que há mais alegria no céu por um pecador que se arrepende do que por noventa e nove justos - contrapôs Philip. - Você não se lembra da parábola do filho pródigo? Quando ele voltou para casa, seu pai matou o bezerro que estava engordando, para a festa de boas-vimdas. Os anjos se rejubilam com as lágrimas de Remigius. O mínimo que posso fazer é ceder-lhe meu cavalo.

      Ele pegou a cabeçada do animal e conduziu-o pelo depósito de lixo até a estrada. Jonathan seguiu-o. Ao chegarem à estrada, o jovem desmontou e disse:

      - Padre, por favor, pegue meu cavalo, então, e deixe-me andar!

      - Volte para o seu cavalo - ordenou Philip asperamente, virando-se para ele -, pare de discutir comigo e pense no que está sendo feito e por quê.

      Jonathan ficou intrigado, mas montou de novo e nada mais disse.

      Eles se viraram na direção de Kingsbridge. Ficava a uma distância de vinte milhas. Philip começou a caminhar. Sentia-se maravilhosamente bem. O retorno de Remigius mais do que compensava a pedreira. Perdi na corte, pensou, mas o que estava em jogo ali eram simples pedras. O que ganhei foi algo infinitamente mais valioso.

      Hoje ganhei a alma de um homem.

     

      Maçãs frescas e maduras flutuavam no barril, cíntilantemente vermelhas e amarelas quando o sol se refletia na água. Sally, com nove anos de idade e excitável, debruçou-se sobre a borda do barril com as mãozinhas cruzadas nas costas e tentou apanhar uma maçã com os dentes. A fruta afastou-se, o rosto dela mergulhou na água, e a menina se levantou cuspindo e gritando, entre uma risada e outra. Aliena sorriu e enxugou o rosto da filha.

      Era uma tarde quente de fim de verão, dia santo e feriado, e quase toda a gente da cidade se reunira na campina ao lado do rio para a brincadeira de morder a maçã.

      Era o tipo de ocasião que Aliena sempre apreciava, mas o fato de ser seu último dia santo em Kingsbridge não lhe saía da cabeça, deixando-a deprimida. Ainda estava determinada a deixar Jack, mas desde que tomara a decisão começara a sentir, por antecipação, a dor da perda.

      Tommy estava rondando a barrica e Jack exclamou:

      - Vamos, Tommy, faça uma tentativa!

      - Ainda não - replicou ele.

      Aos onze anos, o garoto sabia que era mais esperto que a irmã e se achava também mais esperto que a maioria das outras pessoas. Ficou observando por algum tempo, estudando a técnica dos que tinham êxito na brincadeira de pegar a maçã com os dentes. Aliena o observou. Amava-o de um modo todo especial. Jack tinha mais ou menos a sua idade na época em que o conhecera, e Tommy era muito parecido com ele quando menino. Olhar para ele a tornava nostálgica da sua infância. Jack queria que o filho fosse construtor, mas o menino ainda não demonstrara interesse algum. De qualquer modo, havia muito tempo.

      Momentos depois, Tommy se aproximou do barril. Debruçou-se e baixou a cabeça lentamente, a boca bem aberta. Empurrou a maçã escolhida para debaixo d'água, submergindo todo o rosto, e em seguida emergiu triunfantemente com a maçã entre os dentes.

      Teria êxito em qualquer coisa que cismasse de fazer. Havia um pouco do avô, o conde Bartholomew, na sua personalidade. Tinha uma vontade muito forte e era um tanto inflexível na questão do que era certo ou errado.

      Fora Sally quem herdara do pai a natureza despreocupada e o desprezo pelas regras feitas pelo homem. Quando Jack contava histórias às crianças, ela sempre simpatizava com a vítima, enquanto Tommy quase sempre preferia pronunciar seu julgamento. Cada criança tinha a personalidade de um dos pais e a aparência do outro: a despreocupada Sally possuía as feições regulares de Aliena e seus ondulados cabelos em cachos, enquanto o determinado Tommy era ruivo como Jack, com a mesma pele branca e os mesmos olhos azuis.

      - Olha o tio Richard chegando! - gritou Tommy. Aliena virou-se e seguiu a direção do olhar do filho. Não havia dúvida, lá estava seu irmão, o conde, cavalgando por entre a campina, seguido por um punhado de cavaleiros e escudeiros. Ficou horrorizada. Como ele tinha coragem de aparecer ali depois do que fizera a Philip no tocante à pedreira?

      Ele se aproximou do barril, sorrindo para todo mundo e apertando mãos.

      - Tente pegar uma maçã, tio Richard - disse Tommy. - Você consegue!

      Richard enfiou a cabeça no barril e emergiu com uma maçã presa nos dentes fortes e alvos e a barba loura encharcada. Ele sempre se saíra melhor em jogos do que na vida real, pensou Aliena.

      Ela não ia deixar a coisa passar como se ele não tivesse feito nada de errado. Outras pessoas podiam ter medo de falar, porque ele era o conde, mas para Aliena Richard era apenas seu tolo irmão mais moço. Ele se aproximou para beijá-la, mas ela o empurrou, dizendo:

      - Como pôde roubar a pedreira do priorado?

      Jack, vendo que se aproximava uma briga, pegou as mãos das crianças e se afastou.

      Richard pareceu irritar-se.

      - Todas as propriedades reverteram aos antigos donos...

      - Não me venha com essa história - interrompeu Aliena. - Depois de tudo o que Philip fez por você!

      - A pedreira é parte do patrimônio que herdei - disse ele. Puxou-a para um lado e começou a falar baixo, para que ninguém mais pudesse ouvi-lo. - Além disso, preciso do dinheiro que ganho vendendo as pedras, Allie.

      - Isso é porque você fica o tempo todo caçando, com ou sem seus falcões!

      - Mas o que eu deveria fazer?

      - Você deveria fazer com que a terra produzisse riqueza! Há muito para ser feito: reparar os danos causados pela guerra e pela crise, importar novos métodos agrícolas, derrubar florestas, drenar pântanos... Aí está como poderia aumentar sua riqueza! E não roubando a pedreira que o rei Estêvão deu ao priorado!

      - Nunca tomei coisa alguma que não me pertencesse.

      - Você nunca fez outra coisa na vida! - replicou Aliena. Estava furiosa o bastante para dizer coisas que seria melhor não dizer. - Você nunca trabalhou para obter nada. Tomou o meu dinheiro para suas estúpidas armas, tomou o emprego que Philip lhe arranjou, tomou o condado quando lhe foi entregue numa bandeja por mim. Agora não é capaz nem mesmo de governar sem tomar coisas que não lhe pertencem! - Ela se virou e saiu pisando duro.

      Richard seguiu-a, mas alguém o pegou de surpresa, fazendo uma reverência e perguntando como estava. Aliena o ouviu dar uma resposta polida, e depois entreter-se numa conversa animada.

      Tanto melhor: dissera o que tinha a dizer e não queria discutir. Atingiu a ponte e olhou para trás. Outra pessoa o detivera. Richard acenou, indicando que ainda queria lhe falar, mas estava preso. Aliena viu que Jack, Tommy e Sally começavam uma brincadeira com um pau e uma bola. Fixou os olhos neles brincando juntos ao sol, e sentiu que não era capaz de separá-los. Mas de que outro modo, pensou, posso levar uma vida normal?

      Atravessou a ponte e entrou na cidade. Queria ficar sozinha por algum tempo.

      Arranjara uma casa em Winchester, espaçosa, com uma loja no andar térreo, uma sala de estar no segundo, um quarto de dormir separado e um grande depósito no fundo do quintal para o seu tecido. Entretanto, quanto mais se aproximava a hora da mudança, menos queria se mudar.

      As ruas de Kingsbridge eram quentes e poeirentas, e o ar se enchia de moscas que proliferavam nos incontáveis monturos de lixo. Todas as lojas estavam fechadas, e as casas, trancadas. A cidade se encontrava deserta. Todos tinham ido para a campina.

      Dirigiu-se para a casa de Jack. Era para lá que os outros viriam quando acabassem as brincadeiras. A porta da casa estava aberta. Franziu a testa, aborrecida. Quem a abrira? Um número excessivo de pessoas tinha a chave: ela própria, Jack, Richard e Martha. Não havia muito que roubar. Aliena certamente não deixava seu dinheiro ali; há anos Philip permitia que o guardasse na tesouraria do convento. Mas a casa ia se encher de moscas. Ela entrou. Estava escuro e frio. Moscas dançavam no ar, no meio da sala, varejeiras azuis passeavam em cima da toalha, e um par de vespas brigavam furiosamente em torno da rolha do pote de mel.

      E Alfred estava sentado à mesa.

      Aliena deu um grito de medo, depois se recuperou e perguntou:

      - Como você entrou?

      - Eu tinha uma chave.

      Você a conservou por longo tempo, pensou Aliena. Ela o examinou. Seus ombros largos estavam ossudos, e o rosto enrugado parecia ter encolhido.

      - O que está fazendo aqui? - perguntou Aliena.

      - Vim vê-la.

      Ela percebeu que tremia, não de medo, mas de raiva.

      - Não quero ver você, nem agora nem nunca mais - afirmou, com veemência. - Você me tratou como um cachorro, e quando Jack ficou com pena de você e o empregou, traiu o compromisso assumido e levou todos os operários para Shiring.

      - Preciso de dinheiro - disse ele, com um misto de súplica e desafio na voz.

      - Então trabalhe.

      - A obra de Shiring parou. Não posso arranjar emprego aqui em Kingsbridge.

      - Então vá para Londres, vá para Paris!

      Ele persistiu, com sua teimosia bovina.

      - Pensei que você me ajudaria.

      - Não há nada para você aqui. É melhor ir embora.

      - Você não tem piedade? - disse ele, e agora o desafio desaparecera e só havia súplica em sua voz.

      Ela apoiou-se na mesa para se firmar.

      - Alfred, você não entende que eu o odeio?

      - Por quê? - perguntou ele. Parecia ofendido, como se aquilo fosse uma surpresa.

      Meu Deus, como ele é burro!, pensou ela. Isto é o mais próximo de uma desculpa que consegue chegar.

      - Vá ao mosteiro se quer caridade - disse Aliena cautelosamente. - A capacidade de perdão do prior Philip é sobrehumana. A minha não.

      - Mas você é minha mulher - disse Alfred. Aquilo era demais.

      - Não sou sua mulher - disse ela. - Você não é meu marido. Nunca foi. Agora dê o fora desta casa.

      Para sua surpresa, ele a agarrou pelo cabelo.

      - Você é minha mulher - exclamou. Puxou-a na sua direção, por cima da mesa, e com a mão livre agarrou-lhe o seio e apertou-o com força.

      Aliena foi tomada completamente de surpresa. Aquilo era a última coisa que podia esperar de um homem com quem dormira por nove meses sem jamais conseguir consumar a união. Automaticamente gritou e afastou-se, mas Alfred a estava segurando com força e puxou-a de volta com um arranco.

      - Não há ninguém para ouvir seus gritos - disse ele. Estão do outro lado do rio.

      De súbito Aliena sentiu-se terrivelmente apavorada. Estavam sozinhos, e ele era muito forte. Após tantas milhas de estrada que percorrera, tantos anos em que arriscara o pescoço viajando, estava sendo atacada pelo homem que havia desposado!

      Alfred viu o medo nos seus olhos.

      - Assustada, você? Talvez seja melhor ser boazinha. - Beijou-a na boca. Aliena mordeu seu lábio com toda a força de que foi capaz. Ele urrou de dor.

      Ela não viu o soco se aproximando. Explodiu no seu rosto com tanta força que lhe passou pela cabeça a terrível idéia de que talvez tivesse esmagado seus ossos. Por um momento perdeu a visão e o equilíbrio. Soltou a mesa e sentiu que estava caindo. A palha amaciou o impacto no chão. Sacudiu a cabeça para clareá-la e tentou pegar a faca amarrada no braço esquerdo. Antes que conseguisse, seus dois pulsos foram agarrados e ela ouviu Alfred dizer:

      - Sei desse punhalzinho seu. Já vi você tirando a roupa, lembra-se? - Ele soltou suas mãos, socou-lhe o rosto de novo e pegou o punhal.

      Aliena tentou se libertar, retorcendo o corpo. Ele se sentou sobre suas pernas e levou a mão esquerda ao seu pescoço. Ela agitou os braços. De repente, a ponta do punhal estava a uma polegada do seu olho.

      - Fique quieta, senão arranco seus olhos - ameaçou Alfred.

      Por que estava fazendo aquilo? Nunca sentira desejo por ela. Seria só por estar derrotado e furioso, e ela vulnerável? Estaria ela representando o mundo que o rejeitara?

      Ele inclinou-se para a frente, pondo-se a cavalo em cima de Aliena, com os joelhos ao lado de seus quadris, conservando a faca junto do olho. Mais uma vez encostou o rosto no dela.

      - Agora seja boazinha. - E beijou-a de novo.

      Sua barba crescida arranhou o rosto de Aliena. Ela sentiu o cheiro de cerveja e cebolas. Manteve a boca fechada com força.

      - Isso não é ser boazinha. Retribua meu beijo.

      Ele a beijou de novo e encostou mais ainda a ponta da faca. Quando a ponta da lâmina tocou na pálpebra ela abriu os lábios. O sabor da boca de Alfred a deixou enjoada.

      Ele passou a língua áspera por entre seus lábios. Aliena teve a impressão de que ia vomitar, e tentou desesperadamente controlar-se, de medo que ele a matasse.

      Alfred afastou-se de novo, mas conservou a faca no seu rosto.

      - Agora sinta isto. - Pegou a mão dela e colocou-a sob a túnica. Ela tocou seu pênis. - Segure-o - disse ele. Ela obedeceu. - Agora esfregue delicadamente.

      Mais uma vez ela obedeceu. Ocorreu-lhe que se ele sentisse prazer daquele modo poderia evitar ser penetrada. Lançou um olhar atemorizado ao seu rosto. Ele estava congestionado, os olhos fechados. Ela o acariciou até a base, lembrando-se de que Jack ficava excitadíssimo com aquilo.

      Teve medo de nunca mais ser capaz de gostar de sexo de novo, e seus olhos se encheram de lágrimas. Ele brandiu a faca perigosamente.

      - Não é com tanta força! Ela se concentrou. Nesse momento a porta abriu.

      Seu coração deu um pulo de esperança. Os raios de sol que entraram na sala cintilaram por entre suas lágrimas, ofuscandoa. Alfred ficou imóvel. Ela tirou a mão.

      Ambos olharam na direção da porta. Quem era? Aliena não conseguia enxergar. Que não seja uma das crianças, meu Deus!, pediu ela. Eu ficaria tão envergonhada! Ouviu um urro de cólera. Era uma voz de homem. Piscou, afastando as lágrimas, e reconheceu seu irmão.

      Pobre Richard! Era quase pior do que se tivesse sido Tommy. Richard, que tinha uma cicatriz no lugar do lobo da orelha esquerda para lembrá-lo da terrível cena que presenciara aos catorze anos. Agora testemunhava outra. Como iria reagir? Alfred começou a pôr-se de pé, mas Richard foi rápido demais para ele. Aliena o viu atravessar o pequeno cômodo de um pulo e soltar um chute com o pé calçado por uma bota, pegando o cunhado em cheio no queixo. Ele caiu de costas em cima da mesa. Richard avançou, tropeçando em Aliena sem se dar conta, batendo em Alfred com os pés e os punhos. Ela afastou-se do caminho, de gatinhas. O rosto do irmão era uma mascara de fúria ingovernável. Não olhou para ela. Não estava preocupado com ela, compreendeu Aliena. A raiva que sentia não era por causa do que Alfred lhe fizera nesse dia, e sim por causa do que William e Walter tinham feito com ele, Richard, dezoito anos antes. Naquele tempo era jovem, fraco e desamparado, mas agora era um homem grande e forte, um combatente experimentado, que por fim encontrara um alvo para o ódio que cultivara durante todos aqueles anos. Golpeou o adversário repetidamente, com ambos os punhos. Alfred recuou, desequilibrado, em torno da mesa, tentando fragilmente se defender com os braços erguidos. Richard o pegou no queixo com um murro poderoso, e o cunhado tombou de costas, em cima das palhas do chão, olhando para cima aterrorizado.

      - Basta, Richard! - pediu Aliena, com medo da violência do irmão. Este ignorou-a e adiantou-se para chutar Alfred. Foi quando o cunhado subitamente se lembrou de que ainda estava com a faca de Aliena na mão. Esquivou-se, levantou-se rapidamente e atacou-o. Tomado de surpresa, o conde deu um pulo para trás. O construtor atirou-se sobre ele de novo, obrigando-o a recuar através da sala. Os dois homens eram da mesma altura e tinham a mesma compleição física.

      Richard era um combatente, mas Alfred tinha uma arma: estavam agora desencorajadoramente bem equilibrados. Aliena sentiu um súbito medo pelo irmão. O que aconteceria se Alfred o vencesse? Ela teria de lutar contra ele.

      Procurou uma arma à sua volta. Seus olhos deram com a pilha de lenha ao lado da lareira. Pegou uma acha pesada.

      Alfred atirou-se contra Richard de novo; o conde esquivou-se; quando o braço do cunhado estava totalmente esticado, Richard agarrou-lhe o pulso e puxou-o. O construtor tropeçou para a frente, desequilibrado. Richard golpeou-o diversas vezes, muito depressa, com ambos os punhos, atingindo-o na cara e no corpo. Havia um sorriso selvagem no seu rosto, o sorriso de um homem que está se vingando. Alfred começou a gemer, e ergueu os braços para proteger-se.

      O conde hesitou, respirando com dificuldade. Sua irmã achou que a briga ia terminar. Mas de repente o construtor atacou de novo, com surpreendente rapidez, e dessa vez a ponta da faca roçou no rosto de Richard, que pulou para trás, furioso. Alfred avançou com a faca levantada. Aliena viu que ia matar seu irmão e correu para ele, brandindo a acha de madeira com toda a força. Errou a cabeça, mas acertou seu cotovelo direito. Ela ouviu o barulho do impacto. O golpe deixou a mão de Alfred insensível e a faca caiu de seus dedos.

      O modo como tudo terminou foi espantosamente rápido. Richard abaixou-se, pegou a faca e, no mesmo movimento, levou-a por baixo da guarda de Alfred, apunhalando seu peito com uma violência terrível. A lâmina entrou até o cabo.

      Aliena ficou olhando horrorizada. Foi um golpe terrível. Alfred gritou como um porco. Richard puxou a faca e o sangue jorrou do buraco no seu peito. Abriu a boca para gritar de novo, mas não veio nenhum som. Seu rosto ficou branco, e depois cinzento, os olhos se fecharam e ele caiu no chão. O sangue encharcou a palha.

      Aliena ajoelhou-se a seu lado. Suas pálpebras tremeram. Ainda respirava, mas a vida estava se esvaindo do seu corpo.

      Ergueu os olhos para Richard, de pé junto dos dois, respirando fundo.

      - Ele esta morrendo - disse.

      Richard assentiu. Não estava muito comovido.

      - Já vi homens melhores morrendo - disse. - Já matei homens que mereciam menos a morte que ele.

      A irmã ficou chocada com sua impiedade, mas nada disse. Acabara de se lembrar da primeira vez em que Richard matara um homem. Foi depois de William ter tomado o castelo; ela e Richard estavam na estrada para Winchester, e dois ladrões os atacaram. Aliena apunhalara um deles, mas forçara Richard, que tinha então apenas quinze anos, a desfechar o golpe de misericórdia. Se ele não tinha coração, pensou, cheia de culpa, quem o fizera assim?

      Ela olhou para Alfred de novo. Ele abriu os olhos e fitou-a. Ficou quase envergonhada pela pouca compaixão que sentia por aquele homem moribundo. Pensou, enquanto o encarava, que ele próprio nunca fora compassivo, clemente ou generoso. Sempre cultivara seus ressentimentos e ódios, comprazendo-se com gestos de perversidade e vingança. Sua vida poderia ter sido diferente, Alfred, pensou Aliena. Você poderia ter sido bom com sua irmã, e perdoado o filho da sua madrasta por ser mais inteligente que você. Poderia ter se casado por amor e não por vingança. Poderia ter sido leal ao prior Philip. Poderia ter sido feliz.

      Seus olhos se arregalaram subitamente.

      - Meu Deus, dói! - gemeu ele.

      Ela gostaria que ele se apressasse e morresse. Seus olhos se fecharam.

      - Terminou - disse Richard. Alfred parou de respirar. Aliena levantou-se.

      - Sou viúva - disse.

      Alfred foi enterrado no cemitério do priorado. Sua irmã Martha assim o quis, e ela era seu último parente de sangue. Foi também a única pessoa a ficar triste. Alfred nunca fora bom com ela, que sempre se voltara para Jack em busca de amor e proteção; mesmo assim, queria que fosse enterrado em algum lugar próximo, onde pudesse visitar seu túmulo. Quando o caixão foi descido para o interior da cova, apenas Martha chorou.

      Jack parecia melancolicamente aliviado pelo fato de Alfred não mais existir. Tommy, ao lado de Aliena, estava vivamente interessado em tudo - aquele era o seu primeiro funeral na família, e os rituais da morte eram novos para ele. Sally, pálida e assustada, segurava a mão de Martha.

      Richard estava presente. Disse à irmã durante o culto que viera para pedir perdão a Deus por haver matado o cunhado. Não que achasse ter feito algo errado, apressou-se a dizer; só queria estar a salvo.

      Aliena, cujo rosto ainda estava arranhado e inchado devido ao último soco de Alfred, relembrou como era ele ao tempo em que o conhecera. Chegara a Earlscastle com o pai, Tom Construtor, e Martha, Ellen e Jack. Já naquela época era arrogante, cruel, grande, forte e obstinado, dissimulado e grosseiro. Se Aliena naquele tempo pensasse que terminaria casada com ele, iria sentir-se tentada a atirar-se de cima da muralha. Não imaginara que os veria de novo depois de eles terem deixado o castelo, mas todos terminaram morando em Kingsbridge. Ela e Alfred haviam fundado a associação paroquial, que agora era uma importante instituição da cidade. Foi quando ele a pedira em casamento. Aliena nem sonhara que poderia estar movido mais por rivalidade com Jack, filho de sua madrasta, do que por desejo por ela. Recusara-o, então, porém mais tarde Alfred descobrira como manipulá-la e a persuadira a desposá-lo, prometendo apoio ao seu irmão. Rememorando tudo isso, ela concluiu que Alfred merecera a frustração e humilhação que fora seu casamento. Seus motivos tinham sido impiedosos, e sua recompensa fora a inexistência de amor.

      Aliena não podia deixar de estar se sentindo feliz. Não havia mais razão para partir e ir morar em Winchester, claro: ela e Jack se casariam imediatamente. Estava exibindo uma expressão solene no funeral, e até mesmo dedicando-se a alguns pensamentos solenes, mas seu coração explodira de contentamento. Philip, com sua aparentemente ilimitada capacidade para perdoar as pessoas que o tinham traído, consentiu em enterrar Alfred.

      Quando os cinco adultos e as duas crianças estavam de pé em torno da cova aberta, Ellen chegou.

      Philip aborreceu-se. Aquela mulher amaldiçoara um casamento cristão, e não era bem-vinda no adro do priorado; mas dificilmente poderia expulsá-la do funeral do enteado.

      O ritual terminara, de qualquer modo, e assim Philip limitou-se a ir embora.

      Aliena ficou sentida. Considerava Philip e Ellen boas pessoas, e achava uma pena que fossem inimigos. Mas eles eram bons de modos diferentes e não toleravam a ética um do outro.

      Ellen estava parecendo mais velha, com novas rugas no rosto o cabelo mais branco, embora seus olhos dourados ainda fossem lindos. Usava uma túnica de couro costurada rusticamente e mais nada, nem mesmo sapatos. Seus braços e pernas eram bronzeados e musculosos. Tommy e Sally correram para beijá-la. Jack os seguiu e abraçou-a com força. Ela ergueu o rosto para Richard beijá-la.

      - Você fez o que devia - disse. - Não se sinta culpado.

      Foi até a beira do túmulo.

      - Fui madrasta dele - disse, olhando-o. - Gostaria de ter sabido fazê-lo feliz.

      Quando se virou, foi abraçada pela nora. Todos se afastaram, caminhando vagarosamente.

      - Quer ficar um pouco e jantar conosco? - perguntou-lhe Aliena.

      - Com prazer. - Ela despenteou Tommy, carinhosamente. - Quero conversar um pouco com meus netos. Eles crescem muito depressa. Quando conheci Tom Construtor, Jack era da idade de Tommy agora. - Eles estavam se aproximando do portão do priorado. - Ao envelhecer-se, os anos parecem passar mais depressa. Acredito... - ela se interrompeu no meio da frase, e parou de andar.

      - O que há? - perguntou Aliena.

      Ellen olhava fixamente o portal do priorado. A rua do lado de fora estava vazia, exceto por um bando de criancinhas, agrupadas no lado mais distante, olhando alguma coisa que não estava no campo de visão deles.

      - Richard! - exclamou Ellen incisivamente. - Não saia!

      Todos pararam. Aliena percebeu o que alarmara a sogra.

      As crianças pareciam estar olhando para alguém ou alguma coisa do lado de fora do portão e que o muro escondesse. Richard reagiu depressa.

      - É uma armadilha! - disse, e sem outras palavras virou-se e saiu correndo.

      Um momento mais tarde apareceu uma cabeça protegida por um elmo atrás do pilar do portão. Pertencia a um enorme homem de armas. Ele viu Richard correndo na direção da igreja, gritou um alarme e correu para o adro. Foi seguido por mais três, quatro, cinco homens.

      O grupo vindo do funeral espalhou-se. Os homens de armas os ignoraram e correram atrás de Richard. Aliena ficou assustada e assombrada: quem se atreveria a atacar o conde de Shiring abertamente e dentro de um priorado? Conteve a respiração enquanto os observava perseguindo Richard através do adro. Ele pulou por cima de uma parede baixa que os pedreiros estavam construindo. Seus perseguidores também pularam, indiferentes ao fato de estarem entrando numa igreja. Os artífices ficaram imóveis, colheres de pedreiros e martelos erguidos, quando primeiro Richard e depois os seus perseguidores passaram velozmente. Um dos aprendizes mais jovens e de raciocínio mais rápido esticou uma pá e derrubou um dos homens de armas, que tombou no chão; contudo, ninguém mais interveio. Richard atingiu a porta que dava no claustro. O homem mais próximo ergueu a espada acima da sua cabeça. Por um momento terrível Aliena pensou que a porta estivesse trancada e que Richard não conseguiria entrar. O homem de armas deu uma estocada no conde. Este conseguiu abrir a porta e esgueirou-se para dentro do claustro, e a espada entrou na madeira da porta quando ela se fechou.

      Aliena respirou de novo.

      Os homens de armas reuniram-se em torno da porta do claustro e começaram a olhar à sua volta, incertos. Pareciam ter percebido, de repente, onde estavam. Os artífices lhes lançaram olhares hostis e levantaram seus martelos e machados. Havia perto de cem operários e apenas cinco homens de armas.

      - Quem diabo é essa gente? - exclamou Jack, furioso. A resposta foi dada por uma voz às suas costas.

      - São os homens do xerife.

      Aliena virou-se, aterrorizada. Conhecia aquela voz horrivelmente bem. No portão, montando um nervoso garanhão negro, armado e de cota de malha, estava William Hamleigh.

      A visão dele fez correr um frio na sua espinha.

      - Dê o fora daqui, seu inseto repugnante! - esbravejou Jack.

      William corou com o insulto, mas não fez um gesto.

      - Vim aqui para fazer uma prisão.

      - Vá em frente. Os homens de Richard o farão em pedaços.

      - Ele não terá homem algum quando estiver na cadeia.

      - Quem você pensa que é? Um xerife não pode pôr um conde na cadeia!

      - Pode, por assassinato.

      Aliena ofegou. Viu imediatamente como a mente tortuosa de William estava trabalhando.

      - Não houve assassinato! - explodiu.

      - Houve - afirmou William. - O conde Richard matou Alfred Construtor. Agora tenho que explicar ao prior Philip que ele está dando abrigo a um assassino.

      William tocou seu cavalo e passou por eles, cruzando a fachada oeste da nave inconclusa, até o pátio da cozinha, onde os leigos eram recebidos no convento. Aliena observou-o, incrédula. Ele era tão mau que era difícil de acreditar. O pobre Alfred, a quem tinham acabado de enterrar, cometera muitos erros com o seu jeito tacanho de ser e sua fraqueza de caráter, mas a ruindade dele fora mais trágica do que qualquer outra coisa. William, contudo, era um verdadeiro servo do demônio. Quando nos veremos livres desse monstro?, perguntou-se Aliena. Os homens de armas juntaram-se a William no pátio da cozinha, e um deles bateu na porta com o punho da espada.

      Os operários deixaram o canteiro da obra e se agruparam num canto, olhando ferozmente para os intrusos, parecendo perigosos com seus martelos pesados e cinzéis amolados.

      Aliena disse a Martha que levasse as crianças para casa; depois ela e Jack permaneceram junto com os operários.

      O prior apareceu na porta da cozinha. Era mais baixo que William, e no seu hábito leve de verão parecia muito pequeno em comparação com o homem corpulento de cota de malha; no entanto, havia uma expressão de justa indignação no rosto de Philip que fazia com que ele infundisse mais medo que William.

      - Você está concedendo asilo a um fugitivo... - começou a dizer o xerife.

      - Deixe este lugar! - interrompeu-o Philip, com um berro.

      William tentou de novo.

      - Houve um assassinato...

      - Saia do meu priorado! - gritou Philip.

      - Eu sou o xerife...

      - Nem mesmo o rei pode trazer homens de violência para o interior das instalações de um mosteiro! Fora! Fora!

      Os operários começaram a murmurar furiosamente entre si. Os homens de armas olharam para eles, nervosos.

      - Até mesmo o prior de Kingsbridge tem que obedecer ao xerife - disse William.

      - Não nestes termos! Tire os seus homens do mosteiro. Deixe suas armas no estábulo. Quando estiver pronto para agir como um humilde pecador na casa de Deus, pode entrar no priorado; aí então o prior responderá às suas perguntas.

      Philip recuou e bateu a porta. Os operários aplaudiram.

      Aliena descobriu-se aplaudindo também. William era uma figura que representara o poder e o medo em toda a sua vida e vê-lo desafiado pelo prior Philip alegrava seu coração.

      Mas Hamleigh ainda não estava pronto para conceder na derrota. Saltou do cavalo. Lentamente, desafivelou o cinturão da espada e entregou-o a um de seus homens. Disse-lhes algumas poucas palavras, baixinho, e eles se retiraram, atravessando o adro com a sua espada. William ficou olhando até chegarem ao portão; só então voltou a virar-se de frente para a porta da cozinha.

      - Abra a porta para o xerife!

      Após uma pausa a porta da cozinha se abriu, e Philip apareceu de novo. Examinou Hamleigh, agora de pé e desarmado no pátio; depois olhou para os homens de armas, reunidos junto ao portão, no lado mais afastado do adro; finalmente encarou William de novo.

      - E então?

      - Você está dando asilo a um assassino no priorado. Entregue-o a mim.

      - Não houve assassinato em Kingsbridge.

      - O conde de Shiring matou Alfred Construtor quatro dias atrás.

      - Errado - disse Philip. - Richard matou Alfred, mas não foi assassinato. Alfred foi surpreendido durante uma tentativa de estupro.

      Aliena estremeceu.

      - Estupro? - disse William. - Quem ele estava tentando estuprar?

      - Aliena.

      - Mas ela é a mulher dele! - exclamou William triunfantemente. - Como pode um homem estuprar a própria mulher?

      Aliena viu a direção que tomava o argumento de William, e ferveu de ódio.

      - Esse casamento não chegou a ser consumado, e ela requereu a anulação.

      - Que nunca foi concedida. Eles se casaram na igreja. E ainda estão casados, de acordo com a lei. Não houve estupro. Pelo contrário. - William virou-se subitamente e apontou para Aliena. - Ela estava querendo se livrar do marido há anos e por fim persuadiu o irmão a ajudá-la a tirar Alfred do seu caminho...   matando-o com a faca dela!

      A mão gelada do medo apertou o coração de Aliena. A história que ele estava contando era uma mentira ultrajante, mas, para uma pessoa que não tivesse visto o que de fato acontecera, ajustava-se aos fatos tão plausivelmente quanto a verdadeira história.

      - O xerife não pode prender o conde - disse Philip.

      Era verdade, pensou ela. Estava se esquecendo. William puxou um rolo de pergaminho.

      - Tenho um edito real. Eu o estou prendendo em nome do rei.

      Aliena sentiu-se desolada. Hamleigh pensara em tudo.

      - Como foi que ele conseguiu isso? - murmurou.

      - William foi muito rápido - replicou Jack. - Deve ter ido a Winchester ver o rei assim que soube da notícia.

      Philip estendeu a mão.

      - Deixe-me ver o decreto.

      O xerife levantou-o na direção de Philip. Diversas jardas os separavam. Houve um empate momentâneo, quando nenhum dos dois quis se mover; depois William cedeu e subiu os degraus para entregar o rolo de pergaminho a Philip.

      O prior leu o edito e devolveu-o.

      - Isso não lhe dá o direito de atacar um mosteiro.

      - Mas me dá o direito de prender Richard.

      - Ele pediu asilo.

      - Ah! - William não pareceu surpreendido. Assentiu com a cabeça, como se tivesse ouvido a confirmação de algo inevitável, e deu dois ou três passos para trás. Quando falou de novo, o fez alto o bastante para que todos pudessem ouvi-lo claramente. - Pois que ele saiba que será preso no momento em que deixar o priorado. Meus assistentes estarão acampados na cidade e do lado de fora do seu castelo. Lembrem-se... - ele correu com o olhar a multidão ali reunida - lembrem-se de que quem quer que cause ferimento a um auxiliar do xerife estará ferindo um servo do rei. - Virou-se de novo para Philip. - Diga-lhe que ele pode ficar asilado pelo tempo que quiser, mas, se desejar sair, terá que enfrentar a justiça.

      Fez-se silêncio. William desceu vagarosamente os degraus e atravessou o pátio da cozinha. Suas palavras tinham soado a Aliena como uma sentença de prisão. A multidão abriu espaço para ele. Hamleigh lançou um olhar de vitória para Aliena, ao passar por ela. Todos observaram-no caminhar até o portão e montar no seu cavalo. Deu uma ordem e afastou-se a trote, deixando dois dos seus homens junto ao portão, olhando para dentro.

      Quando Aliena se virou, Philip estava atrás dela e de Jack.

      - Vão para a minha casa - disse ele, baixinho. - Precisamos discutir a situação. - E com essas palavras entrou de novo na cozinha.

      Aliena teve a impressão de que o prior estava secretamente satisfeito com alguma coisa.

      A excitação acabou. Os operários retornaram ao trabalho, conversando animadamente. Ellen foi para casa junto com os netos. Aliena e Jack atravessaram o cemitério, margeando o canteiro da obra, e entraram na casa de Philip. Ele ainda não estava ali. Sentaram-se num banco para aguardar. Jack sentiu a ansiedade de Aliena pelo irmão e abraçou-a reconfortadoramente. Olhando à sua volta, Aliena percebeu que, ano após ano, a casa de Philip fora se tornando mais confortável. Ainda era muito pobre pelos padrões dos aposentos privados de um conde num castelo, mas já não era tão austera quanto antes. Diante do pequeno altar no canto havia agora um pequeno tapete para proteger os joelhos do prior durante as longas noites de oração; e na parede atrás do altar havia um crucifixo de prata enfeitado com pedras preciosas que devia ter sido um presente dispendioso. Não fazia mal algum a Philip ter mais condescendência consigo próprio à medida que envelhecia, pensou Aliena. Talvez tivesse mais condescendência com os outros, também.

      Poucos momentos depois o prior entrou, trazendo um exaltadíssimo Richard. Este começou a falar imediatamente.

      - William não pode fazer isto, é loucura! Encontrei Alfred tentando estuprar minha irmã... Ele tinha uma faca... Quase me matou!

      - Acalme-se - disse Philip. - Vamos conversar a esse respeito com toda a serenidade, tentando determinar quais são os perigos envolvidos, se é que os há. Por que não sentamos?

      Richard sentou-se, mas continuou falando.

      - Perigos? Não há perigos. Um xerife não pode aprisionar um conde por coisa alguma, nem mesmo por homicídio.

      - Ele vai tentar - disse Philip. - Terá homens esperando do lado de fora do priorado.

      O conde fez um gesto traduzindo sua indiferença.

      - Posso passar pelos homens de William de olhos vendados. Não são problema. Jack pode esperar por mim do lado de fora da muralha com um cavalo.

      - E quando chegar a Earlscastle? - quis saber Philip.

      - A mesma coisa. Posso dar um jeito de passar pelos homens de William. Ou fazer com que meus próprios homens saiam ao meu encontro.

      - Parece satisfatório - disse o prior. - E depois, o que fará?

       - Nada - disse Richard. - O que William pode fazer?

      - Bem, ele tem um decreto real citando-o para responder a uma acusação de homicídio. Tentará prendê-lo todas as vezes que sair do castelo.

      - Irei a toda parte escoltado.

      - E quando presidir a corte de Shiring, ou estiver em outros lugares?

      - A mesma coisa.

      - Mas alguém irá cumprir as suas decisões, sabendo que você é um fugitivo da lei?

      - É melhor que cumpram - respondeu Richard sombriamente. - Devem se lembrar de como William fazia cumprir suas decisões no tempo em que era o conde.

      - Eles podem não ter tanto medo de você quanto tinham de Hamleigh. Podem julgar que não é tão sanguinário e cruel quanto ele. Espero que tenham razão.

      - Não conte com isso.

      Aliena ficou intrigada. Não era característico de Philip ser tão pessimista - a menos que tivesse um motivo oculto. Suspeitou que ele estivesse lançando os alicerces para algum esquema que escondia na manga. Eu seria capaz de apostar, pensou ela, que a pedreira entrará nesta história de algum modo.

      - Minha principal preocupação é o rei - estava dizendo Philip. - Ao se recusar a responder à acusação, você está desafiando a coroa. Um ano atrás eu lhe teria dito que fosse em frente e desafiasse o rei. Mas agora que a guerra acabou, não será fácil para os condes fazerem tudo o que quiserem.

      - Parece que você terá que responder à acusação, Richard - disse Jack.

      - Ele não pode fazer isso - contestou Aliena. - Não tem a menor esperança de receber justiça.

      - Ela tem razão - concordou Philip. - O caso será julgado na corte real. Os fatos já são conhecidos. Alfred tentou forçar Aliena, Richard entrou, eles lutaram, e Richard matou Alfred. Tudo depende da interpretação. E com William, um leal defensor do rei Estêvão, fazendo a queixa, e Richard sendo um dos maiores aliados do duque Henrique, o veredicto provavelmente será: culpado. Por que o rei Estêvão assinou o decreto? Presumivelmente porque decidiu vingar-se de Richard, que lutou contra ele. A morte de Alfred lhe proporciona uma desculpa perfeita.

      - Temos que apelar para que o duque Henrique intervenha - disse Aliena.

      Foi a vez de Richard hesitar.

      - Eu não gostaria de depender dele. Henrique está na Normandia. Talvez escreva uma carta protestando, mas o que mais poderá fazer? Atravessar o canal com um exército? Nesse caso estaria rompendo o tratado de paz, e não penso que fosse arriscar isso por mim.

      Aliena sentiu-se aflita e assustada.

      - Oh, Richard, você foi apanhado numa teia terrível, e tudo porque me salvou.

      Ele lhe dirigiu seu mais encantador sorriso.

      - Eu faria tudo de novo, Allie.

      - Eu sei.

      Ele estava sendo sincero. Apesar de todos os defeitos, era corajoso. Parecia injusto que se visse diante de um problema difícil como aquele logo após ter retomado o condado. Como conde, era um desapontamento para Aliena - um terrível desapontamento -, mas não merecia aquilo.

      - Bem, que dilema! - disse ele. - Posso ficar aqui no priorado até o duque se tornar o rei Henrique II, ou ser enforcado por assassinato. Eu me tornaria um monge se vocês monges não comessem tanto peixe.

      - Pode haver outra saída - disse Philip.

      Aliena fitou-o ansiosamente. Suspeitara que estivesse tramando algo, e lhe ficaria grata se pudesse resolver o dilema do irmão.

      - Você poderia fazer penitência pelo assassinato - continuou o prior.

      - Teria algo a ver com comer peixe? - perguntou o conde irreverentemente.

      - Estou pensando na Terra Santa - disse Philip. Todos ficaram quietos. A Palestina era governada pelo rei de Jerusalém, Balduíno IV, um cristão de origem francesa. Estava constantemente sob o ataque dos reinos muçulmanos vizinhos, especialmente o Egito, ao sul, e Damasco, a leste. Ir para lá, uma viagem de seis meses a um ano, e integrar os exércitos que combatiam para defender o reino cristão, era, na verdade, o tipo de penitência que um homem podia fazer para purificar a alma após um crime de morte. Aliena sentiu uma vertigem de ansiedade: nem todo mundo voltava da Terra Santa.

      - Mas acabo de reassumir o condado! - disse ele. - Quem ficaria cuidando das minhas terras enquanto eu estivesse fora?

      - Aliena - respondeu Philip.

      Ela subitamente sentiu-se sem fôlego. O prior estava propondo que tomasse o lugar do conde e governasse como seu pai governara... A proposta a deixou atônita por um momento, mas assim que recuperou os sentidos, soube que Philip estava certo. Quando um homem ia para a Terra Santa, suas propriedades normalmente eram cuidadas pela esposa. Não havia razão pela qual uma irmã não devesse desempenhar o mesmo papel para um conde que não era casado. E Aliena governaria o condado do modo como sempre soubera que deveria ser governado, com justiça, visão e imaginação. Faria todas as coisas que Richard, para sua tristeza, deixara de fazer. Seu coração disparou ao avaliar a idéia. Tentaria novas soluções, arando com cavalos e não com bois, plantando safras de primavera de aveia e ervilhas para descansar a terra. Abriria novas oportunidades de plantio, preparando terrenos, estabeleceria novos mercados e abriria a pedreira para Philip após todo aquele tempo... Ele pensara nisso, claro. De todos os esquemas inteligentes que o prior imaginara todos aqueles anos, este provavelmente era o mais engenhoso. De uma penada, resolvia três problemas: liberava Richard do perigo representado por William, punha uma administradora competente à frente do condado e finalmente conseguia sua pedreira.

      - Não tenho dúvida de que o rei Balduíno o aceitaria de braços abertos - disse Philip -, especialmente se você se fizesse acompanhar pelos seus cavaleiros e homens que se sentirem bastante inspirados para segui-lo. Seria sua própria pequena cruzada. - Ele parou por um momento para deixar a idéia ser assimilada. - William não poderia tocar em você lá, é claro continuou. - E você voltaria como um herói. Ninguém se atreveria a enforcá-lo.

      - A Terra Santa - disse Richard, e havia um brilho de morte ou glória nos seus olhos. Era a coisa certa para ele, pensou Aliena. Não se saía bem no governo do condado. Era um soldado, e queria combater. Ela viu a expressão distante no seu rosto. Mentalmente já estava lá, defendendo um reduto arenoso, espada na mão, uma cruz vermelha no escudo, lutando com uma horda de pagãos sob um sol abrasador. Ele estava feliz.

     

      Toda a cidade foi ao casamento.

      Aliena ficou surpresa. A maior parte das pessoas já os tratava como se fossem casados, e ela pensara que a cerimônia seria considerada como mera formalidade. Esperara um pequeno grupo de amigos, a maioria gente de sua idade e companheiros de trabalho de Jack. Mas todos os homens, mulheres e crianças vieram. Ficou comovida com sua presença. E pareciam tão felizes! Constatou que haviam se compadecido da sua situação todos aqueles anos, muito embora diplomaticamente tivessem evitado tocar no assunto com ela; e agora partilhavam sua alegria por finalmente desposar o homem a quem amava há tanto tempo. Percorreu as ruas de braço dado com Richard, aturdida com os sorrisos que a seguiam, ébria de felicidade.

      Seu irmão partiria para a Terra Santa no dia seguinte. O rei Estêvão aceitara aquela solução - na verdade, parecera aliviado por se livrar do conde tão facilmente.

      O xerife William ficou furioso, claro, pois seu objetivo fora tirar-lhe o condado, o que agora perdera todas as chances de fazer. Quanto a Richard, ainda tinha aquele olhar distante; mal podia esperar a hora de partir.

      Aquele não era o modo como seu pai tencionara que as coisas se passassem, pensou ela, ao entrarem no adro do mosteiro: Richard combatendo numa terra longínqua e Aliena desempenhando o papel de conde. No entanto, já não se sentia obrigada a viver de acordo com os desejos do pai. Fazia dezessete anos que estava morto, e, de resto, Aliena tinha conhecimento de algo que ele não compreendera: que ela se sairia muito melhor no desempenho das atribuições próprias de um conde do que Richard.

      Já assumira as rédeas do poder. Os serventes do castelo estavam preguiçosos, após anos de administração frouxa, e ela os deixara mais vivos. Reorganizara os depósitos, mandara pintar o grande salão e limpara a padaria e a cervejaria. A cozinha estava tão imunda que a queimara para construir outra. Começara a pagar pessoalmente os salários semanais, como sinal de que estava no comando, e demitira três homens de armas por repetidas bebedeiras.

      Mandara que fosse construído um novo castelo à distância de uma hora a cavalo de Kingsbridge. Earlscastle era longe demais da catedral. Jack desenhara o projeto, e eles se mudariam o mais cedo possível. Enquanto isso, dividiriam o tempo entre Earlscastle e Kingsbridge.

      Já tinham passado diversas noites juntos no antigo quarto de Aliena, em Earlscastle, longe do olhar desaprovador de Philip. Comportaram-se como recém-casados em lua-de-mel, dominados por insaciável paixão física. Talvez fosse porque, pela primeira vez na vida deles, dispunham de um quarto que podiam trancar. Privacidade era uma extravagância de lordes: todos os demais dormiam e faziam amor lá embaixo, no salão comunal. Até mesmo os casais que viviam em suas casas estavam sempre sujeitos a ser vistos pelos filhos, parentes ou vizinhos que aparecessem para uma visita: as pessoas trancavam as portas quando estavam fora, e não dentro de casa.

      Aliena nunca se sentira insatisfeita com isso, mas agora descobrira a emoção especial de saber que podia fazer tudo o que quisesse sem correr o risco de ser vista.

      Pensou em algumas das coisas que ela e Jack tinham feito nas últimas duas semanas e corou.

      Jack estava esperando na nave parcialmente construída com Martha, Tommy e Sally. Nos casamentos, os noivos normalmente trocavam promessas no pórtico da igreja e depois entravam para a missa. Nesse dia o primeiro intercolúnio da nave serviria de portal. Aliena estava satisfeita por se casarem na catedral que Jack estava construindo.

      A igreja fazia parte de Jack, tanto quanto as roupas que usava ou o modo como fazia amor. Sua catedral seria como ele: graciosa, inventiva, alegre e totalmente diferente de tudo o que existira antes.

      Ela lhe dirigiu um olhar cheio de amor. Ele estava com trinta anos. Era um homem muito bonito, com sua cabeleira ruiva e seus cintilantes olhos azuis. Lembrava-se de que fora um garoto muito feio: achara, de certa forma, que não a merecia. Mas ele se apaixonara por ela desde o princípio, conforme dissera; e ainda estremecia quando se lembrava de como todos haviam rido dele porque dissera nunca ter tido um pai. Fazia quase vinte anos. Vinte anos...

      Poderia nunca mais ter visto Jack de novo se não houvesse sido pelo prior Philip, que entrara agora na igreja vindo do claustro e dirigira-se sorrindo para a nave.

      Ele parecia verdadeiramente emocionado por estar casando os dois, afinal. Aliena pensou na primeira vez em que o encontrara. Rememorava vivamente o desespero que sentira quando o mercador de lã tentara enganá-la, depois de todo o esforço e sacrifício representado pela preparação do saco de lã; e sua imensa gratidão pelo jovem monge de cabelos negros que a salvara e dissera: "Comprarei sua lã em qualquer ocasião... " O cabelo dele agora era grisalho. Primeiro ele a salvara, depois quase a destruíra, forçando Jack a escolher entre ela e a catedral. Era um homem duro em questões de certo e errado, um pouco como o seu pai. No entanto, quisera celebrar seu casamento.

      Ellen amaldiçoara a primeira união de Aliena, e a praga funcionara. Para sua alegria. Se seu casamento com Alfred não tivesse sido totalmente insuportável, poderia ainda estar vivendo em sua companhia. Era esquisito pensar em como poderia ter sido; ficava toda arrepiada, como quando tinha pesadelos e imaginava coisas ruins.

      Relembrou como era linda e atraente a garota árabe de Toledo que se apaixonara por Jack: e se ele tivesse se casado com ela? Aliena teria chegado em Toledo, com o filho no colo, para encontrá-lo desfrutando uma vida de total domesticidade, dividindo corpo e mente com outra pessoa. A simples idéia a horrorizava.

      Ouviu-o murmurando o padre-nosso. Agora parecia espantoso pensar que, quando viera morar em Kingsbridge, não dera mais atenção a Jack que ao gato do mercador de cereais. Mas ele reparara nela: amara-a secretamente todos aqueles anos. Como fora paciente! Observara os jovens filhos dos pequenos fidalgos indo cortejá-la, um por um, indo embora desapontados, ofendidos ou desafiadores. Vira - garoto incrivelmente inteligente que era - que não podia ser conquistada com uma corte comum; e aproximara-se com cuidado, mais como amigo que como amante, encontrando-a na floresta, contando-lhe histórias e fazendo com que o amasse sem que ela percebesse.

      Lembrou-se do primeiro beijo, tão delicado e casual, a não ser por ter-lhe  queimado  os lábios muitas semanas seguidas. Lembrava-se do segundo beijo ainda mais vivamente. Todas as vezes que ouvia o barulho do moinho de pisoar, lembrava-se daquela obscura, estranha e nada bem-vinda onda de desejo que sentira.

      Um dos arrependimentos mais duradouros de sua vida referia-se ao modo como ficara fria depois daquilo. Jack a amara total e sinceramente, e ela ficara tão assustada que se afastara, fingindo não ligar para ele. Aquilo o magoara muito; e, embora Jack continuasse a amá-la e a ferida tivesse cicatrizado, deixara marca, como sempre deixam as fendas profundas; e às vezes ela via a cicatriz, no modo como ele a olhava quando brigavam e ela o fitava com frieza, e os olhos dele pareciam dizer: Sim, eu conheço você, você pode ser fria, pode me magoar, tenho que ficar em guarda.

      Haveria uma certa cautela no seu olhar agora, quando ele jurava amá-la e ser-lhe fiel pelo resto de sua vida? Ele tem bastante motivo para duvidar de mim, pensou Aliena. Casei-me com Alfred, e que maior traição poderia haver? Só depois paguei o que fiz, percorrendo metade da cristandade para encontrar Jack.

      Coisas como desapontamentos, traições e reconciliações eram a essência da vida de casado, mas ambos tinham passado por isso antes do casamento. Agora, por fim, Aliena se sentia confiante de conhecê-lo. Provavelmente, nada mais a surpreenderia. Era uma maneira esquisita de dizer as coisas, mas podia ser melhor do que prometer primeiro e depois conhecer o cônjuge. Os padres não concordariam, claro; na verdade, Philip ficaria apoplético se soubesse o que se passava dentro da sua cabeça; porém, os padres sabiam menos sobre o amor do que as outras pessoas.

      Ela fez seus votos, repetindo as palavras que o prior pronunciava, pensando em como era bonita a promessa que dizia: com meu corpo adorarei você. Philip jamais compreenderia isso. Jack pôs um anel no seu dedo. Esperei por isto toda a minha vida, pensou ela. Os dois se fitaram. Alguma coisa mudara nele, Aliena podia assegurar. Constatou que até aquele momento ele nunca se sentira totalmente seguro na relação de ambos. Agora parecia muito contente.

      - Eu a amo - disse ele. - Sempre a amarei. Era esse o seu juramento.

      O resto era religião, mas agora Jack tinha feito sua própria promessa. Aliena percebeu que também não se sentira segura até então. Em mais um momento eles se adiantariam até a interseção da nave com os transeptos, para a missa; depois aceitariam os cumprimentos e os votos de felicidades dos habitantes de Kingsbridge, e os levariam para sua casa e lhes dariam cerveja e comida e os entreteriam; porém, aquele pequenino instante era só deles. A expressão de Jack dizia: Você e eu, juntos, sempre; e Aliena pensou: Enfim. A paz não podia ser mais completa.

     

     1170 - 1174

      Kingsbridge ainda estava crescendo. Há muito tempo deixara suas muralhas originais, que agora circundavam menos da metade das casas. Cerca de cinco anos antes a associação construíra uma nova muralha, abrangendo os subúrbios que tinham crescido fora da velha cidade; e agora já havia mais subúrbios do lado de fora. A campina do outro lado do rio, onde o povo tradicionalmente comemorava a festa da colheita e celebrava a entrada do verão, agora era uma nova aldeia, chamada Newport.

      Num frio domingo de Páscoa, o xerife William Hamleigh atravessou Newport a cavalo e cruzou a ponte de pedra que dava no que agora era chamada de "cidade velha de Kingsbridge". Hoje a recém-concluída catedral seria consagrada. Passou pelo imponente portão da cidade e subiu a rua principal, recentemente pavimentada. As residências de ambos os lados eram casas de pedra com instalações comerciais embaixo e a parte social em cima. Kingsbridge era maior, mais movimentada e mais rica do que Shiring jamais fora, pensou William amarguradamente.

      Chegou à parte de cima da rua e virou no adro; ali, diante dos seus olhos, estava a causa para a ascensão de Kingsbridge e o declínio de Shiring: a catedral.

      Era de tirar o fôlego.

      A nave, imensamente alta, sustentava-se por uma fila de graciosos e alados arcobotantes. A fachada oeste tinha três altíssimos pórticos, como portais gigantescos, e fileiras de altas e elegantes janelas ogivais, flanqueadas por torres esguias. A idéia fora anunciada nos transeptos, completados dezoito anos antes, mas aquela era a assombrosa consumação da idéia. Nunca existira uma construção como aquela em qualquer parte da Inglaterra.

      O mercado ainda se realizava ali todos os domingos, e a grama verde defronte do pórtico estava repleta de estandes. William desmontou e deixou que Walter cuidasse dos cavalos Atravessou mancando a distância que o separava da igreja: estava gordo, com cinquenta e quatro anos, e sofria constantemente de gota nas pernas e pés.

      Por causa da dor ele andava quase sempre irritado.

      A igreja era mais impressionante ainda no interior. A nave seguia o estilo dos transeptos, mas o mestre construtor refinara seu desenho, fazendo as colunas ainda mais esbeltas e as janelas maiores. Havia também outra inovação. William ouvira falar do vidro colorido feito por artesãos que Jack trouxera de Paris. Não entendera por que tanta confusão a respeito disso, pois imaginara que uma janela colorida seria como uma tapeçaria ou uma pintura. Via agora o que queriam dizer. A luz exterior cintilava através do vidro colorido, fazendo com que ele resplandecesse, e o efeito era mágico. Por toda a catedral as pessoas esticavam o pescoço para melhor contemplar as janelas. Suas ilustrações representavam histórias da Bíblia, o céu e o inferno, santos e profetas, os discípulos, e alguns dos cidadãos de Kingsbridge, que presumivelmente tinham pago pelas janelas em que apareciam - um padeiro carregando sua bandeja de pães, um curtidor com seus couros, um pedreiro com seus compassos e seu nível.

      Aposto como Philip lucrou muito com essas janelas, pensou William causticamente.

      A igreja estava superlotada para a missa da Páscoa. O mercado espalhava-se pelo interior do prédio, como sempre acontecia, e ao percorrer a nave William recebeu ofertas de cerveja fria, pão de gengibre quente e até mesmo uma rápida relação sexual de encontro à parede por três pence. O clero estava sempre tentando banir os mascates de dentro das igrejas, mas era uma tarefa impossível. William trocou cumprimentos com os cidadãos mais importantes do condado. Mas a despeito das distrações sociais e comerciais, tinha os olhos e pensamentos constantemente atraídos pelas linhas majestosas da arcada. Os arcos e as janelas, os pilares com seus feixes de fustes, as nervuras e segmentos do teto abobadado, tudo parecia apontar para o céu, numa inescapável lembrança da destinação do edifício.

      O chão era pavimentado, os pilares pintados e todas as janelas envidraçadas: Kingsbridge e seu priorado eram ricos, e a catedral proclamava essa prosperidade. Nas pequenas capelas dos transeptos havia candelabros de ouro e cruzes ornadas com gemas

      Os cidadãos também exibiam seu fausto, com túnicas ricamente coloridas, broches, fivelas de prata e anéis de ouro. Seu olhar pousou em Aliena.

      Como sempre, o coração dele falhou uma batida. Estava tão bonita como sempre fora, embora devesse ter mais de cinquenta anos. Ainda ostentava uma massa de cabelos cacheados, porém mais curtos e num tom mais claro de castanho, como se tivessem desbotado um pouco. Eram atraentes as rugas em torno dos olhos. Estava um pouco mais roliça do que antes, mas não menos desejável. Usava uma capa azul com guarnição de seda vermelha, e sapatos de couro também vermelhos. Uma multidão reverente a cercava. Embora não fosse realmente uma condessa, mas apenas a irmã do conde, seu irmão permanecera na Terra Santa e todos a tratavam como tratariam Richard. Quanto a ela, tinha o porte de uma rainha.

      A visão de Aliena fez o ódio fermentar como bílis no abdômen de William. Ele arruinara seu pai, estuprara-a, tomara seu castelo, queimara sua lã e exilara seu irmão, mas sempre que pensara tê-la esmagado ela ressurgira, erguendo-se da derrota para novas alturas de poder e riqueza. Agora, quando William estava ficando velho, gordo e com gota, constatava que passara toda a vida submetido ao poder de um terrível encantamento. Ao lado dela estava um homem alto e de cabelo ruivo, que William a princípio tomou como Jack. Após um exame mais detido, contudo, viu que era obviamente jovem demais, e devia ser o filho dele. Estava trajado como um cavaleiro e carregava uma espada. Quanto ao próprio Jack, estava perto do filho, sendo uma ou duas polegadas mais baixo, o cabelo ruivo com entradas maiores nas têmporas. Era mais jovem que Aliena, claro, cerca de cinco anos, se a memória de William não estivesse falhando, mas também tinha rugas em torno dos olhos. Conversava animadamente com uma jovem que certamente era sua filha. Parecia-se com Aliena, e era tão bonita quanto a mãe, mas seu cabelo abundante fora severamente preso atrás, numa trança, e ela se vestia com bastante sobriedade. Se havia um corpo voluptuoso sob a túnica cor de terra, não queria que ninguém soubesse.

      O ressentimento ardeu no seu estômago ao contemplar a família próspera, digna e feliz de Aliena. Tudo o que possuíam deveria ter sido dele. Mas William não desistiu da esperança de vingar-se.

      As vozes de centenas de monges ergueram-se numa canção, submergindo as conversas e os gritos dos mascates, e o prior Philip ingressou na igreja, à testa de uma procissão. Nunca houvera tantos monges, pensou Hamleigh. O priorado crescera junto com a cidade. Philip, agora com mais de sessenta anos e praticamente calvo, estava corpulento, de modo que seu rosto outrora magro se tornara bastante redondo. Parecia bastante satisfeito consigo próprio, o que não era de espantar: a consagração da catedral era o objetivo que traçara ao chegar a Kingsbridge, trinta e quatro anos antes.

      Houve um murmúrio de comentários quando o bispo Waleran entrou, envergando seu hábito mais magnificente. Seu rosto pálido e anguloso estava imobilizado numa expressão rigidamente neutra, mas William sabia que no íntimo fervia de raiva. Aquela catedral era o símbolo triunfante da vitória do prior sobre Waleran. O xerife também odiava Philip, mas mesmo assim gostava secretamente de ver o arrogante bispo ser humilhado, para variar.

      Waleran raramente era visto ali. Uma nova igreja fora finalmente construída em Shiring - com uma capela especial dedicada à memória da mãe de William -, e embora não fosse nem de longe tão grande ou impressionante quanto aquela, Waleran fizera dela seu quartel-general.

      Mesmo assim, Kingsbridge ainda era a catedral, a despeito de todos os esforços de Waleran. Numa guerra que perdurava há mais de três décadas, o bispo fizera tudo o que pudera para destruir Philip, mas no fim o prior triunfara. Era um caso um pouco parecido com o de William e Aliena. Tanto numa história quanto noutra, a fraqueza e os escrúpulos derrotaram a força e a crueldade. Hamleigh achava que nunca seria capaz de compreender aquilo.

      O bispo fora obrigado a comparecer ali naquele dia, para a cerimônia de consagração: teria parecido muito estranho se ele não fosse recepcionar todos os convidados célebres. Diversos bispos das dioceses próximas estavam presentes, assim como inúmeros abades e priores de grande distinção.

      O arcebispo de Canterbury, Tomás Becket, não viria. Estava no auge de uma briga com seu velho amigo, o rei Henrique; uma briga tão amarga e feroz que o arcebispo fora forçado a fugir do país e se refugiar na França. O conflito tinha como causa toda uma lista de questões legais, mas a essência da disputa era bastante simples: podia o rei fazer o que bem entendesse ou devia obedecer a limites? Era a mesma disputa que o próprio William tivera com o prior Philip. Do ponto de vista de Hamleigh, o conde podia fazer qualquer coisa - era justamente isso o que significava ser conde. Henrique era da mesma opinião quanto ao trono real.  O prior Philip e Tomás Becket restringiam o poder dos governantes.

      O bispo Waleran era uma autoridade eclesiástica que se colocava do lado dos governantes. A seu ver, o poder era para ser usado. As derrotas de três décadas não tinham abalado sua crença de ser um instrumento da vontade de Deus, nem tampouco sua implacável determinação de cumprir o sagrado dever. William tinha certeza de que, mesmo enquanto conduzia o rito de consagração da Catedral de Kingsbridge, estava procurando descobrir um modo qualquer de estragar o momento de glória de Philip.

      O xerife percorreu a nave durante o culto. Ficar parado, de pé, era pior para suas pernas do que andar. Quando ia à Igreja de Shiring, Walter carregava uma cadeira para ele. Assim podia cochilar um pouco. Ali, no entanto, havia gente com quem falar, e grande parte da congregação usava o tempo para tratar dos seus negócios. William perambulou, insinuando-se com os poderosos, intimidando os fracos e colecionando informações sobre tudo e todos. Não mais lançava o terror no coração das pessoas, como nos bons tempos passados, mas como xerife ainda era temido e respeitado.

      O culto prosseguia, interminavelmente. Houve um longo intervalo, durante o qual os monges saíram da igreja, contornando-a e aspergindo as paredes com água benta.

      Próximo do fim, o prior Philip anunciou a designação de um novo subprior: seria o irmão Jonathan, o órfão do priorado. Jonathan, agora com trinta e tantos anos e incomumente alto, lembrava a William Tom Construtor: ele também fora quase um gigante.

      Quando o serviço religioso afinal terminou, os convidados de maior distinção permaneceram no transepto sul, e a pequena nobreza do condado agrupou-se em torno deles.

      William também foi para lá, mancando. Houve época em que tratava os bispos como seus iguais, mas agora tinha que fazer reverências e rapapés junto com os cavaleiros e os pequenos proprietários de terra. O bispo Waleran puxou-o de lado e perguntou:

      - Quem é esse novo subprior?

      - O órfão do priorado - respondeu William. - Sempre foi o favorito de Philip.

      - Parece jovem para ser o subprior.

      - É mais velho do que Philip era quando se tornou prior.

      Waleran assumiu uma expressão pensativa.

      - O órfão do priorado. Lembre-me dos detalhes.

      - Quando Philip veio para cá trouxe um bebê consigo.

      O rosto do bispo iluminou-se quando se lembrou.

      - Pela Cruz de Cristo, sim! Eu tinha esquecido do bebê de Philip. Como pude deixar uma coisa dessas fugir da minha memória?

      - Faz mais de trinta anos. E quem se importa com isso?

      Waleran dirigiu ao xerife aquele olhar escarninho que ele tanto odiava, o olhar que dizia: Seu idiota, não é capaz de imaginar uma coisa tão simples? O pé de William doeu, e ele mudou o peso do corpo, numa tentativa inútil para abrandar a dor.

      - Bem, de onde foi que o bebê veio? - perguntou o bispo.

      William engoliu seu ressentimento.

      - Foi encontrado abandonado perto do velho mosteiro de Philip na floresta, lembro-me claramente.

      - Melhor ainda - disse Waleran, com veemência. Hamleigh ainda não viu aonde o outro estava querendo chegar.

      - E daí? - perguntou mal-humoradamente.

      - Você diria que Philip trouxe o bebê para cá como se fosse seu próprio filho?

      - Sim.

      - E ele agora foi feito subprior.

      - Foi eleito pelos monges, presumivelmente. Acredito que seja muito popular.

      - Quem quer que seja eleito subprior aos trinta e cinco anos deve estar cogitado para ascender ao cargo de prior um dia.

      William não ia dizer E daí? novamente, de modo que limitou-se a esperar, sentindo-se como um aluno burro, que Waleran explicasse.

      - Jonathan obviamente é filho de Philip - disse afinal Waleran.

      O xerife caiu na gargalhada. Estivera esperando um pensamento profundo, e o bispo aparecera com uma idéia totalmente ridícula. Para satisfação de William, seu sarcasmo trouxe um certo rubor ao rosto normalmente lívido de Waleran.

      - Ninguém que conheça Philip acreditaria numa coisa dessas - disse Hamleigh. - Todo mundo sabe que ele não é de nada e nunca foi, desde que nasceu. Que idéia! - E riu  de novo. O bispo podia se julgar muito inteligente, mas dessa vez perdera o senso de realidade.

      A arrogância de Waleran era glacial.

      - Digo que Philip tinha uma amante no tempo em que administrava aquele pequeno priorado na floresta.  Depois tornou-se prior de Kingsbridge e teve que deixar a mulher para trás. Ela não quis o bebê, já que não podia ter o pai, e por isso o deixou com ele. Philip, que é um tipo sentimental, sentiu-se obrigado a cuidar do menino, e o fez passar como sendo um enjeitado.

      William sacudiu a cabeça.

      - Inacreditável. Qualquer outra pessoa, sim. Philip, não.

      Waleran insistiu.

      - Se o bebê foi abandonado, como ele pode provar de onde veio?

      - Não pode - reconheceu William. Lançou um olhar na direção do transepto sul, onde Philip e Jonathan estavam juntos, conversando com o bispo de Hereford. - Mas eles nem sequer se parecem um com o outro.

      - Você não se parece com sua mãe - disse Waleran. - Graças a Deus.

      - De que adianta tudo isso? O que é que você vai fazer?

      - Acusá-lo diante de uma corte eclesiástica - foi a resposta de Waleran.

      Aquilo fazia diferença. Ninguém que conhecesse Philip acreditaria por um só momento na acusação de Waleran, mas um juiz que não fosse de Kingsbridge poderia achá-la mais plausível. Relutantemente, William percebeu que a idéia de Waleran não era tão estúpida afinal. Como sempre, mostrava-se mais esperto que ele. Sua aparência era irritantemente presunçosa, claro. Mas o xerife ficou entusiasmado com a perspectiva de derrubar o prior.

      - Por Deus - disse, ansioso -, acha mesmo que pode ser feito?

      - Depende de quem seja o juiz. Mas talvez eu consiga dar um jeito qualquer nisso. Não sei...

      William olhou para Philip, do outro lado do transepto, triunfante e sorridente ao lado do seu alto protegido. As imensas vidraças coloridas lançavam uma luz encantada sobre eles, que pareciam vultos de um sonho.

      - Fornicação e nepotismo - disse William jubilosamente.  - Meu Deus!

      - Se pudermos fazer com que acreditem - declarou Waleran com satisfação -, será o fim daquele maldito prior.

     

      Nenhum juiz sensato poderia considerar Philip culpado. Na verdade, ele nunca tivera que se esforçar muito para resistir à tentação da fornicação. Sabia, por ouvir suas confissões que alguns monges lutavam desesperadamente contra as tentações carnais, mas ele não era assim.

      Houvera um tempo, quando tinha seus dezoito anos, em que sofrera de sonhos impuros, mas essa fase passara logo. Durante a maior parte da sua vida, a castidade fora um voto fácil. Nunca realizara o ato sexual, e provavelmente já estava velho demais para isso.

      A Igreja, contudo, tomara a acusação muito seriamente. Philip seria julgado por uma corte eclesiástica. Um arcediago de Canterbury estaria presente. Waleran quisera que o julgamento fosse em Shiring, mas Philip lutara contra e tivera êxito, de modo que o julgamento seria mesmo realizado em Kingsbridge, que, afinal, era a cidade que sediava a catedral. Estava tirando suas coisas de sua casa, a fim de abrir espaço para o arcediago, que se hospedaria ali.

      Philip sabia que era inocente de fornicação, e, assim, não podia ser culpado de nepotismo, pois um homem não pode favorecer os filhos que não tem. Não obstante, examinou o coração para saber se errara ao promover Jonathan. Assim como os pensamentos impuros eram como uma espécie de sombra de um pecado mais grave, talvez o favoritismo por um órfão bemamado fosse uma sombra de nepotismo. Esperava-se que os monges esquecessem as consolações da vida de família, e no entanto Jonathan era como um filho para Philip. O prior o fizera despenseiro quando muito jovem, e agora o promovera a subprior. Terei agido deste modo para meu próprio prazer e orgulho?, perguntou-se.

      Ora, sim, pensou.

      Sentira enorme satisfação de ensinar Jonathan, observá-lo crescer e vê-lo aprender a cuidar dos negócios do mosteiro. Mas mesmo que essas coisas não houvessem dado intenso prazer a Philip, Jonathan ainda teria sido o mais capaz dos jovens administradores do priorado. Era inteligente, devoto, criativo e consciencioso. Criado no mosteiro, não conhecia outra vida, e nunca ansiara pela liberdade. O próprio Philip fora criado numa abadia. Nós, órfãos de mosteiros, nos tornamos os melhores monges, pensou.

      Pôs um livro num saco: o Evangelho de Lucas, tão sábio. Tratara Jonathan como um filho, mas não cometera nenhum pecado que devesse ser julgado por uma corte eclesiástica.

      A acusação era absurda.

      Lastimavelmente, a mera acusação era prejudicial. Diminuía sua autoridade moral. Haveria gente que se lembraria da acusação e esqueceria o veredicto. De outra vez em que Philip se levantasse e dissesse: Um dos mandamentos proíbe ao homem cobiçar a mulher do próximo, alguém da congregação poderia estar pensando: Mas você bem que andou se distraindo quando era jovem.

      Jonathan irrompeu quarto adentro, ofegante. Philip estranhou. O subprior não devia invadir cômodos alheios arquejando. Já estava a ponto de proferir uma homilia sobre a dignidade dos monges com atribuições administrativas, quando Jonathan disse:

      - O arcediago Peter já chegou!

      - Está bem, está bem - disse Philip, apaziguador. - Praticamente já acabei, de qualquer forma. - Entregou o Evangelho a Jonathan. - Leve isto ao dormitório, e não corra por toda parte: o mosteiro é um lugar de paz e quietude.

      Jonathan aceitou a sacola com o livro e a reprimenda, mas disse:

      - Não gosto do ar do arcediago.

      - Tenho certeza de que ele se limitará a ser um juiz justo, o que é tudo o que desejamos.

      A porta abriu-se de novo, e dessa vez foi o arcediago quem entrou. Era um homem alto, esguio, mais ou menos da idade de Philip, com o cabelo grisalho já escasseando e uma certa expressão de superioridade no rosto. Parecia vagamente familiar.

      O prior ofereceu a mão para o cumprimento.

      - Sou Philip.

      - Já o conheço - disse o arcediago agressivo. - Não se lembra de mim?

      A voz áspera provocou a lembrança. O coração de Philip se confrangeu. Era o seu mais antigo inimigo.

      - Arcediago Peter - disse melancolicamente. - Peter de Wareham.

     

      - Ele era um encrenqueiro - explicou Philip ao subprior alguns minutos depois, tendo deixado o arcediago à vontade em sua casa. - Queixava-se de que não trabalhávamos o bastante, ou de que comíamos bem demais, ou de que os serviços eram demasiado curtos. Dizia que eu era indulgente. Tenho certeza de que desejava ser o prior. Teria sido um desastre, claro. Eu o nomeei esmoler, para que passasse fora a metade do tempo. Fiz isso só para me livrar dele. Era melhor para o priorado e melhor para ele, mas tenho certeza de que ainda me odeia por causa disso, mesmo após terem se passado trinta e cinco anos. - Philip suspirou. - Soube, quando você e eu visitamos St.- John-in-the-Forest após a grande fome, que Peter fora para Canterbury. E agora volta para me julgar.

      Eles se encontravam no claustro. A temperatura estava amena, e o sol quente. Cinquenta garotos em três classes diferentes aprendiam a ler e escrever no passadiço norte, e o murmúrio abafado  de  suas  lições  flutuava  pelo   quadrângulo.   Philip lembrou-se de quando a escola consistira em cinco garotos e um mestre de noviços senil. Pensou em tudo o que fizera em Kingsbridge: a construção da catedral; a transformação do priorado empobrecido e arruinado numa instituição rica, ativa e influente; o aumento da cidade. Na igreja, mais de cem monges formavam o coro da missa. De onde estava sentado, podia ver a impressionante   beleza,  dos   vidros   coloridos das  janelas  do clerestório. Às suas costas, ao lado da calçada leste, ficava a biblioteca de pedra com centenas de livros sobre teologia, astronomia, ética, matemática e tanta coisa mais, na verdade, todos os ramos do conhecimento. No mundo exterior, as terras do priorado, administradas por monges esclarecidos e interessados, alimentavam não somente os religiosos, como também centenas de trabalhadores rurais. Aquilo tudo iria ser retirado dele por uma mentira? O priorado próspero e temente a Deus seria entregue a outra pessoa, um peão do bispo Waleran, como o viscoso arcediago Baldwin, ou a um tolo fariseu como Peter de Wareham, para decair e ser lançado na penúria e na depravação tão depressa quanto Philip o erguera? Os imensos rebanhos de ovelhas seriam reduzidos a um punhado de bichos esquálidos, as fazendas retornariam à antiga ineficiência, invadidas pelo mato, a biblioteca acumularia poeira com o desuso, a bela catedral afundaria no abandono? Deus me ajudou a conseguir tantas coisas!, pensou. Não posso acreditar que tenha destinado tudo a se transformar em nada.

      - Mesmo assim - disse Jonathan -, o arcediago Peter não tem como achar você culpado.

      - Mas acho que é isso o que fará - disse Philip, desolado.

      - Como, em sã consciência?

      - Acho que Peter vem cultivando uma mágoa contra mim em toda a sua vida, e esta é a sua chance de provar que eu era o pecador e ele, o justo. Waleran, de algum modo, tomou conhecimento disto e deu um jeito para que ele fosse designado para julgar o caso.

      - Mas não há prova!

      - Ele não precisa de prova. Ouvirá a acusação e a defesa; depois rezará a Deus pedindo uma orientação e pronunciará sua sentença.

      - Pode ser que Deus o guie no caminho certo.

      - Peter não ouvirá a Deus. Ele nunca O ouviu.

      - O que acontecerá?

      - Serei deposto - respondeu o prior melancolicamente. - Pode ser que me deixem continuar aqui, como um monge comum, fazendo penitência, mas não creio nisso. A probabilidade maior é de que me expulsem da ordem, a fim de evitar que eu continue exercendo alguma influência.

      - E o que aconteceria depois?

      - Teria que haver uma eleição, claro. Infortunadamente, a política real entra no quadro. O rei Henrique está em conflito com o arcebispo de Canterbury, Tomás Becket, que está exilado na França. Metade dos seus arcediagos se encontra com ele. A outra metade, a que ficou na Inglaterra, tomou o lado do rei contra Tomás. O bispo Waleran também tomou o lado do rei. Waleran recomendará o prior de sua escolha, sustentado pelos arcediagos de Canterbury e pelo próprio rei. Será difícil para os monges se oporem a ele.

      - Quem você acha que ele escolheria?

      - Waleran tem alguém em mente, não resta a menor dúvida. Pode ser o arcediago Baldwin. Pode até mesmo ser Peter de Wareham.

      - Temos que fazer alguma coisa para evitar isso! - exclamou o monge.

      Philip assentiu.

      - Mas tudo está contra nós. Não há nada que possamos fazer para alterar a situação política. A única possibilidade...

      - Qual é? - perguntou Jonathan, impacientemente.

      O caso parecia tão sem esperanças que Philip achou que não valia a pena ficar entretendo idéias desesperadas; Jonathan ficaria otimista só para se desapontar depois.

      - Nada - disse Philip.

      - O que você ia dizer?

      Philip ainda estava trabalhando a idéia.

      - Se houvesse um modo de provar minha inocência sem deixar dúvida alguma, seria impossível Peter me considerar culpado.

      - Mas o que serviria de prova?

      - Aí é que está o problema. Não se pode provar uma negativa. Teríamos que descobrir seu verdadeiro pai.

      Jonathan ficou entusiasmado.

      - Sim! É isso! É o que vamos fazer!

      - Calma - disse o prior. - Já tentei na época devida. Não há de ser mais fácil tantos anos depois.

      O jovem subprior não estava a fim de ser desencorajado.

      - Havia algum indício quanto à minha possível origem?

      - Nada. Receio que não houvesse nada. - Philip agora estava preocupado por ter enchido Jonathan de esperanças que não poderiam se tornar realidade. Embora o rapaz não tivesse lembranças de seus pais, o fato de o terem abandonado sempre o perturbara. Agora achava que podia resolver o mistério e encontrar alguma explicação que provasse que eles o tinham amado verdadeiramente. O prior tinha certeza de que aquilo só poderia levá-lo à frustração.

      - Você interrogou os moradores da vizinhança? - indagou Jonathan.

      - Não havia ninguém vivendo nas proximidades. Aquele mosteiro ficava no meio da floresta. Seus pais provavelmente tinham vindo de muitas milhas de distância, talvez de Winchester. Já examinei tudo isso antes.

      Jonathan persistiu.

      - Você não viu viajantes na floresta na mesma ocasião?

      - Não - respondeu Philip. Mas seria verdade? Uma tênue lembrança passou pela sua memória. No dia em que o bebê fora encontrado, o prior deixara o priorado para ir ao palácio do bispo, e no caminho falara com algumas pessoas. Subitamente aquilo voltou à sua lembrança. - Ora, sim, para falar a verdade, Tom Construtor e sua família estavam passando por perto.

      Jonathan ficou atônito.

      - Você nunca me contou isso!

      - Não parecia importante. Ainda não parece. Eu os encontrei um ou dois dias depois. Interroguei-os, e eles me disseram que não tinham visto ninguém que pudesse ser a mãe ou o pai de um bebê abandonado.

      O rapaz ficou desapontado. Philip receava que aquela linha de indagações pudesse ser duplamente desapontadora para ele: não descobriria nada sobre seus pais nem conseguiria provar a inocência do prior. Mas não havia como detê-lo agora.

      - O que eles estavam fazendo na floresta, de qualquer modo? - insistiu.

      - Tom estava a caminho do palácio do bispo. Procurava trabalho. Foi como terminaram vindo para cá.

      - Quero interrogá-los de novo.

      - Bem, Tom e Alfred estão mortos. Ellen mora na floresta, e só Deus sabe quando retornará. Mas você pode falar com Jack ou Martha.

      - Vale a pena tentar.

      Talvez Jonathan estivesse certo. Ele tinha a energia da juventude. Philip mostrara-se pessimista e desencorajado.

      - Vá em frente - disse Philip. - Estou ficando velho e cansado; de outro modo teria pensado nisso. Converse com Jack. É um fio muito ténue para nos apegarmos. Mas é nossa única esperança.

     

      O desenho da janela fora feito em tamanho real e pintado sobre uma imensa mesa de madeira lavada com cerveja para impedir que as cores borrassem. Representava a

      Árvore de Jessé, mostrando a genealogia de Jesus. Sally pegou um pedacinho do grosso vidro cor de rubi e colocou-o no desenho, sobre o corpo de um dos reis de Israel - Jack não sabia ao certo qual rei seria: nunca fora capaz de se lembrar do confuso simbolismo das ilustrações teológicas. Sally mergulhou um pincel fino numa tigela de giz moído em água e pintou o formato do corpo sobre o vidro: ombros, braços e a saia do manto.

      No fogo aceso no chão ao lado da sua mesa, havia um pedaço de ferro com cabo de madeira. Ela o retirou do fogo e, rápida mas cuidadosamente, passou a extremidade em brasa sobre o contorno que desenhara. O vidro partiu-se com precisão ao longo da linha. O aprendiz de Sally pegou o pedaço de vidro e começou a alisar sua borda com uma grosa de ferro.

      Jack adorava ver a filha trabalhar. Era rápida e precisa, de movimentos econômicos. Quando garotinha se fascinara com o trabalho dos vidraceiros que Jack trouxera de Paris, e sempre dissera que era aquilo que queria fazer quando crescesse. Cumprira a promessa. Quando as pessoas chegavam à Catedral de Kingsbridge pela primeira vez, impressionavam-se mais com os vidros de Sally do que com a arquitetura do pai, pensou Jack, pesarosamente.

      O aprendiz entregou o vidro já alisado para ela, que começou a pintar as dobras do manto sobre sua superfície, usando uma tinta feita de minério de ferro, urina e goma arábica, para fixar. A superfície chata do vidro de repente começou a parecer um tecido suave e descuidadamente pregueado. Ela era muito habilidosa. Terminou rapidamente, e em seguida colocou o vidro pintado junto com diversos outros numa panela de ferro, cujo fundo estava coberto de cal. Quando a panela estivesse cheia iria para o forno. O calor fundiria a pintura ao vidro.

      Ela ergueu os olhos para Jack. Lançou-lhe um sorriso rápido mas deslumbrante e pegou outro pedaço de vidro.

      Seu pai afastou-se. Podia ficar observando-a o dia inteiro, mas tinha que trabalhar. Era, como diria Aliena, louco pela filha. Quando olhava para ela, quase sempre era com assombro por ser o responsável pela existência daquela jovem inteligente, independente e madura. Emocionava-o ver que excelente artífice ela era.

      Ironicamente, sempre pressionara Tommy para ser construtor.

      Chegara mesmo a forçar o menino a trabalhar no canteiro da obra por dois anos. Mas Tommy interessava-se por agricultura, equitação, caça e esgrima, todas as coisas que deixavam Jack frio e indiferente. No fim este se dera por vencido. Seu filho servira como escudeiro de um dos lordes locais e acabara sendo ordenado cavaleiro.

      Aliena lhe concedera uma pequena propriedade com cinco aldeias. E Sally se revelara uma talentosa artífice. Tommy estava casado com a filha mais moça do conde de

      Bedford e tinha três filhos. Jack era avô. Sally, contudo, ainda permanecia solteira aos vinte e cinco anos de idade. Havia muito da sua avó Ellen nela. Era agressivamente autoconfiante.

      Jack contornou a catedral e ergueu os olhos para as duas torres gêmeas da fachada oeste. Estavam quase prontas, e um imenso sino de bronze, fabricado numa fundição de Londres, estava a caminho. Não havia muita coisa para ele fazer nos dias que corriam. Onde antes controlava um exército de vigorosos carpinteiros e cortadores de pedras, assentando fileiras de pedras e construindo andaimes, tinha agora um punhado de cinzeladores e pintores, fazendo um trabalho preciso e meticuloso em escala pequena, esculpindo estátuas para nichos, construindo pináculos ornamentais e dourando asas de anjos de pedra. Não havia muito que projetar, à parte um ou outro prédio novo para o priorado - uma biblioteca, uma casa de cabido, mais acomodações para peregrinos, novos prédios para a lavanderia e os laticínios. Entre um e outro pequeno trabalho, Jack esculpia em pedra pela primeira vez em muitos anos. Estava impaciente por derrubar o antigo coro de Tom e construir um novo na extremidade oeste com projeto seu, mas o prior Philip queria desfrutar a igreja como estava por um ano antes de começar outra campanha de construção. Philip sentia o peso da idade. Jack receava que não vivesse para ver o coro reconstruído.

      O trabalho, contudo, continuaria após a morte de Philip, pensou Jack ao ver o vulto extremamente alto do irmão Jonathan aproximando-se, vindo da direção do pátio da cozinha. Jonathan daria um bom prior, talvez até mesmo tão bom quanto o próprio Philip. Jack sentia-se feliz por saber que a sucessão estava assegurada: capacitava-o a planejar seu futuro.

      - Estou preocupado com a corte eclesiástica, Jack - foi dizendo o rapaz, sem rodeios.

      - Pensei que fosse uma confusão enorme por nada.

      - Eu também. Mas acontece que o arcediago é um velho inimigo do prior.

      - Que diabo! Mesmo assim, certamente não vai poder considerá-lo culpado.

      - Ele pode fazer o que bem entender.

      Jack sacudiu a cabeça, enojado. Às vezes perguntava-se como homens como Jonathan podiam continuar a acreditar na Igreja, quando ela era tão desavergonhadamente corrupta.

      - O que você vai fazer?

      - O único modo de provar a inocência dele é descobrir quem eram meus pais.

      - Já está um pouco tarde para isto!

      - É nossa única esperança.

      Jack ficou um tanto abalado. O rapaz parecia bastante desesperado.

      - Por onde vai começar?

      - Por você. Você estava na área de St.-John-in-the-Forest na época em que nasci.

      - Eu estava? - Jack não percebeu aonde Jonathan estava querendo chegar. - Morei lá até os onze anos, e devo ser cerca de onze anos mais velho que você...

      - Padre Philip diz que encontrou você, sua mãe, Tom e os filhos no dia seguinte àquele em que fui achado.

      - Lembro-me disso. Comemos a comida de Philip. Estávamos famintos.

      - Procure se lembrar. Você viu alguém com um bebê, ou uma mulher jovem que poderia estar grávida, em algum lugar nas proximidades?

      - Espere um minuto - Jack estava intrigado. - Você está me dizendo que foi encontrado perto de St.-John-in-the-Forest?

      - Sim. Você não sabia disto?

      Jack mal podia acreditar no que ouvira.

      - Não, eu não sabia - disse, lentamente. Sua mente estava às voltas com as implicações daquela revelação. - Quando chegamos a Kingsbridge, você já estava lá, e eu naturalmente presumi que tivesse sido encontrado nas imediações. - De repente Jack sentiu necessidade de sentar-se, e acomodou-se numa pilha de cascalhos.

      - Bem, afinal você viu alguém na floresta? - perguntou o subprior, impaciente.

      - Oh, sim - respondeu Jack. - Não sei como lhe contar isso, Jonathan.

      Jonathan empalideceu.

      - Você sabe alguma coisa a respeito disso, não sabe? O que foi que viu?

      - Eu vi você, Jonathan; eis o que vi.

      O queixo do rapaz caiu.

      - Ô quê?...  Como?

      - Era de madrugada. Eu estava caçando patos. Ouvi um choro. Encontrei um bebê recém-nascido, embrulhado numa velha capa cortada, deitado ao lado das brasas de uma fogueira.

      Jonathan o encarou.

      - Alguma coisa mais?

      Jack aquiesceu lentamente.

      - O bebê estava deitado sobre uma sepultura nova.

      Jonathan engoliu em seco.

      - Minha mãe?

      O construtor assentiu.

      O subprior começou a chorar, mas continuou o interrogatório.

      - O que você fez?

      - Fui buscar minha mãe. Mas quando estávamos a caminho passou um padre, num palafrém, carregando o bebê.

      - Francis - murmurou Jonathan, com a voz embargada.

      - O quê?

      Ele engoliu em seco.

      - Fui encontrado pelo irmão de Philip, Francis, o sacerdote.

      - O que ele estava fazendo lá?

      - Ia visitar Philip em St.-John-in-the-Forest. Foi para onde me levou.

      - Meu Deus! - Jack encarou fixamente o monge alto, com as lágrimas escorrendo pelo rosto. Você ainda não ouviu tudo, Jonathan, pensou.

      - Você viu alguém que pode ter sido meu pai?

      - Sim - disse Jack solenemente. - Eu sei quem ele era.

      - Diga-me! - sussurrou Jonathan.

      - Tom Construtor.

      - Tom? - O subprior deixou-se sentar pesadamente no chão. - Tom Construtor era meu pai?

      - Sim. - Jack sacudiu a cabeça, assombrado. - Agora sei quem você me lembra. Você e ele são as pessoas mais altas que já vi.

      - Ele sempre foi bom para mim quando eu era criança - disse o rapaz, em transe. - Costumava brincar comigo. Gostava de mim. Eu o via tanto quanto o prior Philip. - As lágrimas fluíam livremente. - Era o meu pai. Meu pai. - Olhou para Jack. - Por que me abandonou?

      - Eles pensaram que você ia morrer de qualquer maneira. Não tinham leite para lhe dar. Eles próprios estavam morrendo de inanição, eu sei. Encontravam-se a milhas de qualquer lugar. Não sabiam que o priorado era tão perto. Não tinham comida, a não ser nabos, e se lhe dessem nabos o teriam matado.

      - Então eles me amavam, afinal.

      Jack reviu a cena como se tivesse sido na véspera: o fogo se extinguindo, a terra recentemente revolvida da sepultura fresca e o minúsculo bebê cor-de-rosa batendo os braços e as pernas dentro da velha capa cinzenta. Aquela pequena fagulha de humanidade crescera e se transformara naquele homem alto sentado no chão, chorando à sua frente.

      - Oh, sim, eles o amavam.

      - Como ninguém nunca falou nisso?

      - Tom sentia vergonha, é claro - disse Jack. - Minha mãe deve ter sabido, e quanto a nós, crianças, suponho que tenhamos mais ou menos pressentido. De qualquer forma, era um assunto não mencionável. E nunca fizemos a ligação daquele bebê com você, é claro.

      - Tom deve tê-la feito - disse Jonathan.

      - Sim.

      - Eu gostaria de saber por que ele nunca me pegou de volta.

      - Minha mãe deixou-o logo depois que chegamos aqui - disse Jack, sorrindo melancolicamente. - Era difícil agradar-lhe, como a Sally. De qualquer modo, Tom teria que contratar uma ama para cuidar de você. Suponho então que ele deve ter pensado: Por que não deixar o bebê no mosteiro? Você estava sendo bem tratado.

      - Pelo querido Johnny Oito Pence. Que Deus abençoe sua alma.

      - Tom provavelmente teve mais tempo disponível para você desse modo. Você corria pelo adro o dia inteiro, e ele estava trabalhando lá. Se o pegasse e o deixasse em casa com uma ama, o veria menos, na realidade. E imagino que à medida que os anos passaram e você foi crescendo como o órfão do priorado, parecendo feliz, foi ficando cada vez mais natural deixá-lo. É bastante comum que as pessoas dêem um filho a Deus.

      - Todos estes anos senti curiosidade a respeito dos meus pais - disse Jonathan.

      O coração de Jack se confrangeu por ele.

      - Tentava imaginar como eram, pedia a Deus que me deixasse encontrá-los, perguntava a mim mesmo se me amavam, queria saber por que tinham me abandonado. Agora sei que minha mãe morreu dando-me à luz e que meu pai esteve do meu lado o resto de sua vida. - Jonathan sorriu por entre as lágrimas. - Não tenho palavras para lhe dizer como estou me sentindo feliz.

      Jack sentiu que estava prestes a chorar também.

      - Você se parece com Tom - disse, para disfarçar o embaraço.

      - Pareço? - Jonathan ficou satisfeito.

      - Você não se lembra de como ele era alto?

      - Todos os adultos eram altos para mim.

      - Ele tinha boas feições, como você. Firmes, regulares. Se você houvesse deixado crescer a barba, os outros teriam adivinhado.

      - Lembro-me do dia em que ele morreu - disse Jonathan. - Levou-me para dar uma volta pela feira. Assistimos à luta do urso. Depois escalei a parede do coro. Estava assustado demais para descer, de modo que ele teve que subir para me buscar. Então viu os homens de William chegando. Deixou-me no claustro. Foi a última vez em que o vi com vida.

      - Lembro-me disso. Eu o vi descendo com você nos braços.

      - Quis se certificar de que eu estava a salvo - disse o rapaz, pensativo.

      - Depois cuidou dos outros.

      - Ele realmente me amava.

      Jack foi assaltado por uma idéia.

      - Isso fará diferença no julgamento de Philip, não fará?

      - Eu tinha me esquecido. Sim, fará. Oh, Deus!

      - Será que temos provas irrefutáveis? - perguntou o mestre construtor. - Vi o bebê, vi o padre, mas na verdade não vi o bebê sendo entregue no pequeno priorado.

      - Foi Francis quem me entregou ao mosteiro. Mas ele é irmão de Philip, de modo que seu testemunho fica prejudicado.

      - Minha mãe e Tom saíram juntos naquela manhã - disse Jack, puxando pela memória. - Disseram que iam procurar o padre. Aposto como foram ao priorado se certificar de que o bebê estava lá.

      - Se ela declarasse isso na corte, então realmente o caso estaria resolvido - disse Jonathan, animado.

      - Philip acha que ela é uma feiticeira - lembrou Jack. - Será que a deixaria depor?

      - Poderíamos fazer-lhe uma surpresa. Mas ela o odeia também. Será que testemunharia?

      - Não sei - disse Jack.

      - Perguntemos a ela.

     

      - Fornicação e nepotismo? - exclamou a mãe de Jack. Philip? - Ela começou a rir. - É um absurdo!

      - Mãe, isto é sério - disse Jack.

      - Philip não seria capaz de fornicar nem que o pusessem num barril com três prostitutas - disse ela. - Não saberia o que fazer!

      Jonathan estava ficando embaraçado.

      - O prior Philip está verdadeiramente em apuros, mesmo que a acusação seja absurda - disse o rapaz.

      - E por que eu o ajudaria? Ele não me deu nada a não ser sofrimento.

      Jack receara aquilo. Sua mãe nunca perdoara Philip por têla separado de Tom.

      - Philip fez comigo o mesmo que fez com você. Se posso perdoá-lo, você pode.

      - Não sou do tipo que perdoa.

      - Então não o faça por Philip, faça-o por mim. Quero continuar a obra em Kingsbridge.

      - Por quê? A igreja está terminada.

      - Eu gostaria de derrubar o coro de Tom e reconstrui-lo no novo estilo.

      - Oh, pelo amor de Deus...

      - Mãe, Philip é um bom prior, e quando ele morrer Jonathan assumirá suas responsabilidades...   se você for a Kingsbridge e contar a verdade no julgamento.

      - Detesto tribunais - disse ela. - Nada de bom jamais saiu de um tribunal.

      Era enlouquecedor. Ellen tinha a chave para o julgamento de Philip: poderia assegurar sua absolvição. Mas era uma mulher velha e obstinada. Jack ficou seriamente receoso de não conseguir convencê-la.

      Decidiu tentar provocá-la.

      - Suponho que seja uma viagem muito longa para alguém da sua idade - disse ardilosamente. - com que idade está agora? Sessenta e oito?

      - Sessenta e dois, e não tente me provocar - retrucou ela. - Estou em melhor forma do que você, meu filho.

      Podia ser verdade, pensou Jack. O cabelo dela estava branco como a neve, e seu rosto profundamente vincado pelas rugas, mas seus surpreendentes olhos dourados viam tanto quanto sempre: assim que fitou Jonathan soube quem era. "Bem, não preciso perguntar por que você está aqui", dissera. "Você descobriu a sua origem, não foi? Por Deus, é tão alto quanto seu pai e quase tão espadaúdo." Ela continuava tão independente e decidida como sempre.

      - Sally é como você - disse Jack.

      Ellen ficou satisfeita.

      - É mesmo? - Ela sorriu. - De que modo?

      - Na sua teimosia incrível.

      - Hum. - Pareceu ficar furiosa. - Então ela vai se dar bem.

      Jack decidiu que o melhor que tinha a fazer era implorar.

      - Mãe, por favor, vá a Kingsbridge conosco e conte a verdade.

      - Não sei - disse ela.

      - Tenho outra coisa para lhe perguntar - disse Jonathan. Jack não sabia o que estava por vir. Tinha medo de que o rapaz pudesse dizer algo que agredisse sua mãe: era fácil de acontecer, especialmente em se tratando de clérigos. Conteve a respiração. - Você poderia me mostrar o lugar onde minha mãe está enterrada? - pediu ele.

      Jack soltou o ar silenciosamente. Não havia nada de errado com aquilo. Na verdade, o subprior dificilmente poderia ter pensado em algo com mais probabilidade de abrandá-la.

      Ellen abandonou o jeito desdenhoso imediatamente.

      - Claro que lhe mostrarei - disse. - Tenho certeza de que serei capaz de encontrá-lo.

      Jack sentiu-se relutante. Não havia muito tempo. O julgamento começaria na manhã seguinte e tinham um longo trajeto a percorrer. Mas achou que deveria deixar o destino seguir seu rumo.

      - Você quer ir lá agora? - perguntou ela.

      - Sim, por favor, se for possível.

      - Está bem. - Ela se levantou. Pôs nos ombros uma capa de pele de coelho. Jack esteve prestes a lhe dizer que estava muito calor para aquilo, mas conteve-se: gente velha sempre sente mais frio.

      Deixaram a caverna, com seu cheiro de maçãs armazenadas e de fumaça de lenha, e abriram caminho por entre a vegetação espessa que disfarçava sua entrada, saindo ao sol da primavera. Ellen seguiu adiante sem a menor hesitação. Jack e Jonathan desamarraram seus cavalos. Tinham que puxá-los, porque o mato estava muito crescido.

      O construtor notou que a mãe caminhava mais lentamente que antes. Não estava em tão boa forma quanto aparentava.

      Ele não teria sido capaz de achar o lugar sozinho. Houve tempo em que podia encontrar seu caminho na floresta com tanta facilidade quanto se estivesse agora se deslocando em Kingsbridge. Mas uma clareira se parecia demais com outra, assim como as casas de Kingsbridge pareceriam todas iguais para um estrangeiro. Ellen seguiu uma série de trilhas de animais através da densa vegetação. De vez em quando Jack reconhecia um marco associado com alguma lembrança da infância: um enorme carvalho velho, onde uma vez se abrigara de um javali; um viveiro de coelhos que proporcionara muitos e muitos jantares; um regato de trutas onde, pelo menos ao que parecia agora, ele conseguia pegar peixe gordo rapidamente. De vez em quando sabia onde se encontrava, e logo depois voltava a ficar perdido. Era assombroso pensar que um dia se sentira totalmente à vontade naquilo que agora era um lugar estranho com seus regatos e moitas tão sem significado para ele quanto suas pedras de arco e suportes de vigas seriam para um camponês. Nunca teria podido adivinhar, naquele tempo, como se desenrolaria sua vida.

      Caminharam diversas milhas. Era um dia quente de primavera, e Jack se deu conta de que estava suando, mas Ellen manteve a capinha de coelho nas costas. Pelo meio da tarde veio a parar numa clareira sombria. Jack notou que ela estava respirando com dificuldade e ficando um pouco pálida. Definitivamente era hora de largar a floresta e ir morar com ele e Aliena. Decidiu que faria um grande esforço para persuadi-la.

      - Você está bem? - perguntou ele.

      - Claro que sim - retorquiu ela. - Chegamos.

      Jack olhou em torno. Não reconheceu o lugar.

      - É aqui? - perguntou Jonathan.

      - Sim - disse Ellen.

      - Onde está a estrada? - perguntou seu filho.

      - Ali.

      Quando Jack se orientou com a estrada, a clareira começou a parecer-lhe familiar, e ele foi invadido por uma poderosa sensação do passado. Ali estava o grande castanheiro: não tinha folhas, naquele dia, e o chão da floresta estava cheio dos seus frutos. Mas agora a árvore mostrava-se florida, coberta com enormes flores brancas que lembravam velas. As flores já tinham começado a cair, e a cada instante uma nuvem de pétalas esvoaçava até o chão.

      - Martha me contou o que aconteceu - disse Jack. - Eles pararam aqui porque sua mãe não podia ir mais longe. Tom acendeu um fogo e cozinhou uns nabos para a ceia: não havia carne. Sua mãe deu à luz aqui, no chão. Você era perfeitamente saudável, mas algo saiu errado e ela morreu. - Havia uma pequena elevação de terra a poucas jardas da árvore. - Olhe disse Jack. - Está vendo aquele monte?

      Jonathan assentiu, o rosto tenso de emoção contida.

      - É a sepultura. - Enquanto Jack falava, uma nuvem de flores caiu da árvore e acomodou-se sobre a pequena elevação, como um tapete de pétalas.

      O rapaz ajoelhou-se ao lado da sepultura e começou a rezar.

      Jack permaneceu em silêncio. Lembrava-se de quando descobrira seus parentes em Cherbourg: fora uma experiência devastadora. O que Jonathan estava passando devia ser ainda mais intenso.

      Ao cabo de algum tempo o subprior se ergueu.

      - Quando eu for prior - disse, solenemente -, vou construir um pequeno mosteiro aqui, com uma capela e uma hospedaria, para que no futuro nenhum viajante neste trecho da estrada jamais tenha que passar uma fria noite de inverno dormindo ao relento. Dedicarei a hospedaria à memória de minha mãe. - Olhou para Jack. - Não creio que você tenha chegado a saber o nome dela...  ou soube?

      - Era Agnes - disse Ellen, suavemente. - O nome de sua mãe era Agnes.

      O bispo Waleran apresentou o caso de maneira muito persuasiva.

      Começou contando à corte o precoce progresso de Philip: despenseiro aos vinte e um anos, prior do Mosteiro de St.-Johnin-the-Forest aos vinte e três; prior de Kingsbridge com apenas vinte e oito anos. Enfatizava constantemente a juventude de Philip, sugerindo a existência de uma certa parcela de arrogância em quem aceitava tantas responsabilidades cedo. Depois descreveu St.-John-in-the-Forest, como era remota e distante, e falou da liberdade e independência de quem quer que fosse seu prior.

      - Quem poderia se surpreender se após cinco anos como virtualmente seu próprio senhor, com apenas a mais leve e distante das supervisões, aquele inexperiente rapaz de sangue quente tivesse um filho? - Parecia quase inevitável. Waleran mostrava-se enfurecedoramente digno de crédito. O prior teve ímpetos de estrangulá-lo.

      O bispo prosseguiu, dizendo que Philip levara Jonathan e Johnny Oito Pence consigo quando fora para Kingsbridge.

      - Os monges se espantaram, disse Waleran, quando seu novo prior chegou com um bebê e um monge que servia de ama-seca. - Aquilo era verdade. Por um momento Philip esqueceu a tensão, e teve que suprimir um sorriso nostálgico.

      - O prior brincara com Jonathan nos seus tempos de criança, ensinara-lhe lições e mais tarde fizera do rapaz seu assistente pessoal, - continuou Waleran, - exatamente como qualquer homem faria com o próprio filho, a não ser pelo fato de não se esperar que monges os tivessem.

      - Jonathan foi precoce, assim como Philip - disse o bispo. - Quando Cuthbert Cabeça Branca morreu, Philip fez de Jonathan o despenseiro, muito embora tivesse apenas vinte e um anos. Será que ninguém mais poderia desempenhar aquelas funções em um mosteiro com mais de cem monges, exceto um rapaz de vinte e um anos? Ou o prior estava dando preferência à sua própria carne e sangue? Quando Milius saiu para ser prior em Glastonbury, Philip fez do rapaz tesoureiro. Ele está com trinta e quatro anos. Será o mais sábio e devoto de todos os monges aqui? Ou é simplesmente o favorito de Philip?

      O prior olhou à sua volta. A corte se realizava no transepto sul da Catedral de Kingsbridge. O arcediago Peter estava sentado numa cadeira grande, entalhada como um trono. Todos os auxiliares do bispo se achavam presentes, assim como a maior parte dos monges de Kingsbridge. Haveria pouco trabalho no mosteiro enquanto seu prior estivesse em julgamento. Todos os religiosos importantes do condado compareceriam, inclusive alguns dos padres das paróquias mais humildes. Havia também representantes das dioceses mais próximas. Toda a comunidade eclesiástica do sul da Inglaterra aguardava o veredicto daquela corte. Ninguém estava interessado na virtude de Philip, ou na sua falta, é claro. Queriam acompanhar a disputa de poder entre o prior e o bispo.

      Quando Waleran se sentou, Philip fez seu juramento e começou a contar a história daquela manhã de inverno tanto tempo antes. Começou pelo transtorno causado por Peter de Wareham; queria que todos soubessem que Peter nutria rivalidades com ele. Depois chamou Francis para contar como o bebê fora encontrado.

      Jonathan se afastara de Kingsbridge, deixando um recado de que estava seguindo a pista de novas informações sobre seus pais. Jack desaparecera também, o que fizera com que o prior concluísse que a viagem tinha algo a ver com a mãe de Jack, a bruxa Ellen, e que o rapaz tivera medo de que, caso ficasse para explicar, ele, Philip, teria proibido a viagem. Deviam ter voltado naquela manhã, mas ainda não haviam chegado. Philip não achava que Ellen pudesse ter algo a acrescentar à história que Francis estava contando.

      Quando seu irmão terminou, o prior começou a falar.

      - Aquele bebê não era meu - disse, simplesmente. - Juro que não era meu, arriscando inclusive minha alma imortal. Nunca tive relações com uma mulher, e permaneço até o dia de hoje no estado de castidade recomendado a nós pelo apóstolo Paulo. Assim sendo, por que, conforme diz o lorde bispo, teria eu tratado o bebê como se fosse meu filho?

      Philip deu uma olhada na audiência. Decidira que sua única chance era contar a verdade e esperar que Deus falasse alto o bastante para vencer a surdez espiritual de Peter.

      - Quando eu tinha seis anos, meu pai e minha mãe morreram. Foram mortos por soldados do velho rei Henrique, em Gales. Meu irmão e eu fomos salvos pelo abade de um mosteiro próximo, e daquele dia em diante os monges nos criaram. Fui um órfão de mosteiro. Sei como é. Compreendo como o órfão anseia pelo contato com a mãe, muito embora ame os irmãos que cuidam dele. Eu sabia que Jonathan se sentiria anormal, diferente, ilegítimo. Eu próprio experimentei essa sensação de isolamento, de ser diferente de todos os outros, por terem um pai e uma mãe e eu não. Como ele, senti-me envergonhado por ser um fardo, onerando a caridade dos outros; cansei de me perguntar o que haveria de errado comigo, para ser privado daquilo que aos demais era garantido com naturalidade. Eu sabia que ele sonharia, de noite, com o colo quente e perfumado e a voz suave de uma mãe que não chegara a conhecer, alguém que o amara total e completamente.

      O rosto do arcediago Peter parecia uma pedra. Ele era o pior tipo de cristão, constatou Philip: seguia todas as negativas, adotava todas as proibições, insistia em todas as formas de recusa e exigia rigorosa punição para todas as ofensas; no entanto, ignorava toda a compaixão do cristianismo, negava sua misericórdia, desobedecia flagrantemente sua ética de amor e escarnecia abertamente das delicadas leis de Jesus. Eram assim os fariseus, pensou o prior; não admirava que o Senhor preferisse comer na companhia dos publicanos e pecadores.

      Ele prosseguiu, embora compreendesse, com o coração sangrando, que nada que pudesse dizer penetraria na armadura da orgulhosa integridade de Peter.

      - Ninguém poderia cuidar daquele garoto como eu, a menos que fossem seus próprios pais; e estes nunca conseguimos encontrar. Que mais clara indicação da vontade de Deus... - ele se interrompeu. Jonathan acabara de entrar na igreja, com Jack; e, entre eles, estava Ellen, a feiticeira.

      Ela envelhecera; seu cabelo era branco como a neve, e o rosto estava encarquilhado. Mas andava como uma rainha, a cabeça erguida, os estranhos olhos dourados brilhando desafiadoramente. Philip ficou surpreso demais para protestar.

      A corte guardou silêncio quando ela entrou no transepto e parou, defrontando-se com o arcediago Peter. Quando falou, sua voz soou como uma trombeta, e subiu, ecoando no clerestório da igreja construída pelo seu filho.

      - Juro, por tudo quanto é mais sagrado, que Jonathan é filho de Tom Construtor, meu falecido marido, e de sua primeira mulher.

      Ouviu-se um clamor de espanto vindo do clero. Por algum tempo ninguém pôde ser ouvido. Philip ficou totalmente desconcertado. De queixo caído, encarou Ellen. Tom Construtor? Jonathan era filho de Tom? Quando olhou para Jonathan soube imediatamente que era verdade: eles eram iguais, não somente na altura, mas no rosto. Se Jonathan usasse barba teria sido óbvio.

      Sua primeira reação foi um sentimento de perda. Até então ele fora o que Jonathan tivera de mais parecido com um pai. Mas Tom era o verdadeiro pai de Jonathan, e, embora estivesse morto, a descoberta mudava tudo. O prior não podia mais se ver, secretamente, como um pai; Jonathan não mais se sentiria como seu filho. Era agora o filho de Tom. Philip o perdera.

      O prior deixou-se sentar pesadamente. Quando a multidão silenciou, Ellen contou a história de Jack ter ouvido um choro de criança e descoberto um bebê recém-nascido. Philip ouviu-a, em transe, contando como se escondera com Tom nos arbustos, observando, enquanto os monges voltavam de sua manhã de trabalho, junto com o prior, para encontrar Francis os esperando com um bebê recém-nascido, e Johnny Oito Pence tentando alimentá-lo com um trapo embebido num balde de leite de cabra.

      Lembrava-se claramente de quão interessado o jovem Tom se mostrara, um ou dois dias mais tarde, quando haviam se encontrado por acaso e ouvira sobre o bebê abandonado.

      O religioso presumira que seu interesse era o de qualquer homem compassivo numa história comovente, mas na verdade Tom estivera querendo saber o destino do próprio filho.

      Depois rememorou quão amigo de Jonathan Tom tinha sido nos últimos anos, quando o bebê se transformara numa criancinha de andar vacilante e mais tarde num garoto travesso. Ninguém reparara naquilo; todo o mosteiro tratava Jonathan como uma espécie de brinquedo favorito naquela época e Tom ficava quase todo o tempo no adro, de modo que o comportamento dele passava despercebido; mas agora, em retrospecto, Philip podia ver que a atenção que Tom devotava a Jonathan era especial.

      Quando Ellen se sentou, Philip percebeu que se comprovara a sua inocência. As revelações que fizera foram tão devastadoras que ele quase se esquecera de que estava em julgamento. A história que ela contara, de nascimento e morte, desespero e esperança, segredos antigos e amor duradouro, fizera a questão da castidade de Philip parecer trivial. Só que não era, claro; o futuro do priorado dependia disso, e Ellen respondera à pergunta tão dramaticamente que parecia impossível que o julgamento prosseguisse. Nem mesmo Peter de Wareham pode me considerar culpado depois desse testemunho, pensou Philip. Waleran perdera de novo.

      Contudo, o bispo não estava disposto a se considerar derrotado tão cedo. Apontou um dedo acusador para Ellen.

      - Você diz que Tom lhe contou que o bebê levado para o pequeno mosteiro era o filho dele.

      - Sim - respondeu Ellen cautelosamente.

      - Mas as outras pessoas que poderiam ser capazes de confirmar isto - as crianças Alfred e Martha - não acompanharam vocês ao mosteiro.

      - Não.

      - E Tom está morto. Então só temos a sua palavra, afirmando que Tom lhe contou essa história. É um relato que não pode ser verificado.

      - Quanta verificação você quer? - retrucou ela energicamente. - Jack viu o bebê abandonado. Francis o pegou. Jack e eu encontramos Tom, Alfred e Martha. Francis levou o bebê para o priorado. Tom e eu espiamos o mosteiro. Quantas testemunhas o satisfariam?

      - Não acredito em você - disse o bispo.

      - Você não acredita em mim? - exclamou Ellen, e subitamente Philip pôde ver que ela estava furiosa, profunda e apaixonadamente furiosa. - Você não acredita em mim? Você, Waleran Bigod, que sei ser um perjuro?

      O que estava acontecendo agora? Philip teve a premonição de um cataclismo. O bispo empalideceu. Há algo aqui, pensou Philip; algo de que Waleran tem medo. Sentiu frio na boca do estômago. De repente, o aspecto de seu adversário era completamente vulnerável.

      - Como você sabe que o bispo é um perjuro? - perguntou Philip a Ellen.

      - Quarenta e sete anos atrás, neste priorado onde nos encontramos, havia um prisioneiro chamado Jack Shareburg - disse Ellen.

      Waleran interrompeu-a.

      - Esta corte não está interessada em eventos que tiveram lugar há tanto tempo.

      - Está, sim - retrucou Philip. - A acusação contra mim se refere a um suposto ato de fornicação ocorrido há trinta e cinco anos, milorde bispo. Você exigiu que eu provasse minha inocência. A corte agora não esperará menos da sua parte. - Ele se virou para Ellen. - Continue.

      - Ninguém sabia por que Jack estava na prisão, muito menos ele próprio; mas chegou o tempo em que foi libertado, quando lhe deram um cálice com pedras preciosas, talvez como recompensa pelos anos em que estivera injustamente confinado. Ele não queria esse cálice, claro: não tinha o que fazer com ele, e era precioso demais para ser vendido no mercado. Deixou-o para trás, na velha catedral aqui de Kingsbridge. Logo depois foi preso - por Waleran Bigod, que na época era um simples padre de roça, humilde mas ambicioso -, e o cálice misteriosamente reapareceu em sua bagagem. Jack Shareburg, falsamente acusado de furtar o cálice, foi condenado com base no juramento de três pessoas: Waleran Bigod, Percy Hamleigh e o prior James, de Kingsbridge. E enforcaram-no.

      Houve um momento de silêncio atônito.

      - Como você soube de tudo isto? - perguntou Philip.

      - Eu era a única amiga de Jack Shareburg, que foi o pai de meu filho, Jack, o mestre construtor desta catedral.

      Houve um rebuliço. Waleran e Peter tentaram falar ao mesmo tempo, mas nenhum dos dois conseguiu se fazer ouvir com o vozerio atônito dos clérigos reunidos. Eles tinham vindo assistir a uma revelação, uma explicação definitiva, pensou Philip, mas não tinham esperado aquilo.

      Peter acabou conseguindo se fazer ouvir:

      - Por que motivo três cidadãos obedientes à lei iriam conspirar para acusar falsamente um estranho inocente? - perguntou, cético.

      - Por lucro - disse Ellen. - Waleran Bigod foi nomeado arcediago. Percy recebeu a propriedade de Hamleigh e diversas outras aldeias, e tornou-se um senhor de terras. Não sei qual foi a recompensa do prior James.

      - Posso responder a isso - disse uma nova voz. Philip virou-se, espantado: fora Remigius quem falara. Ele já passara dos setenta anos. Estava com a cabeça branca e tendia a divagar quando falava; mas agora, quando se levantou com a ajuda de uma bengala, seus olhos estavam brilhantes e sua expressão, alerta. Era raro ouvi-lo falar em público; desde seu declínio e retorno ao mosteiro vivia uma vida quieta e humilde. Philip perguntou-se o que estaria por vir. Que lado Remigius iria tomar? Aproveitaria a última oportunidade para apunhalar nas costas seu velho inimigo Philip?

      - Posso dizer qual foi a recompensa que o prior James recebeu - disse Remigius. - O priorado ganhou as aldeias de Northwold, Southwold e Hundredacre, mais a floresta de Oldean.

      Philip ficou estupefato. Seria possível que o velho prior tivesse prestado falso testemunho, sob juramento, por causa de algumas aldeias?

      - O prior James nunca foi um bom administrador - continuou Remigius. - O priorado estava em dificuldades, e ele achava que a renda extra nos ajudaria. - Remigius fez uma pausa e depois disse, incisivamente: - Fez pouco bem e muito mal. A renda foi útil por algum tempo, mas o prior James jamais recuperou seu auto-respeito.

      Ouvindo Remigius, Philip recordou-se do ar derrotado e abatido do velho prior, e finalmente o compreendeu.

      - James na verdade não foi um perjuro - continuou Remigius -, pois só jurou que o cálice pertencia ao priorado; contudo, sabia que Jack Shareburg era inocente e permaneceu em silêncio. Arrependeu-se disso pelo resto da vida.

      Sem dúvida, pensou Philip. Tratava-se de um pecado indesculpável num monge. O testemunho de Remigius confirmou a história de Ellen - e condenou Waleran.

      - Alguns poucos dos mais velhos aqui ainda se lembrarão hoje de como o priorado era há quarenta anos: desmantelado, sem dinheiro, praticamente em ruínas, desmoralizado. A razão era o peso da culpa que o prior sentia. Ao morrer, finalmente confessou-me seu pecado. Eu queria... - Remigius interrompeu-se.

      A igreja ficou em silêncio, esperando. O velho suspirou e recomeçou:

      - Eu queria assumir sua posição e consertar o erro. Mas Deus escolheu outro homem para essa tarefa. - Fez outra pausa, e seu rosto enrugado contorceu-se penosamente quando ele lutou para terminar. - Eu deveria dizer: Deus escolheu um homem melhor. - com isto, sentou-se abruptamente. Philip ficou chocado, bestificado e agradecido. Dois velhos inimigos, Ellen e Remigius, o haviam salvo. A revelação daqueles antigos segredos deu-lhe a impressão de ter vivido com um olho fechado. O bispo Waleran estava lívido de raiva. Devia ter achado que estava seguro após tantos anos. Inclinou-se na direção de Peter, falando ao ouvido do arcediago, enquanto o burburinho aumentava na audiência. Peter levantou-se.

      - Silêncio! - gritou. A igreja ficou quieta. - O julgamento está encerrado!

      - Espere um minuto! - era Jack. - Isto não basta! - exclamou apaixonadamente. - Quero saber por quê!

      Ignorando Jack, Peter encaminhou-se para a porta que dava no claustro, seguido por Waleran. O mestre construtor foi atrás deles.

      - Por que fez isso? - gritou para Waleran. - Jurou em falso, um homem morreu; vai sair daqui sem mais uma palavra?

      O bispo continuou olhando para a frente, o rosto lívido, os lábios apertados, sua expressão, uma máscara de fúria contida. Quando ia passando pela porta, Jack berrou:

      - Responda-me, seu covarde, mentiroso, corrupto! Por que matou meu pai?

      Waleran saiu da igreja e a porta bateu às suas costas.

     

      A carta do rei Henrique chegou quando os monges estavam em cabido.

      Jack construíra uma nova casa para acomodar cento e cinquenta monges - o maior número em um único mosteiro, em toda a Inglaterra. O prédio redondo tinha um teto abobadado de pedra e fileiras de degraus para os monges se sentarem. As autoridades monásticas se sentavam em bancos de pedra ao redor das paredes, um pouco acima do nível do resto; quanto a Philip e Jonathan, tinham tronos de pedra lavrada de encontro à parede que ficava defronte da porta.

      Um jovem monge estava lendo o sétimo capítulo da Regra de São Bento.

      - "O sexto estágio da humildade é atingido quando o monge se contenta com tudo quanto é perverso e desprezível"... - Philip deu-se conta de que não sabia o nome do monge que estava lendo. Seria por estar ficando velho ou porque o mosteiro crescera tanto? - "O sétimo estágio da humildade é atingido quando um homem não apenas confessa com a sua língua que é inferior aos outros, como também acredita nisso no fundo do coração."

      O prior sabia que não tinha atingido esse grau de humildade. Realizara muitas coisas nos seus sessenta e dois anos, graças à coragem, determinação e uso do seu cérebro; e precisava constantemente lembrar a si próprio que o verdadeiro motivo do seu sucesso era que desfrutara da ajuda de Deus; sem isso, todos os seus esforços teriam dado em nada.

      Ao seu lado, Jonathan se mexia, inquieto. Ele tinha ainda mais problemas com a virtude da humildade do que o prior. A arrogância era o pecado dos bons líderes. Jonathan estava pronto para assumir a chefia do mosteiro, e sentia-se impaciente. Estivera conversando com Aliena e estava louco para experimentar suas técnicas agrícolas, como arar com cavalos e plantar ervilhas e aveia para descansar a terra. Eu era idêntico na questão de criação de ovelhas para lã, trinta e cinco anos atrás, pensou Philip.

      Sabia que devia renunciar e deixar que Jonathan assumisse as funções de prior. Deveria dedicar seus últimos anos à prece e à meditação. Era um caminho que frequentemente receitara para os outros. Mas agora que estava velho o bastante para se aposentar, a perspectiva o amedrontava. Seu corpo ainda estava saudável, e o cérebro, tão ágil quanto sempre. Uma vida de prece e meditação o levaria à loucura.

      O subprior, contudo, não esperaria para sempre. Deus lhe dera capacidade para dirigir um mosteiro de grande porte, e não constava dos planos dele desperdiçar seu talento. Visitara numerosas abadias no decurso daqueles anos, e deixara boa impressão em todas. Um daqueles dias, quando um abade falecesse, os monges lhe pediriam que se candidatasse à eleição, e seria difícil para Philip recusar sua permissão.

      O jovem monge cujo nome Philip não fora capaz de lembrar estava terminando o capítulo quando se ouviu alguém bater à porta; o porteiro entrou. O irmão Steven, o encarregado da disciplina, fez uma careta para ele: não devia perturbar os monges reunidos para o cabido. Como todos os encarregados da disciplina, Steven acreditava sobretudo na obediência às regras.

      - Mensagem do rei! - disse o porteiro, num sussurro bem alto.

      Philip dirigiu-se a Jonathan.

      - Faça o favor de ver o que é, sim? - O mensageiro insistia em entregar a carta a uma autoridade graduada do mosteiro. Jonathan saiu. Os monges ficaram todos cochichando uns com os outros.

      - Continuemos com o necrológio - disse Philip com firmeza.

      Quando as orações pelos mortos começaram, ele se perguntou o que Henrique teria a dizer ao priorado. Não devia ser uma boa notícia. O rei andava metido em desavenças com a Igreja há seis longos anos. A briga começara por causa da jurisdição das cortes eclesiásticas, mas a obstinação do rei e o zelo do arcebispo de Canterbury, Tomás Becket, tinham impedido que se chegasse a um compromisso, e assim a disputa se transformara numa crise. Becket fora forçado a exilar-se.

      Lamentavelmente, a Igreja inglesa não era unânime no apoio a ele. Bispos como Waleran Bigod tomaram o lado de Henrique a fim de conquistar o favor real. O papa, no entanto, estava pressionando o rei a fazer as pazes com Becket. Talvez a pior consequência do conflito fosse o fato de que a necessidade de apoio que Henrique tinha dentro da Igreja inglesa dava a bispos ambiciosos de poder, como Waleran, maior influência na corte. Esse era o motivo pelo qual a chegada de uma carta do rei era vista por Philip como mais agourenta do que usualmente. Jonathan voltou e passou-lhe um rolo de pergaminho lacrado com cera, onde se via a marca de um enorme selo real. Todos os monges estavam olhando. Philip concluiu que seria demais pedir-lhes que se concentrassem nas orações por gente morta, estando ele com uma carta daquelas na mão.

      - Está bem - disse -, continuaremos as orações depois.

      O prior quebrou o lacre e abriu a carta. Deu uma olhada nos cumprimentos iniciais e depois entregou-a a Jonathan, cujos olhos jovens eram melhores.

      - Leia para nós, por favor.

      Após os cumprimentos de costume, o rei escreveu:

      - "Como o novo bispo de Lincoln, nomeei Waleran Bigod, atualmente bispo de Kingsbridge... " - a voz de Jonathan foi abafada pelos comentários. Philip abanou a cabeça, desgostoso. Waleran perdera toda a credibilidade local desde as revelações no julgamento do prior; não havia jeito de poder continuar como bispo. Assim, persuadira o rei a nomeá-lo bispo de Lincoln - um dos mais ricos bispados do mundo. Era a terceira diocese em importância no reino, após Canterbury e York. De lá era um passo curto para o arcebispado. Henrique poderia inclusive estar preparando Waleran para substituir Tomás Becket. Pensou em Bigod como arcebispo de Canterbury, líder da Igreja inglesa, e a idéia foi tão aterrorizadora que deixou Philip nauseado de medo.

      - "E recomendei ao deão e ao cabido de Lincoln que o elejam" - prosseguiu Jonathan, quando os monges se acalmaram. Bem, aí estava algo mais fácil de ser dito do que feito, pensou o prior. Uma recomendação real era quase uma ordem, mas não chegava a sê-lo. Se o cabido de Lincoln recusasse Waleran ou tivesse um candidato próprio, o rei teria que enfrentar problemas.

      Provavelmente conseguiria atingir seu objetivo, ao cabo de tudo, mas não era uma coisa que podia se considerar como inevitável.

      - "Ordeno aos integrantes do cabido de Kingsbridge que realizem uma eleição para escolher o novo bispo de Kingsbridge, e recomendo que seja eleito o meu servidor Peter de Wareham, arcediago de Canterbury."

      Um grito coletivo de protesto se fez ouvir na assembléia dos monges. Philip gelou de pavor. O arrogante, ressentido e farisaico arcediago Peter era a escolha do rei para ser o novo bispo de Kingsbridge!

      Era exatamente do mesmo tipo que Waleran. Genuinamente piedosos e tementes a Deus, ambos não tinham, porém, noção da própria falibilidade, de modo que viam seus próprios desejos como a vontade divina e perseguiam seus objetivos com a mais completa desconsideração para com as consequências. Com Peter como bispo, Jonathan passaria o resto da vida como prior, lutando por justiça e decência num condado governado com punho de ferro por um homem sem coração. E se Waleran se tornasse arcebispo, não haveria perspectiva de alívio.

      Philip anteviu uma longa era de obscurantismo à frente, como o pior período da guerra civil, quando condes do tipo de William faziam o que bem entendiam, enquanto padres arrogantes negligenciavam seu povo, e com o priorado mais uma vez se reduzindo a uma sombra empobrecida e fragilizada do que fora. A idéia o enfureceu.

      Não era ele o único furioso. Steven, o encarregado da disciplina, levantou-se com o rosto vermelho.

      - Não será assim! - gritou, a despeito da regra de Philip de que no cabido todos deviam falar baixo e calmamente.

      Os monges vivaram, entusiasmados, mas Jonathan demonstrou sua sabedoria, fazendo a pergunta crucial:

      - O que podemos fazer?

      - Devemos recusar o pedido do rei! - respondeu Bernard Cozinheiro, gordo como sempre.

      Diversos monges exprimiram sua concordância.

      - Escreveremos ao rei dizendo que elegeremos quem quisermos! - disse Steven. Após um momento, acrescentou encabuladamente: - Com a orientação de Deus, claro.

      - Não concordo que nós nos recusemos assim, contrariando frontalmente o rei - redarguiu Jonathan. - Quanto mais depressa o desafiarmos, mais depressa ele despejará sua fúria sobre nossa cabeça.

      - Jonathan tem razão - concordou Philip. - Um homem que perde uma batalha com o seu rei pode ser perdoado, mas o que ganha está desgraçado.

      - Mas assim você estará simplesmente cedendo! - explodiu Steven.

      O prior estava tão preocupado e temeroso como os outros, mas precisava aparentar calma.

      - Steven, contenha-se, por favor - pediu. - Temos que lutar contra essa horrível designação, é claro. Mas o faremos com cuidado e inteligência, evitando sempre um confronto aberto.

      - O que vamos fazer, então? - perguntou o encarregado da disciplina.

      - Não estou certo - respondeu Philip. Ele estivera desanimado a princípio, mas agora começava a se sentir agressivo. Travara aquela batalha vezes sem conta, em toda a sua vida. Lutara ali mesmo no priorado, quando derrotara Remigius e se tornara prior; lutara no condado, contra William e Waleran Bigod; e agora ia ter que lutar nacionalmente. Precisaria defrontar-se com o rei.

      - Acho que terei que ir à França - disse. - Ver o arcebispo Tomás Becket.

      Em todas as outras crises, Philip sempre conseguira imaginar um plano. Sempre que ele, seu priorado ou sua cidade foram ameaçados pelas forças da ilegalidade e selvageria, pensara em alguma forma de defesa ou contra-ataque. Nem sempre tivera certeza do sucesso, mas nunca estivera perdido, sem saber o que fazer - até então.

     

      Ainda se sentia aturdido ao chegar à cidade de Sens, sudeste de Paris, na França.

      A Catedral de Sens era o edifício mais largo que ele jamais vira. A nave não tinha menos que cinquenta pés de largura. Comparada à Catedral de Kingsbridge, Sens transmitia uma impressão de espaço, mais que de luz.

      Viajando pela França, pela primeira vez em sua vida percebeu que havia mais variedades de igreja no mundo do que imaginara antes, e compreendeu o efeito revolucionário que a viagem causara em Jack. Fez questão de visitar a igreja da Abadia de Saint-Denis, quando passou por Paris, e viu onde Jack se inspirara para algumas de suas idéias. Viu também duas igrejas com arcobotantes alados como os de Kingsbridge: obviamente outros mestres pedreiros tinham se defrontado com o mesmo problema que Jack, e haviam chegado à mesma solução.

      O prior foi apresentar seus respeitos ao arcebispo de Sens, William Whitehands, um jovem e brilhante clérigo que era sobrinho do falecido rei Estêvão. O arcebispo William convidou Philip para jantar. Philip sentiu-se lisonjeado, mas declinou o convite: percorrera um longo trajeto para ver Tomás Becket, e agora que estava tão perto sentia-se impaciente. Após assistir à missa na catedral, seguiu o rio Yonne na direção norte, saindo da cidade.

      Viajava modestamente, para o prior de um dos mosteiros mais ricos da Inglaterra: tinha consigo apenas dois homens de armas para sua proteção, um jovem monge chamado Michael de Bristol como assistente, e um carregamento de livros sagrados, copiados e lindamente ilustrados em Kingsbridge, para presentear os abades e bispos que visitasse durante a viagem. Os livros dispendiosos constituíam presentes impressionantes e contrastavam vivamente com a modéstia da escolta de Philip. O que era proposital: ele queria que respeitassem o priorado, não o prior.

      Do lado de fora do portão norte de Sens, numa ensolarada campina perto do rio, ele encontrou a venerável Abadia de Sainte-Colombe, onde o arcebispo Tomás se encontrava há três anos. Um dos seus sacerdotes cumprimentou Philip calorosamente, chamou servos para tomar conta dos seus cavalos e da bagagem, e conduziu-o até a casa de hóspedes, onde o arcebispo se encontrava. Ocorreu a Philip que os exilados deviam ficar contentes por receberem visitantes de sua terra, não só por razões sentimentais, mas por ser um sinal de apoio.

      Serviram pão e vinho a Philip e seu assistente e os levaram para dentro da casa. Os homens de Tomás eram todos clérigos, em sua maioria jovens - e, na opinião de Philip, inteligentes. Não se passou muito tempo e Michael estava discutindo com um deles a respeito da doutrina da transubstanciação. O prior tomou um gole de vinho e escutou sem tomar parte.

      - Qual é o seu ponto de vista, padre Philip? - perguntou-lhe enfim um deles. - Ainda não disse nada.

      Philip sorriu.

      - Questões teológicas complicadas são os menos preocupantes dos problemas, para mim.

      - Por quê?

      - Porque serão resolvidas na vida futura; até lá podem ficar seguramente guardadas numa prateleira.

      - Muito bem dito! - disse uma nova voz, e Philip levantou a cabeça para ver o arcebispo Tomás de Canterbury.

      Tomou imediatamente consciência de encontrar-se na presença de um homem notável. Tomás era alto, magro e excepcionalmente bonito, de testa larga, olhos brilhantes, pele clara e cabelo escuro. Tinha cerca de dez anos menos que Philip, devendo estar em torno dos cinquenta ou cinquenta e um. A despeito dos contratempos, tinha a expressão animada, cheia de vida. Era, e o prior viu prontamente, um homem muito atraente; isso explicava em parte sua notável ascensão de um começo humilde.

      Philip ajoelhou-se e beijou-lhe a mão.

      - Sinto-me tão feliz por conhecê-lo! - exclamou Tomás. - Sempre desejei visitar Kingsbridge. Ouvi falar muito do seu priorado e da maravilhosa catedral nova.

      Philip ficou encantado e lisonjeado.

      - Vim vê-lo porque tudo o que conseguimos foi colocado em perigo pelo rei.

      - Quero saber de tudo agora mesmo - disse Tomás. - Venha para o meu quarto. - Ele se virou e saiu.

      Philip o seguiu, sentindo-se ao mesmo tempo satisfeito e apreensivo.

      Tomás o levou para um quarto menor. Nele havia uma luxuosa cama de madeira e couro coberta com finos lençóis de linho e uma colcha bordada, mas Philip viu também um colchãozinho fino enrolado a um canto e recordou histórias sobre Tomás jamais usar as mobílias luxuosas providas pelos seus anfitriões. Lembrando-se de sua cama confortável em Kingsbridge, Philip sentiu uma pontada de culpa ao pensar que ressonava confortavelmente enquanto o primaz da Inglaterra dormia no chão.

      - Por falar em catedrais - disse o arcebispo -, o que achou da de Sens?

      - Maravilhosa - disse Philip. - Quem foi o mestre construtor?

      - William de Sens. Tenho esperança de levá-lo para Canterbury um dia. Sente-se. Diga-me o que está acontecendo em Kingsbridge.

      Philip falou-lhe sobre o bispo Waleran e o arcediago Peter. Tomás pareceu profundamente interessado em tudo o que o prior dizia, e fez diversas perguntas inteligentes.

      Assim como encanto, ele tinha cérebro. Precisara de ambos, para se alçar a uma posição de onde poderia frustrar a vontade de um dos mais fortes reis que a Inglaterra jamais tivera. Por baixo dos seus mantos de arcebispo, segundo o que se dizia, Tomás usava um cilício; e, por baixo daquele cativante exterior, Philip obrigou-se a lembrar, havia uma vontade de ferro.

      Quando o prior terminou sua história, a expressão de Tomás era grave.

      - Não se pode deixar que isso aconteça - disse.

      - Sem dúvida - afirmou Philip. O tom firme do arcebispo era encorajador. - Pode impedir que aconteça?

      - Só se eu for reintegrado em Canterbury.

      Não era a resposta pela qual Philip esperara.

      - Mas não pode escrever ao papa agora?

      - Escreverei - disse Tomás. - Hoje. O papa não reconhecerá Peter como o bispo de Kingsbridge, prometo-lhe. Mas não podemos impedi-lo de se instalar no palácio do bispo. E não podemos designar outro homem.

      Philip ficou chocado e desmoralizado pela decisão da negativa de Tomás. Durante todo o trajeto até ali nutrira a esperança de que ele faria o que não conseguira fazer, e surgiria com um modo de frustrar o esquema de Waleran. Mas o brilhante Tomás também ficou perplexo. Tudo o que podia oferecer era a esperança de um dia ser reintegrado em Canterbury. Então, é claro, teria poder para vetar designações episcopais.

      - Há alguma esperança de que sua volta ocorra em breve? - perguntou Philip, desalentado.

      - Alguma esperança, se você for uma pessoa otimista - replicou Tomás. - O papa idealizou um tratado de paz que insiste em que eu e Henrique aceitemos. Os termos são aceitáveis para mim: o tratado me proporciona aquilo por que estive lutando. Henrique diz que é aceitável para ele. Insisti que demonstrasse sua sinceridade dando-me o beijo da paz. Ele se recusou. - Enquanto falava, sua voz sofreu mudanças.

      As variações naturais da conversa desapareceram, e seu discurso se transformou numa salmodia insistente. Toda a vivacidade desapareceu do seu rosto, e sua expressão passou a ser a de um padre fazendo um sermão sobre abnegação a uma comunidade desatenta. Philip viu em sua expressão a teimosia e o orgulho que tinham sustentado sua luta por todos aqueles anos.

      - A recusa do beijo é sinal de que ele planeja me atrair de volta à Inglaterra e depois renegar os termos do acordo.

      O prior assentiu. O beijo da paz, que fazia parte do ritual da missa, erao símbolo da confiança, e nenhum contrato, desde um casamento até uma trégua, era completo sem ele.

      - O que posso fazer? - perguntou, tanto para si próprio quanto para Tomás.

      - Volte para a Inglaterra e faça uma campanha por mim. Escreva cartas para seus amigos priores e abades. Mande uma delegação de Kingsbridge ver com o papa. Peticione ao rei. Faça sermões em sua famosa catedral, dizendo ao povo do condado que seu mais importante clérigo foi desdenhado por Henrique.

      Philip assentiu. Porém, não ia fazer nada daquilo. Tomás estava lhe dizendo que se alinhasse com a oposição ao rei. O que poderia fazer algum bem ao moral de Tomás, mas de nada serviria para Kingsbridge.

      Teve uma idéia melhor. Se Henrique e Tomás estavam assim tão perto de uma solução, não faltava muito para uni-los. Talvez, pensou esperançosamente, houvesse algo que pudesse fazer. A idéia excitou seu otimismo. Era uma tentativa arriscada, mas não tinha nada a perder.

      Afinal, discutiam apenas por um beijo.

     

      Philip ficou chocado ao ver como o irmão envelhecera.

      O cabelo de Francis estava grisalho, havia bolsas escuras sob seus olhos, e a pele do rosto parecia ressecada. No entanto, ele estava com sessenta anos de idade, de modo que aquilo talvez não fosse espantoso. E seus olhos brilhavam animadamente.

      O prior se deu conta do que o estava aborrecendo: sua própria idade. Como sempre, ver seu irmão o deixava consciente de quanto ele próprio devia ter envelhecido.

      Não se olhava num espelho há anos. Perguntou-se se teria bolsas sob os olhos. Tocou no próprio rosto. Era difícil dizer.

      - Que tal é trabalhar com Henrique? - perguntou Philip, curioso para saber como os reis eram na vida privada.

      - Melhor que Matilde - respondeu Francis. - Ela era mais inteligente, mas muito tortuosa. Henrique é mais aberto. Você sempre sabe o que ele está pensando.

      Os dois irmãos estavam sentados no claustro de um mosteiro em Bayeux, onde Philip se encontrava hospedado. A corte do rei Henrique estava alojada nas proximidades.

      Francis ainda trabalhava para ele, como fizera nos últimos vinte anos. Agora chefiava a chancelaria, a repartição onde eram redigidas todas as cartas e decretos régios. Era um cargo importante e poderoso.

      - Aberto? Henrique? - perguntou Philip. - O arcebispo Tomás não pensa assim.

      - Outro importante erro de julgamento da parte de Tomás - disse Francis sarcasticamente.

      Philip achou que o irmão não deveria desdenhar o arcebispo.

      - Tomás é um grande homem - disse.

      - Tomás quer ser o rei - retorquiu Francis.

      - E parece que Henrique quer ser o arcebispo - retrucou Philip.

      Os dois se encararam muito sérios. Se já estavam tendo uma briga, pensou Philip, não era surpresa que Henrique e Tomás estivessem lutando tão ferozmente.

      - Bem - disse, sorrindo -, não vamos brigar por causa disso, de qualquer modo.

      O rosto de Francis suavizou-se.

      - Não, claro que não. Lembre-se, essa disputa tem sido a praga da minha vida há seis anos. Não posso me conservar tão distanciado disso tudo quanto você.

      - Mas por que Henrique não quer aceitar o plano de paz do papa?

      - Ele aceitará - afirmou Francis. - Estamos a uma distância mínima da reconciliação. Mas Tomás quer mais. Está insistindo no beijo da paz.

      - Mas se o rei fosse sincero, certamente não se incomodaria em dar o beijo da paz.

      Francis ergueu o tom de voz.

      - Não está no plano! - exclamou, exasperado.

      - Mas por que não dá-lo? - quis saber Philip. Seu irmão suspirou.

      - Ele o faria, de bom grado. Mas fez um juramento em público, afirmando que jamais daria um beijo de paz no arcebispo.

      - Muitos reis já quebraram sua palavra - lembrou o prior.

      - Reis fracos. Henrique não voltará atrás num juramento feito em público. É o tipo de coisa que o torna diferente do lamentável rei Estêvão.

      - Então a Igreja provavelmente não deveria tentar persuadi-lo a agir de outra forma - concedeu Philip, relutante.

      - Se é assim, por que Tomás insiste tanto com essa história do beijo? - redarguiu Francis, exasperado.

      - Porque não confia em Henrique. O que poderia impedir o rei de descumprir o trato? O que Tomás poderia fazer a esse respeito? Exilar-se mais uma vez? Seus partidários têm sido leais, mas estão cansados. O arcebispo não vai poder passar por tudo isso de novo. Assim, para que ceda, vai ser preciso que tenha sólidas garantias.

      Francis balançou a cabeça tristemente.

      - Agora, tornou-se uma questão de orgulho - disse. - Sei que Henrique não tem intenção de trair Francis. Mas não será compelido. Ele detesta se sentir coagido.

      - O mesmo ocorre com Tomás, creio. Pediu o beijo, como um símbolo, e não quer desistir. - Sacudiu a cabeça, exausto. Pensara que o irmão talvez pudesse sugerir um modo de reunir os dois homens, mas a tarefa parecia impossível.

      - A ironia de tudo é que Henrique teria toda a satisfação em beijar Tomás depois que estivessem reconciliados - disse Francis. - Ele só não aceita como precondição.

      - Ele disse isso? - quis saber Philip.

      - Sim.

      - Mas isso muda tudo! - exclamou o prior, excitado. - O que foi exatamente que ele disse?

      - Ele disse: "Beijarei sua boca, beijarei seus pés, o ouvirei rezar a missa...  depois que voltar". Eu próprio ouvi.

      - Vou contar para Tomás.

      - Você acha que ele poderia aceitar assim? - perguntou Francis ansiosamente.

      - Não sei. - O prior mal se atrevia a ter esperanças. - Parece uma concessão muito pequena. Ele recebe o beijo, só que um pouco depois da ocasião em que queria.

      - E, para Henrique, também se trata de uma concessão mínima - disse Francis, cada vez mais excitado. - Ele dá o beijo, mas voluntariamente, e não coagido. Por Deus, pode ser que dê certo!

      - Eles poderiam ter uma reconciliação em Canterbury. O acordo seria então anunciado antecipadamente, de modo que nenhum dos dois pudesse fazer mudanças no último minuto. Tomás rezaria a missa e Henrique lhe daria o beijo, ali na catedral. - E depois, pensou ele, Tomás poderia bloquear os planos malignos de Waleran.

      - Vou propor isso ao rei - disse Francis.

      - E eu a Tomás.

      O sino do mosteiro soou. Os dois irmãos se levantaram.

      - Seja persuasivo - disse Philip. - Se o plano der certo, Tomás poderá retornar a Canterbury, e se ele voltar, Waleran Bigod estará liquidado.

     

      Eles se encontraram numa bela campina na margem de um rio na fronteira entre a Normandia e o Reino de França, perto das cidades de Fréteval e Vievy-le-Raye. O rei Henrique já estava ali, com o seu séquito, quando Tomás chegou com o arcebispo William de Sens. Philip, no grupo de Tomás, localizou seu irmão, Francis, com o rei, no lado mais distante do campo.

      Henrique e Tomás tinham chegado a um acordo - em teoria.

      Ambos aceitaram o compromisso, pelo qual o beijo da paz seria dado numa missa de reconciliação após Becket ter retornado à Inglaterra. No entanto, o trato não estaria firmado enquanto os dois não se encontrassem.

      Tomás adiantou-se em seu cavalo, deixando para trás a escolta que o acompanhara, e Henrique fez o mesmo, enquanto todos assistiam à cena com a respiração contida.

      Eles conversaram por horas a fio.

      Ninguém pôde ouvir o que estava sendo dito, mas todos eram capazes de adivinhar. Estavam falando sobre as ofensas de Henrique contra a Igreja, o modo como os bispos ingleses tinham desobedecido Tomás, as controversas Constituições de Clarendon, o exílio do arcebispo, o papel do papa... A princípio Philip teve medo de que fossem discutir amargamente e se separassem como inimigos ainda piores. Já haviam estado perto de um acordo antes, encontrando-se daquele jeito, mas acontecera algo, um ponto qualquer ofendera o orgulho do rei ou do arcebispo, e assim tinham trocado palavras ásperas e se afastado furiosos, cada um culpando a intransigência do outro.

      Mas, agora, quanto mais falavam, mais otimista o prior ficava. Se um dos dois fosse ter um acesso de raiva e ir embora, certamente já teria ocorrido.

      A tarde quente de verão começou a esfriar, e as sombras das árvores se alongaram através do rio. A tensão estava insuportável.

      Então, finalmente aconteceu alguma coisa. Tomás se moveu. Estaria indo embora? Não. Desmontava. O que significava aquilo? Philip observava, sem respirar. Becket saltou de seu cavalo e, aproximando-se de Henrique, ajoelhou-se a seus pés.

      O rei desmontou e abraçou Tomás. Os séquitos de ambos os lados deram vivas e atiraram os chapéus para o ar.

      Philip sentiu os olhos marejados de lágrimas. O conflito fora resolvido - através da razão e da boa vontade. Era assim que as coisas deviam ser.

      Talvez fosse um presságio para o futuro.

     

      Era Natal, e o rei estava furioso.

      William Hamleigh sentia-se assustado. Conhecera em toda a sua vida apenas uma pessoa com o temperamento como o do rei Henrique, e fora sua mãe. Ele era quase tão aterrorizante quanto ela. De qualquer modo era um homem que intimidava, com seus ombros largos, tórax imenso e cabeça grande; quando se enfurecia, porém, seus olhos azul-acinzentados ficavam injetados, o rosto sardento enrubescia e sua costumeira inquietude se transformava nos movimentos furiosos de um urso aprisionado.

      Encontravam-se em Bur-le-Roi, uma cabana de caça de Henrique, em um parque próximo da costa da Normandia. Henrique deveria se sentir feliz. Gostava de caçar mais do que qualquer outra coisa no mundo, e aquele era um dos seus lugares favoritos. Mas estava furioso. E a razão era Tomás, o arcebispo de Canterbury.

      - Tomás, Tomás, Tomás! É tudo o que ouço de vocês, seus prelados pestilentos! Tomás está fazendo isto, Tomás está fazendo aquilo. Tomás insultou você. Tomás foi injusto com você. Estou farto de Tomás!

      William examinou furtivamente o rosto dos condes, bispos e outros dignitários sentados em torno da mesa do jantar de Natal no grande salão. A maioria aparentava nervosismo. Só um tinha uma expressão de contentamento: Waleran Bigod.

      O bispo predissera que Henrique muito em breve brigaria com Becket de novo. O arcebispo tinha ganho demais, segundo ele; o plano de paz do papa forçara o rei a ceder muito, e haveria mais brigas quando Tomás tentasse cobrar as promessas reais. Mas Waleran não se limitara simplesmente a ficar sentado e esperar para ver o que aconteceria: trabalhara duro para fazer com que sua predição se realizasse. com o auxílio de Hamleigh, Waleran constantemente trazia a Henrique reclamações contra o que Tomás vinha fazendo desde que retornara à Inglaterra: percorrendo o interior do país com um exército de cavaleiros, visitando seus amigos e imaginando um sem-número de esquemas traiçoeiros, assim também como punindo clérigos que tinham apoiado o rei durante o seu exílio. Waleran enfeitava os relatos antes de passá-los a Henrique, mas havia alguma verdade no que dizia. Só que estava atiçando as chamas de um fogo que já ardia intensamente.

      Todos os que haviam abandonado Tomás durante os seis anos da briga, e agora viviam com medo da retribuição, estavam dispostos a vilipendiá-lo perante o rei. Assim Waleran parecia feliz enquanto Henrique explodia de ódio. E tinha bons motivos. Dificilmente alguém sofrera mais que ele desde o retorno de Becket. O arcebispo se recusara a confirmar sua designação como bispo de Lincoln. Além do mais, aparecera com seu próprio candidato ao cargo de bispo de Kingsbridge: o prior Philip. Se Tomás levasse vantagem, Bigod perderia Kingsbridge e não ganharia Lincoln. Estaria arruinado.

      A posição de William sofreria também. Com Aliena atuando como conde, Waleran fora, Philip como bispo e, sem dúvida, Jonathan como o prior de Kingsbridge, Hamleigh ficaria isolado, sem um único aliado no condado. Por isso se unira a Waleran na corte real, para colaborar no enfraquecimento do frágil acordo entre o rei Henrique e o arcebispo Tomás.

      Ninguém comera muito dos cisnes, gansos, pavões e patos que estavam em cima da mesa. William, que normalmente comia e bebia com voracidade, mordiscava pão e bebericava posset, uma bebida feita com leite, cerveja, ovos e noz-moscada, para acalmar seu estômago bilioso.

      Henrique tinha sido lançado ao seu atual acesso de fúria pela notícia de que Tomás mandara uma delegação a Tours - onde se encontrava o papa Alexandre - para se queixar de que Henrique não cumprira sua parte no tratado.

      - Não haverá paz enquanto você não fizer com que Tomás seja executado - disse Enjuger de Bohun, um dos mais velhos conselheiros do rei.

      William ficou chocado.

      - É isso mesmo! - urrou Henrique.

      Ficou claro para o xerife que o rei tomara aquela observação como uma expressão de pessimismo, e não como uma proposta séria. No entanto, teve a impressão de que Enjuger não dissera aquilo levianamente.

      - Quando eu estava em Roma - disse William Malvoisin, como quem não estava diretamente interessado -, no caminho de volta de Jerusalém, ouvi falar de um papa que fora executado, por insolência insuportável. Droga, não consigo me lembrar do nome dele agora.

      - Parece que não há outra coisa a ser feita com Tomás - disse o arcebispo de York. - Enquanto ele estiver vivo fomentará a sedição, no país e no exterior.

      Para William, aquelas três afirmativas pareceram orquestradas. Ele olhou para Waleran. Justo naquele momento o bispo interveio.

      - Certamente não adianta apelar para o senso de decência de Tomás...

      - Fiquem quietos, vocês todos! - trovejou o rei. - Já ouvi o bastante! Tudo o que vocês fazem é se queixar. Quando é que vão descolar o traseiro das cadeiras e fazer qualquer coisa a respeito disso? - Tomou um gole de cerveja do seu cálice. - Esta cerveja está com gosto de urina! - gritou furiosamente. Empurrou para trás sua cadeira e, quando todos se apressaram a se levantar, ergueu-se e saiu pisando forte.

      - Dificilmente a mensagem poderia ser mais clara, milorde - disse Bigod, no ansioso silêncio que se seguiu. - Devemos nos levantar de nossos lugares e fazer alguma coisa a respeito de Tomás.

      - Penso que uma delegação nossa deveria procurar Tomás e acertar as coisas com ele - disse William Mandeville, conde de Essex.

      - E o que você fará se ele se recusar a ouvir a voz da razão? - indagou Waleran.

      - Acho que então deveríamos prendê-lo em nome do rei.

      Diversas pessoas começaram a falar ao mesmo tempo. A assembléia fragmentou-se em grupos menores. Os que cercavam o conde de Essex começaram a planejar a comitiva que iria a Canterbury. William viu Waleran falando com dois ou três cavaleiros mais jovens. Ele atraiu sua atenção e chamou-o com um gesto.

      - A delegação de William Mandeville - disse Waleran - não produzirá resultado algum. Tomás pode lidar com eles tendo uma das mãos amarradas nas costas.

      Reginald Fitzur se dirigiu a William um olhar duro.

      - Alguns de nós pensam que chegou o tempo de medidas mais severas - disse ele.

      - O que você quer dizer com isso?

      - Você ouviu o que Enjuger disse.

      - Execução - explodiu Richard le Bret, um rapaz de dezoito anos.

      A palavra gelou o coração de William. Era sério, então.

      Olhou para Waleran:

      - Você pedirá a aprovação do rei?

      Foi Reginald quem respondeu:

      - Impossível. Ele não pode sancionar uma coisa dessas com antecedência. - E Reginald sorriu maldosamente. - Mas poderá recompensar seus servos fiéis depois.

      - Então, William, está conosco? - perguntou o jovem Richard.

      - Não tenho certeza - respondeu Hamleigh. Ele se sentia ao mesmo tempo excitado e assustado. - Terei que pensar nisso.

      - Não há tempo para pensar - retrucou Reginald. - Temos que chegar a Canterbury antes de William Mandeville, caso contrário ele e seu grupo se intrometerão no nosso caminho.

      Waleran dirigiu-se ao xerife.

      - Eles precisam de um homem mais velho com eles, para conduzi-los e planejar a operação.

      Hamleigh estava desesperadamente ansioso para concordar. Aquilo resolveria todos os seus problemas, e com certeza o rei ainda lhe daria um condado como recompensa.

      - Mas matar um arcebispo seria um pecado terrível! - exclamou.

      - Não se preocupe - disse Waleran. - Eu lhe darei a absolvição.

      A gravidade do que estavam por fazer perseguiu William como uma nuvem negra sobre sua cabeça, enquanto o grupo de assassinos viajava até a Inglaterra. Não podia pensar em mais nada; não podia comer nem dormir; agia de modo confuso e falava distraidamente. Quando o navio atracou em Dover, ele estava pronto para abandonar o projeto.

      Chegaram ao Castelo de Saltwood, em Kent, três dias depois do Natal, numa noite de segunda-feira. O castelo pertencia ao arcebispo de Canterbury, mas durante o exílio fora ocupado por Ranulf de Broc, que se recusava a devolvê-lo. Na verdade, uma das queixas de Tomás ao papa era de que o rei Henrique deixara de providenciar a devolução da propriedade.

      Ranulf deu novo ânimo a William.

      Saqueara Kent na ausência do arcebispo, aproveitando-se da falta de autoridade, do modo como William fizera no passado, e estava disposto a qualquer coisa para reter a liberdade de fazer o que bem entendesse. Mostrou-se entusiasmado com o plano do assassinato e gostou da chance de participar dele, começando imediatamente a discutir os detalhes com prazer. Sua abordagem despreocupada dispersou o nevoeiro de pavor supersticioso que toldava a visão de William. Este começou mais uma vez a imaginar como seria se fosse conde novamente, sem ninguém que lhe dissesse o que fazer.

      Ficaram acordados até tarde da noite, planejando a operação. Ranulf desenhou uma planta do adro da catedral e do palácio do arcebispo, riscando na mesa com uma faca. Os prédios monásticos se situavam na parte norte da igreja, o que não era usual - ficavam normalmente ao sul, como em Kingsbridge. O palácio do arcebispo era ligado ao canto noroeste da igreja. A entrada se fazia pelo pátio da cozinha. Enquanto trabalhavam no plano, Ranulf mandou mensageiros às suas guarnições de Dover, Rochester e Bletchingley, com ordens para os cavaleiros o encontrarem na estrada para Canterbury pela manhã. Já era de madrugada quando os conspiradores foram para a cama, tentando salvar uma ou duas horas de sono.

      As pernas de William ardiam como fogo após a longa viagem. Esperava que aquela fosse a última operação militar que lhe coubesse fazer na vida. Logo teria cinquenta e cinco anos, se seus cálculos estivessem corretos, velho demais para esse tipo de coisa.

      A despeito do cansaço, e da animadora influência de Ranulf, não foi capaz de dormir. A idéia de matar um arcebispo era por demais assustadora, mesmo que já houvesse sido absolvido do pecado. Teve medo de se ver às voltas com pesadelos, se dormisse.

      Tinham imaginado um bom plano de ataque. Sairia errado, claro; havia sempre alguma coisa que saía errada. O importante era que o plano fosse flexível o bastante para atender aos acontecimentos inesperados. Mas, fosse o que fosse que acontecesse, não seria muito difícil para um grupo de combatentes profissionais sobrepujar um punhado de monges efeminados.

      A claridade difusa de uma cinzenta manhã de inverno infiltrou-se no quarto pelas seteiras. Após alguns momentos, William levantou-se. Tentou orar, mas não conseguiu.

      Os outros acordaram cedo, também. Fizeram o desjejum no salão, todos juntos. Além de William e Ranulf, estavam presentes Reginald Fitzurse, que o xerife designara líder do grupo de ataque; Richard le Bret, o mais jovem do grupo; William Tracy, o mais velho; e Hugh Morville, o de mais alta graduação. Colocaram as armaduras e saíram, montados nos cavalos de Ranulf. Era um dia demasiadamente frio, e o céu estava escuro, com nuvens cinzentas baixas, como se fosse nevar. Seguiram pela estrada velha, chamada Stone Street.

      Com duas horas e meia de viagem diversos cavaleiros incorporaram-se ao grupo. O ponto de encontro principal era a Abadia de Saint Augustine, fora da cidade. O abade era um velho inimigo de Tomás, Ranulf assegurara a William, mas mesmo assim este decidira dizer que iam prender o arcebispo, e não matá-lo. Tratava-se de uma farsa que seria mantida até o último momento; ninguém deveria saber o verdadeiro objetivo da operação, exceto o próprio William, Ranulf e os quatro cavaleiros vindos da França. Chegaram a Saint Augustine ao meio-dia. Os homens convocados por Ranulf os aguardavam. O abade lhes serviu o almoço. Seu vinho era muito bom, e todos beberam bastante. Ranulf instruiu os homens de armas de que cercassem o adro da catedral e impedissem qualquer pessoa de fugir.

      Hamleigh não parava de tremer, mesmo diante da lareira na casa de hóspedes. Seria uma operação simples, mas a penalidade do fracasso provavelmente seria a morte.

      O rei encontraria um modo de justificar o assassinato de Tomás, mas nunca seria capaz de apoiar uma tentativa; teria que negar qualquer conhecimento e enforcar os criminosos. William enforcara muita gente, como xerife de Shiring, mas a idéia do próprio corpo balançando na ponta de uma corda o fazia tremer.

      Concentrou os pensamentos no condado que poderia esperar como recompensa pelo sucesso. Seria bom ser conde de novo na sua idade avançada, respeitado, temido e obedecido sem questionamentos. Podia ser que Richard, o irmão de Aliena, morresse na Terra Santa e o rei Henrique devolvesse a William suas antigas propriedades. Esse pensamento o aqueceu mais que o fogo.

      Quando deixaram a abadia, eram um pequeno exército. Mesmo assim, não tiveram problemas para chegar a Canterbury. Ranulf controlara aquela parte do país por seis anos e ainda não abrira mão de sua autoridade. Tinha mais poder que Tomás, o que, sem dúvida, era o motivo pelo qual este se queixara tão amargamente ao papa. Assim que estavam no interior, os homens de armas espalharam-se em torno do adro da catedral e bloquearam todas as saídas.

      A operação começara. Até aquele momento fora teoricamente possível cancelar tudo, sem que nenhum mal chegasse a ser causado; mas agora, percebeu William com um calafrio de medo, a sorte estava lançada.

      Deixou Ranulf encarregado do bloqueio, conservando um pequeno grupo de cavaleiros e soldados consigo. Instalou a maior parte dos cavaleiros numa casa oposta ao portão principal do adro da catedral. Depois atravessou o portão com o restante. Reginald Fitzurse e os outros três conspiradores entraram a cavalo no pátio da cozinha como se fossem visitantes oficiais, e não intrusos armados. Mas William entrou correndo no corpo da guarda e dominou o porteiro aterrorizado com a ponta da espada.

      O ataque tivera início.

      Com o coração na boca, ordenou que um homem de armas amarrasse o porteiro, depois chamou o resto dos homens para dentro do corpo da guarda e fechou o portão. Agora ninguém podia entrar ou sair. Ele assumira o controle armado de um mosteiro.

      William seguiu os quatro conspiradores pelo pátio da cozinha. Havia estábulos no lado norte do pátio, mas os quatro tinham amarrado seus cavalos numa amoreira no meio do local. Tiraram o cinturão das espadas e o elmo; precisavam manter a aparência de uma visita pacífica por um pouco mais de tempo.

      William se encontrou com eles e largou suas armas embaixo da árvore. Reginald dirigiu-lhe um olhar indagador.

      - Está tudo bem - disse o xerife. - O lugar está isolado.

      Atravessaram o pátio na direção do palácio e entraram na varanda. William determinou a um cavaleiro local, chamado Richard, que ficasse de guarda na varanda. Os outros entraram no grande salão.

      Os servos do palácio estavam sentados para jantar. Isso significava que já tinham servido Tomás e os padres e monges que o acompanhavam. Um dos empregados se levantou.

      - Somos os homens do rei - disse Reginald.

      O salão ficou em silêncio, mas o servo que se levantara afirmou:

      - Sejam bem-vindos, milordes. Sou o encarregado do salão, William Fitzneal. Entrem, por favor. Querem algo para comer?

      Ele era notavelmente amistoso, pensou William, considerando que seu senhor estava em disputa com o rei. Provavelmente podia ser subornado..

      - Não, obrigado - respondeu Reginald.

      - Um copo de vinho, após sua viagem?

      - Temos uma mensagem do rei para o seu amo - disse Reginald, impaciente. - Por favor, anuncie-nos agora.

      - Muito bem. - O servo fez uma reverência. Estavam desarmados, de modo que não tinha razão para recusar-lhes a entrada. Deixou a mesa e caminhou até a extremidade mais distante do salão.

      Hamleigh e os quatro cavaleiros o seguiram. Foram acompanhados pelo olhar dos silenciosos empregados. William estava tremendo, como sempre acontecia antes de uma batalha, e desejou que a briga começasse logo, pois sabia que assim se sentiria bem.

      Todos subiram a escada que levava ao andar de cima. Alcançaram uma espaçosa câmara de atendimento com bancos encostados nas paredes laterais. Havia um grande trono no meio de uma parede. Diversos padres de hábito negro e monges estavam sentados nos bancos, mas o trono se encontrava vazio.

      O servo cruzou o aposento até uma porta aberta.

      - Mensageiros do rei, milorde arcebispo - disse, em voz alta.

      Não houve resposta audível, mas o arcebispo devia ter assentido, pois o servo acenou para que entrassem.

      Os monges e padres ficaram observando com os olhos arregalados os cavaleiros atravessarem a sala e entrarem na câmara interior.

      Tomás Becket estava sentado na beirada da cama, envergando seu traje de arcebispo. Havia apenas outra pessoa no quarto: um monge, sentado aos pés de Tomás, ouvindo.

      William atraiu a atenção do monge, e levou um susto ao reconhecer o prior Philip de Kingsbridge. O que estaria fazendo ali? Tentando obter favores, sem dúvida. Philip fora eleito bispo de Kingsbridge, mas ainda não tinha sido confirmado. Agora, pensou William com selvagem júbilo, nunca mais seria.

      Philip ficou igualmente espantado ao ver William. No entanto, Tomás continuou falando, fingindo não notar a presença dos cavaleiros. Tratava-se de uma descortesia calculada, pensou Hamleigh. Os cavaleiros se sentaram em banquinhos baixos dispostos em torno da cama. O xerife quisera que não tivessem se sentado: aquilo fazia a visita parecer social, e ele achava que, de alguma maneira, haviam perdido o ímpeto. Talvez fosse exatamente isso que Tomás quisesse.

      Finalmente o arcebispo olhou para eles. Não se levantou para cumprimentá-los. Conhecia todos, exceto William, e seus olhos vieram a descansar em Hugh Morville, o de mais alta graduação.

      - Sim, Hugh - disse.

      William encarregara Reginald daquela parte da operação, de modo que foi ele, e não Hugh, quem falou com o arcebispo.

      - Estamos aqui da parte do rei. Quer ouvir a mensagem dele em público ou em particular?

      Tomás olhou irritadamente de Reginald para Hugh e deste novamente para Reginald, como se quisesse demonstrar seu ressentimento por tratar com um membro júnior da delegação.

      - Deixe-me, Philip - pediu, suspirando.

      O religioso levantou-se e passou pelos cavaleiros, parecendo preocupado.

      - Mas não feche a porta - exclamou Tomás, às suas costas.

      - Em nome do rei - começou Reginald, depois da saída de Philip -, exijo que vá a Winchester para responder a acusações contra a sua pessoa.

      William teve a satisfação de ver Tomás empalidecer.

      - Então é isso - disse o arcebispo serenamente. Ele levantou a cabeça. O camareiro estava à porta - Mande que todos entrem - disse-lhe Becket. - Quero que ouçam isso.

      Os monges e os padres entraram em fila, o prior Philip no meio deles. Alguns se sentaram e outros ficaram encostados às paredes. Hamleigh não tinha objeções: pelo contrário, quanto mais pessoas presentes, melhor, pois o objetivo daquele encontro desarmado era estabelecer perante testemunhas que Tomás tinha se recusado a cumprir uma ordem real.

      Quando estavam todos acomodados, Becket virou-se para Reginald.

      - De novo - disse.

      - Em nome do rei, exijo que vá a Winchester para responder a acusações contra a sua pessoa - repetiu o cavaleiro.

      - Que acusação? - indagou Tomás serenamente.

      - Traição!

      O arcebispo sacudiu a cabeça.

      - Não serei levado a julgamento por Henrique - disse ele, calmo. - Deus sabe que não cometi crime algum.

      - Excomungou serventes reais.

      - Não fui eu, e sim o papa, quem os excomungou.

      - Suspendeu outros bispos.

      - Ofereci-me para reinstalá-los em condições misericordiosas. Eles se recusaram. Minha oferta permanece de pé.

      - Você ameaçou a sucessão do trono, depreciando a coroação do filho do rei.

      - Não fiz nada disso. O arcebispo de York não tem o direito de coroar ninguém, e o papa o repreendeu pela sua desfaçatez. Mas ninguém sugeriu que a coroação não fosse válida.

      - Uma coisa decorre da outra, seu maldito idiota! - exclamou Reginald exasperadamente.

      - Basta! - exclamou Tomás.

      - "Basta" dizemos nós, Tomás Becket! - gritou Reginald. - Pelas chagas de Cristo, já tivemos o bastante de você, de sua arrogância, dos problemas que cria e de sua traição!

      Tomás levantou-se.

      - Os castelos do arcebispo estão ocupados por homens do rei - gritou ele. - As rendas do arcebispo têm sido recebidas pelo rei. O arcebispo recebeu ordens para não deixar a cidade de Canterbury. E você ainda me diz que estão fartos?

      Um dos padres tentou intervir, dizendo a Tomás:

      - Milorde, vamos discutir o assunto em particular...

      - Com que finalidade? - retorquiu Tomás. - Eles exigem algo que não devo fazer e que não farei.

      A gritaria atraíra a todos no palácio, e William viu que a porta do quarto do arcebispo estava cheia de ouvintes de olhos arregalados. A discussão já tinha ido longe demais: agora ninguém podia negar que Tomás se recusara a cumprir uma ordem real. Hamíeigh fez um sinal para Reginald. Foi discreto, mas o prior Philip percebeu-o e ergueu as sobrancelhas em surpresa, percebendo que o líder do grupo não era Reginald, e sim William.

      - Arcebispo Tomás, não se encontra mais sob a proteção e a paz do rei - disse formalmente Reginald. Depois virou-se e se dirigiu aos assistentes: - Saiam deste cômodo.

      Ninguém se mexeu.

      - Vocês, monges - disse Reginald -, ordeno a vocês, em nome do rei, que guardem o arcebispo e o impeçam de fugir.

      Eles não fariam tal coisa, claro. Nem tampouco William queria que fizessem: ao contrário, desejava que Becket tentasse fugir, pois tornaria mais fácil matá-lo.

      Reginald virou-se para William Fitzneal, que tecnicamente era o guarda-costas do arcebispo.

      - Eu o prendo - disse. Agarrou o braço do homem e marchou com ele para fora do aposento. Não houve resistência.

      William e os outros cavaleiros os seguiram.

      Todos desceram a escada e atravessaram o salão. O cavaleiro local, Richard, ainda estava de guarda na varanda. William perguntou-se o que fazer com o servo.

      - Você está conosco?

      O homem estava aterrorizado.

      - Sim, se vocês estão com o rei!

      Estava assustado demais para representar perigo, qualquer que fosse o seu lado, decidiu William.

      - Fique de olho nele - disse a Richard. - Não deixe ninguém sair do prédio. Mantenha a porta fechada.

      Juntamente com os demais, correu até a amoreira no meio do pátio. Apressadamente, começaram a pôr os elmos e a cingir suas espadas. Vai ser agora, pensou William, temerosamente; vamos voltar lá dentro e matar o arcebispo de Canterbury. Oh, meu Deus! Fazia muito tempo que William usara um elmo pela última vez, e a cota de malha que lhe protegia o pescoço e os ombros o atrapalhava. Amaldiçoou os dedos desajeitados. Não tinha tempo para se atrapalhar com nada agora. Percebeu um garoto olhando para ele de boca aberta e gritou:

      - Ei! Você! Qual é o seu nome?

      O garoto olhou para trás na direção da cozinha, incerto quanto a atender a William ou fugir.

      - Robert, milorde - disse, após um momento. - Sou chamado de Robert Flauta.

      - Venha cá, Robert Flauta, e ajude-me com isto.

      O menino hesitou de novo.

      A paciência de William se esgotou.

      - Venha cá, ou juro pelo sangue de Cristo que cortarei fora sua mão com a minha espada!

      Relutantemente, o garoto adiantou-se. Hamleigh mostrou-lhe como segurar a cota de malha enquanto punha o elmo. Finalmente conseguiu, e o garoto fugiu a toda a velocidade.

      Haveria de contar aquilo a seus netos, foi o pensamento que passou pela cabeça de William.

      O elmo tinha um barbote, uma abertura para a boca que podia ser fechada e fixada com uma presilha. Os outros já tinham fechado os seus, de modo que traziam o rosto oculto e não mais podiam ser reconhecidos. Hamleigh deixou o seu elmo aberto por um momento mais. Cada homem tinha uma espada numa das mãos e um machado na outra.

      - Prontos? - perguntou William. Todos assentiram com a cabeça.

      Haveria pouca conversa de agora em diante. Não eram necessárias mais ordens, não havia mais decisões para serem tomadas. Iam simplesmente voltar lá dentro e matar Tomás.

      Hamleigh enfiou dois dedos na boca e deu um assobio fino.

      Depois fechou o barbote do elmo.

      Um homem de armas veio correndo do corpo da guarda e escancarou o portão principal.

      Os cavaleiros que William deixara na casa em frente saíram e se lançaram no pátio, gritando, como lhes tinha sido ordenado:

      - Homens do rei! Homens do rei!

      William correu de volta para o palácio.

      O cavaleiro Richard e o servo William Fitzneal abriram a porta da varanda para ele.

      Quando entrou, dois dos empregados do arcebispo aproveitaram-se do fato de o cavaleiro e o servo estarem distraídos e bateram a porta entre a varanda e o salão.

      William atirou seu peso contra ela, mas era tarde demais: eles tinham passado uma tranca. Ele praguejou. Um obstáculo, e tão cedo! Os cavaleiros começaram a atacar a porta com seus machados, mas fizeram pouco progresso: ela fora construída para aguentar ataques. William sentiu que começava a perder o controle. Lutando contra o início de um pânico, correu para fora da varanda e procurou outra porta. Reginald o seguiu.

      Não havia nada naquele lado do prédio. Contornaram a fachada oeste do palácio, passaram pela cozinha, que era separada, e entraram no pomar do lado sul. William grunhiu de satisfação: ali na parede sul do palácio havia uma escadaria que dava no segundo andar. Parecia ser uma entrada particular para os aposentos do arcebispo.

      O sentimento de pânico desapareceu.

      William e Reginald correram até a base da escadaria. Estava danificada na primeira metade. Havia algumas ferramentas por perto e uma escada móvel, como se os degraus estivessem sendo consertados. Reginald encontrou a escada móvel na parte lateral da escadaria e subiu, desviando-se dos degraus quebrados. Atingiu o topo. Havia uma porta que dava num balcão coberto e envidraçado, de pequeno porte. William observou-o experimentando a porta. Estava trancada. Ao seu lado havia uma janela fechada, que Reginald arrombou com um golpe de machado. Passou a mão para o lado de dentro, tateou, e por fim abriu a porta e entrou.

      William começou a galgar a escada.

     

      Philip ficou com medo no instante em que viu William Hamleigh, mas os padres e monges do séquito de Tomás a princípio se mostraram complacentes. Depois, quando ouviram as batidas na porta do salão, se assustaram, e diversos deles propuseram que se refugiassem na catedral.

      Becket zombou deles.

      - Refúgio? - perguntou. - De quê? Daqueles cavaleiros? Um arcebispo não pode fugir de uma meia dúzia de cabeças quentes.

      Philip achou que ele tinha razão, até certo ponto: o título de arcebispo era sem sentido se se podia ser amedrontado por cavaleiros. O homem de Deus, seguro no conhecimento de que seus pecados serão perdoados, considera a morte como uma feliz transferência para um lugar melhor, e não tem medo de espadas. No entanto, nem mesmo um arcebispo deve ser descuidado da própria segurança ao ponto de facilitar um ataque. Além do mais, Philip conhecia muito bem, por experiência própria, a perversidade e a brutalidade de William Hamleigh. Assim, quando ouviram o barulho do arrombamento do balcão interno, decidiu assumir a liderança.

      Ele podia ver, através das janelas, que o palácio estava cercado por cavaleiros. A visão deles o assustou ainda mais. Claro que aquele era um ataque cuidadosamente planejado, e os envolvidos nele estavam preparados para cometer violências. Fechou depressa a porta do quarto e passou a tranca. Os outros o observaram, contentes por terem alguém tomando as providências decisivas. O arcebispo Tomás continuou a exibir um ar escarninho, mas não tentou deter Philip.

      O prior parou junto à porta e ouviu. Percebeu que um homem entrava pelo balcão na câmara de audiência. Perguntou-se quão forte seria a porta do quarto. O homem, contudo, não atacou a porta, mas cruzou a sala de audiências e começou a descer a escada. Philip adivinhou que iria abrir a porta do salão pelo lado de dentro e deixar o resto dos cavaleiros entrar.

      Aquilo deu a Tomás uns poucos momentos de trégua.

      Havia outra porta no canto oposto do quarto, parcialmente escondida pela cama. Philip apontou para ela e perguntou, nervoso:

      - Onde vai dar aquela porta?

      - No claustro - respondeu alguém. - Mas está trancada. Philip cruzou o quarto e experimentou a porta. Estava trancada mesmo.

      - Tem uma chave? - perguntou a Tomás, acrescentando logo, como se tivesse pensado melhor: - Milorde arcebispo.

      Tomás sacudiu a cabeça.

      - Essa passagem nunca foi usada, que eu me lembre - disse, com uma calma de dar raiva.

      A porta não parecia muito sólida, mas Philip estava com sessenta e três anos e força bruta nunca fora o seu ramo. Recuou e deu um pontapé. Machucou-se. A porta sacudiu, fragilmente. O prior cerrou os dentes e chutou com mais força. Ela se abriu.

      Philip olhou para Tomás. O arcebispo ainda parecia relutar em fugir. Talvez não tivesse se dado conta, como acontecera com o prior, de que o número de cavaleiros e a natureza bem organizada da operação indicavam uma intenção mortalmente séria de lhe causar mal. Mas Philip intuía que seria inútil tentar fazer com que Becket fugisse, assustando-o. Por isso disse:

      - Está na hora das vésperas. Não devemos deixar um bando de cabeças quentes interromper a rotina do culto.

      Tomás sorriu, vendo que seu próprio argumento fora usado contra ele.

      - Muito bem - disse, levantando-se.

      O prior foi na frente, aliviado por ter feito o arcebispo andar, mas com medo de que este não andasse depressa o bastante. A passagem dava num longo lance de degraus que desciam. Não havia nenhuma luz, exceto a que vinha do quarto de dormir de Tomás. Ao final da passagem havia outra porta. Philip lhe dispensou o mesmo tratamento dado à primeira porta, mas esta era mais forte e não cedeu. Pôs-se a bater nela, gritando:

      - Socorro! Abram a porta! Depressa, depressa! - O próprio Philip percebeu o pânico em sua voz e fez um esforço para se acalmar, mas seu coração estava disparado e ele sabia que os cavaleiros de William deviam estar bastante próximos.

      Os outros se juntaram a ele. O prior continuou a bater na porta e a gritar. Ouviu Tomás dizer:

      - Dignidade, Philip, por favor. - Entretanto, não deu atenção. O que queria era preservar a dignidade do arcebispo - a sua própria não tinha importância.

      Antes que Becket pudesse protestar de novo, ouviu-se o barulho de uma tranca sendo levantada e de uma chave girando na fechadura, e a porta foi aberta. Philip gemeu, aliviado. Deu com dois assustados despenseiros.

      - Eu não sabia que esta porta dava passagem para algum lugar - disse um deles.

      O prior passou pelos dois impacientemente. Viu-se nos depósitos da despensa. Desviou-se dos barris e sacos para atingir outra porta, e ao atravessá-la chegou ao ar livre.

      Estava ficando escuro. Ele se encontrava no passadiço sul do claustro. Na outra ponta viu, para seu imenso alívio, a porta que dava no transepto norte da Catedral de Canterbury.

      Podiam se considerar praticamente a salvo.

      Precisava pôr Tomás dentro da catedral antes que William e seus cavaleiros pudessem pegá-los. O resto do grupo saiu de dentro da despensa.

      - Para dentro da igreja, depressa! - disse o prior.

      - Não, Philip - disse o arcebispo. - Depressa não. Entraremos na minha catedral com dignidade.

      - Naturalmente, milorde - concordou o prior, embora tivesse ímpetos de gritar. Era capaz de ouvir o barulho assustador de passos pesados na passagem há tantos anos sem uso: os cavaleiros tinham invadido o quarto e encontrado a passagem. Sabia que a melhor proteção de Tomás era sua dignidade, mas não fazia mal afastar-se do perigo.

      - Onde está a cruz do arcebispo? - quis saber Becket. - Não posso entrar na igreja sem minha cruz.

      Philip gemeu de desespero.

      - Eu a trouxe. Está aqui - disse um dos padres.

      - Carregue-a diante de mim do modo usual, por favor - pediu Tomás.

      O padre a ergueu e foi caminhando com pressa contida na direção da porta da igreja.

      O arcebispo o seguiu.

      O séquito o precedeu na entrada da catedral, conforme exigia a etiqueta. Philip foi o último e segurou a porta para ele. Justamente no momento em que Tomás entrava, dois cavaleiros irromperam da despensa e correram pelo passadiço sul.

      Philip fechou a porta do transepto. Havia uma tranca num buraco na parede ao lado do umbral. Philip agarrou-a e passou-a. Depois virou-se, suspirando aliviado, e encostou-se à porta.

      Becket estava atravessando o estreito transepto na direção dos degraus que davam no corredor norte do coro, mas quando ouviu o barulho da tranca sendo colocada, parou de repente e virou-se.

      - Não, Philip - disse.

      O coração do prior confrangeu-se.

      - Milorde arcebispo...

      - Isto é uma igreja, não um castelo. Destranque a porta.

      A porta sacudiu violentamente, quando os cavaleiros tentaram abri-la.

      - Receio que queiram matá-lo! - disse Philip.

      - Então provavelmente terão êxito, quer você ponha a tranca ou não. Sabe quantas outras portas há nesta igreja? Abra-a.

      Ouviu-se uma série de batidas que davam a impressão de os cavaleiros estarem brandindo machados.

      - Você pode se esconder - disse o prior desesperadamente. - Há dúzias de lugares...   a entrada para a cripta é logo ali...  - está ficando escuro.

      - Esconder-me, Philip? Na minha própria igreja? Você se esconderia?

      O prior encarou Tomás por um longo momento.

      - Não, eu não me esconderia - disse por fim.

      - Abra a porta.

      Com o coração pesado, Philip empurrou a tranca de volta para o seu lugar na parede.

      Os cavaleiros irromperam igreja adentro. Eram cinco. Tinham o rosto escondido atrás do elmo. Carregavam espadas e machados. Pareciam emissários do inferno.

      Philip sabia que não devia sentir medo, mas as lâminas aguçadas de suas armas o faziam estremecer de pavor.

      - Onde está Tomás Becket, o traidor do rei e do reino? - gritou um deles.

      - Onde está o traidor? Onde está o arcebispo? - berraram os outros.

      Já escurecera bastante, e a grande igreja estava apenas difusamente iluminada por velas. Todos os monges vestiam hábito negro, e a visão dos cavaleiros era de certo modo prejudicada pelos protetores faciais dos elmos. Philip sentiu-se invadir por uma súbita onda de esperança: talvez não achassem Tomás na escuridão. Mas o arcebispo liquidou com essa esperança no mesmo instante, descendo os degraus na direção dos cavaleiros e dizendo:

      - Aqui estou eu, não um traidor do rei, e sim um sacerdote de Deus. O que vocês querem?

      Quando Becket parou, defrontando os cinco homens com suas espadas desembainhadas, subitamente Philip teve absoluta certeza de que o arcebispo iria morrer ali, naquela hora.

      Os componentes da comitiva do arcebispo deviam ter tido a mesma sensação, pois de repente quase todos fugiram. Alguns desapareceram na obscuridade do coro, uns poucos se espalharam dentro da nave, misturando-se aos habitantes da cidade que aguardavam o culto, e houve um que abriu uma portinhola e subiu correndo uma escada em espiral. Philip ficou enojado.

      - Vocês deviam rezar, não fugir! - gritou para eles. Ocorreu-lhe que ele também poderia ser morto, se não fugisse. Mas não era capaz de se obrigar a sair do lado do arcebispo.

      - Renuncie à sua traição! - disse um dos cavaleiros a Tomás. Philip reconheceu a voz de Reginald Fitzurse, que fora o porta-voz um pouco antes.

      - Nada tenho a renunciar - replicou o arcebispo. - Não cometi traição. - Ele estava excessivamente calmo, mas seu rosto parecia muito branco. Philip viu que Tomás, como todos os demais, percebera que ia morrer.

      - Corra! Você é um homem morto! - gritou-lhe Reginald.

      Tomás permaneceu imóvel.

      Eles queriam que ele corresse, pensou Philip; não conseguiam matá-lo a sangue-frio.

      Talvez o arcebispo tivesse compreendido isso também, pois permaneceu imóvel diante deles, desafiando-os a tocá-lo. Por um longo momento todos ficaram imobilizados num quadro mortal, os cavaleiros não querendo fazer o primeiro movimento, o sacerdote orgulhoso demais para correr.

      Foi Tomás quem fatalmente rompeu o encanto.

      - Estou pronto para morrer, mas vocês não vão tocar em nenhum dos meus homens, sacerdotes, monges ou leigos.

      Reginald moveu-se primeiro. Brandiu a espada para Becket, aproximando a ponta cada vez mais do seu rosto, como se quisesse desafiar a si próprio a deixar a lâmina encostar no sacerdote. Este permaneceu imóvel como uma pedra, os olhos fixos no cavaleiro, não na espada. De repente, com um movimento rápido do pulso, Reginald derrubou o barrete do arcebispo.

      Súbito Philip sentiu-se esperançoso mais uma vez. Achou que os cavaleiros não iriam conseguir; acreditou que tivessem medo de tocar nele.

      Mas estava enganado. A determinação dos cavaleiros aparentemente se fortaleceu com o gesto tolo de derrubar o barrete do arcebispo; parecia que eles tinham esperado ser punidos pela mão de Deus, e, como nada acontecera, haviam ganho coragem para fazer o pior.

      - Carreguem-no para fora daqui - ordenou Reginald. Os outros cavaleiros embainharam as espadas e se aproximaram do arcebispo.

      Um deles agarrou Tomás pela cintura e tentou levantá-lo.

      Philip ficou desesperado. Finalmente tinham tocado nele. Estavam mesmo dispostos a pôr as mãos num homem de Deus. Teve uma sensação revoltante da profunda perversidade deles, como se houvesse se debruçado na borda de um poço sem fundo. Deviam saber, no íntimo, que iriam para o inferno por causa daquilo; ainda assim o fizeram.

      O arcebispo perdeu o equilíbrio, balançou os braços e começou a lutar. Os outros cavaleiros vieram ajudar a carregá-lo. Os únicos remanescentes do séquito de Tomás eram Philip e um padre chamado Edward Grim. Ambos correram para ajudá-lo. Edward agarrou-lhe o manto e segurou-o com força. Um dos cavaleiros virou-se e golpeou Philip com um punho de ferro. A pancada pegou no lado da cabeça do prior, que caiu, estonteado.

      Quando se recuperou, os cavaleiros tinham soltado Tomás, que estava de pé, com a cabeça abaixada e as mãos postas, numa atitude de oração. Um dos cavaleiros ergueu a espada.

      Philip, ainda no chão, deu um longo e impotente grito de protesto:

      - Nãããããão!

      Edward Grim ergueu o braço para aparar o golpe.

      - Encomendo minha alma a Deus.. .  - disse Tomás.

      A espada caiu.

      O golpe pegou ao mesmo tempo Becket e Edward. Philip ouviu sua própria voz gritando. A lâmina cortou fundo o crânio do arcebispo e penetrou no braço do padre. Quando o sangue jorrou do ferimento deste, Tomás caiu de joelhos.

      O prior olhou, horrorizado, para a ferida pavorosa na sua cabeça.

      O arcebispo caiu lentamente sobre as próprias mãos, apoiou-se por um instante e caiu de cara no chão de pedra.

      Outro cavaleiro levantou a espada. Philip deu um involuntário gemido de dor. O segundo golpe foi dado no mesmo lugar que o primeiro e cortou fora a parte superior do crânio de Tomás. A força foi tamanha que a espada bateu no pavimento e se partiu em duas. O cavaleiro deixou cair o punho quebrado.

      Um terceiro cavaleiro cometeu então um ato que arderia na memória de Philip pelo resto da sua vida: enfiou a ponta da espada na cabeça aberta do arcebispo e espalhou seus miolos no chão.

      As pernas de Philip fraquejaram e ele caiu de joelhos, vencido pelo horror.

      - Ele não se levantará de novo - disse o cavaleiro. - Vamos embora!

      Todos se viraram e saíram correndo. Philip os seguiu com o olhar enquanto percorriam a nave, brandindo as espadas para afastar os fiéis.

      Depois que os assassinos se foram houve um momento de imobilidade e silêncio. O cadáver do arcebispo jazia de cara para o chão, e o crânio decepado, com seu cabelo, estava ao lado da cabeça como a tampa de um pote. Philip enterrou o rosto nas mãos. Aquilo era o fim de qualquer esperança. Os selvagens tinham ganho, pensava sem parar, os selvagens tinham ganho. Sentia-se como se estivesse sem peso, aturdido, mergulhando lentamente num lago profundo, afogando-se em desespero. Não havia mais nada em que se amparar; tudo o que parecia fixo de repente ficara instável.

      Passara a vida combatendo o poder arbitrário de homens perversos, e agora, na última batalha, tinha sido derrotado. Lembrou-se de quando William Hamleigh fora incendiar Kingsbridge pela segunda vez, e a população da cidade construíra uma muralha num dia. Que vitória havia sido! A força pacífica de centenas de pessoas comuns derrotara a crueldade do conde William. Recordou quando Waleran Bigod tentara fazer com que a catedral fosse construída em Shiring, a fim de que pudesse controlá-la para os seus próprios fins. O prior mobilizara o povo de todo o condado. Centenas de pessoas, mais de mil, tinham se dirigido a Kingsbridge naquele maravilhoso domingo de Pentecostes, trinta e três anos antes, e a simples força da sua dedicação derrotara o bispo. Mas não havia esperança agora. Nem todas as pessoas comuns de Canterbury, ou até mesmo nem toda a população da cristandade, seriam suficientes para trazer Tomás de volta à vida.

      Ajoelhado nas lajes do transepto norte da Catedral de Canterbury, viu de novo os homens que haviam invadido sua casa e assassinado seu pai e sua mãe diante dos seus olhos cinquenta e seis anos antes. A emoção que sentiu agora, vinda daquela criança de seis anos de idade, não era medo, nem mágoa. Era raiva. Incapaz de deter aqueles homens imensos, de cara vermelha e sedentos de sangue, ele quisera ardentemente poder manejar espadachins, embotar as lâminas de suas espadas, fazer coxear seus cavalos de batalha e forçá-los a se submeter a outra autoridade, mais alta que o império da violência. E, momentos mais tarde, com seus pais jazendo mortos no chão, o abade Peter entrara para lhe mostrar o caminho. Desarmado e indefeso, ele fizera cessar instantaneamente o derramamento de sangue, sem outra coisa além da autoridade da sua Igreja e da força da sua bondade. Aquela cena inspirara Philip pelo resto da vida.

      Até aquele momento, acreditara que ele e pessoas como ele eram vitoriosas. Havia conseguido vitórias notáveis no último meio século. Mas agora, no fim da sua vida, seus inimigos provaram que nada tinha mudado. Seus triunfos haviam sido temporários, seu progresso, ilusório. Ganhara algumas batalhas, mas a causa, em última análise, era perdida. Homens iguais aos que mataram seu pai e sua mãe tinham agora assassinado um arcebispo dentro de uma catedral, como que para provar, além de qualquer possibilidade de dúvida, que não havia autoridade que pudesse prevalecer contra a tirania de um homem armado com uma espada.

      Nunca pensara que se atreveriam a matar o arcebispo Tomás, especialmente dentro de uma igreja. Mas nunca pensara que alguém pudesse matar seu pai, e os mesmos homens sanguinários, com espadas e elmos, mostraram-lhe a melancólica verdade em ambos os casos. E agora, com sessenta e dois anos de idade, contemplando o cadáver de Tomás Becket, viu-se dominado pela fúria infantil, irracional e abrangente de um garoto de seis anos cujo pai foi morto.

      Levantou-se. A atmosfera na igreja estava densa de emoção, com as pessoas se reunindo ao redor do corpo do arcebispo. Padres, monges e cidadãos comuns foram se aproximando lentamente, atônitos e cheios de raiva. Philip sentiu que por trás daquelas expressões chocadas havia uma fúria como a que ele sentia. Um ou dois murmuravam preces, ou resmungavam qualquer coisa meio audivelmente. Uma mulher ajoelhou-se depressa e tocou no corpo morto, como se estivesse em busca de sorte. Diversas outras pessoas a imitaram. Então o prior viu a tal mulher coletando furtivamente um pouco de sangue num frasquinho, como se Tomás fosse um mártir.

      O clero começou a recuperar os sentidos. Osbert, o camareiro de Becket, com as lágrimas correndo pelo rosto, pegou uma faca e cortou uma tira da própria camisa, depois ajoelhou-se ao lado do corpo e, desajeitadamente, amarrou a tampa do crânio no resto da cabeça, numa tentativa patética de restaurar um mínimo de dignidade à pessoa do arcebispo, horrivelmente violada. Enquanto agia, uma espécie de gemido coletivo levantou-se da multidão à volta.

      Alguns monges trouxeram uma maca. Colocaram Tomás em cima, delicadamente. Muitas mãos apareceram para ajudar.

      Philip viu que o belo rosto do arcebispo estava em paz, e que o único sinal de violência era uma linha fina de sangue que escorria da fronte direita, por cima do nariz, até a face esquerda.

      Quando levantaram a maca, o prior apanhou o punho quebrado da espada que matara Becket. Não podia deixar de pensar na mulher que guardara o sangue do arcebispo num frasco, como se ele fosse um santo. Havia um enorme significado naquele seu pequeno ato, mas Philip ainda não sabia exatamente o que seria.

      O povo seguiu a maca, arrastado por uma força invisível. Philip seguiu com a multidão, sentindo também a estranha compulsão que a todos empolgava. Os monges carregaram o corpo ao longo do coro e o depositaram delicadamente no chão, em frente ao altar-mor. A multidão, com muita gente rezando em voz alta, observou atentamente um padre que trouxe um pano limpo, envolveu a cabeça de Tomás e fez uma atadura bem-feita, cobrindo tudo com um barrete novo.

      Um monge cortou o manto negro do arcebispo, que estava cheio de manchas de sangue, e removeu-o. Parecia inseguro quanto ao que fazer com a sangrenta peça de roupa, e virou-se talvez para jogá-la de lado. Um cidadão adiantou-se rapidamente e apanhou o manto como se fosse um objeto precioso.

      A idéia que tinha pairado incertamente no fundo da mente de Philip veio à sua consciência num lampejo cheio de inspiração. As pessoas estavam tratando Tomás como um mártir, colecionando ansiosamente seu sangue e suas roupas, como se esses tivessem os poderes sobrenaturais das relíquias de um santo. O prior estivera considerando o assassinato como uma derrota política para a Igreja, mas as pessoas ali presentes não o viam assim: para elas, tratava-se de um martírio. E a morte de um mártir, muito embora pudesse parecer uma derrota, nunca deixara de, ao final, proporcionar inspiração e força à Igreja.

      Philip pensou de novo nas centenas de pessoas que tinham ido a Kingsbridge a fim de construir a nova catedral, e nos homens, mulheres e crianças que trabalharam juntos metade de uma noite para levantar o muro da cidade. Se aquela gente pudesse ser mobilizada agora, pensou ele, com uma excitação cada vez maior, teria capacidade de soltar um grito tão alto que seria ouvido no mundo inteiro.

      Olhando para os homens e mulheres reunidos em torno do corpo, com o rosto congestionado de sofrimento e horror, Philip percebeu que só queriam um líder.

      Será possível?

      Havia algo familiar naquela situação, reconheceu ele. Um corpo mutilado, um bando de assistentes e alguns soldados a distância: onde vira aquilo antes? O que deveria acontecer a seguir era que um pequeno grupo de seguidores do homem morto se lançaria contra todo o poder e autoridade de um império poderoso.

      Claro. Fora como o cristianismo começara.

      E quando Philip entendeu isso, soube o que tinha a fazer a seguir.

      Deslocou-se para a frente do altar e virou-se para defrontar a multidão. Ainda tinha a espada quebrada na mão. Todos o olharam fixamente. Philip sofreu um momento de dúvida. Será que consigo fazê-lo?, pensou. Posso dar início a um movimento, aqui e agora, que sacudirá o trono da Inglaterra? Olhou para os rostos à sua frente.

      Assim como dor e ira, ele viu, em uma ou duas expressões, uma sugestão de esperança.

      Ergueu a espada bem alto.

      - Esta espada matou um santo - começou. Houve um murmúrio de aprovação. - Hoje à noite testemunhamos um martírio - continuou ele, encorajado.

      Os padres e monges pareceram surpresos. Como Philip, não tinham visto imediatamente o significado real do crime a que haviam testemunhado. Mas os habitantes da cidade tinham, e expressaram sua aprovação.

      - Cada um de nós deve sair daqui e contar o que viu.

      Diversas pessoas aquiesceram vigorosamente. Estavam ouvindo - mas Philip queria mais. Queria inspirá-las. Pregar nunca fora o seu forte. Não era um daqueles homens capazes de controlar uma multidão, arrebatando-a, fazendo-a rir e chorar, e persuadi-la a seguir para onde quer que fosse. Não sabia quando entoar a voz ou como fazer o brilho da glória cintilar nos seus olhos. Era um homem prático, com os pés no chão - e naquele instante precisava falar como um anjo.

      - Em breve todos os homens, mulheres e crianças de Canterbury saberão que os homens do rei assassinaram o arcebispo Tomás Becket na catedral. Mas será apenas o início. A notícia se espalhará por toda a Inglaterra e depois por toda a cristandade.

      Ele os estava perdendo, era capaz de afirmar. Havia insatisfação e desapontamento em muitos rostos.

      - Mas o que faremos? - perguntou um homem.

      O prior percebeu que precisavam tomar algum tipo de atitude concreta imediatamente. Não era possível lançar uma cruzada e depois mandar as pessoas dormir.

      Uma cruzada, pensou ele. Ali estava a idéia.

      - Amanhã - disse ele -, levarei esta espada a Rochester. Depois de amanhã, a Londres. Vocês irão comigo?

      A maioria ficou perplexa, mas alguém no fundo gritou: "Sim!", e então duas ou três outras pessoas expressaram sua aprovação.

      Philip levantou um pouco a voz.

      - Contaremos nossa história em todas as cidades e aldeias da Inglaterra. Mostraremos ao povo a espada que matou são Tomás. Deixaremos que vejam as manchas de sangue no seu manto. - Ele se exaltou com o tema, e deixou a raiva que sentia aparecer um pouco. - Levantaremos um grito que se espalhará por toda a cristandade, chegando até mesmo a Roma. Faremos com que todo o mundo civilizado se vire contra os selvagens que perpetraram este crime horrível e blasfemo!

      Dessa vez a maioria dos assistentes expressou seu acordo. Tinham esperado um modo de deixar fluir suas emoções, e Philip agora o estava proporcionando.

      - Este crime - disse ele, lentamente, a voz virando um grito - jamais, jamais será esquecido!

      Todos urraram seu assentimento. De repente ele soube para onde ir.

      - Vamos começar nossa cruzada agora! - disse.

      - Sim!

      - Vamos carregar esta espada ao longo de todas as ruas de Canterbury!

      - Sim!

      - E vamos contar a todos os cidadãos dentro dos muros da cidade o que testemunhamos aqui hoje à noite!

      - Sim!

      - Tragam velas e sigam-me!

      Levantando bem alto a espada, ele se deslocou pelo meio da catedral.

      O povo o seguiu.

      Exultante, ele atravessou o coro e passou pelo cruzeiro, descendo a nave. Alguns monges e padres caminharam ao seu lado. Não era preciso olhar para trás: podia ouvir os passos de uma centena de pessoas marchando às suas costas. Saiu pela porta principal.

      Ali Philip teve um momento de ansiedade. Do outro lado do pomar às escuras, viu homens de armas esquadrinhando o palácio do arcebispo. Se seus seguidores se confrontassem com eles, a cruzada, mal começada, poderia terminar em pancadaria. Subitamente temeroso, desviou-se e liderou a multidão pelo portão mais próximo para a rua.

      Um dos monges deu início a um hino. Havia lampiões, e fogos acesos no interior das casas, e quando a procissão passava, seus habitantes abriam as portas para saber o que estava acontecendo. Alguns faziam perguntas. Outros se incorporavam ao cortejo.

 

      Philip virou uma esquina e viu William Hamleigh.

      Ele estava de pé diante de um estábulo, e dava a impressão de haver acabado de tirar sua cota de malha, para montar e sair da cidade. Tinha um punhado de homens consigo. Todos olharam, na expectativa, presumivelmente tendo ouvido o hino e querendo saber o que estava acontecendo.

      Quando a procissão, iluminada por velas, se aproximou, William a princípio não entendeu. Depois viu a espada quebrada na mão de Philip e percebeu tudo. Ficou olhando em silêncio por mais um momento, aterrado, e por fim levantou a voz:

      - Parem com isto! - gritou. - Ordeno que se dispersem!

      Ninguém lhe deu atenção. Os homens que o acompanhavam ficaram ansiosos: mesmo com suas espadas, eram vulneráveis a um bando de mais de cem fiéis fervorosos.

      William dirigiu-se diretamente a Philip.

      - Em nome do rei, ordeno que pare com isto!

      O prior passou por ele, levado adiante pela pressão do povo.

      - Tarde demais, William! - exclamou, por cima do ombro. - Tarde demais!

     

      Os garotos pequenos chegaram cedo para o enforcamento.

      Eles já estavam lá, na praça do mercado de Shiring, jogando pedras em gatos, abusando dos mendigos e brigando uns com os outros, quando Aliena chegou, sozinha e a pé, envergando uma capa barata com capuz para esconder sua identidade.

      Ficou a distância, olhando para o cadafalso. Não tencionara vir. Testemunhara um número grande demais de enforcamentos durante os anos em que desempenhara o papel de conde. Agora que já não tinha tal responsabilidade, achara que seria feliz se nunca mais visse outro homem ser enforcado em toda a sua vida. Mas esse era diferente.

      Não estava mais atuando como conde porque seu irmão, Richard, morrera na Síria - não numa batalha, ironicamente, mas num terremoto. Levara seis meses para receber a notícia. Não o via há quinze anos, e agora nunca mais o veria de novo. No alto da colina, as portas do castelo se abriram, e o prisioneiro saiu com seu acompanhante, seguido pelo novo conde de Shiring, Tommy, filho de Aliena.

      Richard nunca chegara a ter filhos, de modo que seu herdeiro fora o seu sobrinho. O rei, aturdido e enfraquecido pelo escândalo de Becket, assumira a linha de ação da menor resistência e rapidamente o confirmara como conde. Aliena passara o bastão à nova geração de muito bom grado. Conseguira o que desejara fazer com o condado.

      A região era de novo rica e florescente, uma terra de carneiros gordos, pastos verdes e moinhos de grande porte. Alguns dos maiores e mais progressistas proprietários seguiram o exemplo dela, passando a usar cavalos para puxar o arado, alimentados com a aveia plantada no sistema de rotação tríplice das colheitas. Em consequência, a terra era capaz de alimentar ainda mais gente do que sob o esclarecido governo do seu pai.

      Tommy seria um bom conde. Fora para isso que nascera. Jack se recusara a reconhecê-lo por algum tempo, mas acabara sendo forçado a admitir a verdade. Seu filho nunca fora capaz de cortar uma pedra em linha reta, mas era um líder natural, e, aos vinte e oito anos de idade era decidido, determinado, inteligente e justo. Agora, era geralmente chamado de Thomas. Quando assumiu, todos esperaram que Aliena permanecesse no castelo, apoquentando a nora e brincando com os netos. Ela rira de todos. Gostava da mulher de Tommy - uma garota bonita, uma das filhas mais jovens do conde de Bedford - e adorava os três netos, mas aos cinquenta e dois anos não estava pronta para se aposentar. Ela e Jack tinham se mudado para uma grande casa de pedra perto do priorado - no que antes fora o bairro pobre, mas que não era mais -, e voltara ao comércio de lã, comprando e vendendo, negociando com toda a sua antiga energia e fazendo dinheiro com extraordinária rapidez.

      O grupo que ia tratar do enforcamento entrou na praça, e Aliena acordou do seu sonho. Examinou detidamente o prisioneiro, tropeçando na ponta de uma corda, as mãos presas nas costas. Era William Hamleigh.

      Alguém da primeira fila cuspiu nele. A multidão na praça era grande, pois havia muita gente feliz por ver o fim de William; e mesmo para aqueles que não tinham queixa dele, era uma grande atração ver um antigo xerife ser enforcado. Mas Hamleigh se envolvera no mais notório assassinato de que alguém pudesse se lembrar.

      Aliena nunca soubera ou imaginara nada como a reação ao assassinato do arcebispo Tomás. A notícia se espalhara rapidamente por toda a cristandade, de Dublin a Jerusalém e de Toledo a Oslo. O papa guardou luto. A parte continental do império do rei Henrique foi colocada sob interdição, o que significava que as igrejas estavam fechadas e não se realizavam os sacramentos, exceto o batismo. Na Inglaterra o povo começou a fazer peregrinações a Canterbury, exatamente como se fosse um santuário como Santiago de Compostela. E houve milagres. Água com gotas de sangue do mártir e fragmentos do manto que ele usava quando fora assassinado curaram doentes não só em Canterbury como em toda a Inglaterra.

      Os homens de William tentaram roubar o corpo da catedral, mas os monges foram alertados e o esconderam; e agora estava seguro, no interior de uma catacumba de pedra, e os peregrinos tinham que enfiar a cabeça num buraco da parede para beijar o caixão de mármore.

      Foi o último crime de William. Fugira correndo para Shiring, mas Tommy o prendera e o acusara de sacrilégio. O xerife fora considerado culpado pela corte do bispo Philip. Normalmente ninguém se atreveria a sentenciar um xerife, por se tratar de uma autoridade subordinada à Coroa, mas nesse caso o contrário era verdadeiro; ninguém, nem mesmo o rei, se atreveria a defender um dos assassinos de Becket.

      William ia ter um mau fim.

      Seus olhos estavam arregalados e descontrolados, a boca aberta e babando. Ele resmungava incoerentemente, e havia uma mancha na parte da frente da túnica, onde ele se molhara.

      Aliena observou seu velho inimigo cambalear às cegas na direção do patíbulo. Lembrou-se do rapaz jovem, arrogante e sem coração que a estuprara trinta e cinco anos antes. Era difícil crer que se transformara naquele espécime sub-humano, gemente e aterrorizado que via agora. Nem mesmo o velho cavaleiro gordo, gotoso e desapontado que ele fora no fim da vida nada tinha a ver com o William de agora. Ele começou a lutar e a gritar à medida que se aproximava do cadafalso. Os homens de armas o puxaram como se puxassem um porco indo para o matadouro. Aliena não encontrou piedade no coração: só conseguia sentir alívio.

      William nunca mais aterrorizaria ninguém.

      Ele chutou e gritou quando foi levantado e posto em cima do carro de boi. Parecia um animal - a cara vermelha, selvagem, imundo -, mas o som que produzia era o de uma criança gemendo, chorando e resmungando. Foram precisos quatro homens para segurá-lo, enquanto um quinto passou o laço no seu pescoço. Lutou tanto que o nó apertou antes da hora, e ele começou a se estrangular pelos próprios esforços. Os homens de armas recuaram. William se contorceu, asfixiado, o rosto vermelho ficando roxo.

      Aliena estava com os olhos fixos nele, consternada. Nem mesmo no auge do seu ódio desejara uma morte daquelas ao inimigo.

      Não houve mais barulho, agora que ele estava asfixiado; e a multidão permaneceu imóvel. Até mesmo os garotos pequenos foram silenciados pela visão horrível.

      Alguém deu uma chicotada no flanco do boi e o animal se adiantou. Finalmente William caiu, mas a queda não quebrou seu pescoço, e ele ficou se balançando na ponta da corda, sufocando lentamente. Seus olhos permaneceram abertos. Aliena achou que ele estava olhando para ela. A expressão do seu rosto no momento em que estava se contorcendo em agonia lhe era familiar. Constatou que era assim que ele ficara quando a estuprara, pouco antes de atingir o orgasmo. A lembrança a atingiu como uma punhalada, mas ela não se permitiu desviar os olhos.

      Foi preciso um longo tempo, mas a multidão permaneceu quieta até o fim. O rosto dele foi ficando cada vez mais escuro. Suas contorções agônicas tornaram-se meras contrações. Por fim seus olhos rolaram para dentro, as pálpebras se fecharam, ele ficou imóvel e, numa visão repelente, sua língua projetou-se, negra e inchada, por entre os dentes.

      Estava morto.

      Aliena sentiu-se exausta. William mudara sua vida - houve uma época em que teria dito que ele arrumara sua vida -, mas agora estava morto, sem nunca mais poder fazer mal a ela ou a qualquer outra pessoa.

      A multidão começou a se dispersar. Os garotos pequenos imitavam as convulsões da agonia uns para os outros, rolando os olhos e pondo a língua para fora. Um homem de armas subiu no cadafalso e cortou a corda que prendia o cadáver.

      Aliena atraiu a atenção do seu filho. Ele pareceu surpreso por vê-la. Aproximou-se imediatamente e inclinou-se para beijá-la. Meu filho, pensou ela; meu filho. Filho de Jack. Lembrou-se do terror que sentira quando pensara que podia ter tido um filho de William.

      Bem, algumas coisas haviam dado certo.

      - Achei que você não ia querer vir aqui hoje - disse Tommy.

      - Eu tinha que vir. Tinha que vê-lo morto.

      Ele ficou espantado. Não compreendeu. Aliena ficou satisfeita. Esperava que ele nunca tivesse de compreender certas coisas.

      Tommy passou um braço pelos seus ombros e os dois se retiraram juntos da praça.

      Aliena não olhou para trás.

     

      Num dia quente, em pleno verão, Jack almoçou com Aliena e Sally na fresca do transepto norte, na galeria, sentados no gesso riscado do seu chão de desenho. O som dos monges cantando o serviço da sexta no coro era um murmúrio que lembrava o rumorejar de uma distante queda-d'água. Tinham comido costeletas de carneiro frias com pão fresco de trigo e tomado um jarro de cerveja dourada. Jack passara a manhã esboçando o desenho do novo coro, que começaria a construir no ano seguinte.

      Sally ficou olhando para o desenho, ao mesmo tempo em que mordiscava a costeleta com seus lindos dentes muito brancos. Em um momento mais, diria qualquer coisa crítica sobre ele, Jack sabia. Olhou para Aliena. Ela também lera a expressão da fisionomia de Sally e sabia o que estava por vir. Trocaram um olhar conhecedor e sorriram.

      - Por que você quer que o lado leste seja arredondado? - perguntou Sally.

      - Eu me baseei no desenho de Saint-Denis - respondeu Jack.

      - Mas há alguma vantagem?

      - Sim. Ajuda a conservar os peregrinos em movimento.

      - E assim você só tem essa fileira de janelinhas.

      Jack achara que o assunto "janelas" viria logo, sendo Sally vidraceira.

      - Janelinhas? - Fingiu estar indignado. - Essas janelas são imensas! Quando pus pela primeira vez janelas deste tamanho nesta igreja todos pensaram que o prédio cairia por falta de suporte estrutural.

      - Se o coro tivesse um acabamento quadrado, você teria uma enorme parede reta - insistiu Sally. - E aí poderia pôr janelas realmente grandes.

      Sally tinha razão, pensou Jack. com o desenho arredondado todo o coro era obrigado a ter a mesma elevação, obedecendo à tradicional divisão em três níveis, de arcada, galeria e clerestório em toda a volta. Uma face quadrada proporcionava a chance de mudar o desenho.

      - Poderia haver outro modo de fazer os peregrinos não pararem de circular - disse ele pensativamente.

      - E o sol nascente brilharia através das grandes janelas - acrescentou Sally.

      Jack era capaz de imaginar.

      - Poderia haver uma fileira de janelas estreitas e pontiagudas, como lanças num cavalete.

      - Ou uma enorme janela redonda, como uma rosa - disse Sally.

      Era uma idéia assombrosa. Para quem se encontrasse de pé na nave olhando na extensão da igreja na direção leste, a janela redonda pareceria um imenso sol explodindo em inumeráveis e deslumbrantes cacos coloridos de vidro.

      Jack podia visualizar a janela.

      - Gostaria de saber qual seria o tema que os monges iriam querer - disse ele.

      - A Lei e os Profetas - disse Sally.

      Ele franziu a testa para a filha.

      - Sua víbora sonsa, você já discutiu essa idéia com o o prior Jonathan, não foi?

      Sally fez um ar culpado, mas foi salva de responder pela chegada de Peter Cinzel, um jovem cinzelador. Era um homem tímido e desajeitado, cujo cabelo louro vivia caindo sobre os olhos, mas seus trabalhos eram lindos, e Jack se sentia feliz por poder contar com ele.

      - O que posso fazer por você, Peter? - perguntou.

      - Na verdade eu estava procurando Sally - respondeu o rapaz.

      - Pois bem, você a encontrou.

      Sally estava se levantando, espanando migalhas de pão da frente da túnica.

      - Eu os verei mais tarde - disse ela, saindo com Peter pela porta baixa e descendo a escada em espiral.

      Jack e Aliena se olharam.

      - Ela estava envergonhada? - perguntou Jack.

      - Espero que sim - disse Aliena. - Meu Deus, já está em tempo de ela se apaixonar por alguém! Está com vinte e seis anos!

      - Ora, ora, eu já havia desistido de ter esperanças. Pensei que estivesse planejando ser uma velha solteirona.

      Aliena sacudiu a cabeça.

      - Não Sally. Ela é tão sensual quanto qualquer outra mulher. Só é muito seletiva.

      - É mesmo? As garotas do condado não estão fazendo fila para desposar Peter Cinzel.

      - As garotas do condado se apaixonam por homens grandes e bonitos como Tommy, que fazem figura em cima de um cavalo e usam capas forradas de seda vermelha. Sally é diferente. Ela quer alguém inteligente e sensível. Peter é exatamente o tipo dela.

      Jack aquiesceu. Nunca pensara no caso daquele modo, mas sentia intuitivamente que Aliena estava certa.

      - Ela é como a avó - disse. - Minha mãe se apaixonou por um tipo excêntrico.

      - Sally é como a sua mãe, e Tommy como o meu pai - disse Aliena.

      Jack sorriu para ela. Estava mais bonita que nunca. Seu cabelo ficava grisalho e a pele do seu pescoço não tinha mais a antiga lisura do mármore, mas à medida que ficava mais velha e perdia a redondez das formas da maternidade, os ossos do seu lindo rosto tornavam-se mais proeminentes e ela assumia uma beleza elegante, quase estrutural. Jack adiantou-se e acompanhou com o dedo o desenho do queixo de Aliena.

      - Como meus arcobotantes alados - disse. Ela sorriu.

      Jack desceu a mão pelo seu pescoço e pelos seus seios. Eles também tinham mudado. Lembrava-se de quando se lançavam do peito dela como se fossem leves, os mamilos apontando para cima. Depois, com a gravidez, aumentaram ainda mais e os mamilos se alargaram. Agora estavam mais caídos e macios, e balançavam deliciosamente de um lado para outro quando ela caminhava. Ele os amara em todas as fases. Perguntou-se como seriam quando ela envelhecesse. Ficariam murchos e enrugados? Provavelmente gostarei deles assim mesmo, pensou. Sentiu o mamilo endurecer ao toque de sua mão. Inclinou-se para beijar-lhe os lábios.

      - Jack, você está numa igreja - murmurou ela.

      - Não faz mal - disse ele, e deslizou a mão da barriga para a virilha.

      Ouviram-se passos na escada. Ele se afastou, culposamente. Ela riu da sua frustração.

      - Aí está o julgamento de Deus das suas intenções - disse, irreverente.

      - Verificarei isso mais tarde - murmurou Jack, num tom de voz fingidamente ameaçador.

      Os passos chegaram ao topo da escada e o prior Jonathan apareceu. Cumprimentou a ambos solenemente. Seu ar era grave.

      - Quero que você ouça uma coisa, Jack - disse. - Quer ir até o claustro?

      - Claro. - Jack pôs-se de pé.

      O prior voltou para a escada em espiral e desceu. Jack parou junto à porta e apontou um dedo ameaçador para Aliena.

      - Mais tarde - disse.

      - Promete? - perguntou ela, com um sorriso.

      Jack seguiu Jonathan, descendo a escada e atravessando a igreja até a porta no transepto sul que levava ao claustro. Seguiram ao longo do passadiço norte, passaram por garotos com lousas e pararam no canto. com uma inclinação da cabeça, Jonathan dirigiu a atenção de Jack para um monge sentado sozinho numa saliência de pedra a meio caminho do passadiço oeste. O capuz do monge estava erguido, cobrindo-lhe o rosto, mas quando pararam, ele se virou, levantou a cabeça e rapidamente desviou os olhos.

      Jack deu um passo involuntário para trás.

      O monge era Waleran Bigod.

      - O que esse demônio está fazendo aqui? - perguntou, furioso.

      - Preparando-se para ir ao encontro do seu Criador - respondeu Jonathan.

      Jack franziu a testa.

      - Não entendo.

      - É um homem derrotado - disse o prior. - Não tem posição, não tem poder nem amigos. Constatou que Deus não quer que seja um bispo grande e poderoso. Viu o erro dos seus atos. Chegou aqui, a pé, e suplicou-me que o admitisse como um monge humilde, para passar o resto de seus dias pedindo a Deus perdão pelos seus pecados.

      - Acho difícil de acreditar - disse Jack.

      - Eu também, a princípio - disse Jonathan. - Mas no fim percebi que sempre foi um homem genuinamente temente a Deus.

      Jack assumiu uma expressão cética.

      - Sinceramente penso que ele era devoto. Cometeu apenas um erro crucial: acreditou que o fim justifica os meios a serviço de Deus. Isso lhe permitia fazer qualquer coisa.

      - Inclusive conspirar para assassinar um arcebispo!

      Jonathan ergueu ambas as mãos, num gesto defensivo.

      - Deus deve puni-lo por isso, não eu!

      Jack deu de ombros. Era o tipo de coisa que Philip teria dito. Não via motivo para deixar Waleran viver no priorado. No entanto, era esse o jeito de ser dos monges.

      - Por que você quis que eu viesse vê-lo?

      - Ele quer lhe contar por que enforcaram seu pai.

      Jack subitamente gelou.

      Waleran estava sentado tão imóvel quanto uma pedra, o olhar perdido no espaço. Estava descalço. Os frágeis tornozelos brancos de velho eram visíveis abaixo da bainha do hábito de tecido grosseiro. Jack constatou que ele não era mais assustador. Estava fraco, derrotado e triste.

      Adiantou-se vagarosamente e sentou-se num banco a uma jarda de distância de Waleran.

      - O velho rei Henrique era forte demais - disse Bigod sem preâmbulo. - Alguns dos barões não gostavam dele: sentiam-se restringidos demais. Desejavam que um rei mais fraco o sucedesse. Mas Henrique tinha um filho, Guilherme.

      Aquilo tudo era história antiga.

      - Isso aconteceu antes de eu nascer - reclamou Jack.

      - Seu pai morreu antes de você nascer - disse Waleran, com um leve resquício da antiga empáfia.

      Jack assentiu.

      - Continue, então.

      - Um grupo de barões decidiu matar o filho de Henrique. Achavam que se houvesse dúvidas quanto à sucessão, teriam mais influência sobre a escolha do novo rei.

      O construtor examinou o rosto pálido e magro do monge, procurando uma evidência de falsidade. Mas o velho só parecia fraco, vencido e cheio de remorsos. Se estava com algum objetivo oculto, Jack não conseguiu perceber.

      - Mas Guilherme morreu no naufrágio do White Ship - disse.

      - Aquele naufrágio não foi acidente - disse Waleran.

      Jack ficou surpreso. Poderia ser verdade? O herdeiro do trono assassinado só porque um grupo de barões queria uma monarquia fraca? Mas não era mais chocante que o assassinato de um arcebispo.

      - Continue - disse.

      - Os homens dos barões puseram a pique o navio e fugiram num bote. Todos os outros morreram afogados, exceto um homem que se agarrou a um mastro e foi boiando até a costa.

      - Meu pai - disse Jack. Estava começando a ver aonde aquilo ia chegar.

      O rosto de Waleran estava muito branco, e os lábios, lívidos. Falava sem emoção, e não encarou os olhos de Jack.

      - Ele deu em terra perto de um castelo que pertencia a um dos conspiradores, e o prenderam. O homem não tinha interesse em denunciá-los. Na verdade, nem sequer percebera que o navio fora afundado. Mas vira coisas que teriam revelado a verdade aos outros, se lhe permitissem recuperar a liberdade e falar sobre sua experiência. Assim, sequestraram-no, levaramno para a Inglaterra e deixaram-no aos cuidados de algumas pessoas em que podiam confiar.

      Jack sentiu-se profundamente triste. Tudo o que seu pai sempre quisera, segundo Ellen, era distrair as pessoas. Mas havia algo de estranho na história de Bigod.

      - Por que não o mataram logo? - perguntou.

      - Era o que deviam ter feito - respondeu Waleran friamente. - Mas ele era um homem inocente, um menestrel, uma pessoa que só dava prazer aos outros. Não conseguiram matá-lo. - Ele deu um sorriso desconsolado. - Até mesmo as pessoas mais desumanas no fim têm alguns escrúpulos.

      - Então por que mudaram de idéia?

      - Porque com o tempo ele se tornou perigoso, mesmo aqui. A princípio não ameaçava ninguém, não era capaz sequer de falar inglês. Mas aprendeu, é claro, e começou a fazer amigos. Assim, trancaram-no na cela da prisão sob o dormitório. Então começaram a perguntar por que ele estava preso. Ele se tornou um estorvo. Perceberam que nunca poderiam ter tranquilidade enquanto estivesse vivo. E nos disseram para matá-lo.

      Tão fácil, pensou Jack.

      - Mas por que vocês obedeceram?

      - Éramos ambiciosos, nós três - disse Waleran, e pela primeira vez seu rosto demonstrou emoção, a boca retorcendo-se numa careta de remorso. - Percy Hamleigh, o prior James e eu. Sua mãe falou a verdade: nós três fomos recompensados. Tornei-me arcediago, e minha carreira na Igreja teve um esplêndido início. Percy Hamleigh tornou-se um importante proprietário de terras. O prior James ganhou um útil acréscimo à propriedade do priorado.

      - E os barões?

      - Após o naufrágio, Henrique foi atacado, nos três anos seguintes, por Fulk de Anjou, William Clito na Normandia e pelo rei da França. Durante algum tempo pareceu muito vulnerável. Mas derrotou seus inimigos e governou por outros dez anos. No entanto, a anarquia que os barões queriam acabou acontecendo, quando Henrique morreu sem um herdeiro masculino e Estêvão subiu ao trono. Enquanto a guerra civil convulsionava o país nas duas décadas seguintes, os barões exerciam sua autoridade como reis em seus territórios, sem nenhum poder central para impor-lhes limites.

      - E meu pai morreu por isso.

      - E no fim nada deu certo. A maior parte daqueles barões morreu na guerra, e alguns dos seus filhos também. E as pequenas mentiras que dissemos, para conseguir que seu pai fosse morto,   acabaram  voltando  para  nos  perseguir.   Sua  mãe  nos amaldiçoou após o enforcamento, e a praga dela funcionou. O prior James foi destruído pela consciência, como Remigius disse no julgamento. Percy Hamleigh morreu antes de a verdade vir à tona, mas seu filho William acabou enforcado. E olhe só para mim: meu ato de perjúrio foi atirado de volta sobre minha cabeça quase cinquenta anos mais tarde, terminando com a minha carreira. - Waleran estava pálido e exausto, como se o seu rígido autocontrole fosse resultado de enorme esforço. - Todos nós tínhamos muito medo de sua mãe, porque não estávamos certos do que ela sabia. Afinal nem era muito, mas o pouco que sabia foi o suficiente.

      Jack estava tão abatido quanto Waleran. Finalmente soubera a verdade sobre seu pai, algo que quisera toda a sua vida. Mas não sentia nem raiva nem vontade de se vingar. Não chegara a conhecer seu verdadeiro pai, mas tivera Tom, que lhe dera o amor pela construção, a segunda grande paixão da sua vida.

      Levantou-se. Tudo aquilo ocorrera há tempo demais para ele chorar agora. Desde então muitas coisas tinham acontecido, a maioria delas boas.

      Olhou para o velho contrito sentado no banco. Ironicamente, era Waleran quem sofria agora a amargura do arrependimento. Sentiu pena dele. Como devia ser terrível chegar à velhice e saber que sua vida fora desperdiçada! Waleran ergueu a cabeça, e os olhos dos dois homens se encontraram pela primeira vez. Bigod estremeceu e desviou o rosto, como se tivesse sido esbofeteado. Por um momento Jack pôde ler os pensamentos do outro homem, e teve certeza de que ele vira a piedade nos seus olhos.

      E para Waleran, a piedade dos seus inimigos era a pior humilhação de todas.

     

      Philip parou no Portão Oeste da antiga cidade cristã de Canterbury, envergando o traje de gala completo, deslumbrantemente colorido, de um bispo inglês e carregando um valiosíssimo báculo incrustado de pedras preciosas. Estava encharcado de água da chuva.

      Tinha sessenta e seis anos de idade, e a chuva gelava seus velhos ossos. Era a última vez que se aventurava tão longe de casa. Mas não teria perdido aquele dia por nada deste mundo. De certo modo, tratava-se de uma cerimônia que coroava o trabalho de sua vida.

      Tinham se passado três anos e meio do histórico assassinato do arcebispo Tomás. Nesse curto espaço de tempo o culto místico de Tomás Becket empolgara o mundo. Philip não tinha idéia do que estava iniciando quando conduziu aquela pequena procissão, iluminada por velas, pelas ruas de Canterbury. O papa canonizara Tomás com uma rapidez quase indecente. Havia inclusive uma nova ordem de monges-cavaleiros na Terra Santa chamada de Cavaleiros de São Tomás do Acre. O rei Henrique não fora capaz de se contrapor a um movimento popular tão poderoso. Era forte demais para qualquer indivíduo contê-lo.

      Para Philip, a importância de todo o fenômeno consistia no que demonstrava a respeito do poder do Estado. A morte de Tomás mostrara que, num conflito entre a Igreja e a Coroa, o monarca sempre poderia fazer prevalecer sua vontade graças à força bruta. O culto de são Tomás, contudo, provava que tal vitória sempre seria sem substância. O poder de um rei não era absoluto, afinal; podia ser limitado pela vontade do povo. Essa mudança tivera lugar no decurso da vida de Philip. E ele não se limitara a testemunhá-la; ajudara a produzi-la. A cerimônia desse dia comemoraria tal fato.

      Um homem corpulento, de cabeça grande, caminhava na direção da cidade, no meio da chuva. Não usava botas ou chapéu. A uma certa distância à sua retaguarda, era seguido por um grupo grande de pessoas a cavalo. O homem era o rei Henrique.

      A multidão conservou-se tão silenciosa quanto num funeral, quando o rei, encharcado pela água da chuva, seguiu caminhando pela lama, na direção do portão da cidade.

      Philip colocou-se na rua de acordo com o plano combinado antes, e foi andando na frente do rei descalço, liderando o cortejo para a catedral. Henrique seguia com a cabeça baixa, o passo normalmente jovial e desembaraçado rigidamente controlado, a postura como um retrato de penitência. Os atemorizados habitantes da cidade contemplavam em silêncio aquela cena do rei da Inglaterra se humilhando diante de seus olhos. A escolta real seguia a distância.

      Philip conduziu o rei lentamente através do portão da catedral. As portas imponentes da esplêndida igreja estavam inteiramente abertas. Eles entraram, uma solene procissão de duas pessoas que era o ponto culminante da crise política do século. A nave estava lotada. A multidão abriu caminho para deixar que passassem. As pessoas falavam aos sussurros, atônitas com a visão do mais orgulhoso rei da cristandade, encharcado pela chuva, entrando na igreja como um pedinte.

      Percorreram devagar a nave e desceram os degraus para entrar na cripta. Ali, ao lado do novo túmulo do mártir, os monges de Canterbury estavam esperando, juntamente com os bispos e abades mais poderosos do reino. O rei ajoelhou-se no chão.

      Seus cortesãos entraram na cripta atrás dele. Na frente de todos, Henrique de Inglaterra, o segundo com esse nome, confessou seus pecados, e disse que tinha sido o involuntário causador do assassinato de são Tomás.

      Depois de confessar, tirou a capa. Por baixo usava uma túnica verde e um cilício. Ajoelhou-se de novo, dobrando as costas.

      O bispo de Londres flexionou uma vara.

      O rei seria açoitado.

      Receberia cinco pancadas de cada padre e três de cada monge presente. Os golpes seriam simbólicos, claro: como havia oitenta monges presentes, se batessem de verdade o matariam.

      O bispo de Londres tocou nas costas do rei cinco vezes, de leve, com a vara. Depois virou-se e entregou-a a Philip, bispo de Kingsbridge.

      Philip adiantou-se para açoitar o rei. Sentia-se feliz por ter vivido até aquele momento. Depois, pensou, o mundo nunca mais seria o mesmo.

 

                                                                                            Ken Follett  

 

                      

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