Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Na Selva do Mundo Primitivo / Kurt Mahr
Na Selva do Mundo Primitivo / Kurt Mahr

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Na Selva do Mundo Primitivo

 

Mesmo para um visitante bem equipado, o mundo primitivo, vegetal e animal, do planeta Vênus oferece inúmeros perigos.

Por isso é fácil compreender a situação desesperada em que se encontram aqueles três homens, praticamente sem recursos, que têm de lutar contra a selva de Vênus e ainda sofrem uma perseguição implacável de outros homens.

É esta a situação em que Perry Rhodan, John Marshall e Son Okura se encontram depois da queda de seu destróier espacial. Para não perecerem na Selva do Mundo Primitivo, terão que atingir quanto antes o abrigo protetor da fortaleza de Vênus...

 

                                       

 

A água borbulhava preguiçosamente. Parecia ser mais espessa que a água terrena, e realmente era. Quem enfiasse a mão ali e a retirasse depois de algum tempo, notaria que a mesma estava coberta por uma camada gosmenta.

Áloes, unicelulares, microrganismos — a água regurgitava dessas criaturas e parecia uma solução coloidal.

Era Vênus, cheia de vida, quase estourando de vitalidade!

O barco cruzava, a uma velocidade constante, as ondas sempre iguais, que eram o último vestígio da tormenta crepuscular que há mais de oito horas fustigara a terra plana e o braço de mar primitivo com seus trezentos e cinqüenta quilômetros de largura.

O pequeno gerador ultra-sensível espalhava um zumbido monótono e sonolento, que pesava sobre as pálpebras.

Mas não podiam dormir, nenhum deles podia. Fazia mais de um dia terrestre que não fechavam os olhos. Era muito difícil mantê-los abertos na escuridão, que até ali fora tão alegre e inofensiva.

Especialmente para aquele homem com a ferida mal curada no ombro.

Era Perry Rhodan, presidente de um Estado onipotente, a Terceira Potência. As circunstâncias adversas fizeram-no descer em Vênus numa situação de desamparo, acompanhado apenas de dois dos seus homens, para que desse provas de sua energia, dominando a situação intrincada.

Por enquanto estava muito longe disso. Diante de seu barco ainda se estendiam quase trezentos quilômetros de água. Eram trezentos quilômetros recheados de perigos desconhecidos, trezentos quilômetros durante os quais, a qualquer segundo, poderia surgir o helicóptero do coronel Raskujan para atacar a embarcação indefesa. A escuridão não representava qualquer obstáculo para um veículo moderno, equipado com visores de luz infravermelha.

— Será que notaram o desaparecimento do barco inflável? — perguntou John Marshall, o telepata.

Ninguém sabia. Haviam retirado o barco de um dos helicópteros de Raskujan, no momento em que a luta entre as tropas deste e as de Tomisenkow havia chegado ao ponto mais alto. Depois disso, tiveram a precaução de destruir o helicóptero.

— É de supor que mais cedo ou mais tarde darão pela falta do barco, pois não deixarão de examinar os destroços.

Rhodan ergueu os ombros. O movimento fez a ferida doer.

— Raskujan vai quebrar a cabeça. Por enquanto nem sabemos se desconfia da nossa existência.

— E Tomisenkow? Não vai perder tempo; deve contar logo — objetou Marshall.

Rhodan não estava muito convencido.

— Você não conhece Tomisenkow — retificou. — Ouvi a palestra de rádio que teve com Raskujan. Este, com sua frota de abastecimentos, conseguiu agrupar os homens em torno de si. Não há qualquer tendência para a indisciplina, e isso por um motivo muito simples: os homens têm bastante comida para matar a fome. Já o grupo de Tomisenkow está completamente desorganizado. Acontece que Tomisenkow, na sua qualidade de general, insiste em que Raskujan, que apenas é coronel, se submeta a ele. Este, por sua vez, alega que, face ao amotinamento das tropas de Tomisenkow, este perdeu os direitos correspondentes à sua graduação de general. Ambos são do Bloco Oriental, mas apesar disso são inimigos. Não acredito que Tomisenkow esteja muito disposto a contar o que quer que seja. Com a experiência que adquiriu em Vênus, é o homem indicado até mesmo para Raskujan. É bem provável que se sinta seguro e saiba calar a boca.

Son Okura esteve a ponto de responder. Mas nesse instante ouviu-se a voz chiante de Marshall, vinda da proa:

— Pare!

A reação de Rhodan foi imediata. Apertou uma alavanca e a pequena hélice saiu da água. O zumbido do motor, que trabalhava em ponto morto, subiu um pouco até que Rhodan o desligasse.

Em redor deles tudo era silêncio, com exceção do sussurrar preguiçoso da água.

— O que houve? — perguntou Rhodan.

— Olhe — respondeu Marshall e apontou para a frente.

Rhodan se dirigiu à proa e olhou na direção indicada por Marshall. Não precisou forçar a vista para enxergar o trecho de água fluorescente que, a uns cem metros de distância, se estendia em direção ao leste e ao oeste, até onde alcançava a vista.

Rhodan se assustou.

— O que é isso? — perguntou Marshall, espantado. — Não é possível que seja um...

Rhodan fez que sim.

— É isso mesmo. É um tapete luminoso. É o maior que já vi.

Son Okura também veio à popa. Possuía capacidade de abranger com a vista certas faixas do campo de freqüências eletromagnéticas que o olho humano comum não conseguia enxergar. Captava as radiações infravermelhas, ou seja, os raios de calor, com a mesma nitidez da luz visível, e esta lhe era tão perceptível como as gamas ásperas do ultravioleta.

— O que está vendo? — perguntou Rhodan.

Okura estreitou os olhos. Para ele a água morna do oceano de Vênus assumia o aspecto de um vasto terreno inundado de luminosidade. O tapete, que absorvia parte do calor irradiado pela água e refletia outra parte para dentro do mar, surgia em sua retina sob a forma de um longo traço escuro.

— Vai uns três quilômetros para o oeste — disse Son Okura. — Para o leste não vejo o fim.

Rhodan confirmou com um aceno de cabeça.

— Então vamos contorná-lo pelo oeste.

Deu partida no motor e colocou a hélice na água. Girando o leme para a direita, Rhodan fez com que o barco descrevesse uma curva fechada.

— Isso é tão perigoso assim? — perguntou Marshall.

— Nunca viu um tapete luminoso?

— Só um bem pequeno, numa enseada.

Rhodan acenou com a cabeça.

— Pois eu lhe mostrarei o espetáculo. Se passássemos no meio dele, estaríamos irremediavelmente perdidos. Esse tapete fininho tem mais força que dez motores como este.

O barco deslocava-se na direção noroeste. Rhodan se esforçou para contornar a extremidade oeste do tapete luminoso o mais próximo possível. O barco desenvolvia uma velocidade de trinta quilômetros por hora, ou seja, cerca de oito metros por segundo. Cada oito metros percorridos a mais significavam um atraso de um segundo, e nessa viagem os segundos contavam tanto quanto as horas ou os dias em outras.

Dali a uns dez minutos, o barco se encontrava aproximadamente na altura da linha que cortava o tapete de leste para oeste, passando pelo centro. John Marshall parecia fascinado diante do quadro. A fluorescência reluzia nas cores mais variadas e oferecia um espetáculo de beleza movimentada, cujo encanto nem Rhodan conseguia subtrair-se, muito embora já tivesse tido muitas oportunidades de observar o fenômeno.

Era difícil de imaginar que na realidade esse tapete luminoso era um único animal estendido na água, à espera da presa. A beleza dissimulava a voracidade e a violência irresistível com que agarrava sua vítima e a arrastava para as profundezas.

Rhodan retirou algumas pesadas porcas de parafuso da caixa de ferramentas e se aproximou de Marshall. A extremidade do tapete não ficava a menos de quinze minutos do barco.

— Okura — disse Rhodan em voz baixa.

— Sim.

— Prepare-se para fechar o barco. Aguarde meu comando.

O japonês confirmou com um aceno de cabeça. Rhodan deu as porcas a Marshall.

— Atire.

Marshall avaliou lentamente o peso das peças de metal. Depois, num impulso vigoroso do braço direito, atirou todas elas sobre o tapete.

A reação foi instantânea. Mal as porcas tocaram o animal, as cores deste começaram a empalidecer. Dentro de poucos segundos a luminosidade desapareceu por completo. Um rugido ensurdecedor fez-se ouvir quando o tapete luminoso se fechou em torno do lugar em que fora atingido e começou a arrastar para o fundo aquilo que acreditava ser uma presa.

As primeiras ondas arrebentaram sobre o barco. A uns trinta metros a estibordo, o inofensivo tapete fluorescente transformara-se num amontoado semi-esférico de cor indeterminada.

Quando a massa enorme começou a mergulhar, as ondas sustentavam coroas de espuma. Marshall, que assistia ao espetáculo de queixo caído e olhos arregalados, perdeu o equilíbrio e teria caído à água se Rhodan não o tivesse agarrado em tempo.

— Cuidado! — gritou Rhodan.

Son Okura segurava o fecho.

O tapete continuava a crescer, enquanto a parte inferior de seu corpo, que agora assumia uma forma esférica, mergulhava numa velocidade cada vez maior. A contração da substância daquele corpo, que poucos segundos antes ainda cobrira uma área de vários quilômetros quadrados, enfurecia o mar como se fosse um temporal de regular intensidade.

Rhodan permitiu que Marshall contemplasse o espetáculo até que a água que penetrou no barco passou a representar um verdadeiro perigo. Só então gritou para Okura:

— Feche! E segure-se!

Okura arrastou a cobertura para a frente. Com um ruído metálico a cobertura flexível se fechou sobre o barco, evitando que fizesse mais água. Marshall e Rhodan deixaram-se cair ao chão e seguraram-se nas fitas de plástico presas à parede interna do barco. O japonês, depois de concluído seu trabalho, perdeu o equilíbrio e foi atirado por cima de Marshall.

Depois disso o mar jogou bola com eles durante dez minutos. O barco rodopiava em torno do eixo transversal e longitudinal. Uma forte pancada repuxou a ferida de Rhodan e obrigou-o a tirar o braço direito da faixa que o segurava. Son Okura, que não conseguira se segurar em tempo, rolou por cima da cabeça em direção à popa e, com um baque bem audível, bateu contra a madeira da caixa de ferramentas.

Depois de várias tentativas Rhodan conseguiu se deslocar para a frente e desligar o motor. A solicitação variável forçava o mecanismo e, enquanto o barco estivesse sendo atirado de um lado para outro, o motor de qualquer maneira não adiantava nada.

Marshall, em cuja homenagem a peça fora encenada, estava deitado no meio do barco, praguejando em voz alta. Ainda continuava a praguejar quando o mar voltou a se acalmar e Rhodan mandou que o japonês abrisse o barco.

Segurando-se na borda, Marshall conseguiu se pôr de pé.

— Nunca imaginava que isso fosse tão ruim — fungou.

Rhodan riu.

— Pois da próxima vez já sabe, não é? Não existe nada que seja tão perigoso e traiçoeiro como um tapete luminoso de Vênus.

Voltou a pôr o motor em movimento e colocou o barco no curso correto. Não tinha a menor idéia de quanto o barco tinha sido desviado em virtude do incidente; mas, pelo seu cálculo, o desvio não poderia fazer uma diferença significativa quanto à sua chegada ao setor norte da costa.

Por algum tempo mantiveram-se ocupados, retirando a água gosmenta que as ondas levantadas pelo tapete gigante haviam atirado no interior do barco. O trabalho, em si bem leve, deixou-os tão cansados que, depois dele, encostaram-se exaustos à parede do barco e, por algum tempo, tiveram de lutar com o cansaço que ameaçava fechar-lhes os olhos.

A ambição desmedida fizera com que o governo do Bloco Oriental, derrubado há um ano, se aproveitasse da ausência de Rhodan, que se afastara da Terra, para tentar se apossar da base montada pela Terceira Potência no planeta Vênus. Para isso foram enviadas duas grandes frotas de naves espaciais ao planeta.

“Sem essa ambição”, refletiu Rhodan, “a esta hora estaríamos não sei onde, mas de qualquer maneira nos encontraríamos em paz e segurança”.

Provavelmente essa idéia teria induzido reflexões filosóficas em sua mente, se Okura, que se encontrava na proa, não se erguesse repentinamente, soltando uma exclamação de espanto.

Rhodan viu que fitava o céu. Seguiu seu olhar, mas não viu nada.

Por algum tempo o japonês não disse nada. Rhodan colocou-se ao seu lado.

— O que houve, Son? — gritou. — O que está vendo?

Viu que Okura estava com os olhos arregalados de susto. Tinha a respiração entrecortada. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, Rhodan ouviu o farfalhar surdo vindo de cima, que por um instante deixou-o tão assustado como o japonês.

— É um lagarto voador — fungou Okura. — Encontra-se na direção noroeste, mas vem exatamente em nossa direção.

— A que altitude está? — perguntou Rhodan.

— Cerca de cem metros.

— É grande?

O japonês contorceu o rosto.

— Acredito que tenha uns trinta metros de largura.

Esperaram. O farfalhar, que quase chegava a estourar os nervos, foi se aproximando, tornou-se cada vez mais forte.

— Daqui a pouco estará acima de nós — disse o japonês.

E logo em seguida:

— Vai descer; está descrevendo círculos em cima de nós.

Rhodan deixou cair os ombros.

— Son, fique na popa. Marshall ficará no meio. Eu cuido do motor. Vamos ficar bem quietos. Son nos avisará assim que o bicho descer. Quando isso acontecer, teremos de atirar. Façam boa pontaria, para que não precisemos atirar mais de uma vez. Os disparos dos radiadores térmicos são perfeitamente visíveis a vários quilômetros de distância. Acho que não preciso explicar o que vai acontecer se uma das sentinelas de Raskujan observar nossos tiros.

Alguns minutos passaram-se. O motor emitia um zumbido monótono e as ondas batiam preguiçosamente no costado do barco.

Subitamente ouviu-se o grito estridente de Okura:

— Está descendo.

 

A frota de reforços do coronel Raskujan pousara no mesmo lugar em que; semanas antes, o general Tomisenkow fizera descer quinhentas naves espaciais que se encontravam sob seu comando.

Acontece que Raskujan teve mais sorte que o general. O acampamento de Tomisenkow fora desmantelado pelo furacão levantado pela Stardust-III e seus remanescentes espalhados para os quatro cantos. Tomisenkow levou as naves intactas para esconderijos situados nas montanhas, onde a expedição punitiva de Rhodan as inutilizou uma por uma.

Por isso Raskujan encontrara um campo livre para o pouso — inclusive a faixa calcinada, coberta de terra vitrificada, aberta pelo deslocamento da Stardust-III, que atravessava a selva em linha reta. Raskujan, então ainda um subordinado do general Tomisenkow, decolara da Terra com duzentas naves. Trinta e quatro delas foram perdidas quando a Stardust-III, ao regressar de Vênus para a Terra, passou em meio à formação; as naves desajeitadas e pouco manobráveis do Bloco Oriental se volatilizaram sob o impacto do campo protetor energético da supernave. Entre as naves perdidas encontrava-se a capitania, que trazia a bordo o major Pjotkin.

Raskujan, depois de reagrupar os remanescentes, prosseguira em sua viagem para Vênus. Outras quarenta e três naves foram destruídas durante o pouso aerodinâmico em Vênus. Caíram e, transformadas em meteoros incandescentes, desapareceram nas florestas ou no mar.

Cento e vinte e três naves chegaram ao destino sãs e salvas; pareciam orgulhosas, mas em virtude da falta de combustível estavam condenadas à imobilidade.

Na época não se encontrou qualquer vestígio de Tomisenkow. O coronel Raskujan teve de se arranjar sozinho e viu-se obrigado a decidir, segundo seu livre arbítrio, como agir para transformar o empreendimento num verdadeiro êxito.

A tarefa não parecia muito difícil. Os homens que o haviam enviado para lá desejavam se apossar da fortaleza da Terceira Potência. Uma vez que, por ocasião do pouso da frota de apoio, Rhodan não se encontrava em Vênus, Raskujan pensou que a fortaleza estivesse desguarnecida e sua conquista seria uma brincadeira.

Mas viu-se obrigado a rever suas idéias sobre o que vem a ser uma fortaleza. Fazia um ano que, quase diariamente, quebrava a cabeça nas suas investidas contra a que tinha diante de si. Rhodan envolvera a base de Vênus com um campo protetor impenetrável. Entre os tripulantes de Raskujan havia muitos técnicos — talvez seria melhor dizer “técnicas”; por motivos sobre os quais até então Raskujan não tinha a menor idéia, a maioria dos membros da equipe técnico-científica da frota era formada por mulheres. Mas até mesmo o técnico mais competente acaba capitulando diante daquele anteparo energético impenetrável.

Mas quando Raskujan atingiu esse ponto morto, sua atenção foi desviada para outro fato. A primeira pista do general Tomisenkow e de seus homens foi localizada numa massa de terra em forma de península, que o enorme continente do hemisfério norte fazia avançar em direção ao sul, abraçando, por assim dizer, o continente com o braço de mar de cerca de trezentos e cinqüenta quilômetros de largura.

Raskujan, cuja tarefa consistira inicialmente em dar apoio à tropa de Tomisenkow, procurou coletar informações. Soube que a divisão espacial de Tomisenkow, exposta às condições extremamente ásperas reinantes em Vênus, tornara-se vítima da desorganização e da indisciplina.

Com isso o plano de Raskujan estava formado: Tomisenkow e seus homens teriam de ser obrigados a entrar nos eixos.

Uma vez que dispunha de meios para impor seus planos aos efetivos de Tomisenkow, roídos pela desorganização, tinha nas mãos o general, grande parte da tropa que se mantinha fiel a ele e uma prisioneira muito mais importante: Thora, a arcônida. Era a mulher que transmitira a Perry Rhodan grande parte dos conhecimentos que lhe tornaram possível a instalação da Terceira Potência.

Raskujan exultou. Exultou até perceber que Thora tinha por ele mais ou menos a mesma consideração que ele mesmo tinha diante de uma das incômodas moscas que proliferavam em Vênus.

Nem se dignou a responder às suas perguntas, muito menos revelou como poderiam ser rompidos os campos energéticos que protegiam a fortaleza de Vênus.

Em vista disso, se dirigiu a Tomisenkow. Este não o tratou muito melhor do que Thora, e isso o incomodou ainda mais. No fundo Raskujan era uma criatura subalterna, carregada de complexos de inferioridade. Uma vez que teve a coragem de atacar e prender um general, esperava que este se comportasse como um prisioneiro, não como um general.

Desde sua prisão, ou melhor, desde o pouso dos helicópteros no acampamento de Raskujan, Tomisenkow já havia enfrentado cinco interrogatórios. Para um homem como ele, que durante um ano tivera ocasião de pôr os nervos à prova nos perigos da selva de Vênus, isso não passava de episódios inofensivos e sem a menor importância. Além disso, os oficiais-investigadores de Raskujan, ao se defrontarem com um general, mesmo que este não mais usasse as platinas, pareciam sofrer dos mesmos complexos que seu comandante.

Depois que o temporal crepuscular havia desabado sobre o solo, Raskujan fez com que o prisioneiro comparecesse à sua presença, na sala de comando da nave capitania.

Raskujan tinha uma pistola automática bem visível sobre os joelhos. Não convidou Tomisenkow a sentar.

— Pelo que ouço — principiou — o senhor se recusa a prestar qualquer colaboração à nossa frota.

Para Tomisenkow, esse intróito não parecia representar uma pergunta; ao menos, não se dignou a dar qualquer resposta.

— Responda! — rosnou Raskujan.

— Qual é a pergunta? — indagou Tomisenkow tranqüilamente.

— Por que não quer cooperar comigo?

O rosto de Tomisenkow contraiu-se num sorriso de deboche.

— Por que não quer cooperar comigo? — perguntou.

Por um instante Raskujan ficou atônito. Depois cometeu um erro: respondeu à pergunta de Tomisenkow.

— Porque sua divisão está desorganizada e roída pela indisciplina — respondeu.

— Isso não é motivo para negar sua colaboração. O senhor foi enviado para cá a fim de me dar apoio, inclusive moral, se necessário. Mas em vez de fazer qualquer esforço para localizar minha divisão e, se fosse o caso, reorganizá-la, o senhor deixou-se ficar por aqui e realizou algumas tentativas estúpidas para penetrar na base de Rhodan. Quando acabou descobrindo nosso paradeiro não achou coisa melhor para fazer senão nos atacar. Atacar justamente a nós, a quem o senhor deveria ter trazido apoio!

Raskujan se esforçou para guardar a compostura.

— Como ex-oficial o senhor sabe perfeitamente que tipo de influência os elementos desmoralizados que se encontravam em sua companhia teriam exercido sobre minha tropa. Não tive outra alternativa senão demarcar desde logo claramente os fronts. Meu regimento não tem mais nada com sua divisão.

Tomisenkow fez um gesto tão depreciativo que Raskujan teve de se esforçar ao máximo para reprimir a fúria de que se sentia possuído.

— Vá contar isso a outro — disse Tomisenkow. — Já se esqueceu de que serviu por alguns anos em minha companhia? Naquele tempo, em que ainda era um jovem tenente, já fazia questão de se salientar toda vez que surgia uma oportunidade. Não, Raskujan, a coisa não é tão simples assim. Em Vênus surgiu a oportunidade de bancar o onipotente. Eu era a única pessoa que, em virtude da graduação, podia estragar seu jogo. Por isso inventou alguma coisa e nos atacou. E tudo isso apenas para que o senhor pudesse continuar a desempenhar esse papel miserável.

Raskujan se levantou de um salto.

Levou algum tempo para recuperar a fala.

— Isso é... isso é... não se esqueça de que é meu...

Nesse instante a sineta do radior-receptor interrompeu aquele balbuciar indignado. Raskujan virou-se abruptamente e bateu com a mão espalmada sobre a chave.

— Coronel, observamos um estranho fenômeno luminoso — principiou a sentinela sem qualquer preâmbulo. — Direção, cento e cinqüenta e três graus, distância aproximada de duzentos e cinqüenta quilômetros.

Raskujan franziu a testa.

— Descreva! — ordenou.

— Parece um facho de luz de três holofotes, coronel — respondeu a sentinela. — Apenas a intensidade deve ter sido muito maior que a de um holofote convencional.

— Quantas vezes foi observado o fenômeno?

— Uma única vez.

— Está bem; obrigado.

A palestra foi interrompida. Raskujan fez outra ligação. Uma voz metálica respondeu.

— Capitão, pegue dois helicópteros e dê uma busca no mar — ordenou. — Peça os dados ao posto central de vigilância. Observaram fenômenos luminosos estranhos. Quero saber de que se trata.

O capitão confirmou a recepção da ordem. Raskujan desligou o receptor e voltou a encarar Tomisenkow.

Este sorriu.

— Qual é a graça? — perguntou Raskujan em tom áspero.

— Acredito — disse Tomisenkow em voz baixa, apreciando o efeito de suas palavras — que o senhor tem alguém nos seus calcanhares que lhe ensinará que, em Vênus, um coronel deve se conduzir com muita humildade.

 

O farfalhar cresceu num trovejar quando o lagarto desceu sobre o barco. Rhodan se reclinou contra o costado e olhou na direção de que vinha o ruído.

A única coisa que viu foi uma sombra gigantesca que, numa velocidade inacreditável, passou por cima do barco na direção norte—sul e voltou a desaparecer na escuridão.

O ruído se afastou, tornando-se cada vez mais fraco. Depois manteve-se constante por alguns segundos e voltou a crescer.

Rhodan perguntou de si para si até onde deveria arriscar. Ninguém saberia dizer se o lagarto atacaria nessa revoada ou nas próximas. Era possível que nem chegasse a fazê-lo.

Mas, de qualquer maneira, seria tarde para atirar quando tivesse um dos três homens nas garras.

O ruído foi se tornando cada vez mais forte.

— Atirem quando estiver em cima de nós — disse Rhodan com a voz áspera e em tom decidido.

Apontaram as armas na direção exata. O ruído cresceu ainda mais, começando a produzir um zumbido nos ouvidos.

De repente apareceu!

Era uma sombra negra na escuridão cinzenta, maior que da outra vez e de forma praticamente indefinível.

Rhodan seguiu a sombra com o cano do radiador de impulsos térmicos. Quando o lagarto se encontrava bem em cima do barco, ordenou:

— Fogo!

Uma ofuscante luminosidade branco-azulada saiu dos canos, iluminou por uma fração de segundo o corpo horrível do lagarto, coberto de uma pele áspera, e atingiu-o com toda sua potência.

O grito do animal poderia ser ouvido a quilômetros de distância. Mas não durou muito. Algumas centenas de megawats de energia térmica mataram o animal, cujo corpo incendiado caiu ao mar.

Rhodan largou a arma e pegou o leme. Ainda deixou que a enorme vaga levantada pelo impacto do animal sobre a água atingisse o barco de frente; mas logo girou o leme e fez o barco descrever um grande círculo para o leste.

Só dali a vinte minutos retomou o curso anterior. Os movimentos do leme, que por uma questão de hábito executava com a mão direita, fizeram seu ombro doer de novo. Praguejou em voz baixa por causa de sua relativa incapacidade e manifestou o desejo de ter à mão uma caixa de primeiros socorros da farmácia arcônida. Com ela estaria recuperado dentro de poucas horas.

Son Okura continuava sentado na proa, de olhos fitos no norte. Apenas Marshall parecia acreditar que, uma vez morto o lagarto, o maior perigo havia passado. Deitado de costas no centro do barco, mantinha as mãos entrelaçadas em baixo da nuca.

— Levante-se, homem cansado — disse Rhodan. — Daqui a pouco teremos trabalho de novo.

Marshall se assustou.

— Que trabalho será este? — perguntou desanimado.

— Infelizmente há um fenômeno luminoso que acompanha a emissão de calor produzida pela arma térmica — disse em tom professoral. — E, com a atmosfera limpa, o mesmo se torna perceptível a uns quinhentos quilômetros de distância. Sabe lá o que isso significa?

Marshall se levantou com um gemido.

— Está bem — resmungou. — E o que vamos fazer se acontecer aquilo que prevê?

Rhodan sorriu.

— Continuaremos a atirar — respondeu em tom indiferente.

 

O capitão que Raskujan enviara para o mar com dois helicópteros não precisou se esforçar muito para descobrir o barco inflável, que não era muito pequeno.

A oitenta quilômetros de distância produziu um reflexo fraco, mas inconfundível sobre a tela de radar, e a cem metros o holofote de luz infravermelha e o binóculo noturno tornaram perfeitamente visíveis os três homens que o tripulavam.

O capitão recomendou uma atenção toda especial aos artilheiros de bordo e transmitiu idênticas aos ocupantes do outro aparelho.

Depois desceu e se aproximou cautelosamente do barco.

 

Ouviram as batidas dos rotores dos helicópteros e o chiado agudo dos jatos. Son Okura viu dois aparelhos que se aproximavam do norte a uma altitude considerável.

Para Rhodan isso não constituía nenhuma surpresa; já os aguardava.

Subitamente Okura, que mantinha seu posto de observação na proa do barco, recuou com um grito e cobriu o rosto com ambos os braços. Foi quando o comandante dirigiu o holofote de luz infravermelha sobre o barco e observou-o através de um filtro ótico.

Rhodan procurou adivinhar o pensamento do inimigo.

“Verá o barco”, pensou. “E também sabe que nenhum dos helicópteros de Raskujan foi perdido em cima do mar. Logo, acreditará que somos gente de Tomisenkow ou então...”

A reflexão não chegou ao fim. Os dois helicópteros se aproximaram, e a violência com que o fizeram não deixava nenhuma dúvida sobre suas intenções: pretendiam atacar o barco.

— Deitem-se no chão! — gritou Rhodan. — E apontem as armas para cima!

Marshall e Okura obedeceram imediatamente. Um canhão automático começou a emitir seus sons entrecortados, outro seguiu seu exemplo, e Rhodan percebeu os solavancos de seu barco. Em meio do barulho ouviu que o zumbido do motor mudava de tom, e logo viu um dos helicópteros bem em cima de si.

Não sabia se Okura ou Marshall já haviam atirado. Não viu o relampejo de suas armas. Encostou a coronha do radiador de impulsos térmicos firmemente ao tronco, para que a arma apontasse bem para cima, e puxou o gatilho.

A descarga não produziu qualquer recuo da arma. Num jogo feérico, o raio ofuscante atravessou a escuridão e atingiu o helicóptero antes que este pudesse se afastar. Houve uma detonação ensurdecedora quando o tanque de combustível explodiu, e uma chuva de peças de metal incandescente caiu na água em torno do barco, produzindo um forte chiado.

O outro helicóptero acompanhou a cena e se afastou em tempo. Mais adiante descreveu círculos a poucos metros acima da água.

Rhodan engatinhou para a frente. Marshall ainda estava deitado, tal qual Rhodan lhe ordenara. Ao ver este, sorriu.

Son Okura se colocara de joelhos e observava o segundo helicóptero, que descrevia círculos em torno do barco. Rhodan ligou o minitransmissor que trazia no pulso e fez o regulador de freqüências percorrer todas as faixas. Não ouviu nada além do chiado produzido pelas perturbações atmosféricas. O piloto do helicóptero ainda não julgava necessário informar a base sobre o incidente.

Rhodan tinha certeza de que logo o faria, ou então tentaria um segundo ataque antes disso.

Esperaram.

Okura levantou o braço direito.

— Está apertando os círculos! — exclamou.

Rhodan fitou a escuridão. Não viu nada.

— A que distância se encontra? — perguntou.

— A distância média é de cerca de cento e cinqüenta metros — respondeu o japonês.

Rhodan acenou com a cabeça.

— Pois mostre o que achamos dele — disse a Okura.

“Estão muito enganados”, pensou. “Querem experimentar o alcance dos nossos radiadores. Mas nem desconfiam de que um radiador de impulsos térmicos desenvolve potência máxima até o fim de seu alcance. Acreditam que poderão aguardar o próximo tiro e fugir em tempo.”

Son Okura ajoelhou-se junto à borda do barco e apoiou o radiador sobre a mesma. Estreitou os olhos e inclinou a cabeça para a frente; foi quando o holofote de luz infravermelha do helicóptero passou por cima dele.

Depois esmerou-se na pontaria. Rhodan viu quando o dedo se entortou de encontro ao gatilho. Apesar disso, se assustou quando o raio branco-azulado da grossura de um dedo saiu do cano.

O helicóptero de Raskujan não teve a menor chance. Caiu e, com uma forte explosão, desmanchou-se no mar.

Rhodan respirou aliviado. Empurrou Marshall para o lado e dirigiu-se para o lado em que ficava o motor. Na pressa apenas conseguira amarrar o leme, e agora...

Quando chegou à popa, estacou. Viu que a fita de plástico com que amarrara o leme se esfacelara e estava jogada no chão. Do leme não existia mais nada.

Atirou-se ao chão e examinou o bloco do motor envolto em metal leve. Viu os vestígios de um projétil de canhão automático e identificou o local de impacto. Arrancara o leme e demolira o motor!

Rhodan ficou deitado por um instante. Bateu com os punhos no estojo de metal leve. Antes só se poderia desprendê-lo do motor com o auxílio de chaves de fenda e cortadores de metal; mas agora as primeiras três pancadas fizeram com que balançasse, e com a quinta pancada pôde retirá-lo sem maiores dificuldades.

Um olhar lhe bastou para compreender a situação. O projétil explodira junto à pequena e potente turbina. E esta não pôde ser reconhecida nem mesmo pelo formato; transformara-se num montão fibroso e disforme de chapa metálica enegrecida.

Rhodan levantou-se. Sentiu-se um pouco fraco nos joelhos, mas logo venceu a fraqueza.

— O barco está em ordem — gritou Marshall bastante animado. — Todos os furos produzidos pelos impactos fecharam-se conforme deviam. O barco quase não fez água.

Rhodan contorceu o rosto. Atravessou o barco balouçante em direção a Marshall. Este viu o rosto sério do chefe.

— O que foi?

Rhodan colocou a mão sobre seu ombro.

— Comece a chamar de novo, Marshall — ordenou a voz tranqüila. — O motor está quebrado, e nenhum de nós sabe consertá-lo. Pelo meu cálculo estamos a uma distância de duzentos e vinte quilômetros da costa norte do continente norte e cento e trinta quilômetros da costa norte da península. Logo, não podemos ir para a frente nem para trás. Tente mais uma vez entrar em contato com as focas.

Com um sorriso animador acrescentou:

— Se não conseguir, teremos que nadar.

 

Raskujan ainda ficou discutindo quase uma hora com Tomisenkow e quase chegou a esquecer que não tinha necessidade de manter discussões com um prisioneiro. Depois de algum tempo veio a notícia de que novamente haviam sido observados por duas vezes estranhos fenômenos luminosos no mar aberto. Como até então Raskujan não tivesse recebido qualquer notícia dos dois helicópteros que enviara ao local, começou a ficar nervoso e mandou que a sentinela levasse Tomisenkow antes que este pudesse dar vazão ao seu triunfo sobre o fracasso da missão.

Tomisenkow caminhava tranqüilamente entre as duas sentinelas. Atravessou o acampamento, livre de qualquer vegetação. A cerca levantada em volta do campo de prisioneiros surgiu na escuridão. As duas sentinelas entregaram o prisioneiro a uma das quatro sentinelas postadas junto ao portão do campo e esta levou-o à sua barraca, onde o entregou à sua sentinela particular.

Não foi em vão que Tomisenkow havia estudado cuidadosamente e decorado, não um mapa do campo de prisioneiros, mas aquilo que seus olhos treinados viram dia por dia. Estaria em condições de atingir seu destino de olhos fechados; por isso a escuridão quase impenetrável que fazia com que os soldados ainda não habituados às condições reinantes em Vênus andassem aos tropeções, fornecia a melhor oportunidade para a execução de seu plano.

Começou a agir tranqüila e metodicamente. Sua barraca não possuía um soalho próprio; o chão era formado de terra venusiana batida. Tomisenkow tirou uma das botas e começou a arranhar o chão, colocando a terra na bota.

Dentro de quinze minutos a bota ficou cheia até em cima. Tomisenkow comprimiu a terra com o punho fechado. Depois segurou a estranha ferramenta na mão direita e pesou-a cuidadosamente. Parecia ter o peso de um saco de areia do mesmo tamanho.

Lançou os olhos em torno de si. A barraca não era muito grande e era fácil abrangê-la com a vista. Tomisenkow encontrou um canto apropriado para seu projeto.

Infelizmente não podia modificar a posição da lâmpada que iluminava o interior da barraca. Poderia quebrá-la, mas nesse caso...

Agachou-se num dos cantos, de costas para a entrada, e olhou ostensivamente para o chão. Depois de um ligeiro preparativo começou a gritar:

— Sentinela! Sentineeelaa!

Parecia um grito de pavor, e o resultado não se fez esperar. A barraca foi aberta abruptamente. Tomisenkow virou-se ligeiramente para o lado e esforçou-se para dar ao seu rosto uma expressão de pavor.

— O que houve? — perguntou a sentinela.

Tomisenkow, esbaforido, fez alguns movimentos com a mão.

— É aqui... — gemeu — no canto... depressa!

Em Vênus havia muitas criaturas monstruosas, inclusive algumas que abrem seu caminho por baixo do solo e de repente surgem no interior de uma barraca. A sentinela não ignorava isso.

Entrou de pistola automática em punho e fez sinal para que Tomisenkow se afastasse quando se dirigiu ao canto da barraca.

Tomisenkow afastou-se.

— Uma espécie de verme... — gemeu. Ficou numa posição tal que sua sombra caia exatamente no canto que a sentinela devia examinar. Mal a sentinela tinha passado por ele, pegou a bota cheia de terra e segurou-a firmemente pelo cano.

— Saia da luz! — ordenou a sentinela e, sem olhar para Tomisenkow, sacudiu a mão.

Tomisenkow deixou que a luz caísse sobre a sentinela, avançando um passo em sua direção. Assegurou-se de que o homem já não poderia ver sua sombra.

Levantou o braço direito e, com a bota cheia de areia, golpeou a cabeça da sentinela. Esta caiu para a frente e ficou estendida no chão.

Com um movimento automático, Tomisenkow esvaziou a bota e, com o pé direito, espalhou a terra pelo chão. Depois pegou as cordas que fabricara com pedaços da barraca e amarrou o homem inconsciente. Além disso, enfiou-lhe um lenço na boca, para servir de mordaça.

Finalmente colocou o homem atrás de sua cama primitiva, para que o mesmo não pudesse ser visto da entrada, pelo menos ao primeiro relance de olhos. Colocou a pistola automática sobre a cama, para que a sentinela pudesse vê-la ao despertar.

Tomisenkow sabia como agir face à situação.

Saiu da barraca.

Não foi muito difícil deslocar-se pela escuridão até alcançar a maior de todas as barracas, situada acerca de cem metros, muito embora as sentinelas fizessem de conta que nada lhes poderia escapar.

“Na verdade estão com medo”, pensou Tomisenkow com uma certa sensação de desprezo. “Estão com medo de que, de repente, saia do chão um verme gigante.”

Chegavam a assobiar canções para espantar o medo.

Tomisenkow levou quinze minutos para percorrer os cem metros. Verificou que diante da barraca havia três sentinelas. Isso não o perturbou; só no ponto em que as cordas são amarradas às cavilhas, a barraca fica grudada ao chão. Entre as cavilhas um homem normal pode penetrar na barraca; basta levantar a lona um pouco.

Foi o que Tomisenkow fez. No interior da barraca a luz estava acesa.

Ouviu um grito de pavor abafado. Entrou de vez e se levantou. Num movimento instantâneo, pôs o dedo no lábio e fez um movimento em direção à entrada.

Só depois disso cumprimentou a mulher com uma ligeira mesura, sem dizer uma palavra.

O cumprimento foi dirigido a Thora, a arcônida.

O mundo natal de Thora ficava a uma distância tal da Terra e do sistema solar que Tomisenkow nem podia imaginá-lo.

Há alguns anos Thora pousara na Lua com sua nave exploradora, colaborou com Rhodan e ajudou-o a montar a estrutura artificial, mas sumamente estável da Terceira Potência.

Até poucos dias antes, contados pelo tempo terrestre, Thora fora sua prisioneira.

— Pouco importa que a senhora goste ou não de mim — disse Tomisenkow apressadamente no seu péssimo inglês. — Não faça barulho! Não lhe farei nada.

Thora não respondeu. Seus lábios contraíram-se ligeiramente e esboçaram um sorriso que era tão zombeteiro e depreciativo que Tomisenkow teve de se esforçar para reprimir a raiva.

— Não disponho de muito tempo — prosseguiu. — De cinqüenta em cinqüenta minutos é realizada a inspeção das sentinelas. Quer dizer que dentro de quinze minutos no máximo terei que dar o fora.

O olhar zombeteiro de Thora deixou-o irritado.

Esforçou-se para formular sua proposta em termos precisos.

— Quero cooperar com a senhora — principiou.

Thora achou que essa proposta não devia ser respondida.

— Sabe perfeitamente — prosseguiu Tomisenkow — que para nós não seria difícil dominar as sentinelas de Raskujan. As dificuldades começarão quando tivermos saído do acampamento. Não dispomos de outras armas além das que conseguimos tirar das sentinelas, enquanto Raskujan dispõe de helicópteros e mais uma porção de coisas. Não levaria mais de uma hora para nos recapturar. Isso quer dizer que devemos saber para onde ir depois que tivermos escapado. Ficaria a cargo da senhora nos indicar a direção.

Thora encarou-o; a expressão de desprezo que se desenhava em seu rosto continuava inalterada.

— Será que o senhor acha — disse depois de algum tempo — que eu vou cair num truque primário como este?

Tomisenkow não se exaltou. Contava com a objeção.

— Não é nenhum truque. Reflita e há de concordar comigo. Que interesse teria eu para ser desleal para com a senhora? A verdade nua e crua é que nos encontramos no mesmo barco. E não adianta que permaneçamos neste acampamento com as mãos no regaço, esperando que de algum lugar surja um milagre.

Thora parecia refletir.

— E quem me garante — perguntou depois de algum tempo — que com sua ação não irei... gosto de usar expressões terrenas, não irei de mal a pior?

Tomisenkow deu de ombros.

— Se ainda não percebeu a diferença entre as minhas intenções e as de Raskujan — respondeu em tom deprimido — ainda não conhece os homens.

Thora deu uma risada irônica.

— A única coisa que conheço nos homens é a tendência irreprimível de quebrarem a cabeça uns dos outros.

Tomisenkow se levantou.

— Naturalmente — resmungou com a voz contrariada. — Seu povo nunca fez uma coisa dessas. Sua raça emergiu numa inocência total de sua predecessora.

Não deixou que Thora respondesse.

— Eu lhe ofereci minha cooperação — declarou. — No momento tenho a impressão de que a vantagem que a senhora tiraria do trabalho conjunto seria maior que a minha. Mantenho a oferta. Pense a respeito. Dentro em breve voltarei a visitá-la para ouvir sua resposta. Até a vista.

Abaixou-se e passou por baixo da lona.

Dentro de quinze minutos alcançou sua barraca, sem que uma única vez tivesse estado em perigo de ser descoberto. A sentinela amarrada já havia recuperado a consciência. O homem encarou-o com os olhos arregalados e enfurecidos.

Tomisenkow agachou-se à sua frente.

— Escute, rapaz — disse. — Como vê, deixei sua arma aqui mesmo. Apenas dei um pequeno passeio que você provavelmente não teria permitido se eu lhe pedisse. Por causa disso tive de me livrar de você por algum tempo. Sinto muito se o machuquei. Daqui a pouco virá a inspeção das sentinelas. Até lá você estará livre e terá a arma pendurada sobre o ombro. Você poderá avisar o incidente ou ficar quieto; depende inteiramente de você. Da minha parte ninguém saberá nada, pode ter certeza.

Pôs-se a desamarrar o homem. Por fim retirou a mordaça.

— Levante, rapaz! — ordenou.

A sentinela levantou-se, um tanto perplexo e desajeitado. Logo pôs a mão na pistola automática. Depois lançou um olhar desconfiado para Tomisenkow.

Este enfrentou o olhar. Depois de algum tempo perguntou:

— Está com dor de cabeça?

Surpreso, o homem sacudiu a cabeça.

Depois ambos começaram a rir. Tomisenkow deu uma forte pancada no ombro da sentinela.

— Você está bem, cabo — disse. — Não me esquecerei de você quando tudo tiver passado.

A sentinela saiu da barraca e lá fora refletiu sobre o significado das palavras de Tomisenkow. Estava tão concentrado que deixou a ronda passar, limitando-se a dizer:

— Cabo Wlassov. Tudo em ordem.

 

Fazia duas horas que John Marshall, um telepata dotado de energias mentais extraordinárias, emitia ininterruptamente sua mensagem.

“Venham focas, venham nos ajudar. Somos amigos e merecemos seu auxílio.”

Há duas horas estava esperando que, diante dele ou ao lado do barco imobilizado, a cabeça de uma foca emergisse da água, mas esperava em vão. Não vinha nada, e o esgotamento total fazia dançar diante de seus olhos um mundo de figuras coloridas.

A emissão das mensagens telepáticas esgotara as últimas reservas de energia de seu organismo. Sabia que as focas não eram verdadeiros animais marítimos. Viviam próximo à costa, de preferência nos fiordes que penetravam profundamente na terra; e o ponto mais próximo da costa distava a menos de cem quilômetros do lugar em que o barco se encontrava naquele instante.

Marshall esforçara-se para vencer essa distância; mas o zumbido que ouvia na cabeça dizia-lhe que seus esforços não poderiam prosseguir por muito tempo.

Ainda durariam alguns minutos, talvez uns oito ou dez, depois estaria no fim de suas forças.

Son Okura estava agachado em atitude apática na proa do barco. Vez por outra levantava a cabeça e fazia os olhos deslizarem sobre o mar; mas não havia nada. Nada que pudesse representar um perigo e nada que pudesse interromper, por um instante que fosse, a monotonia da espera.

A atenção de Perry Rhodan concentrou-se ora no ouvido, ora em suas reflexões. As reflexões giravam em torno da maneira pela qual a situação atual poderia ser modificada se as mensagens emitidas por Marshall não fossem coroadas de êxito. O que Rhodan sabia a respeito das focas era muito pouco. Sabia que possuíam certo grau de inteligência, que lhes permitia usar uma linguagem própria, e que a comunicação com elas era possível num nível bastante primitivo. Não sabia se iriam reagir à mensagem, caso conseguissem captá-la. Era bem possível que não se interessassem em saber quem se encontrava em situação difícil na imensidão do mar.

O ouvido procurou captar os ruídos que, segundo esperava Perry Rhodan, surgiriam no curso da próxima hora. Bastante tempo já se passara depois da derrubada dos dois helicópteros. Fosse qual fosse sua opinião sobre a habilidade militar do coronel Raskujan, mais cedo ou mais tarde o mesmo enviaria um grupo maior de helicópteros para descobrir o paradeiro dos dois aparelhos que decolaram em primeiro lugar.

E nesse caso só mesmo com uma sorte além de toda medida o barco deixaria de ser localizado.

“Não podemos elaborar planos se temos de calcular com a sorte”, pensou Rhodan com uma certa disposição amarga.

O grito abafado de Son Okura despertou-o de suas reflexões.

— Estão chegando!

Rhodan se levantou.

— Quem está chegando?

Son Okura também se levantou e se inclinou para fora do barco. Rhodan viu que observava a superfície do mar, não o céu.

— Quem está chegando, Son? — perguntou.

O japonês estendeu o braço.

— Ali, são as focas.

Rhodan ouviu um ligeiro rumorejar da água, que não se adaptava ao ritmo das ondas. Uma massa escura e brilhante emergiu a poucos metros do barco e aproximou-se devagar.

— Marshall, venha cá! — gritou Rhodan.

Marshall levantou-se e avançou a passos cambaleantes. As cabeças de outras focas surgiram acima da água e se aproximaram. Rhodan contou trinta ao todo.

Percebia-se que Marshall não agüentaria mais por muito tempo. Rhodan deu-lhe uma batida carinhosa no ombro e disse:

— Mais um instante, e estará livre disso. Explique-lhes a situação em que nos encontramos.

Marshall inclinou-se por cima da popa para se aproximar das focas e ter um apoio para o corpo cansado. Concebeu em idéias simples e facilmente compreensíveis o relato do que lhes havia acontecido e a explicação do auxílio de que precisavam.

Felizmente as focas não tinham nada de obtusas e estavam dispostas a ajudar. Marshall transmitiu a Rhodan a sugestão formulada pelas mesmas:

— Poderiam rebocar nosso barco, desde que tenhamos correias para isso. Pretendem formar equipes de dez e se revezar.

Rhodan confirmou com um aceno de cabeça.

— Era mais ou menos isso que eu imaginava. Está tudo em ordem, temos correias em número suficiente.

Cortaram o longo fio da âncora em pedaços de comprimento adequado. Ajuntaram os cabos de atracação e fizeram laços segundo as indicações das focas, traduzidas por Marshall. Toda a operação não demorou mais que quinze minutos. As focas precipitaram-se para dentro dos laços antes que estes pudessem afundar e firmaram os mesmos com suas potentes nadadeiras das costas e da barriga. Ao que tudo indicava os cortes dos delgados fios de plásticos nada conseguiram fazer à sua pele, que tinha a consistência do couro curtido e, por baixo, uma grossa camada de gordura.

— Estão perguntando para onde queremos ir — disse Marshall.

Rhodan refletiu.

— Pergunte-lhes se podem nos levar à faixa de terra que liga a península ao continente.

Marshall formulou a pergunta.

— Dizem que sim — respondeu.

Rhodan pretendia dizer mais alguma coisa, mas nesse instante o barco pôs-se em movimento. As focas não precisaram de outras instruções. A embarcação desajeitada cortou as ondas a uma velocidade que, segundo os cálculos de Rhodan, excedia em cinqüenta por cento aquela que o motor conseguia lhe imprimir.

Mergulhado em pensamentos, Marshall contemplou as cabeças brilhantes das focas rebocadoras e das que acompanhavam o barco pelos dois lados.

Depois deixou-se cair ao chão. A cabeça estava deitada numa pequena poça de água gosmenta que escapara à atenção dos ocupantes quando estes esvaziaram o barco. Mas o fato não o perturbou. Mal se ajeitara no chão, adormeceu.

Rhodan e o japonês trocaram olhares significativos. Agachados na proa, observavam as focas. Rhodan ficou admirado porque dez focas conseguiam imprimir ao barco uma velocidade maior que um motor de turbina com trinta cavalos de potência. Um aumento de velocidade de cinqüenta por cento significava um aumento de potência superior a cem por cento, desde que o grau de utilização fosse idêntico. Uma vez admitido esse pressuposto, tornava-se evidente que cada uma das dez focas desenvolvia uma potência de cerca de dez cavalos-vapor.

Provavelmente seu grau de utilização era um pouco superior ao do motor com a complicada propulsão a hélice. Assim mesmo, porém, a potência de cada foca não seria inferior a quatro ou cinco cavalos-vapor.

Pela primeira vez Rhodan compreendeu onde residia a diferença entre as criaturas desse mundo jovem e as da Terra, que em comparação era infinitamente velha. Pela primeira vez compreendeu que significado elevado assume o conceito de vitalidade.

 

O coronel Raskujan cometeu um erro: preocupou-se com as duas pessoas mais importantes que tinha entre seus prisioneiros — Thora e Tomisenkow — antes de se lembrar dos dois helicópteros que enviara para o mar.

Indagando junto ao posto de rádio instalado fora das naves, junto à costa, soube que, há mais de duas horas, não se tinha nenhuma notícia dos dois aparelhos. Em si a demora de duas horas não causou a menor preocupação a Raskujan. Uma busca em mar aberto poderia demorar três ou quatro vezes mais que isso sem ser coroada de êxito; mas o silêncio dos aparelhos inquietou-o.

O posto de rádio tentara várias vezes estabelecer contato com os dois helicópteros, mas não teve qualquer êxito.

A essa hora a decisão de Raskujan foi rápida. Um major recebeu instruções para dar busca sobre o mar com três esquadrilhas de helicópteros, especialmente na área em que foram observados os estranhos fenômenos luminosos. Procurariam localizar os dois aparelhos e o eventual inimigo, que seria atacado e destruído ou, se possível, aprisionado.

Os helicópteros decolaram poucos minutos depois que Raskujan transmitira a ordem. Mas, desde as últimas notícias recebidas dos dois helicópteros que decolaram em primeiro lugar já se haviam passado quase três horas.

 

Duas horas haviam passado desde que as focas tinham tomado conta do barco. Segundo o cálculo de Rhodan, nessas duas horas foram percorridos perto de noventa quilômetros. Uma vez que o barco passara a se deslocar na direção nordeste, a distância ao ponto hipotético de desembarque crescera um pouco. Rhodan acreditava que ainda deviam se encontrar cerca de cento e quarenta quilômetros do destino. Isso representava pouco menos de quatro horas de viagem.

Tudo dependia do que faria Raskujan face ao desaparecimento dos dois helicópteros. A sorte não poderia ir ao ponto de fazer com que Raskujan ficasse parado. A qualquer hora apareceriam outros helicópteros que dariam busca no mar.

Além das armas de impulsos térmicos, o barco só teria uma chance diante de uma grande esquadrilha de helicópteros: já se encontrava a certa distância da rota que os aparelhos percorriam. Talvez a busca demorasse o suficiente para que o barco se colocasse em segurança.

Talvez...

Rhodan ainda estava envolto nesses pensamentos, quando o ruído que as focas causavam na água foi superado por outro. Pôs a mão em concha no ouvido para protegê-lo do ruído das focas e procurou ouvir noite afora.

Ouviu um zumbido irregular.

Eram helicópteros! Uma esquadrilha inteira!

“Estão muito longe”, pensou Rhodan. “Provavelmente Okura não conseguirá vê-los.”

Apesar disso fez um sinal ao japonês, chamou sua atenção para o ruído e pediu-lhe que esforçasse a vista. Okura não via nada. A emissão térmica dos jatos dos helicópteros por certo não lhe teria escapado se os mesmos se encontrassem ao alcance da visão. Dali se concluía que os aparelhos ainda se encontravam abaixo da linha do horizonte.

O ruído cresceu, chegou a um máximo e voltou a diminuir. Cerca de dez minutos depois que Rhodan o ouvira pela primeira vez, desapareceu.

— Ainda não encontraram a pista certa — disse Rhodan com um sorriso. — Tomara que não a encontrem tão depressa.

Viu Marshall, que dormia. Se os helicópteros se aproximassem, teria que despertá-lo do sono que tão bem merecia.

Se tivesse que lutar para valer, não poderiam dispensar nenhum dos radiadores térmicos. Além disso, Marshall teria de avisar as focas, para que elas abandonassem a área de perigo.

— Son, preciso de um uísque — disse Rhodan com um gemido. — Quer arranjar um?

O japonês foi para a parte traseira do barco, onde estavam empilhados os suprimentos de víveres, armas e munições apresadas aos homens de Raskujan. Depois de algum tempo voltou sorrindo, com uma garrafa na mão.

— Não temos uísque — disse. — Em compensação encontrei uma legítima vodca russa.

 

Mais de cem quilômetros acima do ponto em que se desenrolava essa cena, outro homem fez uma nova tentativa — que por enquanto seria a última — para intervir nos acontecimentos que se desenrolavam em Vênus: era Reginald Bell, companheiro de lutas de Perry Rhodan e ministro da segurança da Terceira Potência.

Por enquanto Bell tinha de cuidar de sua própria segurança, sendo incapaz de se preocupar com outras pessoas, pois o grande cérebro positrônico instalado na fortaleza de Vênus cercava todo o planeta, quase até o limite de sua atmosfera, com um campo energético impenetrável que o protegia de qualquer interferência externa.

Bell decolara da Terra pouco depois de Rhodan, numa nave esférica de sessenta metros de diâmetro, da classe Good Hope. Na linguagem oficial do código de comunicações, essas naves eram chamadas de girinos.

Thora sofrera um tipo de curto-circuito psicológico. A saudade de seu mundo natal e a idéia de que Rhodan nem pensava em permitir seu regresso levaram-na a procurar auxílio em Vênus. Nesse planeta ficava a base mais poderosa da Terceira Potência. Não era equipada com naves capazes de enfrentar o espaço, mas dispunha de hiperemissores, cuja potência era tamanha que havia uma boa chance de que fosse ouvida por quem de direito.

Thora partira num dos destróieres recém-construídos e, ao se aproximar da área interditada, que cercava a fortaleza, sua nave foi destruída, porque o transmissor em código ainda não havia sido instalado na mesma. Foi aprisionada primeiro por Tomisenkow, depois por Raskujan.

Rhodan seguiu-a, e o destino que teve juntamente com seus dois acompanhantes não foi melhor que o de Thora. Todavia, conseguiram escapar à prisão. Mas as tentativas de libertar Thora falharam por completo.

O terceiro comparsa foi Reginald Bell. Com seu girino, reunia todas as condições para atingir Vênus e penetrar na área da base. Os recursos técnicos de que esta dispunha, lhe permitiriam interferir nos combates, libertar Thora, resgatar Rhodan e obrigar Raskujan a entrar nos eixos. Acontece que o cérebro positrônico, advertido pela aproximação não anunciada das duas naves, fechara Vênus contra o mundo exterior e assumira o comando sobre Vênus em geral e sobre a fortaleza em particular. Por isso a nave de Bell ficou cruzando além da área abrangida pelo anteparo energético e nem sequer conseguiu estabelecer contato permanente pelo rádio com Rhodan, pois o anteparo não podia ser atravessado nem mesmo pelas ondulações eletromagnéticas, inclusive as ondas longas do espectro infravermelho.

Bell fizera uma única tentativa de lograr o dispositivo positrônico, valendo-se de um mutante. O dom parapsicológico de Tako Kakuta consistia na capacidade da teleportação. Estava em condições de, sem o auxílio de quaisquer recursos técnicos, transportar-se a uma distância de cinqüenta mil quilômetros. O ambiente transportador de que se servia era o hiperespaço sobreposto; com exceção da fonte de energia, o mecanismo era idêntico ao da transição de uma nave espacial.

Depois da primeira tentativa, Tako Kakuta regressara imediatamente; estava esgotado ao extremo. Fora de opinião que estivera a caminho durante várias horas. Não havia a menor dúvida de que a verdade dos fatos era a seguinte: o dispositivo positrônico da base de Vênus estava preparado para enfrentar tentativas de rompimento do bloqueio das espécies mais variadas, inclusive aquelas que se realizassem em níveis superiores. Era de duvidar que a base mantivesse constantemente um anteparo que abrangesse as cinco dimensões e cercasse todo o planeta. Isso exigiria um dispêndio energético de extensões inconcebíveis. Mas, ao que tudo indicava, a reação do cérebro positrônico face a qualquer objeto que tentasse penetrar na área protegida era suficientemente rápida para que o mesmo pudesse ser removido para fora dessa área.

Tako Kakuta levara dois dias terrestres para se recuperar.

Naquele mesmo dia, Bell lhe perguntou se estava disposto a repetir a experiência. Deu algumas explicações.

— Talvez o fracasso da primeira tentativa tenha sido uma coincidência — disse. — Quem sabe se da próxima vez não consegue penetrar na fortaleza sem ser molestado? Sabe muito bem o quanto isso nos ajudaria. Já penetrou na base através de um salto de teleportação; está lembrado? Foi daquela vez em que Tomisenkow acabara de pousar com sua frota de quinhentas naves e nós os espalhamos pelos quatro cantos. É possível que o cérebro positrônico julgue a situação de hoje mais perigosa, e por isso tenha ativado outros campos de defesa. Para falar com franqueza, é até provável que seja assim. Mas não acha que apesar disso devíamos fazer mais uma tentativa?

A fala de Bell foi cautelosa, o que contrariava seus hábitos. De resto, não era de sua alçada formular pedidos a um membro da Terceira Potência. Na situação em que se encontrava, tinha o direito de ordenar.

Mas sabia perfeitamente o que significaria uma segunda tentativa de Tako Kakuta. A primeira fora suficiente para fazê-lo atingir os limites de sua resistência física.

Por estranho que parecesse, Kakuta não hesitou. Um sorriso um tanto embaraçado espalhou-se por seu rosto redondo de criança.

— É claro que tentarei mais uma vez. Faço votos de que também desta vez não sofra outra coisa a não ser a sensação de ter sido atropelado por um tanque.

Fizeram todos os preparativos para a ação. Bell mandou que dois tripulantes da nave comparecessem à sala de comando e ordenou-lhes que cuidassem bem do japonês, se este voltasse a aparecer.

Tako Kakuta colocou-se em posição. Em seu rosto havia uma expressão fatalista.

— Vou tentar — anunciou.

A transição propriamente dita não levou mais de um segundo. Mal se notava que os contornos do corpo de Kakuta começaram a se desvanecer, e o mesmo já havia desaparecido.

Reginald Bell conteve a respiração. No intervalo de duas pulsações do coração atreveu-se a acreditar que desta vez a tentativa fora coroada de êxito... mas aí o japonês reapareceu de repente.

Fechara os olhos e o rosto contorcia-se de dor.

Os homens que Bell mandara comparecer à sala de comando cumpriram seu dever. Tako Kakuta caiu nos seus braços. Estava inconsciente.

— Levem-no ao seu camarote — ordenou Bell. — E cuidem dele. Avisem-me assim que recuperar a consciência.

Deu-lhes as costas e fitou a tela de imagem, coberta de massas turbilhonantes de nuvens luminosas.

A segunda tentativa fracassara.

Não havia mais nenhuma possibilidade de intervir nos acontecimentos que se desenrolavam em Vênus.

 

Son Okura viu o litoral emergir sob a forma de um traço negro.

Faltavam quarenta horas para a meia-noite.

Fazia tempo que Marshall despertara e assumira o posto de Rhodan, para que este descansasse ao menos alguns minutos. Son Okura era o único que ainda não tivera tempo para dormir.

Por enquanto seus olhos não podiam ser dispensados.

As focas rebocavam o barco sem cessar.

Haviam ouvido os helicópteros por mais algumas vezes. De cada vez o ruído fora um pouco mais forte que da vez anterior. Não havia dúvida de que os aparelhos davam buscas no mar em faixas que corriam do sul para o norte ou vice-versa, e que essas faixas chegariam cada vez mais perto da costa e do barco em fuga.

Marshall avisara as focas. Se houvesse um ataque, aguardariam um sinal para sair dos laços e se retirar da área de perigo. Marshall esperava que as coisas não chegassem a esse ponto, mas não tinha muita certeza disso.

Depois de um ligeiro descanso, Rhodan levantou-se e mandou que o japonês dormisse um pouco. Okura obedeceu; dali em diante dependeriam exclusivamente do ouvido. Os olhos do espia haviam sido eliminados.

 

Pouco depois das duzentas e uma horas, tempo local, o observador do helicóptero que ia à frente da esquadrilha reconheceu um reflexo débil e minúsculo na sua tela de radar.

Comunicou-se com o grosso da força e soube que já haviam observado a mesma coisa. Com isso ficava demonstrado que se tratava de um reflexo genuíno.

A posição exata do objeto foi determinada; constatou-se que se deslocava a uma velocidade considerável em direção ao nordeste.

Cinco minutos depois de realizada a primeira observação, a esquadrilha tomou o rumo leste e aproximou-se do objeto desconhecido a toda velocidade. No momento esse objeto deslocava-se na proximidade da costa da península.

Para o major que comandava a patrulha de helicópteros, não havia a menor dúvida de que esse objeto se relacionava de alguma forma com os dois helicópteros desaparecidos. Ordenou aos observadores que não tirassem os olhos daquele objeto e que utilizassem o dispositivo infravermelho assim que se encontrassem à vista do mesmo.

 

Rhodan aguçou o ouvido.

De início escutara apenas o costumeiro zumbido distante da esquadrilha que se aproximava, vindo do sul; alcançaria seu ponto máximo numa posição lateral.

Mais uma vez os helicópteros se aproximaram, mas por enquanto não havia nenhum perigo.

Rhodan esperava que o ruído se afastasse para o norte, mas isso não aconteceu. Um novo tom se misturou ao zumbido.

Rhodan compreendeu imediatamente o que havia acontecido em meio à escuridão: os ocupantes dos aparelhos haviam descoberto alguma coisa, comunicavam-se entre si e tomavam outro curso. Por alguns instantes teve esperança de que não fosse justamente o barco. Este era feito de massa plástica elastificada e não constituía o material adequado para refletir uma onda de radar.

Mas, quando o ruído começou a crescer com uma intensidade assustadora, Rhodan percebeu que se enganara. Os aparelhos de radar do inimigo eram melhores do que acreditara.

— Marshall! Acorde Son!

Marshall também estava escutando. Respondeu com um breve aceno de cabeça e dirigiu-se à proa, para despertar o japonês. Não foi fácil, mas sob a força das circunstâncias conseguiu.

— Son! — gritou Rhodan. — Estão atacando. Diria que são mais ou menos dez helicópteros. Fique de olhos abertos.

E depois:

— Marshall...

— Sim.

— Transmita o sinal às focas. Antes disso procure saber onde poderemos nos abrigar se conseguirmos resistir à primeira investida.

— Pois não.

— Son.

— Sim.

— A que distância fica a costa?

— Uns duzentos metros.

Rhodan praguejou por entre os dentes. Não poderiam ter levado mais um minuto para descobrir o barco?

Marshall já entrara em atividade. Com a habilidade que lhes era peculiar as focas soltaram-se dos laços e dispararam em direção à costa.

— As focas moram em cavernas cheias de água até a metade da altura; desembocam diretamente no mar. Avisam que estão dispostas a nos abrigar lá.

Rhodan confirmou com um aceno de cabeça.

— Está bem. Preparem as armas.

O zumbido dos helicópteros começara a se desmanchar. Há alguns segundos o ouvido distinguia entre o chiado agudo dos jatos e as batidas dos motores. Son informou que via nove pontos luminosos que se aproximavam pouco acima da superfície da água.

— Estão a uns dois quilômetros de distância — acrescentou.

Nos últimos segundos antes de abandonarem o barco as focas ainda o haviam levado mais uns cinqüenta metros em direção à costa. Esta ainda ficava a cento e cinqüenta metros. Rhodan preveniu os companheiros de que teriam de percorrer essa distância a nado, fossem quais fossem as criaturas da flora e da fauna aquática que se encontravam no caminho.

— No primeiro ataque abriremos fogo contra eles — ordenou. — Se não tremermos com a mão, seremos capazes de derrubar quase uma esquadrilha inteira. Isso lhes incutirá um pouco de respeito. Aproveitaremos o tempo que levarem para se recuperar do susto para nadar até a costa. Pendurem o radiador de impulsos térmicos nas costas. Cada um levará ao menos uma das pistolas automáticas que temos a bordo, além de uma boa provisão de munições. Não se esqueçam do mais importante: procurem chegar quanto antes às cavernas das focas. Dos helicópteros eles nos verão mesmo que estejamos nadando.

Mal acabou de pronunciar essas palavras, quando Son Okura levantou o braço.

— Atenção! Ali; estão usando holofotes de luz infravermelha.

Só o japonês via os raios enfeixados que, vindos das alturas em que se encontrava a patrulha de helicópteros, davam busca pela superfície do mar. Para Okura os pontos cintilantes em que os raios infravermelhos atingiam o mar constituíam um indício precioso, que lhe permitia avaliar o tempo que os helicópteros ainda levariam para descobrir o barco.

— Faltam quinhentos metros! — gritou para Rhodan. — Vêm bem em nossa direção.

“Não é de admirar”, pensou Rhodan. “Estão voando de tal forma que o reflexo fica bem no centro da tela. Isso não é nenhuma arte.”

— Faltam duzentos metros! — gritou Okura e cobriu o rosto com os dois braços. O holofote, que para outras pessoas era invisível, ofuscava os olhos do japonês.

Haviam sido descobertos.

— Abriguem-se! — ordenou Rhodan.

As paredes de plástico do barco forneciam uma proteção muito melhor do que seria de supor à primeira vista. A massa de plástico que cercava o recipiente de ar tinha ao menos dez centímetros de espessura. Além disso, era um material auto-regenerável. O impacto de um projétil liberava calor. E a massa de plástico utilizava esse calor para fechar o buraco aberto pelo tiro, recorrendo à substância retirada das partes não atingidas. Com isso poderiam ser anulados efeitos de qualquer número de impactos comuns, e de cerca de quinze impactos de projéteis explosivos. Quanto ao décimo sexto impacto de projétil explosivo...

Um canhão automático começou a emitir um ruído metálico ininterrupto em meio à escuridão. Os tiros foram muito curtos. A uns vinte metros do barco Rhodan viu os repuxos luminosos levantados pelos impactos.

Okura levantou os dois braços, para avisar que os helicópteros se encontravam em posição de tiro favorável. A voz de Rhodan superou o barulho:

— Fogo!

O fogo que surgiu em frente aos aparelhos foi de um silêncio sinistro. Rhodan viu uma sombra que emitia silvos e batidas, dirigiu seu radiador de impulsos térmicos sobre a mesma e comprimiu fortemente o gatilho. Ficou com os olhos semicerrados para evitar o ofuscamento produzido pela luminosidade da descarga energética. Viu quando o raio ofuscante atingiu o enorme aparelho, descarregou todo seu potencial energético nas paredes, nos soalhos e nos instrumentos do mesmo, transformando-os de um instante em outro num montão de metal derretido e volatilizado, que se desmanchou numa explosão estrondosa ao tocar a superfície da água.

O mesmo fenômeno repetiu-se em mais dois pontos. Perry Rhodan teve uma sensação de triunfo quando os outros helicópteros puseram os jatos a uivar e se afastaram precipitadamente.

— Tudo preparado para nadar?

— Tudo preparado — soou a voz de Okura.

— Tudo preparado — respondeu Marshall.

— Vamos!

Deixaram-se cair na água. Logo começaram a nadar com braçadas vigorosas. A água era gosmenta e um pouco viscosa, mas avançaram rapidamente e comunicaram-se por meio de gritos para não se dispersarem.

O ruído dos helicópteros voltou a crescer. Rhodan viu que Okura, enquanto nadava, virou a cabeça para observar os raios dos holofotes de luz infravermelha. Fez um gesto tranqüilizador.

Desta vez o ruído dos canhões automáticos soou a uma distância tranqüilizadora. Voltaram a atacar o barco.

Ouviu uma série de estalos e chiados e viu uma chuva de faíscas quando um dos projéteis atingiu as munições depositadas no barco. Praticamente no mesmo instante os helicópteros pararam de disparar. Ao que tudo indicava achavam que era impossível que alguém tivesse resistido à explosão.

Okura avisou que dois dos aparelhos estavam parados pouco acima do barco.

— Pois procurem nadar mais depressa! — gritou Rhodan. — Logo perceberão que escapamos.

— Son, quanto falta?

— Setenta metros.

Procuraram verificar a profundidade da água, mas era quase impossível afundar as pernas nesse líquido viscoso.

A voz de Okura voltou a soar:

— Atenção! Estão se aproximando. Vieram devagar. Ainda não sabiam em que direção os tripulantes do barco haviam se afastado. Deixaram os holofotes de luz infravermelha deslizar sobre a água.

Ainda faltavam quarenta metros, calculou Rhodan. E os helicópteros estavam a menos de cem metros atrás deles.

Subitamente Marshall gritou:

— Aqui já temos chão firme! Podemos caminhar.

Rhodan aproximou-se do lugar de onde vinha a voz. Viu o vulto de Marshall, que agitava os braços, emergir da escuridão, e baixou as pernas. Sentiu o chão sob os pés.

Ao andarem não conseguiram avançar muito mais depressa do que nadando, mas era muito mais confortável. Avançaram metro por metro em direção à costa, que começou a se desenhar sob a forma de um traço negro contra a escuridão cinzenta. Mas os helicópteros também vinham se aproximando metro por metro.

De repente Rhodan ouviu o japonês soltar um gemido.

— Descobriram-nos.

Rhodan não viu o facho luminoso do holofote, mas ouviu o ruído das armas automáticas. Poucos metros à direita os projéteis atingiram a água.

— As focas estão bem à nossa frente! — gritou Marshall. — Vamos para lá!

O helicóptero corrigiu a pontaria. Rhodan viu a linha dos projéteis se deslocar em sua direção. Faltavam cinco metros.

Tropeçou sobre alguma coisa e caiu esticado na água. Alguma coisa segurou-o vigorosamente pelos ombros e voltou a pô-lo de pé. Mais adiante Marshall gritou alguma coisa que Rhodan não entendia. Parecia ter a voz muito cava. O que seria?

Era a caverna! Marshall já se encontrava no interior dela. Rhodan viu que os repuxos levantados pelos projéteis da arma automática ficavam atrás dele. Com uma sensação de alívio tropeçou pelo chão escorregadio e coberto de água. Percebeu que subia constantemente e acabou chegando a uma placa de pedra situada poucos centímetros acima da superfície da água. Marshall, que já estava sentado, fez-lhe um sinal. O japonês dispôs-se a subir a pedra, vindo do outro lado.

Rhodan deixou que Marshall o ajudasse. Assim que conseguiu puxar as pernas para junto do corpo, deixou-se cair. Deitado de costas, inalou em golfadas vigorosas o ar úmido da caverna das focas.

Os canhões automáticos dos helicópteros continuavam a disparar do lado de fora. Mas a abertura da caverna era tão pequena e estava tão cheia de água que os projéteis disparados não mais conseguiam atingi-los.

 

— Já decidiu alguma coisa? — perguntou Tomisenkow.

Thora se assustou quando o viu entrar por baixo da lona. Apesar disso não perdeu a compostura.

— Já decidi — respondeu em tom altivo. — Estou disposta a cooperar com o senhor, desde que consiga me convencer de que existe alguma chance de sermos bem sucedidos, por menor que seja.

Tomisenkow sentou sem ser convidado e encarou-a com os olhos semicerrados.

— Posso garantir — disse — que eu e mais alguns dos meus companheiros poderemos sair do acampamento sem sermos molestados e penetrar algumas centenas de metros na selva. O que acontecer depois depende da capacidade de sua lendária fortaleza de Vênus de nos proteger contra os helicópteros e as patrulhas de Raskujan.

Um brilho de suspeita iluminou os olhos avermelhados de Thora.

— Se acredita que dessa forma conseguirá penetrar no interior da base, está muito...

Tomisenkow interrompeu-a com um gesto nervoso.

— Para mim o tempo passou — asseverou. — Não estou interessado em sua base. Posso viver sem ela.

— Afinal, no que está interessado? — perguntou Thora com um certo tom de ironia na voz.

Tomisenkow encarou-a.

— Estou interessado — respondeu — em impedir que um idiota faça tudo quanto é besteira em Vênus. Até parece que a senhora ainda não conhece a raça terrena a que pertencemos.

— Nunca tive interesse em conhecê-la — respondeu Thora em tom reservado.

Tomisenkow não parecia ofendido.

— Um dia a senhora devia procurar conhecer — disse em tom pensativo. — Somos uma raça bem interessante. Basta que se veja, por exemplo, que um ano que passamos em Vênus quase sem recursos bastou para que eu e a maioria de meus companheiros nos apaixonássemos por este mundo horrível. Somos os primeiros que passamos um ano inteiro aqui sem casas pré-fabricadas, camas macias e outras comodidades; vivemos nas selvas e nos vales que cortam as montanhas e de noite sempre dormimos em cima das árvores. Vênus nos pertence. Já não somos russos, mas venusianos ou coisa que o valha. Por isso sua base não me interessa nem um pouco; e é também por isso que quero evitar que Raskujan continue a brincar de ditador por aqui. A senhora compreende?

Thora não respondeu.

— Está bem — disse depois de algum tempo. — Sairemos juntos deste campo de prisioneiros. Não posso fazer nenhuma promessa. Mas talvez pudéssemos organizar a fuga da seguinte maneira:...

 

Rhodan só se permitiu alguns minutos de descanso. Depois levantou-se.

— Marshall, diga às focas que têm de sair quanto antes desta caverna.

Os helicópteros haviam se retirado. No interior da caverna reinava o silêncio, interrompido apenas pelo ruído das ondas e pelo arrastar das barbatanas das focas sobre a rocha molhada dos fundos.

Marshall transmitiu a advertência.

— Não sabem por quê — disse a Rhodan.

— Porque esses helicópteros não terão coisa mais urgente a fazer que colocar algumas bombas tipo baby bem à frente do nosso nariz.

Marshall também transmitiu essa mensagem, embora fosse um tanto difícil fazer as focas compreenderem o que vinha a ser uma bomba baby.

— Estão de acordo — disse depois de algum tempo.

— Esta caverna tem alguma saída para o lado da terra? — indagou Rhodan.

Marshall formulou a pergunta.

— Sim, uma espécie de refúgio. Mais precisamente, uma galeria que sobe num plano inclinado e sai bem em meio à selva.

— Formidável. Nós a utilizaremos. Acredito que o pessoal de Raskujan deve ter deixado, em algum lugar lá fora, um helicóptero que deve observar o terreno. Se pudermos desaparecer sem sermos notados, teremos uma ótima vantagem.

Procurou avaliar o raio de ação da bomba que se esperava e pediu a Marshall que comunicasse às focas qual era a distância mínima que deveriam guardar da caverna para não saírem machucadas.

Constatou-se que para as focas a mudança não representava qualquer problema. Por sua própria natureza eram uma raça inconstante, e ao longo da costa havia milhares de cavernas. Prometeram que iriam advertir outros grupos de focas que se encontravam na área ameaçada.

Marshall também deu sua contribuição: através de uma mensagem telepática, repetida várias vezes, preveniu todas as focas que se encontravam nas redondezas.

Finalmente procurou explicar às focas que aqueles aos quais haviam prestado auxílio sentiam-se muito gratos e que Rhodan estava disposto a cumprir qualquer desejo que tivessem, desde que isso estivesse ao seu alcance.

Mas, por espantoso que fosse, as focas não tinham nenhum desejo. Suas necessidades eram muito reduzidas e o mundo de Vênus era opulento. Despediram-se uns dos outros com protestos de amizade mútua — que eram um tanto desajeitados, em virtude da diferença de mentalidades.

Rhodan e seus companheiros puseram-se a caminho. Rastejaram por uma galeria de cerca de cem metros de comprimento que fedia a peixe e óleo de baleia e mal dava para andarem de quatro. Mais ou menos às duzentas e duas horas atingiram o mundo exterior; num ponto bem afastado da costa, onde a selva impenetrável os protegia.

As focas haviam fornecido uma descrição aproximada do terreno a Marshall. A topografia desses animais não chegava a ser uma ciência, mas bastou para que Rhodan constatasse que a faixa de terra vertical, que ligava a península com a linha costeira do continente norte, devia se encontrar entre oito e quinze quilômetros de distância do lugar em que se encontravam.

— Pois bem — disse — são quinze quilômetros no máximo até a faixa que liga a península ao continente. O campo energético da base começa a uns vinte quilômetros ao norte da linha costeira. Isso perfaz, na pior das hipóteses, um total de trinta e cinco quilômetros até o campo energético. Ali devemos encontrar um meio de ativar o mecanismo identificador do cérebro positrônico. E depois disso — esboçou um sorriso cansado — o pior terá ficado para trás.

 

Pisando fortemente, o cabo Wlassov saiu da escuridão e correu em direção à sentinela postada junto ao portão.

— Preciso de auxílio — fungou. — Tomisenkow desapareceu.

Junto ao portão do primitivo campo de prisioneiros havia cinco homens; o mais graduado era o sargento. Dois homens foram destacados para ajudar Wlassov na busca do general desaparecido. O sargento preveniu Wlassov.

— Vocês dispõem de quinze minutos para encontrar Tomisenkow. Depois terei de avisar a ocorrência.

Wlassov respondeu com um aceno de cabeça e desapareceu na escuridão juntamente com os dois homens que o acompanhavam. Uma das sentinelas ligou a lanterninha para iluminar o caminho; mas Wlassov deu uma pancada no braço do homem.

— Apague isso! — chiou. — Se ele nos vê de longe, não deixará que o agarremos.

O argumento era bem plausível, ainda mais que Wlassov conhecia de cor o caminho até a barraca de Tomisenkow. Caminhou à frente e pouco se importou quando subitamente algumas sombras emergiram da escuridão, saltaram sobre seus companheiros e lhes comprimiram a garganta até que eles perdessem a consciência.

— Tudo em ordem — cochichou uma voz. — Tirem a roupa deles.

Wlassov deu meia-volta e voltou alguns passos. Dois homens estavam tirando os uniformes das sentinelas inconscientes.

— Não se apressem — disse Wlassov em tom tranqüilo. — Temos tempo. O sargento não avisará a ocorrência antes de quinze minutos.

As duas sentinelas foram amarradas, amordaçadas e escondidas entre as moitas. O campo de prisioneiros estava seguro contra animais selvagens, com exceção das formigas gigantes. Desde que estas não assaltassem o acampamento justamente na próxima hora, a vida dos dois homens amarrados não correria perigo.

Uma sombra baixa e atarracada destacou-se em meio à escuridão. Wlassov levou uma pancada vigorosa no ombro.

— Trabalho bem feito, rapaz — disse Tomisenkow em tom de elogio.

Wlassov deu um sorriso de embaraço.

— Não me sinto muito bem com isso — respondeu.

Tomisenkow fez um gesto de desprezo.

— Isso passa — disse laconicamente.

Um dos outros homens anunciou:

— Terminamos, chefe.

— Muito bem — resmungou Tomisenkow. — Estão todos reunidos? Wlassov, Alicarim, Jegorov, Zelinskij. Onde está Thora?

— Estão todos aqui, chefe.

Tomisenkow fez um gesto com a cabeça.

— Está bem. Vamos embora.

O sargento postado junto ao portão não desconfiou de nada quando, depois de um tempo relativamente curto, Wlassov voltou acompanhado de dois homens cujo rosto não podia reconhecer. Seus acompanhantes usavam os uniformes limpos que distinguiam as tropas de Raskujan dos homens esfarrapados da divisão espacial.

— Tudo em ordem? — perguntou o sargento.

Wlassov acenou com a cabeça; parecia aliviado.

— Tudo. Passou por baixo da lona de barraca e deu um passeio. Não acredito que...

Não precisou dizer mais nada. Já havia chegado perto do sargento. Num movimento instantâneo levantou a mão que segurava a pesada pistola pelo cano e com a coronha deu uma pancada violenta na cabeça do homem. Wlassov segurou o pesado corpo do sargento e deixou-o cair suavemente em meio ao capim.

Uma das outras sentinelas pôs a cabeça para fora da cabana primitiva que servia de guarita.

— O que houve? O que aconteceu com...

Wlassov fez-lhe um sinal para que se aproximasse.

— Venha cá. Caiu de repente.

Sem desconfiar de nada a sentinela dispô-se a vir em auxílio do sargento. Quando inclinou-se sobre o homem inconsciente, recebeu uma pancada igualmente violenta e seu corpo flácido e inconsciente cobriu o de seu superior.

Wlassov não perdeu muito tempo com a última sentinela. Segurou a pistola pela coronha e entrou na cabana. O homem olhou-o com o rosto sonolento.

— Levante-se e ponha as mãos para cima! — ordenou Wlassov.

O homem obedeceu, ainda sonolento e quase morrendo de susto.

— Saia à minha frente!

Mais uma vez o homem fez o que lhe fora ordenado. Ao sair da porta, um dos homens de Tomisenkow que haviam vindo com Wlassov deu-lhe uma pancada na cabeça, o que o fez cair duro, tal qual seus camaradas.

Wlassov soltou dois assobios abafados. A escuridão adquiriu vida. Tomisenkow, Alicarim e Thora chegaram ao portão.

— Vamos amarrá-los, amordaçá-los e tirar-lhes as armas — ordenou Tomisenkow laconicamente.

O trabalho progrediu rapidamente. Os três homens inconscientes também foram escondidos nas moitas num lugar bastante afastado da cabana. Era de supor que a busca dos fugitivos demoraria até que a ronda encontrasse as sentinelas desaparecidas.

Ao todo haviam sido derrubadas e escondidas sete sentinelas: uma adiante da barraca de Thora e da que Alicarim, Jegorov e Zelinskij ocupavam em conjunto, as duas que o sargento havia destacado para acompanharem Wlassov e finalmente o sargento com os dois subordinados que ainda lhe restavam.

A oitava das sentinelas desaparecidas daria alguma dor de cabeça à ronda: era Wlassov. Era difícil de imaginar que um dos soldados de Raskujan preferisse renunciar à segurança e ao conforto do campo de foguetes para seguir um homem que, no linguajar de Raskujan, era um simples aventureiro, enfrentando a insegurança e as privações.

Talvez essa dor de cabeça retardasse o início da busca por mais alguns minutos.

O pequeno grupo, com Tomisenkow na ponta, passou pelo portão totalmente aberto. Wlassov, que carregava duas pistolas automáticas e um pesado embrulho com munições, ia na retaguarda. Fechou cuidadosamente o portão.

Tomisenkow tomou o rumo nordeste, para contornar a área perigosa do campo de pouso dos foguetes. Cinco minutos depois chegaram à selva no lugar em que terminava a faixa de terra calcinada.

Wlassov conhecia os planos de Tomisenkow. Queria atingir quanto antes o campo protetor da base que a Terceira Potência possuía em Vênus. A idéia de roubar um helicóptero logo foi abandonada. O aparelho não conseguiria decolar sem ser percebido. Dentro de poucos minutos os homens se poriam em seu encalço e, numa relação de forças de um para vinte, não podia haver qualquer dúvida quanto ao resultado da perseguição.

Também desistiram da idéia de usar a faixa calcinada aberta pela Stardust-III para avançar mais depressa. Raskujan logo imaginaria que fossem adotar esse procedimento. Embrenhando-se pela selva enganariam Raskujan e estariam protegidos contra a visão direta.

Tomisenkow sabia que a fuga não seria descoberta antes da próxima ronda, que seria realizada dentro de duas horas. É a experiência já lhe ensinara que as trilhas abertas na selva se fechariam dentro de uma hora e meia no máximo, a tal ponto que nenhum dos homens de Raskujan conseguiria distingui-los do restante da selva de Vênus.

Dessa forma os problemas com que Tomisenkow se defrontava haviam sido solucionados com um grau máximo de segurança. Só mesmo um fato imprevisto faria com que o grupo fosse descoberto e recapturado enquanto Tomisenkow se encontrasse no comando.

O que viria depois era outra coisa. Wlassov não entendia muito das coisas concebidas pela arcônida e que depois soubera de Tomisenkow, isto é, de terceira pessoa. Tratava-se do campo protetor, onde, durante um ano, Raskujan esbarrara diariamente com a cabeça. Thora parecia estar convencida de que o mecanismo que mantinha o campo ativado devia ter efetuado alguma ligação especial e que justamente essa ligação daria a ela e aos seus companheiros uma chance de atravessar a área do campo e penetrar na base.

Wlassov não compreendia nada disso. Mas confiava na inteligência de Tomisenkow. Se este acreditava que os planos de Thora tinham alguma chance, esta realmente devia existir.

 

Encontravam-se cerca de dois quilômetros da saída da galeria quando a bomba baby explodiu. Por alguns segundos uma luz pálida cobriu o terreno, penetrando mesmo através da folhagem da selva. Trinta segundos depois, a vaga de pressão desencadeada pela detonação da bomba gemeu acima da floresta.

Isso não os perturbou. Tratava-se de uma bomba de fusão, cuja matéria físsil não atinge o nível crítico, mas que, através de uma matéria refletiva bastante eficaz, como a grafite ou o berílio, no momento da detonação ultrapassa o fator de criticidade um. A radiatividade desencadeada pela mesma só atinge um nível perigoso nas imediações do local da explosão. A caverna das focas, que lhes servira de abrigo por alguns minutos, e a área situada num raio de quinhentos metros da mesma, constituiriam um terreno perigoso por mais algum tempo. Mas ninguém sofreria qualquer dano, a não ser que as focas não levassem a sério a advertência que lhes fora feita.

Apesar disso, Perry Rhodan viu na detonação da bomba mais uma prova do perigo que se correria se um homem como o coronel Raskujan pudesse agir à vontade em Vênus. Não compreendia que um mundo novo exige o emprego de novos métodos. A idéia de que a política da Terra, inspirada nas ambições nacionalistas, não poderia ser transplantada para ser praticada em Vênus ultrapassava a capacidade de seu horizonte mental.

Aos homens desse tipo faltava aquilo que Rhodan costumava designar como a mentalidade cósmica.

Rhodan lamentou que não estivesse ainda em condições de ensinar a Raskujan qual era seu lugar. Dos trinta e cinco quilômetros que, na pior das hipóteses, teriam de vencer para alcançar o limite do campo energético, só haviam percorrido dois. Dentro das próximas cinco horas teriam que fazer uma pausa de descanso bastante extensa, pois do contrário suas pernas e mentes entrariam em pane sem prévio aviso.

Desfrutaram de um descanso no nível mais elevado e menos perigoso da selva. Son Okura localizou a árvore que prometia o grau mais elevado de conforto e segurança. A uns quarenta metros de altura alcançaram com algum esforço uma bifurcação bastante extensa para lhes proporcionar um abrigo seguro. Rhodan dispôs-se a ficar de sentinela durante as primeiras duas horas. Depois foi a vez do japonês, e o último período coube a John Marshall.

Instalaram-se o melhor que puderam e dali a um minuto Marshall e Okura já estavam dormindo profundamente. Rhodan aproveitou o tempo para refletir sobre um ou outro problema que ainda não tinha sido resolvido.

Há um ano privara a divisão espacial comandada pelo general Tomisenkow de suas naves e a tangera na selva. Pretendia fazer dos dez mil homens de Tomisenkow, ou daquilo que restava dos mesmos, a base da colonização de Vênus. O plano parecia razoável. A divisão de Tomisenkow dispersara-se, conforme era de esperar. Houve a formação de grupos dissidentes que propugnavam esta ou aquela filosofia, como por exemplo o dos pacifistas, comandado pelo tenente Wallerinski. A dissidência não deixou de ser acompanhada de atritos internos. Mas com o tempo os grupos começaram a se fixar no solo, a maior parte deles em formações rochosas que se erguiam em meio à selva espessa e mortífera, formando planaltos desimpedidos que ofereciam aos colonos um máximo de segurança e visibilidade.

Acontece que no meio tempo o coronel Raskujan pousou em Vênus com sua frota de apoio. Durante um ano tentou conquistar a base da Terceira Potência e com isso, sem que o soubesse, deu tempo para que Tomisenkow e seus homens se instalassem em Vênus.

Mas chegou o momento fatal em que Raskujan teve conhecimento da existência dos remanescentes da divisão espacial e se dispôs a subjugá-los, para realizar seus planos ditados pela sede do poder.

De qualquer maneira Raskujan representava uma pedra no caminho. Tinha de ser removido antes que pudesse causar danos ainda maiores. Raskujan não deixava de ser útil, pois a maior parte dos tripulantes de sua frota era composta de mulheres que se tornavam necessárias para fazer da colônia uma autarquia biológica. Mas sob todos os outros aspectos o coronel representava um obstáculo.

Na opinião de Rhodan, Tomisenkow era o homem que poderia fazer prosperar a nova colônia. E o ressentimento pessoal não entrava nessa opinião. Rhodan não sabia se jamais chegaria a estabelecer contato direto com Tomisenkow. Tudo que sabia daquele homem provinha dos relatos dos prisioneiros que há um ano capturara em Vênus. O quadro resultante desses relatos não era muito agradável nem harmônico. Mas, conquanto não o conhecesse pessoalmente, Rhodan acreditava ter encontrado uma qualidade favorável em Tomisenkow: no ano que se passara, Vênus fez daquele homem uma criatura modesta e compreensiva.

Suas reflexões haviam chegado a este ponto quando entre a imensa variedade dos ruídos que a selva produzia a todo instante sobressaiu um farfalhar entrecortado, que parecia vir de um lugar muito próximo. Rhodan aproximou-se na escuridão do galho bifurcado e procurou observar a origem do ruído. Os olhos adaptados à escuridão enxergavam a uma distância de cerca de três metros, o suficiente para se defender com o radiador de impulsos térmicos contra qualquer coisa que pudesse se tornar perigosa.

Algo comprido, estreito e móvel entrou no campo de visão, vindo de cima. Por algum tempo balançou ao acaso entre os galhos; depois deu um solavanco, cresceu para baixo e arrastou atrás de si um montão elástico como o resto, que mudava constantemente de forma, deslizando árvore abaixo por uma trilha gosmenta por ele mesmo produzida.

Rhodan reconheceu o animal. Era um daqueles pólipos que viviam no solo onde construíam suas armadilhas subterrâneas, mas vez por outra punham-se a caçar, isso quando as presas que caíam na armadilha não bastavam para saciar a fome.

Rhodan aguardou pacientemente. Sabia perfeitamente que seria inútil atirar contra o tentáculo que balançava diante de seu rosto.

Por algum tempo o corpo flácido do pólipo, coberto de uma pele dura, escondeu-se na densa folhagem. Depois desceu, arranhando a árvore, colocou-se numa posição favorável e pôs o tentáculo a sair em busca da primeira presa.

Rhodan manteve-se quieto quando o tentáculo escamoso e repugnante passou por cima de seu crânio, caiu sobre o ombro direito e começou a enlaçá-lo pela cintura. Num movimento lento e cauteloso levantou o radiador térmico e dirigiu o cano sobre a massa volumosa formada pelo corpo do animal. Apoiou o pé contra o galho que, da forquilha, partia para a direita; quando o tentáculo começou a se esforçar para arrastá-lo, atirou.

A pontaria foi exata, conforme era necessário num disparo de radiador térmico. O raio ofuscante atingiu o corpo do pólipo no ponto mais distante da árvore. A substância orgânica queimou e se volatilizou num chiado, derramando uma chuva de fagulhas amarelentas na escuridão da selva. Rhodan sentiu que a força do tentáculo diminuía. Desprendeu-se e também foi consumido pelo calor absorvido pelo corpo do pólipo.

Poucos segundos depois, uma mancha negra, que a combustão produzira na casca da árvore, era o único vestígio do perigo que ameaçara os três homens abrigados na forquilha.

Rhodan mudou de lugar e continuou a observar a escuridão. Incidentes desse tipo eram relativamente raros naquela altura; não era de supor que durante o seu tempo de vigia a paz voltasse a ser perturbada.

Recostou-se e voltou a mergulhar em suas reflexões. Quebrou a cabeça para descobrir de que forma poderia trazer prosperidade à jovem colônia de Vênus, caso conseguisse sair vivo da aventura.

 

Era um acampamento primitivo; mas, com exceção de Thora, ninguém se incomodou com isso, e até mesmo ela preferiu não dizer nada.

Deitados no chão úmido e morno, mantiveram-se em silêncio e sonolentos. O único que parecia interessado em alguma coisa era Tomisenkow, que conversava com Thora sobre as possibilidades de penetrar na base apesar da existência do campo protetor.

— Pelo que entendi — disse Tomisenkow — a senhora tem esperança de que o cérebro positrônico instalado na fortaleza a reconheça e lhe franqueie o acesso. Será que é assim?

Thora acenou com a cabeça, um pouco enojada.

— Não tenho nenhuma certeza — disse. — Pelo que sei, o cérebro positrônico assumiu o comando da base em virtude de vários incidentes graves. Isso significa que o tipo de ligação que permite o acesso de um membro da Terceira Potência na base, caso seja irradiado com um emissor especial o sinal convencionado em código, está superada. Para nós isso é ótimo, pois não dispomos de um emissor especial para a transmissão de sinais codificados e os materiais de que dispomos não possibilitam a construção do mesmo. Nossa única esperança é que talvez o cérebro positrônico, assim que cheguemos ao limite do campo protetor, reconheça minhas vibrações cerebrais como sendo as de uma pessoa autorizada, e por isso abra a barreira.

Olhou para Tomisenkow, e este se admirou com a expressão de perplexidade que havia em seus olhos.

— Infelizmente não sei se o cérebro positrônico me reconhecerá como pessoa autorizada. Se Rhodan estivesse conosco, não haveria a menor dúvida de que seríamos bem sucedidos. Mas estando sozinha...

Deixou de pronunciar o resto da frase. Tomisenkow sentiu a necessidade de consolá-la. Mas antes que lhe ocorresse uma coisa apropriada que poderia dizer, ouviu um ruído que desviou sua atenção subitamente e por completo para coisas totalmente diversas.

Thora não sabia o que havia acontecido. Não ouvira nada.

— Alicarim! — gritou Tomisenkow.

— Sim, chefe — respondeu o homem baixo de olhos oblíquos vindo da Quirguízia. — Ouvi. É um tirano.

Disse-o em tom indiferente, quase entediado.

— Vem do leste-nordeste — acrescentou Zelinskij.

E Jegorov completou:

— Tenho a impressão de que vai diretamente para o lado do pântano.

Tomisenkow fez um gesto com a cabeça.

— Fiquem bem quietos, rapazes — disse a seus homens. — Talvez passe por nós sem nos perceber.

Da escuridão ouviram as vozes dos homens que confirmaram o recebimento da ordem.

— O que é? — perguntou Thora, nervosa. — Um sáurio?

— Isso mesmo. Não está ouvindo?

Thora levantou a cabeça e aguçou o ouvido.

— Se está se referindo àquilo que, de minuto em minuto, faz um ruído — disse depois de algum tempo — eu...

— Não é de minuto em minuto — respondeu Tomisenkow com um sorriso. — O intervalo é de trinta a quarenta segundos.

— Por que é chamado de tirano?

— Porque é o único carnívoro entre os sáurios. Come tudo que atravessa no seu caminho, desde que se trate de substância animal. Até chega a atacar sáurios de outras raças, mesmo que sejam maiores que ele. É claro que não consegue devorá-los totalmente. Arranca os melhores pedaços e deixa o resto para as formigas.

Thora ouviu-o, espantada.

— Por que anda tão devagar?

— Devagar? — Tomisenkow soltou uma estrondosa gargalhada. — Desloca-se a uma velocidade de vinte quilômetros por hora. É o único sáurio que costuma andar com o corpo ereto. Geralmente só usa as patas dianteiras para agarrar sua presa. É menor que a maioria dos sáurios mas, andando ereto, sua altura é pelo menos dez metros maior. Só as pernas têm cerca de quinze metros de altura. É só calcular quantos passos tem de dar por minuto para que esses membros provoquem um deslocamento de vinte quilômetros por hora. Não são mais que um e meio a dois.

Thora compreendeu.

Os passos retumbantes, que pareciam um terremoto, tornavam-se cada vez mais fortes. Os outros ruídos da selva cresceram na mesma proporção. Os animais fugiam daquela criatura poderosa.

— Vamos ficar sentados até que ele nos pise? — perguntou Thora, um pouco assustada.

Fez um gesto indefinido para a escuridão.

— Para qualquer lugar... para longe daqui.

— E como podemos saber que não passará justamente no lugar em que pretendemos nos esconder dele? Sabe dizer em que direção está andando?

Thora sacudiu a cabeça; parecia perplexa.

— Além disso, não precisa ter medo de ser pisada — prosseguiu Tomisenkow.

— Será que não?

— Não. Um tirano não pisa suas vítimas; ele as devora. E tem um nariz excelente para farejar sua presa. Não tenha a menor dúvida.

Depois de ter dado esse tipo de consolo a Thora, rastejou para onde estava Alicarim. Este havia removido a vegetação de um pedaço de chão e comprimiu o ouvido contra o solo para escutar melhor.

— Como estão as coisas? — perguntou Tomisenkow em russo.

Alicarim fez uma careta.

— Mal. Na melhor das hipóteses passará a cinqüenta metros daqui.

Tomisenkow se assustou.

— Cinqüenta metros não é nada — resmungou. — Seu faro alcança o triplo dessa distância.

Alicarim confirmou com um aceno de cabeça.

Tomisenkow virou-se:

— Assumam posição de combate, rapazes. Ao lado dos troncos das árvores. E façam boa pontaria.

Olhou para o lado e viu Wlassov, que não sabia o que fazer.

— Não fique de pé por aí — disse Tomisenkow em tom contrariado. — É um tirano que vai devorar você se ficar de pé diante de suas patas. Peça a Jegorov que lhe mostre como se deve esperar um tirano. E não se esqueça de uma coisa: se ele baixar a cabeça para dar uma olhada na gente, atire no olho dele. É o único ponto vulnerável de seu corpo. Entendido?

— Entendido — respondeu Wlassov com um nó na garganta.

Alicarim permaneceu até o último instante em seu posto de escuta. Tomisenkow procurou se abrigar atrás de um tronco. Uma vez em posição, fez sinal a Alicarim, que desistiu de escutar.

O quirguiz esgueirou-se para um lugar que lhe fornecia abrigo e colocou a pistola automática ao seu lado.

— Está a menos de vinte metros — fungou. — Dentro de três ou quatro minutos ele nos farejará.

Tomisenkow se limitou a acenar com a cabeça.

Subitamente, entre dois dos passos retumbantes do sáurio, ouviu um ruído diferente. Sobressaltou-se e levou algum tempo para compreender que o ouvido não o enganara.

As preocupações com o tirano quase fizeram com que se esquecesse de Raskujan.

Tomisenkow começou a rir, e Alicarim, que também ouvira o ruído, acompanhou a gargalhada.

— Com todos os demônios — gemeu Tomisenkow. — Se essa gente não se cuidar, o tirano os devorará juntamente com o helicóptero.

 

Era um único aparelho, cuja tripulação consistia como de costume em dois homens, um tenente e um sargento. O sargento pilotava a máquina, o tenente observava o terreno. Há pouco o tenente murmurara:

— Gostaria de saber como alguém pode reconhecer pessoas em meio a esse tapete enredado.

E agora o raio do holofote de luz infravermelha descobriu alguma coisa que nada tinha que ver com o objetivo de suas buscas, mas assim mesmo ocupou toda sua atenção.

Era um pescoço robusto e musculoso, que ultrapassava ao menos em dez metros a cobertura da selva, e por cima dele uma cabeça enorme de focinho largo, que balançava suavemente sobre a coluna formada pelo pescoço.

Ordenou ao sargento que subisse cinqüenta metros e mantivesse o aparelho imóvel. Através de seu instrumento de vôo cego, que na realidade era um aparelho rígido de luz infravermelha, o sargento também havia percebido o sáurio. Executou a ordem e imobilizou o aparelho numa altitude segura, cerca de oitenta metros do lugar em que se encontrava o animal.

— Também parou — constatou o tenente. — Ao que parece não se interessa por nós. Descobriu alguma coisa.

 

Tomisenkow virou a cabeça e olhou para Thora, que também se abrigara atrás de uma arvore e segurava uma das pistolas automáticas que sobravam. Tomisenkow viu seu cabelo louro-claro brilhar na escuridão.

— Fique quieta — gritou em inglês. — Saberemos lidar com ele.

Thora respondeu em tom irônico:

— Não se preocupe comigo. Só estou interessada em saber quanto valem esses seus lança-granadas antiquados.

Com um resmungo de satisfação, Tomisenkow voltou a olhar para o outro lado.

De repente cessou o ruído que o sáurio produzia com seu deslocamento pela floresta. Tomisenkow assobiou por entre os dentes.

— Ele nos farejou — comentou Alicarim.

Tomisenkow se apoiou nos braços e gritou para a escuridão:

— Ele nos descobriu, rapazes. O espetáculo vai começar.

No seu subconsciente percebeu que o helicóptero também não se deslocava mais. Parado acima da cobertura vegetal da selva, parecia observar o sáurio.

Wlassov não estava gostando daquilo. Não era do seu gosto esperar um inimigo no escuro, ainda mais quando nem sequer sabia como ele era. Estava deitado atrás de uma árvore bem grossa, conforme Jegorov lhe recomendara; mas o próprio Jegorov estava tão distante que Wlassov não o via.

Mas ouviu o grito de advertência de Tomisenkow e estreitou a mão em torno da arma. Enfiara nela um pente de balas em posição de disparar, com dois pentes de reserva. Mais dez pentes se encontravam no chão, ao alcance de suas mãos.

Subitamente o cenário voltou a se movimentar. Wlassov ouviu um forte farfalhar e uma série de estalos quando o sáurio voltou a se mexer. Instintivamente aguardou o estrondo da próxima pisada.

Mas o estrondo não veio. Quase foi tarde demais quando Wlassov percebeu que aquilo que se havia posto em movimento era o pescoço do sáurio. Ouviu o estalo dos galhos bem em cima de sua cabeça e viu uma sombra descer do alto. De um instante para outro o ar se encheu de uma terrível fedentina. Wlassov ouviu um fungar rápido e furioso, quando o sáurio soltou o ar. Foi nesse instante que a cabeça gigantesca emergiu da escuridão.

Por um segundo o sangue gelou-lhe nas veias. Nunca vira, nem em sonho, uma coisa tão pavorosa e cruel. Viu uma boca com duas fileiras duplas de dentes bem afiados que se aproximava dele, uma boca tão grande que poderia perfeitamente ficar de pé no interior da mesma. Em algum lugar à sua direita e à sua esquerda os braços ligeiros do monstro atravessavam a folhagem; mas Wlassov fitou os dois olhos circulares e cintilantes do sáurio, que o fitavam curiosamente a uns três metros de distância.

Subitamente Wlassov se lembrou do conselho que Tomisenkow e Jegorov lhe haviam dado. Num movimento rápido ergueu a pistola automática, teve a tranqüilidade necessária para apontar cuidadosamente para o olho direito e apertou o gatilho.

A salva dos pequenos projéteis explosivos atingiu o alvo. O rosto terrível do sáurio desapareceu de repente, e um instante depois veio do alto um grito tão forte e pavoroso que Wlassov deixou cair a arma e comprimiu as mãos contra os ouvidos.

 

— É agora! — gritou o tenente que se encontrava no helicóptero. — É agora que ele vai agarrar a presa.

No filtro de luz infravermelha via-se perfeitamente que o sáurio dobrava o pescoço e mergulhava a cabeça entre a folhagem. Por alguns instantes só se viu a nuca escamosa e saliente do animal. Depois, num movimento súbito, a cabeça voltou a surgir com a boca muito aberta, mas que cabeça!

No lugar em que antes ficava o olho esquerdo via-se uma abertura profunda e irregular, de onde o sangue jorrava aos borbotões. O tenente levou algum tempo sem compreender que animal seria este que, num tempo tão curto, conseguira produzir uma ferida tão extensa naquela fera. Com os olhos muito abertos, esperou que outro sáurio surgisse da escuridão da selva e continuasse a despedaçar o primeiro.

Mas não houve nada disso. O monstro ferido virou-se com um grito e se afastou cambaleante.

E então o espírito do tenente se iluminou.

Uma salva bem dirigida de projéteis explosivos poderia causar uma ferida dessas, de projéteis iguais aos que eram utilizados nas pistolas que ele mesmo usava.

Sua ordem veio quase sob a forma de um chiado, e foi tão repentina que o sargento .estremeceu:

— Desça e dê busca no terreno em que o sáurio esteve.

O sargento obedeceu: o aparelho caiu para a frente e passou rente às copas das árvores. A massa imensa do sáurio abrira uma estrada em meio à selva, e o tenente dirigiu o facho do holofote para o lugar em que essa estrada fazia uma dobra repentina.

O sargento manteve o aparelho imóvel, e, na ânsia da observação, o próprio tenente não se deu conta do risco que com isso assumiam.

Tomisenkow compreendeu a situação. Não sabia o que teria atraído a atenção do helicóptero, mas não tinha a menor dúvida de que estava procurando os fugitivos. Por isso continuou no seu esconderijo e gritou:

— Fiquem deitados até que isso desapareça!

Mas esse grito não conseguiu superar o chiado dos jatos e atingir o ouvido de Wlassov, e mesmo que este o tivesse ouvido, provavelmente não lhe teria dado atenção. O estado de espírito indescritível em que se encontrava, feito de uma mistura quase psicopática de euforia da vitória com os efeitos do medo terrível por que passara, fez com que de um salto se colocasse na estrada aberta pelo sáurio. Uma vez lá, apontou a pistola automática para a sombra bem perceptível que representava o helicóptero e apertou o gatilho.

A cabina de vidro do helicóptero foi atingida em cheio. O sargento foi morto imediatamente, e o tenente, ainda incólume, compreendeu imediatamente o que havia acontecido. Sem se preocupar com os controles do helicóptero, que por alguns segundos manteve a mesma altitude, pegou o microfone do rádio sempre preparado para a transmissão de mensagens e gritou sua informação.

Ainda estava falando quando o aparelho tombou como uma pedra e com um tremendo estrondo se esfacelou no meio da estrada aberta pelo sáurio.

 

O posto de rádio instalado no acampamento de Raskujan captou a mensagem:

— Localizamos os prisioneiros. Um pouco ao nordeste do acampamento, três quilômetros...

Não se ouviu mais nada além de um estalo relativamente leve, que era o único ruído que, da tremenda explosão do helicóptero, foi transportado pelo éter até a cabine do operador de rádio.

Este era um homem experimentado. Sabia o que significava a gritaria nervosa e a súbita interrupção da mensagem. E tinha a impressão de que o coronel Raskujan acharia que se tratava de uma ocorrência trivial.

Estabeleceu contato com a sala de comando da nave capitania e comunicou ao coronel o que acabara de ouvir.

 

Ao que parecia os deuses de Vênus protegeram Wlassov. Com um salto de pantera conseguiu mal e mal afastar-se em tempo de escapar ao fogo violento da explosão. Aterrizou violentamente num arbusto malcheiroso, cujos galhos úmidos imediatamente começaram a enlaçar seu corpo. Mas o deslocamento de ar logo o livrou daquele abraço indesejável, atirando-o alguns metros para diante, sem produzir nele qualquer ferimento além de alguns arranhões.

De repente os acontecimentos excitantes dos últimos minutos foram seguidos pelo silêncio total da selva. Wlassov ouviu o sangue zumbir em seus ouvidos antes que a voz zangada de Tomisenkow chegasse até ele:

— Onde está esse idiota que atirou contra o helicóptero?

Wlassov se levantou e experimentou as pernas:

— Aqui! — gritou.

Depois pôs-se em movimento. Alguém ligou uma lâmpada e dirigiu o feixe de luz semi-encoberto para o solo. Era Tomisenkow. Alicarim e Zelinskij estavam a seu lado. Jegorov e a arcônida saíram da folhagem lado a lado.

— Você não ouviu — principiou Tomisenkow em tom contrariado — que dei ordem para que todo mundo permanecesse no lugar em que se encontrava?

— Não — respondeu Wlassov espantado e mantendo-se fiel à verdade.

— O que você pensou quando atirou contra o helicóptero?

Essa pergunta deixou Wlassov ainda mais espantado.

— Bem — respondeu em tom hesitante. — Devo ter pensado a mesma coisa que qualquer pessoa que pega uma pistola automática e atira contra um helicóptero inimigo. Não vejo nada de especial...

Tomisenkow não deixou que terminasse.

— Então não vê nada de especial! — gritou, zangado. — Você não podia imaginar que o pessoal do helicóptero ainda iria transmitir uma mensagem antes de cair?

— Num tempo tão curto? — objetou Wlassov.

— Num tempo tão curto! — escarneceu Tomisenkow. — E se não transmitirem nenhuma mensagem, não demorará mais de meia hora e Raskujan dará pela falta de um de seus aparelhos e mandará que saiam à procura. E encontrar este montão de metais com um aparelho de radar será questão de minutos. Você estragou tudo que já conseguimos fazer. Raskujan não precisará seguir nossa pista a partir do acampamento. Poderá começar aqui mesmo.

Wlassov deixou cair os ombros. De um instante para outro sentiu-se muito ridículo, quando poucos segundos antes ainda acreditara ser o herói do dia.

— Sim, eu reconheço — disse, abatido. — O que posso fazer?

— Você não pode fazer mais nada. Terá que usar as pernas da mesma forma que nós.

Tomisenkow virou-se e olhou para Jegorov e Thora.

— Se Raskujan ainda não sabia em que direção estávamos fugindo, agora ele sabe. Quer dizer que não devemos prosseguir na direção nordeste. Vamos tomar a direção sudeste para ver se conseguimos lograr os helicópteros. Isso representa alguns quilômetros a mais. Mas pelo que vejo, no momento, não temos outra alternativa.

Andaram o mais depressa possível pela estrada que o sáurio ferido, que já desaparecera nas profundezas da selva, havia aberto em direção ao leste. Aproveitaram uma pequena brecha na mata para voltar a mergulhar na escuridão das árvores.

Tal qual da primeira vez, Tomisenkow supunha que os homens de Raskujan procurariam os fugitivos na estrada larga pisada pelo sáurio. Assim, se a sorte os favorecesse, poderiam escapar dos helicópteros.

 

Poucos minutos depois das duzentas e treze horas, Rhodan e seus companheiros atingiram o pântano que, segundo se via, se estendia a uma distância desanimadora para ambos os lados.

Rhodan já fizera suas experiências com os pântanos venusianos. A idéia de contornar essa área de solo enganador nem lhe passou pela cabeça. Mandou que Son Okura examinasse as árvores que havia na área pantanosa e achou que as mesmas serviam aos seus propósitos.

— Vamos fazer uma ginástica e passar por cima — ordenou. — Son, você irá na ponta. Marshall, fique com os olhos bem abertos. Uma pisada ou um gesto de mão em falso, e será um homem morto.

Subiram às árvores por um feixe de cipós. Okura guiou o grupo e determinou a velocidade da marcha.

Em primeiro lugar, era o único que enxergava na escuridão; além disso, entre os três era o que se deslocava com maior dificuldade. Tinha dificuldades de andar que vinham de nascença. Por mais que se esforçasse em acompanhar o passo das pessoas normais, havia situações em que sua constituição física o obrigava a ser mais lento. E esta era uma dessas situações. Apesar da longa pausa todos estavam bem próximos ao esgotamento total; quem mais sentiu isso foi Son Okura.

É bem verdade que para Perry Rhodan as coisas não estavam muito melhores. Não tivera tempo para se ocupar com a ferida no ombro. Sentiu que o ferimento latejava e que o sangue que lhe corria pelas veias estava mais quente que antes. A atmosfera úmida da selva estava repleta de bactérias. Dentro em pouco a ferida soltaria pus, ou então ele ficaria com febre.

Ou ambas as coisas.

Sabia que estava na hora de fazer uma pausa de trinta horas no mínimo para dar algum descanso ao corpo maltratado e cuidar da ferida. Mas no momento as trinta horas eram preciosas demais para que pudesse gastá-las numa pausa.

Thora estava em perigo e com ela a base em Vênus. Muito embora Rhodan não duvidasse da fidelidade de Thora, era de recear que um belo dia acabaria não resistindo aos métodos que Raskujan empregava nos seus interrogatórios. E mesmo que não pudesse dizer ao coronel o que ele teria de fazer para penetrar na base, este dispunha de uma multidão de técnicos eletrônicos capazes de extrair das informações de Thora um volume de dados sobre a estrutura do cérebro positrônico em especial e a base em geral que poderia representar um inconveniente grave para a Terceira Potência.

Thora tinha que ser libertada.

Isso não representava qualquer dificuldade, a não ser a distância considerável que ainda tinha que ser percorrida até o campo energético.

Rhodan não tinha qualquer possibilidade de se identificar antes de chegar ao limite desse campo. Não dispunha de qualquer coisa que lhe permitisse um contato a grande distância. Só quando atingisse o campo protetor, o cérebro positrônico começaria a se ocupar com sua pessoa e descobriria que era a pessoa para a qual a base devia ser aberta a qualquer hora. Dali em diante tudo seria fácil.

O pântano que se estendia embaixo deles forçou sua paciência ao máximo. Nem mesmo a visão do japonês conseguia penetrar pela densa folhagem. Por isso viram-se obrigados a, de tempos em tempos, cortar um galho grosso e limpá-lo da folhagem para que o som do impacto no chão lhes revelasse a natureza do solo.

Por várias horas não ouviram outra coisa senão o eterno ruído produzido por um objeto pesado que cai no líquido viscoso do pantanal.

Rhodan sabia perfeitamente que tudo isso seria uma loucura rematada se Son Okura, o mutante, não estivesse com eles. Às duzentas e dezessete horas fizeram outra pausa. Rhodan gostaria de avançar mais algumas centenas de metros, pois Okura dizia que mais adiante a floresta era bem mais densa que no lugar em que se encontravam. Dali se concluía que o pântano terminava naquele lugar. Mas ninguém, naquela altura, era capaz sequer de levantar a perna, quanto mais arrastar todo o peso do corpo por um longo trecho de cipós.

No pântano os animais que andavam em cima das árvores eram tão raros que Rhodan dispensou as sentinelas. Os três dormiram tão profundamente como se tivessem desmaiado; até que ouviram um ruído, vindo de longe, que os arrancou imediatamente do sono, não porque fosse muito forte, mas porque destoava por completo daquele ambiente.

Era o chiado dos motores dos helicópteros e o ruído entrecortado dos canhões automáticos.

Estava tão distante que nem cogitavam da possibilidade de que pudesse ter alguma relação com eles. O ruído vinha do noroeste, onde os helicópteros de Raskujan pareciam ter descoberto alguma coisa sobre a qual valia a pena atirar.

Olhando para o relógio regulado para o tempo terreno, Rhodan viu que fazia cerca de três horas que haviam interrompido sua marcha. Faltava pouco para as duzentas e vinte horas.

Embora os tiros cessassem dentro de pouco tempo e os helicópteros se afastassem, Rhodan achou que era importante saber no que haviam atirado. Ainda mais que o ruído vinha de um lugar que ficava em sua rota. Além disso, as três horas de sono profundo lhes haviam restituído, embora provisoriamente, as forças a ponto de poderem reiniciar imediatamente a marcha.

Verificou-se que a suposição de Son Okura fora correta. Poucos minutos depois de terem partido notaram que embaixo deles o chão era seco e firme. Desceram e dali em diante conseguiram avançar um pouco mais depressa.

Meia hora depois o terreno entrou em aclive. Haviam atingido as imediações das montanhas, e isso lhes parecia ser um prenuncio feliz; pois a cadeia de montanhas em que começavam a penetrar era a mesma em que se situava a base.

 

O uivo dos helicópteros pairava constantemente sobre suas cabeças, às vezes bem perto, outras vezes mais afastado.

Os homens de Raskujan encontraram o montão de metal fundido do aparelho derrubado no momento em que o grupo de Tomisenkow acabara de desaparecer na selva. Conforme supusera Tomisenkow, voaram primeiro ao longo da estrada aberta pelo sáurio e deram busca na mesma. Quando viram que essa busca não dava resultado, mudaram de tática. Descreviam círculos largos pela área e paravam de vez em quando para descer um homem por uma corda; esse homem procurava localizar os fugitivos embaixo da folhagem.

Tomisenkow manteve o grupo bem reunido.

Depois de algum tempo o terreno começou a subir. Por algum tempo a subida foi bem suave, mas depois de uma dobra do terreno passou a ser tão íngreme que tiveram de recorrer às suas qualidades de alpinistas para prosseguir a marcha.

Com uma mão diante da outra, um pé diante do outro, subiram num ângulo de setenta graus por um paredão que, apesar do aclive, estava coberto de árvores e arbustos.

Tomisenkow esperava que lá em cima chegassem a um dos platôs rochosos que, vez por outra, se elevam acima da selva.

— Lá em cima a vegetação não é tão densa — explicou Tomisenkow a Alicarim, o quirguiz. — Poderemos observar os helicópteros por suas luzes de posição e orientar-nos por eles, até que desistam da busca.

Meia hora depois chegaram à beira do platô. Tomisenkow não se enganara. Até onde a vista alcançava na escuridão o chão era plano e a vegetação pouco densa. Mas era suficiente para que o solo do platô só pudesse ser visto dos helicópteros em poucos lugares. Tomisenkow contornou esses lugares, enquanto procurava um ponto de onde pudesse acompanhar a atuação dos helicópteros.

Encontraram um lugar desses. Ficava pouco além da borda do platô. A noroeste, o paredão caía quase na vertical em direção à selva. Logo atrás da borda do platô havia uma baixada rasa, coberta de arbustos, que seria um ótimo lugar para acampar. Tomisenkow mandou que Zelinskij, Jegorov, Wlassov e a arcônida descansassem ali, enquanto ele e Alicarim instalaram-se na borda rochosa para observar as luzes coloridas dos helicópteros.

 

O major Pjatkov — o mesmo que localizara o barco inflável de Rhodan e atirara uma bomba baby diante da caverna das focas — mandou que seu telegrafista o ligasse com o coronel Raskujan. Pjatkov era um dos favoritos de Raskujan; a ligação foi estabelecida imediatamente.

— Tive uma idéia — principiou Pjatkov sem preâmbulos. — O terreno em que devemos dar a busca é de constituição relativamente simples: todo plano até a encosta sul das montanhas. Mas Tomisenkow ainda não pode ter chegado lá. Antes dele só existe uma única elevação, um platô de rocha que se ergue uns trinta ou quarenta metros acima da selva. Tomisenkow precisa de um lugar em que possa ver quando suspendemos nossas buscas e se estamos muito perto dele. Sabe que somos obrigados a manter as luzes de posição acesas. Basta que se coloque num lugar adequado para poder nos observar com toda calma.

Raskujan ainda não estava convencido.

— Em que direção fica o platô, considerada a posição do aparelho derrubado? — perguntou.

— A sudeste.

Pjatkov sempre tinha uma resposta na ponta da língua.

— Acredito — disse — que Tomisenkow teve a mesma idéia. Depois de conhecermos qualquer ponto de sua trajetória, saberemos em que direção está fugindo. Enquanto não suspendermos as buscas, Tomisenkow marchará em qualquer direção, menos naquela em que o estivermos procurando.

— Hum — fez Raskujan.

— Na minha opinião — prosseguiu Pjatkov animadamente — devíamos pousar no platô com dois ou três helicópteros, sem chamar a atenção, e agarrar Tomisenkow no próprio ninho. Se os outros aparelhos fizerem barulho que chegue, não nos deverá ser difícil subir ao platô.

Raskujan acabou concordando. Pjatkov concluiu a palestra e instruiu dois helicópteros de seu grupo a seguirem-no. Foram na direção norte, quase até as encostas íngremes das montanhas, e desligaram as luzes de posição quando Pjatkov acreditou que não mais poderiam ser vistos do platô. Depois fizeram meia-volta e aproximaram-se do complexo rochoso, vindos do leste.

As máquinas pousaram numa clareira, pouco atrás da borda do platô. Os homens desceram. Pjatkov pediu que se mantivessem, por um instante, junto aos aparelhos. Só depois de ter certeza quase absoluta de que nas proximidades não havia nada de perigoso ou suspeito deu ordem de marcha.

Os homens não gostaram da missão. Nunca haviam saído dos acampamentos, a não ser no interior de helicópteros ou de barcos infláveis relativamente seguros.

O medo só diminuiu depois de uns quinze minutos de marcha.

Pjatkov calculou que a distância que teriam de percorrer para chegar à extremidade oposta do platô seria de cerca de cinco quilômetros. Em sua opinião, mesmo no escuro, essa distância poderia ser vencida dentro de uma hora e meia a duas horas.

Depois disso provaria a Raskujan que estava com a razão.

 

Alicarim virou-se.

— O que houve? — resmungou Tomisenkow.

Alicarim levou algum tempo para responder.

— Acho que ouvi um ruído; vem de lá. Apontou para o outro lado do platô.

— Deixe de bobagens — resmungou Tomisenkow. — Que ruído é?

— São helicópteros.

— E agora?

Alicarim aguçou o ouvido.

— Não ouço mais nada.

— Pois então — disse Tomisenkow, voltando a se apoiar nos cotovelos. — Estão todos na nossa frente. Como é que algum deles poderia surgir pelas costas?

Alicarim achou que a pergunta era tola. Não havia nada mais fácil para um helicóptero que contornar o platô e pousar do outro lado. Mas enquanto não tinha certeza de não ter se enganado, preferiu ficar quieto.

Assustou-se quando subitamente os canhões automáticos começaram a disparar em cima da selva. Tomisenkow levantou-se um pouco e com os olhos arregalados fitou a escuridão. Depois começou a rir.

— É formidável! — disse. — Um desses idiotas acredita que nos encontrou.

O tiroteio não durou muito. Terminou sem qualquer motivo plausível, tal qual havia começado. Ao mesmo tempo uma movimentação nervosa teve início na multidão das lâmpadas de posição. Os helicópteros suspenderam as buscas e afastaram-se. Poucos minutos depois não podiam ser vistos mais. Apenas o chiado dos jatos continuou a ser ouvido por mais alguns minutos.

— Não compreendo mais nada — comentou Tomisenkow.

Permaneceu deitado por mais algum tempo; depois levantou-se.

— Está cansado? — perguntou, dirigindo-se a Alicarim.

— Não senhor.

— Está bem. Vou deitar um pouco. Fique com os olhos bem abertos. E avise a Jegorov que dentro de uma hora deve revezá-lo.

 

O major Pjatkov trazia consigo um potente binóculo noturno, equipado com um pequeno holofote de luz infravermelha e o respectivo filtro.

Com esse binóculo descobriu o acampamento na baixada junto à borda leste do platô. Mandou que seus homens cercassem o acampamento, e que, ao seu comando, surpreendessem e prendessem os homens que dormiam.

Só depois percebeu que faltava um dos fugitivos. Incluindo a arcônida, dera-se pela falta de seis pessoas, entre elas o cabo Wlassov, que, segundo era de supor, devia ter se unido a Tomisenkow.

Mas Pjatkov só contou cinco homens no acampamento. Faltava um.

Onde estaria?

Pjatkov assumiu um risco: resolveu debilitar ainda mais o círculo já bastante esparso de seus homens, mandando que um deles saísse em busca do sexto fugitivo.

Depois ficou esperando.

 

Jegorov não tinha vindo. Provavelmente estaria dormindo.

Alicarim não se zangou. Não estava cansado, e além disso gostava de olhar para a escuridão, embora não visse nada.

De repente ouviu um ligeiro farfalhar. Subia pelo paredão; alguém parecia arranhar um objeto.

Agora o ruído estava bem embaixo dele. Alicarim se arrastou por um metro e percebeu que o ruído ainda vinha de baixo, na vertical.

Soltou um palavrão abafado, levantou-se e correu mais cinco metros. O ruído também estava lá.

Teve que caminhar mais de dez metros até que o arranhar viesse de lado.

Ajoelhou-se e esperou.

De início apenas viu alguma coisa que se movimentava na escuridão; mas não pôde identificar o que era.

Depois alguma coisa escura, brilhante, surgiu no campo de visão. O movimento que Alicarim vira vinha de duas figuras em forma de tentáculo, que assentavam na frente da coisa escura e brilhante que Alicarim havia visto.

Levantou-se de um salto.

Eram formigas!

Ficou mais tranqüilo ao constatar que os animais não se deslocavam em direção ao acampamento. O exército delas subiu pela borda do platô e, estalando e farfalhando, atravessou a folhagem. Cada uma tinha o tamanho da mão de um homem adulto.

Apesar disso, Alicarim pôs-se a voltar ao acampamento. As formigas de Vênus eram animais imprevisíveis. Além disso, ninguém sabia se possuíam o sentido do olfato, que eventualmente lhes permitiria farejar a presa humana.

Era necessário avisar Tomisenkow.

Ali...!

Num gesto instantâneo, mas silencioso, Alicarim deixou-se cair para a frente quando a sombra emergiu da escuridão. Por um instante xingou-se de idiota por causa do susto. Devia ser Jegorov que vinha revezá-lo.

Acontece que não era Jegorov.

E não era nenhum dos homens do grupo de Tomisenkow. O vulto que tinha diante de si media quase dois metros. Para quem olhava de baixo como Alicarim, destacava-se nitidamente contra o céu cinzento.

Passou a dois metros de distância do quirguiz. Andava cautelosamente, olhando de um lado para outro. Ainda não havia descoberto as formigas; apesar disso a área não parecia inspirar-lhe muita confiança.

Os pensamentos atropelaram-se no cérebro de Alicarim. Lembrou-se do barulho dos helicópteros que ouvira há mais de uma hora.

Afinal, o ouvido não o teria enganado mesmo?

Seguiu o homem, arrastando-se pelo chão. A menos de um metro à sua direita marchava o exército de formigas.

Ao chegar à borda do platô, o grandalhão parou. Olhou para a direita, para a esquerda e depois descobriu as formigas. Alicarim viu que, tomado de um tremendo susto, abriu as pernas para ter uma posição mais firme e levantou a pistola automática.

Foi quando Alicarim saltou para a frente.

O homem, mortalmente assustado pelas formigas, não ofereceu a menor resistência. Alicarim deu-lhe uma pisadela na cavidade do joelho e ao mesmo tempo golpeou seu pescoço com o lado da mão.

Com um grito de pânico, o homem caiu para a frente. Foi parar no meio das formigas. Debateu-se para afastar os animais que caíam em cima dele. A pistola foi atirada bem longe, por cima da borda do platô.

Alicarim rastejou para trás e escondeu-se numa moita.

Mas logo levantou-se de um salto. O acampamento estava em perigo! O homem atacado pelas formigas, que a essa hora já estava morto, não devia ter vindo só.

Mas Alicarim ainda não havia avançado dez passos quando percebeu que já não poderia prestar ajuda a ninguém.

Viu sombras que se movimentavam apressadamente na baixada. Gritos abafados soaram. Alguém praguejou: era a voz de Zelinskij.

Chegara tarde!

Alicarim mudou de direção e procurou se afastar o mais rápido possível do palco dos acontecimentos.

 

No lugar em que houvera o tiroteio não foi encontrado nada. Já se encontravam cerca de duzentos metros acima do nível da planície costeira, e evidentemente nem desconfiavam de que a finalidade do tiroteio consistira apenas em fazer barulho para que o major Pjatkov pudesse pousar no platô sem ser molestado.

Por algum tempo, Perry Rhodan acompanhou no seu receptor de pulso as mensagens trocadas entre os pilotos dos helicópteros. Delas se concluía, sem a menor sombra de dúvida, que os homens de Raskujan andavam à procura de prisioneiros que haviam fugido. Rhodan supôs que os fugitivos deviam ser alguns dos homens de Tomisenkow. Não ficou sabendo que Thora se encontrava entre eles. As mensagens apenas aludiam “aos fugitivos”.

Rhodan e seus companheiros se encontravam a poucos quilômetros do limite do campo protetor. Na opinião de Rhodan deviam fazer mais uma pausa de uma hora, antes de enfrentar o restante do caminho.

 

Raskujan tinha consciência do seu triunfo. Mandou que os dois prisioneiros mais importantes fossem conduzidos à sala de comando da nave capitania. Encarou-os com um sorriso amável e zombeteiro ao mesmo tempo e perguntou:

— O que esperavam conseguir?

Tomisenkow ainda não tivera a oportunidade de pôr em ordem sua figura esfarrapada. Tinha os cabelos desgrenhados e o uniforme, já estragado, ainda por cima continuava rasgado, tal qual saíra da briga com os homens de Pjatkov.

Thora não participara da breve luta. Estava suja, mas intacta, quando se defrontou com Raskujan.

Nem Tomisenkow nem Thora deram qualquer resposta à pergunta do coronel.

— Ah — disse Raskujan com um sorriso. — Continuam orgulhosos como sempre, não é?

Instalou-se confortavelmente na poltrona e cruzou as pernas.

— Lamento sua teimosia — prosseguiu. — Os senhores se opõem ao único poder real que existe em Vênus. Por quê?

Thora sorriu com desprezo. Tomisenkow respondeu mal-humorado:

— Porque não gostamos do senhor.

Raskujan não deixou se irritar.

— Parto de um ponto de vista mais negociável — explicou tranqüilamente a Tomisenkow. — Todos nós devíamos nos unir. Estou convencido de que juntos criaríamos um poder como ainda não existiu outro.

Tomisenkow soltou uma risada áspera.

— Só se Rhodan o deixasse em paz.

— Ora! — disse Raskujan com um gesto de desprezo. — Ele me deixou em paz durante um ano; por que não vai continuar assim? E se eu conseguir penetrar na base de Vênus com o apoio da senhora — fez um gesto em direção a Thora — nem mesmo Rhodan conseguirá pôr os pés neste planeta contra minha vontade.

— Não pense que vou ajudá-lo a entrar na base de Vênus — gritou Thora, furiosa.

— Pois eu saberei obrigá-la a isso! — disse Raskujan entre os dentes. Já estava começando a perder o autocontrole.

Thora fez um gesto de desprezo.

— Quem é o senhor para obrigar uma arcônida a falar? Além disso, Rhodan o agarrará antes que conclua o interrogatório.

Raskujan se levantou de um salto.

— Rhodan nem sequer está em Vênus! — gritou fora de si. — E se tentar pousar por aqui, saberei impedi-lo.

Nesse ponto a sensação de triunfo levou a melhor sobre a inteligência de Thora. Com os olhos chamejantes gritou:

— Não quebre a cabeça para descobrir como poderá impedir que Rhodan pouse neste planeta. Ele já se encontra em Vênus!

Mal acabou de pronunciar estas palavras, reconheceu o erro que havia cometido. Mas o espetáculo que se lhe ofereceu quando Raskujan, pálido como cera, cambaleou e caiu em sua poltrona, bem que valeu o susto que o erro lhe causava.

Atrás dela, Tomisenkow disse em voz baixa:

— A senhora não devia ter dito isso!

 

Alicarim marchava.

Reunindo toda a paciência peculiar a um asiático, procurou vencer todos os obstáculos para alcançar um objetivo, de cuja existência, por enquanto, apenas suspeitava.

Quando ainda era um prisioneiro de Raskujan, ouvira falar nos acontecimentos estranhos que se desenrolaram no mar: os fenômenos luminosos que foram observados, os dois helicópteros que nunca regressaram, a busca extenuante do major Pjatkov, a descoberta de um barco inflável e de três homens que nadavam e, por fim, o lançamento da bomba baby.

Alicarim sabia mais que isso. Lembrou-se do ataque que o acampamento de Tomisenkow, situado na península, sofrerá poucos dias antes que Raskujan o atacasse. O ataque fora repelido; haviam visto três homens, mas não conseguiram aprisionar nenhum deles.

Por fim, Alicarim ainda guardava uma lembrança bastante viva das armas de impulsos térmicos usadas pela Terceira Potência; conhecera-as há um ano. Era provável que os fenômenos luminosos observados pelos homens de Raskujan proviessem de armas desse tipo.

Era bem verdade que o resto não passava de suposições e cálculos. Se é que três homens da Terceira Potência, desprovidos de quase todos os recursos técnicos — assim concluiu Alicarim — se encontravam em Vênus, a primeira coisa que eles procurariam fazer era entrar em contato com o cérebro positrônico instalado no interior da fortaleza.

Foi por isso que Alicarim dirigiu sua marcha montanha acima. Sabia que o enorme campo protetor tinha um diâmetro de cinqüenta quilômetros. A chance de encontrar os três homens em algum ponto naquela extensa área era assustadoramente reduzida. Mas essa chance aumentava pelo fato de que, tal qual Alicarim, os três homens vinham do sul e provavelmente procurariam penetrar no campo protetor dessa direção.

Além disso, essa era a única chance de Alicarim. Em qualquer outro lugar, sua situação seria mais desesperadora do que no lugar em que havia alguma possibilidade de se encontrar com membros da Terceira Potência. Eram os únicos que podiam ajudá-lo.

Por isso Alicarim prosseguiu em sua marcha.

Depois de ter avançado um bom pedaço, viu a abóbada reluzente do campo protetor que surgia entre as copas de duas árvores e logo desapareceu entre a densa camada de nuvens.

A vegetação também era mais rala e a caminhada mais fácil.

Alicarim criou nova coragem e avançou com maior rapidez.

 

Fosse qual fosse a opinião que se tinha a respeito de Raskujan, às vezes ele sabia calcular uma situação.

Desde o início, os três homens a respeito dos quais o major Pjatkov lhe falara representaram um mistério para ele. Quem se atreveria a cruzar em plena noite o mar de Vênus num frágil barco inflável, ainda que esse mar apenas consistisse num braço de trezentos e cinqüenta quilômetros de largura?

Raskujan sabia que havia uma certa possibilidade, mesmo remota, de que, apesar dos canhões automáticos e da bomba baby, os três homens ainda estivessem vivos.

Se um desses homens fosse Perry Rhodan...

Raskujan prosseguiu nas suas conjecturas e chegou à mesma conclusão que, mais ou menos ao mesmo tempo e num lugar distante, veio à mente do quirguiz Alicarim.

Se é que Rhodan andou pelo mar num barco inflável, isso significava que, por qualquer motivo, perdera o contato com a Terra e com sua base em Vênus. Se não fosse assim, disporia de recursos técnicos muito maiores do que aqueles com os quais contava no momento.

Partindo desse pressuposto, convenceu-se de que Rhodan não teria coisa mais urgente a fazer senão alcançar o campo protetor que cercava sua base e penetrar na mesma; Raskujan não duvidou um instante sequer de que Rhodan teria possibilidade de fazê-lo.

O resultado lógico dessa conclusão foi uma ordem transmitida a toda a frota de helicópteros: deviam levantar vôo imediatamente, aproximar-se do campo protetor e atirar contra tudo que se movia nas proximidades do mesmo. Raskujan preferiu não revelar o fato de que essa ação se dirigia contra Perry Rhodan. Receava de que esse nome bastasse para amedrontar seus homens.

Depois de uma pausa que todos os tripulantes acharam muito curta, os helicópteros voltaram a levantar vôo. Raskujan contemplou na tela de imagem o quadro que se oferecia no campo de pouso bem iluminado; o espetáculo impressionante dos helicópteros que saíam em disparada tranqüilizou-o ao menos em parte.

O fato de que a maior das ações bélicas já realizadas em Vênus dirigia-se contra um único homem não o perturbou nem um pouco. Se dispusesse de mais equipamentos, enviaria dez vezes mais gente e material para destruir um único homem.

Perry Rhodan.

 

O corpo de Rhodan aproveitou a última pausa para, através de uma febre violenta, protestar contra os maus tratos que lhe eram infligidos.

Quando a pausa terminou e a marcha devia ser reiniciada, Rhodan batia os dentes. Marshall e o japonês sugeriram que a pausa fosse prolongada até que a febre terminasse, mas Rhodan respondeu com uma risada contrafeita:

— Receio que esta máquina miserável, — apontou para o peito — ficará febril enquanto não lhe dermos coisa melhor para fazer.

Prosseguiram em sua marcha. Tiveram sorte: o terreno continuava em subida e a vegetação tornava-se cada vez mais rala.

Mas Rhodan teve azar, pois teve de rever sua opinião sobre a máquina miserável. A febre não diminuiu; pelo contrário, aumentou. Houve momentos em que Rhodan teve de se apoiar ao ombro de Marshall para não cair.

Algum tempo depois, marchavam por um vale estreito situado nas montanhas. Ao atingirem a saída norte viram, aparentemente ao alcance da mão, a abóbada reluzente formada pelo campo protetor que cercava a base.

Rhodan soltou um suspiro de alívio. Praticamente já haviam conseguido, e não fora nada fácil.

O terreno em que marchavam consistia num planalto pedregoso coberto apenas de arbustos esparsos. Avançaram rapidamente, e a parede reluzente do campo protetor aproximava-se quase a olhos vistos.

— Ainda faltam uns oitocentos metros. — murmurou Marshall depois de algum tempo, para animar Rhodan e distraí-lo de suas dores.

Mal terminara, quando um zumbido agudo passou pelas montanhas, vindo do sul. Marshall estacou e Rhodan, que se apoiava em seu ombro, também parou.

Son Okura voltou-se bruscamente e fitou o céu escuro.

O zumbido tornou-se mais agudo, aproximou-se por cima do vale e dissociou-se no chiado dos jatos e nas batidas dos rotores.

— São helicópteros! — gritou o japonês.

— Pelo menos quarenta!

Rhodan enrijeceu o corpo e se manteve de pé com suas próprias forças. Voltou apressadamente a cabeça.

— Abriguem-se — fungou. — Lá atrás. Procurem atingir a encosta do vale.

 

Só por alguns minutos Alicarim acreditou que todo aquele aparato se destinava a ele. Ouviu que os helicópteros passaram em disparada por cima do esconderijo em que apressadamente se abrigara e começaram a cruzar à frente do campo energético.

Alicarim logo compreendeu suas intenções. Alguém tivera a mesma idéia que ele e procurava alcançar os três homens da Terceira Potência no lugar em que havia maior probabilidade de encontrá-los.

Alicarim pôs-se novamente a caminho e depois de algum tempo passou por um desfiladeiro onde o caminhar era muito difícil, e que atravessava a última barreira de montanhas, terminando na extremidade oeste de um vale cercado de todos os lados por encostas muito elevadas.

Mais ao norte — a uns dois quilômetros, pelos cálculos de Alicarim — a cúpula luminosa emergia do fundo do vale.

Era bem verdade que mais ao norte também os helicópteros cruzavam o ar, conforme o quirguiz ouvia perfeitamente. Uma vez que conhecia seus equipamentos e estava muito bem informado sobre a eficiência dos holofotes de luz infravermelha, procurou se abrigar cuidadosamente. Dessa forma avançou mais devagar, mas com uma segurança incomparavelmente maior.

Os helicópteros passaram sobre o vale numa altura reduzida. Rhodan e seus companheiros não conseguiram atingir a encosta; esconderam-se sob uma pedra larga, de cerca de dois metros de altura. Depois de terem percebido que, por enquanto, não haviam sido descobertos, prosseguiram na retirada e esconderam-se na entrada de uma caverna que penetrava na encosta rochosa. A partir dali Son Okura observou os helicópteros.

— Estão se dividindo — disse. — Dois grupos dirigem-se para o leste e o oeste, ao longo do campo energético, enquanto outro grupo cruza bem diante dele.

Rhodan quase não tinha capacidade de responder.

— Devemos prosseguir — gemeu. — Só poderemos entrar em contato com o cérebro positrônico quando tivermos atingido o limite do campo energético.

Marshall protestou.

— Se fosse o senhor, eu preferiria...

— Cale a boca! — ordenou Rhodan e levantou-se, apoiando a mão na parede rochosa da caverna.

No mesmo instante Son Okura, que se encontrava na entrada da caverna, virou-se com um grito abafado e levantou o radiador térmico.

— Pare!

Ouviu-se uma voz quase incompreensível vinda da direita. Marshall não entendeu uma palavra. Deixou Rhodan a sós e, com a arma engatilhada, colocou-se ao lado do japonês.

— Quem é? — perguntou. Okura deu de ombros.

— É um russo. Diz que é um dos homens de Tomisenkow, e que fugiu do campo de prisioneiros.

Marshall baixou a arma. Fechou os olhos, enquanto Okura mantinha o desconhecido à distância, e concentrou-se sobre os pensamentos que fluíam do cérebro do desconhecido.

— Está bem — resmungou depois de algum tempo e fez um sinal para Okura. — As intenções dele são boas.

Okura também baixou a arma. Gritou em russo para que o homem se aproximasse.

Finalmente Marshall viu-o emergir da escuridão. Era pequeno, mas atarracado. Tinha os olhos oblíquos e os maxilares salientes de um asiático. Dirigindo-se a Son Okura, disse:

— Meu nome é Alicarim. Sou um dos homens de Tomisenkow. Posso contar muita coisa.

Rhodan dispôs-se a ouvir o homem, embora tivesse muita pressa. Alicarim fez um breve relato de tudo que havia acontecido depois do assalto de Raskujan ao acampamento de Tomisenkow.

— Depois desse incidente — murmurou Rhodan — as coisas não serão nada fáceis para Thora. Raskujan não recuará diante das medidas mais violentas para obrigá-la a falar. Vamos adiante!

Saíram da caverna e caminharam rentes à encosta. Aproveitavam todo acidente do terreno que pudesse lhes proporcionar uma proteção e Son Okura manteve os helicópteros sob uma observação ininterrupta. O relato de Alicarim e a preocupação por Thora pareciam ter dado novas forças a Perry Rhodan. Percorreu quase metade do caminho que faltava com suas próprias forças; só no último trecho voltou a se apoiar em Marshall.

Aproximaram-se a uns cinqüenta metros da parede reluzente, sem que os homens que se encontravam nos helicópteros de Raskujan os houvessem visto. Mas dali em diante a situação se tornou crítica.

No último trecho não havia praticamente nenhum abrigo. Só de vez em quando via-se um bloco de pedra, mas na maioria eram tão pequenos que dificilmente poderiam proteger um homem.

Além do mais, Rhodan não teve a menor dúvida de que os helicópteros lançariam bombas assim que descobrissem suas vítimas. E contra uma bomba, a maior das pedras não oferecia proteção suficiente.

Notava-se que Rhodan recorria às últimas reservas de energia. Tinha a face flácida e em sua pele surgiam manchas vermelhas. Sua voz era rouca e entrecortada.

— Vamos fazer uma manobra desviacionista — ordenou. — Um de nós vai atrair a atenção deles. Enquanto os helicópteros se ocupam com esse homem, os outros avançam até o campo protetor. Acredito que o cérebro positrônico só levará alguns segundos para me identificar e abrir a barreira energética por um instante. Quem está disposto a ir?

Alicarim, que não havia entendido uma palavra, pediu que Okura traduzisse o que Rhodan acabara de dizer.

— Eu vou — afirmou depois disso. Okura traduziu suas palavras.

Rhodan não teve nenhuma objeção, ou ao menos não teve nenhuma objeção com a qual quisesse despender tempo naquele instante. Alicarim não pertencia à Terceira Potência. Não tinha nenhum motivo para arriscar a vida nessa manobra temerária.

Mas não havia tempo para debates.

O quirguiz saiu rastejando, depois de ter sido avisado de que deveria começar a correr assim que o campo energético se apagasse. Ninguém sabia quais eram suas idéias quanto à maneira de atrair a atenção dos helicópteros.

Os outros esperaram, febris e impacientes.

 

Pjatkov acreditara que o vale que, vindo do sul, estendia-se até a abóbada energética, provavelmente seria o lugar em que os homens que procurava poderiam ser encontrados.

Não tinha a menor idéia de quem eram esses homens. Supunha que deviam ser muitos, ou então, que devia tratar-se de gente muito perigosa ou importante, pois de outra maneira Raskujan não se daria à tamanho trabalho para agarrá-los.

O helicóptero de Pjatkov tinha quatro tripulantes: o piloto, um observador, um telegrafista e ele mesmo. De vez em quando substituía o observador em seu trabalho.

Olhou para o relógio. Ainda poderiam permanecer ali durante cinco horas; depois teriam de regressar para reabastecer. Dentro de cinco horas aqueles desconhecidos teriam que...

— Olhe! — gritou o observador. — Um homem!

Pjatkov empurrou o homem para o lado e olhou pelo filtro ótico. Lá embaixo, em meio às rochas, havia um homem. Encontrava-se a apenas vinte metros do limite do campo protetor e corria que nem um louco.

— Fogo! — berrou Pjatkov.

O observador colocou-se atrás do canhão automático, abrangeu o alvo no pequeno telescópio da mira e começou a disparar. Aborrecido, notou que os projéteis detonavam a uma boa distância do homem que corria e corrigiu a pontaria. Mas antes que conseguisse alvejar o desconhecido, este desapareceu atrás de uma pedra.

O major Pjatkov fungava de nervosismo.

— Desça!

O helicóptero desceu.

— Circule em tomo da rocha.

A máquina inclinou-se ligeiramente e começou a descrever um círculo amplo em torno da rocha.

— Chegue mais perto! — gritou Pjatkov, furioso.

Mas logo percebeu outro movimento pelo canto do olho. Girou rapidamente o filtro ótico e viu os três homens que, a cem metros dali, corriam em direção ao campo energético reluzente. Numa fração de segundo compreendeu que o avanço do homem que se encontrava ali embaixo fora apenas aparente.

O perigo real era representado por aqueles três homens.

— Vá para a esquerda — gritou para o piloto. — Ali há mais gente.

O piloto, que só via os acontecimentos que se desenrolavam bem à sua frente, levou algum tempo para compreender a nova ordem e retificar o curso.

— Mais rápido! — ordenou Pjatkov. — Preparem as bombas.

Pôs a mão para o lado e, numa batida, ligou o rádio. Não seria necessário perder muitas palavras; as vozes de comando bastariam para que os ocupantes dos outros aparelhos compreendessem o que se passava.

Os três fugitivos chegaram ao campo energético.

— As bombas estão prontas — anunciou o observador.

Pjatkov notou que dois aparelhos que voavam a seu lado atiravam com seus canhões automáticos contra os fugitivos.

— As bombas serão lançadas quando eu ordenar — disse.

As bombas preparadas pelo observador eram dotadas de cargas explosivas simples. Nenhum helicóptero que se encontrasse a uma altitude tão pequena arriscaria o uso de bombas nucleares, por menores que fossem.

Mas uma bomba explosiva seria suficiente para...

O campo energético se apagou.

Pjatkov soltou um grito estridente e apavorado quando o campo energético desapareceu de repente. Mas no mesmo instante compreendeu a chance extraordinária que, com isso, lhe era oferecida.

— Vire para a direita! — gritou para o piloto. — Atravesse o campo energético!

O piloto não estava preparado para essa missão. Levou cinco segundos para corrigir o curso. Pjatkov parecia febril.

Finalmente a máquina girou no ar e disparou em velocidade máxima para o lugar em que, poucos instantes antes, a barreira energética se erguia desde o fundo do vale.

Nenhum dos ocupantes do helicóptero de Raskujan chegou a ver que a barreira energética voltou a reluzir no mesmo instante em que o helicóptero se dispôs a romper a respectiva área.

Os ocupantes dos outros helicópteros viram uma explosão ofuscante, que produziu um forte estalo nos receptores.

Mais tarde ninguém saberia dizer se o helicóptero de Pjatkov foi consumido pela energia da barreira energética, ou se foi despedaçado pela explosão das bombas que trazia a bordo.

Depois do primeiro instante de pavor, os ocupantes dos outros helicópteros deram-se conta de que, ao que tudo indicava, depois da ligeira interrupção tudo voltara a ser como era antes, e que naqueles poucos segundos os desconhecidos conseguiram penetrar na área da base.

O coronel Raskujan recebeu esta mensagem lacônica:

— O major Pjatkov está morto. Os fugitivos estão fora de nosso controle, por terem penetrado na base.

 

Raskujan logo compreendeu o significado dessa mensagem. Rhodan conseguira penetrar em sua base.

Supôs que dentro de poucos minutos Rhodan utilizaria seu potencial técnico invencível para atacar o campo de foguetes e destruí-lo.

Mandou que o acampamento entrasse em regime de prontidão para a defesa, o que não exigiu maiores preparativos ou modificações. Desde o dia em que pousara em Vênus contava constantemente com algum acontecimento imprevisto e agrupou seus homens e equipamentos de tal forma que poderiam se defender contra um ataque vindo de qualquer direção.

Havia outra questão: será que o agrupamento adequado também se tornaria eficiente face ao furacão artificial que, segundo esperava, seria desencadeado por Perry Rhodan?

Raskujan era de opinião que a resposta só poderia ser negativa. Por isso fez outros preparativos, mas em segredo: além dele e das pessoas atingidas, só uma pessoa soube deles, o piloto que dirigiria o helicóptero.

Ajudado pelo piloto, amarrou as mãos de Tomisenkow e Thora, que eram os mais importantes dentre seus prisioneiros. Fizeram-nos caminhar diante dos canos das pistolas automáticas e ajudaram-nos a entrar no helicóptero que já estava à espera.

Quando as mãos vigorosas do piloto empurraram Tomisenkow para dentro do aparelho, o mesmo lançou um olhar de desprezo por cima do ombro e disse:

— Alguma coisa não deu certo, não é? Os ratos estão abandonando o navio que vai afundar.

— Cale a boca! — rosnou Raskujan. Não disse mais nada.

A cabina era mais ampla que na maioria dos helicópteros. Havia quatro poltronas para passageiros. Thora e Tomisenkow foram obrigados a sentar nas da frente, enquanto Raskujan sentou atrás deles, com a arma engatilhada. O piloto se enfiou na sua poltrona apertada e aguardou alguma coisa. A porta externa se fechou com um chiado.

— Prestem atenção! — disse Raskujan com a voz embaraçada. — O que me interessa a esta altura é não cair nas mãos de Rhodan. Ele conseguiu penetrar em sua base e dentro de poucos minutos estará aqui. Minha situação é muito séria. Levo os dois. O senhor, Tomisenkow, conhece este planeta, e a senhora, Thora, me servirá de refém diante de Rhodan. Neste helicóptero encontra-se uma ampla provisão de armas, munições e mantimentos. Tomisenkow, a tarefa do senhor por enquanto consiste em descobrir um esconderijo seguro para nós.

Uma vez lá, aguardaremos até que Rhodan se mostre disposto a entrar em negociações. Como disse, minha situação é muito séria. Antes de perder a última chance, que são os senhores, prefiro matá-los. Não se esqueçam disso! Tomisenkow, instrua o piloto sobre o curso que deve tomar.

Uma porção de idéias sobressaltou-se no cérebro de Tomisenkow. A mais razoável delas foi a de que no momento não havia outra coisa a fazer senão obedecer às ordens de Raskujan.

— Siga um curso entre duzentos e setenta e duzentos e oitenta graus — resmungou para o piloto. — Suba para cinco mil metros, pois daqui a pouco chegaremos às montanhas.

 

Perry Rhodan ainda conseguira forças para formular uma ordem dirigida ao cérebro positrônico, ordem esta que Marshall deveria transmitir por via telepática. Uma vez ciente da presença de Rhodan, era de supor que o cérebro captasse, compreendesse e executasse a mensagem telepática.

A mensagem incluía o pedido de fornecer um meio de transporte que permitisse vencer quanto antes os cinqüenta quilômetros que ainda os separavam do centro da base, e de preparar uma série de medicamentos que colocasse Rhodan em condições de atuar no mais breve espaço de tempo.

 

Alicarim não escapou apenas aos tiros disparados pelo helicóptero de Pjatkov; também conseguiu penetrar em tempo na área da base.

Uma vez transmitida a ordem a Marshall, Rhodan desmaiou. Marshall repetiu a ordem até que Son Okura viu um planador que se deslocava a pouca altura e uma velocidade tremenda. Rhodan foi colocado no aparelho, e os outros instalaram-se nas poltronas. Poucos minutos depois o aparelho colocou-os no interior da fortaleza e transportou Rhodan para o lugar em que os medicamentos já haviam sido preparados.

Dali a meia hora Rhodan já estava em condições de formular ordens precisas. Instruiu o cérebro positrônico a desativar o campo energético que cercava todo o planeta, para que Reginald Bell pudesse pousar com sua nave auxiliar. Para evitar outras complicações ainda mandou que a barreira energética de quinhentos quilômetros de diâmetro — que, nos momentos críticos, costumava cercar a área no lugar do anteparo de cinqüenta quilômetros, sempre que o planeta todo não estivesse protegido — também não fosse ativada.

Só então Rhodan considerou terminado o período de esforços sobre-humanos e permitiu uma pausa de sono a si e a seus companheiros totalmente exaustos.

 

Reginald Bell reagiu com a explosividade de um vulcão até então contido por uma fina crosta de terra.

O girino — isto é, a nave auxiliar de sessenta metros de diâmetro — avançou a toda velocidade e com os campos protetores ativados para as camadas mais profundas da atmosfera de Vênus. A uma velocidade de mach 15 — ou seja, quinze vezes a velocidade do som — o impacto do campo energético sobre as moléculas de ar ionizava estas e produzia uma certa luminosidade. Com a beleza imponente de um cometa gigante, arrastando atrás de si a ofuscante faixa branco-azulada de ar ionizado, a nave precipitou-se pela noite de Vênus e surgiu sobre o acampamento de Raskujan. Entre os homens que deviam defender o lugar o medo puro e simples começou a se espalhar face ao fenômeno nunca visto.

A nave não foi bombardeada. Aliás, um projétil terreno não lhe poderia causar qualquer dano. Numa altura de cem metros, manteve-se imóvel acima do acampamento. Bell não assumiu qualquer risco. Mandou que Tako Kakuta, o teleportador, ocupasse o grande projetor mental, e mandou que todo o acampamento fosse coberto pela ordem de capitulação, transmitida por via hipnótica.

Só depois disso pousou a nave no chão e começou a realizar seu inventário. Sabia que Thora era uma prisioneira do acampamento e, apesar de todos os ressentimentos que nutria para com a mesma, suas primeiras preocupações dirigiram-se a ela.

Não a encontrou. Os prisioneiros que capturou mostraram-se dóceis, conforme lhes ordenava o comando hipnótico, e conduziram-no para a parte do acampamento em que Thora devia se encontrar. Não estava lá, e ninguém sabia onde poderia estar.

Só depois de algum tempo notou-se que Tomisenkow também não se encontrava no acampamento. E, quando se verificou que o coronel Raskujan havia dado o fora, Bell começou a tirar suas conclusões dos acontecimentos, conclusões estas que se aproximavam bastante da verdade.

Logo se deu conta de que não valeria a pena sair à procura dos desaparecidos. Raskujan não deixaria de dar um sinal de vida assim que a situação voltasse à calma; além disso, nada se poderia fazer contra ele enquanto Thora se encontrasse em suas mãos.

 

— Passe entre os dois cumes de montanha — ordenou Tomisenkow.

O piloto relatava constantemente o que via na tela do instrumento de observação, e face a esses dados Tomisenkow fornecia o curso a ser seguido.

Pelo cálculo de Tomisenkow, no curso de uma hora haviam se afastado cerca de cento e cinqüenta quilômetros do acampamento, já que as montanhas e as complicações na transmissão das ordens obrigaram-nos a voar devagar.

A velocidade foi reduzida ainda mais pelo fato de que Tomisenkow procurava ganhar tempo. Esperava que a vigilância de Raskujan se tornasse menos intensa, e que Thora fizesse alguma coisa que o distraísse.

— Atrás destes cumes há outros — disse o piloto. — São três, que estão em fila. O do meio deve ter uns oito ou nove mil metros de altura.

Tomisenkow respondeu com um aceno da cabeça.

— Passe entre o da esquerda e o do meio, e depois tome o curso de duzentos e cinqüenta graus.

Raskujan pigarreou.

— Será que ainda sabe para onde está nos levando?

— Sei, sim — resmungou Tomisenkow.

Nesse instante Thora soltou um grito estridente e se aproximou de Tomisenkow.

— O que houve? — perguntou Raskujan em tom áspero.

Thora sacudiu os ombros.

— Ali — gritou amedrontada. — Um lagarto voador.

Olhou pela janela, como se visse alguma coisa. Seu pavor estava tão bem fingido que, por um instante, o próprio Tomisenkow não sabia se realmente havia visto um lagarto.

Raskujan escorregou para o outro assento e comprimiu o rosto contra a lâmina de plástico transparente. Colocara a pistola automática sobre o joelho.

No mesmo instante Tomisenkow virou-se, colocou os joelhos sobre o assento de sua poltrona e deixou-se cair para a frente. Antes que Raskujan percebesse do que se tratava, comprimira as costas contra seu corpo, inclinando o tronco para a frente, e levantara as mãos amarradas, apertando-as em torno do pescoço de Raskujan. Apertou a garganta do coronel com toda a força de seus dedos. Não via o efeito que estava produzindo.

— Pare — gritou Thora. — O senhor o está matando.

O piloto tivera sua atenção despertada pela cena. Virou a cabeça e olhou para trás.

— Cuide do helicóptero — gritou Tomisenkow. — Senão acabamos caindo.

Quando Tomisenkow soltou Raskujan, este caiu molemente no seu assento. Ainda com as mãos amarradas, Tomisenkow pegou a pistola automática e firmou-a entre dois assentos, fazendo com que apontasse para o piloto.

— Não pense que um homem amarrado não pode atirar — disse. — Basta apertar o gatilho e o senhor será um homem morto. Volte ao acampamento.

A situação era grotesca. Tomisenkow estava ajoelhado na poltrona em que poucos instantes antes Raskujan estivera sentado. Apoiou a barriga no encosto, com a pistola automática atrás de si, de tal maneira que podia alcançá-la com as mãos. Não teria o menor problema em puxar o gatilho. Mas bastava que a arma presa entre os dois assentos escorregasse para baixo para que o piloto não mais se encontrasse ao alcance de seus tiros... e tudo estaria terminado.

Felizmente agora, que Raskujan já não podia fazer mais nada, tornava-se relativamente fácil desamarrar as mãos. Thora conseguiu tirar do bolso de Tomisenkow um pequeno canivete que lhe haviam deixado e com ele cortou as cordas que o amarravam.

O resto foi uma brincadeira. O piloto, que de qualquer maneira não estava convencido de que Raskujan seria o mais gentil dos chefes e que suas ordens eram muito sensatas, só precisou de um pequeno estímulo, representado pela visão da pistola automática engatilhada, para se submeter prontamente às ordens de Tomisenkow.

Este procurou cuidar de Raskujan. Levou um susto tremendo ao constatar que o coronel estava morto.

Cobriu-o com sua jaqueta.

— Não merece outra coisa — disse. — Apesar disso tenho pena.

 

Poucas horas depois da meia-noite foi anunciada a chegada de Rhodan. Voou num aparelho da base e pousou no antigo acampamento de Raskujan, junto à nave auxiliar de Reginald Bell.

O campo de pouso estava profusamente iluminado.

Rhodan já fora informado sobre os acontecimentos. Soube que Raskujan procurara desaparecer com Tomisenkow e Thora e que os dois prisioneiros haviam regressado ao acampamento com o cadáver de Raskujan.

Quando entrou na sala de comando da nave auxiliar, Bell apresentou seu relato, conforme determinavam as normas. Nesse relato incluía-se o seguinte trecho:

— Tomisenkow pede, com o devido respeito, que o senhor lhe conceda uma entrevista.

Rhodan confirmou com um aceno de cabeça.

— Onde está Thora?

Bell ergueu os ombros.

— Ao que parece preferiu ficar só. Sempre respeitei os desejos daquela mulher.

Mais uma vez Rhodan acenou com a cabeça.

— Nesse caso vou falar com Tomisenkow.

Bell saiu da sala de comando. Dali a pouco Tomisenkow entrou. Rhodan ofereceu-lhe uma poltrona.

— O senhor vai ficar admirado — principiou Tomisenkow sem preâmbulos — com a proposta que vou formular.

Rhodan sorriu com essa fala sem rebuços.

— Antes de sua chegada — prosseguiu o general — falei com os homens de Raskujan. Contei-lhes que conseguimos viver em Vênus durante um ano sem que dispuséssemos de quaisquer recursos, e que viveríamos muito melhor se dispuséssemos de mais algumas das bênçãos da tecnologia. Eu lhes sugeri que ficássemos para sempre em Vênus, e eles concordaram. Todos, com exceção de uns quatro ou cinco.

Fitou Rhodan numa atitude de expectativa.

— Está bom — disse Rhodan. — Ou melhor, excelente. Não oponho nada a que os senhores se fixem, desde que deixem nossa base em paz.

Tomisenkow sacudiu a cabeça.

— Nem pensamos nisso. Soubemos o que aconteceu com o governo do Bloco Oriental. Meus companheiros e eu já rompemos com o passado. E, ao que tudo indica, para os homens da frota de Raskujan não foi muito difícil fazer o mesmo.

Rhodan se levantou e ficou andando de um lado para outro. Subitamente Tomisenkow ouviu que ria.

— Nunca imaginava — disse — que meus planos se realizariam tão depressa.

— Seus planos? — perguntou Tomisenkow, espantado.

— Isso mesmo; meus planos. Na sua opinião, qual foi o motivo por que há um ano não destruí sua frota com os tripulantes?

— Porque... porque... bem, não sei.

— Porque acreditava — interveio Rhodan — que, se continuassem vivos, formariam uma base muito sadia para a primeira colônia a ser instalada em Vênus. Realizei uma experiência com seres humanos; e o ser humano revelou suas aptidões.

Tomisenkow, espantado, ficou de queixo caído. Só aos poucos deu-se conta de que nos últimos meses não fizera outra coisa senão bancar a marionete que alguém arrasta por um fio. Sua inteligência rebelou-se contra essa idéia. Quando finalmente sua mente a absorveu, Tomisenkow sentiu-se possuído pela cólera.

Mas só por um instante.

Não era nenhuma vergonha, para um homem, que Perry Rhodan o conduzisse por um fio invisível.

Rhodan parecia adivinhar seus pensamentos.

— Não perca seu orgulho — disse. — Só a idéia foi minha. O senhor conservou a liberdade de ação. E não tenho receio em afirmar que o senhor a aproveitou muito bem. Acredito que não estarei errando se lhe deixo as mãos livres para instalar a colônia e lhe prometo nosso auxílio.

Tomisenkow tinha a impressão de que estava sonhando. Levantou-se, dirigiu-se a Rhodan e apertou-lhe a mão.

— Obrigado — murmurou. — Muito obrigado.

Enquanto saía, muito nervoso, murmurou uma série de palavras russas, que Rhodan não compreendeu.

Só dez horas depois Rhodan encontrou-se com a arcônida.

Não a procurara. Da sala de comando, resolveu as coisas que tinham de ser resolvidas e começou a preparar a decolagem em direção à Terra.

Thora veio sem ser chamada.

Quase sem o menor ruído, mandou abrir a escotilha e por algum tempo manteve-se imóvel na entrada, antes que Rhodan notasse sua presença.

Logo percebeu seu embaraço e sua insegurança. Como não devia se sentir aquela mulher. Sua fuga precipitada da Terra provocara toda aquela confusão, que por pouco não trazia a morte de Rhodan e o fim da Terceira Potência.

Aproximou-se com passos hesitantes. Rhodan levantou-se e foi ao seu encontro. Viu que ela se dispunha a falar, apressou o passo e segurou a mão dela entre as suas.

— A senhora não imagina — disse com a voz baixa — como me sinto feliz por revê-la.

Isso lhe tirou toda a munição. Não conseguiu dizer mais nada; nada de todas as desculpas e motivos que havia preparado. Fez uma coisa muito espantosa: inclinou-se para a frente até que sua cabeça encostasse no ombro de Rhodan e chorou.

Thora, a arcônida, a mulher que tinha um bloco de gelo no lugar do coração, estava chorando.

Rhodan procurou consolá-la. Deu início a algumas frases consoladoras, mas também não se lembrou de uma coisa adequada que pudesse dizer. Tudo que lhe ocorresse parecia ridículo e inexpressivo.

Ficou parado, segurou Thora pelo ombro e deixou que chorasse à vontade.

 

— Tripulação a bordo! — anunciou Bell. — A nave está pronta para decolar.

Rhodan fez um gesto com a cabeça e olhou para a tela. A primeira luz do novo dia surgiu no horizonte.

— Está na hora de irmos para casa — disse em tom pensativo.

Bell deu uma risadinha.

— Neste meio tempo Freyt deve ter criado cabelos brancos. Não sabe nada dos acontecimentos em Vênus além do pouco que pude informar.

Rhodan se dirigiu ao microfone do intercomunicador.

— Decolaremos dentro de sessenta segundos — disse com a voz tranqüila.

Reginald Bell ocupou seu lugar.

— Controle!

Com um ligeiro estalo algumas chaves mudaram de posição.

— Tudo em ordem.

— Cuidado, vamos decolar.

A nave levantou-se e, numa velocidade fascinante, subiu ao céu pálido. Aquilo que antes fora o acampamento de Raskujan e agora era o de Tomisenkow ficou para trás; por um instante a abóbada reluzente de cinqüenta quilômetros formada pelo campo protetor da fortaleza emergiu da escuridão.

Rhodan voltara a modificar os comandos introduzidos no cérebro positrônico. Desta vez seguiu os dados e as sugestões fornecidas pelo próprio cérebro. Não haveria outro incidente como o que acabara de se verificar.

Depois de algum tempo, o sol surgiu no horizonte, qual uma enorme lanterna amarela, envolto na densa atmosfera de Vênus.

— Se este sol tivesse brilhado o tempo todo para nós — disse Rhodan em tom pensativo — muita coisa teria sido bem mais fácil.

 

                                                                                            Kurt Mahr  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades