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O MISTÉRIO DA ESTRADA DE SINTRA / Eça de Queirós
O MISTÉRIO DA ESTRADA DE SINTRA / Eça de Queirós

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O MISTÉRIO DA ESTRADA DE SINTRA

 

Há catorze anos, numa noite de Verão, no Passeio Público, em frente de duas chávenas de café, penetrados pela tristeza da gran­de cidade que em torno de nós cabeceava de sono ao som de um so­luçante pot-pourri dos Dois Foscaris, deliberámos reagir sobre nós mesmos e acordar tudo aquilo a berros, num romance tremendo, buzinado à Baixa das alturas do Diário de Notícias.

Para esse fim, sem plano, sem método, sem escola, sem docu­mentos, sem estilo, recolhidos à simples «torre de cristal da Imagi­nação», des fechámos a improvisar este livro, um em Leiria, outro em Lisboa, cada um de nós com uma resma de papel, a sua alegria e a sua audácia.

Parece que Lisboa efectivamente despertou, pela simpatia ou pela curiosidade, pois que tendo lido na larga tiragem do Diário de Notícias, o Mistério da Estrada de Sintra, o comprou ainda numa edição em livro; e hoje manda-nos V. as provas de uma terceira edi­ção, perguntando-nos o que pensamos da obra escrita nesses velhos tempos, que recordamos com saudade...

Havia já então terminado o feliz rei nado do Senhor» João Vi. Falecera o simpático Garção, Tolentino o jucundo, e o sempre cho­rado Quita. Além do Passeio Público, já nessa época evacuado como o resto do país pelas tropas de Junot, encarregava-se também de fa­lar às imaginações o Sr. Octave Feuillet. O nome de FIaubert não era familiar aos folhetinistas. Ponson du Terrail trovejava no Si­nai dos pequenos jornais e das bibliotecas económicas. O Sr. Jules Claretie publicava um livro intitulado... (ninguém hoje se lembra do título) do qual diziam comovidamente os críticos: – Eis a (uma obra que há-de ficar!... Nós, enfim, éramos novos­.

O que pensamos hoje do romance que escrevemos há catorze anos?... Pensamos simplesmente – louvores a Deus! – que ele é execrável; e nenhum de nós, quer como romancista, quer como cri­tico, deseja, nem ao seu pior inimigo, um livro igual. Porque nele há um pouco de tudo quanto um romancista lhe não deveria pôr e qua­se tudo quanto um crítico lhe deveria tirar

Poupemo-lo – para o não agravar fazendo-o em três volumes – à enumeração de todas as suas deformidades? Corramos um véu discreto sobre os seus mascarados de diversas alturas, sobre os seus médicos misteriosos, sobre os seus louros capitães ingleses, sobre as suas condessas fatais, sobre os seus tigres, sobre os seus elefantes, sobre os seus iates em que se arvoram, como pavilhões do ideal, len­ços brancos de cambraia e renda, sobre os seus sinistros copos de ópio, sobre os seus cadáveres elegantes, sobre as suas toilettes ro­mânticas, sobre os seus cavalos esporeados por cavaleiros de capas alvadias desaparecendo envoltos no pó das fantásticas aventuras pela Porcalhota fora!...

Todas estas coisas, aliás simpáticas, comoventes por vezes sempre sinceras, desgostam todavia velhos escritores, que há mui­to desviaram os seus olhos das perspectivas enevoadas da senti­mentalidade, para estudarem pacientemente e humildemente as claras realidades da sua rua.

Como permitimos pois que ser e publique um livro que, sendo to­do de imaginação, cismado e não observado. desmente toda a cam­panha que temos feito pela arte de análise e de certeza objectiva?

Consentimo-lo porque entendemos que nenhum trabalhador deve parecer envergonhar-se do seu trabalho.

Conta-se que Murat, sendo rei de Nápoles, mandara pendurar na sala do trono o seu antigo chicote de postilhão, e muitas vezes, apontando para o ceptro, mostrava depois o açoite, gostando de repetir: Comecei por ali. Esta gloriosa história confirma o nosso parecer, sem com isto querermos dizer que ela se aplique às nossas pessoas. Como trono temos ainda a mesma velha cadeira em que escrevíamos há quinze anos; não temos dossel que nos cubra; e as nossas cabeças, que embranquecem não se cingem por enquanto de coroa alguma, nem de louros, nem de Nápoles.

Para nossa modesta satisfação basta-nos não ter cessado de trabalhar um só dia desde aquele em que datámos este livro até o instante em que ele nos reaparece inesperadamente na sua tercei­ra edição, com um petulante aninho de triunfo que, à fé de Deus, não lhe vai mal!

Então, como agora, escrevíamos honestamente isto é o melhor que podíamos desse amor da perfeição, que é a honradez dos artis­tas, veio talvez a simpatia do público ao livro da nossa mocidade.

Há mais duas razões, para autorizar esta reedição.

A primeira é que a publicação deste livro, fora de todos os mol­des até o seu tempo consagrados, pode conter, para uma geração que precisa de a receber, uma tal lição de independência.

A mocidade que nos sucedeu, em vez de ser inventiva, audaz, re­volucionária, destruidora de ídolos, parece-nos servil, imitadora, copista, curvada de mais diante dos mestres. Os novos escritores não avançam um pé que não pousem na pegada que deixaram ou­tros. Esta pusilanimidade torna as obras trôpegas, dá-lhes uma expressão estafada; e a nós, que partimos, a geração que chega faz-nos o efeito de sair velha do berço e de entrar na arte de muletas.

Os documentos das nossas primeiras loucuras de coração queimámo-los há muito, os das nossas extravagâncias de espírito de­sejamos que fiquem. Aos vinte anos é preciso que alguém seja estroi­na, nem sempre talvez para que o mundo progrida, mas ao menos para que o mundo se agite. Para se ser ponderado, correcto e imó­vel há tempo de sobra na velhice.

Na arte, a indisciplina dos novos, a sua rebelde força de re­sistência às correntes da tradição, é indispensável para a revi­vescência da invenção e do poder criativo, e para a originalidade artística. Ai das literaturas em que não há mocidade! Como os velhos que atravessaram a vida sem o sobressalto de uma aventura, não haverá nelas que lembrar Além de que, para os que na idade madura foram arrancados pelo dever às facilidades da improvi­sação e entraram nesta região dura das coisas exactas, entriste­cedora e mesquinha, onde, em lugar do esplendor dos heroísmos e da beleza das paixões. só há a pequenez dos caracteres e a miséria dos sentimentos, seria doce e reconfortante ouvir de longe a longe, nas manhãs de sol, ao voltar da Prima vera, zumbir no azul, como nos bons tempos, a dourada abelha da fantasia

A última razão que nos leva a não repudiar este livro, é que ele é ainda o testemunho da íntima confraternidade de dois antigos homens de letras, resistindo a vinte anos de provação nos contac­tos de uma sociedade que por todos os lados se dissolve. E, se isto não é um triunfo para o nosso espírito, é para o nosso coração uma suave alegria.

 

EXPOSIÇÃO DO DOUTOR ***

 

Sr. Redactor do Diário de Notícias:

Venho pôr nas suas mãos a narração de um caso verdadeira­mente extraordinário, em que intervim como facultativo, pedindo-lhe que, pelo modo que entender mais adequado, publique na sua folha a substância, pelo menos, do que vou expor.

Os sucessos a que me refiro são tão graves, cerca-os um tal mistério, envolve-os uma tal aparência de crime que a publicida­de do que se passou por mim torna-se importantíssima como cha­ve única para a desencerração de um drama que suponho terrível conquanto não conheça dele senão um só acto e ignore inteiramen­te quais foram as cenas precedentes e quais tenham de ser as úl­timas.

Há três dias que eu vinha dos subúrbios de Sintra em compa­nhia de F..., um amigo meu, em cuja casa tinha ido passar algum tempo.

Montávamos dois cavalos que F... tem na sua quinta e que de­viam ser reconduzidos a Sintra por um criado que viera na véspe­ra para Lisboa.

Era ao fim da tarde quando atravessámos a charneca. A me­lancolia do lugar e da hora tinha-se-nos comunicado, e vínhamos silenciosos, abstraídos na paisagem, caminhando a passo.

A cerca talvez de meia distancia do caminho entre S. Pedro e o Cacém, num ponto a que não sei o nome porque tenho transita­do pouco naquela estrada, sítio deserto como todo o caminho através da charneca, estava parada uma carruagem.

Era um coupé pintado de escuro, verde e preto, e tirado por uma parelha cor de castanha.

O cocheiro, sem libré, estava em pé, de costas para nós, diante dos cavalos.

Dois sujeitos achavam-se curvados ao pé das rodas que ficavam para a parte da estrada por onde tínhamos de passar, e pare­ciam ocupados em examinar atentamente o jogo da carruagem.

Um quarto indivíduo, igualmente de costas para nós, estava perto do valado, do outro lado do caminho, procurando alguma coi­sa, talvez uma pedra para calçar o trem.

– É o resultado das sob-rodas que tem a estrada – observou o meu amigo. – eixo partido ou alguma roda de­sembuxada.

Passávamos a este tempo pelo meio dos três vultos a que me re­feri, e F... tinha tido apenas tempo de concluir a frase que proferira, quando o cavalo que eu montava deu repentinamente meia volta rápida, violenta, e caiu de chapa.

O homem que estava junto do valado, ao qual eu não dava aten­ção porque ia voltado a examinar o trem, determinara essa queda, colhendo repentinamente e com a máxima força as rédeas que fi­cavam para o lado dele e impelindo ao mesmo tempo com um pon­tapé o flanco do animal para o lado oposto.

O cavalo, que era um poldro de pouca força e mal manejado, es­corregou das pernas e tombou ao dar a volta rápida e precipitada a que o tinham constrangido.

O desconhecido fez levantar o cavalo segurando-lhe as rédeas, e, ajudando-me a erguer, indagava com interesse se eu teria mo­lestado a perna que ficara debaixo do cavalo.

Este indivíduo tinha na voz a entoação especial dos homens bem-educados. A mão que me ofereceu era delicada. O rosto ti­nha-o coberto com uma máscara de cetim preto. Entrelembro-me de que trazia um pequeno fumo no chapéu. Era um homem ágil e extremamente forte, segundo denota o modo como fez cair o cavalo.

Ergui-me alvoroçadamente e, antes de ter tido ocasião de dizer uma palavra, vi que, ao tempo da minha queda, se travara luta entre o meu companheiro e os outros dois indivíduos que fingiam examinar o trem e que tinham a cara coberta como aque­le de que já falei.

Puro Ponson du Terrail! dirá o Sr. Redactor. Evidentemente. Parece que a vida, mesmo no caminho de Sintra, pode às vezes ter o capricho de ser mais romanesca do que pede a verosimilhança artística. Mas eu não faço arte, narro factos unicamente.

F..., vendo o seu cavalo subitamente seguro pelas cambas do freio, tinha obrigado a largá-lo um dos desconhecidos, em cuja ca­beça descarregara uma pancada como cabo do chicote, o qual o ou­tro mascarado conseguira logo depois arrancar-lho da mão.

Nenhum de nós trazia armas. O meu amigo tinha, no entanto, tirado da algibeira a chave de uma porta da casa de Sintra, e es­poreava o cavalo estirando-se-lhe no pescoço e procurando alcan­çar a cabeça daquele que o tinha seguro.

O mascarado, porém, que continuava a segurar em uma das mãos o freio do cavalo empinado, apontou com a outra em revólver ã cabeça do meu amigo e disse-lhe com serenidade:

– Menos fúria! Menos fúria!

O que levara com o chicote na cabeça e ficara por um momen­to encostado à portinhola do trem, visivelmente atordoado mas não ferido, porque o cabo era de baleia e tinha por castão uma simples guarnição feita com uma trança de cima, havia já a este tempo levantado do chão e posto na cabeça o chapéu que lhe caíra.

A este tempo o que me derribara o cavalo e me ajudara a le­vantar tinha-me deixado ver um par de pequeninas pistolas de coronhas de prata, daquelas a que chamam em França coups de poing e que varam uma porta a trinta passos de distância. Depois do que, me ofereceu delicadamente o braço, dizendo-me com afa­bilidade:

– Parece-me mais cómodo aceitar um lugar que lhe ofereço na carruagem do que montar outra vez a cavalo ou ter de arrastar a pé daqui à farmácia da Porcalhota a sua perna magoada.

Não sou dos que se amedrontam mais prontamente com a ameaça feita com armas. Sei que há um abismo entre prometer um tiro e desfechá-lo. Eu movia bem a perna trilhada, o meu amigo estava montado em um cavalo possante; somos ambos robustos; poderíamos talvez resistir por dez minutos, ou por um quarto de hora, e durante esse tempo nada mais provável, em estrada tão frequentada como a de Sintra nesta quadra, do que aparecerem passageiros que nos prestassem auxílio

Todavia, confesso que me sentia atraído para o imprevisto de uma tão estranha aventura.

Nenhum caso anterior, nenhuma circunstância da nossa vida nos permitia suspeitar que alguém pudesse ter interesse em exer­cer connosco pressão ou violência alguma.

Sem eu bem poder a esse tempo explicar porquê, não me pare­cia também que as pessoas que nos rodeavam projectassem um roubo, menos ainda um homicídio. Não tendo tido tempo de obser­var miudamente a cada um, e tendo-lhes ouvido apenas algumas palavras fugitivas, figuravam-se-me pessoas de bom mundo. Agora que de espirito sossegado penso no acontecido, vejo que a mi­nha conjectura se baseava em várias circunstâncias dispersas, nas quais, ainda que de relance, eu atentara, mesmo sem propósito de análise. Lembro-me, por exemplo, que era de cetim alvadio o for­ro do chapéu do que levara a pancada na cabeça. O que apontara o revólver a F... trazia calçada uma luva cor de chumbo apertada com dois botões. O que me ajudara a levantar tinha os pés finos e botas envernizadas: as calças, de casimira cor de avelã, eram mui­to justas e de presilhas. Trazia esporas.

Não obstante a disposição em que me achava de ceder da luta e de entrar no trem, perguntei em alemão ao meu amigo se ele era de opinião que resistíssemos ou que nos rendêssemos..

– Rendam-se, rendam-se para nos poupar algum tempo que nos é precioso! – disse gravemente um dos desconhecidos – Por quem são, acompanhem-nos! Um dia saberão por que motivo lhes saímos ao caminho, mascarados. Damos-lhe a nossa palavra de que amanhã estarão nas suas casas, em Lisboa. Os cavalos ficarão em Sintra daqui a duas horas.

Depois de uma breve relutância, que eu contribuí para desva­necer, o meu companheiro apeou-se e entrou no coupé. Eu segui-o.

Cederam-nos os melhores lugares. O homem que se achava em frente da parelha segurou os nossos cavalos; o que fizera cair o poldro subiu para a almofada e pegou nas guias; os outros dois en­traram connosco e sentaram-se nos lugares fronteiros aos nossos. Fecharam-se em seguida os estores de madeira dos postigos e cor­reu-se uma cortina de seda verde que cobria por dentro os vidros fronteiros da carruagem.

No momento de partirmos, o que ia a guiar bateu na vidraça e pediu um charuto. Passaram-lhe para fora uma charuteira de pa­lha de Java. Pela fresta por onde recebeu os charutos lançou para dentro do trem a máscara que tinha no rosto e partimos a galope.

Quando entrei para a carruagem pareceu-me avistar ao lon­ge, vindo de Lisboa, um ónibus, talvez uma sege. Se me não iludi, a pessoa ou pessoas que vinham no trem a que me refiro terão vis­to os nossos cavalos, um dos quais é ruço e o outro castanho, e po­derão talvez dar notícia da carruagem em que íamos e da pessoa que nos servia de cocheiro, O coupé era, como já disse, verde e pre­to. Os estores, de mogno polido, tinham no alto quatro fendas estreitas e oblongas, dispostas em cruz.

Falta-me tempo para escrever o que ainda me resta por con­tara horas de expedir ainda hoje esta carta pela posta interna.

Continuarei. Direi então, se o não suspeitou já, o motivo por que lhe oculto o meu nome e o nome do meu amigo.

 

Julho, 24 de 1870. – Acabo de ver a carta que lhe dirigi publi­cada integralmente por V. no lugar destinado ao folhetim do seu periódico. Em vista da colocação dada ao meu escrito procurarei nas cartas que houver de lhe dirigir não ultrapassar os limites de­marcados a esta secção do jornal.

Por esquecimento não datei a carta antecedente, ficando assim duvidoso qual o dia em que fomos surpreendidos na estrada de Sin­tra. Foi quarta-feira, 20 do corrente mês de Julho.

Passo de pronto a contar-lhe o que se passou no trem, especi­ficando minuciosamente todos os pormenores e tentando recons­truir o diálogo que travámos, tanto quanto me seja possível, com as mesmas palavras que nele se empregaram.

A carruagem partiu na direcção de Sintra. Presumo, porém, que deu na estrada algumas voltas, muito largas e bem dadas por­que se não pressentiram pela intercadência da velocidade no pas­so dos cavalos. Levaram-me a supô-lo, em primeiro lugar as diferenças de declive no nível do terreno, conquanto estivéssemos ro­dando sempre em uma estrada macadamizada e lisa; em segundo lugar umas leves alterações na quantidade de luz que havia dentro do coupé coada de seda verde, o que me indicava que o trem passa­va por encontradas exposições com relação ao Sol que se escondia no horizonte.

Havia, evidentemente, o desígnio de nos desorientar no rumo definitivo que tomássemos.

É certo que, dois minutos depois de termos principiado a an­dar, me seria absolutamente impossível decidir se ia de Lisboa pa­ra Sintra ou se vinha de Sintra para Lisboa.

Na carruagem havia uma claridade baça e ténue, que todavia nos permitia distinguir os objectos. Pude ver as horas no meu re­lógio. Eram sete e um quarto.

O desconhecido que ia defronte de mim examinou também as horas. O relógio, que ele não introduziu bem na algibeira do cole­te e que um momento depois lhe caiu, ficando por algum tempo patente e pendido da corrente, era um relógio singular que se não confunde facilmente e que não deixará de ser reconhecido, depois da notícia que dou dele, pelas pessoas que alguma vez o houvessem visto. A caixa do lado oposto ao mostrador era de esmalte preto, li­so, tendo no centro, por baixo de um capacete, um escudo de armas de ouro encobrado e polido.

Havia poucos momentos que caminhávamos, quando o indiví­duo sentado defronte de F..., o mesmo que na estrada nos instara mais vivamente para que o acompanhássemos, nos disse:

Eu julgo inútil asseverar-lhes que devem tranquilizar-se inteiramente quanto à segurança das suas pessoas...

– Está visto que sim – respondeu o meu amigo –, nós esta­mos perfeitamente sossegados a todos os respeitos. Espero que nos façam a justiça de acreditar que nos não têm coactos pelo medo. Nenhum de nós é tão criança que se apavore com o aspecto das suas máscaras negras ou das suas armas de fogo. Os senhores acabam de ter a bondade de nos certificar de que não querem fazer-nos mal; nós devemos pela nossa parte anunciar-lhes que desde o momento em que a sua companhia principiasse a tomar-se-nos desagradável, nada nos seria mais fácil do que arrancar-lhes as máscaras, arrombar os estores, convidá-los perante o primeiro trem que passasse por nós a que nos entregassem as suas pistolas, e relaxá-los em seguida aos cuidados policiais do regedor da pri­meira paróquia que atravessássemos. Parece-me, portanto, justo que principiemos por prestar o devido culto aos sentimentos da amabilidade, pura e simples, que nos tem aqui reunidos. Doutro modo ficaríamos todos grotescos: os senhores terríveis, e nós as­sustados.

Conquanto estas coisas fossem ditas por F... com um ar de bon­dade risonha, o nosso interlocutor parecia irritar-se progressivamente ao ouvi-lo. Movia convulsivamente uma perna, firmando o cotovelo num joelho, pousando a barba nos dedos, fitando de per­to o meu amigo. Depois, reclinando-se para trás e como se mudasse de resolução:

– No fim de contas, a verdade é que tem razão e talvez que eu fizesse e dissesse o mesmo no seu lugar.

E, tendo meditado um momento, continuou:

– Que diriam, porém, os senhores se eu lhes provasse que es­ta máscara em que querem ver apenas um sintoma burlesco é em vez disso a confirmação da seriedade do caso que nos trouxe aqui F... Queiram imaginar por um momento um desses romances como há muitos: uma senhora casada, por exemplo, cujo marido viaja há um ano. Esta senhora, conhecida na sociedade de Lisboa, está grávida. Que deliberação há-de tomar?

Houve um silêncio.

Eu aproveitei a pequena pausa que se seguiu ao enunciado um tanto rude daquele problema e respondi:

– Enviar ao marido uma escritura de separação em regra. De­pois, se ética, ir com o amante para a América ou para a Suíça; se é pobre, comprar uma máquina de costura e trabalhar para fora numa água-furtada. É o destino para as pobres e para as ricas. De resto, em toda a parte se morre depressa nessas condições, num cottage à beira do lago de Genebra ou num quarto de oito tostões ao mês na Rua dos Vinagres. Morre-se igualmente, de tísica ou de tédio, nos esfalfamento do trabalho ou no en4oo do idílio.

– E o filho?

– O filho, desde que está fora da família e fora da lei, é um des­graçado cujo infortúnio provém em grande parte da sociedade que ainda não soube definir a responsabilidade do pai clandestino. Se os pais fazem como a legislação, e mandam buscar gente à estra­da de Sintra para perguntar o que se há-de fazer, o melhor para o filho é deitá-lo à roda.

– O doutor discorre muito bem como filósofo distinto. Como puro médico, esquece-lhe talvez que na conjuntura de que se tra­ta, antes de deitar o filho à roda há uma pequena formalidade a cumprir, que é deitá-lo ao mundo.

– Isso é com os especialistas. Creio que não é nessa qualida­de que estou aqui.

– Engana-se. É precisamente como médico, é nessa qualida­de que aqui está e é por esse título que viemos buscá-lo de surpre­sa à estrada de Sintra e o levamos a ocultas a prestar auxílio a uma pessoa que precisa dele.

– Mas eu não faço clínica.

– É o mesmo. Não exerce essa profissão; tanto melhor para o nosso caso: não prejudica os seus doentes abandonando-os por al­gumas horas para nos seguir nesta aventura. Mas é formado em Paris e publicou mesmo uma tese de cirurgia que despertou a aten­ção e mereceu o elogio da Faculdade. Queira fazer de conta que vai assistir a um parto.

O meu amigo F... pôs-se a rir e observou:

– Mas eu que não tenho o curso médico nem tese alguma de que me acuse na minha vida, não quererão dizer-me o que vou fazer?

– Quer saber o motivo por que se encontra aqui?... Eu lho digo.

Neste momento, porém, a carruagem parou repentinamente e os nossos companheiros, sobressaltados, ergueram-se.

 

Percebi que saltava da almofada o nosso cocheiro. Ouvi abrir sucessivamente as duas lanternas e raspar um fósforo na roda. Senti depois estalar a mola que comprime a portinha que se fecha depois de acender as velas, e rangerem nos anéis dos cachimbos os pés das lanternas como se as estivessem endireitando.

Não compreendi logo a razão por que nos tivéssemos detido pa­ra semelhante fim, quando não tinha caído a noite e íamos por bom caminho.

Isto, porém, explica-se por um requinte de precaução. A pes­soa que nos servia de cocheiro não quereria parar em lugar onde houvesse gente. Se tivéssemos de atravessar uma povoação, as luzes que principiassem a acender-se e que nós veríamos através da cortina ou das fendas dos estores, poderiam dar-nos alguma ideia do sítio em que nos achássemos. Por esta forma esse meio de investigação desaparecia. Ao passarmos entre prédios ou muros mais altos, a projecção da luz forte das lanternas sobre as paredes e a reflexão dessa claridade para dentro do trem impossibilitava-nos de distinguir se atravessávamos uma aldeia ou uma rua ilu­minada.

Logo que a carruagem começou a rodar depois de acesas as lan­ternas, aquele dos nossos companheiros que Prometera explicar a F... a razão por que ele nos acompanhava, prosseguiu:

– O amante da senhora a quem me refiro, imagine que sou eu. Sabem-no unicamente neste mundo três amigos meu; amigos ín­timos, companheiros de infância, camaradas de estudo, tendo vi­vido sempre juntos, estando cada um constantemente pronto a prestar aos outros os derradeiros sacrifícios que pode impor a ami­zade. Entre os nossos companheiros não havia um médico. Era mister obtê-lo e era ao mesmo tempo indispensável que não passasse a outrem, quem quer que fosse, o meu segredo, em que estão envoltos o amor de um homem e a honra de uma senhora, O meu filho nascerá provavelmente esta noite ou amanhã pela manhã; não devendo saber ninguém quem é sua mãe, não devendo sequer por algum indício vir a suspeitar um dia quem ela seja, é preciso que o doutor ignore quem são as pessoas com quem fala, e qual é a casa em que vai entrar. Eis o motivo por que nós temos no rosto uma máscara; eis o motivo por que os senhores nos hão-de permi­tir que continuemos a ter cerrada esta carruagem e que lhes ven­demos os olhos, antes de os apearmos defronte do prédio a que vão subir. Agora compreende – continuou ele dirigindo-se a F... – a razão por que nos acompanha. Era-nos impossível evitar que o se­nhor viesse hoje de Sintra com o seu amigo, era-nos impossível adiar esta visita, e era-nos impossível também deixá-lo no ponto da estrada em que tomámos o doutor, O senhor acharia facilmen­te meio de nos seguir e de descobrir quem somos.

– A lembrança – notei eu – é engenhosa mas não é lisonjei­ra para a minha discrição.

– A confiança na discrição alheia é uma traição ao segredo que nos não pertence.

F... achava-se inteiramente de acordo com esta maneira de ver, e disse-o elogiando0 espírito da aventura romanesca dos mas­carados.

As palavras de F..., acentuadas com sinceridade e com afecto, pareceu-me que perturbaram algum tanto o desconhecido fi­gurou-se-me que esperava discutir mais tempo para conseguir persuadir-nos e que o desnorteava e surpreendia desagradavelmente esse corte imprevisto. Ele, que tinha a réplica pronta e a palavra fácil, não achou que retorquir à confiança com que o tratavam, e guardou, desde esse momento até que chegámos, um silêncio que devia pesar à suas tendências expansivas e discursa­doras.

É verdade que pouco depois deste diá0 trem deixou a es­trada de macadame em que até aí rodara e entrou num caminho vicinal ou num atalho. O solo era pedregoso e esburacado; os sola­vancos da carruagem, que seguia sempre a galope governada por mão de mestre, e o estrépito dos estores embatendo nos caixilhos mal permitiram conversar.

Tornámos por fim a entrar numa estrada lisa. A carruagem parou ainda uma segunda vez, o cocheiro apeou rapidamente, di­zendo:

– Lá vou!

Voltou pouco depois, e eu ouvi alguém que dizia:

– Vão com raparigas para Lisboa.

O trem prosseguiu.

Seria uma barreira da cidade? Inventaria o que nos guiava um pretexto plausível para que os guardas nos não abrissem a porti­nhola? Entender-se-ia com os meus companheiros a frase que eu ouvira?

Não posso dizê-lo com certeza.

A carruagem entrou logo depois num pavimento lajeado e daí a dois ou três minutos parou. O cocheiro bateu no vidro, e disse:

– Chegámos.

O mascarado, que não tornara a pronunciar uma palavra desde o momento que acima indiquei, tirou um lenço da algibeira e disse-nos com alguma comoção:

– Tenham paciência! Perdoem-mo... Assim é preciso!

F... aproximou o rosto, e ele vendeu-lhe os olhos. Eu fui igual­mente vendado pelo que estava em frente de mim.

Apeámo-nos em seguida e entrámos num corredor conduzidos pela mão dos nossos companheiros. Era um corredor estreito se­gundo pude deduzir do modo por que nos encontrámos e demos passagem a alguém que saía.

– Levo o trem?

– A voz do que nos guiara respondeu:

– Leva.

Demorámo-nos um momento. A porta por onde havíamos entrado foi fechada à chave, e o que nos servira de cocheiro passou para diante dizendo:

– Vamos!

Demos alguns passes, subimos dois degraus de pedra, to­mámos à direita e entrámos na escada. Era de madeira, íngreme e velha, coberta com um tapete estreito. Os degraus estavam des­gastados pelos pés, eram ondeados na superfície e esbatidos e ar­redondados nas saliências primitivamente angulosas. Ao longo da parede, do meu lado, corria uma corda, que servia de corrimão; era de seda e denotava ao tacto pouco uso. Respirava-se um ar húmi­do, impregnado de exalações interiores dos prédios desabitados. Subimos oito ou dez degraus, tomámos à esquerda num patamar, subimos ainda outros degraus e parámos num primeiro andar.

Ninguém Unha proferido uma palavra, e havia o que quer que fosse de lúgubre neste silêncio que nos envolvia como uma nuvem de tristeza.

Ouvi então a nossa carruagem que se afastava, e senti uma opressão, uma espécie de sobressalto pueril.

Em seguida rangeu uma fechadura e transpusemos o limiar de uma porta, que foi outra vez fechada à chave depois de havermos entrado.

– Podem tirar os lenços – disse-nos um dos nossos compa­nheiros.

Descobri os olhos. Era noite.

Um dos mascarados raspou um fósforo, acendeu cinco velas numa serpentina de bronze, pegou na serpentina, aproximou-se de um móvel que estava coberto com uma manta de viagem, e levantou a manta.

Não pude conter a comoção que senti, e soltei um grito de hor­ror. O que eu tinha diante de mim era o cadáver de um homem.

 

Escrevo-lhe hoje fatigado e nervoso. Todo este obscuro negó­cio em que me acho envolvido, o vago perigo que me cerca, a mes­ma tensão de espírito em que estou para compreender a secreta verdade desta aventura, os hábitos da minha vida repousada su­bitamente exaltados –tudo isto me dá um estado de irritação mór­bida que me aniquila.

Logo que vi o cadáver perguntei violentamente:

– Que quer isto dizer, meus senhores?

Um dos mascarados, o mais alto, respondeu:

– Não há tempo para explicações. Perdoem ter sido engana­dos! Pelo amor de Deus, doutor, veja esse homem. Que tem? Está morto? Está adormecido com algum narcótico?

Dizia estas palavras com uma voz tão instante, tão dolorosamente interrogadora que eu, dominado pelo imprevisto daquela si­tuação, aproximei-me do cadáver, e examinei-o.

Estava deitado numa chaise-longue, com a cabeça pousada numa almofada, as pernas ligeiramente cruzadas, um dos braços curvado descansando no peito, o outro pendente e a mão inerte assente sobre o chão. Não tinha golpe, contusão, ferimento, ou extravasamento de sangue; não tinha sinais de congestão, nem vestígios de estrangulação. A expressão da fisionomia não denota­va sofrimento, contracção ou dor. Os olhos cerrados frouxamente, eram como num sono leve. Estava frio e lívido.

Não quem aqui fazer a história do que encontrei no cadáver. Seria embaraçar esta narração concisa com explicações científi­cas. Mesmo sem exames detidos, e sem os elementos de apreciação que só podem fornecer a análise ou a autópsia, pareceu-me que aquele homem estava sob a influência já mortal de um narcótico, que não era tempo de dominar.

– Que bebeu ele? – perguntei, com uma curiosidade exclusi­vamente médica.

Não pensava então em crime nem na misteriosa aventura que ali me prendia; queria só ter uma história progressiva dos fados que tinham determinado a narcotização.

Um dos mascarados mostrou-me um copo que estava ao pé da chaise-longue sobre uma cadeira de estofo.

– Não sei – disse ele –, talvez aquilo.

O que havia no copo era evidentemente ópio.

– Este homem está morto – disse eu.

– Morto! – repetiu um deles, tremendo.

Ergui as pálpebras do cadáver, os olhos tinham uma dilatação fixa, horrível.

Eu fitei-os então um por um e disse-lhes serenamente:

– Ignoro o motivo por que vim aqui; como médico de um doen­te sou inútil; como testemunha posso ser perigoso.

Um dos mascarados veio para mim e com uma voz insinuante e grave:

– Escute, crê, em sua consciência, que esse homem esteja morto?

– Decerto.

– E qual pensa que fosse a causa da morte?

– O ópio; mas creio que devem sabê-lo melhor do que eu os que andam mascarados surpreendendo gente pela estrada de Sintra.

Eu estava irritado, queria provocar algum desenlace definitivo que cortasse os embaraços da minha situação.

– Perdão – disse um –, e há que tempo supõe que esse homem esteja morto?

Não respondi, pus o chapéu na cabeça e comecei a calçar as lu­vas. F... junto da janela, batia o pé impaciente. Houve um silêncio.

Aquele quarto pesado de estofos, o cadáver estendido com re­flexos lívidos na face, os vultos mascarados, o sossego lúgubre do lugar, as luzes claras, tudo dava àquele momento um aspecto pro­fundamente sinistro.

– Meus senhores – disse então lentamente um dos mascara­dos, o mais alto, o que tinha guiado a carruagem –, compreendem perfeitamente, que se nós tivéssemos morto este homem sabíamos bem que um médico era inútil, e uma testemunha importuna! Des­confiávamos, é claro, que estava sob a acção de um narcótico, mas queríamos adquirir a certeza da morte. Por isso o trouxemos. A respeito do crime, estamos tão ignorantes como os senhores. Se não entregamos este caso à polida, se cercámos de mistério e de violên­cia a sua visita a esta casa, se lhes vendamos os olhos, é porque re­ceávamos que as indagações que se pudessem fazer, conduzissem a descobrir, como criminoso ou como cúmplice, alguém que nós te­mos em nossa honra salvar; se lhes damos estas explicações...

– Essas explicações são absurdas! – gritou F... –Aqui há um crime; este homem está morto, os senhores, mascarados; esta ca­sa parece solitária, nós achamo-nos aqui violentados, e todas es­tas circunstâncias têm um mistério tão revoltante, uma feição tão criminosa, que não queremos nem pelo mais leve acto, nem pela mais involuntária assistência, ser parte neste negócio. Não temos aqui nada que fazer; queiram abrir aquela porta.

Com a violência dos seus gestos, um dos mascarados riu.

– Ah! Os senhores escarnecem! – gritou F...

E arremessando-se violentamente contra a janela, ia fazer saltar os fechos. Mas dois dos mascarados arrojaram-se poderosa­mente sobre ele, curvaram-no, arrastaram-no até uma poltrona, e deixaram-no cair, ofegante, trémulo de desespero.

Eu tinha ficado sentado e impassível.

– Meus senhores – observei –, notem que enquanto o meu amigo protesta pela cólera, eu protesto pelo tédio.

E acendi um charuto.

– Mas, com os diabos! tomam-nos por assassinos! – gritou um violentamente. – Não se crê na honra, na palavra de um ho­mem! Se vocês não tiram a máscara, tiro-a eu! É necessário que nos vejam! Não quero, nem escondido por um pedaço de cartão, passar por um assassino!... Senhores! dou-lhes a minha palavra que ignoro quem matou este homem.

E fez um gesto furioso. Neste movimento, a máscara desaper­tou-se, descaindo. Ele voltou-se rapidamente, levando as mãos abertas ao rosto. Foi um movimento instintivo, irreflectido, de de­sesperação. Os outros cercaram-no, olhando rapidamente para F..., que tinha ficado impassível. Um dos mascarados, que não ti­nha ainda falado, o que na carruagem viera defronte de mim, a to­do o momento observava o meu amigo com receio, com suspeita. Houve um longo silêncio. Os mascarados, a um canto, falavam bai­xo. Eu, no entanto, examinava a sala.

Era pequena, forrada de seda em pregas, com um tapete mo­le, espesso, bom para correr com os pés nus. O estofo dos móveis era de seda vermelha com uma barra verde, única e transversal, como têm na antiga heráldica os brasões dos bastardos. As cortinas das janelas pendiam em pregas amplas e suaves. Havia vasos de jas­pe, e um aroma tépido e penetrante, onde se sentia a verbena e o perfume de marechala.

O homem que estava morto era moço, de perfil simpático e fino, de bigode louro. Tinha o casaco e colete despidos, e o largo peitilho da camisa reluzia com botões de pérolas; a calça era estreita, bem talhada, de uma cor clara. Tinha apenas calçado um sapato de verniz; as meias eram de seda em grandes quadrados brancos e cinzentos.

Pela fisionomia, pela construção, pelo corte e cor do cabelo, aquele homem parecia inglês.

Ao fundo da sala via-se um reposteiro largo, pesado, cuidado­samente corrido. Parecia-me ser uma alcova. Notei admirado que apesar do extremo luxo, de um aroma que andava no ar uma sen­sação tépida que dão todos os lugares onde ordinariamente se es­tá, se fala e se vive, aquele quarto não parecia habitado; não havia um livro, um casaco sobre uma cadeira, umas luvas caídas, algu­ma destas mil pequenas coisas confusas, que demonstram a vida e os seus incidentes triviais.

F... tinha-se aproximado de mim.

– Conheceste aquele a quem caiu a máscara? – perguntei.

– Não. Conheceste?

– Também não. Há um que ainda não falou, que está sempre olhando para ti. Receia que o conheças, é teu amigo talvez, não o percas de vista.

Um dos mascarados aproximou-se, perguntando:

– Quanto tempo pode ficar o corpo assim nesta chaise-longue? Eu não respondi. O que me interrogou fez um movimento co­lérico, mas conteve-se. Neste momento o mascarado mais alto, que tinha saído, entrara, dizendo para os outros:

– Pronto!...

Houve uma pausa; ouvia-se o bater da pêndula e os passos de F..., que passeava agitado, como sobrolho duro, torcendo o bigode.

– Meus senhores – continuou voltando-se para nós o mas­carado –, damos-lhe a nossa palavra de honra que somos com­pletamente estranhos a este sucesso. Sobre isto não damos expli­cações. Desde este momento os senhores estão retidos aqui. Ima­ginem que somos assassinos, moedeiros falsos ou ladrões, tudo o que quiserem. Imaginem que estão aqui pela violência, pela cor­rupção, pela astúcia, ou pela força da lei... como entenderem! o fac­to é que ficam até amanhã. O seu quarto – disse-me – é naquela alcova, e o seu – apontou para F... – lá dentro. Eu fico consigo, doutor, neste sofá. Um dos meus amigos será lá dentro o criado de quarto do seu amigo. Amanhã despedimo-nos amigavelmente e podem dar parte à polícia ou escrever para os jornais.

Calou-se. Estas palavras tinham sido ditas com tranquilida­de. Não respondemos.

Os mascarados, em quem se percebia um certo embaraço, uma evidente falta de serenidade, conversavam baixo, a um canto do quarto, junto da alcova. Eu passeava. Numa das voltas que dava pelo quarto, vi casualmente, perto de uma poltrona, uma coisa branca semelhante a um lenço. Passei defronte da poltrona, deixei voluntariamente cair o meu lenço, e no movimento que fiz para o apanhar, lancei despercebidamente mão do objecto caído. Era efectivamente um lenço. Guardei-o, apalpei-o no bolso com gran­de delicadeza de tacto; era fino, com rendas, um lenço de mulher. Parecia ter bordadas uma firma e uma coroa.

Neste momento deram nove horas. Um dos mascarados excla­mou, dirigindo-se a F...

– Vou mostrar-lhe o seu quarto. Desculpe-me, mas é neces­sário vendar-lhe os olhos.

F... tomou altivamente o lenço das mãos do mascarado, cobriu ele mesmo os olhos, e saíram.

Fiquei só com o mascarado alto, que tinha a voz simpática e atraente.

Perguntou-me se queria jantar. Conquanto lhe respondesse negativamente, ele abriu uma mesa, trouxe um cabaz em que havia algumas comidas frias. Bebi apenas um copo de água. Ele comeu.

Lentamente, gradualmente, começámos a conversar quase em amizade. Eu sou naturalmente expansivo, o silêncio pesava-me. Ele era instruído, tinha viajado e tinha lido.

De repente, pouco depois da uma da noite, sentimos na esca­da um andar leve e cauteloso, e logo alguém tocar na porta do quar­to onde estávamos, O mascarado tinha ao entrar tirado a chave e havia-a guardado no bolso. Erguemo-nos sobressaltados, O cadá­ver achava-se coberto, O mascarado apagou as luzes.

Eu estava aterrado, O silêncio era profundo; ouvia-se apenas o ruído da chave que a pessoa que estava fora às escuras procura­va introduzir na fechadura.

Nós, imóveis, não respirávamos.

Finalmente a porta abriu-se, alguém entrou, fechou-a, acen­deu um fósforo, olhou. Então vendo-nos, deu um grito e caiu no chão, imóvel, com os braços estendidos.

Amanhã, mais sossegado e claro de recordações, direi o que se seguiu.

P. S. – Uma circunstância que pode esclarecer sobre a rua e o sítio da casa: De noite senti passarem duas pessoas, uma tocan­do guitarra, outra cantando o fado. Devia ser meia-noite, O que cantava dizia esta quadra:

 

«Escrevi uma carta a Cupido

A mandar-lhe perguntar

Se um coração ofendido...»

 

Não me lembra o resto. Se as pessoas que passaram, tocando e cantando, lerem esta carta, prestarão um notável esclarecimen­to dizendo em que rua passavam, e defronte de que casa, quando cantaram aquelas rimas populares.

 

Hoje, mais sossegado e sereno, posso contar-lhe com precisão e realidade, reconstruindo-o do modo mais nítido, nos diálogos e nos olhares, o que se seguiu à entrada imprevista daquela pessoa no quarto onde estava o morto. O homem tinha ficado estendido no chão, sem sentidos: molhámos-lhe a testa, demos-lhe a respi­rar vinagre de toilette. Voltou a si, e, ainda trémulo e pálido, o seu primeiro movimento instintivo foi correr para a janela!

O mascarado, porém, tinha-o envolvido fortemente com os braços, e arremessou-o com violência para cima de uma cadeira, ao fundo do quarto. Tirou do seio um punhal, e disse-lhe com voz fria e firme:

– Se faz um gesto, se dá um grito, se tem um movimento, va­ro-lhe o coração!

– Vá, vá – disse eu. – Breve! responda... Que quer? Que veio fazer aqui?

Ele não respondia, e com a cabeça tomada entre as mãos, re­petia maquinalmente:

– Está perdido tudo! Está tudo perdido!

– Fale – disse-lhe o mascarado, tomando-lhe rudemente o braço. – Que veio fazer aqui? Que é isto? Como soube?...

A sua agitação era extrema: luziam-lhe os olhos entre o cetim negro da máscara.

– Que veio fazer aqui? – repetiu agarrando-o pelos ombros e sacudindo-o como um vime.

– Escute... – disse o homem convulsivamente. – Vinha sa­ber... disseram-me... Não sei. Parece que já cá estava a polida... queria saber a verdade, indagar quem o tinha assassinado... vinha tomar informações...

– Sabe tudo! – disse o mascarado, aterrado, deixando pender os braços.

Eu estava surpreendido: aquele homem conhecia o crime, sa­bia que havia ali um cadáver! Só ele o sabia, porque deviam ser de­certo absolutamente ignorados aqueles sucessos lúgubres. Por consequência quem sabia onde estava o cadáver, quem tinha uma chave da casa, quem vinha alta noite ao lugar do assassinato, quem tinha desmaiado vendo-se surpreendido, estava positiva­mente envolvido no crime...

– Quem lhe deu a chave? – perguntou o mascarado.

O homem calou-se.

– Quem lhe falou nisto?

Calou-se.

– Que vinha fazer, de noite, às escondidas, a esta casa?

Calou-se.

– Mas como sabia deste absoluto segredo, de que apenas te­mos conhecimento nós?...

E voltando-se para mim, para me advertir com um gesto im­perceptível do expediente que ia tomar, acrescentou:

–...nós e o senhor comissário.

O desconhecido calou-se. O mascarado tomou-lhe o paletó e examinou-lhe os bolsos. Encontrou um pequeno martelo e um ma­ço de pregos.

– Para que era isto?

– Trazia naturalmente isso, queria consertar não sei quê, em casa... um caixote...

O mascarado tomou a luz, aproximou-se do morto, e por um movimento rápido, tirando a manta de viagem, descobriu o corpo: a luz caiu sobre a lívida face do cadáver.

– Conhece este homem?

O desconhecido estremeceu levemente e pousou sobre o mor­to um longo olhar, demorado e atento.

Eu em seguida cravei os meus olhos, com uma insistência im­placável nos olhos dele, dominei-o, disse-lhe baixo, apertando-lhe a mão:

– Porque o matou?

– Eu? – gritou ele. – Está doido!

Era uma resposta clara, franca, natural, inocente.

– Mas porque veio aqui? – observou o mascarado. – Como soube do crime? Como tinha a chave? Para que era este martelo? Quem é o senhor? Ou dá explicações claras, ou daqui a uma hora está no segredo, e daqui a um mês nas galés. Chame os outros –disse ele para mim.

– Um momento, meus senhores, confesso tudo, digo tudo! –gritou o desconhecido.

Esperámos; mas retraindo a voz, e com um a entoação demora­da, como quem dita:

– A verdade – prosseguiu – é esta: encontrei hoje de tarde um homem desconhecido, que me deu uma chave e me disse: sei que é Fulano, que é destemido, vá a tal rua, número tantos...

Eu tive um movimento ávido, curioso, interrogador. Ia enfim saber onde estava!

Mas o mascarado com um movimento impetuoso pôs-lhe a mão aberta sobre aboca, comprimindo-lhe as faces, e com uma voz surda e terrível:

– Se diz onde estamos, mato-o.

O homem fitou-nos: compreendeu evidentemente que eu tam­bém estava ali, sem saber onde, por um mistério; que os motivos da nossa presença eram também suspeitos, e que por consequência não éramos empregados da polícia. Esteve um momento calado e acrescentou:

– Meus senhores, esse homem fui eu que o matei, que querem mais? Que fazem aqui?

– Está preso – gritou o mascarado. – Vá chamar os outros, doutor. É o assassino.

– Esperem, esperem – gritou ele. – Não compreendo! Quem são os senhores? Supus que eram da polícia... São talvez.., disfar­çam para me surpreender! Eu não conheço aquele homem, nunca o vi. Deixem-me sair... Que desgraça!

– Este miserável há-de falar, ele tem o segredo! – bradava o mascarado.

Eu tinha-me sentado ao pé do homem. Queria tentara doçura, a astúcia. Ele tinha serenado, falava com inteligência e com faci­lidade. Disse-me que se chamava A. M. C., que era estudante de medicina e natural de Viseu. O mascarado escutava-nos, silencio­so e atento. Eu, falando baixo com o homem, tinha-lhe pousado a mão sobre o joelho. Ele pedia-me que o salvasse, chamava-me seu amigo. Parecia-me um rapaz exaltado, dominado pela imagina­ção. Era fácil surpreender a verdade dos seus actos. Com um mo­do íntimo, confidencial, fiz-lhe perguntas aparentemente sinceras e simples, mas cheias de traição e de análise. Ele, com uma boa-fé inexperiente, a todo o momento se descobria, se denunciava.

– Ora – disse-lhe eu –, uma coisa me admira em tudo isto.

– Qual?

– E que não tivesse deixado sinais o arsénico...

– Foi ópio – interrompeu ele, com uma simplicidade infantil.

Ergui-me de salto. Aquele homem, se não era o assassino, conhecia profundamente todos os segredos do crime.

– Sabe tudo – disse eu ao mascarado.

– Foi ele – confirmou o mascarado convencido.

Eu tomei-o então de parte, e com uma franqueza simples:

– A comédia acabou, meu amigo, tire a sua máscara, aperte­mo-nos a mão, dêmos parte à polícia. A pessoa que o meu amigo receava descobrir, não tem decerto que ver neste negócio.

– Decerto que não. Este homem é o assassino.

E voltando-se para ele com um olhar terrível, que flamejava debaixo da máscara:

– E porque o matou?

– Matei-o... – respondeu o homem.

– Matou-o – disse o mascarado com uma lentidão de voz que me aterrou – para lhe roubar 2300 libras em bank-notes, que aquele homem tinha no bolso, dentro de uma bilheteira em que es­tavam monogramadas duas letras de prata, que eram as iniciais do seu nome.

– Eu!... para o roubar! Que infâmia! Mente! Eu não conheço esse homem, nunca o vi, não o matei!

– Que malditas contradições! – gritou o mascarado exaltado.

A. M. C. objectou lentamente:

– O senhor que está mascarado... este homem não era seu amigo, o único amigo que ele conhecia em Lisboa?

– Como sabe? – gritou repentinamente o mascarado, toman­do-lhe o braço. – Fale, diga.

– Por motivos que devo ocultar – continuou o homem – sa­bia que este sujeito, que é estrangeiro, que não tem relações em Lisboa, que chegou há poucas semanas, vinha a esta casa...

– É verdade – atalhou o mascarado.

– Que se encontrava aqui com alguém...

– É verdade – disse o mascarado.

Eu, pasmado, olhava para ambos, sentia a lucidez das ideias perturbada, via aparecer uma nova causa imprevista, temerosa e inexplicável.

– Além disso – continuou o homem desconhecido – há-de sa­ber também que um grande segredo ocupava a vida deste infeliz...

– É verdade, é verdade – dizia o mascarado absorto.

– Pois bem, ontem uma pessoa, que casualmente não podia sair de casa, pediu-me que viesse ver se o encontrava...

Nós esperávamos, petrificados, o fim daquelas confissões.

– Encontrei-o morto ao chegar aqui. Na mão tinha este papel.

E tirou do bolso meia folha de papel de carta, dobrada.

– Leia – disse ele ao mascarado.

Este aproximou o papel da luz, deu um grito, caiu sobre uma cadeira com os braços pendentes, os olhos cerrados.

Ergui o papel, li:

 

I declare that I have killed myself with opium.

 

(Declaro que me matei com ópio).

 

Fiquei petrificado.

O mascarado dizia com a voz absorta como num sonho:

– Não é possível. Mas é a letra dele, é! Ah! que mistério, que mistério!

Vinha a amanhecer.

Sinto-me fatigado de escrever. Quero aclarar as minhas recor­dações. Até amanhã.

 

Peço-lhe agora toda a sua atenção para o que tenho de contar-lhe.

A madrugada vinha. Sentiam-se já os ruídos da povoação que desperta. A rua não era macadamizada, porque eu sentia o rodar dos carros sobre a calçada. Também não era uma rua larga, porque o eco das carroças era profundo, cheio e próximo. Ouvia pregões. Não sentia carruagens.

O mascarado tinha ficado numa prostração extrema, sentado, imóvel, com a cabeça apoiada nas mãos.

O homem que tinha dito chamar-se A. M. C. estava encosta­do no sofá, com os olhos cerrados, como adormecido.

Eu abri as portas da janela: era dia. Os transparentes e as per­sianas estavam corridos. Os vidros eram foscos como os dos globos dos candeeiros. Entrava uma luz lúgubre, esverdeada.

– Meu amigo – disse eu ao mascarado –, é dia. Coragem! É necessário fazer o exame do quarto, móvel por móvel.

Ele ergueu-se e correu o reposteiro do fundo. Vi uma alcova, com uma cama, e à cabeceira uma pequena mesa redonda, cober­ta com um pano de veludo verde. A cama não estava desmanchada, cobria-a um adredão de cetim encarnado. Tinha um só travessei­ro largo, alto e fofo, como se não usam em Portugal; sobre a mesa estava um cofre vazio e uma jarra com flores murchas. Havia um lavatório, escovas, sabonetes, esponjas, toalhas dobradas e dois frascos esguios de violetas de Parma. Ao canto da alcova estava uma bengala grossa com estoque.

Na disposição dos objectos na sala não havia nenhuma parti­cularidade significativa. O exame dela dava na verdade a per­suasão de que se estava numa casa raramente habitada, visitada a espaços apenas, sendo um lugar de entrevistas, e não um interior regular.

A casaca e o colete do morto estavam sobre uma cadeira; um dos sapatos via-se no chão, ao pé da chaise-longue; o chapéu acha­va-se sobre o tapete, a um canto, como arremessado. O paletó es­tava caído ao pé da cama.

Procuraram-se todos os bolsos dos vestidos do morto: não se encontrou carteira, nem bilhetes, nem papel algum. Na algibeira do colete estava o relógio, de ouro encobrado, sem firma, e uma pequena bolsa de malha de ouro, com dinheiro miúdo. Não se lhe encontrou lenço. Não se pôde averiguar em que tivesse sido trazido de forno ópio; não apareceu frasco, garrafa, nem papel ou caixa em que tivesse estado, em liquido ou em pó; e foi a primeira dificulda­de que no meu espírito se apresentou contra o suicídio.

Perguntei se não havia na casa outros quartos que comunicas­sem com aquele aposento e que devêssemos visitar.

– Há – disse o mascarado –, mas este prédio tem duas entra­das e duas escadas. Ora aquela porta, que comunica com os demais quartos, encontrámo-la fechada pelo outro lado quando chegámos aqui. Logo este homem não saiu desta sala depois que subiu da rua e antes de morrer ou de ser morto.

Como tinha então trazido o ópio? Ainda quando o tivesse já no quarto, o frasco, ou qualquer invólucro que contivesse o narcótico devia aparecer. Não era natural que tivesse sido aniquilado. O copo em que ficara o resto da água opiada, ali estava. Um indício mais grave parecia destruir a hipótese do suicídio: não se encon­trou a gravata do morto. Não era natural que ele a tivesse tirado, que a tivesse destruído ou lançado fora. Não era também racional que tendo vindo àquele quarto esmeradamente vestido como para uma visita cerimoniosa, não trouxesse gravata. Alguém, pois, tinha estado naquela casa, ou pouco antes da morte ou ao tempo dela. Era essa pessoa que tinha para qualquer fim tomado a gra­vata do morto.

Ora a presença de alguém naquele quarto, coincidindo com a estada do suposto suicidado ali, tirava a possibilidade ao suicídio e dava presunções ao crime.

Aproximámo-nos da janela, examinámos detidamente o papel em que estava escrita a declaração do suicida:

– A letra é dele, parece-me indubitável que é – disse o mas­carado – mas, na verdade, não sei porquê, não lhe acho a feição usual da sua escrita!

Observou-se o papel escrupulosamente; era meia folha de es­crever cartas. Notei logo no alto da página a impressão muito apa­gada, muito indistinta, de uma firma e de uma coroa, que devia ter estado gravada na outra meia folha. Era, portanto, papel marcado. Fiz notar esta circunstância ao mascarado; ele ficou surpreendido e confuso. No quarto não havia papel, nem tinteiro, nem penas. A declaração, pois, tinha sido escrita e preparada fora.

– Eu conheço o papel de que ele usava em casa – disse o mascarado –, não é deste; não tinha firma, não tinha coroa. Não podia usar doutro.

A impressão da marca não era bastante distinta para que se percebesse qual fosse a firma e qual a coma. Ficava, porém, claro que a declaração não tinha sido escrita nem em casa dele, onde não havia daquele papel, nem naquele quarto, onde não havia papel al­gum, nem tinteiro, nem um livro, um buvard, um lápis.

Teria sido escrita fora, na rua, ao acaso? Em casa de alguém? Não, porque ele não tinha em Lisboa, nem relações íntimas, nem conhecimento de pessoas cujo papel fosse marcado com coroa.

Teria sido feita numa loja de papel? Não, porque o papel que se vende vulgarmente nas lojas não tem coroas.

Seria a declaração escrita em alguma meia folha branca tira­da de uma velha carta recebida? Não parecia também natural, por­que o papel estava dobrado ao meio e não tinha os vincos que dá o envelope.

Demais a folha tinha um aroma de pós de marechala, o mesmo que se sentia, suavemente embebido no ar do quarto em que está­vamos.

Além disso, pondo o papel directamente sobre a claridade da luz, distingui o vestígio de um dedo polegar, que tinha sido assente sobre o papel no momento de estar suado ou húmido, e tinha embaciado a sua brancura lisa e acetinada, havendo deixado uma impressão exacta. Ora este dedo parecia delgado, pequeno, femi­nil. Este indicio era notavelmente vago, mas o mascarado tinha a esse tempo encontrado um, profundamente eficaz e seguro.

– Este homem – notou ele – tinha o costume invariável, me­cânico, de escrever, abreviando-a, a palavra that; deste modo: dois TT separados por um traço. Esta abreviatura era só dele, original, desconhecida. Nesta declaração, aliás pouco inglesa, a palavra that acha-se escrita por inteiro.

Voltando-se para M. C.:

– Porque não apresentou logo este papel? – perguntou o mas­carado. – Esta declaração foi falsificada.

– Falsificada! – exclamou o outro, erguendo-se com sobres­salto ou com surpresa.

– Falsificada; feita para encobrir o assassinato; tem todos os indícios disso. Mas o grande, o forte, o positivo indício é este: onde estão as 2300 libras em notas de Inglaterra, que este homem tinha no bolso?

M. C. olhou-o pasmado, como um homem que acorda de um sonho.

– Não aparecem, porque o senhor as roubou. Para as roubar matou este homem. Para encobrir o crime falsificou este bilhete.

– Senhor – observou gravemente A. M. C. –, fala-me em 2300 libras: dou-lhe a minha palavra de honra que não sei a que se quer referir.

Eu então disse lentamente, pondo os olhos com uma perscruta­ção demorada sobre as feições do mancebo:

– Esta declaração é falsa, evidentemente; não percebo o que quer dizer este novo negócio das 2300 libras, de que só agora se fala; o que vejo é que este homem foi envenenado: ignoro se foi o senhor, se foi outro que o matou, o que sei é que evidentemente o cúmplice é uma mulher.

– Não pode ser, doutor! – gritou o mascarado. – É uma su­posição absurda.

– Absurda!?... E este aposento, este quarto forrado de seda, fortemente perfumado, carregado de estofos, iluminado por uma claridade baça coada por vidros foscos; a escada coberta com um ta­pete; um corrimão engenhado com uma corda de seda; ali aos pés daquela volteriana aquele tapete feito de uma pele de urso, sobre a qual me parece que estou vendo o vestígio de um homem prostra­do? Não vê em tudo isto a mulher? Não é esta evidentemente uma casa destinada a entrevistas de amor?...

– Ou a qualquer outro fim

– E este papel? Este papel de marca pequeníssima, do que as mulheres compram em Paris, na casa Maquet, e que se chama pa­pel da Imperatriz?

– Muitos homens o usam!

– Mas não o cobrem como este foi coberto, com um sachet em que havia o mesmo aroma que se respira no ambiente desta casa. Este papel pertence a uma mulher, que examinou a falsificação que ele encerra, que assistiu a ela, que se interessava na perfeição com que a fabricassem, que tinha os dedos húmidos, deixando no papel um vestígio tão claro...

O mascarado calava-se.

– E um ramo de flores murchas, que está ali dentro? Um ra­mo que examinei e que é formado por algumas rosas, presas com uma fita de veludo? A fita está impregnada do perfume da poma­da, e descobre-se-lhe um pequeno vinco, como o de uma unhada profunda, terminando em cada extremidade por um buraquinho... E o vestígio flagrante que deixou no veludo um gancho de segurar o cabelo!

– Esse ramo podiam ter-lho dado, podia tê-lo trazido ele mes­mo de fora.

– E este lenço que encontrei ontem debaixo de uma cadeira?

E atirei o lenço para cima da mesa. O mascarado pegou nele avidamente, examinou-o e guardou-o.

M. C. olhava pasmado para mim, e parecia aniquilado pela dura lógica das minhas palavras. O mascarado ficou por alguns momentos silencioso; depois com uma voz humilde, quase supli­cante:

– Doutor, doutor, por amor de Deus! esses indícios não pro­vam. Este lenço, de mulher indubitavelmente estou convencido que é o mesmo que o morto trazia no bolso. É verdade: não se lem­bra que não lhe encontrámos lenço?

– E não se lembra também que não lhe encontrámos gravata?

O mascarado calou-se sucumbido.

– No fim de contas eu não sou aqui juiz, nem parte – excla­mei eu. – Deploro vivamente esta morte, e falo nisto unicamente pelo pesar e pelo horror que ela me inspira. Que este moço se matasse ou que fosse morto, que caísse às mãos de uma mulher ou às mãos de um homem, importa-me pouco. O que devo dizer-lhe é que o cadáver não pode ficar por muito mais tempo insepulto: é pre­ciso que o enterrem hoje. Mais nada. É dia. O que desejo é sair.

– Tem razão, vai sair já – cortou o mascarado.

E em seguida, tomando M. C. pelo braço, disse-me:

– Um momento! Eu volto já!

E saíram ambos pela porta que comunicava como interior da casa, fechando-a à chave pelo outro lado.

Fiquei só, passeando agitadamente.

A luz do dia tinha feito surgir no meu espírito uma multidão de pensamentos inteiramente novos e diversos daqueles que me ha­viam ocupado durante a noite. Há pensamentos que não vivem se­não no silêncio e na sombra, pensamentos que o dia desvanece e apaga; há outros que só surgem ao clarão do Sol.

Eu sentia no cérebro uma multidão de ideias estremunhadas, que à luz repentina da madrugada voejavam em turbilhão como um bando de pombas amedrontadas pelo estridor de um tiro.

Maquinalmente entrei na alcova, sentei-me na cama, encostei um braço no travesseiro.

Então, não sei como, olhei, reparei, vi, com estranha comoção, sobre a alvura do travesseiro, preso num botão de madrepérola, um longo cabelo louro, um cabelo de mulher.

Não me atrevi logo a tocar-lhe. Pus-me a contemplá-lo, ávi­da e longamente.

«– Era então certo! Aí estás, pois! Encontro-me finalmente... Pobre cabelo! Apieda-me a simplicidade inocente com que te ficas­te aí, patente, descuidado, preguiçoso, lânguido! Podes ter malda­de, podes ter malvadez, mas não tens malícia, não tens astúcia. Te­nho-te nas mãos, fito-te com os meus olhos; não foges, não estre­meces, não coras; dás-te, consentes-te, facilitas-te, meiga, doce, confiadamente... E, no entanto, ténue, exígua, quase microscópi­ca, és uma parte da mulher que eu adivinhava, que eu antevia, que eu procuro! É ela autora do crime? É inteiramente inocente? É ape­nas cúmplice? Não sei, nem tu mo poderás dizer?»

De repente, tendo continuado a considerar o cabelo, por um processo de espírito inexplicável, pareceu-me reconhecer de súbi­to aquele fio louro, reconhecê-lo em tudo: na sua cor, na sua nuan­ce especial, no seu aspecto! Lembrou-me, apareceu-me então a mulher a quem aquele cabelo pertencia! Mas quando o nome dela me veio insensivelmente aos lábios, disse comigo:

«Ora! Por um cabelo! Que loucura!

E não pude deixar de rir.

Esta carta vai já demasiadamente longa. Continuarei ama­nhã.

 

Contei-lhe ontem como inesperadamente havia encontrado à cabeceira da cama um cabelo louro.

Prolongou-se a minha dolorosa surpresa. Aquele cabelo lu­minoso, languidamente enrolado, quase casto, era o indício de um assassinato, de uma cumplicidade pelo menos! Esqueci-me em longas conjecturas, olhando, imóvel, aquele cabelo perdido.

A pessoa a quem ele pertencia era loura, clara, decerto, pequena, mignonne, porque o fio de cabelo era delgadíssimo, extraordinariamente puro, e a raiz branca parecia prender-se aos tegumentos cranianos por uma ligação ténue, delicadamente or­ganizada.

O carácter dessa pessoa devia ser doce, humilde, dedicado e amante, porque o cabelo não tinha ao contacto aquela aspereza cortante que oferecem os cabelos pertencentes a pessoas de tempe­ramento violento, altivo e egoísta.

Devia ter gostos simples, elegantemente modestos a dona de tal cabelo, já pelo imperceptível perfume dele, já porque não tinha vestígios de ter sido frisado, ou caprichosamente enrolado, doma­do em penteados fantasiosos.

Teria sido talvez educada em Inglaterra ou na Alemanha, por­que o cabelo denotava na sua extremidade ter sido espontado, há­bito das mulheres do Norte, completamente estranho às meridio­nais, que abandonam os seus cabelos à abundante espessura na­tural.

Isto eram apenas conjecturas, deduções da fantasia, que nem constituem uma verdade científica, nem uma prova judicial.

Esta mulher, que eu reconstruía assim pelo exame de um ca­belo, e que me aparecia doce, simples, distinta, finamente educa­da, como poderia ter sido o protagonista cheio de astúcia daquela oculta tragédia? Mas conhecemos nós, porventura, a secreta lógica das paixões?

Do que eu estava perfeitamente convencido é que havia uma mulher como cúmplice. Aquele homem não se tinha suicidado. Não estava decerto sé, no momento em que bebera o ópio. O narcótico tinha-lhe sido dado, sem violência evidentemente, por ardil ou en­gano, num copo de água. A ausência do lenço, o desaparecimento da gravata, a colocação do fato, aquele cabelo louro, uma cova re­centemente feita no travesseiro pela pressão de uma cabeça, tudo indicava a presença de alguém naquela casa durante a noite da ca­tástrofe. Por consequência: impossibilidade de suicídio, verosimi­lhança de crime.

O lenço achado, o cabelo, a disposição da casa (evidentemente destinada a entrevistas íntimas), aquele luxo da sala, aquela esca­da velha, devastada, coberta com um tapete, a corda de seda que eu tinha sentido... tudo isto indicava a presença, a cumplicidade de uma mulher. Qual era a parte dela naquela aventura? Não sei. Qual era a parte de A. M. C.? Era o assassino, o cúmplice, o ocul­tador do cadáver? Não sei. M. C. não podia ser estranho a essa mu­lher. Não era decerto um cúmplice tomado exclusivamente para o crime. Para dar ópio num copo de água não é necessário chamar um assassino assalariado. Tinham por consequência um interesse comum. Eram amantes? Eram casados? Eram ladrões? E acudia-me à memória aquela inesperada referência a 2300 libras que de repente me tinha aparecido como um novo mistério. Tudo isto eram conjecturas fugitivas. Para que hei-de repetir eu todas as ideias que se formavam e que se desmanchavam no meu cérebro, como nuvens num véu varrido pelo vento?

Há decerto na minha hipótese ambiguidades, contradições e fraquezas, há nos indícios que colhi lacunas e incoerências: muitas coisas significativas me escaparam por certo, ao passo que muitos pormenores inexpressivos se me gravaram na memória, mas eu estava num estado mórbido de perturbação, inteiramente desor­ganizado por aquela aventura, que inesperadamente, com o seu cortejo de sustos e mistérios, se instalara na minha vida.

O senhor redactor, que julga de ânimo frio, os leitores, que sos­segadamente, em sua casa, lêem esta carta, poderão melhor com­binar, estabelecer deduções mais certas, e melhor aproximar-se pela indução e pela lógica da verdade oculta.

Eu achava-me só havia uma hora, quando o mascarado alto entrou, trazendo o chapéu na cabeça e no braço uma capa de casi­mira alvadia.

– Vamos – disse ele.

Tomei calado o meu chapéu.

– Uma palavra antes – disse ele. –Em primeiro lugar dê-me a sua palavra de honra que ao subir agora à carruagem não terá um gesto, um grito, um movimento que me denuncie.

Dei a minha palavra.

– Bem! – continuou. –Agora quero dizer-lhe mais: aprecio a dignidade do seu carácter, a sua delicadeza. Ser-me-ia doloroso que entre nós houvesse em qualquer tempo motivos de desdém, ou necessidades de vingança. Por isso afirmo-lhe: sou perfei­tamente estranho a este sucesso. Mais tarde talvez entregue este caso à polícia. Por ora sou eu polícia, juiz e talvez carrasco. Esta casa é um tribunal e um cárcere. Vejo que o doutor leva daqui a desconfiança de que uma mulher se envolveu neste crime: não o suponha, não podia ser. No entanto, se alguma vez lá fora falar, a respeito deste caso, em alguma pessoa determinada e conhecida, dou-lhe a minha palavra de honra, doutor, que o mato, sem remor­so, sem repugnância, naturalmente, como corto as unhas. Dê-me agora o seu braço. Ah! esquecia-me, meu caro, que os seus olhos es­tão destinados a ter estas lunetas de cambraia.

E, rindo, apertou-me o lenço nos olhos.

Descemos a escada, entrámos na carruagem, que tinha os es­tores fechados. Não pude ver quem guiava os cavalos porque só dentro do coupé achei a vista livre. O mascarado sentou-se ao pé de mim. Via-lhe uma pequena parte da face tocada da luz. A pele era fina, pálida, o cabelo castanho, levemente anelado.

A carruagem seguiu um caminho, que pelos acidentes da estra­da, pela diferença de velocidade indicando aclives e declives, pelas alternativas de macadame e de calçada, me parecia o mesmo que tínhamos seguido na véspera, no começo da aventura. Rodámos finalmente na estrada larga.

– Ah, doutor! – dizia o mascarado com desenfado. – Sabe o que me aflige? É que o vou deixar na estrada, só a pé! Não se pô­de remediar isto. Mas não se assuste. O Cacém fica a dois passos, e aí encontra facilmente condução para Lisboa.

E ofereceu-me charutos.

Depois de algum tempo, em que fomos na maior velocidade, a carruagem parou.

– Chegámos – disse o mascarado. – Adeus, doutor.

E abriu por dentro a portinhola.

– Obrigado! – acrescentou. – Creia que o estimo. Mais tar­de saberá quem sou. Permita Deus que ambos tenhamos no aplau­so das nossas consciências e no prazer que dão cumprimento de um grande dever o derradeiro desenlace da cena a que assistiu. Re­stituo-lhe a mais completa liberdade. Adeus!

Apertámos a mão, eu saltei. Ele fechou a portinhola, abriu os estores e estendendo-me para fora um pequeno cartão:

– Guarde essa lembrança – disse. – É o meu retrato.

Eu, de pé, na estrada, junto das rodas, tomei a fotografia avi­damente, olhei. O retrato estava também mascarado!

– É um capricho do ano passado, depois de um baile de másca­ras! – gritou ele, estendendo a cabeça pela portinhola da carrua­gem que começava a rodar a trote.

Via-a afastando-se na estrada. O cocheiro tinha o chapéu der­rubado, uma capa traçada sobre o rosto.

Quer que lhe diga tudo? Olhei para a carruagem com melanco­lia! Aquele trem levava consigo um segredo inexplicável. Nunca mais veria aquele homem. A aventura desvanecia-se, tinha finda­do tudo­

O pobre morto, esse lá ficava, estendido no sofá, que lhe servia de sarcófago.

Achei-me só, na estrada. A manhã estava nevoada, serena, melancólica. Ao longe distinguia ainda o trem. Um camponês apa­receu vindo do lado oposto àquele por onde ele desaparecia.

– Onde fica o Cacém?

– De lá venho eu, senhor. Sempre pela estrada, a meio quar­to de légua.

A carruagem, pois, tinha-se dirigido para Sintra.

Cheguei ao Cacém fatigado. Mandei um homem a Sintra, à quinta de F..., saber se tinham chegado os cavalos; pedi para Lisboa uma carruagem, e esperei-a a uma janela, por dentro dos vidros, olhando tristemente para as árvores e para os campos. Ha­via meia hora que estava ali, quando vi passar a toda a brida um fogoso cavalo. Pude apenas distinguir entre uma nuvem de pó o vulto quase indistinto do cavaleiro. Ia para Lisboa embuçado em uma capa alvadia.

Tomei informações a respeito da carruagem que passara na véspera connosco. Havia contradições sobre a cor dos cavalos.

Voltou de Sintra o homem que eu ali mandara, dizendo que na quinta de F... tinham sido entregues os cavalos por um criado do campo, o qual dissera que os senhores, ao pé do Cacém, tinham en­contrado um amigo que os levara consigo em uma caleche para Lis­boa. Daí a momentos chegou a minha carruagem. Voltei a Lisboa, corri a casa de F... O criado tinha recebido este bilhete a lápis:

 

Não esperem por mim estes dias. Estou bom. A quem me procurar, que fui para Madrid.

 

Procurei-o debalde por toda a Lisboa. Comecei a inquie­tar-me. F... estava evidentemente retido. Receei por mim. Lem­braram-me as ameaças do mascarado, vagas mas resolutas. Na noite seguinte, ao recolher para casa, notei que era seguido.

Entregar à polícia este negócio, tão vago e tão incompleto como ele é, seria tornar-me o denunciante de uma quimera. Sei que, em resultado das primeiras notícias que lhe dei, o Governador Civil de Lisboa oficiou ao administrador de Sintra convidando-o a meter o esforço da sua polícia no descobrimento deste crime. Foram inúteis estas providências. Assim devia ser. O sucesso que constitui o assunto destas cartas está por sua natureza fora da alçada das pesquisas policiais. Nunca me dirigi às autoridades, quis simples­mente valer-me do público, escolhendo para isso as colunas popu­lares do seu periódico. Resolvi homiziar-me, receando ser vítima de uma emboscada.

São óbvias, depois disto, as razões por que lhe o meu no­me: assinar estas linhas seria patentear-me; não seria esconder-me, como quero.

Do meu impenetrável retiro lhe dirijo esta carta. É manhã. Vejo a luz do Sol nascente através das minhas gelosias. Ouço os pregões dos vendedores matinais, os chocalhos das vacas, o rodar das carruagens, o murmúrio alegre da povoação que se levanta de­pois de um sono despreocupado e feliz... Invejo aqueles que não tendo a fatalidade de secretas aventuras passeiam, conversam, mourejam na rua. Eu – pobre de mim! – estou encarcerado por um mistério, guardado por um segredo!

P. S. – Acabo de receber uma longa carta de F... Esta carta, escrita há dias, só hoje me veio à mão. Sendo-me enviada pelo correio, e tendo-me eu ausentado da casa em que vivia sem dizer para onde me mudava, só agora pude haver essa interessante mis­siva. Aí tem, senhor redactor, copiada por mim, a primeira parte dessa carta, da qual depois de amanhã lhe enviarei o resto. Publi­que-a, se quiser. É mais do que um importante esclarecimento neste obscuro sucesso; é um vestígio luminoso e profundo. F... é um escritor público, e descobrir pelo estilo um homem é muito mais fá­cil do que reconstruir sobre um cabelo a figura de uma mulher. É gravíssima a situação do meu amigo. Eu, aflito, cuidadoso, he­sitante, perplexo, não sabendo o que faça, não podendo deliberar pela reflexão, rendo-me à decisão do acaso, e elimino, juntamente com a letra do autógrafo, as duas palavras que constituem o nome que firma essa longa carta. Não posso, não devo, não me atrevo, não ouso dizer mais. Poupem-me a uma derradeira declaração, que me repugna. Adivinhem.. se puderem. Adeus!

 

INTERVENÇÃO DE Z.

Nota do Diário de Notícias. – No original da carta publica­da ontem havia algumas palavras a lápis, nas quais só fizemos re­paro depois de impresso o jornal. Essas palavras continham esta observação:

 

A fotografia do mascarado foi feita em casa de Henri­que Nunes, Rua das Chagas, Lisboa. Talvez aí possa haver noticia do sujeito fotografado.

 

Antes de darmos à estampa a longa carta de F..., cuja primeira parte nos foi ontem enviada pelo médico, é dever tornar conheci­da uma outra importantíssima que recebemos pela posta interna, assinada com a inicial Z, e que temos em nosso poder há já três dias. Esta carta, que tão estreitamente vem prender-se na histó­ria dos sucessos que constituem o assunto desta narrativa, é a se­guinte:

 

Senhor redactor do Diário de Notícias. – Lisboa, 30 de Julho de 1870. – Escrevo-lhe profundamente indignado. Principiei a ler, como quase toda a gente em Lisboa, as cartas publicadas na sua folha, em que o doutor anónimo conta o caso que essa redacção intitulou O Mistério da Estrada de Sintra. Interessava-me essa narrativa e segui-a com a curiosidade despreocupada que se liga a um canard fabricado com engenho, a um romance à semelhan­ça dos Thugs e de alguns outros do mesmo género com que a veia imaginosa dos fantasistas franceses e americanos vem de quando em quando acordar a atenção da Europa para um sucesso estupen­do. A narração do seu periódico tinha sobre as demais que tenho li­do o mérito original de se passarem os sucessos ao tempo que se vão lendo, de serem anónimas as personagens e de estar tão secretamente encoberta amola principal do enredo, que nenhum leitor po­deria contestar com provas a veracidade do caso portentosamen­te romanesco, que o autor da narrativa se lembrara de lançar de repente ao meio da sociedade prosaica, ramerraneira, simples e honesta em que vivemos. Ia-me parecendo ter diante de mim o ideal mais perfeito, o tipo mais acabado do roman feuilleton, quan­do inesperadamente encontro no folhetim publicado hoje as ini­ciais de um nome de homem – A. M. C. – acrescentando-se que a pessoa designada por estas letras é estudante de medicina e na­tural de Viseu. Eu tenho um amigo querido com aquelas iniciais no seu nome. É justamente estudante de medicina e natural de Viseu! O acaso não podia reunir tudo isto. Havia, portanto, o intuito de fa­zer cobardemente uma insinuação infamíssima. Isto não é lícito a romancista nenhum.

A primeira impressão que senti foi a da repulsão e do tédio. Saindo de casa pouco depois da leitura do seu periódico, procurei o meu amigo para lhe ler a passagem que lhe dizia respeito, e pôr-

– me à sua disposição no caso que precisasse de mim para pedir, quanto antes, à redacção do Diário de Notícias a satisfação de hon­ra, que homens de educação e de brio não poderiam decerto recusar a semelhante agravo.

Em casa do meu amigo acabo, porém, de saber, cheio de con­fusão e de surpresa, que ele desapareceu e que é ignorado o seu destino!

Este desaparecimento e a coincidência achada na carta do doutor levam-me desgraçadamente a acreditar que por estranhas fatalidades o meu infeliz amigo se acha involuntariamente en­volvido neste tenebroso negócio. A data do desaparecimento dele condiz perfeitamente com a que encontro na carta do seu corres­pondente. É claro que há, pois, em volta da pessoa de A. M. C., uma intriga real, uma emboscada talvez, uma traição.

Serei tristemente obrigado a ter por verídica, no todo ou em parte, a notícia que leio na sua folha?

Julgo do meu dever assegurar o seguinte:

Não seio que o meu amigo A. M. C. ia fazer alta noite a essa ca­sa desconhecida, tendo uma chave dela, martelo e pregos. Não sei porque se declarou autor do assassinato, negando-o depois. Igno­ro a íntima verdade destas contradições.

Mas o que sei, aquilo de que posso já dar testemunho, e não só eu, mas amigos, mas numerosas pessoas, é que na noite que se mostra ter sido a do assassinato ele esteve, até quase de madruga­da, em minha casa, conversando, rindo, bebendo cerveja.

Saiu talvez às três horas da noite.

Declaro também, e isto pode ser igualmente apoiado por se­guras testemunhas: que às nove horas da manhã do dia seguinte estive no quarto dele. Ainda dormia, acordou sobressaltado à mi­nha voz, e tornou a adormecer enquanto eu procurava entre os seus livros um volume de Taine.

As donas da casa que o hospedam disseram-me que ele entra­ra pela madrugada.

– Ali pela volta das três e meia – conjecturavam elas.

Ora da minha casa, de onde saiu às três, até casa dele, onde en­trou às três e meia, o caminho que é longo, ocupa justamente es­te espaço de tempo.

Por consequência, respondam: quando cometeu ele o crime? O emprego do seu tempo está todo justificado: das nove da noite até madrugada em minha casa, numa conversa jovial e íntima; da ma­drugada até às nove, num sono pacífico em sua própria casa.

Resta unicamente a meia hora do caminho, da qual não há testemunhas. É crível que em meia hora pudesse ir alguém a essa casa, preparar ópio, fazê-lo beber a um homem, falsificar uma de­claração e vir sossegadamente dormir? Tem isto lógica?

Demais o crime foi cometido numa casa, o ópio foi deitado num copo de água, dado traiçoeiramente. O cadáver estava meio despi­do. Tudo isto indica que entre o assassino e o desgraçado houve uma entrevista, tinham conversado intimamente, tinham rido de­certo; o que depois morreu tinha talvez calor, pôs-se livremente, tirou o casaco, contaram porventura anedotas, e num momento de sede, o ópio foi dado num copo de água. E tudo isto só faz em meia hora! Em meia hora! Devendo, meus senhores, descontar-se des­ta meia hora o tempo que vai de minha casa à casa do crime, e daí a casa de A. M. C.! Pode isto ser?

Agora outro argumento: eu conheço A. M. C.; o seu carácter é digno, impecável; o seu coração é compassivo e simples; a sua vida é laboriosa e isolada; não existe nela nem mistério, nem aven­tura, nem patético: estava para casar, sem romance, trivialmente.

Eu sabia de todos os seus passos, conhecia as suas relações. Es­tou certo que nunca viu o assassinado, o qual, no dizer do doutor, parecia estrangeiro, sem relações aqui, e domiciliado há pouco tempo em Portugal!

Poderia ser um encontro casual, uma rixa inesperada? Impos­sível. Se o homem foi encontrado estendido num sofá, morto com ópio!

Poderia M. C. ter sido assalariado para cometer este crime? Que loucura! Um homem da sua inteligência, do seu carácter, da sua elevação de espírito! Além de que, hoje o emprego de homici­da, regular e devidamente retribuído como uma função pública, não existe nos costumes.

Pode-se conceber que um homem que premedita um crime es­teja até o momento decisivo distraído, espirituoso, desabotoando os seus paradoxos, bebendo cerveja? E que depois vá sossegada­mente dormir, e que um amigo que o visite na manhã seguinte en­contre sobre a sua banca de cabeceira, uma chávena de chá e um livro de história?

E dê-se isto com um homem de carácter tímido, de hábitos mo­destos, homem de estudo, sem energia de acção, e de uma notável franqueza de impressões!

Se me perguntarem, porém, porque aparece M. C. de noite naquela casa com um martelo, com pregos, e se declara assassino – isso não o sei explicar.

Suspeito que haja uma grande influência que pesa sobre ele, alguém que com promessas extraordinárias, com seduções indizí­veis, o obriga a apresentar-se como autor do crime. M. C. eviden­temente sacrifica-se. Por quem, ignoro-o. Mas sacrifica-se, e na ignorância de que estas dedicações são sempre desapreciadas pe­rante o trabalho da polícia, quer expiar o crime de outro; perde-se para salvar alguém.

Com que interesse? Por que seduções? Não sei explicar. Ele, tão indiferente ao dinheiro! tão rígido de costumes e de sensações!

Pois bem! M. C. pode sacrificar-se; pode-o fazer. Nós, seus amigos, é que não podemos consenti-lo. O seu corpo, que lhe per­tence exclusivamente, pode dá-lo à infecção de um cárcere ou ao peso de uma grilheta. Mas o seu carácter, a sua honra, a sua repu­tação, a sua alma, essa pertence também aos seus amigos, e a par­te que nos pertence havemos de defendê-la corajosamente.

Não! M. C. não foi o assassino. Di-lo a evidência, a fatal lógi­ca dos factos, a terrível matemática do tempo, o conhecimento do seu carácter, e a coerência dos temperamentos, que é uma verda­de nas ciências fisiológicas. Não, não é o assassino. Se o diz, está louco, mente. Digo-lhe claramente, em frente, diante dos seus pró­prios olhos fitos sobre os meus: – Se te declaras o autor desse cri­me, mentes!

Ele tem decerto o senso moral transviado. Se me deixassem fa­lar-lhe!... Esclareçam-lhe, pelo amor de Deus, aquela razão cheia de escuras nuvens da paixão e da dor! Isto é aflitivo! Honra, amor, família, esperança, tudo esqueceu esse homem! Que se lembre, o desgraçado, que não é só neste mundo. Que se lembre que talvez a estas horas, no fundo da província, sua mãe, suas irmãs, sabem já que ele está aqui apontado como assassino! Que se lembre da ter­rível desonra, do seu futuro perdido, das horas solitárias da prisão, da atroz vergonha de um interrogatório público, e do eco profundo que faz na alma humana o ruído sinistro dos ferros da grilheta.

Não ponho no fim desta carta o meu nome, porque pressinto vagamente neste grupo de sucessos, confusamente conglobados perante a minha apreciação, a passagem misteriosa e fatal de um crime que vai poderosamente na direcção do seu fito, esmagando e despedaçando os estorvos que o impecem. Ora eu não quero que a publicidade do meu nome leve os cúmplices no atentado de que se trata, ou, porventura, a polícia, a aniquilar ou a embaraçar de qualquer modo a intervenção espontânea que eu próprio vou ter no descobrimento dos réus. Conto com os meus recursos, mas preci­so para os pôr em prática de toda a minha liberdade.

Creia-me, senhor redactor, etc. – Z.

 

DE F... AO MÉDICO

Julho 21, à 1 hora da noite. – Meu querido amigo. – Ignoro se estás em tua casa, para onde te dirijo esta carta, ou se continuas, como eu, permanecendo aqui em cárcere privado. Em qualquer dos casos, recebidas agora ou encontradas mais tarde, estas letras ficarão encenando para aquele de nós que houver de as ler a lem­brança proveitosa das horas mais extraordinárias da nossa vida.

Escrevo mais para coordenar e fixar na memória estes mo­mentos do que para empregar noutro destino puramente hipoté­tico esta carta. Será uma página das minhas confidências que entregarei à discrição ou ao acaso da posta, reservando-me o direi­to de lhe pedir que mas restitua a seu tempo.

Não tornei a ter noticias tuas desde que nos separámos ontem à noite, pouco tempo depois de termos entrado na sala em que es­tava o cadáver. O mascarado que se encarregara de me conduzir ao quarto onde me acho, deu-me o seu braço e disse-me ao ouvi­do um nome de mulher, a indicação de uma rua e o número de uma porta. Era o nome da pessoa que sabes e a designação da casa em que ela mora! Creio que involuntariamente estremeci, mas conse­gui dizer serenamente:

– Não o compreendo.

Este indivíduo era o mesmo que na carruagem se conservara sempre calado, o mesmo que na sala me observava com atenção e desconfiança.

Aquela estatura, aquela fala, aquela voz, posto que apenas perceptível ao meu ouvido, não eram novas para mim.

Ele respondeu falando-me ainda mais baixo:

– Não poderá sair daqui antes de dois ou três dias. Veja se precisa de escrever uma carta ou de mandar um recado.

Passou-me pela mente uma ideia a respeito daquele homem... Se fosse...

Ocorreu-me que teria um meio de desenganar-me se era efectivamente ou se não era um amigo intimo que eu tinha ao meu lado: arrancar-lhe o relógio; bastar-me-ia apalpá-lo, ainda ven­dado como eu estava, para reconhecer o dono. A ser o indivíduo que eu supunha, a caindo relógio teria lisura do esmalte e no centro a saliência de um brasão.

– Escreverei duas linhas – disse eu –, quererá dar-me um lápis?

Tínhamos chegado ao quarto que me era destinado e eu des­vendei-me ao tempo em que ele safa prometendo trazer-me o ne­cessário para escrever. O indivíduo que voltou com papel e penas: não era o mesmo que acabara de sair. Assim tinha eu perdido a ocasião de confirmar uma suspeita ou de desvanecer uma dúvida.

Em todo ocaso escrevi duas linhas ao meu criado serenando-o: com relação ao meu desaparecimento.

– Mais nada? –interrogou o desconhecido tomando o meu bi­lhete.

– Nada mais.

Um sentimento de delicadeza e uma sombra de desconfiança impediam-me de escrever directamente à pessoa a quem o mascarado se referira.

Fecharam a porta e fiquei só.

Achei-me num quarto de interior, bastante espaçoso, mas sem janela. A um lado havia um lavatório; sobrepostas a um canto três malas de viagem, de couro de Varsóvia com pregos de aço, estrela tias com senhas de caminho-de-ferro, de hotéis e de paquetes; a que estava por cima das outras tinha em grandes letras pretas sobre uma tira de papel este dístico: Grand-Hotel-Paris; uma das senhas era dos paquetes ingleses da carreira da Índia. Para outro lado do quarto havia uma cama. Completava a simples guarnição deste aposento um sofá forrado de marroquim verde, colocado n meio da casa defronte de uma ampla mesa em que estava posta a minha ceia à luz fulgurante de um grande candeeiro com largo abat-jour.

Queres que te confesse a verdade? Agradou-me aquele recolhi mento, aquele sossego, aquela solidão, depois da grande sobre-excitação em que me tinha achado!

Estirei-me no sofá, pus-me a olhar maquinalmente para o círculo da luz trepidante projectada pelo candeeiro e contornada n tecto pela abertura do abat-jour, e começaram a desafogar-se-me os comprimidos espasmos do coração em bocejos longos acompanhados de estremecimentos nervosos, que me convidavam suavemente ao repouso. A minha imaginação, ocupada num trabalho inconsciente semelhante ao dos sonhos, ia tirando, no entanto, do caso que eu presenciara as ramificações mais ilógicas e mais fantásticas. Os sucessos por que passámos desde a estrada de Sintra até à minha entrada neste quarto apareciam-me redemoinhando convulsamente no ar como um enorme enigma figurado, cujos objectos tumultuavam impelidos pelos pontapés de diabinhos sar­cásticos, que se riam para mim e me deitavam de fora as lingua­zinhas em brasa.

Fui caindo molemente num despego lânguido, fecharam-se-me os olhos, adormeci.

Ao acordar, depois de um sono breve mas sossegado e repara­dor, encarei na ceia que reluzia aos meus olhos.

Havia sobre a mesa um pão, uma caixa de lata com sardinhas de Nantes, uma terrinazinha de foie gras, uma perdiz, uma fatia de queijo e três garrafas de vinho de Borgonha, lacradas de verde; junto destas, quatro garrafas de soda. Na argola de prata do guardanapo estava passado o saca-rolhas. Sobre uma bandeja de metal erguia-se um eixo de charutos cor de chocolate, luzidios, gordos, apertados nas extremidades com duas fitas de seda car­mesim. Em cima da caixa das sardinhas achava-se colocado o ins­trumento destinado a abri-la. O copo era de cristal finíssimo, o garfo de prata dourada, a faca de cabo de madrepérola, os pratos de porcelana brancos, cercados de um estreito filete dourado e verde. Atirei rapidamente com os pés para o chão. Sentei-me no sofá, senti a fome encavalar-se-me no dorso, carregar-me na cabeça para cima da ceia, cingir-me a cinta com as suas pernas esgalgadas e cravar-me no estômago vazio os acicates da gula.

Ao mesmo tempo ergueu-se-me do outro lado da mesa a aban­tesma do susto, cravando os olhos em mim e espalmando por cima das iguarias a sua mão descamada e trémula com um gesto proi­bitivo e solene. Atarantado, perplexo, escutei então dentro de mim um breve diálogo semelhante àqueles que Xavier de Maistre tra­vava de quando em quando com a besta, na sua viagem à volta do quarto.

Havia uma voz pausada e grave que dizia:

– Atenta no que fazes, temerário! Abre teus olhos, inconsi­derado mortal! Essa perdiz, cujo peito insidioso e pérfido está lourejando a teus olhos; foi apimentada com arsénico. Aquele Chambertin, que te espera como uma onda dá lagoa Estígia, em­boscada por detrás daquele letreiro envernizado, aparentemente simples, elegante, convidativo, mas em verdade tenebroso e fatal como o dístico do festim de Baltasar, aquele vinho, que te oferece um beijo refalsado e fementido, está destemperado com ácido prús­sico. As trufas, lúbricas, venais, devassas, envoltas nesses fígados de pato, estão empapadas nos temperos letais da cozinha dos Bór­gias!

A outra voz, insinuante e meiga, dizia numa vaga melodia de

Sereia:

– Come, se tens fome, estúpido! Estás com medo do papão, ma­luco?... Põe os olhos nesse lacre: não será um penhor seguro da pu­reza do líquido que ele tapa a marca desse abonado sinete? Não vês hermeticamente fechada, chumbada e garantida com os mais especiais lavores a lata dessas sardinhas pescadas nas costas de França e cozinhadas há seis meses em Marselha? Não vês religio­samente grudada e selada com as etiquetas insuspeitas e sagradas da acreditada casa Chevet essa terrina de foie gras? Supões aca­so, ó parlapatão, que meio mundo se conjurasse para te arrancar essa vida inútil? Come, bebe e dorme; aproveita nos braços da sabedoria as horas gostosas da solidão com que te brinda o acaso. Deleita-te conversando depois contigo e repousando-te no seio tépido da melancolia, dessa deliciosa fada que só aparece evocada pelos namorados e pelos solitários, e que é na terra a irmã mais no­va da tristeza, a irmã gâtée, a irmã feliz!

Eu, no entanto, havia cortado a caixa das sardinhas, desgru­dado a tampa da terrina e desarrolhado uma garrafa de vinho e uma garrafa de soda que misturara num copo.

Pus-me, por fim, a comer caiu apetite, com valor, com delícia, com uma espécie de bestialidade voluptuosa, sentindo vagamente adejarem em volta de mim os espíritos benéficos do cárcere que bafejaram as prisões de Sílvio Pélico.

É singular isto: achava-me bem!

Depois da ceia acendi um charuto e comecei a passear no quarto, dizendo comigo:

– Visitemos o país!

Na parede que ficava ao lado da porta por onde se entrava ha­via uma outra porta. Examinei-a. Estava apenas segura com um ferrolho exterior. Afastei a cama encostada à parede em que se achava esta porta e abri-a.

Era um armário na espessura do muro, largo, profundo, divi­dido a meia altura por um prateleiro espaçoso e sólido.

Ocorreu-me que ao fundo do armário haveria talvez um tabi­que delgado através do qual me seria possível escutar o que se pas­sasse na casa contígua.

Penetrei no armário, estendi-me no prateleiro, escutei. Do outro lado havia um ruído volumoso e maciço. Parecia que se estava arrastando um móvel pesado e grande.

O fundo do armário era efectivamente formado por um tapamento franzino. Era possível que tivesse havido primitivamente uma porta no lugar em que se fizera o armário. Havia um ponto em que a argamassa caíra, e eu via diante de mim um pedaço de ripa atravessado diagonalmente e descamado da cal.

Peguei no saca-rolhas e no lugar indicado fui esburacando devagarinho e progressivamente o cimento do muro, até operar um orifício imperceptível, pelo qual me era dado ver a luz e ouvir distintamente o que se dizia do outro lado.

Eis aqui o que às onze horas e meia da noite se estava passan­do no quarto contíguo àquele que me serve de prisão:

 

Havia dois homens que arrastavam um grande leito de ma­deira do lugar em que ele estava para ao pé da parede que divide a casa em que eu me acho daquela em que se passava a cena que descrevo, e exactamente para junto do lugar em que eu acabava de abrir o buraco que me servia de olho e de orelha.

Um desses homens dizia assim:

– Será o que muito bem quiser, mas eu é que não torno a vir cá a andar aos trambolhões com os móveis à hora da meia-noite.

– Há-de ter muita razão de queixa! – tornava o outro. – Dou-lhe uma libra para me ajudar, quero saber se não é melhor isto do que estar lá em baixo estendido ao pé da manjedoura, à espera que chegue o trem para ir tratar dos cavalos, a enfastiar-se, sem ga­nhar vintém.

Aquele que dizia estas palavras, conquanto se expressasse claramente, tinha todos os defeitos de pronúncia que distinguem o estrangeiro que fala português. Pela aspiração especial de certas vogais e pela contracção labial com que pronunciava os aa, era por certo alemão.

O que primeiramente falara, prosseguiu:

– É bom lucro... Parece que é bom lucro, mas eu para mim não o quero. E olhe que não encontra seis homens aqui na rua que en­trem cá de noite, a estas horas, ainda que os pese a ouro!

– Para mudar uma cama!

– Não é pela cama, é por ser a casa que é!

– Ora adeus! que tem a casa?!...

– Não tem nada! É uma graça! Ela é de tal casta que o senho­rio teve-a quatro anos por alugar, foi sempre baixando na renda e por fim dava-a já de graça e não tinha alma viva que lhe pegas­se! A última gente que cá morou esteve só duas noites, e foi-se da­qui tolhida com as coisas que lhe apareceram e com as trapalha­das que ouvia. Cruzes, demónio! cruzes, diabo!

– Petas! histórias da vida!

– O senhor! Não me diga a mim que são petas! Pois eu não vi a família!... Não estive com eles!? Fugiram de noite, fugiram à se­gunda noite que dormiram cá, estarrecidos de medo.

– Então que viram eles?

– Eles não viram nada.

– Então aí tem.

– Não viram, mas ouviram.

– Haviam de ouvir boas coisas!

– Ouviram, sim, senhor, ouviram. E não foi só a eles que su­cedeu isso, foi a todos quantos cá moravam. E era gente de bem, que não mentia, que não tinha precisão de mentir, que tinham pa­go a sua renda e que ficaram com ela perdida!

– Então que ouviam eles?

– O senhor bem o sabe!.., O que eles ouviam? Ouviam panca­das nas portas, quando ninguém batia, nem lhes tocava! Ouviam espirrar o lume e estalarem os carvões exactamente como se esti­vessem abanando à fogueira, quando estava a cozinha só e o fogão apagado! Sentiam o bater das asas de um pássaro que principia­va a voar pelas casas apenas se apagavam as luzes; ouviam-no ar­quejar e bufar aproximando-se cada vez mais dos que estavam deitados, pairando tão rente das camas que se sentia o estremecer das penas, o calor de lume que ele deitava do bico e ao mesmo tem­po o frio de neve que fazia a mover as asas!

– Ora adeus! tinham ouvido falar nisso e pareceu-lhes que sentiam o tal pássaro, de que já falavam os inquilinos anteriores, os quais também tinham ouvi do falar nele, não havendo no fim de contas ninguém que verdadeiramente o tivesse ouvido.

– Então o senhor não sabe porque foi que eles fugiram, os úl­timos que estiveram cá, faz agora quatro anos?

– Ouvi falar nisso, mas por alto, não me deram pormenores.

– Eis aí está por que o senhor não acredita! A coisa foi esta: Eles eram gente pobre mas honrada: marido, mulher e uma filha de seis anos. Para o que desse e viesse dormiam todos juntos na mesma sala. A pequenita, a quem eles não contavam nada por cau­sa do medo, estava numa caminha a um lado. Dormiam com luz na lamparina, e como trabalhavam muito de dia e estavam cansadís­simos à noite, lá pegavam no sono apesar do barulho das faúlhas do fogareiro e das argoladas nas portas. Vai senão quando, à se­gunda noite que passavam cá, acordam aos gritos da criança. Ti­nha-se apagado a luz. Acenderam-na a toda a pressa. A porta do quarto estava fechada por dentro. Os fechos das janelas achavam-se corridos. No quarto não havia mais ninguém. Mas a roupa da cama da criança estava caída a dois ou três passos de distância do berço em que ela dormia, e a pequenita, nua, transida de medo, branca como o travesseiro e tremendo como varas verdes, disse, quando lhe chegou a fala, que teve perdida por um bocado, que sen­tira umas coisas como os pés de uma galinha muito grande que se lhe pousavam na cama; que se achara depois descoberta e ouvira umas coisas suspiradas envoltas em soluços e beijos, mimos que metiam medo e que ela não entendia, enquanto um peito coberto de penas se lhe roçava pelo seio nu. A mãe então vestiu-lhe à pressa uns fatinhos, embrulhou-a num xaile, estreitou-a nos braços, pôs-se a dar-lhe beijos e a acalentá-la com o bafo, e saiu para ama aterrada e como doida. O homem, que era valente e destemido, cor­reu a casa toda com luz e sem luz, metendo-se por todos os cantos e recantos, rangendo os dentes e picando as paredes enfurecido com uma faca de ponta que levava em punho. Não apareceu nin­guém! Ninguém podia ter saído! Ninguém podia ter entrado. No dia seguinte foi levar a chave do prédio ao senhorio, dizendo-lhe que se algum dia tivesse dinheiro lhe compraria esta casa para ele mesmo a deitar abaixo a picão e a machado, para lançar o fogo a quanto pudesse arder, e calcar depois aos pés e salgar o monte de cinzas, que ficasse no chão.

– Pois senhor, eu nenhuma dessas coisas tenho ouvido, e é es­ta a segunda noite que durmo aqui.

– Gabo-lhe o gosto! E não tem medo?

– Nenhum.

– Por isso por aí dizem do senhor o que dizem!

– Então o que dizem por aí de mim?

– Dizem, com o devido respeito, que o senhor é um alemão da Mourama e que tem partes com o demónio.

– Mais um bocadinho para trás, que eu o ajudo! – exclamou o estrangeiro, mudando de tom.

– Isto assim?

– Ainda mais... um quase nada.., até ficar a cabeceira unida à ombreira da porta.. Basta!

– Não quer mais nada?

– Mais nada. Aqui tem a sua libra, e leve dali uma daquelas velas para que o avejão não apeteça na escada ao apanhá-lo às es­curas.

– Não o diga a rir, que eu pela minha parte não me rio! o se­nhor gosta...

– A falar-lhe a verdade, gosto!

– Seu proveito! Olhe lá: quando se aborrecer com as almas que andam cá, veja se passa aí para a casa que fica ao lado!

– Bem me queria a mim parecer que a casa do lado também tem...

– Se tem! Essa então é o diabo, é o próprio diabo que lá mora!

O homem que viera ajudar à mudança da cama acendeu a luz e desceu a escada. O alemão ficou só, fechou a porta, e principiou a despir-se para se deitar.

O diálogo que eu acabava de ouvir tinha-me impressionado singularmente e despertado em mim o mais curioso interesse.

Sem procurar directamente indagar coisa alguma, começava a entrar pelo modo mais estranho no conhecimento de factos que, posto que deturpados pela superstição ou pela ignorância, explicariam decerto o desfecho a que viemos assistir e a presença do ca­dáver na sala em que o fomos encontrar.

Agora nós, meu interessante e precioso vizinho!

 

A cama do alemão tinha ficado, como disse, por baixo do meu buraco de observação. O meu vizinho deitou-se e soprou a vela. O quarto ficou às escuras, e eu senti os colchões que rangiam com o peso do corpo que se ajeitava para dormir.

– Ah! Tu amas o murmúrio dos espíritos invisíveis?... – ex­clamei eu dirigindo-me mentalmente ao filósofo que me ficava do outro lado do muro. – Aprazem-te as ondulações sonoras das moléculas da vida animal que vagueiam dispersas no espaço, procurando o sopro misterioso que as condense para entrarem na corrente dos seres vivos? Queres encadear ao teu espírito esses elos informes e incoercíveis, que ligam o mundo das coisas conhe­cidas ao mundo dos seres ignotos? Ora vamos lá a ver como tu em­pregas as tuas faculdades de médium...

E pensando isto, bati-lhe com os nós dos dedos na parede três pancadinhas secas, metodicamente espaçadas, como as dos sinais maçónicos.

Senti roçar a mão dele pelo papel que forrava o muro, como quem procurasse apalpar algum sinal do rumor que ouvira.

Entrei então a repetir com sucessiva frequência o rebate que lhe dera percorrendo diferentes pontos da parede que servia de fundo ao armário.

Percebi que ele se sentava na cama. Ouvi estalar um fósforo. Acendeu-se a luz. Parei. Houve uma pausa, durante a qual me conservei silencioso e imóvel. O meu vizinho apagou finalmente a luz ao cabo de alguns minutos, e eu recomecei a bater devagarinho: e repetidamente como primeiro fizera. Ele, tendo escutado por al­gum tempo às escuras, acendeu outra vez a vela e começou a exa­minar detidamente o espaço da parede, junto do qual lhe ficava a cama.

No momento em que a chama da vela perpassava na mão de­le por defronte do meu braço, soprei-lhe de repente e apaguei a luz.

O alemão, que se achava de joelhos em cima da cama a revis­tar a parede, expediu um pequeno grito, que me pareceu mais de surpresa que de tenor, conquanto o acompanhasse um estrondo pesado e extremamente significativo. O que produzira esse estron­do fora o baque do corpo dele caindo da cama abaixo.

Logo depois ouvi a voz do vizinho perguntando com decisão e firmeza:

– Quem está aí?

Respondi-lhe:

– Sou eu.

– Quem és tu?

– E tu quem és?

– Frederico Friedlann, cidadão prussiano.

– Ah! – disse eu.

– Viajo por conta da primeira fábrica de produtos químicos de Budapeste, dos quais sou encarregado de tornar conhecidos dos grandes industriais da Europa.

– Bem! – observei.

Ele continuou impassivelmente:

– Contou-me um judeu meu amigo que havia em Lisboa três prédios de que ele tinha notícia, os quais se achavam abandonados depois de algum tempo por terem ganhado fama de serem habita­dos por almas do outro mundo. Resolvi morar sucessivamente nas casas que ele me indicou e é esta a primeira que habito. Componho um livro com investigações a respeito do espiritismo. Poderei sa­ber agora a quem me dirijo?

– Pois não! – tornei-lhe eu. – Chamo-me fulano, e vivo dos rendimentos das minhas propriedades, ora viajando, ora resi­dindo em Lisboa, e ocupando-me de quando em quando com a polí­tica ou com a literatura, quando não tenho outra coisa menos insí­pida e menos inútil em que agitar a minha ociosidade e o meu tédio. Não sou espiritista.

– Pois faz mal! O espiritismo é um sistema e pode bem suce­der que venha ainda a ser uma religião.

– Puff. – exclamei rindo.

– O quê! – continuou ele. – O materialismo, guiado de um la­do pelas conquistas das ciências físicas e naturais e de outro lado pelo relaxamento dos costumes contemporâneos e pela depressão sucessiva e assustadora da moral, vai comendo no campo da filo­sofia o espaço não já muito vasto em que residia a fé. Novas cren­ças e novas doutrinas virão sucessivamente substituir as crenças e as doutrinas mortas por que se regulava o sobrenatural. O ho­mem, que segundo todas as probabilidades, não poderá nunca prescindir do maravilhoso, desse atractivo supremo da sua imagi­nação, irá então naturalmente buscar ao espiritismo, modificado e aperfeiçoado pela ciência futura, a teoria de uma tal ou qual so­brevivência que o lisonjeie, e a base de correlações ainda não estu­dadas dos seres que existem com aqueles que os precederam e com os que se lhe hão-de seguir. Os espiritistas de hoje serão, de entre todos os filósofos contemporâneos que não querem aceitar em absoluto o dogma estéril desconsolador da matéria omnipotente, os únicos que hão-de colaborar na filosofia do futuro.

– Ora há-de dar-me licença que lhe pergunte uma coisa...

– Tem-me às suas ordens.

– Sem com isto querer fazer agravo ao seu juízo!

– Estimarei muito satisfazer a sua curiosidade, qualquer que seja a natureza dela.

– Acredita em alguma das coisas em que esteve aí falando o homem que veio ajudá-lo a mudar a cama?

Esta pergunta era capciosa. Eu queria desenganar-me se es­tava falando com um doido, com um visionário, com um monoma­níaco, ou simplesmente com um homem de espírito extravagante, com um excêntrico.

– Eu não creio nem também descreio de coisa alguma que ouço – responde-me ele. – É meu sistema admitir tudo quanto esteja para se provar ç duvidar de tudo aquilo que me apresentem como coisa positiva. É o único meio prudente de nunca nos afastarmos muito da verdade. Se escutou a conversa de há pouco, tem uma parte da história desta casa. Neguei quanto me disse o homem que esteve aqui porque me obriguei como senhorio do prédio a desva­necer com as minhas informações o anátema que pesa sobre a sua propriedade. A verdade é que tenho ouvido distintamente há duas noites consecutivas um rumor insistente e prolongado semelhan­te aos estalidos que produz, ao atear-se, uma fogueira de carvão, e tenho aqui sobre uma banca um busto de Allan Kardec que, sem eu poder explicar como nem porquê, se move, sem que ninguém lhe toque, do centro da mesa em que o coloquei para uma das extremi­dades dela. O pó aglomerado em volta da base do busto, e que eu tenho o mais escrupuloso cuidado em não espanar nunca, vai dei­xando sucessivamente sobre a superfície da mesa o vestígio desse movimento vagaroso, lento, quase imperceptível, mas progressivo e constante. Nesta porta, ao pé da qual coloquei hoje a cama, ou­ço em cada noite, ora por duas ora por três vezes, uma argolada per­feitamente clara e distinta. Abro imediatamente a porta (mudei a cama para este ponto a fim de poder fazê-lo do modo mais rápido), fica sempre inexplicável para mim a razão por que se levanta a ar­gola do ferrolho e bate de per si mesma na porta!

Todas estas coisas eram asseveradas pelo prussiano com a ên­fase da sinceridade e da convicção mais profunda!

– E desta casa de cá – observei-lhe eu – que tem ouvido? O que sabe? Que lhe consta?

– Eu lhe digo...

– Sinceramente!

– Por mim pessoalmente nada tenho ouvido, O inquilino que me precedeu conta que ouvia no silêncio da noite um rumor confu­so de vozes, o estalar de risadas e o tilintar de dinheiro. Alguns vizinhos têm visto entrar vultos misteriosos. Tudo isto, porém, se ex­plica do modo mais natural deste mundo.

– Qual é então o seu juízo, vejamos?

– É evidentemente...

– Diga! Diga!

– Presumo eu, pelo menos...

– Vamos! Sem rodeios, francamente!

– De duas uma: ou uma loja maçónica, ou uma casa de jogo.

 

As palavras do alemão acabavam de lançar no meu espírito a luz súbita de uma revelação que me obrigava a meditar.

O que se passava por mim, o mistério que me cercava, o cadá­ver que vira, a presunção – ainda que vaga – da concorrência de um ou mais amigos meus envolvidos neste acontecimento, tudo is­to era tão extraordinário e tão grave que eu não ousava referi-lo ao homem desconhecido que o acaso me deparava por vizinho.

Era já positivo para mim que me achava em Lisboa. Desejava naturalmente saber qual era a rua e a casa em que estava: não me ocorria, porém, um pretexto plausível para levar o alemão a dizer­-mo, sem que eu o interrogasse de um modo ambíguo, que poderia levantar sobre a situação em que me acho suspeitas talvez perigo­sas para a segurança das pessoas comprometidas neste negócio. Contentei-me, pois, em alegar o incómodo a que me obrigava apo­sição em que estava, e dei as boas-noites ao meu vizinho. Ele des­pediu-se batendo no muro três pancadas espaçadas por pausas iguais às daquelas com que eu primeiro lhe despertara a atenção. Lembrou-me que poderia ser mação aquele homem, e que nas circunstâncias em que eu estava me serviria a protecção que lhe pedisse em nome de juramentos recíprocos e de compromissos comuns. Dei-lhe então uma letra, ele respondeu-me com outra e assim construímos sucessivamente a palavra da senha:

– Salut, mon frère! – exclamou ele.

– Segredo! – disse-lhe eu baixinho, respondendo com os nós dos dedos no muro ao sinal que me dera.

Fechei em seguida o armário, cheguei a cama para o lugar de onde a tinha removido, e deitei-me vestido.

Não podia dormir. Principiei a pensar e a entristecer.

Nesta casa, debaixo destes mesmos tectos, está morto um ho­mem, moço, elegante e belo, que entrara aqui, cheio talvez de es­peranças, de alegrias, de projectos no futuro, e que de repente caiu para todo o sempre envenenado por mão misteriosa, ignorado, des­conhecido, só, longe de uma mulher amada que o espera talvez a esta hora, longe da família que o acarinhou em pequeno, longe dos lugares saudosos que o viram nascer, da mãe lacrimosa que lhe cerrasse os olhos, do pai angustiado que em nome da humanidade lhe lançasse a derradeira bênção.

Desventurado rapaz! Quem sabe as torturas por que passou o teu espírito para se desprender violentamente da terra, deixando na sociedade o teu corpo inerte, impassível, mudo como a interro­gação de um enigma posto anonimamente no meio de uma página branca? Quem sabe os pensamentos que a morte imobilizou no teu cérebro? Quem sabe os afectos que ela enregelou no teu coração, onde há pouco tempo ainda golfava abundantemente a fecunda seiva dessa mocidade esterilizada e extinta agora para sempre?

Pobre moço! Tão digno de lástima como és, merecedor talvez de profundas saudades, aí estás adormecido no teu sono eterno, vestido de baile, coberto com uma manta de viagem, estirado num sofá, insensível para sempre às alegria se às amarguras desta vida miserável; e não haverá, porventura, uma só lágrima que come­more, na história breve da tua passagem na terra, este prazo tão pungentemente melancólico em que os mortos estão esperando dos vivos o derradeiro e supremo favor que a humanidade pode dispen­sar àqueles que mais preza e que mais ama: a doação da cova em que reside o esquecimento!

Os olhos daqueles que te amam ainda não choram por ti. Estão fechados talvez pelo sono tranquilo e doce, atravessado em sonhos pela tua imagem querida; estão, porventura, fitos no conhecido caminho por onde esperam sentir-te chegar, conhecer-te o passo retardado, ouvir-te a voz cantarolando a última valsa que o baile te deixou no ouvido, ver-te finalmente aparecer, descuidado, riso­nho e feliz.

Coitados!... Os passos daquele que ainda hoje talvez se despe­diu de vós contando voltar a encontrar-vos poucas horas depois, não tornarão a medir o caminho da casa em que o esperam; a sua voz não responderá mais à voz que o chame; os seus olhos nunca mais se embeberão nos olhos que o fitavam; os seus lábios não voltarão outra vez a aproximar-se dos lábios que se colavam nos dele!

Eu não choro a tua memória, porque não te conheço, porque nunca nos encontrámos, porque não sei quem és. Mas não quero in­sultar a dor que adeja sobre a tua morte, deixando-me dormir na mesma casa em que jazes insepulto, enquanto alguém te espera vi­vo no mundo.

Foi impelido por estes sentimentos, meu querido amigo, que eu me levantei da cama em que me estendera e vim para a mesa em que ceei, passar a noite escrevendo-te estas longas páginas, que decerto estimaremos ler um dia, em disposição de espírito bem di­ferente daquela em que ambos nos achamos hoje.

Tinha em pouco mais de meio a narração que te estou fazendo, quando o silêncio que me envolvia, cortado apenas pelo frémito da minha pena no papel, foi interrompido pelas vozes dos mascarados falando baixo no aposento que atravessei antes de entrar naquele em que estou. Tinha terminado o parágrafo anterior a este, quan­do o mesmo rumor se repetiu, e tive então curiosidade de escutar o que se dizia. Aproximei-me da porta e colei o ouvido ao buraco da fechadura, pelo qual nada via. Não sendo natural que os nossos aprisionadores estejam às escuras, é provável que haja um corre­dor, uma passagem ou um pequeno quarto entre aquele em que eu me acho e o quarto próximo em que eles falam. Não podia perceber o que diziam. Apenas de quando em quando alguma palavra solta e destacada me chegava ao ouvido. Dispunha-me a vir continuar a escrever ou a terminar esta carta, quando um levantou mais a voz e eu ouvi distintamente estas palavras:

– Mas as notas de banco, 2300 libras em notas! Não as trazia ele?

– Sei que as trazia – dizia outra voz.

– É atroz, então!

Estas palavras, únicas que ouvi, fizeram-me a impressão que podes calcular!

É provado para mim que a casa a que fomos trazidos não é um simples ninho consagrado a entrevistas de amor, como eu primeiro supus. Das hipóteses do prussiano é absolutamente necessário aceitar uma: isto ou é uma casa de jogo ou uma loja maçónica. Assim o provam convincentemente os ruídos que se ouviam na morada contígua. Num retiro de paixões temas não se escancaram risadas a horas mortas ao som do dinheiro que tilinta nas mesas. A referência dos vultos misteriosos feita pela vizinhança permite a suspeita de reuniões secretas. O tinir do ouro, as risadas, o mes­mo aspecto do boudoir em que estivemos não consentem duvidar-se que esta casa é uma caverna de jogo e de orgia.

­As palavras que há pouco ouvi sugerem-me sobre estas supo­sições a mais tenebrosa suspeita.

O desgraçado que jaz aí dentro podia ter sido vítima de um ho­micídio, premeditado com o intuito de roubar-lhe a quantia que ele trazia consigo.

Ocorre uma contradição: na sugerida hipótese para que foram buscar um médico? Explicam-no as palavras que ouvi. Os crimi­nosos, que tinham propinado ópio à sua vítima com o intuito de a roubarem, encontram iludido este projecto com o desaparecimen­to das notas que lhe supunham na algibeira. Nesta conjuntura so­brevém-lhes, naturalmente, a ideia de tentar um recurso extremo: procurar um médico que não possa denunciar o crime, mostrar-lhe o ópio, e quererem por esta prova de zelo, de solicitude, de confian­ça na sua inocência, afastar de si a presunção do crime, e criar as dificuldades de um mistério! É possível que eu não atinja exacta­mente a verdade do que se passou. O indubitável, porém, é que o desaparecimento já constatado da soma que o assassinado trazia consigo não pode adunar-se dentro desta casa com a probidade e com a honra.

Depois disto, é quase escusado dizer-te qual é a determinação que vou tomar. O meu vizinho prussiano é um homem um tanto fantástico, mas parece-me sincero e honrado. Vou fechar esta car­ta, sobrescritá-la e pedir-lhe que a lance no correio. Acharei facil­mente meio de a passar para o quarto dele. Se conseguir arrombar completamente, sem que me pressintam, o tapamento que serve de fundo ao armário, passarei eu em vez de expedir a carta. No ca­so contrário, apenas se abrir aquela porta, precipito-me sobre a pessoa ou pessoas que me embargarem o passo, e abrirei o meu caminho como todo o homem de bem que em sua consciência deli­bera passar por cima de meia dúzia de miseráveis.

Se te achas aqui, encarcerado como eu, por Deus juro-te que nos veremos amanhã. Se estás solto, se receberes esta carta, e vinte e quatro horas depois não souberes de mim, escreve a Frede­rico Friedlann, posta restante, Lisboa. Ele te procurará no lugar que lhe indicares e te dirá onde estou. – Adeus. – F...

 

NOTA – Juntamente com a carta publicada ontem achavam-se as seguintes folhas de papel escritas pela mesma letra das cartas do médico, anteriormente publicadas nesta folha:

 

F... não apareceu. No mesmo dia, dois dias e três noites depois de haver recebido a extensa carta que ele me dirigiu e de que en­viei logo a primeira parte, depois as seguintes, a essa redacção, procurei por todos os meios ter notícias dele. Foram inúteis todos os esforços que empreguei. Escrevi a Frederico Friedlann. Não houve resposta. Mandei ao correio e soube que ainda ali se acha­va a carta que lhe dirigi e na qual lhe aprazava uma entrevista.

Estou vivamente inquieto, sobressaltado, cuidadoso.

F... é um homem arrebatado, irascível, pundonoroso até o de­lírio. Receio do seu carácter e da violência das suas determinações. uma explosão que teria podido talvez ser-lhe fatal.

Apresso-me, porém, a declarar-lhe, senhor redactor, que dis­cordo completamente da opinião dele quanto à qualidade moral das pessoas com quem estivemos reunidos na casa onde encontrá­mos o cadáver.

O mascarado alto, com quem tive ocasião de falar por mais tempo, não pode ser um assassino cobarde. F... demorou-se pouco tempo connosco, não pôde atentar nos indivíduos que o rodeavam. Ouviu apenas uma frase, que para mim próprio é ainda inexplicá­vel e terrível, e baseou nela a sua indignação e o seu ódio.

Eu tratei apenas com um desses homens – o mais alto – mas com este falei incessantemente durante todo o espaço de uma noite. Não podia estudar-lhe os movimentos da fisionomia, mas via-lhe os olhos grandes, luminosos, cintilantes. Ouvia-lhe a voz metálica, pura, clara, vibrante, obedecendo naturalmente, na mo­dulação das inflexões, ao fluxo e ao refluxo dos sentimentos.

Nas discussões que tivemos, na conversação que travámos, nos diversos incidentes que acompanharam o inquérito de A. M. C., es­cutei-lhe sempre com interesse, com simpatia, algumas vezes com admiração, a palavra sincera, fácil, despresumida, espontânea, original, pitoresca sem literatismo, eloquente sem propósitos ora­tórios – límpido espelho de uma alma enérgica, integra, perspicaz e sensível. Tinha arrebatamentos, indignações convictas, concen­trações melancólicas, que se via provirem desse fundo de lágrimas, que todas as naturezas privilegiadamente boas e honestas têm no Intimo da sua essência. Pareceu-me, finalmente, um coração leal e honrado, e não é fácil enganar-se por este modo, depois de uma provação suprema e definitiva como aquela em que nos achámos, um homem com a minha experiência do mundo e a minha prática dos fingimentos humanos. Estas são, senhor redactor, as princi­pais considerações que do princípio logo me impediram de tornar público o nome do meu amigo violentamente retido em cárcere pri­vado. F.. é um homem conhecido, é quase um homem célebre; em Lisboa ninguém há que não conheça o seu nome entre os escrito­res mais aplaudidos, ninguém que não distinga a sua figura alti­va, esmerada, picante, entre os vultos extremamente uniformes dos passeios, das salas e dos teatros.

Se eu comunicasse à polícia o desaparecimento do meu amigo, é quase seguro que ela encontraria meio de o descobrir. Mas não equivaleria isto denunciar simultaneamente como criminosos O mascarado alto e os seus companheiros, que eu todavia considero inocentes?

A carta de F..., apesar da revelação que encerra sobre o desa­parecimento das 2300 libras, confirma por outro lado a convicção em que eu me acho.

Na carta de F... encontra-se o seguinte período:

«Ocorreu-me que teria um meio de desenganar-me se era efec­tivamente ou se não era um amigo íntimo que eu tinha ao meu la­do: arrancar-lhe o relógio: bastar-me-ia apalpá-lo, ainda como eu estava, para reconhecer o dono. A ser o indivíduo que eu supunha, a caixa do relógio teria a lisura do esmalte e no centro a saliência de um brasão.»

Ora o relógio a que nestas linhas se alude, se bem lembrado está, é exactamente o mesmo que descrevi na segunda carta que enviei a esse periódico, o mesmo que usava o mascarado que ia sentado defronte de mim na carruagem, e que eu lhe vi por algum tempo fora da algibeira do colete, suspenso na corrente. Logo, o mascarado que conduziu F... ao quarto em que ele se acha preso, é efectivamente um amigo dele, intimo e particular.

Posso eu, sem semear remorsos que mais tarde entenebre­cerão talvez a minha vida com uma sombra eterna, denunciar à polícia uma particularidade, um nome, uma circunstância posi­tiva, que a ponha no encalço deste crime e no descobrimento das pessoas, inocentes ou culpadas, que circulam fatalmente em tor­no dele?

As mesmas notícias que lhe tenho dado, as cartas que preci­pitadamente comecei a escrever-lhe, e que hoje, posto que acober­tado pelo anónimo, me vejo na obrigação moral de concluir e de­senlaçar, não serão já perante a severidade incorruptível, despreo­cupada e fria dos homens de bem, uma traição aos imprescritíveis deveres da amizade, um agravo à inviolabilidade do sigilo, uma ofensa a esse culto intimo que se baseia na delicadeza, no melin­dre, no primor – culto que para as almas honradas constitui uma parte dos princípios supremos da primeira das religiões – a reli­gião do carácter?

Mas podia também calar-me? Ficar mudo, impassível, inerte, neutro, diante deste sucesso obscuro mas tremendo? Podia acaso aceitar na impassibilidade e no silêncio a responsabilidade terrí­vel de um homicídio tenebroso, do qual sou eu a única testemunha com iniciativa, com liberdade, com faculdade de acção?...

Decidam-no as pessoas que por um momento quiserem imagi­nar-se nas circunstâncias excepcionais e únicas em que eu estou.

Na onda de conjecturas, de planos, de determinações, de obstáculos em que me achei envolvido, assoberbado, só, escondido, inquieto, nervoso, sem um único momento que perder, uma só coi­sa me ocorreu, possível, clara, solvente: publicar anonimamente o que me sucedera, entregar por este modo à sociedade a história da minha situação e esperar dos outros, do público, a solução do problema que eu não sabia resolver por mim.

Nem uma palavra de conselho, de análise, de crítica!

Estou profundamente triste, abatido, doente. Preciso de ar, de espaço, de liberdade. Não posso ficar eternamente imóvel, como um condenado, como pesado fuzil de um segredo soldado a um pé.

Dois dias depois de receber esta minha carta, senhor redactor, terei partido para fora do país. As ambulâncias do exército francês precisam de cirurgiões. Vou alistar-me como facultativo. O meu país dispensa-me, e eu, como todo um homem na presença dos in­fortúnios irremediáveis, sinto a doce necessidade de ser útil. Fica sabendo o meu destino. Um dia saberá o meu nome.

Despedindo-me – seguramente para sempre – dos seus lei­tores, cuja atenção tenho largamente prendido com a narrativa deste caso lúgubre, seja-me permitido acrescentar uma derradei­ra palavra:

A. M. C., cujo nome não ouso delatar escrevendo-o por exten­so nesta página, A. M. C., que eu não incriminei nem denunciei, apesar de tudo quanto em contrário quis alegar o amigo dele que sob a letra Z. veio defendê-lo neste mesmo lugar, A. M. C., quais­quer que sejam as causas que o levaram a intervir nas circunstân­cias que rodeiam o crime, conhece-o interiormente, tem o fio do trama que eu debalde procurei achar.

Se estas linhas chegarem aos olhos desse moço, uma coisa lhe peço em nome da sua honra e da sua dignidade, em nome da hon­ra e da dignidade das pessoas envolvidas em tão estranho suces­so. Procure no correio uma carta que lhe dirijo nesta mesma data. Nessa carta verá quem eu sou, onde poderá enviar as suas cartas ou ver-me e falar-me pessoalmente. Se a sua idade, se as condi­ções da sua posição na sociedade, se os interesses da sua carreira, a tranquilidade da sua família, a incompetência da sua autorida­de, ou outra qualquer razão o impedirem de acompanhar este acontecimento até à última das suas consequências, arrancando a tal mistério a secreta verdade que ele envolve, dirija-se a mim, colaboraremos juntos nessa obra, que tenho por meritória e por honrada. Eu aceitarei clara e abertamente para todas as consequências e para todos os efeitos a responsabilidade que daí pro­venha, e terei meio de salvar o seu nome, a sua pessoa e a sua hon­ra de qualquer suspeita que o ensombre ou o macule.

Quanto a ti, meu querido e meu honrado F.., não creio que seja vítima de uma emboscada traiçoeira e indigna! O teu único peri­go está, a meu ver, no teu impaciente melindre, nos teus delicados escrúpulos, no teu valor, finalmente, e no teu brio.

Que te matassem cobardemente no cárcere clandestino que há pouco tempo ainda tu iluminavas com a tua pachorra e a tua ale­gria, não pode ser. Que a esta hora tenhas sido obrigado a jogar a tua vida trocando em desagravo de honra uma estocada ou um ti­ro com algum dos teus misteriosos comensais, isso acho lógico, e é possível.

Punge-me não sei que vago e triste pressentimento... Meu po­bre F...! Se estará destinado que não nos tornemos a ver! Se o dia fatal em que regressámos ambos de Sintra, descuidados, conten­tes, suspirando com as nossas alegrias, sorrindo com os nossos in­fortúnios, terá acaso de ser o último dessa doce convivência que por tanto tempo nos juntou!...

E são as amarguras alheias, são as desgraças dos outros que

nos arrastam envolvidos num turbilhão implacável e terrível da crua solidariedade humana!

Que remédio?!

Se a vida é isto, aceitemo-la corajosamente como ela é, e avan­te! Aprenda-se a ser desgraçado, visto que é essa a mais segura maneira de se ser feliz!

 

SEGUNDA CARTA DE Z.

Senhor redactor. – Acabo de ver publicada na sua folha de ho­je uma carta em que o doutor ***, com uma insistência malévola, torna a inculcar, como cúmplice no atentado de que ele se fez o his­toriador voluntário, o meu pobre amigo A. M. C.

Disse-lhe na minha primeira carta, senhor redactor, que eu ia, com o auxílio único da minha coragem e da minha astúcia, pôr-me ao serviço da curiosidade de todos, procurando penetrar e dssfiar a tenebrosa história que, há mais de uma semana, vem todos os dias sucessivamente, no folhetim do seu jornal, apresentar dian­te de um público atónito um quadro misterioso e lúgubre.

Não pude, porém, descobrir nada: indagações, interrogatórios, visitas aos lugares, tudo foi inútil. A história perde-se cada vez mais numa névoa que a afoga: e o meu pobre M. C. lá esta ainda – não sei se num retiro voluntário, se numa sequestração forçada. Na impossibilidade de descobrir, fisicamente, por essas ruas, a verdade, resolvi vir buscá-la às mesmas cartas do doutor. Ana­lisei-as, decompu-las palavra por palavra. E sem contar os proces­sos, apresento os resultados.

O Mistério da Estrada de Sintra é uma invenção: não uma invenção literária, como ao princípio supus, mas uma invenção criminosa, com um fim determinado. Eis aqui o que pude deduzir sobre os motivos desta invenção:

Há um crime; é indubitável; é claro. Um dos cúmplices deste crime é o doutor *** Ele está envolvido no anónimo; não tenho por isso dúvida em apresentar esta acusação formal. Se o seu nome fos­se conhecido, se as suas cartas estivessem assinadas, eu, só com provas judiciárias, me atreveria a escrever esta grave afirmativa.

Sim, o doutor *** é o cúmplice de um crime: o meu pobre ami­go M. C. é um desgraçado incauto, sobre quem se querem fazer re­cair as suspeitas que se possam ter já, e as provas que mais tarde venham ajuntar-se. Este crime, que existe, aparece-nos envolvi­do nas roupas literárias de um mistério de teatro. As cartas do doutor *** são um romance pueril. Vejamos.

É possível que numa cidade pequena como Lisboa, em que todos são vizinhos, amigos de tu, e parentes, o doutor ***, que parece ser um homem notado na sociedade, vivendo nela, frequentan­do as suas salas e os seus teatros, não conhecesse nenhum destes quatro mascarados, que pelas suas indicações pertencem a essa mesma sociedade, se sentam nos mesmos sofás, escutam a mesma música nos mesmos salões e nos mesmos teatros?

Uma máscara de veludo preto não basta para disfarçar um co­nhecido. O seu cabelo, o seu olhar, a sua estatura, a sua figura, a sua voz, as sus mãos, a sua toilette, são bastantes para revelar, trair o indivíduo. O doutor *** pois nunca os tinha visto? O quê? Pois eram tão elegantes, tão distintos, governam tão bem as suas parelhas, falam tão bem as línguas, pareciam tão ricos, e o doutor um médico, um homem relacionado, um velho diletante de S. Carlos, nunca os viu, nunca os percebeu, nesta terra, em que toda a vida se concentra nos doze palmos de lama do Chiado! E F... tem um amigo íntimo entre os mascarados, diante de si, na carruagem, joelho com joelho, e não o reconhece, pelas mãos, pelos olhos, pe­lo corpo, pelo silêncio até. Comédia!

E o menos conhecido, o menos célebre dos rapazes de Lisboa, mascara-se no Carnaval de turco, enche-se de barbas, cobre-se de plumas, veste-se de Mefistófeles, de Ci-devant, ou de melão, e não há ninguém que, no salão de S. Carlos, não diga ao passar por ele: Lá vai fulano! E é de noite, às luzes, e as mulheres olham-nos, e estamos distraídos, e não estamos numa estrada, de dia, surpreen­didos e violentados! Tanto nos conhecemos todos! Comédia! Comé­dia!

E aqueles mascarados são tão inocentes, tão ingénuos, que vão procurar, num momento tão perigoso, o homem que pelas suas relações, pela sua posição, pela sua inteligente penetração, mais facilmente os poderia reconhecer. Se lhes era repugnante serem descobertos, para que procuraram aquele homem? Se lhes era in­diferente, para que se mascararam?

E depois, para que era um médico? Era para verificar a morte?

– Para acudir? Para salvar? Nesse caso então que homens são esses que, em lugar de irem à botica mais próxima, a casa do primeiro médico rapidamente, avidamente, logo, logo – vão, em sossego, mascarar-se nos seus quartos, para irem ao crepúsculo, para uma charneca, a duas léguas de distância, representar os velhos episó­dios de floresta dos dramas de Soulié?

Supunham, porventura, que ele estava morto? Para que era então um médico, uma testemunha? E se não receavam as teste­munhas, para que punham nos seus rostos uma máscara, e nos olhos dos surpreendidos um lenço de cambraia? Comédia! Comédia sempre!

Veja-se o doutor *** diante do cadáver; não há ali uma pala­vra que seja científica: desde a serenidade das feições até à dilata­ção das pupilas, tudo é falso naquela descrição sintomática.

E que homens são, o doutor *** e o seu amigo F..., que na rua de uma cidade, dentro de uma casa, com os braços livres, não deitam a mão àquelas máscaras? Como é que, sendo generosos e al­tivos, suportam certas violências humilhantes? Como é que, sen­do honestos e dignos, aceitam pela sua atitude condescendente uma parte da cumplicidade?

E A. M. C.! Como o representam, ali, pueril, nervoso, tímido, imbecil e coacto! Ele de uma tão grande força de temperamento! De uma tão enérgica coragem! De um tão altivo sangue-frio! Como se pode acreditar naquela astúcia infantil, com que o doutor *** o envolve?

– O que admira é que não deixasse vestígios o arsénico!

– Mas foi o ópio! – responde M. C., segundo conta o doutor *** Qual é a imbecil ingenuidade do homem que possa descer a es­ta simplicidade lorpa?

E, enfim, que mulher é aquela, que aí se entrevê? Porque a quer o mascarado salvar? Que roubo é aquele de 2300 libras? Sejamos lógicos: dado o tipo do mascarado, cavalheiroso e nobre, como é que ele, vendo que o crime teve por origem o roubo, procura salvar e tem considerações por uma mulher que mata para roubar?

Se ele suspeita que o crime cometido por essa mulher teve por móbil a paixão, como explica o roubo?

Demais, se desconfiava que ela estivesse envolvida naquele facto, se estava tão ligado com ela que a queria salvar, porque a não procurou logo, porque a não interrogou, em lugar de ir surpreen­der gente para as estradas, e vir fazer tableau em volta de um ca­dáver?

Ah! Como toda esta história é artificial, postiça, pobremente inventada! Aquelas carruagens como galopam misteriosamente pelas ruas de Lisboa! Aqueles mascarados, fumando num ca­minho, ao crepúsculo, aquelas estradas de romance, onde as car­ruagens passam sem parar nas barreiras, e onde galopam, ao es­curecer, cavaleiros com capas alvadias! Parece um romance do tempo do ministério Villele. Não falo nas cartas de F... que não explicam nada, nada revelam, nada significam – a não ser a ne­cessidade que tem um assassino e um ladrão de espalmar a sua prosa oca, nas colunas de um jornal honesto.

Dedução: o doutor *** foi cúmplice de um crime; sabe que há alguém que possui esse segredo, pressente que tudo se vai es­palhar, receia a polícia, houve alguma indiscrição; por isso quer fazer poeira, desviar as pesquisas, transviar as indagações, confundir, obscurecer, rebuçar, enlear, e enquanto lança a pertur­bação no público, faz as suas malas, vai ser cobarde para França, depois de ter sido assassino aqui!

O que faz no meio de tudo isto o meu amigo M. C. ignoro-o.

Senhor redactor, peço-lhe, varra depressa do folhetim do seu jornal essas inverosímeis invenções. – Z.

 

NARRATIVA DO MASCARADO

Senhor redactor. – A pessoa que lhe escreve esta carta é a mesma que nessa aventura da estrada de Sintra, popularizada pela carta do doutor ***, guiou a carruagem para Lisboa. Sou já conhecido, com a minha máscara de cetim preto e a minha esta­tura, por todas as pessoas que tenham seguido com interesse a su­cessiva aparição destes segredos singulares: eu era nas cartas do doutor *** designado pelo – mascarado mais alto – Sou eu. Nun­ca supus que me veria na necessidade lamentável de vir ao seu jor­nal trazer também a minha parte de revelações! Mas desde que vi as acusações improvisadas, sem análise e sem lógica, contra o doutor *** e contra mim, eu devia ao respeito da minha persona­lidade e à consideração que me merece a impecável probidade do doutor *** o vir afastar todas as contradições hipotéticas e todas as improvisações gratuitas, e mostrar a verdade real, implacável, indiscutível. Detinha-me o mais forte escrúpulo que pode dominar um carácter altivo: era necessário falar numa mulher, e arrastar pelas páginas de um jornal, o que há no ser feminino de mais ver­dadeiro e de mais profundo: a história do coração. Hoje não me re­têm essas considerações; tenho aqui, diante da página branca em que escrevo, sobre a minha mesa, este bilhete simples e nobre: – «Vi as acusações contra si e os seus amigos, e contra aquele dedicado doutor ***. Escreva a verdade, imprima-a nos jornais. Escon­da o meu nome com uma inicial falsa apenas. Eu já não pertenço ao mundo, nem às suas análises, nem aos seus juízos. Se não fizer isto, denuncio-me à polícia.»

Apesar, porém, destas grandes e sinceras palavras, eu resolvi nada revelar do crime, e contar apenas os factos anteriores que me tinham ligado com aquele infeliz moço, tão fatalmente morto, mo­tivado a sua presença em Lisboa, e determinado esse desenlace passado numa alcova solitária, numa casa casual, ao desmaiado clarão de uma vela, ao pé de um ramo de flores murchas. Outros, os que o sabem, que contem os transes dessa noite. Eu não. Não quero ouvir apregoar pelos vendedores de periódicos a história das dores mais profundas de um coração que estimo.

Senhor redactor, há três anos a casa onde eu mais vivia em Lis­boa, aquela em que tinha sempre o meu talher e a minha carta de whist, onde ria as minhas alegrias e fazia confidências das minhas tristezas, era a casa do conde de W. A condessa era minha prima.

Era uma mulher singularmente atraente: não era linda, era pior: tinha a graça. Eram admiráveis os seus cabelos louros e es­pessos; quando estavam entrelaçados e enrolados, com reflexos de uma infinita doçura de ouro, parecia serem um ninho de luz. Um só cabelo que se tomasse, que se estendesse, como a corda num ins­trumento, de encontro à claridade, reluzia com uma vida tão vi­brante que parecia ter-se nas mãos uma fibra tirada ao coração do Sol.

Os seus olhos eram de um azul profundo como o da água do Me­diterrâneo. Havia neles bastante império para poder domar o pei­to mais rebelde; e havia bastante meiguice e mistério, para que a alma fizesse o estranho sonho de se afogar naqueles olhos.

Era alta bastante para ser altiva; não tão alta que não pudes­se encostar a cabeça sobre o coração que a amasse. Os seus movi­mentos tinham aquela ondulação musical, que se imagina do na­dar das sereias.

De resto, simples e espirituosa.

Dizer-lhe que os meus olhos nunca se demoraram amorosa­mente na pureza infinita da sua testa, e na curva do seu seio, seria de um estranho orgulho. Tive, sim, nos primeiros tempos em que fui àquela casa, um amor indefinido, uma fantasia delicada, um. desejo transcendente por aquela doce criatura. Disse-lho até; ela riu, eu ri também; apertámo-nos gravemente a mão; jogámos nessa noite o écarté; e ela terminou por fazer numa folha de papel a minha caricatura. Desde então fomos amigos; nunca mais repa­rei que ela fosse linda; achava-a um digno rapaz, e estava conten­te. Contava-lhe os meus amores, as minhas dívidas, as minhas tristezas; ela sabia ouvir tudo, tinha sempre a palavra precisa e de­finitiva, o encanto consolador. Depois, também, ela contava-me os seus estados de espírito nervosos, ou melancólicos.

– Estou hoje com os meus blue devils – dizia ela.

Fazíamos então chá, falávamos ao fogão. Ela não era feliz com o marido. Era um homem frio, trivial e libertino; o seu pensamento era estreito, a sua coragem preguiçosa, a sua dignidade desa­botoada. Tinha amantes vulgares e grosseiras, fumava impie­dosamente cachimbo, cuspia o seu tanto no chão, tinha pouca ortografia. Mas os seus defeitos não eram excepcionais, nem des­tacavam. Lorde Grenley dizia dele admirado:

– Que homem! Não tem espírito, não tem mão de rédea, não tem ar, não tem gramática, não tem toilette, e, todavia, não é de­sagradável.

Mas a natureza fina, aristocrática, da condessa, tinha ocultas repugnâncias, com a presença desta pessoa trivial e monótona. Ele, no entanto, estimava-a, dava-lhe jóias, trazia-lhe às vezes um ramo de flores, mas tudo isso fazia indiferentemente, como guiava o seu dog-cart.

O conde tinha por mim um entusiasmo singular achava-me o mais simpático, o mais inteligente, o mais bravo; pendurava-se or­gulhosamente do meu braço, citava-me, contava as minhas audá­cias imitava as minhas gravatas.

Em tempo a condessa começou a descorar e a emagrecer. Os médicos aconselhavam uma viagem a Nice, a Cádis, a Nápoles, a uma cidade do Mediterrâneo. Um amigo da casa, que voltava da Índia, onde tinha sido secretário-geral, falou com grande admira­ção de Malta. O paquete da Índia havia sofrido um transtorno; ele tinha estado retido cinco dias em Malta, e adorava as suas ruas, a beleza da pequena enseada, o aspecto heróico dos palácios, e a ani­mação petulante das maltesas de grandes olhos árabes...

– Queres tu ir a Malta? – disse uma noite o conde a sua mu­lher.

– Vou a toda aparte; mas, não sei porquê, simpatizo com Mal­ta. Vamos a Malta. Venha também primo.

– Está claro que vem! – gritou o conde.

E declarou que não fazia a viagem sem mim, que eu era a sua alegria, o seu parceiro de xadrez e o inventor das suas gravatas, que me roubava num navio, e que me deixava seu herdeiro.

Cedi. A condessa estava encantada com a viagem: queria ter uma tempestade, queria ir depois a Alexandria, à Grécia, e beber água? do Nilo; havíamos de caçar os chacais, ir a Meca disfarçados – mil planos incoerentes que nos faziam rir...

Partimos num vapor francês para Gibraltar, onde devíamos tomar o paquete da Índia.

Passámos no Cabo de São Vicente com um luar admirável, que se erguia por trás do cabo, dava uma dureza saliente e negra aos ásperos ângulos daquela ponta de terra e vinha estender-se sobre a vasta água como uma malha de rede luminosa. O mar ali é sem­pre mais agitado. A condessa estava na tolda, sentada numa cadei­ra de braços, de vime, a cabeça adormecida, os olhos descansados, as mãos imóveis, uma sensação feliz na atitude e no rosto.

– Sabe? – disse ela de repente, baixo, com a voz lenta. –Estou com uma sensação tão feliz de plenitude, de desejos satis­feitos...

E mais baixo:

–...e de vago amor... Sabe explicar-me isto?

Estávamos sós, no alto mar, sob um luar calmo, o conde dor­mia; a longa ondulação de água arfava como um seio, sob a luz; sen­tia-se já o magnético calor da África. Eu tomei-lhe as mãos e disse-lhe num segredo:

– Sabe que está linda!

– Oh! primo! – interrompeu ela rindo. – Mas nós somos ami­gos velhos! Está doido! O que é falar de noite, sós, ao luar, em amor! Ah! meu amigo, creia que o que senti, inexplicável como é, não foi por si, graças a Deus, foi por alguém que eu não conheço, que vou encontrar talvez, que não vi ainda. Sabe? Foi um pressentimento... Aí está! Como o luar é traiçoeiro, meu Deus! E eu que estou velha!

Eu ia responder, rir. Uma luz brilhou a distância, na bruma nocturna: o capitão aproximou-se:

– Conhecem aquela luz?

– Nunca viajei neste mar, capitão – respondi.

– São portugueses, não F... Aquela luz é o farol de Ceuta.

Era uma luz melancólica e humilde. Nenhum de nós se impor­tava com Ceuta. Daí a momentos descemos à câmara. Eu estava surpreendido, nunca tinha ouvido à condessa palavras que ca­racterizassem tanto o estado do seu coração. Achava-se naquele período em que um amor pode apoderar-se para sempre de uma existência.

Que sucederia se lhe aparecesse um homem belo, nobre, forte, que lhe dissesse de joelhos, uma noite, sob o luar como há pouco, as coisas infinitas da paixão?

Na manhã seguinte avistámos o morro de Gibraltar. Desem­barcámos. Numa praça, à entrada, um regimento inglês, de unifor­mes vermelhos, manobrava ao som da canção do general Boum.

– Detesto os Ingleses – disse a condessa.

– O quê?! – gritou o conde com uma voz indignada. – Os In­gleses! Detestas os Ingleses?

E voltando-se para mim, com uma atitude profundamente pasmada e abatida

– Detesta os Ingleses, menino!

 

Senhor redactor. – Em Gibraltar fomos para o Club House­-Hotel, Os quartos abriam sobre a muralha do lado do mar; víamos defronte, afogada numa luz admirável, uma linha de montanhas, e mais longe, do lado do estreito, nas brumas esbatidas, a terra de África.

Fomos passear logo num daqueles canos de Gibraltar que são dois bancos paralelos, costas com costas, assentes sobre duas rodas enormes, puxados por um cavalo inglês robusto, rápido, e tendo já adquirido nas convivências espanholas um espírito tei­moso.

O belo passeio de Gibraltar é uma estrada, que, a meia verten­te por cima da cidade, contorna a montanha, e é orlada de cottages, de jardins, de pomares, cheios já das estranhas e poderosas vegeta­ções do Oriente, aloés, nopais, cactos e palmeiras; e vê-se sempre, através da folhagem, lá no fundo, a azul imobilidade luminosa do Mediterrâneo.

A condessa estava encantada; aquela luz ampla e magnífica, a água pesada pelo sol, o silêncio religioso do espaço azul, as brumas vaporosas e roxas das montanhas, a vigorosa força das vegetações, tudo dava àquela pobre alma contraída uma expansão inesperada. Ria, queria correr, tinha verve, e uma luz bailava-lhe nos olhos.

Fomos sentar-nos no jardim de Gibraltar. Os senhores Ingle­ses artilharam-no talvez um pouco demais. Não há fontes, mas há estátuas de generais; as pirâmides de balas estão encobertas pelas moitas de rosas, e a estúpida impassibilidade dos canhões assen­ta sob arbustos de magnólias. Mas, que serenidade! Que silêncio abstracto e divino! Que ar imortal! Parece que as coisas, os seres vegetais, a terra, a luz, tudo está parado, absorto numa contempla­ção, suspenso, escutando, respirando sem rumor! Em baixo está o Mediterrâneo, liso como um cetim, delicado, coberto de luz. Mais longe, vaporizadas, docemente esbatidas nas névoas azuis, as du­ras formas do monte Atlas. Nada se move: apenas as vezes uma pomba passa, voando com uma serenidade inefável. Um momen­to veio-nos debaixo, onde passava um regimento de Highlanders, o som das cornemuses que tocavam as árias melancólicas das mon­tanhas da Escócia. E os sons chegavam-nos doces, etéreos, como se fossem habitantes sonoros do ar.

A condessa tinha ficado sentada, e imóvel, calada, penetrada daquela admirável serenidade das coisas, da beleza da luz, do so­no da água, dos vivos aromas.

– Não é verdade – disse – que dá vontade de morrer, aqui, brandamente, só...

– Só? – perguntei eu.

Ela sorriu, com os olhos perdidos na bela decoração do horizon­te luminoso.

– Só... – disse ela – não!

– Ah! minha rica prima, cuidado! cuidado! – observei eu. – Começa-se cismando assim vagamente, vem um pequeno sonho bem inocente, acampa no nosso coração, começa a cavá-lo, e de­pois, querida prima, e depois...

– E depois vai-se jantar – disse o conde que tinha chegado ao pé de nós, radiante por ter apertado a mão de um coronel inglês, e colhido um cacto vermelho.

Descemos ao hotel. À noite passeávamos no Martillo. Era a ho­ra de recolher; uma fanfarra inglesa tocava uma melopeia melan­cólica. Ouviu-se no mar um tiro de peça.

– Chegou o paquete da Índia – disse o nosso guia. E no alto do morro um canhão respondeu com um eco cheio e poderoso.

– Desembarcam, no dia em que chegam, os passageiros? – perguntei.

– Os militares quase sempre, senhor. Vão desembarcar lá em baixo, com licença do governador.

Quando pelas 10horas entrámos, depois de termos passeado ao luar nas esplanadas, sentimos na sala de Club-House, ruído, vozes alegres, estalar de rolhas, toda a feição de uma ceia de ho­mens. A condessa subiu para o seu quarto. Eu entrei na sala, com o conde. Oficiais ingleses que vinham de Southampton, e que iam para a estação de Malta, tinham desembarcado, e ceavam.

– Nós tínhamo-nos sentado, bebendo cerveja, quando tive oca­sião de aproximar de um dos oficiais ingleses que estava próximo de mim, o frasco da mostarda. O frasco caiu, sujou-me, ele sorriu com polidez, eu ri alegremente, conversámos, e ao fim da noite pas­sávamos ambos pelo braço, na esplanada que ficava defronte das janelas do hotel e que está sobre o mar. Havia um amplo e calado luar que espiritualizava a decoração admirável das montanhas, a vasta água imóvel.

Eu tinha simpatizado com aquele oficial, já pelo seu perfil al­tivo e delicado, já pela feição original do seu pensamento, já por uma gravidade triste que havia na sua atitude. Era moço, capitão do artilharia, e batera-se na Índia. Era louro e branco; mas o sol do Indostão tinha amadurecido aquela carnação fresca e clara, aprofundado a luz dos olhos, e dado aos cabelos uma cor fulva e ar­dente.

Passeávamos, conversando na esplanada, quando, repentinamente, se abriu uma janela, e uma mulher com um penteado bran­co apoiou-se levemente na varanda, e ficou olhando o horizonte lu­minoso, a melancolia da água. Era a condessa.

O luar envolvia-a, empalidecia-lhe o rosto, adelgaçava-lhe o corpo, dava à sua forma toda a espiritualização de uma figura de antiga legenda: o seu penteador caía largamente ao redor dela, em grandes pregas quebradas.

– Que linda! – disse o oficial parando, com um olhar admira­do e profundo. – Quem será?

– Somos um pouco primos – disse eu rindo. – É casada. É a condessa de W. Parte para Malta amanhã no paquete. A bordo le­var-lhe-ei o meu amigo para a entreter contando-lhe histórias da Índia. Adora o romanesco, aquela pobre condessa! Em Portugal, nem nos romances o há, Caçou o tigre, capitão?

– Um pouco. Fala o inglês sua prima?

Como uma portuguesa, mal; mas ouve com os olhos, e adi­vinha sempre.

Separámo-nos.

– Arranjei-lhe um romance, um lindo romance, prima – dis­se eu entrando na sala, onde o conde escrevia cartas, cachimban­do: – um romance onde se caçam tigres com rajás, onde há baya­deras, florestas de palmeiras, guerras inglesas e elefantes...

– Ah! como se chama?

– Chama-se Captain Rytmel, oficial de artilharia, 28 anos, em viagem para Malta, bigode louro, um pouco da Indianos olhos, muito da Inglaterra na excentricidade, um perfeito gentleman.

– Um bebedor de cerveja! – disse ela, desfolhando a flor de cactos.

– Um bebedor de cerveja! – gritou o conde erguendo a cabe­ça com uma indignação cómica. – Minha querida, diante de mim, pelo menos, não digas isso se não queres fazer-me cabelos brancos! Estimo os Ingleses e respeito a cerveja. Um bebedor de cerveja! Um moço daquela perfeição!... – murmurava ele, fazendo ranger a pena.

Ao outro dia subíamos para bordo do paquete da Índia: o Cei­lão. Eram 7 horas da manhã. O morro de Gibraltar, mal acordado, tinha ainda o seu barrete de dormir feito de nevoeiro. Havia já via­jantes e oficiais sobre a tolda. O chão estava húmido, havia uma confusão violenta de bagagens, de cestos de fruta, de gaiolas de aves; a escada de serviço via-se cheia de vendedores de Gibraltar. A condessa recolheu-se à cabina para dormir um pouco. Às 9 ho­ras quase todos os passageiros que tinham entrado em Gibraltar e os que vinham de Southampton estavam em cima; o vapor fume­gava, os escaleres afastavam-se, o nevoeiro estava desfeito, o sol dava uma cor rosada às casas brancas de Algeciras e de S. Roque, e ouvia-se em terra o rufar dos tambores.

A condessa, sentada numa cadeira indiana, olhava para as pe­quenas povoações espanholas que assentam na baía.

O oficial inglês, Captain Rytmel, conversava a distância com o conde, que adorava já a sua figura cativante e altiva, as suas aventuras da Índia, e a excêntrica forma do seu chapéu, que ele trazia com uma graça distinta e audaz. O capitão tinha na mão um álbum e um lápis.

– Captain – disse-lhe eu tomando-lhe o braço –, vou levá-lo a minha prima, a senhora condessa. Esconda os seus desenhos, ela é implacável e faz caricaturas.

A condessa estendeu ao inglês uma pequena mão, magra, ner­vosa, macia, com umas unhas polidas como o marfim de Diepa.

– Meu primo disse-me, Captain Rytmel, que tinha mil histó­rias da Índia para me contar. Já lhe digo que lhe não perdoo nem um tigre, nem uma paisagem. Quero tudo! Adoro a Índia, a dos Ín­dios, já se vê, não a dos senhores Ingleses. Já esteve em Malta? É bonita?

– Malta, condessa, é um pouco de Itália e um pouco do Orien­te. Surpreende por isso. Tem um encanto estranho, singular. De resto é um rochedo.

– Demora-se em Malta? – perguntou a condessa.

– Uma semana.

A condessa estava torcendo a sua luva; ergueu os olhos, pousou-os no oficial, tossiu brandamente, e com um movimento rápido:

– Ah! Vai deixar-me ver o seu álbum.

– Mas, condessa, está branco, quase branco; tem apenas de­senhos lineares, apontamentos topográficos.

– Não creio; deve ter paisagens da Índia, há-de haver aí um tigre, pelo menos, a não ser que haja uma boyadera!

E, com um gesto de graça vitoriosa, tomou o álbum da mão do oficial.

O capitão fez-se todo vermelho. Ela folheou o livro e de repen­te deu um pequeno grito, corou, e ficou com o álbum aberto, os olhos húmidos, risonhos, os lábios entreabertos. Olhei: na página esta­va desenhada uma mulher com um penteador branco, debruçada a uma janela, tendo defronte um horizonte com montanhas e o mar. Era o retrato perfeito da condessa. Ele tinha-a visto assim na véspera, ao luar, à janela do Club-House.

O conde tinha-se, aproximado.

– Como! Como! És tu, Luísa! Mas que talento! É um homem adorável, capitão. Que desenho! Que verdade!

– Oh! Não! Não! – disse o capitão. – Ontem estava no meu quarto, em Club-House; instintivamente tinha o álbum aberto, e o lápis, sem eu querer, sem intenção minha, espontaneamente, fez este retrato. É um lápis que deve ser castigado!

– O quê! – gritou o conde. – É um lápis encantado. Capitão, está decidido que vai jantar comigo, logo que cheguemos a Malta. Já o não largo, meu caro! Há-de ser o nosso cicerone em Malta. Mas que talento! Que verdade!

E falando em português para a condessa:

– É um bebedor de cerveja, hem?

Nesse momento uma sineta tocou: era o almoço.

 

Talvez estranhe, senhor redactor, a escrupulosa minuciosida­de com que eu conto estes factos, conservando-lhes a paisagem, o diálogo, o gesto, toda a vida palpável do momento. Não se admire. Nem tenho uma memória excepcional, nem faço uma invenção fantasista. Tenho por costume todas as noites, quando fico só, apontar num livro branco os factos, as ideias, as imaginações, os diálogos, tudo aquilo que no dia o meu cérebro cria ou a minha vida encontra. São essas notas que eu copio aqui.

A mesa do almoço estavam já sentados os passageiros. O nosso lugar era ao pé do capitão. O comandante do Ceilão era um homem magro, esguio, com uma pele muito vermelha, de onde saíam com a hostil aspereza com que as urzes saem da terra, duas suí­ças brancas.

Ao seu lado sentavam-se duas excêntricas personalidades de bordo: o Purser, que é o comissário que vela pela instalação dos via­jantes e pelos regulamentos de serviço, e Mr. Colney, empregado do correio de Londres. O Purser era tão gordo que fazia lembrar um grupo de homens robustos metidos e apertados numa farda de ma­rinha mercante. Mr. Colney era alto e seco com um imenso nariz agudo e enristado em cuja ponta repousava pedagogicamente o ar­co de ouro dos seus óculos burocráticos. O Purser tinha uma fra­queza que o dominava – era o desejo de falar bem brasileiro. Ti­nha viajado no Brasil, admirava o Maranhão, o Pará, os grandes recursos do Império. A todo o momento se aproximava de mim pa­ra me perguntar certas subtilezas da pronúncia brasileira. Mister Colney, esse, era gago e tinha a mania de cantar cançonetas cómi­cas. Os outros passageiros eram oficiais, que iam tomar serviço na Índia, algumas misses alegre e louras, um clergyman com doze fi­lhos, e duas velhas filantrópicas, pertencentes à Sociedade educa­dora dos pequenos patagónicos.

Logo que Captain Rytmel entrou na sala, seguindo a condessa, um homem que se debatia gulosamente no prato com a anatomia de uma ave fila, encarou-o, ergueu-se, e com uma alegria ruido­sa gritou:

– Viva Dios! É Captain Rytmel! Eh! Querido! Mil abraços! Es­tá gordo, hombre, está mais gordo!

Envolvia-o nos abraços robustos, olhava-o ternamente com dois grandes olhos negros. Captain Rytmel depois do primeiro ins­tante de surpresa, em que se fez pálido, apressou-se a ir apertar a mão a uma senhora, extremamente bela, que estava sentada ao pé daquele homem guloso e expansivo, o qual era um espanhol, ne­gociante de sedas, e se chamava Nicazio Puebla.

A senhora, que se chamava Cármen, era cubana, e segunda mulher de D. Nicazio; era alta, deformas magníficas, com uma car­nação que fazia lembrar um mármore pálido, uns olhos pretos que pareciam cetim negro coberto de água, e cabelos anelados, abun­dantes, desses a que Baudelaire chamava tenebrosos. Vestia de se­da preta e com mantilha.

– Estavam em Gibraltar? – perguntou Captain Rytmel.

– Em Cádis, meu caro – disse D. Nicazio. – Viemos ontem. Vamos a Malta. Volta para a Índia? Ah! Captain Rytmel, que sau­dade de Calcutá! Lembra-se, hem?

– Captain Rytmel – disse sorrindo friamente Cármen – es­quece depressa, e bem!

No entanto, nós olhávamos curiosamente para Cármen Puebla. O conde achava-a sublime. Eu, admirado também, disse baixo à condessa:

– Que formosa criatura!

– Sim! Tem ares de uma estátua malcriada – respondeu ela secam ente

Olhei para a condessa, ri:

– Ó prima! É uma mulher adorável, que devia ser em minia­tura para se poder trazer nos berloques do relógio; uma mulher que decerto vou roubar, aqui no alto mar, num escaler; uma mulher cu­jos movimentos parecem música condensada! Ó prima! Confesse que é perfeita... Menino! – acrescentei para o conde – passa-me depressa a soda, preciso calmantes...

No entanto, Captain Rytmel, sentado junto de Cármen, fala­va da Índia, de velhos amigos de Calcutá, de recordações de via­gens. A condessa não comia, parecia nervosa.

– Vou para cima – disse ela de repente –; mandem-me chá.

Quando a viu subir, Rytmel ergueu-se, perguntando ao conde:

– Está incomodada a condessa?

– Levemente. Precisa de ar. Vá-lhe fazer um pouco de compa­nhia, fale-lhe da Índia. Eu, não posso deixar este caril...

Eu tinha interesse em ficar à mesa defronte da luminosa Cár­men; concentrei-me sobre o meu prato. O capitão tinha tomado lo­go o seu excêntrico chapéu índio, orlado de véus brancos.

Ao vê-lo seguir a condessa, a espanhola empalideceu. Momen­tos depois ergueu-se também, tomou uma larga capa de seda à ma­neira árabe de um bournous, enrolou-a em roda do corpo, e subiu para a tolda, apoiada numa alta bengala 4e castão de marfim.

O almoço tinha acabado. Falava-se da Índia, do teatro de Mal­ta, de Lord Derby, dos Fenians; eu enfastiava-me, fui apertar a mão ao comandante, e fumar para cima um bom charuto, sentin­do a brisa fresca do mar.

A condessa estava sentada num banco à popa; ao pé dela o ca­pitão Rytmel, num pliant de vime.

Cármen passeava rapidamente ao comprido da tolda; às vezes, firmando-se nas cordagens, subia o degrau que contorna interiormente a amurada, e ficava olhando para o mar, enquanto a sua mantilha e a sua capa se enchiam de vento, e lhe davam uma apa­rência ondeada e balançada, que a assemelhavam Aquelas divin­dades que os escultores antigos enroscavam no flanco dos galeões!

 

D. Nicazio Puebla, que o Purser me apresentara já, viera fumar para o pé de mim.

– Esteve na Índia, Cabellero? – perguntei-lhe eu.

– Dois anos, em Calcutá. Foi lá que conheci o capitão Rytmel. Convivíamos muito. Jantávamos sempre juntos. Fui à caça do ti­gre com ele. Cacei o tigre. Deve ir a Calcutá! Que palácios! Que fá­bricas!

– O capitão é um valente oficial.

– É alegre. O que nós riamos! E bravo, então! Se lhe parece! Salvou-me a vida.

– Nalguma caçada?

– Eu lhe conto.

Tínhamo-nos aproximado da popa, falando. Neste momento vi eu a espanhola encaminhar-se para o lugar em que a condessa falava com Rytmel, e com uma resolução atrevida, a voz altiva, di­zer-lhe:

– Capitão, tem a bondade, dá-me uma palavra?

A condessa fez-se muito pálida. O capitão teve um movimen­to colérico, mas ergueu-se e seguiu a espanhola.

Eu aproximei-me da condessa.

– Quem é esta mulher? Que quer?... – disse-me ela toda tré­mula.

Eu sosseguei-a e dirigi-me a D. Nicazio.

– Viu aquele movimento de sua mulher?

– Vi.

– É inconveniente: o cavalheiro responde decerto pelas fanta­sias ou pelos hábitos daquela senhora...

– Eu! – gritou o espanhol. – Eu não respondo por coisa al­guma. O senhor que quer? É um monstro essa mulher! Livre-me dela, se pode! Olhe: quere-a o senhor? Guarde-a. Está sempre a fazer destas cenas! E não lhe posso fazer uma observação! É uma fúria, usa punhal!

– Esta mulher – fui eu dizer à condessa – é uma criatura sem consideração e parece que sem dignidade. Não a olhe, não a escu­te, não a perceba, não a pressinta. Se houver outra inconveniência eu dirige-me ao comandante, como se ela fosse um grumete inso­lente. É pena... é terrivelmente linda!

A espanhola, no entanto, junto da amurada, falava violentamente ao capitão Rytmel, que a escutava frio, impassível, com os olhos no chão.

O conde subiu neste momento. Outras senhoras vieram, os grupos formavam-se, começavam as leituras, as obras de costura, o jogo do boi...

Eu aproximei-me de D. Nicazio e disse-lhe sem lhe dar mais importância:

– Então esta sua senhora dá-lhe desgostos?

– É sempre aquilo como capitão. Foi desde a tal caçada ao ti­gre... Quer que lhe conte?...

– Diga lá.

Sentei-me na tenda onde se fuma, acendi um charuto, cruzei as pernas, recostei a cabeça e, embalado pelo lento mover do navio, cerrei os olhos.

– Um dia em Calcutá – começou o espanhol –, dia de gran­de calor...

Mas não, senhor redactor. Eu quero que esta história a saiba do próprio capitão. Aí tem a tradução fiel de uma das mais vivas páginas de um dos seus álbuns de impressões de viagem.

 

«...Sabes – escrevia ele a um amigo – que o sonho de todo o negociante que chega à Índia é caçar um tigre.

D. Nicazio Puebla quis caçar o tigre. Sua mulher Cármen de­cidiu acompanhá-lo. Essa, sim; que tinha a coragem, a violência, a necessidade de perigos de um velho explorador Hundodo! Eu estimava aquela família. Combinámos uma caçada com alguns oficiais meus amigos, então em Calcutá. A duas léguas da cidade sabiam os exploradores que fora visto um tigre. Tinha mesmo sal­tado, havia duas noite, uma paliçada de bambus, na propriedade de um doutor inglês, antigo colono, e tinha devorado a filha de um malaio. Dizia-se que era um tigre enorme, e formosamente lis­trado.

Partimos de madrugada, a cavalo. Um elefante, com um pa­lanquim, levava Cármen. Um boi conduzia água em bilhas encanastradas de vime. Iam alguns oficiais de artilharia, sipaios, três malaios e um velho caçador experimentado, antigo brâmane, degenerado e devasso, que vivia em Calcutá das esmolas dos nababos e dos oficiais ingleses. Era destemido, meio louco, cantava estranhas melodias do Indostão, adorava o Ganges, e dormia sempre em cima de uma palmeira.

Nós levávamos espingardas excelentes, punhais recurvados, espadas de dois gumes, curtas, à maneira dos gládios romanos, e o terrível tridente de ferro que é a melhor arma para a luta com o tigre. Ia uma matilha de cães, forte e destra, da confiança dos ma­laios.

Às 11 horas do dia penetrávamos em plena floresta. O tigre devia ser encontrado numa clareira conhecida. Íamos calados, vergando ao peso implacável do sol, entre palmeiras, tamarindos, espessuras profundas, num ar sufocado, cheio de aromas acres. Toda aquela natureza estava entorpecida pela calma: os pássaros, silenciosos, tinham um voo pesado; as suas penas coloridas, vermelhas, negras, roxas, douradas, resplandeciam sobre o verde-negro da folhagem. O céu mostrava uma cor de cobre ardente; os cavalos marchavam com o pescoço pendente; os cães arquejavam; o boi que levava a água mugia lamentavelmente; só o elefante caminhava na sua pompa impassível, enquanto os malaios, para esquecer a fadiga, diziam, com a voz monótona e lenta, cantigas de Bombaim.

Estávamos ainda distantes do tigre: nem os cavalos tinham rinchado, nem o elefante soltara o seu grito melancólico e doce. To­davia, achávamo-nos próximo da clareira.

Eu cheguei-me ao palanquim de Cármen e bati nas cortinas. Cármen entreabriu-as: estava pálida da fadiga do sol e do prazer do perigo; os olhos reluziam-lhe extraordinariamente. Ansiava pela luta, pelos tiros, pelo encontro da fera. Pediu-me uma cigar­rette e um pouco de conhaque e água...

Eu, desde que a conhecia, tinha muitas vezes olhado Cármen com insistência, e tinha visto sempre o seu olhar negro e acaricia­dor envolver-me respondendo ao meu.

Tinha-lhe algumas vezes dado flores, e uma noite que, num terraço em Calcutá, olhávamos as poderosas constelações da Índia, o céu pulverizado de luz, ela tinha um momento esquecido as suas mãos entre as minhas. A sua beleza perturbava-me como um vinho muito forte. E ali, naquela floresta, sob um céu afogueado, entre os aromas de magnólias, Cármen aparecia-me com uma be­leza prestigiosa, cheia de tentações a que se não foge.

– Ah, Cármen! – disse eu. – Quem sabe os que voltarão a Calcutá!

– Está rindo, capitão...

– Na caçada do tigre pode-se pensar nisto: o tigre é astuto; tem o instinto do inimigo mais bravo e do que mais lamentado.

– Ninguém hoje seria mais lamentado que o capitão.

– Só hoje.

– Sempre, e bem sabe porquê.

De repente o meu cavalo estacou.

– O tigre! O tigre! – gritaram os malaios.

Os cavalos da frente recuaram; os sipaios entraram nas fi­leiras da caravana. Os cães latiam, os malaios soltavam gritos guturais, e o elefante estendia a tromba, silencioso. De repente, houve como uma pausa solene e triste, e um vento muito quente passou nas folhagens.

Estávamos defronte de uma clareira coberta de um sol faiscan­te. Do outro lado havia um bosque de tamarindos: era ali decerto que a fera dormia. Voltei-me para D. Nicazio: vi-o pálido e in­quieto­

– D. Nicazio! Dê o primeiro tiro, o sinal de alarme!

D. Nicazio picou rapidamente o cavalo para mim, murmurou com uma voz sufocada:

– Quero subir para o elefante. Cármen não deve estar só, po­de haver perigo...

Falei aos malaios, que desdobraram a estreita escada de bambu, por onde se sobe ao dorso dos elefantes. O cornaca dormia encruzado no vasto pescoço do animal. D. Nicazio subiu com avidez, arremessou-se para dentro do palanquim, e de lá, pela fenda das cortinas, espreitava com o olho faiscante e medroso.

Mas então foi Cármen que não quis ficar dentro do palanquim, pediu, gritou, queria montar a cavalo, sentir o cheiro à fera.

– Tirem-me daqui, tirem-me daqui! Não fiz esta jornada toda para ficar dentro de uma gaiola...

­Não havia sela em que mulher montasse, nem cavalo bastante fiel; não se podia consentir que Cármen descesse. Mas eu tive uma ideia estranha, perigosa, tentadora, imprevista: era pô-la à garupa do meu cavalo. Disse-lho.

Ela teve um gesto de alegria, quase se deixou escorregar, agarrando-se às cordas do palanquim, pelo ventre do elefante; correu, pôs o pé no meu estribo, enlaçou-me a cintura, e com um lindo pulo, sentou-se à garupa. Os oficiais exclamavam que era uma imprudência. Ela queria, instava, e apertava-me contra a curva do seu peito, rindo, jurando que nem as garras do tigre a arrancariam dali...

Os malaios preparavam os tridentes, dispunham a matilha. Eu, como levava Cármen à garupa, tinha-me colocado atrás do grupo, cerrado, com os pés firmes no estribo, atento, os olhos fitos na espessura dos tamarindos.

Mas nem se ouviam rugidos, nem um estremecimento de folha­gem.

Cármen apertava-me exaltada.

– Vá! Vá! – pediu-me ela baixo. – O tigre, o tigre! Dê o sinal!

Ergui um revólver, e disparei. O eco foi cheio e poderoso. E logo ouviu-se um rugido surdo, lúgubre, rouco, que era a resposta do tigre. Estava perto, entre os primeiros tamarindos. A matilha rompeu a ladrar...

– Que ninguém se alargue! – disse o velho brâmane, que tinha trepado a uma palmeira, e de lá olhava, farejava, ordenava.

Todos conservaram a espada ou tridente inclinado em riste, es­perando o salto do tigre. Eu dera uma cuchilla a Cármen, tinha na mão da rédea um forte revólver e na outra um punhal curvo...

De repente os arbustos estremeceram, as altas ervas curva­ram-se, sentiu-se um bafo quente, um cheiro de sangue, e o tigre veio cair, com um rugido, diante dos caçadores, no meio da clarei­ra, estacado e imóvel.

Era muito comprido, de pernas curtas e espessas, a cabeça ós­sea, os olhos fulvos, ferozes, num movimento perpétuo e convulsi­vo; e a língua vermelha como sangue coalhado, pendia-lhe fora da boca.

Um momento o tigre arrastou-se, batendo os ilhais com a cau­da. Depois, com um gemido profundo, saltou. Mas os cães, arre­messando-se, tinham-no prendido no ar, pelas orelhas, pela pele espessa do pescoço, pelas pernas, vestindo-o de mordeduras, ras­gando-o, rugindo, cobrindo-o todo. Alguns ficaram logo despeda­çados.

E no instante em que a fera, tendo cuspido todos os cães, ficou só, magnífica e de cabeça alta, o brâmane fez um sinal.

Duas balas partiram. O tigre rugiu, rolou-se freneticamente no chão. Estava ferido. Imediatamente ergueu-se, arremessou-se sobre os homens. Todos tinham o tridente eos punhais enristados, o ventre da fera veio rasgar-se nas lâminas agudas. Prendera, porém, um malaio entre as ganas, e rasgava-lhe o peito. À uma to­dos enterravam as facas no corpo do animal, e ele, sucumbindo sob o peso, sob as feridas, varado por uma bala, debatia-se ainda fe­rozmente, esmigalhando na agonia os membros do pobre malaio.

– Nada de bala! Nada de bala! – gritava o brâmane.

Eu estava fascinado. Cármen convulsivamente apertada a mim, com os olhos chamejantes, vibrando por todo o corpo, dava gritos surdos de excitação. O tigre ficara estendido, escorrendo sangue. Eu devorava-o com a vista, seguia-lhe a mais pequena contracção dos músculos. Vi-o arquear-se de repente, e com um pulo vertiginoso arremessar-se sobre mim e sobre Cármen. Com uma determinação súbita, disparei um tiro do meu revólver no ou­vido do cavalo que montávamos. O animal caiu sobre os joelhos, nós rolámos no chão. O tigre levava um pulo elevado, roçou pelas nossas cabeças, foi cair a distância, revolvendo-se na terra. Er­gui-me, arrojei-me a ele, cravando-lhe o punhal entre as patas dianteiras com um movimento rápido, que lhe foi ao coração. O ti­gre ficou morto. Abaixei-me, e com uma faca malaia em forma de serra cortei-lhe uma pata, e apresentei-a a Cármen.

– Hurra – gritaram todos, e o eco deste grito estendeu-se pe­la floresta.

Cármen tinha-se aproximado do tigre morto, acariciava-lhe a pele aveludada, tocava-lhe com as pontas dos dedos no sangue que escorria.

– Hurra! Hurra! – continuavam gritando os caçadores.

Cármen, então, arremessando-se aos meus braços, beijou-me na testa com entusiasmo, dizendo alto:

– Salvou-me a vida! Devo-lhe a vida!...

E mais baixo, murmurou-me ao ouvido:

– Amo-te.

A tarde caía. Sentíamos os braços fracos, e grande sede. Come­çámos a dirigir-nos para Calcutá. Descansámos numa plantação de índigo. E ao começar da noite, com archotes acesos e cantando, partimos alegremente para a cidade, pela floresta, num caminho conhecido e seguro. As luzes davam à ramagem atitudes fantás­ticas; pássaros acordando esvoaçavam; e sentia-se o fugir dos chacais. Era como a volta de uma caçada bárbara, das velhas le­gendas da Índia. Cármen tinha aberto as cortinas do palanquim. Eu montava, ao lado dela, o cavalo do malaio morto. Ela inclinou-se para mim e com a voz abafada:

– Juro-te – disse-me – que te amo, como só no nosso país se ama. Juro-te que em todas as circunstâncias, sempre darei a mi­nha vida pela tua, quererei os teus perigos, serei a tua criatura, e só te peço uma coisa.

– O quê?

– E que de vez em quando, quando não tiveres melhor que fa­zer, te lembres um pouco de mim.

– O momento, o sitio, os perfumes acres, as fantásticas sombras da floresta, a luz dos archotes, a beleza maravilhosa e fatal de Cármen, os tiros, os sons das trompas, os relinchos dos cavalos, os gritos dos chacais, tudo me tinha perturbado, exaltado, e esque­cendo o senso e a lógica, disse-lhe:

– Juro-te que te amo, que sempre te serei leal, e que no dia em que vires que te esqueço, quero que me mates!

Ele segurou a mão que lhe estendi, e com uma carícia humil­de, com um gesto de fera que rasteja, curvou-se toda na grade do palanquim, e beijou-me os dedos.

A noite, no entanto, enchia-se de enormes estrelas cintilan­tes..»

 

Ao terceiro dia de viagem do Ceilão, um dia antes de avistar­mos Malta, um oficial inglês, ao almoço, lembrou que naquele dia fazia 28 anos o príncipe de Gales. Quase todos os oficiais que estavam abordo conheciam o príncipe, estimavam o seu carácter, o seu temperamento eminentemente byroniano. Resolveram, com a ce­dência do comandante, celebrar a data e valsar à noite, na tolda, à luz de um punch colossal.

O jantar foi já ruidoso; o champanhe resplandeceu como opa­la liquida nas taças facetadas; a pesada pale ale espumou; o xerez ferveu na soda water. Cármen, pela sua beleza e pela estranha ver­ve da sua agitação, foi a alegria daquele pesado e longo banquete de anos reais.

Houve toasts, à rainha e aos príncipes ingleses, ao lorde-almi­rante, à companhia P. and O.; e um inglês rico fez um speech aos estrangeiros: The count and countess of W.

– Peço um toast – disse Cármen, de repente.

Os copos tiniram, estalaram as rolhas.

– A caçada do tigre! Aos palanquins de cortinas brancas! Aos caçadores que salvam as damas que têm à garupa!

A maior parte não compreendeu, alguns riram, mas como o toast era excêntrico, foi escoltado de aplausos.

– Oh! shocking! – disse ao meu lado uma velha irlandesa, que tinha pelo amplo ventre do Purser uma fascinação concentrada.

– Not at all, Madam! – disse eu. – É apenas o sangue meri­dional. Aquela viveza, aqueles olhos luzentes, é o sangue meridio­nal: se ela agora quebrasse todas as garrafas de encontro ao tecto da sala, era o sangue meridional...

A inglesa escutava, como quem se instrui.

– ...Se ela tomasse de repente a roda do leme e arremessas­se o paquete contra um rochedo, era o sangue meridional; se ela ou­sasse arrancar com mãos ímpias os seus óculos, milady...

– Ouh! – gritou ela.

– ...era ainda o sangue meridional!

– Oh! Very shocking the sangue meridional!

Os oficiais ingleses, esses, estavam entusiasmados com Cár­men.

No entanto, as senhoras tinham-se erguido; e em volta do con­de juntara-se um grupo de bebedores convictos e sérios. Serviu-se o conhaque e os álcoois. Cármen ficara entre os homens, bebendo licor, rindo e fumando cigarrettes.

A condessa subira pelo braço de Captain Rytmel.

D. Nicazio, esse, comia impassivelmente o seu queijo adorna--do de mostarda, de salada, de vinagre, de sal, de rábanos e de um leve pó apimentado de Ceilão.

Não sei como, falou-se de mulheres, e de caracteres femininos.

– Eu – disse logo Cármen – compreendo a gravidade devo­ta das misses: como senhoras inglesas é sua educação; nasceram para serem hirtas, louras, frias e leitoras da Revista de Edimbur­go. Estão na verdade do seu carácter: um pouco menos vivas seriam de biscuit, um pouco mais seriam shockings. Mas o que eu de­testo, são as canduras alemães, os modos virginais de criaturas que, pelo seu clima, pelo sol do seu país, pertencem ao que a vivacidade tem de mais petulante. Uma espanhola, uma italiana, uma portuguesa, caindo no missismo e dando-se ares vaporosos, hipócritas e beatos, serve sempre para esconder um amante, quando não serve para esconder dois.

Aquelas palavras eram, evidentemente, uma alusão sangui­nolenta às maneiras reservadas da condessa, que, sendo loura, discreta, suave, contrastava poderosamente com aquela trigueira e ruidosa espanhola.

– Perdão, señora – disse-lhe eu em espanhol –, hoje as verdadeiras maneiras não são o salero, são a gravidade. O salero pode ser bom no teatro, na zarzuela, nos corpos de baile, nas gra­vuras de uma viagem à Espanha, mas é de todo o ponto inconve­niente numa sala.

Ela empalideceu levemente, e fitou-me:

– Caballero – perguntou –, és usted pedante de rhetorica?

Eu ri-me, estendi-lhe a mão, e tudo acabou com um novo toast. Mr. Cokney, que escutava a espanhola, tinha atendido às nos­sas palavras, tinha achado um som pitoresco e estranho naquele dizer – pedante de rhetorica, e exclamava para os outros ingleses, rindo:

– Oh yes, Pedant de Rhetoric, it is very phantastic!

Entretanto, a noite caía. Eu senti-me pesado, recolhi à cabina, adormeci ligeiramente. Pelas nove horas subi à tolda. Fiquei sur­preendido.

Não havia luar, nem estrelas, nem vento. Ao fim da tolda ar­dia opunch. Era enorme, a sua chama larga, azulada, fantástica, subia, palpitava, fazia sobre o navio toda a sorte de reflexos e de sombras. Dos lugares escuros safam risadas de flirtations. Havia uma flauta e uma rabeca. E já um ou outro par valsava em roda da clarabóia da tolda.

A mastreação do navio, tocada em grandes linhas azuladas pe­la luz do punch, fazia lembrar um galeão de legenda, o paquete de Satã.

Algumas senhoras estavam vestidas de branco, e quando no círculo da valsa passavam sob a zona da luz, e eram envolvidas numa claridade fosfórica, os vestidos brancos tomavam tons espec­trais, os cabelos louros luziam comum encanto morto, havia em tu­do aquilo como uns longes de dança macabra...

Cármen estava possuída da mesma agitação da chama do pu­nch, travava do braço a um, valsava com outro, escarnecia, tinha réplicas, batia o leque. D. Nicazio, esse ressonava perto da amura­da. De vez em quando entornavam-lhe punch pela boca: ele abria uma fresta do olho:

– Thank you, caballeros – e adormecia.

– Onde está Captain Rytmel? – disse de repente Cármen. –Tragam-no... Quero valsar com ele.

Rytmel conversava com a condessa sossegadamente, longe da luz.

– Rytmel! Rytmel! – chamaram várias vozes.

Vimo-lo aproximar-se contrariado, mas rindo.

– Uma valsa! – gritou-lhe a espanhola)

A flauta começou: ela tomou os ombros do capitão, e despedi­ram em grandes círculos; os vestidos de Cármen enchiam-se de ar, os seus cabelos desmanchavam-se; a luz do punch tremia; ao compasso rápido, os giros vertiginosos, enlaçados, pareciam voos, lembravam a valsa do diabo cantada por Byron. Ela vergava nos braços de Rytmel, com a cabeça errante, os olhos cerrados, os bei­ços entreabertos e húmidos.

– Bravo! Bravo! – gritavam os ingleses em roda.

A luz do punch erguia-se, balançava-se, valsava também. Cármen e Rytmel passavam como sombras, levados por um vento leve, cheios dos reflexos idealizadores da chama azul. O som frené­tico da flauta perseguia-os; parecia que eles iam voar, desapare­cer entre as cordagens, dissipar-se na noite. Os ingleses gritavam, erguendo os chapéus.

– Hip! Hip! Hip!

Eu notava na condessa, entretanto, uma vaga sobre-excitação; estava observando de longe com os olhos resplandecentes, o seio arquejante. Apenas a valsa findou, ela tomou o braço do capitão, e ouvi-lhe dizer numa voz grave e repreensiva:

– Não dance mais.

Fiquei surpreendido. Que havia? Um segredo? Pois a condes­sa, tão altiva, tão casta, tão tímida!

Aproximei-me dela.

– Prima, é tarde. Não quer descer?.

Ela olhou-me serenamente, sorrindo.

– Não. Porquê?

E afastou-se com o capitão Rytmel para ao pé da tenda onde de dia se fumava, e agora deserta e quase escura.

Eu, maquinalmente, fui-os seguindo, cheguei-me impercepti­velmente pelo lado oposto, e quase sem querer ouvi.

O capitão dizia-lhe:

– Mas porque duvida? Eu desprezo aquela mulher. A nossa amizade nada perde, e nada sofre. Ela foi para mim um capricho, e historia de um momento. Agora nem uma recordação é...

Continuaram falando baixo, e melancolicamente. Eu fui en­costar-me um momento à amurada. Erguera-se vento, e o vapor começava a jogar...

– Onde se some aquele capitão Rytmel? Desapareceu outra vez com a condessa, não viram? Vamos procurá-los.

Compreendi a traição. Corri rapidamente, sem ser percebido, à tenda fumoir, entrei, sentei-me num banco, conversando alto, ao acaso. A tenda estava apenas alumiada por uma lanterna. A con­dessa ao ver-me aparecer assim tão bruscamente, fizera-se páli­da de cólera.

Mas, nesse momento, chegavam alguns oficiais, gritando:

– Rytmel! Rytmel!

Eu adiantei-me, dizendo:

– Que é? Estamos aqui; não queremos dançar mais...

Os oficiais afastaram-se. A condessa percebeu que eu a tinha salvado de uma situação penosamente equivoca, e o seu olhar agradeceu-me, profundamente.

– Desça, condessa, desça – segredei-lhe eu.

Ela disse com um sorriso melancólico a Rytmel:

– Está frio, adeus!

Rytmel e eu voltámos para o grupo dos oficiais.

Eu queria vingar-me de Cármen; lembrou-me o torná-la o centro de ruído e de orgia.

– Señorita! – disse-lhe eu. – Cante-nos uma seguidilla ou uma habanera! Faz um belo efeito no alto mar. Estão aqui gentle­men que nunca ouviram a música dos nossos países.

– Sim, sim – gritaram todos. – Uma seguidilla!...

­Ela queria recusar-se, descer ao beliche.

– Não, não, cante, milady, cante!

Os pedidos eram instantes e ruidosos. Ela cedeu, ergueu a voz, no meio do silêncio, acompanhada pelo monótono ruído do vapor e pelo vento crescente, e cantou com uma voz forte e lânguida:

 

A la puerta de mi casa

Hay una piedra mui larga...

 

Os ingleses estavam extáticos. No fim os aplausos estalaram como foguetes, encheram-se os copos, um gritou:

– Pela señorita Cármen! Hip! Hip! Hurra!

Os aplausos ecoaram no mar.

Ela estava extremamente embaraçada, compreendia que só, no meio daquelas aclamações de homens, a sua posição era equi­voca e ousada.

– Ora vejam! – disse eu então, com uma bonomia mefistofé­lica. – É pena que as senhoras não ouvissem, e que estejamos aqui sós, entre rapazes, na pândega.

Cármen deitou-me um vivo olhar de ódio: eu estava vingado.

Um dos ingleses, no entanto, Mr. Redor, continuava erguendo o copo, cheio de punch:

– A Cármen Puebla! Hip! hip! hip!

– Hurra! – responderam os outros entusiasmados.

E o eco triste do mar, repetiu:

– Hurra!

Tocou uma sineta. Eram onze horas. Apagaram-se as luzes. Quase todos desceram rapidamente. Havia um forte vento de no­roeste. O balanço do navio crescia. Navegávamos então à vista da terra de África. Quando a tolda ficou deserta, sentiu-se mais vivamente o vento uivar nas cordagens, e bater a grande pancada do mar.

De espaço a espaço a sineta marcava os quartos: e a voz melan­cólica do marinheiro de vigia, dizia, pausadamente:

– All is well.

Havia duas horas que eu tinha descido ao beliche. Estava na­quela confusa penumbra que não é o sono, nem a vigília, mas um vago sonho vivo que se sente e que se domina; via a condessa pas­sar numa nuvem com Rytmel, alegre, bebendo cerveja; via Cármen vestida de monge, dançando sobre a corda bamba; e estas visões confundiam-se com o balanço e com o bater da hélice.

De repente senti uma pancada pavorosa. O navio estremeceu, parou, ressoou um grande grito.

 

Dei um salto, corri à porta do beliche:

– Stewart! Stewart!

O Stewart [1] apareceu esguedelhado, quase nu.

– Que é? Estamos perdidos? Batemos num rochedo?

– Não sei. Não há-de ser nada, o navio é seguro.

Ouvia em cima marinheiros correndo, o movimento que se faz num perigo.

«Estamos perdidos», pensei eu, vestindo-me com uma precipi­tação angustiada.

A cada momento esperava ver o navio descer, afundar-se, e uma enorme onda pesada entrar, alagar a cabina.

Corri à tolda. Giravam lanternas. Quase todos tinham subido: os vestidos brancos, os penteados das mulheres, davam aos grupos um vago mais lúgubre. A oficialidade estava impassível.

– Que foi? Que foi? – perguntei a alguém.

– Não se sabe, quebrou-se a máquina. Mas temos sobre nós um terrível vendaval...

– Estamos perdidos!

– O navio é seguro – respondeu o outro.

Ao lado diziam:

– O capitão devia deitar as lanchas ao mar.

O céu estava limpo: luziam estrelas. O vento assobiava mais forte. O navio tinha aquela oscilação lúgubre de bombordo a esti­bordo, que têm os grandes peixes mortos quando bóiam ao cimo da água. Olhei os astros, o céu impassível, a água negra – e senti um imenso desprezo pela vida.

Em rodado mim a cada instante ouviam-se versões contradi­tórias. Uns diziam que ficaríamos à capa, esperando firmemente o mau tempo; outros que o navio estava perdido... Um oficial dis­se ao passar;

– Oh, senhores! Isto não vale nada: conserta-se; já me acon­teceu duas vezes de Adem a Bombaim.

­Não havia a menor confusão; tudo continuava tão sereno e re­gular, como se caminhássemos num largo rio, à clara luz do Sol. O comandante, enfim, apareceu:

– Meus senhores – disse ele –, é apenas um contratempo. Houve um desarranjo grave na máquina. Não sei se poderei navegar. Com calmaria, talvez. Mas com o vento que vem sobre nós, é caso para um atraso de quatro ou cinco dias.

No entanto, o vento crescia. Havia por todo o mar flocos de es­puma. Ouvia-se no horizonte um ruído surdo, como o marchar de mil batalhões.

A maior parte dos ingleses, pesados de sono e de vinho, tinham voltado para as cabinas, indiferentes ao perigo. Algumas ladies, transidas, mas graves, ficaram no convés.

Em baixo, os engenheiros e os maquinistas trabalhavam pode­rosamente, e sem cessar.

Captain Rytmel aproximou-se de mim.

– É um perigo, e é um perigo sem luta. Este imbecil deste comandante navegou de mais para sul. Estamos perto da costa de África. Se o vendaval nos apanha agora atira-nos para lá... Toda­via, o nosso engenheiro de bordo, Persnester, é um homem de gé­nio. Onde está a condessa?

Descemos à sala comum. A condessa lá estava encostada, à me­sa, serena e pálida.

– Suba, prima, suba – disse eu. – Ao menos em cima vê-se o céu, a água e o perigo!

Viemos encostar-nos à amurada, agarrados às cordagens. As estrelas davam uma claridade nebulosa. As ondas profundamen­te cavadas, orladas de espuma, reluziam sob aquela luz vaga. O vento era terrível.

– Porque não deitam lanchas ao mar? – dizia a condessa. –Ao menos lutava-se, havia a coragem. Mas ser arremessado o pa­quete para a África como uma baleia morta!...

Ela quis passear, mas o movimento do navio era muito vio­lento; era necessário encostar-se ao braço de Captain Rytmel. Eu dificilmente me equilibrava. A pancada da onda contra o costado tinha um som lúgubre. A sineta de bordo tocava com uma voz des­consolada as horas e os quartos. Tinham-se acendido mais faróis no alto dos mastros. O ruído do vento, de temeroso, parecia uma passagem violenta de almas condenadas.

Desci à câmara para beber conhaque, porque o frio era agudo. Cármen, sentada no sofá, no alto da sala, estava ali imóvel, com os olhos vagos, as mãos cruzadas.

– Morremos, hem? – perguntou ela.

– Tem medo? – disse eu.

– Um pouco, de morrer afogada. De uma bala ou de uma fa­cada, não me custava. Mas aqui, estupidamente, neste antipático elemento, é cruel! Ao menos não morro só! Lá se vai a sua linda pri­ma!...

– Porque odeia a pobre condessa? – disse-lhe eu, sorrindo.

– Eu! De modo algum. Acho-a piegas, detesto aqueles ares sentimentais, desonra a Península. Aí está.

– Não é isso: é porque supõe que Captain Rytmel se interes­sa de mais por ela.

– E que me importa a mim esse cavalheiro?

E deu uma curta risada.

No entanto, o ar abafado da sala, o movimento do navio pertur­bava-me. Subi à tolda. A condessa e Rytmel não passeavam. Ti­nham-se sentado, segundo depreendi, debaixo da tenda. Eu, de pé, através da lona podia escutar, apesar do ruído do vento.

Uma curiosidade indomável, a necessidade de compreender a situação de espírito da condessa, a certeza de que estávamos na aflição de um perigo – e as acções humanas nesses momentos não se podem sujeitar ao critério da vida trivial –, tudo me levou a ir escutar, apesar das repugnâncias do meu carácter. Acerquei-me, fiz ouvido de espião.

Rytmel dizia:

– E custa-lhe morrer?

– Muito e nada – respondia a condessa. – Muito porque mor­re comigo o primeiro interesse que tenho na vida, que é a sua ami­zade; nada, porque, francamente, sou eu feliz?

– Se a minha amizade é para si um interesse profundo...

A condessa calou-se.

– Oh! compreendo-a bem – disse Rytmel. – Sabe porque não é feliz, apesar da minha amizade? E porque não é a minha amiza­de o que o seu coração precisa. Oh! Deixe-me falar. E o amor pro­fundo, inalterável, omnipotente, que esteja em todos os momentos da sua vida e em todas as ideias do seu espírito; que viva do prazer e viva do sacrifício; que seja a última razão da vida, a consolação, a esperança, o ideal absoluto; que pelo que há de mais ardente prenda os seus olhos, e pelo que há de mais elevado prenda a sua alma...

– Cale-se, cale-se – dizia a condessa. – É uma loucura fa­lar assim... Vamos passear, vamos ver o mar.

O vento agora era terrível. O mar estava como água de sabão a perder de vista. O navio oscilava perdidamente e sem rumo. No entanto, na máquina trabalhava-se sempre.

Rytmel continuava falando à condessa.

– Cale-se, cale-se – dizia ela baixo e como vencida.

– Não; devo dizer-lho: esta palavra «amizade» é falsa. Daqui a duas horas talvez, estamos perdidos. Ao pé da morte a sincerida­de é uma justiça. Digo-lhe. Amo-a. Não se erga. O vento levará consigo esta confissão. Amo-a. Se estamos culpados depois destas palavras, o mar é um bom túmulo e o mar lava tudo. Amo-a...

– Não diga isso. É um engano; é apenas simpatia. Demais, o amor a que nos levaria? Ou ao desprezo ou à tortura...

Eu ouvia mal. Eles falavam baixo. A tormenta chegava. O na­vio gemia lamentavelmente. As cordagens, que o vento quebrava de repente, assobiavam como cobras. Os marinheiros somam. Sentiam-se a voz do comando, os martelos, os trabalhos na máquina. Uma vaga entrou, alagou o convés.

De repente senti um movimento dentro da tenda: a condessa ergueu-se; a sua voz era alta e vibrante:

– Captain Rytmel, pensa em sua honra que vamos morrer?

– Penso, condessa.

– Pois bem, quero dizer-lho então: amo-o!

E depois de um momento:

– Oh! Amo-o – repetiu ela com uma explosão de paixão. – Já que tenho a certeza de que morro pura, quero morrer sincera. Ado­ro-o.

Neste momento um ruído estranho tomou o navio.

Percebi uma forte dominação de oscilação, uma resistência contra a vaga. Os movimentos da embarcação já não pareciam inertes. Via-se que ela tinha retomado a sua vitalidade... Então senti a hélice... a hélice! O navio movia-se. Via-se a onda esmiga­lhada pela proa. Caminhávamos! Eu saltei para a abertura que desce à máquina.

– Que é? – perguntei a um oficial que subia.

– Um milagre de Pernester!

Todos tinham corrido. Era uma ansiedade.

O capitão trepou rapidamente pela escada de ferro polida que do interior da máquina sobe ao pavimento do navio.

Estava radiante.

– Imaginem que Pernester...

– Sim, sim – interrompi –, mas então?

– Vamos a caminho. Agora sopra, tormenta, sopra! Amanhã estamos em Malta.

– Bravo, Pernester! Bravo! – gritavam todos.

O grande homem subiu a escada da máquina, ofegante, impas­sível, vermelho, grave, ainda com a gravata branca do jantar. Es­ponjou a calva, e disse num tom suave:

– Noy, I should enjoy a nice glass of beer...

 

No dia seguinte chegámos a Malta. Era de noite, não havia es­trelas. A água da baía estava imóvel e negra. Via-se defronte La Valeta, elevada como uma colina, altiva como um castelo, pes­pontada de luzes. Em redor do paquete as gôndolas corriam silen­ciosamente tendo à popa, esguia e alta, uma lanterna pendente. Havia um grande silêncio, uma suavidade inefável. Os gondoleiros remavam calados. Aquilo era doce e regular. Sentia-se o mistério italiano e a polida inglesa.

Desembarcámos: fomos para Clarence-Hotel, na Strada-Reale, defronte da célebre Igreja de S. João. Rytmel hospedou-se em casa dos oficiais ingleses. D. Nicazio e Cármen vieram para Clarence-Hotel, também. Os três primeiros dias em Malta foram ocupados em percorrer os monumentos: o palácio dos grão-mes­tres, os palácios chamados Estalagens, e que eram pertencentes às diferentes nacionalidades da ordem, as grandes ruas brancas, com elevadas e altivas casas no gosto da Renascença, e os arredores de Malta, Civita-Vecchia, Bengama, Boschetto, e a ilha de Calipso, que tem tantos encantos em Homem e que é um rochedo húmido, cheio de cavernas tenebrosas. Desde o primeiro dia, Rytmel e al­guns oficiais iam jantar a Clarence-Hotel. A condessa comia sem­pre nos seus quartos. O ruído, a petulância da mesa, era Cármen. Deixara-se logo seguir sempre por um rapaz francês, espirituoso e ligeiro, louro e ardente, um Mr. Perny, viajante por tédio, dizia ele.

Cármen não se aproximava de Rytmel. Havia entre eles como uma separação combinada e discreta. Rytmel, pelo contrário, não se afastava de nós em todas as excursões ao campo, às fortificações, à baía; todas as noites nos acompanhava ao teatro. O conde tinha ficado logo cativado das grandes tranças louras de uma rapariga que nós víamos sempre na 1ª ordem do teatro, com a tez inglesa e os olhos malteses, de uma frescura de miss e movimentos de an­daluza, e que era uma radiosa Mademoiselle Rize, dançarina em disponibilidade. De resto, o conde não podia separar-se de Rytmel.

Ali, em Malta, os movimentos da condessa e do oficial não es­tavam tanto sob o domínio da minha vista. Eu, às vezes, não via a condessa um dia, dois dias, absorto na companhia de alguns ofi­ciais ingleses, em passeios no mar, no campo, em ceias e no jogo. Compreendia, porém, que aquela paixão da condessa a dominava absolutamente. Rytmel parecia-me também perdidamente namo­rado.

Não lhe quero dizer, senhor redactor, os raciocínios interiores, que me determinaram a ser indiferente àquela situação. Compreenderá claramente os motivos por que resolvi não saber, não olhar, não perceber, isolar-me numa discrição completa e de­licada.

Pouco tempo depois de chegarmos a Malta, tínhamo-nos rela­cionado com Lorde Grenley, que estava ali passando o Inverno e curando os seus blue devils. Tinha vindo de Inglaterra num lindo iate, chamado The Romantic, que nós víamos todos os dias na baía bordejar, fazendo reluzir ao sol os seus cobres polidos e o seu esbel­to costado branco. Lorde Grenley ligara-se muito com o conde. Era também o Intimo de Rytmel.

Cármen tinha-se encontrado pouco com a condessa, a não ser no teatro, onde a crivava de olhares impertinentes, em plena e al­tiva indiferença da condessa. Cármen, irritada, não vivendo nas relações de ladies, não a encontrando, como nos sete metros do tombadilho do paquete, sob a acção dos seus largos gestos e das suas ásperas ironias, desforrava-se à mesa de Clarence-Hotel, en­volvendo indirectamente Rytmel em toda a sorte de alusões e de palavras cáusticas. A sua última táctica era instigar sempre Mr. Perny contra o oficial, arremessá-lo contra todas as ideias, todas as opiniões de Rytmel; não sei se com a esperança perversa de um duelo, se apenas pelo gosto de o ver contrariado...

Um dia falava-se da Índia. Rytmel dizia a transformação fe­cunda que a Inglaterra lhe tinha feito. Uma grande risada inter­rompeu-o. Era Perny.

– Ri-se? – disse Rytmel, levemente pálido.

– Rio-me? Estalo de riso, tenho apoplexias de riso. Que trans­formação fecunda fez a Inglaterra à Índia? A transformação da poesia, da imaginação, do sol, numa coisa chata, trivial e cheia de carvão. Eu estive na Índia, meus senhores. Sabem o que fizeram os transformadores ingleses? A tradução da Índia, poema misterioso, na prosa mercantil do Morning Post Na sombra dos pagodes põem fardos de pimenta; tratam a grande raça índia, mãe do ideal, como cães irlandeses; fazem navegar no divino Ganges paquetes a três xelins por cabeça; fazem beber às bayaderas, pale ale, e en­sinam-lhes o jogo do cricket; abrem squares a gás na floresta sa­grada; e, sobre tudo isto, meus senhores, destronam antigos reis, misteriosos, e quase de marfim, e substituem-nos por sujeitos de suíças, crivados de dívidas, rubros de porter, que quando não vão ser forçados em Botany-Bay, vão ser governadores da Índia! E quem faz tudo isto? Uma ilha feita metade de gelo e metade de ros-­beef habitada por piratas de colarinhos altos, odres de cerveja!

Captain Rytmel ergueu-se risonho, aproximou-se de mim, e disse:

– Peço-lhe que no fim do jantar pergunte àquele engraçado doido o seu lugar, a sua hora e as suas armas.

E foi sentar-se serenamente. Eu, à sobremesa, afastei-me com Perny, e transmiti-lhe as palavras do meu amigo.

Perny riu, disse que estimava os Ingleses, que apreciava os seus serviços na Índia, que tinha sido instigado por Cármen a con­trariar Rytmel, que o achava um adorável gentleman, que pedia das suas palavras as mais humildes desculpas, que o seu lugar era por toda a parte, a sua hora sempre, as suas armas quaisquer...

– Mas, dadas essas explicações – disse eu –, nada temos que ver com as armas...

– Ah! perdão! – disse o francês – Há ainda uma pequena coi­sa: é que eu acho que o penteado do Captain Rytmel é profunda­mente ofensivo do meu carácter e da dignidade da França. Isto é que exige reparação.

Nomearam-se padrinhos nessa noite. Combinou-se que o due­lo não fosse em Malta: Rytmel era oficial, e os duelos nas praças de armas têm as mais severas penalidades. Era difícil, porém, estan­do numa ilha inglesa, não se baterem em território inglês. Resolveu-se então que o duelo fosse no alto mar, a um tiro de canhão da costa inglesa. Lorde Grenley emprestou o seu iate e partimos de madrugada com um vento fresco e um sol alegre. As coisas foram rápidas. Pusemo-nos à capa a 5 milhas de Malta, arriámos o pavilhão inglês, a marinhagem subiu às vergas, e como havia igualda­de de nível, um dos adversários foi colocado à popa e outro à proa. O sol dava-nos de estibordo. Eram 7 horas da manhã, pequenas nuvens brancas esbatiam-se no ar. O duelo era ao primeiro tiro, havendo ferimento grave. Lorde Grenly deu o sinal, os dois adver­sários fizeram fogo. Perny deixou cair a pistola, e abateu-se sobre os joelhos. Estava gravemente ferido com a clavícula partida. Foi deitado numa cabina preparada. Levantou-se o pavilhão inglês e navegámos para Malta. Vinha caindo a tarde.

Eu dirigi-me logo aos quartos de D. Nicazio. Cármen estava só.

– Sabe o que fez? – disse-lhe eu. – Perny está ferido.

– Isso cura-se, eu mesma o curarei, agora o que é sério, é o que se está tramando aqui dentro deste hotel... Eu não sei bem o que é, desconfio apenas.. Diga ao conde que vigie a condessa!

Eu encolhi os ombros, sorri, dirigi-me ao quarto da condessa: estava o conde, Rytmel e Lorde Grenley. O ferimento de Perny fo­ra declarado sem perigo, o capitão estava tranquilo.

Conversava-se alegremente. Combinava-se uma visita à ilha de Gozzo, a oito quilómetros de Malta. Grenley tinha proposto a ex­cursão, e oferecia o seu iate. O conde esquivava-se, dizendo que o mar o incomodava, no estado nervoso em que estava.

– Menino, é aquela maldita Rize! –veio-me ele dizer em voz baixa. – Tenho-lhe para amanhã prometido um passeio a Ben­gama.

– Mas, então?

– Acompanha tu a condessa. Vai Grenley e Rytmel. Faz-me isto. Bem vês! Mademoiselle Rize é exigente, mas pobrezinha, de­la, tem o sangue maltês!

Mais tarde, quando eu atravessava para o meu quarto, um vul­to veio a mim no corredor e tomou-me pela mão.

– Escute – disse-me uma voz subtil como um sopro.

Era Cármen.

– Se é um homem de honra, cautela amanhã com o passeio a Gozzo.

E desapareceu.

 

No outro dia às seis da manhã fui a casa de Rytmel. A condessa havia estado durante a noite sob o domínio de uma extrema agita­ção nervosa, mas não queria renunciar ao passeio de Gozzo. Encon­trei Lorde Grenley com Rytmel, tomando chá.

Pareceu-me pela fadiga das suas fisionomias, que se não tinham deitado: Lorde Grenley decerto que não, porque estava de casaca, como na véspera, e tinha ainda na bontonnière um jasmim­-do-cabo, murcho e amarelado.

– Bonita madrugada! – disse Rytmel.

Tinham aberto a janela, o ar fresco entrava; nas árvores do jar­dim cantavam os pássaros.

– Adorável! – disse eu. – A condessa esteve toda a noite doente, mas não se transtorna o passeio.. Outra coisa: tem um re­vólver, Rytmel?

– Para quê?

– Disseram-me que era muito curioso atirar aos pássaros que se escondem nas cavernas, em Gozzo. Há um eco excêntrico. Pre­cisamos de uma arma.

Rytmel deu-me um pequeno revólver marchetado.

– Leve-o: eu tenho as algibeiras cheias da álbuns e de cane­tas para tirar desenhos... Ah! Sabe que este Grenley não vai?

– Porquê? Como assim, Milorde?

– Um jantar oficial com o governador – disse Lorde Gren­ley –; é horrível. Tenho uma pena imensa...

Às sete horas fomos buscar a condessa. O marido acompanhou­-nos até o cais Marsa-Muscheto.

Notei ao entrar no iate que a equipagem estava aumentada e havia um piloto árabe.

Largámos com um vento fresco, às oito horas da manhã; as gaivotas voavam em roda das velas, as casas brancas de La Vale­ta tinham uma cor rosada, ouviam-se as músicas militares, o céu estava de uma pureza encantadora.

A condessa, um pouco excitada, olhava com uma alegria ávida, para o vasto mar azul, livre, infinito, coberto de luz.

– O que são as mulheres! – pensava eu. – Esta, tão altiva e tão discreta, está encantada por se ver só, com rapazes, num iate, no alto mar. É para ela quase uma aventura!

Eu, confesso, estava embaraçado. A minha situação era um pouco pedante. Representar eu ali o marido, a família, o dever, diante de duas criaturas moças, belas, namoradas, e ser eu, aos vinte e quatro anos, ardente e apaixonado, o encarregado de fazer a polícia daquele romance simpático! À la grace de Dieu! O mar é largo, o céu profundo, a honra existe, daqui a duas horas estamos em Gozzo, passeámos, rimos, jantámos, e ao anoitecer, quando Deus espalhara seu rebanho de estrelas, voltaremos na viração e na fosforescência, calados, ouvindo o piloto árabe cantar as doces melopeias da Síria, ao ruído lânguido da maresia...

Rytmel tinha descido a dar as ordens para o almoço, A condes­sa ficara de pé, à proa, com um vestido curto de xadrez, botinas al­tas, envolta numa manta escocesa, de largas pregas. Nunca eu a vira tão linda.

Costeávamos Malta com vento oeste.

Aproximámo-nos da ilha de Cumino. Rytmel veio-nos dizer que deveríamos almoçar, e que ao fim de meia hora desembarcá­vamos em Gozzo, na Calle Maggiara; iríamos ver as curiosidades da ilha, tomaríamos a embarcar para tornear Gozzo, e ver as terrí­veis cavernas, onde o mar se abisma e se perde, e ao anoitecer to­caríamos o cais de La Valeta.

O almoço foi muito alegre. Havia champanhe, um rena ado­rável, um guisado árabe e um piano na câmara. Captain Rytmel, cujo aspecto me parecia ter uma preocupação inexplicável, fez ao piano depois do almoço intermináveis improvisações. Caminháva­mos sempre. Casualmente, tirei o relógio, e tive um sobressalto! Havia duas horas e meia que tínhamos descido! Ora quando o almoço começara, faltava-nos meia hora para desembarcar em Maggiara! Porque seguíamos então? Subi rapidamente à tolda. O piloto árabe estava ao leme. Não se via quase a terra; íamos no mar alto, navegando com uma extraordinária velocidade sob o vento.

– Onde está Gozzo? – gritei ao árabe em inglês, depois em francês, depois em italiano.

O árabe nem sequer se dignou olhar-me. Neste momento Rytmel e a condessa subiam.

– Onde está Gozzo? – perguntei eu a Rytmel.

– Há talvez uma bruma – respondeu ele vagamente e voltan­do o rosto.

O horizonte, porém, estava limpo, puro, sem mistério, a perder de vista. Ao longe via-se uma sombra indefinida que denunciava 1 a terra; e nós afastávamo-nos dela!

Corri à bússola. Navegávamos para oeste.

– Navegamos para oeste, Captain Rytmel! Afastamo-nos de Malta! Que é isto? Para onde vamos?

Rytmel olhou longamente a condessa, depois a mim e disse:

– Vamos para Alexandria.

Num relance compreendi tudo. Rytmel fugia com a condessa!...

Eu fitei Rytmel, e disse-lhe tremendo todo:

– Isso é uma infâmia!

Ele empalideceu terrivelmente: mas a condessa, interpondo­

– se, com uma voz vibrante:

– Não! Sou eu! Sou eu que vou para Alexandria.

– Nesse caso sou eu o infame, prima.

Houve um silêncio. Os olhos da condessa estavam húmidos. Correu para mim, tomou-me uma das mãos, murmurou entre so­luços:

– Que quer? Ninguém tem culpa. Amo este homem, fujo com ele.

Rytmel tomara-me a outra mão.

– Agora – dizia – é impossível voltar. É um passo dado, ir­reparável.

Eu estava sucumbido: aquela situação imprevista deixava-me sem raciocínio, sem voz, sem vontade.

Eu, amigo do conde!... Eu, cúmplice daquela fuga! Além disso, ali, no meio daqueles dois amantes encantadores, que me suplica­vam apertando-me as mãos, eu sentia-me ridículo – e isto au­mentava o meu desespero. A condessa, no entanto, continuava:

– Primo – disse ela – que importa? Estou desonrada, bem. sei. Mas que queria? Que eu ficasse ao lado de meu marido, aman­do este, numa mentira perpétua, vivendo alegremente instalada na infâmia? Essa situação nunca! É suja! Ao menos isto é franco.

Rompo com o mundo, sou uma aventureira, fico sendo uma mulher perdida, mas conservo-me para um só e sendo pura para ele.

– Captain Rytmel –disse eu –, então mande deitar uma lan­cha ao mar.

– Que quer fazer? – gritou a condessa.

– Eu? Ganhar a terra. Acha que também não é uma infâmia instalar-me neste navio?

– Está louco – disse Rytmel. – Há só um escaler a bordo. O vento cresce, o mar incha. O escaler não se aguentará dez minutos.

– Melhor! Um escaler ao mar! – gritei eu.

– Ninguém se mexa! – bradou Rytmel.

E voltando-se para a condessa:

– Mas diga-lhe que é a morte! Que cumplicidade tem ele? Foi forçado, foi levado. Não responde por nada.

– Um escaler ao mar! – gritava eu.

Mas, de repente, Rytmel tomando um machado correu ao bor­do de onde pendia o escaler, cortou as correias de suspensão; o bar­co caiu na água com um ruído surdo, ficou jogando sobre as ondas meio voltado, sobrenadando como um corpo morto.

Eu bati o pé, desesperado.

– Ah, que infâmia, Captain Rytmel! Que infâmia!

E por uma inspiração absurda, querendo desabafar, fazendo alguma coisa de violento, gritei para alguns marinheiros que esta­vam à proa:

– Há algum inglês aí que preze a sua bandeira?

Todos se voltaram admirados, mas sem compreender.

– Pois bem! – gritei eu. – Declaro que esta bandeira cobre uma torpeza, tem a cumplicidade da desonra, e que é sobre toda a face inglesa que eu cuspo, cuspindo no pavilhão inglês.

E, correndo à popa, cuspi, ou fiz o gesto de cuspir sobre a lar­ga bandeira inglesa. Um dos marujos então decerto compreendeu, porque teve um movimento de ameaça.

– Ninguém se mova! – gritou Rytmel. – Eu sou o ofendido, meu amigo – disse ele com a voz sufocada –, tem razão; desde que abandonei Malta, deixei de ser oficial inglês. Sou um aventureiro. Esta bandeira, com efeito, não tem que fazer aqui!

Adiantou-se, arriou o pavilhão de tope da popa.

E numa exaltação tão insensata como a minha, arremessou o pavilhão ao mar; as ondas envolveram-no, e por um estranho aca­so, no encontro das águas, a bandeira desdobrou-se, e ficou esten­dida sem movimento, serena, imóvel, à superfície do mar, até que se afundou.

Rytmel, então, por um impulso romanesco e apaixonado, to­mou o lenço das mãos da condessa, amarrou-o à corda da bandei­ra, e içando-o rapidamente, gritou:

– De ora em diante o nosso pavilhão é este!

Eu achava-me no meio de todas aquelas coisas violentas, como entre as incoerências de um sonho.

Num movimento que fiz, senti no bolso o revólver: não sei que desvairadas ideias de honra me alucinaram, tirei-o, engatilhei-o, brandi-o, gritei:

– Boa viagem!

– Jesus! – bradou a condessa.

 

Rytmel precipitou-se sobre mim e arrancou-me o revólver.

Eu murmurei simplesmente:

– Bem! Será no primeiro porto a que chegarmos.

A condessa então adiantou-se, lívida como a cal, e disse (nun­ca me esquecerá o som da sua voz):

– Rytmel, voltemos para Malta.

– Voltar para Malta! Voltar para Malta! Para quê, santo Deus?

Eu interpus-me, disse as coisas mais loucas:

– Rytmel, dê-me esse revólver, sejamos homens. Que as nos­sas acções tenham a altura dos nossos caracteres. Nada mais sim­ples. Nem a paixão pode retroceder, nem a honra condescender. A solução é a morte. Eu mato-te, fugi vós para bem longe...

Mas a condessa, que era a única que parecia ter ainda uma luz de razão dentro de si, repetiu, com a mesma firmeza, onde se sen­tia a dor oculta:

– Rytmel, voltemos para Malta.

Ele olhou-a um momento: a consciência da nossa odiosa situa­ção pareceu então invadi-lo, subjugá-lo; vergou os ombros, obede­ceu, foi dizer algumas palavras ao capitão do iate.

Daí a um instante corríamos sobre Malta.

Houve um grande silêncio, como o cansaço daquela luta da pai­xão. Rytmel passeava rapidamente pelo convés, e sob a serenida­de do seu rosto, sentia-se a tormenta que lhe ia dentro.

– Aqui está! – disse ele de repente, parando e cruzando os braços, com um estranho fogo nos olhos. – Acabou tudo! Voltamos:

para Malta. Que mais querem? Que nos resta agora? Dizer-nos adeus para sempre, para sempre! Íamos a Alexandria; estávamos. salvos, sós, novos, felizes! E agora? Felicidade, amor, paixão, es­perança, alegria, acabou tudo. Ah, pobre ingénuo! Falam-te na honra! Que honra a que me vai matar todos os dias, a que me arranca do meu paraíso, a que me toma o último desditoso! Honra!

Que me resta a mim? Uma bala na Índia. Morrer para ali, só, como uni cão.

A condessa não dizia nada, com os olhos perdidos no mar.

E Rytmel vindo para mim, tomando-me o braço, com um ges­to desesperado:

– Vês tu! Vês isto? Eu sofria tudo por ela: a desonra, a infâmia, o desprezo; abandonava o mundo, renegava a minha farda, queria a pobreza, o escárnio, tudo por ela. Diz-se a um homem – amo-te, vai-se fugir com ele, está-se num navio, e de repente, a meia hora da felicidade e do paraíso, quando já se não vê terra, vem um escrú­pulo, uma mágoa, uma saudade do marido talvez, uma lembrança de um baile, ou de uma flor que ficava bem – e adeus para sem­pre! E quer-se voltar; e tu, miserável, sofre, chora, arrepela-te, e morre para aí como um cão. Meu amigo, eu não tenho voz, nem força: previna o piloto: a senhora condessa tem pressa de chegar a terra!...

– William! William! – gritou a condessa, precipitando-se, tomando-lhe as mãos. – Mas tu não percebes nada? Em Malta, como em Alexandria, eu sou tua, só tua... tua diante de Deus, tua diante dos homens...

Neste momento ouviu-se a voz distante de um sino!

Eram os sinos de Malta. A terra ficava defronte.

A suavidade da hora era extrema; o ar estava inefavelmente límpido. Viam-se já as aldeias brancas, o altivo perfil de La Vale­ta, O Sol descia. Os seus últimos raios oblíquos faziam cintilar os miradouros. Distinguiam-se no cais os vendedores de flores. Duas gôndolas corriam para nós. Houve um grande ruído nas velas, as­sobios de manobras, o navio parou, e a âncora caiu na água! Tínha­mos chegado. Os sinos de Malta continuavam repicando.

 

Quando desembarcámos corri ao hotel. O conde ainda não tinha vindo do seu passeio a Bengama com Mademoiselle Rize. Rytmel foi encerrar-se em casa, num triste estado de exaltação e de paixão.

Cármen veio logo procurar-me ao meu quarto. Entrou rapida­mente, perguntou-me:

– Voltaram? Como foi?

– Sabia então alguma coisa? – interroguei admirado.

– Tudo. Por um acaso. Sabia que queriam fugir. Durante to. da a noite Rytmel andou fazendo preparativos. Era uma combina­ção de há três dias. Lorde Grenley sabia. E agora?

– Agora – disse eu –tudo terminou. A condessa naturalmen­te parte no primeiro paquete.

– Duvido. Mas se não partem, ha uma desgraça. É uma fata­lidade, bem o sei, mas que quer? Amo aquele homem, amo Rytmel. Demais é uma obrigação, salvou-me a vida. É, sobretudo, uma pai­xão estúpida que me rói, que me mata. E ainda me não mata tão depressa como eu queria. Faço tudo para me matar. Ponho-me a suar, levanto-me e vou apanhar o orvalho para o terraço. Para que vivo eu? Vivia desta paixão. Cresceu desde que o vi agora. E diga-me quem o não há-de adorar? Às vezes lembra-me matá-lo!...

Conversámos algum tempo. A pobre criatura tinha nos olhos um fulgor febril, na face uma palidez de mármore. Eu procurei calmá-la. Começava a simpatizar com ela...

A condessa não saiu do seu quarto dois dias. Eu contei ao conde que ela tivera em Gozzo um susto terrível, porque tínhamos esta­do em perigo, na visita às cavernas da costa, onde a navegação é cheia de desastres. Estive quase sempre, depois, com Rytmel. Len­tamente a esperança renascia no seu espírito. Acomodava-se, ain­da que com certas repugnâncias, a uma situação mais racional, ainda que menos pura. Era um convalescente da paixão. E, ao fim de cinco dias, senhor redactor (tanto a natureza humana é cheia de conciliações!), ao fim de cinco dias a condessa apareceu no teatro fresca, radiante, e ao lado da brancura dos seus ombros reluzia n­as dragonas de ouro de Captain Rytmel!

Entrámos então numa vida serena, sem romance e sem luta. Os corações tinham calmado, e falavam baixo. O conde passeava no campo com Mademoiselle Rize; Lorde Grenley fumava, cheio de tédio, o seu cachimbo de ópio; eu jogava as armas com os oficiais ingleses; D. Nicazio negociava; Rytmel tinha um ar feliz e misterio­so; a condessa recebia, guiava os seus póneis, e todas as noites, no teatro, fazia reluzir ao gás o louro esplendor dos seus cabelos e a palidez preciosa das suas pérolas. Santa paz!

O tempo estava adorável. Malta resplandecia, abafa reluzia ao sol, os jardins floresciam, os olhos das maltesas suspiravam. Era o tempo das flores da laranjeira. Só Cármen emagrecia e vivia re­tirada.

Mr. Perny entrava em convalescença; passava o tempo deita­do num sofá, de dia compondo uma ópera cómica, à noite jogando com alguns oficiais, e salpicando a gravidade britânica de calemburgos bonapartistas.

Uma ocasião, ao sair de casa dele, onde tinha perdido algumas dúzias de libras, recolhia eu a Clarence-Hotel, levemente irritado, e sentindo um prazer excêntrico em cantar o fado pela ruas de Mal­ta, a mil léguas do Bairro Alto. O pavilhão que nós habitávamos em Clarence-Hotel dava sobre um jardim todo escuro de árvores e de moitas de flores.

Ordinariamente o conde e eu entrávamos pelo jardim. Tínha­mos uma pequena chave que abria a portinhola verde, no muro, todo coberto de musgo e de copas de arbustos orientais. Nessa noite, ao abrir a porta, cantando em voz alta, senti sumir-se ra­pidamente na espessura das folhagens um vulto. O ar estava sere­no, acendi um fósforo, e àquela luz trémula, entrei na sombra, para descobrir o vulto, entre as ramagens. Mas a pessoa, vendo-se se­guida, e sentindo a impossibilidade de se esquivar rapidamente, retrocedeu, com uma naturalidade visivelmente artificial, e profe­riu o meu nome. Era Cármen.

– Que faz aqui? – disse eu.

– Mato-me. Não lhe disse que, sempre que suava de noite, me erguia e vinha apanhar o orvalho?

Mas ela estava completamente vestida de seda preta, e tinha até sobre os ombros uma larga capa escura, de forma árabe, com grande capuz!

– Ah! minha cara – disse eu –, mata-se, mas é de amores. A esta hora, com essa toilette, neste jardim, com este aroma de la­ranjeiras!... Que história me vem contar de orvalhos e de suor?...

– Digo-lhe a verdade. Imagina que eu não preferiria aqui nes­ta sombra encontrar alguém?...

– E D. Nicazio? Peça a D. Nicazio que lhe faça a corte, que lhe dê uma serenata, que suba por uma escada de corda, que a sedu­za neste jardim...

Enquanto eu falava, davam horas na Igreja de S. João, e Cár­men mostrava uma agitação impaciente. A todo o momento olha­va para a porta do jardim, torcendo freneticamente uma luva des­calçada.

Eu compreendi que ela esperava alguém. Alguém, isto é, el querido, el precioso, el saleroso, el niño de toda a legítima andalu­za. Afastei-me discretamente, como um confidente, e no momen­to que pisava a rua areada que levava ao pavilhão, senti a porta do jardim ranger com uma ternura plangente.

«É ele», pensei eu. «É o niño. Pobre Cármen! Bebe vinagre, apanha os orvalhos por causa de Rytmel, e mal chega a noite, não pode ser superior a vir receber debaixo das laranjeiras algum ca­beleireiro francês com voz de tenor, ou algum tenor maltês com bi­godes de cabeleireiro.»

Subi ao meu quarto, mas não tinha sono; a noite era suave e lânguida, mordia-me uma áspera curiosidade, e com a astúcia de um ladrão napolitano, desci as escadas, costeei o muro do jardim, debrucei-me, espreitei, e vi Cármen. estava só! Extrema surpresa!

– E el querido? – perguntei-lhe eu rindo.

Ela voltou-se em sobressalto e perguntou-me com a voz agi­tada:

– Qual querido?

– O que entrou agora?

Não entrou ninguém.

– Eu vi.

– Conheceu?

– Não, onde está?

– Abriu as asas, voou! – disse ela rindo-se e afastando-se em direcção aos seus quartos.

– Diabos! – pensei eu. – É uma segunda edição da Torre de Nesle. Recebe-os, parte-os aos bocadinhos e enterra-os na areia!

No entanto, tinha a curiosidade excitada. Alguém tinha en­trado misteriosamente, com uma chave falsa decerto, porque só o conde e eu tínhamos a chave daquela porta do jardim. Mas onde es­tava esse alguém? Teria entrado, e saído logo? Nesse caso não era uma entrevista de amor! Mas se não era um segredo de coração, para que era o mistério, a hora escura, o silêncio, a chave falsa?

Alguém teria ficado escondido no jardim? Corri-o todo, arbus­to por arbusto, jasmim por jasmim. Estava deserto.

Deitei-me preocupado com aquela aventura. No outro dia, ao almoço, um criado em voz alta declarou que se tinha achado no jar­dim um pequeno punhal e que o hóspede a quem ele pertencesse o reclamasse em baixo, no office. Era um punhal de forma curva como se usa no Indostão. Tinha sido encontrado numa moita de buxo, de tal sorte que não parecia perdido, mas voluntariamente arremessado. Ninguém reclamou o punhal.

Tudo isto me causava uma singular curiosidade.

– Diabo! – dizia eu comigo. – Estamos em terra italiana, apesar da polícia inglesa, e é provável que apesar da muita cerveja que habita Malta, ainda por aí haja alguma água tofana. Sejamos prudentes.

Na noite seguinte, pela uma hora, eu, sentado à minha secre­tária, escrevia para Portugal, quando senti no corredor passos rá­pidos, e a porta abriu-se violentamente.

Abafei um grito de tenor. De pé, à entrada do quarto, lívida, com os cabelos desmanchados, um penteador branco cheio de san­gue, estava a condessa.

– Que foi? – bradei.

Ela tinha caído num sofá, muda, com os olhos fixos, meio loucos, os dentes trémulos.

Eu borrifava-a de água, tomava-lhe as mãos, falava-lhe bai­xo, e perguntava-lhe, aterrado, dando-lhe os nomes mais doces para a serenar:

– Que foi, minha querida, que foi?

Via-lhe os vestidos cheios de sangue.

– Feriram-na?

Ela fez um gesto negativo.

– Então? Então? – disse eu.

A pobre senhora queria falar, erguia-se, sufocava, ansiava, parecia numa agonia.

De repente, atirou-se aos meus braços e desatou a chorar.

– Fale, diga... – insistia eu.

– Mataram-no – disse ela.

– Mataram quem?

– Rytmel!

– Como? Onde?

– No jardim... Vá!

 

Corri ao jardim. Os meus passos, instintivamente, apressa­ram-me para o lado da pequena porta verde aberta no muro.

Estava aberta. Ao lado, junto de uma moita de baunilhas, es­tendido no chão, levemente apoiado no cotovelo, vi Rytmel.

– Então? – gritei-lhe, abaixando-me ansiosamente para ele.

– Só ferido.

– Como? Onde?

Não respondeu, os olhos cerraram-se-lhe e desfaleceu sobre a relva.

Corri ao tanque, trouxe um lenço ensopado em água, molhei-

– lhe as faces e as mãos: a ferida era na parte superior do peito, do lado direito, por baixo da clavícula. Vi que não era mortal.

Eu estava numa extrema hesitação. Para onde levar aquele homem?

O mais racional era conduzi-lo a um quarto do hotel; mas isso era dar ao facto uma publicidade ruidosa, fazê-lo cair sob o domí­nio da polícia, arrastar até à acção dos tribunais ingleses o nome da condessa. Porque eu tinha compreendido tudo. Sabia agora, bem, quem na véspera entrara rapidamente pela porta verde com uma chave falsa. Sabia bem a quem pertencia o punhal índio acha­do nas moitas de buxo. Compreendia a comoção de Cármen, quan­do eu a surpreendera ali, no jardim, embuçada num burnous, es­perando. E compreendia, desgraçadamente, a que quarto se diri­giam os passos de Rytmel dentro do jardim de Clarence-Hotel.

Era, pois, necessário encobrir aquela aventura. E Rytmel, ape­sar dos obscurecimentos do desmaio e da dor, tinha-o pensado também, porque me disse com uma voz expirante:

– Escondam-me em qualquer parte!

Sai logo à rua. Passava um daqueles canos ligeiros, de um só cavalo, que percorrem, com extrema velocidade, e com imensa doçura, as mas inclinadas de La Valeta. O vetturino era italiano. Falei-lhe vagamente num duelo, dei-lhe um punhado de xelins, ameacei-o com os policemen, e pu-lo absolutamente ao serviço do meu segredo.

Colocámos Rytmel no cano; com mantas fizemos-lhe uma espécie de ninho, cómodo e mole, e o cavalo trotou, rapidamente, pela Rua de S. Marcos, para casa de Rytmel. Aí grande rumor entre os oficiais ingleses. Eu contei uma incoerente história de assalto ao florete, em que a minha arma, subitamente, se tinha desembolado. A história era inaceitável; mas era fácil compreender que havia por trás dela um segredo delicado, e isto era o bastante para a alti­va reserva de gentlemen.

Rytmel, aos primeiros curativos, serenou e adormeceu.

Tudo tinha sido feito em silêncio, despercebidamente. Fui tranquilizar a condessa. Eram três horas da noite. Havia tempo­ral, e eu sentia quebrar o mar nas rochas da baia. Tudo dormia em Clarence-Hotel.

– Agora nós! – disse eu. E dirigi-me ao quarto de Cármen.

Havia luz. Abri a porta, corri o reposteiro, entrei. A luz era frouxa, desmaiada. Ao princípio não distingui ninguém e ouvi apenas soluçar. Enfim sobre um sofá, deitada, enroscada, sepulta­da, vi Cármen, com a cabeça escondida, o penteado solto, coberta de sangue e abraçada a um crucifixo. Ao pé, sobre uma mesa, ha­via uma garrafa de conhaque e um pequeno frasco azul facetado. Quando sentiu os meus passos no tapete, Cármen levantou-se um pouco no sofá. Naquele momento a sua beleza era prodigiosa.

Tinha os cabelos soltos: os olhos reluziam como aço negro, e o penteador, aberto sobre o peito, deixava ver a beleza maravilhosa do seio.

Confesso que não foi a ideia da vingança e do castigo que me to­mou o espírito diante daquela mulher tão terrivelmente possuída da paixão. Lembraram-me as figuras trágicas da arte, Lady Mac­beth e Clitemnestra, e tanta beleza, tanto esplendor, fizeram-me subir ao cérebro um vapor de amores pagãos.

Ela tinha-se erguido e, com uma voz seca:

– Que quer?

Eu fiquei calado.

– Bem sei. Vem buscar-me. Fui eu que o matei. Está aí a po­lida, não? Estou pronta. É pôr um xaile.

– Ninguém o sabe – disse-lhe eu baixo, e, sem saber porquê, comovido.

– Que me importa? Não o oculto. Matei o meu amante. Fui eu. Ah! Pois quê? Nós outras damos a nossa vida, a nossa paixão, a nos­sa alma, entregamos todo o nosso ser, pomos nisto toda a nossa existência, a nossa honra, a nossa salvação na outra vida, e lá porque vem outra que tem os cabelos mais louros ou a cinta mais fina, adeus tu, para sempre! Olá, criatura! Desprezo-te, tu foste para mim o momento, o capricho, a futilidade. Ah! Sim? Então que morra. Que quer mais? Vá buscar os policemen.

Eu disse-lhe então, em voz baixa:

– Fui encontrá-lo banhado em sangue.

Ela olhou-me desvairadamente um momento, e de repente, arremessando-se sobre o sofá, abraçou-se ao crucifixo e com gran­des lágrimas, com um delírio de soluços:

– Ah, meu Deus, perdoai-me! Perdoai-me, Jesus! Per­doai-me! Fui eu que o matei! Estou doida decerto. Pobre Rytmel! Rytmel! Rytmel da minha alma! Não o torno a ver, não lhe torno a falar! Acabou-se para sempre!... Jesus, o que eu sinto na cabe­ça!... Em Calcutá adorou-me, aquele homem. Ajoelhava aos meus pés, eu queria morrer por ele. Diga-me, escute: enterraram-no? Está muito ferido? Eu não o feri no rosto? Não, isso não! Vá depres­sa. Vá buscar a polícia!... Mas, porque me não prendem? Ah, meu pobre Rytmel! Eu morro, eu mono, eu morro! Daqui a pouco come­çam a tocar os sinos!

Ergueu-se com gestos de louca, foi ao espelho, compôs o cabe­lo com ar desvairado, e de repente voltou a abraçar, apaixonada­mente, o crucifixo negro.

– Escute – disse-lhe eu. – Rytmel não morreu.

– Não morreu? – gritou ela.

De repente, arrojou-se aos meus braços, que a ampararam, to­mou-me a cabeça entre as mãos, e fitando-me com uma grande an­gústia.

– Diz-me: não morreu? Está salvo?

– Está – disse eu.

– Juras?

– Juro.

– Quero vê-lo, quero vê-lo já – gritou ela. – O meu xaile, o meu xaile! Procure-me aí o meu xaile. Aposto que não lhe fizeram bem o curativo... Positivamente não lho fizeram! Se não lhe acudo! Que diz ele? Chora? Pobrezinho! Adormeceu? Onde é a ferida? Maldita seja eu! Maldita seja eu!

Com uma exaltação delirante procurava abrir as gavetas, der­rubava os móveis, arremessava as roupas, falando, gesticulando, e às vezes cantando.

– Meu Deus, faz-se tarde! Que ando eu a procurar? Que ho­ras são? Ele falou no meu nome?

Veio tomar-me o braço:

– Vamos.

– Onde?

– Vê-lo. Quero vê-lo. Quero! Não me diga que não. Quero pedir-lhe perdão, amá-lo, servi-lo, ser a sua criada, a sua enfer­meira...

Parou, e, desprendendo-se do meu braço:

– E a outra? Não a quero ver lá! Ela está lá? Não quero que ela o trate. Mato-a, se a vejo. A outra, não, não, não! Não a deixe che­gar ao pé dele. Peço-lhe a si. Não, não a deixe chegar. Eu só, só eu basto.

Subitamente cerrou os olhos, estremeceu, deu um grande sus­piro, e caiu no chão imóvel.

Levantei-a, deitei-a no sofá, borrifei-a de água; e ela com uma voz expirante:

– Eu morro! Eu morro... Chame um padre. Não lhe tinha di­to... Envenenei-me.

– Envenenou-se? – gritei aterrado.

– Naquele frasco, ali!

 

O médico, apressadamente chamado, declarou que não havia perigo. Cármen tinha tomado o veneno num preparado fraco, e nu­ma porção diminuta. Podia, porém, recear-se que a sua extrema susceptibilidade nervosa, a exaltação do seu espírito, provocassem uma febre cerebral. Mas, ao despontar do dia, adormeceu, vencida por uma prostração absoluta, em que a vida só se fazia sentir pe­los ais soluçados que se lhe desprendiam do peito.

Fui então ver a condessa. Não se tinha deitado. Ficara em­brulhada num xaile, sentada aos pés da cama, numa atitude ab­sorta de dor e de inércia que me encheu de piedade. Era dia. Mas as janelas conservavam-se fechadas, e as luzes ardiam melancoli­camente. As jarras estavam cheias de flores.

Sobre uma pequena mesa havia um serviço de chocolate, de porcelana azul, para duas pessoas. O chocolate tinha arrefecido, as flores murchavam.

– Então? – disse ela quando me nu.

– Então! Ele está curado, e bom num mês. A condessa deve partir dentro de quinze dias.

– Ao menos quero dizer-lhe adeus... um momento, um instan­te que seja! Não me pode impedir isto: não me impeça, não?

– De modo algum, prima. Eu mesmo lhe facilito.

– E ela?

– Ela, minha prima? Entrei no quarto dela para a arrastar ao primeiro policeman que passasse. Sai jurando que em toda a parte aquela mulher me havia de achar ao seu lado para defender e, se ela o quisesse, para a amar.

– Tem talvez razão: é uma verdadeira mulher.

– É mais do que isso, minha prima... Se alguma vez a paixão se encarnou neste mundo num aspecto divino foi naquela mulher. É a deusa da paixão. De resto tem a grande qualidade: – a lógica.

Eu, na realidade, tomara por Cármen uma grande admiração! Eu, que na sua saúde, e na sua beleza feliz, nunca lhe dissera uma palavra galante, era agora, nas suas horas de dor e doença, o seu fiel cavalliere serviente. Vi-a convalescer sob os meus cuidados. D. Nicazio tinha ido para Sicília. Sustentei és primeiros passes que ela deu no seu quarto, extremamente magra, como olhar quebra­do, uma transparência mórbida na fisionomia, e a imaginação doente.

Começou logo a entregar-se alongas orações, a leituras piedo­sas. O seu intento era entrar num convento em Espanha, e ali, ma­tar o seu corpo na penitência e na dor. Passava agora os dias nas igrejas. Estava mudada nos seus hábitos e nas suas maneiras. A sua beleza mesmo tomava uma expressão ascética. Tinha-se ver­dadeiramente desligado do mundo. Às vezes olhava-me, e dizia de repente, lembrando o convento:

– É triste! Aos vinte e oito anos!

Mas a exaltação religiosa retomava-a, e então perdia-se em esperanças, ideias de uma redenção pela oração, pele jejum, pelo silêncio e pela contemplação. Naquele espírito visitado por todas as paixões, e sempre numa vibração exaltada, entrava por seu tur­no e sombrio catolicismo espanhol, e vende o lugar deserto das ou­tras ideias do mundo, acampava lá serenamente.

Um dia pediu-me para ir ver Rytmel antes de partir para Es­panha.

– É como irmã da caridade que o quero ver!

Levei-a a casa de Rytmel, uma noite. O quarto estava mal ilu­minado pela desmaiada luz de velas de estearina. A palidez de Ryt­mel era dolorosa sobre a brancura do seu travesseiro. Cármen en­trou, arremessou-se de joelhos ao pé da cama dele, tomou-lhe uma das mãos e ficou ali soluçando longo tempo. Rytmel chorava tam­bém.

Eu tinha-me encostado à parede, e sentia invadir-me uma tristeza, profunda e insondável come a noite. Um vizinho, cuja ja­nela abria para o estreito pátio, para onde dava também a janela de Rytmel, tocava nesse momento na sua rabeca, com uma melan­colia plangente, a valsa do Baile de Máscaras, que, sendo doce e te­nebrosa, desperta não sei que ideias de festa e de morte, de amor e de claustro.

Rytmel queria levantar Cármen, falar-lhe. Mas ela estava prostrada, com o resto escondido na beira de leito, soluçando; e apenas a espaços dizia:

– Perdoe-me, perdoe-me!

Rytmel, por fim, com uma ternura insistente, ergueu-a, to­mou-a nos braços, e disse-lhe as coisas mais elevadas e mais doces; e com uma meiguice e um encanto infinito beijou-a nos olhos.

A pobre criatura corou, eu senti renascerem-se as lágrimas. Querido e pobre Rytmel! como ele teve naquele momento a ternu­ra ideal, e o divino encanto do perdão!

Ela, com uma simplicidade, em que já se sentia a imensa força interior que lhe dava a fé, falou a Rytmel de Deus, do convento em que queria entrar, da ordem que preferia, com palavras naturais e tocantes, que nos enchiam de mágoa. Por fim beijou a mãe do seu  amante.

– Adeus – disse ela. – Para sempre! Rezarei por si.

E ia sair, devagar, sucumbida, quando de repente, à porta do quarto, parou, voltou-se, olhou-o longamente os olhos encheram-se-lhe de uma luz sombria e terrivelmente apaixonada; o peito arquejou-lhe; empalideceu, e com os braços abertos, és lábios cheios de beijos, num ímpeto da sua antiga natureza, correu para se atirar aos braços dele com o frenesi das velhas paixões. Mas quando tocou no leito, estacou, caiu de joelhos, e num grande silêncio e num grande recolhimento beijou-lhe castamente os dedos! Depois tomou-me o braço, e saímos.

Ao outro dia chamou as criadas, e repartiu por elas todos os seus vestidos, rendas e toilettes. Deu as suas jóias a um padre in­glês para as distribuir pelos pobres. Frascos, bijutarias, essências, tudo destruiu. Confessou-se, esteve todo o dia rezando na igreja de S. João e preparou-se para partir. Todos os que a conheciam choravam.

A noite, quando fazia a sua pequena mala, mandou-me chamar, fechou a porta do quarto e entregou-me o seu testamen­to, para eu o deixar depositado em Malta, de sorte que D. Nicazio o recebesse à sua volta da Sicília. Deixava-lhe tudo.

Depois foi silenciosamente ao espelho, tirou uma rede da cabe­ça e o seu imenso cabelo caiu, quase até ao chão, em grossos anéis, esplêndido, forte, imenso, e de uma poesia sensual.

Tomou uma tesoura, e febrilmente, a grandes golpes, abateu aquelas tranças admiráveis, que teriam sido uma glória pública no tempo da Grécia.

Eu estava absorto pela beleza, magoado como desastre. Pare­cia-me já aquilo o começo do claustro.

Cármen apanhou o cabelo caído, embrulhou-o num lenço, e, entregando-mo, disse:

– Guarde essa lembrança. É a verdadeira Cármen, a outra, que eu lhe deixo aí. Agora peço-lhe uma derradeira coisa. Prepa­re tudo e leve-me a Cádis. Amanhã... é possível?

– Amanhã, não; mas dentro de uma semana, juro-lhe, tere­mos visto do mar as montanhas de Valência.

Ela, no entanto, passava rapidamente as mãos pelos cabelos, dando-lhes uma feição masculina. Era encantadora assim. A sua beleza tomava uma expressão ingénua de um extraordinário mi­mo. Ela sorria ao espelho, eu olhava-a, e ia, entre as duas luzes, a sua imagem, como num leve vapor azulado e luminoso. Ela, lentamente, esquecida, tinha tomado o pente e compunha o jeito do cabelo. Eu, por trás dela, sorria. Lia, no enlevo do espelho, na surpresa de se achar linda com o cabelo cortado, sorria também. parecia-me ver-lhe as faces tomarem a cor da vida e o seio a on­dulação das paixões. Ia dizer-lhe alguma coisa doce, chamá-la ao mundo... De repente arremessou o pente, e, curvando a cabeça, foi silenciosamente ajoelhar diante de uma cruz grande, que havia junto do seu leito, e sobre a qual agonizava um Cristo com a cabeça pendente, a testa gotejante, os braços distendidos, o peito constelado de chagas!

 

Daí a doze dias, a condessa e o conde voltavam no paquete da Índia a Gibraltar. O conde partia triste: Mademoiselle Rise ficava, e o Chiado esperava-o! Demais, o estar só com a condessa emba­raçava-o; as melancolias dela, as suas lágrimas inexplicáveis, a sua palidez apaixonada, toda a incoerência do seu carácter, que aquele excelente libertino explicava pelo nervoso e pelo histeris­mo, davam-lhe uma certa fadiga enfastiada, e, como ele dizia, em­birrava com romantismos. A condessa, essa, partia resignada:

Rytmel, depois da sua convalescença, iria para a Itália, para aque­cer as suas forças ao sol de Nápoles, e mais tarde, em Paris, e de­pois em Lisboa, teriam alguns meses livres, para, como diziam os antigos poetas, os tecerem de ouro, seda e beijos.

Foi com saudade que os vi embarcar. Eu ali ficava para cum­prir uru dever melancólico: acompanhar a Cádis aquela infeliz Cármen, ainda há pouco de uma beleza tão radiante, e agora ven­cida pelas amargas penitências­.

Lorde Grenley, que ia para Cádis dentro de quatro dias, tinha-nos oferecido, a Cármen e a mim, o seu iate. Aceitei com alegria. Era um transporte cómodo e livre, e Lorde Grenley uma companhia simpática, porque me assustava a ideia de ver, durante uma longa viagem no mar, a debilidade de Cármen estiolar-se ao meu lado. Enfim, uma tarde partimos.

Era ao escurecer, o céu estava nublado, quase chuvoso. Cár­men ia profundamente doente. Magra, transparente, lívida, sem poder suster-se, sem dormir, alimentando-se quase só de chá, a sua vida parecia estar a todo o momento a passar os limites humanos. Não erguia os olhos dos seus livros de orações. Aquela exaltação a que faltava a terra procurava febrilmente todos os caminhos do Céu.

Foi com uma grande tristeza que vi Malta sumir-se nas bru­mas da noite. Nunca mais tornaria a ver aquela branca cidade. Não fora ali feliz. Mas amámos todos aqueles lugares em que por qualquer sentimento ou por qualquer ideia a nossa natureza pal­pitou fortemente. E ali tinham ficado lágrimas minhas.

Logo no primeiro dia de viagem, Cármen esteve expirante. Ha­via um forte balanço. Ornar era grosso, e nós receávamos mau tem­po quando nos avizinhássemos das correntes do golfo de Lião.

Cármen quase sempre queda estar na tolda, ao ar, ao sol, vendo o mar. Arranjava-se-lhe uma cama; e ali ficava, olhando, cismando, sofrendo, e conversando com o capelão de Lorde Gren­ley, velho cheio de unção, que tinha um encanto singular falando das coisas do Céu. Aquela cena era profundamente triste sobretu­do de tarde; o Sol caía, a imensa sombra começava a cobrir o mar; Cármen falava baixo; nós, em redor, escutávamo-la; ou calados, seguíamos ocorrer da maresia, olhávamos o fim da luz. Um marinheiro escocês vinha às vezes cantar as árias das suas montanhas, cantos de uma tristeza suave e larga como a vista de um lago.

Ao terceiro dia de viagem, Cármen, subitamente, teve um grande acesso de febre e quis confessar-se. O médico disse-nos que ela não chegada a ver as montanhas da Espanha. Que horas do­lorosas! Não imagina, senhor redactor, que intensidade têm, na vasta extensão das águas, as dores humanas! Junta-se-lhes o sentimento da imensidade, e não sei que terrível instinto do irre­parável.

A confissão de Cármen foi longa. Quando terminou quis fa­lar-me.

– Adeus – disse-me ela. – Vou morrer.

Disse-lhe que não, quis dar-lhe esperanças efémeras.

– Não, não – respondeu ela –, nada de enganos. Tenho co­ragem. Quem a não tem para ser feliz? Chame Lorde Grenley.

Começou então diante de nós a falar da sua vida. Disse-nos qual fora a sua mocidade, os desvarios do seu coração, a exigência das suas paixões, e falou-nos da sua ligação com Rytmel, com elevação, como de um sentimento quase legítimo. Não teve uma queixa, uma saudade, um desdém. As Últimas palavras da sua vi­da eram dignas. Depois tirou um rosário do seio.

– Veio de Jerusalém – disse-me – dê-lho a ela.

Eu tinha os olhos humedecidos. Cármen, entretanto,<empali­decia terrivelmente.

– Levem-me para cima, quero ver o mar, quero ver a luz.

Era uma manhã nebulosa e triste. O mar estava mais sereno. Colocámos Cármen cuidadosamente sobre almofadas e mantas, voltada para Malta. Lá tinha ficado a sua vida. Esteve muito tem­po calada, com as mãos cruzadas.

– Que terra é aquela? – perguntou mostrando, com a mão tré­mula, uma linha escura no horizonte.

– A África – respondeu Lorde Grenley.

Ela ficou olhando vagamente:

– Fui uma vez a Tânger – disse com uma voz lenta –, era no­va então! Era feliz! Estava um dia lindo... Era em Maio...

Calou-se. E voltando-se para mim:

– Faz agora meses que passámos nesta altura, lembra-se? E aquele punch a bordo do Ceilão? Quando eu cantei uma habanera! Eu cantava então... O que é ser alegre! Tudo acabou, nunca mais! nunca mais!

E como falando consigo mesmo:

– Tanta paixão, tanta inquietação! E aqui está: venho morrer só, no meio deste mar. Pobre de mim! E no fim, se eu em nova, em solteira, o tivesse encontrado, a ele... Eu pedia pouco então: um coração leal. Tive gostos simples sempre. As loucuras vieram depois... O marinheiro que canta as árias escocesas, onde está? Chamem-no. Não, não o chamem que me vai fazer chorar.

Nós escutávamo-la; a sua alma falava como um pássaro canta ao morrer. As nuvens desfaziam-se, o azul aclarava, ia aparecer o sol.

– Vejam isto – continuou ela. – Em nova diziam-me és bo­nita, amo-te! E agora que morro aqui, quem se lembra de mim? Os que me conheceram onde estão? Uns mortos, todos esquecidos. Es­tão agora alegres, amam outras, vão para os teatros. E eu estou aqui a morrer. E ele? Lembrar-se-á de mim? Também não. Choro, choro, quando penso que o não vejo, que não está aqui, que morro e que ele se não lembra de mim!

E soluçava, com a cabeça escondida no travesseiro.

– Rytmel é uma alma nobre. Estima-a, creia...

– Mas esquece-me! – dizia ela suspirando e limpando os olhos. – De resto, de mim ninguém se lembra. Eu não sou uma mulher de quem se seja enfermeiro. «Estás boa? Estás alegre? Amo-te». «Estás a morrer? Vai-te fazer enterrar para outro sítio.» É bem triste este mundo!

Lorde Grenley, com os olhos rasos de água, mordia convulsivamente o seu cachimbo.

– Guarde bem os meus cabelos, sim? – dizia-me ela. – Di­ziam que eram bonitos. Se eu por acaso não morresse, havíamos de ir todos a Sevilha. Que lindo que é Sevilha. A tarde, nas Delícias, todo o mundo traz um ramo de flores.

De repente abriu demasiadamente os olhos como diante de uma coisa pavorosa: levou as mãos à face, gritou:

– Meu padre, meu padre, tenho medo. Não é já o castigo, não? Se caio no Inferno, meu Deus!

– O Inferno é uma visão, minha pobre senhora! – dizia o ca­pelão. – Os castigos de Deus não são feitos com o fogo.

– Tem razão, tem razão. Sinto-me morrer, venham todos. Lembrem-se de mim, sim?

Alguns marinheiros tinham-se aproximado. O capelão ajoe­lhou: todos tiraram os barretes, rezavam baixo. Lorde Grenley fi­cara de pé, descoberto, imóvel. Grossas nuvens escuras corriam outra vez no céu. O vento começava a assobiar.

– Adeus – disse-me ela. – Dê-me a sua mão. Bem. Fui uma boa rapariga, por fim... Um pouco estroina, talvez... Lorde Gren­ley, obrigada. Que tristeza, ter morrido alguém no seu iate!... Que é aquilo, além, ao longe? É a terra? São nuvens. Ah! meu querido Rytmel! Ah! meu amor, ouve-me, onde estás tu?

Duas grandes, tristes lágrimas, correram-lhe na face teve ainda força para as enxugar. Depois, sorrindo:

– Olhem, não pensem em mim com tristeza. Somente, às ve­zes, quando estiverem juntos, e ele estiver também lembrem-se desta pobre rapariga que para aqui morreu no mar... E digam: po­bre Cármen! Aí está uma que sabia amar deveras!

E dizendo isto, estremeceu, falou desvairadamente em Malta, em Sevilha, em Rytmel, e, dando um gemido profundo, morreu.

O sino de bordo começou a tocar lentamente, Lorde Grenley turvou-se, beijou-lhe a testa, e cerrou-lhe os olhos. Eu chorava.

Então um velho marinheiro aproximou-se, e sobre aquele cor­po, que fora Cármen, estendeu a bandeira inglesa.

 

Imagine, senhor redactor, em que lamentável estado de espí­rito nós ficámos. Lorde Grenley encerrou-se no seu camarote, eu e o capelão ficámos velando junto do cadáver. A tarde descia. Uma névoa extensa cobria o mar. O rugido do vento era lúgubre. Todos estavam profundamente apie4ados. A velhos marinheiros, que tinham naufragado no mar da Índia e dobrado o Cabo, eu vi salta­rem as lágrimas...

– Pobre criança! – diziam eles.

Para aquelas rudes naturezas simples, essa mulher nova, vestida de branco, palidamente linda, era a miss, a virgem, a criança! um arranjou-lhe uma coroa de algas secas, e foi piedosamente pôr-lha sobre o peito. Era o ramo das flores do mar.

Eu pensei algum tempo em conduzir o corpo de Cármen até Espanha, mas o piloto observou-mo que teríamos ainda 4 ou 5 dias de viagem, e o corpo não podia esperar na sua pureza durante es­ta longa demora. Por isso resolvemos deitá-la ao mar, quando viesse a noite. Assim, ficámos, o capelão e eu, durante a tarde, jun­to do cadáver, lembrando as suas belezas e as suas desgraças.

A noite caiu; cobriu as águas. O capelão desceu. Fiquei só. Havia sobre o cadáver, pendente de uma corda, uma lâmpada. Descobri-lhe o rosto, afaguei-lhe os cabelos. A sua beleza tinha-se fixado numa imobilidade angélica como se a morte lhe tivesse restituído a virgindade. A curva adorável do seu seio aparecia em relevo na bandeira que a cobria; nunca tanta força tinha produzi­do tanta graça! Olhei-a durante muito tempo, enlevado na sua contemplação. As lágrimas caíam-lhe dos olhos.

– Pobre criatura! – dizia eu na solidão dos meus pensamen­tos. – Pobre criatura! Vais para a mais profunda das covas, para a sepultura errante das águas. Uma febre de amor consumiu-te na vida, uma tempestade eterna te agitará na morte! Condiz o túmulo com a existência! Como o mar, tu foste bela, orgulhosa e ruidosa. Como o mar, tu tiveste as tuas tormentas, as tuas calmarias ocul­tas, as tuas grutas, os teus monstros secretos, a tua elevação religiosa, a tua espuma imunda. Como sobre o mar, sobre o teu cérebro correram as doces ideias geniais e puras como velas de pes­cadores; as pesadas ambições modernas, rápidas e incisivas como rodas de paquetes; as brutais exigências do temperamento, estú­pidas e vitoriosas como monitores armados. Despedaçaste-te de encontro à fria reserva de um amor que se extingue, como ele se esmigalha contra a escura insensibilidade das rochas. Como ele tem o vento que é o seu tirano, tu tiveste a paixão. Vai, pobrezinha, repousar em paz, no fundo das algas verde-negras! Triste destino! Quem mais do que tu, sentiu, amou, estremeceu, corou, quis, ven­ceu? Quantas lágrimas causaste! Quantas loucas palpitações! Quantos desejos para ti voaram como bandós de pombas! Quantas vozes perdidas te chamaram! Quanta fé fizeste renegar! Quanta altivez fizeste sucumbir! E tanta vida, tanta acção, tanta vontade, um tão grande centro vital como tu foste, um grumete amarra-lhe duas balas aos pés e atira com ela ao mar! E aqui jaz o ruído do ven­to, e aqui jaz a espuma da onda!

«De que te serviu o ser, o que fizeste ao sangue, à vontade, aos nervos, ao pensamento, que trouxeste do seio da matéria? Que ideia deixaste, que memória, que piedade? Que foste tu mais do que um corpo belo, desejado e fotografado? Fizeste parte, durante a vida, daquelas insensíveis belezas naturais, que o homem usa e arremessa. Foste como uma camélia, ou como a pena de um pavão. Foste um adorno, não foste um carácter. Nunca tiveste um lugar definido na vida, como não terás um túmulo certo na morte! Adeus, pois, para sempre, oh doce efémera! O teu destino é a dispersão!

«Por isso aqui estás só! Os que te amaram onde estão? Onde es­tão os que tu amaste? Aqui estás só, vestida com o teu penteador branco, na tua manta de xadrez, sobre o convés de um navio, só, sempre nomeio de homens, como na vida! Não há uma flor aqui que se te deite em cima, nem uma renda em que se te envolva a face morta. Morres entre cordagens, nomeio de rudes marinheiros, que vêm agora da sua ração de aguardente. Nem um padre católico tens que te fale dos anjos, doces camaradas da tua mocidade. Nem um parente, sequer, te comporá a dobra do teu lençol! Não se can­tará nenhum responso em volta do teu caixão. Não farás cismar as noivas que te vissem passar no teu enterro. As mãos alcatroadas de velhos marinheiros te arremessarão ao mar!

«Pois bem, minha pobre amiga! Que importa? Estás na lógica do teu destino, que é a revolta. Viveste longe das estreitas conveniên­cias humanas, morres em plena liberdade da natureza.

«Não verás o teu leito cercado de parentes ávidos, de criados in­diferentes, de padres que te dêem os santos óleos bocejando, num quarto escuro e abafado, entre o cheiro dos remédios: morres dian­te do céu, aos embalos domar, ao cheiro da maresia, entre velhos marinheiros da Índia, que te choram, sob o sublime céu, na plena liberdade dos elementos!

«Não serás vestida com velhas sedas, não levarás na cabeça an­tigas coroas fúnebres, não te cobrirão com galões de ouro falso; irás com o teu penteador branco, como para uma alegria nupcial!

«Não te pregarão num caixão estreito, nem te apertarão como um fardo; terás o contacto das coisas vivas; as lágrimas do mar cor­rerão sobre os teus cabelos; poderás toucar-te de algas; os raios do Sol poderão ir procurar-te como antigos amantes dos teus olhos, e a tampa do teu esquife será o infinito azul.

«Não sentirás em volta de ti, no teu enterro, cantos em mau latim, o som das campainhas, a voz aguda dos meninos do com, os comentários estúpidos da multidão, as grosseiras enxadadas do coveiro. Serás lançada à tua cova do mar nomeio de um silêncio militar, levando por mortalha a bandeira inglesa, ao cantochão infi­nito dos ventos e das águas.

«Não ficarás para sempre apertada em cinco palmes de terra, sentindo a boca das raízes pastar o teu seio e a multidão dos ver­mes entrar no teu corpo como numa cidadela vencida. Não! a tua morte será uma perpétua viagem; viverás nas grutas transparen­tes da luz, guardarás os tesouros misteriosos, visitarás as cidades de coral que luzem no fundo domar, amarás o corpo encantado de algum louro príncipe, outrora pirata normando! Andarás disper­sa no elemento, sombra infinita, alma da água!

«Sobre o teu túmulo não virão sentar-se os burgueses, benzer-se os sacristãos, cacarejar as galinhas; sobre a tua azul sepultu­ra errará o vento, melancólico velho que visita os seus mortos.

«Não terás um epitáfio metrificado por um poeta elegíaco, e aprovado pela Câmara Municipal; serão os reflexos inefáveis das estrelas que se encruzarão para formar sobre a tua sepultura as le­tras do teu nome...»

Um marinheiro bateu-me no ombro:

– São 11 horas – disse ele.

Ergui-me em sobressalto, e pensando nas vês quimeras que se

tinham estado formando no meu cérebro, naquele triste cismar, disse comigo:

– Pobre de mim! Tinham-me esquecido os tubarões.

Eram 11 da noite. Não havia estrelas. Todos estavam reunidos na tolda. Tinham-se posto lanternas nas cordagens, e acendido ar­chotes.

Dois marinheiros tomaram o cadáver nos braços. O padre abençoou-o. Ligou-se-lhe ao corpo com uma corda a bandeira in­glesa. Os grumetes trouxeram duas balas. Uma foi amarrada aos pés, outra ao pescoço. As botinhas dela, de seda preta, apareciam fora da orla do vestido e da bandeira que a envolvia. As luzes dos archotes faziam tremer sobre o mar vagas claridades. No silêncio sentia-se o estalar da resina.

O sino de bordo começou a tocar. Os marinheiros elevaram o corpo à altura próxima da amurada. Então ergueu-se um canto grave, melancólico, de uma infinita tristeza. O padre rezava com as mãos impostas sobre o cadáver. E afastando-se, disse:

– In aeternum sit!

Todos responderam:

– Amen!

O vento gemia. Lorde Grenley adiantou-se e disse em voz alta:

– Neste dia, a bordo do Romantic, navio inglês, morreu Cár­men Puebla, de nação espanhola, e para eterna protecção do seu corpo, como sendo sepultada em território britânico, foi amorta­lhada na bandeira inglesa. In pace.

– Amen! – responderam os marinheiros.

– Em nome do Padre – disse o capelão –, do Filho e do Espírito, santa seja a sepultura a que ela é deitada, e que fique como em terra sagrada nestas águas do mar!

– Amen! – murmuraram os marinheiros.

– Ao mar! – disse Lorde Grenley com voz forte.

Os dois marinheiros suspenderam o cadáver sobre o mar; to­dos se aproximaram, fazendo círculo com os archotes; o cadáver, arremessado, mergulhou com um som lúgubre, desapareceu, e a espuma das vagas correu-lhe por cima.

Os archotes foram apagados num triste silêncio. O navio afas­tava-se. Eu, encostado à amurada, tinha os olhos fitos no ponto vago onde o corpo desaparecera. Ela ali ficava morta. Encheu-me o peito uma longa saudade. Lembrava-me dela, dançando no convés do Ceilão, rindo à mesa do Clarence-Hotel. Tinha tudo acabado. Nunca mais! nunca mais! Ali ficava com uma bala aos pés!

O vento refrescou.

– Vento de este! – disse o marinheiro de quarto.

«Vem de Malta...», pensei eu.

E as minhas últimas lágrimas caíram sobre o mar...

 

Cheguei ao fim das minhas confidências.

Quando desembarquei em Lisboa a condessa tinha ido para Sintra. Via-a, ao fim desse Verão, em Cascais. Ela mostrava-se alegre, o que era talvez uma maneira de estar triste! Cascais esta­va imbecilmente jovial: batia-se o fado! No Inverno seguinte a con­dessa encontrou-se, em Paris e em Londres, com Rytmel. Voltou dessa viagem mais triste e mais pálida. Lentamente, pareceu-me que a confiança do seu coração se afastava de mim. Apartei-me, numa reserva discreta. Nunca mais nos nossos diálogos, todos ex­teriores e efémeros, se aludiu à viagem de Malta.

Eu, no entanto, continuava recebendo de Rytmel as cartas mais expansivas e mais íntimas. A nossa amizade, que a exaltação e o acaso das paixões formara, afirmava-se agora numa comunhão serena de sentimentos e de ideias. Numa dessas cartas Rytinel fa­lava-me de miss Shorn, uma rapariga irlandesa...

«É uma neta dos bardos, uma sombra ossiânica, a alma da verde Erin!», dizia-me ele.

No começo desta Primavera recebi uma carta de Rytmel que continha estas palavras:

«Parto para aí: um quarto livre e solitário em tua casa; bons charutos; uma casa afastada e livre num bairro pobre; um coupé es­curo com bons estores; reserva e amizade. – Frater, Rytmel.»

Executei escrupulosamente as suas determinações.

Há sessenta dias, talvez, Rytmel chegou, no paquete de Sou­thampton. Pareceu-me mais triste mais concentrado.

Havia certamente um segredo, uma preocupação, um cuidado qualquer, que habitava no seu peito. Esperei que ele se abrisse ex­pansivamente comigo nalguma das longas horas íntimas, em que, no jardim da minha casa, falávamos na essência dos sentimentos. Nunca dos lábios dele saiu uma confidência: apenas duas ou três vezes o nome de miss Shorn, que, segundo ele me disse, era uma relação recente de sua irmã, apareceu vagamente no indefinido da conversação.

A sua vida, em minha casa, era de um extremo recolhimento.

Parecia mais um refugiado político do que um amante amado. Não tinha relações nem convivências. Às vezes de manhã saía num coupé cuidadosamente fechado, que perpetuamente estacionava à porta.

De tarde, às oito horas, saía também, e só o via no outro dia ao almoço, em que ele aparecia sempre levemente contrariado pelas cartas que lhe vinham de Londres e de Paris. Notei por esse tem­po umas certas tendências místicas no seu espírito, de ordinário tão positivo e tão rectilíneo. Surpreendi-o mesmo uma vez lendo a Imitação.

Num carácter lógico e frio como o de Rytmel, aquele estado de espírito era decerto o sintoma de uma grave perturbação do cora­ção.

Falava às vezes de Cármen, sempre com saudade. Gostava de conversar das coisas de religião e das legendas do Céu. Falava na Trapo, no sossego imortal dos claustros, e nas quimeras da vida. Eus estranhava-o.

Desde que ele viera para Lisboa eu não voltara a casa da con­dessa por um certo sentimento altivo de reserva e de orgulho. Nes­se tempo estava ela absolutamente livre. O conde achava-se em Bruxelas, onde Mademoiselle Rize o tinha cativo dos nervosos e ágeis bicos dos seus pés, que então escreviam pequenos poemas no tablado do Théâtre diz Prince Royal.

Um dia, inesperadamente, recebi da condessa um bilhete que dizia:

«Meu primo, se um gelado tomado num terraço com uma velha amiga não sobreexcita excessivamente os seus nervos, espero-o esta tarde em... (era uma quinta ao pé de Lisboa que ela habitava algumas vezes no Verão). Traga o seu amigo Rytmel»

Mostrei o bilhete a Rytmel, e pelas seis horas da tarde rodáva­mos na estrada de... num coupé com os estores corridos.

A condessa tinha acabado de jantar. Passeámos nas sombrias ruas da quinta, apanhámos flores, e voltaram aquelas boas horas íntimas de outrora, cheias de abandono e de espírito. A condessa estava radiante.

As onze horas da noite fomos tomar chá para o terraço. Havia um admirável luar. O terraço tem na sua base um grande tanque, cheio de plantas da água, de largas folhas, e de nenúfares, e onde poderia navegar um escaler. A água escorre ali com um murmúrio doce. A hora era adorável. As redondas massas de verdura do jar­dim, os arvoredos, apareciam como grandes sombras pesadas e cheias de mistério. Ao longe os campos e os prados esbatiam-se num vapor docemente luminoso e pálido. Havia um silêncio sus­penso. As coisas pareciam contemplar e sonhar.

Sobre uma mesa no terraço estava um bule do Japão e três pe­queninas chávenas de Sevres, uma das quais, de um gosto original e feliz, era a da condessa. Tínhamos tomado chá, e eu notava a excêntrica forma, o delicado desenho, a pura perfeição daquela maravilhosa e pequena chávena, que a condessa chamava a sua taça.

– Orei Artur só podia beber pelo seu copo de estanho... – dis­se Rytmel, sorrindo.

E eu só posso tomar chá por esta taça – disse a condessa. – Não sei porquê, representa para mim o sossego, a felicidade. Quan­do estou triste e bebo por ela parece-me que se dissipa a nuvem. Uma flor que eu queira conservar ponho-a dentro dessa chávena, e a flor não murcha. Demais o chá bebido por ela tem um gosto es­pecial: ora veja, Captain Rytmel, beba.

Toda aquela glorificação da chávena tinha tido por fim o poder Rytmel, na minha presença, sem isso ser menos discreto, beber pe­la chávena da condessa – encanto supersticioso e romântico, que pertence de grande antiguidade à tradição do amor!

Rytmel agradeceu, deitou uma gota de chá na pequenina chá­vena dourada. Eu, no entanto, olhava a condessa.

Estava originalmente linda. Tinha o vestido levemente decota­do sobre o seio. E o luar dava-lhe aquele nimbo poético que todas as claridades misteriosas, ou venham de astros mortos ou de luzes desmaiadas, dão às figuras louras.

Havia um piano no terraço; a condessa sentou-se, e sob os seus dedos o teclado de marfim chorou um momento. O silêncio, o infini­to da luz, a atitude contemplativa das coisas, o murmuroso chorar da água nas bacias de mármore, tudo nos tinha insensivelmente lançado num estado de suave e vago romantismo...

De repente a condessa elevou a voz e cantou. Ema balada do Rei de Vale.

Alguém tinha traduzido aquela balada em rimas populares. E era assim que a condessa gostava de a dizer, em lugar de usar as palavras italianas com a sua banalidade de libretto.

 

Houve outrora um rei de Vale

A quem, em doce legado,

Deixou à amante ao morrer

Um copo d'ouro lavrado.

 

Eu ficara junto do piano, fumando. Rytmel, de pé, encostado à balaustrada, enlevado no penetrante encanto daquela canção, olhava a água do tanque, onde tremia a claridade da Lua, conser­vando a taça na mão.

Os dedos da condessa volteavam no teclado de marfim; e a sua voz continuava, triste como a própria balada:

 

Sempre o rei achava nele

Um sabor da antiga mágoa,

E se por ele bebia

Tinha os olhos rasos d'água.

 

– Não cante mais – disse Rytmel, de repente, voltando-se.

À luz da Lua eu vi-lhe os olhos húmidos como os do rei da can­ção, e na sua mão tremia a pequena chávena dourada.

Ela voltou para Rytmel um longo olhar triste, e a sua voz pros­seguiu, vibrando mais saudosa no silêncio:

 

Malta esplanada normanda

Batida ia onda

Reúne os seus irmãos d'armas

A uma távola redonda...

 

Parou com as mãos esquecidas sobre o teclado:

– Foi talvez como uma noite destas – disse ela. –Estamos em plena legenda. O terraço batido da água, a Lua, os velhos amigos reunidos, a lembrança da pobre amante, que se apaga na memó­ria dele, o pressentimento da morte... Que linda noite para o rei ati­rara sua taça ao mar!

E cantou os derradeiros versos da balada:

 

Foi-se com trémulos passos

Na amurada debruçar...

E com as suas mãos antigas

Atirou a taça ao mar!

 

Junto ao seu corpo real

Estão os pajens a velar

E a taça vai viajando

Por sobre as águas do mar...

 

De repente Rytmel deu um pequeno grito: descuido, movimen­to, ou irreprimível impulso de um coração que se revela, Rytmel deixara cair a pequena chávena ao tanque, entre as folhas dos ne­núfares.

A condessa ergueu-se, extremamente pálida, apertando com ambas as mãos o coração: e com os olhos marejados de lágrimas, disse para Rytmel:

– O rei de Tule ao menos esperou que ela morresse!

Ele desculpava-se banalmente, como se todo o mal fosse per­der-se aquela frágil preciosidade de Sevres. A condessa deu-me o braço um pouco trémula, e penetrámos na sala.

Daí a dias foi a catástrofe. Outros que a contem. Eu deponho aqui a minha pena, com a consciência de que ela foi sempre tão dig­na, quanto a minha intenção foi sincera.

 

AS REVELAÇÕES DE A. M. C.

Senhor Redactor. – Dirigindo-lhe estas linhas, submeto-me à sentença de um tribunal de honra constituído para julgar a ques­tão levantada perante o público pelas cartas do doutor *** estam­padas nessa folha. Obriguei-me a referir quanto se passou por mim como actor desse doloroso drama, e venho desempenhar-me deste encargo. Possam estas confidências, escritas com o mais consciencioso escrúpulo, conter a lição que existe sempre no fun­do de uma verdade! A existência íntima de cada um de nós é uma parte integrante da grande história do nosso tempo e da humani­dade. Não há coração que, desvendado nos seus actos, não ofereça uma referenda ou uma contestação aos princípios que regem o mundo moral. Quando o romance, que é hoje uma forma científi­ca apenas balbuciante, atingir o desenvolvimento que o espera co­mo expressão da verdade, os Balzacs e os Dickens reconstituirão sobre uma só paixão um carácter completo e com ela toda a psico­logia de uma época, assim como os Cuviers reconstituem já hoje um animal desconhecido por meio de um único dos seus ossos.

Sabem que sou natural de Viseu. Criei-me numa aldeia encra­vada entre dois montes da Beira; açoitado de quando em quando por meu pai quando lhe esgalhava alguma árvore mimosa do quin­teiro; abençoado por minha mãe como a esperança dos seus velhos anos; coberto de profecias de glória, como o pequeno Marcelo clã freguesia, pelo reitor, o qual algumas vezes depois de lhe ajudar à missa, aos dez anos de idade, me argumentava na sacristia as de­clinações latinas. Era escutado este prodígio por um auditório composto do sacristão e do tesoureiro, que com os chapéus debai­xo do braço, cocavam na cabeça e olhavam para mim arregalados e atónitos. A um recanto, minha mãe sorria, com os olhos banha­dos de ternura, do fundo da caverna formada em redor do seu ros­to pela coca de uma ampla e poderosa mantilha de pano preto.

Fiz depois os estudos preparatórios no liceu da cidade, e vim fi­nalmente matricular-me em Lisboa na escola de medicina.

Vivo pobre, humilde e obscuramente, tenho a minha existência adstrita a uma pequena mesada, à convivência de alguns compa­nheiros de estudo e ao trato de duas senhoras velhas e pobres, ir­mãs de um capitão reformado, antigo aboletado de meu pai, em cu­ja casa de hóspedes eu tenho por módico preço a minha moradia na capital.

A única luz que atravessava a sombra da minha vida de dester­ro, de desconsolo e de trabalho, era a lembrança de Teresinha...

Teresinha! A doce, a meiga, a querida companheira, à qual eu consagro principalmente estas páginas, que são o capítulo único da minha vida que ela não conhece, a confissão sincera, a história completa do único erro de que posso acusar-me perante a sua ino­cência, a sua bondade e o seu amor!

Teresinha! Adorada flor escondida entre as estevas dos nossos montes, que ninguém conhece, que ninguém viu, de quem nin­guém se ocupa, e que no entanto inundas inefavelmente a minha mocidade e a minha vida com o sagrado perfume de um amor cas­to, puro, imperturbável e calmo como a luz das estrelas.

Se tu as entenderás, minha inocente amiga, estas palavras!

Se me perdoarás, tu, a enfermidade passageira e misteriosa, cuja história eu ponho confiadamente nas tuas mãos, pedindo-te, não o bálsamo da cura para uma chaga que está fechada para sem­pre, mas o sorriso da benevolência e do perdão para a vaga e sobres­saltada melancolia do convalescente ajoelhado aos teus pés!

Como quer que tenha de ser, minha noiva, eu entendo cumprir perante a minha consciência um dever sagrado contando-te, sem omissões e sem reticências, tudo, absolutamente tudo, quanto se passou por mim. A verdade é que te amo! que te amo, e que te amei sempre! Outra imagem, incoercível, vaporosa, vaga, perpassou por mim, mas esvaiu-se como a sombra de um sonho doentio, va­rada sempre pelo teu olhar cândido que através dela se fixava e se embebia constantemente no meu.

Uma noite, há dois meses, recolhendo-me por volta das nove horas a minha casa, que fica situada em um dos bairros excêntri­cos de Lisboa, encontrei parada uma carruagem de praça, cujo co­cheiro altercava grosseiramente com uma senhora, que estava em pé junto do trem, vestida de preto e coberta com um grande véu de renda. Esta senhora trocou algumas palavras com outra mais idosa que a acompanhava e disse ao cocheiro com uma voz singularmente fina, trémula, delicada, musical, como nenhuma até então ouvida por mim:

– Onde quer que lhe mande pagar?... Não trago mais dinheiro.

– Importa-me pouco isso – respondeu o cocheiro. – Quem não tem dinheiro anda a pé. Já lhe disse à senhora quanto é que me deve pela tabela. Se não paga o resto, chamo um polícia. Se não traz dinheiro, dê-me um penhor.

Ela então bateu impacientemente com o pé no chão, ergueu a parte do véu que lhe cobria o rosto, e principiou a descalçar convul­sivamente uma luva. Supus que iria tirar um anel. O cocheiro apressou-se a passar as guias pela grade da almofada e apeou. Ti­nha-me, no entanto, aproximado, e no momento em que ele dava o primeiro passo, impelido por uma forte comoção nervosa, esten­di-lhe com as costas da mão uma bofetada que o fez cambalear e cair de encontro à parelha. E dando-lhe em seguida uma libra, que trazia no bolso:

– Aí tem pela bofetada; contente-se como que lhe deram pe­la corrida.

Diria que alguém por trás de mim sugerira estas palavras românticas, a tal ponto ainda hoje pasmo de as ter eu mesmo inventado como solução de efeito oratório, para semelhante con­tingência!

O cocheiro levantou a moeda, examinou-a à luz da lanterna, subiu outra vez à almofada, e partiu dizendo-me:

– Boa noite, meu amo!

Eu atarantado, confuso, tirei maquinalmente o chapéu, e titu­beei algumas palavras vagas, não sabendo como despedir-me da pessoa que tinha ao meu lado.

Era a primeira vez que me achava perto de uma dessas formo­sas senhoras da sociedade, tenra, fina, delicada, como nunca vi ninguém! Tinha uma carnação láctea e aveludada, como a pétala de uma camélia – prodígio de mimo só comparável ao de uma outra mulher que não conheço, e que uma noite passou por mim no salão de S. Carlos, encostada no braço de um homem e envolta em uma grande capa branca de listas cor-de-rosa.

Aqueles que as conhecem, que as vêem e lhes falam todos os dias, é possível que se não impressionem como aspecto destas cria­turas transcendentes. Para quem as encontra de perto pela pri­meira vez em sua vida não há coisa no mundo que mais perturbe. Homens habituados a arrostar com as mais violentas comoções, a olharem denodadamente para o perigo, para a desgraça ou para a glória, tremem diante destas simples coisas: o primeiro contacto de uma mulher elegante! Daí vem o velho prestigio magnético das rainhas sobre os pajens, das castelãs sobre os menestréis. É uma sensação única. O ser humano bestificado converte-se por momen­tos num vegetal que vê.

Eu ficara imóvel e mudo.

Ela correu-me de cima a baixo com um olhar rápido, e dizen­do-me obrigada com uma comoção trémula, estendeu-me de entre a nuvem negra das suas rendas a mão de que tinha descalçado a luva.

Entreguei a minha grossa mão a essa mão delicada, magnéti­ca, convulsa e fria, e senti percorrer-me todos os nervos um estre­mecimento eléctrico despedido do shake-hands que ela me deu de um só movimento sacudido, fazendo tinir os elos de uma grossa ca­deia que lhe servia de bracelete.

Obrigado a dizer alguma coisa, soltei instintivamente as pala­vras monstruosas de uma fórmula que se usa em Viseu, mas que estou bem certo nunca até esse dia haviam sido ouvidas por tal criatura, e que certamente lhe produziram o efeito do grito estrí­dulo de um animal selvagem, escutado pela primeira vez entre ma­tos desconhecidos.

Vergonha eterna para mim! Essas palavras, que eu desgraça­damente conservara no meu ouvido de provinciano e que a minha boca deixou bestialmente cair, foram estas:

– Para o que eu prestar, estou sempre às ordens.

E dizendo isto, tendo-o ouvido com horror a mim mesmo, vol­tei rapidamente costas, e afastei-me a passos largos. Ia vexado, envergonhado, corrido, como se houvesse proferido uma obsceni­dade sacrílega. Dava-me vontade de me meter pelas paredes ou de me sumir pela terra dentro! Não me atrevia a olhar para trás, mas parecia-me que ia envolto em gargalhadas fantásticas, que não ouvia. Figurava-se-me que tudo se ria de mim, os candeeiros, os cães noctívagos, as pedras da rua, os números das portas, os letrei­ros das esquinas, os aguadeiros que passavam uivando com os seus barris, e os caixeiros que pesavam arroz sobre o balcão ao fundo das tendas.

Entrei precipitadamente em casa, subi as escadas, fechei-me por dentro e pus-me a passear às escuras no meu quarto.

Nas trevas apareciam-me iluminadas por um clarão satânico essas duas mãos que pela primeira vez acabavam de se apertar na rua – a minha e a dela – uma trigueira, áspera e quente, a outra branca, nervosa e gelada. Depois entravam a reconstruir-se à minha vista os vultos completos das pessoas.

Ela, de uma palidez ebúrnea, com o perfil melancólico de uma madona a que tivessem levado dos braços o seu bambino, moven­do-se molemente entre rendas e cetim com uma ondulação de se­reia.

Eu, inteiriçado e embasbacado diante dela, não sabendo como segurar o chapéu e a bengala, na mais flagrante e minuciosa osten­tação dos meus defeitos e da minha pobreza incaracterizada e burguesa. Ao lado de quanto nela havia ideal, transcendente, etéreo, ia eu vendo, enormemente avultado e saliente, quanto o meu as­pecto oferecia mais baixo e mais vil:0 casaco comprado ao barato num algibebe; as botas de duas solas torpemente deformadas e or­ladas de lama; as calças com umas joelheiras que me dão às per­nas na posição vertical o desenho das de um homem que se está sentando; os punhos da camisa amarrotados; e a ponta do dedo má­ximo da mão direita suja de tinta de escrever!

Éramos verdadeiramente os antípodas um do outro, postos na mesma latitude pela estupidez do acaso, e separados logo para sempre por aquelas palavras terríveis que me zuniam nos ouvidos como os prenúncios de uma congestão:

«Para o que eu prestar, estou sempre às ordens!»

Não sei que estranha atracção amarrava o meu espírito à lembrança da mulher que eu acabava de ver! Não era indefinida simpatia, não era oculto desejo, não era um vago amor. Interessa­va-me detidamente, e o único movimento que encontrava no meu coração – sinceramente o confesso – era o do ódio. Ódio àquela mulher, ódio inexplicável, monstruoso, como aquele que imagino ser o de um enjeitado à sociedade em que nasceu!

A distinção aristocrática, a elegância da raça daquela gentil criatura aviltava-me, enfurecia-me, revolvia no meu interior esse fermento de rebelião demagógica que todo o plebeu traz sempre escondido, como uma arma proibida, no fundo da sua alma.

Aquela mulher tinha, certamente, um espírito menos culto do que o meu, uma razão menos firme, uma vontade menos forte, um destino menos amplo. Para compensar estas depressões assistia-lhe uma superioridade repugnante, inadmissível: a que procede da casta. Um berço de luxo, uma constituição delicada, um leito de penas, a infância resguardada na sombra, entre estofos, sobre ta­petes, ao som de um piano – isto basta, para que fique ridículo, mi­serável, desprezível ao pé dela um homem que se criou ao clarão do dia, à luz do Sol, tendo por tapetes a aspereza das montanhas, e por melodias o roncar das carvalheiras e o gemer dos pinhais!

E entre mim e ela será isto perpetuamente uma barreira.

Ela ficará sempre bela, dominativa, sedutora por natureza, instintivamente cativante, querida; amimada, estremecida, den­tro da sua zona de aromas, de veludos, de cristais e de luzes!

Eu, entre a minha estante de pinho adornada com um boneco de gesso e a minha cama de ferro coberta de chita, ficarei sempre tenebroso e inútil – desgraçado quando não quiser tomar-me tão ridículo, e irrisório, quando tiver a veleidade de não querer ser des­graçado!...

Acendi as duas torcidas do meu candeeiro de latão e tentei es­tudar. Impossível. As letras de um livro que tinha aberto diante de mim percorri-as com a vista pelo espaço de três ou quatro páginas, maquinalmente, sem compreender o sentido de uma só palavra. Deixei o livro e fiquei por algum tempo inerte, estúpido, neutro, com a vista fixa nas órbitas ocas de uma caveira que tinha sobre a mesa, e que se ria para mim como escancelado sarcasmo que trazem da cova os esqueletos desenterrados. Aborrecia-me a vida. Apaguei a luz, despi-me e deitei-me.

Tinham-me feito a cama nesse dia com dois desses lençóis de folhos engomados, com que minha mãe enriquecem liberalmente o meu baú de estudante. Estes lençóis tinham a aspereza do linho novo e o cheiro característico do bragal da província.

«Pobre mãe, coitada!» pensava eu, deitado e embebido nessa longínqua exalação olfáctica da casa paterna. «Coitada de ti, que na simplicidade dos teus juízos julgaste dotar-me com um luxo que faria comoção em Lisboa, orlando-me dois lençóis com esta enor­me renda longamente trabalhada por ti mesma nos teus bilros infatigáveis! Se soubesses que este paciente lavor das tuas mãos em dois anos de aplicação consecutiva, ninguém aqui o admirou, nin­guém o viu, ninguém atentou nele, a não ser a criada, que esta manhã me perguntou, entre risadas sacrílegas, se os padres na minha terra se embrulhavam nos meus lençóis em dias de missa cantada! Que importa, porém, que o não apreciem os outros?... Toda esta gente é má, corrupta, perversa! Agradeço-te eu, minha obscura, minha velha amiga. Nos arabescos desta renda, que eu estou apal­pando na mão e que tu me consagraste, figura-se-me sentir o cor­rer caprichoso e ondeado das lágrimas que choraste enquanto o vento ramalhava nas árvores, a saraiva estrepitava nas janelas, e tu desvelavas as tuas noites de Inverno, resignadamente ajoelhada junto do berço em que rabujava o teu pequeno. Quando sinto no rosto o áspero contacto dos teus eriçados folhos bordados, beijo-os piedosamente, beijo-os eu, como se fosse um anjo bom que me to­casse com a ponta das suas asas purificadoras e brancas!»

Mas além do cheiro do bragal, que me envolvia como um afago mandado de longe, havia na minha cama outro perfume que con­trastava singularmente com este. Era o que aromatizava apele da­quela mulher desconhecida, e que me ficara na mão que ela apertou. Respirei-o com uma curiosidade irritante, que me pungia e me dilacerava. Ai de mim! Colei os lábios na mão aberta sobre o meu rosto, e principiei a sorver esse misterioso respiro de um paraíso ignoto e longínquo.

É monstruoso, infernal, o turbilhão das ideias que esse aroma estranho, penetrante e cálido, me revolveu na cabeça.

Sentia os fogachos, as palpitações, a alucinação da febre.

Quando pela manhã me levantei, sem haver dormido em toda a noite, tinha o travesseiro inundado em lágrimas...

Perdoa-me, Teresinha! Minha Teresinha, perdoa-me.. Não foi pensando em ti, meu puro anjo, que eu chorei tanto nessa noite!

 

Soube daí a dias que a senhora com quem me encontram era a condessa de W. A figura dela tinha-me ficado moldada na memó­ria como o rosto de um cadáver em uma máscara de gesso. Estava no Rossio quando me disseram o seu nome, ao vê-la passar em car­ruagem descoberta.

Ia reclinada para o canto de uma vitória, quase deitada, mór­bida, abstraída, indiferente, como se uma auréola invisível a se­gregasse dos aspectos e dos ruídos da rua, grosseiros de mais para lhe tocarem. Tinha uma sedução alucinante, vestida de verão, com uma simplicidade cheia de mimo e de frescura, uma graça que se adivinhava mais do que se via e que menos apetecia ver do que res­pirar. Levava no seio uma rosa cor de palha, e uma pequena ma­deixa de cabelos finos, dourados, transparentes, soltos do pentea­do, caía-lhe na testa.

Cravei os olhos nela e tirei o meu chapéu; ela viu o meu cum­primento, olhou-me, como se eu lhe aparecesse pela primeira vez, com a mesma indiferença com que olharia para uma vidraça vazia ou para uma tabuleta sem dístico, e prosseguiu inalterável e imó­vel como a imagem preguiçosa da formosura arrebatada do seu pe­destal por um cocheiro agaloado e por dois cavalos a trote.

Continuei a passear com um amigo com quem estava e cobri tanto quanto pude com algumas palavras rancorosas a respeito da política a comoção que sentia.

Momentos depois, passou, na mesma direcção que tinha to­mado a carruagem da condessa, um coupé escuro, sem letras nem armas, com todas as cortinas cerradas. Esta circunstância, aliás naturalíssima, encheu-me de indignação e de rancor. Imaginei possível que aquele trem seguisse o da condessa e, não sei porque processo do coração ou do espírito, nasceu-me o desejo de arrom­bar essa carruagem e calcar aos pés o homem que lá estivesse dentro.

– Estás a tremer! – disse-me o amigo a quem eu dera o braço.

– Não é nada... um estremecimento nervoso.

– Empalideceste, tens os beiços brancos e as orelhas encarna­das...

– Foi uma vertigem. Dá-me isto às vezes.

– Aí tens! É o efeito das vigílias e do abuso do tabaco nas fun­ções do coração.

– É debilidade resultante da fome – exclamei eu sorrindo e mal podendo conservar-me de pé. – Adeus, que vou jantar!

E entrei na primeira carruagem de praça que passou por nós, enquanto o meu companheiro acrescentava:

– Agora estás afogueado e vermelho como lacre: toma ferro e brometo.

Quando cheguei a casa tinha febre, e via por fora do casaco o ba­ter do coração.

Não tomei mais a encontrá-la senão na noite da catástrofe.

O meu romance misterioso e absurdo acabou então, cedendo o seu lugar à tragédia em que entrámos juntos.

 

Foi na noite de 20 de Julho passado. Eu voltava de casa de Z... com quem tinha estado até às duas horas; ia chegar quando sen­ti atrás de mim os passos de duas mulheres. Parei. Elas passaram por mim, descendo do passeio em que eu estava, e caminhando apressadamente, Entrevi-as à luz de um candeeiro. Uma era al­ta, seca, direita, idosa; a outra – para que hei-de descrevê-la? – era ela. Um relance de olhos, e conheci-a logo.

Ia inquieta, arquejante, abafada em pranto e em soluços. Comoveu-me tanto o aspecto passageiro dessa grande angústia, dessa dor suprema naquela formosa mulher há poucos dias ainda tão patentemente feliz, radiosa, intemerata, que eu daria, nesse momento, a minha vida inteira para a não ver assim dobrada na lama de uma rua escura e deserta, pelo que há mais violento, mais voluntário, mais hostil, mais implacavelmente humano: a des­graça... Ela, a viva imagem da delicadeza e do mimo, expressão suprema da beleza, do domínio, da omnipotência termal, via-a de repente sucumbir envolvida pela serpente cuja cabeça eu imaginava segura pelo seu pé sobre um crescente de Lua!

Fiquei por um momento perplexo, Por fim, os meus passos apressaram-se para ela, saí-lhe ao encontro e disse-lhe convulsi­vamente:

– Senhora condessa de W..., vejo que chora. É certamente um sucesso extraordinário e terrível. V. Exª parece-me só e desprote­gida neste bairro; somente em tão excepcionais circunstâncias eu poderia permitir-me a liberdade de lhe falar. Disponha de mim, minha senhora, como se dispõe de uni amigo ou de um escravo, para a vida e para a morte.

Ela parecia escutar sem me compreender, numa grande in­quietação. A última palavra que proferi:

– Para a morte! – repetiu ela num grito de delírio. – Quem lho disse? Como o soube?

E apoiando-se no braço da senhora que a acompanhava, se­gurou-se nela com um movimento convulsivo de pavor, ergueu o rosto para mim e fitou-me, trémula, suplicante, com os olhos alucinados e lacrimosos.

– Que quer? Diga! – acrescentou ela. – Quer prender-me? Aqui me tem. Leve-me.

E tendo dito isto, voltou-se sucessivamente para todos os la­dos, olhando a rua com a mais exaltada expressão da confusão, da vergonha e do medo. Era a angústia personificada pela maneira mais viva e mais lancinante. Eu sentia o coração cheio de lástima e de piedade.

– Perdão – disse-lhe –, sossegue por quem é! Eu nada sei. Não venho prendê-la, nem venho interrogá-la. Não sou um juiz, nem um espião, nem um carrasco. É esta a terceira vez que a ve­jo em minha vida. A primeira foi nesta mesma rua há cerca de um mês, no momento em que um cocheiro lhe pedia o aluguer de um trem. A segunda vez foi de passagem no Rossio, há quinze dias. Sou um amigo seu desconhecido, obscuro, anónimo. Supunha-a no apogeu da fortuna e da felicidade. Tive-lhe inveja e ódio. Encon­tro-a, ao que parece, à beira de um abismo e não acho na minha alma doente e magoada senão enternecimento e dedicação! Pobre senhora! É, então, desgraçada também como os outros... Coitadi­nha! coitadinha!...

E a minha dor era profunda e sincera, a minha compaixão ilimi­tada.

– Não sei – tornou ela –, estou tão perturbada que não o com­preendo bem; estou tão aflita que não o reconheço bem, entrelem­bro-me apenas... Mas parece-me generoso e compadecido.. Ah! Eu não posso ter-me em pé!

Dei-lhe o braço, que ela aceitou, e ficou um momento ampara­da em num e na pessoa que a acompanhava, imóvel, com a cabe­ça reclinada para trás e a boca aberta, bebendo ar alongas sorvos.

– Vamos! –disse ela depois de uma pausa. – Não posso ficar, não posso morrer aqui; tenho que escrever, preciso de chegar a casa quanto antes.

E fazendo um grande esforço, continuou a caminhar, apoiada como estava, com passo vacilante e vagaroso, ansiada, arquejan­te, parando a todo o momento para receber nos pulmões o ar que lhe faltava.

Eu ia absorvido pelo aspecto de tamanha dor. Acudia-me de longe a longe uma palavra, que não me atrevia a pronunciar, receando que ela pudesse imaginar que eu tentava perscrutar a causa do seu infortúnio com uma indiscrição grosseira.

A rua em que íamos andava-se consertando e estava coberta de uma camada de seixos britados e soltos, por cima de cujos ângulos percucientes e cortantes éramos obrigados a caminhar. Chegáva­mos à esquina da rua quando ela, voltando-se para a pessoa que a acompanhava, e que então vi ser uma criada, lhe disse:

– Betty, calça-me o sapato. Saiu-me do pé.

A criada ajoelhou-se, e exclamou:

– O cetim está despedaçado! O pé deita sangue!

A condessa pareceu não ouvir, e continuou a caminhar resolu­tamente.

Maravilhava-me e compungia-me o valor de alma daquela dé­bil natureza, e sentia-me arrebatado a levantar do chão e a trans­portar nos meus braços aquele formoso corpo tão corajosamente subjugado. Felizmente, de uma travessa próxima desembocou, pouco depois, um trem de praça vazio. A condessa, que tinha visi­velmente a maior pressa de chegar, entrou, com a criada que a acompanhava, na carruagem que eu mandei aproximar. Fechei a portinhola e disse à condessa baixo, quase ao ouvido, dando-lhe o meu bilhete:

– Minha senhora, quaisquer que sejam as causas, quaisquer que sejam as consequências da estranha aventura que acaba de aproximar-se de V. Ex.», vá na firme certeza de que ninguém no mundo saberá do encontro que acabamos de ter. Se nunca precisar de mim, continuarei como até hoje sendo na sua existência um ho­mem inteiramente desconhecido, o qual doravante considerará as suas relações com V. Ex.» exactamente no estado em que estavam antes de a ter visto pela primeira vez.

Ela respondeu-me enternecidamente:

– Bem haja por essas palavras de bondade, que são talvez as últimas benévolas que eu tenho de ouvir neste mundo. Quando souber – porque tem de se saber isto, meu Deus! – o que, desde esta horrorosa noite, eu fico sendo perante a justiça e perante a sociedade, diga a sua mãe, à sua irmã, à sua amante, se tem aman­te, que me não odeiem elas, ao menos! Que eu sou menos crimino­sa do que lhes hei-de parecer, que fui eu que lhe confessei isto, ao despedir-me de si, entre a vida e a morte. Adeus!... Não lhe dou a mão... Sou indigna da amizade das pessoas de bem. O mais que eu posso pedir, eu, é piedade... Tenha piedade de mim... Adeus!

A carruagem tinha rodado a distância de alguns passos, quando parou outra vez a um gesto da condessa; ela mesma abriu a portinhola, desceu e dirigiu-se a mim. Fui ao seu encontro.

– Quero falar-lhe ainda – disse ela.

E depois de uma pequena pausa, em que parecia coordenar ideias dispersas, acrescentou:

– Foi talvez providencial o nosso encontro aqui, a esta hora, nesta rua... É talvez a única pessoa que Deus quer permitir que me proteja, que seja por mim. Tenho um parente a quem vou escrever imediatamente entregando-lhe este segredo. Receio que ele se não ache em Lisboa. Sendo assim, não sei de quem me confie. Se tiver no seu coração tanta misericórdia e tanta bondade que queira va­ler-me, procure-me em minha casa, amanhã, às 11 horas.

E dando-me a sua morada em Lisboa, entrou outra vez no trem que partiu.

Singular comoção a que produziu em mim essa mulher de quem acabava de saber que tinha cometido um crime; sentia-me inclina­do a ajoelhar-me aos seus pés dilacerados e a adorá-la!

 

No dia seguinte, à hora assinada, apresentei-me em casa da condessa.

Era um prédio de um sé andar, simples, branco, todo fechado. Abriu-se--me a porta da rua, apareceu-me um criado vestido de casaca azul com botões brancos, colete encarnado, calção curto. Era um homem velho, de cabelos brancos, polido e nédio como um embaixador, sério como uma estátua, penteado como um gentle­man. Falou-me em francês e conduziu-me.

As escadas eram pintadas e envernizadas de branco, luzidias como o peito engomado de uma camisa. Ao meio dos degraus cor­ria um tapete de veludo passado em varetas de cobre reluzente. No patamar projectava-se da parede uma concha de alabastro, cheia de plantas de longas folhas, em cima das quais gotejava a água de uma pequena fonte. No alto da escada a mobília era branca, as paredes forradas de verde, cobertas de molduras douradas encer­rando quadros a óleo. A luz, suave e alta, vinha através de vidros baços. Havia o ar sereno e o perfumado silêncio de uma tranquili­dade elegante e feliz. Não me parecia o palácio de um fidalgo, nem o palacete de um burguês, mas sim o ninho doméstico de um poe­ta ou de um artista.

Levantou-se um reposteiro e entrei numa sala forrada de cou­ro, circundada de sofás e de poltronas com estofos de marroquim cravejado de aço, grandes vasos de porcelana e alguns bronzes, um dos quais representava o busto da condessa, assinado e datado de Milão. Um dos espessos reposteiros que cobriam as portas estava corrido e deixava ver, no meio da casa próxima, que era um salão antigo, um piano de ébano volumoso e longo em cujo flanco se lia em grandes caracteres de prata o nome de Erard. Junto do piano, inclinado sobre um fauteuil, achava-se um violoncelo defronte de uma estante de marfim. Sobre as chaminés de mármore havia alguns livros e vasos com flores. Os móveis estavam dispostos de maneira que parecia conversarem baixinho em coisas delicadas e intimas. Sentia-se que estava ali, domiciliada num aconchego fe­liz, uma existência espirituosa e contente: percebia-se no ar e no aspecto das coisas, o vago vestígio do perfume; de harmonia, de ca­lor, que as pessoas que aí tivessem estado haviam derramada em volta de si, conversando, lendo, fazendo música. Eu tinha levanta­do os olhos de um livro sobre a mesa do centro da sala, quando vi defronte de mim, ao fundo de um grande espelho, uma figura imó­vel, tétrica, espectral. Voltei-me rapidamente, e não pude repri­mir um grito de pasmo e de terror. Era a condessa.

Horrível transformação por que ela passara! Durante as pou­cas horas que haviam mediado entre esse momento e a última vez que a vira, a condessa de W... tinha envelhecido dez anos. Os olhos profundamente encovados haviam tomado uma expressão apaga­da e imóvel; a carne tinha uma cor térrea e opaca; os músculos fa­ciais, contraídos na mais violenta opressão, davam-lhe ao rosto, transversalmente vincado por dois sulcos escuros, o aspecto de uma magreza extrema; os cabelos apanhados todos para trás, alisados e seguros num rolo sobre a nuca, avultavam-lhe o nariz afilado e despregavam-lhe do crânio as orelhas lívidas, de uma sa­liência rija e cadavérica.

Fez-me sinal que a acompanhasse. Segui-a com a sensação en­regelada de quem – entra nos domínios da morte. Atravessámos uma sala e entrámos num dos quartos dela. Apontou para um so­fá e sentou-se ao meu lado, olhando para mim, impassível.

Ficou assim por um momento na mudez de uma dor intraduzí­vel, pausa terrível em que a alma emerge de um abismo de lágri­mas e se debate violentamente antes de aparecer na voz. Tinha os lábios entreabertos como os de quem vai soltar um grito, e o queixo, trémulo, oscilava-lhe como o das crianças subjugadas pelo terror no instante de lhes rebentar o pranto. Por fim, disse-me lentamen­te, com palavras pesadas, firmes, entrecortadas como se estives­se retalhando o coração e dando-mo em bocados:

– Peço-lhe que não me condene pelas primeiras palavras que vai ouvir.

E, em voz baixa, depois de um breve silêncio, acrescentou:

– Eu matei um homem.

– Que diz? – gritei eu estupefacto. – Está louca! Enlouque­ceu!

– Não. Não estou louca – tomou ela grave e serenamente. – Não enlouqueci ainda. E admiro isto. Como têm decorrido estas horas, minuto por minuto, segundo por segundo, sem que a minha razão sucumbisse nesta desgraça infinita, sem remédio, sem ter­mo, sem remissão! Matei um homem.. Involuntariamente, sim, mas matei-o. Quero entregar-me aos tribunais, estou pronta, es­tou deliberada. Estendo os olhos ao meu futuro e não vejo senão uma esperança, senão um lenitivo único no prazer de morrer em tormentos, que eu abençoarei como os maiores beneficies do Céu, de morrer de fome, de desprezo, de miséria, prostrada no fundo de uma enxovia, no porão de um navio, ou abandonada numa praia da África, abrasada pelo sol, sobre as areias ardentes, roída pelo can­cro, devorada pela sede e pela febre. Por mim uma só coisa temo: a loucura que um momento em minha vida me consinta a alegria horrível de cuidar que ainda sou amada e feliz; ou a morte repen­tina que me arrebate a consolação única que Deus concede aos grandes culpados: a liberdade de sofrer. Mas ele... O seu nome des­coberto! O seu cadáver profanado! O seu segredo traído!...

E falando, como num sonho, abstractamente:

– Desventurado homem! Que fatal destino o encaminhou para mim, arremessando-o de encontro ao meu coração, em que estava a sua morte? Porque não amou outras mulheres que o mereciam mais do que eu? Porque não se deixou amar por Cármen Puebla, que o adorava e que morreu por ele? Que cego, que imprudente, que desgraçado que foi!...

E escondendo a face nas mãos, desatou a chorar num pranto convulso e desfeito, em que a vida parecia despedaçar-lhe o seio e jorrar para fora em borbotões de lágrimas e de soluços.

– Vamos – disse-lhe eu quando esta crise abrandou –, sere­nemos um momento, e pensemos no que importa fazer. É então positivo que o conde está morto?

– O conde?... – interrogou ela, erguendo-se de súbito e enxu­gando os olhos. – Sim, tem razão, eu ainda lhe não disse tudo... O homem que eu matei não é meu marido.

E, postando-se defronte de mim, fitou-me com um olhar alu­cinado, e acrescentou com voz demudada e profunda:

– É o meu amante.

Em seguida ficou imóvel, esperando as minhas palavras na postura de um réu que vai escutar a sentença da boca de um juiz.

A sensação que experimentei ao ouvir essa confissão breve, se­ca, inesperada, foi a da surpresa primeiro, de uma instintiva repul­são depois. Ergui-me maquinalmente e dei alguns passos na casa. A condessa permanecia na mesma posição, numa insensibilidade que tanto podia ser a prostração do arrependimento como o cinis­mo da culpa. Eu estava surpreendido e revoltado. Aquela mimosa e pura estátua, à qual eu levantara quase um altar no meu cora­ção, assim repentinamente baqueada num lamaçal, causava-me horror. Poderia suportá-la criminosa; não podia considerá-la prostituída. Medi-a com um olhar em que senti dardejar o despre­zo que ela nesse momento me inspirava, e depois de um silêncio repassado de mágoa:

– É horrível isso!

Ela estremeceu, cerrou desfalecidamente os olhos e amparou-

– se vacilante ao espaldar de uma cadeira.

– Estranha talvez a lástima e o horror que me causa? – insisti eu. – É natural. Tendo ouvido que, em Lisboa, a sociedade vê be­nevolamente essas quedas como incidentes triviais da existência doméstica. Eu, porém, que sou um selvagem, eu que me criei no princípio de que a fidelidade é no carácter de uma mulher um dever tão sarado como a honra no carácter de um homem, eu protes­to, em nome das únicas mulheres que a minha inexperiência me tem permitido conhecer no mundo – em nome daquela que me gerou e em nome daquela que eu amo – contra semelhante inter­pretação da liberdade de amar. Não compreendo que caia em tal erro uma pessoa limpa. O adultério é uma indecência e uma por­caria. Matar um homem em tais circunstâncias, é mais do que faltar ferozmente ao respeito devido à inviolabilidade da vida humana; é faltar igualmente a respeito da morte... É atirar um cadáver a um cano de esgoto... É trágico – e coisa ainda mais hor­rível – é sujo...

Ela escutava-me em silêncio, extática, como que hipnotizada pela minha instintiva mas cruel grossaria.

De repente, sem uma exclamação, sem um grito, sem um ges­to, caiu desamparadamente no chão, fulminada, inerte, como se estivesse morta.

Quis chamar alguém, ia a tocar no botão de uma campainha, quando me ocorreu a inoportunidade de qualquer intervenção nes­ta cena. Fui para ela, que ficara estirada de costas sobre o tapete. Levantei-lhe a cabeça. Não lhe senti o pulso. Ergui-a em peso, to­mei-a nos braços. A fronte dela pendeu sobre o meu ombro, fican­do perto dos meus lábios a sua face desmaiada.

Aproximei-me de um sofá. Depois, por um sentimento supers­ticioso de respeito, coloquei-a numa cadeira de braços, e corria os aposentos contíguos àquele em que estávamos. O quarto próximo era um gabinete de vestir. Trouxe um frasco de água-de-colónia que estava num lavatório. Humedeci-lhe as fontes e os pulsos, fiz-lhe respirar o álcool. Auscultei-a. O coração começava a bater. O pulso reaparecia.

Eu tinha-me ajoelhado junto da poltrona em que ela jazia e contemplava melancolicamente a sua figura exânime.

Os olhos cerrados, a boca entreaberta deixando ver os dentes miúdos e cor de pérola, a cabeça reclinada no espaldar, davam ao seu rosto, assim em escorço, a expressão de uma figura de anjo, as­cendendo de um túmulo. Os pés estreitos e finos, calçados em meias de seda e sapatos de cetim preto, sobressaíam da orla do ves­tido numa imobilidade sepulcral. Uma das mãos, através de cuja lividez se via a rede ténue e azul das veias, tendo no dedo anular um círculo de grossos brilhantes entremeados de rubis, repousa­va-lhe no regaço, e do seu roupão de rendas pretas exalava-se o mesmo perfume, o perfume dela, que me ficara na mão a primeira vez que a vi.

Lembrei-me então da sua figura entrevista de noite, ao gás de um candeeiro dama, tomada a ver depois, à luz do dia, no Rossio, passando em carruagem descoberta. E estas coisas, tão vivas na minha lembrança, faziam-me, todavia, a impressão de haverem passado há muitos anos.

Ela estava velha!

Muitos dos seus cabelos, secos, baços, como mortos, tinham embranquecido nas fontes e no alto da cabeça.

A contracção violenta de todos os músculos da dor transfor­mara numa só noite as suas feições e desfigurara a sua fisionomia. Os cantos da boca tinham descaído ao peso das lágrimas como ao peso dos anos, e dois vincos profundos sulcavam-lhe as faces flácidas na mesma direcção oblíqua que tinham tomado os sobro­lhos, riscando-lhe a testa em rugas curvilíneas, miúdas e trans­versais.

Que medonha, que tenebrosa, que incomparável angústia de­via ter passado em algumas horas por este desgraçado corpo para o devastar assim!

Na rua, a pequena distância, um realejo tocava um pot-pour­ri de várias óperas, e, ao som desse corrido martelar idiota da mú­sica mecânica, pareceu-me ver desfilar em louca debandada no ar, entre mim e a pobre senhora, como numa espécie de evocação ao mesmo tempo trágica e grotesca, todos os grandes símbolos das educações sentimentais, ladainha viva das paixões elegantes, girando sob a manivela desse realejo, num redemoinho fúnebre, de dança dos mortos, em torno desse corpo desfalecido, como as visões da vida passada, figuradas nos velhos retábulos, em torno do leito das monjas moribundas.

Era como se, no decorrer dessa música, automática como um andar de sonâmbulo, eu visse perpassar no espaço a grande ron­da das tentações que na vida levaram consigo o destino desta cria­tura; os pálidos Manriques e os febris Manfredos, trazendo sob a capa das poéticas aventuras a bravura cavaleirosa de campeador Rui de Bivar ou do paladino Rolando, a melancolia de Hamlet, a exaltação sentimental de Werther, a revolta do Fausto, a sacieda­de de D. João, o tédio de Childe Harold; e toda a legião dramática das belas mulheres amadas: Francesca, Margarida, Julieta, Ofé­lia, Virgínia e Manon.

E, em grinaldas de beijos secos, de beijos de pau, matraquea­dos no instrumento dama, todas essas figuras de amorosas legen­das bailavam misteriosamente ao som da Traviata, da Lúcia, do Ballo in maschera.

«Amor! amor! amor!», tal foi decerto a letra da grande ária que constantemente lhe cantaram através de toda a sua existência de mulher bela, elegante, instruída e rica.

Foi nesse mundo moral que a sua imaginação habitou e que se fez o seu pobre espírito de linda criatura ociosa e desejada.

Como poderia ela adivinhar a honesta serenidade dos destinos simples no meio de uma existência tão complicadamente artificial como a sua?

Fora dos interesses da elegância, da moda, talvez da arte, que conhecia ela de sério e de grave na vida, senão a religião e o amor? Tinha um missal és um marido. É pouco para o equilíbrio de uma alma, principalmente desde que o missal cessa de convencer e o marido cessa de amar.

As que têm um salão, uma carruagem, um camarote na ópera, um cofre cheio de jóias, um quarto cheio de vestidos, não podem ser as singelas mulheres que passam a vida a dar de mamar aos filhos e a vender cerveja, como diz o lago, de Shakespeare; nem podem resumir o seu destino fácil em ter filhos, chorar e fiar na roca, co­mo diz Sancho Pança. Esta não vendia cerveja, não a ensinaram a fiar... Chorou apenas.

Quem sabe se na sua dourada existência a amargura das lágri­mas a não compensou hoje de tudo quanto ignora da amargura da vida!

E tive uma compaixão sincera com um remorso profundo das palavras cruéis que lhe dissera.

Que poderia eu fazer para a salvar? Não o sabia. Achava-me, porém, resolvido a tudo, a sacrificar-me inteiramente, para lhe valer.

Devo dizer também que, vendo-a, ouvindo-a, eu não supus nem por um momento que no homicídio de que ela se acusava pu­desse haver o que se chama verdadeiramente um crime, isto é, uma intenção infame ou perversa. Um criminoso, um cobarde, um assassino, nem chora assim, nem fala assim, nem se denuncia, nem se inculpa, nem se entrega por esta forma a uma pessoa quase estranha, quase desconhecida. Ela tinha-mo dito com a mesma simplicidade com que o gritaria da janela para a rua, sem a míni­ma preocupação de se salvar. Cheguei a pensar por um momento que não tinha diante de mim senão uma estranha nevrose, um caso de alucinação, de delírio raciocinado. Mas o delírio não faz pade­cer tanto. Tenho visto muitos loucos no hospital. A expressão de­les, ainda a mais dolorida, não apresenta nunca a profundidade desta. É preciso ter toda a integridade da sensibilidade e da razão para sofrer assim. No padecimento dos loucos há um não-sei-quê, sem nome talvez na sintomatologia do sofrimento, mas a que po­deríamos chamar – a isolação da alma.

Ao voltar a si, a condessa parecia um pouco mais calma. Para evitar um recrudescimento de excitação proveniente de uma longa narrativa de episódios que me pareceu discreto evitar, um pouco como estudante de medicina, principalmente como homem honrado, disse-lhe:

– Sabe mais alguém deste caso?

– Sabe-o a minha criada de quarto, a que me acompanhava ontem quando nos viu, e sabê-lo-á dentro em pouco meu primo H... a quem hoje escrevi. Meu primo, porém, está em Cascais. O morto é um estrangeiro. Ninguém, a não ser meu primo, o conhe­ce em Lisboa. Ignorava-se mesmo que ele existisse aqui. Entregá­-lo aos trâmites policiais, ter de revelar o seu nome, descobrir a sua naturalidade, a sua família, eis o que principalmente eu quereria evitar. Conseguido isto, entrego-me aos tribunais, mato-me, fujo, enterro-me viva... como quiserem!

– E sabe seu primo como ele morreu?

– Não. Vai saber apenas que está morto...

– Pode contar com o silêncio da sua criada, por alguns dias ao menos?

– Posso. Por toda a vida.

– Evite, se pode, que seu primo receba hoje a sua carta. E... ele, onde está?

– Na mesma rua em que nos encontrámos ontem, no pré­dio nº...

– Para entrar na casa...

– Há uma chave – respondeu ela.

E tendo meditado um momento:

– Ontem – prosseguiu – quando lhe disse que viesse hoje a minha casa, estava louca de desesperação e de honor. Parecia-me que tudo quanto se aproximava de mim me trazia a punição, o castigo, e que tudo quanto se afastava fugia para longe como meu úl­timo amparo, com o derradeiro socorro que eu ainda poderia ter neste mundo!... Foi neste delírio que lhe pedi a V..., um estranho, um desconhecido, que viesse ver-me... Para quê?.. Nem eu sabia para quê... Para contar isto a alguém, para me decidir, para ter uma solução, para apressar um desenlace qualquer, para fugir de mim mesma.. Ir à polícia era entregar esse infeliz à mais horroro­sa das profanações. Dirigir-me a alguma das senhoras que conhe­ço, ir bater à porta de uma família tranquila, que me receberia na casa de jantar ao levantar da mesa, que me apertaria as mãos, que me traria os seus filhos para eu beijar, e depois dizer-lhes de re­pente: «eu, que aqui estou, tinha um amante, e matei-o; venho con­vidá-los para esta festa de desonra e de ignomínia!...» Não. Era melhor fugir para o desconhecido, entregar-me ao acaso... Em tudo isto pensei confusamente, não sei como, sem continuidade, sem nexo, aos pedaços, depois que o vi, durante esta noite medo­nha. Não tenho hoje mais lucidez de espírito do que tinha ontem... Não sei o que hei-de fazer... Sinto apenas que estou perdida, que é preciso que alguém venha, que é preciso que me levem... O senhor parece-me um homem generoso, leal, compadecido e bom... Sabe já o que me sucedeu, sabe onde ele está. Disse-lhe qual era a casa, disse-lhe o número da porta. Aqui tem a chave.

E tirando do seio uma corrente de ferro, de elos angulosos como de um cilício, que trazia suspensa do pescoço por dentro do roupão, abriu uma argola que lhe servia de remate, soltou uma pequena chave, e entregou-ma.

Deixou-se cair num fauteuil, inclinou a cabeça para trás e ficou prostrada, silenciosa, no abatimento, no abandono, no entorpeci­mento profundo que de ordinário se sucede às grandes crises ne­vrálgicas.

Sem saber o que fizesse, pensando todavia que uma ideia qualquer me ocorreria mais tarde como desfecho possível para esta situação imprevista, tão extraordinária, guardei a chave. Senti que me era preciso, primeiro que tudo, sair dali, retomar o ar livre, achar-me a sós comigo mesmo, reflectir, raciocinar.

– Minha senhora – disse-lhe então –, se amanhã, até ao meio-dia, eu não lhe tiver reenviado esta chave, será sinal que me prenderam, que está tudo perdido. Se não souber mais de mim, quero dizer, se lhe não for restituída esta chave, fuja, esconda-se, faça como quiser. Interrogada, negue tudo. Eu preferirei mil vezes aceitara responsabilidade desta morte a imputar-lha, e, por aca­so algum do mundo, será jamais o seu nome proferido por mim. Daqui até lá, para coordenar as suas ideias, para equilibrar a sua razão, para não enlouquecer, se quer um conselho de fisiologista, violente-se uni pouco, abra uma janela, sente-se diante de um caderno de papel e escreva o que se passou. Depois, queime o que escrever. O único meio de dominar uma situação como a sua, o úni­co meio de verdadeiramente a compreender, é analisá-la. Houve um filósofo que deixou aos infelizes esta máxima: «Se a tua dor te aflige, faz dela um poema.» Vá escrever. Faca as suas memórias ou faça o seu testamento, mas escreva, e queime depois. Agora, adeus. Adeus até amanhã, ou quando não, adeus para sempre.

Ela conservava sempre a atitude extática em que caíra na ca­deira de braços. Tinha a boca entreaberta, o lábio inferior tremia-lhe, com esse tocante gesto infantil que toma a desolação no rosto das mulheres, e grossas lágrimas silenciosas corriam-lhe em fio pelas faces e gotejavam lentamente nas rendas do vestido. Fez um movimento para se erguer, procurando articular uma palavra de agradecimento. Profundamente enternecido, dei um passo para trás, inclinei-me com respeito, e saí.

 

Tendo fechado a porta do aposento em que ela ficara, ao passar na sala em que primeiro estivera, ocorreu-me de repente uma ideia. Sobre uma das mesas achavam-se dois grandes álbuns. Folheei-os rapidamente. Um deles encerrava apenas uma série de apontamentos de viagem tomados por uma só pessoa, segundo se via da uniformidade da letra a lápis e em português. Entre os apon­tamentos escritos estavam colados ou pregados nas páginas al­guns especímenes de plantas e flores, e viam-se delineados vários esboços de construções e de fragmentos arquitectónicos. Era um álbum de estudos. O outro continha uma colecção de pensamentos, de máximas, de versos, de desenhos, de aguarelas, firmados por muitos nomes diversos. Eu devorava com os olhos o conteúdo de ca­da lauda.

Não ousara perguntar à condessa o nome do seu amante. Com­preendia que a boca dela nunca mais poderia pronunciá-lo, e não obstante, eu precisava de sabê-lo, de ver letra dele. Estava certo de que esse nome desconhecido figuraria indubitavelmente entre os que eu estava lendo, que a letra desejada se encontrava nomeio dos escritos que me estavam passando pelos olhos. Como poderia, porém, adivinhá-lo, sem tempo, sem vagar, sem o sossego de espírito necessário para meditar a intenção de cada uma das frases que ia lendo F... Era-me forçoso abandonar este recurso, e o álbum que tinha nas mãos era, todavia, talvez, o único meio que me restava de poder descobrir o que desejava! Hesitei um momento, e sai por fim, levando o livro comigo.

Apenas me achei na rua tomei um trem, que dirigi para minha casa, acantoei-me na carruagem e pus-me a ler sucessivamente cada um dos trechos em verso e em prosa, de que se compunha a colecção.

Sabia pela condessa que o morto era estrangeiro. Esta infor­mação era insuficiente para que eu o distinguisse naquela torre de Babel. De página para página ia-me surpreendendo uma nova lín­gua. Havia francês, italiano, alemão, inglês, espanhol... O nome de Ernesto Renan aparecia sobreposto a duas palavras caldaicas: Garcin de Tassy, orientalista na Sorbona, firmava um período em língua indostânica; Abd-el-Kader tinha deixado simplesmente o seu nome árabe; a princesa Dora Distria assinava de Turim um pequeno texto albanês. Nomes portugueses, apenas dois.

A leitura dos textos não me adiantava mais do que a simples inspecção da variedade dos nomes e da diferença de línguas.

Ao chegar a casa, vi que o número que a condessa me indicara era o de um prédio de um só andar, pobre de aparência, quase fron­teiro à casa que eu habitava, perto de uma esquina, colocado ao lado de um prédio mais saliente, e tendo a porta num ângulo reen­trante que a escondia da parte principal da rua. Para o lado opos­to até à esquina próxima havia uns armazéns desabitados. Defron­te corria um velho muro, ao alto do qual sobressaíam as ramas secas de um canavial. A situação topográfica da casa onde estava o morto permitia-me, pois, entrar e sair dela sem ser visto.

Ali dentro haveria talvez um papel, uma carta, uma nota, que me revelasse o nome que desejava conhecer.

– Dei a volta à chave e entrei. No alto da escada, junto de uma porta cerrada, estava caída uma luva e dois bocados de papel. Um era meia folha pequena, lisa, em branco. O outro era um pedaço de envelope; tinha no alto um carimbo do correio de Lisboa com a data do dia anterior; a um canto havia inutilizada uma estampilha francesa; no sobrescrito lia-se: Mr. W. Rytmel.

Este nome achava-se no álbum da condessa por baixo de dois versos ingleses.

A luva, que levantei do chão, era de mão de homem, e de pelica branca com cordões pretos. Por dentro tinha em letras azuis a marca de um luveiro de Londres. Era evidente que tinha achado o que procurava. Rytmel era o nome do morto.

Abri em seguida a porta que tinha em frente de mim e estreme­ci de honor. Estendido num sofá estava o cadáver. A expressão do seu rosto inculcava um sossego feliz. Parecia dormir. Apalpei-o; estava frio como mármore. Colocado perto dele estava um copo com um pouco de líquido. Era ópio.

Percorri o aposento com um relance de olhos. No forro de cetim preto do chapéu, que estava caído no chão, vi bordadas em verme­lho uma coroa de barão e duas grandes letras – um W. e um R.

Não podia perder tempo. Fui para casa, sentei-me pacientemente à minha banca e abri o álbum defronte de mim na página em que estavam os versos assinados por W. Rytmel.

É de saber que tenho aquela espécie de habilidade que Alexan­dre Dumas considera aviltante e vilipendiosa para a inteligência: sou, como terá visto pela letra destas cartas, um excelente calígra­fo. Copiei escrupulosamente, desenhando letra a letra, por trinta ou quarenta vezes consecutivas, os dois versos que tinha patentes. Depois principiei a construir, com letras da mesma forma das que tinha copiado, outras palavras diferentes. Finalmente, depois de muito estudo e de muitos ensaios, peguei na meia folha de papel que tinha encontrado na casa em que se dera a catástrofe, e fiz em inglês com escrita que ninguém no mundo duvidaria ser a da pes­soa que escreveu no álbum os versos assinados pelo nome de Ryt­mel, uma declaração pessoal do suicídio por meio do ópio. Deste modo, quer mais tarde me ocorresse, quer não, o meio mais conve­niente de sepultar o cadáver, as suspeitas de homicídio desapare­ciam.

A condessa estava salva desde que, antes demais ninguém, eu entrasse na casa e colocasse junto do corpo o bilhete que escrevera.

Mas eu ficava sendo um falsário. Repeti a mim mesmo esta pa­lavra sinistra e estremeci de horror. Era preciso achar outro meio, que eu procurava debalde. E, no entanto, o tempo corria. Veio a noite. Lembrei-me que o primo da condessa poderia vir de Cascais prevenido por ela, e cheguei a sair de casa com pregos e um marte­lo para encravar a fechadura da porta e retardar a entrada no pré­dio onde se achava o morto. Ocorreram-me mil ideias fantásticas, cada qual mais absurda. Passei por muito longe, a pé, meditando, inquieto, nervoso, congestionado, estafado, devorado de febre, pal­pando no fundo do bolso o bilhete terrível com que poderia desviar a responsabilidade da cabeça de um criminoso, tomando, todavia, para mim uma parte igual no seu remorso.

Finalmente, por volta da meia-noite, sem bem saber porquê, nem para quê, levado por uma atracção terrível, atrás de uma su­prema inspiração, cingi-me com o muro, abri a porta, penetrei na casa. Então me encontrei inesperadamente com o doutor e com a pessoa conhecida no decurso desta história pelo nome de mascara­do alta

O primo da condessa, tendo chegado de Cascais ao meio-dia, acompanhado de dois amigos íntimos, inquieto pelo desapa­recimento de Rytmel, que era seu hóspede e vivia como homiziado em casa dele em Lisboa, foi ao prédio misterioso de que possuía uma chave e que sabia ser frequentado regularmente pelo inglês, e encontrou aí o cadáver. Conhecendo as relações de Rytmel com a condessa, ponderando quanto havia de delicado na necessidade de manter o maior sigilo em volta daquela catástrofe, e julgando por outro lado indispensável que o testemunho de um médico constatasse a morte, que poderia ser apenas aparente, planeou e realizou a emboscada em que surpreendeu o doutor *** que ele sabia casualmente que passaria nessa tarde pela estrada de Sintra.

Sabem o que se passou nessa noite.

 

No dia seguinte às onze horas da manhã, todos nós, os que ha­víamos ficado nessa casa fatal, nos achávamos reunidos, de rosto descoberto, em torno do cadáver.

O doutor havia sido conduzido ao ponto da estrada de Sintra, em que fora tomado na véspera.

F..., encarcerado durante a noite num quarto interior da casa, havia comunicado com um alemão que habitava o prédio contíguo, e passara-lhe de manhã, por um buraco feito no tabique, a carta ao doutor, publicada mais tarde no Diário de Notícias. Em segui­da arrombou a porta do quarto que lhe servia de cárcere, e depois de uma altercação violenta, arrancou a máscara ao primo da con­dessa. Os outros dois mascarados, vendo o seu companheiro descoberto, tiraram igualmente as máscaras. Um deles era íntimo amigo de F...

– Que é isto?... Como pode isto ser?... – gritou F... exaltado.

E apontando em seguida para o cadáver, continuou:

– Aquele homem está morto, e foi roubado. Depressa, expli­quem-se! Como pode isto ser?

– Meus senhores – exclamou o mascarado alto –, o segredo que eu tenho tido em meu dever guardar dentro dos muros desta casa, e que espero fique para sempre sepultado nela, pertence a uma senhora. Uma parte deste segredo, aquela que mais particu­larmente nos interessa, a que explica a presença daquele cadáver diante de nós, conhece-a este senhor.

E voltando-se para mim ao dizer estas palavras, acrescentou:

– Em nome da nossa dignidade; emprazo-o pela sua honra a que declare o que sabe.

– Jurei não o dizer – respondi eu –, não o direi nunca. Ao entrar aqui, em presença de um perigo que julguei iminente sobre a cabeça das pessoas mais particularmente envolvidas neste mis­tério, perdi os sentidos, desmaiei mulheril e miseravelmente. Fal­ta-me diante do perigo a energia física, que é a feição visível do va­lor. Não imaginem, por isso, que também careço de força moral pre­cisa para guardar um segredo, à custa que seja da minha própria vida! Interrogado por gente mascarada, que não conhecia, era-me lícito mentir, pôr também na resposta uma máscara. Diante de gente de bem, que me interroga invocando a sua honra, o meu de­ver é calar-me. Previno-os de que são absolutamente inúteis to­das as tentativas que fizerem para me obrigar a outra coisa.

– Não é difícil de cumprir o seu dever! –observou com ironia o mascarado alto. – O corpo daquele desgraçado não pode ficar ali por mais tempo. É urgente que tomemos uma deliberação decisi­va e que salvemos a responsabilidade que pesa sobre nós, de mo­do tal que fique para sempre tranquila a consciência que nos ditar o conselho que houvermos de seguir. Visto que este senhor se re­cusa a principiar, começarei eu.

E traçou sobre uma folha de papel as seguintes linhas, que ia pronunciando ao mesmo tempo que as escrevia.

 

Minha prima:

«Na rua de... nº... acham-se neste momento reunidos diante de um cadáver os seguintes homens: (seguiam-se os nossos nomes). É um tribunal supremo constituído pelo acaso e que vai julgar em derradeira e única instância o crime sujeito pela fatali­dade, à nossa jurisdição. Se em presença deste tribunal a minha prima tiver que depor, peço-lhe que o faça.»

 

– Perdão... – observei eu. – Peço licença para acrescentar uma linha:

«A. M. C. não devolve a chave.»

Ele escreveu o que ditei, assinou, dobrou o papel, e disse a um dos seus amigos:

– Vai já entregar este escrito à condessa de W...

Meia hora depois uma carruagem que percorrera a rua a galope parou à porta do prédio em que estávamos. Rolámos para dentro da alcova o sofá em que se achava o cadáver, e cerrámos o reposteiro da sala. Abriu-se a porta, e a condessa entrou.

Seguira o alvitre que lhe propus. As vinte e quatro horas decor­ridas desde que eu a deixara até ao momento de partir para ali, ti­nha-as empregado em escrever com uma eloquência apaixonada e febril a história da sua desgraça. O caderno que lhe remeto en­cerra, senhor redactor, a cópia da longa carta dirigida por ela a seu primo. Cedo o lugar que estava ocupando nas colunas do seu perió­dico à publicação deste documento, que verdadeiramente se pode­ria chamar O auto de autópsia de um adultério.

Depois direi o destino que demos ao cadáver, e o fim que teve a condessa.

 

A CONFISSÃO DELA

Parece-me às vezes que tudo isto se passou numa vida distan­te como um romance escrito, que me causa saudades e dor, ou uma velha confidência de que a minha alma se lembra. Mas, de repen­te, a realidade cai arrebatadamente sobre mim, e creio que sofro mais então, por ter a consciência de que não devia nunca ter deixa­do de sofrer. Foi bom que me determinasse a esta confissão. Con­tar uma dor é consolá-la. Desde que me determinei a escrever estas confidências, há no meu peito um alívio e como um movi­mento de dores cruéis que desamparam os seus recantos.

O princípio das minhas desgraças foi em Paris. Lá comecei a morrer. Lembra-me o dia, a hora, a cor da relva, acordo meu vesti­do. Foi no fim do penúltimo Inverno, em Maio. Ele estava também em Paris. Víamo-nos sempre. Às vezes saíamos da cidade. Íamos passar o dia a Fontainebleu, Vincenas, Bougival, para o campo. A Primavera era serena e tépida. Já estavam floridos os lilases. Le­vávamos um cabazinho da Índia com fruta, num leito de folhas de alface. Ríamos como noivos...

Havia três meses que estávamos em Paris: o conde – creio que o disse – estava na Escócia com Lorde Grenley caçando a raposa nas tapadas do príncipe de Beaufort.

Houve então um baile no Hotel de Ville, um desses bailes ofi­ciais em que uma multidão de praça pública se acotovela sob os lustres, brutalmente. Tinha eu acabado de dançar uma valsa com um coronel austríaco, quando a viscondessa de L..., que vivia então em Paris, veio a mim, toda risonha.

– Conheces este nome: miss Shorn?

– Não. Uma americana?

– Uma irlandesa. Uma maravilha, O perfeito dançou com ela: a condessa Walevska beijou-a na testa. Gustavo Doré prometeu-lhe um desenho. Vai ser apresentada nas Tulherias. No fim, que­res que te diga? Acho-a insignificante. Bonitos cabelos, sim. Não se fala noutra coisa! Mas tu deves conhecê-la...

– Porquê?

– Tem dançado com Captain Rytmel, parecem íntimos. Tu ris?

– Eu?

– Não... tu riste!

– Nunca rio, senão quando quero chorar, minha querida!

– Tiens, tiens! – murmurou ela olhando muito para mim.

E afastou-se. O meu pobre coração ficou em desordem. Às vezes, na nossa alma, toca-se de repente a rebate, e as desconfian­ças adormecidas, acordam, tomam as suas armas, e fazem sobre nós um fogo cruel.

Captain Rytmel aproximara-se.

– Vem radiante – disse-lhe eu. – Quem é miss Shorn?

Ele respondeu, gravemente:

– É a amiga íntima da minha irmã.

Fomos dançar. Era uma quadrilha. Pareceu-me triste. Os mo­vimentos da dança lembravam-me as cerimónias de um culto. O meu ramo ficou espalhado pelo chão. Nesse instante, sem saber porquê, detestei Paris, o ruído, o império; desejei as sombras de Sintra, os retiros melancólicos de Belas, cheios dos murmúrios da água.

Quis sair. Numa das últimas salas uma mulher alta, loura, to­mava das mãos de um velho extremamente magro e distinto a sua sortie de boi.

Captain Rytmel, que me dava o braço, inclinou-se ao passar junto dela, e falando baixo para mim:

– Miss Shorn! – disse ele.

Era realmente linda. Grandes cabelos louros, fortes, lumino­sos; os olhos largos, inteligentes, sérios; um corpo perfeito.

Nessa noite chorei. No meu quarto as luzes e o fogão estavam acesos. Entrei, fui ao espelho precipitadamente. Deixei cair dos ombros o burnous. Ergui a cabeça, olhei a medo. A minha imagem aparecia ao fundo do quadro num vapor luminoso. Achei-me feia. Olhei mais. Tinha os braços nus, a cabeça erguida em plena luz. Lentamente a consciência de que eu estava linda assim, penetrou-me, encheu-me de alegria. É tão bom ser linda!

Dali a dois dias houve uma revista militar no campo de Longchamps. Captain Rytmel acompanhou-me. Eu tinha um lugar na tribuna do Jockey. Havia uma enorme multidão. Estava a impera­triz, a corte, a diplomacia – a tribuna resplandecia de fardas, de jóias, de plumas, de reflexos de seda. Os regimentos tinham come­çado a desfilar. As músicas, os clarins, o rufar altivo dos tambores, o surdo ruído dos batalhões em marcha, o luzir das baionetas, as vozes de comando, o galopar dos cavalos, o brilho dos capacetes, o céu resplandecente, como um largo pavilhão azul, tudo fazia palpitar, dava estranhos sentimentos de guerra e de glória. E todo o corpo estremecia quando aquelas poderosas massas de gente pas­savam gritando:

– Viva o Imperador!

Sou uma pobre mulher, mas estremeci também!

A infantaria tinha passado. Rytmel fora falar com miss Shorn, que estava em companhia de Lady Lyons. O barão Werther, em­baixador da Prússia, ficara colocado junto dela.

Ia passar a artilharia e a cavalaria. O Imperador, com o seu Estado-Maior, tinha vindo colocar-se ao pé da tribuna do Jockey. Nós todos nos inclinávamos para ver os generais que o cercavam: Montauban, o que tomara Pequim; Canrobert com os seus longos cabelos brancos; a espessa figura de Bezaine; o altivo perfil triguei­ro de Mac-Mahon, que viera da Algéria...

Miss Shorn era também muito olhada na tribuna do Jockey. Dizia-se que a Imperatriz lhe tinha sorrido e que madame de Talouet lhe mandara, sem a conhecer, um ramo de violetas do pólo.

Mas os olhos começavam a voltar-se para o fundo da planície, de onde a cavalaria devia partir, e corria um arrepio de entusias­mo perante um tão grande poder militar. Nessa manhã falava-se em certas reservas entre o gabinete de Berlim e as Tulherias. Lembrava-se Sadova, mil coisas que eu não sei; e olhava-se muito para o barão Werther, que sorria com o seu túmido sorriso prus­siano.

No entanto, a cavalaria formara em linha. Os clarins tocavam, as bandeiras desdobravam-se; e de repente aquela enorme massa despediu à carga cerrada do fundo do campo para a tribuna do Jockey.

Os capacetes, as couraças, as espadas, faiscavam ao sol. O chão tremia sob o compasso do galope. Sentia-se já o tinir dos ferros. Distinguiam-se já os coronéis, esbeltos moços condecorados. Ouvia-se o respirar ofegante dos cavalos. O Imperador tinha-se descoberto, todos na tribuna estavam de pé.. De repente, por um movimento único, toda aquela enorme coluna estacou firme, vi­brante, imóvel, reluzente, agitando as espadas, e gritando:

– Urra! Viva o Imperador!

A tribuna, de pé, respondeu:

– Hurra!

Então, vendo uma tão admirável cavalaria, uma tão grande força, tanto prestigio imperial, e tomados do indomável orgulho das tradições ou possuídos da febre do sangue militar, muitos ofi­ciais, que estavam nas outras alas, adiantaram-se, e elevando as espadas, gritaram:

– A Berlim! a Berlim!

Por todo o campo se ouviam agora gritos exaltados:

– A Berlim! a Berlim!

E na tribuna algumas vozes clamavam também:

– Sim, sim, a Berlim!

O Imperador então, erguendo-se nos estribos, estendeu a mão abe4a como impondo silêncio, ou como dizendo: Esperai!

Aquele grito inesperado todo o Estado-maior se tinha aperta­do em torno do Imperador, e eu, que estava nos primeiros bancos da tribuna, vi o marechal Mac-Mahon deter subitamente o cava­lo, voltar meio corpo rapidamente, e com a mão apoiada no xairel escarlate bordado a ouro, que cobria a anca do animal, erguer os olhos meio risonhos para o lado da tribuna em que estava o embai­xador da Prússia. Eu segui o olhar do marechal, olhei também e vi...como hei-de dizê-lo? Vi Rytmel. Vi-o junto de miss Shorn, cur­vado, falando-lhe, sorrindo-lhe, absorto, afogado na luz dos seus olhos. Ela olhava-o, extremamente séria, com um longo olhar de­morado e convencido, em que eu vi todo o fim da minha vida!

 

Daí a dez dias o conde chegou; partimos para Portugal. Durante esse tempo que ainda estive com Rytmel em Paris, nem eu traí as minhas dúvidas, nem ele mostrou preocupações alheias aos in­teresses do nosso amor.

Vim para Lisboa; recebia regularmente cartas dele. Estudava-as, decompunha as frases palavra por palavra para encontrar a oculta verdade do sentimento que as criara. E terminava sempre – meu Deus! – por descobrir uma serenidade gradual no seu mo­do de sentir. Rytmel escrevia-me com muito espírito e com muita lógica para poder pôr o coração no que escrevia. Evidentemente, o seu amor passava da paixão para o raciocínio. Criticava-o: prova de que não estava dominado por ele. Tinha até já palavras enge­nhosas e literárias. Valia-se da retórica! Ao mesmo tempo a sua le­tra tornava-se mais firme; já não eram aquelas linhas tortas, con­vulsivas e arrebatadas que palpitavam, que me envolviam... Era um infame cursivo inglês, pausado e correcto. Já me não escrevia como dantes em papel de acaso, em folhas de carteira, em pedaços de cartas velhas, que denotavam as inspirações do amor, os sobressaltos repentinos da paixão; escrevia-me em papel Maquet, perfu­mado! Pobre querido, o que o seu coração tinha de menos em amor tinha de mais o seu papel em marechala!

E eu? É talvez ocasião de falar aqui do meu sentimento. Duvidei fazê-lo. Não queria colocar o meu coração sobre esta página como numa banca de anatomia. Mas pensei melhor. Eu já não sou alguém. Não existo, não tenho individualidade. Não sou uma mu­lher viva, com nervos, com defeitos, com pudor. Sou um caso, um acontecimento, uma espécie de exemplo. Não vivo da minha respi­ração, nem da circulação do meu sangue: vivo abstractamente, da publicidade, dos comentários de quem lê este jornal, das discus­sões que as minhas mágoas provocam. Não sou uma mulher, sou um romance.

 

Não pense que digo isto com amargura. A maior alegria que eu posso ter é a aniquilação da minha individualidade.

Por isso não tenho escrúpulos. As almas extremamente des­graçadas são como as criancinhas: devem mostrar-se nuas.

Além de tudo suponho que estas páginas podem ser uma reve­lação proveitosa para aquelas que estejam nas ilusões da paixão. Que me escutem pois!

São 11 horas da noite. Neste momento, quantas sei eu que so­frem, que esperam, que mentem, possuídas de um sentimento, que pouco mais lhes dá do que a felicidade de serem desgraçadas! Tu, minha pobre J..., mulher de discretos martírios a quem tantas ve­zes vi os olhos pisados das lágrimas! tu, pobre Th..., que tens pas­sado a tua vida a tremer, a recear, a humilhar-te, a espreitar, e a fugir..., vós todas que estais envolvidas pelo elemento cruel da pai­xão, quase fora da vida, e em luta com a verdade humana, vós todas escutai-me!

Desde que amei, a minha vida foi um desequilíbrio perpétuo. Não era voluntariamente que eu cedia à atracção, era com uma re­pugnância altiva. Mil coisas choravam dentro em mim, sofria so­bretudo o orgulho. Era impossível fazer com ele uma conciliação. Reagiu sempre, protesta ainda. Parece vencido, resignado, mas de repente ergue-se dentro de mim, esbofeteia-me o coração.

O que eu sofri! O que eu corei! Corei diante da minha pobre Joana, da minha velha ama, um anjo cheio de rugas, que sabe so­bretudo amar quando tem de perdoar! Corava diante das minhas criadas. Julgava-me feliz quando elas me sorriam, tremia quan­do lhes via o aspecto sério. Dava-lhes vestidos, ensinava-lhes pen­teados. Saiam às vezes de tarde, recolhiam alta noite; eu corava profundamente no meu coração, e sorria-lhes.

O olhar dos homens era-me insuportável: parecia-me envol­ver uma afronta. Imaginava que era pública a aventura do meu coração, que era julgada como uma criatura de paixões fáceis, o que dava a todos o direito de me fazerem corar. Quantas vezes saí do teatro afogada em lágrimas! Analisava os gestos, os olhares, os movimentos dos lábios. «Fulana olhou-me com desdém! Aquele. riu-se insolentemente, quando eu passei! Aqueloutra afectou não me ver.» Se numa modista, ao escolher um vestido, me diziam: «Esta cor é alegre, é bonita!» eu pensava comigo: «Bem sei, aconselham-me as cores vivas, ruidosas, as cores do escândalo, o género artis­te!» E saía, fechava os estores do meu coupé, chorava desafogada­mente.

Não me atrevia a beijar uma criança; olhava-a com uma ter­nura inefável, ia a tomá-la nos braços, mas dizia comigo: «Deixa esse pobre anjinho, não és bastante pura para lhe tocar!

Devo dizer tudo. Corava diante do meu cocheiro! Sorria-lhe com o maior carinho: temia a todo o momento uma má resposta, uma audácia, uma palavra acusadora. Quando eu entrava para a carruagem, e de se erguia respeitosamente, eu ficava tão satisfei­ta daquela prova de atenção, que tinha vontade de o abraçar...

Acha odioso, não?

Defino o meu estado por uma palavra precisa e terrível: quando meu marido me apertava expansivamente a mão, eu sofria tanto como se o outro me atraiçoasse!

Ai de mim! Quantas vezes quis eu consolar o meu orgulho, pen­sando nas glórias dramáticas do sofrimento e do martírio! Quan­tas vezes me comparei às figuras líricas da paixão, que contam as legpndas da sua dor ao ruído das orquestras, à luz das rampas, e que são Traviata, Lúcia, Elvira, Amélia, Margarida, Julieta, Des­démona! Ai de mim! Mas onde estavam os meus castelos, os meus pajens, e o ruído das minhas cavalgadas? Uma pobre criatura que vive da existência do Chiado, que veste na Aline, que glorificações pode dar à sua paixão?

E depois é cruel, e é forçoso dizê-lo: há sempre um momento em que uma mulher pergunta a si mesma se realmente são as gran­des qualidades morais do seu amante que a dominaram. Porque então haveria justificações. E há uma profunda humilação em nos­sa consciência quando nos chegamos a convencer de que, se ama­mos um homem, não foi só a nobreza das suas ideias e o ideal dos seus sentimentos que nos dominaram, mas um não-sei-quê, em que entra talvez a cor do seu cabelo e o nó da sua gravata. Sejamos francas: para que havemos de disfarçar a pequenez estreita das nossas inclinações? Para que havemos de colorir de ideal a origem vulgar das nossas preferências? Não quero dizer que as elevações morais não sejam um auxiliar poderoso à simpatia instintiva; mas o que na realidade nos domina é o exterior de um homem. Que todas as que lerem estas confidências dolorosas se consultem no silêncio do seu coração e digam o que determinou nelas a sensação; se foi o carácter ou se foi a fisionomia. E as que forem francas dirão que na sua vida influiu talvez mais a cor de um fraque, do que a elevação de um espírito.

Sim, digo-o francamente, daqui deste canto do mundo, em que o ruído das coisas tem o som oco da tampa de um esquife; os desva­rios do coração em nós outras, nada os absolve, quase nada os ex­plica.

Fui nova; tive, como todas, as minhas horas de tédio assalta­das de quimeras; tive os meus romances íntimos, que nasciam, so­friam, morriam entre duas flores do meu bordado. Criei aventuras, dramas apaixonados e fugas dramáticas aconchegadamente enco­lhida na minha poltrona, ao canto do fogão.

Conheci mais tarde muitos caracteres femininos e a história de muitas sensibilidades. Experimentei eu também os sobressaltos da paixão – e nunca vi, nunca soube que estas imaginações, que estas atracções nascessem de uma verdade da natureza, da lógica das circunstâncias, da irreparável acção do coração. Vi sempre que saíam de um pequeno mundo efémero, romântico, literário, fictí­cio, que habita no cérebro de todas as mulheres.

Vejo-o daqui a sorrir... Não se admire de me ver falar assim. Lembra-se daquelas conversações tão íntimas e tão sérias na rua de.? Lembra-se do terraço de Clarence-Hotel, em Malta, quan­do a Lua silenciosa cobria o mar? Não se recorda das minhas ideias então e daquelas imaginações que eu denominava gloriosamente os meus sistemas? Não se lembra que me chamava então filósofo louro? O filósofo sentiu, chorou, sofreu, teve por isso o melhor es­tudo. Que maior ensino que as lágrimas? A dor é uma verdade eter­na, que fica, enquanto as teorias passam. Não imagina o que tenho aprendido da vida desde que sou desgraçada! Não imagina quan­tas ideias rectas e precisas saem das incoerências do pranto!

Por isso hoje não creio em certas fatalidades, com que as mu­lheres pretendem esquivar-se às responsabilidades. Não creio no que se chama teatralmente as fatalidades da paixão. A vontade é tudo; é um tão grande princípio vital como o Sol. Contra ela as fa­talidades, as febres, o ideal, quebram-se como bolas de sabão.

Respondem-me chorando: a fatalidade! Mas, meu Deus! to­memos um exemplo – a aventura trivial, a comum, o que se pode­ria chamar a aventura-tipo, o que se vê todos os dias, em qualquer rua, no primeiro número par ou ímpar... a aventura que nós aco­tovelamos no passeio, que toma connosco neve na Confeitaria Ita­liana, e que se enterra ao pé de nós no Alto de S. João.

A cena é simples, de três personagens. Eu, por exemplo, sou a mulher. Meu marido é um homem honesto e trabalhador. Cansa­-se, luta, prodigaliza-se: logo de manhã sai para o seu escritório, ou para o seu jornal, ou para o seu oficio, ou para o seu ministério; cerceia o seu sono, almoça à pressa, quebra o seu descanso. Todo ele é atenção, vigília, trabalho, sacrifício. Para quê?

Para que os nossos filhos tenham uns bibes brancos, e uma ama asseada; para que as minhas cadeiras sejam de estofo e não de pau; para que os meus vestidos sejam de seda e talhados na Ma­rie, e não de chita e cosidos pelas minhas mãos, de noite, a um can­deeiro amortecido.

Meu marido é um homem honesto, simpático, sério, afável. Não usa pó-de-arroz, nem brilhantina, não tem gravatas de apa­rato, não tem a extrema elegância de ser moço de forcado, não es­creve folhetins; trabalha, trabalha, trabalha! Ganha com o seu cansaço, com os seus tédios, em horas pesadas e longas, o jantar de todos os dias, o vestuário de todas as estações. A sua consolação sou eu, o centro da sua vida sou eu, o seu ideal e o seu absoluto sou eu! Não faz poemas românticos, porque eu sou o seu poema íntimo, a musa dos seus sacrifícios; não tem aventuras porque aí sou a sua esposa; não tem viagens gloriosas pelos desertos nem o prestígio das distâncias, porque o seu mundo não é maior do que o espaço que enche o som da minha voz; não ganhou a batalha de Sadova mas ganha todos os dias a terrível e obscura batalha do pão dos seus filhos...

É justo, é bom, é dedicado. Dorme profundamente porque o seu cansaço é legítimo e puro; gosta da sua robe de chambre porque tra­balhou todo o dia. Julga-se dispensado de trazer uma flor na boutonniére porque traz sempre no coração a presença da minha imagem.

Pois bem! Que faço eu?

Aborreço-me.

Logo que ele sai, abro um romance, ralho com as criadas, pen­teio os filhos, tomo a bocejar, abro a janela, olho.

Passa um rapaz, airoso ou forte, louro ou trigueiro, imbecil ou medíocre. Olhamo-nos. Traz um cravo ao peito, uma gravata com­plicada. Temo cabelo mais bonito do que o do meu marido, o talhe das suas calças é perfeito, usa botas inglesas, pateia as dançari­nas!

Estou encantada! Sorrio-lhe. Recebo uma carta sem espírito e sem gramática. Enlouqueço, escondo-a, beijo-a, releio-a, e des­prezo a vida.

Manda-me uns versos – uns versos, meu Deus! e eu então esqueço meu marido, os seus sacrifícios, a sua bondade, o seu tra­balho, a sua doçura; não me importam as lágrimas nem as deses­perações do futuro; abandono probidade, pudor, dever, família, conceitos sociais, relações, e os filhos, os meus filhos! tudo – ven­cida, arrastada, fascinada por um soneto errado, copiado da Gri­nalda!

Realmente! É a isto, minhas pobres amigas, que vós chamais – fatalidade da paixão!

E, no entanto, como corresponde ele a este sacrifício terrível?

Como tem uma aventura, não pode ocultar a sua alegria, toma ares misteriosos, provoca as perguntas; compromete-me; deixa-me para ir esperar os touros em intimidades ignóbeis; mostra as minhas cartas em cima da mesa de um café, ao pé de uma garrafa de conhaque; jura aos seus amigos que me não ama, e que é – pa­ra se entreter; e se meu marido o chicotear nomeio do Chiado, como é vil, cobarde, vulgar e imbecil, irá queixar-se à Boa Hora!

Et voilá D. Juan!

Não! É necessário demolir pelo ridículo, pela criatura, pelo chicote e pela polícia correccional, esse tipo indigno que se chama o conquistador. O conquistador não tem atracção, nem beleza, nem elevação, nem grandeza como tipo – e como homem não tem edu­cação, nem honestidade, nem maneiras, nem espírito, nem toilet­te, nem habilidade, nem coragem, nem dignidade, nem limpeza, nem ortografia...

Perdoe-me, meu primo, estas exaltações. Sou impressionável, vou como se costuma dizer – atrás da frase. Esqueço às vezes as minhas dores modernas, para me lembrar das minhas velhas in­dignações.

E pensa que, por condenar estes amores triviais, eu me absol­vo a mim? Não. Apesar de ter amado um homem de todo o ponto excelente, cuja superioridade de espírito o meu primo conhecia e amava, de uma distinção tão perfeita e tão completa; posto que a nossa afeição tivesse vivido num meio tão elevado, tão nobre, tão altivo – apesar de tudo, eu tenho-me por tão condenável como aquelas de quem falei – e julgando-me sem justiça e fora da gra­ça faço penitência diante do mundo.

 

E quanto, quanto sofri então, na modéstia da minha vida, no apartamento do meu segredo! Quanto desejei ser uma pobre cos­tureira que leva o seu filho pela mão!

Dentro do meu coupé, puxado a largo trote à saída do teatro, en­volvida num cachemire, com uma pele de marta nos pés, e um aro­ma doce na seda das almofadas, quantas vezes invejei as pequenas burguesas que saíam das torrinhas, embrulhadas em disformes mantas de agasalho, pisando a lama!

No dia em que recebia as cartas dele, saía de Lisboa, fugia, ia para o campo! Levava-as, amarrotadas e beijadas, ia para a quin­ta de..., penetrava nas sombras espessas, ali ficava longo tempo, envolta no calor tépido do sol, entorpecida pelo rumor sereno das ramagens, e pelo murmuroso correr da água nas bacias de pedra!

Oh doce vida das árvores e das plantas! passividade da relva, irresponsabilidade da água, pacífico sono dos musgos, suave pousar da sombra! Quantas vezes me consolastes, e me ensinastes a sofrer calada! Quantas vezes invejei a imobilidade do vosso ser!

Era ali só, relendo essas cartas cruéis, que eu sentia o amor da­quele homem fugir-me como a água de um regato que se quer to­mar entre os dedos.

Que me restaria então?

Voltar outra vez à serenidade legítima da vida? Não podia, ai de mim! Estava para sempre expulsa do paraíso pacífico da famí­lia, da casta sombra do dever. Lançar-me nas aventuras e na re­volta? Meu Deus! Isso repugnava-me tanto ao meu carácter como o contacto de um animal viscoso à pele do meu peito.

Ficava, pois, sem situação na vida. Não tinha nela um lugar de­finido. Entrava nessa legião dolorosa e tristemente miserável – das mulheres abandonadas-

A minha única honestidade agora devia ser conservar-me ca­tiva daquele sentimento. A minha única absolvição estava na ver­dade da minha paixão. Quanto mais me separasse do mundo e me desse ao meu amor; mais me aproximava da dignidade. Nas situa­ções definidas e corajosas há sempre um lado honesto; o que repug­na ao instinto casto são as conciliações hipócritas. A posição que me restava, o dever que me restava, a virtude que me restava, era ser de Rytmel, só dele e para sempre: e eu sentia que ele se ia len­tamente afastando de mim como eu me afastava de meu marido.

Era a minha entrada na expiação.

Nestes amores, o castigo não vem só do mundo: eles mesmo contêm os elementos da justiça cruel. O coração é o primeiro cas­tigado pela mesma paixão. A punição da falta contra a honra vem mais tarde pelos juízos dos homens.

Eu estava diante da maior miséria moral em que se pode encon­trar uma mulher nestas condições lamentáveis.

Eu amava Rytmel, Rytmel queria casar.

Que faria, meu Deus? Iria em nome da minha paixão desviar aquela existência de homem, da linha natural, simples, humana, que leva ao casamento, à família, ao dever?

Devia eu impedir que ele casasse? Mas não era isto impedir, abafar a legitima expansão da sua vida? Não era proscrevê-lo das fecundas e serenas alegrias da família, para o ter preso nos áspe­ros, nos estéreis sobressalto e de uma paixão romântica?

Tinha eu o direito de sequestrar aquele homem para uso exclu­sivo do meu coração, encarcerá-lo dentro de uma ligação ilegítima e secreta, onde ele se esterilizaria, onde os seus talentos e as suas qualidades se enferrujariam como armas inúteis, e toda a sua acção social se limitada a seguir o frufru dos meus vestidos? Não dava isto ao meu sentimento um aspecto de egoísmo animal? Não tirava isto ao meu amor a melhor qualidade: a virtude do sacri­fício?

Poderia eu privá-lo de ter um dia os filhos, que fossem a conti­nuação do seu ser e a sua imortalidade? Podia eu privá-lo em nome do meu ideal de ter na velhice aquela doce e branca companheira, sob cujo olhar pacífico, o homem justo espera, sossegado, o nobre momento da morte?

E era só isto?... Pode um espírito sincero acreditar na duração destes amores exaltados, feitos de sensibilidades e de martírios, que não têm o dever por base, e têm a traição por origem? E por dois ou três anos mais que esta aventura continuaria, tinha eu o direito de ir quebrar o destino da outra, dela, pobre rapariga, que o amava, que edificava a sua vida sobre o coração dele, que se preparava para ser no lar, e para sempre, a presença da graça e a consciência viva? Não: isto não podia ser.

Mas por outro lado, era justo que eu, tendo sacrificado por ele tudo, desde o pudor intimo até à honra social, fosse agora arremes­sada como uma luva velha?

Eu que tinha sido tudo quando se tratava da sua imaginação, não seria nada agora porque se tratava do seu interesse? Não me exilara eu por ele, do paraíso doméstico? Por ele não renunciara às alegrias pacíficas da vida, e à sublime esperança de uma morte dig­na? Como eu tinha sacrificado por ele a honra de um homem, não podia ele sacrificar por mim as esperanças romanescas de uma criança? Era justo ter-me trazido enganada, envolvida, como num arminho, nas aparências do amor, ter-me conduzido com os olhos vendados, atraída, suspensa do ritmo dos seus passos, a um lugar perigoso, a uma situação intolerável, e chegando aí dizer-me: «Adeus, agora! Eu vou para a felicidade. Tu, fica; mas cuidado, que para trás não podes voltar; e se deres um passo para diante, vais abismar-te na infâmia!».

Não, isto não deve ser; o amor não é uma criação literária, é um facto da natureza: como tal produz direitos, origina deveres. E os direitos do amor não os abdico.

Pois quê! Por causa da outra! Hei-de dar tamanha considera­ção às lágrimas que choram dois olhos alheios, que nunca vi, que estão a duzentas léguas de distância e não hei-de apiedar-me das minhas lágrimas, que escorrem aqui na minha face, e que eu apa­ro na tremura das minhas mãos!

«És casada», dizem-me. O quê! Porque perdi mais, devo ser atendida menos! Eu, que vivo quase fora do mundo, sem estar li­gada a nenhuma destas coisas superiores que amparam a vida, suspensa sobre a morte por um leve fio, por este amor único, é por isso que devo ir com as minhas mãos quebrar esse fio, quebrar esse amor!

Há algum direito humano que exija isto de mim? Há alguma piedade que o veja friamente? Há alguma consciência que o justifi­que? Se há, essa consciência poderia ensinar a serem duros os ro­chedos do mar!

Mas, meu primo, tudo isto é aqui, neste papel em que lhe es­crevo. Porque na realidade eu não podia lutar com ela! Ela era a miss, a que havia de ser esposa e mãe – vencia tudo! Elevava-se sobre as velhas afeições, sobre os velhos erros, como a imagem da Virgem sobre o globo feito de barro e de lama, onde se enrosca a ser­pente.

Nem tentei lutar!

E foi por esse tempo que recebi uma carta em que ele me dizia: Parto para Portugal.

Que vinha fazer? O que era? Vinha despedir-se de mim? Vinha ver as minhas agonias? Vinha consolar-me? Vinha convencer-me? Vinha de novo dar-se cativo ao meu amor? Vinha. Nem ele mesmo sabia mais nada!

 

Rytmel chegou. A primeira vez que o vi foi em minha casa.

O conde estava então em Bruxelas. Era noite e na minha sala de música achavam-se reunidas algumas pessoas: a marquesa de..., velha legitimista, que fora a graça da corte toureira de D. Mi­guel; o visconde de..., moço insignificante e vagamente louro, que eu acolhia bem, porque sua irmã, que morrera, fora a minha ínti­ma, a minha confidente de colégio.

Viera também a viscondessa de..., pequenita criatura petulan­te e medíocre, que tinha a graça de ter vinte anos, junta com a des­graça de os não saber ter, e cuja especialidade era o querer pare­cer profundamente perversa, quando era apenas perfeitamente incaracterística. Mas ao pé de mim, sentado num sofá com um abandono asiático, estava um homem verdadeiramente original e superior, um nome conhecido – Carlos Fradique Mendes. Passa­va por ser apenas um excêntrico, mas era realmente um grande es­pírito. Eu estimava-o, pelo seu carácter impecável, e pela feição violenta, quase cruel, do seu talento. Fora amigo de Carlos Baude­laire e tinha como ele o olhar frio, felino, magnético, inquisitorial. Como Baudelaire, usava a cara toda rapada: e a sua maneira de vestir, de uma frescura e de uma graça singular, era como a do poe­ta seu amigo, quase uma obra de arte, ao mesmo tempo exótica e correcta. Havia em todo o seu exterior o que quer que fosse da fei­ção romântica que tem o Satã de Ary Scheffer, e ao mesmo tempo a fria exactidão de um gentleman. Tocava admiravelmente violon­celo, era um terrível jogador de anuas, tinha viajado no Oriente, estivera em Meca, e contava que fora corsário grego. O seu espíri­to tinha um imprevisto profundo e que fazia cismar: fora ele que dissera da pálida duquesa de Morny: elle a la bêtise melancolique d'un ange. O imperador citava muitas vezes este dito, como sendo conjuntamente a critica profunda de uma fisionomia e de um carácter.

Carlos Fradique tinha por mim uma amizade elevada e since­ra. Chamava-me seu querido irmão. Conhecia-me desde peque­na, andara comigo ao colo. Em Paris tornou-se célebre; era o que se poderia chamar um filósofo de boulevard. Tinha sido l'ami de coeur de Rigolboche, e quando ela rompeu por se ter apaixonado por Capoul, Carlos Fradique deixou-lhe no álbum uns versos quase sublimes, de um desdém cruel, de um cómico lúgubre, uma espécie de Dies irae do dandismo... Prometia a Rigolboche que quando ela morresse ele velaria para que ainda além do túmulo ela vivesse no chique, sentindo Paris na sepultura. Algumas das estrofes que ele traduziu para mim, e que depois se publicaram, fi­zeram sensação e escola...

 

E eu qu'inda te amo, ó pálida canalha

Que sou gentil e bom,

Far-te-ei enterrar numa mortalha

Talhada à Benoiton!

Irei à noite com Marie Larife,

Vénus do macadam,

Fazer sentir ao pó do teu esquife

Os gostos do cancan...

E no tempo das courses, p'lo Verão

– Assim to juro eu –

Irei dar parte à tua podridão

Se o Gladiador venceu...

 

Eram dez horas. Carlos Fradique, com uma voz impassível, quase lânguida, contava as situações monstruosas de uma paixão mística que tivera por uma negra antropófaga. A sua veia, naque­le dia, era toda grotesca.

– A pobre criatura – dizia ele – untava os cabelos com um óleo ascoroso. Eu seguia-a pelo cheiro. Um dia, exaltado de amor, apro­ximei-me dela, arregacei a manga e apresentei-lhe o braço nu. Queria fazer-lhe aquele mimo! Ela cheirou, deu uma dentada, le­vou um pedaço longo de carne, mastigou, lambeu os beiços e pediu mais. Eu tremia de amor, fascinado, feliz em sofrer por ela. Sufo­quei a dor, e estendi-lhe outra vez o braço...

– Oh! Sr. Fradique! – gritaram todos, escandalizados com a invenção monstruosa.

– Comeu mais – continuou ele gravemente –, gostou e pediu outra vez.

Falava com um sorriso fino, quase beatifico. Nós íamos revol­tar-nos contra a cruel excentricidade daquela história.

Neste momento vi à porta da sala, trémula, com um grande espanto nos olhos, chamando-me baixo, a minha criada Betty. Fui: ela tomou-me pela mão, foi-me levando, e no corredor, olhan­do com receio, abrindo num grande pasmo os braços, disse-me ao ouvido:

– É ele!

Encostei-me desfalecidamente à parede, sentindo parar o coração.

Betty, com passos discretos, foi abrir a porta do meu toilette. Entrei. De pé junto de uma mesa, extremamente pálido, estava ele. Apertei as mãos sobre o peito, fiquei imóvel, suspensa. Ele ca­minhou para mim com os braços abertos, para me envolver; eu dei­xei-me cair aos seus pés e, calada, beijei-lhe os dedos. Ele tinha ajoelhado comigo, e com as mãos enlaçadas, os olhos confundidos, chorávamos ambos. Eu só dizia num murmúrio de lágrimas:

– Há tanto tempo!..

– Minha senhora, minha querida menina – dizia Betty da porta –, e aquela gente, santo Deus, que há-de dizer!?

Eu não a escutava. Foi ele que disse sorrindo:

– Tem razão, Betty, tem razão! É necessário voltar à sala.

E deu-me o braço. Entrámos: ele grave, eu meio desfalecida, abs­tracta, com os olhos marejados de lágrimas e um sorriso vago nas feições.

Disse o nome de Captain Rytmel, e a sua antiga amizade com o conde. Vi a marquesa sorrir levemente.

E voltando-me para Rytmel:

– O sr. Carlos Fradique – disse eu –, antigo pirata.

Os dois homens apertaram a mão.

– A senhora condessa lisonjeia-me extremamente. Eu fui ape­nas corsário – disse Carlos.

Sentei-me ao piano acordando, a fugir, o teclado. Assim via bem Rytmel. A luz envolvia-o. Estava mais pálido, o seu rosto apresentava linhas mais graves. A testa tinha perdido a sua pure­za: havia uma ruga estreita e funda que a dominava.

Fradique continuava falando. Agora fazia a critica das mulhe­res do Norte.

– A irlandesa – dizia ele – tem, mais que nenhuma mulher, a graça... Sobretudo a que vive junto dos lagos! A melhor religião, a melhor moral, a melhor ciência para um espírito feminino – é um lago. Aquela água imóvel, azul, pálida, fria, pacífica, dá um ex­tremo repouso à alma, uma necessidade de coisas justas, um há­bito de recolhimento e de pensamento, um amor da modéstia e das coisas íntimas, o segredo de ser infinito sendo monótono, e a ciên­cia de perdoar... Exijo, na mulher com quem casar, que tenha as unhas rosadas e polidas, e um ano de convivência com um lago!

Eu vi Rytmel corar de leve e torcer nervosamente o bigode.

Pelo lúcido instinto da paixão, compreendi que entre aquela glorificação dos lagos, e os ocultos pensamentos de Rytmel, havia uma afinidade. Lembrou-me a revista de Longchamps, os louros cabelos irlandeses de miss Shorn, e voltando-me para Carlos Fradique:

– Meu caro amigo, um pouco do seu violoncelo, sim?

A sala abria sobre os jardins. A plácida respiração do vento fazia arfar as cortinas. Carlos Fradique começou a tocar uma balada das margens do mar do Norte, de um encanto singularmente triste. Sentia-se o chorar das águas, o feérico correr das ondas, o compassado bater dos remos de um pirata norvégio, a fria Lua. Eu tinha ido com Rytmel para junto da varanda, e enquanto a pe­quena melodia soava nas cordas do violoncelo, lembravam-me as antigas coisas do meu amor, o Ceilão, as noites silenciosas em que ele me jurava a verdade da sua paixão e a voz do mar parecia uma afirmação infinita; lembravam-me os terraços de Malta batidos da Lua, as moitas de rosas de Clarence-Hotel, os prados suaves de Ville d'Avray; via-o ferido, pálido sobre as suas almofadas; via-o abordo do Romantic, comandando as manobras da fuga, choran­do os desastres do amor... E estas memórias embalavam-se no meu cérebro, confundidas com as melodias do violoncelo.

 

Ao outro dia eu devia encontrar-me com ele nessa fatal casa nº... Fui, como sempre, toda vestida de preto, envolta num gran­de véu. Estava extremamente pálida, palpitava-me o coração de susto. Era aquele um momento de transe. Eu decidira ter com Ryt­mel uma explicação clara, definitiva, sem equívocos... Uma pala­vra que ele dissesse, seca ou indiferente, um gesto impaciente, e eu considerar-me-ia como abandonada, exilada da vida, retirava-me para um chalé na Suíça, ou para Jerusalém, ou para a melan­colia de um claustro no Sul da França. Tinha determinado assim a solução do meu destino.

Quando cheguei à casa nº... ele não estava ainda. Fiquei ali muito tempo, imóvel numa cadeira. Os ruídos da rua chegavam-me como no fundo de um sonho. A sala tinha uma luz esbatida, através dos vidros foscos como os globos dos candeeiros. Eu sentia aquela impressão indefinida, que nos vem quando estamos duran­te muito tempo num lugar sossegado e triste, olhando o silencioso cair da chuva.

De repente a porta gemeu docemente, ele entrou.

Vinha do campo. Tinha colhido para mim um pequenino ramo de flores miadas das sebes. Veio apoiar-se nas costas da minha ca­deira, e deixou-mas cair no regaço...

Depois, falando-me baixo, junto da face:

– Andei todo o dia a pensar em si, à travers champs.

Não respondi, e com os olhos errantes nas cores do tapete, desfolhei cruelmente as pequeninas flores dos prados. Tinha um contentamento amargo em torturar aqueles delicados seres, que vinham dele, e que me parecia terem dele aprendido a mentir.

– Pensei constantemente em si, e o passeio foi encantador – repetiu com uma voz docemente insistente.

Eu ergui os olhos para ele.

– Responda-me: sabe mentir?

– Mas, meu Deus – disse ele, afastando-se –, parece que me quer hoje mal, minha querida filha!

Não respondi; mas o meu regaço estava coberto de flores mu­tiladas.

Ele então ajoelhou ao meu lado, e tomando-me as mãos, espreitando os meus olhos impassíveis, ficou esperando, numa contemplação amante e paciente, que eu quebrasse aquela imobi­lidade. Eu sentia todo o meu ser pender para ele, numa atracção insensível, mas dominava-me. Até que por fim ele ergueu-se len­tamente, arremessou o corpo para um sofá, e ali ficou, como refu­giado, folheando um volume de Musset, que estava sobre a mesa...

Levantei-me, tirei-lhe arrebatadamente o livro das mãos:

– Sabe o que é? Não o compreendo, e é necessário que me di­ga, mas francamente, claramente, sílaba por sílaba, o que tem! Não me ama, é claro. Escusa de protestar. Vi-o logo pelo tom das primeiras cartas que me escreveu de Londres. E agora vejo-o pe­lo seu olhar, as suas menores palavras, o seu silêncio, até. Há uma coisa qualquer, não sei qual, mas há. A verdade é que me abando­na, que me não ama. É necessário que se explique. Isto não pode ser assim. Sofro. Se soubesse! Chorei toda a noite...

E recomecei a chorar diante dele, com soluços que me quebra­vam. Ele tinha-me tomado as mãos e dizia-me baixo as coisas mais tocantes, em que havia as ternuras do amante e as consola­ções do amigo. Afastei-o de mim, e comprimindo o pranto:

– Não, não, é necessário que me diga claramente tudo. Eu não sei o que te quero perguntar ou não me atrevo talvez... Mas tu sa­bes o que me deves responder... Diz-me a verdade...

Ele, cruzando os braços, respondeu-me, com uma extrema placidez:

– Mas, minha querida amiga, a verdade é que as ilusões do seu espírito são a nossa desgraça. Não é culpa sua, sei: é uma fatalida­de do carácter feminino. É-lhes insuportável a serenidade. Na vida pacífica procuram o romance, no romance procuram a dor. É necessário que esses pequeninos e graciosos crânios tenham sem­pre a honra de cobrir uma tempestade. Que quer então que lhe di­ga? Não vim a Portugal espontaneamente? Não tem encontrado sempre ao seu lado o meu amor, fiel como um cão? Que mais quer? Acha-me reservado, diz. E se eu tivesse as violências de Otelo, achava-me decerto ridículo! De resto, sabe-o bem, amo-a! Digo­-lho aqui, sentado num sofá, de sobrecasaca, numa casa que tem número para a rua, e vou aqui apouco, num coupé, jantar, jogar tal­vez o xadrez, vestir – quem sabe? – um robe de chambre! É lamentável tudo isto, bem sei. E é por isto que não tem confiança em mim? E diga-me francamente: se eu estivesse aqui nos paroxismos de Antony, ou tivesse uma toilette veneziana, ou se isto fosse uma abadia feudal, ou se eu partisse daqui para conquistar Jerusalém, diga-me – tinha mais confiança?

– Tudo isso não quer dizer nada.

– Oh, minha querida amiga...

– A sua querida amiga – interrompi – nada mais pede que um coração franco e recto. São tudo, pois, imaginações minhas? Não há nada que nos separe? Pois bem, vou dizer-lhe uma coisa, e juro-lhe que é irremissível, juro que o digo em toda a frieza do meu juízo, sem exaltação e sem paixão, com o discernimento mais livre, o cálculo mais positivo...

– Mas, meu Deus! Diga...

– E esta resolução, aceita-a?

– Uma resolução... E o que envolve ela?

– Envolve a única coisa possível, a única que me fará crer em si, com a mesma fé com que creio em mim. Aceita?

– Mas como não hei-de aceitar?...

– Pois bem – comecei eu.

E tomando-lhe as mãos, disse-lhe junto da face numa voz ar­dente como um beijo:

– Fujamos amanhã.

Rytmel empalideceu levemente e retirando devagar as suas mãos de entre a pressão das minhas:

– E sabe que é uma coisa irreparável?

– Sei.

Ele sentara-se, com os olhos sobre o tapete, e eu no entanto, de pé junto dele, com a minha mão pousada sobre o seu ombro, dizia-lhe como num murmúrio de um sonho:

– Pensava nisto há um mês. Vamos para Nápoles. Vamos para onde quiser. Adoro-te... É como uma pessoa que se deixa adorme­cer. Adoro-te, e quero viver contigo...

Pousei-lhe a mão sobre a testa, ergui-lhe a cabeça, para ver a resposta dos seus olhos; estavam cerrados de lágrimas.

– Meu Deus! Rytmel, tu choras...

– Não, não, minha querida! Estava pensando em minha mãe, que não torno talvez a ver... Acabou-se... Amo-te, amo-te... e... Avante!

E tomou-me nos seus braços, ardentemente, como selando um pacto eterno.

 

Fui logo para casa, chamei precipitadamente Betty.

– Betty – disse eu fechando a porta do quarto. – Betty, de­pressa, quero dizer-te uma coisa. Não me digas que não...

– Santo Deus! Sossegue, descanse, minha querida menina! Jesus, como vem pálida!

– Betty, é uma coisa irreparável..., devia ser. Foi pensada a sangue-frio. Vês como estou tranquila, sem exaltação, sem nervos. É uma resolução digna. Betty, não me digas que não!...

– Mas, minha rica senhora...

– Não se podia voltar atrás. Demais, sou feliz assim, tão feliz, tão feliz!

– Bem feliz, ao menos?

– Doidamente. E se não fosse assim, morria...

– Mas então...

– Fugimos amanhã.

Ela estremeceu toda, deitou-me um grande olhar em que apa­reciam lágrimas, e sufocada, com as mãos juntas:

– E eu?

Atirei-me aos seus braços.

– Pois havias de ficar, Betty? Tu vens connosco, Betty.

E correndo pelo quarto, abria os guarda-vestidos, tirando rou­pas, batendo as palmas e gritando:

– Arranja, Betty, arranja tudo. Depressa! Arranja!, arranja!

Mandei pôr a caleche. Eram quatro horas. Desci o Chiado. Ia alegre, triunfava: a minha vida aparecia-me, larga, cheia, esplên­dida, coberta de luz. Entrei nas modistas, olhei, escolhi, comprei, com impaciências de noiva, e recatos de conspirador. Apertei a mão a algumas amigas.

– Partes? – perguntaram-me.

– Para França.

– Com a guerra?

– Não há guerra. E, havendo, não é interessante ver matar prussianos?!

À porta do Sassetti, encontrei Carlos Fradique.

– Sabe que parto amanhã? – disse-lhe eu.

– Sabe que parto hoje? – respondeu-me. – Ia lá, apertar-lhe a mão.

– Mas é inesperado isso! Vai para França? Para quê?

– Ver os campos de batalha ao luar, ou aos archotes. Deve ha­ver atitudes de mortos muito curiosas.

– Mas vai debalde. Não há guerra. É positivo. Por isso eu vou para Itália.

– Vai para Itália?... Mas, então... Ah! Vai para Itália? Minha pobre amiga, quem sabe se isso devia ser! Em todo o caso, em qual­quer parte, ou feliz, ou triste, para a consolar, ou para fazer um trio com o meu violoncelo, sou eu, adesso e sempre.

Apertou-me a mão. Não sei porquê, aquelas palavras deram-me uma sensação triste.

Quis ir ao Aterro. A tarde caía. A água tinha uma imobilidade luminosa. Do outro lado os montes estavam esbatidos num vapor azulado e suave. Sobre o mar havia nuvens inflamadas, de uma cor fulva, como no fundo de uma glória. Algumas velas passavam ro­sadas, tocadas da luz.

Sentia-me vagamente melancólica. O rio, aquelas casas tri­viais, todos aqueles aspectos que eu conhecia, que eram para mim até aí quase inexpressivos, apareciam-me, pela última vez que os via, com uma feição simpática. Tive uma saudade piegas daqueles lugares: quis sorrir, escarnecer; mas a verdade era que aquela paisagem, o pesado hotel Central, o terraço de Braganza-Hotel, a grosseira e escura Rua do Arsenal, todas essas coisas alheias a mim, me despertavam inesperadamente o desejo instintivo de tranquilidade, de família, de situações pacíficas, fazendo destacar no fundo da minha vida, num relevo negro, a aventura que eu ia intentar; e aparecendo-me como um ajuntamento de velhos rostos amigos que se despedem, faziam-me pensar nas coisas irrepará­veis, no exílio e na morte!

A minha carruagem subia a passo a Rua do Alecrim. As luzes acendiam-se. O céu estava ainda pálido.

Uma senhora passou, só, a pé, levando uma criança pela mão: era uma mulher nova e distinta; parecia feliz. O pequenino, louro, gordo, ria, palrava naquela linguagem misteriosa e dote, que é o que ficou ainda na voz humana do abc do Céu.

Como seria bom ser assim uma mulher pacífica, com um equi­líbrio suave no coração, uma toilette fresca, o amor das coisas jus­tas, e um filho pela mão! Se eu fosse assim seria alegre, amável, passearia, daria bombons ao meu pequerrucho, trá-lo-ia vestido de cores leves, com uma flor no cinto; conversaria com ele, e à vol­ta, depois do cansaço do meu passeio, amaria a tranquilidade da minha vida. Grandes borboletas brancas voariam em Volta do candeeiro; eu, ajoelhada, procuraria despi-lo, sem o acordar, can­tando, baixo, em segredo, uma melodia dormente de Mozart e no entretanto a pena do pai rangeria, a um canto, sobre o papel. O per­fumados paraísos da vida! como eu me afasto de vós!

Assim pensava, quando cheguei a casa. No meio do meu quar­to estavam fechadas, afiveladas, sobrepostas as minhas malas. Ao pé uma grande pele, apertada na sua correia. Tudo estava pronto, devíamos partir na manhã seguinte. As minhas ideias simples debandaram.

Senti um extremo desejo de liberdade, de mares abertos, de países extensos e distantes, que se atravessam ao galope da pos­ta ou na velocidade de um vagão. Era noite. Não pedi luz. O luar entrava no quarto através das árvores do jardim. Sentei-me à ja­nela.

A minha situação apareceu-me então com o prestigio de um belo romance. Mil imaginações e fantasias cantavam no meu cére­bro. Sentia-me à entrada de uma vida de perigos, de êxtases, de glórias. Via-me na tolda de um paquete entre os perigos de um naufrágio: ou numa serra espessa, por um grande luar, numa com­panhia de contrabandistas que cantam à Virgem; ou no silêncio de uma caravana escoltada de beduínos, acampando no monte das Oliveiras, defronte de Jerusalém. Percorria a Itália; entraria nas cidades ao galope dos cavalos, ao acender o gás, quando a multidão enche os corsos entre fileiras de altivos palácios da Renascença. Via-me em Nápoles, na baia, por um luar calmo; dormindo sob as vinhas em Ísquia; ou na frescura das grutas do Pausílipo, onde ain­da choram as náiades...Aporta abriu-se de repente, um criado en­trou com uma carta. Não vi a letra do envelope, não olhei sequer, mas sentia-a! Veio luz. Era verdade, era de Rytmel! Tive-a longo tempo na mão, incerta, trémula. Pu-la em cima da pedra de uma console, fui olhar-me ao espelho, vi-me pálida. No entanto a car­ta atraía-me, parecia-me que luzia sobre o mármore branco. Tomei-a, pesei-a, senti-lhe o aroma, e devagar, cansada, suspi­rando, com os braços vergados ao peso dela, fui-a lentamente abrindo.

 

Transcrevo textualmente essa carta terrível:

«Querida: – Tenho aqui no meu quarto, diante de mim, as mi­nhas malas fechadas e afiveladas: Tenho o meu passaporte... É verdade! Não te esqueças de tirar o teu. Escrevi a minha mãe. Es­crevi a um amigo querido, que vive na intimidade da minha vida. Por isso bem vês que te escrevo, na austera firmeza da tua resolu­ção. Sou só. O meu destino tenho-o aqui preso na minha mão, como um pássaro, ou como uma luva: posso pousá-lo sobre a tolda de um paquete, pô-lo numa mesa de jogo em cima de uma carta, colocá-lo na ponta de uma espada, ou fechar-to na mão e dar-to. Mas tu pelas condições da tua vida tens um lugar definido no mundo, li­mitado e circunscrito. Estás presa, por um anel de casamento, a uma ordem de coisas, a um certo número de leis, e és na vida co­mo um navio ancorado no mar. Por isso é justo que antes de te se­parares violentamente do teu centro legítimo, eu, que tenho a ex­periência das desgraças, das viagens, e do espectáculo do mundo, te diga algumas palavras, que, se não me tornarem mais amado ao teu coração, tornar-me-ão mais estimado ao teu carácter. Fias-te de mais no amor, minha doce amiga! Abstrai neste momento de mim, da minha honra e da minha fidelidade. Falo do amor, lei ou mistério ou símbolo, força natural ou invenção literária. Fias-te de mais no amor! Aquele amparo superior, aquele apoio sólido e pro­tector, que todo o espírito procura no mundo, e que uns acham na família, outros na ciência, outros na arte, tu parece quereres en­contrá-lo somente na paixão, e não sei se isso é justo, se isso é rea­lizável!

«Creio que te fias de mais no amor! Ele não constrói nada, não resolve nada, compromete tudo e não responde por coisa alguma. É um desequilíbrio das faculdades; é o predomínio momentâneo e efémero da sensação; isto basta para que não possa repousar sobre ele nenhum destino humano. É uma limitação da liberdade; é uma diminuição do carácter; especializa, circunscreve o indivíduo; é uma tirania natural, é o inimigo astuto do critério e do arbítrio. E queres que tenha esta base a tua situação na vida? E crês na esta­bilidade do amor, tu?... Sim, é possível, enquanto ele viver do im­previsto, do romance e do obstáculo; enquanto necessitar do coupé de estores cerrados; mas logo que entre num estado regular, que se estabeleça definitivamente para durar, que se organize, que se economize, extingue-se trivialmente; e quando quer conservar­-se, tem a miséria de se assemelhar às chamas pintadas de um inferno de teatro. E então, desde o momento que o amor desaparecesse, que razão de ser tinha a tua vida, e que justificação tinha que dar de si o teu incoerente destino? Ficavas sem uma situação defi­nida; tudo te era vedado, ou pela força das leis sociais, ou pela alti­vez da tua honra. Recuar para as coisas legitimas, arrepender-te, era impossível: o arrependimento é um facto católico, não é um fac­to social. Continuar a persistir em viver pelo amor era um equívoco hipócrita, e poderias um dia encontrar-te a viver na libertinagem.

«Imaginas hoje que o amor é a única tendência, a única preo­cupação da tua vida... Não: é apenas ideia dominante na tua natu­reza. Há outras exigências, que hoje não sentes clamarem dentro de ti, porque têm sido plenamente satisfeitas nomeio legitimo em que tens vivido; mas quando, mais tarde, estiveres retirada de tudo, fechada no amor como numa concha, sentirás então amarga­mente que te falta o quer que seja que é a sociedade, a opinião, o centro de amizades, o rang, as consolações incomparáveis que dá a estima dos que nos saúdam. E o não encontrar então no mundo o teu lugar, elegante, aveludado, agaloado, emplumado e coroado, dar-te-á a sensação do abandono; e as consolações que então te quiser ministrar o amor pela sociedade que te falta, encontrarão aos teus olhos o mesmo tédio que encontrariam agora as consolações da sociedade pelo amor que te fugisse. Uma mulher que foge com o seu amante, só pode ter um lugar no Demi-monde; ou então um lugar equívoco nas salas, quando é célebre por um talento ou por uma arte. Ora tu não quererás ir para a Itália frequentar, em Nápoles, Madame de Salmé, nem quererás cantar num teatro, nem cometera inconveniência de escrever um livro. A viver modesta, tens de viver triste; a viver radiante, tens de viver humilhada. E pensas que podes, por um ano sequer, viver na intimidade abso­luta e no segredo?

«O segredo, o refúgio, um ninho perfumado num quinto andar, são coisas extremamente doces, no meio da sociedade e das rela­ções do mundo; a publicidade oficial da vida dá então um encanto estranho àqueles momentos de mistério. Mas a perpetuidade do mistério deve ser igual àquela legendária tortura da beatitude eterna! Quando dois entes se encontram, pelas fatais condições do seu procedimento, obrigados a viverem um do outro, um para o ou­tro, um eternamente no segredo do outro, quandoisto se não passa na ilha de Robinson, num entre dois discípulos de Swedenborg, nem entre dois desgraçados cheios de fome – mas numa cidade ruidosa e viva, entre duas pessoas positivas e educadas pelo Se­gundo Império, e que têm as complacências do luxo, crê que deve ser amargo.

«E depois, pensa! A nossa vida arrastar-se-á tristemente, de país em pais, sem um centro amado, sem uma família, sem um fim. Não teremos, nem durante a existência nem no grave momento da morte, a serenidade de quem é justo. A nossa vida será como a das sombras românticas de Paulo e Francesca de Rimini, levadas pe­lo vento contraditório. Morreremos enfim como dois seres estéreis, que nada criaram, e que não têm quem fique na terra com a heran­ça do seu carácter; e quando todos pelos seus filhos ganham a úni­ca justa imortalidade, nós somente seremos mortais, e para nós mais que para ninguém será terrível a lembrança do fim! Perdoa que te escreva estas coisas. Mas fiz o meu dever. E agora posso li­vremente, insuspeitamente, dizer-te que me sinto feliz, e que o momento de amanhã, quando virmos desaparecer a terra e nos acharmos sós, no infinito mar, será para mim tão belo, que só por ele julgarei justificada a minha vida.»

 

Quando acabei de ler esta carta, sentei-me maquinalmente diante das malas, com os olhos fixos, como idiota. Abri uma gave­ta, tirei não me recordo que pequeno objecto de renda, e tornei a fechar, com um movimento automático, lúgubre, e a ausência absoluta da consciência e da vida. Chamei Betty:

– Betty, que horas são?

– Onze, minha senhora.

– Dá-me água, tenho sede. Dá-me água com limão...

Quando ela saiu fui encostar a cabeça à vidraça, a olhar o mo­vimento ondeado e lento das ramagens escuras. A Lua pareceu-me regelada. Betty entrou.

– Betty – disse-lhe eu numa voz sumida –, sabes? Tenho medo de morrer doida...

Ela olhou-me, e viu no meu rosto uma tal expressão de angús­tia, que me disse:

– Que tem, meu Deus, que tem? Chore, minha rica menina, chore...

– Não posso, não posso. Eu morro... Vem para ao pé de mim, Betty!...

– Meu Deus, quer-se deitar? Diga...

E erguendo os olhos e as mãos, numa imploração cheia de dor, de desespero:

– Deus me leve para si! Ai! Nada disto era se a mamã fosse vi­va, minha senhora!

Começou a chorar. Eu olhei-a com uma grande aflição, senti os olhos húmidos, os soluços sufocaram-me, e arremessando-me aos seus braços, chorei, chorei amargamente, chorei cruelmente, cho­rei pela saudade, chorei pela traição, chorei pelo meu passado legi­timo, chorei pelo encanto dos meus pecados, chorei por me sentir chorar...

 

Sosseguei. Vencida, fiquei numa chaise-longue, muda e como morta. Olhava maquinalmente o tremer da luz.

– Betty – disse eu –, deita-te. Eu estou bem. Vai...

Ela saiu, chorando. O quarto estava mal alumiado. Eu via, fo­ra, as ramagens do jardim, recortando-se num relevo negro sob o pálido céu, cheio da Lua. Estive muito tempo assim, olhando, sem consciência e sem vontade. Lentamente, creio, comecei pensando em coisas alheias aos interesses da minha dor: lembrava-me a for­ma de um vestido que eu tinha desenhado para a Aline.

Por fim ergui-me, passei muito tempo no quarto, o movimento ­chamou-me à consciência e à verdade das minhas aflições.

Arranquei a folha de uma carteira, e escrevi a lápis tumultuosa­mente: «Tem razão, tem razão. Espero-o amanhã às 10 horas da noite na casa... Até lá não lhe direi que o amo; só lá lhe direi o que sofro.»

Eu mesma saí do corredor, e do alto da escadaria, silenciosa, alumiada por um grande globo fosco, chamei um criado, André, im­becil e discreto, e atirei-lhe o bilhete lacrado, dizendo-lhe:

– Leve este bilhete já... Vá numa carruagem.

E indiquei-lhe a casa de meu primo. Rytmel estava hospedado lá.

Vim sentar-me à janela do meu quarto: vinha um aroma suave do jardim; o luar, as grandes sombras, tinham um repouso român­tico e triste. Lentamente, a minha desgraça começou aparecendo-me inteira, nítida, em pormenores, numa grande síntese, como se fosse um mapa.

Eu era traída! Aos vinte anos, com todas as inteligências da paixão, com todos os delicados prestígios do luxo, era traída, era traída! Senti então, pela primeira vez, a presença do ciúme, esse personagem tão temido, tão cantado nas epopeias, tão arrastado pela rampa do teatro, tão conhecido da polícia correccional, tão cruel, tão ridículo, tão real! Vi-o! Conheci-o! Senti o seu contacto irritante e mordente como um corrosivo; a sua argumentação miú­da, jesuíta, implacável, sanguinária: todo o seu processo de acção, que torna de repente o coração mais puro tão imundo como a toca de uma fera.

Senti o mais cruel dos ciúmes todos; aquele que se define, que diz um nome, que desenha um perfil, que no-lo mostra, o nosso inimigo, que nos enche as mãos de armas, que nos obriga a avançar para ele. Eu sentia no meu ciúme um ponto fixo – ela. Era ela, a outra! Lembrava-me confusamente: tinha cabelos louros, finos, espalhados, uma nuvem de ouro esfiado. Eu tinha-a visto em Paris vestida de roxo na revista de Longchamps. O seu olhar era franco: os homens deviam encontrar nele o que quer que fosse, que prome­tia um destino pacífico. Que secreto encanto se irradiaria da esbel­ta fraqueza do seu corpo? Era a simplicidade? Era a inteligência? Era a ciência das coisas do amor?... Como eu ardia por a conhecer! E não sabia nada dela senão que era irlandesa, e que se chamava miss Shorn!

Ah!, sim, sabia outra coisa – que ele a amava! Conhecê-la! Conhecê-la! Mas como? Podia ser, pelas suas cartas! Decerto! Ela devia pôr nelas toda a sua íntima personali­dade. Era loura, era inglesa, por isso raciocinadora: devia escrever pacificamente, sem sobressaltos e sem inspirações da paixão; nas suas cartas, provavelmente, desfiava o seu coração. Eu conhecê­-la-ia bem, se as lesse! Eu saberia o estado de espírito de Rytmel, a marcha da sua paixão, pelas cartas dela. Devia lê-las! Era neces­sário pedi-las, roubá-las, comprá-las, eu sei! Mas era necessário lê-las!

Para pensar assim eu nenhuma prova tinha de que ele recebia cartas dela, mas tinha a certeza que elas existiam e que o seu cora­ção estava cheio delas...

Quis serenar, pacificar-me, dormir.

Deitei-me. O meu pobre cérebro estava numa vibração tem­pestuosa; era como numa tormenta em que vêm à superfície da mesma vaga os destroços de um naufrágio e as flores da alga; no meu espírito revolto, surgiam, no mesmo redemoinho, as coisas graves e as recordações fúteis, as minhas dores e as minhas fanta­sias, os desastres do meu amor e ditos de óperas cómicas! Sentia a chegada da febre. Chamei Betty.

– Betty! Não posso dormir, não sei que tenho. Quero dormir por força. Quero amanhã todas as minhas faculdades em equi­líbrio. Se não durmo estou perdida, endoideço... Dá-me alguma coisa.

– Mas o quê, minha senhora?

– Olha, dá-me aquela bebida que davam à mamã, nas insó­nias, a que tu tomas quando tens as dores... Tens?

– Quer ópio?

– Não sei! Água opiada, vinho opiado, o quer que seja. Foi o doutor que me disse...

– Minha querida menina, eu tenho ópio. Uma gota num copo de água. Eu sei? Talvez lhe faça mal!

– Dá-ma, o doutor disse-mo ontem. Dá, depressa!

Bebi. Era água opiada, creio eu. Não sei. Parece-me que ador­meci logo, e lembro-me que durante o sono sentia-me caminhar incessantemente, num movimento perpétuo que afectava todas as formas, ora lento e pacífico, como um passeio sob uma alameda; ora rápido, volteado, e era a valsa de Gounod que eu dançava; ora sole­ne e melancólico, e era um enterro que eu acompanhava; ora cortante, escorregadio, veloz, e era em Paris, e era no Inverno, e eu patinava sobre a neve.

Acordei de manhã, serena e decidida. Mandei pôr um coupé. Sai. Fiz parar à porta de meu primo. Eram duas horas da tarde. Eu sabia, desde essa manhã, que Rytmel estava com ele, em Belas. Subi. Apareceu um criado português, Luís, que eu conhecia, um imbecil, atrevido para o ganho, discreto pelo medo

– M. Rytmel!

– Saiu, senhora condessa.

– Jacques?

– Foi com ele, senhora condessa.

Jacques era um criado antigo de Rytmel.

– Luís, leva-me ao quarto de Mr. Rytmel.

Ao abrir a porta do quarto estremeci. Sentia-me humilhada. Fui rapidamente a uma secretária, revolvi as gavetas, as peque­nas papeleiras... Nenhumas cartas, apenas cartas indiferentes. Irritada, abri as cómodas, espalhei as roupas, procurei nos baús, nas malas, nos bolsos, ergui o travesseiro. Tremia, arquejava. Era uma busca inquisitorial, frenética, desesperada, infame!

– Luís – disse eu baixo. – Luís, tens vinte libras. Tens cin­quenta.

– Mas, minha senhora...

– Este senhor onde tem as suas cartas? Tens cem libras. Dou-te tudo, estúpido... Onde tem ele às cartas, ele?

– Oh, minha senhora – disse o criado, com uma voz lamen­tável –, eu não sei.

– Não tens visto? Não tem uma secretária, uma papeleira, uma carteira?...

– Tem. Tem uma carteira de marroquim. Trá-la consigo. Anda cheia de cartas... Levou-a decerto. Nunca a deixa.

Saí, desci a escada, correndo, fugindo daquele desastre, da­quela vergonha, daquelas confidências. Atirei-me para o fundo da carruagem.

– A casa! – gritei.

Tinha fechado os estores: soluçava, sem chorar.

– Betty! Betty! – clamei logo no corredor.

Ela apareceu, correndo,

– Betty – disse eu, vivamente, fechando a porta do quarto. – Diz-me: aquela água com ópio não faz mal?

– Porquê? Sente-se doente?

– Não. Estou bem. Não faz mal?

– Nenhum.

– Juras?

– Juro. Mas...

– Jura sobre estes santos Evangelhos.

– Oh, senhora! Mas, porquê? Juro. Mas, porquê?

– Tens ópio? Dá-mo.

– Quer dormir?

– Não.

Ela então olhou-me, fez-se extremamente pálida.

– Mas, senhora condessa, que quer isto dizer?

– Dá-mo. Dá-mo, Betty. Pensas que me quero matar?

Ela calou-se.

– Oh, doida! – disse eu, rindo. – Se me quisesse matar não to pedia. Mas sou feliz... Passaram-se outras coisas, vês tu? Não tas digo, mas sou feliz. Sabes o que é? É que me vou logo encontrar com ele.

E com a voz mais baixa, como envergonhada:

– É às dez horas, e vês tu? Queria dormir para não esperar.

– Oh, minha senhora, não lhe vá fazer mal! De resto, eu lho dou. O frasco de ópio está aqui nesta gaveta do lavatório. Não lhe faça isto mal, meu Deus!

– Não, não, minha Betty! Ah! Está na gaveta? Bem. São duas gotas, sim? Não faz mal. Estou tão contente! Olha, até nem quero dormir. Fica aqui a conversar comigo. São cinco horas. Para as dez pouco falta. Não custa esperar. Está então naquela gaveta o fras­co... Bom. Sabes, Betty? Sou feliz. Não quero dormir. Conta-me uma história.

A pobre criatura, vendo-me alegre, sorria. Eu, entretanto, ti­nha os olhos fitos na gaveta do lavatório. Betty falava, falava! Eu ouvia as suas palavras sem compreender, como se ouve um mur­múrio de água.

 

A tarde descia no entanto, e eu sentia uma inquietação, uma angústia crescente.

Meu primo, não sei se poderei contar-lhe miudamente todos os transes daquela noite. Não o exigirá decerto. Nada seria mais ter­rível do que ter de redigir e colorir o meu crime. Perdoe-me a con­fusão aflita das minhas palavras e os arabescos trémulos da minha letra.

Eram dez horas da noite: fui à casa nº... Rytmel estava lá. Achei-o pálido, e instintivamente estremeci. Conversámos. Enquanto ele falava, eu olhava-o avidamente, examinava a sua casaca, espreitava o volume que devia fazer a carteira onde es­tavam as cartas. E revolvia com a mão húmida o bolso do meu vestido: tinha nele o frasco do ópio. Era um frasco de cristal verde, facetado, com tampa de metal fixa. As palavras de Rytmel nessa noite eram muito doces e muito amantes. Procuravam expli­car-me a sua carta, e palpitavam ainda de paixão... Vinham real­mente da verdade do seu coração? Era uma retórica artificial à flor dos lábios, enganadora, como um pano de teatro? Não o sabia: só as cartas dela mo poderiam revelar, e ele tinha-as ali no bolso! Eu via o volume que fazia a carteira no peito da casaca! Estava ali a sentença da minha vida, a minha infelicidade insondável, ou a imensa pacificação do meu futuro! Podia porventura hesitar? – Ele falava no entanto. Eu tremia toda. Olhava fixamente para um copo que estava sobre a mesa ao pé de uma garrafa de cristal da Boémia. O reposteiro da alcova achava-se corrido: dentro estava escuro.

Betty tinha ido comigo, e ficara num quarto distante, que da­va para uns terrenos vagos...

– E se houvesse um desastre! – pensei eu de repente. – Não há pessoas que sucumbiram completamente, cujo adormecimento foi acabar de arrefecer no túmulo?

Mas eu via sempre a saliência da carteira, que me tentava co­mo uma coisa resplandecente e viva. Podia aproximar-me dele de repente, enfraquecê-lo ao calor das minhas palavras, ir levemen­te, astuciosamente, arrebatar-lhe a carteira, saltar, correr, atirar-me para o fundo do meu coupé, e fugir. Mas se ele resistisse? Se perdesse a consciência da sua dignidade e da humilde debilidade do meu ser? Se me sujeitasse violentamente, se me arrancasse ou­tra vez as cartas?

Não podia ser. Era necessário que dormisse tranquilamente! Se as cartas fossem inocentes, simples, inexpressivas, como eu ajoelharia depois, ao pé do seu corpo adormecido, como esperaria com uma ânsia feliz que ele acordasse! Que aurora sublime acha­ria ele nos meus olhos quando os seus se abrissem! Mas se houves­se nas cartas a culpa, a traição, o abandono?!

Levantei-me. Rytmel tinha ao pé de si um copo com água. Be­bia aos pequenos golos quando fumava. Eu deixava-o fumar. Mas eu não sabia como havia de achar um momento meu, bastante pa­ra deitar duas gotas de ópio no copo.

Tive um expediente trivial, estúpido.

– Rytmel – disse eu, como num teatro, como nas comédias de Scribe, com uma voz imbecilmente risonha –, vá dizer a Betty, que pode ir, se quiser. A pobre criatura dormiu pouco, está doente.

Ele saiu; ergui-me. Mas ao aproximar-me da mesa, defronte do copo, fiquei hirta, suspensa. Estive assim um tempo infinito, segundos, com a mão convulsa apertando o frasco no bolso. Mas era necessário, eu tinha-o ouvido falar, voltava, sentia-lhe os passos, ia entrar... Tirei o frasco, e louca, precipitada, mordendo os beiços para não gritar, esvaziei-o no copo.

Ele entrou. Eu deixei-me abater sobre uma cadeira, trémula, em suor frio, e, não sei porquê, sentindo uma infinita ternura, dis­se-lhe sorrindo, e quase chorando:

– Ah, como eu sou sua amiga! Sente-se ao pé de mim.

Ele sorriu. E – meu Deus! – aproximou-se, creio que sorriu, e tomou o copo! E com o copo na mão:

– E sabe – disse ele – que ninguém o crê mais do que eu!... Se não fosse o teu amor como poderia eu viver?

E conservava o copo erguido. Eu estava como fascinada. Via o reflexo da água, parecia-me vagamente esverdeada. Via as cinti­lações do cristal facetado.

Finalmente bebeu!

...Desde esse momento fiquei num terror. Se ele morresse? Meu Deus, porquê? Não se dá ópio às crianças, aos doentes? Não é ele a clemente pacificação das dores? Não havia perigo. Quando acordasse eu seria tão sua amiga, tão terna com ele, para me absol­ver daquela aventura imprudente! Ainda que seja culpado, amá­-lo-ei! pensava eu. Pobre dele! Não lhe bastava ter de dormir as­sim forçadamente num sono pesado e cruel? Amá-lo-ia, culpado. Traída, amá-lo-ia ainda!

Ele, entretanto, estava calado, no sofá, com a cabeça encosta­da. De repente pareceu-me vê-lo empalidecer, ter uma ânsia, sor­rir. Não sei o que houve então. Não me lembra se falámos, se ele adormeceu brandamente, se alguma convulsão o tomou. De nada me lembro.

Achei-me ajoelhada ao pé dele. Devia ser meia-noite. Estava imóvel, deitado no sofá. Tinham passado duas horas. Senti-o frio, via-o lívido, não me atrevia a chamar Betty. Dei alguns passos pe­lo quarto numa distracção idiota. Cobri-o com uma manta.

– Vai acordar – dizia eu maquinalmente.

Compus-lhe os cabelos ligeiramente desmanchados. De re­pente a ideia da morte apareceu-me nítida e pavorosa. Estava morto! Senti como o fim de todas as coisas. Mas chamei-o, cha­mei-o brandamente, e com doçura...

– Rytmel! Rytmel!

E andava nos bicos dos pés para o não acordar! Subitamente estaquei, olhei-o avidamente, precipitei-me sobre o corpo dele, gritando sufocada:

– Rytmel! Rytmel!

Ergui-o: a alucinação dava-me uma força cruel. A cabeça pen­deu-lhe inanimada. Desapertei-lhe a gravata. Amparei-o nos braços, e nesse momento senti o volume, a saliência que na sua casaca fazia a carteira. Veio-me a ideia das cartas. Tudo tinha si­do pelo desejo de as ler. Tirei-lhe a casaca; era difícil; os seus mús­culos estavam hirtos. Junto com a carteira havia outros papéis e um maço de notas de banco. Ao tomá-los, os papéis e as cartas espalharam-se no chão. Apanhei-as, apertei-as na gravata branca e meti tudo no bolso.

Isto tinha sido feito convulsivamente, inconscientemente. Dei com os olhos em Rytmel. Pela primeira vez via contracção mortal do seu rosto. Chamei-o, falei-lhe! Estava frenética! Porque não queria ele acordar? Empurrei-o, irritei-me com ele. Porque esta­va assim; porque me fazia chorar? Tinha vontade de lhe bater, de lhe fazer mal.

– Acorda! Acorda!

Insensível! Insensível! Morto! Ouvi passar na rua um cano. Havia pois alguém vivo!

De repente, não sei porquê, lembrei-me que tinha esvaziado o frasco! Deviam ser só duas gotas! Estava morto!

Gritei:

– Betty! Betty!

Ela apareceu, arremessei-me aos seus braços. Chorei. Voltei para junto dele. Ajoelhei. Chamei-o. Quis dar-lhe um beijo: to­quei-lhe com os lábios na testa. Estava gelada. Dei um grito. Tive honor dele. Tive medo do seu rosto lívido, das suas mãos geladas!

– Betty, Betty, fujamos!

Consciência, vontade, raciocínio, pudor, perdi tudo aos peda­ços. Tinha medo, somente medo, um medo trivial, vil!

– Fujamos! Fujamos!

Não sei como sal.

Fora da porta vi ao longe, no começo da rua, uma luz caminhar! Caminhava, crescia! Havia alguém, vestido de vermelho, que a trazia! Parecia-me ser sangue! A luz crescia. Esperei, a tremer. Aquilo caminhava para mim. Aproximava-se! Eu estava encosta­da à porta, na sombra, fria de pedra. A luz chegou: vi-a. Era um padre, era outro homem com uma opa vermelha e uma lanterna. Iam levar a alguém a extrema-unção...

Amparei-me no braço de Betty, e principiei a andar, sem sa­ber para onde, como louca.

 

CONCLUEM AS REVELAÇÕES DE A.M. C.

Convidada a expor o que sabia, a condessa disse de viva voz, com humildade e com firmeza, a causa e o modo como involunta­riamente matara Rytmel.

– Eis as cartas e as notas que ele trazia consigo – concluiu ela, colocando sobre a mesa um maço de papéis atados numa gravata branca. – As minhas derradeiras disposições – acrescentou – estão feitas. Dêem-me o destino que quiserem. Inflijam-me o castigo que mereço.

Estávamos todos calados. F... adiantou-se para o centro da sa­la e ergueu a voz:

– Castigar é usurpar um poder providencial. A justiça huma­na que se apodera dos criminosos não tem por fim vingar a socie­dade, mas sim protegê-la do contágio e da infecção de culpa. Todo o crime é uma enfermidade. A acção dos tribunais sobre os crimi­nosos, posto que nem sempre cesse de facto, cessa efectivamente de direito no momento em que termina a cura. Sequestrar aqueles em que o mal deixou de ser uma suspeita fisiológica, e por conse­guinte uma verdade científica, é fazer à sociedade uma extorsão, que, por ser muitas vezes irremediávelnão deixa de ser monstruo­sa e horrível. Todo aquele que não é pernicioso, é necessário, é in­dispensável ao conjunto dos sentimentos, ao destino das ideias, à aritmética dos factos no problema da humanidade. A natureza do acto que estamos ponderando, as razões que o determinaram, as circunstâncias que o revestiram, a intenção que lhe deu origem, tu­do isto nos convence de que a liberdade desta senhora não pode constituir um perigo. Encarcerada e entregue à acção dos tribu­nais, seria uma causa-crime, interessante, escandalosa, prejudi­cial. Restituída a si mesma, será um exemplo, uma lição.

E aproximando-se da porta, correu a chave que a fechava por dentro, abriu-a de par em par, e dirigindo-se à condessa, com voz respeitosa e grave, acrescentou:

– Vá, minha senhora: tem amais plena liberdade. Poderia dis­putar-lha a justiça oficial, não pode empecer-lha a rectidão dos homens de bem a quem foi entregue a decisão da sua causa. O seu futuro, violentamente assinalado pela desgraça, não pertence aos criminosos, pertence aos desgraçados. Leve-lhes a melancólica lição destes desenganos, e permita Deus que perante a suprema justiça, possam os benefícios obscuros e ignorados que houver de espalhar em volta de si, compensar os erros que atravessaram o seu passado! Os vestígios da sua culpa ficarão sepultados nesta casa.

Nós abrimos-lhe passagem para que saísse. A condessa, numa palidez cadavérica, vacilava; faltavam-lhe as forças; não podia sustentar-se em pé. O mascarado alto deu-lhe o braço. Ela fez uni movimento como se tentasse falar; o seu rosto contraiu-se numa profunda expressão de dor; hesitou um momento; por fim compri­miu os beiços no lenço e saiu abafando uma palavra ou estrangu­lando um soluço.

Momentos depois ouvimos a carruagem afastando-se com aquilo que fora no mundo a condessa de W...

 

Havíamos acordado no modo de ocultar o cadáver, o que se tor­nava tanto mais fácil quanto era inteiramente ignorada a assis­tência do capitão em Lisboa.

Viéramos para o pavimento inferior do prédio, a uma casa tér­rea, a que se descia por quatro degraus para baixo do solo. Era o fim da tarde. Estávamos alumiados com a luz das velas, porque não entrava na loja a luz do dia. Tinha-se cavado uma profunda cova. Sentia-se o cheiro húmido e acre da terra revolvida. Dois dos indivíduos a que tenho chamado os mascarados, seguravam duas serpentinas em que ardiam dez velas cor-de-rosa. Dê travejamen­to escuro do tecto pendiam como cortinas pardacentas e prateadas as teias de aranha rasgadas pelo peso do pó.

Desenrolámos o fardo que tínhamos colocado junto da cova, e contemplámos pela derradeira vez a figura do morto estendido so­bre a sua manta de viagem.

Tinham-lhe atado a gravata branca, abotoado o colete e ves­tido a casaca azul de botões de ouro, em cuja carcela se via ainda pendida uma rosa murcha. A cabeça dele, na luz a que estava su­jeita, era de uma expressão ideal. Os olhos, de que se não viam as pupilas, apagados e imóveis, davam ao seu rosto o vago aspecto que apresentam os das antigas estátuas. Nos lábios entreabertos pa­recia pairar um leve sorriso sob o bigode arqueado. Os anéis do cabelo, despenteados pelo contacto da manta em que viera envolto o cadáver, destacavam na lividez da fronte como um velo de ouro nu­ma superfície de marfim.

Havia um silêncio profundo. Ouvia-se o bater dos segundos nos relógios que tínhamos nas algibeiras e o zumbir das moscas que esvoaçavam sobre a face do morto. Eu, fitando-o com os olhos marejados de lágrimas, pensava melancolicamente...

Pobre Rytmel! Se neste momento solene, em que o teu corpo es­pera à beira da cova pelo seu descanso eterno, te faltam na terra as pompas fúnebres devidas à tua jerarquia; se te não seguiu até aqui um préstito de uniformes recamados de ouro; se nem sequer tens ao entrar na tua derradeira morada as orações de um padre e a luz de um círio, cubra-te ao menos a bênção da amizade! Des­cendente de lordes, moço, inteligente e belo, quando todas as flo­res que perfumam a vida desabrochavam debaixo dos teus passos, apaga-se de súbito no firmamento a estrela que presidiu ao teu nascimento, e tu baqueias como o ente mais desprezível no fundo de uma sepultura sem lápide, sem nome, na mesma casa em que vieste procurara última expressão da tua felicidade, à luz das mes­mas velas que alumiaram o teu derradeiro beijo! Os outros desgra­çados que morrem têm ao menos na terra um lugar assinalado onde repousam as suas cinzas, e onde podem ires que às amaram, chorar por eles. É mais cruel o teu destino; tu morres e desapare­ces! Não ensombrarão a tua campa as árvores tristes dos cemité­rios. As aves que passarem nos céus não baixarão a beber da água que as chuvas tiverem deixado na urna do teu mausoléu. A Lua, terna amiga dos mortos, não virá beijar por entre a rama negra dos ciprestes, a brancura da tua campa. O orvalho das madrugadas não chorará nas flores do teu jazigo. As abelhas não murmurarão em torno das rosas plantadas sobre o teu corpo. As borboletas brancas não adejarão no fluido de ti mesmo que pudesse romper do seio da terra para a luz da manhã no aroma dos jasmineiros e dos goivos. Tua mãe, pensativa e pálida, procurará debalde agrade em que se ampare para dobrar os joelhos e levantar para o Céu esse olhar de interrogação em que a lembrança dos filhos mortos se en­volve como na túnica luminosa de uma ressurreição.

O mascarado alto curvou-se sobre o cadáver de Captain Rytmel e ergueu-o vigorosamente pelos ombros. Nós amparámos o corpo e descemo-lo ao fundo da cova. O mascarado, ajoelhando-se depois no chão, cobriu com um lenço o rosto do morto e disse, como se estivesse falando a uma criança adormecida:

– Descansa em paz! Eu irei dizer à tua mãe o lugar em que re­pousa o teu corpo, e voltarei a ajoelhar-me sobre esta sepultura de­pois de ter recebido no meu próprio seio as lágrimas que ela der­ramar por ti. Adeus, Rytmel! Adeus!

E impeliu em seguida para dentro da cova uma grande porção de terra amontoada aos seus pés. A terra desabou de chofre sobre o cadáver, levantando um som baço e mole.

 

Examinámos depois os papéis de Rytmel a fim de coordenar­mos os seus negócios. Verificou-se a existência de mil e trezentas libras em notas do banco de Inglaterra.. Entre as cartas não ha­via uma só letra de miss Shorn.

Nenhum de nós tinha o espírito bastante sossegado para poder reentrar imediatamente nos assuntos triviais da existência. Re­solvemos permanecer ali até que decorressem alguns dias sobre a catástrofe de que tínhamos sido testemunhas.

O prédio em que estávamos foi comprado em nome de Lady... a mãe de Rytmel, e nele se guardaram todos os objectos que lhe ti­nham pertencido. Um cofre de ferro, damasquinado de ouro e des­tinado a receber as cinzas do morto, foi colocado no lugar em que ele se achava sepultado.

O mascarado alto dispunha-se a partir para Londres quando tivemos notícia da publicação das cartas do doutor neste periódi­co. A condessa declarou que se entregaria à polícia, se não levantássemos na imprensa as suspeitas formuladas na carta de Z... acerca da probidade do médico, e se F... se não desdissesse catego­ricamente das injúrias que nos dirigira na carta intempestivamente mandada ao Dr... por intermédio de Friedlann. A condessa autorizava-nos a tornarmos pública a sua historia, dizendo que ti­nha deixado para sempre de pertencer ao mundo, para o qual a bio­grafia que ela lhe legava seria talvez um exemplo profícuo.

Foi então, senhor redactor, que determinámos referir-lhe to­dos os pormenores deste doloroso acontecimento, ocultando ou substituindo os nomes das pessoas que tiveram parte nele, e deixando à sociedade a faculdade de as descobrir e o direito de conde­ná-las ou absolvê-las.

A condessa resolveu em seguida entrar num convento, que ela mesma escolheu depois de miúdas indagações. O mascarado alto acompanhou-a e eu segui-o a uma vila da província do Minho, onde existe ainda, regido com todo o rigor ascético do estatuto, um velho convento de carmelitas descalças, habitado por cinco ou seis religiosas. Estas mulheres decrépitas vivem como dantes tia pobreza de que fizeram voto, mantendo a oração, a penitência e o jejum com a mesma exaltação mística, com o mesmo fervor cató­lico dos primeiros anos das suas núpcias com o divino Esposo. Tra­zem os pés nus e o corpo constantemente envolto na aspereza estreme do burel. Não usam roupas de linho nem algodão. Em nenhum dia do ano se permitem carne às suas refeições. Comem juntas no antigo refeitório, havendo sempre uma que revezadamente se prostra à entrada da sala, segundo o primitivo uso da ordem, para que as outras lhe passem por cima ao entrar e ao sair da mesa. Não têm património de nenhuma espécie, nem outro algum rendimento que não seja o produto dos trabalhos que fazem. Furtadas a toda a convivência externa vivem na clausura mais estreita e na miséria extrema. Ninguém no mundo tornou a ver as moradoras daquela casa desde que entraram nela. As que morrem são enterradas pelas outras no claustro e cobertas com uma pedra lisa, sem nome e sem data, Não há dístico nem outro sinal que diferencie as que deixam de existir. A morte para todas elas começa no momento em que transpõem o limiar da portaria. Dentro tudo é sepulcro. A morte é simplesmente a mudança de cubículo.

Tal foi a casa escolhida pela condessa para recolhimento e asi­lo do resto de seus dias.

O exterior do edifício era misterioso e lúgubre Cingia-o em to­da a sua amplitude uma alta muralha que o disgregava do resto do mundo, cerrando as casas habitadas pela freiras ao exame de fo­ra. Era um prédio emparedado. Amuralha, que media a altura de quatro andares, era da cor da estamenha, sombra e triste, man­chada de grandes nódoas esverdeadas e negras como o capuz de um ermita, tinia espécie de lençol em que se enrolasse para o enterro uma casa morta. Havia um ponto em que esta faixa se recolhia, formando o pátio por onde se entrava para o convento, cuja porta, mordida pelos anos, chapeada e cravejada com enormes pregos, se via no fundo através dos grossos varões dó uma grade de ferro. Pe­las juntas desarticuladas das grandes pedras que lajeavam o pá­tio, rompiam moitas de ortigas, com a rudeza de cabelos hirsutos, saídos pelos rasgões de um barrete. Do meio do largo surgia o bocal da um poço, cujo balde, seguro por uma corda dó esparto, pendia de uma estaca. No chão estavam estendidos os andrajos das pobres da vizinhança, que vinham lavá-los ao pé do poço, e nesse recin­to os deixavam a enxugar juntamente com as enxergas dilaceradas e apodrecidas dos berços dos seus pequenos. A um canto do pátio pendia do muro uma corrente de ferro com que se tangia uma si­neta interior. A este sinal via-se uma abertura da alvenaria rodar no muro um cilindro de madeira, que por um movimento vagaro­so metia para dentro a sua superfície côncava e mostrava para fo­ra o seu interior convexo. Parecia quando isto se ouvia que o taci­turno monstro entreabria a pálpebra, deixando ver uma órbita sem olho. Este aparelho chama-se a roda. A condessa pronunciou aí uma palavra, a que respondeu de dentro uma espécie de gemido, e foi esperar em seguida para junto da porta negra ao fundo do pátio.

Quando a porta se abriu e o primo da condessa lhe apertou pe­la última vez a ruão, as lágrimas, que até aí conseguira dificultosamente reprimir, saltaram-lhe dos olhos.

– Acha horrível, não é verdade? – perguntou-lhe ela com um sorriso em que transparecia a estranha luz da resignação das mártires antigas. – Que queria que eu fizesse, meu querido amigo? Matar-me? Prostituir-me à conveniência da sociedade? Não posso. Falta-me o valor para sacrificar ao meu infortúnio a salvação da minha alma, e escuso de dizer-lhe que me falta igualmente a intrepidez precisa para sacrificar ao sossego ordinário da vida o pudor do meu coração. Bem vê, pois, que aceitei a solução mais sua­ve. Coitado! como lhe dói a tristeza do meu destino! Deixe estar: prometo-lhe morrer breve, se me não suceder aquela desgraça receada por Santa Teresa de Jesus: que o prazer de me sentir mor­rer me não prolongue mais a vida!

Entregando-lhe em seguida o capuz e o manto de casimira em que fora envolvida:

– Adeus, meu primo – disse-lhe ela deixando-se beijar na testa –, adeus! Peça a Deus que me perdoe, e aos vivos que me es­queçam.

Aos primeiros passos que ela deu para lá da porta, esta fechou-se do mesmo modo por que havia sido aberta, sem que ninguém mais fosse visto, tendo mostrado um buraco lôbrego, negro e pro­fundo como a goela de um abismo, e a amante de Rytmel entrou no claustro. Os ferrolhos interiores rangeram sucessivamente nos anéis, expedindo uns sons entrecortados, semelhantes a soluços. arrancados de uma garganta de ferro.

O mascarado alto passou parte dessa noite na vila, esperando a mala-posta que partia à uma hora. Ao subirmos juntos à carrua­gem ouvimos uma espécie de rebate em dois sinos de uma igreja. Perguntámos o que era. O deputado da localidade, que nos acom­panhava no coupé, respondeu, atirando fora um fósforo com que acendera um charuto:

– São as carmelitas que pedem o socorro da caridade, porque não têm que comer.

O cocheiro fez estalar o açoite, e a berlinda partiu a galope, aba­fando o vozear entristecido das sinetas com o estrépito que ia fa­zendo pelas calçadas estreitas e tortuosas da povoação.

Pouco mais tenho que contar-lhe.

O conde de W... recebeu em Bruxelas uma carta de sua mulher contendo estas linhas:

 

«Destituo-me voluntariamente da minha posição na sociedade. De todos os direitos que porventura pudesse ter, um só peço que não seja contestado: o direito de acabar. Suplico-lhe que me per­mita desaparecer, e que acredite na sinceridade da minha gratidão eterna.»

 

O doutor está, como ele mesmo disse, nos hospitais de sangue do exército francês.

Frederico Friedlann partiu repentinamente no mesmo dia em que lançou no correio a carta de F..., para ir incorporar-se na se­gunda landwer do seu país.

F... e Carlos Fradique Mendes achavam-se há dias numa quinta dos subúrbios de Lisboa escrevendo, debaixo das árvores e de bruços na relva, um livro que estão fazendo de colaboração, e no qual – prometem-no eles à natureza-mãe que viceja a seus olhos – levarão a pontapés ao extermínio todos os trambolhos a que as escolas literárias dominantes em Portugal têm querido sujeitar as invioláveis liberdades do espírito.

Se me é lícito, por último, falar-lhe de mim, saberá, senhor re­dactor, que estou recolhido numa pequena casa na província. Se ainda se lembrar de Teresinha, não estranhará que eu acrescen­te que estou casado há dias. Precisava disto o meu coração: da paz de um lar tranquilo. Presenciar as profundas comoções romanes­cas da vida é como ter assistido a um grande naufrágio: sente-se então a necessidade consoladora das coisas pacíficas: então mais que nunca se reconhece que o ser humano só pode ter a felicidade no dever cumprido. – A. M. C.

 

A ÚLTIMA CARTA

Senhor Redactor do Diário de Notícias. – Podendo causar re­paro que em toda a narrativa que há dois meses se publica no fo­lhetim do seu periódico não haja um sé nome que não seja supos­to, nem um só lugar que não seja hipotético, fica V. autorizado por via destas letras a datar o desfecho da aludida história – de Lis­boa, aos vinte e sete dias do mês de Setembro de 1870, e a subscre­vê-la com os nomes dos dois signatários desta carta.

Temos a honra de ser, etc.



 

[1] Criado dos quartos.

 

                                                                                            Eça de Queirós

 

                      

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