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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ANO NOVO / Pearl S. Buck
O ANO NOVO / Pearl S. Buck

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O ANO NOVO

 

Esta é uma história de esperança e reconciliação. É sobre um pai americano e seu filho eurasiano que vive na Coréia. Não é sem alguma auto-análise e muita compreensão da parte de sua esposa americana, que eles reúnem como uma família.

O pai é um político aspirante na Filadélfia. Posto em choque e em um dilema moral pelo conhecimento súbito de seu filho, concebido enquanto um soldado estacionado na Coréia, o pai pesa o seu futuro político contra as suas responsabilidades a esse filho e a sua esposa. A situação é ainda mais complicada pelo seu Casamento sem filhos.

A obra é muito moderna no seu tratamento de objetivos aparentemente contraditórios de um político de êxito público e comportamento pessoal consciencioso. A história confronta a disparidade entre duas culturas: Leste e Oeste e duas gerações. Ele é um livro muito oportuno de todas daquelas razões, mas a recompensa de ler este livro é a capacidade de Pearl Buck como um contadora de história. O amor conjugal, o amor dos pais, a alienação, a adoção e a ambição são tecidos neste romance maravilhoso, pungente.

 

 

O TELEFONE tilintou.

— Agora, que será...? — murmurou Greta.

Alisou o aventalzinho branco e apanhou o receptor. A voz da patroa lhe soou, clara e musical, aos ouvidos.

— Bom dia, Greta. Ainda estou em Nova York. O Sr. Winters já desceu?

— Não, Sra. Winters, ele ainda está lá em cima.

— Pois ele não deve descer, Greta. E, se descer, não deve sair. O médico telefonou-me ontem à noite e disse-me que ele está muito gripado. Precisa ficar de cama e tomar líquidos o dia inteiro.

— Mas, Sra. Winters, não posso segurar o Sr. Winters na cama. Ele não fica. A senhora não vai voltar hoje para casa, como disse...?

— Eu ia, Greta, mas não posso. Os farmacologistas vão reunir-se hoje e preciso substituir, na reunião, um homem que não pode estar aqui.

— Está bem, Sra. Winters.

A voz agradável transmitiu-se pelos fios.

— Portanto, você precisa segurá-lo na cama, Greta.

— Bem, vou tentar, mas... oh, meu Deus, ele já vem vindo! — Ela voltou-se para a porta. — Sr. Winters, a Sra. Winters quer falar com o senhor.

— Ótimo, — disse Christopher. — Assim é que se começa o dia.

Pegou no receptor e teve um acesso de tosse antes de poder continuar. A voz da esposa soou-lhe aos ouvidos em tom repreensivo.

— Querido, você parece pior!

— Não, estou melhor.

— Onde vai hoje? Não pode ficar em casa?

— Impossível. Berman virá depois do café e iremos ao escritório imediatamente.

— Você viu o médico?

— Ontem à noite.

— Telefone-me, meu bem, sim? Estarei de volta ao hotel às sete horas. Tomarei o primeiro avião se você não der boa conta de si.

— Estarei perfeito.

— Chris!

— Sim, meu bem?

— Tem certeza de saber o quanto o amo?

— Você já não me disse?

— É o que tento fazer, todos os dias.

— Então eu sei. Porque sei o quanto a amo.

— É o que gosto de ouvir, logo de manhã cedinho.

— Bobinha!

Ele desligou o telefone para que ela não lhe ouvisse o acesso seguinte de tosse. A despeito de sua declaração de saúde, sentia-se tão mal que não se vestira como de costume antes do desjejum. Em lugar disso, depois da barba e do chuveiro, enfiara o velho roupão de banho marrom de lã. Sentou-se à mesa e engoliu o copázio de suco de laranja, fazendo uma careta à medida que o ácido lhe deslizava pela garganta inflamada.

— Café, Greta, — ordenou.

— Já, já. O senhor está bem resfriado, Sr. Winters... não está?

— Não estou pior do que ontem. O correio já chegou?

— Eu vou ver.

Ela encheu-lhe a xícara com o café fumegante da cafeteira de prata e foi até a porta da frente. A maior parte da correspondência dele ia para os seus escritórios de advocacia mas, naquele dia, entre as cartas dirigidas à Sra. Christopher Winters II, havia uma endereçada a ele. Era um envelope fininho, com um selo estrangeiro. Ela levou as cartas para a mesa.

— Aqui está, Sr. Winters. Há uma para o senhor. Posso ficar com o selo? De que país será?

Ele tomou do envelope cinzento-azulado.

— Da Coréia.

— Coréia? O senhor conhece alguém lá?

— Acho que não. Mas estive lá há uns doze anos, durante a Guerra da Coréia.

— Não me diga! E gosta de lá, talvez, Sr. Winters?

— Não... bem, sim e não. Gostei mais de voltar para cá.

— O senhor e a Sra. Winters já eram casados?

— Já. Havia três dias. Onde estão meus ovos com toicinho?

— Oh, meu Deus!

Ela saiu correndo da sala, enquanto as pontas do laço do avental drapejavam no ar, e ele examinou atentamente o envelope. Havia um nome coreano no canto superior esquerdo. Kim... quem o quê? A água apagara o resto. Abriu o envelope com a faca de manteiga, retirou de dentro dele uma folha fina de papel de arroz e desdobrou-a. Sobre o papel as palavras se destacavam, toscas, porém escritas em inglês. Distinguiu o cabeçalho...

"Querido Pai americano..."

A linha seguinte era clara.

"Minha mãe falou para eu nunca escrever ao senhor".

Percebeu instantaneamente. Depôs a carta sobre a mesa e cobriu-a com as outras. Greta chegava com os ovos e o toicinho.

— Obrigado, Greta — disse ele.

Ela saiu da sala e ele se viu novamente só. Precisava manter-se calmo. Não descobriu a carta. Em vez disso, principiou a comer, demorando-se deliberadamente sobre o prato. Era, sem dúvida, perfeitamente possível. A criança tinha apenas um mês de idade quando ele embarcara de volta. Fizera o possível para ficar. Era preciso que isso, pelo menos, militasse em seu favor!

— Não chore, Soonya. Não chore, meu bem!

Ouvia a própria voz, jovem e agoniada, ecoando através dos anos na sala tranqüila de jantar de sua bela casa, onde ele e Laura haviam sido felizes, a despeito de nunca terem tido filhos. Haviam sido felizes? Eram felizes agora e continuariam a sê-lo, para todo o sempre. Mas a sala dissolveu-se e o que ele cuidara definitivamente sepultado ergueu-se em monstruosa realidade. Era incrível que ele pudesse ter sido tão louco! Aos vinte e quatro anos... mesmo aos vinte e quatro anos deveria ter tido mais juízo... ainda que se levasse em conta a súbita transferência de um mundo para outro. Nascera aqui, em Filadélfia, como haviam nascido seu pai e seu avô antes dele, na antiga e formosa casa diante de Rittenhouse Square, abrigada, pelo que supunha — ao menos nada existira que o preparasse para se ver tão rapidamente empurrado àquele antiqüíssimo país da Ásia. Tão repentina fora a convocação que não lhe sobrara tempo para se aperceber ou meditar; seis meses de treinamento básico e, a seguir, as ordens ao seu batalhão para sustentar o último e violento combate na Coréia.

No entanto, tivera sorte. Fora atirado à batalha pouco antes da limpeza final; em seguida se firmara o armistício e ele tivera tempo à sua disposição, tempo para sentir-se só e saudoso. Escrevera a Laura e ela lhe respondera, mas as cartas não haviam sido confortadoras. Estavam, é claro, perdidamente apaixonados; mas ele não sabia quando voltaria para casa, não sabia como contar-lhe aquela sua existência estranha e distante, nem sabia, daquela distância, imaginar sequer a vida dela. A lembrança do seu breve casamento dissipara-se no medo, o velho medo que ele sentira antes do dia das bodas. Medo de Laura ou do próprio casamento? Não o sabia. Estavam casados. No entanto, momentos houvera em que ele, deitado na lama, o fuzil engatilhado, todos os nervos alerta contra a morte súbita, se pusera a imaginar se a cerimônia realmente ocorrera, a dourada cerimônia ao meio-dia e os três dias de lua-de-mel antes da partida. Tudo se lhe tornara indefinido, exceto as cinzentas e sinistras montanhas da Coréia. O frio úmido do inverno, que não acabava, e a desolação após a guerra. Repetira infinitas vezes a si mesmo que devia alegrar-se por estar vivo, mas não se alegrava. No meio da pobreza medonha, do povo arruinado, das crianças perdidas, os jovens norte-americanos, de que ele fazia parte, sentiam-se angustiados pela desgraça, cercados pela desgraça, e não podiam escapar. A cessação da guerra tirara-lhes até o alívio da ação. Afinal, desesperado, conformara-se ao procedimento comum.

— Ora, vamos, rapaz, — haviam instado e persuadido os companheiros. — Você não pode ficar sentado aqui, sozinho, a noite inteira, nas barracas. O que é que você está esperando? É só por farra. Vamos à cidade.

A princípio fora tudo muito inocente, o salão de baile, simples barracão erguido entre os edifícios em ruínas de Seul, com lâmpadas nuas pendentes do teto, a fieira de bancos encostados às paredes, o piano quebrado a martelar os ritmos do rock and roll. Todo o mundo dançava; a par de cada homem de uniforme havia uma jovem e escanifrada coreana, a maioria com um vestido solto ocidental mas umas poucas com as amplas saias e os corpetes curtos de sua própria cultura. Ele deixara-se cair num banco, apenas para olhar, dissera consigo mesmo. A última vez que dançara, em sua lua-de-mel, tivera nos braços a noiva, e haviam estado muito juntos, mais do que nunca até então.

Com quanta inocência ele lhe dissera adeus naquele dia! Depois fora atirado às escaramuças e à batalha, escalara as íngremes montanhas da Coréia para lutar corpo a corpo com o inimigo, que saltava sobre ele da rocha e das ravinas. Da morte e dos perigos logo soube muito, mas do amor só lhe restava uma lembrança.

Estava ali sentado, no salão de danças, perdido e só, e Tom Sullivan, seu companheiro, se aproximara — Tom, a cujo lado combatera e cuja vida salvara, de uma feita, ao carregá-lo, ferido, montanha abaixo, enquanto o sangue jorrava sobre ambos até que o médico, no tosco pavilhão da base, não soubera a quem pertencia aquele sangue.

— Levante-se, homem, — gritara-lhe Tom naquela noite. — Encontrei uma garota para você. Soonya, este é Chris. Chris, esta é Soonya!

E Tom saíra a galope com a parceira, uma pequena de rosto quadrado e vestido vermelho apertado, e ele, Christopher, vira-se obrigado a erguer-se constrangido e tímido.

— Dança? — murmurara.

Soonya sorrira, um sorriso meigo e assustado, e ele a tomara, relutante, nos braços. Ela usava saia de brocado cor-de-rosa, comprida e cheia, à maneira coreana, e corpete curto de seda branca. Em poucos minutos ele percebeu que ela não sabia dançar. Não era alta; magra, embora não fosse esgrouviada como a maioria das outras, era bonita. Poucas seriam realmente bonitas, como ele já o notara, mas Soonya possuía traços delicados, a pele de uma alvura de pérola, os grandes olhos castanhos debaixo de suaves sobrancelhas castanhas. As mãozinhas pareciam não ter ossos. Sim, mesmo agora, anos mais tarde, recordava-lhe as mãos, tenras como as de uma criança, a mão direita dela na mão esquerda dele enquanto dançavam e depois, mais tarde, as duas mãos dela nas mãos dele. Falava pouquíssimo inglês. Foi isso, talvez, que logo os levou às carícias. Era necessário que se comunicassem e não tinham outra linguagem.

— Quantos anos tem? — perguntara ele.

Pois não adiantava continuar dançando. Ela não tinha senso de ritmo, pelo menos de ritmo ocidental. Mais tarde, parecera-lhe então muito mais tarde, embora talvez fosse apenas uns poucos dias depois, ele soube que ela gostava de música, pois lhe cantou canções coreanas, delicadas melodias envolventes, enquanto seus dedos tangiam as cordas de um alaúde.

— Anos? — ecoara ela. — Ah, sim.

Mostrara dez dedos e, depois, oito. Portanto, tinha dezoito anos, para os seus vinte e quatro.

— Você? — indagara ela.

Ele mostrara um número apropriado de dedos e, pela primeira vez, riram juntos. Ele comprara-lhe uma garrafa de coca-cola e ela não estava preparada para as cócegas no nariz. Com que, então, ela nunca estivera ali? Ele não conseguia fazê-la compreender a pergunta mas Tom, passando por lá, desabara sobre o banco para um momento de descanso. A sala estava quente e o ar abafado com o mau cheiro do kimchee.

— Esta é Boneca, — anunciou ele, apontando um polegar para a sua pequena. — Não é o verdadeiro nome dela. Não consigo pronunciá-lo. Por isso a chamo apenas de bonequinha. E ela é Boneca para todos os efeitos.

— Isso mesmo — disse Boneca, mostrando todos os dentes numa risada imensa.

— Ela dança bem, — prosseguiu Tom. — Isto é, graças a mim. A princípio era um desastre. Não era, pequena? Boneca riu-se.

— Isso mesmo!

— Alegrinha, não é? Pois gosto disso. Soonya ficará mais alegre depois que aprender um pouco de inglês. É a primeira vez que Soonya vem aqui, não é, Boneca?

— Ela chegou de uma aldeiazinha ontem — explicou Boneca jovialmente.

Tornaram a afastar-se e ele ficou em companhia de Soonya. O que o atraía já então era a diferença dela. A menina, tímida, evitara o primeiro toque acidental de sua mão, e ambos se quedaram sentados em silêncio. Ele observava os pares, sempre consciente da figurinha quieta ao seu lado, embora decidido a não olhar para ela enquanto lutava com a própria indecisão. Seria verdade que o que se fazia na Ásia não tinha importância na América? Não tinha importância ao menos para o homem? Poderia Tom, por exemplo, também recém-casado antes de sair de Centerville, Nebraska, voltar a ser o homem que fora antes de viver aqui numa cabana — uma hooch, como lhe chamavam — com Boneca?

— Quem se incomodará se eu não contar a ninguém? — dissera Tom. — O Oriente é o Oriente e o Ocidente é o Ocidente, como diz o ditado. Boneca sabe que não pode haver nada sério entre nós. Sou casado. Ela sabe disso.

A poeira e o calor da sala tinham-se tornado intoleráveis. Ele olhou de soslaio para Soonya. Ela estava esperando o olhar e voltou a sorrir-lhe. Ele ergueu-se, pensando no que faria com ela. Tom e Boneca aproximaram-se, à deriva, agarradinhos.

— Aonde vai, rapaz? — perguntou Tom.

— A qualquer lugar, — disse ele. — Aqui está muito abafado.

— Vamos à hooch, — sugeriu Boneca. — Farei chow.

Ele hesitara mas não poderia haver mal algum em ir à hooch de Tom por uma hora ou coisa parecida. Não ficaria lá, naturalmente.

— Sr. Winters, aqui está o Sr. Berman. — A voz de Greta trouxe-o de novo, repentinamente, a Filadélfia. Meteu o envelope estrangeiro debaixo da pilha de cartas.

— Faça-o entrar, Greta.

Engoliu o café e depôs a xícara vazia no momento em que uma figura atarracada assomou à porta.

— Como se sente hoje cedo o futuro governador do nosso belo Estado? — bramiu o recém-chegado.

— Sente-se, Joe, — disse Christopher. — Greta, outra xícara de café.

— Obrigado. — A voz de Berman, rouca, entusiástica, dominava a sala. Tirou da pasta um maço de papéis.

— Adivinhe o que é isto! Votos! Vitória esmagadora! A opinião pública está toda do seu lado, do Digníssimo Christopher Winters, notável advogado de nossa formosa cidade.

— Joe, pelo amor de Deus, pare de brincar.

— Não estou brincando, estou dizendo a verdade. Fizemos um inquérito particular — nos cinemas, nos supermercados e assim por diante — entre multidões. Não há dúvida alguma. Você conquistou a cidade... Agora é o Estado... Precisam de você... Homem de ideais... Tem tudo! Derrubaremos a máquina, Governador Winters! Soa bem, não soa? O povo está com você. Vamos, alegre-se. Não gostou das notícias?

Um acesso de tosse atalhou-lhe a resposta. Berman mostrou-se imediatamente compreensivo.

— Puxa, você está resfriado mesmo! Cuide-se, rapaz.

— É o que estou fazendo. Aliás, acabo de prometer a minha mulher que não sairei hoje de casa.

A papada de Joe Berman caiu.

— E que faço eu com a delegação dos clubes femininos? Hoje, às 11 horas da manhã?

Christopher Winters suspirou.

— Eu tinha-me esquecido. Está bem, irei.

— Mas olhe lá, não quero levar a culpa. Sua patroa é uma poderosa...

— Ridículo!

— Não quero dizer que ela não seja encantadora, uma dama belíssima, perfeita esposa para um governador. Você compreende, Chris, aonde isso o levará? De Governador à Casa Branca!

—Veremos. Agora desapareça, sim? Vá ao escritório e diga a eles que lá estarei daqui a uma hora.

— Está bem, rapaz.

A sala voltou ao silêncio depois da sua partida barulhenta. Christopher retirou o envelope cinzento do meio dos outros e enfiou-o no bolso do roupão de banho. Greta entrou com café fresco.

— Ponha a correspondência sobre a escrivaninha, no escritório, por favor, Greta, — ordenou ele. — Levarei meu café para o quarto de vestir.

— O senhor não vai sair, Sr. Winters!

— Vou, sim.

— A Sra. Winters me disse para não deixá-lo sair. Que dirá ela quando voltar para casa, hoje à noite?

Ele piscou um olho.

— Diga-lhe que você precisou obedecer às minhas ordens. Obedecer-me ou ser despedida!

— Sim, senhor, — sorriu ela, — mas o senhor não devia sair, Sr. Winters. Ela tem toda a razão.

Lá em cima, no quarto de vestir, ele tirou a carta do bolso. Deveria lê-la agora e aborrecer-se o resto do dia? Entretanto, o ponto crucial da decisão não era ler ou deixar de ler a carta. Era como contar a Laura — se é que devia contar-lhe. Nisso residia o xis do problema. Deveria ela saber? Precisava saber? A cabeça principiava a doer-lhe outra vez, miseravelmente. Sacudiu-o novo acesso de tosse, que parecia não acabar mais. O quarto girava-lhe em torno da cabeça. Não devia ter dito a Berman que iria ao escritório. Era impossível — o médico tinha razão — Laura tinha razão — precisava ficar na cama.

Caiu, derreado, sobre o leito e alcançou o telefone na mesinha de cabeceira.

— Querido, como é que você se sente? — Despertaram-no a voz clara de Laura, a mão fria da mulher sobre a sua testa. Abriu os olhos, ofuscado pelo sono.

— Greta me contou que subiu e o encontrou dormindo outra vez. Diz ela que você dormiu o dia inteiro. Você me pareceu tão horrível hoje cedo que mal pude esperar o momento de deixar meus farmacologistas e voltar para casa.

— Sinto-me mal como o diabo.

Ele procurava não parecer ter pena de si mesmo e percebeu que o parecia. Rolou sobre as costas, esticou o corpo e alisou os cabelos.

— Tudo me veio de repente, — prosseguiu. — Acabei o desjejum, Berman apareceu e pensei que estaria bem. Depois, quando subi, senti-me de repente... bem, senti-me cansadíssimo.

— Essa gripe é assim, — conveio Laura. Inclinou-se para beijá-lo mas ele, virou o rosto.

— Não me beije... Você pode pegá-la.

— Isso é bobagem. Nunca pego nada.

Ela agarrou-lhe a cabeça entre as mãos e beijou-o em plena boca. Ele riu-se, confortado a despeito de si mesmo.

— A perseverança é uma de suas características mais exasperantes.

Ela pareceu repentinamente pensativa.

— Será, Chris? Tenho pensado nisso, às vezes. Nunca pego resfriados. Sempre fui tão nojentamente saudável! Meus dois irmãos apanhavam doenças quando éramos pequenos os três, mas eu nunca. Isso fazia que eles me odiassem.

Ele sentiu-se melhor.

— Agora é minha vez de dizer "Bobagem".

Ele sentou-se na cama, alcançou-a e puxou-a para junto de si, colando os lábios na sua nuca macia. Poderia, sem dúvida, contar a ela, sem dúvida se amavam o suficiente para que pudesse contar-lhe. Onde havia enfiado a carta? Ah, sim, no bolso do roupão! Mas o roupão... estava lá, onde ele o atirara sobre o espaldar da cadeira. E se ela...

— Passe-me o roupão de banho, meu bem, — pediu. —

Vou-me levantar. Sinto-me muito melhor, agora que você está em casa.

— Acho que você não devia.

— Não, de fato. Eu... dê-me apenas o roupão, sim?

Teria ela notado a aspereza em sua voz? Ela ergueu-se, obediente, e trouxe-lhe o roupão. Ele colocou-o à volta dos ombros. Debaixo das cobertas, vasculhou o bolso. A carta ainda estava lá. É claro que teria de contar-lhe. Mas seria melhor ler tudo primeiro. Que fora o que o fizera ir para a cama e dormir horas a fio sem haver sequer concluído a leitura? E se Greta tivesse entrado para arrumar o quarto e pendurar suas coisas e a carta houvesse caído...

A mão de Laura voltara à sua testa.

— Você está com febre. Deixe-me chamar o médico... Em seu alívio, ele se mostrou subitamente cordato.

— Vamos fazer uma coisa? Você toma a temperatura. Se eu tiver febre é você quem manda. Se não tiver, mando eu. Confere?

Ela riu-se.

— Você é bom político. Eu sempre soube disso.

Levantou-se, enquanto falava, dirigindo-se ao armário de remédios do banheiro, e a voz acompanhou-a. Voltou quando ela tornou a entrar no quarto, sacudindo o termômetro e examinando-o debaixo da luz.

— Hoje bem que me poderia ter valido um pouco da sua habilidade diplomática.

— Conte-me, — murmurou ele, enquanto ela lhe enfiava o termômetro na boca. E no silêncio forçado dele, Laura falou depressa.

— Como você sabe, não estou satisfeita com o último terço do livro. Wilton está demasiado confiante em suas conclusões. Não posso concordar em que tenhamos chegado a nenhuma área de certeza em relação às drogas que se podem extrair dessas plantas marítimas. Antes de ser escritora sou cientista, e simplesmente não acredito que se possa experimentar o tecido do cérebro humano fazendo experiências com o tecido do cérebro animal.

Ele resmungou, com o termômetro na boca:

— E não somos todos animais?

Ela censurou-o, porém, ternamente:

— Agora você terá de começar tudo de novo. Deixe-me falar, sim? É tão raro eu ter uma oportunidade!

Ele arregalou os olhos numa interrogação maliciosa e ela insistiu, a rir.

— É verdade-verdade-verdade! Você se expressa duas vezes melhor do que eu e sabe disso. Você diz sempre o que deve ser dito, seu diabo... e essa é outra razão por que o amo! Oh, Chris...

Ela abateu-se, com a cabeça no peito dele. O marido alisou-lhe os cabelos brilhantes, os lindos cabelos, de um vermelho de ouro...

— Eu o amo tanto, — murmurou ela. — Eu o amo tanto que até me dói falar nisso... Ouço seu coração batendo... debaixo do meu rosto... por que bate tão depressa? Uma batida irregular... Chris, você está-se sentindo mal mesmo? Haverá alguma coisa que não me contou?

Ela ergueu a cabeça. Os olhos escuros, de um cinzento de pedra, mas quentes debaixo das sobrancelhas escuras, perscrutavam-lhe o rosto. Ele folgou de ter o termômetro na boca, para não precisar responder. Laura retirou-o, esquecendo a pergunta. Mas como poderia ter adivinhado que havia alguma coisa para contar? Está visto que ela não...

— Oh, você está com febre... mais de 38! Não vai levantar-se, não. Mandarei servir meu jantar aqui em cima.

Ele sentou-se abruptamente e tirou o termômetro da boca.

— Detesto comer na cama. 38 não é nada, meu bem, e o quarto está quente. Faremos um trato. Tomarei um chuveiro rápido, vestirei um pijama novo e o chambre de veludo e jantaremos lá embaixo. Quero ouvir tudo, quero contar-lhe tudo. Berman diz que as coisas vão indo muito bem no escritório. Uma espécie de inquérito... Quero contar a você. E ele ainda vai telefonar...

— Ele telefonou uma dúzia de vezes, diz Greta. Quer vir aqui esta noite, mas respondi que ainda teríamos de ver isso.

— Certo. Mas do jeito que me sinto agora, quero vê-lo. As coisas estão-se avolumando. As próximas semanas serão decisivas.

Ela ergueu-se, dócil como sempre quando conhecia que ele tomara uma decisão. Ele teria de reconhecer esse ponto em favor dela. Era dono de sua casa e ela fazia questão de que ele o fosse. Ele tinha uma teoria, segundo a qual uma mulher forte queria um homem forte. Por outro lado, ele não queria uma mulher fraca. Sempre soubera que Berman, por exemplo...

— Em que está pensando? — perguntou Laura, demorando-se.

Ele tornou em si.

— O quê? Oh, bobagem. Eu estava pensando em Berman. A despeito de mim mesmo, desconfio dele. Não sei se devo confiar-lhe a direção da minha campanha.

— Ele o adora.

— Eu estava pensando na mulher dele...

Ela riu-se e voltou a sentar-se na borda da cama, ao lado do marido.

— Ora, que idéia... a mulher dele? O que é que ela tem com isso?

Ele riu-se também.

— Parece estúpido, não parece? Mas...

— Ela é estúpida, se é isso o que você quer dizer.

— Exatamente. Não será prova de uma fraqueza qualquer de Berman o fato de se haver casado com uma idiotinha? Ele manda nela como se fosse uma criada. E faz isso porque precisa fazer, não é verdade?

— Você está julgando o homem pela mulher que ele desposou?

— Naturalmente. Considero a melhor prova de minha masculinidade o fato de haver casado com você.

— Oh, Chris, francamente!

— Não, falo sério. Você é estupenda, Laura. Mas você... Bem, é preciso coragem para casar com uma mulher como você.

Para surpresa sua, ele viu tremer-lhe o lábio inferior. Conhecia o sinal. Ela não chorava com facilidade, mas magoava-se inexplicável e facilmente.

— Ora, querida — acudiu ele, à pressa, e pegou-lhe na mão, — eu disse alguma coisa errada. O que quero dizer é que tenho orgulho de mim por querer uma mulher como você. É preciso um homem de verdade para combinar com você, não é? Você não se orgulha de si mesma como mulher? Você nunca poderia ter-se casado com um homem pequeno, poderia? Está claro que não. Nós nos medimos um pelo outro, não é assim? Somos bem parelhos. Não fico atrás de você. Acho até que sirvo para você. Que tal isso como presunção?

Ela agora estava nos braços dele, meio a rir, meio a soluçar.

— Ó Chris, você me convenceria de qualquer coisa, positivamente! Mas a verdade é que sou feliz, tão feliz com você! Ainda assim, sei que eu assusto. Mas o que é que eu posso fazer? O cérebro não tem relação alguma com o sexo, tem? Aceitamos o que somos, porque não podemos fazer outra coisa.

Desvencilhou-se dos braços dele, delicada mas repentinamente. Ele sabia o que ela estava pensando. Quando ainda supunham poder ter filhos, quando não lhes ocorrera a impossibilidade de tê-los, haviam falado nos filhos que teriam, os filhos esplêndidos, compostos da beleza trigueira dele e da áurea formosura dela e da combinação das inteligências de ambos, os filhos que ainda não haviam nascido e que agora nunca mais nasceriam. Marido e mulher, eram tão perfeitamente unidos que se diria incrível imaginar alguma profunda incompatibilidade física entre eles. Não desistiriam, haviam dito um ao outro, mas ele sabia, à maneira que passavam os anos, que a esperança passava também. Em momentos como aquele já não falavam dos filhos em voz alta. E ele sabia o que ela estava pensando quando se afastou. Lembrou-se da carta que tinha no bolso. A súbitas, ocorreu-lhe que ele gerara um filho. Nesse caso, a culpa não era sua.

Pôs de lado o pensamento monstruoso. Ela não tinha culpa alguma. Casara com ele inocente de qualquer culpa em seu corpo e continuava inocente. Ele nunca lhe contaria. Não seria um erro contar-lhe? Feri-la como isso haveria de feri-la?

— Estarei pronto daqui a poucos minutos, — prometeu ele.

— Vou-me trocar também, — disse ela, dirigindo-se para o seu quarto.

No banheiro, ao barbear-se e debaixo do chuveiro, ele pensou. Por amor dela, não lhe cumpria manter secreta para sempre a existência do menino? A carta ainda estava no bolso do roupão, pendurado atrás da porta. Talvez devesse destruí-la. Não, não poderia decidir assim, de um momento para outro, se devia ou não contar-lhe. Se contasse, ela haveria de querer ler a carta. E não seria preciso responder? Enxugou-se com cuidado, envolveu-se numa toalha, tirou a carta do bolso.

Soonya, portanto, obrigara o menino a prometer que nunca lhe contaria que havia nascido! Sentiu invadi-lo uma onda rememorativa de ternura. Não, não a esquecera. Ela permanecera em alguma parte de seu ser, uma presença quente, que não se podia comparar ao seu amor a Laura, mas sempre uma presença. Mas, nesse caso, por que havia o menino desobedecido à mãe? Desdobrou a carta e leu a sentença seguinte.

"Agora não vou ter oportunidade de boa escola".

Escola? Na última vez em que vira o filho este mal completara um mês de idade. A criança nascera no outono, resultado, pensou com um gemido, do inverno, frio e cinzento. Na pequena hooch, entre as paredes finas, a única maneira de se manter aquecido era enfiar-se debaixo das cobertas. O vento gelado, que soprava dos brancos ermos da Sibéria, por sobre os picos pontiagudos das montanhas do Norte, penetrava a pedra e a terra, o osso e a carne. O único conforto que tinha naqueles dias resumia-se na simples proximidade do corpo de Soonya, ura conforto primitivo, necessário, como então lhe parecera, para defendê-lo da loucura. Poderia explicá-lo a Laura? Poderia ela compreendê-lo? Poderia compreendê-lo alguma mulher? Mesmo a ele aquilo agora não lhe parecia totalmente explicável. No entanto, lembrava-se. E a criança — com que aflição soubera da criança! Não tivera a coragem, naquele dia, de revelar a Soonya a sua consternação. A alegria dela comovera-o, e ele disfarçara a própria tristeza com um simulacro de alegria. Disso também se lembrava.

Raiara a primavera antes que ela lhe contasse, a primavera depois de um inverno tão asperamente frio. O dia era suave, um dia de abril, quente ao sol, mas de sombras geladas. Haviam levado comida numa pequena caixa de madeira, arroz frio e kimchee e, em seu bolso, duas laranjas, e tinham escalado a montanha além da cidade. O vento não cessava de soprar nas íngremes encostas, e eles tinham procurado uma lapa em algum lugar entre as rochas, um abrigo qualquer onde o sol pudesse aquecê-los. Ele encontrara o lugar e arrastara-a para dentro dele em sua companhia. Haviam-se sentado juntinhos, sobre a relva morta do inverno, e ele tirara barras de chocolate de outro bolso. Ela adorava chocolate e ele parará na cantina militar a fim de comprá-las para ela. Mas a consciência dela pesou-lhe.

— Não, — disse ela. — Comer arroz primeiro. Depois doce é bom.

Ela possuía um sentido estrito do dever, que funcionava de maneira inesperada. Assim, era capaz de privar-se de um doce até o momento apropriado, mas nunca se recusava a Chris. De dia ou de noite, estando sozinhos, ela cedia alegremente às exigências dele. Comprazia-se no amor dele — não, não era amor, mas quem poderá definir as múltiplas facetas do amor? Deixassem-no confessar que amara Soonya, não como amava Laura, com toda a masculinidade do espírito e do corpo, mas amara-a. E visto que sua primeira experiência de amor físico, descuidado e desinibido, tivera-a com Soonya, fora-lhe necessário reacostumar-se a amar Laura. Pois considerara como estabelecido, ao voltar, que, Laura também, sendo mulher, poderia responder fácil e imediatamente à sua súbita necessidade, a qualquer hora do dia e da noite, bastando para isso que estivessem sós. Quando ela se negou a fazê-lo, ele sentiu-se a princípio furioso, depois magoado. Por fim, sabendo-se incapaz de viver sem ela, aprendeu que o que ela lhe dava quando estava preparada para dar era infinitamente melhor, mais profundo e satisfatório do que o fora a singela e generosa presteza de Soonya. Pois Soonya lhe satisfazia os desejos mas Laura, amando-o com profundo respeito, não o fazia nem poderia fazê-lo.

— É preciso que seja direito, tanto por sua causa quanto pela minha — disse ela.

Naqueles dias na Coréia, quando Soonya era a única que ele conhecia, Chris fora jovem demais para compreender a plenitude do amor entre o homem e a mulher que se completam cabalmente. Haviam sido barras de chocolate e doces entre as refeições e, naquele dia na montanha, Soonya consentira em tudo, menos no tocante às barras de chocolate. Tinham comido o arroz frio e o kimchee e depois, enquanto mastigavam as barras de chocolate, ela lhe contara. Pegara da mão dele e colocara-a sobre o pequenino ventre nu. Pois lá em cima, entre as rochas, fazia tanto calor ao meio-dia quanto no verão e ela desabotoara o corpete e depois a saia a pedido dele, rindo-se para ele ao fazê-lo.

— Você é homem tão quente, — observara ela, e colocara a mão dele sobre o ventre. — Seu bebê, — a juntara.

Duas palavrinhas, mas um calafrio percorreu-lhe a espinha. Com a boca seca, sentiu girar a cabeça. Abriu a boca para protestar mas, nesse momento, viu-lhe o rosto iluminado por um júbilo simples. Compreendeu, naturalmente, que aquilo, para ela, significava casamento. Era o sonho de todas, de todas aquelas garotas, da própria Boneca, se não com Tom, talvez com outro homem. Mas Soonya fora diferente. Triste diferença! E ele não tivera a coragem de protestar. Não pôde fazer outra coisa senão fingir.

— Oba, que ótimo! — murmurava, simplesmente aterrado.

Por que sentira tanto medo assim? Terá todo homem o mesmo pavor da própria capacidade de reprodução? Ele apenas não pensara num filho. Imaginava que ela tivesse meios de atalhar a gravidez. Não lhe ocorrera, em sua inocência, que ela permitisse o nascimento de uma criança. Pensara apenas no prazer que ela lhe proporcionava, na habilidade em ajudá-lo a esquecer o lugar onde estava — sim, e com quem estava.

— Ótimo mesmo, — dissera ela, apoiando-se nele, exultante.

Mas ele não fora capaz de prosseguir nas carícias. Ao perceber o fato surpreendente, ela erguera os olhos.

— Você doente? — perguntara, com ternura.

— Estou sentindo frio, — dissera ele. — É melhor irmos embora.

O sol, de fato, ocultara-se atrás das nuvens cor de cinza que se haviam erguido dos vales. Ela se vestira e, agarrada à mão dele, seguira-o montanha abaixo. Nem entrara ele na pequenina hooch. Em vez disso, beijara-lhe o rosto e afastara-se, sem pronunciar uma palavra. Quando ele olhara para trás, vira-a em pé, à porta, a contemplá-lo com uma expressão de triste assombro no rosto encantador. Ele não voltara para junto dela pelo espaço de cinco dias. Depois, incapaz de suportar a própria solidão, aceitara o conhecimento de sua paternidade e fora procurá-la. Somente meses mais tarde, ao nascer a criança, soubera que precisava voltar para a sua terra. Diante da necessidade de escolher entre o regresso ou o reengajamento, conheceu que teria de regressar.

Quando contou a ela, Soonya agarrou-se a ele, soluçando, e a criança, colocada de repente sobre a esteira de tatami, pusera-se a gemer também.

— Preciso ir, Soonya, — dissera ele. — Tenho meus pais. — Não poderia dizer "minha esposa". Nunca lhe confessara que era casado.

— Sim, sim, estou sabendo, seus pais primeiro. Você volta?

— Tentarei, — prometera Chris, desejando não precisar mentir. Está visto que nunca poderia voltar.

Nem mesmo agora conseguia suportar a lembrança do último adeus. Dirigira um derradeiro olhar à criança, criaturinha solene, de rosto estranhamente asiático e, no entanto, não asiático, e lhe parecera, embora naturalmente aquilo fosse imaginação, que o bebê o tivesse reconhecido. Fora a única vez, por certo, em que sentira um quê de afinidade.

— Bonito? — perguntara-lhe Soonya, orgulhosa, através das lágrimas.

— Naturalmente, porque é seu.

Por fim, fora-lhe preciso arrancar do pescoço os braços dela. A mulher caíra ao chão, chorando num desespero, mas ele não se atrevera a inclinar-se para erguê-la de novo. Saíra correndo da hooch, com a garganta apertada demais para falar.

E agora a criança lhe escrevia e chamava: "Meu Pai americano!"

Ouviu uma batida à porta.

— Você está bem, Chris?

Era a voz de Laura, e ele respondeu, tornando a enfiar a carta no bolso do roupão.

— Já vou indo.

Vestiu o chambre de veludo e abriu a porta. E contou à mulher que estivera entretido com os próprios pensamentos, enquanto ela tomava banho e se trocava.

— Como você está linda! — exclamou.

— Este vestido velho, — tornou ela, acanhada. Laura ainda não se acostumara aos elogios dele.

— Você sabe que é um dos meus favoritos, — lembrou-lhe o marido.

Era um vestido caseiro, longo, de mangas compridas e cheias, decote baixo. Sua pele era impecável, mas se ela possuía um defeito seria o de ser demasiado magra. Embora delicados, seus ossos lhe avultavam. A lembrança de Soonya saltou, de repente, das sombras. Soonya também tinha uma estrutura delicada, um esqueleto delicado, menos alto que o de Laura, porém revestido de carne suavemente arredondada. Ele afastou, resoluto, a lembrança.

— Estou quase pronto, — disse, remexendo numa gaveta à cata de um lenço.

— Vou descer para ver se o jantar já está pronto, — anunciou ela.

Ele ouviu-lhe os passos na escada e sentou-se para descansar um pouco, repentinamente fraco. Aquilo tudo era uma tensão, que lhe chegava no meio de árdua campanha política. Não devia levar a história demasiado a sério. Poderia perfeitamente ignorar a carta. O garoto pensaria que ele não a recebera. Não, não, não poderia fazer uma coisa dessas quando a criança era seu filho. Se Soonya houvesse sido como as outras, se o tivesse induzido a escrever, a pedir, ele poderia recusar-se a tomar conhecimento do pedido. Não, mesmo assim o filho era seu. Havia, supunha ele, certa responsabilidade, moral, se bem não houvesse uma responsabilidade legal. No entanto, ouvira dizer algures que, naqueles países asiáticos, o pai era considerado responsável pela criança. Sim, fazia tempo que sabia disso e se esquecera — de propósito? Não, inconscientemente, sem dúvida, pois de propósito não...

Ouviu nova batida à porta. Voltou a cabeça.

— Que é?

— Sou eu, Sr. Winters, Greta. O jantar já está na mesa. A Sra. Winters está esperando... Velas acesas e tudo.

— Já vou indo, — gritou ele.

Cinco minutos depois estava pronto. A carta... que faria com ela? Estaria mais segura na pasta do que no bolso do roupão.

Desceu a escada. Ardia o lume da lareira na sala de jantar no momento em que ele olhou pela porta aberta, e Laura, em pé diante dela, deixava que a luz das chamas lhe brincasse no rosto e entre os cabelos.

— Um momentinho, — gritou ele, ao passar. — Só quero ver uma coisa na minha escrivaninha.

Entrou no escritório e fechou a porta. Ali sozinho, enfiou o envelope cinzento no meio dos papéis, dentro da pasta. Em seguida, fechou-a e pôs a chave no bolso interno do sobretudo, pendurado no armário do escritório. Mais tranqüilo e pronto para a noite, foi ter com a mulher.

Na sua extremidade da mesa oval, prestou atenção enquanto ela falava, observando-a com uma ternura cheia de remorsos. Ela o encantava e amedrontava. Momentos havia, como naquela noite, em que se punha a cogitar se algum homem seria capaz de compreender-lhe a variedade. Por insistência dele, ela desistira do trabalho especial que estava fazendo quando se conheceram, a tarefa monstruosa e incrível de descobrir, no Mar de Sargaço, os elementos que pudessem resultar no descobrimento de novos antibióticos em algas marinhas. Ela mergulhava, na verdade, em águas tão profundas que precisava usar um equipamento scuba.

— Que é scuba? — perguntara ele, no primeiro encontro, quando ela lhe contou o que estava fazendo.

— Aparelho autônomo de respirar debaixo d'água, — explicara ela.

Ele próprio fizera algumas pesquisas por conta própria, assombrado com a ousadia dela, e, quando verificou que se alguém se esquecesse de respirar normalmente nas garras do monstruoso aparelho, poderia morrer com uma bolha de ar nos pulmões, sentiu-se tomado de pânico e não sossegou enquanto não a fez prometer que só trabalharia na superfície da água. Agora, ela se limitava a trabalhar num laboratório seu em colaboração com pesquisadores do Instituto de Oceanografia em Nova York.

— Sobre o que foi que você falou hoje na reunião? — perguntou Chris.

— Além de discutir com Wilton sobre o livro, passamos o tempo todo tentando ainda definir quando e como uma planta marinha se transforma num animal marinho, — disse ela. — Acho que isso não tem importância e, no entanto, parece maravilhoso pensar que toda a vida é uma corrente contínua, sem barreiras verdadeiras entre as espécies.

— Definição, por favor! — exigiu ele.

— Bem, algumas plantas marinhas parecem verdes, como convém às plantas, mas nadam como animais e comem como animais... Milagres protozoológicos.

Ela esqueceu-se de si própria, como sempre lhe sucedia ao falar da ciência que lhe absorvia a vida mental. Cintilavam-lhe os olhos, brilhava-lhe a pele, e ele inclinou-se para a frente, a fim de contemplá-la com tamanho prazer que ela, ruborizada, interrompeu-se.

— Que aconteceu? — perguntou.

Ele falou devagar, com os olhos postos na mulher.

— Enquanto você fala em monstruosidades submarinas, lembro-me de certo dia, num show de modas. Eu fazia a reportagem do show como foca de jornal, durante umas férias da faculdade, quando vi uma moça alta, magra, tão bonita que me tirou o fôlego. Ela veio vindo na minha direção, caminhando pela nave com um casaco branco de verão e um chapelão branco. Seria você essa moça?

Ela riu-se.

— E eu me lembro de um rapaz moreno, bonitão, sentado na primeira fila, com um bloco de papel nos dedos e um lápis na mão. E disse a mim mesma que ele não parecia absolutamente um homem interessado em modas ou num modelo, especialmente num modelo alto demais.

— Não alto demais para mim! Gosto de moça alta, contanto que não seja mais alta do que eu. Três polegadas, disse eu, e nós medimos algumas semanas depois. Três polegadas, exatamente! E, diante disso, creio que lhe propus casamento, não propus?

— E eu estava com medo que você não o fizesse! Oh, formávamos um parzinho tão bobo! Você sabe que Milgrant está me convidando para voltar e trabalhar de novo como modelo este ano? Eu seria capaz de fazê-lo só de farra. Uma jovem matrona, com certeza.

— Só depois de três semanas que ficamos noivos você me contou que era cientista.

— Eu estava com medo.

— Quando confessei que estava procurando uma garota que tivesse miolos.

Ela descansou a faca e o garfo sobre a mesa.

— Chris! Se algum dia deixarmos de falar assim...

— Nunca deixaremos.

— Jura?

— Juro por...

Desobedecendo às ordens, segundo as quais nunca deveria aparecer senão entre um prato e outro, Greta abriu a porta.

— Quero tomar minhas refeições sozinho com minha mulher, — insistia sempre Chris.

— Desculpe-me, Sr. Winters. É o Sr. Berman. Ele olhou para o relógio.

— Bem... Ele está adiantado. Que venha tomar café conosco.

— Sim, Sr. Winters.

Ela desapareceu e, volvido um momento, introduziu Joe Berman, que transbordava de bom humor, entusiasmo e loquacidade.

— Muito bem, muito bem, a nossa primeira dama voltou das selvas da ciência! Ninguém seria capaz de acreditá-lo, se a visse agora, não é verdade? Quero dizer, a senhora não é do tipo seco, por assim dizer. Miolos e ossos, como sempre digo. Alô, Chris. Está melhor?

— Sente-se, Berman, — replicou ele. — Greta vai trazer o café.

— Ótimo, eu não poderia ter chegado em melhor ocasião. Que tal é a gente sentir-se o escolhido do povo? Já contou a ela?

— É prematuro. Apenas um inquérito, Laura.

— Os acontecimentos iminentes lançam sua sombra, et cetera, — ajuntou Berman. E voltou ao tom sério, ao sentar-se. — Diga-me uma coisa, espero que você esteja de volta ao escritório amanhã. Todos os dias agora são importantes. Temos competição da parte de Barrows. Ele é do tipo antigo e as pessoas estão acostumadas com ele. Como um homem me disse hoje "Pelo menos sabemos quais são os seus defeitos..." isto é, refiro-me a Barrows. Eles andam meio desconfiados com esse negócio de limpar o Estado.

— Só a máquina.

— É o que eu quero dizer. — Voltou-se, pesadão, para Laura. — Mas aqui estamos nós, falando de negócios diante da damazinha!

Ela trocou um olhar com Chris e mordeu o lábio inferior. O marido riu-se.

— Tome cuidado, Joe, você está insultando minha mulher!

Berman alternou os olhos entre um e outro.

— Não pretendo fazê-lo... Eu quero...

— Chris está mexendo comigo, — atalhou Laura calmamente, — não ligue.

Franziu extravagantemente o cenho para o marido e este voltou a rir.

— Estou apenas brincando. Conto tudo a ela, Joe, e você sabe disso. Ela me tem dado alguns dos melhores conselhos que já recebi. O fato é que era ela, provavelmente, quem devia candidatar-se a governador, só que eu quero o emprego para mim!

— Eu não seria governador nem que me pagassem, — replicou Laura, com tranqüilidade. — Sinto-me demasiado feliz como estou.

O telefone tilintou e ela ergueu-se.

— Desculpem-me, por favor, estou esperando um chamado do laboratório.

Ergueu-se, personificação da graça e, ao passar pelo marido, estendeu-lhe a mão. Ele segurou-a e beijou-lhe a palma fragrante.

— Vai voltar?

— Talvez não. Vocês dois hão de querer conversar e preciso examinar minhas notas hoje à noite.

— Mais tarde, então.

— Sim.

Ela saiu da sala e Berman suspirou.

— Que primeira dama será ela na Casa Branca algum dia!

— É.

A voz de Chris soou distraída. Ele levantou-se de repente.

— Vamos tomar café no escritório. Tenho uma coisa para contar-lhe.

— E foi assim que a coisa aconteceu, — rematou ele.

Uma brasa moribunda despencou entre as cinzas. Chris acendera o fogo ao entrar no escritório, pois o ar ainda estava frio naquele início de primavera. Em seguida, fizera sinal a Berman que se sentasse na poltrona defronte da sua. Enquanto as chamas envolviam a madeira seca de macieira, principiara, de repente.

— Tenho uma coisa para contar-lhe antes de conversarmos sobre o dia de amanhã. Rigorosamente falando, trata-se de assunto particular meu, só que agora nada mais parece ser meu assunto particular. Aparentemente, não posso apanhar um resfriado sem que isso se transforme numa calamidade pública. Não sei como começar, senão pelo começo, e contar tudo direitinho.

E principiou no dia em que desembarcara na Coréia e continuou até aquela manhã e a chegada da carta. A chama morreu num leito de brasas e as brasas converteram-se em cinza. Mexendo-se de vez em quando na poltrona, Berman não dissera uma palavra enquanto ele contara. Em seguida, falou:

— Como você diz, não é assunto de ninguém, mas agora é assunto de toda a gente. Muitos rapazes fizeram a mesma coisa e isso não tem importância. Deve haver também uma quantidade desses garotos mestiços. Eu nunca havia pensado nisso, mas deve haver. O fato é que...

Interrompeu-se e cocou o queixo.

— Bem, isso não é só aqui ou ali. Eu mesmo estive na Alemanha... Sua mulher já sabe?

— Ainda não.

— Vai contar a ela?

— Eu... Sim, acho que sim. Não sei como nem quando.

— Precisa contar?

Ele ergueu os olhos severos para Berman.

— Não preciso? Entreolharam-se ambos. Berman falou:

— Não vejo por quê. O fato é que seria melhor se não contasse. As mulheres fazem um carnaval com essas coisas. Elas não compreendem que um homem possa... Bom, você sabe como são as mulheres. Todas iguais, quando bem examinadas, e quanto menos souberem, tanto melhor. Se você não responder à carta, o garoto pensará que não a recebeu. Esse é o meu conselho. Rasgue a carta e esqueça-a. Você não pretendia ter um filho, pretendia?

— É claro que não. Quando o vi mal senti que era meu.

— Talvez não fosse.

— Era, era meu.

— Como sabe?

— Ela era virgem.

— Temporariamente!

— Enquanto estive lá, fui o único.

Entre ambos desceu o silêncio. Os dois tinham os olhos cravados no lume. Berman, por fim, suspirou.

— Bem, tudo o que posso dizer é isto: pelo amor de Deus, não fale no assunto! Não teria importância, se você fosse um cidadão comum. Talvez não tivesse muita importância se fosse um governador comum. Mas você conhece os sonhos do partido. Você tem estofo de presidente. É claro que terá de percorrer um longo caminho... Mais um ano, depois governador pelo menos por um mandato. Após isso... Bem, o céu é o limite, e você sabe onde está o céu. O nosso povo compraz-se na sujeira e no escândalo, mas quando escolhe um presidente quer um homem que tenha uma auréola. Mesmo que saiba que ele não a merece, quer poder conferi-la. Fique quieto, é o que digo. Se a história se propalar, você terá de enfrentá-la, mas será alguma coisa em que o povo não quererá acreditar, e por isso não acreditará enquanto você não a confirmar. E está claro que o outro lado também não pode sabê-la.

Ele permaneceu em silêncio por um minuto e, em seguida, falou, abaixando a voz:

— Diga-me... eu sempre quis saber... essas mulheres asiáticas são diferentes das...

Christopher ergueu-se, interrompendo-o com um gesto furioso, odiando repentinamente aquele homem. Depois, com uma sensação de náusea, ocorreu-lhe que não devia hostilizar nem mesmo Berman. O homem era necessário e, ofendido, poderia agora retaliar. Engoliu a resposta enojada e voltou a sentar-se.

—Vamos conversar sobre o dia de amanhã. Pensarei no seu conselho. Estou quase acreditando que você tem razão...

 

À noite, sozinho na cama, conheceu que Joe Berman não tinha razão. A pálida lua de primavera brilhava no quarto e, insone, viu os quentes tons alaranjados e castanhos do quarto dissolverem-se numa palidez fantasmagórica. Quando subira, já passava de meia-noite e Laura adormecera. Abrira a porta entre os quartos de ambos e vira-a na cama, os longos cabelos espalhados sobre o travesseiro, a mão debaixo do rosto.

— Querida.

Chamou-a com um sussurro, mas ela não despertou. Entre aliviado e ansioso, tornara a fechar a porta e fora para a sua cama. Durante uma hora, se tanto, dormira. Depois, despertara a súbitas, como se tivesse ouvido um grito. Pôs-se à escuta, a imaginar se havia sido ela. Mas a casa estava em silêncio, exceto o ranger das antigas vigas de madeira. Ele costumava pensar, quando era menino e dormia naquele mesmo quarto, que um fantasma caminhava durante a noite. Agora, sabia que era apenas a própria casa, que ia ficando velha e estalava no frio da noite. Sentiu-se intolerável, inexplicavelmente só. Trouxera a pasta consigo, e ela lá estava, no chão, ao lado da cama. Era absurdo achar que ela precisava ficar perto dele. Precisava fazer qualquer coisa com a carta, lê-la completamente e depois destruí-la. Mas não naquela noite! Já tinha para suportar tudo o que podia suportar sozinho.

Nisto, tão subitamente quanto despertara, compreendeu que não poderia sequer decidir sozinho o que deveria fazer. A noite aumentava monstruosamente o fardo que pesava sobre ele. Podia enganar os outros, mas não tinha o direito de enganar a esposa. E vamos que o tentasse, e que, a despeito de todos os seus esforços, Laura acabasse descobrindo? Nunca deveria ter contado a Berman, político matreiro. Que pensaria ela do fato de haver ele contado a alguém antes de lhe haver contado a ela? Como poderia ele responder à eterna pergunta dela? "Por quê?" Ouvia-lhe a pergunta: "Por que não me contou?" Por que não contara a ela? Como lhe fora possível revelar seu segredo a Joe Berman, que o infestaria com a sórdida inverdade, e não contara a Laura, sua melhor amiga e sua esposa?

— É intolerável — murmurou.

Seria ele, então, demasiado covarde para contar à esposa a verdade a respeito de si mesmo?

— Talvez o seja, — murmurou.

Mesmo assim hesitava. Tinha certeza do amor dela, certeza da compreensão dela — não, não tinha, não tinha certeza da compreensão de mulher alguma, ainda que a mulher fosse Laura. Não toleraria a piedade e, naquele momento, não era sequer o amor que desejava. Desejava transmitir a ela, de certo modo, que o que fizera não fora o que realmente quisera fazer — não, isto é, apenas desejara sentir-se perto de outro ser humano. Naqueles dias, no indizível isolamento da guerra, separado de tudo o que era normal e bom, sentia necessidade de calor humano, de algo mais profundo que a grosseira camaradagem de homens. Queria ser salvo do risco de tornar-se o que eles eram. De certo modo, Soonya salvara-o. Conseguiria ele fazer que Laura o compreendesse? Não, não, não seria isso, pura e simplesmente, pedir compaixão? Talvez fosse melhor dizer de chofre: "Fui como os outros rapazes. Peguei uma garota". Só que não acreditava que tivesse sido como os outros rapazes!

Na breve escuridão, entre o momento em que a lua se escondeu e rompeu a aurora, conheceu o que lhe cumpria fazer. Quando as primeiras e tênues cintilações douradas no horizonte anunciaram o dia, levantou-se da cama. Foi para o banheiro, escovou os dentes, barbeou-se, tomou um banho de chuveiro e penteou o cabelo. Em seguida, envolvendo-se no roupão, abriu a porta do quarto dela. Laura estava dormindo, o rosto indistinto à fraca luz da manhã. Como dormia tranqüila, com o respirar uniforme de uma criança, o hálito sadio de sempre! Os longos cílios repousavam sobre as faces, a mão direita jazia abandonada sobre as cobertas. Ele inclinou-se sobre ela e beijou os lábios suavemente cerrados. Ela estremeceu, abriu os olhos, sorriu e, sem uma palavra, ergueu a coberta de seda. Ele enfiou-se na cama dela e estendeu-se ao seu lado.

— Tentei ficar acordada ontem à noite até você chegar, — murmurou com voz de criança.

—Ainda bem que não ficou. Subi muito tarde.

Ela voltou-se para ele, adaptando o corpo ao corpo dele, num convite que ele compreendeu. Era sempre o primeiro impulso dela após a desavença, o convite em que anunciava a renovação do seu amor fundamental. Esse primeiro convite fazia-o ela sem palavras, o mais vinha depois. Mas ele agora se via compelido a recusá-la, embora nunca a tivesse recusado, pois enquanto não lhe houvesse contado o que precisava contar-lhe, o amor seria um sacrilégio. Mas ser-lhe-ia favorável o convite? Não seria maior o choque porque, estando ela pronta para ele, ele a recusava?

Chris sentiu nos lábios a ponta do dedo dela.

— Tão quieto! — murmurou Laura.

Ele agarrou-lhe a mão e manteve-a de encontro ao peito.

— Meu amor, preciso contar-lhe uma coisa.

E contou-lhe, simplesmente, o que acontecera na véspera.

— Enquanto eu estava tomando café, Greta trouxe a correspondência. Havia uma carta para mim, da Coréia... uma carta que nunca esperei receber.

E continuou a falar conciso e terso, a vista posta no teto. A aurora invadia o quarto. Ele sentiu que o corpo dela se modificava. Ela não se afastou, pelo menos a princípio, mas permaneceu numa intensa imobilidade. Quando o sol surgiu de viés, através dos sicômoros que principiavam a brotar na rua, do outro lado das janelas, ele chegou ao fim. Ouviu-a suspirar. Em seguida, ela sentou-se e arrumou os longos cabelos em torno da cabeça.

— Pelo menos eu lhe contei, — disse ele.

— É claro que devia contar-me.

Continuou sentada, refletindo, o olhar preso às janelas agora iluminadas pela luz do sol. Ele viu-lhe o perfil, grave e pensativo, e esperou.

— Eu preferiria que você não tivesse contado a Berman, — disse ela.

— Mais cedo ou mais tarde ele teria de saber. Eu talvez devesse ter esperado até contar a você. Mas se ele me tivesse dito logo, ontem à noite, que não adiantava prosseguir na candidatura, eu teria de contar isso também a você.

Ela pareceu não ouvir a última observação. Continuou meditativa, a voz muito distante.

— E prefiro que você não conte a ele que eu sei.

— Não contarei, — prometeu Chris.

— Porque, — prosseguiu ela, — não posso suportar a idéia de falar nisso com ele, nem de ouvi-lo falar sobre isso. Ou de ter entre nós o silêncio das coisas não ditas.

— Eu sei. Agora, na realidade, é entre você e mim. Ela voltou-se, rápida.

— O que quer dizer: agora é entre você e mim? Sempre foi, não foi? Só por que eu não sabia...

— Eu deveria ter-lhe contado há muito tempo. Isto é, a respeito da moça. Mas aquilo parecia tão morto, tão esquecido!

— Esquecido, talvez, mas morto não. Há uma criança viva.

— Você quer ler a carta? Ela pensou nisso também.

— Não, — disse, afinal. — Pelo menos, por enquanto. Neste momento a criança não parece importante. É... a mulher.

— Oh, Laura... Não, ela não é...

Ele puxou-a para junto de si, mas ela desvencilhou-se.

— Não, por favor, Chris. Deixe-me pensar. Ele atirou as cobertas para um lado.

— Vou deixá-la a sós, — disse, delicadamente. Desejava que ela protestasse, mas ela não protestou.

Laura seguiu-o com os olhos, grandes e reflexivos, e, quando ele se deteve à porta, incapaz de afastar-se dela naquela situação, tentou sorrir. Ele voltou correndo.

— Querida, querida, todos estes anos que estivemos casados... eles contam, não contam?

—Oh, sim — concordou ela. — Nada poderá destruí-los.

g só que eu... A questão, naturalmente, é que...

Ele sentou-se na borda da cama, combatendo o impulso de estreitá-la entre os braços.

— Qual é a questão?

— Não sei bem. Talvez não possa saber enquanto não tiver a resposta. Alguém disse isso... Quem foi?

— Gertrude Stein, ao morrer.

— Oh, sim, como pude esquecer? Estas últimas palavras tão maravilhosas! "Qual é a resposta?" E como ninguém falasse, perguntou: "Então, qual é a pergunta?"

— Pare de falar, Laura, você está só perdendo tempo.

— Eu sei e preciso de tempo.

— Ambos precisamos. Vivamos nosso dia de hoje. Ambos pensaremos. Quando nos encontrarmos, trocaremos idéias.

Ela considerou-o com os olhos brilhantes e vazios e acenou afirmativamente com a cabeça, como se não tivesse ouvido. Ele imprimiu severidade à própria voz.

— Laura, você não deve esquecer que a amo e só amo a você. Não permitirei que se separe de mim. Se me deixar, irei simplesmente atrás de você. Aonde quer que vá, eu a encontrarei e lá ficarei com você, se não puder trazê-la de volta. Enquanto eu viver você não me escapará, porque estarei lá. Está-me ouvindo?

Ela fez que sim com a cabeça, mas ele recusou o gesto.

— Responda-me, — insistiu. — Está-me ouvindo?

— Estou, — disse ela, — estou ouvindo, Chris.

— Espero que sua esposa faça a campanha com você, — disse Henry Allen.

— Não posso dizer, — replicou ele.

Ele acabara de chegar ao escritório após o desjejum solitário — pois Laura mandara recado por Greta para que ele não a esperasse — quando Berman entrou, desmanchando na explicação o cabelo eriçado, a fim de anunciar que o homem mais rico da cidade, Henry Allen, banqueiro de velha cepa quacre, se achava na sala da frente, Perguntando se o Sr. Winters estava.

— Você está? — inquirira Berman.

— É claro que estou, — replicou ele.

Agora, aqui, numa de suas poltronas, o velho se instalou à sua frente. Toda a gente conhecia a figura alta, curvada, chefe de uma família que vivia com notória simplicidade, numa das mais antigas e maiores mansões do município. Durante quase uma hora conversaram, ele falando apenas para responder às perguntas diretas de Henry Allen.

— Gosto do seu programa — concluiu Henry Allen. — Gosto particularmente da ousadia das reformas fiscais e orçamentárias. São muito necessárias. — Falava com vagar e precisão', com a espécie de voz que se casava a primor com o seu todo cinzento e sem cor. — Mas sendo essas as suas idéias, seria de grande valia que sua boa esposa estivesse ao seu lado. Disseram-me que ela se interessa por oceanografia.

— É verdade, — confirmou Christopher. — É a segunda pessoa, em ordem de importância no Instituto em Nova York.

— Então fica fora de casa muito tempo?

— Pelo contrário. Está escrevendo um livro sobre as suas pesquisas, praticamente concluídas, de modo que só se ausenta ocasionalmente... Ontem, por exemplo... para ir a uma conferência, ou averiguar um ponto qualquer.

— Nesse caso, está livre para ajudá-lo?

— Tenho a certeza de que fará tudo o que puder para ajudar-me.

— Vocês têm filhos?

A pergunta casual, a que outrora ele teria respondido tão facilmente com a negativa, de súbito lhe pareceu impossível de responder. Hesitou demais e, a seguir, replicou demasiado abruptamente.

— Não temos filhos.

— É pena, — disse Henry Allen. — Creio que sempre ajuda a um homem público ter filhos. Eu mesmo tenho seis, todos homens. Não que tenha pensado alguma vez em ingressar na vida pública mas, como banqueiro, sempre me foi útil estar rodeado de filhos. Há nisso um elemento de estabilidade.

De fato, é uma pena não termos filhos, — assentiu ele. Henry Allen levantou-se.

— Bem, vejo que estive aqui uma hora. Não tomarei mais o seu tempo. Eu gostaria de declarar-me a seu favor e oferecer-lhe meus recursos.

Christopher levantou-se, por seu turno, com as mãos estendidas.

— Não posso agradecer-lhe o suficiente, Sr. Allen. Se consentir em fazer parte do meu grupo de conselheiros, eu ficaria contentíssimo.

— Na minha idade, — disse Henry Allen com um pálido sorriso, — há pouca coisa que se pode fazer além de dar conselhos, embora eu tenha muito prazer em contribuir.

— O diretor da minha campanha, Joe Berman, irá procurá-lo e lhe transmitirá meus calorosos agradecimentos.

Ele apertou a mão fina, seca e velha e fechou a porta depois que o visitante se foi. Mas esta se abriu imediatamente para dar entrada a Berman.

— O que foi que ele disse? Vai ajudar?

— Vai. Você irá vê-lo.

— Já?

— Hoje não, nem amanhã, — disse Chris com firmeza. — É preciso esperar uns dias. Deixe-me só por alguns minutos, sim, Joe?

Berman olhou preocupado para ele e seus olhos se estreitaram.

— Você não contou a ela, contou? Não, não me diga. Não quero saber. Farei que ninguém entre aqui.

Sua voz era um murmúrio quando ele saiu e fechou a porta.

Na sala tranqüila, Chris ficou sentado atrás da escrivaninha, a sós por fim, a cabeça inclinada, os maxilares cerrados, as mãos apertadas sobre o bloco de papel. Era-lhe preciso resolver aquilo. Enquanto não soubesse o que devia fazer em relação ao menino — não o que desejava fazer, mas o que devia fazer — não poderia continuar a campanha. Seria injusto confiar a decisão à vontade ou ao desejo de Laura. A ele competia decidir e deixar que ela o seguisse ou se negasse a segui-lo. Ela podia decidir o que faria mas não o que ele deveria fazer. Resolutamente, abriu a pasta, revolveu os papéis e encontrou o envelope cinzento. Agora, procurando a folha fina dentro do envelope, encontrou o que ainda não vira, uma fotografiazinha. O rosto do menino olhava para ele, um rosto magro e jovem, de pescoço demasiado magro, de orelhas demasiado grandes. No entanto, nele reconheceu algum fantasma de si mesmo, em tudo, exceto nos olhos. Os olhos eram asiáticos.

Sentiu os próprios olhos subitamente quentes e compreendeu que neles ardiam lágrimas. Seu filho! Sonhara com um filho como todo homem sonha, mas não com um filho como aquele — não com um rosto como aquele! Comprimiu-se-lhe a garganta e seu coração gritou contra aquele filho, nascido de uma mulher estrangeira.

— Laura, — murmurou, e alcançou o telefone.

Mandara instalar uma linha direta entre sua mesa e a dela na biblioteca, em casa, onde ela trabalhava, e discou, esperando, enquanto o coração lhe batia, descompassado.

— É você, Chris?

— Sim, Laura, quero contar-lhe...

Ele queria contar-lhe... o quê? Percebeu que não conseguia falar. Faltou-lhe a voz, sentiu-se mal, sem fôlego.

— Chris! — gritou ela.

Como ele não respondesse, ela voltou a gritar:

— Você está bem, Chris? Quer que eu vá aí?

Ele reuniu as próprias energias. Não, não queria a piedade dela.

— Um minutinho, — disse, com voz alquebrada. Limpou a garganta. — Não sei o que me aconteceu. De repente não consegui... Eu precisava falar com você, querida. Há um retrato aqui.

— Um retrato?

— Que não vi ontem à noite. Estou sozinho neste momento. Achei que devia ler a carta. Quando ia tirá-la, uma fotografia pequenininha... acho que ficou presa no fundo do envelope...

— Uma fotografia da... da mulher?

— Não, não, do menino! Como que... me desnorteou.

Voltou o silêncio e ele esperou, por um tempo que lhe pareceu interminável. Era sua vez agora de perguntar se ela estava bem, mas não perguntou. Esperou até que, por fim, a voz dela lhe chegou aos ouvidos.

—Vou indo, Chris. Você se encontra comigo no saguão?

Vamos a algum lugar. À praia, talvez? Levarei o carro. Você não pode mandar o pessoal embora?

— Vou mandar, — disse ele.

E assim o fizera. Inflexível, anunciou a Berman que não voltaria naquele dia, declarou ao pessoal do escritório que surgira uma circunstância que ele não poderia explicar, sim, uma crise, chamassem-lhe assim — atirava as palavras por cima do ombro, para a secretária que o acompanhou até o elevador.

— Mas, Sr. Winters...

— Amanhã, amanhã, — gritou, em resposta, e saltou para o elevador.

Examinou o bolso. Sim, lá estavam a carta e a fotografia. Queria-os ali, pois era chegado o momento de examiná-las a ambas, em companhia de Laura. Por baixo de tudo aquilo ele estava, lentamente, tomando a sua decisão, ou sua decisão começava a tomar forma sozinha. Ele precisava ir à Coréia e ver pessoalmente o menino, verificar como estava passando e por que era tão magro. Soonya não tinha importância alguma! Laura devia compreender simplesmente que era pelo menino que ele tinha responsabilidade. Sim, Laura, sou responsável por ele. Eu devia ter sabido. Não devia ter assumido o risco. Assumo-o agora, tarde, mas não tarde demais. Continuava a repetir essas palavras a ela, redizendo-as em seu íntimo enquanto esperava, primeiro no saguão, depois, finalmente impaciente, lá fora, na rua, ao vento frio da primavera que principiava. O dia estava lindo, mas ele ainda não vira, até aquele momento, o céu azul de brancas nuvens esgarçadas, ainda não lhe sentira o ar puro.

Nisto, viu-a. Ela viera no seu carrinho, o que ele lhe dera como presente de aniversário, verde-escuro como um engaste para o tom vermelho de ouro do seu cabelo. Trajava um costume cinzento e calçava luvas, mas viera sem chapéu, com os cabelos enrolados e os aneizinhos soltos a lhe esvoaçarem em torno do rosto. Estava pálida e ele supôs que ela tivesse estado chorando. Mas não podia ter certeza, pois ela se mostrava serena, e seus olhos arrostaram os dele com destemor. Ele entrou no carro.

— Quer que eu dirija?

— Sim, por favor, — disse, para surpresa do marido, pois ela gostava de dirigir.

Agora, cedendo, instalou-se no assento ao lado dele e, assim, lado a lado, atravessaram as ruas da cidade, chegaram ao bulevar e dali passaram à estrada que conduzia ao mar. Ambos permaneciam calados. Por duas ou três vezes ele se voltou e sorriu para ela. Ela retribuiu-lhe o sorriso e ele sentiu-se mais aliviado. Ela também estivera pensando e talvez, pensando sozinhos, houvessem chegado mais próximos de uma compreensão e de um acordo do que teria sido possível se tivessem continuado em companhia um do outro.

— Quero que você saiba, — disse ele, de repente, quando já estavam em pleno campo, — quero que você saiba que, seja o que for que eu decidir, você tem plena liberdade para decidir o que vai fazer.

— Não decidirei, — replicou ela. — Até esse ponto, pelo menos, já cheguei. Esta terá de ser uma decisão para todos nós... Nós quatro... O menino e a mãe dele, você e eu. Terá de ser justa para todos.

— Você primeiro, — disse ele.

— Não há primeiros, — retrucou ela.

De novo o silêncio, até que ela falou, percorridos alguns quilômetros.

— Você trouxe o retrato? Posso vê-lo? Ele acenou afirmativamente com a cabeça.

— Está no meu bolso. Tire-o de lá, se quiser.

E ele sentiu que a mão dela lhe apalpava o bolso. Ela encontrou a fotografia e ele percebeu que ela a estudava. Mas não poderia adivinhar-lhe os pensamentos.

— Ele se parece terrivelmente com você, — disse ela por fim. — Eu o teria conhecido em qualquer lugar. Se o tivesse visto nas ruas da Coréia, e não tivesse o menor indício, ficaria sabendo. Tudo, exceto os olhos. São como os... dela?

"Não me lembro" ia ele dizer, mas não disse. Era mister que não houvesse mentiras entre eles, disse entre si, de espécie alguma!

— Os olhos dela até que eram bonitos, escuros, naturalmente. Todos os coreanos têm olhos escuros.

.— Por que será, — acudiu ela, tentando mostrar-se casual, — que são todos da mesma cor... e não como os nossos?

— Imagino que seja por terem vivido tanto tempo juntos, sem misturas, no mesmo pedaço de terra. Dêem-nos os quatro mil anos que eles tiveram, neste pedaço que chamamos nosso, e também seremos todos da mesma cor.

— Naturalmente. Eu não havia pensado nisso.

— Quer guardar o retrato? — sugeriu ele, passado um momento.

— Ficarei com ele mais um pouco, — disse ela.

Novamente o silêncio. Com o canto dos olhos, ele a viu estudando a fotografia. Volvidos alguns minutos, Laura tornou a colocá-la em seu bolso, sem pronunciar uma palavra. Ele já não podia suportar-lhe o silêncio — aqueles silêncios que se estendiam pelo tempo até que agora, no horizonte, ele pôde distinguir a fímbria do oceano. Um cheiro de sal e de brejo difundia-se pelo ar.

— Vamos à nossa praia? — perguntou Chris.

A praia deles era um semicírculo de areia, abrigado pelas dunas, em torno de uma enseadazinha. Naquela época do ano não haveria ali ninguém. Poderiam estender-se na areia, descansar e deixar-se ficar ao sol do meio-dia.

— Você trouxe alguma coisa para se comer? — perguntou o marido.

— Imaginei que parássemos para almoçar na Oyster House, e que depois conversaríamos, — disse Laura.

— Certo, — concordou ele.

Esterçou o carro para entrar na aldeia de pescadores e deteve-se diante da estalagem que ela mencionara. Apearam do automóvel e encaminharam-se, lado a lado, para a estalagem, não de mãos dadas como de costume, mas ela com a mão enfiada na dobra do cotovelo dele. Não pareciam exatamente estranhos mas, de certo modo, eram estranhos, e ambos o sabiam, não estranhos zangados, porém duas criaturas que precisavam reaproximar-se e que, sabendo-o desejável e necessário e, portanto, inevitável, sabiam ser pacientes.

— Chris, existe uma diferença entre nós, — disse ela.

Estavam agora na praia da enseada, enquanto o mar, purpurino e negro, atirava as ondas à areia e as brancas gaivotas voejavam em círculos à luz do sol. Ele falara durante quase todo o tempo, desde que haviam saído da estalagem, a princípio com dificuldade, mas agora facilmente, ou assim pensava ele. E ela principiara a compreender, ou assim pensava ele. Deitada na areia, com a cabeça recostada no paletó dele, que lhe servia de travesseiro, ela voltou-se e encostou a cabeça no cotovelo. Re-brilhava o sol em seus olhos escuros e cintilava-lhe entre os longos cílios de ouro velho, encurvados para cima. Debaixo da alvura de sua pele, ele distinguiu as sombras de sardas infantis, que nunca vira antes.

— Que diferença? — perguntou.

— Você só fala no menino. Eu só penso na mulher.

— Ela não tem importância.

— Para mim, tem. Muitíssima. Quero conhecê-la.

— Mas por quê? Eu a esqueci.

— Ah, conheço-o melhor do que isso! Se você fosse um imbecil, um sujeito estúpido e comum, eu acreditaria. Mas você é Chris, o homem que amo e respeito. — Tornou a virar de costas e fitou os olhos no céu. — Não me foi fácil encontrá-lo, não! Eu estava tão decidida a não cometer o erro que minha mãe cometeu! Dela herdei o cérebro que tenho... Não foi de meu pai! Eu a vi dissolver-se numa velhice tão desolada, sem companhia! Eu costumava ler histórias a respeito de Madame Curie e desejar que minha mãe tivesse tido a felicidade que ela teve, casada com um homem que soubesse o que ela dizia. Jurei que nunca me casaria com um homem que não soubesse o que eu dizia. Foi por isso que o sepultei sob a avalancha do meu trabalho quando você voltou da Coréia. E você não se aborreceu. Eu o teria percebido.

— É claro que não me aborreci. Como poderia aborrecer-me? Você me contava coisas que eu não sabia, em que eu nunca pensara e, ao mesmo tempo, parecia um... uni... um... quadro de Romney, porém moderno.

— Minha mãe costumava dizer que os homens não gostam de mulheres inteligentes. Ela desculpava meu pai, mas eu o detestava... Chris!

— Diga!

— Você teria casado comigo se eu fosse apenas bonita?

— Não.

— Ou se eu não fosse nada bonita? Ele hesitou, antes de falar.

— Não consigo imaginar uma coisa dessas.

— O que foi que o fez querer casar comigo?

— Apaixonei-me por você provisoriamente, no dia em que a vi como o belo e alto modelo, que trajava um costume branco e trazia um chapelão branco na cabeça.

— E se eu não fosse... inteligente?

— Eu a teria esquecido. Há muita moça bonita no mundo! Não, não, querida, se isto lhe interessa, apesar de todo o tempo que já passou, o que me seduziu foi o fato fascinante de você ser modelo às terças e quintas-feiras e trabalhar o resto da semana nos seus trecos oceanográficos...

— Pelos quais, até então, você nunca se havia interessado...

— Isso não importa. Você também não se havia interessado por política até então. Abrimos porta um para o outro. Isto é empolgante. E torna-se cada dia mais. Não quero uma esposa que apenas saiba como usar vestidos. E visto que estamos sendo sinceros aqui, em nossa intimidade, o fato é que gosto de uma esposa que saiba como não usar coisa alguma... e quando. E gosto de uma esposa que no meio do amor saiba usar seu magnífico cérebro para compreender, sem precisão de palavras, quão necessária é a ternura, a compreensão, a partilha.

Ele debruçou-se sobre ela e contemplou-lhe o rosto, com as mãos no cabelo dela.

— Será possível que você não saiba o quanto a amo? Ela ergueu para ele dois olhos sinceros e diretos.

— Como foi, então, que você pôde amar Soonya?

As mãos dele caíram, mas ela agarrou-as e conservou-as junto ao seio.

— Você precisa explicar-me. Quero saber, não porque me interesse... pois me interessa tanto que eu talvez tenha o coração despedaçado... Mas não porque me interesse. Quero saber... Preciso saber o que foi que você nunca me deu. Oh, não é isso o que quero dizer... Não foi essa minha intenção... Tentarei outra vez.

Colocou de lado as mãos dele, sentou-se e inclinou a testa sobre os joelhos dobrados. Refletiu durante um longo momento e, a seguir, ergueu a cabeça.

— Havia qualquer coisa nela que o atraiu, e que eu não tenho. O que era? Eu talvez o tenha e não saiba. Que foi o que ela lhe deu e que eu não posso dar-lhe? Não, não me interprete mal... Não é ciúme. É humildade. Eu perguntaria a ela, se pudesse. Perguntaria humildemente a ela.

Interrompeu-se e considerou-o, enquanto a surpresa lhe tomava conta do olhar.

— Se eu pudesse? Mas é claro que posso! Não há motivo para que eu não vá lá e não pergunte a ela!

— Ora, que bobagem, Laura!

O grito impaciente escapou-lhe e ele reportou-se.

— Ouça, querida, ela nem entenderia o que você está falando. Na realidade nem eu mesmo entendo! Além disso, quem deve ir sou eu. Sou eu o culpado, não você! Quero averiguar a situação do menino. Se ele não estiver recebendo uma educação, colocá-lo-ei num internato.

— Sem consultá-la? Mas se ele é filho dela! Ela é a mãe!

— Você não a está defendendo, está? Seria gozado!

— Pode ser gozado para você, mas não para mim. Você não vê o menino desde que ele tinha umas poucas semanas de idade, e agora fala em botá-lo num internato! Ele é tudo o que ela tem.

— Não estou muito certo disso.

— O que é que você quer dizer?

—Provavelmente houve outros homens.

— E você diz isso... de uma moça a quem você...

— Santo Deus, Laura, a maré está subindo, ficaremos presos!

A maré efetivamente mudara, e as ondas invadiam a praia estreita. Apanharam os paletós e, de mãos dadas, correndo, deram a volta do rochedo que, dali a poucos minutos, os teria insulado. Ofegantes, mas sempre de mãos dadas, deixaram-se cair na praia, mais acima. Umas poucas pessoas passeavam à distância e, aos seus pés, os maçaricos corriam para o oceano e dele fugiam à maneira que as ondas, rugindo, se adiantavam.

— Onde estávamos? — arquejou Chris.

— Em parte alguma, — retrucou ela. — Discutindo sobre a ida à Coréia... Você para ver o menino... Está claro que o verei também, mas...

Ele largou-lhe a mão para acender o cachimbo.

— Laura, você está decidida a ir comigo? Ela olhou para ele, súplice.

— Não, não se você disser que não devo. Mas eu gostaria de ir sozinha.

— Por quê?

— Porque você não responde à minha pergunta.

— Não sei como responder. Se não basta dizer que eu era um garoto solitário, que a Coréia, para mim, era o inferno, e que me agarrei com unhas e dentes ao primeiro conforto que encontrei. Sim, eu sabia que estávamos casados, mas não sabia se viveria o suficiente para tornar a vê-la. Aliás, não sabia sequer o que era realmente o amor... Nem o que pode ser... Um menino não pode saber isso e, durante o tempo todo, os sentidos não cessam de assediá-lo.

— Não acredito que você fosse jamais um menino comum, como os outros. Durante todo o tempo em que você esteve na Coréia pensei em você, imaginando se você era o que eu sonhava que fosse.

— Você nunca me participou que sonhava.

— É claro que não. Eu não sabia se isso, um dia, chegaria a ser algo mais que um sonho. E se você fosse morto? Mas não fiz... o que você fez.

Ele suspirou.

— Bem, querida, não quero recorrer ao velho chavão de que os homens e as mulheres e, portanto, os rapazes e as moças, não são iguais no que diz respeito ao sexo, pois possuo todas as provas em contrário. Você é minha amante perfeita.

— Diferente dela?

— Sim.

— Como?

— Infinitamente diferente, infinitamente melhor, infinitamente satisfatória.

— Mas como?

Ele fez um gesto desacorçoado com as mãos.

— Isto não é próprio de você, Laura. Você nunca me põe contra a parede.

Ela concordou, surpreendentemente, instantaneamente.

— Não é próprio de mim e não é justo. Por isso irei à Coréia, sozinha. Darei um jeito de colocar o menino num internato. Ele é seu filho e precisa ter tudo o de que necessita. Quanto a ela, preciso ver. Talvez nada!

— Laura, isto é uma briga?

Ele fizera a pergunta como uma exigência. Ela considerou-o sem cólera, mas com reportada determinação.

— Quero ir, — repetiu. — Quero ir logo... e só.

 

Ela colou o rosto à janela do jato para não perder a última visão de Chris, na plataforma superior do aeroporto, agitando o cachecol marrom. Devia ter subido a escada de quatro em quatro degraus para chegar àquele ponto, do qual podia vê-la decolar. Nunca passara ela três dias como aqueles, tão perto e, no entanto, tão longe dele. Sem a menor dúvida do seu amor, sabendo que nada poderia separá-los, invencivelmente certos da lealdade um do outro, não tinham sido capazes, entretanto, de comunicar-se entre si. Na noite anterior ela discutira o assunto consigo mesma. Devia ou não devia ir ao quarto dele se ele não fosse ao quarto dela? Por quanto tempo ficaria fora? E o fato de passarem separados a última noite assumiria, acaso, algum significado monstruoso durante os dias em que ela estaria longe, sem poder regressar? Pois dizia consigo mesma que aquilo seria apenas uma questão de dias.

— No entanto, só me sentirei aliviado quando você estiver de volta, — dissera ele. — Considere meus sentimentos, — acrescentara. — Conceda-me esse ponto, visto que lhe concedi permissão para ir sozinha, deixando-me sabe Deus entregue ao quê. Não comerei nem dormirei enquanto você não estiver em casa. É o mesmo que me cortar pela metade. Nem mesmo sei como está agora a Coréia.

Flutuando sobre a Terra, ela passou em revista os últimos dias. Vivera-os num estado de absoluta insensibilidade. A casa fora entregue a Greta, e ela se concentrara no trabalho, cônscia de que o trabalho era uma fuga. Assim fugiam os homens também, atirando-se ao trabalho. É surpreendente a soma de sofrimento que se pode suportar quando há trabalho para fazer. Concluíra o capítulo sobre os benefícios que as plantas e animais oceânicos podem proporcionar, sabidamente, ao gênero humano: a enguia elétrica, por exemplo, que ministra um antídoto para o gás nervoso; os ouriços-do-mar, os monstrinhos delicados que planejam a atividade das células brancas do sangue no serviço de proteção contra a infecção; a medusa portuguesa, que ajuda, através de suas ferroadas, a explicar as alergias. Sua mente disciplinada encontrara o próprio alívio, um alívio abençoado, pois, sem ele, profundamente emotiva, ele não teria podido tolerar a própria capacidade de sentir.

O grande avião a jato estremeceu sob a força dos seus motores e ergueu-se ainda mais alto no espaço. Ela recostou-se na poltrona e cerrou os olhos. Dirigia-se a um mundo novo para ela. Estava bem familiarizada com a Europa, mas a Ásia lhe era estranha. Nunca sentira curiosidade pela Coréia, nem sequer quando Chris voltara para casa, tão jubilosa se sentira ao ver terminada a separação. E, naturalmente, nem sequer sonhara que...

Abriu os olhos quando o jato entrou a voar em linha reta. Nunca em a sua vida se sentira tão só. Fora prudente, afinal de contas, insistir em que fosse ela a que devia enfrentar o passado? Ter-lhe-ia o ciúme tornado insuportável a idéia de um encontro de Chris e Soonya? Talvez, talvez, e ela precisava saber por si mesma exatamente quem era Soonya, verificar por si mesma toda a extensão do encanto e da força de Soonya. Pois não acreditava nem por um momento que Chris pudesse ter sido atraído, ainda que superficialmente, por uma moça igual às outras, uma moça comum, uma moça ordinária, até mesmo por uma moça que tivesse um rosto comum. Ele era sutil, exigente e complexo, e ela se comprazia nesses múltiplos aspectos da natureza dele. O filho — sim, naturalmente, havia a criança, mas era-lhe preciso ver primeiro a mulher e analisar, mais friamente do que analisava os espécimes arrancados das profundezas do mar, aquele ser humano, aquela fêmea, que partilhara com Chris do seu primeiro e verdadeiro casamento.

A memória fê-la voltar à própria noite de núpcias. Ela era virgem, e não perguntara se ele o era também. Ficara a imaginá-lo, mas sentira-se demasiado tímida, demasiado orgulhosa, e demasiado inocente, até para perguntar. Agora, sabendo o que aconteceu naquela choça, naquela hooch, como Chris lhe chamava, compreendeu que deveria ter percebido, na primeira noite após o regresso dele, que existira alguém como Soonya. Ele se mostrara seguro e experiente como não o fora até então. Passara por tudo aquilo — não, tudo não, pois não amara Soonya como a amava a ela. Não, e Soonya não o amara, não poderia tê-lo amado, como ela o amava. Soonya, uma garota, ignorante da Coréia...

— O que é que ela fazia? — perguntara a Chris na véspera.

Estavam na sala de estar, bebericando aperitivos. Ele voltara cedo para casa e o sol, que se atardava, caía em barras de ouro através das altas janelas estreitas do antigo casarão.

Ele corara, surpreendentemente. Ela nunca o vira corar.

— O que é que você quer dizer?

— Quero dizer, era professora, enfermeira, ou o quê?

— Não. Acho que não tinha profissão. Freqüentara a escola e tinha uma linda voz. Recordo-me de que vivia cantando, mas os coreanos estão sempre cantando. São um povo musical, segundo me lembra, embora não me pareça realmente ter conhecido muitos.

Ela não dissera mais nada, com medo de ouvi-lo falar acerca de Soonya. Agora forcejava por afastar do espírito as lembranças da noite de núpcias, mas elas lá estavam, guardadas em cenas que não poderia esquecer. O casamento fora bonito, singela cerimônia na grande e velha igreja de Park Avenue, onde ela havia sido batizada. Mas o vestido viera de Paris, ao tempo de sua avó, a etiqueta de cetim ainda trazia o nome bordado de Worth, e ela usara o véu de rendas verdadeiras que fora de sua avó. E sentira-se tão alegre ao lado de Chris, que eles, de mãos dadas, tinham quase dançado ao longo da nave, quando a música jucunda os libertara, após a breve cerimônia. Fora delicioso, malgrado o solene do rito, e ela gostara da recepção em casa dos pais, de atirar o ramo de lírios da volta da escada e da viagem para a Nova Inglaterra. Sempre dissera, desde os doze anos, que passaria a lua-de-mel na Nova Inglaterra, na casa antiga onde ainda viviam seus parentes, um velho tio e uma velha tia, que tinham sido uns amores e os haviam deixado a sós o dia inteiro até a hora do jantar. Ela e Chris haviam percorrido as azinhagas e prados e ela tivera a impressão de caminhar em pleno sonho. Tudo era novo para eles, pensara, primeiros e únicos um para o outro, tudo, tudo, se bem agora, naturalmente, soubesse que não fora a única para ele. A questão era...

Tornou a evitar a questão. Era muito possível que fosse verdade o que ele lhe contara. Pois na véspera, à noite, quando não estavam juntos, ela reunira toda a sua coragem.

— Chris, não sei por que sinto tanto frio. Mal consigo deixar de tremer.

— Deixe-me abraçá-la.

Ela o deixara abraçá-la e, de repente, ele se afastara.

— Você está mudada? — perguntara. Fora exatamente isso o que ele perguntara.

— Você está mudada?

— Não, mudada não, — retorquira ela. — Meio atordoada. Tenho a impressão de ter estado doente... Fraca e desanimada... Incapaz de interessar-me por coisa alguma... No entanto, é isso. Uma sensação esquisita... Acredito que não dure. Imagino que seja apenas o choque.

Ela tentara rir-se.

— É como voltar depressa demais do fundo do oceano. De repente, a gente não pode mexer-se nem respirar.

— Sinto muito, — dissera ele. A voz lhe soara baixa e aflita.

Mais tarde, quando ele se fora, ela pusera-se a cismar, e cismava ainda agora, se de fato havia mudado. Discutiu consigo mesma. Não fui eu quem mudou. Acontece apenas que tudo o mais mudou. Pois se Chris não é o que eu julgava que fosse, tudo, naturalmente, está mudado. Sinto-me atirada a um mundo que não conheço.

Pedaços e farrapos de lembranças perpassaram-lhe pelo espírito. Na véspera do casamento sua mãe lhe dissera:

— Espero que você não o ame demais, querida. Ela arregalara os olhos para a mãe.

— E como posso amá-lo demais se ele vai ser meu marido?

— Quero dizer, para seu próprio bem, — explicara-lhe a mãe, embora naquele momento a frase lhe parecesse inexplicável e ela não tivesse a menor idéia do que sua mãe pretendia dizer.

—Sinto-me feliz por amá-lo quanto posso — dissera ela.

— Isso é perigoso, — suspirara a mãe. — Seu coração se partirá algum dia.

Agora compreendia. Amara o marido com a sinceridade de espírito e coração que aplicava ao trabalho, à vida, a si mesma. Não houvera lugar para amizades casuais, futilidades femininas e passatempos ociosos. Sem filhos, votara seus pensamentos e seu tempo a Chris e ao trabalho. Outras mulheres tagarelavam acerca de crianças, do governo de suas casas, dos maridos, e ela se julgara superior às outras. Agora se sentia humilhada. Não tinha filhos, e teria sido melhor para ela e para Chris se houvesse uma criança. Pelo menos haveria alguém para dividir-lhe o coração. Chris ali não reinaria só, senhor absoluto.

Procurou imaginar o filho que poderiam ter. Ela teria precisado abrir mão do trabalho. Não, era-lhe impossível imaginar uma coisa dessas. Por conseguinte, não poderia imaginar a criança. Voltou seus pensamentos para Chris. Nos últimos dias, ele tentara ser natural e, no entanto, como ela o sabia perfeitamente, percebera a diferença dela e sentira-se magoado. No derradeiro momento, abraçara-a.

— Eu só amo você, agora e sempre, — e beijara-lhe os lábios com força.

Sentia o beijo arder-lhe ainda na boca e, súbito, lhe ocorreu que o marido, tal como ela, também não mudara. Acontecia apenas que ela não o conhecera inteiramente. Durante todos aqueles anos ele carregara um segredo em sua memória e, se bem nunca lhe tivesse contado, o segredo lá permanecera, como parte dele. E visto que ela amara o que ele fora, não poderia continuar amando o que ele ainda era? Para essa pergunta, que fazia, com urgência, a si mesma, não encontrou resposta. Durante vinte e quatro horas esteve suspensa no espaço, enquanto 0 grande avião que a continha parecia, de certo modo, simbolizar-lhe o próprio ser. A Terra era invisível debaixo de um soalho de nuvens brancas, que se separavam de quando em quando para mostrar uma nesga de oceano lá embaixo, cujo azul se casava com o azul do céu. A rotina da vida continuava. Ela comeu pouco da comida que lhe era pròdigamente oferecida, tomou um ou dois aperitivos e um licor com o café, depois do jantar. Dormiu intermitentemente, quando a escuridão tomou conta de tudo, e despertou ao abrir da aurora. Asseou-se, compôs o rosto pálido e escovou os cabelos. E durante todo o tempo se sentiu infinitamente remota, como se os seres humanos enjaulados com ela fossem meros autômatos. Sorriu em resposta a um sorriso e respondeu com poucas palavras às saudações e observações de estranhos. Não estava em parte alguma, não era nada, não era ninguém. Não tinha passado nem futuro, o passado construído sobre um sonho, o futuro desconhecido. E se ela nunca mais voltasse para casa? E se desaparecesse? Não, traçara uma rota para si mesma, teria de segui-la até o fim.

 

Desceu em Seul, na Coréia, entre pessoas todas da mesma cor, de cabelos e olhos escuros. Em torno dela, uma língua que nunca ouvira erguia-se e caía, em ondas de estranho som. Ela trazia suas instruções, Chris providenciara nesse sentido. O nome do hotel, a rua, a maneira como chegar até lá, depois de passar pela alfândega.

Foi-lhe um alívio ouvir o jovem funcionário da alfândega falar inglês.

— Quanto tempo vai-se demorar, minha senhora?

— Não sei.

— Duas semanas?

— Espero que não seja mais.

— Se for, precisará tirar uma licença.

— Creio que não será mais.

Ele sorriu-lhe, mostrando os alvos dentes regulares.

— Há muita coisa bonita por aqui. Espero que fique bastante.

Fazia dias que ela não sorria, mas nesse momento sorriu. Ele não era totalmente um estranho quando sorria.

— Muito obrigada, — disse ela.

Afinal de contas, não seria difícil, se não se deixasse tomar de pânico. Acima de tudo, precisava manter-se calma. Escolheu um táxi que era, como observou, um velho jipe, com as partes laterais e o teto feitos de pedaços de lata desamassados e pregados; mas era um veículo, e o motorista, um rapaz num terno de brim remendado, de um cinzento desbotado, parecia jovial, embora não falasse inglês. Ele reconheceu o nome do hotel e se bem ela suspeitasse que a corrida fora mais longa do que o necessário, lá chegou. O jipe estacou com um estremeção, o motorista saltou em terra, sobraçou-lhe as duas malas e gritou. Um porteiro saiu correndo do hotel, apanhou as malas e esperou enquanto ela contava o preço da corrida, ao passo que o motorista, prestimoso, apontava as moedas apropriadas com o dedo mindinho. Voltando a sorrir o brilhante sorriso de dentes brancos, ele enfiou o jipe no meio da multidão e ela entrou no hotel.

Chris antecipara-se a ela. Havia um telegrama sobre o balcão e o recepcionista conhecia-lhe o nome.

— Há flores no seu quarto, madame, — disse ele.

Flores só poderiam significar Chris outra vez. Agarrou o telegrama e seguiu o esperto mensageiro até o quarto. Sim, havia flores, um denso e variado ramalhete, porém sem fragrância. Pagou o garoto, trancou a porta e abriu o telegrama.

"Estou aí com você", dizia-lhe Chris. "Noite e dia estou com você. Amo-a".

De repente, ela se pôs a chorar de mansinho, ela que nunca chorava, e as lágrimas drenaram a dor que lhe apertava o coração. Chris amava-a. — Chris pensava nela. Numa terra estranha, já não estava só. Embora distante, via seu lar e via-o sentado, talvez à mesa dele, sozinho porque ela não estava lá. Lar inestimável, era mister que jamais lograsse destruí-lo a fraqueza dos seres humanos que ele abrigava! Ela precisava ser paciente — precisava perdoar — perdoar, sim, porque não perdoar era intolerável, não perdoar era ficar sem lar. E se ficasse sem o seu lar, ficaria realmente só e estaria irremediavelmente perdida.

Despertou-a a luz da aurora que se erguia atrás de uma montanha. Na noite anterior vira apenas as ruas da cidade, mas agora, saltando da cama e chegando à janela, viu a cidade, mistura de edifícios modernos e casas antigas, reunidos num vale rodeado de montanhas. Não eram as montanhas cobertas de florestas de sua terra. Eram grandes e nuas saliências de rocha, de escuros tons de púrpura na base, mas cujas cristas a luz dourava. Todavia, a despeito de sua beleza espetacular, fora naquelas encostas íngremes que Chris lutara como um jovem soldado, desesperado de cansaço e de saudades, sem saber sequer por que estava lutando. A piedade fez-lhe tremer o coração. Ele lhe descrevera as horas amargas, partilhara com ela, segundo ela cuidara, todos os seus estados de espírito, desde que se haviam casado, mas nada lhe dissera a respeito de Soonya até chegar a carta. Sentiu enrijecer-se outra vez o coração.

Uma hora depois, desceu a ampla escadaria e cruzou o saguão, dirigindo-se à sala de jantar para tomar o desjejum. A sala estava cheia de norte-americanos e uns poucos coreanos, que trajavam roupas ocidentais. À porta hesitou, procurando um lugar para si, e viu apenas uma cadeira vazia, a uma mesa para dois, perto da janela, que abria para um jardim. O homem sentado à mesa era coreano, um homem alto, de meia-idade, rosto bonito, pálido e grave. Um garçom aproximou-se.

— Desculpe, — disse ele. — Não há lugar agora. Ela indicou com a cabeça a cadeira vazia.

— Não posso sentar-me ali?

O garçom hesitou, em seguida dirigiu-se ao coreano e falou. O homem ergueu os olhos, surpreso, viu-a e levantou-se.

— Tenha a bondade, — disse ele, quando ela se avizinhou.

— Muito obrigada, — agradeceu Laura, e sentou-se.

Encomendou o desjejum e ficou esperando, a cabeça voltada para a janela, os olhos fitos no jardim. Era um jardim rochoso e, entre as rochas, havia trechos de areia branca, alisada em certos pontos e depois disposta em espirais e círculos. Plantinhas floresciam nas reentrâncias das rochas, e uma árvore retorcida se debruçava sobre uni tanque. Durante todo o tempo ela teve consciência da figura alta e distinta do outro lado da mesa, mas não falou. Nisto, ouviu-lhe a voz. Seu inglês era excelente.

— Posso apresentar-me?

Ele sacou da carteira, tirou dela um cartão e colocou-o sobre a mesa, diante de Laura. Ela leu-lhe o nome em voz alta:

— Sr. Choe Yu-ren?

— Negociante, — disse ele, a sorrir. — Trabalho no ramo farmacêutico. A firma é minha.

Ela ergueu a vista e encontrou-lhe o olhar afável.

— Bom dia, Sr. Choe. Ele inclinou-se.

— Está viajando só, minha senhora?

— Estou. Negócios particulares.

— Vai ficar algum tempo, talvez?

— Espero que não. Ah, não me interprete mal! Acontece apenas que estou ansiosa por voltar para casa também por motivos particulares, e lamento muito mas não tenho tempo para visitar o lugar. Talvez fique só alguns dias.

Ela advertiu-se da atmosfera dele, um calor agradável combinado com um ar de experiência do mundo. Ele depôs o garfo, um desjejum bem norte-americano, pensou ela, ovos com toicinho, torradas com café, o prato vazio de frutas.

— Perdoe-me, — disse ele. — Espero não estar sendo indiscreto. Acontece que passei anos muito felizes em seu país como estudante — Yale, 1953 — e agora volto lá todos os anos para fechar contratos comerciais. Minha firma tem conexões com as principais companhias farmacêuticas de sua terra, e minhas visitas sempre me dão muito prazer. Seu povo é extraordinariamente hospitaleiro.

Hesitou e perguntou:

— Esta é a sua primeira visita à Coréia?

— É, — disse ela.

Ele voltou a hesitar e ela percebeu-lhe os belos olhos escuros e interrogativos, mas não respondeu. O garçom trouxe-lhe laranja em fatias e café, ovos quentes e torradas. Depois que ele se foi, o homem tornou a falar.

— Perdoe-me se eu estiver sendo atrevido, mas é muito raro para mim encontrar a oportunidade de retribuir as atenções que tenho recebido em sua terra. Se puder fazer alguma coisa para ajudá-la aqui, rogo-lhe que aceite minha ajuda. Eu quisera poder apresentar-lhe minha esposa, mas ela, infelizmente, morreu no ano passado, e moro aqui sozinho no hotel, exceto nos fins-de-semana, quando volto para minha casa no campo, onde vive minha mãe. Meu filho está no colégio, no mesmo colégio em que estive, em seu país, e não tenho outros filhos.

Ela surpreendeu-se a olhar para ele, a ouvi-lo, pensando que jamais encontrara outro ser humano tão belo de se ver. Era alto, vestia um terno ocidental, de pano cinzento-escuro, de corte inglês, e tinha o cabelo, que principiava a agrisalhar-se ao nível das têmporas, escuro, e olhos castanhos escuros. Não fosse a forma dos olhos e poderia ter passado por italiano, talvez por espanhol. Mas os olhos eram asiáticos. O porte, a franqueza, inspiravam confiança e, movida de súbito impulso, ela abriu a bolsa e dela tirou o cartãozinho onde Chris escrevera o endereço de Soonya.

— O senhor pode dizer-me, por favor, onde fica este lugar?

Ele estudou o cartão e o rosto readquiriu a expressão de gravidade.

— É um lugar muito difícil de encontrar, bem longe daqui, no extremo sul da cidade. Como é que a senhora pretende ir? De carro, naturalmente?

— Pensei num táxi.

— Mas, com certeza, não vai só?

— Não conheço ninguém aqui. Ele se pôs a refletir.

— Talvez uma pessoa da Embaixada Norte-Americana?

— Oh, não, — acudiu ela, depressa. — Meu assunto é muito particular.

Ele devolveu-lhe o cartão e ela recolocou-o na bolsa. Ele permaneceu em silêncio, pensando, enquanto terminava os ovos e tomava o café. Em seguida, afastou os pratos para um lado.

—Permite que eu vá com a senhora? — perguntou, de repente.

Ela ficou surpreendida.

— Oh, eu não poderia. O senhor é um homem ocupado.

— Sou dono do meu tempo e basta-me dar um telefonema ao escritório. Acredite-me, não posso permitir que uma senhora americana vá sozinha a essa parte da nossa cidade. Se preferir, chamarei minha secretária para fazer-nos companhia. Sim, ocorre-me que a senhora não me conhece.

— Não é isso, — disse ela, e não pôde prosseguir.

— A senhora também quer permanecer em segredo? — sugeriu ele. — Nesse caso posso esperar no táxi enquanto...

Ela sentiu-se enleada.

— Na realidade, o assunto não é meu. Trata-se de algo que se refere a meu marido.

— A senhora é casada?

— Sou, sou a Sra. Winters... Christopher Winters.

— De...

— Filadélfia.

Ele sorriu, e seu rosto um tanto grave aqueceu-se com característica subitaneidade.

— Ah, Filadélfia! Conheço essa bela cidade. Lá passei minhas férias de Natal com o Dr. Harmsworth e sua esposa. Conhece-o?

— O grande orientalista?

— Ah, a senhora o conhece!

— Fomos apenas apresentados.

— Nesse caso há de lembrar-se dele, pois não pode esquecê-lo quem o viu uma vez. Chamo-lhe meu pai americano. Ele agora está muito velho, naturalmente, mas vou vê-lo sempre que estou em seu país. Ele me chama seu filho coreano. E meu próprio filho continua a tradição, enquanto está no colégio americano, e passa ali seus feriados, na bela casa antiga. Infelizmente, a dona da casa já não vive. A Sra. Harmsworth morreu quando eu me formava.

Repentinamente, ela confiou nele e, na decisão que tomou, sentiu-se segura — segura e confortada. Tinha ali um amigo.

— Venha comigo, por favor, — disse tranqüilamente.

— Assim que a senhora acabar de comer, — replicou o homem.

Durante a viagem pelas ruas de Seul, decidiu não dar explicações. Muito tempo atrás, ainda criança, aprendera a não explicar, nem a si mesma, nem às suas ações. Quando a mãe a acusava, censurava, respondia sempre com o silêncio. O não pedir explicações, o não as dar, proporcionara-lhe uma atmosfera de paz na mocidade, no casamento, no lar. Agora, enquanto cruzava as ruas e os parques atravancados, pouco falava e o Sr. Choe, demasiado cortês, demasiado bem-educado, não fazia perguntas. Ao invés disso, explicava os monumentos por que passavam, expressava a esperança de que ela tivesse tempo de visitar os palácios dos reis ora mortos, oferecia-se para acompanhá-la ao novo museu antes que ela regressasse ao seu país.

Ela sorria, esperava que tudo aquilo fosse possível, admirava-lhe em segredo o formoso perfil. Estava habituada a homens pois, como cientista, trabalhava entre eles, mas aquele era um homem novo para ela, e não o era só na aparência. Tinha o lustro do marfim antigo, suave e opaco, sólido porém precioso — sumamente complexo, concluiu, e difícil de se compreender. Seu primeiro impulso fora confiar e agora duvidava. Com a paciência que aprendera em seu treinamento nas longas horas de trabalho no laboratório, observava o homem. Embora masculino, possuía uma graça felina. Direto e desinibido, deixava-a perceber, entretanto, que muita coisa ficava sem ser dita enquanto falava. Ela advertiu-se também das hábeis perguntas dele.

— É artista, Sra. Winters?

— Não. Por que pensa isso?

— Porque tem o ar, o estilo, alheado e, no entanto, compreensivo.

— Sou cientista.

Ele pareceu imensamente interessado.

—Mulher e cientista? Não será uma contradição?

— Não em meu país, embora eu admita que não seja usual. Sou oceanógrafa... farmacologista como o senhor, porém marinha!

— E faz expedições oceânicas à procura de material para usos médicos? Nós, coreanos, também usamos materiais do mar para curar.

— Sim, às vezes participo de expedições. Não com a mesma freqüência com que o fazia antes do meu casamento.

— Por exemplo, que expedição?

— A última foi nas costas do Panamá. Eu tencionava coligir plancto.

— A senhora, evidentemente, não estava só.

— Não, havia comigo mais três cientistas. Estudávamos o próprio oceano... o fundo, suas formas e contornos, a água do mar, sua química e sua física, as correntes, a vida das plantas, a vida animal... tudo o que fosse possível. Cada um de nós tinha uma responsabilidade. A minha era... é... estudar o tipo de vida que oscila entre a planta e o animal e pode ser uma coisa ou outra, ou ambas.

— Ah, as criaturas-ponte! Sim, são importantes... Mas a senhora me assombra!

Ela não respondeu, pois haviam parado diante de uma casinha de tijolos, apertada entre duas casas maiores. Ele disse qualquer coisa ao motorista, que assentiu com a cabeça.

— Chegamos, Sra. Winters, — anunciou o Sr. Choe. —' Se me permite, eu a apresentarei e, depois, ficarei à sua espera aqui fora.

Agora que chegara o momento do encontro, ela sentiu que não poderia enfrentá-lo sozinha.

— Por favor, venha comigo. Eu não compreenderia o que se dissesse. Vou contar-lhe. Vim procurar uma criança e sua mãe.

— Nesse caso... — anuiu o Sr. Choe.

Desceu do táxi e fez sinal ao motorista com a mão grande e elegante que esperasse.

— Agora, Sra. Winters, — prosseguiu, — permita que eu a preceda. Vou fazer indagações. Qual é o nome, por favor?

— Srta... Sra... não sei... Kim... e o primeiro nome é Soonya.

Ele ouviu impassível a informação, mostrando a decisão de não revelar interesse nem curiosidade e, batendo à porta entrecerrada de madeira, tossiu alto. Uma velha de saia preta, remendada, de algodão e corpete verde escancarou a porta. Ele falou e ela fez que sim com a cabeça. Ele tornou a falar e ela sacudiu negativamente a cabeça. Ele voltou-se.

— Sra. Winters, a Srta. Kim está dormindo. Trabalha à noite num... trabalha à noite e acorda tarde. Esta é a mãe dela. Convida-a a entrar. Vai acordar a filha.

Ela pensou e dominou a própria relutância.

— Há também uma criança?

Ele transmitiu a pergunta à velha e esta respondeu. Ele traduziu a resposta.

— Há uma criança.

— Um menino?

— Um menino.

— Está aqui agora?

Ele formulou a pergunta e a velha, sacudindo a cabeça, entrou a deblaterar, colérica. Ele ergueu a mão para silenciá-la e traduziu.

— Ele não está aqui no momento. Diz ela que o menino é danado. Foge e ela não sabe onde ele está até voltar com fome para casa. Queixa-se de que ela e a mãe já não sabem o que fazer com ele. É um menino terrível, de onze anos.

— Vou entrar, — decidiu Laura. — Quero ver a mãe e falar com ela. Sinto muito mandar acordá-la, se estiver cansada, mas vim de muito longe, e quero voltar para casa o mais cedo possível.

— Compreendo, — disse ele gravemente.

Entraram numa sala pequena e estreita, de chão de terra batida, envernizada ou polida, ela não saberia dizer, mas muito limpa. Uma mesa baixa, alguns livros, almofadas e, numa parede, uma paisagem. Nenhum outro móvel. A velha afofou com a mão uma almofada.

— Ela a está convidando para sentar-se, — disse o Sr. Choe.

Sentaram-se ambos e a mulher desapareceu. Quedaram-se à espera. O Sr. Choe ficou em silêncio e ela entrou a refletir na necessidade ou na conveniência de explicar a ele por que estava lá; em seguida, mais uma vez, decidiu não dar explicação alguma. Poucas horas antes não conhecia aquele homem e talvez nunca mais tornasse a vê-lo, depois que ele servira ao propósito de levá-la àquela casa. Olhou para ele e sorriu gravemente, agradecidamente. Ele encetou uma desculpa.

— Esta casa é muito pobre. Não sei o que faz a Srta. Kim para ganhar a vida. Talvez seja casada e, nesse caso, o marido, imagino eu, será caixeiro de alguma loja, funcionário dos Correios ou coisa que o valha. Duvido que seja professor, a não ser de alguma escola primária. Ela deve ajudar, trabalhando num bar ou coisa parecida. A maioria das moças que trabalham em bares é casada e trabalha à noite, quando o marido pode estar em casa. Evidentemente, neste caso, ela cuida da velha mãe e talvez o marido também trabalhe à noite, visto que a vida está difícil.

Ela não respondeu, nem, com efeito, poderia fazê-lo visto que, nesse momento, se abriu mansamente a porta interior e Soonya assomou à soleira. Reconheceu-a instantaneamente, pois a mulher, embora já não fosse jovem, se achava no pleno vigor dos anos. Vestia um trajo coreano, longa saia escura e corpete branco trespassado à altura do seio. Tinha os negros cabelos enrolados atrás da cabeça e os olhos negros, engastados no rosto cremoso e pálido, debaixo das escuras e fugidias sobrancelhas, eram ternos e interrogativos. Tão delicado era o rosto e tão feminina era a mulher em sua graça, tão miúda e fina de ossos, embora arredondada de contornos, que, por mais que fizesse, Laura não pôde antipatizar de pronto com ela. Tendia sempre a fiar-se das primeiras impressões, favoráveis ou desfavoráveis, e decidira conscientemente basear suas decisões na emoção do momento. Nem escondera de si mesma o secreto desejo de desamar Soonya.

— Não me interessarei pela mulher, — dissera a Chris. — Não lhe devo nada, mas o menino, porque é seu... sim quero fazer que ele tenha uma educação. Aqui não, Chris mas na terra dele mesmo.

Chris olhara para ela com rosto inexpressivo.

— Imagino que seja a terra dele. É estranho pensar nisso!

Soonya entrou, sem fazer ruído, calçando pequeninas sandálias de borracha, com os dedos levemente virados para cima. Estacou diante do Sr. Choe e deixou escapar uma torrente de palavras com voz suave e aguda, quase infantil. O Sr. Choe ouvia-a com espanto crescente, apertando os lábios.

— O que é que ela está dizendo? — perguntou Laura, por fim.

— Ela já me viu antes, — disse o Sr. Choe, sem outra explicação.

Laura esperou, e como ele não dissesse mais nada, tornou a perguntar:

— Devo saber mais alguma coisa?

— Não, — voltou o Sr. Choe, com firmeza. — Lembro-me agora de quem ela é.

Ela hesitou, sentindo-se estranhamente bloqueada e até ignorada. Pois o Sr. Choe fez sinal a Soonya que se sentasse e prosseguiram na conversação, ele intercalando uma pergunta de vez em quando, e ela continuando com sua fala urgente, suave, precipitada. A velha entrou e sentou-se, encolhida de encontro à parede interna. À porta, algumas crianças se juntaram, empurrando-se para um lado e para outro, a fim de verem melhor o que estava acontecendo. O Sr. Choe ergueu a vista, franziu o cenho para elas e gritou-lhes. As crianças correram para a rua, e, logo, imperceptivelmente, como a conversa continuasse, tornaram a aproximar-se.

Laura esperou o que lhe pareceu horas a fio, mas que talvez não passasse de meia hora, e o Sr. Choe escusou-se.

— Desculpe-me, por favor, — disse, por fim. — Ela está atrapalhada com o senhorio. O filho é difícil de dirigir e senhorio quer que ela se mude. Parece que o menino rouba qualquer coisa, de vez em quando, dos vizinhos. Além disso, ela não tem marido. É ela quem sustenta a casa, a mãe e o filho.

— Onde trabalha? — perguntou Laura.

O Sr. Choe mostrou-se embaraçado. Tirou do bolso um grande lenço de seda e enxugou a testa bonita e depois a palma das mãos.

— Eu lhe explicarei mais tarde, — prometeu. — Ao mesmo tempo, ela me contou também a maior das suas dificuldades. — Fez uma pausa e prosseguiu. — A criança... não é um menino como os outros. É filho de um americano. Há doze anos, conheceu esse homem quando ele esteve aqui depois da guerra. Viveram juntos por mais de um ano. Ela esperava que ele a desposasse, e ele prometeu voltar. Foi para a América quando a criança tinha apenas um mês de idade e, depois disso, ela não teve mais notícias dele. Nesse meio de tempo, ela precisou tomar conta do filho sozinha, embora não seja sua obrigação fazê-lo.

Laura ouviu tudo isto com o coração a saltar-lhe dentro do peito. Não trairia Chris. Deixassem-nos pensar que ela viera apenas como amiga, não como esposa.

— É claro que é obrigação dela, — tornou, com firmeza. — É a mãe da criança.

O Sr. Choe encarou-a sem pestanejar, as mãos estendidas sobre os joelhos.

— Aqui é o pai o responsável pela criança. Quando não há pai não há família. A criança está perdida. Não pode ir à escola nem pode empregar-se, porque o pai não lhe registrou o nascimento. Pelo que nos diz respeito, a criança não nasceu. Não tem família, não tem ninguém por si. Por conseguinte, não existe.

Ela sentiu avolumar-se dentro em si um ímpeto bem-vindo e reconfortante de cólera.

— Isso é ridículo. A criança está aqui. A criança existe.

— Legalmente, não, — tornou o Sr. Choe.

Ela não pôde responder. Achava-se num mundo estranho, um mundo que não imaginara, no meio de um povo que não conhecia. Voltou-se para Soonya com um olhar que era quase uma súplica. Haveria, seguramente, pelo menos o ela da feminilidade entre elas?

E Soonya, como que em resposta ao olhar, levantou-se e pôs-se a remexer numa gaveta da mesa baixa que havia no centro da sala. De um envelope embrulhado em seda, tirou duas fotografias, que deu ao Sr. Choe, murmurando explicações com sua voz suave. Ele examinou-as e passou-as a Laura.

— O pai do menino.

Ela não queria ver as fotografias e teria dado metade de sua vida para havê-las recusado naquele momento. Mas, sem embargo disso, aceitou-as. Sim, era Chris, o jovem Chris por quem ela já então estava apaixonada, que amava com um primeiro amor cheio de sonhos e perguntas, trêmulo de alegria, envolto em timidez e espera. Lá estava ele numa das fotografias, com um braço em torno do ombro de Soonya, uma Soonya muito jovem, que se ria para o rosto risonho dele. E, na segunda, segurava o filho nos braços, o filho bebê, e Soonya reclinara a cabeça no ombro dele.

Nunca o verei com o meu filho nos braços, pensou, controlando a violenta cutilada de dor que sentiu no coração ao devolver os retratos a Soonya. Agora sabia que precisava comunicar-se com aquela mulher.

— Ainda fala inglês? — perguntou. Soonya sacudiu a cabeça.

— Agora muito pouco. O Sr. Choe animou-a.

— Não seja tímida. Ela é sua amiga. Veio cuidar de você. Soonya tocou o seio com a mãozinha delicada.

— A senhora cuidar de mim?

— Sim, — disse Laura. — Vim de muito, muito longe.

Cedeu. Como poderia continuar se não revelasse a verdade? Alternava o olhar entre os dois rostos asiáticos. Assombro polido, mas evidente, paciência cortês, velada curiosidade, espera silenciosa. Tudo isso expressavam os olhos asiáticos, a postura das mãos asiáticas. Soonya tocou na chaleira, percebeu que estava quente e encheu as chávenas colocadas sobre a mesa. O Sr. Choe ergueu a sua e bebeu-a em sorvos sonoros. Soonya sentou-se no chão, as mãos cruzadas no regaço. Postos em Laura, os olhos de ambos esperavam.

E ela, sabendo que chegara o momento da revelação, abriu a bolsa e dali tirou um caderninho fino de couro. Abriu-o numa página em que havia o rosto de Chris, o seu Chris, tal como estava agora, o homem que era seu marido. Considerou-lhe os olhos — olhos sinceros? Sinceros, sim, sem dúvida alguma! Sem uma palavra, estendeu o retrato a Soonya.

Soonya pegou-o, olhou para ele, tornou a olhar com uma expressão em que havia mais do que interesse e ergueu os olhos para o rosto de Laura.

— Ele é.

A voz era um sussurro, mas Laura ouviu-a e assentiu com a cabeça. Soonya passou o caderninho ao Sr. Choe. Ele tomou-o e examinou o rosto.

— Diz ela que este é o pai do seu filho.

— Eu sei, — disse Laura, serena. Sentia-se fraca, o sangue latejava-lhe na cabeça, o coração batia-lhe descompassadamente.

O Sr. Choe voltou-se para Soonya e fez-lhe uma pergunta em coreano.

— Chris-to-pha Winters-s, — disse Soonya, lenta e distintamente.

O Sr. Choe fechou o caderninho e devolveu-o a Laura.

— Sra. Winters, — disse ele, — a senhora é uma mulher generosa e de coragem.

Para seu horror, as lágrimas lhe assomaram aos olhos e entraram a rolar-lhe pelas faces. Ela pôs-se a procurar o lenço mas não conseguiu encontrá-lo. O Sr. Choe deu-lhe o lenço de seda, ela aceitou-o e enxugou as lágrimas.

— Eu gostaria de conversar a sós com o senhor, — pediu ela. — Vamos voltar para o carro.

Quando quiser, — disse ele, e falou com Soonya. Esta ouviu-o, levantou-se e, a seguir, hesitou. Súbito, como se tivesse decidido não ter medo, fez uma pausa no meio do caminho e parou ao lado de Laura, como se fosse falar. Mas não falou. Laura, em vez disso, sentiu no rosto o perpassar de uma palma suave como asa de mariposa.

 

Quando a viu sentada, ao seu lado, no automóvel, com as mãos enluvadas cruzadas sobre a bolsa marrom de couro, que lhe jazia no regaço, ele olhou para ela. Laura não dissera uma única palavra desde que haviam deixado a casinha onde Soonya morava, e agora, surpreendendo-lhe o olhar, tentou sorrir e não o conseguiu. Estavam sós, e mesmo assim não conseguia falar. O povo nas ruas apinhadas, as tabuletas não familiares nas lojas, as montanhas desoladas que se erguiam além da cidade, tudo era estranho e estranho era o homem alto sentado ao seu lado. Aonde poderiam ir de modo que ficassem a sós? E acabaria ela, afinal, confiando nele? Nunca lhe fora fácil falar dos seus sentimentos mais íntimos. Criança silenciosa, mulher silenciosa, muitas vezes se sentira esposa silenciosa, expressando o amor muito mais através do gesto, do toque e dos atos do que através das palavras. Naquela manhã, entretanto, Chris estava muito longe. Aqui não havia ninguém — ninguém exceto o homem a quem, pelo mais estranho dos acasos, conhecera naquela mesma manhã, e ao qual agora se aferrava, talvez apenas porque ele falasse inglês.

— A senhora está cansada, — disse ele. — Creio que devemos tomar um pouco de chá e comer talvez alguma coisa. Já passa de meio-dia. A senhora não gostaria... — fez uma pausa, erguendo as finas sobrancelhas. — E por que não? É americana e já visitei lares americanos. Não quer ir almoçar e tomar chá em minha casa? Lá poderemos conversar. Embora minha velha mãe não fale inglês, terá prazer em vê-la. Sente-se grata aos americanos pela bondade que tiveram comigo quando eu era moço e andava longe de casa. E pela bondade que hoje demonstram a meu filho.

— Eu lhe ficaria muito grata, — murmurou ela.

O carro aumentou a velocidade ao cruzar as ruas, acionando a buzina, dividindo o povo como a proa de um navio divide as ondas. O Sr. Choe era muito conhecido, segundo parecia, pois as pessoas lhe pronunciavam o nome, ela o ouviu repetidamente através da janela aberta do automóvel. Ele se mantinha sentado, muito teso, ignorando-as, e só tornou a falar quando o automóvel saiu da cidade e entrou numa estrada, que desembocava num prado tranqüilo, cercado de choupos, que já principiavam a verdejar. O prado terminava em amplo portão de madeira, pintado de vermelho, no meio de um alto muro cinzento de tijolos. O motorista gritou e o portão abriu-se lentamente, enquanto um velho lhe segurava a tranca.

— Este é o meu lar ancestral, — disse o Sr. Choe. Conduziu Laura a um jardim extenso e sossegado, rodeado, pelo que ela pôde ver, por espaçosa casa térrea, cujo telhado curvo sustentavam enormes pilares de vermelhão.

— Um lugar tranqüilo, — observou.

— Nem sempre, — replicou ele. — Foi ocupado por um general japonês durante os muitos anos de domínio japonês. Quando chegaram os americanos, um general americano morou aqui. Somente nos últimos dez anos é que nossa propriedade nos foi restituída.

Uma criada esperava à entrada para tirar-lhes os sapatos e substituí-los por chinelos de pano. O Sr. Choe falou-lhe em voz baixa, ela assentiu com a cabeça e desapareceu, e ele mesmo conduziu Laura ao interior da casa.

— A criada anunciará nossa presença a minha mãe, — explicou. — Entrementes, descansaremos. Não se apresse. Fique sentada aqui, onde pode olhar para o jardim e ver o lago. É a estação em que a vida se renova depois do inverno. Que isto seja um bom augúrio para a senhora.

A sala era grande e o mobiliário ocidental, com poltronas e sofás, um tapete verde no chão e cortinas de cetim dourado nas janelas. De um lado havia uma parede de shoji, mas os shoji estavam cerrados e ela não podia adivinhar o que havia além deles. Deixou-se cair numa das Poltronas, confortável assento almofadado de cetim dourado. Dali podia seguir com a vista um caminho sinuoso de Pedras, que atravessava o prado e ia terminar num lago alimentado por uma cascata na parte mais afastada. Mais além, vislumbrou novos telhados recurvos.

O Sr. Choe sentara-se e, a certa altura, abriu uma caixa preta de charão com um desenho de ameixeira em flor feito de madrepérola e ofereceu-lhe um cigarro. Quando ela o recusou, com um leve gesto da cabeça, acendeu um para si. A criada trouxe o chá, com chaleira e chávenas, logo seguida de outra criada com uma bandeja de bolos e doces.

— Restaure-se, — disse o Sr. Choe. — Aqui pode descansar. A senhora está agitada e fatigada.

Ela tomou o chá em silêncio e, a pouco e pouco, sentiu dissipar-se-lhe a tensão. Depôs a taça sobre a mesa, ao lado da cadeira, e o Sr. Choe voltou a enchê-la. Ao fazê-lo, entreolharam-se, o olhar dela a interrogá-lo, o dele a animá-la.

E Laura principiou, um tanto abruptamente.

— Estarei errada pensando que o senhor já conhecia Soonya?

— Todo o mundo a conhece, — retrucou ele. — Experimente este docinho. Foi feito segundo uma receita de minha mãe. Gostamos muito dele.

Ela tomou de um bolinho recheado da bandeja e provou-o.

— Delicioso, — conveio ela. — Mas como se dá que todo o mundo conheça Soonya?

— É famosa em virtude da casa que tem, — retrucou ele. — É o que se poderia chamar uma dona de pensão, mas não se parece com as outras. Viu a maneira modesta como vive. Eu mesmo nunca a vira antes. Não sabia que ela morava ali. Nem a conhecia pelo nome de Kim Soonya. Profissionalmente, tem outro nome. E sua casa profissional, a Casa das Flores, é famosa pela riqueza e pelas jovens formosas e bem-educadas. Ela as adestra em todas as artes. Ela mesma canta e dança, embora já não pratique essas artes. Estatui apenas uma regra. Só aceita clientes coreanos e, como seus preços são altos, estes são todos homens de posses.

Ela notou que ele não dissera "nós". Quereria significar com isso que ele próprio não freqüentava a Casa das Flores? No entanto, conhecia Soonya. Ora, por que se interessava se estava lá apenas por amor de Chris?

Recomeçou, voltando a mergulhar no emaranhado de sentimentos e fatos.

— Meu marido esteve aqui há doze anos. Conheceu Soonya nessa ocasião, quando ela era muito mocinha. Tiveram um filho. Durante todos esses anos ele não me disse nada. Fomos... Somos... muito felizes. Imagino que não houvesse razão para que ele me contasse a não ser que eu acreditava que não tínhamos segredos um para o outro. E agora o menino escreveu uma carta, dizendo que não tem oportunidade de freqüentar a escola. Estou aqui para...

O Sr. Choe inclinou-se.

— Minha querida senhora, está-me dizendo porventura que seu marido a mandou aqui sozinha para...

— Vim de moto próprio, — atalhou ela. — É um momento difícil para nós, ele não podia ausentar-se. Além disso, o problema sobre o que fazer do menino também me interessa. Não quero que o filho de meu marido cresça ignorante e... — Incuravelmente sincera, prosseguiu, embora com relutância. — Imagino que eu também quisesse verificar pessoalmente como pôde ter acontecido uma coisa dessas.

— Nada mais natural, — admitiu o Sr. Choe, com delicadeza. — A senhora ama seu marido. O coração de uma mulher, em qualquer país do mundo, sente-se magoado quando o marido arranja outra mulher.

— Estávamos recém-casados.

Ela olhou para ele e viu-lhe nos olhos asiáticos uma profunda compreensão, uma compaixão que lhe foi difícil suportar. Tremeu-lhe o lábio e ela tentou sorrir.

— O senhor precisa saber que somos muito felizes. Mesmo isto... esta... experiência não parece haver-nos separado. Por impossível que pareça, cada um de nós compreende como se sente o outro e nós... e cada um de nós tenta... mitigar ou partilhar...

— Compreendo, — volveu ele, grave. — Mas o eu está ferido e só ele pode curar-se. Por isso a senhora veio aqui primeiro para ver a mulher, e depois o menino, não foi? Muito bem, que achou da mulher?

Ela refletiu sobre a pergunta.

— Não sei. Talvez não seja tanto uma questão de pensar quanto de sentir. Ela é suave e delicada.

— É dura como o ferro, — disse o Sr. Choe.

— Mas tocou a minha face.

— Sim, é também capaz de piedade.

— De mim?

— De outra mulher. Não tem ilusões a respeito dos homens. A senhora devia ouvi-la dando uma lição às suas raparigas.

E rompeu numa gargalhada silenciosa.

— Conheço-a bem... Muito bem. Na realidade, sou um dos seus clientes. O fato é que ela é muito famosa. Vinga-se... bem, digamos da vida... Permitindo apenas aos coreanos que entrem na sua Casa das Flores. Nenhum ocidental, sobretudo nenhum americano, pode transpor-lhe os umbrais. "Deixá-los ir aos lugares de terceira classe, que é o lugar deles". Essa é a sua vingança. Os coreanos, quando podem pagar-lhe os preços, têm certeza de encontrar apenas moças que não se associem com as classes baixas nem com estrangeiros. Sabemos que são limpas e bem-educadas. Acima de tudo, sabemos que são coreanas.

Ela ouviu tudo aquilo com um tumulto de sentimentos — indignação e pasmo — de mistura com algum pico. Pobre Chris.

— E ela foi sempre assim? — indagou.

— Sempre? Oh, não, — replicou o Sr. Choe. — Quando a conheci... — fez uma pausa e tossiu levemente.

— Por favor, não se acanhe! — instou ela. — Já ultrapassamos essa fase, não é verdade? Embora nos conheçamos há tão pouco tempo?

Ele riu-se.

— A senhora é muito... compreensiva. Bem, quando a conheci, ela não tinha nada. Cantava e dançava, e não fazia outra coisa, numa casa muito decente, muito conhecida? Senti-me atraído pela profunda tristeza que a envolvia, mesmo quando cantava alguma tola canção alegre ou quando dançava. Convidei-a para beber comigo e principiamos a conversar... como nós dois estamos conversando... e ela contou-me que tinha uma velha mãe e um filho para sustentar. Mais tarde, ouvi um pouco da história do filho, que o pai era americano e que ela ainda pensava na maneira de comunicar-se com... com o americano. Escrevera-lhe, mas não obtivera resposta. — Sorriu e ajuntou. — Lembro-me de me haver sentido um tanto enciumado e como me parecesse evidente que ela nunca receberia resposta, instei-lhe que montasse sua própria casa. Na realidade, emprestei-lhe o dinheiro, que ela me devolveu, escrupulosamente. É uma boa mulher de negócios.

Laura ouvia, maravilhando-se do destino que a conduzira àquele homem, tão estranhamente ligado a ela e a Chris através de Soonya e, antes que pudesse pensar numa pergunta ou responder ao que ele lhe dissera, a criada surgiu à porta com um recado.

— Ah, — exclamou o Sr. Choe. — Minha mãe está pronta para receber-nos.

Acompanhando a criada, foram conduzidos a uma sala central da casa. Ela conheceu que era central pois, dos quatro lados, os shoji haviam sido afastados para dar lugar a outras salas. Lá, como que engastada entre jóias, o soa-lho cintilante, os coxins de veludo escarlate e cetim preto, a mesa baixa e as estantes baixas de charão preto reluzente, incrustado de madrepérola, estava sentada uma mulher pequena, de cabelos brancos e rosto bonito apesar da idade. No rosto pálido e enrugado, um camafeu, dois grandes olhos negros ardiam como se fossem jovens. Debaixo deles, a boca era grave.

O Sr. Choe inclinou-se e falou-lhe em coreano. Ela fez um sinal afirmativo com a cabeça, ainda sem sorrir, e fitou a vista na visitante. Depois, com voz aguda, suave, apenas audível, fez uma pergunta. O Sr. Choe traduziu-a.

— Minha mãe deseja saber se a senhora tem filhos.

— Lamento muito, mas não tenho, — replicou ela.

Enquanto os grandes olhos continuavam a arder, sem pestanejar, ao ouvir a resposta, a voz suave pronunciou mais algumas palavras.

— Minha mãe diz que a senhora é bonita, mas não gosta da cor do seu cabelo nem dos seus olhos.

Laura riu-se.

— Nem eu! Sempre os quis escuros. Mas que posso fazer? Tenho de aceitar-me tal como sou.

Traduzido, isto trouxe um tênue sorriso ao rosto de marfim. A dama pronunciou mais algumas palavras em voz baixa.

O Sr. Choe riu-se por seu turno, inclinou-se para a mãe, quando esta voltou a falar e virou-se para Laura.

— Estamos dispensados, — disse ele. — Minha mãe tem quase noventa anos e impacienta-se com facilidade. Fazemos todas as suas vontades, e temos muito orgulho de sua idade. Ela é o ai-jesus da casa.

Laura inclinou-se também e o Sr. Choe, depois de ajustar um shoji para impedir que soprasse a brisa vinda do jardim, conduziu-a de novo para a porta da frente, onde o automóvel estava esperando.

— A senhora deve estar cansadíssima depois desta longa manhã, — disse o Sr. Choe. — Que tal se regressássemos ao hotel e tornássemos a encontrar-nos amanhã? Se eu puder prestar-lhe algum serviço...

Ela entrou no carro, ele sentou-se ao seu lado e, em silêncio, rodaram durante meia hora até a cidade. Ela sentia-se, de fato, exausta, por tanta coisa que lhe sacudira o espírito e os sentidos naquele curto dia, e folgou de que ele permanecesse em silêncio. No hotel, ele acompanhou-a até o elevador, inclinou-se formalmente, o rosto suave e inescrutável, e ela subiu para o quarto. Estava como o deixara, com uma única diferença: sobre a mesa havia uma pequenina ameixeira num pote verde, inteiramente florida, um alvo tremeluzir ao sol da tarde, que entrava aos borbotões pela janela.

Examinou o cartão preso à planta. Era do Sr. Choe. De um modo ou de outro, ele encontrara um momento para encomendá-la ou talvez dera instruções nesse sentido à criada em sua casa. De qualquer maneira, lembrado de que ela estava só, achara um instante para mandar-lhe a ameixeira, símbolo da vida persistente. Vida? Ela talvez houvesse vivido um pouco demais naquele dia, sentia-se cansadíssima, e ansiava por fugir. Se estivesse em sua terra, fugiria para o laboratório ou mesmo, talvez, para as frias e verdes profundezas do oceano, em algum lugar. Entretanto, não podendo fazer nada disso, despiu-se, deitou-se e adormeceu profunda e instantaneamente.

 

Acordou na manhã do dia seguinte. Por um momento, a luz rósea da janela fê-la acreditar que contemplava o pôr do sol da véspera. Mas aquela luz era, inequivocamente, a luz da aurora. Ergueu-se, pensando nas horas perdidas e sem sonhos, mas logo compreendeu que se sentia descansada, restaurada, já sem qualquer resquício de medo. Nem sequer sentia pressa. Ao contrário, voltou para a cama, onde se demorou mais uma hora, depois tomou banho e vestiu-se, com surpreendente despreocupação. Ainda era cedo, mas desceu a escada e entrou na sala de jantar, onde só havia três rapazes, provavelmente hóspedes. Era, sem dúvida, muito cedo para o Sr. Choe, e sentiu-se até contente naquela manhã por estar sem ele. Poderia até dar uma volta sozinha e depois regressar e escrever uma carta a Chris. Depois disso... bem, depois faria o que quer que achasse que devia ser feito.

Ninguém entrou na sala de jantar enquanto ela terminava o desjejum. Saiu à rua a fim de andar um pouco, em lugar de tornar ao quarto. As pessoas já se atarefavam, os funcionários a caminho das repartições, as mulheres do mercado, as crianças da escola. A rua era um misto de velha pobreza e prosperidade nova, se é que se podia falar realmente em prosperidade. Defronte da entrada do hotel, um canteiro de flores assinalava a divisão entre duas ruas, e ela cruzou-o para ver o que dois velhos estavam fazendo. Eram, manifestamente, jardineiros da Prefeitura e, manifestamente também, discutiam sobre as plantinhas que estavam plantando. O menos velho exibiu um mapa, a fim de provar o que dizia, pois, olhando por cima do ombro dele, ela vislumbrou um desenho colorido de quadrados e estrelas, que deviam representar o canteiro, segundo supunha. Divertiu-se um pouco com a discussão, que poderia ter ocorrido em qualquer país. Evidentemente, o mais velho dos dois se deixou convencer mau grado seu, pois resmungou, arrancou algumas plantas e recomeçou o trabalho. E ela já se dispunha a continuar o passeio, quando sentiu que lhe puxavam o casaco por trás. Voltando-se, deparou com cinco ou seis garotos maltrapilhos, crianças mendigas, que estendiam as mãozinhas sujas a pedinchar.

— Nunca dê dinheiro a mendigos, — recomendara Chris, — sobretudo a crianças. Farão de sua vida um inferno.

Lembrou-se do conselho e já ia fugir-lhes quando avistou uma criança que se mantinha afastada, uma menininha, que era só pele e ossos, e cuja idade não poderia adivinhar. Deteve-se, sem prestar atenção no clamor dos outros. Estendeu a mão direita, ergueu-lhe o rosto e contemplou-o. Não era uma criança asiática! No entanto, os olhos eram asiáticos, na forma amendoada, grandes, lindos, sim, mas claros, apesar de tudo, tirantes a castanho, com tons de azul. E o cabelo não era preto. Embora liso, emaranhado, era castanho claro. E os ossos, desprovidos de carne, tinham, não obstante, uma estrutura robusta, sem as extremidades afiladas e delicadas das mãos e pés asiáticos.

Inclinou-se para aproximar o rosto do rostinho formoso, sujo e triste, a despeito da beleza.

— Quem é você? — murmurou, sabendo embora que não seria compreendida.

As outras crianças haviam cessado o peditório. Curiosas e veementes, comprimiam-se em torno das duas e, percebendo que a criança lhes levava alguma vantagem, a maior, um menino, travou-lhe da mão e obrigou-a a fazer o gesto de quem pede. A menininha, não obstante, resistiu. Não queria pedir e, procurando escapar, abriu caminho de repente entre as outras e desembestou pela rua antes que pudessem apanhá-la.

— Oh, eu a perdi, — gritou Laura e, afastando as outras crianças, saiu correndo atrás da menininha, que se escondera nos becos atrás do hotel. Sem embargo, continuou a procurar e, ao dobrar uma esquina, tornou a avistá-la, desta feita à distância, no que supôs fosse uma entrada dos fundos do hotel. Lá estava a menina como se esperasse por alguém. Receando que ela voltasse a escapar-lhe, Laura quedou-se imóvel atrás de uma árvore que se enfiara entre o hotel e a calçada. Logo se tornou evidente que a criança, de fato, estava esperando e, súbito, foi possível ver o que esperava. Um empregado saiu do hotel com um balde de lavagem, que despejou numa caixa de madeira colocada do lado de fora da porta. Vendo-o chegar, a menina escondera-se atrás de uma parede mas, quando o homem se foi, saiu do esconderijo, olhando para os lados e, não vendo ninguém, atirou-se à lavagem, remexendo-a com as mãozinhas, procurando e encontrando, aqui e ali, pedaços de comida, que enfiava na boca.

Que poderia fazer? perguntou Laura entre si. Se se mostrasse, a criança sairia correndo. E ainda que conseguisse pegá-la, que poderia fazer para ajudá-la? Muitas crianças haveria como aquela — muitas, muitas! E ela lá fora à procura apenas de uma, e a encontrara — pelo menos, encontrara o lugar onde morava. Era melhor não se meter com as outras. Laura procedia de uma prudente linhagem bostoniana. Era melhor cuidar primeiro dos seus, e depois...

Infelizmente, porém, a menina a avistara! Largando os punhados de comida, abriu a correr, veloz como um maçarico, descendo o beco e desaparecendo. E Laura, depois de haver esperado um pouco, não pôde fazer outra coisa senão retornar à rua, mas já sem coragem de continuar o passeio. Em vez disso, entrou no hotel, foi para o quarto e escreveu uma carta a Chris.

Levou tempo, a carta. O sol galgou lentamente o zênite antes que ela a concluísse. No entanto, não era uma carta comprida. Comprido foi apenas o tempo gasto em escrevê-la, pois como explicar o Sr. Choe a Chris, e como definir 0 que sentia por Soonya, o sentimento tão vago ainda, o contraste entre a mão suave em seu rosto e a voz insistente do Sr. Choe: "Ela é de ferro". Além disso, não vira o menino. Sem embargo, a carta lhe fez bem, pois expressou de maneira compacta até o vago dos seus sentimentos.

"Ainda é muito cedo", escreveu, "mas já comecei. Vi Soonya, porém não conversei com ela. Preciso encontrar o menino hoje, se puder. Está-me ocorrendo que ela talvez não queira renunciar ao filho. Sinto pena dele por viver com a velha avó. Soonya"...

Riscou o nome. Não, ainda não diria nada a Chris sobre A Casa das Flores. Aliás, não poderia senão aludir ao Sr. Choe. Na véspera haviam acontecido coisas em demasia e com demasiada rapidez. E também não mencionou a menina quase morta de fome. Era tudo tão difícil! Escreveu as duas palavras importantes, "Amo-o", e selou a carta.

Sim, precisava agora voltar à casa onde morava Soonya, mas precisava voltar só. E estabelecer sua própria comunicação; talvez o menino lá estivesse. Convinha ir logo, pois era provável que, à tarde, Soonya estivesse ocupada na Casa das Flores. O sol escaldava. Levaria um chapéu. E já se dispunha a sair, quando notou que a ameixeira estava querendo murchar. Tocou a terra do vaso, sentiu-a seca; pôs a bolsa de lado, foi ao banheiro, encheu um copo com água e despejou-a sobre as raízes.

 

Não lhe foi difícil encontrar novamente a casa de Soonya. Ela possuía um bom sentido de direção — quando Chris dirigia, era sempre ela quem estudava as estradas e lia os mapas. Fora capaz de orientar o motorista do táxi naquela manhã e, em muito menos tempo do que o que haviam levado na véspera, ou pelo menos assim lhe pareceu, chegou à casinha de tijolos. Soonya foi ao seu encontro. Estava pronta para sair, mas quando o táxi parou e Laura apeou, depôs tranqüilamente a bolsa e a sombrinha e, estendendo-lhe a mão, fez entrar a visitante. Não havia mais ninguém ali, não se via a velha mãe, não se via menino algum.

Não se sentiu à vontade sozinha diante de Soonya, porém teve o bom senso de compreender que aquilo talvez conviesse a ambas, aquela hora não perturbada. Mas saberia Soonya o suficiente para conversarem em inglês? Não permitindo a entrada de americanos na Casa das Flores, talvez não tivesse tido novas oportunidades de aprimorar o inglês que aprendera, havia muito tempo. E na véspera, não falara mais do que umas poucas palavras em inglês, confiando ao Sr. Choe o cuidado da tradução. Laura seguiu Soonya a uma sala interior, que não vira na véspera, o quarto dela, segundo lhe pareceu, agradavelmente mobiliado, estranhamente americano, com cortinas cor-de-rosa estampadas nas janelas, uma cama enorme recoberta de seda cor-de-rosa e almofadões cobertos do mesmo pano. Havia um retrato na penteadeira, uma fotografia de Chris, e ao ver-lhe o rosto jovem, rosto de menino, risonho e confiante, ela refreou a custo um súbito impulso para chorar. Teria sido naquele quarto?

Acompanhando-lhe o olhar, Soonya foi até a mesa e virou a fotografia para a parede.

— Faz muito tempo, — disse, em inglês. — Muito, muito tempo. Ele agora não é o mesmo homem. É seu marido. Tenho lembrança... mais nada.

— Você tem a criança, — disse Laura. Soonya dirigiu-lhe um rápido olhar de soslaio.

— Vai levá-lo?

— Não, — disse Laura.

— Então por que está aqui? Laura abanou a cabeça.

— É o que pergunto a mim mesma. Mas visto que o menino escreveu a seu... a meu marido, pelo menos parece que devíamos saber se é verdade que está precisando de alguma coisa, crescendo sem instrução.

Soonya ergueu rapidamente a mão.

— Não por minha culpa! Ele não pode ir à escola porque não pode ser registrado. E as crianças caçoam dele. Xingam ele. Porque o pai é americano. Ele me pergunta, Por que o pai é americano? Como posso explicar essa dificuldade? Mas, de qualquer maneira, recebe alguma instrução. De vez em quando, tenho professor particular para ele... Vocês chamam preceptor?

Ela considerou o rosto levemente afogueado de Soonya. Estavam ambas sentadas em almofadas no chão, com uma mesa baixa entre elas. O shoji abria para um jardim rochoso e, sobre o galho de uma árvore retorcida, um passarinho marrom desferiu uma súbita tríade de notas, de penetrante suavidade. Ela virou a cabeça para observar. O canto era maior do que o corpo minúsculo da avezinha, cuja garganta se intumescia, cujas asas pulsavam.

— E por que o pai dele é americano? — murmurou. Longo instante se passou antes que Soonya respondesse.

— A princípio é verdade que não estou apaixonada por ele, — disse, por fim. — Eu era muito pobre. Depois da guerra toda a gente é muito pobre. Meu pai morto, a casa destruída pelo bombardeio. Eu era filha única. Muitas moças como eu. Não há nada que se pode fazer senão cantar, dançar e viver com homem americano. A princípio só quero cantar e dançar, sem homem.

— Quantos anos tinha?

Os lindos olhos se dilataram.

— Vou fazer apenas dezoito. Dezessete anos pela conta americana. Mas sou alta como agora. Assim mesmo tenho medo do homem, de todos os homens. Quando um homem olha para mim, olho para o lado. Então, uma noite, vejo entrar um homem melhor do que os outros.

— Melhor?

— Sim, tão alto, tão bonito, tão triste! Não está rindo e gritando como os outros, está quieto e triste. Não olha para as moças. Então, um rapaz muito barulhento, um cafajeste do Texas, talvez, bêbedo, me pega, me puxa. Eu grito alto. O homem alto e triste levanta-se e me solta e leva para sua mesa. Já estou chorando muito, ele procura lenço e me dá.

Mas não fora isto o que lhe contara Chris. Não a procurara, não a levara para a sua mesa. Soonya estava sonhando, ou o confundira com outro homem, antes ou depois. Ou seria ela quem agora dizia a verdade? Como era corrosiva a dúvida! Entrementes, Soonya representava a cena, como se a recordasse, e enxugava as lágrimas, limpando os olhos com o próprio lenço, lágrimas verdadeiras.

— Tanta bondade, — soluçou Soonya. — Eu não estava acostumada com tanta bondade. Por isso, na outra noite, ele volta. A princípio, não está lá e tenho medo de que não venha. Mas ele vem, e corro para a mesa dele, sentindo-o tão seguro.

Fez uma pausa, abanou a cabeça e tornou a levar o lenço aos olhos. Lá fora, o passarinho voltou a cantar, três notas por três vezes, com a mesma doçura penetrante.

— E daí?

—Daí vamos às vezes às montanhas fazer piqueniques, às vezes dançamos à noite. E conversamos aqui. Não sei que ele é casado. Sonho tanto! A culpa é minha, sempre sonhando. Sonho que ele casa comigo e me leva para a América. América, país de sonho! Assim primeiro beijo, ele me mostra, encontramos pequena hooch. Quando chega o inverno, muita neve, não podemos ir à montanha, nem sair à noite para dançar quando a neve está alta e o vento é muito frio. E é assim.

— Entendo, — disse Laura. — E ele nunca disse que casaria com você?

— Nunca. Só tenho esperança.

— E quando você soube que estava grávida?

Soonya cobriu o rosto com as mãos. Em seguida, deixou-as cair sobre o regaço, onde ficaram, abandonadas, como flores de lódão, com as palmas voltadas para cima.

— Eu não estava querendo bebê, prometo. Então, ele me pede por favor para fazer bebê para ele.

— O quê!

Não, isso não era possível. Chris jamais...

— Mas por quê? — perguntou Laura.

Soonya franziu as sobrancelhas escuras, que lembravam mariposas.

— Ele está dizendo que talvez morra antes de voltar Para casa. A guerra acabou mas não é o fim, diz ele. Morrerá na guerra e não deixará nada vivo.

— E você lhe deu um filho!

— Porque eu o amo muito.

Ela cravou os olhos nos olhos escuros de Soonya e esta lhe retribuiu o olhar.

— Estou pensando, — disse Soonya, devagar, — estou sempre pensando que ele não pode deixar o filho. Por isso me levará com o filho para a América. Sou o mesmo que esposa se tiver filho. Então, um dia... chega uma carta.

— Que carta? — perguntou Laura em voz baixa.

— Sua carta, — respondeu Soonya. — Sei, porque li. Quando ele está dormindo, leio a carta, tirando do bolso. Você quer que ele volte para casa... para você. Quando leio, sei que ele vai. Ponho a carta no lugar. Não digo uma palavra. Só o amo mais do que nunca. E espero. Mas esperança não adianta. Ele ouve seu chamado. Um dia vai embora. No dia seguinte, seu amigo me traz dinheiro e uma carta dele. Na carta, ele me diz onde é sua casa, onde mora com pai e mãe, se eu estiver em dificuldade.

— É lá que moramos, — disse Laura. — Os pais agora estão mortos. Você tem a carta?

— Tenho, — disse Soonya. — Guardo-a para sempre.

Abriu a porta de ura armariozinho, que havia num vão da parede, e puxou uma gaveta. Procurou debaixo de outros papéis, mas voltou-se, surpresa.

— Não está aqui! Então, onde está? Já sei! Aquele menino malvado! Ele pegou! Às vezes leio para ele. Sempre tantas perguntas! "Quem é meu pai, onde está meu pai, por que não escreve, por que não vem?" Por isso leio a carta para ele. "Não toque nela", digo a ele.

— Foi assim que soube para onde mandar sua própria carta.

Ela agora compreendia tudo. Mas que escrevera a Chris para fazê-lo deixar mulher e filho para trás? E ela, acaso, o compensara disso? Não lhe dera filhos — não lhe dera filhos!

Afligiu-a o soluçar de Soonya, que recomeçou, manso e quieto soluçar.

— Por favor, não faça assim, — rogou ela. — Não posso culpá-la. Culpo a ele. Ele devia ter sabido, devia ter pensado.

Soonya ergueu a cabeça com súbita energia.

— Não foi culpa dele. Foi culpa sua.

— Minha? Mas eu não sabia.

—Uma carta como aquela! — voltou Soonya.

Lembrava-se da carta. Fora no dia do seu vigésimo terceiro aniversário, um dia frio de novembro. Subira para o quarto, em casa dos pais, em Nova York, a fim de vestir-se para a festa de aniversário que a mãe decidira oferecer-lhe. Suas janelas deitavam para Gramercy Park e a vista da chuva cinzenta metralhando as vidraças e escurecendo o parque vazio incutiu-lhe no corpo uma fria sensação de solidão. Fazia três anos, naquele dia, que Chris e ela haviam caminhado juntos pelo mesmo parque, ela completando então vinte anos, e haviam caminhado de mãos dadas pela primeira vez, ambos tímidos, ambos numa grande agitação de sentimentos, cada qual tateando, de certo modo, à procura do outro. Mas fora demasiado cedo, ela temera comprometer-se antes de voltar à universidade e à sua sonhada carreira, e Chris nada lhe dissera além de perguntar, com voz rouca, se ela lhe escreveria para a faculdade.

Nenhum deles pensava na Coréia. Na realidade, nenhum sabia coisa alguma acerca daquele pequeno país conturbado e distante. Ela fizera a promessa mas não a cumprira a contento. Escrevera cartas frias, curtas, receosa ainda de comprometer-se, pois aquela era a época em que se vira sob a profunda influência do famoso oceanógrafo, Don Lawson, que tentava persuadi-la a participar com ele e mais três cientistas de uma expedição oceânica, sua primeira expedição, destinada a coligir algas do fundo do mar. Jovem como era... mas fora ela, acaso, realmente jovem algum dia? Aquela era a penalidade que uma mulher pagava por possuir o que os homens chamavam "cérebro de homem", embora nada a enfurecesse mais do que a idéia de que a inteligência fosse privilégio masculino, como se a natureza a conferisse de acordo com o sexo e não por acaso e disposição dos genes. Seria sua culpa se era ela, a moça, a inteligência da família?

Sim, lembrava-se daquele vigésimo terceiro aniversário, sentada à janela, imersa em sombrios pensamentos, sentira-se envolver por tamanha onda de saudade de Chris, a cujas três últimas cartas não respondera porque elas nada lhe diziam, que se levantou, foi à secretária e escreveu-lhe uma carta à pressa, com inusitada veemência.

"Querido, querido Chris, completo hoje vinte e três anos. Será que você se esqueceu? De qualquer maneira, não recebi carta sua, embora eu tivesse esperado o dia todo uma palavrinha — até que você pudesse telefonar-me embora isso seja difícil. Pensou hoje em mim? Está chovendo, faz frio e o vento carrega as folhas mortas do parque. Quando voltará para casa? Como estará você? Estará mudado? Estarei mudada? Acho que não, apenas mais velha, e mais segura do que desejo. Se eu tiver logo notícias suas, não participarei da exploração do fundo do mar, que andei planejando com Don e os outros... Escreva-me uma carta de verdade, Chris! Ou será que você decidiu realistar-se? Nesse caso, irei com Don".

Lembrava-se até, praticamente, das palavras. Como não tivesse recebido resposta nenhuma, deixara silenciar o coração e partira na expedição em companhia de Don e, enquanto este mergulhara nas profundezas do mar à cata de algas, ela coligira o seu plancto numa rede presa a uma corda de nylon, a qual, por sua vez, fora amarrada à popa do iate que um amigo milionário de Don lhes emprestara. Hora após hora, dia após dia, quedara sentada na coberta, vestindo apenas o trajo de banho, completamente transformada, segundo todas as aparências, num cientista. Só ela sabia que as aparências enganavam. Por que Chris não escrevia? Telefonava para casa de três em três dias.

— Nenhuma carta, mamãe?

— Da Coréia, nenhuma, querida.

Mas, quando voltou para casa, lá estava Chris. Ele regressara simplesmente. Confessou, então, que tencionava pedir uma extensão de serviço na Coréia, se não um reengajamento, mas a carta de Laura o fizera voltar. Agora, onze anos depois, ela compreendia o motivo da extensão em lugar do reengajamento. Este último poderia ter significado a Europa em lugar da Ásia, e era a Ásia que ele queria, a Ásia que via agora sentada à sua frente, na forma graciosa de uma bela e estranha mulher.

—Por você ele me deixou, — disse Soonya, e suspirou.

Ela dobrou pequeninas pregas na seda macia da saia, absorta em pensamentos que Laura não conhecia. Os longos cílios retos lhe repousavam sobre as faces delicadamente róseas, e o velho medo insinuou-se no coração de Laura. Seria acaso verdade que o próprio Chris poderia preferir uma mulher capaz de dedicar-lhe todo o seu ser, corpo e espírito? Haviam discutido sobre isso mais de uma vez, enquanto ela lhe jazia nos braços, inteiramente sua e, no entanto, nunca inteiramente sua, como o sabiam ambos. Pois a hora do amor passaria e, depois, sempre ressurgiria nela a cósmica curiosidade do cérebro superior, o eterno indagador, que não conhece sexo nem personalidade, mas apenas a necessidade de descobrir a verdade no universo. Ela era capaz de esquecê-lo durante horas a fio e efetivamente o esquecia. Era até capaz de esquecê-lo por vários dias.

Mas Chris ria-se dela.

— Lembra-se de mim, querida? Sou seu marido! Dê uma folga ao velho oceano, não quer? Vamos dar um pulo até às Baamas!

E davam pulos freqüentes, ela sempre acompanhada daquela sensação de culpa, que a si mesma censurava, pois tinha sem dúvida o mesmo direito que ele de ser um indivíduo. Ele a esquecia sem escrúpulos quando se metia numa de suas campanhas e, se viesse a dar com os costados na Casa Branca um dia, como ela estava quase certa de que ele daria, sendo o homem que era, ver-se-ia obrigado a esquecê-la, e ela o compreenderia, como o compreendia agora. Não lhe importava ser esquecida, não, cumpria-lhe ser sincera consigo mesma — folgava até de o ser, para que também pudesse esquecê-lo e votar-se ao seu trabalho.

Sentiu-se despertar do profundo devaneio em que o comentário de Soonya a mergulhara pela voz de uma mulher fora da casa, voz alta de velha que ralhava e gritava em coreano, como se as cuspisse em alguém. Em resposta, ouviu outra voz, uma voz clara e jovem, que respondia com gargalhadas.

Soonya ergueu a cabeça e Laura olhou diretamente para os seus olhos.

— Quero ver o menino, — disse ela.

Soonya ergueu-se e dirigiu-se à porta do jardim, caminhando sem fazer ruído. Ali estacou, com a mão no dintel, e virou a cabeça a fim de olhar para Laura.

— Hoje não voltarei, — anunciou. — Vou mandá-lo sozinho.

Em seguida afastou-se, e Laura viu-lhe a saia vermelha estampada a mover-se entre as árvores e desaparecer atrás de uma touça de salgueiros que pendiam sobre um tanquezinho oval.

Ela não soube quanto tempo esperou. Parecia até que esperei toda a minha vida, pensou, mas talvez se passassem apenas alguns minutos. O jardim estava silencioso, o pássaro voara, e ela permanecia sentada, tensa e imóvel. Viria o menino do jardim ou do shoji fechado atrás dela? A casa também quedara em silêncio, como se somente ela estivesse presente. E se Soonya a houvesse traído, levando embora o filho para um lugar qualquer e deixando-a ali, a esperar até que ela se fosse, desalentada?

Nisso, viu-o. Ele veio do lado da casa e parou diante dela, tendo o jardim por pano de fundo. Laura sentiu a respiração presa na garganta. O menino poderia ter sido o próprio Chris aos doze anos, alto, membros enxutos, descalço, pernas nuas, vestindo calções azuis e camisa esporte branca, ambos em trapos, ambos não muito limpos. Mas o cabelo escuro e liso, bem penteado, estava molhado ainda. Chris em pessoa, pensou ela, exceto os olhos, a pele olivácea. A boca também não era a sua. Era a boca meiga de Soonya.

— Bom dia, madame, — disse o menino e ficou esperando, tímido mas não constrangido, com a expressão brilhante, o olhar interessado, de excitação, mas uma excitação controlada. Um menino sabido demais para a idade? Escassamente uma criança, pelo menos!

— Bom dia, — disse ela. — Acho que não sei o seu nome.

— O nome de meu pai... Christopher. Sou Kim Christopher.

— Seu inglês é bom, observou ela.

Ele entrou e sentou-se na almofada em que Soonya estivera sentada. Um menino polido, pensou Laura, muito bonito, mas que trazia alguma espécie de máscara, para proteger-se talvez. Se era difícil para ela, seria também difícil para ele.

— Recebemos sua carta, — prosseguiu. — Ele... seu... seu pai, gostaria de ter vindo mas, neste momento, está empenhado numa campanha política e não pôde sair. Estou aqui em seu lugar.

Ela decidiu não o tratar como a uma criança, mas não estava muito certa de ser compreendida. Entretanto, se não a compreendia, ele ocultava a ignorância atrás da polidez.

— Meu pai... ele está bem?

— Está, está muito bem.

— A senhora tem novo retrato?

— Tenho.

Ela abriu a bolsa e tirou dali o retrato que guardava de Chris, o mesmo que mostrara a Soonya. Todo aniversário o renovava e, visto que ele fizera anos havia apenas um mês, seu rosto, resoluto e jovial, olhava para ela tal e qual era. O menino pegou-o, ansioso, com ambas as mãos.

— Cabelo é branco! — exclamou.

— Só um pouquinho, dos lados, — disse ela.

— Não é velho.

— Não, mas também não é muito moço.

— É bonito, — murmurou Kim Christopher e, em seguida, ergueu os formosos olhos para interrogá-la. — Posso guardar o retrato?

Ela desfez-se da relutância.

— Pode, se gosta dele. Ou quer que eu lhe mande outro maior?

— Este aqui, por favor. — Tornou a considerar o rosto. — Ele não me quer?

Ela contra-atacou.

— Você quer deixar sua mãe?

O garoto era esperto.

— Também quero meu pai.

— Como poderemos arranjar isso? — perguntou ela.

Surpreendia-a, de certo modo, que ele falasse inglês tão bem.

— O que meu pai disser, eu farei. Pertenço ao pai não à mãe.

— Mas você é tudo o que ela tem.

— Ela é mulher. Tem de fazer o que ele disser. Se ele disser que devo ir, ela também deve.

— E se ele quiser que você fique com ela?

Ele apertou as mãos, num gesto de desespero.

— Aqui não sou nada... nada. Mesmo que ele mande dinheiro para a escola, não sou nada. Não sou coreano. Sou estrangeiro. Meu pai americano. Por que nasci?

Chris poderia ter falado daquela maneira. Jovem e rebelde, impetuoso e magoado. Ela estendeu a mão e tocou-lhe o braço.

— É que nós não sabemos o que fazer. Diga-me... você não gosta de sua mãe? Ela não é boa para você?

Ele se afastou da mão que lhe repousava no braço.

— Gosto, não gosto.

— Ela é muito meiga, por que não gosta dela?

Ele não replicou. Continuou sentado, olhos fitos no jardim, menos taciturno do que tentando controlar-se. Que era o que ele estava dominando? Que palavras coléricas, que ressentimentos, e contra quem?

— Você não quer dizer-me o que está pensando? — tornou ela, por fim.

— Não, — redargüiu ele com firmeza. Ergueu-se, de repente, e fez um curto arremedo de inclinação. — Se a senhora não tem mais nada para dizer-me, faça o favor de desculpar-me, madame.

E saiu correndo da sala para o jardim tão depressa que se diria que não estivera lá. Ela esperou por mais algum tempo e depois também se levantou. Abriu-se o shoji no mesmo instante, como se ela tivesse estado sob observação e surgiu a velha. Laura saiu, acompanhada por ela até o portão e entrou no táxi, que não dispensara.

— Vamos voltar ao hotel, — disse ao chofer.

O dia de primavera convertera-se, de improviso, num dia de verão. Quando chegou ao quarto, sentia-se cansada e com muito calor. A atmosfera era opressiva e da janela se avistavam nuvens negras e borrascosas, que pairavam sobre a crista da montanha. Sentiu-se muito longe, infinitamente longe de Chris, e dirigiu-se impulsivamente ao telefone. Depois de meia hora de esforços conseguiu chegar à telefonista ultramarina, mas não foi adiante.

— Sinto muito, — cantou a voz da jovem coreana, — mas estamos tendo dificuldades de transmissão.

Dificuldades de transmissão! Curvou-se diante do irremediável, desistiu da idéia de ouvir a voz de Chris e entrou a refletir na possibilidade de uma carta. Não, era demasiado cedo para escrever. Ainda não sabia o suficiente sobre o menino para estender-se a respeito dele. E se nunca mais tornasse a vê-lo?

O estrondar de um trovão ecoou sobre ela. O sono, eis o seu único meio de fuga, um banho quente e o sono. Uma hora depois, banhada e refrescada, o cabelo escovado e entrançado, jazia na cama adormecida, enquanto a tempestade se abatia sobre a cidade.

Despertou ao crepúsculo. O trovão e a chuva tinham passado e ela se sentia refrescada e faminta. Lembrava-se agora de que não comera coisa alguma desde a manhã. Saltou da cama, vestiu-se e desceu à sala de jantar. Era tarde, a hora do jantar praticamente já passara, mas ainda havia dois rapazes em uniformes norte-americanos sentados ao pé da janela. Eles ergueram os olhos quando ela entrou. Laura percebeu que a observavam com interesse e que a seguiram com a vista enquanto ela se assentava à mesa pegada. Estavam terminando o jantar, mas demoraram-se a tomar o café, discutindo-a. Ela sorriu quando um dos dois lhe interceptou o olhar e, imediatamente, ambos se levantaram e aproximaram.

— Desculpe-me, — principiou o mais moço, o de cabelos vermelhos, — mas já não nos conhecemos?

Ela riu-se.

— Acho que não pois cheguei ontem.

— Então podemos conhecê-la agora?

— E por que não? Sou a Sra. Chris Winters. Ele gemeu.

— Eu sabia. Não temos sorte! Sou Jim Traynor, e este é o Tenente Lucius Brown. Fomos destacados para cá e, embora não devêssemos estar em hotéis... bem, aqui estamos. Por quê? Porque a carne é boa... vem do Japão. Carne de Cobe, tratada com cerveja e manipulada à mão, de modo que derrete na boca. Vejo que está comendo peixe... É um erro, minha senhora!

— Podemos sentar-nos? — perguntou o Tenente Brown.

Correto e parcimonioso na aparência e na fala, trazia impressa nos modos a marca de sua educação bostoniana. Jim, em compensação, crescera evidentemente em alguma rua de cidade superpopulosa — Chicago, talvez, — e era imediata e inevitavelmente "Jim" nos momentos de folga, sem atenção à patente militar.

— Tenham a bondade, — disse ela. — Eu estava exatamente pensando no que faria esta noite.

Sentaram-se os dois.

— Já esteve em Walker Hill? — indagou Jim.

— Não estive em parte alguma, — disse ela.

Os dois homens entreolharam-se.

— Vamos levá-la a Walker Hill, — alvitrou Jim.

— Walker Hill, — concordou Brown.

Uma hora depois, viu-se ela novamente sentada entre dois rapazes, mas como era diferente a cena! Numa sala enorme, cheia de mesinhas em que havia americanos sentados sozinhos, aos pares ou em grupos de quatro, ou ainda acompanhados de moças coreanas, a música, estridente e rouca, brigava com o estardalhar dos pratos e os gritos do bar. Numa extremidade da sala, uma dançarina executava o seu número em trajes sumaríssimos, uma jovem coreana que imitava com graça grotesca, as momices de um watusi. Na pista de danças, soldados americanos dançavam com moças coreanas, que vestiam curtos e apertados vestidos ocidentais, os cabelos encaracolados e amontoados sobre a cabeça, em monstruoso exagero.

— Onde estamos? — perguntou ela, pasmada.

Jim riu-se.

— Não faça caso das moças, minha senhora. Elas acham que estão sendo americanas. Vêem as velhas revistas de cinema e procuram parecer-se com as estrelas de Hollywood. Procuram representar como elas também, mas... — e sacudiu a cabeça.

O Tenente Brown continuou por ele.

— É um fenômeno interessante, Sra. Winters. As raparigas que nunca viram moças americanas de verdade, imaginam que todas as mulheres americanas são como as rainhas do cinema. De modo que se pintam para semelharem o mais possível as divas da tela. Depois, raciocinando que essas estrelas devem proceder de acordo com a própria aparência, as jovens coreanas comportam-se com uma liberdade que as nossas moças, mesmo em Hollywood, nunca imaginaram ter.

— Outro dia, uma moça gritou para mim do outro lado da rua, — principiou Jim e, ao ver o olhar do amigo, interrompeu-se abruptamente.

Nesse momento, uma jovem, linda como uma madona, aproximou-se deles e dirigiu-se a Jim.

— Tenho corpo quente, — murmurou.

— Suma-se, — resmungou ele entredentes.

Laura desatou a rir.

— Positivamente, você é atraente demais!

O riso dela rompeu-lhes a reserva. Lá estava uma mulher, uma senhora, uma americana, com quem podiam conversar.

— Puxa, Sra. Winters, — disse Jim, — a senhora nem imagina. Se um camarada cai na asneira de dar uma volta, essas moças caem sobre ele feito moscas. Imagine que uma delas, em plena rua, chegou até a me agarrar o zíper e...

— Devagar, rapaz, — atalhou o outro, depressa. — Mas é verdade, Sra. Winters, asseguro-lhe que não se pode culpar exclusivamente os homens. Isso para mim não é tentação. Estou noivo de uma moça maravilhosa em Boston, mas Jim aqui... — e sorriu.

Jim rosnou.

— Pare com isso, agora.

O Tenente Brown continuou.

— Veja os rapazinhos que vêm do interior e das fazendas, garotões, digamos, entre dezoito e vinte e cinco anos, por aí. Estes positivamente se entregam. Não que as moças sejam tão atraentes assim, mas os sujeitos, de qualquer maneira, se acham num estado de espírito rebelde, prontos para tudo. Não gostam daqui, não sabem por que estão aqui, têm saudades de casa. Olhe aquele camarada.

Era um rapazinho esgrouvinhado, que ainda não completara vinte anos e que passou por eles, arrastando os pés, agarrado a uma coreana bonita, o corpo dela colado ao seu, o rosto dela enterrado no pescoço dele.

— Na terra dele, — dizia o Tenente Brown, — garota alguma seria capaz de olhar para ele... Nenhuma garota que ele pudesse querer, pois o coitado é feio... como... como...

— O diabo, — ajuntou Jim. O Tenente Brown prosseguiu.

— Mas vive atrás da pequena mais bonita e mais popular, justamente a que nunca poderá conseguir. Veja, por exemplo, a gatinha que está com ele agora.

Jim interrompeu-o.

— Ela lhe disse que ele é o sujeito mais bonito que ela já viu em toda a sua vida, e ele acreditou. Ele andava querendo que alguma garota lhe dissesse isso desde que entrou para o jardim da infância e a garotinha que morava na casa ao lado, em vez de dizê-lo, mandou-o pentear macacos.

Ela ouvia, em atitude pensativa.

— Nada disso teria importância, se não aparecesse um filho.

— E aparecem muitos, — disse Jim. — A senhora devia vê-los aí por essas aldeias.

A música azucrinante martelava-lhe os ouvidos. Uma jovem cantava uma canção sentimental numa espécie de inglês.

— E ela sabe o que está cantando? — perguntou ela. Jim abanou a cabeça.

— Nem uma palavra. Decorou a letra como um papagaio, ouvindo algum disco quebrado que encontrou por aí.

Ela ficou em silêncio no meio do estardalhaço da canção, do piano e dos pés arrastados. Devia ou não devia revelar àqueles dois a razão por que estava ali? Poderiam ser-lhe de alguma ajuda? Mas como poderiam ajudá-la? Entretanto, antes que pudesse responder às próprias perguntas, surpreendeu-se ao ver o Sr. Choe, alto e elegante, assomar à porta. Lá ficou ele, perscrutando a multidão, até que seus olhos deram com ela. Tanto que a viu, aproximou-se, rápido, evitando com graça abalroar os pares dançarinos, esquecidos de tudo salvo dos próprios movimentos.

— Ah, a senhora está aqui, — exclamou, assim que chegou ao pé de Laura. — Estive à sua procura.

— E como conseguiu encontrar-me? — perguntou ela.

— No hotel sabiam do seu paradeiro.

Ele ficou à espera e, como não lhe restasse outra alternativa, Laura apresentou-o aos dois americanos.

O Tenente Brown apertou-lhe a mão. Jim cumprimentou-o com a cabeça.

— Não quer sentar-se? — convidou ela. Ele continuou em pé.

— Recebi ordens para transmitir-lhe um convite e pedir-lhe que o aceite.

— Deveras? Onde?

— Kim Soonya convida-a para assistir ao seu número na Casa das Flores. A senhora será a primeira americana a vê-lo.

Ela ergueu-se incontinenti.

— Desculpem-me, cavalheiros. Mas tenho uma razão muito especial para aceitar esse convite.

— Sem dúvida, — disse o Tenente Brown.

— Claro, — acudiu Jim. E ambos se ergueram.

Quando chegou à porta, ela olhou para trás e notou que os olhos surpresos de ambos a haviam acompanhado:

— Eu estava com receio de não poder encontrá-la antes do toque de recolher, — disse o Sr. Choe. Estavam na confortável limusine dele e o motorista abria caminho por entre a multidão. — Felizmente, no hotel me disseram onde a senhora estava, visto que conhecem o paradeiro de todos os hóspedes estrangeiros e sabem onde se acha cada um deles a qualquer momento.

— Por quê?

— Estes são dias incertos. No caso de uma súbita agitação, tal como a inesperada derrubada do governo, por exemplo, precisamos saber onde está cada pessoa que não tenha nascido em nosso país. Isto para a sua própria proteção.

— Os senhores estão esperando a derrubada do governo? — perguntou ela.

— Precisamos estar à espera do que quer que seja, — replicou ele. — Eu pessoalmente entendo que estamos seguros pelo menos por mais um ano. Mas nunca se sabe o que pode estar fervendo debaixo da superfície da nossa nação. Os tempos são maus, Sra. Winters. O nosso governo tradicional era uma monarquia. Esse governo foi destruído pelos japoneses, quando tomaram conta de nossa terra e obrigaram nosso príncipe herdeiro a desposar uma princesa japonesa. Durante muitas décadas estivemos sujeitos ao cruel domínio militar japonês. Agora, sob a orientação americana, estamos tentando estabelecer um governo que não compreendemos plenamente, uma democracia que não é originária daqui. Existem, inevitavelmente, dissensões entre homens ambiciosos, cada um dos quais tem os próprios seguidores no exército. A paz está longe. Nossos jovens são rebeldes, sobretudo desde os tratados comerciais com o Japão. Sentem-se tentados pela propaganda comunista do Norte, que insiste na unificação do país a todo o custo.

Fora um longo discurso, que ela ouviu com atenção, compreendendo plenamente quanto havia de portentoso em suas palavras e, no entanto, tão concentrada na própria missão que seus pensamentos só conseguiam focalizar um menininho, que era o filho de seu marido.

— Nesse caso, que acontecerá a crianças como Kim Christopher?

O Sr. Choe respondeu sem hesitação.

— Serão mortos. Muitos já morreram.

— O que é que o senhor está-me dizendo?

—Houve um período no último decênio, Sra. Winters, em que muitas dessas crianças, geradas pelos seus homens, desapareceram misteriosamente.

— Desapareceram?

— Sim. Morreram. De muitas maneiras. Além disso, algumas do sexo masculino foram castradas. Não só aqui, mas também no Japão. É verdade. Isso foi feito. A senhora nos recriminará e somos muito para recriminar, mas não se esqueça de que somos um povo antigo, e muito orgulhoso. Na realidade, basta-lhe ver o que acontece em seu próprio país quando duas raças diferentes se encontram pelo sangue. Muitos assassínios...

Ela viu-lhe o pálido perfil severo, belo e distante como o de um deus asiático a olhar para a rua iluminada. Naquele momento, tomou uma decisão, involuntária, compelida pelo horror.

— Nesse caso, Sr. Choe, o senhor precisa ajudar-me a tirar Kim Christopher deste país.

— Será a sua única salvação, — replicou ele.

O carro parou diante de um portão brilhantemente iluminado, no centro de um muro de tijolos, decorados com flores pintadas. Duas moças vestidas à maneira coreana esperavam com ramalhetes nas mãos.

— Ah, somos esperados, — disse o Sr. Choe.

Desceram do carro, as moças correram ao seu encontro, apresentando os ramalhetes.

— Sejam bem-vindos, sejam bem-vindos, — disseram elas, uma após a outra.

— Obrigada, — replicou Laura e, com os braços carregados de flores, seguiu-as pelo pátio adentro e subiu os degraus de mármore até o vestíbulo de entrada. O vestíbulo, segundo parecia, atravessava a casa, com shoji que se abriam à esquerda e à direita. Na extremidade do vestíbulo, caminhando na sua direção, divisou Soonya, que vestia saia de brocado de cetim e corpete de ouro pálido. Os cabelos escuros trazia-os arrumados sobre a cabeça em vez de entrançá-los e, quando ela se acercou, Laura sentiu F& frio no coração. Aquela, sem dúvida, era a mulher mais bela que já vira em toda a sua vida, e esperava que fosse mais bela agora do que ao tempo em que Chris a conhecera. Mas a tez pálida, fina, delicada, os clássicos traços asiáticos e os grandes olhos escuros nunca mudariam.

Entrementes, Soonya se adiantou, tomou as flores e deu-as a uma jovem pequenina e elegante, de saia e corpete verdes.

— Demasiadas flores, — disse a Laura. — Sufocara. Entre, por favor.

Travou da mão de Laura e, segurando-a com delicadeza, conduziu-a a outra sala. Havia homens sentados em almofadas de cetim e, ao lado de cada homem, uma moça lhe servia comida, acendia os cigarros e abanava o leque de vez em quando, rindo-se, obediente, às suas pilhérias e sujeitando-se às suas carícias. Num canto da sala havia uma almofada de veludo vermelho com um espaldar e ali Soonya convidou Laura a sentar-se. Era, segundo parecia, o seu lugar habitual e, quando Laura protestou, Soonya obrigou-a delicadamente, forçando-lhe os ombros com as duas mãos, de sorte que ela precisou obedecer. Ao pé dela sentou-se o Sr. Choe e uma moça veio servi-lo como eram servidos os outros homens.

Soonya, entretanto, vendo que tudo estava em ordem, não se sentou. Em vez disso, endereçou-se com dignidade a uma plataformazinha, galgou-a e ficou esperando. Não se sabia a quem esperava, mas, fosse quem fosse, acabou-se impacientando e bateu palmas. Imediatamente um menino destacou-se das alas, um menino coreano com uma túnica branca de homem, peruca de cabelo preto liso na cabeça e chapéu alto de pêlo de camelo. Trazia uma espécie de alaúde que Laura ainda não vira e sentou-se de pernas cruzadas no chão, principiando a ferir as cordas do instrumento. Após breve prelúdio, Soonya começou a cantar. Possuía uma voz rica e alta de soprano, muito pura e muito clara, que a envolvente melodia coreana lhe permitia revelar em toda a sua plenitude.

Laura ouvia, encantada e pensativa. Como poderia competir com aquela mulher? Por que havia Chris escondido Soonya em sua memória durante tantos anos? Se não tivesse nada que esconder ter-lhe-ia contado, naturalmente. No meio do seu melancólico cismar, notou que o menino erguera a cabeça e olhava para ela, com os dedos ocupados com as cordas. Nesse momento, viu-lhe os olhos. Eram os olhos de Kim Christopher. Inclinou-se na direção do Sr. Choe.

— Por que me trouxe aqui?

— Foi ela quem me pediu, — replicou ele.

— Mas por quê, por quê?

Ele agitou a mão na direção de Soonya.

— Ela está cantando. Ouçamo-la, — replicou, e Laura calou-se.

— O senhor nunca tinha visto aquele menino?

Ela fez a pergunta ao Sr. Choe quando voltavam para o hotel no carro dele. Esperara apenas que Soonya acabasse de cantar. Em seguida, antes que elas pudessem encontrar-se, pedira para sair.

O Sr. Choe protestara.

— Geralmente há uma festinha nestas ocasiões.

— Posso voltar sozinha, — tornara ela.

— Não, não.

Ele, então, saíra, enquanto a moça lhe carregava o sobretudo e o chapéu até o carro e lhos estendia, e ele a recompensava com dinheiro, o que fez com que ela se inclinasse profunda e repetidamente.

— Nunca vi o menino, — replicou ele.

— É o filho de meu marido.

Ele voltou-lhe um rosto surpreso.

— Esse menino, não! É coreano!

— Ela o fez parecer assim esta noite, por uma razão qualquer. Que razão foi essa?

— Uma mulher tortuosa, — disse ele. — Mas uma mulher bonita talvez seja sempre tortuosa.

— E como usará ela o menino? — perguntou Laura.

— Quem sabe? Talvez faça dele o seu gerente comercial. Talvez ele procure clientes para ela. Ela se sentia aparvalhada.

— E esse lugar dela será algo mais que um bordel?

Ele respondeu com certa relutância.

— Talvez agora... talvez seja isso o que se pode chamar-lhe. Mas a senhora precisa compreender que nós, povos mais antigos, temos maior experiência do mundo que os senhores. Ou talvez apreciemos uma sociedade ordenada e para atingir a ordem permanente, baseamos nossas leis na natureza humana. Em seu país, suas leis são corretivas ao passo que as nossas procuram seguir a natureza humana. Por exemplo, sabemos que os homens precisam de mulheres como as mulheres não precisam de homens. Os homens, na verdade, somos muito simples. Precisamos de mulheres como esposas e mães de nossos filhos. Mas também precisamos de mulheres como instrumentos sexuais. Ora, raramente, as duas funções podem ser exercidas pelas mesmas mulheres. Aceitamos o fato e permitimos que as mulheres se dividam. As que desejam ter a existência estável de esposa e mãe só se entregam no casamento. As que, por várias razões, de acordo com a própria natureza, não necessitam de estabilidade, enveredam facilmente para a prostituição. A propósito, o nosso mundo não é tão duro. Chamamos a essas mulheres flores e não prostitutas.

Sua resposta ao filosofar dele foi direta.

— Uma prostituta é uma prostituta.

Ele replicou, delicadamente:

— Terá alguma importância o nome por que são chamadas?

Ela surpreendeu-lhe um olhar de soslaio.

— Para nós tem. Somos pão-pão, queijo-queijo.

— Ah, sim, eu me lembro... Sem consideração pelos sentimentos!

— Não se pode esconder a verdade.

— Nem a natureza do homem, — acudiu ele, — mas creio que somos mais verdadeiros que os senhores. Aceitamos a prostituta como parte da sociedade. Ela tem o seu lugar reconhecido. Ao mesmo tempo, tomamos em consideração seus sentimentos. Chamamo-la de flor.

Calaram-se mas, chegados ao hotel, ele a reteve no saguão, agora vazio com exceção do recepcionista atrás do balcão.

— Que pretende fazer com o menino? — perguntou ele.

— Quando cheguei, — disse ela, — minha única intenção era pô-lo numa escola e dar-lhe uma educação... Prepará-lo para ganhar a vida de algum modo honrado.

— Fazer dele um coreano, — corrigiu o Sr. Choe.

— Ele é coreano, não é? Nasceu aqui.

— A senhora pode chamar-lhe assim, mas nós não o fazemos. Para nós, ele é o filho de seu pai. É americano. Por que o pai não o reclama? Nesse caso todos os problemas estariam resolvidos.

Como poderia ela explicar-lhe?

— O senhor esteve no meu país... — principiou Laura.

— Em seu país todas as nacionalidades estão misturadas, — protestou ele. — Não há vergonha alguma em ser-se meio coreano. Conosco, já não acontece o mesmo. Somos o povo mais antigo do mundo, o mais civilizado. Quando seus antepassados ainda viviam em cavernas, meus antepassados eram artistas e sábios.

— Eu sei, — recuou ela, à pressa. — Já li a esse respeito. Não é isso. É que...

Ele esperou, alto, muito digno, pronto para magoar-se, e ela se sentiu pregada na parede pelo olhar firme e penetrante dele. Não havia fugir-lhe. Via-se compelida a confiar naquele homem.

— Meu marido vai concorrer às eleições para governador do nosso Estado. Seus adversários ficariam encantados com a história desse menino. Simplesmente não posso compreender uma bela carreira irremediavelmente perdida pela tolice cometida por um rapazinho, numa ocasião em que ele se sentia só e com medo de nunca mais voltar para casa.

— O que a senhora está dizendo é que não deseja levar o menino para a casa do pai, que é o seu lugar.

— Para nós é possível que o lugar dele seja aqui.

— Deverá ele, um ser humano, ver-se preso entre esses possíveis e impossíveis? Ah, Sra. Winters, é melhor que enfrente a verdade!

Foram interrompidos pela entrada no saguão dos Tenentes Brown e Traynor. Os dois estavam bêbedos.

— A...qui es...tá ela, — berrou Jim. — Estivemos à sua procura em toda parte.

— Em toda parte, — ecoou o Tenente Brown com sua voz de baixo profundo.

— Deixe-me conduzi-la até o seu quarto, — apressou-se a dizer o Sr. Choe.

Colocou-se entre ela e os americanos e, segurando-lhe o cotovelo, conduziu-a ao elevador e dali à porta do quarto dela.

— Obrigada, — disse ela com um tênue sorriso, entre irritada e divertida. — Obrigada por livrar-me da minha própria gente.

Ele inclinou-se e esperou. Ela ergueu as sobrancelhas.

— Desejo ouvir a porta trancada, — disse ele.

— Oh... mais uma vez obrigada e boa noite.

Ela fechou a porta e deu a volta à chave. E, nesse momento, sem aviso, uma sensação de completo isolamento envolveu-a, como somente sentira nas raras vezes em que nadara no fundo do oceano, sozinha, cercada de estranhas criaturas inumanas. Naquele mundo escuro e profundo, movendo-se entre espécies de vida que não eram a sua, sentira-se, às vezes, presa de pânico, que, todavia, aprendera a dominar. Fora-lhe necessário aceitar o isolamento para poder prosseguir na carreira de oceanógrafa. Sua única transigência consistira em concordar em nunca descer sozinha àquelas profundezas. Agora, recordando, lembrou-lhe certa tarde. Com um companheiro, John Wilton, ao lado, nadava a uns setenta pés abaixo da superfície, perto da ilha chamada Saboga, catando algas. As frondes ondulantes das plantas marinhas, verdadeira floresta em miniatura que se movia ao ritmo das correntes do mar, eram um país encantado de árvores, delicadas como sombras, mas entre as quais poderia ser facilmente atacada por alguma criatura do mar, uma bicuda ou um tubarão. Atenta, prosseguira na tarefa, que consistira em apanhar as muitas formas de algas que estavam procurando, cujas qualidades curativas, tão próximas dos vegetais, tão chegadas aos animais, ainda poderiam assegurar uma fonte eterna de antibióticos para a cura do gênero humano. Além disso, as estranhas enzimas, semelhantes a hormônios, capazes de mudar a própria vida, até o sexo...

Deixara-se cair numa poltrona, cismando, quando tornou em si.

Que estava fazendo ali, metida num mundo que não conhecia e não podia compreender, sozinha, sem Chris, entre estranhos que não podiam ajudá-la? Não possuía equipamento para viver naquele mundo, muito menos para resolver um problema que não era seu em primeiro lugar, e para o qual não parecia haver solução. Lutou contra a tentação de largar tudo, voltar para casa, declarar-se vencida. Afinal de contas, aquele era apenas um dos problemas resultantes das vicissitudes da guerra e das compulsões de povos estrangeiros reunidos pela necessidade.

Nesse momento, como se ela tivesse estendido a mão para pedir auxílio, o telefone tocou. Apanhou o receptor e ouviu um inglês misturado com coreano.

— Senhora Christopha Wintah, por favor?

— Sim?

— Ligação ultramarina, por favor.

E, antes que pudesse dizer qualquer coisa, através dos oceanos e do meio da noite, chegou-lhe a voz de Chris. Chegou-lhe milagrosamente, como se ele estivesse no quarto ao lado, erguendo-se e caindo apenas levemente sobre as ondas atmosféricas.

— Laura?

— Oh, Chris, que delícia ouvi-lo! Eu já estava começando a sentir pena de mim.

— Quando é que você vai voltar para casa?

— Ué, não sei. Acabo de chegar. Encontrei o menino.

— Que tal é ele?

— Como você!

Sobreveio o silêncio. Ela protestou contra ele.

— Chris?

— Sim, estou aqui...

— Não sei o que fazer com ele.

— Ponha-o numa escola em qualquer lugar e volte para casa. Preciso de você. Parece que terei minha candidatura oficializada pelo Partido.

— Que boa notícia!

— Mas ainda há muito que fazer. Você tem dinheiro?

— Tenho, bastante. Ainda não comecei a gastar... Vi Soonya também.

— Ela quer dinheiro?

— Não me disse nada.

— Se você tiver alguma dificuldade, não se esqueça de ir à Embaixada Americana. É para isso que eles estão aí.

— Não estou tendo dificuldade... Acontece apenas que não sei o que fazer.

— Volte para casa.

— Não, agora estou aqui, preciso fazer alguma coisa pelo menino.

— Devo ir também?

— Não. Farei o que for preciso.

Não parecia haver mais nada para dizer. Mas ela agarrou-se ao receptor, ansiosa por fazê-lo continuar falando.

— Chris, você não me contou como isto aqui é bonito... mas estranho. Quanto à gente, parece-me difícil compreendê-la. Pensa de maneira tão diferente de nós.

— Faça que os americanos a ajudem.

— Está bem, Chris.

A voz dele, repentinamente, se desvaneceu. Ele continuava falando mas ela já não ouvia.

— Chris... Chris... — gritou, mas não obteve resposta. Só lhe restava desligar o aparelho e ir para a cama.

No dia seguinte, pela manhã, pareceu-lhe um sonho que ela e Chris tivessem realmente conversado através dos mares. No entanto, a conversação lhe permanecia clara na memória. Faça os americanos ajudá-la, dissera ele, e com essas instruções ela se levantou, resoluta, e encetou a tarefa do dia.

— Onde fica a Embaixada Americana? — perguntou no balcão, uma hora depois.

— Do outro lado da rua, por favor, madame, — informou-lhe o recepcionista.

Atravessou a rua e foi conduzida primeiro a uma sala, depois a outra, depois a outra, até que, por fim, se viu diante de uma mulher fria, de meia-idade, que falava com um sotaque arrastado de Ohio.

— Sra. Winters? Sente-se. Que posso fazer para ajudá-la?

Ela sentou-se.

— Vim aqui para encontrar uma criança... Uma criança meio-americana, Srta...

— Pitman. Filho de seu marido?

— Como é que a senhora sabe?

— A senhora não é a primeira. Aliás, não são muitas as que vêm e, às vezes, é o homem que aparece à procura do filho. Também não são muitos. A maior parte das crianças cresce por aqui mesmo.

— E o nosso governo não faz nada por eles?

— Não, senhora. Não temos política nenhuma firmada nesse sentido. Nossos homens estão agora em sete países da Ásia e nós...

— E que será das crianças?

— Não sei dizer-lhe. Não temos política...

— A senhora já disse isso.

A Srta. Pitman principiou a arrumar uns papéis.

— Se eu puder ajudá-la...

— Qual é a melhor coisa que posso fazer?

— Depende do que a senhora queira fazer.

— Não sei o que posso fazer.

— Uma de duas coisas, Sra. Winters: deixá-lo aqui ou levá-lo para os Estados Unidos.

— Que lhe acontecerá se eu o deixar? Pô-lo-ei num internato, naturalmente...

— Não existem internatos, a não ser... que idade tem ele?

— Doze anos.

— Nesse caso não existem internatos aqui. Ele, evidentemente, não pode ser qualificado como órfão.

— Que hei de fazer então?

— Esqueça-o. É o que faz a maioria dos americanos. São milhares as crianças nessas condições.

— E que será delas?

— Depende do que acontecer por aqui. Se houver urna invasão comunista... o que não será impossível, se nos virmos tão envolvidos no Vietnã que precisarmos tirar daqui grandes efetivos... serão todas mortas, provavelmente, de uma forma ou de outra, ou se tornarão comunistas, visto que mais ninguém parece interessar-se por elas.

Laura ficou observando o rosto atrás dos óculos da Srta Pitman enquanto esta se absorvia em alguma tarefa relacionada com os papéis que punha em ordem.

— Srta. Pitman, a senhora não se incomoda?

— Não posso dar-me a esse luxo. Não há nada que eu possa fazer.

— E não há nada que eu possa fazer ao menos a respeito desse menino?

A Srta. Pitman olhou por cima dos óculos.

— Se seu marido reconhecer a paternidade, poderá levá-lo para os Estados Unidos como cidadão americano.

— Só isso?

— Só isso.

Ela levantou-se.

— Muito obrigada.

— Não há de quê.

Isso, então, era tudo o que ela podia fazer. Podia esquecê-lo e voltar para casa, ou deixar que Chris declarasse ser o pai e levá-lo para casa. Voltaria ao hotel e escreveria uma carta a Chris, explicando como lhe seria fácil dizer simplesmente a verdade; ela, então, poderia levar o menino para os Estados Unidos. E levá-lo para casa? Sendo tão parecido com Chris?

Da janela do quarto que ficava acima do quarto dela no hotel, o Sr. Choe vira-a atravessar a rua na direção da Embaixada, esperara e vira-a voltar. Ela, portanto, devia estar agora em seu quarto. Fazia muito tempo que não se encontrava nem conversava com uma mulher americana, e vagas lembranças se agitaram nele. De uma feita, quando ainda estava na Universidade — no último ano, lembrava-se bem — estivera perdidamente apaixonado por uma moça, que agora lhe voltava ao espírito porque se parecia com essa Sra. Christopher Winters. É verdade que não tinha o cabelo vermelho e talvez não fosse tão bonita mas, julgara-a, naquela ocasião, a mais linda criatura que já vira em toda a sua vida. Escrevera ao pai pedindo permissão para contratar casamento com a moça americana. Mas os pais haviam respondido à sua carta com súplicas tão agoniadas, tais ameaças e tantas lágrimas, que ostensivamente manchavam o papel da carta, que ele renunciara à esperança, concluíra o curso e voltara à sua terra para receber-se com a mulher escolhida para ele havia muito tempo. Sua esposa coreana dera-lhe um número variado de filhas e, por fim, um filho. Casara as filhas no devido tempo, mimara o filho até que este chegara à maioridade e morrera, deixando ao Sr. Choe o encargo dos últimos pormenores. Agora, sozinho e pronto para ver-se perplexo, sentia-se impelido em duas direções, primeiro pela bela cortesã, Soonya, e também pela Sra. Winters. Era um homem sensato e não pensava em casamento com nenhuma das duas. Não é necessário desposar uma cortesã, embora, a bem dizer, nenhuma de suas declarações a Soonya lhe tivesse valido mais do que um sorriso; e, naturalmente, não poderia casar com uma americana já casada, ainda que se sentisse inclinado a fazê-lo. Não obstante, sentia-se intensamente consciente de ambas como mulheres, e sua imaginação era espicaçada pela surpreendente conexão delas com o mesmo homem americano, um homem que devia ter um poder pessoal peculiar e agora, aparentemente, lutava pelo poder político. Fascinava-o o contraste entre as duas mulheres, uma tão feminina, tão perfeita cortesã, e a outra uma dessas esguias mulheres masculinas que só se encontram, cuidava ele, nos Estados Unidos, mulheres que, com cabelos lustrosos, olhos cintilantes e corpos maravilhosos têm o cérebro de um homem. Era esse gênero de contraste que tentara descrever à Sra. Winters na véspera. Ela o escutara tão atentamente que ele se pusera a imaginar se poderia esperar levar a conversação a uma área de maior intimidade depois que a tivesse escoltado até a porta. Todavia, ela não dera tento da sua intenção e ele teria de esperar até que o seu espião, na Embaixada Americana, lhe relatasse o motivo da visita dela. Nesse intervalo, decidiu, visitaria Kim Soonya e, se possível, veria com os próprios olhos o filho meio-americano de quem ela, alternativamente, se queixava e gabava.

Uma hora depois, sentado na sala particular de Soonya na Casa das Flores, ouvia-a falar, a seu pedido, acerca de Christopher Winters. Ela falava coreano com uma elegância que ele admirava e atribuía ao fato de que ela só se associava a Yangban coreanos, homens de qualidade, como ele mesmo.

— Não é possível descrever como isso aconteceu, — disse ela.

Sentada numa almofada, ela apoiava os cotovelos na mesa baixa, que ficava entre ambos. Usava saia verde e corpete amarelo pálido, cujas mangas, pendentes, mostravam braços de pele branca e leitosa e delicado formato ósseo. As mãos eram lindas, pequenas e suaves, os dedos afilados e as unhas se diriam madrepérolas polidas.

— Em primeiro lugar, não sou, como o senhor sabe, de família baixa, como a maioria das moças que aceitam americanos. Meus pais tinham instrução, meu pai era professor, e eu, filha única. Já lhe falei do dia em que nossa casa foi bombardeada, meu pai foi morto, e minha mãe e eu, desamparadas e assustadas, vagamos pelas ruas, à procura de abrigo e comida. E o senhor sabe também como os soldados estrangeiros entraram na cidade como gafanhotos que invadem um campo. Nenhuma de nós escapou... Nem sequer minha mãe. — Ela ocultou os olhos com a mão por um momento e, logo, prosseguiu. — Não posso falar nisso. Mas compreendi que precisava salvar minha mãe. Juntei-me às outras moças que a guerra deixara órfãs e ganhei algum dinheiro cantando e dançando. Aluguei um quarto onde minha mãe morava enquanto eu trabalhava. Eu era mais fraca do que as outras moças e, muitas vezes, ficava doente e não podia trabalhar. Elas foram bondosas e deram-me de comer da sua própria comida. Mas eu não podia esperar que cuidassem de minha mãe. Uma noite, com muito medo, fui a um lugar onde os americanos se reuniam para dançar... Tínhamos mais medo dos americanos que de todos os outros... E vi um rapaz sentado sozinho a uma mesa. Muito moço, de rosto bonito e triste, não dançava. Eu odiava a dança deles. Faziam, dançando, aqueles americanos, o que os outros homens só fazem na cama. Imaginei que, se me sentasse ao lado do homem solitário, os outros ficassem longe de mim. E minha amiga Boneca persuadiu-me também. E assim começou.

— Começando dessa maneira, — acudiu o Sr. Choe, visto que ela fizera uma longa pausa e não parecia disposta prosseguir, — como foi que acabou num filho?

Ela recostou-se no espaldar do assento e retorceu as mãos no regaço de seda.

— Eu tinha muito medo de deixá-lo partir, — confessou. — Ele, de fato, me protegia dos outros. Me protegia daqueles rapazes abrutalhados e barulhentos. Não se aproximavam de mim quando sabiam que eu estava com ele e assim, finalmente, fomos viver juntos numa casa pequenina. Ele deu o dinheiro das chaves ao senhorio, cento e cinqüenta dólares americanos, que o senhorio usou para emprestar, guardar os juros e devolver o capital ao americano quando este voltou para a sua terra. Para manter-nos, o americano comprou, com o seu dinheiro, mercadorias na cantina militar... o senhor conhece a cantina militar?

O Sr. Choe fez um sinal afirmativo com a cabeça.

— Vendi as mercadorias no mercado negro e comprei nossa comida e as coisas de que precisávamos. É a maneira usual de viver com os americanos. Ele também tinha algum dinheiro além disso, que os pais lhe mandavam em cartas, mas não gostava de dar-me. Dizia que era proibido usá-lo aqui porque os homens do Norte vinham como espiões ao nosso Sul e compravam esse dinheiro americano para gastá-lo em outros países por motivos deles. O dinheiro americano é bom no mundo inteiro.

— Mas a criança continua sem explicação, — observou o Sr. Choe.

Soonya corou profundamente. Era tão clara que o mais leve rubor lhe transparecia no rosto, e agora não se tratava de um simples rubor.

— Aprendi a amar o americano, — disse, tímida. — Ele se tornou necessário para mim. Eu nunca amara outro homem até então, mas ele foi bom para mim, era um bom homem, e nunca vivera com outras mulheres, só comigo. Pedi-lhe que casasse comigo e ele disse "talvez", mas nunca prometeu casar. Então pensei entre mim que, se eu lhe desse um filho, ele sem dúvida nos levaria, ao filho e a mim, para o seu país. Quando lhe falei que a criança ia nascer, ficou zangado comigo e, ao mesmo tempo, se mostrou ansioso, de modo que não pude saber se havia feito bem ou mal por ter tido um filho. Quando a criança nasceu e vimos que era um menino, ainda fiquei sem saber. Às vezes o pai ficava contente e feliz, às vezes se entristecia. Depois, um dia, foi embora. Durante todo esse tempo eu não morara com minha mãe e não permitira que ela se aproximasse do americano. Eu lhe dissera que não tinha pais.

— Por quê?

— Porque queria que ele pensasse que eu só dependia dele. Imaginei que nunca me deixaria sozinha. O senhor sabe que ele se foi. Mas não lhe contei que ele me escreveu dos Estados Unidos. Contou-me onde morava, e disse que sentia tanta falta de mim que talvez voltasse algum dia, de repente. Eu guardei-a no meu quarto, em casa de minha mãe.

— Mas ele não fez promessas.

— Nunca.

— Você sabia que ele já era casado?

— Não, ele nunca me contou.

— Você não perguntou?

— Imaginei que ele me contasse. Pode ser que eu estivesse com medo e não quisesse saber.

— E você ainda... ah... o ama?

— Não, — retrucou ela. — Faz muito tempo que deixei de amá-lo.

— E agora?

— Ele terá de pagar muito bem pelo filho, — rematou Kim Soonya.

Fora do shoji, escondido atrás de uma moita de gardênias, Kim Christopher ouvia. Nunca ouvira a história do seu nascimento, e só recentemente descobrira o nome de seu pai. Antes disso soubera apenas que o pai era um americano, o que fazia dele um estranho, pertencente a essa gente nova que surgira, aqui na Coréia.

— E essa gente nova, que faremos com ela?

Era o que o povo perguntava nas ruas e nas lojas. Às vezes, a conversa ia mais longe, às vezes se tornava perigosa e assustava-o. Um velho orgulhoso berrara um dia, no meio da multidão:

— É preciso atirá-la ao mar, se não houver outra maneira de libertar-nos dessa gente nova!

E ele não podia ir à escola. E, de qualquer maneira, os escolares coreanos zombavam dele e apontavam o dedo para ele.

— Sua mãe é uma prostituta porque seu pai é americano, — gritavam-lhe. — Só as prostitutas dormem com americanos.

E chamavam-lhe "Olhos redondos" ou "Narigudo", embora seus olhos não fossem redondos nem ele fosse narigudo. Desde que se conhecia por gente sabia que não havia lugar para ele naquele país, embora tivesse uma avó que era boa um dia e cruel no dia seguinte, e uma mãe que ele amava porque era bela mas desamava porque ela levava uma vida separada da vida deles. Somente na véspera, pela primeira vez, estivera na outra casa dela, cheia de moças bonitas. Ela o trouxera ali, fizera-o tomar banho, lavara-lhe o cabelo, cortara-o e dissera-lhe que, dali por diante, ele a ajudaria na Casa das Flores. Ele precisava aprender um ofício, declarara a mãe, mas que pretendera dizer com isso? Era o que ele ainda não descobrira. Gostava de cantar e gostava de tocar o alaúde. Aprendera sozinho, por amor dela, porque ela cantava tão suavemente. Ganhava algum dinheiro, de vez em quando, varrendo as ruas diante das portas das lojas e comprara o alaúde, instrumento barato e não muito bom, mas sempre um. alaúde. E sentira-se orgulhoso na véspera, quando ela lhe ordenara que cantasse para os convivas.

Naquela noite, terminadas as canções, muitos homens que tinham ido para ver as moças haviam-se enfiado com elas em quartos pequeninos e fechado as portas. Mas nenhum homem entrara no quarto de sua mãe. Aliás, ele também não dormira ali. Dormira no quarto do porteiro um velho que roncava a noite inteira. Depois, de manhã um homem alto chamado Sr. Choe, viera visitar sua mãe e ele se escondera no jardim para escutar e observar. Agora o Sr. Choe se despedia, e ele esperou, quieto como uma lebre, até que o homem se foi. Quando sua mãe ficou só, uma velha veio oferecer-lhe chá e ela gritou com uma voz que ele nunca lhe ouvira:

— Vá embora: Deixe-me sozinha!

A velha se foi e ele ouviu soluços. Enfiou os olhos por entre a moita de gardênias e viu a mãe sentada, sozinha, na almofada. Cruzara os braços sobre a mesa baixa, inclinara a cabeça e soluçava mansamente. Hesitando, encaminhou-se para ela.

— Agora sei, — disse, em coreano.

Soonya ergueu a cabeça.

— Sabe o quê?

— Quem sou, — tornou ele.

— Você é meu filho, — disse ela. — Não o soube sempre?

— Sei o nome de meu pai americano, — prosseguiu ele.

— Que importância tem o nome dele, se ele não o reconhece? Nunca mandou dinheiro para você, nunca perguntou onde você mora.

Ele esguardou-a por baixo dos cílios. Saberia ela ou não a respeito da carta?

— Sei que ele mora nos Estados Unidos, — disse ele.

De súbito, ela gritou.

— E você escreveu-lhe uma carta! Remexeu na minha mesa particular, roubou a carta dele e escreveu para ele contra mim.

— Não escrevi... não escrevi contra a senhora!

O menino gaguejava, como sempre lhe sucedia quando ela o amedrontava. Estava amedrontado agora e, ao ver-lhe o medo nos olhos, ela atirou-se ao filho e esbofeteou-lhe ambas as faces. Primeiro de um lado, depois de outro, primeiro de um lado, depois do outro. Ele agachou-se. Não tinha medo dela, dizia sempre consigo quando não estava perto da mãe; e por que teria medo, agora que era quase tão alto quanto ela? Não era medo; mas se ela, sua mãe, não o amasse, quem haveria de amá-lo? Sentia-se inteiramente só, numa terra estranha, por ser um estranho. Acocorado no chão, com os braços sobre a cabeça para defender-se, sentiu-lhe o pé de encontro às nádegas.

— Saia da minha vista, — bradou ela. — Depois de tudo o que fiz por você, você me odeia!

Ele ergueu-se, soluçando.

— Não a odeio.

— Odeia, sim — insistiu ela. — Você gosta de seu pai, que nunca se incomodou em saber se você está vivo ou morto.

Entreolharam-se e, de repente, ele sentiu a força de uma nova cólera incendiar-lhe as veias.

— Devo crescer como um joão-ninguém? Que farei de mim quando for homem? Terei de ser trapeiro, mendigo?

— Você me ajudará nesta casa, — disse ela. — Fará tudo o que eu disser.

— Um criado!

— Um criado, — berrou ela. — Um criado, sim, se não prestar para mais nada!

Assim ficaram, olhando um para o outro e, subitamente, ele compreendeu, como jamais o compreendera antes, que era também filho dela. O rosto à sua frente parecia-se com o seu rosto. Viu a semelhança, embora, tendo sonhado tanto tempo com o pai americano, se julgasse americano.

— O que é que a senhora quer que eu seja?

Dissipou-se a cólera. Ela suspirou e deixou-se cair outra vez sobre a almofada.

— Você pode entrar comigo no negócio. Você tem uma bonita voz e sabe tocar alaúde.

— Negócio de moças, — murmurou ele.

— Só para começar, — disse ela. Quem teria imaginado que aquela mesma voz gritara com ele poucos minutos antes? — Você pode aprender a fazer contas e, pelo menos a dirigir o negócio. Quando eu me retirar, será seu.

O menino refletiu. Não era criança, nunca fora criança e sabia que meninos mais novos do que ele, cujos pais haviam sido como o seu, vagavam pelos acampamentos americanos e ofereciam suas irmãs aos homens em troca de uma comissão. Um desses meninos era seu melhor amigo, se é que se podia dizer que ele tinha um amigo. Ainda na véspera, enquanto brincavam com pedrinhas ao pé do portão da barricada que cercava o acampamento, interrompera-se a brincadeira porque um trio de jovens americanos saíra e o menino lhes saltara ao encontro para gritar:

— Ei, ei, querem pequena? Bonita pequena, sexy, sexy.

Os homens haviam-no afastado do caminho e eles tinham continuado a brincar. Às vezes, pareciam parar só para travar amizade com os garotos. Um deles, bem se lembrava, oferecera-lhe dinheiro para fazê-lo entrar na Casa das Flores. Mas Kim Christopher nunca havia estado lá e tinha muito medo de sua mãe para tentar, por isso recusara.

— No que é que você está pensando? — perguntou-lhe a mãe.

Ele deu de ombros e, sem responder, afastou-se vagarosamente. Ela gritou, sentindo renascer-lhe a cólera.

— Volte... responda-me! Vou dar-lhe uma surra!

Mas ele não obedeceu. A súbitas, sentiu que já não tinha medo dela. A súbitas, conheceu que nunca mais tornaria a ter medo dela. Sabia agora o que ela queria que ele fosse — um menino para servi-la, um homem que vendesse mulheres para ela. Fosse como fosse, precisava encontrar seu pai.

 

Laura estava deitada quando ouviu uma batida à porta, uma batida hesitante, de quem experimenta. Abriu os olhos e não se levantou. Sentia-se cansadíssima, e embora não tivesse relação alguma com o corpo, a fadiga do espírito, difundindo-se, tornara-a indiferente. Repetiu-se a batida, desta feita, mais clara. Ergueu-se e enfiou o chambre. Lá estava o menino. Ainda que tivesse tentado adivinhar uma centena de vezes, não teria podido imaginar que fosse ele. O garoto olhava mudamente para ela, trazendo naquela manhã a camisa e os calções costumeiros, as pernas nuas, os pés metidos em sandálias de palha.

— Entre, Kim Christopher, — disse ela, incerta e surpreendida.

Ele entrou e relanceou os olhos à sua volta.

— Tenha a bondade de sentar-se.

Ela sentou-se numa poltrona e ele, na outra. A luz da janela incidia sobre o rosto do menino e, em suas faces, ela percebeu as linhas levemente vermelhas de um golpe. — Que aconteceu com o seu rosto? — perguntou.

— Minha mãe... Ele ergueu a mão direita e imitou a bofetada.

— Oh, não, — arquejou ela. Ergueu-se impulsivamente da poltrona em que estava sentada, aproximou-se dele e, estendendo a mão, alisou-lhe o rosto. A pele era fina e suave. Este era o seu lado coreano, pensou. — Por que foi que ela se zangou?

Ele não sabia ao certo até onde iria o seu inglês. Mas fez um esforço.

— Minha mãe... Ela... Ela... fala que eu fico com ela.

— Você quer dizer, na Casa das Flores?

Ele assentiu com a cabeça.

— Trabalho.

— E você quer trabalhar lá?

— Não.

Ela contemplou-lhe o rosto tentando adivinhar-lhe os pensamentos.

— Você gosta de sua mãe?

Ele, obviamente, compreendia mais do que conseguia falar.

— Às vezes.

— Às vezes, — repetiu ela. — Ela é boa para você? Ele hesitou.

— Não escola.

— E sua avó? É boa?

Ele ergueu-se de um salto e imitou uma série de bofetadas.

— Ela faz isso para mim.

O menino tornou a sentar-se e cruzou as mãos sobre os jovens joelhos ossudos. Cravou os olhos no chão, o rosto impassível, os longos cílios retos e pretos pousados sobre as faces. Como era parecido com Chris e como era diferente! Que seria feito dele?

— E se eu o mandar aqui para a escola, Kim Christopher? — tornou ela.

Ele sacudiu a cabeça à sua maneira decidida.

— Não?

Ele ergueu os longos cílios.

— América, — disse, simplesmente.

Laura suspirou, pensando no enigma daquela criança nascida demasiado cedo para o mundo.

— Meu pai, por favor, — disse ele.

— Eu sei, — voltou ela. — Eu sei, eu sei.

Levantou-se, desassossegada, e, encaminhando-se para a janela, quedou-se a contemplar a cidade estranha. Sim, mas aquela não era uma questão que pudesse ser resolvida por uma criança. Urgia pensar em Chris, para não falar em si mesma. Bem, ela poderia ser posta de lado, pois em sua vida alheada de cientista, as pessoas ficavam além do horizonte e, em sua outra vida, em sua vida com Chris, o que as pessoas pensavam não tinha importância alguma. Mas Chris, cuja vida e cuja carreira dependiam dos caprichos, dos preconceitos, das acanhadas simpatias e antipatias de um eleitorado... que diria este se ela levasse para casa um rapaz suficientemente parecido com ele para iniciar uma onda de mexericos pelo Estado inteiro — não, por toda a nação! Essa onda poderia destruí-lo e liquidar-lhe a vida. De todos, apenas a criança era totalmente inocente.

Voltou-se impulsivamente, correu para ele, tomou-lhe a mão. Como parecia pobrezinho naquelas tristes roupas que usava! Precisava arrumar-lhe alguma coisa decente para usar. Em seguida, levá-lo-ia para almoçar e lhe daria urna boa refeição. Debaixo da pele viam-se-lhe os ossos, as costelas perfeitamente assinaladas, recobertas apenas pela pele maravilhosa, suave, de uma palidez de creme — dádiva da Ásia.

— Kim Christopher, vamos comprar umas roupas novas para você. Mostre-me uma loja.

Ela apontou o dedo para a camisa dele, sacudindo a cabeça, numa expressão desaprovativa.

— Ah, — exclamou o menino, iluminando-se. Empolgou-lhe a mão, conduziu-a escada abaixo e mostrou um ponto qualquer da rua.

— Roupas? — perguntou ela.

— Sim, sim, — tornou ele com veemência. Uma hora depois, já estava aparelhado, com três mudas de tudo e uma blusa carmesim para os dias de frio.

— Ponha isso, — disse ela e, depois que o viu vestido, pegou as roupas que ele usara, segurando-as com dois dedos, e atirou-as para um lado.

— Isto acabou-se, — disse. — São trapos.

Percebeu que ele estava chocado, mas foi intransigente, e levou-o em triunfo, orgulhosa de sua aparência. Se Chris pudesse vê-lo agora! Reportou-se. Não devia deixar-se arrebatar pelo próprio entusiasmo. É verdade que ele era belo. Mas isso era de se esperar, sendo Chris o pai — e, sim, cumpria-lhe ser generosa, sendo Soonya a mãe. Ali se operara, sem dúvida, alguma alquimia especial, pois ainda não vira crianças coreanas tão belas como aquela, nem sequer as crianças de sua própria cidade natal, com as quais crescera. Não se tratava apenas de traços e de cores. Havia ainda uma graça acrescentada, uma combinação talvez de graça e força. Kim Christopher era mais gracioso do que a criança americana, e mais forte do que a criança coreana. Pensou nas suas plantas marinhas, criaturas que faziam as vezes de pontes, na delicadeza das frondes ondulantes das algas e que, de certo modo, se aproximavam da vida vigorosa do animal.

Ela tornou em si. Tranqüilo e paciente, Kim Christopher esperava à sua frente, aguardando-lhe o julgamento.

— Muito bem, — disse ela. — Agora você está bonito.

— Americano? — perguntou ele, esperançoso.

— Sim, — disse ela, sincera e insincera. Muito americano aqui na Coréia mas, quando o levasse para a sua terra — se chegasse a levá-lo — sabia que ele pareceria asiático. Onde, onde era o seu país?

— Vamos voltar para o hotel e almoçar, — decidiu.

Percebeu, no instante em que entrou na sala de jantar, que o Sr. Choe lá estava, na mesa do costume, ao pé da janela. Sorriu, acenou-lhe com a mão e, em seguida, escolheu outra mesa, onde pudesse estar a sós com Kim Christopher. Tendo-se sentado e fazendo-o sentar-se, divertiu-se com os olhares francamente interessados que o Sr. Choe lhes dirigia. Nem era ele o único. Turistas, americanos e europeus, observavam-nos, e ela quase lhes ouvia a conversação, feita de perguntas e conjeturas. Sentia até um prazer vagamente maternal no belo menino sentado à sua frente à mesinha; mas ele não dava tento dos olhares, preocupadíssimo em acompanhar-lhe os movimentos com a faca e o garfo. O guardanapo confundiu-o até que a viu desdobrar o seu e levá-lo aos lábios. Com efeito, ele copiava cada um dos gestos que ela fazia, tão decidido a fazê-los corretamente que ela se sentiu tocada.

Quando o Sr. Choe acabou de comer, não pôde conter a curiosidade por mais tempo e deu um jeito de passar pela mesa deles. Ali se deteve.

— Como está passando hoje, minha senhora? — perguntou com a polidez habitual.

— Muito bem, obrigada, — disse ela. — Estive ocupada numa expedição de compras com Christopher.

Era a primeira vez que usara o nome do menino sem o sobrenome Kim, e ficou surpreendida por havê-lo feito. Um véu desceu sobre os olhos penetrantes do Sr. Choe.

— Ah, sim... muito bem. Ele está muito bonito, quase parece um menino americano. Vai levá-lo consigo para a América?

Ela sorriu para Christopher.

— Vou?

— Por favor, — pediu ele, num sussurro.

—A mãe precisa dar o seu consentimento, não precisa? — indagou o Sr. Choe.

— Espero que o dê, — respondeu Laura, e ficou ainda mais surpreendida consigo mesma. Não cuidava que houvesse tomado alguma decisão, mas qualquer coisa na voz e no olhar do Sr. Choe, por assim dizer, a compelia.

.— Esperemos que sim, — tornou, delicado, o Sr. Choe e afastou-se.

A tranqüila certeza dos modos dele a perturbou e animou. Concluída a refeição, depois de Christopher haver comido um prato maciço de sorvete para rematar os pratos preliminares, ela achou difícil deixá-lo ir-se. No entanto, que faria com ele ali? Ainda havia muita coisa para decidir e depois para fazer.

— Volte amanhã, Christopher, — disse-lhe, no saguão. Deu-lhe a caixa com as roupas novas e demorou-se. — Volte amanhã cedo, — acrescentou.

— Sim, senhora, — prometeu ele.

E ela ia dizer, não me chame senhora, mas como poderia chamar-lhe o menino? Sra. Winters era demasiado frio, Laura demasiado íntimo. Ele já tinha sua mãe, e o emprego desse nome só serviria de confundi-lo. Era melhor deixar como estava, pensou. Isso dependeria, finalmente, do que ficasse resolvido.

— Até logo, — disse, por fim, refreando o impulso para beijar-lhe o rosto.

Quando voltou ao quarto, encontrou uma longa carta de Chris, a primeira que recebia. Estava em Seul havia apenas alguns dias, que, no entanto, lhe pareciam semanas. Apanhando a carta, deixou-se cair numa cadeira e esqueceu tudo o mais. Ele começava:

"Adorado e Único Amor:

Sua carta curta demais..."

Sim, querido, mas eu ainda não tinha nada para dizer, murmurou.

"Simplesmente me deixou alucinado. Eu teria largado tudo e tomado o primeiro avião se não soubesse que teria apenas criado um novo problema para você. A esta altura você já deve ter visto o menino".

Oh, eu quisera que você também o tivesse visto, pensou ela. Isto teria facilitado tanto a decisão! Ou não? Talvez fosse até mais difícil se Chris o tivesse visto.

"Espero que a mulher não lhe esteja dando trabalho".

Essas poucas linhas bastavam a ele para aludir aos problemas que ela enfrentava sozinha. Em seguida, mergulhava num relato entusiástico da campanha. Ela via-o correr de uma reunião a outra, falar na televisão — ele era extravagantemente fotogênico. Seus olhos percorreram, à pressa, as páginas. As letras brotavam aos milhares. Não obstante, a velha guarda lhe fazia oposição ferrenha. Pusera em campo detetives particulares que lhe esquadrinhavam o passado, examinando cada um de seus atos desde os tempos de garoto. Negócio sujo, mas era uma luta de vida ou morte. A mocidade dele ajudava.

— E sua beleza extraordinária, meu querido, — murmurou ela.

— "Henry Allen tem sido uma rocha", escrevia ele. "Tem uma posição indestrutível, não só no Estado mas em todo o país. O fato de ter-lhe o nome ao meu lado é tudo para mim. É claro que compreendo a responsabilidade que assumi de não lhe fraudar a expectativa. Preciso realizar uma campanha cem por cento limpa. Mas eu o teria feito de qualquer maneira. Odiar-me-ia se não o fizesse".

Naturalmente, pensou ela com orgulho. Beijou a carta, dobrou-a e pô-la no seio. Em seguida, deu-se ao luxo de pensar no marido. Recostou-se no espaldar da poltrona, cerrou os olhos e pensou nele. Numa época em que o amor era amesquinhado e o sexo mundano exaltado, como tivera ela a felicidade de encontrar um homem que compreendia o amor? Capaz de amar e que ama uma mulher como eu, e que me quer como sou e não como simples apêndice dele, como ele também não poderia ser um mero apêndice meu? Uma felicidade tão rara não devia ser estragada por uma criança nascida do outro lado do mundo, uma criança que não pertencia a parte alguma, filho do acaso — uma criança adorável, linda, mas que nem por isso se poderia permitir viesse a arruinar uma vida esplêndida, uma vida que seria útil a milhares, a milhões de pessoas, a milhões, se Chris não fosse detido em sua carreira por uns poucos inimigos egoístas, que pensavam exclusivamente nas próprias finalidades e não tinham o menor interesse pela moralidade que professavam. Lembrou-se de Henry Allen com súbita consternação. Deveria Chris contar-lhe, ou não? Se não lhe contasse, seria o silêncio inteiramente digno? Oh, as assustadoras exigências da honra!

"Querido", — escreveu com sua letra grande e clara. — Acha que devia falar com Henry Allen a respeito de Christopher? É tão difícil, não é mesmo, não ser apenas um cidadão comum, para o qual o menino fosse um problema particular e que não tivesse de preocupar-se com o que os outros pensam! Pois, naturalmente, há milhares de crianças nascidas como ele, e poderíamos simplesmente levá-lo para casa, dizer que adotamos um órfão de guerra coreano e deixar que os outros pensassem o que quisessem. Isso não seria da conta de ninguém. Mas agora, com todo o seu brilhante futuro diante de você, a gente não sabe o que fazer e não posso consentir em que você abra mão do futuro, positivamente não posso, por causa de um erro — ". Riscou a palavra erro tão completamente que ele não poderia ver o que ela escrevera, substituindo-a por experiência e prosseguiu.

"É difícil desejar que ele não tivesse nascido, pois é um belo menino, parecidíssimo com você, mas sem ser você — é ele mesmo, creio eu. Não consigo descobrir o que ele pensa da mãe, e só sei que deseja muito ir ter com você. Hoje lhe comprei roupas novas —".

Só depois de concluir a carta viu o quanto escrevera a respeito de Kim Christopher, cinco páginas cheias. Não imaginara saber tanta coisa a respeito dele. Selou a carta e mandou-a por via aérea. A seguir, sentiu uma saudade tão doída de Chris que se atirou na cama e pôs-se a chorar.

E chorou não só por Chris, mas também pela casa e Pela vida que conhecia e amava. Via a casa, que se erguia na rua tranqüila, ao pé da praça, a casa espaçosa, com a frontaria de mármore branco e, lá dentro, o frio vestíbulo de mármore que ligava um pavimento a outro. Muito tempo atrás, um antepassado da família dos Winters apaixonara-se por uma dama na França. Esta, porém, se recusara a deixar o seu castelo enquanto ele não lhe prometera modificar o próprio coração de sua casa americana e dar-lhe um coração francês, como o do castelo dela. Com enormes despesas, cujo volume aumentava a cada geração que contava a história, ele desmanchara o interior da casa e reconstruíra-o exatamente como o castelo francês... Estou com saudades da casa, pensou Laura, e da rua orlada de árvores — sim, até dos vizinhos aos quais dava tão pouca atenção quando estava lá, pois não era, infelizmente, criatura que se preocupasse com vizinhos, com a cabeça sempre cheia de planos e trabalho; e, à noite, ela e Chris preferiam estar sós ou, pelo menos, receber as visitas que eles mesmos escolhessem.

— Agora, a milhares de quilômetros... num hotel estranho, numa cidade asiática, a casa parecia um sonho, com a diferença de que Chris lá estava e ela precisava apressar-se a voltar. Em poucas horas chegaria. Ele insistira em que ela trouxesse sempre consigo, na bolsa, com o passaporte e os cheques de viagem, uma passagem de volta.

— Nunca se sabe, — declarara. — Não se esqueça de que Seul fica a pouco mais de 100 quilômetros da fronteira inimiga. Você precisa estar pronta para partir a qualquer momento.

Sentia uma tentação quase irresistível de partir naquele mesmo instante. Sim, bastava-lhe descer a escada, tomar um táxi, chegar ao aeroporto e embarcar no primeiro avião a jato. Imaginava-se a fazer exatamente isso e, ao mesmo tempo, conhecia que não poderia fazê-lo. Não era pessoa de fugir no meio de uma tarefa. Cumpria-lhe pura e simplesmente pensar no que faria em seguida e, como se respondesse à sua pergunta, o telefone tocou.

— Sim? — disse ela com o receptor na mão.

— Sra. Winters? — era a voz vibrante do Tenente Brown. — Estávamos imaginando, Jim e eu, se a senhora não gostaria de dar um passeio e ir até Walker Hill, talvez jantar e dançar um pouco.

— Gostaria, sim, — disse ela, num desespero.

— Muito bem, — tornou a voz. — Estaremos daqui a meia hora no saguão.

— Está bem, — assentiu ela.

 

Os dois homens estavam elegantes nos seus uniformes recém-passados, embora fossem tão diferentes um do outro.

— Vocês se conheciam antes de vir para cá? — perguntou ela, despropositadamente enquanto Jim dirigia o carro para fora da cidade.

— Não, nós nos conhecemos quando Jim me salvou a vida, — respondeu gravemente o Tenente Brown. — Uma multidão de estudantes estava fazendo baderna nas ruas, uma noite, protestando contra o novo tratado com o Japão, que, é preciso dizer, nós queríamos obrigá-los a aceitar, e eu era o único americano à vista, de volta à base. Nesse momento, Jim, por acaso saiu da base. Precipitou-se no meio da turba e tirou-me dali, fazendo-me atravessar o portão. Assim mesmo, levei uma surra e tanto.

— Sou muito ignorante, — disse ela. — Por que não querem o tratado?

— É natural, — voltou o tenente. — O Japão governou-os brutalmente por mais de meio século. Eles eram um povo livre até então, e são orgulhosos, como a senhora já deve ter visto. Os japoneses são meticulosos em tudo o que fazem. Tentaram destruir a cultura coreana, impuseram nas escolas o idioma japonês, e assim por diante. O povo aqui não confia neles — e provavelmente jamais confiará. Acha que os japoneses reconquistarão o controle econômico do país e passarão a governá-lo totalmente. Talvez tenham razão. De qualquer maneira...

— E que acontecerá às crianças meio-americanas? — atalhou ela.

— Bem, essas terão um tempo duro pela frente, — replicou o Tenente Brown.

— Duro! — riu-se Jim. — Não se esqueça de que muitas já foram mortas.

— Oh, não! — exclamou ela.

— Claro, — disse ele. — Por que quase já não se vêem mestiços adolescentes por aí? São pouquíssimos! Foram liquidados na década de cinqüenta, aí é que está. Muitos pelo menos. E alguns foram castrados.

— Cale a boca, Jim.

— É claro que foram. Conheço um sujeito, que era ajudante do General, que viu os garotos com os seus membrozinhos...

— Eu disse cale a boca! — berrou o Tenente Brown.

Jim manobrou o carro para sair de um sulco na estrada e calou-se. Ficaram todos em silêncio durante algum tempo, refletindo, no meio daquele soberbo cenário, na quietação do crepúsculo, sobre o terrível destino dos filhos da guerra. As sombras já se aninhavam no vale quando o sol atingiu a crista de uma montanha. As montanhas eram purpurinas e os vales verdeavam. Aqui e ali um choupo, dourado pelo outono, parecia uma tocha flamejante a espancar a escuridão das rochas das fragas. As aldeias sucediam-se pelos campos e, de quando em quando, ela distinguia o vulto esguio de um homem, envolto numa túnica branca, com um alto chapéu de pêlo preto amarrado debaixo do queixo, que ia com dignidade de uma aldeia a outra, ou uma mulher de saia esvoaçante e corpete justo a carregar um fardo na cabeça, a figura majestosa erecta debaixo do fardo. Kim Christopher! Talvez devesse sentir-se grata a Soonya por havê-lo conservado vivo — ou talvez não!

Remoendo esses pensamentos, falou, em voz baixa.

— Jamais compreenderei como os nossos homens... Como podem unir-se a essas mulheres e deixar que nasçam crianças...

Jim interrompeu-a bruscamente, os olhos fitos na estrada à sua frente.

— Tenho uma garota, Sra. Winters. É uma pequena decente. "Vive com um sujeito... eu. Mas eu disse a ela: "Menina, no dia em que você vier dizer-me que vai ter um filho, nesse dia dou o fora". Por isso ela já sabe. Sabe que gerei bom para ela enquanto ela fizer o que mando.

— E aborta, — ajuntou, severo, o Tenente Brown.

— Isso é problema dela, — retrucou Jim.

— Algumas abortam oito ou nove vezes por ano.

— Não tenho nada com isso, — volveu Jim.

Três crianças maltrapilhas atiraram-se à frente deles tão repentinamente que Jim esterçou o carro para o lado e quase bateu num santuariozinho à beira da estrada. As crianças gritavam, esmolando, com as mãozinhas imundas estendidas.

— Falando em garotos, — murmurou Jim, vasculhando os bolsos.

— São todos mestiços, — disse o Tenente Brown, examinando-os.

— As aldeias estão cheias deles, — voltou Jim. — Aqui têm, garotos.

Atirou as moedas ao chão e as crianças caíram sobre elas procurando-as, remexendo a poeira escura e empurrando-se umas às outras como cães à roda de um osso.

Ela contemplou-as. Sim, eram todas meio-americanas. Um menininho tinha cabelos vermelhos e sardas e a menina, um rosto de anjo emoldurado por cabelos castanhos sujos de pó. Gritava com os meninos e batia-lhes com os punhos fechados.

— Vamos indo, — disse Laura. — Já vi o suficiente.

Haviam terminado o jantar e demoravam-se diante do café, ela sem vontade alguma de regressar ao quarto no hotel, relutante em ver-se só, sem saber o que faria em seguida. O enorme salão em Walker Hill regurgitava de americanos de uniforme e jovens coreanas vestidas à moda ocidental. Ela recusara-se a dançar, não se sentindo inclinada a juntar-se à multidão que ondulava, em pares agarrados, e Jim saíra rodopiando com uma bailarina, uma moça magra e fina, mais alta do que ele.

— Tome cuidado, — recomendara-lhe o amigo. — Parece tuberculose.

— Ela não tem nada, — redargüira Jim, lacônico.

— A metade é tuberculosa.

Mas Jim desaparecera entre os outros pares.

— E não procuram curar-se? — perguntou Laura.

— Não podem, — respondeu ele. — Precisam continuar trabalhando. A metade das crianças está doente... No mínimo a metade.

— Não serão tantas assim!

— E por que não? Quem se interessa por elas?

Debaixo da seca amargura ela começava a adivinhar um homem bom, rígido por princípio, mas rígido primeiro consigo mesmo.

— Creio que você se interessa por elas, — disse, suavemente.

— Eu não me permito.

Nesse momento, o mestre-de-cerimônias subiu ao estrado, na extremidade da sala. A música cessou e os pares pararam de dançar. Seu rosto iluminou-se todo num sorriso e ele ergueu a voz.

— Temos esta noite um número muito bonito. Está aqui uma dançarina de São Francisco, que executa a dança do ventre. É famosíssima nos Estados Unidos. Tenham a bondade de observar-lhe a habilidade. Quando ela terminar, teremos outro número. A Srta. Kim Soonya cantará, por deferência especial.

Laura estremeceu.

— Você sabia que ela viria?

— É claro que não, — replicou o Tenente Brown. — Ela canta aqui de vez em quando, mas muito raramente. A última vez foi quando tivemos visita de gente graúda. Ela é difícil de se conseguir, pelo menos assim dizem. Considera-se uma espécie de honra... estritamente no nível dela, isto é, conseguir que cante em algum lugar que não seja a sua casa.

— O nível dela não é elevado?

— Por estranho que pareça, o nível pessoal dela é elevado. Isto é, toda a gente sabe que homem nenhum pode consegui-la.

— Nem mesmo um coreano?

— Não.

Surgiu a bailarina que executava a dança do ventre, uma loira pintada, de formas notáveis. Trazia símbolos em lugar de roupas, um pedaço de biquíni em torno da cintura, um círculo dourado em cada seio. As danças terminaram de todo, os homens sentaram-se e as moças inclinaram-se para a frente, a fim de observar. A música estrugiu, rítmica, e a moça principiou a dança, uma série extraordinária de movimentos musculares, ao passo que o corpo permanecia imóvel. O esqueleto era a estrutura fixa sobre a qual a carne se intumescia e contraía, se retorcia e endireitava, rodopiava e se enrijecia. O ventre e os seios eram independentes, o ventre se movia como cobra sinuosa e os seios, independentes um do outro, giravam doidamente, debaixo dos círculos, que voavam. Observando aquela mixórdia física, sentiu-se Laura convulsionada por um rir interior, pois acima do corpo que dançava, o rosto da moça era uma máscara pintada totalmente isento de expressão que seria impossível acreditar que soubesse o que estava acontecendo debaixo dele. Os olhos azuis olhavam sem ver o cenário que os rodeava; a boca, rubra e vivida peônia, permanecia imutável.

Laura relanceou os olhos em derredor. Os americanos riam-se, mas os rostos asiáticos se mantinham graves, à maneira que os olhos asiáticos se fitavam sombriamente naquele espetáculo que lhes mandava o Ocidente. Ela teve consciência de uma sensação de constrangimento que principiava a envolvê-la e que, na realidade, assumia proporções da vergonha. Quem era aquela moça? De que pais nascera, e por que não ficara em seu alegre habitat nativo, em lugar de vagar por aquelas plagas vetustas e cheias de dignidade? Terminado o número, os americanos romperam em aplausos barulhentos, de que os asiáticos não participaram, enquanto a bailarina se inclinava abruptamente e deixava o palco. O mestre-de-cerimônias adiantou-se mais uma vez.

— Senhoras e senhores, a Srta. Kim Soonya!

Fez-se silêncio e, no meio do silêncio, Soonya entrou. Vestia roupas coreanas, como sempre, a saia ampla de «roçado cor-de-rosa e o corpete de prata. Os longos cabelos negros haviam sido entrançados na nuca e os pés calçavam chinelas de prata, com os dedos voltados para cima, de certo modo que lembrava seus primeiros antepassados, vindos da Ásia Central.

Tinha as mãos frouxamente juntas diante de si enquanto se mantinha, imóvel, à espera da música. Esta surgiu de uma pequena orquestra de danças, em acordes abafados de instrumentos de corda, reunidos pelo bater de um tambor profundo, tocado delicadamente. Ela ergueu a cabeça, após longo instante, e principiou a cantar. A canção não era coreana. "Apenas um Coração Solitário", de Tchaikovsky. Agora já não se ouviam gargalhadas roucas nem se viam olhares asiáticos furibundos. A música, universal, era compreendida tanto pelo Oriente quanto pelo Ocidente. No silêncio, a voz pura de soprano erguia-se e caía, confundindo-se às vezes com um sussurro, às vezes transformada num grito. Quando ela terminou houve um momento de silêncio, um momento de fascínio, logo seguido de um estrondear de aplausos. Soonya inclinou-se e deixou o estrado, movendo-se tão suavemente que parecia deslizar em vez de caminhar. Os aplausos continuaram, mas ela não voltou. Em seu lugar, adiantou-se o mestre-de-cerimônias.

— A Srta. Kim Soonya agradece aos circunstantes mas roga que a desculpem. Nunca bisa os seus números.

Laura ouvira a princípio com surpresa, depois com admiração e, finalmente, com profundo assombro. Por que escolhera Soonya aquela canção? E como a aprendera? Teria, acaso, o significado de uma comunicação? E, a ser assim, comunicação com quem, senão com ela mesma? No entanto, como poderia Soonya saber que ela estaria presente naquela noite? Havia perguntas em demasia à espera de resposta e, acima de todas, havia a pergunta principal: que espécie de mulher era aquela Soonya?

Levantou-se impulsivamente da cadeira.

— Desculpem-me, — disse aos dois homens. — Preciso ver Soonya imediatamente.

Saiu da sala e dirigiu-se para trás da cortina do palco. Ali, num camarim, encontrou-a sentada diante de um espelho. Mas ela não se mirava ao espelho. Colocara a cabeça sobre os braços cruzados e chorava, entre soluços profundos e semi-recalcados.

Laura estacou à porta. Em seguida, entrou, rápida, e pôs a mão no braço de Soonya.

— Soonya, — disse ela, — sou eu.

Soonya ergueu a cabeça e recuou tão subitamente que Laura se espantou.

— Por que veio aqui? — perguntou Soonya. As lágrimas lhe haviam secado sobre o rosto e lhe pendiam dos cílios compridos.

— Você cantou... você cantou tão divinamente, mas... — gaguejou Laura. — Aquela canção... por que você... quem lha ensinou?

— Por que se interessa? — A voz de Soonya era ácida.

— Não sei, mas sei que me interessa. — Gaguejava, comunicando seus pensamentos, antes mesmo de conhecê-los, mas não conseguia refrear-se. — Devíamos compreender-nos uma à outra, nós duas. Não desejo magoá-la. Espero que você não deseje magoar-me. Juntas, talvez possamos decidir a respeito do menino. Creio que não tenho pensado em você, só em mim... e em meu... e no pai do menino.

Soonya enxugava os olhos com um lenço delicado de seda, que tirou de dentro do corpete. Ergueu-se e fechou a porta. Em seguida, fazendo sinal a Laura para que se sentasse, sentou-se também, com as costas voltadas para o espelho. Mordendo os lábios, principiou a falar.

— Não sou mulher corajosa. Faço as palavras parecerem corajosas. Amo seu... amo muito. Por isso aprendi sozinha aquela canção. Ela diz o que penso, o que sinto. Sonho demais. Sonho que algum dia ele voltará para mim. Não posso amar outro homem.

— Você está tentando dizer-me que quer ficar com o menino, — tornou Laura.

Soonya sacudiu a cabeça.

— Não, não estou dizendo isso. Ele é como o pai. Agora sei que ele não me amará nunca.

Tremiam-lhe os formosos lábios e ela mordeu-os cruelmente.

— Por favor, — disse Laura. — O que é que você quer? Tentarei consegui-lo para você, se puder.

As lágrimas voltaram a correr-lhe, mas Soonya tornou a enxugá-las, resoluta, com o lenço de seda.

— Agora só quero dinheiro, — disse, por fim. — Quero dinheiro para mim.

— Dinheiro, — repetiu Laura.

Soonya ergueu os grandes olhos para o rosto de Laura.

— Quero viver sozinha numa casa, — disse ela. — Não quero mais saber da Casa das Flores. Não quero mais saber de moças. Não quero mais saber de nada. Só eu, sozinha na casa. Meus velhos criados cuidando de mim... tudo. Se ele não me quer, dê-me então uma casa só para mim.

— E Kim Christopher?

— Sem dinheiro, ficarei com ele para ajudar-me na Casa das Flores, — voltou ela, simplesmente. — Com dinheiro, pode levá-lo.

— Pois eu o levarei, — disse Laura, com instantânea decisão.

Hesitou, prestes a sair, ansiando por sair e, todavia, estranhamente comovida diante daquela formosa mulher solitária. Em outra terra, em outros tempos, talvez pudessem ter sido amigas. O que as dividia não era a raça, nem a língua, mas o amor, o amor do mesmo homem, a guerra em lugar da paz.

Pôs a mão no ombro de Soonya.

— Lamento muito... muito, — murmurou.

Mas Soonya afastou-se.

— Você teve sorte, — disse, indiferente. — Eu tive azar.

Em seguida, como se não tivesse chorado, como se não tivesse mandado embora o filho, inclinou-se na direção do espelho e, com um batom de uma cantina militar americana, comprado no mercado negro, corrigiu cuidadosamente os contornos dos lábios bonitos.

Era isso, então, o que Laura precisava transmitir de certo modo a Chris. O menino não poderia ficar aqui. Precisava ser levado para os Estados Unidos.

"Um passo de cada vez, querido", escreveu, naquela noite, no quarto de hotel. "Não vejo claro o futuro — ao contrário! O problema continua. Que se há de fazer? Mas preciso levá-lo para casa. O processo é simples. Você terá de mandar-me uma declaração oficial de paternidade. Creio que o pessoal na Embaixada será bondoso — prestimoso, pelo menos. Declare que Kim Christopher é seu filho, que você teve de Soonya, que sou sua esposa, e que você quer que eu o leve de volta comigo. Deixe o resto por minha conta. Se me mandar o documento no dia em que receber esta carta, dentro de uma semana estarei em casa. Encontre-se comigo em São Francisco. Está claro que teremos de pagar a Soonya".

Descreveu a cena que tivera com Soonya. Quanto dinheiro? Ele haveria de sabê-lo. Mas seria preciso esclarecer que não poderia haver novas exigências. Cinco mil dólares, talvez. Isso daria a Soonya dinheiro suficiente para viver, se o colocasse a juros. Ou dez mil, se fosse o caso. Não, não se tratava de comprar o menino. Tratava-se de substituí-lo pelo dinheiro que ele poderia vir a ganhar se ficasse em companhia de Soonya.

"Soonya quer o dinheiro", escreveu ela, "mas por uma razão válida. Quer livrar-se da vida que tem vivido. Quer viver sozinha. Faz-me sentir culpada por ser sua esposa, por estar numa posição que tanto gostaria de ter para si. Acredito que ela o ame".

Nesse ponto, fez uma pausa e acabou riscando as últimas palavras. Não, jamais compreenderia exatamente o que acontecera e era mais prudente não recordá-lo a Chris, nem mesmo agora.

Na Casa das Flores, Soonya conversava com o Sr. Choe.

— O senhor está vendo que não posso continuar sempre assim, — dizia ela. Agitava a mão delicada e, com o gesto, abrangia tudo, a sala, deliciosa no arranjo severo, com as esteiras no chão, o quadro na parede, a orquídea única no vaso alongado.

O Sr. Choe ouvia-a, compreensivo. Estava perfeitamente a par das nuanças da vida dela e sabia o que ela queria dizer. Dali a poucos anos sua voz perderia o timbre encantador, o rosto perderia a suave beleza, ela deixaria de ser a artista que era e passaria a ser, pura e simplesmente a proprietária de uma casa de prostitutas.

— Compreendo perfeitamente, — disse ele.

Um pensamento penetrou-lhe o espírito e, é preciso que se diga, não foi essa a primeira vez. Se Kim Soonya fechasse a Casa das Flores e começasse a levar uma vida inteiramente decorosa, não seria impossível que ele a tomasse por esposa. Ninguém espera que uma segunda esposa tenha a estatura da primeira. Além disso, ela possuía certa distinção como artista, como cantora, como musicista de algum talento, que lhe emprestava uma auréola. Fosse o que fosse o que se dissesse, a influência dos americanos fora liberalizante. Quando as estrelas de cinema, as atrizes norte-americanas, eram enviadas em excursões de boa vontade pela Ásia, os americanos esperavam que fossem recebidas com honras. Havia também agora a possibilidade de que o menino mestiço, que parecia tão americano, fosse transferido para o outro lado do mundo. Sem o menino, claro testemunho de que ela tivera outrora um amante americano, não haveria provas. Poderia levá-la para casa sem íntimas preocupações. Tossiu delicadamente, com a mão diante da boca, antes de falar.

— Aconselho-a a mandar a criança para o pai, — disse ele. — Isso deixará sua reputação inteiramente limpa. Você foi prudente conservando-o escondido com sua mãe. Tenho entendido que ninguém sabe da relação dele com você.

— Ninguém, — confirmou ela. — Ele só veio aqui uma vez, e assim mesmo como criado.

— Ah, — volveu ele, aliviado. — Felizmente, parece-se com o pai, não com você. O grosseiro sangue americano sempre prevalece. Mande-o embora o quanto antes. Aceite o que quer que lhe ofereçam, ainda que seja menos do que você merece por tudo o que sofreu.

Ele permitiu-se olhar para ela com uma sugestão de ternura nos olhos bonitos, enquanto continuava.

— Tenho planos para você... Planos para mim. Há possibilidades. Depois que o menino tiver atravessado o mar, você deverá esquecê-lo. Precisará esquecer todo o passado e pensar apenas no futuro. Está muito só. Eu também.

Sentiu que já havia dito o suficiente e levantou-se. Soonya levantou-se também. Compreendeu perfeitamente o que ele pretendia dizer, e sentia-se grata, embora triste. Com efeito, sabia que, enquanto vivesse, conheceria horas de tristeza. Possuía um coração ardente e, se bem respeitasse o Sr. Choe, jamais poderia amá-lo. De uma feita, havia muito tempo, um jovem americano lhe despertara o instinto de mulher e agora, como castigo, via-se obrigada a medir por ele todos os outros homens. A despeito do que lhe dizia a razão, alimentara durante todos aqueles anos a esperança do seu regresso. Sabia agora que ele jamais voltaria, pois em seu lugar mandara a esposa, e esta era formosa. Uma estranha e dourada espécie de beleza, mas uma beleza incontestável. Capitulou diante dela, reconhecendo-lhe o poder. Sua própria graça, sua própria natureza submissa, não tinham sido suficientes para retê-lo. Talvez os homens americanos, tão livres, tão imperiosos, tão exigentes, só pudessem amar suas próprias mulheres fortes. Talvez quisessem que o amor fosse uma guerra e não uma paz profunda e duradoura.

Não respondeu ao Sr. Choe mas acompanhou-o até a porta e ali se despediram, ela inclinando-se profundamente diante dele, uma porção de vezes, e ele retribuindo-lhe as mesuras com uma inclinação de cabeça.

 

Chris esperava-os no aeroporto de Los Angeles. Ela se esquecera do quanto ele era bonito — não, não é que se tivesse esquecido, mas seus olhos se haviam habituado, apesar da curta ausência, a homens de outra aparência. Aprendera a achar bonito também o Sr. Choe e agora, olhando para o americano alto que era Chris, figura rija e reta de homem, sentiu o mundo dividido em duas espécies de homens, duas espécies de mulheres, entre os quais havia apenas Kim Christopher. Não, talvez houvesse também algo de si mesma. Pois desde que haviam deixado a Coréia, Kim Christopher se agarrara a ela e ela se mostrara sensível ao seu apelo.

— Mamãe!

Ele pronunciara a palavra assim que deixaram o aeroporto da Coréia, assim que se despediram de Soonya e do Sr. Choe. Soonya procedera com inteira correção. Aceitara um cheque, qualquer coisa entre 5 e 3 mil dólares e mal lhe deitara os olhos. Nem sequer o enfiara no seio ou na bolsa. Como se ele não lhe significasse nada, deixara-o sobre a mesa onde ela e Laura se haviam encontrado pela última vez. No aeroporto, dera a Kim Christopher muitos conselhos úteis, em inglês, para que todos pudessem compreendê-los.

— Obedeça ao pai, — disse a ele. — Obedeça também à Sra. Winters. Ela é a digna esposa do pai. Lembre-se de como ensinei tudo isso a você. Levante-se quando o pai entrar na sala. Não fique sentado diante do pai. E também faça-o feliz todos os dias estudando bastante. De manhã, leve o chá ao pai primeiro que tudo. À hora das refeições, espere que ele comece a comer. Lembre-se de todas as coisas que digo a você.

Falara em inglês diante de Laura, a fim de mostrar que treinara cuidadosamente o filho para seu pai, e Kim Christopher ouvira, acenando afirmativamente com a cabeça, mas sem dizer uma palavra. Continuou calado enquanto o avião a jato se erguia sobre a terra, cada vez mais alto. Mas quando o aparelho parou de subir, voltou-se para Laura e pronunciou apenas uma palavra:

— Mamãe.

Ela se limitou a sorrir, ao passo que as lágrimas lhe rebentavam dos olhos.

Agora ele ergueu a vista para o pai. Inclinou-se e esperou que este falasse primeiro.

— Olá, — disse Chris. Sentia-se encalistrado ao olhar para o garoto magro, que era indubitavelmente seu filho. O rosto era o seu — fora impossível negar a semelhança e o coração entrou-lhe a bater estranhamente depressa.

— Homem muito alto, — observou Kim Christopher amável.

Os dois entreolharam-se. Chris não se moveu, mas Laura tomou a mão do menino.

— Para onde vamos daqui? — perguntou, procurando dar à voz o tom mais casual possível.

— Reservei um apartamento num lugarzinho tranqüilo, fora da cidade. É bem na praia, em Laguna, — anunciou Chris, — onde poderemos discutir as coisas. Tirei dois dias de folga para travar conhecimento... até com você! Suas cartas foram muito falhas. Temos muito que explicar de ambos os lados. As coisas estão esquentando lá em casa. Terei de fugir dos repórteres até aqui, mas trouxe Berman comigo para isso. Uma publicidade desfavorável seria um desastre agora. Vamos sair daqui. Berman apanhará suas malas. Pronto, dê-me os talões.

Ela sentiu a mão de Kim Christopher aquecer-se na sua e soltou-a. Chris caminhava depressa, enquanto falava.

— Acompanhe-nos, Kim Christopher, — disse ela.

Ele obedeceu, trotando ao lado dela. Laura estava acostumada ao passo de Chris, mas este era longo e rápido para uma criança. Chris parecia haver esquecido o menino ao conduzi-los para a entrada. Ali Berman os esperava. Estendeu a mão a Laura.

— Bem-vinda seja, Sra. Winters, — disse ele. Olhou para o menino e desviou o olhar. — Ficarei com os talões da bagagem, Sr. Winters.

— O menino entende bem inglês? — perguntou Chris.

— Não, — disse Laura.

— Pouco, — acudiu Kim Christopher, sorrindo.

Era impossível não ver coragem no sorriso e Chris retribuiu-lho.

— Você aprenderá, — disse ele. — Aprenderá depressa, na escola.

— Na escola? — indagou Laura.

— Explicações mais tarde, — atalhou o marido.

Ela não podia fazer outra coisa senão esperar.

Duas horas mais tarde, no apartamento do hotel, Chris enfrentou-a. Num quarto contíguo, depois de um banho quente e de um bom desjejum, Kim Christopher adormecera.

— Já arranjei tudo. É uma boa escola, — disse ele.

— Se eu tivesse sabido que você não o levaria conosco para casa, — disse ela, — tê-lo-ia deixado com a mãe. Ele assim teria, pelo menos, um dos pais.

Ela também se banhara e alimentara. Agora, envolta no chambre cor-de-rosa, estava linda mas não estava terna, disse ele entre si. Tomara-a nos braços e ela lhe resistira, delicada porém firmemente.

— O que foi que você decidiu a respeito do menino? — perguntara.

Assim começara a discussão que poderia ter sido uma briga se os dois não conhecessem o amor um do outro. Mas o amor precisava esperar, decretara ela, e ele não poderia senão ceder, meio zangado por precisar fazê-lo, sem, no entanto, perder o ar de riso.

— Se eu não soubesse que você não é dessas, diria que está fugindo de mim, querida, para conseguir o que quer, seja lá o que for.

Isso dissera ele uma hora antes, no momento em que ela saíra do banho, viçosa como uma flor, e o empurrara quando ele tentara tomá-la nos braços.

Mas Laura gritara, indignada:

— Chris, você devia ter vergonha de dizer uma coisa dessas! Acontece que não posso pensar em... em...

— Em nada enquanto não tiver decidido o que tem na cabeça! Eu sei, eu sei.

A discussão continuou, no meio do idílico cenário californiano, que ele julgara haver escolhido com tanto cuidado para a renovação do seu amor. Achavam-se agora na varanda particular do apartamento, que caía para urna praiazinha de areia, além da qual rolavam as ondas delicadas do Oceano Pacífico. O céu e o mar eram azuis, as ondas vinham salpicadas de borrifos brancos ao rolarem na direção da praia. À direita e à esquerda, montanhas de rocha escura projetavam-se para dentro do mar. Um cenário apropriado, dissera ele a si mesmo, romântico e isolado. Sentira horrivelmente a falta dela.

Ela acomodara-se numa cadeira preguiçosa, ao lado da sua, e ele, alcançando-lhe a mão, segurou-a.

— Meu amor, — disse Chris, — se você deixar que esse menino se interponha entre nós...

— Ele não está entre nós, — corrigiu ela. — Está simplesmente aqui. Que faremos com ele?

— "Vamos pô-lo na escola.

— E depois?

— Uma coisa de cada vez.

— Muito bem, ponha-o na escola. Onde?

— Na Waite School, em New Hampshire. É a melhor das pequenas escolas particulares.

— E nas férias?

— Há sempre meninos que ficam lá durante as férias... Pais que estão na Europa, e casos assim. E ele pode ter aulas extraordinárias nessa época, que o ajudem a alcançar os outros.

— É um orfanato, — disse ela.

— Não é.

— Pois eu lhe digo que ele será um órfão. Continuo achando que devia tê-lo deixado com Soonya. Desse jeito... oh, Chris!

— Querida, você sente demais as coisas. Pense um pouco no que ele teria tido na Coréia. Nem educação, nem oportunidades... nada! Aqui ele terá o melhor...

— Exceto um lar e um pai.

O marido ergueu-se, subitamente colérico.

— Muito bem, desisto! Renuncio à candidatura. Vamos instalar-nos em algum lugar com o menino. Terá de ser um lugar estranho, onde eu possa começar de novo, onde isso não tenha importância.

— Sempre poderei levá-lo de volta para a mãe, — tornou ela.

Chris levantou-se e foi-se debruçar na balaustrada, olhos fitos no mar rebrilhante. A seguir, voltou-se para ela.

— Não, não pode. ' — Por que não?

— Pela mesma razão por que foi à Coréia para encontrá-lo. Reconheço minha obrigação. Reconheço que sou seu pai. Sei que tenho uma obrigação para com ele. Mas não acredito que minha obrigação exija de mim que desista, por causa dele, de toda a minha vida, de todas as minhas ambições, de tudo o que poderei fazer se realizar essa ambição. Agora não posso pensar só numa pessoa, Laura. Não poderia fazê-lo nem que ele fosse nosso filho, seu e meu. Você está pedindo demais.

Ele estava exaltado, e ela respondeu com resoluta calma.

— Não estou pedindo nada, Chris, a não ser que você me diga o que vai fazer. Agora sei. Mas preferiria não saber. Preferiria não ter sabido da existência dele. Preferiria que você tivesse guardado seus segredos para si.

E abriu a chorar, silenciosa e inesperadamente, ela que nunca chorava, e ele não pôde suportar-lhe as lágrimas. Até aquele momento, não compreendera a enormidade do que fizera tantos anos atrás. Considerado isoladamente, não fora nada, uma solidão de rapaz, uma necessidade de rapaz, um rapaz — um rapaz.

Dirigiu-se, impetuoso, para ela, tomou-a nos braços, conchegou-a a si, enquanto ela chorava, sentindo doer o próprio coração.

— Perdoe-me, perdoe-me.

Ela ergueu a cabeça e olhou para ele, com o rosto molhado de lágrimas.

— Não é em você que estou pensando, Chris. Eu o compreendo. Não o recrimino pelo que passou. Eu nem pensaria nisso, porque compreendo como aconteceu. Nem sequer me incomodo. Se não tivesse havido um filho, eu seria até capaz de rir... ou quase. Mas ele está aqui. Estará aqui, entre nós, enquanto vivermos... onde quer que esteja A cabeça dela pendeu sobre o ombro dele. Ele a reteve longamente, bem junto de si. Não havia nada que pudesse dizer. Nada. A criança, de fato, estava ali.

 

 

De volta a Filadélfia, a casa, a casa deles, estava silenciosa, quando, afinal, ali chegaram, mas, como fosse meia-noite, o silêncio era perfeitamente natural. Ela entrou sozinha enquanto ele pagava o táxi e trazia as malas e ela se pôs a andar pela sala de estar, ligando o comutador ao pé da porta. Limpa e vazia. Greta conservara tudo muito limpo e sem pó, mas sem flores também. Chris não lhe dissera o dia em que voltariam, pois ele mesmo não o sabia. Só o souberam depois de deixar Kim Christopher em Waite, naquela manhã. Em seguida, Chris alugara um aviãozinho e haviam voado para casa. Ela sentou-se, tirou o chapéu e as luvas. Aquela casa era sua, aquele era o seu lugar, e para lá voltara ela, porém sem alegria. Sentia-se estranhamente desapossada, ou talvez apenas perturbada. Não imaginara que fosse tão duro deixar o menino. Este, de certo modo, entrara em sua vida para ficar, já não mais como obrigação, mas como ser humano que dependia dela. Sim, ela também não podia escapar ao seu envolvimento; pois Chris, embora cumpridor de suas obrigações, ansiava por ver o menino instalado, a fim de poder — esquecê-lo não, porém colocá-lo em seu nicho.

Ouviu o marido fechar a porta da frente e girar a chave na fechadura. A seguir ele entrou na sala.

— É bom estar de volta... e tê-la de novo de volta. Santo Deus, não é possível que um homem sinta tanta falta de uma mulher!

Inclinou-se para beijá-la, erguendo-lhe a cabeça com o queixo dela apoiado em sua mão. Ela retribuiu-lhe o beijo. Sabia que não poderia agir sozinha. Não suportaria viver sem ele, nem viver com ele em estado de cólera, nem sabia o que se devia fazer com a criança. Naqueles poucos dias, Chris a convencera, não tanto pelo que dissera, quanto pela maneira de proceder em relação ao filho, de que só através do pai e com ele poderia a vida da criança Ser colocada no caminho certo. Pois após o primeiro dia, difícil, Chris a conquistara com os seus modos. Tratara Kim Christopher sem sentimentalismo, mas com calor; e quando chegaram à escola já se riam juntos das tentativas do menino para ampliar seu vocabulário.

— Que é isto, pai?

A eterna pergunta de Kim Christopher, acentuada pelo dedo indicador sempre em riste, aplicava-se a tudo o que via. Comidas e veículos, letras e palavras, objetos e edifícios, o menino absorvera vorazmente todas as experiências daqueles poucos dias. Haviam passado um dia inteiro em Waite comprando roupas, conversando com o diretor, James Bartlett, procurando um professor de inglês para Kim Christopher e conhecendo o seu companheiro de quarto, pálido rapazinho louro de Nova York cujos pais se estavam divorciando em Paris.

— Estou impressionado com o garoto, — dissera o Dr. Bartlett quando eles saíram.

Ali estava um bom homem, pensou Laura, um homem levemente mortificado como há de ser o diretor de uma escola para meninos, mas não distraído nem abstraído em sua maneira de encarar as coisas. Se percebeu alguma semelhança entre os dois Christophers, não a mencionou. Aceitou casualmente a explicação de Laura de que fizera uma viagem à Coréia, ficara impressionada com a solidão da criança e a trouxera consigo para os Estados Unidos, acrescentando haver dito ao menino que os considerasse como seus pais. E como não houvesse crianças na casa de Filadélfia, achavam que Christopher talvez aprendesse inglês mais depressa na escola.

O Dr. Bartlett concordara facilmente.

— É claro. Será uma questão de semanas. Tivemos aqui um menino do Rio, que não falava uma palavra, e a senhora ficaria surpreendida...

Ele gritou e um garoto risonho de pele trigueira e surpreendentes olhos azuis, aproximou-se. O Dr. Bartlett afagou-lhe os escuros cabelos anelados.

— Acabo de contar como você aprendeu depressa o inglês, e quero que me ajude o Christopher aqui a não desanimar.

— Com muito prazer, — foi a rápida resposta. E, agarrando o braço de Christopher, o menino afastou-se com ele. Dali a pouco, estavam atirando uma bola de baseball um para o outro.

Entretanto, não fora fácil, naquela manhã, explicar a Kim Christopher. Como quer que fosse, não tinham conseguido transmitir-lhe a idéia de que a escola, que ele esperava, significaria a separação. Quando estavam prontos para partir, ele preparou-se para acompanhá-los. Foi preciso que ela lhe explicasse.

— Kim Christopher, você fica aqui.

Ele pareceu surpreendido. Em seguida, agarrando-lhe a mão, não quis largá-la.

— Eu vou, — disse ele. Chris fizera o esforço seguinte.

— Nós voltaremos, rapaz. Voltaremos sempre.

Kim Christopher transferiu o agarramento. Travou da mão do pai com ambas as mãos e, silenciosamente, fitou nele os olhos súplices, cheios de lágrimas.

— Chris, — ofegou Laura. — Não suporto isto. Ele acaba de ganhar um par de pais e agora já vai perdê-los. Não tem idade para compreender uma coisa dessas. Sinto-me responsável.

O Dr. Bartlett interveio.

— Aconselho-os a saírem simplesmente. Nós o ajudaremos a ajustar-se. Talvez leve alguns dias, mas não mais do que isso.

No fim, portanto, tiveram de sair. Tiveram de libertar-se das mãos dele, agarradas ora a um, ora a outro e, sem olhar para trás, tinham fugido, deixando-o entregue ao Dr. Bartlett.

Agora, na sala vazia, onde não havia flores, rememorando, Laura ergueu-se de repente e encaminhou-se para a escada, onde ficou esperando que o marido apagasse as luzes. Em seguida, abraçados, subiram juntos os degraus. .— Eu quisera ter olhado para trás, — suspirou ela.

— Ora, querida, — suplicou ele.

— Ele é muito pequenininho, — voltou ela.

— Por favor, querida.

— Eu sei. — Laura despediu um suspiro profundo. — Eu sei, eu sei.

O que sabia é que teria de esquecer, e isso nunca poderia fazer. Precisava voltar a Chris, e sabia que não poderia fazê-lo — pelo menos com todo o seu coração, e que adiantava um pedaço de coração? Mas faria o que fosse possível. Talvez mais tarde, depois que ele tivesse vencido. Entrementes, precisava voltar a ser sua esposa.

Kim Christopher viu-os partir sem acreditar no que via. Confiara neles, supunha pertencer a eles, e agora o deixavam ali, no meio de estranhos! Não era possível, mas era o que estavam fazendo. Viu-os entrar num táxi e teria corrido atrás deles não estivesse sua mão presa a uma mão firme e forte, da qual não conseguia escapar.

— Firme, Christopher, — disse o homem.

Não sabia quem era o homem, embora lhe conhecesse o nome — Dr. Bartlett. Um homem alto e magro, nem jovem, nem velho. Parecia bondoso, mas o Sr. Choe também parecia bondoso. E o Sr. Choe desaparecera de sua vida, como todos agora estavam desaparecendo. Pensou na mãe, até na velha avó, que no último momento o pusera para fora de casa.

— Vá, vá, vá, — dissera ela. — Vá para o seu pai americano!

Fora finalmente ela quem o fizera alegrar-se por partir. Quantas vezes lhe batera, zurzindo-lhe as costas!

— Você come, come, come, — gritava-lhe.

E sua mãe, sua bela mãe, que não lhe permitia chamá-la de mãe...

Fora loucura deixar aquela terra onde ele, pelo menos, compreendia o que lhe diziam. Súbito, toda a coragem o abandonou, a coragem que o fizera retribuir os xingamentos das crianças na Coréia, que o haviam chamado de Olhos Redondos, Americano, Estrangeiro; a coragem que o fizera amar sua mãe, embora soubesse que ela não poderia amá-lo, nem agora nem nunca; a coragem que 0 levara a deixar tudo o que conhecia e vir para este país distante, com uma mulher branca, que era a esposa de seu pai. E quando encontrara o pai julgara estar a salvo Não estava... não estava. Estava sozinho outra vez.

E aqui, olhando à sua volta, encostou-se ao estranho alto e abriu a chorar terrivelmente, com grandes soluços que o sacudiam e lhe faziam em pedaços o coração. As palavras irrompiam-lhe dos lábios, palavras coreanas, que ninguém poderia compreender.

— Estou perdido... estou perdido, — soluçava.

O Dr. Bartlett inclinou-se. Em verdade não entendia uma única palavra mas, em sua vida estéril e sem filhos, aceitava todas as crianças sem compreender muito bem nenhuma. Sabia simplesmente que as pessoas lhe traziam os filhos, seus menininhos, e lá os deixavam. Não sabia como eram capazes de fazer isso, mas lá estavam eles, e cumpria fazer por eles alguma coisa. Cumpria alimentá-los, agasalhá-los e instruí-los, e ele empregava outras pessoas para ajudá-lo, delas exigindo sobretudo que fossem bondosas e verazes.

— Vamos, vamos, Christopher, — disse, ameigando os negros cabelos eriçados do menino soluçante. — Eles voltarão, você sabe disso. Mais cedo ou mais tarde os pais sempre voltam. E você aqui se divertirá à grande com os outros meninos. Espere alguns dias e será completamente feliz. Mas garanto que está com fome. Venha comigo, que lhe darei o que comer.

Era a costumeira panacéia que aplicava aos menininhos debulhados em lágrimas, algo para comer e um ou dois outros garotos para fazer-lhes companhia, conversar, brincar, ou coisa parecida. Tinha ele uma boa governanta, a Sra. Battle, que possuía um imenso talento para fazer quitutes, com que os meninos se regalavam, e conduziu Kim Christopher à enorme cozinha. Ali estava ela, sentada, tomando uma chávena de chá.

— Aqui está um novo menino, Sra. Battle, — anunciou ele. — Precisa alegrar-se um pouco. A história de sempre, só que ele não fala muito inglês. Este veio de longe, lá da Coréia. O Sr. e a Sra. Winters trouxeram-no. Moram em Filadélfia, mas ele ficará conosco. Há uma história qualquer no meio de tudo isso, mas qual desses meninos não tem uma história? De qualquer maneira, desconfio que está com fome. O nome é Christopher.

— Ainda bem que acabo de fazer uns bolinhos de açúcar, — disse ela. — Deixe-o comigo, Dr. Bartlett.

Puxou uma cadeira para junto da mesa, serviu outra chávena de chá e colocou alguns doces num prato.

— Sente-se, Christopher.

Ele sentou-se, esfregando as faces secas com os punhos, e ela sorriu para ele enquanto o Dr. Bartlett se afastava na ponta dos pés. Lá ficaram então, sentados, os dois, sem nada dizer um ao outro, pois que havia para dizer, pensou ela, se a pobre criança não sabia falar inglês? Pôs-lhe um bolinho no prato, depois outro, quando o menino deu cabo do primeiro. O chá estava quente e forte e ele pareceu apreciá-lo, pobrezinho. As lágrimas estancaram-se, ele aquietou-se e, por fim, distendido, pareceu até sonolento.

Ela levantou-se.

— Venha deitar-se aqui no sofá, meu bem — sugeriu.

Afofou um velho sofá, cujas molas haviam sido gastas pelo próprio peso dela.

— Deite-se aqui e deixe a Sra. Battle cobri-lo. Tire uma soneca e estará muito melhor quando acordar.

Ele compreendeu o que ela queria dizer, se não o que disse e, deitando-se, deixou que ela o cobrisse com uma velha manta tricotada de muitas cores. Minutos depois adormecia, exausto de cansaço e de tristeza.

Muito longe dali, na Casa das Flores, Soonya superintendia o empacotamento dos seus pertences. Sua partida foi silenciosa porém definitiva. O Sr. Choe fora inteiramente correto. A mudança operara-se através de um amigo dele, um Sr. Joshua Pak, rico negociante, que estava agora acrescentando seus haveres pelo secreto cancelamento dos seus contratos com os americanos, substituídos por novos contratos com firmas japonesas, nas condições estatuídas pelos recentes tratados comerciais firmados com o Japão Desadorava os americanos corretos, que não podiam ser corrompidos, e desprezava os americanos que se podiam corromper. A Coréia estava cheia de ambas as espécies Com os japoneses não havia o problema da corrupção, nem de um jeito, nem de outro. A única consideração eram os negócios. Além disso, o Sr. Pak se enchia de secreta fúria porque os estúpidos jovens norte-americanos das forças armadas haviam gerado tantas crianças mestiças. As moças coreanas entravam no negócio por motivos comerciais, mas os homens eram perdulários e loucos. Em lugares seguros ele defendia a tese de que essas crianças deviam ser esganadas ao nascer ou, se vivessem, os meninos pelo menos deviam ser castrados. O sangue dos coreanos era antigo e puro. E não se podia tolerar que assim não continuasse. Durante o passar dos séculos não se misturara sequer com chineses ou japoneses. Por que, então, ocorria essa atual miscigenação?

Trocando confidencias com o Sr. Choe, afoitara-se a dizer:

— Essas crianças deviam ser levadas embora de nosso país, nem que fosse apenas para serem jogadas ao mar.

O Sr. Choe já não era tão severo. Tinham-no abrandado algum tanto os anos que passara nos Estados Unidos, embora também conviesse em que as crianças deviam ser despachadas para a terra de seus pais, que era o seu lugar. Os americanos não entendiam de pureza de raça. Bastava observar as muitas cores de suas peles, de seus cabelos, de seus olhos! O Sr. Choe também aproveitara a ocasião, antes de pedir um favor ao amigo, para confessar que ele mesmo fora o instrumento do reenvio de um menino meio-americano ao pai, nos Estados Unidos, cuja mãe era uma mulher da Casa das Flores. Em seguida, pedira ao amigo o obséquio de servir de intermediário entre ele e Kim Soonya. O Sr. Pak concordara, visto que as fábricas do Sr. Choe manufaturavam certos produtos que ele desejava contratar, e um favor fazia jus a outro.

Daí que, naquela formosa manhã de outono, uma limusine americana esperasse diante do portão. No quarto, Soonya reunia suas últimas posses. Só restava a gaveta particular da penteadeira, que conservava sempre fechada. Mandando a criada sair do quarto, abriu-a e dela retirou os retratos do pai de seu filho. Contemplando-lhe o belo rosto, sentiu estremecer vagamente o próprio coração. Mentira ao Sr. Choe quando lhe dissera que não amava o americano, e momentos havia em que acreditava na própria mentira. Agora, contudo, conhecia seu coração. Se voltassem a juntar-se, sonho que finalmente abandonara, teria voltado a amá-lo. Aquele homem era o seu amor e não haveria outro. Entre eles, antes mesmo que pudessem compreender a língua um do outro, se processara um fluir de ternuras. Ele a amara; ela sempre acreditaria nisso. A esposa era a segunda em seu coração. Soonya via-se compelida a crê-lo também. A não ser assim, não poderia ir agora para a casa do Sr. Choe, que era o que precisava fazer, pois os anos passavam e ela estava, profissionalmente no auge de sua carreira. Dali a um ou dois anos, principiaria a mostrar a idade e outra mulher, mais moca e mais bela, lhe tomaria o lugar. Mas como esposa do Sr. Choe, embora fosse apenas a segunda, teria posição enquanto vivesse. Esguardou por mais um instante o belo rosto no retrato. Não, não podia conservar fotografias, não devia fazê-lo em casa de outro homem. Hesitou apenas mais um momento. Em seguida, acendeu a vela colocada no castiçal laqueado, em cima da mesa e, segurando o retrato sobre a chama, viu-o pegar fogo, enrolar-se e converter-se em cinzas.

Ainda restava um retrato — o da criança, de três ou quatro semanas de idade. Ela o segurara nos braços e ele, o pai, tirara a fotografia. Ao examiná-la, foi para o próprio rosto que ela olhou. Como era jovem, e como era bonita! A criança também fora perfeita, e vestia roupinhas americanas. Ele as comprara um dia, em algum lugar, trouxera-as consigo, ela as pusera na criança e, juntas, haviam posado para a fotografia no minúsculo jardim de pedras da casinha alugada por ele. A criança crescera e transformara-se, e agora lhe parecia que o bebê que ela amara com ternura não era o menino magro, de aspecto estrangeiro, que partira com a esposa americana. A certa altura do trajeto deixara de querer à criança. Incapaz de odiar o pai, talvez houvesse transferido o ódio para o filho que ele deixara após si. Ao pai se sentira unida, unida pela carne; mas a criança era um estranho, um intrometido, para o qual não havia lugar. Entregou também aquele retrato às chamas, para que o devorassem. Em seguida com um suspiro, deixou cair as cinzas na palma da mão levantou-se e foi até o shoji que abria para o jardim. Erguendo a mão, soprou as cinzas e ficou a vê-las torvelinhando no ar, até que se depositaram no musgo, na rocha, e flutuaram na superfície do tanque.

E conheceu, ao fazê-lo, que não poderia soprar com a mesma facilidade as suas lembranças. No mais profundo de si mesma havia a consciência de ter levado um estranho ao próprio âmago de seu ser, um homem de uma terra estrangeira, que permanecera estrangeiro, e nunca mais voltaria. Mas tivera-o dentro de si, e a parte dele que ela recebera assumira vida própria na forma de uma criança. Dali por diante, por maior que fosse a distância entre o homem e a mulher, viveria a criança como lembrança permanente da sua união. Nada poderia destruí-la. Nem a própria morte lograria destruí-la, pois ela vivia e viveria, embora morresse, visto que o que fora outrora poderia vir a ser outra vez, seria outra vez, na vida de outros homens e de outras mulheres. Nada era inviolado quando se tratava de homens e mulheres. A criança, além disso, trazia em si mesma metades díspares e, durante sua vida, transmitiria disparidade a outras crianças que ainda nasceriam.

Tais pensamentos ocupavam a mente de Soonya. Não era uma mulher simples nem estúpida. Capaz de sentimentos profundos, deles nasciam aqueles pensamentos, como pássaros que deslizavam sobre a superfície do mar. Afastou-os, entretanto, e relanceou os olhos à sua volta, para ver se não deixara nada na sala que lhe pertencera. Depois, vendo que nada ficara, chamou a empregada e ambas saíram da Casa das Flores, entraram na limusine que estava esperando e partiram.

— Patroa, — sussurrou a empregada, a seu lado, — a senhora não está com medo?

— Medo de quê? — perguntou Soonya.

— De viver na casa do Sr. Choe, numa casa tão grande, como dizem que é?

— É claro que não, — replicou Soonya. — Vou começar vida nova.

No íntimo, porém, sentia medo, pois nunca fora esposa, e agora precisava sê-lo, quer isso lhe agradasse, quer não.

— Quem foi que lhe escreveu? — perguntou Chris. Estavam tomando o desjejum naquele dia de verão.

Greta dispunha os copos de suco de laranja diante deles, e a fragrância do toicinho e do café rescendia no ar fresco da manhã.

— Wilton, do laboratório, — disse ela. — Quer que eu volte para trabalhar em regime de tempo integral, a fim de supervisar os seus pesquisadores no projeto das algas. Ele está especialmente interessado pela Euglena.

Riu-se o marido.

— Euglena... pelo menos sei que não é uma moça! Ela sorriu.

— Não é uma moça mas, apesar disso, é interessante. É aquela coisa verde que se vê num tanque de água fresca quando faz calor... Um ser autotrófico.

Ergueu as sobrancelhas, esperando a pergunta dele. No princípio da sua vida de casados, ele a teria feito, interessado como estava no trabalho dela, orgulhoso dele.

— Não, não estou perguntando o que é, — volveu Chris, ao ver-lhe a expressão.

— Mas vou contar-lhe assim mesmo, — disse ela. — É uma planta que precisa de alimento como um animal. Em lugar de ceder vitaminas, como o fazem habitualmente as plantas, precisa delas. A Euglena, por exemplo, precisa de vitamina B12.

— E daí? — perguntou ele.

— Daí que a pesquisa da Euglena pode ajudar-nos a encontrar respostas para perguntas sobre a anemia humana ou até sobre a leucemia.

Mas ela percebeu que o marido não estava prestando atenção. Deixara-se absorver pelos próprios pensamentos.

— Eu gostaria que você ainda não voltasse ao laboratório, — disse ele.

— Mas que farei de mim, Chris?

— Seja decorativa por algum tempo... como minha esposa! Preciso intensificar a campanha. Necessito de minha bela esposa ao meu lado.

— Não sou muito boa em matéria de apertos de mão. E você sabe disso.

— Deixe os apertos de mão por minha conta. Basta que fique ao meu lado e sorria. Lembre-se da sua técnica de modelo! Era devastadora.

— Faz tanto tempo!

— Faz apenas dois anos. Antes que você se transformasse na Dra. Laura de Witt, doutora em filosofia, metida em todo aquele treco científico!

— Você tem sido paciente.

— Tenho tido orgulho. Não é todo governador que pode gabar-se de ter uma esposa de dois canos. Beleza e miolos!

Ela pegou outra carta e reconheceu a letra.

— Temos carta de Christopher. Ele está começando a escrever surpreendentemente bem.

— Que diz ele?

— É para você, como sempre. Quer que eu...

O marido assentiu com a cabeça. Ela abriu a carta e leu-a em voz alta:

"Querido Pai: estou escrevendo hoje ao senhor. Agora sei nadar e mergulhar. Também sei jogar baseball, etc. Agora os meninos vão para suas casas passar as férias de verão. Quando irei para casa, por favor? O senhor não me dirá? Daqui a pouco haverá poucos meninos aqui. Estou esperando poder vê-lo todos os dias. Talvez o senhor venha. Tenho boas notas. Seu filho, Christopher".

— Bom garoto, — disse Chris.

Raramente falavam nele. Que havia para dizer? Nenhum deles tinha a resposta para a pergunta que não lhes saía do coração. Ela sabia que Chris pensava no menino, senão constante, pelo menos freqüentemente. Ele ali estava, presença viva na casa, por mais distante que se achasse.

— Você responderá à carta, Chris?

— Responda você.

— E a respeito do verão?

— Indaguei a esse respeito quando escolhi a escola. Existe um curso de verão... uma espécie de acampamento. Boa parte dos meninos não vai para casa... pais separados, ou que estão viajando... esse tipo de coisas. Oficiais militares acompanhados das esposas, mas que mantêm os filhos num bom lugar, onde podem instruir-se.

Ela tornou a enfiar a carta no envelope.

— Qualquer dia destes ele já não aceitará minhas desculpas em seu nome. Como haverá de compreender que você está sempre ocupado demais para escrever-lhe?

— Por favor, Laura!

Ela ergueu os olhos, admirada da angústia que lhe notou na voz, e imediatamente abrandada.

— Chris, perdoe-me. Mas, você sabe, nós o trouxemos para cá. Ele está num país estranho, entre pessoas estranhas.

— Passaremos o Natal com ele.

— Ó Chris, você irá mesmo?

— E por que não? Além disso, você não se sentiria feliz só comigo. Já não somos só dois.

— Só porque...

— Eu sei, eu sei. Não é minha culpa.

— Eu não ia dizer isso. Só porque ele está tão sozinho. Se o tivéssemos deixado com Soonya, eu não pensaria mais nele.

— Pois eu não teria consentido nisso! Deixá-lo crescer naquele país miserável...

— É o país de Soonya.

— Vamos mandá-lo de volta?

— Se você quiser, Chris. Eu o levarei.

Ele depôs a faca e o garfo sobre a mesa.

— Você está falando sério!

— Estou. Ele precisa de alguém ao seu lado, Chris alguém que o ame.

— Laura, você me exaspera. Ele está-se educando, está alimentado, abrigado. Crescendo num país de oportunidades. Poderá ser o que quiser. Providenciarei para que ele tenha sempre o melhor.

— Tudo, exceto o de que mais precisa... um lar. Ele lançou de si o guardanapo.

— Muito bem! Desisto. Direi a Berman que renuncio. Passaremos o resto da vida tomando conta desse menino.

— Isso seria definitivo. Tão definitivo que até vejo um divórcio no horizonte.

— Laura!

— Ninguém poderia viver com você nessas condições.

— Pois eu não posso dizer que aprecio muito a vida que levo.

— Refere-se a mim?

Já haviam brigado antes, mas nunca daquele jeito. Ela fitou-lhe os olhos, de um azul luminoso de cólera, e sentiu esfriar-se-lhe o coração. Como poderia explicar que havia agora um problema ainda mais profundo que a questão do menino; que a verdadeira angústia consistia na dúvida intolerável de que ele talvez não fosse o homem que ela imaginara; que ele pudesse fugir à verdade, em lugar de enfrentá-la, não assumir toda a responsabilidade que requeria a plena hombridade, revelando uma quebra de brio que ela não suportaria?

Isso não é justo de minha parte, disse entre si. Estou querendo medi-lo por minhas próprias exigências. Se o menino fosse meu, seria eu capaz de reconhecê-lo se, para fazê-lo, precisasse abrir mão do que mais quero? Ora, no caso dela, "o que mais quero" só poderia significar Chris. Se houvesse tido um filho nascido fora do casamento, por exemplo, uma criança deixada num orfanato, e tivesse a certeza de que o marido não lhe aceitaria o filho, teria contado a ele? Ou teria calado para sempre? Não havia resposta para isso, pois não havia criança alguma nessas condições. E para Chris, agora, não se tratava de perder uma pessoa senão sua mais alta ambição. E ela sabia que essa ambição não se restringia apenas a ele. Era demasiado bem-nascido para isso, demasiado bem-educado. Do velho tronco quacre, herdara a tradição de serviço. Ambicionava o poder, é verdade, mas ambicionava ser um bom governador porque o povo tinha direito à honestidade e à devoção dos seus administradores. Todas as suas horas de vigília, desde que crescera, desde que se formara em Direito, se haviam concentrado no planejar reformas e melhorias para o Estado. Experimentemo-las no Estado, dizia ele, e assim descobriremos o que servirá um dia para a nação. Jamais acrescentara as palavras, "quando eu for Presidente", mas elas estavam no silêncio e ambos o sabiam. Ainda na véspera, ele saltara da cama no meio da noite e pusera-se a andar pelo quarto, acordando-a, a fim de que ela lhe ouvisse a última idéia sobre reforma fiscal.

Ela ouvira-o, admirando-lhe a voz ressoante, os olhos coruscantes, as palavras que se quadravam ao pensamento, numa fala vigorosa e persuasiva.

— Acredito tanto em você, Chris, — dissera ela.

Ele, então, se acercara dela, tomara-a nos braços e, na torrente do seu mútuo amor, a aurora despontara antes que eles voltassem a conciliar o sono.

No entanto, agora, poucas horas depois, estavam brigando. Ela não o amava menos, mas sabia que se descobrira uma jaca. Ele não lhe falara a respeito de Soonya. Isso ela lhe poderia perdoar. Mas ele não lhe falara a respeito do menino, e isso, de certo modo, era imperdoável, pois o menino não tinha culpa de haver nascido. Fora chamado à vida sem ser consultado e, fossem quais fossem os meios, tinha o direito de viver, e não uma vida oculta, secreta, vergonhosa, porém uma vida em plena liberdade de espírito. Sim, houvera uma quebra, mas ela não poderia censurá-la. Chris simplesmente já não se erguia tão alto quanto se erguera outrora, e isso a despeito do amor. Mas ele era tudo o que ela possuía.

— Chris, perdoe-me! Amo-o tanto.

Ele derreteu incontinenti.

— E Deus sabe o quanto eu a amo! Não há nada em minha vida senão você! Quero tudo para você, meu amor! Quero que você se orgulhe de mim.

Deu dois passos e envolveu-a nos braços.

— Com licença!

Ouviu-se uma voz à porta e eles separaram-se bruscamente. Berman lá estava, com o rosto afogueado.

— Sinto muito interromper uma cena de amor, especialmente entre marido e mulher... Coisa rara nos dias de hoje.

Chris riu-se e recuou.

— Mas perfeitamente legal! Entre, Joe. Sirva-lhe uma xícara de café, Laura. Na realidade... — voltou a sentar-se à cabeceira da mesa e ela tornou decorosamente ao seu lugar, diante do marido, — na realidade, Joe, estávamos discutindo a maneira pela qual minha esposa poderia ajudar-me na campanha. Sente-se.

Berman sentou-se entre eles.

— Foi sobre isso que vim vê-lo, Sr. Winters. Conseguimos agora organizar as mulheres... em clubes, etc... E todas elas querem ouvi-la, Sra. Winters. Programarei suas atividades com a freqüência que a senhora permitir, começando com os grupos locais aqui na cidade e depois percorrendo o Estado todo.

Ela assustou-se.

— Elas querem ouvir Chris e não a mim. Além disso, sobre o que falaria eu?

Berman sorriu.

— Precisamos poupá-lo para os homens. Portanto, quais são os assuntos que lhe interessam?

Chris voltou a rir-se.

— Não lhe pergunte isso! Ela se interessa pelas criaturas mais estranhas desse mundo... Coisas do fundo do mar... Plantas que são animais e animais que são plantas. As mulheres pensarão que ela está bêbeda, mas ouvirão assim mesmo.

Berman parecia assombrado.

— O senhor está brincando.

Laura acudiu em seu auxílio.

— Sou farmacologista marinha. Não deixe Chris arreliá-lo, Sr. Berman.

— Pensei que a senhora fosse modelo.

— Também. Foi assim que ganhei meu primeiro dinheiro, depois que saí do colégio.

— Continue a ser modelo, querida, — sobreveio Chris, alegremente. — Fica-lhe muito bem. Não se assuste, Berman.

— Não estou assustado, — protestou Berman. — A senhora pode falar às mulheres da universidade sobre o lado científico, Sra. Winters, e às outras sobre coisas de modelo.

— E onde é que eu entro? — perguntou Chris.

— Onde quer que ela for. As mulheres quererão saber que espécie de marido é o senhor, se ajuda a lavar os pratos à noite, se gosta de crianças...

Interrompeu-se.

— Foi para nós uma grande decepção não termos tido filhos, — atalhou Laura tranqüilamente, sem se perturbar. Berman não devia imaginar que isso fizesse alguma diferença.

— Ela dará conta do recado, — afirmou Chris. — Pode programá-la, Joe. Precisamos começar com as mulheres. Você já arranjou para eu falar no Rotary Nacional?

— Está tudo arrumado.

Laura ergueu-se silenciosamente, tão silenciosamente que os homens não notaram que ela saíra da sala. Lá fora, o verão florescia no jardim murado. Havia algo precioso num jardim urbano. Naquele espaçozinho, ela plantara, com cuidado, umas poucas moitas graciosas, roseiras a um canto, uma mimosa ao pé do muro entre a casa e a casa vizinha. Um chafariz, dois bancos alvos de ferro e uma mesa redonda entre eles completavam o quadro composto por ela. Era estranho que continuasse a lembrar-se da paisagem da Coréia, das amplas extensões de montanhas nuas, que avultavam sobre as ruas de Seul, dos tetos recurvos dos palácios, das multidões, dos rostos das crianças, dos rostos das crianças especiais — como Kim Christopher, que os seus olhos haviam aprendido tão cedo a procurar e encontrar.

Sentou-se num dos bancos de ferro. Um pássaro cantou de repente, pousado num galho do sicômoro que pendia sobre o muro de tijolos, no meio da dupla fileira que orlava a rua tranqüila, mas ela mal o ouviu, com o espírito muito distante. Na antiga cidade de Seul, a velha e forte vida do passado, o povo da Coréia, hoje se defrontava com a vida nova, a vida estranha e impetuosa de jovens norte-americanos. E então, inesperadamente, o rosto do Tenente Brown lhe acudiu à memória.

Um rosto tenso, recordou, tenso com a decência do domínio de si mesmo, o controle dos instintos sexuais, que tanto o exauria, mais profundamente talvez, do que a própria libertinagem. Quem sabe? Como poderia ela censurar o seu Chris, o seu espirituoso, terno e alegre Chris, que ela não poderia ter amado tão apaixonadamente se ele fosse como o Tenente Brown? Como poderia censurá-lo por amar, embora durante algum tempo e não para sempre, uma moça tão bonita quanto Soonya?

Ouviu fechar-se a porta da frente com estrondo, como Chris sempre a fechava, e percebeu que Berman se fora. Levantou-se, entrou, dirigiu-se ao marido e envolveu-lhe o pescoço com os braços.

— Farei tudo o que puder para ajudá-lo, — prometeu ela.

 

Caía uma leve chuva de verão, restos de tempestade, quando ela apeou do táxi e entrou no saguão do edifício das Torres. Já estava começando a acostumar-se àquilo, àquela reunião de mulheres em seus abrigos seletos, naquele dia o enorme apartamento da Sra. Henry Allen. Já não sentia medo e quase não se constrangia. Gostava do velho Henry Allen, não só pessoalmente mas também pelo que ele estava fazendo por Chris. Sentia nele a força de uma rocha ao lado de Chris; e, para ela, era também um amigo, em quem poderia confiar, embora nada lhe contasse. Ele gostava dela e tratava-a com cortesia, com a terna e delicada cortesia que teria dispensado a uma filha, se a tivesse. Mas tinha seis filhos, e nenhuma filha e, se bem fosse leal às esposas de seus filhos, sentia falta de uma filha. Ela dava-se bem com ele, percebendo-lhe a profunda capacidade de compreensão, que talvez não sentira em mais ninguém, que não sentira por certo no pai, professor universitário da velha escola, bondoso, mas esquecido dos filhos, cujo interesse pela literatura terminava na época elisabetana. Havia conforto na retidão de Henry Allen. Com ele, não corria o risco das carícias furtivas de um velho!

Entrou no elevador e subiu ao décimo oitavo andar. Abriu-se a porta e lá estava Henry Allen para recebê-la.

— Entre, Laura, — disse ele. — Estão todas aqui... toda a velha guarda, as esposas dos banqueiros, as esposas dos quacres hereditários como eu, dos guardadores do ouro. Não darão um ceitil, a menos que se vejam obrigadas a fazê-lo, e nós precisamos obrigá-las. Você sabe disso. Precisa mostrar-lhes como um novo conservador, um homem dinâmico e inteligente como Chris, poderá salvar-lhes o país das coisas que as assustam... De todas as coisas que elas chamam o abjeto comunismo. E você saberá fazê-lo. Elas abrirão o coração e a bolsa aos jovens da direita, dos quais seu marido é um representante tão superior, tão avançado. A velha senhora debaixo daquele chapéu que parece uma torre de púrpura... poderia subscrever toda a campanha do jantar, se o quisesse. E quero que ela o faça para poder aplicar meus caraminguás nas excursões de Chris... Uma volta pelo Estado, os lavradores e o resto... Todas as sedes de municípios, você sabe... Depois, talvez, uma viagem à volta do mundo, para dar-lhe base. Todo homem precisa disso, hoje em dia.

Ela acompanhou-o até a opulenta sala de estar onde, em pequeninas poltronas douradas, esperava, sentada, uma centena de senhoras. Enfrentou-lhes com calma os olhos avaliadores, sorrindo apenas o suficiente. De fato, a experiência como modelo ajudava-a bastante. Postura, distância, pose, presença, de tudo se utilizou com graça experiente. E conhecia as mulheres. Não devia despertar-lhes a inveja mostrando-se excessivamente segura de si. Precisava aproximar-se delas com jovem e fascinante modéstia, precisava estar disposta a falar sobre si mesma apenas como esposa de um político em ascensão, precisava estar pronta, no fim do breve discurso, pois sabia que não devia estender-se em demasia, para deixar tempo às perguntas pois aprendera a expor então os seus argumentos. Sólida e afável, vestida de seda cor de cinza, a Sra. Allen levantou-se para apresentá-la.

— Nós, mulheres, queremos sempre saber como é a esposa de um candidato, não queremos? E não é sempre que essas esposas são tão agradáveis de se apresentarem como a que temos hoje conosco, a Sra. Chris Winters. Vocês viram o retrato dela inúmeras vezes nos jornais, pois é uma jovem muito atarefada, que acompanha o marido a toda a parte. Mas a maioria das pessoas presentes a vê agora, pessoalmente, pela primeira vez.

Diplomaticamente, omitiu toda e qualquer referência ao modelo Laura de Witt. Havia o que quer que fosse não muito sólido acerca do glamour.

— E assim, aqui está ela, nossa futura primeira dama.

Laura levantou-se, com um sorriso encabulado, e sua timidez não era simulada.

— Estou apenas fingindo ter-me acostumado a esta espécie de coisas, — disse ela. — Mas a verdade é que não me acostumei. Vivo sossegadamente. Aliás, vivemos os dois, e aqui estou apenas porque meu marido me pediu que viesse em seu lugar, pois ele anda ocupado em outra parte. Por conseguinte, estou apenas tentando substituí-lo. Ele teria gostado de estar aqui, se tivesse podido vir! Nem sei direito como começar... O melhor talvez seja apresentá-lo às senhoras. Como é ele? Bem, tem um metro e oitenta de altura e olhos azuis, que ficam muito brilhantes quando se interessa pelo que está dizendo ou quando se zanga. Joga tênis muito bem, é excelente esquiador e bom cavaleiro. Gostamos de equitação. Ele gosta de golfe mas eu não gosto. Fez o curso de economia em Harvard e formou-se com distinção e louvor. Seu primeiro emprego teve-o num grande banco de Nova York, onde ficou até achar que compreendia o dinheiro, a maneira de usá-lo, a maneira de geri-lo, a maneira de emprestá-lo como crédito a casas comerciais. Depois voltou a Harvard para formar-se em Direito. Completou o serviço militar na Coréia e, depois disso, bem... pertence a uma antiga firma de advocacia aqui da cidade. Assim é ele por fora. Em casa, é...

Hesitou, a cabeça inclinada em atitude pensativa. A seguir, ergueu-a e sorriu para as circunstantes.

— Como poderia dizer-lhes o que ele é em casa? Não temos filhos. Gostaríamos de tê-los. Tenho a certeza de que ele seria um bom pai. É rigoroso em matéria de disciplina... Conservador, lógico, mas justo. Sempre justo.

Tornou a fazer uma pausa. Diante dela, como que saída da atmosfera, desenhou-se a imagem de Kim Christopher. Não, não, não devia pensar nele agora. Gaguejou, mas logo prosseguiu, falando depressa.

— Politicamente, representa o que de melhor existe entre os Jovens Republicanos... Pelo menos é o que acho, e muita gente boa pensa como eu.

E prosseguiu, ardilosa na sua ausência de ardis, e conheceu que as mulheres a ouviam com simpatia. Estava sendo sincera, queria ser completamente sincera, e desejava poder falar-lhes sobre Kim Christopher, mas sabia que não tinha o direito de dizer o que o próprio Chris não diria. Logo concluiu a sua arengazinha e, em seguida, enfrentou-lhes as indagações com paciência e alguma admiração. Pois as perguntas revelavam que aquelas mulheres eram astutas, embora tivessem vivido abroqueladas toda a sua vida. Conheciam a sua cidade e o seu Estado e, quando lhes chegasse a ocasião de expandir o seu conhecimento do país e do mundo, seriam capazes de aprender. Fosse como fosse, lembrou-lhe uma história que o pai lhe contara, havia muito tempo, ao regressar de um ano de estudos na China.

— Aqueles campônios chineses, — dissera ele, — não sabem ler nem escrever, mas são civilizados e têm experiência da vida. Não faz muitos anos, não conheciam, em matéria de transportes, mais do que carroças e carrinhos de mão. Nisso, construíram-se as primeiras estradas de ferro e, com a maior facilidade e segurança total, eles entraram nos trens com os seus produtos guardados em cestas, que pendiam de varas de bambu. Agora estão conhecendo os aviões. E sem surpresa nem vacilações entram-lhes no bojo, como vi fazer um velho, com meia dúzia de galinhas amarradas pelos pés. Subimos ao ar e ele fumava o pito de bambu com fornilho de lata e olhava pela janela como se tivesse andado de avião a vida inteira. E o intérprete me contou que era a sua primeira viagem em alguma coisa um pouco mais rápida que o lombo de um burro. Nem a estrada de ferro chegara à parte da China em que ele morava.

Ela imaginava aquelas senhoras roliças, de cabelos brancos, bem vestidas, cujo mundo era a cidade confortável e opulenta em que haviam nascido e onde viviam, entrando no mundo a que seu marido tencionava presidir um dia com a mesma espécie de aceitação.

— E isso, — disse ela, concluindo, uma hora depois, — me traz ao fim desta tarde. Apreciei-a tanto! Aprendi muitíssimo com as suas perguntas... Muito obrigada.

Voltou-se e fez menção de sentar-se, quando a Sra. Allen pôs a mão em seu braço.

— Espere um minuto, meu bem, quero apresentá-la outra vez. Minhas amigas, apresentei-lhes a Sra. Christopher Winters, esposa do nosso futuro governador... Sim, sim, tenho certeza, meu bem... Mas agora desejo apresentar-lhes outra jovem. Esta é também a Dra. Laura de Witt, distinta e jovem cientista, que trabalha com dois dos nossos maiores cientistas no campo da farmacologia marinha. E se não sabem o que é isso, não se vexem, que eu também não sabia. Precisei procurar no dicionário. É qualquer coisa com a busca de novos remédios em plantas e animais do mar. Está certo, meu bem?

Foi Laura quem se sentiu vexada, mas as senhoras bateram palmas calorosas e levantaram-se à procura de chá e coquetéis. Ninguém lhe perguntou o que era realmente a farmacologia marinha, e ela evitou habilidosamente o assunto, enquanto equilibrava uma chávena de chá sobre o joelho e comia um sanduíche de caviar.

Entretanto, fez uma pausa à porta, no momento de despedir-se.

— Como foi que a senhora fez isso? — murmurou, em tom de censura, dirigindo-se à Sra. Allen. — Acho que agora elas não vão gostar de mim.

— Meu bem, — tornou, resoluta, a Sra. Allen, — já é tempo de nós, mulheres, nos orgulharmos das mulheres inteligentes.

Dizendo isso, beijou-lhe o rosto, abriu a porta e deixou-a sair.

"Querido Pai", escreveu Kim Christopher. "Na semana que vem será o Quatro de Julho. Grande feriado e os pais virão, e também as mães. É o que fiquei sabendo. Por favor venha ver os foguetes. Seu filho amoroso, Christopher Winters".

Ela estendeu a carta a Chris em silêncio. Ele leu-a.

— Chegou hoje?

— Chegou. Preparo um coquetel para você?

— Por favor. Está claro que não poderemos ir no dia quatro. Vou fazer aquele discurso importante na capital. É a noite do jantar de cem dólares o talher. Você precisará estar lá comigo. Que negócio de "foguetes" é esse?

— Ué, foguetório... fogos de artifício.

— Ah, sim. É pena, mas... eu disse que iríamos pelo Natal.

— Aqui está o seu coquetel.

O Natal fica muito longe de julho para qualquer criança, pensou ela, mas agora já estava habituada àquilo ou pelo menos supunha estar. A campanha se achava em pleno andamento e ela admirava Chris com o coração e o espírito, abafando a duvidazinha intolerável com frenética atividade. Ele fazia um discurso brilhante depois do outro. As pessoas esperavam dele coisas cada vez melhores. Chamavam-lhe "um homem de coragem". Enfrentava questões não resolvidas, procurava resposta para os grandes problemas, estudava, aprendia uma porção de coisas até sobre países remotos como os da Ásia, onde principiavam a surgir quase todos os verdadeiros problemas. Ninguém sabia, nem sequer o próprio Chris, com quanto desespero desejava ela que ele enfrentasse também as questões particulares não resolvidas, e lhe serenasse a alma naquele momento tão infeliz, mostrando ser de fato um homem de coragem. Cutucando-lhe a memória lá estava a história de Grover Cleveland, que, ao disputar a Presidência, dissera "Contem a verdade", a respeito do desditoso rapaz que ele sustentava havia anos. Seria Chris menos homem do que Grover Cleveland? Toda a vida dela dependia de que ele não o fosse... e a vida dele também.

— Algum dia, depois das eleições, terei de fazer uma viagem ao redor do mundo, — dizia Chris. — Talvez durante os feriados do Natal. É um período morto. Você e eu.

— Mas não no dia de Natal. Estaremos com Kim Christopher nesse dia.

— Estaremos. Eu já disse que sim.

O espírito dela fazia planos enquanto ele falava. Faltavam dez dias para o quatro de julho. O Dr. Wilton rogara-lhe que fosse ao laboratório a fim de examinar um novo microrganismo marinho, que conseguira cultivar em seus tanques experimentais.

— Estou precisando dos seus olhos penetrantes e da sua mente rápida, — escreveu ele. — O bichinho... bichinho?... É um verdadeiro comedor, que se move por conta própria. Ao mesmo tempo... será vegetal?... contém cloro-fila e realiza a fotossíntese. Pode ser um novo dispositivo para filtrar agentes anticancerígenos — é o que espero e para o que rezo!"

— Chris, — disse ela então, enquanto bebericavam os coquetéis, — você não se incomoda que eu tire uns dias agora para ir ao laboratório? Wilton supõe realmente ter encontrado algo novo.

— É claro que não, — respondeu ele, com tão rápida generosidade que ela não formulou a segunda pergunta.

E você não se incomoda, ia perguntar, que eu me demore mais um ou dois dias e vá visitar Christopher, já que não podemos ir lá no dia quatro? Não, era melhor não falar nisso. Talvez, quando estivesse no laboratório, inclinada sobre o microscópio, aquilo não lhe parecesse tão urgente.

— Obrigada, Chris.

— Pequena retribuição, — replicou ele. — De fato muito pequena. Henry Allen me disse que você conquistou as mulheres no outro dia. Elas gostaram de você, querida. São mais inteligentes do que eu as supunha.

Acercou-se da mulher, inclinou-se sobre ela e beijou-a longa e profundamente. O seu beijo ainda era emocionante.

Uma semana depois, ela passou dois dias no laboratório, gozando, após tantos meses, as delícias da comunhão com espíritos semelhantes ao seu. E ficou ainda mais satisfeita porque, debaixo do microscópio, foi capaz de reconhecer o novo organismo como um dos dinoflagelados que vira, de uma feita, mas não analisara, numa massa de plancto retirado do Mar de Sargaço.

— Seu cérebro impiedoso, — grunhira o Dr. Wilton. — É claro que haveria de lembrar-se de ter visto a maldita coisa... Provavelmente em sua primeira infância! Você nunca se esquece de nada?

Mais velho do que ela, era um homem esguio, de óculos, sem nenhum colorido especial, mas ela suspeitava que fosse um homem másculo. Por isso mesmo, limitou-se a sorrir. Entretanto, na manhã seguinte, enquanto dirigia o carro pela estrada que conduzia a New Hampshire, ocorreu-lhe que uma de suas dificuldades talvez derivasse do fato de que nunca, realmente, se esquecia. Assim, era-lhe impossível olvidar um único momento sequer das horas que passara com Kim Christopher, como também não conseguia esquecer as mutáveis expressões que lhe vira no rosto demasiado expressivo, sua decepção ao verificar que não ficaria junto do pai, seu corajoso silêncio e o brilho das lágrimas nos olhos. Não, o mergulho no trabalho daqueles dois últimos dias não a fizera esquecer a urgente necessidade do garoto. E, não a esquecendo, pela primeira vez na vida enganara consciente e deliberadamente o marido.

— Chris, — dissera, na véspera, à noite, pelo telefone. — Não voltarei para casa amanhã, como havia planejado. Ficarei mais dois ou três dias.

— Chegará atrasada para o dia quatro! — exclamou ele.

— Não, não chegarei. Não chegarei um momento sequer depois da meia-noite do dia três, talvez até do dia dois.

— E estará exausta no dia seguinte!

— Não estarei exausta no dia seguinte.

Ele acabara cedendo ao seu inexorável bom humor, e eles se haviam despedido com as palavras habituais de amor.

O acerto de sua decisão surgia-lhe agora claramente depois do longo e calmo dia em que dirigira sozinha. Rematara sua tarefa no laboratório, deixando com os colegas uma breve e clara exposição de suas conclusões, e com o espírito em paz, a paz que só o trabalho completado, bem feito, poderia trazer-lhe, voltara sua íntima atenção para Kim Christopher. Lentamente, à maneira que passavam as horas, chegara à conclusão de que não era possível permitir que aquela situação se prolongasse. O menino precisava juntar-se a eles como filho de Chris, ou ela o levaria de volta para a Coréia e para a mãe, isto é, se lograsse persuadir o marido a consenti-lo. Tranquilizou-se-lhe o espírito por haver chegado pelo menos a essa decisão e, logo depois, ao pôr do sol, avistava a Escola Waite para Meninos. Propositadamente não anunciara que iria. Queria ver Christopher tal e qual este se encontrava, sem a excitação preliminar da expectativa da sua chegada. Queria encontrá-lo onde acertasse de estar, brincando ou fazendo a refeição da noite. Deteve-se diante do edifício principal, estrutura colonial de madeira, pintada de branco com venezianas verdes nas janelas, e tocou a campainha. Um menino mais velho atendeu-lhe ao chamado.

— O Dr. Bartlett está? — perguntou.

— Acho que ainda está no escritório, mas deve estar-se preparando para sair.

— Veja se o alcança para mim por favor, — pediu ela. — Diga-lhe que é a Sra. Chris Winters.

Fazia poucos instantes que estava no vestíbulo quando viu o Dr. Bartlett encaminhar-se, rápido, para ela, estugando o passo largo, a surpresa estampada no rosto.

— Sra. Winters! — exclamou. — Aconteceu alguma coisa?

— Não, — explicou ela, — apenas achei que devia dar um pulo até aqui para ver como vai indo Christopher.

— Muito bem, muito bem, — disse ele, — entre. Vou mandar chamá-lo.

— Não posso ir ter com ele? Gostaria de vê-lo no local, por assim dizer.

Encontraram-no na biblioteca, aliás vazia àquela hora. Sentado ao pé da janela, aproveitando as últimas claridades da tarde, lia um grande livro colocado sobre o peitoril.

— Christopher, aqui está uma surpresa para você, — disse o diretor.

Ele ergueu o rosto. Ela viu imediatamente que ele estava mais magro, muito mais magro. Mas quando se pôs em pé, de um salto, viu também que ele estava muito mais alto.

— A senhora veio ver-me! — murmurou o menino. Para horror dela, Christopher hesitou e, em seguida, encostando a cabeça no seu ombro, abriu a chorar. Ela conchegou-o de si e, abraçada com ele, dirigiu um olhar de censura ao surpreendido Dr. Bartlett.

— Ele tem-se sentido infeliz?

O menino respondeu por si mesmo. Ergueu a cabeça e sorriu, através das lágrimas que lhe molhavam o rosto.

— Agora estou feliz, — exclamou. — A senhora veio ver-me. Obrigado.

— Ele tem andado feliz, — disse o Dr. Bartlett. — Houve, naturalmente, alguma depressão. Afinal de contas, é um país estranho para ele e, de certo modo, a senhora e o Sr. Winters ainda lhe são estranhos também.

Não lhe haviam dito quem era o menino e, embora isso devesse ter saltado aos olhos de um diretor atilado, nenhuma pergunta se fizera e, por isso mesmo, nenhuma resposta fora necessária. Deveria ela contar-lhe a verdade, mais tarde, quando a sós? Ele continuava falando.

— Não leve muito a sério essas lágrimas, Sra. Winters. Estive várias vezes na Ásia e, na verdade, passei meses no Japão durante a Ocupação. Na Ásia, se bem me lembro, o chorar não é motivo de vergonha para um homem. Ao contrário, considera-se sinal de sensibilidade e sentimento e, segundo descobri, o nosso Christopher possui ambos esses atributos. É possível, naturalmente, que tenha também os seus problemas.

— Discutiremos o assunto, — acudiu ela, resoluta.— Por enquanto, o senhor poderia hospedar-me por esta noite?

— Naturalmente, em nosso melhor quarto de hóspedes. Christopher, leve-a ao Quarto do Leste e traga-a depois para jantar com você. Mandarei que levem sua mala para o quarto, Sra. Winters, e agora vou deixá-la com o seu menino. Afinal de contas, foi a ele que a senhora veio visitar.

O Dr. Bartlett afastou-se e ela se sentiu tocada ao perceber que Christopher não se julgava demasiado velho para segurar-lhe a mão enquanto cruzavam o vestíbulo, cheio de rapazes. Entrando por um corredor orientado para leste, ele abriu uma porta e entrou depois dela no quarto, recanto agradável, todo enfeitado de algodão estampado e organdi branco. Ela sentou-se numa poltrona e, estendendo a mão, puxou o menino para junto de si.

— Agora deixe-me vê-lo, — disse. — Você está alto, está magro. Come bastante?

Ele fez que sim com a cabeça, subitamente tímido. Surpresa, ela notou que os olhos dele voltavam a encher-se de lágrimas. Não disse nada, compreendendo a tensão íntima, a insegurança, que mantinha as lágrimas tão próximas da superfície. Isto não pode continuar assim, pensou.

— Quando virá meu pai? — perguntou ele.

— Ele virá, — respondeu Laura com resoluta jovialidade. — E com certeza viremos para o Natal. Você conhece o Natal?

Ele assentiu com a cabeça.

— Sim, no Natal, — repetiu ela. — Agora diga-me... — Uma idéia acudiu-lhe à mente. Soltou-lhe a mão e fez-lhe sinal para que se sentasse na poltrona vizinha. — Você sabe esquiar?

— Sei o que é, — disse ele, sentando-se. — Mas não sei como é.

— Então precisa aprender, — voltou ela. — Seu pai é ótimo esquiador. É o esporte predileto dele. Quando viermos no Natal, haverá neve no chão e ele quererá levar você para esquiar naquela montanha. Aposto que todos os meninos aqui sabem esquiar. E você será bom esquiador, como seu pai. Isso o fará feliz?

Ele tornou a assentir com a cabeça, os olhos brilhantes, e ela se alegrou. Laura continuou.

— Providenciarei para que você tenha um bom professor de esqui, e deixarei instruções para que lhe dêem esquis e tudo o que for preciso.

— A senhora esquia também?

— Esquio, mas não tão bem como seu pai.

E continuaram conversando assim, até que, uma hora depois, soou o gongo chamando para o jantar e eles se endereçaram ao refeitório. E, de repente, à mesa, vendo Christopher sentado com outros meninos, conversando com eles e comendo com apetite, decidiu não desvelar o segredo que Chris desejava ocultar. Pois como poderia explicar? Sua lealdade ao marido vinha em primeiro lugar.

Naquela noite, em companhia de Christopher, assistiu a uma peça da escola, uma comédia sobre a vida escolar representada por meninos, e despediu-se dele, mais tarde, à porta do quarto. Lembrando-se da freqüência das suas gargalhadas, desejou-lhe alegremente boa noite.

— Amanhã tomaremos o desjejum, — disse ela, — e, depois, precisarei voltar para junto de seu pai.

Dissipou-se-lhe o brilho do rosto.

— Boa noite, Mãe, — disse ele e, após breve inclinação, afastou-se.

Ela viu-o caminhar pelo corredor e, quando o perdeu de vista, fechou a porta.

— Eu simplesmente achei que precisava ver o menino e descobrir, por mim mesma, se ele era feliz... Isto é, suficientemente feliz para que minha consciência pudesse descansar, pelo menos por enquanto, pois não solucionamos coisa alguma. Você sabe disso, Chris!

Era no dia seguinte. Ela chegara tarde a casa, quase à meia-noite, e Chris a esperara na sala de estar, cercado de jornais. Agora, depois de um banho, com o chambre de seda cor-de-rosa, restaurada por uma bebida gelada que o marido lhe trouxera, ela sentara-se com ele no balcão do segundo andar, em espreguiçadeiras, à luz do luar.

— Não sei como interpretar a sua saída assim, sozinha, — disse ele, conturbado, como ela pôde perceber-lhe pelo timbre da voz. — Você poderia ter sofrido um acidente na estrada e eu não teria tido a menor idéia do lugar onde a encontraria. Provavelmente nem deixou recado no laboratório. Sei que não deixou, pois o Dr. Wilton telefonou hoje cedo, querendo falar com você. Se ele houvesse telefonado ontem à noite, antes da sua chamada, eu teria ficado louco de medo. Essas coisas hoje acontecem, Laura, e você não tem o direito de fazer isso!

— Eu sei que devia ter dito a você que ia lá mas, de qualquer maneira, tinha de ir sozinha. Precisava vê-lo.

— Por quê?

— Não conseguia esquecê-lo.

— E agora consegue?

— Não de todo, enquanto não tivermos respondido à pergunta fundamental: que vamos fazer com ele?

Chris despediu um profundo suspiro.

— Se ele ao menos não fosse parecido comigo!

— Ele é parecido com você. E mais cedo ou mais tarde a verdade nos alcançará. Isso vai e deve acontecer.

— Laura, mais tarde, quando eu tiver ganho esta parada...

— Mais tarde será pior. O governador? Um escândalo! O Presidente? O escândalo do século! Chris, você não pode assobiar e chupar cana ao mesmo tempo. Não pode guardar esse menino na geladeira para sempre. Terá de decidir, um dia, se a fama tem mais valor para você do que um filho.

E se tiver, ajuntou entre si, presa de muda angústia, você é menos homem do que eu o supunha. Não pode acreditar realmente no que diz sobre os valores humanos e viver esse tipo de mentira.

Ele sentiu-se aguilhoado.

— Não é essa a alternativa, — retrucou. — É claro que quero um filho. Sempre o quis. — Não a viu encolher-se, ferida, e prosseguiu, sem perceber quão impiedosamente o fazia. — Em circunstâncias comuns, se eu fosse um homem comum, tomaria o filho... este filho... e declararia minha paternidade perante o mundo. Fama? Não troco uma coisa pela outra. — Estalou os dedos. — Qualquer idiota pode tê-la hoje em dia. Dispa-se e ficará famosa. — Voltou-se, encarou com ela por um momento e Laura conheceu que a cólera dele se avolumava. — Será possível que você, minha própria esposa, não me compreenda?

— Você deseja o poder, Chris, — volveu ela, suavemente, — é claro que o deseja, e que saberá usá-lo. Sei disso melhor do que ninguém. E você também o apreciará. Tampouco há mal nisso. É só que...

— Laura! — bradou ele, agitando a mão com impaciência. — Terei, acaso, de explicar a você, entre todas as pessoas? Quero ser governador deste Estado porque quero ser um bom governador para o povo do Estado. Não por mim, mas porque vejo os erros que tenho a consciência de saber endireitar. Se for possível, e pretendo torná-lo possível, serei um dia Presidente dos Estados Unidos, e também não o serei por amor da fama, mas porque vejo erros no país que acredito poder corrigir. Digo-o humildemente, e precisarei da ajuda de muita gente... a principiar por você, Laura. — A nota áspera reapareceu, e a ela pareceu difícil suportá-la; em seguida, diluiu-se num momento de silêncio, antes que ele prosseguisse, com voz intensa e rouca. — Acredito em mim. Sei que os meus motivos são bons. Quero deixar a marca da grandeza no meu tempo... Sim, e hei de deixá-la. Porque entendo que encontrei alguns remédios, algumas soluções. Pois bem, repito, devo atirar fora tudo isso, atirar fora a mim mesmo, atirar fora tudo o que posso fazer pelo país, porque cometi um erro quando era menino na Coréia?

Ele dobrou as longas pernas e sentou-se de lado na espreguiçadeira procurando os olhos de Laura à luz da lua. Mas ela conservava o rosto entre as mãos e mantinha o olhar apartado dele. Estremeceu, à medida que a voz maravilhosa continuava, ainda rouca de sentimento, mas falando agora para ela, só para ela.

— Eu pensei que fosse morrer, Laura. Uma coisa dessas nos separa de tudo o que deixamos para trás. E me vi cercado pela miséria humana. Você estava à distância de um mundo e de uma vida. Eu precisava desesperadamente de alguém perto de mim... De algum calor humano, simples, feliz. Nisso não era diferente de todos os outros jovens americanos, apenas tentei manter-me afastado de todas as mulheres baratas que enxameavam ao redor dos outros. Se não tivesse conhecido Soonya, teria continuado só. Ela também estava só. E embora eu a tivesse conhecido naquele salão de danças, não era uma moça barata de bar. Pelo que você me disse, ainda não o é, a despeito da maneira pela qual ganha a vida. Você mesma percebeu-lhe a qualidade. Ela me amava, Laura, e precisava de mim como eu precisava dela. — A voz era agora quase um sussurro. — E não era barato o meu sentimento por Soonya. Era tudo muito jovem, muito sem raízes, superficial, irresponsável, mas não era barato. Não era nada, absolutamente nada, em comparação com o que sinto por você.

Ela fez um sinal afirmativo com a cabeça, em silêncio. Disso tivera a certeza desde o princípio, e essa convicção sempre lhe parecera reconfortante. Mas ainda assim não podia encarar com ele, pois o tumulto que lhe agitava o coração deixava-a totalmente confusa.

— Bem, e assim nasceu a criança. Era a última coisa que eu desejava. Foi terrível o que senti. Senti-me assustado e culpado. Admito que, por um momento, me pareceu maravilhoso haver gerado um filho. No entanto, nunca pensei nele como sendo realmente meu. Nunca sonhei trazê-lo para cá. Ele nascera na Coréia, pertencia à Coréia. E depois pensei... talvez apenas para atenuar meu sentimento de culpa... que era bom que Soonya tivesse alguém a quem se dedicar, porque eu estava prestes a deixá-la e a voltar para casa.

Durante um longo momento nenhum dos dois falou. Em seguida, Chris prosseguiu, calmamente:

— Seria uma perversidade pedir a outra mulher que compreendesse uma coisa dessas, minha Laura. Por isso não pude contar a você quando voltei para casa. E eu a amava tanto, amava tanto a minha extraordinária esposa, cuja beleza, cuja inteligência e cuja nobreza eram superiores às de qualquer pessoa, que a moça coreana e o filho se esfumaram na irrealidade. Eu não lhe prometera nada. O que ela me dera eu também lhe dera, o passado era o passado. E quando, alguma vez, eu pensava no filho dela, pensava nele como se fosse exclusivamente dela. Como poderia saber que ela o julgava meu, que, de acordo com a lei coreana, ele me pertencia?

— Mas o nosso povo jamais compreenderia tudo isso I num homem que quer ser governador e, algum dia, Presidente dos Estados Unidos. O povo é cruel. Eu sei o quanto pode ser cruel e o quanto pode ser injusto. Devo, acaso, atirar fora toda a utilidade da minha vida dando ensejo à crueldade e à injustiça dele? Não pretendo colocar-me em seu poder. Não pretendo arruinar a vida para mim pois, nesse caso, estaria arruinando minha vida para ele também. Vaidade? Não. Dedicação.

Ela o ouvia agora com atenção. Mas sabia que ele já não falava só para ela. Estava defendendo o seu caso diante de algum tribunal, que ela não podia ver, diante do povo, da nação, do mundo, da própria vida. Compreendeu e não replicou, nem poderia ter replicado. Ao invés disso, levantou-se, aproximou-se dele e, pondo-se de joelhos ao seu lado, inclinou a cabeça sobre o peito dele. Debaixo do rosto sentiu que o coração de Chris pulsava duro e forte.

 

Passaram-se os meses num calidoscópio de dias e noites brilhantes, e horas de cansaço tão estafantes que ela, às vezes, tinha a impressão de estar numa terra estranha, entre gente estranha, cuja língua não soubesse falar. Tinha o rosto duro de tanto sorrir, a mão dolorida de tanto apertar as centenas de mãos estendidas para ela, e o seu corpo magro se tornava frágil à medida que ela perdia peso de puro cansaço. Era uma vida à parte da vida. Ela e Chris pareciam atores, acrobatas, artistas. Era-lhe preciso fazer roupas novas, mudar constantemente de vestidos, pois as fotografias tornavam um vestido obsoleto da noite para o dia. Mas Chris não revelava sinais de fadiga. Estava animado, sustentava-o a exaltação, um como que sentido de missão. Ao mesmo passo que forcejava por convencer as pessoas de que estava destinado a ser o seu líder e o seu governador, também se convencia a si próprio, cabalmente, de que nenhum outro homem seria capaz de fazê-lo tão bem.

Os tempos eram conturbados. As tensões do mundo, a guerra no Sudeste da Ásia, as disputas entre as nações que se elevavam geravam tensões domésticas. A tensão era um fogo que consumia as nações, pensou Laura. O irromper de uma labareda num lugar remoto trazia centelhas de fogo a toda parte, furtivas línguas de fogo a sítios escuros que irrompiam em novas conflagrações.

— Chris, — suspirou ela, uma noite. — Os tempos são maus. Eu quisera que não tivéssemos nascido nesta época.

— Tolice, — tornou ele, com vigor. — É a época mais emocionante que já existiu.

— As possibilidades são tremendas, — concordou ela, — mas grandes demais e se... se as pessoas fizerem isto, se as pessoas fizerem aquilo...

— Não pretendo deixar que as pessoas possam fazer ou deixar de fazer alguma coisa, — declarou ele. — Pretendo conduzi-las. Passo a passo... até onde quero vê-las.

— Conduzi-las aonde?

— Já estamos mais do que fartos de grupos minoritários, sindicatos, fraternidades, grupos nacionais, grupos raciais, todos dissidentes! Esqueceram-se de ser norte-americanos. A nação que se dane, contanto que abiscoitemos nossos proveitos! Observe... — e ele agitou o dedo para ela, com um sorriso jovial. — Depois que eu estiver instalado no poder, você verá um ditador benévolo!

— Berman não gostará de ouvi-lo dizer isso em público, — tornou ela, a sorrir.

— Há um momento para falar e um momento para calar e eu não serei tão tolo que fale fora de hora. Manterei agora os princípios do patriotismo e farei as definições mais tarde, quando houver vencido minha batalha.

O que todos temiam, à proporção que os últimos dias se avizinhavam, eram os falatórios que talvez estivessem fervendo subterraneamente, onde não poderiam ser combatidos. Laura arrancou de algum canto da memória prodigiosa uma anedota que o pai lhe contara a respeito do Presidente Harding, e de como seus inimigos haviam forjado a história de que ele possuía sangue negro. Isso ocorrera duas gerações antes e, no entanto, o preconceito sobre misturas de sangue de qualquer espécie era tão virulento agora quanto o fora antes. É verdade que Harding fora eleito, mas debaixo de uma sombra — uma sombra de verdade ou inverdade. E Grover Cleveland, reconhecendo o filho ilegítimo, também se elegera. Mas, se existissem os mexericos a respeito de Chris representariam uma dupla carga de dinamite, que fariam explodir os dois preconceitos ao mesmo tempo. Cheia agora de ansiedade, ela mesma não quis mais visitar Kim Christopher e passou a mandar-lhe apenas cartões-postais sem assinatura, com receio de que algum repórter zeloso viesse a descobrir a conexão entre eles.

À medida que os dias do outono se aproximavam de novembro, ao cair das primeiras geadas, quando as árvores se vestiram primeiro de vermelho e ouro e depois de cinzas, ao passo que as folhas bailavam, trazidas pelos ventos frios, ela percebeu a mudança de Chris, que ficava ao lado de Joe Berman desde o meio-dia até o amanhecer. Os seus receios finalmente se traduziram em palavras.

— Chris, aconteceu alguma coisa?

— Não, — disse ele, com brusquidão. — É a máquina. Eu havia decidido ignorá-la e depois combatê-la. Mas vejo-me diante de um fato: se quiser ser eleito, terei de trabalhar com ela. E quanto mais a conheço, mais feia me parece.

— Que diz Berman?

— O que vem dizendo desde o princípio: empregos políticos, contratos para determinadas pessoas. O pessoal está-se pondo em fila para o grande jantar final, de mil dólares o talher, no mínimo, e os que dão mais já têm as mãos estendidas à espera dos melhores empregos. Como quer que fosse, achei que não precisaria capitular. — Deu de ombros, contrafeito. — Mas capitulo. E estou zangado demais para desistir. Entrementes, você conhece o belo pente fino que me arrumaram: minha religião, minha moral, minhas escapadas de colégio, meus negócios comerciais, minhas despesas de campanha, tudo isso está debaixo de um microscópio, do olho maldoso e perseguidor de um inimigo político! Este país só é decente durante uma guerra em grande escala. Você não quer atiçar uma grande para mim, Laura? — Ele riu-se, torvamente. — Gastei mais de um milhão de dólares nesta eleição, e eles não conseguem descobrir um tostão que não seja meu. Agora estão fazendo um barulhão porque dizem que não é democrático gastarmos o nosso dinheiro... que limitaria aos ricos as oportunidades de governo! Isso porque o meu honrado adversário veio da pobreza, ao passo que eu tive mais sorte do que ele. Bem, farei o que for preciso até que se acabe a eleição. Agora faltam apenas algumas semanas! Fazia semanas que não mencionavam o nome de Kim Christopher e não o mencionaram então.

O Dr. Bartlett estava no escritório, estudando os boletins que deviam ser mandados aos pais na semana seguinte. Conhecia cada um dos cento e cinqüenta meninos da sua escola, e acompanhava os progressos de todos. Naquele momento, ouviu baterem à porta fechada.

— Entre, — gritou.

Abriu-se a porta e surgiu Kim Christopher. Era quase ao cair da tarde e o diretor planejara sair mais cedo, pois naquele dia fazia anos sua esposa e ele tinha um presente que ainda não lhe dera. Entretanto, um menino vinha sempre em primeiro lugar, principalmente aquele.

— Sente-se, Christopher, — disse ele.

Kim Christopher sentou-se com cuidado na borda da cadeira, do outro lado da escrivaninha.

— Por favor, senhor, não o incomodo? — perguntou.

O seu inglês estava melhorando tão depressa que dali a pouco tempo já não haveria dificuldade alguma. O Dr. Bartlett estava começando a acreditar que o menino esguio, que agora crescia com demasiada rapidez, seria um dos seus casos excepcionais.

— Não incomoda absolutamente, Christopher, — disse, jovial. Misturou os boletins que já examinara. — Acabo de verificar suas notas. Excelentes! Estou satisfeitíssimo. Ainda meio atrapalhado com história e inglês, mas a sua matemática compensa o resto.

— Gosto de matemática. Vim hoje para perguntar se, no próximo período, posso estudar alguma ciência, — disse Christopher.

O Dr. Bartlett ergueu as sobrancelhas.

— Habitualmente adiamos isso para o segundo ano.

— Gosto muito de ciência.

— Que ciência?

— Física, por favor.

O Dr. Bartlett recostou-se no espaldar da cadeira.

— Quantos anos você tem?

— Doze.

— Já fez anos desde que veio para cá?

— Já, sim, senhor. Na semana passada.

— E não contou a ninguém?

— Não, senhor.

— Pois errou. Sempre gostamos de saber quando são os aniversários e a Sra. Battle faz um bolo. Prometa-me que da próxima vez contará. Ou melhor, deixe-me tomar nota da data.

— Vinte e seis de outubro.

Nenhum deles se referiu a qualquer lembrança de família, mas ambos deram tento da omissão. Kim Christopher permaneceu calado por um momento, sem desejar sair e, no entanto, hesitando em ficar.

— E então, Christopher? — perguntou, afável, o Dr. Bartlett.

— Posso falar mais uma coisa, senhor?

— O que você quiser, meu filho.

— A respeito de mim mesmo.

— O que é que há a seu respeito?

Kim Christopher ergueu as sobrancelhas.

— Quem sou eu, por favor?

O diretor considerou-o com expressão interrogativa.

— Você é um dos meus meninos. Christopher foi paciente.

— Quero dizer, por mim mesmo?

O diretor cocou o queixo. Como haveria de responder?

— Diga-me você quem é, Christopher.

— Não sei, não, senhor. Acho que sou filho de meu pai, chamado Winters, como o senhor sabe. Mas agora não tenho certeza. Talvez seja só filho de minha mãe, chamada Kim.

— Onde está sua mãe, Christopher?

Ele estava pisando terreno não familiar, proibido talvez, mas onde quer que estivesse envolvido um menino, ninguém mais vinha na frente.

— Está na Coréia, senhor. É uma mulher coreana.

— Fale-me sobre ela.

Kim Christopher ruborizou-se.

— Sei pouca coisa. Para mim, é minha mãe, rosto muito bonito. Tenho também uma avó coreana, muito velha e menos bonita, que muitas vezes ficava brava comigo porque eu comia muito, e por outras coisas. Minha mãe não é assim. É calma, mas, às vezes...

Sacudiu a cabeça e interrompeu-se. O Dr. Bartlett animou-o, delicadamente.

— Às vezes o quê? Christopher desviou os olhos.

— Ela me odeia, por um motivo qualquer.

— Não há de ser isso, — acudiu o Dr. Bartlett, percebendo uma ferida muito profunda.

— Ela me odeia, — repetiu Christopher. — Creio que é por alguma razão, porque sou americano como meu pai. Na Coréia sou americano. Mas aqui, não sei. Parece que aqui sou coreano. Lá me chamam de Olhos Redondos. Aqui me chamam de Olhos Atravessados.

— Quem o chama assim? — perguntou o Dr. Bartlett. Isso, pelo menos, ele poderia coibir.

— Alguns meninos. Não faz mal. Não tem muita importância. Só que eu gostaria de saber o que sou.

O diretor sentiu uma punhalada familiar na região do coração. Quantas vezes um menino entrava ali, naquela sala, com um pesar secreto! Não era fácil ser menino, enfrentar a própria virilidade com desespero ou perplexidade. E a confusão daquele garoto tinha uma peculiaridade. Como explicar a Christopher quem ele era? Seus próprios pensamentos eram confusos e via-se obrigado a apalpar o caminho.

— Você se interessa por ciência, Christopher, por isso deixe-me explicá-lo em termos científicos, pelo menos em termos de biologia. Deixe-me falar-lhe a respeito de algumas criaturas valiosas e interessantes, que se encontram na ciência natural. São as novas espécies, os elos conectivos entre os reinos. Quando se encontram num meio vegetal... sabe o que é meio?

— Sei, sim, senhor, já procurei essa palavra no dicionário.

— Muito bem. Num meio vegetal, funcionam como vegetais, mas num meio animal, tornam-se animais. Disseram-me que a Sra. Winters é especialista nessas criaturas. Você já conversou com ela sobre o seu interesse pela ciência? Não? Bem, de qualquer maneira, essas criaturas são um elo de ligação entre os reinos da criação. Ou, falando em meios, deixe-me tomar como exemplo a libélula. Você conhece a libélula?

— Há muitas na Coréia.

— Aqui também. Principiam a vida na água. Imagino que pensem... se é que elas pensam... que são criaturas da água. Mas, um belo dia, sentem a necessidade de subir à superfície da água. Ali, desfazem-se da pele e, de repente, vêem-se providas de asas. Nunca, até então, haviam conhecido asas mas, assim que se vêem com elas, ascendem ao ar, ao sol, para nunca mais voltar à água, onde começaram a viver. O que estou querendo dizer é que em toda a natureza temos esses elos valiosos entre os reinos, entre as espécies e, agora, entre as raças. Digo que são valiosos porque fazem da criação uma unidade. Às divisões não são permanentes.

— O senhor está-se referindo a mim?

— Estou. Algum dia haverá tanta gente como você, em toda a parte, que ninguém mais os xingará. É um processo da natureza e não pode ser interrompido. Você é importante. Você é essencial. Não posso dizer-lhe como lhe aconteceu haver nascido uma dessas criaturas de ligação, porque não conheço a sua história. Mas, algum dia, você saberá. Por enquanto, lembre-se de que é valioso e nasceu para uma finalidade... Para a eterna finalidade da natureza, que primeiro diversifica para depois unificar e assim faz uma corrente continuada e contínua.

Longas palavras, que o menino talvez não compreendesse, pensou, e que ele não explicaria. Que o jovem espírito se distendesse e chegasse sozinho à solução do próprio enigma! Kim Christopher fitava nele dois olhos grandes e pensativos — dois belos olhos, ocorreu-lhe de súbito. O Dr. Bartlett levantou-se.

— E agora preciso ir para casa, Christopher, pois minha esposa faz anos hoje e eu gostaria de jantar com ela.

Kim Christopher levantou-se também e, inclinando-se, saiu da sala.

 

À mesa do jantar, naquela noite, depois de haver dado o seu presente, um broche antigo, o Dr. Bartlett contou a história de Kim Christopher. Sentada à sua ponta da mesa, a Sra. Bartlett ouvia-o com o broche preso ao pescoço. Às vezes, ele se esquecia do aniversário dela e, nesse caso, ela nunca lho recordava, pois ele venerava a atmosfera em que ela vivia, de sorte que um aniversário esquecido não tinha importância alguma. Não obstante, era gostoso vê-lo lembrar-se, e nunca fora tão gostoso quanto naquela noite. Ela o ouvia, portanto, com um interesse maior que o habitual.

— Está perfeitamente claro quem é o menino, — disse ela com decisão, como era de seu hábito. — Chris Winters, sem dúvida, é o pai, e tudo aconteceu durante a Guerra da Coréia. Por que o menino aparece aqui nesta ocasião é que não sei, mas por que está conosco é claríssimo. Ele surgiu num momento extremamente embaraçoso. Um homem que disputa as eleições para governador do seu Estado, não pode, de repente, apresentar um filho meio-asiático, pode? O Dr. Bartlett olhou para ela, pensando em voz alta.

— E quando é que um homem assim pode apresentar um filho assim?

— Aí é que está a dificuldade, — conveio ela. — Não há ocasião apropriada. Se Winters for eleito, como poderá um governador revelar ao público um filho de doze anos de idade? Se for derrotado... não sei... não creio que o seja. Ele está fazendo uma campanha de âmbito nacional. É um orador brilhante, e os jornais de todo o país lhe estampam os discursos.

A expressão do Dr. Bartlett era grave.

— E que será do menino?

— É difícil dizer-se, — acudiu jovialmente a Sra. Bartlett, que tornou a servir o café. — Uma coisa é certa: ele não poderá viver escondido para sempre.

 

Em seu quarto, Kim Christopher refletia cuidadosamente na própria situação, dividindo-lhe os aspectos favoráveis e desfavoráveis. Tinha muita coisa para comer, gostava da escola, possuía amigos, usava boas roupas, apreciava esportes, tinha professores bondosos, e venerava o diretor, que desejaria fosse seu pai. Teria sido uma felicidade para ele chegar àquele país estranho e encontrar um pai assim. Na realidade, seus sentimentos a respeito do pai verdadeiro eram confusos. Sentia-se atraído pelo homem alto, ainda jovem, e, no entanto, se sentia repelido. Desejaria, acaso, voltar para a mãe, na Coréia? Não, pois ela também o mantinha arredado de si. Suas lembranças da infância se compunham das súbitas explosões de afeto dela e das manifestações, igualmente súbitas e inexplicáveis, de ódio e até de crueldade da parte dela. Aqui, pelo menos, ninguém o esbofeteava nem o mandava embora. Se ele não era exatamente querido, pelo menos não se sentia indesejável. Quanto à esposa de seu pai, que gostava de chamar de Mãe, mas que nunca o chamava de filho, não sabia o lugar que ela ocupava em sua vida. Era sempre bondosa, mas também não parecia inteiramente sua. Além disso, que parte representava ele na vida deles se nem sabia onde viviam e não conseguia alcançá-los senão através de cartas? Agora nem mesmo cartas havia. Ele vivia num como crepúsculo. A comparação ocorreu-lhe enquanto observava o pôr do sol, do outro lado das montanhas distantes, e a sombra, que descia.

Diante do mesmo pôr de sol, atrás de Rittenhouse Square, Laura instalou-se com um sentimento de gratidão diante da lareira, com um livro entre as mãos. Era um daqueles raros momentos em que as pressões da campanha se abrandavam tanto que lhe permitiam entregar-se aos seus prazeres particulares. Abriu o livro à página 218, onde deixara o marcador. Sua constante preocupação com o problema de vida de Kim Christopher, ainda não resolvido, levara-a, em busca de alívio, se não de solução, às obras dos antropólogos. Esta era O mito mais perigoso do homem, a falácia da raça.

"Com relação a isto", escrevia Ashley Montagu, "já se disse que não se pode obter de uma mistura mais do que o que nela se põe. Eis aí uma dessas fáceis generalizações que as pessoas desprovidas de espírito crítico deixam passar com demasiada facilidade. Quando combinamos o oxigênio e o hidrogênio, obtemos água... Quando combinamos o zinco e o cobre, obtemos uma liga, o bronze, que tem muito mais força, além de inúmeras outras qualidades, de que carecem os metais que o compõem, quando separados; isto é, sem dúvida, obter mais da mistura do que o que nela se põe. Quando se unem duas variedades puras de plantas ou de animais cultivadas com finalidades reprodutoras, o resultado freqüentemente revela num número muito maior de qualidades e características desejáveis do que os troncos de que procederam. As variedades que o homem apresenta em suas diversas formas étnicas estão a sugerir, sem dúvida, que algo mais proveio da mistura dos elementos do que o que originàriamente se associou".

Ela depôs subitamente o livro, imediatamente cônscia de algo de que deveria ter tido consciência meses antes. Embora aquela criança, um híbrido, fosse a primeira que se apresentara a seus olhos, a história estava seguramente cheia delas à maneira que os homens enxameavam a terra e conheciam mulheres de outros povos. E compreendeu, envergonhada, que agora lhe ocorria, pela primeira vez, pensar em Christopher em função de suas próprias possibilidades. Até então fora ele apenas um adjunto de Chris, alguém que era preciso encaixar de uma forma ou de outra, em suas vidas conjuntas, a dela e a dele. E se Chris produzira, inadvertidamente, um ser humano importante por si mesmo?

Essa idéia assumiu imediatamente tamanhas proporções em sua imaginação que ela sentiu invadi-la nova onda de sentimento de culpa. E se aquela criança fosse, na realidade, um tesouro? E se tivesse uma missão para cumprir no futuro, quando ela e Chris fossem velhos e inúteis? A ser assim, que estavam fazendo eles no sentido de prepará-la para aquele futuro, tendo-a Chris dotado da dupla vida da paternidade norte-americana e da maternidade asiática? Percebia agora que, em termos humanos, Kim Christopher poderia ser mais importante do que o próprio Chris, ainda que este viesse a ser Presidente dos Estados Unidos; e isso não só em termos biológicos senão também em termos humanos. Seu espírito científico, tão desnecessário numa mulher, como às vezes se lhe afigurava, naqueles dias, ao acompanhar o marido de uma cidade a outra, entrou subitamente em ação e principiou a considerar Kim Christopher como uma nova espécie de responsabilidade, emocionante mas esmagadora. A geração de uma criança representava enorme responsabilidade, era a criação de uma vida nova, com o seu fardo de alegrias e tristezas durante toda uma existência, mas a criação de Kim Christopher ia além de tudo o que ela já imaginara. Era um passo dado no futuro, que ela e Chris ignoravam totalmente. Não era possível que o deixassem passar toda a mocidade numa escola de meninos!

— Não, positivamente não, — disse, em voz alta, se bem estivesse sozinha na biblioteca. — Não, positivamente, Chris, não basta alimentá-lo, agasalhá-lo e dar-lhe educação. É preciso fazer muito, muito mais por ele.

Mas quando poderia dizer isso a Chris? Evidentemente não era aquele o momento. Não deveria repetir-se a sua explosão de julho. Faltavam agora poucos dias para a eleição, e tudo ia indo tão bem! A transparente sinceridade de Chris, sua coerente dedicação, combinadas com sua simpatia e sua voz ressoante, encantavam os ouvintes, como ela não se cansava de notar. E Joe Berman já principiava a respirar com mais desafogo. Até então não se observara o mais leve sopro de diz-que-diz-que a respeito de Kim Christopher.

— Nós o conseguiremos, — dissera Joe outro dia, enquanto esperavam por Chris, depois de um dos seus discursos empolgantes. — Senti um medo atroz, a princípio, de que qualquer coisa principiasse a cheirar a mal... A senhora sabe o que... Mas acho que estamos livres. Entretanto, é preciso tomar cuidado. Deixo tudo agora a seu cargo, Sra. Winters.

— Não posso atalhar falatórios. Não posso sequer pôr a mão no fogo pelo pessoal do escritório. As contas...

— É a senhora quem paga as contas da escola, não é?

— Sim, eu mesma me encarrego desses pormenores. Mas o senhor se esquece de que na escola ninguém sabe a verdade, e ninguém está prevenido. Seria perfeitamente natural que alguém ali falasse a um terceiro de uma criança pela qual temos um interesse especial.

— Isso não pode acontecer, — tornou Berman, obstinado.

Laura considerou-o. Era um político da espécie que ela procurava não desprezar e, no entanto, um homem totalmente dedicado a Chris. Nisso, aliás, consistia um dos talentos de Chris: conquistar a afeição tanto dos homens quanto das mulheres. Ela já se acostumara a ouvir as mulheres declararem: "É o homem mais bonito que já vi!" Mas era diferente e mais raro saber que um homem como Joe Berman, achavascado e rude, ao qual pouco faltava para ser desonesto, fosse capaz de sacrificar-se por Chris. Era também desagradável, embora de maneira inexplicável, que ela não pudesse deixar de expressar seu desagrado contradizendo-o.

— De qualquer maneira, isso terá de vir a público algum dia. Ninguém pode esconder um segredo para sempre... Muito menos um homem como Chris. Nem ele será capaz de suportá-lo, acordar todos os dias pensando...

— É esse o seu talento, — cortou Berman, — não pensar quando não quer. Acorda de manhã sabendo o que tem de fazer naquele dia e põe de lado todo o resto. É um dom. Não sofre.

Joe tinha razão, naturalmente. Quem sofria era ela, não era Chris. De modo que talvez fosse ela, afinal, quem teria de resolver o problema de Kim Christopher? Ah, bem quisera não ter começado a pensar nele, naquele momento, daquela maneira nova e urgente! Mas o menino estava sempre ali, no limiar do seu espírito, e era-lhe preciso aprender a conservar a porta fechada. Se a não fechasse vê-lo-ia sempre ali, à espera.

 

No canto do quarto que era o seu, Kim Christopher estava empenhado numa atividade secreta. Poucas horas houvera de folguedo puro e absorvente em toda a sua vida. O seu lugar, aprendera ele em Seul como representante da "gente nova", era sempre à margem da multidão e, nos jogos, sempre fora o espectador, o malquisto, o empurrado para fora quando se aproximava do campo. Aqui na escola, onde agora vivia, lugar que a princípio cuidara ser um orfanato para meninos, até descobrir que os pais vinham visitar os outros garotos e que, nas férias, estes voltavam para casa e depois regressavam à escola, apreciava plenamente os jogos de que o animavam a participar. No começo não pudera acreditar que também pudesse — e até devesse — correr atrás da bola, arremessá-la e apanhá-la. Sossegado por natureza e pelo hábito a que se vira compelido, através dos anos de rejeição, agora aprendia a gritar e a chamar. Durante o dia, misturava-se com os companheiros e era, de um modo geral, aceito por eles. À noite, entretanto, na hora que mediava, entre os esportes e o jantar, que era só sua, trabalhava nos seus bonecos.

Fechada a porta e enquanto o companheiro de quarto John Barstow, se entretinha em algum lugar com outros amigos, Kim Christopher abriu a cortina que tapava um grande caixote de mantimentos e viu-se diante de um palcozinho sobre o qual havia três bonecos, entalhados em madeira de cerejeira. Um deles era sua mãe coreana. Os outros dois, seu pai e a esposa de seu pai, a mulher que ele desejaria imaginar que fosse sua mãe e não podia fazê-lo por motivos que ele próprio ignorava. Do meio de um pedaço de pano tirou uma quarta figura, um menino vestido com roupas americanas, que também estava esculpindo em madeira de cerejeira, como as outras. Sua mãe coreana trajava roupas da Coréia, as outras duas figuras, roupas ocidentais. A do menino ainda estava muito incompleta, e ele abriu o canivetinho afiado, que era o seu instrumento, e pôs-se a trabalhar, aperfeiçoando a cabeça.

Não conseguia lembrar-se de quando principiara a gostar . de bonecos. Não havia muitos teatros de bonecos em Seul, pois a gente preferia ir aos cinemas e a outros divertimentos modernos, mas ele conhecera um velho, nascido em Seul, que fazia bonecos e representava com eles havia mais de quarenta anos, segundo dissera um dia a Kim Christopher quando este, acercando-se para vê-lo cinzelar a figura de uma velha camponesa, o crivara de perguntas.

— Mais de quarenta anos, — dissera o velho, pensativamente, — embora ninguém mais queira ver as peças hoje em dia, nem sequer a grande peça antiga de bonecos Gogdu Gagsi Noreum.

— Eu quero vê-la, — afirmara Kim Christopher, com voz firme.

O velho empurrara os óculos para a testa e, em seguida, sorrira para ele.

— Pois você a verá, — respondera. — Vou levá-la amanhã à noite no templo budista, pelo menos parte dela, visto que é muito comprida e tem muitas partes.

Kim Christopher acabara vendo todas as partes da longa peça, feita de seis histórias diferentes, e ainda estava na Coréia quando se pusera a sonhar em compor também uma peça de bonecos. Naquela época, porém não tinha material nem instrumentos, de modo que o sonho não passara de sonho. Aqui, entretanto, fora-lhe permitido talhar suas figuras na aula de arte e, embora não houvesse explicado ao professor a história da peça, pois só agora ela começava a desenvolver-se-lhe no espírito, o professor animou-o a esculpir. Sua história favorita na velha peça de Seul era aquela em que o herói, um homem solitário de baixa extração, Yeongno, caçoa de um nobre, um Yangban. Kim Christopher não tinha vontade de caçoar de ninguém e, no entanto, sempre sentira simpatia por Yeongno, vendo-se na pele do personagem, uma criatura que não conseguia encontrar o seu lugar.

Naquela noite, portanto, trabalhava com suma diligência e indústria na figura de si mesmo. Ainda não sabia como terminaria a história que estava tecendo em torno dos quatro personagens de sua própria vida. Na realidade, não lhe via o fim e, portanto, não poderia dizer o que aconteceria à figurinha de madeira que burilava tão absorto. No meio do seu afã soou a campainha chamando para o jantar, abriu-se a porta e entrou o companheiro de quarto. Não se falaram, mas John aproximou-se e lhe quedou junto do ombro.

— Isso está bem feito, — exclamou. — Parece você.

— Sou eu, — disse Kim Christopher, sem hesitar.

— E quem são estes?

— Meu pai... minha mãe.

— E aquela?

— Tenho duas mães.

— Você não pode ter duas mães. Ninguém tem.

Kim Christopher não respondeu. Não poderia explicar.

— Pode? — insistiu John.

— Na Coréia, pode, — disse Kim Christopher.

Fechou o canivete e embrulhou o menino de madeira num lenço de linho, colocou-o no caixote e cerrou a cortina sobre o palco. A feitura dos bonecos dava-lhe uma sensação de conforto que ele não saberia explicar. Mas a história perturbava-o. Como poderia terminar se parecia não ter fim?

— Uma coisa de cada vez, — disse Chris.

Estavam no quarto dele, ele e Laura, ela muito bonita num vestido comprido de cetim branco. O branco assentava-lhe muito bem, pensou ele com ternura, vendo-a através do espelho diante do qual se colocara para arrumar o laço da gravata. Esguia, flamejavam-lhe os cabelos de um vermelho dourado, os olhos cinzentos de ardósia eram escuros e tinha um porte delicadamente altivo, um glamour que sempre lhe chegava ao coração. E, no entanto, ele sabia que dentro da brilhante beleza acidental havia outra mulher, uma mulher grave e calma, de gostos simples e espírito profundamente reflexivo. Ele dissera aquilo em resposta à pergunta dela:

— Você pensa às vezes no pequeno Christopher?

A verdade, como observara Berman, que nada tinha de estúpido, era que ele não gostava de pensar ou pelo menos, não gostava de pensar como ela se acostumara a fazê-lo. Onde ela não poderia deixar de perder-se em reflexões, ele as adiava, impaciente, fiado na própria intuição. Durante o dia todo, punha de lado as decisões e, mais tarde, à noite, antes de dormir, enfrentava as que precisasse tomar antes do dia seguinte. Dir-se-ia que esvaziasse o espírito e ficasse à espera do impulso que lhe parecesse certo. A esse impulso cedia. Mas nunca permitira o surgimento de impulso algum em relação a Christopher, e muito menos que se cristalizasse numa ação prematura.

— Uma coisa de cada vez, — repetiu.

Completou o laço para sua inteira satisfação — detestava gravatas de laço feito — e estendeu o braço para alcançar o paletó.

— Em que ponto, — insistiu Laura, — você deixará que se decida o futuro do menino?

Ela sabia que não devia perguntar-lhe, que ele não estava preparado para a resposta. Mas a sua nova percepção da importância da criança e a necessidade que sentia de falar com o marido sobre isso não lhe davam tréguas. De sorte que, naquele momento, enquanto se aprontavam para o grande jantar, o jantar de mil dólares o talher, fez a pergunta.

— Não sei, — disse ele. — Não se decidem esses quandos. Saberei ao chegar o momento. Então verei, num relance, o que devo fazer.

Sim, será num relance, suspirou ela. Esperava apenas que a ocasião do relance já tivesse chegado. Mas nada que fizesse a teria precipitado. Sabia como funcionava o espírito dele, e que nenhuma decisão sua era tão súbita nem tão impulsiva quanto o parecia. Muitas e muitas vezes vira ela um problema apresentar-se a ele, como tinha a certeza de que este se apresentara, e vira-o empurrá-lo para um lado, embora lhe dirigisse, cada vez que topava com ele, um olhar de crescente familiaridade até que, aparentemente de improviso, acabava decidindo. Impacientava-o a maneira dela, longamente reflexiva, de encarar as coisas, pois ele não se submetia ao envolvimento da lógica. Possuía um gênio todo especial, vivendo sempre no limite de sua capacidade, prestando atenção a todos, colhendo reflexões em toda parte, acumulando informações, deixando que a decisão se lhes seguisse naturalmente. E suas conclusões eram quase sempre tão corretas que ela confiava nele. Por isso mesmo devia confiar agora!

Tinha a certeza de ver-lhe os dons intuitivos em ação naquela noite. Duvidava de que ele já tivesse alguma idéia clara do que diria à multidão de amigos e apoiadores mas, quando se erguesse, quando os enfrentasse, perscrutando-os, sacaria deles a inspiração e logo, do manancial de seus próprios sentimentos e conhecimentos, dar-lhes-ia o que eles esperavam, o que hauriam dele, o que almejavam. E não lhes diria senão a verdade. Era do seu feitio parecer — ou melhor, ser — amigo de todos os homens, mas quando seu espírito definisse uma conclusão, esta seria a sua conclusão. Ela sabia que ele haveria de ser um bom governador, e acreditava que ele, um dia, ainda seria ura grande Presidente.

Uma hora depois, do seu lugar na mesa de honra, onde Chris era o personagem central, relanceou a vista pelo salão cheio de flores e cheio de gente. À sua direita estava Henry Allen, que lhe pareceu cansado.

— Como irão as coisas? — perguntou.

— Ele tem tudo nas mãos, — replicou o velho. — E tem o tempo também. Não creio que eu fosse capaz de agüentar nem mais um dia... ou uma noite... de campanha. No entanto, nada parece cansá-lo. Olhe para ele... Viçoso como um menino! Nada pode detê-lo.

Poderia detê-lo alguma coisa? Uma palavra sussurrada. Uma pergunta feita no momento inoportuno, no lugar impróprio, e poderia ele salvar-se? Se ao menos Kim Christopher houvesse sido arrancado às sombras e trazido para a luz, onde a verdade pudesse desarmar a calúnia! Ela percebeu sua imensa tensão interior, e permaneceu sentada, muito quieta, observando a multidão, atenta às irrupções da música. Berman também estava ansioso, ou assim lhe pareceu. Sentado ao lado de Chris, sério e calado, parecia nervosamente pronto para notar qualquer comoção que se verificasse às portas. Naquela noite, se algum inimigo se erguesse, toda a estrutura, tão cuidadosamente erguida, por tanta gente, nas últimas semanas, poderia esbarrondar-se, convertida num monte de poeira, e nem milhões de dólares lograriam reerguê-la. Sempre demasiado pronta para conjurar o desastre, sua imaginação viu o marido prostrado e toda a sua brilhante coragem por terra. Como poderia a vida continuar nessas condições?

— Você parece muito pensativa esta noite, meu bem, — observou Henry Allen.

— Sim, — respondeu ela, — uma ocasião como esta deixa a gente pensativa, não deixa? Tanta responsabilidade...

— Mas ele é capaz de assumi-la. Diz alguém... já não me lembra onde vi isso... que o gênio é a infinita capacidade de fazer uso de todos e de tudo. O nosso homem tem essa capacidade. E também não o digo com nenhuma intenção depreciativa. Ele simplesmente atrai a vida para si, apóia-se nela e deixa-se apoiar pelos outros. Uma espécie de fotossíntese espiritual.

— Nem quero pensar no que acontecerá se ele não vencer.

Ela compreendeu no mesmo instante que aquilo não era totalmente verdadeiro. Se Chris voltasse a ser um cidadão particular, Kim Christopher poderia vir para casa. Mas como haveria Chris de ser um homem comum se nunca fora comum?

— Ele vencerá as eleições, sem dúvida nenhuma, — dizia Henry Allen, convicto. — E você, naturalmente, não duvida disso?

— Sempre pode acontecer alguma coisa. Ela ansiava por contar-lhe o que temia.

— Nada que ele não possa vencer. O povo está solidamente ao seu lado. Fez uma campanha magnífica. Não acredito que haja um único município em todo o Estado que ele não tenha visitado pelo menos três vezes. Enfrentou todos os problemas diretamente e não se esquivou de nenhum. As pessoas confiam nele porque sabem o que ele representa. É o único homem capaz de fazer frente ao atual governador.

Fez uma pausa para refletir e, logo, prosseguiu.

— Sabe de uma coisa? Vendo-o trabalhar, percebi que Chris tem a técnica de um artista criador. Não, é mais que uma técnica. É a sua qualidade básica. Aliás, muito moderna, sem nada da tradição clássica! Um pintor principia um quadro, um escritor um livro, sem qualquer idéia do que vai pintar, ou escrever, mas o plano se desenvolve a partir do material que têm em mãos e aí está a criação. Assim trabalha Chris, com as pessoas e com as idéias. Estão à sua volta, ele as vê, compreende, utiliza... e, seja como for, cria uma ordem onde, antes, não havia nenhuma.

Foram interrompidos por Berman, que deixara a sua cadeira para murmurar ao ouvido de Henry Allen.

— Chegou o momento de apresentar o candidato, Sr. Allen! Reservei-lhe dez minutos.

Henry Allen levantou-se.

— Não levarei tanto tempo.

— Leve, leve, — sussurrou Berman. — Faça um discurso com um grande clímax. O pessoal está esperando por isso.

No meio do vasto salão de baile, as pessoas moviam as cadeiras e os garçãos corriam para tirar os pratos. A luz de vinte e quatro candelabros cintilava sobre as muitas cores dos vestidos e jóias das mulheres, e reluzia no severo preto e branco dos trajos masculinos. A orquestra tocava suavemente e, quando Henry Allen assomou ao estrado, atacou uma marcha e logo depois parou de tocar. No silêncio que se seguiu, a voz alta e clara chegou aos cantos mais afastados da sala.

— É meu privilégio esta noite contar-lhes a história de um homem, um homem nascido em nossa comunidade, de uma família famosa em nosso Estado e em nossa cidade. Um homem nascido e educado nas tradições do nosso povo.

Era, percebeu ela à proporção que ele continuava, um discurso magistral. Henry Allen principiou tranqüilamente com voz prosaica e desprovida de emoção, eminentemente moderada e calma. Mas, à maneira que prosseguia, introduziu nela um calor sutil, uma força penetrante de emoção, baseada na lógica e nos fatos. Tocou nos incidentes da infância de Chris, na sua mocidade, no seu curso distinto em Harvard e, a seguir, na sua carreira de jovem advogado na cidade. Impecável, espírito elevado, brilhante, bom amigo e bom camarada, o caráter de Chris emergiu da descrição, vigoroso e compreensivo, capaz e idealista. Um homem susceptível de fazer que os sonhos se trans-mudassem em realidade.

— E assim lhes apresento, — concluiu Henry Allen, — este homem honrado, Christopher Winters. Tem-nos servido bem aqui na cidade, e pede agora para servir-nos em esferas mais amplas.

Afastou-se e Chris se adiantou, desembaraçado, confiante, modesto e digno. Os aplausos fizeram estremecer os candelabros e rugiram através da sala imensa. Ele esperou, sorrindo o seu famoso sorriso, para depois principiar, com voz firme e nervosa, o discurso confiante e experimentado.

— Meus amigos...

E, ouvindo-o, com o coração disparado, Laura conheceu que aquele seria o maior de todos os seus discursos.

Ia alta a noite quando, no escritório de Chris, no centro da cidade, um punhado de amigos esperava que principiassem a chegar as notícias. Já rompera a aurora quando se tornou evidente que Chris venceria. Dos cinco milhões e meio de votos, ele vencera por uma diferença de 75 mil.

— Parabéns, Governador! — a voz de Berman estava rouca.

— Parabéns, parabéns...

Todos se juntavam à roda dele, que sorria para todos, meio perplexo. Estava exausto, como Laura podia ver, mas triunfante, e agarrava as mãos que se lhe estendiam, as mãos de pessoas que o haviam apoiado, de pessoas que haviam trabalhado para ele, do pessoal do escritório, dos companheiros de campanha. Afastada, esperando, ela deixou que eles recebessem a sua recompensa. Depois, silenciosamente, acercou-se dele e beijou-lhe o rosto.

— Você será um grande governador, — disse a mulher.

 

Ela não saberia dizer se a lua se velara, ou se já desaparecera, ou se aquela sombra era a própria sombra da lua, quando, por fim, se deitou na cama, em seu quarto. Tinha a impressão de que decorrera muito tempo desde que observara a lua, cuja luz sempre achara propícia àquele estado de espírito e meditação dos seus momentos de mais profundo cogitar. Deitada naquela mesma cama, antes ou depois do amor, ou nos intervalos em que o marido se achava ocupado demais para pensar em amor, ela contemplara muita vez a lua que pendia lá fora, do outro lado da ampla janela, defronte da cama. Naquela noite, após a excitação da vitória, Chris cedera subitamente à exaustão. Ninguém teria podido adivinhá-lo e, pela primeira vez, ela mesma se deixara iludir pela jovialidade dos seus modos, pela sua alegria tão bem temperada com uma decente modéstia, enquanto recebia os parabéns Os repórteres haviam descido quando se lhe confirmara a vitória e deles, afinal, entre risos e escusas, Chris conseguira desvencilhar-se, exclamando:

— Amanhã, rapazes... Não, francamente não sei como me sinto a respeito disso. Ainda preciso descobrir...

E, dizendo isso, travara-lhe do braço e eles haviam escapado e fugido para casa. Depois, fechada e trancada a porta, ele desabara e ela conseguira segurá-lo antes que caísse.

— Não, não — protestou, — não há nada de mais. Está tudo em ordem. Não é vertigem, não, é só cansaço.

Tinham subido para o quarto e ela lhe arrumara as coisas enquanto ele se enfiava debaixo do chuveiro, fizera-o deitar-se, abrira as janelas e, quando tomara a olhar para o marido, percebeu que ele já ferrara no sono. Assim o deixara, profundamente adormecido, e fechara a porta entre os quartos de ambos, para que nenhum movimento seu pudesse perturbá-lo. Pois estava insone. Agora que tinham vencido, que fariam com a vitória? Tomou pachorrentamente o seu banho, escovou o cabelo, foi para a cama e, deitada no escuro, lembrou-se do que lhe dissera Henry Allen. Chris era um artista e trabalhava como trabalha um artista, afeiçoando o seu material e esperando • que ele mesmo se afeiçoasse entre suas mãos.

Ela precisava esperar também. Deixar as coisas como estavam — sim, esperar, se preciso fosse, até depois do Natal, que Chris estivesse com Kim Christopher, que os três se vissem juntos. Dessa nova experiência, desse novo material, ele saberia o que devia fazer, o que deviam fazer, pois a vida dela era a vida dele. Com este último pensamento, a paz desceu sobre ela e, envolta em tranqüilidade, ela adormeceu.

 

— Ele se ajustou muito bem, — disse o Dr. Bartlett.

Estavam sentados na sala de estar da escola, à espera de que aparecesse Kim Christopher. Os feriados do Natal haviam começado na véspera. A maioria dos meninos se fora e o edifício estava sossegado. Lá fora, caía a neve num silêncio sem vento, e grandes flocos erradios pintavam de branco o inverno cinzento.

— Ele provavelmente está trabalhando com seus bonecos, — disse o Dr. Bartlett.

— Bonecos? — sobreveio Laura.

— O menino tem talento, — voltou o Dr. Bartlett. — Eu quisera que fosse igualmente diligente em todas as matérias, mas não podemos exigir demais. Aprendeu muita coisa em poucos meses.

— Os meninos gostam dele? — indagou Chris.

— Os meninos de quem ele gosta gostam muito dele. Os outros parecem... respeitá-lo. Ele porta-se bem. A propósito... seu inglês é excelente. É bom em línguas. E tem uma bonita voz para cantar. O professor de música incluiu-o no coro. E ele parece ter gostado.

— E quanto a esportes? — perguntou Chris.

— Não é muito dado a esportes pesados como o futebol. Creio que prefere o tênis e joga muito bem o baseball. Mas falta-lhe certo sentido de competição, o que, a meu ver, é uma desvantagem, visto que nós utilizamos os jogos para desenvolver o espírito de competição, tão essencial em nossa sociedade. Ele gosta de fazer bem as coisas sem parecer preocupar-se em ganhar ou perder.

Foram interrompidos nesse ponto pela entrada de Kim Christopher.

— Ou, — como Laura dissera, a caminho da escola naquele dia, — vamos chamá-lo apenas Christopher, sem o Kim. Você não acha que já é tempo?

— Como quiser, — replicara Chris, distraído.

Ele estava dirigindo o carro e ambos haviam falado pouquíssimo enquanto passavam as horas e mal haviam conversado sobre o menino. Pareciam ter concordado em que deviam verificar primeiro como estava ele. Viram, de pronto, que era uma criatura inteiramente diversa da que ali haviam deixado. A própria Laura o percebeu, embora já o tivesse visto depois de Chris. Ele chegou à porta e Já se quedou por um instante. Era inegável que estava mais alto, muito mais alto. Vestia terno azul-marinho, de calças compridas, o que lhe aumentava a altura e a idade. Envelhecera, evidentemente, muito mais do que uns poucos meses. Tudo isso era patente. Mas o que o tornava realmente mais velho era uma nova gravidade, não exatamente feita de tristeza, mas talvez de aceitação discernente, que já não admitia o sorriso pronto, o olhar iluminado da infância.

Não lhe falaram. O Dr. Bartlett de propósito, pois queria que o menino se aproximasse sozinho dos dois que, de certo modo, lhe pertenciam e aos quais ele pertencia, numa relação que o diretor supunha compreender mas que ainda lhe parecia desconcertante. O menino dizia "meu pai", mas não o dizia agora com a mesma facilidade com que o dissera ao chegar ao colégio. Nem se carteava com a mesma freqüência com que o fizera no princípio. Efetivamente, conversando com o chefe do seu dormitório, ficara sabendo que fazia muitas semanas que o menino não escrevia e recebera apenas cartões-postais. Nada ainda lhe fora explicado.

Laura não falou. Durante a longa e quase silenciosa jornada daquele dia, decidira que Chris deveria fazer a aproximação direta. Pai e filho precisavam resolver o problema de suas relações. Ela não poderia ser mais que uma espectadora. Sentada em silêncio, com as luvas na mão, o casaco de marta sobre os joelhos, esperava, permitindo-se apenas um sorriso de boas-vindas.

Christopher olhou para ela com alguma incerteza, sorriu ligeiramente e, em seguida, fixou os olhos graves no rosto do pai. Estivera à espera deles o dia todo, visto que ninguém sabia quando chegariam e, durante todo o dia, não saíra do quarto a não ser para fazer suas refeições. Entretanto, não estivera ocioso. Esculpira o novo boneco, um garotinho de rosto redondo e traços coreanos. A madeira era dura, como o material dos outros bonecos, e por se tratar da última peça, trabalhara com vagar e cuidado. De uma feita, escapando, o canivete lhe cortara o polegar. Ele mesmo fizera a atadura com um pedaço de pano branco.

Chris olhou para o diretor, depois para Laura, como se esperasse que falassem. Em seguida, vendo-os calados, exclamou com brusca jovialidade.

— Alô, Christopher! Entre, rapaz!

Estendeu a mão e Christopher entrou. Apertaram-se as mãos e Chris reteve a do menino por um instante.

— Você cresceu, — disse ele.

— Como carne todos os dias, — explicou Christopher.

Retirou delicadamente a mão e foi sentar-se numa cadeira, no outro lado da sala. Lá ficou em silêncio, porém à vontade, como se estivesse tratando os adultos com respeito, como de fato estava, lembrado da advertência de Soonya de que nunca devia dirigir-se ao pai sem ser convidado a falar, porém, permanecer calado a menos que lhe fizessem alguma pergunta, para depois falar claramente e com o menor número possível de palavras e esperar que o pai continuasse.

— Isso é muito bom, — disse Chris. — Um menino que está crescendo deve comer carne todos os dias, não é mesmo Dr. Bartlett?

— É o que nós achamos, — acudiu o diretor, com um sorriso.

Era agora a sua vez e ele dirigiu-se bondosamente ao aluno, mas sem ares protetores.

— Acabo de dizer a seu pai e à Sra. Winters que você revelou notável talento em esculpir esculturas de madeira. Talvez queira levá-los ao seu quarto e mostrar-lhes o que fez.

O rosto pálido de Christopher afogueou-se.

— Não sou tão bom quanto gostaria de ser, — disse ele. — Tenho vergonha de mostrá-los agora. É a primeira vez que faço um trabalho assim.

— Pois nós gostaríamos de vê-lo, — disse Laura. — E depois, talvez o Dr. Bartlett consinta que você jante conosco na estalagem. Trá-lo-emos cedo, Dr. Bartlett.

— Naturalmente, — assentiu o diretor. Levantou-se, aliviado. — Deixo-os, portanto, a sós, Sra. Winters. Gostamos de que os meninos estejam no dormitório antes das dez, mas como hoje é feriado, não seremos demasiado rigorosos.

— Trá-lo-emos antes das dez, — prometeu Chris. — Também estou cansado.

— O senhor realizou uma grande campanha, meus parabéns pela vitória.

Chris sorriu.

— Acho que as dificuldades estão apenas começando. Preciso resolver uma série de encrencas na cidade e cumprir as promessas que fiz.

— Pois tenho a certeza de que fará ambas as coisas, — disse o Dr. Bartlett, amável, e afastou-se.

Chris levantou-se.

— Vamos indo, rapaz! Vamos ver o que você está fazendo. Mostre-nos o caminho.

Seguiram-no, enquanto ele caminhava, como Laura observou, com uma graça especial, uma graça asiática, pois lhe ficara a impressão de que todos os coreanos caminhavam com aquele passo macio, colocando com precisão cada pé. Tinha a cabeça bem plantada nos ombros, o cabelo escuro e liso esticado sobre o crânio e, não obstante, a forma do corpo era americana, ocidental, vigorosa, a estrutura robusta, os ossos bem articulados, as mãos grandes. Ela teve o ensejo de ver-lhe as mãos trabalhando "alguns minutos depois, quando já se achavam no quarto de Christopher, pois o menino correu a cortina que escondia o caixote colocado num canto do quarto. Deu, então, com uma sala de estar em miniatura, uma sala confortável, inspirada, segundo percebeu, na sala que tinham acabado de deixar, com sofá, cadeiras e mesas redondas. Nas cadeiras estavam sentadas duas figuras, um homem e uma mulher, o homem a ler um livro, a mulher costurando. Reconheceu-as de pronto: eram parecidas com ela mesma e com Chris.

— Christopher, — exclamou, — como estão bem feitas! Veja, Chris, o homem se parece realmente com você.

Pegou a figura com as mãos. Teria talvez uns dezoito centímetros de altura e todos os pormenores eram claros, os olhos bem separados, o cabelo macio, cabelo de verdade, notou ela, colado fio por fio, as roupas exatas, bem talhadas.

— Bom trabalho, — disse Chris. Acudiu-lhe estranha sensação, não muito confortável, ao reconhecer-se no boneco.

O menino não respondeu. Aceitou o elogio sem um sorriso e, depois que eles viram tudo, exclamando ao toparem com isso e com aquilo, tornou a cerrar a cortina.

— Então é aqui que você mora e é aqui que você dorme, — disse Laura, circunvolvendo os olhos pelo quarto.

— Esta é a minha metade, aquela é a de John, — explicou Christopher.

— As duas metades são bem diferentes, — prosseguiu ela. — Não é difícil ver-se a diferença entre vocês.

Dois aspectos do mesmo quarto e, no entanto, não havia enganar-se sobre qual deles pertencia a Christopher. Num lado, havia flâmulas e estampas pregadas na parede, não de moças, mas de aviões a jato e armas nucleares. No outro, as paredes eram nuas, com exceção de pequeno desenho severo de uma montanha, que se erguia acima das nuvens.

— É seu? — perguntou ela, e Christopher fez que sim com a cabeça.

Ela voltou-se para Chris.

— Temos um artista.

— Quase todos os garotos são artistas durante algum tempo, — retrucou ele. — Eu costumava desenhar navios, e minha mãe ficava toda entusiasmada com os meus desenhos.

Alguma coisa fria insinuou-se na atmosfera e Laura afugentou-a prontamente.

— Vamos jantar, — disse ela. — Estou com fome.

 

— E então, o que é que você acha? — perguntou, na manhã seguinte, no quarto do hotel, enquanto se vestia.

— Quieto demais, — respondeu Chris. Ela voltou-se, indignada.

— É claro que ele é quieto! Nem sabe o que vai acontecer-lhe!

Ainda de pijama, Chris espreguiçou-se sobre uma das camas.

— E nós sabemos?

— Ela corrigiu-o.

— Você sabe? É você quem precisa decidir, não sou eu! Seguirei fielmente o que você decidir, mas não decidirei.

— E que faria você, se estivesse em meu lugar?

— Não posso imaginar uma coisa dessas, — acudiu ela com tanta presteza que ele se pôs a rir.

— Agora perdi uma boa oportunidade de ficar calado! Mas não pense que eu não esteja dando tratos à bola. Nem me julgue imune ao fato de o rapaz ser meu filho. Entretanto, os argumentos continuam válidos. Talvez, quando eu me tiver revelado um grande governador, possamos introduzi-lo gradativamente em nossas vidas. Afinal de contas, os tempos estão mudando. Há um sem-número de garotos meio-americanos do outro lado dos mares e o povo está começando a saber disso. Mas neste preciso momento, em que ainda não estabilizei minha imagem pública, seria suicídio. A oportunidade é tudo. Dê-me tempo.

— O menino está crescendo muito depressa, Chris. Está pensando e sentindo. Sua alma vai-se cristalizando. Algum dia, e isso não demora, poderá ser tarde demais.

— O que é que você quer dizer?

— Talvez não consigamos alcançá-lo se esperarmos demais. Ele nos rejeitará, porque saberá que o rejeitamos.

— Ora, Laura, isto são palavras velhas e puídas. Os psiquiatras já tiraram delas todo o seu brilho há muito tempo. Ele deve compreender que suas circunstâncias talvez sejam peculiares... pelo menos inusitadas... mas precisa aceitá-las. Terá de explicar quem é muitas e muitas vezes, durante a vida, até a si próprio. Nasceu, existe, é diferente. Quanto mais cedo se aceitar a si mesmo, tanto melhor para ele. Ainda que fosse hoje para nossa casa, não seria o filho que poderíamos ter tido juntos, você e eu.

— Não, mas poderíamos ajudá-lo a aceitar-se, aceitando-o nós mesmos.

— E você já decidiu o que deve ser feito, embora diga que não tomará decisão alguma?

Ela recuou.

— Não, estou apenas argumentando dos dois lados. Eu poderia dizer, por exemplo, que seria mais simples para ele não precisar explicar-nos a nós e que, portanto, estará melhor sozinho.

— Mas ele não está sozinho.

— Está, está sozinho, em todas as questões essenciais.

— Não mais do que o estamos todos, fundamentalmente.

— Não na idade dele, recém-chegado de um país distante.

— O que você está dizendo... decidindo outra vez... é que deveríamos mandá-lo de volta!

— Não podemos mandá-lo de volta. Ainda que o mandássemos fisicamente, ele já não seria o mesmo. Parte dele agora está aqui. Sabe que você é seu pai. Seria um estranho na Coréia. Sempre o foi, porque o povo de lá não o queria, mas agora sabe disso. Antes não sabia. A corda foi cortada, Chris. Ele está no meio do oceano, à procura da praia.

Chris saltou da cama.

— Vamos aproveitar a esquiação?

Isso não foi difícil. O dia estava brilhante, claro e frio, sem vento, a neve perfeita. Tomaram o desjejum e foram buscar Christopher, que os esperava, já pronto, à entrada do edifício principal, com os esquis na mão. Tinha um olhar de cauta excitação, o ar de uma criança que conhece a decepção e que, no meio da esperança, também está preparada para o desespero. Mas era belo, pensou ela, com os olhos de um azul-escuro, quase roxo, de tão estranho colorido, a pele olivácea, macia e clara, a contrastar com o vermelho de uma velha parka. Teria os seus problemas com mulheres algum dia, isso seria inevitável, e poderia o acaso de seu nascimento impedi-lo de ter a mulher que ele viesse a amar? Que tolice deixar que o espírito lhe galopasse à frente de tantos anos!

— Gosta de esquiar, rapaz? — perguntou Chris.

Laura teve a sensação peculiar de que a palavra "filho" estava muito próxima e o coração lhe saltou dentro do peito, por um segundo; mas ele a substituíra pela palavra mais insignificante, ao menos por enquanto, ou talvez para sempre?

— Gosto, — respondeu Christopher, — mas não é do que mais gosto.

— Do que é que você mais gosta? — perguntou Laura. Dirigiram-se para o automóvel e colocaram os esquis no bagageiro. Depois entraram no carro, ficando Christopher sozinho no banco de trás.

— Então, do que é que você gosta mais? — insistiu Laura.

Ele refletiu cuidadosamente. Aquele ser humano, pensou ela, nunca responderia de impensado a pergunta alguma. Havia nele uma cautela profunda, uma desconfiança da vida.

— Gosto mais de cantar, — disse, por fim.

— Cante para nós, — tornou ela. — Nunca o ouvimos, nem sequer sabíamos que você cantava.

Ele pensou por um momento e, em seguida, sem um comentário, ergueu a cabeça e entoou uma canção coreana. Eles prestaram atenção, entreolhando-se. Aquele não era ura cantar comum, a música clara como o som de uma flauta, a voz ainda não mudada, voz de soprano, aguda, porém forte. Havia vigor naquela voz. Chris, sentia - ela ímpetos de gritar, pode-se perder este menino? Mas permaneceu em silêncio e, quando ele terminou, disse apenas:

— Obrigada.

E como Chris continuasse também em silêncio, ela já ia propor que tratasse da esquiação quando ele, de repente, falou.

— Vamos ouvir uma canção americana, rapaz. Sem hesitação, Christopher recomeçou a cantar. "Oh, formosos céus espaçosos..."

Cantou a canção toda, enquanto Chris dirigia, prestando atenção, os olhos fitos na estrada e nas montanhas cobertas de neve, além da estrada. Quando a voz parou de cantar, ele permaneceu calado por um momento. Depois disse:

— Gosto dessa, rapaz. Alegra-me que você a conheça.

Ninguém falou nem cantou durante os quinze quilômetros seguintes, até que alcançaram a montanha e as encostas de esquiação. Ali chegados, já não havia tempo para coisa alguma a não ser os preparativos para o esporte, amarrar os esquis, tomar o ascensor, erguer-se sobre as brancas vertentes, até que o elevador se deteve e os depositou no topo da montanha.

— Você ficará entre nós, rapaz, — decidiu Chris, — e Laura irá na frente. Eu seguirei atrás, para recolher as sobras, se for o caso.

Ele estava muito atarefado, verificando as correias e o equipamento, obviamente nervoso com o menino e, não lhe conhecendo as habilidades, pronto para aconselhar.

— Você tem a certeza de saber virar? Observe Laura... Sim, pode chamá-la de Laura... Dou licença, e chame-me de Chris, se quiser. Somos todos amigos, não somos? Então, vamos embora!

E lá se foram eles. Ela não se atreveu a virar a cabeça até chegarem ao fim do primeiro pendor. Ali, reduzindo a marcha, olhou para trás e observou os companheiros. Christopher executava um slalom, cautelosamente resoluto e com perfeição e, mais acima dele, Chris ganhava velocidade. Encontraram-se no sopé da montanha, as faces incendidas de frio e os olhos brilhantes de calor. Chris esquecera todos os seus problemas. Bateu nos ombros de Christopher.

— Você ainda será um grande esquiador, rapaz! — gritou ele.

— Obrigado, Pai, — replicou o menino.

Os seus olhos se encontraram, Chris divertido e um tanto encabulado, o garoto sério.

— Está certo, — disse Chris.

 

Era impossível não ceder à atmosfera do Natal. Não haviam comprado nada para si nem para Christopher, pois fora o Natal, até então, uma irrealidade à sombra da imensidade de decisões e resoluções. Mas estas se foram dissipando à luz brilhante do sol refletida na neve, à medida que se sucediam os dias rútilos, e o próprio Natal se avizinhava.

— O menino precisa de melhores esquis, — declarou Chris certa manhã, enquanto se vestiam. — Vou arrumá-los para o seu Natal, e mostrar-lhe-ei como cuidar deles.

— E eu vou comprar-lhe uma nova parka, — anunciou Laura. — A que ele está usando deve ter sido deixada por algum rapaz mais velho. Está boa, mas não lhe pertence. Além disso, ele precisa de melhores instrumentos para esculpir. Vi, outro dia, um conjunto chegado da Dinamarca naquela loja de novidades da esquina.

Depois que principiaram a preparar-se para o Natal, não houve deter o fluxo crescente dos prazeres, tão antigo quanto a própria tradição. Chris se mostrara cínico durante muito tempo, declarando que a cidade e os comerciantes haviam transformado a data num circo comercial. Aqui, entretanto, na simplicidade dos racimos de casas e lojas de uma aldeia das montanhas, não havia brilhos falsos. As árvores de Natal eram cortadas por pais e filhos e decoradas pela família, e Chris, para assombro de Laura, declarou, na manhã da véspera do Natal, que ele e Christopher escalariam o morro que ficava atrás da escola à procura de uma árvore apropriada. Os três a enfeitariam, e caberia a Laura escolher os enfeites. Enquanto os dois "se ausentavam, ela saiu em busca do inusitado e como gostasse de uma árvore não muito ornamentada, trouxe para casa o que comprara e aguardou-lhes o regresso. Uma hora depois voltaram eles, "os meus homens", como os chamava em seus pensamentos, e Chris colocou a árvore num quadro que fizera para a sua base, e ela principiou a pendurar os ornatos. Christopher nunca vira uma árvore de Natal mas, enquanto se quedava sentado no chão, de pernas cruzadas, a observá-la, alcançou o papel prateado e dourado em que os adornos tinham sido embrulhados e entrou a modelá-los, dando-lhes a forma de borboletas e pássaros.

— Lindos, — disse Laura. — Vamos pendurá-los na árvore também.

E Chris, preguiçando agora num confortável paletó de smoking, observava os dois, pensando, pensando, enquanto seu espírito brincava com possibilidades. Possibilidades, pois nem tudo eram impossibilidades! Laura via-o agora em seus olhos, sentia-o em seu sorriso. Talvez, pensou ela, pela primeira vez, a solução do problema avultasse não muito distante. Passado o Natal, depois que ele houvesse regressado à casa, talvez estivesse pronto para deixar manifestar-se o impulso decisivo.

Bom, aquela era a época do Natal e, embora ele sempre se proclamasse despejado de sentimentalismos, estava-se deixando manifestamente envolver pelo fascínio do Natal numa aldeia tão semelhante a um cartão natalino como a que mais o fosse. As luzes de Natal acenderam-se nos abetos que se erguiam fora das casas, uma neve fresca caiu na véspera, no momento exato em que Christopher e Laura enfeitavam a árvore colocada num canto da sala de estar do apartamento, no hotelzinho asseado. Era o primeiro Natal do menino, e ele se pôs a observá-lo, enquanto Laura lhe contava a história do Natal.

— É o aniversário de um homem grande e bom, tão bom que se chamava, e era chamado pelos outros, o Filho de Deus.

Christopher ouvia muito atento, sentado com as pernas cruzadas, perto da árvore, que agora brilhava com as lâmpadas pontiagudas.

— O que é Deus? — perguntou.

— Não lhe contaram aqui na escola? — voltou Laura.

— Já ouvi o nome, — disse ele.

— O Nome é tudo o que conhecemos, — continuou Laura. — Ninguém lhe viu o rosto. Só podemos falar Nele e acreditar que Ele existe porque os mundos existem e foram feitos. Mas esse que se chamava o Filho, nasceu na Terra...

E contou a velha história, que Christopher ouviu com crescente intensidade.

— E, assim, o Filho não tinha onde descansar a cabeça, — concluiu suavemente.

Christopher suspirou, cruzou os braços e balançou-se, para trás e para a frente.

— Às vezes, eu também não tinha onde descansar a cabeça. Às vezes minha avó ficava zangada comigo, eu precisava fugir e, à noite, descansava a cabeça na rua para dormir.

Ela procurou os olhos de Chris com eloqüente indagação.

 Poderemos devolvê-lo a isso?

O dia terminara, caíra a noite e eles se azafamaram, embrulhando os presentes, que cada qual colocava, por seu turno, debaixo da árvore. Cada movimento era novo e emocionante para Christopher. Seu rosto perdera a costumeira expressão de gravidade. Cintilavam-lhe os olhos, os olhos que pareciam pretos e eram azuis. Esquecido de mostrar-se cheio de dignidade, ria-se e fazia uma pergunta atrás da outra.

— Assim? Assim?

Ele estava embrulhando uma caixinha.

— Assim, — disse Chris. — Agora ponha o cartão com o nome da pessoa a quem você vai dar o presente.

— É para o senhor, — bradou- Christopher, a rir. — Só para o senhor! Vai gostar muito. Quer que eu lhe mostre agora?

— Não, não, só amanhã cedo. Aí, então, todos abrirão os presentes. Será divertido.

Ouvindo estas palavras Christopher foi tomado de súbito êxtase. Chris sentiu-lhe os braços em torno da cintura. Abateu os olhos para o rosto expressivo, transfigurado agora pelo sentimento.

— Estou gostando demais do senhor, meu pai!

— Não pode ser demais, rapaz, — disse ele e abraçou, por seu turno, os ombros firmes e jovens.

Em seguida, desvencilhou-se delicadamente. Poderia ser demais, sim. Se decidisse deixar o menino poderia, realmente, ser demais.

— Já é hora de irmos para a cama, — anunciou. — Quase meia-noite... Misericórdia!

Foi na manhã seguinte, entretanto, que ele percebeu que seria realmente demais. Na manhã seguinte, depois que tomaram o desjejum nos quartos, enquanto a árvore de Natal cintilava. Terminada a refeição, os presentes foram abertos e as exclamações se sucederam. Na pilha dos seus, encontrou Chris uma caixa entalhada, pequena mas linda, feita por Christopher.

— Era para mim, — confessou ele, francamente, — para guardar selos, mas quero dá-la ao senhor.

— Pois estou mesmo precisando de uma caixa assim para os meus botões de colarinho, — disse Chris.

Mas Christopher já estava absorto numa alegria toda sua, que lhe proporcionaram os novos esquis, os seus esquis.

— Para mim? — perguntou. — Só para mim? Quando lhe asseguraram que sim, não pôde deixar de

calçar as novas botas e amarrar os esquis e o tempo foi-se passando e, quando repicaram os sinos da igreja, chamando para o serviço da manhã, nem todos os presentes tinham sido abertos. Mas precisaram apressar-se, pois Christopher cantava no coro. E lá se foram espezinhando a neve recente, abrigados contra o vento gelado da manhã, que lhes atirava os flocos ao rosto. Desceram alguns quarteirões da rua alegre e cheia de gente e entraram na igreja, misturando-se à multidão. Christopher deixou-os e, pé ante pé, dirigiu-se à sacristia e ali, entre os outros meninos da aldeia e da escola, vestiu a túnica branca e marchou para a galeria do coro. Em seguida, pôs-se a perscrutar a congregação até encontrar os dois a que de certo modo pertencia, embora não soubesse como, e continuou a observá-los até chegar o momento, pouco antes do sermão, em que ele cantava o seu solo. Nesse momento se levantou, adiantou-se até a borda da galeria e, com as mãos cruzadas nas costas, principiou a cantar como jamais havia cantado.

— Que criança é esta...

Sua voz erguia-se ao teto abobadado e Laura, sentada de mãos dadas com Chris, desprendeu-se dele e, abrindo a bolsa, procurou o lenço. Ouvindo um manso soluço, o marido voltou-se para ela e encontrou-lhe os olhos marejados de lágrimas.

— Chris, — murmurou ela. — Que criança... sim, que criança é esta?

Ele não respondeu.

— Você quer falar com Henry Allen? — perguntou Laura.

O Natal se fora e eles estavam novamente em casa, mas ela sabia que Chris andava muito longe, vagando em algum lugar, num país só seu. Não haviam conversado nada além do necessário ao trato cotidiano, durante os quatro dias decorridos desde o regresso. Ele estivera ocupado no escritório, com os preparativos da mudança para os edifícios do Capitólio, e ela também se preparava para mudar. Aquela casa, que era o seu verdadeiro lar e sempre o seria, ficaria exatamente como estava, e Greta tomaria conta dela. Nos fins de semana e nos feriados voltariam para lá, mas teriam de passar os dias úteis em outra parte, a principiar da semana seguinte. Durante anos fora costume deles dar uma grande festa a todos os amigos na véspera do Ano Novo e o dia seguinte era o penúltimo dia do ano.

Chris não replicou. Estavam sós, numa noite rara e valiosa como um tesouro, das quais pouquíssimas haveria dali por diante. Ardia o lume na lareira, na sala de estar do segundo andar, e ela se sentara na cadeira de veludo cor-de-rosa, defronte de Chris, que vestia o seu paletó azul de smoking. Como ele não respondesse, ela continuou com o seu trabalho de renda irlandesa, que iniciara anos antes e agora recomeçava, uma que outra vez, sem a intenção nem muita esperança de terminar, mas que lhe dava às mãos algo que fazer quando não podia ler, quando estava a sós com o marido.

E como este permanecesse em silêncio, tornou a falar.

— Sei que você está preocupado com alguma coisa e aposto que é a respeito de Christopher. Certo?

— Certo.

— Por isso, se não quer conversar comigo... e posso compreendê-lo, pois você acha que estou sempre do lado dele... por que não conversa com Henry Allen?

— Tomo minhas próprias decisões, — redargüiu Chris.

Ela permaneceu calada por um momento, enquanto movimentava a agulha com resoluta calma. Que estaria ele pensando? Sentia-o longe. Sentia-se empurrada, posta de lado, e aquele estranho e tolo ciúme voltou a assomar no horizonte do seu espírito. Estaria ele com Soonya? Estariam Soonya, Christopher e ele juntos agora em seus pensamentos? Suspirou e dobrou o trabalho que estava fazendo.

— Acho que vou para a cama. Sinto-me cansada esta noite.

— Você não está doente?

— Não. Talvez precise voltar para o meu trabalho.

— Esse seu trabalho... é a sua fuga.

— Pode ser. Todos nós precisamos de uma fuga, não precisamos, Chris?

A voz dela era fria, e ela a queria assim. Sentindo-lhe a frieza, ele agarrou-lhe a mão quando ela passou.

— Não se zangue comigo, querida!

— É claro que não. Só que... estou há tanto tempo no escuro!

— Preciso fazer isso à minha maneira.

— Você sempre fez as coisas à sua maneira, não fez, Chris?

— Mas não é o que você quer?

Ela sentiu ímpetos de retirar a mão, estando tão longe, mas não a retirou. Ao invés disso, sentou-se no tamborete, ao pé da poltrona dele.

— Geralmente, é o que eu quero, — assentiu. — Acaso não quis sempre que você fosse livre? Mas em se tratando dessa criança, de certo modo me sinto com o direito de saber o que se passa no seu espírito. Ele agora é meu filho também. Não tem outra mãe. Quando o tirei de... de Soonya... o que nunca poderia ter feito, Chris, se pensasse que ela o amava ou poderia amá-lo algum dia... Não, positivamente, não o poderia ter feito... assumi a responsabilidade de ser sua mãe... outra espécie de mãe, naturalmente, não uma mulher que apenas tomasse o lugar de outra pessoa, mas de alguém que ele realmente nunca teve. Por isso, em certo sentido, acho que você devia, pelo menos, deixar que eu partilhasse dos seus pensamentos.

Ele ouviu-a, enquanto os olhos azuis brilhavam como a luz áspera do sol sobre o rosto dela erguido para o dele. Mas abanou a cabeça.

— Sinto muito, — disse, ríspido. — Ainda não posso. Preciso verificar o que significa para mim, a decisão que vou tomar. Não sei qual delas, mas estou caminhando, passo a passo, para uma ou outra. É minha carreira, é minha vida que está em jogo.

— Henry Allen... — interrompeu ela.

— Não é a vida de Henry Allen, — retrucou ele.

Laura fitou os olhos nos olhos azuis e viu-se refletida, muito pequenina, nas pupilas negras.

— Já lhe ocorreu porventura que, conforme a sua decisão, eu poderei... desprezá-lo?

— Paciência, — disse ele, com sobrecenho.

Ela ergueu-se, beijou-lhe rapidamente a testa e dirigiu-se para o quarto. Lá se quedou, hesitante, por um momento. Em seguida, endereçou-se à porta que havia entre os quartos de ambos e que estava aberta, como sempre, fechou-a e trancou-a. Hesitou por mais um instante. Finalmente, destrancou-a, mas deixou-a fechada.

Duas noites mais tarde, a casa se enchia dos ruídos e dos risos da sua festa. A música ondulante de uma orquestra de danças difundia-se pelos salões abertos. Ela decidira decorá-los com os belos arranjos florais modernos e os convivas, aos grupos, admiravam-lhe o trabalho. Ela gostava desses efeitos decorativos e o planejá-los com um florista ocupara-lhe a superfície da mente enquanto esperava, sem saber o quê. Não chegara carta nenhuma de Christopher. Kim Christopher, como principiara a chamá-lo de novo em seus pensamentos, por uma razão apenas intuitiva ou talvez apenas defensiva, preparando-se para Chris se ele decidisse...

— Como vai, Laura? — perguntou a Sra. Allen. Voltou-se para cumprimentar os dois, o Sr. e a Sra.

Henry Allen. A Sra. Allen com o costumeiro vestido preto de tafetá e ele com o dinner-jacket que mandara fazer em Londres anos atrás, e que parecia agora esticado na frente, sobre o ventre que se expandia, em rugas concêntricas.

— Você está muito bonita nesse vestido branco, meu bem, — disse ela, apertando a mão de Laura. — Mas tudo está até mais esplêndido que de costume. Sentirei muito não vir a esta festa no ano que vem.

— Mas a senhora virá, sim, — disse ela, impetuosa. — Daremos a festa todos os anos, como sempre, para sempre!

Sorriram, afastando-se, e ela se voltou para cumprimentar outros convidados, outros casais, que agora se juntavam densamente nas três grandes salas. Na sala de jantar, os garçons esperavam, prontos para servir, ao pé das mesas cheias de iguarias e, na sala de estar, alguns pares já dançavam. Aqui na biblioteca, ela e Chris... Onde estava Chris? Um momento antes estivera ali e viera, supunha ela, para ficar ao seu lado. Agora se fora. Virou a cabeça para um lado e para outro. Não, não conseguia vê-lo. Estaria, com certeza, no escritório com Berman. Ó Chris, será que você não pode esquecer os negócios por um momento? murmurou, entre dentes. Ansiava por encontrá-lo, mas não pôde sair dali, porque os convivas principiavam a chegar depressa demais.

— Onde está Chris?

— Não vejo o Sr. Winters.

Repetidamente, precisou esquivar-se à pergunta.

— Está por aqui. Eu o encontrarei já já.

Depois, de repente, ele tornou a aparecer. Veio do vestíbulo, parecendo muito confiante e forte, as faces vermelhas, como se tivesse estado lá fora. E foi postar-se incontinenti ao lado dela.

— Chris, onde é que você esteve?

— Você saberá depois.

Não havia tempo para mais nada entre eles. A noite colheu-o no seu redemoinho.

— Uma festa maravilhosa, você faz tudo muito bem, — disse ele com ternura, enquanto dançavam.

Depois alguém os separou e ela não tornou a vê-lo senão aqui e ali, ora dançando, ora conversando, ora fazendo o papel de anfitrião com a naturalidade habitual. Todos os convivas lá estavam, uns duzentos talvez, calculou ela, quase todos os que haviam sido convidados. Olhava para o relógio de vez em quando. Faltava apenas meia hora para a meia-noite e para o Ano Novo! Era sempre um momento solene aquela meia-noite do ano que passava. Mas nunca tão solene como naquela noite. O Ano Novo — que lhes reservava ele? Formulou-se a velha pergunta e ela fugiu para a estufazinha, onde ficou só por um momento. No ano que se aproximava não havia apenas para Chris a vida nova como governador, nem para ela apenas a existência como sua esposa e primeira dama do Estado. Aquele ano responderia à sua pergunta sobre Chris. Ela não deixaria de amá-lo, fosse o que fosse que ele fizesse, mas seria esse amor suficiente? Tanto para ele quanto para ela? E se ocorresse aquela determinada quebra de que ela tanto temia? E se ele não se erguesse em toda a altura que ela lhe fixara?

E o erro é meu, pensou ela, pois quando fixo uma altura minha para ele, estou tomando por ele uma decisão que não tenho o direito de tomar.

De repente percebeu um movimento na porta que dava para o vestíbulo. A orquestra parou de tocar. Mas não era cedo demais? Ainda não batera meia-noite — e geralmente a música de dança continuava, cada vez mais rápida, até que o relógio começasse a bater e a orquestra atacasse os primeiros compassos do Auld Lang Syne.

— Meus amigos!

Chris estava em pé, à soleira da porta, e sua voz ecoou pelas salas. Ela saiu da estufa mas não entrou nas salas apinhadas. Nunca lhe vira aquela expressão, nem sequer quando ele pronunciara o discurso de posse como governador.

— Dirijo-me a vocês como meus amigos, — disse ele. — Dirijo-me a vocês também como aos homens e às mulheres que apoiaram minha ambição de ser governador de nosso Estado. Não quero e, na realidade, não poderia ocultar-lhes o que significa para mim haver chegado a esse ponto. Sim, sou ambicioso! Sim, tenho meus sonhos! Continuarei a sonhar. Quero ser um bom governador. Quero servi-los bem e quero servir ao nosso povo. Acredito que posso fazê-lo. Mas hoje desejo partilhar com vocês de uma parte de minha vida da qual vocês nada conhecem. Ela percebeu instantaneamente o que ele ia fazer, e ficou prestando atenção, a respiração ofegante, as lágrimas a lhe rolarem pelo rosto, o coração a bater-lhe descompassado. Ouviu-o pintar, com imagens vigorosas, o quadro dos jovens longe de casa, perdidos em guerras que não compreendiam, empenhados em batalhas com inimigos humanos e desumanos.

— Estes são nossos homens, — disse ele. — Nossos filhos e nossos irmãos. Estão vivendo e morrendo hoje em sete países da Ásia! São muito jovens, lamentavelmente jovens. Cresceram em lares como os seus e como o meu... Lares bons, quentes, seguros. Hoje se sentem completamente sós. Por que o sei? Porque já fui um deles, há muito tempo, num país chamado Coréia.

Fez uma pausa, apertou os lábios e prosseguiu.

— Os nossos jovens encontram o conforto que podem, onde podem encontrá-lo. Não os censuro nem os defendo. Fui um deles. Agarram-se à vida com ambas as mãos, pois nunca sabem a hora em que vão morrer. Fui um deles. Reúnem-se em salões de danças. Não há outro lugar em que possam reunir-se. Conhecem garotas. Compram o amor que se lhes oferece. Sim, sabem que é uma lastimosa, uma falsa forma de amor mas, comumente, é a única que podem encontrar. Vivem à sombra da morte iminente e buscam refúgio nos braços de uma moça... Uma estranha, mas uma mulher. Fui um desses jovens, mas tive mais sorte que a maioria, pois o que encontrei, embora temporário, não era ordinário. A história, porém, não termina aqui. Se terminasse, não mereceria ser contada. Mais uma vez, não termina aqui. Dessa breve união, que tantas vezes acaba com a morte no dia seguinte, às vezes surge uma vida. A vida de uma criança. Nos sete países da Ásia em que nossos homens estão vivendo, lutando, morrendo, essas crianças estão nascendo. Que significado têm elas? Este... elas são a nova gente, as crianças do futuro, nascidas cedo demais, antes que o mundo se houvesse preparado para recebê-las. Ninguém está preparado para elas, nenhum país, homem nenhum, mulher alguma. Nascem sem estado. Sabem-no os pais? Às vezes sim, às vezes não. O que não sabem é que na Ásia o filho pertence ao pai. Eu era um dos que não sabiam... até que uma criança nasceu. Da minha união. Agora sei.

Deteve-se num longo silêncio. Um silêncio interminável, pensou Laura. Ele olhava por sobre a cabeça dos outros, com os maxilares cerrados. Ela conhecia o sangue que fervia naqueles maxilares cerrados. A sala mergulhou num silêncio total — nem um movimento, nem uma tosse, nem um sussurro. Mas ele se voltou, estendeu a mão e ela o viu arrastar Christopher para a sala. Ficaram lado a lado, pai e filho. O filho ergueu os olhos para o pai e o pai sorriu para o filho. Era impossível não ver a semelhança — os mesmos olhos, a mesma boca, o mesmo perfil!

— Christopher, — disse Chris, — estes são os nossos amigos. Quero que você os conheça e quero que eles o conheçam porque você agora está em sua casa para ficar. Quero que eles me conheçam também. E é por isso que lhes contei a sua história.

O menino não fez um movimento. Continuava a olhar para o pai. Chris voltara a falar para os outros, desta feita jovialmente, como se se sentisse, de repente, aliviado.

— Amigos, este é meu filho... nosso filho, pois minha esposa está comigo. Ela foi à Coréia e trouxe o nosso menino. Nosso filho Christopher. Ele tem uma bonita voz. Quero que cante para vocês. Cante, Christopher!

Christopher adiantou-se, deu um passo à frente do pai e, erguendo a cabeça cantou:

"Meu país, é de ti..."

Ó Chris, chorava Laura mansamente e dizia entre si, ó Chris, quem senão você... quem senão você...

Mas precisava dominar-se depressa, pois assim que a canção se acabasse devia estar ao lado deles. Entretanto, não foi bastante rápida. Antes que conseguisse alcançá-los, o velho Sr. e a Sra. Allen adiantaram-se, de braço dado.

— Bem-vindo seja, Christopher, — disse a Sra. Allen com a voz alta e imperial. — Estamos contentes por você ter vindo para casa.

— Bem-vindo seja, meu rapaz, — disse o Sr. Allen e, empolgando as duas mãos de Christopher nas suas, sa­cudiu-as ao mesmo tempo. Em seguida, voltou-se para Chris.

— Parabéns, Winters, um belo filho... um belíssimo me­nino... Estou contente por você tê-lo encontrado... contente por tudo!

A multidão esperou, duvidando, mas depois atirou-se para a frente, seguindo o velho casal que sempre fora o seu líder. E Laura, correndo pelo vestíbulo, tomou o seu lugar ao lado de Chris. No meio dos apertos de mãos, dos olhares curiosos e dos vários sorrisos, encontrou uma opor­tunidade para murmurar.

— E agora, Chris, meu amor?

Ele dirigiu-lhe um de seus sorrisos de soslaio.

— Quem sabe?

— De qualquer maneira, — murmurou ela, — agora somos três.

— Até aqui, tudo bem, — disse ele.

— Até aqui, tudo bem, — ecoou ela e, por trás das costas do marido, alcançou a mão direita de Christopher.

Quando o relógio principiou a bater a hora mágica, as vozes dos amigos em torno deles elevaram-se numa can­ção. Por sobre as vozes que cantavam podia ouvir-se a clara voz de seu filho Christopher — "Se os velhos conhe­cidos se esquecerem..." Nunca, pensou ela, serão esqueci­dos! Mas Soonya, o Sr. Choe, a Coréia, faziam todos parte do passado, e aquele era um Ano Novo.

 

                                                                                            Pearl S. Buck

 

                      

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