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O RETRATO DE DORIAN GREY / Oscar Wilde
O RETRATO DE DORIAN GREY / Oscar Wilde

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O RETRATO DE DORIAN GREY

 

            O artista é o criador de coisas maravilhosas.

            Revelar a arte, esconder o artista é a meta da arte.

            O crítico é aquele capaz de traduzir para uma outra maneira, ou para um novo material, sua impressão das coisas maravilhosas.

            Tanto a forma mais elevada como a forma mais baixa de crítica é um modo de autobiografia.

            Os que descobrem significados feios nas coisas maravilhosas são corruptos deselegantes. Isto é um erro.

            Os que descobrem significados maravilhosos em coisas maravilhosas são os ilustrados. Para estes, há esperança.

            São os eleitos, para quem as coisas maravilhosas significam apenas beleza.

            Não existe isto de livros morais ou imorais. Livros são coisas bem escritas ou mal escritas. É só.

            A antipatia do século dezenove pelo realismo é a fúria de Caliban vendo seu rosto no espelho.

            A antipatia do século dezenove pelo romantismo é a fúria de Caliban não vendo seu rosto no espelho.

            A vida moral do homem faz parte do tema do artista, mas a moralidade da arte consiste no uso perfeito de um meio imperfeito.

            Nenhum artista deseja provar coisa alguma. Até mesmo as coisas verdadeiras podem ser provadas.

            Nenhum artista possui simpatias éticas. Num artista, a simpatia ética é um maneirismo de estilo, imperdoável.

            Não há artista mórbido. O artista pode expressar qualquer coisa.

            O pensamento e a língua são, para o artista, instrumentos de uma arte.

            O vício e a virtude são, para o artista, matéria de uma arte.

            Sob o ponto de vista da forma, o tipo de todas as artes é a arte do músico. Sob o ponto de vista da sensação, o ofício de ator é o tipo.

            Toda arte é, ao mesmo tempo, superfície e símbolo.

            Os que descem além da superfície, fazem-no a seu próprio risco.

            Os que lêem o símbolo, fazem-no a seu próprio risco.

            É o espectador, e não a vida, que a arte, na verdade, espelha.

            A diversidade de opinião, a respeito de uma obra, mostra que a obra é nova, complexa e vital.

            Quando os críticos discordam, o artista está em acordo consigo mesmo.

            Podemos perdoar um homem por fazer uma coisa útil, desde que ele não a admire. A única desculpa para se fazer uma coisa inútil é que a admiremos com intensidade.

            Toda arte é demasiado inútil.

 

 

            O ateliê estava repleto do odor substancioso das rosas e, quando a brisa de verão agitou-se por entre as árvores do jardim, entrou, pela porta aberta, o aroma acentuado do lilás, ou o perfume mais delicado do pilriteiro rosáceo.

            No canto do divã de alforjes persas, em que se deitava, e fumava, como de hábito, inúmeros cigarros, Lorde Henry Wotton captava apenas o reflexo das flores mel-doces e mel-cores do laburno, cujos galhos trêmulos mal pareciam capazes de suportar o peso de belezas tão flamejantes; e, de vez em quando, as sombras fantásticas dos pássaros em revoada atravessavam, adejantes, as cortinas de tussor, compridas, estendidas à frente da imensa janela, e produziam uma espécie de efeito japonês, momentâneo, que o fazia pensar nos rostos de jade, pálidos, daqueles pintores de Tóquio que, por meio de uma arte necessariamente imóvel, procuram transmitir a sensação da fugacidade e do movimento. O murmúrio birrento das abelhas, que ombreavam caminho pela grama por cortar, ou que, numa insistência monótona, circundavam as guampas douradas da madressilva das boticas, pareciam fazer com que a imobilidade se tornasse mais opressiva. O ronco surdo de Londres era a nota bordão de um órgão distante.

            No centro da sala, encaixado num cavalete armado, o retrato de corpo inteiro de um jovem de extraordinária beleza pessoal; à frente do cavalete, a uma certa distância, sentado, o artista em pessoa, Basil Hallward, cujo desaparecimento repentino, alguns anos atrás, causara, entre o público, tamanho rebuliço e dera origem a tantas conjecturas estranhas.

            O pintor contemplava aquela forma bonita e graciosa que, com sua arte, espelhara com tamanha habilidade; um sorriso de prazer tomava-lhe o rosto, e parecia querer ficar. De repente, porém, levantando-se, cerrou os olhos e, com os dedos, foi cobrir as pálpebras, como a tentar aprisionar dentro do cérebro um sonho curioso, de que temia acordar.

            Lorde Henry falou, lânguido:

            – Seu melhor trabalho, Basil, a melhor coisa que você já fez. Você não deve deixar de mandá-lo a Grosvenor, ano que vem. A Academia é grande demais e muito vulgar. Em todas as vezes que fui lá, ou havia muita gente, e eu não conseguia ver os quadros, o que era horrível, ou então havia muitos quadros, e eu não conseguia ver as pessoas, o que era pior. O Grosvenor é, de fato, o local ideal.

            – Não estou pensando em mandá-lo a lugar algum.

            Basil Hallward jogou a cabeça para trás, daquele jeito estranho que fazia rir seus amigos, em Oxford.

            – É... não vou mandá-lo a lugar algum!

            Lorde Henry ergueu as sobrancelhas; com surpresa, olhou para Basil através dos rolos de fumaça que enroscavam em circunvoluções fantásticas desprendidas de um cigarro compactado, salpicado de ópio

            – Não vai mandá-lo a lugar algum? Meu caro companheiro, por quê? Qual o motivo? Vocês pintores são umas figuras muito estranhas! Fazem todo o possível para alcançar a fama e, quando a alcançam, parece que a querem jogar fora. Isto é bobagem, pois, no mundo, só existe uma coisa pior do que falarem de nós: é não falarem. Este quadro pode elevá-lo muito acima de todos os jovens de Inglaterra, e causar muitos ciúmes aos velhos, se é que aos velhos ainda resta alguma emoção.

            – Sei que você vai rir de mim, mas não posso expô-lo, pois coloquei nele muito de mim mesmo.

            Lorde Henry esticou-se no divã, riu.

            – Eu sabia que você riria... Mas, mesmo assim, é verdade.

            – Colocou muito de você mesmo? Dou-lhe minha palavra, Basil, não sabia que você era tão vaidoso. Não vejo qualquer semelhança entre você, com esse rosto rugoso, forte, esses cabelos pretos, carbonizados, e o jovem Adônis, feito, ao que parece, de marfim e pétalas de rosa. Porque, meu caro Basil, ele é um Narciso, e você... Bem, claro, você tem uma expressão de intelectual, e coisa e tal. Mas a beleza, a beleza verdadeira, termina onde se inicia a expressão intelectual. O intelecto é, por si só, um modo de exagero; destrói a harmonia de qualquer rosto. A partir do momento em que nos sentamos para pensar, transformamo-nos em narizes, testas, ou em alguma coisa horrível. Veja os homens de êxito nas profissões eruditas! São absolutamente revoltantes! Com exceção, é claro, da Igreja. Mas, na Igreja, acontece, ninguém pensa. Aos oitenta anos, o bispo diz a mesma coisa que o mandaram dizer quando ainda era um garoto de dezoito anos; e, como conseqüência natural, permanece inteiramente encantador. Seu jovem amigo, misterioso, cujo nome você jamais declinou, mas cujo quadro, de fato, me fascina, não pensa. Tenho quase certeza disto. É uma dessas criaturas sem cérebro, lindas, que sempre deveriam estar por perto no inverno, quando não temos flores para olhar, ou no verão, quando sempre queremos algo para nos refrescar a inteligência. Não se lisonjeie, Basil, você não se assemelha em nada com ele.

            – Você não me entende, Harry – respondeu o artista. – É claro que não me pareço com ele. Sei disso muito bem. E, para falar a verdade, eu seria infeliz se me parecesse com ele. Você dá de ombros? Eu estou falando a verdade. Há uma fatalidade em toda distinção física e intelectual, o tipo de fatalidade que parece, através da história, aperrear os titubeios dos reis. É melhor não sermos diferentes de nossos companheiros. O feio e o tolo ficam com a melhor parte neste mundo. Podem sentar-se, à vontade, e assistir à peça, boquiabertos. Já que nada sabem da vitória, compartilham, ao menos, da sabedoria da derrota. Vivem como todos deveríamos viver, imperturbáveis, indiferentes, sem inquietação. Não levam a ruína aos outros e nem a recebem de mãos estranhas. Sua posição, sua riqueza, Harry; meus miolos, tal como são... minha arte, qualquer que seja seu valor; a beleza de Dorian Gray... iremos sofrer por tudo que os deuses nos legaram, sofrer terrivelmente.

            Lorde Henry atravessou o ateliê na direção de Basil Hallward.

            – Dorian Gray? É esse o nome dele?

            – É, é esse o nome dele. Eu não queria dizê-lo a você.

            – Ora, por que não?

            – Não conseguiria explicar. Quando gosto muito de uma pessoa, não gosto de dizer-lhe o nome a ninguém, pois é o mesmo que entregar parte dela. Passei a gostar da privacidade, com o tempo. Parece a única coisa capaz de transformar a vida moderna em algo misterioso, maravilhoso, para nós. A coisa mais comum, se a escondemos, torna-se deliciosa. Hoje em dia, quando saio da cidade, não digo à minha gente aonde vou. Se o dissesse, perderia todo meu prazer. É um hábito bobo, eu diria, que, de alguma forma, parece acrescentar, à vida das pessoas, uma boa dose de romance. Creio que você deve me julgar muito ingênuo, não?

            – De maneira alguma... De maneira alguma, meu caro Basil. Você parece esquecer-se de que sou casado, e o único charme do casamento é fazer com que uma vida de decepções se transforme em algo absolutamente necessário às duas partes. Nunca sei onde está minha esposa, e minha esposa nunca sabe o que estou fazendo. Quando nos encontramos – e, às vezes, de fato, nos encontramos, quando jantamos fora, ou quando vamos visitar o Duque –, contamos, um para o outro, as histórias mais absurdas, com as expressões mais sérias. Minha esposa é mestra nisto; muito mais do que eu, na verdade. Jamais se confunde com as datas, e eu sempre me confundo com elas. E, quando me descobre, não se zanga. Eu gostaria que ela se zangasse, uma vez ou outra. Mas ela só faz rir de mim.

            Basil Hallward caminhou até a porta do jardim.

            – Eu não gosto do modo com que você se refere à sua vida de casado, Harry. Creio que você deva ser um ótimo marido, mas que se sinta demasiado envergonhado das próprias virtudes. Você é um sujeito exemplar; nada diz de edificante, mas também não faz nada errado. Seu cinismo não passa de pose.

            Lorde Henry exultou, numa risada farta.

            – Ser natural também não passa de pose! E, das que conheço, é a mais irritante!

            Juntos, os dois jovens saíram para o jardim; foram abrigar-se num banco de bambu, comprido, à sombra de um loureiral alto. Por sobre as folhas lustrosas, a luz do sol deslizava. Na grama, trêmulas margaridas brancas.

            Depois de uma pausa, Lorde Henry puxou o relógio.

            – Receio que tenha que ir-me, Basil; mas, antes que me vá, insisto que você responda à pergunta que lhe fiz há pouco.

            O pintor manteve os olhos fixos no chão.

            – Qual?

            – Você sabe muito bem.

            – Não sei não, Harry.

            – Bem, direi qual. Quero que você me explique por que não irá exibir o quadro de Dorian Gray. Quero o motivo verdadeiro.

            – Eu já disse o motivo.

            – Não, não disse não. Disse que era porque havia muito de você nele, o que é uma infantilidade.

            Basil Hallward fitou Lorde Henry nos olhos.

            – Harry, todo retrato pintado com sentimento é o retrato do artista e não do modelo. O modelo é um mero acidente, uma ocasião. Não é ele quem o pintor revela; é muito mais o pintor que, na tela colorida, revela-se a si mesmo. E o motivo por que não irei exibir o quadro é o de ter exposto, nele, o segredo de minha própria alma.

            Lorde Henry riu.

            – E que segredo é esse?

            – Eu lhe direi.

            Uma expressão de perplexidade tomou o rosto de Basil.

            O companheiro prosseguiu; olhava-o.

            – Sou todo expectativa, Basil.

            – Ora, na verdade, há muito pouco o que dizer, Harry, e receio que você não entenda. E talvez nem acredite.

            Lorde Henry sorriu; abaixou-se, colheu, na grama, uma margarida de pétalas róseas, examinou-a.

            – Tenho bastante convicção de que entenderei.

            Intencionalmente, Lorde Henry fitou aquela rodelinha dourada, de plumas brancas.

            – E quanto a acreditar em coisas, sou capaz de acreditar em qualquer coisa e, quanto mais inverossímil melhor.

            O vento sacudiu flores nas árvores, e as inflorescências liláceas, pesadas, com suas estrelas cacheadas, moviam-se, para frente, para trás, ao ar lânguido. Junto à parede, um gafanhoto começou a cricrilar e, qual um ponto de costura, azul, uma libélula passou, flutuando, com asas de gaze. Lorde Henry parecia ouvir – ele sentia – pulsar o coração de Basil Hallward, e imaginou o que estaria acontecendo.

            – A história é muito simples – disse o pintor, algum tempo depois. – Há dois meses, compareci a uma recepção na residência de Lady Brandon. Você sabe que nós, pobres artistas, temos que, de tempos em tempos, nos exibirmos em sociedade apenas para lembrar ao público que não somos selvagens. De fraque e gravata branca – foi você quem m’o disse, um dia – qualquer pessoa, até mesmo um corretor de valores, consegue a fama de civilizado. Bem, eu estava na sala, já faziam uns dez minutos, conversando com umas matronas imensas, de trajar exagerado, e com uns acadêmicos entediantes, quando, de repente, tive consciência de que alguém me olhava. Dei meia-volta e, pela primeira vez, vi Dorian Gray. Quando nossos olhos se encontraram, senti-me empalidecer. Fui tomado por uma sensação curiosa, de terror. Sabia que me deparara, frente a frente, com alguém cuja personalidade, por si só tão fascinante, me absorveria, caso eu o permitisse, toda a natureza, toda a alma, minha própria arte, e eu não desejava influências externas em minha vida. Você mesmo sabe, Harry, o quanto eu, por natureza, sou independente. Sempre fui meu próprio dono; sempre fui, pelo menos até encontrar Dorian Gray. E então... bem, mas eu não saberia explicá-lo a você. Algo parecia dizer-me que eu me encontrava à beira de uma crise terrível em minha vida. Tomava-me a sensação estranha de que o Destino guardara, para mim, alegrias requintadas, tristezas requintadas. Fiquei com medo, virei-me para deixar a sala. Não foi por consciência que o fiz: foi por uma espécie de covardia. Não credito a mim mesmo a tentativa de escapar.

            – Consciência e covardia são a mesma coisa, Basil. Consciência é o nome comercial da firma, e só.

            – Não acredito nisso, Harry, e creio que você não acredita também. Entretanto, qualquer que tenha sido meu motivo – e pode ter sido orgulho, pois sempre fui muito orgulhoso –, o fato é que tentei chegar à porta. Ali, é claro, esbarrei em Lady Brandon. Ela gritou: “Você não vai fugir tão cedo assim, não é, Sr. Hallward?” Você já ouviu a voz dela? Esganiçada, curiosa.

            – Já ouvi sim. Ela é um pavão em tudo, menos em beleza.

            Lorde Henry despedaçava a margarida, com dedos compridos, nervosos.

            – Não consegui me desvencilhar. Ela me conduziu às Realezas, às pessoas de Estrelas, de Garters, a senhoras com tiaras gigantescas e narizes de papagaio. Falava de mim como se eu fosse um grande amigo. Antes daquela ocasião, eu a vira apenas uma vez, mas ela enfiou na cabeça que deveria me tratar como se eu fosse uma celebridade. Creio que, à época, um quadro meu fizera grande sucesso; fora, no mínimo, comentado nos jornais de segunda, padrão de imortalidade do século dezenove. Mas, de repente, vi-me frente a frente com o rapaz cuja personalidade tanto me fizera estremecer. Estávamos bem próximos, quase nos tocávamos. Nossos olhos mais uma vez se encontraram. Imprudência minha, pedi a Lady Brandon para apresentar-me a ele. Talvez não tenha sido tanta imprudência, afinal. Foi apenas inevitável, pois teríamos conversado um com o outro, mesmo sem apresentação. Tenho certeza que sim. Depois, Dorian disse a mesma coisa, pois ele, também, sentiu que estávamos destinados um para o outro.

            – E como foi que Lady Brandon descreveu este rapaz maravilhoso? – perguntou o companheiro. – Sei que ela é dada a apreciações rápidas sobre os convidados. Lembro-me da vez em que ela, enquanto me conduzia a um senhor idoso, truculento, de rosto avermelhado, recoberto de ordens, de fitas, sussurrava-me, ao ouvido, num cochicho trágico, talvez perfeitamente audível por todos no recinto, os detalhes mais escabrosos. Fugi, simplesmente. Gosto de encontrar as pessoas por minha iniciativa, mas Lady Brandon trata as visitas como um leiloeiro que apregoa mercadorias. Ou explica-os a todos, em detalhes, ou conta tudo a respeito deles, menos o que se deseja saber.

            Hallward, indiferente.

            – Coitada de Lady Brandon! Você a vê com muito rigor, Harry!

            – Meu estimado companheiro, ela desejava montar uma galeria de arte, mas tudo o que conseguiu foi abrir um restaurante. Impossível, para mim, admirá-la. Mas, diga-me, o que ela disse a respeito do Sr. Dorian Gray?

            – Algo do gênero “Rapaz encantador... coitada da mãe, ela e eu éramos inseparáveis. Não me lembro o que ele faz... receio que... não faça nada. Ah, claro, toca piano... ou será violino, caro Sr. Gray?” Não pudemos conter o riso e, imediatamente, nos tornamos amigos.

            O jovem lorde colheu outra margarida.

            – O riso não é, de modo algum, um mau começo para uma amizade: e é, de longe, o melhor fim.

            Hallward meneou a cabeça.

            – Você não entende o que seja uma amizade, Harry. E, por falar nisso, nem tampouco uma inimizade. Você gosta de todo mundo, ou seja, é indiferente com todos.

            – Você está sendo por demais injusto!

            Lorde Henry ajeitou o chapéu para trás, olhou para o alto e viu nuvenzinhas, numa meada emaranhada de seda branca acetinada, a deslizarem pelo turquesa-oco do céu de verão.

            – Por demais injusto! Eu estabeleço uma grande diferença entre as pessoas. Meus amigos, escolho-os pela beleza, meus conhecidos, pelo caráter, e meus inimigos, pelo intelecto. Não podemos ser muito cuidadosos na escolha dos inimigos. Nenhum dos meus é idiota, são todos homens de certo poder intelectual e, por conseguinte, todos me apreciam. Será vaidade de minha parte? Eu creio que sim.

            – Creio que sim, também, Harry. Mas quer dizer, então, que, segundo suas categorias, não passo de um conhecido?

            – Velho Basil, meu caro, você é muito mais do que um conhecido.

            – E muito menos que um amigo. Uma espécie de irmão, talvez?

            – Ora, irmãos! Irmãos não significam nada para mim. Meu irmão mais velho não morre nunca, meus irmãos mais jovens parecem uns mortos-vivos.

            Hallward franziu o cenho.

            – Harry!

            – Meu caro companheiro, não falo isto muito a sério, embora não consiga evitar de detestar minhas relações, o que, talvez, se deva ao fato de não conseguirmos, nenhum de nós, suportar que outras pessoas tenham os mesmos defeitos que nós. Eu simpatizo muitíssimo com o ódio da democracia inglesa por aquilo que ela chama de vícios das classes superiores. Para as massas, a bebedeira, a idiotice e a imoralidade deveriam pertencer a elas, como propriedade especial. Se algum de nós se fizer de idiota, estará embolsando parte de suas reservas. Quando o coitado do Southwark deu entrada na Corte de Divórcio, a massa tomou-se de magnífica indignação. E eu creio, apesar disso, que nem dez por cento do proletariado vivam de maneira correta.

            – Não concordo com uma só palavra do que você diz. E tem mais, Harry, tenho certeza de que você também não.

            Lorde Henry afagou a barba afunilada, castanha, e, com a bengala de ébano, borlada, deu batidinhas no bico da bota de couro-verniz.

            – Você está inglês demais, Basil! É a segunda vez que faz esta observação. O verdadeiro inglês, sempre que alguém lhe manifesta uma idéia – coisa bastante temerária! –, jamais sonha em considerar se a idéia é boa ou má. A única coisa que considera de importância é se a pessoa é digna de crédito. Agora, o valor de uma idéia, porém, não tem, de modo algum, qualquer relação com a sinceridade da pessoa que a expressa. Na verdade, quanto mais insincera for a pessoa, apontam as probabilidades, tanto mais a idéia carregará a pureza intelectual, pois, neste caso, não trará o colorido das carências, desejos ou preconceitos. Entretanto, não me proponho a discutir política, sociologia ou metafísica com você. Gosto mais das pessoas que dos princípios, e gosto mais das pessoas sem princípios do que de qualquer coisa no mundo. Conte-me mais a respeito do Sr. Dorian Gray. Com que constância você o vê?

            – Todos os dias. Eu não seria feliz se não o visse todos os dias; para mim, ele é absolutamente necessário.

            – Extraordinário! Não pensei que você ligasse para coisa alguma além de sua arte!

            O pintor falou em tom solene.

            – Para mim, agora, ele é toda minha arte. Vez ou outra, Harry, eu penso que existem apenas duas eras importantes na história do mundo. A primeira é o aparecimento de um novo meio para a arte, e a segunda é o aparecimento de uma nova personalidade para a arte, também. O que a invenção da pintura a óleo foi para os venezianos, o rosto de Antinoo foi para a escultura grega dos últimos tempos, e o rosto de Dorian Gray o será um dia para mim. Não apenas porque é a partir dele que eu pinto, desenho ou traço meus esboços. É claro, eu faço tudo isso, mas, para mim, ele é muito mais que um modelo, que uma pose. E não posso dizer que esteja insatisfeito com o que fiz dele, e nem que a beleza dele seja tanta que seja impossível expressá-la. Não há nada que a arte não consiga expressar, e sei que o trabalho que venho fazendo, desde que conheci Dorian Gray, é um bom trabalho, o melhor de minha vida. De algum modo curioso, porém – não sei se você irá me entender –, a personalidade de Dorian sugeriu-me, na arte, uma maneira inteiramente nova, um modo de estilo inteiramente novo. Vejo as coisas de um modo diferente, penso nelas de um modo diferente. Posso, agora, recriar a vida de uma maneira que antes se encontrava oculta dentro de mim. “Um sonho de forma em dias de razão.” Quem foi mesmo que disse isto? Não me lembro, mas é isto o que Dorian Gray tem representado para mim. A mera presença visível deste garoto – pois, para mim, ele é pouco mais que um garoto, embora tenha, na realidade, mais de vinte anos –, a mera presença visível... Ah! Será que você percebe o significado de tudo isso? Ele define, para mim, inconsciente, as linhas de uma nova escola, uma escola que deverá conter toda a paixão do espírito romântico, toda a perfeição do espírito, grega. A harmonia de corpo e alma... é demais! Nós, em nossa loucura, os separamos, e inventamos um realismo vulgar, uma idealidade vazia. Harry, se você soubesse o que Dorian Gray representa para mim! Você se lembra daquela paisagem minha, pela qual Agnew fez uma oferta gigantesca, mas da qual eu não queria me desfazer? É uma das melhores coisas que já fiz. E por quê? Porque, enquanto a pintava, tinha Dorian Gray sentado a meu lado. Uma certa influência sutil passou dele para mim, e, pela primeira vez na vida, vi, naquele arboredo comum, a maravilha que sempre procurava, e jamais conseguira encontrar.

            – Basil! Extraordinário! Eu tenho que conhecer Dorian Gray.

            Hallward levantou-se do banco e caminhou no jardim, daqui para lá. Algum tempo depois, voltou.

            – Harry, Dorian Gray é, para mim, um simples motivo de arte. Talvez você não veja nada nele. E eu vejo tudo nele; e é quando a imagem dele não está por perto que ele se faz mais presente em meu trabalho. Ele é uma sugestão, como já disse, de uma nova maneira. Encontro-o nas curvas de certas linhas, na graça e na sutileza de certas cores. É isso.

            – Então, por que não quer expor-lhe o retrato?

            – Porque, sem intenção de fazê-lo, coloquei nele um pouco da expressão de toda essa curiosa idolatria artística, de que, é claro, nunca me preocupei em conversar com ele. Ele não sabe nada a respeito dela, e jamais saberá. Mas é possível que o mundo a perceba, e eu não vou desnudar minh’alma aos olhos superficiais e intrometidos do mundo. Meu coração jamais se deitará debaixo do microscópio de tais olhos. Há muito de mim, Harry... há muito de mim!

            – Os poetas não costumam ser assim tão escrupulosos; eles bem sabem da utilidade que a paixão traz para uma publicação. Nos dias de hoje, um coração partido transita por muitas edições.

            – E é por isso que os odeio! O artista deve criar coisas bonitas, mas não deve colocar, nelas, nada da própria vida. Vivemos numa era em que os homens tratam a arte como algo destinado a uma forma de autobiografia. Perdemos o sentido abstrato da beleza. Um dia, eu ainda mostro ao mundo o que é a arte. E é por este motivo que o mundo não deverá, jamais, ver o meu retrato de Dorian Gray.

            – Creio que você esteja errado, Basil, mas não vou discutir. Só discute quem está perdido em termos intelectuais. Diga, Dorian Gray gosta muito de você?

            O pintor refletiu por alguns instantes. Fez uma pausa.

            – Ele gosta de mim. Sei que gosta. É claro que eu o lisonjeio demais, e sinto um prazer estranho em dizer coisas de que estou certo me vá arrepender. Como norma, ele é delicado comigo, nós nos sentamos no ateliê e conversamos sobre uma porção de coisas. De vez em quando, porém, ele é muito descortês, e parece sentir prazer em me causar dor. Nessas horas, Harry, sinto que sou tratado como uma flor de lapela, uma peça de decoração para deleitar-lhe a vaidade, um ornamento de um dia de verão.

            – No verão, Basil, os dias costumam demorar. Talvez você se canse mais rápido do que ele. É triste pensar nisso, mas não há dúvida de que o gênio dura mais que a beleza, e isto responde pelo fato de absorvermos estas dores para nos supereducarmos a nós mesmos. Na luta selvagem pela existência, precisamos de algo que permaneça, e então preenchemos nossas mentes com asneiras, fatos, na tola esperança de manter nosso lugar. O homem abarrotado de informação, eis o ideal de homem moderno. E a mente do homem abarrotado de informação é uma coisa medonha. É como uma loja de bricabraque, toda monstros e poeira, com tudo cotado acima do valor justo. Creio que você se cansará primeiro, da mesma maneira. Um dia, você irá olhar seu amigo, e ele parecerá um pouco fora de esquadro, ou quem sabe você não irá gostar do tom de sua cor, ou qualquer coisa assim. Você será amargo, e o admoestará do fundo do coração, e pensará, a sério, que ele se portou muito mal com você. E quando ele for visitá-lo, na vez seguinte, você será absolutamente diferente. Você será uma grande piedade, pois a coisa afetará você. O que você me disse é bem de um romance, podemos chamá-lo de um romance de arte; e o que é pior, em se viver um romance, é que deixamos de ser românticos.

            – Não fale assim, Harry. Pelo tempo em que eu viver, a personalidade de Dorian Gray irá me dominar. Você não sente o que eu sinto. Você muda com muita freqüência.

            – E é mesmo por isso, meu caro Basil, que sinto o que você sente. Os fiéis conhecem apenas o lado trivial do amor; é a infidelidade que alcança as tragédias do amor.

            E Lorde Henry acendeu um fósforo num estojo de prata, elegante, e, num ar consciente, satisfeito, de quem acaba de resumir o mundo numa frase, começou a fumar o cigarro. Passou o farfalho dos pardais em gorjeio nas folhas da hera, verde-laca, e, na grama, as sombras das nuvens azuis caçavam-se, qual andorinhas. Estava tão agradável ali no jardim! E que delícia são as emoções de uma pessoa! Muito mais que as idéias, parecia. Nossa própria alma, as paixões de nossos amigos... as coisas mais fascinantes da vida! Lorde Henry visualizou, consigo mesmo, em júbilo silente, o almoço entediante a que deixara de comparecer, aqui ficando todo esse tempo com Basil Hallward. Se tivesse ido à casa da tia, teria encontrado Lorde Goodbody, e toda a conversa teria girado em torno da alimentação dos pobres, e da imprescindibilidade de habitações-modelo. Cada classe teria apregoado a importância das virtudes cujo exercício não é imprescindível às próprias vidas. Os ricos teriam falado do valor da poupança, e os ociosos ter-se-iam expressado, com eloqüência, sobre a dignidade do trabalho. Muito encantador, ter escapado a tudo isto! Ao pensar na tia, uma idéia pareceu tocá-lo. Virou-se para Hallward.

            – Caro amigo, acabo de me lembrar.

            – Acaba de se lembrar de que, Harry?

            – De onde foi que ouvi o nome de Dorian Gray.

            Breve ruga franziu o cenho de Hallward.

            – Onde foi?

            – Não se zangue, Basil. Foi na casa de minha tia, Lady Agatha. Ela me disse que havia encontrado um rapaz exemplar, que iria ajudá-la no East End, e que o nome dele era Dorian Gray. Quase posso afirmar que ela nada mencionou a respeito de beleza. As mulheres não apreciam a beleza; ao menos as boas mulheres não a apreciam. Ela disse que o jovem era muito fogoso, e dotado de natureza admirável. Logo imaginei uma criatura de óculos, cabelos escorridos, sardenta em excesso, de caminhar pesado e pés imensos. Se soubesse que se tratava de amigo seu...

            – Foi bom que não soubesse, Harry.

            – Por quê?

            – Não quero que você o conheça.

            – Não quer que eu o conheça?

            – Não.

            O mordomo veio ao jardim.

            – O Sr. Dorian Gray se encontra no ateliê, senhor.

            Lorde Henry riu alto.

            – Agora, terá que me apresentar a ele.

            O pintor voltou-se para o criado, que ali estava a piscar à luz do sol.

            – Peça ao Sr. Gray para esperar, Parker. Entrarei num instante.

            O homem curvou-se, e desapareceu na alameda.

            Basil Hallward, então, voltou-se para Lorde Henry.

            – Dorian Gray é o amigo que mais prezo. É dotado de uma natureza simples e bela. A descrição de sua tia estava correta. Não tente influenciá-lo, sua influência seria nociva. O mundo é grande, e contém pessoas maravilhosas. Não tente tirar de mim a única pessoa que dá à minha arte todo o charme que ela porventura possua; minha vida, como artista, depende dele. Portanto, Harry, confio em você.

            Basil falou bem devagar, e as palavras pareceram arrancadas à força, quase contra a vontade.

            – Quanta bobagem você diz!

            Lorde Henry sorriu, tomou Hallward pelo braço e quase o arrastou para dentro.

 

            Ao entrarem, viram Dorian Gray sentado ao piano, de costas para eles, a virar as páginas das Cenas da Floresta, de Schumann. Dorian falou.

            – Vou tomá-las emprestado, Basil. Quero estudá-las. São simplesmente encantadoras!

            – Isto só depende de como você posar hoje, Dorian.

            – Ora, eu estou cansado de posar; não quero um retrato de vida inteira.

            O garoto respondeu, girando, de um lado para outro, na banqueta, de modo teimoso e petulante. Ao ver Lorde Henry, breve palidez coloriu-lhe as maçãs do rosto, por instantes, num sobressalto.

            – Peço perdão, Basil. Não sabia que havia alguém com você.

            – Este é Lorde Henry Wotton, Dorian, velho amigo meu, de Oxford. Eu acabava de dizer a ele que você é um modelo de primeira grandeza, e você estragou tudo.

            – Mas não estragou meu prazer em conhecê-lo, Sr. Gray.

            Lorde Henry deu um passo à frente, estendeu a mão.

            – Minha tia fala muito a seu respeito. Você é um dos prediletos dela, e, receio, também uma de suas vítimas.

            Dorian tomou um aspecto engraçado, de penitente.

            – No momento, encontro-me nos livros negros de Lady Agatha. Prometi ir com ela, terça-feira passada, a um clube em Whitechapel, e esqueci-me inteiramente. Íamos tocar um dueto... creio que três duetos. Nem sei o que ela dirá. Meu medo é tanto que nem a visito.

            – Ora, eu farei as pazes entre você e minha tia. Ela é muito afeiçoada a você, e não creio que sua ausência tenha mesmo sido notada. É provável que a platéia soubesse que se tratava de um dueto, pois quando Tia Agatha se senta ao piano, faz barulho por duas pessoas.

            Dorian riu.

            – Para ela, isto é hediondo, e, para mim, não é nada simpático.

            Lorde Henry olhou o rapazola. Era mesmo muito bonito, os lábios escarlates bem torneados, os olhos azuis, claros, os cabelos dourados, encaracolados. Havia algo, naquele rosto, que fazia com que se acreditasse nele imediatamente. Ali estava toda a candura e também a pureza passional da juventude. Sentia-se que o jovem se mantivera inatingido pelo mundo. Não era à toa que Basil Hallward o adorava.

            – Você é muito encantador, Sr. Gray, para deixar-se entregar à filantropia.

            Lorde Henry atirou-se no divã, abriu o porta-cigarros.

            O pintor estava ocupado; misturava cores, aprontava os pincéis. E parecia preocupado. Ao ouvir a última observação de Lorde Henry, voltou-lhe o olhar, hesitou, por um instante.

            – Harry, eu quero terminar o quadro hoje. Seria muita grosseria de minha parte pedir para você ir embora?

            Lorde Henry sorriu, olhou para Dorian Gray.

            – Devo ir-me, Sr. Gray?

            – Não, por favor, Lorde Henry. Vejo que Basil está num de seus dias de mau humor. E não consigo aturá-lo mal-humorado. Além disso, quero que o senhor me diga por que não devo entregar-me à filantropia.

            – Não sei se devo contar-lhe o porquê, Sr. Gray. É um tema tão entediante que teríamos que tratá-lo a sério. Mas, esteja certo de que não vou fugir, agora que você me pediu para ficar. Você não se incomoda, não é, Basil? Você sempre disse que gosta que seus modelos tenham com quem conversar.

            Hallward mordeu o lábio.

            – Se é desejo de Dorian, é claro que você deve ficar. Os caprichos de Dorian são leis para todas as pessoas, exceto para ele mesmo.

            Lorde Henry apanhou o chapéu e as luvas.

            – Você insiste, Basil, mas receio que tenha que ir-me. Prometi encontrar-me com um indivíduo no Orleans. Até logo, Sr. Gray. Venha visitar-me, numa tarde dessas, em Curzon Street. Estou quase sempre em casa às cinco horas. Escreva-me, quando for. Eu lamentaria não estar em casa.

            Dorian Gray interveio.

            – Basil, já que Lorde Henry Wotton vai embora, devo ir-me também. Você não move os lábios enquanto pinta, e é muito aborrecido ficar sentado numa plataforma e tentar manter o aspecto agradável. Peça a ele que fique. Eu insisto.

            – Fique, Harry, para agradar a Dorian, e para agradar a mim.

            Hallward, de propósito, fitava o quadro.

            – É verdade mesmo, eu não falo durante o trabalho, e não ouço também, e deve ser bastante entediante para meus modelos. Suplico que fique.

            – E como fica meu compromisso no Orleans?

            O pintor riu.

            – Creio que não haverá qualquer problema. Sente-se novamente, Harry. E agora, Dorian, suba na plataforma, e não se mova muito, nem preste atenção ao que Lorde Henry disser. Ele é uma influência muito negativa para todos os amigos; eu sou a única exceção.

            Dorian Gray subiu no tablado, com o ar de um jovem mártir grego, e fez uma leve careta de descontentamento para Lorde Henry, por quem sentira certa simpatia. Era tão diferente de Basil. Formavam um contraste delicioso. E possuía voz tão linda. Instantes se passaram.

            – O senhor é mesmo uma influência negativa, Lorde Henry? Tão negativa quanto o diz Basil?

            – Influências positivas não existem, Sr. Gray. Toda influência é imoral... imoral, do ponto de vista científico.

            – Por quê?

            – Porque influenciar uma pessoa é dar a ela a própria alma. Ela passa a não pensar com seus pensamentos naturais. As virtudes que possui deixam de ser, para ela, reais. Os pecados que comete, se é que existem pecados, são todos tomados por empréstimo. Ela se torna um eco da música de outrem, ator de um papel não escrito para ela. O objetivo da vida é o autodesenvolvimento; é perceber, com perfeição, nossa natureza... é para isto que estamos aqui, cada um de nós. Mas, hoje em dia, as pessoas têm medo de si próprias. Esqueceram-se da mais elevada das obrigações, a obrigação que devemos a nós mesmos. Mas, é claro, são caridosas. Alimentam os famintos, vestem os mendigos. Suas próprias almas, entretanto, sentem fome, estão nuas. A coragem desapareceu desta raça, e, talvez, jamais tenha existido em nós. O terror da sociedade, base de toda moralidade, o terror de Deus, segredo da religião... são estas as duas coisas que nos governam. E, mesmo assim...

            – Mova a cabeça um pouquinho mais para a direita, Dorian; seja um bom menino.

            O pintor estava absorto no trabalho, consciente, apenas, de que uma expressão acabara de afixar-se no rosto do jovem, expressão que jamais vira antes.

            – E assim...

            Lorde Henry prosseguiu, naquela voz baixa, musical, naquele ondulado gracioso da mão, sempre tão característico, e que o acompanhava desde os dias de Eton.

            –... creio que se o homem vivesse uma vida plena, completa, se desse forma a toda sensação, expressão a todo pensamento, realidade a todo sonho, creio que o mundo conquistaria um impulso, tão novo, de alegria, que nos esqueceríamos de todos os males do medievalismo e retomaríamos ao ideal helênico, a algo mais requintado, mais substancial mesmo, quem sabe. Mas, entre nós, o homem mais valente tem medo de si próprio. A mutilação selvagem veio sobreviver, trágica, na autonegação que desfigura nossas vidas. Somos castigados por nossas recusas. Todo impulso que nos esforçamos por estrangular remói em nossa mente, e nos envenena. O corpo peca uma vez, e se livra do pecado, pois a ação é um modo de purificação. E, então, nada permanece: apenas a lembrança do prazer, ou a luxúria de um remorso. A única maneira de nos livrarmos de uma tentação é capitularmos a ela. Resista, e a alma adoecerá, na saudade das coisas que proibiu a si mesma, no desejo por aquilo que suas leis monstruosas tornaram monstruoso, ilegal. Tem-se dito que os grandes eventos do mundo ocorrem no cérebro. É no cérebro, apenas no cérebro, que ocorrem, também, os grandes pecados do mundo. Você, Sr. Gray, você mesmo, com sua juventude vermelho-rosa, com sua infância alvi-rosa, foi tomado de paixões que o amedrontaram, de pensamentos que o atemorizaram, de sonhos acordados, sonhos adormecidos, cuja simples lembrança talvez venha manchar-lhe de vergonha as maçãs do rosto...

            Dorian Gray embargou.

            – Pare! Pare! O senhor me confunde. Não sei o que dizer. Sei que há uma resposta, mas não consigo encontrá-la. Não fale. Deixe-me pensar, ou melhor, deixe-me tentar não pensar.

            E por quase dez minutos ali permaneceu, imóvel, lábios entreabertos, os olhos vívidos, estranhos. Nele, a consciência longínqua de que influências inteiramente novas estavam a trabalhar dentro dele, e que pareciam originar-se no próprio interior. As poucas palavras que dissera o amigo de Basil... palavras faladas ao acaso, sem dúvida, carregadas de um paradoxo obstinado... tocaram alguma corda secreta que, antes jamais tocada, agora, porém, ele sentia, vibrava e latejava em pulsações singulares.

            A música já o fizera estremecer, tanto assim. A música já o confundira muitas vezes. Mas a música não era articulada. Não um novo mundo, e sim mais um caos, ela criava em nós. Palavras! Meras palavras! Quão terríveis eram! Quão claras, vívidas e cruéis! Delas, ninguém consegue escapar. Mas, que mágica sutil contêm! Parecem capazes de dar uma forma plástica a coisas amorfas, e de conter uma música própria, doce como a da viola, do alaúde. Meras palavras! Existiria algo tão real quanto as palavras?

           Sim, houve, na infância, coisas que não compreendera, e que agora compreendia. A vida, para ele, tomara, de repente, a cor do fogo. Ele, parecia, estivera a caminhar sobre fogo. Por que não percebera?

            Com o sorriso sutil, Lorde Henry o observava. Conhecia o momento psicológico preciso para não dizer nada. Sentia um interesse intenso. Surpreso ante a impressão repentina que suas palavras produziram, lembrou-se de um livro que lera aos dezesseis anos, um livro que revelara a ele muito do que ainda não sabia, e imaginou se Dorian Gray, porventura, passava por experiência semelhante. Disparara uma flecha no ar, apenas. Acertara o alvo? O jovem era mesmo fascinante!

            Hallward continuava a pintar com aquele toque intrépido, maravilhoso, que continha o verdadeiro requinte, a delicadeza perfeita que, na arte, de um jeito ou de outro, originava-se apenas na força. Ele não percebera o silêncio.

            Dorian Gray gritou, de repente.

            – Basil, estou cansado de ficar em pé. Preciso dar uma saída, quero me sentar no jardim. O ar está sufocante aqui dentro.

            – Meu caro companheiro, peço desculpas. Quando pinto, não consigo pensar em outra coisa. Mas você esteve ótimo; como nunca! Esteve no prumo perfeito. E eu consegui captar o efeito que desejava... os lábios entreabertos e a expressão vívida dos olhos. Não sei o que foi que Harry disse a você, mas, com certeza, propiciou-lhe uma expressão lindíssima. Creio que deve tê-lo elogiado muito, mas não acredite numa só palavra do que disse.

            – Elogios é que não são. E este, talvez, seja o motivo por que não acredito em nada do que ele disse.

            Lorde Henry olhou-o com olhos sonhadores, langorosos.

            – Você bem sabe que acreditou em tudo. Vou até o jardim com você, está quente demais aqui no ateliê. Basil, que tal bebermos alguma coisa gelada, alguma coisa com cereja?

            – Claro, Harry, basta tocar a campainha, e quando Parker vier, direi a ele o que você deseja. Eu tenho que terminar esse plano de fundo; portanto, encontro vocês depois. E não prenda Dorian por muito tempo; jamais, como hoje, estive em tão boa forma para pintar. Esta vai ser minha obra-prima. Já é minha obra-prima, assim como está.

            Lorde Henry saiu para o jardim, e encontrou Dorian Gray com o rosto enterrado nas imensas, frescas inflorescências liláceas, bebendo-lhes, febril, o perfume, como se bebesse vinho. Aproximou-se, pousou a mão no ombro de Dorian, num murmúrio.

           – Você tem toda razão em agir assim, pois não há nada, senão os sentidos, capaz de curar a alma, assim como não há nada, senão a alma, capaz de curar os sentidos.

            O jovem sobressaltou-se, recuou. Com a cabeça descoberta, as folhas encapelaram-lhe os cachos rebeldes e emaranharam-lhe os fios dourados. Havia, nos olhos, uma expressão de medo, a expressão de quem, de repente, é acordado. Esculpidas com requinte, as narinas estremeceram, e um certo nervo oculto sacudiu-lhe o escarlate dos lábios, deixou-os trêmulos.

            Lorde Henry prosseguiu.

            – Claro, eis um dos grandes segredos da vida... curar a alma por intermédio dos sentidos, e os sentidos por intermédio da alma. Você é uma criação maravilhosa, você sabe mais do que pensa saber, e, da mesma forma, sabe menos do que quer saber.

            Dorian Gray franziu o cenho, afastou o olhar. Inevitável gostar deste jovem alto, gracioso, em pé a seu lado. Este rosto romântico, cor-de-oliva, esta expressão exaurida, interessavam-no. Havia algo nesta voz baixa, lânguida, de absoluto fascínio. Até mesmo as mãos frias, alvas, flóreas, traziam curioso encanto. Moviam-se, ao falar, como a música, e pareciam conter linguagem própria. Mas sentia medo dele, e vergonha de sentir medo. Por que coubera a um estranho revelá-lo a si mesmo? Há meses conhecia Basil Hallward, numa amizade que jamais o afetara. De repente, alguém atravessa-lhe a vida, e parece desvendar, para ele, o mistério da vida. Sim, mas... o que haveria a temer? Ele não era mais um colegial, e nem uma menina. Absurdo sentir medo.

            – Vamos nos sentar à sombra. Parker já trouxe os aperitivos e, se você permanecer muito tempo nesta luz, ficará bastante danificado, e Basil não poderá pintá-lo nunca mais. Você não deve, na verdade, permitir-se queimar ao sol. Seria inconveniente.

            – Ora, o que me importa?

            Dorian Gray riu, ao sentar-se no banco ao fundo do jardim.

            – Deveria significar tudo para você, Sr. Gray.

            – Por quê?

            – Porque você possui uma juventude maravilhosa, e a juventude é a única coisa que vale a pena possuir.

            – Eu não sinto as coisas desta maneira, Lorde Henry.

            – Não sente agora. Um dia, quando estiver velho, enrugado, feio, quando o pensamento vier, com suas linhas, murchar-lhe a testa, e a paixão, com seu fogo medonho, vier cauterizar-lhe os lábios, você irá senti-lo, de modo terrível. Você, agora, aonde quer que vá, encanta o mundo. As coisas serão sempre assim?... Você tem um rosto lindo, maravilhoso, Sr. Gray. Não franza o cenho, pois é verdade. E a beleza é uma forma de genialidade; é, na verdade, mais elevada do que a genialidade, pois não carece de explicação. Pertence aos grandes fatos do mundo, como a luz do sol, a primavera, o reflexo das águas turvas, ou aquela concha de prata a que chamamos lua. Não pode ser questionada. Possui o direito divino de soberania. Os que a têm, ela os faz príncipes. Você ri? Pois não vai rir quando perdê-la! Vez que outra, as pessoas costumam dizer que a beleza é coisa superficial. Mesmo que o seja, não é, ao menos, tão superficial quanto o pensamento. A beleza, para mim, é a maravilha das maravilhas. Apenas as pessoas superficiais não julgam pelas aparências. O verdadeiro mistério do mundo é o visível, e não o invisível... É, Sr. Gray; os deuses foram bondosos com você. Mas, tudo o que os deuses dão, tiram rapidamente. Dispomos de apenas alguns poucos anos para vivermos com realidade, perfeição e plenitude. Quando a juventude se for, a beleza irá com ela, e você descobrirá, de repente, que não restaram triunfos por conquistar, ou terá que se contentar com os triunfos perversos que a memória do passado tornará ainda mais amargos que as derrotas. E cada mês que feneça, o fará aproximar-se, mais e mais, de algo medonho. O tempo tem inveja de você, e abre guerra contra seus lírios, suas rosas. Você ficará pálido, de bochechas fundas, de olhos opacos. Você sofrerá horrivelmente... Ah! Perceba a juventude enquanto a tem. Não esbanje os dias de ouro, dando ouvidos aos entediosos, tentando melhorar o fracasso sem esperanças, ou entregando sua vida ao ignorante, ao comum, ao vulgar, ideais doentios de nossa era. Viva! Viva a vida maravilhosa que está em você! Que nada se perca em você! Esteja sempre à procura de novas sensações! Não tenha medo de nada. Um novo hedonismo, eis o que deseja nosso século, e quem sabe você não será seu símbolo visível! Com a personalidade que tem, nada existe que não possa fazer. O mundo lhe pertence, por toda uma temporada... No momento em que o encontrei, percebi que você não tinha muita consciência do que era, do que, na verdade, pode vir a ser. Tanta coisa, em você, me encantou, que me senti na obrigação de dizer-lhe algo que lhe diz respeito. Pensei, seria trágico que você se desperdiçasse, pois tão curta, tão curta será a duração de sua juventude! Ressecam as flores comuns da colina, mas reflorescem. O laburno, no mês de junho vindouro, será tão amarelo quanto o é hoje, e daqui a um mês, haverá muitos asteróides púrpuras na clematite. Mas jamais voltamos à juventude. A pulsação de alegria, que bate em nós aos vinte, preguiça. Nossos membros falham, nossos sentidos apodrecem. Nos degeneramos em fantoches repugnantes, assediados pela lembrança de paixões a que muito tememos, e pelas tentações exóticas a que não tivemos coragem de nos entregar. Juventude! Juventude! Não existe nada no mundo, nada!, senão a juventude!

            Dorian Gray ouviu, de olhos abertos, a cismar. O ramalhete de lilás caiu-lhe da mão, no cascalho. Veio uma abelha felpuda, zumbiu girando, por um instante. Depois, começou a subir em todo globo estelar, oval, das florezinhas. Observou-a com o estranho interesse que procuramos cultivar pelas coisas triviais quando nos atemorizam coisas de maior importância, ou quando nos estremece uma nova emoção para a qual não encontramos expressão, ou quando nos aterroriza algum pensamento que, de repente, nos sitia o cérebro e exige rendição. Algum tempo depois, a abelha voou embora. Foi, ele a viu galgar, lenta, o trompete malhado da convolvulácea tíria. A flor pareceu estremecer e, depois, balançou, delicada, para a frente, para trás.

            O pintor apareceu de repente à porta do ateliê e, em stacatto, fez sinal para que entrassem. Os dois entreolharam-se, sorriram.

            – Estou esperando. Entrem, por favor. A luz está ótima; e podem trazer os aperitivos.

            Os dois levantaram-se e, juntos, passeando, tomaram a ruela. Duas borboletas verde e brancas passaram, esvoaçantes; na pereira, ao canto do jardim, um tordo começou a cantar.

            Lorde Harry olhou para Dorian Gray.

            – Você está contente de ter me conhecido, Sr. Gray.

            – Estou, agora estou. Será que para sempre?

           – Sempre! Que palavra hedionda! Estremeço só em ouvi-la. E as mulheres gostam tanto de usá-la. Ao tentar eternizá-la, estragam todo romance. Além disso, é uma palavra sem significado. A única diferença entre um capricho e uma paixão vitalícia é que o capricho dura um pouquinho mais.

            Ao adentrarem o ateliê, Dorian Gray pousou a mão no braço de Lorde Henry.

            – Neste caso, que nossa amizade seja um capricho.

            Dorian Gray murmurou, empalideceu com a própria audácia; depois, subiu na plataforma e retomou a pose.

            Lorde Henry atirou-se numa poltrona de vime, grande, e pôs-se a observá-lo. O traço-ponto do pincel sobre a tela era o único ruído a quebrar a quietude, ressalvados os momentos em que, de vez em quando, Hallward recuava para olhar seu trabalho a distância. Nos raios oblíquos que fluíam pela porta aberta a poeira dançava, e era dourada. O forte aroma das rosas parecia chocar a tudo.

            Cerca de um quarto de hora depois, Hallward parou de pintar, olhou, por muito tempo, para Dorian Gray, e depois, por muito tempo, para o quadro, mordendo a extremidade de um dos pincéis enormes, franzindo o cenho. Por fim...

            – Está quase acabado!

            Curvou-se, escreveu o próprio nome em letras compridas, em vermelhão, no canto esquerdo da tela.

            Lorde Henry aproximou-se, examinou o quadro. Era, com certeza, uma obra de arte maravilhosa; e, também, uma maravilhosa semelhança.

            – Meu caro amigo, dou-lhe meus calorosos parabéns. É o retrato mais bonito dos tempos modernos. Sr. Gray, venha até aqui, examine-o você mesmo.

            O jovem sobressaltou-se, como se despertasse de um sonho; desceu da plataforma.

            – Está acabado mesmo?

            O pintor respondeu.

            – Quase acabado. E você posou magnífico hoje. Fico-lhe muito agradecido.

            Lorde Henry irrompeu.

            – Graças a mim! A mim, não é mesmo, Sr. Gray?

            Dorian não deu resposta; apenas, indiferente, passou pela frente do quadro. Quando o viu, recuou, e por um momento, de prazer, as maçãs do rosto empalideceram. Uma expressão de alegria brotou-lhe nos olhos, como se se houvesse reconhecido pela primeira vez. Ali ficou, imóvel, em cisma, com a leve consciência de que era a ele que Hallward se dirigia, sem que ele, entretanto, conseguisse captar o significado daquelas palavras. A sensação da própria beleza brotava nele como uma revelação. Jamais a sentira antes. Os elogios de Basil Hallward haviam soado, até então, meros exageros de amizade. Ouvira-os, rira deles, e os esquecera, que nem chegaram a influenciar-lhe a natureza. Depois, viera Lorde Henry Wotton, com aquele estranho panegírico sobre a juventude, com aquele alerta terrível a respeito da brevidade da juventude. Na ocasião, a coisa o fizera estremecer, e agora, de pé, ao contemplar a sombra do próprio encanto, a realidade plena da descrição o atravessava num raio. Claro, o dia chegaria em que seu rosto estaria enrugado, encarquilhado, os olhos fracos, sem cor, a graça de seu porte partida, deformada. O escarlate desvanecer-lhe-ia dos lábios, e o ouro furtar-se-ia aos cabelos. A vida, que deveria construir-lhe a alma, desfigurar-lhe-ia o corpo. Ele seria horrível, repulsivo, solitário.

            Pensava nisso, e o tormento agudo da dor, como uma faca, o trespassou, fez estremecer, uma a uma, as fibras delicadas de sua natureza. Os olhos carregaram-se de ametista; depois, brotou a garoa de lágrimas. Sentiu como se uma mão de gelo se lhe pousasse sobre o coração.

            Hallward sensibilizou-se com o silêncio do jovem, sem compreender-lhe o significado.

            – Não gostou?

            – Claro que gostou! – antecipou-se Lorde Henry. – Quem não gostaria? É um dos maiores eventos da arte moderna. Dou o quanto você pedir por ele. Tenho que ter essa soma.

            – Não é propriedade minha, Harry.

            – É propriedade de quem?

            – De Dorian, é claro.

            – Que jovem de sorte!

            – Como é triste!

            Dorian mantinha os olhos ainda fixos no retrato.

            – Como é triste! Eu vou ficar velho, horrível, pavoroso. E este quadro permanecerá jovem, para sempre. Não envelhecerá um dia além desse dia específico de junho... Ah, se fosse o contrário! Se fosse eu a permanecer jovem para sempre, se fosse o quadro a envelhecer! Eu daria... eu daria tudo por isto! É isso mesmo, não há nada neste mundo que eu não daria em troca! Daria até mesmo minha alma!

            Lorde Henry riu.

            – Você não iria gostar nada desse trato, não é, Basil? Iria encher-lhe a obra de traços empedernidos.

            – Eu faria mesmo fortes objeções, Harry.

            Dorian Gray virou-se, olhou para Hallward.

            – É... creio que faria mesmo, Basil. Você gosta mais de sua arte que dos amigos. Eu, para você, não passo de uma figura verde, de bronze. Quase a mesma coisa, ouso dizer.

            O pintor estatelou os olhos, surpreso. Falar desta maneira não era compatível com Dorian. O que acontecera? Ele parecia bem zangado. O rosto estava lívido, as maçãs do rosto ardiam.

            Dorian prosseguiu.

            – É verdade. Para você, significo menos que seu Hermes de marfim, ou que seu Fauno de prata. Deles, você irá gostar para sempre; e, de mim, até quando irá gostar? Até que surja minha primeira ruga, não? Sei, agora, que quando se perde a beleza, qualquer que seja ela, perde-se tudo. O quadro ensinou-me isto. Lorde Henry Wotton tem toda razão. A única coisa que vale a pena possuir é a juventude. Quando eu descobrir que estou envelhecendo, me mato!

            Hallward empalideceu, tomou-o pela mão.

            – Dorian! Não fale assim, Dorian. Jamais tive um amigo como você, e jamais terei um igual. Você não está com ciúmes de coisas materiais, está? Logo você, que é superior a todas elas!

            – Tenho ciúmes de qualquer coisa cuja beleza não morra. Tenho ciúmes do meu retrato, que você pintou. Por que ele vai ficar com as coisas que vou perder? Cada momento que passa leva alguma coisa de mim, e dá alguma coisa a ele. Ah, se fosse o contrário! Se fosse o quadro a mudar, e eu a permanecer como sou agora! Por que você o pintou? Um dia, ele vai zombar de mim... vai zombar muito de mim!

            Lágrimas cálidas manavam-lhe nos olhos. Dorian arrancou a mão, atirou-se no divã, enterrou o rosto nas almofadas, como se rezasse.

            O pintor amargurou.

            – Foi você quem fez isso, Harry.

            Lorde Henry deu de ombros.

            – Este é o Dorian Gray real, é só isso.

            – Não é não.

            – Se não é, o que é que eu tenho com isso?

            Basil resmungou.

            – Você deveria ter ido embora quando eu pedi para que se fosse.

            – Fiquei, pois você me pediu que ficasse.

            – Harry, não consigo discutir com meus dois melhores amigos ao mesmo tempo; mas, cá entre nós, vocês dois me fizeram odiar a melhor peça que já fiz, e vou destruí-la. Ela não é nada, senão lona e cor! Não vou permitir que se anteponha a nossas três vidas e as estrague.

            Dorian Gray ergueu, do travesseiro, a cabeça dourada e, com o rosto pálido, os olhos manchados de lágrimas, olhou para Basil, que se dirigia à bancada de pintura, montada embaixo da janela alta, cortinada. O que fazia ali? Os dedos espalhavam-se por entre os restos de tubos de lata, de pincéis secos, à procura de algo. Claro, à procura da espátula, longa, de lâmina fina, de aço flexível. Encontrara-a, por fim. Ia rasgar a tela.

            Num soluço rouco, o jovem saltou do sofá, correu até Hallward, arrancou-lhe a faca da mão, e atirou-a ao fundo do ateliê.

            – Não, Basil! Não! Isto é assassinato!

            – Fico contente em saber que, afinal, você gosta de minha obra, Dorian.

            O pintor foi frio, ao recuperar-se da surpresa.

            – Pois pensei que não fosse gostar.

            – Gostar? Eu a adoro, Basil. Ela é parte de mim, eu sinto que é.

            – Bem, quando você estiver seco, será envernizado, emoldurado e enviado para casa. Depois, poderá fazer o que quiser com você mesmo.

            Hallward atravessou a sala e tocou a campainha, para pedir chá. Você vai querer chá, não vai, Dorian? E você também, não, Harry? Ou será que você faz objeções a estes prazeres triviais?

            – Eu adoro prazeres triviais. São o último refúgio do complexo. Mas não gosto de encenações, senão no palco. Vocês, vocês dois, são pessoas absurdas! Fico a pensar quem foi que definiu o homem como um animal racional! Foi a definição mais prematura que já ouvi. O homem é muitas coisas, mas não é racional. E fico feliz que não seja, afinal, embora não queira vê-los a discutir sobre o quadro. Seria muito melhor que eu ficasse com ele, Basil. Esse garoto bobo não o quer, na verdade; e eu o quero muito.

            – Se você, Basil, permitir que outra pessoa, que não eu mesmo, fique com o quadro, jamais o perdoarei. E não gosto que me chamem de garoto bobo.

            – Você sabe que o quadro é seu, Dorian. Já o dei a você antes mesmo que existisse.

            – E você sabe, Sr. Gray, que foi um tanto bobo, e que, na verdade, não faz qualquer objeção ao fato de ser lembrado de que é bastante jovem.

            – Hoje de manhã, Lorde Henry, eu teria feito severas objeções.

            – Ah, hoje de manhã! Foi a partir de hoje de manhã que você começou a viver.

            Ouviu-se uma batida à porta, o mordomo entrou com uma bandeja posta com chá, e pousou-a numa mesinha japonesa. Retiniram xícaras, pires, e sibilou o samovar georgiano, aflautado. Um pajem trouxe dois pratos de porcelana, globulares. Dorian Gray foi até lá, serviu-se de chá. Lânguidos, os dois adultos passearam até a mesa e examinaram o que havia por baixo da toalha.

            – Que tal irmos ao teatro hoje à noite? Deve haver alguma coisa em cartaz, em algum lugar. Eu prometi ir jantar no White, mas com um velho amigo, a quem posso enviar um telegrama e dizer que estou doente, ou, então, que não pude ir em conseqüência de compromisso posterior. Esta seria uma ótima desculpa, creio, por conter toda a surpresa da candura.

            Hallward resmungou.

            – É tão maçante vestir roupa dos outros. E assim que a vestimos, fica horrível.

            Lorde Henry devaneou.

            – É mesmo. Detestável, este costume do século dezenove. É tão opressivo, tão deprimente. O pecado é o único elemento colorido que resta à vida moderna.

            – Harry, não fica bem dizer estas coisas em frente de Dorian.

            – Em frente de que Dorian? Do que está nos servindo o chá, ou do que está no quadro?

            – Em frente a nenhum dos dois.

            – Eu gostaria de ir ao teatro com você, Lorde Henry.

            – Pois então venha; e por que você não vem também, Basil?

            – Para falar a verdade, não posso ir. Melhor não. Tenho muito trabalho a fazer.

            – Então, iremos você e eu, Sr. Gray.

            – Eu gostaria muitíssimo.

            O pintor mordeu o lábio e, com a xícara na mão, caminhou até o quadro. Triste.

            – Eu fico com o Dorian real.

            O original do retrato caminhou até Hallward.

            – Será que este é mesmo o Dorian real? Eu sou assim mesmo?

            – É exatamente assim.

            – Que maravilha, Basil!

            – Na aparência, ao menos, você é assim...

            Hallward suspirou.

            – ... mas o retrato jamais será alterado. Fantástico, não?

            – Como as pessoas criam caso por causa da fidelidade! Pois, mesmo no amor, é um mero problema de fisiologia. Não tem qualquer relação com nossa própria vontade. Os jovens querem ser fiéis, e não o são; os velhos querem ser infiéis, e não o conseguem. É tudo o que se pode dizer.

            – Não vá ao teatro hoje, Dorian. Fique, jante comigo.

            – Não posso, Basil.

            – Por quê?

            – Porque prometi a Lorde Henry Wotton sair com ele.

            – Ele não vai gostar mais de você se mantiver suas promessas. Ele sempre quebra as dele. Eu peço que não vá.

            Dorian Gray riu, sacudiu a cabeça.

            – Eu imploro.

            O jovem hesitou e lançou o olhar a Lorde Henry que, lá da mesa de chá, observava-os com um sorriso deliciado.

            – Eu tenho que ir, Basil.

            – Está bem.

            Hallward foi pousar a xícara na bandeja.

            – Já está tarde, e como você ainda tem que se vestir, é melhor não perder tempo. Até a vista, Harry. Até a vista, Dorian. Venha me visitar, não demore. Venha amanhã.

            – Claro.

            – Não vai se esquecer?

            – Não, claro que não.

            – E... Harry...

            – O que é, Basil?

            – Não se esqueça do que lhe pedi, quando estávamos no jardim, hoje de manhã.

            – Já me esqueci.

            – Eu confio em você.

            Lorde Henry riu.

            – Eu gostaria de confiar em mim mesmo. Venha, Sr. Gray, meu cabriolé está aí fora, posso deixá-lo em casa. Até a vista, Basil. Foi uma tarde muito interessante.

            Quando a porta se fechou, ao passarem os dois, o pintor arremessou-se no sofá; uma expressão de dor brotou-lhe no rosto.

 

            Às doze e trinta do dia seguinte, Lorde Henry Wotton caminhou, desde a Curzon Street até o Albany, para ir visitar o tio, Lorde Fermor, velho solteirão genial, de maneiras algo grosseiras, a quem o mundo lá fora chamava de egoísta por não extrair, dele, qualquer vantagem específica, considerado, porém, pela Sociedade, generoso, por alimentar as pessoas que o divertiam. O pai fora embaixador em Madri quando Isabella ainda era jovem, e ainda não se cogitava de Prim, mas se aposentara do Corpo Diplomático num momento caprichoso de contrariedade, em que não se oferecera a ele a Embaixada em Paris, posto para o qual julgava-se perfeitamente habilitado por motivo de berço, indolência, do bom inglês de seus despachos, e de uma paixão desregrada pelo prazer. O filho, que fora secretário do pai, renunciara com o chefe, de modo meio ingênuo, como se pensou na ocasião, e tendo permanecido no cargo alguns meses mais, lançou-se ao estudo sério da grande arte aristocrata do não fazer absolutamente nada. Embora possuísse duas casas na cidade, grandes, preferia morar em quartos alugados por causarem menos problemas, e fazia as refeições no clube. Dedicava uma certa atenção à administração de suas minas de carvão, localizadas nos condados de Midland, e justificava esta nódoa industrial alegando que a única vantagem de se possuir carvão era a de permitir, a qualquer cavalheiro, a decência de queimar madeira na própria lareira. Em política, era um tóri, salvo quando os tóris assumiam a Pasta, momento em que os descompunha por serem um bando de radicais. Para o criado, que o ameaçava, era um herói, e um terror para grande parte de suas relações, a quem, por sua vez, ameaçava. Apenas a Inglaterra poderia tê-lo produzido, e ele sempre dizia que o país vinha sendo atirado aos cães. Era de princípios desatualizados e, quanto aos preconceitos, muito mais teria que ser dito.

            Quando Lorde Henry entrou no quarto, encontrou o tio sentado, trajando um casaco de caça, grosseiro, fumando um charuto indiano e, com o The Times aberto, resmungando.

            – Bem, Harry – observou o velho cavalheiro –, o que o traz aqui tão cedo? Pensei que os dândis não acordassem antes das duas, e que não aparecessem em público antes das cinco.

            – Pura propensão familiar, Tio George, posso assegurar-lhe. Vim para tentar conseguir algo com o senhor.

            Lorde Fermor olhou enviezado.

            – Só pode ser dinheiro. Bem, sente-se, diga o que há. Os jovens, hoje em dia, pensam que o dinheiro seja tudo.

            Lorde Henry fixava a botoeira no casaco.

            – É verdade. E quando crescem, têm certeza. Mas não é dinheiro que quero. Quem precisa de dinheiro, Tio George, são as pessoas que pagam as contas, e eu nunca pago as minhas. Para os filhos mais novos, o capital é o crédito, e com ele podemos viver deliciosamente. Além disso, sempre faço meus negócios com os vendeiros de Dartmoor; eles, portanto, nunca me incomodam. O que quero é informação útil, é claro... informação inútil.

            – Bem, Harry, posso informar sobre qualquer coisa que conste do Livro Azul do Parlamento, embora aquele pessoal, hoje em dia, escreva um monte de bobagens. Quando eu estava na Diplomacia, as coisas eram muito melhores. Mas ouvi dizer que, agora, são admitidos por teste. E o que se pode esperar? Teste, meu caro, é puro embuste, do princípio ao fim. Se o candidato for um cavalheiro, saberá o suficiente, e se não for um cavalheiro, por mais que saiba, de nada lhe valerá.

            Lorde Henry foi lânguido.

            – O Sr. Dorian Gray não consta dos Livros Azuis, Tio George.

            Lorde Fermor franziu as sobrancelhas alvas, espessas.

            – Sr. Dorian Gray? Quem é?

            – Foi isso que vim saber, Tio George. Ou melhor, eu sei quem ele é. É o último neto de Lorde Kelso. A mãe era uma Devereux, Lady Margaret Devereux. Quero que o senhor me fale a respeito dela. Como era? Com quem se casou? Em sua época, o senhor conheceu quase todo mundo, portanto, deve tê-la conhecido. No momento, ando muito interessado no Sr. Gray. Acabo de conhecê-lo.

            O velho cavalheiro ecoou.

            – Neto de Kelso... Neto de Kelso! Claro. Conheci-lhe a mãe na intimidade. Creio que até compareci ao batizado dela. Era uma garota muito, muito linda, Margaret Devereux, deixou a todos os homens furiosos ao fugir com um jovem pé-rapado, um joão-ninguém, um subalterno de um regimento de infantaria, ou algo do gênero. Claro, claro. Lembro-me de tudo, como se fosse ontem. O pobre sujeito foi morto num duelo em Spa, uns poucos meses depois do casamento. É uma história feia. Disseram que Kelso contratou um aventureiro, um velhaco, um brutamontes belga, para insultar o genro em público, pagou, sir, pagou-o para fazê-lo, e o sujeito estilhaçou o homem como se estilhaça um pombo. A coisa foi abafada, mas, por Deus, depois disso, durante algum tempo, Kelso teve que comer sua costeleta sozinho, no clube. Trouxe a filha de volta, disseram-me, e ela nunca mais falou com ele. Foi, foi um negócio sujo. A garota morreu também, no espaço de um ano. E deixou um filho, não foi? Esqueço-me agora. Como é o tipo dele? Se for como a mãe, deve ser um garoto muito bonito.

            – Ele é muito bonito – assegurou Lorde Henry.

            O velho prosseguiu.

            – Espero que caia em boas mãos. Se Kelso agisse de maneira correta, ele teria, agora, um bom pote de dinheiro à sua espera. A mãe tinha dinheiro também. Toda a propriedade Selby ficou para ela, por meio do avô. Esse odiava Kelso, julgava-o um cão danado. E ele era mesmo. Certa feita, ele foi a Madri quando eu estava lá. Por Deus, quanta vergonha passei. A Rainha vivia a me indagar quem era um nobre inglês que sempre discutia com os cocheiros sobre o preço da corrida. Deu uma história e tanto. Não ousei aparecer na Corte durante um mês. Espero que tenha tratado o neto melhor do que tratava os cocheiros de praça.

            – Não sei. Mas imagino que o garoto irá ficar bem. Ainda não atingiu a maioridade. Sei que possui Selby, ele me disse. E... a mãe dele era mesmo muito bonita?

            – Margaret Devereux foi uma das criaturas mais encantadoras que já conheci, Harry. O que, nesta terra, a induziu a agir como agiu, não conseguirei compreender. Poderia ter se casado com o homem que bem escolhesse. Carlington era louco por ela. Mas ela era romântica. Todas as mulheres da família o eram. Os homens eram insignificantes, mas, por Deus, as mulheres eram maravilhosas. Carlington chegou a ficar de joelhos por ela. Ele mesmo me disse. E ela riu dele e, em toda Londres, não havia uma só garota que não andasse atrás dele. Aliás, Harry, por falar em casamentos imbecis, que impostura é esta, que seu pai me conta, que Dartmoor quer se casar com uma americana? Será que as mulheres inglesas não são dignas dele?

           – Está na moda, Tio George, casar com americanas – Lorde Fermor golpeou a mesa com o punho.

            – Estou do lado das mulheres inglesas, Harry, contra o mundo inteiro.

            – As apostas apontam para as americanas.

            O tio resmungou.

            – Ouvi dizer que não são muito duráveis.

            – Compromissos longos as exaurem, mas são importantes em corridas de obstáculos. Pegam as coisas no ar. Não creio que Dartmoor tenha qualquer chance.

            O velho cavalheiro ranzinzou.

            – E o pessoal dela, quem é? Se é que tem família!

            Lorde Henry sacudiu a cabeça. Levantou-se, para ir embora.

            – As mulheres americanas escondem os pais com muita inteligência; e as mulheres inglesas, com muita inteligência, sabem esconder o passado.

            – Será que são fabricantes de lingüiça de porco?

            – Espero que sim, Tio George, para o bem de Dartmoor. Ouvi dizer que fabricar lingüiça de porco é o negócio mais lucrativo na América, depois da política.

            – Ela é bonita?

            – Ela age como se fosse bonita. Grande parte das americanas age assim. É o segredo de seu charme.

            – Por que essas americanas não ficam na terra delas? Estão sempre a dizer que lá é o paraíso das mulheres.

            – E é. E eis por que, assim como Eva, estão sempre tão ansiosas para sair de lá. Até a vista, Tio George. Se me demorar mais, chego atrasado para o almoço. Obrigado pela informação. Sempre gosto de saber tudo a respeito de meus novos amigos, e nada a respeito dos antigos.

            – Onde você vai almoçar, Harry?

            – Na casa de Tia Agatha. Eu me convidei, e ao Sr. Gray, o mais recente protegido dela.

            – Hum! Diga a sua Tia Agatha, Harry, para não me aborrecer mais com pedidos de caridade. Já estou cansado deles. Esta mulher tão bondosa pensa que eu não tenho o que fazer, além de assinar cheques para as excentricidades dela.

            – Está bem, Tio George, direi a ela, mas não irá adiantar nada. As pessoas filantrópicas perdem toda a noção de humanidade. É a característica que as distingue.

            O velho cavalheiro resmungou, em aprovação, e tocou a campainha, para chamar o criado. Pela arcada, baixa, Lorde Henry saiu, desembocou na Burlington Street e rumou os passos na direção de Berkeley Square.

            Era esta, então, a história do parentesco de Dorian Gray. Da maneira cruel como lhe fora contada, mesmo assim fizera-o estremecer a insinuação de um romance estranho, quase moderno. Uma mulher linda, que tudo arrisca por uma paixão louca. Umas poucas semanas de amor alucinante, interrompidas por um crime revoltante, traiçoeiro. Meses de agonia surda e, na dor, nasce uma criança. A morte leva a mãe embora. O filho é abandonado à solidão, à tirania de um homem velho, sem amor. Claro, um cenário interessante. Fez afirmar o garoto e, da maneira como tudo ocorreu, fê-lo ainda mais perfeito. Por trás de todo pormenor exótico, existia um pormenor trágico. Foi necessária a agonia dos mundos, para que desabrochasse a flor mais significativa... E, ontem à noite, quão encantador estava ao jantar, no clube, sentado do outro lado da mesa, os olhos assombrados, os lábios entreabertos, num prazer assustado, as campânulas dos candelabros, vermelhas, a matizar, de um rosa mais fecundo, a maravilha daquele rosto que desperta. Conversar com ele foi o mesmo que tocar um violino exótico! Ele correspondeu a cada toque, a cada trinado do arco... Havia algo de terrível, de tanto feitiço, no exercício de influência! Nenhuma atividade se compara a esta! Projetar a alma de alguém numa forma graciosa, e deixá-la ficar, por um instante; ouvir o eco de nossos próprios pontos de vista acrescentados com a música da paixão e da juventude; transportar nosso temperamento até outro, como um fluido sutil, um perfume estranho. Havia uma certa alegria real nisto, talvez a alegria mais gratificante que nos resta nesta era tão limitada, tão vulgar como a nossa, uma era de prazeres carnais, grosseiros, e de objetivos triviais. E o tipo dele, também maravilhoso, deste garoto que, por um acaso curioso, conhecera no ateliê de Basil, e que, de um jeito ou de outro, poderia ser modelado num tipo maravilhoso. Era dotado da graça, da pureza alva da infância, e de beleza tal, legada a nós pelas obras de mármore gregas. Dele, poder-se-ia fazer um Titã, ou um brinquedo. Que pena, tanta beleza estava fadada a apagar-se!... E Basil? Sob o ponto de vista psicológico, como era interessante! A nova maneira de arte, o novo modo de olhar a vida, insinuados, tão estranho, pela mera presença visível de alguém que, de tudo isso, não tinha consciência; o espírito silencioso, habitante do bosque penumbroso, invisível caminha em campo aberto e, de repente, mostra-se, qual uma dríade, sem medo, porque, naquela alma que busca o espírito, está desperta a visão maravilhosa à qual, e só a ela, são reveladas as coisas maravilhosas. Os meros padrões e formas de coisas que se tornam, como tornaram, refinadas, que ganham uma espécie de valor simbólico, embora fossem, eles próprios, padrões de alguma forma outra, mais perfeita, cuja sombra tornavam real. Tudo, tão estranho! Lembrou-se de algo semelhante, na história. Pois não foi Platão, este artista do pensamento, o primeiro a analisar isto? Pois não foi Buonaroti que o entalhou nos mármores coloridos da seqüência de um soneto? Em nosso próprio país, entretanto, tudo era estranho... Claro, ele tentaria ser para Dorian Gray aquilo que, sem o saber, o garoto era para o pintor que modelara o maravilhoso retrato. Procuraria dominá-lo – e já o dominava, de fato, parcialmente. Faria, daquele espírito maravilhoso, sua propriedade. Havia algo de fascinante neste filho do amor e da morte.

            De repente, parou, e olhou para cima, para as casas. Descobriu que passara a uma certa distância da casa da tia; sorriu consigo mesmo, voltou. Ao entrar no corredor algo sombrio, foi informado, pelo mordomo, que todos já haviam entrado para o almoço. Lorde Henry deu o chapéu, a bengala, a um dos criados, e passou à sala de jantar.

            A tia sacudiu a cabeça, voltada para o sobrinho.

            – Atrasado como sempre, Harry.

            Lorde Henry inventou uma desculpa fácil, tomou o assento vago ao lado da tia e olhou em volta, a ver quem estava. Lá da extremidade da mesa, Dorian curvou-se, tímido, um rubor de prazer esgueirou-se-lhe na maçã do rosto. Do lado oposto, encontrava-se a Duquesa de Harley, senhora de boa índole e bom humor admiráveis, muito estimada por todos que conhecia, e com aquelas proporções amplas, arquiteturais, que, nas mulheres que não são duquesas, são descritas, pelos historiadores modernos, como corpulência. Junto a ela, sentava-se, à direita, Sir Thomas Burdon, membro radical do Parlamento, quem, na vida pública, acompanhava o líder e, na vida particular, acompanhava os melhores cozinheiros, jantando com os tóris, pensando com os liberais, segundo norma inteligente e conhecida. O posto à esquerda estava ocupado pelo Sr. Erskine, de Treadley, velho cavalheiro de encanto e cultura consideráveis, que se abandonara, entretanto, ao mau hábito do silêncio, já que, como explicara certa feita à Lady Agatha, dissera tudo o que tinha a dizer antes dos trinta. Sua vizinha era a Sra. Vandeleur, uma das amigas mais antigas da tia, santa perfeita entre as mulheres, tão relaxada, entretanto, que lembrava um hinário mal-alceado. Para ele, por sorte, junto a ela, do outro lado, estava Lorde Faudel, uma mediocridade de meia-idade, das mais inteligentes, tão calvo quanto qualquer contestação ministerial na Casa dos Comuns, com quem a Sra. Vandeleur conversava daquele modo intenso e ardente, único erro imperdoável, como ele próprio já observara certa feita, em que caem, na verdade, todas as pessoas bondosas, e do qual nenhuma delas consegue escapar.

            – Conversamos a respeito do pobre Dartmoor, Lorde Henry...

            Deleitosa, a duquesa acenava para ele, lá do outro lado da mesa.

            – ... O Senhor acredita mesmo que ele vai desposar aquela jovem fascinante?

            – Creio que ele já se decidiu a pedi-la em casamento, duquesa.

            – Que horror! – exclamou Lady Agatha. – Alguém, na verdade, deveria interferir.

            Sir Thomas Burdon olhou, arrogante.

            – Fonte autorizada, excelente, disse-me que o pai dela tem uma loja de secos americanos.

            – Meu tio já sugeriu lingüiça de porco, Sir Thomas.

            A duquesa ergueu as mãos em pasmo, e acentuou o verbo.

            – Secos! O que são secos americanos?

            Lorde Henry servia-se de um pouco de codorniz.

            – São romances americanos.

            A duquesa pareceu intrigar-se.

            – Não se incomode com ele, meu bem – sussurrou Lady Agatha. – Ele nunca tem a intenção de dizer o que diz.

            – Quando a América foi descoberta...

            E o membro radical começou a distribuir fatos maçantes. Como ocorre com as pessoas que desejam esgotar um assunto, o radical esgotou os ouvintes. A duquesa suspirou, e exerceu o privilégio da interrupção, numa exclamação.

            – Ah, como seria bom que ela não tivesse sido descoberta! De fato, hoje em dia, nossas meninas não tem qualquer chance. Não é nada justo.

            – Talvez – interveio o Sr. Erskine –, a América jamais tenha sido descoberta. Eu, pessoalmente, diria que ela foi apenas detectada.

            A duquesa foi vaga.

            – Ora, mas eu já vi espécimes de seus habitantes. Devo confessar que a grande maioria é muito bonita. E se veste muito bem, também. Compram todos os vestidos em Paris. Eu gostaria de ter o suficiente para fazer o mesmo.

            Sir Thomas riu, sacudindo o corpo, ele que possuía um guarda-roupa imenso de roupas refugadas da Humour.

            – Dizem que quando morre um americano importante, vai para Paris.

            A duquesa inquiriu.

            – Verdade? E os americanos insignificantes, para onde vão quando morrem?

            – Vão para a América – murmurou Lorde Henry.

            Sir Thomas franziu o cenho. Voltou-se para Lady Agatha.

            – Receio que seu sobrinho tenha preconceitos contra aquele grande país. Eu já viajei por todo ele, em carros fornecidos pelos diretores, que, nestas questões, são muito corteses. Asseguro que é uma maneira de viver que merece ser visitada.

            O Sr. Erskine queixou-se.

            – Mas será que temos mesmo que ver Chicago para nos educarmos?

            Sir Thomas acenou a mão.

            – O Sr. Erskine de Treadley tem o mundo na estante. Nós, homens práticos, gostamos de ver as coisas, e não de ler a respeito delas. Os americanos são um povo muito interessante. São bastante sensatos, e creio que esta seja a característica que lhes distinga. Claro, Sr. Erskine, um povo muito sensato. Posso assegurar-lhe que, entre os americanos, não há contra-sensos.

            – Horrível – exclamou Lorde Henry. – Sou capaz de aturar a força bruta, mas a razão bruta é por demais insuportável. Há algo de injusto em seu uso. É como um golpe baixo no intelecto.

            Sir Thomas enrubesceu.

            – Não o compreendo.

            Sr. Erskine sorriu.

            – Eu o compreendo, Lorde Henry.

            O baronete voltou à conversa.

            – Os paradoxos estão todos muito bem colocados...

            – Qual é o paradoxo? – perguntou o Sr. Erskine. – Não vi paradoxo algum. Bem, talvez seja. O caminho dos paradoxos é o caminho da verdade. Para testar a realidade, devemos assisti-la na corda bamba. Quando as verdades se transformam em acrobatas, podemos julgá-las.

            Lady Agatha interferiu.

            – Valha-me, paciência! Como vocês homens discutem! Tenho certeza de que não vou conseguir perceber sobre o que vocês falam. Ora, Harry! Você me envergonha. Por que você tenta persuadir nosso simpático Dorian Gray a desistir do East End? Asseguro-lhe de que ele seria valiosíssimo. Gostariam muito de ouvi-lo tocar.

            – Quero que ele toque para mim.

            Lorde Henry lançou o olhar até o outro lado da mesa, e, em resposta, detectou um soslaio vívido. Lady Agatha prosseguiu.

            – Mas, em Whitechapel, as pessoas são tão infelizes.

            Lorde Henry deu de ombros.

            – Posso ser condescendente com qualquer coisa, menos com o sofrimento. Não posso ser benevolente com o sofrimento. O sofrimento é feio, horrível demais, aflitivo demais. Há algo de muito mórbido na condescendência moderna para com a dor. Deveríamos condescender com a cor, com a beleza, com a alegria de viver. Quanto menos for dito a respeito das agruras da vida, melhor!

            Sério, Sir Thomas sacudiu a cabeça.

            – Mesmo assim, o East End é um problema muito importante.

            – Muito mesmo – reforçou o jovem lorde. – É o problema da escravidão, e tentamos resolvê-lo divertindo os escravos.

            O político olhou-o, cortante.

            – Que mudanças, então, você propõe?

            Lorde Henry riu.

            – A única coisa que desejo mudar na Inglaterra é o clima. A mim me satisfaz a contemplação filosófica. Porém, como o século dezenove faliu de tanto esbanjar condescendência, sugiro que façamos um apelo à ciência, para que nos aprumemos. A vantagem das emoções é que elas nos desencaminham, e a vantagem da ciência é que ela não é emocional.

            Tímida, a Sra. Vandeleur aventurou.

            – Mas temos responsabilidades tão sérias.

            – Muito sérias – ecoou Lady Agatha.

            Lorde Henry lançou o olhar até o Sr. Erskine.

            – A humanidade leva a si mesma muito a sério. É o pecado original do mundo. Se os homens das cavernas soubessem rir, a história seria diferente.

            – Bem reconfortante, o senhor é – gorjeou a duquesa. – Sempre me sinto bastante culpada quando venho visitar sua querida tia, pois não estou nem um pouco interessada no East End. Para o futuro, pretendo poder olhá-la nos olhos sem corar.

            – Rubores, duquesa, são sempre bem-vindos – observou Lorde Henry.

            – Quando se é jovem, sim. Sempre que uma senhora como eu enrubesce, é muito mau sinal. Ah, Lorde Henry, como eu gostaria que o senhor me ensinasse a ser jovem novamente.

            Por um momento, Lorde Henry pensou. Depois, olhou para ela, do outro lado da mesa.

            – A senhora, duquesa, seria capaz de se lembrar de algum grande erro que tivesse cometido em tenra idade?

            – De muitos, receio.

            – Então, cometa-os de novo – ensinou Lorde Henry, sério. – Para se recuperar a juventude, basta repetir as mesmas loucuras.

            – Uma teoria deliciosa. Tentarei colocá-la em prática.

            – Uma teoria perigosa – escapou dos lábios contraídos de Sir Thomas. Lady Agatha meneou a cabeça, mas não pôde deixar de achar divertido. O Sr. Erskine escutava. Sir Thomas prosseguiu.

            – É verdade, este é um dos grandes segredos da vida. Hoje em dia, a maioria das pessoas morre de uma espécie de consenso servil, e, quando já é tarde demais, descobre que as únicas coisas de que não nos arrependemos são nossos erros.

            Uma gargalhada percorreu a mesa.

            Sir Thomas brincou com a idéia, obstinou-se. Lançou-a ao ar e transformou-a; deixou-a escapar, recapturou-a. Fê-la iridescente com fantasia, deu-lhe asas com o paradoxo. A exaltação da loucura, enquanto prosseguia, elevava-se à condição de filosofia, e a própria Filosofia rejuvenesceu, alcançou a música louca do Prazer; trajando, imaginemos, o manto manchado de vinho e a coroa de hera, dançou, qual uma bacante, pelas colinas da vida, e zombou de Sileno, lerdo, porque estava sóbrio. Diante dela, os fatos fugiram, qual coisas assustadas da floresta. Os pés alvos calcam o imenso lagar sobre o qual Ornar, esperto, está sentado, até o caldo da uva, em ebulição, subir e envolver-lhe os membros nus, em ondas de bolhas púrpuras, ou arrastar-se, numa espuma vermelha, por cima do negror do tonel, pingando, galgando as paredes. Extraordinária improvisação. Sentiu que os olhos de Dorian Gray nele se fixavam, e a consciência de que, naquela plaque, havia alguém cujo temperamento desejava fascinar, parecia dotar-lhe de argúcia e sabedoria, e emprestar-lhe cor à imaginação. Ele era brilhante, fantástico, irresponsável. Encantava os ouvintes, tirava-os de si mesmos, e eles acompanhavam-lhe o cachimbo, rindo. Dorian Gray, por um instante sequer, não desviou o olhar, apenas permaneceu sentado, como quem está enfeitiçado; nos lábios, os sorrisos a se perseguirem uns aos outros, e, nos olhos que turvavam, a admiração a solenizar-se.

            Por fim, fardada com o traje da época, a realidade adentrou o recinto na forma de um criado, para avisar à duquesa que a carruagem esperava. Ela comprimiu as mãos, em desespero irônico.

            – Que pena! Tenho que ir-me. Tenho que ir apanhar meu marido no clube, para levá-lo a uma reunião absurda nos Apartamentos Willi, que ele irá presidir. Se me atrasar, ficará furioso, tenho certeza, e, com este chapéu de plumas, não poderei fazer escândalo. É muito frágil. Uma palavra áspera o faria em pedaços. Não, tenho que ir-me, Sra. Agatha. Até a vista, Lorde Henry. O senhor é tão agradável, mas terrivelmente desmoralizante. Tenho certeza de que não saberia o que dizer a respeito de seus pontos de vista. Venha jantar comigo uma noite destas. Terça-feira? O senhor está descompromissado na terça à noite?

            Lorde Henry curvou-se.

            – Pela senhora, desfaço qualquer compromisso, duquesa.

            – Ora, muito simpático, mas também muito incorreto de sua parte. Pois então venha mesmo.

            A duquesa deslizou recinto afora, acompanhada por Lady Agatha e as demais senhoras.

            Quando Lorde Henry sentou-se novamente, o Sr. Erskine girou, tomou uma cadeira próxima a ele, pousou-lhe a mão no braço.

            – O senhor fala tanto em livros. Por que não escreve um?

            – Gosto tanto de livros, Sr. Erskine, que nem me preocupo em escrevê-los. Claro que gostaria de escrever um romance, um romance tão encantador, e tão irreal, quanto um tapete persa. Mas o único problema literário existente na Inglaterra está voltado para jornais, cartilhas e enciclopédias. Dentre todos os povos do mundo, são os ingleses os que possuem o menor sentido de beleza da literatura.

            – Receio que o senhor tenha razão. Eu mesmo costumava nutrir ambições literárias, mas, já há muito, desisti delas. E, agora, meu jovem amigo, se o senhor me permite chamá-lo assim, posso perguntar-lhe se o senhor teve mesmo a intenção de dizer tudo aquilo que nos disse durante o almoço?

            Lorde Henry sorriu

            – Já quase me esqueci do que disse. Foram coisas ruins?

            – Na verdade, foram muito ruins. Eu, de fato, considero-o muito perigoso, e se algo acontecer a nossa boa duquesa, deveremos considerá-lo o responsável primário. Mas gostaria de conversar com o senhor a respeito da vida. A geração em que nasci era entediante. Qualquer dia destes, quando o senhor se cansar de Londres, venha até Treadley, para expor-me sua filosofia do prazer, mergulhado num certo Borgonha notável que tenho a sorte de possuir.

            – Ficarei encantado. Visitar Treadley seria um grande privilégio. Um anfitrião perfeito, uma biblioteca perfeita.

            O velho cavalheiro curvou-se, cortês.

            – E o senhor a completará. E agora devo despedir-me de sua tia admirável. Já perdi a hora no Ateneu. Lá, a esta hora, já estamos dormindo.

            – Todos, Sr. Erskine?

            – Somos quarenta, em quarenta poltronas. Estamos treinando para a Academia Inglesa de Letras.

            Lorde Henry riu, levantou-se.

            – Irei até o Parque.

            Ao passar pela porta, Dorian Gray tocou-o no braço.

            – Posso ir com o senhor?

            – Ora, pensei que você houvesse prometido a Basil Hallward ir vê-lo.

            – Eu preferiria ir com o senhor. Claro, eu sinto que tenho que ir com o senhor. Por favor. O senhor promete conversar comigo o tempo todo? Não há, como o senhor, quem converse de maneira tão maravilhosa!

            Lorde Henry riu.

            – Ora, eu já falei muito por hoje. Agora, tudo o que eu quero, é olhar a vida. Você pode vir, e olhá-la junto comigo, se é que se interessa por isto.

 

            Numa tarde, um mês depois, Dorian Gray reclinava-se numa poltrona luxuosa, na pequena biblioteca da residência de Lorde Henry, em Mayfair. Era, a seu modo, uma sala bastante encantadora, revestida em painéis altos de lambris tintos em verde-oliva, o friso cor-de-creme, o teto de gesso, em relevo, o carpete de feltro, pó de tijolo, semeado de tapetes persas de seda, de franjas longas. Numa mesa de pau-cetim, uma estátua de Clodion e, ao lado dela, um exemplar de Les Cent Nouvelles, encadernado por Clovis Eve para Margarida de Valois, polvilhado de margaridas douradas que a Rainha escolhera como emblema. Algumas jarras de porcelana azul, algumas tulipas-papagaios compunham-se em desfiladeiro em cima do console da lareira e, pelas vidraças da janela, pequenas, esquadrias em chumbo, fluía a luz, da cor do abricó, de um dia de verão em Londres.

            Lorde Henry ainda não chegara. Sempre se atrasava, por princípio, o princípio de que a pontualidade é a ladra do tempo. Assim, o rapaz parecia mal-humorado, pois, com dedos descuidados, virava as páginas de uma edição ilustrada, mui bem elaborada, de Manon Lescaut, que encontrara numa das prateleiras. O tique-taque monótono, formal, do relógio Luís Quatorze, perturbava-o. Por uma ou duas vezes, pensou em ir-se embora.

            Por fim, lá do lado de fora, ouviu um passo; a porta se abriu.

            – Você está muito atrasado, hein, Harry!

            – Receio que não seja Harry, Sr. Gray – respondeu uma voz estridente.

            Rápido, Dorian Gray olhou em volta, levantou-se, ficou de pé.

            – Sinto muito. Pensei...

            – O senhor pensou que fosse meu marido. Não, sou apenas a esposa. Permita-me que me apresente. Conheço-o muito bem, por fotografias. Creio que meu marido possui dezessete...

            – Dezessete não, Lady Henry.

            – Bem, então, dezoito. E vi o senhor com ele, anteontem à noite na Ópera.

            Ao falar, Lady Henry ria nervosa, e observava-o com os olhos vagos do miosótis. Era uma mulher curiosa, cujos vestidos sempre pareciam ter sido confeccionados durante um acesso de cólera, e usados durante uma tempestade. Estava sempre amando alguém, e como jamais recuperara a paixão, ainda nutria antigas ilusões. Tentava parecer pitoresca, mas tudo o que conseguia era ser desleixada. Chamava-se Victoria, e tinha a mania absoluta de freqüentar a igreja.

            – Foi na apresentação de Lohengrin, Lady Henry?

            – Foi, sim. Na estimada Lohengrin. Gosto da música de Wagner muito mais que a de qualquer outro. De tão alta, podemos conversar o tempo todo sem que se ouça o que estamos falando. É uma grande vantagem, não acha, Sr. Gray?

            A mesma risada staccato, nervosa, irrompeu-lhe dos lábios descarnados, e os dedos começaram a bolir com um corta-papel de casco de tartaruga, comprido.

            Dorian sorriu, sacudiu a cabeça.

            – Receio que não concorde, Lady Henry. Jamais converso ao ouvir música – ao menos, ao ouvir boa música. Quando a música é ruim, é nosso dever afogá-la com conversas.

            – Ah, uma das opiniões de Harry, não é, Sr. Gray? Sempre ouço a opinião de Harry sobre os amigos, é a única maneira que tenho de conhecê-los. Mas, por favor, não pense que não gosto de boa música. Adoro boa música, mas tenho medo. Deixa-me muito romântica. Tive verdadeira adoração por pianistas... às vezes, por dois de uma vez só. É Harry quem o diz. Não sei o que há com eles. Talvez, porque sejam estrangeiros. Todos eles o são, não são? Até mesmo os que nascem na Inglaterra transformam-se em estrangeiros depois de certo tempo, não é mesmo? Da parte deles, é esperteza, e, com relação à arte, é um elogio. Faz dela algo bem cosmopolita, não é mesmo? O senhor nunca compareceu às minhas festas, não é verdade, Sr. Gray? Pois o senhor tem que vir. Não posso investir em orquídeas, mas não poupo com os estrangeiros. Com eles, nossos aposentos parecem tão pitorescos! Ora, mas aí vem Harry! Harry, entrei para procurá-lo, para perguntar-lhe algo... não me lembro o que agora... e encontrei o Sr. Gray. Tivemos uma conversa tão agradável sobre música. Temos quase as mesmas idéias. Não, creio que minhas idéias são muito diferentes. Mas ele foi tão agradável. Estou tão feliz de tê-lo visto.

            – Estou encantado, meu amor, muito encantado.

            Lorde Henry ergueu as sobrancelhas escuras, em forma de meia-lua, e olhou para os dois num sorriso espantado.

            – Sinto muito pelo atraso, Dorian. Fui procurar uma peça de brocado antigo em Wardour Street, e tive que pechinchar por horas a fio. Hoje em dia, as pessoas sabem o preço de tudo, mas não sabem o valor de nada.

            Com uma gargalhada súbita, tola, Lady Henry quebrou o estranho silêncio que se instalara.

            – Receio que tenha que ir-me. Prometi sair a passeio com a duquesa. Até a vista, Sr. Gray. Até a vista, Harry. Suponho que vocês vão jantar fora. Eu também. Talvez os veja na residência de Lady Thornbury.

            – Quem sabe, minha querida?

            Atrás dela, que, qual um pássaro do paraíso que passara a noite fora, na chuva, saiu da sala num movimento leve e deixou o tênue aroma da frangipana, Lorde Henry fechou a porta. Depois, acendeu um cigarro e atirou-se no sofá.

            Tirou algumas baforadas.

            – Nunca se case com uma mulher de cabelos cor-de-palha, Dorian.

            – Por que, Harry?

            – Porque são muito sentimentais.

            – Mas eu gosto de pessoas sentimentais.

            – Bem, de um jeito ou de outro, não se case. Os homens se casam porque estão cansados, e as mulheres, por curiosidade. Os dois se decepcionam.

            – Não creio que esteja propenso a me casar, Harry. Estou muito apaixonado. Eis um de seus aforismas. Estou colocando em prática, como faço com tudo o que você diz.

            Houve uma pausa.

            – Por quem você está apaixonado?

            Dorian Gray enrubesceu.

            – Por uma atriz.

            Lorde Henry chacoalhou os ombros.

            – Muito lugar-comum, este seu début.

            – Se você a visse, Harry, não diria isto.

            – Quem é ela?

            – O nome dela é Sibyl Vane.

            – Nunca ouvi falar.

            – Ninguém ouviu falar dela. Mas ouvirão, um dia. Ela é um gênio.

            – Meu caro jovem, nenhuma mulher é um gênio. As mulheres são um sexo decorativo. Nunca têm nada a dizer, mas dizem-no com encanto. As mulheres representam o triunfo da matéria sobre a mente, da mesma maneira que os homens representam o triunfo da mente sobre a moralidade.

            – Harry, não fale assim.

            – É verdade, meu caro Dorian. Atualmente, ando analisando as mulheres; portanto, devo saber. O tema não é tão abstruso quanto pensei que fosse. Descobri que, ultimamente, existem apenas duas espécies de mulher: as simples e as coloridas. As simples são muito úteis. Se você deseja uma reputação de respeitabilidade, basta convidá-las para jantar. As outras, muito encantadoras, cometem, entretanto, um erro. Pintam-se, para atraírem e parecerem jovens. Nossas avós pintavam-se para atraírem e falarem com brilhantismo. O ruge e o espírito costumam caminhar juntos. Mas isto já não existe mais. Quando a mulher consegue parecer dez anos mais nova que a própria filha, sente-se plenamente satisfeita. E, no que diz respeito ao conversar, existem, em Londres, apenas cinco mulheres com quem vale a pena se conversar, e duas delas não são admitidas na sociedade digna. Mas conte-me a respeito do gênio. Há quanto tempo a conhece?

            – Ah, Harry! Seus pontos de vista me aterrorizam.

            – Ora, não ligue. Há quanto tempo você a conhece?

            – Há mais ou menos três semanas.

            – E onde você a encontrou?

            – Bem, vou contar, Harry, mas não quero que você demonstre incompreensão. Afinal, nada teria acontecido se eu não tivesse encontrado você. Você me encheu do desejo selvagem de querer saber tudo a respeito da vida. Pois, dias depois de conhecê-lo, algo pareceu latejar em minhas veias. Sempre ao vagar pelo Parque, ou passear pelo Piccadilly, olhava a todos que passavam por mim, e me punha a imaginar, numa curiosidade louca, que tipo de vida levavam. Algumas me fascinavam; outras enchiam-me de terror. Havia um vento exótico no ar. Tomava-me a paixão pelas sensações... Bem, numa noite, por volta de sete horas, determinei-me a ir em busca de alguma aventura. Senti que essa nossa Londres, cinza, monstruosa, e suas miríades de pessoas, seus pecadores sórdidos, e seus pecados esplêndidos, como você fraseou certo dia, devia ter algo guardado para mim. Imaginei mil coisas. O simples perigo trouxe-me uma sensação de deleite. Lembrei-me do que você me havia dito naquela noite maravilhosa em que jantamos juntos pela primeira vez, que a busca da beleza era o verdadeiro segredo da vida. Eu não sei o que eu esperava, mas saí, vaguei rumo leste, e logo me perdi num labirinto de ruas encardidas, de quarteirões escuros, sem vegetação. Por volta de oito e meia, passei por um teatrinho absurdo, com repuxos luminosos, grandes, incandescentes, e cartazes espalhafatosos. Um judeu revoltante, num colete estupendo, como nunca vira igual, estava de pé à entrada, e fumava um cigarro ordinário. Tinha cachos pastosos e, no centro da camisa encardida, fulgurava um enorme diamante. “Quer um camarote, milorde?”, ele perguntou assim que me viu, e tirou o chapéu com um ar de suntuosa servilidade. Algo nele havia, Harry, que me agradava. Ele era um monstro, e você vai rir de mim, eu sei, mas entrei e paguei o guinéu pelo camarote de palco. Até hoje, não consigo atinar por quê. E, por outro lado, se não o tivesse feito, Harry, teria perdido o maior romance de minha vida. Bem percebo que você está rindo. Isto é horrível de sua parte!

            – Eu não estou rindo, Dorian. Ao menos, não estou rindo de você. É que você não deve dizer o maior romance de sua vida, diga o primeiro romance de sua vida. Você será sempre amado e sempre amará o amor. As grandes paixões são privilégio dos que nada têm a fazer, são a grande utilidade das classes ociosas de um país. Não tenha medo, coisas exóticas esperam por você. Isto é só o começo.

            Dorian Gray zangou-se.

            – Para você, minha natureza é muito superficial, não?

            – Não, para mim sua natureza é muito profunda.

            – Como assim?

            – Meu caro menino, superficiais são as pessoas que amam só uma vez na vida. O que chamam de lealdade, de fidelidade, eu chamo de letargia de costumes ou de falta de imaginação. A fidelidade está para a vida emocional assim como a consciência está para a vida do intelecto... uma mera confissão de fracasso. Fidelidade! Qualquer dia desses, vou analisá-la. Ela contém a paixão pela propriedade. Existem muitas coisas que jogaríamos fora, não receássemos que outros mais pudessem pegá-las. Mas não desejo interrompê-lo. Prossiga com sua história.

            – Bem, quando dei por mim, estava sentado num camarotezinho reservado, horrível, e um pano de boca, vulgar, me encarava. Por trás da cortina, olhei em volta, a sondar o teatro. Era uma coisa espalhafatosa, de mau gosto, toda de cupidos e cornucópias, como um bolo de núpcias de terceira categoria. A galeria e a platéia estavam bem cheias, as poltronas encardidas das duas primeiras filas bastante vazias, e nos balcões de primeira classe, como suponho que os chamam, uma única pessoa. As mulheres circulavam, com laranjas e gengibirra, e pairava um terrível consumo de amêndoas.

            – Talvez como nos dias de louros do Drama Inglês.

            – Talvez, imagino, e muito deprimente. Comecei a pensar em o que fazer nesta terra, quando li o programa. Que peça você acha que era, Harry?

            – Bem, eu diria “O Menino Idiota”, ou “Tola mas Inocente”. Nossos pais gostavam destes tipos de peça, creio. Quanto mais vivo, Dorian, percebo, com muito mais perspicácia, que o que era bom para nossos pais não é bom para nós. Em arte, como na política, nossos avós estão sempre errados.

            – Esta peça era boa para nós, Harry. Era Romeu e Julieta. Devo admitir que me aborreceu muito a idéia de ver Shakespeare interpretado num buraco daqueles, tão deplorável. Mesmo assim, de um jeito ou de outro, eu sentia um certo interesse. Seja como for, determinei-me a esperar o primeiro ato. A orquestra era horrível, regida por um jovem hebreu, num piano desafinado que quase me fez ir embora. Por fim, porém, o pano de boca ergueu-se, a peça começou. Romeu era um senhor, já de idade, robusto, com as sobrancelhas pintadas de cortiça queimada, uma voz rouca, de tragédia, com o aspecto de um barril de cerveja. Mercúcio era um horror também, interpretado por um comediante menor, que inseria improvisos cômicos e travava termos muito amistosos com a platéia. Eram, os dois, tão grotescos quanto o próprio cenário, que parece ter sido inspirado numa choça campestre. Mas, a Julieta! Ah! Harry, imagine uma garota, por volta de uns dezessete anos de idade, com o rostinho de uma flor, a cabeça pequena, grega, cachos laminados nos cabelos castanho-escuros, olhos que eram fontes violetas de paixão, lábios como as pétalas de uma rosa. Era a coisa mais adorável, jamais vira igual na vida. Você me disse, um dia, que o patos não nos sensibiliza, mas aquela beleza, pura beleza, iria encher-lhe os olhos de lágrimas. Acredite, Harry, eu mal pude enxergar a garota tal a bruma de lágrimas que me tomou. E a voz!, jamais ouvi igual. No início, muito baixa, com notas profundas, melodiosas, que pareciam pousar, uma a uma, nos meus ouvidos. Depois, alteou um pouco, parecia o som de uma flauta, ou de um oboé distante. Na cena do jardim, trazia todo o êxtase trêmulo que costumamos ouvir pouco antes do alvorecer, com o canto dos rouxinóis. E houve momentos, depois, em que aquela voz continha a paixão selvagem dos violinos. Você bem sabe como uma voz é capaz de mexer conosco. Sua voz, e a voz de Sibyl Vane, são duas coisas de que jamais me esquecerei. Não sei qual das duas seguir. Por que não posso amá-la? Harry, eu a amo de verdade. Ela é tudo em minha vida. Noite após noite, vou vê-la representar. Numa noite, ela é Rosalinda, na noite seguinte, é Imogene. Eu já a vi morrer na penumbra de uma tumba italiana, sugando o veneno dos lábios do amante. Já a vi vagar pela floresta de Ardenas, disfarçada num menino bonito, de calçolas curtas, gibão e gorro delicado. Como louca, compareceu diante de um rei criminoso, e deu-lhe arruda para usar, e ervas amargas para provar. Como inocente, as mãos negras do ciúme esganaram-lhe o pescocinho de cálamo. Já a vi em todas as eras, em todos os trajes. As mulheres comuns não costumam apetecer à nossa imaginação, pois estão limitadas ao próprio século. Não há magia que as transfigure. É fácil conhecer-lhes as mentes, basta olharmos para os chapéus que usam. Sempre conseguimos desvendá-los, em nenhum deles há mistério. Pela manhã, passeiam no Parque, à tarde, conversam em reuniões de chá. Trazem aquele sorriso estereotipado, e os modos da moda. São muito óbvias. Mas uma atriz! As atrizes são muito diferentes! Harry, por que você não me disse que as atrizes são as únicas coisas que valem a pena ser amadas?

            – Porque já amei muitas delas, Dorian.

            – Ora, claro, aquelas pessoas horrendas, de cabelos tingidos, rostos pintados.

            – Não menospreze os cabelos tingidos nem os rostos pintados. Neles, algumas vezes, há um charme extraordinário.

            – Eu gostaria de não ter-lhe contado a respeito de Sibyl Vane.

            – Você não iria conseguir evitá-lo, Dorian. Por toda a vida, você vai me contar tudo o que fizer.

            – É, Harry, creio que isto seja verdade. Não consigo evitar contar-lhe coisas. Você tem uma influência curiosa sobre mim. Se um dia eu cometesse um crime, viria até aqui e o confessaria a você. Você me compreenderia.

            – As pessoas como você – réstia de sol, obstinadas, da vida – não cometem crimes, Dorian. Mas fico-lhe muito grato pela lisonja, de qualquer maneira. E agora, diga-me – passe-me os fósforos, como um bom menino. Obrigado –, quais são suas relações reais com Sibyl Vane?

            Dorian Gray saltou, ficou de pé, as maçãs do rosto empalideceram, os olhos fulminaram.

            – Harry, Sibyl Vane é sagrada!

            – As coisas sagradas são as únicas que valem a pena ser tocadas, Dorian.

            A voz de Lorde Harry viera com um toque estranho de patos.

            – Mas por que você se aborreceu? Creio que ela será sua um dia. Quando amamos, sempre, no início, enganamos a nós mesmos; e, no fim, terminamos por enganar os outros. É isto a que o mundo chama de romance. Bem, de um jeito ou de outro, você a conhece, não é mesmo?

            – Claro que a conheço. Na primeira noite em que estive no teatro, aquele velho judeu, horrendo, veio até o camarote, ao fim da apresentação, e ofereceu-se para levar-me aos bastidores e apresentar-me a ela. Fiquei furioso com ele, disse-lhe que Julieta já estava morta há centenas de anos, e que o corpo dela jazia numa tumba de mármore em Verona. Depreendi, daquele olhar vazio, de espanto, que lhe passava a impressão de que eu houvesse bebido muito champanha, ou qualquer coisa assim.

            – O que não me surpreende.

            – Depois ele me perguntou se eu escrevia para algum jornal. Eu disse a ele que nem lia jornais, o que pareceu deixá-lo por demais desapontado, e me confidenciar que todos os críticos dramáticos estavam em conspiração contra ele, e que todos teriam que ser comprados.

            – Não sei se teriam mesmo. Mas, de um jeito ou de outro, a julgar pelas aparências, boa parte deles não iria exigir muito.

            Dorian riu.

            – Bem, ele parecia pensar que estavam todos além de suas possibilidades. Àquela altura, entretanto, no teatro, as luzes eram apagadas, e tive que ir-me embora. Ele quis que eu experimentasse uns certos charutos que ele mesmo recomendava. Declinei. Na noite seguinte, é claro, voltei lá. Quando me viu, ele curvou-se, fez uma mesura, e assegurou-me que era um patrocinador munificente da arte. Era um brutamontes, agressivo, mas nutria uma paixão extraordinária por Shakespeare. Disse-me, um dia, com um ar de orgulho, que todas as suas falências deveram-se, exclusivamente, a “O Bardo”, como ele insistia em chamá-lo. Para ele, ao que parece, a coisa viera como uma distinção.

            – E era mesmo uma distinção, meu caro Dorian... uma distinção muito grande. Muitas pessoas faliram por ter investido maciçamente na prosa da vida. É uma honra arruinar-se por causa da poesia. Mas quando foi que você conversou com a Srta. Sibyl Vane pela primeira vez?

            – Na terceira noite. Ela representava Rosalinda. Não pude me conter; fui vê-la. Eu jogara flores para ela, e ela olhara para mim; ao menos imaginei que olhara. O velho judeu foi persistente. Parecia determinado a levar-me nos fundos, então, consenti. Curioso, não?, o fato de eu não querer conhecê-la?

            – Não, não há nada de curioso.

            – Por que, meu caro Harry?

            – Direi outro dia. Agora quero saber a respeito da menina.

            – Ora, Sibyl? Ela estava tão tímida, e tão gentil. Há, nela, algo de criança. Os olhos estatelaram, num espanto maravilhado, quando disse-lhe o que achava de sua apresentação, e ela parecia desconhecer todo o poder que tinha. Creio que estávamos os dois muito nervosos. À porta da sala empoeirada dos atores, o velho judeu arreganhava os dentes, e proferia frases elaboradas a nosso respeito. Nós dois, entrementes, qual crianças, entreolhávamo-nos. Como ele insistisse em chamar-me de “milorde”, tive que assegurar a Sibyl que eu não era nada daquilo. Ela, com muita simplicidade, me disse: “Você me parece mais um príncipe. Vou chamá-lo de Príncipe Formoso”.

            – Dou-lhe minha palavra, Dorian, a Srta. Sibyl sabe retribuir elogios.

            – Você não a compreende, Harry. Ela considera-se apenas a personagem de uma peça. Ela nada conhece da vida. Mora com a mãe, uma senhora cansada, apagada, que interpretou a Senhora Capuleto com uma espécie de roupão magenta, na primeira noite, e que tem o aspecto de já ter tido dias melhores.

            Lorde Henry examinava os anéis.

            – Conheço o aspecto. É deprimente.

            – O judeu quis contar-me a história dela, mas eu disse que não estava interessado.

            – Você agiu bem. Sempre há algo de muito perverso na tragédia dos outros.

            – Sibyl é a única coisa que me importa. Não me interessa saber de onde veio. Desde a pequenina cabeça, até os pezinhos, ela é absolutamente divina. Todas as noites de minha vida, vou vê-la representar e, a cada noite, ela fica ainda mais maravilhosa.

            – Eis o motivo, suponho, por que você não janta mais comigo. Pensei mesmo que você deveria andar envolvido em algum romance curioso. E anda mesmo, só que não exatamente como eu esperava.

            Em espanto, Dorian estatelou os olhos azuis.

            – Meu caro Harry, nós sempre almoçamos ou ceamos juntos, todos os dias, e fomos à Ópera por diversas vezes.

            – Mas você chega sempre muito atrasado.

            – Bem, mas tenho que ir ver Sibyl representar; isto é inevitável, mesmo que seja um ato só. Fico sedento pela presença dela, e quando penso naquela alma maravilhosa, oculta naquele corpinho de marfim, tomo-me de admiração.

            – Hoje à noite você vai jantar comigo, não vai, Dorian?

            Dorian meneou a cabeça.

            – Hoje ela será Imogene, e amanha será Julieta.

            – E quando será Sibyl Vane?

            – Nunca.

            – Meus parabéns, então!

            – Você é mesmo horrível! Ela é, numa só, todas as heroínas do mundo. Ela é mais que um ser individual. Você ri, mas eu digo que ela é um gênio. Eu a amo, e devo fazer com que ela me ame. Você, que conhece todos os segredos da vida, diga-me de que maneira poderei agradar a Sibyl Vane, e fazer com que me ame! Quero deixar Romeu com ciúmes. Quero que os amantes deste mundo, mortos, ouçam nossa risada, e entristeçam. Quero que o fôlego de nossa paixão revolva-lhes o pó e o transforme em consciência, quero apertar-lhes as cinzas, transformá-las em dor. Meu Deus, Harry, como a adoro!

            Dorian, na sala, caminhava de um lado para o outro ao falar. Manchas hécticas de vermelho ardiam-lhe as maçãs do rosto, tão emocionado estava.

            Lorde Henry observava-o com uma sensação sutil de prazer. Como estava diferente daquele garoto tímido, assustado, que encontrara no ateliê de Basil Hallward! Como uma flor, aquela natureza desenvolvera, desabrochara florações de fulgor escarlate, de cujo esconderijo secreto emergira aquela alma, que o desejo viera encontrar no meio do caminho.

            – O que você propõe fazer? – perguntou Lorde Henry, por fim.

            – Quero que você e Basil venham comigo, numa noite dessas, e vejam-na representar. Não tenho medo algum do resultado. Vocês, com certeza, irão reconhecer-lhe a genialidade. Depois, vamos tirá-la das mãos do judeu. Ela tem um vínculo de três anos com ele – ao menos de dois anos e oito meses –, a contar de hoje. Talvez eu tenha que pagar uma certa indenização, é claro. E quando tudo estiver arrumado, consigo um teatro do West End e vou produzi-la, da maneira como ela merece. Assim como me alucinou, irá deixar o mundo inteiro alucinado.

            – Isto não será possível, meu menino.

            – Não, irá sim. Além da arte, do instinto da arte consumado, ela tem personalidade, também. E você já me disse, muitas vezes, que são as personalidades, e não os princípios, que movem as épocas.

            – Bem, em que noite iremos?

            – Vejamos. Hoje é terça-feira. Vamos combinar para amanhã. Amanhã ela interpreta Julieta.

            – Combinado. No Bristol, às oito. Eu apanho Basil.

            – Às oito não, Harry, por favor. Às seis e meia. Temos de estar lá antes de subir a cortina. Você tem que vê-la no primeiro ato, quando encontra Romeu.

            – Seis e meia! Que hora! É o mesmo que tomar um chá reforçado ou ler um romance inglês. Tem que ser às sete. Nenhum cavalheiro janta antes das sete. Você irá estar com Basil até lá, ou devo escrever a ele?

            – Meu caro Basil! Não o vejo há uma semana. É horrível de minha parte, pois ele me enviou o retrato, numa moldura das mais maravilhosas, projetada por ele próprio e, embora sinta um pouco de inveja do quadro, por ser um mês mais novo que eu, devo admitir que me deleito com ele. Talvez seja melhor você escrever a Basil. Não desejo vê-lo a sós; ele diz coisas que me aborrecem; me dá bons conselhos.

            Lorde Henry sorriu.

            – As pessoas gostam muito de dar o que elas mesmas precisam muito. É o que eu chamo de profundezas da generosidade.

            – Ora, Basil é um sujeito e tanto, mas a mim parece que tem um quê de filisteu. Descobri isto quando conheci você, Harry.

            – Basil, meu caro menino, coloca tudo o que é encantador no trabalho, e, como conseqüência, deixa para a vida apenas os preconceitos, os princípios, o consenso. Dos que conheço, os únicos artistas pessoalmente agradáveis são maus artistas. Os bons artistas existem apenas no que fazem, e, por conseguinte, são absolutamente desinteressantes no que são. Todo grande poeta, de verdade, é, de todos, a criatura mais sem poesia. Os poetas inferiores, entretanto, são fascinantes. Quanto piores forem suas rimas, mais pitorescos parecem. O simples fato de publicar sonetos de segunda categoria faz de um homem uma pessoa assaz irresistível, pois ele vive a poesia que não consegue escrever, enquanto os outros escrevem a poesia que não ousam vivenciar.

            – Conjecturo se isto será mesmo assim, Harry...

            Com um vidro grande, de bocal dourado, pousado sobre a mesa, Dorian Gray pingou perfume no lenço.

            – ...Deve ser, se você diz que é. E agora parto, Imogene está à minha espera. Não se esqueça de amanhã. Até à vista.

            Quando Dorian saiu da sala, penderam as pálpebras pesadas de Lorde Henry; ele começou a pensar. Poucas pessoas, com certeza, quanto Dorian Gray haviam-no interessado tanto, mas, mesmo assim, a louca adoração que o garoto nutria por outra pessoa não lhe causava a menor angústia, quer de aborrecimento, quer de ciúmes. Agradava-o, aliás, pois transformava-o num estudo ainda mais interessante. Lorde Henry sempre se fascinara pelos métodos da ciência natural. A matéria comum, entretanto, objeto desta ciência, parecera a ele trivial, sem importância. E assim, começou a vivissectar-se a si próprio, e terminou por vivissectar os outros. A vida humana... eis a única coisa que, para ele, valia a pena ser investigada. Nada mais existe, seja de que valor for, que se compare a ela. É bem verdade que, ao examinarmos a vida em seu cadinho, curioso, de dor e prazer, não podemos usar, no rosto, nenhuma máscara de vidro, e nem evitar que os vapores sulfurosos perturbem nosso cérebro e turvem nossa imaginação com fantasias monstruosas e sonhos malformados. Existem venenos tão sutis que, para conhecer-lhes as propriedades, temos que nos expor às doenças que causam.

            Existem doenças tão estranhas por que temos que passar se desejamos compreender-lhes a natureza. Mas, mesmo assim, que grande recompensa recebemos! E como o mundo se nos torna maravilhoso! Observar a lógica, curiosa e difícil, da paixão, a vida do intelecto, emocional, colorida... observar onde se encontram, onde se separam, em que ponto entram em uníssono, e em que ponto entram em discórdia... há um certo deleite nisso! E não importa a que custo! Ninguém paga um preço exorbitante por uma sensação.

            Ele tinha consciência – e o pensamento trouxe um brilho de prazer àqueles olhos castanhos, de ágata – de que fora por meio de certas palavras que proferira, palavras musicais proferidas numa dicção musical, que Dorian Gray se aproximara desta jovem alva e, diante dela, curvara-se em adoração. Em boa parte, o garoto fora a própria criação. Fizera-o prematuro, o que era uma façanha. As pessoas comuns costumavam esperar para que a vida lhes exibisse os próprios segredos; para a minoria, porém, para os eleitos, os mistérios da vida eram revelados antes mesmo que o véu fosse afastado, e feito, muitas vezes, da arte, em especial da literatura, que lida, direto, com as paixões e o intelecto. Vez que outra, porém, uma personalidade complexa vinha tomar-lhe o lugar, e pressupor que o ofício da arte era, na verdade, a seu modo, uma verdadeira obra de arte, já que a vida mesma possui obras-primas elaboradas, assim como a poesia as possui, a escultura, a pintura.

            Era verdade, o garoto era prematuro; já reunia a colheita que mal brotara. Ele continha a pulsação, a paixão da juventude, mas tornava-se autoconsciente. Observá-lo era delicioso. Naquele rosto lindo, naquela alma linda, era algo a ser admirado. Não importava como tudo iria terminar, ou como estaria fadado a terminar. Dorian era uma destas figuras graciosas, num préstito, numa peça, cujas alegrias nos parecem remotas, mas cujas tristezas nos estremecem o sentido de beleza, e cujas feridas parecem rosas verdadeiras.

            Alma e corpo, corpo e alma, como eram misteriosos! Havia animalismo na alma, e o corpo possuía momentos de espiritualidade.

            Os sentidos poderiam refinar-se, e o intelecto, degradar-se. Quem jamais poderia dizer onde cessava o impulso carnal e se iniciava o impulso psíquico? Como eram superficiais as definições arbitrárias dos psicólogos comuns! E como era difícil escolher dentre os reclamos das várias escolas! Seria a alma uma sombra instalada na casa do pecado? Ou, como pensava Giordano Bruno, estaria o corpo, de fato, dentro da alma? Era um mistério a separação do espírito da matéria; também um mistério a união de espírito e matéria.

            Lorde Henry pôs-se a imaginar se poderíamos transformar a psicologia numa ciência tão absoluta que nos revelasse todos os móveis, por menores que fossem, da vida, pois, da maneira em que se encontrava, sempre nos desentendíamos, e raras vezes compreendíamos os outros. A experiência não possui qualquer valor ético; não passa de um nome com que os homens designaram os próprios erros. Os moralistas, como regra geral, sempre a consideraram um modo de alerta, sempre reivindicaram para ela uma certa eficácia ética na formação do caráter, enalteceram-na como algo que nos ensina o que seguir e nos mostra o que evitar. Mas a experiência não possui qualquer força motriz. Como causa ativa, é tão ínfima quanto a própria consciência. Tudo o que ela demonstra, na verdade, é que nosso futuro será igual ao passado, e que o pecado que cometemos um dia com repugnância cometê-lo-emos muitas vezes, e com alegria.

            Claro estava, para ele, que o método experimental era o único método capaz de nos conduzir a uma análise científica das paixões. E Dorian Gray era, com certeza, um objeto sob medida, que parecia prometer resultados fecundos, frutíferos. O amor repentino por Sibyl Vane não era um fenômeno psicológico de pouco interesse. Não havia dúvida de que a curiosidade estava, de modo direto, envolvida com o caso, a curiosidade e o desejo por novas experiências, embora não se tratasse de uma paixão simples, e sim, ao contrário, muito complexa. O que havia nela daquele instinto sensual, puro, da infância, fora processado pelos trabalhos da imaginação e transformado em algo que, para o menino, parecia remoto à percepção e que, por esta mesma razão, era muito perigoso. As paixões que mais nos tiranizam são aquelas que nutrimos em relação à origem de nossos enganos. Nossos motivos mais débeis são aqueles de cuja natureza temos consciência. Costuma acontecer, com freqüência, que, quando pensamos estar experimentando nos outros, estamos, na verdade, experimentando em nós mesmos.

            Lorde Henry pensava nestas coisas, e uma batida soou na porta. O criado entrou, lembrou-o de que já era hora de vestir-se para o jantar. Lorde Henry levantou-se, olhou lá fora a rua. Nas casas do outro lado, o sol ferira as janelas de cima, agora dourado-escarlate. Fulguravam as vidraças, qual placas de metal aquecido. Lá no alto, o céu era de um rosa débil. Pensou na vida, colorida a fogo, do jovem amigo, e pensou em como iria terminar.

            Ao chegar em casa, por volta de meio-dia e meia, Lorde Henry viu um telegrama pousado na mesa do corredor. Abriu-o, e descobriu que era de Dorian Gray. Era para dizer que ficara noivo, iria casar-se com Sibyl Vane.

 

            – Mamãe! Mamãe! Eu estou tão feliz!

            A menina afundou o rosto no colo daquela mulher desbotada, de aspecto cansado, que, com as costas voltadas contra a luz insistente, intrusa, sentava-se na única poltrona que aquela sala de estar encardida continha.

            – Estou tão feliz! – repetiu a menina. – E quero que a senhora também se sinta feliz!

            A Sra. Vane recuou, e pousou as mãos magras, de matiz bismuto, na cabeça da filha. Ecoou:

            – Feliz! Só fico feliz, Sibyl, quando a vejo representar. A única coisa em que você deve pensar é em suas representações. O Sr. Isaacs tem sido muito bondoso para conosco, e devemos dinheiro a ele.

            A menina olhou-a, espichou os lábios.

            – Dinheiro, mamãe? Que importa o dinheiro? O amor é superior ao dinheiro.

            – O Sr. Isaacs nos adiantou cinqüenta libras para pagarmos nossas dívidas, e para comprarmos uma roupa decente para James. Não quero que você se esqueça disso, Sibyl. Cinqüenta libras é uma soma muito grande. O Sr. Isaacs teve muita consideração conosco.

            – Ele não é um cavalheiro, mamãe, e eu detesto a maneira com que fala comigo.

            A menina levantou-se, ficou de pé, foi à janela.

            – Não sei como nos teríamos arranjado sem ele – respondeu a velha senhora, queixosa.

            Sibyl Vane jogou a cabeça para trás, riu.

            – Nós não precisamos mais dele, mamãe. Para nós, agora, é o Príncipe Formoso quem nos governa a vida...

            E fez uma pausa. Uma rosa estremeceu-lhe o sangue, sombreou-lhe as maçãs do rosto. A respiração ofegante abriu-lhe as pétalas dos lábios. Eles tremeram. Um certo vento sul de paixão lufou sobre ela, e fez estremecerem-lhe as pregas esmeradas do vestido.

            – Eu o amo – disse, simplesmente.

            – Garota boba! Garota boba!

            O matraquear de papagaio arrojou-se em resposta. O acenar dos dedos retorcidos, recobertos de jóias fantasias, trouxe o grotesco às palavras.

            De novo, a menina riu. Havia, naquela voz, a alegria do pássaro engaiolado. Os olhos captaram a melodia, e ecoaram-na, em radiância! Depois, cerraram-se, por instantes, como a esconder-lhes o segredo. Ao abrirem, a neblina de um sonho os havia percorrido.

            A sabedoria de lábios descarnados dirigia-se a ela, ali da poltrona gasta, insinuada à prudência, citação do livro da covardia, cujo autor plagia o nome do consenso. Sibyl não escutou. Em sua prisão de paixão, estava livre. Seu príncipe, o Príncipe Formoso, estava com ela. Para reconstruí-lo, invocou a lembrança. Mandara a alma ir buscá-lo e ela o trouxera. Um beijo veio arder-lhe a boca, a respiração veio aquecer-lhe as pálpebras.

            A sabedoria, depois, alterou o método, falou de espreita e descoberta. O jovem talvez fosse rico. Se assim fosse, o casamento deveria ser considerado. Contra o pavilhão do ouvido, vieram rebentar as ondas da esperteza universal. As flechas da astúcia chisparam. Sibyl viu moverem os lábios descarnados, e sorriu.

            De repente, sentiu necessidade de falar. Perturbava-a aquele silêncio palavreado.

            – Mamãe, mamãe, por que ele me ama tanto assim? Eu sei por que o amo. Amo-o porque ele é tudo o que o Amor deve ser. Mas, ele, o que vê em mim? Eu não sou digna dele. E, ainda – e eu não saberia dizer por que –, embora me sinta tão inferior a ele, não me sinto humilhada. Sinto-me orgulhosa, muito orgulhosa. Mãe, você amava meu pai assim como eu amo o Príncipe Formoso?

            A velha senhora empalideceu por baixo do pó-de-arroz áspero que lhe lambuzava as maçãs do rosto, e os lábios ressequidos retorceram num espasmo de dor. Sibyl correu até ela, jogou-lhe os braços em volta do pescoço, beijou-a.

            – Perdão, minha mãe. Sei que falar sobre meu pai a aflige. Mas a senhora se aflige é porque o amava muito. Não fique triste assim. Eu, hoje, estou tão feliz quanto a senhora há vinte anos. Ah! Permita que eu seja feliz para sempre!

            – Minha menina, você é ainda muito jovem para pensar em apaixonar-se. Além disso, você quase nada conhece deste jovem. Nem lhe conhece o nome. Tudo isto é muito inconveniente e, para falar a verdade, nesta hora em que James parte para a Austrália, e em que eu tenho tantas coisas em que pensar, devo dizer que você deveria ter tido um pouco mais de consideração. Mas, como já disse antes, se ele for rico...

            – Mamãe, mamãe... deixe que eu seja feliz!

            A Sra. Vane lançou-lhe o olhar e, num daqueles gestos teatrais, artificiais que, com freqüência, constituem, para todo ator de teatro, um desempenho de segunda categoria, agarrou-a pelos braços. Nesse instante, a porta se abriu, e um jovem de cabelo castanho, eriçado, entrou na sala. Era figura atarracada, e as mãos e os pés eram grandes, e algo desajeitado em movimento. Com a constituição não tão bonita quanto a da irmã, difícil, a qualquer um, adivinhar a estreita relação que havia entre os dois. A Sra. Vane fitou-o, num sorriso agora mais intenso. Mentalmente, elevou o filho à dignidade de uma platéia. O quadro seria interessante, não restava dúvida.

            – Guarde uns beijinhos para mim, Sibyl – disse o garoto, num resmungo bem-humorado.

            – Mas você não gosta de ser beijado, Jim. Você é um urso, velho e horrível!

            Sibyl atravessou a sala, abraçou-o.

            James Vane olhou a irmã no rosto, com ternura.

            – Vamos dar uma volta, Sibyl. Creio que jamais vá ver esta horrenda Londres de novo. Ao menos, tenho certeza de que não desejo vê-la mais.

            – Meu filho, não fale estas coisas horríveis.

            A Sra. Vane, num suspiro, apanhou um vestido espalhafatoso, de cena, e começou a remendá-lo. Sentiu-se um pouco desapontada, pois o filho não aderiu ao grupo, o que teria aumentado o pitoresco teatral da situação.

            – Por que não, mamãe?

            – Você me aflige, meu filho. Confio em que você irá retornar a Austrália numa posição de afluência. Não creio que exista sociedade alguma nas colônias, ao menos nada que eu pudesse chamar de sociedade; portanto, assim que tiver feito fortuna, volte para cá e estabeleça-se em Londres.

            – Sociedade! – resmungou o rapaz. – Não quero saber de sociedade! Quero mesmo é juntar dinheiro para tirar você e Sibyl do teatro. Eu odeio o teatro.

            Sibyl riu.

            – Ora, Jim, que maldade! Mas... você vai mesmo me levar a passear? Que bom! Pensei que você fosse se despedir dos amigos... de Tom Hardy, que lhe deu aquele cachimbo horrível, ou de Ned Langton, que caçoa quando você fuma o cachimbo. É muito gentil de sua parte ceder-me a última tarde. Aonde iremos? Vamos ao Parque!

            James Vane franziu o cenho.

            – Eu estou muito mal-vestido. Só pessoas finas vão ao Parque.

            Sibyl acariciou-lhe a manga do casaco.

            – Bobagem, Jim.

            Por um instante, James hesitou. Por fim:

            – Está bem. Mas não demore muito para vestir-se.

            Sibyl saiu porta adentro. Quando subiu as escadas, pôde-se ouvi-la cantar. Lá no alto, os pezinhos estralejaram.

            James caminhou de um lado ao outro da sala, duas ou três vezes; depois, voltou-se para a figura imóvel, na poltrona.

            – Mãe, minhas coisas estão arrumadas?

            – Tudo pronto.

            A mãe não tirou os olhos do trabalho. Já há alguns meses, sentia um certo mal-estar sempre que se encontrava a sós com o filho ríspido, rigoroso. Sua natureza secreta, superficial, perturbava-se quando se entreolhavam. Ela costumava imaginar se ele, por acaso, suspeitava de alguma coisa. O silêncio, pois ele não fez qualquer comentário adicional, tornou-se insuportável. Ela começa a reclamar. É atacando que as mulheres se defendem; e, da mesma maneira, atacam em rendições súbitas e estranhas.

            – Espero, James, que você goste da vida marítima. Não se esqueça de que foi você mesmo quem a escolheu. Você poderia ter entrado para o escritório de um procurador da Coroa. Os procuradores são uma classe muito respeitável e aqui, no país, costumam jantar com as melhores famílias.

            – Eu odeio escritórios, odeio funcionários. Mas você tem razão. Fui eu que escolhi minha vida. E tudo o que tenho a dizer é, cuidado com Sibyl. Não deixe que façam mal a ela. Minha mãe, é seu dever tomar conta dela.

            – James, que maneira é essa de falar, estranha? É claro que eu tomo conta de Sibyl.

            – Ouvi dizer que um cavalheiro vai toda noite ao teatro, e vai aos fundos falar com ela. Isto está direito? O que a senhora acha?

            – Você fala de coisas de que não entende, James. Nesta profissão, estamos acostumadas a receber uma atenção muito gratificante. Eu mesma, de uma só vez, costumava receber muitos buquês, nas ocasiões em que minha interpretação era bem compreendida. Quanto a Sibyl, não sei, na verdade, se, no momento, a ligação é séria ou não. Mas não resta dúvida de que o homem em questão é um perfeito cavalheiro. Ele é sempre muito bem-educado comigo. Além disso, tem o aspecto de gente rica, e as flores que me manda são adoráveis.

            – Mas a senhora nem sabe o nome dele – retrucou o rapaz, áspero.

            A mãe mostrava, no rosto, a expressão plácida.

            – É verdade. Ele ainda não revelou o verdadeiro nome. Acho muito romântico da parte dele. Talvez seja um membro da aristocracia.

            James Vane mordeu o lábio.

            – Mãe, tome conta de Sibyl. Tome conta dela!

            – Meu filho, você me causa desgosto. Sibyl está sempre sob cuidados especiais meus. Claro, se o cavalheiro for rico, não há motivo por que ela não deva contrair matrimônio com ele. Eu acredito que ele seja mesmo da aristocracia. Tem todo o aspecto, devo dizer. Os dois dariam um casal encantador. A beleza dele é notável; todos a notam.

            O rapaz resmungou algo consigo mesmo e, com os dedos ásperos, tamborilou na vidraça. Acabara de virar-se, ia dizer qualquer coisa, mas a porta abriu, Sibyl entrou correndo.

            – Como vocês estão sérios! O que houve?

            – Nada. De vez em quando, suponho que temos mesmo que ficar sérios. Até logo, mãe. Janto às cinco. Já fiz as malas; só faltam as camisas. Portanto, não precisa se preocupar.

            – Até logo.

            A mãe curvou-se, em reverência forçada. Estava muito aborrecida com o tom que o filho adotara para com ela; no olhar dele, algo a deixara atemorizada.

            – Um beijo, mamãe.

            Os lábios flóreos da menina tocaram aquelas maçãs ressecadas, e aqueceram-lhe a frigidez.

            – Minha criança! Minha criança!

            A Sra. Vane olhou para o teto, em busca de uma galeria imaginária.

            – Venha, Sibyl.

            O irmão estava impaciente; detestava as afetações da mãe.

            Os dois saíram para a luz do sol lufada de vento, tremulante, e caminharam pela melancólica Euston Road. Em espanto, os transeuntes olhavam aquele jovem carrancudo, pesado que, em roupas grosseiras, mal-ajambradas, encontrava-se em companhia de jovem tão graciosa, de aspecto tão requintado. Era como se um jardineiro comum passeasse com uma rosa.

            De tempos em tempos, ao deparar-se com o olhar inquisitivo de um ou outro estranho, Jim franzia o cenho. Ele possuía aquela aversão a ser encarado que costuma, só muito tarde na vida, brotar nos homens gênios, e jamais deixa os homens comuns. Sibyl, entretanto, não tinha qualquer consciência do efeito que produzia. Em risadas, o amor tremia-lhe nos lábios. Ela pensava no Príncipe Formoso e, tanto mais pensasse nele, não falava sobre ele, apenas garrulava a respeito do navio em que Jim iria navegar, do ouro que o irmão tinha certeza de encontrar, da herdeira maravilhosa que iria salvar dos malvados guerrilheiros. Pois ele não seria marinheiro para sempre, e nem um supercargueiro, ou o que quer que fosse ser. A existência de um marinheiro era horrível. Imagine ficar encarcerado num navio horrível, e aquelas ondas roufenhas, corcoveadas, a tentar entrar, o vento negro a soprar e derrubar os mastros, rasgar as velas em tiras compridas, esganiçantes! Em Melbourne, deixaria a embarcação, diria adeus ao capitão e, imediatamente, partiria rumo aos campos auríferos. Em menos de uma semana, iria deparar-se com uma pepita de ouro puro, imensa, a maior pepita jamais descoberta, e a traria para o litoral numa carroça guarnecida por seis polícias-montadas. Os guerrilheiros os atacariam três vezes, e seriam derrotados em terrível chacina. Ou... Não. Não iria para os campos auríferos, lugares horríveis, afinal, onde os homens se intoxicavam, atiravam uns nos outros nos bares e falavam em baixo calão. Seria um criador de carneiros, pacífico e, certa noite, ao voltar para casa, a cavalo, veria a linda herdeira levada por um salteador, num cavalo negro, iria em seu encalço, e a salvaria. É claro, ela se apaixonaria por ele, e ele por ela, e eles se casariam, e viriam para a terra natal, viveriam numa casa imensa em Londres. É verdade, coisas deliciosas o esperavam. Mas ele deveria ser bondoso, não perder a calma e não gastar dinheiro à toa. Ela era apenas um ano mais velha que ele, mas conhecia muito mais a vida. Ele que não se esquecesse, também, de escrever para ela a cada remessa da mala postal e, todas as noites, de rezar as orações antes de dormir. Ela rezaria por ele também e, em poucos anos, ele voltaria, muito rico, feliz.

            Embirrado, o rapaz escutou-a, e não deu resposta. Afligia-o, já, a saudade de casa.

            Mas não era apenas isso que o deixava taciturno e mal-humorado. Inexperiente que era, mesmo assim possuía a sensação forte do perigo da posição de Sibyl. Impossível que o jovem dândi que a cortejava desejasse o bem da irmã. Como cavalheiro, ele o odiava, odiava-o por um instinto racial, curioso, de que não fazia conta e que, por este motivo, era por demais dominante sobre ele. Tinha, também, consciência da superficialidade e frivolidade da natureza da mãe, e nisso via um perigo infinito para Sibyl, para a felicidade de Sibyl. Toda criança inicia por amar os pais; quando cresce, julga-os e, às vezes, os perdoa.

            Sua mãe? Tinha em mente perguntar-lhe algo que remoera durante muitos meses de silêncio. Uma frase, ao acaso, que ouvira no teatro, um cochicho de mofa que lhe chegara aos ouvidos, certa noite, enquanto aguardava à porta do palco, desencadeara uma série de pensamentos horríveis. Lembrou-se do fato, como se fora o açoite do cabo de um chicote de caça a lamber-lhe o rosto. As sobrancelhas uniram-se num sulco cuneiforme e, numa contração de dor, mordeu o lábio inferior.

            – Você não ouviu nada do que eu disse, Jim. Eu estou fazendo planos deliciosos para seu futuro. Diga alguma coisa.

            – O que você quer que eu diga?

            – Que você será um bom menino, não se esquecerá de nós.

            Sibyl sorriu para ele. Jim deu de ombros.

            – É mais provável você me esquecer, do que eu esquecer você, Sibyl.

            Sibyl empalideceu.

            – O que você quer dizer com isso, Jim?

            – Você está de amigo novo, ouvi dizer. Quem é ele? Por que não me falou dele? Ele não quer bem a você.

            – Pare, Jim. Não quero que você diga coisa alguma contra ele. Eu o amo.

            – Por quê? Você nem sabe o nome dele. Quem é ele? Eu tenho o direito de saber.

            – Ele se chama Príncipe Formoso. Não gosta do nome? Ora, seu tolo! Melhor não esquecê-lo. Se você o visse, o acharia a pessoa mais maravilhosa do mundo. Um dia você o irá conhecer, quando voltar da Austrália. Vai gostar muito dele. Todos gostam dele, e eu... o amo. Gostaria que você fosse ao teatro hoje. Ele vai estar lá, e eu vou representar Julieta. Puxa, vai ser uma interpretação e tanto. Imagine, Jim, estar apaixonada e interpretar Julieta. E ele, lá, sentado! Representar para que ele regozije. Tenho medo de assustar a companhia, de assustá-los ou enfeitiçá-los. Estar apaixonada é superar o próprio ser. E o infeliz do Sr. Isaacs, sujeito horrível, lá estará no bar, a bradar “gênio” para os vadios. Ele me apregoa como um dogma; hoje, irá anunciar-me como uma revelação. Sinto que irá. E é tudo dele, só dele, Príncipe Formoso, meu maravilhoso amor, meu deus das graças. Mas, junto dele, sou pobre. Pobre? Mas o que importa isso. Quando a pobreza rastejar porta adentro, o amor, voando, entrará pela janela. Nossos provérbios carecem de ser reescritos. Foram feitos no inverno, e agora é verão; para mim, creio, é primavera, a dança maior das flores nos céus azuis.

            – Ele é um cavalheiro – retrucou o rapaz, casmurro.

            – Um príncipe – ela exultou, musical. – O que mais você quer?

            – Ele quer escravizar você.

            – Só de pensar em ser livre, me arrepio toda.

            – Quero que você esteja alerta.

            – Vê-lo é adorá-lo, conhecê-lo é confiar nele.

            – Sibyl, você está louca por ele!

            Sibyl riu, tomou-o pelo braço.

            – Meu velho e querido Jim, você fala como se tivesse cem anos. Um dia você também se apaixonará. E, então, irá saber de que se trata. Não fique assim, tão embirrado. Você, com certeza, ficará contente em saber que, embora esteja de partida, eu aqui fico feliz, mais feliz do que jamais me senti antes. A vida tem sido dura para nós dois, muito dura, muito difícil. Mas agora tudo será diferente. Você parte para um mundo novo, e eu encontrei um mundo novo. Eis duas cadeiras, vamos nos sentar, e ver passar as pessoas vistosas.

            Os dois tomaram assento em meio a uma multidão de espectadores. Do outro lado da rua, os leitos de tulipas incandesciam, qual círculos latejantes de fogo. Uma poeira branca, trêmula nuvem, parecia, de rizomas de lírios florentinos, pendia no ar ofegante. As sombrinhas coloridas, vivas cores, dançavam e mergulhavam, qual borboletas monstruosas.

           Sibyl fez o irmão falar de si próprio, de esperanças e perspectivas. Ele falou, devagar, com esforço. Passaram palavras, um para o outro, como se jogassem “telefone-sem-fio”. Sibyl sentia-se oprimida! não conseguia comunicar sua alegria. Um sorriso inexpressivo, que torneava aquela boca embirrada, era todo o eco que conseguia. Tempo depois, fez silêncio. De repente, captou um relance de cabelos dourados, lábios sorridentes, e, numa carruagem aberta, acompanhado de duas senhoras, passou Dorian Gray.

            Sibyl saltou, ficou de pé.

            – Olhe! É ele!

            – Ele quem?

            Sibyl via afastar-se a vitória.

            – O Príncipe Formoso!

            James deu um pulo, agarrou-a, rude, pelo braço.

            – Mostre-me. Onde está ele? Aponte-o. Tenho que saber quem é!

            Naquele instante, porém, a carruagem de duas parelhas do Duque de Berwick entremeou e, quando abriu espaço, a vitória já havia desaparecido do Parque.

            Sibyl entristeceu.

            – Ele se foi. Eu gostaria que você o tivesse visto.

            – Eu gostaria de tê-lo visto, pois, com a mesma certeza de que existe Deus no firmamento, se ele fizer mal a você, eu o mato.

            Sibyl olhou-o, aterrorizada. James repetiu as palavras, que cortaram o ar, qual adaga. Pasmas, as pessoas em volta começaram a olhar. Próxima, uma senhora deu risadinhas reprimidas.

            – Vamos embora, Jim; vamos embora.

            Obstinado, James acompanhou Sibyl, ela atravessou a multidão. Ele se sentia contente com o que falara.

            Ao chegarem à Estátua de Aquiles, Sibyl deu meia-volta. A piedade que lhe tomava os olhos transformou-se, nos lábios, em risadas. Para James, meneou a cabeça.

            – Você é um tolo, definitivamente tolo, Jim. Um menino temperamental, é o que você é. Como pode dizer coisas tão horríveis? Você não sabe o que está dizendo! Está sendo indelicado, está com ciúmes. Ah, como eu gostaria que você se apaixonasse. O amor nos faz bondosos, e o que você disse é perverso.

            – Eu tenho dezesseis anos, e sei o que estou fazendo. A mãe não lhe vale de nada, não sabe como tomar conta de você. Eu bem que gostaria, agora, de não ter que ir para a Austrália. Estou com a idéia fixa de pôr um fim nisto tudo. E poria mesmo, se meus contratos já não estivessem assinados.

            – Ora, não leve as coisas tão a sério, Jim. Você age como aqueles heróis dos melodramas baratos que mamãe gostava tanto de representar. Não vou discutir com você. Eu o vi, e... oh!, vê-lo é a felicidade absoluta. Não vamos discutir. Sei que você jamais faria mal a alguém que eu ame, não é mesmo?

            A resposta veio, carrancuda.

            – Enquanto você o amar, não; creio.

            – Eu vou amá-lo para sempre!

            – E ele?

            – Para sempre, também.

            – Melhor que seja assim.

            Sibyl afastou-se, encolhendo. Depois, riu, pousou a mão no braço de James. Afinal, era apenas um menino.

            No Arco de Mármore, acenaram para um trâmuei, que os deixou próximo ao lar esmolambado, em Euston Road. Já passava das cinco, e, antes de entrar em cena, Sibyl deveria dormir umas duas horas. Jim insistiu para que ela dormisse. Disse que seria melhor despedir-se dela sem a mãe por perto. Ela, com certeza, faria um escândalo, e ele odiava escândalos de qualquer espécie.

            Despediram-se, no quarto de Sibyl. Havia, no coração do rapaz, ciúmes, e um ódio ardente, assassino, daquele estranho que, ao que parecia a ele, intrometera-se entre os dois. Mas, quando Sibyl jogou-lhe os braços à volta do pescoço, e, com os dedos, foi vagar-lhe pelos cabelos, James amoleceu, e, com muito afeto, beijou-a. Lágrimas marejaram-lhe os olhos, ao descer as escadas.

            Lá embaixo, a mãe o esperava. James entrou, ela ranzinzou a respeito da impontualidade. Ele não deu resposta, apenas sentou-se para a magra refeição. À volta da mesa, as moscas zumbiam, arrastavam-se na toalha manchada. Atravessando o ribombar dos trâmueis, o alarde dos cabriolés de praça, Jim ouvia aquela voz monótona devorar-lhe os últimos minutos que lhe restavam.

            Um tempo se passou, Jim empurrou o prato e afundou a cabeça nas mãos. Ele tinha, sentia, o direito de saber. E já deveria sabê-lo há mais tempo, se suas suspeitas fossem verdadeiras. Inerte, de medo, a mãe o observava. Mecânicas, as palavras caíam-lhe dos lábios. Um lenço esfarrapado, de renda, retorcia-lhe por entre os dedos. Quando o relógio deu seis horas, Jim levantou-se, rumou para a porta. Então, virou-se, olhou para a mãe. Encontraram-se os olhos. Nos dela, percebeu a súplica acuada de piedade. Encolerizou-se.

            – Mãe, tenho que perguntar uma coisa à senhora.

            Os olhos dela cismaram, vagos, pela sala. Ela permaneceu silente.

            – Diga a verdade. Eu tenho o direito de saber. A senhora era casada com meu pai?

            A mãe exalou um suspiro profundo. Um suspiro de alívio. O momento terrível, o momento que, dia e noite, semanas, meses, ela receara, chegara por fim, e ela não se aterrorizara. Na verdade, até certo ponto, sentia-se desapontada. A objetividade vulgar da pergunta exigia uma resposta direta. A situação não fora conduzida gradualmente. Veio crua, fê-la lembrar-se de um ensaio malfeito. Pôs-se a cismar sobre a dura simplicidade da vida.

            – Não...

            O jovem cerrou os punhos.

            – Meu pai, então, era um canalha!

            A mãe meneou a cabeça.

            – Eu sabia que ele não era livre. Nós nos amávamos muito. Se tivesse vivido, teria nos deixado reservas. Não o acuse, meu filho. Ele era seu pai, e um cavalheiro. Era, na verdade, muito bem relacionado.

            Dos lábios de Jim, irrompeu um juramento.

            – Não é comigo que me preocupo. Não deixe Sibyl... É um cavalheiro, não é mesmo, que está apaixonado por ela, ou diz que está? Muito bem relacionado, também, creio.

            Por instantes, a mulher tomou-se de um sentimento revoltante de humilhação. A cabeça pendeu; com as mãos trêmulas, enxugou os olhos.

            – Sibyl tem mãe, e eu não tive.

            O jovem emocionou-se. Foi até ela, inclinou-se, beijou-a.

            – Desculpe-me se a afligi perguntando sobre meu pai. Mas, não me contive. Tenho que ir agora. Adeus. Não se esqueça de que a senhora, agora, só tem um filho por que olhar e, creia, se este homem agir mal com minha irmã, eu descobrirei quem ele é, irei atrás dele e o matarei, como a um cão. Juro!

            O delírio exagerado da ameaça, o gesto passional que a acompanhou, as palavras loucas, melodramáticas, fizeram, para ela, a vida parecer mais vívida. Ela já conhecia o clima; respirou, mais livre, e, pela primeira vez depois de tantos meses, sentiu admiração pelo filho. Gostaria de ter continuado a cena naquela mesma escala emocional, mas o filho a interrompera, brusco. Teve que descer as malas, procurar os agasalhos. Azafamava-se o lacaio da casa de cômodos, entrando e saindo. Houve a pechincha com o cocheiro. O momento perdeu-se em detalhes vulgares. Foi com um sentimento renovado de decepção; ela, da janela, acenou o lenço esfarrapado, de renda; o filho se ia, na carroça. Consciente de que uma grande oportunidade fora desperdiçada, foi, para consolar-se, dizer a Sibyl que sua vida, dali por diante, seria uma desolação, agora que tinha um só filho por olhar. Lembrou-se da frase, agradara-a. Sobre a ameaça, nada disse. Já fora expressa, vívida, dramática. Sentiu que, um belo dia, ainda ririam daquilo tudo.

 

            – Suponho que você já saiba da novidade, Basil.

            À noite, Lorde Henry conduzia Hallward adentro de uma saleta particular, no Bristol, onde o jantar estava servido para três.

            – Não sei não, Harry...

            O artista entregou chapéu e casaco ao garçom, que se inclinava em reverência.

            – ... O que é? Espero que não seja nada a respeito de política. Isso não me interessa. Talvez não exista, na Casa dos Comuns, uma só pessoa que valha a pena ser pintada; muitas, é verdade, ficariam melhor com uma ligeira caiação.

            – Dorian Gray está noivo, vai se casar.

            Lorde Henry, ao falar, observou Basil.

            Hallward sobressaltou-se; depois, franziu o cenho.

            – Dorian está noivo? Vai se casar? Impossível!

            – A mais absoluta verdade.

            – Com quem?

            – Com uma atrizinha qualquer.

            – Não acredito. Dorian é muito sensível.

            – Dorian, meu caro Basil, é esperto o suficiente para, de vez em quando, não cometer bobagens.

            – Mas, Harry, casamento não é coisa que se faça de vez em quando.

            – Na América, é – insistiu Lorde Henry, lânguido. – E eu não falei que ele se casou, falei que está noivo, que vai se casar há uma grande diferença. Tenho uma lembrança, distinta, de estar casado, mas não trago qualquer reminiscência de estar noivo. Inclino-me a pensar que jamais estive noivo.

            – Mas, pense no berço de Dorian; na posição, na riqueza que possui. Será absurdo que se case com alguém tão abaixo dele.

            – Diga isso a ele, se quer que ele se case com esta menina. Mas ele mesmo já está decidido. Sempre que um homem comete uma estupidez das grossas, é sempre pelos motivos mais nobres.

            – Espero que a garota seja boazinha, Harry. Não desejo ver Dorian amarrado a uma criatura vil, que possa degradar-lhe a natureza e arruinar-lhe o intelecto.

            – Ela é mais do que boazinha... ela é linda...

            Lorde Henry sorveu a taça de vermute com amargos de laranja.

            – Dorian diz que ela é linda. E ele não costuma errar a respeito destas coisas. O retrato que você pintou acelerou-lhe a apreciação da aparência pessoal nas outras pessoas. Acarretou, dentre outros, este efeito excelente. Nós iremos vê-la hoje à noite, se o jovem não se esquecer de seu compromisso.

            – Fala sério?

            – Muito sério, Basil. Eu me sentiria um infeliz se julgasse que teria de ser ainda mais sério do que me encontro no presente momento.

            O pintor caminhou de um lado a outro da saleta; mordeu o lábio.

            – E você aprova, Harry? Ora, é claro que você não aprova. Trata-se, talvez, de tola insensatez.

           – Atualmente, não aprovo nem desaprovo nada. Em relação à vida, é uma atitude absurda a tomar. Não fomos lançados no mundo para propalar nossos preconceitos morais. Não costumo reparar no que diz o povo comum, e jamais interfiro com o que fazem as pessoas encantadoras. Se determinada personalidade me fascina, qualquer que seja o modo de expressão que escolha, será, para mim, absoluto deleite. Dorian Gray apaixona-se por uma linda menina que representa Julieta, e propõe casamento a ela. Por que não? Se desposasse Messalina não seria, em nada, menos interessante. Você bem sabe que eu não sou o campeão dos casamentos. A única desvantagem do casamento é nos transformar em altruístas. E pessoas altruístas são desbotadas, carecem de individualidade. Por outro lado, existem certos temperamentos que o casamento os faz mais complexos. Fazem-nos reter o egotismo, e a ele adicionam muitos outros egos. São forçados a ter mais de uma vida. Tornam-se mais bem organizados, e ser bem organizado é, imagino, o objeto da existência do homem. E, além disso, toda experiência tem valor e, mesmo com tudo que se possa dizer contra o casamento, ele não deixa de ser uma experiência. Eu espero que Dorian Gray despose esta menina, que a adore, apaixonado, por seis meses e, de repente, se deixe fascinar por outra pessoa. Daria um estudo excelente.

            – Você não tem a intenção de dizer o que diz, Harry; sei que não tem. Se a vida de Dorian Gray se estragar, você será quem mais irá sentir. Você é muito melhor do que finge ser.

            Lorde Henry riu.

            – O motivo por que tanto gostamos de pensar bem dos outros é que todos nós temos medo de nós mesmos. A base do otimismo é terror puro. Pensamos que somos generosos, pois creditamos ao próximo a posse das virtudes propensas a nos beneficiarem. Enaltecemos o banqueiro para que possamos sacar a descoberto, e descobrimos boas qualidades no salteador de estradas na esperança de que nos poupe as bolsos. Tive a intenção de dizer tudo o que disse. Tenho o maior desprezo pelo otimismo. E, quanto a estragar vidas, a única vida que se estraga é aquela da qual se apreende a evolução. Se desejamos arruinar uma índole, basta que a reformemos. Quanto ao casamento, claro que é tolice, embora existam, entre homens e mulheres, laços bem mais interessantes. Eu, com certeza, os incentivarei. Eles possuem o encanto de serem modeláveis. Mas eis Dorian em pessoa. Ele pode falar bem melhor do que eu.

            – Meu caro Harry, meu caro Basil, parabenizem-me, os dois!

            O jovem arrancou a capa curta, de asas debruadas em cetim. Devolveu, a cada um, o aperto de mão.

            – Nunca me senti tão feliz! Foi rápido, é claro, mas todas as coisas deliciosas são rápidas. Mas, mesmo assim, a mim me parece precisamente o que tenho procurado a vida inteira.

            Lívido de emoção e prazer, Dorian exibia uma beleza extraordinária.

            – Espero que você seja sempre feliz, Dorian, mas não sei se o perdôo por não ter me participado seu noivado. Você participou ao Harry.

            – E eu, não o perdôo por ter-se atrasado para o jantar.

            Para intervir, Lorde Henry pousou a mão no ombro do jovem e, enquanto falava, sorriu.

            – Vamos, vamos nos sentar e experimentar o novo mestre-cuca, e você nos dirá como tudo aconteceu.

            Os três tomaram assento numa mesa redonda, pequena.

            – Não há muito o que contar. O que aconteceu foi apenas isto. Depois que o deixei, ontem à noite, Harry, vesti-me, fui jantar num pequeno restaurante italiano em Rupert Street, que você me apresentou, e, às oito, fui para o teatro. Sibyl interpretava Rosalinda. O cenário, é claro, estava horrível, o Orlando, absurdo. Mas... Sibyl! Vocês deveriam tê-la visto! Quando ela entrou, com aquela roupa de menino, estava maravilhosa, absoluta! Vestia um gibão de veludo, cor de musgo, com folhas de cinamomo, calças curtas, justas, com suspensórios cruzados, um gorrinho verde, espalhafatoso, com uma pena de falcão presa a uma pedra, e um manto encapuçado de debrum vermelho opaco. Jamais, para mim, parecera tão exótica. Trazia toda a graça, delicada, daquele figurino de Tanagra que você tem no ateliê, Basil. Os cabelos cacheavam-lhe ao longo do rosto, qual folhas escuras que envolvem uma rosa pálida. E quanto à interpretação... bem, vocês irão vê-la logo mais. Ela é uma artista nata. Ali sentado, naquele camarote encardido, o fascínio me tomou por completo. Esqueci que estava em Londres, e no século dezenove. Eu estava longe, com meu amor, numa floresta que nenhum outro ser humano jamais vira. Depois da apresentação, fui lá nos fundos, falei com ela. E ali sentados, juntos, vi, de repente, naqueles olhos, uma expressão que jamais vira antes. Meus lábios moveram-se, rumo aos dela. Nos beijamos. Não conseguirei descrever para vocês o que senti naquele momento. A mim me pareceu que toda minha vida havia se estreitado num só ponto, perfeito, de alegria cor-de-rosa. Ela, toda, estremecia, e se arrepiava, como um narciso romano dobrado. Depois, atirou-se de joelhos, beijou minhas mãos. Sinto que não é direito contar-lhes tudo isto, mas não pude evitá-lo. Nosso noivado, é claro, é segredo absoluto. Ela nem mesmo contou à mãe. E, quanto ao meu tutor, não sei o que irá dizer. Ficará furioso, tenho certeza, mas não ligo. Em menos de um ano, atinjo a maioridade e, então, poderei fazer o que quiser. Eu estou certo, não estou, Basil, em extrair meu amor de uma poesia, em encontrar minha esposa nas peças de Shakespeare? Lábios que Shakespeare ensinou a falar murmuraram-me seu segredo ao ouvido. Os braços de Rosalinda envolveram-me, e beijei Julieta na boca.

            – Claro, Dorian, creio que você esteja certo – respondeu Hallward, devagar.

            – Você a viu hoje? – perguntou Lorde Henry.

            Dorian Gray meneou a cabeça.

            – Deixei-a na floresta de Ardenas, e a encontrarei num pomar, em Verona.

            Pensativo, Lorde Henry sorveu o champanha.

            – Em que ponto específico, Dorian, você mencionou a palavra casamento? E o que ela disse, em resposta? Será que você se esqueceu de mencioná-la?

            – Meu caro Harry, não tratei o caso como a uma transação comercial, e não fiz qualquer proposta formal. Disse a ela que a amava, e ela disse que não era digna de ser minha esposa. Não era digna? Comparado a ela, o mundo inteiro não é nada.

            – As mulheres são maravilhosas; são tão práticas, muito mais práticas que nós. Nós, nestas situações, costumamos nos esquecer de mencionar o casamento, e elas sempre nos lembram.

            Hallward pousou a mão no braço de Lorde Henry.

            – Não, Harry. Você aborreceu Dorian. Ele não é como os outros homens. Ele jamais levaria a infelicidade a alguém. Ele possui uma índole boa demais para isto.

            O olhar de Lorde Henry atravessou a mesa.

            – Dorian jamais se aborrece comigo. Fiz a pergunta pelo melhor dos motivos, pelo único motivo, na verdade, que justifica uma pergunta – simples curiosidade. Tenho uma teoria de que são sempre as mulheres que nos pedem em casamento, e não nós que as pedimos. Exceto, é óbvio, na vida da classe média. Mas, tanto faz, a classe média não é moderna.

            Dorian Gray riu, jogou a cabeça para trás.

            – Você é mesmo incorrigível, Harry. Mas eu não ligo. É impossível ficar zangado com você. Quando você ver Sibyl Vane, perceberá que somente uma besta humana poderia fazer mal a ela, uma besta humana sem coração. Não consigo compreender como é possível que alguém queira envergonhar a coisa que ama. Eu amo Sibyl Vane. Desejo colocá-la num pedestal de ouro, e ver o mundo adorar a mulher que é minha. O que é o casamento? Uma jura irrevogável. Por isso você faz pouco do casamento? Ora, não faça pouco. É uma jura irrevogável que quero assumir. A confiança dela me faz fiel, e a fé me faz generoso. Quando estou com ela, arrependo-me de tudo o que você me ensinou, sou diferente do modo como você me conhece. Eu estou mudado, e o simples toque da mão de Sibyl Vane me faz esquecer você e suas teorias erradas, fascinantes, venenosas, deliciosas.

            Lorde Henry serviu-se de salada.

            – E estas teorias são...?

            – Ora, suas teorias sobre a vida, o amor, o prazer. Todas as suas teorias, na verdade, Harry.

            – O prazer é a única coisa digna de uma teoria – respondeu Harry, naquela voz lenta, melodiosa. – Minha teoria, porém, não creio que possa reivindicá-la como de minha autoria. Ela pertence à natureza, não a mim. O prazer é o teste da natureza, é seu sinal de aprovação. Quando estamos felizes, somos sempre generosos, mas, quando somos generosos, nem sempre somos felizes.

            – O que você quer dizer com “generosos”? – perguntou Basil Hallward.

            Dorian reclinou na poltrona, lançou o olhar a Lorde Henry por sobre os cachos compactos de íris debruadas em púrpura, pousados ao centro da mesa.

            – É isso mesmo, Harry, o que você quer dizer com “generosos”?

            Com os dedos pálidos, de pontas bem tratadas, Lorde Henry tocou a haste delgada da taça.

            – Ser generoso é estar em harmonia com nosso próprio ser. Estar em discórdia é sermos forçados a estar em harmonia com os outros. Nossa própria vida... eis o que é importante. Quanto à vida de nosso próximo, se alguém deseja ser gatuno, ou puritano, podemos, a respeito dele, apenas alardear nossos pontos de vista morais, mas não temos nada com ele. Além disso, o individualismo apresenta, na verdade, objetivo mais elevado. A moralidade moderna consiste em aceitar o padrão da idade de uma pessoa. Para o homem de cultura, acredito eu, aceitar o padrão da própria idade é uma forma da mais grosseira imoralidade.

            – Mas – insinuou o pintor – se vivemos apenas para nós mesmos, Harry, pagamos um preço muito alto por isto.

            – Claro; hoje em dia, por tudo, somos cobrados em excesso. Imagino que a tragédia real do pobre é que a única coisa que ele é capaz de sustentar é a autonegação. Os pecados bonitos, assim como as coisas bonitas, são privilégio dos ricos.

            – Mas existem outras formas de pagamento, além de dinheiro.

            – Que formas são estas, Basil?

            – Ora, penso no remorso, no sofrimento, na... bem, na consciência da degradação.

            Lorde Henry encolheu os ombros.

            – Meu caro companheiro, a arte medieval é encantadora, mas as emoções medievais estão desatualizadas. É claro, podemos usá-las na ficção, mas, na verdade, tudo o que podemos usar na ficção são as coisas que, na realidade, deixaram de ser usadas. Creia-me, nenhum homem civilizado se arrepende de um prazer, e nenhum homem incivilizado jamais conhece o que é o prazer.

            – Eu sei o que é o prazer – retrucou Dorian. – É adorar alguém.

            Lorde Henry boliu com algumas frutas.

            – Isto é, com certeza, melhor do que ser adorado. Ser adorado é uma amolação. As mulheres nos tratam da mesma maneira com que a humanidade trata seus deuses. Elas nos veneram, e nos estão sempre importunando para que façamos algo para elas.

            – Eu deveria ter dito – inseriu o jovem, sério – que o que quer que nos peçam, já nos deram antes. Elas criam o amor em nossas índoles. Têm todo o direito de exigi-lo de volta.

            – Uma grande verdade! – exultou Hallward.

            – Nada é uma grande verdade – retrucou Lorde Henry.

            – Esta é – interrompeu Dorian. – Você tem que admitir, Harry, que as mulheres dão aos homens o ouro de suas vidas.

            Lorde Henry suspirou.

            – É possível. Mas, invariavelmente, exigem-no de volta numa troca nada compensadora. É esta a preocupação. As mulheres, como colocou, certa feita, um francês espirituoso, nos inspiram ao desejo de criar obras-primas, e nos impedem, sempre, de desenvolvê-las.

            – Você é horrível, Harry. Não sei por que fui gostar tanto de você.

            – Você irá sempre gostar de mim, Dorian. Vocês querem mais café, companheiros? Garçom, traga café, bom champanha e cigarros. Não, esqueça os cigarros, tenho alguns comigo. Basil, não vou permitir que você fume charutos. Fume um cigarro. Para um prazer perfeito, o cigarro é o tipo perfeito. É exótico, e nos deixa insatisfeitos. O que mais podemos desejar? Claro, Dorian, você irá sempre gostar de mim. Para você, eu represento todos os pecados que jamais teve a coragem de cometer.

            O jovem buscou fogo num dragão de prata, que o garçom colocara sobre a mesa.

            – O que você diz é bobagem, Harry. Vamos para o teatro. Quando Sibyl entrar no palco, você terá um novo ideal de vida. Ela irá representar, para você, algo que jamais conheceu.

            Lorde Henry tinha, nos olhos, a expressão fatigada.

            – Eu já conheci tudo, mas estou sempre pronto para uma nova emoção. Receio, entretanto, que, para mim, qualquer que seja, este novo ideal não existe. Mas, mesmo assim, é possível que sua namorada maravilhosa me faça vibrar. Eu gosto muito de teatro, é tão mais real que a vida. Vamos. Você vem comigo, Dorian. É uma pena, Basil, que a charrete só comporte duas pessoas. Você terá que nos acompanhar num cabriolé.

            Todos levantaram-se, vestiram os casacos e, de pé, sorveram o café. O pintor encontrava-se silente, preocupado. Envolvia-o a melancolia. Não conseguia suportar a idéia deste casamento, embora, para ele, dentre tantas coisas, o casamento não fosse a pior coisa a acontecer. Uns poucos minutos depois, todos desceram. Basil seguia só, conforme combinado, e observava as luzes intermitentes da pequena charrete à frente. Tomou-lhe uma estranha sensação de perda. Sentiu que Dorian Gray jamais seria, para ele, tudo o que fora no passado. A vida se postara entre eles... Os olhos de Basil escureceram, as ruas cheias de gente, irradiantes, turvaram-se aos olhos. Quando o cabriolé parou à porta do teatro, pareceu, a Basil, que envelhecera alguns anos.

 

            Por uma razão ou outra, o teatro estava repleto naquela noite, e o gerente judeu, que os recebera na porta, irradiava, de uma orelha à outra, num sorriso oleoso, trêmulo. Escoltou-os até o camarote numa espécie de humildade pomposa. Acenava as mãos gordas, enfeitadas de jóias, e falava no tom mais alto da voz. Mais do que nunca, Dorian abominou-o. Sentia-se como se tivesse vindo procurar Miranda e encontrasse Caliban. Lorde Henry, ao contrário, pareceu gostar muito dele. Foi, pelo menos, o que declarou, e insistiu em apertar-lhe a mão e assegurar a ele que se sentia orgulhoso em conhecer o homem que descobrira um verdadeiro gênio, e falira por causa de um poeta. Hallward divertiu-se observando os rostos na platéia. O calor opressivo, terrível, e os raios de sol, imensos, em labaredas qual dálias monstruosas com pétalas de fogo amarelo. Na galeria, os jovens haviam tirado os casacos, os coletes, e pendurado na amurada. Conversavam entre si, de um lado a outro do teatro, e compartilhavam as laranjas com as garotas vistosas, sentadas junto a eles. Na platéia, riam algumas mulheres; vozes horríveis, estridentes, dissonantes. Do bar, o som do espocar das rolhas.

            – Que lugar para se encontrar uma divindade, não?! – exclamou Lorde Henry.

            – É – respondeu Dorian Gray. – Foi aqui que a encontrei, e ela é divina, transcende as coisas mortais. Quando representa, nos esquecemos de tudo. Este povo comum, bravo, de rostos ásperos e gestos brutos, torna-se muito diferente quando ela está no palco. Senta-se, em silêncio, e assiste. Choram, riem, quando ela quer que chorem, riam. Ela os faz suscetíveis, tanto quanto um violino. Ela os espiritualiza, e nos sentimos com a mesma carne, o mesmo sangue, de todos.

            Lorde Henry esquadrinhava, com seus binóculos de ópera, os ocupantes da galeria.

            – Com a mesma carne, o mesmo sangue de todos? Tomara que não!

            – Não ligue para ele, Dorian. Sei o que você quer dizer, e acredito nesta garota. Quem quer que você ame, deve ser maravilhosa, e qualquer menina que possua o efeito que você descreve deve ser refinada, nobre. Espiritualizar a idade de uma pessoa... é algo que vale a pena fazer. Se ela é capaz de dar alma aos que vivem sem alma, se é capaz de criar o sentido de beleza nas pessoas de vidas sórdidas e feias, se é capaz de arrancá-las do egoísmo e emprestar-lhes lágrimas que não lhes pertencem, é digna de toda sua adoração, e digna da adoração do mundo. Este casamento está correto. No início não pensava assim, mas, agora, admito-o. Foi para você que os deuses fizeram Sibyl Vane. Sem ela, você estaria incompleto.

            Dorian Gray apertou a mão de Basil.

            – Obrigado, Basil. Sabia que você me iria compreender. Harry é muito cínico, me aterroriza. Olhem... a orquestra! E horrível, mas só toca por quinze minutos. Depois, a cortina sobe, e vocês verão a menina a quem darei minha vida, a quem tenho dado tudo o que há de bom em mim.

            Um quarto de hora depois, em meio a uma agitação de aplausos, extraordinária, Sibyl Vane pisou no palco. Verdade, era mesmo uma criatura adorável de se olhar; uma das mais adoráveis, pensou Lorde Henry, que jamais vira. Naquela graça tímida, naqueles olhos espantados, havia algo de uma corça. Um rubor tênue, como a sombra de uma rosa num espelho de prata, tomou-lhe as maçãs do rosto quando ela lançou o olhar àquele teatro repleto, entusiástico. Recuou alguns passos, e os lábios pareceram estremecer. Basil Hallward saltou, ficou de pé, começou a aplaudir. Imóvel, como quem está num sonho, Dorian Gray, sentado, fitava-a. Através dos binóculos, Lorde Henry bisbilhotou, murmurou “Um encanto! Um encanto”!

            O cenário era um salão em casa de Capuleto, e Romeu entrara, num traje de peregrino, com Mercúcio e outros amigos. A banda, tal como estava, tocou alguns compassos musicais, e a dança começou. Em meio àquela multidão de atores desajeitados, andrajosos, Sibyl Vane movia-se, criatura de um mundo mais requintado. O corpo deslizava, ela dançava, como a planta que desliza n’água. As curvas do pescoço eram curvas de um lírio branco. As mãos pareciam feitas de marfim fresco.

            Mas, curioso, ela estava apática. Não mostrou sinal de alegria quando os olhos foram encontrar Romeu. As poucas palavras da fala

 

            Ofendeis vossa mão, bom peregrino,

            que se mostrou devota e reverente.

            Nas mãos dos santos pega o paladino.

            Esse é o beijo mais santo e conveniente...

                        e o curto diálogo que se segue foram proferidos de um modo absolutamente artificial. A voz, exótica, era, porém, sob o ponto de vista do tom, completamente falsa. No colorido, estava errada. Tirara, do verso, toda vida. Fez irreal a paixão.

            Ao observá-la, Dorian Gray empalideceu. Intrigado, ansioso. Os amigos não ousaram dizer-lhe palavra. A eles, ela parecia de absoluta incompetência. Estavam por demais desapontados.

            Mesmo assim, sentiam que o verdadeiro teste para qualquer Julieta seria a cena da sacada, no segundo ato. Esperaram. Se fracassasse, então, não haveria nada para ela.

            Sob o luar, ao sair, estava encantadora. Inegável! A teatralidade, porém, da interpretação, insuportável, e, com o prosseguir, piorou. Os gestos fizeram-se absurdos, de tão artificiais. Em tudo o que dizia, punha demasiada ênfase. A passagem, tão linda

 

            Sabê-lo bem: a máscara da noite

            me cobre agora o rosto; do contrário,

            um rubor virginal me pintaria,

            de pronto, as faces, pelo que me ouviste

            dizer neste momento.

 

            foi declamada com a precisão dolorosa de uma colegial que aprendeu a recitar com um professor de segunda categoria. Quando, na sacada, debruçou sobre a amurada, e chegou aos maravilhosos versos

 

            ...muito embora sejas

            toda minha alegria, não me alegra

            a aliança desta noite: irrefletida

            foi por demais, precipitada, súbita,

            tal qual o relâmpago que deixa

            de existir antes que dizer possamos:

            Ei-lo! brilhou! Boa noite, meu querido.

            Que o hálito do estio amadureça

            este botão de amor, para que ele possa

            numa delicada flor transformar-se,

            quando outra vez nos virmos...

                        proferiu as palavras como se, para ela, não transmitissem qualquer significado. Não era nervosismo. De fato, longe de estar nervosa, ela estava por demais autocontida. Era, simplesmente, arte de má qualidade. Ela era um completo fracasso.

            Até mesmo a platéia comum, inculta, da platéia da galeria, perdeu o interesse na peça. Ficaram irrequietos, começaram a conversar em voz alta, a assoviar. O gerente judeu, em pé atrás do balcão da primeira classe, batia com os pés, xingava enfurecido. A única pessoa a não se emocionar era a própria menina.

            Ao terminar o segundo ato, brotou a tempestade de vaias, Lorde Henry levantou-se da poltrona, vestiu o casaco.

            – Ela é linda, Dorian, mas não sabe representar. Vamos embora.

            A voz do rapaz veio dura, amarga.

            – Eu vou assistir a peça até o fim. Sinto muitíssimo tê-lo feito desperdiçar uma noite, Harry. Peço desculpas aos dois.

            Hallward interrompeu.

            – Meu caro Dorian, eu, pessoalmente, creio que a Srta. Vanes talvez esteja adoentada.

            Dorian retomou.

            – Melhor que estivesse mesmo, embora, a mim, me pareça fria, insensível. Mudou muito. Ontem à noite, foi uma grande artista. Hoje é um reles lugar-comum, uma artista medíocre.

            – Não fale assim de alguém que você ama, Dorian. O amor é mais maravilhoso que a arte.

            – Os dois são meras formas de imitação – comentou Lorde Henry. – Agora vamos embora. Dorian, não creio que você deva ficar um minuto mais. Não é bom para o moral assistir a representações de baixa qualidade. Além disso, não creio também que você queira que sua mulher continue representando; portanto, que importância tem se parece uma boneca de madeira interpretando Julieta? Ela é mesmo adorável, e se conhecer tão pouco da vida quanto de teatro, será uma experiência deliciosa. Existem apenas dois tipos de pessoas verdadeiramente fascinantes: as pessoas que sabem tudo, e as pessoas que não sabem nada. Céus!, meu caro menino, não seja trágico! O segredo de permanecer jovem é jamais sentir qualquer emoção inconveniente. Vamos para o clube, eu, você e Basil. Vamos fumar cigarros e beber à beleza de Sibyl Vane. Ela é linda. O que mais você pode querer?

            – Vá embora, Harry. Eu quero ficar só. Basil, vá também. Será que vocês não percebem meu coração partido?

            Lágrimas cálidas marejaram-lhe os olhos. Os lábios tremeram. Dorian correu até o fundo do camarote, apoiou-se na parede, escondeu o rosto nas mãos.

            – Vamos, Basil.

            Estranha ternura na voz de Lorde Henry. Os dois saíram juntos.

            Momentos depois, acenderam-se as luzes da ribalta, a cortina subiu para o terceiro ato. Dorian Gray voltou para o assento. Parecia pálido, orgulhoso, indiferente. A peça arrastou-se, parecia interminável. Metade da platéia já se fora, ao tropel das botas pesadas, aos risos. Um grande fiasco geral. O último ato foi encenado para uma galeria quase vazia. Com risadinhas, alguns resmungos, a cortina desceu.

            Assim que tudo terminou, Dorian Gray apressou-se aos bastidores, foi à sala de espera. Lá estava a jovem, só, no rosto uma expressão de triunfo, os olhos iluminados com fogo exótico. Uma radiância a envolvia. Os lábios entreabertos sorriam de algum segredo oculto.

            Quando Dorian entrou, ela o fitou, tomou-a uma expressão de alegria infinita.

            – Dorian, como eu representei mal hoje!

            Surpreso, Dorian fitava-a.

            – Horrível! Horrível! Foi horrendo! Você está doente? Você não faz idéia do que foi. Você não faz idéia do que eu sofri!

            A garota sorriu.

            – Dorian...

            E demorou-se naquele nome, na voz a música aspirada num fôlego longo, como se, para as pétalas vermelhas daquela boca, fosse mais doce que o mel.

            – ... Dorian, pensei que você fosse compreender. Mas agora você compreende, não?

            – Compreende o quê? – perguntou, zangado, Dorian.

            – Por que estive tão mal esta noite. Por que estarei sempre mal daqui por diante. Por que jamais interpretarei bem novamente.

            Dorian encolheu os ombros.

            – Porque você está doente, suponho. Quando estiver doente, não trabalhe. Você se faz de ridícula. Meus amigos se entediaram. Eu me entediei.

            Ela parecia não ouvi-lo. De alegria, estava transfigurada. Dominava-a um êxtase de felicidade.

            – Dorian, Dorian! Antes de conhecê-lo, representar era a única realidade de minha vida. Eu vivia apenas no teatro. Para mim, o teatro era real. Numa noite eu era Rosalinda; na outra, Pórcia. A alegria de Beatriz era minha alegria, e as tristezas de Cordélia eram minhas também. Eu acreditava em tudo. O povo comum, que representava comigo, pareciam deuses para mim. Meu mundo eram os cenários pintados. Tudo o que eu conhecia eram as sombras, e as julgava reais. Você chegou – oh! meu lindo amor! – e libertou minh’alma da prisão. Ensinou-me o que é a verdadeira realidade. Hoje à noite, pela primeira vez na vida, vi além do vazio, da simulação, da tolice do préstito vão em que sempre representei. Hoje à noite, pela primeira vez, tive consciência de que Romeu era repulsivo, era velho, pintado, e que era falso o luar do pomar, e o cenário vulgar, e irreais as palavras que tinha que falar, não eram palavras minhas, não eram o que eu queria dizer. Você me trouxe algo mais elevado, algo de que a arte não passa de um reflexo. Você me fez compreender o que é o verdadeiro amor. Meu amor! Meu amor! Príncipe Formoso! Príncipe da vida! Não suporto mais as sombras. Você é, para mim, muito mais do que a arte jamais o será! O que eu iria fazer com os fantoches de uma peça? Quando entrei em cena, hoje à noite, não consegui compreender por que tudo se esvaíra de mim. Pensei que a noite seria maravilhosa, e descobri que não conseguia fazer nada. De repente, revelou-se em minh’alma o significado de tudo aquilo. Conhecê-lo, foi belo. Ouvi as vaias, sorri. O que sabiam de um amor como o nosso? Leve-me com você, Dorian. Leve-me com você, para onde possamos ficar a sós. Odeio o palco. Posso imitar uma paixão que não sinto, mas não posso imitar uma paixão que me queima como o fogo. Oh, Dorian, Dorian, você entende agora o que isto significa? Mesmo que conseguisse imitá-la, seria, para mim, uma profanação brincar com o fato de estar apaixonada. Você me fez percebê-lo.

            Dorian atirou-se no sofá, afastou o rosto, em lamúria.

            – Você matou meu amor!

            Sibyl olhou-o, em espanto, e riu. Ele não deu resposta. Ela foi até ele, os dedinhos afagaram-lhe os cabelos. Ajoelhou-se, comprimiu-lhe as mãos contra os lábios. Dorian afastou as mãos, um arrepio o percorreu.

            Depois, levantou-se, dirigiu-se à porta.

            – É verdade, você matou meu amor. Você costumava mexer com minha imaginação, e agora, nem mesmo mexe com minha curiosidade. Você já não produz efeito algum. Eu a amava porque você era maravilhosa, porque possuía genialidade, intelecto, porque realizava os sonhos dos grandes poetas, dava forma e substância às sombras da arte. Você jogou tudo fora. Você é superficial, é maçante. Meu Deus! E eu que estava tão louco de amor por você! Que tolo fui! Você já não é mais nada para mim. Não a verei nunca mais. Não pensarei em você, nunca mais. Jamais mencionarei seu nome. Você não faz idéia do que já significou para mim, um dia. Porque, um dia... Ah! É insuportável rememorar! Gostaria de jamais tê-la visto! Você estragou o romance de minha vida. Você deve conhecer muito pouco do amor, se diz que o amor estragou sua arte! Sem sua arte, você não é nada. Eu a teria feito famosa, esplêndida, magnífica. O mundo a teria adorado, e você, recebido meu nome. O que é você agora? Uma atrizinha de terceira categoria, com um rostinho bonito!

            A jovem embranqueceu, estremeceu. Comprimiu as mãos entrelaçadas, e a voz pareceu embargar-lhe na garganta.

            – Você não fala sério, Dorian. Você está encenando!

            Dorian amargou.

            – Encenando? Encenar é com você, você encena tão bem!

            De joelhos, Sibyl levantou-se, e, no rosto, com uma expressão lastimável de dor, atravessou a sala, foi até ele. Pousou o braço no braço de Dorian, olhou-o nos olhos. Dorian empurrou-a.

            – Não me toque!

            Um lamento surdo irrompeu de Sibyl, ela atirou-se aos pés de Dorian, e ali ficou como uma flor esmagada.

            – Dorian, não me deixe, Dorian! Perdoe-me por ter representado tão mal. O tempo todo, pensava em você. Mas eu vou tentar... É verdade, eu vou tentar. Meu amor por você tomou-me tão de repente! Creio que jamais o teria percebido se você não tivesse me beijado... se não tivéssemos nos beijado. Me beije de novo, meu amor. Não vá embora. Seria insuportável! Não, não vá embora! Meu irmão... Não, não é nada. Ele não falou por mal, foi por brincadeira... Mas você... Será que é incapaz de me perdoar pelo que houve hoje à noite? Eu trabalharei com afinco, tentarei melhorar. Não seja cruel comigo apenas porque o amo mais que a qualquer coisa neste mundo. Afinal, esta foi a única vez em que o desagradei. Mas você tem razão, Dorian. Eu deveria ter-me exposto mais como artista. Foi tolice de minha parte, mas não pude evitá-lo. Dorian, não me deixe, não me deixe.

            Uma crise de soluços apaixonados veio asfixiá-la. Ela dobrou-se no chão, como um objeto ferido, e Dorian Gray, os olhos lindos, olhou-a de cima para baixo, e os lábios esculpidos tornearam em requintado desdém. Há sempre algo de ridículo nas emoções de quem já não se ama. A Dorian, Sibyl Vane parecia absurda, de tão melodramática. Aquelas lágrimas e soluços o aborreciam.

            – Vou-me embora – disse Dorian, por fim, na voz calma, clara. – Não desejo ser indelicado, mas será impossível vê-la de novo. Você me decepcionou.

            Em silêncio, Sibyl chorava, e não deu resposta. Apenas aproximou-se, de rastejo. Estenderam-se as mãozinhas, cegas, pareciam ir buscá-lo. Dorian girou os saltos e saiu da sala. Instantes depois, já não se encontrava mais no teatro.

            Para onde ia, mal sabia. Lembrou-se de vagar por ruas mal-iluminadas, de passar por arcos sombrios, de sombras escuras, por casas de aspecto suspeito. Mulheres de vozes roucas, de risos rudes, chamaram-no. Bêbedos cambalearam pelo caminho, xingando, conversando sozinhos, qual macacos monstruosos. Em degraus, viu crianças grotescas apinhadas, ouviu ganidos e juramentos, em bandas obscuras.

            Ao quase romper da alvorada, descobriu-se perto de Convent Garden. A escuridão ergueu-se e, avermelhado em rajadas tênues de fogo, o céu esvaziou-se, pérola perfeita. Carroças gigantescas, repletas de lírios balouçantes, roçagavam, lentas, pela rua vazia, lustrosa. O ar, pesado com o perfume das flores, cuja beleza pareceu trazer-lhe o anódino para sua dor. Dorian prosseguiu, entrou no mercado, e viu homens a descarregar carroças. Um carreteiro, de bata branca, ofereceu-lhe cerejas. Dorian agradeceu, pensou em por que teria o homem recusado dinheiro em pagamento, e começou a comê-las, apático. Haviam sido colhidas à meia-noite, e o frescor da lua as penetrara. Uma fila de garotos, comprida, que carregavam cestões de vime com tulipas listradas, rosas vermelhas e amarelas, desfilava diante dele, a costurar o caminho por entre imensas pilhas de legumes, cor verde-jade. Debaixo do pórtico, de pilastras cinzas, desbotadas, uma tropa de moças, de cabeças descobertas, enxovalhadas, vagabundeava, à espera do final do leilão. Outras aglomeravam-se junto às portas vaivém do café, na piaza. Os cavalos das carroças, pesadões, chegavam, mansos, estrepitavam nas pedras irregulares, sacudiam sinetas e arreios. Alguns cocheiros, deitados, dormiam sobre uma pilha de sacas. Com os pescoços cor de íris, com pés cor-de-rosa, os pombos percorriam o lugar, catando sementes.

            Um instantinho depois, Dorian acenou para um cabriolé, foi para casa. No degrau da porta, por momentos, permaneceu; de um lado a outro, viu a Praça silente, as janelas vazias, de persianas cerradas e cortinas arregaladas. O céu agora era pura opala; contra o céu, qual prata, reluziam os tetos das casas. De uma certa chaminé, do outro lado da rua, subia um rolo ralo de fumaça, que enroscava, num fio violeta, pelo ar cor-de-nácar.

            No imenso lampião veneziano, dourado, espólio de alguma barcaça de Doge, pendurado no grande corredor da entrada, revestido em painéis de carvalho, luzes ainda ardiam em três jatos tremulantes; pétalas azuis, tênues, de labareda, pareciam debruadas em fogo branco. Dorian apagou-as, atirou chapéu e capa sobre a mesa, passou pela biblioteca rumo à porta do quarto, uma câmara octogonal, grande, no rés-do-chão, que ele, em sua recém-sensibilidade por luxo, mandara decorar a seu gosto, em que pendurara algumas tapeçarias da Renascença, curiosas, encontradas num sótão fora de uso, guardadas, no Selby Royal. Ao girar a maçaneta da porta, o olho foi bater no retrato pintado por Basil Hallward. Recuou sobressaltado, como se surpreso. Em seguida, entrou no quarto, e parecia algo intrigado. Depois de liberar a botoeira do casaco, pareceu hesitar. Por fim, voltou, foi até o quadro, examinou-o. À luz tênue, suspensa, que se debatia nas cortinas de seda cor-de-creme, o rosto pareceu, a ele, algo mudado. A expressão parecia diferente. Havia, dir-se-ia, na boca, um toque de crueldade. Com certeza, era estranho.

            Dorian virou-se, caminhou até a janela, suspendeu a persiana. O claro alvorecer inundou o aposento e afastou as sombras fantásticas para o fusco dos cantos, onde permaneceram em arrepios. A expressão estranha, porém, que notara no rosto do retrato, parecia permanecer, ainda mais intensa. A luz do dia, tremulante, ardente, exibiu-lhe as linhas da crueldade ao redor da boca, com a clareza de quem olha no espelho depois de ter cometido algo horrível.

            Dorian recuou, em cima da mesa apanhou um espelho oval emoldurado em cupidos de marfim, um dos muitos presentes recebidos de Lorde Henry e, apressado, olhou-se naquelas profundezas pálidas. Não havia linha alguma a retorcer-lhe os lábios vermelhos. O que significava aquilo?

            Esfregou os olhos, aproximou-se do quadro, examinou-o novamente. Ao contemplar o quadro real, não viu sinais de mudança, mas, não havia dúvida, toda a expressão alterara. Não se tratava de simples fantasia. A coisa estava ali, aparente, horrível.

            Atirou-se numa poltrona, começou a pensar. De repente, chispou-lhe a mente o que dissera no ateliê no dia em que Basil Hallward acabara o quadro. Claro, lembrava-se muito bem. Manifestara um desejo louco para que ele permanecesse jovem e o retrato envelhecesse. Para que sua beleza permanecesse imaculada, e o rosto, na tela, suportasse o peso de suas paixões, de seus pecados; que fosse a imagem pintada a encarquilhar com os sulcos do sofrimento, do pensamento, e ele a manter o desabrochar, a graça delicada de uma infância recém-consciente. Não fora, então, o desejo satisfeito? Não, coisas assim são impossíveis; monstruoso, parece, até mesmo pensar nelas. Mas, mesmo assim, ali estava, diante dele, o quadro com o toque de crueldade na boca.

            Crueldade? Fora ele cruel? Fora culpa dela, não dele. Sonhara com uma grande artista, dera seu amor a ela porque a julgara magnífica, e ela o decepcionara, fora superficial, indigna. Mas tomou-o, mesmo assim, uma sensação de remorso infinito ao lembrar-se da jovem jogada a seus pés, aos soluços, como uma criancinha. Lembrou-se da aspereza com que a olhara. Por que o haviam feito assim? Por que recebera uma alma destas? Mas ele também sofrera. Durante as três horas terríveis por que durou a peça, viveu séculos de dor, eras e mais eras de tortura. Sua vida valia a vida dela. Mesmo que ele a tenha ferido por uma eternidade, ela o arruinara por um instante. Além disso, as mulheres, mais que os homens, ajustavam-se a suportar a tristeza. Viviam de emoções, pensavam apenas nas emoções que sentem. Quando amavam alguém, faziam-no apenas para ter alguém com quem esbravejar. Fora Lorde Henry quem o dissera, e Lorde Henry bem sabia como são as mulheres. Por que se preocupar com Sibyl Vane? Ela já não era mais nada para ele.

            Mas... e o quadro? O que dizer a respeito do quadro? Ele continha o segredo de sua vida, contava-lhe a história. Ensinara-o a amar a própria beleza. Ensiná-lo-ia a abominar a própria alma? Iria, algum dia, olhá-lo de novo?

            Não, tudo aquilo não passava de uma ilusão forjada pelos sentidos confusos. A noite horrível que passara deixara fantasmas. De repente, caíra-lhe sobre o cérebro aquele pontinho escarlate que enlouquece os homens. O quadro não havia mudado; loucura pensar que sim.

            Mas o quadro o observava, aquele rosto lindo, transfigurado, o sorriso cruel. Os cabelos claros brilhavam à luz do sol matinal. Os olhos azuis vieram encontrar os seus. Tomou-o uma sensação de piedade infinita, não de si mesmo, mas da imagem pintada de si mesmo. Já havia alterado, e alteraria ainda mais. Aquele dourado ressecaria, acinzentaria. Morreriam aquelas rosas vermelhas e brancas. Para cada pecado que cometesse, viria uma mancha sarapintar, danificar aquela formosura. Ele, porém, não pecaria. Alterado ou inalterado, o quadro seria, para ele, o emblema visível da consciência. Resistiria à tentação. Não mais veria Lorde Henry – de um jeito ou de outro, não daria ouvidos àquelas teorias venenosas, sutis, que, no jardim de Basil Hallward, pela primeira vez, atiçaram, nele, a paixão pelas coisas impossíveis. Voltaria para Sibyl Vane, repararia o erro, casar-se-ia com ela, tentaria amá-la de novo. Claro, fazê-lo era seu dever. Mais do que ele, ela deve ter sofrido. Pobre criança! Com ela, ele fora egoísta, cruel. Retornaria o fascínio que ela exercera sobre ele. Juntos, seriam felizes. Com ela, a vida seria linda, pura.

            Dorian levantou-se da poltrona e passou um pano largo por sobre o retrato; ao fazê-lo, olhou-o, estremeceu. Horrível!, murmurou consigo mesmo. Caminhou até a janela, abriu-a. Saiu e, ao pisar no gramado, inspirou fundo. O ar fresco da manhã pareceu afastar toda paixão funesta. Pensava apenas em Sibyl. Voltou-lhe o eco tênue do amor. Muitas, muitas vezes, repetiu o nome de Sibyl. Os pássaros, que cantavam no jardim embebido em orvalho, pareciam falar dela às flores.

 

            Quando acordou, já se passara bastante tempo depois do meio-dia. Pé ante pé, o criado subira diversas vezes a ver se o jovem patrão estava desperto, e imaginara o que o fizera dormir tão tarde. Soou, por fim, a campainha do criado, e Victor, suave, entrou com uma xícara de chá e uma pilha de cartas numa pequena bandeja de porcelana Sèvres, antiga, abriu novamente as cortinas de cetim cor-de-oliva, debruadas em azul-cintilante, que se erguiam defronte às três janelas altas.

            Victor sorriu.

            – Monsieur dormiu bem esta manhã?

            – Que horas são, Victor? – perguntou Dorian Gray, sonolento.

            – Uma e um quarto, Monsieur.

            Como era tarde! Dorian sentou-se, sorveu um pouco de chá, abriu os envelopes. Uma delas provinha de Lorde Henry, e fora trazida em mãos pela manhã. Hesitou, por um momento; colocou-a de lado. As demais, abriu-as, indiferente. Continham a coleção habitual de cartões, convites para jantares, ingressos para exposições particulares, programas de concertos de caridade, e coisas afins, derramada em todo jovem da moda, todas as manhãs, durante a temporada. Havia uma conta meio salgada, de um estojo de toucador Luís Quinze, em prata entalhada, que ainda não tivera a coragem de enviar aos tutores, pessoas demasiado antiquadas, incapazes de perceber que vivemos numa era em que as coisas desnecessárias são nossas únicas necessidades, e havia diversas mensagens, em palavreado cortês, dos agiotas de Jermym Street, que se ofereciam para adiantar, sem demora, qualquer importância em dinheiro a taxas de juros bem módicas.

            Cerca de dez minutos depois, levantou-se e, enquanto vestia, apressado, um chambre elaborado em lã de cachemira bordado em seda, passou ao banheiro de piso de ônix. Depois de um longo sono, a água fria veio refrescá-lo. Parecera ter-se esquecido de tudo por que passara. Uma sensação tênue de haver tomado parte em alguma estranha tragédia percorrera-o por uma ou duas vezes, recoberta, entretanto, pela irrealidade de um sonho.

            Logo que se vestiu, foi à biblioteca, sentou-se para um café-da-manhã francês, leve, servido numa mesinha redonda junto à janela aberta. Era um dia primoroso. O ar quente parecia carregado de fragrâncias. Uma abelha entrou voando, zumbiu ao redor da jarra-dragão azul que, repleta de rosas amarelo-enxofre, postava-se diante dele. Dorian sentia-se muito feliz.

            De repente, o olho foi bater no pano que colocara por cima do retrato. Dorian sobressaltou-se.

            Sobre a mesa, o criado colocou uma omelete.

            – Monsieur está com frio? Devo fechar a janela?

            Dorian meneou a cabeça.

            – Não estou com frio.

            Seria verdade mesmo? Teria o retrato de fato alterado? Ou fora apenas a própria imaginação que o fizera ver a expressão do mal onde deveria existir uma expressão de alegria? Bem, mas telas não costumam alterar assim. Claro, a coisa toda era um absurdo; seria, ao menos, uma história a contar a Basil, um dia desses, que o faria sorrir.

            E, mesmo assim, a lembrança de tudo era ainda muito vívida! Primeiro, ao crepúsculo sombrio, depois, ao alvorecer claro, vira o toque de crueldade envolver aqueles lábios deformados. Chegou a recear que o criado se fosse. Sabia que, quando estivesse sozinho, iria examinar o retrato. Receava a certeza. Depois que o homem trouxe café e cigarros e virou-se para sair, Dorian sentiu o desejo espontâneo de dizer-lhe que ficasse. Quando saía, já fechando a porta, Dorian chamou-o de volta. O homem ali ficou, em pé, à espera de ordens. Por um momento, Dorian olhou-o. Suspirou.

            – Não estou para ninguém, Victor.

            O homem curvou-se, retirou-se.

            Dorian, então, levantou-se da mesa, acendeu um cigarro e atirou-se num divã de estofo luxuoso defronte ao pano. O pano era velho, de couro espanhol, dourado, gravado e trabalhado num padrão Luís Quatorze, bastante floreado. Esquadrinhou-o, com curiosidade, e imaginou se, alguma vez, já havia ele ocultado o segredo da vida de outrem.

            Deveria afastá-lo, afinal? Por que não deixá-lo ficar? Faria alguma diferença saber? Se a coisa fosse verdade, seria terrível. Se não fosse verdade, por que preocupar-se com ela? Mas... e se, por destino, ou acaso ainda mais mortífero, olhos outros, que não os seus, espiassem atrás do pano e vissem a horrível mudança? O que faria se Basil Hallward chegasse e pedisse para ver o quadro que pintara? Basil, com certeza, pediria para vê-lo. Não, a coisa tinha que ser examinada, e já. Qualquer coisa seria melhor que este pavoroso estado de dúvida.

            Dorian levantou-se, trancou as portas. Ao menos estaria só ao contemplar a máscara da própria vergonha. Então, afastou o pano e viu-se, face a face. Era a mais absoluta verdade, o retrato se havia alterado.

            Como, com freqüência, costumava rememorar depois, sempre com espanto nada diminuto, descobriu-se, no início, a contemplar o retrato com uma sensação de interesse quase científico. Para ele, era inacreditável que aquela alteração tivesse mesmo ocorrido. Mas, ainda assim, era um fato. Haveria alguma afinidade sutil entre os átomos químicos que, sobre a tela, moldavam-se em forma e cor, e a alma dentro dele? Será que materializavam o que a alma pensava? Que tornavam real o que a alma sonhava? Ou haveria outro motivo, mais terrível? Dorian estremeceu, sentiu medo. Voltou para o sofá, deitou-se, contemplou o quadro num horror doentio.

            Uma coisa, porém, ele sentia, o quadro fizera por ele. Fizera-o consciente de quão injusto, quão cruel, fora para com Sibyl Vane. Mas ainda havia tempo para a reparação, e ela ainda poderia ser sua esposa. Aquele amor irreal, egoísta, capitularia diante de alguma influência superior, seria transformado em alguma paixão mais nobre, e o retrato, pintado por Basil Hallward, seria, para ele, por toda a vida, um guia, seria, para ele, o que o sacro é para uns, e a consciência, para outros, e o temor a Deus, para todos nós. Existem opiatos para o remorso, drogas capazes de acalentar ao sono o sentido moral. Eis um símbolo visível da degradação do pecado. Eis um sinal onipresente da ruína que os homens trouxeram para suas almas.

            Tocaram as três horas, as quatro, e as quatro e meia soaram o badalo duplo, mas Dorian Gray nem se mexeu. Tentava reunir os fios escarlates de vida, e com eles costurar um molde: encontrar o caminho no labirinto sanguinolento da paixão, por onde vagava. Não sabia o que fazer, ou o que pensar. Por fim, foi até a mesa e escreveu uma carta apaixonada à mulher que amara, a implorar perdão, a acusar-se de loucura. Página por página, cobriu-as com palavras espontâneas de tristeza, ainda mais espontâneas de dor. Há, na auto-reprovação, uma certa suntuosidade. Quando nos acusamos, sentimos que ninguém mais tem o direito de acusar-nos. É a confissão, e não o padre, que nos dá a absolvição. Ao terminar a carta, Dorian já se sentia perdoado.

            De repente, uma batida à porta, e Dorian ouviu, lá fora, a voz de Lorde Henry.

            – Meu caro menino, preciso vê-lo. Preciso entrar, já. Não gosto de vê-lo trancado, Dorian.

            Em princípio, Dorian não ofereceu resposta, apenas permaneceu bem quieto. As batidas continuaram, mais altas. Claro, melhor deixar entrar Lorde Henry e explicar-lhe a nova vida que iria levar, discutir com ele, se necessário fosse, e romper, se inevitável. Dorian saltou, depressa recolocou o pano por cima do quadro, abriu a porta.

            Lorde Henry entrou.

            – Sinto muito por tudo, Dorian. Mas não pense muito no que houve.

            – Você se refere a Sibyl Vane?

            Lorde Henry afundou-se na poltrona; devagar, retirou as luvas amarelas.

            – Claro, claro. Por um lado, foi horrível, mas não foi culpa sua. Diga, você foi nos bastidores para vê-la, ao final da peça?

            – Fui.

            – Tinha certeza de que iria. Você discutiu com ela?

            – Agi com brutalidade, Harry... com muita brutalidade. Mas agora está tudo bem. Não estou arrependido pelo que aconteceu. Ensinou a conhecer-me melhor.

            – Ah, Dorian, fico tão contente em vê-lo colocar as coisas desta maneira! Receava que fosse encontrá-lo mergulhado em remorso, cortando esse seu lindo cabelo encaracolado.

            Dorian sacudiu a cabeça; sorriu.

            – Passei mesmo por isto. Mas agora, estou bem feliz. Para começar, já sei o que é a consciência. Não é o que você me disse que era. É a coisa mais divina que temos em nós. Não zombe. Nunca mais, Harry... ao menos, na minha frente. Eu quero ser bom. Não suporto a idéia de possuir uma alma repulsiva.

            – Que base artística, muito encantadora, para a ética, Dorian! Meus parabéns! Mas como você irá começar?

            – Casando-me com Sibyl Vane.

            – Casando-se com Sibyl Vane?

            Lorde Henry levantou-se, olhou-o, em espanto perplexo.

            – Mas... meu caro Dorian.

            – Claro, Harry, já sei o que você vai dizer, alguma coisa horrível a respeito do casamento. Pois não diga. Jamais me diga coisas desta natureza de novo. Dois dias atrás, pedi a Sibyl Vane que se casasse comigo, e não vou faltar-lhe com a palavra. Ela será minha esposa.

            – Sua esposa? Dorian!... Você não recebeu minha carta? Escrevi esta manhã e mandei-a por meu próprio mensageiro.

            – Sua carta? Claro, me lembro. Não a li ainda, Harry. Receava que houvesse nela algo de que eu não gostasse. Você despedaça a vida com seus epigramas.

            – Quer dizer, então, que você não sabe...

            – Não sabe de quê?

            Lorde Henry atravessou o aposento, sentou-se ao lado de Dorian Gray, tomou as duas mãos do jovem nas suas, apertou-as.

            – Dorian... minha carta... não se assuste... era para dizer-lhe que Sibyl Vane está morta.

            Um grito de dor irrompeu dos lábios do jovem. De um salto, Dorian ficou de pé, arrancou as mãos das mãos que o envolviam.

            – Morta? Sibyl está morta? Não é verdade, é uma mentira terrível! Como ousa mentir assim?

            – É a pura verdade, Dorian – insistiu Lorde Harry, sério. – Está nos jornais matutinos. Escrevi para você pedindo que não visse ninguém antes de minha chegada. Haverá inquérito é claro, e é melhor que você não seja envolvido. Em Paris, qualquer um fica famoso com uma coisa dessas, mas, em Londres, as pessoas são preconceituosas demais. Aqui, não devemos debutar com escândalos, devemos reservá-los para chamar a atenção sobre nós, quando envelhecemos. Creio que, no teatro, não sabem seu nome. Se não sabem, é ótimo. Alguém o viu ir aos aposentos dela? É um ponto importante.

            Por momentos, Dorian não respondeu. Estava aturdido, de horror. Gaguejou, por fim, numa voz embargada.

            – Você disse inquérito, Harry? O que você quer dizer com isso? Sibyl se...? Harry, não conseguirei suportar tudo isso. Mas, ande logo. Conte tudo de uma vez.

            – Não tenho dúvidas de que não foi um acidente, Dorian, embora, para o público, a coisa tenha que ser colocada desta maneira. Parece que ela deixava o teatro com a mãe, por volta de meia-noite e meia, e disse que havia esquecido algo lá em cima. As pessoas esperaram por ela, um pouco, mas ela não desceu. Em conclusão, encontraram-na morta, deitada no camarim; ingerira alguma coisa por engano, uma destas coisas horríveis que costumam usar em teatro. Não sei o que era, mas sei que continha ácido prússico ou alvaiade. Imagino que fosse ácido prússico, pois a morte parece ter sido instantânea.

            – Harry! Isto é terrível, Harry!

           – Claro, claro. E muito trágico, mas você não deve se deixar envolver no caso. Li, no The Standard, que tinha dezessete anos. Pensei que ela fosse mais nova. Parecia uma criança, e parecia não entender nada de palco. Dorian, não deixe que isto afete seus nervos. Venha jantar comigo e, depois, daremos uma olhada na Ópera. É noite de Patti, e muita gente estará lá. Você pode ficar no camarote de minha irmã. Ela está sempre acompanhada por mulheres muito vistosas.

           – Quer dizer, então, que eu matei Sibyl Vane – disse Dorian Gray, meio consigo mesmo. – Matei-a, como se lhe tivesse cortado a garganta com uma faca. E nem por isso as rosas estão menos bonitas. No meu jardim, os pássaros continuam a cantar com a mesma felicidade. E hoje à noite, vou jantar com você, depois irei à Ópera, e depois, creio, irei cear em algum lugar. A vida é mesmo muito dramática! Se eu tivesse lido tudo isto num livro, Harry, acho que teria chorado. Bem, mas agora que a coisa aconteceu de fato, parece, a mim, maravilhosa demais para comportar lágrimas. Aqui está a primeira carta de amor passional que já escrevi na vida. É estranho que minha primeira carta de amor apaixonado tenha sido escrita para uma mulher morta. Fico a pensar se estas pessoas pálidas, silenciosas, a que chamamos mortos, sentem as coisas. Sibyl! Será que ela sente? Que sabe? Que escuta? Oh, Harry, já amei tanto! Para mim, agora, parece, já faz muitos anos. Ela era tudo para mim. Depois, aquela noite horrível – nem parece que foi ontem! Ela representou tão mal, quase partiu meu coração. Ela me deu explicações, foi tudo muito patético. Mas não me emocionei, nem um pouco. Julguei-a superficial. Mas, de repente, algo aconteceu, que me deixou com medo. Não sei o que, mas foi terrível. Quis voltar para ela, senti que havia agido mal. Agora, ela está morta. Meu Deus! Meu Deus! Harry, o que faço agora? Você não sabe o perigo em que estou envolvido, e não há nada que consiga reerguer-me. Ela teria conseguido, fa-lo-ia por mim. Não tinha o direito de se matar. Foi egoísmo da parte dela.

            Lorde Henry retirou um cigarro do estojo e uma caixa de fósforos de latão dourado do bolso.

            – Meu caro Dorian. O único modo por que a mulher consegue reformar um homem é entediando-o ao máximo, até fazê-lo perder todo o interesse na vida. Se você se tivesse casado com esta mulher, estaria desgraçado. Claro, você a trataria bem. Sempre podemos ser generosos para com pessoas a quem não ligamos nem um pouco. E ela logo descobriria sua absoluta indiferença para com ela. E quando a mulher descobre isto a respeito do marido, ou passa a andar esmolambada, ou passa a usar chapéus vistosos, adquiridos por maridos de outras mulheres. E quanto ao erro social, então, nem se fala! Teria sido abjeto e, é claro, eu não o teria consentido. Posso assegurar, porém, que a coisa toda teria sido um completo fracasso.

            O jovem caminhava de um lado a outro do aposento; estava muito pálido.

            – Creio que teria mesmo – resmungou. – Mas julguei que fosse meu dever. Não é culpa minha se esta tragédia horrível veio impedir-me de fazer o que era direito. Lembro de ouvi-lo dizer, um dia, da fatalidade que envolve as boas decisões; quando as tomamos, já é tarde demais. A minha, na certa, veio tardia.

            – As boas decisões são tentativas inúteis de interferir nas leis científicas. Originam-se na mera vaidade, e o resultado é absolutamente nil. Proporcionam, a nós, de vez em quando, uma ou outra emoção estéril, luxuosa, que guardam um certo charme durante uma semana. Isto é tudo o que podemos dizer delas. São reles cheques que os homens sacam contra um banco em que não mantêm conta.

            Dorian Gray aproximou-se, sentou junto a Lorde Henry.

            – Harry, por que esta tragédia não me sensibiliza o tanto que eu gostaria que sensibilizasse? Eu não acho que seja um desalmado. Você acha que sim?

            Lorde Henry sorriu, doce, melancólico.

            – Na última quinzena, Dorian, você fez muitas tolices e, portanto, não está habilitado a rotular-se desta maneira.

            O jovem franziu o cenho.

            – Não gosto da explicação, Harry, mas fico contente em saber que você não me julga um desalmado. Eu não sou nada disso. Sei que não sou. Mas, por outro lado, devo admitir que esta coisa que aconteceu não me afetou tanto quanto deveria ter afetado. A mim me parece um final maravilhoso para uma peça maravilhosa. Tem toda a beleza de uma tragédia grega, uma tragédia em que tive grande participação e que, porém, não me molestou.

            Lorde Henry descobriu um certo prazer exótico em brincar com o egotismo inconsciente do rapaz.

            – A questão é interessante, uma questão demasiado interessante. Imagino que seja esta a verdadeira explicação. Ocorre, com freqüência, que as tragédias reais acontecem de uma maneira tão inartística, que vêm ferir-nos pela violência crua, a incoerência absoluta, a carência absurda de significado, a total falta de estilo. Afetam-nos assim como nos afeta a própria vulgaridade. Dão-nos a impressão de mera força bruta, e nos revoltamos contra isto. Uma vez ou outra, entretanto, nossas vidas são atravessadas por uma tragédia que possui, de fato, elementos artísticos de beleza. Se estes elementos de beleza forem reais, toda a coisa vem apetecer apenas ao nosso sentido de efeito dramático. Descobrimos, de repente, que não somos mais os atores, e sim os espectadores da peça. Ou então somos ambos. Assistimos a nós mesmos, e a simples maravilha do espetáculo nos enfeitiça. No caso em questão, o que aconteceu, na verdade? Alguém se matou por amor a você. Gostaria de ter passado eu mesmo por uma experiência destas. Teria feito com que eu amasse o amor pelo resto de minha vida. As pessoas que me adoraram – embora não muitas, existiram – sempre insistiram em continuar a viver depois que deixei de me importar com elas, ou depois que deixaram de se importar comigo. Hoje são intransigentes, entediantes, e sempre que as encontro, elas, imediatamente, passam às reminiscências. A terrível memória das mulheres! É apavorante! Revela a mais absoluta estagnação intelectual! Devemos absorver o colorido da vida, mas não devemos jamais nos lembrar dos detalhes. Os detalhes são sempre vulgares.

            Dorian suspirou.

            – Então... tenho que plantar papoulas no meu jardim.

            – Não há necessidade disto – prosseguiu o companheiro. – A vida sempre conta com papoulas à mão. É claro que, de vez em quando, as coisas demoram. Certa vez, durante toda uma estação, usei violetas como forma de luto artístico por um romance que não queria morrer. Mas, enfim, morreu, e não me lembro o que o matou. Talvez a proposta que ela fizera, de sacrificar todo o mundo por minha causa. Este momento é sempre terrível. Nos preenche com o terror da eternidade. Bem – parece inacreditável –, na semana passada, na residência de Lady Hampshire, estava eu sentado ao lado da senhora em questão, e ela insistia em rememorar tudo, em cavar o passado, incursionar no futuro. Eu enterrara o romance num leito de asfódelos, e ela o exumara. Afirmava que eu havia arruinado sua vida. Posso quase assegurar que ela devorou um monstruoso jantar; não senti, portanto, qualquer ansiedade. Mas que falta de gosto demonstrou! O charme, único, do passado, está em ser ele apenas o passado, e as mulheres não sabem detectar o momento em que a cortina cai. Sempre desejam um sexto ato, e assim que o interesse na peça se esgota por completo, querem continuá-la. Se lhes fosse concedida autonomia, toda comédia teria um final trágico, e toda tragédia culminaria numa farsa. Elas possuem o encanto do artificial, mas não possuem o sentido de arte. Você tem mais sorte do que eu. Eu asseguro a você, Dorian, que nenhuma das mulheres que conheci teria feito por mim o que Sibyl Vane fez por você. As mulheres comuns sempre se consolam a si mesmas, e algumas o fazem entregando-se às cores sentimentais. Seja de que idade, não confie em mulheres que usem cor-de-malva, e nem em mulheres de mais de trinta e cinco que gostem de fitas cor-de-rosa, pois isto revela a existência de histórias ocultas. Outras encontram enorme consolo em descobrir, de repente, as boas qualidades dos maridos. Ostentam, no próprio rosto, a felicidade conjugal, como se fosse o mais fascinante dos pecados. Algumas consolam-se na religião. Os mistérios possuem o charme de um namorico, uma mulher me disse, certa feita. E eu compreendo. Além disso, o que mais deixa uma mulher vaidosa é dizer a ela que é uma pecadora. A consciência nos faz, a todos, egotistas. São, de fato, inesgotáveis os consolos que as mulheres descobrem na vida moderna. E, para falar a verdade, ainda nem mencionei o mais importante de todos.

            – Qual é o mais importante, Harry? – perguntou o jovem, indiferente.

            – Ora, o consolo óbvio. Roubar o admirador de outra mulher quando perdem o delas. Na alta sociedade, isto sempre reabilita a mulher. Mas, na verdade, Dorian, Sibyl Vane deve ter sido muito diferente de todas estas mulheres que encontramos por aí! Há, na morte de Sibyl, para mim, algo de muito bonito. Fico contente em viver num século em que ocorrem tais maravilhas. Elas nos fazem acreditar na realidade das coisas com que todos temos que jogar, como o romance, a paixão, o amor.

            – Eu fui muito cruel com ela. Já se esqueceu?

            – Receio que as mulheres gostem de crueldade, da crueldade sem-cerimônia, mais do que qualquer outra coisa. Possuem instintos primitivos maravilhosos. Nós as emancipamos, mas elas, como escravas, seguem à procura de seus donos. É tudo a mesma coisa. Adoram ser dominadas. Tenho certeza de que você agiu de modo esplêndido. Eu nunca vi você zangado de verdade, completamente zangado, mas imagino-o delicioso. E, afinal, você me disse algo, anteontem, que, na ocasião, pareceu-me pura fantasia, mas agora vejo como absoluta verdade, algo que contém a chave de tudo.

            – E o que foi que eu disse, Harry?

            – Você disse que Sibyl Vane representava, para você, todas as heroínas do romance. Que, numa noite, ela era Desdêmona, na outra, Ofélia. Que, se morresse como Julieta, voltava à vida como Imogene.

            Num resmungo, o jovem afundou o rosto nas mãos.

            – Agora ela jamais retornará à vida.

            – Correto, ela jamais retornará à vida. Interpretou seu último papel. Aquela morte solitária, porém, naquele camarim de mau gosto, veja-a como um fragmento lúrido, estranho, de uma tragédia jacobita, como uma cena maravilhosa de Webster, Ford ou Cyril Tourneur. Ela, na verdade, nunca viveu e, portanto, nunca morreu. Para você, ao menos, ela era sempre um sonho, um fantasma que esvoaçava pelas peças de Shakespeare e, com sua presença, tornava-as mais adoráveis, era uma flauta que fazia soar mais fecunda, mais cheia de alegria, a música de Shakespeare. A partir do momento em que ela tocou a vida real, estragou-a, e a vida a estragou, então ela se foi. Chore por Ofélia, se assim o desejar. Derrame cinzas na cabeça pelo estrangulamento de Cordélia. Brade contra os céus pela morte da filha de Brabâncio. Mas não desperdice lágrimas por Sibyl Vane. Ela era menos real do que as lágrimas.

            Houve silêncio. No aposento, a noite escureceu. Sem fazer ruído e com pés prateados, as sombras vieram do jardim, entraram. As cores, cansadas, esvaíram-se das coisas.

            Algum tempo depois, Dorian Gray ergueu os olhos e exalou algo de um suspiro de alívio.

            – Você me explicou a mim mesmo, Harry. Eu sentia tudo o que você disse, mas, de algum modo, sentia medo, e não conseguia expressá-lo para mim mesmo. Você me conhece muito bem. Mas não conversemos mais sobre o que aconteceu. Foi uma experiência maravilhosa, eis tudo. Ponho-me a imaginar se a vida ainda terá algo assim tão maravilhoso guardado para mim.

            – A vida tem tudo guardado para você, Dorian. Não há nada que você, com sua extraordinária beleza, não possa fazer.

            – Mas suponha, Harry, que eu me torne macilento, velho e enrugado. O que acontecerá?

            Lorde Henry já se levantava para ir embora.

            – Então, meu caro Dorian, você teria que lutar por suas vitórias. Como as coisas estão postas, as vitórias vêm a você. Não, você deve conservar sua beleza. Vivemos numa era que, por tanto ler, não pode ser inteligente, e que, por muito pensar, não pode ser bela. Não podemos prescindir de você. E agora, é melhor que vá se vestir, para irmos ao clube. Como as coisas estão postas, já estamos muito atrasados.

            – Creio que irei encontrá-lo na Ópera, Harry. Estou cansado demais para comer. Qual é o número do camarote de sua irmã?

            – Vinte e sete, creio. É no balcão de honra. O nome dela está na porta. Pena você não vir jantar.

            – Não, não estou com vontade – disse Dorian, indiferente. – Mas sou muito grato a você por tudo o que me disse. Você é, com certeza, meu melhor amigo. Ninguém jamais me compreendeu tão bem quanto você.

            Lorde Henry sacudiu a mão de Dorian.

            – Estamos apenas no começo de nossa amizade, Dorian. Até logo. Espero vê-lo antes das nove e meia. Lembre-se, quem canta é Patti.

            Ao fechar a porta à saída de Lorde Henry, Dorian Gray tocou a campainha; em poucos minutos, Victor surgiu com os lampiões e fechou as persianas. Impaciente, Dorian esperou que saísse. O homem parecia, em cada coisa que fazia, demorar uma eternidade.

            Assim que saiu, Dorian foi depressa até o pano, puxou-o. Não, não havia nova mudança no quadro, que recebera a notícia da morte de Sibyl Vane antes mesmo que ele. O quadro tinha consciência dos eventos da vida, à medida que iam acontecendo. A crueldade perniciosa que transfigurara as linhas daquela boca haviam, não resta dúvida, surgido no momento preciso em que a jovem tomara o veneno, não importa qual fosse. Ou seria o quadro indiferente aos resultados, e tomasse conhecimento apenas do que se passasse dentro d’alma? Dorian pôs-se a pensar, na esperança de um dia ver ocorrer a mudança diante dos olhos, trêmulo só de pensar.

            Pobre Sibyl! Que romance! Por diversas vezes, ela imitara a morte no palco, e a morte em pessoa veio tocá-la, veio levá-la. Como será que desempenhara aquela última cena, medonha? Amaldiçoara-o, ao morrer? Não, ela morrera por amor a ele, e agora o amor seria sempre, para ele, um sacramento. Ela expiara por tudo, pelo sacrifício de sua vida. Ele não mais pensaria no que ela o fizera passar, naquela noite horrível no teatro. Quando pensasse nela, pensaria numa figura trágica, maravilhosa, enviada ao palco do mundo para mostrar a realidade suprema do amor. Uma figura trágica, maravilhosa? Lágrimas brotaram-lhe nos olhos ao lembrar-se daquele ar pueril, naqueles modos fantasiosos, cativantes, naquela graça trêmula, tímida. Apagou-os depressa e, de novo, olhou para o quadro.

            Sentiu que era chegada a hora de fazer a escolha. Ou será que a escolha já fora feita? Claro, fora a vida quem decidira por ele... a vida, e a infinita curiosidade que nutria pela vida. A juventude eterna, a paixão infinita, o prazer sutil e secreto, as alegrias espontâneas e os pecados ainda mais espontâneos... ele possuiria todas estas coisas. O retrato carregaria o peso de sua vergonha. Eis tudo. Subiu-lhe um sentimento de dor ao pensar na profanação reservada ao belo rosto da tela. Um dia, em zombaria infantil de Narciso, beijara, ou fingira beijar, aqueles lábios pintados que ora sorriam tão cruéis para ele. Manhã após manhã, ele se sentara diante do retrato, devaneara com toda a beleza, quase enamorado, como se sentira por diversas vezes. Iria alterar-se a cada estado de espírito a que Dorian se entregasse? Iria transformar-se numa coisa monstruosa, repulsiva, a ocultar-se num quarto trancado, a excluir-se da luz do dia que, tantas vezes, veio tocar e transformar em ouro ainda mais refulgente aquela maravilha ondulada de cabelos? Que pena! Que pena!

            Por um momento, pensou em rezar para que cessasse a terrível simpatia existente entre ele e o retrato. Mudara em resposta a uma prece; talvez, em resposta a uma prece, pudesse permanecer imutável. Mas quem, que nada sabe da vida, não se entregaria à oportunidade de permanecer sempre jovem, por mais que fosse fantástica a oportunidade, por mais conseqüências fatídicas que carregasse? Além disso, estaria o quadro, de fato, sob seu controle? Fora a prece, na verdade, que produzira a substituição? Não haveria um motivo qualquer, científico, singular, para tudo aquilo? Se o pensamento é capaz de exercer influência sobre um organismo vivo, por que não seria capaz de exercer influência sobre coisas mortas e inorgânicas? Não, sem o pensamento, ou o desejo consciente, quem sabe as coisas externas a nós não vibrem em uníssono com nossos estados de espírito, nossas paixões, átomo invocando átomo em amor secreto ou afinidade estranha? O motivo, porém, não tinha importância. Jamais, por meio de prece, atrairia qualquer força estranha novamente. Se o quadro tivesse que se alterar, que se alterasse. Eis tudo. Por que aprofundar a investigação?

            Pois observar o quadro proporcionaria prazer real. Ele poderia acompanhar a própria mente adentro de seus locais secretos. Este retrato seria, para ele, o mais mágico dos espelhos. Já que lhe revelara o próprio corpo, revelaria também a própria alma. E no momento em que o inverno viesse descer sobre o quadro, ele ainda estaria no ponto em que a primavera estremece com o raiar do verão. Quando o sangue se esvaísse daquele rosto, deixando uma máscara pálida de giz e olhos plúmbeos, ele ainda contaria com o esplendor da adolescência. Nenhuma flor daquela graça, por única que fosse, jamais desvaneceria. Nenhuma pulsação daquela vida, por única que fosse, jamais enfraqueceria. Assim como os deuses gregos, ele seria forte, lépido, alegre. Não importa o que acontecesse com a imagem colorida impressa na tela, ele estaria a salvo. Eis tudo.

            Recolocou o pano no lugar, por cima do quadro, sorrindo ao fazê-lo, e passou ao quarto, onde o criado já o esperava. Uma hora depois já estava na Ópera, com Lorde Henry debruçado sobre a cadeira onde se sentara.

 

            Quando Dorian Gray se sentava para o café da manhã, na manhã seguinte, Basil Hallward era conduzido ao aposento.

            – Que bom tê-lo encontrado, Dorian – disse, sério. – Vim ontem à noite, e disseram-me que você fora à Ópera. Ora, eu sabia que isto era impossível, e desejei que você tivesse deixado um bilhete informando onde se encontrava. Passei uma noite horrível, em parte com medo de que uma tragédia se sucedesse à outra. Você deveria ter me telegrafado assim que soube da notícia. Eu soube quase por acaso, na última edição do The Globe, que apanhei no clube. Vim imediatamente, e me senti muito mal em não encontrá-lo. A coisa toda deixou-me muito desgostoso. Sei o quanto você deve estar sofrendo. Mas... onde você foi? Foi ver a mãe da menina? Por um momento, pensei em ir até lá à sua procura, o jornal dava o endereço. Em algum canto em Euston Road, não é mesmo? Receei, porém, intrometer-me numa tristeza que não poderia iluminar. Pobre mulher! Deve estar num péssimo estado! E a menina era filha única! O que disse a mãe dela?

            – Meu caro Basil, como vou saber?

            Dorian Gray sorveu o vinho amarelo-claro, no borbulhar delicado, de efervescências douradas, de uma taça veneziana. Parecia muito aborrecido.

            – Eu fui à Ópera. Você deveria ter ido também. Conheci Lady Gwendolen, irmã de Harry. Estávamos no camarote dela. Ela é muito encantadora, e Patti canta divinamente. Não fale de coisas horríveis. Se não falarmos delas, deixam de ter acontecido. É a simples expressão, como diz Harry, que dá realidade às coisas. É bom mencionar que ela não era filha única. A mulher tem um filho, também, um sujeito simpático, creio, que não faz teatro. É marinheiro, ou coisa assim. E agora, fale-me de você, do que está pintando.

            Hallward falou lento, na voz o toque constrangido de dor.

            – Você foi à Ópera? Sibyl Vane morre, num local sórdido, e você vai à Ópera? Como pode me falar do encanto de outras mulheres, do canto divino de Patti, se a mulher que você amava nem tem ainda a quietude de um túmulo em que repousar? Porque, homem, existem horrores guardados para aquele pequenino corpo alvo.

            Dorian saltou, ficou de pé.

            – Pare, Basil! Não quero ouvir isto. O que está feito, está feito. O que é passado, é passado.

            – Ontem é passado para você?

            – O lapso real de tempo não tem qualquer valor. Somente as pessoas superficiais exigem muito tempo para se livrar de uma emoção. Todo homem dono de si é capaz de pôr fim a uma tristeza com a mesma facilidade com que é capaz de inventar um prazer. Não quero ficar à mercê de minhas emoções. Quero usá-las, me divertir com elas, dominá-las.

            – Isto é horrível, Dorian! Alguma coisa mudou você por completo! O aspecto é o mesmo daquele menino maravilhoso que, dia a dia, costumava ir ao meu ateliê e posar para um quadro. Só que você era simples, natural e carinhoso. Você era a criatura mais imaculada deste mundo inteiro. Mas, agora, não sei o que houve com você. Você fala como se não possuísse coração, nem piedade. Posso ver que é tudo influência de Harry.

            O jovem empalideceu, foi até a janela; por momentos, contemplou, lá fora, o jardim verde, tremeluzente, vergastado pelo sol. Por fim:

            – Eu devo muito a Harry, Basil, mais do que devo a você. A única coisa que você me ensinou foi ser vaidoso.

            – E sou castigado por isso, Dorian. Ou o serei, qualquer dia.

            Dorian virou-se.

            – Não sei de que você está falando, Basil. Não sei o que você quer. O que você quer?

            – Quero o Dorian Gray que me acostumei a pintar – respondeu, triste, o artista.

            O jovem foi até ele, pousou-lhe a mão no ombro.

            – Basil, você veio tarde demais. Ontem, quando soube que Sibyl Vane havia se matado...

            – Ela se matou? Céus! Será que não há algum engano?

            Hallward olhava-o numa expressão de horror.

            – Meu caro Basil. Bem sei que você não pensou que se tratava de um acidente vulgar. É claro que ela se matou.

            O mais velho dos dois afundou o rosto nas mãos...

            – É pavoroso! – sussurrou, entre dentes.

            ... E um arrepio o percorreu.

            – Não, não há nada de pavoroso. É uma das grandes tragédias românticas desta era. Como norma, as pessoas que representam levam vidas muito banais. São bons maridos, ou esposas fiéis, ou algo entediante. Você entende... é virtude da classe média, todo esse tipo de coisa. E Sibyl era muito diferente! Ela viveu a tragédia mais requintada. Era sempre a heroína. Na última noite em que representou – na noite em que você a viu – ela representou mal porque conhecera a realidade do amor. Quando percebeu a irrealidade do amor, morreu, assim como Julieta também teria morrido. Assim, entrou novamente na esfera da arte. Há algo de mártir nela. Esta morte teve toda a inutilidade patética, a beleza desperdiçada do martírio. Mas, como eu dizia, não pense que não sofri. Se você tivesse vindo ontem, a uma certa hora, por volta, talvez, de cinco e meia, ou quinze para as seis, teria me encontrado em lágrimas. Até mesmo Harry, que esteve aqui, que me trouxe a notícia, não fazia idéia do que eu passava. Eu sofri demais, mas, depois, a coisa passou. Não consigo bisar uma emoção. E ninguém consegue, com exceção dos sentimentais. Você está sendo injusto, Basil; veio para me consolar, o que é muito encantador de sua parte, e, ao encontrar-me consolado, ficou furioso. Em nada diferente dos indulgentes! Você me faz lembrar de uma história que Harry contou, de um certo filantropo que levou vinte anos para tentar desfazer-se de um dissabor, ou para alterar uma lei injusta... não me lembro bem do que era. Mas, por fim, conseguiu, e a decepção que sentiu foi insuperável, pois ele ficou sem nada o que fazer, quase morreu de tédio, e se transformou num misantropo convicto. Além disso, meu caro Basil, se você deseja mesmo me consolar, é melhor ensinar-me a esquecer o que aconteceu, ou a ver o que aconteceu sob um ponto de vista artístico condizente. Não era Gautier que escrevia sobre “o consolo das artes”? Lembro-me do dia, em seu ateliê, em que apanhei aquele livrinho de capa de velino e me deparei, por acaso, com esta expressão tão deliciosa. Bem, eu não sou como aquele jovem, de que você me falou em Marlow, que costumava dizer que o cetim amarelo era capaz de consolar todas as misérias da vida de uma pessoa. Gosto das coisas bonitas, em que podemos tocar, segurar. Brocados antigos, o bronze verde, os laqueados, marfins entalhados, as redondezas exóticas, o luxo, a pompa, há muito o que se extrair de tudo isso. Porém, o temperamento artístico que criam, ou de um jeito ou de outro revelam, significa, para mim, algo ainda superior. Ser o espectador da nossa própria vida é, como diz Harry, fugir ao sofrimento dela. Sei que deve estar surpreso por eu falar assim com você, pois não percebeu o quanto amadureci. Quando você me conheceu, eu era um colegial, e, agora, sou um homem. Tomam-me novas paixões, novos pensamentos, novas idéias. Estou diferente, mas, por isso, não goste menos de mim. Estou mudado, mas não deixe de ser meu amigo. É claro que gosto muito de Harry, mas sei que você é melhor do que ele. Não é mais forte que ele, pois você tem muito medo da vida, mas é melhor. E como fomos felizes juntos! Não me deixe, Basil, e não discuta comigo. Eu sou o que sou. Não há nada mais o que dizer.

            Uma emoção estranha tomou o pintor. Era infinita a estima que nutria pelo rapaz, cuja personalidade significara o momento decisivo em sua arte. A idéia de continuar repreendendo-o era insuportável. Aquela indiferença, afinal, talvez fosse, era provável, um estado de espírito passageiro. Havia nele tanta coisa boa, tanta coisa nobre.

            Basil cedeu num sorriso triste, por fim.

            – Está bem, Dorian; de hoje em diante, não falo mais nesta coisa horrível. Espero apenas que seu nome não seja mencionado em conexão com o caso. O inquérito será hoje à tarde. Eles o convocaram?

            Dorian sacudiu a cabeça, e a expressão da contrariedade tomou-lhe o rosto à simples menção da palavra “inquérito”. Havia, nestas coisas, algo de muito grosseiro, de muito vulgar.

            – Eles nem sabem meu nome.

            – Mas ela sabia, com certeza?

            – Apenas o primeiro nome, e tenho certeza de que jamais o mencionou a ninguém. Ela me disse, um dia, que todos estavam muito curiosos para saber quem eu era, e ela, invariavelmente, dizia-lhes que meu nome era Príncipe Formoso. Foi um gesto bonito da parte dela. Você tem que me fazer um desenho de Sibyl, Basil. Gostaria de ter, dela, algo mais que a lembrança de uns poucos beijos e de umas poucos palavras patéticas interrompidas.

            – Vou tentar, farei alguma coisa, Dorian, para agradá-lo. Mas você tem que posar para mim novamente. Sem você, não posso continuar.

            Dorian Gray recuou.

            – Não posso mais posar para você, Basil. É impossível!

            O pintor fitou-o, fixo.

            – Meu caro menino, que bobagem! Você está querendo dizer que não gostou do retrato que fiz para você? Onde está ele? Por que o cobriu com aquele pano? Eu quero vê-lo, é a melhor coisa que já fiz. Tire o pano, Dorian. É uma desonra que seu criado tenha escondido minha obra desta maneira. Senti mesmo, quando entrei, que a sala estava algo diferente.

            – Não foi meu criado, Basil. Você, por acaso, não pensa que eu o deixo arrumar meus aposentos, não é? Uma vez ou outra ele arranja as flores, e só. Não, fui eu mesmo. A luz estava muito forte para o retrato.

            – Muito forte? Claro que não, meu caro companheiro. Está num lugar ótimo. Quero vê-lo.

            E Hallward foi até o fundo do aposento.

            Um grito de terror irrompeu dos lábios de Dorian que, depressa, pálido, interpôs-se entre o pintor e o pano.

            – Basil, não olhe. Eu não quero que você olhe.

            Hallward riu.

            – Você não está falando sério, Dorian. Não quer que eu olhe meu próprio trabalho?

            – Se você tentar olhar, Basil, dou minha palavra de honra que, enquanto eu viver, jamais falarei com você novamente. Eu falo sério, e não ofereço qualquer explicação. E que você não peça explicações. Apenas não se esqueça, se tocar neste pano, está tudo acabado entre nós.

            Hallward estava aterrado. No mais completo espanto, fitou Dorian. Jamais o vira assim antes. De tanta fúria, o jovem estava mesmo pálido. Os punhos, cerrados, e as pupilas dos olhos pareciam discos de fogo azul. Todo o corpo tremia.

            – Dorian!

            – Não fale!

            Hallward, com frieza, girou nos saltos e dirigiu-se à janela.

            – Mas o que há? É claro, se você não quer que eu olhe, não olho. Mas, na verdade, é um tanto absurdo eu não olhar meu próprio trabalho, especialmente se irei expô-lo em Paris no outono. É provável que, antes disso, tenha que dar mais uma camada de verniz; portanto, mais dia, menos dia, terei que vê-lo. E por que não hoje?

            – Expô-lo? Você quer expô-lo?

            Estranha sensação de terror tomava Dorian Gray. O mundo todo iria conhecer-lhe o segredo? Iriam as pessoas pasmar diante do mistério de sua vida? Impossível! Alguma coisa, e ele não sabia bem o que, teria que ser feita, já.

            – Claro, você não faz objeção, não é? Georges Petit irá reunir meus melhores quadros para uma exposição especial na Rue de Sèze, a inaugurar na primeira semana de outubro. O retrato ficará fora por um mês apenas. Eu imagino que você possa abrir mão dele durante o período, sem problemas. Sei que irá viajar, e já que você o mantém atrás de um pano, não deve se importar muito com ele.

            Dorian Gray passou a mão na testa. Ali havia gotas de perspiração. Sentiu-se à beira de um perigo terrível.

            – Você me disse, no mês passado, que nunca iria expô-lo. Por que mudou de idéia? Vocês, que se dedicam a ser consistentes, possuem, na verdade, tantos estados de espírito quanto uma pessoa qualquer. A única diferença é que os estados de espírito de vocês quase não têm significados. É impossível que você tenha se esquecido de que afirmou, de modo solene, que nada no mundo o induziria a enviar o quadro a qualquer exposição. E disse a mesma coisa a Harry.

            De repente, Dorian parou, um fulgor de luz brotou-lhe nos olhos. Lembrara que Lorde Henry dissera-lhe, um dia, meio sério, meio troçador: “Se você estiver disposto a passar um quarto de hora estranho, peça a Basil para explicar por que não irá expor seu retrato. Para mim, ele explicou, e foi uma revelação”. Claro, quem sabe Basil também não ocultava um segredo? Perguntaria, tentaria descobrir.

            Dorian chegou bem junto a Hallward, fitou-o bem nos olhos.

            – Basil, todos nós temos um segredo. Conte-me o seu, e eu contarei o meu. Por que motivo você se recusava a expor meu retrato?

            O pintor estremeceu, mortificado.

            – Dorian, se eu contar, você talvez goste ainda menos de mim, e, com certeza, irá rir de mim. Qualquer das duas coisas seria, para mim, insuportável. Se você não quer que eu olhe o quadro, me conformo. Terei você a quem olhar. Se você quer que minha melhor obra seja ocultada ao mundo, muito bem. Sua amizade é, para mim, muito mais querida que toda fama, todo conceito.

            Dorian Gray insistiu.

            – Não, Basil. Você tem que me dizer por quê. Creio que eu tenha o direito de saber.

            Passara a sensação de terror; a curiosidade viera substituí-la. Estava determinado a descobrir o mistério de Basil Hallward.

            O pintor parecia confuso.

            – Vamos nos sentar, Dorian. Vamos nos sentar. E responda-me apenas uma pergunta. Você notou alguma coisa estranha no quadro? Alguma coisa com que você não tinha atinado, no início, mas que, de repente, se revelou a você?

            – Basil!

            Com as mãos trêmulas, o jovem agarrou os braços da poltrona. Olhava-o com olhos selvagens, arregalados.

            – Notou, não foi? Não diga nada. Espere até ouvir o que eu tenho a dizer. Dorian, desde o primeiro momento em que o conheci, sua personalidade teve, sobre mim, uma influência extraordinária. Fiquei dominado, alma, cérebro e energia, por você. Para mim, você era a encarnação visível daquele ideal oculto cuja lembrança nos assedia, a nós artistas, como um sonho exótico. Idolatrei você. Senti ciúmes das pessoas com quem você falava. Queria tê-lo todo para mim. Sentia-me feliz apenas quando estava com você. E nas vezes em que esteve longe de mim, ainda assim estava presente em minha arte... Claro, jamais permiti que você o percebesse. Teria sido impossível, você não teria compreendido. Eu mesmo mal conseguia compreender. O que eu sabia, apenas, é que me havia deparado, frente a frente, com a perfeição, e que o mundo se havia transformado, aos meus olhos, num mundo maravilhoso. Maravilhoso demais, talvez, pois, numa adoração assim tão louca, ronda o perigo, o perigo de perdê-la, nada inferior ao perigo de mantê-la... As semanas se passavam e, cada vez mais, deixei-me absorver por você. Veio, em seguida, uma nova evolução. Eu o pintara como Páris, numa armadura elegante, como Adônis, num casaco de caçador, com uma lança lustrosa para caçar javalis. Coroado em flores de loto, fortes, você se sentou à proa do barco de Adriano, de onde contemplava todo o verde, túrbido, Nilo. Você se debruçou no lago plácido de algum bosque grego e viu, na prata silenciosa da água, a maravilha... o próprio rosto. E fora tudo o que deve ser a arte: inconsciente, ideal e remota. Certo dia – num dia fatal, como costumo pensar algumas vezes –, determinei-me a pintar um retrato maravilhoso de você, tal como você é hoje, não na indumentária de épocas mortas, mas com seu próprio traje, em seu próprio tempo. Se foi o realismo do método ou a simples maravilha de sua personalidade, a mim apresentada, de forma direta, sem bruma, sem véu, não sei dizer. Sei apenas que trabalhei muito, todo floco, toda película de cor parecia, a mim, revelar meu segredo. Senti medo de que os outros soubessem de minha idolatria. Senti, Dorian, que havia dito muita coisa, que havia colocado, no retrato, muito de mim mesmo. Foi então que resolvi não permitir jamais que o quadro fosse exposto. Você se aborreceu um pouco, mas, na ocasião, você não percebia o que tudo aquilo significava para mim. Contei a Harry, e ele riu de mim. Mas não liguei. Quando terminei a pintura, e me sentei a sós com ela, senti que tinha razão... Bem, uns dias depois, a coisa foi embora do ateliê, e logo que me livrei do fascínio intolerável daquela presença, a mim me pareceu que eu fora um tolo em imaginar ter visto, nela, algo além de uma extrema beleza, e do fato de que eu sei pintar. Mesmo agora, inevitável sentir o erro do pensar que a paixão sentida na criação se evidencie na obra criada. A arte é sempre mais abstrata do que a imaginamos. A forma e a cor nos dizem da forma e da cor, e só. A mim me parece, com freqüência, que a arte, muito mais do que revelar o artista, o esconde de modo ainda mais categórico. Assim, quando recebi o convite de Paris, determinei-me a fazer, de seu retrato, o assunto principal de minha exposição. Jamais me ocorreu que você recusasse, mas vejo que você tem razão. O quadro não pode ser mostrado. Não fique zangado comigo, Dorian, pelo que eu falei. Como eu disse a Harry, um dia desses, você foi feito para ser adorado.

            Dorian Gray inspirou fundo, demorado. A cor voltou-lhe às maçãs do rosto, e um sorriso brincou nos lábios. O perigo passara. Por ora, estava a salvo. Inevitável, porém, a pena infinita que sentia daquele pintor que acabara de fazer-lhe a estranha confissão. Imaginou se se deixaria, um dia, dominar a tal ponto pela personalidade de um amigo. Lorde Harry possuía o charme de ser muito perigoso, mas era tudo. Era muito esperto e muito cínico para ser estimado. Alguém, algum dia, o viria preencher com uma estranha idolatria? Seria esta uma das coisas que a vida guardara para ele?

            – Para mim, Dorian, é extraordinário que você tenha de fato percebido isto no retrato. Você viu mesmo?

            – Vi alguma coisa, alguma coisa que me pareceu muito curiosa.

            – Bem, você se incomoda se eu der uma olhada nele agora?

            Dorian meneou a cabeça.

            – Não me peça isto, Basil. Não posso deixá-lo frente a frente com aquele quadro.

            – Mas você deixará, um dia?

            – Nunca.

            – Bem, talvez você tenha razão. Você foi, na minha vida, a única pessoa que de fato influenciou minha arte. O que quer que eu tenha feito de bom, devo a você. Ah, você não sabe o quanto me custou dizer-lhe tudo o que disse.

            – Meu caro Basil, o que foi que me disse? Apenas que me admira muito. Isto nem chega a ser um elogio.

            – Não tive a intenção de elogiá-lo. Foi uma confissão. Agora que a fiz, alguma coisa, parece, saiu de dentro de mim. Talvez não devamos jamais colocar em palavras nossa adoração.

            – Foi uma confissão decepcionante.

            – Por quê? O que você esperava, Dorian? Você não viu mais nada no quadro, viu? Havia o que ver a mais?

            – Não, não havia mais o que ver. Por que pergunta? Bem, não falemos de adoração. É bobagem. Você e eu somos amigos, Basil, e devemos continuar assim.

            – Você tem Harry – disse o pintor, triste.

            O jovem riu com escárnio.

            – Ora, Harry? Harry passa os dias a dizer o inacreditável, e as noites a fazer o improvável. Exatamente o tipo de vida que eu gostaria de levar. Mas, mesmo assim, se estivesse em apuros, não creio que iria ter com Harry. Preferiria ir ter com você, Basil.

            – Você irá posar para mim novamente?

            – Impossível!

            – Como artista, sua resposta arruína minha vida, Dorian. Não houve homem a realizar dois ideais, e foram poucos os que conseguiram realizar ao menos um.

            – Não conseguirei explicá-lo, Basil, mas jamais posarei para você novamente. Há algo de fatal em retratos. Eles possuem vida própria. Eu irei tomar chá com você. Será agradável, da mesma maneira.

            Hallward estava pesaroso.

            – Será mais agradável para você, receio. Bem, agora, até a vista. Sinto que você não me deixe olhar o quadro mais uma vez. Mas parece inevitável. Bem posso compreender o que você sente.

            Quando Hallward saiu, Dorian Gray sorriu sozinho. Pobre Basil! Quase nada sabia do verdadeiro motivo! E fora estranho que ele, em vez de ter sido forçado a revelar seu segredo, conseguira, quase por acaso, arrancar o segredo do amigo! Uma estranha confissão que tantas coisas explicara a ele! As crises de ciúmes, a dedicação espontânea, os panegíricos extravagantes, as reticências curiosas do pintor. Agora os tinha compreendido, e sentiu pena, pois, a ele, parecia haver algo de trágico naquela amizade assim tão colorida pelo romance.

            Dorian suspirou, tocou a campainha. Custe o que custar, o retrato teria que ser escondido. Não poderia correr, novamente, o risco da descoberta. Fora loucura ter permitido que permanecesse, por uma hora que fosse, num aposento a que todos os amigos tinham acesso.

 

            Quando o criado entrou, Dorian olhou-o inabalável, e pensou se ele cogitara de bisbilhotar por trás do pano. Impassível, o homem esperou ordens. Dorian acendeu um cigarro, caminhou até o espelho, olhou. Com nitidez, viu o reflexo do rosto de Victor, máscara plácida da servilidade. Portanto, nada a temer. Seria melhor, pensou Dorian, mesmo assim, mantê-lo sob vigilância.

            Numa fala bem lenta, Dorian ordenou-lhe que fosse dizer à governanta que ele queria vê-la, e depois fosse ao emoldurador e pedisse a ele que mandasse cá, imediatamente, dois de seus homens. A Dorian pareceu que, ao sair o homem, seus olhos vagaram na direção do pano. Ou teria sido pura imaginação?

            Instantes depois, num vestido de seda negra, nas mãos enrugadas meias-luvas de linha antiquada, a Sra. Leaf azafamava-se biblioteca adentro. Dorian pediu-lhe a chave da sala de estudo.

            – Mas, Sr. Dorian, a velha sala de estudo? Está tomada de poeira. Tenho que dar um jeito nela, arrumá-la antes de o senhor entrar. Não está em condições de ser vista pelo senhor. Não está não, senhor.

            – Eu não quero que a arrumem, Leaf. Só quero a chave.

            – Bem, senhor, se o senhor entrar lá, ficará cheio de teias de aranha, pois faz quase cinco anos que não a abrimos, desde a morte do Sr. Lorde.

            À menção do avô, Dorian estremeceu. Eram reminiscências odiosas.

            – Não tem importância. Quero apenas dar uma olhada, e só. Me dê a chave.

            – Eis a chave, senhor...

            Com mãos incertas, trêmulas, a velha senhora tresmalhava por entre o conteúdo do molho.

            – ... Aqui está. Retiro-a do molho num segundo. Mas o senhor não está pensando em ir residir lá, está? Aqui está tão confortável!

            Dorian irritou-se.

            – Não, não! Muito obrigado, Leaf. É só, por enquanto.

            A governanta demorou-se por instantes, garrulava sobre um pequeno problema da casa. Dorian suspirou, disse-lhe que resolvesse as coisas como julgasse melhor. Enroscada em sorrisos, Leaf deixou o aposento.

            Com o fechar da porta, Dorian guardou a chave no bolso, olhou em volta. O olho foi bater numa colcha de seda púrpura, grande, de um bordado espesso de ouro, magnífica peça da produção veneziana, dos fins do século dezessete, que o avô encontrara num convento próximo a Bolonha. Serviria, é claro, como invólucro para aquela coisa medonha. E quem sabe já não teria sido utilizada, muitas vezes, como pano mortuário. Agora serviria para ocultar algo que carregava sua própria corrupção, pior que a corrupção da própria morte; algo que engendraria horrores e nunca, porém, morreria. Aquilo que o verme era para o cadáver, seus pecados o seriam para a imagem pintada na tela. Iriam desfigurar-lhe a beleza, carcomer-lhe a graça. Iriam conspurcá-la, enchê-la de vergonha. Mesmo assim, a coisa continuaria a viver, estaria sempre viva.

            Dorian arrepiou-se e, por um instante, arrependeu-se de não ter contado a Basil o motivo verdadeiro que o levava a desejar esconder o quadro para sempre. Basil tê-lo-ia ajudado a resistir à influência de Lorde Henry, e às influências ainda mais venenosas oriundas de seu próprio temperamento. O amor de Basil por ele – pois era mesmo amor – nada tinha que não fosse nobre e intelectual. Não era aquela mera admiração física da beleza, que nasce dos sentidos, que morre com o cansaço dos sentidos. Era o amor que conheceram Michelangelo, Montaigne, Winckelmann e o próprio Shakespeare. Claro, Basil tê-lo-ia salvado. Agora, porém, tarde demais. O passado é sempre passível de ser aniquilado. O ressentimento, a negação e o esquecimento se incumbiriam disso. Mas o futuro era inevitável. Existiam paixões, dentro dele, que encontrariam a terrível saída, sonhos que dariam cunho real à sombra de seu mal.

            Do divã, retirou aquela enorme textura, ouro e púrpura, que o recobria; segurou-a nas mãos e entrou atrás do pano. Estaria o rosto na tela ainda mais vil que antes? Embora a ele parecesse inalterado, tomou-o uma repulsa ainda mais intensa. Cabelos dourados, olhos azuis, lábios de rosa encarnada... estavam todos ali. Fora a expressão apenas a alterar. De uma crueldade horrível! Comparadas ao que vira nela, de censura e reprovação, quão superficiais haviam sido as repreensões que lhe fizera Basil a respeito de Sibyl Vane! Tão superficiais, e de importância mínima! Ali, da tela, sua própria alma o olhava, o convocava ao julgamento. Um olhar de dor o atravessou. Dorian atirou o pano mortuário por cima do quadro. À entrada do criado, dirigiu-se à porta.

            – As pessoas chegaram, Monsieur.

            Deveria, instantâneo, livrar-se daquele homem. Não permitiria que soubesse para onde seria levado o quadro. Havia, nele, algo de dissimulado, olhos cautelosos e traiçoeiros. Dorian sentou-se à escrivaninha, rabiscou uma nota a Lorde Henry, em que pedia que lhe mandasse alguma coisa para ler e lembrava que haviam combinado de se encontrar às oito e quinze naquela noite.

            Estendeu-lhe a nota.

            – Espere a resposta. E traga os homens.

            Em dois ou três minutos, uma nova batida à porta, e o Sr. Hubbard em pessoa, célebre emoldurador de South Audley Street, entrou acompanhado de um assistente, jovem, algo mal-encarado. O Sr. Hubbard era um homenzinho corado, de suíças ruivas, cuja admiração pela arte era, em muito, mitigada pela impecuniosidade inveterada da maioria dos artistas que lidavam com ele. Como norma, jamais deixava a loja; esperava que as pessoas fossem a ele. Sempre, entretanto, em favor de Dorian Gray, abria exceção. Algo em Dorian encantava a todos. Vê-lo já era um prazer.

            O Sr. Hubbard esfregou as mãos gordas e sardentas.

            – Em que lhe posso ser útil, Sr. Gray? Pensei em conceder-me a honra de vir em pessoa. Acabei de receber uma beleza de moldura, senhor, que consegui numa liquidação. Vem de Fonthill, creio. Muito apropriada para temas religiosos, Sr. Gray.

            – Sinto muito que o senhor tenha se incomodado em vir, Sr. Hubbard. Irei, com certeza, dar uma olhada na moldura, embora, no momento, não me dedique à arte religiosa. Hoje, porém, o que quero, apenas, é transportar um quadro para o andar superior. O quadro é muito pesado, e pensei em pedir uns dois de seus homens emprestados.

            – Não há problema de espécie alguma, Sr. Gray. É um prazer prestar-lhe um serviço. Qual é a obra de arte, senhor?

            Dorian ajeitou o pano.

            – É esta. O senhor pode transportá-la, com capa e tudo, assim como está? Não quero arranhá-la no trajeto.

            – Não haverá dificuldades, senhor.

            O emoldurador genial começou, com a ajuda do assistente, a desenganchar o quadro das correntes metálicas, compridas, que o suspendiam.

            – E agora, para onde a levamos, Sr. Gray?

            – Eu mostro o caminho, Sr. Hubbard. Acompanhe-me, por favor. Ou talvez seja melhor o senhor ir na frente. Receio que seja no último plano da casa. Subamos pela escada da frente, é mais larga.

            Dorian segurou a porta para que passassem, e os três seguiram para o saguão e iniciaram a subida. A natureza elaborada da moldura dava ao quadro um porte bastante avolumado; assim, de vez em quando, apesar dos protestos obsequiosos do Sr. Hubbard, que nutria a antipatia denodada do verdadeiro comerciante de ver um cavalheiro fazer algo de útil, Dorian estendia a mão, como a ajudá-los.

            – Um peso e tanto, senhor.

            O homenzinho ofegou, ao chegarem ao patamar superior, e enrugou a testa brilhosa.

            – É muito pesada, sem dúvida.

            Dorian abriu a porta que dava para o aposento que iria guardar-lhe o curioso segredo de sua vida e ocultar-lhe a alma aos olhos dos homens.

           Fazia mais de quatro anos que Dorian não entrava ali. Não entrara, na verdade, desde que o usara, pela primeira vez, como quarto de brincar, quando criança, e depois como sala de estudo, já um pouquinho mais velho. Era um quarto grande, bem proporcionado, construído, pelo último Lorde Kelso, para uso específico do netinho que, por estranha semelhança com a mãe e, também, por outras razões, o lorde odiava e desejava manter a distância. A Dorian, parecia ter mudado apenas um pouquinho. Lá estava a imensa cassone italiana, com aqueles painéis fantásticos, de tão bem pintados, aquelas molduras fosco-douradas, em que tantas vezes se escondera quando criança. E a estante de pau-cetim, repleta de livros escolares de folhas dobradas na ponta. Lá atrás, pendurada, aquela mesma tapeçaria flamenga, felpuda, em que um rei e uma rainha, desbotados, jogavam xadrez num jardim ao passar de uma companhia de mascates que portavam pássaros encapuzados nos pulsos protegidos por manoplas. Lembrava-se tão bem daquilo tudo! Ao olhar ao redor, voltaram todos os momentos da infância solitária. Lembrou-se da pureza imaculada de sua vida de menino, e a ele pareceu horrível que aqui iria esconder-se o retrato fatal. Tão pouco pensara, naqueles dias inanimados, em tudo o que estava guardado para ele!

            Mas não haveria na casa outro local tão a salvo de olhos bisbilhoteiros. Com a chave em seu poder, ninguém ali entraria. Debaixo do pano mortuário, púrpura, o que importaria se aquele rosto pintado na tela se tornasse bestial, apático ou obsceno, se ninguém o iria ver? E nem ele. Por que iria assistir à corrupção repulsiva da própria alma? Mantivera a juventude, e isto bastava. Além disso, sua natureza não poderia melhorar? Não haveria motivo para que o futuro fosse cheio de vergonha. O amor ainda poderia atravessar-lhe a vida, purificá-lo, protegê-lo contra aqueles pecados que, ao que parecia, já ebuliam em carne e espírito, aqueles pecados, curiosos e irretratáveis, cujo mistério interior lhes conferia sutileza e encanto. Um dia, talvez, aquele olhar cruel deixaria aquela boca escarlate, sensível, e ele poderia mostrar ao mundo a obra-prima de Basil Hallward.

            Não, impossível. Hora a hora, semana a semana, aquela coisa impressa na tela envelhecia. Talvez escapasse à repugnância do pecado; a repugnância da velhice, porém, estava reservada a ela. As maçãs do rosto ficariam cavadas, ou flácidas. Pés-de-galinha, amarelos, insinuar-se-iam à volta dos olhos esvaídos, e deixá-los-iam horríveis. Os cabelos perderiam o brilho, a boca entortaria, ou cairia, seria, como as bocas dos velhos, ridícula, ou grosseira. Haveria o pescoço enrugado, as mãos frias, de veias azuis, o corpo empenado – ele se lembrava – do avô, que fora tão severo com ele na meninice. O quadro teria que ser escondido, não havia saída.

            Dorian virou-se, deprimido.

            – Coloque-o aqui dentro, Sr. Hubbard. Desculpe tê-lo feito esperar tanto tempo. Eu pensava em outra coisa.

            O emoldurador ainda ofegava, em busca de ar.

            – Um descanso é sempre bom, Sr. Gray. Onde iremos colocá-lo, senhor?

            – Ora, em qualquer lugar. Aqui, aqui está bom. Não quero pendurá-lo. Basta encostá-lo na parede. Obrigado.

            – Podemos dar uma olhada nesta obra de arte, senhor?

            Dorian sobressaltou-se.

            – Não iria interessá-lo, Sr. Hubbard.

            E não despregou os olhos daquele homem. Sentia-se pronto a saltar sobre ele e atirá-lo ao chão caso ousasse levantar a cobertura que lhe escondia o segredo da vida.

            – Não quero incomodá-lo mais. Agradeço-lhe a bondade de ter vindo.

            – Não foi nada. Não foi nada, Sr. Gray. Estou sempre à sua disposição, senhor.

            E o Sr. Hubbard desceu, pesado, escada abaixo, seguido pelo assistente que se virou, de relance, para Dorian Gray, num olhar maravilhado, tímido, daquele rosto feio e grosseiro. O homem jamais vira alguém tão bonito.

            Ao fenecer o ruído dos passos, Dorian fechou a porta, guardou a chave no bolso. Agora sentia-se a salvo. Ninguém jamais veria aquela coisa horrível. Nenhum olho, que não o seu, veria sua própria vergonha.

            Ao chegar à biblioteca, percebeu que eram apenas cinco horas, e que o chá já estava servido. Numa mesinha de madeira escura, perfumada, incrustada com uma camada espessa de nácar, presente de Lady Radley, esposa de seu tutor, linda inválida profissional que passara no Cairo o último inverno, pousava um bilhete de Lorde Henry e, ao lado, um livro encadernado em papel amarelo, com a capa levemente rasgada, as bordas sujas. Um exemplar da terceira edição da The St. James Gazette fora colocado sobre a bandeja do chá. Estava evidente que Victor retornara, e Dorian pensou se ele havia visto os homens no saguão, ao saírem, e, astuto, arrancara deles o que vieram fazer. Iria, é claro, dar por falta do quadro; já dera, sem dúvida, ao pôr a mesa do chá. A cortina não fora recolocada no lugar, e via-se, na parede, um espaço vazio. Numa noite dessas, talvez, ele o encontre, furtivo, a subir a escada e ir forçar a porta do quarto. Um espião em nossa própria casa, que coisa horrível! Já ouvira falar de homens ricos que, durante toda a vida, foram chantageados por criados que lêem uma carta, escutam uma conversa, apossam-se de um cartão com um endereço, ou encontram, debaixo do travesseiro, uma flor murcha ou uma tira de renda amassada.

            Dorian suspirou, serviu-se de chá, abriu o bilhete de Lorde Henry. Era apenas para dizer que enviava o jornal da noite, um livro que talvez o interessasse, e que estaria no clube às oito e quinze. Lânguido, Dorian abriu o The St. James’s, folheou. Uma marca de lápis, vermelha, saltou-lhe à vista. Chamava a atenção para o seguinte parágrafo:

                        INQUÉRITO SOBRE ATRIZ – Realizado, esta manhã, na Taverna Bell, Hoxton Road, pelo Investigador do Distrito, Sr. Danby, o inquérito sobre o corpo de Sibyl Vane, jovem atriz que, recentemente, trabalhava no Teatro Royal, Holborn. A suspeita de homicídio acidental foi reconsiderada. A mãe da vítima recebeu toda a solidariedade, pois encontrava-se muito abalada durante seu próprio depoimento, e durante o depoimento do Dr. Birrel, responsável pelo exame post-mortem da vítima.

 

            Dorian franziu o cenho, rasgou o jornal ao meio, atravessou o aposento, jogou fora os pedaços. Tudo muito feio! E o feio traz à tona o horror do real! Sentiu-se um pouco contrariado com Lorde Henry, por ter-lhe enviado a reportagem. E, com certeza, fora muita tolice da parte dele tê-la marcado com um lápis vermelho. Quem sabe Victor não a lera? Para tanto, seu inglês era mais do que suficiente.

            Quem sabe a lera, e não começara a suspeitar de alguma coisa. Mas o que importava, afinal? Qual a relação de Dorian Gray com a morte de Sibyl Vane? Não havia nada a temer, não fora Dorian Gray quem a matara.

            O olho foi bater no livro amarelo que Lorde Henry enviara. De que se tratava, pensou. Dirigiu-se ao pequeno suporte octogonal, cor-de-pérola, que ali estivera sempre a olhar para ele como um trabalho de certas abelhas egípcias, estranhas, forjado em prata, apanhou o livro, atirou-se numa poltrona e começou a folhear as páginas. Minutos depois, já estava absorto. Era o livro mais estranho que já lera. Parecia, a ele, que, em trajes exóticos, ao som delicado de flautas, os pecados do mundo desfilavam, diante dele, em cenas mudas. Coisas com que mal sonhara transformavam-se, de repente, para ele, em coisas reais. Coisas com que jamais sonhara antes revelavam-se, gradualmente.

            Romance sem enredo, de apenas um personagem, de fato, um simples estudo psicológico de um certo jovem parisiense que passou a vida tentando realizar, no século dezenove, todas as paixões e modos de pensamento de todos os séculos, com exceção do seu próprio, e a reunir, tal como ocorreu em si mesmo, todos os estados de espírito por que passara o espírito do mundo, a amar, por serem apenas artificiais, aquelas renúncias a que os homens, inadvertidos, chamam virtude e, com a mesma intensidade, aquelas revoltas naturais que os homens inteligentes ainda chamam pecado. O estilo em que fora escrito era aquele estilo curioso, ornado em pedrarias, no mesmo tempo vívido e obscuro, repleto de gíria e arcaísmos, de expressões técnicas e paráfrases elaboradas, que caracteriza a obra de certos artistas dos mais elevados na escola francesa dos “Simbolistas”. Havia, nele, metáforas tão monstruosas quanto as orquídeas, mas, em colorido, tão sutis. A vida dos sentidos era descrita em termos de filosofia mística. Mal podíamos saber, às vezes, se líamos os êxtases espirituais de algum santo medieval ou as confissões mórbidas de um pecador moderno. Um livro venenoso. O odor de incenso, forte, parecia grudado nas páginas, a perturbar o cérebro. A simples cadência das orações, a monotonia sutil da música inerente, tão repletas de refrões complexos e de movimentos elaborados de repetição produziam, na mente do jovem, ao passar de capítulo em capítulo, uma forma de quimera, um mal de sonho, que o deixaram inconsciente quanto ao cair do dia, ao brotar das sombras.

            Sem nuvens, lancinado por uma estrela solitária, o céu verde-cobre refulgiu nas janelas. À luz pálida, Dorian continuou a ler até não conseguir mais. Em seguida, depois que o criado o viera lembrar, por diversas vezes, do adiantado da hora, Dorian levantou-se, dirigiu-se ao aposento contíguo, pousou o livro na mesinha florentina sempre presente à sua cabeceira, e começou a vestir-se para o jantar.

            Eram quase nove horas quando chegou ao clube e encontrou Lorde Henry só, sentado à sala matinal, num aspecto bastante entediado.

            – Sinto muito, Harry, mas é tudo culpa sua. Aquele livro tanto me fascinou, que esqueci do passar das horas.

            O anfitrião levantou-se da cadeira.

            – Claro, sabia que você iria gostar.

            – Eu não disse que gostei, Harry. Disse apenas que o livro me fascinou, o que é muito diferente.

            – Ah, enfim você descobriu!

            Lorde Henry exultou; os dois passaram ao salão de jantar.

 

            Durante anos, Dorian Gray não conseguiu libertar-se da influência do livro. Ou talvez fosse mais preciso dizer que jamais tentou libertar-se dela. De Paris, mandou vir nada menos que nove exemplares, de folhas compridas, da primeira edição, e mandou-os encadernar em cores diferentes de modo a adequarem-lhe os diversos estados de espírito e as fantasias mutantes de um interior sobre que, parecia, às vezes, ter perdido quase todo o controle. O herói, o jovem e maravilhoso parisiense, em quem os temperamentos romântico e científico, de modo estranho, pareciam fundidos, transformou-se, para ele, numa espécie de tipo pressuposto de si mesmo. E, na verdade, o livro, para ele, parecia conter a história da própria vida, escrito antes mesmo de vivê-la.

            Num ponto, ele era mais afortunado que o herói fantástico do romance. Ele jamais sentira – e, de fato, jamais tivera motivo para senti-lo – aquele temor, algo grotesco, de espelhos, de superfícies polidas de metal, de águas plácidas, que, tão cedo na vida, tomaram o jovem parisiense, ocasionado pela decadência repentina de uma beleza que, ao que parece, fora, certa feita, notável. Era numa alegria quase cruel – e, talvez, em quase toda alegria e, com certeza em quase todo prazer, a crueldade tem seu lugar – que lia a última parte do livro, aquela abordagem tão trágica, um tanto superenfática, da tristeza e do desespero de uma pessoa que perde aquilo que, nos outros, e no mundo, tanto valorizava.

            Pois a beleza maravilhosa que tanto fascinara Basil Hallward, e, além dele, tantos outros, parecia não querer deixá-lo jamais. Mesmo aqueles que ouviram as piores maledicências a seu respeito – e, de tempos em tempos, boatos estranhos sobre seu modo de vida percorriam Londres, e transformavam-se em bate-papo dos clubes – não conseguiam, ao vê-lo, acreditar em nada que o desonrasse. Seu aspecto era, sempre, de alguém jamais contaminado pelo mundo. Homens de linguajar obsceno silenciavam à entrada de Dorian Gray. Algo, na pureza daquele rosto, os repreendia. Aquela mera presença parecia evocar neles a memória de uma inocência que haviam embaciado. Pensavam em como alguém, assim tão encantador, tão gracioso como ele, poderia ter escapado à mácula de uma era ao mesmo tempo sórdida e sensual.

            Muitas vezes, ao voltar de ausências misteriosas, prolongadas, que davam origem a tais conjecturas estranhas dos amigos, ou das pessoas que julgavam ser suas amigas, ele mesmo costumava esgueirar-se escada acima, abrir a porta com aquela chave que, agora, jamais abandonava, postar-se, com um espelho, defronte o retrato que dele pintara Basil Hallward, e olhar, ora para o rosto malvado, envelhecido, na tela, ora para o rosto jovem, justo, que ria de volta para ele daquele vidro polido. Contraste tão pungente costumava acelerar-lhe a sensação de prazer. Enamorou-se, mais e mais, da própria beleza; interessou-se, mais e mais, na corrupção da própria alma. Examinava em minúcia pormenorizada e, às vezes, em prazer monstruoso, terrível, aquelas linhas repugnantes que lhe sulcavam a testa enrugada e arrastavam-se ao redor da boca densa, sensual, e punha-se a pensar, vez que outra, quais os mais horríveis, se os sinais do pecado ou os sinais da velhice. As mãos alvas, ele as colocava ao lado das mãos intumescidas, ásperas, do quadro, e sorria. Zombava daquele corpo deformado, e daqueles membros em declínio.

            Havia momentos, na verdade, à noite, em que, deitado sem sono, em seu quarto levemente aromatizado ou no salão sórdido daquela taverninha de péssima reputação, junto às docas que, sob nome suposto, disfarçado, tinha o hábito de freqüentar, pensava na ruína que trouxera à própria alma, com uma pena que, de puro egoísmo, era ainda mais dolorosa. Eram raros, porém, momentos tais. Aquela curiosidade a respeito da vida, nele desperta, pela primeira vez, por Lorde Henry, quando sentados no jardim do amigo comum, parecia aumentar em gratificação. Quanto mais conhecia, tanto mais desejava conhecer. Assolavam-no fomes alucinantes que, à medida que as alimentava, esfaimavam-se ainda mais.

            Mesmo assim, não era, de maneira alguma, descuidado em suas relações com a sociedade. Uma ou duas vezes por mês, no inverno, e toda quarta-feira à noite, enquanto durasse a estação, Dorian abria, para o mundo, a linda residência, e mandava que músicos, os mais célebres da época, deleitassem-lhe os convidados com as maravilhas da arte. Os pequenos jantares que proporcionava, em cuja organização Lorde Henry o assistia, sempre, eram notados tanto pela seleção e disposição cuidadosas dos convidados como pelo gosto exótico evidenciado na decoração da mesa, nos arranjos sinfônicos, sutis, de flores exóticas, tecidos bordados, e a baixela antiga, de ouro e prata. Muitos havia, na verdade, principalmente dentre os jovens, que viam, ou pensavam que viam, em Dorian Gray, a realização verdadeira de um tipo com que costumavam sonhar nos dias de Eton, ou Oxford, o tipo que combinava a cultura real do erudito, com toda a graça, distinção e os modos perfeitos de um cidadão do mundo. A eles, Dorian parecia pertencer em companhia daqueles que, segundo a descrição de Dante, procuram “fazer-se perfeitos por meio da adoração da beleza”. Assim como Gautier, Dorian era alguém para quem “existia o mundo visível”.

            E, é claro, a vida em si, para ele, era a primeira, a maior das artes, para a qual todas as demais artes pareciam apenas uma preparação. A moda, pela qual o fantástico real transforma-se, por um momento, em universal, e o dandismo que, a seu próprio modo, é uma tentativa de assegurar a modernidade absoluta da beleza, exerciam, sobre Dorian, seu fascínio. O modo de vestir, os estilos peculiares que, de tempos em tempos, mereciam-lhe a preferência, tiveram influência marcante sobre as esquisitices jovens dos bailes do Mayfair e das vitrines do Clube Pall Mall, que o copiavam em tudo o que fazia, e tentavam reproduzir-lhe o charme casual de uma vaidade graciosa que, segundo ele, não deveria ser levada tão a sério.

            Pois, bem preparado que estava para aceitar a posição que, de modo quase instantâneo, fora oferecida a ele ao atingir a maioridade e, tendo descoberto, de fato, um prazer sutil em pensar que poderia ser, para a Londres de sua própria época, o que o autor de Satyricon fora, um dia, para a Roma imperial de Nero, bem no íntimo do coração, porém, Dorian desejava ser algo mais que um mero arbiter elegantiarum, a ser consultado sobre o uso de determinada jóia, ou sobre o nó de uma gravata, ou sobre o modo de conduzir uma bengala. Pensava em elaborar um novo esquema de vida que conteria filosofia racional e princípios ordenados próprios e, na espiritualização dos sentidos, encontraria sua realização máxima.

            A adoração dos sentidos tem sido, e com muita justiça, vilipendiada, já que sentem, os homens, um instinto natural de terror nas paixões e sensações mais fortes que eles, e já que têm consciência de compartilhá-las com as formas de existência não tanto organizadas. A Dorian Gray, porém, parecia que a verdadeira natureza dos sentidos jamais fora compreendida, e que permaneceram os sentidos selvagens e animais apenas porque o mundo procurava levá-los, contendo-os, à submissão, ou matá-los por meio da dor, em vez de almejar transformá-los em elementos de uma nova espiritualidade, cuja característica dominante deveria ser o instinto elevado de beleza. Ao olhar para trás, e ver o homem mover-se através da história, Dorian foi assolado por uma sensação de perda. Quanta coisa não fora abandonada! e por propósitos tão vãos! Quantas rejeições dolosas, loucas, formas monstruosas de autotortura, autonegação, que se originaram no medo, e cujo resultado foi uma degradação muito mais terrível do que aquela degradação imaginária de que o homem, em sua ignorância, procurava escapar, já que a natureza, em maravilhosa ironia, desencaminhava o anacoreta, para que fosse alimentar-se com os animais selvagens do deserto, e dava, ao eremita, como companheiros, as feras da ravina.

            Claro: estava por vir, como profetizara Lorde Henry, um novo Hedonismo, que viria recriar a vida, e salvá-la de um Puritanismo severo e inconveniente que experimenta, bem em nossos dias, curioso renascimento. Teria sua utilidade para o intelecto, é claro; mas jamais aceitaria qualquer teoria ou sistema que envolvesse o sacrifício de qualquer modo de experiência passional. O objetivo, na verdade, seria a experiência em si, e não os frutos da experiência, quer fossem doces ou amargos. Do ceticismo que embota os sentidos, e da devassidão vulgar que os entorpece, não conheceria nada. Ensinaria, sim, ao homem, concentrar-se nos momentos de uma vida que não passa, ela mesma, de um momento.

            Poucos de nós foram os que ainda não acordaram antes do alvorecer, quer depois daquelas noites sem sonhos que quase nos deixam enamorados da morte, quer daquelas noites de horror e alegria deformada em que, pelas câmaras do cérebro, deslizam fantasmas ainda mais terríveis que a própria realidade, impregnada daquela vida vívida que se embosca em todos os grotescos, e que empresta à arte gótica a vitalidade duradoura, já que esta arte é, imaginamos, em especial, a arte daqueles cujas mentes foram conturbadas pelo mal da quimera. Dedos alvos, graduais, sobem pelas cortinas, e parecem tremer. Em formas fantásticas, negras, sombras opacas rastejam para os cantos do aposento, e ali se põem de tocaia. Lá fora, o farfalhar dos pássaros por entre as folhas, ou o ruído de homens indo para o trabalho, ou o suspiro e o soluço do vento descendo as colinas, vagando pela casa silenciosa, como se temesse acordar os que dormem, embora a necessidade deva despertar o sono em sua gruta púrpura. Cada véu da gaze rala, penumbrosa, é levantado e, em gradações, as formas e cores das coisas lhes são restituídas, e observamos o arvorecer refazer o mundo em seu padrão antiquado. Os espelhos exangues retomam a vida mímica. As candeias sem chamas lá estão onde as deixamos; ao lado delas, repousa o livro, marcado na metade, que estudávamos, ou a flor aramada que usamos no baile, ou a carta que receamos ler, ou que lemos com muita freqüência. Nada nos parece alterado. Das sombras irreais da noite ressurge a vida real que conhecemos. Temos que retomá-la onde saltamos e, sobre nós, paira, furtiva, a sensação terrível da necessidade de continuação da energia naquela mesma roda maçante dos hábitos estereotipados, ou um devaneio espontâneo, quem sabe, que nos abra as pálpebras, numa certa manhã, para um mundo remodelado na escuridão, todo novo, para nosso prazer, um mundo em que as coisas teriam novas formas e cores, que mudaria, que teria outros segredos, um mundo em que o passado teria apenas um lugarzinho, ou lugar nenhum, ou, de um modo ou de outro, não sobreviveria em qualquer forma consciente de obrigação ou remorso, já que a reminiscência, até mesmo da alegria, contém amargura, e as lembranças do prazer, dor.

            Era a criação de mundos como estes que, a Dorian Gray, parecia o objetivo verdadeiro, ou estar dentre os objetivos verdadeiros, da vida. E, na busca de sensações ao mesmo tempo novas, deliciosas, que possuam aquele elemento de estranheza tão essencial ao romance, adotaria, com freqüência, certos modos de pensamento que sabia, de fato, estranhos à própria índole, abandonar-se-ia às suas influências sutis e, em seguida, depois de ter-lhes, como tal, percebido a coloração e satisfeito a curiosidade intelectual, deixá-las-ia com aquela indiferença curiosa em nada incompatível com o ardor real da índole, e sim, na verdade, segundo certos psicólogos modernos, muitas vezes, condição deste ardor.

            Correram, a respeito dele, certa vez, rumores de que estaria prestes a aderir à comunhão católica romana, e o ritual romano sempre exerceu, na verdade, grande atração sobre ele. O sacrifício diário, de fato mais pavoroso que todos os sacrifícios do mundo antigo, instigava-o tanto pela rejeição soberba da evidência dos sentidos como pela simplicidade primitiva de seus elementos e o patos eterno da tragédia humana que procurava simbolizar. Gostava de ajoelhar-se no chão de mármore frio e observar o padre, naquela dalmática engomada, florida, devagar, com as mãos alvas a afastarem, para o lado, o véu do tabernáculo, ou a erguer, ao alto, o ostensório em forma de lampião, ornado em pedras, com aquela hóstia pálida que pensamos, às vezes, resignados, ser o panis caelestis, pão dos anjos, ou, vestido nos trajes da Paixão de Cristo, a partir o Pão Eucarístico dentro do cálice, e a bater no peito, pelos pecados. Os turíbulos lançados ao ar, qual flores imensas, douradas, por aqueles garotos sérios em renda e escarlate, exerciam, sobre ele, fascínio sutil. E sempre, ao sair, costumava olhar, com assombro, aqueles confessionários negros, e desejava sentar-se à sombra tênue de um deles e ouvir homens e mulheres sussurrarem, pelo gradeado gasto, a verdadeira história de suas vidas.

            Jamais, entretanto, caiu no erro de conter o desenvolvimento intelectual com a aceitação formal de credos ou sistemas, ou de confundir, com a casa onde morar, uma estalagem conveniente apenas para a pousada de uma noite, ou para umas poucas horas de uma noite sem estrelas, em que a lua esteja em função. O misticismo, com o poder maravilhoso de fazer com que as coisas comuns se tornem estranhas a nós, e o antinomianismo sutil que sempre parece acompanhá-lo, emocionaram-no durante toda uma estação; e, durante toda uma estação, pendeu para as doutrinas materialistas do movimento Darwinismus em Alemanha, e descobriu prazer curioso em perseguir pensamentos e paixões dos homens até uma certa célula perolada, no cérebro, ou até um certo nervo branco, no corpo, deleitando-se com a concepção da dependência absoluta do espírito a certas condições físicas, mórbidas ou saudáveis, normais ou doentes. Ainda, como já se dissera dele antes, nenhuma teoria da vida parecia, a ele, importante, quando comparada com a própria vida. Sentia a consciência aguçada de quão estéril é toda especulação intelectual quando apartada da ação e do experimento. Sabia que os sentidos, não menos que a alma, têm seus mistérios espirituais a revelar.

            E ele iria, agora, portanto, estudar perfumes, e os segredos de sua manufatura, com o destilar de óleos de aromas intensos e o calcinar de resinas fragrantes do Oriente. Viu que não havia, na mente, estado de espírito sem contrapartida na vida sensual, e lançou-se a descobrir as inter-relações verdadeiras, a imaginar o que havia no olíbano que nos deixava místicos, no âmbar, o que revolucionava nossas paixões, nas violetas, o que despertava a lembrança de romances idos, no almíscar, o que conturbava o cérebro, no champó, o que maculava a imaginação; a procurar, insistente, elaborar uma psicologia real dos perfumes, e a avaliar as diversas influências das raízes de aroma adocicado, as flores poliníferas, aromatizadas, dos bálsamos aromáticos, das madeiras escuras, fragrantes, do espicanardo que causa náuseas, da hovenia que alucina os homens, e dos aloés que, se diz, são capazes de expelir da alma a melancolia.

            Em outra ocasião, dedicou-se, integral, à música e, num salão longo, de gelosias, de teto vermelhão e dourado, paredes de laqueado verde-oliva, costumava proporcionar curiosos concertos em que ciganos loucos arrancavam, das pequenas cítaras, a música selvagem, em que tunisinos sérios, de xales amarelos, tangiam as cordas retesadas de monstruosos alaúdes, enquanto negros, de dentes arreganhados, batiam, monótonos, em tambores de cobre e, em esteiras escarlates, de pernas cruzadas, indianos magros, de turbantes, sopravam flautas compridas, de junco ou de metal, e enfeitiçavam, ou fingiam enfeitiçar, cobras imensas, encapuzadas, e serpentes cornígeras, horríveis. Os intervalos dissonantes e as desarmonias estridentes da música bárbara excitavam-no, de tempos em tempos, quando a graça de Schubert, as lindas tristezas de Chopin e as harmonias poderosas do próprio Beethoven caíam-lhe aos ouvidos, despercebidas. De todas as partes do mundo, reuniu os instrumentos mais estranhos que conseguiu encontrar, quer nas tumbas de nações extintas, quer dentre as poucas tribos selvagens que sobreviveram ao contato com as civilizações ocidentais; gostava de apalpá-los, experimentá-los. Possuía juruparis, misteriosos, dos índios do Rio Negro, a que não se permitem olhar as mulheres, e tampouco os jovens, antes de serem submetidos ao jejum e ao açoite, jarras de barro dos peruanos, que contêm os gritos esganiçados dos pássaros, flautas de ossos humanos, como a que Alfonso de Ovalle ouviu no Chile, e os jaspes verdes, sonoros, encontrados nas proximidades de Cuzco, que emitem notas de doçura singular. Pintou cucúrbitas, repletas de pedras roladas que farfalhavam quando sacudidas; o clarín, comprido, dos mexicanos, em que o instrumentista não sopra, e sim, inala o ar; o tori, acre, das tribos amazônicas, tocado por sentinelas que se sentam no topo de árvores altas, o dia inteiro, ouvidos, diz-se, a uma distância de três léguas; a teponaztli, que conta com duas línguas vibratórias de madeira, que tem seus monstros, coisas de forma bestial e com uma goma elástica obtida do líquido leitoso de certas plantas; os sinos yotl dos astecas, qual uvas, pendurados em cachos; e um tambor imenso, cilíndrico, encimado por peles de enormes serpentes, como a que viu Bernal Díaz quando entrou com Cortez no templo mexicano, e de cujo som melancólico deixou-nos descrição tão vívida. Fascinava-o o caráter fantástico destes instrumentos, e ele sentia um sabor curioso em pensar que a arte, como a natureza, tem seus monstros, coisas de forma bestial, de vozes repugnantes. Depois de algum tempo, porém, cansou-se deles, e foi sentar-se em seu camarote, na Ópera, só ou com Lorde Henry, a ouvir, em prazer embevecido, a Tannhauser, a ver, no prelúdio daquela grande obra-de-arte, a apresentação da tragédia de sua própria alma.

            Numa ocasião, entregou-se ao estudo das jóias, e num baile de fantasias, apareceu de Anne de Joyeuse, Almirante de França, num traje coberto de quinhentas e sessenta pérolas. Por anos, o gosto enfeitiçou-o e, de fato, pode-se dizer que jamais o tenha deixado. Costumava passar dias inteiros a arrumar, rearrumar, nos estojos, as várias pedras que havia colecionado, como o crisoberilo verde-oliva, que avermelha à luz de lampião, o cimofânio e seu friso de prata, semelhante a um arame, o peridoto cor-de-pistache, topázios cor-de-rosa e amarelo-vinho, carbúnculos de escarlate-ígneo, com estrelas tetrarraiadas, cintilantes, essonitas vermelho-fogo, espinélios laranjas, violetas, e ametistas com camadas alternadas de rubi e safira. Tinha adoração pelo ouro-vermelho da aventurina, pela alvura perlada da adulária, pelo arco-íris interrompido da opala leitosa. De Amsterdã, mandou vir três esmeraldas de dimensão e riqueza de cor extraordinárias, e possuía uma turquesa, antiga, inveja de todos os connoisseurs.

            Descobriu histórias maravilhosas, também, sobre jóias. Na Cic ricalis Disciplina, de Alphonso, fez-se menção a uma serpente com olhos de jacintos verdadeiros e, na história romântica de Alexandre, diz-se que o Conquistador de Emácia encontrou, no Vale do Jordão, cobras “com colares de esmeraldas verdadeiras a brotarem-lhes nas costas”. No cérebro do dragão, conta-nos Filóstrato, havia uma gema e, “por meio da exposição a letras douradas e a um manto escarlate”, o monstro poderia ser lançado em sono mágico, e morto. Segundo Pierre de Boniface, grande alquimista, o diamante deixava invisíveis os homens, e a ágata da Índia deixava-os eloqüentes. A cornalina mitigava a ira, o jacinto provocava o sono, e a ametista expulsava os vapores do vinho. A granada liberava os demônios, e o hidrópico despojava a lua de sua cor. A selenita brilhava e apagava com a lua, e a melanita, que descobre os ladrões, abalava-se apenas com o sangue de crianças. Leonardus Camillus vira uma pedra branca ser extraída do cérebro de um sapo recém-morto, que era um certo antídoto contra veneno. O bezoar, encontrado no coração do gamo árabe, era uma simpatia capaz de curar a peste. Nos ninhos dos pássaros árabes estava o aspilotas que, segundo Demócrito, protegia quem a usava contra os perigos do fogo.

            O Rei do Ceilão atravessou a cidade com um rubi enorme na mão, durante a cerimônia de sua coroação. Os portões do palácio de João, o Clérigo, eram “feitos de sárdio, cujo interior era incrustado com o chifre de uma serpente cornígera, para que nenhum homem passasse com veneno”. Em cima do frechal estavam “duas maçãs douradas, em que se viam dois carbúnculos”, para que, de dia, brilhasse o ouro e, de noite, o carbúnculo. No estranho romance de Lodge, A Margarite of América, afirma-se que, nos aposentos da rainha, poder-se-iam avistar “todas as senhoras castas do mundo, gravadas em prata, em baixo relevo, a olharem belos espelhos de crisólitos, carbúnculos, safiras e esmeraldas verdes”. Marco Polo vira os habitantes de Zipangu colocar pérolas cor-de-rosa nas bocas dos mortos. Um monstro marinho, enamorado da pérola que o mergulhador trouxera para o Rei Perozes, matou o ladrão e, por sete luas, chorou a perda. Quando os hunos atraíram o rei a uma armadilha, ele a jogou fora – é Procópio quem conta a história – e a pedra jamais foi reencontrada, embora, por ela, o Imperador Anastácio tivesse oferecido um peso de quinhentas peças de ouro. O Rei de Malabar mostrara a um certo veneziano um rosário de trezentas e quatro pérolas, uma para cada deus que adorava.

            Quando o Duque de Valence, filho de Alexandre VI, visitou Luís XII de França, seu cavalo estava carregado com lâminas de ouro, segundo Brantôme; o gorro do Duque levava duas fileiras de rubis, que emitiam muita luz. Carlos de Inglaterra montara em estribos incrustados com quatrocentos e vinte e um diamantes. Ricardo II vestia um capote, avaliado em trinta mil marcos, coberto de balaches. Segundo a descrição de Hall, Henrique VIII usava, a caminho da Torre, onde seria coroado, “um colete de ouro em relevo, a placa bordada em diamantes e outras pedras preciosas e, à volta do pescoço, um enorme gorjal de balaches grandes”. Os favoritos de Jaime I usavam brincos de esmeraldas montadas em ouro filigranado. Eduardo II deu a Piers Gaveston uma armadura em ouro-vermelho, ornada com tachões de jacintos, um colar de rosas douradas montadas com turquesas, e uma calota recamada de pérolas. Henrique II usava luvas, em pedrarias, até os cotovelos, e vestia uma manopla salpicada com doze rubis e cinqüenta e duas orientais enormes. O gorro ducal de Carlos, o Temerário, último Duque de Borgonha da estirpe, continha, penduradas, pérolas em forma de pêra, e era tachonado com safiras.

            Quão exótica fora outrora a vida! Quão maravilhosa, em pompa e decoração! Era maravilhoso ler até mesmo sobre o luxo dos mortos.

            Voltou, depois, a atenção para os bordados, para as tapeçarias que desempenhavam o ofício dos afrescos nos salões gélidos das nações do norte europeu. Ao investigar o tema – e Dorian sempre teve a extraordinária faculdade de, por momentos, deixar-se absorver por completo no que estivesse a empreender –, quase entristeceu-se ao refletir sobre a ruína que o tempo trazia às coisas lindas e maravilhosas. Ele, de um jeito ou de outro, conseguira escapar. Verão sucedeu verão e, muitas vezes, os junquilhos amarelos floresceram e morreram, e as noites de horror vinham-lhes repetir a história da vergonha; ele, porém, permanecera inalterado. Não houve inverno que lhe desfigurasse o rosto, nem que lhe maculasse o viço florido. Com as coisas materiais, era tudo tão diferente! Para onde haviam ido? Onde estava aquele manto cor-de-croco, enorme, em que deuses lutavam contra gigantes, trabalhado por mulheres mulatas para o prazer de Atenéia? Onde, o velário imenso que Nero estendera pelo Coliseu de Roma, as asas púrpuras do Titã em que se representava o céu estrelado, e Apolo em carro triunfal puxado por corcéis brancos de rédeas douradas? Almejou ver os curiosos guardanapos confeccionados para o Sacerdote do Sol, que exibiam todas as guloseimas e viandas desejáveis em qualquer banquete; o pano mortuário do Rei Chilpérico I, com trezentas abelhas de ouro; os mantos fantásticos que exasperaram a indignação do Bispo de Ponto, com desenhos de “leões, panteras, ursos, cães, florestas, rochas, caçadores – tudo, na verdade, que um pintor é capaz de copiar da natureza”; e o casaco usado, certa feita, por Carlos de Orleans, em cujas mangas bordaram-se os versos de uma canção que começava “Senhora, estou tão contente”, e de cuja letra o acompanhamento musical fora costurado em fios de ouro, e, cada nota, naquela época de formato quadrado, formava-se em pérolas. Ouviu falar que um quarto fora preparado, no Palácio de Reims, para uso da Rainha Joana de Borgonha, decorado com “mil trezentos e vinte e um papagaios, feitos em bordado, brasonados com as armas do rei, e quinhentos e sessenta e uma borboletas, cujas asas, de modo similar, eram ornamentadas com as armas da rainha, todo trabalhado em ouro”. O leito de morte feito para Catarina de Médicis era de veludo negro polvilhado com meias-luas e sóis. As cortinas eram de damasco, com coroas e grinaldas folheadas, desenhadas em fundo de ouro e prata e, ao longo das borlas, franjas estendiam-se em bordados de pérolas. No aposento que os abrigava, penduravam-se as divisas da rainha, em veludo negro gravado sobre tecido de prata. Luís XIV tinha, em sua suíte, cariátides bordadas a ouro, de quatro e meio metros de altura. O trono solene de Sobieski, Rei de Polônia, fora construído em brocado de ouro Smirna, bordado em turquesas com versos do Alcorão. Os suportes eram de ouro branco, em lindo entalhe, montados, em profusão, com medalhões em esmaltes e pedrarias. Foi encontrado no acampamento turco à entrada de Viena, onde o estandarte de Mohammed postava-se debaixo do ouro adejante do dossel.

            Assim, durante um ano inteiro, Dorian procurou acumular os espécimes mais exóticos do trabalho têxtil e bordado. Comprou musselina de Nova Déli, primorosa, trabalho requintado em palmados de fios dourados, arrematada com asas de besouros, iridescentes; gazes de Dacca, conhecidas no Oriente por sua transparência, como “ar trançado”, “água corrente” e “orvalho da noite”; de Java, tecidos com desenhos singulares; murais chineses, amarelos, elaborados; livros encadernados em cetim castanho-amarelado, ou em sedas azuis, formosas, e trabalhos em flores-de-lis, pássaros e imagens; véus em malhas trabalhadas em ponto húngaro; brocados sicilianos e veludo engomado espanhol; trabalhos da Geórgia, com moedas de ouro; e Foukousas japonesas, com ouros em tons verdes e pássaros aplicados com plumas maravilhosas.

            Especial paixão, também, Dorian nutria pelas vestes eclesiásticas, como, de fato, nutria por tudo o que fosse relacionado com a liturgia da Igreja. Guardara, nas arcas de cedro, compridas, que margeavam a galeria oeste da casa, muitos espécimes, raros, lindos, da legítima indumentária da Noiva de Cristo, que deve vestir púrpura, jóias e linho puro, para que possa esconder o corpo pálido, macerado, desgastado pelo sofrimento que procura, e ferido pela dor auto-infligida. Possuía uma belíssima capa de asperges em seda carmesim e damasco fiado a ouro, desenhado num padrão repetido de romãs douradas dispostas em flores formais, de seis pétalas e, atrás delas, ladeando-as, a figura de um abacaxi trabalhada em pérolas granuladas. As bandas estavam divididas em painéis que representavam cenas da vida da Virgem, e a coroação da Virgem desenhava-se nas sedas coloridas do capuz. Trabalho italiano do século quinze. Outra capa de asperges era de veludo verde, bordado em grupos de folhas de acanto, em forma de coração, dos quais irradiam-se flores brancas de caules compridos, cujos detalhes estavam realçados por fios de prata e cristais coloridos. A vaca sagrada tinha, na cabeça, um serafim, num trabalho de alto-relevo em fio dourado. As bordas foram costuradas em padrão losangular de seda vermelha e dourada, estreladas com os medalhões de muitos santos e mártires, dentre eles São Sebastião. Possuía, também, casulas de seda cor-de-âmbar, de seda azul e brocado dourado, de damasco sedoso amarelo e tecido de ouro, desenhados com representações da Paixão e da Crucificação de Cristo, bordados com leões, pavões e outros emblemas; dalmáticas de cetim branco e damasco sedoso róseo, decorados em tulipas, delfins e flores-de-lis; frontais de altar em veludo carmesim e linho azul; e muitos corporais, véus de cálice e sudários. Havia, nos ofícios místicos em que estas coisas eram usadas, algo que lhe disparava a imaginação.

            Estes tesouros, pois, e tudo o que colecionara em sua residência adorável, eram, para ele, meios de esquecimento, modos por que poderia escapar, por uma estação, do medo que parecia, a ele, às vezes, grande demais para ser suportado. Nas paredes daquele quarto solitário, trancado, onde passara tanto tempo de sua infância, pendurara, com as próprias mãos, o retrato terrível, cujos traços, em mutação, exibiam-lhe a degradação real da vida e, à frente dele, estendera, como cortina, o pano mortuário púrpura-dourado. Durante semanas a fio, afastava-se do quarto; esquecia aquela coisa pintada, repulsiva, e recuperava o coração leve, a alegria maravilhosa, a absorção passional pela mera existência. Então, súbito, numa noite a esmo, saía, furtivo, de casa, descia à cidade, ia aos lugares suspeitos próximos a Blue Gate Fields, onde permanecia, dia após dia, até que o levassem de volta. Ao regressar, sentava-se em frente ao quadro, abominando-o, às vezes, e a si mesmo, repleto, porém, outras vezes, com aquele orgulho do individualismo responsável por meia-parte do fascínio do pecado, e sorrindo, em prazer secreto, para aquela sombra deformada, obrigada ao peso a que ele próprio deveria suportar.

            Alguns anos depois, já não conseguia demorar-se muito tempo fora da Inglaterra, e desistiu da vivenda que compartilhava, em Trouville, com Lorde Henry, e também da casinha branca, murada, em Argel, onde passaram mais de um inverno. Detestava separar-se do quadro, parte tão importante de sua vida, temeroso, também, de que, durante sua ausência, alguém conseguisse acesso ao quarto, a despeito das barras elaboradas cuja colocação contra a porta ele causara.

            Estava bastante consciente de que ver o quadro não significaria nada a quem quer que fosse. Era verdade, porém, que o retrato ainda preservava, com toda a sordidez e feiúra daquele rosto, semelhança marcante com ele. Mas o que iriam depreender daí? De qualquer pessoa que o tentasse censurar, riria. Afinal, não fora ele o pintor. A ele, o que importava aquele aspecto vil e vergonhoso? Se contasse a verdade, quem iria acreditar?

            Mas tinha medo. Vez ou outra, no casarão de Nottinghamshire, ao entreter os jovens elegantes de sua posição social, seus melhores amigos, e assombrar o condado com o luxo libertino e o esplendor suntuoso de seu modo de vida, costumava, de repente, largar os convidados e voltar depressa para a cidade, a ver se a porta não fora forçada, se o quadro ainda estava lá. E se tivesse sido roubado? O simples pensamento, de horror, gelava-o, pois, então, o mundo iria, com certeza, conhecer-lhe o segredo, se já não suspeitasse.

            Pois se, por um lado, fascinava a muitos, não eram poucos os que dele desconfiavam. Fora quase banido de um clube, em West End, de que era membro por méritos de berço e posição social, e dizia-se que, numa certa ocasião, levado por um amigo ao fumoir do Churchill, o Duque de Berwick e um outro cavalheiro levantaram-se, de maneira manifesta, e saíram. Depois do vigésimo-quinto aniversário, eram correntes as histórias, curiosas, sobre Dorian. Correu o boato de que fora visto em brigas com marinheiros estrangeiros numa espelunca num bairro afastado de Whitechapel, e de que costumava consorciar-se a ladrões e falsificadores de moedas, de cujos negócios conhecia os mistérios. Suas ausências, espetaculares, tornaram-se notórias, e, sempre que reaparecia na sociedade, os homens iam cochichar em cantos, ou passar por ele a zombar, ou olhá-lo, com olhos frios, inquisitivos, como se determinados a descobrir-lhe o segredo.

            A tais insolências e indiscrições provocadoras Dorian, é claro, não dava atenção, e, na opinião de grande parte das pessoas, aqueles modos afáveis, francos, aquele sorriso juvenil, encantador, a graça infinita daquela juventude maravilhosa eram, por si mesmas, uma resposta suficiente às calúnias, pois assim as denominaram, que circulavam a respeito dele. Notava-se, entretanto, que aqueles seus amigos mais íntimos, algum tempo depois, pareceram evitá-lo. Mulheres que o adoraram com tanto entusiasmo, e, em desafio, enfrentaram toda a censura social e a convenção estabelecida, eram vistas a empalidecer de vergonha, de horror, sempre que Dorian Gray agora entrava nos recintos.

            Mas estes escândalos sussurrados apenas aumentavam, aos olhos de muitos, aquele charme singular, perigoso. A enorme fortuna servia como um certo elemento de segurança. A sociedade, ao menos a sociedade civilizada, não está preparada para acreditar em qualquer coisa que venha em detrimento dos que são, ao mesmo tempo, ricos e fascinantes. Ela sente, por instinto, que as maneiras são mais importantes que a moralidade, e é de opinião que o alto respeito é de valor bem inferior que a posse de um bom chef! Pois, afinal, que reles consolo é saber que aquele que acaba de nos proporcionar um jantar de má qualidade, ou um vinho inferior, é, na vida particular, irrepreensível? Nem as virtudes cardeais conseguem espiar as entradas meio-frias, como, certa vez, observou Lorde Henry durante uma discussão sobre o tema. E é possível que exista, mesmo, muita coisa a dizer em favor deste ponto de vista. Pois os cânones da boa sociedade são, ou deveriam ser, os mesmos que os cânones da arte. Para ela, de modo absoluto, a forma é essencial. Ela almeja a dignidade, e também a irrealidade, de uma cerimônia, e a combinação da natureza insincera de uma peça romântica com a sabedoria e a beleza que fazem com que tais peças nos sejam deliciosas. A insinceridade é assim tão terrível? Creio que não. É um simples método por que podemos multiplicar nossas personalidades.

            Esta era, de um jeito ou de outro, a opinião de Dorian Gray. Costumava pensar na psicologia rasa daqueles que concebem o Ego, no homem, como uma coisa simples, permanente, fidedigna, e de uma só essência. Para ele, o homem era um ser de vidas miríades, sensações miríades, uma criatura multiforme, complexa, que traz, no interior, legados estranhos de pensamento e paixão, e que tem a própria carne contaminada pelos males monstruosos dos mortos. Dorian gostava de passear pela galeria de quadros, fria, desolada, de sua casa de campo, e olhar os retratos vários de todos aqueles cujos sangues fluíam-lhe nas veias. Eis Philip Herbert, que, segundo descrição de Francis Osborne, em suas Memoires on the Reigns of Queen Elisabeth and King James, era “mimado pela Corte por ter um rosto bonito, que não lhe fez companhia por muito tempo”. Seria a vida do jovem Herbert que ele,

            às vezes, levava? Teria algum germe venenoso, estranho, se esgueirado de corpo em corpo até alcançar seu próprio corpo? Teria sido uma certa sensação tênue daquela graça arruinada que o fizera tão de repente, sem causa aparente, dar vazão, no ateliê de Basil Hallward, àquela prece louca que tanto mudara sua vida? Eis, num gibão vermelho bordado a ouro, manto em pedrarias, armilas e golas em rufos, debruados em ouro, Sir Anthony Sherard; aos pés, amontoada, a armadura preto e prata. Qual fora o legado deste homem? Teria o amante de Giovana de Nápoles transmitido uma herança de vergonha e pecado? Seriam seus atos meros sonhos que aquele homem morto não ousara realizar? Ali, na tela que esvaece, sorri Lady Elizabeth Devereux, num capuz de gaze, peitilho de ponto penado, mangas acutifólias, róseas. Na mão direita, uma flor; a mão esquerda apertava uma gargantilha esmaltada de rosas brancas adamascadas. Numa mesa ao lado, repousam um bandolim e uma maçã. Nos sapatinhos pontiagudos, rosetas grandes, verdes. Ela sabia da própria vida, e das estranhas histórias que se contavam de seus amantes. Teria ele algo do temperamento dela? Olhos de pálpebras espessas pareciam olhá-lo com curiosidade. E George Willoughby, com aqueles cabelos pulverizados, aqueles curativos fantásticos? Que expressão perversa! O rosto era saturnino, trigueiro, e os lábios sensuais pareciam retorcer-se em desdém. Rufos de renda, delicados, caíam-lhe por sobre as mãos descarnadas, sobrecarregadas de anéis. Fora um franchinote do século dezoito e, quando jovem, amigo de Lorde Ferrars. E o segundo Lorde Beckenham, companheiro do Príncipe Regente nos dias mais tempestuosos, e uma das testemunhas do casamento secreto com a Sra. Fitzherbert? Como era altaneiro, e elegante, naqueles cachos castanhos, naquela pose insolente! Que paixões teria legado? Fora, ao olhar do mundo, um infame. Proporcionara orgias na Casa de Carlton. Reluzia-lhe, no peito, a estrela da Ordem de Garter. Ao lado, o retrato da esposa, uma mulher em negro, pálida de lábios finos, cujo sangue também revolucionava dentro dele. Parecia, tudo, muito curioso! E da mãe, naquele rosto de Lady Hamilton, de lábios úmidos, pincelados de vinho, Dorian sabia o que recebera. Dela, recebera a beleza, a paixão pela beleza dos outros. Ela, naquele vestido solto, bacante, ria dele. Nos cabelos, folhas de parreira. Da taça que segurava, o púrpura espirrava. As carnações da pintura haviam ressecado, mas os olhos ainda eram maravilhosos, tão profundos, de cor tão brilhante. Pareciam segui-lo, onde quer que fosse.

            Mas era comum, tanto quanto na própria estirpe, ter ancestrais na literatura, talvez mais próximos em tipo e temperamento, muitos, e, com certeza, de uma influência de que podemos ter consciência mais absoluta. Houve vezes em que pareceu, a Dorian Gray, que o todo da história era um simples registro de sua própria vida, não como a vivera em ato e circunstância, mas como criara na imaginação, como se lhe desenrolara no cérebro, nas paixões. Sentia que as conhecia todas, aquelas figuras terríveis, singulares, que atravessaram o palco do mundo e fizeram do pecado algo tão maravilhoso e, do mal, algo tão cheio de sutileza. A ele parecia que, de um modo algo misterioso, aquelas vidas foram sua própria vida.

            O herói do maravilhoso romance que tanto lhe influenciara a vida conhecera, ele mesmo, esta fantasia curiosa. No sétimo capítulo, conta que, coroado de louros, para que o raio não o fulminasse, como Tibério, sentado num jardim em Capri, leu os vergonhosos livros elefantinos, enquanto duendes e pavões empertigavam-se ao redor e o tocador de flauta troçava do balouçador do turíbulo; como Calígula, farreou, nos estábulos, com os jóqueis de camisas verdes, e ceou, numa manjedoura de marfim, com um cavalo que ostentava, na testa, uma fita em pedrarias; como Domício, vagou por um corredor alinhado com espelhos de mármore, a olhar, com olhos ansiosos, à cata do reflexo da adaga que iria pôr fim a seus dias, enjoado daquele enfado, aquele taedium vitae, terrível, que toma aqueles a quem a vida nada nega – e viu, de relance, em meio à carnificina encarnada do Circo, uma esmeralda translúcida e, em seguida, num resto de pérola e púrpura, arrastado por mulas em ferraduras de prata, atravessou a Rua das Romãs, chegou à Casa do Ouro, e ouviu homens a aclamar Nero Caesar, quando ele passou; e, como Heliogábalo, pintou o rosto com matizes, brandiu a roca em meio às mulheres e, de Cartago, trouxe a Lua e deu-a em casamento místico ao Sol.

            Muitas e muitas vezes, Dorian leu este capítulo, fantástico, e os dois capítulos imediatamente seguintes, em que, como em curiosas tapeçarias ou em esmaltaria forjadas com engenho, estavam desenhadas as formas horríveis e belas daqueles que o vício, o sangue e o fastio fizeram monstros ou loucos: Filippo, Duque de Milão, que matou a esposa e pintou-lhe os lábios com um veneno escarlate para que o amante sugasse a morte do objeto que costumava acariciar; Pietro Barbi, o Veneziano, conhecido como Paulo Segundo, que procurou, em sua vaidade, assumir o título de Formosus, e cuja tiara, avaliada em duzentos mil florins, foi comprada ao preço de um terrível pecado; Gian Maria Visconti, que usava cães de caça para perseguir pessoas vivas, e cujo corpo assassinado foi recoberto de rosas por uma prostituta que o amara; o Bórgia, em seu cavalo branco, com o fratricídio a cavalgar ao lado, e o manto manchado do sangue de Perotto; Pietro Riario, o jovem Cardeal Arcebispo de Florença, filho e preferido de Sixto IV, cuja beleza fora apenas igualada por sua libertinagem, e que recebeu Leonora de Aragão num caramanchão de seda alva e carmesim, repleto de ninfas e centauros, e dourou um menino para servir, durante as festividades, como Ganimedes ou Hilas; Ezetino, cuja melancolia era curada apenas com o espetáculo da morte, e que nutria uma paixão pelo sangue vermelho, a mesma paixão que outros nutriam por vinho vermelho – o filho do Diabo, segundo noticiou-se, e um outro que havia enganado o pai, no jogo de dados, quando apostara com ele a própria alma: Giambattista Cibo, que, em troça, tomou o nome de Inocente, e em cujas veias torpes um médico judeu infundiu o sangue de três garotos; Sigismondo Malatesta, o amante de Isotta, e o Lorde de Rimini, cuja efígie foi queimada em Roma, como inimigo de Deus e do homem, que estrangulou Polyssena com um guardanapo, deu veneno a Ginevra d’Este numa taça de esmeralda e, em honra a uma paixão vergonhosa, construiu uma igreja pagã para culto cristão; Carlos VI, cuja adoração louca pela esposa do irmão fez com que a lepra viesse alertá-lo contra a insanidade que viria tomá-lo, e que, quando adoeceu, alheou-lhe o cérebro, acalmavam-no apenas as cartas sarracenas, pintadas com imagens de amor, morte e loucura; e, num gibão garboso, gorro enfeitado de pedras e cachos qual acantos, Grifonetto Baglioni, que matou Astorre com a noiva, Simonetto com o pajem, e cuja beleza era tanta que, ao jazer morto na praça amarela de Perugia, tudo o que puderam fazer os que o odiavam foi chorar, e Atalanta, que o amaldiçoara, abençoou-o.

            Em todos eles, um fascínio medonho. Via-os à noite, e conturbavam-lhe a imaginação de dia. A Renascença conheceu estranhas maneiras de envenenamento – envenenamento por um capacete e uma tocha acesa, uma luva bordada, um leque ornado em pedras, um estojo de jóias, dourado, por uma corrente de âmbar. Dorian Gray fora envenenado por um livro. Momentos houve em que ele olhara a maldade como um simples modo de poder realizar sua concepção do belo.

 

            Era o dia nove de novembro, véspera do aniversário de trinta e oito anos, como, com freqüência, Dorian costumava rememorar.

            Ele caminhava para casa, por volta de onze horas, em regresso da casa de Lorde Harry, onde jantara, embrulhado em peles espessas, pois a noite estava fria, nevoeira. Na esquina de Grosvenor Square com South Audley Street, um homem cruzou com ele, na bruma, em passos muito rápidos, com a gola do casacão cinzento levantada. Numa das mãos, uma maleta. Dorian o reconheceu; era Basil Hallward. Tomou-o uma sensação estranha, de medo, que não conseguiu identificar. Sem manifestar sinal de reconhecimento, Dorian prosseguiu, rápido, para casa.

           Mas Hallward o vira. Primeiro, Dorian ouviu-o parar na calçada, depois correr até ele. Em instantes, a mão de Basil pousava-lhe no ombro.

            – Dorian! Que maravilhoso capricho da sorte! Estive na sua biblioteca, desde nove horas, esperando por você, até que fiquei com pena de seu criado e, quando ele abriu a porta para mim, disse-lhe que fosse dormir. Vou viajar para Paris no trem da meia-noite e desejava muito falar com você antes de ir. Identifiquei você, ou melhor, seu casaco de peles, quando cruzamos. Mas estava meio na dúvida. Você me reconheceu?

            – Nesse nevoeiro, meu caro Basil? Não reconheço nem a Grosvenor Square. Sei que minha casa está por perto, mas não tenho a mínima certeza. É uma pena que você vá viajar, não o vejo há anos. Mas você volta logo, não?

            – Não, vou passar seis meses fora da Inglaterra. Pretendo alugar um ateliê em Paris e me trancar nele até terminar um quadro que tenho em mente, maravilhoso. Mas não era sobre mim que eu queria falar. Eis a porta de sua casa. Entremos, por um instante, tenho algo a dizer-lhe.

            Dorian Gray subiu os degraus e, com a chave do trinco, abriu a porta da rua.

            – Será um prazer. Mas você não irá perder o trem? – perguntou, lânguido.

            A luz do lampião debateu-se neblina afora, Hallward consultou o relógio.

            – Tenho muito tempo. O trem só sai à meia-noite e quinze, e agora são onze horas. Na verdade, eu ia à sua procura, no clube, quando o encontrei. Não terei problemas de bagagem, pois as coisas pesadas já despachei. Tudo o que tenho está nesta maleta, e chego à Victoria, com facilidade, em vinte minutos.

            Dorian olhou para Basil, sorriu.

            – Isto são modos de um pintor famoso viajar? Uma maleta Gladstone e um casacão? Vamos entrar, antes que a neblina entre na casa. E, por favor, não converse assuntos sérios. Nada é sério, hoje em dia. Não deveria sê-lo, ao menos.

            Ao entrar, Hallward meneou a cabeça, e acompanhou Dorian até a biblioteca. Na lareira enorme, escancarada, ardia a fogueira de lenha, clara. Os lampiões estavam acesos, e um estojo de bebidas, de prata polonesa, pousava, com alguns sifões de água de soda, alguns copos grandes, de vidro cortado, numa mesinha de marchetaria.

            – Como você pode ver, Dorian, seu criado deixou-me muito à vontade. Deu-me tudo o que eu queria, inclusive seus cigarros de banda dourada, dos melhores. É uma criatura muito hospitaleira. Gosto muito mais dele do que daquele francês que você tinha aqui. A propósito, o que houve com o francês?

            Dorian deu de ombros.

            – Creio que se casou com a empregada de Lady Radley, e arrumou uma colocação para ela em Paris, como costureira inglesa. Ouvi dizer que a “Anglomania” está na moda por lá, agora. Que tolice dos franceses, não? Mas, sabe?, ele não era um mau empregado. Eu não gostava dele, mas não tinha nada de que me queixar. Às vezes imaginamos coisas absurdas. Ele era muito dedicado, e parecia triste quando se foi. Quer mais um brandy com soda? Ou prefere ponche? Eu sempre tomo ponche. Tenho certeza de que tenho ponche na outra sala.

            Dorian tirava o chapéu, o casaco, e jogava-os por cima da maleta, pousada num dos cantos.

            – Não, obrigado. Não vou beber mais. E agora, meu caro companheiro, quero conversar com você a sério. Não precisa franzir o cenho; assim você só dificulta as coisas.

            Dorian arremessou-se no sofá, e, naquele seu jeito petulante:

            – Sobre o quê? Espero que não seja sobre mim. Já estou cansado de mim, por hoje. Gostaria de ser outra pessoa.

            – É sobre você mesmo – respondeu Hallward, naquela voz grave, profunda. – E tenho que dizê-lo. Só levará uma meia hora.

            Dorian suspirou, acendeu um cigarro.

            – Meia hora?

            – Não é pedir muito, Dorian, e falo para seu próprio bem. É justo que você saiba que coisas horríveis vêm sendo ditas de você em Londres.

            – Eu não quero saber de nada. Gosto dos escândalos dos outros, mas escândalos meus não me interessam, pois não possuem o encanto da novidade.

            – Creio que você se interessará, Dorian. Todo cavalheiro tem interesse em manter o nome limpo. Você não quer que as pessoas falem de você como uma pessoa vil, degradante. Você tem posição, é claro, riqueza, e todo esse tipo de coisa. Posição e riqueza, porém, não são tudo. Atente bem, eu não acredito em nenhum destes boatos. Ao menos quando o vejo, não consigo acreditar. O pecado sempre se inscreve no rosto dos homens, impossível escondê-lo. As pessoas, às vezes, falam em vícios secretos. Isto não existe. O vício de um homem perverso sempre se evidencia nos contornos da boca, na inclinação das pálpebras, até mesmo no feitio das mãos. Uma pessoa – cujo nome não direi, mas você a conhece – procurou-me, no ano passado, para que eu lhe pintasse o retrato. Eu jamais o vira, e, na ocasião, nada sabia a respeito dele, embora, a partir de então, comecei a saber de muita coisa. Ofereceu uma soma exorbitante, e eu recusei. Na forma daqueles dedos, havia algo que eu odiava. Sei, agora, que estava correto em tudo o que pensei dele; a vida dele é terrível. Mas, Dorian, você, com seu rosto puro, vivo, inocente, com sua juventude maravilhosa, imperturbável... impossível acreditar em coisas que deponham contra você. Mas como o vejo muito pouco, e você não vai mais ao ateliê, quando, longe de você, ouço estas coisas repulsivas que as pessoas estão cochichando a seu respeito, não sei o que dizer. Por que seria, Dorian, que um homem como o Duque de Berwick sai de um lugar quando você entra? Por que tantos cavalheiros em Londres não vão à sua casa, e tampouco o convidam à casa deles? Você e Lorde Staveley eram amigos. Semana passada, encontrei-o num jantar em que seu nome surgiu, durante a conversa, em conexão com as miniaturas que você emprestou para a exposição no Dudley. Staveley torceu o lábio, disse que reconhece seu gosto artístico, mas que você não é homem que mocinhas puras deveriam receber permissão de conhecer, e com quem mulheres virgens deveriam evitar compartilhar o mesmo recinto. Lembrei a ele que eu era seu amigo, e perguntei o que ele queria dizer com aquilo. Ele respondeu. Respondeu bem diante de todos. Foi horrível! Por que sua amizade é tão fatal para os jovens? Na Guarda Real, teve aquele pobre-diabo que se suicidou. Você e ele eram grandes amigos. E Sir Henry Ashton teve que deixar a Inglaterra, com o nome maculado. Você e ele eram inseparáveis. E Adrian Singleton, e o pavoroso fim que teve? O filho único de Lorde Kent, a carreira dele? Ontem, em St. James Street, encontrei o pai dele. Parecia despedaçado de tristeza e vergonha. E o jovem Duque de Perth? Como vive agora? Que cavalheiro iria associar-se a ele agora?

            Dorian Gray mordeu o lábio. Na voz, uma nota infinita de desprezo.

            – Pare, Basil. Você está falando de coisas que desconhece. Você me pergunta por que Berwick sai de um lugar quando eu entro. É porque sei tudo da vida dele, não porque ele saiba alguma coisa a respeito da minha. Com aquele sangue que tem nas veias, como poderia ter ficha limpa? Você me pergunta sobre Henry Ashton e o jovem Perth. Ao primeiro, fui eu quem ensinou-lhe os vícios e, ao segundo, a libertinagem? E se aquele bobo do filho do Kent apanha uma mulher da rua e se casa com ela, o que é que eu tenho com isso? E se Adrian Singleton escreve o nome do amigo na nota, sou eu o carcereiro? Eu sei que as pessoas na Inglaterra são muito tagarelas. Em grosseiros jantares, as classes médias ventilam seus preconceitos morais e sussurram o que chamam de desregramento de seus superiores, para fingirem que se encontram numa sociedade inteligente e mantêm relações íntimas com as pessoas que difamam. Neste país, basta que um homem possua distinção e cérebro para que a língua comum faça dele galhofa. E que tipo de vida levam estas pessoas que posam como moralistas? Meu caro companheiro, você já se esqueceu de que vivemos na terra natal da hipocrisia?

            – Dorian! Não é esse o problema. Sei que a Inglaterra é ruim, e que a sociedade inglesa está toda errada. E este é o motivo por que quero que você seja bonzinho. Você não tem sido um bom menino. Temos o direito de julgar um homem pelo efeito que causa nos amigos, e o efeito que você causa parece desprovido de qualquer sentido de honra, bondade ou pureza. Você os encheu da loucura do prazer, e eles desceram às profundezas. Foi você quem os levou lá. Claro, foi você quem os levou lá, você ainda sorri, como sorri agora. E há algo pior, por trás de tudo. Sei que você e Harry são inseparáveis. Por este motivo, principalmente, dentre todos, você não deveria ter feito do nome da irmã dele um objeto de zombaria.

            – Cuidado, Basil. Você está indo longe demais.

            – Tenho que falar, e você tem que ouvir. Você deve ouvir. Até o dia em que você conheceu a Sra. Gwendolen, não a tocara ainda um sopro sequer de escândalo. E existe hoje, em Londres, uma única mulher disposta a passear com ela no Parque? Porque nem mesmo os filhos têm permissão de morar com ela. E há outras histórias, histórias em que você é visto, ao alvorecer, a sair de casas suspeitíssimas e esgueirar-se, disfarçado, nas piores espeluncas de Londres. São verdadeiras? Existe a possibilidade de serem verdadeiras? Na primeira vez que as ouvi, ri. Quando as ouço agora, causam-me arrepios. E quanto à sua casa de campo, e à vida que se leva lá? Dorian, você mal sabe o que se diz de você. Não vou dizer que não lhe quero passar um sermão. Lembro-me de Harry ter dito, um dia, todo homem que se transforma, mesmo por um momento, num coadjutor amador, sempre começa dizendo isso e, logo depois, falta com a palavra. Eu quero mesmo passar-lhe um sermão. Quero que você leve uma vida que faça com que o mundo o respeite. Quero que você tenha um nome limpo, uma ficha imaculada. Quero que você se livre destas pessoas horríveis a quem se associou. Não dê de ombros, não seja indiferente. Seu poder de influência é maravilhoso. Deixe que seja exercido para o bem, não para o mal. Dizem que você costuma corromper a todos de quem se torna íntimo, e que basta que você entre numa casa para que a vergonha, de qualquer espécie, entre logo atrás. Não sei se isto é verdade ou não. Como iria saber? Mas é o que se diz de você. Disseram-me coisas, ao que parece, impossíveis de duvidar. Lorde Gloucester, um de meus melhores amigos em Oxford, mostrou-me uma carta que a esposa, só, moribunda, na casa de campo de Mentone, escrevera a ele. Seu nome está envolvido na confissão mais terrível que tive oportunidade de ler. Eu disse a ele que aquilo era um absurdo, que o conhecia muito bem, e que você seria incapaz de fazer qualquer coisa do gênero. Conhecer você? Fico a pensar, será que o conheço? Antes de responder, teria que ver sua alma.

            Dorian Gray começou a levantar-se do sofá, quase branco de medo.

            – Ver minha alma? – murmurou.

            Hallward estava sério. Na voz, o tom da tristeza, profundo.

            – É... ver sua alma. Só Deus, porém, é capaz de fazê-lo.

            Um riso amargo, de deboche, irrompeu dos lábios do jovem.

            – Você mesmo a verá, agora.

            Em cima da mesa, Dorian apanhou um lampião.

            – É... Venha. É obra de suas próprias mãos, por que não permitir que você a veja? Depois, você pode contar tudo ao mundo, se quiser. Ninguém irá acreditar. E se acreditassem, gostariam ainda muito mais de mim. Conheço nossa época, bem melhor do que você, com toda sua tagarelice enfadonha. Venha, vou lhe mostrar. Você já falou muito sobre a corrupção, agora venha vê-la, frente a frente.

            Em cada palavra pronunciada, havia a loucura do orgulho. Naqueles modos infantis, insolentes, Dorian bateu o pé no chão. Sentia uma alegria terrível ao pensar que alguém mais iria compartilhar-lhe o segredo, e que o homem que pintara aquele retrato, origem de toda sua vergonha, seria molestado, pelo resto da vida, pela lembrança repugnante do que fizera.

            Dorian aproximava-se de Hallward, olhava-o firme nos olhos severos.

            – É verdade, vou mostrar-lhe minh’alma. Vou mostrar-lhe a coisa que, segundo você, apenas Deus é capaz de ver.

            Hallward recuou.

            – Isso é blasfêmia, Dorian! Não pronuncie tais coisas! São horríveis, e nada significam.

            Dorian riu, mais uma vez.

            – Você acha?

            – Eu sei que são. E quanto ao que eu disse, disse-o para seu próprio bem. Você bem sabe que eu tenho sido um amigo leal.

            – Não me toque. Acabe o que tem a dizer.

            Um jato retorcido de cor percorreu o rosto do pintor. Hallward fez uma pausa momentânea, tomou-lhe uma sensação de pena, espontânea. Que direito tinha ele, afinal, de intrometer-se na vida de Dorian Gray? Mesmo que tenha feito apenas um dízimo do que dizem os boatos, deve ter sofrido muito! Hallward aprumou-se, caminhou até a lareira, e ali permaneceu a olhar a lenha ardente, as cinzas qual geada e os miolos em labaredas, latejantes.

            A voz do jovem veio nítida, áspera.

            – Estou esperando, Basil.

            Hallward virou-se.

            – O que eu tenho a dizer é... você tem que me dar uma resposta para essas acusações horríveis, feitas contra você. Se me disser que são inverídicas, do princípio ao fim, acredito em você. Negue-as, Dorian, negue-as! Será que não percebe o que eu estou passando? Meu Deus, não me diga que você é mau, corrupto e indecente!

            Dorian Gray sorriu. Nos lábios, uma curva de desprezo.

            – Vamos lá em cima, Basil – disse, tranqüilo. – Faço, dia a dia, um diário de minha vida. E como ele não pode deixar o lugar onde está, poderei mostrá-lo a você, se vier comigo.

            – Eu irei, Dorian, já que você o quer. Vejo que já perdi o trem. Mas não tem importância, vou amanhã. Mas não me peça para ler nada hoje, tudo o que eu quero é uma resposta direta.

            – Eu a darei, lá em cima. Aqui seria impossível. Você não terá muita coisa que ler.

 

            Dorian saiu do aposento e começou a subir. Atrás, próximo, Hallward o acompanhava. Caminhavam suaves, como, por instinto, costumam fazer os homens à noite. O lampião joga, na parede, na escada, sombras fantásticas. O vento crescente fez rufar algumas janelas.

            Ao alcançarem o patamar superior, Dorian pousou no chão o lampião, retirou a chave, girou-a na fechadura.

            – Você insiste em saber, Basil? – perguntou, em voz baixa.

            – Insisto.

            Dorian sorriu.

            – Fico contente.

            E acrescentou, algo áspero.

            – Você é o único homem no mundo habilitado a conhecer tudo a meu respeito. Sua interferência em minha vida foi maior do que você pensa.

            Suspendeu o lampião, abriu a porta, entrou. Uma corrente de ar passou, e a luz subiu, por um momento, numa labareda laranja, sinistra. Dorian estremeceu, e sussurrou, ao pousar o lampião sobre a mesa:

            – Feche a porta.

            Hallward olhou ao redor, a expressão intrigada. O quarto parecia inabitado há anos. Uma tapeçaria flamenga, desbotada, um quadro coberto, uma cassone italiana, antiga, e uma estante quase vazia era tudo o que continha, parece, além de uma cadeira e uma mesa. Dorian Gray acendia um pedaço de vela, sobre o parapeito da lareira, e Basil percebeu que todo o lugar estava coberto de poeira, e que o tapete estava esburacado. Por trás dos lambris, debatendo-se, um camundongo correu. Pairava o odor úmido do bolor.

            – Quer dizer, então, Basil, que, para você, Deus é o único capaz de ver a alma? Pois puxe a cortina, e verá minh’alma.

            Falava com uma voz fria e cruel. Hallward franziu o cenho, resmungando.

            – Você está louco, Dorian, ou então está encenando.

            – Não vai puxar? Então devo puxá-la eu mesmo.

            E Dorian arrancou a cortina da travessa, jogou-a no chão.

            Uma exclamação de horror irrompeu dos lábios do pintor, quando viu, à luz penumbrosa, aquele rosto repugnante que, ali na tela, sorria para ele, em escarninho. Algo naquela expressão encheu-o de revolta e repulsa. Céus, o rosto que via era mesmo o rosto de Dorian Gray! E o horror, por maior que fosse, ainda não viera estragar-lhe por completo a maravilhosa beleza. Um pouco de dourado havia, ainda, naqueles cabelos que raleavam, e um pouco de escarlate na boca sensual. Os olhos injetados ainda mantinham algo da graça do azul, as curvas nobres ainda não se haviam, de todo, esvaecido daquelas narinas esculpidas, daquela garganta plástica. Claro, era Dorian em pessoa. Mas... quem o fizera? Basil parecia identificar as próprias pinceladas, e a moldura era desenho seu. A idéia era monstruosa, tanto que sentiu medo. Apanhou a vela acesa, apontou-a para o quadro. Ali estava, no canto esquerdo, o próprio nome, traçado em letras compridas, em vermelho-claro.

            Tratava-se de uma paródia torpe, de alguma sátira infame, ignóbil. Não fora ele quem a fizera, jamais. Mesmo assim, era seu próprio quadro. Sabia-o, e sentiu como se o próprio sangue se transformasse, num instante, de fogo em gelo inerte. Seu próprio quadro! O que significava? Por que se alterara? Hallward virou-se e, com olhos de quem adoece, olhou para Dorian Gray. A boca retorceu, e a língua crestada parecia incapaz de articular. Passou a mão na testa; de suor pegajoso, estava úmida.

            Apoiado no parapeito da lareira, o jovem o observava com a expressão estranha que vemos nos rostos das pessoas absorvidas numa peça, quando um grande artista está em cena. Sem a verdadeira tristeza, tampouco sem a verdadeira alegria. Apenas a paixão do espectador, com, talvez, nos olhos, um lampejo de triunfo. A flor, tirara-a da lapela; cheirava-a, ou fingia cheirá-la.

            Por fim, a própria voz de Hallward veio soar-lhe estrepitosa, curiosa, aos ouvidos.

            – Mas o que isto significa?

            Dorian Gray esmagou a flor na mão.

           – Há anos você me conheceu, me lisonjeou, ensinou-me, por minha beleza, a ser vaidoso. Um dia, apresentou-me a um amigo seu, e ele me explicou a maravilha da juventude. E você terminou meu retrato, que me revelava a maravilha da beleza. Num momento de loucura, de que, mesmo agora, não sei se me arrependo ou não, pedi um desejo, ou talvez, como você o diria, eu fiz uma prece.

            – Eu me lembro! Claro que me lembro! Não, mas isso é impossível! O quarto está úmido, o bolor invadiu a tela. As tintas que uso contêm nelas um veneno mineral muito nocivo. A coisa toda é impossível, eu digo!

            O jovem dirigiu-se à janela, recostou a cabeça na vidraça fria, manchada de orvalho.

            – O que é impossível?

            – Você me disse que o havia destruído.

            – Eu estava errado. Foi ele que me destruiu.

            – Eu não acredito que este seja o quadro que eu fiz.

            Dorian amargou.

            – Você não vê, nele, seu ideal?

            – Meu ideal, como você o vê...

            – Como você o via.

            – Não há nada de mal nele, nada de indecente. Você foi, para mim, um ideal que jamais reencontrarei. Este aí é o rosto de um sátiro.

            – É o rosto de minh’alma.

            – Por Deus! Que coisa fui adorar! Tem os olhos do diabo.

            Dorian fez um gesto intempestivo, de desespero.

            – Dentro de nós, Basil, todos temos céu e inferno.

            Hallward voltou-se novamente para o retrato, olhou-o.

            – Meu Deus! Se isto for verdade, e se for isto o que fez de sua vida, você, então, é pior do que o que dizem aqueles que o acusam!

            Mais uma vez, Hallward levantou a vela, voltada para a tela. A superfície parecia bastante imperturbável, como ele a deixara. Fora de dentro, ao que parece, que brotara toda sordidez, todo horror. Através de uma aceleração estranha, da vida interior, as lepras do pecado, lentas, corroíam aquela coisa. Não tão temível, o apodrecimento de um cadáver num túmulo úmido.

           A mão tremeu, a vela caiu do soquete, foi ao chão, e ali ficou a estalar. Hallward pisou-a, apagou-a. Em seguida, atirou-se na poltrona desengonçada, que jazia ao lado da mesa, e enterrou o rosto nas mãos.

            – Meu bom Deus! Dorian, que lição aprendi! Uma lição terrível!

            Não houve resposta, mas Hallward ouviu, junto à janela, os soluços do jovem.

            – Reze, Dorian, reze. Como é mesmo que aprendemos a dizer quando crianças? “Não nos deixeis cair em tentação. Perdoai os nossos pecados. Afastai nossas iniqüidades.” Vamos dizê-lo juntos. A prece de seu orgulho foi respondida. A prece de seu arrependimento também o será. Eu o adorei demais. Fui castigado por isto. Você adorou demais a si mesmo. Nós dois fomos castigados.

            Dorian Gray virou-se, devagar, olhou-o com olhos turvos de lágrimas, a voz embargada.

            – É tarde demais, Basil.

            – Nunca é tarde demais, Dorian. Vamos nos ajoelhar, e se não nos lembrarmos de alguma prece, tentemos, ao menos. Existe, não existe?, um poema que diz “Mesmo que seus pecados sejam escarlates, eu os deixarei com a alvura da neve”?

            – Estas palavras já não significam nada para mim.

            – Silêncio! Não fale assim. Você, na vida, já fez muita maldade. Meu Deus! Não percebe que aquela coisa amaldiçoada nos olha com olhar malévolo?

            Dorian Gray olhou para o quadro e, de repente, tomou-o um sentimento incontrolável de ódio por Basil Hallward, como se fora insinuado pela imagem na tela, sussurrado a seus ouvidos por aqueles lábios escarninhos. As loucas paixões de um animal perseguido revolveram-lhe no interior, e ele abominou o homem ali sentado à mesa, mais do que jamais abominara algo na vida. Alucinado, olhou ao redor. Em cima da arca pintada, diante dele, algo reluzia. O olho foi até lá. Dorian sabia o que era; era a faca que trouxera para cima, alguns dias atrás, para cortar um pedaço de corda, e se esquecera de levar embora. Devagar, caminhou naquela direção e, ao fazê-lo, passou por Hallward. Assim que chegou atrás dele, apanhou a faca e virou-se. Hallward mexeu-se na cadeira, como se fosse levantar. Rápido, Dorian avançou, cravou a faca na veia espessa que passa atrás do ouvido, apertou a cabeça daquele homem contra a mesa, e estocou, estocou.

            Houve um ronco abafado, e o som horrível de alguém afogado em sangue. Por três vezes, aqueles braços estendidos esticaram-se, convulsivos, e acenaram, ao ar, mãos grotescas, de dedos endurecidos. Dorian esfaqueou-o duas vezes mais, mas o homem não se moveu. Algo começou a pingar no chão. Dorian esperou um pouco mais, ainda a comprimir aquela cabeça para baixo. Depois, jogou a faca na mesa, e pôs-se a escutar.

            Nada ouvia, senão o pingo, pingo no tapete puído. Abriu a porta, foi ao patamar. Quietude absoluta na casa. Ninguém nas proximidades. Ficou, por alguns segundos, a debruçar-se na balaustrada, a bisbilhotar o negror fervilhante da escuridão. Em seguida, pegou a chave, voltou ao quarto, fechou a porta ao entrar.

            Aquela coisa ainda ali estava, sentada na cadeira, retesada por sobre a mesa, com a cabeça inclinada, as costas curvadas, e os braços compridos, fantásticos. Não fora o rasgão denteado, vermelho, no pescoço, aquela poça negra, coagulada, a se alastrar sobre a mesa, e dir-se-ia que aquele homem, simplesmente, dormia.

            Fora tudo feito com tanta rapidez! Estranho, Dorian sentia-se muito calmo. Caminhou até a janela, abriu-a e, num passo, saiu para a sacada. O vento dissipara a neblina, e o céu parecia a cauda de um pavão monstruoso, estrelado em miríades de olhos dourados. Olhou para a rua, e viu o policial a fazer a ronda, a jorrar o jato longo de uma lanterna sobre as portas das casas silenciosas. O ponto carmesim de um cabriolé, errante, reluziu na esquina e, depois, desapareceu. Lenta, uma mulher, num xale adejante, arrastava-se ao longo das grades, prosseguia cambaleante. Parava, de vez em quando, esgueirava o olhar para trás. Numa das vezes, começou a cantar numa voz rouca. O policial caminhou até ela, disse-lhe algo. Ela se foi, aos tropeços, rindo. Uma rajada cortante varreu a Praça. Piscaram os lampiões de gás, azularam-se, e as árvores desfolhadas balouçaram, para frente, para trás, os galhos de ferro negro. Dorian estremeceu, entrou. Ao passar, fechou a janela.

            Foi até a porta, girou a chave, abriu. Nem mesmo de relance olhou o homem assassinado. Sentia que o segredo de tudo era não constatar a situação. O amigo que pintara o retrato fatal, a que era devida toda sua desgraça, saíra de sua vida. Isto bastava. Depois lembrou-se do lampião. Muito curioso, de artesanato mourisco, feito de prata fosca marchetada com arabescos de aço polido, e tachonado com turquesas toscas. Talvez o criado desse falta dele e fizesse perguntas... Hesitou, por um instante, depois virou-se e apanhou-o em cima da mesa. Inevitável foi olhar aquela coisa morta. Tão imóvel! Tão horrível o branco daquelas mãos longas! Como uma imagem de cera medonha.

            Ao passar, fechou a porta e, quieto e furtivo, desceu a escada. A madeira rangeu, parecia gemer, como se dolorida. Por diversas vezes parou, esperou. Não, tudo quieto. Era apenas o ruído dos próprios passos.

            Ao chegar à biblioteca, viu, no canto, a maleta e o casaco. Teriam que ser escondidos em algum lugar. Abriu o armário secreto, embutido nos lambris, armário em que guardava os próprios disfarces, curiosos, guardou os objetos. Poderia, depois, queimá-los com facilidade. Em seguida, retirou o relógio do bolso. Faltavam vinte minutos para as duas.

            Dorian sentou-se, pôs-se a pensar. Todos os anos – todos os meses, quase –, na Inglaterra, homens eram enforcados pelo que ele fizera. Pairara, no ar, a loucura do crime. Alguma estrela vermelha aproximara-se demais da Terra... Mas, que provas existiam contra ele? Basil Hallward fora embora às onze. Ninguém o vira voltar. A maioria dos criados encontrava-se no Selby Royal. O criado já fora dormir... Paris? Claro, Basil fora para Paris, no trem da meia-noite, como pretendia. Com hábitos tão reservados, tão curiosos, levaria meses para que se levantassem suspeitas. Meses! E antes que isto acontecesse, tudo poderia ser destruído.

            Tomou-o um pensamento repentino. Vestiu o casaco de pele, o chapéu, saiu; foi ao corredor. Fez uma pausa, e pôs-se a escutar, na calçada, o passo pesado do policial, e a ver, refletido na janela, o jato da lanterna. Esperou, prendeu a respiração.

            Instantes depois, puxou o trinco, e esgueirou-se afora; ao sair, com toda suavidade, fechou a porta. Em seguida, começou a tocar a campainha. Em cerca de cinco minutos, o criado apareceu, parcialmente vestido, com o aspecto bastante sonolento. Dorian deu um passo, entrou.

            – Desculpe tê-lo acordado, Francis, mas esqueci de levar a chave do trinco. Que horas são?

            O homem piscou, consultou o relógio de parede.

            – São duas e dez, senhor.

            – Duas e dez? Tão tarde assim? Acorde-me às nove, amanhã. Tenho um trabalho a fazer.

            – Sim, senhor.

            – Alguém apareceu hoje à noite?

            – O Sr. Hallward, senhor. Esperou até às onze, e depois foi-se embora, ia pegar o trem.

            – Ora! Pena não tê-lo encontrado. Deixou algum recado?

            – Não, senhor. Disse apenas que, se não o encontrasse no clube, escreveria para o senhor de Paris.

            – Ótimo, Francis. Não esqueça de me acordar às nove, amanhã.

            – Não esquecerei, senhor.

            Trôpego, de chinelos, o homem foi corredor abaixo.

           Dorian Gray atirou chapéu e casaco em cima da mesa, passou à biblioteca. Por um quarto de hora, caminhou pelo aposento, de um lado ao outro, a morder o lábio, a pensar. Em seguida, abaixou-se, apanhou, numa das prateleiras, o Livro Azul, começou a folheá-lo. “Alan Campbell, 152 Hertford Street, Mayfair”. Claro, era este o homem que queria.

 

            Às nove horas, na manhã seguinte, o criado entrou com uma xícara de chocolate numa bandeja, e abriu as persianas. Em muita paz, Dorian dormia com o lado direito do corpo voltado para o colchão, com uma das mãos debaixo da bochecha. Parecia um menino cansado de brincar, de estudar.

            Para acordá-lo, o homem teve que tocar-lhe duas vezes no ombro e, ao abrir os olhos, um sorriso tênue percorreu-lhe os lábios, como se estivera perdido em algum sonho delicioso. Mas, na verdade, ele não sonhara. A noite não fora perturbada por imagens quaisquer de prazer ou dor. A juventude, porém, sorri sem mesmo motivo algum. Era como se estivesse, quase, numa manhã de maio.

            Pouco a pouco, os eventos da noite anterior começaram, com os pés manchados de sangue, silenciosos, a subir-lhe ao cérebro e ali reconstruírem-se com terrível nitidez. Ante a lembrança de tudo o que sofrera, encolheu-se e, por um instante, aquela mesma sensação curiosa de repulsa por Basil Hallward, que o fizera matá-lo, sentado numa cadeira, voltou-lhe, e Dorian, de fúria, esfriou. O morto ainda estava lá, e, agora, à luz do dia. Que coisa horrível. Estas coisas repugnantes serviam à escuridão, não ao dia.

            Sentiu que, se remoesse o que passara, adoeceria, ou enlouqueceria. Certos pecados existiam cujo fascínio estava mais na lembrança do que no ato de fazê-los, triunfos estranhos que gratificavam o orgulho mais que as paixões, que davam ao intelecto uma sensação acelerada de alegria, maior que qualquer alegria que traziam, ou poderiam trazer, aos sentidos. Este, entretanto, não era um deles, pois era algo a ser afastado da mente, entorpecido com dormideiras, a ser enforcado antes que ele próprio enforcasse alguém.

            Ao ressoar da meia hora, Dorian passou a mão na testa e, apressado, levantou-se, vestiu-se com esmero maior que o habitual, dedicando muita atenção à escolha da gravata e do alfinete do cachecol, trocando, mais de uma vez, os anéis. Demorou-se muito, também, no café da manhã; saboreou todos os pratos, conversou com o criado sobre uns novos uniformes que pensava em mandar fazer para a criadagem de Selby, folheou a correspondência. Para algumas cartas, sorriu. Três entediaram-no. Uma, leu, releu, diversas vezes, e depois rasgou-a com uma expressão de contrariedade no rosto. “Uma coisa horrível, a lembrança de uma mulher”, como, certa feita, dissera Lorde Henry.

            Depois de beber a xícara de café forte, enxugou, devagar, os lábios com o guardanapo, fez sinal para que o criado esperasse, foi até a mesa, sentou-se e escreveu duas cartas. Uma colocou no bolso, a outra estendeu ao criado.

            – Leve-a a 152 Hertford Street, Francis, e caso o Sr. Campbell esteja fora, consiga o endereço de onde está.

            Assim que ficou só, acendeu um cigarro e começou a rabiscar num pedaço de papel; primeiro, desenhou flores, peças de arquitetura e, por fim, rostos humanos. Notou, de repente, que todo rosto que desenhava trazia uma semelhança fantástica com Basil Hallward. Franziu o cenho, levantou-se, foi até a estante e, ao acaso, apanhou um livro. Estava determinado a não pensar no que acontecera até que fazê-lo se tornasse da mais absoluta necessidade.

            Depois de estirar-se no sofá, leu o rosto do livro. Era Emaux et Camées,[1] de Gautier, edição de Charpentier, em papel do Japão, cor água-forte de Jacquemart. A encadernação era em couro verde-cidra, com um desenho de tela dourada e romãs pontilhadas. Fora Adrian Singleton quem lho dera. Ao folhear as páginas, o olho foi bater num poema sobre a mão de Lacenaire, a mão amarela, fria, “do suplício, ainda por bem lavar”, de pêlos felpudos e “dedos de fauno”. Olhou para os próprios dedos de vela branca, estremeceu ligeiramente, mortificado, e prosseguiu, até encontrar as estrofes sobre Veneza, adoráveis:

 

            Numa gama cromática,

            O seio em pérolas furta-cores,

            A Vênus do Adriático

            Emerge d’água o corpo alvi-rosa

                        As cúpulas, sobre o azul das ondas

            Tomando a frase ao pé da letra,

            Intumescem qual gargantas redondas

            E um suspiro de amor emana.

                        O batel aporta e me depõe,

            Jogando a amarra ao pilar,

            Em frente a uma fachada rosa,

            No mármore de uma escada.[2]

                        Quão exóticas eram! Ao lê-las, parecíamos flutuar pelos canais verdes da cidade rosipérola, sentados numa gôndola negra, de proa prateada e cortinas corrediças. As linhas dos versos pareciam, a ele, as linhas retas de azul-turquesa que nos seguem ao avançarmos rumo ao Lido. Os lampejos súbitos de cor lembraram-no do brilho dos pássaros de pescoço íris-opala que, adejantes, circundam os favos de mel da Campanile, e caminham, majestosos, pelas arcadas mortiças, sujas de poeira. Dorian recostou-se e, com olhos semicerrados, repetiu, por diversas vezes, consigo mesmo:

 

            Em frente a uma fachada rosa,

            No mármore de uma escada.

 

            Toda Veneza estava contida nestes dois versos. Lembrou-se do outono que ali passara, e do amor maravilhoso que o inflamara a delírios loucos, deliciosos. Em todo lugar, havia romance. Veneza, porém, assim como Oxford, mantivera o cenário para o romance e, para o verdadeiro romântico, o cenário era tudo, ou quase tudo. Por boa parte do tempo, Basil estivera com ele, e ficara alucinado com Tintoretto. Pobre Basil! Horrível, para um homem, morrer desta maneira!!

            Suspirou, de novo levantou o livro, tentou esquecer. Leu das andorinhas que, voando, entram e saem do pequeno café em Smirna, onde, sentados, os hadjis contam contas de âmbar, os mercadores, de turbante, fumam charutos borlados, compridos, e conversam uns com os outros. Leu do Obelisco, na Praça da Concórdia, a chorar lágrimas de granito em seu exílio solitário, sem sol, a sonhar em regressar pelo Nilo, quente, recoberto de lotos, onde há Esfinges, íbis vermelho-róseas, urubus brancos de garras douradas, e crocodilos, com olhinhos de berilo, a rastejarem sobre a lama verde, bochornal. Começou a remoer aqueles versos que, ao extraírem música do mármore salpicado de beijos, contam da estátua curiosa que Gautier compara à voz de um contralto, o “monstro formoso” adormecido no pórfiro do Louvre. Algum tempo depois, porém, o livro caiu-lhe das mãos. Dorian ficou nervoso, tomou-o um acesso horrível de terror. E se Alan Campbell não estivesse na Inglaterra? Muitos dias passariam antes que regressasse. E talvez se recusasse a vir. O que faria? Cada minuto era de importância vital.

            Haviam sido grandes amigos, outrora, há cinco anos – na verdade, quase inseparáveis. A intimidade, então, chegou a um fim repentino. Agora, quando se encontravam em sociedade, era Dorian Gray quem sorria; Alan Campbell não.

            Era um jovem muito inteligente, embora em nada apreciasse as artes visíveis, e o sentido de poesia que possuía, por menor que fosse, conseguira-o por meio de Dorian. Nele, dominava a paixão intelectual pela ciência. Em Cambridge, passara boa parte do tempo trabalhando no Laboratório, e passou com distinção no Tripos de Ciências Naturais de seu ano. Na verdade, ainda se dedicava ao estudo de química, e possuía laboratório próprio, onde costumava trancar-se o dia inteiro, muito para o aborrecimento da mãe, cujo coração empenhara em almejar, para o filho, uma cadeira no Parlamento e, para quem, numa vaga idéia, o químico era uma pessoa que aviava receitas. Entretanto, Alan era, também, excelente músico e, melhor que a maioria dos amadores, tocava violino e piano. Fora, de fato, a música que, pela primeira vez, aproximou-o de Dorian Gray – a música e aquela atração indefinível que Dorian parecia ser capaz de exercer sempre que o desejasse, e que, na verdade, exercia sem ter consciência dela. Conheceram-se na residência de Lady Berkshire, na noite em que Rubinstein ali tocara e, depois disso, eram sempre vistos juntos na Ópera e onde quer que houvesse boa música. A intimidade durou dezoito meses. Campbell estava sempre em Selby Royal ou em Grosvenor Square. Para ele, como para tantos outros, Dorian Gray era o tipo de tudo o que é maravilhoso e fascinante na vida. Se houve discussões entre os dois, não se sabe. De repente, porém, as pessoas notaram que mal passaram a se falar ao se encontrarem, e que Campbell sempre saía cedo das festas em que Dorian Gray estivesse presente. Ele mudara também. Estranho; era, às vezes, melancolia, e parecia já não gostar de ouvir música, e nem de tocá-la ele próprio. Quando solicitado, dizia, como desculpa, estar tão ocupado com a ciência que não lhe sobrava tempo para estudar. E isto era, com certeza, verdade. A cada dia que passava, Alan parecia mais interessado em biologia, e seu nome apareceu uma ou duas vezes em algumas revistas científicas, em conexão com certas experiências curiosas.

            Era este o homem por quem esperava Dorian Gray. Consultava o relógio a cada segundo e, ao passar dos minutos, tomou-o um terrível nervosismo. Levantou-se, por fim, e começou a caminhar de um lado a outro do aposento. Parecia um lindo animal engaiolado. As passadas eram compridas, dissimuladas e, curioso, as mãos estavam frias.

            Insuportável já o suspense. O tempo parecia arrastar-se com pés de chumbo, e ele, entrementes, parecia levado à beira recortada do vão negro de um precipício, e sabia o que o esperava ali. Via-o, de fato, e, trêmulo, comprimiu, com mãos úmidas, os lábios ardentes como se tivesse roubado o próprio cérebro da visão, como se tivesse deslocado os globos oculares de volta à sua gruta. Inútil. O cérebro possuía alimento próprio com que vicejar, e a imaginação, grotesca de terror, torcia, distorcia de dor, como uma coisa viva, dançava qual marionete manco no tablado, e escarnecia, por entre máscaras em movimento. Então, de repente, o tempo parou para ele. Sim, aquele animal cego, de respiração lenta, já não mais se arrastava, e pensamentos horríveis, já que o tempo morrera, corriam-lhe à frente, expeditos a arrancarem, da cova, um futuro repugnante, e a mostrarem-no a ele. Ele o fitou. O horror intrínseco fê-lo petrificar-se.

            A porta abriu-se, por fim, o criado entrou. Dorian voltou-lhe os olhos vidrados.

            – O Sr. Campbell, senhor – anunciou o homem.

            Um suspiro de alívio irrompeu daqueles lábios ressequidos, e o colorido voltou-lhe às maçãs do rosto.

            – Peça-lhe que entre logo.

            De novo, Dorian sentiu-se ele mesmo. O ânimo de covardia já se afastara.

            O homem curvou-se, retirou-se. Instantes depois, Alan Campbell entrou, num aspecto casmurro, muito pálido, palidez intensificada por aqueles cabelos de carvão negro e por sobrancelhas escuras.

            – Alan, que bondade sua! Agradeço-lhe por ter vindo.

            – Era minha intenção jamais pisar em sua casa novamente, Gray. Mas você disse que era uma questão de vida ou morte.

            A voz era dura, gélida. Alan falava em deliberação lenta. No olhar inquisitivo, firme, que lançava a Dorian, uma expressão de desprezo. Manteve as mãos no bolso do casaco de astracã, e nem parece ter-se apercebido do gesto com que fora saudado.

            – É verdade. É uma questão de vida ou morte, Alan, e para mais de uma pessoa. Sente-se.

            Campbell sentou-se numa cadeira junto à mesa, e Dorian sentou-se do outro lado. Encontraram-se os olhos dos dois homens. Nos de Dorian, havia piedade infinita, pois sabia horrível o que iria fazer.

            Depois de um momento de silêncio, tenso, Dorian inclinou-se à frente e, com muita calma, a observar, porém, o efeito de cada palavra sobre o homem que mandara chamar, disse:

            – Alan, nesta casa, lá em cima, num quarto trancado, um quarto a que ninguém, senão eu, tem acesso, existe um homem morto sentado à mesa. Já está morto há dez horas. Não fique nervoso e não me olhe assim. Quem é o homem, por que morreu, como morreu, são coisas que não interessam a você. O que você tem a fazer é...

            – Pare, Gray. Eu não quero ouvir nem mais uma palavra. Se o que você me diz é ou não verdade, não me importa. Eu declino, inteiramente, de envolver-me em sua vida. Seus segredos horríveis, guarde-os para você mesmo. Eles não me interessam mais.

            – Alan, você terá que interessar-se por eles. Por este, terá. Sinto muitíssimo, Alan, mas não pude evitá-lo. Você é o único homem capaz de me salvar, e sou forçado a inseri-lo no problema. Não tenho opção. Alan, você é cientista, você conhece química e coisas do gênero. Você já fez experiências. O que você tem a fazer é destruir aquela coisa lá em cima, destruí-la de modo a não deixar vestígio algum. Ninguém viu esta pessoa entrar nesta casa. No momento, na verdade, supõe-se que esteja em Paris, e não darão falta dela por meses. Mas, quando derem, ninguém deverá descobrir vestígios nesta casa. Você, Alan, pode transformá-lo, e a todos os seus pertences, numa mancheia de cinzas, para que eu possa dispersá-la ao ar.

            – Dorian, você está louco!

            – Ah, eu esperava que você me chamasse de Dorian.

            – Você está louco, acredite... louco em imaginar que eu seria capaz de mover um dedo sequer para ajudá-lo, louco em fazer esta confissão monstruosa. Eu não me envolverei neste problema, qualquer que seja ele. Você pensa que eu iria arriscar minha reputação por você? O que é que eu tenho com esta obra do diabo a que você se lança agora?

            – Foi suicídio, Alan.

            – Fico contente. Mas quem o levou a isso? Você, imagino.

            – Você ainda se recusa a fazê-lo por mim?

            – Claro que me recuso. Não quero ter qualquer relação com isto. Nem me importo que a vergonha o venha assolar. Você bem a merece. Eu não deveria sentir pena de vê-lo desgraçado, desgraçado em público. Como você ousa pedir a mim, dentre todas as pessoas deste mundo, para envolver-me neste horror? Eu pensava que você conhecesse melhor o caráter das pessoas. Seu amigo Lorde Henry Wotton não deve ter-lhe ensinado muita coisa de psicologia, mesmo que lhe tenha ensinado outras coisas. Nada me induzirá a mover uma palha para ajudá-lo. Você recorreu ao homem errado. Procure um de seus amigos; não eu.

            – Foi assassinato, Alan, eu o matei. Você não sabe o quanto ele me fez sofrer. Não importa como eu tenha vivido, a interferência dele, tanto na construção quanto na destruição de minha vida, é muito maior que a de Lorde Henry. Mesmo que não o tenha feito por mal, o resultado foi o mesmo.

            – Assassinato! Meu Deus, Dorian, a que ponto você chegou! Não vou denunciá-lo, não é problema meu. Além disso, se eu não me envolver, você com certeza, será preso. Quem comete um crime sempre faz alguma bobagem. Mas, de minha parte, não quero qualquer envolvimento.

            – Mas você tem que se envolver, de algum modo. Espere, espere um pouco. Escute. Apenas escute, Alan. Tudo o que eu lhe peço é para realizar uma experiência científica. Você freqüenta hospitais, mortuários, e os horrores que faz não o abalam. Se você encontrasse este homem, numa sala de dissecação ou num laboratório fétido, deitado numa mesa de chumbo, com aquelas canaletas vermelhas esvaziadas para permitir a circulação do sangue, você o consideraria um tema admirável. Não mexeria um fio de cabelo sequer, não pensaria estar fazendo algo de errado. Pelo contrário, é provável que se sentisse beneficiando a raça humana, ou aumentando a soma de conhecimento no mundo, ou gratificando a curiosidade intelectual, ou algo do gênero. Quero que você faça apenas o que, antes, já fez com freqüência. Na verdade, destruir um corpo deve ser bem menos pavoroso do que o trabalho que está acostumado a fazer. E, lembre-se, esta é a única prova contra mim. Se for descoberta, estou perdido; e será descoberta, com certeza, se você não me ajudar.

            – Não me passa o menor desejo de ajudá-lo. Você parece esquecer-se de que, com relação à coisa toda, sinto absoluta indiferença. Esta coisa não tem qualquer relação comigo.

            – Alan, eu suplico. Pense na posição em que me encontro. Pouco antes de você chegar, eu quase desmaiava de horror. Um dia, você mesmo conhecerá o que é o horror. Não, nem pense nisso! Olhe o problema apenas pelo ponto de vista científico. Você não pergunta de onde vêm aquelas coisas mortas que você experimenta. Não pergunte agora. O que eu disse, já disse muito. Mas eu imploro que você o faça. Nós costumávamos ser amigos, Alan.

            – Não fale daquela época, Dorian. Ela morreu.

            – Os mortos perduram, às vezes. Aquele homem lá em cima não irá fugir. Está sentado à mesa com a cabeça caída e os braços esticados. Alan! Alan! Se você não me prestar assistência, estou arruinado. Porque eu serei enforcado, Alan. Você não compreende? Irão enforcar-me pelo que fiz.

            – Não é bom prolongarmos esta cena. Eu me recuso terminantemente a ter qualquer relação com o assunto. É loucura de sua parte pedir-me que interfira.

            – Você se recusa?

            – Recuso.

            – Eu suplico, Alan.

            – É inútil.

            A mesma expressão de piedade tomou os olhos de Dorian Gray. Estendeu a mão, apanhou um pedaço de papel e, sobre ele, escreveu alguma coisa. Leu-o duas vezes, dobrou-o com cuidado, e empurrou-o até o outro lado da mesa. Depois, levantou-se, e foi até a janela.

            Campbell fitou-o, surpreso; em seguida, apanhou o papel, abriu. Ao lê-lo, o rosto espantou-se, pálido; Alan prostrou-se na cadeira. Tomou-o uma sensação de náusea, horrível. Sentiu como se o coração fosse explodir, de tanto bater no buraco vazio.

            Depois de dois ou três minutos de um silêncio terrível, Dorian virou-se, aproximou-se, pôs-se junto a Alan, pousou-lhe a mão no ombro.

            – Sinto muito por você, Alan, mas você não me deixou alternativa. Já escrevi uma carta; ei-la. Veja o endereço. Se você não me ajudar, envio-a, e você sabe qual será o resultado. Mas você vai me ajudar, impossível recusar agora. Eu queria protegê-lo, e, se admiti-lo, me fará justiça. Você foi ríspido, rude e agressivo. Tratou-me como jamais outro homem ousou tratar-me; ao menos, nenhum ser humano. E eu suportei tudo. Agora é minha vez de ditar os termos.

            Campbell afundou o rosto nas mãos; um arrepio o percorreu.

            – É verdade, Alan, é minha vez de ditar os termos. E você bem sabe quais são. A coisa é muito simples. Vamos, não fique aí tremendo. A coisa tem que ser feita. Encare-a, execute-a.

            Um gemido irrompeu dos lábios de Campbell; ele, todo trêmulo. No parapeito da lareira, o tique-taque do relógio parecia dividir o tempo em átomos isolados de agonia, cada um, de tão terrível, insuportável. Sentiu-se como se um aro de ferro o comprimisse, lento, ao redor da testa, como se a desgraça com que fora ameaçado já se desmoronasse sobre ele. Aquela mão que lhe pousara sobre o ombro parecia igualar o peso de uma liga de chumbo. Intolerável, parecia esmagá-lo.

            – Vamos, Alan, decida logo.

            – Não posso fazê-lo.

            A resposta de Alan Campbell veio mecânica, como se as palavras pudessem alterar as coisas.

            – Você tem que fazê-lo, não tem escolha. E não demore.

            Por um instante, Alan Campbell hesitou.

            – O tal quarto, lá em cima, tem lareira?

            – Tem; uma lareira a gás, de asbestos.

            – Tenho que ir em casa, apanhar algumas coisas no laboratório.

            – Não, você não deixará esta casa. Escreva o que precisa numa folha de papel, e meu criado irá apanhá-las de cabriolé.

            Campbell rabiscou umas poucas linhas, borrou-as, subscritou o envelope, endereçando-o ao assistente. Dorian ergueu o bilhete, leu-o, meticuloso, depois tocou a campainha e deu-o ao criado, com ordens para que regressasse, assim que possível, com as coisas.

            Ao fechar-se a porta do corredor, Campbell sobressaltou-se, nervoso, e, já tendo se levantado da poltrona, foi até o aparador da lareira, trêmulo, com uma espécie de calafrio. Por quase vinte minutos, nenhum dos dois homens falou. Ruidosa, uma mosca zumbiu pela sala, e o tique-taque do relógio parecia o rufar de um tambor.

            Quando o carrilhão soou uma hora, Campbell virou-se, olhou para Dorian Gray e viu-lhe os olhos cheios de lágrimas. Algo na pureza e no requinte daquele rosto triste parecia enraivecê-lo.

            – Você é infame, Dorian, absolutamente infame!

            – Silêncio, Alan. Você salvou minha vida.

            – Sua vida? Meu Deus, que vida! De corrupção em corrupção, você culminou no crime. E ao fazer o que vou fazer, pois você me força a isto, não é em sua vida que estou pensando.

            Dorian suspirou.

            – Ah, Alan, gostaria que você sentisse um milésimo da pena que sinto por você.

            Ao falar, afastou o olhar, pôs-se a contemplar o jardim.

            Cerca de dez minutos depois, houve uma batida à porta. O criado entrou, carregava uma arca de mogno, grande, contendo produtos químicos, um rolo, comprido, de arame de aço e platina, e duas braçadeiras de ferro, de forma bastante curiosa.

            – Devo deixar as coisas aqui, senhor? – perguntou a Campbell.

            – Claro – respondeu Dorian. – Receio, Francis, que eu tenha outra incumbência para você. Como é mesmo o nome daquele indivíduo em Richmond que fornece orquídeas para Selby?

            – Harden, senhor.

            – Claro... Harden. Vá depressa a Richmond, procure Harden pessoalmente, e diga a ele que, desta vez, mande o dobro da quantidade que costumo encomendar, e que mande a menor quantidade possível de orquídeas brancas. Na verdade, que não mande brancas. Está um dia lindo, Francis, e Richmond é um lugar muito bonito. Não fosse isso, não o mandaria lá.

            – Não há problema, senhor. A que horas devo voltar?

            Dorian olhou para Campbell. A voz veio calma, indiferente. A presença de uma terceira pessoa parecia dar a ele coragem extraordinária.

            – Quanto tempo irá demorar a experiência, Alan?

            Campbell franziu o cenho, mordeu o lábio.

            – Umas cinco horas.

            – Ora, você tem tempo de sobra, Francis. Pode retornar às sete e quinze. Não, espere! Deixe minha roupa separada, e você pode folgar à noite. Não vou jantar em casa; portanto, não precisarei de você.

            – Obrigado, senhor.

            O homem deixou o aposento.

            – Agora, Alan, não há tempo a perder. Esta arca é muito pesada. Eu a levo para você. Traga as outras coisas.

            Dorian falou rápido, de maneira autoritária. Campbell sentia-se dominado por ele. Juntos, deixaram o aposento.

            Ao chegarem ao patamar superior, Dorian retirou a chave do bolso e girou-a na fechadura. Então, parou, e uma expressão conturbada tomou-lhe os olhos. Estremeceu.

            – Creio, Alan, que não conseguirei entrar.

            Campbell respondeu com frieza.

            – Não me importo; não exijo sua presença.

            Dorian entreabriu a porta. Ao fazê-lo, viu o rosto do retrato a olhar de soslaio, à luz do dia. Na frente do retrato, no chão, jazia a cortina rasgada. Lembrou-se que, pela primeira vez, se esquecera, na noite anterior, de esconder a tela fatal, e já se apressava para ir até lá quando um arrepio o fez recuar.

            O que era aquela gota vermelha, repugnante, que brilhava úmida e reluzente, numa das mãos, como se a tela houvesse suado sangue? Uma coisa hedionda! Mais hedionda, pareceu a ele no momento, que aquela coisa silenciosa que sabia estar ali esticada por sobre a mesa, cuja sombra grotesca, deformada, sobre o tapete manchado, indicava não ter se mexido, indicava apenas que ainda estava lá, como a deixara.

            Dorian inspirou fundo, abriu a porta um pouco mais, e, com os olhos semicerrados, o rosto voltado noutra direção, rápido, entrou, determinado a não olhar nem uma vez sequer para o homem morto. Então abaixou-se, apanhou a cortina ouro-púrpura e arremessou-a por sobre o quadro.

            Parou, com medo de virar-se, e os olhos fixaram-se nas complexidades do padrão que via diante de si. Ouviu Campbell arrastar a pesada arca para dentro do quarto, as ferragens, e tudo o mais que requisitara para trabalho tão mórbido. Pôs-se a pensar se Alan Campbell e Basil Hallward porventura se conheceram, e, em caso positivo, o que pensavam um do outro.

            Atrás dele, uma voz austera.

            – Saia agora.

            Dorian virou-se, apressou-se em sair. Soube apenas que o morto fora empurrado contra as costas da cadeira, e que Campbell contemplava, naquele instante, um rosto amarelado, reluzente. Ao descer a escada, ouviu a chave girar na fechadura.

            Já muito tempo se passara depois das sete quando Campbell regressou à biblioteca; pálido, numa calma absoluta, porém.

            – Já fiz o que você me pediu. Agora, adeus. Que não nos vejamos nunca mais.

            Dorian foi simples.

            – Você salvou-me da ruína, Alan. Não me esquecerei.

            Assim que Campbell saiu, Dorian subiu. Havia, no quarto, um cheiro horrível de ácido nítrico. Aquela coisa, porém, que se encontrava sentada na cadeira, já se fora.

 

            Naquela noite, às oito e meia, num traje exótico, com uma botoeira larga, de violetas de Parma, Dorian Gray era conduzido, por criados em reverência, à sala de visitas de Lady Narborough. Com nervos enlouquecidos a latejar na testa, num nervosismo caótico, ao curvar-se, porém, à mão da anfitriã, Dorian esteve, como sempre, à vontade, gracioso. Talvez jamais pareçamos tão à vontade quanto nas vezes em que temos que fazer uma encenação. Naquela noite, com certeza, quem visse Dorian Gray jamais iria acreditar que passara por uma tragédia horrível. Horripilante, como a tragédia de nossa época. Dedos assim tão bem moldados jamais poderiam ter empunhado a faca do pecado, nem tampouco lábios assim tão sorridentes poderiam ter invocado a Deus, à bondade. Ele mesmo não conseguia evitar em pensar na calma com que procedia e, por instantes, sentiu, com intensidade, o prazer terrível da vida dupla.

            Era uma pequena recepção, organizada quase às pressas por Lady Narborough, mulher muito inteligente, de atributos que Lorde Henry costumava descrever como os remanescentes de uma feiúra verdadeiramente notável. Provava ser excelente esposa de um embaixador dos mais entediantes. Depois de mandar enterrar o marido num mausoléu de mármore, apropriado, projetado por ela mesma, e casar as filhas com homens ricos, um tanto velhos, dedicava-se agora aos prazeres da ficção francesa, da culinária francesa e, quando conseguia incorporá-lo, do “espírito” francês.

            Dorian era um de seus favoritos, a quem sempre se dizia contente de não ter encontrado mais cedo na vida. “Bem sei, meu querido”, ela costumava dizer, “que teria me apaixonado loucamente por você, que, por você, teria jogado todos os meus chapéus aos moinhos. Por muita sorte, você nem era considerado naquela época. De qualquer modo, os chapéus da época eram muito feios, e os moinhos andavam muito ocupados em tentar sacudir o vento, tanto que jamais me incomodei em flertar alguém. Tudo, entretanto, por culpa de Narborough. Era muito míope, e qual o prazer em se ter um marido que nunca enxerga nada?”.

            Naquela noite, os convidados eram bastante enfadonhos. O fato era que, como explicara a Dorian, atrás de um leque muito felpudo, uma de suas filhas casadas chegara de surpresa para passar uns dias e, para piorar as coisas, trouxera o marido.

            – Acho que foi muito indelicado da parte dela, meu querido. É verdade que passo com eles todos os verões, sempre que regresso de Homburg, mas uma velha senhora como eu precisa às vezes de ar fresco, e, além disso, sou eu quem os ressuscita. Você não acreditaria na vida que levam. É uma vida rural, pura, não adulterada. Levantam-se cedo, porque têm muito o que fazer, e vão dormir cedo, porque não têm nada em que pensar. Não houve, nas vizinhanças, um só escândalo desde a época de Rainha Elisabeth, e, por conseguinte, dormem todos logo após o jantar. Não se sente perto deles, nem de um, nem de outro. Sente-se ao meu lado, e me divirta.

            Dorian murmurou um elogio gracioso, olhou ao redor da sala. Com certeza, era uma festa entediante. Dois convidados, jamais os vira antes, e os demais consistiam de Ernest Harrowden, uma daquelas mediocridades de meia-idade tão comuns nos clubes de Londres, que, embora não tenham inimigos, os amigos têm, por elas, verdadeira antipatia; a Sra. Roxton, mulher de trajar exagerado, de quarenta e sete anos, de nariz adunco, que muito se empenhava em parecer envolvida, mas, tão inofensiva era, e de modo todo peculiar que – grande decepção! – ninguém jamais acreditava em nada que viesse depor contra ela; a Sra. Erlynne, uma joão-ninguém intrusa, de ciciar delicioso e cabelos ruivos venezianos; Lady Alice Chapman, a filha da anfitriã, mulher sem-sal, de vestir relaxado, uma daquelas fisionomias inglesas tão características que, uma vez vistas, não mais são lembradas; e o marido, uma criatura de bochechas avermelhadas, suíças alvas, tomado, como tantos em sua classe, pela impressão de que a jovialidade desregrada é capaz de compensar a absoluta falta de idéias.

            Dorian muito se arrependera de ter vindo, até que Lady Narborough, depois de consultar o imenso relógio de bronze dourado, que alastrava curvas vistosas sobre o console da lareira, de cortinado cor-de-malva, exclamou:

            – Ah, que horror! Como Henry Wotton está atrasado! Arrisquei mandar um mensageiro hoje de manhã, a ver se o encontrava, e ele prometeu, sob palavra, que não me deixaria desapontada.

            A vinda de Harry já era um certo consolo. Assim, quando a porta se abriu e Dorian ouviu aquela voz vagarosa, musical, emprestar o charme a alguma desculpa insincera, já não mais se sentiu entediado.

           Durante o jantar, porém, nada conseguiu comer. Pratos passaram, um após o outro, nem provados, Lady Narborough não parou de repreendê-lo pelo que dizia ser “um insulto ao pobre Adolphe”, que criara o cardápio especialmente para ele e, do outro lado da mesa, Lorde Henry olhava-o, surpreso com aquele silêncio, aqueles modos abstratos. De tempos em tempos vinha o garçom completar-lhe a taça de champanha. Dorian bebia, ávido, e a sede parecia aumentar.

            – Dorian – inquiriu Lorde Henry, por fim, ao servir-se o chaudfroid –, o que há com você hoje? Parece muito deprimido!

            – Deve estar apaixonado – exclamou Lady Narborough – e tem medo de contar-me receando que eu fique com ciúmes. E ele tem razão, eu ficaria mesmo.

            Dorian Gray sorriu.

            – Estimada Lady Narborough, faz uma semana que não me apaixono. De fato, desde que Madame de Ferrol se foi.

           – Não sei como vocês homens conseguem apaixonar-se por aquela mulher – exclamou a senhora. – Não consigo compreender.

            – Isto é só porque ela se lembra de quando a senhora era menina – interveio Lorde Henry. – Ela é o único elo entre nós e suas saias curtas.

            – Não, Lorde Henry; ela não se lembra, de modo algum, de minhas saias curtas. Mas eu, sim. Lembro-me muito bem dela em Viena, há trinta anos, bastante “decotada”.

            Com os dedos longos, Lorde Henry apanhou uma azeitona.

            – Ela ainda está “decotada”, e sempre que usa um vestido picante parece uma “edição de luxo” de um romance francês de má qualidade. Ela é mesmo maravilhosa, e cheia de surpresas. A capacidade que tem para interiorizar a afeição familiar é extraordinária. Quando o terceiro marido morreu, os cabelos dela ficaram dourados de tristeza.

            – Não fale assim, Harry! – interpelou Dorian.

            A anfitriã riu.

            – Que explicação tão romântica! O senhor disse terceiro marido, Lorde Henry? Quer dizer, então, que Ferrol é o quarto?

            – Claro, Lady Narborough.

            – Não acredito nem um pouquinho.

            – Bem, pergunte ao Sr. Gray. Ele é um dos amigos mais íntimos de Madame de Ferrol.

            – Isto é verdade, Sr. Gray?

            – Ela afirma que sim, Lady Narborough. Perguntei se ela era como Margarida de Navarra, se mandava embalsamar o coração dos maridos e os pendurava na cintura. Ela me disse que não, pois nenhum deles possuía coração.

            – Quatro maridos! Dou minha palavra; isto é “muita precaução”.

            – “Muita audácia”, eu disse a ela.

            – Ora, ela é audaz em qualquer situação, meu caro. E Ferrol, como é? Eu não o conheço.

            Lorde Henry sorveu o vinho.

            – Os maridos de mulheres lindas pertencem às categorias criminais.

            Lady Narborough acertou-o com o leque.

            – Lorde Henry, não fico nem um pouco surpresa quando o mundo diz que o senhor é muito ferino.

            Lorde Henry ergueu as sobrancelhas.

            – Mas que mundo diz isso? Só pode ser o mundo vindouro. Este mundo e eu estamos em excelentes termos.

            A velha senhora meneou a cabeça.

            – Todos que eu conheço dizem que o senhor é muito ferino.

            Por alguns momentos, Lorde Henry pareceu ficar sério.

            – É a mais absoluta monstruosidade – disse, por fim – a maneira com que as pessoas, hoje em dia, vão por aí a falar dos outros, pelas costas, as mais puras verdades.

            Na poltrona, Dorian inclinou-se.

            – Ele é mesmo incorrigível, não?

            A anfitriã riu.

            – Espero que seja. Bem, mas se vocês todos nutrem esta ridícula adoração por Madame de Ferrol, eu vou ter que me casar de novo para ficar na moda.

            Lorde Henry interrompeu.

            – A senhora não vai se casar de novo, Lady Narborough. A senhora está muito feliz assim. Quando a mulher se casa de novo, é porque detestava o marido anterior. E o homem, quando se casa de novo, é porque adorava a última mulher. As mulheres tentam a sorte; os homens arriscam-na.

            – Bem, Narborough não era perfeito – ponderou a velha senhora.

            Veio a tréplica.

            – Se tivesse sido, a senhora não o teria amado, minha cara. As mulheres nos amam por nossos defeitos. Quando os temos muitos, elas nos perdoam tudo, até mesmo nossos intelectos. Receio que, depois de ter dito isto, a senhora jamais me convidará de novo para jantar, Lady Narborough. Mas é a pura verdade.

            – É claro que é verdade, Lorde Henry. Se nós mulheres não os amássemos por seus defeitos, onde estariam vocês todos? Nenhum de vocês jamais se casaria. Seriam todos um bando de solteirões infelizes. Não que isto os fosse alterar muito, pois, hoje em dia, todos os homens casados vivem como solteiros, e todos os solteiros, como casados.

            – “O fim do século” – murmurou Lorde Henry.

            – “O fim do mundo” – respondeu a anfitriã.

            Dorian suspirou.

            – Eu gostaria que fosse “o fim do mundo”. A vida é uma grande decepção.

            Lady Narborough calçou as luvas.

            – Ah, meu caro, não me diga que você já esgotou a vida. Sempre que um homem diz isto é porque foi a vida que o esgotou. Lorde Henry é muito ferino, e eu, às vezes, gostaria de tê-lo sido também. Mas você... você foi feito para ser bom... você parece tão bom. Tenho que encontrar uma boa esposa para você. Lorde Henry, o senhor não acha que o Sr. Gray deveria se casar?

            Lorde Henry curvou-se.

            – É o que eu sempre digo a ele, Lady Narborough.

            – Bem, temos, então, que encontrar o par apropriado. Esta noite vou dar uma olhada meticulosa no Debrett, e elaborar uma lista de todas as jovens elegíveis.

            – Incluindo as idades, Lady Narborough? – perguntou Dorian.

            – Com as idades, é claro, anotadas de leve. Mas nada façamos às pressas. Quero que seja o que o The Morning Post chama de aliança conveniente. Quero que vocês dois sejam felizes.

            – Quanta bobagem se fala a respeito de casamentos felizes! – exclamou Lorde Henry. – Qualquer mulher faz o homem feliz, desde que ele não a ame.

            A velha senhora recuou a poltrona e, com a cabeça, acenou para Lady Ruxton.

            – O senhor é mesmo muito cínico! Volte logo para um novo jantar comigo. O senhor é mesmo um tônico admirável, muito melhor do que o que Sir Andrew me receitou. Mas diga-me que pessoas deseja encontrar, quero que seja uma reunião muito agradável.

            – Gosto de homens que tenham futuro, e de mulheres que tenham passado. Ou será que isto ia dar em festinha de criança?

            Lady Narborough riu, levantou-se.

            – Receio que sim. Oh, mil perdões – acrescentou –, Lady Ruxton. Não vi que a senhora ainda não havia terminado o cigarro.

            – Não tem importância, Lady Narborough. Eu fumo mesmo demais. Daqui para a frente, tenho que diminuir.

            – Por favor, não faça isso Lady Ruxton – interveio Lorde Henry. – A moderação é fatal. E o suficiente é tão ruim quanto uma só refeição. E mais do que o suficiente é ótimo, tão bom quanto uma festa.

            Lady Ruxton olhou-o, curiosa, ao deslizar salão afora.

            – Volte, Lorde Henry, uma tarde destas, para me explicar esta teoria. Parece fascinante.

            Lady Narborough chegara à porta.

            – Mas não falem demais sobre política, nem sobre escândalos. Senão, vamos acabar discutindo, com certeza.

            Os homens riram. Solene, o Sr. Chapman levantou-se e veio para a cabeceira. Dorian Gray trocou de lugar, foi sentar-se ao lado de Lorde Henry. Em voz alta, o Sr. Chapman começou a falar sobre a situação da Casa dos Comuns. De seus adversários, soltava gargalhadas, e, entre uma explosão e outra, a palavra “doutrinário” – palavra, para a mente britânica, repleta de terror – reaparecia de tempos em tempos. Um prefixo aliterativo servia como ornamento da oratória. O Pavilhão do Reino Unido, elevava-o aos pináculos do pensamento. A imbecilidade herdada da raça – expressão jovial que encontrara para consenso inglês tão judicioso – era alardeada como a perfeita salvaguarda para a sociedade.

            Um sorriso coleou os lábios de Lorde Henry; ele virou-se para trás e olhou para Dorian.

            – Sente-se melhor, meu caro companheiro? Você parecia muito deprimido durante o jantar.

            – Estou muito bem, Harry. Estou cansado, e só.

            – Você esteve encantador ontem à noite. A Duquesinha afeiçoou-se muito a você. Diz que vai a Selby.

            – Ela prometeu ir no dia vinte.

            – Monmouth irá também?

            – Claro. Claro, Harry.

            – Ele me aborrece demais, quase tanto quanto a aborrece. Ela é muito esperta; para uma mulher, esperta demais. Carece do charme indefinível da fragilidade. É o pedestal de barro que faz precioso o ouro da imagem, e ela, embora de pés lindos, não possui pés de barro. Digamos, talvez, que ela possui pés de porcelana alva, que já caminharam sobre o fogo. E o que o fogo não destrói, enrijece. Ela tem suas experiências.

            – Há quanto tempo está casada?

            – Há uma eternidade, ela diz. Creio, porém, segundo o nobiliário, que seja há uns dez anos, embora dez anos de casamento com Monmouth sejam a própria eternidade, com o tempo a entremeá-la. Quem mais irá?

            – Ora, os Willoughby, Lorde Rugby e a esposa, nossa anfitriã, Geoffrey Clouston, o pessoal costumeiro. Chamei Lorde Gotrian.

            – Gosto dele. Muitas pessoas desgostam, mas eu o acho delicioso. Às vezes, peca pelo vestir algo exagerado, e por excesso de educação. É um tipo muito moderno.

            – Não sei se ele irá, Harry, pois talvez tenha que ir a Monte Carlo com o pai.

            – Ah, como é aborrecido pertencer aos outros! Insista para que vá. Por falar nisso, Dorian, você escapuliu muito cedo, ontem à noite. Onde foi depois? Foi direto para casa?

            Dorian olhou-o, apressado; franziu o sobrecenho.

            – Não – respondeu, por fim –, só cheguei em casa lá pelas três.

            – Foi ao clube?

            – Fui...

            Dorian mordeu o lábio.

            – ... Quer dizer... Não, não fui ao clube. Andei por aí... não me lembro do que fiz. Você parece a Inquisição, Harry! Está sempre a querer saber o que as pessoas andaram fazendo. Eu sempre procuro esquecer-me do que fiz. Entrei em casa às duas e meia, já que você quer saber a hora exata. Esqueci a chave do trinco em casa, e o criado teve que abrir a porta para mim. Para provas que corroborem o assunto, consulte-o.

            Lorde Henry deu de ombros.

            – Como se eu me importasse, caro companheiro! Subamos para a sala de estar. Não, não quero mais sherry; obrigado, Sr. Chapman. Alguma coisa aconteceu com você, Dorian. Conte-me o que há. Você parece fora de si, hoje.

            – Não se incomode comigo, Harry. Estou só irritado, nervoso. Irei visitá-lo amanhã, ou depois de amanhã. Apresente minhas desculpas a Lady Narborough. Não vou subir, vou para casa. Tenho que ir.

            – Está bem, Dorian. Arrisco-me a dizer que o verei amanhã, à hora do chá. A Duquesa estará lá.

            Dorian tomou a direção da porta.

            – Farei força para ir.

            Ao tomar a condução para regressar à casa, estava consciente de que a sensação de terror, que pensara tê-lo abandonado, voltara. O interrogatório casual de Lorde Henry fizera-o, por um instante, perder a calma, mas ele desejava mantê-la. Coisas perigosas tinham que ser destruídas. Estremeceu. Repugnava-o a simples idéia de tocá-las.

            Aquilo, porém, tinha que ser feito. Percebera-o e, assim que trancou a porta da biblioteca, abriu o armário secreto em que jogara o casaco e a maleta de Basil Hallward. Ardia a imensa lareira, e Dorian colocou mais uma tora. Horrível, o cheiro das roupas em fogo e do couro queimado! A demora, para consumir tudo, foi de três quartos de hora. Ao final, sentia-se tonto, nauseado, e acendeu algumas pastilhas argelinas num latoeiro de cobre, perfurado. Com uma loção fresca, de essência de almíscar, molhou as mãos, a testa.

            De repente, sobressaltou-se. Os olhos clarearam, de modo estranho e, nervoso, Dorian mordeu o lábio inferior. Entre duas janelas, viu a papeleira florentina, grande, de ébano, revestida de marfim e lápis-lazúli, objeto que o fascinava e atemorizava, como se contivesse algo que desejasse e, ao mesmo tempo, quase abominasse. A respiração acelerou; tomou-o um anseio alucinado. Dorian acendeu um cigarro, jogou-o fora. As pálpebras penderam até os cílios longos, qual franjas. Os olhos, porém, não os tirava da papeleira e, por fim, levantou-se do sofá, onde estivera deitado, e foi até lá, abriu o fecho, tocou uma mola oculta, uma gaveta triangular deslizou afora. Acercaram-se dela os dedos instintivos, imergiram e fecharam-se em algo. Era uma caixinha chinesa, de laca em negro e ouro em pó, um trabalho elaborado; nas laterais, um padrão de meandros curvilíneos; pendiam cordões de seda com contas de cristal e, borlados, fios metálicos trançados. Abriu-a. No interior, uma pasta verde, cerosa em lustro e curiosa em odor forte e persistente.

            Por momentos, hesitou; no rosto, um sorriso imóvel, estranho. Trêmulo, então, embora a atmosfera do aposento estivesse demasiado quente, Dorian irrompeu de pé, olhou o relógio. Faltavam vinte para a meia-noite. Guardou de volta a caixinha; depois, trancou as portas da papeleira e foi para o quarto.

            Soavam, no ambiente mortiço, as batidas de bronze da meia-noite. Em roupa comum, com um cachenê envolto no pescoço, furtivo, Dorian Gray saiu. Em Bond Street, viu um cabriolé com um bom cavalo. Fez sinal e, em voz baixa, ao cocheiro informou o endereço.

            O homem sacudiu a cabeça.

            – É muito longe para mim.

            – Se me levar, recebe um soberano. E se for rápido, receberá outro.

            – Está bem, senhor, dentro de uma hora estará lá.

            O passageiro entrou, o cocheiro manobrou o cavalo, meia-volta e, rápido, tomou a direção do rio.

 

            A chuva fria começou a cair e os lampiões embaciados da rua apavoravam em meio à neblina entremeada de pingos. As tavernas populares cerravam portas, onde se aglomeravam, em grupos esparsos, homens e mulheres sinistros. De um bar e outro, o som do gargalhar horripilante. Em outros, bêbados faziam desordem, falavam ruidosos.

            Recostado no cabriolé, com o chapéu afundado na testa, com olhos indiferentes, Dorian Gray observava a vergonha sórdida da cidade grande e, de vez em quando, repetia para si mesmo as palavras de Lorde Henry no dia em que se conheceram: “Curar a alma por meio dos sentidos, e os sentidos, por meio da alma”. Claro, era este o segredo. Já o tentara muitas vezes e, agora, tentaria mais uma vez. Antros de ópio havia, onde se comprava o esquecimento, antros de horror onde a lembrança de pecados passados poderia ser destruída pela loucura dos pecados novos.

            Baixa, qual um crânio amarelo, a lua pendia no céu. De tempos em tempos, uma nuvem disforme, imensa, estendia, sobre ela, o braço comprido, ocultava-a. Os lampiões a gás ficaram mais escassos, e as ruas mais estreitas e sombrias. Por uma vez, o homem errou o caminho, e teve que retornar meio quilômetro. Do cavalo, ao chapinhar as poças, emanava o vapor. As janelas do cabriolé, laterais, obstruíam-se com a flanela cinzenta da neblina.

            “Curar a alma por meio dos sentidos, e os sentidos, por meio da alma!” As palavras ressoavam-lhe aos ouvidos. Sua alma, com certeza, estava doente, moribunda. Verdade que os sentidos seriam capazes de curá-la? Sangue inocente fora derramado, e como expiá-lo? Não, para isto não havia expiação. Se o perdão era impossível, o esquecimento ainda era possível, e ele estava determinado a esquecer, a eliminar aquela coisa, a esmagá-la como se esmaga a serpente que nos pica. Na verdade, que direito tinha Basil de falar com ele daquela maneira? Quem o fizera juiz dos outros? Ele dissera coisas medonhas, horríveis, que não deveriam ser perpetuadas.

            Penoso, sempre em frente, arrastava-se o cabriolé, mais lento, parecia, a cada passo. Dorian forçou a janelinha, gritou para que o homem dirigisse mais rápido. A sede de ópio começava, repulsiva, a corroê-lo. A garganta ardia, e as mãos delicadas comprimiam-se, nervosas. Em desvario, estocou o cavalo com a bengala. O cocheiro riu, deu chicotadas. Dorian riu de volta, o homem ficou silente.

            O trajeto parecia interminável, as ruas pareciam a teia negra de uma aranha escarrapachada. Insuportável a monotonia e, com o engrossar da neblina, Dorian sentiu medo.

            Depois, passaram por olarias solitárias. Com a neblina mais rala, Dorian pôde ver os fornos singulares, em forma de garrafa, e as línguas de fogo, em leque, alaranjadas. Ao passarem, um cão ladrou e, distante na escuridão, esganiçou uma gaivota errante. O cavalo tropeçou numa relheira, deu uma guinada para o lado e irrompeu num galope.

            Algum tempo depois, deixaram a estrada de terra e, de novo, estrepitaram por ruas malpavimentadas. As janelas, quase todas, eram escuras, embora, vez que outra, sombras fantásticas silhuetassem contra cortinas iluminadas por abajures. Dorian observava-as, curioso, a moverem-se, qual marionetes monstruosos, a gesticularem, qual coisas vivas. Detestou-as, uma raiva surda tomava-lhe o coração. Ao dobrarem uma esquina, uma mulher, em pé numa porta, gritou alguma coisa para eles e, por uns cem metros, dois homens correram atrás do cabriolé. O cocheiro fustigou-os com o chicote.

            Diz-se que a paixão nos faz pensar em círculos. Numa iteração repelente, com certeza, os lábios mordidos de Dorian Gray moldaram e remoldaram aquelas palavras sutis, que falavam d’alma e sentido, até encontrar nelas a expressão plena, por assim dizer, de seu estado de espírito, e justificar, por aprovação intelectual, paixões que, não fosse a justificativa, ainda estariam a dominar-lhe o humor. De cada célula do cérebro brotava um único pensamento; e o desejo louco de viver, o mais terrível de todos os apetites do homem, transformou, célere, em força, todos os nervos e fibras trêmulas. A fealdade, outrora odiosa por dar realidade às coisas, transformava-se, agora, por esta mesma razão, em algo valioso. A fealdade era a única realidade. O burburinho grosseiro, o antro repugnante, a violência crua da vida desordenada, a vileza íntima do ladrão e do proscrito, eram mais vívidos, com a atualidade intensa da impressão que causam, que todas as formas graciosas de arte, as sombras oníricas da canção. Era disto que necessitava para o esquecimento. Em três dias, estaria liberto.

            Ao fim de uma estrada escura, o homem estancou de repente, numa sacudidela. Por cima dos tetos baixos das casas, das chaminés pontudas, erigiam-se os mastros negros dos navios. Nuvens de alva neblina, qual velas fantasmagóricas, grudavam nos pátios de carga.

            Pela janelinha, o cocheiro foi vigoroso.

            – Não é por aqui, senhor?

            Dorian aprumou-se, olhou ao redor.

            – Aqui está bom.

            Saiu apressado, deu ao cocheiro a soma adicional que prometera e, rápido, caminhou na direção do cais. Aqui, acolá, faróis iam refletir na popa de um imenso navio mercante. A luz coleava, estilhaçava nas poças. De um vapor que se abastecia de carvão, um clarão vermelho jorrava. O calçamento escorregadio lembrava uma capa de borracha molhada.

            Apressado, Dorian tomou a esquerda e, de vez em quando, olhava para trás a ver se era seguido. Em sete ou oito minutos, chegou a um casebre mal-ajambrado, encravado entre duas fábricas desoladas. Numa das janelas superiores, um lampião. Dorian parou, deu uma batida especial.

            Um instantinho depois, ouviu passos no corredor, o desengatar de uma corrente. Silenciosa, a porta se abriu, Dorian entrou sem dizer palavra à figura atarracada, deformada que, ao caminhar, achatava-se na sombra. Pendia, ao fim do corredor, uma cortina verde, farroupilha; ao vento borrascoso que, desde a rua, viera com ele, balançava, tremulava. Dorian afastou-a para o lado, entrou numa sala comprida, baixa, que parecia ter sido, outrora, um cabaré de terceira categoria. Bicos de gás, de labaredas chiantes, obscurecidos, distorcidos nos espelhos chamuscados de moscas, dispunham-se em volta da sala. Atrás, refletores gordurosos, de lata reforçada, elaboravam discos trêmulos de luz. O chão estava coberto de serragem cor-de-ocre, pisada, aqui, acolá, até virar lama, salpicada de círculos de bebida derramada. Acocorados junto a um fogareiro de carvão, alguns malaios jogavam com fichas de osso; tagarelas, exibiam os dentes brancos. Num canto, com a cabeça enterrada nos braços, um marujo estatelava-se numa mesa e, junto ao bar, de pintura espalhafatosa, que tomava uma parede inteira, duas mulheres macilentas zombavam de um velho que, numa expressão de repulsa, limpava as mangas do casaco. “Ele pensa que foi atacado por formigas”, riu uma delas, à passagem de Dorian. O homem olhou-a, aterrorizado, e começou a choramingar.

            Ao fim do salão, uma escadinha conduzia a uma câmara obscura. Ao subir, apressado, aqueles degraus bambos, o odor forte do ópio veio encontrá-lo. Entufado, inspirou fundo, e as narinas palpitaram de prazer. Ao entrar, um jovem de cabelos lisos, louros que, debruçado sobre um lampião, acendia um cachimbo fino e comprido, olhou-o, e Dorian, titubeante, saudou-o.

            – Você por aqui, Adrian?

            O jovem foi indiferente.

            – Onde deveria estar? Meus amigos não falam mais comigo.

            – Pensei que você tivesse ido embora da Inglaterra.

            – Darlington não vai tomar qualquer atitude. Afinal, meu irmão pagou a conta. E George também já não fala mais comigo. – E acrescentou, num suspiro: – O que me importa? Quando se tem "a mercadoria", para que queremos amigos? Eu já tive amigos demais.

            Dorian recuou, olhou ao redor, e viu, em colchões desfiados, coisas grotescas em poses fantásticas. Fascinaram-no as pernas entrelaçadas, as bocas pasmas, os olhos fixos, sem lustro. Sabia em que céus estranhos sofriam, e que infernos melancólicos ensinavam-lhes o segredo de uma nova alegria. Estavam melhores que ele, aprisionado que estava no pensamento. A reminiscência, como qualquer doença terrível, corroía-lhe a alma. De quando em quando, tinha a impressão de ver, a fitarem-no, os olhos de Basil Hallward. Sentia, porém, que não conseguiria demorar-se ali, a presença de Adrian Singleton o perturbava. Queria estar em algum lugar em que ninguém soubesse quem ele era. Queria fugir de si mesmo. Após uma pausa, disse:

            – Eu vou para outro lugar.

            – Aqui no cais?

            – É.

            – Aquela megera estará lá, com certeza. Aqui não a deixam entrar mais.

            Dorian encolheu os ombros.

            – Não agüento mulheres que amam. Mulheres que odeiam são bem mais interessantes. Além disso, a mercadoria lá é bem melhor.

            – É tudo igual.

            – Por mim, prefiro aquela. Vamos beber alguma coisa. Eu tenho que beber.

            – Eu não quero beber.

            – Esqueça, então.

            Adrian Singleton levantou-se, fatigado, e acompanhou Dorian ao bar. Um mestiço, de turbante remendado e com um casaco puído, saudou-os avesso, ao bater à frente dos dois uma garrafa de brandy e dois copos. Duas mulheres aproximaram-se, esgueiras, e puxaram conversa. Dorian voltou-lhes as costas, e, em voz baixa, disse algo para Adrian Singleton.

            Um sorriso tortuoso, como a cris malaia, enroscou as feições de uma das mulheres.

            – Esta noite, nos sentimos muito honradas.

            Dorian bateu com o pé no chão e gritou:

            – Pelo amor de Deus, não fale comigo. O que você quer? Dinheiro? Tome. Não fale comigo, nunca mais.

            Por um instante, duas fagulhas rubras faiscaram nos olhos injetados daquela mulher, que se apagaram depois, piscando, e esvaeceram opacos, vidrados. A mulher jogou a cabeça para trás e, com dedos vorazes, recolheu as moedas do balcão. A companheira observou-a, invejosa.

            Adrian Singleton suspirou.

            – É inútil, eu não quero voltar. O que me importa? Estou muito bem aqui.

            Houve uma pausa.

            – Mas você vai escrever, não vai, se precisar de alguma coisa?

            – Talvez.

            – Então, boa noite.

            – Boa noite.

            O jovem subiu os degraus e, com um lenço, enxugou os lábios secos.

            Dorian caminhou para a porta; no rosto, uma expressão de dor. Ao afastar a cortina para o lado, uma gargalhada repelente irrompeu dos lábios pintados da mulher que recolhera o dinheiro, e ela disse, numa voz rouca:

            – Lá vai o pacto do diabo!

            – Maldita! – retrucou Dorian. – Não me chame assim.

            A mulher estalou os dedos, gritou para Dorian, que já ia.

            – Ah, Príncipe Formoso! É assim que você gosta de ser chamado, não é mesmo?

            Foi ela falar, e o marinheiro sonolento saltou de pé, a olhar ao redor, esbaforido. O ruído do cerrar da porta do corredor tocou-lhe os ouvidos. Ele saiu ágil, como se em perseguição.

            Ao longo do cais, Dorian Gray apressou-se ao borrifo da garoa. Emocionara-o, estranho, encontrar Adrian Singleton, e pôs-se a pensar se a ruína daquela vida, tão jovem, deveria ser-lhe mesmo cobrada à porta, como dissera Basil Hallward, num tal insulto infame. Mordeu o lábio e, por alguns segundos, os olhos entristeceram. Mas, afinal, o que interessava? Nossos dias são muito curtos para que tomemos, nos próprios ombros, o peso dos erros de outrem. Cada um vive a própria vida, e paga o preço de vivê-la. Em tudo, a única pena é que, com freqüência, temos que pagar um preço alto por uma única falta. E, na verdade, estamos sempre a pagar. No trato com o homem, o Destino jamais encerra as contas.

            Há momentos, dizem-nos os psicólogos, quando a paixão pelo pecado, ou por aquilo que o mundo chama de pecado, domina de tal maneira uma personalidade, que toda fibra do corpo, e toda célula do cérebro, parece ser instinto com impulsos receosos. Nestes momentos, homens e mulheres perdem a liberdade da vontade. Como autômatos, dirigem-se ao fato terrível. A escolha é-lhes subtraída, e a consciência, morta, ou então, se conseguir viver, vive apenas para dar fascínio à revolta, e encanto à desobediência. Pois todos os pecados, como não se cansam de nos lembrar os teólogos, são pecados da desobediência. Quando, dos céus, cai o espírito maior, a estrela matutina do mal, é como rebelde que cai.

            Empedernido, concentrado no mal, com a mente maculada, e a alma sedenta de revolta, Dorian Gray prosseguia célere, acelerava o passo ao caminhar; ao guinar para o lado, porém, e atravessar um arco penumbroso de que se servia, com freqüência, como atalho para alcançar aquele local de péssima reputação para onde se dirigia, sentiu-se, de repente, agarrado por trás, e, antes mesmo que pudesse defender-se, foi arremessado para trás, contra o muro, e uma mão brutal envolveu-lhe a garganta.

            Com todas as forças, Dorian lutou pela vida e, num esforço terrível, conseguiu soltar aqueles dedos que o apertavam. Num segundo, ouviu o clique de um revólver, viu o brilho de um cano lustroso que lhe apontava direto à cabeça, e a forma sombria de um homem pequeno, de compleição robusta, que o fitava.

            Dorian arquejou.

            – O que você quer?

            – Quieto! Se se mexer, eu atiro.

            – Você deve estar louco. O que fiz eu a você?

            – Você destruiu a vida de Sibyl Vane – veio a resposta – e Sibyl Vane era minha irmã. Ela se matou, eu sei. A morte dela é para ser cobrada à sua porta. Jurei que o mataria, em vingança. Durante muitos anos, procurei por você; sem pistas, sem indicações, e as duas pessoas que poderiam descrevê-lo estavam mortas. De você, sabia apenas o apelido com que ela costumava chamá-lo, e hoje, por acaso, o ouvi. Faça sua prece a Deus, pois você morrerá esta noite.

            De medo, Dorian sentiu engulhos. Gaguejava.

            – Mas eu nem a conheci. Nem sei quem ela é. Você está louco.

            – É melhor confessar o pecado, pois, se eu me chamo James Vane, você é homem morto.

            Instantes horríveis. Dorian não sabia o que dizer, o que fazer.

            – Ajoelhe-se! – gralhou o homem. – Dou-lhe um minuto para a prece, nem mais. Logo mais, tenho que tomar o navio para a Índia; antes, porém, tenho que executar minha tarefa. Um minuto, e só.

            Os braços de Dorian prostraram-se junto ao corpo. Paralisado de terror, não sabia o que fazer. De repente, uma esperança entusiástica relanceou-lhe o cérebro.

            – Um momento. Há quanto tempo morreu sua irmã? Diga-me rápido.

            – Há dezoito anos. Por que me pergunta? Que importância tem isso?

            Dorian Gray riu; na voz, um toque de triunfo.

            – Dezoito anos? Dezoito anos? Leve-me embaixo do poste e veja meu rosto.

            Por um momento, James Vane hesitou sem entender o que significava aquilo. Mas agarrou Dorian Gray e arrastou-o para fora do arco.

            Mesmo mortiça e trêmula, a luz, lufada de vento, serviu para mostrar a ele, ao que parecia, o equívoco abominável que cometera, pois o homem que tanto quis matar portava todo o florir da meninice, toda a pureza imaculada da juventude. Parecia um mancebo de pouco mais de vinte verões. Mais velho que isso, não era, nem mais velho que a irmã à época em que se separaram, tantos anos atrás. Óbvio estava que não fora aquele homem quem lhe destruíra a vida.

            James Vane largou as mãos, recuou.

            – Meu Deus! Meu Deus! E eu que ia matá-lo!

            Dorian Gray inspirou fundo. Austero, olhou para aquele homem.

            – Você esteve à beira de cometer um crime terrível, meu caro. Que isto lhe sirva de alerta para que não tome a vingança nas próprias mãos.

            – Perdão, senhor. Enganei-me. Uma palavra ao acaso, que ouvi naquele antro maldito, lançou-me na pista errada.

            – É melhor ir para casa, guardar esta pistola; senão, é capaz de arrumar confusão.

            Dorian Gray virou-se nos saltos e, devagar, desceu a rua.

            Horrorizado, James Vane permaneceu no calçamento, trêmulo, da cabeça aos pés. Segundos depois, uma sombra escura, que estivera a esgueirar-se pelo muro chuviscado, surgiu à luz, aproximou-se dele em passos furtivos. James sentiu uma mão pousar-lhe no braço e, em sobressalto, olhou para trás. Era uma das mulheres que estivera bebendo no bar; quase encostou-lhe o rosto, sibilante.

            – Por que não o matou? Quando você saiu do Daly, sabia que viera atrás dele. Você é um imbecil. Devia tê-lo matado. Ele tem muito dinheiro, e é ruim como a própria maldade.

            – Ele não é o homem que procuro, e eu não quero dinheiro de homem nenhum. O homem cuja vida quero deve ter, hoje, uns quarenta anos. Este não passa de um garoto. Graças a Deus não saí com o sangue dele em minhas mãos.

            A mulher soltou uma gargalhada irônica, escarninha.

            – Não passa de um garoto? Olhe, homem, há quase dezoito anos o Príncipe Formoso fez de mim o que sou hoje.

            – Mentirosa! – exasperou James Vane.

            Ela ergueu as mãos aos céus.

            – Por Deus, juro, é a pura verdade.

            – Por Deus?

            – Que ele me emudeça, se não for. O Príncipe Formoso é o pior dos freqüentadores do lugar. Dizem que se vendeu ao diabo, em troca de um rosto bonito. Conheci-o, já faz quase uns dezoito anos e, desde então, não mudou muito...

            Lançou um olhar malévolo.

            – ...Mas eu mudei.

            – Você jura que o que diz é verdade?

            A boca prostrada ecoou rouca, gemida.

           – Juro... Mas não fale a ele de mim; tenho medo dele. Agora me dê algum dinheiro para a dormida.

            Com um juramento, James Vane desvencilhou-se da mulher e correu até a esquina. Dorian Gray, porém, havia desaparecido. Ao olhar para trás, a mulher também desaparecera.

 

            Uma semana depois, em Selby Royal, na estufa, Dorian Gray, sentado, conversava com a linda Duquesa de Monmouth; ela – e também o marido, homem de sessenta anos, de feições de jade – era um de seus convidados. Era hora do chá, e a luz suave do lampião imenso, sobre a mesa, recoberto de seda, fazia resplandecer a porcelana delicada e a prata batida da refeição presidida pela Duquesa. Num divã cor-de-pêssego, Lady Narborough fingia escutar a descrição que o Duque fazia do último besouro brasileiro que acrescentara à sua coleção. Três jovens, trajando smokings elaborados, serviam bolinhos de chá a algumas senhoras. A comitiva consistia de doze pessoas, e outras eram esperadas no dia seguinte.

            Lorde Henry caminhava até a mesa, pousava a xícara de chá.

            – Vocês conversam sobre quê? Espero que Dorian tenha falado de meu plano para rebatizar tudo, Gladys. É uma idéia deliciosa.

            A Duquesa olhou-o, em réplica, com lindos olhos.

            – Mas eu não quero ser rebatizada. Estou muito satisfeita com meu nome, e tenho certeza de que o Sr. Gray também está satisfeito com o dele.

            – Minha cara Gladys, não desejo alterar seu nome, e nem o de Dorian, perante o mundo. São ambos perfeitos. Refiro-me às flores. Ontem, colhi uma orquídea para minha botoeira. Era linda, toda pintada, eficaz como os sete pecados capitais. Num momento impensado, perguntei ao jardineiro como se chamava a flor, e ele disse que se tratava de um belo espécime de Robinsoniana, ou alguma coisa assim, horrível. É a triste realidade, perdemos a faculdade de darmos nomes bonitos às coisas. Os nomes são tudo. Jamais discuto com as ações, e sim, apenas, com as palavras. Por este motivo odeio o realismo vulgar na literatura. O homem que consegue chamar a espada de espada deveria ser compelido a usá-la, pois, para isto, apenas isto, que serve.

            – Então como deveríamos chamá-lo, Harry? – indagou a Duquesa.

            – Ele se chama Príncipe Paradoxo – interveio Dorian.

            – E eu o identifico, de pronto – exultou a Duquesa.

            Lorde Henry riu, afundou-se na poltrona.

            – Parem por aí. É difícil escapar-se de um rótulo; recuso o título.

            – Realezas não podem abdicar – exalou, como um alerta, de bonitos lábios.

            – Você quer, então, que eu defenda meu trono?

            – Quero.

            – Eu anuncio as verdades do amanhã.

            – Pois eu prefiro os erros de hoje.

            Lorde Henry aproveitou-lhe a pertinácia do espírito.

            – Você me desarma, Gladys.

            – Desarmo-o do escudo, e não da lança.

            Lorde Henry coleou a mão.

            – Eu jamais enristo com a beleza.

            – É esse seu erro, Harry, acredite. Você dá excessivo valor à beleza.

            – Não fale assim. Acredito, admito, que é melhor ser bela que generosa. Mas, por outro lado, ninguém, mais do que eu, está preparado para reconhecer que é melhor ser generosa que feia.

            – Quer dizer, então – ponderou a Duquesa –, que a fealdade é um dos sete pecados capitais? Se assim for, o que sucede à sua analogia da orquídea?

            – A fealdade, Gladys, é uma das sete virtudes capitais. Você, como uma boa tóri, não deve subestimá-las. A cerveja, a Bíblia e as sete virtudes capitais fizeram da Inglaterra o que ela é hoje.

            – Você, então, não gosta de seu país?

            – Eu vivo nele.

            – Para que melhor possa censurá-lo.

            – Você quer que eu compartilhe do veredicto da Europa sobre ele?

            – O que ela diz de nós?

            – Que Tartufo emigrou para a Inglaterra e aqui abriu uma loja.

            – Isto é idéia sua, Harry?

            – Dou-a a você.

            – Eu não conseguiria usá-la. É verdadeira demais.

            – Não precisa sentir medo. Nossos compatriotas são incapazes de distinguir qualquer descrição.

            – São práticos.

            – São mais astutos que práticos. No saldo das contas, equilibram a imbecilidade com a riqueza, e o vício com a hipocrisia.

            – Mas, mesmo assim, temos grandes feitos.

            – Grandes feitos nos foram impostos, Gladys.

            – Fomos nós quem lhes suportamos o peso.

            – No que concerne, no máximo, à Bolsa de Valores.

            A Duquesa meneou a cabeça, exultante.

            – Eu acredito na raça!

            – Raça representa a sobrevivência dos intrujões.

            – Raça tem evolução.

            – A decadência fascina-me mais.

            – E a arte?

            – É um mal.

            – O amor?

            – Uma ilusão.

            – A religião?

            – O substituto da moda para a fé.

            – Você é um cético.

            – Jamais! O ceticismo é o princípio da fé.

            – O que você é?

            – Definir é limitar.

            – Dê-me uma pista.

            – Os fios se rompem. Você se perderá no labirinto.

            – Você me assusta. Vamos conversar sobre outra pessoa.

            – Nosso anfitrião é um tópico delicioso. Há anos foi batizado Príncipe Formoso.

            – Para que lembrar? – reclamou Dorian Gray.

            A Duquesa enrubesceu.

            – Nosso anfitrião está azedo, esta noite. Creio que, segundo ele, Monmouth desposou-me por simples questão de princípio científico, pois talvez eu fosse o melhor espécime que conseguiu encontrar de uma borboleta moderna.

            Dorian riu.

            – Bem, espero que ele não espete alfinetes em você.

            – Ora, minha ama já me espeta, quando se zanga comigo.

            – E por que ela se zanga, Duquesa?

            – Pelas coisas mais banais, Sr. Gray, posso assegurá-lo. Em geral, é porque chego às dez para as nove e digo que tenho que estar pronta às oito e meia.

            – Muito injusto da parte dela! Dê-lhe aviso prévio.

            – Eu não ousaria, Sr. Gray. Ela inventa chapéus para mim. Você se lembra do chapéu que usei na festa ao ar livre em casa de Lady Hilstone? Você não se lembra, mas seria simpático fingir lembrar-se. Bem, ela o fez do nada. Todos os bons chapéus são feitos do nada.

            Lorde Henry interrompeu.

            – E também a boa reputação. Todo efeito que produzimos nos proporciona um inimigo. Quem quer ser popular, tem que ser uma mediocridade.

            A Duquesa sacudiu a cabeça.

            – Isto não funciona com as mulheres. E quem governa o mundo são as mulheres, e, posso assegurá-lo, não suportamos mediocridades. Nós mulheres, como alguém já disse, amamos com nossos ouvidos, assim como vocês, homens, amam com os olhos. Isto é, se é que amam.

            – Parece que é isto o que fazemos o tempo todo – murmurou Dorian.

            A Duquesa entristeceu, de troça.

            – Ah, então vocês não conhecem o verdadeiro amor, Sr. Gray.

            – Minha cara Gladys, como pode falar assim? – interrompeu Lorde Henry. – Todo romance vive da repetição, e a repetição converte todo apetite em arte. Além disso, cada vez que amamos é a única vez que amamos. A diferença de objeto não altera a exclusividade da paixão, apenas a intensifica. Podemos ter, na vida, no máximo, uma grande experiência, e o segredo da vida está em repeti-la com a maior freqüência possível.

            A Duquesa fez uma pausa.

            – Mesmo quando esta experiência nos fere, Harry?

            – Especialmente quando nos fere.

            A Duquesa virou-se, olhou para Dorian Gray; nos olhos, a expressão de curiosidade, inquisitiva.

            – E você, Sr. Gray, o que tem a dizer?

            Dorian hesitou, por instantes. Depois, jogou a cabeça para trás, riu.

            – Eu sempre concordo com Harry, Duquesa.

            – Mesmo quando ele está errado?

            – Harry jamais está errado, Duquesa.

            – A filosofia dele deixa-o feliz?

            – Eu jamais procurei a felicidade. De que vale a felicidade? De minha parte, sempre procurei o prazer.

            – E o encontrou, Sr. Gray?

            – Muitas vezes. Muitas vezes.

            A Duquesa suspirou.

            – Quanto a mim, procuro a paz, e se eu não me retirar já para ir me vestir, não vou encontrar paz alguma esta noite.

            – Vou colher orquídeas para você.

            Dorian Gray pôs-se de pé, enveredou pela estufa.

            – Você está flertando demais com ele – comentou Lorde Henry com a prima. – É melhor se cuidar, ele é muito fascinante.

            – Se não fosse, não haveria batalha.

            – Assunto de grego, não?

            – Não, eu estou do lado dos troianos; eles lutaram por uma mulher.

            – E foram derrotados.

            – Há coisas piores que o aprisionamento.

            – Você galopa com rédea solta.

            – O ritmo faz a vida – foi a resposta.

            – Vou escrever isto no meu diário, logo mais.

            – O quê?

            – Que crianças queimadas gostam de fogo.

            – Eu não estou nem chamuscada. Minhas asas estão intocadas.

            – Você as usa para tudo, menos para voar.

            – A coragem passou dos homens para as mulheres. É uma nova experiência para nós.

            – Você tem uma rival.

            – Quem?!

            Lorde Henry riu.

            – Lady Narborough. Ela tem verdadeira adoração por ele.

            – Você me deixa apreensiva. Para nós, românticas, o apelo à Antigüidade é fatal.

            – Românticas? Vocês usam todos os métodos da ciência.

            – Os homens nos ensinaram.

            – Mas não lhes explicaram.

            – Descreva o nosso sexo – veio o desafio.

            – Esfinges sem segredos.

            A Duquesa olhou-o, sorriu.

            – O Sr. Gray está demorando muito. Melhor irmos ajudá-lo. Tenho que informar-lhe a cor de meu vestido.

            – Ora, Gladys. Você terá que usar um vestido que se aproprie às flores que ele escolher.

            – Seria uma rendição prematura.

            – A arte romântica começa pelo clímax.

            – É sempre bom manter uma certa reserva para retirada.

            – À moda de Pártia?

            – Os partos foram buscar segurança no deserto, e eu jamais faria isso.

            – As mulheres nem sempre recebem permissão para optar.

            Lorde Henry mal acabara de proferir a sentença quando, da outra extremidade da estufa, veio um gemido abafado, seguido do som surdo de uma queda violenta. Levantaram-se todos. Horrorizada, a Duquesa permaneceu imóvel e, com medo estampado nos olhos, Lorde Henry atravessou palmas adejantes e foi encontrar Dorian Gray caído no chão de ladrilhos, de rosto para baixo, num desmaio cadavérico.

            Foi levado, sem perda de tempo, ao salão de visitas azul, e pousado num dos sofás. Pouco tempo depois, voltou a si e olhou ao redor numa expressão aturdida.

            – O que aconteceu? Ah, já me lembro. Estou a salvo, Harry?

            Dorian começou a tremer.

            – Meu caro Dorian, foi só um desmaio. Nada mais. Você deve estar esgotado, é melhor não descer para o jantar. Eu tomo seu lugar.

            Dorian Gray esforçou-se para pôr-se de pé.

            – Não, eu vou descer. É melhor eu descer. Não devo ficar só.

            Dorian foi para o quarto, vestiu-se. Ao sentar-se à mesa, havia algo de uma indiferença alegre, espontânea, em seus modos, embora, de vez em quando, percorresse-lhe um arrepio de terror ao lembrar-se que, comprimido contra a vidraça da estufa, qual um lenço branco, vira o rosto de James Vane a observá-lo.

 

            No dia seguinte, Dorian não saiu de casa e, na verdade, passou boa parte do tempo no quarto, doente, com um medo alucinado da morte e, ao mesmo tempo, indiferente à vida. A consciência de que estava sendo caçado, seguido, de que era alvo de uma cilada, começara a dominá-lo. Ao simples tremor da tapeçaria, com o vento, estremecia. As folhas mortas lufadas contra as vidraças plúmbeas eram, para ele, decisões desperdiçadas, remorsos turbulentos. Sempre que cerrava os olhos, via o semblante do marinheiro a bisbilhotar através da vidraça orvalhada, e o horror vinha pousar-lhe, uma vez mais, a mão no coração.

            Talvez, porém, a própria fantasia invocara, na noite, a vingança, e apresentara, diante dele, as formas repugnantes do castigo. A vida real era sempre um caos, mas havia, na imaginação, algo de uma lógica terrível. Era a imaginação que colocava o remorso a atormentar os calcanhares do pecado. Era a imaginação que fazia com que cada crime parisse uma prole deformada. No mundo ordinário do fato, os maus não eram punidos, e nem os bons recompensados. O sucesso era lançado sobre os fortes, e o fracasso, sobre os fracos. Eis tudo. Além disso, se algum estranho andasse a rondar a casa, seria visto pelos criados, ou pelos zeladores. Se pegadas houvesse nas almofadas de flores, os jardineiros as informariam. Claro, fora mera fantasia. O irmão de Sibyl Vane não voltara para matá-lo; tomara um navio, fora para longe, iria soçobrar em algum mar invernoso. Dele, de um jeito ou de outro, estava a salvo. Claro, o homem não sabia quem ele era, impossível saber. Fora salvo pela máscara da juventude.

            Mesmo, porém, que tudo tenha sido simples ilusão, era terrível pensar que a consciência era capaz de criar fantasmas tão atemorizantes, de dar-lhes forma visível, de dar-lhes movimentos diante de nossos olhos! Que tipo de vida levaria se, dia e noite, sombras de seu crime viessem, em cantos silenciosos, espreitá-lo, em lugares secretos, escarnecê-lo, cochichar-lhe ao ouvido nos banquetes, acordá-lo, com dedos gélidos, quando estivesse dormindo! Ao tomar-lhe o cérebro o pensamento, empalideceu de terror, e o ar pareceu esfriar, súbito. Oh, que momento de loucura o fizera matar o amigo! Medonha a simples lembrança da cena! Ele a revivia, inteira. Os pormenores voltavam, em horror ainda maior. De dentro da gruta do tempo, terrível, banhada em escarlate, prorrompeu a imagem do pecado. Quando Lorde Henry foi vê-lo às seis horas, encontrou-o no pranto de um coração em vias de despedaçar-se.

            Só depois do terceiro dia aventurou-se a sair. No ar límpido, perfumado a pinho, daquela manhã de inverno, parecia haver algo que lhe devolveu a alegria e o ardor pela vida. Mas não foram as condições físicas ambientais as únicas a causarem a mudança; a própria natureza interior revoltara-se contra o excesso de angústia que tentava estropiar e desfigurar-lhe a perfeição da calma, o que sempre acontece com temperamentos forjados com sutileza e finura, cujas paixões fortes pulverizam-se, cedem. Ou matam o homem, ou morrem. As tristezas da superfície, os amores da superfície, prosseguem em vida. Grandes amores, grandes tristezas são destruídos pela própria plenitude. Além disso, convencido de que fora vítima de uma imaginação tomada de pânico, via, agora, seus medos, com um pouco de piedade, sem um pingo de desprezo.

           Depois do café da manhã, caminhou com a Duquesa, por uma hora, no jardim; depois, de charrete, atravessou o parque e foi juntar-se ao grupo de caçadores. Quebradiça, a geada repousa sobre a grama, parece sal. O céu era, invertida, uma chávena de metal azul. Uma película de gelo fino bordejava o lago plácido, recoberto de juncos.

            No canto do pinheiral, avistou Sir Geoffrey Clouston, irmão da Duquesa, a sacudir dois cartuchos vazios da arma. De um pulo, desceu da charrete, disse ao cavalariço que voltasse com a égua e, na direção do convidado, atravessou samambaias, murchas, e a vegetação rasteira, irregular.

            – Conseguiu boa caça, Geoffrey?

            – Nem tanto, Dorian. Creio que a maioria dos pássaros deve ter ido para o descampado. Arrisco mesmo a dizer que depois do almoço será melhor, quando iremos para novo campo.

            Ao lado, Dorian caminhava. O ar aromático, penetrante, as luzes castanhas e vermelhas a reluzirem no bosque, os gritos roucos dos batedores a ressoarem eventuais, e os estalidos agudos das armas, sucessivos, fascinavam-no, impregnavam-no de uma sensação deliciosa de liberdade. Estava dominado pelo descuido da felicidade, pela muita indiferença da alegria.

            De repente, de uma moita espessa de capim baixo batido, a uns vinte metros à frente, de orelhas em pé, pretas na extremidade, e com as patas traseiras, compridas, a projetá-las adiante, saltou uma lebre, e disparou para o amieiral. Sir Geoffrey levou a arma ao ombro, mas como algo na graça do movimento daquele animal encantou, de modo singular, a Dorian Gray, ele gritou, imediato.

            – Não atire, Geoffrey. Deixe-o viver.

            O companheiro riu.

            – Que bobagem, Dorian!

            E atirou, quando a lebre já saltava para o amieiral. Ouviram-se dois gritos: o grito de uma lebre, de dor, o que é horrível, e o grito de um homem, de agonia, o que é pior.

            – Meu Deus! Acertei um batedor! Por que esse imbecil foi ficar na linha de fogo? Parem de atirar – gritou a plenos pulmões. – Tem alguém ferido.

            O couteiro veio correndo, com uma bengala na mão, gritando.

            – Onde? Onde?

            O cessar-fogo, em toda a linha, concomitante.

            Furioso, Sir Geoffrey apressava-se rumo ao bosque.

            – Aqui. Por que o senhor não manteve seus homens atrás da linha? Estragou minha caçada por hoje!

            Dorian observou-os a enveredarem amieiral adentro, a afastarem, para o lado, galhos flexíveis, oscilantes. Momentos depois, emergiram; atrás, arrastavam um corpo, traziam-no para a luz do dia. Dorian virou o rosto, horrorizado. Ouviu Sir Geoffrey perguntar se o homem estava mesmo morto, e a resposta afirmativa do couteiro. A Dorian, parecia que o bosque, de repente, criara vida, repleto de rostos. O esmigalhar dos pés miríades, o sussurrar das vozes. Lá no alto, um faisão imenso, de peito de cobre, veio batendo asas por entre os galhos.

            Alguns momentos depois, que foram, para ele, no estado confuso em que se encontrava, horas infindáveis de sofrimento, sentiu uma mão pousar-lhe no ombro. Sobressaltou-se, olhou para trás.

            Era Lorde Henry.

            – Dorian. Julguei melhor dizer a eles que a caça está suspensa por hoje. Não ficaria bem prosseguir.

            Dorian amargurou.

            – Eu gostaria que a suspendessem para sempre. Tudo isso é repulsivo, é cruel. O homem está...?

            Não conseguiu terminar a frase. Lorde Henry emendou.

            – Receio que esteja. Recebeu no peito todo o impacto do tiro. Deve ter tido morte quase instantânea. Vamos, vamos entrar.

            Juntos, caminharam rumo à alameda; sem se falarem, por quase cinqüenta metros. Depois, Dorian olhou para Lorde Henry, suspirou.

            – Mau presságio, Harry, muito mau presságio.

            – O quê? Ah, o acidente, não? Meu caro companheiro, essas coisas são inevitáveis. Foi culpa dele. Por que se colocou à frente das armas? Depois, não temos nada com isso. Para Geoffrey sim, será embaraçoso, é claro. Acertar batedores não é bom negócio. As pessoas pensam que não temos pontaria. E Geoffrey tem pontaria, atira muito bem. Mas não há por que conversar sobre isso.

            Dorian meneou a cabeça.

            – É um mau presságio, Harry. Sinto-me como se alguma coisa horrível fosse acontecer a algum de nós...

            Esfregou os olhos com as mãos, num gesto de dor.

            – ... A mim, talvez.

            O mais velho riu.

            – Neste mundo, Dorian, a única coisa horrível é o tédio. Eis o único pecado para o qual não há perdão. Bem, mas não seremos nós quem iremos sofrer disto, a menos que o pessoal, durante o jantar, resolva conversar sobre o ocorrido. Direi a eles que o assunto foi considerado tabu. E, quanto aos presságios, não existem. O Destino não nos manda arautos; é muito sábio, ou muito cruel. Além disso, o que, nesta terra, poderia acontecer a você, Dorian? Você tem, do mundo, tudo o que um homem pode querer. Não há um só que não queira trocar de lugar com você.

            – E não há um só com quem eu não trocaria de lugar. Harry. Não ria assim. Falo a verdade. O camponês infortunado, que acabou de morrer, está em melhores condições que eu. Não sinto pavor da morte, o que me aterroriza é a aproximação da morte, que, com asas monstruosas, parece, no ar plúmbeo, girar ao meu redor. Por Deus, você não vê, ali atrás das árvores, um homem se movendo, me observando, esperando por mim?

            Lorde Henry olhou na direção em que apontava aquela mão trêmula, enluvada. Sorriu.

            – Claro. Vejo o jardineiro, à sua espera. Creio que ele quer saber que flores você deseja ter à mesa esta noite. Que absurdo, você está muito nervoso, meu caro companheiro! Vou levá-lo ao meu médico, quando voltarmos para a cidade.

            Ao ver o jardineiro aproximar-se, Dorian entufou um suspiro de alívio. O homem tocou o chapéu, olhou para Lorde Henry por um momento, a hesitar, e em seguida tirou do bolso uma carta, que entregou ao patrão.

            – Sua Graça disse-me para esperar a resposta.

            Dorian guardou a carta no bolso. Foi frio.

            – Diga a Sua Graça que já vou entrar.

            O homem virou-se e, rápido, caminhou na direção da casa.

            Lorde Henry riu.

            – Como as mulheres gostam de fazer coisas perigosas! É uma das qualidades que mais admiro nelas. São capazes de flertar com qualquer pessoa, desde que tenha gente olhando.

            – E como você gosta de dizer coisas perigosas, Harry. Com relação a este exemplo específico, você está bem equivocado. Gosto muito da Duquesa, mas não a amo.

            – E a Duquesa o ama muito, mas não gosta tanto. Portanto, uma combinação excelente.

            – Você está invocando escândalo, Harry, e não há base para escândalo.

            Lorde Henry acendeu um cigarro.

            – A base de todo escândalo é uma certeza imoral.

            – A quem você não sacrificaria, Harry, por um epigrama?

            Veio a resposta.

            – O mundo sobe ao altar de livre e espontânea vontade.

            A voz de Dorian Gray exalou uma nota profunda de patos.

            – Eu gostaria de ser capaz de amar. Mas parece que perdi a paixão, que esqueci o desejo. Estou muito concentrado em mim mesmo. Minha própria personalidade tornou-se um fardo para mim. Quero escapar, fugir, esquecer. Foi bobagem ter vindo para cá. Creio que vou mandar um telegrama a Harvey para aprontar o iate. Sempre se está em segurança num iate.

            – Em segurança contra o que, Dorian? Você está em apuros. Por que não me conta o que é? Você sabe que pode contar comigo.

            Dorian estava triste.

            – Não posso contar-lhe, Harry. E arrisco mesmo a dizer que se trata de pura fantasia de minha parte. Este acidente infeliz deixou-me contrariado. Tenho um pressentimento terrível de que algo do gênero irá acontecer comigo.

            – Que bobagem!

            – Espero que seja, embora o pressentimento seja inevitável. Ora, eis a Duquesa! Parece Artêmis, trajando um vestido sob medida. Como você vê, já estamos de volta, Duquesa.

            – Já soube de tudo, Sr. Gray. O coitado do Geoffrey está inconsolável. E parece que você pedira a ele para não atirar na lebre. Curioso, não?

            – É verdade, muito curioso. Não sei por que disse aquilo. Talvez por algum capricho. Parecia a coisinha mais adorável de todos os seres vivos. Mas pena que lhe contaram a respeito do tal homem. É um assunto tenebroso.

            Lorde Henry interceptou.

            – É um assunto entediante, e sem qualquer valor psicológico. Agora, se Geoffrey tivesse feito a coisa de propósito, não seria uma pessoa interessante? Eu gostaria de conhecer alguém que tivesse cometido um assassinato de verdade.

            – Harry – exclamou a Duquesa –, que coisa horrível você diz! Não é mesmo, Sr. Gray? Harry, o Sr. Gray está passando mal de novo. Creio que vai desmaiar.

            Com esforço, Dorian controlou-se, sorriu.

            – Não é nada, Duquesa, meus nervos estão desregulados, é só. Receio que tenha andado demais hoje de manhã. Não ouvi o que Harry disse. Foi tão ruim assim? Diga-me noutra ocasião, agora creio que vou me deitar. Com sua permissão, é claro.

            Os dois chegaram ao grande lance de escadas que unia a estufa ao terraço. Assim que Dorian Gray passou pela porta de vidro, Lorde Henry virou-se e olhou para a Duquesa, com olhos indolentes.

            – Você está muito apaixonada por ele?

            A Duquesa não respondeu de pronto. Apenas contemplou a paisagem, até que, por fim:

            – Eu gostaria de saber.

            Lorde Henry sacudiu a cabeça.

            – Sabê-lo seria fatal. O encanto está na incerteza. A bruma torna as coisas maravilhosas.

            – Mas as pessoas podem se perder.

            – Ora, minha cara Gladys, todos os caminhos conduzem ao mesmo lugar.

            – E que lugar é esse?

            – A desilusão.

            A Duquesa suspirou.

            – Foi meu début na vida.

            – Um début que já começa nobre.

            – Estou cansada de folhas de morangueiro[3].

            – Elas se tornam você.

            – Somente em público.

            – Você irá sentir falta delas.

            – Não levarei uma única pétala.

            – Os ouvidos de Monmouth escutam longe.

            – A senilidade tem a audição embotada.

            – Ele já sentiu ciúmes de você?

            – Gostaria que sim.

            Lorde Henry olhou em volta, como se procurasse algo.

            – O que você procura?

            – O botão de seu florete. Você o deixou cair.

            A Duquesa riu.

            – Mas ainda tenho a viseira.

            – Que, por sinal, deixa seus olhos ainda mais lindos – foi a réplica.

            Ela riu mais uma vez. Os dentes exibiram-se, qual sementes alvas de uma fruta escarlate.

            No pavimento superior, no quarto, Dorian Gray, deitado no sofá, sentia o pânico formigar em todas as fibras do corpo. A vida, de repente transformara-se num fardo insuportável, de tão repulsivo. A morte pavorosa daquele batedor desafortunado, alvejado no bosque como um animal selvagem, a ele parecia prefigurar também a própria morte. E ele quase desfalecera com o que dissera Lorde Henry, num momento fortuito de uma brincadeira irônica.

            Às cinco horas, tocou a campainha a chamar o criado, a quem deu ordens para que lhe arrumasse as malas – ele tomaria o expresso noturno de volta à cidade – e para que a carruagem estivesse na porta às oito e meia. Estava determinado a não dormir nem mais uma noite sequer em Selby Royal, lugar de maus presságios, por onde a morte caminhava em plena luz do dia. O capim da floresta fora maculado de sangue.

            Em seguida, escreveu um bilhete a Lorde Henry, a dizer que iria à cidade consultar-lhe o médico, e a pedir que, em sua ausência, entretivesse os hóspedes. Ao guardar o bilhete no envelope, ouviu uma batida na porta. O criado informava que o couteiro desejava vê-lo. Dorian Gray franziu o sobrecenho, mordeu o lábio. Hesitou, por alguns momentos.

            – Diga a ele que entre.

            Assim que o homem entrou, Dorian apanhou, numa gaveta, o talão de cheques, e espalhou-o diante do couteiro. Apanhou uma pena.

           

            – Creio que você veio a propósito do acidente de hoje de manhã, Thornton.

            – Claro, senhor.

            Dorian tinha o aspecto entediado.

            – Era casado, o pobre do rapaz? Possuía dependentes? Se os possuía, não gostaria de deixá-los em necessidade. Remeto-lhes qualquer importância que você julgar conveniente.

            – Nós não sabemos quem ele é, senhor. Foi por isso que tomei a liberdade de procurá-lo.

            – Vocês não sabem quem ele é? – indagou, casual. – Como assim? Não era um de seus homens?

            – Não, senhor. Eu nunca o vira antes. Parece um marinheiro, senhor.

            A pena caiu da mão de Dorian Gray, e ele se sentiu como se, de repente, o coração parasse de bater.

            – Um marinheiro? Você disse marinheiro?

            – Foi, sim senhor. O aspecto é de marinheiro; tatuagem nos dois braços, esse tipo de coisa.

            Dorian inclinou-se à frente, lançou, ao homem, um olhar esbugalhado.

            – E encontraram alguma coisa com ele? Alguma coisa que lhe identificasse o nome?

            – Um pouco de dinheiro, senhor... não muito... e um revólver de seis tiros. Nenhum nome foi encontrado, de espécie alguma. Um homem de aspecto decente, senhor, embora rude. Pensamos que seja uma espécie de marinheiro.

            Dorian pôs-se de pé. Uma esperança mórbida ventilou-o, ele apegou-se a ela, alucinado.

            – Onde está o corpo? Rápido. Quero vê-lo já!

            – Está num estábulo vazio da propriedade. O senhor sabe, o povo não gosta de ter uma coisa destas em casa. Dizem que cadáver dá azar.

            – Num estábulo da propriedade? Encontre-me lá, imediatamente. E diga a um de meus cavalariços para trazer-me o cavalo. Não. Não se incomode. Eu mesmo vou ao estábulo, assim ganho tempo.

            Em menos de um quarto de hora, ao longo da alameda, Dorian Gray galopava a todo empenho. As árvores pareciam deslizar impetuosas por ele, em procissão espectral, e sombras selvagens arrojavam-se-lhe no caminho. Certo momento, ao deparar-se com a estaca de uma porteira branca, a égua deu uma guinada e quase atirou-o ao chão. Dorian fustigou-a no pescoço, com o chicotinho. Como uma flecha, a égua abriu caminho no ar mortiço. Dos cascos, pedras saltavam.

            Chegaram, enfim, aos estábulos. Na frente, dois homens passavam o tempo. Dorian Gray saltou da sela e, a um deles, entregou as rédeas. No último estábulo, uma luz piscava. Algo parecia dizer a ele que o corpo estava lá. Apressou-se, chegou à porta, pousou as mãos na aldrava.

            Ali ficou por um momento, parado, a sentir que se encontrava à beira de uma descoberta que poderia organizar-lhe a vida, ou arruiná-la. Depois, com força, abriu a porta, entrou.

            Num monte de aniagem, na outra extremidade, jazia o cadáver de um homem trajando uma camisa grosseira e calças azuis. A cobrir-lhe o rosto, alguém colocara um lenço de bolinhas. Ao lado, enfiada numa garrafa, estava uma vela ordinária.

            Dorian Gray estremeceu. Não seria sua mão que iria remover dali aquele lenço, e chamou um dos empregados do estábulo.

            – Tire aquela coisa do rosto dele. Eu quero vê-lo.

            Em busca de apoio, agarrou-se à ombreira da porta.

            Assim que o empregado do estábulo a removeu, Dorian deu um passo à frente. Um grito de alegria irrompeu-lhe dos lábios. O homem morto no bosque era James Vane.

            Por alguns minutos, Dorian ali permaneceu, a olhar o cadáver. E, ao regressar para casa, os olhos estavam marejados em lágrimas, pois sabia que estava salvo.

 

            Lorde Henry mergulhou os dedos alvos numa tigela de cobre vermelho, contendo água-de-rosas.

            – É inútil dizer-me que você será bom doravante. Você é perfeito; por favor, não mude.

            Dorian Gray sacudiu a cabeça.

            – Não, Harry, já fiz muitas coisas horríveis em minha vida. Não as farei mais. A partir de ontem, comecei minhas boas ações.

            – E onde você estava ontem?

            – No campo, Harry. Numa pequena estalagem... só.

            Lorde Henry sorriu.

            – Meu caro menino. Qualquer um pode ser bom no campo; não há tentações. Eis o motivo por que as pessoas que vivem fora da cidade são tão pouco civilizadas. A civilização não é, de maneira alguma, coisa fácil de se atingir, e há apenas duas maneiras por que o homem é capaz de alcançá-la. Uma delas, sendo culto, e a outra, sendo corrupto. Como as pessoas do campo não têm oportunidade de ser nem uma coisa nem outra, estagnam.

            Dorian ecoou.

            – Cultura e corrupção. Conheço um pouco das duas. A mim, agora, parece terrível que as duas coisas tenham que andar juntas. Pois eu encontrei um novo ideal, Harry. Eu vou mudar. Creio mesmo que já mudei.

            – Você ainda não me contou qual foi sua boa ação. Ou será que você disse que foi mais de uma?

            O companheiro despejava, no prato, uma piramidezinha de brotos de morango e, com uma colher perfurada, em forma de concha, espalhava, sobre eles, açúcar refinado.

            – Não posso contar-lhe, Harry. É uma história que não posso contar a mais ninguém. Eu poupei uma pessoa. Parece fútil, mas sei que você compreende o que quero dizer. Ela era muito bonita e, como Sibyl Vane, maravilhosa. Creio ter sido este o motivo principal que me atraiu nela. Você se lembra de Sibyl, não lembra? Parece que já faz tanto tempo! Bem, claro que Hetty não era de nossa posição social. Era uma simples garota de aldeia. Entretanto, eu a amava. Tenho certeza absoluta de que a amava. Neste mês de maio, maravilhoso, fui vê-la umas duas ou três vezes por semana. Ontem, encontramo-nos num pequeno pomar, e as flores de macieira caíam-lhe nos cabelos. Ela ria. Hoje de manhã, ao alvorecer, íamos fugir, mas, de repente, determinei-me a deixar que permanecesse a mesma flor que era quando a encontrei.

            Lorde Henry interrompeu.

            – Creio que a novidade da emoção, Dorian, deve ter-lhe causado um frêmito real de prazer. Mas permita-me terminar o idílio por você. Você deu a ela bons conselhos, e partiu-lhe o coração. Aí está o começo de sua reforma.

            – Você é assustador, Harry! Por que tem que dizer estas coisas horríveis? O coração de Hetty não se partiu. Ela chorou, é claro, e tudo o mais. Mas não caiu em desgraça. Assim como Perdita, ela ainda pode viver no jardim dos cravos e hortelãs.

            Lorde Henry recostou-se na poltrona; riu.

            – E chorar pelo infiel Florizel. Meu caro Dorian, você entra em estados de espírito curiosos, tão infantis. Você crê que esta jovem, agora, satisfar-se-á com alguém de sua posição? Um dia, suponho, ela irá se casar com um carroceiro, ou com um lavrador mal-encarado. Bem, o fato de tê-lo encontrado, amado, fará com que despreze o marido, e estará, então, desgraçada. Sob o ponto de vista moral, não posso dizer que tenha considerado sua renúncia em alto valor. É fraca, mesmo como começo. Além disso, você é capaz de garantir que ela não esteja, neste exato instante, num açude, à luz das estrelas, a flutuar, como Ofélia, com lindos lírios aquáticos ao redor?

            – Isto é insuportável, Harry! Você zomba de tudo e ainda insinua as piores tragédias. Arrependo-me de tê-lo dito. Não me importa o que você diga. Sei que estava correto, ao agir como agi. Pobre Hetty! Ao cavalgar ao largo da fazenda, hoje de manhã, vi aquele rosto alvo à janela, parecia um ramalhete de jasmim. Bem, não falemos mais nisso, e não tente persuadir-me de que a primeira boa ação que faço em tantos anos, o primeiro fragmento de auto-sacrifício que já conheci é, na verdade, uma espécie de pecado. Eu quero melhorar. Eu vou melhorar. Fale-me algo a seu respeito. O que está acontecendo na cidade? Há dias não vou ao clube.

            – Ainda se comenta o desaparecimento de Basil. Coitado!

            Dorian serviu-se de um pouco de vinho e franziu o sobrecenho.

            – A esta altura, pensei que já estivessem cansados do assunto.

            – Meu caro menino, o assunto está em pauta há apenas seis semanas, e o povo britânico não está apto a uma fadiga mental superior a um tópico a cada três meses. Em dias recentes, porém, têm tido sorte. Tiveram o caso do meu próprio divórcio, e o suicídio de Alan Campbell. E agora, o desaparecimento misterioso de um artista. A Scotland Yard ainda insiste que o homem de casaco cinzento que embarcou para Paris no trem da meia-noite, no dia nove de novembro, era mesmo o pobre Basil, mas a polícia francesa declara que Basil não desembarcou em Paris. Suponho que, dentro de uma semana, seremos informados de que Basil foi visto em São Francisco. Parece estranho, mas, sempre que alguém desaparece, é visto em São Francisco, dizem. Deve ser uma cidade maravilhosa, e possuir todos os atrativos de um mundo futuro.

            – O que você julga tenha acontecido a Basil?

            Dorian ergueu o Borgonha contra a luz, e pôs-se a pensar em como era possível que estivesse assim tão calmo a conversar sobre o assunto.

            – Não faço a mínima idéia. Se Basil quer se esconder, o problema não é meu. Se estiver morto, não quero pensar nele. A morte é a única coisa que me aterroriza. Eu odeio a morte.

            – Por quê? – perguntou Dorian, extenuado.

            Lorde Henry levou a treliça dourada do frasco de sais, aberto, às narinas.

            – Porque, excetuada a morte, podemos sobreviver a qualquer coisa hoje em dia. A morte e a vulgaridade são, no século dezenove, os dois únicos fatos impossíveis de ser esclarecidos. Tomemos café no salão de música, Dorian. Quero que você toque Chopin para mim. O homem com quem fugiu minha mulher tocava Chopin de modo muito estranho. Pobre Victória! Eu gostava muito dela; sem ela, a casa está muito solitária. É claro que a vida de casado não passa de hábito, de um mau hábito, mas sempre sentimos a perda de nossos piores hábitos. E por eles, talvez, sintamos muito mais. São uma parte tão essencial de nossa personalidade.

            Dorian não disse palavra, apenas levantou-se da mesa, dirigiu-se ao salão contíguo, sentou-se ao piano e soltou os dedos a vagar no marfim branco e negro das teclas. Servido o café, Dorian parou, olhou para Lorde Henry.

            – Harry, já ocorreu a você que Basil tenha sido assassinado?

            Lorde Henry bocejou.

            – Basil era muito popular, e sempre usava aquele relógio de Waterbury. Por que seria assassinado? Não era esperto o bastante para ter inimigos. Claro, para a pintura, era dotado de genialidade esplêndida, mas qualquer um pode pintar como Velásquez e ser, ao mesmo tempo, o mais aparvalhado possível. Basil era mesmo muito aparvalhado. Somente numa única ocasião me interessou, e foi quando disse, anos atrás, que nutria por você verdadeira adoração, e que você era o motivo dominante de sua arte.

            A voz de Dorian continha uma nota de tristeza.

            – Eu gostava muito de Basil. As pessoas não andam dizendo que ele foi assassinado?

            – Alguns jornais, sim. Mas a coisa não me parece de todo provável. Sei que há lugares pavorosos em Paris, mas Basil não é o tipo de pessoa que os freqüentasse. Não era dotado de curiosidade; seu maior defeito.

            – O que você diria, Harry, se eu lhe dissesse que eu assassinei Basil?

            Ao terminar a pergunta, Dorian, intencional, observou Lorde Henry.

            – Eu diria, meu caro companheiro, que você estaria desempenhando um papel não condizente com você. Todo crime é vulgar, assim como toda vulgaridade é crime. Não está em você, Dorian, cometer assassinatos. Sinto se, ao dizer isto, firo sua vaidade, mas, asseguro, é verdade. O crime é exclusivo das ordens inferiores. E não as culpo, nem um pouquinho, pois imagino que o crime seja para elas o que a arte é para nós, um simples método de busca de sensações extraordinárias.

            – Um método de busca de sensações extraordinárias? Quer dizer, então, que, para você, um homem que comete um crime poderá cometê-lo de novo? Não me venha com essa!

            Lorde Henry riu.

            – Sempre que fazemos alguma coisa com muita freqüência, ela jamais se constitui num prazer. Eis um dos segredos mais importantes da vida. Imagino, entretanto, que o crime seja um erro. Não devemos fazer nada sobre que não possamos conversar depois do jantar. Bem, mas esqueçamo-nos do pobre Basil. Eu gostaria de acreditar que ele tenha tido o fim romântico que você insinuou, mas não consigo. Arrisco mesmo em dizer que ele deve ter caído de um trâmuei, despencado no Sena, e que o condutor tenha abafado o escândalo. É, é este o fim que imagino tenha tido. Posso vê-lo estirado, de barriga para cima, no fundo daquela água verde-escuro, com aquelas barcaças pesadas a flutuar por cima dele, e com ervas marinhas presas nos cabelos. Sabe de uma coisa? Creio que ele não iria mais ter chance de realizar outros bons trabalhos. A pintura de Basil, nos últimos dez anos, caiu muito.

            Dorian exalou um suspiro, e Lorde Henry caminhou até o outro lado do salão, pôs-se a afagar a cabeça de um curioso papagaio de Java, um pássaro grande, de penas cinzas, de crista e cauda cor-de-rosa, que balançava num poleiro de bambu, e que, ao toque daqueles dedos finos, desprendeu a carepa alva das pálpebras pregueadas que recobriam olhos negros, vítreos, e começou a balançar, para trás, para frente.

            Lorde Henry virou-se, retirou o lenço do bolso.

            – É verdade, a pintura de Basil caiu muito. Perdeu alguma coisa, parece-me. Perdeu um ideal. Quando vocês dois deixaram de ser grandes amigos, ele deixou de ser um grande artista. O que teria separado vocês dois? Suponho que ele tenha entediado você. Se assim foi, jamais o perdoou. Esta é uma das características do tédio. Aliás, o que aconteceu àquele retrato maravilhoso que ele fez de você? Não acredito que eu o tenha visto depois de acabado. Ah! Agora me lembro! Anos atrás você me disse que o enviara a Selby e que, no trajeto, ele teria sido extraviado, ou roubado. Você não conseguiu recuperá-lo? É uma pena, era mesmo uma obra-prima. Lembro-me que eu quis comprá-lo. Antes tivesse, pois pertence ao período mais fértil de Basil. Desde então, o trabalho dele passou a ser aquela mistura curiosa de pintura de má qualidade e boas intenções, que habilita a qualquer pessoa intitular-se representativo da arte britânica. Você anunciou nos jornais? Deveria fazê-lo.

            – Não me lembro. Creio que sim. Mas eu não gostava mesmo muito do retrato. Arrependo-me de ter posado. A lembrança da coisa me é odiosa; por que você insiste em falar nela? Faz-me lembrar dos versos curiosos daquela peça... Hamlet, creio. Como são mesmo?

            É como pintar a tristeza

            Um semblante sem coração.

            – É. É isso!

            Lorde Henry riu, afundou-se na poltrona.

            – Quando o homem trata a vida com arte, o cérebro é o próprio coração.

            Dorian Gray meneou a cabeça e, ao piano, tirou alguns acordes suaves. Repetiu:

            – É como pintar a tristeza, um semblante sem coração.

            O mais velho recostou-se, olhou-o com olhos semicerrados. E, depois de uma pausa:

            – Por falar nisso, Dorian, “qual a vantagem de um homem em conquistar o mundo inteiro e perder” – como é mesmo a citação? – “a própria alma”?

            A música desentoou, Dorian Gray sobressaltou, olhou fixo para o amigo.

            – Por que você me pergunta isso agora?

            Surpreso, Lorde Henry ergueu as sobrancelhas.

            – Meu caro companheiro, fiz-lhe a pergunta porque pensei que você pudesse me dar a resposta; só por isso. Domingo passado, eu passeava pelo Parque e, junto ao Arco de Mármore, vi um ajuntamento de pessoas esmolambadas atento a um desses pregadores vulgares da rua. Ao passar por ali, ouvi o pregador, em voz alta, lançar esta pergunta à platéia, e a pergunta me pareceu bastante dramática. Londres é muito fecunda neste gênero de efeitos curiosos. Um domingo chuvoso, um cristão insólito, trajando uma capa de borracha, e uma roda de rostos alvos, doentios, abrigada ao teto furado de guarda-chuvas repletos de goteiras, e esta frase maravilhosa arremessada ao ar por lábios estridentes, histéricos. A seu modo, foi muito bom, de uma pertinência insinuante. Pensei em ir dizer ao profeta que a arte possui alma, mas o homem não. Receio, entretanto, que ele não me iria compreender.

            – Não, Harry. A alma é uma realidade terrível. Podemos comprá-la, vendê-la, barganhá-la. Podemos envenená-la, ou aperfeiçoá-la. Em cada um de nós existe uma alma. Eu sei que existe.

            – Você tem certeza absoluta, Dorian?

            – Absoluta!

            – Ah, então deve ser ilusão. As coisas de que temos certeza absoluta jamais são verdadeiras. É esta a fatalidade da fé, a lição do romance. Você está muito casmurro; não fique tão sério assim. O que você, ou eu, temos com as superstições de nossa época? Não, nós dois já desistimos de nossa fé na alma. Toque alguma coisa para mim. Toque um noturno, Dorian, e, enquanto toca, diga-me, baixinho, como foi que conseguiu manter a juventude. Qual o segredo que você guarda? Eu sou apenas dez anos mais velho que você e estou enrugado, gasto, amarelo. Você, Dorian, na verdade, é maravilhoso. E nunca esteve tão encantador quanto esta noite. Faz-me lembrar o dia em que nos conhecemos. Você tinha as maçãs do rosto rosadas, era tímido, era extraordinário, sob todos os aspectos. Você está mudado, é claro, mas não nas feições. Gostaria que você me contasse seu segredo. Faria qualquer coisa no mundo para recuperar minha juventude, que não seja fazer exercícios, levantar cedo, e ser respeitável. Ah, a juventude! Não há nada que se iguale a ela. É um absurdo dizer que a juventude é ignorante. Hoje em dia, as únicas pessoas cujas opiniões ouço, com respeito, são pessoas muito mais jovens que eu, pois parecem que estão na frente, que a vida acaba de revelar-lhes a maravilha mais recente. Quanto aos velhos, sempre os contradigo. Por princípio. Peça que opinem sobre algo ocorrido ontem e eles, solenes, emitirão a opinião corrente em 1820, época das meias compridas, as pessoas acreditavam em tudo e não conheciam nada. Que música maravilhosa você toca! Será que Chopin a escreveu em Maiorca, com o mar a envolver-lhe a vivenda num lamento, com os borrifos do sal a chicotear-lhe as vidraças? É de um romântico maravilhoso! É uma bênção que ainda exista uma arte não imitativa! Não interrompa. Esta noite, quero música. Você parece o jovem Apolo, e eu, que o escuto, sou Márcias. Carrego tristezas, Dorian, minhas tristezas, que nem você conhece. A tragédia da velhice não é a existência do velho, mas, sim, a existência do jovem. Surpreendo-me, às vezes, com minha própria sinceridade. Ah, Dorian, como você é feliz! Que vida tão singular você levou! Você sorveu de tudo, em profundidade. Esmagou uvas no céu da boca. Nada se escondeu de você. E tudo, para você, não passou de um som musical. Você não se desfigurou, ainda é o mesmo.

            – Eu não sou o mesmo, Harry.

            – É sim, você ainda é o mesmo. Fico a imaginar como será sua vida, doravante. Não a estrague com renúncias. Como você está hoje, é o tipo perfeito. Não contém imperfeições. Não, não adianta sacudir a cabeça, você bem sabe que não as tem. Além disso, Dorian, não se deixe enganar. A vida é uma questão de nervos, de fibras, de células, construídas aos pouquinhos, em que o pensamento se esconde e a paixão sonha. Talvez você pense que seja seguro, que seja forte. Mas uma tonalidade de cor diferente, casual, num aposento, no céu de uma certa manhã, um perfume especial de que você tanto gostou, porventura, e que evoca lembranças sutis, um verso de um poema esquecido, com que você se depara novamente, a cadência de uma peça musical que você já não mais tocava... Eu digo, Dorian, é de coisas como essas que nossas vidas dependem. Browning escreveu sobre isso, em algum livro, mas nossos próprios sentidos são capazes de imaginá-las. Há momentos em que, de repente, me resvala o aroma do “lilás branco”, e eu me ponho a reviver o mês mais estranho de toda minha vida. Eu gostaria de trocar de lugar com você, Dorian. Embora o mundo nos tenha execrado a nós dois, sempre teve adoração por você. E sempre terá. Você é o tipo que nossa era procura, e que tem medo de ter encontrado. Muito me alegra que você jamais tenha realizado qualquer coisa, que jamais tenha esculpido uma estátua, pintado um quadro, produzido qualquer coisa exterior a você mesmo! Sua arte é a própria vida. Você se entregou à música. Os dias de sua vida são seus sonetos.

            Dorian levantou-se do piano, permeou a mão nos cabelos.

            – É, Harry, tenho levado uma vida primorosa; mas não quero continuar com a mesma vida. E não me diga estas coisas extravagantes. Você não conhece tudo a meu respeito. Se conhecesse, creio que também me daria as costas. Você ri? Pois não ria, Harry.

            – Por que parou de tocar, Dorian? Volte, e presenteie-me com aquele noturno, de novo. Olhe, ali no escuro do céu, a lua cor-de-mel. Ela está à espera, quer que você a seduza. Se você tocar, ela se aproximará da terra. Não quer tocar? Vamos ao clube, então. Foi uma noite encantadora, e é com encanto que deve encerrá-la. No White, há alguém que deseja muito conhecê-lo. É o jovem Lorde Poole, o filho mais velho de Bournemouth. Ele até já copiou suas gravatas, e implorou-me para que o apresentasse a você. Ele é tão encantador, me faz lembrar tanto de você.

            Dorian tinha os olhos entristecidos.

           – É uma pena que ele o faça lembrar-se de mim. Mas, estou cansado, Harry, não quero ir ao clube. São quase onze horas, e quero ir dormir cedo.

            – Então fique. Você jamais tocou tão bem quanto esta noite. Seu dedilhado continha algo de maravilhoso; jamais o vi com tanta expressão assim.

            Dorian Gray sorriu.

            – É porque, de hoje em diante, vou ser bom. E já me sinto mesmo um pouco mudado.

            – Não mude com relação a mim, Dorian. Você e eu sempre seremos amigos.

            – Você fala assim, Harry, mas um dia me envenenou com um livro. Eu não deveria perdoá-lo. Quero que me prometa uma coisa, Harry, jamais emprestar aquele livro para alguém. É um livro maléfico.

            – Meu caro menino. Isto já é querer moralizar. Assim, em pouco tempo você estará por aí, como um ressurgente, um prosélito, a alertar as pessoas contra os pecados de que já se cansou. Você é encantador demais para isto. Além disso, que utilidade teria? Você e eu somos o que somos, e seremos o que seremos. E, quanto ao fato de ter sido envenenado por um livro, isto não existe. A arte não tem qualquer influência sobre a ação. É estéril, em sua soberba. Os livros que o mundo chama de imorais são os livros que mostram ao mundo a própria vergonha. Eis tudo. Mas não discutamos literatura. Apareça, amanhã. Às onze, darei meu passeio de carruagem. Podemos ir juntos e, depois, levo-o a almoçar com Lady Branksome. É uma dama encantadora, e ela deseja consultá-lo sobre umas tapeçarias que está pensando adquirir. Você se importa de ir? Ou, então, que tal irmos almoçar com nossa Duquesinha? Ela diz que não o vê há tanto tempo. Você está cansado de Gladys? Sabia que se cansaria dela. Aquela língua ladina dá nos nervos. Bem, de um jeito ou de outro, esteja aqui às onze.

            – Tenho mesmo que ir, Harry?

            – Claro. O Parque anda muito bonito. Creio que, como no ano em que o conheci, florescem lilases agora como antes não floresciam.

            – Está bem, estarei aqui às onze. Boa noite, Harry.

            Ao chegar à porta, Dorian, por um momento, hesitou, como se tivesse algo a acrescentar. Mas suspirou, e saiu.

 

            Era uma noite linda. Morna, tanto que jogou o paletó no braço e nem vestiu o cachecol de seda no pescoço. Caminhava para casa, fumava um cigarro, e dois jovens, em traje noturno, passaram por ele.

            – Este aí é Dorian Gray.

            Um cochichou para o outro. Dorian lembrou-se de como costumava regozijar-se quando era apontado, olhado ou comentado. Agora, porém, estava cansado de ouvir o próprio nome. Parte do encanto da cidadezinha que hoje freqüentava com tanta assiduidade estava no fato de não o conhecerem por lá. Muitas vezes disse, à moça que atraíra a amá-lo, que era pobre, e ela acreditara. Uma vez chegou a dizer-lhe que era perverso; ela rira dele, e respondera que as pessoas perversas eram sempre muito velhas ou muito feias. Que risada! Parecia o canto de um tordo. E como era bonita naqueles vestidos de algodão, naqueles chapéus imensos! Ela nada sabia, mas tudo possuía que ele perdera.

            Ao chegar em casa, encontrou o criado à espera. Mandou que fosse dormir e, na biblioteca, atirou-se no sofá, e pôs-se a pensar em algumas coisas que Lorde Henry dissera.

            Seria mesmo possível alguém não mudar nunca? Que saudade, irrefreada, sentia pela pureza imaculada da meninice, da meninice alvi-rosa, como Lorde Henry a chamara, um dia. Ele sabia que se havia poluído, que, com corrupção, havia abarrotado a mente e, com horror, a fantasia; que fora péssima influência para outras pessoas e muito se alegrara em sê-lo. E de todas as vidas que se cruzaram com a sua, envergonhara precisamente a mais justa, a mais promissora. Haveria como reparar tudo isto? Será que não haveria qualquer esperança para ele?

            Ah, que momento monstruoso aquele, de orgulho e paixão, em que pedira ao retrato suportar-lhe o fardo dos dias para que ele mantivesse o esplendor puro da juventude eterna, e que fora a causa de seu fracasso! Para ele teria sido melhor se cada pecado tivesse acarretado a respectiva pena, correta, rápida, concomitante. Em todo castigo há purificação. Em vez de “Perdoai os nossos pecados”, “Afastai nossas iniqüidades” deveria ser a prece do homem a um Deus mais justo.

            O espelho, de cinzelado curioso, com que Lorde Henry o presenteara há tantos anos, repousava em cima da mesa, e os cupidos, com membros alvos, riam à grande, como nos velhos tempos. Dorian levantou-o, como fizera naquela noite de horror ao reparar, pela primeira vez, a mudança no quadro fatal e, com lágrimas espontâneas nos cantos dos olhos, olhou-se no reflexo lustroso. Um dia, alguém, que muito o amava, escrevera a ele uma carta tresloucada que terminava com as seguintes palavras idólatras: “O mundo mudou, pois de marfim e ouro você se formou. As curvas dos seus lábios reescrevem a história”. As frases voltavam-lhe à lembrança, e Dorian as repetia, mais e mais, consigo mesmo. Depois, abominou a própria beleza, atirou o espelho no chão e, com o salto, estilhaçou-o em lascas prateadas. A beleza o arruinara, a beleza e a juventude por que tanto suplicara. Contudo, a depender destas duas coisas, a vida ter-lhe-ia sido livre de mácula. Pois a beleza não fora senão uma máscara, e a juventude, uma zombaria. O que era a juventude, na melhor das hipóteses? Uma época de tempos verdes, imaturos, de tempos de estados de espírito superficiais, de pensamentos doentios. Por que vestira a indumentária da juventude? Ela o estragara.

            Melhor não pensar no passado; nada iria alterá-lo. Tinha que pensar, isto sim, em si mesmo, no próprio futuro. James Vane escondia-se, num túmulo sem nome, no pátio da igreja de Selby. Alan Campbell, com um tiro, suicidara-se, uma noite, no laboratório, sem revelar o segredo que fora forçado a conhecer. E toda a comoção, por assim dizer, que envolvia o desaparecimento de Basil Hallward, logo passaria. E já esvaecia. Quanto a isto, estava em segurança absoluta. E nem era, tampouco, a morte de Basil Hallward que mais lhe pesava na cabeça; o que mais o preocupava era a morte em vida da própria alma. Fora Basil quem pintara o retrato que lhe arruinara a vida, e por isso não poderia perdoá-lo, pois fora o retrato o responsável por tudo. Basil dissera coisas insuportáveis e, mesmo assim, ele as suportara com paciência. O assassinato fora uma simples loucura de momento. E quanto a Alan Campbell, suicidara-se por ato próprio, optara pelo suicídio. Ele não tinha nada com isso.

            Uma nova vida! Era isto o que queria: Era por isto que ele ansiava e, com certeza, já a havia começado. De um jeito ou de outro, já poupara uma coisinha inocente. Jamais, novamente, tentaria seduzir a inocência. Seria bom.

            Ao pensar em Hetty Merton, pôs-se a pensar se o retrato, trancado naquele quarto, se alterara. Já não deveria estar tão medonho quanto antes. Se levasse uma vida pura, talvez pudesse expelir todo sinal de paixão maléfica daquele rosto. E quem sabe os sinais do mal já não tivessem esvaecido? Iria dar uma olhada.

            Em cima da mesa, apanhou o lampião, esgueirou-se escada acima. Ao destrancar a porta, um sorriso de alegria esvoaçou-lhe pelo rosto, de feições jovens, estranho, e demorou-se, no contorno dos lábios. Claro, ele seria bom, e aquela coisa repugnante que tanto escondera já não mais o aterrorizaria. Sentiu como se o peso já não mais estivesse sobre suas costas.

            Entrou, silencioso, fechou a porta ao passar, como de hábito, e arrastou o pano púrpura de cima do retrato. Irrompeu num grito de dor e indignação. Não havia mudança alguma, exceto, nos olhos, a expressão de cinismo, e, na boca, a ruga serpeada do hipócrita. A coisa ainda era abominável – mais abominável que antes, se é que isso fosse possível – e o orvalho escarlate, que manchava aquela mão, parecia mais vívido, mais se assemelhava a sangue recém-derramado. Então, estremeceu. Teria sido por mera vaidade que fizera sua única boa ação? Ou fora o desejo por sensações novas, como insinuara Lorde Henry com aquela risada escarninha? Ou teria sido a paixão de desempenhar um papel que, às vezes, nos impulsiona a fazer coisas melhores do que quando somos nós mesmos? Ou, quem sabe, tudo isso ao mesmo tempo? E por que estaria a mancha vermelha maior que antes? Parecia ter se alastrado, como uma doença horrível, por aqueles dedos vincados. E, nos pés pintados, havia sangue, como se a coisa houvesse gotejado – sangue, até mesmo na mão que não segurara a faca. Confessar? Significaria aquilo, porventura, que teria que confessar? Entregar-se, condenar-se à morte? Dorian riu. A idéia era monstruosa, sentiu. Além disso, mesmo que confessasse, quem iria acreditar? Não existia, em canto algum, qualquer vestígio do homem assassinado. Todos os seus pertences haviam sido destruídos. Ele próprio queimara as coisas que ficaram lá embaixo. O mundo diria apenas que estava louco, e o trancafiaria, se persistisse com a história... Seu dever, entretanto, era confessar, sofrer a vergonha pública, entregar-se à expiação pública. Um Deus existia que exigia dos homens que contassem seus pecados, assim na terra como no céu. Nada que fizesse o iria purgar, a menos que contasse o próprio pecado. Pecado? Dorian encolheu os ombros. A morte de Basil Hallward parecia, a ele, coisa pouca. Pensava em Hetty Merton. Pois olhava-se num espelho injusto, no espelho da própria alma. Vaidade? Curiosidade? Hipocrisia? Sua renúncia não passara disso? Não, algo mais havia, ao menos acreditava que houvesse. Bem, mas quem teria que responder?... Não, não havia mais nada. Por vaidade, poupara-a. Por hipocrisia, usara a máscara da bondade. Em prol da curiosidade, tentara negar o próprio ser. Reconhecia-o agora.

            Este assassinato, porém... iria persegui-lo por toda a vida? Teria ele que carregar o eterno fardo do passado? Teria que confessar? Nunca. A prova contra ele era mínima: o quadro, a única prova. E ele o destruiria. Aliás, não sabia por que o guardara por tanto tempo, pois, outrora, sentia prazer em vê-lo mudar, envelhecer, prazer que ora já não mais existia. Tirava-lhe o sono da noite e, quando viajava, sempre se aterrorizava, receoso de que outros olhos o vissem. Trouxe melancolia a suas paixões. A simples lembrança do quadro servira para estragar muitos momentos de alegria. Para ele, o quadro agira como a própria consciência. Não, fora mesmo a própria consciência. Ele o destruiria.

            Dorian olhou em volta, viu a faca com que apunhalara Basil Hallward. Limpara-a diversas vezes, até deixá-la sem uma única mancha sequer. Estava clara, reluzente. E, do mesmo modo com que matara o pintor, mataria a obra do pintor, e tudo o que ela significava. Mataria o passado, e logo que aquilo morresse, ele estaria livre. Mataria aquela vida-espírito, monstruosa, e, sem seus conselhos repulsivos, ele alcançaria a paz. Dorian agarrou o objeto e esfaqueou o quadro.

            Ouviu-se um grito, e um baque. Um grito de uma agonia tão pavorosa que os criados, amedrontados, acordaram e, acuados, saíram dos respectivos aposentos. Dois cavalheiros passavam pela praça, lá embaixo, e pararam; ergueram o olhos na direção do casarão. Continuaram a caminhar, encontraram um policial, trouxeram-no de volta. Por diversas vezes, tocaram a campainha; sem resposta. Com exceção da luz numa das janelas superiores, a casa estava às escuras.

            Algum tempo depois, o policial afastou-se, pôs-se de pé num pórtico contíguo, e ficou observando.

            O mais velho dos dois cavalheiros perguntou:

            – Quem mora na casa, guarda?

            O policial respondeu:

            – É o Sr. Dorian Gray, senhor.

            Os dois entreolharam-se, e afastaram-se, sorrindo escarninhos. Um deles era o tio de Sir Henry Ashton.

            No interior, na parte da casa destinada aos criados, os domésticos, parcialmente vestidos, conversavam uns com os outros, em cochichos surdos. A velha Sra. Leal chorava, comprimia as mãos. Francis estava pálido como a morte.

            Passado um quarto de hora, mais ou menos, Francis chamou o cocheiro e um dos serventes e subiram, devagar. Bateram, sem resposta. Gritaram, tudo quieto. Por fim, depois de tentarem, em vão, forçar a porta, subiram ao telhado e pularam para a sacada. As janelas cederam, com facilidade; os trincos estavam velhos. Ao entrarem, encontraram, pendurado na parede, um retrato esplêndido: o patrão, tal como estava na última vez em que o viram, em toda a maravilha daquela juventude e beleza singulares. No chão, deitado, de fraque, um homem morto, com uma faca no coração. Encarquilhado, enrugado, com uma fisionomia horrenda. Depois de examinarem-lhe os anéis, só então, reconheceram-no.

 

                                                                                            Oscar Wilde

 

                      

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